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LOVE – A HISTORIA DE LISEY / Stephen King
LOVE – A HISTORIA DE LISEY / Stephen King

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

LOVE – A HISTORIA DE LISEY

 

Lisey e Amanda

(Tudo na Mesma)

Aos olhos do público, as mulheres de escritores famosos são invisíveis, e ninguém sabia disso melhor do que Lisey Landon. O marido dela havia ganhado o Pulitzer e o National Book Award, mas Lisey dera apenas uma entrevista na vida. Tinha sido para uma conhecida revista feminina que publica a coluna “Sim, Eu sou Casada com Ele!”. Ela gastou prati­camente metade das quinhentas palavras da matéria explicando que seu apelido rimava com “SiSi”. A outra metade quase inteira tinha a ver com sua receita de rosbife ao fogo baixo. Amanda, irmã de Lisey, disse que ela saiu gorda na foto.

Nenhuma das irmãs de Lisey era imune aos prazeres de se jogar o gato no meio dos pombos (“botar pra feder”, como dizia o pai delas), ou de se bater um bom papo sobre a roupa suja de outra pessoa, mas a única de que Lisey tinha dificuldade de gostar era exatamente Amanda. Amanda, a mais velha (e mais estranha) das Debusher de Lisbon Falis, morava sozinha, em uma casa pequena e à prova de intempéries que Lisey lhe arranjara perto de Castle View, onde Lisey, Darla e Cantata podiam ficar de olho nela. Lisey a havia comprado para a irmã sete anos atrás, cinco antes de Scott morrer. Morrer jovem. Morrer Antes do Seu Tempo, como se diz. Ainda era difícil para Lisey acreditar que ele estava morto há dois anos. Parecia ter sido há mais tempo e igualmente há um piscar de olhos.

Quando Lisey finalmente conseguiu começar a limpar o escri­tório dele, uma longa e bem iluminada série de aposentos que antes nada mais era do que um loft em cima de um celeiro, Amanda apare­ceu no terceiro dia, depois de ela ter acabado o inventário de todas as edições estrangeiras (havia centenas delas), mas antes de mal começar a listar a mobília, colocando estrelinhas ao lado daquelas que achava que devia manter. Imaginou que Amanda fosse perguntar por que ela não estava sendo mais rápida, pelo amor de Deus, mas Amanda não perguntou nada. Enquanto ela trocava a questão da mobília para se dedicar — sem fazer listas (e por um dia inteiro) — às caixas de pa­pelão de correspondências empilhadas no armário principal, Amanda parecia continuar concentrada nos impressionantes montes e pilhas de memorabilia que cobriam toda a extensão da parede sul do escritó­rio. Ela ia e voltava ao longo daquele aglomerado serpeante, falando pouco ou nada, mas escrevendo o tempo todo no bloquinho de ano­tações que tinha à mão.

O que Lisey não falou foi: O que você está procurando? Ou: O que está escrevendo? Conforme Scott havia observado mais de uma vez, Lisey tinha aquele que certamente estava entre os mais raros talentos huma­nos: ela cuidava da própria vida e não ligava muito se você não cuidasse da sua. Quer dizer, desde que você não estivesse fazendo explosivos, e, no caso de Amanda, explosivos eram sempre uma possibilidade. Ela era o tipo de mulher que não conseguia deixar de se intrometer, o tipo de mulher que, cedo ou tarde, abriria a boca.

O marido dela tinha ido para Rumford, ao sul, onde eles haviam morado (“como dois carcajus presos dentro de uma calha”, disse Scott depois de uma visita vespertina que ele jurou nunca mais repetir) em 1985. A única filha deles, que se chamava Intermezzo e cujo apelido era Metzie, tinha ido para o Canadá (com o namorado caminhoneiro) em 1989. “Uma foi para o norte, outra foi para o sul, a outra não conseguia ficar de bico calado.” Era assim que o pai delas falava quando eram crianças, e a filha de Dandy Dave Debusher que não conseguia ficar de bico calado era sem dúvida Manda, abandonada primeiro pelo marido e depois pela própria filha.

Por mais difícil de se gostar que Amanda fosse às vezes, Lisey não a queria sozinha lá em Rumford; não confiaria nela sozinha e tinha certeza de que, embora nunca tivessem falado nada, Darla e Cantata achavam o mesmo. Então ela conversou com Scott e encontrou a casi­nha, que sairia por 97 mil dólares à vista. Amanda se mudou para uma distância acessível logo em seguida.

Agora Scott estava morto e Lisey tinha finalmente conseguido co­meçar a esvaziar o local em que ele escrevia. Na metade do quarto dia, as edições estrangeiras estavam todas encaixotadas, a correspondência mais ou menos organizada e ela fazia uma boa idéia de quais móveis iriam embora e quais ficariam. Então por que parecia que fizera tão pouco? Sabia desde o início que aquele era um trabalho que não podia ser feito às pressas. Que se danassem as cartas importunas e os telefone­mas que recebera desde a morte de Scott (e mais do que algumas visitas também). Ela imaginava que, no fim das contas, as pessoas interessadas no material não publicado dele iriam conseguir o que queriam, mas não antes de ela estar pronta para entregá-lo. No começo, eles não foram claros quanto a isso; não estavam caindo dentro, como se diz. Agora, ela achava que a maioria deles estava.

Havia muitas palavras para as coisas que Scott deixara para trás. A única que ela entendia totalmente era memorabilia, mas havia outra, en­graçada, que parecia incuncabilla. Era o que queriam os impacientes, os bajuladores e os nervosinhos — a incuncabilla de Scott. Lisey começou a chamá-los de Incunks.

 

O que ela sentia acima de tudo, especialmente depois de Amanda apa­recer, era desânimo, como se tivesse ou subestimado o trabalho em si ou superestimado (imensamente) sua capacidade de alcançar a inevitável conclusão dele — os móveis restantes guardados no celeiro de baixo, os tapetes enrolados e lacrados com fita, a van amarela na entrada para carros, lançando sua sombra na cerca de tábuas entre o seu jardim e o dos Galloways.

Ah, e não podemos esquecer do triste coração daquele lugar, os três computadores (três que tinham sido quatro, mas o que ficava no “can­tinho da memória” não estava mais lá, graças à própria Lisey). Cada um era mais novo e mais leve do que o anterior, mas mesmo o mais novo era um modelo grande, e todos ainda funcionavam. Tinham senhas, também, e ela não sabia quais eram. Nunca tinha perguntado e não imaginava que tipo de entulho eletrônico poderia estar adormecido nos seus discos rígidos. Listas de compras? Poemas? Pornografia? Ela não tinha dúvida de que ele usava a Internet, mas não fazia idéia das páginas que visitava quando estava lá. Amazon? Drudge? Hank Williams Vive? Chuva Dourada na Torre do Poder da Madame Cruella? Ela não acredi­tava que fosse algo parecido com essa última hipótese e imaginava que teria visto as contas (ou pelo menos um furo no balanço mensal da casa), embora soubesse que aquilo era bobagem: se Scott quisesse ter escon­dido mil dólares por mês dela, o teria feito. E as senhas? O engraçado é que ele talvez tivesse lhe dito quais eram. Ela é que esquecia aquele tipo de coisa. Lembrou de tentar o próprio nome. Talvez depois de Amanda voltar para casa. O que, pelo jeito, não aconteceria tão cedo.

Lisey se recostou e soprou o cabelo de cima da testa. Nesse ritmo, não vou chegar aos manuscritos antes de julho, pensou ela. Os Incunks ficariam doidos se vissem como eu estou indo devagar. Especialmente aquele último.

O último — cinco meses atrás — tinha conseguido não explodir, manter um linguajar muito civilizado até ela começar a pensar que ele talvez fosse diferente. Lisey lhe dissera que, àquela altura, o escritório em que Scott escrevia estava vazio há quase um ano e meio, mas que ela estava perto de juntar toda a energia e determinação necessárias para subir e começar a limpar os cômodos e dar um jeito no lugar.

O nome do visitante era professor Joseph Woodbody, do Depar­tamento de Inglês da Universidade de Pittsburgh. Pitt era a alma mater de Scott e a aula expositiva de Woodbody sobre Scott Landon e o Mito Americano era extremamente popular e extremamente longa. Ele tam­bém tinha quatro alunos de pós-graduação escrevendo teses sobre Scott Landon naquele ano, então era provavelmente inevitável que o guerrei­ro Incunk viesse à tona ao ouvir Lisey falar em termos tão vagos quanto dentro em breve e quase certamente em algum momento deste verão. Po­rém, somente quando ela garantiu a ele que ligaria “assim que a poeira assentasse” foi que Woodbody começou mesmo a se revelar.

Disse que o fato de ela ter dividido a cama com um grande escritor americano não a qualificava a cuidar do seu espólio literário. Falou tam­bém que aquilo era trabalho para um especialista e que, até onde sabia, a sra. Landon não tinha nenhum diploma superior. Recordou-a do tem­po que já havia passado desde a morte de Scott Landon e dos boatos que continuavam crescendo. Supostamente, haveria pilhas de ficção inédita de Landon — contos, romances até. Será que ela não poderia deixá-lo entrar em seu escritório nem um pouquinho? Deixá-lo garimpar um pouco os fichários e gavetas, nem que fosse para acabar com os boatos mais escandalosos? Ela poderia acompanhá-lo o tempo todo, é claro — nem precisava dizer.

— Não — falou ela, levando o professor Woodbody à porta. — Ainda não estou pronta. — Ignorando os golpes mais baixos do ho­mem, tentando, pelo menos, pois ele era claramente tão louco quanto os outros. Só escondia melhor e por mais tempo. — E, quando eu estiver, vou querer olhar tudo, não só os manuscritos.

— Mas...

Ela assentiu com seriedade para ele.

— Tudo na mesma.

— Não entendo o que a senhora quer dizer com isso.

É claro que não entendia. Fazia parte do dialeto interno do seu casamento. Quantas vezes Scott tinha entrado em casa, dizendo: “Li­sey, cheguei. Tudo na mesma?” O que significava tudo bem, tudo legal. Porém, como a maioria das frases de efeito (Scott tinha explicado isso a ela uma vez, mas Lisey já sabia), essa tinha um significado oculto. Um homem como Woodbody jamais entenderia o significado oculto de tudo na mesma. Lisey poderia explicar o dia inteiro e ele continuaria sem entender. Por quê? Porque ele era um Incunk e, no que dizia respeito a Scott Landon, apenas uma coisa o interessava.

— Não tem importância — foi o que ela disse ao professor Wood­body naquele dia, cinco meses atrás. — Scott entenderia.

 

Se Amanda tivesse perguntado a Lisey onde ela havia guardado as coisas do “cantinho da memória” de Scott — os prêmios, placas e coisas do gênero —, Lisey teria mentido (uma coisa que ela fazia razoavelmente bem para alguém que mentia tão pouco) e diria “em um depósito em Mechanic Falls”. No entanto, Amanda não perguntou. Apenas folheava cada vez mais ostensivamente seu bloquinho de anotações, sem dúvida tentando fazer com que sua irmã mais nova abordasse o assunto com a pergunta certa. No entanto, Lisey não fez nenhuma pergunta. Ela estava pensando em como aquele canto era vazio, como era vazio e de­sinteressante, sem tantas das lembranças de Scott. Ou estavam destruídas (como o monitor do micro) ou danificadas demais para ficarem à mos­tra; exibi-las levantaria mais perguntas do que era possível responder.

Finalmente, Amanda desistiu e abriu seu bloco de anotações.

— Veja isso — disse ela. — Só dê uma olhada.

Manda estendia a primeira página. Escritos nas linhas azuis, aper­tados entre as voltinhas que subiam da esquerda até o canto direito da página (como um código daqueles malucos de rua que você sempre encontra em Nova York porque não há mais dinheiro o bastante para instituições psiquiátricas públicas, pensou Lisey com desânimo), havia números. A maioria estava circulada. Alguns poucos estavam dentro de quadrados. Manda virou a página e apareceram duas folhas cheias da mesma coisa. Na metade da página seguinte, os números paravam. O último parecia ser 846.

Amanda fez aquela expressão arrogante, de certa forma hilária, em que olhava de esguelha, com as faces coradas, e que significava, quando tinha 12 anos e a pequena Lisey apenas 2, que Manda tinha Resolvido Alguma Coisa Sozinha, portanto alguém iria chorar. A própria Aman­da, geralmente. Lisey se viu esperando com algum interesse (e um pou­co de medo) para ver o que aquela expressão poderia significar daquela vez. Amanda vinha agindo estranhamente desde que chegara. Talvez fosse apenas o clima feio e abafado. Porém, era mais provável que tivesse a ver com o súbito desaparecimento do seu namorado de longa data. Se Manda estivesse prestes a dar outro tempestuoso ataque emocional por­que Charlie Corriveau tinha rompido com ela, então Lisey achava que era melhor se preparar. Ela nunca tinha gostado de Corriveau ou confia­do nele, independentemente de ele ser banqueiro. Como confiar em um homem depois de entreouvir, no chá beneficente de primavera em prol da biblioteca, que os caras que bebem no Mellow Tiger o chamavam de Shootin’ Beans? Que tipo de apelido era aquele para um banqueiro? O que significava, para começo de conversa? E é claro que ele devia saber que Manda havia tido problemas mentais no passado...

— Lisey? — perguntou Amanda. Sua testa estava bastante franzida.

— Desculpe — disse Lisey —, eu só... fiquei fora do ar por um instante.

— Você sempre faz isso — falou Amanda. — Acho que pegou do Scott. Preste atenção, Lisey. Eu numerei cada uma das revistas, periódi­cos e coisas acadêmicas. Os que estão empilhados lá naquela parede.

Lisey assentiu como se entendesse para onde aquilo iria levar.

— Escrevi os números a lápis, clarinho — prosseguiu Amanda. — Sempre que você estava de costas ou em algum outro lugar, porque achei que, se você visse, teria me mandado parar.

— Não teria, não. — Ela pegou o bloquinho de anotações, que estava mole com o suor da sua dona. — Oitocentos e quarenta e seis! Isso tudo! — E ela sabia que as publicações que corriam pela parede não eram do tipo que ela leria ou teria em casa, tipo O, a revista da Oprah, Good Housekeeping e Ms., mas sim Little Sewanee Review, Glimmer Train, Open City e coisas com nomes incompreensíveis, como Piskya.

— Bem mais que isso — disse Amanda e apontou com um polegar o amontoado de livros e revistas. Quando Lisey olhou bem para ele, viu que a irmã tinha razão. Eram muito mais do que oitocentos e quarenta e poucas. Só podia. — Quase 3 mil ao todo e com certeza não sei dizer onde você pode colocá-las e quem iria querê-las. Não, 846 é o número só das que têm fotos suas.

Isso foi dito de forma tão estranha que a princípio Lisey não conse­guiu entender. Quando conseguiu, ficou encantada. A idéia de que po­deria haver uma fonte tão inesperada de fotografias — um registro tão escondido do tempo dela com Scott — nunca lhe passara pela cabeça. Porém, quando ela parou para pensar, fazia todo sentido. Estavam casa­dos há mais de 25 anos quando ele morreu, e Scott tinha sido um viajan­te inveterado e incansável no decorrer daqueles anos, fazendo leituras, dando palestras, ziguezagueando pelo país quase sem parar quando es­tava entre um livro e outro, visitando até noventa campi por ano e sem deixar cair a peteca em sua aparentemente interminável enxurrada de contos. E, na maioria daquelas perambulações, ela o acompanhou. Em quantos motéis passara o pequeno vaporizador em um de seus ternos enquanto a TV murmurava evangelhos de talk show no lado dela do quarto e sua máquina de escrever portátil não parava de estalar (no começo do casamento) ou o laptop de clicar baixinho (mais tarde) en­quanto ele ficava sentado, olhando para baixo com uma mecha do ca­belo caindo sobre a testa?

Manda olhava para ela emburrada, claramente não gostando da sua reação até ali.

— Os que estão circulados, mais de seiscentos, são aqueles em que você foi tratada com desrespeito na legenda da foto.

— É mesmo? — Lisey ficou bestificada.

— Vou mostrar. — Amanda consultou o bloco, foi até o amon­toado adormecido ao longo de toda a parede, fez outra consulta e se­lecionou dois itens. Um era um bianuário luxuoso de capa dura da Universidade do Kentucky, em Lexington. O outro, uma revista em formato de livreto que parecia feita por estudantes, chamada Push-Pelt: um daqueles nomes inventados por alunos de Inglês para serem char­mosos e não significarem absolutamente nada.

— Abra, abra! — comandou Amanda e, à medida que ela os em­purrava para suas mãos, Lisey sentiu o cheiro forte e acre do suor da irmã. — As páginas estão marcadas com titicas de papel, está vendo?

Titicas. A palavra da mãe delas para tiras. Lisey abriu primeiro o bianuário, virando até a página marcada. A foto dela e de Scott nele era muito boa, muito bem impressa. Scott estava se encaminhando para um pódio enquanto ela estava ao fundo, aplaudindo. A fotografia dos dois na Push-Pelt não era nem de perto tão bem impressa; os pon­tos na imagem matricial eram enormes, como se tivessem sido feitos com um lápis com a grafite gasta, e havia farpas flutuando no papel barato, mas ao olhar para ela, Lisey teve vontade de chorar. Scott esta­va entrando em um porão escuro e barulhento. Estava com um bom e velho sorriso à la Scott na cara que dizia: pode crer, aqui é o lugar. Ela estava a um ou dois passos dele, seu próprio sorriso visível nos restos do que devia ter sido um flash poderoso. Conseguia até ver a blusa que estava usando, aquela Anne Klein azul com a curiosa listra vermelha solitária que descia pelo lado esquerdo. O que usava embaixo estava perdido nas sombras, e ela não conseguia se lembrar daquela noite em especial, mas sabia que tinha sido jeans. Quando saía à noite, sem­pre botava uma calça jeans desbotada. A legenda dizia: A Lenda Viva Scott Landon (Acompanhado da Patroa) Faz uma Aparição no Stalag 17 Club da Universidade de Vermont, no Mês Passado. Landon Ficou Até Altas Horas, Lendo, Dançando e Curtindo. O Cara Sabe Meter Bronca.

Sim. O cara sabia meter bronca. Disso ela estava de prova.

Lisey olhou para todos os outros periódicos e, de repente, foi es­magada pelas riquezas que poderia encontrar neles. Percebeu então que, no fim das contas, Amanda a havia magoado, abrira uma ferida nela que sangraria por um longo tempo. Será que só ele sabia sobre os lugares obscuros? Os lugares sujos e obscuros onde você se sentia tão só e des­graçadamente sem palavras? Talvez ela não soubesse tudo sobre ele, mas sabia o suficiente. Sem dúvida sabia que ele era atormentado e jamais olharia em um espelho — ou qualquer outra superfície refletora, se pu­desse evitar — depois do pôr do sol. E que o amara apesar disso tudo. Porque o homem sabia meter bronca.

Mas chega. Agora o homem estava metido no chão. Tinha feito a passagem, como se diz. A vida dela tinha passado para uma nova fase, uma fase solo, e era muito tarde para voltar atrás.

A frase a fez estremecer e pensar em coisas

(a roxidão, a coisa com o lado matizado)

que era melhor esquecer, então afastou o pensamento delas.

— Fico feliz que você tenha encontrado essas fotos — disse ela com ternura para Amanda. — Você é uma ótima irmã mais velha, sabia?

E, conforme Lisey imaginava (mas não a ponto de ousar esperar), Manda foi arrancada de supetão do seu rebolado arrogante e sarcástico. Ela olhou indecisa para Lisey, parecendo buscar falsidade, sem sucesso. Aos poucos, relaxou, tornando-se aquela Amanda dócil e mais fácil de lidar. Ela pegou o bloco de volta e franziu o cenho para ele, como se não soubesse ao certo de onde ele tinha saído. Lisey pensou, considerando a natureza obsessiva dos números, que aquele poderia ser um grande passo em uma boa direção.

Então Amanda assentiu, como se tivesse se lembrado de algo que nem deveria ter esquecido.

— Nos que não estão circulados, você pelo menos é chamada pelo nome: Lisa Landon, uma pessoa de verdade. Por último, mas nem de per­to menos importante, você verá que alguns números estão dentro de quadrados. São fotos suas sozinha! — Ela lançou um olhar impressio­nante, quase proibitivo, para Lisey. — Essas, você vai querer olhar.

— Sem dúvida. — Tentando parecer empolgadíssima quando não conseguia imaginar por que teria o mínimo interesse em fotos suas so­zinha durante aqueles anos tão breves em que teve um homem — um homem bom, um anti-Incunk que sabia como engatilhar — para divi­dir com ela os dias e as noites. Ela baixou os olhos para as pilhas desor­ganizadas e montes de periódicos, que vinham em todos os tamanhos e formatos, imaginando como seria vasculhá-los pilha a pilha e um a um, sentada com as pernas cruzadas no chão do cantinho da memória (onde mais?) caçando aquelas imagens dela e de Scott. E, naquelas que sempre deixaram Amanda tão irritada, ela sempre se veria andando um pouco atrás dele, olhando-o de baixo para cima. Se os outros estivessem aplaudindo, ela também estaria. Seu rosto estaria liso, quase inexpres­sivo, demonstrando apenas uma educada atenção. Seu rosto diria: Ele não me entedia. Seu rosto diria: Ele não me exalta. Seu rosto diria: Eu não colocaria minha mão no fogo por ele, nem ele por mim (a mentira, a mentira, a mentira). Seu rosto diria: Tudo na mesma.

Amanda odiava aquelas fotografias. Ela olhava e via a irmã fazendo o papel de sal para a carne, de engaste para a pedra preciosa. Via a irmã às vezes ser identificada como sra. Landon, outras como sra. Scott Lan­don e, outras — ah, que ódio —, nem mesmo identificada. Rebaixada a Patroa. Para Amanda, aquilo devia parecer uma espécie de assassinato.

— Mandy?

Amanda olhou para ela. A luz era cruel e Lisey se lembrou com um choque real e absoluto que Manda faria 60 anos no outono. Sessenta! Naquele instante, Lisey se pegou pensando sobre a coisa que assombrara seu marido durante tantas noites insones — a coisa que os Woodbody do mundo jamais descobririam, não se as coisas saíssem como ela que­ria. Algo com um lado matizado enorme, algo mais familiar a pacientes cancerosos que olham dentro de frascos sem mais nenhum analgésico; nenhum para tomar até o amanhecer.

Está muito perto, querida. Não consigo vê-lo, mas dá para ouvi-lo se alimentando.

Cale a boca, Scott, não sei do que você está falando.

— Lisey? — perguntou Amanda. — Você disse alguma coisa?

— Estava só resmungando. -— Ela tentou sorrir.

— Estava falando com Scott?

Lisey desistiu de tentar sorrir.

— É, acho que sim. Às vezes eu ainda faço isso. Maluquice, né?

— Eu não acho. Não se funciona. Acho que maluquice é o que não funciona. E disso eu entendo. Já tenho experiência. Não é?

— Manda...

Mas Amanda tinha se virado para olhar os montes de periódicos, anuários e revistas de alunos. Quando voltou a encarar Lisey, estava com um sorriso indeciso.

— Eu fiz bem, Lisey? Só queria fazer minha parte...

Lisey pegou uma das mãos de Amanda e a apertou de leve.

— Fez sim. Que tal sairmos daqui? Cara e coroa para ver quem toma banho primeiro.

 

Eu estava perdido no escuro e você me encontrou. Eu estava com calor — com tanto calor — e você me deu gelo.

A voz de Scott.

Lisey abriu os olhos, pensando que havia se desligado de algum afazer ou momento cotidiano e tido um sonho breve, porém incrivel­mente detalhado, em que Scott estava morto e ela estava envolvida no trabalho hercúleo de limpar os celeiros em que ele escrevia. Com eles abertos, Lisey compreendeu imediatamente que Scott estava morto; ela estava dormindo na sua própria cama depois de deixar Manda em casa e aquele era o seu sonho.

Ela parecia estar flutuando na luz do luar. Sentia o cheiro de flores exóticas. Um vento de verão filigranado penteava-lhe os cabelos para trás das têmporas, um vento do tipo que sopra bem depois da meia-noi­te em algum lugar secreto longe de casa. Sim, aquela era sua casa, tinha que ser, pois diante dela estava o celeiro que abrigava o escritório de Scott, alvo de tanto interesse dos Incunks. E agora, graças a Amanda, ela sabia que guardava todas aquelas fotografias dela e do falecido marido. Todo aquele tesouro enterrado, aquele espólio emocional.

Talvez seja melhor não olhar aquelas fotos, sussurrou o vento em seus ouvidos.

Ah, disso ela não tinha dúvida. Mas olharia. Era inevitável, agora que sabia que estavam lá.

Encantou-se ao ver que estava flutuando em um grande pedaço de pano iluminado pelo luar, com as palavras A FARINHA NÚMERO UM DE PILLSBURY escritas repetidas vezes nele; as beiradas tinham sido amarra­das como as de um lenço. Ela ficou fascinada com a extravagância da­quilo; era como flutuar em uma nuvem.

Scott. Tentou dizer o nome dele em voz alta e não conseguiu. O so­nho não deixava. Notou que a entrada para carros que levava ao celeiro tinha sumido. Assim como o jardim entre ela e a casa. No lugar deles, havia um campo de flores roxas, sonhando sob o luar assombrado. Scott, eu o amei, eu o salvei, eu

 

Então ela estava acordada e podia se ouvir no escuro, repetindo como se fosse um mantra: “Eu o amei, eu o salvei, trouxe gelo para você. Eu o amei, eu o salvei, trouxe gelo para você. Eu o amei, eu o salvei, trouxe gelo para você.”

Ficou deitada lá por um tempo, lembrando-se de um dia quente de agosto em Nashville e pensando — não pela primeira vez — que ser uma depois de ser dois por tanto tempo era estranho pra cacete. Tinha imaginado que dois anos seriam o suficiente para que a estranheza pas­sasse, mas não eram; o tempo parecia ter apenas cegado a lâmina afiada da dor, de modo que ela a cutucava em vez de cortar. Pois nada estava na mesma. Nem do lado de fora, nem do lado de dentro, nem para ela. Deitada na cama em que antes cabiam dois, Lisey pensou que estar só nunca parecia tão solitário quanto ao acordar e descobrir que ainda se tinha a casa apenas para si. Que você e os ratos nas paredes eram os únicos que ainda respiravam.

 

Lisey e o Louco

(A Escuridão o Adora)

Na manhã seguinte, Lisey se sentou de pernas cruzadas no chão do can­tinho da memória de Scott, olhando para os montes e pilhas de revistas, relatórios de alunos, boletins do Departamento de Inglês e “periódicos” universitários que cobriam a parede sul do escritório. Ocorreu-lhe que talvez uma olhada seria suficiente para dispersar o jugo furtivo de to­das aquelas fotografias ainda não vistas sob sua imaginação. Agora que estava lá de fato, sabia que tinha sido uma esperança vã. Tampouco precisaria do bloquinho de anotações molenga de Manda com os nú­meros escritos. Ele estava largado perto dela no chão e Lisey o colocou no bolso de trás do jeans. Não gostava da aparência dele, o estimado artefato de uma mente não muito sã.

Mediu novamente o longo amontoado de livros e revistas na pa­rede sul, uma cobra poeirenta de 1,20m de altura e pelo menos 9 de largura. Não fosse por Amanda, ela provavelmente teria empacotado cada exemplar em caixas de papelão e despachado-os sem nem olhar ou se perguntar por que Scott quis guardar tantos deles.

Minha mente não funciona assim, disse a si mesma. Realmente não sou muito de pensar.

Talvez não, mas você sempre se lembrou como ninguém.

Aquele era Scott em um de seus momentos mais provocantes, charmosos e irresistíveis, mas a verdade é que ela era melhor em esque­cer. Assim como ele, e ambos tinham suas próprias razões. Mas, ainda assim, como se para provar o que ele dizia, ela ouviu um pedaço fantas­magórico de conversa. Um dos falantes, Scott, era conhecido. A outra voz tinha um discreto sotaque sulista. Um pretensioso sotaque sulista, talvez.

— O Tony aqui vai fazer a cobertura para o (blablablá, rum-tum­-tum, sei-lá-o-quê). Gostaria de receber um exemplar, sr. Landon?

— Hmmmm? Claro, pode apostar!

Murmúrios os cercavam. Scott mal ouvia sobre o que Tony estava escrevendo, tinha um jeito quase de político de dar uma atenção de fachada para as pessoas que vinham a ele quando estava em público. Ouvia as vozes da multidão cada vez maior e já pensava em encontrar o momento de conexão, aquele instante prazeroso em que a eletricidade fluía dele para os outros e então voltava para ele em dobro ou até em triplo. Ele adorava aquela corrente elétrica, mas Lisey estava convencida de que adorava mais ainda o momento de conexão. Ainda assim, se deu o trabalho de responder.

— Pode mandar fotos, jornais, artigos ou resenhas universitários, tex­tos de departamento, qualquer coisa do gênero. Por favor. Eu gosto de rece­ber tudo. O Escritório, RFD #2, Sugar Top Hill Road, Castle Rock, Maine. Lisey sabe o CEP. Eu sempre esqueço.

Isso era tudo sobre ela, apenas Lisey sabe o CEP. Como Amanda ficaria louca se ouvisse aquilo! Mas ela gostava de ser esquecida durante aquelas viagens, de estar e ao mesmo tempo não estar lá. Gostava de observar.

Como o cara no filme pornô? Scott tinha perguntado para ela uma vez, e ela deu o meio-sorriso que dizia que ele estava perto do limite. Se você diz, querido, respondeu ela.

Ele sempre a apresentava quando eles chegavam e aqui e ali para outras pessoas, quando era necessário, mas quase nunca era. Fora de suas próprias áreas, acadêmicos são estranhamente pouco curiosos. A maioria ficava encantada em ter o autor de A Filha do Acomodado (Na­tional Book Award) e Relíquias (o Pulitzer) entre eles. E também houve um período de uns dez anos em que Scott de certa forma virou um mito — para os outros e, às vezes, para si mesmo. (Não para Lisey, que era quem lhe trazia um rolo de papel higiênico novo se o do banheiro aca­basse quando ele estivesse na privada.) Ninguém exatamente energizava o palco quando ele estava lá com o microfone na mão, mas até Lisey sentia a conexão que ele estabelecia com a platéia. Aqueles volts. Era uma coisa intrínseca, não tinha nada a ver com o trabalho dele como escritor. Talvez não tivesse a ver com coisa nenhuma, e sim com o que fazia dele Scott, de certa forma. Aquilo parecia loucura, mas era verda­de. E não parecia afetá-lo muito, ou feri-lo, pelo menos até...

Os olhos dela pararam de se mexer, pararam na lombada de um livro de capa dura e nas letras douradas que diziam U-Tenn Nashville 1988 Review.

1988, o ano do romance rockabilly. O que ele nunca escreveu.

1988, o ano do louco.

— O Tony aqui vai fazer a cobertura

— Não — disse Lisey. — Está errado. Ele não disse Tony, disse:

— Toneh

É, isso mesmo, ele disse Toneh:

— O Toneh aqui vai fazer a cobertura

— ...a cobertura para o U-Tenn ’88 Year in Review — disse Lisey. — Ele disse...

— Posso mandar por Correio Expresso

Só que ela queria cair morta se aquele projeto de Tennessee Williams não tivesse quase dito mandar por Correio Spresso. Aquela era a voz, sem dúvida, era bem aquele sulistinha borra-botas. Dashmore? Dashman? Mas não era isso. Era...

— Dashmiel! — murmurou Lisey para os cômodos vazios, cer­rando os punhos. Olhou para o livro com a lombada de letras douradas como se ele fosse desaparecer no instante em que desviasse o olhar. — O nome do sulistinha pedante era Dashmiel e ELE CORREU FEITO UM COELHO!

Scott tinha recusado a oferta do Correio Expresso; achava aquele tipo de coisa um gasto desnecessário. Nunca havia pressa quanto à cor­respondência — ele a pegava à medida que ela vinha descendo o rio. Quando eram resenhas de seus livros, ele era bem menos relaxado e bem mais apressadinho, mas para artigos sobre aparições públicas, correio co­mum estava bom demais. Já que O Escritório tinha endereço próprio, Lisey percebeu que teria sido muito pouco provável que ela visse essas coisas chegando. E uma vez que chegavam... bem, aqueles cômodos bem arejados e iluminados tinham sido o playground criativo de Scott, não o dela. Um clubinho bastante saudável de um garoto só, onde ele escrevia suas histórias e ouvia música na altura que quisesse na área à prova de som que ele chamava de Minha Sala Acolchoada. Nunca havia uma placa de NÃO PERTURBE na porta — ela subira até lá muitas vezes e Scott ficava sempre feliz em vê-la —, mas somente graças à Amanda ela conse­guiu ver o que estava no meio da cobra de livros adormecida na parede sul. Amanda sem papas na língua. Amanda suspeita. Amanda obsessiva compulsiva, que de alguma forma se convenceu de que sua casa quei­maria inteira se ela não alimentasse o forno da cozinha com exatamente três pedaços de lenha de cada vez, nem mais, nem menos. Amanda, que possuía o hábito inalterável de dar três voltas no alpendre se tivesse que voltar para casa para pegar alguma coisa que esquecera. Era só ver coisas como aquelas (ou ouvi-la contar as escovadas nos dentes) que você faria uma receita de Zoloft ou Prozac sem pensar duas vezes para aquela se­nhora. Porém, se não fosse por Manda, será que a pequena Lisey desco­briria a existência de centenas de fotos do seu marido morto lá em cima, só esperando para serem olhadas? Centenas de lembranças esperando para serem convocadas? E a maioria certamente mais agradável do que a lembrança de Dashmiel, aquele sulistinha borra-botas e cagão.

— Pare — murmurou ela. — Pare agora mesmo. Lisa Debusher Landon, abra sua mão e largue isso.

No entanto, ela não parecia estar pronta para fazer aquilo, pois se levantou, atravessou a sala e se ajoelhou diante dos livros. Com a mão direita flutuando à sua frente como em um truque de mágica, pegou o exemplar chamado U-Tenn Nashville 1988 Review. Seu coração batia forte; não de emoção, mas de medo. A cabeça podia dizer ao coração que aquilo tinha acontecido há 18 anos, mas, no que dizia respeito às emoções, o coração tinha seu próprio e brilhante vocabulário. O cabelo do louco era tão louro que parecia quase branco. E era um aluno da pós­-graduação, bradando coisas que não eram exatamente bobagens. Um dia depois de levar o tiro — quando a condição de Scott havia passado de crítica para estável —, ela lhe perguntou se o louco da pós-graduação tinha engatilhado, ao que Scott sussurrou que não achava que um ma­luco tivesse a mínima condição de engatilhar. Engatilhar era um ato de heroísmo, que dependia de força de vontade, coisa que os doidos não tinham muito... ou ela discordava?

— Não sei, Scott. Vou pensar.

Sem intenção de fazê-lo. Querendo nunca mais pensar naquilo, se pudesse evitar. Por Lisey, aquele picareta e sua pequena arma poderiam se unir às outras coisas que ela havia conseguido esquecer desde que conhecera Scott.

— Tava quente, né?

Deitado na cama. Ainda pálido, pálido demais, mas começando a ganhar um pouco da sua cor de volta. Falando casualmente, sem nada de especial no olhar, só jogando conversa fora. E Lisey Agora, Lisey Sozinha, a viúva Landon, tremeu.

— Ele não se lembrava — murmurou ela.

Tinha quase certeza que não. Nada sobre quando ele estava caído na calçada e os dois não tiveram dúvidas de que jamais se levantaria novamente. Que ele estava morrendo e que o que quer que tenha se passado entre eles seria tudo, eles que haviam encontrado tanto a dizer um ao outro. O neurologista com o qual ela reuniu coragem para con­versar disse que esquecer o tempo ao redor de um acontecimento trau­mático era normal, e que pessoas que se recuperavam daquele tipo de trauma geralmente descobriam que um ponto havia sido queimado no filme da sua memória. Aquele ponto poderia abranger cinco minutos, cinco horas, ou cinco dias. Às vezes, fragmentos e imagens desconexas surgiam anos ou até décadas mais tarde. O neurologista chamou isso de um mecanismo de defesa.

Fez sentido para Lisey.

Do hospital ela foi de volta para o motel em que estava hospeda­da. Não era um quarto muito bom — de fundos, sem nada para se ver além de uma cerca de tábuas e nada para se ouvir além de uns cem cães latindo — mas ela já deixara de se importar com aquele tipo de coisa. Certamente queria distância do campus em que seu marido tinha leva­do um tiro. E, enquanto chutava os sapatos para longe e se deitava na cama de casal dura, pensou: A escuridão o adora.

Era verdade?

Como poderia dizer aquilo, se nem sabia o que significava?

Você sabe. O prêmio do Papai era um beijo.

Lisey virou a cabeça tão depressa no travesseiro que era como se tivesse levado um tapa de uma mão invisível. Cale a boca!

Nenhuma resposta... nenhuma resposta... e então, maliciosamen­te: A escuridão o adora. Ele dança com ela como um amante, e a lua se ergue sobre a colina roxa e o que era doce cheira a azedo. Cheira a veneno.

Ela havia virado a cabeça de volta para o outro lado. E fora do quarto de hotel os cachorros — cada joça de cachorro em Nashville, ao que parecia — ficaram latindo até o sol se pôr na névoa laranja de ou­tono, abrindo uma fresta para a noite. Quando criança, sua mãe tinha lhe dito que não havia nada a temer no escuro, e ela acreditou. Sentia-se muito contente na escuridão, mesmo quando ela era iluminada por um relâmpago e cortada por um trovão. Enquanto Amanda, alguns anos mais velha, se escondia sob as cobertas, a pequena Lisey se sentava em cima da cama, chupando o polegar e pedindo que alguém trouxesse a lanterna e lesse uma história para ela. Contara isso a Scott uma vez e ele pegou suas mãos e disse: “Então, você é minha luz. Seja minha luz, Lisey.” E ela tentara, mas...

— Eu estava em um lugar escuro — murmurou Lisey, sentada no escritório deserto com o U-Tenn Nashville Review nas mãos. — Você falou isso, Scott? Falou, não falou?

— Eu estava em um lugar escuro e você me encontrou. Você me salvou.

Talvez em Nashville aquilo tenha sido verdade. Mas não no fim.

—- Você estava sempre me salvando, Lisey. Lembra da primeira noite em que dormi no seu apartamento?

Sentada agora com o livro no colo, Lisey sorriu. E claro que se lem­brava. Sua lembrança mais nítida era a dos muitos schnapps de hortelã, que tinham lhe dado azia. E ele tivera dificuldade primeiro em ter uma ereção e depois em mantê-la, embora no fim tudo tenha dado certo. Lisey tinha pensado que a culpa era da bebida. Somente mais tarde ele contou que nunca tinha conseguido antes dela: ela havia sido sua primeira e única e cada história que contara sobre sua vida sexual louca na adolescência tinha sido mentira. E Lisey? Lisey o enxergava como um projeto interminado, uma coisa a fazer antes de ir para cama. Tomar conta da lavadora durante a parte mais barulhenta da lavagem; pôr a caçarola de molho; chupar o jovem escritor bambambã até ele conseguir uma ereção decente.

— Quando acabou e você foi dormir, eu fiquei acordado ouvindo o relógio no seu criado-mudo e o vento lá fora e compreendi que estava mesmo em casa, que estar na cama com você era estar em casa, e algo que vinha se aproximando no escuro tinha sumido de repente. Não podia ficar. Tinha sido expulso. Sabia como voltar, não havia dúvida, mas não podia ficar, e eu podia dormir tranquilo. Meu coração se partiu de gratidão. Acho que foi a primeira vez que senti gratidão de verdade. Fiquei deitado do seu lado e lágrimas rolaram pelo meu rosto até o travesseiro. Eu a amei naquele momento e a amo agora e a amei em cada instante de lá para cá. Não me importava se você me compreendia ou não. As pessoas dão importância de­mais a serem compreendidas, mas ninguém consegue segurança o bastante. Nunca vou me esquecer de como me senti seguro quando aquela coisa desa­pareceu da escuridão.

— O prêmio do Papai era um beijo.

Lisey disse a frase em voz alta daquela vez e, embora estivesse quen­te no escritório vazio, sentiu um calafrio. Ainda não sabia o que signi­ficava, mas com certeza se lembrava de quando Scott lhe dissera que o prêmio do Papai era um beijo, que ela havia sido sua primeira mulher e que ninguém consegue segurança o bastante: foi logo antes de se ca­sarem. Ela lhe dera toda a segurança que sabia dar, mas não tinha sido o suficiente. No fim, a coisa de Scott voltou para pegá-lo de qualquer maneira — aquela coisa que às vezes aparecia de relance em espelhos e copos d’água, a coisa com o lado matizado. O garoto espichado.

Lisey correu os olhos pelo escritório, sentindo medo apenas por um instante, e se perguntou se a coisa a estava observando.

 

Ela abriu o U-Tenn Nashville 1988 Review. O estalo da lombada foi como um tiro de revólver, o que a fez gritar de susto e largar o livro. Então ela riu (com algum nervosismo, é preciso admitir).

— Lisey, sua tonta.

Dessa vez, um pedaço de jornal dobrado caiu, amarelado e quebra­diço. O que ela desdobrou era uma fotografia granulada, com legenda, revelando um sujeito de uns 23 anos que parecia muito mais jovem graças à sua cara de espanto. Na sua mão direita, havia uma pá de cabo curto com uma colher de prata. A tal colher tinha uma inscrição ilegível na foto, mas Lisey se lembrava qual era: MARCO ZERO, BIBLIOTECA SHIPMAN.

O rapaz estava meio que... bem... examinando a pá e Lisey soube, não só pela sua expressão, mas pelo jeitão torto como jogava o corpo magro para frente, que ele não fazia idéia do que estava olhando. Poderia ser um projétil de artilharia, uma árvore bonsai, um detector de radiação ou um porquinho de porcelana com uma fresta nas costas para moedas; poderia ser um sei-lá-o-quê, um filactério testemunhando o pompetus do amor,* ou um chapéu cloche feito de pele de coiote. Poderia ser o pênis do poeta Píndaro. Aquele cara estava aturdido demais para saber. Tampouco, Lisey poderia apostar, estava ciente de que, agarrando a sua mão esquerda — também congelado para sempre no enxame de pontos pretos —, havia um homem que parecia fantasiado de Patrulheiro Rodo­viário: sem arma, mas com um cinto Sam Browne cruzando o peito e o que Scott, rindo e arregalando os olhos, chamaria de “um prefeitamente eita-norme distontivo”. Ele também estava com um sorriso prefeitamente eita-norme na cara, o tipo de sorriso aliviado de ah-graças-a-Deus, que dizia: Filho, você nunca vai precisar comprar um drinque em qualquer bar que eu esteja, desde que eu tenha na carteira um dólar para esfregar no outro. Ao fundo, conseguia ver Dashmiel, o sulistinha pedante que tinha fugi­do. Roger C. Dashmiel, ela se lembrou, o C maiúsculo é de cagão.

Teria ela, a pequena Lisey Landon, visto o alegre segurança do campus apertar a mão do rapaz espantado? Não, mas... digamos...

Digaaaaamos, meninada... prestem atenção... vocês querem um instantâneo da vida real que se compare a imagens de contos de fadas, como Alice caindo no buraco do coelho ou um sapo de cartola dirigin­do um carro? Então saquem só isso, no canto direito da fotografia.

Lisey se inclinou até quase tocar com o nariz a foto amarelada do American de Nashville. Havia uma lupa no gavetão do centro da mesa principal de Scott. Ela a vira várias vezes, guardada eternamente entre o maço fechado de cigarros Herbert Tareyton mais velho do mundo e o carne mais velho do mundo de cupons não trocados da S& H Green Stamps. Ela poderia tê-la pegado, mas não se deu o trabalho. Não precisava de lupa nenhuma para confirmar o que estava vendo: metade de um mocassim marrom, metade de um mocassim de cordovão, na verdade, com um salti­nho embutido. Ela se lembrava muito bem daqueles mocassins. Como eram confortáveis. E certamente os usara naquele dia, não? Não tinha visto o segurança alegre ou o rapaz espantado (Tony, não tinha dúvidas, o famo­so Toneh aqui vai fazer a cobertura) e tampouco notara Dashmiel, o sulisti­nha borra-botas, quando a merda bateu no ventilador. Todos tinham dei­xado de importar para ela, todos, sem tirar nem pôr. Àquela altura, só uma coisa passava pela sua cabeça, e essa coisa era Scott. Ele certamente não es­tava a mais de 3 metros de distância, mas ela sabia que, se não o alcançasse logo, a multidão à sua volta não a deixaria passar... e, se a impedissem, essa mesma multidão poderia matá-lo. Matá-lo com seu amor perigoso e sua preocupação voraz. E, que joça, Violet, ele talvez já estivesse morrendo de qualquer maneira. Se estivesse, ela queria estar lá quando ele partisse. Quan­do ele Batesse as Botas, como diria o pessoal da geração dos seus pais.

— Tive certeza de que ele iria morrer — falou Lisey para o escri­tório silencioso e banhado pelo sol, para a massa poeirenta e serpeante da cobra de livros.

Então ela correra em direção ao marido caído e o fotógrafo do jor­nal — que estava lá apenas para tirar a foto obrigatória dos dignitários da faculdade e de um famoso autor visitante reunidos para a inaugura­ção do terreno com a pá de prata, a ritualística Primeira Pá de Terra no futuro local da nova biblioteca — acabou tirando uma foto muito mais dinâmica, não foi? Aquela era uma foto de primeira página, talvez até uma foto para a posteridade, daquele tipo que faz você interromper uma colherada de cereal entre a tigela e a boca, respingando os classificados, como a foto de Oswald com as mãos na barriga e a boca aberta em um último grito de agonia, o tipo de imagem congelada que você nunca esquece. Somente a própria Lisey perceberia que a mulher do escritor também estava naquela foto. Exatamente um salto de sapato dela.

A legenda correndo embaixo da foto dizia:

 

O capitão S. Heffernan da Segurança do Campus da U-Tenn cumprimenta Tony Eddington, que salvou a vida do famoso autor visitante Scott Landon segundos antes de esta foto ser tirada. “Ele é um verdadeiro herói”, disse o cap. Heffernan. “Nenhuma outra pessoa estava perto o suficiente para ajudar.”

Subindo a margem esquerda, havia uma mensagem relativamente longa em uma letra que ela não reconhecia. Subindo a margem direita, duas linhas do garrancho de Scott, a primeira um pouco maior do que a segunda... e uma setinha, por Deus, apontando o sapato! Ela sabia o que significava a seta; a havia reconhecido pelo que era. Sabendo da história de sua mulher — pode chamá-la de Lisey e o Louco, uma emocionante história real de aventura —, ele tinha entendido tudo. E ficou furioso? Não. Porque sabia que sua mulher não ficaria. Sabia que ela acharia engraçado. E era engraçado, era hilário, então por que ela estava à beira das lágrimas? Nunca em toda a sua vida se sentira tão surpresa, ludibria­da e subjugada pelas suas emoções quanto nos últimos dias.

Lisey largou os recortes de jornal em cima do livro, temendo que uma enxurrada repentina de lágrimas os dissolvesse do jeito que a sali­va dissolve um bocado de algodão-doce. Colocou as mãos em concha sobre os olhos e esperou. Quando teve certeza de que as lágrimas não iriam transbordar, pegou o recorte e leu o que Scott escrevera:

 

Tenho que mostrar pra, Lisey! Como ela, vai RIR!

Mas será que vai entender? (Nossa pesquisa, diz que SIM)

 

Ele transformara o grande ponto de exclamação em um alegre smi­ley estilo década de setenta, como se estivesse dizendo para ela ter um bom dia. E Lisey entendeu. Com 18 anos de atraso, mas e daí? A me­mória era relativa.

Muito zen, gafanhoto, diria Scott.

— Zen uma ova. Eu me pergunto o que Tony está fazendo hoje em dia, isso sim. Salvador do famoso Scott Landon. — Ela riu, e as lágrimas que ainda estavam em seus olhos escorreram pelas bochechas.

Em seguida, ela virou a foto contra a luz e leu a outra mensagem, mais longa.

 

18-08-88

Caro Scott (se me permite): imaginei que gostaria, de ter

essa fotografia de C. Anthony (“Tony”) Eddington III, o

jovem estudante da pós que salvou sua, vida,. A U-Tenn o

homenageará, obviamente. Imaginamos que você também

gostaria de manter contato com ele. Seu enderece é 748

Coldview Avenue, Nashville North, Nashville, Tennessee

37235. O sr. Eddington, “Pobre porém Honrado”, vem de uma

boa família do sul do Tennessee e é um excelente aspirante a

poeta. Tenho certeza de que irá querer agradecê-lo (e talvez

recompensá-lo) à sua maneira.

Respeitosamente, Roger C. Dashmiel

Prof. Adjunto, Depto. de Inglês

Universidade do Tennessee, Nashville

 

Lisey leu a mensagem uma, duas vezes (“three times a laaaa-dy”, teria cantado Scott àquela altura), ainda sorrindo, mas agora com uma amarga mistura de espanto e compreensão. Roger Dashmiel provavel­mente sabia tão pouco do que tinha acontecido de fato quanto o segu­rança do campus. O que significava que existiam apenas duas pessoas no mundo inteiro que sabiam a verdade sobre aquela tarde: Lisey Lan­don e Tony Eddington, o camarada que iria escrever para o anuário. Era possível que mesmo o próprio “Toneh” não tivesse percebido o que acontecera depois da primeira pá de terra cerimonial. Talvez tenha tido um apagamento induzido pelo medo. Saca só: ele pode até mesmo acre­ditar que salvou Scott Landon da morte.

Não. Ela não acreditava naquilo. Achava que aquele recorte e o bilhete apressado e puxa-saco era a vingança mesquinha de Dashmiel contra Scott por... por quê?

Por ter sido apenas educado?

Por olhar para o Monsieur de Literature Dashmiel e não enxergá-lo?

Por ser um poço de criatividade cheio da grana, que iria ganhar em um dia 15 mil dólares para dizer algumas palavras enaltecedoras e virar uma única pá de terra? Terra pré-afofada, ainda por cima.

Por tudo isso. E por mais. Para Lisey, Dashmiel acreditava que as posições dos dois estariam invertidas em um mundo mais autêntico e justo; que, neste mundo, ele, Dashmiel, seria o foco de interesse inte­lectual e adulação estudantil, enquanto Scott Landon — isso sem falar naquela sua mulherzinha de nada que não daria um peido nem se sua vida dependesse disso — estaria ralando no campus, sempre puxando saco, sondando o clima das políticas de departamento e na correria para garantir o próximo salário.

— Seja qual for o motivo, ele não gostava de Scott e essa foi sua vingança — falou ela, admirada, para os cômodos vazios e ensolarados sobre o longo celeiro. — Este... bilhete cheio de veneno.

Quando se recuperou um pouco, ela folheou o Review até encon­trar o artigo que procurava: O ROMANCISTA MAIS FAMOSO DA AMÉRICA INAUGURA TÃO SONHADA BIBLIOTECA. Era assi­nado por Anthony Eddington, às vezes chamado de Toneh. E, à medi­da que passava os olhos por ele, Lisey descobriu que era capaz de sentir raiva, afinal. Fúria, até. Pois não havia menção à maneira como o dia terminara, tampouco ao suposto heroísmo do autor. A única insinuação de que algo tinha dado incrivelmente errado estava nas linhas finais: “O discurso do sr. Landon após a pá de terra inaugural e sua leitura no loun­ge dos alunos foram cancelados por causa de imprevistos, porém espe­ramos ver este gigante da literatura americana de volta ao nosso campus logo. Talvez para a cerimônia de inauguração da Shipman, quando ela abrir suas portas em 1991!”

Lembrar a si mesma de que aquilo era um anuário estudantil, pelo amor de Deus, uma edição cara, de capa dura e em papel acetinado, en­viada para ex-alunos supostamente endinheirados, ajudou bastante a di­minuir sua raiva. Até parece que o U-Tenn Review deixaria seus escritores de aluguel recriarem a sangrenta cena de pastelão daquele dia. Lembrar a si mesma de que Scott também teria achado aquilo engraçado ajudou... mas não tanto assim. Scott, afinal de contas, não estava ali para colocar os braços em volta dela, beijá-la na bochecha, distraí-la com uma beliscada de leve em um de seus mamilos e dizer que havia hora para tudo — uma hora para plantar, uma hora para colher, uma hora para engatilhar e, da mesma forma, uma hora para desengatilhar, sim, de fato.

Scott, maldito seja ele, estava morto. E...

— E ele sangrou por vocês — murmurou ela numa voz ressentida que soou assustadoramente como a de Manda. — Ele quase morreu por vocês. É uma espécie de milagre de olhos azuis não ter morrido.

E Scott lhe falou novamente, como ele costumava fazer. Lisey sabia que era apenas o ventríloquo dentro dela, fazendo a sua voz — quem teria amado mais ou se lembrado melhor daquela voz? —, mas não pa­recia ser assim. Parecia ser ele falando.

Você foi meu milagre, disse Scott. Você foi meu milagre de olhos azuis. Não só naquele dia, mas sempre. Foi você quem manteve a escuridão longe, Lisey. Você brilhou.

— Imagino que você tenha pensado assim às vezes — falou ela, distraída.

Tava quente, né?

Sim. Estava quente. Mas não só quente. Estava...

— Úmido — disse Lisey. — Abafado. E eu tive um mau pressen­timento desde o início.

Sentada diante da cobra de livros, com o U-Tenn Nashville 1988 Review aberto no colo, Lisey teve um vislumbre passageiro, porém cla­ríssimo, da Vovó D alimentando as galinhas, muito tempo atrás, na casa da sua infância.

— Foi no banheiro que eu comecei a me sentir muito mal. Por ter quebrado

 

Ela não pára de pensar no vidro, naquela joça de vidro quebrado. Isto é, quando não está pensando em como gostaria de fugir daquele calor.

Lisey está atrás de Scott e um pouco à sua direita, segurando as próprias mãos diante de si com recato, observando-o se equilibrar em um pé, com o outro na espádua da pazinha idiota enterrada pela metade na terra fofa que foi claramente trazida para a ocasião. O dia está en­louquecedoramente quente, enlouquecedoramente úmido e enlouque­cedoramente abafado, e a multidão considerável que se juntou só deixa tudo pior. Ao contrário dos dignitários, os curiosos não estão vestidos nem de perto com suas melhores roupas e, embora seus jeans, bermudas e calças corsário talvez não os deixem exatamente confortáveis naquele ar superúmido, Lisey os inveja assim mesmo, parada em frente à multi­dão, cozinhando no calor de alto-forno daquela tarde do Tennessee. Só ficar de pé, vestida nas suas melhores roupas de verão, se preocupando com os círculos escuros de suor que logo se formarão no top de linho marrom-claro que ela está usando sobre a blusa de raiom azul, já é es­tressante. Embora esteja com um sutiã que é ótimo para dias de calor, ele está fazendo a parte de baixo dos seus peitos pinicarem como o dia­bo. Bons tempos, babyluv.

Scott, enquanto isso, continua se equilibrando em um pé só, en­quanto seu cabelo, longo demais na nuca — precisa de uma tesoura urgentemente, ela sabe que ele se olha no espelho e vê um astro do rock, mas ela vê um vagabundo saído de uma música de Woody Guthrie —, balança à eventual brisa quente. Ele está sendo simpático enquanto o fotógrafo anda em círculos à sua volta. Simpático pra cacete. A sua es­querda está Tony Eddington, que vai escrever sobre todo esse oba-oba para um jornal universitário qualquer, e, à sua direita, está o duble de anfitrião, um assecla do Departamento de Inglês chamado Roger Dash­miel. Dashmiel é um daqueles homens que parecem mais velhos do que são não só porque perderam muito cabelo e ganharam muita barriga, mas porque insistem em manter uma aura quase sufocante em torno de si. Até quando fazia suas piadinhas, Lisey tinha a impressão de estar ou­vindo as cláusulas de uma apólice de seguro. Para piorar, Dashmiel não gosta do seu marido. Lisey percebeu isso de cara (é fácil, porque a maio­ria dos homens gosta dele), o que lhe deu um alvo para sua apreensão. Pois ela está apreensiva, profundamente. Tentou dizer a si mesma que é só a umidade e as nuvens que estão se juntando ao oeste, prenunciando fortes tempestades à tarde ou até mesmo tornados: um desses negócios de fazer o barômetro despencar. Porém, o barômetro não estava baixo no Maine quando ela se levantou da cama pela manhã às quinze para as sete; já fazia uma bela manhã de verão, com o sol recém-erguido reluzindo em um trilhão de gotas de orvalho no gramado entre a casa e o escritório de Scott. Nenhuma nuvem no céu, o que Dandy Dave Debusher chamaria de “um baita dia de fritar ovo na calçada”. Porém, assim que seus pés tocaram as tábuas de carvalho do chão do quarto e seus pensamentos se voltaram para a viagem a Nashville — sair para o aeroporto de Portland às oito, pegar o vôo da Delta às nove e quarenta —, seu coração se afundou de medo e seu estômago matinal vazio, geralmente tranquilo, irritou-se com um medo despropositado. Ela re­cebeu essas sensações com uma aflição que a surpreendeu, pois geral­mente gostava de viajar, especialmente com Scott: os dois sentados com companheirismo lado a lado, ele com seu livro aberto, ela com o dela. Às vezes, ele leria um trecho do dele para ela e, às vezes, vice-versa. Às vezes, ela se sentiria observada e ergueria os olhos para encontrar os dele. Seu olhar solene. Como se ela ainda fosse um mistério para ele. Sim, e às vezes passariam por alguma turbulência, do que ela gostava, também. Era como os brinquedos do parque de diversões quando ela e as irmãs eram crianças, as Xícaras Malucas e a Montanha-Russa. Scott também não se importava com os interlúdios turbulentos. Ela se lembrava de uma chegada particularmente complicada em Denver — ventos fortes, trovoadas, o aviãozinho de passageiros das Linhas Aéreas Morte Certa chacoalhando de um lado para outro na joça do céu — e de como o vira saltitar no assento como um garotinho que precisava ir ao ba­nheiro, com um sorriso louco no rosto. Não, as viagens que deixavam Scott com medo eram os mergulhos tranqüilos que ele às vezes dava no meio da noite. De vez em quando ele falava — com lucidez; sorrindo até — sobre as coisas que dava para ver na tela de um aparelho de tevê desligado. Ou em um copinho, se você o inclinasse da maneira certa. Ela ficava apavorada ao ouvi-lo falar daquele jeito. Porque era maluqui­ce, e porque ela meio que sabia do que ele estava falando, mesmo sem querer.

Então não é o barômetro baixo que a está incomodando e certa­mente não tinha sido a perspectiva de entrar em mais um avião. Porém, no banheiro, ao estender a mão para acender a luz sobre a pia, algo que ela tinha feito sem maiores incidentes ou acidentes diariamente por to­dos os oito anos em que eles haviam morado juntos na Sugar Top Hill — o que dava aproximadamente 3 mil dias, menos o tempo passado na estrada —, as costas da sua mão bateram no copo de vidro com as escovas de dente deles dentro e ele caiu no chão, onde se espatifou em aproximadamente 3 mil pedacinhos idiotas.

— Merda, incêndio, salvem as joças dos fósforos! — exclamou ela, assustada e irritada por se ver tão... pois ela não acreditava em pres­ságios, não Lisey Landon, esposa do escritor, e nem Lisey Debusher da Sabattus Road, em Lisbon Falis. Presságios eram coisa de irlandeses caipiras.

Scott, que tinha acabado de voltar para o quarto com duas xícaras de café e um prato de torradas amanteigadas, parou no ato.

— O que você quebrou, babyluv?

— Nada que tenha saído do cu do cachorro — disse Lisey com rai­va, ficando um tanto pasma. Essa era uma das frases da vovó Debusher e a Vovó D certamente acreditava em presságios. No entanto, aquela velha irlandesa estava no caixão desde que Lisey tinha uns 4 anos. Era possível que Lisey se lembrasse dela? Parecia que sim, pois enquanto es­tava parada lá, com os olhos baixados para os cacos do copo das escovas de dente, a articulação daquele presságio lhe veio naquela voz estragada pelo tabaco da Vovó D... e voltava agora, enquanto ela observava seu marido ser simpático em seu mais leve paletó de verão (que mesmo as­sim começaria a ficar com marcas de suor nas axilas logo, logo).

— Vidro quebrado pela manhã, corações partidos à noite.

Esse era o evangelho da Vovó D, sem dúvida, do qual pelo menos uma menininha se lembrava, armazenado na sua memória antes do dia em que a Vovó D caiu dura no galinheiro, morrendo com um grunhido preso na garganta, um avental amarrado em volta da cintura cheio de alpiste e um saco de tabaco de mascar Beechnut pendurado no ombro.

Então.

Não é o calor, a viagem, ou aquele tal de Dashmiel, que só acabou fazendo as honras da casa porque o chefe do Departamento de Inglês está no hospital se recuperando de uma remoção de emergência da vesí­cula biliar no dia anterior. É uma... joça... de um copo de escovas de dente quebrado, junto com o ditado de uma avó irlandesa morta há tempos. E o mais engraçado (conforme Scott apontaria mais tarde) é que aquilo foi a conta para ela ficar de orelha em pé. O suficiente para deixá-la pelo menos semi-engatilhada.

Às vezes, ele lhe dirá em breve, falando de uma cama de hospital (ah, mas com que facilidade ele poderia ter acabado no caixão, todas suas noites insones e meditativas terminadas), falando em sua nova voz sussurrante e dificultosa, às vezes, o mínimo já é o bastante. Como se diz.

E ela saberá exatamente o que ele quer dizer.

 

Lisey sabe que naquele dia Roger Dashmiel já estava com dores de cabe­ça de sobra, embora isso não faça com que ela goste mais dele. Se é que um dia houve um roteiro para a cerimônia, o professor Hegstrom (o da crise de emergência com a vesícula biliar) estava desorientado demais depois da cirurgia para dizer a Dashmiel ou a qualquer um quem era ou onde estava. Conseqüentemente, Dashmiel ficou com pouco mais do que o horário do evento e uma lista de participantes, entre eles um escritor com o qual antipatizara de imediato. Quando o pequeno grupo de dignitários deixou o Inman Hall para a curta, porém quentíssima, caminhada até o local da futura Biblioteca Shipman, Dashmiel disse a Scott que a coisa seria mais ou menos de improviso. Scott deu de om­bros jovialmente. Ele não tinha o menor problema com aquilo. Para Scott Landon, improviso era um estilo de vida.

— Eu vou apresentá-lo — disse o homem que Lisey anos mais tar­de chamaria em seus pensamentos de sulistinha borra-botas. Isso à me­dida que eles andavam em direção ao monte de terra seca e tremeluzente onde ficaria a nova biblioteca. O fotógrafo encarregado de imortalizar tudo aquilo dançava incansavelmente de um lado para outro, tirando foto atrás de foto, atarefado como um mosquito. Lisey conseguia ver um retângulo de terra marrom fresca logo adiante, de uns dois metros e meio por um e meio, calculou, e trazido naquela manhã, pela aparência começando-a-secar dele. Ninguém tinha pensado em colocar um toldo, e a superfície da terra fresca já havia adquirido um verniz acinzentado.

— É melhor alguém fazer isso — disse Scott.

Ele falou em um tom alegre, mas Dashmiel franziu o cenho como se tivesse sido atingido por um boato imerecido. Então, com um vigo­roso suspiro, continuou andando.

— Depois da apresentação virão os aplausos...

— Como depois do dia vem a noite — murmurou Scott.

— ... e o senhor dirá uma ou duas palavras — concluiu Dashmiel. Para além do deserto que aguardava a biblioteca, um estacionamento recém-asfaltado bruxuleava sob a luz do sol, todo asfalto liso e faixas amarelas inertes. Lisey viu o ondear fantástico de águas inexistentes no outro lado dele.

— Com prazer — disse Scott.

A invariável boa índole de suas respostas parecia incomodar Dashmiel.

— Espero que o senhor não tenha que falar muito na pazada inau­gural — disse ele a Scott à medida que se aproximavam da área isolada.

Aquele pedaço foi deixado vazio, mas, depois dele, havia uma multidão tão grande que quase se estendia até o estacionamento. Outra maior ainda seguira Dashmiel e os Landon desde o Inman Hall. Logo as duas se misturariam, e Lisey — que geralmente não se importava com mul­tidões, da mesma forma que não se importava com turbulências a 6 mil metros de altitude — também não gostou daquilo. Ocorreu-lhe que tanta gente junta em um dia quente como aquele roubaria todo o ar da atmosfera. Uma idéia idiota, mas...

— Está quente à beça até para Nashville em agosto, você não acha, Toneh?

Tony Eddington assentiu educadamente, mas não disse nada. Seu único comentário até então tinha sido para identificar o fotógrafo que dançava incansavelmente como sendo Stefan Queensland, do American de Nashville — também formado pela U-Tenn Nashville, turma de 1985.

— Espero que vocês possam ajudá-lo — Tony Eddington disse a Scott enquanto eles começavam a andar até o local.

— Depois que o senhor acabar de falar — prosseguiu Dashmiel —, teremos outra rodada de aplausos. Então, sr. Landon...

— Scott.

Dashmiel abriu um sorriso forçado, que durou apenas um instante.

— Então, Scott, você vai virar aquela tão importante pá de terra inaugural.

Lisey teve que se esforçar para entender o que Dashmiel estava dizendo em seu quase inacreditável sotaque arrastado da Louisiana.

— Tudo me parece ótimo — respondeu Scott, e aquilo foi tudo que teve tempo de dizer, pois eles haviam chegado.

 

Talvez fosse um resquício do copo de escovas de dente quebrado — aquela sensação agourenta —, mas, para Lisey, a ilha de terra transpor­tada parece um túmulo. Tamanho GG, como se fosse para um gigante. As duas multidões se misturam em uma só ao redor dela e criam aquela sensação de calor sufocante e de alto-forno no centro. Há um segurança do campus em cada canto da barreira ornamental de corda de velu­do, pela qual Dashmiel, Scott e “Toneh” Eddington passaram abaixa­dos. Queensland, o fotógrafo, dança implacavelmente com sua Nikon enorme erguida na frente do rosto. Um jovem Weegee* pensa Lisey, e percebe que o inveja. Ele é tão livre, esvoaçando como um mosquito no calor; tem 25 anos e ainda está com tudo em cima. Dashmiel, por sua vez, olha para ele com cada vez mais impaciência, o que Queens­land finge não perceber até conseguir exatamente a foto que quer. Lisey imagina que seja a de Scott sozinho, com o pé na ridícula pá de prata, seus cabelos voando para trás na brisa. Seja como for, Weegee Júnior finalmente baixa sua câmera grande e recua até a beirada da multidão. E é enquanto está olhando a evolução de Queensland com seu olhar um tanto melancólico que Lisey vê pela primeira vez o louco. Ele tem aquele olhar, conforme escreveria mais tarde um repórter da região, “de John Lennon nos últimos dias do seu romance com a heroína — olhos fundos e alertas, contrastando de forma estranha e inquietante com seu rosto tristonho e de criança”.

Naquele instante, Lisey nota pouco mais que o cabelo loiro des­grenhado do sujeito. Não está muito interessada em observar as pes­soas. Só quer que aquilo acabe logo para ir atrás de um banheiro no Departamento de Inglês do outro lado do estacionamento e tirar aquela calcinha rebelde da racha da sua bunda. Também precisa fazer xixi, mas naquele momento aquilo é secundário.

— Senhoras e senhores — fala Dashmiel numa voz ressonante. — É com o maior prazer que apresento o sr. Scott Landon, autor de Relíquias, vencedor do prêmio Pulitzer, e de A Filha do Acamado, ganhador do Na­tional Book Award. Ele veio lá do Maine com sua adorável esposa Lisa para inaugurar a construção — é isso mesmo, finalmente chegou a hora — da nossa querida Biblioteca Shipman. Scott Landon, minha gente, quero ouvir todos vocês lhe dando as boas-vindas à moda de Nashville.

A multidão aplaude de imediato, com brio. A adorável esposa se junta a ela, batendo as palmas das mãos, olhando para Dashmiel e pen­sando: Ele ganhou o NBA por A Filha do Acomodado. É Acomodado, e não Acamado. E acho que você sabe. Acho que mandou essa de propósito. Por que não gosta dele, seu mesquinho?

Calha então de ela olhar para além dele e dessa vez nota de verdade Gerd Allen Cole, parado lá com aquela cabeleira loura fabulosa caindo em cima das sobrancelhas e com as mangas da camisa branca grande demais para ele enroladas até seus bíceps mirrados. A bainha da camisa está para fora e bate quase nos joelhos esbranquiçados do seu jeans. Nos pés, botas de motoqueiro com fivelas laterais. Para Lisey, elas parecem terrivelmente quentes. Em vez de aplaudir, o Loiraço juntou as mãos com bastante afe­tação e traz um sorriso assustador-tenro nos lábios, que se mexem discre­tamente, como numa prece. Fixa o olhar em Scott sem nunca desviá-lo. Lisey saca o Loiraço de cara. Tem uns sujeitos — quase sempre tem uns sujeitos — que Lisey chama de Caubóis do Espaço Sideral. Caubóis do Espaço Sideral têm muito a dizer. Querem pegar Scott pelo braço e con­tar que entendem as mensagens secretas dos livros dele; entendem que os livros são na verdade guias para Deus, Satanás ou possivelmente para os Evangelhos Gnósticos. Caubóis do Espaço Sideral podem falar sobre cien­tologia, numerologia ou (em um caso) As Mentiras Cósmicas de Brigham Young. Às vezes, querem falar sobre outros mundos. Dois anos atrás, um Caubói do Espaço Sideral veio de carona desde o Texas até o Maine para conversar com Scott sobre o que ele chamava de sobras. Era mais comum encontrá-las, disse ele, nas ilhas inabitadas do hemisfério sul. Ele sabia que era sobre elas que Scott escrevera em Relíquias. Mostrou-lhe palavras sublinhadas para provar. O cara deixou Lisey muito nervosa — aqueles olhos vidrados davam uma impressão de alheamento —, mas Scott con­versou com ele, lhe ofereceu uma cerveja, discutiu um pouco sobre os monólitos da Ilha da Páscoa, pegou alguns dos seus panfletos, autografou um exemplar novo de Relíquias para o garoto e o mandou embora, feliz. Feliz? Dançando na joça do ar. Quando Scott engatilha pra valer, ele é incrível. Nenhuma outra palavra serve.

A idéia de que haja violência de fato — de que o Loiraço pretende dar uma de Mark David Chapman* para cima do seu marido — não passa pela cabeça de Lisey. Minha mente não funciona desse jeito, ela po­deria ter dito. Só não gosto do jeito que os lábios dele estão se mexendo.

Scott agradece os aplausos — e alguns gritos rebeldes estridentes — com o sorriso Scott Landon que já apareceu em milhões de sobrecapas, o tempo todo com o pé descansando sobre a espátula da pá idiota enquanto a lâmina se afunda lentamente na terra importada. Ele deixa os aplausos rolarem por dez ou 15 segundos, guiado pela intuição (e raramente sua intuição se engana), e então os interrompe com um aceno. E lá se vão eles. De uma vez só. Vup. Muito legal, de um jeito um pouco assustador.

Quando ele fala, sua voz não parece nem de perto tão alta quan­to a de Dashmiel, porém Lisey sabe que, mesmo sem microfone ou megafone a bateria (a falta de qualquer um dos dois naquela tarde é provavelmente lapso de alguém), ela alcançará até o fim da multidão. E a multidão está se esforçando para ouvir cada palavra. Um Homem Famoso está entre eles. Um Pensador e um Escritor. Ele agora espalhará pérolas de sabedoria.

Pérolas aos porcos, pensa Lisey. Porcos suados, ainda por cima. Mas o pai dela não tinha lhe dito uma vez que porcos não suavam?

De frente para ela, o Loiraço tira o cabelo desgrenhado de cima da sobrancelha branca e fina, empurrando-o para trás. As mãos dele são tão brancas quanto sua testa e Lisey pensa: Tem um porquinho que fica bastante em casa. Um porco muito caseiro. E por que seria diferente? Ele tem um monte de idéias estranhas para remoer.

Ela joga o peso do corpo de um pé para outro e a seda da calcinha praticamente guincha na racha da sua bunda. Que saco! Ela se esquece novamente do Loiraço e tenta calcular se não poderia... enquanto Scott faz suas observações... muito discretamente...

Mãezinha Querida fala. Com rispidez. Três palavras. Sem margem para discussão. Não, Lisey. Espere.

— Não vou fazer nenhum sermão — diz Scott, e ela reconhece o dia­leto de Gully Foyle, o personagem principal de The Stars My Destiny, de Alfred Bester. O romance favorito dele. — Está quente demais para isso.

— Teletransporte a gente, Scotty! — alguém grita exuberante­mente na quinta ou sexta fileira da multidão que ficava mais perto do estacionamento.

— Não vai dar, amigo — diz Scott. — Os teletransportadores estão quebrados e estamos sem cristais de lítio.

A multidão, para quem a resposta era tão nova quanto a piada (Lisey tinha ouvido ambas pelo menos cinquenta vezes), ruge sua apro­vação e aplaude. Do outro lado, o Loiraço dá um sorriso discreto, sem suor, e agarra o delicado pulso esquerdo com a mão direita de dedos longos. Scott tira o pé da pá, não por ter perdido a paciência, mas como se tivesse — pelo menos por ora — encontrado outra utilidade para ela. E parece que encontrou. Ela observa, não sem fascinação, pois isso é Scott na sua melhor forma, improvisando.

— Estamos em 1998 e o mundo mergulhou em trevas — diz ele, deslizando o pequeno cabo de madeira da pá cerimonial com facilidade pelo seu punho semicerrado.

A pá joga um único reflexo de sol nos olhos de Lisey, então fica quase toda escondida pela manga do paletó de Scott. Com a pá e a lâ­mina escondidas, ele usa o fino cabo de madeira como um indicador, assinalando infortúnios e tragédias no ar à sua frente. — Em março, Oliver North e o vice-almirante John Poindexter são indiciados por conspiração. E o maravilhoso mundo do escândalo Irã-Contras, no qual armas controlam a política e o dinheiro controla o mundo.

“Em Gibraltar, membros do Serviço Especial Aéreo Britânico, o SAS, matam três integrantes desarmados do IRA. Talvez devessem mu­dar o lema do SAS de ‘A vitória é dos ousados’ para ‘Atire primeiro, faça perguntas depois’.”

Ouve-se uma onda de risos da platéia. Roger Dashmiel parece estar sentindo calor e irritado com essa inesperada aula de atualidades, porém Tony Eddington está finalmente fazendo anotações.

— Ou torná-lo o nosso. Em julho a gente faz besteira e derruba um avião iraniano com 290 civis a bordo. Sessenta e seis deles crianças.

“A epidemia de aids mata milhares de pessoas, aflige... bem, não sabemos, não é mesmo? Centenas de milhares? Milhões?

“O mundo mergulha em trevas. A maré de sangue do sr. Yeats está alta. Ela cresce. E cresce.”

Ele olha para baixo, fitando apenas a terra cinzenta, e de repente Lisey morre de medo que ele a esteja vendo, a coisa com o enorme lado remendado e matizado, que ele vá perder o controle, talvez até chegar ao colapso que sabe que ele teme (na verdade, ela tem tanto medo disso quanto ele). Antes que o coração dela pudesse fazer mais do que come­çar a acelerar, ele ergue a cabeça, sorri como um garoto numa feira de variedades e faz o cabo da pá deslizar até a metade no punho cerrado. E um movimento espalhafatoso de jogador de sinuca, e o pessoal na frente da multidão faz oooh. Mas Scott ainda não terminou. Segurando a lâmina diante de si, ele roda o cabo com agilidade por entre os dedos, acelerando até uma velocidade inacreditável. É tão fascinante quanto as manobras de um baliza — por conta da lâmina de prata rodando sob a luz do sol — e docemente inesperado. Ela está casada com ele desde 1979 e não fazia idéia de que uma manobra tão sutilmente maneira fazia parte de seu repertório. (Quantos anos leva, ela se perguntará duas noites depois, deitada sozinha na cama em seu quarto de motel barato e ouvindo cães latirem sob uma lua laranja incandescente, antes de o estúpido peso acumulado dos dias finalmente sugar todo o “uau” de um casamento? Quanta sorte você precisa ter para seu amor superar o tem­po?) A concha prateada criada pelo giro rápido da pá envia um lampejo de luz do sol que diz Acordem! Acordem! por entre a superfície entorpeci­da pelo calor e melada de suor da multidão. O marido de Lisey torna-se de repente Scott, o Mascate, e ela nunca se sentiu tão aliviada em ver o totalmente não-confiável sorriso de bufão estilo querida, eu sou o má­ximo no rosto dele. Ele os botou para baixo; agora estava tentando lhes vender uma golada de um duvidoso remédio, a coisa com a qual espera mandá-los para casa. E ela acha que eles vão cair, mesmo sendo uma tarde de agosto de calor. Quando fica assim, Scott seria capaz de vender geladeiras para os esquimós, como se costuma dizer... e Deus abençoe o lago da linguagem em que todos vamos beber, como o próprio Scott sem dúvida acrescentaria (como acrescentou).

— Porém, se cada livro é uma pequena luz na escuridão — e acredi­to que sim, tenho que acreditar, por mais piegas que seja, pois escrevo essas porcarias, não escrevo? —, então cada livraria é uma bela de uma fogueira eterna em volta da qual 10 mil pessoas vêm para se aquecer todos os dias e todas as noites. Nada de Fahrenheit 451. Tentem Fahre­nheit 4.000, pessoal, porque não estamos falando de fornos de cozinha aqui, estamos falando daqueles bons e velhos altos-fornos do cérebro, capazes de derreter o intelecto. Estamos celebrando a construção de uma dessas grandiosas fogueiras nesta tarde, e sinto-me honrado de fa­zer parte disso. E aqui que cuspimos na cara do esquecimento e damos um chute nos cojones velhos e enrugados da ignorância. Ei, fotógrafo!

Stefan Queensland acorda, sorrindo.

Scott, também sorrindo, diz:

— Tire uma disso. Os chefões talvez não queiram usá-la, mas apos­to que você vai querê-la no seu portfólio.

Scott segura a ferramenta ornamental como se quisesse rodopiá-­la novamente. A multidão solta um pequeno arquejo de expectativa, porém dessa vez é apenas provocação. Ele desliza a mão esquerda até o colarinho da pá e a enfia no chão, afundando-a até o fim da lâmina e apagando seu brilho quente com a terra. Joga a pazada recolhida para o lado e exclama:

— Eu declaro o canteiro de obras da Biblioteca Shipman ABERTO!

O aplauso que saúda essa declaração faz com que as explosões an­teriores pareçam o tipo de palminha educada que se ouve em partidas de tênis na escola. Lisey não sabe se o jovem sr. Queensland captu­rou a primeira pazada cerimonial; no entanto, quando Scott ergue a pazinha de prata boba no céu como um herói olímpico, Queensland sem dúvida documenta o momento, rindo atrás da câmera enquanto tira a foto. Scott mantém a pose por um instante (calha de Lisey olhar para Dashmiel e pega o distinto cavalheiro girando os olhos para o sr. Eddington — Toneh). Então ele baixa a pá e a segura diante do peito, na diagonal, sorrindo. Suor brotou em gotículas nas suas bochechas e testa. Os aplausos começam a diminuir. A multidão acha que ele aca­bou. Lisey acha que ele só passou para a segunda marcha.

Quando tem certeza de que eles podem ouvi-lo novamente, Scott cava para uma pazada extra.

— Esta é para Wild Bill Yeats! — exclama ele. — O doido de pedra! E esta é por Poe, também conhecido como Eddie de Baltimore! Esta é por Alfie Bester e, se vocês ainda não o leram, deveriam se en­vergonhar! — Ele parece sem fôlego, e Lisey está começando a ficar um pouco preocupada. Está tão quente. Tenta se lembrar do que ele comeu no almoço — foi algo pesado ou leve?

— E esta... — ele enfia a pá no que agora é uma depressão de ta­manho respeitável e ergue o último punhado de terra. A parte da frente da sua camisa está escura de suor. — Querem saber, por que vocês não pensam em quem quer que tenha escrito o primeiro bom livro que le­ram? Estou falando daquele que se meteu embaixo de vocês como um tapete mágico e os arrancou do chão. Sabem do que eu estou falando?

Eles sabem. Está claro em todos os rostos que encaram o dele.

— Aquele que, em um mundo perfeito, vocês procurariam primei­ro quando a Biblioteca Shipman finalmente abrir suas portas. Esta é por aquela pessoa que escreveu este livro. — Ele dá uma última balançada de despedida na pá e então se volta para Dashmiel, que deveria estar satisfeito com a habilidade de Scott como showman — pediram que ele improvisasse, e Scott foi brilhante — e que, em vez disso, parece apenas estar sentido calor e irritado. — Acho que terminamos aqui — diz ele, tentando entregar a pá para Dashmiel.

— Não, ela é sua — falou Dashmiel. — De lembrança, e como prova da nossa gratidão. Junto com seu cheque, é claro. — Seu sorriso forçado aparece e some com um espasmo. — Que tal se fôssemos pegar um pouco de ar-condicionado?

— Sem dúvida — diz Scott, parecendo bestificado, e então entrega a pá para Lisey, como já havia entregado tantas lembranças indesejadas no decorrer dos seus últimos 12 anos de fama: tudo, desde remos ce­rimoniais e bonés dos Boston Red Sox em cubos de acrílico até más­caras de Comédia e Tragédia... porém, em sua maioria, conjuntos de caneta-e-lápis. Uma porção de conjuntos de caneta-e-lápis. Waterman, Scripto, Schaeffer, Mont Blanc, pode escolher. Ela olha para a colher de prata reluzente da pá, tão bestificada quanto seu amado (ele ainda é seu amado). Há alguns restos de terra nas letras gravadas que dizem MARCO ZERO, BIBLIOTECA SHIPMAN, e Lisey os tira com um sopro. Onde um objeto inusitado daqueles vai parar? Naquele verão de 1988, o escritório de Scott ainda está em construção, embora o endereço sirva e ele já esteja começando a armazenar coisas nos estábulos e baias do ce­leiro embaixo dele. Em várias das caixas de papelão ele rabiscou SCOTT! JUVENTUDE! em traços grossos de um marcador de texto preto. O mais provável é que a pá de prata acabe junto com essas coisas, desperdiçan­do seus brilhos na escuridão. Talvez ela mesma a coloque lá e escreva SCOTT! MEIA-IDADE! como uma espécie de piada... ou prêmio. O tipo de presente bobo e inesperado que Scott chama de...

Porém, Dashmiel está a caminho. Sem outra palavra — como se estivesse enojado com tudo aquilo e determinado a dar um basta assim que possível —, ele atravessa pisando firme o retângulo de terra fresca, contornando a depressão que a última generosa pazada de Scott quase conseguiu transformar em um buraco. Os saltos do sapato preto relu­zente eu-sou-um-professor-adjunto- em-ascensão-e-não-se-esqueça-dis­so de Dashmiel se afundam na terra a cada passo pesado. Ele tem que se esforçar para manter o equilíbrio e Lisey imagina que isso não ajuda nem um pouco a melhorar seu humor. Tony Eddington vem atrás dele, parecendo pensativo. Scott pára por um instante, como se não soubesse ao certo o que está acontecendo, então também começa a andar, se me­tendo no meio do seu anfitrião e do seu biógrafo temporário. Lisey os segue, como de hábito. Ele a encantou a ponto de ela esquecer aquela sensação agourenta

(vidro quebrado pela manhã)

por pouco tempo, mas agora ela voltou

(corações partidos à noite)

e com tudo. Ela acha que deve ser porque todos aqueles detalhes parecem grandes demais para ela. Tem certeza de que o mundo voltará a uma perspectiva mais normal assim que chegar ao ar-condicionado. E assim que tirar aquela praga de pedaço de tecido da bunda.

Está quase acabando, lembra a si mesma e — como a vida pode ser engraçada — é neste exato instante que o dia começa a descarrilar.

Um segurança do campus que é mais velho do que os demais membros desta equipe (18 anos mais tarde ela o identificará na foto de Queensland como capitão S. Heffernan) levanta a barreira do outro lado do retângulo de terra cerimonial. Tudo que ela percebe a respeito dele é que está usando o que seu marido teria chamado de prefeitamente eita-­norme distontivo na sua camisa caqui. Seu marido e os acompanhantes que o flanqueavam passam por debaixo da corda em um movimento tão sincronizado que parecia uma coreografia.

A multidão os segue em direção ao estacionamento... com uma ex­ceção. O Loiraço não está andando em direção ao estacionamento. Ain­da está parado na parte do canteiro inaugural que dá para o estaciona­mento. Algumas pessoas esbarram nele e ele é forçado a andar para trás, até a terra seca e morta onde a Biblioteca Shipman estará estabelecida em 1991 (se é que se pode confiar nas promessas do empreiteiro). Então ele passa a seguir adiante contra a corrente, as mãos se desgrudando para tirar uma garota da sua frente, empurrando-a para a esquerda, e depois um cara, empurrando-o para a direita. Sua boca ainda está se mexendo. A princípio, Lisey pensa novamente que ele está balbuciando uma prece silenciosa, e então ouve o falatório entrecortado — como algo que um mau imitador de James Joyce poderia escrever — e, pela primeira vez, fica verdadeiramente alarmada. Os olhos azuis e estranhos do Loiraço estão fixados no seu marido, nele e em nada mais, mas Lisey compreen­de que ele não quer discutir sobras ou os subtextos religiosos ocultos dos romances de Scott. Este não é um mero Caubói do Espaço Sideral.

— Os sinos da igreja descem a Angel Street — diz o Loiraço, diz Gerd Allen Cole, que, conforme se descobrirá, passou a maior parte do seu décimo sétimo ano em um hospital psiquiátrico de luxo na Virgínia e recebeu alta como curado e são. Lisey ouve cada palavra. Elas abrem caminho pelo burburinho cada vez mais alto da multidão, por aquele zumbido de vozes que parece uma faca cortando um bolo leve e doce. — Aquele som murmurante, como chuva em um teto de zinco! Flores sujas, sujas e doces, é assim que é o som dos sinos no meu porão, como se você não soubesse!

Uma de suas mãos, que parece toda feita de dedos longos e pálidos, desce até as pontas da camisa branca e Lisey compreende exatamente o que está acontecendo ali. A compreensão lhe vem na forma de breves imagens de tevê

(George Wallace Arthur Bremmer *)

da sua infância. Ela olha na direção de Scott, mas Scott está fa­lando com Dashmiel. Dashmiel está olhando para Stefan Queensland, a carranca irritada de Dashmiel dizendo que Já! Chega! De fotos! Por hoje! Obrigado! Queensland está com os olhos baixados para a câmera, fazendo algum ajuste, e Anthony “Toneh” Eddington faz anotações no seu bloco. Ela espia o segurança do campus, o do uniforme caqui e o prefeitamente eita-norme distontivo; ele está olhando para a multidão, mas para a joça da parte errada! É impossível que ela consiga ver toda essa gente e também o Loiraço, mas ela consegue, ela vê, ela consegue até ver os lábios de Scott formarem as palavras acho que correu tudo bem, o que é um comentário-teste que ele geralmente faz depois de eventos como aquele e, oh Deus, oh Jesus, Maria e Jojo, o Carpinteiro, ela tenta gritar o nome de Scott e avisá-lo, mas sua garganta trava, se torna uma rosca seca e sem saliva, ela não consegue dizer nada e o Loiraço está com a parte de baixo da sua camisa grande e branca toda levantada e, embaixo dela, estão as alças vazias da cintura da calça e uma barriga lisa e sem pêlos, uma barriga de peixe, e, contra aquela pele branca, o cabo de uma arma que ele agora pega e ela o escuta dizer se aproximando de Scott pela direita:

— Se isso selar os lábios dos sinos, eu terei feito o serviço direito. Desculpe, Papai.

Ela corre para frente, ou pelo menos tenta, mas tem um prefeita­mente eita-norme acesso de pé-colado e os ombros de alguém na sua frente, uma aluna parruda com o cabelo amarrado com uma fita de seda branca larga com NASHVILLE escrito nela em letras azuis contornadas de vermelho (está vendo como ela vê tudo?), e Lisey a empurra com a mão que segura a pá de prata e a aluna grasna “Ei!”, mas o som é mais lento e arrastado do que isso, como um Ei gravado em 45 rpm e então tocado em 33 1/3 ou talvez até em 16. O mundo inteiro virou asfalto quente e a aluna parruda com NASHVILLE no cabelo a impede por uma eternidade de ver Scott; o máximo que consegue enxergar é o ombro de Dashmiel. E Tony Eddington, folheando para trás as páginas do seu maldito bloco de anotações.

Então a aluna finalmente libera o campo de visão de Lisey e, à medida que Dashmiel e seu marido voltam a ficar totalmente visíveis, ela vê a cabeça do professor de inglês saltar para cima e seu corpo en­trar em alerta vermelho. Acontece em um segundo. Lisey vê o mesmo que Dashmiel. Ela vê o Loiraço com a arma (que se mostrará uma La­dysmith .22 feita na Coréia e comprada em uma venda de garagem em South Nashville por 37 dólares) apontada para o seu marido, que finalmente notou o perigo e parou. No tempo-Lisey, tudo isso acontece muito, muito lentamente. Ela não chega a ver a bala saindo do cano da .22 — não exatamente —, mas ouve Scott dizer, com muita brandura, como se arrastasse as palavras durante dez ou até 15 segundos:

— Que tal a gente conversar, filho?

E então ela vê o fogo brotar do cano niquelado da arma em um pequeno e desigual buquê amarelo-branco. Ouve um estalo — idiota, insignificante, o som de alguém estourando um saco com a palma da mão. Vê Dashmiel, aquele sulistinha borra-botas, sair correndo feito um coelho para a esquerda. Vê Scott capengar para trás com os calca­nhares, atirando, ao mesmo tempo, o queixo para frente. A combinação é estranha e graciosa, como um passo de dança. Um buraco negro se abre no lado direito do seu paletó.

— Filho, com toda certeza você não quer fazer isso — diz ele naquela voz arrastada do tempo-Lisey e, mesmo no tempo-Lisey, ela consegue ouvir como sua voz vai ficando fina a cada palavra, até ele soar como um piloto de testes numa câmara de simulação de grandes altitu­des. Ainda assim, Lisey acha que ele ainda não sabe que levou um tiro. Tem quase certeza disso. Seu paletó se abre como um portão enquanto ele estende a mão em um gesto que ordena pare-com-isso, e ela percebe duas coisas ao mesmo tempo. A primeira é que a camisa debaixo do paletó está ficando vermelha. A segunda é que ela finalmente começou algo parecido com uma corrida.

— Eu preciso parar com todo esse blém-blém — diz Gerd Allen Cole com perfeita e impaciente clareza. — Preciso parar com todo esse blém-blém pelas frésias.

E, de repente, Lisey tem certeza de que, assim que Scott estiver morto, assim que o estrago estiver feito, o Loiraço vai ou cometer sui­cídio ou forjar uma tentativa. Por ora, no entanto, ele tem esse negócio para terminar. Esse negócio com o escritor. O Loiraço gira um pouco o punho de modo que o cano fumegante da Ladysmith .22 aponte para o lado esquerdo do peito de Scott; no tempo-Lisey, o movimento é suave e lento. Ele acertou o pulmão; agora vai acertar o coração. Lisey sabe que não pode deixar isso acontecer. Se quiser que seu marido tenha alguma chance, não deve deixar que aquele picareta mortífero coloque mais chumbo nele.

Como se a repudiasse, Gerd Allen Cole diz:

— Nunca acaba até você cair. Você é o responsável por todas essas repetições, coroa. Você é o inferno, você é um macaco, e agora é o meu macaco.

Esse discurso é o mais perto que ele chega de fazer sentido e, ao fazê-lo, dá o mínimo de tempo necessário para Lisey primeiro chegar com a pá de prata — o corpo sabe o que faz e suas mãos já encontraram a posição perto do fim do cabo de um metro da coisa — e então brandi-la. Ainda assim, é por pouco. Se fosse uma corrida de cavalo, o painel eletrô­nico teria sem dúvida mostrado a mensagem de PEGUEM SEUS TÍQUETES E AGUARDEM A FOTO. Porém, quando a corrida é entre um homem com uma arma e uma mulher com uma pá, você não precisa de foto. No tempo em câmera lenta de Lisey, ela vê a pá de prata bater na arma, atirando-a para cima na hora em que o buquê de fogo brota novamente (ela consegue ver apenas um pedaço dele dessa vez e a lâmina da pá cobre totalmente o cano). Ela vê a parte da frente da pá cerimonial ir para frente e para cima, enquanto o segundo tiro segue inofensivamente em direção ao céu quente de agosto. Vê a arma sair voando e tem tempo de pensar Cacete! Eu botei força mesmo! antes de a pá se chocar com o rosto do Loiraço. A mão dele ainda está lá (três daqueles dedos finos e longos se quebrarão), mas a concha de prata bate com força assim mesmo, quebrando o nariz de Cole, esmigalhando seu osso malar e a órbita ossuda em volta do seu olho direito arregalado, destroçando nove dentes também. Um capanga da Máfia com um soco inglês não teria feito melhor.

E então — ainda lentamente, ainda no tempo-Lisey — os elemen­tos da premiada fotografia de Queensland começam a se juntar. O capitão S. Heffernan viu o que estava acontecendo apenas um ou dois segundos depois de Lisey, mas ele também tem que lidar com o problema dos espectadores — no seu caso, um sujeito gordo e espi­nhento usando uma bermuda baggy e uma camisa com a cara sorridente de Scott Landon estampada. O capitão Heffernan empurra esse rapaz para o lado com um ombro musculoso.

A essa altura, o Loiraço já está caindo no chão (e saindo do quadro da futura foto) com uma expressão atordoada em um olho e sangue es­correndo do outro. O sangue também está jorrando do buraco em que em algum encontro no futuro pode voltar a lhe servir de boca. Heffer­nan não vê nada do golpe.

Roger Dashmiel, talvez se lembrando que deveria ser o mestre­de-cerimônias e não um grande e velho coelho, volta-se na direção de Eddington, seu protegido, e Landon, seu problemático convidado de honra, bem na hora de assumir sua posição com uma cara espantada e ligeiramente borrada ao fundo da fotografia que estava por vir.

Scott Landon, enquanto isso, caminha em choque direto para fora da foto premiada. Ele anda como se não se importasse com o calor, em direção ao estacionamento e ao Nelson Hall mais além, que abriga o Departamento de Inglês e tem, abençoadamente, ar-condicionado. Ca­minha com bastante energia, pelo menos no começo, e uma boa parte da multidão o segue, sem saber da maior parte do ocorrido. Afinal, quantos deles viram o Loiraço com aquela pistolinha safada na mão? Quantos deles perceberam que os sons de saco de papel estourando eram tiros? O buraco no paletó de Scott poderia ser uma mancha de ter­ra de quando ele cavou, e o sangue que encharcou sua camisa ainda está invisível para o mundo externo. Agora ele produz um estranho assovio a cada vez que inala ar, mas quantos deles estão ouvindo isso? Não, é para ela que estão olhando — alguns deles, pelo menos —, a maluca que inexplicavelmente acabou de sair correndo e acertou um sujeito na cara com a pá de prata cerimonial. Muitos estavam até sorrindo, como se acreditassem que tudo fizesse parte do espetáculo armado para eles, o Show Itinerante de Scott Landon. Bem, eles que se fodam, e que se foda Dashmiel, e que se foda o segurança do campus atrasadinho com seu prefeitamente eita-norme distontivo. Ela só se importa com Scott ago­ra. Atira a pá não muito às cegas para a direita e Eddington, o Boswell de aluguel deles, a apanha. Ou a apanhava ou ela o acertava no nariz. Então, ainda naquela terrível câmera lenta, Lisey corre atrás do mari­do, cuja energia evapora assim que ele alcança o calor de alto-forno do estacionamento. Atrás dela, Tony Eddington está olhando para a pá de prata como se ela fosse um projétil de artilharia, um detector de radia­ção, ou a sobra de alguma grande raça extinta, e na direção dele vem o capitão S. Heffernan com sua idéia equivocada de quem deve ser o he­rói do dia. Lisey não percebe esta parte, não saberá de nada dela até ver a foto de Queensland 18 anos depois, não se importaria nem um pouco mesmo se tivesse ficado sabendo; toda sua atenção está voltada para seu marido, que acaba de cair de quatro no estacionamento. Queensland tira sua foto, pegando apenas metade de um sapato no canto direito do quadro, algo que não notaria no momento, ou nunca.

 

O ganhador do prêmio Pulitzer, o enfant terrible que publicou seu pri­meiro romance com tenros 22 anos de idade, cai. Scott Landon beija a lona, como se diz.

Lisey faz um esforço supremo para se desgrudar da enlouquecedo­ra cola temporal na qual parece estar presa. Ela precisa se libertar, pois se não o alcançar antes que a multidão o faça, obstruindo a passagem, eles provavelmente o matarão com seu zelo. Com seu amor sufocante.

— Eeeeeele está feriiiiido — grita alguém.

Ela grita para si mesma na sua cabeça

(engatilhe ENGATILHE AGORA MESMO)

e aquilo finalmente resolve. A cola na qual estava grudada some. De repente, ela se joga como uma faca para a frente; o mundo inteiro é barulho e calor e suor e corpos se acotovelando. Ela dá graças a Deus pela realidade veloz daquilo tudo mesmo enquanto usa a mão esquerda para agarrar a nádega esquerda e puxar, arrancando a droga da calcinha de dentro da racha da sua droga de bunda, pronto, pelo menos uma coisa naquele dia equivocado e arruinado estava consertada.

Uma aluna com um top daqueles em que os laços se amarram no ombro em arcos grandes e moles ameaça bloquear seu caminho cada vez mais estreito para Scott, mas Lisey passa por baixo dela e aterrissa no chão quente. Só perceberá os joelhos ralados e cheios de bolhas muito mais tarde — somente no hospital, na verdade, onde um paramédico gentil os notará e colocará uma pomada neles, uma coisa tão fria e con­fortante que a fará chorar de alívio. Mas isso fica para mais tarde. Agora, é como se fosse apenas ela e Scott sozinhos na beirada daquele estacio­namento quente, aquela terrível pista de dança preta e amarela que deve estar pelo menos a 53°C, talvez 65°C. Sua mente tenta presenteá-la com a imagem de um ovo fritando com a gema para cima na frigideira preta de ferro da Mãezinha Querida e Lisey a afasta.

Scott está olhando para ela.

Ele ergue os olhos e agora seu rosto está branco como um lençol, exceto pelas manchas fuliginosas que se formam debaixo dos seus olhos cor de avelã e pelo fio gordo de sangue que começou a escorrer do canto direito da sua boca, descendo pelo queixo.

— Lisey! — aquela voz fina de câmara de simulação de grandes altitudes. — Aquele cara atirou mesmo em mim?

— Tente não falar. — Ela coloca uma das mãos no seu peito. A camisa dele — oh, bom Deus — está encharcada de sangue e, debaixo dela, ela consegue sentir seu coração batendo tão rápido e fraco; não os batimentos de um ser humano, mas os de um passarinho. Um pulso de pombo, pensa Lisey, e é nessa hora que a garota com os arcos mo­les amarrados nos ombros cai em cima dela. Ela teria aterrissado em Scott, mas Lisey o protege por instinto, aguentando o tranco do peso da garota (Ei! Merda! Caralho!, exclama ela, espantada) nas costas; o peso dura apenas um segundo, e então some. Lisey vê a garota atirar as mãos para a frente para amortecer a queda — oh, os divinos reflexos dos jovens, pensa ela como se fosse uma velha em vez de ter apenas 31 anos — e consegue, mas então começa a ganir “Ai, ai, ai”, enquanto o asfalto queima sua pele.

— Lisey — sussurra Scott e — oh, Cristo — como a respiração dele grita quando ele inspira o ar, como vento em uma chaminé.

— Quem me empurrou? — pergunta a garota com os laços nos om­bros. Está agachada, com os cabelos de um rabo-de-cavalo solto sobre os olhos, chorando lágrimas de choque, dor e vergonha.

Lisey se abaixa para mais perto de Scott. O calor que ele sente a aterroriza, enchendo-a de uma pena mais profunda do que imaginava ser possível sentir. Ele chega a estar tremendo de calor. Desajeitadamen­te, usando apenas um braço, Lisey tira o paletó dele.

— Sim, você levou um tiro. Então fique quieto e tente não...

— Estou com tanto calor — diz ele, começando a tremer mais. O que vem em seguida, convulsões? Seus olhos cor de avelã se erguem de encontro aos olhos azuis dela. Sangue escorre do canto da sua boca. Ela consegue sentir o cheiro dele. Até o colarinho da sua camisa está empa­pado de vermelho. O chá medicinal dele não vai adiantar dessa vez, pensa ela, sem saber ao certo no que está pensando. É sangue demais. Demais da conta. — Estou com tanto calor, Lisey, por favor me traz gelo.

— Vou trazer — diz ela e coloca o paletó embaixo da cabeça dele. — Vou trazer, Scott. — Graças a Deus que ele está com o paletó de verão, pensa ela, e então tem uma idéia. Agarra a garota agachada e chorosa pelo braço. — Como você se chama?

A garota a encara como se estivesse com raiva, mas responde a pergunta.

— Lisa Lemke.

Outra Lisa, mundo pequeno, pensa Lisey, sem falar. O que ela diz é:

— Meu marido levou um tiro, Lisa. Você poderia ir até o... — Ela não consegue lembrar o nome do prédio, somente sua função. — ...o Departamento de Inglês e chamar uma ambulância? Disque 911...

— Senhora? Sra. Landon? — E o segurança do campus com o pre­feitamente eita-norme distontivo, abrindo caminho pela multidão com bastante ajuda dos seus cotovelos robustos. Ele se agacha ao lado dela e seus joelhos estalam. Fala devagar e com cautela, como se estivesse se di­rigindo a uma criança aflita. — Eu liguei para a enfermaria do campus, sra. Landon. Eles estão mandando a ambulância deles, que levará o seu marido para o Nashville Memorial. A senhora está me entendendo?

Ela entende e sua gratidão (o policial compensou pelo atraso com lou­vor, na opinião de Lisey) é quase tão grande quanto a pena que sente pelo marido, deitado no asfalto fervente e tremendo como um cão doente. Ela assente, chorando a primeira das muitas lágrimas que virão antes de levar Scott de volta para o Maine... não em um vôo da Delta, mas em um avião particular e com uma enfermeira particular a bordo, e com outra ambulân­cia e outra enfermeira particular à espera deles no terminal de Avião Civil do Aeroporto Jefferson. Agora ela se volta para a tal Lemke e diz:

— Ele está pelando... dá pra arranjar gelo? Você consegue pensar em algum lugar que tenha gelo? Qualquer lugar?

Ela diz isso sem muita esperança, então fica surpresa quando Lisa Lemke assente de imediato.

— Tem uma lanchonete com uma máquina de Coca logo ali. — Ela aponta na direção do Nelson Hall, que Lisey não consegue ver. Tudo que vê é uma floresta espessa de pernas nuas, algumas peludas, outras lisas, algumas bronzeadas, outras vermelhas de sol. Percebe que eles estão completamente cercados, que ela está cuidando de seu mari­do caído em uma fresta do tamanho de um comprimido de vitamina gigante ou de um antigripal, e sente um fiapo de pânico de multidão. O nome certo daquilo era agorafobia? Scott saberia dizer.

— Se você puder trazer um pouco de gelo para ele, eu agradeceria — diz Lisey. — E depressa. — Ela se volta para o segurança, que parece estar tomando o pulso de Scott; uma coisa totalmente inútil, na opinião de Lisey. A coisa chegou ao ponto de ele ou estar vivo ou morto. — O senhor pode fazer essa gente se afastar? — pede ela. Quase implora. — Está tão quente e...

Antes que ela pudesse terminar, ele salta de pé como um boneco de uma caixa de surpresas, gritando:

— Afastem-se! Deixem essa garota passar! Afastem-se e deixem essa garota passar! Que tal vocês deixarem o homem respirar, pessoal?

A multidão se arrasta para trás... com muita relutância, na opinião de Lisey. A impressão que tem é que eles não querem perder uma gota do sangue.

O calor sobe do asfalto. Ela meio que esperava se acostumar com ele, do mesmo jeito que você se acostuma com uma ducha quente, mas não é o que está acontecendo. Tenta ouvir o uivo da ambulância se aproximando, mas não ouve nada. Então escuta algo. Escuta Scott, dizendo seu nome. Grasnindo seu nome. Ao mesmo tempo, ele puxa com a mão o lado do top encharcado de suor dela (seu sutiã faz relevo contra a seda tão claramente quanto uma tatuagem inchada). Ela olha para baixo e vê algo de que não gosta nem um pouco. Scott está sorrin­do. O sangue cobriu seus lábios com um vermelho forte de guloseima, de cima a baixo, de um lado ao outro, e o sorriso parece mais o de um palhaço. Ninguém gosta de um palhaço à meia-noite, pensa ela, e se per­gunta de onde saiu aquilo. Somente em algum momento da noite longa e quase toda insone que a aguardava, ouvindo o que pareciam ser todos os cachorros de Nashville latirem para a lua de agosto, ela lembraria que aquilo era o epigrama do terceiro romance de Scott, o único que tanto ela quanto os críticos odiaram, o que os tornou ricos: Demônios Vazios.

Scott continua a puxar seu top de seda azul, os olhos ainda muito brilhantes e febris nas órbitas escurecidas. Ele quer dizer algo e — com relutância — ela se agacha para ouvir. Ele sorve o ar aos poucos, em meios-arquejos. E um processo ruidoso e assustador. O cheiro de san­gue é mais forte ainda de perto. Nojento. Um cheiro de minério.

É a morte. É o cheiro da morte.

E, como se para ratificar isso, Scott diz:

— Está muito perto, querida. Não consigo vê-lo, mas... — Outra longa e estridente inspiração. — Dá pra ouvi-lo se alimentando. E gru­nhindo. — Diz isso com aquele sorriso de palhaço sangrento.

— Scott, não sei do que você está falan...

A mão que agarrava seu top ainda tem alguma força sobrando, afinal. Ela belisca o lado de seu corpo, com crueldade — quando ela tirar o top bem mais tarde, no quarto de motel, verá um hematoma, um verdadeiro chupão.

— Você... — inspiração estridente. — Sabe... — outra inspiração estridente, mais profunda. E, ainda sorrindo, como se eles comparti­lhassem de algum segredo terrível. Um segredo roxo, da cor dos hema­tomas. Da cor de certas flores que crescem em certas

(cale-se, Lisey, ah, cale-se)

sim, em certas colinas.

— Você... sabe... então não... insulte minha... inteligência. — Ou­tra inspiração estridente, sibilante. — Ou a sua.

E ela acha que tem uma idéia, sim. O garoto espichado, como ele o chama. Ou a coisa com o imenso lado matizado. Certa vez ela quis procurar matizado no dicionário, mas se esqueceu... esquecer é uma habilidade que Lisey teve motivos para aprimorar durante os anos em que ela e Scott passaram juntos. Mas ela sabe, sim, do que ele está falando.

Ele solta, ou talvez apenas perde a força para continuar agarrando. Lisey se afasta um pouco — não muito. Os olhos dele a fitam de suas órbitas fundas e escurecidas. Carregam o mesmo brilho de sempre, mas ela nota que estão também cheios de terror e (o que mais a assusta) uma certa jocosidade perversa e inexplicável. Ainda falando baixo — talvez para que somente ela ouça, talvez por ser o melhor que consegue fazer —, Scott diz:

— Ouça, pequena Lisey. Vou imitar o som que ele faz quando olha em volta.

— Scott, não... você tem que parar.

Ele não dá atenção. Inspira ruidosamente mais uma vez, faz um O apertado com os lábios molhados de vermelho e produz um barulho res­folegante grave, detestável. O esforço faz jorrar um fino jato de sangue de sua garganta contraída no ar abafado. Uma garota vê e grita. Dessa vez, a multidão não precisa que o segurança peça que ela recue; as pessoas o fazem por conta própria, deixando Lisey, Scott e o capitão Heffernan com um espaço de pelo menos um metro e vinte ao redor deles.

O som — bom Deus, é mesmo uma espécie de grunhido — é misericordiosamente curto. Scott tosse, seu peito arfa, a ferida vertendo mais sangue em pulsações ritmadas, então a chama de volta para baixo com um dedo. Ela obedece, apoiando-se nas suas mãos fervilhantes. Os olhos arregalados dele a atraem, assim como seu sorriso mortal. Ele vira a cabeça para o lado, cospe um bolo de sangue semicoagu­lado no asfalto quente, então se volta para ela.

— Eu poderia... chamá-lo desse jeito — sussurra ele. — Ele viria. Você ficaria... livre do meu... eterno... quá-quá.

Ela entende o que ele quer dizer e, por um instante (sem dúvida por conta do poder dos olhos dele), acredita ser verdade. Ele fará aquele som novamente, só um pouquinho mais alto, e em algum outro mundo o garoto espichado, aquele senhor das noites insones, virará sua cabeça indescritivelmente faminta. Um instante depois neste mundo, depois de simplesmente tremer no asfalto, Scott Landon estará morto. As pa­lavras no atestado de óbito farão sentido, mas ela saberá: a coisa negra dele finalmente o encontrou, veio ao seu encalço e o comeu vivo.

Então chega a hora das coisas sobre as quais eles jamais conversarão no futuro, seja com outras pessoas ou em particular. Terrível demais. Cada casamento tem dois corações, um luminoso e outro negro. Este é o coração negro deles, o verdadeiro segredo demente. Ela se agacha para perto dele no asfalto, certa de que ele está morrendo, mas não obstante determinada a se agarrar a ele se puder. Mesmo que signifique lutar com o garoto espichado em seu lugar — com nada além das próprias unhas, se necessário.

— Bem... Lisey? — Com aquele sorriso repulsivo, astuto, terrível. — O que... você... me diz?

Ela se agacha mais ainda. Misturando-se ao fedor oscilante de suor­-e-sangue dele. Agachando-se até sentir o mais tênue fantasma do xampu e da espuma de barbear que ele usou naquela manhã. Agachando-se até seus lábios tocarem-lhe a orelha. Ela sussurra:

— Fique quieto, Scott. Por uma vez na vida, fique quieto.

Quando ela volta a encará-lo, os olhos dele estão diferentes. A em­páfia desapareceu. Ele está enfraquecendo, mas talvez não haja proble­ma, porque parece são novamente.

— Lisey?...

Ainda sussurrando. Fitando-o bem nos olhos.

— Deixe aquela joça em paz e ela irá embora. — Por um instante, ela quase acrescenta, Você pode cuidar do resto dessa piração depois, mas aquilo não faz sentido. Por ora, a única coisa que Scott pode fazer é não morrer. Em vez disso, ela diz: — Nunca mais faça aquele som de novo.

Scott lambe os beiços. Lisey vê o sangue na língua dele e aquilo embrulha seu estômago, mas ela não se afasta. Imagina que vá ficar na­quela até a ambulância o levar embora ou ele parar de respirar lá mesmo no asfalto quente a mais ou menos 100 metros do seu mais recente triunfo; se conseguir agüentar aquilo, ela acha que consegue aguentar qualquer coisa.

— Estou com tanto calor — diz ele. — Se pelo menos eu tivesse um pedaço de gelo para chupar.

— Está vindo — diz Lisey, sem saber se a promessa é precipitada e pouco se importando com isso. — Mandei buscar para você. — Fi­nalmente ela ouve a ambulância berrando na direção deles. Já é alguma coisa.

E então, uma espécie de milagre. A garota com os laços nos ombros e os novos arranhões nas palmas das mãos luta para abrir caminho até a frente da multidão. Está ofegante como alguém que tivesse acabado de correr e suor desce pelas suas faces e pescoço, mas está segurando dois copos de papel grandes.

— Derramei metade da merda da Coca voltando para cá — diz ela, dando uma breve e maléfica olhadela por sobre os ombros para a multidão —, mas consegui trazer o gelo. Gelo é gen... — Então seus olhos giram para cima quase até a parte branca e ela cambaleia para trás, toda molenga em seus tênis. O segurança — oh, que ele seja abençoado com muitas bênçãos, com o eita-norme distontivo e tudo — a segura, endireita-a e pega um dos copos. Entrega-o a Lisey, e en­tão manda a outra Lisa beber do outro. Lisey Landon não dá atenção a isso. Mais tarde, recordando tudo aquilo, ela ficará um pouco espan­tada com sua própria determinação. Agora pensa apenas Só não a deixe cair em cima de mim de novo se ela voltar a desmaiar, Policial Amigo, e se volta para Scott.

Ele está tremendo mais do que nunca e seus olhos estão se apagan­do, perdendo o foco nela. E, mesmo assim, ele tenta.

— Lisey... tão quente... gelo.

— Está aqui, Scott. Agora, será que você pode calar sua boca incessante?

— Uma foi para o norte, outra foi para o sul — grasna ele, e então obedece. Talvez tenha ficado sem palavras, o que seria inédito para Scott Landon.

Lisey enfia a mão no fundo do copo, fazendo Coca vir até em cima e transbordar. O frio é chocante e completamente maravilhoso. Ela agarra um bom punhado de lascas de gelo, pensando em como aquilo era irônico: sempre que ela e Scott paravam na área de descanso de um pedágio e ela usava uma máquina de refrigerante em copo em vez de em lata, apertava o botão de SEM GELO, sentindo-se corretíssima — outras pessoas poderiam permitir que as malvadas companhias de refrigerante as enganassem com meio copo de refrigerante e meio copo de gelo, mas não Lisa, a caçula de Dave Debusher. Como o velho Dandy falava? Eu não caí do bico da cegonha ontem! E agora lá estava ela, querendo mais gelo e menos Coca ainda... não que ache que vá fazer muita diferença. Mas, dessa vez, se surpreenderia.

— Aqui, Scott, gelo.

Seus olhos estão semicerrados, mas ele abre a boca e, logo que ela esfrega um punhado de gelo nos seus lábios e depois coloca uma das las­cas em sua língua cheia de sangue, a tremedeira pára de repente. Deus, é como mágica. Encorajada, ela esfrega a mão gelada, pingando, na sua bochecha direita, na esquerda e então na testa, onde gotas de água cor de Coca pingam em suas sobrancelhas e descem-lhe pelos lados do nariz.

— Oh, Lisey, que delícia — diz ele e, embora ainda esteja fraca, sua voz parece a Lisey mais alerta... mais presente. A ambulância parou à esquerda da multidão com um último rosnado da sua sirene e, alguns segundos depois, ela ouve uma voz masculina impaciente gritando:

— Paramédicos! Deixem a gente passar! Paramédicos, vamos, pessoal, que tal vocês nos deixarem passar e fazer nosso trabalho?

Dashmiel, o sulistinha babaca, escolhe esse momento para falar no ouvido de Lisey. A solicitude em sua voz, considerando a rapidez com que ele saiu correndo, lhe dá vontade de ranger os dentes.

— Como ele está, querida?

Sem virar a cabeça, ela responde:

— Tentando viver.

 

— Tentando viver — murmurou ela, correndo a palma da mão sobre a página acetinada do U-Tenn Nashville Review. Sobre a foto de Scott com o pé apoiado naquela pá de prata estúpida. Ela fechou o anuário de supetão e o atirou nas costas empoeiradas da cobra de livros. Seu apetite por fotos — por lembranças — estava mais do que satisfeito por um dia. Começava a sentir um latejar forte atrás do olho direito. Queria tomar algum analgé­sico, não aquele Tylenol de nada, mas o que seu falecido marido chamava de arrasa-dor de cabeça. Uns dois Excedrin dele dariam conta, se não esti­vessem fora demais da validade. E depois uma deitadinha no quarto deles até a dor de cabeça incipiente passar. Talvez até dormisse um pouco.

Ainda penso no quarto como nosso, devaneou ela, andando em dire­ção às escadas que desciam até o celeiro, que já não era exatamente um celeiro, mas apenas uma série de baias de depósito... embora ainda chei­rasse a feno, cordas e óleo de trator, os velhos cheiros teimosos e doces de fazenda. Ainda como nosso, mesmo depois de dois anos.

E daí? O que tinha de mais?

Ela deu de ombros.

— Nada, imagino.

Ficou um pouco chocada com a maneira como as palavras soaram como um resmungo, quase como se estivesse bêbada. Supôs que a viva­cidade de todas aquelas recordações a tivesse deixado esgotada. Por uma coisa ela poderia ficar grata: nenhuma outra foto de Scott na barriga da cobra de livros poderia trazer à tona lembranças tão violentas; ele só havia levado um tiro na vida e nenhuma daquelas faculdades teria mandado fotos para ele do seu pa...

(não fale nisso, cale a boca)

— Isso mesmo — concordou ela, chegando ao pé da escada e sem saber de fato no que ela estava prestes

(Scoot, seu molenga)

a pensar. Sua cabeça pendia sobre o peito e ela se sentia toda suada, como alguém que acabou de escapar de um acidente.

— Cala-te boca, já chega.

E, como se ativado pela sua voz, um telefone começou a tocar atrás da porta de madeira fechada à sua direita. Lisey se deteve no corredor principal do andar de baixo do celeiro. No passado, aquela porta se abria para um estábulo grande o bastante para comportar três cavalos. Agora, a placa nela dizia apenas ALTA VOLTAGEM! Aquilo era uma tentativa de piada de Lisey. Ela pretendera fazer um pequeno escritório ali, um lugar onde pudesse guardar a papelada e pagar as contas do mês (eles tinham — ela ainda tinha — um contador em tempo integral, mas ele ficava em Nova York e não se podia esperar que resolvesse ninharias como a conta mensal dela na vendinha). Chegara até a colocar a mesa, o telefone, o fax e alguns fichários... e então Scott morreu. Será que ela já havia entrado ali desde então? Uma vez, pelo que se lembrava. No começo daquela prima­vera. Fim de março, algumas poças paradas de neve ainda no chão, sua missão apenas esvaziar a secretária eletrônica ligada ao telefone. O painel da máquina mostrava o número 21. As mensagens que iam da primeira até a número 17 e da 19 a 21 tinham sido daqueles vendedores que Scott costumava chamar de “piolhos de telefone”. A de número 18 (e isso não surpreendeu nem um pouco Lisey) tinha sido de Amanda. “Só queria saber se algum dia você atendeu esse negócio”, dissera ela. “Você deu o número para mim, para Darla e para Canty antes de Scott morrer.” Pausa. “Acho que deu.” Pausa. “Atenda.” Pausa. Então, bem rápido: “Mas pas­sou um tempão entre a mensagem e o bipe, nossa, você deve ter um monte de mensagens, pequena Lisey, devia checar esse treco caso alguém queira lhe dar um jogo de porcelana, ou sei lá.” Pausa. “Bem... tchau.”

Agora, parada diante da porta fechada do escritório, sentindo a dor pulsar atrás do olho em sincronia com as batidas do seu coração, ela ouviu o telefone tocar uma terceira vez, e uma quarta. Na metade do quinto toque, ouviu-se um clique, seguido de sua própria voz, dizendo a quem quer que estivesse do outro lado da linha que ele ou ela tinha ligado para 727-5932. Não havia falsas promessas de que a ligação seria retornada, nem mesmo um convite a que a pessoa deixasse uma mensa­gem depois do que Amanda chamava de blipe. De qualquer forma, qual seria o sentido? Quem ligaria para lá para falar com ela? A que sobrou era apenas a pequena Lisey Debusher de Lisbon Falis, agora a viúva Landon. A pequena Lisey vivia sozinha em uma casa grande demais para ela e escrevia listas de compras, não romances.

A pausa entre a mensagem e o bipe foi tão longa que ela achou que a fita para as mensagens estava cheia. Mesmo que não estivesse, a pessoa que ligou se cansaria e desligaria; tudo que ela iria ouvir através da porta fechada do escritório seria a mais chata de todas as mensagens telefônicas pré-gravadas, a mulher que diz para você (ralha com você): “Se quiser fazer uma ligação... por favor, desligue e disque o número do seu telefonista!” Ela não acrescenta, seu otário, ou cabeça oca, mas Lisey sempre pressentiu que essas palavras eram o que Scott teria chamado de “subtexto”.

Em vez disso, Lisey ouviu uma voz de homem falar três palavras. Não havia motivo para elas lhe darem um frio na espinha, mas deram:

— Vou tentar novamente — disse a voz.

Depois um clique.

E depois silêncio.

 

Este é um presente muito mais agradável, pensa ela, mas sabe que não é passado ou presente; é apenas um sonho. Ela está deitada na cama de casal grande no

(nosso nosso nosso nosso nosso)

quarto, sob o ventilador que gira lentamente. Apesar dos 130 miligramas de cafeína nos dois Excedrin (data de validade: OUT 07) que ela tomou do reduzido estoque de remédios de Scott no armariozi­nho do banheiro, ela caíra no sono. Se tivesse alguma dúvida disso, só precisaria conferir onde está — a UTI do terceiro andar do Nashville Memorial Hospital — e o seu peculiar meio de transporte: está se loco­movendo novamente sobre um grande pedaço de pano com as palavras A FARINHA NÚMERO UM DE PILLSBURY escritas nele. E ela fica mais uma vez encantada em ver que as pontas daquele tapete mágico tosco es­tão amarradas como as de um lenço. Ela flutua tão perto do teto que, quando A FARINHA NÚMERO UM DE PILLSBURY passa por baixo de um dos ventiladores de teto lentos (no sonho, eles são iguais ao que ela tem no seu banheiro), tem que se deitar para que as pás não batam nela e a machuquem. Aqueles remos de madeira envernizados não param de fazer vup, vup, vup enquanto dão suas voltas lentas e de certa forma solenes. Embaixo dela, enfermeiras vêm e vão com seus sapatos cujas solas rangem no piso. Algumas usam os macacões coloridos que um dia dominarão a profissão, mas a maioria ainda usa vestidos brancos, meias brancas e aqueles chapéus que sempre fazem Lisey pensar em pombas empalhadas. Dois médicos — ela imagina que eles devem ser médicos, embora um não pareça ter idade nem para fazer a barba — conversam perto do bebedouro. As paredes de azulejos são verde-claras. O calor do dia não parece fazer efeito ali dentro. Ela imagina que haja ar-condicio­nado além dos ventiladores, mas não consegue ouvi-lo.

Não no meu sonho, é claro que não, ela diz a si mesma, e isso lhe pa­rece razoável. Mais adiante está o quarto 319, que é para onde Scott foi para se recuperar depois que tiraram a bala de dentro dele. Alcançar a porta não é problema, mas então ela descobre que está alta demais para passar quando chega lá. E quer entrar. Não teve a chance de dizer a ele Você pode cuidar do resto dessa piração depois, mas será que era necessá­rio? Afinal, Scott Landon não tinha caído do bico da cegonha ontem. O que lhe parecia ser a verdadeira questão era qual seria a palavra mágica correta para fazer um tapete mágico daqueles descer.

Então lhe vem à cabeça. Não é uma palavra que ela quer ouvir saindo da própria boca (é uma palavra do Loiraço), mas a necessidade faz o homem — como Dandy também dizia —, então...

— Frésias — diz Lisey, e o pano desbotado com as pontas amar­radas desce com obediência a um metro de onde pairava sob o teto do hospital. Ela olha através da porta aberta e vê Scott, agora talvez com cinco horas de pós-operatório, deitado em uma cama estreita, mas sur­preendentemente bonita, com curvas graciosas na cabeceira e nos pés. Monitores que soam como secretárias eletrônicas apitam e bipam. Duas bolsas de algo transparente estão penduradas em uma haste entre ele e a parede. Do lado da cama, Lisey-1988 está sentada em uma cadeira de encosto reto com a mão do marido envolta em uma das suas. Na outra mão, Lisey-1988 segura o romance que levou para o Tennessee consigo — não esperava ter tempo para ler muito dele. Scott lê gente como Borges, Pynchon, Tyler e Atwood; Lisey lê Maeve Binchy, Collen McCullough, Jean Auel (embora esteja perdendo um pouco a paciência com o rude povo das cavernas da sra. Auel), Joyce Carol Oates e, recen­temente, Shirley Conran. O que está com ela no quarto 319 é Savages, o romance mais recente desta última, do qual Lisey está gostando bas­tante. Ela chegou à parte em que as mulheres presas na selva aprendem a usar seus sutiãs como estilingues. Tanta lycra! Lisey não sabe se os leitores da América estão prontos para esse último livro da sra. Conran, mas ela o acha corajoso e muito bonito, ao seu modo. A coragem não é sempre meio bonita?

A última luz do dia se derrama pela janela do quarto num flu­xo vermelho e dourado. E sinistro e adorável. Lisey-1988 está muito cansada: emocionalmente, fisicamente e de estar no Sul. Se mais uma pessoa falar com ela naquele sotaque ela acha que é capaz de gritar. A parte boa? Ela não acha que vá ficar lá tanto quanto eles pensam, por­que... bem... basta dizer que ela tem motivos para saber que Scott se cura rápido.

Logo ela voltará para o motel e tentará alugar o mesmo quarto que eles pegaram mais cedo (Scott quase sempre aluga um esconderijo, mes­mo que o evento seja o que ele chama de “o velho entra-e-sai”). Imagina que não vá conseguir — eles tratam você bem diferente se você está com um homem, seja ele famoso ou não —, mas de lá é bem fácil chegar ao hospital e à faculdade e, desde que consiga alguma coisa, está pouco se lixando. O dr. Sattherwaite, que está encarregado de Scott, prometeu que ela pode despistar os repórteres saindo pelos fundos naquela noite e nos próximos dias. Segundo ele, a sra. McKinney da Recepção pedirá para um táxi esperar em frente à entrada de cargas da lanchonete “as­sim que você der sinal verde”. Ela já teria ido, mas Scott ficou inquieto durante a hora que passou. Sattherwaite disse que ele apagaria pelo me­nos até a meia-noite, mas Sattherwaite não conhece Scott como ela, de modo que Lisey não fica muito surpresa quando ele começa a ganhar consciência por breves intervalos quando a manhã se aproxima. Duas vezes ele a reconheceu, duas vezes lhe perguntou o que tinha acontecido e duas vezes ela disse que um perturbado mental havia atirado nele. Na segunda vez ele disse: “Aiô joça de Silver” antes de fechar os olhos nova­mente, e aquilo até a fez rir. Agora ela quer que ele acorde mais uma vez para que possa lhe dizer que não vai voltar para o Maine, apenas para o motel, e que eles se vêem pela manhã.

Lisey-2006 sabe de tudo isso. Lembra-se. Intui. Tanto faz. De onde está em seu tapete mágico, pensa: Ele abre os olhos. Olha para mim. E diz: “Eu estava perdido no escuro e você me encontrou. Eu estava com calor — com tanto calor — e você me deu gelo.”

Mas foi isso mesmo que ele disse? Foi isso mesmo que aconteceu? Ou aquilo foi mais tarde? E, se ela estiver escondendo coisas — escon­dendo-as de si mesma —, por que as esconde?

Na cama, sob a luz vermelha, Scott abre os olhos. Olha para a esposa lendo seu livro. Sua respiração não grita mais, mas ainda se ouve um som de vento quando ele suga o ar o mais forte que consegue e meio sussurra, meio grasna o nome dela. Lisey-1988 baixa o livro e olha para ele.

— Ei, você está acordado de novo — diz ela. — Então vamos co­meçar o jogo de perguntas. Você se lembra do que aconteceu?

— Tiro — sussurra ele. — Garoto. Tubo. Costas. Doem.

— Daqui a pouco você vai poder tomar alguma coisa para a dor — diz ela. — Por enquanto, não quer...

Ele aperta a mão dela, dizendo-lhe que pode parar. Agora ele vai me dizer que estava perdido no escuro e que eu lhe dei gelo, Lisey-2006 pensa.

Porém, o que ele diz à esposa — que mais cedo naquele dia salvou sua vida arrebentando os miolos de um louco com uma pá de prata — é apenas o seguinte:

— Tava quente, né?

Seu tom é casual. Nada de especial no olhar: apenas jogando con­versa fora. Só passando o tempo enquanto a luz vermelha ganha mais profundidade e as máquinas apitam e bipam e, flutuando no batente da porta, Lisey-2006 vê o tremor — sutil, mas perceptível — correr pelo seu eu mais jovem; vê o indicador do seu eu mais jovem descolar-se do exemplar de capa mole de Savages.

Estou pensando “Ou ele não se lembra ou está fingindo não se lembrar do que disse quando estava caído — sobre como ele poderia chamá-lo se quisesse, como poderia chamar o garoto espichado se eu quisesse me ver livre dele — e do que eu respondi, sobre como ele deveria calar a boca e deixá-lo em paz... que se ele fechasse a matraca aquela coisa iria embora. Estou pen­sando se isso era de fato um caso de esquecimento — da mesma forma que ele esqueceu que tinha levado um tiro — ou se está mais para aquele tipo de esquecimento especial, que, por sua vez, está mais para colocar as coisas ruins em uma caixa e lacrá-la bem. Estou pensando se isso tem alguma importância, desde que ele se lembre de como melhorar”.

Deitada na cama (voando no tapete mágico no eterno presente do seu sonho), Lisey se agitou e tentou gritar para seu eu mais jovem, ten­tou berrar que era importante, era sim! Não o deixe se safar dessa! Tentou gritar. Não se pode esquecer para sempre! Porém, outro dito do passado lhe veio à mente, vindo desta vez das intermináveis partidas de Copas e Uíste na comunidade de Sabbath Day Lake no verão, sempre gritado quando algum jogador queria olhar além da primeira carta do morto: Tire a mão! Não se pode desenterrar os mortos.

Não se pode desenterrar os mortos.

Ainda assim, ela tenta mais uma vez. Com toda sua considerável força mental e determinação, Lisey-2006 se inclina para a frente em seu tapete mágico e grita Ele está fingindo! SCOTT SE LEMBRA DE TUDO! para seu eu mais jovem.

E, por um momento louco, pensa que está sendo ouvida... sabe que está sendo ouvida. Lisey-1988 estremece na cadeira e o livro chega a escapar da sua mão e bater no chão com um estalo breve. Porém, antes que aquela versão dela mesma possa olhar em volta, Scott Landon en­cara a mulher pairando no batente da porta, a versão da sua esposa que viverá para ser sua viúva. Ele aperta os lábios novamente, no entanto, em vez de fazer o horrível som resfolegante, ele sopra. Não é um sopro muito forte; como poderia ser, levando em conta tudo pelo que passou? Mas é suficiente para fazer o tapete mágico voar para trás, oscilando no ar como um pé de algodãozinho-do-campo em um furacão. Lisey se agarra desesperadamente enquanto as paredes do hospital passam bati­das, mas a droga do negócio vira e ela está caindo e

 

Lisey acordou sentando-se reta na cama com suor secando na testa e debaixo dos braços. Estava relativamente frio lá, graças ao ventilador de teto, mas ela ainda estava quente...

Bem, quente como um alto-forno.

— Seja lá o que for isso — disse ela, com um riso nervoso.

O sonho já estava começando a se esfarrapar — a única coisa de que ela se lembrava com alguma clareza era da luz vermelha sobrenatu­ral de um sol se pondo —, porém acordara com uma certeza louca em primeiro plano na sua mente, um imperativo louco: precisava encontrar aquela droga de pá. Aquela pá de prata.

— Por quê? — perguntou ela para o quarto vazio. Pegou o relógio do criado-mudo e o segurou perto do rosto, certa de que ele diria que uma hora havia se passado, talvez até duas. Ficou pasma ao ver que dor­mira exatos vinte minutos. Colocou o relógio de volta no criado-mudo e limpou as mãos na frente da blusa, como se tivesse pegado uma coisa suja e infestada de germes. — Por que aquela coisa?

Esqueça. Era a voz de Scott, não a dela. Raramente a ouvia com tanta clareza àquela altura, mas, minha nossa, como ela a ouviu naquele instante. Alto e bom som. Não é da sua conta. Apenas a encontre e coloque onde... bem, você sabe.

É claro que sabia.

— Onde eu possa engatilhá-la — murmurou Lisey e esfregou o rosto com as mãos, dando uma risadinha.

Isso mesmo, babyluv, concordou seu falecido marido. Sempre que necessário.

 

Lisey e a Pá de Prata

(Espere o Vento Mudar de Direção)

O sonho vívido de Lisey não a ajudou a se livrar das memórias de Nashville, especialmente de uma: Gerd Allen Cole afastando a arma do tiro no pulmão, ao qual Scott talvez conseguisse sobreviver, para o tiro no coração, ao qual ele certamente não sobreviveria. Aquela altura, o mundo todo tinha ficado em câmera lenta e o que lhe voltava sempre — como a língua fica voltando à superfície de um dente muito lasca­do — era como o movimento havia sido totalmente suave, como se a arma estivesse em cima de um suporte giratório.

Lisey passou o aspirador de pó na sala de estar, embora não hou­vesse necessidade, e então lavou a louça que não enchia nem metade da máquina; o cesto de roupas sujas demorava tanto para ficar cheio agora ou era só impressão dela? Dois anos e ainda não conseguia se acostumar. Finalmente, ela colocou seu maio e deu voltas na piscina dos fundos: cinco, depois dez, depois 15, depois 17 e ficou sem fôlego. Agarrou-se à beirada da parte rasa com as pernas estendidas atrás de si, ofegante, o cabelo preto caído nas faces, sobrancelhas e pescoço como um capacete brilhante, e mesmo assim viu a mão pálida de dedos longos se movendo, viu a Ladysmith (era impossível pensar nela como apenas uma arma depois de saber seu nome mortífero e safado) se movendo, viu o buraquinho preto com a morte de Scott enfiada dentro dele ir para a esquerda, e a pá de prata era tão pesada. Parecia impossível que ela fosse conseguir chegar a tempo, que conseguisse ser mais rápida do que a loucura de Cole.

Ela bateu os pés devagar, espirrando um pouco a água. Scott ado­rava a piscina, mas nadava mesmo apenas em raras ocasiões; tinha sido o tipo de cara que fica sentado na bóia com uma cerveja e um livro. Isso quando não estava na estrada. Ou no escritório, escrevendo com a mú­sica no volume máximo. Ou sentado na cadeira de balanço da sala de estar no coração partido de uma noite de inverno, enrolado até o queixo em uma das colchas da Mamãe Debusher, duas da manhã e ele ainda com os olhos arregalados-arregalados-arregalados enquanto um vento terrível, vindo lá de Yellowknife, ribombava do lado de fora — este era o outro Scott; um foi para o norte, outro foi para o sul e, puxa vida, ela amara os dois da mesma forma, tudo da mesma forma.

— Pare — disse Lisey com irritação. — Eu cheguei na hora, che­guei, então esqueça isso. O tiro no pulmão foi tudo que aquele biruta conseguiu.

Ainda assim, na sua mente (onde o passado é sempre presente), ela viu mais uma vez a Ladysmith começar a se mover, e Lisey se arrancou da piscina numa tentativa de afastar fisicamente a imagem. Funcionou, mas o Loiraço voltou quando ela estava no banheirinho, se secando depois de uma rápida ducha, Gerd Allen Cole estava de volta, está de volta, dizendo: Preciso parar com todo esse blém-blém pelas frésias, e Li­sey-1988 está brandindo a pá de prata, mas desta vez a joça do ar no tempo-Lisey é muito espesso, ela chegará com um segundo de atraso, verá todo o segundo buquê de fogo em vez de apenas um pedaço, e um buraco negro também se abrirá na lapela esquerda de Scott enquanto seu paletó se torna sua mortalha...

— Chega! — grunhiu Lisey e atirou a toalha no cesto. — Dá um tempo!

Ela marchou de volta para a casa nua, com as roupas debaixo do braço. Era pra isso que servia a cerca alta em volta de todo o quintal dos fundos.

 

Ela ficou com fome depois de nadar — faminta, na verdade — e, em­bora ainda não fossem cinco horas, decidiu fazer uma bela frigideirada. O que Daria, a segunda mais velha das garotas Debusher, teria chamado de comida de consolo, e Scott — com muito prazer — teria chamado de comer feio. Havia meio quilo de carne de hambúrguer na geladeira e, escondida em uma prateleira dos fundos da despensa, uma opção maravilhosamente nojenta: um macarrão instantâneo sabor cheesebur­ger. Lisey juntou aquilo com a carne na frigideira. Enquanto a mistura fervia, ela preparou uma jarra de Kool-Aid de limão, caprichando no açúcar. Às cinco e vinte, os cheiros da frigideirada já haviam enchido a cozinha e todos os pensamentos sobre Gerd Allen Cole tinham deixado sua cabeça, pelo menos por ora. Ela só conseguia pensar em comida. Ela se serviu duas vezes do macarrão com carne e tomou dois copos grandes de Kool-Aid. Quando terminou o segundo prato e o segundo copo (deixou apenas os restos brancos de açúcar no fundo), soltou um arroto retumbante e disse:

— Eu bem que queria uma joça de um cigarro.

Era verdade; poucas vezes quis tanto um. Um Salem Light. Scott era fumante quando eles se conheceram na Universidade do Maine, onde ele fora tanto aluno da pós quanto o que chamava de O Mais Jovem Escritor da Instituição. Ela cursava meio período (isso não du­rou muito) e trabalhava como garçonete em tempo integral no Pat’s Café do centro, servindo pizzas e sanduíches. Pegou o hábito de fumar de Scott, que era fiel aos cigarros Herbert Tareyton. Eles largaram as guimbas juntos, ajudando um ao outro no processo. Isso tinha sido em 1987, um ano antes da retumbante demonstração de Gerd Allen Cole de que cigarros não são o único problema que uma pessoa pode ter com os pulmões. Nos anos que se seguiram, Lisey passou dias sem pensar neles, então caía em crises horríveis de abstinência. Porém, de certa forma, pensar em cigarros era um avanço. Era melhor do que pensar no

(Preciso parar com todo esse blém-blém pelas frésias, diz Gerd Al­len Cole com perfeita e impaciente clareza, girando de leve o punho)

Loiraço

(suavemente)

e em Nashville

(fazendo o cano fumegante da Ladysmith .22 apontar para o lado esquerdo do peito de Scott)

e joça, lá foi ela, de novo.

Havia um bolinho comprado na rua para sobremesa e creme de leite — talvez o ápice do comer feio — para colocar em cima, mas Lisey ainda estava cheia demais para considerar aquela hipótese. E angustiada ao ver aquelas inúteis memórias antigas voltarem mesmo depois de ter enchido a barriga de comida quente e altamente calórica. Imaginou que agora tinha uma idéia da barra que os veteranos de guerra tinham que en­carar. Aquela tinha sido sua única batalha, mas

(não, Lisey)

— Pare — sussurrou ela, empurrando o prato

(não, babyluv)

com violência para longe. Cristo, como ela queria

(você sabe que não)

um cigarro. E mais do que um fuminho, ela queria que todas aque­las antigas memórias fossem embo...

Lisey!

Era a voz de Scott, mais alta do que seus pensamentos, para variar, e tão clara que ela respondeu em voz alta na mesa da cozinha e sem vergonha alguma:

— O quê, meu bem?

Encontre a pá de prata e todo esse lixo vai sumir... como o cheiro do moinho quando o vento mudava de direção e soprava do sul. Lembra?

É claro que se lembrava. O apartamento dela ficava na cidadezinha de Cleaves Mills, ao leste de Orono. Não tinha nenhum moinho na época em que Lisey morou lá, mas ainda havia muitos em Oldtown e, quando o vento soprava do norte — especialmente se o dia calhasse de estar nublado e úmido — o fedor era atroz. Então, se o vento mudasse de direção... Deus! Dava pra sentir o cheiro do mar e era como nascer de novo. Por um tempo, esperar o vento mudar de direção se tornara parte da linguagem interna do casamento dos dois, como engatilhar, ESPANE e joça em vez de porra. Então caiu em desuso em algum ponto do caminho, e ela passara anos sem pensar naquilo: esperar o vento mudar de direção, no sentido de aguente firme, baby. No sentido de não desista ainda. Talvez tenha sido o tipo de atitude docemente otimista que apenas um casamento jovem pode sustentar. Ela não sabia. Scott talvez pudesse ter dado uma opinião embasada; ele mantinha um diário na época, na sua

(JUVENTUDE!)

fase conturbada, escrevendo por 15 minutos todas as noites en­quanto ela assistia a seriados ou fazia as contas da casa. E, às vezes, em vez de ver tevê ou fazer cheques, ela o observava. Gostava da manei­ra como a luz da lâmpada brilhava nos seus cabelos, fazendo sombras triangulares profundas nas suas bochechas enquanto ele ficava sentado com a cabeça pendida sobre o seu bloco-fichário. O cabelo dele era mais longo e mais preto naquela época, intocado pelo cinza que começou a aparecer mais para o fim da vida. Ela gostava das suas histórias, mas gostava igualmente do jeito que o seu cabelo ficava sob a luz derramada da lâmpada. Achava que o cabelo dele iluminado pela lâmpada era uma história por si só, ele só não sabia. Gostava da sensação da pele dele sob sua mão, também. Testa ou prepúcio, gostava de ambos. Não trocaria um pelo outro. O que servia para ela era o conjunto.

Lisey! Encontre a pá!

Ela tirou a mesa, então guardou o resto da comida em um pote de plástico. Tinha certeza de que nunca mais comeria aquilo agora que sua loucura tinha passado, mas era coisa demais para se jogar pelo ralo da pia; imagine o escândalo que a Mamãe Debusher, que ainda era dona de casa na sua cabeça, faria diante de um desperdício daqueles! Muito melhor escondê-lo na geladeira atrás dos aspargos e do iogurte, onde poderia envelhecer em paz. E, enquanto fazia aquelas tarefas simples, se perguntou como em nome de Jesus, Maria e Jojo, o Carpinteiro, encon­trar aquela pá cerimonial idiota poderia ajudá-la a ganhar paz de espíri­to. Será que tinha algo a ver com as propriedades mágicas da prata? Ela se lembrou de ver um filme de madrugada com Darla e Cantata, uma coisa supostamente assustadora com um lobisomem... só que Lisey não ficou muito assustada, se é que chegou a ficar. Ela achava lobisomens mais tristes do que assustadores e, além do mais, dava pra ver que o pessoal que fez o filme mudava o rosto do ator parando a câmera de vez em quando para colocar mais maquiagem e botando-a para rodar de novo. Era preciso dar um crédito para eles pelo esforço, mas o produto final não convencia muito, pelo menos na humilde opinião dela. Mas a história era mais ou menos interessante. A primeira parte se passava em um pub inglês, e um dos velhinhos que bebiam lá dizia que você só pode matar um lobisomem com uma bala de prata. E Gerd Allen Cole não tinha sido uma espécie de lobisomem?

— Ora, minha filha — disse ela, enxaguando seu prato e enfian­do-o na lavadora quase vazia —, talvez Scott pudesse colocar isso para funcionar em um de seus livros, mas histórias fantásticas nunca foram seu departamento. Não é mesmo? — Ela fechou a lavadora com uma pancada. Na velocidade que ela estava enchendo, estaria pronta para la­var os pratos de agora por volta do dia 4 de julho. — Se quiser procurar aquela pá, é melhor ir logo! Não é?

Antes que pudesse responder a essa pergunta completamente retó­rica, a voz de Scott surgiu novamente — aquela voz clara, mais alta que seus pensamentos.

Deixei um bilhete para você, babyluv.

Lisey congelou no ato de pegar uma toalha de prato para secar as mãos. Conhecia aquela voz; é claro que sim. Ainda a ouvia três ou quatro vezes por semana; a voz dela imitando a dele, um pouquinho de companhia inofensiva em uma casa grande e vazia. Apenas vindo cedo demais depois de toda aquela conversa fiada sobre a pá...

Que bilhete?

Que bilhete?

Lisey secou as mãos e pendurou a toalha de volta para secar. Então se virou, ficando de costas para a pia e com a cozinha diante de si. Ela estava tomada por uma luz adorável de verão (e pelo cheiro de macarrão instantâ­neo, muito menos saboroso agora que seu pequeno apetite pela coisa havia sido saciado). Ela fechou os olhos, contou até dez, então os abriu nova­mente. A luz de verão do fim do dia explodiu ao redor dela. Dentro dela.

— Scott? — falou Lisey, sentindo-se absurdamente como Aman­da, sua irmã mais velha. Semibiruta, em outras palavras. — Você não virou fantasma pra cima de mim, não é?

Ela não esperava resposta — não a pequena Lisey Debusher, que vibrara durante tempestades e zombara do lobisomem do filme, des­cartando-o como um simples caso de efeito quadro a quadro malfeito. Porém, a súbita ventania que entrou pela janela em cima da pia — in­flando as cortinas, erguendo as pontas do seu cabelo ainda úmido e trazendo o pungente aroma de flores — poderia quase ser interpretada como uma resposta. Ela voltou a fechar os olhos e pareceu ouvir uma música distante, não aquela das esferas, mas apenas uma velha música country de Hank Williams: Good-bye Joe, me gotta go, me-oh-my-oh...

Seus braços ficaram arrepiados.

Então o vento foi parando e ela era apenas Lisey novamente. Não Mandy, não Canty, não Darla; sem dúvida não

(uma foi para o sul)

Jody que-fugiu-pra-Miami. Ela era a Totalmente Moderna Lisey, Lisey- 2006, a viúva Landon. Não havia fantasmas. Ela era Lisey Sozinha.

Porém, ela queria encontrar aquela pá de prata, a que havia salvado seu marido por outros 16 anos e sete romances. Isso sem falar na capa da Newsweek em 1992, que trazia um Scott psicodélico com REALIS­MO FANTÁSTICO E O CULTO A LANDON estampado em letras desenhadas por Peter Max. Ela se perguntou o que Roger “O Coelho Fujão” Dashmiel tinha achado daquilo.

Lisey decidiu procurar a pá imediatamente, enquanto a luz longa da tardinha de fim de verão ainda não desaparecia. Com fantasma ou sem fantasma, ela não queria estar lá no celeiro — ou no escritório em cima dele — depois de a noite cair.

 

Os estábulos que ficavam de frente para seu escritório nunca-exatamen­te-concluído eram um local escuro e bolorento que um dia abrigou ferramentas, selas e peças sobressalentes de veículos de fazenda e má­quinas na época em que a casa Landon tinha sido a Fazenda Sugar Top. A baia maior havia sido a das galinhas e, embora tivesse sido faxinada por uma companhia de limpeza profissional e depois caiada (por Scott, que fez o serviço com várias referências a Tom Sawyer), ainda guardava o tênue aroma de amoníaco das aves de tempos atrás. Era um cheiro que Lisey recordava da sua mais tenra infância e detestava... provavelmente porque Vovó D tinha caído de pernas para o ar e morrido enquanto alimentava as galinhas.

Caixas estavam empilhadas até o teto de duas das baias — caixas de papelão de bebida, em sua maioria —, mas não havia utensílios de escavação, de prata ou não. Havia uma cama de casal forrada no antigo galinheiro, a única sobra da experiência dos dois na Alemanha, que durou breves nove meses. Tinham comprado a cama em Bremen e a enviado de volta a um preço exorbitante — Scott insistira. Lisey tinha se esquecido completamente da cama de Bremen até aquele instante.

Isso sim caiu do cu do cachorro! Pensou ela com uma espécie de re­gozijo triste e então disse em voz alta:

— Se você acha que eu vou dormir em uma cama depois de ela ficar vinte e poucos anos dentro de um maldito galinheiro, Scott...

...você está maluco! era como ela pretendia terminar a frase, mas não conseguiu. Em vez disso, explodiu em gargalhadas. Cristo, a maldi­ção do dinheiro. A maldição dele. Quanto aquela cama tinha custado? Mil dólares americanos? Digamos que tenham sido mil. E quanto para mandá-la de volta? Mais mil? Talvez. E aqui está ela, benhaqui, diria Scott, na penumbra do galinheiro. E, por ela, benhaqui poderia conti­nuar até o mundo acabar em fogo ou gelo. Toda aquela história de Ale­manha tinha sido uma bomba, nenhum livro para Scott, uma discussão com o senhorio que por um fio não desandou para uma troca de socos, e até as palestras de Scott tinham dado errado, as platéias ou não tinham senso de humor ou não entendiam o dele, e...

E atrás da porta do outro lado, a que tinha a placa de ALTA VOL­TAGEM!, o telefone começou a berrar novamente. Lisey congelou onde estava, sentindo mais calafrios. E, ainda assim, havia também uma sen­sação de inevitabilidade, como se fosse para aquilo que ela tivesse vindo até lá, não pela pá de prata, mas para atender ao telefonema.

Ela se virou enquanto o telefone tocava uma segunda vez e atraves­sou o corredor central mal iluminado do celeiro. Alcançou a porta no começo do terceiro toque. Passou o dedo pela tranca antiquada e a por­ta se abriu com facilidade, apenas gritando um pouco nas suas dobra­diças não usadas, bem-vinda à cripta, pequena Lisey, estamos morrendo de vontade de conhecer você, he-he-he. Uma corrente de ar passou ao redor dela, colando sua blusa à base das costas. Ela tateou em busca do interruptor e o ligou, sem saber ao certo o que esperar, mas a lâmpada se acendeu. É claro que sim. Para a Companhia de Energia do Maine, tudo aquilo era O Escritório, RFD #2, Sugar Top Hill Road. Para eles, o andar de cima era um caso inquestionável de tudo na mesma.

O telefone em cima da mesa tocou uma quarta vez. Antes que o Toque #5 pudesse acordar a secretária eletrônica, Lisey puxou o fone.

— Alô.

Houve um instante de silêncio. Já iria dizer alô novamente quando a voz do outro lado da linha o fez para ela. O tom era perplexo, mas Lisey reconheceu quem era assim mesmo. Aquela única palavra tinha sido suficiente. Você conhece os seus.

— Darla?

— Lisey... é você!

— Claro que sou eu.

— Onde você está?

— No antigo escritório de Scott.

— Não está, não. Já tentei ligar pra lá.

Lisey só precisou pensar um pouco sobre o assunto. Scott gostava de ouvir música alta — na verdade, gostava de ouvi-la numa altura que pessoas normais achariam absurda — e o telefone lá de cima ficava na área à prova de som que ele achava engraçado chamar de Minha Cela Acolchoada. Não era de surpreender que ela não o tivesse escutado lá embaixo. Não parecia valer a pena explicar nada daquilo para sua irmã.

— Darla, como você conseguiu este número, e por que está ligando?

Fez-se outra pausa. Então, Darla falou:

— Estou na casa da Amanda. Peguei esse número na agenda dela. Ela tem quatro números seus. Eu simplesmente liguei para todos eles. Este foi o último.

Lisey sentiu o peito e o estômago se encolherem. Quando crianças, Amanda e Darla haviam sido grandes rivais. Tinham entrado em inú­meras picuinhas — por conta de bonecas, livros de biblioteca, roupas. O último e mais exagerado confronto fora por um garoto chamado Ri­chie Stanchfield, e tinha sido sério o suficiente para colocar Darla na ala de emergência do Hospital Geral do Maine, onde ela precisou levar seis pontos para fechar o corte fundo em cima do seu olho esquerdo. Ainda tinha a cicatriz, um traço branco fino. Passaram a se entender melhor quando adultas até o seguinte ponto: ainda havia muitas discussões, porém nada mais de derramamento de sangue. Evitam-se o máximo possível. Os jantares mensais ou bimestrais de domingo (com os respec­tivos maridos) ou almoços entre irmãs no Olive Garden ou no Outback às vezes eram difíceis, mesmo com Manda e Darla sentadas separadas e Lisey e Canty como mediadoras. Para Darla estar ligando da casa de Amanda, boa coisa não tinha acontecido.

— Algum problema com ela, Darl? — Pergunta idiota. A única pergunta possível era qual o tamanho do problema.

— A sra. Jones a ouviu gritando, chorando e quebrando coisas. Dando um de seus Grandes Ts.

Um de seus Grandes Troços. Entendido.

— Ela tentou ligar primeiro para Canty, mas ela e Rich estão em Boston. Quando a sra. Jones ficou sabendo pela secretária eletrônica deles, me ligou.

Aquilo fazia sentido. Canty e Rich moravam a menos de 2 quilô­metros de Amanda na Rota 19; Daria morava mais ou menos 3 quilô­metros ao sul. De certa forma, era como o pai delas dizia antigamente: Uma foi para o norte, outra foi para o sul, a outra não conseguia ficar de bico calado. A própria Lisey morava a uns 8 quilômetros de distância. A sra. Jones, que morava de frente para a casinha à prova de intempéries, saberia muito bem que era melhor ligar para Canty primeiro, e não só pela proximidade dela em termos de distância.

Gritando, chorando e quebrando coisas.

— Qual o tamanho do estrago dessa vez? — Lisey se ouviu pergun­tar naquele tom de voz monocórdio e estranhamente formal. — Preciso ir até aí? — No sentido de, é claro, Preciso ir correndo até aí?

— Ela está... acho que ela está bem por enquanto — falou Darla. — Mas voltou a fazer aquilo. Nos braços, e também em alguns lugares bem pra cima das coxas. Os... você sabe.

Lisey sabia, sim. Em três ocasiões anteriores, Amanda tinha en­trado no que Jane Whitlow, sua analista, chamava de “semicatatonia passiva”. Era diferente do que tinha acontecido com

(Não fale nisso)

(Não vou falar)

do que tinha acontecido com Scott em 1996, mas assustador pra cacete do mesmo jeito. E, todas as vezes, aquele estado havia sido pre­cedido por arroubos de irritabilidade — do tipo que Manda exibira no escritório de Scott, deu-se conta Lisey — seguidos de histeria e, então, por breves crises de automutilação. Durante uma delas, Manda apa­rentemente tentou arrancar o próprio umbigo. Ela ficou com uma leve cicatriz em forma de auréola em volta dele. Certa vez, Lisey sugerira a possibilidade de cirurgia plástica, sem saber se seria possível, mas que­rendo deixar claro para Manda que ela, Lisey, estaria disposta a pagar se Amanda quisesse pelo menos considerar a idéia. Amanda recusou com um grasnido insolente de escárnio.

— Eu gosto dessa auréola — dissera. — Se um dia me sentir ten­tada a me cortar de novo, talvez olhe para ela e desista.

Talvez, ao que parecia, tinha sido a palavra-chave.

— Qual o tamanho do estrago, Darl? Sinceramente?

— Lisey... querida...

Lisey percebeu, alarmada (e sentindo seus órgãos vitais se encolhe­rem mais), que sua irmã mais velha estava lutando contra as lágrimas.

— Darla! Respire fundo e me diga.

— Eu estou bem. É só que... foi um longo dia.

— Quando Matt volta de Montreal?

— Daqui a duas semanas. Nem pense em me pedir para ligar para ele, também. Ele está garantindo nossa viagem para St. Bart no inverno que vem e não deve ser incomodado. Podemos lidar com isso sozinhas.

— Podemos?

— Sem dúvida.

— Então me diga com o que a gente está lidando.

— O.k. Certo. — Lisey ouviu Daria respirar fundo. — Os cortes no antebraço dela foram superficiais. Coisa de Band-Aid. Os das coxas foram mais fundos e vão deixar cicatrizes, mas fizeram casca, graças a Deus. Nenhuma porra de ferimento arterial. Uh, Lisey?

— O que foi? Enga... desembucha.

Ela quase mandou Darla engatilhar, o que não teria significado algum para sua irmã mais velha. O que quer que Darla tivesse para con­tar em seguida, seria algo podre. Dava para perceber pela sua voz, que entrava e saía pelos ouvidos de Lisey desde que ela nascera. Ela tentou se preparar. Recostou-se na mesa, olhando para outro lado... e santa Mãe de Deus, lá estava, no canto, recostada com indiferença do lado de ou­tra pilha de caixas de bebida (que tinham de fato SCOTT! JUVENTUDE! escrito nelas). No canto em que a parede ao norte se juntava à parede ao leste, estava a pá de prata de Nashville, tão grande quanto o raio-que­o-parta. Era impressionante que ela não a tivesse visto quando entrou; com certeza teria visto se não estivesse doida para pegar o fone antes de a secretária eletrônica atender. De onde estava, conseguia ler as pala­vras gravadas na concavidade prateada: MARCO ZERO, BIBLIOTECA SHIPMAN. Ela quase conseguia ouvir o sulistinha borra-botas dizendo ao seu marido que o Toneh vai cobrir o evento para o anuário e se ele gostaria de um exemplar. E Scott respondendo...

— Lisey? — Darla pareceu realmente aflita pela primeira vez, e Lisey voltou depressa para o presente. É claro que Darla parecia aflita. Canty estava em Boston por uma semana ou mais, fazendo compras enquanto o marido cuidava do seu negócio de automóveis por atacado — comprando carros usados, carros de leilão e carros de locadora em lugares como Malden e Lynn, Lynn, a Cidade do Pecado. O Matt de Darla, enquanto isso, estava no Canadá, dando palestras sobre os hábi­tos migratórios de diversas tribos indígenas americanas. O que, como Darla certa vez disse a Lisey, era uma atividade surpreendentemente lucrativa. Não que dinheiro fosse ajudá-las agora. Agora que a coisa se resumia a elas duas. Ao poder fraterno. — Lisey, você me ouviu? Ainda está na li...

— Estou aqui — disse Lisey. — Só perdi o que você falou por alguns segundos, desculpe. Talvez seja o telefone, ninguém usava esse aqui há um tempão. Fica no celeiro do andar de baixo. Onde ia ser meu escritório, antes de o Scott morrer?

— Ah, sim. Claro. — Daria parecia totalmente confusa. Não faz a menor joça de idéia do que eu estou falando, pensou Lisey. — Está me ouvindo?

— Perfeitamente. — Olhando para a pá de prata enquanto falava. Pensando em Gerd Allen Cole. Pensando: preciso parar com todo esse blém-blém pelas frésias.

Darla respirou fundo. Lisey ouviu, como um vento soprando pela linha telefônica.

— A Amanda não chegou a admitir, mas acho que ela... bem... be­beu o próprio sangue dessa vez, Lise... os lábios e o queixo dela estavam ensanguentados quando eu cheguei aqui, mas não tinha corte nenhum dentro da boca. Ela estava igual a gente ficava quando a Mãezinha Que­rida nos dava um de seus batons para brincar.

O que pipocou na cabeça de Lisey não foram aqueles longínquos dias em que elas se vestiam e se maquiavam, aqueles dias de andar­-se-equilibrando-nos- saltos-altos-da-Mãezinha Querida, mas sim aquela tarde quente em Nashville, Scott deitado no asfalto, tremendo, seus lábios sujos de sangue cor de guloseima. Ninguém gosta de um palhaço à meia-noite.

Ouça, pequena Lisey. Vou imitar o som que ele faz quando olha em volta.

Porém, no canto, a pá de prata brilhou... e ela era dentada? Lisey acreditava que sim. Se um dia duvidou que tivesse chegado a tempo... se um dia acordou no escuro, suando, certa de que tinha chegado ape­nas um segundo depois e que os anos restantes do seu casamento ha­viam conseqüentemente se perdido...

— Lisey, você vem? Quando está legal, ela pergunta por você.

Alarmes soaram na cabeça de Lisey.

— Como assim quando ela está legal? Pensei que você tinha dito que ela estava bem.

— Ela está... Eu acho que está. — Uma pausa. — Ela perguntou por você e pediu chá. Fiz um pouco e ela bebeu. Fiz certo, não fiz?

— Sim — disse Lisey. — Darl, você sabe qual foi o estopim disso?

— Ah, pode apostar. Parece que está na boca do povo, embora eu não soubesse até a sra. Jones me contar ao telefone.

— O que é? — Porém, Lisey tinha um bom palpite.

— Charlie Corriveau está de volta — falou Darla. Então, baixan­do a voz: — O bom e velho Shootin’ Beans. O banqueiro favorito da galera. Ele trouxe uma garota com ele. Um cartãozinho-postal francês lá do St. John Valley. — Ela falou aquilo com o sotaque do Maine, de modo que saiu arrastado, quase Senjun.

Lisey ficou olhando para a pá de prata, esperando o outro baque chegar. Não tinha dúvidas de que havia outro.

— Eles estão casados, Lisey — falou Darla e, pela linha telefônica, veio uma série de gorgolejos estrangulados que a princípio Lisey pen­sou serem soluços reprimidos. No instante seguinte, ela percebeu que sua irmã estava tentando rir sem que Amanda, que só Deus sabia onde estava na casa, ouvisse.

— Chegarei aí o mais rápido possível — disse ela. — E, Darl?

Nenhuma resposta, apenas mais daqueles sons estrangulados — uíg, uíg, uig, era como soavam ao telefone.

— Se ela te ouvir rindo, pode ser que a próxima a levar uma facada dela seja você.

Depois disso, os sons de risada pararam. Lisey ouviu Darla respirar fundo, controlando-se.

— A analista dela não está mais por aqui, sabia? — disse por fim Darla. — Aquela tal de Whitlow? A que sempre usava cordão no pesco­ço? Foi pro Alasca, parece.

Lisey achava que era Montana, mas não tinha importância.

— Bem, vamos ver o tamanho do estrago. Tem um lugar que Scott procurou... Greenlaw, lá em Twin Cities...

— Oh, Lisey! — A voz da Mãezinha Querida, a mesmíssima voz.

— Lisey o quê? — perguntou ela com rispidez. — Lisey o quê? Você vai se mudar pra casa dela e impedir que ela talhe as iniciais de Charlie Corriveau nos peitos na próxima vez que o juízo dela for para a cucuia? Ou talvez tenha recrutado Canty para essa tarefa.

— Lisey, eu não quis dizer...

— Ou talvez Billy possa abandonar a faculdade para tomar conta dela. Que diferença faz um bom aluno a mais, um a menos?

— Lisey...

— Bem, o que você propõe? — Ela ouviu o tom prepotente da sua voz e o odiou. Esse é outro efeito que o dinheiro exerce sobre você depois de dez ou vinte anos: ele o faz pensar que tem o direito de se safar à força de qualquer situação difícil. Ela se lembrava de Scott dizendo que casas com mais de dois banheiros para cagar deveriam ser proibidas, pois elas faziam as pessoas terem delírios de grandeza. Lisey olhou para a pá novamente. A pá brilhou para ela. Acalmou-a. Você o salvou, disse a pá. Não deixou acontecer no seu turno, falou. Aquilo era verdade? Ela não conseguia se lembrar. Será que era outra daquelas coisas que esquecera de propósito? Também não conseguia se lembrar daquilo. Que droga. Que bela droga.

— Lisey, desculpe... Eu só...

— Eu sei. — O que ela sabia é que estava cansada, confusa e envergo­nhada por ter estourado. — A gente vai dar um jeito. Já estou indo. O.k.?

— Sim. — Alívio na voz de Darla. — O.k.

— Aquele francês — disse Lisey. — Que babaca. Que o diabo o carregue.

— Venha o mais rápido possível.

— Pode deixar. Tchau.

Lisey desligou. Ela andou até o canto da sala e pegou o cabo da pá de prata. Era como se o estivesse fazendo pela primeira vez, e talvez isso não fosse tão estranho. Quando Scott a entregou para ela, Lisey só se interessara na colher de prata brilhante com a mensagem gravada e, quando se preparara para brandir aquela droga, suas mãos haviam se mexido sozinhas... pelo menos a impressão tinha sido essa; imaginava que alguma parte primitiva, destinada à sobrevivência, as movera no lugar do resto dela, no lugar da Totalmente Moderna Lisey.

Ela deslizou a palma de uma das mãos madeira lisa abaixo, sa­boreando o deslizar suave, e, ao se inclinar, seus olhos pousaram mais uma vez sobre as três caixas empilhadas com a exuberante mensagem talhada no lado de cada uma com um marcador de texto preto: SCOTT! JUVENTUDE! A caixa de cima já fora de Gilbey’s Gin e as abas tinham sido dobradas em vez de lacradas a fita. Lisey limpou a poeira, espan­tada com a grossura dela, espantada ao perceber que as últimas mãos a tocarem naquela caixa — a enchê-la, dobrar as abas e colocá-la em cima das outras — agora estavam elas mesmas dobradas e debaixo da terra.

A caixa estava cheia de papel. Manuscritos, imaginou ela. O título na folha de rosto um pouco amarelada estava em caixa-alta, sublinha­do e centralizado. O nome de Scott estava datilografado com esmero embaixo, também centralizado. Tudo aquilo ela reconheceu como teria reconhecido o sorriso dele — tinha sido seu estilo de apresentação de quando ela o conheceu na juventude, e nunca mudara. O que ela não reconheceu foi o título daquele manuscrito:

 

IKE VOLTA PARA CASA

por Scott Landon

Era um romance? Um conto? Só de olhar na caixa era impossível saber. Porém, tinha que haver mil ou mais páginas lá dentro, a maioria em uma única pilha alta sob aquela folha de rosto, mas havia outras ainda enfiadas de lado em duas direções, como um pacote. Se fosse um romance e estivesse todo naquela caixa, seria mais longo do que E o Vento Levou. Seria possível? Lisey imaginou que sim. Scott sempre lhe mostrava seu trabalho quando estava terminado e também lhe mostrava com prazer durante a escrita, se ela pedisse (um privilégio que ele não concedia a ninguém, nem mesmo a seu editor de longa data, Carson Foray), mas, se ela não pedisse, ele geralmente o mantinha para si. E tinha sido prolífico até o dia da sua morte. Na estrada ou em casa, Scott Landon escrevia.

Mas um romance de mil páginas? Sem dúvida ele teria falado alguma coisa. Aposto que é apenas um conto, e um de que ele não gostava, ainda por cima. E o resto das coisas nessa caixa, as coisas no fundo e apertadas nos lados? Cópias de alguns de seus primeiros romances, provavelmente. Ou material não-definitivo. O que ele costumava chamar de “matéria podre”.

Porém, ele não tinha enviado toda a matéria podre de volta para Pitt quando quis se livrar dela, para a Coleção Scott Landon na biblio­teca deles? Para os Incunks babarem em cima, em outras palavras? E se houvesse cópias dos seus antigos manuscritos naquelas caixas, como poderia haver mais delas (carbonos da idade das trevas, em sua maioria) nos armários rotulados de DEPÓSITO no andar de cima? E agora que ela parou para pensar, e quanto às baias nos dois lados do antigo gali­nheiro? O que estava guardado nelas?

Ela olhou para cima, quase como se fosse a Supergirl e pudesse ver a resposta com sua visão de raios X, e foi então que o telefone na sua mesa começou a tocar novamente.

 

Ela andou até a mesa e apanhou o fone com uma mistura de medo e ir­ritação... porém com um pouco mais de ênfase na irritação. Era possível — apenas possível — que Amanda tivesse decidido arrancar uma orelha à la Van Gogh ou talvez cortado a garganta em vez de apenas uma coxa ou um antebraço, mas Lisey duvidava. Durante toda sua vida, Daria tinha sido a irmã mais propensa a ligar de volta três minutos depois, começando com um Acabei de lembrar ou Esqueci de dizer que.

— O que foi, Darl?

Houve um ou dois segundos de silêncio, e então uma voz de ho­mem — uma que ela achava que conhecia — disse:

— Sra. Landon.

Foi a vez de Lisey ficar quieta enquanto vasculhava uma lista de nomes masculinos. Era uma lista bem curta àquela altura; impressionante como a morte do seu marido enxugava seu número de contatos. Havia Jacob Montano, o advogado deles em Portland; Arthur Williams, o con­tador em Nova York que não largaria mão de um dólar nem que a vaca tossisse (ou morresse asfixiada); Deke Williams — nenhum parentesco com o Arthur —, o construtor de Bridgton que transformou os palheiros em cima do celeiro no escritório de Scott e que também remodelou o se­gundo andar da casa deles, transformando os quartos anteriormente mal iluminados em paraísos de luz; Smiley Flanders, o encanador de Motton com o interminável estoque de piadas, tanto limpas quanto sujas; Charlie Haddonfield, o agente de Scott, que ligava para falar de negócios de vez em quando (direitos estrangeiros e coletâneas de contos, em sua maioria); além do punhado de amigos de Scott, que ainda mantinham contato. Porém, certamente nenhuma dessas pessoas ligaria para aquele número, mesmo se estivesse na lista. Aliás, ele estava? Ela não conseguia se lembrar. De qualquer forma, nenhum dos nomes parecia confirmar de onde ela conhecia (ou achava que conhecia) aquela voz. Mas, cacete...

— Sra. Landon?

— Quem está falando? — perguntou ela.

— Meu nome não interessa, madame — respondeu a voz e, de súbito, a imagem de Gerd Allen Cole surgiu com clareza à sua frente, os lábios se mexendo no que poderia ter passado por uma prece. Exceto pela arma na sua mão de dedos longos, digna de um poeta. Bom Deus, não deixe que seja outro daqueles, pensou ela. Não deixe ser outro Loiraço. No entanto, ela viu que estava novamente com a pá de prata na mão — agarrou o cabo de madeira sem pensar quando atendeu o telefone — e que aquilo parecia lhe prometer que era, era sim.

— Interessa para mim — disse ela, ficando pasma com o tom formal de sua voz. Como uma frase tão vigorosa e sem sentido poderia sair de uma boca tão subitamente seca? E então, vupt, num estalo, lhe ocorreu onde ela ouvira a voz antes: naquela mesma tarde, na secretária eletrônica ligada àquele mesmo telefone. E não era de surpreender que não tivesse ligado os pontos na mesma hora, pois a voz dissera apenas três palavras antes: Vou tentar novamente. — Você vai se identificar ago­ra mesmo ou eu desligo.

Houve um suspiro vindo do outro lado da linha. Pareceu ao mes­mo tempo cansado e bem-intencionado.

— Não dificulta as coisas pra mim, madame; tô tentando te aju­dar. Tô sim.

Lisey pensou nas vozes empoeiradas do filme favorito de Scott, A Última Sessão de Cinema; pensou novamente em Hank Williams can­tando Jambalaya. Dress in style, go hog-wile, me-oh-my-oh.

— Vou desligar agora, adeus, passar bem. — Embora não tenha feito mais do que afastar o telefone da orelha. Por ora.

— Pode me chamar de Zack, madame. É um nome tão bom quan­to qualquer outro. Certo?

— Zack o quê?

— Zack McCool.

— Ah, tá, então eu sou a Liz Taylor.

— A senhora pediu um nome, eu dei. Ponto para ele.

— E como você conseguiu este número, Zack?

— Auxílio à lista. — Então estava na lista, aquilo explicava tudo. Talvez. — Agora, a senhora pode me ouvir um instante?

— Estou ouvindo. — Ouvindo... e agarrando a pá de prata... e esperando o vento mudar de direção. Talvez acima de tudo isso. Pois a mudança estava chegando. Cada nervo do corpo dela dizia que sim.

— Madame, um homem visitou a senhora há um tempo para dar uma olhada nos papéis do seu falecido esposo, e me permita dizer que sinto muito pela sua perda.

Lisey ignorou aquela última afirmação.

— Muita gente me pediu para dar uma olhada nos papéis dele des­de que ele morreu. — Ela esperava que o homem do outro lado da linha não fosse capaz de adivinhar ou intuir como o seu coração batia forte àquela altura. — Disse o mesmo para todos eles: um dia terei condições de dividi-los com...

— Esse camarada é da antiga faculdade do seu falecido esposo, madame. Ele diz que é a escolha mais lógica, já que os papéis vão acabar lá de qualquer jeito.

Por um instante, Lisey ficou calada. Ela refletiu sobre o jeito como aquele homem falava. Como ele a chamava de madame. Não era do Maine, não era ianque e provavelmente não era instruído, pelo menos no sentido que Scott daria à palavra; ela imaginou que “Zack McCool” nunca tivesse cursado universidade. Também refletiu que o vento de fato tinha mudado. Já não estava assustada. O que estava, pelo menos por ora, era irritada. Mais que irritada. Estava puta da vida.

Em uma voz baixa e estrangulada que mal reconhecia, ela disse:

— Woodbody. É dele que você está falando, não é? Joseph Woodbody. Aquele Incunk filho-da-puta.

Fez-se uma pausa do outro lado da linha. Então, seu novo amigo disse:

— Não estou entendendo, madame.

Lisey sentiu sua ira chegar ao máximo e a recebeu de bom grado.

— Acho que você está me entendendo muito bem. O professor Jo­seph Woodbody, Rei dos Incunks, contratou você para tentar me coagir a... a quê? Entregar as chaves do escritório do meu marido para que ele possa revirar os manuscritos de Scott e pegar o que quiser? É isso que... ele pensa mesmo... — Ela se refreou. Não foi fácil. A raiva era amarga, mas também era doce, e Lisey queria aproveitá-la. — É só me dizer, Zack. Sim ou não. Você trabalha para o professor Woodbody?

— Isso num é da sua conta, madame.

Lisey não conseguiu retrucar. Ficou, pelo menos temporariamente, sem ação diante do tamanho descaramento daquilo. O que Scott teria chamado de um prefeitamente eita-norme

(num é da sua conta)

absurdo.

— E ninguém me contratou pra tentar fazer nada. — Uma pausa. — Agora, madame, é melhor a senhora fechar a boca e ouvir. Está me ouvindo?

Ela ficou parada com o fone enroscado na orelha, pensando sobre aquilo — Está me ouvindo —, sem dizer nada.

— Consigo te ouvir respirando, então sei que está. Isso é bom. Quando é contratado, madame, esse filho-da-mãe aqui não tenta, ele faz. Sei que a senhora não me conhece, mas a desvantagem é sua, não minha. Isso num é... num tô contando vantagem. Eu num tento, eu faço. Tu vai dar pra esse homem o que ele quer, certo? Ele vai me ligar ou mandar um e-mail do nosso jeito especial e dizer: “Está tudo certo, consegui o que eu quero.” Se isso num... se isso num acontecer dentro dum certo tempo, vou até aí e vou te machucar. Vou te machucar em lugares que a senhora não deixava os garotos meterem a mão nos bailes da escola.

Lisey fechara os olhos em algum momento daquele longo discurso, que dava a impressão de ser decorado. Conseguia sentir lágrimas quen­tes descerem pelas suas bochechas e não sabia se eram de raiva ou...

Vergonha? Será que podiam mesmo ser lágrimas de vergonha? Sim, havia algo de vergonhoso em ouvir aquele tipo de conversa de um estranho. Era como ser nova na escola e levar bronca do professor no primeiro dia.

Não dê idéia pra essa joça, babyluv, disse Scott. Você sabe o que fazer.

Claro que sabia. Em situações como aquela, ou você engatilhava ou não engatilhava. Ela nunca havia passado por uma situação daquelas, mas mesmo assim aquilo era bem óbvio.

— Entendeu o que eu acabei de falar, madame?

Ela sabia o que queria lhe dizer, mas ele talvez não entendesse. Então Lisey decidiu adotar termos mais comuns.

— Zack? — falando muito baixo.

— Sim, madame. — Ele imediatamente desceu para o mesmo tom baixo. O que ele talvez considerasse de conspiração mútua.

— Está me ouvindo?

— Um pouco baixinho, mas... sim, madame.

Ela puxou o ar para o fundo dos pulmões. Segurou-o lá por um instante, imaginando aquele homem que dizia madame e num em lugar de não. Imaginando-o com o telefone bem enroscado contra a orelha, esticando-se em direção ao som de sua voz. Quando a imagem ficou clara na sua mente, ela gritou naquele ouvido com toda a força:

— ENTÃO VÁ SE FODER!

Lisey bateu o fone com tanta força de volta no gancho que a poeira chegou a subir do aparelho.

 

O telefone voltou a tocar quase imediatamente, mas Lisey não tinha interesse em continuar conversando com “Zack McCool”. Ela suspei­tava que já não havia a menor chance de terem o que o pessoal da tevê chama de diálogo. Não que ela quisesse. Tampouco queria ouvi-lo na secretária eletrônica e descobrir que perdera aquele tom enfastiado de boas intenções e passara a querer chamá-la de puta, vadia ou piranha. Seguiu o fio de telefone até a parede — a tomada ficava perto daquela pilha de caixas de bebida — e puxou o plugue. O telefone ficou mudo na metade do terceiro toque. Era uma vez “Zack McCool”, pelo menos por ora. Imaginava que voltaria a se preocupar com ele no futuro — ou sobre ele —, mas agora tinha Amanda para se preocupar. Isso sem falar em Darla, que lhe esperava e contava com ela. Precisava apenas voltar para a cozinha, pegar as chaves do carro... e levaria dois minutos para trancar a casa, também, coisa que ela nem sempre se dava o trabalho de fazer durante o dia.

A casa e o celeiro e o escritório.

Sim, especialmente o escritório, embora ela de forma alguma desse a importância que Scott costumava dar a ele, como se fosse alguma coi­sa extra-especial. Porém, falando em coisas extra-especiais...

Ela se viu olhando para dentro da caixa de cima novamente. Não tinha fechado as abas, então ficava fácil olhar para dentro dela.

 

IKE VOLTA PARA CASA

por Scott Landon

Curiosa — e, afinal de contas, aquilo levaria apenas um instante —, Lisey recostou a pá de prata contra a parede, levantou a folha de rosto e olhou embaixo. Na segunda página, lia-se o seguinte:

 

Boom, fez Ike, voltando para casa, e tudo ficou bem. BOOL! FIM!

 

Nada mais.

Lisey olhou para aquilo durante quase um minuto, embora Deus soubesse que ela tinha coisas para fazer e lugares para ir. Sua pele estava se arrepiando novamente, mas, daquela vez, a sensação era quase agradá­vel... e, que diabos, não tinha nada de quase naquilo, tinha? Um peque­no e bestificado sorriso brincava pela sua boca. Desde que havia começa­do o trabalho de limpar o escritório — desde que perdera a paciência e destruíra o que Scott gostava de chamar de seu “cantinho da memória”, para ser exato — vinha sentindo aquela presença... mas nunca tão perto assim. Nunca tão verdadeira. Enfiou a mão na caixa e folheou o monte grosso e fundo das páginas empilhadas ali, sabendo bem o que encontra­ria. E encontrou. Todas as páginas estavam em branco. Pegou um monte das que estavam enfiadas de lado e elas também estavam. No léxico in­fantil de Scott, um boom era uma viagem curta, e um bool... bem, isso era um pouco mais complicado, mas, naquele contexto, quase certamente significa uma brincadeira ou pegadinha inofensiva. Esse romance falso gigante era a idéia que Scott Landon fazia de uma boa piada.

Será que as outras duas caixas também eram bools? E as que es­tavam nas baias e escaninhos do outro lado, também? A piada era tão elaborada assim? E, se fosse, quem deveria cair nela? Ela? Incunks como Woodbody? Aquilo fazia um certo sentido, Scott gostava de tirar sarro do pessoal que chamava de “literaloucos”, mas aquela idéia apontava na direção de uma terrível possibilidade: a de que ele possa ter pressentido seu próprio

(Morreu Jovem)

colapso iminente

(Antes do Seu Tempo)

e não ter dito nada a ela. E isso levava a uma pergunta: teria ela acreditado se ele tivesse contado? Seu primeiro impulso foi dizer não — dizer, ao menos para si mesma: Eu era a prática, a que conferia as ma­las dele para ver se havia cuecas o suficiente e ligava com antecedência para me certificar de que os vôos estavam no horário. Porém, ela se lembrou de como o sangue nos seus lábios tinha transformado seu sorriso no sorriso de um palhaço; lembrou-se de como ele lhe explicara certa vez — com o que lhe parecera perfeita lucidez — que era arriscado comer qualquer tipo de fruta depois do pôr do sol e que comidas de toda espécie de­veriam ser evitadas entre meia-noite e seis da manhã. Segundo Scott, “lanches noturnos” geralmente eram venenosos e, quando ele disse isso, pareceu fazer sentido. Porque...

(cale-se)

— Eu teria acreditado nele e pronto — sussurrou ela, baixando a cabeça e fechando os olhos para evitar lágrimas que não vieram. Os olhos que tinham chorado pela fala ensaiada de “Zack McCool” agora estavam secos como pedras. Joças de olhos idiotas.

Os manuscritos nas gavetas abarrotadas das mesas dele e no fichá­rio principal do andar de cima quase certamente não eram bools; disso Lisey sabia. Alguns eram cópias de contos publicados; outros, versões alternativas desses mesmos contos. Na mesa que Scott chamava de A Jumbona do Dumbo, ela havia anotado pelo menos três romances ina­cabados e o que parecia ser uma novela completa — como Woodbody babaria com isso. Também havia meia dúzia de contos finalizados que Scott aparentemente nunca quis se dar o trabalho de enviar para pu­blicação, a maioria escrita há anos, pela cara da tipologia. Ela não era qualificada para dizer o que era lixo e o que era tesouro, embora tivesse certeza de que tudo interessaria aos estudiosos de Landon. No entanto, este... este bool, para usar a palavra de Scott...

Ela agarrava o cabo da pá de prata, com força. Era uma coisa real no que lhe parecia de repente um mundo bastante diáfano. Abriu os olhos novamente e disse:

— Scott, isso é só uma brincadeira ou você ainda está de sacana­gem comigo?

Nenhuma resposta. É claro. E ela precisa cuidar de duas irmãs. Com certeza Scott entenderia sua necessidade de deixar tudo aquilo para escanteio por ora.

De qualquer forma, decidiu levar a pá junto. Gostava da sensação dela em sua mão.

 

Lisey conectou o telefone e então saiu depressa, antes que a droga do negócio começasse a tocar novamente. Lá fora, o sol se punha e um vento forte do oeste tinha aumentado, o que explicava a corrente de ar que a atravessara quando ela abriu a porta para atender o primeiro dos dois perturbadores telefonemas: nada de fantasmas ali, babyluv. Aquele dia parecia estar durando no mínimo um mês, mas o vento, delicioso e de alguma forma filigranado, como o do seu sonho na noite anterior, a acalmou e refrescou. Ela foi do celeiro para a cozinha sem medo de que “Zack McCool” estivesse à espreita em algum lugar próximo. Sabia como soavam as ligações de celulares feitas por lá: entrecortadas e quase inaudíveis. Segundo Scott, eram as linhas de força (ou o que ele gos­tava de chamar de “posto de reabastecimento de OVNIS”). Seu amigo “Zack” tinha soado claro como água. Aquele Caubói do Espaço Sideral em especial ligara de um telefone fixo, e ela duvidava muito que seu vizinho de porta tivesse lhe emprestado o telefone para ele fazer suas ameaças.

Ela pegou as chaves do carro e as enfiou no bolso lateral do seu jeans (sem perceber que ainda carregava o Bloquinho de Compulsões de Amanda no bolso de trás — embora fosse perceber, na hora certa); pegou também o chaveiro mais volumoso, com todas as chaves do reino doméstico dos Landon, cada qual etiquetada com a letra bem-feita de Scott Landon. Trancou a casa, então voltou arrastando os pés para fe­char as duas portas deslizantes do celeiro e a porta do escritório de Scott no topo da escada externa. Depois que terminou, foi até o seu carro com a pá no ombro e sua sombra marchando longa ao seu lado no chão do quintal da frente sob a última luz vermelha e mortiça daquele dia de junho.

 

Lisey e o Bool de Sangue

(Toda Aquela Coisa Ruim)

Ir de carro para a casa de Amanda pela recém-ampliada e reasfaltada Rota 17 era questão de 15 minutos, mesmo desacelerando no sinal no cruzamento da 17 com a Deep Cut Road para Harlow. Lisey passou mais do que queria desse tempo pensando sobre bools em geral e em um em particular: o primeiro. Aquele não tinha sido piada.

— Mas a tolinha de Lisbon Falls foi em frente e casou com ele assim mesmo — disse ela, rindo, e então tirou o pé do acelerador. Lá estava o Patel’s Market à esquerda — bombas self-service da Texaco no impecável asfalto preto sob luzes brancas ofuscantes — e ela sentiu uma vontade enorme de parar para comprar um maço de cigarros. Os bons e velhos Salem Lights. E poderia aproveitar para comprar uns donuts daqueles que Manda gostava, os de abóbora, e talvez alguns HoHos para ela mesma.

— Você é a mais doidinha da silva — falou ela, sorrindo, e pisou fundo no acelerador novamente. O Patel’s ficou para trás. Já estava andan­do com os faróis acesos, embora o crepúsculo ainda fosse durar bastante. Olhou para o retrovisor, viu a pá de prata boba deitada no banco de trás e repetiu, dessa vez rindo: — Você é a mais doidinha da silva, sem dúvida.

E se ela fosse? E daí?

 

Lisey estacionou atrás do Prius de Darla e estava a meio caminho da porta da bem cuidada casinha de Amanda quando Darla saiu, quase correndo e se esforçando para não chorar.

— Graças a Deus você chegou — disse, e quando Lisey viu o sangue nas mãos de Darla pensou em bools novamente, pensou em seu futuro marido saindo do escuro com a mão estendida para ela, só que não parecia mais mão alguma.

— Darla, o que...

— Ela fez de novo! Aquela vaca maluca se cortou de novo! Eu só fui ao banheiro... a deixei tomando chá na cozinha... “Você está bem Manda?”, eu perguntei... e...

— Calma — falou Lisey, forçando-se a pelo menos parecer tran­quila. Das quatro, ela sempre fora a tranquila, ou a que aparentava tran­qüilidade; a que dizia coisas como Calma e Talvez não seja tão ruim. Esse não era o papel da filha mais velha? Bem, talvez não quando a filha mais velha é uma joça de uma perturbada mental.

— Ah, ela não vai morrer, mas que zona — falou Darla, começan­do enfim a chorar.

Claro, agora que eu estou aqui você entrega os pontos, pensou Lisey. Nunca passa pela cabeça de nenhuma de vocês que a pequena Lisey pode ter seus próprios problemas para resolver, não é mesmo?

Darla assoou primeiro um lado do nariz e depois o outro na escu­ridão que caía no gramado com duas trombeteadas nada elegantes.

— Que zona do cacete, talvez você esteja certa, talvez um lugar como Greenlawn seja a solução... isto é, se for particular... e discreto... não sei mesmo... talvez você possa dar algum jeito nela, provavelmente sim, ela te escuta, sempre escutou, eu estou ficando maluca...

— Vamos, Darl — disse Lisey com brandura, e eis que surge uma revelação: ela não queria nem um pouco os cigarros. Cigarros eram um mau hábito do passado. Eles estavam tão mortos quanto o seu marido, que teve um colapso em uma leitura dois anos atrás e morreu logo em seguida em um hospital de Kentucky, bool, fim. O que ela queria estar segurando não era um Salem Light, mas o cabo daquela pá de prata.

Aquele era um conforto que você nem precisava acender.

 

É um bool, Lisey!

Ouviu ela novamente ao acender a luz na cozinha de Amanda. E o viu novamente, andando em sua direção pelas sombras do gramado atrás do apartamento dela em Cleaves Mills. Scott que podia ser louco, Scott que podia ser corajoso, Scott que podia ser os dois ao mesmo tempo, dependendo da situação.

E não é um bool qualquer, é um bool de sangue!

Atrás do apartamento em que ela o ensinara a trepar e ele a ensina­ra a dizer joça e eles ensinaram um ao outro a esperar, esperar, esperar o vento mudar de direção. Scott cambaleando através do cheiro pesado e intoxicante de flores misturadas, pois era quase verão, a estufa ficava lá atrás e os respiradouros estavam abertos para o ar da noite entrar. Scott saindo de toda aquela névoa perfumada, daquela noite de fim de primavera, adentrando a luz da porta dos fundos onde ela estava parada, esperando. Puta com ele, mas não tanto assim; na verdade, quase pronta para fazer as pazes. Ela já havia levado bolo antes (embora nunca dele) e tido namorados que apareceram bêbados (incluindo ele). E, oh, quando ela o viu...

Seu primeiro bool de sangue.

E lá estava outro. A cozinha de Amanda estava lambuzada, man­chada e respingada com o que Scott às vezes gostava de chamar de — geralmente numa má imitação de Howard Cosell — “o clarete”. Respingos vermelhos cobriam o balcão de fórmica amarelo-vivo; uma mancha turvava a frente do vidro do microondas; havia gotinhas, nó­doas e até uma pegada solitária no assoalho. Um pano de prato largado na pia estava encharcado dele.

Lisey olhou para tudo aquilo e sentiu o coração disparar. Era na­tural, disse para si mesma; a visão de sangue fazia isso com as pessoas. Além do mais, ela estava no fim de um dia longo e estressante. O que você tem que se lembrar é que quase certamente parece muito pior do que é na verdade. Pode apostar que ela espalhou o sangue de propósito — Aman­da sempre teve uma perfeita noção de dramaticidade. E você já viu coisa pior, Lisey. Aquele negócio que ela fez no umbigo, por exemplo. Ou Scott lá em Cleaves. O.k.?

— O quê? — falou Darla.

— Eu não disse nada — respondeu Lisey. Elas estavam paradas no batente da porta, olhando para sua infeliz irmã mais velha, que estava sentada na mesa da cozinha — cuja superfície também era de fórmica amarelo-vivo — com a cabeça abaixada e o cabelo caindo no rosto.

— Disse sim, falou o.k.

— O.k., eu falei o.k. — respondeu Lisey com irritação. — A Mãe­zinha Querida sempre dizia que gente que fala sozinha tem dinheiro no banco. — E Lisey tinha. Graças a Scott, tinha pouco mais ou pouco menos de 20 milhões, dependendo de como o mercado tinha se compor­tado em relação às letras de tesouro e algumas outras ações naquele dia.

No entanto, a idéia de dinheiro não parecia adiantar muita coisa quando se estava em um cozinha suja de sangue. Lisey se perguntou se Mandy nunca tinha tomado pico pelo simples fato de nunca ter pensado no assunto. Se fosse por isso, era uma verdadeira sorte divina, não é mesmo?

— Você escondeu as facas? — perguntou ela a Darla, sotto voce.

— É claro que sim — falou Darla com indignação... mas na mes­ma voz baixa. — Ela se cortou com pedaços da xícara, Lisey. Enquanto eu estava fazendo xixi.

Lisey já tinha percebido aquilo sozinha e feito um lembrete mental de ir ao Wal-Mart para comprar xícaras novas assim que pudesse. Ama­relo “cheguei” para combinar com o resto da cozinha, se possível, mas o essencial era que fossem de plástico com aqueles adesivos miúdos que dizem INQUEBRÁVEL do lado.

Ela se ajoelhou ao lado de Amanda e fez menção de pegar sua mão. Darla falou:

— Foi aí que ela se cortou, Lise. Nas duas palmas.

Muito gentilmente, Lisey tirou as mãos de Amanda do seu colo. Ela as virou e se encolheu. Os cortes estavam começando a coagular, mas ainda fizeram o estômago de Lisey doer. E é claro que a fizeram pensar novamente em Scott saindo do escuro do verão com a mão go­tejante estendida como uma maldita oferenda de amor, uma penitência pelo terrível pecado de ter ficado bêbado e se esquecido de que eles tinham um encontro. E eles ainda chamavam Cole de maluco.

Amanda fizera cortes diagonais da base dos polegares até os mindi­nhos, rompendo as linhas do coração, do amor e todas as outras linhas no caminho. Lisey conseguia entender como ela havia feito o primeiro corte, mas e o segundo? Deve ter sido duro de roer (como se diz). Mas ela havia conseguido e então dera a volta na cozinha como uma mulher colocando a cobertura em um bolo insano — Ei, olha eu! Olha eu! Você num é a mais doidinha da silva, eu sou a mais doidinha da silva! Manda é a mais doidinha da silva, pode apostar! Tudo isso enquanto Daria esta­va no banheiro, apenas tirando uma agüinha do joelho e molhando a periquita, muito bem, Amanda, você também é a mais rápida diabinha da silva.

— Darla... band-aids e água oxigenada não vão dar conta disso, querida. Ela tem que ir para uma Emergência.

— Ah, cacilda — falou Darla com desânimo e começou a chorar novamente.

Lisey olhou para o rosto de Amanda, que ainda estava ligeiramente visível através das cortinas do seu cabelo.

— Amanda — disse ela.

Nada. Nenhum movimento.

— Manda.

Nada. A cabeça de Amanda estava caída como a de uma boneca. Maldito Charlie Corriveau!, pensou Lisey. Maldito franco-canadense de meia-tigela! Mas é claro que se não tivesse sido o “Shootin’ Beans” teria sido alguma outra pessoa ou coisa. Simplesmente porque as Amandas do mundo eram daquele jeito. Você espera que elas desmoronem e acha um milagre quando isso não acontece, então, finalmente, o milagre can­sa de acontecer, cai duro, tem um ataque e morre.

— Manda Bunny.

Foi o apelido de infância o que finalmente fez efeito. Amanda levan­tou a cabeça devagar. E o que Lisey viu no seu rosto não foi o vazio san­grento e aturdido que tinha esperado (sim, os lábios de Amanda estavam todos vermelhos e aquilo sem dúvida não era batom), mas a expressão radiante, infantil e elétrica de arrogância e malícia, a que significava que Amanda tinha Resolvido Alguma Coisa Sozinha e alguém iria chorar.

— Bool — sussurrou ela, e a temperatura interna de Lisey pareceu despencar 30 graus em um segundo.

 

Elas a levaram para a sala de estar, Amanda andando docilmente entre as duas, e a sentaram no sofá. Então Lisey e Darla voltaram para a porta da cozinha, de onde poderiam manter um olho nela e ainda assim con­fabular sem serem ouvidas.

— O que ela disse para você, Lisey? Você está branca como um fantasma.

Lisey queria que Darla tivesse dito lençol. Não gostava de ouvir a palavra fantasma, especialmente agora que o sol já havia se posto. Idio­ta, porém verdade.

— Nada — disse ela. — Bem... falou bú. Tipo “Bú, Lisey, estou coberta de sangue, que tal?”. Olhe, Darl, você não é a única estressada aqui.

— Se nós a levarmos para a Emergência, o que vão fazer com ela? Colocá-la na vigia dos suicidas, ou algo assim?

— É possível — admitiu Lisey. A mente dela estava mais clara agora. Aquela palavra, aquele bool, tinha estranhamente funcionado como um tapa, ou uma fungada em sais aromáticos. É claro que tam­bém a matara de susto, mas... se Amanda tinha algo a lhe dizer, Lisey queria saber o que era. Tinha a sensação de que todas as coisas que esta­vam acontecendo com ela, talvez até o telefonema de “Zack McCool”, tinham alguma espécie de ligação com... o quê? Com o fantasma de Scott? Ridículo. Com o bool de sangue dele? Que tal isso?

Ou com seu garoto espichado? A coisa com o interminável lado matizado.

Isso não existe, Lisey, nunca existiu fora da imaginação dele... que às vezes era poderosa o bastante para afetar as pessoas que viviam ao seu redor. Poderosa o bastante para deixar você com medo de comer frutas depois do anoitecer, por exemplo, mesmo sabendo que era apenas uma superstição infantil que ele nunca superou por completo. E com o garoto espichado também é a mesma coisa. Você sabe disso, certo?

Sabia mesmo? Então por que, quando tentava levar isso em con­sideração, uma espécie de névoa parecia se arrastar para cima de seus pensamentos, dispersando-os? Por que aquela voz interna a mandava se calar?

Daria estava olhando esquisito para ela. Lisey se recompôs, for­çando-se a voltar para o momento atual, as pessoas atuais e o problema atual. E, pela primeira vez, notou como Darl parecia cansada: as linhas vincadas ao redor da sua boca e os círculos pretos sob os olhos. Ela pegou a irmã pelo antebraço, não gostando de como eles pareciam os­sudos, ou da facilidade com que as alças do sutiã de Darl deslizaram por entre seus dedos e as cavidades fundas demais dos ombros dela. Lisey se lembrava de ficar olhando com inveja quando suas irmãs mais velhas iam para a Lisbon High, lar dos Greyhounds. Agora Amanda estava beirando os 60 e Darl não estava muito longe disso. Elas tinham mesmo se tornado umas velhotas.

— Mas veja bem, querida — falou ela para Daria —, eles não chamam de vigia dos suicidas. Chamam apenas de observação. — Sem saber ao certo como sabia daquilo, mas quase convicta assim mesmo.

— Eles a internam por 24 horas, eu acho. Talvez 48.

— Podem fazer isso sem permissão?

— A não ser que a pessoa tenha cometido um crime e a polícia a tenha trazido, acho que não.

— Talvez você devesse ligar para o seu advogado para se certificar. Aquele tal de Montana.

— O nome dele é Montano e ele provavelmente está em casa a essa hora. Este número não está na lista. Eu tenho na minha agenda, mas ela está lá em casa. Acho que se a levarmos ao Stephens Memorial em No Soapa, vai dar tudo certo.

No Soapa era como o povo da região se referia a Norway-South Paris, no condado vizinho de Oxford, cidades que também calhavam de estar a um dia de viagem de locais de nomes exóticos como México, Madrid, Gi­lead, China e Corinth. Diferentemente dos hospitais urbanos em Portland e Lewinston, o Stephens Memorial era um lugarzinho tranquilo.

— Acho que eles vão enfaixar as mãos dela e nos deixarem levá-la para casa sem muito problema. — Lisey fez uma pausa. — Se.

— Se?

— Se quisermos levá-la para casa. E se ela quiser vir. Quero dizer, não vamos mentir nem inventar nenhuma história, o.k.? Se eles pergunta­rem, e tenho certeza de que vão perguntar, nós contamos a verdade. Sim, ela já fez isso antes quando estava deprimida, mas há muito tempo.

— Cinco anos não é tanto...

— Tudo é relativo — disse Lisey. — E ela pode explicar que o seu namorado de muitos anos acabou de aparecer na cidade com uma mu­lher novinha em folha e que isso a deixou pê da vida.

— E se ela não falar?

— Se ela não falar, Darl, acho que eles provavelmente vão inter­ná-la por pelo menos 24 horas, e com a permissão de nós duas. Quero dizer, você quer que ela volte para cá se ainda estiver viajando por outros planetas?

Darla pensou naquilo, deu um suspiro e balançou a cabeça.

— Acho que boa parte disso depende de Amanda — disse Lisey. — O primeiro passo é limpá-la. Entro eu mesma no chuveiro com ela se for necessário.

— É — falou Daria, passando a mão pelo seu cabelo curtinho. — Acho que esse é o caminho. — Ela bocejou de repente. Abriu uma bocarra imensa, do tipo que daria para ver as amídalas, se ela ainda as tivesse. Lisey deu uma outra olhada para os círculos pretos debaixo dos olhos dela e percebeu algo que teria sacado muito antes não fosse pela ligação de “Zack”.

Ela agarrou os braços de Darla novamente, sem apertar, mas com insistência.

— A sra. Jones não ligou para você hoje, ligou?

Darla piscou para ela com uma expressão carrancuda de surpresa.

— Não, querida — disse ela. — Foi ontem. No fim da tarde de ontem. Eu vim, fiz os curativos nela da melhor maneira possível e fiquei acordada com ela a maior parte da noite. Não te falei isso?

— Não. Eu estava achando que tudo tinha acontecido hoje.

— Lisey, sua boba — falou Darla com um sorriso fraco.

— Por que não me ligou antes?

— Não queria incomodar. Você já faz tanto por todas nós.

— Isso não é verdade — disse Lisey. Sempre doía quando Darla ou Canty (ou até Jodotha, ao telefone) dizia aquele tipo de besteira. Ela sabia que era loucura, mas, loucura ou não, era fato. — É só o dinheiro de Scott.

— Não, Lisey. É você. Sempre você. — Daria fez uma pequena pausa, então balançou a cabeça. — Deixe pra lá. É que pensei que po­deríamos resolver isso só nós duas. Estava enganada.

Lisey beijou a irmã na bochecha, lhe deu um abraço, então foi até Amanda e se sentou ao lado dela no sofá.

 

— Manda.

Nada.

— Manda Bunny? — Não custava tentar, tinha funcionado da outra vez.

E sim, Amanda ergueu a cabeça.

— O que. Você quer.

— Temos que levá-la ao hospital, Manda Bunny.

— Eu. Não. Quero. Ir para lá.

Lisey já estava assentindo na metade daquele discurso curto, po­rém atormentado, e começando a desabotoar a blusa suja de sangue de Amanda.

— Eu sei, mas as pobrezinhas das suas mãos precisam de mais cuida­dos do que Daria e eu podemos dar. Agora, a questão é se você quer voltar para cá ou passar a noite no hospital lá em No Soapa. Se quiser voltar, vou ser sua colega de quarto. — E talvez a gente converse sobre bools em geral e bools de sangue em particular. — O que você prefere, Manda? Quer voltar para cá ou acha que precisa ficar um pouco no St. Steve?

— Quero. Voltar. Pra cá. — Quando Lisey mandou Amanda se levantar para que pudesse tirar suas calças cargo, ela se levantou de bom grado, mas parecia estar analisando a lâmpada da sala. Se aquilo não fosse o que sua analista chamara de “semicatatonia”, estava perto demais para Lisey ficar tranquila, e ela sentiu um forte alívio quando as palavras seguintes de Amanda saíram mais parecidas com as de um ser humano e menos com as de um robô: — Se estamos indo... para algum lugar... por que você está tirando minha roupa?

— Porque você precisa de uma chuveirada — disse Lisey, levando a irmã na direção do banheiro. — E precisa também de roupas limpas. Essas estão... sujas. — Ela olhou para trás e viu Daria apanhando a blusa e a calça do chão. Amanda, enquanto isso, seguia para o banheiro docil­mente, mas a visão dela se afastando apertou o coração de Lisey. Não foi pelo corpo cheio de cascas de ferida e cicatrizes, mas sim pela parte de trás da sua cueca samba-canção branca. Há anos Amanda usava cuecas; elas vestiam bem seu corpo anguloso e eram até sexy. Naquela noite, o lado direito da que usava estava manchado com um marrom barrento.

Oh, Manda, pensou Lisey. Oh, minha querida.

Então ela passou pela porta do banheiro, um raio X anti-social vestido de calcinhas, cuecas e meias brancas. Lisey voltou-se para Daria. Daria estava lá. Por um instante, todos os anos e vozes clamorosas das Debusher também. Então Lisey se virou e entrou no banheiro atrás daquela que um dia chamara de irmãzona Manda Bunny, que estava parada em cima do tapete com a cabeça caída e as mãos pendendo, es­perando que lhe tirassem o resto das roupas.

Lisey estava para abrir as presilhas do sutiã de Manda quando ela se virou de repente e a agarrou pelo braço. Suas mãos estavam terrivel­mente frias. Por um instante, Lisey ficou convencida de que a irmãzona Manda Bunny iria botar tudo para fora, bools de sangue e tudo. Em vez disso, ela olhou para Lisey com olhos perfeitamente límpidos, perfeita­mente lá, e disse:

— Meu Charles se casou com outra. — Então colocou a testa pe­gajosa e fria no ombro de Lisey e começou a chorar.

 

O restante daquela noite fez Lisey se lembrar do que Scott costuma­va chamar de Regra de Landon para o Mau Tempo: quando você vai dormir esperando que o furacão vá para o mar, ele vem para a terra e arranca o teto da sua casa. Quando acorda cedo e reforça a casa contra a nevasca, só caem uns flocos de neve.

Qual o sentido, então?, perguntara Lisey. Eles estavam deitados na cama juntos — alguma cama, uma das primeiras —, aninhados e esgo­tados depois de fazerem amor, ele com um de seus Herbert Tareyons e um cinzeiro no peito e uma ventania uivando lá fora. Que cama, que vento, que tempestade ou que ano ela não se lembrava mais.

O sentido é ESPANE, respondera ele — disso ela se lembrava, em­bora a princípio tivesse pensado que não ouvira ou entendera direito.

Aspone? O que é aspone?

Ele amassou o cigarro e colocou o cinzeiro na mesa ao lado da cama. Pegou o rosto dela, cobrindo suas orelhas e isolando-a do mundo inteiro por um instante com as palmas das mãos. Beijou seus lábios. Então tirou as mãos para que ela o ouvisse. Scott Landon sempre queria ser ouvido.

ESPANE, babyluv: Engatilhe Sempre que Parecer Necessário.

Ela refletiu sobre aquilo — não era tão rápida quanto ele, mas ge­ralmente chegava lá — e percebeu que ESPANE era o que ela chamava de agrônomo. Engatilhe Sempre que Parecer Necessário. Gostou daquilo. Era bem bobo, o que a fez gostar mais ainda. Começou a rir. Scott riu junto e logo estava dentro dela como eles estavam dentro da casa en­quanto a ventania ribombava e sacudia do lado fora.

Com Scott, ela sempre ria bastante.

 

Aquilo que ele dizia sobre como a nevasca passava longe quando você se preparava para a tempestade lhe voltou diversas vezes à cabeça antes de a pequena excursão delas à Emergência terminar e as três voltarem para a casa à prova de intempéries entre Castle View e Harlow. Diga-se de pas­sagem, Amanda ajudou ao melhorar de humor consideravelmente. Por mais mórbido que fosse, Lisey não conseguia deixar de pensar como às vezes uma lâmpada enfraquecida brilha forte por uma ou duas horas an­tes de queimar para sempre. Aquela mudança para melhor começou no banho. Lisey se despiu e entrou no chuveiro com a irmã, que a princípio limitou-se a ficar parada com os ombros encurvados e os braços pendu­rados como os de um macaco. Então, apesar de ter usado o chuveirinho e tomado o máximo de cuidado possível, Lisey acabou espirrando água morna bem em cima da palma esquerda cortada de Manda.

— Ai! Ai! — gritou Manda, retraindo a mão. — Isso dói, Lisey! Preste atenção para onde você aponta essa coisa, certo?

Lisey retrucou no mesmíssimo tom — Amanda não teria esperado menos, mesmo com as duas peladas —, mas se alegrou ao ouvir o som da raiva da irmã. Ela estava viva.

— Bem, você me perdoe, mas não fui eu que tirei um naco do tamanho de um bonde da mão.

— Bem, eu não tinha como atingir ele, não é mesmo? — pergun­tou Amanda e então soltou uma enxurrada de imprecações direcionadas a Charlie Corriveau e sua nova esposa, uma mistura de obscenidades adultas e má-criações infantis que encheram Lisey de surpresa, graça e admiração.

Quando ela fez uma pausa para respirar, Lisey disse:

— Que boca suja do caralho, hein? Uau.

Amanda, emburrada:

— Vá se foder também, Lisey.

— Se quiser voltar para casa é melhor não usar muitas dessas pala­vras com o médico que for tratar das suas mãos.

— Você acha que eu sou idiota, não é?

— Não. Não acho. É só que... dizer que está com raiva dele seria o suficiente.

— Minhas mãos estão sangrando de novo.

— Muito?

— Só um pouquinho. Acho melhor você colocar um pouco de vaselina nelas.

— Sério? Não vai doer?

— O amor dói — disse Amanda solenemente... e então bufou uma risadinha que iluminou o coração de Lisey.

Quando ela e Darla a enfiaram no BMW de Lisey e pegaram a es­trada para Norway, Manda já estava perguntando sobre o progresso de Lisey no escritório, quase como se aquilo fosse o fim de um dia normal. Lisey não mencionou a ligação de “Zack McCool”, mas lhes contou sobre “Ike volta para casa” e citou a única linha de texto: “Boom, fez Ike, voltando para casa, e tudo ficou bem. BOOL! FIM!” Ela queria usar a palavra bool na presença de Mandy. Queria ver qual seria a reação dela.

Darla respondeu primeiro:

— Você se casou com um homem muito estranho, Lisa — dis­se ela.

— Diga-me algo que eu não sei, querida. — Lisey olhou para o retrovisor e viu Amanda sentada sozinha no banco de trás. Em solitário esplendor, teria dito Mãezinha Querida. — O que você acha, Mandy?

Amanda deu de ombros e, a princípio, Lisey achou que aquela seria sua única resposta. Então veio a enxurrada.

— Era o jeito dele, sei lá. Fomos juntos de carro até a cidade uma vez... ele precisava ir à papelaria e eu, de sapatos novos, de um tênis que eu pudesse usar na floresta para fazer trilha. E calhou de passarmos pela Auburn Novelty. Ele nunca tinha visto a loja antes e quis porque quis parar o carro e entrar. Parecia um menino de 10 anos! Eu precisava de sapatos pesados para poder andar na floresta sem ficar cheia de hera venenosa no pé e tudo que ele queria era comprar aquela droga de loja inteira. Pó-de-mico, aquele negócio que dá choque na mão dos outros, chiclete de pimenta, vômito de plástico, óculos de raio X, tudo que você imaginar, ele foi empilhando no balcão do lado daqueles pirulitos que você chupa e no final aparece uma mulher pelada dentro. Deve ter com­prado uns 100 dólares daqueles cocôs made-in-Taiwan, Lisey. Lembra?

Ela se lembrava. Lembrava-se principalmente da cara dele chegan­do em casa naquele dia, com os braços cheios de bolsas com aqueles rostos gargalhantes desenhados e onde se liam as palavras MORRA DE RIR. Como suas bochechas estavam coradas. E cocô era como ele teria falado, não merda e sim cocô, uma palavra que pegara dela, por incrível que pareça. Bem, virar o jogo estava dentro das regras, gostava de dizer Mãezinha Querida, embora cocô fosse uma palavra de Dandy Dave, que às vezes dizia às pessoas que tal coisa não prestava então eu a estilinguei adiante. Como Scott adorava aquilo, dizendo que saía da boca com um peso que joguei fora ou até mesmo atirei longe jamais conseguiriam ter.

Scott e as coisas que fisgava do lago das palavras, do lago das his­tórias, do lago dos mitos.

Aquele safado do Scott Landon.

Às vezes ela passava um dia inteiro sem pensar nele ou sentir sua falta. E por que não? Tinha uma vida bastante cheia e, francamente, muitas vezes ele não tinha sido uma pessoa fácil de se lidar e de se con­viver. Um projeto, diriam os ianques da velha guarda como seu próprio pai. E então, às vezes, num dia nublado (ou ensolarado) qualquer, ti­nha tanta saudade dele que se sentia vazia, não mais uma mulher, mas apenas uma árvore morta cheia do vento frio de novembro. Sentia-se daquele jeito naquele instante, com vontade de gritar seu nome, de gritá-lo para a casa, e seu coração se amargurou ao pensar nos anos que teria pela frente e ela se perguntou de que valia o amor se o resultado era aquele, sentir-se dez segundos que fossem daquela forma.

 

O ânimo renovado de Amanda foi a primeira coisa boa. Munsinger, o médico de plantão, foi a segunda. Não parecia tão jovem quanto Jant­zen, o médico que Lisey conheceu durante a última doença de Scott, mas ela ficaria surpresa se tivesse muito mais do que 30. A terceira boa coisa — embora ela jamais tivesse acreditado se alguém lhe contasse antes — foi a chegada do pessoal que sofreu um acidente de carro lá em Sweden.

Eles não estavam lá quando Lisey e Daria entraram juntas com Amanda na Emergência do Stephens Memorial; àquela altura, a sala de espera estava vazia, com exceção de um garoto de uns 10 anos acom­panhado da mãe. O menino estava com uma irritação e a mãe ralhava o tempo todo com ele, mandando-o não coçar. Ainda estava ralhando quando os dois foram chamados de volta para um dos consultórios. Cinco minutos depois, o menino reapareceu com curativos nos braços e uma cara emburrada. A mãe trazia algumas amostras grátis de bisnagas de pomada e continuava tagarelando.

A enfermeira chamou o nome de Amanda:

— O dr. Munsinger vai atendê-la agora, querida. — Ela pronun­ciou a última palavra com um sotaque do Maine.

Amanda lançou seu olhar arrogante, de faces coradas, estilo rainha Elizabeth I, para Lisey e depois para Darla.

— Prefiro ir sozinha — falou ela.

— É claro, sua Misteriosíssima Majestade — disse Lisey e mostrou a língua para Amanda. Naquela hora, não se importava que internassem aquela vaca esquelética e problemática por uma noite, uma semana, ou um ano e um dia. O que importava o que Amanda talvez tivesse sus­surrado na mesa da cozinha quando Lisey estava ajoelhada ao lado dela? Provavelmente tinha sido bú, conforme ela falou para Daria. Mesmo que tivesse sido a outra palavra, será que ela queria mesmo voltar para a casa de Amanda, dormir no mesmo quarto que ela e respirar suas ema­nações loucas quando tinha uma cama perfeitamente boa em casa? Joça de caso encerrado, babyluv, teria dito Scott.

— Lembre-se do que combinamos — falou Daria. — Você fi­cou nervosa e se cortou porque ele não estava lá. Está melhor agora. Já superou.

Amanda lançou um olhar para Daria que Lisey não conseguia de­cifrar de forma alguma.

— Isso aí — disse ela. — Eu superei.

 

O pessoal do acidente de carro da cidadezinha de Sweden chegou logo depois. Lisey não consideraria aquilo uma boa coisa se algum deles es­tivesse gravemente ferido, mas não parecia ser o caso. Todos estavam andando e dois dos homens até riam de alguma coisa. Apenas uma pessoa — uma garota de uns 17 anos — estava chorando. Tinha sangue no cabelo e ranho sobre o lábio superior. Eram seis ao todo, quase certa­mente de dois veículos diferentes, e um cheiro forte de cerveja emanava dos dois homens que riam, sendo que um deles parecia estar com um braço torcido. O sexteto foi conduzido por dois técnicos de enferma­gem que usavam coletes de regaste de East Stoneham por sobre as rou­pas comuns e dois policiais: um estadual e um patrulheiro rodoviário. De repente, a pequena sala de espera da Emergência parecia totalmente abarrotada. A enfermeira que chamou Amanda de querida colocou sua cabeça espantada para fora para dar uma olhada e, logo em seguida, o jovem dr. Munsinger fez o mesmo. Pouco depois, a adolescente deu um escandaloso ataque histérico, anunciando aos quatro ventos que sua madrasta iria esculachá-la. Logo depois disso, a enfermeira veio pegá-la (ela não chamou a adolescente histérica de querida, notou Lisey) e então Amanda saiu do CONSULTÓRIO 2, carregando desajeitadamente suas pró­prias bisnagas tamanho amostra grátis. Havia também algumas receitas dobradas saindo do bolso esquerdo do seu jeans baggy.

— Acho que podemos ir — disse Amanda, ainda no tom Grande Dama arrogante.

Lisey achou aquilo bom demais para ser verdade, mesmo consi­derando a relativa juventude do médico de plantão e o novo afluxo de pacientes, e estava certa. A enfermeira se inclinou para fora do CONSUL­TÓRIO 1 como um mecânico da cabina de uma locomotiva e disse:

— As senhoras são irmãs da sra. Debusher?

Lisey e Darla assentiram. Culpado, juiz.

— O doutor gostaria de falar um minutinho com as senhoras an­tes de irem embora. — Com essas palavras, ela enfiou a cabeça de volta no consultório, onde a garota ainda chorava.

Do outro lado da sala de espera, os dois homens com cheiro de cerveja explodiram em risos novamente e Lisey pensou: Não sei o que há de errado com eles, mas não devem ter sido responsáveis pelo acidente. E, de fato, os policiais pareciam estar se concentrando em um garoto pálido mais ou menos da mesma idade da menina com sangue no ca­belo. Outro garoto tinha se apossado do telefone público. Tinha um rasgo feio na bochecha que Lisey tinha certeza de que levaria pontos. Um terceiro esperava sua vez de ligar. Este último não tinha ferimentos visíveis.

As palmas das mãos de Amanda estavam cobertas de um creme esbranquiçado.

— Ele falou que os pontos só ficariam saltando pra fora — disse­-lhes Amanda. — E parece que os curativos não ficariam no lugar. Tenho que ficar com essa coisa nelas... eca, como fede, né?... e fazer imersão três vezes por dia pelos próximos três dias. Estou com uma receita para o creme e outra para a imersão. Ele falou para eu tentar não dobrar mui­to as mãos. Para pegar as coisas entre os dedos, assim. — Ela pinçou um exemplar pré-histórico da People com os dois primeiros dedos da mão direita, o ergueu um pouquinho e então largou.

A enfermeira apareceu.

— O dr. Munsinger vai atendê-las agora. Uma ou as duas. — O tom dela deixou claro que não havia muito tempo a perder. Lisey estava sentada de um lado de Amanda, Darla do outro. Trocaram olhares com ela no meio. Amanda não notou. Estava analisando as pessoas do outro lado da sala com sincero interesse.

— Vá você, Lisey — falou Darla. — Eu fico com ela.

 

A enfermeira levou Lisey até o CONSULTÓRIO 2 e então voltou para a garota soluçante, seus lábios apertados com tanta força que quase sumi­ram. Lisey se sentou na única cadeira da sala e olhou para a única foto dela: um cocker spaniel peludo em um campo cheio de narcisos. Poucos instantes depois (ela estava certa de que teria tido que esperar mais, se não fosse algo que precisava ser despachado logo), o dr. Munsinger entrou depressa. Fechou a porta, isolando o som dos soluços altos da adolescente, e recostou uma nádega mirrada na mesa de exames.

— Prazer, Hal Munsinger — disse ele.

— Lisa Landon. — Ela estendeu a mão. O dr. Hal Munsinger a apertou brevemente.

— Gostaria muito de mais informações sobre a condição da sua irmã, para o nosso cadastro, naturalmente —, mas, como a senhora vê, estou um pouco enrolado aqui. Chamei reforço, mas, enquanto isso, vou ter uma noite daquelas.

— Agradeço pelo senhor ter aberto pelo menos essa brecha — fa­lou Lisey, sentindo-se mais agradecida ainda pela voz calma que ouviu saindo da própria boca. Era uma voz que dizia, está tudo sob controle. — Estou disposta a garantir que minha irmã não é um perigo para si mesma, se é essa a sua preocupação.

— Bem, isso me preocupa um pouco mesmo, é, um pouco, mas vou confiar na sua palavra. E na dela. Ela não é menor de idade e, de qualquer forma, claramente não foi tentativa de suicídio. — Ele estava olhando para algo em sua prancheta. Então ergueu os olhos para Lisey e seu olhar era desconfortavelmente penetrante. — Ou foi?

— Não.

— Não. Por outro lado, não é preciso ser um Sherlock Holmes para ver que este não é o primeiro caso de automutilação da sua irmã.

Lisey suspirou.

— Ela me disse que estava fazendo análise, mas a analista dela foi para Idaho.

Idaho? Alaska? Marte? Que importa para onde, a vaca dos colares sumiu. Em voz alta, ela disse:

— Acredito que isso seja verdade.

— Ela precisa voltar a se tratar, o.k., sra. Landon? E rápido. Au­tomutilação, assim como anorexia, não é suicídio, mas ambos são com­portamentos suicidas, se é que a senhora me entende. — Ele pegou um bloco do bolso do jaleco branco e começou a escrever. — Gostaria de recomendar um livro para a senhora e para sua irmã. Chama-se Cutting Behavior e é de um homem chamado...

— ...Peter Mark Stein — disse Lisey.

O dr. Munsinger ergueu os olhos, surpreso.

— Meu marido o achou depois da última... depois do que o sr. Stein chama de...

(bool, do último bool de sangue dela)

O jovem dr. Munsinger estava olhando para ela, esperando que ela terminasse.

(então fale, Lisey, diga, diga bool de sangue)

Ela agarrou seus pensamentos descontrolados à força.

— Depois do que Stein chama de sua última catarse. É essa a pala­vra que ele usa, não é? Catarse? — Sua voz ainda estava calma, mas ela conseguia sentir pequenos ninhos de suor nas cavidades das têmporas. Pois a voz dentro dela estava certa. Chamar aquilo de catarse ou bool de sangue dava na mesma. Tudo na mesma.

— Acho que sim — disse Munsinger —, mas faz muitos anos que li esse livro.

— Como eu disse, meu marido o achou, leu e depois me fez ler. Vou desencavá-lo e dá-lo para a minha irmã Daria. E temos outra irmã na região. Ela está em Boston agora, mas, quando voltar, vou fazer ques­tão que ela o leia também. E vamos ficar de olho em Amanda. Ela pode ser difícil, mas nós a amamos.

— O.k., ótimo. — Ele tirou a bundinha magra de cima da mesa de exames. O papel que a cobria estalou. — Landon. O marido da se­nhora era o escritor.

— Sim.

— Sinto muito pela sua perda.

Lisey estava descobrindo que essa era uma das coisas mais estranhas de ter sido casada com um homem famoso; dois anos depois, as pessoas ainda lhe davam pêsames. Ela se perguntava se o mesmo aconteceria dali a dois anos. Talvez dali a dez. A idéia era deprimente.

— Obrigada, dr. Munsinger.

Ele assentiu, então voltou ao assunto, o que foi um alívio.

— Casos desse tipo em mulheres adultas são muito raros. É mais comum vermos automutilação em...

Houve tempo suficiente para Lisey imaginá-lo terminar com: crianças, como aquela chorona no outro consultório, e então um enorme estrondo veio da sala de espera, seguido por uma algazarra. A porta do CONSULTÓRIO 2 foi aberta de supetão e a enfermeira apareceu. Parecia maior de alguma forma, como se tivesse sido inchada pela inquietação.

— Doutor, o senhor pode vir?

Munsinger não pediu licença, simplesmente picou a mula. Lisey o respeitou por isso: ESPANE.

Ela chegou à porta a tempo de ver o bom doutor quase derrubar a adolescente, que emergira do CONSULTÓRIO 1 para conferir o que estava acontecendo e então dar um encontrão em uma Amanda boquiaber­ta, jogando-a nos braços da irmã com tanta força que as duas quase caíram. O policial estadual e o patrulheiro estavam em volta do rapaz aparentemente ileso que esperava para fazer uma ligação. Ele agora esta­va deitado no chão, inconsciente. O menino com o rasgo na bochecha continuava a falar ao telefone como se nada tivesse acontecido. Isso fez Lisey pensar em um poema que Scott lera para ela uma vez — um poema maravilhoso e terrível sobre como o mundo continuava girando como se o seu sofrimento não valesse

(cocô)

droga nenhuma, por maior que fosse. De quem era? Eliot? Auden? O cara que também tinha escrito o poema sobre a morte do atirador? Scott saberia dizer. Naquele instante, ela daria cada centavo que tinha para poder se virar para ele e perguntar qual deles escrevera aquele poe­ma sobre sofrimento.

 

— Tem certeza de que vai ficar bem? — perguntou Darla. Ela estava parada diante da porta aberta da casinha de Amanda cerca de uma hora mais tarde, a suave brisa noturna de junho serpeando em volta de seus calcanhares e folheando as páginas de uma revista na mesinha da ante­sala.

Lisey fez uma careta.

— Se você me perguntar isso de novo, vou te jogar de cara no chão. Nós vamos ficar bem. Um pouco de chocolate quente... que eu vou ajudá-la a tomar, já que ela vai ter dificuldade com xícaras nas atuais condi...

— Ótimo — falou Darla. — Levando em conta o que ela fez com a última.

— E então vamos para a cama. Apenas duas senhoras Debusher, sem um consolo que seja entre elas.

— Muito engraçado.

— Amanhã, de pé bem cedinho! Café! Cereais! Sair para aviar as receitas! Voltar pra cá para fazer a imersão! Então, Darla querida, você assume!

— Desde que você esteja certa disso.

— Eu estou. Vá para casa e dê comida para o seu gato.

Darla lançou-lhe um último olhar inseguro, seguido de um bei­jinho no rosto e do seu patenteado abraço de lado. Então desceu o caminho de pedras irregulares em direção ao seu carrinho. Lisey fechou a porta, passou a chave e olhou para Amanda, sentada no sofá em uma camisola de algodão, parecendo serena e em paz. O título de um antigo romance gótico lhe passou pela cabeça... um que ela talvez tenha lido na adolescência. Madam, Will You Talk?

— Manda? — disse ela baixinho.

Amanda ergueu os olhos para ela, e seus olhos azuis dos Debusher estavam tão arregalados e cheios de confiança que Lisey não achou que conseguiria conduzir Amanda ao assunto sobre o qual ela, Lisey, queria saber: Scott e bools, Scott e bools de sangue. Uma coisa seria se Amanda chegasse sozinha a ele, talvez quando as duas estivessem deitadas no escuro. Mas levá-la até lá, depois do dia que Amanda teve?

Você também teve um dia e tanto, Lisey.

Aquilo era verdade, mas ela não achava que fosse justificativa para estragar a paz que agora via nos olhos de Amanda.

— O que foi, irmãzinha?

— Você gostaria de um pouco de chocolate quente antes de dormir?

Amanda sorriu, tornando-se anos mais jovem.

— Chocolate quente antes de dormir seria ótimo.

Então elas tomaram o chocolate e, quando Amanda teve proble­mas com a xícara, Lisey achou um canudo de plástico loucamente retor­cido — cairia como uma luva nas prateleiras da Auburn Novelty Shop — em um dos armários da cozinha. Antes de enfiar uma das pontas no seu chocolate quente, ela o ergueu para Lisey (pinçado entre os dois dedos, exatamente como o médico lhe mostrara) e disse:

— Olhe, Lisey, é o meu cérebro.

Por um instante, Lisey só conseguiu ficar pasma, incapaz de acre­ditar que tinha ouvido mesmo Amanda fazer uma piada. Então caiu na gargalhada. As duas caíram.

 

Elas beberam os chocolates quentes, escovaram os dentes uma de cada vez, conforme faziam tanto tempo atrás na casa de fazenda em que cres­ceram, e então foram para a cama. E, assim que o abajur estava desliga­do e o quarto na escuridão, Amanda falou o nome da irmã.

Ai-ai, lá vem, pensou Lisey com apreensão. Outra diatribe para cima do bom e velho Charlie. Ou... será que é o bool? Será que é algo sobre ele, afinal? E, se for, será que eu quero ouvir?

— O quê, Manda?

— Obrigada por me ajudar — disse Amanda. — Esse negócio que o médico passou nas minhas mãos está fazendo muito bem a elas. — Então virou de lado.

Lisey ficou pasma novamente — era só aquilo mesmo? Parecia que sim, pois um ou dois minutos depois a respiração de Amanda caiu naque­le ritmo mais lento e ruidoso do sono. Ela talvez fosse acordar no meio da noite querendo um Tylenol, mas naquele instante estava apagada.

Lisey não esperava ter tanta sorte. Não dormira com ninguém des­de aquela noite antes de o marido partir em sua última viagem e tinha perdido o hábito. Além disso, tinha “Zack McCool” para ocupar seus pensamentos, isso sem falar no empregador de “Zack”, o Incunk filho-da-­puta do Woodbody. Ela daria uma palavrinha com Woodbody em breve. Amanhã, na verdade. Enquanto isso, o melhor a fazer era se resignar com algumas horas insones, talvez uma noite inteira delas, passando as últimas duas ou três na cadeira de balanço de Amanda no andar de baixo... isto é, se conseguisse achar algo nas estantes da irmã que valesse a pena ler...

Madam, Will You Talk?, pensou ela. Talvez Helen Maclnnes tenha escrito esse livro. Certamente ele não é do homem que escreveu o poema sobre o atirador...

E no meio daquele pensamento, ela caiu em um sono profundo. Não sonhou com o tapete voador NÚMERO UM DE PILLSBURY. Ou com qualquer outra coisa.

 

Ela acordou na calada mais profunda da noite, quando a lua está baixa e a hora é nenhuma. Mal notava que estava desperta, ou que tinha se aninhado nas costas quentes de Amanda como costumava se aninhar nas de Scott, ou que encaixara as rótulas dos seus joelhos na parte de trás dos de Amanda, como costumava fazer com Scott — na cama deles, em cem camas de motel. Que nada, em quinhentas, talvez setecentas, eu ouvi mil, mil alguém, quero ouvir um mil. Ela estava pensando em bools e bools de sangue. Em ESPANE e em como às vezes tudo que se pode fazer é baixar a cabeça e esperar o vento mudar de direção. Pensava que se a escuridão amara Scott, então aquilo era amor de verdade, não era?, pois ele também a amara; dançara com ela no salão de dança dos anos até que seus passos o levaram embora.

Ela pensou: Estou voltando para lá.

E o Scott que ela mantinha na cabeça (pelo menos achava que era aquele Scott, mas como ter certeza?) disse: Para onde você está indo, Lisey? Para onde agora, babyluv?

Ela pensou: De volta para o presente.

E Scott disse: O nome daquele filme era De Volta para o Futuro. Nós vimos juntos.

Ela pensou: Não era filme nenhum, essa é a nossa vida.

E Scott disse: Baby, você engatilhou?

Ela pensou: Por que eu estou apaixonada por alguém tão...

 

Ele é tão idiota, pensa ela. Ele é um idiota e eu sou outra por ligar para ele.

Ela fica parada, olhando para o quintal dos fundos, não querendo chamá-lo, mas começando a ficar nervosa, pois ele saiu pela porta da cozinha e adentrou as sombras das 11 da noite do quintal dos fundos há quase dez minutos e o que pode estar fazendo? Não há nada lá além de cercas vivas e...

De algum lugar não muito distante vêm os sons de pneus cantando, um cão latindo, um grito de bêbado. Em outras palavras, todos os sons de uma cidade universitária numa noite de sexta. E ela se sente tentada a gritado, mas, se fizer isso, mesmo que grite apenas seu nome, ele saberá que ela não está mais puta com ele. Pelo menos não tão puta assim.

E não está, na verdade. Mas a questão é que ele escolheu uma pés­sima noite de sexta para chegar alegrinho pela sexta ou sétima vez e muito atrasado pela primeira. O plano era assistir a um filme de um diretor sueco qualquer que ele estava louco para ver e ela só esperava que fosse dublado em inglês em vez de legendado. Então mandou pra dentro uma salada rápida, imaginando que Scott fosse levá-la ao Bear’s Den para comer um hambúrguer depois do cinema. (Se não fizesse isso, ela o levaria.) Então o telefone tocou e ela pensou que fosse ele, torceu para que tivesse mudado de idéia e decidido levá-la para ver aquele fil­me com o Redford no shopping em Bangor (pelo amor de Deus, não para dançar no Anchorage depois de ter ficado oito horas em pé). Em vez disso, era Daria, dizendo “só liguei para bater papo” e então indo ao que interessava, que era reclamar (novamente) por ela ter fugido para a Terra do Nunca (termo de Daria), deixando todos os problemas nas mãos dela, de Amanda e de Cantata (referindo-se à Mãezinha Querida, que em 1979 era Mãezinha Gorda, Mãezinha Cega e — o que era pior Mãezinha Gagá) enquanto Lisey “se divertia com os universitários”. Como se trabalhar de garçonete oito horas por dia fosse férias. Para ela, a Terra do Nunca era uma pizzaria a cinco quilômetros do campus da Universidade do Maine e os garotões eram quase todos nerds que ficavam tentando meter as mãos dentro das saias dela. Deus sabia que seus vagos sonhos de fazer algumas matérias — talvez à noite — tinham mirrado e desaparecido. Não era inteligência que lhe faltava, e sim tem­po e energia. Ficou ouvindo os desvarios de Daria, tentando manter a calma, que obviamente acabou perdendo, e as duas acabaram gritando uma com a outra através de mais de 200 quilômetros de linha telefôni­ca e todas as histórias que existiam entre elas. Foi o que seu namorado sem dúvida chamaria de um completo banzé, que terminou com Daria dizendo o que sempre dizia:

— Faça o que achar melhor... é o que você vai fazer mesmo, o que sempre faz.

Depois daquilo, não quis mais a fatia de cheesecake que tinha tra­zido do restaurante para sobremesa e certamente não queria ir ver filme de Ingmar Bergman nenhum... mas queria Scott. Sim. Porque no de­correr dos dois últimos meses, e especialmente das quatro ou cinco se­manas anteriores, ela passara estranhamente a depender de Scott. Talvez seja piegas — provavelmente era —, mas ela tem uma sensação de segu­rança quando ele a envolve nos braços que não teve com nenhum dos outros caras; o que sentia com e por muitos deles era ou impaciência ou retraimento. (Às vezes desejo passageiro.) Mas há bondade em Scott e desde o início ela sentiu o interesse dele — interesse nela —, no qual mal conseguia acreditar, pois ele era tão mais inteligente e tão talentoso. (Para Lisey, a bondade é mais importante do que as outras duas coisas.) Mas ela acredita. E ele tem um linguajar que ela assimilou avidamente desde o começo. Não o linguajar das Debushers, mas um que conhece muito bem assim mesmo — é como se já o falasse nos seus sonhos.

Porém, de que adianta a fala, e uma linguagem especial, se não há com quem se conversar. Com quem se gritar, até? Era disso que ela precisava naquela noite. Nunca lhe falara sobre a porra da sua família louca — oh, perdão, é joça de família louca, na língua de Scott —, mas pretendia falar naquela noite. Sentia que precisava falar, ou iria explo­dir de pura tristeza. Então é claro que, de todas as noites, ele escolheu aquela para não aparecer. Enquanto esperava, tentou dizer a si mesma que Scott certamente não sabia que ela havia acabado de ter a pior briga do mundo com a vaca da sua irmã mais velha, mas, à medida que as seis horas viravam sete, que viravam oito, estou ouvindo nove, nove alguém, quero ouvir nove, à medida que cutucava mais um pouco o cheesecake para depois jogá-lo fora porque estava muito fula... não, muito puta da vida para comê-lo, chegamos às nove, quero ouvir dez, dez horas e nada de Ford ’73 com um farol oscilante estacionando em frente ao aparta­mento dela na North Main Street, ela ficou com mais raiva ainda, quero ouvir furiosa.

Ela estava sentada em frente à tevê com um copo de vinho quase intocado ao seu lado e um programa sobre a natureza que não estava vendo diante dos olhos quando a raiva passou para um estado de fúria, e foi neste instante também que teve certeza de que Scott não lhe daria um bolo completo. Ele faria a cena, como se diz. Na esperança de mo­lhar o biscoito dele. Outra fisgada de Scott do lago de palavras em que todos nós atiramos nossas redes, e como era charmosa aquela! Como to­das eram charmosas! Havia também chamar na chincha, lambuzar o pi­rulito, fazer o canguru perneta, fazer fuque-fuque e o muito elegante tirar uma casquinha. Que coisa mais Terra do Nunca elas eram e, enquanto ficava sentada lá tentando escutar o som do Ford Fairlane ano 73 do seu garotão em especial — não dava para confundir aquele burburinho gu­tural, havia um buraco no silencioso, ou algo do gênero —, ela pensou em Darla falando: Faça o que achar melhor, é o que você sempre faz. Sim, e lá estava ela, a pequena Lisey, rainha do mundo, fazendo o que queria, sentada naquele apartamento barato, esperando o namorado que chega­ria, além de bêbado, tarde — mas ainda querendo uma casquinha, pois todos queriam aquilo, era até uma piada: Ei, garçonete, me vê essas carnes no capricho, um cafuné e um pedaço de tu. Lá estava ela, sentada em uma cadeira de brechó desconfortável com os pés doendo numa ponta e a cabeça latejando na outra, enquanto as imagens na tevê — granuladas, pois a recepção da antena interna de supermercado era uma bela joça — mostravam uma hiena comendo um esquilo morto. Lisey Debusher, rainha do mundo, levando uma vida glamorosa.

E, no entanto, quando os ponteiros do relógio passaram das dez, não teria sentido também uma espécie de felicidade vil e enfezada se in­filtrar nela? Naquele instante, olhando ansiosa para o quintal coberto de sombras, Lisey acha que a resposta é sim. Sabe que a resposta é sim. Pois, sentada lá com sua dor de cabeça e uma taça de vinho tinto seco, assis­tindo à hiena jantar o esquilo enquanto o narrador entoava: “O predador sabe que pode passar muitos dias sem uma refeição tão boa”, Lisey teve certeza de que o amava e sabia de coisas que poderiam magoá-lo.

Que ele a amava também? Essa era uma delas?

Sim, mas, naquela questão, o amor dele por ela era secundário. O importante era como ela o enxergava: sem fantasia. Seus outros amigos viam o seu talento e ficavam deslumbrados. Ela via como ele às vezes precisava lutar para olhar estranhos nos olhos. Sabia que, debaixo de todo seu papo inteligente (e às vezes brilhante), apesar dos seus dois romances publicados, poderia magoá-lo pra valer, se quisesse. Ele esta­va, nas palavras do pai dela, pedindo pra chorar. Vinha pedindo durante toda sua joça de vidinha encantada — não, prestem atenção —, sua porra de vidinha encantada. Naquela noite, o encanto seria quebrado. E quem o quebraria? Ela.

A pequena Lisey.

Ela desligou a tevê, foi à cozinha com a taça de vinho e o jogou na pia. Não o queria mais. Agora estava com um gosto, além de seco, amargo. É você que o está deixando amargo, pensou ela. De tão puta que está. Não duvidava. Havia um velho rádio equilibrado no parapeito da janela em cima da pia, um Philco antigo com a parte de fora rachada. Tinha sido de Dandy; ele o deixava no celeiro e o ouvia enquanto cui­dava do serviço. Era a única coisa dele que Lisey ainda tinha e o deixava na janela por ser o único lugar onde ele ainda pegava as estações locais. Jodotha o dera para ele de presente de Natal, e naquela época já era de segunda mão, mas quando Dandy o desembrulhou e viu o que era, sor­riu até parecer que seu rosto fosse partir em dois e lhe agradeceu até não poder mais! Sem parar! Jodi era sua favorita e foi ela quem se sentou à mesa de jantar em um domingo e anunciou aos pais — ora, anunciou a todo mundo — que estava grávida e que o menino que a botara daquele jeito tinha fugido para se alistar na Marinha. Ela queria saber se a tia Cynthia, lá de Wolfeboro, New Hampshire, poderia levá-la enquanto o bebê estava bom para abortar. Foi assim que Jodi falou, como se falasse de um guarda-louça em um brechó. A notícia foi recebida com um estranho silêncio à mesa. Aquela era uma das únicas vezes de que Lisey se lembrava — talvez a única — em que a constante conversa entre facas e garfos batendo no prato à medida que sete Debushers famintos devoravam o assado até o osso parou. Finalmente, Mãezinha Querida perguntou: Você já falou com Deus sobre isso, Jodotha? E Jodi — sem deixar a peteca cair: Foi Don Cloutier que me embarrigou, não Deus. Foi então que Papai deixou a mesa e sua filha favorita sem dizer palavra e sem olhar para trás. Logo depois, Lisey ouviu o som do seu rádio vindo do celeiro, bem baixinho. Passaram-se três semanas e ele teve o primeiro dos seus derrames. Agora, Jodi foi embora (mas não ainda para Miami, isso acontecerá anos mais tarde) e é Lisey quem tem que segurar o rojão das ligações furiosas de Darla, a pequena Lisey, e por quê? Porque Canty está do lado de Darla e ligar para Jodi não adianta para elas. Jodi é di­ferente das outras Debushers. Darla a chama de fria, Canty, de egoísta e as duas a chamam de insensível, mas Lisey acha que ela é outra coisa — algo melhor e mais admirável. Das cinco, Jodi é a única verdadeira sobrevivente, completamente imune à fumaça de culpa que sai da tenda da antiga família. Houve época em que Vovó D fazia essa fumaça, de­pois foi a vez da mãe delas, mas Daria e Canty estão dispostas a assumir a responsabilidade, tendo compreendido que, se você chamar aquela fumaça venenosa e viciante de “dever”, ninguém manda você apagar o fogo. Quanto a Lisey, ela só gostaria de ser mais parecida com Jodi, para que pudesse rir e dizer quando Darla ligasse: Vai tomar no cu, Darla­ querida; você fez sua cama, agora vai ter que deitar nela.

 

Parada na porta da cozinha. Olhando para o longo e inclinado quin­tal dos fundos. Esperando vê-lo sair voltando da escuridão. Querendo gritá-lo de volta — sim, mais do que nunca —, mas segurando com teimosia seu nome atrás dos lábios. Esperou por ele a noite inteira. Es­peraria um pouco mais.

Mas só um pouco.

Está começando a ficar tão assustada.

 

O rádio de Dandy só toca AM. A WGUY se recolhia junto com o sol e estava há muito fora do ar, mas a WDER tocava música das antigas quando ela enxaguou sua taça de vinho — algum herói da década de 50 cantando sobre amor adolescente — e voltou para a sala e bingo, lá estava ele, parado na porta com uma lata de cerveja na mão e um sorriso torto na cara. Ela provavelmente não tinha ouvido o som do Ford che­gando por causa da música. Ou do latejar da sua cabeça. Ou dos dois.

— Oi, Lisey — disse ele. — Desculpe o atraso. Desculpe mesmo. Uma galera que estava comigo no seminário de David Honors começou a discutir sobre Thomas Hardy e...

Ela lhe deu as costas sem dizer uma palavra e voltou para a cozi­nha, de volta para o som do Philco. Agora era um bando de caras can­tando “Sh-Boom”. Ele a seguiu. Sabia que ele a seguiria, era assim que aquelas coisas aconteciam. Sentia todas as coisas que tinha para dizer se avolumando em sua garganta, coisas ácidas, coisas venenosas, e uma voz solitária, aterrorizada, lhe dizia para não falá-las, não para aquele homem, e ela estilingou aquela voz para longe. A raiva não lhe deixaria fazer outra coisa.

Ele apontou um dedo para o rádio e disse, estupidamente orgulho­so de sua cultura inútil:

— São os Chords. A versão negra original.

Ela se voltou para ele e disse:

— Você acha que eu lá quero saber quem está cantando no rádio depois de ter trabalhado oito horas e esperado por você outras cinco? E você finalmente aparece às quinze para as onze com um sorriso na cara, uma cerveja na mão e uma história sobre como um poeta morto qual­quer acabou sendo mais importante para você do que eu?

O sorriso ainda estava na cara dele, mas estava diminuindo, desa­parecendo até sobrar apenas uma covinha. Enquanto isso, seus olhos se enchiam d’água. A voz perdida e assustada tentou dar outro aviso, mas ela a ignorou. A brincadeira agora era de magoar. Tanto no sorriso que sumia quanto na mágoa cada vez maior em seus olhos, ela via o quanto ele a amava e sabia que isso aumentava sua capacidade de feri-lo. Mes­mo assim, ela o magoaria. Por quê? Porque ela podia.

Parada na porta da cozinha, esperando-o voltar, ela não conseguia se lembrar de todas as coisas que dissera, apenas que cada uma delas era um pouco pior que a anterior, um pouco mais perfeitamente talhada para magoar. Chegou uma hora em que ela ficou horrorizada ao ver como parecia Daria em seus piores momentos — apenas mais uma De­busher prepotente — e, àquela altura, já não havia mais nem sombra do sorriso dele. Scott a encarava solenemente e ela ficou apavorada ao ver como seus olhos estavam arregalados, ampliados pela umidade re­luzente que os cobria até parecerem estar comendo seu rosto. Ela parou no meio de algo sobre como as unhas dele estavam sempre sujas e como ele as roía como um rato quando estava lendo. Ela parou e, naquele instante, não havia sons de motores vindos da frente do The Shamrock and The Mill no centro, nenhum pneu cantando, nem mesmo o som fraco da banda da semana tocando no The Rock. O silêncio era enorme e ela percebeu que queria voltar atrás e não fazia idéia de como. A coisa mais simples — Eu te amo assim mesmo, Scott, venha para a cama — só lhe ocorreu mais tarde. Depois do bool.

— Scott... eu...

Ela não fazia idéia de como continuar dali e parecia não haver necessidade. Scott ergueu o indicador da mão esquerda como um pro­fessor que quer falar algo especialmente importante e o sorriso ressurgiu nos seus lábios. Uma espécie de sorriso, pelo menos.

— Espere — disse ele.

— Esperar?

Ele parecia satisfeito, como se ela tivesse entendido um conceito difícil.

— Espere.

E, antes de ela poder falar qualquer outra coisa, ele simplesmente saiu andando para a escuridão, a coluna ereta, o andar reto (sem mais nenhuma embriaguez), os quadris magros balançando sob o jeans. Ela disse seu nome uma vez — “Scott” —, mas ele apenas ergueu o dedo novamente: espere. Então as sombras o engoliram.

 

Agora ela está parada olhando ansiosa para o gramado. Desligou a luz da cozinha, achando que seria mais fácil vê-lo assim; porém, mesmo com a ajuda da luz da varanda do quintal vizinho, as sombras tomavam mais da metade da subida. No quintal vizinho, um cachorro latia rouca­mente. O nome dele era Pluto, e ela sabia disso porque tinha ouvido as pessoas do lado de lá gritarem com ele de vez em quando, o que não lhe adiantava coisíssima nenhuma. Ela pensa no som de vidro quebrando que ouviu um minuto atrás: como o latido, aquele som pareceu vir de perto. Mais de perto do que os outros sons que povoavam aquela noite agitada e infeliz.

Por que, oh, por que tinha que explodir pra cima dele daquele jei­to? Nem queria ver aquele filme sueco idiota, pra começo de conversa! E por que sentiu tanto deleite com aquilo? Todo aquele deleite cruel e sujo?

Para isso ela não tem resposta. A noite de fim de primavera respira ao seu redor e há quanto tempo exatamente ela estava lá no escuro? Só dois minutos? Cinco, talvez? Parecia mais. E aquele som de vidro que­brando, será que tinha algo a ver com Scott?

A estufa fica para lá.

Não havia motivo para aquilo fazer seu coração bater mais de­pressa, mas é o que acontece. E assim que ela sente aquele aumento no ritmo das batidas, vê movimento além do local onde seus olhos já não conseguem enxergar muito. Um segundo depois, a coisa que se move transforma-se em um homem. Ela sente alívio, mas ele não dissipa seu medo. Não consegue parar de pensar no som de vidro quebrando. E há algo de errado com a maneira como ele está se movendo. O caminhar ereto e ágil sumiu.

Agora ela chama seu nome, mas o que sai é pouco mais do que um sussurro:

— Scott?

Ao mesmo tempo, sua mão está tateando a parede, à procura do interruptor que acende a luz do alpendre.

Seu chamado é baixo, mas a figura banhada em sombras se arras­tando pelo gramado — sim, o nome daquilo é se arrastar, e não cami­nhar — levanta a cabeça no instante em que os dedos curiosamente dormentes de Lisey encontram o interruptor e o acendem.

— É um bool, Lisey! — grita ele assim que a luz se acende, e será que ele teria feito melhor se tivesse ensaiado antes? Ela acha que não. Na sua voz, ela reconhece um alívio louco e jubiloso, como se ele tivesse consertado tudo. — E não é um bool qualquer, é um bool de sangue!

Ela nunca tinha ouvido aquela palavra antes, mas não a confun­de com nenhuma outra. É bool, outra palavra de Scott, e não um bool qualquer, mas um bool de sangue. A luz da cozinha salta para o gramado para encontrá-lo e ele está lhe estendendo a mão esquerda como um presente, ela tem certeza de que ele pensa nela como um presente, assim como tem certeza de que ainda existe a mão de alguém em algum lugar debaixo daquilo, oh, Jesus, Maria e Jojo, o Carpinteiro, ainda tem a mão de alguém em algum lugar debaixo daquilo ou ele vai terminar o livro que está escrevendo e qualquer outro que venha depois datilogra­fando só com a direita. Pois no lugar da sua mão esquerda há apenas uma massa vermelha e gotejante. Sangue escorre entre as estrelas do mar que ela imagina serem seus dedos, e, mesmo voando ao encontro dele, seus pés descendo espasmodicamente os degraus da varanda dos fundos, ela conta aquelas formas vermelhas abertas, um dois três quatro e oh graças a Deus, o quinto é um polegar. Ainda está tudo no lugar, mas o jeans dele estão manchados de vermelho e ainda assim ele lhe estende a mão lacerada e sanguinolenta, a que ele usou para varar uma vidraça grossa da estufa, abrindo caminho por uma cerca viva no pé do quintal para alcançada. Agora ele lhe estendia seu presente, sua penitência por ter se atrasado, seu bool de sangue.

— É para você — diz ele, e Lisey arranca sua blusa e a enrola em volta da massa vermelha e gotejante, sentindo-a encharcar o pano ime­diatamente, sentindo o calor louco do ferimento e entendendo —, é claro! — por que aquela vozinha estava com tanto medo das coisas que disse, entendendo o que a voz sabia desde o começo: aquele homem não está somente apaixonado por ela, ele está um pouco apaixonado pela morte e mais do que disposto a concordar com qualquer coisa cruel e nociva que qualquer pessoa lhe disser.

Qualquer pessoa?

Não exatamente. Ele não é tão vulnerável assim. Só qualquer pes­soa que ele ame. E Lisey compreende de súbito que não é a única que não disse quase nada sobre o próprio passado.

— É pra você. Para dizer que sinto muito por ter esquecido e que não vai acontecer de novo. É um bool. A gente...

— Psiu, Scott. Está tudo bem. Não estou...

— A gente chama de bool de sangue. É especial. Papai contou pra mim e para o Paul...

— Não estou brava com você. Nunca fiquei brava com você.

Ele se detém ao pé dos degraus irregulares dos fundos, olhando embasbacado para ela. Parecia ter uns 10 anos de idade com aquela expressão no rosto. A blusa dela envolvia precariamente sua mão como uma manopla de pano; era amarela, mas agora estava toda rosada e ver­melha. Ela fica parada no gramado de sutiã, sentindo a grama roçar seus calcanhares nus. A melancólica luz amarela que da cozinha incide sobre eles deposita uma sombra curvada profunda entre seus seios.

— Você aceita?

Ele a encara com um ar tão infantil de súplica. Tudo que havia de homem nele momentaneamente desaparecera. Ela vê a dor em seu olhar demorado e ansioso e sabe que o motivo dela não é a mão dilacerada, mas não sabe o que dizer. Aquilo está além dela. Fez bem em colocar uma espécie de compressa no terrível estrago que ele fez acima do pulso, mas agora está paralisada. Existe alguma coisa certa para falar? E, mais importante, existe alguma coisa errada? Que o faça surtar novamente?

Ele a ajuda.

— Se você aceitar um bool, principalmente um bool de sangue, então está o.k. com as desculpas. Foi Papai que disse. Papai falou um montão de vez pra mim e para o Paul. — Não um monte de vezes, mas um montão de vez. Ele tinha regredido para a dicção da infância. Nossa Senhora. Nossa Senhora Aparecida.

Lisey diz:

— Acho que vou aceitar, então, porque eu nunca quis ver nenhum filme sueco idiota com legendas, pra começo de conversa. Meus pés es­tão doendo. Eu só queria ir para a cama com você. E agora olhe só, em vez disso vamos ter que ir para uma joça de Sala de Emergência.

Ele balança a cabeça, devagar, mas com firmeza.

— Scott...

— Se você não estava brava, por que gritou comigo e me chamou de toda aquela coisa ruim?

Toda aquela coisa ruim. Certamente outro cartão-postal da sua in­fância. Ela registra aquilo e coloca de lado para considerações futuras.

— Porque eu já não podia mais gritar com a minha irmã — diz ela. Acha graça daquilo e começa a rir. Ri alto e o som a assusta de tal forma que ela começa a chorar. Então fica tonta. Senta-se nos degraus da varanda, achando que vai desmaiar.

Scott se senta ao lado dela. Tem 24 anos, o cabelo bate na altura do ombro, está com uma barba por fazer de dois dias e é magro como um bambu. Está com a blusa dela na mão esquerda, uma das mangas solta e caída. Ele beija a cavidade pulsante da sua têmpora, então olha para ela com perfeita e afetuosa compreensão. Quando fala, soa quase como ele mesmo novamente.

— Eu entendo — diz ele. — Família é uma droga.

— Se é — sussurra ela.

Ele coloca o braço ao seu redor — o esquerdo, no qual ela já está pensando como o braço do bool de sangue, seu presente para ela, sua joça de presente insano de sexta à noite.

— Eles não precisam ter importância — diz ele. Sua voz soa estranhamente serena. É como se não tivesse transformado sua mão esquer­da em um monte de carne crua e sangrenta. — Veja bem, Lisey: dá pra esquecer qualquer coisa.

Ela o encara com desconfiança.

— Tem certeza?

— Tenho. Essa é a nossa hora. Eu e você. E isso que importa.

Eu e você. Mas será que ela quer aquilo? Agora que está vendo como o equilíbrio dele é tênue? Agora que tem um vislumbre de como a vida com ele pode ser? Então ela pensa na sensação dos lábios dele na cavidade da sua têmpora, tocando aquele local secreto especial, e pensa, talvez queira sim. Todo furacão não tem um olho?

— É? — pergunta ela.

Ele fica vários segundos calado. Abraçando-a somente. Sons de motores, gritos e risadas loucas e escandalosas vêm do minúsculo centro de Cleaves. É sexta à noite e os garotões estão farreando. Mas não há nada daquilo ali. Ali, o que há é o cheiro do seu longo e inclinado quin­tal dos fundos, o som de Pluto latindo sob a luz da varanda vizinha e a sensação do braço dele ao seu redor. Mesmo a pressão úmida e quente da sua mão ferida é reconfortante, marcando a pele nua do seu diafrag­ma como um tição.

— Baby — diz ele por fim.

Pausa.

E então:

— Babyluv.

Para Lisey Debusher, 22 anos, cansada da família e igualmente cansada de estar sozinha, aquilo basta. Finalmente. Ele a gritara para casa e, na escuridão, ela se entrega ao Scott que há nele. Dali até o fim, jamais olhará para trás.

 

Quando já estão de volta à cozinha, ela desenrola a blusa para ver o estrago. Olhando para a ferida, sente outra onda de tontura primeiro erguê-la até a lâmpada brilhante e depois jogá-la em direção à escuridão; tem que lutar para manter a consciência e consegue dizendo a si mesma: Ele precisa de mim. Precisa que o leve de carro para a Emergência da Derry Home.

De alguma forma, ele por pouco não cortou as veias debaixo do pul­so — um milagre de olhos azuis —, mas a palma da mão está cortada em pelo menos quatro lugares diferentes, um pedaço da pele está pendurado como papel de parede e três dos que o pai dela chamava de “os dedos gordos” também estão cortados. O pièce de résistance é um talho horrível no antebraço com um triângulo de vidro verde saltando para fora como uma barbatana de tubarão. Ela se ouve soltar um inevitável ai! quando ele o arranca — quase casualmente — e o atira no lixo. Ele segura a blusa encharcada de sangue debaixo da mão e do braço ao fazê-lo, tentando evitar, atencioso, que o sangue caia no chão da cozinha dela. Respinga um pouco o assoalho de qualquer jeito, mas, surpreendentemente, quase não há o que limpar depois. Há um banco alto na cozinha em que ela às vezes se senta quando está descascando legumes ou até lavando pratos (quando você fica em pé oito horas por dia, aproveita qualquer oportu­nidade de se sentar), e Scott o puxa com um pé para poder sentar com a mão pingando na pia. Ele diz que vai falar o que ela deve fazer.

— Você tem que ir para a Emergência — diz ela. — Scott, seja ra­zoável! Mãos são cheias de tendões e tal! Você quer que ela fique inútil? Porque ela pode ficar! Pode ficar mesmo! Se estiver preocupado com o que eles vão falar, você pode inventar alguma história, é isso que você faz, inventa histórias, e eu confir...

— Se você ainda quiser que eu vá amanhã, a gente vai — diz ele. Agora ele voltou completamente ao seu eu normal, racional, charmoso e de uma persuasão quase hipnótica. — Não vou morrer disto esta noite, o sangramento já quase parou e, além do mais, você sabe como ficam as Emergências na noite de sexta? Um Desfile de Bêbados! Seria bem me­lhor irmos na manhãzinha de sábado. — Ele está sorrindo para ela ago­ra, aquele maravilhado sorriso querida, eu sou demais que quase obrigava você a sorrir de volta, o que ela tenta evitar, embora esteja perdendo a batalha. — Além do mais, todos os Landon se curam rápido. Tínhamos que nos curar. Vou lhe mostrar exatamente o que deve fazer.

— Você age como se já tivesse enfiado a mão em uma dúzia de janelas de estufa.

— Não — diz ele, o sorriso diminuindo um pouco. — Nunca dei um murro numa estufa até hoje à noite. Mas já aprendi algumas coisas sobre estar ferido. Tanto Paul quanto eu aprendemos.

— Ele era seu irmão?

— É. Ele está morto. Lisey, encha uma bacia de água morna, sim? Morna, mas não muito quente.

Ela quer fazer todo tipo de perguntas sobre o irmão

(Papai falou um montão de vez pra mim e para o Paul)

que nunca soube que ele teve, mas não é a hora. Tampouco vai continuar brigando com ele para irem à Emergência, não por enquanto. Inclusive porque, se ele concordasse em ir, ela teria que levado de carro e não tinha certeza se conseguiria fazer aquilo, pois tinha ficado toda trê­mula por dentro. E ele tem razão sobre o sangramento, tinha diminuído bastante. Graças a Deus pelas pequenas bênçãos.

Lisey pega sua bacia de plástico branca (Mammoth Mart, 79 cen­tavos) debaixo da pia e a enche de água morna. Ele enfia a mão dilace­rada nela. No começo, ela segura a onda — os anéis de sangue subindo preguiçosamente até a superfície da água não a incomodam muito —, mas, quando ele enfia a outra mão na bacia e começa a esfregar com suavidade o ferimento, a água fica rosa e Lisey vira para o outro lado, lhe perguntando por que ele está fazendo os cortes sangrarem de novo daquele jeito, pelo amor de Deus.

— Quero me certificar de que eles estão limpos — diz ele. — Eles precisam estar limpos quando eu for — ele faz uma pausa, então com­pleta — para a cama. Posso dormir aqui, não posso? Por favor?

— Sim — diz ela —, é claro que pode. — E pensa: Não era isso que você ia falar.

Quando ele termina de deixar a mão de molho, joga fora a água cheia de sangue ele mesmo, para que ela não tenha que fazê-lo, então lhe mostra a mão. Molhados e brilhando, os cortes parecem menos graves e, ainda assim, de certa forma, mais horríveis, como guelras entrecruzadas, o rosa ficando mais vermelho na parte de dentro.

— Posso usar sua caixa de chás, Lisey? Prometo que compro outra pra você. Estou com um cheque de royalties pra bater. Mais de 5 mil. Meu agente jurou pela honra da mãe dele. Eu respondi que nem sabia que ele tinha uma. Isso é uma piada, aliás.

— Eu sei que é uma piada, não sou tão burra assim...

— Você não é nada burra.

— Scott, por que você quer uma caixa inteira de saquinhos de chá?

— Traz pra mim que você vai descobrir.

Ela pega o chá. Ainda sentando no banquinho e trabalhando só com uma das mãos, Scott enche a bacia com mais água não-muito-quente.

— Foi Paul quem inventou isso — diz ele com empolgação. É uma empolgação de menino, pensa ela. Olha que aeromodelo maneiro que eu fiz sozinho, olha a tinta invisível que eu fiz com os produtos do meu kit de quí­mica. Ele joga os saquinhos de chá dentro, todos os 18, aproximadamente. Eles começam a tingir a água de um âmbar fosco à medida que afundam na bacia. — Arde um pouco, mas funciona muito muito bem. Olhe só!

Muito muito bem, percebe Lisey.

Ele coloca a mão no chá fraco que preparou e, por um instante apenas, seus lábios se retraem, revelando os dentes, que são tortos e um pouco manchados.

— Dói um pouco — diz ele —, mas funciona. Funciona muito muito bem, Lisey.

— É — diz ela. E bizarro, mas ela imagina que talvez possa mesmo ajudar um pouco a evitar uma infecção, ou a sarar, ou os dois. Chuckie Gendron, o cara que faz os petiscos no restaurante, é um grande fã do Insider, e ela dá uma olhada no jornal de vez em quando. Leu um artigo em uma das páginas de trás há algumas semanas sobre como chá é bom para todo tipo de coisa. E claro que estava na mesma página de um artigo sobre como os ossos do Pé-grande foram encontrados em Min­nesota. — É, imagino que tenha razão.

— Eu não, o Paul. — Ele está empolgado e a cor lhe voltou às faces. É quase como se não tivesse se machucado, pensa ela.

Scott aponta o bolso do peito com o queixo.

— Me dá um cigarro, babyluv.

— Você acha que deve fumar com a sua mão toda...

— Claro, claro.

Então ela pega os cigarros do bolso do peito, coloca um na sua boca e o acende para ele. Fumaça cheirosa (ela sempre vai adorar aquele cheiro) sobe aos montes em direção ao teto vergado e manchado de infiltrações da cozinha. Ela quer lhe fazer mais perguntas sobre bools, es­pecialmente sobre bools de sangue. Está começando a fazer uma idéia.

— Scott, você e seu irmão foram criados pelos pais?

— Não. — Ele estava com o cigarro em dos cantos da boca e um olho apertado por causa da fumaça. — Mamãe morreu durante o meu parto. Papai sempre disse que eu a matei por ter sido um dorminhoco e ficado grande demais. — Ele ri disso como se fosse a piada mais engra­çada do mundo, mas é também um riso nervoso, uma criança rindo de uma piada suja que não entende muito bem.

Ela não fala nada. Tem medo de falar.

Ele olha para o local em que sua mão desaparece na bacia, que agora está cheia de chá tingido de sangue. Dá baforadas rápidas em seu Herbert Tareyton e as cinzas ficam longas. Ainda está com o olho aper­tado e isso de alguma forma o deixa com uma aparência diferente. Não exatamente como se fosse um estranho, mas diferente. Como...

Oh, como um irmão mais velho, talvez. Um que tenha morrido.

— Mas Papai disse que eu não tive culpa de ter ficado dormindo quando estava na hora de sair. Ele disse que mamãe devia ter me dado um tapa pra eu acordar, o que ela não fez, então fiquei grande demais e ela morreu por isso, bool, fim. — Ele ri. As cinzas caem do cigarro no balcão. Ele parece não notar. Olha para a mão no chá espesso, mas não fala mais nada.

O que deixa Lisey em um delicado dilema. Será que ela deve fazer outra pergunta, ou não? Tem medo de que ele não responda, que ex­ploda para cima dela (ele é capaz de explodir, disso ela sabe, participou como ouvinte de um de seus seminários sobre os Modernos certa vez). Também tem medo de que responda. Acha que vai responder.

— Scott? — diz ela muito baixinho.

— Mmmm? — O cigarro já desceu três quartos do caminho até o que parece um filtro, mas, em se tratando de um Herbert Tareyton, é só uma espécie de piteira.

— O seu Papai fazia bools?

— Bools de sangue, sem dúvida. Para quando a gente não tinha coragem ou para botar pra fora a coisa ruim. Paul fazia bools ótimos. En­graçados. Tipo caçadas ao tesouro. Siga as pistas. “Bool! Fim!” e ganhe um prêmio. Tipo um doce ou uma RC Cola. — As cinzas caem do seu cigarro novamente. Os olhos de Scott estão fixos no chá sanguinolento da bacia. — Mas Papai dá um beijo. — Ele a encara e Lisey entende de súbito que Scott sabe tudo o que sua timidez lhe impedira de perguntar e está respondendo da melhor forma possível. Da melhor forma a que se atreve. — Este é o prêmio do Papai. Um beijo quando a dor pára.

 

Não há gaze o suficiente no armarinho de remédios, então Lisey acaba rasgando longas tiras de um lençol. O lençol é velho, mas ela lamenta sua morte assim mesmo — com um salário de garçonete (mais as gor­jetas mesquinhas dos garotões e aquelas ligeiramente melhores dos pro­fessores da faculdade que almoçam no Pat’s) ela mal tem condições de atacar o armário das roupas de cama. Porém, quando pensa nos cortes entrecruzados na mão dele — e na mais profunda e longa guelra em seu antebraço —, não hesita em fazê-lo.

Scott dorme quase antes de bater com a cabeça no travesseiro no seu lado da cama ridiculamente estreita de Lisey. Ela imagina que vá ficar algum tempo acordada, remoendo as coisas que ele lhe contou. Em vez disso, cai no sono quase imediatamente.

Ela acorda duas vezes durante a noite, primeiro porque precisa fazer xixi. A cama está vazia. Ela anda sonolenta até o banheiro, puxan­do a blusa larga da Universidade do Maine que usa para dormir até o quadril no caminho, dizendo:

— Rápido, Scott, estou doida pra ir... — porém, quando entra no banheiro, a lâmpada que sempre deixa acesa lhe mostra um cômodo va­zio. Scott não está lá. Nem o assento da privada está levantado, do jeito que ele sempre deixa depois de dar uma mijada.

De repente, Lisey perde a vontade de urinar. De repente, ela morre de medo de que a dor o tenha acordado, ele tenha lembrado de todas as coisas que lhe contou e sido esmagado pelas — como eles chamam isso no Insider de Chuckie? — lembranças recuperadas.

Será que foram mesmo recuperadas, ou ele apenas as vinha guar­dando para si? Ela não sabe ao certo, mas sabe que o jeito infantil como ele falou por um instante foi muito sinistro... e quem sabe ele não vol­tou à estufa para terminar o serviço? Com o pescoço dessa vez, em vez de com a mão?

Ela se vira em direção à entrada escura da cozinha — o apartamen­to consiste apenas nela e no banheiro — e o vê enrolado na cama. Está dormindo na sua habitual posição semifetal, joelhos quase no peito, testa encostada na parede (quando eles saírem daquele lugar no outono, haverá uma marca fraca, mas perceptível, ali — a marca de Scott). Ela lhe dissera várias vezes que ele teria mais espaço se dormisse do outro lado, mas Scott não queria. Agora ele se mexe um pouco, as molas ran­gem e, sob o brilho da luz da rua, Lisey consegue ver um pedaço negro do seu cabelo cair sobre sua bochecha.

Ele não estava na cama.

Mas lá está ele, dentro do quarto. Se tivesse alguma dúvida, ela poderia colocar a mão debaixo da mecha de cabelo que está olhando, erguê-la, sentir seu peso.

Então talvez eu tenha apenas sonhado que ele não estava aqui?

Isso faz sentido — mais ou menos —, mas quando ela volta para o banheiro e se senta na privada, volta a pensar: Ele não estava lá. Quando me levantei, a joça da cama estava vazia.

Ela levanta o assento depois de terminar, porque se ele levantar à noite vai estar sonolento demais para tanto. Então volta para a cama. Está quase dormindo quando chega lá. Ele está ao seu lado agora, e é isso que importa. Sem dúvida é isso que importa.

 

Na segunda vez, ela não acorda sozinha.

— Lisey.

É Scott, sacudindo-a.

— Lisey, pequena Lisey.

Ela resiste, teve um dia duro — uma semana dura, isso sim —, mas ele insiste.

— Lisey, acorde!

Ela espera que a luz do sol perfure seus olhos, mas ainda está escuro.

— Scott. Quifoi?

Ela quer perguntar se ele está sangrando de novo, ou se o curativo que fez saiu, mas esses pensamentos parecem grandes e complicados demais para sua mente confusa. Quifoi vai ter que servir.

O rosto de Scott está pairando sobre o dela, totalmente desperto. Ele parece empolgado, mas não aflito ou com dor. Diz:

— Não dá pra gente continuar vivendo assim.

Isso a acorda quase por completo, porque a assusta. O que ele está falando? Que quer terminar?

— Scott? — Ela tateia o chão, pega seu relógio Timex e aperta os olhos para ele. — São quatro e quinze da manhã! — Soando chateada, soando irritada, e de fato está, mas também está assustada.

— Lisey, nós temos que arranjar uma casa de verdade. Comprar uma. — Ele balança a cabeça. — Não, estou pensando ao contrário. Acho que a gente devia se casar.

O alívio a inunda e ela se deixa cair de costas. O relógio cai dos seus dedos relaxados e bate no chão. Não tem problema; Timexes levam uma bordoada e continuam funcionando. O alívio é seguido de espan­to; acabaram de pedir a mão dela em casamento, como uma dama em um romance romântico. E o alívio é seguido por um pequeno vagão vermelho de terror. O cara que está fazendo isso é o mesmo que lhe deu um bolo na noite passada, destroçou a própria mão quando ela brigou com ele por isso (e por algumas outras coisas, tudo bem, é verdade), então apareceu no gramado estendendo a mão ferida para ela como se fosse alguma joça de presente de Natal. Aquele era o homem com um irmão morto sobre o qual ela só ficou sabendo naquela noite e a mãe morta que ele supostamente matou porque — quais foram mesmo as palavras do escritor bambambã? — ficou grande demais.

— Lisey?

— Cale a boca, Scott, estou pensando. — Ah, mas é difícil pensar quando a lua está baixa e a hora é nenhuma, independentemente do que diga o seu confiável Timex.

— Eu te amo — diz ele com brandura.

— Eu sei. Eu também te amo. Essa não é a questão.

— Pode ser sim — diz ele. — Que você me ama, quero dizer. Talvez essa seja exatamente a questão. Ninguém me amou desde Paul. — Uma longa pausa. — E de Papai, eu acho.

Ela se levanta, apoiando-se nos cotovelos.

— Scott, um monte de gente ama você. Quando você fez uma lei­tura do seu último livro; e do que está escrevendo agora... — Ela franze o nariz. O novo se chama Demônios Vazios, e o que leu e o ouviu ler dele, ela não gostou. — Quando você leu, quase quinhentas pessoas apare­ceram! Eles tiveram que passar você do Maine Lounge para o Hauck Auditorium! Quando terminou, eles o aplaudiram de pé!

— Isso não é amor — diz ele —, é curiosidade. E, cá entre nós, é um esquema freakshow. Quando você publica seu primeiro romance aos 21 anos, passa a sacar tudo sobre esse lance de freakshow, mesmo que a droga do livro só venda para bibliotecas e nem saia em brochura. Mas você não liga pra essa história de menino-prodígio, Lisey...

— Ligo sim... — Totalmente acordada àquela altura, ou quase.

— Liga, mas... me dá um cigarro, babyluv. — Os cigarros dele estão no chão, no cinzeiro de tartaruga que ela guarda para ele. Ela lhe entrega o cinzeiro, coloca um cigarro na sua boca e o acende. Ele pros­segue. — Mas também liga se eu escovo ou não os dentes...

— Bem, sim...

— E se o xampu que eu estou usando acaba com a caspa ou se só está piorando a situação...

Isso a faz se lembrar de uma coisa.

— Comprei aquele xampu de que eu tinha falado. Está no boxe. Quero que você experimente.

Ele dispara a rir.

— Tá vendo? Tá vendo? Um exemplo perfeito. Você faz uma abor­dagem holística.

— Não conheço essa palavra — diz ela, franzindo o cenho.

Ele apaga o cigarro tendo fumado apenas um quarto dele.

— Significa que, quando você olha para mim, me vê dos pés à cabeça e de cabo a rabo e para você tudo tem o mesmo peso.

Ela pensa naquilo, e então assente.

— Acho que sim, claro.

— Você não sabe o que é isso. Eu escondo uma infância em que eu era só... em que eu era uma coisa. De seis anos pra cá, tenho sido outra. E uma coisa melhor, mas, ainda assim, para a maioria das pessoas aqui e lá em Pitt, Scott Landon não passa de uma... jukebox milagrosa. É só colocar um dinheirinho que sai uma joça de história.

Ele não soa rancoroso, mas ela percebe que pode ficar. Com o tempo. Se não tiver um porto seguro, um lugar onde possa ser podado. E sim, ela pode ser aquela pessoa. Poderia criar aquele lugar. De certa maneira, eles já fizeram isso.

— Você é diferente, Lisey. Eu soube desde a primeira vez que te vi, na Noite do Blues no Maine Lounge, lembra?

Jesus, Maria e Jojo, o Carpinteiro, como ela se lembra. Tinha ido à Universidade naquela noite para assistir à exposição de Hartgen em frente ao Hauck, ouviu a música saindo do lounge e entrou por simples capricho. Ele entrou alguns minutos depois, passou os olhos pela casa praticamente cheia e perguntou se a outra ponta do sofá em que ela estava sentada estava ocupada. Ela quase não ficou para o show. Poderia ter conseguido pegar o ônibus das oito e meia se não tivesse ficado. Para você ver como ela esteve perto de ir para a cama sozinha naquela noite. A idéia a faz se sentir como se olhasse para baixo por uma janela alta.

Ela não diz nada disso, apenas assente.

— Para mim você é como... — Scott faz uma pausa, então sorri. Seu sorriso é divino, com dentes tortos e tudo. — Você é como aquele lago em que todos bebemos. Já te falei sobre o lago?

Ela assente mais uma vez, sorrindo também. Não tinha — não diretamente —, mas ela o ouvira falar sobre aquilo nas suas leituras e durante as palestras a que assistiu depois de convidada com entusiasmo por ele, sentada bem atrás nas salas 101 ou 112. Quando fala sobre o lago, ele sempre estende o braço, como se quisesse colocar as mãos nele, ou fisgar coisas — peixes lingüísticos, talvez — lá de dentro. Ela acha aquilo um gesto cativante, de menino. Às vezes ele o chama de lago dos mitos; outras, de lago das palavras. Diz que cada vez que você chama alguém de sangue-bom ou maçã-podre, está bebendo daquele lago ou pegando girinos na orla dele; que cada vez que manda uma criança arriscar a própria vida na guerra porque ama sua bandeira e a ensinou a amá-la também, está nadando naquele lago... bem fundo, onde os grandões com dentes famintos também nadam.

— Eu venho a você e você me vê por inteiro — diz ele. — Você me ama de cabo a rabo e não só por causa de alguma história que eu escrevi. Quando a sua porta se fecha e o mundo fica lá fora, ficamos olho a olho.

— Você é muito mais alto do que eu, Scott.

— Você sabe do que eu estou falando.

Ela acha que sim. E também está abalada o suficiente para combi­nar algo de que talvez se arrependa pela manhã.

— A gente conversa sobre isso pela manhã — diz ela. Então pega os apetrechos de fumante dele e os coloca de volta no chão. — Me per­gunte de novo, se ainda quiser.

— Ah, eu vou querer — diz ele, com total confiança.

— Vamos ver. Por enquanto, volte a dormir.

Ele vira para o seu lado. Está com o corpo quase reto, mas, à medi­da que adormece, começa a se dobrar. Seus joelhos chegarão até o peito estreito, e sua testa, atrás da qual todos os peixes-histórias nadam, se encostará na parede.

Eu o conheço. Estou começando a conhecê-lo, pelo menos.

Nesse instante, ela sente outra onda de amor por ele e precisa se­lar os lábios para evitar palavras perigosas. Do tipo que são difíceis de retirar uma vez que são ditas. Talvez impossíveis. Decide então apertar os seios contra as costas dele e a barriga contra seu traseiro nu. Alguns grilos atrasados cantam além da janela e Pluto continua latindo outro plantão noturno adentro. Ela começa a cair no sono novamente.

— Lisey? — É quase como se a voz dele viesse de outro mundo.

— Hmmmm?

— Eu sei que você não gosta do Demônios...

— D’testo — consegue dizer ela, o que é o mais próximo que con­segue chegar de uma análise crítica em seu atual estado; ela está caindo, caindo, caindo no sono.

— É, e não vai ser a única. Mas meu editor o adora. Ele diz que o pessoal da Sayler House decidiu que é um romance de horror. Por mim, tudo bem. Como é aquele velho ditado? Pode me chamar do que quiser, só não me chame tarde para a janta.

Caindo no sono. A voz dele vem de um corredor longo e escuro.

— Não preciso de Carson Foray ou do meu agente para saber que Demônios Vazios vai me pagar muitas compras. Já cansei de brincadeira, Lisey. Estou no caminho certo, mas não quero ir sozinho. Quero que você venha comigo.

— Cal’boca, Sco. Vai-dunhir.

Ela não sabe se ele foi dormir ou não, mas, por milagre (um mila­gre de olhos azuis), Scott Landon cala mesmo a boca.

 

Lisey Debusher se dá a inacreditável extravagância de acordar às nove da manhã, sentindo cheiro de bacon frito. A luz do sol se espalha pelo chão e pela cama numa listra brilhante. Ela vai até a cozinha. Scott está fritando bacon de cuecas e ela fica horrorizada ao ver que ele tirou os curativos que ela aplicou com tanto cuidado. Quando ela reclama, ele diz simplesmente que estava coçando.

— Além do mais — diz ele, estendendo a mão para ela (isso a faz lembrar tanto de como ele saiu andando das sombras na noite anterior que ela precisa conter um calafrio) —, não parece tão ruim à luz do dia, não é?

Ela pega a mão, se inclina como se fosse ler a palma e fica olhan­do até ele a puxar de volta, dizendo que se não virar o bacon ele vai queimar. Não fica estarrecida, tampouco assustada; talvez essas emo­ções estejam reservadas para noites escuras e quartos sombrios, não para manhãs de fim de semana ensolaradas com o Philco na janela tocando aquela música sobre um low rider* que ela nunca entendeu, mas sempre gostou. Não estarrecida e nem assustada... mas sim perplexa. Tudo em que consegue pensar é que deve ter achado que os cortes eram muito piores do que eram de fato. Que entrou em pânico. Pois os ferimentos, embora não sejam exatamente arranhões, são bem menos sérios do que pensava. Não só estavam secos, como já começavam a fazer casca. Se ela o tivesse levado para a Emergência da Derry Home, eles provavelmente a teriam mandado cair fora.

Além do mais, todos os Landon se curam rápido. Tínhamos que nos curar.

Enquanto isso, Scott tira o bacon tostado da frigideira com um garfo, colocando-o sobre duas folhas de toalha de papel. Para Lisey, ele pode ser um bom escritor, mas é ótimo com frituras. Pelo menos quando leva a sério o que está fazendo. Porém, ele precisa de cuecas novas; os fundilhos da que está usando estão caídos de um jeito muito engraçado e o elástico da cintura está nas últimas. Ela verá o que pode fazer para convencê-lo a comprar novas quando o prometido cheque de royalties bater, e é claro que sua mente não está preocupada com cuecas, não exatamente; a mente dela quer comparar o que viu na noite passada — aquelas guelras profundas e repugnantes, rosa virando um vermelho-­fígado — com o que está à venda naquela manhã. É a diferença entre meros cortes e talhos, e ela acredita mesmo que alguém possa, se curar tão depressa assim, fora de uma história da Bíblia? Acredita mesmo? Afinal ele não varou com a mão uma vidraça de janela, e sim um vidro de estufa, o que a faz lembrar que precisam fazer alguma coisa sobre aquilo, Scott vai ter que...

— Lisey.

Ela é arrancada dos seus devaneios e se vê sentada à mesa da cozi­nha, enrolando nervosamente a blusa entre as coxas.

— O quê?

— Um ou dois ovos.

Ela pensa no assunto.

— Dois. Eu acho.

— Gema coberta ou quer ele olhando pra você?

— Coberta — diz ela.

— A gente há de se casar? — pergunta ele no mesmíssimo tom, quebrando os dois ovos com a mão direita boa e jogando-os na frigidei­ra, caploft.

Ela sorri um pouco, não por conta do tom casual, mas pela manei­ra de falar ligeiramente arcaica, e percebe que não está nada surpresa. Vinha esperando aquilo... aquela, como-se-diz-mesmo? Aquela retoma­da; deve ter remoído a proposta dele em algum recanto profundo da sua mente mesmo enquanto dormia.

— Tem certeza? — pergunta ela.

— Absoluta — diz ele. -— O que você acha, babyluv?

— Babyluv acha que temos um plano.

— Ótimo. Que ótimo. — Ele faz uma pausa. E então: — Obrigado.

Por um ou dois minutos, nenhum dos dois diz nada. No parapeito da janela, o velho Philco rachado toca o tipo de música que Papai Debusher nunca ouviu. Na frigideira, os ovos estalam. Ela está faminta. E feliz.

— No outono — diz ela.

Ele assente, pegando um prato.

— Ótimo. Outubro?

— Talvez seja cedo demais. Que tal por volta do Dia de Ação de Graças? Sobrou algum ovo pra você?

— Um só, e um é só o que quero.

Ela fala:

— Só me caso se você comprar cuecas novas.

Ele não ri.

— Então farei disso uma prioridade.

Ele coloca o prato na frente dela. Bacon e ovos. Ela está com tanta fome. Começa a comer e ele quebra o último ovo na frigideira.

— Lisa Landon — diz. — O que você acha?

— Acho que é pra ficar. É... como é que se diz quando todas as palavras começam com o mesmo som?

— Aliteração.

— Isso aí. — Então ela diz: — Lisa Landon. — Como os ovos, é gostoso.

— Pequena Lisey Landon — diz ele e joga o ovo no ar. Ele gira duas vezes e cai bem em cima da gordura do bacon, splat.

— Você, Scott Landon, promete engatilhar e não desengatilhar de jeito nenhum? — pergunta ela.

— Engatilhado na doença, engatilhado na saúde — concorda ele, e os dois começam a rir como loucos enquanto o rádio toca sob a luz do sol.

 

Com Scott, ela sempre riu bastante. E, uma semana depois, os cortes na mão dele, até o do antebraço, estavam praticamente sarados.

Não deixaram nem cicatriz.

 

Quando Lisey voltou a acordar, já não sabia onde estava — no passado ou no presente. Porém, já havia entrado bastante da primeira luz da manhã no quarto para que ela pudesse ver o papel de parede azul-claro e a paisagem marítima na parede. Então aquele era o quarto de Aman­da, e aquilo parecia certo, mas, ao mesmo tempo, errado; parecia-lhe um sonho sobre o futuro que estivesse tendo na cama estreita do seu apartamento, a que ela ainda divide com Scott quase todas as noites e continuará dividindo até o casamento em novembro.

O que a acordou?

Amanda estava virada para o outro lado e Lisey ainda estava encai­xada nela como uma colher, os seios contra as costas de Manda e a barri­ga contra o seu traseiro magro, mas o que a havia acordado? Não estava com vontade de fazer xixi... não muito, pelo menos, então o que...

Amanda, você disse alguma coisa? Quer alguma coisa? Um copo d'água, talvez? Um pedaço de vidro de estufa para cortar os pulsos?

Essas coisas lhe passaram pela cabeça, mas Lisey não queria dizer nada, pois teve uma idéia estranha. A idéia é que, embora veja a cabelei­ra grisalha de Amanda e o babado da gola da sua camisola, ela na verda­de estava na cama com Scott. Sim! Que em alguma hora da noite Scott tinha... o quê? Passado das lentes da memória de Lisey para o corpo de Amanda? Algo do gênero. É uma idéia esquisita, mas mesmo assim ela não quer dizer nada, pois tem medo de que Amanda possa responder na voz de Scott. E o que ela faria se isso acontecesse? Gritaria? Gritaria para acordar os mortos, como se diz? Sem dúvida a idéia é absurda, mas...

Mas olhe para ela. Olhe como ela está dormindo, com os joelhos para cima e a cabeça inclinada. Se tivesse uma parede, sua testa estaria encostada nela. Não é de admirar que você pense...

E então, naquela penumbra pré-alvorada das cinco da manhã, com o rosto virado, de modo que Lisey não consegue vê-lo, Amanda falou.

— Baby — diz ela.

Uma pausa.

Então:

— Babyluv.

Se a temperatura interna de Lisey parecia ter despencado 30 graus na noite anterior, naquele instante pareceu ter despencado 60, pois, embora a voz que falou aquela palavra fosse indubitavelmente femini­na, também era a de Scott. Lisey vivera com ele por mais de vinte anos. Sabia reconhecer Scott quando o escutava.

Isso é um sonho, diz ela para si mesma. É por isso que nem consigo saber se estou no passado ou no presente. Se olhar à minha volta, verei o tapete mágico NÚMERO UM DE PILLSBURY flutuando no canto do quarto.

Porém, ela não conseguia olhar em volta. Por um bom tempo, não conseguiu nem se mexer. O que finalmente a impele a falar é a luz que fica mais forte. A noite estava quase acabando. Se Scott tivesse voltado — se ela estivesse de fato acordada e não apenas sonhando —, então deveria haver algum motivo. E não seria para ferida. Nunca para ferida. Pelo menos... não de propósito. Mas ela descobriu que não conseguia falar o nome dele e nem o de Amanda. Nenhum dos dois parecia certo. Os dois pareciam errados. Ela se viu agarrando o ombro de Amanda e virando-a de barriga para cima. Qual rosto ela veria sob a franja grisalha da irmã? E se fosse o de Scott? Oh, bom Deus, e se fosse?

A luz do dia se aproxima. E ela tem a súbita certeza de que, se dei­xar o sol nascer sem falar nada, a porta entre o passado e o presente se fechará e qualquer chance de conseguir respostas irá desaparecer.

— Por que Amanda disse bool? — perguntou ela. A voz dela no quarto — ainda penumbroso, mas ficando mais claro, mais claro — soa rouca, áspera.

— Eu deixei um bool para você — afirma a outra pessoa na cama, a dona do traseiro contra o qual a barriga de Lisey estava encostada.

Oh Deus oh Deus oh Deus essa é a pior de todas as coisas ruins, isso e...

E então: Controle-se. Engatilhe, porra. Agora mesmo.

— É um... — A voz dela estava mais seca e mais áspera do que nunca. E então o quarto parece se iluminar rápido demais. O sol clarea­ria o horizonte leste a qualquer momento. — É um bool de sangue?

— Um bool de sangue está para vir — diz-lhe a voz, parecendo ligeiramente arrependida. E, oh, como parece a voz de Scott. Porém, agora parecia mais a de Amanda, também, e isso assustou Lisey mais do que nunca.

Então a voz se animou.

— A de agora é um bool bom, Lisey. Fica atrás da roxidão. Você já achou as três primeiras estações. Faltam só mais algumas para ganhar o prêmio.

— Qual é o meu prêmio? — pergunta ela.

— Uma bebida. — A resposta foi imediata.

— Uma Coca? Uma RC Cola?

— Silêncio. A gente quer ficar vendo o malva-rosa.

A voz falou com um anseio estranho e infinito, e o que lhe pare­cia familiar naquilo? Por que parecia o nome de alguma coisa em vez de apenas arbustos? Seria aquilo outra das coisas escondidas atrás da cortina roxa que às vezes a separava de suas próprias lembranças? Não havia tempo para pensar a respeito, quanto mais para fazer perguntas, pois raios de luz vermelha entraram pela janela. Lisey sentiu o tempo entrar de volta em foco e, por mais assustada que tivesse ficado, sentiu uma forte tristeza.

— Quando o bool de sangue vai vir? — perguntou ela. — Diga-me.

Não teve resposta. Ela sabia que não teria, mas ainda assim sua frustração aumentou, tomando o lugar do terror e da perplexidade de antes de o sol espreitar por cima do horizonte, emitindo seus raios dis­persivos.

— Quando ele vai vir? Quando, cacete?! — A essa altura, já estava gritando e sacudindo o ombro sob a camisola branca com tanta força que o cabelo se agitava... e continuou sem resposta. A fúria de Lisey arrefeceu. — Não me atice desse jeito, Scott, quando?

Dessa vez, ela deu um puxão no ombro sob a camisola em vez de apenas balançá-lo, e o outro corpo na cama rolou molenga de barriga para cima. Era Amanda, é claro. Seus olhos estavam abertos e ela ainda respirava — suas faces estavam até um pouco coradas —, mas Lisey reconheceu aquele olhar pra lá de distante de outras rupturas com a realidade da sua irmãzona Manda Bunny. E não só das dela. Lisey já não fazia idéia se Scott tinha realmente lhe visitado ou se ela havia simples­mente se iludido durante um estado de semiconsciência, mas, de uma coisa tinha certeza: em algum momento da noite, Amanda tinha ido para longe novamente. E daquela vez podia ser para sempre.

 

ESPANE

 

“Ela se voltou e viu uma grande lua branca fitando-a além da colina. Abriu o peito para recebê-la e foi pene­trada pela sua luz como uma jóia transparente. Ficou lá, preenchida pela lua cheia, entregando-se. Os dois seios abertos para lhe dar passagem, o corpo escancarado como uma anêmona tremulante, um convite macio e dilatado sob o toque da lua.”

D. H. Lawrence, O Arco-íris

 

Lisey e a Longa, Longa Quinta-feira

(Estações do Bool)

Lisey não demorou muito para perceber que aquilo era muito pior do que as três rupturas com a realidade anteriores de Amanda — seus pe­ríodos de “semicatatonia passiva”, nos termos da analista. Era como se sua geralmente irritante e às vezes problemática irmã tivesse se tornado uma boneca viva gigante. Lisey conseguiu (com um esforço considerá­vel) colocar Amanda sentada e girá-la, de modo que ela ficou sentada na beirada da cama, mas a mulher de camisola branca de algodão — que poderia ou não ter falado na voz do falecido marido de Lisey pouco an­tes do amanhecer —- não respondia ao próprio nome, fosse ele falado, chamado ou gritado quase desesperadamente na sua cara. Ficava apenas sentada com as mãos no colo, com o olhar fixo na irmã mais nova. E, quando Lisey se afastou, Amanda não desviou os olhos do local em que ela estava antes.

Lisey foi até o banheiro para molhar uma toalha com água fria e, quando voltou, Amanda tinha caído de bruços novamente com a me­tade de cima do corpo na cama e os pés no chão. Lisey começou a puxá-la de volta, então parou quando as nádegas de Amanda, que já estavam perto da beirada da cama, começaram a escorregar. Se insistisse, Amanda acabaria no chão.

— Manda Bunny!

Nenhuma resposta ao apelido de infância daquela vez. Lisey deci­diu arriscar o pacote completo.

— Irmãzona Manda Bunny.

Nada. Em vez de ficar assustada (isso viria logo), Lisey foi domina­da pelo tipo de raiva que Amanda quase nunca fora capaz de provocar na irmã mais nova mesmo quando havia tentado.

— Pare com isso! Pare com isso e coloque essa bunda de volta na cama para sentar direito.

Nada. Zero. Ela se inclinou, passou a toalha de rosto molhada no rosto inexpressivo de Amanda e continuou sem nada. Seus olhos não pis­caram nem quando a toalha passou por cima deles. Então, Lisey começou a ficar assustada. Olhou para o rádio-relógio digital ao lado da cama e viu que ele havia acabado de marcar as seis horas. Poderia ligar para Daria sem medo de acordar Matt, que estaria dormindo o sono dos justos em Montreal, mas não queria fazer aquilo. Ainda não. Ligar para Daria seria o mesmo que admitir derrota, e ela não estava pronta para isso.

Deu a volta na cama, pegou Amanda pelas axilas e a puxou para trás. Era mais difícil do que esperava, graças ao corpo esquelético da irmã.

Porque ela é peso morto agora, babyluv. É por isso.

— Cale a boca — disse ela, sem ter a mínima idéia de com quem estava falando. — Por favor.

Ela também subiu na cama com as coxas de Amanda entre os joelhos e as mãos plantadas nos dois lados do seu pescoço. Nesta posição, a da mulher por cima, ela podia olhar diretamente para o rosto virado para cima e de olhos vidrados da irmã. Durante os colapsos anteriores, Manda tinha sido obediente... quase como alguém sob hipnose, pensou Lisey na época. Aquilo parecia muito diferente. Só podia torcer para que não fosse, pois existem algumas coisas que uma pessoa precisa fazer pela manhã. Isto se essa pessoa quiser continuar vivendo uma vida privada na sua casinha.

— Amanda! — gritou ela na cara da irmã. Então, para completar, e se sentindo um pouquinho ridícula (afinal, as duas estavam sozinhas): — Irmãzona... Manda... Bunny! Quero... que você... se levante... se LEVAN­TE!... vá pro banheiro... e use o TRONINHO! Use o TRONINHO, Manda Bunny! No três! UM... e DOIS!... e TRÊS! No TRÊS, Lisey puxou Amanda novamente, botando-a sentada, mas ela ainda não queria se levantar.

Por volta das seis e vinte, Lisey até conseguiu tirá-la da cama e colocá-la mais ou menos agachada. Ela se sentia igual a quando tinha seu primeiro carro, um Pinto 1974, e, depois de dois intermináveis minutos castigando a ignição, o motor finalmente pegava e funcionava um pouco antes de a bateria morrer. Porém, em vez de se endireitar e deixar Lisey conduzi-la ao banheiro, Amanda caiu de volta na cama — toda torta ainda por cima, de modo que Lisey teve que correr para pegá-la por debaixo dos braços e empurrá-la, xingando, para que não caísse no chão.

— Você está fingindo, sua vaca! — gritou ela com Amanda, saben­do perfeitamente que não era verdade. — Bem, vá em frente! Vá em frente... — Ela ouviu como estava falando alto, iria acordar a sra. Jones do outro lado da rua se não tomasse cuidado, e se forçou a baixar o tom. — Vá em frente, deite-se. Isso. Mas se está pensando que eu vou passar a manhã inteira a seu dispor, está muito enganada. Vou descer para fazer café e mingau de aveia. Se Sua Majestade gostar do cheiro, é só me gritar. Ou, sei lá, mande um de seus criados comprar alguma coisa na rua.

Ela não sabia se a irmãzona Manda Bunny estava gostando do cheiro, mas, para Lisey, ele estava ótimo, especialmente o do café. To­mou um puro antes da tigela de mingau de aveia e outro com bastante creme e açúcar depois. Enquanto bebericava o segundo, pensou: Tudo que preciso agora é de um cigarrinho para encarar esse dia com um pé nas costas. Uma joça de um Salem Light.

Sua mente tentou voltar em direção aos sonhos e lembranças da noite anterior (SCOTT E LISEY, JUVENTUDE, sem dúvida, pensou), mas ela não permitiu. Tampouco lhe permitiu tentar examinar o que tinha acontecido com ela quando acordou. Haveria tempo para pensar sobre aquilo mais tarde. Naquele momento, tinha que cuidar da sua irmãzona.

E vamos supor que a irmãzona tenha encontrado um simpático bar­beador descartável cor-de-rosa em cima do armarinho de remédios e decidi­do cortar os pulsos com ele? Ou a garganta?

Lisey se levantou depressa da mesa, se perguntando se Darla havia lembrado de tirar os objetos cortantes do banheiro do segundo andar... ou de qualquer um dos quartos lá de cima, por sinal. Subiu as escadas quase correndo, com medo do que poderia encontrar no quarto prin­cipal, preparando-se para não encontrar nada na cama além de dois travesseiros ortopédicos.

Amanda ainda estava lá, ainda olhando para o teto. Não parecia ter se movido um centímetro. O alívio de Lisey foi substituído por um presságio. Ela se sentou na cama e pegou a mão da irmã nas suas. Estava quente, mas impassível. Lisey forçou os dedos de Manda a se fecharem sobre os seus, mas eles continuaram moles. Flácidos.

— Amanda, o que a gente faz com você?

Não houve resposta.

E então, por estarem na companhia apenas dos seus reflexos no espelho, Lisey disse:

— Scott não fez isso, fez, Manda? Por favor, diga que Scott não fez isso ao... sei lá... entrar?

Amanda não assentiu nem negou e, pouco depois, Lisey estava vasculhando o banheiro em busca de objetos cortantes. Imaginou que Darla tivesse mesmo passado por lá antes dela, pois só encontrou uma tesoura de unha no fundo da gaveta mais baixa do pequeno lavatório de Manda. É claro que aquilo bastaria, se caísse em mãos determinadas. Ora, o próprio pai de Scott

(psiu Lisey não Lisey)

— Tudo bem — disse ela, assustada com o pânico que encheu sua boca com um gosto de cobre, a luz roxa que pareceu florescer atrás dos seus olhos e a maneira como sua mão se fechou em volta da tesourinha. — O.k., esqueça. Deixa pra lá.

Ela escondeu a tesoura atrás de um monte de amostras grátis de xampu bem no alto do armário de toalhas de Amanda e então — por não conseguir pensar em nada melhor para fazer — tomou um banho. Quando saiu do banheiro, viu que uma grande mancha molhada havia se espalhado em volta dos quadris de Amanda e compreendeu que aqui­lo era algo que as irmãs Debusher não conseguiriam resolver sozinhas. Ela enfiou uma toalha debaixo da bunda encharcada de Amanda. En­tão, olhou para o relógio no criado-mudo, suspirou, pegou o telefone e discou o número de Darla.

 

Lisey tinha ouvido Scott na sua cabeça no dia anterior, em alto e bom som: Deixei um bilhete para você, babyluv. Não levara aquilo a sério, achando que era sua própria voz interior imitando a dele. Talvez tenha sido — provavelmente—, mas às três horas daquela tarde longa e quente de quinta-feira, sentada no Pop’s Café em Lewiston com Darla, de uma coisa tinha certeza: ele lhe deixara um baita de um presente póstumo. Um baita de um prêmio-bool, na língua de Scott. Tinha sido um dia de cão, mas teria sido bem pior sem Scott Landon, mesmo que ele estivesse morto há dois anos.

Darla parecia tão cansada quanto Lisey. No caminho, havia ar­ranjado tempo para colocar um pouco de maquiagem, mas não tinha munição o suficiente na bolsa para esconder os círculos debaixo dos olhos. Certamente não havia sinal da mulher invocada de trinta e pou­cos anos que, no fim dos anos 70, fizera questão de ligar uma vez por semana para Lisey para lhe passar um sermão sobre suas obrigações com a família.

— Uma moeda pelos seus pensamentos, pequena Lisey — disse ela.

Lisey estava indo pegar a cestinha com os pacotes de adoçante. Ao som da voz de Darla, mudou de direção, apanhando o açucareiro e derramando um fluxo espesso do conteúdo na sua xícara.

— Eu estava pensando que essa está sendo uma Quinta-feira de Café — disse ela. — Está mais para Quinta-feira de Café com Açúcar pra Valer. Esse deve ser o meu décimo.

— Pra nós duas — falou Daria. — Já fui ao banheiro meia dúzia de vezes e pretendo ir de novo antes de sairmos deste charmoso estabe­lecimento. Graças a Deus pelos antiácidos.

Lisey mexeu seu café, fez uma careta e deu outro gole.

— Tem certeza de que quer fazer uma mala para ela?

— Bem, alguém tem que fazer. E você está com cara de quem morreu e esqueceu de deitar.

— Obrigada pela parte que me toca.

— Se a sua irmã não for sincera com você, quem vai ser?

Lisey ouvira aquilo muitas vezes, junto com O dever não pede licen­ça e a Frase Número Um na Parada de Sucessos de Darla: A vida não é justa. Mas hoje não doeu. Até evocou a sombra de um sorriso.

— Já que você quer, Darla, não vou sair no tapa com você pelo privilégio.

— Eu não disse que queria, só disse que vou fazer. Você ficou com ela na noite passada e acordou com ela hoje. Acho que já fez sua parte. Com licença, preciso espremer um limão.

Lisey ficou olhando enquanto ela ia, pensando: Essa é outra. Na fa­mília Debusher, havia um jeito especial de dizer tudo, urinar era espremer um limão e colocar o intestino para funcionar era — por mais estranho que pareça — enterrar um Quaker. Scott adorava essa, dizia que prova­velmente era de origem escocesa. Lisey achava possível; a maioria dos Debusher vinha da Irlanda e todos os Anderson da Inglaterra, pelo menos era o que dizia Mãezinha Querida, mas toda família não tinha sua cota de desgarrados? Porém, aquilo pouco lhe interessava. O que lhe interessava era que espremer um limão e enterrar um Quaker vinham do lago, do lago de Scott, e desde o dia anterior ele parecia tão próximo dela...

Aquilo hoje de manhã foi um sonho, Lisey... você sabe disso, não sabe?

Ela não tinha certeza do que sabia e do que não sabia a respeito do que acontecera no quarto de Amanda pela manhã — tudo pareceu um sonho, até mesmo as tentativas de fazer Amanda se levantar e ir ao banheiro —, mas de uma coisa estava certa: agora Amanda estava internada na Clínica de Reabilitação Greenlawn por pelo menos uma semana. Tinha sido mais fácil do que ela e Darla poderiam imaginar e só podiam agradecer a Scott. Aqui

(benhaqui)

e agora, aquilo parecia o suficiente.

 

Darla chegara à casinha aconchegante de Manda antes das sete da ma­nhã, com o cabelo geralmente estiloso penteado às pressas e um botão da camisa fora da casa, deixando o rosa do seu sutiã desavergonhadamente à mostra. Àquela altura, Lisey já havia comprovado que Amanda tam­bém não queria comer. Deixou Lisey enfiar uma colherada de ovos me­xidos na sua boca depois de ter sido colocada sentada e recostada contra a cabeceira da cama e aquilo deu um pouco de esperança à irmã — afi­nal de contas, Amanda estava engolindo saliva, então talvez engolisse os ovos —, porém ela não se concretizou. Depois de simplesmente ficar sentada por talvez trinta segundos com os ovos brotando do meio dos lábios (Lisey achava aquela pontinha amarela uma coisa horrível, como se a irmã tivesse tentado comer um canário), Amanda simplesmente os botou para fora com a língua. Alguns pedacinhos ficaram grudados no seu queixo. O resto caiu pela frente da camisola. Amanda continuou a olhar serenamente ao longe. Ou para o oculto, se você for fã de Van Morrison. Scott com certeza tinha sido um deles, embora sua paixão por Van the Man tivesse diminuído um pouco lá pelo começo dos anos 90. Foi quando Scott começou a voltar a Hank Williams e Loretta Lynn.

Darla se recusara a acreditar que Amanda não queria comer até tentar ela mesma a experiência com o ovo. Para tanto, preparou uma nova leva de ovos mexidos; Lisey jogara os restos dos dois primeiros na lixeira. O olhar pra lá de distante de Amanda lhe tirara qualquer apetite pelos restos da irmãzona.

Quando Darla entrou marchando no quarto, Amanda não estava mais escorada na cabeceira, pois tinha deslizado para baixo novamente — escorrido para baixo —, e Darla ajudou Lisey a levantada mais uma vez. Lisey ficou grata pela ajuda. Já estava com as costas doendo. Mal conseguia imaginar o preço de se carregar uma pessoa daquela maneira todos os dias, por tempo ilimitado.

— Amanda, quero que você coma isso — falou Darla no tom proibitivo de não-aceito-um-não-como-resposta que Lisey recordava de um monte de conversas ao telefone da sua juventude. O tom de voz, combinado com o queixo jogado para a frente de Darla e a sua postura, deixava claro que ela achava que Amanda estava fingindo. Fingindo feito um maquinista, teria falado Dandy; apenas mais uma de suas quase cem frases divertidas, pitorescas e sem sentido. Porém (refletiu Lisey), aquela não era quase sempre a conclusão de Darla quando você não fazia exata­mente o que ela queria? Que você estava fingindo feito um maquinista?

— Quero que você coma esses ovos, Amanda; agora!

Lisey abriu a boca para dizer algo, então mudou de idéia. Eles che­gariam lá mais rápido se Darla visse com os próprios olhos. E onde era lá? Greenlawn, muito provavelmente. A Clínica de Reabilitação Greenlawn em Auburn. O lugar no qual ela e Scott tinham dado uma olhada depois da última catarse de Amanda, na primavera de 2001. Só que a relação de Scott com a clínica se tornara um pouco mais profunda do que sua esposa havia imaginado, e Graças a Deus por isso.

Darla enfiou os ovos na boca de Amanda e se voltou para Lisey esboçando um sorriso triunfante.

— Pronto! Acho que ela só precisava de um pulso fir...

Nesse instante, a língua de Amanda apareceu por entre seus lábios frouxos, empurrando novamente os ovos cor de canário para a frente e plop. Bem na frente da camisola ainda úmida da última esponjada.

— O que você estava dizendo? — perguntou Lisey com brandura.

Darla encarou a irmã mais velha por um longo, longo tempo. Quando voltou a olhar para Lisey, sua determinação ranzinza tinha su­mido. Parecia ser o que era de fato: uma mulher de meia-idade que ti­nha sido arrancada da cama cedo demais por conta de uma emergência na família. Não estava chorando, mas quase; seus olhos, daquele azul claro compartilhado por todas as Debusher, nadavam em lágrimas.

— Não é igual das outras vezes, é?

— Não.

— Aconteceu alguma coisa na noite passada?

— Não. — Lisey não hesitou.

— Nenhuma crise de choro ou ataque?

— Não.

— Oh, querida, o que vamos fazer?

Lisey tinha uma resposta prática para aquilo, o que não era nenhu­ma surpresa; Darla poderia discordar, mas Lisey e Jodi sempre foram as mais práticas das quatro.

— Deitá-la de volta, esperar o horário comercial e depois ligar para aquele lugar — disse ela. — Greenlawn. E torcer para ela não mijar na cama de novo nesse meio-tempo.

 

Enquanto esperavam, beberam café e jogaram cribbage, um jogo de car­tas que todas as Debusher aprenderam com Dandy bem antes de pega­rem pela primeira vez o ônibus escolar grande e amarelo de Lisbon Falis. A cada três ou quatro mãos, uma delas dava uma conferida em Amanda. Ela estava sempre do mesmo jeito, deitada de costas e olhando para o teto. No primeiro jogo, Daria ganhou de lavada; no segundo, ela saiu na frente formando uma série de três no crib, deixando Lisey na pior. O fato de aquilo deixá-la de bom humor mesmo com Manda fora do ar no andar de cima deu a Lisey o que pensar... porém, nada que qui­sesse dizer em voz alta. Seria um longo dia, e se Darla o começasse com um sorriso na cara, ótimo. Lisey não quis jogar uma terceira partida e elas assistiram a um cantor country qualquer no último bloco do Today Show. Lisey quase conseguia ouvir Scott dizendo: Esse aí não vai tirar o Velho Hank de circulação. Referindo-se, obviamente, a Hank Williams. No terreno da música country, para Scott havia o Velho Hank... e então o resto.

Às nove e cinco, Lisey se sentou diante do telefone e conseguiu o número da Greenlawn no Auxílio à Lista. Deu um sorriso fraco e ner­voso para Darla.

— Deseje-me sorte, Darl.

— Ah, eu desejo. Pode acreditar que desejo.

Lisey discou. O telefone do outro lado da linha tocou exatamente uma vez.

— Alô — disse uma agradável voz feminina. — Clínica de Rea­bilitação Greenlawn, um serviço da Fedders Health Corporation of America.

— Alô, meu nome é... — foi até aí que Lisey chegou antes de a agradável voz feminina começar a enumerar todas as opções disponíveis para quem estivesse ligando... desde que a pessoa tivesse um telefone de teclas. Era uma gravação. Lisey tinha caído em um bool.

É, mas, também, eles ficaram tão bons nisso, pensou ela, discando 5 para Informações sobre Internações de Pacientes.

— Por favor, aguarde enquanto sua ligação é transferida — disse-­lhe a agradável voz feminina, sendo substituída pela Orquestra Pro­zac tocando algo que lembrava vagamente Homeward Bound, de Paul Simon.

Lisey olhou em volta para contar a Darla que ela estava sendo transferida, mas ela havia subido para dar uma olhada em Amanda. O cacete, pensou ela. Ela simplesmente não conseguiu aguentar o suspen...

— Alô, aqui é Cassandra, em que posso ajudar?

Um nome agourento, babyluv, opinou o Scott que morava na sua cabeça.

— Meu nome é Lisa Landon... sra. Scott Landon?

Ela provavelmente se referira a si mesma como sra. Scott Landon menos de meia dúzia de vezes durante todos os anos de sua vida de ca­sada e nunca durante seus 26 meses de viuvez. Não era difícil entender por que o havia feito agora. Era o que Scott chamava de “cartão-fama” e ele mesmo o sacava com parcimônia. Em parte, dizia ele, porque sacá-lo o fazia se sentir um babaca convencido e, em parte, porque tinha medo de não funcionar; medo de que, se murmurasse alguma espécie de Você sabe com quem está falando? no ouvido do chefe dos garçons, ele mur­murasse de volta: Não, Monsieur, quem é o senhor?

Enquanto Lisey falava, relatando os episódios anteriores de auto­mutilação e semicatatonia da irmã e sua grande recaída daquela manhã, ouvia os cliques baixinhos de teclas de computador. Quando fez uma pausa, Cassandra disse:

— Entendo a sua preocupação, sra. Landon, mas a Greenlawn está lotada no momento.

O coração de Lisey se encolheu. Visualizou imediatamente Amanda em um quarto do tamanho de um armário no Stephens Memorial em No Soapa, usando uma camisola suja de comida e olhando por uma jane­la com grades para o semáforo do cruzamento da Rota 117 com a 19.

— Ah. Entendo. Hum... tem certeza? Não pretendemos usar Medicaid, Blue Cross ou nada parecido... pagaríamos em dinhei­ro... — Na base do desespero. Parecendo uma sonsa. Quando tudo falhar, saque o dinheiro. — Se fizer alguma diferença — concluiu ela lamentavelmente.

— Na verdade não faz, sra. Landon. — Lisey pensou ter detectado uma ligeira frieza na voz de Cassandra e seu coração se encolheu mais ainda. — É uma questão de espaço e número de pacientes. Veja bem, nós temos apenas...

Então, Lisey ouviu um pequeno bing! Parecia muito com o som que seu microondas fazia quando os Pop-Tarts ou burritos do café-da­manhã ficavam prontos.

— Sra. Landon, posso pedir que a senhora aguarde na linha?

— Se você precisa, claro.

Depois de um pequeno clique, a Orquestra Prozac voltou, dessa vez com o que um dia poderia ter sido o tema de Shaft. Lisey ficou es­cutando com uma ligeira sensação de irrealidade, pensando que, se Isacc Hayes ouvisse aquilo, provavelmente entraria na sua banheira com um saco plástico na cabeça. Dessa vez, a espera demorou até ela começar a suspeitar de que tinha sido esquecida — Deus sabe que já tinha aconte­cido antes, especialmente ao tentar comprar passagens de avião ou mu­dar os termos do contrato de locação de algum carro. Darla desceu as escadas e estendeu as mãos em um gesto de O que está acontecendo? Fala! Lisey balançou a cabeça, o que dizia ao mesmo tempo Nada e Não sei.

Naquele instante, a horrorosa música de espera sumiu e Cassandra voltou. A frieza desaparecera da sua voz e, pela primeira vez, ela soou a Li­sey como um ser humano. Na verdade, soou de certa maneira familiar.

— Sra. Landon?

— Sim?

— Desculpe-me por deixar a senhora tanto tempo na espera, mas havia um lembrete no meu computador para entrar em contato com o sr. Alberness caso a senhora ou o seu marido ligassem. O dr. Alberness está no consultório dele no momento. Posso transferi-la?

— Sim — disse-lhe Lisey. Agora ela sabia onde estava pisando, exa­tamente onde estava pisando. Sabia que, antes de falar qualquer coisa, o dr. Alberness lhe diria o quanto lamentava sua perda, como se Scott tivesse morrido no mês passado ou na semana passada. E ela o agrade­ceria. Na verdade, se o dr. Alberness prometesse tirar a problemática Amanda de suas mãos, apesar do atual estado de lotação da Greenlawn, Lisey provavelmente teria o maior prazer em se ajoelhar e lhe pagar um belo boquete. Ao pensar naquilo, ela ameaçou soltar uma enorme gar­galhada e teve que apertar os lábios com força por alguns segundos. E então descobriu por que Cassandra de repente lhe parecera tão familiar: era daquele jeito que as pessoas falavam quando reconheciam Scott e percebiam estar lidando com alguém que aparecera na capa da joça da revista Newsweek. E se aquela pessoa famosa estivesse com os braços em volta de alguém, ora, ela também deveria ser famosa, nem que fosse ape­nas por associação. Ou, como Scott tinha dito certa vez, por injeção.

— Alô? — disse uma voz masculina agradavelmente grossa. — Aqui é Hugh Alberness. Estou falando com a sra. Landon?

— Sim, doutor — disse Lisey, gesticulando para Darla se sentar e parar de andar em círculos na frente dela. — Aqui é Lisa Landon.

— Sra. Landon, antes de tudo, deixe-me dizer o quanto lamento sua perda. O seu marido autografou cinco dos seus livros para mim e eles estão entre as minhas mais preciosas aquisições.

— Obrigado, dr. Alberness — disse ela e, para Darla, fez um cír­culo com o polegar e o indicador que dizia Está-no-papo. — É muita gentileza sua.

 

Quando Darla voltou do toalete do Pop’s Café, Lisey disse que achava melhor dar um pulinho lá também — eram 30 quilômetros até Castle View, e geralmente o trânsito da tarde era lento. Para Daria, aquilo seria apenas a primeira metade da viagem. Depois de arrumar uma mala para Amanda — algo que ambas tinham esquecido de fazer naquela manhã —, teria que voltar para a Greenlawn com ela. Depois de entregá-la, faria uma segunda viagem de volta para Castle View. Estaria parando em frente à sua casa pela última vez por volta das oito e meia, isso se a sorte — e o trânsito — estivesse do seu lado.

— Se eu fosse você, respiraria fundo e taparia o nariz antes de en­trar — falou Darla.

— Tá brabo?

Darla deu de ombros e então bocejou.

— Já vi piores.

Lisey também, especialmente durante suas viagens com Scott. Ela foi com as coxas retesadas e a bunda pairando sobre o assento — a inesquecível Agachadinha das Turnês Promocionais —, deu a descarga, lavou as mãos, jogou água no rosto, penteou o cabelo e então se olhou no espelho.

— Uma nova mulher — falou para o seu reflexo. — Beleza Ameri­cana. — Abriu um leque de tratamentos dentários caros para si mesma. Os olhos sobre aquele sorriso de jacaré, no entanto, pareciam inseguros.

— O sr. Landon disse que se um dia eu a encontrasse, deveria lhe perguntar...

Pare de falar nisso, deixe pra lá.

— Deveria lhe perguntar sobre como ele enganou a enfermeira...

— Só que Scott jamais diria enganou — disse ela para seu reflexo.

Cale a boca, pequena Liseyzinha!

— ... como ele enganou a enfermeira daquela vez em Nashville.

— Scott disse pregou um bool. Não disse?

Estava com aquele gosto de cobre na boca novamente, o gosto de moedas e de pânico. Sim, Scott tinha dito pregou um bool. Sem dúvida. Scott dissera que o dr. Alberness deveria perguntar a Lisey (se ele a en­contrasse um dia) como ele pregou um bool na enfermeira daquela vez em Nashville, sabendo perfeitamente que ela captaria a mensagem.

Ele estava mandando mensagens para ela? Estava? Até naquela época?

— Deixe pra lá — sussurrou ela para seu reflexo e saiu do toalete. Teria sido bom se aquela voz tivesse ficado presa lá dentro, mas agora parecia estar sempre por perto. Havia ficado muito tempo calada, ou dormindo, ou concordando com a consciência de Lisey que sobre al­gumas coisas simplesmente não se falava, nem mesmo entre as várias versões de si mesmo. O que a enfermeira tinha dito no dia depois que Scott levou o tiro era uma delas. Ou

(cale-se, cale-se)

o que tinha acontecido

(Cale-se!)

no inverno de 1996.

(CALE-SEAGORA MESMO!)

E por um milagre de olhos azuis, aquela voz se calou... mas ela o sentia observando e ouvindo e teve medo.

 

Lisey saiu do toalete bem a tempo de ver Darla colocando o telefone público no gancho.

— Estava ligando para o motel em frente à Greenlawn — disse ela. — Parecia tão limpinho, então reservei um quarto para hoje à noite. Não quero voltar dirigindo lá de Castle View de jeito nenhum, e assim posso visitar Manda amanhã de manhã cedo. Só preciso fazer como a galinha e atravessar a rua. — Ela olhou para a irmã mais nova com uma expressão apreensiva que Lisey achou bastante surreal, considerando to­dos os anos que passara ouvindo Darla dar as regras, geralmente em um tom de voz estridente, do tipo atire-para-matar. — Você acha que é bobagem?

— Acho uma ótima idéia. — Lisey apertou a mão de Darla e o sorriso aliviado dela partiu um pouco seu coração. Ela pensou: É isso que o dinheiro faz. Faz de você a esperta. Faz de você a chefe. — Vamos, Darla. Deixe que eu dirijo de volta, que tal?

— Por mim, tudo bem — falou Darla e saiu com a irmã mais nova em direção ao dia avançado.

 

A volta a Castle View foi tão lenta quanto Lisey havia temido; elas aca­baram atrás de um caminhão madeireira sobrecarregado e bamboleante e nas subidas e curvas não havia espaço para ultrapassar. O melhor que Lisey podia fazer era ficar distante para não precisar engolir muita fu­maça do cano de descarga meia-boca do sujeito. Aquilo lhe deu tempo para refletir sobre o dia. Pelo menos isso.

Falar com o dr. Alberness tinha sido como pegar um jogo de bei­sebol no fim do quarto tempo, mas até aí nada de novo; correr atrás do prejuízo sempre fizera parte da vida com Scott. Ela se lembrava do dia em que uma van de Portland aparecera com um sofá modulado de 2 mil dólares. Scott estava no escritório, escrevendo com a música na altura ensurdecedora de sempre — ela conseguia ouvir ao longe Steve Earle cantando Guitar Town de dentro de casa, mesmo com o revesti­mento à prova de som —, e interrompê-lo poderia causar outros 2 mil de dano aos seus ouvidos, na opinião de Lisey. Os entregadores falaram que “o doutor” havia lhes dito que ela saberia dizer onde eles deveriam colocar o novo móvel. Lisey os mandou carregarem o sofá antigo — o perfeitamente bom sofá antigo — para o celeiro e colocar o novo no lu­gar dele. A cor pelo menos combinava com a sala, o que era um alívio. Ela sabia que eles nunca tinham conversado sobre um sofá novo, mo­dulado ou não, assim como sabia que Scott afirmaria — ah, sim, com muita veemência — que sim. Não duvidava que tivesse conversado sobre aquilo com ela na sua cabeça; às vezes ele simplesmente esquecia de vocalizar aquele tipo de conversa. Esquecer era uma habilidade que ele afiara.

Seu almoço com Hugh Alberness talvez fosse apenas outro caso daqueles. Ele talvez tenha pretendido contar tudo para Lisey e, se você tivesse lhe perguntado seis meses ou um ano depois, poderia muito bem ter dito que tinha contado tudo para ela: O almoço com Alberness? Cla­ro, falei com ela naquela noite mesmo. Quando, na verdade, o que tinha feito naquela noite tinha sido ir para o escritório, colocar o novo CD do Dylan e trabalhar em um novo conto.

Ou talvez fosse diferente dessa vez — com Scott não esquecendo (como ele esquecera que eles tinham um encontro, como esquecera de contar a ela sobre sua infância extremamente problemática), mas escon­dendo pistas para ela achar depois de uma morte que já havia previsto; largando o que ele mesmo teria chamado de “estações do bool”.

Seja como for, Lisey já estava acostumada a correr atrás do prejuí­zo e conseguiu preencher a maioria das lacunas pelo telefone, dizendo os A-hã, os Ah, é mesmo! e os Nossa, tinha me esquecido disso todos nos momentos certos.

Quando Amanda tentou arrancar o próprio umbigo na primavera de 2001, entrando em seguida em um estado de letargia que sua analista chamava de semicatatonia, a família discutiu a possibilidade de mandá-­la para a Greenlawn (ou para alguma instituição psiquiátrica) em um longo, emotivo e por vezes rancoroso jantar de família do qual Lisey se lembrava muito bem. Ela também se lembrava que Scott ficara calado durante boa parte da conversa e tinha apenas cutucado a comida naque­le dia. Quando a discussão começou a morrer, ele disse que, se ninguém se importasse, iria pegar alguns panfletos e prospectos para todas elas darem uma olhada.

— Parece que você está falando de um cruzeiro de férias — falara Cantata; um tanto agressivamente, pensou Lisey.

Scott dera de ombros, lembrava-se Lisey enquanto passava pela placa com furos de bala que dizia BEM-VINDO A CASTLE COUNTY atrás do caminhão madeireiro.

— Ela está viajando mesmo — dissera ele. — Talvez seja bom al­guém lhe mostrar o caminho de casa enquanto ela ainda quer voltar.

O marido de Canty riu com desdém daquilo. O fato de Scott ter feito milhões com seus livros nunca impediu Richard de vê-lo como um típico sonhador ingênuo e, quando Rich formava uma opinião, era garantido que Canty Lawlor a apoiaria. Não ocorrera a Lisey lhes dizer que Scott sabia do que estava falando, mas, pensando bem, ela também não tinha comido muito naquele dia.

Seja como for, Scott havia trazido para casa uma série de prospec­tos e panfletos da Greenlawn; Lisey se lembrava de vê-los espalhados no balcão da cozinha. Um deles, que trazia uma foto de um prédio grande que parecia bastante com a casa da fazenda Tara em E o Vento Levou, intitulava-se Doença Mental, Sua Família e Você. Mas ela não se lembra­va de ter voltado a falar sobre a Greenlawn e, pensando bem, por que voltaria? Assim que Amanda começou a ficar boa, ela melhorou rápido. E Scott certamente nunca mencionara seu almoço com o dr. Alberness, que tinha sido em outubro de 2001 — meses depois de Amanda ter voltado ao que no caso dela poderia ser considerado normal.

De acordo com o dr. Alberness (isso Lisey ficou sabendo pelo te­lefone, em resposta aos seus compreensivos A-hã, Ah, é mesmo e tinha me esquecido), Scott lhe dissera naquele almoço que estava convencido de que Amanda Debusher estava a caminho de uma ruptura com a rea­lidade mais grave, talvez permanente e que, depois de ler os prospectos e dar uma volta na clínica com o bom doutor, acreditava que a Green­lawn seria exatamente o lugar certo para ela, se isso acontecesse. O fato de Scott ter arrancado do dr. Alberness a promessa de que haveria lugar para sua cunhada se e quando fosse preciso — tudo em troca de um único almoço e de cinco livros autografados — não surpreendia nem um pouco Lisey. Não depois dos anos que passara observando o efeito inebriante da fama em algumas pessoas.

Ela estendeu a mão para ligar o rádio do carro, querendo ouvir alguma música country alta (aquele era outro hábito que Scott lhe ensi­nara nos últimos anos de vida e que ela ainda não tinha largado). Então olhou para Daria e viu que ela havia dormido com a cabeça encostada contra a janela do carona. Não era a hora certa para Shooter Jennings ou Big & Rich. Suspirando, Lisey tirou a mão de cima do rádio.

 

O dr. Alberness queria relembrar longamente seu almoço com o grande Scott Landon, e Lisey estava disposta a permitir isso, apesar dos sinais que Darla não parava de fazer com as mãos, a maioria significando Não dá pra você apressar esse cara?

Lisey provavelmente poderia ter feito isso, mas achava que seria ruim para a causa delas. Além do mais, estava curiosa. Mais que isso, estava faminta. De quê? De novidades sobre Scott. De certa forma, es­cutar o dr. Alberness era como olhar para aquelas antigas lembranças escondidas na cobra de livros do escritório. Não sabia se a íntegra das recordações de Alberness constituía uma das “estações do bool” de Scott — suspeitava que não —, mas estava certa de que elas lhe causaram uma mágoa ao mesmo tempo ferrenha e irresistível. Era aquilo que sobrava da dor depois de dois anos? Aquela tristeza implacável e cinzenta?

Primeiro Scott tinha ligado para Alberness. Sabia de antemão que o médico era um prefeitamente eita-norme fã ou aquilo era apenas coin­cidência? Lisey não achava que fosse coincidência, embora fosse um pouco, rran-rran, coincidente demais, mas, se Scott sabia, como ficara sabendo? Não conseguiu pensar em uma maneira de perguntar sem interromper o fluxo de recordações do médico, mas tudo bem; prova­velmente não tinha importância. De qualquer forma, Alberness ficara intensamente lisonjeado em receber aquele telefonema (praticamente caíra de quatro, como se diz) e mais que receptivo às perguntas de Scott sobre a cunhada e à sugestão de que os dois almoçassem juntos. Teria al­gum problema, perguntara o dr. Alberness, se trouxesse alguns dos seus Landons favoritos para ele autografar? Problema nenhum, respondera Scott, seria um prazer.

Alberness trouxera seus Landons favoritos; Scott, o prontuário médico de Amanda. O que levou Lisey, agora a menos de 2 quilôme­tros da casinha de Amanda, a outra pergunta: como Scott os havia con­seguido? Teria persuadido Amanda a entregá-los a ele? Ou então Jane Whitlow, a analista dos cordões? Ou as duas? Lisey sabia que aquilo era possível. A capacidade de persuasão de Scott não era universal — Dash­miel, o sulistinha borra-botas, estava ali para provar isso —, mas muitos tinham sido suscetíveis a ela. Sem dúvida Amanda a sentira, embora Lisey tivesse certeza de que sua irmã nunca confiara plenamente em Scott (Manda tinha lido todos os seus livros, até Demônios Vazios... que, segundo Amanda, a fizera dormir de luzes acesas por uma semana intei­ra). Quanto a Jane Whitlow, Lisey não fazia idéia.

Como Scott tinha conseguido o histórico talvez fosse outra ques­tão sobre a qual a curiosidade de Lisey jamais seria saciada. Talvez tives­se que se contentar em saber que ele tinha conseguido, e que o dr. Al­berness se dispusera a analisá-los e concordara com a opinião de Scott: Amanda Debusher provavelmente teria mais problemas pela frente. E, em algum momento (provavelmente bem depois de terminarem a so­bremesa), Alberness prometera a seu escritor favorito que, caso o temi­do colapso acontecesse, ele arranjaria uma vaga para a sra. Debusher na Greenlawn.

— Isso é tão maravilhoso da sua parte — Lisey dissera com afeto para ele, e agora, manobrando para a entrada de carros de Amanda pela segunda vez naquele dia, ela se perguntava em que ponto da conversa o médico havia perguntado a Scott de onde ele tirava suas idéias. No começo ou no fim? Durante os aperitivos ou o café?

— Acorde, Darla-querida — disse ela, desligando o motor. — Chegamos.

Darla se empertigou, olhou para a casa de Amanda e disse:

— Ah, merda.

Lisey caiu na gargalhada. Não conseguiu evitar.

 

Fazer as malas para Amanda acabou se mostrando uma coisa inespera­damente triste para as duas. Elas encontraram as bolsas dela no cubículo do terceiro andar que fazia as vezes de sótão. Eram apenas duas malas Samsonite, surradas e ainda com as etiquetas do Aeroporto Internacio­nal de Miami da viagem que ela fizera à Flórida para visitar Jodotha... quando? Sete anos atrás?

Não, pensou Lisey, dez. Olhou para as malas com tristeza, então puxou a maior das duas.

— Talvez devêssemos levar as duas — falou Darla, indecisa, então secou o rosto com a mão. — Ufa! Quente aqui em cima.

— Vamos pegar só a maior — disse Lisey. Quase acrescentou que não achava que Amanda iria para o Baile dos Catatônicos naquele ano, mas mordeu a língua. Bastou olhar uma vez para o rosto cansado e sua­do de Darla para perceber que não era de jeito nenhum a hora de tentar ser engraçadinha. — Dá pra colocar nela o suficiente para pelo menos uma semana. Ela não vai andar muito. Lembra do que o médico falou?

Darla assentiu e secou o rosto novamente.

— Ela vai ficar a maior parte do tempo no quarto, pelo menos no começo.

Normalmente, a Greenlawn teria chamado um médico para exa­miná-la in situ, porém, graças a Scott, Alberness tinha cortado a buro­cracia. Depois de se certificar de que a dra. Whitlow estava indisponível e que Amanda não conseguia ou não queria andar (além de estar incon­tinente), dissera a Lisey que iria mandar uma ambulância da Greenlawn — sem identificação, enfatizou ele. Para a maioria das pessoas, pareceria uma van de entregas comum. Lisey e Darla a seguiram até a Greenlawn no BMW de Lisey, sentindo-se as duas extremamente gratas: Darla ao dr. Alberness, Lisey a Scott. A espera enquanto Alberness a examinava, no entanto, pareceu demorar muito mais do que quarenta minutos, e suas notícias não foram nem um pouco animadoras. A única parte delas na qual Lisey queria se concentrar no momento era a que Darla acabara de mencionar: Amanda passaria quase toda a primeira semana em observação, no quarto ou na pequena sacada dele, se conseguissem convencê-la a andar até lá. Não iria nem mesmo ao Salão Comunitário no fim do corredor, a não ser que demonstrasse uma drástica e repen­tina melhora. “O que acho improvável”, dissera-lhes o dr. Alberness. “Acontece, mas é raro. Eu acredito em dizer a verdade, senhoras, e a verdade é que a sra. Debusher não vai sair dessa tão cedo.”

— Além do mais — disse Lisey, examinando a maior das duas malas —, quero comprar malas novas para ela. Essas aqui estão um bagaço.

— Deixe comigo — falou Darla. Sua voz tinha ficado pastosa e trêmula. — Você já faz tanta coisa, Lisey. Pequena e querida Lisey. — Ela pegou a mão da irmã, levou-a aos lábios e deu um beijo nela.

Lisey ficou surpresa — quase chocada. Ela e Darla tinham passado uma borracha nas suas antigas desavenças, mas aquele tipo de carinho ainda era muito estranho à sua irmã mais velha.

— Você quer mesmo, Darl?

Darla assentiu com veemência, começou a falar e decidiu limpar o rosto de novo.

— Você está bem?

Darla começou a assentir, então balançou a cabeça.

— Malas novas! — gritou ela. — Que piada! Você acha que ela vai precisar de malas novas? Não ouviu o que ele disse? Nenhuma reação ao teste do estalar de dedos, nenhuma reação ao teste das palmas, nenhu­ma reação ao teste das agulhas! Eu sei do que as enfermeiras chamam pessoas como ela, elas as chamam de zumbis, e estou cagando pro que ele diz sobre terapia e remédios milagrosos, se ela voltar a si vai ser um milagre de olhos azuis.

Como se diz, pensou Lisey, sorrindo... mas só por dentro, onde era seguro sorrir. Ela ajudou a irmã ligeiramente chorosa a descer o pe­queno e íngreme lance de escadas do sótão, tirando-a do pior do calor. Então, em vez de lhe dizer que onde há vida há esperança, ou para ela fazer de um sorriso seu guarda-chuva, ou que era sempre mais escuro antes do amanhecer, ou qualquer outra coisa que tivesse acabado de cair do cu do cachorro, simplesmente a abraçou. Porque às vezes um abraço era a melhor opção. Essa era uma das coisas que ela havia ensinado ao homem cujo último nome tinha assumido — que às vezes era melhor ficar calado; às vezes era melhor simplesmente calar a boca incessante e segurar firme.

 

Lisey perguntou novamente se Darla não queria companhia na sua via­gem de volta a Greenlawn, e sua irmã se limitou a balançar a cabeça. Ti­nha um romance antigo de Michael Noonan em fita cassete, disse ela, e aquela seria uma boa chance de cair dentro dele. Àquela altura, Darla já havia lavado o rosto no banheiro de Amanda, recolocado a maquiagem e feito um rabo-de-cavalo. Estava com boa aparência e, pela experiência de Lisey, quando uma mulher parecia bem, geralmente se sentia da mes­ma forma. Então apertou de leve a mão de Darla, disse-lhe para dirigir com cuidado e a observou partir até perdê-la de vista. Então, deu uma lenta volta pela casa de Amanda, primeiro por dentro e depois por fora, certificando-se de que estava tudo trancado: janelas, portas, tabique do porão, garagem. Deixou duas das janelas da garagem meio centímetro abertas para evitar que o calor aumentasse. Aquilo era algo que Scott ensinara a ela, algo que aprendera do pai, o temível Sparky Landon... que também o ensinara a ler (à idade precoce de 2 anos), a somar no pequeno quadro-negro que ficava atrás do fogão na cozinha, a pular do banco no corredor principal gritando Jerônimo!... e, é claro, sobre bools de sangue.

— Estações do bool... tipo a Via-Crúcis, imagino.

Ele diz isso e então ri. É um riso nervoso, um riso desconfiado. Como uma criança rindo de uma piada suja.

— É, exatamente — murmurou Lisey e tremeu, apesar do calor de fim de tarde. A maneira como aquelas lembranças vinham à tona no presente era perturbadora. Como se o passado nunca tivesse morrido; como se em algum nível da grande torre do tempo tudo ainda estivesse acontecendo.

Esse é um jeito errado de pensar, pensar assim vai trazer a coisa mim.

— Não duvido — falou Lisey e deu ela mesma uma risada ner­vosa. Foi até o carro com o molho de chaves de Amanda — que era surpreendentemente pesado, mais pesado do que o dela, embora a casa de Lisey fosse muito maior — pendurado no indicador da mão direita. Tinha a sensação de que a coisa ruim já estava lá. Amanda louca era só o começo. Havia também “Zack McCool” e aquele detestável Incunk, o professor Woodbody. Os acontecimentos do dia haviam tirado aquelas coisas da sua cabeça, mas isso não significava que elas tinham desapare­cido. Sentia-se cansada e desanimada demais para enfrentar Woodbody naquela noite, cansada e desanimada demais até para segui-lo até seu covil... mas achava melhor fazê-lo assim mesmo, nem que fosse porque seu amigo do telefone “Zack” lhe parecera capaz de ser perigoso de verdade.

Ela entrou no carro, colocou as chaves da irmãzona Manda Bunny no porta-luvas e saiu de ré da entrada de carros. Ao fazê-lo, o sol poente jogou uma teia de reflexos brilhantes de algo atrás dela até o teto. Assus­tada, Lisey pisou no freio, olhou por sobre o ombro e viu a pá de prata. MARCO ZERO, BIBLIOTECA SHIPMAN, Lisey estendeu o braço para trás, tocou o cabo de madeira e sentiu sua mente se acalmar um pouco. Olhou para os dois lados da rua, não viu nada vindo, e virou em direção à sua casa. A sra. Jones estava sentada na varanda e levantou a mão num aceno. Lisey levantou a dela em resposta. Então estendeu o braço mais uma vez por entre os bancos do BMW para agarrar o cabo da pá.

 

Se quisesse ser honesta consigo mesma, pensou ela enquanto começava sua curta viagem até em casa, teria que admitir que estava mais assus­tada com o retorno daquelas lembranças — com a sensação de que estavam acontecendo novamente, que estavam acontecendo agora — do que com o que podia ou não ter acontecido na cama antes de o sol raiar. Aquilo ela poderia desconsiderar (bem... quase) como sendo um sonho de uma mente ansiosa começando a acordar. Porém, fazia séculos que não pensava em Gerd Allen Cole e, se alguém lhe perguntasse o nome do pai de Scott e onde ele trabalhava, ela teria respondido honestamen­te que não se lembrava.

— U.S. Gypsum — disse ela. — Só que Sparky chamava aquele lugar de U.S. Gyppum. — E então, falando baixo e com raiva, quase rosnando: — Pare, agora. Chega. Pare com isso.

Mas como? Aquela era a questão. E era uma questão importante, pois seu falecido marido não era o único que tinha fugido de certas memórias dolorosas e assustadoras. Ela colocara uma espécie de cortina mental entre a LISEY AGORA e a LISEY! JUVENTUDE! e sempre achara que ela era forte, mas já não tinha tanta certeza naquele fim de tarde. Certamente estava esburacada e, se você olhasse através dos buracos, corria o risco de ver coisas na névoa roxa atrás dela que talvez não quisesse ver. Era melhor não olhar, da mesma forma que era melhor nem mesmo se olhar no espelho depois do anoitecer, a não ser que todas as luzes estivessem acesas, ou comer

(comida noturna)

uma laranja ou uma tigela de morangos depois do pôr do sol. Algu­mas lembranças eram tranqüilas, mas outras eram perigosas. Era melhor viver no presente. Pois, se você pegasse a lembrança errada poderia...

— Poderia o quê? — perguntou Lisey a si mesma com uma voz raivosa, trêmula, e, logo em seguida: — Não quero saber.

Um PT Cruiser vindo na direção oposta saiu do sol poente e o cara atrás do volante acenou para ela. Lisey acenou de volta, embora não conseguisse pensar em ninguém conhecido que tivesse um PT Cruiser. Não tinha importância, lá em Sticksville você sempre acenava de volta; era uma questão de cortesia interiorana. A cabeça dela estava em outro lugar, de qualquer forma. O fato era que não podia se dar ao luxo de recusar todas as lembranças só porque havia algumas coisas

(Scott na cadeira de balanço, todo olhos enquanto o vento uiva lá fora, um vendaval terrível vindo lá de Yellowknife)

que ela não se achava capaz de olhar. E nem todas estavam perdidas na roxidão; algumas estavam apenas guardadas na sua própria cobra de livros mental, acessíveis até demais. A questão dos bools, por exemplo. Scott tinha aberto o jogo com ela sobre os bools certa vez, não tinha?

— Sim — disse ela, baixando o visor para bloquear o sol poente. — Em New Hampshire. Um mês depois de nos casarmos. Mas não me lembro onde exatamente.

O nome é Antlers.

Certo, o.k., grande coisa. Anders. E Scott chamara aquilo de lua­-de-mel precoce, ou algo assim...

Lua-de-mel antecipada. Ele a chama de lua-de-mel antecipada. Ele diz: Vamos, babyluv, faça as malas e engatilhe.

— E quando babyluv perguntou para onde estávamos indo... — murmurou ela.

...e quando Lisey pergunta para onde eles estão indo, ele diz: “Va­mos saber quando chegarmos lá.” E eles chegam. Àquela altura, o céu está branco e o rádio diz que haverá neve, por incrível que pareça, com as folhas ainda nas árvores e apenas começando a ficar...

Eles tinham ido lá comemorar as vendas em brochura de Demônios Vazios, o livro horroroso e assustador que colocou Scott Landon nas lis­tas de best-sellers pela primeira vez e os deixou ricos. No fim das contas, foram os únicos convidados. E caiu uma aberrante nevasca de começo de outono. No sábado, colocaram sapatos de neve, pegaram uma trilha que entrava na floresta e se sentaram debaixo

(da árvore nhami-nhami)

de uma árvore, uma árvore especial, e ele acendeu um cigarro e disse que tinha algo para contar a ela, algo pesado, e, se aquilo a fizesse mudar de idéia sobre o casamento, ele ficaria triste... bem, ficaria arra­sado, mas...

Lisey manobrou abruptamente para o acostamento da Rota 17 e parou, levantando uma nuvem de poeira atrás de si. A luz do sol ainda brilhava, mas sua qualidade estava mudando, pendendo para a luz oní­rica sedosa e extravagante que é propriedade exclusiva dos fins de tarde de junho na Nova Inglaterra, o fulgor de verão de que os adultos nasci­dos ao norte de Massachusetts se lembravam com tanta clareza.

Não quero voltar ao Anders e àquele fim de semana. A neve que achá­vamos tão mágica, à árvore nhami-nhami sob a qual comemos os sanduíches e bebemos o vinho, à cama que dividimos aquela noite e às histórias que ele contou — sobre bancos e bools e pais loucos. Estou com tanto medo de que tudo que possa alcançar me leve a tudo que não tenho coragem de ver. Por favor, chega.

Lisey percebeu que estava falando aquilo baixinho, sem parar:

— Chega, chega, chega.

Porém, ela estava em uma caça ao bool, e talvez fosse tarde demais para dizer chega. Segundo a coisa que estava na cama com ela naque­la manhã, Lisey já tinha encontrado três estações. Mais algumas e ela poderia reivindicar seu prêmio. Às vezes um doce. Às vezes uma bebi­da, uma Coca ou uma RC Cola! Sempre um cartão que dizia BOOL! FIM!

Eu deixei um bool pra você, tinha dito a coisa na camisola de Aman­da... e, agora que o sol estava se pondo, ela estava tendo novamente di­ficuldade em acreditar que aquela coisa tinha mesmo sido Amanda. Ou apenas Amanda.

Um bool de sangue está para vir.

— Mas antes um bool bom — murmurou Lisey. — Só mais algu­mas estações e ganharei meu prêmio. Uma bebida. Eu gostaria de um uísque duplo, por favor. — Ela riu, com bastante força. — Mas, se as estações me levarem para além da roxidão, como ele pode ser bom? Não quero atravessá-la.

Seriam as lembranças dela estações do bool? Se fossem, ela poderia contar três bem vívidas nas últimas 24 horas: nocautear o louco, ajoe­lhar-se com Scott no asfalto fervente e vê-lo sair do escuro com a mão sanguinolenta estendida para ela como um presente... o que era exata­mente sua intenção.

É um bool, Lisey! E não é um bool qualquer, é um bool de sangue!

Deitado no asfalto, ele lhe dissera que seu garoto espichado — a coisa com o interminável lado matizado — estava muito perto. Não consigo vê-lo, mas dá para ouvi-lo se alimentando, tinha dito ele.

— Não quero mais pensar nessas coisas! — ela se ouviu quase gritar, mas sua voz parecia vir de muito longe, do outro lado de um enorme golfo; de repente, o mundo real lhe pareceu muito tênue, como gelo. Ou um es­pelho para o qual você não ousa olhar por mais de um ou dois segundos.

Eu poderia chamá-lo desse jeito. Ele viria.

Sentada atrás do volante do seu BMW, Lisey pensou em como seu marido implorara por gelo e como ele tinha chegado — uma espécie de milagre — e colocou as mãos sobre o rosto. Inventar histórias em cima da hora tinha sido o forte de Scott, não de Lisey, mas quando o dr. Alberness lhe perguntara sobre a enfermeira em Nashville, Lisey fizera o melhor possí­vel, inventando algo sobre Scott prendendo a respiração e abrindo os olhos em seguida — em outras palavras, se fingindo de morto —, e Alberness rira como se aquela fosse a coisa mais engraçada que tinha ouvido na vida. Aquilo não fez Lisey invejar a equipe sob comando daquele cara, mas pelo menos a havia tirado de Greenlawn e levado, por fim, até ali, no acosta­mento de uma estrada do interior com velhas lembranças latindo nos seus calcanhares como cães famintos e mordiscando sua preciosa cortina roxa.

— Cara, estou perdida — disse ela e deixou as mãos caírem. Con­seguiu dar uma risada fraca. — Perdida na joça da floresta mais cerrada e escura que existe.

Não, creio que as florestas mais cerradas e escuras ainda estejam por vir. Lá onde as árvores são grossas e o cheiro delas é doce e o passado está aconte­cendo. Sempre acontecendo. Lembra-se de como o seguiu naquele dia? Como o seguiu para dentro da floresta através da estranha neve de outubro?

É claro que se lembrava. Ele saiu da trilha e ela o seguiu, tentando acompanhar o passo do seu desconcertante jovem namorado. E o que es­tava acontecendo agora não era muito parecido? Só que, se ela fosse fazer aquilo, precisava antes de outra coisa. De outro pedaço do passado.

 

O próprio Naresh Patel, dono do Patels Market, estava lá quando Li­sey entrou no mercado às cinco e pouca da tarde daquela longa, lon­ga quinta-feira. Estava sentado atrás da máquina registradora em uma cadeira de quintal, comendo um curry e vendo Shania Twain rodopiar no canal de música country. Ele pôs o curry de lado e chegou a se levan­tar para Lisey. Sua camisa dizia EU DARK SCORE LAKE.

— Um maço de Salem Lights, por favor — disse Lisey. — Na verdade, podem ser dois.

O sr. Patel trabalhava no comércio — primeiro como empregado no mercado de seu pai em Nova Jérsei, depois como dono do seu pró­prio estabelecimento — há quase quarenta anos e sabia que era melhor não falar nada sobre abstêmios que de repente começavam a comprar bebida ou supostos não-fumantes que de repente começavam a com­prar cigarros. Ele simplesmente pegou o veneno particular daquela se­nhora de suas bem-arrumadas prateleiras do negócio, colocou no balcão e comentou como o dia estava bonito. Fingiu não notar a expressão quase chocada que a sra. Landon fez ao ouvir o preço. Aquilo apenas mostrava o tamanho do intervalo entre a parada e a volta. Pelo menos aquela lá tinha dinheiro para o seu veneno; o sr. Patel tinha fregueses que tiravam comida da boca dos filhos para comprar aquela porcaria.

— Obrigada — disse ela.

— Não por isso. Volte sempre — disse o sr. Patel voltando a se sentar para assistir a Darryl Worley cantando Awful, Beautiful Life. Era uma de suas favoritas.

 

Lisey havia estacionado na lateral do mercado para não bloquear o acesso a nenhuma das bombas de gasolina — havia 14, em sete ilhotas imacu­ladas — e, assim que voltou para trás do volante, deu partida no motor para poder baixar a janela do seu lado. A rádio XM, de satélite, sob o painel (como Scott teria adorado todas aquelas estações de música), ligou na mesma hora, tocando baixinho. O dial estava na estação de música dos anos 50, e Lisey não ficou exatamente surpresa ao ouvir Sh-Boom. Porém, não eram os Chords; aquela era a versão cover, gravada por um quarteto que Scott insistia em chamar de Os Quatro Meninos Brancos. Exceto quando estava bêbado. Então ele os chamava de Os Quatro Branquelos Esnobes.

Ela rasgou a parte de cima de um dos seus novos maços e colocou um Salem Light entre os lábios pela primeira vez em... quando tinha sido sua última recaída? Cinco anos atrás? Sete? Quando o isqueiro do BMW estalou, ela o encostou na ponta do cigarro e deu uma cautelosa tragada de fumaça mentolada. Tossiu-a de volta imediatamente, com os olhos se enchendo d’água. Tentou outra tragada. Aquela desceu um pou­co melhor, mas sua cabeça estava começando a ficar leve. Uma terceira tragada. Sem nenhuma tosse, apenas a sensação de que iria desmaiar. Se caísse para frente e batesse no volante, a buzina começaria a tocar e o sr. Patel sairia correndo para ver qual era o problema. Talvez chegasse a tempo para evitar que ela tacasse fogo no seu eu idiota — aquele tipo de morte era imolação ou defenestração? Scott saberia, assim como sabia quem tinha gravado a versão negra de Sh-Boom — The Chords — e quem era o dono da sinuca em A Última Sessão de Cinema — Sam, o Leão.

Porém, Scott, The Chords e Sam, o Leão, estavam todos mortos.

Ela apagou o cigarro no antes imaculado cinzeiro. Também não conseguia se lembrar do nome do motel em Nashville para o qual vol­tara depois de finalmente sair do hospital (“Pois sim, retornastes como um bêbado para teu vinho e um cachorro para o próprio vômito”, ela ouviu o Scott na sua cabeça entoar), recordava apenas que o recepcio­nista lhe dera um dos quartos fuleiros dos fundos sem vista nenhuma além de uma alta cerca de tábuas. Parecia que todos os cachorros de Nashville estavam atrás dela, latindo e latindo e latindo. Aqueles cães faziam o Pluto de tempos atrás parecer um amador. Ela se deitara em uma das duas camas sabendo que jamais conseguiria dormir, que toda vez que fechasse os olhos veria o Loiraço dizendo Preciso parar com todo esse blém-blém pelas frésias e acordaria novamente. Porém, ela acabara conseguindo dormir, o suficiente para se arrastar pelo dia seguinte — três horas, talvez quatro —, e como tinha conseguido aquela impressionante façanha? Com a ajuda da pá de prata, isso sim. A colocara no chão do lado da cama onde poderia baixar a mão para tocá-la sempre que come­çasse a achar que tinha demorado ou sido lenta demais. Ou que a condi­ção de Scott pioraria naquela noite. E aquela era uma coisa que não lhe passara pela cabeça em todos aqueles anos. Lisey estendeu o braço para trás e tocou a pá agora. Ela acendeu outro Salem Light com a mão livre e se forçou a lembrar de quando o visitou na manhã seguinte, subindo as escadas até o terceiro andar da UTI no já sufocante calor, pois havia uma placa na frente dos únicos dois elevadores para pacientes naquela parte do hospital que dizia FORA DE SERVIÇO. Ela pensou no que havia acontecido quando se aproximou do quarto. Era uma bobagem, na verdade, só uma daquelas

 

É uma daquelas situações bobas em que você quase mata alguém de susto sem querer. Enquanto Lisey desce o corredor vindo das escadas no fim da ala, a enfermeira está saindo do quarto 319 com uma bandeja nas mãos, olhando para o quarto por cima dos ombros com uma cara fechada. Lisey diz olá para que a enfermeira (que não pode ter mais de 23 anos e parece mais jovem ainda) note sua presença. É um cumpri­mento brando, um olá digno de uma pequena Lisey, mas a enfermeira solta um gritinho agudo e derruba a bandeja. O pires e a xícara de café sobrevivem — são velhos guerreiros de cafeteria —, mas a jarra se despedaça, esparramando suco de laranja pelo assoalho e pelos sapatos brancos antes imaculados da enfermeira. Ela arregala os olhos para Lisey como um cervo diante dos faróis de um carro, parece por um instante que vai sair correndo, então se recompõe e diz o convencional:

— Oh, me desculpe, a senhora me assustou.

Ela se agacha, a bainha do uniforme subindo acima dos joelhos de meias brancas estilo Enfermeira Nancy, e coloca o pires e a xícara de volta na bandeja. Então, movendo-se com uma graça que é ao mesmo tempo ágil e cuidadosa, ela começa a catar os pedaços de vidro quebra­do. Lisey se agacha e começa a ajudar.

— Oh, senhora, não precisa — diz a enfermeira. Ela fala com um forte sotaque sulista. — A culpa foi toda minha. Eu não estava olhando por onde ia.

— Não tem problema — diz Lisey. Ela consegue catar alguns cacos a mais do que a jovem enfermeira e os deposita na bandeja. Então usa o guardanapo para começar a secar o suco derramado. — É a bandeja de café-da-manhã do meu marido. Me sentiria culpada se não ajudasse.

A enfermeira olha engraçado para ela, um olhar do tipo Você é casada com ELE? que Lisey estava mais ou menos acostumada a receber, mas não exatamente. Então volta a fitar o chão e começa a caçar pedaços de vidro que possam ter passado despercebidos.

— Ele comeu, não foi? — diz Lisey, sorrindo.

— Sim, senhora. Comeu muito bem, se a gente levar em conta o que ele passou. Meia xícara de café, que é tudo que ele pode tomar por enquanto, um ovo mexido, um pouco de purê de maçã e um copo de gelatina. O suco ele não terminou. Como a senhora pode ver. — Ela se levantou com a bandeja. — Vou pegar uma toalha na sala das enfermei­ras e limpar o resto.

A jovem enfermeira hesita, então dá uma risadinha nervosa.

— O marido da senhora é meio mágico, não é?

Por nenhum motivo em especial, Lisey pensa: ESPANE: Engatilhe Sempre que Parecer Necessário. No entanto, apenas sorri e diz:

— Ele tem lá seus truques, sim. Bem ou mal de saúde. Qual ele pregou em você? — E, em algum lugar lá no fundo, estará ela se lem­brando da noite do primeiro bool, andando sonolenta para o banheiro do apartamento de Cleaves Mills, dizendo Rápido, Scott no caminho? Falando aquilo porque ele tem que estar lá dentro, já que com certeza não está mais na cama com ela.

— Eu entrei para ver como ele estava — diz a enfermeira — e poderia ter jurado que a cama estava vazia. Quero dizer, a haste do soro estava lá, e os sacos ainda estavam pendurados nela, mas... acho que ele deve ter tirado a agulha e ido ao banheiro. Os pacientes fazem todo tipo de esquisitice quando estão medicados, sabe?

Lisey assente, esperando que o mesmo sorrisinho de expectativa esteja no seu rosto. O que diz: Já ouvi essa história antes, mas ainda não enjoei dela.

— Daí, eu fui até o banheiro e ele estava vazio. Então, quando me virei...

— Lá estava ele — Lisey termina para ela. Ela fala com brandura, o sorrisinho no mesmo lugar. — Tcharam, abracadabra. — E bool, fim, pensa ela.

— Isso, como a senhora sabia?

— Bem — diz Lisey, ainda sorrindo —, Scott sabe se misturar ao ambiente.

Isso deveria soar estranhamente idiota — uma mentira fajuta de alguém sem imaginação —, mas não soa. Porque não é mentira. Ela está sempre perdendo-o de vista em supermercados e lojas de departamento (lugares nos quais ele, por algum motivo, quase nunca é reconhecido), e certa vez o caçou por quase meia hora na biblioteca da Universidade do Maine antes de achá-lo na Sala de Periódicos, que já havia verificado duas vezes. Quando Lisey brigou com ele por tê-la deixado esperando e fazê-la caçá-lo em um lugar em que não podia nem mesmo erguer a voz para chamá-lo, Scott tinha dado de ombros e retrucado que estava o tempo todo na Sala de Periódicos, olhando as novas revistas de poesia. E a questão era que ela nem achava que Scott estivesse exagerando, quan­to mais mentindo. De alguma forma, ela simplesmente... não o vira.

A enfermeira sorri e lhe diz:

— Foi exatamente isso que Scott disse; que ele meio que se mis­tura. — Ela fica vermelha. — Ele nos disse para chamá-lo de Scott. Praticamente exigiu. Espero que a senhora não se importe, sra. Landon. — O sotaque daquela jovem enfermeira do sul é forte, mas não irrita Lisey como o de Dashmiel.

— Não tem o menor problema. Ele diz isso para todas as garotas, especialmente as bonitas.

A enfermeira sorri e fica mais vermelha ainda.

— Ele disse que me viu passar e encará-lo. Falou mais ou menos assim: “Eu sempre fui um dos brancos mais brancos do mundo, mas agora que perdi tanto sangue, devo estar entre os dez mais.”

Lisey ri educadamente, seu estômago revirando.

— E é claro que com os lençóis brancos e com a camisola branca que ele está vestindo... — A jovem enfermeira começa a desacelerar. Ela quer acreditar, e Lisey não duvida que tenha acreditado quando Scott estava falando com ela, encarando-a com seus olhos cor-de-avelã brilhantes, mas agora está começando a perceber o absurdo por trás do que está dizendo.

Lisey aproveita para ajudá-la.

— Ele também sabe ficar muito quieto — diz ela, embora Scott seja um dos homens mais agitados que conhece. Mesmo quando está lendo um livro, fica o tempo todo mudando de posição na cadeira, roendo as unhas (um hábito que largou por um tempo depois do sermão dela e depois retomou), coçando os braços como um viciado precisando de uma dose e às vezes até fazendo séries com os pesos de mão que estão sempre debaixo da sua poltrona favorita. Só via Scott parado em sono profundo ou escrevendo, desde que estivesse produzindo excepcional­mente bem. Porém, a enfermeira ainda parece confusa, de modo que Lisey continua inventando, falando num tom alegre que soa terrivel­mente falso até para ela. — Juro que às vezes ele parece parte da mobília. Já passei direto por ele, várias vezes. — Ela toca a mão da enfermeira. — Tenho certeza de que foi isso que aconteceu, querida.

Ela não tem certeza alguma daquilo, mas a enfermeira lhe dá um sorriso agradecido e o assunto do desaparecimento de Scott fica para trás. Ou nós o expelimos, pensa Lisey. Como uma pequena pedra nos rins.

— Ele está muito melhor hoje — diz a enfermeira. — O dr. Wen­dlestadt estava aqui para as rondas da manhã e ficou completamente assombrado.

Lisey aposta que sim. E diz à enfermeira o que Scott lhe disse to­dos aqueles anos atrás, no apartamento de Cleaves Mills. Na época, ela pensou que era só uma dessas coisas que a gente diz à toa, mas agora acredita. Ah, sim, agora acredita plenamente.

— Todos os Landon se curam rápido — diz, e então vai ver seu marido.

 

Ele está deitado com os olhos fechados e a cabeça virada para um lado, um homem muito branco numa cama muito branca — aquela parte sem dúvida é verdade —, mas é impossível não ver aquele monte de cabelos pretos na altura dos ombros. A cadeira em que se sentou na noite passada está no mesmo lugar de antes e ela retoma sua posição ao lado da cama. Pega seu livro — Savages, de Shirley Conran. Está tirando a caixa de fósforos amassada que marca o lugar em que parou quando sente o olhar de Scott e levanta a cabeça.

— Como você está se sentindo esta manhã, querido? — ela lhe pergunta.

Ele fica um bom tempo calado. Sua respiração está chiando, mas já não grita como quando estava deitado no estacionamento implorando por gelo. Ele está bem melhor, pensa ela. Então, com algum esforço, ele move a mão até pousá-la sobre a de Lisey. Aperta-a. Seus lábios (que parecem estar terrivelmente secos, ela comprará um protetor labial para eles mais tarde) se abrem em um sorriso.

— Lisey — diz ele. — Pequena Lisey.

Ele volta a dormir com a mão ainda sobre a dela e Lisey não vê problema algum nisso. Ela pode virar as páginas do livro com apenas uma das mãos.

 

Lisey se agitou como uma mulher acordando de um cochilo, olhou pela janela do motorista e viu que a sombra do seu carro crescera percepti­velmente sobre o asfalto preto e limpo do sr. Patel. Não havia nem uma nem duas guimbas no seu cinzeiro, e sim três. Olhou pelo retrovisor e viu um rosto olhando de volta para ela de uma das janelinhas nos fun­dos do mercado, no que só podia ser o depósito. O rosto sumiu antes de ela identificar se era a mulher do sr. Patel ou uma de suas filhas adoles­centes, mas teve tempo de reconhecer a expressão: curiosidade ou preo­cupação. De qualquer forma, estava na hora de seguir em frente. Lisey saiu de ré da vaga, feliz por ter pelo menos apagado os cigarros no seu próprio cinzeiro em vez de tê-los jogado naquele asfalto estranhamente limpo, e voltou-se novamente para a direção da sua casa.

Lembrar-se daquele dia no hospital — e do que a enfermeira falou — foi outra estação do bool.

Foi? Foi.

Algo tinha estado com ela na cama naquela manhã e, por ora, ela continuaria acreditando que havia sido Scott. Por algum motivo, ele a colocara numa caça ao bool, como as que seu irmão mais velho Paul costumava inventar para ele quando eram ambos garotos infelizes cres­cendo no interior da Pensilvânia. Só que, em vez de pequenas charadas para levá-la de uma estação a outra, ela estava sendo conduzida...

— Você está me conduzindo ao passado — disse ela numa voz baixa. — Mas por que faria isso? Por quê, se é lá que está a coisa ruim?

O de agora é um bool bom, Lisey. Fica atrás da roxidão.

— Scott, eu não quero atravessar a roxidão. — Aproximando-se da casa agora. — Não quero atravessar a roxidão de jeito nenhum.

Mas acho que você não tem escolha.

Se aquilo fosse verdade, e se a próxima estação do bool fosse reviver a visita de fim de semana ao Anders — a lua-de-mel antecipada de Scott —, então ela queria a caixa de cedro da Mãezinha Querida. Era tudo o que lhe sobrara da mãe agora que as

(trouxas)

colchas já não existiam, e Lisey imaginava que ela era sua versão mais humilde do cantinho da memória do escritório de Scott. Era um lugar em que ela havia guardado todo tipo de lembranças referentes à

(SCOTT E LISEY! JUVENTUDE!)

primeira década do casamento: fotos, cartões-postais, lenços, caixas de fósforo, menus, descansos para copos, esse tipo de bobagem. Quanto tempo ela passou colecionando aquele tipo de coisa? Dez anos? Não, nem tanto. Seis, no máximo. Talvez menos. Depois de Demônios Vazios, as mudanças tinham vindo a toda — não só a experiência alemã, mas tudo. O casamento deles se tornara algo como o carrossel descontrolado do final de Pacto Sinistro, de Alfred Hitchcock. Ela desistira de guardar coisas como guardanapos de coquetel e caixas de fósforo de souvenir, pois tinham sido saguões demais e restaurantes demais em hotéis de­mais. Logo, não guardaria mais nada. E onde estava a caixa de cedro da Mãezinha Querida, que tinha um cheiro tão gostoso quando você a abria? Em algum lugar da casa, tinha certeza, e pretendia encontrá-la.

Talvez acabe sendo outra estação do bool, pensou ela, e então viu sua caixa de correio logo adiante. A portinhola estava baixada e um punha­do de cartas estava preso a ela com um elástico. Curiosa, Lisey parou o carro perto da caixa. Geralmente, quando Scott era vivo, chegava em casa e ela estava cheia mas desde então sua correspondência tendia a ser pouca e na maioria das vezes endereçada ao MORADOR OU ao SR. ou SRA. PROPRIETÁRIO (A). Na verdade, o maço que estava lá parecia bem fino: quatro envelopes e um cartão-postal. O sr. Simmons, o carteiro, deve ter enfiado um pacote na caixa, embora, se o tempo estivesse bom, ele costumasse usar um ou dois elásticos para prendê-los à resistente ban­deirola de metal. Lisey olhou para as cartas — contas, propaganda, um cartão-postal de Cantata — e então enfiou a mão na caixa de correio. Tocou algo macio, peludo e molhado. Gritou de susto, puxou a mão de volta, viu o sangue nos dedos e gritou novamente, desta vez de horror. Naquele primeiro instante, teve certeza de que tinha sido mordida: algo havia subido pela haste de cedro da caixa de correio e então rastejado lá para dentro. Talvez um rato, talvez algo pior ainda: algo com raiva, como uma marmota ou um filhote de guaxinim.

Ela limpou a mão na blusa, respirando em arquejos sonoros que não eram exatamente gemidos, então ergueu a mão com relutância para ver quantas eram as feridas. E quão profundas. Por um momento, sua convicção de que tinha sido mordida foi tão forte que ela chegou a ver as marcas. Então piscou os olhos e a realidade se reafirmou. Havia man­chas de sangue, mas nenhum corte, mordida ou ranhura na pele. Sem dúvida havia algo dentro da sua caixa de correio, alguma surpresa terrí­vel e peluda, porém seus dias de morder os outros já haviam acabado.

Lisey abriu o porta-luvas e seu maço de cigarros fechado caiu. Ela fuçou até encontrar a lanterninha descartável que havia tirado do porta­-luvas do outro carro, um Lexus que dirigira durante quatro anos. Tinha sido um bom carro, aquele Lexus. Trocara-o apenas porque o associava a Scott, que o chamava de Lexus Sexy da Lisey. É impressionante como coisas pequenas podem machucar quando alguém próximo de você morre; um negócio de dar inveja àquela princesa e sua joça de ervilha; agora, ela esperava apenas que ainda houvesse energia na lanterna.

Havia. O facho de luz saiu claro, firme e confiante. Lisey se virou para o lado e respirou fundo, jogando-o dentro da caixa de correio. Estava tão concentrada que tinha dobrado os lábios sobre os dentes e os apertava tanto que chegava a doer. A princípio, viu apenas um vulto e um brilho verde, como luz refletindo de um mármore. E umidade na base de metal corrugado da caixa de correio. Imaginou que aquele tivesse sido o sangue que sujou seus dedos. Ela foi um pouco mais para a esquerda, apoiando todo o lado do corpo contra a porta do motorista, empurrando cautelosamente a lanterna mais para dentro da caixa de correio. Surgiram pêlos no vulto, além de orelhas e um focinho que pro­vavelmente teria sido rosa à luz do dia. Os olhos eram inconfundíveis; mesmo embotados pela morte, a forma deles era característica. Havia um gato morto na sua caixa de correio.

Lisey começou a rir. Não era exatamente um riso normal, mas também não era totalmente histérico. Aquilo era engraçado de verdade. Ela não precisava de Scott para saber que um gato assassinado na caixa de correio era Atração Fatal demais. Aquele não era nenhum filme sueco idiota com legendas, e ela o vira duas vezes. A graça era que Lisey não tinha um gato.

Ela deixou as risadas correrem soltas, então acendeu um Salem Light e estacionou na entrada para carros da sua casa.

 

Lisey e o Professor

(É Nisso que Dá)

Lisey não sentia medo agora, e a graça que achara em um deslize mo­mentâneo tinha sido substituída por raiva pura e simples. Ela estacionou o BMW em frente às portas trancadas do celeiro e seguiu a passos largos até a casa, tentando imaginar se encontraria a carta de seu novo amigo na porta da cozinha ou na da frente. Não duvidou nem por um instan­te de que haveria uma carta, e tinha razão. Estava nos fundos, um en­velope branco grande preso entre a porta de tela e o batente. Com o cigarro entre os dentes, Lisey rasgou o envelope e desdobrou uma única folha de papel. A mensagem estava batida à máquina.

 

Sra: sinto muito fazer isso já que adoro bichos mas mlhor seu Gato do que a Senhora. Não quero te machucar. Não quero mas a senhora tem que ligar para 412-298-8188 e falar para “O Cara” que vai doar aqueles papéis de que a gente falou pra biblioteca da faculdade através dele. A gente não quer que a senhora perca mais tempo com isso, então ligue pra ele as oito da noite de hoje e ele vai entrar em contato comigo. Vamos terminar esse negócio sem ninguém frido além do seu pobre bichinho sobre o qual eu SINTO MUITO.

Seu amigo,

Zack

P.S.: Não estou com raiva da senhora por ter me mandado me “F”. Sei que estava com raiva.

 

Lisey olhou para o Z que era a última parcela de informação de “Zack McCool” para ela e pensou no Zorro, galopando pela noite com sua capa ondulando atrás de si. Seus olhos começaram a se encher d'água. Ela pensou por um instante que estava chorando, mas então percebeu que era por causa da fumaça. O cigarro entre seus dentes tinha queimado até o filtro. Ela o cuspiu no chão de tijolos e, irritada, o amas­sou com o salto. Ergueu os olhos para a cerca de tábuas que dava a volta em todo o quintal... embora apenas por uma questão de simetria, uma vez que os únicos vizinhos deles ficavam ao sul, à esquerda de Lisey, enquanto parada diante da porta da sua cozinha com a enervante e mal datilografada carta de “Zack McCool” — a sua joça de ultimato — nas mãos. Do outro lado da cerca, ficavam os Galloway, e os Galloway ti­nham meia dúzia de gatos — o que as pessoas chamavam de “gatos de celeiro” naquela parte da floresta. Eles às vezes procuravam comida no quintal dos Landon, especialmente quando não havia ninguém em casa. Lisey não tinha dúvidas de que era um gato dos Galloway na sua caixa de correio, da mesma forma que não tinha dúvidas de que havia sido Zack no PT Cruiser que vira passando logo depois de ter fechado a casa de Amanda e saído de lá. O sr. PT Cruiser estava indo para o leste, saindo quase de dentro do sol poente, então ela não conseguira dar uma boa olhada nele. O desgraçado ainda havia tido a coragem de acenar. Olá, madame, deixei uma coisinha pra senhora na sua caixa de correio! E ela acenara de volta, porque era assim que se fazia em Sticksville.

— Seu desgraçado — murmurou ela, com tanta raiva que nem sabia qual deles estava xingando, Zack ou o Incunk enlouquecido que tinha incitado Zack a atormentá-la. No entanto, já que Zack tivera a consideração de lhe dar o número de telefone de Woodbody (ela havia reconhecido o código de área de Pittsburgh imediatamente), ela sabia com qual dos dois pretendia lidar primeiro e descobriu que estava an­siosa para fazer isso. Porém, antes de lidar com quem quer que fosse, ela precisava realizar um desagradável serviço doméstico.

Lisey enfiou a carta de “Zack McCool” no bolso de trás, tocando brevemente o Bloquinho de Compulsões de Amanda sem nem ao menos notá-lo, e puxou as chaves de casa. Ainda estava com raiva demais para pensar em muita coisa, inclusive na possibilidade de haver impressões digitais do remetente na carta. Agora, estava pensando em ligar para o gabinete do xerife do condado, embora aquilo já estivesse na sua lista de coisas a fazer desde antes. A fúria estreitou o pensamento racional até deixá-lo muito parecido com o facho de luz da lanterninha que ela usara para olhar dentro da caixa de correio e, naquele instante, aquilo a limita­va a apenas duas idéias: se livrar do gato e depois ligar para Woodbody e mandá-lo se livrar de “Zack McCool”. Dispensá-lo. Ou então.

 

Ela pegou dois baldes do armário embaixo da pia da cozinha, alguns panos de chão limpos, um velho par de luvas de borracha Playtex e um saco de lixo que enfiou no bolso de trás do jeans. Esguichou produto de limpeza em um dos baldes e o encheu com água quente, usando o chu­veirinho manual da pia para fazer espuma mais rápido. Então saiu, pa­rando apenas para pegar uma tenaz de dentro do que Scott chamava de Gaveta de Coisas da cozinha — a grande, que ela usava quando decidia fazer churrasco. Ela se ouviu cantando o verso principal de “Jambalaya” sem parar enquanto resolvia aquelas pequenas e desagradáveis coisas:

— Son of a gun, we’ll have big fun on the bayou! *

Se divertir à beça. Sem dúvida.

Lá fora, ela encheu o segundo balde com água fria da torneira do quintal e então foi até a entrada para carros com um balde em cada mão, os panos jogados por cima do ombro, a pinça longa saindo de um dos bolsos de trás e o saco de lixo do outro. Quando chegou à caixa de correio, largou os baldes e franziu o nariz. Conseguia sentir o cheiro de sangue ou era só imaginação? Olhou para dentro da caixa de correio. Difícil ver alguma coisa; a luz vinha do lado errado. Devia ter trazido a lanterna, pensou ela, mas não voltaria para pegá-la de jeito nenhum. Não enquanto estivesse engatilhada e pronta.

Lisey vasculhou o interior da caixa de correio com a pinça, parando ao bater em algo que não era macio, mas também não era muito duro. Abriu a pinça o mais que pôde, a apertou e puxou. A princípio nada aconteceu. Então o gato — na verdade apenas uma sensação de peso na ponta de seu braço — começou a vir com relutância para frente.

A pinça se soltou, uma extremidade batendo na outra. Lisey a pu­xou para fora. Havia sangue e alguns pêlos cinza na ponta das espátulas — o que Scott sempre chamava de “as pegadoras”. Ela se lembrava de ter lhe dito que pegadoras era um peixe que ele devia ter encontrado morto na superfície do seu precioso lago. Aquilo o fez rir.

Lisey se agachou e olhou para dentro da caixa de correio. O gato tinha saído metade do caminho e era fácil de ver agora. Era de uma cor de fumaça indefinível, um gato de celeiro dos Galloway, sem dúvida. Ela bateu as extremidades da pinça duas vezes, para dar sorte, e estava prestes a enfiá-la novamente quando ouviu um carro vindo ao leste. Voltou-se com um nó no estômago. Não apenas achou que era Zack vol­tando no seu pequeno PT Crusier esportivo; teve certeza. Ele iria parar, se inclinar para fora e perguntar se ela queria uma mãozinha. Madame, diria ele, a senhora não quer uma mãozinha aí? Porém, era algum utilitá­rio esportivo e a pessoa atrás do volante era mulher.

Você está ficando paranóica, pequena Lisey.

Provavelmente. E, dadas as circunstâncias, tinha o direito de estar.

Acabe com isso. Você saiu pra isso, então faça logo.

Ela enfiou a pinça na caixa novamente, dessa vez olhando para ver o que estava fazendo, e, ao abrir as pegadoras e posicioná-las em volta de uma das patas enrijecidas do gato azarado, pensou em Dick Powell em algum filme preto-e-branco antigo, cortando um peru e perguntando: Quem quer uma coxa? E, sim, dava para sentir o cheiro de sangue. Teve uma pequena ânsia de vômito, baixou a cabeça e cuspiu entre seus tênis.

Acabe com isso.

Lisey fechou as pegadoras (no fim das contas, não era uma palavra ruim, depois que você fazia amizade com ela) e puxou. Abriu desajeita­damente o saco de lixo verde com a outra mão e o gato caiu lá dentro, de cabeça. Ela torceu o saco para fechá-lo e deu um nó na ponta, já que a pequena Lisey cabeça-de-vento também tinha se esquecido de trazer uma daquelas fitas plásticas amarelas. Então começou a esfregar com vontade sua caixa de correio para tirar o sangue e os pêlos. Batch 178

 

Quando terminou com a caixa de correio, Lisey se arrastou de volta pela entrada para carros com os baldes sob a luz alongada do fim de tarde. Seu café-da-manhã tinha sido café e mingau de aveia, o almoço, pouco mais de uma colher de atum com maionese e uma folha de alface, e, apesar do gato morto, ela estava faminta. Decidiu adiar a ligação para Woodbody para depois de forrar um pouco o estômago. A idéia de ligar para o gabinete do xerife — para qualquer pessoa com um uniforme azul, por sinal — ainda não lhe havia voltado à cabeça.

Ela passou três minutos lavando as mãos, usando água bem quente e certificando-se de que todas as manchas de sangue tinham saído de debaixo das suas unhas. Então achou o Tupperware que continha os restos do macarrão instantâneo, colocou tudo em um prato e enfiou no microondas. Enquanto esperava o forno apitar, caçou uma Pepsi na geladeira. Lembrava-se de ter pensado que nunca acabaria com aquele macarrão depois de ter saciado seu desejo inicial por ele. Aquilo podia ser acrescentado ao fundo da longa, longa lista de Coisas na Vida Sobre as Quais Lisey Tinha se Enganado, mas e daí? E o quico?, como gostava de falar Cantata na adolescência.

— Eu nunca disse que era o cérebro do grupo — falou Lisey para a cozinha vazia, e o microondas apitou como se respondesse.

A gororoba requentada estava quase quente demais para comer, mas Lisey a mandou para dentro assim mesmo, refrescando a boca com goladas borbulhantes de Pepsi. Ao terminar o último bocado, ela se lem­brou do sussurro que o pêlo do gato produziu contra o cilindro de lata da caixa de correio e da estranha sensação de estar sendo puxada de quando o corpo começou a vir com relutância para a frente. Ele deve ter socado o gato lá dentro, pensou ela, e Dick Powell lhe veio novamente à cabeça, um Dick Powell preto-e-branco, dizendo desta vez: E coma um pouco de recheio!

Ela se levantou e correu para a cozinha tão depressa que derrubou a cadeira, certa de que iria vomitar tudo que tinha acabado de comer; iria botar pra fora, chamar o Raul, se livrar do almoço, espalhar as tripas. Ela se debruçou na pia, com os olhos fechados, a boca aberta, o plexo solar fechado e retesado. Depois de cinco segundos de expectativa, ela emitiu um arroto de refrigerante monstruoso que zumbiu como uma cigarra. Ficou mais um instante debruçada, querendo ter absoluta certeza de que aquilo era tudo. Quando se certificou, enxaguou a boca, cuspiu e tirou a carta de “Zack McCool” do bolso do jeans. Estava na hora de ligar para Joseph Woodbody.

 

Ela esperava que a ligação fosse cair no escritório dele na Pitt — quem daria o número de casa para um biruta como seu novo amigo Zack? — e estava pronta para deixar o que Scott teria chamado de “um recado eita-normemente provocativo” na secretária eletrônica de Woodbody. Em vez disso, o telefone foi atendido no segundo toque e uma voz de mulher, muito agradável e talvez lubrificada por aquele fundamental drinque de antes do jantar, disse a Lisey que ela havia ligado para a casa dos Woodbody para depois perguntar quem estava falando. Pela segun­da vez naquele dia, ela se identificou como sra. Scott Landon.

— Eu gostaria de falar com o professor Woodbody — disse ela. Sua voz suave e agradável.

— Posso perguntar do que se trata?

— É sobre os papéis do meu falecido marido — falou Lisey, giran­do o maço aberto de Salem Lights na mesa de centro à sua frente. Ela percebeu que mais uma vez estava com cigarros, mas sem fogo. Talvez fosse um sinal de que deveria largar o hábito novamente, afinal, antes que ele voltasse a fincar seus pequenos ganchos amarelos no seu tronco encefálico. Pensou em acrescentar um Tenho certeza de que ele vai querer falar comigo, mas não se deu o trabalho. Sua mulher saberia daquilo.

— Só um instante, por favor.

Lisey esperou. Não tinha planejado o que falaria. Aquilo estava de acordo com outra das Regras de Landon: você só planejava o que iria falar em caso de desentendimento. Quando estava com muita raiva — quando queria abrir um novo cu em alguém, como se diz —, geral­mente era melhor botar as pernas pro alto e deixar o pau cantar.

Então ficou sentada, com a mente cuidadosamente vazia, girando seu maço de cigarros. E ele rodava e rodava.

Finalmente, uma suave voz masculina que ela achou reconhecer disse:

— Alô, sra. Landon, que surpresa agradável.

ESPANE, pensou ela. ESPANE, babyluv.

— Não — disse Lisey —, não vou ser nem um pouco agradável. Fez-se uma pausa. Então, com cautela:

— Perdão? É Lisa Landon quem está falando? Sra. Scott, eu...

— Ouça bem, seu filho-da-puta. Um homem está me ator­mentando. Acho que é um homem perigoso. Ontem, ele ameaçou me machucar.

— Sra. Landon...

— Em lugares que eu não deixava os garotos botarem a mão nos bailes da escola, foi como ele disse, se não me engano. E hoje à noite...

— Sra. Landon, eu não...

— Hoje à noite ele deixou um gato morto na minha caixa de cor­reio e uma carta enfiada na minha porta, e a carta tinha um número de telefone, este número, então não me diga que não sabe do que eu estou falando porque eu sei que sabe. — Na última palavra, Lisey bateu com as costas da mão no maço de cigarros. Bateu nele como se ele fosse uma peteca de badminton. Ele atravessou voando a sala inteira, espalhando Salem Lights no caminho. Ela estava respirando pesado e rápido, mas com a boca escancarada. Não queria que Woodbody ouvisse aquilo e confundisse sua raiva com medo.

Woodbody não respondeu nada. Lisey lhe deu tempo. Quando continuou quieto, ela disse:

— O senhor ainda está aí? É melhor que esteja.

Ela sabia que o homem que respondeu era o mesmo, mas os tons suaves de palestrante tinham desaparecido. Aquele homem parecia ao mesmo tempo mais jovem e mais velho.

— Aguarde na linha, sra. Landon, que eu vou atender no meu escritório.

— Onde sua mulher não pode ouvir, o senhor quer dizer.

— Aguarde, por favor.

— É melhor não demorar, Woodbundão, ou...

Ouviu-se um clique e, depois, silêncio. Lisey quis estar com o tele­fone sem fio na cozinha, queria andar de um lado para outro, talvez pe­gar um cigarro e acendê-lo na boca do fogão. Mas talvez fosse melhor desse jeito. Assim, não podia extravasar raiva nenhuma. Assim, tinha que continuar tão engatilhada que chegava a doer.

Dez segundos se passaram. Vinte. Trinta. Estava se preparando para desligar quando ouviu outro clique na linha e o Rei dos Incunks falou com ela novamente com sua voz jovem-velha. Havia algo de es­tranho nela, uma pequena trepidação. São as batidas do coração dele, ela pensou. O pensamento foi dela, mas o insight poderia ter sido de Scott. O coração dele está batendo tão forte que estou conseguindo ouvir. Será que eu queria assustá-lo? Eu o assustei. Agora, por que isso deveria me assustar?

E, sim, de repente ela ficou assustada. Era como uma linha amarela cerzindo o cobertor vermelho-vivo da sua raiva.

— Sra. Landon, o nome deste homem é Dooley? James ou Jim Dooley? Alto e magro, com um pouco de sotaque serrano? Tipo de West Vir...

— Não sei o nome dele. Ele se chamou de Zack McCool ao tele­fone e foi esse nome que usou para assinar a...

— Merda — disse Woodbody. Só que ele esticou a palavra, Mee­eeerda, transformando-a quase em um encantamento. Isso foi seguido por um som que poderia ter sido um grunhido. Na cabeça de Lisey, uma segunda linha amarela se juntou à primeira.

— O quê? — perguntou ela com rispidez.

— É ele — falou Woodbody. — Só pode ser. O endereço de e-mail que ele me deu era Zack991.

— O senhor mandou que ele me ameaçasse para eu lhe entregar o material inédito de Scott, não foi? Foi esse o acordo.

— Sra. Landon, a senhora não está entenden...

— Acho que estou, sim. Já lidei com gente bem maluca desde que Scott morreu, e os acadêmicos deixam os colecionadores no chine­lo, mas o senhor faz os outros acadêmicos parecerem normais, Wood­bundão. Deve ser por isso que conseguiu esconder no começo. As pes­soas malucas de verdade têm que saber fazer isso. É uma estratégia de sobrevivência.

— Sra. Landon, se a senhora ao menos me deixar expli...

— Estou sendo ameaçada e o senhor é o responsável, não precisa explicar isso. Então ouça, e ouça bem: mande-o parar agora. Ainda não entreguei seu nome para as autoridades, mas sinceramente acho que o fato de eu dar seu nome à polícia é a menor das suas preocupações. Se eu receber mais uma ligação, mais uma carta ou mais um animal morto desse Caubói do Espaço Sideral, vou chamar a imprensa. — A inspira­ção bateu. — Vou começar com os jornais de Pittsburgh. Eles vão ado­rar. ACADÊMICO LOUCO AMEAÇA VIUVA DE ESCRITOR FAMOSO. Quando isso aparecer na primeira página, algumas perguntas da polícia do Maine vão ser o menor dos seus problemas. Adeus, academia.

Lisey achou que tudo aquilo soou bem e escondeu aquelas linhas amarelas de medo — pelo menos por ora. Infelizmente, o que Woodbody disse as trouxe de volta, mais fortes do que nunca.

— A senhora não está entendendo, sra. Landon. Não posso man­dá-lo parar.

 

Por um instante, Lisey ficou muito estupefata para falar. Então disse:

— O que o senhor quer dizer com não posso?

— Quero dizer que já tentei.

— O senhor tem o endereço de e-mail dele! Zack999 ou o que quer que seja...

— Zack991 arroba Sail-ponto-com, mas não faz diferença. Pode­ria muito bem ser 000. Não funciona. Funcionou nas primeiras duas vezes que usei, mas desde então meus e-mails voltam dizendo NÃO FOI POSSÍVEL ENVIAR A MENSAGEM.

Ele começou a falar sobre tentar novamente, mas Lisey mal prestou atenção. Estava relembrando sua conversa com “Zack McCool” — ou Jim Dooley, se este fosse o verdadeiro nome dele. Tinha dito que Wood­body ou telefonaria para ele ou...

— O senhor tem alguma conta de e-mail especial? — perguntou ela, cortando Woodbody no meio do seu raciocínio. — Ele disse que o senhor lhe mandaria um e-mail de algum jeito especial para avisar quando tivesse conseguido o que queria. De onde esse e-mail seria en­viado? Do seu escritório na faculdade? De um cybercafé?

— Não! — quase uivou Woodbody. — Ouça o que eu estou falan­do: é claro que eu tenho um endereço de e-mail na Pitt, mas nunca o dei para Dooley! Teria sido maluquice! Dois alunos meus da pós acessam regularmente o e-mail lá, isso sem falar na secretária do Departamento de Inglês.

— E de casa?

— Dei, sim, meu e-mail de casa para ele, mas ele nunca usou.

— E quanto ao número de telefone dele que o senhor tem?

Houve outro momento de silêncio na linha e, quando Woodbody voltou a falar, ele parecia sinceramente confuso. Isso a assustou mais ainda. Ela olhou pela ampla janela da sala de estar e viu que o céu ao noroeste estava ficando cor de alfazema. Logo seria noite. Lisey tinha um palpite que ela seria longa.

— Número de telefone? — disse Woodbody. — Ele nunca me deu número de telefone nenhum. Só um endereço de e-mail que funcionou duas vezes e depois parou. Ou ele estava mentindo ou fantasiando.

— E qual é o seu palpite?

Woodbody quase sussurrou.

— Não sei.

Lisey achou que aquele era o jeito borra-botas de Woodbody de evitar admitir o que achava de verdade: que Dooley era louco.

— Espere um instante. — Ela começou a largar o telefone no sofá, então pensou melhor. — É melhor o senhor estar aí quando eu voltar, professor.

No fim das contas, não havia necessidade de usar um dos acende­dores de fogão. Havia longos fósforos decorativos para acender a lareira numa escarradeira de bronze perto dos utensílios da mesma. Ela apa­nhou um Salem Light do chão e riscou um dos fósforos longos numa pedra. Pegou um dos vasos de cerâmica para servir temporariamente de cinzeiro, pondo as flores que estavam nele de lado e refletindo (e não pela primeira vez) que fumar era um dos piores hábitos do mundo. En­tão voltou ao sofá, sentou-se e apanhou o telefone.

— Conte-me o que aconteceu.

— Sra. Landon, eu e minha mulher temos planos de sair...

— Seus planos mudaram — disse Lisey. — Comece do início.

 

Bem, é claro que no início havia os Incunks, aqueles adoradores pagãos de textos originais e manuscritos inéditos, e o professor Woodbody, que, na opinião de Lisey, era o rei deles. Só Deus sabia quantos arti­gos acadêmicos ele havia publicado sobre as obras de Scott Landon, ou quantos deles poderiam, naquele instante, estar juntando poeira silenciosamente na cobra de livros sobre o celeiro. Ela tampouco se im­portava cora o quanto a idéia das obras inéditas de Scott que poderiam estar também juntando poeira no seu escritório vinha atormentando o professor Woodbody. O que importava é que Woodbody tinha o hábito de tomar três cervejas duas ou três noites por semana ao voltar do campus para casa, sempre no mesmo bar, um lugar chamado The Place. Havia vários estabelecimentos estilo universitário onde se beber perto da Pitt — alguns, botecos com cerveja na jarra; outros, bares bacanas frequentados pelos docentes e por alunos da pós com cons­ciência social —, o tipo de lugar com plantas ornamentais nas janelas e Bright Eyes no jukebox em vez de My Chemical Romance. The Place era um bar freqüentado por trabalhadores a menos de 2 quilômetros do campus e a coisa mais parecida com rock no jukebox era um dueto de Travis Tritt com John Mellencamp. Woodbody disse que gostava de ir lá porque era tranqüilo nas tardes e noitinhas dos dias de semana. E também porque o ambiente o fazia lembrar do pai, que trabalhara numa das fábricas da U.S. Steel. (Lisey estava cagando e andando para o pai de Woodbody.) Foi neste bar que ele conheceu o homem que se dizia Jim Dooley. Dooley também gostava de beber no fim da tarde/ começo de noite, um sujeito de fala mansa que dava preferência para camisas sociais azuis de cambraia e o tipo de calça de peão com bainha que o pai de Woodbody usava. Woodbody descreveu Dooley como um homem de cerca de l,85m, magricela, um pouco encurvado, com cabelos pretos ralos que ficavam caindo-lhe sobre a sobrancelha. Acha­va que os olhos de Dooley eram azuis, mas não tinha certeza, apesar de terem bebido juntos por um período de seis semanas e se tornado o que Woodbody descreveu como “meio camaradas”. Não haviam tro­cado histórias de vida, e sim fragmentos de histórias de vida, como fazem os homens em bares. Da sua parte, Woodbody afirmou ter dito a verdade. Agora tinha motivos para duvidar que Dooley tivesse feito o mesmo. Sim, Dooley poderia muito bem ter chegado até a cidade vindo de West Virginia 12 ou 14 anos atrás e provavelmente havia tido uma série de empregos como trabalhador braçal que pagavam pouco desde então. Sim, talvez tivesse ficado um tempo preso; tinha aquele jeito de ex-detento, sempre dando a impressão de olhar para o espelho atrás do balcão do bar quando ia pegar sua cerveja, sempre olhando por sobre o ombro pelo menos uma vez a caminho do banheiro. E, sim, poderia mesmo ter arranjado a cicatriz em cima do punho direito durante uma breve, porém feroz, briga na lavanderia do presídio. Ou não. Ei, talvez ele tenha apenas capotado com seu triciclo quando era criança e caído de mau jeito. A única coisa de que Woodbody tinha certeza era que Dooley lera todos os livros de Scott Landon e era capaz de discuti-los com inteligência. E ele ouvira com solidariedade a histó­ria triste de Woodbody sobre a intransigente Viúva Landon, que estava sentada em cima de um tesouro intelectual de manuscritos inéditos de Landon, que, diziam os boatos, incluía um romance completo. Porém, solidariedade era uma palavra muito amena. À medida que escutava, se sentia cada vez mais ultrajado.

De acordo com Woodbody, foi Dooley quem havia começado a chamá-la de Yoko.

Woodbody caracterizou os encontros dos dois no Place como “algo entre ocasionais e frequentes”. Lisey analisou aquela lengalenga intelec­tual e decidiu que significava que Woodbody e Dooley se juntavam para fazer a caveira de Yoko Landon quatro e às vezes cinco vezes por semana e que, quando Woodbody disse “uma ou duas cervejas”, ele provavel­mente queria dizer uma ou duas jarras de cerveja. Então lá estavam eles, aqueles Oscar e Felix* intelectuais, enchendo a cara quase toda tarde, primeiro falando sobre como os livros de Scott eram bons até o assunto progredir naturalmente para como a viúva dele acabara se mostrando uma vaca miserável e egoísta.

De acordo com Woodbody, foi Dooley quem levou a conversa para aquela direção. Lisey, que sabia como Woodbody falava quando não lhe davam o que ele queria, duvidou que tivesse sido muito difícil.

E, em algum momento, Dooley tinha dito a Woodbody que ele, Dooley, poderia persuadir a viúva a mudar de idéia sobre aqueles ma­nuscritos inéditos. Afinal de contas, não deveria ser tão difícil conven­cê-la, já que os textos do homem quase certamente acabariam indo para a Universidade de Pittsburgh junto com o restante da Coleção Landon de qualquer maneira. Ele era bom em fazer as pessoas muda­rem de idéia, falou Dooley. Tinha jeito para a coisa. O Rei dos Incunks (olhando para seu novo amigo com uma lucidez turva de bêbado, Lisey não tinha dúvidas) tinha perguntado quanto ele queria por um serviço daquele tipo. Dooley respondeu que não pretendia lucrar com aquilo. Estavam falando sobre um serviço para a humanidade, não estavam? Tirando um grande tesouro de uma mulher que era burra demais para entender sobre o que estava sentada, como uma galinha chocando ovos. Bem, era verdade, respondeu Woodbody, mas era justo que ele recebes­se pelo trabalho. Dooley pensou sobre aquilo e disse que anotaria suas várias despesas. Então, quando se encontrassem para a entrega do ma­terial a Woodbody, eles poderiam discutir a questão do pagamento. E, com essas palavras, Dooley estendeu a mão sobre o bar para seu novo amigo, como se tivessem fechado um negócio que fazia algum sentido. Woodbody a apertou, sentindo-se ao mesmo tempo encantado e alti­vo. Tinha pensado sem parar em Dooley no decorrer das cinco ou sete semanas em que o conhecera, disse ele a Lisey. Havia dias em que pen­sava que Dooley era osso duro de roer, um ex-presidiário intelectual e autodidata, cujas histórias de gelar o sangue sobre assaltos, brigas e cabos de colher sendo usados como faca eram todas verdadeiras. Então, havia dias (o dia do aperto de mão foi um deles) em que tinha certeza de que Jim Dooley era só conversa-fiada e que o crime mais perigoso que cometera foi roubar uma ou duas latas de tíner do Wal-Mart de Monroeville em que havia trabalhado por uns seis meses em 2004. En­tão, para Woodbody aquilo fora pouco mais do que uma piada entre dois caras meio bêbados, especialmente quando Dooley mais ou menos disse que convenceria Lisey a se livrar dos papéis do falecido marido pelo bem da Arte. Pelo menos foi isso o que o Rei dos Incunks disse a Lisey naquela tarde de junho, porém, é claro que aquele era o mesmo Rei dos Incunks que tinha se sentado meio bêbado em um bar com um homem que mal conhecia, um confesso “ex-presidiário da pesada”, chamando-a de Yoko e concordando que Scott devia ter ficado com ela para uma coisa só, afinal, para o que mais iria querê-la? Woodbody dis­se que, para ele, a coisa não tinha sido mais do que uma piada, apenas dois caras viajando num bar. Era verdade que os dois caras em questão haviam trocado endereços de e-mail, mas hoje em dia todo mundo tem e-mail, não é mesmo? O Rei dos Incunks encontrara seu leal súdito apenas uma vez depois do dia do aperto de mão, duas tardes depois. Dooley se limitara a apenas uma cerveja na ocasião, dizendo a Woodbody que estava “em treinamento”. Depois daquela cerveja, ele saiu de cima do banco, afirmando que precisava ir “encontrar um camarada”. Também disse a Woodbody que provavelmente encontraria com ele no dia seguinte, com certeza na próxima semana. No entanto, Woodbody nunca mais viu Dooley novamente. Depois de algumas semanas, parou de procurá-lo. E o endereço de e-mail Zack991 parou de funcionar. De certa forma, pensou ele, perder contato com Jim Dooley era uma boa coisa. Ele vinha bebendo demais e havia algo simplesmente errado em relação a Dooley. (Demorou um pouco para perceber isso, não foi?, pensou Lisey com irritação.) Woodbody voltou a beber uma ou duas cervejas por semana e, sem nem pensar direito no assunto, passou para um bar a alguns quarteirões de distância. Somente mais tarde (quando minhas idéias clarearam, nas palavras dele) foi perceber que estava se distan­ciando inconscientemente do último lugar em que encontrara Dooley; que estava, na verdade, arrependido daquilo tudo. Isto é, caso aquilo tivesse sido mais do que uma mera fantasia, apenas mais um castelo de areia de Jim Dooley que Joe Woodbody ajudara a mobiliar enquanto bebia as semanas minguantes de outro triste inverno de Pittsburgh. E era naquilo que tinha acreditado, concluiu ele, arrematando com a veemência de um advogado cujo cliente está fadado à injeção letal caso ele pise na bola. Havia chegado à conclusão de que a maioria das histórias de banditismo e sobrevivência em Brushy Mountain tinha sido pura invenção e que a idéia de convencer a sra. Landon a desistir dos manuscritos do seu falecido marido, também. O acordo deles não passara de uma brincadeira infantil de faz-de-conta.

— Se isso é verdade, me diga uma coisa — falou Lisey. — Se Dooley tivesse aparecido com uma montanha de estórias de Scott, isso o teria impedido de aceitá-las?

— Não sei.

Aquilo, pensou ela, era uma resposta honesta, então lhe fez outra pergunta.

— O senhor sabe o que fez? O que desencadeou?

Diante daquilo, o professor Woodbody ficou calado, e Lisey achou que ele estava sendo honesto novamente. O mais honesto, talvez, que conseguia ser.

 

Depois de uma pausa para refletir, Lisey falou:

— O número que Dooley usou para me ligar, foi o senhor que deu a ele? Tenho que lhe agradecer por isso também?

— Não! De maneira alguma! Não dei número nenhum para ele, eu juro!

Lisey acreditou naquilo.

— O senhor vai fazer uma coisa para mim, professor — disse ela. — Se Dooley entrar em contato novamente, talvez só pra lhe falar que está mandando brasa e que as coisas estão promissoras, o senhor vai dizer que o acordo está cancelado. Totalmente cancelado.

— Eu direi. — A sofreguidão daquele homem era quase abjeta. — Acredite, eu... — ele foi interrompido por uma voz de mulher, a da sua esposa, Lisey tinha certeza, perguntando alguma coisa. Ouviu-se um som farfalhante quando ele cobriu a parte de baixo do fone com uma das mãos.

Lisey não se importou. Ela estava calculando sua situação ali e não gostava do resultado. Dooley havia lhe dito que ela poderia diminuir a pressão entregando a Woodbody os textos e manuscritos inéditos de Scott. O professor então ligaria para o louco, lhe diria que estava tudo tranqüilo e pronto. O único problema era que o Rei dos Incunks afir­mou não ter mais como entrar em contato com Dooley, e Lisey acredi­tava nele. Seria aquilo um lapso da parte de Dooley? Uma falha no seu plano? Ela duvidava. Achava que Dooley poderia mesmo ter alguma vaga intenção de aparecer no escritório de Woodbody (ou no seu castelo nos subúrbios) com o material de Scott... porém, antes disso, pretendia primeiro aterrorizá-la e então machucá-la em lugares em que ela não deixava os garotos botarem a mão nos bailes da escola. E por que ele fa­ria isso, depois de se esforçar tanto para convencer o professor e Lisey de que havia um sistema à prova de falhas em ação para evitar que algo de mau acontecesse se ela cooperasse?

Talvez porque precise se permitir isso.

Aquilo soou convincente. E mais tarde — depois que ela estivesse morta, talvez, ou mutilada de tal forma que preferiria estar morta — a consciência de Dooley seria capaz de se convencer de que a culpa tinha sido da própria Lisey. Dei todas as chances, pensaria seu amigo “Zack”. A culpa foi toda dela, que insistiu em ser Yoko até o fim.

Certo. Então, tá. Se ele aparecesse, ela simplesmente lhe daria as chaves do celeiro e do escritório e lhe diria para pegar tudo que quisesse. Vou falar para ele se esbaldar, fazer a festa.

No entanto, ao pensar nisso, os lábios de Lisey se afinaram, for­mando aquele meio-sorriso sem humor que talvez apenas suas irmãs e seu falecido marido, que o chamava de Cara de Tornado de Lisey, teria reconhecido.

— Vou fazer isso uma pinóia — murmurou ela e olhou em volta, procurando a pá de prata. Não estava lá. Havia deixado no carro. Se a quisesse, seria melhor ir pegá-la antes de a noite cair por compl...

— Sra. Landon? — Era o professor, parecendo mais ansioso do que nunca. Havia esquecido completamente dele. — A senhora ainda está aí?

— Estou — disse ela. — É nisso que dá, está vendo?

— Perdão?

— O senhor sabe do que eu estou falando. Tudo aquilo que queria tanto, tudo o que achava que precisava ter. É nisso que dá. O senhor fica se sentindo desse jeito. Isso sem falar nas perguntas que terá que responder quando desligar, é claro.

— Sra. Landon, eu não...

— Se a polícia ligar para o senhor, quero que conte tudo o que me contou. O que significa que é melhor responder antes às perguntas da sua mulher, o senhor não acha?

— Sra. Landon, por favor! — Woodbody parecia em pânico àquela altura.

— O senhor entrou nessa. O senhor e seu amigo Dooley.

— Pare de chamá-lo de meu amigo!

A Cara de Tornado de Lisey ficou mais feia, os lábios se afinando até mostrarem a parte de cima dos dentes. Ao mesmo tempo, seus olhos se estreitaram até virarem pouco mais que faíscas azuis. Era uma expres­são ferina e genuinamente Debusher.

— Mas ele é! — exclamou ela. — Foi o senhor quem bebeu com ele e lhe contou sua história triste e riu quando ele me chamou de Yoko Landon. Foi o senhor que o mandou para cima de mim, quer tenha dito isso com todas as palavras ou não, e agora ele acabou se mostrando um doido de pedra e o senhor não consegue fazê-lo parar. Então, sim, professor, eu vou ligar para o xerife do condado, sim, senhor. Vou lhe dar seu nome e qualquer coisa que possa ajudá-lo a achar seu amigo, porque ele ainda não terminou, o senhor sabe disso e eu também, porque ele não quer terminar, está se divertindo à beça com essa joça e é nisso que dá. O senhor entrou nessa, agora não tem como sair! Certo? Certo?

Nenhuma resposta. Mas ela conseguia ouvir o som molhado de respiração e percebeu que o ex-Rei dos Incunks estava tentando conter as lágrimas. Ela desligou, apanhou outro cigarro do chão e o acendeu. Voltou ao telefone, então balançou a cabeça. Ligaria para a delegacia em um instante. Primeiro, queria tirar a pá de prata de dentro do Beemer, e sem demora, antes que a luz desaparecesse e sua parte do mundo tro­casse o dia pela noite.

 

O jardim lateral — que Lisey imaginava que fosse chamar até a morte, na sua cabeça, de jardim da entrada — já estava escuro demais para oferecer tranquilidade, embora Vênus, a estrela dos desejos, ainda não tivesse aparecido no céu. As sombras onde o celeiro se juntava à barraca de ferramentas estavam especialmente negras, e o BM W estava parado a menos de 6 metros dali. É claro que Dooley não estava escondido na­quele poço de sombras e, se estivesse por ali, poderia estar em qualquer lugar: recostado no vestiário em frente à piscina, olhando pela beirada do muro da cozinha, agachado embaixo do alçapão de portas duplas do porão...

Lisey girou nos calcanhares ao pensar naquilo, mas ainda havia luz o suficiente para ver que não havia nada em nenhum dos dois lados do alçapão. E as próprias portas dele estavam trancadas, de modo que ela não precisava se preocupar com a possibilidade de Dooley estar lá den­tro. A não ser, é claro, que ele tivesse invadido de alguma forma a casa e se escondido lá embaixo antes de ela chegar.

Pare, Lisey, você está se deixando nervo...

Ela parou com os dedos enrolados em volta da maçaneta da porta de trás do BMW. Ficou daquele jeito por cinco segundos, talvez, então deixou o cigarro cair de sua mão livre e amassou a guimba com o pé.

Havia alguém parado no ângulo pronunciado em que o celeiro e a bar­raca de ferramentas se encontravam. Parado lá, muito alto e quieto.

Lisey abriu a porta traseira do carona do Beemer e apanhou a pá de prata. A luz de dentro do carro continuou ligada quando ela fechou a porta de volta. Tinha se esquecido daquilo, de como as luzes internas dos carros agora ficavam um pouquinho ligadas, o que eles chama­vam de luz de cortesia. Porém, não via nada de cortês na idéia de que Dooley conseguia vê-la enquanto ela não o via graças à maneira como aquela joça de luz estragava sua visão. Afastou-se do carro, com o cabo da pá atravessado diante dos seios. A luz de dentro do BM W finalmen­te se apagou. Por um instante, aquilo piorou a situação. Ela conseguia ver apenas um mundo de vultos roxos sob o escurecer violeta do céu e esperava sinceramente que ele fosse pular em cima dela, chamando-a de Madame e perguntando por que ela não tinha ouvido enquanto fechava as mãos em volta da sua garganta e sua respiração estrepitava até parar.

Aquilo não aconteceu e, depois de mais uns três segundos, os olhos dela se readaptaram à luz baixa. Agora, conseguia vê-lo novamente, alto e empertigado, grave e quieto, parado lá no ângulo da construção gran­de com a pequena. Com algo aos pés. Uma espécie de embrulho qua­drado. Poderia ser uma maleta.

Bom Deus, ele não está achando que vai conseguir enfiar todos os pa­péis de Scott lá dentro, está?, pensou ela e deu outro passo cauteloso para a esquerda, segurando a pá de prata com tanta força que seus punhos latejavam.

— Zack, é você? — Outro passo. Dois. Três.

Ela ouviu um carro chegando e compreendeu que os faróis dele passariam pelo quintal, revelando-o por inteiro. Quando aquilo acon­tecesse, ele pularia em cima dela. Ela girou a pá de prata para trás por cima dos ombros, como em agosto de 1988, terminando o giro quan­do o carro que se aproximava contornou Sugar Top Hill, inundando o quintal com uma luz momentânea e revelando o cortador de grama que ela mesma havia deixado entre o celeiro e a barraca. A sombra do seu cabo saltou para cima na lateral do celeiro e então sumiu junto com a luz dos faróis. O cortador de grama voltou a parecer um homem com uma maleta aos pés, achou ela, embora depois que você soubesse a verdade...

Em um filme de terror, pensou Lisey, seria nessa hora que o monstro pularia da escuridão para me agarrar. Exatamente quando estou começan­do a ficar tranquila.

Nada pulou para agarrá-la, mas Lisey não achou que faria mal le­var a pá de prata para dentro consigo, nem que fosse para dar sorte. Carregando-a agora com apenas uma das mãos, segurando na altura do colarinho onde o cabo se juntava à colher de prata, Lisey foi ligar para Norris Ridgewick, o xerife de Castle County.

 

Lisey e a Lei

(Obsessão e a Mente Exaurida)

A mulher que atendeu a ligação de Lisey se identificou como Atendente Soames e disse que não poderia passar Lisey para o xerife Ridgewick porque o xerife Ridgewick tinha se casado na semana anterior. Ele e sua nova esposa estavam em uma ilha de Maui e ficariam lá pelos próximos dez dias.

— Com quem eu posso falar? — perguntou Lisey. Não gostou do tom quase estridente da própria voz, mas o entendia. Meu Deus, como entendia. Aquele tinha sido uma droga de um longo dia.

— Aguarde um instante, senhora — disse a Atendente Soames. Então Lisey ficou no limbo com McGruff, o Cachorro Pega-Bandido, que falava sobre grupos de Vigilância Comunitária. Lisey achou aquilo um progresso considerável em relação às Mil Cordas Catatônicas. De­pois de um ou dois minutos de McGruff, um policial cujo nome Scott teria adorado pegou a linha.

— Aqui é o vice-xerife Andy Clutterbuck, senhora, em que posso ajudá-la?

Pela terceira vez naquele dia — a terceira vez é a da sorte, Mãezinha Querida teria dito, a terceira vez compensa todas as outras —, Lisey se apresentou como sra. Scott Landon. Então contou ao vice-xerife Clut­terbuck uma versão ligeiramente reduzida da história de Zack McCool, começando com o telefonema que recebera na noite anterior e termi­nando com o que tinha dado naquela noite, o que fisgara o nome Jim Dooley. Clutterbuck se contentou com a-hãs e outras variações do gê­nero até ela terminar, então perguntou quem havia lhe dado o outro nome, possivelmente real, de “Zack McCool”.

Com uma pontada de remorso

(tattle-tale tit, todos os cachorros da cidade vão comer um pedacinho)*

que lhe causou um instante de amargo divertimento, Lisey entre­gou o Rei dos Incunks. Ela não o chamou de Woodbundão.

— O senhor vai falar com ele, vice-xerife Clutterbuck?

— Creio que seria o mais indicado, a senhora não acha?

— Imagino que sim — falou Lisey, perguntando-se se o xerife in­terino de Castle County conseguiria ao menos tirar de Woodbody o que ela não conseguira arrancar. Imaginava que deveria haver algo — estava muito nervosa naquela hora. Também percebeu que não era aquilo que a incomodava. — Ele vai ser preso?

— Com base no que a senhora me contou? Nem de longe. Talvez haja base para um processo civil, a senhora teria que perguntar ao seu advogado mas, no tribunal, tenho certeza que de que ele iria dizer que até onde ele sabia tudo o que esse tal de Dooley pretendia fazer era bater na porta da senhora e forçar um pouco a barra para vender o seu peixe. Afirmaria não saber nada sobre gatos mortos em caixas de correio ou ameaças de violência pessoal... e estaria dizendo a verdade, baseado no que a senhora acabou de falar. Certo?

Lisey concordou, um tanto desanimada, que aquilo estava certo.

— Vou querer a carta que esse sujeito que está perseguindo a se­nhora deixou — disse Clutterbuck — e o gato também. O que a senho­ra fez com os restos mortais?

— A gente tem um negócio tipo um caixote de madeira preso à casa — falou Lisey. Ela pegou um cigarro, pensou em acendê-lo e o lar­gou de volta. — Meu marido tinha uma palavra para aquilo, ele tinha uma palavra para quase tudo, mas não consigo me lembrar qual era de jeito nenhum. Enfim, serve para manter os guaxinins longe do lixo. Co­loquei o corpo do gato em um saco e joguei o saco no orlop. — Agora que não estava lutando para se lembrar dela, a palavra de Scott lhe veio sem esforço à mente.

— A-hã, a-hã, a senhora tem freezer?

— Tenho... — Já temendo o que ele a mandaria fazer em seguida.

— Quero que a senhora coloque o gato no seu freezer, sra. Lan­don. Pode deixá-lo no saco sem o menor problema. Alguém irá pegá-lo amanhã e levá-lo para Kendall e Jepperson. Esses são os veterinários que prestam serviço para o condado. Eles vão tentar determinar a causa da morte...

— O que não deve ser difícil — disse Lisey. — A caixa de correio estava cheia de sangue.

— A-hã. Que pena que a senhora não tirou umas Polaroids antes de limpar tudo.

— Bem, mil perdões! — exclamou Lisey, ofendida.

— Acalme-se — disse Clutterbuck. — Entendo que a senhora esteja abalada. Qualquer um ficaria.

Não você, pensou Lisey, ressentida. Você ficaria com a cabeça fria... como um gato morto em um freezer.

Ela disse:

— Isso resolve a questão do professor Woodbody e a do gato mor­to; agora, e quanto a mim?

Clutterbuck lhe falou que mandaria um policial imediatamente — oficial Boeckman ou oficial Alston, o que estivesse mais próximo — para pegar a carta. Pensando melhor, disse, o policial que fosse à casa dela poderia tirar algumas Polaroids do gato morto também. Todos os policiais tinham câmeras Polaroid nos seus carros. Então ele (e, mais tarde, seu substituto das onze da noite) montaria guarda na Rota 19, de onde poderia ver a casa. A não ser, é claro, que houvesse uma chamada de emergência — um acidente, ou algo do gênero. Se Dooley “fizesse uma visitinha” (nas palavras estranhamente sutis de Clutterbuck), ele veria a viatura do condado e passaria direto.

Lisey esperava que Clutterbuck tivesse razão.

Caras como esse Dooley, prosseguiu Clutterbuck, geralmente eram mais conversa do que ação. Quando não conseguiam assustar uma pes­soa a ponto de conseguirem o que queriam, costumavam desistir.

— Meu palpite é que a senhora nunca mais verá a cara dele.

Lisey esperava que ele tivesse razão quanto àquilo também. Ela própria tinha suas dúvidas. O que lhe voltava à cabeça a todo instante era a maneira como “Zack” tinha armado tudo. De modo a não poder ser impedido, pelo menos não pelo homem que o contratara.

 

Menos de vinte minutos depois de terminar sua conversa com o vice-xe­rife Clutterbuck (que sua mente cansada não parava de querer chamar de vice-xerife Butterhug ou — talvez numa alusão às câmeras Polaroid — vice-xerife Shutterbug*), um homem esguio de calças caqui e com uma arma na cintura apareceu à sua porta. Ele se apresentou como oficial Dan Boeckman e lhe disse que tinha recebido ordens para buscar “uma certa carta” e fotografar “um certo animal falecido”. Lisey não riu da­quilo, embora tenha precisado morder a parte de dentro das bochechas para conseguir aquela proeza. Boeckman colocou a carta (juntamente com o envelope branco) em um saco plástico que Lisey providenciou, então perguntou se ela havia colocado o “animal falecido” no freezer. Lisey o fizera logo depois de falar com Clutterbuck, depositando o saco de lixo verde no canto esquerdo da sua geladeira grande, onde não ha­via nada além de uma pilha de bifes de cervo velhos em sacos plásticos congelados, um presente para Lisey e Scott do eletricista deles, Smiley Flanders. Smiley tinha ganhado uma licença para caçar alces no ano de 2001 ou 2002 — Lisey não se lembrava qual dos dois — e derrubara “um grandalhão” lá no St. John Valley. Onde Charlie Corriveau tinha fisgado sua nova mulher, atinou Lisey. Aquele era o único lugar para um gato de celeiro morto dos Galloway, do lado da carne que Lisey quase certamente jamais comeria (exceto talvez no caso de uma guerra nu­clear), e ela pediu para o oficial Boeckman não guardá-la em nenhuma outra parte que não fosse lá depois de tirar sua foto. Ele prometeu, com toda a seriedade, “aquiescer ao seu pedido”, e ela precisou novamente morder a parte interna das bochechas. Mesmo assim, daquela vez foi por pouco. Assim que ele começou a descer com passos pesados e lentos as escadas do subsolo, Lisey se virou para a parede como uma criança travessa, colocando a testa contra o reboco e as mãos sobre a boca, rindo em guinchos sussurrantes e esgoelados.

Foi depois de este acesso ter passado que ela começou a pensar novamente na caixa de cedro da Mãezinha Querida (apesar de já ser de Lisey há trinta anos, ela nunca pensara na caixa como sendo dela). Pensar na caixa e em todas aquelas pequenas lembranças guardadas lá dentro ajudou a acalmar a histeria que saía borbulhando do seu íntimo. O que a ajudou mais ainda foi a certeza cada vez maior de que a havia guardado no sótão. Os detritos da vida profissional de Scott estavam no celeiro e no escritório; os detritos da vida que ela vivera enquanto ele trabalhava estariam lá, na casa que ela havia escolhido e que ambos tinham aprendido a amar.

No sótão, havia pelo menos quatro tapetes turcos caros que Lisey um dia adorara e que, a partir de um certo ponto, por motivos que ela não entendia, tinham começado a lhe dar arrepios...

Pelo menos três conjuntos de malas aposentadas que tinham agüentado todos os castigos que duas dúzias de linhas aéreas, muitas delas companhias fajutas de teco-tecos, tinham para oferecer; guerreiras surradas com sua merecida aposentadoria no sótão (ora, pessoal, é me­lhor do que o lixão)...

A mobília de sala de estar estilo dinamarquês moderno que Scott disse que parecia pretensiosa. Como aquilo a deixara com raiva, em grande parte por achar que ele provavelmente tinha razão.

A escrivaninha de tampo corrediço, uma “pechincha” que no fim das contas tinha uma perna mais curta que teve que ser calçada. Porém, o calço vivia saindo e, um belo dia, o tampo fechou em cima dos de­dos dela e aquilo foi a gota d’água, minha amiga, direto para a joça do sótão...

Cinzeiros com pedestal da época em que os dois fumavam...

A máquina de escrever IBM Selectric antiga de Scott, que ele cos­tumava usar para correspondências até começar a ficar difícil achar as fitas comuns e corretivas.

Coisas assim, coisas assado, coisas como aquilo outro. Outro mun­do, na verdade, e, no entanto, estava tudo benhaqui, ou pelo menos bem lá em cima. E, em algum lugar — provavelmente atrás de uma pilha de revistas ou em cima da cadeira de balanço com o não-confiável espaldar rachado —, estaria a caixa de cedro. Pensar nela era como pen­sar em água gelada quando você estava com sede em um dia quente. Ela não sabia o motivo daquilo, mas era assim.

Quando o oficial Boeckman voltou do porão com suas Polaroids, ela já estava ansiosa para que ele fosse embora. Perversamente, ele con­tinuou lá (teimoso como uma dor de dente, teria dito Papai Debusher), primeiro lhe dizendo que o gato parecia ter sido perfurado com algum tipo de ferramenta (possivelmente uma chave de fenda), então assegu­rando a ela que estaria com o carro estacionado logo em frente. Eles poderiam não ter as palavras SERVIR E PROTEGER nas suas unidades (eles as chamavam de unidades), mas o pensamento estava presente a cada instante, e ele queria que ela se sentisse perfeitamente segura. Lisey disse que se sentia segura e que, na verdade, estava pensando em ir para a cama — tinha sido um longo dia, além desse negócio de ter alguém a perseguindo ela havia passado por uma emergência na família e estava morta de cansaço. O oficial Boeckman finalmente se mancou e foi em­bora depois de lhe dizer uma última vez que ela estava o mais segura possível, segura até dizer chega, e que não havia necessidade de dormir com um olho aberto nem nada. Então desceu com passos pesados os degraus da entrada, tão lentamente quanto descera as escadas do porão, folheando uma última vez suas fotos do gato morto enquanto ainda tinha luz o suficiente para enxergá-las. Um ou dois minutos depois, ela ouviu o que parecia ser um motor prefeitamente eita-norme roncar duas vezes. Luzes de farol atravessaram o gramado e a casa, então se apaga­ram abruptamente. Ela pensou no oficial Daniel Boeckman sentado do outro lado da rua com sua viatura estacionada a olhos vistos no acos­tamento. Abriu um sorriso. Então subiu até o sótão, sem fazer idéia de que, duas horas depois, estaria deitada de bruços na cama, toda vestida, exausta e chorando.

 

A mente exaurida é presa fácil para a obsessão e, depois de meia hora de buscas infrutíferas no sótão, onde o ar era quente e parado e a luz fraca e as sombras pareciam avidamente dispostas a esconder cada canto que ela quisesse investigar, Lisey cedeu à obsessão sem nem mesmo perceber. Não tinha um motivo claro para querer a caixa para começo de con­versa, apenas uma forte intuição de que algo dentro dela, alguma lem­brança do início do casamento, era a próxima estação do bool. Algum tempo depois, no entanto, a própria caixa se tornou o objetivo, a caixa de cedro da Mãezinha Querida. Os bools que se danassem, se ela não botasse as mãos naquela caixa — de 30 centímetros de comprimento, uns vinte e poucos de largura e 15 de profundidade —, não conseguiria dormir nunca. Ficaria deitada na cama, torturada pelos pensamentos de gatos mortos, maridos mortos, camas vazias, guerreiros Incunks, irmãs que cortam a si mesmas e pais que cortam...

(psiu, Lisey, psiu)

Digamos que ela ficaria apenas deitada na cama.

Uma hora de procura foi suficiente para convencê-la de que, no fim das contas, a caixa de cedro não estava no sótão. No entanto, àquela altura, estava certa de que ela provavelmente estava no quarto de hóspe­des. Era perfeitamente razoável pensar que tivesse migrado de volta para lá... porém, outros quarenta minutos (que incluíram uma exploração da gaveta de cima do armário em uma escada bamba) a convenceram de que o quarto de hóspedes era outra pista fria. Então a caixa estava no porão. Tinha que estar. Muito provavelmente tinha parado embaixo das escadas, onde havia um monte de caixas de papelão contendo cortinas, sobras de tapete, peças velhas de som e alguns pedaços de equipamentos esportivos: patins de gelo, um conjunto de croquet, uma rede de bad­minton com um buraco. Enquanto descia às pressas as escadas do porão (sem pensar um instante no gato morto que repousava ao lado da pilha de carne de cervo congelada no seu freezer), Lisey começou a acreditar que tinha até visto a caixa lá embaixo. Àquela altura, estava muito can­sada, mas apenas vagamente consciente disso.

Ela levou vinte minutos para arrastar todas as caixas de papelão para fora do seu jazigo de longa data. Algumas úmidas e rasgadas no meio. Quando terminou de revirar as coisas dentro delas, seus membros estavam tremendo de cansaço, suas roupas grudadas no corpo e uma dorzinha de cabeça chata começara a pulsar atrás do seu crânio. Ela em­purrou as caixas que ainda estavam inteiras de volta e deixou as rasgadas onde estavam. A caixa da Mãezinha Querida estava no sótão, afinal. De­via estar, estivera lá o tempo todo. Enquanto ela desperdiçava seu tempo ali embaixo entre patins de gelo enferrujados e quebra-cabeças esque­cidos, a caixa de cedro a esperava pacientemente lá em cima. Agora, Lisey conseguia pensar em meia dúzia de lugares nos quais esquecera de procurar, incluindo aquele vão debaixo do beiral, bem lá no fundo, que só dava para alcançar se arrastando. Muito provavelmente aquele era o lugar. Ela devia ter colocado a caixa lá e se esquecido completamente...

O pensamento se interrompeu no ato assim que Lisey percebeu que havia alguém parado atrás dela. Conseguia vê-lo com o rabo do olho. Fosse seu nome Jim Dooley ou Zack McCool, ele iria, no instante seguinte, colocar uma das mãos no seu ombro suado e chamá-la de Ma­dame. Então ela teria um motivo de verdade para se preocupar.

Aquela sensação era tão real que Lisey chegou a ouvir o arrastar dos pés de Dooley. Voltou-se, erguendo as mãos para proteger o rosto, e teve apenas um instante para ver o aspirador de pó que ela mesma havia tira­do de sob as escadas. Então tropeçou na caixa de papelão mofada com a rede de badminton dentro. Girou os braços para ganhar equilíbrio, quase conseguiu, o perdeu, teve tempo pra pensar cocô-de-galinha-preta, e desabou. O topo da sua cabeça não bateu no lado de baixo da escada por um triz, o que foi bom, pois aquilo teria causado uma fratura muito feia, talvez do tipo que faz você cair desmaiado. Cair morto, se batesse com força o bastante no chão de cimento. Lisey conseguiu amortecer a queda com as mãos espalmadas, um joelho aterrissando com segurança na borda elástica da rede de badminton apodrecida, o outro sofrendo uma queda mais dura no chão do porão. Por sorte, ela ainda estava com sua calça jeans.

Teve outro tipo de sorte na queda, pensou ela deitada na cama 15 minutos depois, ainda toda vestida, mas depois de acabada a parte mais violenta do choro; àquela altura, tinha chegado aos soluços espaçados e arquejos tristes e umedecidos que compõem a ressaca das emoções fortes. A queda — e o susto que a acompanhou, imaginava ela — cla­reara sua cabeça. Ela poderia ter passado outras duas horas atrás da caixa — até mais, se sua energia tivesse durado. De volta ao sótão, de volta ao quarto de hóspedes, de volta ao porão. De volta para o futuro, Scott certamente teria acrescentado; ele tinha mania de soltar piadinhas exa­tamente na hora errada. Ou no que se mostraria, mais tarde, exatamen­te a hora certa.

De qualquer forma, ela poderia muito bem ter continuado até o amanhecer, o que lhe renderia um punhado de nada em uma das mãos e um monte de bosta na outra. Agora, Lisey estava convencida de que a caixa ou estava em um lugar tão óbvio, pelo qual já havia passado meia dúzia de vezes, ou tinha apenas sumido, talvez roubada por uma das faxineiras que haviam trabalhado para os Landon no decorrer dos anos, ou por um prestador de serviço qualquer que a avistou, achando que sua mulher gostaria de uma caixa bonita como aquela e que a Madame (engraçado como aquela palavra grudava na sua cabeça) do sr. Landon nunca iria dar falta.

Nã-nã-ni-nã-não, Lisinha, disse o Scott que morava na sua cabeça. Pense nisso amanhã, pois amanhã é outro dia.

—- Tá bom — disse Lisey, e então se sentou, percebendo de re­pente que era uma mulher suada e fedorenta dentro de roupas suadas e imundas. Tirou-as o mais rápido possível, deixou-as em uma pilha ao pé da cama e foi para o chuveiro. Havia ralado as palmas das mãos ao amortecer a queda no porão, mas ignorou a ardência e ensaboou o cabelo duas vezes, deixando a espuma escorrer pelos lados do rosto. Então, depois de quase cochilar debaixo da água quente por mais ou menos cinco minutos, girou com decisão o termostato do chuveiro até o F, enxaguou-se debaixo da ducha quase glacial e saiu, arquejando. Ela usou uma das suas toalhas grandes e, ao jogá-la no cesto, percebeu que se sentia ela mesma novamente, sã e pronta para deixar aquele dia para trás.

Foi para a cama e seu último pensamento antes de o sono a der­rubar na escuridão foi sobre o oficial Boeckman montando guarda. Era um pensamento confortante, especialmente depois do susto no porão, e ela dormiu profundamente, sem sonhos, até o toque do telefone a despertar.

 

Era Cantata, ligando de Boston. Óbvio. Daria telefonara para ela. Darla sempre telefonava para Cantata quando acontecia alguma coisa, geral­mente sem demora. Canty queria saber se deveria voltar para casa. Li­sey assegurou à irmã que não havia o menor motivo para ela voltar de Boston mais cedo, independentemente do quão aflita Darla pudesse ter soado ao telefone. Amanda estava descansando em um lugar confortá­vel e não havia nada que Canty pudesse fazer.

— Você pode visitá-la, mas, a não ser que tenha havido alguma grande mudança, o que o dr. Alberness nos disse para não esperar, não vai nem ter certeza se ela sabe ou não que você está lá.

— Jesus — disse Canty. — Que horror, Lisa.

— É. Mas Amanda está com pessoas que entendem a situação dela... ou pelo menos sabem como cuidar de pessoas nessa situação. E Darla e eu vamos deixar você por dentro de tu...

Lisey estava dando voltas no quarto com o telefone sem fio. En­tão parou, olhando para o bloco de anotações que tinha saído quase todo do bolso de trás esquerdo do seu jeans descartado. Era o Bloqui­nho de Compulsões de Amanda, só que agora era Lisey que se sentia compulsiva.

— Lisa? — Canty era a única que a chamava assim regularmente, o que sempre a fazia se sentir como aquelas mulheres que mostram os prêmios num desses programas de tevê qualquer: Lisa, mostre a Hank e Martha o que eles ganharam! — Lisa, você ainda está aí?

— Estou, querida. — Os olhos no bloco. Pequenas argolas brilhan­do no sol. Um pequeno tubo espiralado de aço. — Eu falei que Darla e eu vamos deixar você por dentro de tudo. De tudo. — O bloco ainda estava curvado com a forma da nádega contra a qual havia passado tan­tas horas e, enquanto ela o olhava, a voz de Canty parecia sumir. Lisey se ouviu dizendo que estava certa de que Canty teria feito exatamente o mesmo se tivesse sido com ela. Ela se agachou e acabou de tirar o bloco do bolso do jeans. Falou para Cantata que ligaria para ela à noite, que a amava, se despediu e jogou o telefone sem fio na cama quase sem olhar. Tinha olhos apenas para o bloquinho de anotações surrado, 75 centavos em qualquer farmácia Walgreen ou Rexall. E por que aquilo a fascinava tanto? Por quê, agora que era de manhã e ela estava descansada? Limpa e descansada? Com a luz do sol se derramando pelo quarto, sua busca compulsiva pela caixa de cedro na noite passada parecia uma bobagem, apenas uma exteriorização comportamental de toda a ansiedade do dia, porém aquele bloco não parecia bobagem, nem um pouco.

E, só para deixar tudo mais divertido, a voz de Scott falou com ela, mais claramente do que nunca. Deus, como aquela voz era clara! E forte:

Deixei um bilhete para você, babyluv. Deixei um bool.

Ela pensou em Scott debaixo da árvore nhami-nhami, Scott na estranha neve de outubro, lhe dizendo que às vezes Paul o provocava com um bool difícil... mas nunca difícil demais. Não pensava naquilo há anos. Tinha afastado aquela lembrança, é claro, junto com todas as outras coisas sobre as quais não queria pensar; a havia colocado atrás da cortina roxa. Mas que mal havia nisso?

— Ele nunca era malvado — dissera Scott. Havia lágrimas nos seus olhos, mas não em sua voz; sua voz saía clara e firme. Como sempre, quando tinha uma história para contar, queria ser ouvido. — Quando eu era pequeno, Paul nunca foi malvado comigo e eu nunca fui malvado com ele. Éramos unidos. Tínhamos que ser. Eu o amava, Lisey. Eu o amava tanto.

Aquela altura, ela já havia passado das páginas com os números — os números da pobre Amanda, todos loucamente espremidos no papel. Achou apenas páginas em branco depois deles. Lisey as folheou cada vez mais rápido, sua certeza de que havia algo ali enfraquecendo, até chegar a uma folha perto do fim onde se lia uma única palavra:

 

MALVA-ROSA

 

Por que aquilo lhe era familiar? A princípio, Lisey não se lembrava, então lhe veio. Qual o meu prêmio?, ela havia perguntado à coisa na ca­misola de Amanda, a coisa virada para o outro lado. Uma bebida, tinha sido a resposta. Uma Coca? Uma RC Cola?, perguntara ela, e a coisa havia dito:

— Ela disse... ela ou ele disse... Silêncio, a gente quer ficar vendo o malva-rosa — murmurou Lisey.

Sim, era isso mesmo, ou quase isso; já dava para o gasto. Não significava nada para ela, mas, ao mesmo tempo, quase que sim. Ficou olhando um pouco mais para a palavra, então folheou o bloco até o final. Todas as páginas estavam em branco. Estava prestes a deixá-lo de lado quando viu palavras fantasmagóricas atrás da última folha. Ela a virou e encontrou o seguinte escrito na parte de dentro da quarta capa do bloco:

 

4ª Estação: Olhe Debaixo da Cama

 

No entanto, antes de olhar debaixo da cama, Lisey voltou para os números no começo do bloco e depois para MALVA-ROSA, que havia encontrado a meia dúzia de páginas do fim, confirmando o que ela já sabia: Amanda escrevia o quatro fazendo um ângulo do lado direito e um risco para baixo, como elas aprenderam na alfabetiza­ção: 4. Era Scott que fazia o quatro parecido com um “e” comercial: 4. Era Scott que tinha o hábito de sublinhar suas anotações e lembretes. E Amanda sempre tivera o hábito de escrever em letras maiúsculas pequenas... com letras redondinhas um pouco desleixadas: cês, gês, ipsílons e esses.

Lisey folheou para frente e para trás entre MALVA-ROSA e 4ª Es­tação: Olhe Debaixo da Cama. Achou que se mostrasse as duas ca­ligrafias para Darla e Canty, elas identificariam sem titubear a primeira como sendo de Amanda e a segunda como sendo de Scott.

E a coisa na cama com ela na manhã anterior...

— Parecia com os dois — sussurrou ela. Sua carne se arrepiou. Ela não sabia que carne podia fazer aquilo. — Podem me chamar de malu­ca, mas parecia mesmo com os dois.

Olhe debaixo da cama.

Ela finalmente fez o que o bilhete mandava. E o único bool que viu foi um velho par de chinelos.

 

Lisey Landon estava sentada em uma faixa de sol da manhã com as canelas cruzadas e as mãos sobre as articulações dos joelhos. Havia dor­mido nua e sentava-se da mesma forma agora; as sombras das cortinas transparentes fechadas sobre a janela ao leste cobriam seu corpo como a sombra de uma meia-calça. Ela voltou a olhar para o bilhete que a dire­cionava para a quarta estação do bool — um bool curto, um bool bom, mais algumas e ela ganharia seu prêmio.

Às vezes Paul me provocava com um bool difícil... mas nunca difícil demais.

Nunca difícil demais. Com aquilo em mente, ela fechou o bloco de chofre e olhou para a quarta-capa. Lá, escrito em letrinhas pretas debai­xo do nome da marca Dennison, havia o seguinte:

 

mein gott

 

Lisey se levantou e começou a se vestir com pressa.

 

A árvore os encerra em um mundo só deles. Do lado de fora, a neve. E, debaixo da árvore nhami-nhami, a voz de Scott, a voz hipnótica de Scott. E ela achando que Demônios Vazios era sua história de terror. Isso sim é sua história de terror e, exceto pelas lágrimas quando ele fala sobre Paul e sobre como eles suportaram juntos todos os cortes e todo o terror e sangue no chão, ele a conta sem titubear.

— Nunca caçávamos bools quando Papai estava em casa — diz ele —, só quando ele estava trabalhando. — Scott se livrara da maior parte do seu sotaque do oeste da Pensilvânia, mas agora ele reaparece, muito mais forte do que o próprio sotaque ianque dela e, de alguma forma, infantil. — Paul sempre deixava a primeira perto. Ela podia dizer “5 estações do bool”, para você ficar sabendo quantas eram as pistas, e de vez em quando algo como “Olhe no armário”. A primeira às vezes era um enigma, mas as outras quase sempre eram. Eu me lembro de uma que dizia: “Vá para onde Papai chutou o gato”, o que era obviamente o antigo poço. Outra dizia: “Vá para onde a gente ‘farmalha’ o dia in­teiro”. E, depois de um tempo, eu entendi que ele queria dizer o velho trator Farmall lá no terreno do leste, perto da muralha de pedra, e tinha mesmo uma estação do bool bem em cima do banco, com uma pedra em cima para segurar. Porque as estações do bool eram só um pedaço de papel, escritas à mão e dobradas, entende? Eu quase sempre desvendava os enigmas, mas, se ficasse encalhado, Paul me dava mais pistas até eu achar a resposta. E, no fim, eu ganhava o prêmio, que era uma Coca, uma RC Cola ou um doce.

Ele a encara. Atrás dele, não há nada além de brancura — uma parede branca. A árvore nhami-nhami — na verdade um salguei­ro — se arqueia ao redor deles formando um círculo mágico, isolando o mundo.

Ele diz:

— Às vezes, quando Papai estava com a coisa ruim, se cortar não era suficiente para botar pra fora, Lisey. Teve um dia que ele estava assim e me colocou em cima do banco no corredor, foi o que ele disse em seguida, ela se lem­brava agora (querendo ou não), porém, antes de poder seguir a memória mais para além da roxidão em que estivera escondida aquele tempo todo, Lisey viu um homem parado na varanda dos fundos. E era um homem, não um cortador de grama ou um aspirador de pó, mas um homem de verdade. Por sorte, teve tempo de registrar o fato de que, embora não fosse o oficial Boeckman, ele também estava vestido com o uniforme caqui da polícia de Castle County. Isso a salvou do constrangimento de gritar como Jamie Lee Curtis em um filme da série Halloween.

O visitante se apresentou como oficial Alston. Estava lá para levar o gato morto do freezer de Lisey e também para assegurar a ela que viria conferir se estava tudo bem no decorrer do dia. Perguntou se ela tinha um telefone celular e Lisey disse que sim. Estava no BMW, e ela imaginava que estivesse até funcionando. O oficial Alston sugeriu que ela mantivesse o aparelho sempre à mão e que programasse o número da delegacia para discagem rápida. Então notou a expressão no rosto de Lisey e lhe disse que poderia fazer isso, caso ela “não fosse familiarizada com aquela função”.

Lisey, que raramente usava o celular, levou o oficial Alston até o BMW. Descobriram que o aparelho estava com a carga pela metade, mas o carregador estava no console entre os bancos. O policial se esten­deu para desligar o isqueiro, viu as poucas cinzas espalhadas em volta dele e parou.

— Vá em frente — disse-lhe Lisey. — Pensei que iria retomar esse hábito, mas acho que mudei de idéia.

— Provavelmente uma boa escolha, senhora — disse o oficial Als­ton, sem sorrir. Ele tirou o isqueiro do Beemer e encaixou o telefone no seu lugar. Lisey não fazia idéia de que aquilo era possível; quando por um acaso se lembrava, sempre recarregava o pequeno Motorola na cozinha. Dois anos e ela ainda não tinha se acostumado direito com a idéia de que não havia nenhum homem por perto para ler o manual e desvendar o significado das Fig 1 e Fig 2.

Ela perguntou ao oficial Alston quanto tempo o telefone levaria para recarregar.

— Todo? Uma hora no máximo, talvez menos. A senhora estará com um telefone ao seu alcance enquanto isso?

— Sim, tenho que fazer algumas coisas no celeiro. Tem um lá.

— Ótimo. Assim que esse aqui recarregar, prenda-o no cinto ou na cintura da calça. Qualquer motivo de alarme, é só apertar a tecla 1 e bam, a senhora estará falando com um policial.

— Obrigada.

— Não por isso. E, como disse, eu virei conferir se está tudo bem. E essa vai ser a prioridade de Boeckman hoje à noite, a não ser que tenha que atender a uma chamada. O que é provável que aconteça — as noites de sexta são cheias em cidadezinhas como essa, mas a senhora tem o nos­so telefone e a sua discagem rápida, e ele vai sempre voltar para cá.

— Ótimo. Vocês tiveram alguma notícia do homem que vem me perturbando?

— Nem um pio, senhora — disse o oficial Alston, com bastante tranquilidade... mas é claro que podia ficar tranquilo, afinal, ele não tinha sofrido ameaça nenhuma, e muito provavelmente jamais sofreria. Tinha quase 2 metros de altura e devia pesar uns 110 quilos. Pode chegar a mais de 120, vestido e armado, teria acrescentado o pai dela; em Lis­bon, Dandy Debusher era famoso por aquele tipo de gracejo.

— Caso Andy fique sabendo de alguma coisa... quero dizer, o vice-xerife Clutterbuck, ele está no comando até o xerife Ridgewick voltar de lua-de-mel... tenho certeza de que irá informá-la imediata­mente. Portas fechadas quando estiver em casa, certo? Especialmente depois de anoitecer.

— Certo.

— E mantenha aquele telefone à mão.

— Pode deixar.

Ele ergueu o polegar e sorriu quando Lisey ergueu o dela em resposta.

— Vou pegar aquele gatinho agora. Aposto que a senhora está feliz em se livrar dele.

— Estou — disse Lisey, mas, na verdade, era do oficial Alston de quem queria se ver livre, pelo menos por enquanto. Para poder ir até o celeiro e olhar debaixo da cama. A que havia passado os últimos vin­te anos, mais ou menos, em um galinheiro caiado. A que eles tinham comprado

(mein gott)

na Alemanha. Na Alemanha onde tudo que pode dar errado dá errado.

Lisey não se recorda de onde ouviu essa frase, o que obviamente não tem importância, mas ela lhe vem à cabeça com cada vez mais fre­quência durante os nove meses deles em Bremen. Tudo que pode dar errado dá errado.

Tudo que pode, dá.

A casa na Bergenstrasse Ring Road fica exposta ao vento no ou­tono, é fria no inverno e cheia de goteiras quando o úmido e nublado arremedo de primavera finalmente dá as caras. Os dois chuveiros são temperamentais. A privada do térreo cacareja horrivelmente. O senho­rio faz promessas e depois pára de atender aos telefonemas de Scott. Finalmente, Scott contrata uma firma de advogados alemães que cus­ta uma fortuna — principalmente, segundo ele, porque não suporta a idéia de o senhorio filho-da-puta ficar impune, não suporta a idéia de deixá-lo vencer. O senhorio filho-da-puta, que às vezes pisca para Lisey deliberadamente quando Scott não está olhando (ela nunca ousou con­tar para Scott, que não tem senso de humor quando o assunto é o se­nhorio filho-da-puta), não vence. Sob ameaça de ser processado, ele faz alguns consertos: o teto pára de gotejar e a privada do térreo pára de dar suas terríveis gargalhadas à meia-noite. Chega até a trocar o aquecedor. Um milagre de olhos azuis. Então, aparece uma noite, bêbado, e grita com Scott numa mistura de alemão com inglês, chamando-o de escrevi­nhador ianque comunista, frase que seu marido guarda com carinho até a morte. Até que Scott, também longe de estar sóbrio (na Alemanha, Scott e a sobriedade mal trocavam cartões-postais), oferece um cigarro ao senhorio filho-da-puta, falando Vai fundo! Vai fundo, mein Führer, bitte, bitte! Naquele ano Scott está bebendo, Scott está fazendo piadas e Scott está ameaçando senhorios filhos-da-puta com advogados, mas Scott não está escrevendo. Não escreve porque está sempre bêbado ou está sempre bêbado porque não escreve? Lisey não sabe. Dá na mesma. Quando chega maio e seu ciclo de aulas finalmente, misericordiosa­mente, acaba, ela já não se importa mais. Quando chega maio, só quer estar em algum lugar em que as conversas no supermercado ou nas lojas da rua principal não lhe soem como as criaturas naquele filme, A Ilha do Dr. Moreau. Ela sabe que isso não é justo, mas também sabe que não conseguiu fazer uma só amizade em Bremen, nem mesmo entre as mu­lheres dos professores que sabem falar inglês, e que seu marido vive na Universidade. Ela passa tempo demais naquela casa exposta ao vento, enrolada em um xale, mas geralmente ainda com frio, quase sempre se sentindo sozinha e triste, assistindo a programas de tevê que não en­tende e ouvindo os caminhões chacoalharem ao fazerem o contorno no alto da colina. Os grandes, os Peugeots, fazem o chão tremer. O fato de Scott também estar infeliz, de as aulas não estarem dando certo e de as suas palestras serem quase desastrosas não ajuda nem um pouco. E, por Deus, por que ajudaria? Quem quer que tenha dito que a tristeza gosta de companhia falou uma grande merda. Já tudo que puder dar errado vai dar errado... esse cara sabia do que estava falando.

Quando Scott está em casa, ela o vê muito mais do que de costume, pois ele não sobe para o quartinho soturno que foi escolhido como seu escritório. A princípio, ele tenta escrever, porém, já em dezembro, seus esforços se tornaram esporádicos e, em fevereiro, ele desistiu por com­pleto. O homem que conseguia escrever em um Motel 6 com o tráfego de oito pistas martelando do lado de fora e uma festa de arromba acon­tecendo no andar de cima ficou total e completamente desengatilhado. Porém, ele não esquenta a cabeça com isso, não que ela veja. Em vez de escrever, passa longos, hilários e, por fim, cansativos fins de semana com sua mulher. Muitas vezes ela bebe com ele e fica bêbada com ele, porque além de trepar com ele essa é a única coisa em que consegue pensar. Em algumas tristes segundas-feiras de ressaca, Lisey fica até feliz em vê-lo sair de casa, embora, caso ele não volte antes das dez, ela sempre se de­bruce na janela da sala de estar que dá para a Ring Road, esperando an­siosamente pelo seu Audi alugado, se perguntando onde ele está e com quem está bebendo. O quanto está bebendo. Em alguns sábados, ele a convence a brincar vigorosamente de pique-esconde com ele no casarão frio, dizendo, com razão, que aquilo pelo menos os manterá aquecidos. Ou então eles se perseguem, subindo e descendo as escadas correndo, ou disparando pelos corredores em suas ridículas lederhosen, rindo como uma dupla de moleques chapados (isso sem falar tarados), gritando seus jargões alemães: Achtung!, Jawohl!, Ich habe Kopfschmerzen! e, com bas­tante frequência, Mein Gott! Na maioria das vezes, aquelas brincadeiras bobas acabavam em sexo. Com ou sem bebida (mas geralmente com), Scott sempre queria transar durante aquele verão e aquela primavera, e ela acredita que, antes de saírem da casa na Bergenstrasse, eles terão transado em todos os cômodos, na maioria dos banheiros (incluindo o da pavorosa privada gargalhante) e até em alguns dos armários. Todo aquele sexo é um dos motivos pelos quais ela nunca (bem, quase nunca) se preocupa que ele esteja tendo um caso, apesar das longas horas que passa fora de casa, apesar das bebedeiras, apesar do fato de ele não estar fazendo aquilo para o que foi feito, que é escrever histórias.

No entanto, é claro que ela também não está fazendo aquilo para o que foi feita e, às vezes, a consciência disso a atinge. Não pode dizer que ele tenha mentido, ou mesmo a enganado; não, não pode dizer isso. Havia lhe dito apenas uma vez, mas tinha sido perfeitamente claro: eles não poderiam ter filhos. Se ela achasse que precisava tê-los — e ele sabia que ela vinha de uma família grande —, então eles não poderiam se casar. Ele ficaria arrasado, mas, se ela pensasse assim, não haveria outro jeito. Tinha lhe dito isso debaixo da árvore nhami-nhami, que se fechara em volta deles sob a estranha neve de outubro. Ela só se permite recor­dar aquela conversa durante as solitárias tardes de dia de semana em Bremen, quando o céu sempre parece ser tão branco e a hora inexistente e os caminhões não param de passar chacoalhando e a cama treme sob seu corpo. A cama que ele comprou e futuramente insistirá em mandar de volta para os Estados Unidos. Muitas vezes ela se deita nela com o braço sobre os olhos, pensando que aquilo foi uma péssima idéia, apesar dos fins de semana hilariantes e do sexo apaixonado (febril, às vezes). Eles fizeram coisas na cama que ela não teria cogitado seis meses antes, e Lisey sabe que aquelas variações pouco têm a ver com amor; elas têm a ver com tédio, saudades de casa, álcool e com a tristeza. As bebedeiras dele, que sempre foram pesadas, agora começavam a assustá-la. Ela vê o inevitável desastre se aproximando, caso ele não segure a onda. E o vazio em seu útero começou a deixá-la deprimida. Eles fizeram um acordo, sim, claro, mas, debaixo da árvore nhami-nhami, ela não compreendia totalmente que os anos passam e o tempo pesa. Talvez ele volte a escre­ver quando retornarem para os Estados Unidos, mas o que ela vai fazer? Ele nunca mentiu para mim, pensa ela, deitada na cama de Bremen com o braço sobre os olhos; no entanto, ela vislumbra um tempo — não tão distante — em que este fato não será suficiente, e essa perspectiva a apavora. As vezes, ela deseja nunca ter se sentado debaixo daquela joça de salgueiro com Scott Landon.

Às vezes, deseja nunca tê-lo conhecido.

 

— Isso não é verdade — sussurrou ela no celeiro coberto de sombras, porém sentiu o peso morto do escritório sobre sua cabeça desmentir aquilo; todos aqueles livros, todas aquelas histórias, toda aquela vida extinta. Não se arrependia do seu casamento, mas, sim, às vezes desejava nunca ter conhecido seu marido perturbador e perturbado. Desejava ter conhecido alguma outra pessoa. Um pacato e gentil programador, por exemplo, um sujeito que ganhasse 70 mil por ano e que tivesse lhe dado três filhos. Dois meninos e uma menina, um já adulto e casado, dois ainda estudando. Porém, não foi aquela vida que ela encontrou. Ou pela qual foi encontrada.

Em vez de ir direto para a cama de Bremen (o que parecia afoba­ção demais), Lisey foi até o seu patético arremedo de escritório, abriu a porta e o examinou. O que queria fazer lá dentro se Scott escrevia sua histórias no andar de cima? Não conseguia se lembrar, mas sabia o que a atraíra para lá: a secretária eletrônica. Olhou para o 1 vermelho brilhan­do no painel com a indicação MENSAGENS NÃO OUVIDAS e se perguntou se deveria chamar o oficial Alston para ouvi-la. Decidiu que não. Se fosse Dooley, poderia tocá-la para ele depois.

É claro que é Dooley, quem mais seria?

Ela se preparou para mais ameaças ditas naquela voz calma e superficialmente racional e apertou PLAY. Logo em seguida, uma jovem chamada Emma lhe explicava a extraordinária economia que Lisey po­deria fazer trocando para a operadora MCI. Lisey interrompeu aquela eufórica mensagem na metade, apertou APAGAR e pensou: Era uma vez a intuição feminina.

Ela saiu rindo do escritório.

 

Lisey olhou para o vulto embrulhado da cama de Bremen sem tristeza ou nostalgia, embora calculasse que ela e Scott tivessem feito amor nela — ou trepado; não conseguia se lembrar quanto de amor houvera no período SCOTT E LISEY NA ALEMANHA — centenas de vezes. Centenas? Seria aquilo possível durante meros nove meses, especialmen­te quando alguns dias, às vezes todos os dias da semana, ela não o via das sete da manhã, quando ele saia quase dormindo de casa com sua pasta batendo no joelho, até a hora em que voltava arrastando os pés, geralmente meio de fogo, às dez ou quinze para as onze da noite? Ela imaginava que sim, se você passava fins de semana inteiros no que Scott às vezes chamava de “fodelança”. Por que ela teria qualquer simpatia por aquela silenciosa monstruosidade coberta de lençóis, por mais ve­zes que tivessem quicado em cima dela? Lisey tinha mais motivos para odiá-la, pois sabia de uma maneira que não era intuitiva, e sim obra de uma lógica inconsciente (Lisey é inteligente pra diabo, desde que não pense no assunto, ela ouvira Scott falar para alguém numa festa, sem saber se deveria se sentir lisonjeada ou envergonhada), que o casamento deles quase acabara naquela cama. Que se dane como o sexo tinha sido bom e sacana, ou que ele a tivesse comido até levá-la a orgasmos múltiplos sem o menor esforço e lambido seu cu até ela achar que enlouqueceria com o prazer latejante que aquilo lhe dava; que se dane o lugar que ela encontrou, o que ela podia tocar antes de ele gozar, e que às vezes o fa­zia apenas tremer, mas, às vezes, o fazia gritar, e aquilo a arrepiava toda, mesmo quando ele estava bem no fundo dela e quente como... bem, quente como um alto-forno. Ela achava correto que a maldita coisa estivesse embrulhada como um enorme cadáver, pois — pelo menos na sua memória — tudo que tinha acontecido entre os dois nela tinha sido errado e violento, como se o pescoço do casamento deles fosse estrangu­lado uma vez atrás da outra. Amor? Fazer amor? Talvez. Talvez algumas vezes. Em sua maioria, o que ela se lembrava era de uma trepada braba depois da outra. Asfixia... e alívio. Asfixia... e alívio. E a cada vez demo­rava mais para a coisa que era Scott-e-Lisey voltar a respirar. Finalmen­te, eles foram embora da Alemanha. Pegaram o QE2 em Southampton para Nova York e, no segundo dia de viagem, ela voltou de um passeio no convés e parou em frente à cabine particular deles com a chave na mão e a cabeça inclinada, escutando. De dentro, vinham os estalidos lentos, porém constantes, da sua máquina de escrever, e Lisey sorriu.

Ela não se permitiu acreditar que estava tudo bem, mas, parada diante daquela porta, ouvindo seu recomeço, teve certeza de que tudo poderia ficar. E estava certa. Quando ele lhe disse que tinha providencia­do que a Cama Mein Gott, como gostava de chamá-la, fosse mandada para os Estados Unidos, ela não disse nada, sabendo que eles jamais dor­miriam ou fariam amor nela novamente. Se Scott sugerisse isso — Zó mais uma vez, Lizzie, peloz velhoz tempoz! — ela teria se recusado. Na verdade, o teria mandado se danar. Não conseguia pensar em um me­lhor exemplo de móvel mal-assombrado.

Aproximou-se dela, ajoelhou-se, jogou para trás a bainha da colcha que a cobria e olhou embaixo. E lá, naquele espaço bolorento e fechado para o qual o cheiro de cocô de galinha velho tinha se arrastado de volta (como um cachorro para o próprio vômito, pensou ela), estava o que vinha procurando.

Lá nas sombras, estava a caixa de cedro da Mãezinha Querida.

 

Lisey e Scott

(Debaixo da Árvore Nhami-nhami)

Ela havia acabado de entrar na cozinha ensolarada com a caixa de cedro entre os braços quando o telefone começou a tocar. Colocou a caixa na mesa e o atendeu com um alô desatento, sem temer mais a voz de Jim Dooley. Se fosse ele, ela simplesmente lhe diria que havia chamado a polícia e desligaria. Estava muito ocupada para ter medo.

Era Darla, não Dooley, ligando da Sala de Visitas da Greenlawn, e Lisey não ficou exatamente surpresa ao descobrir que Darla se sen­tia culpada por ter ligado para Canty em Boston. E se tivesse sido o contrário, Canty no Maine e Darla em Boston? Lisey achou que daria quase na mesma. Não sabia o quanto Canty e Darla ainda se gosta­vam, mas elas ainda recorriam uma à outra da mesma forma que bê­bados recorrem à bebida. Quando eram crianças, Mãezinha Querida costumava dizer que, se Cantata ficasse gripada, Darla se encarregava da febre.

Lisey tentou dar todas as respostas certas, como fizera mais cedo ao telefone com Canty, e pela mesmíssima razão: para poder deixar aquele cocô para trás e cuidar da sua vida. Ela imaginava que voltaria a se im­portar com suas irmãs mais tarde — esperava que sim —, mas, naquele instante, a consciência pesada de Darla lhe era tão indiferente quanto o estado zumbificado de Amanda. Ou quanto o paradeiro de Jim Dooley, pensando bem, desde que não estivesse no mesmo lugar que ela, bran­dindo uma faca.

Não, ela assegurou a Darla, ela não tinha feito mal em ligar para Canty. Sim, fez bem em falar para Canty continuar em Boston. E, sem dúvida, Lisey estaria disposta a visitar Amanda mais tarde.

— É horrível — falou Darla e, a despeito da sua própria preocu­pação, Lisey reconheceu a tristeza na voz da irmã. — Ela está horrível. — Então, imediatamente, atropelando as palavras: — Quero dizer, não é bem assim, é claro que ela não está horrível, mas é horrível vê-la. Ela fica parada o tempo todo, Lisey. O sol estava batendo num lado do rosto dela quando eu entrei, o sol da manhã, e a pele dela parecia tão cinza e velha...

— Acalme-se, querida — disse Lisey, correndo as pontas dos dedos sobre a superfície macia e envernizada da caixa da Mãezinha Querida. Mesmo fechada, ela conseguia sentir seu cheiro doce. Quando a abrisse, se inclinaria para a frente, mergulhando naquele aroma, e seria como se inalasse o passado.

— Eles a estão alimentado por um tubo — falou Darla. — Ficam colocando e tirando. Se ela não começar a comer por conta própria, acho que vão ter que deixá-lo o tempo todo. — Ela deu uma longa e úmida fungada. — Eles a estão alimentando por um tubo e ela já está tão magra e não fala e eu conversei com uma enfermeira que disse que às vezes eles fi­cam anos assim, às vezes nunca voltam, Lisey, não sei se eu vou aguentar.

Lisey abriu um pequeno sorriso ao ouvir isso, enquanto movia os dedos para as dobradiças na parte de trás da caixa. Era um sorriso de alívio. Lá estava Darla, a Rainha do Drama, Darla, a Diva, e isso sig­nificava que estavam em terreno conhecido, duas irmãs com roteiros mais que batidos nas mãos. E, de um lado da linha, Darla, a Sensível. Aplausos, senhoras e senhores. E, do outro, a Pequena Lisey, Baixinha porém Durona. Vamos ouvir o que ela tem a dizer.

— Estarei aí hoje à tarde, Darla, e vou conversar de novo com o dr. Alberness. Eles terão uma melhor noção do quadro dela até lá...

Darla, incrédula:

— Você acha mesmo?

Lisey, sem fazer a menor idéia:

— Com certeza. E o que você tem que fazer é ir para casa e botar as pernas para cima. Talvez tirar um cochilo.

Darla, em um tom dramático de proclamação:

— Oh, Lisey, eu jamais conseguiria dormir!

Por Lisey, Darla poderia comer, apertar um baseado ou cagar em cima das begônias. Ela só queria sair do telefone.

— Bem, querida, volte para casa e relaxe um pouco assim mesmo. Tenho que desligar, estou com um negócio no forno.

Darla ficou imediatamente encantada.

— Oh, Lisey. Você? — Lisey achou isso extremamente irritante, como se ela nunca tivesse cozinhado nada mais trabalhoso na vida do que... bem, macarrão instantâneo. — É bolo de banana?

— Quase. Bolo de amora. Tenho que dar uma olhada nele.

— Mas você vem visitar Manda mais tarde, não vem? Lisey teve vontade de gritar. Em vez disso, falou:

— Vou. Hoje à tarde.

— Bem, então... — A dúvida estava de volta. Convença-me, dizia ela. Continue no telefone mais uns 15 minutos para me convencer. — Acho que vou para casa.

— Boa. Tchau, Darl.

— E você não acha mesmo que eu fiz mal em ligar para Canty?

Não! Ligue pro Bruce Springsteen! Ligue para Hal Holbrook! Ligue para a joça da Condi Rice! Só ME DEIXE EM PAZ!

— Não mesmo. Acho que você fez bem. Você pode mantê-la... — Lisey pensou no Bloquinho de Compulsões de Amanda. — Mantê-­la por dentro de tudo.

— Bem... o.k. Tchau, Lisey. Até mais tarde, então.

— Tchau, Darl.

Clique.

Finalmente.

Lisey fechou os olhos, abriu a caixa e inalou o perfume forte de cedro. Por um instante, se permitiu ter 5 anos novamente, vestindo um dos shorts velhos de Darla e suas próprias botinhas de caubói, surradas, porém adoradas, aquelas com as alças rosas desbotadas do lado.

Então olhou dentro da caixa para ver o que havia lá e aonde ela a levaria.

 

Em cima, havia um embrulho de alumínio, com uns 10 centímetros de largura e uns 5 de profundidade. Dois calombos saltavam dele, arredon­dando-o. Quando o levantou, ainda não sabia o que era, então sentiu um leve aroma de hortelã — será que não o havia sentido antes, junto com o cheiro da caixa? — e se lembrou mesmo antes de desembrulhar um lado e ver a fatia dura como pedra de um bolo de casamento. Enfia­das nela, havia duas figuras de plástico: um boneco de fraque e cartola e uma boneca com um vestido de noiva branco. Lisey tinha pretendido guardar a fatia por um ano e depois dividi-la com Scott no primeiro aniversário deles. Não era essa a superstição? Se fosse assim, deveria tê-la guardado no freezer. Em vez disso, tinha acabado ali.

Lisey tirou uma casquinha da cobertura com a unha e a colocou na boca. Quase não tinha gosto, só um fantasma de doçura e o último sussurro mortiço de hortelã. Eles haviam se casado na capela Newman da Universidade do Maine, numa cerimônia civil. Todas as suas irmãs vieram, inclusive Jodi. Lincoln, o irmão vivo de Papai Debusher, veio de Sabbatus para entregar a noiva. Os amigos de Scott da Pitt e da UMO estavam presentes, e seu agente literário foi o padrinho. Ninguém da família Landon, é claro; a família de Scott estava morta.

Sob a fatia petrificada de bolo havia um par de convites de casamen­to. Eles haviam dividido a tarefa de escrevê-los à mão, e ela guardara um de Scott e um dela. Debaixo deles, havia uma caixa de fósforos de lem­brança. Tinham pensado em imprimir tanto os convites quanto as caixas de fósforos, uma despesa com a qual provavelmente poderiam ter arcado, embora o dinheiro das vendas de Demônios Vazios ainda não tivesse come­çado a entrar, mas, no fim das contas, preferiram escrever à mão, por ser mais intimista (isso sem falar pitoresco). Ela se lembrava de ter comprado uma caixa lisa com cinquenta fósforos de papel no IGA de Cleaves Mills e desenhado as letras com uma esferográfica vermelha. A caixa de fósforos na sua mão era muito provavelmente a última da sua tribo e ela a exami­nou com a curiosidade de uma arqueóloga e a dor de uma amante.

 

Scott e Lisa Landon

19 de novembro de 1979

“Agora somos dois”

 

Lisey sentiu lágrimas alfinetarem seus olhos. Agora somos dois ti­nha sido idéia de Scott, que disse ser uma brincadeira com o título de um livro do Ursinho Puff.* Ela se lembrou imediatamente sobre qual ele estava falando — quantas vezes não tinha insistido que Jodotha ou Amanda lesse para ela e a transportasse para a Floresta dos Cem Acres? — e achou que Agora somos dois era brilhante, perfeito. Beijara-o por isso. Agora mal suportava olhar para a caixa de fósforos com aquele lema estupidamente corajoso. Aquele era o fim do arco-íris, agora ela era uma, e que número idiota era aquele. Ela enfiou a caixa de fósforos no bolso do peito da blusa e então secou as lágrimas das bochechas — algumas tinham caído, no fim das contas. Ao que parecia, investigar o passado era de chorar.

O que está acontecendo comigo?

Ela teria pagado o preço do seu Beemer, que era bem caro, e mais ainda para saber a resposta aquela pergunta. Parecia que estava tão bem! Tinha lamentado a morte dele e seguido em frente; deixado o luto para trás e seguido em frente. Por mais de dois anos, a velha ladainha pa­recia ser verdade: eu me viro muito bem sem você. Então começara o trabalho de limpar o escritório dele e aquilo tinha acordado seu fantas­ma, não de forma sobrenatural, etérea, mas dentro dela. Ela até sabia quando e onde havia começado: no fim do primeiro dia, naquele canto não-exatamente-triangular que Scott gostava de chamar de cantinho da memória. Era lá que os prêmios literários estavam pendurados na parede, menções honrosas envidraçadas: seu National Book Award, seu Pulitzer de ficção, seu World Fantasy Award por Demônios Vazios. E então o que aconteceu?

— Eu quebrei — disse Lisey numa voz fraca e assustada, e fechou novamente o alumínio sobre a fatia fossilizada de bolo de casamento.

Aquela era a palavra. Ela quebrou. Não lembrava com toda clareza do que fizera, apenas de que tudo começara porque ela estava com sede. Foi pegar um copo d'água naquela joça de bar anexo idiota — idiota porque Scott não bebia mais, embora suas aventuras com o álcool ti­vessem durado muito mais anos do que seu caso com os cigarros — e a água não saía, não saía nada além do enlouquecedor som de descarga dos canos cuspindo jatos de ar, e ela poderia ter esperado pela água, uma hora ela teria vindo, mas, em vez disso, ela fechou as torneiras e voltou para o limiar entre o bar anexo e o tal cantinho da memória, e a luz esta­va acesa, mas era do tipo com reostato e estava regulada para ficar fraca. Com a luz daquele jeito tudo parecia normal — tudo na mesma, rá-rá. Você quase esperava que ele abrisse a porta da escada do lado de fora, entrasse, colocasse a música no máximo e começasse a escrever. Como se não tivesse ficado desengatilhado para sempre. E o que ela esperava sentir? Tristeza? Nostalgia? Será? Algo tão civilizado e elegante quanto nostalgia? Se fosse, aquilo era de rolar de rir, pois o que tomou conta dela, ao mesmo tempo quente como uma febre e frio como gelo, foi

 

O que toma conta dela — da prática Lisey, da sempre tranquila Lisey (exceto talvez no dia em que teve que brandir a pá de prata e, mesmo naquele dia, ela se gaba de ter mantido o controle), a pequena Lisey, que mantém a cabeça no lugar quando todo mundo ao redor está perdendo a sua —, o que toma conta dela é uma espécie de raiva incontrolável e crescente, uma ira divina que parece empurrar sua mente de lado e pos­suir seu corpo. No entanto (ela não sabe se isso é um paradoxo ou não), essa fúria parece clarear seus pensamentos, só pode, pois ela compreende afinal. Dois anos é muito tempo, mas a ficha finalmente cai. Ela saca a parada. Ela vê a luz.

Ele bateu as botas, como se diz. (Gostou dessa?)

Ele foi pro beleléu. (Se amarrou nessa?)

Ele está comendo sanduíche de terra. (Esse é um grandão que eu peguei no lago em que todos vamos beber e pescar.)

E quando você coloca tudo na balança, o que resta? Ora, ele a deixou na pista. Deu um pé na bunda dela. Botou sebo nas canelas e deu o fora, pegou o trem e saiu da cidade. Zarpou para os Territórios. Abandonou a mulher que o amava com cada célula do seu corpo e cada neurônio que tinha na sua cabeça não-tão-inteligente-assim e tudo que lhe resta é essa joça... inútil... de... casulo.

Ela quebra. Lisey quebra. À medida que dispara em direção à joça do seu cantinho da memória estúpido, parece ouvi-lo falar ESPANE, babyluv — Engatilhe Sempre que Parecer Necessário, então a voz some e ela começa a arrancar suas placas, fotografias e menções honrosas emol­duradas das paredes. Apanha o busto de Lovecraft que os jurados do World Fanstasy Award deram a ele por Demônios Vazios, aquele livro horroroso, e o atira do outro lado do escritório, gritando: “Vá se foder, Scott, Vá se foder!” Aquela é uma das poucas vezes em que usa a palavra na sua forma, sem eufemismos, desde a noite em que ele quebrou o vi­dro da estufa com a mão, a noite do bool de sangue. Tinha sentido raiva dele então, mas nunca sentira tanta raiva quanto naquele instante; se ele estivesse lá, poderia tê-lo matado novamente. Ela está completamen­te fora de controle, arrancando todas aquelas inutilidades presunçosas das paredes até elas ficarem nuas (poucas das coisas que joga no chão quebram por conta do carpete grosso — sorte sua, pensará ela quando a sanidade retornar). Enquanto rodopia sem parar, como um verdadei­ro tornado, ela repete o nome dele aos berros, gritando Scott e Scott e Scott, chorando de tristeza, chorando de raiva; pedindo aos prantos para ele explicar por que a abandonou daquele jeito, pedindo aos prantos para que ele volte, oh, volte. Que se dane tudo na mesma, nada está na mesma sem ele, ela o odeia, sente falta dele, há um buraco dentro dela, um vento ainda mais frio do que o que soprava lá de Yellowknife agora sopra através dela, o mundo fica tão vazio e tão sem amor quando não há ninguém para gritar seu nome e te gritar de volta para casa. Por fim, ela agarra o monitor do micro que fica no cantinho da memória e algo em suas costas dá um estalo de aviso quando ela o levanta, mas que se danem suas costas, as paredes nuas caçoam dela e ela está furiosa. Gira desajeitadamente com o monitor nos braços e o atira contra a parede. Ouve-se um barulho surdo de algo se quebrando — PLUFT! — e, en­tão, silêncio novamente.

Não, dá para ouvir grilos lá fora.

Lisey desaba no carpete entulhado, soluçando baixinho, exaurida. E consegue ela de alguma forma chamá-lo de volta? Consegue ela trazê­lo de volta para sua vida pela força da sua dor raivosa e tardia? Teria ele voltado como água através de um cano há muito vazio? Ela acha que a resposta a isso é

 

— Não — murmurou Lisey. Porque, por mais louco que parecesse, aparentemente Scott vinha espalhando as estações daquela caça ao bool para ela muito antes de morrer. Ao entrar em contato com o dr. Alber­ness, por exemplo, que calhou de ser um prefeitamente eita-norme fã. Ao conseguir, de alguma forma, pegar o histórico médico de Amanda e levá-lo para o almoço, pelo amor de Deus. E, então, o toque final: O sr. Landon disse que, se um dia eu a encontrasse, deveria lhe perguntar sobre como ele enganou a enfermeira daquela vez em Nashville.

E... ao colocar a caixa de cedro da Mãezinha Querida debaixo da cama de Bremen lá no celeiro? Porque com certeza tinha sido Scott, ela sabia que jamais a colocara ali.

1996?

(psiu)

No inverno de 1996, quando a mente de Scott entrou em colapso e ela teve

(CALE-SEAGORA MESMO, LISEY!)

Certo... certo, não falaria nada sobre o inverno de 96 — por en­quanto —, mas parecia fazer sentido. E...

Uma caça ao bool. Mas por quê? Qual era o propósito? Para lhe permitir encarar em etapas algo que ela não conseguiria encarar de uma só vez? Talvez. Provavelmente. Scott entenderia desse tipo de coisa, certamente sentiria afinidade por uma mente disposta a esconder suas recordações mais terríveis atrás de cortinas ou confiná-las em caixas cheirosas.

Um bool bom.

Oh, Scott, o que há de bom nisso? O que há de bom em toda essa dor e tristeza?

Um bool curto.

Se fosse verdade, a caixa de cedro era o fim ou algo perto disso, e Lisey tinha um palpite de que, se continuasse procurando, não haveria volta.

Baby, suspirou ele... mas apenas na cabeça dela. Não existiam fan­tasmas. Apenas recordações. Apenas a voz de seu marido morto. Ela acreditava naquilo; sabia daquilo. Podia tampar a caixa. Podia fechar a cortina. Podia deixar o passado ser passado.

Babyluv.

Scott sempre tem a última palavra. Mesmo depois de morto, ele sempre tem a última palavra.

Ela suspirou — um som infeliz e solitário aos seus ouvidos — e decidiu prosseguir. Fazer o papel de Pandora, afinal.

 

A única outra coisa que tinha escondido lá dentro do dia do casamento de baixo orçamento e não-religioso (mas que durara apesar de tudo isso, durara muito bem) era a fotografia tirada na recepção, no The Rock — o bar de rock-and-roll mais vulgar, barulhento e pé-de-chine­lo de Cleaves Mills. A foto mostrava Scott e ela na pista, no começo da primeira dança dos dois. Ela estava com seu vestido branco de renda, Scott com um terno preto liso — Meu terno de agente funerário, como ele o chamava —, que havia comprado especialmente para a ocasião (e que usara repetidas vezes na turnê promocional de Demônios Vazios naquele inverno). Ao fundo, ela conseguia ver Jodotha e Amanda, as duas inacreditavelmente jovens e bonitas, os cabelos armados e as mãos congeladas no meio de um aplauso. Lisey estava olhando para Scott, que sorria para ela, com as mãos na sua cintura e, meu Deus, como o cabelo dele era longo, quase batendo nos ombros, havia esquecido daquilo.

Lisey acariciou a superfície da fotografia com as pontas dos dedos, passando-as por cima das pessoas que haviam sido lá em SCOTT E LI­SEY, O COMEÇO! , e descobriu que conseguia se lembrar até do nome da banda de Boston (The Swinging Johnsons, muito engraçado) e da música que dançaram na frente dos seus amigos: um cover de “Too Late to Turn Back Now”,* dos Cornelius Brothers e Sister Rose.

— Oh, Scott — disse ela. Outra lágrima escorreu pela sua boche­cha e ela a limpou distraída. Então colocou a foto na mesa da cozinha ensolarada e vasculhou mais fundo. Havia uma pequena pilha de me­nus, guardanapos de bar e caixas de fósforos de motéis do Meio-Oeste, além de um programa da Universidade de Indiana, em Bloomington, anunciando uma leitura de Demônios Vazios, de Scott Linden. Ela se lembrava de ter guardado aquele por causa do erro ortográfico, lhe di­zendo que um dia valeria uma fortuna, ao que Scott respondeu: Espere sentada, babyluv. A data no programa era 19 de março de 1980... então onde estavam as lembranças do Anders? Ela não tinha pegado nada? Naquela época, quase sempre pegava alguma coisa, era uma espécie de hobby, e ela poderia jurar...

Ela levantou o programa “Scott Linden” e, debaixo dele, havia um menu roxo escuro com The Antlers e Rome, New Hampshire estampa­do em dourado. E ela conseguia ouvir Scott com tanta clareza que era como se ele estivesse falando no seu ouvido: Em Roma, faça como os romanos. Tinha dito aquilo naquela noite na sala de jantar (vazia exceto por eles e uma só garçonete) ao pedir o Especial da Casa para os dois. E novamente, mais tarde, na cama, enquanto cobria seu corpo nu com o dele.

— Eu me dispus a pagar por isso -— murmurou ela, erguendo o menu para sua cozinha ensolarada e vazia — e o cara disse que eu podia simplesmente levar. Porque éramos os únicos hóspedes. E por causa da tempestade de neve.

Aquela estranha tempestade de neve em outubro. Tinham ficado duas noites em vez de apenas uma, conforme o planejado, e, na segun­da, ela ficara acordada muito depois de Scott ter dormido. A frente fria que trouxera a neve fora de época já estava passando e ela conseguia ouvi-la se derreter, pingando dos beirais. Ficara deitada naquela cama estranha (a primeira de tantas camas estranhas que havia dividido com Scott), pensando em Andrew “Sparky” Landon, e Paul Landon, e Scott Landon -— Scott, o sobrevivente. Pensando em bools. Bools bons e bools de sangue.

Pensando sobre a roxidão. Pensando naquilo também.

Em algum momento, as nuvens se abriram e o quarto foi inundado por um luar cheio de vento. Sob aquela luz, ela finalmente adormeceu. No dia seguinte, um domingo, eles atravessaram de carro o interior, que estava voltando do inverno para o outono, e, menos de um mês depois, estavam dançando ao som dos Swinging Johnsons: “Too Late to Turn Back Now.”

Ela abriu o menu estampado em dourado para ver qual tinha sido o Especial da Casa naquela noite distante e a fotografia caiu. Lisey se lembrou dela imediatamente. O dono do lugar a havia tirado com a pequena Nikon de Scott. O cara tinha desencavado dois pares de sa­patos de neve (os esquis dele ainda estavam em um depósito em North Conway, junto com os quatro carros de neve) e insistiu que Scott e Lisey fizessem uma caminhada pela trilha atrás da pousada. A floresta é mágica na neve, Lisey se lembrava de ele ter falado, e ela será toda de vocês, nenhum esquiador ou máquina a vista. É uma chance única.

Ele chegara a preparar um almoço de piquenique para os dois, com uma garrafa de vinho tinto por conta da casa. E lá estavam eles, enfiados em calças de neve, parcas e protetores de orelhas que a amável mulher do sujeito lhes arranjara (a parca de Lisey comicamente grande demais, a bainha indo até os seus joelhos), parados para a foto em frente a uma hospedaria do interior no que parecia uma nevasca hollywoodiana, com sapatos de neve e sorrindo como uma dupla de bobos alegres. A mochila que Scott carregava com o almoço deles e a garrafa de vinho também era emprestada. Scott e Lisey, rumo à árvore nhami-nhami, embora nenhum dos dois soubesse ainda. Rumo a uma viagem pela Estrada da Memória. Só que, para Scott Landon, a Estrada da Memória era o Beco da Monstruosidade, e não era de espantar que ele não quisesse visitá-lo com frequência.

Mesmo assim, pensou ela, passando as pontas dos dedos sobre aque­la fotografia como o fizera com a da dança nupcial, você devia saber que teria que visitá-lo pelo menos uma vez antes de eu me casar contigo, por pior que fosse. Tinha algo para me dizer, não tinha? A história que sustenta­ria sua condição inapelável. Deve ter passado semanas procurando o lugar certo. E, quando viu aquela árvore, aquele salgueiro tão curvado pela neve que fazia uma gruta, não teve dúvidas de que o havia encontrado e que não podia mais adiar. Fico imaginando o quanto você estava nervoso. O quanto temia que eu o escutasse e depois dissesse que, então, não queria me casar.

Lisey pensou que ele tinha ficado nervoso, sim. Lembrava-se do silêncio dele no carro. Não tinha até pensado que havia algo em sua cabeça? Claro, pois Scott era sempre tão falante.

— Mas você já devia me conhecer bem o suficiente àquela altura... — ela começou a falar, então se interrompeu. O bom de falar sozinho é que, na maioria das vezes, você não precisa terminar o que está di­zendo. Em outubro de 1979, ele já devia conhecê-la bem o suficiente para acreditar que ela ficaria. Que diabo, quando não recebeu um pé na bunda depois de ter esfacelado a mão na janela da estufa, ele deve ter se convencido de que ela estava naquela pra valer. Porém, será que tinha ficado nervoso com o fato de expor aquelas velhas memórias, de tocar naquelas feridas antigas? Na opinião de Lisey, ele tinha ficado mais que nervoso. Tinha ficado totalmente apavorado.

Mesmo assim, ele havia soltado a sua mão enluvada, apontado e dito:

— Vamos comer ali, Lisey... vamos para debaixo daquele...

 

— Vamos comer debaixo daquele salgueiro — diz ele, e Lisey está mais que disposta a concordar com aquele plano. Primeiro, porque está morrendo de fome. Segundo, porque suas pernas, principalmente as panturrilhas, estão doendo por estar desacostumada ao exercício que é usar os sapatos de neve: levantar, girar e sacudir... levantar, girar e sacudir. No entanto, o que mais quer é descansar a vista da neve que não pára de cair. A caminhada tinha sido exatamente tão deslumbrante quanto havia prometido o dono da pousada e a quietude é algo que ela acha que vai lembrar pelo resto da vida, os únicos ruídos são os dos seus sapatos esmagando a neve, o som da respiração deles e as in­cansáveis bicadas de um pica-pau distante. Mesmo assim, a enxurrada (não há outra palavra para aquilo) constante de enormes flocos de neve começou a preocupá-la. Ela está caindo tão grossa e rápida que emba­ralhou sua habilidade de se concentrar, o que a deixa desorientada e um pouco tonta. O salgueiro fica na beirada de uma clareira e com as frondes ainda verdes pendendo para baixo por conta da capa grossa e branca de neve.

É fronde que se fala?, indaga-se Lisey e pensa em perguntar para Scott depois do almoço. Scott vai saber. Ela nunca chega a perguntar. Outras questões entram no caminho.

Scott se aproxima do salgueiro e Lisey o acompanha, levantando os pés e girando-os para sacudir os sapatos de neve, no encalço do seu noivo. Quando chega à árvore, Scott abre as frondes — ou galhos, o que seja — cobertas de neve como uma cortina e olha para dentro. A bunda vestida de jeans dele aponta convidativamente na sua direção.

— Lisey! — diz ele. — Olha, que legal! Espere só até você...

Ela levanta o Sapato de Neve A e o enfia na Bunda Vestida de Jeans B. O Noivo C desaparece imediatamente dentro do Salgueiro Coberto de Neve D (com um palavrão de surpresa). É divertido, muito diverti­do, e Lisey começa a rir parada na neve que cai. Está coberta dela; até seus cílios estão pesados.

— Lisey? — de dentro do guarda-chuva branco e curvado.

— Que foi, Scott?

— Está me vendo?

— Não — diz ela.

— Chegue um pouco mais perto, então.

Ela chega, seguindo suas pegadas, sabendo o que esperar; porém, quando o braço dele sai do meio da cortina de neve e agarra seu pulso, ela ainda se surpreende e solta um grito em meio às risadas, porque está um pouco mais do que espantada; na verdade, sente um pouco de medo. Ele a puxa para frente e a brancura fria passa correndo pelo seu rosto, cegando-a por um instante. Está com o capuz da parca jogado para trás e neve lhe escorre pelas costas, gelando sua pele quente. Os protetores de orelha ficam tortos. Ela ouve um vuuup abafado à medida que o acúmulo pesado de neve cai da árvore em suas costas.

— Scott! — arqueja ela. — Scott, você me assus... — Mas não continua.

Ele está ajoelhado diante dela, o capuz da sua própria parca jogado para trás, revelando uma cachoeira de cabelos quase tão longos quanto os dela. Está com os protetores de orelha em volta do pescoço, como fones de ouvido. A mochila está do seu lado, recostada no tronco. Ele a encara, sorrindo, esperando que ela entenda. E ela entende. Entende muito bem. Qualquer um entenderia, pensa.

É um pouco como receber permissão para entrar na cabana em que sua irmã mais velha Amanda brincava, junto com as amigas, de serem meninas piratas...

Mas não. É melhor do que isso, porque aquele lugar não cheira a madeira antiga, revistas úmidas e cocô de rato velho e mofado. É como se ele a tivesse levado para um mundo completamente diferente, puxa­do-a para dentro de um círculo secreto, um domo de teto branco que não pertencesse a ninguém além deles. Tem uns 6 metros de diâmetro. No centro, o tronco do salgueiro. A grama que cresce a partir dele ainda é a grama perfeita do verão.

— Oh, Scott — diz ela, e não sai vapor algum de sua boca. Está quente lá dentro, percebe. A neve presa nos galhos envergados isolou o interior. Ela abre o casaco.

— Legal, né? Agora ouça o silêncio.

Ele se cala. Ela também. A princípio, pensa não haver som algum, mas não é verdade. Existe um. Ela consegue ouvir uma batida lenta abafada por veludo. E o seu coração. Ele estende o braço, tira suas luvas, pega-lhe as mãos. Beija as duas palmas, bem no centro delas. Por um instante, nenhum dos dois diz nada. E Lisey quem quebra o silêncio; sua barriga ronca. Scott cai na gargalhada, jogando-se para trás contra o tronco da árvore e apontando para ela.

— Eu também — diz ele. — Queria arrancar essas suas calças de neve e te comer aqui dentro, Lisey, afinal, está quente o bastante, mas, depois de todo esse exercício, estou faminto demais.

— Talvez mais tarde — diz ela, sabendo que mais tarde quase cer­tamente estará cheia demais para transar, mas tudo bem; se a neve con­tinuar, quase certamente passarão outra noite lá no Anders, o que, para ela, não tem problema.

Ela abre a mochila e serve o almoço. Ele consiste em dois grossos sanduíches de frango (com muita maionese), salada e duas fatias gran­des do que descobrem ser torta de passas.

— Nhami — diz ele enquanto ela lhe dá um dos pratos de papel.

— É claro — diz ela. — Estamos debaixo da árvore nhami-nhami.

Ele ri.

— Debaixo da árvore nhami-nhami. Gostei. — Então seu sorriso desaparece e ele a encara solenemente. — É gostoso aqui, não é?

— É, Scott. Muito gostoso.

Ele se inclina sobre a comida; ela se inclina ao seu encontro; eles se beijam sobre a salada.

— Eu te amo, pequena Lisey.

— Eu também te amo.

E, naquele instante, escondidos do mundo naquele círculo de si­lêncio verde e secreto, ela o ama como nunca. Isto é agora.

 

Apesar de se dizer faminto, Scott come apenas metade do seu sanduíche e belisca a salada. Nem encosta na torta de passas, mas bebe mais do que a sua metade da garrafa de vinho. Lisey come com mais apetite, mas com menos do que pensou que comeria. A ansiedade a mordisca por dentro como um verme. Vai ser difícil para Scott contar o que se passa na sua cabeça e talvez mais difícil ainda para ela ouvir. O que a deixa mais ansiosa é que não consegue imaginar o que seja. Algum problema com a lei lá na cidadezinha do oeste da Pensilvânia em que ele cres­ceu? Um filho que ele tenha feito, talvez? Ou algum tipo de casamento adolescente, uma coisa feita às pressas, que terminou em divórcio ou anulação dois meses depois? Será que tem a ver com Paul, o irmão que morreu? Seja o que for, está vindo. Tão certo quanto a chuva depois do trovão, Mãezinha Querida teria dito. Ele olha para a sua fatia da torta, parece pensar em dar uma mordida, mas, em vez disso, pega seu maço de cigarros.

Ela se lembra de quando ele disse Família é uma droga e pensa: São os bools. Ele me trouxe aqui para contar sobre os bools. Não se surpreende ao notar que a idéia a assusta bastante.

— Lisey — diz ele. — Tenho que lhe explicar uma coisa. E, se isso fizer você mudar de idéia quanto a se casar comi...

— Scott, não sei se quero ouvir...

O sorriso dele é ao mesmo tempo abatido e amedrontado.

— Aposto que não. E eu sei que não quero contar. Mas é como le­var uma injeção no consultório do médico... não, pior, é como abrir um cisto ou perfurar um abscesso. Mas algumas coisas precisam ser feitas. — Seus olhos brilhantes cor-de-avelã fitam os dela. — Lisey, se nos ca­sarmos, não podemos ter filhos. Isso é fato. Não sei o quanto você quer tê-los agora, mas você vem de uma família grande e imagino que seria natural que quisesse encher uma casa grande com uma grande família um dia. Você precisa saber que, se ficar comigo, isso não pode acontecer. E não quero você me olhando na cara daqui a uns cinco ou dez anos e gritando “Você nunca me disse que isso fazia parte do acordo”.

Ele dá uma tragada no cigarro e solta fumaça pelas narinas. Ela sobe em uma nuvem cinza azulada. Então, se volta para ela. Seu rosto está muito pálido, os olhos, enormes. Como pedras preciosas, pensa ela, fascinada. Pela primeira e única vez, ela o acha não bonito (o que ele não é, embora, dependendo da luz, possa ser atraente), e sim encanta­dor, do jeito que algumas mulheres são encantadoras. Isso a fascina e, por algum motivo, a deixa horrorizada.

— Eu te amo demais para mentir para você, Lisey. Te amo com tudo que faz as vezes de meu coração. Suspeito que esse tipo de amor incondicional se torne um fardo para as mulheres com o tempo, mas é o único tipo que tenho para dar. Acho que vamos ser um casal bem rico em termos financeiros, mas tenho quase certeza de que serei um indigente emocional pelo resto da vida. O dinheiro está para vir, mas, quanto ao resto, tenho apenas o suficiente para você e jamais vou macu­lá-lo ou diluí-lo com mentiras. Seja com as palavras que eu possa dizer ou com as que possa omitir. — Ele suspira, um som longo e trêmulo, e põe a base da mão que segura o cigarro contra o meio da testa, como se estivesse com dor de cabeça. Então, a retira e olha para ela novamente. — Nada de filhos, Lisey. Não podemos, Lisey. Eu não posso.

— Scott, você é... algum médico...

Ele balança a cabeça.

— Não é físico. Preste atenção, babyluv. É aqui. — Bate com os dedos na testa, entre os olhos. — A Loucura e os Landon combinam como pêssegos com creme de leite, e não estou falando sobre um con­to de Edgar Allan Poe ou de algum romance vitoriano para senhoras do tipo nós-mantemos-a-titia-presa- no-sótão. Estou falando do tipo de loucura real e perigosa que corre no sangue.

— Scott, você não é louco... — No entanto, ela pensa nele saindo do escuro, lhe estendendo os destroços sanguinolentos de sua mão, a voz cheia de júbilo e alívio. Um alívio enlouquecido. Lembra-se do que pensou enquanto envolvia aquele estrago com sua blusa: que ele poderia estar apaixonado por ela, mas também estava um pouco apaixonado pela morte.

— Eu sou — diz ele com brandura. — Sou louco. Tenho delírios e visões. A única diferença é que os coloco no papel. Coloco todos no papel e as pessoas me pagam para lê-los.

Por um instante, aquilo a deixa chocada demais (ou talvez o cho­que seja por conta da lembrança da sua mão destroçada, que ela se esforça para afastar) para responder. Ele está chamando seu ofício — é sempre assim que ele se refere ao que faz nas suas palestras, nunca sua arte, mas seu ofício — de delírio. E isso é loucura.

— Scott — diz ela finalmente —, escrever é o seu trabalho.

— Você acha que está entendendo — diz ele —, mas não entende o que quer dizer “partir”. Espero que continue com essa sorte toda, pe­quena Lisey. E eu não vou me sentar debaixo dessa árvore e lhe contar a história dos Landon, porque eu mesmo sei pouco dela. Voltei três ge­rações, fiquei assustado com a quantidade de sangue que estava encon­trando pelas paredes e desisti. Já vi sangue o bastante — um pouco do meu, inclusive — quando era pequeno. Quanto ao resto, acreditei no que Papai disse. Quando eu era criança, Papai me contou que os Lan­don, e os Landreau antes deles, se dividiam em dois tipos: os pancadas e os coisas-ruins. Coisa-ruim era melhor, porque dava para botar pra fora cortando. Você tinha que cortar pra ela sair, se não quisesse passar o resto da vida no hospício ou na cadeia. Ele disse que era o único jeito.

— Você está falando de automutilação, Scott?

Ele dá de ombros, como se estivesse na dúvida. Ela também está na dúvida. Afinal de contas, já o havia visto nu. Tinha algumas cicatrizes, mas só algumas.

— Bools de sangue? — pergunta ela.

Dessa vez ele parece mais convencido.

— Bools de sangue, isso.

— Naquela noite em que você enfiou a mão no vidro da estufa, estava colocando pra fora a coisa ruim?

— Imagino que sim. Com certeza. De certa forma. — Ele apaga o cigarro na grama. Faz uma longa pausa, durante a qual não olha para ela. — É complicado. Você tem que levar em conta como me senti hor­rível naquela noite, um monte de coisas vinha se acumulando...

— Eu nunca deveria ter...

— Espere — diz ele —, me deixe terminar. Só posso falar isso uma vez.

Ela pára.

— Eu estava bêbado, me sentindo horrível, e fazia muito tempo que não colocava aquilo para fora. Não vinha precisando. Em grande parte por sua causa, Lisey.

Lisey tem uma irmã que passou por uma alarmante crise de auto­mutilação aos vinte e poucos anos. Amanda superou tudo aquilo agora, graças a Deus, mas carrega as cicatrizes, a maioria bem no alto da parte de trás dos braços e das coxas.

— Scott, se você vinha se cortando, não deveria ter cicatrizes...

É como se ele não a tivesse escutado.

— Então, na primavera passada, bem depois de eu achar que ele tinha se calado para sempre, quero cair duro se ele não começou a falar comigo de novo. “Está dentro de você, Scoot”, eu o ouvia dizer. “Corre no seu sangue como um filho duma égua. Não é?”

— Quem, Scott? Quem começou a falar com você? — Sabendo que é Paul ou o pai dele e que, provavelmente, não era Paul.

— Papai. Ele fala: “Scooter, se quiser andar na linha, é melhor colocar aquela coisa ruim pra fora. Vá atrás dela agora, não fique es­perando.” Então eu fiz. De pouquinho... em pouquinho... — Ele faz como se cortasse de leve, primeiro a bochecha, depois o braço, para ilustrar. — Então, naquela noite, quando você ficou brava... — Ele dá de ombros. — Eu fui atrás do resto. Para acabar de vez com aquilo. Acabar com tudo. E a gente ficou bem. A gente ficou bem. Ouça o que eu digo, eu me sangraria até secar como um porco pendurado num gan­cho antes de machucar você. Antes de pensar em machucar você. — Ele baixa o rosto com uma expressão de desprezo que ela nunca tinha visto antes. — Nunca vou ser como ele. Meu Papai. — E então, quase cuspin­do: — A porra do sr. Sparky.

Ela não diz nada. Nem ousa. De qualquer forma, não sabe ao certo se conseguiria. Pela primeira vez em meses, se pergunta como, depois de um corte tão feio na mão, ele ficou com tão poucas cicatrizes. Sem dúvida não é possível. Ela pensa: A mão dele não estava apenas cortada; estava destroçada.

Scott, enquanto isso, acendeu outro Herbert Tareyton com mãos que tremiam minimamente.

— Vou lhe contar uma história — diz ele. — Só uma, e deixá­-la servir de exemplo para todas as histórias da infância de um certo homem. Porque histórias são o meu departamento. — Ele olha para a fumaça do cigarro subindo. — Eu as pesco do lago. Já falei pra você sobre o lago, não falei?

— Já, Scott. Aquele em que todos nós bebemos.

— Isso. E no qual jogamos nossas redes. Às vezes os pescadores corajosos de verdade, os Austens, Dostoiévskis e Faulkners, até pegam barcos e vão para onde os grandões nadam, mas o lago é traiçoeiro. E maior do que parece e mais fundo do que qualquer homem pode imagi­nar, além de mudar de aspecto, principalmente depois que escurece.

Ela não fala nada sobre aquilo. Ele passa a mão pelo seu pescoço. Em algum momento, entra sorrateira na sua parca aberta para lhe segu­rar o seio. Não por desejo, ela tem certeza, mas para confortá-la.

— Muito bem — diz ele. —- Hora da história. Feche os olhos, pequena Lisey.

Ela os fecha. Por um instante, tudo fica escuro e silencioso debaixo da árvore nhami-nhami, porém ela não tem medo; sente o cheiro e o volume dele ao seu lado; o toque da mão dele, pousada na haste da sua clavícula. Poderia estrangulá-la com facilidade com aquela mão, mas não precisa que ele lhe diga que jamais irá machucá-la, pelo menos não fisicamente; essa é uma coisa que Lisey apenas sabe. Ele a magoará, sim, mas principalmente com a boca. Com sua boca incessante.

— Muito bem — diz o homem com o qual ela se casará dentro de menos de um mês. — Esta história deve ter quatro partes. A Parte Um é chamada “Scooter em cima do Banco”.

“Era uma vez um menino, magrelinho e assustado, chamado Scott, só que, quando seu Papai estava com a coisa ruim e se cortar não era o bastante para botá-la pra fora, ele o chamava de Scooter. E um dia — um dia ruim e louco — o menininho estava parado em cima de um lugar alto, olhando para o piso encerado de madeira lá embaixo e vendo o sangue do irmão escorrer lentamente pelo vão entre duas tábuas.

— Pule — lhe diz o pai. E não é a primeira vez. — Pule, seu des­graçado, seu filho duma égua maricas, pule agora!

— Estou com medo, Papai! É alto demais!

— Não é nada e estou cagando pra se você está com medo ou não, pule de cima dessa joça, ou vai se arrepender, e seu amigo mais ainda; agora, pára-quedistas, saltar!

Papai se interrompe por um instante, olhando em volta, os globos oculares se mexendo do jeito que fazem quando ele está com a coisa ruim, quase tiquetaqueando de um lado para outro, então olha de volta para o menino de 3 anos que treme em cima do longo banco no corredor princi­pal do antigo e dilapidado casarão de fazenda com suas mil correntes de ar. Com as costas apoiadas contra as folhas estampadas na parede rosa daquela casa bem no interior, onde as pessoas cuidam da sua própria vida.

— Pode falar Jerônimo se quiser, Scoot. Dizem que às vezes ajuda. Se você gritar bem alto quando pula do avião.

Então Scott, disposto a aceitar qualquer ajuda que conseguisse, grita JERÔMINO — o que não está exatamente correto e, seja como for, não ajuda nada, pois ele ainda não consegue pular do banco para o piso de madeira encerada tão lá embaixo.

— Ahhhh, cacete, pelo amor de Deus.

Papai puxa Paul para a frente. Paul tem 6 anos, quase 7, é alto e seu cabelo é loiro escuro, longo na frente e dos lados, ele precisa de um corte, precisa visitar o sr. Baumer na barbearia em Martensburg, o sr. Baumer, com sua cabeça de alce na parede e o adesivo apagado na janela que mostra uma bandeira americana e diz EU SERVI, mas eles não vão chegar perto de Martensburg tão cedo e Scott sabe disso. Não vão para a cidade quando Papai está com a coisa ruim e Papai nem está indo trabalhar porque está de férias da U.S. Gyppum.

Paul tem olhos azuis e Scott o ama mais do que qualquer outra pes­soa, mais até do que a si mesmo. Nesta manhã, os braços de Paul estão cobertos de sangue, cheio de cortes entrecruzados, e agora Papai pega seu canivete novamente, o odioso canivete que bebeu tanto do sangue deles, e o ergue contra o sol da manhã. Papai desce as escadas chamando-os aos berros, gritando: Bool! Bool! Vamos entrando, vocês dois! Se o bool for para Paul, ele corta Scott, e, se o bool for para Scott, ele corta Paul. Mes­mo quando está com a coisa ruim, Papai sabe o que é amor.

— Você vai pular, seu covarde, ou vou ter que cortá-lo de novo?

— Não, Papai! — grita Scott. — Por favor não corta ele mais, eu pulo!

— Então pule!

O lábio superior de Papai rola para trás, revelando seus dentes. Seus olhos giram nas órbitas, giram giram giram como se ele estivesse procurando gente pelos cantos, e talvez esteja, provavelmente está, porque de vez em quando os dois o escutam falando com gente que não está lá. Às vezes, Scott e o irmão os chamam de Gente da Coisa-ruim e, às vezes, de Gente dos Bools de Sangue.

— Vá em frente, Scooter! Vá em frente, seu molenga! Grite Jerônimo e então, pára-quedistas, saltar! Não tem nenhum maricas nessa família! Agora mesmo!

— JERÔMINO — grita ele e, embora seus pés tremam e suas pernas se joguem, ele ainda não consegue se obrigar a pular. Pernas covardes, pernas maricas. Papai faz um corte fundo no braço de Paul e o sangue cai como um lençol. Ele cai um pouco no short de Paul, um pouco nos seus tênis e a maioria no chão. Paul faz careta, mas não grita. Seus olhos imploram para Scott fazer aquilo parar, mas a boca continua fechada. Sua boca não imploraria.

Na U.S. Gypsum (que os meninos chamam de U.S. Gyppum, porque é assim que o Papai deles a chama), os homens chamam Andrew Landon de Sparky ou às vezes de Senhor Sparks. Agora, o rosto dele paira sobre o ombro de Paul e sua cabeleira grisalha está de pé como se a letricidade com a qual trabalha tivesse entrado nele. Seus dentes tortos revelam um sorriso de Halloween e seus olhos estão vazios porque Papai não está mais lá, ele tinha partido, não há nada nele além da coisa ruim, ele já não é um homem ou um papai, apenas um bool de sangue com olhos.

— Fique aí em cima dessa vez e eu corto a orelha dele fora — diz a coisa com o cabelo létrico de Papai, a coisa que tomou o seu lugar. — Fique aí em cima da próxima vez e corto a joça da garganta dele, estou pouco me lixando. A decisão é sua, Scooter Scooter, seu molenga. Você diz que o ama, mas não o ama bastante pra me impedir de cortá-lo, não é? Quando tudo que tem de fazer é pular de um filho duma égua de um banco de um metro de altura! O que você acha disso, Paul? O que você tem a dizer pro maricas do seu irmãozinho agora?

Paul, no entanto, não diz nada, apenas encara o irmão, os olhos azuis-escuros fixos nos seus olhos cor-de-avelã, e esse inferno continuará por mais 2.500 dias; sete intermináveis anos. Faça o que puder e deixe o resto pra lá é o que os olhos de Paul dizem a Scott, e isso parte seu cora­ção, e quando ele finalmente pula do banco (para o que parte dele está convicta de que será sua morte) não é por causa das ameaças do pai, mas porque os olhos do seu irmão lhe deram permissão para ficar bem onde estava se no fim das contas ele estivesse apavorado demais para pular.

Para ficar no banco mesmo se aquilo fosse matar Paul Landon.

Ele aterrissa e cai de joelhos no sangue das tábuas e começa a cho­rar, chocado ao ver que ainda está vivo, e então o braço de seu pai o envolve, o braço forte do pai o levanta, demonstrando agora amor, em vez de raiva. Os lábios de seu pai primeiro se colam à sua bochecha, apertando-lhe em seguida, com força, o canto da boca.

— Está vendo, Scooter Scooter, seu molenga? Eu sabia que você iria conseguir.

Então Papai diz que acabou, que o bool de sangue acabou e Scott pode tomar conta do seu irmão. Seu pai lhe diz que ele é corajoso, um safadinho muito corajoso, seu pai lhe diz que o ama e, naquele momen­to de vitória, Scott nem se importa com o sangue no chão, ele também ama o pai, ele ama seu pai maluco que inventa bools de sangue por aca­bar com aquilo daquela vez, embora saiba, mesmo aos 3 anos de idade, que haverá uma próxima.

 

Scott pára, olha em volta, espia o vinho. Ele não dá atenção ao copo, bebe direto da garrafa.

— Não era um salto tão grande assim — diz ele, dando de om­bros. — Mas parecia, para um moleque de 3 anos.

— Scott, meu Deus — diz Lisey. — Ele ficava muito desse jeito?

— O suficiente. Eu bloqueei muita coisa. Mas essa vez do banco ficou gravada. E, como disse, pode servir de exemplo para o resto.

— Era por... ele estava bêbado?

— Não. Ele quase nunca bebia. Está preparada para a Parte Dois da história, Lisey?

— Se for como a Parte Um, não tenho certeza.

— Não se preocupe. A Parte Dois chama-se “Paul e o Bool Bom”. Não, retiro o que disse, chama-se “Paul e o Melhor Bool” e foi só alguns dias depois de o velho me fazer pular do banco. Ele foi chamado para trabalhar e, assim que seu caminhão saiu de vista, Paul me disse para fi­car bonzinho enquanto ele ia até a loja do Mulie. — Ele se interrompe, ri e balança a cabeça como as pessoas fazem quando percebem que estão falando bobagem. — Mueller. Esse era o nome de verdade. Eu contei que estive de volta em Martensburg quando o banco leiloou nossa casa, não contei? Logo antes de te conhecer?

— Não, Scott.

Ele parece intrigado — por um instante, quase assustadoramente confuso.

— Não?

— Não. — Não é a hora certa de dizer que ele não lhe contou quase nada sobre sua infância.

Quase nada? Absolutamente nada. Até aquele dia, debaixo da árvore nhami-nhami.

— Bem — diz ele (um pouco em dúvida) —, eu recebi uma carta do banco de Papai: Primeiro Banco Rural da Pensilvânia... como se existisse um Segundo Banco Rural em algum lugar... e eles diziam que o processo tinha sido finalmente julgado depois de todos aqueles anos e que eu tinha direito a uma parte do dinheiro. Então eu falei, que se dane, e voltei. Pela primeira vez em sete anos. Me formei na Martens­burg Township High aos 16 anos. Fiz um monte de provas, ganhei uma dispensa papal. Isso eu lhe contei, sem dúvida.

— Não, Scott.

Ele dá uma risada nervosa.

— Bem, contei sim. Vão, Ravens, acabem com eles. — Ele solta um grasnido, dá uma risada mais nervosa ainda, então toma uma ge­nerosa golada de vinho. A garrafa está quase no fim. — A casa acabou sendo vendida por uns 70 mil e eu fiquei com 32 mil, um baita negócio, né? Mas, enfim, fui dar uma volta pela nossa parte de Martensburg an­tes do leilão e a loja ainda estava lá, há mais ou menos um quilômetro e meio da nossa casa, e, se você falasse que era só um quilômetro e meio quando eu era criança, eu teria te mandado catar coquinho. Estava va­zia, coberta de tábuas, com uma placa de VENDE-SE na frente, mas tão apagada que quase não dava pra ler. A placa no telhado até estava em melhor estado e ela dizia MUELLER’S ARTIGOS GERAIS. Só a gente a cha­mava de loja do Mulie, porque era assim que Papai falava. Do mesmo jeito que ele chamava a U.S. Steel de U.S. Beg Borrow and Steal...* e Martensburg de Pittsburgh dos Pobres... e... ah, droga, Lisey, eu estou chorando?

— Está, Scott. — A voz dela soa distante aos seus ouvidos.

Ele pega um dos guardanapos de papel que vieram com o almoço e seca os olhos. Quando baixa o guardanapo, está sorrindo.

— Paul me disse para ficar bonzinho enquanto ele ia à loja do Mulie e eu obedeci. Sempre obedecia. Entende?

Ela assente. Você é bom com as pessoas que ama. Quer ser bom com as pessoas que ama, porque sabe que o seu tempo com elas vai aca­bar sendo curto, por mais longo que seja.

— Enfim, quando Paul voltou e eu vi que ele trazia duas garra­fas de RC Cola, tive certeza de que ele ia fazer um bool bom e fiquei feliz. Ele me mandou subir para o meu quarto e ficar um tempo com os meus livros para ele poder prepará-lo. Ele demorou bastante e eu sabia que seria um bool bom e longo, e aquilo me deixou feliz também. Finalmente, ele gritou para eu descer até a cozinha e olhar em cima da mesa.

— Ele alguma vez chamava você de Scooter? — pergunta Lisey.

— Ele não, nunca. Quando cheguei na cozinha, ele tinha sumido. Estava se escondendo. Mas sabia que estava de olho em mim. Tinha um pedaço de papel em cima da mesa que dizia BOOL! e também...

— Espere um instante — diz Lisey.

Scott olha para ela, sobrancelhas levantadas.

— Você tinha 3... ele, 6... quase 7, talvez...

— Isso...

— Mas ele conseguia escrever charadas e você conseguia lê-las. Não só lê-las, mas decifrá-las.

— E? — Sobrancelhas erguidas, perguntando o que tinha demais naquilo.

— Scott... o seu Papai maluco sabia que estava abusando de uma joça de dupla de crianças-prodígio?

Scott a surpreende ao jogar a cabeça para trás e gargalhar.

— Esta seria a última das preocupações dele! — diz. — Preste atenção, Lisey. Porque esse foi o melhor dia que me lembro da minha infância, talvez por ter sido um dia tão longo. Alguém na fábrica da Gypsum deve ter feito besteira e o velho teve que fazer uma baita hora extra, ou sei lá, mas ficamos sozinhos em casa das oito da manhã até o sol se pôr...

— Vocês não tinham babá?

Ele não responde, apenas a encara como se ela tivesse um parafuso a menos.

— Nenhuma vizinha para tomar conta?

— Nossos vizinhos mais próximos ficavam a mais de 6 quilôme­tros de distância. A loja do Mulie era mais perto. Papai preferia assim e, acredite, o pessoal da cidade também.

— Tudo bem. Me conte a Parte Dois. “Scott e o Bool Bom.”

— “Paul e o Bool Bom. O Bool Ótimo. O Bool Excelente.” — A lembrança faz o rosto dele relaxar. Compensa o horror do banco. — Paul tinha um bloco com linhas azuis e, quando ele inventava estações do bool, tirava uma folha e a dobrava para poder cortá-la em tiras. Aqui­lo fazia o bloco durar mais, entende?

— Sim.

— Só que, naquele dia, ele deve ter arrancado duas folhas, ou até três... Lisey, foi um bool tão longo! — Naquele prazer rememorado, Lisey consegue ver a criança que ele foi. — A tira que estava na mesa dizia BOOL!, a primeira e a última sempre diziam aquilo, então, logo embaixo...

 

Logo embaixo de BOOL!, na letra maiúscula grande e caprichada de Paul, lia-se:

 

1 ME ENCONTRE PERTO DE UMA COISA DOCE! 16

 

Porém, antes de pensar na charada, Scott olha para o número, saboreando aquele 16. Dezesseis estações! Ele é invadido por um entu­siasmo arrepiante e agradável. Se a promessa é de 16 estações, serão 15 charadas. E, se Scott não conseguir entender uma delas, Paul o ajudará. Paul irá chamá-lo do seu esconderijo em uma voz assustadora e horri­pilante (é a voz de Papai, embora Scott só vá perceber isso anos mais tarde, quando estiver escrevendo uma história assustadora e horripilan­te chamada Demônios Vazios), lhe dando pistas até Scott entender. No entanto, cada vez menos Scott precisa das pistas. Ele se aperfeiçoa rapi­damente na arte de desvendar charadas, assim como Paul se aperfeiçoa rapidamente na arte de bolá-las.

Me encontre perto de uma coisa doce.

Scott olha ao redor e quase imediatamente se detém na grande tigela branca em cima da mesa sob uma nesga de sol matinal repleta de poeira. Ele tem que subir numa cadeira para alcançá-la e dá uma risadi­nha quando Paul fala na sua assustadora voz de Papai: Não derrame, seu filho duma égua.

Scott levanta a tampa e, sobre o açúcar, há outra tira de papel com outra mensagem escrita nas letras maiúsculas caprichadas do seu irmão:

 

2 ESTOU ONDE CLIDE COSTUMAVA BRINCAR COM CARRETÉUS NO SOL

 

Até desaparecer na primavera, Clyde era o gato deles e os dois meninos o adoravam, mas Papai não o adorava porque Clyde miava o tempo todo para entrar ou sair, e, embora nenhum dos dois diga em voz alta (e nem jamais ousariam perguntar a Papai), eles têm quase certeza de que algo muito maior e mais cruel do que uma raposa ou uma marta pegou o gato. Seja como for, Scott sabe perfeitamente onde Clyde cos­tumava brincar no sol e corre para lá, trotando pelo saguão principal até a varanda dos fundos, sem dar uma olhada sequer (bem, talvez só uma) para as manchas de sangue sob seus pés ou para o terrível banco. Na varanda dos fundos, há um sofá grande e encaroçado que exala cheiros estranhos quando você se senta nele. “Tem cheiro de peido frito”, disse Paul certa vez, e Scott riu até molhar as calças. (Se Papai estivesse lá, molhar as calças teria significado uma GRANDE ENCRENCA, mas Papai estava trabalhando.) Scott vai até o sofá, onde Clyde costumava deitar de costas e brincar com os carretéis de linha que Paul e Scott balançavam em cima dele, levantando as patas da frente e fazendo uma sombra gigante de gato treinando boxe na parede. Scott cai de joelhos e olha debaixo das almofadas encaroçadas, uma a uma, até encontrar a terceira tira de papel, a terceira estação do bool, que o manda para...

Não importa para onde ela o manda. O que importa é aquele longo dia em suspenso. Existem dois garotos que passam a manhã zanzando dentro e em volta de uma casa de fazenda caindo aos pedaços e tumul­tuada bem no interior enquanto o sol escala lentamente o céu em direção ao meio-dia chapado e sem sombras. Esta é a simples história de gritos e risadas e poeira do quintal da frente e meias que caem até atolarem em volta de tornozelos sujos; esta é a história de garotos que estão ocupados demais para fazerem xixi dentro de casa e, em vez disso, regam os arbustos do lado dela. E sobre um garotinho que mal saiu das fraldas catando tiras de papel do pé de uma escada que leva ao sótão do celeiro, debaixo dos degraus íngremes da varanda, atrás da máquina de lavar Maytag quebrada no quintal dos fundos e debaixo de uma pedra perto do velho poço seco. (“Não vá cair, seu sacaninha!” diz a assustadora voz de Papai, desta vez vindo do mato alto nos limites da lavoura de feijão, que não tinha sido cultivada naquele ano.) E, finalmente, Scott recebe a seguinte instrução:

 

15 ESTOU DEBAIXO DE ONDE VOCÊ VIVE SONHANDO

 

Debaixo de onde eu vivo sonhando, pensa ele. Debaixo de onde eu vivo sonhando... onde fica isso?

— Precisa de ajuda, seu sacaninha? — entoa a voz assustadora. — Porque eu estou ficando com fome pra almoçar.

Scott também. Já é de tarde, ele estava horas naquilo, porém pede mais um minuto. A assustadora voz de Papai diz que ele tem trinta segundos.

Scott pensa furiosamente. Debaixo de onde eu vivo sonhando... de­baixo de onde eu vivo...

Ele tem a bênção de ser desprovido de idéias sobre o subconsciente ou o id, mas já começou a pensar em metáforas e a resposta lhe vem em um clarão divino e alegre. Ele sobe as escadas com toda a rapidez que suas perninhas podem oferecer, o cabelo voando para trás de sua testa bronzeada e imunda. Vai até sua cama no quarto que divide com Paul, olha embaixo do travesseiro e, como desconfiava, lá está sua garrafa de RC Cola — e das grandes — junto com uma última tira de papel. A mensagem nela é a mesma de sempre:

 

16 BOOL! FIM!

 

Ele ergue a garrafa como muito mais tarde erguerá uma certa pá de prata (a sensação é de ser um herói), então se vira. Paul vem andando pela porta, segurando sua própria garrafa de RC e carregando o abridor da Gaveta de Coisas da cozinha.

— Nada mau, Scott-O. Demorou um pouco, mas você chegou lá.

Paul abre sua garrafa e depois a de Scott. Eles batem os gargalos. Paul diz que isso é “fazer um bringe” e que, quando você faz um, tem que fazer também um pedido.

— Qual o seu desejo, Scott?

— Eu desejo que o Livromóvel venha neste verão. Qual o seu desejo, Paul?

Seu irmão olha para ele com calma. Logo descerão para fazer san­duíches de pasta de amendoim e geléia, pegando o banquinho da va­randa dos fundos para apanhar um jarro novo de pasta de amendoim Shedds da prateleira de cima na despensa. E diz

 

Porém, neste instante, Scott se cala. Ele olha para a garrafa de vinho, mas a garrafa de vinho está vazia. Ele e Lisey haviam tirado as parcas e as largado de lado. Tinha ficado quente de verdade debaixo da árvore nha­mi-nhami; na verdade, o calor era quase sufocante, e Lisey pensa: Temos que sair daqui logo. Senão, a neve sobre as frondes vai derreter o suficiente para desabar em cima da gente.

 

Sentada na cozinha com o menu do Anders nas mãos, Lisey pensou: Vou ter que sair dessas lembranças logo, também. Senão, algo muito mais pesado do que neve vai desabar em cima de mim.

Porém, não era isso que Scott queria? O que havia planejado? E aquela caça ao bool não era sua chance de engatilhar?

Ah, mas estou com medo. Porque estou tão perto agora.

Perto do quê? Perto do quê?

— Psiu — sussurrou ela e tremeu como se sentisse um vento frio. Um que tivesse vindo de Yellowknife, talvez. Mas então, por ter duas mentes e dois corações: — Só mais um pouquinho.

É perigoso. Perigoso, pequena Lisey.

Ela sabia disso, já conseguia ver pedaços da verdade brilhando atrás de sua cortina roxa. Brilhando como olhos. Conseguia ouvir vozes sus­surrando que havia motivos para não se olhar para espelhos a não ser que fosse inevitável (especialmente depois do anoitecer e nunca no crepús­culo), motivos para evitar frutas frescas depois do pôr do sol e para não comer nada entre meia-noite e seis da manhã.

Motivos para não desenterrar os mortos.

No entanto, ela não queria deixar a árvore nhami-nhami. Ainda não.

Não queria deixar Scott.

Ele tinha desejado o Livromóvel, mesmo aos 3 anos de idade, um desejo típico de Scott. E Paul? Qual foi o

 

— Qual, Scott? — ela lhe pergunta. — Qual foi o desejo de Paul?

— Ele disse: “Eu desejo que Papai morra no trabalho. Que ele seja eletrocutado e morra.”

Lisey olha para ele, muda de horror e pena.

Scott começa repentinamente a enfiar as coisas de volta na mochila.

— Vamos sair daqui antes que a gente comece a assar — diz ele. — Pensei que conseguiria lhe contar muito mais, Lisey, mas não consigo. E não me diga que eu não sou como o meu pai, pois a questão não é essa, o.k.? A questão é que todo mundo na minha família é um pouco assim.

— Paul também?

— Não sei se consigo falar mais sobre Paul agora.

— O.k. — diz ela. — Vamos voltar. A gente tira um cochilo, de­pois faz um boneco de neve, sei lá.

O olhar de intensa gratidão que Scott lança em sua direção a deixa envergonhada, porque, na verdade, ela estava pronta para que ele paras­se — tinha ouvido tudo quanto podia processar, pelo menos por en­quanto. Em uma palavra, ela está estarrecida. Porém, não pode esquecer o assunto por completo, pois tem uma boa idéia de como é o resto daquela história. Quase chega a pensar que poderia terminá-la para ele. Mas, antes, tem uma pergunta.

— Scott, quando o seu irmão foi buscar os refrigerantes naquela manhã... os prêmios do bool bom...

Ele assente, sorrindo.

— Do bool ótimo.

— A-hã. Quando ele foi até aquela vendinha... a loja do Mulie... ninguém achou estranho ver um garoto de 6 anos aparecer todo cheio de cortes? Mesmo que eles estivessem cobertos por band-aids?

Ele pára de fechar as fivelas da mochila e olha para ela com muita seriedade. Ainda está sorrindo, mas a cor nas suas bochechas quase de­sapareceu; sua pele fica pálida, quase como cera.

— Os Landon se curam rápido — diz ele. — Já não te falei isso?

— Já — concorda ela. — Já falou. — E, em seguida, estarrecida ou não, vai um pouco mais além. — Mas 7 anos — diz.

— Sete, isso. — Ele a encara, a mochila entre seus joelhos vestidos de jeans. Seus olhos perguntam o quanto ela quer saber. O quanto tem coragem de saber.

— E Paul tinha 13 anos quando morreu?

— Treze. Isso. — Sua voz está calma o suficiente, mas, agora, toda a cor se esvaiu de suas faces, embora Lisey consiga ver suor escorrer pela pele e empapar seu cabelo. — Quase 14.

— E seu pai, ele o matou com o canivete dele?

— Não — diz Scott naquela mesma voz calma —, foi com o rifle. O .30-60 que ele tinha. No porão. Mas, Lisey, não é o que você está pensando.

Não em um acesso de fúria, é o que ela acredita que ele está tentan­do lhe dizer. Não em um acesso de fúria, mas a sangue-frio. É isso que ela pensa debaixo da árvore nhami-nhami, enquanto ainda vê a Parte Três da história do seu noivo como “O Assassinato do Santo Irmão Mais Velho”.

 

Psiu, Lisey, psiu, pequena Lisey, disse ela a si mesma na cozinha — apa­vorada àquela altura, e não só por ter se equivocado tanto a respeito da morte de Paul Landon. Estava apavorada por perceber — tarde de­mais, tarde demais — que o que está feito é irreversível e que se deve, de alguma forma, conviver com as próprias lembranças para todo o sempre.

Mesmo que essas lembranças sejam loucas.

— Eu não tenho que me lembrar — disse ela, dobrando e desdo­brando o menu rapidamente nas mãos. — Não tenho, não tenho, não tenho que desenterrar os mortos, esse tipo de maluquice não acontece, não é

 

— Não é o que você está pensando.

Ela vai pensar o que pensa, no entanto; pode amar Scott Landon, mas não está presa à roda do seu passado terrível e vai pensar o que pen­sa. Vai saber o que sabe.

— E você tinha 10 quando aconteceu? Quando seu pai?...

— Isso.

Apenas 10 anos quando seu pai matou seu querido irmão mais ve­lho. Quando seu pai assassinou seu querido irmão mais velho. E a Parte Quatro da história carrega sua própria sombria inevitabilidade, não é? Não há dúvida alguma em sua mente. Ela sabe o que sabe. O fato de que ele tinha apenas 10 anos não muda isso. Ele era, afinal de contas, um prodígio em outros aspectos.

— E você o matou, Scott? Você matou seu pai? Matou, não matou?

A cabeça dele está abaixada. Seu cabelo está pendido, tapando-lhe o rosto. Então, de dentro daquela cortina negra, vem um único soluço duro e seco, como um latido. Ele é seguido de silêncio, mas ela conse­gue ver seu peito arfar, tentando soltar o que está contido. Então:

— Eu enfiei uma picareta na cabeça dele enquanto ele estava dor­mindo e então joguei ele no velho poço seco. Foi em março, durante a nevasca braba. Arrastei ele pra fora pelos pés. Tentei levar ele pra onde Paul tava enterrado, mas num consigui. Teimei, teimei e teimei, mas, Lisey, ele num ia. Ele era igual aquela primera pazada. Então eu joguei ele no poço. Até onde eu sei ele ainda tá lá, mas quando eles leiloaram a fazenda eu fiquei... eu... Lisey... eu... eu... eu fiquei com medo...

Ele tenta alcançá-la às cegas e, se ela não estivesse lá, teria caído de cara no chão, mas ela está lá e então eles estão

Eles estão

De alguma forma estão

 

— Não! — rosnou Lisey. Ela jogou o menu, tão dobrado que tinha qua­se virado um tubo, de volta na caixa de cedro e fechou a tampa. Porém, já era tarde. Havia ido longe demais. Já era tarde porque

 

De alguma forma estão lá fora, sob a neve.

Ela o pegou nos braços debaixo da árvore nhami-nhami e então

(boom! bool! )

eles estão na neve lá fora.

 

 

Lisey estava sentada na cozinha com a caixa de cedro à sua frente na mesa, os olhos fechados. A luz do sol que se derrama da janela leste lhe atravessava as pálpebras e fazia uma sopa de beterraba vermelho-escura que se movia no ritmo do seu coração — um ritmo que, naquele ins­tante, estava rápido demais.

Ela pensou: Tudo bem, essa passou. Mas acho que posso viver com umazinha. Umazinha não vai me matar.

Eu teimei e teimei.

Ela abriu os olhos e olhou para a caixa de cedro em cima da mesa. A caixa que havia procurado com tanto afinco. E pensou em algo que o pai de Scott tinha lhe dito: os Landon, e os Landreau antes deles, se divi­diam em dois tipos: os pancadas e os coisas-ruins.

Os coisas-ruins sofriam, entre outras coisas, de uma espécie de ma­nia homicida.

E quanto aos pancadas? Scott havia lhe explicado sobre eles naque­la noite. Os pancadas eram catatônicos comuns, como a própria irmã dela, lá em Greenlawn.

— Se isso tudo é para salvar Amanda, Scott — sussurrou Lisey —, pode esquecer. Ela é minha irmã e eu a amo, mas nem tanto assim. Eu voltaria para aquele... aquele inferno... por você, Scott, mas não por ela ou por qualquer outra pessoa.

O telefone começou a tocar na sala. Lisey saltou na cadeira, como se tivesse levado uma facada, e gritou.

 

Lisey e o Príncipe Negro dos Incunks

(O Ofício do Amor)

Se Lisey não soou como ela mesma, Darla não percebeu. Estava se sen­tindo culpada demais. E também feliz e aliviada demais. Canty estava voltando de Boston para “ajudar a Mandy”. Como se ela pudesse fazer isso. Como se alguém pudesse, inclusive Hugh Alberness e toda a equipe da Greenlawn, pensou Lisey enquanto ouvia Darla tagarelar.

Você pode ajudá-la, murmurou Scott — Scott que sempre tinha a última palavra. Aparentemente, nem mesmo a morte o impediria disso. Você pode, babyluv.

— ...a idéia foi toda dela — garantia Darla.

— A-hã — disse Lisey. Poderia ter mencionado que Canty ainda estaria aproveitando sua viagem com o marido, sem fazer idéia de que Amanda estava com um problema, se Darla não tivesse sentido necessi­dade de ligar para ela (não tivesse metido o bedelho, como se diz), mas a última coisa que Lisey queria naquele momento era discutir. O que que­ria era colocar a maldita caixa de cedro de volta embaixo da cama mein gott e ver se conseguia esquecer que a havia encontrado para começo de conversa. Enquanto falava com Daria, outra das antigas máximas de Scott lhe veio à cabeça: no fim das contas, quanto mais você se esforça para abrir um embrulho, menos se interessa pelo que está dentro dele. Ela estava certa de que poderia adaptá-la para coisas perdidas — caixas de cedro, por exemplo.

— O voo dela chega ao aeroporto de Portland logo depois do meio-dia — falou Darla, sem fazer vírgula. — Ela disse que ia alugar um carro e eu falei que não, pra ela deixar de ser boba, falei: deixa que eu vou te buscar. — Então fez uma pausa, se preparando para o salto final: — Você pode encontrar a gente lá, Lisey. Se quiser. A gente pode almoçar no Snow Squall, só as meninas, como nos bons e velhos tem­pos. Depois vamos visitar a Amanda.

Agora, que bons e velhos tempos seriam esses?, pensou Lisey. Aqueles em que você costumava puxar meu cabelo ou aqueles em que Canty costumava me perseguir e me chamar de Miss Lisa Despeitada? O que disse foi:

— Vão para lá e eu encontro vocês se puder, Darl. Tenho algumas coisas aqui pra...

— Vai cozinhar mais? — Agora que confessara que tinha feito Cantata se sentir culpada o suficiente para voltar para o norte, Darla certamente soava brincalhona.

— Não, tem a ver com a doação da papelada velha de Scott. — O que, de certa forma, era verdade. Pois, independentemente do resultado daquela história com Dooley/McCool, ela queria o escritório de Scott vazio. Chega de enrolação. Que os papéis fossem para Pitt, sem dúvida aquele era o lugar deles, mas com a condição de que seu amiguinho professor não tivesse nada a ver com eles. Woodbundão que se lascasse.

— Oh — falou Darla, soando convenientemente impressionada. — Bem, nesse caso...

— Encontro vocês se puder — repetiu Lisey. — Senão, vejo vocês duas à tarde, na Greenlawn.

Por Darla, tudo bem. Ela passou as informações do vôo de Canty e Lisey as anotou com obediência. Ora, talvez fosse mesmo até Port­land. No mínimo, aquilo a tiraria de dentro de casa — e a afastaria do telefone, da caixa de cedro e da maioria das lembranças que pareciam pairar sobre sua cabeça como o conteúdo de uma terrível e barriguda piñata.

E então, antes que pudesse evitar, mais uma caiu. Ela pensou: Você não só saiu debaixo do salgueiro para a neve, Lisey. Foi um pouco mais que isso. Ele a levou...

— NÃO! — gritou ela, dando um tapa na mesa. O som do seu próprio grito foi assustador, mas deu conta do recado, amputando ca­prichosa e completamente a perigosa linha de raciocínio. Porém, talvez ela voltasse a crescer... esse era o problema.

Lisey olhou para a caixa de cedro sobre a mesa. Era o olhar que uma mulher lançaria a um cachorro bem-amado que a tivesse mordido sem motivo. De voltapra debaixo da cama com você, pensou ela. De volta pra debaixo da cama mein gott, e depois?

— Depois, bool, fim! — disse ela. Então saiu da casa, atravessando o quintal da frente até o celeiro, segurando a caixa de cedro diante de si como se dentro dela houvesse algo frágil ou altamente explosivo.

 

A porta do seu escritório estava aberta. Do seu pé, um retângulo bri­lhante de luz elétrica se estendia pelo chão do celeiro. Da última vez em que estivera ali, Lisey tinha saído aos risos. O que não se lembrava era se havia deixado a porta aberta ou fechada. Ela achava que a luz tinha ficado apagada, achava que nunca a havia ligado para começo de con­versa. Por outro lado, não chegou a ter certeza absoluta de que a caixa de cedro da Mãezinha Querida estava no sótão? Seria possível que um dos policiais tivesse entrado ali para dar uma olhada e deixado a luz acesa? Lisey imaginava que sim. Imaginava que tudo era possível.

Apertando a caixa de cedro contra o meio do seu corpo de forma quase protetora, ela foi até a porta aberta do escritório e olhou para dentro dele... parecia estar vazio... mas...

Sem um pingo de vergonha, ela colocou um olho na fenda entre o batente e a porta. “Zack McCool” não estava parado lá. Não havia ninguém. Porém, quando voltou a olhar para dentro do escritório, viu que o painel de mensagens da secretária estava novamente iluminado por um 1 vermelho e brilhante. Ela entrou, enfiou a caixa debaixo do braço e apertou o PLAY. Houve um instante de silêncio e então a voz calma de Jim Dooley falou:

— Madame, achei que tínhamos combinado às oito da noite de ontem — disse ele. — Agora estou vendo tiras em volta da casa. Parece que a senhora não está entendendo como esse negócio é sério, apesar d’eu achar que um gato morto dentro duma caixa de correio é a coisa mais fácil de entender do mundo. — Uma pausa. Ela baixa os olhos para a secretária eletrônica, fascinada. Dá pra ouvir a respiração dele, pensou. — A gente se vê, madame — disse a voz.

— Vá se danar — sussurrou ela.

— Ora, madame, que coisa feia — disse Jim Dooley e, por um instante, ela pensou que a secretária eletrônica tinha lhe respondido. Então percebeu que essa segunda versão da voz de Dooley estava ao vivo e em cores, por assim dizer, e vinha de trás dela. Sentindo-se mais uma vez como uma personagem de um de seus sonhos, Lisey Landon se virou para encará-lo.

 

Lisey ficou chocada ao ver como ele era comum. Mesmo parado no baten­te do seu escritório que nunca saiu do papel com uma arma em uma das mãos (carregava na outra o que parecia uma sacola de papel), ela não podia afirmar que o escolheria em uma fileira de suspeitos, desde que os outros homens também fossem esguios e usassem roupas caqui e bonés de beisebol dos Portland Sea Dogs. Seu rosto era fino e liso, os olhos, de um azul forte — o rosto de um milhão de ianques, sem contar os de 6 ou 7 milhões de caipiras do centro-sul e do extremo sul. Poderia ter um metro e oitenta, tal­vez um pouco menos. A mecha de cabelo que escapava da bainha redonda do boné era de um castanho arruivado como qualquer outro.

Lisey fitou o olho negro da pistola que ele segurava e sentiu a força abandonar suas pernas. Aquela não era nenhuma .22 barata de segunda mão, era uma arma de verdade, uma automática grande (ela achava que era uma automática) que faria um buraco grande. Ela se sentou na bei­rada da mesa. Se a mesa não estivesse lá, não havia dúvida de que teria se estatelado no chão. Por um instante, teve certeza de que iria molhar as calças, mas conseguiu segurar a urina. Pelo menos por enquanto.

— Leve o que quiser — sussurrou ela por entre lábios que pare­ciam anestesiados com novocaína. — Leve tudo.

— Suba, madame — disse ele. — A gente conversa lá em cima.

A idéia de estar no escritório de Scott com aquele louco a encheu de horror e repulsa.

— Não. Pegue os papéis e vá embora. Me deixe em paz.

Ele a encarou com paciência. À primeira vista, parecia ter 35. En­tão você via os pequenos leques de rugas no canto dos seus olhos e boca e percebia que tinha cinco anos a mais do que isso, no mínimo.

— Suba, madame, a não ser que queira começar isso com uma bala no pé. Esse seria um jeito doloroso de negociar. Tem um monte de ossos e tendões no pé da gente.

— Você não... nem ouse... o barulho... — Sua voz soava mais dis­tante a cada palavra. Era como se a voz estivesse dentro de um trem, e este trem estivesse saindo da estação; ela se debruçava na janela para lhe dar um carinhoso adeus. Adeus, pequena Lisey, tenho que ir embora, logo você estará muda.

— Ah, não estou nem aí pro barulho — falou Dooley, parecendo achar graça. — Seus vizinhos de porta não estão em casa, tão no traba­lho, imagino, e seu tira de estimação está atendendo a uma chamada. — Seu sorriso desapareceu, porém ainda parecia achar graça da situa­ção. — A senhora ficou toda cinza. Acho que sofreu uma baita pane no sistema. Acho que vai cair durinha, madame. O que talvez me poupe algum trabalho.

— Pare... pare de me chamar... — de madame, era como ela que­ria terminar, porém uma série de asas pareceu lhe envolver, asas de um cinza cada vez mais escuro. Antes de ficarem negras e espessas demais para enxergar, ela notou vagamente que Dooley enfiava a arma na cin­tura da calça (Exploda as próprias bolas, devaneou Lisey, faça um favor ao mundo) e saltava para a frente para pegá-la. Não saberia dizer se ele conseguiu. Antes de chegarem a um acordo, Lisey desmaiou.

 

Ela sentiu algo molhado acariciando seu rosto e, a princípio, pensou que um cachorro a estivesse lambendo — Louise, talvez. Exceto que Lou tinha sido a collie deles lá em Lisbon Falls, e Lisbon Falls estava muito distante no tempo. Ela e Scott nunca tiveram um cachorro, tal­vez por nunca terem tido filhos, e as duas coisas pareciam combinar naturalmente, como pasta de amendoim e geléia, ou pêssegos e cr...

Suba, madame... a não ser que queira começar isso com uma bala no pé.

Aquilo a trouxe de volta rápido. Abriu os olhos e viu Dooley aga­chado diante dela com uma toalha úmida em uma das mãos, observan­do-a: aqueles olhos azuis brilhantes. Tentou se afastar dele. Houve um chocalhar metálico e um baque surdo de dor em seu ombro, enquanto algo se distendia, fazendo-a parar.

— Ai!

— Não puxe e não vai se machucar — falou Dooley, como se fosse a coisa mais sensata do mundo. Lisey imaginou que, para um picareta como ele, provavelmente era.

Havia música tocando no aparelho de som de Scott pela primeira vez desde Deus sabe quando, talvez desde abril ou maio de 2004, a úl­tima vez em que ele esteve lá, escrevendo. Waymore’s Blues. Não o Velho Hank, mas o cover de alguém — The Crickets, talvez. Não superalto, não estourando, como Scott costumava colocar a música, mas alto o bastante. Ela imaginava muito bem

(vou te machucar)

por que o sr. Jim “Zack McCool” Dooley tinha ligado o aparelho de som. Não queria

(em lugares que a senhora não deixava os garotos meterem a mão)

pensar sobre aquilo — o que queria era ficar inconsciente de novo, na verdade —, mas não conseguia evitar. "A mente é um macaco", dizia Scott, e Lisey ainda se lembrava da fonte daquilo, sentada no bar anexo com um punho aparentemente algemado a um cano debaixo da pia: Dog Soldiers, de Robert Stone.

Assim você vai virar a primeira da turma, pequena Lisey! Isto é, se você ainda puder virar alguma outra coisa na vida.

— Essa não é a música mais linda do mundo? — falou Dooley, sentando-se sob a porta do bar anexo. Ele cruzou as pernas. Sua saco­la de papel marrom estava no buraco em forma de diamante que elas formavam. A pistola estava no chão ao lado da sua mão direita. Dooley a encarou com sinceridade. — Ela diz muitas verdades, também. A se­nhora fez um favor a si mesma desmaiando do jeito que desmaiou, vou lhe contar. —- Agora ela conseguia ouvir o sotaque do Sul na voz dele, nada espalhafatoso, como o do babaca borra-botas de Nashville, mas apenas um fato.

Ele tirou da sacola um pote de 500 ml de maionese ainda com o rótulo da Hellmanns. Dentro, boiando em uma poça de líquido claro, havia um trapo branco embolado.

— Clorofórmio — disse ele, soando tão orgulhoso quanto Smiley Flanders tinha ficado do seu alce. — Aprendi a mexer com ele com um cara que tinha fama de saber, mas ele também disse que era fácil errar a mão. No máximo, a senhora teria acordado com uma dor de cabeça daquelas, madame. Mas eu sabia que não ia querer vir pra cá pra cima. Tive uma tuição.

Ele lhe apontou um dedo como se fosse uma arma, sorrindo ao fazê-lo, e, no aparelho de som, Dwight Yoakam começou a cantar A Thousand Miles from Nowhere. Dooley deve ter achado um dos CDs de honky-tonk caseiros de Scott.

— Pode me dar um copo d’água, sr. Dooley?

— Hã? Ah, claro! Está com a boca meio seca? Sempre que uma pessoa sofre uma pane no sistema, acontece isso. — Ele se levantou, deixando a arma onde estava; provavelmente fora do seu alcance, mes­mo que ela esticasse a corrente da algema até o limite... e tentar pegá-la e falhar seria uma péssima idéia, sem dúvida.

Ele abriu a torneira. Os canos fizeram barulho e gorgolejaram. De­pois de um ou dois segundos, ela ouviu a bica começar a cuspir água. Sim, a arma provavelmente estava fora do seu alcance, mas a virilha de Dooley estava quase bem em cima da sua cabeça, a menos de 30 centí­metros de distância. E ela estava com uma das mãos livres.

Como se lesse sua mente, Dooley falou:

— Imagino que a senhora poderia me dar uma bordoada e tanto nos ovos, se quisesse. Mas eu estou com botas Dr. Martens nos pés, en­quanto a senhora não tá com nada nas mãos. Use a cabeça, madame, e se contente com um bom copo de água gelada. Faz tempo que essa tor­neira não vê muito serviço, mas a água tá clareando que é uma beleza.

— Enxágue o copo antes de enchê-lo — disse ela. Sua voz soando rouca, à beira de falhar. — Eles também quase não são usados.

— Xá comigo. — Mais simpático, impossível. Lembrava-lhe as pessoas da sua cidade. Lembrava-lhe o próprio pai, por sinal. É claro que Dooley também lhe lembrava Gerd Allen Cole, o biruta original. Por um instante, ela quase levantou o braço e torceu o saco dele assim mesmo, só pela ousadia de colocá-la naquela situação. Por um instante, mal conseguiu se conter.

Então Dooley se agachou, estendendo um dos copos pesados. Es­tava três quartos cheio e, mesmo sem ter clareado por completo, a água parecia clara o bastante para beber. Parecia maravilhosa.

— Devagar e calma — falou Dooley em um tom solícito. — Vou deixar a senhora segurar o copo, mas se atirar ele em mim, vou ter que torcer seu tornozelo. Se me bater com ele, vou torcer os dois, mesmo se não me tirar sangue. Estou falando sério, entendeu?

Ela assentiu e bebericou a água do copo. No som, Dwight Yoakam deu lugar ao velho Hank em pessoa, fazendo as perguntas eternas: Why don’t you love me like you used to do? How come you treat me like a wornout shoe? *

Dooley ficou de cócoras, a bunda quase tocando os saltos levan­tados das botas, envolvendo os joelhos com um braço. Poderia ser um fazendeiro vendo uma vaca beber do riacho da sua propriedade. Lisey supôs que ele estivesse alerta, mas não em alerta máximo. Não esperava que ela atirasse o copo rombudo e, obviamente, tinha razão. Ela não queria que torcessem seus tornozelos.

Ora, eu nunca nem fiz aquela aula de patinação básica, pensou ela, e as noites de quinta são para solteiros no Centro de Patinação de Oxford.

Depois de matar a sede, ela lhe estendeu o copo. Dooley o pegou, examinando-o.

— Tem certeza que não vai querer esses dois último — últimos — goles, madame? — Esforçara-se para falar certo e Lisey teve, ela mes­ma, uma tuição: Dooley estava exagerando na camaradagem. Talvez de propósito, talvez sem nem perceber. No que dizia respeito à linguagem, ele preferia se corrigir, pois falar tudo errado de uma vez pareceria pre­tensão da sua parte. E isso importava? Provavelmente não.

— Estou satisfeita.

Dooley deu conta dos dois últimos goles ele mesmo, seu pomo­-de-adão deslizando na garganta magra. Então perguntou se ela estava se sentindo melhor.

— Vou me sentir melhor quando você tiver ido embora.

— Justo. Não vou tomar muito do seu tempo. — Ele enfiou a arma de volta na cintura e se levantou. Seus joelhos estalaram e Lisey pensou novamente (maravilhada, na verdade): Isto não é um sonho. Está acontecendo de verdade comigo. Ele chutou o copo distraidamente e ele rolou um pouco no carpete branco leitoso que ia de parede a parede lá no escritório principal. Puxou as calças para cima. — Não posso me demorar mesmo, madame. Seu tira vai voltar, ele ou outro, e eu saquei que tem uma irmã sua que está meio biruta, não é?

Lisey não respondeu nada.

Dooley deu de ombros como se dissesse Como quiser e então in­clinou o corpo para fora do bar anexo. Para Lisey, foi um momento surreal, pois havia visto Scott fazer a mesmíssima coisa várias vezes, as mãos agarrando os dois lados do batente sem porta, os pés no chão de madeira do anexo, a cabeça e o tronco no escritório. Porém, Scott jamais seria pego vestindo calças caqui; mantivera-se fiel ao jeans até o fim. Além disso, não tinha uma careca na parte de trás da cabeça. Meu marido morreu com a cabeça cheia de cabelo, pensou ela.

— Que lugar bacana — disse ele. — O que é? Um celeiro refor­mado? Deve ser.

Ela ficou calada.

Dooley continuou inclinado para fora, balançando um pouco para a frente e para trás, olhando primeiro para a esquerda, depois para a direita. Mestre de todos os examinadores, pensou ela.

— Que lugar bacana mesmo — falou ele. — Exatamente como eu esperava. Vocês têm seus três cômodos, o que eu chamo de cômodos, e suas três clarabóias, então entra muita luz natural. Lá de onde eu ve­nho, a gente chama esse tipo de lugar todo alinhado assim de casa de espingarda ou, às vezes, de barraco de espingarda, mas esse lugar aqui não tem nada de barraco, não é?

Lisey ficou calada.

Ele se voltou para ela, parecendo sério.

— Não que eu tenha inveja dele, madame... ou da senhora, agora que ele está morto. Eu cumpri pena na Penitenciária Estadual de Brushy Mountain. Talvez o Prof tenha lhe dito isso. E foi seu marido que me fez aguentar o pior. Li todos os livros dele, e sabe de qual eu gostei mais?

Claro que sei, pensou Lisey. Demônios Vazios. Você deve ter lido umas nove vezes.

Porém, Dooley a surpreendeu.

— A Filha do Acomodado. Gostar é pouco, madame. Eu adorei ele. Fiz questão de ler aquele livro a cada dois ou três anos desde que encontrei ele na biblioteca da prisão e poderia citar trechos inteiros. Sabe qual a minha parte favorita? Quando Gene finalmente revida e fala para o pai dele que está indo embora quer o velho goste ou não. Sabe o que ele fala praquela porra de velho miserável, a senhora perdoe meu linguajar?

Que ele nunca entendeu o oficio do amor, pensou Lisey, mas ficou quieta. Dooley não pareceu se importar; estava no embalo, embevecido.

— Gene fala que o pai dele nunca entendeu o ofício do amor. O oficio do amor! Olha como isso é bonito! Quem já não sentiu uma coisa assim mas nunca conseguiu colocar em palavras? Mas seu marido con­seguiu. Por todos nós que teríamos ficado quietos, foi isso que o Prof disse. Deus deve ter amado o seu marido, madame, pra lhe dar uma língua dessas.

Dooley olhou para o teto. Os tendões do seu pescoço se salientaram.

— O OFÍCIO DO AMOR! E Deus leva para casa primeiro os que Ele mais ama, para ficarem juntos Dele. Amém. — Ele baixou a cabeça por um instante. Sua carteira saltava do bolso de trás. Estava presa por uma corrente. Homens como Jim Dooley sempre colocavam correntes nas suas carteiras, que ficavam presas às alças da cintura. Então olhou de volta para cima e disse: — Ele merecia um lugar bacana desses. Espero que tenha aproveitado, quando não estava sofrendo para criar.

Lisey pensou em Scott na mesa que chamava de Jumbona do Dumbo, sentado na frente do seu Mac de tela grande e rindo de alguma coisa que acabara de escrever. Roendo um canudo de plástico ou as próprias unhas. Às vezes cantando junto com a música. Fazendo som de peido com o sovaco se fosse verão e estivesse quente e ele sem camisa. Era as­sim que ele sofria para criar. Porém, ela continuou calada. No aparelho de som, o velho Hank dava lugar ao seu filho. O Júnior cantava Whiskey Bent and Hell Bound.

Dooley falou:

— Me dando o bom e velho gelo? Bem, mais poder na sua mão, mas não vai adiantar muito, madame. A senhora está pra levar um cor­retivo. Não vou passar aquela conversa fiada de que vai doer mais em mim do que na senhora, mas vou dizer que passei a gostar da sua marra nesse pouco tempo que nos conhecemos e que vai ser doloroso pra nós dois. Também quero dizer que vou pegar o mais leve possível, porque não quero quebrar esse seu espírito. Só que... nós tínhamos um acordo e a senhora não o cumpriu.

Um acordo? Lisey sentiu um arrepio atravessar seu corpo. Pela pri­meira vez, ela compreende com clareza a extensão e a complexidade da loucura de Dooley. As asas cinza ameaçam descer sobre sua visão e, dessa vez, ela as combate ferozmente.

Dooley ouviu o arrastar da corrente da algema (ele deve ter trazido as algemas na sacola, junto com o pote de maionese) e se voltou para ela.

Calma, babyluv, calma, murmurou Scott. Fale com ele... coloque sua boca incessante para funcionar.

Este era um conselho do qual Lisey mal precisava. Enquanto esti­vessem conversando, o corretivo continuaria sendo adiado.

— Preste atenção, sr. Dooley. Nós não tínhamos um acordo, você está enganado... — Ela o viu começar a franzir o cenho, a fechar o rosto, e se apressou em acrescentar: — Às vezes é difícil entender as coisas por telefone, mas estou pronta para cooperar agora. — Ela engoliu e ouviu um nítido clique na sua garganta. Estava pronta para mais água, um bom e longo gole, mas aquela não parecia uma boa hora para pedir. Inclinou­-se para a frente, fixou o olhar no dele, azul sobre azul, e falou com toda a intensidade e sinceridade que conseguiu reunir: — Estou dizendo que, para mim, você já deixou claro o que quer. E, sabe de uma coisa? Você estava olhando agora mesmo para os manuscritos que o seu... hum... colega mais quer. Notou os arquivos pretos no centro do escritório?

Agora ele a encarava com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho cético brincando na boca... porém, aquele talvez fosse apenas seu olhar de negociação. Lisey se permitiu ter esperanças.

— Me pareceu que tinha um montão de caixas lá embaixo tam­bém — disse ele. — Mais livros dele, ao que parece.

— Aqueles são... — O que poderia lhe dizer? Aqueles são bools e não livros? Imaginava que a maioria fosse, mas Dooley não entenderia. São pegadinhas, o pó-de-mico e o vômito de plástico de Scott? Aquilo ele entenderia, mas era pouco provável que acreditasse.

Ainda olhava para ela com aquele sorriso cético. Não era, de forma alguma, um olhar de negociação. Não, aquele era um olhar que dizia: Por que não aproveita e conta outra, madame?

— Não tem nada naquelas caixas de papelão lá embaixo além de cópias carbono, fotocópias e folhas em branco — disse ela, e aquilo pareceu mentira porque era mentira, mas o que ela podia dizer? Você é maluco demais para entender a verdade, sr. Dooley? Em vez disso, conti­nuou falando: — O que Woodbundão quer, o melhor, está tudo aqui em cima. Contos inéditos... cópias de cartas para outros escritores... as respostas que recebeu deles...

Dooley jogou a cabeça para trás e gargalhou.

— Woodbundão! Madame, a senhora pegou o jeito do seu marido com as palavras. — Então o riso parou e, embora continuasse com o sorriso nos lábios, já não havia diversão nos seus olhos. Eles pareciam de gelo. — Então o que a senhora acha que eu devo fazer? Ir correndo até Oxford ou Mechanic Falls, contratar um caminhão de mudança, depois voltar aqui para botar esses arquivos nele? Talvez a senhora pudesse pe­dir a um dos tiras pra me ajudar, que tal?

— Eu...

— Cale a boca. — Apontando um dedo para ela. Nem sinal do sorriso àquela altura. — Ora, se eu fosse embora e depois voltasse, a senhora chamaria uma dúzia de tiras pra esperar por mim aqui, imagi­no. Eles me levariam em cana e, madame, vou lhe dizer uma coisa, eu mereceria mais dez anos de cadeia só de acreditar numa coisa dessas.

— Mas...

— E, além do mais, nosso acordo não foi esse. O acordo foi que a senhora ligaria para o Prof, o velho Woodbundão... minha nossa, como eu gostei disso... e ele me mandaria um e-mail do nosso jeito especial e então ele cuidaria dos papéis. Certo?

Alguma parte dele acreditava mesmo naquilo. Tinha que acreditar, caso contrário, por que insistiria se os dois estavam sozinhos?

— Senhora? — perguntou-lhe Dooley. Parecia solícito. — Madame?

Se havia uma parte dele que precisava continuar mentindo quando estavam os dois sozinhos, talvez fosse porque havia outra parte dele que precisava ouvir mentiras. Se fosse assim, essa era a parte de Jim Dooley que ela precisava atingir. A parte que talvez ainda fosse sã.

— Sr. Dooley, preste atenção. — Seu tom de voz era baixo e ela falou devagar. Era assim que falava com Scott quando ele estava prestes a explodir por qualquer coisa, desde uma resenha ruim até um serviço hidráulico malfeito. — O professor Woodbody não tem como entrar em contato com você e no fundo você sabe disso. Mas eu posso entrar em contato com ele. Já entrei. Liguei para ele na noite passada.

— A senhora tá mentindo — disse ele, porém, dessa vez, ela não estava e ele sabia disso, o que, por algum motivo, o irritou. Aquela reação era exatamente o contrário da que ela queria provocar, que­ria acalmá-lo, mas Lisey achou que deveria prosseguir, na esperança de que a parte sã de Jim Dooley estivesse em algum lugar lá dentro, ouvindo.

— Não estou — disse ela. — Você me deixou o número dele e eu liguei. — Fixando os olhos de Dooley com os dela. Reunindo o máxi­mo de sinceridade possível enquanto voltava para a Terra das Invenções. — Prometi a ele os manuscritos e pedi que mandasse você parar e ele disse que não podia porque não tinha mais como entrar em contato com você, disse que os primeiros dois e-mails que lhe mandou foram enviados, mas depois eles começaram a volt...

— Um mente e o outro jura que é verdade — disse Jim Dooley e, depois disso, as coisas aconteceram com uma rapidez e brutalidade que Lisey mal conseguiu registrar, embora cada momento da surra e da mutilação que se seguiram fossem permanecer claros em sua mente pelo resto da vida; o exato som da respiração seca e rápida dele, a exata ma­neira como sua camisa caqui repuxava nos botões, fazendo a blusa que usava por baixo piscar brevemente enquanto ele lhe estapeava o rosto, primeiro com as costas da mão e depois com a palma, com as costas da mão e depois com a palma, com as costas da mão e depois com a palma, com as costas da mão e depois com a palma novamente. Oito golpes ao todo, sete-oito-comer-biscoito, elas cantavam quando crianças, pulando corda na poeira do jardim da frente, e o som da pele dele contra a sua era como o de um graveto seco estalando num joelho e, embora a mão que usava não tivesse anéis — pelo menos por isso podia se sentir grata —, o quarto e o quinto tapa tiraram sangue dos seus lábios, o sexto e o sétimo fizeram o sangue voar longe e o último foi alto o suficiente para atingir seu nariz e fazê-lo jorrar também. Aquela altura, ela estava chorando de medo e dor. Sua cabeça batia sem parar na parte de baixo da pia, fazendo seus ouvidos zunirem. Ela se ouviu gritando para que ele parasse, dizendo que poderia levar o que quisesse se parasse. Então ele parou e ela se ouviu dizer: “Posso lhe dar o manuscrito de um novo romance, o último dele, está pronto, ele terminou um mês antes de morrer e não teve chance de revisar, é um verdadeiro tesouro, Wood­bundão vai adorar”. Teve tempo de pensar: Muito inventivo, o que você vai fazer se ele acreditar? No entanto, Jim Dooley não estava acreditando em nada. Estava de joelhos diante dela, arfando com força — já estava quente lá dentro, se ela soubesse que iria levar uma surra no escritório de Scott naquele dia, certamente a primeira coisa que teria feito seria ligar o ar-condicionado — e remexendo na sua sacola de papel de novo. Círculos de suor se espalhavam debaixo dos seus braços.

— Madame, sinto muito ter que fazer isso, mas pelo menos não é a sua boceta — falou Dooley, e ela teve tempo de registrar duas coisas antes de ele arrastar a mão esquerda pelo seu torso abaixo, rasgando-lhe a blusa e arrebentando a presilha na frente do sutiã, fazendo seus seios pequenos saltarem para fora. A primeira era que ele não sentia nem um pouco. A segunda era que o objeto na sua mão direita tinha quase certamente saído da sua própria Gaveta de Coisas. Scott o chamava de o abridor yuppie de Lisey. O seu abridor de latas Oxo, o que tinha cabos de borracha resistentes.

 

Lisey e os Argumentos Contra a Loucura

(O Bom Irmão)

Os argumentos contra a loucura caem por terra com um leve farfalhar.

Este verso não saía da cabeça de Lisey enquanto ela rastejava do cantinho da memória, atravessando lentamente, em seguida, o centro do longo e desorganizado escritório do seu falecido marido e deixando atrás de si um rastro feio: manchas de sangue do seu nariz, boca e seio mutilado.

O sangue nunca vai sair deste carpete, pensou ela e o verso reapare­ceu, como se em resposta: Os argumentos contra a loucura caem por terra com um leve farfalhar.

Havia loucura naquela história, sem dúvida; porém, o único som que ela recordava de instantes atrás não era um zumbido, um ronro­nado ou um farfalhar; era o som dos seus próprios gritos quando Jim Dooley encaixou o abridor de latas no seu seio esquerdo como uma sanguessuga mecânica. Ela havia gritado e desmaiado em seguida, então ele a acordara com um tapa para lhe dizer mais uma coisa. Depois disso, deixara que ela apagasse novamente, prendendo, no entanto, um bilhete na sua blusa — isto é, depois de tirar atenciosamente o sutiã arruinado e abotoá-la de volta — para garantir que ela não esqueceria. Lisey não precisava do bilhete. Lembrava-se perfeitamente do que ele dissera.

— É melhor eu ter notícias do Prof às oito da noite de hoje, ou da próxima vez vou te machucar muito mais feio. E se cuide sozinha, madame, tá me ouvindo? Se contar pra alguém que eu estive aqui, eu te mato. — Era isso que Dooley tinha dito. Ao bilhete preso na sua blusa, acrescentara: Vamos terminar esse negócio, nós dois vamos ficar mais felizes quando isso acontecer. Assinado, seu bom amigo, “Zack”!

Lisey não fazia idéia de quanto tempo ficou apagada na segunda vez. Tudo que sabia era que, quando voltou a si, o sutiã estropiado estava no cesto de lixo e o bilhete estava preso ao lado direito da sua blusa. O lado esquerdo estava empapado de sangue. Ela o desabotoou o suficiente para dar uma olhada breve, então gemeu e desviou os olhos. Parecia pior do que qualquer coisa que Amanda tinha feito a si mesma, incluindo a coisa no umbigo. Quanto à dor... tudo que conseguia se lembrar era de algo enorme e devastador.

As algemas haviam sido tiradas e Dooley tinha até lhe deixado um copo d’água. Lisey o bebeu avidamente. Quando tentou se levantar, no entanto, suas pernas tremiam demais para sustentá-la. Então ela saiu engatinhando do anexo, pingando sangue e suor sangrento no carpete de Scott (ah, mas ela nunca gostara daquele branco leitoso mesmo, ele deixava à mostra cada grão de poeira), com o cabelo colado à testa, lá­grimas secando nas faces, sangue virando uma crosta no seu nariz, lábios e queixo.

A princípio, achou que estava se encaminhando para o telefone, provavelmente para ligar para o vice-xerife Buttercluck, apesar do aviso de Dooley e do fracasso do Departamento de Polícia de Castle County em protegê-la da primeira vez. Então aquele verso de poesia

(os argumentos contra a loucura)

começou a lhe vir à cabeça e ela viu a caixa de cedro da Mãezinha Querida caída de cabeça para baixo no carpete entre a escada que dava para o celeiro e a mesa que Scott costumava chamar de Jumbona do Dumbo. O conteúdo da caixa de cedro estava espalhado pelo carpete. Ela compreendeu então que a caixa e seu conteúdo espalhado tinham sido seu destino desde o começo. O que mais queria era a coisa amarela que conseguia ver cobrindo o vulto roxo do menu do Antlers.

Os argumentos contra a loucura caem por terra com um leve farfalhar.

De um dos poemas de Scott. Ele não escreveu muitos e quase nun­ca publicou os que de fato escreveu — dizia que não eram bons e que os escrevia para si mesmo. Porém, ela achava aquele muito bom, embora não soubesse ao certo o que significava, ou sobre o que era. Gostava especialmente daquele primeiro verso, pois às vezes você ouvia as coisas indo embora, não é mesmo? Elas caíam, nível após nível, deixando um buraco. Dava para olhar dentro dele. Ou cair lá embaixo, se você não tomasse cuidado.

ESPANE, babyluv. Você está para entrar na toca do coelho, então en­gatilhe de jeito.

Dooley devia ter trazido a caixa da Mãezinha Querida para o escri­tório porque pensou que ela tinha a ver com o que queria. Caras como Dooley e Gerd Allen Cole, também conhecido como Loiraço, também conhecido como Monsieur Blém-Blém pelas Frésias, pensavam que tu­do tinha a ver com o que eles queriam, não era? Seus pesadelos, suas fobias, suas inspirações na calada da noite. O que Dooley tinha imagi­nado estar dentro da caixa de cedro? Uma lista secreta dos manuscritos de Scott (talvez em código)? Só Deus sabia. De qualquer forma, ele a jogara de lado depois de ver apenas um monte de quinquilharias desin­teressantes (pelo menos para ele) e arrastara a viúva Landon mais para dentro do escritório, procurando por um lugar onde poderia algemá-la antes que ela recobrasse a consciência. Os canos debaixo da pia do bar tinham servido muito bem.

Lisey se arrastou com perseverança em direção ao conteúdo espa­lhado da caixa, os olhos fixos no quadrado amarelo bordado. Pergun­tou-se se o teria achado sozinha. Imaginava que a resposta fosse não; já estava farta de lembranças. Agora, porém...

Os argumentos contra a loucura caem por terra com um leve farfalhar.

Era o que parecia. E será que, se sua preciosa cortina roxa final­mente caísse, faria aquele mesmo som leve e triste? Não ficaria nem um pouco surpresa se fizesse. Nunca tinha sido muito mais do que teias de aranhas entrelaçadas para começo de conversa; veja quanta coisa ela já havia recordado.

Chega, Lisey, nem ouse, psiu.

— Cale-se — grasniu ela. O seio violado latejou e ardeu. Scott tinha seu ferimento no peito, agora Lisey tinha o seu. Ela pensou nele voltando pelo jardim naquela noite, saindo das sombras enquanto Pluto latia e latia e latia na casa vizinha. Scott estendendo o que tinha sido sua mão e passara a ser apenas um coágulo de sangue com coisas que lembravam vagamente dedos saltando dele. Scott lhe dizendo que era um bool de sangue, e que era para ela. Scott mais tarde colocando aquela carne fatiada de molho em uma bacia cheia de chá fraco, falando como aquilo era algo

(Foi Paul quem inventou isso)

que seu irmão lhe ensinara a fazer. Falando que todos os Landon se curam rápido, tinham que se curar. Essa lembrança deu lugar à se­guinte, àquela em que ela e Scott estavam sentados debaixo da árvore nhami-nhami três meses depois. O sangue caiu como um lençol, lhe disse Scott, e Lisey perguntou se Paul tinha colocado os cortes de molho no chá depois e Scott disse que não...

Psiu, Lisey... ele nunca disse isso. Você nunca perguntou e ele nunca disse.

Mas ela havia perguntado. Tinha lhe perguntado todo tipo de coi­sa e Scott respondera. Não naquela hora, não debaixo da árvore nhami­-nhami, e sim mais tarde. Naquela noite, na cama. A segunda noite deles no Antlers, depois de fazerem amor. Como ela pôde esquecer?

Lisey deita-se por um instante no carpete branco leitoso para descansar.

— Nunca esqueci — disse ela. — Estava na roxidão. Atrás da cor­tina. Grande diferença. — Ela fixou o olhar no quadrado amarelo e voltou a rastejar.

Tenho quase certeza de que a cura do chá veio depois, Lisey. É, tenho certeza que sim.

Scott deitado do lado dela, rumando, observando a fumaça do ci­garro subir e subir, até aquele lugar onde desaparecia. Do jeito que as listras de um poste de barbeiro* desaparecem. Do jeito que o próprio Scott desaparecia às vezes.

Eu sei, porque naquela época estava aprendendo frações.

Na escola?

Não, Lisey, disse ele em um tom que dizia mais, que dizia que ela já deveria saber. Sparky Landon nunca foi esse tipo de pai. Eu e Paul, a gente foi educado em casa. Papai chamava as escolas públicas de Curral dos Burricos.

Mas os cortes de Paul naquele dia — no dia em que você pulou do banco — eles eram feios? Não eram superficiais?

Uma longa pausa enquanto ele observava a fumaça subir, se amon­toar e desaparecer, deixando apenas seu rastro de aroma adocicado-­amargo para trás. Finalmente, convicto: Papai cortava fundo.

E então ele disse: Enfim, não é isso que você quer perguntar. Pergunte o que quer saber, Lisey. Pode perguntar que eu conto. Mas você tem que perguntar antes.

Ou ela não se lembrava do que tinha acontecido em seguida ou não estava pronta para isso, mas se lembrava de como tinham saído do seu refugio debaixo da árvore nhami-nhami. Ele a abraçara sob aquele guarda-chuva branco e, um segundo depois, eles estavam lá fora, na neve. E agora, rastejando de quatro em direção à caixa de cedro virada de cabeça para baixo, a lembrança

(loucura)

caiu por terra

(com um leve farfalhar)

e Lisey finalmente permitiu que sua mente acreditasse no que seu segundo coração, seu coração escondido e secreto, já sabia desde o co­meço. Por um instante, eles não tinham estado nem debaixo da árvore nhami-nhami, nem lá fora na neve, mas em outro lugar. Um lugar quen­te e repleto de uma luz vermelha brumosa. Repleto do som de pássaros cantando ao longe e de cheiros tropicais. Alguns ela conhecia — fran­gipana, jasmim, buganvília, mimosa, a terra úmida e pulsante sobre a qual eles se ajoelharam como os amantes que sem sombra de dúvida eram —, porém os mais doces lhe eram desconhecidos e ela ansiava por saber seus nomes. Lembrava-se de ter aberto a boca para falar e de Scott colocando o lado de sua mão

(psiu)

nela. Lembrava-se de ter pensado como era estranho estarem ves­tidos com roupas de inverno em um lugar tão tropical e de ter notado que ele estava com medo. Então eles estavam lá fora na neve. Naquela nevasca louca de outubro.

Por quanto tempo tinham ficado no entrelugar? Três segundos? Talvez até menos. Porém, agora, rastejando por estar fraca e chocada demais para se levantar, Lisey estava finalmente disposta a arcar com a verdade. Quando chegaram ao Antlers naquele dia, ela já estava bem perto de se convencer de que aquilo não tinha acontecido, mas tinha.

— Aconteceu de novo, também — disse ela. — Aconteceu naque­la noite.

Ela estava com tanta sede. Queria desesperadamente outro copo d’água, mas o bar anexo, obviamente, tinha ficado para trás e ela estava indo na direção oposta da água e conseguia se lembrar de Scott cantan­do uma das canções do velho Hank enquanto dirigiam de volta naquele domingo, cantando All day I’ve faced the barren waste, Without a single taste ofwater, cool water.*

Você vai beber sua água, babyluv.

— Vou? — Ainda produzindo apenas um grasnido de corvo. — Um copo d’água com certeza ajudaria. Está doendo tanto.

Dessa vez não houve resposta, e talvez ela não precisasse de ne­nhuma. Tinha finalmente alcançado os objetos espalhados ao redor da caixa de cedro virada. Esticou o braço para pegar o quadrado amarelo, o tirou de cima do menu roxo e fechou as mãos com força em volta dele. Deitou-se de lado — sobre o lado que não doía — e o olhou de perto: as pequenas linhas de bordados e picotes, aqueles anéis minúsculos. Havia sangue nos seus dedos e ele manchou a lã, mas ela mal notou. Mãezinha Querida tricotara dezenas de colchas azuis e douradas, colchas verdes e laranja. Eram a especialidade dela e transbordavam de suas agulhas, uma atrás da outra, enquanto ela ficava sentada diante da tevê tagarela à noite. Lisey se lembrava de como, quando criança, achava que aquele tipo de cobertor bordado se chamava “trouxa”. Suas primas (Angleton, Darby, Wiggens e Washburn, assim como incontáveis Debusher) todas ganharam trouxas de presente de casamento; cada uma das Debusher ganhou pelo menos três. E, junto de cada trouxa, vinha um quadrado extra do mesmo tom ou tipo. Mãezinha Querida chamava esses quadra­dos extras de “regalos”. Eram para ser decorações de mesa, ou emoldu­rados e colocados na parede. Uma vez que a trouxa amarela tinha sido o presente de casamento de Lisey e Scott e uma vez que Scott sempre a adorou, Lisey guardara o regalo que viera junto dela na caixa de cedro. Agora ela estava deitada sangrando no carpete, segurando o quadrado, e desistiu de tentar esquecer. Pensou Bool, fim! e começou a chorar. Entendia que estava incapaz de ser racional, mas talvez não houvesse problema; a ordem viria depois, se necessário.

E, é claro, se houvesse depois.

Os pancadas e os coisas-ruins. Para os Landon e os Landreau antes deles, sempre foi um ou outro. E nunca deixa de sair.

Não era de surpreender nem um pouco que Scott tivesse reconhe­cido Amanda pelo que ela era — sabia o que era automutilação por experiência própria. Quantas vezes tinha se cortado? Ela não sabia. Não dava para analisar as cicatrizes dele como as de Amanda, porque... bem, porque não. No entanto, a única incidência de automutilação de que ela tinha certeza — a noite da estufa — tinha sido espetacular. E ele aprendera como se cortar através do pai, que só apontava a faca para os filhos quando seu próprio corpo não era suficiente para extravasar toda a coisa ruim.

Pancadas e coisas-ruins. Sempre um ou outro. E nunca deixa de sair.

E se Scott tivesse nascido sem a pior parte da coisa ruim, o que sobrava, então?

Em dezembro de 1995, fez um frio de rachar. E alguma coisa co­meçou a acontecer com Scott. Ele tinha uma série de palestras para dar depois da virada do ano em escolas no Texas, Oklahoma, Novo México e Arizona (o que ele chamava de Turnê Yahoo de Scott Landon pelo Oeste, 1996), mas ligou para seu agente literário e o mandou cancelar tudo. A agência de viagens fez um escândalo (o que não era surpresa, ele estava falando em mandar 300 mil dólares em palestras por água abai­xo), mas Scott bateu pé. Ele disse que era impossível, que estava doente. E estava mesmo; à medida que o inverno fincou suas garras mais fundo, Scott Landon se tornou de fato um homem doente. Já em novembro Lisey soube que havia algo

 

Ela sabe que há algo de errado com Scott, e não é bronquite, como ele vem dizendo. Não há tosse e sua pele está fria ao toque, de modo que, embora ele não a deixe medir a temperatura e nem colocar aquele ter­mômetro adesivo para bebês na sua testa, ela tem quase certeza de que ele não está com febre. O problema parece ser mais psicológico do que fí­sico, o que a apavora. Na única vez em que reúne coragem o suficiente para sugerir que ele vá se consultar com o dr. Bjorn, Scott quase arranca a cabeça dela fora, acusando-a de ser viciada em médicos “como o resto das suas irmãs malucas”.

E como ela deveria reagir a isso? Quais, exatamente, são os sin­tomas dele? Será que algum médico — mesmo um tão compreensivo quanto Rick Bjorn — os levaria a sério? Para começar, ele parou de ouvir música enquanto escreve. E também não está escrevendo muito, o que é muito mais grave. O andamento do novo romance — o qual Lisey Lan­don, que admite não ser nenhuma grande crítica literária, por sinal ado­ra — diminuiu de seu ritmo acelerado normal e começou a se arrastar penosamente. Mais grave ainda... Deus do céu, onde foi parar o senso de humor dele? Todo aquele excesso de bom humor podia ser cansativo, mas seu súbito desaparecimento à medida que o outono dá lugar ao frio é simplesmente assustador; é como aquele momento em um daqueles filmes de Tarzan antigos em que os tambores ficam mudos de repente. Ela sempre ia para a cama mais cedo do que ele —- geralmente muito mais cedo —, mas quase sempre sabe quando ele vai dormir e qual o cheiro que sente no seu hálito na hora. Também sabe o que vê nas latas de lixo do seu escritório e, à medida que vai ficando mais preocupada, faz questão de conferi-las a cada dois ou três dias. Está acostumada a ver latas de cerveja, às vezes um monte delas, Scott sempre gostou de tomar sua cervejinha, mas em dezembro de 1995 e no começo de janeiro de 1996 também começa a encontrar garrafas de Jim Beam. E Scott está tendo ressacas. Por algum motivo, isso a incomoda mais do que todo o resto. De vez em quando ele zanza pela casa — pálido, calado, enjoado — até o meio da tarde, antes de melhorar. Várias vezes o escutou vo­mitar atrás da porta do banheiro e, pela velocidade com que a aspirina está sumindo, sabe que ele está tendo fortes dores de cabeça. Não é de estranhar, você diria; se beber uma caixa de cerveja ou uma garrafa de Beam entre nove e meia-noite, você vai ter que pagar o preço, meu amigo. E talvez seja só isso, mas Scott bebia pesado desde a noite em que ela o conhecera no lounge da universidade, ocasião em que estava com uma garrafa escondida no bolso do paletó (ele a dividira com ela), e nunca tivera mais do que uma levíssima ressaca. Agora, quando ela vê as latas vazias na sua lixeira e que apenas uma ou duas páginas foram acrescentadas ao manuscrito de Lua-de-Mel dos Proscritos na sua mesa grande (alguns dias não há página alguma), Lisey se pergunta quanto mais ele anda bebendo além do que ela sabe.

Ela consegue esquecer suas preocupações por um tempo durante a sucessão de visitas de fim de ano e o alvoroço das compras de Natal. Scott nunca foi muito de comprar mesmo quando o movimento está lento e as lojas estão vazias, mas, naquela temporada, ele assume a ta­refa com um entusiasmo febril. Sai com ela toda joça de dia, indo à luta tanto no Auburn Mall quanto nas lojas da Main Street de Castle Rock. Muitas vezes é reconhecido, mas nega com bom humor os fre­qüentes pedidos de autógrafo de pessoas que percebem a chance de conseguir um presente sem igual, dizendo-lhes que se não ficar colado à sua mulher provavelmente não a verá de novo até a Páscoa. Ele pode ter perdido seu senso de humor, mas ela nunca o vê perder a cabeça, nem mesmo quando alguns dos sujeitos que querem autógrafos forçam a barra. Então, por um tempo, ele parece mais ou menos bem, mais ou menos ele mesmo, apesar da bebida, da turnê cancelada e do progresso lento do seu novo livro.

O Natal propriamente dito é um dia feliz, cheio de trocas de pre­sentes e uma vigorosa trepada ao meio-dia. A ceia de Natal é na casa de Canty e Rich, e, durante a sobremesa, Rich pergunta a Scott quando ele vai produzir um dos filmes baseados em seus romances.

— É aí que está a grana alta — diz Rich, aparentemente ignorando o fato de que, das quatro adaptações cinematográficas feitas até o mo­mento, três foram uma bomba. Só a versão para cinema de Demônios Vazios (que Lisey nunca viu) fez dinheiro.

No caminho de casa, o senso de humor de Scott volta como um bombardeiro B-1 e ele faz uma imitação hilariante de Rich que faz Lisey rir até sua barriga ficar com câimbra. E, quando chegam na Sugar Top Hill, eles sobem para uma segunda trepada. No crepúsculo, Lisey se sur­preende pensando que, se Scott está doente, talvez mais gente devesse pegar o que ele tem, pois o mundo seria um lugar melhor.

Ela acorda por volta das duas da manhã do dia seguinte, com von­tade de ir ao banheiro, e — isso sim é déjà vu — Scott não está na cama. Porém, dessa vez ele não partiu. Ela aprendeu a ver a diferença sem nem saber ao certo o que quer dizer quando pensa

(partiu)

sobre aquela coisa que ele faz às vezes, sobre aquele lugar que ele visita de vez em quando.

Ela urina de olhos fechados, escutando o vento lá fora. Parece frio, o vento, mas ela não sabe quanto. Ainda não. Dentro de algumas semanas, saberá. Dentro de algumas semanas, saberá de um monte de coisas.

Quando sai da privada, dá uma olhada pela janela do banheiro. Ela dá para o celeiro e para o escritório de Scott no palheiro reformado. Se ele estivesse lá em cima — e quando ficava agitado no meio da noite era geralmente para lá que ia — ela veria as luzes, talvez até ouviria os sons animados do seu rock-and-roll, tocando bem baixinho. Naquela noite, o celeiro está escuro e a única música que ela ouve é o som do vento. Isso a deixa um pouco aflita; faz brotarem no fundo do seu cérebro pensamentos

(enfarto derrame)

que são muito desagradáveis para serem considerados uma possi­bilidade, porém um pouco intensos demais, levando em conta como... como ele anda estranho ultimamente... para serem completamente des­cartados. Então, em vez de andar como uma sonâmbula de volta para o quarto, ela vai até a outra porta do banheiro, a que dá para o corredor do andar de cima. Chama o nome dele, sem resposta, mas vê uma barra dourada e fina de luz brilhando sob a porta fechada na outra extremi­dade. E agora, muito baixinho, ouve música vindo de lá. Não rock-­and-roll, mas country. É Hank Williams. O Velho Hank está cantando Kaw-Liga.

— Scott — chama ela novamente e, como não ouvisse resposta, vai até lá tirando o cabelo de cima dos olhos, os pés descalços sussur­rando em um carpete que, mais tarde, acabará no sótão, assustada sem saber explicar por quê, exceto que tem algo a ver com

(partiu)

coisas que já acabaram ou deveriam ter acabado. Morto e de paletó abotoado, teria dito Papai Debusher; aquela era uma que o velho Dandy pegou do lago, aquele em que todos vamos beber, aquele no qual joga­mos nossas redes.

— Scott?

Ela pára diante da porta do quarto de hóspedes por um instante e é invadida por uma premonição terrível: ele está sentado morto na cadei­ra de balanço de frente para a tevê, morto pelas próprias mãos, por que ela não previu isso?, os sintomas não estavam claros há no mínimo um mês? Ele aguentou até o Natal, agüentou por ela, mas agora...

— Scott?

Ela gira a maçaneta e empurra a porta e ele está na cadeira de ba­lanço conforme ela imaginou, mas muito vivo, enrolado na sua trouxa da Mãezinha Querida favorita, a amarela. Na televisão, com o som bai­xo, está passando seu filme preferido: A Última Sessão de Cinema. Ele não desgruda os olhos da tela para olhá-la.

— Scott? Tudo bem?

Seus olhos não se mexem, não piscam. Ela começa a sentir muito medo e, no fundo de sua mente, uma das palavras estranhas de Scott

(pancada)

coloca uma assombrada linha de montagem para funcionar, e ela a atira de volta para o seu subconsciente com um mal articulado

(Vá se danar!)

xingamento. Ela entra no quarto e repete seu nome. Desta vez, ele pisca — graças a Deus —, vira a cabeça para encará-la e sorri. É o sorriso Scott Landon pelo qual ela se apaixonou na primeira vez em que o viu. Principalmente pelo jeito como ele faz os olhos se levantarem nas beiradas.

— Ei, Lisey — diz ele. — O que você está fazendo acordada?

— Eu poderia fazer a mesma pergunta —- diz ela, procurando be­bida, uma lata de cerveja, talvez uma garrafa de Beam pela metade, sem encontrar nenhuma. Isso é bom. — Está tarde, sabia? Tarde.

Faz-se uma longa pausa durante a qual ele parece refletir bastante sobre o assunto. Então diz:

— O vento me acordou. Estava fazendo uma das calhas bater do lado da casa e eu não consegui voltar a dormir.

Ela começa a falar, então se interrompe. Quando você está casado há muito tempo — ela imagina que o tempo necessário varie de ca­samento para casamento —, desenvolve-se uma espécie de telepatia. Naquele instante, ela lhe diz que ele tem algo mais a dizer. Então fica calada, esperando para ver se está certa. A princípio, parece que sim. Ele abre a boca. Então o vento sopra lá fora e ela escuta — um barulho discreto e rápido, como dentes de metal batendo. Ele inclina a cabeça na sua direção... abre um pequeno sorriso... um sorriso nada bonito... o sorriso de alguém que guarda um segredo... e volta a fechar a boca. Em vez de falar o que quer que seja, ele olha de volta para a tela da tevê, onde Jeff Bridges — um Jeff Bridges muito jovem — e seu melhor ami­go estão indo de carro para o México. Quando voltarem, Sam, o Leão, estará morto.

— Você acha que consegue voltar a dormir agora? — pergunta ela e, quando ele não responde, começa a sentir medo novamente. — Scott! — diz ela, com um pouco mais de rispidez do que queria e, quando ele volta a encará-la (com relutância, acredita Lisey, embora ele tenha visto aquele filme pelo menos umas vinte vezes), repete a pergunta com um pouco mais de brandura. — Você acha que consegue voltar a dormir agora?

— Talvez — concede ele, e ela percebe algo ao mesmo tempo terrí­vel e triste: ele está com medo. — Se você dormir de conchinha comigo.

— Com o frio que está fazendo esta noite? Só se for agora. Vamos, desligue essa tevê e volte pra cama.

Ele obedece, e ela se deita escutando o vento e deleitando-se com o calor do corpo dele.

Então, começa a ver suas borboletas. É o que quase sempre aconte­ce quando ela começa a cair no sono. Vê borboletas vermelhas e pretas enormes abrindo suas asas no escuro. Já lhe ocorreu que ela as verá quando a hora da sua morte chegar. O pensamento a assusta, mas só um pouco.

— Lisey? — E Scott, vindo de longe. Ele está caindo no sono, também. Ela percebe que sim.

— Hmmmm?

— Ele não gosta que eu fale.

— Quem não gosta?

— Não sei. — Muito baixinho e distante. — Talvez seja o vento. O vento frio do norte. O que vem lá do...

A última palavra deve ter sido Canadá, provavelmente, mas não dá para ter certeza porque, àquela altura, ela está perdida na terra dos sonhos e ele também e, quando eles vão para lá, nunca vão juntos, ela teme que isso também seja uma prévia da morte, um lugar em que talvez haja sonhos, mas nunca amor, nunca um lar, nunca a mão de al­guém para segurar a sua quando bandos de pássaros cruzam o sol laranja queimado no fim do dia.

 

Ela passa um tempo — duas semanas, talvez — tentando acreditar que as coisas estão melhorando. Mais tarde, se perguntará como pôde ter sido tão idiota, tão propositalmente cega, como pôde confundir sua luta frenética para se agarrar ao mundo (e a ela!) com qualquer tipo de melhora, mas é claro que, quando fiapos de esperança são tudo o que lhe resta, você se agarra a eles.

Alguns desses fiapos são bem grossos. Durante os primeiros dias de 1996, ele parece cortar totalmente a bebida, com exceção de uma taça de vinho no jantar uma vez ou outra, e sobe ao escritório diariamente. Somente depois — depois, pois, pó-de-arroz, elas costumavam cantar quando eram crianças construindo seus primeiros castelos de palavras na areia das margens do lago — ela irá descobrir que ele não tinha acres­centado uma só página ao manuscrito do seu romance naqueles dias, não tinha feito nada além de beber uísque escondido, chupar pastilhas de menta e escrever bilhetes desconexos para si mesmo. Enfiado debaixo do teclado do Mac que ele está usando, ela encontrará um pedaço de papel — um papel de carta, na verdade, com DA MESA DE SCOTT LANDON im­presso no topo — no qual ele escrevera A corrente de tração está dizendo que você chegou tarde demais, Scoot, seu molenga, mesmo agora. Somente quando aquele vento frio, o que vem lá de Yellowknife, começa a ri­bombar ao redor da casa, ela finalmente percebe os cortes profundos em forma de lua crescente nas palmas das suas mãos. Cortes que ele só po­deria ter feito com as próprias unhas enquanto tentava se agarrar à vida e à sanidade como um alpinista tentando se agarrar a uma joça de uma saliência no meio de uma nevasca. Somente mais tarde ela encontrará seu esconderijo de garrafas vazias de Beam, mais de uma dúzia ao todo, e, em relação àquilo, consegue dar um desconto a si mesma; afinal, elas estavam bem escondidas.

 

Durante os primeiros dois dias de janeiro de 1996, faz um calor fora de época; o que o pessoal das antigas chamava de Degelo de Janeiro. No entanto, já no dia três, os meteorologistas começam a alertar para uma grande virada, uma espantosa frente fria vindo dos desertos brancos do Canadá central. Os moradores do Maine são aconselhados a se certifica­rem de que seus tanques de combustível estão cheios, os encanamentos isolados e de que tenham bastante “lugar quente” para seus animais. A temperatura cairá para 30 graus abaixo de zero, mas a queda de tempe­ratura será o menor dos problemas. Ela virá acompanhada por venda­vais que levarão o frio real a mais de 50 graus negativos.

Lisey se assusta a ponto de ligar para o empreiteiro geral deles, de­pois de não conseguir fazer com que Scott se preocupe de verdade. Gary lhe garante que os Landon têm a casa mais firme de Castle View, sugere que ela fique de olho nas irmãs (especialmente Amanda, quase nem pre­cisa dizer) e lhe recorda que o frio faz parte de se viver no Maine. Algu­mas noites de cão e eles estarão a caminho da primavera, diz ele.

No entanto, quando o frio abaixo de zero e os ventos barulhentos finalmente chegam no dia 5 de janeiro, é pior do que tudo de que Li­sey consegue se lembrar, mesmo esticando sua memória até a infância, quando cada trovoada que ela encarava alegremente era transformada em uma grande tempestade e cada neve que caía era uma nevasca. Ela mantém todos os aquecedores da casa a 24 graus e a fornalha nova está sempre ligada, porém, entre os dias 6 e 9, a temperatura lá dentro nun­ca vai além dos 16 graus. O vento não se limita a uivar em volta dos beirais, ele grita como uma mulher sendo estripada centímetro a centí­metro por um louco: um louco com uma faca cega. A neve deixada no chão pelo Degelo de Janeiro é levantada por ventos de 65 quilômetros por hora (os pés-de-vento chegam a 100 por hora, velocidade alta o su­ficiente para derrubar metade das torres de rádio do Maine central e de New Hampshire) que sopram pelos campos como fantasmas dançantes. Quando batem nas janelas antitempestade, os grãos de terra tambori­lam como granizo.

Na segunda noite deste extravagante frio canadense, Lisey acorda às duas da manhã e Scott não está na cama novamente. Ela o encontra no quarto de hóspedes, mais uma vez enrolado na trouxa amarela da Mãezinha Querida, mais uma vez assistindo A Última Sessão de Cinema. Hank Williams gorjeia Kaw-Liga; Sam, o Leão, está morto. Ela tem dificuldade em acordado, porém finalmente consegue. Pergunta se ele está bem e Scott diz que sim, está. Pede-lhe para olhar pela janela, lhe diz que é lindo, mas para ela ter cuidado e não ficar olhando muito.

— Meu Papai diz que pode queimar seus olhos quando está bri­lhante desse jeito — adverte ele.

Ela fica pasma com a beleza daquilo. Enormes cortinas de teatro balançam no céu, mudando de cor diante dos seus olhos: o verde vira roxo, o roxo vira escarlate e o escarlate, um estranho vermelho sangüí­neo que ela não consegue nomear. Ruivo talvez chegue perto, mas não é isso, não exatamente; ela acha que ninguém jamais batizou a cor que está vendo. Quando Scott puxa a parte de trás de sua camisola e lhe diz que chega, que ela precisa parar, Lisey fica chocada ao descobrir, depois de olhar para o relógio digital do videocassete, que ficou observando as luzes do norte pela janela emoldurada de gelo por dez minutos.

— Pare de olhar — diz ele, naquele tom resmungão e arrastado de quem fala dormindo. — Volte para a cama comigo, pequena Lisey.

Ela fica feliz em ir, feliz em desligar aquele filme de certa forma horrível, tirá-lo da cadeira de balanço e do friorento quarto dos fundos. No entanto, enquanto ela o leva pela mão pelo corredor, ele diz algo que faz sua pele se arrepiar:

— O vento me lembra a corrente de tração e a corrente de tração me lembra Papai — diz ele. — E se ele não estiver morto?

— Que bobagem, Scott — responde ela, mas esse tipo de coisa não parece bobagem no meio da noite, parece? Especialmente quando o vento grita e o céu está tão cheio de cores que parece gritar de volta.

Quando ela acorda na noite seguinte, o vento ainda está uivando e, dessa vez, quando ela vai até o quarto de hóspedes, a tevê não está ligada, mas ele a está vendo assim mesmo. Está na cadeira de balanço e enrolado na trouxa, na trouxa amarela da Mãezinha Querida, mas não lhe responde, nem mesmo olha para ela. Scott está lá, mas também não está.

Ele ficou pancada.

 

Lisey rolou no escritório de Scott e olhou para a clarabóia bem acima da sua cabeça. Seu peito latejava. Sem pensar no que estava fazendo, ela pressionou o quadrado amarelo bordado contra ele. A princípio, a dor foi pior ainda... mas depois sentiu um ligeiro alívio. Olhou para a clarabóia, ofegante. Sentia o cheiro do caldo azedo de suor, lágrimas e sangue em que sua pele marinava. Gemeu.

Todos os Landon se curam rápido. Tinham que se curar. Se fosse ver­dade — e ela tinha motivos para acreditar que sim —, então ela nun­ca quis tanto ser uma Landon quanto naquele instante. Nada de Lisa Debusher de Lisbon Falls, a têmpora de Mamãe e Papai, A Pequena Maria-vai-com-as-outras.

Você é quem você é, respondeu com paciência a voz de Scott. Você é Lisey Landon. Minha pequena Lisey. Mas estava quente e ela estava com tanta dor, agora era ela quem queria gelo e, com voz ou sem voz, Scott Landon nunca lhe pareceu tão morto.

ESPANE, babyluv, insistiu ele, mas aquela voz estava longe.

Longe.

Até o telefone na Jumbona do Dumbo, que ela teoricamente po­dia usar para pedir ajuda, parecia longe. E o que parecia perto? Uma pergunta. Bem simples, na verdade. Como ela pôde ter encontrado a própria irmã daquele jeito e não ter se lembrado de ter encontrado seu marido da mesma forma durante a onda de frio de 1996?

Eu me lembrei, sussurrou-lhe sua mente enquanto ela ficava deita­da olhando para a clarabóia com o quadrado amarelo bordado ficando vermelho contra o peito. Lembrei sim. Mas me lembrar de Scott na cadei­ra de balanço significava me lembrar do Antlers; e me lembrar do Antlers significava me lembrar do que aconteceu quando saímos debaixo da árvore nhami-nhami para a neve; me lembrar daquilo significava encarar a ver­dade sobre seu irmão Paul; encarar a verdadeira história de Paul significava voltar para aquele quarto de hóspedes frio com as luzes do norte enchendo o céu enquanto o vento vinha ribombando do Canadá, de Manitoba e lá de Yellowknife. Não está vendo, Lisey? Estava tudo interligado, sempre esteve, e, quando você se permitiu fazer a primeira ligação, derrubar a primeira peça de dominó...

— Eu teria enlouquecido — choramingou ela. — Como eles. Como os Landon e os Landreau e como quem quer que saiba disso. Não é de admirar que tenham ficado loucos, sabendo que existe um mundo tão perto desse... e que a parede divisória é tão tênue...

No entanto, aquilo ainda não era o pior. O pior era a coisa que tanto o assombrara, a coisa malhada com o enorme lado matizado...

— Não! — gritou ela no escritório vazio. Gritou mesmo que isso a fizesse doer dos pés à cabeça. — Oh, não! Pare! Faça isso parar! Faça tudo isso PARAR!

Mas era tarde demais. E verdadeiro demais para continuar sendo ne­gado, por maior que fosse o risco de enlouquecer. Havia mesmo um lugar onde a comida ficava ruim, às vezes completamente envenenada, depois do anoitecer e onde a coisa matizada, o garoto espichado de Scott...

(Vou imitar o som que ele faz quando olha em volta)

pode ser real.

— Ah, ele é real, sim — sussurrou Lisey. — Eu o vi.

No espaço vazio e assombrado do escritório do morto, ela come­çou a chorar. Mesmo naquele instante ela não sabia ao certo se aquilo era real e quando exatamente o tinha visto se fosse... mas parecia real. O tipo de coisa desoladora que pacientes de câncer vislumbram nos seus copos turvos do lado da cama, quando todos os remédios já foram tomados e a bomba de morfina está no 0 e a hora é nenhuma e a dor ainda está lá, penetrando mais fundo nos seus ossos insones. E viva. Viva, malévola e faminta. O tipo de coisa que seu marido tentou, e não conseguiu, expulsar com a bebida. E expulsar com risadas. E expulsar escrevendo. A coisa que ela quase conseguiu ver em seus olhos vazios quando ele estava sentado no quarto de hóspedes friorento com a tevê, daquela vez, apagada e silenciosa. Ele estava sentado

 

Ele está sentado na cadeira de balanço, enrolado na trouxa de um ama­relo extraordinariamente vivo da Mãezinha Querida até os olhos vidra­dos. Ele olha ao mesmo tempo para ela e através dela. Não responde ao próprio nome, que ela repete de forma cada vez mais frenética, sem saber o que fazer.

Ligue para alguém, pensa ela, é isso que você tem que fazer, e sai correndo de volta pelo corredor até o quarto deles. Canty e Rich estão na Flórida até o meio de fevereiro, mas Darla e Matt estão na mesma rua e é o telefone de Darla que ela pretende discar, já está pouco se im­portando se vai acordá-los no meio da noite, precisa falar com alguém, precisa de ajuda.

Ela não consegue linha. A ventania cruel, que a faz sentir frio mes­mo com a camisola de flanela com um suéter em cima para completar, que faz a fornalha no porão ficar ligada direto enquanto a casa range e geme e às vezes até faz um crrrac preocupante, aquele pé-de-vento gelado do Canadá, arrebentou um cabo em algum lugar em View e tudo o que ela consegue ouvir quando pega o fone é um mmmmm idiota. Ela bate com a ponta do dedo no gancho do telefone algumas vezes, por hábito, mas sabe que não vai adiantar, e não adianta. Está sozinha no velho casarão vitoriano reformado na Sugar Top Hill enquanto os céus enchem-se de loucas cortinas coloridas e a temperatura cai até extremos sobre os quais seria melhor nem pensar. Ela sabe que, se tentar ir até a casa dos Galloway, seus vizinhos, é bem capaz de perder uma orelha ou um dedo — talvez os dois — para o frio. Talvez até morra congelada na varanda deles antes de conseguir acordá-los. Não se pode brincar de forma alguma com esse tipo de frio.

Ela recoloca o telefone inútil no gancho e volta correndo pelo cor­redor até ele, seus chinelos sussurrando. Ele está como ela o deixou. A lamurienta trilha sonora de música country dos anos 50 de A Última Sessão de Cinema no meio da noite era ruim, mas o silêncio é pior, pior, pior. E logo antes de uma gigantesca lufada de vento atacar a casa e amea­çar arrancá-la do chão (ela mal pode acreditar que a luz ainda não tenha caído, certamente vai cair em breve), ela percebe por que até a ventania é um alívio: ela não consegue ouvi-lo respirar. Ele não parece morto, está até com as faces mais coradas, mas como saber que de fato não está?

— Querido? — murmura ela, aproximando-se dele. — Meu bem, você consegue falar comigo? Consegue me olhar?

Ele fica calado e não olha para ela, porém, quando ela coloca os de­dos gelados em seu pescoço, descobre que a pele ali está quente e sente as batidas do seu coração na veia grande ou artéria logo abaixo dela. E há outra coisa. Ela consegue sentir Scott pedindo sua ajuda. Sob a luz do dia, mesmo sob aquela luz fria, tempestuosa (do tipo que parece per­mear todas as externas de A Última Sessão de Cinema, pensando bem), ela tem certeza de que poderia rir daquilo, mas não naquele instante. Naquele instante, ela sabe o que está sentindo. Ele precisa de ajuda, não tanto quanto naquele dia em Nashville, primeiro quando o louco atirou nele e depois quando estava deitado no asfalto quente, tremendo, implorando por gelo.

— Como eu posso ajudá-lo? — murmura ela. — Como posso ajudá-lo dessa vez?

É Darla quem responde, Daria quando adolescente — “Cheia de peitinhos e ruindade”, disse Mãezinha Querida certa vez, com inco­mum vulgaridade, de modo que deveria estar para lá de irritada.

Você não vai ajudá-lo, que história é essa de ajudá-lo?, pergunta Dar­la, e aquela voz é tão real que Lisey quase consegue sentir o cheiro de pó-de-arroz Coty que Darla podia usar (por causa das manchas no ros­to) e ouvir seu chiclete estourando. E olha só! Ela foi até o lago, jogou a rede e fez uma pescaria e tanto! Ele foi pra cucuia, Lisey, perdeu um parafuso, pirou na batatinha, cheirou cola e comeu a lata, e o único jeito de você o ajudar é chamando os homens de jaleco branco assim que o telefone voltar a funcionar. Lisey ouve a risada de Darla — aquela risada de total desdém adolescente — bem no meio da sua cabeça enquanto baixa os olhos para seu marido de olhos arregalados sentado na cadeira de balan­ço. Ajudá-lo!, desdenha Darla. AJUDÁ-LO? Faça-me o favor.

Ainda assim, Lisey acha que pode. Lisey acha que existe uma maneira.

O problema é que a forma de ajudá-lo é possivelmente perigosa e nem um pouco garantida. Ela é honesta o bastante para reconhecer que criou alguns dos problemas ela mesma. Escondeu certas memórias, como a fantástica saída deles de debaixo da árvore nhami-nhami e insuportáveis verdades secretas — a verdade sobre Paul, o Santo Irmão, por exemplo — atrás de uma espécie de cortina em sua mente. Há um certo som

(o resfolegar, Deus do Céu, aquele grunhido baixo e horrível)

atrás dela e certas visões

(as cruzes no cemitério, as cruzes sob a luz sanguínea)

também. Às vezes ela se pergunta se todos têm uma cortina como aquela em suas mentes, uma com uma área de proibido-pensar atrás dela. Pois deveriam. Vem a calhar. Poupa você de várias noites insones. Há um monte de cacarecos velhos e empoeirados atrás da sua, coisas assim, coisas assado, coisas como aquilo outro. No fim das contas, é um belo labirinto. Oh, meu pequena Lisey, que impressionante, mein gott... o que as crianças acham disso?

— Non vai prra lá — murmura Lisey, mas ela acha que vai; ela acha que, se tem alguma chance de salvar Scott, de trazê-lo de volta, precisa ir pra lá... onde quer que lá seja.

Oh, mas é logo ali do lado.

É aí que está o horror.

— Você sabe, não sabe? — diz ela, começando a chorar, mas não é para Scott que está perguntando, Scott foi para onde vão os pancadas. Um belo dia, debaixo da árvore nhami-nhami, onde a estranha neve de outubro os protegia do mundo, ele disse que seu trabalho de escritor era uma espécie de loucura. Ela protestou — ela, a Lisey prática, para quem tudo estava na mesma —, e ele respondeu: Você não entende o que quer dizer “partir”. Espero que continue com essa sorte toda, pequena Lisey.

Porém, naquela noite, enquanto o vento vem ribombando de Yellowknife e o céu se enche de cores fortes, a sorte dela acaba.

 

Deitada de costas no escritório do seu falecido marido, segurando seu regalo sangrento contra o peito, Lisey disse:

— Eu me sentei ao lado dele e tirei sua mão debaixo da trouxa para poder segurada. — Ela engoliu. Sua garganta fez um clique. Queria mais água, mas não estava confiante o suficiente para se levantar, ainda não. — A mão dele estava quente, mas o frio do chão

 

O frio do chão chega a atravessar a flanela da sua camisola, a flanela das suas ceroulas e a calcinha de cetim debaixo delas. Aquele quarto, como todos os do andar de cima, tem aquecedores sob as tábuas, e ela conse­gue sentir o calor deles se esticar a mão que não está segurando Scott, mas não adianta muito. A fornalha, que trabalha sem parar, manda o calor para cima, os aquecedores botam-no para fora, ele se arrasta pelas tábuas até uns 15 centímetros de altura... e então, puf! Some. Como as listras em um poste de barbeiro. Como fumaça de cigarro quando sobe. Como maridos, às vezes.

Que se dane o chão frio. Que se dane se seu traseiro ficar azul. Se puder fazer algo por ele, faça logo.

Porém, o que é este algo? Como ela deve começar?

— Ele-nunca-me-falou-sobre-isso-antes-porque-eu-nunca-pergun­tei. — Isso lhe ocorre tão depressa que quase poderia ser uma palavra longa e exótica.

Se fosse, seria uma exótica mentira de uma palavra só. Ele respon­deu à sua pergunta sobre a cura do chá naquela noite no Anders. Na cama, depois de fazerem amor. Ela fez duas ou três perguntas, mas a que importava, a pergunta-chave, acabou sendo aquela primeira. Ela era simples, também. Ele poderia tê-la respondido com um simples sim ou não, porém quando Scott Landon respondeu qualquer coisa com um simples sim ou não? E acabou sendo o saca-rolhas no gargalo da garrafa. Por quê? Porque os levou de volta a Paul. E a história de Paul era, essencialmente, a história da sua morte. E a morte de Paul levou a...

— Não, por favor — sussurra ela e percebe que está apertando demais a mão dele. Scott, óbvio, não reclama. No linguajar da família Landon, ele ficou pancada. Parecia engraçado quando você colocava desta maneira, quase como uma piada no Hee Haw.*

Ei, Buck, cadê o Roy?

Bem, vou te contar, Minnie: Roy ficou pancada!

(Platéia gargalha aos urros.)

Lisey, no entanto, não acha graça e não precisa que nenhuma de suas vozes interiores lhe diga que Scott foi para a terra dos pancadas. Se quiser trazê-lo de volta, precisa segui-lo.

— Oh, Deus, não — geme ela, pois o significado disso já começa a se avultar no fundo da sua mente, um vulto grande, embrulhado em vários lençóis. — Oh, Deus, oh, Deus, não tem outro jeito?

Deus não responde. Tampouco ela precisa da resposta Dele. Sabe o que precisa fazer, ou pelo menos como precisa começar: tem que se lembrar da segunda noite deles no Anders, depois de fazerem amor. Eles estavam quase caindo no sono e ela pensou: Que mal pode haver? É sobre o Santo Irmão Mais Velho que você quer saber, e não sobre o Demoníaco Papai. Pergunte logo. E foi o que ela fez. Sentada no quarto com a mão dele (está ficando mais fria agora) envolvida nas suas e com o vento ribombando lá fora e o céu repleto de cores loucas, ela espia através da cortina que pen­durou para esconder suas piores e mais desconcertantes lembranças e vê a si mesma lhe perguntando sobre a cura do chá. Perguntando-lhe

 

— Depois daquele negócio no banco, Paul colocou os cortes de molho no chá, como você fez com a sua mão naquele dia, no meu apartamento?

Ele está deitado do seu lado na cama, o lençol puxado até os qua­dris, de modo que ela consegue ver a ponta dos caracóis dos seus pêlos pubianos. Ele está fumando o que chama de o sempre fabuloso cigarro pós-coito e a única luz no quarto vem do abajur ao lado da cama. Sob o brilho rosa-empoeirado daquele abajur a fumaça sobe e desaparece no escuro, fazendo-a pensar brevemente

(houve ou não um som, um rumor de ar se deslocando para debaixo da árvore nhami-nhami quando fomos embora, quando saímos)

sobre algo que ela já estava trabalhando para tirar da cabeça.

Enquanto isso, o silêncio se estende. Assim que ela decide que ele não vai responder, ele responde. E seu tom a faz acreditar que foi uma reflexão cuidadosa, e não relutância, o motivo da pausa.

— Tenho quase certeza de que a cura do chá veio depois, Lisey. — Ele pensa um pouco mais, assente. — É, tenho certeza que sim. Eu sei, porque naquela época estava aprendendo frações. Um terço mais um quarto igual a sete doze avos, esse tipo de coisa. — Ele sorri, mas Lisey, que está começando a conhecer bem seu repertório de expressões, acha que é um sorriso nervoso.

— Na Escola? — diz ela.

— Não, Lisey. — O tom dele diz que já deveria saber e, quando vol­ta a falar, ela reconhece aquela infantilidade um tanto quanto arrepiante

 (eu teimei e teimei)

insinuando-se em sua voz.

— Eu e Paul, a gente foi educado em casa. Papai chamava as escolas públicas de Curral dos Burricos. — No criado-mudo do lado do abajur, há um cinzeiro em cima do seu exemplar de Matadouro 5 (Scott leva um livro para qualquer lugar que for, sem exceções), que ele usa para bater o cigarro. Lá fora, o vento sopra forte e a velha pousada range.

De repente, Lisey tem a impressão de que aquilo talvez não seja uma boa idéia, que a boa idéia seria simplesmente virar para o lado e dormir, mas ela está dividida e sua curiosidade a leva adiante.

— E os cortes de Paul naquele dia — no dia em que você pulou do banco —, eles eram feios? Não eram superficiais? Quero dizer, você sabe como as crianças vêem as coisas... qualquer cano estourado parece um dilúvio...

Ela vai parando de falar. Há uma longa pausa durante a qual ob­serva a fumaça do cigarro sair do foco de luz do abajur e desaparecer. Quando volta a falar, sua voz sai seca, inexpressiva e convicta.

Ela abre a boca para dizer algo convencional que porá um fim àquela conversa (todo tipo de alarme está soando na sua cabeça àquela altura; fileiras de luzes vermelhas estão piscando), mas, antes de ela con­seguir, ele prossegue.

— Enfim, não é isso que você quer perguntar. Pergunte o que quer saber, Lisey. Pode perguntar que eu conto. Não vou esconder nada de você, não depois da tarde de hoje, mas você tem que perguntar.

O que aconteceu hoje à tarde? Aquela seria a pergunta lógica, mas Lisey sabe que aquela não é uma conversa lógica, pois é a loucura que eles estão rondando, loucura, e agora ela é parte dela, também. Pois Scott a levou para algum lugar, ela sabe disso, que não foi sua imaginação. Se perguntar o que aconteceu, ele lhe dirá, ele já falou isso... mas essa não é a maneira certa de entrar. Sua sonolência pós-coito desapareceu e ela nunca se sentiu tão desperta na vida.

— Depois que você pulou do banco, Scott...

— Papai me deu um beijo, um beijo era o prêmio do Papai. Pra mostrar que o bool de sangue tinha acabado.

— Sim, eu sei, você me disse. Depois que você pulou do banco e ele parou de cortar, Paul... ele foi se tratar em algum lugar? Foi assim que ele conseguiu ir comprar refrigerante na loja e depois correr pela casa para inventar uma caça ao bool tão cedo?

— Não. — Ele amassa o cigarro no cinzeiro em cima do livro.

Ela sente a mais estranha mistura de emoções diante daquela sim­ples negação: um doce alívio e uma profunda decepção. É como ter uma nuvem carregada dentro do peito. Ela não sabe exatamente o que está pensando, mas isso não significa que ela não precisa mais pensar sobre aqui...

— Ele não podia. — Scott fala no mesmo tom de voz seco e inex­pressivo. Com a mesma convicção. — Paul não podia. Não podia ir. — A ênfase na última palavra é sutil, mas inconfundível. — Eu tinha que levar ele.

Scott rola para o lado dela e a leva... mas apenas para os seus bra­ços. O rosto dele contra o seu pescoço está quente de emoção contida.

— Existe um lugar. Nós o chamávamos de Boo’ya Moon, não me lembro por quê. É muito bonito. — Binhito. — Levei ele quando ele tava machucado e levei ele quando ele tava morto, mas não conseguia levar ele quando ele tava com a coisa ruim. Depois que Papai mato ele eu levei ele pra lá, pra Boo’ya Moon e interrei ele lá. — A represa se rompe e ele começa a soluçar. Consegue abafar um pouco os sons fechando os lábios, mas a força daqueles soluços balança a cama e, por um instante, tudo que ela pode fazer é abraçá-lo. Em algum momento, ele lhe pede para desligar o abajur e, quando ela pergunta por quê, ele lhe diz.

— Porque esse é o resto da história, Lisey. E acho que consigo con­tá-la, desde que você me abrace. Mas não com a luz acesa.

E, embora esteja mais apavorada do que nunca — mais apavorada até do que na noite em que ele saiu do escuro com a mão destroçada, cheia de sangue —, ela solta um braço o suficiente para apagar a luz ao lado da cama, esfregando no rosto dele o seio que, no futuro, sofrerá a loucura de Jim Dooley. A princípio, o quarto fica escuro, mas depois a mobília reaparece fosca enquanto seus olhos se ajustam; chega a assumir um brilho fraco e alucinógeno que anuncia a chegada da lua por entre as nuvens.

— Você acha que Papai assassinou Paul, não acha? Acha que é as­sim que essa parte da história termina?

— Scott, você disse que foi isso que ele fez com o rifle...

— Mas não foi assassinato. Eles teriam chamado disso se ele tivesse sido levado à justiça, mas eu estava lá e sei que não foi. — Ele faz uma pausa. Lisey acha que ele vai acender outro cigarro, mas não. Lá fora, o vento sopra forte e a casa antiga grunhe. Por um instante, a mobília se ilumina, só um pouco, e então a escuridão retorna. — Papai poderia tê-­lo matado, com certeza. Muitas vezes. Sei disso. Teria matado algumas vezes, se eu não tivesse estado lá para ajudar, mas, no fim das contas, não foi isso que aconteceu. Você sabe o que significa eutanásia, Lisey?

— Assassinato por misericórdia.

— É. Foi isso que Papai fez com Paul.

Diante da cama, a mobília oscila mais uma vez em direção à visibi­lidade, então se recolhe novamente para as sombras.

— Era a coisa ruim, não está vendo? Paul tinha ela igual ao Papai. Só que Paul tinha coisa ruim demais pro Papai conseguir cortar e botar ela pra fora.

Lisey meio que entende. Todas aquelas vezes em que o pai cortava os filhos — e a si mesmo também, supõe ela — ele estava praticando uma espécie de medicina preventiva louca.

— Papai dizia que ela quase sempre pulava duas gerações e então voltava duas vezes pior. “Passa por cima de você como uma corrente de tração no seu pé, Scott”, dizia ele.

Ela balança a cabeça. Não sabe do que ele está falando. E parte dela não quer saber.

— Era dezembro — diz Scott — e estava vindo uma frente fria. A primeira do inverno. A gente vivia naquela fazenda bem no interior, com campos abertos para todo lado e só uma estrada que seguia até a loja do Mulie e depois para Martensburg. Ficávamos bem isolados do mundo. Bem no nosso canto mesmo, entende?

Ela entende. Entende, sim. Imagina o carteiro subindo aquela es­trada de vez em quando e, obviamente, “Sparky” Landon a pegava para ir ao

(U.S. Gyppum)

trabalho, mas nada muito além disso. Nenhum ônibus escolar, porque eu e Paul, a gente foi educado em casa. E os ônibus escolares iam para o Curral dos Burricos.

— A neve piorava as coisas e o frio mais ainda, o frio mantinha a gente dentro de casa. Mesmo assim, aquele ano não foi tão ruim no co­meço. Tínhamos uma árvore de Natal, pelo menos. Tinha anos em que Papai pegava a coisa ruim... ou então ficava simplesmente emburrado... e a gente ficava sem árvore e sem presente nenhum. — Ele solta uma risada curta, séria. — Teve um Natal que ele nos deixou acordados até as três da manhã, lendo o Apocalipse, sobre jarros se abrindo, pragas, ca­valeiros em cavalos de vários tons, até atirar a Bíblia na cozinha e berrar: “Quem escreve essa merdaiada toda? E que tipo de otário acredita nisso?” Quando ele estava a fim de berrar, Lisey, ele podia berrar como Ahab durante os últimos dias do Pequod. Mas aquele Natal em particular pa­recia bom o suficiente. Sabe o que ele fez? Fomos todos para Pittsburgh juntos para fazer compras, e Papai até nos levou para ver um filme; Clint Eastwood fazendo um policial e enchendo uma cidade qualquer de bala. Fiquei com dor de cabeça, e a pipoca me deu dor de barriga, mas achei a coisa mais maravilhosa que tinha visto na vida. Fui pra casa e comecei a escrever uma história igualzinha, que eu li para Paul naquela noite. Devia ser uma bela porcaria, mas ele falou que era boa.

— Ele parece um ótimo irmão — diz ela, atenciosamente.

A atenção dela é inútil. Ele nem dá ouvidos.

— O que estou querendo dizer é que estávamos todos nos dando bem, vinha sendo assim há meses, quase como uma família normal. Se é que isso existe, o que eu duvido. Mas... mas.

Ele se interrompe, pensando. Finalmente, volta a falar.

— Então, um dia, não muito depois do Natal, eu estava lá em cima, no meu quarto. Estava frio, mais frio do que uma teta de bruxa, e prestes a nevar. Eu estava na minha cama, lendo meu dever de história, quando olhei pela janela e vi Papai vindo do jardim com uma braça­da de lenha. Desci pela escada dos fundos para ajudá-lo a empilhá-la dentro da caixa de madeira para a lenha não espalhar casca pelo chão inteiro; ele sempre ficava puto com aquilo. E Paul estava

 

Paul está sentado à mesa da cozinha quando seu irmão mais novo, de apenas 10 anos e precisando cortar o cabelo, desce pela escada dos fun­dos com os cadarços do tênis balançando soltos. Scott acha que vai perguntar a Paul se ele quer descer de trenó a colina atrás do celeiro de­pois que guardarem a madeira. Isto é, se Papai não tiver mais nenhuma tarefa para eles.

Paul Landon, magro e alto e já bonito aos 13, está com um livro aberto à sua frente. O livro se chama Introdução à Álgebra e Scott não tem motivos para achar que ele esteja fazendo outra coisa além de re­solver o x até Paul virar a cabeça para encará-lo. Scott ainda está a três degraus do fim da escada quando Paul faz isso. Apenas um segundo de­pois, Paul investe contra o irmão caçula, para o qual nunca nem mesmo ergueu a mão durante o tempo em que viveram juntos, mas é tempo suficiente para ele perceber que não, Paul não estava apenas sentado ali. Não, Paul não estava apenas lendo. Não, Paul não estava estudando.

Paul estava esperando para dar o bote.

Não é o vazio que ele vê nos olhos do irmão quando Paul salta da cadeira com força o bastante para atirá-la para trás contra a parede, e sim pura coisa ruim. Aqueles olhos já não são azuis. Algo rebentou no cérebro atrás deles e os encheu de sangue. Sementes escarlates saltam dos seus cantos.

Outra criança talvez tivesse ficado paralisada e sido morta pelo monstro que uma hora antes tinha sido um irmão comum com nada em mente além do dever de casa ou, talvez, do que ele e Scott poderiam comprar de Natal para Papai se juntassem o dinheiro dos dois. Scott, no entanto, é tão comum quanto Paul. Crianças comuns jamais teriam sobrevivido a Sparky Landon e é quase certamente a experiência de conviver com a loucura do pai que salva Scott naquele instante. Ele reconhece a coisa ruim quando a vê e não perde tempo com dúvidas. Vira-se imediatamente e tenta voltar correndo pela escada. Sobe apenas três degraus antes de Paul agarrá-lo pelas pernas.

Rosnando como um cachorro cujo quintal foi invadido, Paul enro­la os braços em volta das canelas de Scott e puxa as pernas do chão. Scott agarra o corrimão, segurando-se. Ele dá um só grito de duas palavras — Papai, socorro — e então se cala. Gritar é desperdício de energia. Ele precisa de toda a que tem para se segurar.

Não tem força o bastante para tanto, é claro. Paul é três anos mais velho, 20 quilos mais pesado e muito mais forte. Além disso tudo, tinha ficado maluco. Se Paul conseguir soltado do corrimão, Scott vai acabar seriamente ferido ou morto apesar de sua reação rápida, mas, em vez de pegar Scott, o que Paul agarra são suas calças de veludo côtelé e seus dois tênis, que ele se esqueceu de amarrar quando desceu pulando da cama.

(— Se eu tivesse amarrado meus tênis — dirá ele à sua mulher muito mais tarde, na cama do segundo andar do Anders em New Hampshire —, provavelmente não estaríamos aqui. Às vezes eu penso que é a isso que se resume minha vida, Lisey: um par de Keds desamarrados, tamanho 38.)

A coisa que era Paul ruge, cai para trás com as calças nos braços e tropeça na cadeira na qual um belo rapazinho estava sentado uma hora antes traçando gráficos cartesianos. Um dos tênis cai no assoalho irregular e encalombado. Scott, enquanto isso, está lutando para voltar a subir e chegar ao patamar do segundo piso enquanto há tempo, mas suas meias escorregam no degrau liso e ele volta a cair com um joelho no chão. Suas cuecas esfarrapadas estão puxadas para baixo até a metade, ele sente uma corrente de ar fria soprar na racha da sua bunda e tem tempo de pen­sar: Por favor, Deus, não quero morrer assim, com meu bumbum ao vento. Então a coisa-irmão está de pé, urrando e jogando longe as calças. Elas deslizam pela mesa da cozinha, deixando o livro de álgebra no lugar, mas derrubando a tigela de açúcar — mandando ela pro beleléu, diria o pai deles. A coisa que era Paul salta para cima dele e Scott está se preparando para as mãos e a sensação das unhas se enfiando na sua pele quando ouve um grande tum! de madeira e um grito rouco e furioso:

— Deixe ele em paz, seu desgraçado filho duma égua! Seu coisa­-ruim de merda!

Ele tinha se esquecido completamente do Papai. A corrente de ar na sua bunda era ele entrando com a madeira. Então as mãos de Paul o agarram, suas unhas se enfiam nele e ele é puxado para trás, soltado do corrimão como se fosse um bebê. Em instantes, sentirá os dentes de Paul. Ele sabe que sim, aquela é a coisa ruim de verdade, a coisa ruim braba, não o que acontece com Papai quando ele vê gente que não está lá ou faz bools de sangue consigo mesmo ou com um deles (algo que faz cada vez menos com Scott à medida que ele cresce), e sim a coisa ruim pra valer, o que Papai queria dizer sempre que se limitava a rir e balançar a cabeça quando eles lhe perguntavam por que os Landreau saíram da França mesmo quando significava deixar todo o dinheiro e terras deles para trás, e eles eram ricos, os Landreau eram ricos, e ele vai morder agora, ele vai me morder bem agora, BENHAQUI...

Ele nunca chega a sentir os dentes de Paul. Sente algo quente na carne desprotegida à sua esquerda, logo acima da cintura, e ouve outro barulho pesado de madeira tum! quando Papai volta a descer a tora na cabeça de Paul — com as duas mãos e com toda sua força. O baque é seguido pela série de sons que o corpo de Paul faz aos deslizar até o assoalho da cozinha.

Scott se vira. Ele está esparramado nos últimos degraus da escada, vestindo apenas uma velha camisa de flanela, suas cuecas e meias espor­tivas brancas com buracos nos calcanhares. Um dos seus pés quase toca

o chão. Ele está chocado demais para chorar. Sua boca tem o gosto do fundo de um cofre de porquinho. O som daquele último baque foi ter­rível e, por um instante, sua imaginação pinta a cozinha com o sangue de Paul. Ele tenta gritar, mas seus pulmões chocados e comprimidos não conseguem produzir mais do que um aterrorizado grasnido. Ele pisca e vê que não há sangue, apenas Paul caído de cara no açúcar da ti­gela agora falecida, que jaz quebrada em quatro pedaços grandes e mais alguns caquinhos. Essa aí nunca mais vai dançar tango, diz Papai quando alguma coisa quebra, um copo ou um prato, mas não fala agora, fica apenas parado diante do filho inconsciente com sua jaqueta de trabalho amarela. Há neve nos seus ombros e no cabelo desgrenhado, que está começando a ficar grisalho. Em uma das mãos enluvadas, ele segura a tora. Atrás dele, espalhado na entrada como gravetos, está o resto da braçada. A porta ainda está aberta e a corrente de ar ainda está sopran­do. E agora Scott percebe que há sangue, só um pouquinho, saindo da orelha esquerda de Paul e descendo pelo lado do seu rosto.

— Papai, ele está morto?

Papai atira a tora na caixa de madeira e arrasta os cabelos longos para trás. Há neve derretida nas pontas de barba nas suas bochechas — Não tá não. Não vai morrer tão fácil. Ele segue pisando forte até a porta dos fundos e a fecha com um estrondo, cortando a corrente de ar. Cada movimento seu expressa repugnância, mas Scott já o viu agir dessa forma antes — quando recebe cartas oficiais sobre impostos, educação infantil ou coisas assim — e tem quase certeza de que ele está muito assustado.

Papai volta e fica parado diante do seu garoto caído no chão. Fica um tempo jogando o peso do corpo de uma bota para a outra. Então ergue os olhos para o outro.

— Me ajude a descer com ele para o porão, Scoot.

Não é inteligente questionar Papai quando ele lhe pede para fazer alguma coisa, mas Scott está assustado. E, também, está praticamente nu. Ele desce até a cozinha e começa a vestir a calça.

— Por quê, Papai? O que a gente vai fazer com ele?

E, por um milagre, Papai não bate em Scott. Nem mesmo grita com ele.

— Eu sei lá. Vamos amarrar ele lá embaixo pra começar enquanto eu penso. Rápido. Ele não vai ficar apagado muito tempo.

— É mesmo a coisa ruim? Igual com os Landreau? Igual com o seu tio Theo?

— O que você acha, Scoot? Pegue a cabeça dele, se não quiser que ela vá batendo no chão até lá embaixo. Tô falando que ele não vai ficar apa­gado muito tempo e, se ele acordar de novo, talvez você não tenha a mesma sorte. E nem eu. A coisa ruim é forte.

Scott faz o que o pai manda. Eles estão nos anos 60, na América, o homem logo estará pisando na lua, mas têm que lidar com um menino que, aparentemente, virou uma fera de uma hora para outra. O pai sim­plesmente aceita o fato. Depois de suas perguntas chocadas iniciais, o filho também. Quando chegam à base da escada do porão, Paul começa a se mexer novamente e faz sons grossos com o fundo da garganta. Spar­ky Landon coloca as mãos em volta da garganta do filho mais velho e começa a enforcá-lo. Scott grita de horror e tenta agarrar o pai.

— Papai, não!

Sparky Landon solta uma das mãos do que está fazendo por tempo o bastante para dar um tapa distraído com as costas da mão no filho ca­çula. Scott cambaleia para trás e bate na mesa no meio do chão de terra. Em cima dela, há uma prensa tipográfica manual que Paul conseguiu de alguma forma botar para funcionar novamente. Ele imprimiu algumas das histórias de Scott nela; foram as primeiras publicações do seu irmão mais novo. A alavanca daquela besta de 250 quilos dá uma dolorosa mordida nas costas de Scott e ele se encolhe, fazendo uma careta, en­quanto observa o pai voltar a enforcar seu irmão.

— Papai, não mata ele! POR FAVOR, NÃO MATA ELE!

— Não vou matar — diz Landon sem olhar em volta —, devia, mas não vou. Pelo menos ainda não. Burrice minha, mas ele é meu filho, a porra do meu primogênito, e não vou matar ele a não ser que precise. E temo que vá precisar. Minha mãezinha do céu! Mas ainda não. De jeito maneira. Só que não posso deixar ele acordar. Você ainda não viu uma coisa assim, mas eu já. Dei sorte lá em cima porque vim por trás. Aqui embaixo, podia passar duas horas correndo atrás dele pra nada. Ele subi­ria pelas paredes e até o meio da joça do teto. Então, depois que eu ficasse cansado...

Landon tira as mãos da garganta de Paul e olha fixamente para o rosto branco e imóvel. O pequeno filete de sangue do ouvido de Paul com o parece ter parado.

— Pronto. Que tal isso, seu safado, seu filho-da-mãe? Ele apagou de que ela novo. Mas não por muito tempo. Pegue aquele rolo de corda debaixo da escada. Isso vai dar conta até a gente poder pegar uma corrente lá do barraco. Depois não sei. Depende.

— Depende do quê, Papai?

Assustado. Alguma vez se sentiu tão assustado assim? Não. E seu pai o olha de um jeito que o assusta mais ainda. Porque é um jeito de quem sabe das coisas.

— Ora, acho que depende de você, Scoot. Você fez ele melhorar um monte de vezes... e por que essa cara de cachorro que quebrou o vaso? Tava achando que eu não sabia? Jesus, para um garoto tão inteligente você é bem burro! — Ele vira a cabeça e cospe no chão de terra. — Você fez ele me­lhorar de um monte de coisas. Talvez possa fazer ele melhorar disso. Nunca ouvi falar de ninguém que melhorou da coisa ruim... não da coisa ruim de verdade... mas também nunca ouvi falar de ninguém igual a você antes, então talvez possa. Manda brasa até o cu fazer bico, como teria dito meu pai. Mas, por enquanto, vá buscar aquele rolo de corda debaixo da escada. E depressa, seu lerdo duma figa, porque ele já

 

— Ele já está se mexendo — disse Lisey, deitada no carpete branco lei­­toso do escritório do seu falecido marido. — Ele já

 

— Está se mexendo — diz Lisey, sentada no chão frio do quarto de hóspedes, segurando a mão do marido, que está quente, porém terrivel­mente frouxa e mole na sua. — Scott disse

 

Os argumentos contra a loucura caem por terra com um leve farfalhar;

são esses os sons das vozes mortas em discos mortos

flutuando pelo veio partido da memória abaixo.

Quando me viro para o seu lado para perguntar se você se lembra

Quando me viro para o seu lado na nossa cama

 

Na cama com ele é onde ela ouve essas coisas; na cama com ele no Anders, depois de um dia em que algo que ela não sabe explicar de forma alguma aconteceu. Ele as conta para ela enquanto as nuvens se dispersam e a lua se aproxima como um aviso e a mobília nada até as margens da visibilidade. Ela o abraça no escuro e ouve, sem querer acre­ditar (sem conseguir evitá-lo), à medida que o jovem que logo se tornará seu marido lhe diz:

— Papai me mandou pegar aquele rolo de corda debaixo da esca­da. “E depressa, seu lerdo duma figa”, diz ele, “porque ele não vai ficar apagado muito tempo. E quando ele acordar

 

— Quando acordar, ele vai ser um bicho feio.

Bicho feio. Como Scooter, seu molenga e a coisa ruim, bicho feio faz parte do idioma interno da sua família que irá assombrar seus so­nhos (e seu jeito de falar) pelo resto da sua vida produtiva, porém curta demais.

Scott pega o rolo de corda debaixo da escada e o leva para Papai. Papai amarra Paul com uma parcimônia veloz e dançante, sua sombra agigantando-se e girando nas paredes de pedra do porão sob a luz de três lâmpadas de 75 watts, que são controladas por um interruptor no topo da escada. Ele amarra os braços de Paul com tanta força às costas dele que as articulações dos seus ombros ficam visíveis mesmo por debaixo da camisa. Scott se vê forçado a falar novamente, por mais medo que sinta de Papai.

— Papai, o senhor apertou demais!

Papai lança os olhos na direção de Scott. É um olhar breve, mas Scott reconhece o medo nele. Isso o assusta. Mais que isso, o deixa pas­mo. Até então, ele teria dito que seu Papai não tinha medo de nada além do conselho escolar e de suas malditas cartas registradas.

— Você não sabe, então cale a boca! Não vou deixar ele se soltar! Ele pode até não matar a gente se isso acontecer, mas eu com toda certeza vou ter que matar ele. Sei o que estou fazendo!

Não sabe nada, pensa Scott, observando Papai amarrar as pernas de Paul juntas primeiro nos joelhos e depois nos tornozelos. Paul já come­çou a se mexer novamente e a murmurar daquele jeito gutural. Está só tentando adivinhar. No entanto, ele compreende a sinceridade do amor que Papai sente por Paul. Pode ser um amor feio, mas é verdadeiro e for­te. Se não fosse, Papai nem tentaria adivinhar. Teria apenas continuado batendo em Paul com a tora até ele morrer. Por um instante, parte da mente de Scott (uma parte fria) se pergunta se Papai teria corrido o mesmo risco por ele, por Scooter, o molenga, que só teve coragem de pular de um banco de um metro de altura depois de ver o irmão cortado e sangrando diante de si, então empurra o pensamento para a escuridão. Não é ele que está com a coisa ruim.

Pelo menos por enquanto. Papai termina amarrando o tronco de Paul a uma das vigas de aço pintadas que sustentam o teto do porão.

— Pronto — diz ele, afastando-se, ofegando como um homem que acabou de amarrar um bezerro numa arena de rodeio. — Isso vai segurar ele por um tempo. Vá até o barraco, Scott. Pegue a corrente fina que está bem atrás da porta e a corrente de tração pesada que está no vão da esquer­da, junto com as peças do caminhão. Sabe de onde estou falando?

Paul está caído sobre a corda em volta do seu tórax. Então ele se endireita tão de repente que bate com a cabeça na viga com uma força odiosa. Scott faz um careta. Paul o encara com olhos que eram azuis até há pouco. Ele sorri e os cantos de sua boca se esticam muito além do que deveria ser possível... quase até os lóbulos das orelhas, ao que parece.

— Scott — diz seu pai.

Pela primeira vez na vida, Scott não lhe dá atenção. Está hipnotiza­do pela máscara de Halloween que costumava ser o rosto do seu irmão. A língua de Paul sai dançando do meio de seus lábios entreabertos e baila no ar úmido do porão. Ao mesmo tempo, sua virilha fica escura à medida que ele mija nas cal...

Scott leva um sopapo em cima da cabeça que o faz cambalear para trás e bater novamente na mesa da prensa tipográfica.

-— Não olhe para ele, seu bocó, olhe para mim! Aquele bicho feio vai te hipnotizar como uma cobra hipnotiza um passarinho! É melhor acordar, Scooter: esse não é mais o seu irmão.

Scott olha boquiaberto para o pai. Atrás deles, como para frisar o que Papai disse, a coisa amarrada ao poste solta um rugido alto demais para ter saído de um peito humano. Mas tudo bem, pois não é um som humano. Nem de perto.

— Vá pegar aquelas correntes, Scotty. As duas. E rápido. Aquelas cordas não vão segurar ele. Preciso subir para pegar meu .30-06. Caso ele se solte antes de você voltar com as correntes...

— Papai, por favor, não atira nele! Não atira no Paul!

— Traga as correntes. Aí a gente vê o que pode fazer.

— A corrente de tração é muito grande! Muito pesada!

— Use o carrinho de mão, seu bocó. O grande. Agora vai, sebo nas canelas.

Scott olha por sobre os ombros uma vez e vê o pai andando de costas para o pé da escada. Lentamente, como um domador de leões saindo da jaula depois do fim do número. Diante dele, sob o brilho de uma lâmpada pendurada no teto, está Paul. Ele está batendo com a nuca contra a viga tão rápido que Scott pensa em um martelo. Ao mes­mo tempo, balança o corpo de um lado para outro. Scott não consegue acreditar que Paul não esteja sangrando ou desmaiando, mas ele não está. E percebe que o pai tem razão. As cordas não irão segurá-lo. Não se ele continuar com aquele ataque constante.

Ele não vai conseguir, pensa ele enquanto seu pai vai para um lado (pegar a arma no armário da frente) e Scott vai para outro (calçar suas botas). Ele vai se matar antes. Mas então pensa no rugido que ouviu explodindo de dentro do peito do irmão — aquele impossível rugido assassino — e não acredita muito nisso.

E, enquanto corre sem casaco para o frio, pensa que talvez até saiba o que aconteceu com Paul. Há um lugar para o qual ele podia ir quando Papai o machucava e ele tinha levado Paul para lá quando papai o machucou. Sim, muitas vezes. Aquele lugar tem coisas boas, árvores bonitas e água medicinal, mas tem também coisas ruins. Scott evita ir até lá à noite e, quando vai, não faz barulho e volta depressa, porque a profunda intuição do seu coração de criança lhe diz que é à noite que as coisas más saem. É à noite que elas caçam.

Se ele pode ir para lá, será que é tão difícil assim acreditar que al­guma coisa — uma coisa ruim — possa entrar em Paul e sair aqui? Algo que o tenha visto e marcado, ou talvez só algum germe idiota que subiu pelo nariz dele e se alojou no seu cérebro?

E, se for verdade, de quem é a culpa? Quem levou Paul para lá primeiro?

No barraco, Scott joga a corrente fina no carrinho de mão. Isso é fácil, leva apenas poucos segundos. Pegar a corrente de tração é muito mais difícil. Ela é prefeitamente eita-norme, e fala durante todo o pro­cesso sua língua barulhenta, com todas as suas vogais de aço. Ganchos pesados escorregam duas vezes dos braços trêmulos dele, da segunda vez agarrando na sua pele e repuxando-a até abrir rasgos que vertem rosetas brilhantes de sangue. Da terceira vez, quando já a está colocando no carrinho de mão, a braçada de quase 10 quilos de elos cai torta, na late­ral do carrinho em vez de no quadrado do centro, e toda a carga de elos de corrente cai em cima do pé de Scott, soterrando-o de aço e fazendo-o soltar um grito de dor digno de uma soprano.

— Scooter, você vai vir antes da virada do século? — berra Papai de dentro da casa. — Se for pra vir, é melhor vir logo, porra!

Scott olha naquela direção, olhos arregalados e apavorados, então reergue o carrinho de mão e se agacha sobre o monte grande e escorre­gadio da corrente. O pé continuará visivelmente machucado dali a um mês e ele sentirá dor no local até o fim da vida (aquele problema suas viagens para o outro lugar nunca conseguem resolver), mas naquele ins­tante Scott sente apenas a explosão de dor inicial. Recomeça a carregar o carrinho de mão com os elos, sentindo o suor quente descer pelos lados do seu corpo e pelas suas costas, sentindo o fedor brabo dele, sabendo que se ouvir um tiro é porque os miolos de Paul estão espalhados pelo chão do porão e a culpa é dele. O tempo se torna uma coisa física, que pesa, como a terra. Como uma corrente. Ele espera o tempo todo Papai gritar com ele novamente de dentro da casa e, quando ele ainda não o faz, Scott começa a empurrar o carrinho de mão de volta para o brilho amarelo das luzes da cozinha, Scott começa a temer outra coisa: que Paul tenha se soltado, afinal. Que não são os miolos de Paul que estão espalhados na terra de cheiro azedo, e sim as tripas de Papai, arrancadas do seu estômago ainda vivo pela coisa que tinha sido o irmão de Scott naquela mesma tarde. Paul subiu as escadas e está escondido na casa e assim que Scott entrar a caça ao bool vai começar. Só que, dessa vez, ele será o prêmio.

Tudo isso é sua imaginação, obviamente, sua maldita imaginação que corre como um cavalo selvagem à noite, porém, quando seu pai aparece na varanda de um salto, ela já fez estrago o suficiente, de modo que, por um instante, Scott vê não Andrew Landon, mas Paul, sorrin­do como um duende, e grita. Quando ele ergue a mão para proteger o rosto, o carrinho de mão quase vira outra vez. Teria virado, se Papai não tivesse vindo ajeitá-lo. Então ele levanta uma das mãos para bater no filho, mas a abaixa quase na mesma hora. Pode até surrá-lo mais tarde, mas não agora. Agora, precisa dele. Então, em vez de bater, Papai apenas cospe na mão direita e a esfrega na esquerda. Então se agacha, de camiseta, ignorando o frio que faz lá na varanda dos fundos, e agarra a ponta do carrinho.

— Vou puxar ele pra cima, Scooter. Agarre esses cabos, guie o carrinho e não deixe o safado virar. Dei outra paulada nele, não teve jeito, mas ele não vai ficar apagado muito tempo. Se a gente derrubar essa corrente, não acho que ele vá sobreviver até amanhã. Não vou conseguir deixar ele vivo. Entendeu?

Scott entende que a vida do seu irmão está em cima de um carri­nho de mão extremamente sobrecarregado que pesa o triplo dele. Por um instante de loucura, ele pensa em simplesmente sair correndo para a escuridão tempestuosa, e o mais rápido possível. Então agarra os cabos. Não percebe as lágrimas que se derramam de seus olhos. Assente para o pai e seu pai assente em resposta. Entre os dois, nada menos do que a vida e a morte.

— No três. Um... dois... segura ele reto agora, seu cachorro sarnento... três!

Sparky Landon ergue o carrinho de mão do chão para a varanda com um grito de esforço que sai em meio a uma névoa branca. Sua cami­seta rasga debaixo de um braço e um tufo de pêlo amarelo salta para fora. Enquanto o carrinho sobrecarregado está no ar, a droga do negócio cai primeiro para a esquerda e depois para a direita, e o menino pensa: fique direito, seu safado, seu cachorro sarnento, seu filho duma égua. Ele corrige cada inclinação, gritando a si mesmo para não puxar forte demais, não exagerar, seu imbecil, seu coisa-ruim filho duma égua. E dá certo, mas Sparky Landon não perde tempo com parabéns. O que Sparky Landon faz é voltar andando de costas para dentro de casa, puxando o carrinho à sua frente. Scott o segue mancando com seu pé inchado.

Na cozinha, Papai gira o carrinho e o empurra direto para a porta do porão, que está fechada e trancada. A roda faz uma trilha no açúcar derramado. Scott jamais se esquecerá daquilo.

— Abra a porta, Scott.

— Papai, e se ele estiver... lá?

— Então eu vou mandar ele pro beleléu com esse negócio aqui. Se quiser ter uma chance de salvar a vida dele, pare de falar besteira e abra a droga da porta.

Scott tira o ferrolho e abre a porta. Paul não está lá. Scott consegue ver a sombra intumescida dele, ainda preso à viga, e algo que o apertava com força por dentro relaxa um pouco.

— Saia da frente, filho.

Scott obedece. Seu pai empurra o carrinho até o topo da escada do porão. Então, com outro grunhido, o levanta um pouco, segurando a roda com um pé quando ela ameaça rolar para trás. A corrente bate na escada com um poderoso tinido dissonante, rachando dois degraus e depois desabando quase até o fim dela. Papai atira o carrinho para um lado e começa a descer também, alcançando a corrente parada no meio e chutando-a pelo resto do caminho. Scott o segue e, logo depois de passar pelo primeiro degrau quebrado, vê Paul pendendo de lado na viga com o lado esquerdo do rosto coberto de sangue. O canto da sua boca treme insensivelmente. Um de seus dentes está em cima do ombro da camisa.

— O que o senhor fez com ele? — quase grita Scott.

— Bati nele com uma tábua, não teve jeito — responde seu pai, soando estranhamente na defensiva. — Ele estava acordando e você ainda estava de sacanagem no barraco. Ele vai ficar bem. Não dá pra machucar muito eles quando estão com a coisa ruim.

Scott mal o ouve. Ver Paul coberto de sangue daquela forma apa­gou da sua mente o que aconteceu na cozinha. Ele tenta ultrapassar Papai e chegar ao seu irmão, mas Papai o agarra.

— Não, a não ser que não queira continuar vivendo — diz Sparky Landon, e o que impede Scott não é tanto a mão no seu ombro, mas a terrível ternura que ouve na voz do pai. — Porque ele vai sentir seu cheiro se você chegar perto. Mesmo inconsciente. Vai sentir seu cheiro e acordar.

Ele vê seu filho mais novo olhar para cima e assente.

— Isso mesmo. Ele é igual a um bicho selvagem agora. Do tipo que come gente. E se a gente não der um jeito de prender ele, vamos ter que matar ele. Entendeu?

Scott assente, então soluça alto, de um jeito que parece mais um burro zurrando. Com aquela mesma ternura terrível, Papai estende a mão, limpa o ranho do seu nariz e o sacode no chão.

— Então pare de choradeira e me ajude com essas correntes. A gente vai usar aquela viga central e a mesa com a prensa tipográfica em cima. Aquela droga de prensa só pode pesar uns 200 quilos.

— E se essas coisas não aguentarem segurar ele?

Sparky Landon balança a cabeça devagar.

— Aí eu não sei.

 

Deitado na cama com a esposa, ouvindo o Anders ranger por conta do vento, Scott diz:

— Elas aguentaram. Pelo menos por três semanas, aguentaram. Foi lá que meu irmão Paul passou seu último Ano-novo, as últimas três se­manas da sua vida; naquele porão fedorento. — Ele balança um pouco a cabeça. Lisey sente o movimento do cabelo dele contra sua pele, sente o quanto ele está úmido. É suor. Está no rosto dele, também, tão mistu­rado às lágrimas que ela não consegue diferenciar qual é qual.

— Você não faz idéia de como foram aquelas três semanas, Lisey, principalmente quando Papai ia trabalhar e ficávamos só eu e ele, eu e a coisa.

— Seu pai foi trabalhar?

— Tínhamos que comer, não tínhamos? E tínhamos que pagar pelo óleo do aquecedor, porque não conseguíamos aquecer a casa inteira só com madeira, embora Deus saiba que a gente tentou. E, acima de tudo, não podíamos levantar suspeitas. Papai explicou tudo para mim.

Aposto que sim, pensou Lisey, irritada.

— Eu falei pro Papai cortar ele e botar o veneno pra fora como ele sempre fez antes e Papai disse que não ia adiantar, que cortar não ia adiantar nadica de nada porque a coisa ruim já tinha ido pro cérebro. E eu sabia que era verdade. Mas aquela coisa ainda conseguia pensar, pelo menos um pouco. Quando Papai saía ela gritava meu nome. Dizia que tinha feito um bool, um bool bom, e que no final tinha um doce e uma RC Cola. Às vezes ela parecia tanto com Paul que eu ia até a porta do porão e colava a cabeça na madeira pra ouvir, mesmo sabendo que era perigoso. Papai disse que era perigoso, disse pra não ficar ouvindo e sempre ficar longe do porão quando eu estava sozinho e pra eu enfiar os dedos nos ouvidos e rezar bem alto ou gritar: “Vai se danar, seu safado, vai se danar seu filho duma égua, vai se danar junto com o cavalo que trou­xe você até aqui”, porque tanto isso quanto as orações davam na mesma e pelo menos isolavam o som dela, mas que não era pra eu ouvir, porque ele falou que Paul estava morto e que não tinha nada no porão além de um demômo-bool da Terra dos Bools-de-sangue, e disse que “o Demô­nio pode ser fascinante, Scott, ninguém sabe melhor do que os Landon que o demônio pode ser fascinante. E os Landreau antes deles. Primeiro ele fascina a mente e depois toma o coração”. Quase sempre eu obede­cia, mas às vezes chegava perto e ouvia... e fingia que era Paul... porque eu amava ele e queria ele de volta, não porque acreditava de verdade... e eu nunca puxei a tranca.

Nesse instante, ele cai em uma longa pausa. Seu cabelo pesado se esfrega incansavelmente contra o pescoço dela e ele finalmente diz numa vozinha relutante de criança:

— Bem, eu puxei uma vez... e num abri a porta... nunca abri a por­ta do porão a não ser quando Papai tava em casa, e quando Papai tava em casa ele só gritava e fazia as correntes chocalharem e às vezes piava feito uma coruja. E quando ele fazia isso às vezes Papai piava de volta... era tipo uma brincadeira, sabe?, o jeito que eles piavam um pro outro... Papai na cozinha e ele... bem... acorrentado no porão... e eu ficava com medo mesmo sabendo que era brincadeira porque era como se os dois estivessem doidos... doidos e conversando conversa de coruja... e eu pensava: “Só sobrou um, e sou eu. O único que não pegou a coisa ruim e que não tem nem 11 anos e o que eles iam achar se fosse até a loja do Mulie e contasse?” Mas não adiantava ficar pensando na loja do Mulie porque se ele estivesse em casa ia me seguir e me arrastar de volta. E se não estivesse... se eles acreditassem em mim e viessem até a casa comi­go, matariam meu irmão... e meu irmão ainda tava em algum lugar lá dentro... e me levariam embora... e me colocariam na Casa dos Pobres. Papai disse que sem ele para cuidar de mim e do Paul a gente teria que ir para a Casa dos Pobres, onde eles colocam um alfinete na sua bebida se você fizer xixi na cama... e os garotos mais velhos... você tem que pagar boquete para os mais velhos a noite inteira...

Ele pára, se debatendo, preso em algum lugar entre onde está e onde estava antes. Fora do Anders, o vento sopra forte e a construção geme. Ela quer acreditar que o que ele está contando não pode ser ver­dade — que é alguma alucinação infantil elaborada e medonha —, mas sabe que é. Cada palavra terrível. Quando ele volta a falar, ela o escuta tentando retomar sua voz adulta, seu eu adulto.

— Tem algumas pessoas em instituições psiquiátricas, geralmente pessoas que sofreram traumas catastróficos no lobo frontal, que regri­dem a estados animais. Eu já li a respeito. Porém, é um processo que quase sempre ocorre no decorrer de anos. Isso aconteceu com meu ir­mão de uma hora para outra. E quando aconteceu, quando ele cruzou aquela fronteira...

Scott engole em seco. O clique na sua garganta é tão alto quanto um interruptor sendo ligado.

— Quando eu descia as escadas do porão com a comida dele, carne e legumes em um prato fundo, como se fosse para um cachorro grande, tipo um dinamarquês ou um pastor alemão, ele corria até o fim das correntes que o prendiam à viga, uma em volta do pescoço e outra em volta da cin­tura, com baba voando do canto da boca, então elas davam um puxão para trás e ele saía voando, ainda uivando e latindo feito um demônio-bool, só que de um jeito meio estrangulado até recuperar o fôlego, entende?

— Sim — diz ela baixinho.

— Você tinha que colocar o prato no chão, ainda me lembro do cheiro daquela terra azeda quando eu me agachava, nunca vou esquecer, e então empurrá-lo até onde ele conseguia alcançar. A gente fazia isso com o cabo de um ancinho quebrado. Não era bom chegar muito per­to. Ele arranhava, podia até te puxar para junto dele. Eu não precisava do Papai para saber que, se ele me pegasse, me comeria até não aguentar mais, comigo vivo e gritando. E aquele era o irmão que fazia os bools. Que me amava. Sem ele, eu não teria sobrevivido. Sem ele, Papai teria me matado antes dos meus 5 anos de idade, não por vontade própria, mas por estar com sua própria coisa ruim. Eu e Paul sobrevivemos jun­tos. Como irmãos. Entende?

Lisey assente. Ela entende.

— Só que em janeiro meu irmão estava acorrentado pelos dois la­dos no porão, à viga e à mesa com a prensa tipográfica em cima, e dava para medir os limites do mundo dele por um arco... um arco de bosta... onde ele ia até o fim das correntes... se agachava... e cagava.

Por um instante, ele coloca a base das mãos sobre os olhos. As cor­das vocais ficam salientes no seu pescoço. Ele respira pela boca — haus­tos roucos e trêmulos. Ela não vê necessidade em perguntar onde ele aprendeu o truque de manter sua dor calada; já sabe onde foi. Quando ele pára novamente, ela pergunta:

— Como seu pai conseguiu acorrentá-lo, para começo de conver­sa? Você se lembra?

— Eu me lembro de tudo, Lisey, mas isso não significa que saiba de tudo. Uma meia dúzia de vezes ele colocou alguma coisa na comida de Paul, disso eu tenho certeza. Acho que era algum tipo de tranqui­lizante para animais, mas não faço idéia de como ele arranjou aquilo. Paul devorava tudo que a gente dava para ele, menos verduras, e geral­mente a comida lhe dava energia. Ele uivava, latia e saltava de um lado para outro; corria até o fim das correntes, tentando quebradas, imagino, ou pulava para cima e socava o teto até os punhos sangrarem. Talvez estivesse tentando arrebentar o teto para sair, ou talvez fosse só por di­versão. Às vezes ele deitava no chão e se masturbava.

“Mas de vez em quando ele só ficava agitado por dez ou 15 mi­nutos e então parava. Era nessas horas que Papai dava o negócio para ele. Ele se agachava, murmurando, então caía de lado, colocava as mãos entre as pernas e dormia. Na primeira vez que isso aconteceu, Papai colocou aqueles dois cintos de couro que ele fez, só que eu imagino que a gente chame o que ficou em volta do pescoço de Paul de coleira, não é? Eles tinham presilhas grandes de metal atrás. Ele passou as correntes por elas, a corrente de tração pela presilha do cinto de baixo, a corrente mais fina pela do cinto do pescoço, na nuca. Então usou um pequeno maçarico de mão para soldá-las. E foi assim que o Paul foi preso. Quan­do ele acordou, ficou louco ao se ver daquele jeito. Tipo, a ponto de fazer a casa tremer. — O sotaque monocórdio e nasalado do interior da Pensilvânia tomou conta de sua voz de tal forma que a palavra house, casa, soa quase germânica, como se fosse haus. — A gente ficou parado no topo da escada, observando ele, e eu implorei pro Papai soltar ele antes que ele quebrasse o pescoço ou se estrangulasse, mas Papai disse que ele num ia se estrangular e tinha razão. O que aconteceu depois de três semanas foi que ele começou a arrastar a mesa e até a viga central, a viga central de aço que segurava o chão da cozinha, mas nunca quebrou o pescoço e nem se estrangulou.

“Das outras vezes que Papai botava ele pra dormir era pra ver se eu conseguia levar ele pra Boo’ya Moon... eu te contei que era assim que eu e Paul chamávamos aquele outro lugar?”

— Sim, Scott. — Ela mesma chorando agora. Deixando as lágri­mas correrem, não querendo que ele a veja enxugando os olhos, não querendo que ele a veja tendo pena daquele garoto naquela casa de fazenda.

— Papai queria ver se eu conseguia levar ele e fazer ele melho­rar como nas vezes que Papai cortou ele, ou daquela vez que Papai cutucou o olho dele com o alicate e fez ele sair um pouco pra fora e Paul chorô e chorô porque não conseguia enxergar direito, ou da vez que Papai gritou comigo e disse “Scoot, seu cachorro sarnento, seu safado matador-de-mãe!” por andar na lama e me empurrou e eu caí e quebrei o cóccix aí não conseguia mais andar direito. Só depois que eu fui e fiz uma caça ao... sabe, pra ganhar um prêmio... meu cóccix ficou bom de novo. — Ele meneia a cabeça contra o corpo dela. — E depois que Papai vê ele me dá um beijo e diz: “Scott, você é um em um milhão. Eu te amo, seu pequeno filho-da-puta”. E eu beijo ele e digo: “Papai, você é um em um milhão. Eu te amo, seu grande filho-­da-puta”. E ele riu. — Scott se afasta dela e mesmo na penumbra Lisey consegue ver que seu rosto se tornou quase o de uma criança. E vê também o assombro idiota nele. — Ele riu tanto que quase caiu da cadeira. Eu fiz meu pai rir.

Lisey tinha milhares de perguntas e não ousava fazer uma que fos­se. Não sabia ao certo se podia fazer uma que fosse. Scott coloca uma das mãos no rosto, o esfrega, olha para ela nova­mente. E está de volta. Num piscar de olhos.

— Cristo, Lisey — diz ele. — Eu nunca falei sobre essas coisas, nunca, com ninguém. Você está tranquila em relação a isso?

— Estou, Scott.

— Então você é uma mulher corajosa pra cacete. Já começou a dizer a si mesma que é tudo conversa fiada? — Ele está até sorrindo um pouco. É um sorriso inseguro, mas sincero o bastante, e ela o considera amável o suficiente para ser beijado: primeiro um canto, depois o outro, para contrabalançar.

— Ah, eu tentei — diz ela. — Não deu certo.

— Por causa do jeito que a gente fez boom e saiu de debaixo da árvore nhami-nhami?

— É assim que você chama?

— Era esse o nome que Paul dava para uma viagem rapidinha. Uma viagem rapidinha que você faz daqui pra lá. Ele chamava de fazer boom.

— Igual a bool só que com m.

— Isso mesmo — diz ele. — Ou igual a book. Um livro, book, é um bool, só que com k.

 

Acho que depende de você, Scoot.

Estas são as palavras do pai dele. Elas se recusam a ir embora.

Acho que depende de você.

Porém, ele tem apenas 10 anos de idade e a responsabilidade de salvar a vida e a sanidade do irmão — talvez até mesmo sua alma — lhe pesa sobre a cabeça e rouba seu sono à medida que o Natal e o Ano­-novo passam e o janeiro frio e cheio de neve começa.

Você fez ele melhorar um monte de vezes, você fez ele melhorar de um monte de coisas.

É verdade, mas ele nunca tinha ficado daquele jeito, nem de longe, e Scott descobre que já não consegue comer a não ser que Papai esteja do seu lado, obrigando-o a dar cada garfada. O choro quase inaudível e fanhoso da coisa no porão rasga a fina camada do seu sono, mas isso geralmente não tem problema, pois quase sempre o que ele deixa para trás são pesadelos medonhos, tingidos de vermelho. Em muitos deles, ele se vê sozinho em Boo’ya Moon depois do anoitecer, às vezes em um certo cemitério, perto de um certo lago, em uma floresta de lápides e cruzes de madeira, ouvindo os risonhos gargalharem e sentindo a brisa antes doce começar a cheirar mal lá perto do solo, onde ela acaricia o mato emaranhado. Você pode ir para Boo’ya Moon depois do anoitecer, mas não é uma boa idéia, e, se você se encontrar lá quando a lua estiver alta no céu, é melhor ficar quieto. Quieto como um filho duma égua. No entanto, nos seus sonhos, Scott sempre se esquece e fica apavorado ao perceber que está cantando Jambalaya a plenos pulmões.

Talvez possa fazer ele melhorar disso.

Porém, na primeira vez que Scott tenta ele percebe que é provavel­mente impossível. Ele percebe assim que ele coloca um braço titubeante em volta da coisa toda cagada, roncando, fedendo e enrolada ao pé da viga de sustentação de aço. Seria mais fácil amarrar um piano de cauda nas costas e dançar o chachachá com ele. Antes, ele e Paul teriam ido fa­cilmente para aquele outro mundo (que na verdade é apenas este mundo virado do avesso como um bolso, dirá ele mais tarde a Lisey). No entan­to, a coisa que ronca no porão é uma bigorna, um cofre de banco... um piano de cauda amarrado às costas de um menino de 10 anos.

Ele foge para perto do Pai e, mesmo tendo certeza de que vai levar um tapa, não se arrepende. Ele sente que merece levar um tapa. Ou pior. Mas seu Pai, que está sentado ao pé da escada com uma tora em uma das mãos observando tudo, não o estapeia ou bate com o punho cerrado. O que ele faz é tirar o cabelo sujo e cheio de emaranhados de Scott da sua nuca e plantar um beijo lá com uma ternura que faz o me­nino estremecer.

— Não me surpreende, Scott. A coisa ruim gosta de onde está.

— Papai, o Paul já não tá lá de jeito nenhum?

— Não sei. — Ele coloca Scott entre as pernas abertas, de modo que sua calça verde se projeta dos dois lados do menino. Papai une as mãos relaxadas em volta do peito de Scott e descansa o queixo no seu ombro. Juntos, eles olham para a coisa adormecida enrolada ao pé da viga. Olham para as correntes. Olham para o arco de bosta que demarca a fronteira do seu mundo no porão. — O que você acha, Scott? O que sente?

Ele pensa em mentir para Papai, mas apenas por um instante. Não quer fazer isso quando os braços do homem estão ao seu redor, não quan­do sente o amor do seu Pai ressoando no porão, como a rádio WWMA à noite. O amor do seu Pai é tão sincero quanto sua raiva e sua loucura, mesmo que não apareça com tanta freqüência e seja demonstrado com menos frequência ainda. Scott não sente nada, e diz isso com relutância.

— Meu camaradinha, não podemos ir por esse caminho.

— Por que não? Ele tá comendo, pelo menos...

— Cedo ou tarde alguém vai aparecer e ouvir ele aqui embaixo. Basta uma joça de um vendedor ambulante, um sujeitinho desses que vende uti­lidades para o lar, e estamos perdidos.

— Ele vai ficar quieto. A coisa ruim vai fazer ele ficar quieto.

— Talvez sim, talvez não. Não dá pra saber o que a coisa ruim vai fazer, não mesmo. E ainda tem o cheiro. Eu posso jogar cal até ficar roxo e esse fedor de merda ainda vai continuar subindo pelo chão da cozinha. Mas, acima de tudo... Scooter, você não percebe o que ele está fazendo com aquele raio de mesa com a prensa tipográfica em cima? E com a viga? Com a filha duma égua da viga?

Scott olha. A princípio, ele mal acredita no que está vendo e, é claro, não quer acreditar no que está vendo. Aquela mesa enorme, mesmo com os mais de 200 quilos da antiga prensa tipográfica ma­nual Stratton em cima, foi puxada pelo menos três metros da sua posição original. Ele consegue ver as marcas quadradas onde ela cos­tumava ficar sobre a terra pisoteada. Pior ainda está a viga de aço, que se junta a uma borda de metal lisa na extremidade de cima. A borda pintada de branco, por sua vez, se junta à trave que corre bem em­baixo da mesa da cozinha. Scott consegue ver um ângulo reto escuro tatuado no pedaço de metal branco e percebe que era lá que a viga de sustentação costumava ficar. Ele mede a própria viga com o olho, tentando notar alguma inclinação. Não consegue, ainda não. Porém, se a coisa continuar dando puxões nela com toda a sua força sobre-humana... dia após dia...

— Papai, posso tentar de novo?

Papai suspira. Scott vira o pescoço para trás para olhar no seu rosto odiado, temido, amado.

— Papai?

— Manda brasa até o cu fazer bico — diz Papai. — Manda brasa e boa sorte pra você.

 

Silêncio no escritório sobre o celeiro, onde estava quente, ela estava ferida e seu marido estava morto.

Silêncio no quarto de hóspedes, onde está frio e o seu marido partiu.

Silêncio no quarto no Antlers, onde eles estão deitados juntos, Scott e Lisey, Agora somos dois.

Então o Scott vivo fala para o que está morto em 2006 e para o que partiu em 1996 e os argumentos contra a loucura fazem mais do que cair por terra; para Lisey Landon, eles finalmente desabam por comple­to: tudo na mesma.

 

Do lado de fora do quarto deles no Antlers, o vento sopra e as nuvens ficam mais finas. Do lado de dentro, Scott faz uma pausa para dar um gole no copo d’água que sempre deixa do lado da cama. A interrupção quebra a regressão hipnótica que começou a tomar conta dele nova­mente. Quando volta a falar, ele parece estar contando a história em vez de vivendo-a e ela considera isso um enorme alívio.

 Eu tentei de novo — diz ele. Tentei, não teimei. — Costumava pensar que o fato de eu ter tentado de novo foi o que o matou. Até hoje à noite eu pensava assim, mas falar a respeito, me ouvir falar a respeito, me ajudou mais do que eu poderia ter acreditado. Acho que, no fim das contas, os psicanalistas têm alguma razão com aquela conversa de cura pela fala, né?

— Não sei. — E ela pouco se importa. — O seu pai culpou você? — Pensando: é claro que culpou.

No entanto, mais uma vez ela parece ter subestimado a complexi­dade do pequeno triângulo que existiu por um tempo naquela colina isolada em Martensburg, Pensilvânia. Porque, depois de hesitar por um instante, Scott balança a cabeça.

— Não. Poderia ter ajudado se ele tivesse me pegado nos braços, como fez depois da primeira vez em que tentei, e me dito que não era culpa minha, que não era culpa de ninguém, que era só a coisa ruim, como câncer ou paralisia cerebral ou algo assim, mas ele também não fez isso. Ele só me arrastou para longe com um braço... eu fiquei caído como uma marionete cujos fios tivessem sido cortados... e depois nós só... — Na penumbra que clareava, Scott explica todo o silêncio sobre o seu passado com um gesto terrível. Ele leva um dedo aos lábios por um instante, um pálido ponto de exclamação sob seus olhos arregalados, e o deixa lá: Shhhhh.

Lisey pensa sobre como foi depois que Jodi engravidou e foi em­bora e demonstra que compreende meneando a cabeça. Scott lança-lhe um olhar de gratidão.

— Três tentativas ao todo — prossegue ele. — A segunda foi ape­nas três ou quatro dias depois da primeira. Me esforcei ao máximo, mas foi como a primeira vez. Só que, àquela altura, já dava para ver que a viga à qual ele estava acorrentado estava inclinada, e havia um segundo arco de bosta, mais adiante, porque ele tinha movido a mesa um pouco mais e afrouxado um pouco mais a corrente. Papai estava começando a ficar com medo de que ele quebrasse uma das pernas da mesa, embora elas também fossem de metal.

“Depois da minha segunda tentativa, eu falei para o Papai que tinha quase certeza do que estava errado. Não dava certo, eu não conse­guia levar ele, porque ele estava sempre nocauteado quando eu chegava perto. E Papai disse: ‘Bem, qual é o seu plano, Scooter, quer agarrar ele enquanto ele está acordado e furioso? Ele arrancaria a joça da sua cabeça fora.’ Eu disse que sabia. Eu sabia mais do que isso, Lisey — sabia que se ele não arrancasse minha cabeça no porão, arrancaria ela do outro lado, em Boo’ya Moon. Então eu preguntei para o Papai se ele não podia no­cautear ele só um pouquinho, sabe, deixar ele grogue. O suficiente pra eu chegar perto e segurar ele do jeito que eu segurei você hoje, debaixo da árvore nhami-nhami.”

— Oh, Scott — diz ela. Ela teme pelo menino de 10 anos mesmo sabendo que deve ter dado tudo certo; sabendo que ele viveu para se tornar o jovem que está deitado ao seu lado.

— Papai disse que era perigoso. “Cê tá brincando com fogo, Scoot”, disse ele. Eu sabia que estava, mas não tinha outro jeito. Não podíamos manter ele no porão por muito mais tempo; até eu conseguia ver isso. E então Papai, ele meio que despenteou meu cabelo e disse: “O que houve com o mijãozinho que tinha medo de pular do banco do corredor?” Eu fiquei surpreso por ele se lembrar daquilo, porque a coisa ruim tinha pegado ele tão feio, e fiquei orgulhoso.

Lisey pensa que vida terrível deve ter sido aquela, na qual agra­dar um homem daquele tipo podia deixar uma criança orgulhosa, e se lembra de que ele tinha apenas 10 anos. Dez anos, e sozinho com um monstro no porão a maior parte do tempo. O pai também era um monstro, mas pelo menos um monstro às vezes racional. Um monstro capaz de dar um beijo de esmola vez por outra.

— Então... — Scott olha para a penumbra acima. Por um ins­tante, a lua aparece. Ela corre uma pata pálida e brincalhona sobre seu rosto antes de se retirar para trás das nuvens novamente. Quando ele volta a falar, ela ouve a criança começar a assumir o controle mais uma vez. — O Papai... sabe, o Papai nunca preguntava o que eu via, ou pra onde eu ia, ou o que eu fazia quando ia para lá e não acho que ele tenha preguntado para o Paul, não sei se Paul se lembrava de mui­ta coisa, mas ele quase preguntou naquela hora. Ele disse: “E se você levar ele desse jeito, Scoot. O que vai acontecer se ele acordar? Ele vai ficar bonzinho de repente? Porque, se não ficar, eu não vou estar lá pra te ajudar.”

“Mas eu pensei naquilo, entende? Pensei e pensei até parecer que meus miolos iam estourar. — Scott se apóia em um cotovelo e olha para ela. — Eu sabia que aquilo tinha que acabar tanto quanto o Papai, talvez até mais. Por causa da viga. E da mesa. Mas também por causa do jeito que ele tava perdendo peso e ficando com uns machucados no rosto por não estar comendo a comida certa. A gente dava legume pra ele, mas ele estilingava tudo pra longe, menos as batatas e as cebolas, e um dos olhos dele, o que Papai tinha machucado antes, tinha ficado todo branco leitoso em cima do vermelho. E ele tava perdendo mais dente e um dos ombros dele tava todo torto. Ele tava caindo aos peda­ços por ficar lá embaixo, Lisey, e o que não tava caindo aos pedaços por falta de luz do sol e comida errada ele estava espancando até a morte. Tá entendendo?”

Ela assente.

— Então eu tive essa pequena idéia e contei pro Papai. Ele disse: “Você acha que é esperto pra caralho prum moleque de 10 anos, não acha?” E eu disse que não, que não era esperto sobre quase nada e se ele achava que tinha algum outro jeito que fosse mais seguro e melhor, tudo bem. Só que ele não achava. Ele disse: “Eu acho que você é esperto pra caralho prum moleque de 10 anos, isso sim. E acabou mostrando que tem algum culhão no fim das contas. Isso se não for dar pra trás.” “Não vou dar pra trás”, eu falei. E ele disse: “Não vai precisar, Scooter, porque eu vou estar bem no pé da escada com o filho duma égua do meu rifle

 

Papai está parado ao pé da escada com seu rifle, seu .30-06, nas mãos. Scott está do lado dele, olhando para a coisa acorrentada à viga de metal e à mesa da prensa tipográfica, tentando não tremer. No seu bolso direi­to está o instrumento fino que seu Pai lhe deu, uma seringa com uma capa de plástico sobre a agulha hipodérmica. Scott não precisa que o Pai lhe diga que é um mecanismo frágil. Se houver luta, ela pode quebrar. Seu Pai se ofereceu para colocá-la em uma caixa de papelão que costu­mava guardar uma caneta-tinteiro, mas tirar a seringa da caixa levaria uns dois segundos extras — no mínimo — e aquilo poderia significar a diferença entre a vida e a morte se ele conseguisse levar a coisa acorren­tada ao poste para Boo’ya Moon. Em Boo’ya Moon, não haverá seu Pai com um rifle .30-06. Em Boo’ya Moon serão apenas ele e a coisa que entrou em Paul como uma mão em uma luva roubada. Só os dois no topo do Sweetheart Hill.

A coisa que costumava ser seu irmão está estatelada com as costas contra a viga central e as pernas abertas. Está nua, exceto pela camiseta de Paul. Suas pernas e pés estão sujos. Os lados do seu corpo estão co­bertos de merda. O prato fundo, do qual até a gordura foi lambida, está caído sobre uma das mãos imundas. O hambúrguer extragrande que estava nele desapareceu goela abaixo de Paul-coisa em uma questão de segundos, mas Andrew Landon passou quase meia hora preparando o bife, atirando sua primeira tentativa para dentro da noite depois de de­cidir que tinha jogado muito do "negócio" nele. “O negócio” eram pílu­las brancas quase idênticas aos antiácidos que Papai às vezes tomava. Na única vez que Scott perguntou a Papai de onde elas saíram, Papai disse: “Por que você não fecha essa sua maldita boca, seu bedelhudo, antes que eu feche ela pra você?” E quando Papai diz uma coisa dessas, você entende a mensagem se tiver alguma coisa na cabeça. Papai triturou as pílulas com o fundo de um copo. Ficou falando enquanto trabalhava, talvez para ele mesmo, talvez para Scott, enquanto debaixo deles a coisa acorrentada à prensa tipográfica pedia sua janta com rugidos monótonos. “É mui­to fácil saber a quantidade quando você quer derrubar ele”, disse Papai, olhando do monte de pó branco para o hambúrguer. “Seria mais fácil ainda se eu quisesse matar o filho-da-puta irritante. Mas não, o idiota aqui não quer fazer isso, só quer dar a ele a chance de matar o que ainda está bem. Bem, que se dane, Deus odeia os covardes.” Ele usou o lado do mindinho com uma surpreendente delicadeza para separar uma pequena fileira de pó branco do monte. Pegou um pouco entre o polegar e o indicador, salpicou na carne como se fosse sal, enfiou no bife, então pegou mais um pouquinho e enfiou também. Não se preocupava muito com o que chamava de “passar no fogo” no que dizia respeito à coisa lá embaixo, dizia que ele ficaria satisfeito em comer sua janta crua — ainda quente e pulsante sobre o osso, por sinal.

Agora Scott está do lado do pai, a seringa no bolso, observando a coisa perigosa recostada na viga, roncando com o lábio superior puxado para trás. Está choramingando pelos cantos da boca. Seus olhos estão en­treabertos, mas não há sinal das íris; Scott consegue ver apenas o branco cintilante e liso... Só que o branco dos olhos dele não é mais branco, pensa.

— Vá logo, seu desgraçado — diz Papai, dando-lhe um empurrão no ombro. — Se vai fazer, faça de uma vez, antes que eu perca a paciên­cia ou tenha um ataque do coração... ou você acha que ele tá enganando a gente? Que tá só fingindo estar desmaiado?

Scott balança a cabeça. A coisa não está tentando enganá-los, ele sentia que não... e então olha para o pai com curiosidade.

— Que foi? — pergunta Papai, irritado. — O que está na sua cabeça além dessa joça de cabelo?

— O senhor está mesmo?...

— Se eu estou mesmo com medo? É isso que você quer saber?

Scott faz que sim, subitamente encabulado.

— Tô, morrendo de medo. Você achou que era o único? Agora fecha os olhos e faz o que tem que fazer. Vamos acabar com isso.

Ele jamais entenderá por que o fato de o pai admitir que está com medo faz com que sinta mais coragem; sabe apenas que é isso o que acontece. Ele anda em direção à viga central. Toca o cilindro da seringa em seu bolso mais uma vez no caminho. Chega ao primeiro arco de bosta e passa por cima dele. O próximo passo o leva além do círculo interno e para dentro do que poderíamos chamar de o covil da coisa. Lá, o cheiro é forte: não de merda, tampouco de cabelo ou pele, mas sim de pêlo e couro. A coisa tem um pênis que é maior ainda do que o de Paul. A penugem da virilha do seu irmão deu lugar aos pêlos pubianos grossos e densos da coisa, e os pés no final das pernas dele (aquelas pernas são as únicas coisas que continuam iguais) têm um aspecto estranhamente retorcido para dentro, como se os ossos dos tornozelos estivessem em­penando. Tábuas deixadas na chuva, pensa Scott; o que não é tão sem sentido assim.

Então seu olhar volta para o rosto da coisa — para os olhos dela. As pálpebras ainda estão quase completamente baixadas e ainda não há sinal das íris, apenas do branco sangüíneo. A respiração também não mudou; as mãos sujas continuam caídas, sem vida, as palmas viradas para cima como em uma rendição. Ainda assim, Scott sabe que entrou na zona de risco. Ela não vai hesitar agora. A coisa vai sentir seu cheiro e acordar a qualquer momento. Isso vai acontecer apesar do “negócio” que Papai colocou no hambúrguer; então, se ele conseguir, se ele conse­guir levar a coisa que roubou seu irmão...

Scott continua seguindo adiante, movimentando pernas que mal consegue sentir. Parte de sua mente está totalmente convencida de que ele está se encaminhando para a morte. Ele não vai nem ser capaz de fazer boom para longe, não quando Paul-coisa o agarrar. Mesmo assim, Scott anda até o raio de alcance dela, adentrando a mais íntima concen­tração do seu fedor selvagem, e botando as mãos no lado nu e pegajoso do seu corpo. Ele pensa

(Paul, venha comigo agora)

e

(Bool Boo’ya Boo’ya Moon água doce o lago)

e por um instante doloroso e decepcionante quase dá certo. Há a sensação familiar de quando as coisas começam a sair correndo para longe; o zumbido de insetos e o delicioso perfume diurno das árvores do Sweetheart Hill sobem no ar. Então as mãos de unhas grandes da coisa estão em volta do pescoço de Scott. Ela abre a boca e seu rugido afasta os sons e cheiros de Boo’ya Moon numa corrente de ar que fede a carniça. Para Scott, parece que alguém atirou uma pedra flamejante na delicada estrutura da sua... da sua o quê? Não é sua mente que o leva para aquele outro lugar, não exatamente... e não há tempo para pensar mais sobre isso, porque a coisa o pegou, a coisa o pegou. Tudo o que seu Pai temia aconteceu. Sua boca se escancarou de um jeito que desafia a sanidade, como em um pesadelo, a mandíbula parecendo descer até a

(caixa jurássica)

caixa torácica, contorcendo o rosto sujo de tal forma que mesmo o último vestígio de Paul — de humanidade até — desapareceu. Esta é a coisa ruim sem máscara. Scott tem tempo de pensar: Ela vai arrancar minha cabeça com uma mordida só, como se fosse um pirulito. Aquela boca monstruosa boceja, os olhos vermelhos faíscam sob o brilho nu das lâmpadas penduradas e Scott não está indo para lugar nenhum, exceto para sua morte. A cabeça da coisa cai para trás até bater na viga, então ricocheteia para a frente.

Porém Scott se esqueceu novamente do seu Pai. As mãos dele saem da penumbra, agarram Paul-coisa pelos cabelos e, de alguma forma, puxam sua cabeça para trás. Então a outra mão do seu Pai aparece, o polegar enrolado em volta da coronha da sua espingarda, onde ela fica mais fina, o indicador em volta do gatilho. Ele enfia o cano da arma na parte debaixo do queixo erguido da coisa.

— Papai, não! — grita Scott.

Andrew Landon não dá ouvidos, não pode dar ouvidos. Embora ele esteja agarrando um belo punhado do cabelo da coisa, ela está se livrando do seu punho assim mesmo. Agora está rugindo, e o rugido parece terrivelmente com uma palavra.

Com Papai.

— Diga olá ao inferno, seu coisa-ruim filho-da-puta, diz Spark Lan­don, apertando o gatilho. O disparo do .30-06 é ensurdecedor no espa­ço fechado do porão; ele retinirá nos ouvidos de Scott por duas horas ou mais. O cabelo desgrenhado de trás da cabeça da coisa voa para cima, como se uma brisa tivesse soprado de repente, e um grande jorro escarlate pinta a viga central inclinada. As pernas da coisa dão um único chute enlouquecido, como em um desenho animado, e param. As mãos em volta do pescoço de Scott apertam-se mais num espasmo momentâ­neo e então caem espalmadas, plaft, no chão. Papai envolve Scott com os braços e o levanta.

— Você está bem, Scoot? Consegue respirar?

— Estou bem, Papai. Você precisava matar ele?

— Você endoideceu?

Scott desfalece no círculo dos braços de seu pai, incapaz de acredi­tar no que aconteceu, embora soubesse que era bem possível. Ele queria poder desmaiar. Queria — pelo menos um pouco — poder morrer também.

Papai o sacode.

— Ele ia matar você, não ia?

— I-i-ia.

— Pode apostar que ia. Cristo, Scotty, ele tava arrancando os próprios cabelos pelas raízes para te pegar. Para pegar a joça da sua garganta!

Scott sabe que isso é verdade, mas sabe de outra coisa também.

— Olha pra ele, Papai... Olha pra ele agora!

Por mais um ou dois segundos, ele fica pendurado no círculo dos braços do pai como um boneco de pano ou uma marionete cujos fios foram cortados, então Landon desce lentamente seu corpo e Scott sabe que seu pai está vendo o que o filho queria que ele visse: apenas um ga­roto. Apenas um garoto inocente que foi acorrentado no porão pelo pai enlouquecido e pelo subserviente irmão mais novo, então passou fome até ficar magro feito um palito e coberto de feridas; um garoto que lutou tanto, e de forma tão lamentável, pela liberdade que conseguiu mover a viga de aço e a mesa cruelmente pesada às quais estava acorrentado. Um garoto que viveu três semanas de pesadelo como um prisioneiro lá embaixo até finalmente levar um tiro na cabeça.

— Estou vendo — diz Papai, e a única coisa mais sombria do que sua voz é seu rosto.

— Por que ele não tava assim antes, Papai? Por que...

— Porque a coisa ruim foi embora, seu palerma. — E eis que surge uma ironia que até um menino de 10 anos severamente abalado con­segue perceber, pelo menos um tão brilhante quanto Scott: agora que Paul está morto, acorrentado a uma viga no porão com os miolos ex­plodidos, Papai parece e soa mais são do que nunca. — E se alguém vir ele assim, eu vou parar ou na prisão estadual de Waynesburg ou internado naquela joça de hospício lá em Reedville. Isso se não me lincharem antes. A gente vai ter que enterrar ele, só que não vai ser moleza com o chão do jeito que tá, duro feito o diabo.

Scott diz:

— Eu levo ele, Papai.

— E como você vai fazer isso? Não conseguiu nem quando ele tava vivo!

Ele não sabe explicar com palavras que agora não vai ser diferente do que ir para lá só com as roupas do corpo, coisa que ele faz sempre. Aquele peso de bigorna, de cofre de banco, de piano, foi embora da coisa acorrentada à viga; agora, a coisa acorrentada à viga é igual à casca verde que você arranca de uma espiga de milho. Scott diz apenas:

— Agora eu consigo.

— Deixa de ser atrevido, moleque — diz Papai, mas ele recosta o rifle na mesa da prensa tipográfica. Passa uma das mãos pelo cabelo e suspira. Pela primeira vez ele parece a Scott um homem que pode envelhecer.

— Então vai, Scott, por que não tenta? Mal não pode fazer.

Porém, agora que não há perigo de verdade, Scott fica tímido.

— Vire, Papai.

— QUE PORRA foi essa que você disse?

Há uma surra em potencial na voz de Papai, mas, pela primeira vez, Scott não se intimida. Não é levar o irmão que o incomoda; ele não se importa se Papai vir aquilo. O que o envergonha é que Papai o veja pegar o irmão morto nos braços. Ele vai chorar. Já sente as lágrimas vindo, como chuva em um fim de tarde de primavera, em um dia que foi quente com uma prévia do verão.

— Por favor — diz ele na sua voz mais apaziguadora. — Por favor, Papai.

Por um instante, Scott tem quase certeza de que o pai vai atravessar o porão correndo até onde está o filho sobrevivente, com sua sombra triplicada nas paredes de pedra atrás de si, e lhe dar um tapa com as cos­tas da mão — talvez o derrubando bem no colo do irmão mais velho. Ele já foi estapeado daquele jeito muitas vezes, e geralmente se encolhe só de pensar nisso, mas agora fica parado entre as pernas abertas de Paul, olhando dentro dos olhos do pai. E difícil, mas ele consegue. Pois os dois passaram por algo terrível juntos e sobreviveram, e terão que manter isso entre eles para sempre: Shhhhhh. Então ele merece pedir, e merece olhar dentro dos olhos de Papai enquanto espera a resposta.

Papai não vai para cima dele. Em vez disso, respira fundo, solta o ar e se vira.

— Daqui a pouco você vai me mandar lavar o chão e limpar a priva­da, pelo jeito — resmunga ele. — Vou contar até trinta, Scoot

 

— Vou contar até trinta e me virar de novo — Scott conta a ela. — Te­nho quase certeza de que foi isso que ele disse, mas não ouvi porque àquela altura eu tinha sumido da face da Terra. Paul também, deixando as correntes pra trás. Eu o levei comigo com a mesma facilidade de sem­pre depois que ele morreu; talvez tenha sido até mais fácil. Aposto que Papai nunca terminou de contar até trinta. Terminou é o cacete, aposto que ele nem começou antes de ouvir o barulho das correntes, ou talvez o som do ar correndo para preencher o espaço em que estávamos antes, e virar para ver que estava completamente sozinho no porão. — Scott está relaxado contra ela; o suor do seu rosto e corpo está secando. Ele contou, tirou o pior de dentro dele, botou para fora.

— O som — diz ela. — Fiquei pensando sobre isso, sabia? Se hou­ve algum som debaixo do salgueiro quando a gente... bem... saiu.

— Quando a gente fez boom.

— É, quando a gente fez... isso aí.

— Quando a gente fez boom, Lisey. Diga.

— Quando a gente fez boom — ela diz, perguntando-se se está louca. Perguntando-se se ele está, e se ela está pegando dele.

Agora ele acende outro cigarro e, sob a luz do fósforo, seu rosto revela uma curiosidade sincera.

— O que você viu, Lisey? Você se lembra?

Ela fala, hesitante:

— Havia muito roxo, descendo uma colina... e parecia que havia sombra, como se tivesse árvores bem atrás da gente, mas foi tudo tão rápido... no máximo um ou dois segundos.

Ele ri e lhe abraça com um braço só.

— Você está falando do Sweetheart Hill.

— Sweetheart?...

— O nome foi idéia de Paul. Aquelas árvores são todas cercadas de terra, uma terra macia e profunda, acho que nunca faz inverno lá, e foi nela que eu o enterrei. Onde enterrei meu irmão. — Ele a encara com solenidade e diz: — Você quer ir até lá para ver, Lisey?

 

Lisey caíra no sono no chão do escritório, apesar da dor...

Não. Ela não tinha adormecido, porque não dava para dormir com uma dor daquelas. Não sem ajuda médica. Então, em que estado estivera?

Hipnotizada.

Lisey experimentou a palavra e decidiu que ela se encaixava perfei­tamente. Ela havia entrado em um duplo (talvez até triplo) redemoinho de lembranças. Porém, daquele ponto em diante, suas recordações sobre o quarto de hóspedes frio em que ela o encontrou catatônico e sobre os dois na cama que rangia no segundo andar do Anders (estas 17 anos mais velhas, mas ainda mais claras) ficavam borradas. Você quer ir até lá para ver, Lisey?, ele havia lhe perguntado — sim, sim —; no entanto, o que quer que tenha vindo em seguida estava imerso em luz roxa bri­lhante, escondido atrás daquela cortina, e quando ela tentava estender a mão até ela, vozes autoritárias da infância (da Mãezinha Querida, de Dandy, de todas as suas irmãs mais velhas) gritavam alarmadas. Não, Lisey! Já está perto até demais, Lisey! Pare, Lisey!

Sua respiração ficou presa. (Teria ficado assim enquanto ela estava deitada lá com seu amor?)

Seus olhos se abriram. (Estavam arregalados quando ele a pegou nos braços, disso ela estava certa.)

A luz de junho de uma manhã clara — uma luz de junho do século XXI — substituiu o roxo vivo e berrante de um bilhão de tremoceiros. A dor do seu peito estraçalhado a inundou novamente junto com a luz. Porém, antes que Lisey pudesse reagir à luz ou às vozes que lhe man­davam não ir adiante, alguém a chamou do celeiro do andar de baixo, assustando-a de tal forma que por um triz ela não gritou. Se a voz hou­vesse terminado em Madame, teria gritado.

— Sra. Landon? — Uma breve pausa. — A senhora está aí em cima?

Nenhum vestígio das fronteiras do Sul naquela voz, apenas um sotaque ianque arrastado e monocórdio, de modo que Lisey descobriu quem estava lá embaixo: o oficial Alston. Ele dissera que ficaria vin­do para conferir se estava tudo bem, e lá estava, conforme prometido. Aquela era sua chance de dizer a ele que sim, estava lá em cima, esta­va deitada no chão sangrando porque o Príncipe Negro dos Incunks a havia ferido, Alston tinha que levá-la para No Soapa com as luzes e as sirenes ligadas, ela precisava levar pontos no seio, um monte deles, e precisava de proteção, precisava dela dia e noite...

Não, Lisey.

Foi sua própria mente que trouxe aquele pensamento à tona (disso ela estava certa), como uma explosão em um céu escuro (bem... quase certa), mas ele lhe veio na voz de Scott. Como se ganhasse autoridade daquela forma.

O que deve ter funcionado, pois “Sim, estou aqui!” foi tudo o que ela respondeu.

— Tudo na paz? Quero dizer, tudo bem?

— Tudo na paz, afirmativo — disse ela, impressionada ao ver que realmente soava “na paz”. Especialmente para uma mulher cuja blusa estava encharcada de sangue e cujo seio esquerdo latejava como um... bem, não havia nada que se comparasse. Estava apenas latejando.

Lá embaixo — bem ao pé da escada, calculou Lisey — o policial riu, gostando daquilo.

— Só quis dar uma passada aqui antes de ir para os lados dos caixas eletrônicos. Tem uma casa pegando fogo por lá. Estão dizendo que foi premeditado. A senhora vai ficar bem se eu deixada sozinha durante as próximas três horas, mais ou menos?

— Vou.

— Está com o seu celular?

Ela de fato estava com o celular e queria estar falando nele naquele instante. Se tivesse que continuar gritando para o policial, provavel­mente desmaiaria.

— Benhaqui! — gritou em resposta.

— Hein? — Com uma leve suspeita na voz. Deus, e se ele subisse e a encontrasse daquele jeito? Se subisse, acharia aquilo muito suspeito, suspeito à enésima potência. Porém, quando voltou a falar, sua voz es­tava se afastando. Ela mal conseguia acreditar que estava feliz por isso, mas estava. Agora que tinha começado com aquilo, queria terminar. — Bem, ligue se precisar de alguma coisa. E eu volto mais tarde. Se for sair, deixe um bilhete para eu saber que a senhora está bem e a hora em que pretende voltar, o.k.?

E Lisey, que já começava a divisar — vagamente — um plano de ação, gritou em resposta:

— Beleza!

Tinha que começar voltando para casa. Mas, primeiro, antes de tudo, um copo d’água. Se não bebesse mais um pouco d’água, e logo, sua garganta poderia pegar fogo como aquela casa para os lados dos caixas eletrônicos.

— Vou passar no Patel’s na volta, sra. Landon, a senhora quer que eu compre alguma coisa?

Sim! Um six-pack de Coca bem gelada e uma caixa de Salem Lights!

— Não, obrigada. — Se tivesse que falar mais, sua voz falharia. Mesmo que não falhasse, ele perceberia algo de errado nela.

— Nem uns donuts? Os donuts deles são uma delícia. — Com um sorriso na voz.

— Estou de dieta! — foi tudo que ela teve coragem de dizer.

— Oh-oh, já entendi — disse ele. — Tenha um bom dia, sra. Landon.

Por favor, Deus, chega, implorou ela, gritando de volta:

— Para o senhor também!

E plac-plac-plac-ti-plac, lá se foi ele.

Lisey esperou ouvir um som de motor e, depois de um tempo, achou ter ouvido algum dando partida, mas muito baixinho. Ele deve­ria ter estacionado na altura da caixa de correio e então atravessado a entrada para carros inteira.

Lisey ficou deitada onde estava um pouco mais, recompondo-se, então se sentou. Dooley tinha cortado seu peito na diagonal, subindo até a cavidade da axila. O talho desigual e sinuoso tinha endurecido e fechado um pouco, mas o movimento o fez abrir novamente. A dor era imensa. Lisey gritou e isso piorou mais ainda a situação. Ela sentiu sangue fresco descer pelas suas costelas. Aquelas asas negras começaram a tomar sua visão mais uma vez e ela as obrigou a ir embora, repetindo o mesmo mantra sem parar até o mundo ficar sólido: Preciso acabar com isso, preciso atravessar a roxidão. Preciso acabar com isso, preciso atravessar a roxidão. Preciso acabar com isso, preciso atravessar a roxidão.

Sim, atravessar a roxidão. Na colina, tinham sido os tremoceiros; na sua mente, a cortina pesada que tinha erguido por conta própria — talvez com a ajuda de Scott, certamente com sua aprovação tácita.

Eu já atravessei antes.

Foi mesmo? Sim.

E posso atravessar de novo. Atravesse ou rasgue aquela droga se for preciso.

Pergunta: Ela e Scott falaram alguma vez sobre Boo’ya Moon de­pois daquela noite no Anders? Lisey achava que não. Eles tinham suas palavras em código, é claro, e Deus sabia que aquelas palavras vinham flutuando da roxidão nas vezes em que ela não conseguia encontrá-lo em shoppings ou mercados... para não falar da vez em que a enfermei­ra o perdeu de vista na joça da cama de hospital... além da referência murmurada de Scott ao seu garoto espichado quando estava caído no estacionamento depois que Gerd Allen Cole atirou nele... e Kentucky... Bowling Green, na hora de sua morte...

Pare, Lisey!, disseram as vozes em coro. Não faça isso, pequena Li­sey!, gritaram elas. Mein gott, non ouze facer isso!

Ela tentou deixar Boo’ya Moon para trás, mesmo depois do inver­no de 1996, quando...

— Quando eu fui até lá novamente. — Sua voz estava seca, porém clara, no escritório do seu falecido marido. — No inverno de 1996, eu voltei para lá. Para trazê-lo de volta.

Lá estava, e o mundo não acabou. Homens de jalecos brancos não se materializaram das paredes para levá-la embora. Na verdade, ela achou até que estava se sentindo um pouco melhor, o que talvez não fosse tão surpreendente. Talvez, quando você vai até onde a coisa fica preta, a verdade seja um bool, e tudo o que ela quer é sair.

— O.k., agora eu botei pra fora, a parte sobre Paul pelo menos. Então, posso beber uma joça de um copo d’água?

Nada a proibiu e, se apoiando na beirada da Jumbona do Dumbo, Lisey conseguiu se levantar. As asas negras voltaram, mas ela jogou a cabeça para trás, tentando manter o máximo de sangue possível na­quele patético arremedo de cérebro e, dessa vez, a sensação de desmaio passou mais depressa. Ela zarpou para o bar anexo, caminhando sobre sua própria trilha de sangue, dando passos lentos com os pés separados, pensando que deveria parecer uma velhinha cujo andador foi roubado.

Ela conseguiu, dando apenas uma olhadela para o copo caído no carpete. Não queria mais saber daquele. Pegou outro do armário, usando novamente a mão direita — a esquerda ainda segurava o bordado em forma de quadrado e cheio de sangue —, e abriu a água gelada. A água tinha voltado a correr e os canos mal fizeram barulho. Ela abriu o espelho de vidro sobre a pia e, dentro dele, encontrou o que esperava: o frasco de Excedrin de Scott. Sem nenhum lacre à prova de crianças para detê-la, tampouco. Ela recuou diante do cheiro avinagrado que saiu do frasco de­pois que tirou a tampa e conferiu a data de validade: JUL 05. Bem, pensou ela, uma garota tem que fazer o que uma garota tem que fazer.

— Acho que foi Shakespeare quem disse isso — grasniu, engolindo três Excedrins. Não sabia o quanto eles ajudariam, mas a água foi divina e ela bebeu até sentir cólicas na barriga. Lisey ficou agarrada à borda da pia do bar do seu falecido marido, esperando as cólicas passarem. Finalmente, passaram. Aquilo a deixava apenas com a dor no seu rosto castigado e com o latejar muito mais profundo no peito. Na casa, havia algo muito mais forte do que os arrasa-dores de cabeça de Scott (embo­ra certamente tão velho quanto): Vicodin, do último flerte de Amanda com a automutilação. Daria também tinha alguns, e Canty tinha o fras­co de Percocet de Manda Bunny. Todas haviam concordado sem nem discutir que a própria Amanda não poderia ter acesso aos remédios mais pesados; ela poderia muito bem se sentir um cocô e decidir tomar tudo de uma vez só. Como se fosse um drinque, um Tequila Sunset.

Lisey tentaria ir até a casa, e até o Vicodin, em breve, mas ainda não. Andando com a mesma cautela — os pés bem separados, um copo de água pela metade em uma das mãos e o quadrado encharcado de san­gue na outra — chegou até a cobra de livros empoeirada e se sentou ali, esperando para ver o que três Excedrins idosos poderiam fazer pela sua dor. E, enquanto esperava, seus pensamentos se voltaram novamente para a noite em que o encontrara no quarto de hóspedes — dentro do quarto, embora tivesse partido.

Eu não parava de pensar que estávamos sozinhos. Aquele vento, aque­la joça de vento.

 

Ela escuta aquele vento assassino gritar em volta da casa, escuta o gra­nizo açoitar as janelas, sabendo que eles estão sozinhos — que ela está sozinha. E, enquanto escuta, seus pensamentos se voltam novamente para aquela noite em New Hampshire, quando a hora era nenhuma e a lua insistia em atiçar as sombras com seu brilho inconstante. Ela se lembra de como abriu a boca para perguntar se ele podia mesmo fazer aquilo, se podia mesmo levá-la, e então a fechou de volta, sabendo que esse é o tipo de pergunta que você só faz quando quer ganhar tempo... e você só quer ganhar tempo quando não está do mesmo lado que a outra pessoa, não é?

Nós estamos do mesmo lado, ela se lembra de pensar. Se vamos nos casar, é melhor estarmos.

Porém, havia uma pergunta que precisava ser feita, talvez porque aquela noite no Antlers fosse a vez de Lisey pular do banco.

— E se for noite lá? Você disse que as coisas más saem à noite.

Scott sorri para ela.

— Não é noite lá, querida.

— Como você sabe?

Ele balança a cabeça, ainda sorrindo.

— Apenas sei. Do jeito que o cachorro de um menino sabe que está na hora de se sentar junto à caixa de correio porque o ônibus da escola está chegando. O sol está quase se pondo lá. Geralmente está.

Ela não entendeu aquilo, mas não perguntou nada — uma pergun­ta sempre levava a outra, pela sua experiência, e já não havia mais tempo para perguntas. Caso pretendesse confiar nele, não havia mais tem­po para perguntas. Então respirou fundo e disse:

— Certo. Essa é nossa lua-de-mel antecipada. Me leve para algum lugar que não seja New Hampshire. Dessa vez eu quero dar uma boa olhada.

Ele amassou seu cigarro fumado pela metade no cinzeiro e a pegou de leve pelos antebraços, seus olhos dançando de empolgação e bom humor — como ela se lembra bem dos dedos dele na sua pele naquela noite.

— Você tem coragem para dar e vender, pequena Lisey... eu direi isso ao mundo. Segure-se e vamos ver no que dá.

E ele me levou, pensa Lisey, sentada no quarto de hóspedes, segu­rando a mão flácida e gelada do homem-boneco que respirava na cadei­ra de balanço. Porém, sente o sorriso no rosto — um sorriso grande para uma Lisey tão pequena — e se pergunta há quanto tempo ele está lá. Ele me levou, tenho certeza que sim. Mas isso aconteceu há 17 anos, quando éramos os dois jovens e corajosos e ele estava presente de corpo e alma. Agora ele partiu.

Só que seu corpo ainda está lá. Será que isso significa que ele já não consegue ir fisicamente, como quando era criança? Da maneira que ela sabe que ele havia ido uma vez ou outra desde que ela mesma o co­nheceu? Da maneira que ele foi no hospital em Nashville, por exemplo, quando a enfermeira não conseguia encontrá-lo?

É nessa hora que Lisey sente a mão dele apertar de leve a sua. É quase imperceptível, mas ela o ama, então sente. Seus olhos ainda en­caram, vidrados, a tela apagada da tevê por cima das dobras da trouxa amarela, mas, sim, a mão dele está apertando a sua. Ele está muito dis­tante, embora seu corpo esteja ali, e, onde está, talvez a aperte com toda sua força.

De repente, Lisey tem um estalo brilhante: Scott está segurando uma brecha para ela. Só Deus sabe o que isto está lhe custando, ou por quanto tempo ele pode mantê-la aberta, mas é isso que está fazendo. Lisey solta sua mão e se ajoelha, ignorando as alfinetadas e agulhadas do formigamento em suas pernas, quase dormentes a essa altura, e igno­rando também outra grande lufada fria de vento que estremece a casa. Ela afasta a trouxa o suficiente para poder deslizar os braços em volta de Scott e dos seus braços impassíveis, de modo a unir as mãos no meio de suas costas e abraçá-lo. Coloca, em seguida, seu rosto aflito diante do olhar vazio dele.

— Me puxe — sussurra ela, balançando o corpo mole do marido. — Me puxe para onde você está, Scott.

Nada acontece, e ela ergue a voz em um grito.

— Me puxe, seu desgraçado! Me puxe para onde você está para eu te trazer para casa! Vai! SE QUISER VOLTAR PARA CASA, ME LEVE PARA ONDE VOCÊ ESTÁ!

— E você puxou — murmurou Lisey. — Você puxou e eu fui. Não faço a mínima idéia de como essa coisa deveria funcionar agora que você está morto e enterrado, em vez de apenas catatônico no quarto de hóspedes, mas este é o motivo por trás de tudo isso, não é? De tudo isso.

Porém, ela fazia idéia de como aquilo deveria funcionar. Bem no fundo da sua mente, apenas um vulto atrás daquela sua cortina, mas estava lá.

Neste meio-tempo, o Excedrin fez efeito. Não muito, mas talvez o suficiente para ela conseguir descer até o andar do celeiro sem desmaiar e quebrar o pescoço. Se conseguisse chegar lá, poderia entrar na casa, onde as drogas boas de verdade estavam guardadas... supondo que elas ainda fizessem efeito. Era melhor que fizessem, pois ela tinha coisas para fazer e lugares para ir. Alguns deles, muito distantes.

— Uma viagem de mil quilômetros começa com um passo, Lisey­-san — disse ela e se levantou para sair na frente da cobra de livros.

Novamente andando com passos lentos e arrastados, Lisey zarpou para as escadas. Levou quase três minutos para vencê-las, agarrando-se ao corrimão a cada passo e parando nas duas vezes em que se sentiu tonta; no entanto, conseguiu descê-la sem cair, sentou-se um pouco na cama mein gott para recuperar o fôlego e então começou a longa jornada até a porta dos fundos da casa.

 

Lisey e o Lago

(Shhhh — Agora Você Tem que Ficar Quieta)

O maior medo de Lisey, de que o calor do fim da manhã a vencesse e ela desmaiasse no meio do caminho entre o celeiro e a casa, se mostrou infundado. O sol teve a gentileza de se esconder atrás de uma nuvem e uma brisa fria se materializou para aliviar brevemente sua pele supera­quecida e seu rosto afogueado e inchado. Quando chegou à varanda dos fundos, o talho profundo no seu peito já havia voltado a latejar, mas as asas negras continuaram distantes. Houve um momento de tensão em que ela não conseguia achar as chaves de casa, mas seus dedos ansiosos acabaram encontrando o chaveiro — um pequeno elfo de prata — de­baixo do maço de Kleenex que ela costumava trazer no bolso direito da frente, então, quanto àquilo, tudo bem. E a casa estava fresca. Fresca, silenciosa e, graças a Deus, vazia. Agora só precisava continuar vazia enquanto ela cuidava dos ferimentos. Sem telefonemas, sem visitas, sem policiais de um metro e oitenta andando desajeitados até sua porta dos fundos para conferir se estava tudo bem. E também, por favor, Deus (tenha piedade), sem outra visita do Príncipe Negro dos Incunks.

Ela atravessou a cozinha e pegou a bacia de plástico branca que ficava debaixo da pia. Doeu se agachar, doeu muito, e mais uma vez ela sentiu o calor do sangue escorrendo na sua pele e encharcando os restos do seu top esfarrapado.

Você sabe que ele sentiu tesão em fazer isso, não sabe?

É claro que ela sabia.

E ele vai voltar. Não importa o que você prometa, não importa o que você dê, ele vai voltar. Você também sabe disso, não é?

Sim, ela também sabia disso.

Porque para Jim Dooley, seu acordo com Woodbody e os manuscritos de Scott são tão importantes quanto o blém-blém pelas frésias. E existe um mo­tivo para ele ter escolhido seu peito em vez de sua orelha ou talvez um dedo.

— Claro — disse ela para sua cozinha vazia, escura, e então subi­tamente iluminada à medida que o sol saía navegando de trás de uma nuvem. — Essa é a versão de Jim Dooley para uma bela trepada. E da próxima vez vai ser minha boceta, se a polícia não o impedir.

Você tem que impedi-lo, Lisey. Você.

— Deixe de bobagem, benzinho — diz ela à cozinha na sua me­lhor imitação de Zsa Zsa Gabor. Usando mais uma vez a mão direita, ela abriu o armário sobre a torradeira, tirou uma caixa de saquinhos de chá Lipton e os colocou na bacia branca. Acrescentou o quadrado cheio de sangue da trouxa da caixa de cedro da Mãezinha Querida, embora não fizesse a menor idéia de por que ainda o estava carregando. Então começou a arrastar os pés na direção das escadas.

Bobagem por quê? Você impediu o Loiraço, não impediu? Talvez não tenha levado o crédito, mas foi você quem o impediu.

— Aquilo foi diferente. — Ela ficou parada, olhando escada acima com a bacia de plástico branca debaixo do braço direito, apoiada contra o quadril para que a caixa de chá e o quadrado bordado não caíssem. A escada parecia ter aproximadamente 13 quilômetros de altura. Lisey imaginou que deveria haver nuvens girando no topo dela.

Se foi diferente, por que você está subindo as escadas?

— Porque é lá que está o Vicodin! — gritou ela para a casa vazia. — Os malditos comprimidos da felicidade!

A voz disse mais uma coisa e se calou.

— ESPANE, babyluv tem razão — concordou Lisey. — Pode acre­ditar. — E começou a longa e lenta caminhada escada acima.

 

Na metade do caminho, as asas voltaram, mais escuras do que nunca, e, por um instante, Lisey teve certeza de que iria apagar. Ela dizia a si mesma para cair para a frente, em cima das escadas, e não para trás, no espaço vazio, quando sua vista clareou novamente. Sentou-se com a bacia sobre as pernas e ficou daquele jeito, a cabeça pendida, contando até cem e dizendo Mississippi entre cada número. Então se levantou e terminou a escalada. As correntes de ar se cruzavam no segundo andar e ele estava mais fresco ainda do que a cozinha; porém, quando Lisey chegou até lá, estava suando em bicas novamente. O suor entrava no talho que atravessava seu seio e logo o sal dele acrescentou uma ardência enlouquecedora à dor mais forte. E ela estava com sede de novo. Uma sede que parecia descer sua garganta inteira até o estômago. Isso, pelo menos, poderia ser remediado, cedo ou tarde.

Ela olhou para o quarto de hóspedes ao passar lentamente por ele. Tinha sido reformado desde 1996 — duas vezes, na verdade —, mas Lisey teve muita facilidade em ver a cadeira de balanço preta com o emblema da Universidade do Maine atrás... e o olho apagado da tevê... e as janelas cheias de gelo que mudavam de cor junto com as luzes do céu...

Esqueça, pequena Lisey, isso pertence ao passado.

— Tudo isso pertence ao passado, mas nada acabou! — gritou ela, irritada. — Esta é a joça do problema!

A isso não houve resposta, mas lá, finalmente, estava o quarto principal e seu banheiro anexo — o que Scott, cujo forte nunca foi a delicadeza, costumava chamar de II Grande Cagatorium. Ela largou a bacia, esvaziou o copo das escovas de dente (duas ainda, agora ambas dela, infelizmente) e o encheu até a borda de água gelada. Bebeu dele com avidez, então reservou um instante para se olhar no espelho. Para o rosto, pelo menos.

O que viu não era encorajador. Seus olhos eram brilhantes faís­cas azuis despontando de cavernas escuras. A pele debaixo deles tinha assumido um tom marrom escuro. Seu nariz estava inclinado para a esquerda. Lisey não achava que estivesse quebrado, mas como saber? Pelo menos conseguia respirar por ele. Sob o nariz havia uma grande crosta de sangue seco que quebrava tanto para a esquerda quanto para a direita em volta da boca, dando-lhe um grotesco bigode Fu Manchu. Olha, mamãe, sou um motoqueiro, ela tentou dizer, mas as palavras não queriam sair. Era uma piada horrível, de qualquer forma.

Seus lábios estavam tão inchados que chegavam a virar do avesso, dando ao seu rosto um beicinho grotescamente exagerado de “vem me beijar”.

Eu estava pensando em ir até Greenlawn, lar do famoso Hugh Al­berness, nessas condições? Estava mesmo? Muito engraçado: só de olhar eles chamariam uma ambulância para me levar até um hospital de verdade, do tipo que tem UTI.

Não era nisso que você estava pensando. Você estava pensando em...

Porém, ela afastou aquilo, lembrando de algo que Scott costumava dizer: Noventa por cento das coisas que passam pela cabeça das pessoas não são da joça da conta delas. Talvez fosse verdade, talvez não, mas, por ora, o melhor que ela podia fazer era lidar com aquilo como lidara com as escadas: cabeça abaixada e um passo de cada vez.

Lisey teve outro momento de tensão em que não conseguia achar

o Vicodin. Quase desistiu, pensando que alguma das três faxineiras po­deria ter levado o frasco, depois de encontrá-lo escondido entre os com­plexos de vitaminas de Scott. E, que coincidência, a validade daquelas gracinhas expirava naquele mês.

— Quem não desperdiça não passa necessidade — disse Lisey e tomou três deles. Então encheu a bacia com água morna e jogou um punhado de saquinhos de chá nela. Ela observou manchas acastanhadas começarem a aparecer na água límpida, então deu de ombros e jogou o resto dos saquinhos. Eles se depositaram no fundo da água cada vez mais escura e ela pensou em um jovem dizendo que Arde um pouco, mas funciona muito muito bem. Em outra vida, aquilo tinha acontecido. Agora Lisey poderia ver ela mesma.

Ela pegou uma toalha de rosto limpa do gancho ao lado da pia, jogando-a na bacia e torcendo-a de leve enquanto a tirava de volta. O que você está fazendo, Lisey? perguntou a si mesma... mas a resposta era óbvia, não era? Ela ainda estava seguindo a trilha que seu marido lhe deixara. A que levava ao passado.

Lisey deixou os frangalhos da sua blusa caírem no chão do ba­nheiro e, com uma careta de apreensão, aplicou a toalha encharcada de chá ao seio. Doeu, porém, se comparado às pontadas urticantes do seu próprio suor, era quase agradável, tipo quando você faz um bochecho em cima de uma afta.

Funciona. Funciona muito muito bem, Lisey.

Houve uma época em que ela acreditou naquilo — mais ou me­nos —, mas naquela época tinha 22 anos e estava disposta a acreditar em um monte de coisas. Agora, acreditava era em Scott. E em Boo’ya Moon. Sim, imaginava que naquilo também. Um mundo que estava esperando logo ao lado, e atrás da cortina roxa na sua mente. A questão era se ele estaria ou não ao alcance da famosa patroa do escritor agora que ele estava morto e ela estava sozinha.

Lisey torceu sangue e chá da toalha de rosto e a mergulhou nova­mente, recolocando-a sobre o seio ferido. Desta vez, ardeu menos ainda. Mas isso não é uma cura, pensou ela. É apenas outro marco na estrada para o passado. Em voz alta, ela disse: — Outro bool.

Segurando a toalha de rosto delicadamente contra seu corpo e car­regando o quadrado da trouxa — o regalo da Mãezinha Querida — na mão dobrada debaixo do seio, Lisey entrou devagar no quarto e se sen­tou na cama, olhando para a pá de prata com MARCO ZERO, BIBLIOTECA SHIPMAN, gravado na colher. Sim, ela conseguia ver a pequena falha onde ela havia colidido primeiro com a arma do Loiraço e depois com o seu rosto. Lisey tinha a pá e, embora a trouxa amarela na qual Scott se enrolara durante aquelas noites frias de 1996 já não existisse há muito, este vestígio ela ainda tinha, este regalo.

Bool, fim.

— Quem me dera fosse o fim — disse Lisey e se deitou com a toa­lha de rosto ainda contra o peito. A dor estava indo embora aos poucos, mas era apenas o Vicodin de Amanda assumindo o controle, fazendo o que nem a cura do chá de Paul ou as aspirinas vencidas de Scott con­seguiram. Quando o efeito do Vicodin passasse, a dor voltaria. Assim como Jim Dooley, o autor dela. A questão era, o que ela faria neste meio-tempo? Podia fazer alguma coisa?

A única coisa que não pode fazer de maneira alguma é cair no sono.

Não, isso seria ruim.

É melhor eu ter notícias do Prof às oito da noite de hoje, ou da próxima vez vou te machucar muito mais feio, falara-lhe Dooley, e Dooley tinha arranjado as coisas para que ela ficasse em um beco sem saída. Também havia lhe dito para se cuidar sozinha e não falar a ninguém da sua visita. Até ali, era o que Lisey tinha feito, mas não por medo de ser assassinada. De certa forma, saber que ele pretendia matada de alguma maneira lhe dava uma vantagem. Pelo menos, não precisava mais se preocupar em se entender com ele. Porém, se ligasse para o gabinete do xerife... bem...

— Não dá pra fazer uma caça ao bool com a casa cheia de policiais grandalhões atravancando o caminho — disse ela. — E além disso...

Além disso, acredito que Scott ainda esteja dando a última palavra. Ou pelo menos tentando.

— Querido — disse ela ao quarto vazio —, eu só queria saber do que se trata.

 

Lisey olhou para o relógio digital no criado-mudo e ficou chocada ao ver que ainda eram vinte para as onze. Aquele dia já parecia durar cem anos, mas ela imaginava que era por ter passado tanto tempo revivendo o pas­sado. Lembranças ferravam com a sua perspectiva, e as mais vívidas po­deriam aniquilar totalmente o tempo enquanto estivessem no controle.

Mas chega de passado, o que estava acontecendo agora?

Bem, pensou Lisey, vamos ver. No Reino de Pittsburgh, o ex-Rei dos Incunks está sem dúvida sofrendo o tipo de pânico que meu falecido marido costumava chamar de Síndrome do Testículo Fedorento. O oficial Alston está lá para os lados dos caixas eletrônicos, indo verificar uma casa que pegou fogo. Estão dizendo que foi premeditado. Jim Dooley? Talvez deitado na floresta aqui perto, lascando um graveto com meu abridor de latas Oxo no bolso, esperando o dia passar. Seu PT Cruiser pode estar escondido em qualquer um dos vários celeiros ou barracos abandonados em View, ou na Deep Cut, na rodovia de Harlow. Darla está provavelmente a caminho do aeroporto de Portland para apanhar Canty. Mãezinha Querida diria que ela ficou lelé da cuca. E Amanda? Ah, Amanda partiu, babyluv. Como Scott sabia que ele partiria, cedo ou tarde. Ele não fez tudo, menos reser­var uma joça de um quarto pra ela? Porque um maluco reconhece o outro. Como se diz.

Em voz alta, ela disse:

— Eu devo ir para Boo’ya Moon? Esta que é a próxima estação do bool? É isso, não é, Scott? Scott, seu safado, como eu faço agora que você está morto?

Você está colocando o carro na frente dos bois de novo, não é mesmo?

Claro; ao insistir na sua inabilidade de chegar a um lugar do qual ainda nem se permitiu lembrar por completo.

Precisa fazer muito mais do que apenas erguer aquela cortina e olhar por debaixo da bainha.

— Tenho que arrancada — disse ela, desanimada. — Não tenho?

Nenhuma resposta. Lisey interpretou aquilo como um sim. Ela rolou de lado e apanhou a pá de prata. A inscrição brilhou sob a luz do sol da manhã. Enrolou o pedaço cheio de sangue da trouxa no cabo e então a segurou desse jeito.

— Certo — disse ela. — Eu vou arrancada. Ele me perguntou se eu queria ir e eu respondi que tudo bem. Falei Jerônimo.

Lisey fez uma pausa, refletindo.

— Não. Não foi isso. Eu falei do jeito dele. Falei Jerômino. E o que aconteceu? O que aconteceu em seguida?

Ela fechou os olhos, viu apenas uma roxidão brilhante, e poderia ter chorado de frustração. Em vez disso, pensou ESPANE, babyluv: En­gatilhe Sempre que Parecer Necessário, e apertou mais forte o cabo da pá. Viu a si mesma girando-a. Viu a pá reluzir sob o sol enevoado de agosto. E a roxidão se partiu diante dela, rompendo-se como pele depois de um corte, vertendo não sangue, mas luz: uma luz laranja surpreendente que encheu seu coração e sua mente de uma terrível mistura de alegria, horror e tristeza. Não era de espantar que ela tivesse reprimido aquela lembrança durante todos aqueles anos. Era demais. Demais da conta. Aquela luz parecia conferir à atmosfera esmaecida do fim de tarde uma textura sedosa, e o grito de um pássaro atingiu seu ouvido como um seixo feito de vidro. Uma brisa encheu suas narinas com uma centena de perfumes exóticos: frangipana, buganvília, rosas secas e, oh, bom Deus, damas-da-noite. Porém, o que mais lhe feriu foi a lembrança da pele dele contra a sua, a pulsação do sangue dele correndo em contraponto à pulsação do seu, pois eles estavam deitados nus na cama do Anders e agora se ajoelhavam sobre os tremoceiros roxos perto do topo da colina, nus sob as sombras cada vez mais espessas das árvores adoráveis. E, er­guendo-se sobre um dos horizontes, como uma mansão laranja, a lua surgiu, intumescida e ardendo de frio, à medida que o sol se punha atrás do outro horizonte, fervilhando até se tornar uma casa de fogo escarlate. Ela pensou que aquela mistura de luzes furiosas poderia matada com sua beleza.

Deitada na sua cama de viúva agarrando a pá com as mãos, uma Lisey muito mais velha gritou de alegria pelo que recordava e de dor pelo que fora perdido. Seu coração estava curado ao mesmo tempo que se partia novamente. As cordas vocais saltavam no seu pescoço. Ela re­puxou os lábios inchados para baixo e os abriu, expondo os dentes e fazendo sangue fresco jorrar nos sulcos das gengivas. Lágrimas correram pelos cantos dos seus olhos e desceram-lhe as bochechas até as orelhas, onde ficaram penduradas como jóias exóticas. E o único pensamento claro na sua mente era: Oh, Scott, nós não fomos feitos para tamanha beleza, nós não fomos feitos para tamanha beleza, deveríamos ter morrido naquele instante, oh, meu querido, deveríamos ter morrido, nus nos braços um do outro, como amantes em uma história.

— Mas não morremos — murmurou Lisey. — Ele me abraçou e disse que não poderíamos ficar muito mais tempo porque estava escu­recendo e não era seguro depois do anoitecer, pois até as árvores mais adoráveis se tornavam más à noite. Porém, ele falou que queria me

 

— Quero te mostrar uma coisa antes de a gente voltar — diz ele, aju­dando-a a se erguer.

— Oh, Scott — ela se ouve dizendo, com uma voz muito fraca e baixa. — Oh, Scott. — Parece que é o máximo que consegue fazer. De certa forma, isso a faz lembrar da primeira vez que sentiu um orgasmo se aproximando, só que essa sensação se prolonga, se prolonga, se pro­longa, como se estivesse apenas a caminho e nunca chegasse de fato.

Ele a conduz a algum lugar. Ela sente grama alta sussurrando con­tra suas coxas. Então a grama some e Lisey percebe que eles estão em um caminho muito gasto que corta as fileiras de tremoceiros. Ele conduz até o que Scott chama de árvores adoráveis e ela se pergunta se existem pessoas ali. Se existem, como elas agüentam?, pergunta-se Lisey. Ela quer olhar novamente para a lua malévola que se ergue no céu, mas não tem coragem.

— Fique quieta debaixo das árvores — diz Scott. — A gente ainda deve ficar seguro por mais um tempinho, mas “é melhor prevenir do que remediar” é uma boa regra a seguir, mesmo na entrada da Floresta Mágica.

Lisey não acha que conseguiria produzir mais do que um sussur­ro mesmo se fizesse questão. Conseguir falar Oh, Scott já está de bom tamanho.

Ele está parado sob uma das árvores adoráveis. Parece uma palmei­ra, mas o tronco é felpudo, coberto de um verde que mais parece pêlo do que limo.

— Meu Deus, espero que esteja tudo de pé — diz ele. — Estava em ordem da última vez que vim aqui, na noite em que você ficou mui­to brava e eu enfiei a mão pelo vidro daquela estufa idiota... ah, pronto, aqui está!

Ele a puxa da trilha para a direita. E, perto de uma das duas árvores que parecem guardar o local em que o caminho adentra a floresta, ela vê uma cruz simples feita com duas tábuas. Para Lisey, parecem apenas ripas de um caixote de madeira. Não há nenhum relevo na terra — na verdade, o terreno parece até um pouco afundado —, mas a cruz basta para ela saber que é uma cova. Na tábua horizontal, lê-se uma palavra pintada com esmero: PAUL.

— Na primeira vez, escrevi a lápis — diz ele. Sua voz soa clara, mas é como se viesse de muito longe. — Então tentei com uma esferográfi­ca, mas é claro que não deu certo, não numa madeira bruta como essa. O marcador de texto funcionou melhor, mas depois apagou. Por fim, pintei com tinta preta, de um dos kits antigos de Paul.

Ela olhou para a cruz sob a estranha luz misturada do final do dia, começo da noite, pensando (até onde conseguia pensar): Tudo aquilo foi verdade. O que pareceu acontecer quando saímos de debaixo da árvore nhami-nhami aconteceu mesmo. Está acontecendo agora, só que por mais tempo e com mais clareza.

— Lisey! — Ele está pulando de felicidade; e por que não estaria? Não pôde dividir aquele lugar com ninguém desde a morte de Paul. Nas poucas vezes que vai até lá, vai sozinho. Para lamentar sozinho. — Tem outra coisa. Deixa eu te mostrar!

Em algum lugar, um sino toca, muito baixinho. Um sino que lhe parece familiar.

— Scott?

— O quê? — Ele se ajoelha na grama. — O que foi, babyluv?

— Você ouviu?... — Mas já parou. E com certeza foi imaginação dela. — Nada. O que você quer me mostrar? — Pensando: Como seja não tivesse me mostrado o suficiente.

Ele passa as mãos pela grama alta em volta da base da cruz, mas não parece haver nada ali, e o sorriso bobalhão e feliz no seu rosto co­meça a desaparecer.

— Talvez eu tenha levado... — começa a falar ele, então se inter­rompe. Seu rosto fica tenso, encolhendo-se por um momento, então relaxa e ele solta uma risada quase histérica. — Aqui está. Cacete, pensei que tivesse me espetado. Isso sim seria uma piada, depois de todos esses anos!, mas ela ainda está com a capa! Olha, Lisey!

Ela teria dito que nada poderia retirá-la do assombro que sente por estar naquele lugar — o céu vermelho-alaranjado ao leste e escurecen­do até um estranho tom azul-esverdeado a oeste, a exótica mistura de aromas e, em algum lugar, sim, o repique baixo de algum sino perdido —, mas o que Scott está segurando sob a última luz mortiça do dia consegue essa proeza. É a seringa hipodérmica que seu pai lhe deu, a que Scott deveria enfiar em Paul assim que os dois chegassem ali. Há partículas de ferrugem na bucha de metal da sua base, mas, afora isso, parece nova em folha.

— Era tudo que eu tinha para deixar — diz Scott. — Eu não tinha uma foto. Os garotos que iam para a Escola dos Burricos pelo menos costumavam ter fotos.

— Você cavou a sepultura... Scott, você cavou a sepultura com as mãos?

— Eu tentei. E, como o solo aqui é macio, consegui cavar um buraco pequeno, mas a grama... arrancar a grama me atrasou... rapaz, tinha umas ervas daninhas brabas... e então começou a escurecer e os risonhos começaram a...

— Os risonhos?

— Tipo hienas, eu acho, só que malvadas. Eles vivem na Floresta Mágica.

— A Floresta Mágica... foi Paul quem deu esse nome para ela?

— Não, fui eu. — Ele aponta as árvores com um gesto. — Paul e eu nunca vimos os risonhos de perto, na maioria das vezes só os escu­távamos. Mas vimos outras coisas... eu vi outras coisas... tem um negó­cio que... — Scott lança um breve olhar para o aglomerado de árvores adoráveis que escurece rapidamente, então olha para a trilha, que some depressa ao entrar na floresta. É impossível não notar o tom de adver­tência quando ele torna a falar: — Temos que voltar logo.

— Mas você consegue nos levar, não consegue?

— Com a sua ajuda? Claro.

— Então me conte como o enterrou.

— Posso te contar depois que a gente voltar, se você...

No entanto, ele se cala ao vê-la balançar a cabeça lentamente.

— Não. Eu entendo que você não queira ter filhos. Agora eu en­tendo. Se um dia você chegar para mim e disser: “Lisey, eu mudei de idéia, quero arriscar”, a gente pode conversar sobre isso, porque teve o caso do Paul... e depois teve você.

— Lisey...

— A gente pode conversar sobre isso depois. Ou então, nunca mais vamos falar sobre pancadas, sobre coisa-ruim ou sobre esse lugar, certo? — Lisey vê a maneira como ele a está olhando e abranda o tom de voz. — Não é por sua causa, Scott... nem tudo é, entende? Isso é por minha causa. Aqui é lindo... — Ela olha ao redor. E estremece. — É lindo demais. Se eu passar muito tempo aqui, ou até muito tempo pensando sobre esse lugar, acho que a beleza dele me enlouqueceria. Então, se o nosso tempo aqui é curto, pela primeira vez na sua joça de vida, encurte você a história. Me diga como o enterrou.

Scott vira metade do corpo para o outro lado. A luz laranja do sol poente o delineia: flange da omoplata, dobra da cintura, curva da ná­dega, o longo e fundo arco de uma coxa. Ele toca o braço da cruz. Na grama alta, quase imperceptível, o cilindro de vidro da seringa hipodér­mica brilha como a ponta esquecida de um tesouro sem valor.

— Eu cobri ele com grama e depois voltei para casa. Fiquei quase uma semana sem conseguir voltar. Estava doente. Tive febre. Papai me dava mingau de aveia pela manhã e sopa quando voltava do trabalho. Fiquei com medo do fantasma de Paul, mas nunca vi ele. Aí melhorei e teimei em vir pra cá com a pá do Papai que ficava no barraco, mas ela não ia. Só eu. Pensei que os bicho, bichos, tinham comido ele, os risonhos e tal, mas ainda não tinham, então eu voltei e teimei em ir de novo, dessa vez com uma pá de brinquedo que achei na nossa caixa de brinquedos antiga no sótão. Ela foi e foi com ela que eu cavei a sepultu­ra, Lisey, com uma pá de plástico vermelha da caixa de areia que a gente tinha quando era muito neném.

O sol poente tinha começado a ficar rosa, apagando-se. Lisey colo­ca um braço em volta dele e o abraça. Os braços de Scott a envolvem e, por um ou dois segundos, ele esconde o rosto em seus cabelos.

— Você o amava tanto — diz ela.

— Ele era meu irmão — é o que ele responde, e aquilo é o suficiente.

Enquanto eles estão parados na penumbra cada vez mais espessa, ela vê algo, ou pensa que vê. Outro pedaço de madeira? É o que parece, outra ripa de caixote caída depois de onde a trilha abandona a colina co­berta de tremoceiros (cuja cor de alfazema começa a se tornar um roxo inexoravelmente mais escuro). Não, não é só um — são dois.

Será outra cruz?, ela se pergunta, uma que tenha se despedaçado?

— Scott? Tem alguma outra pessoa enterrada aqui?

— Hã? — Ele parece surpreso. — Não! Tem um cemitério, sim, mas não é aqui, é perto do... — Scott vê o que ela está olhando e dá uma risadinha. — Ah, uau! Isso não é uma cruz, é uma placa. Paul a fez bem na época das primeiras caças ao bool, quando ainda conseguia vir sozi­nho às vezes. Tinha esquecido completamente dessa placa velha! — Ele se liberta dela e dispara até lá. Desce correndo um pouco da trilha. Cor­re sob as árvores. Lisey não sabe ao certo se está gostando daquilo.

— Scott, está escurecendo. Você não acha melhor a gente ir embora?

— Daqui a pouco, babyluv, daqui a pouquinho. — Ele apanha uma das placas e a traz de volta para ela. Lisey consegue decifrar as letras, mas elas estão apagadas. Tem que aproximar bastante a ripa dos olhos para conseguir ler o que está escrito:

PARA O LAGO.

— Lago? — pergunta Lisey.

— É, lago — concorda ele. — Pool. Puma com bool, não sabia? — E, por incrível que pareça, ri. Porém, neste exato momento, de al­gum lugar nas profundezas do que ele chama de Floresta Mágica, os primeiros risonhos erguem suas vozes.

Apenas dois ou três, mas, ainda assim, o som é mais aterrorizante do que qualquer coisa que Lisey tenha ouvido na vida. Para ela, aquelas coisas não soam como hienas, elas soam como pessoas, loucos jogados nos recônditos mais fundos de algum manicômio do século XIX. Ela agarra o braço de Scott, cravando as unhas na sua pele, e lhe diz numa voz que mal reconhece como sua que quer voltar, que ele precisa levá-la de volta agora.

Fraco e distante, um sino toca.

— Certo — diz ele, atirando a placa na grama. Acima deles, uma corrente sinistra de ar balança as árvores adoráveis, fazendo-as suspirar e desprender um perfume que é mais forte do que o dos tremoceiros; enjoativo, quase nauseante. — Aqui não é mesmo um lugar seguro de­pois do anoitecer. O lago é seguro, e a praia... o litoral... talvez até o cemitério, mas...

Mais risonhos se juntam ao coro. Em uma questão de segundos, há dezenas deles. As vozes de alguns sobem em uma escala assimétrica e viram gritos de rachar que fazem Lisey ter vontade de gritar de volta. Então elas descem novamente, às vezes até se tornarem risadas guturais que parecem vir de dentro de um lamaçal.

— Scott, o que são essas coisas? — sussurra ela. Sobre o ombro dele, a lua é um balão de gás cheio. — Não parecem nem um pouco animais.

— Eu não sei. Eles correm com as quatro patas, mas às vezes... deixa pra lá. Nunca os vi de perto. Nenhum de nós dois viu.

— Às vezes eles o quê, Scott?

— Ficam de pé. Igual gente. Olham em volta. Não tem importân­cia. O que importa é voltarmos. Você quer voltar agora, certo?

— Claro!

— Então feche os olhos e visualize nosso quarto no Antlers. O melhor que puder. Vai me ajudar. Vai nos dar impulso.

Ela fecha os olhos e, por um instante terrível, não surge nada. En­tão consegue ver como a escrivaninha e as mesas ladeando a cama saem flutuando da escuridão quando a lua se desvencilhava das nuvens e isso traz de volta o papel de parede (rosas trepadeiras), o formato da cama e a ópera cômica das molas rangendo a cada vez que eles se mexiam. De repente, o som aterrorizante daquelas coisas rindo na

(Floresta Floresta Mágica)

floresta escura parece desaparecer. Os cheiros estão desaparecen­do, também, e parte dela está triste em partir daquele lugar, porém,

o que ela mais sente é alívio. Por seu corpo (é claro) e por sua mente (com toda certeza), mas, principalmente, por sua alma, sua joça de alma imortal, pois talvez pessoas como Scott Landon possam ir passear em lugares como Boo’ya Moon; no entanto, algo tão estranho e bizarro como aquilo não foi feito para pessoas comuns como ela, a não ser que esteja entre as capas de um livro ou dentro da escuridão segura de uma sala de cinema.

E eu só vi um pouco, pensa ela.

— Ótimo! — ele lhe diz, e Lisey ouve tanto o alívio quanto o pra­zer maravilhado em sua voz. — Lisey, você é craque... — nisso é como ele termina; porém, antes mesmo de ele completar, antes de soltá-la e de ela abrir os olhos, Lisey sabe

 

— Eu sabia que estávamos em casa — concluiu ela, abrindo os olhos. A intensidade da recordação é tão grande que, por um instante, ela esperou ver a tranquilidade sob as sombras do luar do quarto que eles dividiram por duas noites em New Hampshire 27 anos atrás. Ela se agarrara com tanta força à pá de prata que precisa obrigar seus dedos a se abrirem, um por um. Então, pousou o quadrado amarelo do regalo — incrustado de sangue, porém confortante — sobre o peito novamente.

E agora? Vai me dizer que, depois daquilo, depois de tudo aquilo, vocês se viraram para o lado e foram dormir?

Foi bem isso que aconteceu, sim. Ela estava ansiosa para começar a esquecer tudo aquilo, e Scott estava mais do que disposto a fazer isso. Ele tivera que juntar toda sua coragem para trazer o passado à tona para começo de conversa, então não era de espantar. No entanto, ela se lembrava de ter feito mais uma pergunta naquela noite, e de quase ter feito outra no dia seguinte, quando estavam voltando de carro para o Maine, antes de perceber que não havia necessidade. A pergunta que ela fez tinha a ver com algo que Scott havia dito logo antes de os risonhos começarem a gargalhar, espantando toda a curiosidade de sua mente. Ela queria saber o que Scott quis dizer quando falou: Quando ainda conseguia vir sozinho às vezes. Referindo-se a Paul.

Scott pareceu espantado.

— Há muitos anos eu não pensava nisso — disse ele —, mas, sim, ele conseguia ir sozinho. Era difícil para ele, do mesmo jeito que acertar a bola com o taco de beisebol era difícil para mim. Então, na maioria das vezes ele me deixava fazer. Acho que depois de um tempo ele perdeu o jeito completamente.

A pergunta que ela pensou em fazer no carro era sobre o lago para o qual a placa quebrada tinha apontado um dia. Era o mesmo sobre o qual ele sempre falava nas suas palestras? Lisey desistiu porque a per­gunta, no fim das contas, se respondia sozinha. Suas platéias poderiam acreditar que o lago dos mitos, o lago da linguagem (em que todos nós vamos beber, nadar, ou talvez pegar um peixinho) era uma metáfora; mas ela sabia a verdade. Havia um lago de verdade. Ela sabia disso por­que o conhecia. Sabia porque tinha estado lá. Você chegava a ele através do Sweetheart Hill, pegando a trilha que leva até a Floresta Mágica; tem que passar pela Arvore do Sino e pelo cemitério para chegar lá.

— Eu fui buscá-lo — sussurrou ela, segurando a pá. Então falou, atropelando as palavras: — Oh, Deus, eu me lembro da lua — e teve um calafrio tão doloroso que se contorceu na cama.

A lua. Sim, ela. Uma lua laranja e sangrenta, delirante, tão subi­tamente distinta das luzes do norte e do frio de matar que Lisey havia acabado de deixar para trás. Aquela era uma lua sexy e louca de verão, sinistramente encantadora, que iluminava mais do que ela gostaria a fissura rochosa que compunha o vale próximo ao lago. Agora, ela con­seguia vê-lo quase tão bem quanto antes, pois tinha cortado a cortina roxa, a havia rasgado com muita justiça, porém a memória tinha seus limites, e Lisey achava que a sua a havia levado o mais longe possível. Talvez ainda fosse um pouco além, tirando mais uma ou duas fotos da sua própria cobra de livros, mas não muito, e então ela teria mesmo que voltar até lá, até Boo’ya Moon.

A pergunta era: ela conseguiria?

Então, outra lhe veio à mente: E se agora ele fosse um dos amortalhados?

Por um instante, uma imagem lutou para se clarear na mente de Lisey. Ela viu fileiras de vultos silenciosos que poderiam ter sido cadáve­res envolvidos em mortalhas antiquadas. Porém, eles estavam de pé. E ela achou que estavam respirando.

Um arrepio atravessou seu corpo. Fez seu seio dilacerado doer ape­sar do Vicodin que ela havia mandado para dentro, porém não havia como impedi-lo até ele terminar seu caminho. Quando isso aconteceu, ela se viu capaz de encarar questões racionais novamente. A principal era se ela poderia ou não ir até aquele outro mundo sozinha... pois pre­cisava ir, com ou sem os amortalhados.

Scott conseguia ir sozinho e foi capaz de levar seu irmão Paul. Como adulto, conseguiu levar Lisey de dentro do Antlers. A questão mais importante é o que havia acontecido há 17 anos, naquela noite fria de janeiro de 1996.

— Ele não tinha partido completamente — murmurou ela. — Ele apertou minha mão. — Sim, e o pensamento que lhe passara pela cabeça então era que, em algum lugar, Scott a estava apertando com toda sua for­ça, mas isso significa que ele a levou? — Eu gritei com ele, também — Li­sey chegou a sorrir. — Disse que se ele queria voltar para casa, precisava me levar para onde estava... e sempre pensei que foi isso que ele fez...

Bobagem, pequena Lisey, você nunca nem pensou nisso. Ou pensou? Não até o dia de hoje, quando você ficou quase literalmente desmamada e teve que pensar. Então, já que está pensando a respeito, pense de verdade. Ele puxou você naquela noite? Puxou mesmo?

Ela estava prestes a concluir que era uma daquelas perguntas, tipo a do ovo e a galinha, para as quais não há resposta definitiva, quando se lembrou de Scott falando: Lisey, você é craque nisso!

Ela havia ido sozinha em 1996. Mesmo assim, Scott estava vivo e o apertão dele em sua mão, por mais fraco que tenha sido, foi suficien­te para lhe dizer que ele estava lá do outro lado, abrindo uma brecha para ela...

— Ainda está lá — disse ela, agarrando novamente o cabo da pá. — A brecha ainda está lá, tem que estar, porque ele deixou isso tudo pronto. Deixou uma joça de uma caça ao bool para me preparar. En­tão, ontem de manhã, na cama com Amanda... era você, Scott, tenho certeza de que era. Você disse que um bool estava por vir... e um prê­mio... e uma bebida, você disse... e me chamou de babyluv. Então, onde está você agora? Onde está agora que eu preciso de você para me levar para lá?

Nenhuma resposta além do tique-taque do relógio na parede.

Feche os olhos. Ele também disse isso. Visualize. O melhor que puder. Vai ajudar. Lisey, você é craque nisso.

— É melhor que eu seja — disse ela para o quarto vazio, ensolara­do, ausente de Scott. — Oh, querido, é melhor mesmo que eu seja.

Se Scott Landon tinha um defeito fatal, este teria sido o de pensar demais, porém isso nunca foi um problema para Lisey. Se ela tivesse parado para pensar sobre a situação naquele dia quente em Nashville, Scott quase certamente teria morrido. Em vez disso, ela apenas agiu, salvando sua vida com a pá agora em suas mãos.

Eu teimei em vir pra cá com a pá do Papai que ficava no barraco, mas ela não ia.

Será que a pá de prata de Nashville iria?

Lisey achou que sim. E isso era bom. Ela a queria consigo.

— Amigas até o fim — sussurrou ela, fechando os olhos.

Ela estava invocando suas lembranças de Boo’ya Moon, agora mui­to vivas, quando uma pergunta perturbadora quebrou sua concentração cada vez mais profunda: outro pensamento importuno para distraí-la.

Que horas são lá, pequena Lisey? Não quero saber a hora exata, não é isso, mas é dia ou noite? Scott sempre sabia — ele dizia que sim, pelo menos —, mas você não é Scott.

Não, mas ela se lembrava de uma de suas músicas de rock-and-roll favoritas: Night Time Is the Right Time.* Em Boo’ya Moon, a noite era a hora errada, quando os cheiros ficavam podres e a comida poderia envenená-lo. A noite era a hora em que os risonhos saíam — coisas que corriam com as quatro patas e às vezes ficavam de pé feito gente e olha­vam em volta. E havia outras coisas, coisas piores.

Coisas como o garoto espichado de Scott.

Está muito perto, querida. Foi o que ele lhe falou, deitado sob o sol quente de Nashville no dia em que ela teve certeza de que ele estava morrendo. Dá para ouvi-lo se alimentando. Lisey tentou lhe dizer que não sabia do que ele estava falando; então ele a beliscou, falando para ela não insultar sua inteligência. Ou a dela.

Porque eu estive lá. Porque ouvi os risonhos e acreditei nele quando ele disse que havia coisas piores à espreita. E era verdade. Eu vi as coisas sobre as quais ele falou. Em 1996, quando fui até Booya Moon para trazê-lo de volta para casa. Só o lado dele, mas foi o suficiente.

— Era imenso — murmurou Lisey, e ficou horrorizada ao perceber que realmente acreditava que aquilo era verdade. Era noite em 1996. Quando ela saiu do frio quarto de hóspedes para o outro mundo de Scott. Ela descera a trilha, entrando na floresta, na Floresta Mágica, e...

Um motor despertou com uma explosão nas cercanias. Lisey abriu os olhos depressa e quase gritou. Então voltou a relaxar, pouco a pouco. Era apenas Herb Galloway, ou talvez o filho dos Luttrell que Herb às vezes contratava, cortando a grama do seu vizinho. Aquilo era completamente diferente da noite de janeiro de 1996, com seu frio de rachar, quando ela encontrou Scott no quarto de hóspedes, lá dentro e ainda respirando, embora tivesse partido em todos os demais aspectos que importavam.

Ela pensou: Mesmo que eu pudesse, não conseguiria nessas condições, com todo esse barulho.

Ela pensou: O mundo é demais para nós.

Ela pensou: Quem escreveu isto? E, conforme acontecia com tanta frequência, este pensamento veio arrastando seu doloroso vagãozinho vermelho: Scott saberia.

Sim, Scott saberia. Lisey pensou nele em todos os quartos de motel, inclinado sobre uma máquina de escrever portátil (SCOTT E LISEY, JUVENTUDE!) e, então, mais tarde, com o rosto iluminado pelo brilho do laptop. Às vezes com um cigarro fumegando do seu lado em um cin­zeiro, às vezes com um drinque, sempre com a mecha de cabelo caindo desapercebida sobre a testa. Pensou nele deitado em cima dela naquela cama, perseguindo-a a toda velocidade por toda aquela casa horrorosa em Bremen (SCOTT E LISEY NA ALEMANHA!), os dois nus e gar­galhando, com tesão, mas não exatamente felizes, enquanto caminhões e carros chacoalhavam sem parar, fazendo o contorno no fim da rua. Ela pensou nos braços dele ao seu redor, em todas as vezes que os braços dele estavam ao seu redor, e no cheiro dele, no jeito que a bochecha dele raspava como uma lixa a sua, e pensou que venderia a alma, sim, sua joça de alma imortal, se pudesse ao menos ouvido bater na porta no fim do corredor e depois gritar: Lisey, cheguei. Tudo na mesma?

Cale-se e feche os olhos.

A voz era a dela, mas era quase como se fosse a dele, uma ótima imitação, então Lisey fechou os olhos e sentiu as primeiras lágrimas mornas, quase reconfortantes, escaparem pela tela dos seus cílios. Ha­via muitas coisas que ninguém contava sobre a morte, descobriu ela, e umas das principais era quanto tempo as pessoas que você mais amava levavam para morrer no seu coração. É um segredo, pensou Lisey, e é melhor que seja assim, pois quem iria querer se aproximar de outra pessoa se soubesse como a parte de deixá-la para trás é difícil? No seu coração, elas só morrem aos poucos, não é mesmo? Como uma planta quando você vai viajar e se esquece de pedir para um vizinho dar um pulinho na sua casa de vez em quando com o velho regador, e é tão triste...

Ela não queria pensar sobre aquela tristeza, e tampouco queria pen­sar sobre seu seio ferido, no qual a dor começava a brotar novamente. Em vez disso, voltou seus pensamentos para Boo’ya Moon. Lembrou-se de como tinha sido completamente deslumbrante e maravilhoso sair da cruel noite abaixo de zero do Maine para aquele lugar tropical num pis­car de olhos. Na textura de certa forma triste do ar e nos aromas sedosos de frangipana e buganvília. Recordou a tremenda luz do sol poente e da lua que nascia e como, ao longe, um sino tocava. Aquele mesmo sino.

Lisey percebeu que o som do cortador de grama no jardim dos Galloway já lhe parecia estranhamente distante. Assim como o balido de uma motocicleta passando. Algo estava acontecendo, tinha quase certeza. Um olho-d’água serpeava, um poço se enchia, uma roda girava. Talvez o mundo não fosse demais para ela, afinal.

Mas e se você chegar lá e for noite? Supondo que o que está sentindo não seja produto de uma mistura de narcóticos com auto-sugestão, o que você vai fazer se chegar lá e for noite, quando as coisas más saem? Coisas como o garoto espichado de Scott?

Então eu volto para cá.

Se der tempo, você quer dizer.

Sim, é isso que eu quero dizer, se der t...

Súbita e espantosamente, a luz que atravessava as pálpebras dos seus olhos fechados passou de vermelha para um roxo escuro que era quase preto. Era como se um véu tivesse sido retirado. Mas um véu não daria conta da gloriosa mistura de cheiros que encheu de repente seu nariz: o perfume misturado de todas aquelas flores. Tampouco daria conta da gra­ma que ela passou a sentir alfinetando suas panturrilhas e costas nuas.

Ela conseguiu. Chegou até lá. Atravessou.

— Não — disse Lisey com os olhos ainda fechados. Porém, aquilo saiu fraco, pouco mais do que um arremedo de protesto.

Você sabe que sim, Lisey, sussurrou a voz de Scott. E o tempo é curto. ESPANE, babyluv.

E, por saber que a voz tinha toda a razão — o tempo era de fato curto —, Lisey abriu os olhos e se sentou no refúgio da infância do seu talentoso marido.

Lisey se sentou em Boo’ya Moon.

 

Não era dia nem noite e, agora que estava lá, isso não a surpreendia. Tinha chegado logo depois do crepúsculo nas duas viagens anteriores; não era de espantar que o horário fosse o mesmo novamente.

O sol, de um laranja brilhante, estava parado sobre o horizonte no final de um aparentemente interminável campo de tremoceiros. Olhan­do para a direção oposta, Lisey conseguia ver o primeiro arco nascente da lua — muito maior do que a maior lua cheia que havia visto na vida.

Esta não é a nossa lua, é? Como pode ser?

Uma brisa agitou as pontas suadas do seu cabelo e, em algum lugar não muito distante, aquele sino soou. Um som de que ela se lembrava, um sino de que ela se lembrava.

É melhor se apressar, você não acha?

Sem dúvida. O lago era seguro, pelo menos foi o que Scott disse, mas o caminho até lá passava pela Floresta Mágica, que não era. A dis­tância era curta, mas era melhor se apressar.

Ela subiu quase correndo a encosta até as árvores, procurando a cruz de Paul. A princípio, não conseguiu achá-la, então a viu caída de lado. Não havia tempo para ajeitar a cruz... mas ela o fez assim mesmo, pois era o que Scott teria feito. Largou a pá de prata por um instante (tinha conseguido vir com ela, e também com o quadrado amarelo bor­dado) para poder usar as duas mãos. O tempo deveria agir ali, pois a única palavra pintada a duras penas na cruz — PAUL — tinha virado pouco mais do que um fantasma.

Acho que eu a ajeitei da última vez também, pensou ela. Em 1996. E cheguei a pensar que gostaria de procurar pela seringa hipodérmica, mas não houve tempo.

Tampouco havia naquele instante. Esta era sua terceira viagem de verdade para Boo’ya Moon. A primeira não tinha sido tão ruim, pois ela estava com Scott e eles não foram além da placa quebrada que dizia PARA O LAGO antes de voltar ao quarto no Anders. Da segunda vez, no entanto, em 1996, ela teve que pegar a trilha que cruzava a Floresta Mágica sozi­nha. Não conseguia recordar que tipo de bravura ela deve ter invocado, sem saber quão longe ficava o lago ou o que encontraria ao chegar lá. Não que esta viagem não tivesse seu próprio leque de dificuldades. Ela estava nua da cintura para cima, com o seio esquerdo estraçalhado come­çando a latejar novamente, e só Deus sabia o que o cheiro do seu sangue poderia atrair. Bem, tarde demais para se preocupar com aquilo.

E se alguma coisa vier mesmo para cima de mim, pensou ela, pegan­do a pá pelo cabo de madeira curto, um dos risonhos, por exemplo, eu dou uma bordoada nela com o Infalível Mata-Maniacos da Pequena Lisey, Copyright 1988, Sem Patente, Todos os Direitos Reservados.

Em algum lugar mais adiante, aquele sino soou novamente. Des­calça, com o peito nu, suja de sangue, usando apenas um short jeans e carregando uma pá com uma colher de prata na mão direita, Lisey segue o som pela trilha que escurece depressa. O lago ficava naquela direção, certamente a menos de um quilômetro de distância. Lá era seguro mes­mo depois do anoitecer e ela poderia tirar as poucas roupas que ainda vestia e se lavar.

 

Escureceu muito rápido depois que ela se viu sob a cúpula de árvores. Lisey sentiu o impulso de se apressar mais do que nunca; porém, quan­do o vento fez o sino tocar novamente — já estava muito perto e ela sabia que ele estava pendurado em um galho por um pedaço de corda resistente —, ela parou, atingida por uma complexa sobreposição de recordações. Sabia que o sino estava pendurado por um pedaço de cor­da porque o havia visto na sua última viagem para lá, dez anos antes. No entanto, Scott o roubara muito antes disso, antes mesmo de eles se casarem. Ela sabia disso porque o ouvira em 1979. Mesmo naquela época ele lhe soara familiar, de um jeito desagradável. Desagradável porque ela odiava o som daquele sino muito antes de ele ter parado lá em Boo’ya Moon.

— E eu falei isso para ele — murmurou ela, trocando a pá de mão e penteando o cabelo para trás. O quadrado amarelo do regalo descan­sava sobre seu ombro. Em volta dela, as árvores adoráveis farfalhavam como vozes sussurrantes. — Ele não falou quase nada, mas acho que levou a sério.

Ela voltou a andar. A trilha desceu, então subiu até o topo de uma colina onde as árvores eram um pouco mais finas e uma luz vermelha brilhava através delas. Embora ainda não fosse exatamente o pôr do sol. Ótimo. E então o sino tocou, oscilando de um lado para outro o suficiente para produzir o mais leve retinir. Tempos atrás, ele ficava ao lado de uma caixa registradora no Pat’s Pizza & Café em Cleaves Mills. Não o tipo de sino no qual você bate com a palma da mão, o tipo dis­creto de saguão de hotel que faz um blém! e depois se cala, mas uma espécie de sino de prata de escola em miniatura, com um badalo que faz blim-blom pelo tempo que você quiser ficar balançando. E Chuckie G., o cozinheiro de plantão na maioria das noites durante o período de cerca de um ano em que Lisey foi garçonete no Pat's, adorava aquele sino. Às vezes, ela se lembrava de ter contado a Scott, ela ouvia aque­le blim-blom irritante nos seus sonhos, junto com as ordens gritadas, retumbantes, de Chuckie G: Pedido saindo, Lisey! Vamos, depressa! Tem gente com fome! Sim, ela havia contado a Scott, na cama, como odiava o sininho irritante de Chuckie G., deve ter sido na primavera de 1979, porque não foi muito depois disso que ele desapareceu. Ela nunca as­sociara Scott ao desaparecimento dele, nem mesmo quando o escutou na primeira vez que esteve ali — muitas coisas estranhas acontecendo então, muitas informações estranhas —, e ele nunca falou nada a res­peito. Na época, em 1996, enquanto o procurava, ela ouvira o sino de Chuckie G., perdido há tanto tempo, novamente e daquela vez o

(depressa gente com fome pedido saindo)

reconhecera pelo que era. E aquilo fazia todo um sentido maluco. Afinal de contas, Scott Landon tinha sido o homem que achava a Au­burn Novelty Shop o lugar mais engraçado do universo. Por que não teria achado uma ótima piada roubar o sino que tanto irritava sua na­morada e trazê-lo para Boo’ya Moon? E pendurá-lo benhaqui, ao lado da trilha, para o vento tocá-lo?

Havia sangue nele da última vez, a voz profunda da memória sus­surrou. Sangue em 1996.

Sim, e aquilo a assustara, porém ela havia seguido adiante assim mesmo... e o sangue não estava mais lá. O tempo que apagara o nome de Paul da cruz também tinha limpado o sangue do sino. E o pedaço de corda resistente com o qual Scott o havia pendurado 27 anos atrás (sem­pre considerando que o tempo fosse o mesmo lá) estava quase totalmente puído — em breve o sino cairia na trilha. Então a piada chegaria ao fim.

Neste momento, a intuição de Lisey se pronunciou com mais in­tensidade do que nunca, não em palavras, mas com uma imagem. Ela se viu largando a pá de prata ao pé da Árvore do Sino e o fez sem hesitação ou dúvida. Tampouco se perguntou por quê; ela parecia perfeita demais largada ao pé da árvore velha e retorcida. Sino de prata em cima, pá de prata embaixo. Quanto ao porquê de tamanha perfeição... precisaria se perguntar por que Boo’ya Moon existia, para começo de conversa. Ela havia achado que a pá serviria para a proteção dela desta vez. Pelo jeito, não. Lisey lançou um último olhar para ela (era o máximo de tempo que podia gastar) e seguiu adiante.

 

A trilha desceu novamente, conduzindo-a para outra parte da floresta. Ali, a luz vermelha e forte do fim de tarde havia se reduzido a um laranja opaco e os primeiros risonhos acordaram em algum lugar mais adiante, nas regiões escuras da mata, suas vozes terrivelmente humanas subindo aquela escala louca e quebradiça e fazendo seus braços encherem-se de arrepios.

Depressa, babyluv.

— Tudo bem, eu sei.

Então, uma segunda risada se juntou à primeira, e, embora sentisse mais arrepios subirem pelas suas costas, Lisey pensou que estava bem. Logo adiante, a trilha contornava uma enorme pedra cinza da qual ela se lembrava com clareza. Além dela, ficava um profundo vale rochoso — oh, sim, profundo e prefeitamente eita-norme — e o lago. No lago, ela estaria segura. Era assustador lá, mas também era seguro. Ele...

Lisey teve uma súbita e estranha certeza de que algo a perseguia, espe­rando que a última luz do dia se esvaísse antes de fazer seu movimento.

Sua investida.

Com o coração batendo tão forte que machucava seu seio mutila­do, ela se esquivou para trás da massa cinza da rocha proeminente. E lá estava o lago, estendendo-se abaixo como um sonho tornado realidade. À medida que olhava para aquele fantasmagórico espelho brilhante, as últimas recordações se encaixaram, e se lembrar delas era como voltar para casa.

 

Ela contorna a pedra cinza e se esquece completamente da mancha seca de sangue no sino, que tanto a incomodou. Esquece das luzes berrantes do norte, tempestuosas, frias e reluzentes que deixou para trás. Por um instante, se esquece até mesmo de Scott, a quem veio procurar e trazer de volta... sempre considerando que ele queira voltar. Ela baixa os olhos para o fantasmagórico espelho brilhante do lago e se esquece de todo o resto. Porque ele é lindo. E, embora nunca tenha estado ali antes, é como voltar para casa. Mesmo quando uma daquelas coisas começa a rir ela não sente medo, pois sabe que aquele é um lugar seguro. Não precisa que ninguém lhe diga isso; ela sabe por instinto, assim como sabe que há anos Scott fala­va sobre aquele lugar em suas palestras e escrevia sobre ele em seus livros.

Também sabe que aquele é um lugar triste.

É o lago em que todos nós vamos beber, nadar, e em cujas margens pegar um peixinho; é também o lago que algumas almas destemidas singram em seus frágeis barcos de madeira atrás dos peixes grandes. É o lago da vida, a taça da imaginação, e ela imagina que pessoas diferentes vejam versões diferentes dele, embora duas coisas nunca mudem: ele fica sempre cerca de um quilômetro e meio dentro da Floresta Mágica e é sempre triste. Porque aquele lugar não diz respeito apenas à imagina­ção. É também um lugar

(de renúncia)

de espera. No qual você apenas se senta... e observa aquelas águas oní­ricas... e espera. Está chegando, você pensa. Está quase chegando, tenho certeza que sim. Porém, não sabe bem do que se trata e assim se passam os anos.

Como você pode saber disso, Lisey?

A lua lhe contou, ela imagina; e as luzes do norte que lhe queimam os olhos com seu brilho frio; o cheiro terroso e doce de rosas e frangipa­na no Sweetheart Hill; acima de tudo, os olhos de Scott lhe contaram enquanto ele lutava para se agarrar, se agarrar, se agarrar. Para não ter que pegar a trilha que levava àquele local.

Mais vozes gargalhantes surgem nos recônditos mais profundos da floresta e então algo ruge, silenciando-as momentaneamente. Atrás dela, o sino toca, voltando a se calar em seguida.

Tenho que me apressar.

Sim, embora perceba que a pressa seja a antítese daquele lugar. Precisam voltar para a casa deles na Sugar Top o mais rápido possível, e não pelo perigo de animais selvagens, ogros, trolls e

(vortos e símbios)

outras criaturas estranhas das profundezas da Floresta Mágica, onde é sempre escuro como um calabouço e onde o sol nunca brilha, mas porque quanto mais Scott ficar ali, menor será a probabilidade de que ela consiga levá-lo de volta. Além disso...

Lisey imagina como seria ver a lua ardendo como uma pedra fria na superfície parada do lago abaixo — e pensa: — Posso ficar fascinada.

Sim.

Antigos degraus de madeira descem naquela parte da encosta. Ao lado de cada um deles há um pilar de pedra com uma palavra gravada. Ela consegue lê-las em Boo’ya Moon, mas sabe que não significarão nada quando estiver de volta em casa; sua memória tampouco irá além da mais simples correspondência: XT significa pão.

A escada termina em uma rampa íngreme que desce à sua esquer­da, desembocando, por fim, ao nível do chão. Lá, uma praia de areia branca e fina brilha sob a luz que enfraquece rapidamente. Acima dela, esculpidos em fileira em um rochedo, há talvez duzentos bancos longos e curvados de pedra que dão vista para o lago. Talvez haja espaço para mil ou talvez 2 mil pessoas se elas se sentarem lado a lado, mas não é o caso. Ela imagina que não deva haver mais de cinqüenta ou sessenta ao todo, e a maioria delas está escondida sob panos diáfanos que parecem mortalhas. Porém, se estão mortas, como podem estar sentadas? Será que ela quer saber a resposta?

Cerca de duas dúzias delas, ou mais, estão espalhadas pela praia. E algumas — seis ou oito — estão na água. Estas flutuam em silêncio. Quando Lisey chega ao fim da escada e começa a andar em direção à areia, seus pés seguindo com facilidade o sulco de um caminho que muitos pés trilharam antes dela, ela vê uma mulher se inclinar e co­meçar a lavar o rosto. Ela o faz com os gestos lentos de alguém em um sonho, e Lisey recorda aquele dia em Nashville, como tudo parecia em câmera lenta quando percebeu que o Loiraço pretendia atirar no seu marido. Aquilo também parecia um sonho, mas não era.

Então ela vê Scott. Ele está sentado em um banco de pedra nove ou dez fileiras acima do lago. Ainda está com a trouxa da Mãezinha Querida, embora não esteja enrolado nela por fazer calor demais ali. Está apenas jogada por cima dos seus joelhos, com o resto amontoado sobre os pés. Ela não sabe como a trouxa pode estar tanto ali quanto na casa em View ao mesmo tempo e pensa: Talvez seja porque algumas coisas são especiais. Assim como Scott é especial. E ela? Alguma versão de Lisey Landon ainda está lá na casa da Sugar Top Hill? Ela imagina que não. Não acha que seja especial, não ela, não a pequena Lisey. Ela acha que, para o bem ou para o mal, ela está totalmente ali. Ou tinha partido por completo, dependendo do mundo a que você se refira. Batch351

Ela inspira fundo, pretendendo chamar o nome dele, mas desiste. Uma intuição poderosa a impede.

Shhhh, pensa. Shhhh, pequena Lisey, agora

 

Agora você precisa ficar quieta, pensou ela, como havia pensado em 1996. Tudo era como antes, ela apenas enxergava um pouco melhor por­que tinha vindo um pouco mais cedo; as sombras no vale pedregoso que circundava o lago estavam apenas começando a se juntar. A água tinha quase o formato de um quadril de mulher. Na extremidade da praia, onde os quadris adentravam a cintura, havia um triângulo de areia branca e fi­na. Sobre ela, paradas distantes umas das outras, havia quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, olhando extasiados para o lago. Na água, havia outras seis delas. Nenhuma estava nadando. A maioria estava imersa apenas até as panturrilhas; um homem estava com água até a cintura. Li­sey gostaria de ter conseguido ver a expressão no rosto deste último, mas ainda estava muito distante. Atrás das pessoas na água e das que estavam paradas na praia — aqueles que ainda não tinham encontrado coragem o bastante para se molhar, Lisey tinha certeza — ficava o promontório no qual dezenas ou talvez centenas de bancos de pedra haviam sido esculpi­dos. Neles, bem espalhadas, sentavam-se cerca de duzentas pessoas. Ela se lembrava de apenas cinqüenta ou sessenta, porém naquele fim de tarde sem dúvida havia mais do que isso. No entanto, para cada pessoa que via, outras quatro, no mínimo, estavam envolvidas naqueles

(sudários)

panos horríveis.

Há um cemitério também. Lembra-se?

— Sim — sussurrou Lisey. Seu peito estava doendo muito nova­mente, mas ela olhou para o lago e se lembrou da mão dilacerada de Scott. Também se lembrou de como ele se recuperou rápido do tiro no peito que levou do louco. Ah, os médicos ficaram assombrados com aquilo. Havia um remédio melhor do que Vicodin para ela, não muito longe dali.

— Sim — disse ela novamente, começando a descer o caminho que levava à praia, desta vez com apenas uma triste diferença: não havia Scott Landon nenhum sentado em um banco lá embaixo.

Logo antes de o declive terminar na praia, ela viu outra trilha que quebrava para a sua esquerda, afastando-se do lago. Lisey foi novamente soterrada por recordações assim que viu a lua

 

Ela vê a lua se erguendo através de uma espécie de fenda na enorme formação rochosa de granito que circunda o lago. A lua está inchada e gigantesca, como quando seu futuro marido a levou para Boo’ya Moon do quarto que dividiam no Anders; porém, na extensa clareira para a qual aquela fenda conduz, sua face infecta, laranja-avermelhada, é par­tida em segmentos recortados pelas silhuetas de árvores e cruzes. Tantas cruzes. Lisey está olhando para o que poderia quase ser um cemitério rústico do interior. Como a cruz que Scott fez para seu irmão Paul, aquelas parecem de madeira e, embora algumas sejam bem grandes e outras poucas estejam enfeitadas, todas parecem feitas à mão e muitas estão caindo aos pedaços. Há também lápides arredondadas, e algu­mas delas talvez sejam de pedra, mas, na escuridão crescente, Lisey não consegue saber ao certo. O luar que vem de trás mais atrapalha do que ajuda, pois deixa tudo no cemitério envolto em sombras.

Se existe um cemitério aqui, por que ele enterrou Paul lá atrás? Será que foi porque ele morreu com a coisa ruim?

Ela não sabe e nem se importa. O que lhe importa é Scott. Ele está sentado em um daqueles bancos como um espectador em um evento esportivo com pouco público e, se ela pretende fazer algo, é melhor começar logo.

— Não pare de mexer os pauzinhos — teria dito Mãezinha Que­rida; aquela era uma das que ela havia pescado do lago.

Lisey deixa o cemitério e suas cruzes toscas para trás. Atravessa a praia na direção dos bancos de pedra onde seu marido está sentado. A areia é firme e pinica um pouco. Senti-la contra a sola dos pés e os cal­canhares a fez notar que está descalça. Ainda está com a camisola e com as várias roupas de baixo, mas suas pantufas não a acompanharam. A sensação da areia é desanimadora e agradável ao mesmo tempo. É tam­bém estranhamente familiar e, quando chega ao primeiro dos bancos de pedra, Lisey liga os pontos. Quando criança, costumava ter um sonho recorrente no qual zunia pela casa em um tapete mágico, invisível para todas as outras pessoas. Ela acordava desse sonho agitada, aterrorizada e encharcada de suor até a raiz dos cabelos. Aquela areia dá a mesma sen­sação que o tapete mágico... como se, caso dobrasse os joelhos e saltasse para cima, ela fosse sair voando em vez de pular.

Eu daria um rasante por cima daquele lago como uma libélula, tal­vez arrastando os dedos dos pés na água... em direção ao lugar onde ele deságua em um regato... seguindo até onde o regato se alarga até virar um rio... voando baixo... sentindo o cheiro da umidade se desprender da água, atravessando as pequenas névoas que sobem no ar como véus até finalmente alcançar o mar... e então seguindo além... sim, além e além...

Arrancar-se desta visão poderosa é uma das coisas mais difíceis que Lisey já fez. É como tentar se levantar após dias de trabalho duro e ape­nas algumas horas de um sono pesado e maravilhosamente sossegado. Ela descobre que já não está na areia, mas sentada em um banco na terceira fileira acima da pequena praia, olhando para a água com o quei­xo apoiado na palma da mão. E percebe que o luar está perdendo seu brilho laranja. Assumiu um tom amanteigado e logo ficará prateado.

Quanto tempo eu fiquei aqui?, ela se pergunta, aflita. Imagina que não tenha sido tanto, algo entre 15 minutos e meia hora, porém até isso é tempo demais... embora certamente já compreenda como aquele lugar funciona, não é mesmo?

Lisey sente seus olhos serem atraídos de volta para o lago — para a paz do lago, onde agora apenas duas ou três pessoas (uma delas é uma mulher com um embrulho grande ou uma criança pequena nos braços) flutuam no anoitecer cada vez mais denso — e se força a desviá-los para os horizontes rochosos que circulam aquele lugar e as estrelas que obser­vam através do azul-escuro sobre o granito e das poucas árvores que se desenham lá em cima. Quando começa a se sentir um pouco como ela mesma novamente, Lisey se levanta, dá as costas para a água e localiza Scott mais uma vez. É fácil. A trouxa amarela só falta gritar, mesmo na escuridão crescente.

Lisey vai até ele, subindo de uma fileira para outra, como se estives­se em um estádio de futebol... ela se afasta de uma das criaturas amorta­lhadas... porém está perto o suficiente para notar a forma muito humana sob os panos diáfanos; órbitas ocas e uma das mãos aparecendo.

É a mão de uma mulher, com esmalte vermelho descascado nas unhas.

Quando alcança Scott, seu coração está batendo forte e ela se sente um pouco sem fôlego, embora a subida não tenha sido difícil. Ao longe, os risonhos já começaram a gargalhar, subindo e descendo de tom ao ri­rem juntos de sua eterna piada. Vindo do caminho às suas costas, baixo mas ainda audível, ela escuta o retinir espasmódico do sino de Chuckie G. e pensa: Pedido saindo, Lisey! Vamos, depressa!

— Scott — murmura, mas Scott não olha para ela. Scott está olhando extasiado para o lago, onde uma ligeira névoa, um mero eflú­vio, começou a se erguer sob o luar. Lisey se permite apenas uma olha­dela naquela direção antes de fixar os olhos no marido novamente. Já havia aprendido a não olhar demais para o lago. Pelo menos era o que esperava. — Scott, está na hora de voltar para casa.

Nada. Absolutamente nenhuma resposta. Ela se lembra de protes­tar que ele não era louco, que escrever histórias não fazia dele um louco, e de Scott lhe dizendo: Espero que continue com essa sorte toda, pequena Lisey. Mas ela não continuou, continuou? Agora sabe muito mais. Paul Landon pegou a coisa ruim e surtou até quase se matar, acorrentado a uma viga no porão de uma casa de fazenda isolada. Seu irmão mais novo se casou e teve uma carreira inegavelmente brilhante, mas agora chegou a hora de pagar a conta.

Um catatônico comum, pensa Lisey, tremendo.

— Scott — murmura mais uma vez, quase diretamente no ouvido dele. Ela havia pegado as duas mãos do marido nas suas. Elas estão frias e macias, moles e flácidas. — Scott, se você estiver aí dentro e quiser voltar para casa, aperte minhas mãos.

Por um tempo interminável, não há nada além do som das coisas gargalhantes nas profundezas da floresta e, em algum lugar mais perto, do grito apavorante, quase feminino, de um pássaro. Então Lisey sente algo que é ou auto-sugestão ou o mais discreto espasmo dos seus dedos contra os dela.

Ela tenta pensar no que deve fazer em seguida, mas só consegue ter certeza do que não deve fazer: deixar a maré da noite se erguer ao redor deles, hipnotizando-a com o luar prateado que desce do céu ao mesmo tempo que a afoga com as sombras que sobem do chão. Aquele lugar é uma armadilha. Ela tem certeza de que qualquer pessoa que fique no lago por muito tempo verá que é impossível sair. Entende que, se você olhar para ele por um instante, conseguirá ver tudo que quiser. Amores perdidos, filhos mortos, chances desperdiçadas — tudo.

E sabe o que é mais impressionante sobre aquele lugar? Que não haja mais pessoas sentadas nos bancos de pedra. Que eles não estejam amontoados ombro a ombro como torcedores em uma joça de partida de futebol da Copa do Mundo.

Ela percebe algo se movendo com o rabo do olho e olha para o caminho que conduz da praia para a escadaria. Ela vê um homem cor­pulento usando calças brancas e uma camisa branca esvoaçante aberta na frente até o último botão. Um enorme talho vermelho desce pelo lado esquerdo do seu rosto. Seu cabelo cinza-escuro está de pé na parte de trás da sua cabeça estranhamente achatada. Ele olha em volta por um instante, então sai da trilha para a areia.

Do lado dela, falando com grande esforço, Scott diz:

— Acidente de carro.

O coração de Lisey dá um salto mortal no seu peito, mas ela tem o cuidado de não olhar para trás ou apertar as mãos dele com muita força, embora não consiga evitar um pequeno espasmo. Esforçando-se para manter um tom de voz normal, ela diz:

— Como você sabe?

Scott não responde. O homem corpulento com a camisa esvoa­çante lança mais um olhar desinteressado para as pessoas sentadas em silêncio nos bancos de pedra, então lhes dá as costas e entra no lago. Cachos prateados de névoa iluminada pelo luar erguem-se ao redor dele e Lisey tem que se esforçar novamente para desviar o olhar.

— Scott, como você sabe?

Ele dá de ombros. Seus ombros também parecem pesar uma tonelada — pelo menos é essa a impressão que ela tem —, mas ele consegue falar:

— Telepatia, imagino.

— Ele vai ficar bom agora?

Faz-se uma longa pausa. Assim que ela pensa que ele não vai res­ponder, Scott diz:

— Talvez. Ele está... é fundo... aqui. — Scott toca a própria cabe­ça, Lisey supõe que é para indicar algum tipo de dano cerebral. — Às vezes as coisas simplesmente... vão longe demais.

— Então eles vêm e se sentam aqui? Se enrolam nesses lençóis?

Scott não diz nada. O medo de Lisey agora é perder o pouco dele que encontrou. Não precisa que ninguém lhe diga como isso é fácil de acontecer; ela sente. Cada nervo de seu corpo sabe disso.

— Scott, eu acho que você quer voltar. Acho que é por isso que segurou tanto as pontas durante todo o dezembro passado. E acho que é por isso que carregou a trouxa. É difícil não vê-la, mesmo no escuro.

Ele olha para baixo, como se a visse pela primeira vez, então chega a sorrir um pouco.

— Você está sempre... me salvando, Lisey — diz.

— Não sei do que você está...

— Nashville. Eu estava indo pro buraco. — A cada palavra, ele parece ganhar vida. Pela primeira vez, ela se permite sentir esperança de verdade. — Eu estava perdido na escuridão e você me encontrou. Eu estava com calor, com tanto calor, e você me deu gelo. Lembra?

Ela se lembra da outra Lisa

(Derramei metade da merda da Coca voltando para cá)

e de como a tremedeira de Scott parou de repente quando ela en­fiou uma lasca de gelo na sua língua cheia de sangue. Ela se lembra da água cor de Coca-cola pingando das sobrancelhas dele. Ela se lembra de tudo.

— É claro que me lembro. Agora vamos sair daqui.

Ele balança a cabeça.

— É difícil demais. Vá você, Lisey.

— Quer que eu vá sem você? — Ela pisca os olhos furiosamente, percebendo que começou a chorar apenas quando os sente arder.

— Não vai ser difícil... é só fazer igual àquela vez em New Hamp­shire. — Ele fala com paciência, porém ainda muito devagar, como se cada palavra fosse um grande peso, e não a está entendendo de propó­sito. Ela tem quase certeza disso. — Feche os olhos... se concentre no lugar de onde veio... visualize... e é para lá que você vai voltar.

— Sem você? — repete ela com indignação e, abaixo deles, lenta­mente, como um homem se mexendo debaixo d’água, um sujeito de camisa de flanela vermelha se vira para encará-los.

Scott diz:

— Shhhh, Lisey. Aqui você tem que ficar quieta.

— E se eu não quiser ficar? Isto não é uma joça de biblioteca, Scott!

Nas profundezas da Floresta Mágica os risonhos uivam como se aquilo fosse a coisa mais engraçada que ouviram na vida, uma piada de rolar de rir, digna da Auburn Novelty Shop. De dentro do lago vem um solitário barulho de água espirrando. Lisey olha para lá e vê que o homem corpulento foi... bem, para algum outro lugar. Ela decide que pouco se importa se ele foi para debaixo d’água ou para a Dimensão X; o negócio dela agora é com seu marido. Ele está certo, ela o está sempre salvando, pode chamada de Cavalaria do Exército Americano. E, tudo bem, ela já sabia que o lado prático da vida não seria exatamente a prio­ridade de Scott quando se casou com ele, mas tem o direito de esperar uma ajudinha, não é?

O olhar dele voltou para a água. Ela imagina que, quando a noite chegar e a lua começar a brilhar como uma lanterna submersa, o per­derá de vez. Isso a assusta e a enfurece. Ela se levanta e puxa a trouxa da Mãezinha Querida. Afinal, aquilo pertence à parte dela da família e, se aquilo é para ser o divórcio deles, ela a pegará de volta — inteira —, mesmo se isso o magoar. Principalmente se o magoar.

Scott a encara com uma expressão de surpresa sonolenta que a deixa mais furiosa ainda.

— O.k. — diz ela, falando com uma tranquilidade frágil. É um tom estranho a ela e, ao que parece, àquele lugar também. Várias pessoas olham para trás, claramente incomodadas e, talvez, irritadas. Bem, elas que se danem junto com os vários cavalos (ou carros fúnebres, ou ambu­lâncias) que as trouxeram até lá. — Você quer ficar aqui e comer alface pela raiz, ou sei lá como se diz? Ótimo. Eu vou voltar pela trilha...

E, pela primeira vez, ela vê uma emoção forte no rosto de Scott. Medo.

— Lisey, não! — diz ele. — Sai fazendo boom daqui! Você não pode ir pela trilha! Está muito tarde, quase noite!

— Shhhh!— faz alguém.

Certo. Ela vai calar a boca. Passando a trouxa amarela mais para cima dos seus braços, Lisey começa a descer de volta os degraus. A dois bancos do chão, ela arrisca olhar para trás. Parte dela tem certeza de que ele a seguirá; afinal de contas, estamos falando de Scott. Por mais estra­nho que aquele lugar seja, ele ainda é seu marido, ainda é seu amante. A idéia do divórcio passou pela sua cabeça, mas sem dúvida é absurda, uma coisa que as outras pessoas podem fazer, mas não Scott e Lisey. Ele não vai deixá-la ir embora sozinha. Porém, quando ela olha por sobre o ombro, ele está sentado lá com sua camiseta branca e calça de moletom verde, com os joelhos unidos e agarrando as próprias mãos com força, como se estivesse sentindo frio mesmo ali, onde o clima é tão tropical.

Ele não está vindo e, pela primeira vez, Lisey se permite compreender que talvez seja porque não consegue. Se for assim, suas escolhas se redu­zem a duas: ficar ali com ele ou ir para casa sozinha.

Não, existe uma terceira. Posso blefar. Apostar todas as fichas, como se fala. Raspar o cofre. Então, vamos, Scott. Se a trilha é mesmo perigosa, tire sua bunda daí e me impeça de pegá-la.

Ela sente vontade de olhar para trás ao atravessar a praia, mas fazê-­lo seria demonstrar fraqueza. Os risonhos já estão por perto, o que sig­nifica que qualquer outra coisa que esteja zanzando nos arredores do caminho de volta para Sweetheart Hill também está. A escuridão será total debaixo das árvores agora e ela imagina que terá aquela sensação de que algo a está perseguindo antes de chegar longe; aquela sensação de algo se aproximando. Está muito perto, querida, disse-lhe Scott naquele dia em Nashville, deitado no asfalto fervente, sangrando pelo pulmão e perto da morte. E, quando ela tentou lhe dizer que não sabia do que ele estava falando, ele lhe disse para não insultar sua inteligência.

Ou a dela.

Dane-se. Vou lidar com o que quer que esteja na floresta quando — e se — precisar. Tudo que sei agora é que a Lisey de Dandy Debusher final­mente engatilhou até o fim. Este ato misterioso que Scott dizia ser impossí­vel de definir porque mudava de acordo com a situação. Agora é pra valer — ESPANE, babyluv — e, sabe de uma coisa? A sensação é ótima.

Ela começa a subir o caminho que leva aos degraus e atrás dela

 

— Ele me chamou — murmurou Lisey.

Uma das mulheres que estavam paradas na beira do lago agora se encontrava imersa até os joelhos naquela água parada, olhando sonha­doramente para o horizonte. Sua companheira se virou para Lisey, as sobrancelhas unidas em uma carranca de reprovação. A princípio, Lisey não entendeu, mas depois, sim. As pessoas não gostavam que você falas­se ali, aquilo não tinha mudado. Ela imaginava que, em Boo’ya Moon, poucas coisas mudavam.

Ela assentiu, como se a mulher carrancuda tivesse pedido uma comprovação.

— Meu marido me chamou pelo nome, tentou me impedir. Só Deus sabe o que isso lhe custou, mas ele fez isso.

A mulher na praia — seus cabelos eram loiros, mas pretos nas raí­zes, como se precisassem de um retoque — disse:

— Fique... quieta, por favor. Eu preciso... pensar.

Lisey assentiu novamente — por ela, tudo bem, embora duvidasse que a loira estivesse pensando tanto quanto acreditava — e entrou na água. Ela achou que estaria fria, mas, na verdade, estava quase quente. O calor subiu-lhe as pernas e fez seu sexo formigar de um jeito que não formigava havia muito. Ela seguiu adiante, mas a água não foi além da sua cintura. Deu mais meia dúzia de passos, olhou em volta, viu que es­tava cerca de 10 metros mais longe do que o mais avançado dos banhis­tas e se lembrou que comida boa ficava ruim depois do anoitecer em Boo’ya Moon. Será que a água também ficava ruim? Mesmo que não ficasse, coisas perigosas não poderiam aparecer nela como apareciam na floresta? Tubarões de lagoa,* por assim dizer? E, se fosse o caso, ela não poderia estar longe demais para voltar antes de um deles decidir que o jantar estava na mesa?

Aqui é terreno seguro.

Só que aquilo não era terreno, era água, e ela quis desesperadamen­te chapinhar de volta para a praia antes que algum submarino assassino cheio de dentes arrancasse uma de suas pernas. Lisey lutou contra o medo. Tinha vindo de muito longe, não só uma vez, mas duas, seu seio doía como o diabo e, por Deus, iria conseguir o que veio buscar.

Ela respirou fundo e então, sem saber o que esperar, ajoelhou-se lentamente no fundo arenoso, deixando a água cobrir seus seios — o que estava intacto e o que estava gravemente ferido. Por um instante, o seio esquerdo doeu mais do que nunca; ela achou que a dor arrancaria o topo da sua cabeça. Mas então

 

Ele chama seu nome mais uma vez, alto e em pânico:

— Lisey!

O chamado vara o silêncio onírico daquele lugar como uma flecha com fogo na ponta. Ela quase olha para trás, pois há agonia além de pânico naquele grito, mas algo bem no seu íntimo lhe diz que não deve fazê-lo. Se ela quiser ter alguma chance de salvado, não deve olhar para trás. Tinha feito sua aposta. Ela passa pelo cemitério, quase sem olhar para as cruzes brilhando sob a luz da lua alta no céu, sobe os degraus com as costas retas e a cabeça erguida, ainda segurando a trouxa da Mãezinha Querida bem no alto dos seus braços para não tropeçar nela, e sente um entusiasmo louco, do tipo que ela imagina que uma pessoa só sente quan­do coloca tudo o que tem — a casa o carro a conta bancária o cachorro à mercê de um rolar de dados. Acima dela (perto) está a enorme pedra cinza que marca o começo da trilha que leva de volta a Sweetheart Hill. O céu está repleto de estrelas estranhas e constelações desconhecidas. Em algum lugar, as luzes do norte estão queimando em longas cortinas coloridas. Lisey talvez nunca as veja novamente, mas acha que pode lidar com isso. Ela alcança o topo da escada, contorna sem hesitar a pedra e é neste instante que Scott a puxa para trás contra seu corpo. Seu cheiro familiar nunca lhe pareceu tão bom. Ao mesmo tempo, ela percebe que algo está se movendo à sua esquerda, se movendo rápido, não na trilha que conduz à colina de tremoceiros, mas bem ao lado dela.

— Shhhh, Lisey — sussurra Scott. Seus lábios estão tão perto que fazem cócegas na concha da sua orelha. — Pela sua vida e pela minha, agora você precisa ficar quieta.

É o garoto espichado de Scott. Ela não precisa que ele lhe diga isso. Passou anos sentindo a presença dele cercar sua vida, como algo vislum­brado em um espelho com o rabo do olho. Ou, digamos, um segredo grotesco escondido no porão. Agora o segredo está à solta. Nos vãos entre as árvores à sua esquerda, correndo no que parece uma velocidade de trem expresso, vê-se um grande e caudaloso rio de carne. Ele é liso em sua maioria, mas, em algumas partes, há pontos escuros ou crateras que podem ser manchas ou até, supõe ela (ela não quer supor, mas não consegue evitar), cânceres de pele. Sua mente começa a visualizar uma espécie de verme gigante, então se detém. A coisa atrás daquelas árvores não é um verme e, o que quer que seja, possui consciência, porque ela consegue senti-lo pensar. Seus pensamentos não são humanos, não são nem um pouco compreensíveis, mas há algo de terrivelmente fascinante no próprio caráter alienígena deles...

É a coisa ruim, pensa ela, gelada até os ossos. Os pensamentos dele são a coisa ruim e nada mais.

A idéia é terrível, mas também correta. Ela deixa um som escapar, algo entre um gritinho e um gemido. É um som baixo, mas ela vê ou sente que a coisa diminui de repente o ritmo de trem expresso do seu interminável avanço, que ele talvez a tenha ouvido.

Scott também percebe isso. O braço em volta dela, logo abaixo dos seus seios, a aperta um pouco mais. Novamente, seus lábios roçam a concha da sua orelha.

— Se a gente quiser ir para casa, tem que ser agora — murmura ele. Ele está totalmente com ela novamente, totalmente ali. Ela não sabe se é porque não está mais olhando para o lago ou se é porque está apavorado. Talvez os dois. — Está me entendendo?

Lisey assente. Seu próprio medo é tamanho que chega a ser inca­pacitante, e todo o entusiasmo por tê-lo de volta já desapareceu. Ele conviveu com aquilo a vida inteira? Se tiver convivido, como conseguiu? Porém, mesmo agora, no auge do seu horror, ela acha que sabe como. Duas coisas o mantiveram com os pés no chão e o salvaram do garoto espichado. Escrever foi uma delas. A outra tem uma cintura que ele pode envolver com os braços e um ouvido no qual ele pode sussurrar.

— Concentre-se, Lisey. Agora. Coloque o cérebro pra funcionar.

Ela fecha os olhos e vê o quarto de hóspedes da casa deles na Sugar Top Hill. Vê Scott sentado na cadeira de balanço. Vê a si mesma senta­da no chão gelado ao lado dele. Ele está agarrando sua mão com a mes­ma força com que ela agarra a dele. Atrás dos dois, os vidros cobertos de gelo da janela estão repletos de luzes fantásticas e oscilantes. A tevê está ligada e A Última Sessão de Cinema está passando mais uma vez. Os garotos estão na sinuca preto-e-branco de Sam, o Leão e Hank Williams está no jukebox cantando Jambalaya.

Por um instante, ela sente Boo’ya Moon tremular, mas então a mú­sica em sua mente — uma música que por um momento pareceu tão clara e alegre — desaparece. Lisey abre os olhos. Está desesperada para ver sua casa, mas a grande pedra cinza e a trilha que segue por entre as árvores adoráveis ainda estão lá. Aquelas estrelas estranhas ainda ardem no céu, a única diferença é que os risonhos estão calados, o farfalhar áspero dos arbustos parou e até o sino de Chuckie G. desistiu de tocar alucinadamente porque o garoto espichado parou para ouvir e o mundo inteiro parece segurar a respiração e fazer o mesmo. Está lá, a menos de 15 metros à esquerda; agora, Lisey consegue sentir até o cheiro dele. E como o cheiro de peidos velhos em banheiros de estrada, ou como o fedor de bourbon e fumaça de cigarro que às vezes você sente quando abre a porta e entra em um quarto de motel barato, ou como as fraldas mijadas da Mãezinha Querida quando ela estava velha e delirantemente senil. Ele parou atrás da fileira mais próxima de árvores adoráveis, inter­rompeu sua corrida pelo túnel das árvores e, bom Deus, eles não estão indo, não estão voltando, por algum motivo estão presos ali.

O sussurro de Scott agora é tão baixo que ele mal parece estar falan­do. Não fosse pela ligeira sensação dos lábios dele roçando a pele sensível do seu ouvido, ela poderia quase acreditar que aquilo era telepatia.

— É a trouxa, Lisey, às vezes algumas coisas passam para um lado mas não para o outro. Geralmente, coisas que podem ser dobradas. Não sei por quê, mas é assim. Sinto como se ela fosse uma âncora. Largue a trouxa.

Lisey abre os braços e a deixa cair. O som que ela faz não passa de um leve sussurro (como os argumentos contra a loucura caindo em algum po­rão definitivo), mas o garoto espichado o escuta. Ela sente uma mudança na cadência dos seus pensamentos inescrutáveis; sente a pressão hedionda do seu olhar insano. Quando uma das árvores se parte com um barulho explosivo de algo se despedaçando à medida que a coisa começa a se virar, ela fecha os olhos novamente e vê o quarto de hóspedes com mais clareza do que jamais veria outra coisa na vida, o vê com uma intensidade deses­peradora e através de uma perfeita lente de aumento de terror.

— Agora — murmura Scott, e a coisa mais extraordinária acon­tece. Ela sente o ar virar do avesso. De repente, Hank Williams está cantando Jambalaya. Ele está cantando

 

Ele estava cantando porque a tevê estava ligada. Ela conseguia se lem­brar disso com mais clareza do que de qualquer outra coisa em sua vida, e se perguntava como poderia ter se esquecido.

Está na hora de sair da Estrada da Memória, Lisey. Está na hora de ir para casa.

Todo mundo pra fora d’água, como se diz. Lisey tinha conseguido o que fora buscar; tinha conseguido enquanto estava presa naquela úl­tima recordação terrível do garoto espichado. Seu seio ainda doía, mas o latejar feroz tinha se reduzido a uma dor indistinta. Tinha se sentido pior quando adolescente, depois de passar um longo dia quente com um sutiã pequeno demais para ela. De onde estava ajoelhada com a água até o queixo conseguia ver que a lua, agora menor e quase totalmente pratea­da, havia se erguido para além de todas as árvores no cemitério, exceto pelas mais altas. E, então, um novo medo surgiu para incomodá-la: e se o garoto espichado voltasse? E se a tivesse ouvido pensando sobre ele e voltasse? Aquele era para ser um lugar seguro, e Lisey achava que era mesmo — seguro dos risonhos e das outras coisas grotescas que vivessem na Floresta Mágica, pelo menos —, mas imaginava que o garoto espi­chado poderia não estar sujeito a nenhuma das regras que mantinham as outras coisas longe dali. Ela imaginava que o garoto espichado fosse... diferente. O título de uma velha história de horror primeiro lhe veio à cabeça, depois ressoou na sua mente como um sino de ferro: “Oh Whis­tle and I’ll Come to You, My Lad.”* Em seguida, lhe ocorreu o título do único livro de Scott Landon que odiou: Demônios Vazios.

No entanto, antes que pudesse começar a voltar para a areia, antes mesmo de se levantar novamente, Lisey foi invadida por outra recorda­ção, muito mais recente. A de acordar na cama com sua irmã Amanda logo antes do amanhecer e descobrir que o passado e o presente haviam se embaralhado completamente. Pior ainda, Lisey chegara a acreditar que não estava na cama com sua irmã, e sim com seu falecido marido. E, de certa forma, era verdade. Pois, embora a coisa com ela na cama estivesse vestida com a camisola de Amanda e tivesse falado com a voz dela, havia usado o dialeto interno do casamento dos dois e frases que somente Scott poderia conhecer.

Um bool de sangue está para vir, dissera a coisa na cama com ela e, de fato, o Príncipe Negro dos Incunks tinha vindo, com o abridor de latas Oxo dela dentro da sua repugnante sacola mágica.

Fica atrás da roxidão. Você já achou as três primeiras estações. Faltam só mais algumas para ganhar o prêmio.

E qual prêmio a coisa na cama com ela havia prometido? Uma bebida. Ela supôs que fosse uma Coca ou uma RC Cola, porque estes eram os prêmios de Paul, mas agora sabia que era outra coisa.

Lisey baixou a cabeça, enfiou o rosto machucado no lago e então, sem se permitir pensar no que estava fazendo, deu duas generosas go­ladas. A água na qual ela estava era quase quente, mas a que colocou na boca era doce e refrescante. Poderia ter bebido muito mais, porém algum tipo de intuição lhe disse para dar apenas dois goles. Dois era o número certo. Ela tocou os lábios e percebeu que o inchaço tinha quase sumido. Não ficou surpresa.

Sem tentar fazer silêncio (e sem se preocupar em se sentir grata, pelo menos não por enquanto), Lisey chapinhou de volta para a areia. Pareceu levar uma eternidade. Já não havia mais ninguém boiando perto do litoral e a praia estava vazia. Lisey achou ter visto a mulher com quem tinha falado sentada em um dos bancos de pedra com sua colega, mas não conseguiu ter certeza, pois a lua não havia subido o suficiente. Ela olhou um pouco mais para o alto e seu olhar parou em um dos vultos amortalhados a uns 12 bancos acima da água. O luar cobrira um dos lados da cabeça velada da criatura com uma leve cama­da prateada e uma estranha certeza lhe veio à mente: aquele era Scott e ele a estava observando. Aquela idéia não fazia um certo sentido louco? Já que ele preservou consciência e força de vontade o suficiente para vir a ela logo antes do amanhecer, quando ela estava deitada com a irmã catatônica? Já que ele estava determinado a ter a última palavra uma última vez?

Lisey teve vontade de chamar seu nome, mesmo sabendo que fazê­-lo seria uma loucura perigosa. Ela abriu a boca e água do seu cabelo molhado entrou nos seus olhos, fazendo-os arder. Ao longe, ouviu o vento tilintar o sino de Chuckie G.

Foi então que Scott falou com ela, e pela última vez.

— Lisey.

Aquela voz era de uma ternura infinita. Chamando seu nome, cha­mando-a para casa.

— Pequena.

 

— Lisey — diz ele. — Babyluv.

Ele está na cadeira de balanço e ela está sentada no chão frio, po­rém é ele quem está tremendo. Súbito, Lisey tem uma recordação viva de Vovó D falando Apavorado e tremelicando no escuro e percebe que ele está com frio porque agora a trouxa inteira está em Boo’ya Moon. Mas isso não é tudo — a droga do quarto inteiro está gelado. Estava frio an­tes, mas agora está gelado, e as luzes estão apagadas também.

O sussurro constante da fornalha parou e, quando ela olha para a janela congelada, vê apenas as cores extravagantes das luzes do norte. A luz da varanda dos Galloway se apagou. Acabou a energia, pensa ela, mas não — a televisão está ligada e aquele maldito filme ainda está passando. Os meninos de Anarene, Texas, estão à toa na sinuca, logo irão para o México e, quando voltarem, Sam, o Leão, estará morto, enrolado em panos e sentado em um daqueles bancos de pedra sobre o l...

— Isso não está certo — diz Scott. Seus dentes estão batendo um pouco, mas ela ainda consegue reconhecer a perplexidade na sua voz. — Eu não coloquei a droga do filme porque achei que fosse te acordar, Lisey. E, além do mais...

Lisey sabe que aquilo é verdade, quando entrou lá daquela vez e o encontrou sentado a tevê estava desligada, mas agora ela tem algo muito mais importante na cabeça.

— Scott, ele vai nos seguir?

— Não, baby — diz Scott. — Ele só consegue fazer isso se farejar bem o seu cheiro ou estiver fissurado no seu... — ele pára no meio. É com o filme que ele está mais preocupado, ao que parece. — E, além do mais, não é “Jambalaya” que toca nessa cena. Já vi A Última Sessão de Cinema cinquenta vezes, tirando Cidadão Kane é o melhor filme de todos os tempos, e não é Jambalaya que toca na cena da sinuca. É Hank Williams, com certeza, mas é Kaw-Liga, a música sobre o chefe indígena. E se a tevê e o videocassete estão funcionando, cadê a droga da luz?

Ele se levanta e mexe no interruptor. Nada. Aquela ventania fria de Yellowknife finalmente cortou a energia deles e de Castle Rock, Cas­tle View, Harlow, Motton, Tashmore Pond e da maior parte do oeste do Maine. Na mesma hora que Scott liga o interruptor inútil, a tevê desliga. A imagem encolhe até um ponto luminoso que brilha por um instante e depois some. Na próxima vez que ele testar a fita, desco­brirá que um trecho de dez minutos do filme sumiu, como se tivesse sido apagado por um poderoso campo magnético. Nenhum dos dois jamais conversará a respeito, mas Scott e Lisey entenderão que, embora os dois estivessem visualizando o quarto de hóspedes, foi provavelmente ela quem os gritou para casa com mais força... e com certeza foi Lisey quem visualizou Hank cantando “Jambalaya” em vez de “Kaw-Liga”. Da mesma forma que foi Lisey quem visualizou tão ferozmente tanto o videocassete quanto a tevê ligados que, quando eles voltaram, aqueles aparelhos ficaram ligados por quase um minuto e meio, mesmo com Castle County sem energia de uma ponta a outra.

Ele enche o forno a lenha da cozinha com pedaços de carvalho da caixa de madeira e ela improvisa uma cama — cobertores e um colchão de ar — no piso. Quando eles se deitam, ele a abraça.

— Estou com medo de dormir — confessa ela. — Estou com medo de que, quando acordar pela manhã, o forno esteja apagado e você tenha partido de novo.

Ele balança a cabeça.

— Eu estou bem... passou, por enquanto.

Ela o encara com uma mistura de esperança e dúvida.

— Você está falando porque sabe ou só para acalmar sua esposinha?

— O que você acha?

Ela acha que aquele não é o Scott-fantasma com o qual ela estava vivendo desde novembro, mas ainda é difícil para ela acreditar em recu­perações miraculosas.

— Você parece melhor, mas desconfio que isso é só o que eu quero pensar.

No forno, um nó de madeira explode e ela dá um pulo. Ele a abra­ça mais forte. Ela se aninha mais contra ele. Está quente debaixo das cobertas; quente nos braços dele. Ele é tudo o que ela poderia querer no escuro.

Ele diz:

— Esta... esta coisa que atormenta minha família... ela vai e volta. Quando passa, é como uma câimbra indo embora.

— Mas vai voltar?

— Pode ser que não, Lisey. — A força e a certeza em sua voz a surpreendem tanto que ela ergue os olhos para conferir o rosto dele. Não vê falsidade ali, nem daquele tipo que pretende acalmar o coração de uma esposa angustiada. — E, se voltar, possivelmente não vai ser tão forte quanto desta vez.

— Foi seu pai quem lhe disse isso?

— Meu pai não sabia muito sobre esse negócio de partir. Eu já tinha me sentido atraído em direção... ao lugar em que você me encon­trou... duas vezes antes. Uma vez, antes de nos conhecermos. Naquela época, a bebida e o rock seguraram minha onda. Da segunda vez...

— Na Alemanha — diz ela.

— Isso. Na Alemanha. Lá, você segurou minha onda, Lisey.

— Quão perto você esteve de ir para lá, Scott? Quão perto você esteve de ir para lá em Bremen?

— Perto — é só o que ele diz, e aquilo a deixa gelada. Se o hou­vesse perdido na Alemanha, teria sido para sempre. Mein gott. — Mas aquilo foi tranquilo se comparado a agora. Agora foi um furacão.

Ela gostaria de lhe perguntar outras coisas, mas o que mais quer é apenas abraçá-lo e acreditar quando ele diz que talvez as coisas fiquem bem. Do mesmo jeito que você quer acreditar em um médico, imagina ela, quando ele diz que o câncer está regredindo e talvez não volte nunca mais.

— E você está bem. — Ela precisa escutá-lo falar aquilo mais uma vez. Precisa.

— Estou. Novo em folha, como se diz.

— E a... coisa? — Não precisa ser mais específica. Scott sabe do que ela está falando.

— Ele conhece meu cheiro há muito tempo, e sabe qual o padrão dos meus pensamentos. Depois de todos esses anos, somos praticamen­te velhos amigos. Ele provavelmente poderia me levar se quisesse, mas precisaria fazer um esforço, e aquele sujeito é bem preguiçoso. Além dis­so... algo toma conta de mim. Algo no lado bom da coisa. Porque existe um lado bom, sabia? Você tem que saber, porque é parte dele.

— Uma vez você me disse que poderia chamá-lo, se quisesse. — Ela fala isso muito baixinho.

— Posso.

— E às vezes você quer, não quer?

Ele não nega e, lá fora, o vento uiva uma nota longa e fria por en­tre os beirais. No entanto, debaixo das cobertas em frente ao forno da cozinha está quente. Está quente com ele.

— Fique comigo, Scott.

— Eu vou ficar — responde ele. — Até quando

 

— Até quando puder — disse Lisey.

Ela percebeu várias coisas ao mesmo tempo. Uma, que tinha vol­tado ao seu quarto e à sua cama. Outra, que teria que trocar os lençóis, pois havia voltado encharcada e seus pés úmidos estavam cobertos de areia de praia do outro mundo. Uma terceira coisa é que estava tremen­do, embora o quarto não estivesse tão frio. Uma quarta era que já não estava com a pá de prata; ela tinha ficado para trás. A última era que, se o vulto sentado tivesse de fato sido seu marido, ela quase certamente o havia visto pela última vez; seu marido agora era uma das coisas amor­talhadas, um cadáver insepulto.

Deitada na cama molhada com seus shorts encharcados, Lisey de­satou a chorar. Tinha muito a fazer agora, e havia voltado com a maioria dos passos claros na sua cabeça — achava que aquilo também poderia ser parte do seu prêmio no fim da última caça ao bool de Scott —, mas antes tinha que acabar de lamentar a morte de seu marido. Ela colocou um braço sobre os olhos e ficou deitada naquela posição pelos próximos cinco minutos, soluçando até seus olhos quase se fecharem de tão in­chados e sua garganta doer. Nunca pensou que fosse desejá-lo tanto ou sentir tanto a falta dele. Foi um choque. No entanto, ao mesmo tempo, e embora ainda sentisse alguma dor no seu seio ferido, Lisey pensou que nunca havia se sentido tão bem, tão feliz de estar viva, ou tão pronta para botar para quebrar e tirar satisfações.

Como se diz.

 

Lisey na Greenlawn

(O Malva-rosa)

Ela olhou para o relógio no criado-mudo enquanto tirava os shorts en­charcados e sorria, não porque havia algo de intrinsecamente engraçado no fato de serem dez para meio-dia de uma manhã de junho, mas por­que uma das falas de Scrooge em Um Conto de Natal lhe veio à mente: “Os espíritos fizeram tudo em uma noite só.” Parecia a Lisey que algo tinha conseguido fazer muita coisa na sua própria vida em um período muito curto de tempo, a maior parte nas últimas horas.

Mas você precisa levar em conta que eu estava vivendo no passado e isso toma uma quantidade impressionante de tempo de uma pessoa, pensou ela... e, depois de um instante de reflexão, soltou uma gargalhada enor­me e galopante que provavelmente pareceria enlouquecida para qual­quer um que estivesse ouvindo do fim do corredor.

Não tem problema, continue rindo, babyluv, só está a gente aqui mes­mo, mais ninguém, pensou ela, indo para o banheiro. Aquela risada forte e desenfreada começou a sair de dentro dela novamente, então parou bruscamente quando lhe ocorreu que Dooley talvez estivesse ali. Ele poderia estar escondido no porão ou em um dos vários armários do casarão; poderia estar esperando ansiosamente este fim de manhã passar no sótão, bem em cima dela. Ela seria a primeira a admitir que não sabia muita coisa sobre ele, mas a hipótese de ele ter se escondido dentro da sua casa combinava com o que ela sabia. Dooley já tinha se provado um filho-da-puta corajoso.

Não se preocupe com ele agora. Preocupe-se com Darla e Canty.

Boa idéia. Lisey poderia chegar à Greenlawn antes das irmãs mais velhas, não precisaria correr muito, mas também não podia ficar enro­lando. Não pare de mexer os pauzinhos, pensou ela.

Porém, ela não pôde se furtar a um instante diante do espelho de corpo inteiro atrás da porta do banheiro, parada com as mãos nas cadei­ras, olhando diretamente e sem preconceitos para seu esguio e impecável corpo de meia-idade — e para seu rosto, que Scott certa vez descrevera como o de uma raposa no verão. Estava apenas um pouquinho inchado. Ela parecia ter dormido excepcionalmente pesado (talvez depois de um ou três drinques além da conta) e seus lábios ainda estavam um pouco salientes, o que lhes dava uma estranha sensualidade que a deixou ao mesmo tempo desconfortável e um tiquinho alegre. Ela hesitou, sem saber ao certo o que fazer a respeito daquilo, e então encontrou um bastão de Revlon Rosa-Shocking no fundo da gaveta de batons. Passou um pouco dele e assentiu, um pouco indecisa. Se as pessoas iriam olhar para os seus lábios — e ela achou que olhariam —, era melhor lhes dar algum motivo em vez de tentar maquiar o que não dava para esconder.

O seio que Dooley havia operado com uma concentração tão en­sandecida estava marcado por uma prega vermelha e feia que fazia uma curva que começava debaixo da axila e ia sumindo aos poucos acima da caixa torácica. Parecia um corte feio que poderia ter sido feito duas ou três semanas antes mas estava sarando bem. As duas feridas mais super­ficiais não pareciam mais graves do que os tipos de marcas vermelhas que ficavam quando você usava roupas com elástico apertado demais. Ou então — se você tivesse uma imaginação fantasiosa — marcas de cordas. A diferença daquilo para o horror que experimentara ao recupe­rar a consciência era impressionante.

— Todos os Landon se curam rápido, seu filho-da-puta — falou Lisey, entrando no chuveiro.

 

Lisey só teve tempo para uma chuveirada, e seu seio ainda estava dolo­rido o suficiente para ela decidir não colocar sutiã. Vestiu uma calça e uma blusa folgada e jogou um colete sobre esta última para evitar que ficassem olhando para seus mamilos. Isto é, em se considerando que os homens se dessem o trabalho de olhar para os mamilos de uma cin­quentona. Segundo Scott, eles se davam o trabalho, sim. Ela se lembrou de quando ele lhe disse, numa época mais feliz, que homens heterosse­xuais olhavam para qualquer coisa do gênero feminino entre os 14 e os 84 anos de idade por conta de um circuito simples que ligava o olho ao pau, sem que o cérebro tivesse nada a ver com a história.

Era meio-dia. Ela foi para o andar de baixo, olhou para a sala de es­tar e viu o maço de cigarros que havia sobrado em cima da mesa de cen­tro. Não sentia mais vontade de fumar. Em vez disso, pegou um pote fechado de pasta de amendoim da despensa (preparando-se para ver Dooley escondido em um canto ou atrás da porta) e a geléia de moran­go da geladeira. Preparou um sanduíche com elas e deu duas deliciosas e grudentas mordidas antes de ligar para o professor Woodbody. O gabi­nete do xerife de Castle County tinha levado a carta com as ameaças de “Zack McCool”, porém Lisey sempre teve boa memória para números, e aquele era moleza: O código de área de Pittsburgh numa ponta, 81 e 88 na outra. Estava disposta a falar tanto com a Rainha dos Incunks quanto com o Rei. Uma secretária eletrônica, no entanto, seria inconve­niente. Ela poderia deixar uma mensagem, mas não teria como saber se ela chegaria aos ouvidos certos a tempo de adiantar alguma coisa.

Não precisava ter se preocupado. O próprio Woodbody atendeu e não parecia nada régio. Parecia contido e circunspecto.

— Sim? Alô?

— Olá, professor Woodbody. Aqui é Lisa Landon.

— Não quero falar com você. Conversei com meu advogado e segundo ele não sou obrigado...

— Calma — disse ela, olhando avidamente para seu sanduíche. Não podia falar com a boca cheia. Por outro lado, achava que aquela conversa seria breve. — Não vou lhe causar problemas. Nem com a polícia, nem com advogados, nem nada do gênero. Se o senhor me fizer um pequeno favor.

— Que favor? — Woodbody parecia desconfiado. Lisey não podia culpá-lo.

— Existe uma pequena possibilidade de que seu amigo Jim Doo­ley ligue para o senhor hoje...

— Aquele cara não é meu amigo! — berrou Woodbody.

Certo, pensou Lisey. E você já está bem perto de se convencer de que ele nunca foi.

— O.k., companheiro de birita. Conhecido. O que seja. Se ele ligar, diga a ele que eu mudei de idéia, sim? Diga que coloquei a cabeça no lugar e que vou recebê-lo hoje à noite, às oito, no escritório do meu marido.

— A senhora parece estar se preparando para se meter numa gran­de encrenca, sra. Landon.

— E você sabe disso melhor do que ninguém, não é? — O sanduí­che estava ficando cada vez mais apetitoso. O estômago de Lisey roncou. — Professor, ele provavelmente não vai ligar. Se for assim, o senhor está feito. Porém, se ele ligar, passe a mensagem para ele e o senhor também está feito. Mas se ele ligar e o senhor não lhe passar minha mensagem, que é somente “Ela mudou de idéia, pediu para você ir ao escritório de Scott hoje à noite, às oito”, e eu descobrir... então, meu senhor, ah, que coisa horrorosa eu estou armando para o seu lado...

— A senhora não pode fazer isso. Meu advogado disse...

— Não ouça o que ele diz. Seja esperto e ouça o que eu estou di­zendo. Meu marido me deixou 10 milhões de dólares. Com uma grana dessas, se eu decidir te enrabar, o senhor vai passar os próximos três anos cagando sangue agachado. Entendido?

Lisey desligou antes que ele pudesse falar qualquer outra coisa, deu uma mordida no seu sanduíche, apanhou o Kool-Aid de limão na gela­deira, pensou em pegar um copo e então bebeu direto da jarra.

Nhami!

 

Se Dooley telefonasse no decorrer das próximas horas, ela não estaria lá para atender a ligação. Por sorte, Lisey sabia para qual telefone ele iria ligar. Foi até seu escritório inacabado no celeiro, em frente ao cadáver amortalhado da cama de Bremen. Sentou-se na cadeira de cozinha (uma boa cadeira de escritório nova foi uma das coisas que ela nunca chegou a encomendar), apertou o botão GRAVAR MENSAGEM na secretária eletrô­nica e falou sem pensar muito. Não havia voltado de Boo’ya Moon com um plano, mas com uma série de passos a seguir e a crença de que, se fizesse sua parte, Jim Dooley seria forçado a fazer a dele. Eu assobiarei e você virá a mim, meu rapaz, pensou ela.

— Zack, sr. Dooley, aqui é Lisey. Se estiver ouvindo isso, estou visitando minha irmã, que está no hospital, lá em Auburn. Falei com o Prof e estou muito feliz que as coisas estejam se resolvendo. Estarei no escritório do meu marido hoje à noite, às oito, ou o senhor pode me en­contrar nesse número às sete e marcar outra coisa, se estiver preocupado com a polícia. Pode ser que haja uma viatura parada em frente à casa, ou talvez nos arbustos do outro lado da rua, então tenha cuidado. Vou ficar de olho nas mensagens.

Ela ficou com medo de que a gravação não coubesse na fita, mas coube. E o que Jim Dooley acharia se ligasse para aquele número e a ou­visse? Dado o nível atual de loucura dele, Lisey não ousava prever. Será que ele quebraria o silêncio e ligaria para o Professor em Pittsburgh? Era possível. Se o Professor iria ou não passar a mensagem caso Dooley ligasse também era imprevisível, e talvez não importasse. Dooley podia achar que ela estava mesmo pronta para negociar ou que estava apenas o enrolando; para ela, dava na mesma. Só queria deixá-lo nervoso e curioso, do jeito que imaginava que um peixe ficaria ao ver uma isca saltitando na superfície de um lago.

Ela não deixou um bilhete na porta — era bem provável que o oficial Boeckman ou o oficial Alston o lessem bem antes de Dooley ter a chance de fazê-lo — e, de qualquer forma, aquilo provavelmente seria ir longe demais. Por enquanto, ela tinha feito tudo o que podia.

E você espera mesmo que ele apareça hoje à noite, às oito horas, Li­sey? Que ele suba dançando as escadas do escritório, cheio de confiança e boa-fé?

Ela não esperava que ele viesse dançando, e tampouco esperava que estivesse cheio de outra coisa além da loucura da qual ela já havia sido vítima, mas esperava, sim, que ele aparecesse. Ele viria desconfia­do como qualquer bicho selvagem, esperando uma armadilha ou uma emboscada, possivelmente entrando às escondidas pela floresta ainda no meio da tarde, mas Lisey acreditava que no fundo ele saberia que aquilo não era uma armação arquitetada por ela junto com o gabinete do xerife ou com a polícia estadual. Ele saberia pela vontade de agradar que escutou na sua voz e porque, depois do que fez com ela, tinha todos os motivos para crer que ela estaria assustada como um passarinho. Ela tocou a mensagem duas vezes e assentiu. Ótimo. Na superfície, soava como uma mulher que só queria resolver logo algum assunto proble­mático, porém Lisey achava que Dooley conseguiria ouvir o medo e a dor subjacentes. Porque era o que ele esperava ouvir, e porque ele era louco.

Lisey também achou que havia outra coisa em prática ali. Ela ha­via ganhado sua bebida. Havia ganhado seu bool, e isso lhe dera uma espécie de força primitiva. Talvez não fosse durar muito, mas não tinha importância, porque um pouco daquela força — um pouco daquela estranheza primitiva — estava na secretária eletrônica. Ela achava que, se Dooley ligasse, ele a escutaria e reagiria a ela.

 

Seu telefone celular ainda estava no BMW, já completamente carrega­do. Ela pensou em voltar ao pequeno escritório no celeiro e regravar a mensagem na secretária eletrônica, acrescentando o número do celular, então percebeu que não sabia qual era ele. Eu quase nunca ligo para mim mesma, querida, pensou, soltando aquela gargalhada enorme e galopan­te novamente.

Ela guiou lentamente até o fim da entrada para carros, na esperan­ça de que o oficial Alston estivesse ali. Ele estava, parecendo maior do que nunca e bastante primitivo também. Lisey saiu do carro e lhe deu um tchauzinho. Ele não chamou reforços ou saiu correndo aos gritos ao ver seu rosto; simplesmente sorriu e respondeu ao aceno tocando de leve o quepe.

Certamente passara pela cabeça de Lisey inventar uma história se encontrasse algum policial em serviço, algo como “Zack McCool” ter ligado para ela e dito que havia decidido voltar pro seu cantinho em West Virginny e esquecer de vez a viúva do escritor; tinha muito policial ianque por aquelas bandas. Ela o faria sem o sotaque caipira, é claro, e achava que poderia ser bem convincente, especialmente em seu atual estado de graça batismal, porém, no fim das contas, decidiu que não. Uma história daquelas poderia acabar fazendo com que o xerife interino Clusterfuck e seus policiais ficassem ainda mais alertas — eles poderiam pensar que Jim Dooley estava tentando botados para dormir. Não, era melhor deixar as coisas como estavam. Dooley conseguira encontrada uma vez; provavelmente conseguiria repetir a façanha. Se eles o pegas­sem, seus problemas estariam resolvidos... embora, para dizer a verdade, ver Jim Dooley preso já não fosse mais sua solução preferida.

De qualquer forma, ela não gostava da idéia de mentir para Alston ou para Boeckman mais do que o necessário. Eles eram policiais, esta­vam protegendo-a da melhor forma possível e, além do mais, eram uma dupla de bobalhões simpáticos.

— Tudo bem, sra. Landon?

— Tudo. Só vim lhe dizer que estou indo para Auburn. Minha irmã está no hospital lá.

— Sinto muito em saber disso. No CMG ou no Kingdom?

— Na Greenlawn.

Ela não sabia ao certo se ele conhecia a clínica, mas, pela maneira como seu rosto se retesou, imaginava que sim.

— Bem, que pena... mas pelo menos está um belo dia para dirigir. Mas tente voltar antes do fim da tarde. O rádio está dizendo que vai chover feio, principalmente aqui no oeste.

Lisey olhou em volta e sorriu, primeiro para o dia, que estava de fato esplendoroso como um dia de verão (pelo menos até aquela hora), e depois para o oficial Alston.

— Vou fazer o possível. Obrigado pelo aviso.

— Sem problema. Olha, o seu nariz está meio inchado do lado. Alguma coisa mordeu a senhora?

— Os mosquitos têm esse costume — disse Lisey. — Tem outra mordida do lado do meu lábio também. Dá pra ver?

Alston olhou para sua boca, que Dooley havia estapeado de um lado a outro pouco tempo antes.

— Não — respondeu ele. — Não estou vendo nada.

— Ótimo, o Benadryl deve estar fazendo efeito. Tomara que não me deixe sonolenta.

— Se a senhora sentir sono, encoste o carro, o.k.? Faça esse favor a si mesma.

— Sim, Papai — falou Lisey e Alston riu. Ficou um pouco verme­lho, também.

— Por sinal, sra. Landon...

— Lisey.

— Sim, senhora. Lisey. Andy ligou. Ele gostaria que a senhora passasse no gabinete do xerife assim que puder para prestar uma queixa oficial sobre isso tudo. Sabe como é, alguma coisa que a senhora possa assinar para ficar registrado. A senhora poderia fazer isso?

— Claro. Vou tentar passar lá quando estiver voltando de Auburn.

— Bem, vou lhe contar um segredo, sra. Lan... Lisey. Nossas duas secretárias tendem a ir embora mais cedo nos dias em que chove forte. Elas moram lá depois de Motton, e aquelas estradas enchem se você olhar torto para elas. Precisam de bueiros novos.

Lisey deu de ombros.

— Vamos ver — disse. Olhou deliberadamente para o relógio. — Nossa, olha a hora! Tenho que correr. Pode usar o banheiro de casa se precisar, oficial Alston, tem...

— Joe. Se a senhora é Lisey. Eu sou Joe.

Lisey levantou o polegar para ele.

— O.k., Joe. Tem uma chave para a porta dos fundos debaixo da es­cada da varanda. Se você tatear um pouco, acho que consegue encontrar.

— Pode deixar, sou um investigador treinado — disse ele, sério.

Lisey caiu na gargalhada e ergueu a mão. O oficial Joe Alston, agora também sorrindo, faz o mesmo sob a luz do sol, perto da caixa de correio em que ela havia encontrado o gato morto dos Galloway.

 

No caminho para Auburn, ela pensou um pouco sobre como o oficial Joe Alston olhara para ela enquanto eles conversavam no fim da entrada para carros. Fazia um tempo que ela não atraía um olhar do tipo você está uma gata de um homem, mas havia conseguido um naquele dia, mesmo com o nariz um pouco inchado. Impressionante. Impressionante.

— É o Tratamento de Beleza Leve-Uma-Surra-De-Jim-Dooley — disse ela, rindo. — Eu poderia anunciá-lo na TV a cabo.

E ela sentia um gosto maravilhosamente doce na boca. Se um dia voltasse a desejar outro cigarro, ficaria surpresa. Talvez pudesse anunciar aquilo na TV a cabo, também.

 

Quando Lisey chegou à Greenlawn, era uma e vinte. Ela não esperava ver o carro de Darla, mas, ainda assim, suspirou de alívio ao se certificar de que ele não era um dos cerca de meia dúzia espalhados pelo estacio­namento para visitantes. Ela gostava da idéia de Darla e Canty estarem bem ao sul dali, bem longe da loucura perigosa de Jim Dooley. Lem­brou-se de quando era uma garotinha (bem, 12 ou 13 anos, nem tão garotinha assim) e ajudava o sr. Silver a separar batatas, e de como ele sempre a alertava para usar calças e manter as mangas enroladas quando estava lidando com a máquina separadora na cabana dos fundos. Se você ficar presa nela, querida, ela vai te pelar, dizia ele, e ela o levava a sério, pois entendia que o velho Max Silver não estava falando sobre o que aquela gigantesca máquina de separar batatas faria com suas roupas, e sim com ela. Amanda fazia parte daquilo, desde o dia em que aparecera enquanto Lisey começava sem muito ânimo o trabalho de limpar o es­critório de Scott. Aquilo, Lisey aceitava. Daria e Canty, no entanto, se­riam uma complicação desnecessária. Se Deus quisesse, Ele as manteria no Snow Squall, comendo lagosta e tomando spritzers de vinho branco por muito tempo. Tipo, até a meia-noite.

Antes de sair do carro, Lisey tocou de leve o seio esquerdo com a mão direita, se encolhendo diante da expectativa de uma dor lanci­nante. Tudo que sentiu foi um pequeno latejar. Impressionante, pensou ela. É como tocar uma ferida de uma semana de idade. Sempre que você duvidar da realidade de Boo’ya Moon, Lisey, lembre-se do que ele fez com seu seio, há menos de cinco horas, e de como ele está agora.

Ela saiu do carro, o trancou com a SmartKey, então parou por um instante para olhar em volta, tentando gravar aquele local em sua men­te. Não tinha nenhum motivo claro para fazer aquilo, nada de palpável, e não via necessidade disso. Era mais como um esquema passo a passo, quase como assar pão pela primeira vez seguindo um livro de receitas e, por ela, tudo bem.

Recém-asfaltado e pintado, o estacionamento para visitantes da Greenlawn lembrava bastante o estacionamento em que seu marido ti­nha caído 18 anos atrás, e ela ouviu a voz fantasmagórica do professor adjunto Roger Dashmiel, também conhecido como o sulistinha bor­ra-botas, dizendo: Nós vamos atravessar o estacionamento até o Nelson Hall — que tem, abençoadamente, ar-condicionado. Não tinha nenhum Nelson Hall ali; o Nelson Hall ficava na Terra do Antes, assim como o homem que fora cavar uma pazada de terra e inaugurar a construção da Biblioteca Shipman.

O que ela viu se agigantando acima das cercas vivas bem aparadas não era um Departamento de Inglês, e sim os tijolos e o vidro reluzente de um manicômio do século XXI, o tipo de lugar asséptico, bem ilumi­nado, no qual seu marido poderia muito bem ter parado se alguma coisa, algum germe que os médicos em Bowling Green acabaram resolvendo chamar de pneumonia (ninguém queria colocar Causa desconhecida no atestado de óbito de um homem cuja morte seria noticiada na primeira página do New York Times), não tivesse acabado com ele antes.

Naquele lado da cerca viva havia um carvalho; Lisey havia esta­cionado de modo que o BMW ficasse debaixo da sua sombra, embora — de fato — ela pudesse ver nuvens se juntando ao oeste, então talvez o oficial Joe Alston tivesse razão sobre aqueles pés-d’águas de fim de tarde. A árvore teria sido um ponto de referência perfeitamente adorável se fosse a única, mas não era. Havia uma fileira inteira delas ao longo da cerca viva, e para Lisey pareciam todas iguais... mas por que deveria se importar com aquela joça?

Lisey se encaminhou para a entrada do prédio principal, mas algo dentro dela — uma voz que não parecia ser nenhuma das variações da sua voz interior — a instou a voltar, insistindo que ela olhasse nova­mente para o carro e para o lugar em que ele estava estacionado. Ela se perguntou se algo queria que ela mudasse o BMW de lugar. Se fosse o caso, este algo não estava deixando suas intenções muito claras. Em vez disso, Lisey resolveu dar uma volta ao redor do carro, coisa que seu pai dizia que sempre se deve fazer antes de começar uma viagem longa. Só que, quando é assim, você procura por um pneu careca, uma lanterna traseira quebrada, uma suspensão arriada, coisas do tipo. Naquele ins­tante, ela não sabia o quê estava procurando.

Talvez eu esteja apenas adiando vê-la. Talvez seja só isso.

Mas não era. Era mais do que isso. E era importante.

Ela olhou para a placa — 5761RD, com aquela ave idiota — e para um adesivo de pára-choque muito apagado, uma piada em forma de presente de Jodi. Ele dizia: JESUS ME AMA, PODE APOSTAR, POR ISSO QUE EU NUNCA ANDO DEVAGAR. Só isso.

Ainda não está bom, importunou a voz, e então ela viu algo inte­ressante do outro lado do estacionamento, quase debaixo da cerca viva. Uma garrafa verde vazia. Uma garrafa de cerveja, quase com certeza. Ou o pessoal da limpeza não a havia visto ou ainda não a havia catado. Lisey correu até lá e a apanhou, sentindo um vago aroma amargo e agrí­cola vir do gargalo da coisa. No rótulo, um pouco apagado, havia um canídeo rosnando. De acordo com ele, aquela garrafa já havia contido a Cerveja Premium Nordic Wolf. Lisey levou a garrafa de volta até o carro e a colocou no asfalto logo abaixo da ave em sua placa.

BMW creme — ainda não está bom.

BMW creme debaixo da sombra de um carvalho — ainda não está bom.

BMW creme debaixo da sombra de um carvalho com uma garrafa de cerveja Nordic Wolf sob a placa 5761RD do estado do Maine com uma ave desenhada e ligeiramente à esquerda do adesivo de pára-cho­que engraçadinho... está bom.

Mas por pouco.

E por quê?

Lisey estava pouco se lixando.

Encaminhou-se depressa para o prédio principal.

 

Não foi problema entrar para ver Amanda, embora ainda faltasse meia hora para o horário de visitas da tarde, que oficialmente só começava às duas. Graças ao dr. Alberness — e a Scott, é claro —, Lisey era uma es­pécie de estrela na Greenlawn. Dez minutos depois de dar seu nome na mesa da recepção (diminuída por um gigantesco mural estilo New Age de crianças de mãos dadas olhando extasiadas para um céu noturno), Lisey estava sentada com a irmã no pequeno pátio em frente ao quarto dela, bebericando um ponche sem graça de um copo descartável e as­sistindo a uma partida de croquet no gramado irregular dos fundos que certamente deu o nome à clínica. Em algum lugar fora de vista, um cor­tador de grama soltava seu balido monótono. A enfermeira de plantão tinha perguntado a Amanda se ela também queria um copo de “suqui­nho” e interpretou o silêncio de Amanda como um sim. Agora ele estava intocado na mesa ao seu lado enquanto Amanda, vestindo um pijama verde-menta e com uma fita da mesma cor no seu cabelo recém-lavado, lançava um olhar vidrado ao longe — não para os jogadores de croquet, pensou Lisey, mas através deles. Suas mãos estavam entrelaçadas no colo, mas Lisey conseguia ver o corte feio que dava a volta na esquerda e o brilho da pomada fresca. Lisey tentara começar a conversa com Amanda de três jeitos diferentes e ela não deu uma só palavra em resposta. O que, de acordo com a enfermeira, era de se esperar. Atualmente, Amanda estava incomunicável, incapaz de receber mensagens, em hora de almo­ço, de férias, visitando o cinturão de asteróides. Toda sua vida tinha sido problemática, mas aquele era outro tipo de barato, até para ela.

E Lisey, que estava esperando visitas no escritório do seu marido dali a apenas seis horas, não tinha tempo para aquilo. Ela bebericou seu drinque imensamente sem gosto, querendo uma Coca — proibida ali por causa da cafeína —, e o deixou de lado. Olhou em volta para se certificar de que estavam sozinhas e arrancou as mãos de Amanda do seu colo, tentando não recuar diante da sensação pegajosa da pomada e das linhas protuberantes dos cortes que cicatrizavam logo abaixo dela. Se Amanda sentia dor ao ser agarrada daquele jeito, não demonstrou. Seu rosto continuou totalmente inexpressivo, como se ela estivesse dor­mindo de olhos abertos.

— Amanda — falou Lisey. Tentou fazer contato visual com a irmã, mas era impossível. — Amanda, me escute. Você queria me ajudar a arrumar as coisas que Scott deixou para trás e preciso que você me ajude a fazer isso. Preciso da sua ajuda.

Nenhuma resposta.

— Existe um homem malvado. Um louco. Ele parece um pouco com aquele filho-da-puta do Cole de Nashville, parece bastante, na ver­dade, só que não consigo dar conta desse sozinho. Você tem que voltar de onde quer que esteja para me ajudar.

Nenhuma resposta. Amanda olhava na direção dos jogadores de croquet. Através deles. O cortador de grama balia. Os copos de papel de suquinho descansavam em uma mesinha sem quinas. Naquele lugar, quinas eram tão proibidas quanto cafeína.

— Sabe o que eu acho, Manda Bunny? Acho que você está sentada em um daqueles bancos de pedra com o resto daqueles pancadas zumbi­ficados, olhando para o lago. Acho que Scott viu você lá em alguma de suas visitas e disse para si mesmo: “Ah, mais uma que gosta de se cortar. Reconheço o tipo porque meu Pai era membro desse clã. Que diabo, eu sou um membro desse clã.” Ele disse a si mesmo: “Tai uma moça que vai se aposentar cedo, a não ser que alguém jogue água no chope dela, como se diz.” Isso faz algum sentido para você, Manda?

Nada.

— Não sei se ele previu Jim Dooley, mas previu que você acabaria aqui na Greenlawn, disso e de que cocô gruda no lençol eu tenho certe­za. Lembra como Dandy costumava dizer isso às vezes, Manda? “Disso e de que cocô gruda no lençol eu tenho certeza”? E quando a Mãezinha Querida gritava com ele, ele dizia que cocô era igual droga, que não era palavrão. Lembra disso?

Nada vinha de Amanda. Apenas um olhar embasbacado, irritante.

Lisey pensou naquela noite fria com Scott no quarto de hóspedes, em que o vento ribombava e o céu ardia, e colou a boca ao ouvido de Amanda.

— Se estiver me ouvindo, aperte minhas mãos — sussurrou ela. — Aperte com toda sua força.

Ela esperou e dez segundos se passaram. Estava quase desistindo quando sentiu a mais leve contração. Poderia ter sido um espasmo invo­luntário ou apenas sua imaginação, mas Lisey duvidava. Ela achava que, em algum lugar distante, Amanda ouviu a irmã gritando seu nome. Gritando-a para casa.

— Certo — falou Lisey. Seu coração batendo tão forte que pare­cia capaz de sufocá-la. — Isso é bom. É um começo. Eu vou buscá-la, Amanda. Vou trazê-la de volta para casa e você vai me ajudar. Está me ouvindo? Preciso da sua ajuda.

Lisey fechou os olhos e apertou mais ainda as mãos de Amanda, sabendo que talvez estivesse machucando a irmã, mas sem se importar com isso. Amanda poderia reclamar mais tarde, quando tivesse com quem reclamar. Se tivesse com quem reclamar. Ah, mas isso era o que não faltava no mundo, Scott lhe disse certa vez.

Lisey reuniu toda sua força de vontade e concentração e criou a ver­ são mais clara do lago que conseguiu, visualizando a taça rochosa na qual ele ficava; a praia branca e límpida em forma de ponta de flecha com os bancos de pedra que a encimavam em degraus ligeiramente curvados; a fenda na rocha e o outro caminho, parecido com uma garganta, que con­duzia ao cemitério. Ela imaginou a água em um azul brilhante, reluzindo com milhares de pontinhos de sol, pensando no lago ao meio-dia, pois já estava farta de Boo’ya Moon no crepúsculo, muito obrigada.

Agora, pensou ela, e esperou a atmosfera mudar e os sons da Greenlawn desaparecerem. Por um instante, achou que alguns daqueles sons haviam desaparecido, então decidiu que era mesmo apenas imagi­nação sua. Abriu os olhos e o pátio ainda estava benhali, com o copo de suquinho de Amanda na mesa redonda. Amanda ainda estava na sua profunda placidez catatônica, uma boneca de cera viva, com seu pijama verde-menta com fechos de velcro, porque botões poderiam ser engolidos. Amanda com a fita da mesma cor verde nos cabelos e com os oceanos nos olhos.

Por um instante, Lisey foi assaltada por uma dúvida terrível. Talvez aquilo tudo tivesse sido apenas loucura sua — tudo exceto Jim Dooley, melhor dizendo. Famílias perturbadas como os Landon só existiam nos romances de V. C. Andrews e lugares como Boo’ya Moon só existiam em fantasias infantis. Ela havia sido casada com um escritor que mor­reu, só isso. Salvara-o uma vez, mas quando ele ficou doente em Ken­tucky oito anos depois, não pôde fazer nada, porque não dá para matar um micróbio com uma pá, ou dá?

Ela começou a soltar a mão de Amanda, então a apertou nova­mente. Cada fibra do seu coração forte e da sua considerável força de vontade se eriçou em protesto. Não! Foi real! Boo’ya Moon é real! Estava lá em 1979, antes de eu me casar com ele, voltei lá em 1996, para encontrá­-lo quando ele precisava ser encontrado, para trazê-lo para casa quando ele precisava ser trazido, e estive lá novamente hoje de manhã. Tudo que preciso fazer é comparar como meu seio estava depois de Jim Dooley acabar com ele e como ele está agora, se começar a ter dúvida. Não estou conseguindo ir porque...

— A trouxa — murmurou ela. — Ele disse que a trouxa estava nos segurando como uma âncora, mas não sabia por quê. Você está nos segurando aqui, Manda? Alguma parte amedrontada e teimosa sua está nos segurando aqui? Me segurando aqui?

Amanda não respondeu, mas Lisey achava que era exatamente isso que estava acontecendo. Parte de Amanda queria que Lisey fosse pegada e trazê-la de volta, mas havia outra parte que não queria ser resgatada. Aquela parte realmente não queria mais saber de todo aquele mundo sujo e dos seus problemas. Aquela parte estava mais do que satisfeita em continuar almoçando através de um tubo, fazendo cocô numa fralda e passando tardes quentes lá fora no pequeno pátio, usando pijamas com fechos de velcro, observando o gramado verde e os jogadores de croquet. E para onde Manda estava olhando de verdade?

Para o lago.

Para o lago pela manhã, à tarde, ao pôr do sol e brilhando sob a luz das estrelas e o luar, com pequenos rastros de vapor subindo da sua superfície como sonhos de amnésia.

Lisey notou que ainda estava com um gosto doce na boca, o que geralmente acontecia apenas logo de manhãzinha, e pensou: É por cau­sa do lago. Meu prêmio. Minha bebida. Duas goladas. Uma para mim e uma...

— Uma para você — disse ela. Subitamente, o próximo passo fi­cou tão belamente claro que ela se perguntou por que perdera tanto tempo. Ainda segurando Amanda pelas mãos, Lisey se inclinou para a frente até seu rosto ficar diante do da sua irmã. Os olhos de Amanda continuavam sem foco e distantes sob a franja reta e grisalha, como se estivessem olhando bem através de Lisey. Somente quando Lisey pas­sou os braços por cima dos ombros dela, primeiro ajeitando-a e depois colando os lábios à boca da irmã, os olhos de Amanda se arregalaram numa compreensão tardia; só então Amanda lutou, mas era tarde de­mais. A boca de Lisey se encheu de doçura à medida que sua última golada do lago fez o caminho de volta. Ela usou a língua para segurar os lábios de Amanda abertos e, enquanto sentia o segundo gole de água que havia bebido jorrar da sua boca para a da irmã, Lisey viu o lago com uma clareza perfeita e solar que superou suas tentativas anteriores de concentração e visualização, por mais ferozes e determinadas que tivessem sido. Ela conseguia sentir os cheiros de frangipana e buganvília misturados com um aroma profundo e de certa forma triste de oliveiras que ela sabia ser o cheiro diurno das árvores adoráveis. Conseguia sentir a areia quente e compacta sob seus pés, que estavam descalços, pois seus tênis não tinham ido. Seus tênis haviam ficado, mas ela não, ela conse­guira, tinha atravessado, estava

 

Estava de volta a Boo’ya Moon, de pé sobre a areia quente e compacta da praia, desta vez com um sol forte brilhando no céu e fazendo não mi­lhares de pontinhos de luz na água, mas o que parecia milhões. Porque aquele corpo d’água era mais extenso. Lisey o observou por um instante, fascinada, e o imenso casco velho de um navio que flutuava ali. E, en­quanto olhava para ele, compreendeu de súbito algo que o espectro na cama de Amanda lhe dissera.

Qual o meu prêmio?, Lisey havia perguntado, e a coisa, que parecia ser ao mesmo tempo Scott e Amanda, disse que seu prêmio seria uma bebida. Mas quando Lisey perguntou se aquilo significava uma Coca ou uma RC Cola, a coisa falou: Silêncio. A gente quer ficar vendo o Malva-­rosa. Lisey supôs que a coisa estivesse falando de flores. Esquecera-se de que aquela palavra já havia tido um outro significado. Um significado mágico.

Amanda tinha falado do navio lá naquela água azul e brilhante toda... porque era Amanda quem tinha falado; Scott quase certamente não sabia sobre aquele maravilhoso barco de sonho infantil.

Não era para um lago que ela estava olhando; aquilo era um porto onde apenas um navio ancorava, um navio feito para corajosas garo­tas-piratas que ousavam procurar tesouros (e namorados). E quem era a capitã? Ora, a intrépida Amanda Debusher, sem dúvida, pois, tem­pos atrás, aquele navio distante não havia sido a mais alegre fantasia de Manda? Tempos atrás, antes de ela se tornar tão irritada por fora e tão amedrontada por dentro?

Silêncio. A gente quer ficar vendo o Malva-rosa.

Oh, Amanda, pensou Lisey — quase se lamentando. Aquele era o lago em que todos chegavam para beber, a verdadeira taça da imaginação, e por isso cada um o via de maneira diferente. Aquele refúgio da infância era a versão de Amanda. Os bancos eram os mesmos, no entanto, o que levou Lisey a supor que eles, pelo menos, eram reais, concretos. Daquela vez, ela enxergava vinte ou trinta pessoas sentadas neles, olhando absor­tas para a água, e praticamente o mesmo número de vultos amortalha­dos. À luz do dia, estes últimos guardavam uma semelhança repugnante com insetos embrulhados em teias de aranha gigantes.

Ela não tardou a encontrar Amanda, sentada a uns doze bancos do chão. Lisey passou por dois dos espectadores silenciosos e por uma das assustadoras coisas amortalhadas para alcançá-la. Ela se sentou ao lado de Manda e pegou novamente suas mãos, que do lado de lá não estavam cor­tadas e nem mesmo com cicatrizes. E, quando Lisey as segurou, os dedos de Amanda se fecharam muito devagar, mas inexoravelmente, sobre os dela. Amanda não precisava do outro gole d’água do lago que Lisey havia tomado, e tampouco precisava que Lisey a convencesse a descer até a água para um mergulho medicinal. Amanda queria de fato voltar para casa. Uma grande parte dela queria ser resgatada como uma princesa adormecida em um conto de fadas... ou uma corajosa garota-pirata encarcerada na mais vil das prisões. E quantos daqueles outros que não estavam amortalhados se encontrariam na mesma situação? Lisey viu seus rostos calmos e olhos distantes, mas isso não significava que alguns não estivessem gritando por dentro para alguém ajudá-los a encontrar o caminho de volta para casa.

Lisey, que só podia ajudar sua irmã — talvez —, afastou-se apavo­rada daquela idéia.

— Amanda — disse ela —, nós vamos voltar agora, mas você pre­cisa me ajudar.

A princípio, nada. Então, muito baixinho, muito abafado, como se estivesse dormindo:

— Lee-sey? Você bebeu... aquele ponche horroroso?

Lisey não pôde deixar de rir.

— Um pouco. Por educação. Agora, olhe para mim.

— Não posso. Estou olhando o Malva-rosa. Vou ser uma pirata... e navegar... — Sua voz começou a sumir. — ... os sete mares... tesouros... e Ilhas Canibais...

— Isso era faz-de-conta — falou Lisey. Ela odiou a aspereza que reconheceu na própria voz; era um pouco como sacar uma espada para matar uma criança que estivesse deitada placidamente na grama, sem fazer mal a ninguém. Porque não era isso que era um sonho infantil? — O que você está vendo é só um truque deste lugar para pegar você. E só... só um bool.

Surpreendendo-a — surpreendendo-a e magoando-a —, Manda falou:

— Scott me disse que você tentaria vir. Que se um dia precisasse de você, você viria.

— Quando, Manda? Quando ele falou isso para você?

— Ele adorava este lugar — disse Amanda, e soltou um suspiro profundo. — Costumava chamado de Boolya Mood, ou algo assim. Dizia que era fácil gostar dele. Fácil demais.

— Quando, Manda, quando ele falou isso? — Lisey quis sacudida.

Amanda pareceu fazer um esforço tremendo... e sorriu.

— Da última vez que eu me cortei. Scott me fez vir para casa. Ele disse... que todas vocês me queriam lá.

Naquele instante, tanta coisa ficou clara para Lisey. Tarde demais para fazer alguma diferença, é claro, mas ainda assim era melhor saber. E por que ele nunca contou aquilo para sua esposa? Porque sabia que a pequena Lisey morria de medo de Boo’ya Moon e das coisas — de uma coisa em especial — que viviam lá? Sim. Porque sabia que ela descobri­ria sozinha na hora certa? Novamente, sim.

Amanda voltou sua atenção novamente para o navio que flutuava no porto que era sua versão do lago de Scott. Lisey balançou seu ombro.

— Preciso que você me ajude, Manda. Tem um louco que quer me machucar e preciso que você me ajude a jogar água no chope dele. Preciso que você me ajude agora!

Amanda voltou o olhar para Lisey com uma expressão quase cô­mica de admiração no rosto. Debaixo delas, uma mulher usando um cafetã e segurando a foto de uma criança com um sorriso desdentado em uma das mãos olhou para trás e falou num tom lento e arrastado de queixa.

— Fiquem... quietas... enquanto... eu penso... por que... fiz... aquilo.

— Não se meta — respondeu Lisey com rispidez e voltou-se no­vamente para Amanda. Ficou aliviada ao ver que sua irmã ainda olhava para ela.

— Lisey, quem?...

— Um louco. Um maluco que apareceu por causa dos malditos papéis e manuscritos de Scott. Só que agora ele está interessado em mim. Ele me machucou hoje de manhã e vai me machucar de novo se eu não... se nós não... — Amanda estava se voltando novamente na di­reção do navio ancorado no porto e Lisey pegou sua cabeça com firmeza entre as mãos para que elas voltassem a se encarar. — Preste atenção, Varapau.

— Não me chame de Vara...

— E só prestar atenção que eu não chamo. Sabe meu carro? Meu BMW?

— Sei, mas, Lisey...

Os olhos de Amanda ainda tentavam desviar para a água. Lisey quase virou a cabeça da irmã novamente, mas algum instinto lhe dis­se que aquilo era uma rapidinha, no máximo. Se queria mesmo tirar Amanda dali, teria que ser com sua voz, sua determinação e, acima de tudo, porque a própria irmã queria isso.

— Manda, esse cara... não é caso só de ele me ferir, se você não me ajudar, acho que existe uma chance de ele me matar.

Naquele instante, Amanda olhou para ela com espanto e perplexidade.

— Matar?...

— Sim. Sim. Prometo que vou explicar tudo, mas não aqui. Se ficarmos tempo demais neste lugar, eu vou acabar não fazendo outra coisa além de olhar embasbacada para o Malva-rosa com você.

Ela não achava que isso fosse mentira. Conseguia sentir aquela coisa puxando-a, querendo que ela a olhasse. Se desistisse, vinte anos poderiam passar como vinte minutos e, ao final deles, ela e sua irmãzo­na Manda Bunny ainda estariam sentadas ali, esperando para embarcar em um navio pirata que sempre as chamava, sem nunca zarpar.

— Eu vou ter que beber um gole que seja daquele ponche horro­roso? Um gole que seja daquele... — A sobrancelha de Amanda franziu à medida que ela lutava para se lembrar. — Um gole que seja daquele suquiiiiiinho?

A maneira infantil como ela disse aquela palavra fez Lisey rir no­vamente de surpresa e, mais uma vez, a mulher de cafetã que segurava a fotografia virou a cabeça para olhar. Amanda alegrou o coração de Lisey ao lançar para a mulher um olhar insolente que dizia: Tá olhando o quê, sua piranha?... e depois lhe mostrar o dedo do meio.

— Vou ter que beber, Lisey?

— Chega de ponche, chega de suquinho, eu prometo. Por en­quanto, pense só no meu carro. Você sabe a cor dele? Tem certeza de que se lembra?

— Creme. — Os lábios de Amanda afinaram um pouco e seu rosto assumiu aquela expressão Sabe-Tudo. Lisey ficou absolutamente encantada em vê-la. — Eu falei quando você o comprou que nenhuma outra cor fica suja mais rápido, mas você não quis ouvir.

— Você se lembra do adesivo no pára-choque?

— É uma piada sobre Jesus, eu acho. Qualquer dia um cristão des­ses vai se irritar e arrancá-lo dali. Além de provavelmente deixar alguns arranhões na pintura pra dar sorte.

Lá de cima, veio uma voz de homem em um tom carregado de reprovação:

— Se vocês precisam conversar. Devem ir. Para outro lugar.

Lisey nem se deu o trabalho de virar para trás e muito menos de lhe mostrar o dedo do meio.

— O adesivo diz JESUS ME AMA, PODE APOSTAR, POR ISSO QUE EU NUNCA ANDO DEVAGAR. Quero que você feche os olhos agora, Amanda, e visualize meu carro. Quero que o visualize por trás, para o adesivo do pára-choque aparecer. Ele está debaixo da sombra de uma árvore. A sombra está se mexendo, porque está ventan­do. Você consegue fazer isso?

— Co-consigo... eu acho... — Seus olhos desviam para o lado, dando uma última olhada para o navio no porto. — Acho que sim, se é para evitar que alguém machuque você... embora não entenda como isso tem a ver com Scott. Ele já está morto há mais de dois anos... em­bora... eu ache que ele me disse alguma coisa sobre a colcha amarela da Mãezinha Querida, e acho que queria que eu te contasse. Claro que nunca contei. Esqueci tanta coisa sobre aquelas vezes... de propósito, imagino.

— Que vezes são essas? Que vezes, Manda?

Amanda olhou para Lisey como se sua irmã caçula fosse a pessoa mais idiota do mundo.

— Todas as vezes que eu me cortei. Depois da última, quando eu cortei meu umbigo, a gente estava aqui. — Amanda colocou um dedo na sua bochecha, criando uma covinha temporária. — Tinha algo a ver com uma história. A sua história. A história de Lisey. E com a colcha. Só que ele a chamava de trouxa. Qual era a palavra que ele usava? Boop? Beep? Boon? Talvez eu tenha apenas sonhado.

Aquilo, vindo tão inesperadamente do nada, surpreendeu Lisey, mas não a distraiu. Se queria tirar Amanda dali, e sair ela também, teria que ser agora.

— Deixe isso pra lá, Manda, só feche os olhos e visualize meu car­ro. Cada detalhe que você conseguir. O resto eu faço.

Espero que sim, pensou ela, e, quando viu Amanda fechar os olhos, ela fez o mesmo e agarrou firme as mãos da irmã. Agora sabia por que precisava ver o carro com tanta clareza: para elas poderem voltar para o estacionamento para visitantes e não para o quarto de Amanda, que ficava numa ala fechada como qualquer outra.

Ela visualizou seu BMW creme (e Amanda tinha razão, aquela cor se mostrou um desastre), então deixou aquela parte para a irmã. Concentrou-se em acrescentar 5761RD à placa e na pièce de résistance: aquela garrafa de cerveja Nordic Wolf, parada no asfalto só um pouqui­nho à esquerda do adesivo JESUS ME AMA, PODE APOSTAR. Para Lisey, aquilo parecia perfeito, porém ela não sentiu mudança no ar ex­traordinariamente doce daquele lugar, e ainda conseguia ouvir um som tremulante que imaginava ser o da brisa que fazia as velas balançarem. Ainda sentia o banco de pedra frio debaixo dela e sentiu um leve pânico. E se dessa vez eu não conseguir voltar?

Então, vindo do que parecia ser uma grande distância, ela ouviu Amanda murmurar em um tom de perfeita irritação:

— Ah, droga. Esqueci da porra da ave na placa.

Um segundo depois, o estalar das velas primeiro se misturou com o balido do cortador de grama, então desapareceu. Só que agora o som do cortador vinha de longe, porque...

Lisey abriu os olhos. Ela e Amanda estavam paradas no estaciona­mento atrás do BMW. Amanda ainda segurava as mãos de Lisey e seus olhos estavam bem fechados, sua sobrancelha franzida numa concentra­ção profunda. Ainda usava o pijama verde-menta com os fechos de vel­cro, mas agora estava descalça e Lisey pensou que, quando a enfermeira de plantão voltasse ao pátio em que havia deixado Amanda Debusher e sua irmã Lisa Landon, encontraria duas cadeiras vazias, dois copos descar­táveis de suquinho, um par de chinelos e dois tênis com as meias dentro.

Então — e isso não demoraria muito para acontecer — a enfer­meira soaria o alarme. Ao longe, lá na direção de Castle Rock e depois New Hampshire, trovões ribombaram. Uma tempestade de verão estava chegando.

— Amanda! — falou Lisey, e lá estava um novo medo: e se Aman­da abrisse os olhos e não houvesse nada neles além daqueles mesmos oceanos vazios?

Porém, os olhos de Amanda estavam perfeitamente alertas, até um pouco alucinados. Ela olhou para o estacionamento, para o BMW, para a irmã e então para si mesma.

— Pare de segurar minhas mãos com tanta força, Lisey — disse. — Elas estão doendo pra diabo. Além disso, preciso de algumas roupas. Esse pijama idiota é completamente transparente, e eu não estou nem de calcinhas, quanto mais de sutiã.

— A gente vai arranjar roupas para você — falou Lisey, e então, numa espécie de pânico tardio, espalmou a mão no bolso da frente direito da sua calça e suspirou de alívio. A carteira dela ainda estava lá. No entanto, o alívio durou pouco. Sua SmartKey, que havia colocado no bolso esquerdo (sabia que sim, sempre fazia isso), tinha sumido. Não viajara. Ou estava no pátio em frente ao quarto de Amanda com os tênis e as meias ou...

— Lisey! — gritou Amanda, agarrando seu braço.

— O quê? O quê!? — Lisey girou o corpo, mas, até onde conseguia ver, ainda estavam sozinhas no estacionamento.

— Estou acordada de verdade! — gritou Amanda numa voz rouca. Havia lágrimas penduradas naqueles olhos.

— Eu sei — falou Lisey. Não conseguia deixar de sorrir, mesmo com a chave perdida para se preocupar. — É maravilhoso pra cacete.

— Vou pegar minhas roupas — disse Amanda, encaminhando-­se para o prédio. Lisey quase não conseguiu agarrar seu braço. Para uma mulher que estava catatônica poucos minutos antes, sua irmãzona Manda Bunny estava animada como um pinto no lixo.

— Deixe suas roupas pra lá — falou Lisey. — Se você voltar para lá agora, garanto que vai passar a noite. É isso que você quer?

— Não!

— Ótimo, porque preciso de você comigo. Infelizmente, acho que nossa única opção é pegar um ônibus. Amanda quase berrou:

— Você quer que eu entre num ônibus parecendo uma porra de uma stripper?

— Amanda, eu perdi as chaves do carro. Ou elas estão no seu pátio ou em um daqueles bancos... você se lembra dos bancos.

Amanda assentiu com relutância, então falou:

— Você não costumava manter uma chave sobressalente numa ge­ringonça com um imã debaixo do pára-choque de trás do seu Lexus? Que, por sinal, era de uma cor sensata para o clima do Norte?

Lisey ignorou a implicância. Scott lhe dera a “geringonça com um imã” de presente de aniversário cinco anos atrás e, quando ela trocou de carro, transferiu a chave sobressalente do Beemer para a caixinha de metal quase sem pensar no que estava fazendo. Ainda deveria estar debaixo do pára-choque de trás. A não ser que tivesse caído. Ela se abai­xou, apoiando-se em um joelho, tateou embaixo do carro e, quando estava começando a entrar em desespero, seus dedos bateram nela, bem no alto e protegida como sempre.

— Amanda, eu te amo, você é um gênio.

— Nem perto disso — disse Amanda, com toda a dignidade pos­sível para uma mulher em um pijama verde quase transparente. — Sou só sua irmã mais velha. Agora será que a gente poderia entrar no carro? Porque o asfalto está muito quente, até na sombra.

— Pode apostar — falou Lisey, abrindo o carro com a chave so­bressalente. — A gente tem que sair daqui, mas, putz, eu odeio... — Ela parou de falar, deu uma risadinha, balançou a cabeça.

— O quê? — perguntou Amanda naquele tom especial que queria dizer, na verdade, O que foi agora?

— Nada. Bem... estava só me lembrando de uma coisa que o Papai me contou depois que eu tirei a carteira. Eu estava trazendo um monte de crianças da White’s Beach um dia e... você se lembra dessa praia, não lembra? — Já haviam entrado no carro e Lisey estava saindo de ré da vaga debaixo da sombra. Até ali, aquela parte do mundo ainda estava tranquila, e era assim que ela pretendia deixada.

Amanda bufou e colocou o cinto de segurança, com cuidado por conta das suas mãos feridas.

— White’s Beach! Aquilo era só um buraco cheio de cascalhos com um laguinho no fundo! — O desprezo em seu olhar se transformou em saudade. — Não chega nem perto da areia em Southwind.

— É assim que você chama aquele lugar? — perguntou Lisey, curiosa contra sua própria vontade. Ela parou na entrada do estacio­namento e esperou por uma brecha no tráfego para poder pegar uma esquerda na Minot Avenue e começar a viagem de volta para Castle Rock. O trânsito estava ruim e ela teve que se controlar para não pegar a direita, só para tirá-las dali.

— Claro — disse Amanda, soando algo irritada com Lisey. — South­wind é onde o Malva-rosa sempre vem pegar suprimentos. Também é o lugar onde as garotas-piratas vão encontrar seus namorados. Você não lembra?

— Mais ou menos — falou Lisey, se perguntando se conseguiria ouvir o alarme soando atrás dela quando descobrissem que Amanda ti­nha sumido. Provavelmente não. Não se deve espantar os pacientes. Ela viu uma pequena brecha no tráfego e enfiou o BMW nela, ganhando uma buzinada de algum motorista impaciente que só teve que desacele­rar 8 km/h para deixá-la entrar.

Amanda levantou os dois dedos do meio para aquele motorista — quase com certeza um homem, provavelmente usando um boné de beisebol e com a barba por fazer —, erguendo os punhos até a altura dos ombros e sacudindo os dedos para cima e para baixo rapidamente enquanto olhava para trás.

— Ótima tática — falou Lisey. — Um dia você vai acabar sendo estuprada e morta.

Amanda girou um olho malicioso na direção da irmã.

— Você está falando demais pra quem está toda encrencada. — En­tão, quase sem uma pausa para respirar: — O que Dandy te falou quan­do você estava voltando da praia naquele dia? Aposto que foi besteira.

— Ele me viu sair do meu antigo Pontiac sem tênis ou sandálias e disse que era contra a lei dirigir descalça no estado do Maine. — Lisey olhou rapidamente, cheia de culpa, para seus dedos no acelerador en­quanto terminava de falar aquilo.

Amanda fez um som baixo, esganiçado. Lisey imaginou que ela estivesse chorando, ou pelo menos tentando. Então percebeu que ela estava rindo. Lisey começou a sorrir também, em parte porque via logo adiante o desvio da rota 202 que lhe permitiria contornar o grosso do tráfego.

— Que bobo que ele era! — disse Amanda, arrancando as palavras do meio de mais outras explosões de riso. — Que velho mais bobo e fofo! Dandy Dave Debusher! Só tinha bobagem na cabeça. Sabe o que ele falou para mim?

— Não, o quê?

— Cuspa, se quiser saber.

Lisey apertou o botão que baixava sua janela, cuspiu e limpou seu lábio inferior ainda um pouco inchado com a base da mão.

— O quê, Manda?

— Ele disse que se eu beijasse um garoto com a boca aberta, ficaria grávida.

— Fala sério, ele não faria isso!

— É verdade, e te digo mais.

— O quê?

— Tenho quase certeza de que ele acreditava nisso!

E então as duas estavam às gargalhadas.

 

Lisey e Amanda

(O Lance das Irmãs)

Agora que estava com Amanda, Lisey não sabia exatamente o que fazer com ela. Lá na Greenlawn, todos os passos tinham parecido claros; po­rém, à medida que seguiam para Castle Rock e as nuvens carregadas se amontoavam sobre New Hampshire, nada parecia claro. Pelo amor de Deus, ela havia acabado de raptar sua irmã supostamente catatônica de um dos melhores manicômios do Maine central.

Amanda, no entanto, não parecia nem um pouco maluca; qual­quer medo que ela nutrisse de a irmã voltar para o estado de catatonia não tardou a desaparecer. Há anos Amanda Debusher não ficava tão lúcida. Depois de escutar tudo que se passara entre Lisey e Jim “Zack” Dooley, ela falou:

— Certo. No começo, os manuscritos de Scott eram o principal, mas agora ele está atrás de você, porque ele é o típico doido que sente tesão em machucar mulheres. Como aquele esquisitão do Rader,* lá em Wichita.

Lisey assentiu. Ele não a havia estuprado, mas tinha ficado com tesão, sim senhor. O que a surpreendeu foi o resumo de Amanda da sua situação, incluindo a comparação com Rader... cujo nome Lisey jamais lembraria. Manda tinha a vantagem de um certo distanciamento, é cla­ro; contudo, sua clareza de pensamento ainda era impressionante.

Mais adiante, havia uma placa dizendo CASTLE ROCK 15. Ao passa­rem por ela, o sol navegou para trás das nuvens que se acumulavam.

— Você pretende dar cabo dele antes que ele faça isso com você, não é? Matá-lo e se livrar do corpo naquele outro mundo. — Diante delas, um trovão estourou. Lisey esperou. A gente está fazendo o lance das irmãs?, pensou ela. É isso que a gente está fazendo? — Por quê, Lisey? Além de simplesmente porque você pode, imagino.

— Ele me machucou. Ele ferrou comigo. — Não achava que es­tivesse soando como ela mesma, mas, se o lance das irmãs fosse dizer a verdade (e imaginava que fosse), então era isso mesmo, sem dúvida. — E deixe-me dizer uma coisa: a próxima vez em que ele ferrar comigo, vai ser a última vez que ele vai ferrar alguém na vida.

Amanda ficou olhando direto para a estrada que se desenrolava à sua frente com os braços cruzados sobre seu busto mirrado. Por fim, disse, quase para si mesma:

— Você sempre foi a coragem dele.

Lisey olhou para a irmã, mais do que surpresa. Estava chocada.

— Como é que é?

— Scott. E ele sabia disso. — Ela ergueu um dos braços de Lisey e olhou para a cicatriz vermelha debaixo dele. Então a encarou. — Mate-o — disse com uma indiferença arrepiante. — Não vejo problema algum nisso.

 

Lisey engoliu saliva e escutou sua garganta fazer clique.

— Olhe, Manda, não tenho a menor idéia do que estou fazendo. Você tem que saber disso desde já. Estou agindo praticamente às cegas.

— Ah, quer saber, não acredito nisso — falou Amanda, em um tom quase brincalhão. — Você deixou mensagens dizendo que o rece­beria às oito da noite no escritório de Scott, uma na sua secretária ele­trônica e outra com aquele professor de Pittsburgh, caso Dooley ligasse para ele. Você quer matá-lo e não vejo problema nisso. Ei, você deu uma chance aos tiras, não deu? — E, antes que Lisey pudesse responder: — Claro que deu. E o cara passou bem debaixo do nariz deles. Quase arrancou seu peito com seu próprio abridor de latas.

Lisey pegou uma curva e se viu atrás de outro caminhão madeirei­ra; era igual àquele dia em que ela e Darla estavam voltando depois de internar Amanda. Lisey pisou no freio, sentindo-se mais uma vez culpa­da por estar dirigindo descalça. Idéias antigas demoram a morrer.

— Scott tinha muita coragem — disse ela.

— Eu sei. E ele a gastou inteira para sobreviver à infância.

— O que você sabe sobre isso? — perguntou Lisey.

— Nada. Scott nunca me falou nada sobre como foi a infância dele. Você acha que eu não percebia? Talvez Daria e Canty não perce­bessem, mas eu sim, e ele sabia disso. A gente se sacava, Lisey. Do mes­mo jeito que duas pessoas caretas se sacam no meio de uma bebedeira. Acho que é por isso que ele se importava comigo. E eu sei de outra coisa, também.

— O quê?

— É melhor você ultrapassar esse caminhão logo, antes que o exaustor dele me mate sufocada.

— Não dá pra ver bem.

— Dá pra ver muito bem. Além do mais, Deus odeia os covardes. — Uma pausa breve. — Isso é outra coisa que gente como eu e Scott sabe bem até demais.

— Manda...

— Ultrapasse esse caminhão! Estou sufocando aqui!

— Não acho mesmo que dê pra ver...

— Lisey tem um namorado! Lisey e Zeke, em cima de uma árvore, se B-E-I-J-A-N...

— Varapau, você está sendo uma escrota. Amanda, rindo:

— Pequena Lisey, beijoqueira e namoradeira!

— Se alguma coisa estiver vindo na direção oposta...

— Primeiro vem o amor, depois o casamento, então Lisey aparece com um...

Sem se permitir pensar no que estava fazendo, Lisey afundou o pé descalço no acelerador do Beemer e jogou o carro para o lado. Estava parelha com a cabine do caminhão madeireiro quando outro caminhão madeireiro apareceu no topo da próxima subida, vindo na direção delas.

— Ai, caralho, alguém me passa o bong, agora nós estamos fodidas! — gritou Amanda. Nada de risinhos roucos agora; ela estava gargalhan­do a plenos pulmões. Lisey também ria. — Pisa fundo, Lisey!

Lisey obedeceu. O BMW disparou com um prazer surpreendente, e ela entrou de volta na pista certa com tempo de sobra. Darla, refletiu ela, estaria se esgoelando àquela altura.

— Pronto — disse ela para Amanda —, satisfeita?

— Sim — respondeu Amanda, colocando a mão esquerda sobre a mão direita de Lisey, acariciando-a, fazendo-a desistir de apertar com toda força o volante. — Estou feliz de estar aqui e feliz por você ter vin­do. Eu não queria voltar completamente, mas uma boa parte de mim estava... sei lá... triste de estar longe. E com medo de que logo eu dei­xasse de me importar com isso. Então obrigada, Lisey.

— Agradeça ao Scott. Ele sabia que você precisaria de ajuda.

— E que você também precisaria. — Agora o tom de Amanda estava cheio de ternura. — E aposto que também sabia que apenas uma de suas irmãs seria louca o bastante para ajudá-la.

Lisey tirou os olhos da estrada tempo o suficiente para encarar Amanda.

— Você e Scott conversavam sobre mim, Amanda? Vocês conver­savam sobre mim lá naquele lugar?

— Conversávamos. Aqui ou lá, não me recordo e acho que não faz diferença. Conversávamos sobre como ele amava você.

Lisey não conseguiu responder. Seu coração estava cheio demais. Ela queria chorar, mas se chorasse não conseguiria enxergar a estrada. E talvez já bastasse de lágrimas. O que não significava que não haveria mais delas.

 

Então elas seguiram em silêncio por alguns minutos. Não houve mais trânsito depois que passaram pelo acampamento Pigwockit. O céu ain­da estava azul, mas o sol já havia se enterrado nas nuvens que se apro­ximavam, deixando o dia claro, porém estranhamente sem sombras. Amanda passara a falar em um tom de curiosidade reflexiva que não lhe era comum.

— Você teria vindo me buscar mesmo se não precisasse de uma parceira no crime?

Lisey refletiu sobre a pergunta.

— Gosto de pensar que sim — disse, finalmente.

Amanda pegou a mão de Lisey e a trouxe para mais perto de si, plantando um beijo nela — embora tão de leve quanto o roçar de uma asa de borboleta — antes de recolocada sobre o volante.

— Gosto de pensar que sim, também — disse ela. — É um lugar estranho, Southwind. Quando você está lá, ele parece tão real quan­to qualquer outra coisa neste mundo, e melhor do que tudo nele. Mas quando você está aqui... — Ela deu de ombros. De um jeito tristonho, pensou Lisey. — Ele é só um raio de luar.

Lisey pensou em quando estava deitada na cama com Scott no Anders, observando a lua brigar para sair. Ouvindo sua história e depois indo com ele. Indo.

Amanda perguntou:

— Como Scott o chamava mesmo?

— Boo’ya Moon.

Amanda assentiu.

— Pelo menos cheguei perto, não cheguei?

— Chegou.

— Acho que quase todas as crianças têm lugares para onde vão quando estão tristes, se sentindo sozinhas, ou simplesmente entedia­das. Elas os chamam de Terra do Nunca ou de Condado, ou de Boo’ya Moon, se têm uma imaginação grande o suficiente, e os inventam so­zinhas. A maioria esquece. Os talentosos, como Scott, domam seus so­nhos e os transformam em corcéis.

— Você também era muito talentosa. Não foi você quem imaginou Southwind? As garotas lá de onde a gente cresceu ficaram anos brincando disso. Eu não me surpreenderia se ainda houvesse meninas na Sabbatus Road que continuem brincando com alguma versão daquele lugar.

Amanda riu e balançou a cabeça.

— Não era para gente como eu conseguir atravessar para o lado de lá. Minha imaginação só era grande o suficiente para me meter em encrencas.

— Manda, isso não é verdade...

— É — falou Amanda. — É, sim. Os hospícios estão cheios de gente como eu. São nossos sonhos que nos domam e nos açoitam com chicotes macios, ah, tão gostosos, e nós corremos, corremos, sem nunca sair do lugar... porque o navio... Lisey, as velas nunca são estendidas e ele nunca levanta âncora.

Lisey arriscou um outro olhar. Lágrimas desciam pelas faces de Amanda. Talvez elas não caíssem naqueles bancos de pedra, mas, sim, aqui elas faziam parte da joça da condição humana.

— Eu sabia que estava indo — disse Amanda. — Durante todo o tempo em que estávamos no escritório de Scott... durante todo o tempo em que fiquei escrevendo números sem sentido naquele bloquinho de anotações idiota, eu sabia...

— O bloquinho de anotações acabou sendo a chave para tudo — falou Lisey, lembrando-se de que tanto MALVA-ROSA quanto mein gott estavam escritos ali... algo como uma mensagem numa garrafa. Ou outro bool: Lisey, é aqui que eu estou, por favor, venha me encontrar.

— Você está falando sério? — perguntou Amanda.

— Estou.

— Isso é tão engraçado. Scott me deu aqueles blocos de anotação, sabia? Praticamente um estoque para a vida toda. De aniversário.

— Foi?

— Foi, no ano anterior à morte dele. Disse que eles poderiam vir a calhar. — Ela conseguiu dar um sorriso. — Acho que um deles veio a calhar mesmo.

— É verdade — disse Lisey, se perguntando se todos os outros tinham mein gott escrito no verso, em letrinhas pretas logo debaixo do nome da marca. Talvez algum dia ela pudesse conferir. Quer dizer, se ela e Amanda saíssem vivas daquilo.

 

Quando Lisey desacelerou no centro de Castle Rock, preparando-se para estacionar em frente ao gabinete do xerife, Amanda agarrou seu braço e perguntou pelo amor de Deus o que ela estava pensando em fazer. Ela escutou a reação da irmã com um espanto cada vez maior.

— E o que eu vou fazer enquanto você estiver lá dentro dando seu depoimento e preenchendo formulários? — perguntou Amanda em um tom cáustico. — Ficar sentada no banco em frente ao departamento de registro de animais com esse pijama, com meu farol piscando em cima e minha periquita aparecendo embaixo? Ou é melhor eu ficar aqui fora ouvindo rádio? Como é que você vai explicar que está descalça? E se alguém da Greenlawn já tiver ligado para o gabinete do xerife para falar que é melhor eles ficarem de olho na viúva do escritor, porque ela foi visitar a irmã no Solar dos Birutas e agora as duas sumiram?

Lisey estava, como diria seu pai não-exatamente-brilhante, total­mente atarantada. Ela havia se concentrado tanto nos problemas re­lacionados a tirar Manda da Terra de Lugar Nenhum e lidar com Jim Dooley que se esquecera completamente que as duas estavam em trajes sumários, isso sem mencionar as possíveis repercussões da Grande Esca­pada. Àquela altura, já estavam acomodadas na vaga apertada em frente ao prédio de tijolos do gabinete do xerife, com uma viatura visitante da polícia estadual à esquerda e um Ford seda com GABINETE DO XERIFE DE CASTLE COUNTY pintado na lateral à direita, de modo que Lisey começou a se sentir decididamente claustrofóbica. O título de uma música coun­try — What Was I Thinking? * — pipocou na sua cabeça.

Ridículo, é claro — ela não era uma fugitiva, Greenlawn não era uma prisão e Amanda não era exatamente uma prisioneira, mas os pés descalços... como ela explicaria as joças dos pés descalços? E...

Eu não estava pensando nem um pouco, não de verdade, estava apenas seguindo os passos. A receita. E isto é como virar uma página no livro de receitas e descobrir que a folha seguinte está em branco.

— E além do mais — prosseguia Amanda —, temos que pensar em Darla e Canty. Você foi ótima hoje de manhã, Lisey, eu não estou te criticando, mas...

— Está sim — falou Lisey. — E está certa em me criticar. Se isto ainda não deu zebra, daqui a pouco vai dar. Não quis ir para sua casa cedo demais ou ficar muito tempo lá, caso Dooley esteja de olho nela, também...

— Ele sabe a meu respeito?

Eu saquei que tem uma irmã sua que está meio biruta, não é?

— Acho... — começou a falar Lisey, então se interrompeu. Aquele tipo de evasiva não daria certo. — Tenho certeza de que sim, Manda.

— Ele não é Karnak, o Grande. Não pode estar nos dois lugares ao mesmo tempo.

— Não, mas também não quero que os policiais apareçam. Não quero metê-los nisso de jeito nenhum.

— Leve a gente até View, Lisey. Pretty View, lembra?

Pretty View era como o pessoal de lá chamava a área de piquenique que dava vista para o Castle Lake e o Little Kin Pond. Era a entrada do parque estadual de Castle Rock e havia um monte de espaço para esta­cionar e até um ou outro banheiro químico. E, no meio da tarde, com uma tempestade se aproximando, provavelmente estaria deserto. Um bom lugar para parar, pensar, fazer planos e matar algum tempo. Talvez Amanda fosse mesmo um gênio.

— Vamos, tire a gente da Main Street — disse Amanda, puxando o colarinho da parte de cima do pijama. — Estou me sentindo uma stripper numa igreja.

Lisey saiu de ré para a rua com cautela — agora que não queria mais saber do gabinete do xerife, estava absurdamente certa de que iria sofrer uma batida de carro antes de conseguir deixá-lo para trás — e virou na direção oeste. Dez minutos depois, estava virando numa placa que dizia

 

PARQUE ESTADUAL DE CASTLE ROCK

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ESTE PARQUE FECHA AO PÔR DO SOL

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POR LEI

 

O carro de Lisey era o único no estacionamento, e a área de piquenique estava deserta — nem um só mochileiro embriagando-se com a natu­reza (ou com Montpelier Gold). Amanda se encaminhou para uma das mesas de piquenique. As solas dos seus pés estavam muito rosadas e, mesmo com o sol escondido atrás das nuvens, estava claramente nua sob o pijama verde.

— Amanda, você acha mesmo que isso...

— Se alguém aparecer, eu volto correndo para o carro. — Manda olhou por sobre os ombros e abriu um sorriso. — Experimente, a grama está um verdadeiro sedaço.

Lisey andou até a beirada do asfalto apoiando-se nos calcanhares, então entrou no gramado. Amanda estava certa, sedaço era o termo, o peixe impecável do lago de palavras de Scott. E a vista a oeste era um tiro certeiro nos olhos e no coração. Nuvens carregadas se despejavam na direção delas através dos dentes desiguais das White Mountains, e Lisey contou sete partes mais escuras, nas quais as encostas mais al­tas haviam sido borradas por demãos de chuva. Relâmpagos brilhantes lampejavam dentro daquelas sacolas de temporal e, entre duas delas, ligando-as como alguma fantástica ponte de conto de fadas, havia um duplo arco-íris que saltava sobre o Mount Cranmore em uma fresta azul. À medida que Lisey observava, aquele buraco se fechou e outro, sobre alguma montanha cujo nome ela não sabia, se abriu, fazendo o arco-íris reaparecer. Lá embaixo, o Castle Lake era de um cinza-escuro sujo e o Little Kin Pond, mais além, preto como o olho de um ganso morto. O vento, que ficava mais forte, estava estranhamente morno e, quando ele levantou seus cabelos das têmporas, Lisey ergueu os braços como se pudesse voar — não em um tapete mágico, mas na alquimia natural de uma tempestade de verão.

— Manda! — disse ela. — Estou feliz por estar viva!

— Eu também — disse Amanda com seriedade, estendendo as mãos. O vento soprou para trás seus cabelos grisalhos e os fez voar como os de uma criança. Lisey fechou seus dedos com cuidado em volta dos da irmã, tentando ficar atenta aos cortes de Amanda, mas, ao mesmo tempo, consciente de que algo selvagem crescia dentro de si. Um trovão estourou no céu, o vento morno soprou mais forte e, cerca de 150 qui­lômetros a oeste, nuvens carregadas escoavam pelos antigos desfiladeiros das montanhas. Amanda começou a dançar e Lisey dançou com ela, seus pés descalços na grama, suas mãos unidas no céu.

— Sim! — Um trovão estourou e Lisey teve que gritar.

— Sim, o que? — Manda gritou de volta. Ela estava findo novamente.

— Sim, eu quero matá-lo!

— Foi isso que eu disse! Eu vou te ajudar! — berrou Amanda, e en­tão a chuva começou e elas correram de volta para o carro, as duas rindo e com as mãos sobre a cabeça.

 

Elas estavam protegidas antes do primeiro da meia dúzia de torós da­quela tarde despencar, de modo que evitaram ficar encharcadas, o que certamente teria acontecido se tivessem enrolado; trinta segundos de­pois das primeiras gotas caírem, elas já não conseguiam ver a mesa de piquenique mais próxima, a menos de 30 metros de distância. A chuva estava fria, o interior do carro estava quente, e o pára-brisa embaçou em um instante. Lisey deu partida no motor e ligou o desembaçador. Amanda apanhou o telefone de Lisey.

— Hora de ligar para a Miss Buggy Bumpers — disse ela, usando um apelido de infância de Daria que Lisey não ouvia há anos.

Lisey olhou para o seu relógio e viu que já passava das três. Não ha­via muita chance de Canty e Darla (antigamente conhecida como Miss Buggy Bumpers, e como ela odiava isso) ainda estarem almoçando.

— Elas devem estar na estrada entre Portland e Auburn a essa al­tura — disse ela.

— É, devem mesmo — disse Amanda, falando com Lisey como se ela fosse uma criança. — É por isso que estou ligando para o celular da Miss Buggy.

É culpa de Scott eu ser uma deficiente tecnológica, Lisey pensou em dizer. Desde que ele morreu, eu fico cada vez mais para trás. Ora, ainda nem comprei um DVD player, e todo mundo tem um.

O que ela disse foi:

— Se chamar Darla de Miss Buggy Bumpers, ela provavelmente vai desligar mesmo se perceber que é você.

— Eu jamais faria isso. — Amanda desviou os olhos para o tempo­ral. Ele havia transformado o pára-brisa do BMW em um rio de vidro. — Você sabe por que eu e Canty costumávamos chamá-la disso e por que era tanta maldade nossa?

— Não.

— Quando tinha apenas 3 ou 4 anos, Darla tinha uma bonequi­nha de borracha vermelha. Ela era a Miss Buggy Bumpers original. Darlia adorava aquela coisa. Uma noite fria, ela deixou a Miss Buggy em cima de um radiador e a boneca derreteu. Meu Jesus carequinha da silva, que fedor.

Lisey se esforçou ao máximo para conter mais risadas e não conse­guiu. Porque sua garganta estava fechada e sua boca também, o riso saiu pelo nariz e atirou uma boa quantidade de ranho nos seus dedos.

— Eeeeca, que charmoso, o chá está servido, madame — disse Amanda.

— Tem uma caixa de Kleenex no porta-luvas — disse Lisey, coran­do até a raiz dos cabelos. — Me passa alguns? — Então pensou na Miss Buggy Bumpers derretendo no radiador e isto se juntou com o que cos­tumava ser o mais delicioso dos xingamentos de Dandy, meu Jesus care­quinha da silva, e começou a rir novamente, embora tenha reconhecido a tristeza escondida como uma pérola agridoce atrás daquela hilaridade, algo a ver com a Daria adulta, com seu jeito “estou-no-controle, faça-­o-que-eu-digo-querida”, e o fantasma da criança ainda escondido logo abaixo da superfície, aquela menina suja de geléia e geralmente furiosa que parecia sempre precisar de alguma coisa.

— Ah, limpa logo no volante — disse Amanda, voltando a rir também. Estava segurando a mão que estava com o telefone contra a barriga. — Acho que vou fazer xixi nas calças.

— Se você mijar nesses pijamas, Amanda, eles vão derreter. Me dá a droga da caixa de Kleenex.

Amanda, ainda rindo, abriu o porta-luvas e entregou a caixa de lenços para a irmã.

— Você acha que vai conseguir falar com ela? — perguntou Lisey. — Com essa chuva toda?

— Se ela estiver com o telefone ligado, vou. E, a não ser que ela esteja no cinema ou algo assim, ele está sempre ligado. A gente se fala todos os dias, às vezes até duas vezes, se Matt estiver em alguma de suas orgias acadêmicas. Porque às vezes Metzie liga para ela e Darla me con­ta tudo que ela diz. Hoje em dia, Darl é a única na família com quem Metzie fala.

Lisey ficou fascinada com isso. Ela não fazia idéia de que Amanda e Darla conversavam sobre a filha problemática de Amanda — Darla certa­mente nunca havia falado nada a respeito. Ela gostaria de poder investigar a questão mais a fundo, mas imaginava que aquela não era a hora certa.

— O que você vai dizer, se conseguir falar com ela?

— Só ouça. Acho que já sei o que fazer, mas tenho medo de que, se eu lhe contar antes, a coisa perca um pouco do seu... sei lá. Frescor. Verossimilhança. Tudo o que eu quero é mantê-las longe o bastante para elas não aparecerem e...

— ...ficarem presas na máquina de separar batatas de Max Silver? — perguntou Lisey. No decorrer dos anos, todas elas trabalharam para o sr. Silver: 25 centavos por cada barril de batatas separadas, e você aca­bava tirando terra de debaixo das unhas até fevereiro.

Amanda olhou bruscamente para a irmã, então sorriu.

— Mais ou menos isso. Darla e Canty podem ser enjoadas, mas eu amo as duas, então pode me processar. Certamente não gostaria que elas se machucassem por terem aparecido no lugar errado na hora errada.

— Nem eu — disse Lisey com brandura.

Uma rajada de granizo passou ruidosamente pelo teto do carro e pelo pára-brisa; então voltou a ser apenas chuva forte.

Amanda acariciou sua mão.

— Eu sei disso, Pequena.

Pequena. Não Pequena Lisey, só Pequena. Há quanto tempo Amanda não a chamava daquilo? E ela era a única que a chamava da­quele jeito.

 

Amanda digitou o número com alguma dificuldade por causa das mãos, errando uma vez e tendo que começar de novo. Da segunda vez, con­seguiu, apertou o botão verde que dizia ENVIAR e colocou o pequeno telefone Motorola na orelha.

A chuva diminuíra um pouco. Lisey notou que conseguia ver a pri­meira mesa de piquenique novamente. Há quantos segundos o telefone já estava chamando? Ela olhou da mesa de piquenique para a irmã com as sobrancelhas erguidas. Amanda começou a balançar a cabeça, então se empertigou no banco e levantou o indicador da mão direita, como se estivesse chamando um garçom num restaurante chique.

— Darla?... Está me ouvindo?... Sabe quem está falando?... Isso! Isso mesmo!

Amanda esticou a língua e arregalou os olhos, imitando a reação de Darla com uma eficiência silenciosa e bastante cruel: uma participante de um game show que tivesse acabado de ganhar a rodada de bônus.

— Sim, ela está bem do meu lado... Darla, calma! Primeiro eu não conseguia falar, agora você não me deixa completar uma frase! Vou te passar para Lisey em um...

Amanda ficou ouvindo mais tempo daquela vez, assentindo e ao mesmo tempo abrindo e fechando o polegar e os outros dedos da mão direita num gesto de quá-quá-quá.

— A-hã, vou falar para ela, Darl. — Sem se preocupar em tapar o fone com a mão, provavelmente porque queria que Darla ouvisse a mensagem sendo dada, Amanda disse: — Ela e Canty estão juntas, Lisey, mas ainda estão no aeroporto. O vôo de Canty ficou preso em Boston por causa das tempestades. Não é uma pena?

Amanda ergueu o polegar ao falar aquela última frase para Lisey, então voltou a atenção para o telefone.

— Que bom que eu consegui falar com vocês antes de pegarem a estrada, porque eu não estou mais na Greenlawn. Lisey e eu estamos no Acadia Mental Health em Derry... isso mesmo, Derry.

Ela ouviu, assentindo.

— É, acho que é mesmo uma espécie de milagre. Só sei que eu ouvi Lisey me chamando e acordei. A última coisa de que me lembro é de vocês me levando para o Stephens Memorial em No Soapa. Então eu simplesmente... ouvi Lisey me chamando e foi como quando você ouve alguém te chamar de um sono profundo... e os médicos da Greenlawn me mandaram para cá para fazer um monte de exames no meu cérebro que provavelmente custam uma fortuna...

Amanda ficou escutando.

— Sim, querida, eu quero dar um alô para Canty e estou certa de que Lisey também quer, mas estão nos chamando agora e o telefone não pega na sala em que eles fazem os exames. Vocês vêm para cá, não vêm? Tenho certeza de que chegam em Derry por volta das sete, oito no máximo....

Naquele instante, o céu voltou a se abrir. A pancada de chuva foi mais violenta do que a primeira e, de repente, o tamborilar surdo dela encheu o carro. Pela primeira vez, Amanda pareceu completamente de­sesperada. Ela olhou para Lisey com os olhos arregalados e cheios de pânico. Um dedo apontando para o teto do carro, de onde vinha o som. Seus lábios formaram as palavras Ela quer saber que som é esse.

Lisey não hesitou. Arrancou o telefone de Amanda e o colocou na sua orelha. A ligação estava claríssima, apesar da tempestade (talvez por causa dela, até onde Lisey sabia). Ela ouviu não só Darla, como também Canty, as duas conversando em um tom agitado, confuso e exultante; ao fundo, conseguia escutar um alto-falante anunciando atrasos de vôo por conta do mau tempo.

— Darla, é Lisey. Amanda está de volta! Novinha em folha! Não é maravilhoso?

— Lisey, não consigo acreditar!

— Só vendo para crer — disse Lisey. — Vem para a Acadia aqui em Derry e veja você mesma.

— Lisey, que barulho é esse? Parece que vocês estão debaixo do chuveiro!

— Hidroterapia, lá do outro lado do corredor! — falou Lisey, mentindo irrefletidamente e pensando: A gente nunca vai conseguir ex­plicar isso depois... nem que a vaca tussa. — Eles abriram a porta e está uma barulheira danada.

Por um instante, não houve som algum além da chuva que caía firme. Então Darla falou:

— Se ela está bem mesmo, talvez eu e Canty ainda possamos ir para o Snow Squall. É uma longa viagem até Derry e estamos as duas famintas.

Por um instante, Lisey ficou furiosa com ela, então poderia ter quase dado um murro no próprio olho por se sentir daquela forma. Quanto mais elas demorassem, melhor — não era isso? Ainda assim, o tom petulante de vítima que ela ouviu na voz de Darla embrulhou um pouco seu estômago. Porém, Lisey imaginou que aquilo também fizesse parte do lance das irmãs.

— Claro, por que não? — disse ela, fazendo um círculo com o polegar e o indicador para Amanda, que sorriu em resposta, meneando a cabeça. — A gente não vai sair daqui mesmo, Darl.

Exceto talvez para Boo’ya Moon, para se livrar de um lunático morto. Isto é, se dermos sorte. Se as coisas saírem do nosso jeito.

— Você pode passar de novo para Amanda? — Darla ainda soa­va incomodada, como se nunca tivesse visto aquela terrível prostração catatônica e desconfiasse que Amanda tivesse fingido o tempo todo. — Canty quer falar com ela.

— Agora mesmo — falou Lisey, fazendo Cantata com a boca para Amanda enquanto dava o telefone de volta.

Amanda garantiu a Canty repetidas vezes que sim, estava bem, e que sim, era um milagre; não, ela não se importava nem um pouco se Canty e Darla seguissem o plano original de almoçar no Snow Squall, e não, ela definitivamente não precisava que as duas se deslocassem até Castle View para pegar nada na sua casa. Estava com tudo de que pre­cisava, Lisey tinha cuidado disso.

Lá pelo fim da conversa, a chuva parou de repente, sem diminuir nem um pouco antes, como se Deus tivesse fechado uma torneira no céu, e Lisey foi invadida por uma idéia estranha: era daquele jeito que chovia em Boo’ya Moon, em pancadas breves, furiosas e intermitentes.

Eu deixei aquele lugar para trás, mas não muito, pensou ela, e perce­beu que ainda estava com aquele gosto doce e puro na boca.

Quando Amanda disse a Cantata que a amava e encerrou a ligação, uma improvável lança de sol úmido de junho irrompeu das nuvens e outro arco-íris se formou no céu, desta vez mais próximo, brilhando sobre Castle Lake. Como uma promessa, pensou Lisey. Do tipo em que você acredita, mas não confia plenamente.

 

A voz murmurante de Amanda a retirou de sua contemplação do arco-­íris. Manda estava pedindo o telefone da Greenlawn para o Auxílio à Lista, então o escreveu com a ponta do dedo no fundo embaçado do pára-brisa do Beemer.

— Isso vai ficar aí mesmo depois que o pára-brisa estiver comple­tamente desembaçado, sabia? — disse Lisey quando Amanda desligou. — Vou ter que passar Vidrex para limpar. Tinha uma caneta no console central, por que você não pediu?

— Porque eu sou catatônica — disse Amanda, estendendo o celu­lar para ela.

Lisey apenas olhou para o aparelho.

— Para quem eu tenho que ligar?

— Como se você não soubesse.

— Amanda...

— Tem que ser você, Lisey. Não sei com quem devo falar, ou como você me internou lá. — Ela ficou em silêncio por um instante, brin­cando com os dedos nas pernas do seu pijama. As nuvens voltaram a se fechar, o dia ficou mais escuro novamente e o arco-íris poderia ter sido um sonho. — Claro que sei — disse ela por fim. — Só que não foi você, foi Scott. Ele deu algum jeito. Reservou um lugar para mim.

Lisey apenas assentiu. Não ousava dizer nada.

— Quando? Depois da última vez que eu me cortei? Depois da última vez que o vi em Southwind? Como ele chamava mesmo, Boonya Moon?

Lisey não se deu o trabalho de corrigi-la.

— Ele passou uma conversa em um médico chamado Hugh Alber­ness. Alberness concordou que você teria problemas pela frente depois de dar uma olhada no seu histórico e, quando você surtou desta vez, ele te examinou e internou. Não se lembra disso? De nada disso?

— Não.

Lisey pegou o celular e olhou para o número no pára-brisa parcial­mente embaçado.

— Não faço idéia do que dizer a ele, Manda.

— O que Scott diria, Pequena?

Pequena. Lá estava aquele apelido de novo. Outra pancada de chu­va, furiosa, mas de apenas vinte segundos de duração, castigou o teto do carro, e, enquanto ela tamborilava, Lisey se viu pensando em todas as palestras nas quais acompanhara Scott — o que ele chamava de concer­tos. Com a notável exceção de Nashville em 1988, a impressão que rinha era de sempre ter se divertido, e por que seria diferente? Scott falava o que eles queriam ouvir; seu único trabalho era sorrir e aplaudir nas horas certas. Ah, e às vezes tinha que fazer um Obrigada com a boca, quando mencionada. Vez por outra, as pessoas lhe davam presentes — souve­nirs, lembranças — e ele os dava para ela, que tinha que segurados. Às vezes elas tiravam fotos e às vezes havia pessoas como Tony Eddington — Toneh —, cujo trabalho era escrever sobre o evento e que às vezes a mencionavam e outras vezes não — e que às vezes escreviam seu nome certo e outras vezes não —, e certa vez ela foi identificada como a Patroa de Scott Landon, mas tudo bem, tudo estava sempre bem, porque ela não fazia estardalhaço, sabia ficar quieta, mas não era como a garotinha naquele conto de Saki, inventar coisas em cima da hora certamente não era sua especialidade, e...

— Olhe, Amanda, se você pretendia invocar Scott, não está dando certo; eu estou realmente perdida aqui. Por que você não liga para o dr. Alberness e simplesmente fala que está bem?... — Enquanto dizia isso, Lisey tentou entregar o telefone de volta para a irmã.

Amanda levou as mãos mutiladas ao peito como recusa.

— Independente do que eu diga, não vai funcionar. Eu sou louca. Você, por outro lado, não só é lúcida, como é a viúva do escritor famo­so. Então faça essa ligação, Lisey. Tire o dr. Alberness do nosso caminho. E agora.

 

Lisey digitou o número e o que se seguiu foi, para começo de conversa, quase parecido demais com a ligação que ela havia feito na sua longa, longa quinta-feira — o dia seguinte às estações do bool. Era Cassandra novamente do outro lado da linha e Lisey reconheceu novamente a mú­sica soporífera de quando foi colocada para esperar; porém, desta vez, Cassandra soou ao mesmo tempo empolgada e aliviada em ter notícias suas. Disse que iria transferir a ligação para a casa do dr. Alberness.

— Não suma — instruiu a atendente antes de desaparecer em meio ao que poderia ser Love to Love You, Baby, a antiga canção disco de Donna Summer depois de uma lobotomia musical. Não suma soava um pouco ameaçador, mas o fato de Hugh Alberness estar em casa... isso certamente era um bom sinal, não era?

Ele poderia ter chamado a polícia tanto de casa quanto do hospital e você sabe disso. Ele ou o médico de plantão na Greenlawn. E o que você vai falar quando ele atender? O que diabos vai falar para ele?

O que Scott falaria?

Scott falaria que a realidade é Ralph.

E, sim, isso sem dúvida era verdade.

Lisey sorriu um pouco ao pensar nisso, e ao lembrar de Scott an­dando de um lado para outro em um quarto de hotel em... Lincoln? Lincoln, Nebraska? Mais provavelmente Omaha, porque aquilo tinha acontecido em um quarto de hotel, e dos bons, talvez até uma suíte. Ele estava lendo o jornal quando um fax do seu editor veio deslizando por debaixo da porta. O editor, Carson Foray, pedia mais mudanças na terceira versão do novo romance de Scott. Lisey não se lembrava qual, apenas que tinha sido um dos últimos, os que ele às vezes chamava de “As Palpitantes Histórias de Amor de Landon”. Seja como for, Carson  que acompanhava Scott desde, como diria o velho Dandy, mil nove­centos e lá vai fumaça — achava que um encontro casual de dois perso­nagens depois de cerca de vinte anos estava mal resolvido. “É um pouco difícil de engolir, meu velho”, escrevera ele.

— Engole isso, meu velho — resmungou Scott, agarrando a vi­rilha com uma das mãos (e aquela mecha de cabelo adoravelmente rebelde caiu ou não caiu em cima das suas sobrancelhas quando ele fez isso? É claro que caiu). E então, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa apaziguadora, ele apanhou o jornal, chocalhou-o até a última página e lhe mostrou um artigo em uma coluna chamada Mundo Es­tranho. O título era CACHORRO ENCONTRA O CAMINHO DE CASA — DE­POIS DE 3 ANOS. Ele contava a história de um border collie chamado Ralph, que fora perdido enquanto estava de férias com seus donos em Port Charlotte, na Flórida. Três anos depois, Ralph apareceu na mansão da família em Eugene, Oregon. Estava magro, sem coleira e com as patas um pouco machucadas, mas, fora isso, nada mal. Ele simplesmente subiu andando a entrada para carros, se sentou na va­randa e latiu para entrar.

— O que você acha que o Monsieur Carson Foray pensaria se isso aparecesse em um dos meus livros? — perguntou Scott, tirando o cabe­lo de cima da testa (ele caiu de volta na mesma hora, é claro). — Você acha que ele me mandaria um fax dizendo que é um pouco difícil de engolir, meu velho?

Lisey, ao mesmo tempo achando engraçado ele ter ficado ofendido e quase absurdamente comovida pela idéia de Ralph voltando depois de todos aqueles anos (e de só Deus sabe quantas aventuras), concordou que Carson provavelmente faria aquilo.

Scott pegou o jornal de volta, olhou perniciosamente por um ins­tante para a foto de Ralph, elegante com sua nova coleira e bandana de lã, e o jogou de lado.

— Vou lhe contar uma coisa, Lisey — disse ele —, romancistas trabalham com uma desvantagem imensa. A realidade é Ralph, apa­recendo depois de três anos, sem ninguém saber por quê. Mas um ro­mancista não pode contar essa história! Porque ela é um pouco difícil de engolir, meu velho!

Depois de se permitir essa diatribe, até onde ela se lembrava, Scott foi reescrever as páginas em questão. A música de espera foi cortada.

— Sra. Landon, ainda está na linha? — perguntou Cassandra.

— Ainda estou aqui — disse Lisey, sentindo-se consideravelmente mais calma. Scott tinha razão. A realidade era um bêbado comprando um bilhete de loteria premiado, sacando a bolada de 70 milhões de dó­lares e dividindo o dinheiro com sua garçonete favorita. Uma garotinha saindo viva de um poço no Texas depois de ficar seis dias presa nele. Um universitário caindo de uma sacada do quinto andar em Cancun e só quebrando o pulso. A realidade era Ralph.

— Vou transferir a senhora agora — disse Cassandra.

Depois de dois cliques, Hugh Alberness — um Hugh Alberness muito preocupado, julgou ela, mas não em pânico — estava falando:

— Sra. Landon? Onde a senhora está?

— A caminho da casa da minha irmã. Estaremos lá em vinte minutos.

— Amanda está com a senhora?

— Está. — Lisey estava disposta a responder suas perguntas, mas nada além disso. Parte dela estava muito curiosa para saber quais seriam elas.

— Sra. Landon...

— Lisey.

— Lisey, muitas pessoas estão preocupadas na Greenlawn hoje à tar­de, principalmente o dr. Stein, o médico de plantão, a enfermeira Burrell, que está responsável pela ala Ackley e Josh Phelan, que é o chefe da nossa pequena, porém geralmente muito eficaz, equipe de segurança.

Lisey decidiu que aquilo era ao mesmo tempo uma pergunta — O que você fez? — e uma acusação — Você deixou umas três ou quatro pessoas apavoradas hoje! — e achou melhor respondê-la. Sucintamente. Seria fácil demais cavar um buraco para si mesma e cair nele.

— Sim, entendo. Sinto muito por isso. Mesmo. Mas Amanda que­ria ir embora, insistiu muito nesse ponto, e também insistiu bastante que não ligássemos para ninguém da Greenlawn antes de estarmos bem longe de lá. Sob essas circunstâncias, achei que o melhor a fazer era dei­xar a coisa rolar. A decisão era só minha.

Amanda levantou vigorosamente os dois polegares para ela, mas Lisey não podia se distrair. O dr. Alberness pode ter sido um fã eita­-norme dos livros de seu marido, mas Lisey não tinha dúvidas de que ele também era excelente em arrancar coisas das pessoas que elas não queriam ou pretendiam dizer.

Alberness, no entanto, parecia empolgado.

— Sra. Landon... Lisey... sua irmã está responsiva? Ela está cons­ciente e responsiva?

— É ouvir para crer — disse Lisey, entregando o telefone para Amanda. Ela pareceu alarmada, mas pegou o aparelho.

Lisey fez Cuidado com a boca.

 

— Alô, dr. Alberness? — Amanda falou devagar e com cautela, mas claramente. — Sim, é ela. — Pausa para escutar. — Amanda Debu­sher, isso mesmo. — Outra pausa. — Meu nome do meio é Georgette. — Pausa. — Julho de 1946. O que significa que ainda não cheguei exatamente aos 60. — Pausa. —Tenho, sim, uma filha chamada Inter­mezzo. O apelido é Metzie. — Pausa. — George W. Bush, infelizmente; acho que esse cara tem um complexo de Deus pelo menos tão perigoso quanto o daqueles que chama de inimigos. — Pausa. Ela balançou a cabeça meticulosamente. — Eu... eu realmente não posso entrar em todos esses méritos agora, dr. Alberness. Estou passando para a Lisey. — Ela entregou o telefone de volta, seus olhos implorando por uma boa crítica... ou pelo menos por uma nota que desse para passar. Lisey assentiu com vigor. Amanda se jogou para trás contra o banco como uma mulher que tivesse acabado de ganhar uma corrida.

— ...ainda está aí? — gritava o telefone quando Lisey o colocou de volta na orelha.

— É a Lisey, dr. Alberness.

— Lisey, o que aconteceu?

— Vou ter que resumir para o senhor, dr...

— Hugh. Por favor. Hugh.

Lisey passara todo aquele tempo com as costas retas atrás do volan­te. Agora, se permitiu relaxar um pouco contra o couro confortável do banco do motorista. Ele havia lhe pedido para chamá-lo de Hugh. Eles eram amigos novamente. Ainda precisaria ser cautelosa, mas provavel­mente daria tudo certo.

— Eu fui visitá-la, nós estávamos no pátio, e ela simplesmente acordou.

Apareceu mancando e sem a coleira, mas, fora isso, estava bem, pen­sou Lisey, e teve que segurar uma gargalhada louca. Do outro lado do lago, um relâmpago explodiu brilhante. Sua cabeça estava daquele mes­mo jeito.

— Nunca vi uma coisa dessas — disse Hugh Alberness. Aquilo não era uma pergunta, então Lisey ficou calada. — E como a senhora... ééé... fez para sair?

— Como?

— Como a senhora passou pela recepção da ala Ackley? Quem abriu a porta para a senhora?

A realidade é Ralph, Lisey lembrou a si mesma. Tomando o cuida­do de soar apenas um pouco confusa, ela disse:

— Ninguém nos pediu para assinar o registro de saída nem nada; todos pareciam tão ocupados. Simplesmente fomos embora.

— E quanto à porta?

— Estava aberta — disse Lisey.

— Macacos me... — começou a dizer Alberness, e então se interrompeu.

Lisey esperou ouvir mais. Tinha certeza de que haveria mais.

— As enfermeiras encontraram um chaveiro, um estojo de chaves e um par de chinelos. Além de um par de tênis com as meias dentro.

Por um instante, Lisey ficou pensando no chaveiro. Não tinha per­cebido que o resto das suas chaves também havia sumido, e provavel­mente era melhor não deixar que Alberness soubesse disso.

— Eu mantenho uma chave extra para o carro debaixo do pára­-choque numa caixa magnética. Quanto às outras no meu chaveiro... — Lisey tentou uma risada parcialmente genuína. Não fazia idéia se tinha conseguido, mas pelo menos Amanda não empalidecera a olhos vistos. — Seria uma pena se eu perdesse essas! O senhor pediria para guardarem para mim, por favor?

— Claro, mas nós precisamos ver a sra. Debusher. Temos que cumprir algumas formalidades se a senhora quiser que a deixemos sob os seus cuidados. — A voz do sr. Alberness sugeria que aquilo era uma péssima idéia, mas não era uma pergunta. Foi difícil, mas Lisey esperou. Do outro lado do Castle Lake, o céu ficou novamente um breu. Outra tempestade estava vindo na direção delas. Lisey queria muito terminar aquela conversa antes que ela caísse, mas, ainda assim, esperou. Imagi­nava que ela e Alberness houvessem alcançado o ponto crítico.

— Lisey — disse ele por fim —, por que vocês duas saíram descalças?

— Não sei ao certo. Amanda estava insistindo que fôssemos em­bora logo, descalças, e que eu não levasse minhas chaves...

— Quanto às chaves, ela poderia estar preocupada com o detector de metais — disse Alberness. — Embora, nas condições dela, eu fique surpreso que... esqueça, prossiga.

Lisey desviou os olhos da tempestade que se aproximava, já tendo borrado as colinas do outro lado do Castle Lake.

— Você se lembra por que queria que nós saíssemos descalças, Amanda? — perguntou ela, inclinando o telefone na direção da irmã.

— Não — disse Amanda alto, então acrescentou: — Só que eu queria sentir a grama. O sedaço da grama.

— O senhor ouviu isso? — perguntou Lisey.

— Algo sobre como ela queria sentir a grama?

— Isso, mas tenho certeza de que não era só isso. Ela foi muito insistente.

— E a senhora fez o que ela pediu?

— Ela é minha irmã mais velha, Hugh. Na verdade, a mais velha das minhas irmãs. Além disso, tenho que admitir que estava empolgada demais em tê-la de volta ao planeta Terra para pensar direito.

— Mas eu, nós, na verdade, precisamos vê-la e nos certificar de que isso significa uma melhora de fato.

— Tudo bem se eu levá-la de volta para ser examinada amanhã?

Amanda estava balançando a cabeça com força o suficiente para fazer seu cabelo voar, os olhos arregalados de surpresa. Lisey começou a assentir com a mesma energia.

— Não vejo nenhum problema — disse Alberness. Lisey conse­guia ouvir o alívio na sua voz, um alívio sincero que a fez se sentir mal por mentir para ele. Porém, algumas coisas tinham que ser feitas quan­do você engatilhava de jeito. — Posso ir para a Greenlawn por volta das duas da tarde de amanhã para conversar com vocês duas. Está bom para vocês?

— Está ótimo. — Supondo que estaremos vivas amanhã às duas.

— Combinado, então, Lisey. Eu me pergunto se... — Neste exa­to momento, logo em cima delas, um relâmpago ofuscante correu por entre as nuvens e atingiu algo do outro lado da estrada. Lisey ouviu o estrondo; sentiu tanto o cheiro de eletricidade quanto o de coisa quei­mada. Nunca estivera tão perto de um raio na vida. Amanda gritou, o som quase completamente perdido em meio à monstruosa trovoada que se seguiu.

— O que foi isso? — gritou Alberness. Lisey achou que a ligação es­tava tão boa quanto antes, mas o médico que seu marido havia cativado com tanto afinco para o bem de Amanda cinco anos antes lhe pareceu, de repente, muito distante e desimportante.

— Uma trovoada — disse ela, com calma. — Está chovendo à beça aqui, Hugh.

— É melhor parar no acostamento.

— Já fiz isso, mas quero me livrar deste telefone antes que ele me dê um choque, ou sei lá. Nos vemos amanhã.

— Na ala Ackley...

— Isso. Às duas. Com Amanda. Obrigada por... — Um relâmpago brilhou no céu e ela se encolheu, mas, desta vez, ele foi mais difuso, e o trovão que se seguiu, embora alto, não ameaçou estourar seus tímpanos — ... por ser tão compreensivo — concluiu ela e apertou a tecla que encerrava a ligação sem se despedir. A chuva caiu imediatamente, como se estivesse esperando que ela terminasse a ligação, açoitando o carro furiosamente. Esqueça a mesa de piquenique; Lisey não conseguia ver nem o fim do capo do seu carro.

Amanda agarrou seu ombro e Lisey pensou em outra música coun­try, a que dizia que, se você trabalhar até seus dedos ficarem no osso, só vai conseguir dedos ossudos.*

— Eu não vou voltar lá, Lisey, não vou!

— Ai, Amanda, isso dói!

Amanda soltou, mas sem recuar. Seus olhos ardiam.

— Eu não vou voltar lá.

— Vai, sim. Só para conversar com o dr. Alberness.

— Não...

— Cale a boca e me ouça.

Amanda piscou e se recostou no banco, recuando diante da fúria na voz de Lisey.

— Darla e eu precisamos internar você lá, não tivemos escolha. Você não passava de um monte de carne com baba escorrendo de uma ponta e mijo descendo pela outra. E meu marido, que sabia que isso iria acontecer, tomou conta de você não só em um mundo, mas em dois. Você me deve essa, irmãzona Manda Bunny. E é por isso que vai me ajudar hoje e a si mesma amanhã, e não quero ouvir mais nada sobre isso além de “Sim, Lisey”. Entendeu?

— Sim, Lisey — murmurou Amanda. Então, olhando para as mãos cortadas e começando a chorar novamente: — Mas e se eles me obrigarem a voltar para aquele quarto? E se me trancarem e me obriga­rem a tomar banho de esponja e beber suquinho?

— Eles não vão fazer isso. Não podem fazer isso. Sua internação foi completamente voluntária; Darla e eu nos responsabilizamos, já que você estava hors-de-lelé.

Amanda riu com tristeza.

— Scott costumava dizer isso. E, às vezes, quando achava que al­guém era convencido, ele chamava a pessoa de hors-de-esnobe.

— É — falou Lisey, não sem um pouco de dor. — Eu me lembro. Enfim, agora você está bem. É isso que importa. — Ela pegou uma das mãos de Amanda, lembrando a si mesma que deveria ser gentil. — Você vai até lá amanhã e vai deixar aquele médico de quatro com seu charme.

— Vou tentar — disse Amanda. — Mas não porque eu te devo isso.

— Não?

— Não, porque eu te amo — disse Amanda, com uma dignidade simples. Então, num fiapo de voz: — Você vai comigo, não vai?

— Pode apostar que sim.

— Talvez... talvez seu namorado pegue a gente e eu não precise mais me preocupar nem um pouco com a Greenlawn.

— Já falei para você não o chamar de meu namorado.

Amanda abriu um sorrisinho.

— Acho que consigo me lembrar disso, desde que você pare com essa merda de Manda Bunny.

Lisey caiu na gargalhada.

— Por que você não vai andando logo, Lisey? A chuva está dimi­nuindo. E, por favor, ligue o aquecedor. Está ficando frio aqui dentro.

Lisey ligou o aquecedor, tirou o BMW de ré da vaga e manobrou em direção à estrada.

— Nós vamos para a sua casa — disse ela. — Dooley provavel­mente não a está vigiando se estiver chovendo tão forte lá quanto aqui, pelo menos espero que não. E, mesmo que esteja, não vai conseguir ver nada. Nós vamos para a sua casa e depois para a minha. Duas mulheres de meia-idade. Você acha que ele vai se preocupar com duas mulhe­res de meia-idade?

— Pouco provável — disse Amanda. — Mas que bom que mandamos Canty e Miss Buggy Bumpers fazer uma longa viagem, você não acha?

Lisey achava que sim, embora soubesse que, como Lucy Ricardo*, ela teria que dar algumas explicações lá na frente. Ela pegou a estrada, que agora estava deserta, torcendo para não encontrar uma árvore caída no meio dela, embora soubesse que era provável. Um trovão rosnou no céu, parecendo mal-humorado.

— Chegando lá, posso pegar algumas roupas que sirvam em mim — dizia Amanda. — E também tenho um quilo de uma bela carne moída no meu freezer. Ela vai descongelar que é uma beleza no micro­ondas, e eu estou faminta.

— No meu microondas — disse Lisey, sem tirar os olhos da es­trada. A chuva tinha parado completamente por ora, mas havia mais nuvens negras à frente. Pretas feito o chapéu de um vilão de teatro, teria dito Scott, e ela foi invadida por aquela velha e angustiante saudade dele, aquele lugar vazio que jamais seria preenchido novamente. Aquele lugar cheio de carência.

— Você me ouviu, pequena Lisey? — perguntou Amanda, e Lisey percebeu que sua irmã estivera falando com ela. Dizendo algo sobre alguma coisa. Vinte e quatro horas atrás, temia que Manda nunca mais voltasse a falar, e lá estava ela, ignorando-a. Mas não era assim que a banda tocava?

— Não — Lisey admitiu. — Acho que não. Desculpe.

— Típico de você, sempre foi. Viajando no seu próprio... — a voz de Amanda foi sumindo e ela fez questão de olhar pela janela.

— Sempre viajando no meu próprio mundinho? — perguntou Lisey, sorrindo.

— Desculpe.

— Tudo bem. — Elas pegaram uma curva e Lisey teve que desviar de um galho de pinheiro caído na estrada. Ela pensou em parar para jogá-lo no acostamento e decidiu deixar isso para a próxima pessoa que passasse por lá. A próxima pessoa provavelmente não teria que lidar com um psicopata. — Se é em Boo’ya Moon que você está pensando, ele nem é meu mundo, na verdade. Parece que todo mundo que vai para lá tem sua própria versão. O que você estava dizendo?

— Só que eu tenho algo que você talvez queira. Isto é, a não ser que já esteja engatilhada.

Lisey ficou pasma. Ela tirou os olhos da estrada por um instante para olhar para a irmã.

— O quê? O que você disse?

— É só modo de dizer — falou Amanda. — Quero dizer que tenho uma arma.

 

Havia um envelope branco e longo preso no batente da porta de tela de Amanda, bem debaixo da sacada e portanto protegido da chuva. A primeira coisa que Lisey pensou, aflita, ao vedo foi: Dooley já esteve aqui. Porém, o envelope que Lisey tinha achado depois de descobrir o gato morto na sua caixa de correio estava em branco dos dois lados. Este tinha o nome de Amanda impresso na frente. Ela o entregou à irmã. Amanda olhou para a impressão, virou o cartão para ler a marca em alto relevo — Hallmark — e então falou com desdém uma única palavra:

— Charles.

Por um instante, o nome não significou nada para Lisey. Então ela se lembrou que, muito tempo atrás, antes de toda aquela loucura come­çar, Amanda havia tido um namorado.

Shootin’ Beans, pensou ela e fez um som estrangulado com a garganta.

— Lisey? — perguntou Amanda, erguendo as sobrancelhas.

— Só estou pensando em Canty e Miss Buggy correndo para Derry — disse Lisey. — Sei que não é engraçado, mas...

— Ah, tem lá sua graça, sim — falou Amanda. — Provavelmente isto aqui também tem. — Ela abriu o envelope e tirou o cartão. Passou os olhos por ele. — Oh. Meu. Deus. Olha. O que acabou de cair. Do cu do cachorro.

— Posso ver?

Amanda o entregou a ela. Na frente, havia um menininho sem um dente — o que a Hallmark entendia como durão, mas ao mesmo tempo cativante (suéter grande demais, jeans remendado) — estendendo uma flor curvada. Puxa, me desculpe!, dizia a mensagem embaixo dos tênis surrados do moleque. Lisey o abriu e leu o seguinte:

 

Eu sei que te magoei e imagino que esteja chateada,

Escrevo só para dizer que você não é a única desconsolada!

Pensei em mandar um cartão para te pedir perdão,

Porque pensar em você na pior me deixou triste de montão!

Então deixe o sofrimento de lado! Seja feliz por um instante!

Volte a andar de cabeça erguida! Abra aquele sorriso radiante!

Imagino que hoje tenha deixado você meio tristinha,

Mas espero que ainda sejamos amigos quando o sol raiar de

manhãzinha!

 

Estava assinado Seu amigo (Para sempre! Lembre-se dos Bons Tem­pos!) Charles “Charlie” Corriveau.

Lisey se esforçou imensamente para manter uma expressão séria, mas não conseguiu. Caiu na gargalhada. E Amanda se juntou a ela. As duas ficaram paradas na varanda, rindo. Quando as risadas começaram a diminuir, Amanda se endireitou e declamou para seu quintal da frente encharcado de chuva, com o cartão estendido diante de si como um hinário:

— Meu querido Charles, não posso esperar nem mais um minuto, venha aqui para eu te mandar à merda, seu puto.

Lisey se recostou na lateral da casa com tanta força que a janela mais próxima tremeu. Ria aos gritos, com as mãos sobre o peito. Aman­da lhe abriu um sorriso orgulhoso e desceu marchando os degraus da varanda. Deu dois ou três passos no quintal, levantou o pequeno gnomo de jardim que vigiava as roseiras e fisgou a chave sobressalente que ficava escondida debaixo dele. Porém, enquanto estava agachada, aproveitou a oportunidade para esfregar rapidamente o cartão de Charlie Corriveau na sua bunda vestida de verde.

Sem se importar mais com o fato de Jim Dooley poder estar obser­vando da floresta, sem nem pensar mais em Jim Dooley, Lisey caiu sen­tada na varanda, rindo ofegante, pois já estava quase sem fôlego. Talvez tivesse rido daquele jeito uma vez ou outra com Scott, mas achava que não. Nem naquela época.

 

Havia apenas uma mensagem na secretária eletrônica de Amanda, e era de Darla, não de Dooley.

— Lisey! — dizia ela, com empolgação. — Não sei o que fez, mas uau! Estamos a caminho de Derry! Lisey, eu te amo! Você é craque!

Ela ouviu Scott dizendo: Lisey, você é craque nisso!, e seu riso come­çou a minguar.

A arma de Amanda acabou se mostrando um revólver Pathfinder calibre .22, e, quando ela o entregou à irmã, ele pareceu se adaptar perfeitamente à mão de Lisey, como se tivesse sido feito sob medida. Amanda o guardava em uma caixa de sapatos na prateleira mais alta do armário do seu quarto. Sem precisar mexer muito, Lisey conseguiu fazer o tambor saltar para fora.

— Jesus Cristinho, Manda, este negócio está carregado!

Como se Alguém Lá Em Cima estivesse descontente com a blas­fêmia de Lisey, o céu se abriu novamente e mais chuva caiu. Instantes depois, granizo tamborilava e chiava nas janelas e calhas.

— E o que uma mulher sozinha deve fazer se um estuprador inva­dir sua casa? — perguntou Amanda. — Apontar uma arma descarregada para ele e gritar bang? Lisey, prende aqui pra mim, por favor? — Amanda tinha colocado uma calça jeans. Agora mostrava suas costas ossudas e as alças do seu sutiã. — Sempre que tento minhas mãos quase me matam. Você deveria ter me levado para dar um mergulho naquele seu lago.

— Já foi difícil tirá-la de lá sem ter que batizar você nele, muito obrigada — falou Lisey, prendendo as alças. — Coloque aquela blusa vermelha com flores amarelas, sim? Ela fica linda em você.

— Ela me deixa barriguda.

— Amanda, você não tem barriga.

— Tenho s... Pelo amor de Jesus, Maria e Jojo, o Carpinteiro, por que você está tirando as balas?

— Para não dar um tiro no meu próprio joelho. — Lisey colocou as balas no bolso do seu jeans. — Mais tarde eu recarrego. — Embora não soubesse ao certo se conseguiria apontá-la para Jim Dooley e aper­tar o gatilho. Talvez. Se evocasse a lembrança do seu abridor de latas.

Mas você pretende se livrar dele. Não pretende?

Com certeza. Ele a machucara. Aquele era o primeiro strike. Ele era perigoso. Aquele era o segundo strike. Ela não podia confiar em mais ninguém para fazer aquilo, terceiro strike e você está fora. Ainda assim, ela continuava olhando fascinada para o Pathfinder. Scott pesquisara feridas causadas por armas de fogo para um de seus romances — para o Relíquias, tinha quase certeza — e ela havia cometido o erro de olhar uma pasta cheia de fotografias horríveis. Até então, não tinha percebido a sorte que Scott tivera naquele dia em Nashville. Se a bala de Cole ti­vesse atingido uma costela e se estilhaçado...

— Por que você não leva o revólver na caixa de sapatos? — pergun­tou Amanda, colocando uma blusa grosseira (ME BEIJE ONDE O SOL NÃO BRILHA — NOS ENCONTRAMOS EM MOTTON) no lugar da camisa de botão de que Lisey gostava. — Tem algumas balas extras lá dentro também. Você pode passar uma fita nela enquanto eu tiro a carne do freezer.

— Onde você conseguiu essa arma, Manda?

— Charles me deu — disse Amanda. Ela virou de costas, pegou uma escova da penteadeira, olhou no espelho e atacou seu cabelo furio­samente. — No ano passado.

Lisey colocou a arma, tão parecida com a que Gerd Allen Cole usara no seu marido, de volta na caixa de sapatos e observou Amanda diante do espelho.

— Eu dormi com ele duas vezes por semana, às vezes três, por qua­tro anos — disse Amanda. — O que configura intimidade. Você não concorda que isso configura intimidade?

— Concordo.

— Também lavei as cuecas dele por quatro anos, e raspava a caspa do couro cabeludo dele toda semana para que ela não caísse nos ombros dos ternos pretos que ele usava e o fizesse passar vergonha. Acho que essas coisas são muito mais íntimas do que trepar. O que você acha?

— Acho que você tem razão.

— Pois é — disse Amanda. — Quatro anos disso e o que eu ganho de indenização? Um cartão da Hallmark. Aquela mulher que ele arran­jou lá em St. Johh’s Valley pode ficar com ele.

Lisey sentiu vontade de comemorar. Não, ela não achava que Man­da precisasse de um mergulho no lago.

— Vamos tirar a carne do freezer e ir para sua casa — disse Aman­da. — Estou faminta.

 

O sol se pôs à medida que elas se aproximavam do Patel’s Market, proje­tando um arco-íris como um portal mágico sobre a estrada adiante.

— Sabe o que eu gostaria de jantar? — perguntou Amanda.

— Não, o quê?

— Um pratão bem nojento de miojo. Duvido que você tenha uma coisa dessas em casa.

— Eu tinha — disse Lisey, sorrindo com culpa —, mas comi.

— Vamos parar no Patel’s — disse Amanda. — Vou dar um pulo lá pra comprar um.

Lisey parou. Amanda insistira em trazer o dinheiro que tinha guar­dado em casa em um jarro azul escondido na cozinha, de modo que tirou uma nota de cinco dólares amassada.

— Qual sabor você quer, Lisey?

— Qualquer coisa menos cbeeseburger — respondeu ela.

 

Lisey e Scott

(Babyluv)

Às 19h15 daquela noite, Lisey teve uma premonição. Não era a primeira da sua vida; já havia tido pelo menos duas antes. Uma em Bowling Gre­en, logo depois de entrar no hospital em que seu marido fora internado após desmaiar na recepção de um Departamento de Inglês. E certamen­te tivera outra na manhã em que eles pegaram o avião para Nashville, a manhã em que quebrou o copo de escovas de dente. A terceira lhe veio à medida que as nuvens carregadas se dissipavam e uma deslumbrante luz dourada começava a brilhar através delas. Ela e Amanda estavam no escritório em cima do celeiro. Lisey estava mexendo nos papéis de Scott na sua mesa principal, também conhecida como Jumbona do Dumbo. Até então, a coisa mais interessante que havia encontrado era um maço de cartões-postais franceses ligeiramente indecentes com um recado adesivo em cima que dizia, no garrancho de Scott: Quem me mandou ISTO??? Ao lado do computador desligado estava a caixa de sapatos com o revólver dentro. Ainda estava tampada, mas Lisey havia rasgado a fita com a unha. Amanda estava do outro lado, no anexo que abrigava a tevê de Scott e seu aparelho de som 2 em 1. Vez por outra, Lisey a escutava resmungando sobre o desleixo com que as coisas haviam sido guarda­das. Chegou a ouvi-la se perguntar em voz alta como Scott conseguia encontrar qualquer coisa que fosse.

Foi neste instante que ela teve a premonição. Lisey fechou a gaveta que estava vasculhando e se sentou na cadeira de escritório de espaldar alto. Fechou os olhos e simplesmente esperou, enquanto algo vinha ro­lando em sua direção. Calhou de ser uma música. Um jukebox men­tal se acendeu e a voz nasalada, porém inegavelmente alegre, de Hank Williams começou a cantar: “Goodbye Joe, we gotta go, me-oh-my-oh; we gotta go, pole the pirogue down the bayou...”

— Lisey! — chamou Amanda do anexo em que Scott costumava se sentar para ouvir sua música ou ver filmes no videocassete. Isto é, quando não assistia a eles no meio da noite no quarto de hóspedes. E Lisey ouviu a voz do professor do Departamento de Inglês da Faculdade Pratt — em Bowling Green, a menos de 100 quilômetros de Nashville. A uma cusparada de distância, madame.

Eu aconselharia a senhora a vir para cá o mais rápido possível, lhe dissera o professor Meade ao telefone. O seu marido caiu doente. Muito doente mesmo, temo dizer.

“My Yvonne, sweetest one, me-oh-my-oh...”

— Lisey! — Amanda soava tão radiante quanto uma moeda re­cém-cunhada. Quem acreditaria que estava completamente chapada há apenas oito horas? Ninguém, madame. Ninguém, meu bom senhor.

Os espíritos fizeram tudo em uma noite, pensou Lisey. Sim, os espíritos.

O dr. Jantzen acha que é necessário operar. Algo chamado traqueostomia.

E Lisey pensou: Os meninos voltaram do México. Eles voltaram para Anarene. Porque Anarene era a casa deles.

Que meninos, pode-se saber? Os meninos em preto-e-branco. Jeff Bridges e Timothy Bottoms. Os meninos de A Última Sessão de Cinema.

Naquele filme é sempre agora e eles estão sempre jovens, pensou ela. Estão sempre jovens e Sam, o Leão, está sempre morto.

— Lisey?

Ela abriu os olhos e lá estava sua irmãzona parada sob o batente da porta do anexo, com os olhos tão brilhantes quanto a sua voz, e, obviamente, ela segurava nas mãos a caixa de VHS com A Última Sessão de Cinema dentro e a sensação estava... bem, voltando para casa. A sen­sação estava voltando para casa, me-oh-my-oh.

E por que era assim? Porque beber do lago tinha suas regalias e seus privilégios? Porque às vezes você trazia de volta para este mundo o que pegava naquele? O que pegava e engolia? Sim, sim e sim.

— Lisey, querida, você está bem?

Toda aquela preocupação calorosa, todo aquele maternalismo era tão estranho à índole habitual de Amanda que fez Lisey ter uma sensa­ção de irrealidade.

— Estou ótima — disse ela. — Só estava descansando a vista.

— Você se importaria se eu assistisse um pouco deste filme? En­contrei no meio das outras fitas de Scott. A maioria deles parecia bem ruim, mas sempre quis ver este e nunca tive a oportunidade. Talvez sirva para me distrair um pouco.

— Por mim, tudo bem — disse Lisey —, mas aviso logo que te­nho quase certeza de que está faltando uma parte no meio. Essa fita é velha.

Amanda estava analisando o verso da caixa.

— O Jeff Bridges parece uma criança.

— Parece, não é? — disse Lisey com brandura.

— E Ben Johnson está morto, é claro... — Ela se deteve. —Talvez seja melhor não. A gente pode não ouvir seu namor... a gente pode não ouvir Dooley, se ele vier.

Lisey destampou a caixa de sapatos, retirou o Pathfinder e apontou para as escadas que desciam até o celeiro.

— Eu tranquei a porta da escada lá de fora — disse ela —, então só dá para subir por aqui. E eu estou de olho.

— Ele poderia começar um incêndio lá no celeiro — disse Aman­da, nervosa.

— Ele não quer me ver cozida... que graça teria isso? — Além disso, pensou Lisey, eu tenho um lugar para ir. Enquanto minha boca estiver tão doce quanto está agora, tenho um lugar para ir, e não acho que vá ser pro­blema levar você comigo, Manda. Nem mesmo dois pratos de macarrão e dois copos de Kool-Aid de cereja tiraram aquele gosto doce delicioso da sua boca.

— Bem, se você tem certeza de que não vai te atrapalhar...

— Por acaso parece que eu estou estudando para as provas finais? Vá em frente.

Amanda voltou para o anexo.

— Espero que este videocassete ainda funcione. — Ela parecia uma mulher que tivesse descoberto um gramofone e uma pilha de dis­cos de acetato antigos.

Lisey olhou para as muitas gavetas da Jumbona do Dumbo, mas remexer nelas parecia inútil... e provavelmente era. Ela imaginava que havia muito pouca coisa realmente de valor ali. Não nas gavetas, nos fichários ou escondido nos discos rígidos dos computadores. Talvez houvesse algum tesouro para os mais fanáticos dos Incunks, os cole­cionadores e acadêmicos que mantinham seus empregos em grande parte ao examinar o equivalente literário à sujeira de umbigo nos pe­riódicos obscuros uns dos outros; idiotas pretensiosos que estudaram demais e perderam contato com a essência dos livros e da leitura e se contentariam em transformar palha em ouro de tolo na forma de nota de rodapé por décadas a fio. No entanto, todos os puros-sangues esta­vam fora do celeiro. A produção de Scott Landon que agradara leito­res comuns — pessoas presas em aviões entre L.A. e Sydney; em salas de espera de hospitais; atravessando preguiçosamente dias de férias de verão longos e chuvosos; alternando-se entre o romance da semana e um quebra-cabeça no jardim-de-inverno — já havia sido toda ela pu­blicada. A Pérola Secreta, lançado um mês depois da sua morte, tinha sido o último.

Não, Lisey, sussurrou uma voz e, a princípio, ela pensou que fosse a de Scott. Então — veja que loucura —, achou que era a voz do Velho Hank. Mas aquilo era loucura, pois não era uma voz de homem. Seria a voz da Mãezinha Querida, sussurrando na sua cabeça?

Acho que ele queria que eu te contasse alguma coisa. Tinha algo a ver com uma história.

Não era a voz da Mãezinha Querida — embora a colcha dela fizesse parte daquilo de alguma forma —, e sim a de Amanda. Elas haviam se sentado juntas naqueles bancos de pedra, olhando para o belo navio chamado Malva-rosa, que sempre ficava ancorado, mas nunca zarpava. Lisey jamais percebera como sua mãe e sua irmã mais velha soavam pa­recidas até se lembrar dos bancos. E...

Tinha algo a ver com uma história. A sua história. A história de Lisey.

Amanda tinha dito mesmo aquilo? Era como um sonho, e Lisey não podia ter certeza, mas achava que sim.

E com a colcha. Só que...

— Só que ele chamava de trouxa — disse Lisey com uma voz bai­xinha. — Ele falava trouxa e bool. Não boop, ou beep; bool.

— Lisey — chamou Amanda do outro quarto. — Você disse al­guma coisa?

— Só estou falando sozinha, Manda.

— Isso significa que você tem dinheiro no banco — disse Amanda, e então se ouviu apenas a trilha sonora do filme. Lisey parecia se lembrar de cada fala dele, de cada trecho arranhado da música.

Se você me deixou uma história, Scott, onde está ela? Não está aqui em cima no escritório, aposto que não. E nem no celeiro — não há nada lá embaixo além de bools falsos, como Ike Volta para Casa.

Contudo, aquilo não era exatamente verdade. Pelos menos dois prêmios de verdade estavam no celeiro: a pá de prata e a caixa de cedro da Mãezinha Querida, escondida debaixo da cama de Bremen. Com o regalo quadrado dentro dela. Era a isso que Amanda se referira?

Lisey achava que não. Havia uma história naquela caixa, mas era a história deles — Scott e Lisey: Agora Somos Dois. Então qual era a história dela? E onde estava?

E falando de onde, onde estava o Príncipe Negro dos Incunks?

Não estava na secretária eletrônica da casa de Amanda; tampouco na secretária dali. Lisey havia encontrado apenas uma mensagem e ela havia sido do oficial Alston.

— Sra. Landon, a tempestade fez bastante estrago na cidade, espe­cialmente na região sul. Alguém, espero que seja seu Dan Boeckman, vai passar aí para conferir se está tudo bem assim que possível, mas, enquan­to isso, eu estou ligando para lembrá-la de manter as portas trancadas e não deixar ninguém que a senhora não consiga identificar entrar. Isso significa pedir que a pessoa tire o chapéu ou o capuz da capa de chuva se estiver chovendo canivete, o.k.? E mantenha sempre o celular à mão. Lembre-se, em caso de emergência, a senhora só precisa apertar a DISCA­GEM RÁPIDA e a tecla 1. A ligação vai cair direto no gabinete do xerife.

— Ótimo — comentara Amanda. — Nosso sangue vai estar escor­rendo em vez de coagulado quando eles chegarem aqui. Isso provavel­mente vai agilizar os exames de DNA.

Lisey não se deu o trabalho de responder. Não tinha intenção de deixar o gabinete do xerife de Castle County lidar com Jim Dooley. Até onde sabia, seria mais fácil Jim Dooley cortar a própria garganta com seu abridor de latas Oxo.

A luz da secretária eletrônica no seu escritório no celeiro estava piscando, o número 1 aparecendo no painel de MENSAGENS RE­CEBIDAS, porém, quando Lisey apertou o PLAY, houve apenas três segundos de silêncio, uma inspiração suave e o som do telefone sendo desligado. Poderia ter sido engano, as pessoas discavam o número erra­do e desligavam o tempo todo, mas ela sabia que não era o caso.

Não. Tinha sido Jim Dooley.

Lisey se sentou na cadeira de escritório, correu um dedo pelo cabo de borracha do .22, então o apanhou e girou o tambor para fora. Era fácil depois de treinar algumas vezes. Ela carregou as câmaras e então girou o tambor de volta para o lugar. Ele fez um pequeno, porém defi­nitivo, clique.

No outro quarto, Amanda riu de alguma coisa no filme. Lisey sor­riu de leve para si mesma. Não acreditava que Scott tivesse exatamente planejado aquilo tudo; não planejava nem seus livros, por mais comple­xos que alguns deles fossem. Planejá-los, dizia ele, tiraria toda a graça. Scott afirmava que, para ele, escrever um livro era como encontrar uma linha de cor brilhante na grama e segui-la para ver onde ela iria dar. As vezes a linha se partia e deixava você na mão. Mas às vezes — se você tivesse sorte, coragem e perseverança — ela o conduzia a um tesouro. E o tesouro nunca era o dinheiro que você ganhava com o livro, e sim o próprio livro. Lisey imaginava que os Roger Dashmiel do mundo não acreditavam naquilo e os Joseph Woodbody achavam que deveria ser algo mais grandioso — mais sublime —, mas Lisey vivera com ele, de modo que acreditava. O que ele nunca havia lhe dito (mas ela achava que sempre adivinhara) era que, se a linha não se partisse, ela sempre le­vava de volta à praia. De volta ao lago em que todos vamos beber, jogar nossas redes, nadar e, às vezes, nos afogarmos.

E será que ele sabia? No fim das contas, será que ele sabia que era o fim?

Ela se empertigou um pouco na cadeira, tentando se lembrar se Scott a desencorajara a acompanhá-lo na viagem que fez a Pratt, uma pequena, porém bem-afamada, escola de arte liberal na qual ele leu trechos de A Pérola Secreta pela primeira e última vez. Ele desmaiara na metade da recepção que se seguiu. Noventa minutos depois, ela estava em um avião e um dos convidados daquela recepção — um cirurgião cardiovascular arrastado para a leitura de Scott pela esposa — o estava operando numa tentativa de salvar sua vida, ou pelo menos mantê-lo vivo tempo o suficiente para ser levado para um hospital maior.

Ele sabia? Ele tentou me manter longe de propósito porque sabia que estava chegando?

Ela não acreditava exatamente naquilo, mas quando recebeu a liga­ção do professor Meade não havia entendido que Scott sabia que algo estava por vir? Se não o garoto espichado, aquilo? Não era por isso que suas finanças estavam tão perfeitamente em ordem, todos os documen­tos impecavelmente assinados?

Eu aconselharia a senhora a vir assim que nos der permissão para a cirurgia, dissera o professor Meade. E ela havia feito exatamente isso, li­gando para a empresa de táxi aéreo que usavam depois de falar com uma voz anônima no escritório central do Bowling Green Community Hos­pital. Para o funcionário do hospital, ela se identificou como a esposa de Scott Landon, Lisa, e deu permissão ao dr. Jantzen para realizar uma traqueostomia (uma palavra que ela mal conseguia pronunciar) e “todos os procedimentos resultantes”. Com a empresa de táxi aéreo ela havia sido mais taxativa. Queria o jato mais rápido disponível. O Gulfstream era mais rápido do que o Lear? Ótimo. Então seria o Gulfstream.

No anexo do lazer, na terra preto-e-branco de A Última Sessão de Cinema, onde Anarene significava lar e Jeff Bridges e Timothy Bottoms sempre seriam garotos, o Velho Hank estava cantando sobre o destemi­do chefe indígena Kaw-Liga.

Lá fora, o ar começou a ficar vermelho — como quando o pôr do sol se aproximava em uma certa terra mística que foi descoberta certa vez por dois meninos assustados da Pensilvânia.

Tudo aconteceu muito rápido, sra. Landon. Eu gostaria de ter algumas respostas para a senhora, mas não tenho. Talvez o dr. Jantzen as tenha.

Porém, ele não tinha. O dr. Jantzen executara uma traqueostomia, mas isso também não servia de resposta.

Eu não sabia o que era aquilo, pensou Lisey, enquanto lá fora o sol avermelhado se aproximava das colinas a oeste. Não sabia o que era uma traqueostomia, não sabia o que estava acontecendo... só que, apesar de tudo que havia escondido atrás da roxidão, eu sabia.

Os pilotos providenciaram uma limusine enquanto ela ainda estava no ar. Passava das onze quando o Gulfstream aterrissou e já passava da meia-noite quando ela chegou àquela pilha de blocos de concreto que eles chamavam de hospital, mas o dia tinha sido quente e ainda estava quente. Ela se lembrava de, quando o motorista abriu a porta, ter sentido que poderia esticar as mãos, torcê-las e arrancar água do próprio ar.

E havia cachorros latindo, é claro — o que parecia todos os cachorros de Bowling Green latindo para a lua —, e, meu Deus, aquilo sim era déjà­ vu, havia um velho encerando o chão do corredor e duas senhoras sentadas na sala de espera, gêmeas idênticas ao que parecia, as duas com no mínimo 80 anos, e logo adiante

 

Logo adiante há dois elevadores pintados de azul-acinzentado. Um avi­so em um cavalete na frente deles diz: FORA DE SERVIÇO. Lisey fecha os olhos e estende a mão cega para se apoiar contra a parede, convicta por um instante de que iria desmaiar. E por que não? Parecia que não havia viajado apenas por quilômetros, como também pelo tempo. Aquele não era o Bowling Green em 2004, mas Nashville em 1988. Seu marido estava com um problema no pulmão, sem dúvida, mas do tipo calibre .22. Um louco meteu uma bala nele, e teria metido várias outras, se Lisey não tivesse sido rápida com a pá de prata.

Ela espera que alguém lhe pergunte se ela está bem, talvez até a agarre e a equilibre em suas pernas trêmulas, mas ouve apenas o barulho da enceradeira do velho faxineiro e, em algum lugar muito distante, o leve repicar de um sino que a faz pensar em algum outro sino e algum outro lugar, um sino que às vezes ressoa por detrás da cortina roxa que ela cerrou cuidadosamente sobre algumas partes do seu passado.

Ela abre os olhos e vê que a mesa da recepção está vazia. Há uma luz acesa atrás da janela que diz INFORMAÇÃO, de modo que Lisey tem certeza de que deveria ter alguém de plantão ali, mas ele ou ela deu uma saída, talvez para ir ao banheiro. As gêmeas idosas estão com os olhos baixados para o que parecem ser revistas de sala de espera idênticas. Além das portas de entrada, sua limusine está prostrada atrás de seus fa­róis amarelos como algum exótico peixe abissal. Do lado de dentro das portas, um pequeno hospital municipal atravessa aos cochilos a primei­ra hora de um novo dia e Lisey percebe que, a não ser que comece a botar a boca no trombone, como diria Dandy, ela vai ficar na mão. A sensação que isso engendra não é de medo, irritação ou perplexidade, e sim de uma profunda tristeza. Mais tarde, voando de volta para o Maine com os restos mortais de seu marido dentro de um caixão sob seus pés, ela pensará: Foi naquele instante que eu soube que ele jamais sairia daquele lu­gar vivo. Ele tinha chegado ao fim da linha. Tive uma premonição. E quer saber de uma coisa? Acho que a culpa foi daquele aviso na frente dos eleva­dores. Aquela joça daquele aviso de FORA DE SERVIÇO. Isso mesmo.

Ela pode procurar pelo diretório do hospital, ou pedir informações ao faxineiro que está encerando o chão, mas Lisey não faz nada disso. Ela está certa de que conseguirá encontrar Scott na UTI se ele tiver saído da cirurgia, e o encontrará no terceiro andar. Essa intuição é tão forte que ela quase espera ver um tapete mágico grosseiro, feito de saco de farinha, flutuando ao pé da escada quando chega até lá, um quadrado farelento de algodão com as palavras A FARINHA NÚMERO UM DE PILLSBURY inscritas. Isso não acontece, é claro, e, quando ela chega ao terceiro andar, está melada de suor e seu coração lhe esmurra o peito. No entanto, a porta de fato diz BGCH UNIDADE DE TRATAMENTO INTENSIVO, e aquela sensação de estar em um sonho onde o passado e o futuro se juntaram em um loop interminável fica ainda mais forte.

Ele está no quarto 319, pensa Lisey. Ela está certa disso, embora possa ver que houve muitas mudanças desde a última vez em que veio visitar seu marido ferido em um hospital. A mais óbvia delas são os monitores do lado de fora de cada quarto; eles mostram toda sorte de leituras. As únicas que Lisey reconhece com certeza são as do pulso e da pressão sangüínea. Ah, e os nomes, esses ela sabe ler. COLVETTE-­JOHN, DUMBARTON-ADRIAN, TOWSON-RI- CHARD, VAN­DERVEAUX-ELIZABETH (Lizzie Vanderveaux, isso sim é um trava­língua, pensa ela), DRAYTON-FRANKLIN. Ela está se aproximando do 319 e pensa: A enfermeira vai sair com a bandeja de Scott nas mãos e de costas para mim; não vou tentar assustá-la, mas ela vai se assustar assim mesmo, é claro. Ela derrubará a bandeja. Os pratos e a xícara de café fica­rão intactos, são velhos guerreiros de cafeteria, mas aquela jarra de suco se despedaçará em um milhão de pedacinhos.

Porém, é madrugada, e não manhã, não há ventiladores revolven­do o ar no teto e o nome no monitor sobre a porta do quarto 319 é YANEZ-THOMAS. Ainda assim, a sensação de déjà vu é forte o bas­tante para fazê-la olhar para dentro do quarto e ver uma enorme baleia encalhada em forma de homem — Thomas Yanez — em uma cama de solteiro. Ela tem uma sensação de despertar que talvez os sonâmbulos experimentem; olha ao redor com pavor e espanto crescentes, pensan­do: O que eu estou fazendo aqui? Sou capaz de levar uma bronca por estar aqui em cima sozinha. Então ela pensa: TRAQUEOSTOMIA. E pensa: ASSIM QUE NOS DER PERMISSÃO PARA A CIRURGIA, consegue quase ver a palavra CIRURGIA pulsando em letras vermelho-sangue gotejantes e, em vez de ir embora, continua descendo rapidamente até a luz mais brilhante no centro do corredor, onde deve ficar o posto de en­fermagem. Um pensamento terrível começa a vir à tona em sua mente

(e se eleja estiver)

e ela o empurra para longe, o empurra de volta para baixo.

No posto de enfermagem, uma enfermeira com um uniforme no qual personagens de desenho animado da Warner Bros. saltam loucamen­te está fazendo anotações em uma série de tabelas espalhadas à sua frente. Outra está falando baixinho em um pequeno microfone preso à lapela do seu top de raiom branco mais tradicional, enquanto aparentemente lê nú­meros em um monitor. Atrás delas, um ruivo magricela esparrama-se em uma cadeira dobrável com o queixo descansando no peito da sua camisa social branca. Um paletó preto que combina com suas calças está pendu­rado no espaldar da cadeira. Está sem sapatos e sem gravata — Lisey con­segue ver a ponta dela saindo de um dos bolsos do paletó. Suas mãos estão frouxamente entrelaçadas no colo. Ela pode ter tido uma premonição de que Scott não sairá vivo do Bowling Green Community Hospital, porém nem suspeita que está olhando para o médico que o operou, prolongando sua vida tempo o suficiente para que eles possam se despedir depois da­queles quase sempre bons — que diabo, quase sempre ótimos — 25 anos juntos; ela dá cerca de 17 anos para o rapaz adormecido, e pensa que ele talvez seja filho de uma das enfermeiras da UTI.

— Com licença — diz Lisey. As duas enfermeiras pulam em suas cadeiras. Desta vez, Lisey consegue assustar duas delas, em vez de uma. A enfermeira com o microfone ficará com um “Oh!” na sua fita. Lisey está pouco se lixando. — Meu nome é Lisa Landon e fui informada que meu marido, Scott...

— Sra. Landon, sim. Claro. — É a enfermeira com o Pernalonga em um peito e o Hortelino Troca-Letras apontando uma espingarda para ele no outro, enquanto o Patolino olha para cima do vale abaixo. — O dr. Jantzen está esperando para falar com a senhora. Ele realizou os primeiros socorros na recepção.

Lisey ainda não consegue entender aquilo, talvez em parte porque não teve tempo de procurar traqueostomia no Dicionário de Termos Médicos.

— Scott... o quê, ele desmaiou? Teve uma síncope?

— Tenho certeza de que o dr. Jantzen lhe dará os detalhes. A senhora sabia que ele fez uma pleurostomia parietal além da traqueostomia?

Pleuro-o quê? Parece-lhe mais fácil apenas dizer que sim. Enquanto isso, a enfermeira que estava ditando estende uma das mãos e sacode o ruivo adormecido. Quando seus olhos se abrem piscando, Lisey percebe que se enganou a respeito da sua idade, ele provavelmente é velho o bas­tante para comprar uma bebida em um bar, mas com certeza ninguém vai lhe dizer que foi ele quem abriu o peito do seu marido. Certo?

— A operação — diz Lisey, sem saber para qual integrante do trio está se dirigindo. Há um desespero inconfundível em sua voz; ela não gosta disso, mas não pode fazer nada a respeito. — Foi um sucesso?

A enfermeira da Warner Bros. hesita por apenas um instante e Li­sey vê tudo o que teme naqueles olhos que se desviam subitamente dos dela. Então eles voltam a encará-la e a enfermeira diz:

— Este é o dr. Jantzen. Ele está esperando a senhora.

 

Depois das piscadelas desnorteadas iniciais, Jantzen desperta rápido. Lisey pensa que deve ser uma coisa de médico — provavelmente de po­liciais e bombeiros também. Certamente não era uma coisa de escritor. Não dava nem para falar com ele antes da segunda xícara de café.

Lisey percebe que acabou de pensar no marido no passado e um calafrio levanta os cabelos da sua nuca e arrepia seus braços. Ele é segui­do por uma sensação de leveza ao mesmo tempo maravilhosa e terrível. É como se a qualquer momento ela fosse sair flutuando como um balão cuja linha arrebentou. Sair flutuando para

(cale-se, pequena Lisey, não fale nisso)

algum outro lugar. Para a lua, talvez. Lisey tem que fincar as unhas nas palmas das mãos para continuar de pé.

Enquanto isso, Jantzen está murmurando para a enfermeira da Warner Bros. Ela escuta e assente.

— Não se esqueça de colocar isso no papel depois, hein?

— Antes de o relógio na parede marcar duas — Jantzen garante a ela.

— E tem certeza de que é assim que quer que seja? — insiste ela, sem questionado sobre o assunto, seja ele qual for, pensa Lisey, apenas se certificando de que entendeu tudo perfeitamente.

— Tenho — diz ele, então se volta para Lisey e pergunta se ela está pronta para subir para a Unidade de Isolamento Alton. É lá, segundo ele, que está seu marido. Lisey diz que seria ótimo. — Bem — diz Jent­zen com um sorriso que parece cansado e não muito sincero. — Espero que esteja com suas botas de trilha. É no quinto andar.

Enquanto eles voltam para as escadas — passando por YANEZ-THO- MAS e VANDERVEAUX-ELIZABETH —, a enfermeira da Warner Bros. está ao telefone. Mais tarde, Lisey entenderá que a con­versa sussurrada era Jantzen pedindo que ela ligasse para o quinto andar e mandasse retirar Scott do ventilador. Isto é, se ele estivesse consciente o bastante para reconhecer a esposa e ouvir seu adeus. Talvez até para dizer seu próprio adeus para ela, se Deus lhe desse mais uma lufada de vento para que ele navegasse pelas suas cordas vocais. Mais tarde, ela en­tenderá que retirá-lo do ventilador encurtou sua vida de horas para mi­nutos, mas que Jantzen achou que era uma troca justa, uma vez que, na sua opinião, quaisquer horas que Scott Landon ganhasse não poderiam lhe oferecer esperança alguma de recuperação. Mais tarde ela entenderá que eles o colocaram na coisa mais próxima que aquele pequeno hospi­tal comunitário tinha de um leprosário.

Mais tarde.

 

Na subida lenta e ininterrupta dos dois pela escadaria quente até o quinto andar, ela descobre o quão pouco Jantzen pode lhe dizer sobre o que há de errado com Scott — e o quão precioso é o que ele sabe. A traqueostomia, segundo ele, não era uma cura, mas apenas uma manei­ra de remover um acúmulo de fluidos; o outro procedimento foi para remover o ar preso nas cavidades pleurais.

— De que pulmão nós estamos falando, dr. Jantzen? — pergunta ela, e ele a aterroriza ao responder:

— Dos dois.

 

É então que ele lhe pergunta há quanto tempo Scott está doente e se ele procurou um médico “antes de a crise atual piorar”. Ela lhe diz que Scott não teve crise nenhuma. Que ele não estava doente antes. Ficou com o nariz escorrendo pelos últimos dez dias e andou tossindo e es­pirrando um pouco, mas tinha sido praticamente só isso. Ele nem che­gou a tomar antialérgico algum, embora achasse que fosse alergia, e ela também. Ela teve alguns dos mesmos sintomas, eles costumam aparecer todo fim de primavera, começo de verão.

— Nada de tosse profunda? — pergunta ele à medida que se apro­ximam do quinto andar. — Nada de tosse profunda e seca, tipo tosse de fumante pela manhã? A propósito, desculpe pelos elevadores.

— Não tem problema — diz ela, lutando para não resfolegar. — Ele teve uma tosse, como eu disse, mas muito leve. Ele fumava, mas parou há anos. — Ela pensa. — Acho que a tosse ficou um pouco mais forte nos últimos dias, e ele me acordou à noite uma vez...

— Na noite passada?

— Sim, mas ele bebeu um copo d’água e ela passou. — Quando ele abre a porta para outro silencioso corredor de hospital, Lisey coloca a mão no seu braço para impedi-lo. — Veja bem... aquela leitura que ele fez ontem à noite? Houve uma época em que Scott teria aturado meia dúzia daquelas belezinhas mesmo com uma febre de 40°C. Ele teria se esbaldado com os aplausos e pedido mais. Mas essa época terminou há uns cinco, talvez sete anos. Se ele estivesse mesmo doente, tenho certeza de que teria ligado para o professor Meade, o chefe do Departamento de Inglês, e cancelado essa joç... essa droga de leitura.

— Sra. Landon, quando nós o internamos, seu marido estava com uma febre de 4l°C.

Agora ela só consegue olhar para o dr. Jantzen — com aquela cara nada confiável de adolescente — com um horror mudo e algo que não é exatamente descrença. Com o tempo, no entanto, uma imagem começa a se formar. Há provas o suficiente, aliadas a certas lembranças que não querem continuar totalmente enterradas, para lhe mostrar tudo o que precisa ver.

Scott pegou um táxi aéreo de Portland para Boston, então pegou um avião da United de Boston para o Kentucky. Uma aeromoça do vôo da United que pegou seu autógrafo disse mais tarde para um repórter que o sr. Landon tossiu “quase o tempo todo” e estava vermelho.

— Quando perguntei se ele estava bem — disse ela ao repórter — ele falou que era apenas um resfriado, que tinha tomado duas aspi­rinas e iria ficar bem.

Frederic Borent, o aluno da pós-graduação que foi apanhá-lo no aeroporto, também mencionou a tosse e disse que Scott pediu para ele parar em uma farmácia para comprar um frasco de xarope.

— Acho que estou ficando gripado — comentou ele com Borent. Borent disse que estava muito ansioso para assistir à leitura e esperava que Scott conseguisse fazê-la. Scott falou: — Talvez você se surpreenda.

Borent se surpreendeu. E ficou encantado. Assim como quase toda a platéia de Scott naquela noite. De acordo com o Daily News de Bowling Green, ele fez uma leitura que foi “absolutamente hipnoti­zante”, apenas parando algumas vezes para as mais polidas tossidinhas, que pareceram facilmente abrandadas por um gole d’água do copo que ficava ao seu lado no pódio. Enquanto falava com Lisey horas depois, Jantzen continuava impressionado com a vitalidade de Scott. E foi seu espanto, aliado à mensagem repassada pelo chefe do Departamento de Inglês, que abriu uma fenda, por momentânea que fosse, na cortina de autocontrole que Lisey vinha mantendo cuidadosamente erguida. A última coisa que Scott disse a Meade, depois da leitura e logo antes de a recepção começar, foi:

— O senhor faria a gentileza de ligar para minha mulher? Diga-lhe que ela talvez tenha que pegar um avião até aqui. Diga que eu acho que comi algo que não devia depois do pôr do sol. É uma piada interna nossa.

 

Lisey despeja seu maior medo em cima do jovem dr. Jantzen, sem nem mesmo pensar no que está dizendo.

— Scott vai morrer disso, não vai?

Jantzen hesita e, de repente, ela percebe que ele pode ser jovem, mas não é nenhuma criança.

— Quero que a senhora o veja — diz ele depois de um instante que parece muito longo. — E quero que ele veja a senhora. Ele está cons­ciente, mas isso pode não durar muito. A senhora quer vir comigo?

Jantzen anda muito rápido. Ele pára no posto de enfermagem e o enfermeiro de plantão ergue os olhos do periódico que está lendo — Geriatria Moderna. Jantzen fala com ele. Os dois conversam em voz baixa, mas o andar está muito silencioso e Lisey escuta o enfermeiro dizer quatro palavras muito claramente. Elas a aterrorizam.

— Ele a está esperando — diz o enfermeiro.

Na outra ponta do corredor há duas portas fechadas com a seguin­te mensagem escrita em um laranja brilhante:

 

UNIDADE DE ISOLAMENTO ALTON

CONSULTE O (A) ENFERMEIRO (A) ANTES DE

ENTRAR

SIGA TODAS AS PRECAUÇÕES

PARA O SEU BEM

E PARA O BEM DELES

PODE SER NECESSÁRIO O USO

DE MÁSCARAS E LUVAS

 

À esquerda da porta há uma pia na qual Jantzen lava as mãos e ele instrui Lisey a fazer o mesmo. Em uma maca à direita há máscaras de gaze, luvas de látex em pacotes fechados, protetores de sapato amarelos e elásticos em uma caixa de papelão com PARA TODOS OS TAMANHOS estam­pado na lateral e uma pilha bem-arrumada de aventais cirúrgicos verdes.

— Isolamento — diz ela. — Meu Deus, vocês estão achando que o meu marido está com a joça do Enigma de Andrômeda.

Jantzen tergiversa:

— Nós achamos que ele está com algum tipo exótico de pneumo­nia, talvez seja até a gripe aviária, mas, o que quer que seja, ainda não conseguimos identificar e é...

Ele não conclui a frase, parece não saber como, então Lisey o ajuda.

— Está fazendo gato e sapato dele, como se diz.

— Só a máscara deve ser o suficiente, sra. Landon, a não ser que a senhora tenha cortes. Não notei quando a senhora estava...

— Não acho que precise me preocupar com cortes e não preciso de máscara. — Ela abre a porta esquerda com um empurrão antes de ele conseguir se opor. — Se fosse contagioso, eu já teria pegado.

Jantzen a segue para dentro da UI Alton, colocando uma das más­caras de pano verde sobre a boca e o nariz.

 

Há apenas quatro quartos no fim do corredor do quinto andar e apenas um dos monitores está ligado; apenas um dos quartos está produzindo os bipes de equipamento hospitalar e o fluxo suave e constante de oxi­gênio sendo bombeado. O nome no monitor debaixo do pulso terrivel­mente alto — 178 — e da pressão sangüínea terrivelmente baixa — 8 por 4 — é LANDON-SCOTT.

A porta está entreaberta. Nela, há um aviso que mostra uma chama desenhada cortada por um X. Debaixo dela, em letras vermelho-vivas, há a seguinte mensagem: FOGO E FAÍSCAS PROIBIDOS. Ela não é nenhuma escritora, certamente nenhuma poeta, mas naquelas palavras Lisey encontra tudo o que precisa saber sobre como as coisas acabam; é a linha traçada debaixo do seu casamento, da mesma forma que se traça uma linha debaixo dos números que se quer somar. Fogo e faíscas proibidos.

Scott, que partiu com seu costumeiro grito sem-vergonha de “Inté, Lisey-jacaré!” e uma explosão de rock retro dos Flamin’ Groovies saindo do CD player do seu velho Ford, agora olha para ela com o rosto branco como leite. Apenas seus olhos estão completamente vivos, e quentes demais. Eles ardem como os olhos de uma coruja presa em uma cha­miné. Ele está do seu lado. O ventilador foi afastado da cama, mas ele consegue ver a gosma de catarro em seu tubo e sabe

(shhh, pequena Lisey)

que há germes ou micróbios ou os dois naquela merda verde que ninguém jamais será capaz de identificar, nem mesmo usando o melhor microscópio de elétrons e todos os bancos de dados da face da Terra.

— Ei, Lisey...

A saudação é um sussurro quase inaudível — Nada mais que uma lufada de vento por debaixo da porta, teria dito o velho Dandy —, mas ela o escuta e vai até ele. Uma máscara de oxigênio de plástico está pendu­rada em volta do seu pescoço, sibilando. Dois tubos de plástico brotam do seu peito, onde um par de incisões recém-fechadas parece um pássaro desenhado por uma criança. Os tubos que se projetam das costas dele dão a impressão de ser quase grotescamente maiores em comparação aos da frente. Aos olhos desolados de Lisey, eles parecem do tamanho de man­gueiras de radiador. São transparentes, e ela consegue ver um fluido turvo e pedaços sangrentos de tecido descendo por eles até uma espécie de ma­leta que está na cama ao seu lado. Isso não é Nashville; não é nenhuma bala calibre .22, e, embora seu coração proteste contra, um olhar basta para convencer sua mente de que Scott estará morto ao nascer do sol.

— Scott — diz ela, ajoelhando-se do lado da cama e pegando a mão quente dele nas suas mãos frias. — O que você foi fazer consigo mesmo dessa vez?

— Lisey. — Ele consegue apertar um pouco sua mão. Sua respira­ção é um chiado frouxo e estridente que a faz lembrar bem até demais daquele dia no estacionamento. Ela sabe exatamente o que ele vai dizer em seguida e Scott não a decepciona: — Estou com tanto calor, Lisey. Gelo?... Por favor?

Ela olha para sua mesa e não vê nada nela. Olha por sobre os ombros para o médico que a levou até lá, agora o Vingador Mascarado Ruivo.

— Doutor... — ela começa a falar e percebe que teve um branco. — Desculpe, esqueci seu nome.

— Jantzen, sra. Landon. E não tem problema algum.

— Poderia trazer um pouco de gelo para o meu marido? Ele está falando que está...

— Sim, claro. Eu mesmo vou pegar. — Ele sai imediatamente, Lisey percebe que ele só estava esperando um motivo para deixá-los sozinhos.

Scott aperta sua mão novamente.

— Estou indo — diz ele naquele mesmo sussurro quase inaudível. — Desculpe. Te amo.

— Scott, não! — E, absurdamente: — O gelo! O gelo está vindo!

Com o que deve ser um tremendo esforço, sua respiração chia mais alto do que nunca — ele levanta a mão e acaricia sua bochecha com um dedo quente. Então, as lágrimas de Lisey começam a cair. Ela sabe o que deve lhe perguntar. A voz apavorada que jamais a chama de Lisey, mas de pequena Lisey, aquela que guarda os segredos bem lá no fundo, protesta novamente que não, mas ela a empurra para longe. Todos os casamentos longos têm dois corações, um luminoso e outro negro. Lá está novamente o coração negro do casamento deles.

Ela se aproxima mais, adentrando a quentura moribunda dele. Consegue sentir o mais tênue fantasma do cheiro da espuma de barbear e do xampu que ele usou na manhã anterior. Aproxima-se até tocar com os lábios a concha quente da sua orelha. Ela sussurra:

— Vá, Scott. Arraste-se até aquela joça de lago se for necessário. Se o médico voltar aqui e encontrar a cama vazia, eu invento alguma coisa, não tem importância, mas vá até o lago para se curar, faça isso, por mim, seu maldito!

— Não posso — sussurra ele e começa um acesso de tosse quebra­diça que a faz recuar um pouco. Lisey acha que o acesso vai matá-lo, que vai simplesmente parti-lo em dois, mas, de alguma forma, Scott conse­gue controlá-lo. E por quê? Porque ele quer ter a última palavra. Mesmo ali, no seu leito de morte, em uma unidade de isolamento deserta à uma hora da manhã em uma cidadezinha do Kentucky, ele quer ter a última palavra. — Não vai... dar certo.

— Então eu vou! É só você me ajudar!

Porém, ele balança a cabeça.

— Deitado no meio do caminho... para o lago. Ele.

Ela entende imediatamente do que ele está falando. Olha com de­sespero para um dos copos d’água, onde às vezes dá para ver a coisa matizada. Ali, ou em um espelho, ou com o rabo do olho. Sempre na calada da noite. Sempre quando alguém está perdido, sentindo dor, ou ambos. O garotão de Scott. O garoto espichado de Scott.

— Dor... mindo. — Um som estranho saiu dos pulmões em de­composição de Scott. Ela imagina que ele esteja sufocando e estende a mão para tocar a campainha, então vê o brilho mordaz nos seus olhos febris e percebe que ele está ou rindo ou tentando rir. — Dormindo no... caminho. Lado... alto... céu... — Seus olhos giram para o teto e ela tem certeza de que ele está tentando dizer que o lado dele é tão alto quanto o céu.

Scott agarra a máscara de oxigênio no seu peito, mas não consegue erguê-la. Ela o ajuda, colocando-a sobre a boca e o nariz dele. Scott respira fundo várias vezes, então faz sinal para ela tirar a máscara nova­mente. Ela faz isso e, por alguns instantes — talvez por um minuto até —, sua voz soa mais forte.

— Eu fui para Boo’ya Moon de dentro do avião — diz ele com al­gum espanto. — Nunca tentei nada parecido. Pensei que fosse cair, mas apareci no Sweetheart Hill, como sempre. Fui de novo de dentro de um banheiro... no aeroporto. Uma última vez... sala de espera, logo antes da leitura. Ele ainda estava lá. O velho Freddy. No mesmo lugar.

Cristo, ele tem até um nome para aquela joça.

— Não conseguia chegar até o lago, então comi umas amoras... geralmente não tem problema,       mas...

Ele não consegue terminar. Ela lhe dá a máscara novamente.

— Era muito tarde — diz ela enquanto ele respira. — Era muito tarde, não é? Você as comeu depois do pôr do sol.

Ele assente.

— Mas era a única coisa que conseguia pensar em fazer.

Ele assente mais uma vez. Faz sinal para ela retirar a máscara novamente.

— Mas você estava bem durante a leitura! — diz ela. — Aquele professor Meade falou que você estava ótimo!

Ele sorri. É possivelmente o sorriso mais triste que ela viu na vida.

— Orvalho — diz ele. — Eu lambi das folhas. Da última vez que eu fui... de dentro da sala de espera. Pensei que talvez...

— Pensou que talvez fosse medicinal. Como o lago.

Ele diz sim com os olhos. Os olhos dele jamais a deixarão.

— E isso fez você melhorar. Por um tempo?

— Foi. Por um tempo. Agora... — Ele ergue um pouco os ombros num pedido de desculpas e vira a cabeça de lado. Desta vez, a tosse é mais forte e ela observa com horror que o fluxo dentro dos tubos é de um vermelho mais grosso e vivo. Ele estende o braço, tateando, e pega a mão dela novamente. — Eu estava perdido no escuro — sussurra ele. — Você me encontrou.

— Scott, não...

Ele assente. Sim.

— Você me viu por inteiro. Tudo... — Ele usa a mão livre para fazer um débil gesto circular: Tudo na mesma. Sorri um pouco ao olhar para ela.

— Aguente firme, Scott! Aguente firme!

Ele assente como se ela tivesse finalmente entendido.

— Aguente firme... espere o vento mudar de direção.

— Não, Scott, o gelo. — É tudo que ela consegue pensar em dizer. — Espere pelo gelo!

Ele diz baby. Chama-a de babyluv. E então o único som que há é o chiado constante de oxigênio saindo da máscara em volta do seu pesco­ço. Lisey coloca as mãos no rosto e as retirou secas. Estava ao mesmo tempo surpresa e nem um pou­co surpresa. Certamente estava aliviada; parecia que finalmente havia terminado seu luto. Ela imaginava que ainda tivesse muito trabalho a fazer lá em cima no escritório de Scott — ela e Amanda mal haviam começado —, mas achava ter feito um progresso inesperado limpando suas próprias tralhas naqueles últimos dois ou três dias. Ela tocou o seio ferido e não sentiu dor quase alguma. Isto é levar a cura espontânea a níveis sem precedentes, pensou ela, sorrindo.

No outro quarto, Amanda chorava indignada diante da tevê:

— Oh, seu imbecil. Deixe essa piranha para lá, não está vendo que ela não presta? -— Lisey inclinou uma orelha naquela direção e deduziu que Jacy estava prestes a convencer Sonny a se casar com ela. O filme estava quase terminando.

Ela deve ter avançado alguns pedaços, pensou Lisey, mas, quando viu a escuridão pesando sobre a luz do céu, percebeu que não. Ela estava sentada na Jumbona do Dumbo revivendo o passado por mais de uma hora e meia. Dando um jeitinho em si mesma, como gostavam de dizer os adeptos da Nova Era. E a quais conclusões ela havia chegado? Que seu marido estava morto, só isso. Morto e enterrado. Ele não estava esperando por ela pelo caminho em Boo’ya Moon, ou sentado em um daqueles bancos de pedra como ela o encontrara certa vez; também não estava envolvido em uma daquelas coisas sinistras, que pareciam morta­lhas. Scott havia deixado Boo’ya Moon para trás. Meu pequeno Huck, ele zarpou para os Territórios.

E o que tinha causado sua doença final? Seu atestado de óbito dizia pneumonia, e ela não via problema nisso. Eles poderiam ter colocado Bicado até a morte por um bando de patos nele e ele estaria morto do mesmo jeito — porém, ela não conseguia deixar de se perguntar. Aonde teria estado sua morte? Em uma flor que ele apanhou para cheirar? Em um inseto que enfiou o ferrão sob sua pele enquanto o céu se punha vermelho na morada dos trovões? Teria ele pego a doença numa rápida visita a Boo’ya Moon uma semana ou um mês antes da sua última leitu­ra em Kentucky, ou ela vinha esperando por décadas, como um relógio em contagem regressiva? Poderia ter sido um simples grão de terra que entrou debaixo de uma unha quando ele estava cavando o túmulo do irmão. Ou um simples vírus que ficou dormente por anos a fio, final­mente acordando em seu computador um dia, quando uma palavra re­lutante finalmente lhe veio à cabeça e ele estalou os dedos de satisfação. Talvez — aquele era um pensamento terrível, mas quem sabe? — ela pudesse tê-la trazido de volta consigo de uma de suas visitas, um ácaro letal em uma pequena partícula de pólen que ele houvesse tirado com um beijo da ponta do seu nariz.

Ah, merda, agora ela estava chorando.

Tinha visto uma caixa de Kleenex fechada na primeira gaveta esquerda da mesa. Ela a pegou, abriu, tirou dois lenços e começou a limpar os olhos com eles. No outro quarto, ouviu Timothy Bottoms gritar “Ele estava varrendo, seus filhos-da-puta!” e soube que o tempo havia dado mais um daqueles desajeitados pulos de corvo para a frente. Havia apenas mais uma cena no filme. Sonny volta para a mulher do treinador. Sua amante de meia-idade. Então os créditos sobem.

Na mesa, o telefone fez um breve ting. Lisey sabia o que aqui­lo queria dizer assim como soubera o que Scott quis dizer quando fez aquele gesto circular débil no fim de sua vida, o que significava tudo na mesma.

O telefone estava mudo, as linhas ou cortadas ou arrebentadas. Dooley estava ali. O Príncipe Negro dos Incunks tinha vindo pegá-la.


 

Lisey e o Garoto Espichado

(Pafko na Parede)

— Amanda, venha cá!

— Só um minuto, Lisey, o filme está quase...

— Amanda, agora!

Ela apanhou o telefone, confirmou o nada que havia dentro dele e o colocou de volta no gancho. Sabia de tudo. Parecia ter estado lá o tempo todo, como o gosto doce em sua boca. As luzes seriam as próxi­mas e, se Amanda não viesse antes que ele as apagasse...

Mas lá estava ela, parada entre o anexo do lazer e a sala principal longa, parecendo subitamente temerosa e velha. Na fita VHS, a mulher do treinador logo jogaria o bule de café na parede, irritada porque suas mãos estavam trêmulas demais para servi-lo. Lisey não ficou surpre­sa ao ver que suas próprias mãos estavam tremendo. Ela pegou o .22. Amanda viu quando ela fez isso e pareceu mais assustada do que nunca. Como uma senhora que preferiria estar na Filadélfia, no fim das contas. Ou catatônica. Tarde demais, Manda, pensou Lisey.

— Lisey, ele está aqui?

— Sim.

Ao longe, um trovão estourou, parecendo concordar.

— Lisey, como você sa...

— Porque ele cortou o telefone.

— O celular...

— Ainda está no carro. As luzes serão as próximas. — Ela alcançou a ponta da enorme mesa de madeira vermelha... Jumbona do Dumbo é um bom nome, pensou ela, quase dá para pousar um avião de caça nesta joça de mesa... e agora estava à distância de um tiro certeiro de onde estava a irmã, talvez a oito passos pelo tapete com as manchas marrons do seu próprio sangue nele.

Quando alcançou Amanda, as luzes ainda estavam acesas e Lisey teve um momento de dúvida. Afinal de contas, não era possível que um galho de árvore solto pelas chuvas da tarde tivesse finalmente caído, derrubando um cabo telefônico?

Claro, mas não é isso que está acontecendo.

Ela tentou entregar a arma a Amanda, mas ela não quis aceitada. O revólver caiu no carpete e Lisey se retesou esperando a explosão, que seria seguida ou pelo grito de Amanda ou pelo seu próprio depois que uma delas levasse um tiro no tornozelo. A arma não disparou, apenas ficou olhando ao longe com seu solitário olho idiota. Quando Lisey se agachou para apanhada, ouviu um baque vindo de baixo, como se alguém tivesse trombado com alguma coisa no celeiro e a derrubado. Uma caixa de papelão contendo em sua maioria páginas em branco, por exemplo — uma, de várias empilhadas.

Quando ela voltou a erguer os olhos para a irmã, as mãos de Aman­da estavam apertadas, a esquerda sobre a direita, sobre a mirrada saliên­cia do seu peito. Seu rosto empalidecera; seus olhos haviam se tornado lagos escuros de terror.

— Não posso segurar essa arma — sussurrou ela. — Minhas mãos... não está vendo? — Ela virou as palmas para cima, mostrando os cortes.

— Pegue a joça do revólver — disse Lisey. — Você não vai precisar atirar nele.

Desta vez, Amanda fechou os dedos com relutância em volta do cabo de borracha do Pathfinder.

— Promete?

— Não — disse Lisey. — Mas quase.

Ela olhou em direção à escada que conduzia ao celeiro. Era mais escuro naquela parte do escritório, e muito mais sinistro, especialmente agora que Amanda estava com a arma. A imprevisível Amanda, que poderia fazer qualquer coisa. Inclusive, talvez 50% das vezes, o que você pedia.

— Qual o seu plano? — sussurrou Amanda. No outro quarto, o Velho Hank estava cantando novamente, e Lisey soube que os créditos finais de A Última Sessão de Cinema estavam subindo.

Lisey colocou um dedo sobre os lábios em um gesto de Shhh

(agora você tem que ficar quieta)

e andou para trás, afastando-se de Amanda. Um passo, dois pas­sos, três passos, quatro. Agora ela estava no meio da sala, no meio do caminho entre a Jumbona do Dumbo e a porta do anexo, onde Amanda segurava o .22 desajeitadamente com o cano apontado para o tapete manchado de sangue. Um trovão estourou. Música country tocava ao fundo. Lá embaixo: silêncio.

— Não acho que ele esteja lá embaixo — sussurrou Amanda.

Lisey deu outro passo para trás na direção da mesa grande de bor­do vermelho. Ainda se sentia completamente ligada, quase vibrando de tensão, mas sua parte racional tinha que admitir que Amanda poderia ter razão. O telefone estava mudo, mas lá em View você poderia esperar ficar com ele fora de serviço pelo menos duas vezes por mês, principal­mente durante ou logo depois de tempestades. O barulho que ela ouviu quando agachou para apanhar a arma... será que tinha ouvido um baru­lho? Ou teria sido apenas imaginação sua?

— Não acho que tenha ninguém lá emb... — começou a falar Amanda, e foi então que as luzes se apagaram.

 

Por alguns segundos — intermináveis — Lisey não conseguiu ver nada e se amaldiçoou por não ter trazido a lanterna do carro. Teria sido tão fácil. Tudo que podia fazer era ficar onde estava, e precisava manter Amanda onde ela estava.

— Manda, não se mexa! Fica parada até eu mandar!

— Onde está ele, Lisey? — Amanda estava começando a chorar. — Onde está ele?

— Ora, bem aqui, senhora — falou Jim Dooley calmamente do breu onde ficava a escada. — E consigo ver vocês duas com esses óculos que eu estou usando. A senhora está meio verde, mas consigo te ver direitinho.

— Não consegue, não. Ele está mentindo — disse Lisey, mas sen­tiu seu estômago encolher. Não havia esperado que ele tivesse algum tipo de equipamento de visão noturna.

— Ah, madame... quero cair duro se eu estiver mentindo. — A voz ainda vinha do topo da escada e agora Lisey conseguia ver um vulto ali. Não conseguia ver seu saco de papel de horrores, mas, oh, meu Jesus, conseguia ouvir seu barulho. — Estou vendo bem o suficiente para sa­ber que é a sra. Grandalhona e Magrela que está com o berro. Coloque essa arma no chão, sra. Grandalhona. Agora mesmo. — Sua voz ficou mais ríspida e estalou como a ponta de um chicote cheio de pólvora. — Eu falei agora! Larga ela!

A escuridão era total lá fora e, se houvesse lua, ou ela não havia se erguido ou estava obstruída, mas a luz do céu oferecia iluminação o suficiente para mostrar a Lisey que Amanda estava baixando a arma. Ainda não a estava largando, mas baixando-a. Lisey teria dado tudo para estar com ela nas mãos, mas...

Mas preciso das duas mãos livres. Para quando chegar a hora eu poder agarrá-lo, seu filho-da-puta.

— Não, Amanda, fique com ela. Não acho que vá precisar atirar nele. Esse não é o plano.

— Largue a arma, senhora, esse é o plano.

Lisey falou:

— Ele entra aqui, onde não é o lugar dele, te chama do que bem entende e depois manda você largar a arma? A sua arma?

O fantasma quase invisível que era a irmã de Lisey voltou a erguer o Pathfinder. Amanda não o apontou para o vulto recortado que pairava nas sombras diante da escada, apenas a segurou com o cano apontado para o teto, mas a estava segurando. E tinha endireitado as costas.

— Falei pra você largar ela! — quase rosnou o vulto, mas algo na voz de Dooley disse a Lisey que ele sabia que a batalha estava perdida. A maldita sacola dele fez barulho.

— Não! — gritou Amanda. — Não vou largar! Pode... pode sain­do daqui! Vá embora e deixe minha irmã em paz!

— Ele não vai fazer isso — disse Lisey antes que a sombra no topo das escadas pudesse responder. — Não vai porque ele é louco.

— É melhor não falar desse jeito — retrucou Dooley. — A senhora pa­rece estar esquecendo que eu consigo te ver como se estivesse num palco.

— Mas você é louco. Tão louco quanto o garoto que atirou no meu ma­rido em Nashville. Gerd Allen Cole. Sabe quem é ele? É claro que sim, você sabe tudo sobre Scott. A gente costumava rir de caras como você, Jimmy...

— Agora já chega, madame...

— Chamávamos vocês de Caubóis do Espaço Sideral. Cole era um deles e você é outro. Mais esperto e mais cruel, porque é mais velho, mas não muito diferente. Um Caubói do Espaço Sideral é um Caubói do Espaço Sideral. Você viaaaaja pela joça da Via Láctea.

— É melhor parar com essa conversa — falou Dooley. Estava ros­nando novamente e, desta vez, Lisey pensou, não era só para fazer efei­to. — Estou aqui a negócios. — O saco de papel fez barulho e agora ela conseguia ver a sombra se mexer. As escadas ficavam a uns 15 metros da mesa e na parte mais escura da longa sala principal. No entanto, Dooley vinha na direção dela como se suas palavras o puxassem, e agora seus olhos haviam se adaptado completamente à escuridão. Mais alguns passos e os óculos bacanas dele encomendados pelo correio não fariam diferença. Eles estariam em pé de igualdade. Visualmente, pelo menos.

— E por que eu deveria parar? É verdade. — E era. De repente, ela sabia de tudo o que precisava saber sobre Jim Dooley, codinome Zack McCool, codinome Príncipe Negro dos Incunks. A verdade estava na ponta da sua língua, como aquele gosto doce. Ela era o gosto doce.

— Não o provoque, Lisey — disse Amanda com uma voz apavorada.

— Ele se provoca sozinho. Toda a provocação de que precisa sai direto do motor superaquecido que ele tem na cabeça. Igual a Cole.

— Eu num sou nada igual a ele! — gritou Dooley.

Compreensão reluzente em cada terminação nervosa. Explodindo em cada terminação nervosa. Dooley poderia ter ficado sabendo sobre Cole lendo sobre seu herói literário, mas Lisey não achava que fosse o caso. E tudo fazia um sentido tão perfeito e divino.

— Você nunca esteve em Brushy Mountain. Isso foi só uma his­tória que contou para Woodbody. Conversa de bar. Mas esteve preso, sim. Essa parte era verdade. Você esteve no manicômio. Esteve no ma­nicômio junto com Cole.

— Cala a boca, madame! Ouve o que eu tô falando e cala a boca agora mesmo!

— Lisey, pare! — gritou Amanda.

Ela não deu atenção a nenhum dos dois.

— Vocês ficaram discutindo seus livros favoritos de Scott Lan­don... isto é, quando Cole estava medicado o bastante para falar racio­nalmente? Aposto que sim. Ele gostava mais de Demônios Vazios, certo? E você de A Filha do Acomodado. Uma dupla de Caubóis do Espaço Si­deral conversando sobre literatura enquanto consertavam uma coisinha ou outra na joça do sistema de direção deles...

— Já disse que chega! — Nadando para fora da escuridão. Nadan­do para fora dela como um mergulhador emergindo da água negra para o verde da parte mais rasa, com óculos de mergulho e tudo. É claro que mergulhadores não traziam sacos de papel diante do peito para pro­tegerem seus corações dos golpes de viúvas cruéis que sabiam demais. — Não vou te avisar de novo...

Lisey não deu atenção. Não sabia se Amanda ainda estava seguran­do a arma e já não se importava. Ela estava delirante.

— Você e Cole falavam sobre os livros de Scott na terapia de gru­po? É claro que falavam. Sobre as questões paternas. E então, depois que deixaram você sair, Woodbundão apareceu, igual ao Pai em um livro de Scott Landon. Um dos Pais bons. Depois que eles te deixaram sair do hospício. Depois que te deixaram sair da fábrica de gritos. Depois que te deixaram sair da academia do riso, como se di...

Com um grito estridente, Dooley largou o saco de papel (ele reti­niu no chão) e se jogou para cima de Lisey. Ela teve tempo de pensar, Sim. É por isso que precisava estar com as mãos livres.

Amanda também gritou, seu grito abafando o dele. Dos três, ape­nas Lisey estava calma, pois só Lisey sabia exatamente o que estava fa­zendo... mesmo que não soubesse exatamente por quê. Não tentou fu­gir. Abriu os braços para Jim Dooley e o apanhou como uma febre.

 

Ele a teria derrubado no chão e caído em cima dela — Lisey não tinha dúvidas de que essa era sua intenção — não fosse pela mesa. Ela deixou o peso dele empurrada para trás, sentindo o cheiro do suor em seus cabelos e na sua pele. Também sentiu a curvatura dos óculos penetrar sua têmpo­ra e ouviu um clique rápido e baixo logo abaixo da sua orelha esquerda.

São os dentes dele, pensou ela. São os dentes dele tentando pegar meu pescoço.

Sua bunda bateu contra a lateral da Jumbona do Dumbo. Amanda gritou novamente. Houve um estrondo e um breve clarão de luz.

— Deixe ela em paz, seu filho-da-puta!

Muito bem dito, mas ela atirou no teto, pensou Lisey e apertou mais as mãos entrelaçadas na nuca de Dooley enquanto ele a dobrava para trás como um parceiro de dança no fim de um tango particularmente amo­roso. Sentia o cheiro de fumaça de revólver, seus ouvidos zumbiam e ela conseguia sentir também o pau dele, pesado e quase totalmente duro.

— Jim — sussurrou ela, abraçando-o. — Eu lhe darei o que quer. Deixe-me dar o que você quer.

Ele a soltou um pouco. Ela sentiu sua confusão. Então, com um uivo felino, Amanda se jogou nas costas dele e Lisey foi forçada para baixo novamente, quase se esparramando na mesa. Sua espinha deu um estalo de aviso, mas tudo que ela conseguia ver era o borrão oval do ros­to de Dooley — enxergava o suficiente para notar como ele parecia estar com medo. Ele teve medo de mim esse tempo todo?, perguntou-se ela.

É agora ou nunca, Lisey.

Ela buscou seus olhos atrás dos estranhos círculos de vidro, os en­controu e fixou o olhar neles. Amanda ainda estava uivando como uma gata em uma chapa quente, e Lisey via seus punhos esmurrando os om­bros de Dooley. Os dois punhos. Então ela havia disparado aquele tiro no teto e depois largado a arma. Bem, talvez fosse melhor assim.

— Jim. — Deus, o peso dele estava acabando com ela. — Jim.

Ele abaixou o rosto, como se atraído pelo seu olhar fixo e pela sua força de vontade. Por um instante, Lisey achou que, mesmo assim, não conseguiria prender a atenção dele. Então, com uma última e desespe­rada investida — Pafko na parede, teria dito Scott, citando Deus sabe quem —, ela conseguiu. Sentiu o cheiro da carne acebolada que Dooley havia jantado ao colar sua boca à dele. Ela usou a língua para forçar seus lábios a ficarem abertos, beijando com mais força, então lhe passou o segundo gole da água do lago. Ela sentiu a doçura ir embora. O mundo que conhecia oscilou e começou a ir junto. Aconteceu rápido. As pare­des ficaram transparentes e os cheiros misturados daquele outro mundo invadiram suas narinas: frangipana, buganvília, rosas, damas-da-noite.

— Jerômino — falou ela dentro da boca de Dooley e, como se estivesse apenas esperando por aquela palavra, o peso sólido da mesa debaixo deles se transformou em chuva. Logo em seguida, desapareceu por completo. Ela caiu; Jim Dooley caiu em cima dela; Amanda, ainda gritando, caiu em cima dos dois.

Bool, pensou Lisey. Bool, fim.

 

Ela aterrissou em um tapete de grama grosso tão familiar que era como se ti­vesse passado a vida inteira rolando nele. Teve tempo de registrar as árvores adoráveis, então o ar foi arrancado de seus pulmões em um uff longo e rui­doso. Pontos negros dançaram à sua frente no ar tingido pelo pôr do sol.

Poderia ter desmaiado se Dooley não tivesse saído rolando de cima dela. Quanto à Amanda, ele a tirou de suas costas com um jogar de ombros, como se ela não fosse mais do que uma gatinha impertinente. Então saltou de pé, olhando primeiro pela colina abaixo, acarpetada com tremoceiros roxos, e depois virando para o outro lado, na direção das árvores adoráveis que formavam a vanguarda do que Paul e Scott Lan­don chamavam de Floresta Mágica. Lisey ficou chocada com a aparência de Dooley. Ele parecia uma espécie de caveira coberta de carne e pêlos. Logo em seguida, percebeu que era por causa da finura do seu rosto combinada com as sombras do fim da tarde e com o que acontecera com seus óculos. As lentes não tinham viajado para Booya Moon. Seus olhos fitavam através dos buracos que elas ocupavam antes. Ele estava boquia­berto. Havia saliva pendurada entre seus lábios em fios prateados.

— Você sempre... gostou... dos livros de Scott — falou Lisey. Ela soava como uma corredora esbaforida, porém seu fôlego estava voltan­do e as partículas negras diante de seus olhos estavam desaparecendo. — O que acha do mundo dele, sr. Dooley?

— Onde... — Sua boca se mexeu, mas ele não conseguiu terminar.

— Boo’ya Moon, à beira da Floresta Mágica, perto do túmulo de Paul, o irmão de Scott.

Ela sabia que Dooley representaria tanto perigo para ela (e para Amanda) lá quanto no escritório de Scott assim que voltasse a pensar com o pouco de lucidez que tinha, mas ainda se permitiu olhar por um instante para aquela longa colina roxa e para o céu que escurecia. No­vamente o sol estava se pondo em um fogaréu laranja, enquanto a lua cheia se erguia do lado oposto. Ela pensou, como o havia feito antes, que aquela mistura de calor e prata fria poderia matá-la com sua beleza febril.

Não que fosse com a beleza que ela precisasse se preocupar. A mão queimada de sol de Dooley caiu sobre seu ombro.

— O que a senhora tá fazendo comigo, madame? — perguntou ele. Seus olhos estavam arregalados dentro dos óculos vazados. — Tá tentando me hipnotizar? Porque não vai conseguir.

— Nada disso, sr. Dooley — falou Lisey. -— O senhor não queria o que era de Scott? E, com certeza, isso é melhor do que qualquer história inédita, ou até mesmo do que cortar uma mulher com um abridor de latas, não é? Veja! Todo um mundo novo! Um lugar feito de imaginação! Sonhos fabricados do nada! Claro que é perigoso na floresta, é perigoso em qualquer lugar à noite, e já está quase anoitecendo, mas estou con­fiante de que um lunático corajoso e engatilhado como o senhor...

Ela viu o que ele pretendia fazer, viu seu assassinato claramente naqueles olhos estranhos e emoldurados e gritou o nome da irmã... alar­mada, sim, mas também começando a rir. Apesar de tudo. Rindo dele. Em parte porque ele estava muito idiota com aqueles óculos sem lentes, mas principalmente porque naquele momento fatídico o desfecho de uma velha piada de bordel lhe veio à mente: Ei, o letreiro de vocês caiu! O fato de que ela não se lembrava da piada em si só tornou aquilo mais engraçado.

Então Lisey ficou sem fôlego e não conseguia mais rir. Conseguia apenas emitir um som rascante com a garganta.

 

Ela arranhou o rosto de Dooley com suas unhas curtas mas nem per­to de inexistentes e deixou três sulcos sanguinolentos em uma de suas bochechas, mas as mãos que envolviam sua garganta não afrouxaram — pareciam até ter apertado mais. O barulho que ela emitia ficou mais alto, o som de algum mecanismo primitivo com sujeira nas engrena­gens. O separador de batatas do sr. Silver, talvez.

Amanda, onde está você, cacete?, pensou Lisey, e então Amanda apa­receu. Esmurrar as costas e os ombros de Dooley não tinha adiantado nada. Desta vez, ela se ajoelhou, pegou o saco dele através do jeans com as mãos feridas... e o torceu.

Dooley uivou e atirou Lisey longe. Ela saiu voando até a grama alta, caiu de costas e então se levantou novamente aos trancos, arquejan­do com a garganta em chamas. Dooley se agachou com a cabeça abaixa­da e as mãos entre as pernas, uma pose dolorida que fez Lisey se lembrar claramente de um acidente com uma gangorra no pátio da escola e de Darla falando em um tom casual: “Este é apenas um dos motivos que me deixam feliz de não ser um menino.”

Amanda correu para cima dele.

— Manda, não! — gritou Lisey, mas era tarde demais. Mesmo ferido, Dooley era incrivelmente rápido. Ele desviou com facilidade de Amanda e então a afastou com uma pancada do seu punho ossudo. Arrancou os óculos inúteis com a outra mão e os atirou na grama: ele os estilingou adiante. Toda pretensa sanidade havia abandonado aqueles olhos azuis. Ele poderia ser a coisa morta de Demônios Vazios, que sai implacavelmente de dentro do poço para se vingar.

— Não sei onde a gente tá, mas vou te dizer uma coisa, madame: a senhora nunca mais vai voltar pra casa.

— A não ser que me pegue, é você que nunca mais vai voltar para casa — falou Lisey. Então voltou a rir. Ela estava assustada... apavo­rada... mas rir era gostoso, talvez porque sabia que o riso era sua faca. Cada som de sua garganta em chamas enfiava a ponta dela mais fundo na carne dele.

— Não vem com essa risada de cavalo pra cima de mim, sua puta, nem ouse fazer isso! — rugiu Dooley, correndo para cima dela.

Lisey se virou para fugir. Não tinha dado mais que dois passos apressados em direção à trilha que cortava a floresta quando ouviu Dooley gritar de dor. Olhou por sobre o ombro e o viu de joelhos. Ha­via alguma coisa saindo de dentro do seu braço e sua camisa escurecia rapidamente ao redor dela. Dooley se levantou com dificuldade e a pu­xou, xingando. A coisa protuberante se moveu, mas não saiu. Lisey viu um brilho amarelo correndo atrás dela, na forma de uma linha. Dooley gritou novamente, então agarrou a coisa presa na sua carne com a mão livre.

Lisey compreendeu. Veio-lhe em um clarão, perfeito demais para não ser verdade. Ele havia começado a correr atrás dela, mas Amanda o derrubara logo em seguida. E ele caíra em cima da madeira que marcava o túmulo de Paul Landon. O pedaço da cruz saía de seu bíceps como um prego gigante. Então ele o arrancou e o jogou de lado. Mais sangue jorrou da ferida aberta, a vermelhidão escorrendo pela manga da cami­sa até o cotovelo. Lisey sabia que era preciso garantir que Dooley não voltaria sua raiva contra Amanda, que estava caída indefesa na grama quase aos seus pés.

— Você não me pega, você não me pega! — cantarolou Lisey, recor­rendo a uma provocação da infância da qual nem sabia que se lembrava. Então mostrou a língua para Dooley, girando os dedos na orelha para completar.

— Sua puta! Sua vadia! — gritou Dooley, disparando.

Lisey correu. Não ria mais, estava finalmente assustada demais para rir, mas ainda trazia um sorriso aterrorizado quando seus pés chegaram à trilha e ela entrou na Floresta Mágica, onde já era noite.

 

A placa que dizia PARA O LAGO tinha sumido; porém, à medida que Lisey descia correndo a primeira parte da trilha — uma linha branca opaca que parecia flutuar entre as massas mais escuras das árvores ao redor —, gargalhadas entrecortadas surgiram à sua frente. Risonhos, pensou ela, e arriscou um olhar por sobre o ombro, pensando que se seu amigo Dooley tivesse ouvido aquelas belezinhas, talvez houvesse mudado de idéia quanto...

Mas não. Dooley ainda estava lá, visível nos estertores da luz mor­tiça, pois havia se aproximado dela, estava realmente voando em sua direção, apesar do sangue negro que já cobria a manga esquerda da sua camisa do ombro ao punho. Lisey tropeçou em uma raiz no caminho, quase perdeu o equilíbrio e, de alguma forma, conseguiu mantê-lo, em parte ao recordar que Dooley estaria em cima dela em cinco segundos se caísse. A última coisa que sentiria seria seu hálito, o último cheiro que sentiria seria o aroma coalhado das árvores ao redor à medida que se transformavam em suas mais perigosas versões noturnas e a última coisa que ouviria seria o riso louco daquelas coisas parecidas com hienas que viviam nas profundezas da floresta.

Consigo ouvi-lo arfar. Consigo ouvi-lo porque ele está chegando perto. Mesmo comigo correndo o mais rápido possível — e não vou conseguir man­ter esse ritmo por muito tempo —, ele é um pouco mais veloz do que eu. Por que aquele apertão que Amanda deu no saco dele não o fez ficar mais lento? Por que a perda de sangue não fez isso?

A resposta àquela pergunta era simples, lógica, clara: as duas coisas estavam deixando-o mais lento. Não fosse por elas, ela já teria sido apa­nhada. Lisey estava na terceira marcha. Tentou engatar a quarta e não a achou. Pelo jeito, ela não tinha uma quarta marcha. Às suas costas, o som áspero e célere da respiração de Dooley se aproximou mais ainda e ela soube que, dentro de um minuto, talvez menos, sentiria o primeiro roçar de seus dedos nas costas da sua blusa.

Ou no seu cabelo.

 

A trilha se inclinou e ficou mais íngreme por alguns instantes; as som­bras ficaram mais espessas. Ela pensou que talvez estivesse finalmente ganhando um pouco de vantagem sobre Dooley. Não ousou lançar um olhar para trás para conferir e rezou para que Amanda não houvesse tentado segui-los. Poderia ser seguro na Sweetheart Hill e poderia ser seguro no lago, mas não era nem um pouco seguro naquela floresta. Jim Dooley não era nem de longe o maior dos problemas, tampouco. Agora, ela ouvia o sino de Chuckie G. repicar baixinho, como em um sonho, roubado por Scott numa outra vida e pendurado em uma árvore no topo da outra subida.

Lisey viu uma luz mais forte adiante; não mais um laranja-averme­lhado, e sim apenas um crepúsculo rosa mortiço. Ela vazava por onde as árvores ficavam menos espessas. A trilha estava mais iluminada tam­bém. Ela conseguia ver seu pequeno aclive. Além daquela próxima subi­da, lembrou, ela voltava a descer, serpeando através de um trecho ainda mais denso da floresta até chegar ao pedregulho e ao lago depois dele.

Não vou conseguir, pensou ela. A respiração que saía e entrava rasgando de sua garganta era quente e ela começava a sentir uma pontada no lado do corpo. Ele vai me pegar antes de eu chegar na metade daquela subida.

Foi a voz de Scott que respondeu, rindo na superfície, mas, por baixo, surpreendentemente raivosa. Você não veio até aqui para isso. Vá em frente, babyluv — ESPANE.

ESPANE, sim. Engatilhar nunca pareceu mais necessário do que naquele instante. Lisey disparou colina acima, os cabelos grudados na cabeça em cordões suarentos. Ela engolia o ar aos bocados, exalava-o em explosões rascantes. Quis sentir o gosto doce em sua boca, mas havia dado o último gole do lago para aquela joça de maluco que a perseguia e agora sua boca tinha o gosto de cobre e cansaço. Conseguia ouvi-lo se aproximar novamente, sem gritar, guardando todo o seu fôlego para a perseguição. A câimbra no lado do seu corpo ficou mais forte. Uma can­toria aguda e melodiosa começou a soar primeiro em seu ouvido direito, depois nos dois. As gargalhadas dos risonhos estavam mais próximas, como se quisessem estar presentes na hora. Ela conseguia sentir o cheiro das árvores mudando, como o aroma que antes era doce tinha ficado acre, como o cheiro da hena antiga que ela e Daria encontraram no ba­nheiro da Vovó D depois que ela morreu, um cheiro venenoso, e...

Não são as árvores.

Todos os risonhos se calaram. Agora havia apenas o som de Dooley arrancando sua respiração do ar à medida que corria atrás dela, tentan­do vencer aqueles últimos poucos metros de distância. E ela pensou foi nos braços de Scott envolvendo-a, Scott puxando-a contra seu corpo, Scott sussurrando: Shhh, Lisey. Pela sua vida e pela minha, agora você precisa ficar quieta.

Ela pensou: Ele não está deitado no caminho, como estava quando Scott tentou chegar até o lago em 2004. Desta vez está correndo do lado da trilha. Como estava quando eu vim buscá-lo no inverno da ventania de Yellowknife.

No entanto, assim que ela vislumbrou o sino, ainda pendurado naquele pedaço de corda podre, a última luz do dia brilhando na sua curva, Jim Dooley tomou um último impulso e Lisey sentiu de fato seus dedos passarem pelas costas da sua blusa, tentando agarrar algo, qualquer coisa, uma alça de sutiã serviria. Ela conseguiu conter o grito que subiu à sua garganta, mas foi por pouco. Disparou para a frente, arranjando um pouco mais de velocidade ela mesma, uma velocidade que provavelmente não teria adiantado nada se Dooley não tivesse trope­çado novamente, caindo com um grito — “Sua PUTA!” — do qual Lisey pensou que ele viveria para se arrepender.

Mas talvez não muito tempo.

 

O tímido repique ressurgiu do que antes era

(Pedido saindo, Lisey! Vamos, depressa!)

a Árvore do Sino e agora era a Árvore do Sino e da Pá. E lá estava ela, a pá de prata de Scott. Quando ela a havia deixado ali — seguindo uma intuição poderosa que agora compreendia —, os risonhos tinham tagarelado histericamente. Agora, a Floresta Mágica estava silenciosa, exceto pelos sons da sua própria respiração torturada e dos xingamentos esbaforidos que Dooley cuspia. O garoto espichado estava dormindo — cochilando, pelo menos — e a gritaria de Dooley o acordou.

Talvez fosse assim que tinha que ser, mas isso não facilitava as coi­sas. Era horrível sentir o sussurro dos pensamentos não-exatamente-alie­nígenas do seu subconsciente despertando. Eram como mãos inquietas tateando tábuas soltas ou testando a tampa fechada de um poço. Ela se viu pensando sobre várias coisas horríveis que tinham, em diferentes momentos, abalado seu coração: um par de dentes ensanguentados que havia encontrado certa vez no chão de um banheiro de cinema; dois garotinhos chorando abraçados em frente a uma loja de conveniência; o cheiro do marido dela deitado no seu leito de morte, encarando-a com seus olhos febris; Vovó D caída no galinheiro, morrendo, com os pés a se torcer, torcer e torcer.

Pensamentos terríveis. Imagens terríveis, do tipo que voltam para assombrar na calada da noite, quando a lua se põe, o remédio acaba e a hora é nenhuma.

Toda a coisa ruim, em outras palavras. Logo atrás daquelas poucas árvores.

E agora...

Naquele instante sempre perfeito e interminável chamado agora

 

Arquejando, choramingando, seu coração um trovejar de sangue nos ouvidos, Lisey se agacha e apanha a pá de prata. Suas mãos, que sabiam o que fazer 18 anos antes, também sabem o que fazer agora, mesmo com sua cabeça se enchendo de imagens de perda, dor e desespero amargura­do. Dooley está vindo. Ela o escuta. Ele parou de xingar, mas Lisey ouve sua respiração chegando perto. Vai ser por pouco, mais do que foi com o Loiraço, embora este louco não esteja armado, pois se Dooley agarrá-la antes de ela conseguir se virar...

Mas ele não a agarra. Por um fio. Lisey gira como um batedor tentando acertar uma bola perfeita, rodando a pá de prata com toda sua força. A colher reflete um último desabrochar de luz rosa — um buquê opaco — e sua ponta de cima resvala no sino pendurado ao passar, ga­nhando velocidade, por ele. O sino diz uma última palavra — BLÉM! — e sai voando para a escuridão, levando seu pedaço de corda podre junto. Lisey observa a pá continuar seguindo para a frente e para o alto, pensando novamente: Cacete! Eu botei força mesmo! Então a parte reta da colher se choca contra o rosto em disparada de Jim Dooley, fazendo não um barulho de algo se esmagando — o som que ela recorda de Nashville —, mas uma espécie de som de gongo. Dooley grita de sur­presa e agonia. Ele é jogado para o lado, saindo da trilha em direção às árvores, girando os braços, tentando manter o equilíbrio. Ela consegue ver por um instante que seu nariz está radicalmente virado para o outro lado, igual ao de Cole; vê também que sua boca está jorrando sangue da parte de baixo e dos dois lados. Então, sente algo se mover à sua direita, perto de onde Dooley está se debatendo e tentando se levantar. É um movimento vasto. Por um instante, os pensamentos tristes, sombrios e temerosos que habitam sua mente ficam ainda mais tristes e sombrios; Lisey acha que eles vão ou matá-la ou enlouquecê-la. Então, eles se desviam um pouco para outra direção e, ao mesmo tempo, a coisa logo atrás das árvores também desvia sua rota. Há um som intrincado de fo­lhagem se partindo, de árvores e arbustos estalando e se despedaçando. Então, e de repente, ele está lá. O garoto espichado de Scott. E ela com­preende que, assim que você vê o garoto espichado, passado e futuro se tornam apenas um sonho. Assim que você vê o garoto espichado, a única coisa que existe, oh, bom Deus, é o agora, prolongando-se como uma nota agonizante que jamais termina.

 

Quase antes de Lisey perceber o que estava acontecendo e certamente antes de estar preparada — embora a idéia de estar preparada para uma coisa daquelas fosse uma piada —, ele de repente estava lá. A coisa ma­tizada. A personificação viva do que Scott queria dizer quando falava sobre a coisa ruim.

O que ela viu foi um enorme lado cheio de placas, como pele de cobra rachada. Ele veio se encurvando por entre as árvores, entortando algumas e quebrando outras, parecendo passar bem no meio de duas das maiores delas. Aquilo era impossível, é claro, mas essa impressão jamais a abandonou. Não havia cheiro, mas sim um som desagradável, resfole­gante, uma espécie de barulho de entranhas, e então sua cabeça retalhada surgiu, mais alta que as árvores e eclipsando o céu. Lisey viu um olho, morto, porém consciente, negro como a água de um poço e grande como uma cratera, fitando através da folhagem. Viu uma abertura na carne da sua cabeça rombuda enorme e caçadora e intuiu que as coisas que ele carregava através daquele vasto tubo de carne não morriam exatamente, mas viviam e gritavam... viviam e gritavam... viviam e gritavam...

Ela mesma não conseguia gritar. Era incapaz de produzir qualquer som que fosse. Deu dois passos para trás, passos que lhe pareceram estranhamente calmos. A pá — com a colher de prata gotejando mais uma vez o sangue de um louco — escapou dos seus dedos e caiu na tri­lha. Ela pensou: ele está me vendo... e minha vida jamais me pertencerá de verdade novamente. Ele não vai deixar que ela me pertença.

Por um instante, ele recuou, uma coisa amorfa e interminável com tufos de pêlo crescendo em moitas aleatórias nas suas camadas de carne úmida e ondulante, seu olho grande e estupidamente ávido pairando sobre ela. O rosa mortiço do dia e o brilho prateado do luar iluminaram o resto do que ainda repousava como uma cobra sobre os arbustos.

Então seu olho desviou de Lisey para a criatura que gritava e se debatia, tentando se livrar do pequeno arvoredo que a enredara, Jim Dooley, com sangue jorrando da boca destroçada, do nariz quebrado e de um olho inchado; Jim Dooley, com sangue nos cabelos. Dooley per­cebeu o que estava olhando para ele e parou de gritar. Lisey o viu ten­tando cobrir o olho bom, viu suas mãos caírem para os lados do corpo, soube que ele havia perdido suas forças e, por um instante, sentiu pena dele, apesar de tudo; teve um momento de compaixão que era de uma força terrível e de uma harmonia humana quase intolerável. Naquele instante, teria voltado atrás em tudo se aquilo significasse apenas sua morte, mas então pensou em Amanda e tentou endurecer sua mente e coração horrorizados.

A coisa imensa emaranhada nas árvores se lançou para a frente de uma forma quase delicada e cercou Dooley. A carne em volta do bura­co na sua tromba rombuda pareceu se enrugar por um instante, quase fazendo um bico, e Lisey se lembrou de Scott caído no asfalto quente naquele dia em Nashville. Assim que os roncos baixos e sons de masti­gação começaram e Dooley começou a produzir seus últimos e aparen­temente intermináveis gritos, ela se lembrou de Scott falando, Dá para ouvi-lo se alimentando. Ela se lembrou de como ele fez um O apertado com os lábios, recordando com toda clareza como o sangue jorrara deles quando Scott produziu aquele som resfolegante indescritivelmente de­testável: gotículas cor de rubi que pareciam pairar no ar abafado.

Então ela correu, embora pudesse jurar que não sabia mais como. Disparou pelo caminho de volta para a colina dos tremoceiros, fugindo do lugar perto da Árvore do Sino e da Pá onde o garoto espichado de Scott estava comendo Jim Dooley vivo. Ela sabia que estava fazendo um favor a si mesma e à Amanda, mas sabia também que aquele favor era no mínimo um presente de grego, pois, se sobrevivesse àquela noite, jamais se livraria do garoto espichado, da mesma forma que Scott não havia se livrado dele nem por um dia desde a infância. Agora ele tam­bém a havia marcado e feito dela parte do seu instante interminável, com seu olhar terrível que enxerga o mundo todo. Dali em diante, ela teria que ter cuidado, especialmente se acordasse no meio da noite... e Lisey imaginava que suas noites de sono tranqüilo tivessem acabado. De madrugada, ela teria que desviar o olhar de espelhos e dos vidros das janelas e, principalmente, das superfícies curvadas de copos d’água, só Deus sabia por quê. Teria que se proteger da melhor forma possível.

Se sobrevivesse àquela noite.

Está muito perto, querida, sussurrou Scott tremendo sobre o asfalto quente. Muito perto.

Atrás dela, Dooley gritou como se não fosse parar nunca. Lisey achou que aquilo fosse enlouquecêda. Ou que já a tivesse enlouquecido.

 

Logo antes de Lisey sair da floresta, os gritos de Dooley finalmente ces­saram. Ela não viu Amanda. Aquilo a encheu de terror. E se sua irmã tivesse fugido para sabe-se lá qual ponto cardeal? Ou se ela ainda estives­se por perto, mas enrolada numa posição fetal, catatônica novamente e escondida pelas sombras?

— Amanda? Amanda?

Houve um momento interminável durante o qual ela não ouviu nada. Ele foi seguido — meu Deus, até que enfim! — por um farfalhar na grama alta à esquerda de Lisey, e Amanda se levantou. Seu rosto, já pálido e tornado mais pálido ainda pela luz da lua que se erguia, parecia o de uma assombração. Ou de uma harpia. Ela andou cambaleante para a frente, com os braços estendidos, e Lisey a abraçou. Amanda tremia. Suas mãos na nuca de Lisey estavam entrelaçadas em um nó frio.

— Oh, Lisey, achei que ele não iria parar nunca.

— Eu também.

— E eles eram tão agudos... eu não conseguia saber... eles eram tão agudos... torci para que fosse ele, mas pensei: “E se for a Pequena? E se for Lisey?” — Amanda começou a soluçar contra um lado do pescoço de Lisey.

— Eu estou bem, Amanda. Estou aqui e estou bem.

Amanda afastou o rosto do pescoço de Lisey para poder olhar para o rosto da irmã.

— Ele está morto?

— Está. — Ela não quis compartilhar sua intuição de que Dooley talvez tivesse conquistado uma espécie de imortalidade infernal dentro da coisa que o devorara. — Morto.

— Então eu quero voltar! Podemos voltar?

— Sim.

— Não sei se consigo visualizar o escritório de Scott na minha mente... estou tão abalada... — Amanda olhou ao redor com medo. — Isto aqui não é nem um pouco parecido com Southwind.

— Não — concordou Lisey, envolvendo Amanda nos seus braços novamente. — E sei que você está com medo. Apenas faça o melhor que puder.

Na verdade, Lisey não estava preocupada com o fato de voltar para o escritório de Scott, para Castle View, para o mundo. Ela achava que o problema agora seria permanecer lá. Lembrou-se de um médico lhe di­zendo certa vez que ela teria que tomar muito cuidado com seu tor­nozelo depois de tê-lo torcido feio patinando no gelo. Porque quando você distende esses tendões da primeira vez, falara ele, é mil vezes mais fácil distendê-los na próxima.

Mil vezes mais fácil da próxima vez, certo. E ele a havia visto. Aquele olho, tão grande quanto uma cratera — ao mesmo tempo mor­to e vivo —, pousara sobre ela.

— Lisey, você é tão corajosa — disse Amanda baixinho. Ela deu uma última olhada para a colina de tremoceiros íngreme, dourada e es­tranha sob o luar cada vez mais forte, então voltou a pressionar o rosto contra o pescoço de Lisey.

— Continue falando assim que eu interno você de novo na Greenlawn amanhã mesmo. Agora feche os olhos.

— Estão fechados.

Lisey fechou os dela. Por um instante, viu aquela cabeça rombu­da que não era uma cabeça, mas apenas uma bocarra, um tubo, um funil que dava em uma escuridão repleta de um turbilhão interminável de coi­sa ruim. Lá dentro, ela ainda ouvia os gritos de Jim Dooley, mas o som agora era fraco, e misturado com outros gritos. Com o que lhe pareceu um esforço tremendo, Lisey afastou as imagens e os sons, substituindo-­os pela figura da mesa de madeira vermelha e o som do Velho Hank — quem mais? — cantando Jambalaya. Houve tempo para pensar em como ela e Scott tinham sido capazes de voltar quando tanto precisavam, com o garoto espichado tão perto deles, tempo para pensar no

(é a trouxa, Lisey, sinto como se ela fosse uma âncora)

que ele havia dito, tempo para se perguntar por que aquilo a fazia pensar novamente em Amanda olhando com tanto anseio para o bom navio chamado Malva-rosa (um olhar de adeus por excelência), e então o tempo acabou. Mais uma vez, ela sentiu o ar virar do avesso e o luar desapareceu. Teve a sensação de sofrer uma queda breve e acidentada. Então, elas estavam no escritório e o escritório estava escuro, pois Doo­ley havia cortado a luz, mas ainda assim Hank Williams estava cantando — My Yvonne, sweetest one, me-oh-my-oh —, pois, mesmo com a energia cortada, o Velho Hank quis ter a última palavra.

 

— Lisey? Lisey?

— Manda, você está me esmagando, sai fora...

— Lisey, nós estamos de volta?

Duas mulheres no escuro. Caídas no carpete, emaranhadas.

Kinfolk come to see Yvonne by the dozens..., saindo de dentro do anexo.

— Estamos, mas saia de cima de mim, cacete, não consigo respirar!

— Desculpe... Lisey, você está em cima do meu braço...

Son of a gun, we’ll have big fun... on the bayou!

Lisey conseguiu rolar para a direita. Amanda soltou o braço e, logo em seguida, o peso do seu corpo saiu de cima do peito de Lisey. Ela arquejou com uma inspiração profunda — e profundamente prazerosa. Quando ela a soltou, Hank Williams parou de cantar no meio de uma frase.

— Lisey, por que está tão escuro aqui?

— Porque Dooley cortou a energia, lembra?

— Ele cortou as luzes — disse Amanda, com sensatez. — Se ele tivesse cortado a energia, a tevê não estaria ligada.

Lisey poderia ter perguntado a Amanda por que a tevê tinha desli­gado de repente, mas não se deu o trabalho. Havia outros assuntos para serem discutidos. Tinham outro peixe para fritar, como se diz.

— Vamos para dentro de casa.

— Concordo 100% com essa idéia — disse Amanda. Seus dedos tocaram o cotovelo de Lisey, desceram pelo seu antebraço e agarraram sua mão. As irmãs se levantaram juntas. Amanda acrescentou, em tom de confidência: — Não me leve a mal, Lisey, mas eu não volto aqui nem morta.

Lisey compreendeu como Amanda se sentia, mas seus próprios sentimentos tinham mudado. O escritório de Scott a havia amedron­tado, sem dúvida. Ele a mantivera longe por dois longos anos. Porém, ela achava que a principal tarefa que precisava ser realizada ali havia terminado. Ela e Amanda tinham mandado o fantasma de Scott embo­ra, de forma gentil e — o tempo diria, mas ela estava quase certa disso — definitiva.

— Venha — disse ela. — Vamos para dentro de casa. Eu preparo um chocolate quente.

— E talvez um conhaquezinho para começar? — perguntou Amanda, esperançosa. — Ou as malucas não podem tomar conhaque?

— As malucas, não. Você pode.

De mãos dadas, elas tatearam o caminho até as escadas. Lisey pa­rou apenas uma vez, quando pisou em algo. Agachou-se e apanhou um pedaço redondo de vidro de pelo menos dois centímetros e meio de grossura. Ela percebeu que era uma das lentes dos óculos de visão no­turna de Dooley e a largou com uma careta de nojo.

— O que foi? — perguntou Amanda.

— Nada. Estou conseguindo enxergar um pouco. E você?

— Um pouquinho. Mas não largue minha mão.

— Não vou largar, querida.

Elas desceram juntas as escadas até o celeiro. Demorou mais da­quele jeito, mas lhes pareceu muito mais seguro.

 

Lisey pegou seus menores copos de suco e serviu uma dose de conhaque para cada uma de uma garrafa que encontrou bem no fundo do armário de bebidas da sala de jantar. Ela ergueu o seu copo e o tilintou contra o de Amanda. Estavam as duas diante do balcão da cozinha. Todas as luzes do cômodo estavam acesas, até a luminária curvada no canto em que Lisey preenchia cheques em uma carteira escolar.

— Pra cima dos dentes — falou Lisey.

— Pra cima das gengivas — disse Amanda.

— Atenção, barriga, lá vai — disseram juntas, e beberam.

Amanda se curvou e soltou uma lufada de ar pela boca. Quando se empertigou de volta, suas bochechas antes pálidas estavam rosadas, uma linha vermelha se formava na sua testa e um pequeno triângulo escarlate aparecia na ponte do seu nariz. Havia lágrimas nos seus olhos.

— Puta merda! O que é isso?

Lisey, cuja garganta estava tão quente quanto o rosto de Amanda parecia estar, pegou a garrafa e leu o rótulo, CONHAQUE STAR, dizia ele. UM PRODUTO DA ROMÊNIA.

— Conhaque romeno? -— Amanda parecia horrorizada. — Desde quando isso existe? Onde você arranjou isso?

— Foi presente de Scott. Ele ganhou por ter feito alguma coisa, não me lembro o quê, mas acho que deram um conjunto com caneta também.

— E provavelmente veneno. Jogue fora enquanto eu rezo para não morrer.

— Jogue você. Vou fazer o chocolate quente. Suíço. Não da Romênia.

Ela começou a se virar, mas Amanda tocou seu ombro.

— Talvez devêssemos pular o chocolate quente e simplesmente sair daqui antes que um daqueles policiais volte para ver como você está.

— Você acha? — Mesmo enquanto fazia a pergunta, Lisey sabia que Amanda tinha razão.

— Acho. Você tem coragem de subir até o escritório de novo?

— Claro que sim.

— Então pegue minha arma. Não se esqueça que não tem luz lá em cima.

Lisey abriu o tampo da mesinha em que preenchia seus cheques e retirou a lanterna de cilindro longo que guardava lá dentro. Ela a ligou. A luz era boa e forte.

Amanda estava enxaguando os copos.

— Se alguém descobrir que estivemos lá em cima, não vai ser o fim do mundo. Mas se os seus policiais descobrirem que subimos com uma arma... e que calhou de aquele homem sumir da face da Terra por volta do mesmo horário...

Lisey, que tinha pensado apenas até o ponto em que levava Dooley para a Árvore do Sino e da Pá (e o garoto espichado jamais fizera parte do que havia imaginado), percebeu que ainda tinha trabalho a fazer e que era melhor começar logo. O professor Woodbody nunca iria co­municar o desaparecimento do seu velho companheiro de bar, mas o sujeito devia ter parentes em algum lugar e, se alguém no mundo tinha um motivo para se livrar do Príncipe Negro dos Incunks, essa pessoa era Lisey Landon. É claro que não havia corpo (aquilo a que Scott às vezes gostava de se referir como corpo de detrito), mas, ainda assim, ela e a irmã haviam passado uma tarde e uma noite que poderiam ser in­terpretadas como extremamente suspeitas. E, além disso, o gabinete do xerife sabia que ela vinha sendo importunada por Dooley; a própria Lisey havia dito isso a eles.

— Eu vou apanhar os cocôs dele — disse ela.

Amanda não sorriu.

— Ótimo.

 

A luz da lanterna abriu um talho largo na escuridão e o escritório não lhe pareceu tão assustador quanto ela temia. Ter o que fazer lá certamen­te ajudou. Ela começou colocando o Pathfinder de volta na caixa de sa­patos, então passou a vasculhar o chão com a luz. Encontrou as duas lentes dos óculos de visão noturna, além de meia dúzia de pilhas AA. Supôs que aquelas pertencessem ao alimentador do negócio. O alimen­tador deve ter viajado, embora ela não se lembrasse de tê-lo visto, mas as pilhas, obviamente, não. Então ela apanhou a terrível sacola de papel de Dooley. Amanda ou havia se esquecido da sacola ou nem chegara a perceber que ela existia, mas as coisas lá dentro pegariam mal para ela se fossem encontradas. Principalmente se combinadas com a arma. Lisey sabia que eles poderiam fazer testes no Pathfinder que mostrariam que ele havia sido disparado recentemente; ela não era burra (e assistia ao programa de TV CSI). Também sabia que os testes não revelariam que ela foi disparada apenas uma vez, no teto. Tentou pegar a sacola de um jeito que não ela não fizesse barulho, mas ela fez assim mesmo. Lisey olhou em volta em busca de outros sinais de Dooley e não viu mais nenhum. Havia manchas de sangue no carpete, mas se elas fossem testa­das, tanto o tipo sanguíneo quanto o DNA combinariam com os dela. Sangue no seu carpete pegaria muito mal em combinação com as coisas na sacola que ela agora trazia na mão, mas, sem a sacola, ficaria tudo bem para elas. Provavelmente.

Onde está o carro dele? O PT Cruiser? Porque tenho certeza que o carro que eu vi era dele.

Ela não podia se preocupar com aquilo agora. Já havia escurecido. Era com a situação presente que ela deveria se preocupar, com o que estava benhali. E com suas irmãs. Daria e Canty, àquela altura numa viagem infernal até o Acadia Mental Health em Derry, lá onde Judas perdeu as botas. Para não ficarem presas na versão de Jim Dooley do separador de batatas do sr. Silver.

Mas será que ela precisava se preocupar com aquelas duas? Não. Elas ficariam putas da vida, é claro... e curiosíssimas... mas no fim das contas ficariam quietas se ela e Amanda lhes dissessem que era absoluta­mente necessário, e por quê? Por causa do lance das irmãs. Ela e Aman­da teriam que ser cautelosas com elas, e precisariam ter algum tipo de história (Lisey não fazia idéia de qual tipo poderia encobrir tudo aquilo, embora tivesse certeza de que Scott seria capaz de inventar alguma coi­sa). Elas precisavam ter uma história porque, ao contrário de Amanda e Lisey, Darla e Cantata tinham maridos. E maridos muitas vezes eram a porta dos fundos pela qual os segredos escapavam para o mundo.

Enquanto Lisey se virava para sair dali, a cobra de livros dormindo contra a parede chamou sua atenção. Aquele monte de publicações tri­mestrais e periódicos acadêmicos, aquele monte de anuários, relatórios encadernados e cópias de teses sobre a obra de Scott. Muitos contendo fotos de sua vida passada — podem chamá-la de SCOTT E LISEY! ANOS DE CASAMENTO!

Ela podia visualizar com facilidade uma dupla de universitários des­mantelando a cobra e colocando seus pedaços em caixas de papelão com nomes de bebidas na lateral, empilhando-as em seguida na traseira de um caminhão e levando-as embora. Para Pitt? Morda a língua, pensou Lisey. Ela não se considerava uma mulher rancorosa; porém, depois de Jim Dooley, teria que nevar no inferno antes de ela colocar mais coisas de Scott em um lugar em que Woodbundão pudesse consultá-las sem ter que comprar uma passagem de avião antes. Não, a Biblioteca Fogler na Universidade do Maine estaria bom demais — logo depois de Cleaves Mills. Podia se ver por ali, observando as últimas coisas sendo encaixo­tadas, talvez trazendo uma jarra de chá gelado para os meninos quando terminassem o serviço. E, quando acabassem de tomar o chá, eles larga­riam os copos e lhe agradeceriam. Um deles talvez lhe dissesse o quanto gostava dos livros do seu marido e o outro que sentia muito pela sua perda. Como se ele tivesse morrido há duas semanas. Ela lhes agradece­ria. Então, ficaria olhando eles irem embora com todas aquelas imagens congeladas da sua vida com ele trancadas dentro do caminhão.

Você consegue mesmo deixar isso para trás?

Ela achava que conseguiria. Ainda assim, aquela cobra que cochi­lava na parede atraiu seu olhar. Tantos livros fechados, dormindo pro­fundamente — eles atraíram seu olhar. Ela ficou observando por mais um instante, pensando que um dia houve uma jovem chamada Lisey Debusher, com os seios firmes e empinados de uma jovem. Solitária? Um pouco, sim. Assustada? Sim, um pouco, mas isso fazia parte de se ter 22 anos. E um jovem que entrou em sua vida. Um jovem cujos cabelos estavam sempre caindo na testa. Um jovem com muito a dizer.

— Eu sempre te amei, Scott — disse ela para o escritório vazio. Ou talvez tenha sido para os livros adormecidos que falou. — Você e sua boca incessante. Eu era sua patroa. Não era?

Então, jogando o facho de luz da lanterna diante de si, ela desceu as escadas de volta com a caixa de sapatos em uma das mãos e a terrível sacola de papel na outra.

 

Amanda estava parada diante da porta da cozinha quando Lisey voltou.

— Que bom — disse Amanda. — Estava ficando preocupada. O que tem na sacola?

— Nem queira saber.

— Então... tá — disse Manda. — Ele... sumiu lá de cima?

— Acho que sumiu, sim.

— Assim espero. — Amanda tremeu. — Ele era um cara assustador.

Você não sabe da metade, pensou Lisey.

— Bem — disse Amanda. — Acho melhor eu ir andando.

— Pra onde?

— Lisbon Falls — respondeu Amanda. — A velha fazenda.

— O quê... — Então se interrompeu. Fazia uma espécie de sentido estranho.

— Eu acordei na Greenlawn, como você disse para aquele dr. Al­berness, e você me levou para casa para eu poder trocar de roupa. Então eu surtei e comecei a falar sobre a fazenda. Venha, Lisey, vamos embora, vamos dar o fora daqui antes que alguém chegue. — Amanda a condu­ziu noite adentro.

Lisey, pasma, se deixou ser conduzida. A velha propriedade dos De­busher ainda estava de pé nos seus cinco acres no fim da Sabbatus Road em Lisbon, a quase 100 quilômetros de Castle View. Em testamento conjunto entre cinco mulheres (e três maridos vivos), provavelmente continuaria lá anos a fio, a não ser que seu valor de mercado subisse o suficiente para fazê-los desistir de suas idéias discordantes sobre o que deveria ser feito dela. Um fundo fiduciário criado por Scott Landon no fim da década de 1980 pagou os impostos devidos.

— Por que você quis ir para a velha fazenda? — perguntou Lisey enquanto deslizava para trás do volante do BMW. — Isso não está claro para mim.

— Porque também não estava para mim — disse Amanda enquan­to Lisey fez um contorno e começou a descer a longa entrada para car­ros. — Eu só falei que tinha que ir para lá e ver a casa antiga se eu não fosse, você sabe, voltar para a zona Além da Imaginação, então é claro que você me levou.

— Claro que sim — falou Lisey. Ela olhou para os dois lados, não viu ninguém vindo, principalmente nenhuma viatura policial, graças a Deus, e virou à esquerda, a direção que a faria passar por Mechanic Falls, Poland Springs, chegando, finalmente, a Gray e Lisbon. — E por que nós mandamos Darla e Canty para a direção errada?

— Eu insisti — disse Amanda. — Estava com medo de que, se as duas aparecessem, fossem querer me levar de volta para a minha casa, para a sua, ou até para Greenlawn antes de eu poder visitar Mamãe e Papai e depois passar um tempo na casa antiga. — Por um instante, Lisey não fez idéia do que Manda estava falando. Passar um tempo com Mamãe e Papai? Então entendeu. O terreno da família Debusher ficava próximo do cemitério Sabbatus Vale. Tanto Mãezinha Querida quanto Dandy estavam enterrados lá, junto com Vovô e Vovó D e só Deus sabe quantos outros.

Ela perguntou:

— Mas você não ficou com medo de que eu a levasse de volta?

Amanda a encarou com indulgência.

— Por que você me levaria de volta? Foi você quem me tirou de lá.

— Talvez porque você começou a agir feito uma louca, pedindo para visitar uma fazenda que está deserta há trinta anos ou mais?

— Bah! — Amanda brandiu a mão no ar, desprezando aquilo. — Sempre tive você na palma da mão, Lisey. Canty e Darla sabem disso.

— Porra nenhuma!

Amanda se limitou a lhe dar um sorriso enlouquecedor, sua pele em um tom verde estranho sob o brilho das luzes do painel, e não dis­se nada. Lisey abriu a boca para reforçar o argumento, então voltou a fechá-la. Pensou que a história poderia funcionar, porque se resumia a duas idéias fáceis de entender: Amanda estava agindo feito uma louca (até aí, nenhuma novidade), e Lisey estava fazendo suas vontades (o que era compreensível, dadas as circunstâncias). Elas poderiam trabalhar com aquilo. Quanto à caixa de sapatos com a arma dentro... e à sacola de Dooley...

— Nós vamos parar em Mechanic Falls — disse ela a Amanda. — Onde a ponte corta o rio Androscoggin. Tenho que me livrar de algumas coisas.

— Tem mesmo — falou Amanda. Então cruzou os braços sobre o colo, recostou a cabeça no descanso do banco e fechou os olhos.

Lisey ligou o rádio e não ficou nem um pouco surpresa ao ouvir o Velho Hank cantando Honky Tonkin. Ela cantou junto, baixinho. Sabia cada palavra. Isto também não a surpreendeu. Algumas coisas você nunca esquecia. Ela havia passado a crer que aquelas mesmas coi­sas que o mundo prático considerava efêmeras — coisas como canções, o brilho do luar e beijos — às vezes eram as coisas que mais duravam. Elas podiam ser tolas, mas desafiavam o esquecimento. E aquilo era bom.

Aquilo era bom.

 

A HISTÓRIA DE LISEY

 

“Você é a pergunta e eu sou a resposta,

Você é o desejo e eu sou a realização,

Você é a noite e eu sou o dia.

Do que mais precisamos? Isto já é perfeito.

É a mais pura perfeição,

Você e eu,

Nada mais...

Estranho, como sofremos apesar disso!”

D. H. Lawrence

“Bei Hennef”

 

Lisey e a Árvore da História

(Scott Tem a Última Palavra)

Assim que Lisey começou de fato a esvaziar o escritório de Scott, o tra­balho foi mais rápido do que poderia ter imaginado. E ela jamais teria imaginado que acabaria contando com a ajuda de Darla e Canty, além de Amanda. Canty ficou na dela e desconfiada por algum tempo — pa­receu bastante tempo para Lisey —, mas Amanda não se deixou abalar nem um pouco por isso.

— Ela está fingindo. Vai sair dessa e cair em si. E só dar um tempo para ela, Lisey. O laço entre irmãs é uma coisa forte.

Com o tempo, Cantata caiu em si, embora Lisey tivesse a sensação de que Canty jamais se livrou por completo da sensação de que Amanda inventara tudo aquilo para Chamar Atenção e que ela e Lisey tinham Se Metido em Alguma Coisa. Provavelmente em Alguma Encrenca. Darla tinha ficado perplexa com a recuperação de Amanda, e com a estranha viagem das irmãs para a velha fazenda em Lisbon, mas, pelo menos, jamais acreditou que Amanda tivesse fingido.

Afinal de contas, Darla a havia visto.

De qualquer forma, as quatro irmãs limparam e esvaziaram a suíte grande e tortuosa em cima do celeiro no decorrer da semana depois do 4 de julho, contratando uma dupla de estudantes parrudos para ajudar com as coisas mais pesadas. A pior delas acabou sendo a Jumbona do Dumbo, que teve que ser desmontada (as partes separadas fizeram Lisey se lembrar do Homem Explodido na aula de biologia da escola, embora aquela versão tivesse que ser chamada de Mesa Explodida) e então arria­da com um guincho. Os estudantes gritaram palavras de incentivo um para o outro à medida que desciam os pedaços. Lisey ficou por perto com suas irmãs, rezando feito louca para que nenhum dos dois perdesse um polegar ou outro dedo qualquer em uma das correias ou polias. Isso não aconteceu e, no final daquela semana, todas as coisas do escritório de Scott tinham sido levadas embora, marcadas ou para doação ou para serem guardadas em um depósito por tempo indeterminado, enquanto Lisey descobria o que diabos fazer com elas.

Isto é, tudo menos a cobra de livros. Ela continuava lá, dormindo no longo e vazio cômodo principal — no cômodo principal quente, agora que os ares-condicionados tinham sido retirados. Mesmo com as clarabóias abertas de dia e dois ventiladores para manter o ar circulando, era quente lá dentro. E por que não seria? O lugar não passava de um palheiro embelezado com pedigree literário.

E havia também aquelas manchas marrons feias no carpete — o carpete branco leitoso que não poderia ser retirado até a cobra de livros sair. Quando Canty perguntou que manchas eram aquelas, ela disse que havia derramado verniz no chão sem querer. Amanda, porém, sa­bia que era mentira, e Lisey imaginava que Darla também tivesse suas suspeitas. O carpete tinha que ser removido, mas não antes da cobra de livros, e Lisey não estava exatamente preparada para se livrar dela. Não sabia bem o motivo. Talvez porque fosse a última coisa de Scott que ainda estava lá em cima, a última parte dele.

Então ela esperou.

 

No terceiro dia da maratona de limpeza das irmãs, o oficial Boeckman ligou para informar Lisey de que um PT Cruiser abandonado com pla­ca de Delaware havia sido encontrado em um depósito de cascalho na Stackpole Church Road, a uns 5 quilômetros da sua casa. Será que Lisey não poderia passar no gabinete do xerife para dar uma olhada? Eles o rebocaram para o estacionamento, disse o policial, onde guardavam as apreensões e alguns “bagulhos” (o que quer que fosse aquilo). Lisey foi com Amanda. Darla e Canty não se interessaram muito; tudo que sa­biam era que algum maluco tinha andando por lá, torrando a paciência de Lisey a respeito dos papéis de Scott. Malucos não eram novidade na vida da irmã delas; durante os anos de celebridade de Scott, inúme­ros tinham sido atraídos por ele como mariposas por uma lâmpada de matar insetos. O mais famoso deles, é claro, havia sido Cole. No en­tanto, Lisey e Amanda não tinham dito nada que fizesse Darla e Canty pensarem que aquele estava no nível do outro. Certamente não houve menção ao gato morto na caixa de correio, e Lisey se deu o trabalho de convencer os policiais a também serem discretos.

O carro na Vaga 7 era um PT Cruiser, sem tirar nem pôr, de cor bege e aparência comum, depois que você se acostumava com seu for­mato ligeiramente espalhafatoso. Poderia ser o que Lisey viu enquanto voltava da Greenlawn para casa naquela longa, longa quinta-feira; po­deria ser um dentre outros milhares dele. Foi isso que ela disse ao oficial Boeckman, lembrando-o de que, quando o viu, ele estava vindo quase diretamente contra o pôr do sol. Ele assentiu, desapontado. O que ela sabia no fundo de seu coração era que aquele era o carro. Conseguia sentir o cheiro de Dooley nele. Ela pensou: Vou te machucar em lugares que a senhora não deixava os garotos meterem a mão nos bailes da escola, e teve que conter um calafrio.

— É um carro roubado, não é? — perguntou Amanda.

— Pode apostar que sim — disse Boeckman.

Um policial que Lisey não conhecia veio andando. Ele era alto, provavelmente 1,98 m; parecia haver uma regra que obrigava aqueles homens a serem altos. Espadaúdos, também. Ele se apresentou como oficial Andy Clutterbuck e apertou a mão de Lisey.

— Ah — disse ela —, o xerife interino.

O sorriso dele era brilhante.

— Não, Norris está de volta. Ele está no tribunal hoje à tarde, mas está de volta. Eu voltei a ser apenas o velho oficial Clutterbuck.

— Meus parabéns. Esta é minha irmã, Amanda Debusher.

Clutterbuck apertou a mão de Amanda.

— Prazer, sra. Debusher. — Então, para as duas: — O carro foi roubado de um shopping center em Laurel, Maryland. — Ele olhou para o veículo, os polegares enganchados no cinto. — Sabiam que na França eles chamam os PT Cruisers de le car Jimmy Cagney?

Amanda não pareceu se impressionar com a informação.

— Havia alguma impressão digital?

— Nem umazinha — disse ele. — Foram limpas. E quem quer que estivesse dirigindo tirou a tampa de proteção da luz do teto e que­brou a lâmpada. O que vocês acham disso?

— Eu acho que soa beaucoup suspeito — disse Amanda.

Clutterbuck riu.

— Pois é. Mas tem um carpinteiro aposentado em Delaware que vai ficar muito feliz em ter seu carro de volta, com a luz do teto quebra­da ou não.

Lisey falou:

— O senhor descobriu alguma coisa sobre Jim Dooley?

— Na verdade é John Doolin, sra. Landon. Nascido em Shooter’s Knob, Tennessee. Mudou-se para Nashville aos 5 anos de idade com a fa­mília, então foi morar com os tios em Moundsville, West Virgínia, quando seus pais e a irmã mais velha foram mortos em um incêndio no inver­no de 1974. Doolin tinha 9 anos na época. Oficialmente, luzes de árvo­re de Natal defeituosas foram a causa da morte, mas eu conversei com um detetive aposentado que trabalhou no caso. Ele disse que havia suspeitas de que o garoto teve algo a ver com o incêndio. Nenhuma prova.

Lisey não viu motivo para continuar prestando atenção ao resto, pois, independentemente de como ele afirmasse se chamar, seu perse­guidor jamais voltaria do lugar para o qual ela o havia levado. Porém, ela ouviu Clutterbuck dizer que Doolin tinha passado um bom número de anos em uma instituição psiquiátrica no Tennessee, e continuava acre­ditando que ele havia conhecido Gerd Allen Cole lá e sido contaminado pela obsessão dele

(blém-blém pelas frésias)

como se ela fosse um vírus. Scott tinha um ditado estranho que Lisey nunca entendera por completo até a história com McCool/Doo­ley/Doolin. Algumas coisas tinham que ser verdade, dizia Scott, porque elas não têm outra escolha.

— De qualquer forma, é melhor ficarem alertas — falou Clutter­buck para as duas mulheres. — E se parecer que ele ainda está por aqui...

— Ou tirou uma folga e decidiu voltar — acrescentou Boeckman.

Clutterbuck assentiu.

— É, isso também é possível. Se ele voltar a aparecer, acho que devemos ter uma reunião com a sua família, sra. Landon... para deixar todos inteirados. A senhora concorda comigo?

— Se ele aparecer, com certeza farei isso — disse Lisey. Ela falou com seriedade, de um jeito quase solene, mas, quando estavam saindo da cidade, ela e Amanda se permitiram um acesso de riso histérico dian­te da idéia de Jim Dooley voltar um dia.

 

Uma ou duas horas antes de o dia seguinte amanhecer, arrastando os pés até o banheiro com apenas um olho aberto, não pensando em nada além de fazer xixi e voltar para a cama, Lisey achou ter visto algo se mexendo no quarto às suas costas. Aquilo a despertou rapidamente, fazendo-a girar o corpo para trás. Não havia nada lá. Ela pegou uma toalha de rosto da has­te ao lado da pia e a pendurou sobre o espelho do armarinho de remédios no qual havia visto o movimento, prendendo-a com cuidado até ela se firmar sozinha. Então, e somente então, terminou o que tinha que fazer.

Tinha certeza de que Scott entenderia.

 

O verão passou e, um dia, Lisey notou que os cartazes de MATERIAL ESCO­LAR haviam aparecido nas vitrines de várias lojas na Main Street de Cas­tle Rock. E por que não? De repente, já era a segunda metade de agosto. O escritório de Scott — exceto pela cobra de livros e pelo carpete branco manchado sobre o qual ela dormia — estava esperando pelos próximos desdobramentos. (Se é que haveria algum desdobramento; Lisey come­çara a considerar a possibilidade de pôr a casa à venda.) Canty e Rich deram sua festa temática de Sonhos de Uma Noite de Verão no dia 14 de agosto. Lisey foi disposta a encher a cara com o Long Island Iced Tea que Rich Lawlor preparava, coisa que não fazia desde a morte de Scott. Pediu um duplo a Rich para começar, então o largou intocado em uma das mesas do bufê. Ela achou ter visto algo se mover na superfície do copo, como se refletido nela, ou nas profundezas cor de âmbar, como se nadasse lá dentro. Era uma besteira sem tamanho, é claro, mas ela percebeu que sua vontade de tomar um porre federal tinha passado. Na verdade, não sabia ao certo se teria coragem de ficar bêbada (ou mesmo alegrinha). Não sabia ao certo se ousava baixar a guarda daquela forma. Porque se ela tivesse chamado a atenção do garoto espichado, se ele estivesse observando-a de tempos em tempos... ou até mesmo apenas pensando a seu respeito... bem...

Parte dela tinha certeza de que aquilo era bobagem.

Outra parte estava convencida de que não era.

À medida que agosto se aproximava do fim e o clima mais quente do verão chegava à Nova Inglaterra, colocando os humores e as redes elétricas do noroeste à prova, algo ainda mais angustiante começou a acontecer com Lisey... exceto que — como as coisas que às vezes pen­sava, talvez, estar vendo em certas superfícies refletoras — ela não sabia exatamente o que estava acontecendo.

Às vezes ela acordava se debatendo pela manhã, uma ou talvez duas horas antes do seu horário habitual, arquejando e coberta de suor — mesmo com o ar-condicionado ligado —, com a sensação que ex­perimentava ao despertar de pesadelos na infância: a de que não havia escapado do que quer que a perseguisse, de que a coisa ainda estava debaixo da sua cama e fecharia a mão fria e deformada em volta do seu tornozelo, ou vararia seu travesseiro com ela para agarrá-la pelo pescoço. Nessas horas de pânico, ela corria as mãos por sobre os lençóis e depois pela cabeceira da cama antes de abrir os olhos, querendo ter certeza, certeza absoluta, de que não estava... bem, em nenhum outro lugar. Porque quando você distende aqueles tendões da primeira vez, pen­sava ela às vezes, abrindo os olhos e olhando para seu quarto familiar com enorme e indescritível alívio, é mil vezes mais fácil distendê-los na próxima. E ela distendera uns certos tendões, não distendera? Sim. Pri­meiro puxando Amanda, e depois puxando Dooley. Distendera-os pra valer.

Imaginou que, depois de ter acordado meia dúzia de vezes e des­coberto que estava no lugar certo, no quarto que já havia sido dela e de Scott e que agora era apenas seu, as coisas melhorariam; mas não foi assim. Em vez disso, elas ficaram piores. Ela se sentia como um dente mole em uma gengiva doente. E então, no primeiro dia da grande onda de calor — que rivalizava com a frente fria de dez anos atrás, e a simetria irônica daquilo, por mais que pudesse ser uma simples coincidência, não lhe passou despercebida —, o que ela temia finalmente aconteceu.

 

Ela estava deitada no sofá da sala de estar apenas para descansar os olhos por alguns instantes. O inquestionavelmente idiota, mas vez por outra divertido, Jerry Springer* tagarelava na máquina de fazer doido — Mi­nha Mãe Roubou Meu Namorado, Meu Namorado Roubou Minha Mãe, ou algo do gênero. Lisey estendeu o braço para pegar o controle re­moto e desligar aquela droga, ou talvez tivesse apenas sonhado sobre ter feito isso, porque, quando abriu os olhos para ver onde estava o contro­le, estava deitada não no sofá, mas na colina de tremoceiros em Boo’ya Moon. O sol estava a pino e não havia sinal de perigo — certamente não havia sinal de que o garoto espichado de Scott (pois era assim que ela o chamava e era assim que sempre o chamaria, embora imaginasse que agora ele era o seu garoto espichado, o garoto espichado de Lisey) estivesse por perto, porém ela estava aterrorizada assim mesmo, quase a ponto de gritar desesperadamente. Em vez de fazer isso, fechou os olhos, visualizou sua sala de estar e, de repente, conseguia ouvir os “convidados” do Springer Show gritando uns com os outros e sentiu o formato retangu­lar do controle remoto na sua mão esquerda. Um segundo depois, estava levantando do sofá de um salto, os olhos arregalados e a pele toda arre­piada. Quase conseguia acreditar que tudo havia sido um sonho (sem dúvida faria sentido, dado o seu nível de ansiedade a respeito daquele assunto), mas a vivacidade do que tinha visto naqueles poucos segundos ia contra aquela idéia, por mais reconfortante que ela fosse. Assim como a mancha roxa nas costas da mão que segurava o controle da tevê.

 

No dia seguinte, ela ligou para a Biblioteca Fogler e falou com o sr. Ber­tram Patridge, responsável pelas Coleções Especiais. O cavalheiro foi ficando cada vez mais empolgado à medida que Lisey descrevia os livros que ainda restavam no escritório de Scott. Ele os chamou de “exempla­res associativos” e disse que seria um prazer para o departamento de Co­leções Especiais da Fogler recebê-los “e ajudá-la na questão do crédito de imposto”. Lisey disse que seria muita gentileza da parte deles, como se estivesse preocupada há anos com a questão do crédito de imposto. O sr. Patridge disse que enviaria “uma equipe de transportadores” no dia seguinte para encaixotar os exemplares e levá-los pelos quase 200 quilômetros até o campus de Orono da Universidade do Maine. Lisey o lembrou de que o clima provavelmente estaria muito quente e que o es­critório de Scott, que não tinha mais ar-condicionado, havia retornado à sua forma original de palheiro. Talvez, disse ela, o sr. Patridge preferis­se deixar seus transportadores de sobreaviso até o tempo esfriar.

— De forma alguma, sra. Landon — disse Patridge, rindo expan­sivamente, e Lisey percebeu que ele estava com medo de que ela mudas­se de idéia se tivesse tempo o bastante para reconsiderar. — Tenho dois jovens em mente que serão perfeitos para o serviço. A senhora espere só para ver.

 

Menos de uma hora depois de sua conversa com Bertram Patridge, o telefone de Lisey tocou enquanto ela preparava um sanduíche de atum com pão de centeio para a janta: uma refeição simples, mas era tudo o que ela queria. Lá fora, o calor se estendia pelo solo como um cober­tor. O céu havia sido completamente descolorado; ele fulgurava em um branco perfeito de horizonte a horizonte. Enquanto misturava o atum e a maionese com um pouco de cebola picada, ela pensava em como havia encontrado Amanda em um daqueles bancos, olhando para o Malva­-rosa, o que era estranho, pois quase já não pensava mais naquilo; era como um sonho para ela. Lembrou-se de Amanda perguntando se teria que beber mais daquele

(suquiiiiinho)

ponche horroroso se voltasse — seu jeito de descobrir, supunha Lisey, se teria que continuar encarcerada na Greenlawn — e Lisey lhe prometera que não haveria mais ponche, não haveria mais suquinho. Amanda havia concordado em voltar, embora estivesse claro que não queria, que teria o maior prazer em continuar sentada no banco, olhan­do para o Malva-rosa até, nas palavras da Mãezinha Querida, “a metade final da eternidade”. Sentada lá, no meio daquelas coisas amortalhadas assustadoras e dos observadores silenciosos, um ou dois bancos acima da mulher de cafetã. A que tinha assassinado o próprio filho.

Lisey largou seu sanduíche no balcão, sentindo-se de repente ge­lada da cabeça aos pés. Ela não tinha como saber daquilo. Não tinha a menor possibilidade de saber daquilo.

Mas sabia.

Fiquem quietas, dissera a mulher. Enquanto eu penso por que fiz aquilo.

E então Amanda falou algo completamente inesperado, não foi? Algo sobre Scott. Embora nada do que Amanda tivesse dito naquela hora pudesse ser importante agora, não com Scott morto e Jim Dooley também (ou desejando estar), mas ainda assim Lisey gostaria de se lem­brar o que exatamente sua irmã falara.

— Ela disse que voltaria — murmurou Lisey. — Disse que voltaria se fosse para evitar que Dooley me machucasse.

Sim, e Amanda manteve sua palavra, Deus a abençoe, mas Lisey queria se lembrar de algo que ela falou depois daquilo. Não entendo como isso pode ter a ver com Scott. Ele já está morto há tanto tempo... embora... eu ache que ele me disse alguma coisa sobre...

Foi então que o telefone tocou, estilhaçando o vidro frágil das re­cordações de Lisey. E, ao atendê-lo, uma certeza louca lhe veio à mente: era Dooley. Olá, madame, diria o Príncipe Negro dos Incunks. Estou ligando da barriga daquele bicho. Como é que está a senhora?

— Alô — disse ela. Sabia que estava agarrando o telefone com força demais, mas não conseguia fazer nada a respeito.

— Danny Boeckman falando, sra. Landon — disse a voz do outro lado da linha. O “sra.”, em vez de “madame”, não foi suficiente para acalmá-la, mas o sotaque ianque, sim; e o oficial Boeckman soava estra­nhamente empolgado, quase esfuziante, como um menino. — Adivi­nhe só o que aconteceu!

— Nem imagino — disse Lisey, mas outra idéia maluca lhe veio à cabeça: ele iria dizer que eles tiraram palitinho no gabinete do xerife para ver quem iria ligar para ela e chamá-la para sair e ele tirou o mais curto. Mas por que ele soaria tão empolgado por isso?

— Nós encontramos a tampa da luz do teto!

Lisey não fazia idéia do que ele estava falando.

— Como?

— Doolin, o cara que a senhora conhecia como Zack McCool e depois como Jim Dooley, roubou aquele PT Cruiser que ele usou en­quanto perseguia a senhora, sra. Landon. Disso, nós tínhamos certeza. E também tínhamos certeza de que ele estava deixando o carro escondi­do naquele depósito de cascalho entre as viagens. Só não conseguíamos provar, porque...

— Ele limpou todas as impressões digitais.

— Isso aí, e não deixou nem umazinha. Mas de vez em quando eu e Plug saíamos...

— Plug?

— Desculpe, Joe. O oficial Alston?

Plug, pensou ela. Percebendo pela primeira vez, e claramente, que aqueles eram homens de verdade com vidas de verdade. Com apelidos. Plug, pensou ela. Oficial Joe Alston, também conhecido como Plug.

— Sra. Landon? A senhora está aí?

— Sim, Dan. Posso te chamar de Dan?

— Claro que pode. Enfim, de vez em quando a gente saía para dar uma volta e ver se encontrava alguns prêmios, porque havia muitos sinais de que ele tinha passado muito tempo naquele depósito; embala­gens de doce, umas duas garrafas de RC Cola, esse tipo de coisa.

— RC Cola — disse ela baixinho, e pensou: Bool, Dan. Bool, Plug. Bool, fim.

— Justamente, essa parecia ser a marca de que ele mais gostava, mas nenhuma digital de nenhuma das garrafas no lixo combinava com as dele. A única combinação que conseguimos foi com as de um camarada que roubou um carro no fim dos anos 70 e agora é caixa de mercado em um Quick-E-Mart lá em Oxford. A gente supôs que as outras digitais nas gar­rafas também fossem de balconistas. Mas ontem à tarde, sra. Landon...

— Lisey.

Houve uma pequena pausa enquanto Dan levava aquilo em consi­deração. Então, ele prosseguiu.

— Ontem à tarde, Lisey, numa pequena trilha que sai daquele depósito, eu encontrei o maior prêmio de todos: a tampa da luz do teto. Ele a arrancou e jogou para os duendes. — O tom de voz de Boeckman se elevou, tornando-se triunfante; não a voz de um xerife, e sim perfei­tamente humana. — E essa foi a única coisa que ele esqueceu de pegar com as luvas ou limpar depois! Uma bela digital de polegar de um lado e uma boa e velha digital de indicador no outro! Onde ele segurou a tampa. Recebemos os resultados de volta por fax hoje pela manhã.

— John Doolin?

— Isso aí. Nove pontos de semelhança. Nove! —- Houve uma pau­sa e, quando ele voltou a falar, parte do tom triunfante já havia deixado sua voz. — Se ao menos conseguíssemos encontrar o filho-da-mãe.

— Tenho certeza de que uma hora ele vai aparecer — disse ela, lançando um olhar cobiçoso para o sanduíche de atum. Havia perdido a linha de raciocínio a respeito de Amanda, mas recuperara o apetite. Para Lisey, aquilo parecia uma troca justa, especialmente em um dia caloren­to daqueles. — Mesmo que não apareça, ele parou de me importunar.

— Ele deu o fora de Castle County; aposto minha reputação nisso. — Um tom de inconfundível orgulho insinuou-se na voz do xerife Dan Boeckman. — Imagino que tenha ficado quente demais para ele, então se livrou do carro e foi embora. Plug também acha. Jim Dooley e Elvis já não estão por aí.

— Plug... é porque ele gosta de mascar fumo?*

— Não, senhora. Na escola, nós dois éramos atacantes da equipe do Castle Hills Knights que ganhou o campeonato estadual da primeira divisão. Os Bangor Rams estavam três touchdowns na frente, mas a gen­te deu um sacode neles. Fomos o único time da nossa parte do estado a ganhar uma bola de ouro desde os anos 50. E Joey, ninguém conseguiu pará-lo durante toda aquela temporada. Mesmo com quatro caras nas costas, ele continuava correndo.** Então a gente o chamava de Plug, e eu ainda o chamo.

— Se eu o chamar assim, será que ele vai ficar bravo comigo?

Dan Boeckman riu com entusiasmo.

— Não! Ele vai adorar!

— Então está certo. Eu sou Lisey, você é Dan, ele é Plug.

— Por mim está jóia.

— E obrigado pela ligação. Vocês fizeram um ótimo trabalho.

— Obrigado por dizer isso, senhora. Lisey. — Ela conseguia ouvir o sorriso em sua voz, e aquilo a fez se sentir bem. — Entre em contato, sim?, se a gente puder ajudar em mais alguma coisa. Ou se tiver notícia daquele vagabundo novamente.

— Pode deixar.

Lisey voltou ao seu sanduíche com um sorriso no rosto e não pen­sou em Amanda, no belo navio chamado Malva-rosa ou em Boo’ya Moon até o fim do dia. Naquela noite, no entanto, ela acordou ao som de um trovão distante, com a sensação de que algo enorme estava... não exatamente caçando-a (ele não se daria o trabalho), mas contemplando-a. A idéia de que ela poderia estar na mente inescrutável de uma coisa da­quelas a fez ter vontade de chorar e gritar. Ao mesmo tempo. Também a fez ter vontade de ficar acordada vendo filmes na tevê a cabo, fumando cigarros e tomando café extra-forte. Ou cerveja. Cerveja talvez fosse me­lhor. Talvez trouxesse o sono de volta. Em vez de se levantar, ela desligou o abajur do criado-mudo e ficou deitada, imóvel. Não vou mais voltar a dormir, pensou ela. Vou apenas ficar deitada deste jeito até o sol despontar no leste. Então vou me levantar e preparar o café que quero agora.

Porém, três minutos depois de pensar isto, ela estava cochilando. Dez minutos depois, dormia profundamente. Mais tarde ainda, quan­do a lua se ergueu e ela sonhou estar flutuando sobre uma certa praia exótica de areia branca e fina no tapete mágico PILLSBURY, sua cama ficou vazia por alguns instantes e o quarto foi tomado pelos cheiros de frangipana, jasmim e damas-da-noite, aromas que eram ao mesmo tempo nostálgicos e assustadores. Mas então ela voltou e, pela manhã, mal se lembrava daquele sonho no qual voava, voava por sobre a praia às margens do lago em Boo’ya Moon.

 

No fim das contas, o processo de desmantelamento da cobra de livros diferiu em apenas dois aspectos do que Lisey havia previsto, e se trataram de variações muito pequenas. Em primeiro lugar, um dos membros da equipe de duas pessoas do sr. Patridge era mulher — uma garota robusta de vinte e poucos anos, com um rabo-de-cavalo cor de caramelo passado pelo buraco de trás de um boné dos Red Sox. Em segundo lugar, Lisey não imaginara que o trabalho seria tão rápido. Apesar do calor espantoso do escritório (nem mesmo três ventiladores ligados no máximo adianta­vam muita coisa), todos os livros foram encaixotados e acomodados em uma van do campus de Orono da Universidade do Maine em menos de uma hora. Quando Lisey perguntou aos dois bibliotecários do departa­mento de Coleções Especiais (que chamavam a si mesmos — meio brin­cando, meio a sério, pensou Lisey — de Lacaios de Patridge) se queriam chá gelado, eles aceitaram com entusiasmo e beberam dois copos cada um. A garota era Cory. Foi ela quem disse a Lisey o quanto gostava dos livros de Scott, principalmente Relíquias, que afirmou ter lido três vezes. O rapaz era Mike, e foi ele quem disse que ambos sentiam muito pela sua perda. Lisey lhes agradeceu pela gentileza, e foi sincera.

— Deve ser triste para a senhora, vê-lo tão vazio — disse Cory, inclinando o copo na direção do celeiro. Os cubos de gelo tilintaram lá dentro. Lisey teve o cuidado de não olhar diretamente para o copo, para evitar ver algo além de gelo nele.

— É um pouco triste, mas é libertador também — disse ela. — Eu posterguei o trabalho de limpá-lo por muito tempo. Minhas irmãs me ajudaram. Estou feliz por termos conseguido. Mais chá, Cory?

— Não, obrigada, mas será que eu poderia usar o seu banheiro antes de pegarmos a estrada de volta?

— Claro. Depois da sala de estar, primeira porta à direita.

Cory pediu licença. Sem pensar — quase sem pensar —, Lisey mo­veu o copo da garota para trás da jarra de chá de plástico marrom.

— Mais um copo, Mike?

— Não, obrigado — disse ele. — Imagino que a senhora vá tirar o carpete, também.

Ela riu, constrangida.

— Vou. Feio, não é? Resultado de uma das experiências de Scott como envernizador. Foi um fracasso. — Pensando: Desculpe, querido.

— Parece um pouco sangue seco — disse Mike, terminando seu chá gelado. O sol, turvo e quente, correu pela superfície do copo e, por um instante, um olho pareceu fitar Lisey de dentro dele. Quando Mike o largou, ela teve que controlar um impulso de pegá-lo e escondê-lo atrás da jarra de plástico junto com o outro.

— Todo mundo fala isso — concordou ela.

— Nunca vi ninguém se cortar tão feio fazendo a barba — disse Mike, rindo. Os dois riram. Lisey achou que sua risada soou quase tão natural quanto a dele. Ela não olhou para o copo. Não pensou sobre o garoto espichado que agora era seu garoto espichado.

— Tem certeza de que não quer mais um pouco? — perguntou ela.

— Melhor não, estou dirigindo — disse Mike, e eles deram outra gargalhada.

Cory voltou e Lisey pensou que Mike fosse pedir para usar o banhei­ro, mas ele não pediu — homens tinham rins maiores, bexigas maiores, algumas coisas maiores, pelo menos era o que Scott dizia —, e Lisey ficou feliz por isso, pois, sendo assim, apenas a garota lançou aquele olhar estra­nho para ela antes de os dois partirem com a cobra de livros desmantelada na traseira da van. Ah, com certeza ela contou a Mike o que viu na sala de estar e o que encontrou no banheiro, contou-lhe na longa viagem para o norte até o campus de Orono da Universidade do Maine, mas Lisey não estava lá para ouvir. O olhar da garota não foi tão ruim, pensando bem, pois Lisey não entendeu o que ele significava naquela hora, embora tenha apalpado o lado da cabeça, achando que talvez seu cabelo tivesse caído errado sobre a orelha, estivesse de pé ou algo do gênero. Então, mais tarde (depois de ter jogado os copos de chá gelado na lavadora de pratos quase sem olhar para eles), foi usar o banheiro também e viu a toalha pendurada no espelho. Lembrava-se de ter colocado a toalha de rosto sobre o espelho do armarinho de remédios do andar de cima; aquele, lembrava-se perfei­tamente de ter tapado, mas quando tinha tapado este?

Lisey não sabia.

Ela voltou para a sala de estar e viu que também havia um lençol pendurado em forma de cortina sobre o espelho do consolo da lareira. Deveria ter notado aquilo no caminho — imaginava que Cory tivesse notado, o que era bastante óbvio —, mas a verdade é que Lisey Landon não passava muito tempo analisando seu próprio reflexo ultimamente.

Ela deu uma volta pela casa e descobriu que apenas dois dos es­pelhos do primeiro piso não haviam sido cobertos com lençóis, toalhas ou (em um caso) tirados da parede e virados do avesso; então também cobriu os dois últimos sobreviventes, no espírito de perdido por um, perdido por mil. Enquanto os cobria, Lisey se perguntou o que exata­mente a jovem bibliotecária, com seu moderno boné de beisebol rosa dos Red Sox, teria pensado. Que a viúva do escritor famoso era judia, ou havia adotado o costume de luto judeu, e continuava enlutada? Que ela havia decidido que Kurt Vonnegut estava certo quando disse que espelhos não eram superfícies refletoras, e sim fendas, portais para outras dimensões? E, na verdade, não era isso que ela pensaria?

Não portais, janelas. E eu lá deveria me importar com o que uma bibliotecária da Universidade dos Caipiras pensa?

Oh, provavelmente não. No entanto, a vida tem tantas superfí­cies refletoras, não tem? Não só espelhos. Existem copos de suco para os quais deve-se evitar olhar logo de manhãzinha, taças de vinho para as quais não se deve olhar ao pôr do sol. As tantas vezes em que você se senta atrás do volante do carro e vê o próprio rosto lhe devolvendo um olhar do painel de controle. Tantas noites longas em que a mente de alguma coisa... de um outro... pode vir a uma pessoa, se esta pessoa não conseguir evitar que sua mente se volte para ela. E como você faz para evitar uma coisa dessas? Como não pensar em algo? A mente era um rebelde de kilt dos diabos, citando o falecido Scott Landon. Ela poderia inventar... bem, merda, incêndio, salvem seus fósforos, por que não di­zer logo? Ela poderia inventar tanta coisa ruim.

E tinha outra coisa, também. Algo muito mais assustador. Talvez, mesmo que ele não viesse a você, você não conseguiria deixar de ir até ele. Porque uma vez que você distendia aquelas joças de tendões... uma vez que sua vida no mundo real começava a parecer um dente mole em uma gengiva doente...

Ela estaria descendo as escadas, ou entrando no carro, ou ligan­do o chuveiro, ou lendo um livro, ou abrindo uma revista de palavras cruzadas e teria a sensação absurdamente parecida com um espirro se aproximando ou

(mein gott, babyluv, mein gott, pequena Leezy!...)

com um orgasmo iminente e pensaria: Ah, cacete, eu não estou vin­do, estou indo, estou indo para lá. O mundo inteiro pareceria oscilar e haveria a sensação de todo um outro mundo esperando para nascer, no qual tudo que é doce azeda e se torna veneno depois que anoitece. Um mundo que fica a apenas um passo de distância, ao alcance de um mo­vimento das mãos, ou do girar de um quadril. Por um instante, ela sen­tiria Castle View desmoronar por todo lado e se tornaria Lisey andando na corda bamba, equilibrando-se para não cair. Então ela voltaria, uma mulher sólida (ainda que de meia-idade e um pouco magra demais) des­cendo um lance de escadas, batendo a porta do carro, regulando a água quente, virando a página de um livro ou resolvendo palavras cruzadas: presente, em desuso, quatro letras, começa com B, termina com N.

 

Dois dias depois que a cobra desmantelada foi para o norte, no que a sucursal de Portland do Serviço Nacional de Meteorologia classificaria como o dia mais quente do ano no Maine e em New Hampshire, Lisey subiu até o escritório com um mini System e um C D chamado Hank Williams’ Greatest Hits. Tocar o CD não seria problema, assim como não havia sido problema ligar os ventiladores no dia em que os Lacaios de Patridge estiveram lá em cima; no fim das contas, Dooley tinha ape­nas aberto a caixa de luz no andar de baixo e desligado os três disjunto­res que controlavam a energia do escritório.

Lisey não fazia idéia do quão quente estava dentro do escritório, mas sabia que passava dos 37°C. Sentiu a blusa começar a colar no seu corpo e o rosto umedecer assim que chegou ao topo da escada. Tinha lido em algum lugar que mulheres não suam, elas brilham, o que era uma baita conversa mole. Se ficasse lá em cima tempo o suficiente, pro­vavelmente desmaiaria de calor, mas não pretendia se demorar muito. Havia uma música country que ela às vezes escutava no rádio chamada Ain’t Livin’ Long Like This.* Não sabia quem tinha composto a canção ou quem a cantava (não era o Velho Hank), mas se identificava com ela. Não conseguiria passar o resto da vida com medo do próprio reflexo — ou do que poderia estar à espreita atrás dele — e não conseguiria vi­ver com medo de que, a qualquer momento, pudesse perder o controle da realidade e se ver em Boo’ya Moon.

Aquela joça tinha que acabar.

Ela ligou o mini system na tomada, então se sentou de pernas cru­zadas no chão diante dele e colocou o CD. Suor entrou no seu olho, ardendo, e ela o limpou com o punho cerrado. Scott havia tocado muita música lá em cima, com o volume estourando. Quando se tem um apa­relho de som de 12 mil dólares e o anexo no qual a maioria das caixas de som fica é à prova de som, você pode botar pra quebrar. Na primeira vez que ele tocou Rockaway Beach para ela, Lisey pensou que o teto sobre a cabeça deles fosse sair voando. O que estava prestes a tocar soaria baixi­nho e discreto em comparação, mas ela achava que seria o suficiente.

Presente, em desuso, quatro letras, começa com B, termina com N.

Amanda, sentada em um daqueles bancos, olhando para o Porto de Southwind, logo acima da mulher infanticida com o cafetã, Amanda di­zendo: Tinha algo a ver com uma história. A sua história. A história de Lisey. E com a colcha. Só que ele a chamava de trouxa. Qual era a palavra que ele usava? Boop? Beep? Boon?

Não, Manda, não era boon, embora essa seja uma palavra de quatro letras, bastante em desuso hoje em dia, que começa com B e termina com N e significa presente.** Mas a palavra que Scott usava...

A palavra tinha sido bool, é claro. O suor escorreu pelo rosto de Lisey como lágrimas. Ela deixou.

— Como em Bool, fim. E no final você ganha um prêmio. Às vezes um doce. Às vezes uma RC Cola da loja do Mullie. Às vezes um beijo. E às vezes... às vezes uma história. Não é, querido?

Falar com ele não pareceu estranho. Porque ele ainda estava ali. Mesmo sem os computadores, a mobília, o extravagante aparelho de som sueco, os fichários repletos de manuscritos, as pilhas de provas não­-corrigidas (dele mesmo ou enviadas por amigos e admiradores) e a co­bra de livros... mesmo sem aquelas coisas, ela ainda sentia Scott. É claro que sim. Porque ele não havia dado sua última palavra. Tinha mais uma história para contar.

A história de Lisey.

Ela achava que sabia qual era, pois tinha apenas uma que ele nunca havia terminado.

Lisey tocou uma das manchas de sangue secas no carpete e pensou sobre os argumentos contra a loucura, os que caíam por terra com um leve farfalhar. Ela pensou em como foi estar debaixo da árvore nhami­-nhami: como se estivessem em outro mundo, em um mundo só deles. Ela pensou sobre a Gente da Coisa Ruim, sobre a Gente dos Bools de Sangue. Sobre como, quando Jim Dooley viu o garoto espichado, ele parou de gritar e suas mãos caíram dos lados do corpo. Porque a força tinha abandonado seus braços. Era isso que olhar para a coisa ruim fa­zia, quando a coisa ruim estava olhando de volta para você.

— Scott — disse ela. — Querido, estou ouvindo.

Não houve resposta... exceto a que Lisey deu a si mesma. O nome da cidade era Anarene. Sam, o Leão, era dono da sinuca. Dono do cinema. E do restaurante, onde todas as músicas no jukebox pareciam ser de Hank Williams.

Em algum lugar, algo no escritório vazio pareceu suspirar, concor­dando. Provavelmente era só imaginação dela. De qualquer forma, a hora havia chegado. Lisey ainda não sabia exatamente o que estava pro­curando, mas achava que saberia o que era quando encontrasse — com certeza saberia, se Scott tinha deixado para ela — e estava na hora de começar a busca. Porque não iria continuar vivendo daquele jeito por muito tempo. Não conseguiria.

Ela apertou o PLAY e a voz cansada e alegre de Hank Williams co­meçou a cantar.

 

“Goodbye Joe, me gotta go,

Me-ob-my-oh

Me gotta go pole the pirogue

Down the bayou...”

 

ESPANE, babyluv, pensou ela, e fechou os olhos. Por um instante, a música ainda estava lá, porém abafada e muito distante, como se viesse do fundo de um longo corredor, ou da garganta de uma caverna pro­funda. Então a luz do sol brotou vermelha no interior de suas pálpebras e a temperatura caiu 10 graus, talvez até 15, de uma só vez. Uma brisa fresca, deliciosa com seu cheiro de flores, acariciou sua pele suada e so­prou seu cabelo viscoso para trás, descolando-o das têmporas.

Lisey abriu os olhos em Boo’ya Moon.

 

Ela ainda estava sentada de pernas cruzadas, mas agora se encontrava à beira do caminho que conduzia pela colina de tremoceiros abaixo por uma direção e para debaixo das árvores adoráveis pela outra. Já estivera lá antes; foi àquele mesmíssimo local que seu marido a trouxera antes de ser seu marido, dizendo que tinha algo para lhe mostrar.

Lisey se levantou, afastando o cabelo úmido de suor do rosto com as mãos, deleitando-se com a brisa. Com a doçura dos aromas mistu­rados que ela carregava — sim, claro —, porém, acima de tudo, com o frescor dela. Conseguia ouvir cantando, pelo som que faziam, pássaros perfeitamente comuns — chapins e rouxinóis com certeza, provavel­mente alguns pintassilgos e talvez uma cotovia para completar —, mas nada de coisas horríveis e gargalhantes na floresta. Era cedo demais para elas, imaginou. Nem sinal do garoto espichado, tampouco; e essa era a melhor notícia de todas.

Ela encarou as árvores e se voltou em um lento semicírculo. Não procurava pela cruz, pois ela havia ficado presa no braço de Dooley, que em seguida a atirou longe. Era a árvore que ela estava procurando, a que ficava só um pouquinho à frente das outras no lado esquerdo da trilha...

— Não, não é isso — murmurou ela. — Elas ficavam dos dois lados da trilha. Como soldados protegendo a entrada da floresta.

De repente, ela as viu. E uma terceira um pouco adiante da que fi­cava à esquerda. Esta era a maior, seu tronco coberto com um musgo tão espesso que parecia uma pelagem. Na sua base, o solo ainda parecia um pouco afundado. Era lá que Scott havia enterrado o irmão que ten­tara salvar com tanto afinco. E, em um dos lados daquela parte afun­dada, ela viu algo com olhos fundos enormes encarando-a do meio da grama alta.

Por um instante, ela pensou que fosse Dooley, ou o cadáver dele, de alguma forma reanimado e de volta para persegui-la, mas então se lembrou de como, depois de afastar Amanda com um golpe, ele havia retirado os óculos de visão noturna inúteis e sem lentes e os jogado fora. E lá estavam eles, caídos do lado da sepultura do bom irmão.

É outra caça ao bool, pensou ela ao andar na direção deles. Da trilha à árvore; da árvore à sepultura; da sepultura aos óculos. Para onde agora? Para onde, babyluv?

A próxima estação acabou sendo o marcador da sepultura, com a parte horizontal da cruz entortada de modo a parecer um ponteiro de relógio marcando sete horas e cinco minutos. O sangue de Dooley manchava cerca de 8 centímetros do topo da cruz. Ele já estava seco e havia ganhado aquela tonalidade marrom, não exatamente cor de ver­niz, das manchas no carpete do escritório de Scott. Ela ainda conseguia ver PAUL escrito na cruz e, à medida que a ergueu (com reverência sincera) da grama para olhar mais de perto, viu também outra coisa: o pedaço desbotado de linha amarela que tinha sido passado várias vezes em volta da ripa vertical e então amarrado firme. Amarrado, Lisey não tinha a menor dúvida, com o mesmo tipo de nó que segurara o sino de Chuckie G. na árvore dentro da floresta. A linha amarela — que já havia girado pelas agulhas de crochê da Mãezinha Querida enquanto ela assistia à televisão na fazenda em Lisbon — estava amarrada na ripa vertical logo acima do lugar em que a terra havia escurecido a madeira. E, olhando para ela, Lisey se lembrou de tê-la visto correndo para a es­curidão logo antes de Dooley tirar a cruz do braço e atirá-la longe.

É a trouxa, a que largamos diante do pedregulho sobre o lago. Ele vol­tou depois, algum tempo depois, a apanhou e trouxe até aqui. Desfiou um pedaço dela, amarrou à cruz e então saiu desfiando mais. E esperou que eu encontrasse o resto depois que tudo acabasse.

Com o coração batendo forte e devagar no peito, Lisey largou a cruz e começou a seguir a linha amarela que se afastava da trilha e corria pela beira da Floresta Mágica, passando-a pelas mãos à medida que a grama alta sussurrava contra suas coxas, os gafanhotos saltavam e os tremoceiros exalavam seu cheiro doce. Em algum lugar, um gafanhoto cantou sua canção fogosa de verão e, na floresta, um corvo — seria mesmo um cor­vo? Era o que parecia, um corvo perfeitamente comum — emitiu um olá rouco, mas não havia carros, aviões ou vozes humanas, perto ou longe dali. Ela andou pela grama, seguindo a linha da colcha desfiada, aquela na qual seu marido insone, assustado e enfraquecido tinha se enrolado durante tantas noites de frio, dez anos atrás. À sua frente, uma árvore adorável se destacava um pouco das suas companheiras, estendendo seus galhos, criando uma poça de sombra convidativa. Debaixo dela, Lisey viu um cesto de lixo de metal alto e uma poça amarela muito maior. A cor se tornara mais fosca, a lã manchada e disforme, como uma peru­ca loira enorme que tivesse sido deixada na chuva, ou talvez o cadáver de um gato grande e velho, mas Lisey a reconheceu assim que a viu, e seu coração começou a apertar. Na sua mente, ela conseguia ouvir The Swinging Johnsons tocando Too Late to Turn Back Now e sentir a mão de Scott conduzindo-a até o chão. Ela seguiu a lã amarela desfiada até debaixo da árvore adorável e se ajoelhou ao lado do pouco que restava do presente de sua mãe à filha mais nova e ao marido dela. Ela a apanhou — e o que quer que estivesse lá dentro. Colou-a ao rosto. Cheirava a umidade e mofo, uma coisa velha, esquecida, que tinha mais cheiro de funeral do que de casamento. Mas tudo bem. Era assim que deveria ser. Lisey sentiu o aroma de todos os anos em que ela esteve ali, amarrada à cruz de Paul e esperando por ela, como uma espécie de âncora.

 

Um pouco depois, quando parou de chorar, ela colocou o pacote (pois com certeza era isso que ele era) no mesmo lugar de antes e olhou para ele, tocando o local em que a lã amarela desfiava do corpo encolhido da colcha. Achou impressionante que a linha não tivesse arrebentado, nem quando Dooley caiu em cima da cruz ou quando a arrancou do braço, ou quando a atirou longe — quando a estilingou adiante. É claro que o fato de Scott ter amarrado o fio rente ao chão ajudou, mas ainda as­sim era incrível, principalmente se você levasse em conta quanto tempo aquele negócio tinha ficado ali, exposto às intempéries. Era um milagre de olhos azuis, por assim dizer.

Mas é claro que, às vezes, cachorros perdidos voltavam para casa; às vezes, fios velhos não arrebentavam e conduziam você ao prêmio no fim da caça ao bool. Ela começou a desembrulhar os restos desbotados da colcha, então parou para olhar dentro do cesto de lixo. O que viu a fez rir melancolicamente. Ele estava quase cheio de garrafas de bebida. Uma ou outra parecia relativamente nova, e ela tinha certeza de que a que estava em cima o era, pois não havia nada parecido com Mike’s Hard Lemona­de dez anos atrás. No entanto, a maioria era velha. Era para lá que ele ia quando estava a fim de beber em 1996, porém, mesmo bêbado de cair, Scott tinha muito respeito por Boo’ya Moon para sujada de garrafas va­zias. E será que ela encontraria outros esconderijos se procurasse? Talvez. Provavelmente. Mas aquele era o único que interessava a Lisey. Aquele esconderijo lhe dizia que era para lá que ele tinha ido concluir sua obra.

Ela pensou que tinha todas as respostas, menos as mais impor­tantes, aquelas que viera buscar — como faria para viver com o garoto espichado, e como faria para evitar aquelas idas acidentais para lá, onde ele vivia, especialmente quando ele estivesse pensando nela. Talvez Scott tivesse deixado algumas respostas. Mesmo que não, alguma coisa ele havia deixado... e era lindo debaixo daquela árvore.

Lisey pegou a trouxa novamente e a tateou da maneira como ta­teara seus presentes de Natal quando criança. Havia uma caixa lá den­tro, mas não parecia nem um pouco com a caixa de cedro da Mãezinha Querida; era mais macia, quase mole, como se, mesmo embrulhada na trouxa e guardada debaixo da árvore, a umidade tivesse penetrado nela com os anos... e, pela primeira vez, Lisey se perguntou quantos anos teriam sido. A garrafa de Hard Lemonade sugeria que não muitos. E a sensação da coisa sugeria...

— É uma caixa de manuscrito — murmurou ela. — Uma de suas caixas de manuscrito de papelão duro. — Sim. Ela não tinha dúvidas. Porém, depois de dois anos debaixo daquela árvore... ou três... ou qua­tro... ela havia se tornado uma caixa de papelão mole.

Lisey começou a desembrulhar a colcha. Duas voltas foram o su­ficiente; era tudo o que sobrava dela. E era uma caixa de manuscrito, sua cor cinza-clara escurecida pela umidade. Scott sempre colocava uma etiqueta na tampa de suas caixas e escrevia o título nela. As duas pontas daquela etiqueta tinham se soltado e enrolado para dentro. Ela as empur­rou para trás com os dedos e viu uma única palavra na letra firme, escrita a tinta preta, de Scott: LISEY. Ela abriu a caixa. As páginas lá dentro eram folhas pautadas arrancadas de um bloco de anotações. Havia talvez trinta ao todo, cheias de rabiscos apressados, feitos com uma de suas canetas escuras de ponta de feltro. Ela não ficou surpresa ao ver que Scott havia escrito no presente, que o que escrevera parecia assumir às vezes um estilo infantil e que a história parecia começar na metade. Esta última afirma­ção era verdadeira, refletiu ela, apenas se você não soubesse como os dois irmãos tinham sobrevivido a seu pai louco, o que havia acontecido com um deles e como o outro não conseguira salvá-lo. A história só parecia começar no meio se você não soubesse sobre os pancadas, os coisas-ruins e a coisa ruim. Ela só começava no meio se você não soubesse que

 

Em fevereiro ele começa a me olhar esquisito, com o rabo do olho. Eu fico esperando ele gritar comigo ou até sacar o canivete velho dele e me cortar. Há muito tempo que ele não faz nada parecido, mas eu acho que seria quase um alívio. Isso não arrancaria a coisa ruim de dentro de mim porque eu não tenho coisa ruim nenhuma — eu vi a coisa ruim de verdade quando Paul tava preso no porão, não as fantasias do Papai a respeito dela — e eu não tenho nada parecido com aquilo em mim. Mas tem algo de ruim dentro dele, algo que os cortes não tão conseguindo botar pra fora. Dessa vez não, embora ele tenha tentado bastante. Eu sei. Vi as camisas e as cuecas cheias de sangue na roupa suja. E no lixo, também. Se me cortar fizesse bem pra ele, eu deixaria, porque ainda amo o Papai. Mais do que nunca, agora que somos só nos dois. Mais do que nunca, depois do que a gente passou com Paul. Esse tipo de amor é um tipo de perdição, como a coisa ruim. “A coisa ruim é forte”, disse ele.

Mas ele não me corta.

Um dia eu estou voltando do barraco, onde eu tinha me sentado um pouco pra pensar sobre Paul — para pensar sobre como a gente se divertia zanzando por esse lugar velho — e o Papai me agarra e me sacode.

— Você foi lá! — grita ele na minha cara. E eu vejo que ele está mais doente do que eu imaginava. Ele nunca foi tão ruim assim. — Por que você vai lá? O que você faz lá dentro? Fica de conversa com quem? O que está tramando?

Sem parar de me sacudir e sacudir, o mundo balançando para cima e para baixo. Então minha cabeça bate no lado da porta e eu vejo estrelas e caio lá na soleira com o calor da cozinha na minha parte de cima e o frio do pátio na minha parte de baixo.

— Não, Papai — digo. — Não fui pra lugar nenhum, eu tava só...

Ele se inclina sobre o meu corpo com as mãos nos joelhos, o rosto bem em cima do meu, a pele branca, exceto por dois círculos corados bem no alto das bochechas, e eu noto o jeito que os olhos dele estão indo de um lado para outro e sei que ele e o juízo pararam de trocar cartas. E me lembro de Paul dizendo: Scott, você nunca deve contradizer o Papai quando ele perde o juízo.

— Não me venha com essa de que não foi pra lugar nenhum, seu filho-da-putinha mentiroso, eu RODEI ESSA CASA FILHA DUMA ÉGUA INTEIRA!

Penso em falar pra ele que estava no barraco, mas sei que isso só vai piorar as coisas em vez de melhorar. Penso em Paul dizendo que você nunca deve contradizer o Papai quando ele perde o juízo, quando ele está ficando ruim, e já que eu sei onde ele acha que eu estava, falo que sim, Papai, sim, eu fui para Boo’ya Moon, mas só pra colocar flores no túmulo de Paul. E funciona. Por enquanto, pelo menos. Ele relaxa. Até agarra minha mão, me puxa para cima e me dá uma escovada, como se estivesse vendo neve ou sujeira ou sei lá o quê em mim. Não tem nada, mas talvez ele esteja vendo. Quem sabe?

Ele diz:

— Está tudo certo, Scoot? A sepultura dele está no lugar? Nenhuma coisa mexeu nela, ou nele?

— Está tudo certo, Papai — digo.

Ele fala:

— Os nazistas estão na ativa, Scooter, te falei isso? Devo ter falado. Eles estão adorando Hitler no porão. Têm uma estatuazinha de cerâmica do desgraçado. Eles acham que eu não sei.

Tenho só 10 anos, mas sei que Hitler já está comendo capim pela raiz desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Também sei que não tem ninguém da U.S. Gyppum adorando uma estátua dele no porão. Também sei uma ter­ceira coisa: não devo contrariar o Papai quando ele está com a coisa ruim, então eu digo:

— E o que o senhor vai fazer?

Papai se aproxima de mim e eu acho que dessa vez ele vai me bater com certeza, ou pelo menos começar a me sacudir de novo. Mas, em vez disso, ele gruda os olhos nos meus (nunca vi os olhos dele tão grandes e tão escuros) e então agarra a própria orelha.

— O que é isso, Scooter? O que lhe parece, Scoot, meu velho?

— É a sua orelha, Papai — digo.

Ele assente, ainda segurando a orelha e ainda com os olhos grudados nos meus. Todos esses anos depois eu ainda vejo aqueles olhos nos meus sonhos às vezes.

— Eu vou ficar só ouvindo — diz ele. — E quando chegar a hora... — Ele levanta o dedo e faz como se atirasse. — Até o último deles, Scooter. Todos os nazistas filhos duma égua daquele lugar. — Talvez ele pudesse fazer aquilo. Meu pai, num glorioso acesso de fúria. Talvez até saísse uma daquelas matérias de jornal — RECLUSO DA PENSILVÂNIA ENLOUQUECE, MATA NOVE COLEGAS DE TRABALHO E SE SUICIDA, MOTIVO DESCONHECIDO —, mas antes de conseguir pôr isso em prática, a coisa ruim acaba com ele de outra forma.

Fevereiro foi claro e frio, mas, com a chegada de março, o tempo muda e Papai muda com ele. A medida que as temperaturas sobem, os céus ficam nublados e as primeiras chuvas misturadas com neve começam a cair, ele fica rabugento e quieto. Pára de se barbear, depois de tomar banho, e então de fazer nossa comida. Um dia, talvez já passado um terço do mês, percebo que os três dias de folga que ele às vezes ganha por causa do plantão dobrado viraram quatro... depois cinco... depois seis. Tenho medo de fazer perguntas, porque agora ele passa a maior parte do dia ou no seu quarto no andar de cima ou deitado no sofá do andar de baixo, ouvindo música country na WWVA, que é transmitida de Wheeling, West Virgínia. Ele quase não fala nada comigo em nenhum dos dois lugares, e eu vejo seus olhos indo de um lado para outro o tempo todo, como se estivesse procu­rando por eles, a Gente da Coisa Ruim, a Gente dos Bools de Sangue. Então — não, não quero perguntar a ele, mas não tenho saída, porque se ele não voltar a trabalhar, o que vai acontecer com a gente? Com 10 anos você já sabe que, sem dinheiro entrando, as coisas mudam.

— Você quer saber quando eu vou voltar a trabalhar — diz ele em um tom de voz pensativo. Deitado no sofá, com o rosto coberto pela barba por fazer. Deitado lá com um suéter de lã, calça jeans e o pé descalço apontan­do para fora. Deitado enquanto Red Sovine canta “Giddyup-Go” no rádio.

— Quero, Papai.

Ele se levanta e olha para mim e eu vejo que ele partiu. Pior, que tem alguma coisa escondida dentro dele, crescendo, ficando mais forte, espe­rando a hora certa de atacar.

— Você quer saber. Quando. Eu. Vou. Voltar a trabalhar.

— Acho que isso não é da minha conta — digo. — Na verdade, só vim perguntar se o senhor quer que eu faça o café.

Ele agarra meu braço, e naquela noite vejo marcas azul-escuras no lugar em que seus dedos me apertaram. Quatro marcas azul-escuras no formato dos dedos dele.

— Quer saber. Quando. Eu. Vou. Para . — Ele solta meu braço e se senta. Seus olhos estão maiores do que nunca e eles não param quietos. Dançam nas órbitas. — Nunca mais vou voltar para , Scott. Aquele lugar está fechado. Aquele lugar foi pelos ares. Será que você não sabe nada, seu filho-da-putinha burro e cagão? — Ele baixa os olhos para o carpete sujo da sala de estar. No rádio, Red Sovine dá lugar a Ferlin Husky. Então Papai olha para cima novamente e ele é o Papai, e diz algo que quase parte meu coração. — Você pode ser burro, Scooter, mas é corajoso. É o meu garoto corajoso. Não vou deixar que ele te machuque.

Então Papai volta a deitar no sofá, vira o rosto para o outro lado e me diz para não incomodá-lo mais, ele quer tirar um cochilo.

Naquela noite, eu acordo ao som da chuva com neve batendo na janela e ele está sentado na beirada da minha cama, sorrindo para mim. Só que não é ele sorrindo. Não há nada nos seus olhos além da coisa ruim.

— Papai — digo, e ele não responde. Eu penso: Ele vai me matar. Vai colocar as mãos em volta do meu pescoço e me sufocar, e tudo aquilo pelo que a gente passou, tudo que aconteceu com Paul, vai ter sido à toa.

Mas em vez disso ele fala, em uma espécie de voz estrangulada:

— Volte a dormir — e se levanta da cama e sai andando de um jeito meio torto, com o queixo pra frente e a bunda balançando, como se estives­se fingindo ser um sargento instrutor numa parada militar, ou sei lá. Alguns instantes depois, eu ouço um barulho terrível de carne desabando e tenho certeza de que ele caiu escada abaixo, ou talvez se jogou, e fico deitado mais um pouco, sem conseguir sair da cama, torcendo para ele estar morto, torcendo para não estar, me perguntando o que vou fazer se ele estiver, quem vai cuidar de mim, pouco me importando com isso, sem saber o que quero mais. Parte de mim chega a torcer para que ele termine o serviço, volte para me matar, simplesmente termine o serviço, acabe com o horror de se viver naquela casa. Finalmente, chamo:

— Papai, o senhor está bem?

Por um bom tempo, não há resposta. Fico deitado escutando o granizo, pensando: Ele está morto, está sim, meu Papai está morto, estou sozinho aqui, e então ele berra da escuridão, lá de baixo:

— Sim, tudo bem! Cale a boca, seu merdinha! Cale a boca a não ser que você queira que a coisa na parede te ouça e saia para comer nós dois vivos! Ou você quer que ela entre em você igual entrou em Paul?

Não digo nada de volta, fico apenas deitado na cama, tremendo.

— Responda! — vocifera ele. — Responda, seu bocó, ou vou subir e fazer você se arrepender!

Mas eu não consigo, estou assustado demais para responder, minha língua não passa de um pedacinho de bife defumado estirado no fundo da boca. Também não choro. Estou assustado demais até para isso. Só fico deitado e espero ele subir e me machucar. Ou acabar com a minha raça.

Então, depois do que parece ser muito tempo — pelo menos uma hora, embora não possa ter sido mais de um ou dois minutos —, escuto ele murmu­rar alguma coisa que poderia ser A porra da minha cabeça está sangrando, ou Não pára de chover nem sonhando. Seja o que for, ele está se afastando da escada e indo para a sala de estar, e sei que vai se deitar no sofá e dormir por ali. Pela manhã, ele vai acordar ou não, mas, de qualquer forma, já não vai querer saber de mim esta noite. Mas eu ainda estou assustado. Estou assustado porque existe uma coisa. Não acho que esteja na parede, mas ela existe. Ela pegou Paul, e provavelmente vai pegar meu Pai e o pró­ximo sou eu. Já pensei muito nisso, Lisey.

 

Do seu lugar debaixo da árvore — na verdade, sentada com as costas apoiadas no troco dela — Lisey ergueu os olhos, quase espantada, como teria ficado se o fantasma de Scott a houvesse chamado pelo nome. De certa forma, ela imaginava que era exatamente isso que tinha aconte­cido e, pensando bem, por que deveria estar surpresa? É claro que ele estava falando com ela, com ela e ninguém mais. Aquela era a sua histó­ria, a história de Lisey, e, embora lesse devagar, ela já havia passado por um terço das páginas manuscritas. Achava que terminaria bem antes do anoitecer. O que era bom. Boo’ya Moon era um lugar encantador, mas apenas à luz do dia.

Ela baixou os olhos de volta para o seu último manuscrito e ficou novamente pasma por ele ter sobrevivido àquela infância. Notou que Scott escrevia no passado apenas quando se dirigia a ela, que estava no presente. Aquilo a fez sorrir e ela voltou a ler, pensando que, se tivesse direito a um desejo, ele seria poder voar até aquele menino solitário no seu altamente hipotético tapete mágico de saco de farinha e consolado, nem que fosse apenas ao sussurrar no seu ouvido que, com o tempo, aquele pesadelo terminaria. Ou pelo menos parte dele.

 

Já pensei muito nisso, Lisey, e cheguei a duas conclusões. Primeiro, o que quer que tenha pegado Paul era real, uma espécie de entidade que o possuiu e que pode ter tido uma origem perfeitamente mundana, talvez até viral ou bacteriológica. Segundo, não era o garoto espichado. Porque aquela coisa não é semelhante a nada que possamos entender. É uma coisa única, sobre a qual é melhor nem pensar. Nunca.

Seja como for, nosso herói, Scott Landon, finalmente volta a dormir e, naquela casa de fazenda no interior da Pensilvânia, as coisas continuam as mesmas por mais alguns dias, com Papai deitado no sofá como um queijo rançoso, Scott fazendo a comida e lavando os pratos, a chuva misturada com neve batendo nas janelas e a música country da WWVA enchendo a casa — Donna Fargo, Waylon Jennings, Johnny Cash, Conway Twitty, “Country” Charlie Pride e, é claro, o Velho Hank. Então um dia, por volta das três da tarde, um Chevrolet seda marrom com U.S. GYPSUM escrito nas laterais sobe a longa entrada de carros, produzindo leques de barro dos dois lados. Aquela altura, Andrew Landon passa a maior parte do tempo no sofá da sala de estar, dorme nele à noite e fica deitado nele o dia inteiro, e Scott jamais imaginaria que seu pai ainda conseguisse se mover tão rápido quanto se move quando ouve o carro, que claramente não é o velho caminhão Ford dos correios ou a van da companhia elétrica. Num piscar de olhos, Papai está de pé e na janela que dá para o lado esquerdo da varanda da frente. Ele se curva, puxando a cortina branca suja um pouco de lado. Seu cabelo está levantado atrás e Scott, que está parado na porta da cozinha com um prato em uma das mãos e um pano de prato sobre o ombro, consegue ver a parte roxa e inchada do seu rosto que sofreu o impacto quando ele caiu da escada. Nota também como uma das pernas da calça jeans está puxada quase até o joelho. Consegue ouvir Dick Curless no rádio cantando Tomb­stone Every Mile e reconhecer a vontade de matar nos olhos do Pai e na maneira como seus lábios estão repuxados para baixo, mostrando os dentes inferiores. Papai desvia-se rapidamente da janela e a perna da calça volta para o lugar. Ele atravessa a sala até o armário como uma tesoura louca e o abre na hora em que o motor do Chevrolet pára. Scott escuta a porta do carro se abrir lá fora, alguém se encaminhando para a porta da morte sem saber, sem ter a menor filha duma égua de idéia, e Papai pega o .30-06 do armário, o mesmo que ele usou para tirar a vida de Paul. Ou a vida da coisa dentro dele. Sapatos sobem os degraus da varanda. São três degraus e o do meio range como sempre, até o fim dos tempos, amém.

— Papai, não — digo numa voz baixa e suplicante, enquanto Andrew “Sparky” Landon segue em direção à porta fechada no seu novo e estra­nhamente gracioso passo de tesoura, segurando o rifle na diagonal diante de si. Ainda estou com o prato na mão, mas meus dedos ficam dormentes e eu penso: Vou deixar o prato cair. O filho duma égua vai cair no chão e quebrar e os últimos sons que o homem lá fora vai ouvir serão um prato quebrando e Dick Curless no rádio cantando sobre Hainesville Woods nesta casa abandonada e miserável. — Papai, não — repito, suplicando com todo meu coração e tentando passar aquela súplica para os meus olhos.

Sparky Landon hesita, então recosta na parede de modo que, se a porta abrir (quando a porta abrir), ela o esconderá. E, na mesma hora, uma série de batidas soa naquela porta. Não tenho dificuldade em ler as palavras que se formam silenciosamente nos lábios cercados de pêlos do meu pai: Então se livre dele, Scoot.”

Vou até a porta. Troco o prato que pretendo secar da mão direita para a esquerda e a abro. Vejo o homem parado diante dela com terrível clareza. O homem da U.S. Gypsum não é tão alto — com seus cerca de 1,75 m, não é muito maior do que eu —, mas parece a própria encarnação da autoridade com seu boné de aba preta, calças caqui com as pregas im­pecáveis e camisa caqui aparecendo por debaixo do casaco curto, que está semiaberto. Ele usa uma gravata preta e está carregando uma espécie de maleta pequena, não exatamente uma pasta (somente alguns anos depois aprenderei a palavra portfolio). Ele é meio gordo e tem o rosto liso, com bochechas rosadas e brilhantes. Está calçando galochas, do tipo que tem zíperes em vez de fivelas. Olho para a situação como um todo e penso que nenhum outro homem no mundo pareceria tão destinado a levar um tiro em uma varanda na roça quanto aquele. Até o pêlo solitário que sai retorcido de uma de suas narinas declara que sim, este é o cara, sem dúvida, o su­jeito enviado para levar uma bala da arma do homem-tesoura. Até o nome dele, acho, é do tipo que você lê no jornal debaixo de uma manchete que grita ASSASSINADO.

— Olá, filho — diz ele —, você deve ser um dos garotos do Sparky. Meu nome é Frank Halsey, lá da fábrica. Diretor de RH. — E estende a mão.

Acho que não vou conseguir apertá-la, mas consigo. E acho que não vou conseguir falar, mas consigo fazer isso também. E minha voz sai nor­mal. Sou a única coisa entre aquele homem e uma bala no coração ou na cabeça dele, então é melhor que saia mesmo.

— Sou, sim, senhor. Meu nome é Scott.

— Prazer em conhecê-lo, Scott — diz ele, olhando para a sala de estar às minhas costas enquanto eu tento adivinhar o que ele está vendo. Tentei arrumar no dia anterior, mas só Deus sabe que tipo de trabalho eu fiz; sou apenas uma joça de uma criança, afinal. — A gente anda sentindo a falta do seu pai.

Bem, penso eu. O senhor está bem perto de fazer falta, sr. Halsey. No seu trabalho, para a sua mulher; para os seus filhos, se o senhor tiver algum.

— Ele não ligou pra vocês de Philly? — pergunto. Não faço a menor idéia de onde aquilo está vindo, ou para onde está indo, mas não tenho medo. Não desta parte. Posso inventar histórias o dia inteiro. Meu medo é que Papai perca o controle e comece a atirar através da porta. E atinja Halsey, talvez; nós dois, provavelmente.

— Não, filho, ele não ligou. — A chuva com neve continua tamborilando no telhado da varanda, mas pelo menos ele está protegido, então não sou obrigado a convidá-lo a entrar, mas e se ele se convidar? Como faço para impedir? Sou apenas um menino, parado ali de chinelos, com um prato na mão e um pano de prato pendurado no ombro.

— Bem, Papai tem andado numa preocupação danada com a irmã dele — digo, pensando na biografia de um jogador de beisebol que estou lendo. Está lá em cima, na minha cama. Também penso no carro do Papai, que está parado nos fundos, debaixo da rebarba do barraco. Se o sr. Halsey andasse até a outra ponta da varanda, ele o veria. — Ela pegou a doença que matou aquele jogador famoso dos Yankees.

— Ela pegou a doença de Lou Gehrig? Que merda... quero dizer, que droga. Nem sabia que ele tinha uma irmã.

Nem eu, penso.

— Filho... Scott... meus pêsames. Quem está cuidando de vocês en­quanto ele está viajando?

— A sra. Cole, que mora mais lá na frente. — Jackson Cole é o nome do cara que escreveu a tal biografia, Iron Man of the Yankees. — Ela vem todos os dias. E, além do mais. Paul conhece quatro receitas diferentes de bolo de carne.

O sr. Halsey dá uma risadinha.

— Quatro receitas, é? Quando Sparky volta?

— Bem, ela não consegue mais andar, e respira assim. — Puxo o ar com força, fazendo barulho. É fácil, porque, de repente, meu coração começa a bater feito um louco. Estava batendo devagar quando eu tinha certeza de que Papai iria matar o sr. Halsey, mas agora que vejo a possi­bilidade de ele se safar, está batendo seis vezes mais rápido.

— Que meleca — diz o sr. Halsey. Agora ele está achando que enten­deu tudo. — Bem, essa é uma das piores coisas que eu já ouvi na vida.

Ele enfia a mão no casaco e tira uma carteira. Abre e saca uma nota de um dólar. Então se lembra que eu supostamente tenho um irmão e saca outra. E, de repente, Lisey, a coisa mais estranha aconteceu. De repente, eu quis que meu pai o matasse.

— Aqui, filho — diz ele e, também de repente, tenho certeza, como se pudesse ler sua mente, de que ele esqueceu meu nome, o que me faz odiá-lo mais ainda. — Tome. Uma para você e outra para o seu irmão. Comprem alguma guloseima para vocês naquela vendinha mais à frente.

Não quero a joça do dinheiro dele (e Paul não pode fazer mais nada com aquilo), mas pego as notas e digo obrigado, senhor, e ele diz não tem de quê, filho e despenteia meu cabelo, e, enquanto ele faz isso, eu olho para a esquerda e vejo um dos olhos do meu pai observando pela fresta da porta. Vejo o cano do rifle, também. Então o sr. Halsey finalmente desce os degraus de volta. Eu fecho a porta e meu pai e eu o observamos entrar no carro da empresa e começar a descer de ré a longa entrada para carros. Me vem à cabeça que, se ele ficar atolado, vai voltar e pedir para usar o telefone e acabar morrendo de qualquer jeito, mas ele não fica e vai dar um beijo na sua mulher naquela noite, afinal, e lhe dizer que deu 2 dólares para dois garotos pobres comprarem alguma guloseima. Olho para baixo e vejo que ainda estou segurando as duas notas e as entrego ao meu pai. Ele as enfia no bolso da calça quase sem olhar.

— Ele vai voltar — diz Papai. — Ele ou algum outro. Você fez um bom trabalho, Scott, mas fita adesiva não segura um pacote molhado por muito tempo.

Olho firme para ele e vejo que é o meu Pai. Em algum momento en­quanto eu falava com o sr. Halsey, meu Pai voltou. Essa é a última vez que eu irei vê-lo de verdade.

Ele percebe que estou olhando e meio que assente. Então olha para o .30-06.

— Vou me livrar disso — diz ele. — Eu já estou morto, não tem...

— Não, Papai...

— ... não tem jeito, mas vou me ferrar bonito se levar um bando de gente como aquele Halsey comigo. Aí eles vão poder me colocar no noticiário das seis para os pancadas ficarem babando em cima de mim. Com certeza eles fariam isso. Vivos ou mortos, vocês seriam os garotos loucos.

— Papai, o senhor vai ficar bem — digo para ele e tento abraçá-lo. — Está bem agora!

Ele me afasta, meio rindo.

— Sei, e às vezes gente com malária consegue citar Shakespeare — diz ele. — Fique aqui, Scotty, tenho que fazer uma coisa. Não vai de­morar muito. — Ele desce o corredor, passando pelo banco do qual pulei, depois de muito custo, todos aqueles anos atrás, até a cozinha. Com a cabeça abaixada, a arma de caça em uma das mãos. Assim que passa da porta da cozinha, começo a segui-lo e estou olhando pela janela em cima da pia quando ele atravessa o quintal dos fundos, sem casaco na chuva, a cabeça ainda abaixada, ainda segurando o .30-06. Ele o coloca no chão congelado somente para empurrar a tampa de cima do poço seco. Precisa das duas mãos, porque o gelo colou a tampa ao concreto. Então pega o arma de volta, olha para ela por um instante — quase como se estivesse dizendo adeus — e a joga pela fresta que abriu. Depois disso, volta pare casa com a cabeça ainda abaixada e pingos de neve escurecendo os ombros da camisa. Só então percebo que seus pés estão descalços. Acho que ele nem percebeu.

Ele não parece surpreso em me ver na cozinha. Pega as duas notas de um dólar que o sr. Halsey me deu, olha para elas, depois olha para mim.

— Tem certeza que não quer esses 2 dólares? — pergunta.

Balanço a cabeça.

— Nem que fossem as últimas duas notas de um dólar da Terra.

Vejo que ele gosta da resposta.

— Muito bem — diz ele. — Mas agora deixe eu lhe dizer uma coisa, Scott. Sabe o aparador com as porcelanas da vovó na sala de jantar?

— Claro.

— Se você olhar dentro da jarra azul na prateleira de cima, vai en­contrar um maço de dinheiro. Meu dinheiro, não o de Halsey. Consegue entender a diferença?

— Consigo — digo.

— Aposto que sim. Você é um monte de coisas, mas burro nunca foi uma delas. Se eu fosse você, Scotty, pegaria aquele maço de notas — deve ter uns 700 dólares — e meteria o pé na estrada. Colocaria cinco no meu bolso e o resto no sapato. Dez anos é muito pouca idade para se estar na estrada, mesmo por pouco tempo, e acho que existe 95% de chance de alguém roubar o seu dinheiro antes de você atravessar a ponte para Pittsburgh, mas, se ficar aqui, algo de ruim vai acontecer. Sabe do que eu estou falando?

— Sei, mas não posso ir — digo.

— Tem um monte de coisas que a gente acha que não pode fazer e então descobre que pode quando se vê numa sinuca de bico — diz Papai. Ele olha para os próprios pés, que estão cor-de-rosa e parecem feridos. — Se você chegasse até a cidade, acho que um garoto inteligente o bastante para se livrar do sr. Halsey com uma história sobre a doença de Lou Gehrig e uma irmã que eu não tenho deve ser inteligente o bastante para procurar Conselho Tutelar na lista telefônica. Ou você poderia bater um pouco de porta em porta e talvez encontrar algo ainda melhor, se não se separasse daquele maço de dinheiro. Setecentos divididos em parcelas de 5 ou 10 dólares podem manter um garoto por algum tempo, se ele for esperto o suficiente para não ser apanhado pela polícia ou deixar que roubem mais do que estiver no bolso dele.

Repito:

— Não posso ir.

— Por que não?

Mas não consigo explicar. Em parte é por ter vivido quase a vida in­teira naquela casa, sem quase ninguém para me fazer companhia além do Papai e de Paul. O que eu sei sobre outros lugares descobri praticamente de três fontes: a televisão, o rádio e minha imaginação. Sim, já fui ao cinema e estive na cidade meia dúzia de vezes, mas sempre com meu pai e meu irmão mais velho. A idéia de ir sozinho para toda aquela estranheza baru­lhenta me deixa apavorado. E, mais direto ao ponto, eu amo meu pai. Não da maneira simples e descomplicada (pelo menos até as últimas semanas) como amei Paul, mas sim, eu o amo. Ele me cortou, me bateu e me chamou de cabeça-de-bagre, bocó e borra-botas filho duma égua, aterrorizou muitos dos dias da minha infância e me mandou muitas noites para a cama me sentindo insignificante, burro e imprestável, mas aqueles momentos ruins tinham rendido seus próprios tesouros perversos; eles transformaram cada beijo em ouro, cada um de seus elogios, até os mais improvisados, em coisas para serem guardadas com carinho. E, mesmo aos 10 anos de idade — porque sou seu filho, seu sangue, talvez? —, eu compreendo que os beijos e elogios dele são sinceros; são sempre verdadeiros. Ele é um monstro, mas o monstro não é incapaz de amar. Este era o horror em relação ao meu pai, pequena Lisey: ele amava os filhos.

— Simplesmente não posso — digo.

Ele pensa sobre aquilo — sobre se deve ou não me forçar, imagino — e então apenas assente mais uma vez.

— Certo. Mas preste atenção, Scott. O que eu fiz com seu irmão foi para salvar sua vida. Você sabe disso?

— Sei, Papai.

— Mas se eu fizesse alguma coisa com você, seria diferente. Seria tão ruim que eu poderia ir para o inferno, mesmo se alguma outra coisa dentro de mim me mandasse fazer. — Seus olhos se afastam dos meus e eu sei que ele os está vendo de novo, aquela gente, e que logo não vai ser mais com ele que eu estarei falando. Então ele volta a olhar para mim e eu o vejo com clareza pela última vez. — Você não me deixaria ir para o inferno, deixaria? — ele me pergunta. — Não deixaria seu Papai ir para o inferno e arder lá para sempre, por pior que eu tenha sido com você às vezes?

— Não, papai — digo, mal conseguindo falar.

— Jura? Pelo seu irmão?

— Juro por Paul.

Ele afasta o olhar novamente.

— Vou me deitar — diz ele. — Prepare alguma coisa para comer, se quiser, mas não deixe a joça da cozinha toda cagada.

Naquela noite eu acordo — ou algo me acorda — e ouço a chuva mis­turada com neve cair sobre a casa com mais força do que nunca. Ouço um estrondo vindo dos fundos e sei que é uma árvore caindo por conta do peso do gelo acumulado nela. Talvez tenha sido outra árvore caindo que me acor­dou, mas acho que não. Acho que o escutei na escada, embora ele esteja tentando não fazer barulho. Não dá tempo de fazer nada além de deslizar para fora da cama e me esconder debaixo dela, então é isso que eu faço, mesmo sabendo que é inútil, crianças sempre se escondem debaixo da cama e aquele vai ser o primeiro lugar em que ele vai procurar.

Vejo os pés dele passarem pela porta. Ainda estão descalços. Ele não fala nada, apenas anda até a cama e pára do lado dela. Imagino que vá ficar parado ali como antes e talvez acabe se sentando, mas não. Em vez disso, ouço-o dar um tipo de grunhido, como nas vezes em que levanta algu­ma coisa pesada, uma caixa ou algo assim. Então ele se apóia nos calcanha­res e eu escuto um zunido no ar, seguido por um SPUH-RUNNGG terrível, e tanto o colchão quanto o estrado de molas vergam no meio. Poeira sopra pelo chão e a ponta da picareta que ficava guardada no barraco atravessa a parte de baixo da minha cama. Ela pára bem na frente do meu rosto, a uns 2 centímetros da minha boca. Parece que consigo ver cada lasca de ferrugem nela, e também a parte brilhante que raspou em uma das molas. Ela fica parada por um ou dois segundos, então ouço mais grunhidos e um guincho terrível à medida que ele tenta arrancá-la de volta. Ele faz muita força, mas está bem agarrada. A ponta fica sacudindo de um lado para outro na minha frente, até ele desistir. Então vejo seus dedos aparecerem debaixo da beirada da cama e percebo que ele descansou as mãos nos jo­elhos. Está se agachando, pretende olhar embaixo da cama e se certificar de que eu estou lá antes de soltar aquela picareta.

Não penso em nada. Só fecho os olhos e vou. É a primeira vez desde que enterrei Paul e a primeira vez lá do segundo andar. Tenho apenas um segundo para pensar: Vou cair, mas não ligo, qualquer coisa é melhor do que se esconder debaixo da cama e ver o estranho que está vestindo o rosto do Papai olhar lá embaixo e me ver olhando de volta, encurralado; qualquer coisa é melhor do que ver aquele coisa-ruim desconhecido que está tomando conta dele agora.

E eu caio, mas só um pouco, só alguns metros e apenas, imagino, por­que acreditei que iria cair. Tem tanta coisa em Boo’ya Moon que é só uma questão de acreditar; lá, ver é mesmo crer, pelo menos algumas vezes... e desde que você não entre muito na floresta e se perca.

Era noite lá, Lisey. Eu me lembro bem porque foi a única vez em que fui para lá à noite de propósito.

 

— Oh, Scott — disse Lisey, secando as faces. Cada vez que ele quebrava a narração no presente e falava diretamente com ela era como um golpe, mas um golpe cheio de ternura. — Oh, eu sinto muito. — Ela conferiu quantas páginas faltavam. Não muitas. Oito? Não, dez. Então se curvou sobre elas novamente, virando as que acabava de ler sobre a pilha que crescia no seu colo.

 

Eu deixo um quarto frio no qual uma coisa vestindo a pele do meu pai está tentando me matar e me sento ao lado da sepultura do meu irmão em uma noite de verão mais suave do que veludo. A lua vaga pelo céu como uma moeda de prata fosca e os risonhos estão dando uma festa bem no fundo da Floresta Mágica. De vez em quando, uma outra coisa — algo mais no fundo dela ainda, imagino — solta um rugido. Então os risonhos ficam quie­tos por um tempo, mas acho que o que quer que os esteja divertindo acaba sendo mais forte do que conseguem aguentar em silêncio, porque lá vão eles de novo — primeiro um, depois dois, depois meia dúzia e então o maldito Instituto da Risibilidade inteiro. Algo grande demais para ser um falcão ou uma coruja singra calado a lua, algum tipo de pássaro que caça a noite e é exclusivo daquele lugar, imagino, exclusivo de Boo’ya Moon. Consigo sentir o cheiro de todos os perfumes dos quais eu e Paul gostávamos tanto, mas agora eles parecem azedos, estragados e lembram, de alguma forma, xixi na cama; era como se fossem projetar garras até o alto do seu nariz e se enfiar ali se você inspirasse muito fundo. Vejo globos de luz na forma de águas-vivas flutuando pela Colina Roxa. Não sei o que são, mas não gosto deles. Imagino que, se me tocarem, podem ficar agarrados, ou talvez ex­plodir e deixar uma ferida sarnenta que se espalharia como erva-daninha se você encostasse nela.

E arrepiante lá perto da sepultura de Paul. Não quero sentir medo dele, e não estou sentindo, não exatamente, mas não paro de pensar na coisa dentro dele e de me perguntar se ela ainda não estaria lá. E que, se as coisas que são boas ali durante o dia viram veneno à noite, mesmo uma que estivesse hibernando bem no fundo da carne morta e em decomposição poderia voltar à vida. E se ela fizesse os braços de Paul brotarem do chão? E se fizesse suas mãos mortas e sujas me agarrarem? E se o rosto sorri­dente dele viesse subindo até o meu, com terra escorrendo dos cantos dos olhos como lágrimas?

Não quero chorar, 10 anos já não é idade para chorar (especialmente se você tiver passado pelas coisas que eu passei), mas estou começando a fazer careta de choro, não dá pra evitar. Então vejo uma das árvores adoráveis se destacar um pouco das outras, com seus galhos esticados para fora no que parece uma nuvem baixa.

E, para mim, Lisey, aquela árvore pareceu... boa. Não entendi por que na época, mas acho que entendo agora, depois de todos esses anos, eu en­tendo. As luzes noturnas, aqueles balões assustadores e frios que flutuavam rente ao chão, não se aventuravam debaixo dela. E, ao me aproximar, per­cebi que pelo menos aquela árvore tinha um cheiro tão doce — ou quase tão doce — à noite quanto de dia. E debaixo desta árvore que você está sen­tada agora, Lisey, se estiver lendo esta última história. E eu estou muito cansado. Não acho que consiga fazer jus ao resto dela, embora saiba que devo tentar. Afinal de contas, é minha última chance de falar com você.

Digamos apenas que existe um garotinho que se abriga debaixo daquela árvore por... bem, quem sabe? Não por toda aquela longa noite, mas até a lua (que sempre parece estar cheia aí, já notou isso?) baixar e ele ter cochilado uma meia dúzia de vezes, sempre acordando no meio de sonhos estranhos e às vezes agradáveis, sendo que pelo menos um deles mais tarde servirá de base para um romance. Por tempo o suficiente para saber que algo horrível — algo muito pior do que o mal insignificante que se apossou de seu pai — lançou seu olhar fortuito na direção dele... o marcou para mais tarde (talvez)... e voltou sua mente obscena e impenetrável para outra direção novamente. Aquela foi a primeira vez que eu senti a presença do sujeito que esteve por trás da minha vida quase inteira, Lisey, a coisa que foi a escuridão para a sua luz, e que também acha — como você sempre achou — que está sempre tudo na mesma. Esta é uma noção maravilhosa, mas tem seu lado negro. Eu me pergunto se você sabe disso. Se um dia vai saber.

— Eu sei — diz Lisey. — Agora eu sei. Deus me ajude, eu sei.

Ela olhou para as páginas novamente. Faltavam seis. Apenas seis, e isso era bom. As tardes em Boo’ya Moon eram longas, mas ela achava que aquela estava finalmente chegando ao fim. Já estava na hora de vol­tar. Voltar para sua casa. Para suas irmãs. Para sua vida.

Havia começado a entender como deveria ser feito.

 

Chega uma hora em que ouço os risonhos começarem a se aproximar da beira da Floresta Mágica, e acho que as gargalhadas deles assumiram um tom sarcástico, talvez traiçoeiro. Olho em volta do tronco da árvore que me abriga e imagino ver vultos saindo da massa mais escura de árvores nos arredores da mata. Talvez seja apenas minha imaginação hiperativa, mas eu duvido. Acho que minha imaginação, por mais febril que seja, foi esgotada pelos vários choques daquele longo dia e daquela noite mais longa ainda, limitando-me a ver exatamente o que está à minha frente. Como se para confirmar isso, uma risada salivante vem da grama alta a menos de 20 metros de onde eu estou encolhido. Mais uma vez, não penso no que estou fazendo; apenas fecho os olhos e sinto o frio do meu quarto me envolver novamente. Logo em seguida, estou espirrando por conta da poeira agitada debaixo da minha cama. Endireito o corpo, o rosto contorcido numa ten­tativa quase cruel de espirrar o mais baixo possível, e bato com a testa no estrado de molas quebrado. Se a picareta ainda estivesse presa ali eu poderia ter me cortado feio ou até perdido um olho, mas ela sumiu.

Uso os ombros e os joelhos para sair me arrastando de debaixo da cama, ciente de que uma luz fraca das cinco da manhã está atravessando a janela. Pelo barulho, está chovendo mais forte do que nunca, mas quase não percebo isso. Giro a cabeça ao nível do chão, olhando estupidamente em volta da bagunça que costumava ser meu quarto. A porta mais próxima foi arrancada da dobradiça de cima e curva-se como um bêbado para dentro do quarto, sustentada pela de baixo. Minhas roupas foram espalhadas e muitas delas — a maioria delas, ao que parece — rasgadas, como se a coisa dentro do Papai tivesse descontado nelas o que não pôde descontar no garoto que deveria estar usando-as. Ele também estraçalhou meus poucos e adorados livros — biografias de esportistas e romances de ficção científica, em sua maioria —, o que é muito pior. Havia pedaços das suas capas finas por todo lado. Minha escrivaninha foi virada, as gavetas atiradas para os cantos do quarto. O buraco por onde a picareta atravessou minha cama parece tão grande quanto uma cratera lunar e eu penso: Era lá que minha barriga esta­ria, se eu estivesse deitado na cama. E há um leve cheiro de azedo. Ele me lembra do cheiro de Boo’ya Moon à noite, mas é mais familiar. Tento dar nome a ele, mas não consigo. Tudo em que consigo pensar é fruta podre, e, embora não seja exatamente isso, acaba chegando bem perto.

Não quero sair do quarto, mas sei que não posso ficar lá, pois alguma hora ele vai voltar. Encontro uma calça jeans que não está rasgada e a visto. Meus tênis sumiram, mas talvez minhas botas ainda estejam no ves­tíbulo. Meu casaco também. Vou colocá-los e correr para a chuva. Descerei a entrada para carros, seguindo o rastro lamacento e meio congelado do car­ro do sr. Halsey até a estrada. Então continuarei nela até a loja do Mulie. Vou correr para salvar minha vida, em direção a um futuro que nem posso imaginar. Quer dizer, isso se ele não me pegar e me matar antes.

Tenho que passar por cima da escrivaninha, que está bloqueando a porta, para chegar até o corredor. Uma vez nele, vejo que a coisa derrubou todos os quadros e abriu buracos nas paredes, e sei que estou olhando para mais exemplos da raiva dela por não ter conseguido me pegar.

Ali fora, o cheiro azedo de fruta é forte o bastante para ser reco­nhecido. Teve uma festa de Natal no U.S. Gyppum no ano passado. Papai foi porque disse que “seria esquisito” se não aparecesse. O homem que tirou o nome dele lhe deu um galão de vinho de amora caseiro de presente. Agora, Andrew Landon tem um monte de problemas (e ele provavelmente seria o primeiro a admitir isso, se você o pegasse em um momento de sin­ceridade), mas álcool não é um deles. Ele se serviu de um copo de geléia daquele vinho antes do jantar uma noite — foi entre o Natal e o Ano-novo, com Paul acorrentado no porão —, deu um gole, fez uma careta e começou a derramá-lo na pia, então me viu olhando e estendeu o copo.

Quer experimentar. Scott? — perguntou ele. — Ver sobre o que todo mundo fica falando? Ei, se você gostar, pode ficar com o filho duma égua do galão inteiro.

Tenho curiosidade em relação à bebida como toda criança, imagino, mas aquilo cheirava demais a fruta estragada. Talvez deixasse você feliz como vi na tevê, mas eu nunca conseguiria aguentar aquele cheiro de fruta podre. Balancei a cabeça.

Você é uma criança esperta, Scooter meu velho — disse ele, der­ramando a coisa dentro do copo de geléia pelo ralo. Mas deve ter guardado o resto do galão (ou se esquecido dele), porque consigo sentir aquele cheiro agora, tão certo quanto Deus fez os peixinhos, e forte. Quando chego ao patamar da escada, já é um fedor, e ouço algo além do tamborilar constan­te da chuva nas telhas e do pequeno tiquetaquear dela nas janelas: George Jones. É o rádio do Papai, sintonizado na WWVA, como sempre, tocando bem baixinho. Também ouço roncos. O alívio é tão grande que lágrimas escorrem pelas minhas faces. O que eu mais temia era que ele estivesse acordado no sofá, me esperando aparecer. Agora, ouvindo aqueles roncos longos e entrecortados, sei que não está.

Mesmo assim, tomo cuidado. Dou a volta pela sala de jantar para poder entrar na sala de estar por detrás do sofá. A sala de jantar também está uma bagunça. O aparador da Vovó foi derrubado e me parece que ele se esforçou bastante para transformá-lo em um monte de gravetos. Todos os pratos estão quebrados. A jarra azul também, e o dinheiro dentro dela foi rasgado em pedacinhos. Tiras verdes foram atiradas para todo lado. Algu­mas estão até penduradas no lustre como confete de réveillon. Pelo jeito, a coisa dentro do Papai não vê mais utilidade em dinheiro do que em livros.

Apesar dos roncos, apesar de estar protegido pela parte de trás do sofá, olho para dentro da sala de estar como um soldado olhando por sobre a beirada de uma trincheira depois de uma barragem de artilharia. É uma precaução desnecessária. A cabeça dele está pendendo de uma ponta do sofá e seu cabelo, que não sabe o que é tesoura desde quando Paul ficou ruim, está tão longo que quase toca o tapete. Eu poderia ter marchado por ali tocando címbalos e ele não teria se mexido. Papai não está apenas dormindo nas ruínas caóticas daquela sala; ele está inconsciente.

Chego um pouco mais perto e vejo que há um corte descendo de uma de suas bochechas, e que seus olhos fechados estão com uma aparência arroxeada, exausta. Seus lábios se retraíram dos dentes, deixando-o pare­cido com um cachorro velho que caiu no sono enquanto tentava rosnar. Ele forra o sofá com um velho cobertor navajo para protegê-lo da gordura e dos restos de comida e se cobriu com um pedaço dele. Deveria estar can­sado de destruir coisas quando chegou até ali, pois se limitou a arrancar o tubo da televisão e quebrar o vidro que protegia o retrato de estúdio da sua falecida esposa. O rádio está na mesa de canto, como sempre, e aquele galão está no chão ao lado dele. Olho para o galão e mal posso acreditar nos meus olhos: tem só uns 2 centímetros sobrando. Quase não consigo acreditar que ele bebeu tanto — logo ele, que não está acostumado a beber nem um pouco —, mas o fedor à sua volta, tão espesso que quase dá para vê-lo, é bastante persuasivo.

A picareta está recostada na cabeceira do sofá e tem um pedaço de papel preso na ponta que varou minha cama. Sei que é um bilhete que ele deixou para mim e não quero lê-lo, mas preciso. Está escrito em três linhas, mas tem apenas nove palavras. Muito poucas para esquecer.

 

ME MATE

DEPOIS ME ENTERRE COM PAUL

POR FAVOR

 

Lisey, chorando mais do que nunca, virou aquela página para junto das outras no seu colo. Agora, faltavam apenas duas. As letras já haviam ficado um pouco descuidadas, um pouco tortuosas, nem sempre se­guindo as linhas, revelando obviamente cansaço. Ela já sabia o que viria em seguida — Eu enfiei uma picareta na cabeça dele enquanto ele estava drumino, ele lhe dissera debaixo da árvore nhami-nhami —, por que tinha que ler os detalhes ali? Havia algo nos votos matrimoniais sobre ter que se sujeitar à confissão de parricídio do seu falecido marido?

Ainda assim, aquelas páginas a chamavam, gritavam seu nome como alguma coisa solitária que perdeu tudo menos sua voz. Ela baixa os olhos para as páginas finais decidida a terminar aquilo o mais rápido possível, já que não tinha escapatória.

Eu não quero, mas apanho a picareta assim mesmo e fico parado ali com ela nas mãos, olhando para ele, o senhor da minha vida, o tirano dos meus dias. Odiei-o muitas vezes e ele nunca me deu muitos motivos para amá-lo, sei disso agora, mas me deu alguns, especialmente durante aquelas semanas de pesadelo depois que Paul ficou ruim. E naquela sala de estar às cinco da ma­nhã, com a primeira luz cinza do dia insinuando-se, a chuva tiquetaqueando como um relógio, o som dos roncos ofegantes dele logo abaixo de mim e um anúncio no rádio de alguma loja de móveis em liquidação em Wheeling, West Virgínia, que eu nunca vou visitar, entendo que tudo se resume a uma simples escolha entre esses dois: amor e ódio. Agora vou descobrir qual prevalece no coração de uma criança. Posso deixá-lo viver e sair correndo pela estrada até a loja do Mulie, em direção a uma nova vida desconhecida, e isso o condenará ao inferno que ele teme e merece. Merece com louvor. Primeiro o inferno na Terra, o inferno de uma cela em algum hospício, e depois talvez o inferno para todo o sempre, que é o seu verdadeiro medo. Ou eu posso matá-lo e libertá-lo. A escolha é minha e não há nenhum Deus para me ajudar a fazê-la, pois não acredito Nele.

Em vez disso, rezo para o meu irmão, que me amou até a coisa ruim roubar seu coração e sua mente. Peço que ele me diga o que fazer, se es­tiver lá. E recebo uma resposta — embora imagine que jamais vá saber se ela veio mesmo de Paul ou da minha própria imaginação disfarçada de Paul. No fim das contas, não me parece haver diferença; eu precisava de uma resposta e consegui uma. No meu ouvido, com a mesma clareza com que falava comigo quando vivo. Paul diz: “O prêmio do Papai é um beijo.”

Então, agarro firme a picareta. O anúncio no rádio finalmente termina e Hank Williams entra cantando: “Why don’t you love me like you used to do, How come you treat me like a worn-out shoe?” E

 

Ali, havia três linhas em branco antes de as palavras voltarem, desta vez no passado e dirigindo-se diretamente a ela. O restante estava em letras apertadas, quase ignorando as linhas azuis do bloco de anotações, e Lisey teve certeza de que ele escreveu aquele trecho final de uma vez só. Ela o leu da mesma forma. Virando até a última página ao fazê-lo e prosseguindo, limpando as lágrimas continuamente para enxergar com clareza o bastante para entender o que ele estava dizendo. Descobriu que a parte de visualizar mentalmente era diabolicamente fácil. O garo­tinho, descalço, vestindo o que talvez fosse sua única calça jeans não ras­gada, erguendo a picareta sobre o pai adormecido à luz cinza de antes da aurora enquanto o rádio toca, e por um instante ela fica apenas suspensa no ar que fede a vinho de amora e tudo continua na mesma. Então

Eu desci a picareta. Lisey, eu desci a picareta com amor — juro — e matei meu pai. Pensei que talvez tivesse que golpeá-lo novamente, mas um só gol­pe foi o suficiente. E aquilo ficou a vida inteira na minha cabeça, por toda a minha vida este foi o pensamento dentro de cada pensamento. Levanto-­me pensando Eu matei meu pai e vou dormir pensando a mesma coisa. Esta idéia se moveu como um fantasma por entre cada linha que escrevi em cada romance, em cada conto: Eu matei meu pai. Falei isso para você naquele dia debaixo da árvore nhami-nhami, e acho que aquilo me deu alívio o bastante para eu não explodir completamente cinco ou dez anos mais à frente. Mas afirmar não é o mesmo que contar.

Lisey, se você estiver lendo isso, eu já parti. Acho que meu tempo é curto, mas todo o tempo que eu tive (e foi um tempo muito bom), devo a você. Você me deu tanto. Peço que me dê apenas mais isso: leia estas últimas palavras, as mais difíceis que já escrevi.

Nenhuma história pode retratar o horror de uma morte dessas, por mais instantânea que ela tenha sido. Graças a Deus não o atingi com um gol­pe mal dado e não tive que dar outro; Graças a Deus ele não gritou ou se arrastou pelo chão. Eu o acertei em cheio, bem onde devia, mas até mesmo a misericórdia é feia aos olhos da memória; esta é uma lição que aprendi muito bem quando tinha apenas 10 anos. O crânio dele explodiu. Cabelo, sangue e miolos espirraram para cima, sujando todo o cobertor que ele ha­via estendido nas costas do sofá. Ranho saiu voando do seu nariz e a língua dele caiu de dentro da boca. Sua cabeça pendeu para o lado e eu ouvi os sons baixos e preguiçosos de sangue e miolos pingando de dentro dela. Res­pingou um pouco nos meus pés e estava quente. Hank Williams ainda estava tocando no rádio. Uma das mãos do Papai fez um punho, então voltou a se abrir. Senti cheiro de merda e percebi que ele tinha cagado nas calças. E soube que ele estava morto.

A picareta ainda tava saindo da cabeça dele.

Eu me arrastei inté o canto da sala, me encolhi e chorei. Chorei e chorei. Acho que drumi um pouco também, num sei, mas aí teve uma hora que ficou mais claro e o sol tinha quase saído e acho que já devia ser quase meio-dia. Se fosse mesmo, acho que tinham passado umas sete horas. Foi aí que eu tentei levar o Papai pra Boo’ya Moon pela primeira vez e num consegui. Achei que podia ajudar se eu comesse alguma coisa, mas comi e continuei sem conseguir. Aí pensei que se tomasse um banho e tirasse o sangue de mim, o sangue dele, e arrumasse um pouco da bagunça de lá onde ele tava talvez desse certo, mas não. Tentei e tentei. Parava e tentava de novo. Por dois dias, acho. Às vezes eu olhava pra ele embrulhado no cobertor e imaginava ele falando: Continua tentando. Scoot, seu filho-da-­puta, você vai conseguir, como numa história. Eu tentava, e aí arrumava a bagunça, tentava e arrumava a bagunça, comia alguma coisa e tentava mais. Limpei aquela casa todinha! De cima a baixo! Uma vez fui pra Boo’ya Moon sozinho pra provar que não tinha perdido o jeito e consegui, mas não conseguia levar meu papai. Eu teimei tanto, Lisey.

 

Várias linhas em branco ali. No fim da última página, ele havia escrito: Algumas coisas são como uma ÂNCORA, lembra, Lisey?

— Lembro, Scott — murmurou ela. — Lembro. E seu pai era uma delas, não era? — Perguntando-se quantas noites foram ao todo. Quantos dias e noites sozinho com o cadáver de Andrew “Sparky” Lan­don, antes de Scott finalmente parar de tentar e convidar o mundo a entrar. Perguntando-se como, em nome de Deus, ele aguentou aquilo sem ficar completamente louco.

Havia um pouco mais no verso da folha. Ela a virou e viu que ele tinha respondido uma de suas perguntas.

Passei cinco dias teimando. Finalmente desisti e embrulhei ele naquele cobertor e joguei ele no poço seco. Na próxima vez que parou de chover, eu fui até a loja do Mulie e falei: “Meu pai pegou meu irmão mais velho e acho que eles me deixaram pra trás”. Eles me levaram pro xerife do condado, um velho gordo que se chamava Gosling, e ele me levou pro Conselho Tutelar e eu fiquei “sob a tutela do condado”, como eles dizem. Até onde eu sei, Gosling foi o único policial que foi lá em casa, o que é a mesma coisa que nada. O próprio Papai disse uma vez que “o xerife Gosling não conseguiria achar a própria bunda depois de cagar”.

Depois disso, havia outro espaço de três linhas e, quando as letras reapareceram — as últimas quatro linhas de comunicação do seu ma­rido —, ela conseguiu ver o esforço que ele fez para se controlar, para encontrar seu eu adulto. Fez esse esforço por ela, pensou Lisey. Não, teve certeza.

Babyluv: se você precisar de uma âncora para segurar seu lugar no mundo — não Boo’ya Moon, mas o que nós compartilhamos, use a trouxa. Você sabe como voltar. Beijos — pelo menos mil,

Scott

P.S. Tudo na mesma. Te amo.

 

Lisey poderia ter ficado sentada lá com aquela carta por muito tempo, mas a tarde era fugaz. O sol ainda estava amarelo, mas já se aproximava do horizonte e logo assumiria aquele tom laranja berrante do qual ela se lembrava tão bem. Não queria estar na trilha nem perto do pôr do sol e aquilo significava que era melhor começar a se mexer naquele exato momento. Decidiu deixar o manuscrito de Scott ali, mas não debaixo da Árvore da História. Em vez disso, o deixaria em frente à pequena depressão que marcava o jazigo de Paul Landon.

Ela andou de volta até a árvore adorável com o tronco peludo de musgo, a que parecia estranhamente com uma palmeira, carregando os restos da colcha amarela e a caixa de manuscrito úmida e mole. Ela os colocou no chão, então pegou a cruz com PAUL pintado no braço hori­zontal. Estava lascada, cheia de sangue e toda torta, mas não exatamente quebrada. Lisey conseguiu endireitar o braço horizontal e colocar a cruz no lugar de antes. Quando fez isso, espiou algo caído lá perto, quase escondido na grama alta. Sabia o que era antes mesmo de pegá-la: a se­ringa hipodérmica que jamais foi usada, agora mais enferrujada do que nunca, ainda com a capa.

Cê tá brincando com fogo, Scoot, dissera o pai dele quando Scott sugeriu que talvez eles pudessem drogar Paul... e ele tinha razão.

Cacete, pensei que tivesse me espetado!, Scott lhe dissera quando a levou para Boo’ya Moon do quarto deles no Antlers. Isso sim seria uma piada, depois de todos esses anos!, mas ela ainda está com a capa.

E ainda estava com ela agora. E a coisa de botar a gente pra dormir ainda estava lá dentro, como se todos aqueles anos que passaram não tivessem existido.

Lisey beijou o vidro fosco do cilindro da seringa hipodérmica — não saberia dizer por quê — e a colocou na caixa com a última história de Scott. Então, enrolando os restos gastos da colcha de casamento da Mãezinha Querida nos braços, andou em direção à trilha. Olhou rapi­damente para a placa caída de lado na grama alta, as palavras nela mais apagadas e fantasmagóricas do que nunca, mas ainda discerníveis, ainda dizendo PARA O LAGO, e então passou por debaixo das árvores. A prin­cípio, ela andou na ponta dos pés em vez de caminhar, o medo de que uma certa coisa estivesse à espreita, de que sua mente estranha e terrível notasse sua presença, dificultando seus passos. Então, aos poucos, rela­xou. O garoto espichado estava em algum outro lugar. Passou pela sua cabeça que talvez ele nem estivesse em Boo’ya Moon. Se estivesse, tinha ido para as profundezas da floresta. De qualquer forma, Lisey Landon era apenas uma pequena parte das suas preocupações e, se o que esta­va prestes a fazer funcionasse, ela se tornaria uma parte menor ainda, pois suas últimas intrusões naquele mundo exótico, porém assustador, haviam sido involuntárias e estavam prestes a acabar. Com Dooley fora da sua vida, ela não conseguia pensar por que precisaria voltar para lá de propósito.

Algumas coisas são como uma âncora, lembra, Lisey?

Lisey apertou o passo e, quando chegou ao lugar em que a pá de prata estava caída na trilha, sua colher ainda escura com o sangue de Jim Dooley, passou por cima dela sem lhe dedicar mais do que um olhar distraído.

Àquela altura, estava quase correndo.

 

Quando voltou para o escritório vazio, a parte de cima do celeiro estava mais quente do que nunca, mas Lisey estava fresca o bastante, pois pela segunda vez havia voltado molhada até os ossos. Desta vez, amarrada em volta da sua cintura como algum estranho cinto grosso, estavam os restos da colcha amarela, também encharcados.

Use a trouxa, havia escrito Scott. E lhe dissera também que ela sabia como voltar — não para Boo’ya Moon, mas para este mundo. E é claro que ela sabia. Entrou no lago com ela amarrada em torno de si e saiu de volta. Então, parada na areia branca e firme daquela praia pelo que seria quase certamente a última vez, olhando não para os espectadores tristes e silenciosos nos bancos, mas para longe deles, para águas sobre as quais a lua eternamente cheia logo iria se erguer, ela fechou os olhos e simplesmente... o quê? Desejou voltar? Não, era algo mais dinâmico do que isso, menos melancólico... embora não ausente de tristeza.

— Eu me gritei para casa — disse ela para a sala longa e vazia, vazia agora das mesas e dos processadores de texto dele, dos seus livros e das suas músicas, vazio da sua vida. — Foi isso. Não foi, Scott?

Mas não houve resposta. Parecia que ele tinha finalmente dado sua última palavra. E talvez aquilo fosse bom. Talvez fosse melhor assim.

Agora, enquanto a trouxa ainda estivesse molhada do lago, Lisey poderia voltar para Boo’ya Moon com ela amarrada ao seu redor, se quisesse; com uma mágica úmida daquelas em volta do corpo, talvez fosse capaz de ir até mais longe, para outros mundos além de Boo’ya Moon... pois não tinha dúvidas de que estes mundos existiam, e de que as pessoas que descansavam naqueles bancos um dia se cansavam de ficar sentadas, levantavam-se e encontravam alguns deles. Com a trouxa em volta de si, talvez até conseguisse voar, como nos seus sonhos. Mas ela não faria isso. Scott sonhara acordado, às vezes de forma brilhante — porém, aquele era seu talento e seu trabalho. Para Lisey Landon, um mundo já era mais do que o suficiente, embora suspeitasse que sempre reservaria um lugar solitário em seu coração para aquele outro, no qual havia visto o sol se pôr na morada dos trovões enquanto a lua se erguia em sua morada de silêncio prateado. Mas, ah, que se dane. Tinha um lugar para pendurar o chapéu e um bom carro para dirigir; tinha trapos para vestir e sapatos para calçar. Também tinha quatro irmãs, uma das quais iria precisar de bastante ajuda e compreensão para atravessar os anos que teria pela frente. Seria melhor deixar a trouxa secar, deixar sua carga bela e letal de sonhos e mágica evaporar, deixada se tornar uma âncora novamente. Ela acabaria cortando-a em pedacinhos e sempre guardaria um deles consigo; um pouquinho de antimágica, algo para manter seus pés no chão, uma proteção contra os devaneios.

Enquanto isso, ela queria secar os cabelos e tirar aquelas roupas molhadas.

Lisey andou até as escadas, pingando gotas escuras em alguns dos lugares em que havia sangrado. A trouxa escorregou até os quadris e ficou parecida com uma saia, exótica, até um pouco sexy. Ela se virou e olhou por sobre o ombro para a sala longa e vazia, que parecia sonhar sob os raios empoeirados de luz do sol de fim de agosto. Ela própria estava dourada sob aquela luz e parecia rejuvenescida, embora não sou­besse disso.

— Acho que acabei o que tinha que fazer aqui em cima — disse ela, sentindo-se subitamente hesitante. — Estou indo. Tchau.

Ela esperou. Pelo quê, não sabia. Não houve nada. Havia uma sensação de algo.

Ergueu a mão como se fosse dar adeus, então a deixou cair de vol­ta, envergonhada. Abriu um pequeno sorriso e uma lágrima escorreu pelo seu rosto, sem que ela percebesse.

— Eu te amo, querido. Tudo na mesma.

Lisey desceu as escadas. Por um instante, sua sombra continuou lá em cima, e então também foi embora.

A sala suspirou. E então caiu em silêncio.

                                                                                                                 Stephen King


 

* No original, “the pompetus of love”. Pompetus é uma palavra inventada por Steve Miller em sua música The Joker, de 1973. (N. do T.)

* Weegee era o pseudônimo do fotógrafo americano Arthur Fellig. (N. do T.)

* O homem que matou John Lennon a tiros em 8 de dezembro de 1980. (N. do T.)

* Um low rider é um carro cujo sistema de suspensão foi adulterado para que ele possa andar rente ao chão e saltar como se dançasse. Os low ríders foram criados na década de 1940 por imigrantes mexicanos em Los Angeles. Lisey se refere à música homônima, da banda War. (N. do T.)

* Seu filho-da-mãe, a gente vai se divertir à beça lá no riacho! (N. do T.)

* Trecho de uma rima infantil americana (“Tattle tale tit / Your tongue shall be slit / And all the dogs in our town / Will have a little bit”) que diz, numa tradução literal, que “sua língua vai ser cortada / e todos os cachorros da cidade / vão comer um pedacinho dela”, caso você faça algo de ruim, como espalhar uma fofoca sobre alguém. (N. do T.)

* Shutterbug: importante revista norte-americana sobre fotografia. (N. do T.)

* Scott se refere ao livro infantil de poesias Now We are Six (Agora somos seis), de A. A. Milne, criador do personagem. (N. do T.)

* Tarde demais para voltar atrás. (N. do T.)

* Referencia á música “Beg, Borrow and Steal” (literalmente, algo como “Implorar, pegar empres­tado e roubar”), da banda The Ohio Express. (N. do T.)

* Espécie de poste, tipicamente americano, pendurado nas entradas dos barbeiros e que gira sem parar, dando a ilusão de que suas listras vermelhas e azuis sobem (ou descem) até desapa­recer. (N. do T.)

* Programa humorístico que estreou na tevê americana em 1969, continuando por várias déca­das no ar, com os cantores de música country Buck Owens e Roy Clark. (N. do T.)

* A noite é a hora certa. (N. do T.)

* No original, “pool-sharks”, que, na gíria, significa algo como “craque da sinuca”. O trocadilho se perde na tradução. (N. do T.)

* Oh, assobie e eu virei até você, meu rapaz. (N. do T.)

* No original: “if you worked your fingers to the bone, all you got was bony fingers”. Lisey está parafraseando a letra da canção “Boney Fingers”, de Hoyt Axton. (N. do T.)

* Apresentador do programa de tevê The Jerry Springer Show, uma espécie de talk-show ape­lativo, em que pessoas comuns são instadas a dar suas opiniões sobre assuntos polêmicos. (N. do T.)

* Em inglês, “plug” pode ser traduzido como “naco de fumo”. (N. do T.)

** No original: “he kept plugging”, daí o apelido “Plug”. (N. do T.)

* Não vou continuar vivendo desse jeito por muito tempo. (N. da T.)

** Boon pode ser traduzido como “benesse”, palavra também em desuso em português. A tra­dução optou por deixar no original para manter o paralelismo com a palavra inventada bool. (N. do T.)

 

 

                      

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