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CHANTAGEM ATÔMICA / Ian Fleming
CHANTAGEM ATÔMICA / Ian Fleming

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CHANTAGEM ATÔMICA

 

               

 

Calma Mr. Bond, Calma...    

James Bond estava vivendo um desses dias em que a gente acha que a vida não vale um caracol.

Para começar estava meio desgostoso consigo mesmo; um estado de espírito muito raro nele. Estava de ressaca, das fortes! Cabeça doendo, músculos e juntas emperrados. Quando tossia (os excessos de bebida e de fumo dobram os efeitos das ressacas) começava a ver à sua frente milhões de pontinhos luminosos movimentando-se loucamente como amebas em águas estagnadas; sinal inequívoco do exagero de doses extras. O seu último copo de whisky e soda, lá na­quele luxuoso apartamento em Park Lane, não fora diferente da dezena de outros que havia tomado, porém já descera pela sua garganta com certa relutância, deixando em sua boca um gosto meio amargo e uma sensação de autodesaprovação em sua mente. Mas, ainda percebendo isto, decidira ir um pouco adiante; jogaria mais uma rodada. Cinco libras cem pontos e seria definitivamente a última! E êle concordara e jogara como um idiota. Até agora via à sua frente a dama de espadas com aquele sorriso de Mona Lisa na face inexpressi­va quando o outro bateu! A dama de espadas que o parceiro tanta questão fizera de pegar e que representava a diferença para o bate (duplo para Bond, por efeito da bebida) Quatro­centos pontos, acima da linha, a favor do outro. No fim de tudo foi uma batida que custou a Bond 100 libras.. . quantia bem considerável!

Novamente James Bond tocou com o bastão cicatrizan­te o pequeno corte no queixo e fitou com desprezo o rosto que o espelho lhe mostrava: seu cretino, boçal! Tudo come­çara por causa da falta do que fazer. Mais de um mês len­do aquela papelada, verificando etiquetas sem importância, escrevendo relatórios que ficavam mais insípidos à medida que as semanas passavam, batendo com o telefone quando algum funcionário inofensivo e maçante queria discutir. E além de tudo sua secretária apanhara uma gripe e tivera que se afastar do serviço temporariamente e fora substituída por uma idiota que além de feia só dizia "sim, senhor" e "não, se­nhor" sempre com a boca cheia de caroços de frutas. E agora era segunda-feira outra vez. Outra semana que começava. A chuva de maio batia na vidraça. Bond engoliu dois compri­midos e procurou o vidro do sal de frutas. O telefone em seu quarto começou a tilintar. Era a campainha forte e insistente do telefone de linha direta com o quartel-general.

James Bond, com o coração batendo mais do que devia, mesmo depois da corrida pelas ruas de Londres e da espera impaciente pelo elevador para o oitavo andar, puxou a cadei­ra e sentou olhando para aqueles olhos calmos, cinzentos e terrivelmente límpidos que conhecia tão bem. Que haveria para ler neles?

— Bom dia, James, desculpe tirá-lo da cama tão cedo esta manhã. Tenho um dia muito cheio pela frente. Quero acertar as coisas com você antes de começar minhas ativi­dades.

A excitação de Bond diminuiu um pouco. Não era um bom sinal quando M o tratava pelo nome de batismo em lu­gar do seu número convencional. Isto não parecia assunto profissional mas talvez algo mais pessoal. Na voz de M não havia tensão ou nervosismo que indicassem algo sensacio­nal! A expressão de M era interessada, amistosa, quase be­nevolente. Bond fêz um comentário inconseqüente. M apa­nhou uma folha de papel, espécie de formulário, da gaveta e segurou-a pronto para ler, porém antes falou:

— Não tenho visto você ultimamente, James. Como é que você está? Estou me referindo à sua saúde.

Meio desconfiado sobre o que haveria naquele papel Bond respondeu:

— Estou muito bem, obrigado.

— Não é isto que o Observatório Médico acha, James. Acabo de receber o relatório a seu respeito. Creio que você deve ouvir o que diz aqui.

Bond olhou com raiva para a página escrita. Ora bolas! Que raio de encrenca estava para vir? Porém controlou-se e disse:

— Como quiser, senhor.

M olhou para Bond cuidadosa e aprovativamente, segu­rou o papel mais junto dos olhos e leu:

— Este agente permanece, de modo geral, fisicamente são. Infelizmente seu modo de vida não permite que perma­neça neste feliz estado de saúde por muito tempo. Apesar de prévios avisos êle admite estar fumando cerca de sessenta cigarros por dia: estes são de uma mistura dos Balkans com um teor de nicotina muito maior do que as variedades mais baratas. Quando não está comprometido com alguma missão profissional o seu consumo diário de bebidas alcoólicas é de uma média de meia garrafa de sessenta a setenta graus. No exame geral ficou constatado o sinal de deterioração definiti­va. A língua está saburrosa. A pressão sangüínea subiu para 160/90. O fígado não está palpável. Por outro lado, quando insistimos, o agente admitiu sofrer de enxaquecas occipitais freqüentes e espasmos nos músculos trapézios além do que nódulos da chamada "fibrosidade" são evidentes. Acredito que estes sintomas são devidos ao modo de vida que o agente leva; êle não admite que a indulgência não é remédio para as tensões inerentes à sua profissão e que pode mesmo resultar num estado de intoxicação que finalmente terá o efeito de reduzir a sua capacidade para o cargo. Recomendo que o 007 deve viver mais devagar, repousar por duas ou três sema­nas num regime mais abstêmio e creio que assim conseguirá voltar ao estado excepcional de integridade física, de saúde perfeita, de antes.

Depois de ler, M colocou a folha de papel na caixa ao lado, espalmou as mãos sobre a mesa e olhou muito sério para Bond, dizendo:

— Não me parece muito satisfatório, não acha, James? Bond procurou dissimular o tom de impaciência da própria voz quando respondeu:

— Eu me sinto perfeitamente bem, senhor. Todo mun­do pode ter uma dor de cabeça de vez em quando. Muitos amadores de golfe têm fibroses, resultado de apanhar uma corrente de ar quando muito suados. Aspirina e embrocação resolvem isto. Não há razão para alarme!

— É aí que você se engana, James — replicou M severa­mente. Tomar comprimidos apenas afasta os sintomas, não remove a causa, apenas disfarça e o resultado é uma intoxi­cação que pode virar mal crônico. Todas as drogas são noci­vas, afinal, são contra a natureza! O mesmo se pode dizer da maioria dos alimentos que ingerimos: trigo branco, açúcar refinado, leite pasteurizado... tudo fervido, filtrado, perdendo calorias, vitaminas, a força, enfim, a parte realmente nutriti­va! Você sabe, por exemplo (e M procurou nos bolsos um ca-derninho que consultou), o que o pão que comemos contém, além da farinha moída? Pois contém grande percentagem de gêsso, peróxido de benzol, sal amoníaco e pedra-ume! Que é que você acha disso?

— Bem, eu não como tanto pão assim, senhor! — res­pondeu Bond na defensiva.

— Talvez não — prosseguiu M meio impaciente — mas você come pelo menos de vez em quando trigo integral? E yo­gurt. E legumes crus? Amêndoas e frutas frescas?

— Praticamente. . . não, senhor.

— Você está rindo mas não é caso para isso. Tome nota das minhas palavras: o caminho da saúde é a natureza! E todos os seus problemas...

Bond abriu a boca para protestar, mas M ergueu a mão num gesto de impedimento e continuou:

— O estado de profunda intoxicação revelado pelo re­latório médico a seu respeito é o resultado do seu modo de viver basicamente contrário à natureza! Já ouviu falar em Bircher-Brenner, ou Kneipp, Preissnitz, Rikli, Schrot, Goss-man ou Biltz?!

— Não, senhor.

— Pois muito bem. Estes são os homens que você devia conhecer através da leitura! Estes são os grandes naturopa-tas, os homens cujos ensinamentos estupidamente ignora­mos. Felizmente — e os olhos de M brilharam de entusiasmo — há um número de discípulos desses mestres exercendo suas finalidades aqui na Inglaterra. A cura pela Natureza está, pois, ao nosso alcance!

James Bond olhou intrigado para M. Que teria aconte­cido ao velho? Seria tudo isto apenas um sinal de senilidade? Mas M estava na melhor forma possível desde que James o conhecera. Os frios olhos cinzentos estavam límpidos como cristal e a pele daquele rosto duro estava luminosa e sadia. Mesmo os cabelos grisalhos pareciam ter nova vida e brilho. Então, como explicar toda esta conversa doida?

M estendeu a mão para a papelada a resolver aquele dia, num gesto característico de despedida, e disse com jo­vialidade:

— Muito bem, James, isto é tudo. A senhorita Mo-neypenny já fêz a reserva para você. Duas semanas serão suficientes para botá-lo de novo em boa forma. Você nem vai se reconhecer quando sair de lá! Um novo homem!

Bond olhou desconfiado para M, perguntando, temero­so:

— Mas... quando sair de lá... de onde?

— Um lugar chamado Shrublands. Dirigido por um ho­mem de grande capacidade no assunto. Wain... Joshua Wain é o nome desse homem notável. Tem 65 anos mas você não lhe daria mais de 40. Êle tomará conta de você. Todo o equi­pamento lá é o que há de mais moderno e êle tem até uma horta particular! Belo lugar! Em Sussex, perto de Washing­ton. E não precisa se preocupar com o seu trabalho aqui, tire tudo da cabeça por duas semanas. Direi ao 009 para tomar conta da seção.

Bond não podia acreditar no que estava ouvindo e in­sistiu:

— Mas. . . senhor, eu estou me sentindo perfeitamente bem! O senhor tem certeza, quero dizer, que é necessário?

— Não! — respondeu M enfático. — Não é necessário, é essencial! Se você quer continuar na seção "00". .. assim é! Não posso me arriscar a ter naquela seção um agente que não esteja cem por cento em forma.

M baixou a cabeça, olhando para seus papéis numa atitude definitiva que encerrava o assunto, e sem olhar para cima falou:

Isto é tudo, 007!

Bond se ergueu e sem dizer palavra saiu da sala, fe­chando a porta depois de passar com exagerada cautela.

Lá fora, de sua mesa, a senhorita Moneypenny olhou para êle docemente. Bond foi até lá e bateu com os punhos na mesa com tanta força que a máquina de escrever pulou do lugar. E falou, furioso:

— E agora, Penny, que raio de idéia maluca deu no ve­lho? Êle está atuado? Que está acontecendo aqui? Pois sim que eu vou!? Êle está completamente doido!

A senhorita Moneypenny sorriu impassível, dizendo:

— O gerente lá foi muito amável e solícito. Êle disse que vai dar a você o quarto do anexo que dá para a horta. Eles têm uma horta particular, sabia?

— Eu sei tudo sobre este raio de horta. Agora escute aqui, Penny, seja boazinha e me conte tudo direitinho. Que houve com o velho?

A senhorita Moneypenny, que vivia sonhando, esperan­çosa, com Bond, ficou com pena dele; baixou a voz num tom conspirador e falou:

— Na verdade eu creio que é apenas uma fase. Isto pas­sa. Foi azar seu ser apanhado antes que a fase tivesse pas­sado. Você sabe como êle é exigente quanto à eficiência do serviço aqui. Houve uma época em que todos nós tínhamos de fazer uma seção diária de ginástica; depois veio a fase dos psicanalistas... Você não pegou esta, creio que estava viajando. Todo mundo na seção tinha de ser psicanalisado. Não durou. Creio que êle acabou se assustando com os re­sultados. Pois bem, no mês passado, M estava com lumbago e um amigo, aquele gordo beberrão, indicou esse tal lugar... — e Penny voltou para Bond a boca tentadora. — O homen­zinho garantiu maravilhas; êle disse a M que todos somos como automóveis e que de vez em quando precisamos ir para a oficina para uma retifica e que êle faz isso todo ano, que custa apenas vinte guinéus por semana, menos do que êle gasta por dia no Blades e que depois êle se sente ótimo! Você sabe como M gosta de novidades e lá foi por dez dias e voltou completamente encantado! Ontem êle me deu aulas sobre o assunto e hoje chegaram lá em casa latas e latas de melado e de germe de trigo e sei lá mais o quê! Nem sei o que fazer de tudo aquilo! Temo que o meu cãozinho poodle é que vai resol­ver o caso. Enfim, foi o que aconteceu e confesso que nunca vi o M em lão boa forma!

É. . . Êle parece até aquele homem dos anúncios de sais de Krusehen, mas. . . por que cargas d'água foi escolher a mim para ir para o tal manicômio?

— Você sabe que êle acha você o máximo... ou não sabe?! De qualquer modo, assim que viu o seu relatório mé­dico mandou que eu fizesse reserva para você... Mas, Ja­mes... Você fuma e bebe mesmo tanto quanto o relatório diz? Não pode lhe fazer bem, você sabe...

E ela o olhou com afeto maternal. Bond se controlou um pouco, estudou um meio de parecer displicente e comentou:

— É... é que eu prefiro morrer de beber do que de sede. E, quanto aos cigarros... bem, é que não sei o que fazer com as mãos... Bond sentiu novamente os efeitos da ressaca e ouviu suas palavras tilintando como latas velhas, o que êle preci­sava agora era de um whisky-soda duplo! A senhorita Mo-neypenny franziu os lábios numa expressão de desaprovação e comentou:

— É... mas quanto às mãos... não é o que dizem por

aí!!!

— Ora, Penny, não vai começar também! — E Bond ca­minhou furioso para a porta, voltou o rosto e terminou: — Se você vier me fazer mais sermão quando sair daí vou lhe dar uma surra que você terá de trabalhar sentada num traves­seiro de espuma de nylon!

A senhorita Moneypenny sorriu docemente encantada e disse:

— Você não conseguirá dar surra em ninguém depois de passar duas semanas comendo amêndoas e suco de li­mão, James...

James Bond atirou a maleta no assento traseiro do Aus­tin côr de chocolate e sentou no banco da frente junto com o chofer do táxi. O jovem sardento de casaco de couro tirou um pente do bolso e ajeitou cuidadosamente os lados da ca­beleira, guardou o pente com calma e deu a partida. Aquela encenação, pensou Bond, fora para mostrar que êle estava aceitando o dinheiro dele e ia transportá-lo como um favor especial; gesto típico dos jovens proletários de após-guerra. Este por certo faria umas vinte libras por semana, despreza­va os pais e gostaria de estar no lugar de Tommy Steele. A culpa não era dele; nascera entre os compradores de Welfare State e na era da bomba atômica e das naves espaciais. Para êle a vida era frágil e sem objetivo. Bond perguntou:

— Quanto leva daqui a Shrublands?

O jovem deu um golpe de direção muito hábil, porém inteiramente desnecessário e respondeu:

— Cerca de meia hora.

E pisou no acelerador e com perícia e muito risco de vida passou à frente de um caminhão no cruzamento. Bond comentou:

— É... você sabe tirar o máximo do seu Bluebird! O rapaz olhou de esguelha para ver se estavam fazendo

gozação com êle e concluiu que não. Respondeu:

— O velho acha que não preciso de um carro novo. Que esta lata velha já serviu para êle durante vinte anos e portan­to tem de servir para mim também por mais vinte. Por isso estou economizando por minha conta, já tenho metade do que preciso.

Bond achou que, apesar da encenação do penteado, êle parecia ter senso.

— E o que pretende comprar? — perguntou Bond.

— Um Volkswagen Minibus. Para as corridas de Bri­ghton.

— É, parece uma boa idéia! Bons prêmios, muito di­nheiro em Brighton!

— Puxa! Se é — os olhos do jovem brilharam de entu­siasmo. — A única vez que estive lá foi para levar dois book­makers. Foram aqui e ali e me deram uma gorjeta de cincão! Uma boa fatia!

— Sem dúvida... mas é preciso cuidado em Brighton. Há os que dão e os que tiram vantagem. Existem mesmo gangs agindo por lá. E o que aconteceu com o "Balde de Sangue"?

— Não reabriu depois daquele caso que apareceu em todos os jornais.

Foi então que o rapaz notou que estava falando de igual para igual, olhou para os lados, olhou Bond de cima a baixo interessado e perguntou:

— Ei, está indo para o Scrubs... ou é apenas visita?

— Scrubs?

— Shrublands.. . Wormwood Scrubs. . . Scrubs! — Ex­plicou o rapaz, lacônico. — Mas você não se parece com a maioria que costumo levar lá! São sempre umas coroas gor­das ou velhotes reumáticos que pedem para não correr muito para não atrapalhar a ciática, sei lá.

— Tenho que passar quatorze dias lá sem alternativa — falou Bond, rindo. — O médico acha que preciso descansar, ir com mais calma. Que acham do lugar?

O chofer dobrou a curva para fora da estrada de Bri­ghton e tomou a direção oeste sob Downs, através de Poy-nings e Fulking. O Austin gemeu na curva. Só então o moço respondeu:

— O povo aqui acha que são todos birutas, não ligam para o lugar. Tanta gente rica e ninguém emprega capital em melhorias. Só casas de chá. O senhor ficaria admirado. Gen­te grande e graúda da cidade. Motorizados em seus Bentleys de barriga vazia passam pela casa de chá e entram para to­mar chá! Também é só o que é permitido. Depois olham para os lados e vêem alguém comendo pão com manteiga ou bolo e não resistem, pedem um mundão de gulodices e se atolam! Até parecem crianças que roubam geléia, olhando para os lados apavorados. Acho que esta gente devia ter vergonha!

— É, sim. Parece meio idiota quando estão pagando fortunas para fazer a cura ou lá o que seja — comentou Ja­mes.

— Pois é. E outra coisa: eu compreendo que se cobre vinte pacotes por semana para oferecer a um cara três boas refeições por dia — e a voz do rapaz era de indignação — mas como é que eles conseguem receber esta soma só para ofere­cer água quente no almoço e no jantar? Não sei. . .

— É parte do tratamento. E deve valer o preço, se a pes­soa sai curada.

— Talvez — concordou o chofer. — Alguns deles saem bem diferentes do que entraram... alguns ficam novos em folha depois desse jejum de chá e amêndoas... É... eu devia experimentar também um dia!

— Que quer dizer? — perguntou Bond.

O jovem olhou para êle, achou que êle era legal e res­pondeu:

— Bem, é que há uma garota aqui... mariposa, boa pra­ça. . . você sabe o que eu quero dizer. Ela de dia é garçonete de uma casa de chá, a "Honey Bee Tea Shop"... era. Ela nos iniciou... quero dizer, nos ajudou... sabe o que quero dizer, não? Cobrava pouco e conhece uma porção de... de técnicas francesas; boa praça. Pois bem, alguém soube lá no Scrubs e os velhos começaram a proteger Polly, Polly Grace; levavam para passear de Bentley, faziam visitas lá no Downs... onde ela faz ponto há anos, e o pior é que começaram a pagar cin­co pacotes, depois dez e chegaram a um preço que ela não é mais para nós, entende? Uma espécie de inflação. E no mês passado ela largou o emprego e sabe o que mais? — A voz do rapaz vibrava de revolta: — Comprou para ela um Austin Metropolitan e anda motorizada botando banca, assim como as de Curzon Street em Londres, que os jornais sempre co­mentam. Foi para Brighton, Lewes e de vez em quando vem dar uma voltinha com os velhotes do Scrubs. Tá bom?

E o rapaz deu uma buzinada furiosa contra um ciclista que quase caiu de susto. Bond comentou, muito sério:

— É realmente espantoso. Nunca pensei que as pessoas se interessassem tanto por. . . estas coisas depois de uma dieta de amêndoas, chá ou sei lá o que servem na clínica!

— É só o que sabe? Pois olhe, um dos meus amigos é filho do médico de lá e esteve conversando com o velho dele a respeito, discretamente, e o doutor explicou que aquela die­ta, nada de bebidas nem fumo e muito repouso, massagem, banhos de imersão quentes e frios e não sei mais o quê.. . que isto tudo limpa o sangue, equilibra o sistema nervoso, sabe o que quero dizer, e ressuscita os coroas e eles querem voltar à ativa outra vez, como aquela canção da Rosemary Clooney, sabe?

Bond caiu na gargalhada, comentando, divertido: — É... é... afinal a clínica tem lá suas vantagens. Neste ponto viram na estrada uma tabuleta que dizia: "Shrublands! Portal para a saúde! Primeira à direita! Silêncio, por favor".

E a estrada seguia entre alamedas de sempre-vivas. Um muro alto surgiu então e logo uma entrada imponente de pedras e um pavilhão estilo Vitoriano de cujo telhado, lá no centro, saía uma espiral delgada de fumaça desfazendo-se por entre as árvores paradas. O chofer deu a volta e seguiu uma passagem de cascalho ladeada por espessos arbustos de louros. Um casal idoso saiu do caminho assustado pela buzina do táxi e à direita havia extensos gramados e cantei­ros bem cuidados e algumas pessoas passeavam lentamente, sozinhas ou em pares. Lá atrás uma monstruosidade Vitoria­na em tijolos vermelhos de onde saía um solário que ia até o gramado.

O jovem chofer parou embaixo de um pórtico pesado com um telhadinho de ameias. Um portão envernizado e pre­so em gonzos de ferro, ao lado do qual uma alta urna com um aviso: "Proibido fumar. Cigarros aqui, por favor". Bond desceu do táxi, retirou a maleta e deu uma gorjeta de dez xelins ao chofer, que aceitou sem muito entusiasmo, mas agradeceu:

— Obrigado. Se quiser dar uma volta por aí, é só me chamar. Polly não é a única, sabe? E há também uma casa de chá na estrada de Brighton que tem uns bolinhos aman­teigados... Bem. Até logo.

E ele entrou no carro batendo a porta e voltando dis­parado pelo caminho que viera. Bond apanhou a maleta e caminhou resignado, subindo os degraus e passando pela pesada porta de madeira.

Lá dentro estava quente e silencioso. No balcão de re­cepção, do hall de lambris de carvalho, uma pequena bonita e compenetrada de uniforme branco engomado cumprimen­tou-o com vivacidade. Depois que assinou o livro de registro ela o conduziu através de uma série de salas de mobiliário sóbrio até um corredor branco que dava para a parte dos fundos do edifício. Ali havia uma porta de comunicação com o anexo, uma construção baixa e longa, de estrutura comum com quartos de um lado e outro e uma passagem no meio. As portas dos quartos tinham nomes de flores e arbustos. Bond foi levado ao Murta, disseram-lhe que "o chefe" iria vê-lo den­tro de uma hora, às seis em ponto.

O quarto era comum, com móveis comuns e cortinas limpas. A cama estava equipada com um cobertor elétrico. Ao lado da cabeceira da cama havia um jarro com calêndulas e um livro: "A cura pela Natureza explicada por Alan Moyle, M. B. N. A.". Bond folheou-o ligeiramente e viu que as iniciais eram: Membro da British Naturopathic Association.

Desligou o aquecimento central e abriu as janelas intei­ramente e olhou; a horta lá em baixo sorria para êle: leiras e leiras de plantinhas sem nome arrumadas como raios de sol. Bond abriu a mala, guardou as coisas nos armários e sentou na poltrona para ler "como eliminar impurezas do organismo" e aprendeu um bocado acerca de alimentos que desconhecia inteiramente, como sopa de potássio, suco de amêndoas, e já estava no capítulo da massagem e estava refletindo na sua divisão em afloração, golpeamento, friccionamento, manipu­lação, amassamento, tapinhas e vibrações. O telefone tocou e uma voz feminina avisou que o Sr. Wain gostaria de vê-lo na sala de consultas "A" dentro de cinco minutos.

O Sr. Joshua Wain tinha um aperto de mão seco e fir­me e uma voz ressonante e animadora. Tinha cabelos fartos e grisalhos acima de uma testa sem rugas, olhos mansos, castanhos, e um sorriso sincero e cristão. Parecia genuina­mente contente em ver Bond e muito interessado nele. Usava um jaleco muito limpo, de mangas curtas, das quais saíam braços peludos e descansados; calças riscadas de giz e usava sandálias e meias cinzentas e quando caminhava pela sala seu andar era leve e arisco. O Sr. Wain pediu a Bond que despisse toda a roupa, exceto as cuecas. Quando viu toda a coleção de cicatrizes comentou discretamente:

— É. . . o senhor parece ter tomado parte em muitas guerras, Sr. Bond!

Bond replicou, meio indiferente:

— Não perco uma. .. quando há guerra.

— Realmente. Guerra entre pessoas é uma coisa terrí­vel. Agora respire fundo, por favor.

O Sr. Wain auscultou as costas de Bond, tomou a sua pressão, pesou-o e anotou a sua altura e então pediu que deitasse de braços numa cama clínica e tateou suas verte­bras e juntas com dedos hábeis.

Enquanto Bond se vestia novamente, Wain escrevia sentado à sua mesa. Depois recostou-se para trás na cadeira e falou:

— Muito bem, Sr. Bond. Não há motivos para preocupa­ção, creio. A pressão está um pouco alta, ligeiras lesões os-teopáticas na vértebra superior, talvez seja isto responsável pelas dores de cabeça. Também tensão direita no sacroilíaco, o ílio direito levemente deslocado para trás, conseqüência de alguma queda, provavelmente.

E o Sr. Wain olhou para Bond esperando confirmação; este disse:

— Talvez. . . uma queda. . .

Bond lembrou que seria possivelmente quando pulara do Arlberg Express depois que Heinkel e seus homens o des­cobriram durante o levante húngaro em 1956. O Sr. Wain

pegou uma folha impressa e foi marcando itens na lista e avisando:

— Bem, Sr. Bond, dieta rigorosa por uma semana para eliminação das toxinas do sangue. Massagem para equili­brar, irrigação, banhos quentes e frios, tratamento osteopá-tico e aplicações de tração para reparar as lesões. Isto deve pô-lo em forma. E repouso absoluto, naturalmente. E calma, Sr. Bond, calma. O senhor é um funcionário civil, eu compre­endo, mas lhe fará muito beneficio afastar qualquer preocu­pação por alguns dias. — E o Sr. Wain estendeu a lista para Bond. — Esteja na sala de tratamentos dentro de meia hora. Não há inconveniente em começar já.

— Muito obrigado — respondeu Bond, pegando a lista. — E a propósito, o que é tração?

— Um aparelho mecânico para distender a espinha, muito benéfico. E não se preocupe com o que os outros pa­cientes disserem a respeito, eles chamam o aparelho de "má­quina de tortura", o senhor sabe como certas pessoas são irreverentes.

— Sim, sei.

Bond saiu pelo corredor branco, havia pessoas senta­das nas salas de estar lendo e conversando em voz baixa. Quase todos idosos e de classe média, em maioria mulheres usando robes pouco elegantes. O ambiente aquecido e o vo­zerio sussurrante das mulheres deram a Bond uma sensação de claustrofobia e êle caminhou para fora a fim de respirar um pouco de ar puro.

James foi andando pelas alamedas sentindo o cheiro das plantas. Será que agüentaria? Haveria outra saída para cair fora dali sem perder o emprego? Absorto em seus pensa­mentos êle quase esbarrou numa pequena que vinha em sen­tido contrário. No momento em que ela sorriu divertida para Bond surgiu um Bentley cinzento na curva mais próxima e quase no mesmo instante estava em cima dela. Dentro de um mesmo segundo ela estava quase embaixo das rodas do carro e Bond, num gesto rápido, pegou-a pela cintura e num volteio acrobático praticamente arrancou-a de sob o carro. Recolocou-a lentamente no chão enquanto o automóvel pa­rava logo adiante, bruscamente. Em sua mão direita Bond guardou a lembrança da forma de um seio bonito e firme. A moça então exclamou um "Oh!" assustado e olhou dentro dos olhos de seu salvador e só então pareceu compreender tudo o que acontecera em tão curto espaço de tempo e falou ainda sem fôlego:

— Oh! Muito obrigada!

E a garota olhou então para o automóvel do qual um homem acabara de saltar sem pressa. Com muita calma êle disse:

— Sinto muito. Está bem? — E de repente, reconhecen-do-a, sorriu contente e exclamou: — Oh! Mas é a minha ami­ga Patrícia! Como vai, Pat? Tudo bem?

O homem era extremamente atraente, tipo bronzeado desses que as mulheres adoram, com um bigode sobre uma bôca sensual que as mulheres sonham beijar; suas feições eram regulares, mostrando influência acentuada de sangue espanhol ou sul-americano, olhos castanhos, escuros e mis­teriosos; porte atlético, talvez mais de um metro e oitenta e trajava com displicência roupas bem feitas, possivelmente Anderson & Sheppard, camisa de seda branca e gravata de pois, suéter marrom de gola em V parecendo vicunha.

Bond chegou à conclusão de que aquele homem era do tipo que pode ter a mulher que quiser e viver com ela ou às custas dela... e viver bem.

Agora a garota havia recuperado a calma e o fôlego e falou com severidade para o galã irresistível:

— Você precisa ter mais cuidado, conde Lippe! Você sabe que sempre há pacientes andando por aqui. Se não fos­se por este cavalheiro — e ela sorriu para Bond — eu teria ficado debaixo das rodas do seu carro. E afinal de contas há um aviso enorme pedindo aos motoristas para ter cuidado.

— Sinto muito, querida. Eu estava com muita pressa. Estou atrasado para encontrar o simpático Sr. Wain... es­tou precisando muito de uma retífica, principalmente agora que voltei de uma estada de duas semanas em Paris. — E voltando-se para Bond falou com superioridade: — Obrigado, cavalheiro, o senhor tem reflexos muito rápidos! E agora, se me permitem...

E, levantando a mão numa despedida displicente, vol­tou a ocupar a direção do seu Bentley e partiu com o motor ronronando.

A moça falou então:

— Eu também tenho de ir andando, estou terrivelmente atrasada!

E os dois começaram a andar seguindo a mesma dire­ção que o carro havia tomado. Bond olhou-a com atenção e perguntou:

— Trabalha aqui?

E ela respondeu que sim, havia três anos estava no Shrublands e gostava dali, e êle? Quanto tempo iria ficar? E a conversa seguiu assim.

A pequena pareceu a Bond ser do tipo atlético, talvez uma tenista, patinadora ou nadadora de saltos ornamentais. Suas formas eram firmes, rijas, muito atraentes para êle, e tinha tambem um tipo de beleza sadia quase comum se não fosse a boca sensual e um tanto desafiadora, o que era uma tentação para os homens. Estava vestindo uma versão femi­nina do jaleco do Sr. Wain e pelo contorno inequívoco dos seios e dos quadris era evidente que não usava mais nada por baixo. Bond tratou de perguntar se ela não se sentia en­tediada ali e o que costumava fazer com seus momentos de folga. Ela recebeu a pergunta com bom humor e respondeu:

— Eu tenho um carrinho e dou umas voltas por aí. Há passeios maravilhosos pelos arredores. Além disso aqui esta­mos sempre conhecendo gente diferente e algumas pessoas são mesmo bem interessantes. . . Aquele rapaz do carro, por exemplo, o conde Lippe, vem aqui todos os anos e me con­ta coisas realmente fascinantes sobre o Oriente, a China e outros lugares. Êle parece ter negócios num lugar chamado Macau, fica perto de Hong Kong, não é mesmo?

— Sim, exatamente...

Então aqueles olhos puxados do bonitão tinham algo a ver com chinês! Seria interessante conhecer mais a respeito das atividades dele; talvez tivesse sangue português, já que vinha de Macau.

Chegaram à entrada e no hall aquecido a moça se des­pediu:

— Bem, mais uma vez agradeço. E agora tenho que ir correndo — e ofertou um sorriso a Bond, que para a recep­cionista atrás do balcão pareceu perfeitamente neutro, e ter­minou: — Espero que goste daqui.

E foi embora em passos rápidos e elegantes. Bond se­guiu com os olhos o movimento cadenciado que ela fazia com os quadris. Depois olhou para o relógio e tratou também de ir andando e seguiu pelo tal corredor branco cheirando a óleo e a desinfetante até chegar a uma porta onde estava escrito: "Tratamento-Homens", entrou e foi recebido por um massagista. Bond despiu-se e com uma toalha amarrada em volta da cintura foi levado para um compartimento longo di­vidido em cabines por cortinas plásticas. Na primeira delas dois homens deitados transpiravam abundantemente, rosto avermelhado, envoltos em cobertores elétricos. No seguinte havia duas mesas para massagens; na primeira um homem jovem porém gordíssimo era sacudido quase que de manei­ra obscena pelos golpes enérgicos do massagista. Resignado, Bond retirou a toalha e deitou de bruços pronto para receber o castigo da massagem mais violenta de sua vida. Vagamente entre sacudidelas e dores dos músculos e tendões ressenti­dos Bond percebeu que o gorducho se levantara e fora para outra sala, sendo imediatamente substituído por outro pa­ciente. Ouviu a voz do massagista avisando:

— Creio que teremos de tirar o seu relógio de pulso, senhor!

E a voz autoritária que Bond imediatamente reconhe­ceu replicou com energia:

— Tolices, meu caro. Eu venho aqui todos os anos e sempre me foi permitido conservar o relógio de pulso! Prefiro continuar com êle, se não se importa.

— Sinto muito, senhor. — A voz do massagista era po­lida, porém firme. — Por certo o senhor foi atendido por ou­tro massagista. Eu não consinto porque isso interfere com a corrente sangüínea quando chega a vez do tratamento nos braços. Logo... queira tirá-lo, senhor.

Houve um momento de silêncio. Bond podia quase ou­vir o conde Lippe tentando controlar-se e, quando este falou, as palavras foram cuspidas com certa violência:

Tire-o, então! (Os impropérios que não foram pronun­ciados foram perfeitamente pressentidos pelo tom da voz).

Houve pequena pausa, o massagista agradeceu e come­çou a trabalhar. Aquele pequeno incidente chamou a atenção de Bond; tirar o relógio de pulso era a coisa mais natural para quem ia ser massageado! Por que o homem insistira tanto em contrário? Parecia meio pueril isto!

— Vire-se, por favor, senhor — pediu o massagista, e Bond obedeceu e então olhou para o lado direito onde estava o conde com o rosto virado para a parede e com o braço es­querdo pendente da mesa. Foi então que notou uma marca esbranquiçada no pulso do outro, onde a correia do relógio protegia da ação do sol e no meio do círculo, que ficara mar­cado pelo uso contínuo do relógio, havia um sinal tatuado na pele branca. Parecia um pequeno ziguezague cortado por duas linhas verticais. Então era isto que o conde Lippe não queria que fosse visto! É. .. Seria interessante telefonar para "Records" e pedir informações sobre a espécie de pessoas que têm aquele sinal secreto tatuado no pulso...

 

Máquina de Tortura

No final de uma hora de tratamento Bond se sentia como se o seu corpo tivesse sido virado pelo avesso e depois des­virado outra vez. Vestiu-se novamente, e praguejando con­tra M, subiu com esforço os degraus para o que lhe pareceu um ambiente civilizado em comparação com a simplicidade quase rústica do resto do prédio. À entrada havia duas cabi­nes telefônicas. Entrou em uma e pediu ligação para o único número que lhe permitiam chamar de fora; êle sabia que to­das as chamadas eram ouvidas e fiscalizadas. Quando pediu "Records" ouviu o clic caraterístico da extensão, êle se identi­ficou pelo número e fêz a consulta, adiantando que a pessoa em questão era oriental, talvez, ou de origem portuguesa. Dez minutos depois veio a resposta. A tatuagem era um sinal Tong, "o Relâmpago Rubro". Era, porém, muito estranho que alguém que não fosse de sangue puramente chinês fizesse parte da organização, aliás organização criminosa; a Estação H já havia lidado com eles uma vez; eles têm representação em Hong Kong, porém o quartel-general é em Macau. A Esta­ção H teve de pagar uma soma considerável pelo erro de en­trar em contato com um membro como intermediário numa transação em Pequim. Ia tudo bem quando a coisa estourou e houve perda de vidas de funcionários H, houvera traição da outra parte. Uma confusão. Daí por diante eles têm ne­gociado clandestinamente com tudo, desde drogas da Índia, escravas brancas, tudo. Eles são poderosos. Nós gostaríamos que nos informasse qualquer descoberta a respeito.

— Muito obrigado, "Records" — falou Bond. — Por en­quanto não tenho nada a informar. É a primeira vez que ouço falar nessa organização. Se souber algo, direi. Adeus.

Bond desligou sem ruído. Que interessante! E que es­taria este homem fazendo em Shrublands?! Bond saiu da cabine e ouviu movimento na outra ao lado. Olhou e viu o conde Lippe que, de costas, acabava de levantar o fone. Ha­via quanto tempo estaria êle ali? Será que ouvira a conver­sa com a "Records"? Ou o que êle, Bond, dissera... ? James sentiu um friozinho no estômago que infalivelmente indicava que teria cometido ura erro! Olhou para o relógio, eram sete e meia, e foi para o salão onde o "jantar" estava sendo servido. Deu o seu nome à senhora vestida de branco por trás do bal­cão, ela consultou uma lista e serviu sopa de legumes bem quente numa tigela plástica e entregou a êle. Bond segurou a tigelinha e perguntou admirado:

— O jantar é... só isso?

A mulher olhou para êle sem sorrir antes de respon­der:

— O senhor está com sorte. Outros recebem menos. Tomará sopa todos os dias e chá duas vezes.

Bond olhou-a meio ressentido, sorriu sem jeito e lá se foi com sua antipática tigela para uma mesinha de onde se via pela janela o parque às escuras, lá fora. Foi tomando a sopa enquanto olhava seus débeis companheiros andando pela sala e sentiu um pouco de solidariedade, sim, êle tam­bém agora era um deles. Sim, agora êle tinha sido iniciado. E bebeu sua sopa até a última gota e o último cubinho de cenoura. Depois saiu da sala meio autômato, pensando no conde, pensando em dormir e, acima de tudo, pensando no estômago vazio.

Dois dias depois, sob esse regime, Bond estava se sen­tindo arrasado. Começou a sentir uma dor de cabeça per­manente e o branco dos seus olhos foi ficando amarelo, sua língua grossa e pesada. Seu massagista tranqüilizou-o. Era assim mesmo. Tudo aquilo era sinal de que as toxinas esta­vam deixando seu organismo e Bond, agora presa permanen­te de uma certa lassidão, nem teve forças para discutir. Nada mais agora lhe importava; laranja e água morna no desjejum, tigelas de sopa e xícaras de chá como almoço e jantar. Bond se compensava, dentro do possível enchendo seu chá com colheradas de açúcar preto que era o único luxo que o Sr. Wain lhe permitia.

No terceiro dia, depois das massagens e do impacto das duchas, Bond viu no seu programa: Manipulação e Tração Osteopática! E foi levado a uma nova seção limpa e silencio­sa. Quando abriu a porta, esperando encontrar um homem S à sua espera, flexionando os músculos (homem S significava Homem Sadio, bela designação para um naturopata), Bond ficou parado de surpresa diante da moça Patrícia que não vira mais desde o dia do incidente. Ela o esperava junto à mesa forrada. Bond perguntou admirado:

— Mas então é esse o seu trabalho?!

Patrícia já estava meio acostumada a esta reação por parte dos pacientes masculinos e, sem sorrir, e com voz pro­fissional, falou:

— Quase dez por cento do número de osteopatas é constituído por mulheres. Agora, dispa-se. Tire tudo, exceto a cueca.

Quando Bond acabou de cumprir a ordem, meio diver­tido, ela mandou que ficasse de pé diante dela e êle obede­ceu. E a moça andou em volta dele, examinando-o com olhos atentos nos quais não havia senão interesse puramente pro­fissional. Sem fazer qualquer comentário sobre as inúmeras cicatrizes de Bond a pequena mandou que êle deitasse de bruços sobre a mesa forrada e com mãos hábeis e experien­tes fêz o reconhecimento de todas as juntas e músculos, etc. Logo Bond se convenceu de que Patrícia era uma garota bas­tante forte, os músculos dele, possantes mas relaxados, per­diam muito de importância sob os dedos ágeis e êle sentiu até um certo ressentimento pela indiferença com que ela estava cumprindo aquela tarefa. Era, afinal, uma moça atraente e um homem meio nu! Neste ponto ela pediu que êle ficasse de pé novamente e pusesse as mãos entrelaçadas fortemente por trás da sua nuca (isto é, dela!) E seus olhos agora mui­to próximos dos dele não continham mais do que eficiência profissional! E ela fêz um movimento de resistência evidente­mente com o propósito de estudar as reações das vértebras do paciente. Mas para Bond isto era demais!!! E quando Pat deu por terminado o movimento e mandou que êle relaxasse o gesto e soltasse seu pescoço, êle não fêz absolutamente nada disso. Ao contrário Bond puxou-a fortemente para si e beijou-a com vontade na boca. A pequena escapuliu com agilidade, empertigou-se ainda com o rosto ruborizado e os olhos brilhando de raiva. Bond sorriu para ela quando se es­quivou, sabendo que nunca escapara com tanta habilidade de uma bofetada tão forte e disse rindo:

— Pronto, pronto. Está tudo bem outra vez. Mas eu não pude resistir! Afinal, se você tinha que ser uma osteopata, não devia ter a boca que tem... !

A raiva nos olhos de Patrícia diminuiu muito pouco e ela avisou:

— O último que cometeu esta tolice teve de partir no próximo trem!

Bond fingiu que avançava outra vez para ela dizendo às gargalhadas:

— Ôba! Se há esperanças de cair fora daqui por este processo delicioso, vou já beijá-la outra vez!

— Não seja idiota! Agora apanhe suas coisas e venha. Você vai ter meia hora de tração.

E Pat sorriu, vingada:

— Isto o fará acalmar-se...

Bond não pareceu muito satisfeito com a idéia e res­mungou:

— Está bem, vou. Mas só com a condição de que você sairá comigo na sua próxima folga.

Isto é o que ainda vamos ver. Tudo depende de como se comportar no próximo tratamento.

E ela abriu a porta para que êle passasse. Bond apa­nhou as roupas e obedeceu, quase colidindo com um homem que entrava no momento. Era o conde Lippe, de slacks e blusão. Êle ignorou a presença de Bond e cumprimentou a pequena:

— Como vai? Aqui está o carneirinho pronto para o sa­crifício. Espero que não esteja se sentindo muito exuberante

hoje.

E piscou os olhos de maneira encantadora. Patrícia res­pondeu séria:

— Apronte-se. Eu não me demoro. Vou colocar o Sr. Bond no aparelho de tração.

Entraram em outra sala. Bond colocou as roupas sobre uma cadeira e Patrícia abriu a cortina que separava um pe­queno compartimento. Lá dentro êle viu uma estranha mesa cirúrgica, coberta de couro e com armações de alumínio re­luzente, que não lhe despertou a menor simpatia. A moça começou a desatrelar uma série de tiras de couro presas a pequenas peças acolchoadas que pareciam correr sobre en­grenagens macias. Bond olhava tudo aquilo muito desconfia­do. Sob a mesa havia um possante motor elétrico com uma plaqueta que dizia: "Mesa de Tração Motorizada Hércules". Alavancas de acionamento com o feitio de manches saíam do motor para as peças acolchoadas terminando por porcas de tensão. Em frente da almofada onde a cabeça do paciente ficaria e ao nível dos olhos estava um mostrador marcando a pressão em libras até 200. Depois do número 150 os alga­rismos estavam em vermelho. Havia também alças para que o paciente se agarrasse, em que Bond notou com desânimo manchas inconfundíveis de suor.

Deite-se aqui, por obséquio — falou Patrícia, espe­rando.

— É, mas não antes que você me explique toda essa geringonça! — respondeu Bond, sempre desconfiado. — Não estou gostando nada disto!

— Isto é apenas uma máquina para distender a sua espinha — explicou a moça, pacientemente. — Você tem li­geiras lesões vertebrais e isto corrigirá os defeitos. Na base da espinha você tem um pequeno desvio sacroilíaco que tam­bém precisa de correção. Não vai incomodar nada, apenas uma sensação de distensão que é até repousante. Muitos pa­cientes acabam adormecendo.

— É... mas o papai aqui, não! — retrucou Bond com firmeza. — Que pressão você vai aplicar em mim? E por que estes números em vermelho? Veja lá se vai me esquartejar!

A pequena começou a ficar impaciente e terminou a conversa:

— Não seja bobo. Naturalmente que a pressão demais é perigosa mas eu sei o que faço e vou ligar apenas 90 libras e dentro de um quarto de hora voltarei para ver se posso subir para 120. E vamos logo. Tenho outro paciente esperando.

Com certa relutância Bond subiu na tal mesa e deitou de bruços com o rosto encostado na almofada e ainda falou meio abafado:

— Se você me trucidar eu promovo uma ação judicial contra você!

Sentiu então as tiras de couro serem ajustadas em volta do seu tórax e dos quadris. A roupa da pequena passou ro­çando seu rosto quando ela se abaixou para ligar os contro­les e o motor começou a pulsar. As tiras de couro apertavam e afrouxavam, apertavam e afrouxavam ritmadamente. Bond sentia o corpo ser distendido por mãos de gigante. Era uma sensação estranha mas não desagradável. Com muita difi­culdade ergueu um pouco a cabeça, o ponteiro no mostrador indicava 90. Agora o motor fazia um certo embalo, como um cavalo mecânico, e as engrenagens engatavam e desengata­vam compassadamente.

— Você está bem? Tudo certo? — perguntou Patrícia.

— Tudo bem — respondeu Bond, e ouviu os passos da moça se afastando.

Êle então relaxou bem os músculos e nervos e ficou acompanhando meio hipnotizado o vaivém do motor. Não era tão ruim assim. Que bobagem ter tido medo e apreensão an­tes.

Meia hora depois ouviu o clic do trinco da porta e a voz

de Pat:

— Tudo bem?

— Ótimo...

Na altura dos seus olhos viu a mão da moça movendo o Controle, ergueu um pouco a cabeça e viu o ponteirinho subir para 120. Sentiu então os movimentos bem mais fortes e o ruído do motor aumentou. A osteopata baixou a cabeça até êle, pousou a mão em seu ombro e, elevando a voz para ser ouvida acima do barulho ambiente, disse:

— Só mais quinze minutos.

— Está certo — respondeu Bond cuidadosamente para não perturbar os movimentos em seu corpo, agora bem mais enérgicos. Novamente a cortina foi puxada, a porta fechada e Bond procurou relaxar novamente e entregar-se ao movi­mento ritmado.

Talvez nem cinco minutos tivessem passado quando um movimento junto ao rosto de James fêz com que abrisse os olhos sonolentos. Viu então a mão de um homem procurando os controles para aceleração. Bond olhou, primeiro intrigado e depois com indisfarçável horror, à medida que a alavanca ia sendo levada ao máximo de pressão e as correias come­çaram a apertar seu corpo. Gritou algo que nem êle mesmo soube o quê. Sentiu o seu corpo todo doer atrozmente. Em desespero tentou erguer a cabeça e gritou outra vez; no mos­trador o ponteiro marcava 200! Sua cabeça tombou sobre a almofada, estava exausto. Através de uma névoa viu a mão largar a alavanca na posição. Aquela mão ficou então numa posição que lhe permitiu ver na faixa de pele não queimada de sol onde estivera o relógio de pulso a pequena tatuagem do "relâmpago rubro". Uma voz conhecida falou baixo junto ao seu ouvido:

— Vai deixar de se intrometer agora, meu caro.

E então só ouviu num crescendo o ruído ensurdecedor da máquina e sentiu as correias que pareciam estar cortando seu corpo em pedaços. Bond começou a gritar e foi enfraque­cendo enquanto o suor que saía do seu corpo escorria até o chão.

De repente, escuridão completa e mais nada.

 

Chá e Animosidade

A coisa mais certa é que o corpo não guarda lembrança das dores sofridas. É verdade que um absccsso, uma fratura doem e impressionam, porém logo se esquece a intensidade da dor, cérebro e nervos não querem lembrar mais. O mesmo não acontece com as coisas agradáveis, um perfume, um sa­bor, a sensação de um beijo... estas coisas podem ser sempre relembradas. Bond, tentando definir suas reações à medida que a vida foi voltando a seu corpo, ficou admirado por ver que a onda de agonia que havia dominado inteiramente seu ser acabava de desaparecer tão completamente. É verdade que a sua coluna vertebral toda doía ao menor movimento, cada vértebra parecia ter sido triturada separadamente, mas isto era compreensível e estava dentro da lógica e de con­trôle. Porém o furacão que havia entrado em seus músculos sacudindo-os furiosamente havia passado. Que acontecera? Como acontecera? Bond não conseguia lembrar. Só sabia que havia sido reduzido na escala de resistência a algo me­nos resistente que uma garfada de espinafre cozido e batido.

Começou a ouvir com mais nitidez o som de vozes. Alguém perguntava:

— O que foi que chamou a sua atenção de que algo estava errado, Pat?

— Foi o ruído, o ruído da máquina. Eu acabara de fa­zer um tratamento e minutos depois ouvi o motor; jamais o ouvira tão alto, fui ver se a porta teria ficado aberta. Não estava preocupada, mas fui verificar. E quando cheguei vi. O ponteiro indicava 200! Desliguei rápido, soltei as correias e levei o paciente para a seção de cirurgia onde dei uma injeção de coramina na veia. O pulso estava muito fraco e telefonei para o senhor.

— A senhorita fêz tudo o que era possível fazer e eu tenho certeza de que a responsabilidade do incidente não é sua... — A voz do Sr. Wain, porém, não estava muito segu­ra. — Foi terrível! É realmente lamentável. Suponho que o próprio paciente tenha puxado a alavanca. . . talvez experi­mentado... mas poderia ter morrido. Precisamos falar com a fábrica e pedir que instalem uma trava de segurança.

Bond sentiu uma mão firme segurando seu pulso e achou que era hora de voltar ao mundo dos vivos. E precisa­va ir a um médico; mas a um médico mesmo e não um desses comedores de cenoura e sentiu uma onda de raiva invadi-lo. Era tudo culpa de M. Porque M devia estar doido. Mas êle ia ouvir umas boas quando o encontrasse e, se necessário, iria até o máximo, o chefe do gabinete ou até o Primeiro Ministro! M era um doido perigoso, uma ameaça ao país! E cabia a êle, Bond, salvar a Inglaterra das conseqüências... Os pen­samentos se embaralharam com a histeria e fraqueza dentro do cérebro de Bond e se mesclaram com a visão da mão de Lippe, a boca de Patrícia Fearing, o gosto da sopa de cenou­ras e sumindo, sumindo, a voz de Wain falando:

— Não houve lesão estrutural, apenas abrasão superfi­cial e dos extremos nervosos e, naturalmente, choque. A se­nhorita tomará conta pessoalmente do caso. Repouso, aflo-ração, aquecimento, confere?

Repouso, aquecimento, afloração... Quando Bond vol­tou a si novamente já estava em seu quarto, deitado de bru­ços e sentia o corpo todo ser percorrido por uma estranha sensação; estava deitado sobre um macio cobertor elétrico e suas costas brilhavam sob o calor que vinha de duas pos­santes lâmpadas solares. Sentia duas mãos que pareciam forradas de arminho ritmadamente passando, uma após a outra, em todo o comprimento de seu corpo, indo da nuca até os joelhos. Era uma experiência muito delicada e quase luxuriosa e Bond se deixou levar.

Depois de algum tempo perguntou com voz sonolenta:

— É isto que chamam de afloração?

— Logo vi que já estava se recuperando — falou a pe­quena, animada. — Senti que estava voltando a côr à sua pele. Como se sente?

— Agora? Me sinto ótimo... mas estaria melhor se pu­desse arranjar uma dose de whisky com gelo...

— O Sr. Wain havia recomendado chá — falou Patrícia, rindo. — Mas eu achei que algo estimulante seria bom e só por esta vez... trouxe um pouco comigo. Quanto ao gelo não há problema. Espere, vou cobri-lo com o robe para que se possa virar e vou olhar para o outro lado.

Bond ouviu que as lâmpadas eram afastadas e então se virou rápido, mas logo sentiu que as dores voltavam, embora mais fracas, e então com mais cuidado sentou na cama com as pernas pendendo para fora.

Patrícia Fearing estava ali na frente dele, limpa, de branco, reconfortante e tentadora. Tinha na mão um par de luvas de pêlo de lontra e na outra um copo e, enquanto bebia, Bond achou que o ruído das pedras de gelo no copo traziam a vida de volta e pensava: Que garota formidável! Com esta eu seria capaz de ficar... Ela podia fazer afloração o tempo todo interrompendo de vez em quando para me dar um bom drink gelado. Isto sim é que seria vida... E sorrindo para ela estendeu o copo:

— Mais!

Patrícia sorriu aliviada por ver que êle estava realmente vivo e disse:

— Só mais uma dose, então. . . não esqueça que está de estômago vazio e o álcool pode subir muito depressa.

E então ela voltou à atitude profissional e fria, pedin­do:

— Agora quer me contar exatamente o que aconteceu? Você esbarrou por acaso nos controles. . . ou o quê? Você nos deu um susto terrível. Jamais aconteceu algo semelhante por aqui, Aquele aparelho de tração é perfeitamente seguro!

Bond olhou para lela com calma e a tranqüilizou: É,   devo   ter   esbarrado tentando uma posição mais cômoda. Lembro que minha mão bateu em algo metálico... possivelmente a alavanca... e depois não sei mais nada. Tive muita sorte de você ter aparecido tão depressa.

— Muito bem, está tudo certo agora — falou ela, entre­gando a segunda dose de whisky — e felizmente não houve lesões de gravidade. Com mais dois dias de tratamento você estará novinho em folha. Oh! É verdade! — Pat parecia um pouco embaraçada, mas continuou: — E o Sr. Wain gostaria que tudo isto... ficasse só entre nós, êle não quer que os ou­tros pacientes fiquem com medo, sabe?

Bond ficou pensando nas conseqüências de uma publi­cidade naquele sentido e chegou a ver as manchetes gritan­do:

"PACIENTE  ESQUARTEJADO    EM    CLINICA NATU-ROPATA; A MÁQUINA DE TRAÇÃO ENLOUQUECEU.   O MINISTRO DA   SAÚDE INTERVÉM"

Bond meditou sobre tudo isto e falou com calma:

— Naturalmente não direi nada a ninguém. Afinal, foi minha culpa. — E, acabando a bebida, devolveu o copo e dei­tou de novo, dizendo: — Estava tão bom... Que tal mais um pouco de afloração? E por falar neste toque macio de armi­nho... quer casar comigo? Você é a única pequena que eu conheço que sabe mesmo tratar bem um homem!

Patrícia caiu na gargalhada, dizendo:

— Deixe de ser bobo e vire o rosto para lá. . . O trata­mento é nas costas.

— É... ? E como é que você sabe?

Dois dias depois Bond entrou novamente na rotina do tratamento pela natureza: laranja, copo de água morna pela manhã, sendo a laranja artisticamente cortada por alguma máquina própria para tal, os tratamentos, a sopa, a sesta de tarde e os passeios a pé ou de ônibus até a casa de chá para uma ou duas revigorantes xícaras de chá com bastante açúcar preto. Bond detestava chá e considerava-o um insípi­do ópio para as multidões; não obstante, nas condições em que estava, a infusão com açúcar mascavo era a solução. Três xícaras chegavam a dar-lhe a ilusão de uma taça de champanhe no mundo real cá de fora. Chegou a conhecer todos os pontos, todas as casas de chá — Rose Cottage (que êle passou a evitar desde que a proprietária resolveu cobrar extraordinário pelo excesso de açúcar que consumia); Thatched Barn, que era divertida porque fazia questão de colocar em cada mesa um prato com pãezinhos de minuto quentinhos e tentadores; Transport Café, onde o chá da Ín­dia era preto e forte e havia um cheiro real de gasolina e suor por causa dos choferes de caminhão que iam lá. Bond achou que seus sentidos estavam cada vez mais aguçados. Enfim, um sem-número de locais freqüentados também por donos de fordecos e Morris Minors falando em gente e em crianças chamadas Len, Ron, Pearl e Ethel e comendo com cuidados exagerados para dar a impressão de bem educados. Coisas que normalmente Bond detestaria mas que agora, tão puri­ficado, apreciava com inocência quase infantil. Dentro dessa mentalidade tudo era possível, mesmo conseguir divertir-se com aquelas conversas burguesas sobre receitas caseiras e o chá está fraco, forte, bom e quantos cubos quer de açúcar?

O mais extraordinário de tudo isso é que não lembra­va de já se ter sentido melhor (não forte) bem disposto, sem dores, sem cefaléias, com olhos límpidos e visão clara, pele sadia, dormindo tranqüilamente dez horas por dia e acima de tudo sem aqueles acessos de mau humor com que desper­tava todas as manhãs e o remorso de que estava destruindo a própria saúde. Ficou meio intrigado. Será que estava mu­dando de personalidade? Estaria perdendo sua fibra? Seus pontos de vista inflexíveis? Sua identidade? Estaria perden­do definitivamente os vícios que eram parte integrante do seu caráter duro, cruel, fundamentalmente impiedoso e áspero? Em que estaria se transformando? Será que ia virar um idea­lista molenga, bondoso, que sai do trabalho para fazer huma­nitárias visitas aos asilados e prisioneiros, interessados em associações beneficentes, comendo alimentação vegetariana e tentando consertar o mundo!!!

James Bond estaria muito mais preocupado à medida que os dias de tratamento se arrastavam se não fossem os três pontos que eram para êle no momento uma obsessão e que eram traços sua personalidade que não estava ameaçado de perder: sonhava com um suculento prato de Spaghetti à Bolognesa com bastante alho e acompanhado pelo Chianti mais barato no mercado (só pensar nisto de estômago vazio, sedento e faminto!); um desejo incontido, despertado pelas formas firmes e macias de Patrícia Fearing, e uma idéia fixa à procura da melhor maneira de tirar uma desforra sobre o conde Lippe! Os dois primeiros itens teriam de esperar o que era, sem dúvida, um suplício tantálico, aumentando sempre a impaciência para sair de Shrublands. Quanto ao conde... Os planos começaram no dia em que Bond voltou à rotina normal da clínica.

Com a mesma intensidade fria que êle teria empregado contra um agente inimigo num hotel em Estocolmo ou Lisboa durante a guerra, James Bond começou a vigiar cuidado­samente o homem. Foi ficando, aparentemente, expansivo e perguntador, conversando com Pat acerca das rotinas da clínica, tudo com genuíno interesse. Perguntando sobre o re­gulamento das refeições dos funcionários, horas de deixar os turnos. . . e também que o conde Lippe estava tão bem disposto! Sim, estava preocupado com a medida da cintura! Os banhos com cobertor elétrico resolvem isto? Ah! os ba­nhos turcos... não, êle ainda não havia estado naquela seção, mas iria experimentar breve. E com o massagista puxava o assunto, que não tinha visto aquele rapaz forte ultimamen­te... o conde de não sei quê!? Ripper, Hipper. . . ah! sim, Lippe. Ah, êle era do horário de meio-dia, bom horário, iria experimentar também... ficava livre o resto do dia e gostaria de dar uma olhada na câmara de Banhos Turcos depois das massagens, curiosidade, sabe? E suar um pouco é bom, não é? Inocentemente, pedaço por pedaço, Bond ia armando seu plano como um quebra-cabeças... Um plano que o deixasse a sós com o conde na sala de banhos turcos, entre as máqui­nas, na sala à prova de som!

Não haveria por certo outras oportunidades, o conde ficava em seu quarto até a hora do tratamento ao meio-dia, de tarde sumia no seu Bentley lilás para Bournemouth, tal­vez, onde tinha "negócios" a resolver, e só voltava às onze da noite. Uma tarde, na hora da sesta, Bond aproveitou para introduzir na fechadura do quarto de Lippe uma peça que cortara de um aviãozinho de brinquedos comprado já com essa finalidade na cidade vizinha. Conseguiu abrir a porta e fazer uma revista meticulosa e cautelosa, porém, infrutífera; só conseguiu saber pelas etiquetas das roupas que o con­de, muito viajado, se vestia com camisas Charvet, gravatas Tripler, Dior e Hardy Amies, sapatos Peel e pijamas de seda pura de Hong Kong. A mala de couro, etiqueta Mark Cross, talvez tivesse compartimentos secretos e Bond procurou sem resultado. Não! O melhor mesmo seria o que estava planeja­do.

Na mesma tarde, tomando chá com melado, Bond fêz mentalmente um relatório do que sabia sobre Lippe: cerca de trinta anos de idade, atraente para as mulheres, fisicamente muito forte pelo que vira na sala das massagens; teria san­gue português com traços chineses e aparentava riqueza. De que vivia? Qual seria a sua profissão? À primeira vista Bond o teria classificado como "maquereau" do Ritz em Paris, do Palace em St. Moritz, do Carlton em Cannes... bom no pólo, no gamão, no esqui aquático, mas com a marca inconfun­dível do homem que vive às custas das mulheres. Acontece, porém, que o conde ouvira Bond fazendo perguntas a seu respeito e isto fora suficiente para que cometesse um ato de violência; ato esse que êle realizara com requintes de fleugma e cuidado depois que terminou o tratamento com a senhori­ta Fearing e sabendo pelo comentário dela que Bond estaria sozinho na cabine de tração. Pode ser que a violência tivesse por finalidade apenas avisar e assustar, porém, como Lippe devia conhecer os efeitos de 200 libras de pressão so­bre a espinha. . . podia também ter sido para matar! Por quê? Quem seria esse homem que tinha tanto a esconder? E quais seriam os seus segredos? E Bond serviu mais chá e muito mais açúcar mascavo e pensou: uma coisa era certa — os segredos eram de grande importância! Bond não havia cogi­tado de relatar ao quartel-general quem era o conde Lippe nem que êle fizera aquele atentado contra sua vida. Tudo aquilo se passando nos cenários de Shrublands parecia tão fantástico e tão ridículo. . . além do mais James Bond, o in­vencível, o terrível homem de ação, saíra da cena mole como marshmallow. Enfraquecido por uma dieta de água e sopa o ás do Serviço Secreto tinha ficado amarrado numa geringon­ça e outro homem chegara e puxara uma alavanca reduzindo o herói de mil batalhas a geléia. Não! Só havia mesmo uma solução; solução pessoal, discreta, de homem para homem. Mais tarde talvez, para satisfazer sua curiosidade, poderia ir aos arquivos da "Records" e ver as fichas sobre Lippe. Por enquanto Bond ia ficar calado, quietinho, para não assustar a lebre e o plano cuidadoso funcionaria com precisão.

Quando chegou o décimo quarto dia, o feliz último dia para Bond e por êle escolhido para levar avante o plano, todos os detalhes foram revistos, local, hora e método de ação.

Às dez horas Joshua Wain recebeu Bond para o último check-up. Quando Bond entrou no consultório Wain fazia exercícios respiratórios diante da janela e com um movimen­to final voltou-se jovial para o paciente com um alegre: "Ah! Bisto!" na fisionomia saudável. Seu sorriso era sincero e co­municativo quando cumprimentou:

— Então... como vai a vida? Sr. Bond, nenhuma conse­qüência daquele pequeno e desagradável acidente, espero?

Não, por certo. A natureza humana é um mecanismo notável em sua capacidade regeneradora. Agora, dispa a camisa por favor e vamos ver o que a clínica fêz ao senhor.

Dez minutos mais tarde James Bond, ciente de que a sua pressão voltara a 132/84, seu peso reduzira uns cinco quilos, as lesões osteopáticas tinham desaparecido, os olhos estavam límpidos e a língua limpa, descia pelo corredor a caminho do seu último tratamento.

Como de hábito os corredores e salas estavam inodoros e impessoais com suas paredes brancas; de vez em quan­do na cabine vizinha, separada por cortinas plásticas, havia ligeira troca de comentários entre paciente e naturopata e, como fundo, o zumbido do aparelho de ventilação. O resto era quietude. Estava quase na hora e Bond deitado de bruços esperava atento a aproximação da sua presa. Então ouviu o ruído da porta se abrindo e fechando de novo, dos pés des­calços e da voz inconfundível, que falou:

— Bom dia, Beresford. Tudo pronto para mim? Procure caprichar hoje. Preciso perder um quilo e meio e hoje é o úl­timo dia. Certo?

— Tudo certo, senhor.

E Bond seguiu ouvindo as passadas de sapatos de bor­racha do instrutor e dos pés nus do conde passando para a última cabine, a dos banhos turcos. Ouviu a porta que abria quando ambos entraram na cabine à prova de som e depois os mesmos sons do instrutor que saía depois de instalar o conde devidamente. Vinte minutos, vinte e cinco, e Bond desceu da mesa, dizendo:

— Muito bem, Sam. Obrigado. Você me fêz um bocado de bem, rapaz. Voltarei qualquer dia. Agora vou para uma boa ducha. Você pode ir almoçar. Não precisa se preocupar comigo. Quando acabar, vou embora.

E Bond amarrou uma toalha em volta da cintura e foi andando. Houve ainda um pouco de movimento dos pacien­tes que passavam para o almoço e os instrutores também. O último paciente, um bêbado recuperado, se despediu com uma piada, alguém riu e a voz de Beresford deu as últimas ordens:

— Viu as janelas, Bill? Certo. O próximo é o Sr. Dum-bar, no n.° 2. Len, diga à lavanderia para mandar mais to­alhas de tarde. Ted... você está aí? Sam, veja o Sr. Lippe no banho turco.

Bond acompanhara esta rotina durante uma semana reparando nos instrutores que saíam um pouco antes da hora para almoçar e os que ficavam até o último instante e, seguro, respondeu imitando a voz de Sam:

— O. K., Sr. Beresford.

E ficou esperando o ruído característico da sola de bor­racha sobre a passadeira de linóleo e a porta que se abriu e fechou. E agora havia silêncio quase absoluto, apenas os ventiladores. A sala de tratamento estava vazia e ali estavam, naquele pavilhão, apenas James Bond e Lippe.

Bond esperou um pouco, depois saiu da cabine das du­chas e devagar abriu a porta da câmara de Banho Turco. Êle tivera o cuidado de tomar um banho daqueles para poder guardar bem a disposição do ambiente e a cena lhe era fa­miliar. Era um cubículo branco como os outros, só que no centro havia uma espécie de caixa de metal e plástico de um metro e pouco de altura por outro tanto de largura laqueada de côr creme, era toda fechada, como um dado, menos na parte de cima onde havia uma abertura circular forrada de espuma de borracha para a cabeça do paciente emergir com a nuca e o queixo apoiado em suportes de borracha. A parte da frente abria por meio de dobradiças para que o paciente pudesse entrar e sair. Lá dentro o corpo da pessoa ficava exposto ao calor de fileiras de lâmpadas elétricas e a inten­sidade da temperatura era graduada termostaticamente por meio de um dial. Era apenas uma caixa para fazer suar, de­senhada, planejada e executada (como Bond havia notada antes) por Medikalischer Maschinenbau G.m.b.H 44 Fran­ziskanerstrasse, Ulm, Baviera. O paciente dentro da caixa ficava de costas para a porta e ao ouvir o "hissss" do fecho hidráulico o conde Lippe gritou impaciente:

— Raios, Beresford! Tire-me logo daqui. Estou suando como um animal!

— O senhor disse que queria perder peso — respondeu Bond, imitando a voz do instrutor, amavelmente.

— Ora. . . não discuta. Bolas! Tire-me daqui!

— Creio que o senhor está subestimando o valor do ca­lor na cura-H. O calor remove as toxinas da corrente sangüí­nea e conseqüentemente dos tecidos musculares também. O paciente que sofre, como o senhor, de pronunciada toxemia tira muitos benefícios deste tratamento.

Bond descobriu que estava imitando com facilidade e perfeição o modo de falar dos homens S da clínica. E não estava preocupado com as conseqüências contra Beresford, pois este teria testemunhas vendo-o almoçar naquele mo­mento.

— Não me venha com palestras, tire-me deste forno.

Bond examinou o mostrador e viu que o ponteiro indi­cava 120. O que deveria oferecer ao conde? A graduação ia até 200, mas esta temperatura dava para torrar o homem vivo e êle queria apenas dar um castigo e não cometer um assassinato; talvez 180 fosse uma boa retribuição ao que lhe acontecera. E resolveu. Prosseguindo na imitação disse:

— Acho que meia hora de calor mesmo vai lhe fazer bem, senhor — e então, parando de imitar, terminou rispi­damente em sua voz natural — e se você pegar fogo pode promover uma ação contra mim!

Nesse momento a cabeça coberta de suor que estava de costas tentou se virar e não o conseguiu. Bond foi caminhan­do para a porta. O conde agora tinha uma entonação diferen­te na voz desesperada, mas sem arrogância: — Eu lhe darei mil libras e estaremos quites. — Ouvindo o "hissss" da porta, insistiu: — Dou dez mil. Está bem então, cinqüenta mil!

Mas Bond fechou a porta bem direitinho e seguiu pelo corredor a fim de vestir-se e ir embora. Ainda ouviu o som abafado de um pedido de socorro, mas fêz ouvidos de mer­cador e continuou. Uma semana de sofrimento num bom hospital e as novas cêras e geléias medicinais curam tudo. Na sua cabeça, porém, ficou a interrogação: um homem que podia oferecer até cinqüenta mil libras devia ser muito rico mesmo ou então estar desesperadamente necessitado e com urgência da sua liberdade de movimento. Era um preço mui­to, muito alto só para se livrar de uma dor física!

James Bond tinha razão. Esta comparação de força, esta queda de braço quase infantil entre dois homens fortes e de fibra resistente no ambiente estranho da clínica de natu-ropatas em Sussex iria influir, embora de maneira breve, no mecanismo de precisão de um complô que estava para surgir e abalar os governos do mundo ocidental!

 

S. P. E. C. T R. E.

O Boulevard Haussmann vai da rua do Faubourg St. Honoré até a Ópera; muito longo e monótono mas é talvez a mais sólida rua de toda Paris. Não a mais rica, esta dis­tinção é dada à Avenue d'Iéna, porém as pessoas ricas não são propriamente as mais sólidas em prestígio e muitos dos moradores da Avenue d'Iéna têm nomes que terminam por "escu", "ovitch", "ski" e "stein" e nem sempre estes sufixos representam respeitabilidade. Além do que aquela avenida é quase que exclusivamente residencial. As poucas e discretas placas metálicas indicando nomes de firmas em Liechtens­tein ou nas Bahamas ou em Canton de Vaud na Suíça estão ali por questão relacionada com impostas, nomes comerciais para desviar a atenção sôbre o imposto de renda de particu­lares abastados... falando mais francamente: sonegação de impostos!

Já o Boulevard Haussmann não é assim. Os pesados prédios estilo Segundo Império em tijolo e estuque trabalha­do são sedes de negócios realmente vultosos. Aqui estão os escritórios principais dos grandes industriais de Lille, Lyon, Bordeaux, Clermont Ferrand... o pessoal de peso no comér­cio de algodão, seda, carvão, vinhos, aços e navegação para transporte de cargas. Se neste meio houvesse alguns conta-prosas disfarçados em capitalistas, simulando des fonds sé­rieux atrás de um bom endereço... temos que admitir que estas coisas acontecem até por trás das sólidas fachadas de Lombard e Wall Street.

É natural que entremeando estas firmas de nomes res­peitáveis houvesse na mesma rua algumas igrejas, um pe­queno museu, a Sociedade Francesa de Shakespeare e algu­mas organizações beneficentes. No n.° 136 bis, por exemplo, modesta plaquinha de metal indicava "F.I.R.C.O." (Fraternité Internationale de la Résistence Contre 1'Oppression). Quem estivesse interessado na organização, quer por idealismo, quer para fins comerciais, venda de peças de mobiliário etc, e comprimisse o polido botão da entrada seria recebido por um concierge tipicamente francês. Se o assunto fosse sério o mesmo porteiro, bem intencionado, o levaria através de um corredor poeirento até uma gaiola chocalhante que é o elevador que o alçaria até uma sala convencional, eviden­temente necessitando de pintura, contendo meia dúzia de escrivaninhas surradas onde homens comuns escreviam à mão ou à máquina muito atentos às suas tarefas; cestas de papéis, telefones (daquele modelo bem antigo e bem típico de Paris) e arquivos de metal pintados de verde com gavetas entreabertas. Para um bom observador seria fácil notar que os empregados pareciam ter todos a mesma idade e o mes­mo tipo físico e que não havia ali secretárias, como seria de esperar, mas apenas homens trabalhando. O visitante seria recebido por um funcionário um tanto apressado e atarefado e quando seus propósitos fossem explicados então um sorri­so (talvez de alívio) e uma voz menos afobada explicariam as finalidades da Fraternidade, sua existência a fim de manter viva a chama do ideal que animou durante a guerra tantos patriotas, etc, etc... Uma organização inteiramente apolítica! Os fundos para subsistência? Provinham de modestas con­tribuições de membros da mesma e de doações generosas de particulares idealistas. Estaria o visitante querendo alguma informação acerca de alguma pessoa do grupo de Resistência durante a guerra? Pois não! Nome, por favor... Gregor Kalski, perfeitamente. Um momento... Aqui está... Foi visto pela últi­ma vez perto de Mihailovitch no verão de 1943... Jules (outro funcionário chamado a cooperar na busca), Jules! Procure no arquivo: Kalski, Gregor Kalski, Mihailovitch, 1943. Jules vai, demora um pouco e volta com a informação: Morto. Mor­to durante o bombardeio de 21 de outubro de 1943. Sinto muito, senhor. Em que mais podemos servi-lo? Talvez queira levar alguns dos nossos panfletos e peço desculpas, mas não disponho de tempo para falar mais detalhadamente sobre a nossa Fraternidade. Mas aí nos livretos há tudo sobre a FIR-CO. Hoje é um dia atarefadíssimo! Este é o ano dos Refugia­dos Internacionais e temos recebido muitas consultas como a do senhor. Boa tarde, pas de quoi.

A coisa se passaria assim ou mais ou menos assim e a pessoa sairia muito satisfeita e bem impressionada com a or­ganização e sua dedicação e eficiência para com uma causa tão nobre!

No dia seguinte aquele em que James Bond completou a sua cura na clínica e partiu para Londres depois de satis­fazer seus apetites devorando à noite um prato suculento de Spaghetti à Bolognesa, acompanhado de Chianti, no Lucien's em Brighton, e de ter passado momentos agradáveis com Pa­trícia Fearing dentro do carrinho dela, lá pelos arredores do Downs, uma reunião extraordinária dos maiorais da FIRCO foi convocada às sete horas em ponto.

Os homens (pois todos os componentes eram masculi­nos) vieram de todos os cantos da Europa, de trem, de avião, de automóvel, para o n.° 136 bis; alguns entravam pela porta principal, outros pela entrada de serviço — cada um tinha uma hora marcada para chegar e havia revezamento quanto a passar pela porta principal ou não. Dois porteiros atendiam em cada porta e havia outras medidas de segurança, cam­painhas de alarme disfarçadas, circuito fechado de televisão cobrindo as duas entradas, etc. . . e medidas de emergência que permitiriam transformar qualquer reunião secreta rapi­damente em um serão inocente com expediente normal da FIRCO.

Às sete em ponto todos os homens convocados, obe­dientes às ordens recebidas, chegaram à sala de reunião do terceiro andar. O chefe já estava no seu lugar. Não houve cumprimentos porque o chefe achava que era desperdício de fôlego e de tempo além do que, pelo espírito da coisa, se­ria uma atitude hipócrita. Os homens formaram ao redor da mesa tomando seus lugares de acordo com a numeração, de 1 a 21, pelo que eram chamados, havendo um rodízio no primeiro dia de cada mês como uma pequena medida de pre­caução e segurança. Era proibido fumar e beber e ninguém ousava olhar para a folha da agenda FIRCO à frente do seu lugar. Sentavam-se todos muito quietos e olhavam apenas em direção ao chefe, com expressão de grande interesse e, para alguns, de grande respeito.

Quem quer que olhasse para o n.° 2 (este era o número do mês para o chefe), mesmo pela primeira vez, não poderia esconder um certo sentimento de interesse pois êle era desse tipo de pessoas que a gente encontra apenas duas ou três vezes na vida; seu olhar parecia atrair como um ímã; era do tipo raro de homem que reúne três atributos pouco comuns: aparência física extraordinária, certo poder de controle e au­toconfiança e a capacidade de emitir uma força magnética quase animal! Em todos os tempos e em todas as tribos o indivíduo dotado destas qualidades é o escolhido para chefe. Alguns dos homens que passaram à história, com Genghis Khan, Alexandre o Grande e Napoleão, possuíam estas qua­lidades. Talvez haja nisto uma explicação para indivíduos de menor envergadura como Adolf Hitler, por exemplo, que do­minou por tanto tempo uma população de mais de oitenta milhões de uma das nações mais bem dotadas da Europa. Por certo o n.° 2 possuía todos esses dons e qualquer tran­seunte na rua o reconheceria, quanto mais os vinte homens ali reunidos! Para eles, a despeito do cinismo e do impiedoso desprezo e insensibilidade inerentes à falta de caráter de to­dos, aquele homem era o chefe supremo e de certo modo uma espécie de deus.

O nome desse homem era Ernest Stavro Blofeld e nas­cera em Gdynia, pai polonês e mãe grega, no dia 28 de maio de 1908. Estudou História Política e Econômica na Univer­sidade de Varsóvia e Engenharia e Eletrônica no Instituto Técnico de Varsóvia. Aos 25 anos ocupou um lugar modesto na administração central do Departamento de Correios e Te­légrafos. Parecia pouco para um ser tão dotado de qualidades mas é que Blofeld havia chegado a uma interessante conclu­são acerca do futuro do mundo. Êle achava que uma carreira rápida e produtiva vem da concentração do poder em um só ponto, uma espécie de coração para o mundo, representado por um homem forte e hábil, capaz de decisões precisas e acertadas. O conhecimento das coisas, da verdade, na paz ou na guerra, e firmeza nas decisões — eis a fonte de toda reputação sólida. E baseado nessa teoria êle estava satisfeito com a sua posição nos Correios onde tinha chance de enri­quecer seus conhecimentos lendo telegramas e cabogramas que passavam por suas mãos, aproveitando para especular na Bolsa de Varsóvia de acordo com o que podia extrair das informações trazidas nas correspondências. Quando, por exemplo, a Polônia se preparou para a guerra a correspon­dência diplomática e política, ordens referentes a munições, cartas e telegramas passaram pelas mãos de Blofeld e então êle mudou de tática; aquelas informações não tinham o me­nor valor para êle, porém. . . para o inimigo valiam qualquer preço. Cautelosamente a princípio, e depois com mais segu­rança, êle desenvolveu uma técnica para copiar os telegra­mas escolhendo naturalmente, de preferência, aqueles mar­cados com avisos de "urgente" e "secreto". Tratou também de selecionar uma equipe fictícia de colaboradores (embora com nomes de pessoas reais que conseguiu com astúcia, te­lefonando em nome da Cruz Vermelha para firmas e embai­xadas e perguntando por elementos de pouca importância como secretárias de secretários, tradutores de códigos etc.).

Uma vez obtida a lista batizou a sua organização de TARTAR e tratou de procurar contatos com o Adido Militar alemão, o que conseguiu, sendo daí levado a presenças mais importan­tes em vista do valor das informações que tinha para vender. A engrenagem começou a funcionar e o dinheiro (só aceitava pagamento em dólar) a entrar com fartura (a lista dos agen­tes fictícios com nomes reais era rendosa folha de pagamento extra! Tudo para o seu bolso) e Blofeld resolveu ampliar seus negócios. Começou a pensar nos Russos... mas tirou-os das suas cogitações. Os Tchecos... não, não eram bons pagado­res. Ah! os Americanos! E os Suecos! E o dinheiro entrou em profusão. Porém êle era um homem precavido e sabia que aquilo não poderia durar para sempre. Podia acontecer algo com as relações entre a Alemanha e a Suécia (com sua acuidade e inteligência deduzira muita coisa em seus con­tatos com os espiões de ambas as partes). E havia o Serviço do Contra-espionagem das forças aliadas... Havia também o perigo do falecimento do dono de algum dos nomes que êle usava e a descoberta da fraude. Além do mais já conseguira acumular uma soma considerável, a guerra ameaçava todas as seguranças e o melhor seria procurar um porto seguro até as coisas melhorarem. Começou a manobra alegando que a fiscalização estava apertando o cerco, talvez suspeitassem e era arriscado, os agentes dele em vista do maior risco exi­giam somas absurdas e tinha de se afastar por algum tempo. Qualquer nova possibilidade seria por êle comunicada. Foi então à Bolsa e vendeu títulos e investiu a fortuna em ações da Shell Bearer em Amesterdão e finalmente transferiu tudo para um cofre numerado no Diskonto Bank em Zurique. Pouco antes de dizer aos "fregueses" que não poderia conti­nuar foi a Gdynia na seção de registros e à igreja onde fora batizado e com a habilidade que lhe era inerente conseguiu surrupiar as páginas onde seu nascimento estava anotado, depois tratou de procurar um fabricante de passaportes, que os há em toda parte, e comprou por $2,000 o de um ma­rinheiro canadense. Dali foi para a Suécia para observar o movimento e de lá voou para a Turquia, usando seu passa­porte original, fêz transferência de dinheiro da Suíça para o Banco Otomano e esperou que a Polônia caísse. Quando realmente isto aconteceu pediu asilo na Turquia e, com o capital já a isso destinado, comprou a legalidade necessária e aí se estabeleceu. Arranjou emprego na Ankara Rádio e te­ceu outra rede de espionagem, a RAHIR, nos mesmos moldes da TARTAR, porém mais segura. Foi agindo a seu modo e só quando von Rommel foi expulso da África é que êle voltou as vistas para os Aliados. E terminou a guerra brilhantemente com condecorações e citações pelos britânicos, americanos e franceses! Então, com meio milhão de dólares em bancos suíços e um passaporte sueco sob o nome de Serge Agstrom, foi descansar na América do Sul, comer boa comida e pensar com calma.

E agora, com o nome de Ernst Blofeld, que lhe pareceu perfeitamente seguro, resolvera vir para o Boulevard Haus­smann e naquela noite olhava com atenção as fisionomias dos vinte homens que trabalhavam para sua organização e que na verdade não se sentiam muito à vontade ao fitá-lo cara a cara. Os olhos de Blofeld eram como lagos profun­dos e escuros, cercados totalmente (como os de Mussolíni) pelo branco azulado muito simétrico, o que às vezes dava a impressão de olhos de boneca especialmente pelos cílios longos, escuros e sedosos, quase femininos. Esses olhos sin­gulares quando fitavam alguém conseguiam evitar qualquer outra expressão além de forte interesse no objeto focalizado, e denunciavam apenas uma segurança absoluta de acerto na análise que faziam. Para os menos avisados aquela ex­pressão inspirava confiança e não raro provocava confiden­cias dos que se julgavam em muito boas mãos. Êle conseguia desnudar qualquer íntimo e torná-lo transparente como um aquário, do qual Blofeld retirava os peixes que lhe interessa­vam e os grãos de verdade. O olhar de Ernst era uma espécie de microscópio, janela de um mundo mental privilegiado e aguçado por trinta anos de vida perigosa e de antecipação e lhe garantiam sucesso em todos os setores que tentasse. A cútis em redor dos olhos que, no momento, examinavam len­tamente os presentes, era lisa e não havia sinais de desgaste por farras ou mesmo da idade no rosto claro e limpo. A linha do queixo traía a tendência autoritária. Apenas a boca, sob o nariz grosso e largo, destoava da fisionomia que poderia ser de um cientista, de um filósofo.

Era estreita e desdenhosa, mais parecia um talho mal cicatrizado, os lábios sempre comprimidos eram escuros e capazes apenas de esboçar sorrisos falsos, feios, de desprezo, tirania e crueldade; tudo com acentuada intensidade — nada era pequeno em Blofeld. Seu corpo devia pesar uns noventa quilos e houve ocasião em que era todo músculos! Pratica­ra levantamento de peso na juventude. . . agora, porém, a gordura tomara conta e êle procurava esconder em calças amplas e em jaquetões bem talhados — o daquela noite era beige — a barriga avantajada. Assim os pés e maõs de Blofeld eram longos, pontudos, e podiam ser muito ligeiros quando o queria, porém normalmente, como agora, aparentavam cal­ma e moderação ou controle. Quanto ao resto. . . não bebia nem fumava e nunca se soube que houvesse dormido com uma pessoa do sexo oposto. Nem mesmo comia demais. No que se refere a vícios ou fraquezas físicas, permanecia um enigma para todos.

Os vinte homens que, sentados ao redor daquela mesa, esperavam pacientemente que o chefe falasse, formavam uma mistura curiosa de tipos e raças. Tinham, porém, algumas características em comum. Todos tinham idade entre trinta e quarenta anos, todos pareciam em excelente forma e quase to­dos, com exceção de dois, tinham o olhar matreiro e arisco de lobos ou gaviões prontos a atacar cordeiros. Os dois diferen­tes eram cientistas e tinham olhos de cientistas; eram Kotze, o físico alemão, que viera para ali cinco anos antes trocando os segredos de suas descobertas por um modesto ordenado e uma residência retirada na Suíça, e Maslov, ex-Kadinsky, o técnico em eletrônica que, em 1956, havia renunciado ao posto de chefe do departamento de pesquisas da Philips A.G. de Eindhoven e desaparecera na obscuridade. Os outros de­zoito provinham de seis nacionalidades diferentes e de seis organizações criminosas diversas (Blofeld aceitara o sistema triangular comunista por medida de segurança): três deles eram sicilianos, elementos característicos da Unione Sicilia­na, a Máfia; três outros eram corsos franceses da União Cor­sa, sociedade secreta e semelhante à Máfia, e controladora da rede de crimes na França; mais três eram ex-membros da Smersh, organização soviética destinada à execução de trai­dores e inimigos, extinta por ordem de Krushchev em 1958, substituída pelo Departamento Especial Executivo do MVD; havia três sobreviventes da antiga Sonderdienst da Gestapo; três carrascos iugoslavos que haviam renunciado à polícia secreta do Marechal Tito e ainda três turcos (os turcos da pla­nície são perigosos), antigos membros da RAHIR de Blofeld e conseqüentemente elementos responsáveis pela KRYSTAL, importante fornecedora de heroína do Oriente Médio, com base em Beirute. Dezoito homens, todos peritos em conspi­rações, ações secretas no mais alto grau, sabendo silenciar e mais que tudo comungando numa virtude suprema — todos possuíam sólida cobertura. Todos possuíam passaportes vá­lidos com vistos para qualquer parte do mundo e folha limpa com a INTERPOL, assim como com a polícia de suas pátrias. O simples fato de todos aqueles homens terem a habilidade de conseguir reputação limpa depois de uma existência de crimes e traições bastava como condição para seu ingresso na S. P. E. C. T. R. E. (Sociedade Política Especializada em Contra-espionagem, Terrorismo, Rapinagem e Extorsão).

O fundador e chefe dessa empresa privada para lucros privados era Ernst Stavro Blofeld.

 

Hálito de Violeta

Blofeld terminou a inspeção visual de todas as faces presentes. Como já esperava, apenas um par de olhos pro­curou esquivar-se da análise visual, ele sabia que suas sus­peitas estavam bem certas. O resultado das pesquisas que fizera a respeito indicavam o mesmo, mas os seus olhos eram para êle a prova real. Lentamente retirou as duas mãos de cima da mesa e descansou uma delas sobre a coxa enquanto com a outra retirava do bolso uma caixinha dourada que co­locou sobre a mesa à sua frente, abriu-a com o polegar e ti­rou uma pastilha de essência de violeta que colocou na boca. Era costume seu perfumar o hálito quando precisava dizer algo desagradável. Ajeitou a pastilha sob a língua e começou a falar em voz pausada, macia e muito bem empostada:

— Tenho pontos a explicar aos membros da organiza­ção acerca do grande Plano, a Operação ômega (Blofeld ja­mais se dirigia a "amigos", "colegas", "cavalheiros", achava futilidade). Antes, porém, de entrar no assunto, por medida de segurança, preciso tratar do um outro tópico — e olhou novamente rosto por rosto, sentindo que os mesmos olhos o evitavam de novo, e prosseguiu: — Temos todos de concordar que estes três anos de funcionamento têm sido de sucesso para a organização graças em parte à nossa seção alemã que recuperou as jóias de Himmler e conseguiu discretamente dispor das pedras através da seção turca, em Beirute, ob­tendo um rendimento de 750 000 libras. O desaparecimento do cofre do MVD com todo seu conteúdo nunca descoberto e sua venda para a Agência Americana trouxe mais 500 000. A interceptação de mil onças de narcótico em Nápoles e sua venda em Los Angeles para Firpone rendeu mais 800 000. Já o Serviço Secreto britânico nos pagou 100 000 libras pe­las ampolas para guerra bactericida do laboratório tcheco de produtos químicos em Pilsen. A chantagem com o antigo SS Gruppenführer, Sonntag, que vivia sob o nome de Santos em Havana, rendeu a ninharia de 100 000 (infelizmente era tudo o que êle possuía); o assassinato de Peringue, o especialista em água pesada que passou para os comunistas através de Berlim... graças à importância do que êle sabia e ao fato de que o pegamos antes que falasse, nos rendeu um bilhão de francos pagos pelo Deuxième Bureau. Em números redon­dos, como é de conhecimento geral, a nossa renda total até o momento, sem contar com a última soma ainda não dividida, monta aproximadamente a um milhão e meio de libras ester­linas que, por motivos de segurança e prudência, estão em francos suíços e bolívares venezuelanos, moedas correntes seguras. A distribuição é feita, como o Executivo tem ciência, de acordo com o combinado: dez por cento para cobrir des­pesas, dez por cento para mim e o restante em partes iguais de quatro por cento para cada membro, o que dá uma renda de aproximadamente 60 000 libras por membro. Esta soma me parece uma remuneração justa pelos serviços prestados. Creio, porém, que a Operação do Plano Omega vai propiciar, a cada um, proventos suficientes, uma fortuna considerável, que permitirá, a quem assim o quiser, uma ampliação da organização com transferência de atividades em outros sen­tidos. — E Blofeld, olhando para a mesa, perguntou amavel­mente: — Alguma dúvida? Alguma pergunta?

Vinte pares de olhos (desta vez todos) se voltaram para fitar o chefe, sem emoção; cada um havia feito seus cálcu­los... Não, ninguém perguntou nada. Estavam satisfeitos, po­rém não lhes era dado externar isso devido as suas persona­lidades duras, além do mais tudo o que o chefe tinha dito era fato conhecido. Eles queriam saber coisas novas.

Blofeld colocou outra pastilha do violeta sob a língua e continuou a falar:

— Pois muito bem. Vamos à nossa última operação, completada há um mês e com renda de um milhão do dóla­res. — E correndo os olhos pela fila de homens do lado direito da mesa até o fim falou mansamente: — Levante-se, n.° 7!

Marius Domingue, da União Corsa, orgulhoso, olhos astutos, vestindo terno comprado feito (provavelmente na Galleries Barbes em Marselha) levantou-se lentamente, e olhou de frente para Blofeld. Suas mãos grandes e pesadas descansavam calmas ao longo do corpo. Blofeld olhou de vol­ta para o n.° 1, porém na verdade aproveitara para observar a reação do homem ao lado, o n.° 12, Pierre Borraud. Êste membro estava sentado exatamente de frente para Blofeld no outro lado da mesa e eram seus olhos os que estavam evasi­vos todo tempo, Já agora, não; êle parecia aliviado, como se o que ele temia houvesse passado. Blofeld se dirigiu a todos:

— A última operação, como todos sabem, envolvia o rapto da filha, de dezessete anos, de Magnus Blomberg, dono do Hotel Principality em Las Vegas e participante de outras empresas através de sua associação com a Detroit Purple Gang. A pequena foi raptada do apartamento do pai no Hotel de Paris em Monte Carlo e levada por mar para a Córsega. Esta parte da operação foi executada pela seção corsa. Um resgate de um milhão de dólares foi pedido. O Sr. Blomberg estava disposto a pagar e, de acordo com as instruções da­das pela SPECTRE, colocou o dinheiro dentro de uma balsa pneumálica e deixou-a flutuando no ponto certo da costa ita­liana perto de San Remo, ao escurecer. Mais tarde a balsa, foi recolhida pela nossa representação siciliana. Esta seção mereceu o nosso aplauso por ter descoberto e interceptado um pequeno transmissor transistorizado escondido na balsa, evidentemente com a finalidade de fornecer a nossa posição à Marinha francesa e possibilitar a nossa captura. Recebemos o dinheiro do resgate e, de acordo com o trato, a pequena foi devolvida a seus pais aparentemente intacta (a não ser pela coloração dos cabelos, que foi necessária para sua remoção da Córsega para um Wagonlit no Trem Azul de Marselha). Eu disse "aparentemente". Pois soube, por um contato do comissariado de polícia de Nice, que a moça foi violentada durante o seu cativeiro na Córsega. — Blofeld fêz uma pausa proposital para deixar que a notícia fosse assimilada e conti­nuou: — Seus pais afirmam que ela foi violentada. É possível que apenas tenha havido relações carnais e com o seu con­sentimento, mas isto não vem ao caso. O que importa é que a organização prometeu que a moça voltaria intacta. Não vou entrar em detalhes com referencia à importância do conhe­cimento ou não da pequena sobre relações sexuais, porque o meu ponto de vista é apenas este: quer o fato se tenha passa­do com ou sem o consentimento da moça, esta foi devolvida a seus pais em condições contrárias ao que havíamos prometi­do, podemos dizer em último caso... foi usada.

Raramente Blofeld recorria à gesticulação, porém no momento espalmou lentamente a mão esquerda pousando-a sobre a mesa e continuou no mesmo tom de voz:

— Nós somos uma organização grande e poderosa, não tenho nada a ver com éticas e moral mas quero recomen­dar ainda uma vez aos membros que o meu desejo é que a SPECTRE se porte com justeza e superioridade. A única disciplina que se exige aqui é a autodisciplina. Somos uma fraternidade cuja única força está justamente na capacida­de de cada membro. A fraqueza em um dos membros tem o mesmo efeito daninho de cupim em estrutura de madeira, pode destruí-la! Todos sabem de sobra o meu modo de pen­sar a respeito e nos momentos em que foi preciso fazer uma profilaxia tomei atitudes que todos aprovaram. Neste preci­so caso, por exemplo, tomei a providência que achei certa: devolvi à família da moça a metade do resgate, meio milhão de dólares, com um pedido de desculpas pelo sucedido. Não levei em conta o fato do transmissor escondido na balsa, que feria o nosso acordo, porque acredito que a família não o fêz; foi um ato típico da polícia, que de certo modo não me surpreendeu. Bem, em conseqüência disto tudo, o dividendo de todos nós ficou sensivelmente reduzido. E quanto ao res­ponsável pela irregularidade. . . estou agora seguro de que é realmente culpado. Já decidi a atitude a tomar.

Blofeld correu a mesa com os olhos e fitou o n.° 7, o corso Marius Domingue, que olhou firme do volta, sabia que estava inocente. E sabia quem era o culpado. Êle estava fir­me e tenso, mas não tinha medo. Ele confiava, como todos os outros, na correção do critério de Blofeld. Não entendia bem porque estava ali escolhido para servir de alvo para todos os olhares mas Blofeld tinha resolvido assim e Blofeld estava sempre certo.

Realmente o chefe observava a coragem do homem que estava de pé e interpretava-a corretamente, mas também ob­servava disfarçadamente o suor que fazia brilhar a testa do n.° 12, sentado bem à sua frente. Ótimo, o suor ajudaria o contato.

Por debaixo da mesa Blofeld taleou com a mão direita um pequeno interruptor e ligou-o.

O corpo de Pierre Borraud saltou sob o impacto da cor­rente de 3 000 volts, que percorreu a sua poltrona, como se houvesse recebido um ponta-pé violento por trás. Sua curta cabeleira crespa se criçou e permaneceu assim grotescamente arrepiada sobre a face contorcida; os olhos se esbugalharam e depois se apagaram, a língua enegrecida começou a crescer e a sair da boca e ficou exposta entre os dentes trincados. Fios de fumaça começaram a subir dos eletrodos escondidos na cadeira sob as suas coxas e por onde a corrente o ele­trocutara. Blofeld moveu o interruptor e a luz do ambiente, que havia diminuído, tornando-se amarelada pelo roubo da voltagem, formando uma atmosfera quase sobrenatural, vol­tou a brilhar normalmente. O cheiro de carne queimada e de couro e madeira chamuscados se espalhou lentamente pela sala. O corpo do n.° 12, horrivelmente retorcido e carboniza­do, tombou para a frente, fazendo um ruído macabro quando o queixo bateu na mesa. Estava terminado.

A voz de Blofeld imutável e macia quebrou o silêncio. Êle olhou para o n.° 7 e notou que este continuava quase inperturbável. Sim, este era um bom elemento, de nervos for­tes. E falou para êle:

— Sente-se, n.° 7. listou satisfeito com a sua conduta. (Satisfação era o máximo de elogio por parte do chefe). Foi necessário distrair a atenção do n.° 12. Êle sabia que estava sob suspeita e talvez quisesse fazer uma cena.

Os homens em volta da mesa olharam com aprovação. Como de costume, Blofeld agira com acerto. Ninguém ali fi­cou muito impressionado ou surpreendido pelo que acabara de acontecer. Em geral o chefe mostrava sua autoridade e fazia justiça na frente de todos. Já havia acontecido situação semelhante duas vezes antes e ambas por medidas de segu­rança e disciplina para afastar ameaças à força e coesão da organização. Um dos infratores fora executado por meio de um tiro disparado por Blofeld com uma pistola especial a ar comprimido e cujo projétil era um estilete, espécie de agu­lha, que penetrou direto no coração da vítima, a dez passos de distância, rápido e prático. O outro responsável por erro foi estrangulado por meio de um laço de fio metálico que foi rapidamente passado por cima de sua cabeça e preso ao es­paldar da cadeira (êle estava sentado naquele momento ao lado esquerdo do chefe) e apertado por um garrote. Estas duas mortes haviam sido justas, necessárias, assim como esta terceira. E agora, ignorando completamente o quadro macabro lá no outro extremo da mesa, todos se sentaram em seus lugares e trataram de falar sobre coisas importantes, negócios.

Blofeld fechou finalmente a caixinha dourada e guar­dou-a num bolsinho do colete. Dirigiu-se então aos presentes informando :

— A seção corsa se incumbirá de arranjar um substi­tuto para o n.° 12. Mas isto pode esperar até que complete­mos a Operação Ômega. Quanto a este plano temos pontos a debater, detalhes a combinar. O suboperador G, recrutado pela seção alemã, cometeu um erro, um erro sério que vem afetar radicalmente o nosso esquema de horas. Este homem, cuja qualidade de membro do "Relâmpago Rubro Tong" devia lhe valer características de eficiência, foi incumbido de fazer ponto numa certa clínica no Sul da Inglaterra, refúgio admi­rável para seus propósitos. Suas instruções eram no sentido de manter contato permanente com o aviador Petacchi no aeroporto de Boscombe Down onde o esquadrão de bombar­deio está em treinamento. Sua função era a de enviar regu­larmente relatórios sobre a capacidade moral e profissional do piloto. Seus relatórios têm sido satisfatórios e o aviador continua disposto a colaborar. Esperava-se que o subope-rador G enviasse a Carta a D mais Um, três dias a partir de agora. Infelizmente aquele idiota se meteu numa embrulha­da com um outro paciente da clínica e como conseqüência, e não preciso entrar em detalhes, está neste momento sob tratamento no Brighton Central Hospital com queimaduras de segundo grau em todo o corpo, ficando assim fora de ação pelo menos por uma ou duas semanas. Isto provocará um irritante, embora não tão sério, atraso no Plano Ômega. No­vas instruções já foram despachadas. O aviador Petacchi já recebeu uma ampola com vírus de gripe em dose suficiente para mantê-lo na lista dos afastados por motivo de doença durante uma semana, durante a qual não fará as provas de instrução, depois do que reiniciará os treinos e nos avisará devidamente. A data do vôo será então comunicada ao su-boperador G, que já deverá estar restabelecido, e enviará a Carta de acordo com as instruções. O Executivo — Blofled olhou em volta para todos — terá de reajustar o esquema de horas de vôo para a Área Zeta de acordo com a nova tabela de horários. E quanto ao suboperador G — o chefe dirigiu o olhar para a representação alemã, fitando os ex-agentes da Gestapo, um por um — não nos merece inteira confiança. A seção alemã se incumbirá de eliminá-lo dentro de 24 horas depois que êle tiver posto a Carta no correio. Entendido?

Os três alemães responderam militarmente em coro: — Sim, senhor!

— Quanto ao resto prosseguiu Blofeld — está tudo em ordem. O n.° 1 está cobrindo com segurança a Área Zeta. O boato da procura do tesouro submarino continua a ser fomentado e começa a criar raízes. A tripulação do barco, escolhida a dedo, são suboperadores que estão reagindo à disciplina e às medidas do segurança melhor do que espe­rávamos. Uma base em terra foi convenientemente estabe­lecida. É meio distante e não muito fácil de acesso. Pertence a um inglês excêntrico cujos amigos, por qualquer motivo, preferem permanecer meio escondidos. A chegada de vocês à Área Zeta continua planejada cuidadosamente. A bagagem de roupas para todos estará lá à espera nas Áreas F e D, de acordo com o esquema de vôo de cada um. Estas roupas foram escolhidas, até os mínimos detalhes, de acordo com as identidades respectivas como financiadores da busca ao tesouro submarino, que pediram para ver o local o tomar parte na aventura. Vocês não irão passar por milionários ex­cêntricos, mas sim por burgueses prósperos e esforçados que procuram ingressar na classe. São todos cautelosos e argu­tos que vêm ver de perto o investimento para se certificar de que não serão lesados. — Ninguém riu. — Todos já sabem o que vão representar e espero que tenham estudado bem os seus papéis.

Houve assentimento por parte de todas as cabeças em volta da mesa. Estavam satisfeitos, pois não era muito o que estava sendo exigido deles. Um seria um abastado fazendeiro de café de Marselha (êle já o fora realmente e entendia do as­sunto). O outro, comerciante de vinhos na Iugoslávia (havia sido criado em Bled e podia discutir sobre safras com gente de Calvet e Bordeaux). Aquele representaria um importador de fumo de Tânger. (Também este já desempenhara essas funções). Todos haviam sido designados convenientemente.

— Quanto à parte referente ao treinamento com aqua­lungs — continuou Blofeld — gostaria de receber relatórios de cada seção. — E olhou para a representação iugoslava à sua esquerda, que disse ser satisfatório.

— Satisfatório! — respondeu a seção alemã também e todas as outras fizeram eco. Blofeld perguntou então a to­dos:

— O fator segurança é de capital importância em toda operação submarina. Vocês acham que receberam suficiente atenção nesse sentido por parte dos seus esquemas de trei­namento?

Novamente, resposta afirmativa geral. O chefe prosse­guiu:

— E os exercícios com a nova arma de caça submarina co2? Tudo certo? Ótimo. Agora eu gostaria que a representa­ção siciliana informasse a respeito do transporte dos lingotes de ouro.

Então Fidelio Sciaca, um siciliano cadavérico de rosto longo com ares de mestre-escola (fora realmente um profes­sor com tendências comunistas), falou pela representação si­ciliana porque o seu inglês (língua mais ou menos oficial do Corpo Executivo) era o mais compreensível entre os três. E falou procurando ser explícito:

— A área escolhida para a colheita dos lingotes já foi examinada e é satisfatória. Trago aqui na minha pasta os planos detalhados para informar devidamente o chefe e os outros membros. Encurtando: a área T escolhida fica nos penhascos a noroeste do Monte Etna numa altitude entre duzentos a trezentos metros. Esta é uma área inculta, de lava escura, nas proximidades do vulcão, pouco acima da pequena cidade de Bronte. Para o ponto onde será largada a encomenda haverá marcação de um trecho de dois quilôme­tros quadrados por meio de tochas da equipe de recupera­ção. No centro da área será colocado um aviso Decca Aircraft Homing, como ajuda extra para orientação de navegação. O vôo dos lingotes, que, conservadoramente, calculo será feito por cinco Mark IV Transport Comets, deve ser realizado a dez mil pés e com velocidade de trezentas milhas por hora. Em virtude do peso da carga vários pára-quedas serão necessá­rios e por causa da aspereza do terreno a embalagem deve incluir envoltórios de espuma de borracha; é essencial. Os pára-quedas e os pacotes devem levar uma demão de Dayglo ou outra tinta fosforecente para ajudar a localização. Não tenho dúvidas de que o memorando da SPECTRE incluirá todos estes e outros detalhes, porém uma coordenação abso­luta pela equipe de vôo é fundamental.

— E quanto à equipe de recuperação? — perguntou Blo­feld calmo, porém com indisfarçável interesse.

— O Capo Mafiosi daquele distrito é meu tio. Êle tem oito netos aos quais é dedicadíssimo. Fiz ver a êle que esta­mos bem a par dos hábitos e endereços de todas as crianças; êle entendeu. Ao mesmo tempo, e de acordo com as instru­ções, ofereci-lhe um milhão de libras para a recuperação e transporte seguro para a estação de Catania. Esta é uma soma bem relevante para a Unione. O Capo Mafiosi concor­dou com todas as condições. Para êle trata-se de assalto a um banco e o resto não lhe interessa. O atraso que acaba de ser anunciado em nada altera o acordo. Ainda será feito dentro do período da lua cheia. O suboperador 52 é um ho­mem eficiente. Já está de posse do Hallicrafter, que me foi entregue para êste fim, e captará a onda de 18 megaciclos de acordo com o esquema. Nesse meio tempo manterá contato com o Capo Mafiosi, que é parente seu.

Blofeld ficou silencioso uns segundos, depois concor­dou:

— Estou satisfeito. Quanto á etapa seguinte, a guarda dos lingotes, estará nas mãos do suboperador 201, que co­nhecemos de longa experiência. É homem em quem se pode confiar. O M.V.Mercurial pegará a carga em Catania e sairá através do Canal de Suez para Goa, na Índia Portuguêsa. No caminho terá um encontro, no golfo da Arábia, com um navio mercante de propriedade de um consórcio de correto­res de ouro em barra de Bombaim. Os lingotes serão então transferidos para eles em troca do valor (ao câmbio corrente) em francos suíços, dólares e bolívares. Esta soma será então dividida proporcionalmente e transferida para 22 diferentes bancos em Zurique, onde ficarão depositados, em cofres nu­merados cujas chaves serão entregues aos membros na reu­nião a seguir. Este processo está satisfatório?

Cabeças concordaram lentamente. Então o n.° 18, Ka-dinsky o polonês técnico em eletrônica, falou sem timidez, ninguém era tímido ali, estava muito sério e disse:

— Não está dentro do meu setor, mas não haverá perigo de interceptarem o navio Mercurial e retirarem o ouro? Será óbvio para qualquer um que os lingotes de ouro terão de ser retirados da Sicília! Há muito serviço de patrulhamento ma­rítimo e aéreo!

— Você se esquece — falou Blofeld com paciência — que nem a primeira nem a segunda bomba estarão em segu­rança enquanto o dinheiro não fôr depositado em segurança na Suíça. Não haverá riscos. Nem há o perigo do navio ser saqueado em alto mar por algum pirata particular, pois os próprios maiorais das forças do Oeste estarão interessados em que sigilo absoluto seja mantido sobre tudo isto. Qual­quer boato que transpirar resultará em pânico. Alguma per­gunta mais?

Foi a vez de Bruno Bayer, da representação alemã, per­guntar:

— É fato entendido que o n.° 1 ficará com todo o contro­le da Área Zeta? É verdade que lhe delegou plenos podêres e que enfim êle será o comando supremo no campo?

Como este raciocínio era típico do alemão! — pensou o chefe. Eles querem cumprir as ordens, porém fazem questão absoluta de saber onde se situa o poder supremo, a autori­dade máxima. Os generais alemães só obedeceriam ao Su­premo Comando militar se soubessem que Hitler aprovava o Supremo Comando militar. Blofeld respondeu com firmeza:

— Já tornei bem claro ao Grupo Executivo e repito que o n.° 1 é, por votação unânime de vocês, o meu sucessor em caso de morte ou incapacidade. No que concerne ao Plano Ômega ele é vice-comandante supremo da SPECTRE e já que terei de permanecer no quartel-general, para controlar as re­ações à Carta, o n.° 1 será o comandante supremo no campo de ação. Suas ordens devem ser obedecidas como se fossem minhas. Creio que estamos todos de acordo neste sentido. — Mais uma vez passou o olhar penetrante pelos rostos pre­sentes e, vendo aprovação geral, continuou: — Então a ses­são está encerrada. Vou dar as ordens para que removam os restos do n.° 12. Por obséquio, n.° 18, faça uma ligação para mim com o n.° 1 através da onda de 20 megaciclos que a diretoria de Correios da França deixa livre a partir das oito horas.

 

Aperte o Cinto

James Bond raspou com a colher o yogurt que restava no copinho encerado que tinha a legenda: "Cultura de lei­te de cabra de Nossa Fazenda em Stanaway no Coração de Cotswolds — de acordo com a receita búlgara original". Depois cortou cuidadosamente uma fatia de rocambole (esfarelam à toa) e mel preto por cima. Mastigou saboreando cada pedaço; a saliva contém pitialina que converte os amidos em açúcar, que supre energia ao organismo. Pitialina é uma enzima as­sim como a pepsina encontrada no estômago e a tripsina e a erepsina dos intestinos. Estas e outras enzimas são subs­tâncias químicas que transformam os alimentos tornando-os assimiláveis pelo organismo através da corrente sangüínea. James Bond estava agora muito enfronhado nesses assuntos e ficava admirado de nunca ter sabido ou cogitado de sabê-los antes. Desde que saíra da Clínica em Shrublands, havia dez dias, nunca se sentira tão bem! Suas energias tinham dobrado e até a rotina de trabalho que antes lhe parecia abo­minável tinha virado um prazer. As seções mais paradas es­tavam passando da surpresa à irritação com a atividade do 007 que agora acordava cedo e chegava à repartição cheio de vida e vontade de trabalhar perturbando seriamente a rotina preguiçosa da sua atraente secretária, a encantadora Loelia Ponsonby, e até assustando-a; Loelia resolveu trocar umas palavrinhas com a senhorita Moneypenny, secretária parti­cular de M e sua amiga chegada, apesar do ciúme de ambas por causa de Bond. Penny explicou:

— Não se assuste, Lil, o velho também ficou assim quando voltou da tal clínica mas não durou mais de duas semanas. Eu tinha a impressão de estar trabalhando para Gandhi e o Dr. Schweitzer ao mesmo tempo, mas surgiram uns casos complicados e êle foi ao Blades lavar as máguas e voltou de ressaca no dia seguinte. Depois voltou ao normal. É quando eles querem virar deuses que a coisa fica difícil. O que vale é que não duram muito estas fases, porque seria insuportável!

May, a velha e preciosa escocesa que trabalhava na casa de Bond, entrou na sala para retirar a mesa. Bond acabara de acender um cigarro Duke of Durham, king-size com filtro. O autorizado Sindicato Americano de Consumidores classi­ficava este cigarro o de menor conteúdo de nicotina e Bond havia mudado então, deixando o forte Morland Balkan que fumava desde a juventude. Não chegava a dar muito prazer mas sempre era melhor do que o novo Vanguarda, a mistura sem tabaco, novidade americana de qualidades protetoras para a saúde mas que deixava no ambiente um cheiro de queimado que sempre alarmava os desavisados. May ficou por ali mexendo nas louças sobre a mesa, o que era sinal de que ela tinha algo a dizer. James levantou os olhos das pági­nas do The Times e perguntou casualmente:

— Quer alguma coisa, May?

O rosto idoso de May estava meio avermelhado quando respondeu:

— É. . . eu sei que não é da minha conta. . . — Fitou Bond, amassando com os dedos fortes o copinho vazio de papelão onde estivera o yogurt e deixando-o cair num prato.

— Não é da minha conta, Seu James, mas o senhor está se envenenando ...

— Está certo, May — respondeu Bond bem humorado

— eu sei, mas note que já diminuí muito, estou fumando apenas dez por dia!

— Não estou falando de. . . de cigarro. Estou falando dessa "coisa" aí — a velhota apontou com desdém para a embalagem de papelão — essa massa. . . isso não é alimen­tação para um homem, isso aí... Não precisa ficar com medo que eu vá dar com a língua nos dentes, mas eu conheço a sua vida mais do que o senhor gostaria que eu conheces­se, seu James. Muitas vezes chegou aqui de maca, vindo do pronto-socorro, dizendo que tinha sido acidente, desastre de automóvel! Desastres de automóvel não deixam buracos no braço, na perna. . . Não sou uma velha tão tola como pareço. Ora, o senhor tem cicatrizes em todo o corpo, não precisa fi­car rindo não, eu sei, eu vi sim e aquelas cicatrizes são feitas por tiro, bala de revólver, é... E aquele bando de facas e pisto­las que o patrão leva quando viaja a serviço? Uff! — May pôs as mãos nos quadris numa atitude de desafio e disse, com olhos brilhantes: — Pode me mandar cuidar da minha vida, pode me despedir e mandar de volta para minha Glen Orchy na Escócia mas antes de ir, seu James! tenho de lhe dizer, patrão, que se fôr se meter em outras brigas e trapalhadas, tendo no estômago essas perfumarias que deu para comer agora, vai voltar para casa dentro de um caixão desta vez, isto é que é. Estou lhe dizendo.

Em outros tempos, depois de um discurso destes, Bond teria dito a May para ir pro inferno e que o deixasse em paz! Mas agora, com paciência infinita procurou explicar a May o que era valor nutritivo e procurou ser claro:

— Escute, May. Todos esses alimentos que ingerimos, farinha de trigo moído, açúcar refinado, arroz sem casca, sal refinado, ovos em pó... são alimentos "mortos" dos quais toda a substância nutritiva se perdeu nos processos de industria­lização; são venenos como o café, frituras, etc. Para provar tudo isso. . . veja como estou bem disposto! Sou um novo ho­mem desde que mudei a minha alimentação, deixei de beber, reduzi o fumo; durmo duas vezes melhor, tendo o dobro de energia, sem dor de cabeça, nem muscular, nem ressacas. Há menos de um mês eu não passava cinco dias sem que acordasse suportando apenas um desjejum de comprimidos. E estou bem lembrado que você resmungava e ranzinzava por isso o tempo todo. Então? Que me diz agora?

May parecia derrotada. Juntou a louça e foi para a por­ta da cozinha em passo firme, parou no portal e voltando os olhos úmidos e magoados disse:

— O que eu sei dizer, Seu James, é que pode ser que o senhor esteja certo, pode ser que esteja errado. Mas o que me preocupa de fato é que o senhor não é mais o mesmo. — E bateu a porta da cozinha. Bond deu um suspiro, apanhou o jornal outra vez e murmurou a frase que todo homem diz numa ocasião dessas: "É... é da idade..." e voltou à sua lei­tura.

O telefone tocou. Desta vez era o telefone vermelho que tinha ligação direta com o quartel-general, campainha insis­tente e diferente. Sem tirar os olhos do jornal êle estendeu a mão para atender. Não devia ser nada excitante, já não era como antes. Possivelmente seria para cancelar o exercício de tiro com o novo tipo FN de arma, algo assim. Atendeu.

— Fala Bond.

Era o chefe do pessoal e Bond deixou cair o jornal e comprimiu o fone contra o ouvido para entender melhor as palavras.

— Imediatamente, Sr. James.

— Algo para mim?

— Algo para todos. A coisa é séria. Se tiver compromis­sos para as próximas semanas trate de cancelar. Você parte esta noite. Até já.

Bond possuía o carro de mais personalidade da Ingla­terra. Era um Bentley Mark II Continental que um ricaço maluco havia atirado contra um poste na Great West Road. Bond comprara os destroços por 1 500 libras e na Rolls aque­las ferragens foram consertadas, novas peças, motor Mark IV com 9,5 de compressão. Daí Bond o levou para Mulliners e com 3 000 libras, metade do capital que possuía, mandou serrar a parte de trás, transformando o carro num conver­sível esporte meio quadrado, dois lugares amplos, anatômi­cos e funcionais, forrados de couro negro; a parte traseira afilada e longa era até feia, porém original. A pintura cinza era áspera, sem polimento, e a forração era de couro negro. Corria como um pássaro ou uma bomba e Bond lhe tinha mais amor do que a todas as mulheres de sua vida, se fosse possível fundi-las numa só. Não obstante Bond não se dei­xava dominar pelo carro. Para êle, por mais maravilhoso que fosse, um automóvel era um meio de transporte e apelidara o seu de "locomotiva". Dizia sempre: "Vou buscar você na minha locomotiva" e ela devia estar sempre pronta para fun­cionar. Não tinha problema de garagem, nem discussões com mecânicos. Apenas uma limpeza uma vez por mês, troca de óleo e pronto. A "locomotiva" dormia na rua, na calçada em frente ao apartamento de Bond, e o motor tinha sempre de pegar imediatamente e continuar rodando.

O cano duplo da descarga (êle exigira canos de duas polegadas, pois não gostara do original) roncava valentemen­te quando a bólide cinzenta, terminada por um grande oc­tógono prateado em vez do B alado, passou pela pequena praça Chelsea e tomou a King's Road. Eram nove horas, cedo demais para o tráfego intenso e Bond fêz o carro voar pela Sloane Street. Era muito cedo também para o policiamento e Bond tratou de correr e dentro de três minutos estavam em Marble Arch. Estacionou e dez minutos depois do telefonema êle estava no elevador subindo para o oitavo andar.

Andando pela passadeira do corredor Bond farejou no ar que o caso era de emergência. Nesse pavimento, além do escritório de M, ficava também o Departamento de Comu­nicações e, por trás das pesadas portas cinzentas, vinham ruídos característicos, "zings" e "cracks" das mesas de rádio e das máquinas de transmitir mensagens cifradas. Bond de­duziu que uma chamada geral estava sendo expedida. Que teria acontecido, afinal?

O chefe do pessoal estava debruçado na mesa da Se­nhorita Moneypenny e com uma porção de folhas escritas na mão dava instruções cuidadosas:

— Cia. Washington, Particular para Dulles. Cifra x Tri­plo por Teleprinter. Mathis. Deuxième Bureau. Mesmo pre­fixo e rotina. Estação F para a Direção de Inteligência da NATO. Particular. Pela nota normal para a chefia da seção. Este aqui por mão própria para o chefe do MI.5. Particular. Cópia para o comissário de Polícia. Particular. E estes... Par­ticular para os chefes das estações de M.Cifra X Duplo por Whitehall Rádio e Portishead. Certo? Trate de despachar isto o mais cedo possível, seja boazinha e legal. Hoje é um dia apertadíssimo. Depois tem mais.

A senhorita Moneypenny sorriu alegre, gostava daque­les dias que chamava "dias de ação". Faziam-na lembrar-se dos primeiros tempos quando viera trabalhar ali no Depar­tamento de mensagens em código. Agora inclinou a cabeça, ligou o interfone e avisou:

— 007 chegou, senhor. Sim. — E virando-se para Bond: — Aperte o cinto!

A luz vermelha em cima da porta do gabinete de M se acendeu e Bond entrou. Lá dentro reinava absoluta paz. M estava sentado comodamente em sua cadeira olhando, atra­vés do janelão envidraçado, o céu de Londres. Voltou-se para fitar o recém-chegado:

— Sente-se, 007. E passe os olhos nisto aqui. Leve o tempo que quiser.

E entregou-lhe algumas cópias fotostáticas por cima da mesa. Pegou então o seu cachimbo e começou a enchê-lo de fumo, com dedos ágeis, quase automaticamente. Bond apa­nhou a primeira cópia: representava frente e costas de um envelope cuja superfície fora empoada a fim de tirar impres­sões digitais. M falou casualmente:

— Pode fumar, se quiser.

— Obrigado, senhor. Estou tentando deixar de fumar. M assentiu com a cabeça, acendeu o seu cachimbo e se recostou mais confortàvelmente em sua cadeira e seus olhos cinzentos de marinheiro voltaram a fitar o céu através da janela.

O envelope na cópia fotostática tinham o aviso "Pessoal e Urgente" e estava endereçado ao Primeiro Ministro, nomi­nalmente, Downing St. n.° 10 — Whitehall, Londres, S.W.l. Todo o endereço estava correto até o último detalhe, o "P. C.", a fim de denotar que o Primeiro Ministro era Conselheiro Privado . A pontuação meticulosa. O selo tinha carimbo Bri­ghton, 8:30 a.m. (manhã) 3, junho. Bond chegou à conclu­são de que a carta fora posta no correio na calada da noite e chegara ao destinatário no começo da tarde seguinte. Uma máquina de escrever de tipo elegante e nítido havia sido usa­da; este detalhe e o fato do envelope ser grande e pomposo, 5x7, o espaço entre as palavras e a maneira de endereçar in­dicavam sólida tarimba profissional. O verso do envelope não trazia qualquer indicação, lacre ou selo, apenas impressões digitais.

A carta, corretamente redigida e bem apresentada, era

a seguinte:

Sr. Primeiro Ministro,

Já deve ser do seu conhecimento, ou será se inquirir o Departa­mento de Rotas Aéreas, que desde, aproximadamente, 10 horas da noite dc ontem, 2 de junho, uma aeronave britânica, carregando duas armas atômicas, desapareceu durante um vôo de treinamento. A aeronave em questão é um Villiers Vindicator O/NBR do Esquadrão Experimental N.° 5 da R.A.F. com Base em Boscombe Down. Os números de identificação ofi­ciais das armas atômicas mencionadas são: MOS/bd/654/Mk V. e MOS/ bd/655/Mk V. Há também números de identificação U.S.A.F. em tal pro­fusão e prolixidade que seria penoso mencioná-los. Este avião estava em vôo de treinamento da NATO com uma tripulação de cinco e um obser­vador. Levava combustível suficiente para dez horas de vôo a 600 m.p.h. numa altitude de 40 000 pés. A aeronave, assim como as duas armas atômicas, estão no momento em poder desta organização. A tripulação e o observador estão mortos e o senhor tem a nossa autorização para avisar as respectivas famílias e o nosso conselho para que diga ter havido um acidente fatal, pois a discrição é igualmente conveniente para nós ambos, de parte a parte.

A localização do referido avião assim como das duas armas atômi­cas ser-lhe-á revelada, para fins de recuperação, em troca do equivalente à quantia de 100 000 000 de libras em barras de ouro (não menos de novecentos e noventa e nove). Instruções quanto à entrega do ouro estão contidas no memorando anexo. Outra condição essencial é a de que a posse do ouro, assim como o destino que lhe quisermos dar, não seja per­turbada sob pretexto algum e que um passe livre, com a sua e a assinatura do Presidente dos Estados Unidos, seja anexado à carga em nome desta organização e de seus componentes.

A falta de cumprimento de qualquer destas condições, dentro do prazo de sete dias a partir de 5 horas da tarde, G.M.T. do dia 3 de junho de 1959 — isto é, nem um segundo depois das 5 horas da tarde (também hora Greenwich) do dia 10 de junho de 1959 — implicará nas conseqüências se­guintes: imediatamente após o prazo estabelecido um bem de propriedade das Potências Ocidentais, avaliado em não menos de 100 000 000 de libras será destruído. Haverá também perda de vidas. Se dentro das 48 horas seguintes a este aviso não houver sinal de aceitação das nossas condições então, sem mais avisos, providenciaremos a destruição de uma importante cidade situada em país que não informaremos. Haverá então grande perda de vidas humanas além do que, entre as duas ocorrências, esta organiza­ção se reservará o direito de comunicar ao mundo o ultimato de 48 horas que lhe foi feito. Esta medida, que por certo provocará pânico nas grandes cidades do mundo, terá por finalidade apressar a sua decisão.

Esta, Sr. Ministro, é uma comunicação única, final e definitiva. Aguardaremos seu pronunciamento dentro do prazo indicado através da freqüência de radiocomunicações de 16 megaciclos.

(a) S.P.E.C.T.R.E.

(Sociedade Política Especializada em Contra-espionagem, Terroris­mo, Rapinagem e Extorsão)

James Bond leu e releu a carta e colocou-a cuidado­samente sobre a mesa em sua frente. Pegou então a outra página, o memorando detalhado para a entrega do ouro. "Noroeste do Monte Etna na Sicília... Decca Navigational Aid transmitindo... período de lua cheia... entre 0100 GMT... em­balagens separadas dos lingotes com envoltórios de espuma de 1 pé de espessura... mínimo de três pára-quedas por vo­lume... tipos de aviões a serem empregados na operação, co­municações pela onda de 16 megaciclos nunca menos de 24 horas de antecedência do momento da operação. Qualquer alteração nestas condições será interpretada como quebra do acordo e cumprimento do aviso de disparo imediato das armas atômicas N.° 1 e N.° 2 respectivamente". Mesma as­sinatura datilografada. Ambas as páginas continham uma nota final: "Cópia desta remetida simultaneamente para a Presidência dos Estados Unidos".

Bond colocou também esta folha sobre a outra nâ mesa.

Procurou no bolso sua cigarreira de aço, que continha apenas nove cigarros, tirou um, acendeu-o dando uma boa tragada e soltando a fumaça lentamente com ar de reflexão.

M voltou os olhos para êle, os mesmos olhos que da última vez estavam límpidos, claros, e que agora pareciam cansados e injetados. Também, pudera não! Os dois se olha­ram e M perguntou:

— Então?!

— Se o avião desapareceu mesmo com as armas atômi­cas e a tripulação, eu acho que as coisas estão pretas. Acho que a ameaça é pra valer, a carta está falando sério! — res­pondeu Bond, pensativo. — Penso que sim.

— É o que o Gabinete Militar também pensa, e eu idem. Sim. O avião desapareceu com as armas e os números de identificação estão corretos.

 

Gato e Rato

Por onde começaremos, senhor? — perguntou Bond, apreensivo.

— Por muito pouco... quase nada, praticamente. Nin­guém nunca ouviu falar nessa tal de SPECTRE ou em sua gente. Sabemos que há uma organização independente agin­do na Europa; já fizemos transações com ela, os americanos também, e Mathis admite agora que Goltz, aquele especialis­ta em água pesada que desapareceu no ano passado, tenha sido assassinado por esta mesma organização em troca de preço muito alto; êle recebeu uma proposta e sumiu para sempre. Não foram mencionados nomes. Foi tudo acertado através da mesma onda de 16 megaciclos mencionada nesta carta. A Seção de Comunicações da Deuxième. Mathis teve de aceitar. Eles fizeram trabalho limpo. Mathis pagou uma mala cheia de dinheiro, que foi deixada na estrada Miche­lin, marco 1. Mas ninguém consegue provar uma correlação direta entre estas chantagens e os membros da SPECTRE. Quando nós, e também quando os americanos, fizemos ne­gócios com eles, havia um sem-número de intermediários invisíveis mas nós estávamos mais interessados no objetivo final do que nas pessoas envolvidas. Pagamos preços muito altos, porém valeu a pena. Se estamos tratando com o mes­mo grupo eles cumprirão rigidamente a sua parte do trato e isto eu já disse ao Primeiro Ministro. Mas o ponto não é este. O avião está realmente desaparecido e as duas bombas esta­vam dentro dele, como a carta diz. Todos os detalhes coinci­dem. O Vindicator estava realmente num vôo de treinamento da NATO, indo do Sul da Irlanda para o Atlântico. Deixa ver aqui na agenda. . . Sim, aqui está: vôo de seis horas saindo de Boscombe Down às oito da noite e voltando às duas da madrugada, tripulação de cinco e um observador da NATO, bom piloto cujo passado está agora sendo pesquisado, era um italiano chamado Petacchi, Giuseppi Petacchi, líder de esquadrão da Força Aérea Italiana e elemento da NATO. Foi enviado para aqui em missão de rotina, como tantos outros que durante meses têm vindo familiarizar-se com os Vindi­cators e a técnica sobre bombas atômicas . Enfim o aparelho foi seguido pela tela normalmente enquanto se manteve a cerca de 40 000 pés, Oeste da Irlanda. E então, contrariando o esquema, desceu para 30 000 pés e se perdeu no tráfego transatlântico. O Comando de Bombardeiros tentou contato pelo rádio, porém o radioperador a bordo não quis ou não pôde responder. A primeira dedução foi a de que o avião teria colidido dentro de rota errada com um avião de carreira e houve um começo de pânico. Mas nenhuma das companhias aéreas deu notícia de acidente com aviões e assim... — olhou para Bond, intrigado — paramos aí. O avião desapareceu.

— E o DEW americano, o sistema Distant Early War­ning, não conseguiu captar algo? — perguntou Bond.

— Procuramos saber. O único ponto que talvez tenha­mos é que, ao que tudo indica, a cerca de quinhentas mi­lhas a leste de Boston houve sinal de que um avião tinha se desviado da rota interna indo para Idlewild e virando para o sul. Mas aquela área é de intenso tráfego aéreo, de Montreal e Gander para as Bermudas e Bahamas e para a América do Sul. Os operários do DEW anotam sempre como avião da BOAC ou da Trans-Canada.

— É. Evidentemente eles arranjaram as coisas bem di­reitinho se misturando com aquele tráfego intenso. Acha que podem ter virado com o avião no meio do Atlântico em dire­ção à Rússia?

— É possível. . . ou para o sul. Há uma boa área de espaço de cerca de quinhentas milhas em ambas as costas que está fora do alcance do Radar. Pode ser até que tenham voado de volta para a Europa em qualquer de duas ou três li­nhas. O pior é que chegamos à conclusão de que o Vindicator pode estar neste momento em qualquer ponto do mundo.

— Mas é um aparelho gigantesco! Precisa de pistas es­peciais e deve ter descido em algum ponto. Não é possível es­conder um avião daquele tamanho! — Bond estava realmente admirado.

— Exato. Todas essas coisas são certas, mas é que desde a meia-noite de ontem a RAF investigou todos os aeroportos possíveis pelo mundo afora com capacidade para um avião daquela envergadura. Negativo. A CAS aventa a possibilidade de uma descida forçada no deserto do Saara, ou outro deser­to ou talvez. . . no mar, em ponto de pouca profundidade.

— E as bombas não explodiriam então? — falou Bond.

— Não. Elas são absolutamente seguras — replicou M. — Não há perigo enquanto não forem engatilhadas. Creio mesmo que uma queda direta como aquela do B-47 na Ca­rolina do Norte em 1958 provocaria a explosão somente do estopim do TNT, mas não do plutônio.

— Então como é que os homens da SPECTRE consegui­rão fazê-lo explodir?

M espalmou as mãos, uma contra a outra e falou:

— Tudo isto foi explicado no Gabinete Militar. Não com­preendi tudo na íntegra mas, pelo que assimilei, uma bomba atômica é como outra qualquer, aparentemente. A maneira de funcionar é que a ponta é carregada com TNT comum e a carga de plutônio vai na cauda; entre os dois extremos há um dispositivo com um detonador, espécie de gatilho. Quando o TNT explode por ação (por exemplo) do impacto da bomba contra o solo o TNT explode e aciona o detonador que faz ex­plodir então a carga de plutónio.

Bond meditou um pouco e comentou:

— Nesse caso só deixando-a cair eles poderão fazer a bomba explodir!

— Aparentemente não. Eles podem recorrer aos servi­ços de um bom cientista especializado que desatarrachará a parte da frente retirando a carga de TNT substituindo-a por um dispositivo automático para fazer explodir o resto (e não é tarefa muito difícil) sem precisar jogar a bomba. O volume total da coisa não ultrapassaria ao dobro do volume de dois sacos de tacos de golfe, muito pesado sem dúvida, mas po­dendo ser transportado até na parte de trás de um automó­vel, por exemplo, automóvel esse que seria deixado numa ci­dade qualquer com o tal dispositivo ligado para tantas horas dando tempo para que os operadores do plano chegassem a um distância segura, e pronto!

Acabando de ouvir isto Bond tirou outro cigarro ainda sob a impressão do fantástico de tudo aquilo. Não podia ser... mas era! Era exatamente o que o seu departamento e todos os congêneres do mundo temiam e esperavam que aconte­cesse. O indivíduo insignificante, talvez de capa de chuva e óculos, inocentemente carregando um saco de golfe mui­to pesado. . . um carro abandonado numa praça qualquer numa cidade qualquer. . . não havia resposta para isso e dentro de algum tempo mais perigo e menos resposta ainda, porque qualquer republiqueta estaria fabricando a sua bom­ba atômica também; presentemente quase não havia segredo a respeito destas coisas. O primeiro, o modelo original, é que fora difícil, como por exemplo as primeiras armas de pólvora, as primeiras metralhadoras, os primeiros tanques de guer­ra. Hoje tudo aquilo virará banalidade, todos as possuíam e fabricavam, no futuro o mesmo iria se dar com a bomba atómica; agora era a primeira chantagem... e a não ser que a SPECTRE fosse detida muito breve qualquer cientista com tendências criminosas estaria construindo a sua ameaça explosiva e então seria uma loucura e não restaria alternativa, era só pagar, pagar! Bond pensava assim.

— A coisa está assim — falou M. — De todos os pontos de vista, incluindo o político, embora este não seja de muita importância. Mas nem o Primeiro Ministro nem o Presiden­te durariam mais de cinco minutos se alguma coisa desse errado. Acontece que pagando ou não pagando... as conse­qüências serão péssimas e intermináveis. É por isso que te­remos de fazer o possível e o impossível para descobrir esses homens e o avião com as bombas e evitar a coisa em tempo. O Primeiro Ministro e o Presidente estão de inteiro acordo e os serviços de investigações de todo o mundo, os que estão do nosso lado, estão pondo todos os seus agentes em cam­po nesse caso, que está sendo chamado "Operação ameaça explosiva". Aviões, submarinos, navios e, naturalmente, di­nheiro. . . tudo à disposição. O Gabinete já determinou uma sala para receber toda e qualquer espécie de informações e os americanos já fizeram o mesmo com pessoal pronto também para interpretar qualquer mensagem. Que algo transpire é quase inevitável, mas vamos dizer que todo o pânico, porque estamos realmente em pânico, é por causa da perda do avião com as bombas a bordo. A carta será mantida em segredo. Todo o serviço de investigação, isto é, exame de impressões digitais, tipos de papel de carta, tudo, enfim, ficará a cargo da Scotland Yard com o FBI, Interpol e serviço de investiga­ções da NATO colaborando, ajudando-se mutuamente. Ape­nas um fragmento de papel da carta será usado nas pesqui­sas de laboratório, trecho de palavras inconseqüentes. Isto tudo será separado das pesquisas para localização do avião, que será tratada como assunto de alta espionagem. É preciso que ninguém relacione uma coisa com a outra. O MI.5, se encarregará de esquadrinhar a vida pregressa dos cinco ho­mens da tripulação e do observador italiano. Isto será parte do plano de pesquisas. Quanto ao nosso Serviço vamos tra­balhar com cobertura da CIA em todo o mundo. Allen Dulles está pondo todos os seus agentes à disposição e eu também. Já enviei uma chamada geral, um toque de reunir urgente.

Agora só nos resta sentar e esperar.

Bond acendeu mais um cigarro (o terceiro, infringindo o seu propósito de diminuir) e perguntou, aparentando fleug-ma:

— E onde é que eu entro, senhor?

M olhou para Bond vagamente como se o estivesse ven­do pela primeira vez, depois girou a cadeira para olhar mais uma vez para o céu, pela janela. Depois falou num tom de voz familiar:

— Eu acabo de quebrar uma promessa feita ao Primeiro Ministro contando a você tudo isto, 007. Eu estava sob ju­ramento de não relatar a pessoa alguma o que acabo de lhe contar. Mas se o fiz foi porque tenho uma idéia, um palpite, e quero que esta idéia seja levada avante — M fêz uma pausa — por um homem de confiança. Para mim o único fio para a gente se agarrar é o tal relatório do radar do DEW, embora não seja muita coisa, devo admitir; a tal estória do avião que mudou de rota indo para Bermudas e Bahamas. Resolvi me agarrar nisto ainda que os outros não lhe tenham dado muita atenção. Arranjei mapas e estudei cuidadosamente o Oeste do Atlântico e procurei raciocinar como devem ter feito os ho­mens da SPECTRE, ou o seu chefe, pois sempre há um cabe­ça. Cheguei a certas conclusões: o melhor alvo para a bomba n.° 1 e a bomba n.° 2, se esta desgraça acontecer, será na América mais do que na Europa. Os americanos em geral são mais impressionáveis pela bomba do que os europeus e con­sequentemente mais passíveis de persuasão no caso de ame­aça com a segunda bomba. Instalações industriais etc, com valor superior a 100 000 000 de libras, alvos excelentes para a primeira bomba, são muito mais numerosas lá do que aqui. Levando-se em conta também que a SPECTRE é organização européia a julgar pelo estilo da carta e pelo papel (que aliás já sabemos ser holandês) e também pela impiedade do plano parece a mim muito mais viável que a escolha recaia sobre a América para alvo em lugar da Europa. Afinal, somando tudo isto ao fato de que o avião não pode ter pousado na América, porque a rede de radar costeira é realmente eficiente, procu­rei no mapa uma área conveniente dentro das circunstâncias e... — M fêz uma pausa, olhou para Bond, olhou para a jane­la, continuou — ... me decidi pelas Bahamas, grupo de ilhas, muitas até inabitadas, cercadas por baixios de areia e pos­suindo apenas uma estação de radar e que está preocupada apenas com as rotas aéreas comerciais. Para o sul. . . Cuba, Jamaica e Caraíbas não são bons alvos e muito distantes da costa. Acontece que o grupo Bahamas está apenas a duas centenas de milhas, seis ou sete horas de lancha ou iate, da linha costeira da América. Neste ponto Bond interrompeu:

— Se o senhor estiver certo. . . então por que a SPEC­TRE não mandou a carta ao Presidente em vez de ao Primeiro Ministro?

— Por causa da discrição. Para que fizéssemos o que estamos fazendo: esquadrinhando o mundo inteiro em vez de concentrar a busca num só continente. E... pelo impacto! A SPECTRE achou que a carta chegando bem no alto, na cabe­ça dos perdedores das bombas, nos atingiria no plexo solar! Podia até (eles devem ter pensado) fazer com que soltássemos o dinheiro sem espernear. Já a segunda etapa, a operação de jogar á bomba N.° 1, para eles é arriscada. Creio que pre­ferem pegar o ouro e encerrar a operação o mais depressa possível. É ai que precisamos especular. Temos que levá-los tão próximo quanto possível à iminência de jogar a bomba N.° 1 na esperança de que nesse meio tempo e no preparo dessa operação eles cometam algum erro. É uma oportuni­dade muito débil e eu estou me baseando em meus palpites e deduções... e em você!

M girou a cadeira e fitou Bond de frente, perguntando:

— E então? Alguma pergunta, alguma objeção? Se não tem é melhor ir começando. Você tem passagem reservada em todos os aviões para Nova York, de agora até meia-noite. De lá seguirá pela BOAC. Pensei em usar um Canberra da RAF mas não quero que a sua chegada seja tão notada. Você será um jovem ricaço procurando adquirir uma boa proprie­dade lá nas ilhas. Isto lhe dará margem e justificativa para fuçar tudo como terá de fazer. Então?

— Perfeitamente, senhor — respondeu Bond, pondo-se de pé. — É verdade que eu preferia um lugar mais interes­sante, a Cortina de Ferro, por exemplo. Não posso evitar a sensação de que há algo maior por trás de tudo isto, muito maior do que uma organização terrorista particular. Aposto tudo que tenho que isto é um golpe russo. Pegaram o avião experimental e as bombas, que é obviamente, o que queriam, e jogam areia nos nossos olhos com este negócio de SPECTRE! Se a Smersh ainda funcionasse eu diria que era isto; é o seu estilo típico! Mas acabaremos por descobrir, se assim fôr. Mais alguma coisa, senhor? Com quem devo coo­perar em Nassau?

— O governador sabe da sua chegada. Eles têm uma força policial bem treinada. A CIA, pelo que sei, está man­dando um homem de confiança com uma unidade de comu­nicações; eles têm mais destes equipamentos do que nós. Apanhe uma máquina de cifrar com o Triplo x. Quero receber até o mínimo detalhe de tudo que se passar. Pessoalmente para mim. Confere?

— Confere, senhor — respondeu Bond e em seguida saiu da sala.

Nada mais havia para dizer. Este parecia ser o caso de maior importância que o Serviço Secreto já enfrentara e, na opinião de Bond, que não estava confiando muito no palpite de M, êle, o 007, tinha sido rebaixado de solista para coral. Estava bem. Iria tomar banho de sol, ficar bronzeado e apre­ciar o espetáculo de camarote.

Quando Bond saiu do prédio levando a tiracolo a má­quina de cifrar, que podia bem passar por uma câmara ci­nematográfica, o homem dentro do Volkswagen beige parou de coçar, por baixo da camisa, a pele crestada pelas queima­duras recentes, experimentou pela décima vez o 45 de cano longo que tinha no coldre à esquerda e deu partida ao carro. Êle estava vinte jardas atrás do Bentley de Bond. Não tinha a menor idéia do que fosse aquele edifício cinzento enorme; obtivera na clínica o endereço de James e logo que saiu do Hospital de Brighton vinha seguindo o outro cautelosamen­te. O carro era alugado sob nome suposto. Quando acabasse o que pretendia fazer correria para o aeroporto e tomaria um avião para fora do continente. O conde Lippe era sanguinário por índole. A missão que se propusera realizar agora não era problema para êle. Era um homem vingativo e impiedoso e perdera a conta das pessoas que já eliminara por atrapalha­rem o seu caminho. Pensara bem, antes, que se algo fosse descoberto não haveria perigo de se descobrir uma ligação do fato com a SPECTRE. Pela conversa de Bond na cabine telefônica lá na clínica achava que qualquer pista a respeito dele levaria apenas à organização "Relâmpago Rubro" e desta à SPECTRE havia grande distância. Não obstante, o subo-perador G sabia que quando uma suspeita começa a correr vai correndo como fio de meia. Fora tudo isto, aquele homem tinha umas contas a ajustar com êle e o conde Lippe estava ali para cobrar a sua vingança.

Bond entrou no seu carro, bateu a porta. À distância o suboperador G viu os dois fiapos de fumaça saindo do cano duplo da "locomotiva" que logo começou a andar.

Do outro lado da rua, umas cem jardas atrás do Volkswagen, o membro n.° 6 da SPECTRE ajeitou os óculos e pisou o acelerador da sua Triumph 500-cc e saiu em dispa­rada desviando-se pelo meio do tráfego com habilidade (êle havia sido motorista experimental da DKW no após-guerra). Parou dez jardas atrás do VW mais para a direita e fora da linha de visão do espelhinho retrovisor. O n.° 6 não tinha a menor idéia de por que o suboperador G estaria seguindo aquele Bentley, nem lhe interessava saber. A sua missão ali, naquele momento, era eliminar o suboperador G e êle meteu a mão na bolsa de couro pendente do seu cinto, retirou dis­cretamente a pesada granada de mão (duas vezes o tamanho comum) e observou o tráfego à sua frente esperando o mo­mento conveniente para agir. O suboperador G aguardava a mesma oportunidade, também calculou um ponto por onde pudesse tomar uma transversal para escapar, caso houves­se engarrafamento de trânsito. Os carros haviam escasseado um pouco agora. Lippe controlou a velocidade do carro e, guiando apenas com a mão esquerda, pegou a Colt com a direita, estava bem colocado atrás de Bond, o alvo estava de perfil, fêz pontaria e atirou.

Foi o ruído da hélice de ventilação do Volkswagen que fêz Bond virar ligeiramente a cabeça e foi esse pequeno mo­vimento que lhe salvou a vida. Se êle tivesse acelerado o seu carro teria sido então apanhado pelo segundo tiro, mas foi talvez o instinto que o fêz pisar os freios e baixar a cabeça, batendo com o queixo no aro da buzina. Quase simultanea­mente, em vez de um terceiro disparo, foi ouvido o estrondo de uma explosão que fêz os estilhaços da vidraça do carro de Bond, já partida pelo primeiro tiro, caírem sobre êle como uma chuva. Freios ganiram, gritos, buzinas, pânico e confu­são. Bond se ergueu com cuidado, sacudindo a cabeça para livrar-se dos pedacinhos de vidro. Lá estava o VW, virado, uma roda ainda girando, o teto se fôra. Saindo dele e meio esparramada no solo uma massa horrível que já fôra gente. Chamas começavam a lamber os destroços do carro e o povo começava a aglomerar-se rapidamente em redor. Bond pulou do seu carro, ligeiro, a tempo apenas de avisar aos gritos:

— Afastem-se. Afastem-se que o tanque vai explodir!

Mal acabara de falar e nova explosão sacudiu os destro­ços do carro acidentado, provocando rolos de fumaça negra. Sirenas começaram a soar. Bond se esgueirou por entre o povo abrindo passagem e voltou ao edifício do Serviço Secre­to, a cabeça turbilhonando.

Os interrogatórios que se seguiram fizeram Bond perder dois aviões para Nova York.

A polícia extinguiu o fogo e removeu o que restava da vítima, peças do carro e da bomba para a morgue e estava claro que teriam apenas como evidências um pé de sapato, o número do Colt, algumas fibras de tecido, e o que restava do carro. O pessoal que alugara o Volkswagen sabia apenas que três dias antes um homem de óculos escuros e licen­ça de motorista sob o nome de Johnston, cheio de dinheiro, contratara com a locadora ficar uma semana com o carro. Muita gente na rua lembrava ter visto o homem na motoci­cleta Triumph, mas parece que não havia placa de licença e o motorista, de óculos próprios para corrida, pisara firme no acelerador sumindo pela Baker Street como um morcego. Nada mais. Bond não pôde ajudar, não tivera tempo de ver coisa alguma, o teto do VW é muito abaixado na frente, mal vira, de relance a mão e a arma.

O Serviço Secreto pediu cópia dos relatórios da Polícia e M determinou que estas fossem remetidas para a sala es­pecial da Operação ameaça explosiva. Esteve rapidamente com Bond e estava mal-humorado como se fosse tudo cul­pa dele. Depois M disse a Bond que esquecesse tudo aquilo, provavelmente alguma vingança por casos passados, e que a Polícia tomaria conta. O que interessava agora era a Opera­ção ameaça explosiva e o melhor era Bond ir rápido para o aeroporto.

Quando Bond saiu novamente do edifício cinzento tinha começado a chover. O rapaz da garagem fizera o que lhe fôra possível, removendo os cacos de vidro restantes na frente do Bentley e limpando tudo. Mas, sem a vidraça, Bond chegou em casa para almoçar completamente encharcado. Largou a "locomotiva" numa oficina e telefonou para a Rolls e para a companhia de seguros (contou que fôra abalroado por um caminhão, mas não conseguira pegar o número da placa). Depois tomou um bom banho, vestiu o terno azul de tropical e arrumou a bagagem cuidadosamente; uma mala grande e um saco de lona com os apetrechos para caça submarina. Então foi para a cozinha.

May lá estava, compenetrada como sempre. Parecia na iminência de fazer um novo sermão mas Bond interrompeu-a, com um gesto, e disse:

— Não precisa falar, May. Você está com a razão. Não posso ter forças para trabalhar alimentado com suco de ce­nouras só. Vou partir dentro de uma hora e preciso de comi­da forte. Seja boazinha e prepare ovos mexidos, como só você sabe fazer, quero quatro ovos e quatro fatias daquele bacon cheiroso, se ainda tiver algum, e fatias de pão torrado com bastante manteiga. E café, um bule inteiro, bem forte. E... traga também a bandeja com as bebidas.

May olhou para êle, de certo modo aliviada, mas preo­cupada:

— Que aconteceu, Seu James?

— Nada, May — respondeu Bond, rindo. — Apenas me convenci de que a vida é curta e vou ter muito tempo para estudar calorias e enzimas quando chegar ao céu.

E Bond deixou May abanando a cabeça e resmungando contra a sua heresia e foi arrumar o seu "arsenal" de via­gem.

 

Réquiem Variado

No que concerne à spectre o Plano Ômega estava fun­cionando exatamente como Blofeld queria e esperava. As eta­pas I e II se tinham realizado na íntegra, de acordo com os esquemas respectivos, e sem problemas.

Giuseppe Petacchi, o falecido Giuseppe Petacchi, tinha sido muito bem escolhido. Com a idade de dezoito anos havia sido co-pilóto de um Focke-Wulf 200 da patrulha anti-sub­marina do Adriático, era um dos poucos italianos a quem fora confiado o avião alemão. O grupo fora incumbido das minas de pressão alemãs quando a maré da guerra tinha levado a batalha aliada para a espinha dorsal da Itália. Petacchi sabia onde estava a sua sina e mergulhara de corpo e alma na sua função. Numa patrulha de rotina havia executado o piloto e o navegador, com um tiro na nuca de cada um, e trouxera o avião (acima das ondas, para evitar a linha de fogo antiaéreo) até o porto de Bari. Ali chegando pendurou a camisa do lado de fora da cabine como sinal de rendição e esperou o pessoal da patrulha da RAF. Foi então condecorado pelos ingleses e americanos e recebeu o prêmio de 10 000 libras dos Fundos Especiais pela mina de pressão entregue aos aliados. Contou uma estória comprida ao Serviço Secreto dizendo que sem­pre fora individualmente da Resistência, desde que atingira idade suficiente para entrar para a Força Aérea, e terminou a guerra festejado como um dos mais galantes heróis italia­nos. Daí por diante a vida foi fácil para êle, foi piloto e de­pois comandante da Alitalia e ingressou na nova Força Aérea italiana como coronel. Daí para a NATO e posteriormente a escolha entre os seis italianos das Forças Avançadas de Ata­que. Agora estava com 34 anos e farto de voar. Na verdade não fazia muita questão de ser componente da NATO, achava que era hora de gente mais jovem tomar as atitudes herói­cas. Toda a sua vida tivera paixão pela posse de coisas boas e luxuosas, excitantes e caras. Já possuía quase tudo que o fascinava: cigarreira de ouro, um cronômetro perpétuo Rolex Cyster de ouro maciço com corrente flexível, um conversível branco Lancia Gran Turismo, roupas das melhores qualida­des e todas as pequenas que quisesse (estivera casado por breve período, mas não dera certo). Agora estava desejando, e o que desejava acabava obtendo, um carro todo especial que vira numa exposição de automóveis em Milão: uma Ma-serati-Ghia-3500 GT. E também queria cair fora. Fora dos corredores da NATO, fora das forças aéreas e ir embora para outras paragens, diferentes, com nomes diferentes. O Rio de Janeiro lhe agradava. Mas tudo isto queria dizer passaporte novo, bastante dinheiro e um bom esquema — o esquema vital.

O esquema apareceu, e veio acenando com aqueles elementos com os quais Petacchi vinha sonhando há mui­to. Veio na pessoa de um italiano chamado Fonda que no momento era o membro n.° 4 da SPECTRE e que viera recru­tando informações via Versalhes e Paris, por boates e restau­rantes, à procura daquele exato homem. O n.° 4 gastara um mês inteiro preparando, direitinho, a isca e a jogada da linha para fisgar aquele peixe e, quando o peixe a mordeu, o n.° 4 quase caiu ante a avidez da mordida. Houve alguma demora na verificação da possibilidade de traição, mas finalmente a SPECTRE acusou sinal verde e a proposta foi feita.

A missão de Petacchi consistia em entrar para o es­quadrão de treinamento do Vindicator e tomar posse dêle no final. Ninguém mencionou as bombas atômicas. Tratava-se (foi o que disseram) de revolucionários cubanos que que­riam chamar a atenção do mundo para si através de um feito dramático e de proporções. Para Petacchi pouco interessava quem queria o Vindicator ou para que, desde que lhe pagas­sem. Pelo seu trabalho Petacchi receberia $1 000 000, um passaporte novo em nome e nacionalidade de sua escolha e passagem para o Rio de Janeiro. Múltiplos detalhes foram discutidos e aperfeiçoados e quando, às oito horas da noite de 2 de junho, o Vindicator decolou da pista e voou sobre St. Alban's Head, levava dentro o observador Petacchi, tenso porém confiante em sua missão para a SPECTRE.

Para fins de treinamento um par de poltronas comuns de avião de passageiros havia sido afixada na espaçosa fu­selagem logo atrás da cabine de comando e numa delas ia sentado Petacchi. Durante uma hora êle observou os cinco homens da tripulação em atividade com os instrumentos de precisão do aparelho. Quando chegou a sua vez de voar so­zinho estava satisfeito e ciente de que poderia dispensar os cinco homens da tripulação. Uma vez que tivesse ajustado o automático não precisaria mais se incomodar; só ficar atento e verificar de tempos em tempos a altitude exatamente de 32 000 pés acima do canal transatlântico. Haveria então o mo­mento importante de mudar a direção para este-oeste e então para as Bahamas, mas tudo isto estava preparado, estudado e explicado claramente no cademinho de notas em seu bolso. O pouso ia requerer cuidado e nervos fortes, porém, por $1 000 000, seus nervos atingiam uma resistência ilimitada.

Pela décima vez Petacchi consultou o seu Rolex. Agora! Já! Verificou com cuidado a máscara de oxigênio e colocou-a de lado... Depois tirou do bolso o cilindro de tampão verme­lho e calculou exatamente quantas voltas teria de dar na ros­ca para soltar a válvula de escape. E então foi para a cabine de comando.

— Olá, Seppy, está gostando da viagem? — perguntou-lhe o piloto.

O rapaz gostava do italiano; haviam estado juntos em memoráveis ocasiões, em Bournemouth.

— Claro, claro! — respondeu Petacchi e fêz algumas perguntas, verificou se o automático estava na direção certa, olhou bem a velocidade e a altitude. Na cabine de comando, tudo certo, e o pessoal descansado e quase sonolento. Pe-tacchi ficou de costas para a moldura metálica que continha mapas e cartas de navegação. Sua mão direita desceu para o bolso tateando a rosca da válvula de escape, deu as voltas necessárias e cuidadosamente, com a mão atrás das costas, colocou o cilindro devagar sobre a prateleira. Então bocejou, espreguiçou-se e disse:

— Acho que vou tirar uma pestana. — Petacchi tinha facilidade para línguas e empregava bem as expressões e gí­rias da língua local.

— Como é que se diz isto em italiano — Zizzo? — grace­jou o navegador.

Petacchi fêz uma careta em resposta e voltou à sua ca­deira lá na fuselagem. Colocou então a máscara e girou o botão de controle para 100% de oxigênio, tomou uma posição bem confortável e esperou.

Tinha sido informado de que aquela etapa levaria cin­co minutos. Realmente, dentro de dois minutos o tripulante mais próximo à prateleira, o navegador, levou a mão à gar­ganta e caiu para a frente, contorcendo-se horrivelmente. O radioperador tirou os fones para socorrê-lo, porém, ao dar o segundo passo, caiu de joelhos, tendo as mesmas contor­ções, estendeu o braço para a frente e tombou fulminado. Agora eram os outros três que ao mesmo tempo agonizavam, sufocados e contorcendo-se em dores espasmódicas. O co-pilôto e o engenheiro de vôo tentaram se socorrer, porém aca­baram por tombar de suas poltronas em posição grotesca. O piloto estendeu a mão para o microfone acima de sua cabeça, grunhiu algo incompreensível e arqueou o corpo num últi­mo movimento reflexo, seus olhos esbugalhados, já mortos, pareceram fitar Petacchi e êle caiu, também morto, sobre o corpo do co-pilôto.

Petacchi consultou o relógio. Quatro minutos se ha­viam passado. Um minuto de quebra! Quando este minuto passou, pegou luvas de borracha e calçou-as, ajustou mais ainda a máscara ao rosto e foi até a prateleira. Pegou o ci­lindro fatídico de cianido, fechou a rosca da válvula, vedan­do-a. Conferiu o automático, ligou a pressurização da cabine para purificar o ar envenenado com o gás cianido e voltou a sentar-se em seu lugar por mais quinze minutos, de acordo com as instruções. Depois resolveu, por medida extra de se­gurança, esperar mais dez ainda com a máscara de oxigênio. Depois, ainda um pouco amolecido pelo excesso de oxigênio respirado, começou a remoção dos corpos para o lado de trás da fuselagem. Quando a cabine ficou vazia retirou do bolso um frasco com cristais que espalhou pelo chão e ajoelhou-se para observá-los. Sim, continuavam branquinhos. Então po­dia agora retirar a máscara e respirar o ar ambiente já purifi­cado. Não havia mais nenhum odor estranho. Não obstante, quando tomou os controles para baixar o avião para 32 000 pés e tomar a direção noroeste pelo oeste para entrar nas ro­tas comerciais, Petacchi deixara a máscara bem à mão.

O gigantesco avião cortava a noite, célere. A cabine ama­relada pela iluminação dos relógios e instrumentos estava quieta e quente. No silêncio da cabine de um avião a jato ape­nas se ouvia um silvo ininterrupto e agressivo. Verificando cada chave e comando, Petacchi chegava a achar que ouvia estampidos de disparo de pistola, ecoando. Regulou nova­mente o automático, verificou o combustível em cada tanque para ver se estavam cumprindo corretamente a sua função de alimentar a ignição, ajustou mais um pouco a bomba de um deles. A temperatura dos canos de jato estava normal.

Satisfeito com a marcha dos acontecimentos, Petacchi sentou-se na cadeira do piloto e engoliu um tablette de ben-zedrina e começou a pensar no futuro. Um dos fones de rádio ainda caído no chão, mas ainda ligado, começou a soar e a zumbir alto. O italiano olhou para o relógio. Mas, natural­mente, era o Controle de Tráfego Aéreo tentando contato com o Vindicator. Quanto tempo ainda restaria até que o Controle Aéreo desse o alerta ao Grupo de Salvamento de Mar e Ar, ao Comando de Bombardeiros e ao Ministério da Aeronáuti­ca? Primeiro haveria verificações e contraverificações com os Centros de Salvamento. Levariam nisto mais uma meia hora e já então por esse tempo o Vindicator estaria lá no Atlânti­co. Os fones de rádio silenciaram. Petacchi levantou-se e foi olhar a tela do radar, reparando no blip de cada aparelho que passava. Será que os outros também notariam a sua passagem? O radar destinado a registrar a passagem nas rotas comerciais tinha um campo de visão limitado e em for­ma cônica. O Vindicator por certo não seria notado enquanto não ultrapassasse a linha do Distant Early Warning e, en­tão, por certo, o DEW o registraria como um avião comercial fora da rota. Petacchi voltou ao lugar do piloto e conferiu os instrumentos minuciosamente, oscilou levemente com o aparelho para senti-lo sob seu controle; ouviu que os corpos lá na fuselagem escorregaram um pouco da posição em que tinham caído. O avião reagiu bem ao seu controle, era como guiar um bom e veloz automóvel, e Petacchi sonhou com a Maserati.

De que côr compraria? Branca. . . não; nem outra côr espalhafatosa, seria azul-marinho com um friso bem fininho encarnado, discreto e respeitável que combinasse bem com sua nova personalidade respeitável. Seria formidável tomar parte em corridas famosas. . . até a Mexicana "2 000". É... isto seria muito perigoso; podia sair vencedor e ter o retrato nos jornais; não. Teria de cortar qualquer coisa que pudesse virar publicidade. Correria loucamente com seu carro novo quando quisesse conquistar uma pequena! Elas ficavam pra­ticamente derretidas num carro a grande velocidade... ren­diam-se facilmente à máquina possante e ao homem muscu­loso que com as mãos tostadas de sol dominava a máquina; era sempre assim, depois era só estacionar o carro num tre­cho de mato tranqüilo e escondido... e então teria apenas de carregá-la para fora do carro e deitá-la na grama, toda macia e trêmula...

Petacchi despertou dos devaneios e olhou para o relógio. O Vindicator já estava no ar havia quatro horas e a 600 m. p. h. certamente teria coberto uma boa distância. A costa ame­ricana já devia estar na tela agora. Levantou-se e foi olhar; lá estava, 500 milhas adiante, a costa marcada no mapa, com Boston e a fita prateada do Hudson bem delineados. Nem precisava verificar a posição com o Delta ou Eche; estava no caminho certo e logo chegaria o momento de tomar a direção exigida pelo esquema. Petacchi voltou ao seu lugar e masti­gou outro tablette de benzedrina enquanto examinava a carta geográfica; tinha as mãos nos controles e os olhos, de vez em quando, nos ponteiros. Agora. Já. E êle manejou gentilmente os controles fazendo uma curva bonita e equilibrando nova­mente o aparelho exatamente na direção da nova rota; rea­justou o automático. Agora estava voando para o sul, estava quase na etapa final. Era tempo de pensar sobre o momento de pousar, restavam três horas de preocupação e pronto. Ti­rou do bolso o caderninho com as instruções e leu:

"Reparar nas luzes de Grande Bahama a bombordo e de Palm Beach a estibordo. Estar pronto para captar orientação para navegação proveniente do iate do n.° 1: ponto, ponto, traço. . . ponto, ponto, traço. Perder altura até ficar a 1 000 pés no último quarto de hora, diminuir velocidade com os freios a ar e perder mais altura. Atenção para o farol ver­melho e preparar para a aproximação. Descer flaps somente quando a altitude indicar cerca de 140 nós. A profundidade da água é de 40 pés. Haverá tempo bastante para seu desem­barque e então será içado para bordo do iate do n.° 1. Há um avião da Bahamas Airways que parte para Miami às 8,30 da manhã seguinte e de lá pegará um da Braniff ou da Real para o resto da viagem. O n.° 1 lhe entregará o dinheiro em notas de 1 000 dólares ou em travellers-checks e um passaporte com o nome de Enrico Valli, Diretor de Companhia".

Petacchi tornou a conferir a posição, rota, velocidade. Faltava apenas uma hora. Eram duas da madrugada GMT e nove da noite em Nassau. Uma lua cheia estava saindo e o tapete de nuvens a 10 000 pés abaixo parecia um campo de neve. Reduziu as luzes dos extremos das asas e da cauda, conferiu o combustível: 2 000 galões incluindo os tanques de reserva; ia precisar só de 500 para as últimas cem milhas. Puxou a válvula de liberação dos tanques de reserva e soltou 1 000 galões. Com a perda de peso o avião começou a ganhar altura porém ele corrigiu para 32 000 novamente. Faltavam vinte minutos. Hora de começar a preparar a descida...

Por instantes a escuridão e a camada de nuvens o ce­garam e então lá em baixo as luzes esparsas de Bimini Sul e Norte piscando e o reflexo da lua no mar prateado. O re­latório da meteorologia vindo do Vero Beach estava certo: calmaria, ventos moderados de noroeste, visibilidade boa, nenhuma instabilidade imediata; e a rádio de Nassau havia confirmado. O mar parecia uma placa de aço polido. Tudo es­tava correndo muito bem. Petacchi ligou o canal 67 para cap­tar a orientação do n.° 1. Ficou alarmado quando a onda não entrou imediatamente mas a seguir ouviu, baixo porém níti­do, ponto, ponto, traço... ponto, ponto, traço. Era a hora de ir para baixo. Reduziu a velocidade de acordo com as instru­ções e desligou os quatro jatos. O gigantesco avião começou a sua descida em mergulho. O radialtímetro parecia gritar e ameaçar a perda de altitude. Petacchi olhava o mar de prata lá em baixo e houve momento em que ficou sem horizonte, tão forte era o reflexo do luar nas águas, depois viu a mancha escura de uma ilha. Confiou nos 2 000 pés indicados pelo al­tímetro e atenuou o mergulho, firmando o aparelho a seguir. Agora viu com precisão o farol de sinal do N.° 1, logo estaria vendo as luzes vermelhas. E lá estavam, talvez cinco milhas adiante. Petacchi dirigiu para lá o nariz do avião, ia ser fácil, a qualquer momento estaria tudo resolvido. Êle manejava os controles do avião com cuidado e delicadeza eróticos, como num momento de amor com uma mulher bonita.

Quinhentos pés... quatrocentos pés, trezentos, duzen­tos... e viu a silhueta do iate, luzes baixas. Está justamente no ponto exato! Será que iria dar certo? Foi descendo, des­cendo... pronto para desligar tudo no momento exato. O cor­po do avião estremeceu, o nariz subiu um pouco, crash, uma espécie de pulo no ar e, crash... outra vez na água. Petacchi retirou os dedos dormentes de segurar os controles e olhou pela janela para fora, para as ondas espumantes. Puxa! Êle conseguira, conseguira! Giuseppe Petacchi tinha consegui­do! Agora era só esperar os aplausos, a recompensa!

O avião estava afundando muito devagar e se ouvia o silvo dos jatos submergindo. De lá de trás veio o ruído da parte da cauda cedendo, pois se partira com o impacto. Pe-tacchi correu para a fuzelagem metendo os pés na água que já estava invadindo aquele trecho e molhando o rosto de um dos mortos que estava virado para cima e brilhava com o luar. Petacchi partiu a camada de perspex do trinco da porta de emergência e abriu-a. A porta caiu para o lado de fora e êle saiu e caminhou pela asa do Vindicator.

Um barco acabara de encostar ali com seis homens a bordo: Petacchi saudou-os alegremente, excitado. Um deles ergueu a mão em resposta. Os homens o fitavam com caras brancas sob o luar e com expressões curiosas e quietas. Pe-tacchi pensou: estes homens são muito sérios, são homens de negócios, está certo assim. Moderou um pouco a sua eu­foria e também fêz expressão grave. O bote chegou mais per­to da asa onde o italiano estava e um dos homens pulou e veio em direção a êle. Era um homem baixo, atarracado, de olhar firme, caminhava cuidadosamente, flexionando os joe­lhos para manter o equilíbrio, e tinha a mão esquerda junto ao cinto. Petacchi recebeu-o radiante, com a piada que tinha preparado com muito tempo de antecedência e que achava gozadíssima.

— Muito boa noite, boa noite. Está aqui a encomenda em perfeitas condições. Queira assinar este recibozinho. . . — e estendeu a mão.

O homem do barco retribuiu o aperto de mão com outro muitas vezes mais vigoroso e puxou com violência o braço do outro que, com o impulso, virou a cabeça para trás com rapidez e estava ainda vendo a grande lua prateada acima de seus olhos quando o estilete metálico entrou por baixo do seu queixo, passou pelo céu da boca e foi atingir o cérebro. Não teve tempo de entender, houve um momento brevíssimo de surpresa, uma explosão de dor aguda e violentíssima e mais nada.

O carrasco segurou o cabo do estilete por um instan­te, deitou o corpo de Petacchi sobre a asa e retirou a arma, lavou-a na água do mar, enxugou-a na roupa da vítima e guardou-a. Então rolou o corpo do italiano por dentro da água para junto da porta de emergência. Depois caminhou rápido, equilibrando-se sobre a asa do avião que submergia e, chegando ao barco, levantou o polegar. Missão cumprida.

Quatro dos outros homens do barco puseram seus aqualungs e, um a um, foram mergulhando na espuma que cercava o avião. Quando o último já tinha mergulhado o ho­mem que estava junto ao motor passou uma enorme lâmpa­da submarina para buscas por cima da amurada do barco e a foi descendo devagar para dentro d'água. Depois acendeu-a e o mar ali em volta assim como o Vindicator meio afunda­do foram iluminados por uma luminescência fria; então êle ligou o motor e foi afastando o barco e dando cabo até vinte jardas de distância do avião; parou o motor, tirou do bolso um maço de Camels. Ofereceu um ao carrasco que aceitou, partiu o cigarro em dois e guardou metade atrás da orelha, acendendo a outra metade. Aquele era um homem que con­trolava com severidade as suas fraquezas!

 

Disco Voador

A bordo do iate o N.°l retirou os óculos, tirou do bolso do blusão um lenço Charvet e enxugou delicadamente a tes­ta e as têmporas. O perfume Schiaparelli se espalhou no ar lembrando-lhe coisas boas da vida. . . lembrando Dominetta que devia naquele momento estar começando a jantar. Todo mundo ali seguia o horário espanhol e os drinks e cocktails não acabavam antes das dez com os fúteis e alegres Saumurs e seus convidados igualmente alegres e frívolos; lembrou do joguinho no Cassino, do calipso em boates e bares em Bay Street. Guardou o lenço outra vez no bolso. É. . . mas aquilo também era bom! Sim, aquela operação funcionava com a precisão de um relógio. Olhou para o seu: eram 10:15 e o avião chegara apenas com uns quinze minutos de diferença. O pouso havia sido perfeito e Vargas havia feito um bom tra­balho no tal italiano, como era mesmo o nome dele? Apenas quinze minutos de atraso. Se não tivesse sido preciso que os mergulhadores usassem o oxiacetileno para cortar a fusela­gem e retirar as bombas as coisas iriam muito mais depres­sa, mas também era querer muito. Ainda restavam oito horas de escuro para trabalhar; com calma, método, eficiência e muita ordem. O N.° 1 desceu à cabine de rádio que estava cheirando a suor e cansaço. Perguntou:

— Alguma coisa da Torre de Controle de Nassau? Algu­ma menção de avião voando muito baixo? Ou da queda de algum ao mar ao largo de Bimini? Então continue ouvindo. Faça uma ligação para o N.° 2, rápido. Já passa um quarto de uma.

O N.° 1 acendeu o cigarro e ficou esperando o radio­perador tentando a ligação, pesquisando o éter, ouvindo, chamando. O operador manejava o dial com a leveza de um inseto, pausando pacientemente à espera de resposta, confe­rindo as ondas e... de repente, apurou a atenção, aumentou o volume e levantou o polegar para o N.° 1; este falou no pe­queno fone que saía daquele labirinto de fios:

— N.° 1 falando.

— N.° 2 ouvindo — a resposta veio numa voz longínqua,

a de Blofeld.

O N.° 1 conhecia aquela voz melhor do que a de seu próprio pai. Prosseguiu:

— Sucesso. Às 10:15. Próxima etapa às 10:45. Prosse­guimos agindo. É só.

— Obrigado. É só.

E a onda se foi, a conversa havia durado 45 segundos, não havia perigo de interceptarem a onda àquela hora. O N.° 1 voltou ao tombadilho. Os quatro homens do grupo B, com seus aqualungs ao lado, estavam sentados, fumando. O equipamento submarino estava todo ali, junto à quilha. O luar se refletia em toda parte e mais para lá, no tombadilho, perto dos homens, a pilha de lona camuflada, côr de café com leite e com manchas irregulares, verdes e marrons, pin­tadas. O N.° 1 falou:

— Tudo está correndo bem. A equipe de recuperação está agindo. Não vai demorar agora. E a carreta e o guindas­te?

Um dos homens respondeu apontando uma direção:

— Estão lá embaixo, na areia. Assim será mais rápido, Ganharemos tempo.

Exato. A roldana agüenta bem? E a corrente...?

— Aquela corrente agüentaria duas vezes aquele peso.

— Quanto às bombas... ?

— Em ordem. Em sete minutos estará tudo pronto.

Ótimo. Muito bem, descansem um pouco. Vai ser uma noite comprida.

E o N.° 1 subiu a escadinha de ferro e foi dar uma olha­da. Lá, a estibordo, numas duzentas jardas o mar estava cal­mo e vazio: apenas o escaler flutuando, ancorado. O farol vermelho tinha sido recolhido. O barulho do gerador para alimentar a iluminação de pesquisa submarina era forte, por certo um mar calmo, como aquele estava, levaria longe o ru­ído, mas tinha que ser assim porque acumuladores seriam muito volumosos e se teriam esgotado antes que o trabalho terminasse. O gerador era um pouco arriscado mas em pro­porção aos resultados não tinha importância. A ilha mais próxima ficava a cinco milhas de distância e não era habita­da, a não ser que alguém estivesse a esta hora fazendo um piquenique lá. O iate estava parado à espera do momento. Tudo fora calculado. Todas as precauções tomadas, o que tinha de ser feito fora feito. Agora era só pensar na próxima etapa. A grande e silenciosa máquina estava funcionando. O N.° 1 foi até a sala dos mapas e se debruçou sobre um deles, que estava aberto na mesa.

Emílio Largo, o N.° 1, era um quarentão de boa apa­rência. Era romano e tinha mesmo cara de romano. Não dos romanos atuais, porém daqueles das eras históricas, com o perfil de efígie cunhada em moedas antigas. O rosto longo e tostado de sol, nariz adunco e queixo bem delineado, sem­pre muito bem barbeado e escanhoado. Em contraste com os olhos duros e escuros, a boca, de lábios bem marcados, lembrava a de um fauno; suas orelhas, vistas bem de fren­te, pareciam pontudas e tinham qualquer coisa de animal que enlouquecia as mulheres. A única coisa que quebrava a dureza da fisionomia de centurião eram as suíças longas e os cabelos ondulados e tão cuidadosamente penteados com bastante brilhantina que mais pareciam pintados em sua ca­beça. Não havia gordura em seu corpo de proporções grandes e fortes. Largo havia concorrido pela Itália nas Olimpíadas, era um nadador de classe quase olímpica de crawl e ainda no mês passado havia vencido uma competição de esqui aquáti­co em Nassau; seus músculos se delineavam sob o tecido do blusão bem talhado. A este conjunto atlético havia também que acrescentar suas mãos, duas vezes o tamanho normal mesmo para um homem de sua envergadura e agora, que seguravam a régua em cima do mapa, mais pareciam dois animais peludos saindo dos punhos brancos do blusão.

Largo era antes de tudo um aventureiro, uma ave de ra­pina pronta a atacar o rebanho. Se vivesse há duzentos anos seria por certo um pirata (não desses engraçados dos livros de ficção), mas um homem como o Barbanegra, sanguinário cruel de adaga sempre pronta a cortar uma garganta em bus­ca de ouro; só que o Barbanegra era um precipitado e fanfar­rão e por onde passava deixava rastros de suas façanhas. Já Emilio Largo era diferente; tinha uma mente fria e calculista e uma certa fineza de trato em seus atos, que acabavam por despistar as possíveis vinganças por eles provocadas. Seu currículo incluía o mercado negro de após-guerra em Ná­poles, cinco anos de lucrativos negócios de contrabando em Tânger, mais cinco de roubo de jóias na Riviera Francesa e mais recentemente cinco anos de cooperação com a SPEC­TRE. Sempre se saía bem de tudo. Tinha sempre visão para pressentir o passo que levava à saída estratégica de qualquer situação. Tinha o estigma do vigarista de casaca: boa apa­rência, viajado, grande mulherengo, bon-vivant, com acesso ao Cafe Society dos quatro continentes e único remanescente (por conveniência) de abastada e conhecida família de Roma cuja fortuna, dizia, lhe coubera herdar. Não tinha esposa, fo­lha corrida limpa na Polícia, nervos de aço, coração de gelo e a crueldade de um Himmler: o homem perfeito para a SPEC­TRE! E também o homem perfeito, playboy milionário, para ser o comandante supremo da Operação Ômega.

Um marinheiro veio chamá-lo, dizendo: — Já fizeram o sinal. Vão começar.

Largo agradeceu calmamente. Sempre, em momentos culminantes, criava uma fleugma toda especial. Por mais perigosa, urgente, arriscada ou minuciosa que fosse a sua missão, enfrentava-a com atenção e impassibilidade aparen­te, quase chinesas. Este autocontrole êle o adquiria exerci-tando-se neste sentido e lhe vinha sendo muito útil. Tinha um efeito extraordinário sobre seus associados ou subal­ternos, provocava obediência e admiração além de lealdade à sua liderança. Quando externava, com sua inteligência e acuidade, pouca excitação ao receber uma notícia muito boa ou má, os outros sentiam que Largo já sabia o que estava para acontecer. Com êle as conseqüências era sempre pres­sentidas, podiam confiar nele; jamais perdia o controle ou o equilíbrio. Assim é que, ao receber aquela esplêndida notícia, Largo continuou com indiferença a traçar linhas imaginárias sobre o mapa da mesa para impressionar o tripulante. De­pois, largou o compasso e saiu da sala refrigerada para o ca­lor da noite. Um rastro pequeno de luz estava subindo para o escaler; era uma carreta submarina para dois, idêntica às usadas pelos italianos durante a guerra, e aperfeiçoada pe­los próprios fabricantes; estavam rebocando uma espécie de prancha usada para transporte de objetos pesados por baixo d'água. O rastrozinho de luz se fundiu com a luminescência do farol de busca submarina e minutos mais tarde emergiu novamente a caminho do iate. Seria muito natural que Lar­go descesse para observar a chegada das armas atômicas, porém, numa atitude muito característica sua, não fêz nada disso. No tempo devido a carreta voltou para buscar a lona camuflada a fim de cobrir o avião submerso confundindo-o com o fundo arenoso e manchado de coral e algas. Em sua mente, sem olhar, Largo pressentia a operação tão cuidado­samente preparada e treinada: os homens estendendo a lona lentamente para cobrir todo o imenso avião e então pren­dendo os extremos e outros diversos pontos com ganchos de metal que teriam a função de evitar que a lona se levantasse com qualquer temporal ou ressaca por mais forte que fos­se. Êle próprio estava admirado com o efeito magnífico de tão ingênuo recurso; agora todos aqueles meses de preparo e cálculos do Plano Ômega, suor e lágrimas, iam ser recom­pensados. Viu algo aparecer junto ao escaler, depois outro e outro. . . eram os oito homens-rãs que estavam voltando e a lua brilhava em suas máscaras. Todos os oito estavam lá. O mecânico e Brandt, o carrasco alemão, ajudaram os homens a subir para bordo do escaler com seus equipamentos; a luz de busca foi apagada e em lugar do ruído do gerador o que se ouviu agora foi o ronco dos dois motores Johnston. O bote voltou para o iate, para seu lugar nos elevadores de ferro. Algumas ordens de rotina e o bote (com passageiros e tudo) foi içado para bordo.

O capitão veio para o lado de Largo. Era um homenzar­rão ossudo que tinha sido expulso da Marinha canadense por bebedeira e insubordinação. Era um escravo para Largo desde o dia em que este o chamou à cabine e lhe quebrou uma cadeira na cabeça porque discutira uma ordem sua. Este era o tipo de disciplina que entendia logo. Agora virou-se para o N.° 1 e falou:

— A barra está livre. Vamos partir?

— As duas equipes estão em ordem?

— Sim, não houve atritos.

— Então, primeiro providencie para que tomem uma boa dose de whisky e diga-lhes que descansem um pouco. Entrarão em ação outra vez dentro de meia hora. E diga a Kotze para vir falar comigo. Esteja pronto para partir dentro de cinco minutos.

— O.K.

Os olhos do cientista Kotze brilhavam sob o luar. Largo notou que êle estava um pouco trêmulo, como se estivesse com febre, e lhe disse alegremente:

— Então, meu amigo? Está contente com seus brinque­dinhos? A loja entregou tudo que você queria?

Os lábios de Kotze tremiam, parecia que êle ia chorar e sua voz nervosa saiu um pouco esganiçada:

— é fabuloso! Você não pode fazer uma idéia! São armas que eu jamais pensei que pudessem existir! E que simplici­dade... que segurança!!! Até uma criança pode mexer naque­las bombas sem perigo algum!

— Os suportes estão suficientemente fortes e há espaço bastante para o seu trabalho?

— Sim, sim... — Kotze quase batia palmas de entusias­mo. — Não há problema, nenhum problema. Os fusíveis sai­rão num instante. Será apenas o trabalho simples de subs­tituir o TNT pela bomba-relógio. Moslov já está desligando os fios. Vou usar parafusos de chumbo, são mais fáceis de manejar.

— E os tais parafusos de que falou? São seguros? Onde os mergulhadores os encontraram?

— Numa caixa de chumbo sob a cadeira do piloto. Já verifiquei; perfeitamente simples. Serão mantidos separada­mente, lá no esconderijo. As bolsas de borracha são magnífi­cas, ficam vedadas, inteiramente à prova d'água.

— E não há perigo de radiação?

— Não, agora não. Tudo está em embalagem de chum­bo. Pode ser que eu tenha pegado um pouco quando traba­lhei nos monstros, mas eu estava de máscara e vou observar sintomas. Sei o que fazer.

— Você é um homem valente, Kotze! Não quero chegar perto daquela coisa senão na hora em que fôr inevitável. Dou muito valor à minha vida sexual. Então está satisfeito? Ne­nhum problema? Não deixaram nada no avião?

Kotze já se controlava. Primeiro fizera uma onda com o assunto, aliviado por verificar que os problemas técnicos eram poucos e que podia controlá-los. Agora estava vazio. Tinha passado aquela tensão que o acompanhava durante semanas. Depois de tantos planos, de tanto perigo... se os seus conhecimentos não fossem suficientes? Se os raios dos ingleses houvessem inventado algo diferente, algum disposi­tivo de segurança secreto, fora da órbita de sua sabedoria? Mas, quando pôs mãos à obra, quando, depois de retirar o in­vólucro protetor, começou a trabalhar com suas ferramentas de joalheiro. . . maravilha, triunfo, vitória! E uma sensação de gratidão para consigo mesmo o invadiu! Não havia mais problemas agora. Estava tudo certo. Apenas ação de rotina. Terminaria seu trabalho e pronto.

Largo acompanhou com os olhos a pequena figura que se afastava pelo convés. Os cientistas eram uns peixes es­quisitos! Não viam mais nada à sua frente a não ser a ciên­cia! Kotze não parecia ver ou perceber os riscos que ainda corriam todos. Para êle, apertar alguns parafusos, ligar fios, era o seu trabalho, a sua missão. No resto do tempo iria ser uma carga inútil. Seria fácil livrar-se dele. Mas não ainda. Devia estar ali disponível para o caso de ser preciso usar as bombas. Era um homenzinho depressivo e histérico. Largo não gostava de ter gente assim perto dele, eram deprimentes também, cheiravam a azar! Era preciso arranjar alguma coi­sa para êle ficar entretido fazendo-a, e, principalmente, fora da vista. Largo foi até a cabine de comando. O capitão estava sentado ao leme, isto é, uma direção em semicírculo, de alu­mínio. E deu a ordem:

— Muito bem. Vamos!

O capitão, sem responder, estendeu a mão para o belo painel de instrumentos à sua frente e apertou um botão que tinha a indicação "Partida-ambos" e imediatamente ouviu-se o som percorrendo a embarcação; uma luz se acendeu no painel e os dois motores se puseram a trabalhar. Puxou outro botão "Adiante-lente-ambos" e o iate começou a andar. Então o capitão moveu outro "Adiante-tôda fôrça-ambos" e o iate estremeceu ante a aceleração da velocidade. O capitão, uma das mãos numa pequena alavanca, estava atento a um mostrador; a vinte nós o ponteiro acusou o número 5 000, o capitão puxou a alavanca que descia a grande bolina de aço sob o casco. A rotação continuou a mesma porém o ponteiro do velocímetro deu a volta mostrando quarenta nós. Agora o iate estava praticamente voando, planando por cima das águas prateadas, o casco quatro pés acima da linha de água sustentado pela folha de aço; proa alta. Era formidável e Lar­go nunca se cansava de apreciar aquela deliciosa sensação, ficava empolgado pela velocidade.

O iate a motor Disco Volante fora construído especial­mente por Leopoldo Rodrigues, de Messina, armador italiano (a única firma do mundo que conseguira adaptar o sistema Shertel-Sachsenberg para uso comercial), de encomenda para Emilio Largo e financiado por capital da SPECTRE. Casco de alumínio e liga de magnésio, equipado com dois Daimler­Benz Diesels e supercarregados por turbinas Brown-Boveri, o Disco Volante podia carregar suas toneladas à velocidade de cinqüenta nós com uma média de quatrocentas milhas. Havia custado a soma de 200 000 libras e era o único no mundo com tal capacidade para carga e passageiros e com as características essenciais à boa execução daquela missão nas águas das Bahamas. Os construtores do Disco Volante alegavam uma qualidade que muito agradava à SPECTRE: grande estabilidade, casco chato, invariabilidade de campo magnético... estes aliscafos, como eram chamados na Itália, apresentavam a conveniência de poder fugir, rápido, se pre­ciso.

Havia seis meses o Disco Volante tinha sido entregue em Florida Keys e fora uma sensação naquelas águas. E Lar­go ficou sendo o milionário mais conhecido e famoso das re­dondezas onde tantos outros ostentavam também suas ex­centricidades. As viagens misteriosas e rápidas que começou a fazer no seu novo iate, com todos aqueles mergulhadores e, de vez em quando, levando aquele anfíbio de asas retrateis e motor Lycoming pousado no teto de sua superestrutura, co­meçaram a despertar comentários e curiosidade. Lentamen­te Largo foi deixando que o "segredo" transpirasse por sua própria indiscrição em conversas nos jantares e cocktails a que ia e pelos comentários "encomendados" dos homens da tripulação pelos bares de Bay Street. Era uma viagem em busca de um tesouro muito importante. Havia o mapa velho e desbotado mostrando o possível ponto onde afundara o ga­leão pirata, lá nos bancos de coral. Largo estava pesquisando e esperando que passasse o inverno e, quando chegasse a calma do verão e seus sócios chegassem da Europa, a busca seria intensificada. Dois dias antes, os sócios tinham chega­do a Nassau, eram 19, vindos por diversos caminhos; uns de Bermuda, outros de New York, Miami, etc. Eram homens carrancudos e compenetrados, tipos de homens de negócios que aproveitavam aquela aventura para sair um pouco da rotina tensa de suas atividades. Um pouco de sol para quem vivia sempre em escritórios fechados e uma semana de férias em Nassau, mesmo que o tesouro não aparecesse.

E naquela noite, com todos os visitantes a bordo, como todos esperavam, o Disco Volante, lindo na sua imponência, azul-marinho e branco, saiu do porto. Já em alto mar fo­ram conferidos, examinados e aprovados diversos detalhes incluindo o som dos motores. A rota sul foi também conside­rada apropriada porque seria entre as Bahamas do sul que o suposto tesouro deveria ser encontrado: era na passagem sul entre as ilhas Crooked, Mayaguana e Caicos que os navios com tesouros espanhóis tentavam evitar as naus piratas e as esquadras francesas e inglesas que regressavam. Acre­ditava-se que ali deviam estar os destroços do Porto Pedro afundado em 1668 com um milhão de libras em barras de ouro a bordo. O Santa Cruz, desaparecido em 1694 levando a bordo duas vezes aquele valor! E o El Capitán e o San Pedro, ambos naufragados em 1719, carregados com seus tesouros também. Todos os anos aparecem pessoas em grupos orga­nizados para busca a essas riquezas, ao sul das Bahamas. Ninguém sabe dizer se algo foi recuperado, nem quanto. Mas todo mundo conhece os lingotes de prata de 72 libras de peso encontrados por dois comerciantes de Nassau, ao largo de Gorda Cay em 1950, e que estão em exposição no Nassau Development Board. Assim, todo mundo acreditou que hou­vesse tesouros a procurar e, quando os motores possantes do Disco Volante roncaram saindo do porto, todos bateram a cabeça aprovativamente.

Mas, depois de atingir uma boa distância, o iate com luzes baixas e antes mesmo que a lua saísse mudou de curso numa curva ampla e foi para o ponto de encontro marcado no esquema, o mesmo ponto do qual começava agora a sair.

Estavam a duzentas milhas, duas horas de distância de Nas­sau, seria aurora quando, depois de uma última comunica­ção, o som imponente dos motores do Disco Volante se faria ouvir voltando de sua viagem fictícia em busca do tesouro.

Largo se debruçou sobre o mapa. Já tinham feito aquele percurso muitas vezes e com todos os tipos de tempo, não haveria problema. Porém, como as etapas I e II haviam corri­do tão perfeitas, achava que deveria redobrar as precauções para que a etapa III acompanhasse o mesmo ritmo de per­feição. Sim, tudo ia bem. Estavam na rota certa. Cinqüenta milhas, chegariam dentro de uma hora. Disse ao capitão que se mantivesse na mesma marcha e desceu à sala de rádio. Eram onze e um quarto, hora de nova chamada.

A pequenina Dog Island não devia ter área maior do que a ocupada por duas quadras de tênis. Era mais um banco de coral, com algumas plantas marinhas e umas palmeiras pe­quenas que brotavam de bolsas de areia com água salobra de chuva. Era bem ali que o Dog Sheal arrebentava, um perigo à navegação que até os barcos pescadores temiam e evitavam. Durante o dia se podia ver Andres Island, porém à noite era segura como uma casa.

O Disco Volante foi-se aproximando até ficar à distância de comprimento de um cabo da rocha. A sua aproximação provocou algumas marolas que logo se acalmaram. A ânco­ra foi descida e firmou a quarenta pés. No porão Largo e os outros mergulhadores esperavam que a escotilha submarina fosse aberta para eles. Os cinco homens usavam aqualungs; Largo segurava potente farol submarino, os outros formavam dois pares e estavam ligados por uma espécie de rede forte e balançavam seus pés pendentes, metidos em pés-de-pato, enquanto esperavam o momento. Aninhados nas tais redes de cada par estava deitado um objeto longo envolto numa embalagem de borracha cinza.

A água começou a entrar então no compartimento até que os homens conseguiram flutuar e saíram pela escotilha submarina. Largo ia liderando o grupo e os outros o seguiam, confiantes, com distâncias de separação previamente calcu­ladas. Largo não acendeu logo a sua tocha. Por enquanto não era preciso e iria atrair uns peixes estúpidos que, ofuscados, podiam desviá-los da direção a tomar. Podia mesmo atrair tubarões ou barracudas e, embora não houvesse realmente perigo, podia acontecer que, apesar de todas as precauções, algum dos homens perdesse o controle.

E êles nadaram sob as águas prateadas. A princípio, abaixo deles, só a areia esbranquiçada do fundo do mar, po­rém logo adiante começaram a sentir os primeiros sinais do banco de coral, estavam chegando à ilha. Algas transparen­tes e ondulantes e árvores de coral submersas e por vezes cinzentas e misteriosas. Fora por causa destas coisas, destes mistérios submarinos, inofensivos porém impressionantes, que Largo resolvera ir liderando a equipe de mergulhadores. Lá no ponto em que o Vindicator tinha ficado submerso era diferente, a luz do holofote submarino clareava e simplifica­va tudo como se os homens estivessem numa sala. Aqui era diferente. Aquele mundo fantasmagórico de cinzas e brancos precisava da calma e da experiência de mergulhador que já estivesse estado ali centenas de vezes antes. Fora esta a razão principal por que Largo estava ali entre eles guiando o grupo. Além do que êle queria ver de perto como iam ser colocados aqueles dois importantes cilindros, precisava estar bem a par da coisa para, em caso de perigo, salvá-los êle próprio.

A parte de baixo da ilha havia sido cavada pelas águas do mar de forma que, vendo-a por baixo, ter-se-ia a impres­são de um enorme cogumelo; sob este guarda-chuva de co­ral, no que seria, por assim dizer, o caule, havia uma fenda, uma fissura escura e larga. Emílio Largo nadou para aquele ponto e quando chegou bem perto girou o interruptor da to­cha, iluminando-a. A luz amarelada da tocha mostrou toda a diminuta fauna aquática daquele trecho, uma lagosta de antenas em movimento, um peixe alado de movimentos leves e calmos, uma bêche de mer enroscada, cobras marinhas, hipocampos, plantas marinhas.

Largo, batendo os pés-de-pato, tomou posição, equili­brou-se, olhou em redor e levantou a luz para junto da rocha para que os outros pudessem ter uma boa visão e então fêz sinal para que o seguissem até a fenda que formava uma espécie de caverna de talvez dez jardas de comprimento e mandou que entrassem para aquele refúgio que poderia ter servido para esconder outros tesouros. No centro da peque­na caverna havia um buraco que ia até o ar livre e que por certo teria algum papel a desempenhar num dia de temporal, porém num dia de temporal era bem pouco provável que al­gum pescador chegasse até aquela ilha deserta para perceber o jato de água que partiria dali repentinamente como uma fonte. Pouco acima da linha de água os homens da equipe estavam fixando escoras na rocha para preparar uma espé­cie de berços para os dois cilindros, isto é, as duas armas atômicas, passando tiras de couro e afivelando-as bem para prevenir contra a ação das intempéries. Então, cada um por sua vez, os dois pares de homens colocaram, cuidadosamen­te, os volumes envoltos na embalagem de borracha nos seus suportes de ferro, ajustando-os bem com as tiras de couro. Largo examinou o resultado e ficou satisfeito. Ali as duas bombas estariam à sua disposição para quando precisasse delas; por outro lado qualquer irradiação que pudesse acon­tecer estaria ali guardada e bem longe de Nassau e seu iate e seus tripulantes estariam limpos e inocentes como neve.

Os cinco homens voltaram nadando para o Disco Vo­lante e entraram pela escotilha. O motor começou a roncar e o belo iate saiu mais parecendo uma aeronave do que uma embarcação marítima. E começou a viagem de volta. Largo despiu as peças molhadas, tirou os equipamentos de mer­gulho e com uma toalha em volta da cintura foi até a sala de rádio. Perdera a chamada da meia-noite. Agora o relógio marcava uma e um quarto da madrugada (seriam 7:15 da manhã para Blofeld).

Largo estava pensando nisso quando o contato foi feito. Blofeld estaria lá, sentado, esperando, mal-humorado talvez e com a barba por fazer. Haveria um bule de café a seu lado e êle estaria tomando uma xícara atrás da outra. Largo quase podia sentir o cheiro forte do café. Depois iria para os Banhos Turcos da rua Aubert, seu refúgio quando precisava aliviar tensões. E ali, afinal, adormeceria.

— N.° 1 falando.

— N.° 2 ouvindo.

— Etapa III cumprida. Etapa III completa. Sucesso. Uma da madrugada aqui, encerrando.

— Estou satisfeito.

Largo tirou os fones e pensou consigo mesmo: "Eu tam­bém! Vencemos mais de três quartos da tarefa e só o demô­nio nos faria parar agora".

Voltou ao salão de cima e foi ao pequeno bar preparar um bom drink, no copo alto. Sua bebida favorita: creme de menta frappé com cereja marasquino. Bebeu delicadamente, saboreando; depois tirou mais uma cereja, pôs na boca e saiu da sala.

 

Dominó

A pequena no MG esporte azul-safira desceu disparada pela Parliament Street e na encruzilhada com a Bay Street executou uma admirável mudança de terceira para segun­da. Olhou rapidamente para a direita, fêz um cálculo, ligeiro porém certo, da velocidade do cavalinho de chapéu de palha que vinha puxando a charretinha pintada de cores alegres e dobrou para uma transversal pela esquerda. O cavalinho levantou a cabeça assustado e o cocheiro bateu com o pé, diversas vezes o sino que lhe servia de buzina; a desvanta­gem daquele sino é que não era possível mostrar indignação com o seu ding-dong, ding-dong, por mais raiva que a pessoa tivesse. A garota acenou com a mão morena e em disparada foi parar à porta do Cachimbo da Paz, a Dunhills de Nassau. Sem se dar ao trabalho de abrir a porta do carro ela passou as pernas morenas por cima (levantando com isto a saia até quase a cintura e exibindo as coxas generosamente) e pulou para a calçada. O cocheiro também veio, mas estava encan­tado com a beleza da moça e falou apenas, na sua voz arras­tada:

Ei, moça... A senhora quase arranca as orelhas do coitado do velho Old Dreamy... A senhora devia ter mais cui­dado.

A pequena pôs as mãos nos quadris em desafio, não gostava que lhe chamassem a atenção, e falou asperamente:

Ora... Old Dreamy e você! Você e Old Dreamy! A gen­te tem mais o que fazer. Você e Old Dreamy deviam estar des­cansando na grama em vez de andar pela rua atrapalhando o caminho da gente!

O preto velho abriu a boca, pensou e falou, conforma­do:

— Está bem, moça. Está bem.

Voltou para sua charrete e pôs o cavalinho em movi­mento, abanando a cabeça. Olhou para trás e não viu mais a diabinha, que já tinha entrado numa casa comercial. Co­mentou, rindo:

Moça danadinha!

A vinte jardas dali James Bond tinha presenciado toda a cena e pensou a mesma coisa que o velho preto. Êle sabia quem era ela. Atravessou a rua e entrou também na charu­taria.

Lá estava a moça discutindo com o homem do balcão:

— Mas eu já disse ao senhor que não quero cigarro fra­quinho ou agradável. Quero um que seja tão desgraçado de ruim que eu não sinta vontade de fumar! O senhor não tem aí cigarro pra gente deixar de fumar? E, cobrindo com ges­to amplo todas as prateleiras: Não me diga que no meio de tudo isso aí não existe um mata-rato de gosto ruim!

O caixeiro estava acostumado com os turistas doidos que vinham ali e além do mais os nativos de Nassau não se exaltam e disse:

— Está bem, dona... — e começou a olhar as pratelei­ras, procurando.

Bond aproveitou a deixa para dizer muito sério:

— Pode escolher entre duas espécies de cigarros, se quer deixar de fumar.

— E quem é o senhor? Posso perguntar? — disse a moça, petulante.

— Meu nome é Bond. James Bond. Sou a maior autori­dade mundial na arte de deixar de fumar. Isso porque deixo constantemente. Sorte sua eu estar aqui, sabe?

A garota olhou-o de cima a baixo. Ainda não tinha visto este homem em Nassau; seis pés de altura, trintão, uma apa­rência agradável, com algo de cruel nos olhos cinzentos que agora a fitavam, sardónicos. Uma cicatriz na face direita. Pele ainda muito clara, denunciando sua chegada recente à ilha. Usava terno azul, leve, camisa de seda e gravata de malha preta. Apesar do calor êle parecia perfeitamente descansado e sua única concessão ao clima tropical parecia ser o uso de sandálias de couro pespontado nos pés sem meias.

Evidentemente estava dando em cima dela. É. Êle tinha um rosto atraente e autoritário e ela decidiu continuar a coi­sa. Mas não deixaria que fosse muito fácil e disse friamente:

— Pois muito bem, pode começar.

— Está certo. Olhe, o único meio de deixar de fumar é... é deixar mesmo de uma vez e não fazer-de-conta, enganando a si mesmo por uma semana ou duas e racionando a dose diária. Assim você acaba ficando muito enfadonha e acaba de idéia fixa no fumo. E voará ávida para pegar um cigarro, como um fruto proibido, sempre que puder. Ficará apática e isto não é nada atraente. Há também outra saída: comprar cigarros fortes ou fracos demais. Os fracos demais serão os indicados no seu caso. — Bond pediu ao caixeiro um pacote de Dukes, king-size com filtro, e entregou-o em seguida à garota, dizendo:

— Aqui estão, com os cumprimentos de Mefistófeles. Experimente.

— Oh! Mas eu não posso...

Nestas alturas Bond já tinha pago a conta, inclusive um maço de Chesterfields para êle mesmo. Apanhou o troco e saiu da loja atrás da moça. Pararam um pouco sob o toldo listado, o calor era terrível! A claridade lá fora era ofuscante e refletia-se nas vitrines das lojas e nos muros das casas e ambos apertaram os olhos. Bond foi quem primeiro falou:

— Quem fala em fumar, fala em beber. Será que vai deixar os dois num só dia, hein?

— Não acha que está sendo um pouco precipitado, Sr... Bond? Enfim... Está bem mas não por aqui. Está muito quente. Conhece o Wharf, depois de Fort Montague? Pois não é mau. Vamos. Eu o levarei no meu carro. Cuidado com os metais da porta, estão quentes de queimar!

Ela estava com a razão, pois até a forração de couro branco do carro estava aquecida e parecia queimar as co­xas de Bond através do tecido das calças, mas não perderia aquela carona nem que sua roupa pegasse fogo. Aquela era a sua primeira volta pela cidade e já apanhara a pequena. E que pequena! Êle segurou a alça de segurança, forrada tam­bém de couro branco, que havia no painel do carro, a tempo de agüentar a curva que ela fêz ao tomar a Frederick Street e depois a Shirley Street.

Bond estava sentado meio de lado para poder observá-la melhor. Ela usava um chapèuzinho de palha modelo igual ao dos gondoleiros e caído de jeito malandro para a frente. As fitinhas azuis do chapéu flutuavam no ar, na frente da fita havia a legenda "M/Y Disco Volante" em letras douradas; sua blusa de seda, mangas curtas, listada de azul e branco, a saia creme, lembravam-lhe as regatas de Henley. Não usava anéis ou jóias de qualquer espécie, apenas um relógio mas­culino e de ouro com mostrador preto. Sandálias sem salto, de antílope branco, combinando com o cinto largo e a bolsa grande que estava no banco do carro entre eles, tendo amar­rado na alça uma écharpe de seda preta e branca. Bond já sabia uma porção de coisas a respeito dela, pois aquela fora uma das fichas, que estivera estudando cuidadosamente no Departamento de Imigração naquela manhã. Seu nome era Dominetta Vitali, nascida em Bolzano, no Tirol italiano, e por conseguinte o seu sangue tinha tanto de austríaca como de italiana. Estava com 29 anos e dera a profissão de atriz. Tinha chegado seis meses antes no Disco Volante e estava mais do que claro que era a amante do dono do iate, um italiano cha­mado Emílio Largo. Prostituta, bandida, gatilheira, meretriz eram palavras que Bond jamais usava para classificar uma mulher, a não ser que fossem profissionais ou que as encon­trasse num ambiente comprometedor. Quando Harling, o co­missário de Polícia, e Pitman, Chefe do Serviço de Imigração e Costumes, tinham-na classificado de "prostituta italiana", Bond ficara calado, esperando para fazer o seu próprio jul­gamento. Agora sabia que agira bem em não ser precipitado; aquela era apenas um pequena independente, autoritária e de personalidade, talvez gostasse de boa vida, entre alegrias e riquezas, mas para Bond isso era natural. Talvez também dormisse com alguns homens, porém, por certo, seria com aqueles de sua escolha e quando lhe aprouvesse e não como uma mercadoria. Olhou para a pequena o volante do MG.

As mulheres são por vezes motoristas hábeis e cuida­dosas, porém raramente de primeira classe; de modo geral achava que as mulheres ao volante de um automóvel cons­tituíam um perigo em potencial. Êle sempre lhes dava pas­sagem e ficava pronto para o que desse e viesse. Duas mu­lheres no mesmo carro, então, eram um perigo mortal! Isto porque mulheres juntas não sabem ficar caladas e uma mu­lher, quando fala, tem de olhar para a cara da outra; uma simples troca de palavras não lhes basta, elas têm de ver a expressão facial da interlocutora para deduzir o que se es­conde por trás das palavras e também para analisar a rea­ção causada pelas suas próprias palavras. Assim é que duas mulheres no banco da frente de um automóvel conseguem desviar completamente a atenção do tráfego e concentrar-se na conversa e quatro mulheres dentro do mesmo automóvel significam catástrofe iminente! A que vai na direção tem de ouvir e ver não somente o que a vizinha do lado está dizendo, mas acompanhar também (assim são as mulheres) a conver­sa do banco de trás.

Esta, porém, era uma exceção: guiava como um ho­mem. Tinha a atenção na estrada à sua frente e no espelhi­nho retrovisor (acessório raramente usado pelas mulheres motoristas a não ser para ajeitar o cabelo) e também, coisa rara numa mulher, parecia sentir o prazer da sensação de dominar a máquina, de fazer com precisão uso das mudan­ças e dos freios.

A garota não conversou com Bond, durante o trajeto, e nem mesmo pareceu lembrar-se da sua presença, o que lhe deu ocasião para continuar sem inibição o seu exame de ob­servação. Ela possuía um tipo de rosto descontraído, que por certo teria algo de animalesco num momento de paixão; na cama ela devia ser do tipo que luta, morde, esperneia e de­pois se rende submissa e terna; Bond chegava quase a ver a boca orgulhosa e sensual e os dentes brancos e certos numa expressão de desejo, passando de uma ameaça de pante­ra zangada para a submissão de um momento de amor. Os olhos eram escuros e lembravam a inquietação dos pássaros, porém na loja êle pudera perceber um olhar firme e decidi­do, que sabia expressar a mesma mensagem apaixonada da boca. Tinha um bonito perfil, queixo arrogante marcando bem a sua natureza autoritária assim como a posição da cabeça no belo pescoço, o porte era de uma princesa insubmissa; apenas dois detalhes quebravam um pouco a imponência: os cabelos, estilo Brigitte Bardot, desarrumados e saindo em mechas do chapeuzinho de palha, e duas covinhas nas faces (que possivelmente só apareciam em sorrisos muito espe­ciais) e que Bond apenas adivinhava mas não tivera ocasião ainda de ver. O bronzeado do sol era um tom bonito de sua pele que não tinha aquela aparência pergaminhada que a maioria adquire pelo excesso de exposição aos raios solares. Sob a pele dourada das faces percebia-se o tom sadio aver­melhado dos Alpes italianos e seus seios altos e pontudos denunciavam a mesma origem. Bond chegou à conclusão de que estava ao lado de uma garota sensual e altamente tem­peramental, espécie de lindo exemplar de égua-puro-sangue daquelas que só se deixam domar por um cavaleiro de mús­culos de aço e assim mesmo à custa de bridão e cabresto até o ponto de lhe colocar sela e arreios. Bond concluiu também que gostaria muito de medir forças com ela! Mais isso num outro dia qualquer, no momento havia outro homem na sela, e seria preciso derrubá-lo primeiro. E afinal de contas o que é que estava fazendo ali àquela hora... pensando no que não presta. . . e havia tanto trabalho esperando por êle! E traba­lho sério mesmo.

O MG seguiu pela Shirley Street até a Eastern Road e tomou a direção da costa. Através da amplitude da entrada do cais podia se ver os contornos côr de esmeralda e tur­quesa da ilha Athel, um barco pesqueiro de grande calado ia passando com suas antenas de doze pés oscilando no ar; uma lancha a motor passou bem perto da praia rebocando um esquiador aquático em execuções malabarísticas sobre as águas. Estava fazendo um dia esplêndido, radiante, e por um momento Bond chegou a esquecer a preocupação com a missão que tinha a cumprir ali e que para êle, desde o início, parecia uma pura perda de tempo.

As Bahamas, cadeia de centenas de ilhas que se esten­dia quinhentas milhas do este da costa da Flórida até o norte de Cuba, de 27° de latitude até 21° de latitude, tinha sido por cerca de trezentos anos o reduto preferido de todos os tipos de pirataria do oeste do Atlântico. Hoje o Serviço de Turismo fazia amplo uso de todas aquelas lendas como atração para visitantes; até na denominação das estradas: "Torre do Bar-banegra — 1 milha"... "Ancoradouro da Garrucha-comida de mar-bebidas típicas — virar à esquerda..." etc.

Havia uma estrada de areia à esquerda e a moça tomou aquela direção. Finalmente parou diante de um casarão de pedra meio em ruínas, ao lado do qual estava uma constru­ção longa de janelas brancas e com um pórtico do qual pen­dia uma tabuleta com o clássico emblema pirata das duas tíbias cruzadas sob o crânio sorridente, A garota estacionou o MG à sombra de lindas casuarinas, saltaram e entraram então num pequeno salão de mesinhas cobertas com toa­lhas de xadrezinho vermelho e branco e daí passaram para um terraço construído com pedras de antigo ancoradouro. O terraço tinha manchas ensombradas por amendoeiras apa­radas em feitio de imensos guarda-sóis. Um garçom escuro de jaqueta manchada de gordura guiou-os até uma mesinha no extremo do terraço com vista para o mar. Bond olhou o relógio e disse para a moça:

— Precisamente meio-dia. Quer algo forte ou brando?

— Prefiro brando, um Bloody Mary duplo com bastante Worcester.

— E o que é que você chama de forte? Vou tomar vodka com tônica e uns dashes de bitter. — Bond olhou para o gar­çom, que ouvira e que lhe disse.

— Sim, sinhô. — E foi aviar o pedido.

— Para mim vodka-on-the-rocks é bebida forte. Já o meu com suco de tomates fica bem mais brando... — repli­cou a garota e, puxando com o pé uma cadeira para mais perto, colocou sobre ela as pernas cruzadas para apanhar sol. Mas a posição não lhe pareceu bem confortável e então atirou longe as sandálias e ficou mais satisfeita. Perguntou:

— Quando você chegou? Eu ainda não o tinha visto por aí. Sabe como é, quando a estação está para acabar a gente conhece já todo mundo!

— Cheguei esta manhã — respondeu Bond. — De Nova York. Vim à procura de uma propriedade para comprar por aqui. Achei que no fim da estação seria mais fácil porque, quando todos os milionários estão na terra, os preços sobem assustadoramente; quando eles vão embora há novamente um equilíbrio. E você, há quanto tempo está por aqui?

— Ahn... Cerca de seis meses. Vim no iate Disco Vo­lante. Você já o deve ter visto, está ancorado na costa. Deve ter passado por cima, no avião em que veio, em direção ao aeroporto de Windsor.

— Sim, uma embarcação longa e elegante! É sua? Tem linhas belíssimas.

— Pertence a um parente meu — respondeu a pequena, fitando Bond.

— E você fica a bordo?

— Oh, não! Temos uma propriedade na praia. Ou me­lhor, alugamos uma. Tem o nome de Palmyra e fica bem opos­to ao ponto onde o iate está ancorado. Pertence a um inglês e creio que êle quer vendê-la. É uma beleza. E fica retirada da linha obrigatória dos turistas num lugar chamado Lyford Key. — Foi a resposta paciente da pequena.

— Parece exatamente o que estou procurando!

— Pois nós vamos desocupá-la dentro de uma semana. Vamos embora.

— Oh! — exclamou Bond, fitando-a também. — Que pena!

— Se está querendo flertar comigo pelo menos não seja tão ostensivo, quero dizer... — e a garota caiu na gargalhada mostrando as tais covinhas da face — isto é... não foi bem isto que eu quis dizer. Bem, é que há seis meses venho ou­vindo galanteios destes velhotes bobocas e ricos que andam por aí e aprendi a ser um pouco rude como único recurso para fazê-los parar. Não é pretensão da minha parte, não, mas parece que não há um só com menos de sessenta anos! Acho que os jovens não têm meios de pagar o capricho aqui. Assim sendo, qualquer mulher que não tenha bigode e cava­nhaque... (e talvez nem isso os detenha) eles dão em cima. O que eu quero dizer é que qualquer pequena consegue emba­çar os óculos bifocais desses coroas. — Ela riu mais, estava se tornando quase amável quando disse: — Quem sabe você também faz o mesmo efeito sobre as velhotas de cabelos com rinçage lilás!?

— E... comem no almoço legumes cozidos na água? — perguntou Bond rindo.

— Sim, e suco de cenouras no jantar.

— Então não dá certo. Para mim no mínimo uma sopa de mariscos!

— Parece familiarizado com Nassau — falou a moça, olhando-o intrigada.

— Só porque sei que mariscos são afrodisíacos? — res­pondeu Bond. — Ora, isso não é regionalismo de Nassau. B fato sabido em toda parte onde há mariscos.

— Verdade? — perguntou ela, genuinamente admira­da.

— Sim, nas ilhas em geral os noivos tomam sopa de ma­riscos na noite de núpcias. Pra mim não faz efeito nenhum...

explicou Bond, rindo.

E... fêz ela, maliciosa e. . . você é casado?

Eu, não respondeu êle com simplicidade. E você, é?

Não...

Ótimo! Poderíamos então experimentar tomar sopa de mariscos e ver o que acontece!

Isto é apenas ligeiramente melhor do que a conversa dos velhotes, mas... a coisa não é tão fácil como pensa...

Nesse ponto chegaram as bebidas. A pequena mexeu, com o dedo, a bebida no copo para misturar bem e tomou a metade de uma só vez. Depois pegou o pacote de Dukes que Bond lhe dera, abriu, tirou um maço, rasgou o papel com a unha e tirou um cigarro, cheirou-o cuidadosamente e acen­deu-o com o isqueiro de Bond. Deu uma tragada, e soprou uma pluma de fumaça. Depois falou meio indecisa:

Não é mau. Pelo menos o fumo tem cheiro de fumo. Por que você disse que é técnico em deixar de fumar?

Porque já deixei muitas e muitas vezes respondeu Bond, achando que era hora de entrar em assunto mais pes­soal. Como é que você fala tão bem inglês? E tem sotaque italiano...

Bem, meu nome é Dominetta Vitali, mas fui educada numa escola da Inglaterra, o Cheltenham Ladies' College. De lá fui para o Rada aprender a ser atriz. Sabe, a maneira ingle­sa de representar. Meus pais achavam que esta era a manei­ra correta de educar uma lady. Mas então os dois morreram num desastre de trem e eu tive de voltar à Itália e ganhar a vida. Ainda me lembro do inglês que aprendi, porém o resto... logo esqueci tudo. — Ela riu sem amargura. — Não se ganha muito na Itália representando á moda inglesa.

E o parente dono do iate perguntou Bond, olhando o mar — não tomou conta do você? Não a ajudou?

— Não — respondeu ela, secamente, e, como Bond con­tinuasse calado, explicou. É que êle não é propriamente um parente. É um amigo chegado, sabe... uma espécie de... tutor, sabe?

— Ah! Sim...

— Você deve vir nos visitar no iate um dia destes. — Ela tentava mudar o rumo da conversa. — Êle se chama Emílio, Emílio Largo. Você já deve ter ouvido falar nele. Está aqui em busca de um tesouro...

— Verdade? — Foi a vez de Bond perguntar, espanta­do. — Que interessante! Gostaria de conhecê-lo, sim. Como é este negócio de tesouro? Está falando sério?

— Estou, mas não sei nada ao certo. Êle é muito mis­terioso a respeito. Parece que existe até um mapa mas não me deixaram ver e eu tenho de ficar por aqui quando eles vão no iate pesquisar... essas coisas complicadas e técnicas, sabe? Uma porção de gente fêz investimento de capital nessa busca, espécie de ações de uma sociedade. Chegaram todos os sócios há dias e agora que vamos embora na semana que vem acho que a busca está para dar resultado a qualquer momento.

— O que acontece com esses tesouros é que, quando a pessoa chega lá, vê que outro já chegou na sua frente e levou tudo. Ou então o navio está tão enterrado na areia e coberto de coral e algas que não se consegue mais nada. E como são os tais sócios? Quero dizer, gente camarada, alegre?

— É, parecem direitos. Muito ricos e muito compene­trados. Terrivelmente sérios para um assunto tão romântico como é a busca de um tesouro. Passam o tempo todo confa­bulando com Largo. Calculando, planejando, creio. E nunca dão um mergulho para nadar um pouco nem nada. Parece que têm medo de se queimar! Pelo que observei, nenhum deles jamais esteve em regiões tropicais antes. Um bando de homens de negócios carrancudos. Talvez sejam até muito bons mas eu não tive chance de lidar com eles para conhecê-los melhor. Largo vai dar uma festa para eles no Cassino esta noite.

— Que costuma você fazer o dia inteiro? — perguntou

Bond.

— Oh! Ando por aí. Faço compras para o iate. Dirijo meu carro por aí, dou uns mergulhos nas praias particulares quando os moradores não estão, gosto de nadar por baixo d'água, sabe? Tenho um aqualung e levo um dos homens da tripulação ou um pescador comigo, prefiro os marinheiros, sabem tudo.

— É, eu também já pratiquei esse esporte e até trouxe o meu equipamento. Você quer me indicar alguns bons reci­fes?

— Está bem — respondeu ela, olhando o relógio — mas agora devo ir. Muito obrigada pelo drink. Sinto não poder lhe dar uma carona de volta porque vou na direção oposta. Será fácil pegar um táxi aqui.

Então ela calçou novamente as sandálias e levantou-se para sair e Bond também se levantou e a acompanhou até o carro. A garota entrou rápido e deu a partida no motor. Bond arriscou mais uma vez: — Talvez eu a veja hoje a noite no Cassino, Dominetta. — Tá. — E olhando séria para êle, enquanto fazia a mudança do carro e pensava que seria bom vê-lo outra vez: — Mas, por favor, não me chame por Domi-netta. Ninguém me trata por esse nome. Todos me chamam Dominó.

E ela sorriu para êle, sorriu dentro dos olhos, ergueu a mão num aceno e partiu fazendo voar o MG azul e levantan­do areia à sua passagem; diminuiu a marcha na esquina e, enquanto Bond olhava, seguiu em direção a Nassau. James sorriu, murmurando:

— Sua cretinazinha.

Depois voltou ao bar para pagar a conta e pedir que chamassem um táxi para êle.

 

O Homem da C.I.A.

O taxi levou Bond para o aeroporto no outro extremo da ilha pela Interfield Road. O homem da Central Intelligence Agency devia chegar pela Pan American no vôo das 11:15; seu nome era Larkin, F. Larkin. Bond esperava que não fos­se desta vez algum ex-colega troncudo e musculoso, cabelo cortado rente, e ansioso para mostrar serviço, superando o 007 para agradar o seu chefe em Washington e procurando diminuir o orgulho do pessoal local. Esperava também que se tivesse lembrado de trazer o equipamento que havia pe­dido antes de sair de Londres, através da seção A, que se encarregava das ligações com a CIA. O que êle pedira fora um transmissor-receptor do tipo mais moderno e aperfeiçoa­do que permitisse comunicações imediatas e independentes com Londres e Washington e também um contador Geiger para ser usado tanto em terra como no mar. Uma das van­tagens da CIA, no seu modo de ver, era a excelência de seus equipamentos técnicos e não se sentia humilhado em recor­rer a eles nesse sentido.

Nova Providência, a ilha onde está Nassau, capital das Bahamas, uma faixa de areal, num encadeamento de praias das mais bonitas do mundo; a parte interna, porém, é um estirão de terra sem uso, casuarinas, lentiscos, plantas ve­nenosas e um lago grande de água doce na ponta oeste. Há pássaros e plantas tropicais e palmeiras importadas já gran­des da Flórida, mas nos belos jardins particulares que os milionários fizeram em redor de suas magníficas vivendas ao longo da costa. No meio da ilha mesmo nada há que atraia a vista e a atenção. Só as esqueléticas pás dos moinhos das bombas de água. E Bond passou a manhã apreciando a na­tureza e o belo céu.

Bond havia chegado às sete da manhã para ser recebido pelo ADC do Governador e foi levado para o Royal Bahamian, um velho e antiquado hotel que acabara de levar um verniz de conforto à moda americana, isto é, eficiência na recepção aos turistas, água gelada nos quartos, uma cestinha de fru­tas embrulhada em celofane com "os cumprimentos da Ge­rência" e toalhas de papel sanitized junto ao lavatório. Depois de um banho e um desjejum turístico tomado na varanda olhando a linda praia, êle se dirigiu para o Palácio do Gover­no. Eram nove horas, hora do encontro com o Comissário de Polícia, o Chefe do Serviço de Imigração e o Vice-Governador. Encontrou exatamente o que esperava encontrar: os impor­tantes e urgentes perigos e notícias secretas haviam causado um impacto superficial e lhe prometeram cooperação integral em todos os sentidos. Não obstante o 007 sentia que todos estavam achando aqueles cuidados e medidas meios ridícu­los e algo que não era suficientemente grave para perturbar a rotina da vida normal ou o repouso e tranqüilidade dos turistas naquela pequena e pacata colônia.

Roddick, o Vice-Governador, homem meticuloso, bigodi­nho aparado e pince-nez polido, deu o seu ponto de vista sensato sobre o assunto:

— O senhor vê, capitão Bond, na nossa opinião, e já debatemos a matéria cuidadosamente e todas as possibilida­des, todos os... a... ângulos, como diriam os nossos amigos americanos, é inconcebível que um imenso quadrimotor pos­sa estar escondido dentro dos limites desta colônia. A única pista de pouso com capacidade para aquelas proporções fica em Nassau. Quanto a um pouso no mar. . . amerissagem, não é assim que se diz? Temos estado em comunicação cons­tante com a Administração de todas as ilhas maiores pelo rá­dio, o tempo todo, e a resposta é negativa. Quanto ao pessoal do Radar no Departamento de Meteorologia...

Bond o interrompeu neste ponto para perguntar:

— Gostaria de saber se a tela do radar é observada em tempo integral. Minha impressão é que o tráfego é muito in­tenso durante o dia, porém à noite se torna reduzido. Haveria possibilidade de pequenos intervalos na observação da tela durante a noite?

Foi o Comissário de Polícia, um quarentão muito agra­dável, de porte muito militar com os botões de metal rebri­lhando no uniforme azul-marinho (sinal de que algum praça ficava incumbido de polilos o tempo todo, em grande ativida­de), quem respondeu com imponência:

— Acho que o capitão Bond acaba de aventar uma pos­sibilidade viável! Realmente o comando do aeroporto admite que a vigilância nesse sentido é um pouco afrouxada quan­do não há nada específico em pauta. Eles não contam com equipe muito numerosa, na maior parte são rapazes locais, gente daqui. Boa gente, sem dúvida, mas não podemos com­pará-los ao padrão de Londres. Além do que o radar de que dispõe o Departamento de Meteorologia é apenas um GCA de horizontes e alcance limitados, e usavam-no mais para nave­gação de transportes comerciais...

— Exato, exato — concordou o Vice-Governador, que pa­recia querer evitar uma discussão sobre a potência do radar ou a capacidade de trabalho dos naturais do lugar. — Sim, é um ponto a ponderar. Não há dúvida que o capitão Bond fará suas pesquisas nesse sentido. Agora... houve um pedido por parte da Secretaria do Estado (o nome soou pomposo) de detalhes e comentários a respeito de recém-chegados, sus­peitos em qualquer sentido, coisas assim. E... Sr. Pitman!

O Chefe do Serviço de Imigração era um natural de Nas­sau, magro, de olhos castanhos e ariscos, subserviente. Êle sorriu satisfeito e respondeu:

— Nada fora do normal e da rotina, senhor. Apenas o movimento natural da época, mistura de turistas e homens de negócio e o pessoal daqui que estava fora e volta depois das férias. Os detalhes estão pedidos há duas semanas. Te­nho aqui na minha pasta todas as fichas. Talvez o capitão Bond queira examiná-las comigo. Todos os hotéis grandes têm detetives particulares e eu poderei conseguir detalhes a respeito de qualquer nome em particular. Os passaportes todos foram conferidos na maneira de costume, não havia ir­regularidades em nenhuma das pessoas que aqui chegaram, nenhuma está na nossa lista de infratores.

— Posso fazer uma pergunta? — interrompeu Bond mais uma vez.

— Claro, claro — respondeu o Vice-Governador, com en­tusiasmo. — Estamos aqui todos para ajudá-lo.

— Estou procurando um grupo de homens. Dez ou talvez mais. Eles provavelmente se mantêm juntos a maior parte do tempo. Talvez atinjam o número de vinte ou trinta, não sei. Acredito que sejam todos europeus. Eles devem ter um navio ou um avião para uso deles, particular. Podem estar aqui há meses ou apenas há dias. Parece que vocês têm muitas Convenções se realizando em Nassau; comerciantes, navega­dores, associações turísticas, grupos religiosos, sei lá mais o quê. Ao que tudo indica devem ter tomado acomodações no mesmo hotel e comparecer a reuniões freqüentemente. En­fim, sabem me dizer se há algo nesse sentido?

O Sr. Pitman foi novamente chamado a responder:

— Sim, naturalmente que isso tem acontecido e até com freqüência e que o Departamento de Turismo acolhe muito bem. — Nesta altura o Chefe da Imigração esboçou um sorri­so meio confidencial para Bond, como se estivesse deixando transpirar um pequeno segredo. — Porém nas duas últimas semanas tivemos apenas o Grupo de Rearmarnento Moral no Onda Esmeralda e o pessoal da Tiptop Biscuit no Royal Bahamian e ambos já foram embora. O tipo de Convenção de sempre, muito respeitáveis.

— É este justamente o ponto, Sr. Pitman. As pessoas que procuro, e que devem ter roubado o avião, certamente farão qualquer tipo de esforço no sentido de parecer respei­táveis e comportar-se com sobriedade, de modo respeitável. Não estamos procurando uma gang de mal-encarados. Esta­mos lidando com gente importante, grande, entendem? E en­tão? Não há algo assim aqui pela ilha? — perguntou Bond.

— Bem... — Pitman sorriu outra vez. — Temos a costu­meira e anual busca ao tesouro!

Então o Vice-Governador estourou numa gargalhada, dizendo:

— Ora, Sr. Pitman, por favor! O senhor não está queren­do nos meter em trapalhadas com aquele pessoal! Não nos faça rir. Está claro que o Sr. Bond não vai perder tempo com um bando de "limpa-areias" milionários! Não creio!

O Comissário de Polícia interveio timidamente:

— Bem, o caso é só que eles têm um iate e um avião para uso particular. E também ouvi dizer que havia chegado um grupo de associados... Quero dizer que esses pontos coinci­dem com as perguntas do Sr. Bond! Sei que é ridículo, mas esse Largo é bastante respeitável e seus homens nunca nos deram trabalho. Aliás, devo assinalar que, fora do comum, nunca se registrou um caso de bebedeira entre a tripulação, nunca nos deram trabalho em seis meses de estada aqui.

E Bond agarrado ao fiapo de suspeita continuara seu trabalho de pesquisa por duas horas, no edifício da Alfânde­ga, no escritório do Comissário e fora também pela cidade à espera de ver casualmente Largo ou um dos seus homens, ou ouvir algum boato a respeito, e o que conseguira fora en­contrar Dominó Vitali!

E agora?

O táxi chegou ao aeroporto. Bond disse ao chofer para esperar e entrou no hall de recepção no momento justo em que a chegada do avião de Larkin estava sendo anunciada. Êle sabia que haveria a costumeira demora na Alfândega e

na Imigração. Foi até a Loja de Souvenirs e comprou um número do New York Times. Nos cabeçalhos discretos e nas manchetes sóbrias ainda se falava no desaparecimento do Vindicator. Talvez já soubessem também das duas bombas atômicas, porque o comentarista especializado Arthur Krock dedicou uma coluna inteira do editorial ao aspecto de segu­rança da aliança com a NATO. Bond estava bem no meio da leitura quando uma voz lhe disse ao ouvido:

— 007? Eu sou o 000.

O 007 virou-se rápido e lá estava o. . . Mas era Félix Lei­ter! Leiter era o homem da CIA que iria colaborar com êle. O velho companheiro de tantas outras aventuras perigosas de Bond! Satisfeito também, Félix sorriu e segurou o braço de James com o gancho de aço que era a sua mão direita e foi dizendo em tom brincalhão:

— Calma, meu chapa. Dick Tracy vai lhe contar tudo direitinho. Vamos andando. Minha bagagem já está lá fora. Vamos.

— Ora, vejam só! — exclamou Bond, entusiasmado. — Seu malandrão! Você sabia que ia trabalhar comigo?

— Claro. A CIA sabe tudo!

Na entrada estava a bagagem de Leiter, considerável nú­mero de volumes; embarcaram tudo no táxi que Bond dei­xara esperando e já iam para o Royal Bahamian quando um homem que estava encostado num sedan preto, Ford Cônsul, se dirigiu para eles dizendo:

— Sr. Larkin? Sou da firma Hertz. Este é o carro que o senhor encomendou. Espero que esteja de acordo com suas especificações.

Leiter olhou para o carro e aprovou:

— É, está bem. Quero um carro convencional e que ande. Não essas geringonças que só cabe dentro uma loura. Estou aqui a serviço, e não a passeio. — Posso ver a sua licença de motorista de Nova York, por favor? E assine aqui... Vou ano­tar o número do seu cartão do Diner's Club. Quando fôr em­bora pode deixar o carro em qualquer ponto, basta telefonar dizendo e mandaremos apanhá-lo. Passe bem, senhor.

Entraram então no sedan preto e Bond tomou a dire­ção. Leiter comentou que precisava se acostumar com aquela maneira de guiar do lado esquerdo e também queria ver o progresso feito pelo companheiro desde a última vez em que tinham estado juntos. Quando saíram dos limites do aero­porto, Bond perguntou:

— Agora, vamos ao que interessa. Da última vez que nos vimos você estava com Pinkertons. Como é que está a coisa?

— Esquematizada, tabelada com precisão. Puxa! Pare­ce até que estamos em guerra! Sabe, James, uma vez que a gente trabalha para a CIA fica atomàticamente no time de reserva. A não ser em casos muito especiais. Pelo jeito o meu velho chefe, Allan Dulles, não dispunha de homens quando o Presidente soou o alarme. Foi assim que eu e mais uns vinte recebemos a ordem: largar tudo e vir correndo se apresentar, dentro de 24 horas estar pronto para entrar em ação. Puxa! Pensei que a Rússia tivesse atacado! E então me deram as instruções para vir e trazer meu equipamento de caça sub­marina. Eu dei pulinhos, naturalmente, e perguntei se não devia também aprender a jogar biriba e tomar lições de chá-chá-chá. Foi então que me contaram a coisa e disseram que eu viria trabalhar com você. Aí eu achei que se o tal de N ou M, sei lá como você chama o seu chefe, tinha mandado você aqui nestas circunstâncias, é porque devia haver algo na pa­nela, afinal. Eu trouxe o equipamento que você encomendou através da Administração, peguei meu arpão e aqui estou. Agora é a sua vez, seu vagabundo, fale. Puxa! Que bom tra­balhar com você!

Bond então contou a Leiter toda a estória, desde o mo­mento em que M o havia chamado ao escritório na manhã anterior, e quando chegou à parte dos tiros e da granada Leiter o interrompeu:

— Ei! Que é que você acha disso, James? A mim parece uma terrível coincidência! Você andou mexendo com a mu­lher de alguém? Puxa! parece mais uma cena passada em Chicago do que no Piccadilly!

— Não. Para mim não faz sentido. Aliás o único homem que podia estar querendo acertar umas contas comigo seria um palhaço que encontrei numa clínica onde estive a conse­lho médico. — E Bond contou toda a sua odisséia em Shru-blands, meio sem jeito, esperando a gozação por parte de Félix. — Descobri que o tal sujeito era membro da Relâmpago Rubro Tong, chinesa, sociedade secreta. Êle parece que escu­tou a minha conversa com a "Records", os arquivos, sabe? Lá na cabine telefônica em linha comum e não gostou; na pri­meira oportunidade tentou me trucidar e eu, em retribuição, e para acertar as contas, quando tive oportunidade tratei de assá-lo vivo nos Banhos Turcos. Belo recanto, Shrublands! Você ficaria admirado de ver como suco de cenoura afeta as pessoas!

— Onde era esse hospício?

— Num lugar chamado Washington, lugar modesto com­parado com o seu Washington. É perto de Brighton.

— É... e a carta foi posta no Correio numa agência de Brighton!...

— Sim... Isso é uma jogada de longo alcance, não acha?

— perguntou Bond.

— Pois vou tentar outra mais perto. Um dos pontos tra­zidos à discussão era que se um avião tinha de ser roubado à noite e pousado à noite, uma noite de lua cheia seria o ideal para essa tarefa. Porém o avião foi roubado cinco dias depois da lua cheia. Suponhamos que o seu "pato assado" fosse o encarregado de enviar a carta, e suponhamos que o fato de estar queimado naquela data, precisamente, o tenha forçado a adiar a sua missão para cinco dias mais tarde quando saiu do hospital, recuperado. Então. . . então... os seus chefes ficariam muito zangados, não acha?

— Sim, sim — concordou Bond, seguindo-o interessado.

— Creio que sim.

— E suponhamos que tenham dado ordens então para que dessem cabo dele como punição por ineficiência. E su­ponhamos ainda que o executor do castigo tenha chegado no momento exato em que êle pensava ajustar as contas com você. Pelo que você me disse êle não era do tipo de deixar passar o que você fêz com êle. Pois bem. Que me diz? Faz sentido, não faz?

— Ora... — respondeu Bond, às gargalhadas. — Você deve andar tomando excesso de mescalina ultimamente. É, faz sentido para estória em quadrinhos, mas na vida real es­sas coisas não acontecem assim!

— É, na vida real ninguém se atreve a roubar um avião carregado com duas bombas atômicas! Só que acaba acon­tecendo mesmo! Você está ficando mole; Bond. Então, quem acreditaria em nós se contássemos alguns dos casos em que tomamos parte e que estão lá nos arquivos, hein? Não me ve­nha com veracidades e vida real e ficção; não há nada disso.

Bond resolveu aquiescer com paciência:

— Está bem, Félix. Vou lhe dizer o que vou fazer. A sua estória faz sentido, sim. Então vou me comunicar com M esta noite e relatar o seu raciocínio e êle pedirá à Scotland Yard para investigar os ângulos; vão investigar na clínica e no hospital de Brighton e se êle foi levado para lá já sabere­mos alguma coisa e poderemos partir daí. O pior é que o que resta da vítima é apenas um pé de sapato; e eu duvido que consigam alguma pista do motociclista, aquilo foi trabalho de profissional.

— E então? Por que não? Esses chantagistas estão tra­balhando com criminosos profissionais; o plano é de profis­sional do crime. Tudo se encaixa perfeitamente. Pois pode mandar a consulta e não se acanhe de dizer que a idéia foi minha! Minha coleção de medalhas ainda tem umas vagas esperando.

Nesse ponto tinham chegado à porta do Royal Baha­mian e Bond entregou as chaves do carro ao empregado para estacionar e entraram os dois. Leiter fêz o registro e subiram para o seu quarto pedindo que mandassem para lá dois mar­tinis duplos e o cardápio.

Entre os pratos de nomes pretensiosos Bond escolheu: Native Seafood Cocktail Supreme e Franguinho de granja au cresson, preço 38/6 ou 5.35 dólares, em caprichosas letras góticas. Félix preferiu arenque com molho de creme e lombi­nho com cebolas à francesa. (Nossos lombinhos são selecio­nados pelo Chefe e provêm de gado alimentado especialmente com milho do melhor e não na época certa para proporcionar o máximo ao freguês). Preço: 40/3 ou 5.65 dólares.

Depois de ambos discutirem e criticarem a mania de usar língua estrangeira para descrever comidas feitas com material congelado e os preços abusivos dos hotéis de tu­rismo, foram para a sacada discorrer sobre as deduções de Bond depois de um dia ali na ilha. Depois de meia hora e de mais dois martinis o almoço chegou. A conta dava um total de cinco xelins por uma comida muito mal feita. Os dois co­meram numa atmosfera de irritação e queixas ou em silêncio Finalmente, Félix não resistiu e comentou:

— Puxa! Isto não passa de carne moída e muito mal moída. E as tais de cebolas à francesa nunca estiveram na França e tem mais, as rodelas nem são redondas, são ovais! — Mexeu com o garfo no que restava. — Pois, bem, professor, e agora?

— Bem, a primeira decisão é: comer fora, em restauran­tes, no futuro e. . . o próximo passo será uma visita ao Disco Volante. Agora! Já! — Bond levantou-se. — E quando termi­narmos vamos saber se esta gente está mesmo procurando tesouro ou algo no valor de 100 000 000 de libras. E faremos o nosso relatório.

Bond apontou para a quantidade de malas no canto do quarto e comentou:

— Estou com o meu quarto lá em cima lotado de equi­pamento. O Comissário é muito cooperativo e um bom cará­ter. A Polícia das Colônias é boa e esta daqui então é ótima. Podemos ligar ainda hoje o transmissor que eu tenho. Esta noite há uma festa no Cassino. Iremos para ver quem tem cara interessante por lá. A primeira coisa a fazer, porém, é ver se o iate está limpo ou não. Você pode empregar o Geiger para isso?

— Claro. E você vai ver que maravilha! — Félix foi até a bagagem, abriu uma das malas de onde retirou o que parecia uma Rolleiflex num estôjo de couro. — Ajude-me aqui.

Bond ajudou-o a pendurar a tiracolo o pequeno estôjo. Depois Leiter retirou o relógio de pulso e substituiu-o pelo que parecia outro relógio de pulso e pediu:

— Agora, por favor, passe esses fios, que saem do relogi-nho, por dentro da manga do meu casaco. Assim. Agora es­ses dois plugues por dentro do bolso e ligue no estôjo. Viu? Estamos prontos! Sou um homem com uma câmara a tiraco­lo e um relógio de pulso. Veja, vou abrir a tampa do estôjo da máquina que é perfeita com lentes e tudo, até o disparador para a emergência de ter de fingir que está mesmo fotogra­fando. Só que por dentro há baterias, circuitos, válvulas, en­fim, o Geiger. Agora uma olhada para o relógio. É um relógio comum. — Aproximou o pulso dos olhos de Bond para que este visse. — Só que é um relógio de mecanismo pequenino e este ponteirinho de segundos é que marca a radioativida­de. Estes fios que sobem por dentro da manga ligam-no à máquina no estôjo. Vejamos, você ainda está usando aquele seu velho relógio de números fosforescentes. Dou uma volta pelo quarto para sondar o ambiente, isto é básico. Pode haver radiação em qualquer ponto. Então eu banco o tipo nervoso que tem um compromisso de hora e olha o relógio a todo momento. Por exemplo, aqui no banheiro pode haver algo, porém muito fraco. Já calculei o desconto da interferência ambiente e agora chego perto de você, aproximo a câmara do seu braço e veja: encoste o relógio no contador e olhe o ponteiro maluquinho, excitadíssimo. Afaste o relógio e note o resultado. Lembra-se daquela companhia, daquela fábrica de relógios para piloto, que retirou um certo tipo do mercado porque os números fosforescentes estavam emitindo radia­ções e a Comissão de Energia Atômica começou a reclamar? Isto é um trabalho importante, meu amigo! Quando se tra­ta de pesquisar urânio é preciso usar fones nos ouvidos. Já para estas radiações não é preciso. Pois então vamos alugar uma casquinha de noz e bancar o cão de faro aquático.

 

Meu Nome É Emilio Largo

O que Leiter chamara de "casquinha de noz" era o barco do hotel, uma lancha rápida de motor Chrysler que custava $20 por hora de aluguel. O piloto os levou para o oeste saindo do porto e passando por Silver Cay, Long Cay e as ilhas Bal­moral, contornando Delaporte Point. Cinco milhas pela costa incrustada de belas vivendas que o piloto informou custarem 400 libras por pé de terreno. Depois de contornar Old Fort Point chegaram até onde estava a bela embarcação azul com suas duas âncoras na água.

Leiter deu um assobio de espanto, murmurando:

— Puxa! Que barco! Rapaz... bem que eu gostaria de ter um destes para brincar na minha banheira!

— É construção italiana — informou Bond. — Foi feito por uma firma de Messina chamada Rodrigues. Eles cha­mam isto lá de aliscafo. Tem uma bolina especial que a faz praticamente voar acima da água. Apenas as pás das hélices e um pouquinho da proa tocam as águas. O Chefe de Polícia disse que este iate pode fazer cinqüenta nós em mar calmo.

Tem capacidade para levar uma centena de passageiros em transporte rápido. Este parece ter sido preparado para uns quarenta. O resto do espaço foi aproveitado pelo dono, para guardar seu equipamento e para carga. Deve ter custado, no mínimo, um quarto de milhão.

— Dizem lá no cais — interrompeu o homem da lancha — que dentro de dias vão partir em busca do tesouro. To­dos os caras que empregaram dinheiro na coisa chegaram há dias. Gastaram uma noite inteira em pesquisas. Dizem que lá para Exhuma ou depois de Watlings. Acho que vocês sa­bem que foi lá que Colombo primeiro encostou em terra neste lado do Atlântico, no ano de mil quatrocentos e tal... Mas pode estar em qualquer ponto o tal tesouro. Falam muito no tesouro, nas Ragged Islands e mesmo até na Crooked Island. Mas a verdade é que partiram para o sul. Eu mesmo ouvi, até que o som dos motores foi sumindo. Eu não sei — e o rapaz cuspiu discretamente para o lado da água — mas deve ser um tesouro muito valioso para que tanta gente empregue tanto dinheiro! Cada vez que vão até Hoiling Wharf a despesa é de quinhentas libras.

— Quando foi a última noite em que fizeram esse tipo de pesquisa? — perguntou Bond, casualmente.

— Há duas noites; saíram mais ou menos às seis. As vigias do iate pareciam olhar para eles quando se

aproximaram. Havia um marinheiro polindo metais que, à aproximação da lancha, levantou e Bond pôde vê-lo falan­do num porta-voz para dentro do iate. Então apareceu um homem alto, vestindo calças de lona azul e blusa de malha aberta, e com um binóculo começou a observá-los. Êle cha­mou o marinheiro, que se dirigiu para o topo da escadinha. Quando encontraram o homem, com as mãos em concha para se fazer ouvir, gritou:

— Qual é o assunto de vocês? Têm hora marcada?

— É o Sr. Bond — respondeu James. — De Nova York. James Bond, estou com meu advogado e queria umas infor­mações sobre Palmyra, propriedade do Sr. Largo.

— Um momento, por favor — respondeu o marinheiro, desaparecendo e depois voltando com o tal homem alfo que Bond reconheceu pela descrição que lhe haviam feito. Este os recebeu com jovialidade, dizendo:

— Subam, subam a bordo.

E mandou que o marinheiro os ajudasse. Bond e Leiter subiram a escadinha e pularam para bordo do iate. Largo lhes estendeu a mão:

— Meu nome é Emílio Largo. O Sr. é Bond e o Sr.... ?

— Sr. Larkin, meu advogado de Nova York. Eu sou in­glês, porém tenho propriedades na América. Lamento inco­modá-lo, Sr. Largo, mas é que gostaria de saber acerca de Palmyra, aquela propriedade que eu creio lhe foi alugada pelo Sr. Bryce.

— Sim, naturalmente. — Largo riu, mostrando os belos dentes brancos e brilhantes. — Vamos descer ao salão, ca­valheiros. Peço que desculpem a informalidade do meu traje. — As mãos enormes postavam-se na cintura. — É que em geral os meus visitantes se anunciam previamente. Mas se não se importam...

E Largo deixou a frase no ar e foi à frente, seguido pelos dois visitantes, através de um corredor e descendo degraus de alumínio até a cabine principal.

Era uma bela cabine, ampla, forrada de mogno, tendo tapetes côr de vinho no chão e confortáveis poltronas for­radas de couro azul-escuro. O sol, penetrando através das venezianas, acrescentava um toque de alegria ao ambiente sóbrio e masculino, a mesinha do centro coberta de mapas e papéis, armários de porta de vidro contendo equipamento de pesca e espingardas de caça submarina, roupa imperme­ável para mergulho, aqualungs parecendo esqueletos numa caverna de feiticeira. O aparelho de ar condicionado funcio­nando tornava o ambiente extremamente agradável e Bond sentiu sua camisa, que estava colada ao corpo pelo suor, começar a desprender-se e secar.

— Sentem-se, por favor, senhores — falou Largo, afas­tando, com gesto indiferente, os mapas e papéis da mesa como coisas sem importância. — Aceitam um cigarro?

Ofereceu uma caixa de cigarros, em prata. — E o que querem beber? Algo frio e não muito forte, não é mesmo? Gin Tônica? Ou um Planter's Punch? Temos também cerveja de diversas marcas. Vocês devem ter torrado viajando naquela lancha descoberta! Eu teria mandado a minha lancha buscá-los, se tivesse sabido.

Largo foi até o armário das bebidas muito bem sortido, sem dúvida, porém os visitantes escolheram apenas tônicas geladas. E Bond então falou, polidamente:

— Lamento ter chegado assim, sem avisar, Sr. Largo. Não me passou pela cabeça que poderia ter entrado em co­municação com o senhor por telefone, é que chegamos esta manhã e como não disponho de muito tempo eu quis logo tratar do assunto. O assunto é o seguinte: estou procurando uma boa propriedade para comprar por aqui.

Largo veio com os copos e as garrafas e sentou-se ao lado dos recém-chegados formando um grupo amistoso e dis­se:

— Oh! Sim? Que ótima idéia. Isto aqui é um lugar for­midável. Estou aqui há seis meses já e gostaria de poder ficar para sempre. Mas os preços que estão pedindo! Esses piratas da Bay Street e os milionários, então, são ainda piores. Foi inteligência de sua parte vir assim no fim da estação, talvez algum dos proprietários esteja desapontado por não ter con­seguido vender ainda a sua propriedade e então queira abrir a boca um pouco menos.

— Foi isso mesmo que eu pensei — respondeu Bond, fumando, confortavelmente reclinado na poltrona. Ou me­lhor, foi o que o meu advogado, o Sr. Larkin, pensou. Êle andou rondando por aqui e acha que os preços são de louco! — Bond se voltou cortêsmente para Félix, trazendo-o a tomar parte na conversa. — Não é verdade, Larkin?

— Sim. É espantoso, Sr. Largo, espantoso! Muito pior do que na Flórida. Preços de outro mundo. Eu não aconse­lharia a nenhum cliente meu fazer investimento nesta base de preços!

É verdade, é isso mesmo. Largo concordou, pare­cendo não estar com vontade de afundar muito no assunto. — O senhor falou em Palmyra... Há algo em que eu possa servi-los?

— Eu soube que o senhor tem contrato de locação da­quela casa, Sr. Largo, e ouvi dizer também que está para ir embora — falou Bond. — Possivelmente só boatos, sabe como é a gente nestas pequenas ilhas. O caso é que me pa­rece que Palmyra é exatamente o que estou procurando e talvez o dono, esse inglês Bryce, queira vendê-la se a minha oferta fôr boa. O que eu queria pedir ao senhor — Bond falou, desculpando-se — era se nos seria possível dar uma vista d'olhos pela casa, quando o senhor não estiver, naturalmen­te, e na hora que o senhor achar mais conveniente.

Largo pareceu satisfeito, espalmou as mãos enormes e sorriu:

— Mas naturalmente. Não há problema, meu caro. Quando quiser. Não há mais ninguém lá, além de minha so­brinha e alguns criados. E ela sai muito. Peço que telefonem a ela para marcar. Tratarei de avisá-la do que se trata. É realmente uma bela propriedade, encantadora. Uma jóia de arquitetura e imaginação. Se todos os ricos tivessem aquele bom gosto!

Bond levantou-se então e Leiter fêz o mesmo. Bond fa­lou:

— É muita gentileza de sua parte, Sr. Largo. Agora va­mos deixá-lo em paz, possivelmente nos tornaremos a encon­trar na cidade a qualquer momento. Então deve vir almoçar conosco qualquer dia, mas — Bond olhou em redor com ad­miração exagerada — com um iate como este não creio que faça questão de ir à terra muito amiúde. Este deve ser único neste lado do Atlântico. Parece que havia um navegando en­tre Veneza e Trieste, não é verdade? Lembro-me de ter lido algo a respeito...

Largo sorriu satisfeito e orgulhoso, confirmando:

— Sim, está certo, é isso mesmo. Também há alguns em lagos italianos. Para passageiros. Agora a América do Sul também está comprando alguns. É realmente uma linha magnífica para águas costeiras. Apenas quatro pés com as hélices funcionando!

— E não há problemas de acomodação?

É uma fraqueza de todos os homens, e apenas de algu­mas mulheres, o orgulho que sentem pelos seus bens ma­teriais e Largo não pôde conter uma expressão de incontida vaidade quando disse:

— Não, não, absolutamente, verá que não há esse pro­blema. Pode dispor de cinco minutos mais? Estamos lotados no momento. Deve ter ouvido falar na nossa busca ao tesou­ro, não? — E olhou, em expectativa, temendo que o achas­sem ridículo. — Mas isso não vamos discutir agora. É que os meus associados nesta empresa estão todos aqui a bordo. Contando com a tripulação... somos quarenta ao todo. E verá que não estamos mal acomodados. Gostaria de ver?

Largo fêz um gesto amplo guiando-os através da passa­gem. Foi a vez de Félix interromper:

— Não esqueça, Sr. Bond, que temos encontro marcado com o Sr. Harold Christie às cinco horas.

— O Sr. Christie é uma excelente pessoa e não fica­rá aborrecido se nos atrasarmos uns cinco minutos — falou Bond, calmo. Eu gostaria muito de ver o resto desta mara­vilha de iate, já que o Sr. Lago quer fazer a gentileza de nos dispensar mais esses minutos.

— Vamos. Não gastaremos mais do que alguns minu­tos. O simpático Sr. Christie também é amigo meu. Êle com­preenderá — falou Largo, abrindo a porta da cabine para que eles passassem.

Bond não gostou dessa cortesia, porque iria atrapalhar o Geiger de Leiter, e foi então mais afável, dizendo:

— Não, por favor, o senhor primeiro. Vá na frente, mos­trando-nos o caminho.

Numa troca infinita de amabilidades Largo concordou e foi na frente. Os iates são, mais ou menos, todos a mes­ma coisa, por mais modernos que sejam; corredores, portas a bombordo e estibordo, casa de máquinas, filas de cabi­nes (que Largo explicou estarem ocupadas no momento pe­los seus sócios), os quartos de banho, a cozinha onde dois italianos animados com as piadas de Largo sorriram den­tro de seus uniformes brancos e pareceram satisfeitos com o interesse dos visitantes. A casa de máquinas era enorme e o chefe de máquinas e seu ajudante, pareciam ambos ale­mães, deram explicações entusiásticas acerca dos potentes motores Diesel e sobre o descompressor hidráulico. Era a mesma coisa que visitar qualquer outra embarcação, dizen­do as mesmas coisas aos homens da tripulação e usando os mesmos superlativos para com o proprietário.

No espaço depois do convés estava o pequeno anfíbio de dois lugares pintado de azul-escuro e branco para combi­nar com o Disco Volante, suas asas recolhidas e os motores luzindo ao sol. Havia um escaler com capacidade para vinte homens e um gigante elétrico para içá-lo para bordo ou pô-lo n'água. Bond olhou tudo atentamente, fazendo comentários casuais como:

— E o porão? Tem mais cabines lá?

— Não, apenas armazenagem, tanques de combustível, este barco sai caro em combustível! — explicou Largo. — Carregamos diversas toneladas. A questão de lastro também é importante porque, quando a proa se ergue, o combustí­vel tende a movimentar-se. Providenciamos tanques laterais para corrigir isso.

Conversando fluentemente foram passando pelo corre­dor a estibordo para a sala de rádio. Bond falou:

— Vocês têm realmente um belo equipamento! E o que mais... O costumeiro Marconi de ondas longas e curtas? Pos­so dar uma olhada? O rádio sempre me fascinou.

Largo, com polidez, impediu-o:

— Sim, mas outro dia, talvez. Sabe, mantenho o radi­operador em comunicação com a meteorologia por tempo integral, os boletins são muito importantes para nós neste momento.

— Naturalmente — teve de concordar Bond. Passaram por mais algumas dependências sempre

acompanhados pelas gentis explicações de Largo, chegaram ao tombadilho e êle disse:

Aí está. O grande Disco Volante, "o disco voador", voa mesmo! Posso garantir. Espero que o senhor e o Sr. Larkin concordem em fazer um pequeno passeio conosco qualquer dia; por enquanto, como sabem, estamos muito ocupados na busca do tesouro.

— Muito fascinantes essas buscas. O senhor acha que tem chance mesmo?

— Preferimos achar que sim — respondeu Largo. — Gostaria de poder lhe adiantar mais qualquer coisa, porém — levou a mão à boca — como dizem, meus lábios estão se­lados. Espero que compreenda.

— Sim, naturalmente — concordou imediatamente Bond. — O senhor tem os seus associados a respeitar. Gos­taria de ter sido também acionista para tomar parte na coisa. Creio que agora não há mais vaga para um novo sócio?

— Qual nada! É como se diz, a folha está completa. Teria sido muito bom tê-lo conosco. — Largo apontou a mão enor­me para Félix. — Noto que o Sr. Larkin tem estado olhando com freqüência para o relógio durante a nossa curta visita às dependências do iate. Não devemos fazer o Sr. Christie espe­rai ainda mais. Foi um grande prazer conhecê-lo, Sr. Bond. E ao senhor, Sr. Larkin.

E com mais algumas palavras de cortesia os visitantes desceram a escadinha e tomaram a lancha Chrysler e fo­ram embora. O amável Sr. Largo ainda acenou de longe para eles.

Os dois sentaram no outro extremo do barco, longe do rapaz que o guiava. Leiter abanou a cabeça, batendo com a mão no Geiger:

— Absolutamente negativo. Todas as relações, quer na sala de rádio, quer na casa de máquinas... tudo normal, ex­traordinariamente normal. E você o que achou dele e das instalações?

— O mesmo que você. Normal, tudo extremamente nor­mal! Êle parece ser exatamente o que diz que é, e assim se comporta. Não havia muitos homens da tripulação à vista, porém os que vimos ou eram mesmo marinheiros ou exce­lentes atores. Apenas dois pontos me intrigaram. Não ha­via passagem para o porão à vista... mas isso, naturalmente, podia estar sob o tapete, por motivos estéticos, uma espécie de alçapão... mas nesse caso como levar para lá as cargas da armazenagem que êle mencionou? E olhe que há muito espaço naquele porão, mesmo sem entender de construção naval eu sei disso. Vou consultar o serviço de abastecimento de óleo, através do pessoal da Alfândega, para saber quanto combustível Largo carrega no seu iate. E outra coisa esquisi­ta. Não vimos um, sequer, dos falados acionistas, eram três horas quando fomos a bordo e podia ser hora da sesta... mas todos os 19 de uma vez?! Que fazem todo o tempo trancados em suas cabines? Outra coisa, você reparou que Largo não fumou e que não havia o menor cheiro de fumo em todo o barco? Isto é bem estranho... Quarenta homens a bordo e nenhum fumante! Podia-se dizer que isto não é apenas uma coincidência, porém uma medida disciplinar. Os "profissio­nais" em geral não bebem nem fumam em serviço... mas este palpite pode ser apenas um tiro de longo alcance. Você repa­rou no Navegador Deca e no alto-falante? Equipamentos de preço alto! Nada incomum num iate daquela classe, mas Lar­go não fêz questão de mostrá-los e estes homens ricos têm muito orgulho dos seus brinquedinhos. Enfim, cada ponto desses é apenas uma palhazinha para a gente se agarrar. Não temos nada de concreto, apenas há uma porção de es­paço que não nos foi mostrada nem explicada... Aquela con­versa sobre o lastro também me pareceu meio matreira. Que é que você acha?

— O mesmo que você. Deixamos de ver bem a metade daquele iate, mas para isso também há uma boa resposta: êle pode alegar que tem guardado lá seu equipamento de busca ao tesouro que prefere manter em segredo. Você se lembra daquele navio mercante lá em Gibraltar, durante a guerra? Os homens-rãs italianos usavam-no como base; ha­via uma escotilha, espécie de portão cortado no casco abaixo da linha d'água. .. Quem sabe se êle tem algo assim? — ter­minou Leiter.

Bond se virou rápido para olhar Félix e disse:

— A "Olterra", uma das invenções marcantes usadas contra o Serviço Secreto durante a guerra toda. . . O Disco está ancorado num ponto de quarenta pés de profundidade... Suponhamos que tenham enterrado as bombas na areia, sob este ponto... Será que o seu Geiger registraria isso?

— Não creio... mas tenho um modelo para debaixo d'água e poderíamos ir experimentar quando escurecer. Mas, francamente, James — Leiter parecia desanimado — será que não estamos exagerando e vendo ladrões debaixo da cama, como se diz?... Há tanta coisa para observar. Este Largo parece ser um sujeito poderoso e prático, talvez um pouco vigarista com relação a mulheres. Mas, afinal, que te­mos contra êle? Você já fêz alguma pesquisa a respeito dele, dos acionistas e da tripulação?

— Sim, fiz uma consulta ao Palácio do Governo, Taxa de Urgência; devemos receber uma resposta ainda esta tarde. Mas preste atenção, Félix. — A voz de Bond era obstinada. — Trata-se de um iate com um avião anfíbio a bordo e quarenta homens a respeito dos quais nada se sabe. Em toda esta área não há outro grupo, ou indivíduo, ou o que seja, que apre­sente ao menos uma das muitas características que estes apresentam. Está bem, está bem, tudo naquele iate parece perfeitamente normal... mas suponhamos que essa aparên­cia esconda alguma coisa com muita habilidade, esta nor­malidade pode ser exatamente a capa de proteção que eles precisam para agir. Vamos arrumar o quadro outra vez: to­dos esses chamados acionistas chegam juntos, bem a tempo para o 3 de junho. Nessa noite o Disco Volante sai para o mar e só retorna pela manhã; suponhamos que tenha ido ao en­contro do avião em algum ponto do mar onde a profundidade não seja muita, suponhamos que eles tirem as bombas e as escondam em alguma parte, na areia sob o iate, por exemplo, em algum ponto seguro e conveniente. Suponhamos que a coisa se tenha passado assim. Que tem você a dizer?

— Parece lógico, na minha opinião — respondeu Leiter, resignado — porém, apesar de ser uma pista... eu preferia dar um tiro na cabeça do que mandar esta estória no meu re­latório desta noite. Se vamos fazer papel de bobos... o melhor é guardar distância dos nossos chefes. Que é que você pensa fazer? Qual será o nosso próximo passo?

— Bem, você fica esperando a comunicação com a res­posta que pedi, enquanto vou saber a respeito da carga de combustível. Depois, vamos telefonar a Dominó para ver se conseguimos ir até a casa de Largo e dar uma olhada na sua base em terra, a Palmyra. Depois iremos até o Cassino para ver toda a turma de acionistas e então — Bond olhou com expressão teimosa para Félix — eu vou pedir ao Comissário de Polícia um bom auxiliar para me ajudar, ponho o aqua­lung e vou nadar em volta do Disco Volante com o seu Geiger submarino e observar.

Leiter continuava desanimado e disse, lacônico:

— O Sombra ataca outra vez! Está certo, James, estou com você. Será em nome dos nossos velhos tempos. Mas veja lá se vai meter o pé num ouriço-do-mar, você sabe, estão dando aulas gratuitas de chá-chá-chá no Royal Bahamian e nós não podemos perdê-las! Será a nota mais interessante do meu diário de viagem.

Chegando ao hotel Bond encontrou um mensageiro do Palácio do Governo que o cumprimentou reverentemente e lhe entregou um envelope oficial, apresentando o recibo, que Bond assinou. Era um cabograma para o Gabinete local. Par­ticular para o Governador, e depois indicado PROBOND, e dizia: "Sua consulta 1107 — nada consta nos arquivos, repi­to, nada nos arquivos sob estes nomes ponto todas as fontes resposta negativa acerca Operação Ameaça Explosiva ponto que tem a perguntar ponto assinado Prisma (que significa que M aprovara a mensagem)."

Bond passou o telegrama para Leiter, que o leu e co­mentou:

— Está vendo o que quis dizer? Estamos numa roda viva, estamos presos numa chave de braço. Bem, encontro você mais tarde no Pineapple Bar para tomar um martini seco e meia azeitona. Vou mandar um postal para Washing­ton pedindo que nos mandem umas duas waves. E teremos tempo para o que quisermos.

 

Martinis Azedos

No que se referia ao programa de Bond, uma parte foi por água abaixo. Pelo telefone Dominó Vitali informou que não convinha que fossem ver a casa naquela tarde, porque Largo e os sócios iriam descer à terra. Sim, possivelmente se encontrariam mais tarde no Cassino. Iriam todos jantar a bordo e depois o Disco ancoraria perto do Cassino. Mas como ela o reconheceria? Tinha péssima memória, não era fisiono-mista. Só se êle usasse uma flor na lapela, ou algo assim...

Bond rira ao telefone e dissera que estava bem, êle a reconheceria, não conseguira esquecer aqueles belos olhos azuis... inesquecíveis! E desligara o telefone ainda rindo de modo sensual. De repente sentia muita vontade de vê-la.

Mas o movimento do iate alterara seus planos para melhor. Ia ser muito mais fácil fazer aquela visita por baixo d'água com o iate parado no porto, nadaria muito menos e seria muito mais fácil descer para a água no cais da Polícia. Além disso seria mais fácil fazer um exame no local onde estivera ancorado... mas se Largo não se importava de sair, assim despreocupadameníe, as bombas, no caso de estarem em seu poder, não podiam estar guardadas lá; ou o Disco permaneceria ali de guarda. Bond resolveu se contentar com menos até ter alguma informação acerca do casco do iate.

No seu quarto escreveu seu relatório, negativo para M. Depois leu e releu. Era um pouco deprimente... Seria bom fa­lar nos palpites que tinha? Não, não até ter algo mais concre­to. Raciocínio de quem quer satisfazer o receptor de notícias, a comodidade mais perigosa no Serviço Secreto de Investi­gações. Bond podia imaginar a ansiedade na sala especial da Operação ameaça explosiva, onde todos aguardavam em tensa expectativa qualquer palhinha para se agarrar. Previa as precauções de M informando: penso que talvez tenhamos algo lá nas Bahamas, nada de definitivo, mas aquele agente não costuma errar nas suas pistas. Vamos pesquisar, reexa­minar para ver se podemos acompanhar a pista. . . E então o boato correndo: M tem uma pista, seu agente acha que des­cobriu alguma coisa nas Bahamas. Sim, é melhor comunicar ao Primeiro Ministro. Bond sentiu um arrepio. Via os canais urgentes todos ocupados e chamados para êle tumultuan­do: Elucide caso 1806. Mande detalhes completos. O Premier quer detalhados relatórios sobre caso 1806. Seria uma con­fusão sem fim. E Leiter, coitado, receberia outros tantos avi­sos por parte da CIA. O local seria revolvido, agitado. E o pior seria quando viesse a resposta: "Surpreendido por ver você levar a sério tão frágil indício! Futuramente limite-se a fatos", e a humilhação final: "Em vista da natureza especulativa do relatório 1806 e seguintes vírgula futuras notícias devem vir contra-assinadas representante da CIA".

Só de imaginar tudo isso Bond estava transpirando. Enxugou a testa. Destrancou o estôjo contendo a máquina de cifrar, traduziu seu texto pequeno, simples, negativo, exa­minou, conferiu, e foi para a sede da Polícia, onde Leiter es­tava sentado à mesa de comunicações telefônicas, suando à espera. Dez minutos mais tarde Félix retirou os fones e passou-os para Bond dizendo, enquanto enxugava o pescoço com o lenço úmido:

— Primeiro foram manchas solares. Tive de apelar para a onda de emergência e então descobri que puseram um orangotango no outro extremo da linha, desses que são ca­pazes de ficar recitando Shakespeare, se você deixar. E de­pois — êle sacudiu os papéis que tinha na mão — tenho de decifrar toda esta embrulhada para no fim ver que se trata de uma mensagem para me informar quanto tenho de pagar por este fim de semana ensolarado.

Bond então mandou a sua mensagem rapidamente. Se­ria recebida avidamente naquela sala do oitavo andar, seria enviada ao supervisor que rotularia: Particular para M, cópia para a Seção 00 e Arquivos, e a mocinha correndo com as folhas de papel amarelo na mão. Bond assinou a mensagem, desligou e foi para a sala do Comissário, deixando Félix às voltas com seus sinais.

Harling estava sentado à sua mesa, sem casaco, ditan­do alguma coisa para o sargento. Dispensou o sargento, pe­gou uma caixa de cigarros, ofereceu-a a Bond, tirou um e acendeu-o. Perguntou, sorrindo:

— Então? Algum progresso?

Bond relatou que a resposta à sua consulta aos Arqui­vos sobre Largo tinha sido negativa, que tinha resolvido fazer uma visita ao iate levando um Geiger disfarçado. Também esta tentativa resultará negativa. Mas não estava convencido e disse ao Comissário que gostaria de saber acerca da capa­cidade de combustível do Disco e a exata localização de seus tanques. O Comissário concordou de boa vontade e pegou o telefone chamando o Sargento Molony da Polícia do Porto. Acomodou o fone junto ao ouvido e explicou:

— Nós controlamos todo o abastecimento. Este é um porto pequeno e lotado de embarcações, lanchas, barcos pes­queiros, tudo. Sabe, perigo de incêndio, por isso temos de sa­ber quanto levam de óleo e gasolina e onde ficam os tanques. Precisamos estar preparados para o caso de irromper um incêndio e sei preciso afastar um barco às pressas... E vol-tando-se para o fone, perguntou: — Alô! Sargento Molony?

Transmitiu a consulta de Bond, ouviu a resposta e agradeceu, desligando a seguir. Dirigiu-se então para James, explicando:

— Eles carregam um máximo de quinhentos galões de Diesel. Na tarde de 2 de junho abasteceram completamente. Levam também cerca de quarenta galões de óleo lubrificante e centenas de galões de água potável, tudo diante da casa de máquinas, no centro do iate. Era isto que o senhor queria saber?

De fato, era isso, porém não fazia muito sentido com o que Largo dissera sobre o lastro e a questão da distribuição do peso. É natural que êle quisesse manter certo sigilo sobre seu equipamento de busca ao tesouro, mas, afora isso, havia algo que estava escondendo a bordo. O Sr. Largo era talvez um caçador de tesouros de piratas, mas também era do tipo em que não se pode confiar. Agora Bond havia formado sua opinião a respeito. O que interessava no momento era o cas­co do Disco Volante. E Leiter, lembrando Olterra, trouxera algo à tona, algo que talvez não desse em nada... mas tam­bém podia ser que desse.

Bond relatou parte dessas conclusões ao Comissário, dizendo onde o Disco estaria ancorado naquela noite. Será que poderia ceder um homem de inteira confiança da sua Força para ajudá-lo na busca por baixo d'água que pretendia empreender à noite? Será que tinham em disponibilidade um bom aqualung carregado?

Harling perguntou delicadamente se Bond achava mes­mo que seria sensato esse empreendimento. Não estava a par das leis nesse sentido... Eram cidadãos corretos e certamente estavam gastando bastante na sua cidade. Largo era bastan­te popular ali. Qualquer tipo de escândalo, principalmente se a Polícia estivesse envolvida, criaria um problema terrível na Colônia. Bond foi positivo:

— Sinto muito discordar, Comissário, compreendo o seu ponto de vista, mas é preciso correr estes riscos, eu tenho uma missão a cumprir. Creio que as instruções da Secretaria de Estado a respeito foram bem claras e dão ampla autoriza­ção. — E Bond largou o trunfo. — Eu posso, se necessário, conseguir ordens específicas diretamente do Primeiro Minis­tro dentro de meia hora, se o senhor quiser.

O comissário sorriu e balançou a cabeça, dizendo: — Está certo, Sr. Bond. Terá o que quer. Não precisa apontar o revólver, estou apenas dando informações sobre possíveis reações locais. Tenho a certeza de que o próprio Sr. Governador faria isto. Isto aqui é apenas uma pequena ilha, uma Colônia! Não estamos acostumados a lidar com a Casa Branca. Acabaremos acostumando se este caso durar bastante. Vamos ver, então. Temos o que quer, sim. Temos vinte homens no Harbor Salvage Unit (Serviço de Salvamen­to do Porto). É preciso, sabe? O senhor ficaria admirado se soubesse o número de pequenos barcos que naufragam logo no local onde alguns navios precisam ancorar, e de vez em quando achamos corpos de vítimas de afogamento. Pois bem, chamarei o guarda Santos para acompanhá-lo. Bom rapaz. É natural de Eleuthera, onde costumava vencer todas as pro­vas de natação. Êle levará também o equipamento que o se­nhor achar necessário. Agora, queira me dar os detalhes, por favor.

De volta ao hotel Bond tomou um banho de chuveiro bebeu um Bourbon old-fashioned duplo e se atirou na cama. Estava cansadíssimo. A viagem de avião, o calor, a sensa­ção de que estava fazendo papel de bobo diante do Comissá­rio, de Leiter, de si mesmo... tudo isso somado ao perigo da sua missão, das possibilidades fracas, da incursão noturna a nado. . . tudo isso criara uma tensão que só passaria com um bom período de sono e sossego.

E caiu no sono como uma lâmpada que se apaga, so­nhando que Dominó estava sendo perseguida por um tuba­rão de dentes brancos, bonitos e brilhantes que, de repente, eram o sorriso de Emílio Largo, que se voltava contra êle com aquelas mãos descomunais... e batia em seu ombro, fazen­do soar uma campainha que continuou soando até que êle despertou e viu que era o telefone tilintando com insistência. Bond estendeu o braço para pegar o fone. Era Leiter que o chamava para tomar o tal martini duplo com azeitonas. Eram nove horas já. E o que estava Bond fazendo àquela hora que ainda não viera? Queria que fosse ajudar a puxar o zip?

O Pineapple Room era todo forrado de bambu cuida­dosamente envernizado por causa dos cupins; abacaxis de ferro batido sobre as mesas e aplicados à parede continham cotocos de velas vermelhas e o resto da claridade vinha de apliques de vidro em forma de estrelas do mar, as paredes simulavam aquários. As mesinhas eram brancas e os gar­çons usavam calças pretas e camisas de cetim vermelho tipo calypso.

Bond foi ao encontro de Leiter numa mesinha de canto. Estavam ambos usando dinner-jackets brancos e Bond, para reforçar a sua personalidade de próspero comprador de imó­veis, havia colocado uma cinta de cetim côr de vinho e calça preta a rigor. Leiter achou graça e foi dizendo:

— Eu ia amarrar uma corrente de bicicleta folheada a ouro na cintura para o caso de perigo, mas depois lembrei que sou apenas um pacato advogado em serviço. Creio que não seria mal trazer também a noiva e as testemunhas para a cerimônia. . . Ei, garçom!

Leiter pediu dois martinis ao garçom, depois virou-se para Bond e disse:

— Agora espere e preste atenção.

Pouco depois vieram os dois martinis, Félix olhou, olhou e disse ao garçom para chamar o barman e, quando este che­gou, meio desconfiado, Leiter, com paciência evidentemente forçada, falou:

— Meu amigo, eu pedi dois martinis e não duas azei­tonas na salmoura! — Levantando o copo, tirou a azeitona com o garfinho; e o copo, que estava cheio até três quartos, ficou só até a metade. — Está vendo? Este truque eu conheço desde o tempo em que você tomava mamadeira! Conheço as manhas de sua profissão desde o tempo em que você esta­va na academia de Coca-Cola. Uma garrafa de Gordon Gin contém 16 doses certas, isto é: duplas, que são as que eu co­nheço; misturando ao gin três onças de água teremos 22 do­ses; usando copos com fundo grosso e botando uma azeitona deste tamanho dentro... teremos 28 doses com uma mesma garrafa de gin que aqui custa dois dólares no varejo ou um dólar e sessenta centavos no atacado; você cobra oitenta cen­tavos por um martini, um dólar e sessenta por dois... isto é o preço de uma garrafa inteira de gin, confere? E ainda lhe restarão 26 doses para vender. Isto é que é lucro numa sim­ples garrafa! Mesmo descontando um dólar pelas azeitonas e pela gota de vermute, você mete no bolso 20 dólares de lucro líquido. Ora, meu amigo, isto é lucro demais e se eu me dispuser a pegar este martini, levá-lo à gerência e de lá à fiscalização de Turismo... você estará em maus lençóis! Seja bonzinho e prepare dois martinis autênticos, sem azeitonas, e com duas fatias de limão... descascado, tá? E seremos bons amigos outra vez.

A fisionomia do barman havia passado da indignação ao respeito e daí ao temor. Derrotado, porém fiel à dignidade da sua profissão, fêz sinal ao garçom para que retirasse os copos e disse:

— Sim, senhor. Como quiser, senhor. Mas já temos tido grande freguesia aqui e nunca houve queixas, senhor.

Leiter olhou para êle com uma expressão indefinível e

disse:

— Ora, ora! Um bom barman deve saber reconhecer aqueles que sabem beber e distingui-los dos que vêm aqui simplesmente pela vaidade de serem vistos bebendo no seu belo estabelecimento.

— Sim, senhor — respondeu o negro barman, retiran­do-se com dignidade.

— Você tem certeza de que aqueles cálculos estão cer­tos? — perguntou Bond, olhando para Leiter. — Já ouvi falar em cem por cento de lucro, mas quatrocentos por cento!!!

— Meu jovem, desde que passei do funcionalismo civil para Pinkertons, as coisas têm mudado muito. A marmelada que fazem em bares e restaurantes é um pecado maior do que todos os outros pecados, todos juntos, do mundo inteiro. Qualquer gajo de smoking antes das sete da noite é um viga­rista e se não puder dar uma mordida disfarçada... avança mesmo pra valer. O mesmo acontece com todos os comer­ciantes, em todos os setores, mesmo sem summer-jacket ou smoking. Muitas vezes fervo de raiva de ter de comer estas drogas que me servem e ter de pagar o absurdo que cobram. Lembra-se do almoço de hoje? Seis, sete dólares mais os tais dez por cento pelo que eles chamam de "serviço", e o garçom ainda fica rondando esperando gorjeta só porque carregou os pratos! Bolas! — Leiter passou a mão esquerda pelos ca­belos ralos. — Não vamos mais falar nisto, fico em tempo de estourar!

O garçom veio com os novos drinks; desta vez estavam excelentes. Leiter ficou calmo e pediu nova dose. Depois dis­se, rindo:

— Bem, agora vamos dar outra bronca por outra coisa qualquer. Sabe, Bond? Acho que estou assim queimado de raiva por estar de volta à ativa e poder ver como é empregado o dinheiro dessa gente que paga imposto. Tome nota, James, Não quero dizer que esta operação não seja uma coisa séria, porque é. É seríssima. Mas o que me dá raiva é que nós dois estamos aqui encalhados neste banco de areia, enquanto os outros agentes devem estar agindo nos pontos onde possivel­mente a coisa está mesmo fervendo. Você sabe o que quero dizer, onde há ação, movimento ou, pelo menos, que pareça que vai acontecer alguma coisa! Vou confessar: eu me sen­ti um perfeito idiota hoje à tarde, lá no iate daquele cara, olhando para o meu falso relógio, brincando com meu Geiger, e disfarçando. Você está me entendendo? Quero dizer que... quando há guerra a gente faz estas coisas e não se importa... mas em tempo de paz... sei lá. Você não pensa assim? Você me entende?

— Entendo o que quer dizer, Félix — falou Bond, pen­sativo. — É que lá na Inglaterra nós sentimos diferente, talvez porque não nos sentimos tão seguros como vocês na Améri­ca. Para nós parece que a guerra ainda não acabou! Berlim, Chipre, Quênia, Suez. . . sem falar nessa gente da Smersh que tive de enfrentar tantas vezes. Parece sempre que algo está fervendo, borbulhando. Agora é esta ameaça. Pode ser que eu esteja exagerando, mas para mim há algo cheirando mal nesta ilha. Tomei informações a respeito do tal caso do combustível e sei que Largo mentiu. — Bond contou em deta­lhes o que sabia. — Tenho de me certificar e será esta noite. Você está lembrado que só restam setenta horas de prazo? Se eu conseguir alguma coisa hoje... acho que então amanhã devemos pegar um pequeno hidravião e fazer um vôo de ob­servação cobrindo a maior área que pudermos. O Vindicator é grande demais para ficar tão bem escondido. Você ainda tem sua licença de piloto?

— Claro, claro. Vou com você. Pode ser que achemos alguma coisa e então aquele aviso que recebi de manhã...

Então era isso que estava deixando Félix tão nervoso! Bond perguntou, interessado:

— Mas... que aviso?

— Ahh... coisas daquela gente lá do Pentágono, sabe? Pois aquela papelada que eu estava decifrando, a mensa­gem que recebi pelo rádio, sabe? Era uma circular a todos os nossos agentes trabalhando neste caso para informar que o Exército, a Armada e a Aeronáutica estão de prontidão para entrar em ação e colaboração com a CIA assim que algo posi­tivo, alguma pista, surgir. Raios! — Leiter olhou para Bond, furioso: — Você já pensou na despesa de combustível, ho­mens, máquinas, aviões, navios, o diabo! Tudo em prontidão pelo mundo inteiro a esperar! Você sabe o que está à minha disposição? Pois só para você ter uma idéia dos recursos de que posso dispor: meio esquadrão de bombardeiros Super Sabre de Pensacola e... — Leiter acentuou, espetando com um dedo nervoso o braço do amigo. — Pode cair duro, meu caro Bond: o Manta! O super moderno, o mais recente, o mais novo submarino atômico! O Manta!

E diante do sorriso de Bond pela sua veemência, Leiter continuou:

— Não é tão tola a minha preocupação, não tanto quan­to parece. Estes Sabres são anti-submarinos de grande al­cance e estão prontos, carregados! E o Manta interrompeu uma viagem de treinamento; estava sendo adestrado para uma viagem por baixo do Pólo Sul e outros experimentos para a Marinha, coisa importante. E... seja sincero. Que é que você acha de ver todos estes milhões de dólares gastos em material e manutenção e pessoal. . . tudo de prontidão sob o comando do "aspirante" Leiter aquartelado no aposento 201 do Royal Bahamian Hotel? Nada mau, hein?

Bond deu de ombros. Depois falou, fitando o compa­nheiro:

— O que eu acho é que o seu Presidente está levando este caso bem mais a sério do que o seu agente em Nassau. Creio que os nossos Estados Maiores confabularam através do Atlântico. Nada mau... termos todos estes recursos de de­fesa no caso de terem os inimigos escolhido o Cassino de Nassau para alvo n.° 1! Por falar nisso, o que é que pensam lá no seu país acerca da escolha de alvo para as bombas 1 e 2? O que acham vocês que se enquadre melhor com o sugerido pela carta? Nós só temos uma Base de Foguetes chamada Northwest Cay no extremo leste da Grande Bahama, cerca de 150 milhas ao norte daqui. Pelo que sei o material e instala­ções de lá podem ser avaliados em mais ou menos 100 000

000 de libras.

— Os únicos alvos possíveis de que me falaram — res­pondeu Leiter — foram Cabo Canaveral, base naval de Pen-sacola, e se quisermos ainda pensar nesta área... Miami para alvo n.° 2, com Tampa, talvez, como provável seguimento. A SPECTRE usou as palavras: uma propriedade das potências ocidentais ... Isto me dá a impressão de instalações dispen­diosas ou valiosas... algo assim como as minas de urânio no Congo, por exemplo. É... mas uma base de foguetes serviria perfeitamente. Se quisermos tomar a coisa mesmo a sério... eu optaria por Canaveral ou esta base na Grande Bahama. Mas há uma coisa que não posso compreender: se eles têm as bombas em seu poder, como é que irão transportá-las e jogá-las nos alvos escolhidos?

— Um submarino poderia se incumbir desta tarefa. En­viar uma das bombas em direção à praia por meio da cápsula de um torpedo. Ou até um barco a vela. A disposição dessas bombas não constitui problema, desde que todas as peças que estavam no avião tenham sido recuperadas por eles. Sei que tudo o que eles têm a fazer é adaptar um mecanismo de bomba-relógio entre o detonador e o plutônio de modo a poder calcular a hora da denotação para lhes dar tempo de se afastarem até uma área de segurança a centenas de mi­lhas. Se entre eles há cientista que saiba fazer este arranjo... Quanto à viagem não será problema para o Disco Volante; seria fácil colocar a bomba na Grande Bahama à meia-noite, voltar e levantar âncora de Palmyra de manhã cedo e zarpar. Entende o que estou dizendo?

— Está doido. É preciso mais do que isso para fazer a minha pressão subir. E sabe o que mais? Vamos sair daqui e pegar um bom prato de bacon com ovos num daqueles ba­res de Bay Street que nos custará uns vinte dólares... porém mais do que isso o Manta queima em combustível em cada rotação do seu motor. Depois daremos um pulo no Cassino para ver se os sócios dele, o Drácula ou o Corvo, estão por lá.

 

Herói de Papelão

O Cassino de Nassau é o único cassino legal em territó­rio britânico em todo o mundo. Como isto se justifica perante as leis da Commonwealth ninguém consegue explicar. Trata­se de um sindicato de jogo canadense e seus lucros operacio­nais na estação do inverno são estimados na média de cerca de $100 000. Os jogos ali permitidos são: a roleta, com dois zeros em lugar de um, o que aumenta a renda da casa, de 3.6 europeu para um belo 5.4; o blackjack, ou 21, no qual a casa faz entre 6 e 7%; e uma mesa de chemin de fer cujo modesto barato é de 5%. As características gerais são as de um clube qualquer instalado num belo palacete na West Bay Street: há uma simpática pista de danças, salão de jantar, com um conjunto de três elementos tocando canções populares e fa­voritas, um bar. É um belo lugar, elegante, agradável, que merece o lucro que faz.

O ADC do Governador havia dado a Leiter e Bond car­tões de ingresso e, assim, depois de tomar um café no bar, os dois se separaram e foram apreciar as mesas.

Largo estava jogando chemin de fer. Tinha uma boa pi­lha de fichas de cem dólares em sua frente e uma meia dúzia de placas amarelas do valor de mil dólares. Dominó Vitali estava sentada atrás dele, fumando um cigarro atrás do ou­tro e observando o jogo. Bond, à distância, também observa­va. Largo estava jogando com largueza, ficando com a banca sempre que podia e deixando o jogo correr. Estava ganhando seguidamente, mas com muita classe e, pelo modo com que os presentes aplaudiam suas jogadas, era certamente um fa­vorito ali no Cassino. Dominó, com um vestido preto de de­cote quadrado, um diamante enorme pendendo do pescoço por uma correntinha, parecia entediada e mal-humorada. A mulher sentada ao lado de Largo, tendo bancado três vezes seguidas com êle e perdido todas, se levantara e fora embora. Bond aproximou-se rápido e tomou o lugar que ficara vago. Era uma banca de oitocentos dólares, a soma total estava a cargo de Largo que determinava o barato após cada jogada.

É bom para o banqueiro quando consegue ir até depois da terceira rodada, isso em geral significa que vai continu­ar. Bond sabia disso perfeitamente, e sabia muito bem, por outro lado, que todo o seu capital era de apenas mil dólares. Mas o fato de ver todo mundo tão nervoso da sorte de Largo lhe deu uma certa ousadia. E, afinal, parece que ninguém ali se lembrava de que a sorte é dos audaciosos e gritou: — Banco!

— Ah! Meu bom amigo Sr. Bond! — exclamou Largo, es­tendendo a mão enorme. — Agora vai entrar dinheiro grande nesta mesa. Eu devia passar a banca, os ingleses sabem jo­gar muito bem, mas... — Sorriu com jovialidade: — Se tenho de perder, prefiro perder para o Sr. Bond!

Com a grande mão morena bateu no sapato, num gesto de ostensiva superstição. E apresentou as cartas para que Bond tirasse, tirou uma para êle e comprimiu o botão para servir mais uma carta a cada. Bond pegou a sua primeira carta e abriu-a no centro da mesa: era um nove de ouros. Bond olhou para Largo e disse:

— Eis aí um bom começo. Tão bom que vou abrir a se­gunda carta.

E com indiferença abriu a segunda: um belo dez de es­padas! A não ser que as cartas de Largo somassem 9 ou 19... Bond ganharia. Largo riu, mas seu riso tinha algo que lem­brava uma lâmina afiada, e disse:

— É... Você me faz tentar.

E abriu suas cartas junto às de Bond. Eram: o oito de copas e um rei de paus. Largo perdera por pouco, por um ponto! A pior maneira de perder.

— Alguém tem de perder — falou êle, ainda rindo. — O que foi que eu disse? Os ingleses sabem tirar o que querem da cartola!

O croupier empurrou as fichas para Bond, que as em­pilhou à sua frente, dizendo:

— O mesmo digo dos italianos. Bem que lhe disse esta tarde que devíamos ser sócios.

Largo caiu na gargalhada, dizendo:

— Vamos tentar outra vez. Jogue tudo que ganhou e eu banco de sociedade com o Sr. Snow que está a seu lado. Certo, Sr. Snow?

O Sr. Snow, europeu carrancudo que Bond identificou como um dos acionistas da busca ao tesouro, concordou. Bond então jogou os oitocentos e os dois arriscaram qua­trocentos cada. Bond ganhou novamente, desta vez com um seis contra o cinco da mesa. Ainda desta vez, por um ponto! Largo abanou a cabeça menos animado:

— É, Sr. Snow, nós devíamos ter visto que a sorte virou. O Sr. Bond tem algum amuleto contra mim. Eu me dou por vencido.

Largo sorria, mas era só com os dentes largos e bran­cos. O Sr. Snow continuou. Botou na mesa mil e seiscentos dólares para enfrentar a aposta de Bond. Mas James pensou: fiz mil e seiscentos dólares em duas mãos, mais de quinhen­tas libras... Seria gozado passar esta mão e na próxima en­tão... Pegou suas cartas e disse:

La main passe.

Houve uma onda de murmúrio e comentários. Largo fa­lou, dramático:

— Oh! Não! Não vai fazer isto comigo! Não diga que a banca vai baixar na próxima... Oh! dou um tiro na cabeça! Pois bem, está certo. Compro a banca do Sr. Bond só para ver, pago pra ver.

E pôs na mesa fichas no valor de mil e seiscentos dó­lares. Bond então ouviu a sua própria voz dizendo: "Banco!" Estava bancando a sua própria banca — mostrando a Largo que já o vencera uma vez, duas vezes e venceria a tercei­ra. Largo encarou Bond, sorrindo superficialmente, os olhos apertados fitavam o adversário com atenção e uma nova curiosidade, e disse:

— Mas o senhor está me perseguindo, Sr. Bond! Está atrás de mim, meu caro? De que se trata? É uma vendetta?

Bond teve uma idéia, veria o resultado de uma associa­ção de idéias em Largo e falou brincando:

— É que, ao entrar aqui, vi um espectro!

Procurou falar com naturalidade sem dar sentido duplo à palavra.

Por um momento o sorriso desapareceu do rosto de Emílio Largo como se alguém o tivesse esbofeteado, mas logo voltou, embora de modo tenso, e os olhos estavam ariscos e duros. Retomou o equilíbrio e perguntou:

— Mesmo? Que quer dizer com isso?

— Foi o espectro da derrota no jogo — respondeu Bond. — Senti que a sua sorte tinha virado. Talvez eu esteja erra­do. — Bateu no sapato também, sorrindo, e falou: — Vamos ver.

A mesa estava cercada de silêncio. Os jogadores e es­pectadores sentiram que havia tensão entre aqueles dois ho­mens. De repente, pareciam farejar animosidade onde antes havia apenas camaradagem e piadas. O inglês como que ati­rara a luva. Seria por causa da pequena? Talvez. Expectativa geral.

Largo conseguiu se controlar e simular a exuberância anterior, rindo:

— Ah! Então o amigo quer pôr urucubaca nas minhas cartas. Lá na minha terra temos uma maneira de combater isso. — Fazendo com os dedos indicador e mínimo uma espé­cie de garfo, apontou para o rosto de Bond: — Ah!

Todos riram da palhaçada, mas, para Bond, que olha­va com atenção cada gesto e expressão, estava ali toda uma natureza carregada de maldade e ódio animal, magnetismo pernicioso e malevolência, no gesto da Mafia.

Bond riu também e falou aparentemente bem-humora­do:

— Pronto. Quebrou a minha bruxaria... mas e as car­tas? Vamos ver. Será o meu espectro contra o seu espectro.

Novamente sentiu a reação na fisionomia de Largo. Por que outra vez esta palavra? Procurou disfarçar, dizendo:

— Está bem, meu amigo. Vamos à melhor de três. Va­mos à negra!

Largo pegou com destreza quatro cartas. Bond olhou as duas que tinha na mão: um total de cinco, um dez de paus e um cinco de copas. Cinco era uma carta imprecisa, podia pedir ou não pedir. Bond colocou as cartas fechadas na mesa e falou com voz firme e a expressão confiante de quem está muito bem servido:

— Não quero cartas, obrigado.

Os olhos de Largo se estreitaram ainda mais, tentan­do ler alguma coisa na fisionomia de Bond. Então virou as cartas no meio da mesa com uma expressão de quase nojo; também tinha cinco, que fazer? Pedir ou não pedir? Tornou a olhar para o sorriso confiante de Bond... e pediu uma carta! Era um nove, nove de espadas. Tirando mais uma carta, em lugar de ficar com os cinco, igualmente a Bond, tinha agora quatro contra os cinco de James.

Sempre impassível Bond abriu seu jogo, dizendo:

— Você devia ter isolado o azar do baralho e não de

mim.

Comentários murmurados percorriam a sala: Se êle ti­vesse ficado com os cinco!... Eu nunca peço quando tiro cin­co... Eu sempre peço... Foi apenas azar, nada mais... Foi mal

jogado...

Agora já era com grande esforço que Largo se manti­nha sob controle, mas conseguia dissimular; respirou fundo, relaxou um pouco os nervos tensos e, com o melhor sorriso que pôde arranjar, estendeu a mão para Bond, que retribuiu, estendendo a sua mão também, mas com o cuidado de colo­car o polegar em posição de evitar que o aperto da mão des­comunal de Largo fosse do tipo tritura-ossos, mas foi apenas comum, e Largo disse:

— Vou ter de esperar que a sorte vire de novo. Você levou todo o meu lucro. Tenho uma noite árdua pela frente logo quando estava pensando em levar minha sobrinha para dançar um pouco... — Voltando-se para Dominó, disse: — Minha querida, acho que não conhece o Sr. Bond. . . Talvez só por telefone. Temo que êle tenha alterado meus planos. Agora você terá que arranjar alguém para escoltá-la.

— Como vai? — falou Bond à garota. — Já não nos vi­mos esta manhã? Na charutaria?

— É? É possível... — Respondeu ela, com indiferença, — Sou má fisionomista.

— Posso oferecer-lhe um drink? Posso até convidá-la para um drink em Nassau, graças à generosidade do Sr. Lar­go. Por hoje acabei de jogar, estas marés não duram. . . Não devo brincar com a sorte.

A pequena levantou de seu lugar e disse sem entusias­mo:

— Já que não tem mais nada que fazer. — E, voltando­so para Largo: — Emílio, talvez se eu levar este Sr. Bond em­bora, a sorte volte para você. Estarei no salão do restaurante comendo caviar e bebendo champanhe. É preciso trazer de volta tanto quanto possível o capital da família...

Largo deu uma gargalhada, parece que o seu bom-hu­mor estava voltando. E falou para Bond, ainda rindo:

— Vê? Está entre a cruz e a caldeirinha. Nas mãos de Dominetta não vai fazer tanta vantagem quanto nas minhas. Até mais tarde, então. Vou voltar às minas para cavar mais, por sua culpa.

— Muito obrigado pelo jogo. Vou pedir champanhe e caviar para três, afinal o meu espectro também merece uma recompensa.

E ainda intrigado, tentando julgar se a sombra que tor­nou a passar pela fisionomia de Largo ao ouvir a palavra seria apenas superstição de italiano... ou teria mais significa­ção? E seguiu a moça por entre as mesas de jogo até o salão do jantar.

Dominó escolheu uma mesa ensombrada num canto quieto da sala. Andando atrás dela Bond notou que ela man­cava ligeiramente e achou até que isso lhe emprestava qual­quer coisa de infantil, junto àquela personalidade autoritária e sexy que êle achava poder classificar com a expressão fran­cesa mais discreta, embora forte: courtisane de marque.

Só depois que o garçom trouxe o seu pedido de Clicquot Rosé e caviar Beluga, não faria por menos naquela noite de sorte, foi o que Bond disse, mas só então perguntou acerca do andar dela:

— Que houve? Machucou-se nadando ou mergulhando

hoje?

— Não — respondeu Dominó, olhando séria. — Eu te­nho uma perna um pouco mais curta do que a outra. Isso lhe desagrada?

— Não, ao contrário. É até bonitinho, lhe dá um andar de criança.

— Em lugar do de uma mulher vivida... não é assim?

— É assim que você se vê?

— É óbvio, não acha? Ou pelo menos deve ser o que a gente de Nassau pensa.

— Ninguém me disse nada disso. Além do mais, gosto de ter minha opinião própria sobre as mulheres. Que interes­sam as opiniões dos outros? Os animais não costumam pedir a opinião de ninguém sobre os outros animais, eles olham, farejam, tateiam... no amor como no ódio isto é quanto basta. É que algumas pessoas não estão muito seguras dos seus instintos. Precisam de reafirmações, e perguntam aos outros para saber se devem ou não gostar de uma pessoa. E como a humanidade adora as más notícias, quase sempre as infor­mações são as piores, ou pelo menos nada boas. Você gosta­ria de saber o que eu penso de você?

Dominó então sorriu, respondendo:

— Sim, toda mulher gosta de saber o que pensam dela. Diga-me então, mas trate de ser sincero, senão eu paro de escutar.

— Pois bem, para mim você é uma jovem, mais jovem do que quer parecer e do que indica a sua maneira de vestir­se. Acho que foi criada sob cuidados, pisando em tapetes de veludo... e de repente puxaram o tapete de debaixo de seus pés e foi cair mais ou menos no meio da rua. Então você se levantou e tratou de trabalhar para conseguir voltar a viver em cima de tapetes de veludo, como foi acostumada. Você só dispunha das armas naturais de uma mulher e por certo soube usá-las, usou o seu corpo. Foi uma decisão, mas para isso os seus sentimentos tiveram de ser postos de lado e eu só espero que não estejam muito enterrados e que não se tenham atrofiado, apenas perderam a voz, porque você não os queria ou não poderia ouvir, já que queria voltar ao seu tapete de veludo e conseguir as coisas que desejava. . . e ago­ra você tem tudo isso, ou talvez já tenha cansado de ter. — Bond riu: — Mas não leve isto muito a sério! E agora, quanto a coisas mais triviais. Você já está farta de saber, mas direi: você é linda! Sexy! Provocante, independente, voluntariosa, temperamental e cruel!

— Não achei nada de muito notável nas suas deduções — falou Dominó, olhando-o com atenção. — A maior parte do que falou eu já tinha contado, conhece um pouco as mulhe­res italianas. Mas, por que me acha cruel?

— Bem, se eu estivesse jogando e levasse uma lavada como aconteceu com Largo e a minha mulher, uma mulher, sentada ali perto olhando, não dissesse uma só palavra de conforto ou encorajamento... eu diria que ela é cruel. Os ho­mens não gostam de ser derrotados em frente das suas mu­lheres.

— Eu já fiquei naquela posição demais, já observei o show dele demais; eu queria que você ganhasse! Não gosto de fingir. Você esqueceu de mencionar a minha única vir­tude: eu sou sincera! Sei amar ao extremo e odiar ao extre­mo. No momento, e com referência a Emílio, estou no meio do caminho. Já fomos amantes e agora somos apenas bons amigos que se entendem. Quando eu disse que êle era meu tutor estava mentindo, eu sou a mulher que êle mantém no momento, um pássaro engaiolado... e já estou cansada da minha gaiola dourada e de fazer a minha parte no trato. Sim, sei que parece cruel para Largo — ela olhou séria para Bond

— mas também é humano. Você pode comprar o corpo de uma pessoa, mas não o que a pessoa tem dentro de si e que chamam de alma e coração. Emílio sabe disso. Êle quer uma mulher para usá-la, não para amá-la. Já teve centenas em seu caminho. Êle sabe a nossa posição. Emílio é realista. O caso é que cada vez estou achando mais difícil fazer a minha parte. . . cansada de. . . de. . . cantar para ganhar o pão, sabe? — Dominó parou de repente e logo mudou de assunto:

— Quero mais champanhe, esta conversa boba me deixou com sede. E eu queria também um maço de Players, como diz o anúncio. — Ela riu: — Estou cansada de fumar apenas. Preciso do meu Herói.

Bond chamou a garota vendedora de cigarros e pediu Players, depois, voltando-se para Dominó, perguntou:

— E que estória é essa de Herói?

Dominó tinha uma expressão totalmente diferente, toda a amargura tinha desaparecido, seu rosto perdera toda a dureza, era agora uma pequena jantando fora alegremente quando falou:

— Ah! Você não sabe. Não conhece o meu único e verda­deiro amor, o homem dos meus sonhos... É o marinheiro que está estampado na frente do maço de cigarros Players! Você nunca pensou nele como eu pensei. — Chegando-se mais para perto, mostrou a figura. — Você não vai compreender o romance desta bela figura, obra-prima em todo o mundo. Este homem apontou para a figura — foi o primeiro homem com quem pequei! Fui com êle escondida para o mato... esti­ve escondida com êle lá no dormitório. . . gastava todo o meu dinheiro com êle. Em troca êle me revelou o mundo que havia lá fora do Cheltenham Ladies' College, me ajudou a crescer, me ensinou a ficar à vontade com rapazes da minha idade. Fêz-me companhia e, quando eu estava solitária ou temerosa da minha juventude, dava-me coragem e segurança. Você já pensou alguma vez no romance que se esconde atrás desta figura? Não, você não vê nada. E no entanto toda a Inglater­ra está aí escondida. Escute. — Segurou o braço de Bond, dizendo:

— Esta é a estória do Herói! Veja escrito na fita do seu boné: Herói! No começo era um jovem, um frangote, como dizem, embarcado naquele naviozinho que está desenhado aqui por trás da orelha dele, veja. Foi um tempo duro para êle, lavar convés, subir no mastro, enrolar cordas grossas, carregar sacos pesados. . . mas não desistiu. Depois come­çou a deixar crescer o bigode, tinha cabelos escuros, sabe? E era bonito! Possivelmente teve de lutar para manter sua vir­tude no meio de todos aqueles macacos. . . mas você pode ver pelos traços fisionômicos, a expressão dos olhos, que êle era um homem de verdade, de fibra. — Dominó parou um mo­mento para beber champanhe e as covinhas encantadoras permaneceram em suas faces: — Você não está me ouvindo? Não está entediado com a estória do meu Herói?

— Não... apenas enciumado. Continue.

— E assim êle viajou o mundo todo: Índia, China, Ja­pão, América. Tomou parte em muitas brigas de faca, de so­cos... e amou muitas pequenas. Escrevia sempre para casa, para a mãe e para uma irmã casada que morava em Dover, elas queriam que êle viesse para casa e encontrasse uma boa pequena, casasse e fosse feliz, mas êle não queria. Sabe por quê? Êle estava esperando encontrar a pequena dos seus sonhos, assim como eu.

— Tornou a rir, franca e alegremente. — E então vieram os primeiros barcos a vapor e êle foi transferido para um vapor grande, olhe o desenho aqui do lado. Agora já estava ficando importante, começou a economizar do seu soldo e, em lugar do brigas e de mulheres, deixou crescer esta bela barba para ter um ar mais respeitável. E com uma sovela e linhas de diversas cores começou a trabalhar nesta bela composição, seu auto-retrato. Veja como está bem feito, o seu primeiro barco ali, o vapor do lado de cá e este salva­vidas fazendo moldura; só terminou quando deixou a Ma­rinha. Aliás não teve linha dourada para acabar a corda da bóia salva-vidas, vê? Mas êle não gostava de barcos a vapor e assim, numa bela tarde dourada, voltou para casa, depois de uma gloriosa vida no mar, e foi uma tarde tão linda, dourada e romântica que resolveu eternizá-la — noutro quadro. Com­prou uma lojinha em Bristol com as suas economias e, antes da inauguração, trabalhou até terminar o outro quadro, olhe aqui. . . os barquinhos a vela, que o trouxeram de Suez com um saco cheio de sedas, de conchas, de presentes, e lá está o farol chamando-o para aportar naquela tarde linda! Só não gosto deste negócio que êle está usando como boné... eu que­ria que tivesse escrito H. M. S. antes de Herói... é, mas não ia caber. Enfim, é um quadro muito romântico, não acha? Recortei esta figura do primeiro maço que comprei e que fu­mei pela primeira vez escondida no toalete. Depois me senti nauseada, foi horrível. Mas guardei a figura até que se fêz em pedaços, então cortei outra nova e guardava sempre comigo até que as coisas mudaram e eu tive de voltar para a Itália. Então eu não podia comprar Players, eram muito caros lá e eu tinha de me contentar com os chamados Nazionales.

Bond estava gostando de vê-la assim de bom-humor e insistiu:

— Mas o que aconteceu com os quadros do Herói? Como foi que vieram parar nos maços de cigarros?

— Bem, acontece que um dia um homem de cartola e fraque, junto com dois meninos, saltou de um carro em fren­te à lojinha do Herói. Olhe aqui. — Mostrou a Bond a legen­da do lado do maço. — John Player & Filhos. Dizem que os herdeiros continuam com o negócio. Mas eles tinham um dos primeiros automóveis, um Rolls Royce, que enguiçou bem em frente à lojinha. Então o homem de cartola, que não bebia porque esta gente respeitável que morava perto de Bristol não bebia whisky, pediu cerveja e sanduíche de queijo enquanto o chofer consertava o carro. O Herói os serviu. E foi então que o Sr. John Player e os garotos começaram a apreciar o belo trabalho de tapeçaria dos quadros das paredes da lojinha do Herói. Este Sr. Player tinha uma loja de vender charutos, os cigarros eram novidade e êle queria também negociar com a novidade e não sabia que nome daria, nem que figura po­ria nos maços e de repente teve uma idéia magnífica. Voltou depois para a fábrica e falou com o gerente e o gerente foi à lojinha e falou com o Herói e ofereceu cem libras para que êle deixasse copiar os seus quadros para imprimir nos maços de cigarros. O Herói não se importava e mesmo aquela quan­tia seria bem aproveitada, ia casar. — Os olhos de Dominó pareciam fitar à distância. — Ela era muito bonita, uns 30 anos talvez, cozinhava bem e seu corpo o aqueceu nas noi­tes de inverno até o fim de sua vida, ela lhe deu dois filhos: uma menina e um menino que foi para a Marinha como o pai. Bem, mas o Sr. Player queria botar uma figura de cada lado do maço, mas o gerente achou que assim não sobraria espaço para as palavras: fumo de primeira, refrescante, etc, e aquela marca registrada com este chalé de chocolate escrito Nottingham Castle embaixo, e o Sr. Player concordou e pôs as figuras uma embaixo, outra em cima, e ficou muito bem, não acha? Só que o Herói não deve ter gostado de ver que a sereia foi cortada.

— A sereia? — perguntou Bond. — Que sereia?

— Sim, aqui no canto da bóia havia uma sereiazinha penteando os cabelos com uma das mãos e acenando com a outra, acho que o Herói simbolizava assim a mulher que queria encontrar para casar-se. Mas é que não havia mesmo espaço e além disso ela estava com os seios de fora e o Sr. Player era um Quaker muito austero e achou que não ficaria bem. Mas êle e o Herói se entenderam afinal.

— Ah, é? Como foi isso?

— Como você sabe, os cigarros foram um sucesso, por causa das figuras, e o Sr. Player fêz uma fortuna com eles e seus herdeiros até hoje ainda ganham muito. Como o Herói estava ficando velho, o Sr. Player contratou um grande artis­ta, um pintor, e mandou fazer outro retrato do Herói, só que não é em cores e fica pelo lado de dentro, aqui, olhe. — Ela puxou uma parte do papel interno do maço. — Está vendo como êle está velho aqui? E outra coisa, veja as duas ban­deiras tremulando no mastro! Muito gentil de parte do Sr. Player, não acha? E fizeram presente a êle, o Sr. Player e os filhos vieram pessoalmente, antes de sua morte. Acho que foi muito bom para êle, não acha?

— Claro, este Sr. Player era uma pessoa muito atencio­sa.

Agora a pequena parecia estar voltando do seu país de sonhos, foi com voz diferente que falou:

— Obrigada por ter escutado a minha narração. Sei que é uma bobagem, acho que sim. . . mas as crianças são bobas nestas coisas, gostam de ter algo a que se agarrar debaixo do travesseiro até ficarem adultos! Às vezes é um cachorro de feltro, uma boneca velha, qualquer coisa. Mesmo os meninos são assim. Meu irmão tinha enorme apego a uma mascote de metal que a sua babá lhe deu. Quando já tinha 19 anos perdeu-a. Jamais me esquecerei das cenas que êle fêz! Já estava na Força Aérea e era tempo de guerra, mas achava que a mascote lhe dava sorte... — Sua voz soou sarcástica quando disse: — Êle não devia preocupar-se, ia muito bem. Era muito mais velho do que eu e eu o adorava! As meninas têm uma tendência para adorar todos os vigaristas, ainda mais sendo irmão. E êle ia tão bem na vida que podia me ter ajudado um pouco, mas não o fêz, dizia que no mundo é cada um por si. Êle dizia sempre que o nosso avô tinha sido assim e que o túmulo dele era o mais bonito entre todos os da família Petacchi lá em Bolzano, mas que ia ter um ainda superior e ganhando dinheiro da mesma maneira.

Bond pegou o cigarro, deu uma tragada e soltou a fu­maça lentamente, perguntando:

— Quer dizer que o seu nome de família é Petacchi, então?

— É, sim. Vitali é nome de guerra, como se diz, é mais eufônico, por isso adotei-o. Mas ninguém sabe. Eu mesma quase já tinha esquecido! Mudei meu nome desde que voltei à Itália, queria mudar tudo mesmo.

— Que aconteceu a seu irmão? Como é o primeiro nome

dele?

— Giuseppe. Ele fêz muitas coisas erradas, mas é um excelente piloto. Da última vez que ouvi falar nele, estava num trabalho importante em Paris. Talvez agora sossegue, rezo todas as noites pedindo isso. Êle é tudo que tenho e gos­to muito dele, apesar de tudo. Você compreende, não é?

Bond esmagou o cigarro no cinzeiro e chamou o garçom com a conta, depois respondeu:

— Compreendo, sim.

 

Abrindo Caminho a Nado

As águas escuras sob o cais da Polícia lambiam os caibros de amarração, os pontaletes de ferro. À luz da lua minguante, o praça Santos ajudou a prender os cilindros do aqualung nas costas de Bond e a ajeitar os fios do Geiger que Leiter cedera para evitar estrangulamento do tubo. Bond pôs o bocal nos dentes, testou a válvula. Tudo certo. Podiam ouvir a música que vinha de longe, do cabaré Junkanoo, e viam as águas tremulando como aranhas dançando ao som do xilofone.

Santos era um negrão de músculos peitorais desenvol­vidos como discos reluzentes, vestido apenas com um calção. Bond lhe perguntou:

— Que é que você acha que posso encontrar a esta hora por estas águas? Algum peixe grande, perigoso?

— O de costume, sinhô — respondeu Santos, rindo. — Todo cais é a mesma coisa, talvez umas barracudas ou um tubarão... mas a esta hora estão sonolentos e satisfei­tos, comem muito aqui na beira do cais. Não lhe farão mal, a não ser que vejam sangue. Têm também marisco do fundo de mar, lagostas, caranguejos e águas-vivas, talvez. O fundo tem mais plantas marinhas e pedaços de garrafas e de na­vios naufragados. Mas não vai ser difícil com esta lua e as luzes do Disco Volante. Vai levar uns vinte minutos, talvez quinze minutos. Estive olhando por uma hora, ninguém no tombadilho. Como está soprando uma brisa não se vai notar as bolhas na tona. Eu podia lhe dar um supridor de oxigênio, mas não gosto dessas coisas perigosas.

— Está certo. Vamos em frente. Volto dentro de meia

hora.

Bond apalpou a faca no cinto, ajeitou a máscara, mor­deu o bocal de borracha. Ligou o ar e, chapinhando com seus pés-de-pato, foi para dentro da água. Abaixou-se, cuspiu no vidro da máscara para que não embaçasse, limpou, ajustou e seguiu. Sentiu que a água já lhe estava cobrindo as orelhas, mergulhou mais fundo e foi num crawl só de pernas levando os braços ao longo do corpo. A água ali ainda era um pouco lamacenta e Bond desceu até quarenta pés, apenas algumas polegadas distante do fundo. Olhou para os números fosfo­rescentes de seu relógio: eram 12:10. Acertou então um ritmo mais relaxado. A lua filtrada pela água ainda dava claridade para ver o que havia ali no fundo: pneus, latas velhas, gar­rafas quebradas e sombras irregulares. Havia também um pequeno polvo que, com o movimento, se encolheu e recorreu à sua defesa de mudar de côr e se escondeu num tambor de gasolina vazio que devia ser o seu lar. Flores aquáticas sub­marinas e polipos gelatinosos surgiam do fundo arenoso, vol­tando a contrair-se à passagem da sombra de Bond. Outras criaturas esquisitas como pequenos vulcões expeliam suas defesas líquidas ao simples tremular da água à passagem do intruso, um caranguejo guardou as pernas rápido. Bond ti­nha a impressão de estar numa paisagem da lua, sob e sobre a qual viviam criaturas das mais espantosas proporções e as­pectos surpreendentes que observava com o interesse de um naturalista. Sabia que é esta a melhor maneira de manter em ordem os nervos num ambiente tão estranho e perigoso, evitando assim que a imaginação trabalhe demais, criando monstros ainda mais estranhos e perigosos.

O ritmo de seus movimentos logo se tornou automático e, enquanto mantinha seu rumo, guiando-se pela luz da lua sempre à sua direita, seu pensamento se voltou para Domi­nó. Então ela era irmã do homem que provavelmente roubara o Vindicator. Talvez até o próprio Largo, se estava realmente envolvido no caso, nem soubesse disso. Então, a que conclu­são chegar? Cura coincidência. Não podia ser outra coisa. As maneiras dela eram tão inocentes! Não obstante, aquela era mais uma palhinha para amontoar na pequena pilha que parecia indicar participação direta de Largo no caso. E a rea­ção de Emílio Largo à simples menção da palavra espectro!? Tanto podia ser espírito supersticioso de italiano como podia não ser. Para Bond aquilo tudo cheirava a algo concreto. Que fazer? Relatar ou não relatar? Sua mente fervia diante deste impasse. Como agir? Como fazer funcionar o raciocínio para fazê-lo distinguir o certo? Que deveria dizer? Que não deveria dizer?

As antenas extra-sensoriais do corpo humano, os sen­tidos que ficaram como traços milenares parecem despertar quando o homem está à beira de um perigo. A mente de Bond estava concentrada em algo muito distante dali, porém seus sentidos alerta de repente fizeram soar o alarme. Perigo! Pe­rigo! Perigo! Os nervos de Bond ficaram tensos. Levou a mão à faca e virou a cabeça para a direita rapidamente; nem para trás nem para a esquerda, mas para a direita, como os seus sentidos ordenavam. Um barracuda enorme, de vinte libras ou mais, é o mais temido no mar. Perverso, objetivo e ligeiro é uma arma hostil, o focinho longo com a boca perigosa que pode abrir até um ângulo de noventa graus e fechar-se com violência, o corpo comprido e a cauda em lâmina que lhe dá a fama de um dos cinco peixes mais velozes. Este vinha paralelo a Bond, distante umas dez jardas, mostrando todos os seus sinais perigosos: As largas listras laterais estavam mais nítidas, os olhos dourados de tigre atentos, a boca leve­mente entreaberta deixando ver a fileira de dentes mais afia­da e perigosa dos mares, dentes que não arranham ou mor­dem mas abocanham porções e mastigam rápido e voltam às dentadas. Bond sentiu seu estômago contrair-se de nervoso. Cautelosamente olhou o relógio, faltavam três minutos para atingir o Disco. Deu uma volta ligeira e atacou o barracuda de surpresa com sua faca reluzindo dentro d'água. O pei­xe se assustou, tomou outra direção depressa, mas quando Bond pensou em retomar seu curso lá estava êle olhando e escolhendo, medindo, indolentemente, onde dar a primeira dentada? No ombro? Nádegas? Pé? Por onde começar? Bond tratou de lembrar o que sabia sobre esses peixes ferozes, o que lera e a experiência que tinha lido. A primeira regra era não ficar em pânico; o medo se transmite aos peixes como aos cães e cavalos. O que restava fazer ali era simular calma e aguardar a oportunidade. Não estabelecer confusão, pois, no mar também, o comportamento desordenado e agitado indica que a vítima está com medo e portanto é vulnerável. Manter o ritmo. Esperar até o momento exato. Os crustáceos ficam indefesos, se virados para cima. Do mesmo modo um peixe de lado está em perigo. Bond continuou se equilibran­do, transpirando tranqüilidade.

Agora a paisagem mudou, um tufo de plantas mari­nhas, apareceu à frente. Dentro da profunda correnteza o tufo oscilou levemente, como uma pluma. Aquele movimen­to hipnótico fêz Bond sentir-se meio mareado, bolas de erva escura esparsas marcavam de vez em quando o solo subma­rino, eram as esponjas mortas surgindo da areia, aquelas esponjas já tinham sido boa fonte de exportação de Nassau até que apareceu um fungo que as liquidou, matando-as, assim como a mixamatose havia acabado com os coelhos. A sombra de Bond se projetava sobre o fundo arenoso, como se fosse um grande morcego. Ao lado de sua sombra corria a sombra esguia do barracuda, acompanhando-o com paciente precisão.

Uma densa massa prateada passou por êle, era um cardume de peixinhos juntos, mais parecendo que estavam num vidro de conserva. À aproximação das duas sombras, do homem e do peixe, o cardume foi como que fendido, deixan­do uma passagem para cada e depois voltando a fechar-se, formando novamente aquele todo que era a defesa conjunta para eles. Através daquela nuvem de peixes Bond observou o barracuda que continuava nadando com imponência e igno­rando todos aqueles pequenos alimentos disponíveis, assim como uma raposa que avança para o galinheiro e não liga para um coelho que passa. Bond continuou no seu ritmo procurando dar ao peixe a impressão de que êle era um peixe maior e mais forte, e não tinha medo que o barracuda não se iludisse com a brancura de sua pele.

No meio das plantas e conchas do fundo viu então a ân­cora escura como se fosse mais um inimigo, a corrente subia reta e se perdia de vista na superfície. Bond tratou de segui-la, esquecendo-se até da ameaça do peixe feroz, satisfeito por ter atingido o ponto que era o seu objetivo e excitado a pensar no que descobriria ali.

Agora nadava devagar, observando o efeito da luz da lua na superfície. Olhou para baixo e não viu mais sinal do bar­racuda, por certo a presença da âncora o havia assustado. O longo casco do iate crescia para fora dágua tomando a forma quase de um zepelim flutuante. Bond segurou uma saliência de ferro a estibordo e aproveitou para descansar um pou­co; à sua esquerda, lá em baixo, as duas hélices paradas, rebrilhantes ao luar, sugeriam na sua inércia a velocidade que seriam capazes de provocar. Bond começou novamente a nadar em volta do casco, examinando as pás das hélices e olhando em todos os sentidos na esperança de encontrar o que estava procurando. Parou por um momento até de res­pirar! Lá estava, justamente como imaginara, logo abaixo da linha de água. Era uma espécie de porta de alçapão cortada no casco para desembarque por baixo d'água. Bond mediu mais ou menos uns doze pés quadrados, dividida no centro. Fêz uma pausa pensando: que estaria por trás daquela por­ta? Ligou o botão do Geiger e segurou o mecanismo junto à porta metálica e olhou para o mostrador do reloginho: o ponteiro estremeceu para mostrar que o mecanismo estava ligado, porém registrou apenas um mínimo que era natural num casco de embarcação, segundo Leiter informara. Bond desligou desapontado, tanto trabalho e esforço para isso! E tratou de voltar.

Ao mesmo tempo sentiu o som surdo de algo batendo no casco e um impacto no seu ombro esquerdo. Automatica­mente Bond se afastou do casco, e viu abaixo dele o arpão, que quase o atingira, descendo lentamente para o fundo. Um homem com sua roupa impermeável brilhando como uma armadura, batia as nadadeiras para equilibrar-se enquanto recarregava a arco-balista de caça submarina com outro ar­pão. Bond rodopiou agitando a água com seus pés-de-pato e nadou em direção ao homem que engatilhava a arma e fazia pontaria. Mas Bond sabia que não o alcançaria, estava a seis tiros de distância. Então parou de repente e, virando a cabe­ça, fêz um mergulho em canivete ainda a tempo de pressentir a explosão do gás um pouco acima, silenciosamente, e cal­culou: Já! Tomou impulso e foi, direto, para onde o homem estava; segurava com força sua faca e deu o golpe, sentiu que a lâmina entrava. Sentiu o contato da borracha molhada em sua mão. Depois sentiu o cabo da arma do outro baten­do em sua cabeça por trás da orelha e viu uma mão branca tentando agarrar o tubo da sua respiração. Bond se defen­dia ferozmente com sua faca, seus movimentos freados pela pressão da água a uma irritante lentidão; sentiu que a ponta da faca cortara algo e a mão que buscava sua máscara a lar­gou, porém não pôde ver direito porque novo golpe o pegou na cabeça. Agora a água por ali estava cheia de fuligem ne­gra e algas e tudo isto se agarrava ao vidro da máscara pelo lado de fora, dificultando a visibilidade de Bond; este recuou como pôde, levando a mão para limpar um pouco o vidro, e o conseguiu; percebeu então que a nuvem suja que lhe tirava a visão vinha do outro, vinha do estômago do homem que êle conseguira atingir e que agora em agonia ainda tentava atingi-lo e com gestos lentos e pesados levantava a arma ao nível em que estava James, a ponta do projétil brilhava na boca do cano da arma mas os pés do homem já quase não batiam a água e êle estava afundando lentamente fazendo lembrar aqueles bonequinhos em vidro cheios de líquido, que sobem e descem à pressão da tampa de borracha, muito len­tamente. Bond também não conseguia mover-se com facili­dade, levara golpes na cabeça e sentia os membros pesados como chumbo; apertou os olhos para clarear a mente e suas mãos e pés ainda estavam recuperando a ação vagarosamen­te. Agora conseguia ver os dentes do homem mordendo o bocal de borracha e a arma apontada para sua cabeça, para sua garganta, para seu coração, mas afundando sem ação. Bond levou a mão ao peito num gesto de proteção enquanto suas nadadeiras se moviam lentas como asas partidas.

De repente Bond viu o homem abrir os braços e avan­çar para êle como se tivesse sido empurrado por trás e fosse abraçá-lo, a arma caiu de sua mão e desapareceu, uma onda de sangue começou a espalhar-se pela água começando nas costas do homem que batia os braços em estertor, girando a cabeça desesperadamente para ver o que o atacara. E então Bond viu, poucas jardas atrás do homem e ainda com farra­pos de borracha preta saindo da bocarra perigosa, o barracu­da! Oito ou sete pés de forma longa azul-prateada, e em volta dos beiços molhados restos de sangue; fora o sangue, produ­zido pelas facadas de Bond no inimigo, que havia provocado o ataque do peixe feroz. Os olhos de tigre olhavam para Bond e para a vítima, que afundava lentamente; deu um bocejo horrível tentando livrar-se dos retalhos de borracha presos aos dentes afiados, estremeceu todo aquele volume de fero­cidade, e mergulhou como uma bólide prateada atrás da víti­ma. Abriu a bocarra horrenda e atingiu o homem no ombro, abocanhando-o e sacudindo-o como os gatos fazem com os ratos, nervosa e furiosamente, depois soltou o que restava da presa. Bond sentiu que engulhava o que lhe parecia lava fervente e que forçou a voltar da garganta. Então, com gestos lentos e cansados, tratou de afastar-se da cena.

Não se tinha afastado ainda muitas jardas quando per­cebeu que algo batera na superfície da água e viu que um objeto ovóide brilhava ao luar e descia rodopiando devagar na água. Não deu muita importância até que duas braçadas adiante recebeu violento impacto no estômago, que o fêz vi­rar de costas e que também o fêz alerta e começou a nadar ligeiro, procurando descer mais fundo. Outros golpes se su­cederam, porém estavam sendo atirados na direção da man­cha de sangue perto do casco do Disco, e o impacto se tornou mais fraco e distante. Todo o fundo do mar, no entanto, es­tava agitado; as esponjas escuras, lagostas, peixinhos, tudo se movia e Bond procurou nadar o mais rápido que pôde. Sabia que a qualquer momento um barco seria posto ao mar saído do iate, e um mergulhador viria investigar. Com muita sorte chegariam à conclusão de que o sentinela tinha sido atacado por barracudas ou tubarões e não saberiam da visita de Bond. Ia ser interessante verificar a maneira como Largo faria o relato da coisa à Polícia. Não iria ser muito fácil expli­car a presença de um sentinela armado no fundo do mar só para guardar um iate de passeio, num porto tranqüilo como aquele. Bond continuava nadando, sua cabeça doía terrivel­mente. Apalpou com cuidado e sentiu os dois galos grandes, não havia ferimento porque a água amortecera os golpes. Es­tava atordoado e quando chegou ao ponto em que o fundo do mar lembrava uma paisagem lunar êle achou que devia estar delirando. Uma súbita agitação na água trouxe-o de volta à realidade: o gigantesco barracuda estava passando por êle e parecia ter enlouquecido; corcoveava procurando morder a ponta da própria cauda furiosamente e seu longo corpo se dobrava e desdobrava em movimentos espasmódicos. Bond observou-o até que desapareceu em corrida louca. De certo modo chegou a sentir piedade pelo majestoso monstro mari­nho que fora tão humilhantemente derrotado pelas granadas prateadas. Havia algo de muito impressionante na cena, as­sim como os últimos espasmos de um lutador no esforço de manter-se de pé antes de cair na lona, liquidado. Por certo uma das granadas devia ter atingido um centro nervoso e arruinado algum ponto delicado de equilíbrio no mecanismo mental do enorme peixe, agora iria durar pouco. . . Outro feroz senhor dos mares, talvez um tubarão, perceberia os si­nais da perda de simetria que é o suicídio no mar; e o acom­panharia de longe esperando que os espasmos acabassem e então faria a sua investida, o barracuda procuraria reagir e seria o fim: em três grandes dentadas, primeiro a cabeça e depois o corpo ainda fremente; e o tubarão seguiria sua tri­lha, majestoso, vitorioso, deixando cair de sua boca pedaços para o peixe amarelo e preto que sempre o acompanha e para uma rêmora ou duas, parasitas que viajam sempre acom­panhando o patrão e que limpam seus dentes enquanto êle dormita com as mandíbulas relaxadas.

Lá estavam os restos de pneumáticos, latas velhas, gar­rafas quebradas e sombras irregulares... Estava chegando. Arrastou-se até a areia suja e caiu de joelhos, não tinha for­ças para carregar os aqualungs até adiante. Parou ofegando como um animal exausto prestes a cair.

 

A Catacumba dos Olhos Vermelhos

Já mais refeito, enquanto se vestia, Bond ouvia e des­pistava os comentários do praça Santos: que havia visto uma espécie de explosões debaixo d'água e que a superfície do mar a estibordo estava agitada e muitos homens apareceram no convés do iate e puseram um barco ao mar... Bond res­pondeu que não vira nada disso e que batera com a cabeça no casco, falta de cuidado, vira o que quisera ver e viera em­bora. Santos tinha sido de grande utilidade e muito obrigado e boa noite; podia ir dormir e no dia seguinte Bond falaria ao Comissário. E Bond foi para o local onde deixara o Ford de Leiter, procurando caminhar da maneira mais firme possível. Chegando ao hotel ligou para o quarto de Leiter, que veio logo, e juntos foram ao Quartel da Polícia.

Lá, Bond contou tudo o que se passara e o que desco­brira. Agora já não se importava com as conseqüências, iria fazer um relatório completo. Em Londres deviam ser 8 da manhã, restavam talvez quarenta horas até o momento peri­goso, a hora zero! Estava juntando as palhazinhas e já tinha um bom feixe.

As suspeitas ferviam na sua cabeça como numa panela de pressão. Não podia ficar parado nem mais um segundo. Leiter também estava excitado e falou:

— É o que você deve fazer e eu envio uma cópia também para a CIA, endossada por mim. E tem mais. Vou requisitar o Manta, que venha para cá imediatamente.

— Sério? — perguntou Bond, admirado ante a mudan­ça repentina. — Que é que deu em você de repente?

— Pois bem. Vou contar. Eu andei lá pelo Cassino olhando a cara de todo mundo, procurando quem seriam os tais acionistas de Largo. Havia vários grupos tentando pa­recer que estavam se divertindo mesmo, férias na praia e sol... mas não estavam convencendo não. Só Largo estava conseguindo parecer o playboy alegre e despreocupado. Os outros pareciam mesmo os componentes de uma gang no dia seguinte a um massacre. Nunca vi uma turma tão jururu, todos de smoking bebendo champanhe e fumando charu­tos, bebendo pouco por disciplina, creio, mas todos tinham aquele cheiro que quem trabalha no Serviço Secreto fareja longe. Você sabe como é: aquele ar afetado de quem não tem com que preocupar-se, mas que não pega, não engana quem tem tarimba. Pois bem, nenhum deles significava nada para mim até que dei com um tipo de sobrolho carregado, cabeça de ôvo, óculos sem aros e com cara de mórmon que entrou em prostíbulo por engano. Olhava para os lados com olhos de ratinho assustado e então um dos outros vinha e dizia qualquer coisa a êle, que se esforçava para rir e achar aquilo tudo formidável. Fui chegando para perto e pude ouvir que êle repetia sempre a mesma coisa como uma lição bem estu­dada. O resto do tempo perambulava desamparado e quase roendo as unhas, por assim dizer. Pois bem, esta fisionomia, sim, me dizia algo, eu sabia que já a tinha visto em algum lugar, sabe como é quando a gente cisma. Fui então à porta­ria e, procurando dar boa impressão, disse ao recepcionista que achava que tinha visto um velho amigo ali, mas que por azar não conseguia me lembrar do nome e seria embaraçoso para mim se êle me reconhecesse depois de tanto tempo e eu sem lembrar o nome... O recepcionista ofereceu ajuda e veio comigo até a porta, onde lhe apontei a pessoa. Então êle voltou à mesa de recepção, pegou os cartões de ingresso e me informou: era um Sr. Traut, Emil Traut, passaporte suíço; era um dos acionistas do Sr. Largo. É, acho que foi o passa­porte suíço que me despertou. Você se lembra, Bond, de um cientista alemão chamado Kotze, da Alemanha Oriental, que há uns cinco anos veio para a Alemanha Ocidental e contou tudo o que sabia aos rapazes do Serviço Secreto da Junta Científica e depois sumiu e graças à polpuda soma que rece­beu pelas informações foi viver na Suíça? Pois olhe, James, vá por mim: é este Traut. A ficha dele passou pela minha mão quando eu estava na CIA em Washington. E tudo me voltou à memória, só vi a cara dele uma vez mas não tenho a menor dúvida — é Kotze! E o que estaria aquele cientista fazendo a bordo do Disco Volante, hein? Tudo se encaixa, não é mes­mo?

Estavam no Quartel de Polícia, no andar de baixo, que era o único com luzes àquela hora, e Bond esperou que o seu relato fosse passado ao oficial de dia. Voltaram os dois, êle e Leiter, para o quarto. Então disse:

— Esta é a questão, Félix. Que faremos agora?

— Ora, com o que você descobriu esta noite... acho que as suspeitas são válidas. Não há dúvidas — respondeu Lei­ter.

— Mas suspeitas de quê? — inquiriu Bond, impacien­te. — Largo chamaria o seu advogado em cinco minutos. Os processos democráticos da lei, sabe? E em que nos agarra­ríamos para acusar Largo? Pois bem, Traut é Kotze, e daí? Diriam que precisavam do cientista para ajudá-los na estória da tal busca ao tesouro, um mineralogista era necessário, Traut apareceu e ofereceu seus serviços. Simples, não? E a minha descoberta... êle diria, sim, que tem um compartimen­to subaquático no iate, servirá para o desembarque dos mer­gulhadores nas buscas noturnas, podem inspecionar o equi­pamento também... Há seis meses buscam o tesouro assim como outros tantos têm feito... Precisavam de um sentinela noturno, diria que está fazendo a coisa de modo profissio­nal, tinha o direito de ser discreto acerca de seus métodos... Compreende, Leiter? E ainda perguntaria o que o rico Sr. Bond, em busca de propriedade para comprar, estaria fazen­do àquela hora da noite nadando por baixo do seu iate? Se eu falasse em Petacchi êle diria que nunca ouviu falar nesse nome, e que sempre conhecera a moça como Vitali... Você entende? Esta invenção de busca ao tesouro serve perfeita­mente para encobrir tudo, justificar tudo. E como ficamos nós? Largo ainda pode botar banca de ofendido e ameaçar de ir para outro porto e de botar advogado contra nós por crime de injúria, o diabo, sei lá.

— Sim, e então que faremos? Daremos o caso por en­cerrado?

— Nada disso. Vamos esperar. — Vendo a expressão de Leiter, Bond ergueu a mão e continuou: — Calma, vamos mandar o nosso relatório com certa reserva e vamos dizer que tudo de que precisamos é o Manta. E é mesmo. Porque com o Manta poderemos ficar de olho no Disco Volante à vontade e ver o que acontece. Por enquanto ainda não desconfiam da nossa missão e os planos de Largo continuarão sempre com a conversa da busca ao tesouro para justificar tudo. Agora êle já deve estar cogitando de ir buscar as bombas para co­locar uma no alvo n.° 1, preparada para a hora zero, isto é, dentro de trinta horas. Nada podemos contra êle antes que saibamos que está com uma ou as duas bombas a bordo, ou que o peguemos com a boca na botija no esconderijo onde ambas estão. E isto não pode ser muito longe, assim como o Vindicator não pode estar muito distante daqui. Pela manhã pegaremos aquele anfíbio que puseram à nossa disposição e faremos um vôo de reconhecimento numa área de cem mi­lhas de raio. Sobrevoaremos o mar e não a terra. O negócio deve ser em algum ponto de maré rasa e muito bem disfarça­do. Com o tempo bom que está fazendo poderemos localizar o avião roubado, se estiver por aqui. Agora vamos mandar logo os relatórios e depois vamos tratar de dormir um pouco.

E avisaremos que estaremos fora do ar por dez horas, desli­garemos o telefone do seu quarto, por mais cuidadosos que sejamos isto vai botar fogo no Potomac e no Tâmisa.

Seis horas mais tarde, à luz clara e cristalina da manhã, os dois já estavam no aeroporto de Windsor e o pessoal do hangar estava rebocando o Grumman Anfíbio com um jipe. Embarcaram e Leiter estava examinando os instrumentos quando viram um polícia de motocicleta que vinha disparado para eles, trazendo alguma mensagem urgente. Bond falou:

— Vamos logo, ande. Lá vem papelada.

Leiter soltou os freios e tomou a pista à sua frente. O rádio estalou uma estática e Leiter olhou para o céu. Estava fazendo bom tempo, claro, limpo. Puxou com segurança o manche e o avião deslizou pela pista acelerando a velocida­de e com um bamp final levantou vôo. O rádio ainda gritava estáticas e Leiter estendeu a mão e desligou-o. Bond tinha um mapa do Almirantado sobre os joelhos. Estavam voando para o norte. Iriam primeiro ao grupo das Grandes Bahamas dar uma olhada no possível alvo n.° 1. Voavam a mil pés. De lá do alto as ilhas Berry pareciam um colar incrustado em esmeraldas e turquesas.

— Você entende o que eu quis dizer? — falou Bond. — Está tão claro que daqui se pode ver tudo dentro d'água até uns cinqüenta pés de profundidade. E um volume como o do Vindicador seria fácil de localizar. Por isso marquei as áreas de tráfego menos intenso que teriam sido possivelmente as procuradas. Seguindo um palpite, talvez meio arriscado, de que o Disco foi para o sul da última vez, para despistar, va­mos nós para o norte e o oeste. Ficou fora oito horas, duas das quais foram gastas em ancoragem e localização etc, e fazendo o serviço propriamente dito. As seis horas restantes navegando a 30 nós, descontando uma hora para o despis-tamento, restam cinco. Está aqui uma área marcada ao sul das Bimini. Vamos tentar.

— Você falou com o Comissário? — perguntou Leiter.

— Sim, êle prometeu botar um homem de confiança de dia e outro de noite em observação permanente de binóculo, de olho no Disco Volante. Se Largo levantar âncora do seu porto em Palmyra antes que voltemos, o Comissário vai man­dar segui-lo por avião. Dei a êle algumas informações que o deixaram meio assustado. Êle queria ir direto ao Governa­dor com a estória, porém eu pedi que esperasse. É uma boa pessoa, só que não quer assumir responsabilidades pesadas sem que alguém superior o autorize. Usei o nome do Primeiro Ministro para fazê-lo esperar até que voltemos. Êle vai espe­rar direitinho. Quando você acha que o Manta vai chegar?

— Esta tarde, talvez. — A voz de Leiter denotava inse­gurança. — Acho que estava bêbado ontem quando mandei pedir o Manta! Nossa Senhora, James, que confusão que es­tamos arranjando! Assim à luz do dia tudo já não parece tão fácil como à noite. Enfim, vamos em frente. Lá estão as Gran­des Bahamas. Devo dar um aviso à base? É área proibida, você sabe. Mas já que estamos aqui, toca pra frente. Olhe só, James. Estaremos lá dentro de um minuto ou dois.

E Leiter ligou o rádio. Voaram mais cinqüenta milhas de costa com uma vista belíssima e vendo o que lhes pareceu ser uma cidade de alumínio. Estruturas vermelhas, brancas e prateadas se erguiam como arranha-céus pequeninos por entre as casas baixas.

— Lá está... — disse Leiter, apontando. — Está vendo os balõezinhos amarelos de aviso? Estão nos cantos e são para avisar aos aviões e barcos pesqueiros que aqui é área proibida. Parece que vai haver um teste esta manhã. É me­lhor irmos para o mar e para o sul. Se fôr realmente um teste com vôo experimental eles vão disparar na direção da ilha da Ascensão, cinco mil milhas a leste... e não quero arriscar a receber um míssil pelo nosso traseiro! Olhe bem, ali à es­querda. . . parece um lápis de pé, entre o sinaleiro vermelho e o branco! É um Atlas ou um Titã Intercontinental. Ou talvez um tipo Poláris. Aqueles outros sinaleiros são para o Mata­dor e o Snark e talvez também para o Thunderbird de vocês, aquele monstro bem equipado. Aqueles dois discos enormes são as telas do radar. Ei! Um deles está se voltando em nos­sa direção! Vamos cair fora. Veja a pista de cimento bem no meio da ilha; é para rebocar o míssil com cabos, quando fôr o caso. Não consigo ver é o controle central para telemetragem e guia para destruição em caso de alarme. Deve ser subter­râneo... e com certeza tem um capacete de aço sentado lá e toda uma equipe pronta para a contagem regressiva, e devem estar se perguntando o que é que este teco-teco está fazendo aqui nesta área a esta hora? Atrapalhando o serviço deles...

Então ouviram pelo rádio uma voz metálica que chama­va: "n/akoi, n/akoi. Estão voando em área proibida. Podem me ouvir? Estão em área proibida! Mudem o rumo para o sul, imediatamente, n/akoi. Aqui fala a Base da Grande Bahama, Base de foguetes. Limpem a área. Saiam da área!"

— Está vendo? Estamos atrapalhando o progresso mun­dial! — falou Leiter e moveu os controles, rápido. — Enfim, já vimos o que queríamos. Não vale a pena insistir e acabar num relatório queixoso do Windsor Field. Mas agora você entende o que eu quis dizer? Esta cidadezinha de brinquedo deve va­ler bilhões de dólares ou eu mudo de nome. E fica apenas a algumas milhas de Nassau. Alvo perfeito para o Disco.

O rádio começou novamente a falar e a mesma voz me­tálica insistiu: "Vocês vão figurar num relatório por entrar em área proibida, n/akoi, e por não obedecer aviso. Continue voando para o sul, n/akoi, e atenção, haverá possivelmente turbulências. Câmbio."

— É, isto quer dizer que vão disparar um míssil em ex­periência — comentou Félix. — Fique de olho e avise se vir qualquer coisa. Afinal, não faz mal olhar de longe o que estão fazendo com o dinheiro dos impostos. Veja, o radar virou para o leste. O pessoal da equipe deve estar suando a camisa lá nos controles, eu já vi de perto; as luzes piscando, aquele painel enorme cheio de reloginhos e ponteirinhos e os obser­vadores de olhos fixos em seus periscópicos. É tudo subter­râneo. Vozes de fontes invisíveis ditando ordens: Contato, soltar balões de reconhecimento... contato... ligar telêmetros, pressão... okay, Gyros... okay... pressão do tanque... okay... Foguete livre... Gravadores ligados... Luzes todas verdes... dez... nove... oito... sete...

Apesar de toda a encenação de Leiter e da sua contagem regressiva, de brincadeira, nada aconteceu. Mas de repente Bond viu um fio de vapor, saindo da base do foguete, que foi aumentando até virar uma nuvem de fumaça e línguas de luz avermelhada ficando mais e mais rubra. Bond prendeu a respiração, estava vendo algo espantoso e começou a relatar para Leiter:

— Está começando a se erguer lentamente... há uma camada de chamas, sobre a qual o foguete parece pousado... está subindo agora... largou! Êi! Que velocidade! Agora é ape­nas uma fagulha no céu! E... sumiu! Pronto. — Enxugando a testa com o lenço, Bond comentou: — Lembra-se daquele caso do foguete à lua, o Moonraker, em que tomei parte? Agora sei como se sentiram os que apreciaram de longe a coisa!

— É. . . você teve sorte de escapar daquele! — E Leiter, afastando as reminiscências de Bond, falou: — Bem, agora a próxima parada é por cima do oceano ao norte das Bimi­ni e depois sobrevoaremos o grupo das Bimini propriamen­te ditas. Cerca de setenta milhas a sudeste. Fique de olho. Se deixarmos escapar a pista vamos acabar nossos dias nos campos de Fountain Blue em Miami.

Um quarto de hora mais tarde viram o encadeamen­to das pequenas ilhas: Havia baixios. Parecia o lugar ideal para esconder o avião. Desceram até cem pés de altitude e voaram em ziguezague por entre as ilhas. A água estava tão clara que Bond via com nitidez os grandes peixes perseguin­do suas presas por entre árvores de coral e algas marinhas e via a areia brilhante do fundo. Um marisco com formato de diamante se escondeu pela areia a dentro quando a sombra do avião o cobriu por momentos. Aparentemente não havia possibilidade de haver algo escondido em águas tão claras. Voaram para a Bimini Norte, havia na ilha algumas casas pequenas e hotéis para pescadores. Alguns barcos de pesca, ricamente equipados, estavam ancorados e pessoas alegres nos tombadilhos acenaram para o pequeno avião, saudando­os. No terraço de cobertura de um prédio viram uma peque­na reclinada, completamente despida, tomando seu banho de sol e que, assustada à passagem do avião tão baixo, pegou rápido uma toalha para cobrir-se.

— Aquela é uma loura autêntica — comentou Leiter. Voaram então para o sul das Cat Cays e também aí ha­via barcos de pesca.

— Bolas! — falou Felix. — Com tanta gente pescando por aqui... já teriam descoberto o avião se aqui estivesse!

Bond mandou que continuasse para o sul onde o mapa do Almirantado assinalava ilhotas sem nome. Lá as belas águas azuis ficavam mais esverdeadas e rasas. Viram três tubarões nadando sem objetivo, e mais nada. Só areia e manchas de algas ou de coral. Desceram um pouco no ponto onde a água era mais azul. E Leiter falou:

— Aí está. Cinqüenta milhas adiante está Andros, mais populosa, e o pessoal de lá teria escutado se o avião descesse por perto. São 11,30 lá. Daqui para onde, chefe? Só tenho combustível para mais duas horas de vôo.

Algo começava a fazer cócegas dentro da cabeça de Bond. Era um detalhe mínimo que colocou uma interrogação em sua mente. O que seria? Aqueles tubarões nadando em círculos em quarenta pés de água. O que estavam fazendo ali? E eram três... Devia haver algo, algo morto que os esta­va atraindo àquele determinado ponto onde só se via areia e manchas de coral! E então de repente falou para Leiter:

— Depressa, Leiter, volte àquele ponto onde a água está bem rasa. Deve haver algo lá.

O pequeno avião deu uma volta fechada e Felix veio planando a cinqüenta pés de altitude acima da superfície do mar. Bond abriu a portinhola e com os binóculos começou a examinar atentamente a região. Lá estavam os tubarões... dois na superfície circulando e um mais para o fundo e fuça­va qualquer coisa, e puxava qualquer coisa. E então por en­tre as manchas de coral e algas uma linha escura de sombra apareceu. Bond gritou nervoso para Leiter:

— Volte, passe outra vez pelo mesmo ponto!

Nossa! Mas para que tanta pressa? Mas é que Bond acabara de enxergar outra linha de sombra no fundo de areia formando uns noventa graus de ângulo com a outra. Fechou a portinhola ligeiro e falou para Félix:

— Desça e pouse na água acima daqueles tubarões. Acho que descobrimos!

Leiter virou a cabeça para olhar Bond e, convencendo-se da importância da coisa, exclamou:

— Está certo. Espero conseguir, não é nada fácil neste mar liso como vidro e nem sei onde está o horizonte!

Mas conseguiu. Com habilidade baixou o nariz do avião lentamente, houve um pequeno tranco e o barulho silvado da água deslizando sob os flutuadores do avião. Leiter desligou os motores e o avião ficou flutuando num embalo leve a dez jardas do ponto escolhido por Bond. Os dois tubarões da su­perfície não tomaram conhecimento e continuaram a nadar em círculos e tão próximo do teco-teco que Bond podia ver a expressão perversa de seus olhos côr-de-rosa. Bond olhou mais uma vez para o fundo e sorriu com a descoberta: sim, as manchas de coral do fundo do mar naquele ponto eram falsas! Eram pintadas, assim como a "areia" em todo aquele trecho! Agora Bond viu com nitidez as ourelas do grante toldo de lona. O terceiro tubarão havia levantado uma ponta que agora ondulava ao movimento da água.

Bond sentou e falou para Félix:

— Achamos, afinal! Lá está. Uma enorme lona camufla­da para cobrir o Vindicator. Venha olhar.

Enquanto Leiter se debruçava para olhar, a cabeça do Bond fervilhava de aflição. Deveria chamar o Comissário de Polícia pelo rádio do avião e avisá-lo? Mandar avisar Londres? Não, o radioperador do Disco poderia interceptar a mensa­gem, pois ficava na escuta dia e noite! O melhor seria mergu­lhar e ver se as bombas ainda estavam lá. E trazer uma prova qualquer. E quanto aos tubarões? Bastava matar um deles e os outros estariam ocupados almoçando o companheiro.

Leiter voltou ao seu lugar com os olhos brilhando de excitação:

— Puxa, rapaz! Descobrimos, hein? Afinal, descobri­mos. Rapaz! — E dava palmadinhas amistosas nas costas do companheiro. — Puxa, agora sim! ôba!

Bond pegou o PPK, acomodou-se com a arma pousada em mira e esperou que os dois tubarões passassem na linha de mira. O primeiro era grandão, cabeça de martelo, de uns doze pés de comprimento, nadava olhando em todas as dire­ções esperando o sinal de comida para avançar. Bond mirou no ponto da espinha dorsal onde terminava uma barbatana que parecia uma vela negra cortando o mar e que estava erecta em sinal ds alerta dos grandes peixes. Logo abaixo estava o ponto vulnerável apenas para uma bala de cápsula de níquel. Puxou o gatilho. Ouviu um "ffffit" quando o projétil bateu no alvo e o estampido ecoou pelos mares. O tubarão não tomou conhecimento e Bond atirou de novo e desta vez o enorme peixe corcoveou, pulou fora d'água e tombou rui­dosamente no mar como uma cobra partida ao meio; foi uma agonia rápida, a bala deve ter atingido um ponto mortal por­que agora a grande sombra escura boiou em círculos cada vez mais lentos, e virou de ventre para cima brilhando ao sol. O outro tubarão estivera observando o fim do companheiro, foi-se chegando cauteloso a princípio, para se certificar, en­costou o nariz, empurrou e então com segurança cravou os dentes cortantes no flanco do tubarão morto; mordeu, porém a carne era dura, e êle sacudiu a cabeça para os lados sem querer largar o bocado que mordera e conseguiu afinal ar­rancá-lo. Imediatamente uma onda de sangue tingiu a água naquele ponto e logo o outro tubarão surgiu à superfície e avançou também e então ficaram os dois ali liquidando a dentadas o resto do companheiro cujo sistema nervoso, em estremecimentos, foi o último a perecer. A correnteza foi le­vando o festim impressionante para longe. Bond entregou a arma a Leiter e falou:

— Agora eu vou mergulhar e talvez demore. Os tuba­rões estarão ocupados por meia hora, pelo menos, mas se voltarem... repita a mágica com um deles. E se, por qualquer motivo, você quiser me chamar atire para dentro d'água em perpendicular. As vibrações chegarão onde eu estiver.

Rápido, Bond se despiu e, com a ajuda de Leiter, colo­cou os aqualungs. A tarefa não ia ser muito fácil, porém mais difícil seria subir para o avião depois. Leiter falou, honesta­mente preocupado:

— Eu queria poder descer com você, mas com este raio deste gancho em lugar da mão... não consigo nadar bem. Vou ter de arranjar um equipamento de borracha. Não sei como não pensei nisso antes.

— Você precisa ficar, de qualquer maneira, aqui com o avião. Tome conta direitinho, como um bom menino. Eu não sei o que me espera lá embaixo. Isto já está aí há bem uns cinco dias e outros visitantes podem ter vindo antes de mim! Tire o avião de cima desta área.

— Está certo — falou Leiter e recomendou: — Você co­nhece o desenho do Vindicator? Sabe onde procurar as bom­bas e as peças do detonador?

— Sim, tenho uma idéia geral. Me disseram lá em Lon­dres. Bom, até a vista, diga a mamãe que me comportei como um herói!

E, passando pela porta da cabine, Bond pulou n'água.

Mergulhou e começou a nadar nas águas brilhante e claras. Agora percebia que havia uma quantidade enorme de peixes e peixinhos cobrindo aquela área: pequenos barracu­das, moluscos, vários tipos de carnívoros. Abriam alas para a passagem do grande e branco competidor. Bond chegou ao fundo e tratou de ir em direção à extremidade da lona onde o tubarão levantara uma ponta. Puxou com esforço a corda que segurava o tecido aos possantes parafusos de ferro en­terrados no fundo do mar. E então, sempre alerta, a mão no cabo da faca, penetrou por baixo do imenso toldo. Êle mais ou menos imaginara o ambiente, porém ainda assim se surpre­endeu. Mordeu com mais força o bocal de borracha e foi em direção ao avião submerso. Conseguiu ficar de pé. Acendeu a tocha iluminando uma asa por baixo e passeou a luz dando sobre algo caído no solo, meio coberto de caranguejos, lagos­tas e lagartas marinhas e estrêlas-do-mar; também estava preparado para isto e ajoelhou junto ao corpo semidestruído.

Não levou muito tempo para tirar a corrente com a chapa de identificação e depois o relógio de ouro do que restava do pulso e pôde também perceber a estocada que atravessara o céu da boca até o cérebro e que não podia ter sido feita por nenhum monstro marinho. Iluminou com a tocha a chapa de identificação e leu: Giuseppe Petacchi, n.° 15932. Prendeu as duas peças aos seus pulsos e foi examinar a fuselagem. Assim, na obscuridade, mais parecia um enorme submarino. Examinou por fora e viu o ponto que se havia quebrado com o impacto e depois penetrou no Vindicator.

Lá dentro a luz de sua tocha fazia brilhar por toda par­te olhos vermelhos que brilhavam como rubis na escuridão, movendo-se ligeiramente, eram polvos, pequenos polvos mas em grande quantidade, centenas deles, por todos os cantos, nervosos, presos pelas pontas de seus tentáculos e mudando de côr, como defesa, num mimetismo lento porém seguro, assimilando a tonalidade ambiente. Quando a luz de Bond chegou ao teto este tomou um susto ante a visão macabra do corpo do piloto suspenso ao teto pela pressão, já em adian­tada decomposição, e os polvos pendendo dele presos pelos tentáculos, alguns se soltaram, saíram como morcegos por dentro do avião, batendo nas paredes de alumínio e escon­dendo-se sob as poltronas.

Bond procurou distrair a mente daquela visão de pesa­delo e continuou sua inspeção. Achou o cilindro de cianido e guardou-o preso ao cinto. Contou o número de corpos e viu que o compartimento das bombas estava aberto e va­zio, olhou no cofre sob a cadeira do piloto e em outros pon­tos, mas não encontrou os detonadores. Finalmente, lutan­do sempre para arrancar os tentáculos que se agarravam às suas pernas nuas, Bond achou que seus nervos já tinham agüentado demais. Podia levar as chapas de identificação de toda a tripulação, o livro de bordo que continha apenas anotações de rotina e nenhum sinal de emergência e... nem sabia mais o quê. Só sabia que não poderia agüentar nem mais um minuto de permanência naquela catacumba cheia de olhos vermelhos.

Bond saiu da cabine do Vindicator e nadou quase freneticamente, em direção da linha de luz onde a lona esta­va levantada. Desesperadamente, tratou de passar por baixo, mas os cilindros do aqualung ficaram presos na corda e êle teve de voltar para desembaraçar-se. Finalmente se viu na claridade das águas cristalinas, nadando, aflito, para a su­perfície.

A vinte pés uma dor em seus ouvidos fê-lo notar que estava esquecendo da descompressão; impaciente, olhando para cima onde o teco-teco o esperava, aguardou até que a dor passasse. E logo estava com a cabeça fora d'água, agar­rado a um dos flutuadores e tirando com gestos nervosos o equipamento, ansioso por livrar-se da sua contaminação. Conseguiu soltar tudo e ficou vendo o equipamento afundar e desaparecer. Lavou a boca com a fresca água do mar e na­dou com largas braçadas para atingir a mão que Leiter lhe estendia.

 

Como Comer Uma Pequena

Quando se aproximavam de Nassau, Bond mandou que Leiter desse uma olhada para o Disco Volante perto de Pal­myra. Lá estava, no mesmo local de sempre. A única dife­rença é que apenas uma das âncoras estava lançada. Mas isto pouco significava, não se percebia nenhum movimento a bordo. Bond achou linda a imagem do magnífico iate refletida nas águas tranqüilas. Foi quando Leiter mostrou, afobado:

— Veja, James, dê uma olhada para a tal casa da praia! Repare naquelas duas marcas paralelas que vão da praia até a casa de guardar os barcos. Está vendo? Estranho, não? Dois sulcos deixados por algo que foi arrastado... Que pode­ria ser?

Bond acertou o binóculo e olhou. Realmente: eram dois sulcos paralelos e fundos deixados por algo pesado que teria sido arrastado desde o mar até a casa. E Bond, tenso e ad­mirado exclamou:

— Vamos voltar rápido, Félix. Não é possível! Mas. . . se fôr o que estamos pensando... não, não é possível! Eles tratariam logo de apagar as marcas.

— É, mas todo mundo pode cometer erros, pode esque­cer algum detalhe. Não sei... acho que vou aceitar o convite do Sr. Largo e vou ver a casa em nome do meu rico cliente, o Sr. "Rockefeller" Bond! — disse Félix.

Eram nove horas quando chegaram de volta ao aeropor­to de Windsor. A torre de controle estava procurando por eles havia meia hora e chamando pelo rádio. Agora teriam de en­frentar o Comandante e, como era de esperar, um emissário do Governador foi entregando um envelope com queixas do pessoal da Base de Foguetes por desrespeito às ordens ofi­ciais e aguardando satisfações por parte dos transgressores.

— E vão ter notícias nossas — comentou Leiter, recos­tado confortàvelmente no banco de trás do carro do Governa­dor, a caminho de Nassau.

Mensagens que os esperavam avisavam que o Manta chegaria às cinco da tarde. Quanto à consulta de Bond, a Interpol confirmava que Giuseppe Petacchi era realmente ir­mão de Dominetta Vitali e que a estória dela conferia com a verdade em todos os pontos. A mesma fonte informava que Emílio Largo era conhecido aventureiro e possivelmente vi­garista, embora tivesse ficha limpa na polícia, sua fonte de renda era desconhecida mas não provinha da Itália; o Disco Volante fora pago em francos suíços; os construtores con­firmaram a existência do tal compartimento subaquático, o guindaste elétrico e equipamento para desembarcar peque­nas pranchas e mergulhadores sob a água. Tudo isto fora adaptado a pedido do dono sob o pretexto de facilitar os tra­balhos de busca ao tesouro. Quanto às consultas sobre os acionistas, nada havia a registrar, a não ser o fato de que em sua maioria todos estavam em suas profissões ou ramos de negócios havia não mais de seis anos; isto dava margem à suspeita de que aquelas identidades poderiam ser fabricadas e nessa hipótese talvez fossem membros da SPECTRE, caso a tal organização realmente existisse. A respeito de Kotze, havia saído da Suíça com destino ignorado quatro semanas antes, fora visto pela última vez tomando um avião da Pan American ao meio-dia. Não obstante todos estes dados, a sala especial para o assunto, a Operação ameaça explosiva, teria de aceitar a cobertura do Sr. Largo até que indícios mais concretos pudessem ser apresentados e a norma a seguir no momento era: continuar o trabalho de investigações pelo mundo inteiro, dando prioridade à área das Bahamas. Em vista desta prioridade e da premência de tempo ficara resol­vido que o Brigadeiro Fairchild, CB, DSO, Adido Militar britâ­nico em Washington, com o Almirante Carlson. USN Ret., até recentemente Secretário dos Chefes do Comitê Americano, estariam chegando às 19 horas EST pelo Boeing President 707 "Columbine" para assumir o comando das operações ne­cessárias. A cooperação integral dos Srs. Bond e Leiter era imperiosa e até que chegassem aquelas autoridades deviam eles enviar, de hora em hora, relatórios para Londres e Wa­shington assinados por ambos.

Bond e Leiter se entreolharam em silêncio. Depois Lei­ter falou:

— James, proponho que ignoremos a última ordem. Já perdemos quatro horas e acho que não devemos passar o resto do dia suando na sala de rádio. Há muito o que fazer. Vou dar notícias a eles e dizer que vamos ficar fora do ar por causa de uma emergência. Então proponho uma olhada lá na Palmyra sob o pretexto de comprá-la, examinaremos a tal casa de guardar barcos para onde iam aquelas marcas. En­tende? Às cinco estaremos aqui para receber o Manta e pre­parados para interceptar o Disco Volante se e quando zarpar. Quanto às duas autoridades... podem ficar jogando biriba no Palácio do Governo até amanhã de manhã. Esta noite é a grande noite e não podemos perder tempo com rapapés, não acha?

Bond ficou pensando. Já tinha desobedecido muitas ordens em sua vida, porém agora a coisa era muito séria; tratava-se de ordens do Primeiro Ministro da Inglaterra e do Presidente dos Estados Unidos! Acontece, por outro lado, que as coisas estavam caminhando com extrema rapidez, não havia um minuto a perder. E afinal M lhe havia confiado aquele território e, houvesse o que houvesse, o ampararia, ti­nha a certeza, ainda que isto significasse um processo contra o próprio M. E então falou decidido para Leiter:

— Está certo. Eu concordo, Félix. Com o Manta aqui poderemos agir à nossa maneira. O ponto vital agora é des­cobrir quando aquelas bombas vão para bordo do Disco. E eu tenho uma idéia quanto a isso. Pode dar certo e pode não dar. É imprensar a moça Vitali, mas isso fica por minha con­ta. Deixe-me no hotel e meterei mãos à obra. Encontro você aqui às quatro e meia. Vou telefonar para Harling para saber se há alguma novidade com respeito ao Disco e avisarei que comunique a você qualquer novidade. Você acerta as coisas lá no aeroporto? Okay, então. Vou ficar com esta chapa de identificação do Petacchi, por enquanto. Até já.

Bond entrou quase correndo pelo hall do hotel. O rapaz do balcão lhe entregou um recado que êle foi lendo no eleva­dor. Era de Dominó: "Peço telefonar logo que puder".

Em seu quarto Bond pediu um sanduíche reforçado e um Bourbon duplo com gelo. Deu um telefonema ao Comis­sário de Polícia, que informou apenas que o Disco Volante havia saído, mas só até o posto de abastecimento onde en­cheu os tanques, depois voltara ao local de sempre. Havia meia hora o anfíbio levantara vôo, partindo do convés, levan­do a bordo Largo e outra pessoa com direção leste, então o Comissário pedira ao aeroporto de Windsor que o seguisse pelo radar; acontece que eles voaram baixo, a trezentos pés, e depois saíram do campo do radar, perdendo-se por entre as ilhas menores. Nada mais de extraordinário, a não ser o aviso de que as autoridades estivessem preparadas para re­ceber o submarino americano Manta, movido a força nucle­ar, que chegaria às 5. E Bond, descobrira alguma coisa? Este respondeu que era muito cedo para dizer. Parece que a coisa estava esquentando. E pediu que os observadores avisassem Leiter assim que o avião de Largo voltasse ao Disco. Isto era vital. E também gostaria que lhe emprestassem um carro qualquer, sim, um Land Rover, estava ótimo.

Então Bond ligou para Dominó em Palmyra. Ela parecia estar esperando pelo telefonema, atendeu logo e foi dizendo:

— Onde esteve você a manhã toda, James? — Era a primeira vez que o chamava pelo primeiro nome. — Quero que venha nadar um pouco esta tarde. Emílio disse que esta noite eles vão ver o tesouro e eu também vou, não é gentil da parte dele me levar? Mas, olhe, isto é um segredo. Não vá espalhar por aí. E não sei quando voltaremos. Emílio foi meio evasivo a respeito. Falou em Miami, não sei. Fiquei pensan­do que até voltarmos você já poderia estar de volta, em Nova York. Estive tão pouco tempo com você! Escute, por que foi embora tão de repente ontem à noite? O que foi?

— Senti uma dor de cabeça horrível, de repente. Acho que foi efeito do sol. Tive um dia muito atribulado. Não saí por gosto. Mas gostaria muito de ir nadar com você hoje. En­tão? Onde será?

Ela deu as indicações direitinho. Era uma praiazinha que ficava a uma milha de Palmyra. Havia uma estrada que levava a uma espécie de cabana. A praia era melhor do que a de Palmyra, melhor para mergulhar. E além do mais não ficava mais ninguém por ali. Pertencia a um sueco milionário que já tinha ido embora. A que horas Bond poderia estar lá? Dentro de meia hora estaria ótimo. Teriam mais tempo... para nadar.

Chegaram os drinks e os sanduíches e Bond os devorou olhando para a parede e pensando meio excitado na peque­na, mas ao mesmo tempo sabendo que iria amargurar a vida dela naquela tarde. Seria uma missão dura. E poderia ser tão bom! Lembrou-se da primeira vez que a vira, com aquele chapeuzinho de palha com as fitinhas voando em Bay Street. Enfim...

Bond enrolou o calção, uma toalha, vestiu uma camisa esporte, pendurou o Geiger a tiracolo e se olhou no espelho; parecia um turista qualquer, com uma câmara fotográfica. Meteu a mão no bolso para verificar se trouxera a chapa de identificação e saiu do quarto para o elevador.

O Land Rover do comissário tinha pneus Dunlopillo, mas as estradas de Nassau e o sol daquela hora eram de matar!

Chegando ao ponto de referência, onde havia casuari-nas, tomou a estradinha de areia, estacionou o carro e seu desejo era só entrar n'água e ficar n'água o mais possível. A tal cabana parecia feita por Robinson Crusoé, com troncos e folhas de palmeira, agradável e pitoresca. Lá dentro havia dois compartimentos para trocar de roupa com pequenas ta-boletas nas portas indicando: "Dele" e "Dela". Abriu as portas e no "Dela" havia uma pilha de roupas de tecidos macios e um par de sandálias. Bond entrou na 'Dele", trocou o calção e saiu para o sol. A pequena e bela praia tinha uma forma de meia lua e era protegida e acolhedora. Não viu sinal da garota. A água do mar ia do verde ao azul. Bond foi entrando n'água e ficou boiando, sentindo a agradável carícia da água em sua pele e nos cabelos. Depois deu umas braçadas es­perando ver Dominó a qualquer momento, mas não a viu, e dez minutos depois voltou à praia, procurou um local a jeito e deitou de bruços com a cabeça apoiada nos braços. Minu­tos depois algo o fêz abrir os olhos. Vinha em sua direção, pelo meio da pequena baía, uma trilha de pequenas bolhas na água. Quando se foi aproximando Bond pôde distinguir a sombra do aqualung, a máscara e a cabeleira escura flutu­ando na água. Chegando à areia a moça, apoiada no cotove­lo, tirou a máscara e falou:

— Não fique aí parado pensando em ontem. Venha me salvar!

Bond se pôs de pé e caminhou em direção a ela dizen­do:

— Você não devia sair sozinha com aqualungs. Mas o que aconteceu? Algum tubarão quis almoçar você?

— Deixe de piadas. Parece que uns espinhos de ouriço-do-mar entraram aqui no meu pé... Mas antes de tudo me ajude a tirar este aqualung, não agüento ficar de pé com este peso. — Ela desabotoou a fivela do cinto. — Pronto, agora levante o cilindro.

Bond obedeceu e carregou o equipamento para a som­bra. Agora Dominó estava sentada na água rasa examinando a sola do pé. Depois disse:

— São dois só, não vai ser fácil, mas você terá de dar um jeito.

Bond ajoelhou-se ao lado da moça e olhou, os dois espi­nhos negros estavam enterrados quase na dobra do segundo e terceiro dedos.

Êle se ergueu e disse, estendendo a mão:

— Venha. Vamos lá para a sombra. Isto vai demorar. Não, não ponha o pé no chão ou os espinhos enterram mais ainda. Espere, eu a carrego.

Ela deu uma gargalhada, dizendo:

— Meu herói! Está bem, mas não vá me deixar cair. Estendeu os braços. Bond se curvou e passou um braço por baixo dos joelhos dela e outro pelas costas. Os braços da moça rodearam o seu pescoço. Bond levantou-a com faci­lidade. Ficou um momento ali parado com os pés na água olhando para o rosto dela, os olhos que o fitavam disseram: sim... e então êle beijou com força os lábios entreabertos e convidativos. O beijo foi correspondido e depois ela afastou a boca, dizendo:

— Você não devia cobrar a recompensa adiantadamen-

te...

— Mas foi apenas algo... por conta...

E Bond cobriu com a mão, firmemente, o seio direito dela e assim caminhou saindo da água para a areia até a sombra das casuarinas. Deitou-a cuidadosamente sobre a areia macia. Dominó se recostou, descansando a cabeça nas mãos para evitar que a areia lhe sujasse os cabelos, e de olhos semicerrados aguardou. O V formado pelo seu dimi­nuto biquíni parecia olhar para Bond assim como os seios transbordando do pequeno soutien pareciam mais dois olhos a fitá-lo. Bond achou que não poderia controlar-se por muito tempo, e falou enérgico:

— Vire-se.

Ela obedeceu e êle então se ajoelhou e tomou nas mãos o delicado pé, era pequeno e macio, parecia um pássaro ca­tivo em suas mãos; limpou cuidadosamente a areia e des­dobrou os dedos que eram rosados e lembravam pétalas de estranha flor. Ainda segurando na mesma posição êle colou os lábios no local onde apareciam os dois pontos negros dos espinhos e sugou por um minuto e um pedaço de espinho saiu em sua boca e êle cuspiu fora, depois virou-se para a pequena avisando:

— Isto vai demorar bastante, a não ser que doa um pouco. Talvez leve um dia inteiro e você compreende que não posso perder este tempo todo só com o pé! Então? Posso cas­tigar?

Êle notou que os músculos dos quadris dela se contra­íam na expectativa da dor, porém ela falou:

— Pode começar.

Então Bond foi com os dentes desta vez. Procurou mor­der a ponta do espinho com cuidado e sugou, o pé estreme­ceu querendo fugir. Bond cuspiu fora mais alguns fragmen­tos do espinho e olhou, a marca de seus dentes ficara na pele rosada e o sangue começava a aparecer em volta. Repetiu a operação dizendo, com um sorriso:

— Esta é a primeira vez que eu como uma pequena, sabe? É bom, gostei.

Ela estremeceu, impaciente, mas nada disse. Bond sa­bia como devia estar doendo e falou em tom consolador:

— Falta pouco, Dominó. Você está se comportando mui­to bem. Última dentada.

Deu um beijo de consolação na sola do pé que segurava e voltou a trabalhar com os dentes. Dois minutos mais tarde cuspiu o último pedaço de espinho. Avisou que estava termi­nado e pousou delicadamente o pé dela no chão.

— Agora, cuidado. Não deixe entrar areia no ferimento. Vamos lá. Eu a carrego outra vez até a cabana para você cal­çar as sandálias.

Dominó rolou na areia, olhando-o. Suas longas pesta­nas estavam molhadas de lágrimas por causa da dor, ela lim­pou-as com as costas da mão e disse, fitando-o sem sorrir:

— Você foi o primeiro homem que me fêz chorar, sabe? E ela estendeu os braços para ser carregada. Êle entendeu que desta vez ela estava se rendendo inteiramente.

Bond curvou-se e tomou-a nos braços, desta vez não beijou a boca tentadora. Carregou-a para a cabana. Parou um instante indeciso, entraria na "Dele" ou na "Dela"? E car­regou-a para a "Dele". Passou a mão na camisa e jogou no chão para fazer uma espécie de cama. Colocou-a no chão de­licadamente sobre a camisa. Ela manteve os braços em redor do pescoço dele enquanto Bond desabotoou o botão único do soutien e desamarrou as tiras do biquíni; deixou cair o pró­prio calção e chutou tudo para um canto.

 

Depois dos Beijos...

Bond curvou-se para olhar o rosto a seu lado. Havia sinais de transpiração sob os olhos e nas têmporas, e seu pescoço latejava. A expressão autoritária desaparecera com­pletamente no momento do amor e o rosto tinha uma doce expressão de cansaço. As longas pestanas molhadas se er­gueram e os olhos castanhos, grandes e distantes, fitaram Bond com curiosidade como se o estivessem vendo pela pri­meira vez. Bond sorriu e disse com brandura:

— Perdoe... Eu não devia ter feito isso... Ela pareceu achar graça na frase dele. As covinhas apa­receram nos lados das faces e Dominó falou:

— Você fala como uma donzela que fizesse isto pela pri­meira vez e agora está com medo de ficar em estado interes­sante ... Vai ter de contar à mamãe.

Bond beijou-a, beijou os dois cantos daquela boca e en­tão beijou os lábios entreabertos. Depois disse:

— Agora, venha. Vamos nadar. Depois eu preciso falar com você.

— Ficou de pé e estendeu-lhe a mão. Ela hesitou um pouco, depois acedeu. Bond a puxou para si. Dominó sorriu com malícia e tornou-se mas lasciva. Bond apertou-a contra seu corpo com força sabendo que tinham apenas alguns mo­mentos de felicidade. Depois afastou-a, dizendo:

— Chega, Dominó. Vamos nadar. Não é preciso vestir maiô. Vamos assim mesmo. Não, não há perigo de entrar areia no seu pé, eu estava apenas tapiando.

— Eu também... quando saí da água. Os espinhos não estavam doendo tanto assim. . . e eu mesma poderia tirar como os pescadores fazem, sabe como é?

— Sim, sei — respondeu Bond, rindo. — Vamos para o

mar.

Beijou-a ainda uma vez e afastou-se um pouco para contemplá-la, queria guardar o corpo dela na lembrança. De­pois se virou, correu para a praia e mergulhou. Quando vol­tou ela estava na cabana, vestindo-se. Bond entrou na porta "Dele" e começou a se enxugar e vestir, respondendo com monossílabos as piadas que ela dizia. Finalmente Dominó percebeu que algo havia mudado e perguntou preocupada:

— Que aconteceu, James? O que é que não está certo?

— Sim, meu bem — respondeu Bond, que estava ves­tindo as calças e ouvia o tilintar da corrente com a chapa de identificação que estava em seu bolso. — Venha para fora. Preciso falar com você.

De modo todo sentimental Bond escolheu um local à sombra, do outro lado da cabana onde haviam estado. Ela saiu e ficou de pé diante dele, olhando-o com atenção e ten­tando ler alguma coisa naquela fisionomia preocupada. Bond evitava encará-la; sentou-se com os braços em redor dos joe­lhos e ficou olhando o mar. Dominetta sentou também, mas não muito junto dele, depois falou:

— Sei que você vai me magoar... Você vai embora? Fale logo. Quanto mais depressa melhor, eu prometo não chorar.

— É pior do que isso, Dominó — falou Bond. — Não se trata de mim mas... do seu irmão.

Bond percebeu que todo o corpo dela ficara tenso de repente e então ela falou numa voz baixa e decisiva:

— Pois bem, diga logo.

Bond meteu a mão no bolso e apresentou-lhe a corren-tinha com a chapa de identificação de Giuseppe.

Dominó apanhou-a e, sem olhar, apertando a mão, vi­rou o rosto para o outro lado, murmurando:

— Então êle está morto... Que aconteceu?

— É uma estória triste... e muito importante — respon­deu Bond. — E envolve também o seu amigo Largo. Trata­se de uma grande conspiração. Eu estou aqui a serviço do meu governo para descobrir a trama. Sou... uma espécie de polícia. Estou dizendo tudo isto a você porque sei que cente­nas ou talvez milhares de pessoas morrerão se você não me ajudar a evitar. Foi por isso que tive de mostrar a chapa do seu irmão e magoar você, é preciso que você me acredite. Es­tou quebrando um juramento ao fazer isso e, aconteça o que acontecer, e seja qual fôr a sua decisão, confio que você não passará adiante o que lhe vou revelar.

— Então foi por isso que você me... deu aqueles mo­mentos de amor... foi para que eu concordasse em fazer o que você quer! E agora faz chantagem com a morte de meu irmão. — E as palavras saíam cortantes, por entre os dentes brancos. —Euo odeio, odeio!

Bond continuou falando:

— Seu irmão foi morto por Largo ou por ordem dele. Eu vim aqui só para lhe dizer isso. Mas... você estava assim tão... eu desejei você, eu amo você, quero você, Dominó. Quando tudo começou eu devia ter tido forças para resistir... mas não tive. Eu sabia que talvez nunca mais tivesse ocasião de amar você. E, sabendo o que sei. . . foi muita ousadia de minha parte, mas... você estava tão bonita e alegre... eu queria não ter de magoar você, mas o desejo foi mais forte... esta é a mi­nha única desculpa. — Bond fêz uma pausa. — Agora ouça, Dominó, ouça o que vou dizer e procure esquecer que me odeia, por um momento. Verá que afinal nada somos dentro da importância do caso.

E Bond, sem esperar resposta, começou a relatar tudo sobre o caso, omitindo apenas a parte referente ao Mania, pois seria o único trunfo contra Largo que, se o soubesse, alteraria seus planos. E terminou explicando:

— Como vê, nada poderemos fazer até que as bombas estejam a bordo do Disco Volante. Até então Largo tem um excelente álibi com a tal estória da busca ao tesouro. Não são conhecidos traços que o liguem ao avião desaparecido ou à SPECTRE. Se tomarmos qualquer atitude no sentido de vigiar o Disco ou evitar que levante âncoras só servirá para adiar um pouco os planos da SPECTRE. Somente Largo e seus homens sabem onde estão as bombas. Se êle foi no anfíbio buscá-las, por certo manterá contato com o iate pelo rádio e, sabendo de qualquer interferência, tratará de deixar as bombas em algum lugar seguro até que possa lançar mão delas; êle poderia mesmo tirar o Disco do esquema e mais tarde outra embarcação qualquer faria a coisa. E a SPEC­TRE avisaria ao Primeiro Ministro que houve ligeira altera­ção nos planos ou simplesmente não diria nada e daqui a semanas faria novas ameaças. E talvez então dêem um prazo mais curto ou exijam algo mais que dinheiro. E teremos que aceitar as condições deles. Enquanto não recuperarmos as bombas estaremos nas mãos dos chantagistas. Você está en­tendendo?

— Sim, e que se pode fazer? — Os olhos da pequena faiscavam de raiva, e ela parecia olhar através de Bond para um ponto distante, onde estaria Largo, não o conspirador contra a segurança universal, mas o Largo que matara seu irmão.

— Nós precisamos saber quando as bombas estiverem a bordo do iate. Isto é tudo o que importa no momento, porque então poderemos usar todos os nossos recursos. Temos um grande fator a nosso lado. É que Largo nem desconfia, está tranqüilo e seguro e convencido de que o plano hábil está funcionando perfeitamente. Esta é a nossa garantia, a nossa única e grande garantia, compreende?

— E como é que você vai saber quando as bombas che­garem ao iate?

— Será você quem vai nos dizer!

— Sim... — A voz era quase indiferente. — Mas como é que eu vou saber? E como dizer a vocês? Aquele homem nada tem de tolo. A sua única tolice é querer a amante quan­do tanta coisa importante está em jogo. — Ela parecia cus­pir as palavras. — Os chefes dele não sabem que Largo não pode viver sem uma mulher ao alcance da mão. Eles não sabem...

— A que horas Largo disse a você para estar a bordo?

— Às cinco... Um barco virá me buscar em Palmyra. Bond olhou o relógio e falou:

— São quatro horas agora. Eu trouxe comigo um Gei­ger de uso muito simples, que acusará imediatamente se as bombas estão a bordo. Você então acenderá a luz do seu camarote, várias vezes, entende? Teremos observadores de olho no Disco Volante e que, vendo o seu sinal, não avisarão imediatamente. Então você se livrará do Geiger, jogando-o ao mar.

— Me parece um plano muito bobo — respondeu Do­minó, sarcástica. — E meio melodramático como as estórias de ficção. Na vida real as pessoas não ficam acendendo luzes em cabines em pleno dia. Nada disso. Se as bombas estive­rem lá eu apareço no convés, seus observadores me verão. É mais natural, não lhe parece? Do contrário permanecerei na minha cabine.

— Está certo. Faça-o então do seu jeito. Mas... fará, não é verdade?

— Sim... se conseguir resistir à vontade de matar Largo com minhas próprias mãos assim que o vir. E sob a condição de que vocês farão tudo para que êle seja executado.

Dominó disse isso com a naturalidade de um turista acertando condições para uma tournée.

— Isso eu não sei. Acho que todos a bordo serão conde­nados à prisão perpétua.

— Também serve — respondeu ela, depois de pensar um pouco. — Talvez seja até um castigo pior para êle do que morrer. Agora explique como funciona esse negócio aí...

Mas levantou-se como se se tivesse lembrado de algu­ma coisa e deu uns passos em direção ao mar, olhando para a corrente de ouro e a chapa que tinha na mão. Olhou por uns momentos para bem distante, disse algumas palavras que Bond não conseguiu entender e então, com toda a sua força, atirou a peça no mar, o mais longe que pôde. Ouviu-se um tilintar e o splash da peça mergulhando n'água. Ela ficou olhando até que o pequeno movimento provocado cessou e o mar ficou calmo como um espelho outra vez e voltou a pas­sos lentos para onde estava James.

Bond então explicou o funcionamento do Geiger, sem utilizar o relógio; que ela prestasse atenção apenas ao tique-taque da própria máquina. Explicou:

— Qualquer ponto do iate serve, porém será melhor por cima do compartimento subaquático. Diga que está tirando uma fotografia, olhe o estôjo, isto foi feito para parecer uma Rolleiflex com lentes, disparador e tudo, só não tem filme dentro. Você pode dizer que está tirando retratos para levar como recordação de Nassau, entende?

— Sim — respondeu a pequena, que começara ouvindo com muita atenção, mas que agora parecia distraída. Ergueu a mão para tocar o braço de Bond, mas não o conseguiu, olhou para o outro lado e disse: — O que eu disse... que... que odiava você... não é verdade. É que eu não estava com­preendendo. Como poderia, com toda esta estória terrível! Ainda não consigo entender bem... que Largo tenha uma par­ticipação tão grande nisso tudo. Tivemos um... um romance em Capri; êle é um homem atraente, todas as mulheres esta­vam dando em cima dele. Foi uma espécie de desafio tomá-lo das outras, que eram espertas! Então êle falou nesta viagem em busca do tesouro, no iate e tudo parecia um conto de fa­das... Acabei concordando em vir. Quem resistiria? Mas em troca eu teria de estar à disposição dele... — Dominó olhou para o outro lado. — Desculpe, mas esta é a verdade. Quan­do chegamos a Nassau e êle mandou que eu ficasse em Pal­myra e êle no iate, fiquei surpreendida, mas não ofendida. As ilhas são lindas, eu tinha muito com que me distrair. Porém o que você me revelou veio explicar muitas coisas. Nunca me permitiram entrar na sala do rádio; a tripulação era hostil e me tratava como uma intrusa a bordo e tratavam Largo com muita intimidade... de igual para igual... e eram homens de modo geral mais educados do que os marinheiros costumam ser. Tudo se encaixa. Lembro-me até que há uma semana, na terça-feira passada, Largo estava nervoso e impaciente. Pensei que já estávamos ficando fartos um do outro, e não liguei. Mas depois êle voltou ao que era e até me chamou para acompanhá-lo nesta viagem de hoje! Achei melhor con­cordar. E mesmo estava curiosa sobre o tal tesouro, como seria... mas agora, apareceu você e... depois do que... acon­teceu na cabana entre nós, eu... tinha decidido dizer a Largo que não queria ir com êle. Eu pensei em ficar aqui até que... você fosse embora, iria com você... — Pela primeira vez voltou a olhá-lo nos olhos, perguntando: Você me levaria, você teria concordado em me levar com você?

Bond segurou o pequeno rosto dela entre as mãos e disse, terno:

— Naturalmente que sim.

— Mas... e agora... como será? Quando verei você no­vamente?

Esta era a pergunta que Bond temia. Mandando-a para bordo com o Geiger êle a estava expondo a duplo perigo. Se fosse descoberta por Largo, isso significaria morte certa; se houvesse resistência por parte do Disco Volante, o Manta o afundaria sem mais preâmbulos com ela dentro. Tudo isto passava pela cabeça de Bond, porém êle teria de fechar os olhos a tudo, e foi o que fêz, com muito esforço embora, e disse:

— Quando tudo isso passar eu a irei procurar onde quer que você esteja. Mas no momento você vai estar em perigo. Está disposta a arriscar?

Ela olhou para o relógio e disse:

— São quatro e meia. Devo ir andando. Não me acom­panhe até o carro. Beije-me mais uma vez e fique aqui. E não se preocupe com o que me pediu, vou fazer o que prometi...

É a alternativa. Isto ou um punhal cravado nas costas de Emílio Largo. Agora...

E estendeu os braços para êle, amorosa.

Minutos mais tarde Bond ouviu o ruído do motor do MG se afastando pela Western Coast Road. Só então entrou no Land Rover e foi embora.

Uma milha ao longo da costa, passando pelos dois mar­cos que indicavam a entrada de Palmyra, Bond controlou o impulso que sentiu de ir correndo atrás de Dominó para evitar que ela realizasse a perigosa missão. Não! Primeiro vi­nha o dever, a missão a cumprir. E guiou a toda velocidade para a estrada de Old Fort Point, onde a polícia deixara a seu pedido dois homens de vigia, revezando-se na observa­ção constante do Disco através de binóculos sobre tripés. Um deles lia um jornal sentado numa cadeira de lona, en­quanto o outro observava pelas lentes focalizadas através de uma janela do prédio aparentemente abandonado; ao lado deles o walkie-talkie preparado para transmitir qualquer avi­so. Bond pediu que ficasse alerta ao aparecimento da moça no convés e fêz uma ligação para o Comissário, pondo-o ao corrente do plano. Este lhe transmitiu duas mensagens de Leiter. A primeira era de que a visita a Palmyra resultará ne­gativa; a empregada informara que a bagagem da moça tinha sido levada para bordo, a casa dos barcos era perfeitamente inocente e as marcas vistas do avião teriam sido feitas pelos flutuadores de um pedalinho ao ser arrastado pela areia para ser guardado ali. A outra mensagem era sobre o Manta, que estava sendo esperado dentro de vinte minutos, e Bond devia encontrar Leiter no Prince George Wharf, o cais onde o sub­marino emergiria.

O Manta, chegando cautelosamente pelo canal, nada tinha de elegância de galgo, comum à maioria dos submari­nos. Era pesadão, compacto e feio; parecia um pepino metá­lico de proa arredondada, uma lona cobrindo o equipamento de radar e em nada evidenciando a velocidade de que era capaz e que Leiter informara ser de cerca de quarenta nós, quando submerso. Leiter comentava:

— Mas nada disso se informa, James. Tudo é secreto ali. Eu acho que até o papel lá é secreto. Você verá quan­do chegarmos lá dentro. A tripulação do submarino é tão discreta que acha que até eructar é indiscrição, pode pôr a segurança em risco.

— E que mais sabe você a respeito do Manta?

— Bem, não vamos dizer nada ao Comandante... mas lá na CIA nós temos de ser informados acerca de coisas bá­sicas referentes aos submarinos atômicos. Este é da classe George Washington, cerca de 4 000 toneladas, tripulação de cem homens, custo de cem milhões de dólares, mobilidade espantosa, energia até... até que os reatores nucleares pre­cisem de controle técnico... digamos, cada 100 000 milhas, mais ou menos. Se tiver o mesmo armamento que o George Washington. . . dezesseis tubos de lançamento, dois dispo­sitivos para os Poláris de combustível sólido. O pessoal da tripulação chama os tubos de lançamento de "Floresta de Sherwood", porque, pintados de verde, parecem troncos de árvores. Os Poláris são disparados de grande profundidade. O submarino pára e fica firme; eles têm sempre a posição exata do navio pelo rádio e por um periscópio especial. Todas as informações são registradas e transmitidas automatica­mente. Então o encarregado da missão aperta um botão e o míssil é lançado a ar comprimido, através da água; ao chegar à superfície os foguetes de combustível sólido entram em ig­nição e carregam o míssil o resto do trajeto. Arma diabólica, pensando bem. Já imaginou uma arma destas fazendo surgir foguetes de dentro do mar, de qualquer ponto e destruindo cidades... Já temos seis desses prontos e teremos mais. É meio assustador pensar nisso. Não se sabe onde estão nem de onde podem surgir! Não é como as bases de foguetes em terra, que você pode ver e evitar qualquer desastre.

— Acabarão inventando algo para combatê-los também — falou Bond. — Alguma arma que disparará uma força ca­paz de se propagar por ondas e atingir o alvo num impacto, centenas de milhas distante. Mas este submarino, o Manta, tem alguma arma de menor porte? Quero dizer, se tivermos de atingir o Disco, que projétil será usado?

— Há seis torpedos lá na frente e creio que também outros menores, metralhadoras e coisas assim. O negócio vai ser: como convencer o Comandante a disparar um ou outro? Êle não vai querer atacar um iate de passeio, desarmado, só por ordem de dois civis. Só espero que as ordens dele lá na Marinha sejam tão objetivas como as suas e minhas.

O submarino enorme encostou no cais com um baamp surdo e uma prancha de alumínio surgiu. Houve alegre agi­tação por parte da multidão que aguardava, contida por cor­dão de isolamento da Polícia. Leiter respirou fundo e disse:

— Bem, lá vamos nós. E numa missão dos infernos. Nem uma cartola para fazer o discurso de boas-vindas. Dou a palavra a você.

 

A Hora da Desisão

O interior do submarino era espantosamente espaçoso! E havia escadas de verdade para levar até lá dentro. As pare­des eram pintadas em dois tons de verde. Os condutores de energia, pintados em cores vivas, davam um alegre contraste ao ambiente quase hospitalar. Seguindo o oficial de dia, um jovem de talvez 28 anos, Bond e Leiter desceram ao interior do Manta. O ar (70° com 46% de umidade, explicou o oficial) era fresco e leve. Terminando a escada dobraram um cor­redor à esquerda e o rapaz bateu numa porta que indicava: Comandante P. Pedersen — USN.

O comandante aparentava ter 40 anos, tinha o rosto an­guloso de escandinavo e cabelos cortados curtos, começando a ficar grisalhos. Tinha olhos alegres e boca e queixo autori­tários. Estava sentado por trás de uma secretária de metal e fumava um cachimbo; à sua frente havia uma xícara de café vazia e um bloco no qual estivera escrevendo. Levantou-se gentilmente, estendeu a mão num aperto cordial e mandou que sentassem nas cadeiras de frente para sua mesa. Falou para o oficial:

— Por favor, Stanton, providencie café e mande expedir isto, sim? Urgente!

E destacou a página do bloco entregando-a ao oficial. Sentou-se então e falou:

— Muito bem, senhores. Bem-vindos a bordo. Capitão Bond, é um prazer ter um membro da Marinha britânica a bordo. Já esteve em submarinos antes?

— Sim — respondeu Bond. — Mas só como sobrecarga. Eu estava a serviço no Ramo Especial RNVR. Um marinheiro de chocolate!

— É boa, é boa — riu o Comandante. — E o senhor, Sr. Leiter?

— Eu, não — respondeu Félix. — Mas já tive um sub­marino só para mim. . . Era movido por meio de uma rolha. O caso é que não me deixavam encher bastante a banheira para poder avaliar a capacidade dele...

— É. . . Até parece o Departamento da Marinha, que não me deixa experimentar toda a força deste... toda vez em que a gente vai se animando aparece um ponto vermelho para fazer parar o ponteirinho... — disse o Comandante, rindo. — Então, senhores, quais são as ordens? Desde a guerra da Coréia que não recebo ordens tão urgentes e secretas como esta de vir para cá. Não me importo de dizer: esta que recebi veio do Chefe do Pessoal da Marinha e dizia que eu me devia considerar sob as suas ordens, Sr. Leiter, ou, em caso de sua morte ou incapacitação, sob as ordens do capitão Bond, até a chegada do Almirante Carlson. Então? Que é que está acon­tecendo? Só sei que todas as ordens estavam assinaladas como Operação ameaça explosiva. De que se trata?

Bond simpatizou com o bem-humorado Comandante Pedersen, gostou do jeitão dele, e agora observava a fisiono­mia do militar à medida que Leiter relatava todo o caso até o momento da partida de Largo no anfíbio e das instruções de Bond a Dominetta Vitali. Ouvia-se o ruído dos geradores funcionando macios e a música enlatada, como dizia a tripu­lação, os Ink Spots cantando I love coffee, I love tea, de vez em quando o alto-falante acima da cadeira do comandante deixava ouvir ordens internas: "Roberto, o chefe de navega­ção chama... o maquinista-chefe chama Oppenshaw... Cha­mando o compartimento F. . ." e de vez em quando o ruído peculiar de uma bomba de sucção. Bond teve a impressão de estar dentro do cérebro de um robot movido a força hidráuli­ca e impulsos elétricos, sob as ordens de chefes humanos.

Depois de dez minutos de relato o comandante recostou na sua cadeira, começou a encher o cachimbo automatica­mente e disse:

— É... uma estória terrível, esta. E olhe que mesmo que eu não tivesse recebido esta ordem do Chefe do Departamen­to da Marinha... eu acreditaria, porque sempre achei que mais cedo ou mais tarde algo assim iria acontecer. Bolas! Eu comando este monstro carregado de perigo, mas isso não evita que eu fique aterrorizado com toda esta estória! Tenho esposa e dois filhinhos, e isso é sério. Estas armas atômicas são realmente perigosas. Olhe, só um dos mísseis que carre­go poderia mandar pro inferno uma cidade, e tudo cabe aqui neste pequeno cais de areia! E aqui estou eu, Peter Pedersen, 38 anos de idade, talvez com juízo, talvez não... e dispondo de 16 destas armas perigosas, o bastante para arrasar com toda a Inglaterra! E, no entanto... Pois bem, senhores, temos em nossas mãos uma pequena parte do problema, pequena parte porém o bastante para abalar a segurança do mundo. A questão é: que atitude tomar? Pelo que concluí, a opinião de ambos é de que esse homem chamado Largo deve chegar a qualquer momento em seu anfíbio trazendo as bombas que tinha escondido em algum lugar. Caso êle tenha realmente as bombas, e segundo tudo indica tem mesmo, a moça nos avisará. Então nós prenderemos o iate ou o mandaremos pe­los ares, confere? Mas suponhamos que êle não tenha as bombas ou que não consigamos ser avisados, que faremos?

Foi a vez de Bond responder:

— Nós ficaremos atrás dele até que se esgote o limite de tempo que é de 24 horas a partir de agora. É o que podemos fazer sem quebrar nenhuma lei. Quando o tempo se esgotar então entraremos em contato com os nossos governos para que decidam se devemos afundar o Disco Volante ou, enfim, o que devemos fazer com êle e com o avião que jaz no fundo do mar. Mas é que nesse ponto é bem possível que algum homenzinho banal, sem que o notemos, tenha saído num bote comum e tenha colocado a bomba num ponto da costa da América e Miami vá pelos ares. Ou uma explosão horrível será ouvida em qualquer ponto do mundo! Eles já tiveram tempo bastante para levar as bombas para milhares de mi­lhas distante daqui. E nesse caso será horrível e teremos falhado. No momento estamos na situação de um detetive que vigia um sujeito que sabe que vai cometer um crime, mas não sabe sequer se êle possui uma arma e nada resta a fazer além de seguir o homem à espera de que êle resolva entrar em ação... E neste momento, e só neste momento, o detetive poderá prender ou atirar no homem. Não é assim, Félix?

— Exatamente — respondeu Leiter, voltando-se para o comandante: — É neste pé que as coisas estão. Posso as­segurar, Comandante, que o meu companheiro Bond e eu sabemos que Largo é o homem e que de um momento para outro êle partirá para colocar a bomba! Foi por isso que en­tramos em pânico e pedimos o seu auxílio. Podemos apostar que êle colocará a bomba à noite, e esta noite é a última do prazo. Por falar nisso, Comandante, o senhor tem pressão na caldeira (como dizem os rapazes aqui de bordo)?

— Sim, tenho — respondeu rindo Pedersen — e pode­mos entrar em ação em cinco minutos. Mas eu acho que tenho más notícias para vocês... não sei como nos vai ser possível perseguir o iate.

— Mas... que conversa é esta? Este negócio aqui tem uma velocidade dos diabos, não tem? — falou Leiter, nervo­so, e, vendo que estava apontando ameaçadoramente para o comandante com o gancho que lhe servia de mão, tratou de mudar de atitude. Mas o comandante riu e respondeu calmo:

— Sim, tem, e poderíamos ganhar fácil uma corrida, mas o que vocês parecem ignorar são os perigos que esta zona oferece à navegação. — E apontou para o mapa na pare­de. — Dêem uma olhada, já viram uma carta geográfica mais intrincada? Pois é como lhes digo: a não ser que o Disco siga um dos canais de mais profundidade, como o Tongue of the Ocean, Northwest Providence ou o Northeast... nós estamos mal, pois, embora o mapa indique uma área toda azul, nem tudo é azul ali; há bancos de areia e ilhotas e os bancos de areia variam, se modificam e se modificaram depois que o mapa foi feito! E as cabeças de coral que não aparecem nos instrumentos de sondagens e que a gente só percebe depois de bater nelas... É, esse italiano soube escolher bem a sua embarcação e se resolver navegar pela parte mais rasa... não teremos a menor chance.

O comandante olhou de um para outro dos agentes se­cretos e terminou:

—- Sim, aí está a situação. Vocês querem que eu tele­fone para o Departamento da Marinha e peça a Fort Lauder-dale aqueles bombardeiros para fazer esse serviço de seguir como sombra o iate?

Bond e Leiter se entreolharam e foi Bond quem falou:

— Não adianta. O Disco Volante estará todo apagado e será difícil localizá-lo à noite... Que é que você acha, Félix? Talvez fosse bom chamá-los, nem que fosse para vigiar ao largo da costa da América e então, se o Comandante con­cordar, seguiremos pelo canal noroeste, caso o Disco levante âncora e vamos para a base de foguetes das Bahamas, que é o provável alvo n.° 1.

Félix Leiter passou a mão esquerda pelos cabelos claros e ralos e falou, irritado:

— Bolas, é isso mesmo! Acho que sim. Que inferno! Afinal, depois que fizemos a asneira de trazer o Manta até aqui... que significa um esquadrão? Claro, vamos continuar com o nosso palpite de que Largo e o Disco Volante são o pivô do caso. Vamos mandar nossos relatórios para a CIA e para o seu chefe. Qual é o endereço?

— Almirantado para M, prefixo Operação ameaça explo­siva — respondeu Bond, passando a mão nervosa pelo rosto.

— Nossa! Isto vai levantar a lebre, são seis horas aqui... De­vem ser onze em Londres, bela hora para mandar uma nota

dessas!

O alto-falante do sistema P.A. que havia no teto come­çou a falar com clareza:

— Do oficial em serviço de observação para o Coman­dante. Atenção. Policial trazendo mensagem urgente para o capitão Bond.

O Comandante apertou o botão num painel de sua mesa e falou num pequeno microfone:

Mande-o aqui. Preparar para partir. Todos a pos­tos. Esperou a confirmação e desligou. Sorriu e disse para Bond:

— Como é mesmo o nome da moça?... Dominó. Bem, esperemos que Dominó tenha dado o sinal.

A porta foi aberta e o policial apareceu, fez a saudação e estendeu o braço com o envelope OHMS, que Bond apanhou e abriu. Tirou de dentro a mensagem escrita a lápis e leu:

"Avião anfíbio voltou 17:30 foi içado para bordo iate ponto Disco partiu 17:55 toda velocidade direção noroeste ponto Moça não apareceu convés depois que embarcou."

Bond pediu emprestado um bloco e escreveu a respos­ta:

"Manta tentará seguir iate canal via Providence noroeste ponto Esquadrão bombardeiros caça Fort Lauderdale chama­do através Departamento Marinha a fim cooperar dentro raio duzentas milhas costa Florida ponto Manta manterá contato através controle aéreo campo Windsor ponto Departamento Marinha e Almirantado informados ponto Favor informar Go­vernador vg Almirante Carlson Brigadeiro Fairchild quando chegarem".

Bond assinou a mensagem e passou-a ao comandante e a Leiter para que também assinassem, meteu-a num envelo­pe e entregou ao polícia, que deu meia volta e partiu.

Depois que a porta se fechou o comandante apertou o botão de intercomunicações e deu as ordens: partir, dire­ção norte a dez nós, e desligou. Houve um curto momento de silêncio e em seguida os ruídos surdos da tripulação se movimentando lá em baixo, entrando em ação. O submarino estremeceu ligeiramente. O comandante falou:

— Muito bem, senhores. Aí está. Gostaria que a caça estivesse numa trilha mais nítida, mais à vista. Mas de qual­quer forma terei prazer em ir buscá-la para vocês. Agora a mensagem.

Bond, apenas com parte de sua atenção concentrada na mensagem que o comandante e Leiter redigiam, come­çou a preocupar-se seriamente com o recado do Comissário e com o destino de Dominó. As coisas iam mal; pelo jeito ou o avião não trouxera as bombas para bordo, e nesse caso toda aquela mobilização do Manta e o chamado de bombardei­ros teriam sido um precaução inútil e infundada... ou... toda aquela estória do Disco Volante nada teria em relação com o roubo das bombas e do Vindicator e enquanto estivessem ali concentrados com eles a SPECTRE poderia estar agindo livre­mente. Mas não: os instintos de Bond se recusavam a aceitar esta última hipótese. Todo o caso Disco — Largo — Bombas se encaixava perfeitamente, cem por cento lógico. Não era possível falhar, um plano daquelas proporções e audácia ti­nha de ser elaborado sob cobertura perfeita até o mínimo de­talhe. Era possível que Largo tivesse zarpado para examinar as redondezas, ver se havia barcos de pesca por ali, estudar todas as possibilidades; ou talvez tivesse partido para colocar a bomba, com o mecanismo acertado para pouco depois da hora zero a fim de dar tempo para recuperá-la ou destruí-la caso a Inglaterra e a América resolvessem pagar o resgate, com boa margem de tempo para escapar para bem longe no caso da explosão e estabelecer um bom álibi. Teria êle chega­do a bordo no avião e Dominó não tivera ocasião de subir ao convés para fazer o sinal? Será que iriam apanhar a bomba no meio do caminho? A rota de Nassau para Northwest Light, passando pelo canal da ilha Berry, dava lugar a ambas as possibilidades. O avião submerso estava ao sul das Bimini assim como Miami e outros bons alvos da costa da América. Ou ainda, depois de passar o canal, a cinqüenta milhas de Nassau, o Disco poderia mudar subitamente para o norte e, depois de navegar umas cinqüenta milhas de pouca profun­didade, que despistariam uma possível perseguição, voltar ao canal Providence e ir direto à base de mísseis da Grande Bahama.

Bond estava seriamente preocupado com a possibilida­de de que tanto Leiter como êle estivessem fazendo papel de idiotas, mas de uma coisa tinha a certeza: Leiter, êle e o Manta estavam jogando uma cartada perigosa. Afinal se o Disco Volante estivesse a caminho da Grande Bahama com a bomba, conseguiriam interceptá-lo.

Mas, no meio de todo esse jogo... todas essas possibi­lidades de errar e de acertar... por que Dominó não fizera o sinal? Que lhe teria acontecido?

 

Devagar... Muito Devagar...

O "Disco Volante", como um torpedo escuro, partiu cio pequeno cais e cortou as águas tranqüilas e azuis do mar. No salão o silêncio era interrompido apenas pelo pulsar dos motores e pelo tilintar leve de copos na prateleira. Embora, como medida de precaução, as vigias estivessem cobertas, a única luz no interior da sala era a de uma lanterna de sinali­zação que pendia do teto. E a luz vermelha e fraca iluminava as fisionomias dos vinte homens que estavam sentados em redor da mesa; suas fisionomias deformadas pelas sombras e pela côr vermelha davam a impressão de uma conspiração infernal! À cabeceira da mesa Largo, o rosto brilhando de suor, embora a sala tivesse refrigeração, começou a falar com voz rouca e tensa:

— Tenho de comunicar-lhes que estamos num estado de emergência. Há meia hora o n.° 17 viu a Senhorita Vitali de pé no convés segurando uma câmara. Quando o n.° 17 se aproximou ela ergueu a câmara como se estivesse foto­grafando a paisagem de Palmyra, mas... esqueceu de abrir a tampa de couro que cobria as lentes e o n.° 17 suspeitou de que algo estava errado e veio me contar. Desci e trouxe-a para a cabine, ela lutou comigo e tomou uma atitude que também me despertou suspeitas. Fui obrigado a subjugá-la por meios drásticos. Depois peguei a câmara e examinei-a... a câmara era falsa: tratava-se de um Geiger disfarçado! O contador Geiger naturalmente estava marcando mais de 500 miliroentgens. Fiz com que a pequena recuperasse a consci­ência e interroguei-a. Ela recusou-se a falar. Depois conse­guirei que ela fale e a eliminarei. Era a hora de partir e eu en­tão deixei-a inconsciente e bem amarrada na cabine. Então marquei esta reunião para pô-los a par desta ocorrência que já comuniquei ao n.° 2.

Houve um murmúrio de revolta em toda a mesa e o n.° 14, da representação alemã, dise por entre os dentes cerra­dos:

— E o que foi que o Sr. n.° 2 disse a respeito?

— Êle disse que prosseguíssemos com o esquema. Que o mundo está cheio de contadores Geiger procurando por nós, que o Serviço Secreto de todo o mundo está à nossa procura, mobilizado contra nós. Possivelmente alguma auto­ridade de Nassau mandou que fizessem uma sondagem em todas as embarcações e a Senhorita Vitali foi subornada para trazer a falsa câmara até aqui. O n.° 2 disse também que, uma vez que tenhamos colocado a bomba no alvo, nada há a temer. O radioperador está na escuta da linha entre Nassau e a costa, tudo normal. Se houvesse suspeitas contra nós as linhas estariam carregadas de mensagens de Londres e de Washington, mas está tudo em paz. Portanto, a Operação prosseguirá como estava planejado. Quando terminarmos a colocação da bomba então nos devemos desfazer da embala­gem do chumbo... e dentro dela a Senhorita Vitali!

O alemão n.° 14 insistiu:

— Mas é preciso arrancar a verdade dessa mulher! Não é agradável para o futuro ignorarmos se estamos sob suspei­ta!

— Será interrogada logo que esta reunião terminar — informou Largo. — E se querem a minha opinião, aqueles dois homens que estiveram ontem a bordo — um chamado Bond e o outro Larkin — podem estar envolvidos nisso. Tal­vez sejam agentes secretos. O tal Larkin tinha uma câmara que não olhei de perto e que era muito semelhante à que estava com a Senhorita Vitali. Devo admitir que não fui bas­tante cuidadoso com respeito àqueles dois homens! É que eles contaram uma estória convincente. Quando voltarmos a Nassau amanhã devemos estar circunspectos, contaremos que a Senhorita Vitali sofreu um acidente mortal, caiu pela amurada; eu me incumbirei dos detalhes e teremos testemu­nhas, se houver inquérito. Será apenas irritante tudo isto, nada mais. Será bom que apresentemos velhas moedas do nosso tesouro. Sera um ótimo álibi. Então, n.° 5, o estado de erosão das moedas está satisfatório? O n.° 5, Kotze o cientis­ta, respondeu com precisão:

— Sim, exatamente no ponto necessário. Eles por certo farão exames de laboratório, mas não há perigo, são autên­ticos dobrões e reais do século XVII, e como sabe a água do mar não afeta muito o ouro e a prata. Já usei um ácido para marcá-los um pouco. As moedas terão certamente de ser en­tregues ao encarregado da investigação, mas sei que vai ser preciso gente muito mais hábil do que êle ou o seu departa­mento para opinar com autoridade. Não haverá pressão para que revelemos o local do tesouro, apenas a profundidade tal­vez. É... não vejo falhas na nossa estória. A Senhorita Vitali pode ter tido um problema com seu aqualung e testemunhas a viram desaparecer nas águas sem nada poder fazer. Tínha­mos aconselhado a ela que não nos acompanhasse na bus­ca, porém ela era excelente nadadora e insistiu. A aventura a atraía... O n.° 5 espalmou as mãos. — Acontecem muitos acidentes destes e muitas vidas se perdem assim. Uma bus­ca nas águas foi feita inutilmente... os tubarões eram muitos, nada restou. A busca ao tesouro foi interrompida e voltamos imediatamente a Nassau para relatar o ocorrido. — O n.° 5 voltou a cabeça para Largo. — Não há motivo para preocupa­ções, não obstante acho que um rigoroso interrogatório deve ser feito. Existem certos recursos como a eletricidade a que o corpo humano não pode resistir e eu sei aplicá-los... Se pre­cisar dos meus serviços...

A voz de Largo respondeu com polidez, como se estives­sem discutindo qual o melhor remédio para um passageiro doente:

— Muito agradeço, mas há meios de persuasão que eu conheço e que já usei com resultados satisfatórios no pas­sado. Contudo, se houver obstinação, apelarei para a sua habilidade.

Largo passou os olhos pelos rostos diabólicamente ilu­minados pela luz vermelha, depois continuou:

— E agora vamos aos últimos detalhes. Meu relógio mar­ca meia-noite, às três começará o luar e as primeiras luzes da aurora virão às cinco e pouco. Temos, pois, duas horas para agir. Nossa rota nos leva para o West End e ainda que a base de mísseis reclame alguma coisa diremos que desvia­mos ligeiramente da rota, em iate de passeio acontecem estas coisas. As três em ponto baixaremos âncora e a equipe de na­dadores entrará em ação, nadando a meia milha até o ponto combinado. Os quinze de vocês que tomarão parte nesta ta­refa nadarão em formação de seta e o suporte com a bomba irá no centro. A formação deve ser rigorosamente respeitada para evitar falhas. A tocha azul presa às minhas costas deve servir de orientação, mas se alguém se desgarrar deve voltar para bordo. A escolta deve ficar alerta quanto a tubarões e barracudas. Devo mais uma vez lembrar que o alcance das nossas armas subaquáticas não vai além de vinte pés e que os peixes devem ser atingidos na cabeça ou atrás da cabeça. Quem fôr atirar deve avisar o vizinho para que este o cubra e o ajude. Não obstante, fomos informados de que um disparo é suficiente, se bem calculado. E atenção, não esqueçam de tirar a ponteira de proteção do cano antes de atirar. Peço que desculpem a insistência sobre esses pontos, mas é que são importantes e quando bem seguidos garantirão o êxito da operação. O solo submarino não é familiar à maioria e o efei­to das pílulas de dexedrina, que serão fornecidas a todos, é equilibrar o sistema nervoso e prover estamina extra e enco­rajamento. Precisamos estar preparados para o inesperado. Alguma pergunta?

Durante a elaboração do plano, meses antes em Paris, Blofeld tinha avisado Largo de que se houvesse algum pro­blema com o pessoal seria por certo com a representação russa, ex-membros da Smersh, n.° 10 e n.° 11, em cujo san­gue corriam conspiração e desconfiança:

— Esses homens estarão sempre tentando descobrir que alguém os quer trair, que lhes darão as missões mais arriscadas para que pereçam e de que lhes estão esconden­do alguma coisa, lesando parte dos seus lucros. Precisam, pois, de constantes confirmações de confiança, mas, uma vez convencidos, cumprirão as ordens com precisão. São bons colaboradores, mas, se chegarem ao exagero em suas mani­festações de desconfiança, então o jeito é tomar uma atitude enérgica e drástica, se preciso, sem piedade. As manifesta­ções ostensivas de falta de confiança não podem ser tolera­das na organização, porque acabarão por criar problemas de conseqüências sérias, são espécies de inimigos que, vindo de dentro, poderão estragar os planos mais cuidadosamente esquematizados.

Foi exatamente o n.° 10, famoso terrorista ex-compo­nente da Smersh, de nome Strelik, sentado dois lugares à esquerda de Largo, que falou, não diretamente para o n.° 1, mas para a mesa em geral:

— Camaradas, estive pensando em tudo que o n.° 1 disse e acho que está realmente tudo muito bem arranjado. Acho mesmo que esta operação será muito bem sucedida e que não será necessário disparar a segunda bomba. Tenho documentação acerca destas ilhas e fiquei sabendo pelo Ya-chtmarís Guide (tinha certa dificuldade com a pronúncia) to the Bahamas que existe um hotel de grandes proporções si­tuado algumas milhas do ponto de nosso alvo n.° 1, numa cidade de razoável população, e posso estimar que a explosão da primeira bomba eliminará um mínimo de duas mil pesso­as. Duas mil pessoas na minha terra não é um número mui­to considerável e estas mortes, comparadas com a destruição da base de mísseis, não seriam consideradas na União Sovié­tica como de grande importância. Quero crer, porém, que, de acordo com a mentalidade do povo daqui, esta destruição e o serviço de salvamento dos possíveis sobreviventes venham a ser argumento decisivo no sentido de conseguirmos concor­dância imediata às nossas condições a fim de evitar o uso da bomba n.° 2. Assim sendo, camaradas — a voz monótona se encheu de entusiasmo — estive pensando que dentro de 24 horas nossos trabalhos estarão terminados e receberemos o nosso prêmio. Agora, camaradas, com uma soma tão vultosa quase ao alcance da mão, um pensamento me ocorreu.

Nesse ponto Largo meteu a mão silenciosamente no bol­so e engatilhou a sua Colt 25. O rosto avermelhado e ensom­brado do russo tinha um sorriso disfarçado que mais parecia uma careta quando disse:

— Creio que não seria correto de minha parte para com o meu camarada russo, o n.° 11, e também para com os ou­tros todos se não debatesse aqui o que talvez seja apenas uma suspeita infundada.

Todos os ocupantes dos lugares em volta da mesa, ou­viam com atenção; todos tinham sido espiões e conspirado­res e farejavam no ar o cheiro da rebelião, desconfiança ou deslealdade. Que teria descoberto o n.° 10, que saberia êle, que iria revelar? E cada um tratou de pensar para onde pu­lar quando o gato saísse do saco. Largo tirou lentamente a arma do bolso e ficou segurando-a junto à coxa, por baixo da mesa. O n.° 10 então continuou, observando cuidadosamen­te as faces presentes:

— Chegará, daqui a pouco, o momento em que 15 de nós sairemos para o mar, deixando aqui cinco membros e seis suboperadores a bordo, na semi-obscuridade e distan­te, pelo menos, meia hora a nado. Nesse momento, camara­das, que aconteceria se aqueles a bordo resolvessem zarpar, deixando-nos na água? — Houve uma onda de murmúrios em volta da mesa. — Ridículo, não é? É o que vocês devem estar pensando e também eu. Mas, camaradas, somos todos vinhos da mesma pipa, conhecemos os impulsos inescrupu­losos que podem assaltar qualquer um de nós quando fortu­nas fabulosas estão em jogo. E, pensando bem, camaradas, com menos 15 participantes. . . maior seria o quinhão dos restantes, hein? Contariam ao N.° 2 a estória dos tubarões liquidando com os mergulhadores... e pronto!

— E qual é a sua proposta, N.° 10? — perguntou Largo suavemente.

Pela primeira vez Strelik olhou para o N.° 2 e falou para o máscara vermelha cheia de sombras; sua voz era obstina­da:

— Proponho que um representante de cada naciona­lidade fique a bordo a fim de garantir o interesse dos ou­tros membros da sua nacionalidade. Isto reduziria a equipe de mergulhadores para dez, porém esses dez se atirariam à tarefa com mais incentivo, sabendo-se garantidos contra as possibilidades de traição que já mencionei.

A voz de Emílio Largo soou polida e sem emoção quando disse:

— Eu tenho uma resposta muito mais curta e simples à sua sugestão, N.° 10!

E no mesmo instante a luz vermelha brilhou no gatilho da arma acionada com rapidez pela mão enorme de Largo. As três balas apanharam em cheio a cara do russo tão rá­pido que as três explosões e faíscas e chamas dos disparos pareceram um único tiro. O N.° 10 ergueu os braços, com as mãos espalmadas à sua frente como se quisesse defender-se de mais algum tiro, e caiu para trás com a cadeira, fazendo um ruído pesado ao bater no chão.

Largo ergueu a Colt e cheirou a ponta do cano como se estivesse aspirando um vidro de perfume e em silêncio olhou para as caras avermelhadas em redor da mesa. Depois falou devagar:

— A reunião está terminada. Peço aos membros que se retirem para suas cabines e examinem bem os seus equi­pamentos. A comida estará pronta na sala, de refeições, um drink estará também à disposição de quem quiser beber. Vou chamar dois homens para cuidar do falecido N.° 10. Obriga­do.

Quando ficou só, Largo se espreguiçou e bocejou escan­dalosamente. Depois foi até uma gaveta e tirou uma caixa de charutos Corona, escolheu um e com uma expressão de pouca vontade acendeu-o. Depois apanhou uma fôrma de borracha com cubos de gelo e foi pelo corredor em direção à cabine de Dominó Vitali.

Entrou e trancou a porta. Também ali a iluminação vi­nha de uma lanterna vermelha pendente do teto. No beliche a moça estava presa, como uma estrêla-do-mar, com pulsos e tornozelos amarrados aos quatro cantos da cama. Largo colocou a caixa de gelo sobre a cômoda e equilibrou pacien­temente o charuto numa borda para não estragar o verniz do móvel. A pequena seguia-o com os olhos na escuridão aver­melhada. Largo então falou:

— Minha cara, esse seu corpo já me proporcionou mui­tos momentos de prazer, muita satisfação. Agora, em troca, a não ser que você queira me revelar quem lhe deu aquele ins­trumento para testar a bordo. . . eu serei forçado a lhe pro­porcionar muitas dores, que serão causadas por estes dois simples instrumentos. Segurou o charuto e soprou a brasa até que brilhasse intensamente na escuridão da cabine. E, rindo, prosseguiu: — Isto para queimar e os cubos de gelo para esfriar. . . Aplicados cientificamente, como eu sei aplicar e vou aplicar, terão o efeito irresistível de fazer com que a sua voz, quando parar de gritar de dor, revele a verdade. Muito bem, qual é a sua escolha?

Dominó falou com a voz carregada de ódio e de rancor:

— Você matou meu irmão e agora vai me matar. Divir­ta-se. Você é a própria morte. Mas, quando o castigo chegar, e não vai demorar, rezo para que sofra um milhão de vezes mais do que nós dois!

Largo deu uma gargalhada curta que mais parecia um latido. Foi até a beira do leito e falou com expressão perver­sa:

— Pois muito bem, minha querida. Vejamos o que se pode fazer com você, e devagar, muito devagar.

Curvou-se, meteu a mão no decote da moça, segurando juntos os tecidos do vestido e do soutien, e lentamente, mas com força, foi rasgando as peças de vestuário até em baixo. Depois abriu uma banda para cada lado das roupas rasga­das expondo inteiramente o belo corpo. Olhou com atenção, examinando cuidadosamente, e então foi até a cômoda, apa­nhou o charuto e a caixa de cubos de gelo e se acomodou confortàvelmente na beira da cama.

Pegou o charuto, soltou uma baforada, bateu a cinza pro chão e se curvou sobre a vítima.

 

A Sombra

No interior do Manta havia silêncio. O Comandante Pe­dersen, de pé atrás do operador, fazia de vez em quando um comentário para Bond e Leiter que estavam sentados em ca­deiras de lona, distantes do painel de velocidade e profun­didade onde a equipe especializada trabalhava. Eram três homens sentados em cadeiras de alumínio forradas de espu­ma e couro vermelho segurando controles, como se fossem pilotos num avião. O Comandante saiu de onde estava, veio para junto dos dois agentes e disse, rindo:

— Estamos a quinze braças e o próximo ponto está a uma milha a oeste. Agora temos a rota limpa até a Gran­de Bahama, que tal comermos alguma coisa e dormir um pouco O radar não acusa nada para dentro de uma hora, as ilhas Berry cobrem a tela do radar e só sairão quando passarmos adiante delas. E então virá a grande pergunta... Veremos algo, será o Disco? Se fôr, descemos e vocês ouvirão os alarmes, mas não adianta se afobar, nada se pode fazer enquanto não estiver exatamente na nossa alça de mira. E teremos novamente que ponderar e pensar antes de agir. — O Comandante foi andando para a escada e avisou:

— Permitem que eu vá na frente? É que esta é a parte do Manta que não é muito espaçosa, cuidado com a cabeça!

Leiter e Bond seguiram-no pela escada até um corre­dor que dava num refeitório de paredes pintadas com cores pastel, verde e rosa. Sentaram-se a uma mesa de fórmica e notaram que os homens da tripulação e oficiais por ali esta­vam estranhando a presença dos dois civis. O Comandante apontou para as paredes de cores suaves e disse:

— Estas cores são para variar um pouco do tradicio­nal cinza-chumbo. Vocês ficariam admirados de ver quantos crânios trabalharam para desenhar este submarino. O am­biente tem de ser pelo menos agradável para manter o moral da tripulação em viagens nas quais ficamos submersos por mais de um mês! Os entendidos disseram que não podería­mos usar uma só côr no ambiente, porque isso, além de can­sar os olhos do pessoa! embarcado, também era deprimente. Esta sala é usada para sessões de cinema, circuito fechado de televisão, biriba, bingo e sei lá quanta coisa para distrair um pouco a rapaziada. Devem ter notado que não há cheiro de comida ou de óleo e máquinas por aqui... É que precipita-dores eletrostáticos em todo o submarino filtram o ar.

Um camareiro veio com cardápios e o comandante es­colheu:

— Quero presunto da Virgínia com molho especial, torta de maçã e sorvete. E café gelado também. E, olhe, mande ca­prichar naquele molho. — E, virando-se para Bond: — Quan­do estou a bordo sinto um apetite voraz, você sabe como é... O lugar do Comandante é no mar.

Bond pediu ovos escaldados e torradas de centeio e café. Êle agradecia muito a atenção do Comandante, mas es­tava sem apetite. Sentia um frio no estômago que só passaria quando o Disco aparecesse na tela do radar e começassem a fazer qualquer coisa, a entrar em ação. E por trás de toda a preocupação sentia uma angústia, um temor, pensando em Dominó. Teria errado confiando-lhe tão valiosa informação?

Será que ela o traíra? Ou teria sido apanhada? Estaria viva ainda? Bond bebeu um copo de água gelada ouvindo o capi­tão explicar como a água do mar era destilada para tornar-se potável. Finalmente Bond não agüentou e falou, impaciente:

— Desculpe, Comandante, posso interrompê-lo um mo­mento para tirar uma dúvida? É que. . . se estivermos certos sobre o Disco... e conseguirmos apanhá-lo na Grande Baha­ma... Estou intrigado com o nosso próximo passo. Eu tenho minhas idéias próprias a respeito, mas o senhor pensa que devemos abordar o iate... ou mandá-lo pelos ares?

Os olhos do Comandante revelavam espanto quando fa­lou:

— Mas... eu pensei em deixar as decisões por conta de Vocês! O Departamento da Marinha disse que eu ficaria sob as suas ordens! Eu sou o chofer. Basta que digam o que que­rem e eu estou pronto a seguir as instruções, desde que não exponha a minha nave a risco de destruição... a muito risco, quero dizer, porque pelas instruções do Departamento... nem isso obsta. Como já tive ocasião de dizer, estou a postos para tudo e de pleno acordo com o seu esquema. É só dizer o que fazer e estarei pronto a cumprir. Pode falar.

Nesse momento chegou a comida. Bond mexeu com o garfo no seu prato e afastou-o para um lado. Então acendeu um cigarro e falou para Leiter:

— Não sei como você vê a coisa, Félix, mas vou lhe dizer o meu ponto de vista. Suponha que o iate tenha navegado em águas rasas para o norte, coberto pela proteção das ilhas Berry, indo para as Grandes Bahamas... Pois bem, andei olhando os mapas e se eles quiserem colocar a bomba o mais próximo possível do alvo terão de descer âncora a uma milha da praia, levar a bomba até meia milha do alvo, ou mais perto talvez, colocá-la onde houver vinte pés de água, cronometrar o detonador e cair fora. Assim eu penso. Estariam voltando às primeiras horas da manhã, quando o tráfego de iates de passeio é intenso no West End, e, ainda que aparecesse no radar, seria entre outras tantas embarcações. Suponhamos que tenham marcado a bomba para doze horas depois... Lar­go terá tempo da sobra para voltar a Nassau ou ir mais longe, se quiser. E posso apostar que êle vai voltar a Nassau com a estória da busca do tesouro e ficar à espera das ordens da SPECTRE. — Bond fêz uma pausa e evitou olhar para Leiter. — A não ser que tenha conseguido arrancar informações da pequena.

Leiter abanou a cabeça dizendo com convicção:

— Não creio que a pequena fale. Ela é do tipo valente! E ainda que tenha falado. Êle não poderia fazer mais do que atirá-la ao mar com um peso amarrado ao pescoço e dizer às autoridades que acontecera um acidente com o aqualung...

Qualquer coisa assim. Aquele homem tem um álibi mais sólido do que a firma J. P. Morgan & Cia.

O Comandante interrompeu perguntando:

— Deixando de lado todas essas hipóteses e voltando à operação propriamente dita. Capitão Bond, como acha que eles agirão para tirar a bomba do iate e levá-la até a área do alvo? Concordo que, pelo mapa, êle não poderá se aproximar muito com o iate pois, se o fizesse, poderia criar problemas com a guarda da base de mísseis, que mantém um bote na água, com guardas, para afastar pescadores ou barcos de passeio da zona experimental.

— Pois aí é que está a finalidade principal do comparti­mento submarino do Disco Volante. Eles terão um pranchão guardado lá para o transporte e possivelmente um motor elé­trico, algo assim. Colocarão a bomba no pranchão e uma equipe de mergulhadores irá colocá-la no ponto determinado e depois voltará ao iate — explicou Bond. — Do contrário não se justificaria toda aquela equipagem.

— Tem razão, capitão Bond. Faz sentido — respondeu Pedersen, em voz lenta. — Mas, nesse caso, que quer que eu faça?

Bond falou com energia, olhando para o comandante:

— Só há um momento em que poderemos apanhar a quadrilha. Se aparecermos cedo demais, eles correrão e es­conderão a bomba, na areia, por exemplo, a cinqüenta bra­ças. O momento certo será quando a equipe deixar o iate e estiver a caminho do alvo, para colocar a bomba. Teremos de apanhar a equipe de mergulhadores deles com outra equipe de mergulhadores. Quanto à segunda bomba, não há perigo, poderemos afundar o Disco com a bomba dentro.

O Comandante olhou para o prato, ajeitou paciente­mente os talheres, pegou a colher de sobremesa e mexeu com ela os pedaços de gelo no pires, fazendo-os tilintar, bebeu o café gelado, pousou o copo na mesa e olhou primeiro para Leiter e depois para Bond, antes de dizer:

— Acho que tem toda razão, capitão. Temos bastante oxigênio a bordo e temos também dez dos melhores nada­dores da flotilha nuclear. Mas eles têm apenas facas como armas. Terei que pedir voluntários. E quem os comandará?

— Eu os comandarei — respondeu Bond, com firmeza. — Mergulhar é uma das minhas especialidades e meu passa­tempo favorito e conheço bem quais são os peixes perigosos. Eu os alertarei e instruirei.

Félix Leiter, com voz obstinada, interrompeu Bond:

— Não pense que desta vez vai me deixar aqui senta­do comendo presunto da Virgínia e sorvete. Nada disso. Vou colocar um pé-de-pato aqui — e levantou o gancho que lhe substituía a mão amputada — e ainda o desafiarei para uma corrida qualquer dia, você não sabe o quanto se pode conse­guir quando se precisa improvisar um braço que se perdeu... Os médicos chamam a isso compensação.

O Comandante achou graça e levantou-se dizendo:

— Muito bem, deixarei vocês dois, heróis, resolvendo as coisas, enquanto vou falar à tripulação. Depois estudaremos as cartas geográficas juntos para traçar o esquema. Vocês afinal não dormiram nem um minuto, vou providenciar uma pílulas para que possam agüentar.

Pedersen saiu. Leiter se voltou para Bond:

— E você, seu malandro, pensou que iria deixar o ve­lho companheiro aqui, hein? Seu traidor, pérfido. Está certo, está certo...

Bond riu do amigo e falou:

— Como é que eu ia saber que você passou pelas mãos de terapistas e por centros de reabilitação? Nunca pensei que você levasse a vida tão a sério! Vai ver que sabe até fazer ca­rinho com este seu gancho!

— Você ficaria admirado! A gente segura a pequena com o gancho e você nem sabe como ela toma resoluções rápidas, então. Bem, mas vamos falar em coisas sérias. Que formação teremos? Será que conseguiremos transformar algumas das facas em lanças? E como vamos identificar os homens da nossa equipe e diferençá-los dos da inimiga, debaixo d'água e no escuro? Precisamos planejar tudo bem. Afinal, o Pedersen é um boa praça e não vamos permitir que perca alguns de seus homens por culpa de erros nossos.

Nesse momento ouviram a voz do Comandante pelo al­to-falante :

— Aqui fala o Comandante. É possível que tenhamos de enfrentar perigos no decorrer desta operação. Vou expli­car como se dará a coisa. Este submarino foi escolhido pelo Departamento da Marinha para um exercício que eqüivale a uma operação de guerra. Vou relatar o caso que deve ser considerado segredo de guerra até ordens posteriores. Eis o que se passa...

Bond, cochilando num dos bancos dos oficiais em ser­viço, despertou com a campainha de alarme. A voz metálica do alto-falante estava chamando: "Atenção, departamento de submersão!" Quase imediatamente o banco em que estava estremeceu ligeiramente e Bond ouviu o som surdo das má­quinas em funcionamento. Bond sorriu contente e de um pulo se levantou e foi para a sala de comando. O Comandan­te se virou para êle com o rosto tenso. Félix Leiter já estava lá. Pedersen falou:

— Creio que vocês estavam certos. Alcançamos o Disco, afinal, cinco milhas à frente e dois pontos a estibordo. Eles estão indo a cerca de 30 nós, nenhum outro barco consegui­ria esta velocidade, nem a manteria assim. E está todo apa­gado. Querem dar uma olhada pelo periscópio? Vejam, estão deslocando um bocado de água e fosforescência. Não há luar por enquanto, mas, quando a vista se acostuma, pode-se dis­tinguir a silhueta.

Bond firmou o rosto no visor cercado de borracha e con­firmou com a cabeça, depois se afastou e perguntou:

— Qual a rota deles?

— A mesma que a nossa, extremo oeste das Grandes Bahamas. Vamos mais fundo agora e com mais velocidade. Vamos segui-los pelo Sonar em sentido paralelo. O boletim meteorológico dava ventos fracos a oeste nas primeiras horas da manhã. Que não estejam fracos demais quando desem­barcarmos a equipe de mergulhadores, porque a superfície borbulharia um pouco com a presença de cada homem no mar. Aqui está. — Pedersen apresentou um rapaz corpulento de calção branco. — Este é o oficial Fallon, que está no co­mando dos mergulhadores... sob as suas e as ordens do Sr. Leiter, naturalmente. Todos os melhores nadadores se apre­sentaram voluntariamente, êle selecionou nove deles e eu os liberei oficialmente de suas funções de rotina. Agora creio que gostariam de conhecer a equipe e discutir o esquema. Por certo vai ser preciso muita disciplina... sinais convencionais etc... Certo? Bem, o mestre d'armas está tratando delas.

O Comandante sorriu animado e prosseguiu:

— Está afiando cerca de uma dúzia de facas. Teve al­guma dificuldade para convencer os homens a cederem-nas, mas acabou conseguindo e as está afiando bastante até fi­carem como agulhões e fixando-as em cabos longos, cabos de vassoura, e acho que vocês vão ter de assinar uma nota se responsabilizando por eles, ou o chefe de suprimentos da Intendência dará parte dele quando nos apresentarmos de volta. Pois muito bem. Até já.

Bond e Leiter seguiram Fallon pelo corredor, passaram pela casa de máquinas e chegaram à seção de consertos e re­paros. De passagem viram o compartimento do reator que é o equivalente a uma bomba atômica controlada, na forma de uma protuberância metálica de talvez meio metro de altura firmada em base de chumbo grossa e compacta. Na passa­gem, Leiter murmurou ao ouvido de Bond a informação téc­nica: — Este é o Reator Intermediário Submarino Marca B, sódio líquido. — E sorriu satisfeito com a própria erudição. Bond bateu com o pé na peça e comentou com naturalida­de:

— Material pressionado. . . Temos esta Marca B na nos­sa Marinha.

O compartimento de consertos era de aspecto curioso, com todo tipo de equipamento técnico de precisão e maqui-nismos. Lá no fim estavam os nove mergulhadores vestindo apenas calções, os corpos atléticos e queimados de sol. No outro canto dois homens de macacão cinza, representando bem a era mecânica, trabalhavam na semi-escuridão onde apenas focos dirigidos iluminavam o seu trabalho; das lâmi­nas que tinham nas mãos saíam cascatas de faíscas azuis e côr de laranja. Alguns dos nadadores já tinham suas ar­mas prontas nas mãos. Feitas as apresentações, Bond pediu para examinar umas das lanças improvisadas: sim, agora era uma arma mortal, de ponta aguçada como um punhal e firmemente presa ao cabo longo, capaz até de atravessar a dura pele de um tubarão. Mas... quais seriam as armas do inimigo? Por certo as perigosas co2. Bond olhou mais uma vez para os atletas bronzeados. Surgiriam situações difíceis, muitas, e todos precisavam estar preparados para enfrentá-las. É que a pele dourada daqueles rapazes e as epidermes brancas de Leiter e dele mesmo seriam um alvo fácil a vinte pés de distância, à luz da lua, para as co2. . . Chamou o jo­vem Fallon e perguntou:

— Vocês terão, por acaso, roupas de borracha para mergulho, aqui?

— Claro, capitão — respondeu o moço, sorrindo. — Te­mos de ter, são para o caso de um desembarque subaquático em águas frias. Nem sempre navegamos por zonas tropicais!

— Pois bem — falou Bond, com atenção. — Vamos to­dos precisar dessas roupas de borracha. Você pode providen­ciar para que sejam pintados números brancos ou amarelos nas costas de cada? Assim poderemos melhor identificar os nossos.

— Claro, claro — respondeu Fallon e chamou: —- Êi, Fonda e Johnson, vão até o depósito e tragam roupas de bor­racha para toda a equipe. Você, Bracken, arranje uma lata de tinta sintética de borracha e pinte números nas costas das roupas, de um a doze em algarismos de 1 pé de altura. Vamos.

Mais tarde Bond chamou os componentes da equipe que, alinhados junto à parede em suas roupas impermeáveis pretas, pareciam morcegos gigantes, e falou para eles:

— Rapazes, nós vamos agora enfrentar uma terrível ba­talha debaixo d'água. Haverá riscos, alguém quer desistir? — Todos sorriam, confiantes. — Muito bem, então. Nadaremos a mais ou menos dez pés por um quarto de milha ou talvez meia milha, haverá luar e o fundo do mar é de areia muito branca. Teremos calma e nadaremos em formação triangu­lar. Eu, N.° 1, irei na frente, seguido pelo Sr. Leiter, N.° 2, e por Fallon, N.° 3, e daí formando em ângulo mais aberto. Tudo o que têm a fazer será seguir o número à sua frente e ninguém se perderá. Atenção a pontas de pedras, pelo que eu vi no mapa não há recifes, mas apenas pontas isoladas; será a hora da fome dos peixes, portanto prestem atenção a todos os peixes grandes, mas não mexam com eles, apenas se defendam, se preciso, e o vizinho irá em socorro, mas é pouco provável que sejam atacados por peixes, porque assim em grupo eles pensarão que somos um grande e escuro pei­xe e terão medo. Cuidado com as pontas de coral e com as armas, segurem bem perto da lâmina e acima de tudo sejam silenciosos. Teremos que procurar conservar uma vantagem a nosso favor, que será a surpresa, contra a deles, de terem armas co2 de alcance de vinte pés, porém lentas para recar­regar. Se algum deles apontar para um de vocês. . . procurem ser alvos difíceis, mantendo-se em horizontal, não desçam os pés, e, depois de atirarem, avancem contra eles como um raio com suas lanças e, desde que atinjam o inimigo, na ca­beça ou qualquer parte do corpo, com a ponta de uma delas, êle estará perdido; e um homem ferido terá de cuidar de si, não haverá padioleiros. Se algum de vocês fôr ferido trate de sair da luta e procurar uma pedra para descansar até ser socorrido ou então nade para a praia, se puder. Se alguém fôr arpoado não procure arrancar o arpão, mantenha-o no ferimento até que outro o ajude. Aqui o oficial Fallon ficará com o foguete de sinal, que será disparado assim que a luta começar, e então o Comandante tratará de providenciar a emersão de nave e lançará ao mar um escaler com pessoal de salvamento e um cirurgião. Alguma pergunta?

— Que faremos, assim que sairmos do submarino, ca­pitão? — perguntou um dos homens.

— Procure ser o mais silencioso possível, desça até dez pés e tome a sua posição na formação da equipe. Haverá ventos fracos ondulando as águas, possivelmente provocare­mos alguma turbulência na superfície das águas, procurem manter-se bem no fundo.

— E quanto a sinais de comunicação, se uma das más­caras tiver algum problema, algo assim? — indagou outro.

— Mostrem o polegar para baixo como sinal de emer­gência, braço estendido é sinal de peixe grande, polegar para cima estendido, eu vou ajudá-lo. Acho que isto basta — falou Bond, rindo. — E se alguém aparecer de pés para cima... é sinal de que já se foi!

Todos acharam graça.

De repente ouviram a voz metálica do alto-falante: "Aten­ção, equipe de mergulhadores. Atenção, equipe de mergulha­dores. Todos para a saída. Repito, equipe de mergulhadores, todos para o alçapão de saída, a postos com o equipamento. Capitão Bond no centro para o ataque."

O ruído dos motores foi diminuindo até que silenciou. Então, com um baaaamp, o submarino Mania tocou o fundo do mar.

 

Guerra Nua

Bond sentiu que passava de um elemento para outro num impulso de ar comprimido. Acima de sua cabeça a su­perfície do mar parecia uma folha de prata ondulando le­vemente. Para sua satisfação viu que os ventos fracos es­tavam movimentando as águas lá em cima. O balão de ar passou por êle e foi flutuar na superfície. James sentiu uma dor aguda nos ouvidos e lembrou da descompressão, então bateu um pouco os pés-de-pato até que ficou a dez pés abai­xo da superfície. E abaixo dele a silhueta escura do Manta tinha um aspecto sinistro e perigoso, lá dentro centenas de homens trabalhavam... Estava assim meditando quando o ruído surdo o despertou e viu Leiter ser desembarcado como uma bólide, deslocando bolhas. Bond nadou até a superfí­cie e olhou cuidadosamente, lá estava o Disco Volante, an­corado, às escuras, a menos de uma milha de distância e nenhum sinal de atividade a bordo. Uma milha para o norte estava o perfil da Grande Bahama. Acima da ilha, no topo da base de foguetes, parecendo estranhos esqueletos negros, as luzes vermelhas de sinalização acendendo e apagando ritma­damente. Bond tornou a mergulhar e quando atingiu dez pés abaixo da superfície assumiu a sua posição de ponteiro na formação da equipe e ficou equilibrando o corpo à espera do resto do pessoal.

Dez minutos antes, o controlado Comandante Peder­sen não pudera conter uma certa excitação e, quando Bond entrara na sala de planejamento, dissera, com expressão ad­mirada:

— Exatamente como você disse! Ancoraram há dez mi­nutos e desde então o Sonar tem revelado os mais estranhos sinais subaquáticos, como era de esperar em preparativos para uma operação daquela envergadura. Só isso, porém, é mais do que suficiente. Acho que vocês podem ir andando e logo que tomem posição eu alçarei uma antena e entrarei em contato com o Departamento da Marinha e lhes darei um Sitrep e a estação da base de mísseis para que fique de prontidão para evacuação do pessoal caso haja esse perigo. Então subirei a 20 pés e acompanharei os acontecimentos pelo periscópio. Dei a Fallon outro foguete de aviso e pedi que se mantivesse o mais possível a salvo para dispará-lo, no caso das coisas irem mesmo mal para o nosso lado. Não creio que fracassemos, mas não podemos arriscar, com as coisas como estão. E se o segundo aviso fôr disparado eu darei dois tiros no Disco e depois o abordarei e posso garantir que serei um bocado duro até descobrir onde estão aquelas bombas e colocá-las em lugar seguro. Esta é uma situação realmente grave e séria, capitão Bond. Teremos que ir pelo tato, tocar de ouvido! — E, estendendo a mão para Bond, dissera: — É melhor ir andando, boa sorte. Espero que os meu rapazes honrem o Manta.

Bond estava lembrando isto quando sentiu que lhe to­cavam no ombro, era Leiter sorrindo dentro da máscara e apontando o polegar para cima. Bond olhou para trás e viu os rapazes todos batendo os pés à espera de ordens. Então Bond fez o sinal e começou a nadar à frente do grupo, que logo se arrumou de acordo com o esquema.

Dentro da roupa impermeável sentia-se quente e pe­gajoso e a recirculação de oxigênio que passava pelo bocal tinha gosto de borracha, mas Bond esqueceu o desconforto, concentrado como estava em manter uma batida regular e si­lenciosa em direção a uma ponta de coral lavada pelas ondas que escolhera como ponto de referência. Bem no fundo até onde não chegavam as sombras projetadas pela lua, a areia era clara, com uma ou outra mancha de plantas marinhas. Fora isto, àquela hora, o ambiente no mar era monótono, e igual, a mesma transparência e luminosidade onde, contra a sua vontade e o seu raciocínio, Bond esperava a cada ins­tante ver aparecer a figura enorme de um peixe feroz. Mas nada aconteceu. Apenas o fundo foi ficando menos fundo, diminuindo de cinqüenta para quarenta e para trinta pés. As sombras se tornaram mais nítidas.

Para certificar-se de que tudo ia bem, Bond olhou rapi­damente por cima do ombro. Sim, estavam todos lá, os ovais brilhantes das máscaras de todos os onze companheiros e as nadadeiras em movimento, lanças brilhando nas mãos. Pen­sou que bom seria se conseguisse com sua turma apanhar o inimigo de surpresa, surgir de repente, inesperadamente, das sombras submarinas... e chegou a antever a alegria da vitória, mas de repente veio uma lembrança que matou sua euforia. E a pequena? E se de repente desse de frente com ela fazendo parte do grupo inimigo? Teria coragem de cumprir o seu dever com a sua lança? Não, não era possível, estava imaginando coisas, ela devia estar a bordo, sã e salva, e logo a iria ver, sim, logo que acabasse aquele pesadelo.

Uma pequena ponta de coral fêz com que voltasse ao momento presente. Ficou atento às formas estranhas que se moviam de vez em quando, estrêlas-do-mar, algas, cardumes de peixinhos, plantas de fios longos lembrando cabeleiras de mulheres afogadas. Sentiu que Leiter e Fallon estavam firmes nas suas posições e continuou em frente, de olhos no ponto que escolhera, um pouco para a esquerda. Tinha-se desvia­do uns vinte pés, mas retomou a direção certa e então fêz o sinal de parar e subiu à superfície, protegido pela cabeça de coral. Olhou primeiro para o Disco, continuava iluminado apenas pela lua e sem nenhum sinal de vida dentro. Olhou o mar em volta, nada de anormal, apenas marolas ao luar. Deu a volta à cabeça de coral, nada. Lá longe a linha da praia, quinhentas ou seiscentas jardas distante. Bond pesquisou com os olhos à procura de pequenos sinais de turbulência, um movimento qualquer, e então. . . Mas que era aquilo? A cem jardas de distância, entre pontas de coral, uma cabeça e o brilho do vidro de uma máscara surgiram à superfície da água por um instante, dando uma olhada rápida em redor e desaparecendo novamente.

Bond prendeu a respiração. Chegava a sentir o movi­mento de seu coração batendo dentro da roupa de borracha; tirou um instante o bocal de borracha e inspirou um pouco de ar fresco, marcou bem a posição, mordeu novamente o bocal de borracha, ajustou-o e afundou.

Por trás das máscaras dos rapazes, a expectativa. Bond levantou o polegar diversas vezes e pode perceber a resposta geral — entendido. Então segurou sua lança em posição de ataque e avançou.

Agora seria apenas uma questão de velocidade e nave­gação; os peixes pequenos saíam do caminho e até os reci­fes pareciam despertar com o deslocamento provocado pelos doze corpos em movimento. Cinqüenta jardas adiante Bond fêz sinal para que formassem em linha de ataque. Então, com os olhos injetados e ardendo por causa do esforço, dis­tanciou-se um pouco e olhou. Sim, lá estava a mancha bran­ca da presença humana... e mais adiante também. Ergueu o braço em sinal de atacar e, segurando a sua arma como um lanceiro, atirou-se pára diante. A sua equipe seguia-o de per­to. Bond verificou então que isto fora um erro, pois a equipe da SPECTRE continuava nadando para diante e numa velo­cidade que Bond só compreendeu quando viu os pequenos motores com hélices que tinham presos às costas, encaixa­dos entre os cilindros dos aqualungs. Isto lhes dava, combi­nado com os movimentos das nadadeiras, uma velocidade pelo menos duas vezes maior do que a normal de um bom nadador ao ar livre. Não obstante, ali em baixo d'água, e por causa do pranchão com o suporte com a bomba requerendo manobras, faziam apenas um pouco mais do que Bond e sua equipe. E seguiam em frente com sua carga a caminho de um ponto predeterminado. Bond parou um instante e con­tou: mais de doze homens e todos armados com co2, levando carga extra presa às pernas. A desvantagem era grande para a equipe do Manta. Se pelo menos conseguissem chegar à distância de alcance com as suas lanças, antes que eles des­sem o alarme!

Trinta jardas... vinte jardas... Bond olhou para trás. Seis de seus homens estavam a pouca distância dele e o res­to mais longe, em linha meio desordenada. As máscaras dos homens de Largo apontavam para diante. Ainda não tinham percebido as sombras escuras que vinham por trás para atacá-los por entre as pontas de coral. Agora, porém, que Bond nivelou com os da retaguarda inimiga, a lua projetou sua sombra sobre o fundo claro de areia e um dos homens de Largo se voltou para olhar, e depois o outro. Bond en­costou o pé num pedaço de coral e, fazendo ponto de apoio para o impulso, atirou-se para a frente. O inimigo não teve tempo para defender-se e a lança de James o pegou nas cos­telas, fazendo-o cair contra o vizinho da formação. O ferido se dobrou e afundou, agarrando o ferimento e deixando cair a arma. Então Bond avançou como louco, a torto e a direi­ta, distribuindo golpes para todos os lados e dispersando a formação inimiga. Um outro homem levou a mão à face e desceu. Num golpe de sorte Bond conseguira acertar a más­cara, espatifando o vidro. O homem se debateu e tratou de subir à superfície e, de passagem, chutou o rosto de Bond, ao mesmo tempo que algo rasgava a roupa impermeável de James no estômago e este sentiu dor e algo molhando a sua pele, sangue e água do mar. Percebeu um brilho metálico e sentiu que o golpeavam na cabeça com a coronha da arma, porém o golpe foi abrandado pela resistência da água. Mas deu para tontear e Bond precisou segurar-se a uma ponta de coral para recobrar as forças. Via as sombras escuras dos rapazes de sua equipe passando. Lutas individuais estavam sendo travadas, tingindo a água com golfadas de sangue. E o campo de batalha era o fundo do mar. Aqui e ali, pontas de coral. Mais adiante Bond viu a prancha com o objeto longo e recoberto de borracha e em volta um grupo de homens, entre os quais a inconfundível e enorme figura de Largo.

Bond recuou e embrenhou-se pela floresta do que pa­reciam estalagmites de coral. Foi nadando cautelosamente, bem perto da areia, para se aproximar do grupo. Mas então percebeu uma sombra grande, era um dos inimigos que fazia cuidadosa pontaria para Leiter, que lutava com um dos ho­mens de Largo que o pegava pela garganta. Félix se debatia, o pé-de-pato que colocara no gancho que lhe substituía a mão direita havia caído e êle atacava as costas do homem com o gancho metálico. Bond se equilibrou como pôde e atirou a sua lança, a seis pés de distância. O cabo não era bastante pesado para ajudar o lance, porém a lâmina aguçada atingiu o braço do homem no momento exato em que este disparou e o projétil foi para cima, enquanto bolhas de gás saíam do cano da arma. Exasperado, o homem se voltou contra Bond, atacando-o com a coronha da arma descarregada. Bond viu que sua lança subiu, boiando, para a superfície. Mergulhou mais fundo e agarrou o outro pelas pernas e, ao mesmo tem­po em que recebia o golpe nas têmporas, agarrou com força a máscara do inimigo e arrancou-a. Foi o bastante. O homem, desnorteado e meio cego pela água do mar, lutava para subir à superfície.

Bond sentiu que alguém o puxava pelo braço. Era Lei­ter que, desesperado, apontava para o tubo de oxigênio, seu rosto dentro da máscara estava contorcido e êle, meio sem forças, apontou para cima. Bond compreendeu e, seguran­do, como pôde, o companheiro, subiu à tona, arrastando-o. Quando chegaram à superfície Leiter arrancou a máscara e respirou, ávido, o ar puro. Bond o ajudou até um banco de coral e, quando Leiter, freneticamente, lhe fêz sinal para que voltasse à luta, que êle estava bem, James levantou o polegar e mergulhou de novo.

Chegou novamente à floresta submarina de coral e re-encetou sua viagem atrás de Largo. De vez em quando pas­sava por dois homens lutando e em certo momento viu acima de sua cabeça um dos rapazes do Manta, boiando, sem mo­vimentos, estava sem a máscara e sua boca tinha as contor­ções da morte. Lá no fundo, havia troféus da batalha ainda não terminada, daquela guerra de homens seminus, havia máscaras, pedaços de borracha das roupas, cilindros de oxi­gênio, aqualungs, pés-de-pato, as lanças improvisadas pelos rapazes do Manta e projéteis das co2. Bond pegou dois deles. Agora estava no ponto onde queria chegar, lá estava a carga preciosa em seu suporte sobre a prancha e, de guarda, dois dos homens de Largo de arma em punho, mas nem sinal de Emílio. Bond pesquisou com os olhos a transparência da água e o fundo de areia, agora revolta pelos pés dos com­batentes e iluminada pelo luar. Pequenos seres marinhos aproveitavam para se alimentar dos fragmentos desenterra­dos do fundo do mar, algas e plantinhas. Nada mais para se ver. Bond não conseguia discernir na batalha espalhada por pequenos grupos de mergulhadores em luta, quem estava levando vantagem. E que se estaria passando na superfície? Quando subira à tona para levar Leiter a superfície estava iluminada apenas pela luz vermelha do farol. Onde estaria o escaler de salvamento do Manta? Quanto tempo levaria para chegar até ali? Deveria êle permanecer onde estava e ficar vigiando a bomba?

De repente, e com horror, Bond viu. Lá vinha Lar­go montado na pequena máquina Chariot que arrastaria o pranchão com a bomba. Vinha curvado para a frente e tinha nas mãos duas das lanças tiradas dos rapazes do Manta. Avançava como os antigos cavaleiros ao entrar na arena para uma justa: lança pontiaguda apontada para frente, disposto a trucidar o inimigo. À sua chegada os homens pousaram as armas na areia e puseram-se em movimento para atrelar o pranchão na máquina. Bond percebeu que estavam em vias de voltar, iriam por certo levar a bomba de volta e escondê-la em alguma parte, talvez enterrá-la na areia num ponto estra­tégico só conhecido por êíes, e depois fariam o mesmo com a outra bomba que estava no Disco e então... sem provas para incriminá-lo, Largo diria que fora atacado por rivais também em busca do tesouro... ou pelo menos foi o que pensou, como iria saber que se tratava da equipe da Marinha americana? E seus homens haviam-se defendido, pois foram atacados primeiro! E mais uma vez a tal conversa da busca ao tesouro serviria de desculpa para tudo.

Adiante, os homens continuavam tentando atrelar o pranchão e Largo olhava nervoso para os lados. Mais uma vez, apoiando os pés no banco de coral, Bond se projetou para diante com força. Largo se voltou bem a tempo de le­vantar o braço e desviar a estocada de Bond, que foi bater inutilmente nos cilindros do aqualung. Bond se atirou en­tão de cabeça, mãos estendidas à frente para agarrar o tubo de oxigênio de Largo; este ergueu as mãos para proteger-se, largando assim as armas, e também a direção da máquina, que segurava firmemente, e então esta embicou para cima, escapando aos dois homens da guarda que, agarrados a ela, lutavam por mantê-la na posição.

Já não era mais possível lutar cientificamente. Largo subia com a máquina, que continuava a manter presa fir­memente entre os joelhos, e Bond segurava com uma das mãos o equipamento do italiano, para evitar que escapas­se. Largo dava cotoveladas no rosto de Bond, que desviava como podia a cabeça e aparava os golpes com o protetor de borracha da boca para evitar que o vidro precioso de sua máscara fosse espatifado. Ao mesmo tempo, com a mão li­vre, James dava cutiladas no único ponto ao seu alcance, que eram os rins de Largo. A Chariot continuava subindo desnorteadamente, desequilibrada pelo peso de Largo, que a montava, e de Bond, pendurado à retaguarda, formando com a superfície da água um ângulo de quarenta e cinco graus. Estavam quase chegando à tona e então Largo ficaria em posição de dominar Bond com ambas as mãos enormes. Bond tomou uma decisão rápida. Soltou o equipamento de Largo, a que estava agarrado, segurou a popa da Chariot e deu uma montada súbita, porém com cuidado para evitar a hélice. Estendeu firmemente a mão e, tudo num relance, em movimentos ultra-rápidos, pegou a direção e girou, mudando bruscamente de sentido, e, pulou para trás. Seu rosto, dis­tante poucas polegadas da hélice em movimento, recebeu em cheio a turbulência das águas deslocadas, mas êle afundou puxando a Chariot pelo cabo da direção, que ainda segurava com força. Queria emborcar a pequena Chariot e foi o que fêz num último e terrível esforço, sentindo que seus braços qua­se saíam do corpo, ao mesmo tempo em que virava a cabeça para evitar ser apanhado. Acima de sua cabeça viu, quando a Chariot virou, o corpo de Largo ser atirado para cima e logo a seguir voltar de cara para baixo e já de olhos atentos, pro­curando por êle.

Bond sentia-se exausto e só pensava em escapar e esca­par com vida. A bomba estava imobilizada no fundo do mar, a Chariot se extraviara desnorteada pelo mar afora e Largo devia estar liquidado. Bond reuniu as forças que lhe resta­vam e procurou refúgio entre as estalagmites de coral. Porém Largo, incansável, desceu atrás dele, em braçadas largas e fortes. Bond tratou de se embrenhar por entre as pontas de coral. Viu uma passagem na areia branca, seguiu-a, chegan­do a uma bifurcação, e, protegido pela roupa de borracha, meteu-se pela estreita passagem. Sentiu que uma sombra grande o seguia: era Largo que, sem se dar ao trabalho de ir também pelo labirinto de coral, o acompanhava por cima, nadando e olhando. Bond olhou para cima e chegou a ver um quase sorriso dos dentes grandes e brancos de Largo, que mordiam a borracha do bocal. Largo sabia que agora o tinha apanhado. Bond flexionou as mãos, os dedos, sabendo que não poderia competir com aquelas mãos descomunais, que mais pareciam ferramentas de aço. À sua frente o canal se abria numa clareira. Bond sabia que não poderia retroceder, só lhe restaria continuar e entrar na ratoeira.

Então, parou um momento, porque isso lhe pareceu a única coisa sensata a fazer, pois, pelo menos, assim Largo teria de descer para vir buscá-lo. Olhou para o alto. Real­mente o corpo grande e robusto de Largo vinha descendo até a clareira, seguido de borbulhas provocadas pelo respi­rador. E então, como uma foca pálida, chegou ao fundo em movimentos ondulados e parou, encarando James Bond. Lentamente Largo avançou através do canal formado pelas estalagmites de coral em direção a Bond, de mãos estendidas para a frente, já prontas para agarrá-lo. A pequena distância, parou. Seus olhos procuraram algo em redor, sua mão direi­ta agarrou e puxou qualquer coisa e, quando Bond a viu de novo, teve a impressão de que a enorme mão de Largo tinha mais oito dedos! Era um pequeno polvo que o italiano sacu­dia como se fosse uma flor. Os seus dentes como que riam, antecipando a vitória. Bond abaixou e apanhou uma pedra coberta de algas. Seria uma pedrada na máscara de Largo contra o polvo que este pretendia jogar na sua. O polvo não amedrontava Bond, na véspera estivera em companhia de uma porção deles no mar. Era a força de Largo que o assus­tava. Emílio Largo veio andando, lento, um passo depois do outro. Bond foi recuando pela estreita passagem, com cuida­do, para não romper a proteção de sua roupa de borracha, e Largo continuava avançando, lenta e deliberadamente. Mais dois passos e iria atacar.

Bond percebeu um movimento na clareira por trás de Largo. Seria alguém para salvá-lo? Não, a sombra era clara, branca, e não de borracha preta. Era alguém do Disco!!!

Largo deu o bote!

Bond impulsionou o corpo e mergulhou, segurando Largo numa chave de rins, sem largar a pedra. Mas Largo es­tava preparado, seu joelho subiu atingindo Bond na cabeça ao mesmo tempo em que comprimia o polvo contra o vidro da máscara de James. E então aquelas duas mãos descomu­nais agarraram Bond pelo pescoço e, levantando-o como se fosse uma criança, começaram a apertar. Bond não conse­guia enxergar nada, sentia os tentáculos do pequeno polvo se agarrando a seu rosto e se enrascando no bocal de borracha e puxando, puxando. O sangue em sua cabeça latejava, Não viu mais nada.

Lentamente sentiu que seus joelhos dobravam... mas... como? Como é que estava afundando assim? E as mãos que apertavam o seu pescoço? Seus olhos se apertaram em ago­nia, mas finalmente a vista clareou. O pequeno polvo, agora agarrado ao seu peito, foi embora por entre as colunas de coral. E a sua frente lá estava Largo! Com uma lança atra­vessada no pescoço de maneira horrível, batendo dèbilmente os pés na areia. Atrás dele havia uma pequena figura branca, olhando-o e recarregando a co2 que tinha na mão. Os longos cabelos flutuavam em volta de sua cabeça como um véu lu­minoso.

Bond se pôs de pé lentamente e deu um passo à frente, porém subitamente seus joelhos cederam. A escuridão co­meçou a cobrir seus olhos. Bond encostou numa coluna de coral, sentindo que seu maxilar começava a afrouxar a pres­são no bocal de borracha. Sentiu o gosto da água do mar en­trando. Não! — repetia para si mesmo. Não! Não posso deixar que isto aconteça!

Sentiu que a mão de alguém segurava a sua. — Os olhos de Dominó, dentro da máscara, estavam distantes e sem expressão. Ela estava mal, muito mal. Que teria acon­tecido com ela? De repente a consciência pareceu voltar a Bond e seus olhos viram as manchas de sangue e as marcas vermelhas aparecendo sob as tiras do biquíni. E compreen­deu. Iriam ambos morrer ali agora, a não ser que fizesse al­guma coisa. E então, com esforço, começou a bater os pés e, afinal, muito lentamente, conseguiu que os dois corpos subissem juntos e ficassem boiando na superfície embalados nas ondas mansas.

As primeiras luzes da aurora tingiam de rosa os arredo­res. Ia nascer um dia lindo!

 

Calma, Mr. Bon, Calma...

Félix Leiter entrou em pontas de pés no branco quarto do Hospital e fechou a porta com cuidado. Veio até a beira do leito onde Bond estava deitado, meio adormecido, e per­guntou:

— Então, amigo? Como vai?

— Não muito mal. . . Só meio zonzo. . .

— O doutor não queria deixar que eu viesse vê-lo, mas eu achei que lhe faria bem saber as notícias, hein?

— Claro... — respondeu Bond sem interesse, só conse­guia pensar na pequena Dominó.

—- Pois bem, serei breve. O doutor está de ronda e se me encontrar aqui estou frito. Olhe, as duas bombas foram recuperadas e o Kotze, o tal cientista, está dando com a lín­gua nos dentes, contando tudo. A SPECTRE é uma organiza­ção formada por ex-componentes da Mafia, Smersh e Gesta­po! Todos eram importantes. O quartel-general é em Paris e o chefão é um tal de Blofeld... Este conseguiu escapar, pelo menos por enquanto ainda não o apanhamos. Possivelmente desconfiou da falta de notícias de Largo. Deve ser um gênio, um gênio do mal. O Kotze diz que eles têm um capital fabu­loso acumulado em seis anos de funcionamento e este caso seria o clímax. Nós estávamos certos: Miami seria o alvo N.° 2! E com o mesmo tipo de esquema.

— E todos agora estão felizes... — murmurou Bond, sorrindo dèbilmente.

— Todos, menos eu. Ainda não tive um momento de descanso! Não consigo me afastar do rádio, as válvulas pa­recem até que vão estourar. E há uma pilha de mensagens cifradas do M esperando que você possa lê-las. Felizmente os maiorais da CIA e do seu departamento vão chegar para tomar conta da coisa. E então vamos apreciar de camarote o que os nossos governos dirão ao mundo, o que farão com os culpados da SPECTRE, se nos condecorarão, se seremos condes ou duques, e talvez me convençam a uma candida­tura à Presidência, coisinhas assim. E então vamos tirar fé­rias, que tal levar também aquela pequena, hein? Puxa! Ela é quem merece todas as medalhas! Que coragem! Descobriram o Geiger com ela e só Deus sabe o que o infame do Largo fêz à pobrezinha! E ela agüentou, não abriu a boca, nem uma palavra! E então, quando os miseráveis estavam na água, em ação, ela conseguiu se libertar e sair pela vigia com seu aqualung e sua arma e foi atrás do bandido. E o pegou, pe­gou e também salvou a sua vida! Juro que jamais direi que as mulheres são frágeis! Pelo menos não as italianas! — Leiter parou um momento, escutando. — Bolas! Lá vem aquele mé­dico de silenciosos sapatos de borracha. Vou embora, James. Até logo.

Félix foi até a porta, abriu-a, olhou para os lados e foi embora tão cautelosamente como viera. Com voz fraca Bond ainda chamou:

— Ei, Félix! Espere, Félix. . .

Mas não foi ouvido. Deitou a cabeça no travesseiro e ficou olhando para o teto branco. Dentro dele lentamente co­meçava a ferver um ódio atroz — e pânico! Por que não lhe tinham contado antes a respeito da pequena? Que lhe im­portava o resto? Fosse tudo para o inferno! Como estaria ela? Onde estaria ela? Será que...?

A porta se abriu. Bond criou forças para sentar-se na cama de repente e gritou para a figura de branco que acabara de entrar:

— A moça? A moça... como está? Depressa, diga, por

favor!

O Dr. Stengel, médico em Nassau, não era apenas dis­tinto, mas também um excelente médico. Era um dos médi­cos judeus refugiados que, se não fosse por culpa de Hitler, devia estar dirigindo algum hospital importante em cidades do tamanho de Düsseldorf. Mas estava em Nassau, onde ri­cos e gratos pacientes haviam concorrido para fundar aque­la clínica moderna onde curava nativos a troco de níqueis e milionários e suas esposas por preços altos. Estava mais acostumado a tratar das conseqüências do excesso de pílulas do que de queimaduras e envenenamentos por curare, que seriam mais próprios nos dias dos piratas. Mas estes eram clientes do Governo e o Dr. Stengel não fizera perguntas nem mesmo a respeito das 16 autópsias que tivera de fazer — seis de americanos do grande submarino e dez, incluindo o dono, do belo iate Disco Volante, que havia tantos meses estava ancorado ali.

O médico respondeu com voz calma:

— A senhorita Vitali vai ficar boa. No momento ela está em estado de choque. E precisa de repouso absoluto.

— Sim, sim, e que mais? Que houve com ela?

— Nadou demais para suas condições físicas, não pôde resistir a tanto esforço. . .

— Por que não?

O doutor foi até a porta antes de responder:

— O senhor também precisa descansar. Também fêz mais esforço do que podia agüentar. Tomará pílulas sonífe­ras cada seis horas. Procure dormir. E logo estará perfeita­mente bem Mas, por enquanto, calma, Mr. Bond, calma.. .

"Calma, Mr. Bond, calma..." Quando foi que ouvira aquelas mesmas palavras idiotas antes? De repente Bond sentiu-se invadido por uma fúria incontida. Pulou da cama e, apesar da tontura, caminhou até onde estava o médico e sa­cudiu o punho ameaçadoramente diante do rosto impassível do doutor, que já estava acostumado àquelas manifestações e sabia que logo o sonífero o abrandaria. E falou, berrou:

— Calma! Calma! Pro inferno com a calma! Que é que o senhor entende de calma? Diga-me o que aconteceu com a moça, onde está ela, qual é o número do quarto? — E, começando a fraquejar, pediu, humilde: — Diga, por favor, doutor... Eu preciso saber...

O Dr. Stengel falou com toda a paciência:

— Alguém a maltratou muito. Ela está cheia de queima­duras e ainda está sofrendo muitas dores mas... por dentro está bem. Pode ir vê-la, no quarto n.° 4, mas só por um mi­nuto, ouviu? Ela precisa repousar e o senhor também.

E abriu a porta para que Bond passasse.

— Obrigado, doutor, muito obrigado — respondeu este, caminhando, trôpego, pelo corredor.

O médico ficou olhando até que êle chegou ao quar­to n.° 4, entrou e fechou a porta com os cuidados de um embriagado. E o médico voltou pelo corredor pensando que aquela visita não faria nenhum mal a êle e faria muito bem a ela. Era disto que ela estava precisando naquele momento: um pouco de ternura.

Dentro do quarto a luz filtrada pelas venezianas lança­va manchas de luz e sombra sobre o leito. Bond foi cambale­ando até a beira da cama e caiu de joelhos. A pequena cabeça sobre o grande travasseiro se voltou para olhá-lo, uma mão trêmula saiu dos lençóis puxando a cabeça dele para junto de si e uma voz fraca falou:

Você vai ficar aqui, está entendendo? Você não vai embora não.

Bond não respondeu e ela insistiu, segurando a cabeça

dele:

— Está me ouvindo, James? Está compreendendo? Mas então ela sentiu que a cabeça de Bond escapava de

sua mão e seu corpo estava encolhido no tapete. Êle dormia.

Cuidadosamente ela ajeitou a cabeça no travesseiro e olhou. Êle dormia sobre o tapete, junto à cama dela, a cabeça apoia­da no braço.

A moça olhou por um momento para aquele rosto more­no e duro, deu um suspiro e puxou o travesseiro para a beira da cama, bem acima de onde êle estava, deitou a cabeça de modo que pudesse vê-lo assim que abrisse os olhos e ador­meceu também...

 

                                                                                            Ian Fleming

 

 

                      

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