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A Casa a Vapor - Vol. I / Julio Verne
A Casa a Vapor - Vol. I / Julio Verne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Casa a Vapor

Volume I

 

    Uma cabeça posta a prémio

     «Concede-se o prémio de duas mil libras a quem entregar, vivo ou morto, um dos antigos chefes da revolta dos sipaios, que consta ter aparecido na presidência de Bombaim, o nababo Dandu-Pant, mais conhecido pelo nome de...»

     Tal era o edital que os habitantes de Aurungabad podiam ler na noite de 6 de Março de 1867.

     O último nome execrado, amaldiçoado para todo o sempre por uns, admirado e abençoado em segredo por outros -, o último nome, dizíamos, faltava no edital, que havia pouco fora afixado na parede de um bungalow em ruínas, nas margens do Dudhma.

     Se assim sucedia era porque o ângulo inferior do edital, onde esse nome se achava estampado em grandes letras, acabava de ser rasgado pela mão de um faquir, por cuja presença ninguém dera naquela margem, então deserta.

     Com aquele nome igualmente desaparecera o do governador-geral da presidência de Bombaim, que acompanhava a assinatura do vice-rei das índias.

     Que ideia seria a do faquir?

     Esperava ele que, rasgando o edital, o rebelde de 1857 escaparia à vindicta pública e às consequências da resolução oficial que a seu respeito se tomava?

     Seria loucura.

     Outros editais como aquele apareciam profusamente pelas paredes das casas, dos palácios, das mesquitas, dos hotéis de Aurungabad Além disso, percorria as ruas um pregoeiro da cidade, que lia em voz alta a última ordem do governador.

     Os habitantes das mais pequenas aldeias da província sabiam já que se prometia uma verdadeira fortuna a quem entregasse o Dandu-Pant.

     O seu nome, inutilmente aniquilado, ia correr em menos de doze horas toda a presidência.

     Se eram exactas as informações, se o nababo na verdade procurara um refúgio naquela zona do Indostão, não havia dúvida de que ele dentro de pouco cairia em mãos grandemente interessadas em realizar a sua captura.

     A que impulso obedecera então aquele faquir ao rasgar um edital de que existiam milhares de exemplares?

     À irritação, sem dúvida, ou talvez a algum pensamento desdenhoso.

     Fosse o que fosse, depois de encolher os ombros, o faquir embrenhou-se no bairro mais populoso e mais pobre da cidade.

     Chama-se Decão o extenso tracto da península indiana compreendido entre os Gates ocidentais e os Gates do mar de Bengala. É o nome que geralmente se dá à parte meridional da índia aquém do Ganges.

     Este Decão, cujo nome em sânscrito significa sul, conta nas presidências de Bombaim e de Madrasta certo número de províncias. Uma das principais é a província de Aurungabad, cuja capital até foi outrora a de todo o Decão.

     No século XVII, o célebre imperador mongol Aureng-Zeb transferiu a sua corte para aquela cidade, que nos primeiros tempos da história do Indostão era conhecida pelo nome de Kirkhi.

     Contava, então, cem mil habitantes. Hoje, sob o domínio dos Ingleses, que a administram por conta do nizão de Haiderabad, tem uns cinquenta mil.

     Entretanto, é uma das cidades mais saudáveis da península, poupada até hoje pela temível cólera asiática, e que as febres epidémicas, tão terríveis na índia, nunca visitam.

     Aurungabad conserva magníficos restos do seu antigo esplendor.

     O palácio do grão-mongol. edificado na margem direita do Dudhma, o mausoléu da sultana favorita do xá Jahan, pai de Aureng-Zeb, a mesquita copiada do elegante Tadje de Agra, que ergue os seus quatro minaretes em volta de uma cúpula graciosamente arredondada, e vários outros monumentos, artisticamente edificados, atestam o poder e a grandeza do mais ilustre dos conquistadores do Indostão, que levou o seu reino, ao qual incorporou o Cabul e o Assão, a incomparável grau de prosperidade.

     Apesar de, como se disse, a população de Aurungabad ter sofrido considerável redução, podia qualquer pessoa esconder-se facilmente entre os tipos tão variados que a compunham.

     Verdadeiro ou falso, o faquir, misturado com todo aquele populacho, não se distinguia por modo algum de entre ele.

     Os seus iguais fervilham na índia. Constituem com os sayeds uma corporação de mendigos religiosos, que pedem esmola, a pé ou a cavalo, e sabem exigi-la quando não lha dão de bom grado!

     Tão-pouco desdenham o papel de mártires voluntários, e gozam de grande crédito nas classes inferiores do povo indiano.

     O faquir que apresentámos em cena era homem de estatura elevada, de mais de cinco pés e nove polegadas inglesas.

     Se passava dos quarenta, seria um ano ou dois.

     No rosto lembrava o belo tipo marata, principalmente pelo brilho dos olhos negros, sempre esplêndidos de vivacidade. Não obstante, dificilmente se descobririam as feições tão finas da sua raça sob o grande número de sinais de bexigas que lhe crivavam o rosto.

     Ainda em toda a força da idade, parecia ágil e robusto.

     Sinal particular: faltava-lhe um dedo na mão esquerda.

     Com os cabelos tintos de vermelho, um turbante na cabeça, estava descalço, meio nu, apenas coberto com uma pobre camisa de lã esfarrapada, apertada na cintura.

     No peito viam-se-lhe em cores vivas os emblemas dos dois princípios, conservador e destruidor, da mitologia hindu, a cabeça de leão da quarta encarnação de Vixnu, os três olhos e o tridente simbólico do feroz Xiva.

     Verdadeira e bem compreensível comoção agitava as ruas de Aurungabad, e mais particularmente as ruas onde se aglomerava a população dos bairros pobres. Fervilhava esta fora dos casebres que lhe servem de morada. Homens, mulheres, crianças, velhos, europeus ou indígenas, soldados dos regimentos reais ou dos regimentos de nativos, mendigos de toda a casta, campónios dos arredores, chegavam-se uns aos outros, conversavam, gesticulavam, comentavam a noticia, calculavam as probabilidades de ganharem o enorme prémio prometido pelo Governo.

     A exaltação do espírito público não seria mais ardente diante da roda de uma lotaria cujo prémio grande valesse duas mil libras.

     Pode-se até acrescentar que daquela vez não havia ninguém que não pudesse alcançar um bom bilhete o que apanhasse em prémio a cabeça de Dandu-Pant.

     A verdade, porém, é que era preciso ter sorte para encontrar o nababo, e ser bastante audaz para se apoderar da sua pessoa.

     O faquir evidentemente o único de entre todos a quem não excitava a esperança de ganhar o prémio deslizava pelo meio dos grupos, parando de vez em quando, comentando o que se dizia, como pessoa que podia muito bem tirar proveito do que ouvia.

     Mas não se metia na conversa de ninguém. Não obstante, se a sua boca permanecia calada, não conservava ociosos os olhos e os ouvidos.

     - Duas mil libras por descobrir o nababo! - exclamava um, erguendo ao céu as mãos recurvas.

     - Não por descobri-lo - acudia outro -, mas por apanhá-lo, o que é bem diferente!

     - Mas não se dizia ultimamente que ele morrera de febre, nos juncais de Nepal?

     - Nada disso é verdade! O velhaco do Dandu-Pant quis passar por morto, a fim de continuar a viver com mais segurança. Chegou a correr o boato de que o tinham enterrado no meio do seu acampamento, na fronteira. Falsas exéquias, para enganar!

     O faquir não pestanejara ao ouvir afirmar aquele último facto de uma maneira que não admitia dúvidas.

     Contraiu, porém, involuntariamente, a fronte quando ouviu um indiano um dos mais exaltados do grupo em que se confundira dar as informações seguintes, informações demasiado precisas para não serem verídicas:

     O que é certo dizia o indiano é que em 1859 o nababo refugiou-se com o seu irmão Balão Rao e o ex-rajá de Gonda, Debi-Bux-Singh, num campo junto de uma das montanhas do Nepal. Ali, perseguidos muito de perto pelas tropas inglesas, resolveram os três transpor a fronteira indochinesa. Mas, antes de o fazerem, o nababo e os seus dois companheiros, a fim de tornarem mais crível o boato da sua morte, procederam ao seu próprio funeral. Apesar disso, o que unicamente enterraram da sua pessoa foi um dedo da mão esquerda, que a si próprios cortaram na ocasião da cerimónia fúnebre.

     - E como sabes isso? - perguntou um dos ouvintes ao indiano que falava com tanta segurança.

     - Presenciei as exéquias - respondeu este. - Os soldados de Dandu-Pant tinham-me feito prisioneiro, e só passados seis meses é que pude fugir.

     Enquanto o indiano falava de um modo tão afirmativo, o faquir não o perdia de vista.

     Chispavam-lhe os olhos.

     Ocultou prudentemente a mão mutilada sob o farrapo de lã que lhe cobria o peito.

     Escutava sem proferir palavra, mas tremiam-lhe os lábios, que deixavam ver os dentes acerados.

     - Visto isso, conheces o nababo? - perguntaram ao antigo prisioneiro de Dandu-Pant.

     - Conheço - respondeu.

     - E conhecê-lo-ias, sem hesitação, se o acaso te pusesse em frente dele?

     - Tão bem como me conheceria a mim mesmo.

     - Então tens alguma probabilidade de ganhar o prémio de duas mil libras! retorquiu um dos interlocutores, não sem um tom de inveja mal dissimulada.

     - Talvez... - respondeu o indiano - se é verdade que o nababo teve a imprudência de se atrever a entrar na presidência de Bombaim, o que me parece bastante inverosímil.

     - E o que viria ele cá fazer?

     - Tentar decerto promover algum levantamento - disse um dos homens do grupo -, senão entre os sipaios, pelo menos entre as populações dos campos do centro.

     - Logo que o Governo afirma terem-no visto na província - tornou um dos interlocutores, pertencente a essa classe de indivíduos que entendem que a autoridade nunca se pode enganar -, é que o Governo anda certamente bem informado a tal respeito!

     - Assim deve ser - confirmou o indiano. - Permita Brama que Dandu-Pant passe por mim, e fica feita a minha fortuna!

     O faquir recuou alguns passos, mas não perdeu de vista o ex-prisioneiro do nababo.

     Era já noite cerrada, mas apesar disso a animação nas ruas de Aurungabad não diminuía.

     A respeito do nababo circulavam ainda mais boatos.

     Num ponto, dizia-se que fora visto na própria cidade; noutro, que estava já longe.

     Afirmava-se que um correio, expedido da província ao anoitecer, acabava de trazer ao governador a notícia da prisão de Dandu-Pant.

     Às nove da noite, os mais bem informados sustentavam que já estava preso na cadeia da cidade, em companhia de alguns tugues, que ali vegetavam havia mais de trinta anos, e que seria enforcado no dia seguinte, ao romper do dia, sem mais formalidades, como o fora Tantia-Toipi, seu célebre companheiro de revolta na praça de Sipri.

     Às dez horas, porém, correu outro boato contraditório. Espalhou-se que o preso conseguira evadir-se logo em seguida, o que deu novas esperanças aos que se engodavam com o prémio das duas mil libras.

     A realidade era que todos estes boatos não passavam de pura falsidade.

     Os mais bem informados sabiam tanto como os que o estavam menos ou como os que nada sabiam. A cabeça do nababo continuava a valer o prémio. Era ainda para quem o apanhasse.

     Pelo facto de conhecer pessoalmente Dandu-Pant, o indiano estava, pois, mais habilitado que ninguém a ganhar o prémio. Poucas pessoas, principalmente na presidência de Bombaim, haviam tido ocasião de se encontrar com o feroz chefe da grande insurreição.

     Mais ao norte e mais ao centro, na Sindhia, no Bundelkund, no Ude, nos arredores de Agra, de Deli, de Cawnpore, de Lucknow, no principal teatro das atrocidades cometidas por ordem sua, as populações levantar-se-iam em massa contra ele e entregá-lo-iam à justiça inglesa.

     Os parentes das suas vítimas, maridos, irmãos, filhos, esposas, choravam ainda aqueles a quem o nababo fizera trucidar aos centos.

     Não bastavam dez anos decorridos para apagar os mais legítimos sentimentos de ódio e de vingança.

     Em vista disso, não era possível que Dandu-Pant fosse tão imprudente que se aventurasse por aquelas províncias, onde o seu nome era de todos execrado.

     Se, pois, como se dizia, ele tornara a transpor a fronteira indochinesa, se algum motivo ignorado projectos de insurreição ou quaisquer outros projectos o tinham feito abandonar o esconderijo que ninguém lograva descobrir, cujo segredo a polícia anglo-indiana ainda não conseguira violar, só as províncias do Decão, com o campo livre, lhe podiam garantir uma espécie de segurança.

     Como se vê, o governador tivera indícios do seu aparecimento na presidência, e a sua cabeça fora logo posta a prémio.

     Convém sempre notar que em Aurungabad, na classe superior, entre os magistrados, os oficiais, os funcionários, duvidava-se um pouco das informações obtidas pelo governador. Tantas eram já as vezes que se espalhava que o intangível Dandu-Pant fora visto e até apanhado! Tantas eram já as falsas notícias que tinham circulado a seu respeito, que se formara uma espécie de legenda sobre o dom de ubiquidade de que o nababo era dotado e da sua habilidade em iludir os mais hábeis agentes de polícia. Entre a plebe, porém, é que não se duvidava.

     Como era natural, no número dos menos incrédulos figurava o antigo prisioneiro do nababo.

     Aquele pobre diabo do indiano, engodado pelo prémio, animado além disso por uma necessidade de vingança pessoal, não pensava noutra coisa senão em sair a campo, e considerava como seguro o êxito.

     Era muito simples o plano que formara.

     Tencionava, logo no dia seguinte, oferecer os seus serviços ao governador; em seguida, depois de colher o que se sabia com exactidão a respeito de Dandu-Pant, isto é, quais os fundamentos sobre que se baseava o edital, dirigir-se-ia ao próprio local onde o nababo fora descoberto.

     Por volta das onze da noite, depois de ter ouvido tantos boatos diversos, que, ao mesmo tempo que se lhe baralhavam no espírito, o fortaleciam nos seus planos, o indiano tratou finalmente de ir descansar um pouco.

     Tinha por morada apenas um barco amarrado nas margens do Dudhma, e dirigiu-se para aquele lado cismando, com os olhos meio cerrados.

     Sem que o suspeitasse, era seguido pelo faquir. Este não lhe largava a pista, mas de modo que não lhe despertava a atenção, e não saindo nunca do escuro.

     Para o extremo do populoso bairro de Aurungabad, as ruas eram menos animadas àquela hora.

     A sua principal artéria terminava nuns terrenos incultos, cuja orla extrema formava uma das margens do Dudhma.

     Atravessavam-na ainda alguns retardatários, não sem pressa, reentrando nas zonas mais frequentadas.

     Não tardou que se ouvisse o ruído dos últimos passos, mas o indiano não reparava que era o único que seguia pela beira do rio.

     O faquir não o largava e escolhia os sítios imersos na escuridão, ocultando-se umas vezes com as árvores, outras costeando as paredes sombrias das casas arruinadas, que se erguiam de distância em distância.

     Não era inútil a precaução. Acabava de nascer a Lua, que espalhava uma vaga claridade na atmosfera.

     O indiano poderia ter notado que era espiado e até seguido de perto.

     Quanto a ouvir passos do seu inimigo, ser-lhe-ia isso impossível.

     O faquir, descalço, não andava, deslizava.

     Nenhum ruído denunciava a sua presença na margem do Dudhma.

     Decorreram assim cinco minutos.

     O indiano resolvera regressar, por assim dizer, à miserável barca onde costumava passar a noite.

     Não podia explicar-se de outro modo a direcção que levava.

     Ia como homem costumado a percorrer todas as noites aquele lugar deserto. Absorvia-o o pensamento do passo que tencionava dar no dia seguinte.

     A esperança de se vingar do nababo, que não fora humano com os seus prisioneiros, juntamente com a feroz «cobiça do prémio» em perspectiva, tornavam-no a um tempo cego e surdo.

     Não tinha, por isso, a consciência do perigo que as suas palavras imprudentes lhe faziam correr.

     Não viu o faquir aproximar-se dele pouco a pouco.

     Mas, de repente, um homem saltou-lhe em cima como um tigre, empunhando um objecto reluzente.

     Era um raio da Lua que cintilava na folha de um punhal malaio.

     Ferido no peito, o indiano caiu de chofre no chão.

     Apesar de ter sido vibrado o golpe com braço firme, não estava morto.

     Juntamente com uma golfada de sangue, soltaram-se-lhe dos lábios algumas palavras meio articuladas.

     O assassino curvou-se, agarrou na vítima, levantou-a, e, expondo em cheio o rosto ao luar, disse:

     - Conheces-me?

     - Ele! - murmurou o indiano.

     E o terrível nome do faquir ia ser a sua última palavra, quando expirou no meio de rápida sufocação.

     Um momento depois, o corpo do indiano desaparecia na corrente do Dudhma, que jamais o devia restituir.

     O faquir esperou que as águas sossegassem. Em seguida voltou pelo mesmo caminho, tornou a atravessar os terrenos incultos, os bairros onde começava a reinar a solidão, e a passo rápido dirigiu-se para uma das portas da cidade.

     Mas essa porta acabavam de a fechar no momento em que ali chegou.

     Alguns soldados do exército real ocupavam o posto que lhe defendia a entrada.

     O faquir não podia, como era sua intenção, sair de Aurungabad.

     - Pois é preciso que saia esta noite mesmo... ou nunca mais sairei!... –murmurou.

     Retrocedeu, tomou pelo caminho de circunvalação, andou uns duzentos passos, trepou pelo talude e chegou à parte superior da trincheira.

     O alto da muralha ficava a uns cinquenta pés acima do nível do fosso, cavado entre a escarpa e a contra-escarpa.

     Era uma muralha a prumo, sem saliências nem asperezas que proporcionassem algum ponto de apoio.

     Parecia absolutamente impossível que alguém deslizasse pelo revestimento exterior.

     Só com uma corda se poderia efectuar a descida, mas o cinto que o faquir trazia em volta de si apenas media alguns pés, e não lhe permitia chegar à base do talude.

     Parou por um momento, olhou em roda, e reflectiu.

     Pela parte superior da trincheira boiavam algumas comas de verdura, pertencentes ao arvoredo que rodeia Aurungabad como de um cinto vegetal.

     Das comas penduravam-se compridos ramos, flexíveis e resistentes, que se poderiam talvez utilizar para chegar, não sem grande risco, ao fundo do fosso.

     Assim que esta ideia lhe ocorreu, o faquir não hesitou um momento.

     Meteu-se logo por baixo de um dos domos de verdura, e desapareceu pelo lado de fora da muralha, suspenso da parte superior de um ramo, que pouco a pouco ia vergando sob o seu peso.

     Assim que o ramo se curvou o suficiente para roçar na ameia, o faquir deixou-se deslizar lentamente, como se tivesse entre as mãos uma corda de nós.

     Pôde por esta maneira descer até meia altura da escarpa, mas separavam-no ainda do solo uns trinta pés.

     Achava-se, pois, suspenso, a todo o comprimento dos braços, balouçando, procurando com o pé alguma fenda que lhe servisse de ponto de apoio...

     De súbito, sulcaram a escuridão muitos clarões.

     Várias detonações soaram.

     O fugitivo fora descoberto pelos soldados da guarda.

     Tinham feito fogo sobre ele, mas sem conseguirem alcançá-lo.

     Contudo, uma bala bateu duas polegadas acima da sua cabeça, no ramo que o sustentava, e cortou-o em parte.

     Passados vinte segundos, o ramo quebrava-se e o faquir caía no fosso... Outro qualquer morreria; ele estava são e salvo.

     Levantar-se, tornar a subir o talude da contra-escarpa, no meio de um segundo chuveiro de balas, que o não alcançaram, desaparecer na escuridão, foi um brinquedo para o fugitivo.

     Duas milhas adiante, sem que dessem por ele, passava próximo do alojamento das tropas inglesas, acampadas fora de Aurungabad.

     A duzentos passos daqui, parava, voltava-se, erguia na direcção da cidade a mão mutilada e proferia estas palavras:

     Desgraçados dos que caírem em poder de Dandu-Pant! Ingleses, ainda não destes cabo de Nana Sahib!

     Nana Sahib! Este nome de guerra, o mais terrível daqueles a quem a revolta de 1857 dera sangrenta nomeada, acabava o nababo de o lançar mais uma vez, como supremo desafio, aos conquistadores da índia!

   

    O Coronel Munro

      - Então, meu caro Maucler, não me fala da minha viagem? perguntou-me o engenheiro Banks. Dir-se-á que ainda não saiu de Paris! Que lhe parece a índia?

     Eu respondi:

     - A índia! Mas para lhe falar dela com algum acerto, era preciso ao menos que a tivesse visto.

     - Ora essa! - retorquiu o engenheiro. - Pois não acaba de atravessar a península de Bombaim a Calcutá, e só sendo cego...

     - Não sou cego, amigo Banks, mas durante a jornada tiraram-me a vista...

     - Tiraram-lhe a vista?...

     - Sim, tiraram-me a vista com o fumo, com o vapor, com a poeira e, mais ainda, com a rapidez do transporte. Não quero falar mal dos caminhos de ferro, porque o ofício de Banks é construí-los, mas calafetar-se uma pessoa no compartimento de um vagão, ter unicamente por campo visual o vidro das portinholas, correr noite e dia com uma velocidade média de vinte milhas por hora, umas vezes sobre viadutos, em companhia das águias ou dos gipaetos, outras sob túneis, na companhia dos arganazes e dos ratos, só parar nas estações, as quais se parecem todas umas com as outras, não ver das cidades senão o exterior das muralhas, ou o alto dos minaretes, perpassar no meio da incessante confusão do ruído da locomotiva, dos silvos da caldeira, do ranger dos carris e do gemer dos freios, será isto viajar?

     - Falou muito bem! - exclamou o capitão Hod. - Responda a isso, se pode, Banks! O que pensa, meu coronel?

     O coronel, a quem o capitão Hod acabava de se dirigir, inclinou levemente a cabeça, e limitou-se a responder:

     - Estou com curiosidade de saber o que Banks vai replicar ao nosso hóspede, Senhor Maucler.

     - Não me colocam no mais pequeno embaraço as palavras de Maucler respondeu o engenheiro, e confesso que tem razão em todos os pontos.

     - Nesse caso - exclamou o capitão Hod -, porque é que o senhor constrói caminhos de ferro?

     - Para que o capitão possa ir de Calcutá a Bombaim em sessenta horas, quando tiver pressa.

     - Nunca tenho pressa!

     - Nesse caso, tome a estrada do Great Trunk - volveu o engenheiro. - Tome-a, Hod, e vá a pé!

     - É isso mesmo que tenciono fazer.

     - Quando?

     - Quando o meu coronel estiver disposto a acompanhar-me numa bonita caminhada de oitocentas a novecentas milhas através da península!

     O coronel limitou-se a esboçar um sorriso e recaiu numa dessas longas meditações das quais os seus amigos, entre outros o engenheiro Banks e o capitão Hod, só muito dificilmente o faziam sair.

     Havia um mês que eu chegara à índia, e porque tomara a via férrea chamada a Great Indian Peninsular, que liga Bombaim com Calcutá por Allahabad, nada absolutamente conhecia da península.

     A minha tenção era percorrer primeiramente a parte setentrional daquelas regiões além do Ganges, visitar as grandes cidades, estudar os principais monumentos e dedicar a esta exploração todo o tempo necessário para que ela fosse completa.

     Conhecera em Paris o engenheiro Banks.

     Ligava-nos, havia anos, uma amizade que não podia deixar de se ir arreigando, graças a uma intimidade muito profunda.

     Eu tinha-lhe prometido vir vê-lo a Calcutá, logo que o acabamento da secção de Scind Punjab and Deli, de que ele se achava encarregado, o deixasse livre.

     Ora, os trabalhos estavam concluídos. Banks tinha direito a um descanso de muitos meses, e eu viera pedir-lhe que descansasse fatigando-se a correr a índia.

     Se aceitara ou não com entusiasmo a minha proposta, é escusado dizê-lo.

     Por isso devíamos pôr-nos a caminho, dentro de algumas semanas, assim que a estação nos fosse favorável.

     Por ocasião da minha chegada a Calcutá, no mês de Março de 1867, Banks fizera-me travar conhecimento com um dos seus valentes camaradas, o capitão Hod; em seguida apresentara-me ao seu amigo o coronel Munro, em casa do qual tínhamos vindo passar a noite.

     O coronel, então com a idade de quarenta e sete anos, morava numa casa um pouco isolada, no bairro Europa, e por conseguinte fora do movimento que caracteriza a cidade comercial e a cidade negra de que se compõe na realidade a capital da índia.

     O bairro do coronel fora chamado outrora a «Cidade dos Palácios», e com efeito não faltam nela os palácios, se uma tal denominação se pode aplicar a habitações que só têm de palácios os pórticos, as colunas e os terraços.

     Calcutá é o ponto de reunião de todas as ordens arquitectónicas, que o gosto inglês geralmente escolhe e aproveita de entre as diversas ordens de todas as cidades dos dois mundos.

     Pelo que dizia respeito à residência do coronel, era o bungalow com toda a sua simplicidade, uma habitação levantada sobre um rodapé de tijolos, constando de um andar apenas, coberto com um telhado em forma de pirâmide.

     Circundava-a uma verandah ou varangue, sustentada por ligeiras colunatas.

     Dos lados, cozinhas, cavalariças, quartos dos criados, formavam duas asas.

     Isto tudo compreendia-se dentro de um jardim ornado de belas árvores e cingido de muros pouco elevados.

     A casa do coronel era a de um homem que vive muito bem.

     Tinha criadagem numerosa, tanto quanto o comporta o serviço das famílias indo-inglesas.

     Mobília, material, disposições interiores e exteriores, tudo se encontrava nos seus devidos lugares.

     Conhecia-se que a mão de uma mulher inteligente presidira àqueles diversos arranjos e deixara deles a tradição, mas também se conhecia que essa mulher já ali não devia estar.

     Quanto à direcção da criadagem, ao governo da casa, o coronel deixara isso inteiramente entregue a um dos seus companheiros, um escocês, um condutor do exército real, o sargento Mac Neil, com o qual fizera todas as campanhas da índia, um desses belos corações que parecem bater no peito daqueles a quem se dedicam.

     Era um homem de quarenta e cinco anos, alto, vigoroso, usando a barba toda como os escoceses das montanhas.

     No aspecto e na fisionomia, assim como no trajo tradicional, ficara um montanhês de corpo e alma, apesar de haver deixado o serviço militar ao mesmo tempo que o coronel Munro.

     Ambos haviam saído da actividade depois de 1860.

     Mas em vez de regressarem aos glens do país natal, para o meio dos velhos clãs dos seus antepassados, tinham ficado na índia, e viviam em Calcutá, numa espécie de solidão e reserva que carecem de explicação.

     Quando Banks me apresentou ao coronel Munro, fez-me apenas uma recomendação:

     - Não aluda nunca à revolta dos sipaios, e sobretudo não profira o nome de Nana Sahib!

     O coronel Edward Munro pertencia a uma antiga família da Escócia, cujos antepassados se distinguiam na história do Reino Unido.

     Contava entre os seus avós aquele Sir Hector Munro, que comandava o exército de Bengala em 1760, e que teve precisamente de dominar um levantamento, que os sipaios, um século depois, haviam de repetir por sua conta.

     O major Munro reprimiu a revolta com despiedade enérgica, e não hesitou em amarrar, no mesmo dia, vinte e oito revoltosos à boca das peças, suplício espantoso, muitas vezes renovado durante a insurreição de 1857, e cujo terrível inventor fora o avô do coronel.

     Na época em que os sipaios se revoltaram, o coronel Munro comandava o 93.º Regimento de Infantaria escocesa do exército real.

     Fez quase toda a campanha às ordens de Sir James Outram, um dos heróis daquela guerra, aquele que soube granjear o epíteto do «Bayard do exército das índias», como o proclamou Sir Charles Napier.

     O coronel Munro esteve pois com ele em Cawnpore; tomou parte na segunda campanha de Colin Campbell, na índia; figurou no cerco de Lucknow, e não deixou aquele ilustre soldado senão quando ele foi nomeado, em Calcutá, membro do conselho da índia.

     Em 1858, o coronel Sir Edward Munro era cavaleiro da Estrela da índia, «the Star of India (K. C. S. I.)». Fizeram-no baronete, e sua mulher ter-se-ia intitulado Lady Munro (1) se, em 27 de Junho de 1857, a infeliz não perecesse na horrível carnificina de Cawnpore, a carnificina executada à vista e por ordem de Nana Sahib.

     Lady Munro os amigos do coronel não lhe davam outro nome era adorada pelo marido.

     Contava apenas vinte e sete anos quando desapareceu juntamente com as duzentas vítimas daquela abominável mortandade.

     Mistress Orr e Miss Jackson haviam sobrevivido, uma ao marido, outra ao pai.

     Quanto a Lady Munro, não tinha podido ser restituída ao coronel Munro.

     Não fora possível encontrar e dar sepultura cristã aos seus restos, confundidos com os de tantas outras vítimas no poço de Cawnpore.

     Desesperado, Sir Edward Munro não teve senão um pensamento, um só: encontrar Nana Sahib, que o Governo inglês fazia procurar por toda a parte, e saciar, com a sua vingança, uma espécie de sede de justiça que o devorava.

     Para ter inteira liberdade de acção retirou-se do serviço.

     O sargento seguiu-o em todos os passos e diligências.

     Animados das mesmas ideias, vivendo para o mesmo intuito, aspirando ao mesmo fim, os dois lançaram-se no seguimento de todas as pistas, recolheram todos os vestígios, mas não foram mais felizes que a polícia anglo-indiana.

     O Nana escapou a todas as suas pesquisas.

     Após três anos de infrutíferos esforços, o coronel e o sargento tiveram de, provisoriamente, suspender todas as investigações.

     Depois, por aquele tempo, correra na índia o boato da morte de Nana Sahib, e daquela vez com tais visos de verdade que excluía toda a dúvida.

     Sir Edward Munro e Mac Neil voltaram então a Calcutá, onde se instalaram no bungalow isolado.

     Sem nunca sair de casa, sem nunca ler jornais ou livros, que lhe poderiam avivar lembranças da sangrenta época da insurreição, o coronel vivia como homem cuja existência não se dirige a um fim.

     Contudo, não o largava a recordação da mulher.

     Parecia que o tempo não tinha acção sobre ele, que não lhe podia minorar as saudades.

     Devemos acrescentar que a notícia do reaparecimento do Nana não chegara ao conhecimento do coronel.

     E foi uma fortuna, porque ele teria logo deixado o bungalow.

     De tudo isto me informara Banks antes de me apresentar naquela casa, donde fora para sempre banida toda a alegria.

     Eram estas as razões por que se devia evitar toda a alusão à revolta dos sipaios e ao mais cruel dos seus chefes, Nana Sahib.

     Só dois amigos dois amigos a toda a prova frequentavam assiduamente a casa do coronel. Eram o engenheiro Banks e o capitão Hod.

     Como já disse, Banks acabava de concluir os trabalhos de que fora incumbido para a construção do caminho de ferro Great Indian Peninsular.

     Era um homem de quarenta e cinco anos, em toda a força da idade.

     Devia tomar parte activa na construção do caminho de ferro de Madrasta, destinado a ligar o golfo arábico com a baía de Bengala.

     Não era, porém, provável que os trabalhos pudessem começar antes de um ano.

     Descansava pois em Calcutá, ocupando-se entretanto de diversos projectos de mecânica, porque era um espírito activo e fecundo, constantemente em busca de novos inventos.

     Todo o tempo que lhe sobrava das suas ocupações consagrava-o ao coronel, a quem o ligava uma amizade de vinte anos.

     Por isso, quase todas as suas noites se passavam na varanda do bungalow, em companhia de Sir Edward Munro e do capitão Hod, que acabava de obter uma licença de dez meses.

     Hod, que pertencia ao 1.º Esquadrão dos Carabineiros do exército real, fizera toda a campanha de 1857-1858, primeiramente com Sir Colin Campbell no Ude e no Rohilkhande, depois com H. Rose, na índia central, campanha que só terminou pela tomada de Gwalior.

     O capitão Hod, educado na rude escola da índia, um dos membros distintos do Clube Madrasta, de cabelos e barba ruivos, não tinha mais de trinta anos.

     Apesar de pertencer ao exército real, tomá-lo-iam por um oficial do exército indígena, tanto se indianizara durante a sua permanência na península.

     Se ali houvesse nascido, não seria mais indiano.

     É que a índia figurava-se-lhe o país por excelência, a terra prometida, o único país onde o homem podia e devia viver.

     É que efectivamente ali é que ele encontrava ocasião de satisfazer as suas tendências.

     Soldado por temperamento, renovavam-se constantemente as ocasiões de se bater.

     Caçador inveterado, não estava no país onde a natureza parece ter reunido os animais ferozes da criação, todo o género de caça dos dois mundos?

     Alpinista resoluto, não tinha à mão a formidável cordilheira do Tibete, que compreende os mais altos cumes do Globo?

     Viajante intrépido, quem lhe impedia de pôr o pé onde ainda ninguém o tinha posto, nas inacessíveis regiões da fronteira do Himalaia?

     Amador exaltado de corridas de cavalos, faltavam lhe acaso os hipódromos da índia, que a seus olhos valiam os da Marche ou de Epsom?

     Neste mesmo assunto, ele e Banks estavam em perfeito desacordo.

     O engenheiro, na sua qualidade de verdadeiro mecânico, só se interessava muito mediocremente nas proezas hípicas dos Gladiator e das Fille-de-l’air.

     Um dia até, como o capitão Hod muito apertasse com ele a esse respeito, Banks respondeu-lhe que na sua opinião, as corridas só seriam verdadeiramente interessantes dada uma condição.

     - Qual? - perguntou Hod.

     - Estabelecer-se bem positivamente - respondeu Banks, muito a sério - que o último jóquei a chegar à meta fosse imediatamente fuzilado junto ao poste da partida.

     - É uma ideia!... - exclamou o capitão Hod com simplicidade.

     E ele era, sem dúvida alguma, muito capaz de correr em pessoa aquele risco!

     Tais eram os dois assíduos comensais do bungalow de Sir Edward Munro.

     O coronel gostava de os ouvir discutir sobre todas as coisas, e as suas eternas discussões faziam-no às vezes sorrir.

     Um desejo comum naqueles dois excelentes companheiros era arrastar o coronel a alguma viagem que o pudesse distrair.

     Já por vezes lhe haviam proposto que fosse passar alguns meses nos arredores desses sanitarium,, onde a sociedade abastada anglo-indiana costuma refugiar-se durante a quadra dos calores.

     O coronel recusara-se sempre a isso.

     Quanto à viagem que eu e Banks tencionávamos empreender, já o havíamos sondado a esse respeito.

     Naquela mesma noite voltou o assunto à discussão.

     Como se viu, o capitão Hod falava nada menos do que em fazer a pé uma grande excursão ao norte da índia.

     Se Banks não gostava de cavalos, Hod não gostava de caminhos de ferro.

     Eram parceiros no jogo.

     O meio termo seria inquestionavelmente viajar ou de carruagem, ou de palanquim, à sua vontade, às horas que lhes aprouvesse, coisa fácil nas grandes estradas bem traçadas e bem conservadas do Indostão.

     - Não me falem dos seus carros e bois, dos seus zebus de corcovas! - exclamou Banks. - Se não fôssemos nós, estariam os senhores ainda com os seus veículos primitivos, que já ninguém queria há quinhentos anos na Europa!

     Ora essa, Banks - retorquiu o capitão Hod -, valem bem os seus vagões estofados e os seus Crampton. Bois grandes, brancos, que sustentam perfeitamente o galope, e que se substituem nas mudas de posta de duas em duas léguas...

     - E que puxam uma espécie de baús de quatro rodas, onde uma pessoa é sacudida mais rudemente do que os pescadores nos seus barcos, num mar revolto!

     - Pois não falemos nessas carrimónias, Banks - redarguiu o capitão Hod. - Mas não temos nós carruagens a dois, três e quatro cavalos, que podem rivalizar em velocidade com os seus comboios de funérea reputação? Eu preferia o simples palanquim...

     - Os seus palanquins, capitão Hod, verdadeiros esquifes de seis pés de comprido, quatro de largo, onde uma pessoa vai estendida como se fosse um cadáver!...

     - Pois irá, Banks, mas não há abalos ou solavancos. Pode-se ler, pode-se escrever, pode-se dormir à vontade, sem se ter de acordar em cada estação. com um palanquim de quatro ou seis gamais (2) bengalis, fazem-se ainda quatro milhas e meia por hora, e, ao menos, como nos vossos desapiedados expressos, não corre a gente o risco de chegar ao seu destino, mesmo antes de haver partido... e isso, quando se chega!

     - O melhor digo eu então seria um indivíduo levar a casa consigo.

     - Como o caracol! - exclamou Banks.

     - Meu amigo, um caracol que pudesse sair e entrar na casca quando lhe apetecesse, não seria muito digno de dó! Viajar numa casa, numa casa que rodasse, era talvez o último progresso em questão de viagens.

     - A isso - acudiu o coronel Munro -, a isso não digo nada. Deslocar-se o viajante conservando-se contudo na sua casa, levar consigo o lar doméstico e todas as recordações que o compõem, variar sucessivamente o seu horizonte, modificar os seus pontos de vista, a sua atmosfera, o seu clima, sem mudar em coisa alguma a sua vida... sim, a isso não digo...

     - Acabavam-se esses bungalows destinados aos viajantes - disse o capitão Hod -, onde o conforto deixa sempre a desejar, e nos quais não se pode permanecer sem licença da administração local.

     - Acabavam-se as detestáveis estalagens, onde, moral e fisicamente, se é esfolado de todas as maneiras! - exclamei eu, não sem alguma razão.

     - O carro dos saltimbancos - exclamou o capitão Hod -, mas o carro modernizado! Que ideal! Parar uma pessoa quando quiser, pôr-se a caminho quando lhe apetecer, ir a passo se gostar de espairecer, galopar logo que o deseje, levar consigo não só o quarto de dormir, mas o salão, a casa de jantar, o gabinete de fumar, e principalmente a cozinha e o cozinheiro, aí é que está o progresso, amigo Banks! É cem vezes superior aos caminhos de ferro! Atreva-se a desmentir-me, senhor engenheiro, atreva-se!

     - Alto! Amigo Hod - redarguiu Banks -, seria inteiramente do seu parecer se...

     - Se o quê!... - perguntou o capitão, meneando a cabeça.

     - Se, na sua ascensão para o progresso, não parasse repentinamente a meio caminho.

     - Há então coisa melhor ainda?

     - Veja. Acha a casa ambulante muito superior ao vagão, mesmo ao vagão-salão, mesmo ao sleeping-car dos caminhos de ferro Tem razão, meu capitão, se podemos perder tempo, se viajamos por divertimento, não para negócio. Parece-me que a tal respeito estamos todos de acordo?

     - Todos - respondi.

     O coronel Munro baixou a cabeça em sinal de afirmação.

     - Fica isto - assente tornou Banks. - Continuo, pois. Os senhores dirigiram-se a um construtor de carros que acumula as funções de arquitecto, e ele construiu-lhes a sua casa ambulante. Ei-la, bem apropriada, bem compreendida, satisfazendo todas as exigências de um amigo da comodidade. Não é muito alta, o que lhe evitará as quedas, nem muito larga, para que possa ir por todos os caminhos; é engenhosamente suspensa, para que os movimentos sejam fáceis e suaves. Muito bem, muito bem! Foi construída pelo nosso amigo coronel, suponho. Ofereceu-nos nela hospitalidade. Se quiserem, vamos visitar as regiões setentrionais da índia, à maneira de caracóis, mas caracóis a quem a cauda não prende inseparavelmente à casca. Pronto, tudo! Nada se esqueceu... nem o cozinheiro, nem a cozinha, a que o capitão dá tanto apreço. É chegado o dia de partir, vamo-nos pôr a caminho. All right!... E quem é, meu excelente amigo, que há-de puxar a sua casa ambulante?

     - Quem? - exclamou o capitão Hod. - Ora, mulas, cavalos, burros, bois!...

     - Às dúzias? - perguntou Banks.

     - Elefantes - retrucou o capitão Hod -, elefantes! Eis o que seria majestoso e magnífico! Uma casa puxada por um tiro de elefantes, bem ensinados, de altivo aspecto, partindo, galopando, como os melhores cavalos do mundo!

     - Isso seria magnífico, capitão!

     - Um trem de rajá em campanha, meu engenheiro!

     - Sim, mas...

     - Mas... o quê! Temos ainda alguns mas! - exclamou o capitão Hod.

     - E um mas muito sério!

     - Ah! Estes engenheiros não servem senão para ver dificuldades em tudo!...

     - E para as vencer quando não são invencíveis - replicou Banks.

     - Então vença-as.

     - Venço-as, e eis como. Meu querido Munro, todos esses motores de que o capitão falou caminham, arrastam, puxam, mas também cansam. Depois, são manhosos; às vezes teimam, e sobretudo comem. Ora, à mais pequena falta de pasto, como não podem arrastar após si quaisquer trezentos acres de pastagens, o tiro pára, cansa, cai, morre de fome, a casa ambulante deixa de rodar, e fica tão imóvel como o bungalow onde agora discutimos. Segue-se, pois, que a dita casa não será prática senão no dia em que for uma casa a vapor.

     - Que deslize sobre carris - observou o capitão, encolhendo os ombros.

     - Não; sobre estradas - respondeu-lhe o engenheiro -, puxada por alguma locomotiva aperfeiçoada.

     - Bravo! - exclamou o capitão. - Bravo! Logo que a sua casa não rode sobre uma via férrea, e se possa dirigir a capricho, sem ter de seguir a sua imperiosa linha de ferro, conte comigo.

     - Mas - observei eu a Banks -, se mulas, jumentos, cavalos, bois, elefantes comem, também uma máquina come, e por falta de combustível pára no caminho.

     - Um cavalo-vapor - replicou Banks - equivale em força a três ou quatro cavalos de sangue e essa força ainda é susceptível de aumento. Um cavalo-vapor não está sujeito nem à fadiga nem à doença. com todo o tempo, em todas as latitudes, ao sol, à chuva, por baixo da neve, caminha sempre sem cansar. Não tem de recear os ataques das feras, a mordedura das serpentes, o ferrão dos mosquitos e de outros temíveis insectos. Não carece do aguilhão do carreiro, do chicote do condutor. Descansar, não precisa, passa sem dormir. Produto da mão do homem, considerado com relação ao seu fim e não se exigindo dele que sirva um dia para o assarmos no espeto, o cavalo-vapor é superior a todos os animais de tiro que a Providência pôs à disposição da humanidade. Um pouco de azeite ou de gordura, um pouco de carvão ou de lenha, é tudo quanto consome. Ora, os meus amigos bem o sabem, não são as florestas que faltam na península indiática, e a lenha pertence a todo o mundo!

     - Isso é que é falar bem - exclamou o capitão Hod.

     - Viva o cavalo-vapor! Parece que já estou a ver a casa ambulante do engenheiro Banks puxada pelas grandes estradas da índia, penetrando nos juncais, embrenhando-se nas florestas, aventurando-se nos covis dos leões, dos tigres, dos ursos, das panteras e dos lobos-tigres, e nós ao abrigo das suas paredes, e desforrando-nos com hecatombes de caça grossa, capazes de vexarem os Nemrod, os Anderson, os Gérard, os Pertuiset, os Chassaing do mundo! Ah! Banks, vem-me a água à boca, e essa sua ideia faz-me ter pena de eu não nascer daqui a uns cinquenta anos!

     - Mas porquê, meu capitão?

     - Porque daqui a cinquenta anos estará realizado o seu sonho, e far-se-á a sua casa a vapor.

     - Está feita respondeu com simplicidade o engenheiro.

     - Feita? E pelo meu amigo, talvez?!

     - Por mim, e só receio uma coisa: é que ela não saia superior ao que imaginam...

     - A caminho, Banks, a caminho! - exclamou o capitão, que se ergueu como impelido por uma descarga eléctrica.

     Estava pronto a partir. O engenheiro tranquilizou-o com um gesto. Em seguida, com voz mais grave, disse, dirigindo-se a Sir Edward Munro:

     - Edward, se puser uma casa ambulante à tua disposição, se daqui a um mês, quando a estação for conveniente, eu te vier dizer: «Eis o teu quarto, que se deslocará e irá aonde tu quiseres, eis os teus amigos, Maucler, o capitão Hod e eu, que não queremos outra coisa senão que nos acompanhes numa excursão ao Norte da índia», poderei contar que me respondas: “Partamos, Banks, partamos, e que o deus dos viajantes nos proteja»?

     - Sim, meus amigos - respondeu o coronel Munro -, depois de reflectir por um momento. Banks, ponho à tua disposição o dinheiro necessário. Cumpre a tua promessa! Traze-me essa casa a vapor ideal, que talvez exceda o ideal de Hod, e atravessaremos toda a índia!

     - Hurra! Hurra! Hurra! - exclamou o capitão Hod.

     - Pobre da caça grossa nas fronteiras do Nepal!

     Atraído pelos vivas do capitão, o sargento Mac Neil apareceu à porta.

     O coronel Munro disse-lhe:

     - Dentro de um mês, Mac Neil, partimos para o Norte da índia. Vais?

     - Por força, visto que o meu coronel também vai! - respondeu o sargento Mac Neil.

    

      1 - Uma mulher não titular que desposa um baronete ou um cavaleiro toma o título de lady, que antepõe ao nome do marido. Porém, este qualificativo de lady não pode preceder o nome de baptismo, porque em tais casos é unicamente reservado para as filhas dos pares.

      2 - São assim chamados os condutores de palanquim na índia.

   

    A Revolta dos Sipaios

     Poucas palavras farão sumariamente conhecer o que era a índia na época a que pertence esta narrativa, e mais particularmente o que foi a formidável revolta dos sipaios, cujos principais factos importa aqui referir.

     Foi em 1600, no reinado da rainha Isabel, em plena raça solar, na Terra Santa de Aryavarta, no meio de uma população de duzentos milhões de habitantes, dos quais cento e doze milhões pertenciam à religião hindu, que se fundou a muito respeitável Companhia das índias, conhecida pela alcunha inglesa de «Old John Company».

     Era ao princípio uma simples associação de comerciantes, que faziam comércio com as índias orientais, à testa da qual se colocara o duque de Cumberland.

     Por esse tempo, já o poderio português, que fora grande nas índias, começava a declinar.

     Aproveitando esta circunstância, os Ingleses tentaram um primeiro ensaio de administração política e militar, na presidência de Bengala, cuja capital, Calcutá, se ia tornar o centro do novo Governo.

     A primeira coisa que se fez foi mandar-se o 39.º Regimento ocupar a província.

     Desta circunstância é que provém a razão de este regimento trazer ainda na bandeira a seguinte divisa: Primus in Indus.

     Quase pela mesma época fundava-se uma companhia francesa, sob o patronato de Colbert.

     Tinha fim idêntico ao da companhia dos comerciantes de Londres.

     Desta rivalidade deviam originar-se conflitos de interesses.

     Seguiram-se, com efeito, vitórias e reveses, que ilustraram os Dupleix, os Labourdonnais, os Lally-Tollendal.

     Por fim, esmagados pelo número, os franceses tiveram de abandonar a Carnatica, isto é, a porção da península que compreende uma parte da margem oriental do Indostão.

     Lord Clive, desafrontado de concorrentes, nada já receando nem de Portugal nem da França (1), tratou de tornar mais sólida a conquista de Bengala, da qual Lord Hastings foi nomeado governador-geral.

     Uma administração hábil e perseverante empreendeu o sistema de reformas.

     Mas, a partir de então, a Companhia das índias, tão poderosa, tão absorvente até, era lesada directamente nos seus mais caros interesses.

     Alguns anos depois, em 1784, Pitt modificou-lhe novamente a carta primitiva. O ceptro da Companhia teve de passar para as mãos dos conselheiros da Coroa.

     Em resultado desta nova ordem de coisas, a Companhia ia perder, em 1813, o monopólio do comércio das índias e, em 1833, o monopólio do comércio da China.

     Se a Inglaterra não tinha de lutar contra associações estrangeiras na península, teve de sustentar guerras difíceis, já com os antigos possuidores do solo, já com os últimos conquistadores asiáticos daquele rico domínio.

     No tempo de Lord Cornwallis, em 1784, foi a luta com Tippo Sahib, morto em 4 de Maio de 1799, no último assalto do general Harris em Seringapatão. Foi a guerra com os Maratas, esse povo de raça superior, muito poderoso durante o século XVIII, e a guerra com os Pindarris, que ofereceram corajosa resistência. E, além disto, a luta com os Gurcas do Nepal, esses valentes montanheses, que, na dura provação de 1857, haviam de conservar-se fiéis aliados dos Ingleses.

     Finalmente, foi a guerra contra os Birmãs, de 1823 a 1824.

     Em 1828, os Ingleses estavam senhores directa ou indirectamente de grande parte do território.

     Com Lord William Bentinck inaugurou-se nova fase administrativa.

     Desde a regularização das forças militares da índia, o exército compreendera sempre dois contingentes muito distintos: o contingente europeu e o contingente nativo ou indígena.

     O primeiro formava o exército real, composto de regimentos de cavalaria, de batalhões de infantaria, e de batalhões de infantaria europeia ao serviço da Companhia das índias; o segundo compunha o exército nativo, compreendendo batalhões de infantaria e batalhões de cavalaria regulares, mas indígenas, comandados por oficiais ingleses.

     A isto havia a ajuntar uma artilharia, cujo pessoal, pertencente à Companhia, era europeu, com excepção de algumas baterias.

     Qual era o efectivo destes regimentos ou batalhões, que são indiferentemente nomeados desta maneira no exército real?

     Para a infantaria, mil e cem homens por batalhão no exército de Bengala e oitocentos a novecentos homens nos exércitos de Bombaim e de Madrasta; para a cavalaria, seiscentos cavalos em cada regimento dos dois exércitos.

     Em suma, em 1857, como o estabelece com precisão o Senhor Valbezen nos seus Novos Estudos sobre os Ingleses e a índia, obra muito notável, podia-se avaliar em duzentos mil homens de tropas indígenas e em quarenta e cinco mil homens de tropas europeias o total das forças das três presidências.

     Os sipaios, se bem que formavam um corpo regular, comandado por oficiais ingleses, não deixavam de ter suas veleidades de sacudir o duro jugo da disciplina europeia, que os conquistadores lhes impunham.

     Já em 1806, por inspiração talvez do filho de Tippo Sahib, a guarnição do exército nativo de Madrasta, aquartelado em Vellora, assassinara os guardas do 69.º Regimento do exército real, incendiara os quartéis, degolara os oficiais, fuzilara no próprio hospital os soldados doentes.

     Qual fora a causa desta rebelião, a causa aparente, pelo menos?

     Uma pretendida questão de bigodes, de toucado e de brincos.

     No fundo havia o ódio dos invadidos contra os invasores.

     Este primeiro levantamento foi prontamente sufocado pelas tropas reais aquarteladas em Ascot.

     Era uma razão deste género, um pretexto também, que devia ocasionar o primeiro movimento da revolta de 1857, revolta muito mais terrível, que talvez houvesse aniquilado o poder inglês na índia, se as tropas nativas das presidências de Madrasta e de Bombaim tivessem tomado parte nela.

     Mas, primeiro que tudo, deve-se muito claramente assentar que a revolta não foi nacional.

     É facto averiguado que os indianos dos campos e das cidades se separaram completamente do movimento.

     Além disso, a revolta limitou-se aos Estados semi-independentes da índia central, às províncias do Noroeste e ao reino de Ude.

     O Pendjab, com o seu regimento de três esquadrões do Cáucaso indiático, permaneceu fiel aos Ingleses.

     Conservaram-se também fiéis os Sikhs, esses artífices de casta inferior, que se distinguiram particularmente no cerco de Deli; os Gurcas, que o rajá de Nepal trouxe em número de doze mil ao cerco de Lucknow, e, finalmente, os marajás de Gwalior e de Pattyalah, o rajá de Rampore, a rani de Bhopal, fiéis às leis da honra militar, e, para empregar a expressão usada pelos naturais da índia, «fiéis ao sal».

     No começo da revolta, Lord Canning estava à testa da administração, na qualidade de governador-general.

     Este homem de Estado iludiu-se talvez quanto ao alcance do movimento.

     Havia já alguns anos que a estrela do Reino Unido visivelmente desmaiara no céu da índia.

     Em 1842, a retirada de Cabul vinha diminuir o prestígio dos conquistadores europeus. Durante a guerra da Crimeia o procedimento do exército inglês tão-pouco estivera à altura da sua reputação militar.

     Chegou por isso um momento em que os sipaios, muito ao facto do que se passava nas margens do mar Negro, se persuadiram de que uma revolta das tropas nativas seria bem sucedida.

     Demais, bastava uma faísca para inflamar os espíritos bem preparados, a quem os bardos, os brâmanes, os mulvis excitavam com as suas prédicas e os seus cânticos.

     O momento de que falámos ofereceu-se no ano de 1857, durante o qual o contingente do exército real tinha de ser um pouco reduzido em consequência de umas complicações externas.

     No princípio deste ano, Nana Sahib, ou, por outras palavras, o nababo Dandu-Pant, que residia perto de Cawnpore, dirigira-se a Deli, depois a Lucknow, com o fim, por certo, de promover o levantamento preparado havia muito.

     Efectivamente, pouco tempo depois da retirada de Nana, declarava-se o movimento insurreccional.

     O Governo inglês acabava de adoptar no exército indiano o uso da carabina «Enfield», a qual demanda o emprego de cartuchos engordurados.

     Um dia espalhou-se o boato de que a gordura era de vaca ou de porco, conforme o destino que os cartuchos tinham, ou para os soldados indianos ou para os soldados muçulmanos do exército indígena.

     Num país onde a população renuncia ao uso do sabão, porque pode entrar no seu fabrico a gordura de um animal vil ou sagrado, o emprego de cartuchos untados desta substância cartuchos que era preciso rasgar com a boca dificilmente havia de ser admitido.

     Perante as reclamações que se lhe fizeram, o Governo transigiu em parte, mas debalde modificou o manejo da carabina, debalde afiançou que as gorduras em questão não serviam para a confecção dos cartuchos: não conseguiu tranquilizar nem persuadir ninguém no exército dos sipaios.

     A 24 de Fevereiro, em Berampore, o 34.º Regimento recusa os cartuchos.

     No mês de Março é assassinado um ajudante, e o regimento, licenciado depois do suplício dos assassinos, vai espalhar de pronto pelas províncias próximas mais activo fermento de revolta.

     A 10 de Maio, em Mirat, um pouco ao norte de Deli, o 3.º, o 11.º e o 20.º Regimentos revoltam-se, matam os respectivos coronéis e vários oficiais do estado-maior, entregam a cidade ao saque e depois retiram sobre Deli.

     Ali. o rajá, um descendente de Timur, reúne-se-lhes. O arsenal cai em seu poder, e os oficiais do 54.º Regimento são degolados.

     A 11 de Maio, em Deli, o major Fraser e os seus oficiais são desapiedadamente assassinados pelos revoltosos de Mirat, no próprio palácio do comandante europeu, e no dia 16 de Maio quarenta e nove prisioneiros, homens, mulheres, crianças, caem sob o ferro dos algozes. A 20 de Maio, o 26.º Regimento, acantonado próximo de Lahore, mata o comandante do porto e um sargento europeu.

     Estava dado o sinal para horrorosas carnificinas.

     A 28 de Maio. em Nurabad, novas vítimas entre os oficiais anglo-indianos.

     A 30, nos quartéis de Lucknow, assassínio do brigadeiro comandante, do seu ajudante de campo e de muitos outros oficiais.

     A 31, em Bareilli, no Rohilkhande, morticínio de alguns oficiais, que, apanhados de surpresa, nem podem defender-se.

     Na mesma data, em Schah-Jahanpore, os sipaios assassinam o colector e um certo número de oficiais do 38.º Regimento e, no dia seguinte, para além de Barwar, assassínio dos oficiais, mulheres e crianças, que se tinham posto a caminho da estação de Sivapore, a uma milha distante de Aurungabad.

     Nos primeiros dias de Junho, em Bhopal, morticínio de uma parte da população europeia, e, em Jansi, sob a inspiração da terrível rani, despojada do seu poder, assassina, com requintes de uma crueldade sem exemplo, mulheres e crianças refugiadas no forte.

     A 6 de junho, em Allahabad, oito jovens caem aos golpes dos sipaios.

     A 14 de Junho, em Gwalipr, revolta de dois regimentos nativos e assassínio dos oficiais.

     No dia 27, em Cawnpore, primeira hecatombe de vítimas de todas as idades e de ambos os sexos, fuziladas ou afogadas, prelúdio do horroroso drama que havia de representar-se dali a seis semanas.

     Em Holkar, no dia 1.º de Julho, assassínio de trinta e quatro europeus, oficiais, mulheres, crianças, pilhagem, incêndio; em Ugow, no mesmo dia, assassínio do coronel e do ajudante do 23.º Regimento do exército real.

     A 15 do mesmo mês, segundo morticínio em Cawnpore. Naquele dia, muitas centenas de crianças e mulheres, e, entre elas, Lady Munro, são assassinadas, com uma crueza sem igual, por ordem do próprio Nana, que chamou em seu auxílio os carniceiros muçulmanos dos matadouros.

     Horrível mortandade, depois da qual os corpos foram lançados num dos poços, que ficou legendário.

     Em 26 de Setembro, numa praça de Lucknow, que se chama agora o «square das liteiras», grande número de feridos foram acutilados sem piedade e arremessados ainda vivos às chamas.

     E, finalmente, tantos outros morticínios isolados, nas cidades e no campo, que deram a esta insurreição um horrível carácter de atrocidade!

     A estes assassínios os generais ingleses trataram logo de responder com represálias inegavelmente necessárias, porque acabaram por espalhar o terror do nome inglês entre os insurgentes -, mas que foram na verdade horrendas.

     No começo da insurreição, em Lahore, o juiz supremo Montgomery e o brigadeiro Corbett tinham podido desarmar, sem derramamento de sangue, sob a ameaça de doze bocas de fogo e morrão aceso, os 8.º, 16.º, 26.º e 49.º Regimentos do exército indígena.

     Em Moultan, o 29.º e o 62.º Regimentos indígenas haviam-se também visto obrigados a render-se, sem poderem tentar uma resistência.

     Em Peschawar, os 24.º, 27.º e 51.º Regimentos foram desarmados pelo brigadeiro S. Colton e pelo coronel Nicholson, no momento em que a revolta ia rebentar. Tendo, porém, os oficiais do 51.º Regimento fugido para a montanha, as suas cabeças foram postas a preço, e dentro em pouco eram todas trazidas pelos montanheses.

    

     Era o princípio das represálias.

     Uma coluna comandada pelo coronel Nicholson foi então mandada em perseguição de um regimento indígena, que marchava na direcção de Deli.

     Não tardou que os revoltosos fossem alcançados, batidos, dispersos, e cento e vinte prisioneiros regressaram a Peschawar.

     Foram todos condenados à morte; mas só um de cada três havia de ser executado.

     Alinharam-se dez peças no campo de manobras, amarraram um prisioneiro a cada uma das bocas de fogo, e quatro vezes as dez fizeram fogo e cobriram a planície de restos mutilados e informes, no meio de uma atmosfera empestada pelo cheiro da carne queimada.

     Estes supliciados, segundo diz Valbezen, morreram quase todos com essa heróica indiferença que os indianos tão bem sabem conservar em face da morte.

     - Senhor capitão - disse para um dos oficiais que presidiam à execução um belo sipaio de vinte anos, afagando indolentemente com a mão o instrumento da morte -, senhor capitão, não é preciso amarrar-me; eu não pretendo fugir.

     Assim se realizou esta primeira e horrível execução, que devia ser seguida de tantas outras.

     Além disto, eis a ordem do dia que naquela data, em Lahore, o brigadeiro Chamberlain levava ao conhecimento das tropas indígenas, depois da execução de dois sipaios do 55.º Regimento:

    

     «Acabais de ver amarrar vivos à boca das peças e fazer em pedaços dois dos vossos camaradas; este castigo será o de todos os traidores. A vossa consciência vos dirá as penas que eles sofrerão no outro mundo. Os dois soldados foram executados pelo canhão e não pela forca, porque se quis evitar que os manchasse o contacto do carrasco e provar por este modo que o Governo, mesmo nestes dias de crise, nada quer fazer que possa contender com os vossos preconceitos de religião e de casta.»

    

     No dia 30 de Julho, mil duzentos e trinta e sete prisioneiros caíam sucessivamente diante do pelotão de execução; uns cinquenta escaparam ao último suplício, morrendo de fome e de asfixia na prisão onde os tinham encerrado.

     Em 28 de Agosto, de oitocentos e setenta sipaios que fugiram de Lahore, seiscentos e cinquenta e nove eram desapiedadamente assassinados pelos soldados do exército real.

     Em 23 de Setembro, depois da tomada de Deli, três príncipes da família real, o herdeiro presuntivo e os seus dois primos, rendiam-se sem condições ao general Hodson, que os conduziu com uma escolta de cinco homens apenas, em meio de uma multidão ameaçadora de cinco mil indianos um contra mil.

     E, apesar disso, Hodson, a meio caminho, fez parar o carro que conduzia os prisioneiros, subiu para junto deles, ordenou-lhes que descobrissem o peito, e matou-os a tiros de revólver.

     Esta sanguinolenta execução, pela mão de um oficial inglês, diz Valbezen, devia causar no Pendjab a maior estupefacção.

     Após a tomada de Deli, três mil prisioneiros pereciam na forca ou a tiro de canhão, e com eles vinte e nove membros da família real.

     É verdade que o cerco de Deli custara aos sitiantes dois mil cento e cinquenta e um europeus e mil seiscentos e oitenta e seis naturais.

     Em Allahabad houve horríveis carnificinas, não já entre os sipaios, mas entre as mais humildes classes da população, que se haviam quase inconscientemente associado ao saque, arrastadas por alguns fanáticos.

     Em Lucknow, a 16 de Novembro, dois mil sipaios, passados pelas armas em Sikander Bagh, juncavam com os seus cadáveres um espaço de cento e vinte metros quadrados aproximadamente.

     Em Cawnpore, após o morticínio, o coronel Neil obrigava os condenados, antes de os entregar à forca, a lamberem e a limparem com a língua, em proporção com a sua casta, cada nódoa de sangue que ficara nas casas onde as vítimas tinham perecido.

     Isto, para os indianos, era fazer preceder a morte pela desonra.

     Durante a expedição na índia central, as execuções dos prisioneiros foram contínuas, e sob o fogo da mosquetaria «desabavam no solo muralhas de carne humana!»

     Em 9 de Março de 1858, no ataque da Casa Amarela, por ocasião do segundo cerco de Lucknow, depois de uma horrível dizimação dos sipaios, parece averiguado que um destes infelizes foi queimado vivo pelos Sikhs, na presença dos próprios oficiais ingleses.

     No dia 11, cinquenta corpos de sipaios enchiam os fossos do palácio da begume em Lucknow, sem que um só ferido fosse poupado pelos soldados, que já não podiam conter o seu furor.

     Finalmente, em doze dias de combate, três mil naturais expiravam enforcados ou a tiro, e entre eles trezentos e oitenta fugitivos aglomerados na ilha de Hidaspe, que tinham conseguido fugir até Caxemira.

     Enfim, sem meter em conta os sipaios que foram mortos com as armas na mão, durante esta repressão desapiedada repressão em que não se admitiam prisioneiros, só na campanha de Pendjab não se enumeram menos de seiscentos e vinte e oito indígenas fuzilados ou amarrados à boca das peças por ordem da autoridade militar, mais mil trezentos e setenta por ordem da autoridade civil, e trezentos e oitenta e seis por ordem das duas autoridades.

     Tudo somado, no princípio do ano de 1859 calculava-se em mais de cento e vinte mil o número de oficiais e soldados naturais que pereceram e em mais de duzentos mil o dos indígenas civis que pagaram com a vida a sua participação, muitas vezes duvidosa, na insurreição.

     Terríveis represálias contra as quais, não sem razão, talvez, Gladstone energicamente protestou no parlamento de Inglaterra.

     Em razão da narrativa que se vai seguir, importava, tanto de um como do outro lado, fazer o apuramento desta necrologia.

     Assim era preciso, para fazer compreender ao leitor que insaciável ódio devia ficar fermentando, tanto no coração dos vencidos, sequiosos de vingança, como no dos vencedores, que passados dez anos ainda traziam luto pelas vítimas de Cawnpore e de Lucknow.

     Quanto aos feitos puramente militares de toda a campanha empreendida contra os rebeldes, abrangem eles as seguintes expedições, que vão ser sumariamente citadas.

     Em primeiro lugar, a primeira campanha do Pendjab, que custou a vida a John Lawrence.

     Veio depois o cerco de Deli, a capital da insurreição, reforçada por milhares de fugitivos, e no qual Maomet Schah Bahadur foi proclamado imperador do Indostão.

     Acabe com Deli! imperiosamente ordenara o governador-geral num último despacho ao comandante-chefe, e o cerco, principiado na noite de 13 de Junho, terminava em 19 de Setembro, depois de ter custado a vida aos generais Sir Harry Barnard e John Nicholson.

     Ao mesmo tempo, depois de Nana Sahib se ter feito proclamar peischwah e coroar na fortaleza de Bilhur, o general Havelock operava a sua marcha sobre Cawnpore.

     Entrava ali a 17 de Julho, mas muito tarde para impedir a última carnificina e apoderar-se do Nana, que pôde fugir com cinco mil homens e quarenta peças de artilharia.

     Feito isto, Havelock empreendia uma primeira campanha no reino de Ude, e a 28 de Julho passava o Ganges com mil e setecentos homens e dez peças apenas, dirigindo-se para Lucknow.

     Entraram então em cena Sir Colin Campbell e o major-general Sir James Outram.

     O cerco de Lucknow devia durar oitenta e sete dias, custar a vida a Sir Henry Lawrence e ao general Havelock.

     Em seguida, Colin Campbell, depois de se ver forçado a retirar sobre Cawmpore, de que definitivamente se apoderava, preparava-se para uma segunda campanha.

     A este tempo, outras tropas livraram Mohir, uma das cidades da índia central, e faziam uma expedição através do Malwa, que restabelecia a autoridade inglesa neste reino.

     No princípio de 1858, Campbell e Outram empreendiam nova campanha no Ude, com quatro divisões de infantaria, comandadas pelos majores-generais Sir James Outram e Sir Edward Lugar e pelos brigadeiros Walpole e Franks.

     A cavalaria estava sob o comando de Sir Hope Grant, as armas especiais sob os de Wilson e Robert Napier, isto é, cerca de vinte e cinco mil combatentes, aos quais se ia reunir o marajá do Nepal com doze mil gurcas.

     Mas o exército revoltoso da begume não contava menos de cento e vinte mil homens e a cidade de Lucknow setecentos a oitocentos mil habitantes.

     Deu-se o primeiro ataque a 6 de Março.

     A 16, depois de uma série de combates em que sucumbiram o capitão-de-mar-e-guerra Sir William Peel e o major Hodson, os Ingleses estavam de posse da cidade situada no Goumti.

     Apesar destas vantagens, a begume e seu filho resistiam ainda no palácio de Mousa-Bagh, na extremidade noroeste de Lucknow, e o Mulvi, chefe muçulmano, que se tinha refugiado no próprio centro da cidade, recusava render-se.

     Em 19, um ataque de Outram, e em 21, um combate feliz, asseguravam finalmente aos Ingleses plena posse daquele formidável reduto da insurreição dos sipaios.

     No mês de Abril, a revolta entrava na sua última fase. Dirigia-se uma expedição para o Rohilkhande, para onde se tinham encaminhado grande número de insurgentes fugitivos.

     Bareilli, capital do reino, foi logo o objectivo do chefe do exército real.

     Não foi feliz a estreia. Os Ingleses sofreram uma aparente derrota em Judgespore. O brigadeiro Adrien Hope foi morto. Mas no final do mês chegava Campbell, tomava Schah-Jahanpore e a 5 de Maio atacava Bareilli, incendiava a cidade em diversos pontos e apoderava-se dela, sem poder evitar que os rebeldes a evacuassem.

     Por esse tempo, na índia central abriam-se as campanhas de Sir Hugh Rose.

     Nos primeiros dias de Janeiro de 1858, este general marchava sobre Saungor, através do reino de Bhopal, livrava a guarnição a 3 de Fevereiro, tomava o forte de Gurakota dez dias depois, forçava os desfiladeiros da cordilheira dos Vindhyas, na garganta de Mandanpore, passava o Betwa, chegava diante de Jansi, defendida por onze mil revoltosos, sob as ordens da feroz rani, investia-a em 22 de Março debaixo de um calor tórrido, destacava dois mil homens do exército assaltante para impedir o caminho a vinte mil homens do contingente de Gwalior, conduzidos pelo famoso Tantia-Topi, destroçava este chefe rebelde, dava assalto à cidade em 2 de Abril, forçava a muralha, apoderava-se da cidadela, donde a rani conseguia escapar, encetava novas operações contra o forte de Calpi, onde a rani e o Tantia-Topi tinham resolvido morrer, assenhoreava-se do forte em 22 de Maio, após um heróico assalto, continuava a campanha em perseguição da rani e do seu companheiro, que se haviam lançado em Gwalior, e concentrava em 16 de Junho as suas duas brigadas, às quais se reunia um reforço do brigadeiro Napier, esmagava os revoltosos em Morar, submetia a praça em 18, e regressava a Bombaim, após uma campanha triunfal.

     Foi precisamente num encontro de avançadas, em frente de Gwalior, que a rani sucumbiu.

     Esta temível rainha, dedicada de corpo e alma ao nababo, a sua mais fiel companheira durante aquela temerosa insurreição, foi morta ali pelas próprias mãos de Sir Edward Munro.

     Nana Sahib sobre o cadáver de Lady Munro, em Cawnpore, o coronel sobre o cadáver de rani, em Gwalior, eram os dois homens em que se resumiam a revolta e a repressão, eram dois inimigos cujo ódio produziria terríveis efeitos se alguma vez se encontrassem frente a frente!

     Neste momento pode-se considerar vencida a revolta, salvo em algumas partes do reino de Ude.

     Por isso, a 2 de Novembro, Campbell entra novamente em campanha, apoderar-se das últimas posições dos insurgentes, obriga alguns chefes importantes a submeter-se.

     Contudo, um desses chefes, Beni Madho, não é aprisionado.

     Em Dezembro sabe-se que se refugiou num distrito limítrofe do Nepal.

     Afirma-se que se acham com ele Nana Sahib, Balão Rao, seu irmão, e a begume de Ude.

     Mais tarde, nos últimos dias do ano, corre o boato de que haviam ido procurar asilo na Rapti, no limite dos reinos do Nepal e de Ude.

     Campbell persegue-os vigorosamente, mas eles transpõem a fronteira.

     Só nos primeiros dias de Fevereiro de 1859 é que uma brigada inglesa, da qual um dos regimentos era comandado pelo coronel Munro, os pôde perseguir até o Nepal.

     Beni Madho é morto, a begume de Ude e seu filho são feitos prisioneiros e obtêm licença para residir na capital do Nepal.

     Quanto a Nana Sahid e a Balão Rao, muito tempo os julgaram mortos.

     Não estavam.

     Em todo o caso achava-se aniquilada a formidável insurreição.

     Tantia-Topi, entregue pelo seu tenente Man-Singh e condenado à morte, era executado em 15 de Abril, em Sipri.

     Este rebelde, «esta personagem verdadeiramente notável do grande drama da insurreição indiana, diz Valbezen, e que deu provas de um génio político todo de combinações e de audácia», morreu corajosamente no cadafalso.

     Não obstante, o termo desta revolução dos sipaios, que houvera custado a índia aos Ingleses se ela se tivesse alastrado por toda a península, e sobretudo se o movimento tivesse sido nacional, havia de ocasionar a queda da respeitável Companhia das índias.

     A direcção fora ameaçada com a demissão por Lord Palmerston logo no fim do ano de 1857.

     No 1.º de Novembro de 1858, uma proclamação, publicada em vinte línguas, anunciava que sua majestade Vitória Beatriz, rainha de Inglaterra, empunhava o ceptro da índia, da qual, anos depois, era coroada imperatriz.

     Foi obra de Lord Stanley.

     O título de governador substituído pelo de vice-rei, um secretário de Estado e quinze membros compondo o Governo central, os membros do conselho da índia tirados de entre pessoas estranhas ao serviço indiano, os governadores das presidências de Madrasta e de Bombaim nomeados pela rainha, os membros dos serviços indianos e os comandantes-chefes escolhidos pelo secretário de Estado, tais eram as principais disposições do novo Governo.

     Quanto às forças militares, o exército real conta hoje dezassete mil homens mais que antes da revolta dos sipaios, isto é, cinquenta e dois regimentos de infantaria, nove regimentos de atiradores, com uma artilharia considerável, contando cada regimento de cavalaria quinhentos cavalos e cada regimento de infantaria setecentas baionetas.

     O exército indígena compõe-se de cento e trinta e sete regimentos de infantaria e de quarenta regimentos de cavalaria. A sua artilharia é, porém, europeia, quase sem excepção.

     Tal é o estado actual da península sob o aspecto administrativo e militar; tal é o efectivo das forças que guardam um território de oitocentas mil léguas quadradas.

     «Os Ingleses diz muito acertadamente Monsieur Grandidier foram felizes em encontrar neste vasto e esplêndido país um povo dócil, industrioso, civilizado, e de há muito habituado a todos os jugos. Mas que tenham cuidado: a docilidade tem os seus limites, que o jugo não seja esmagador, ou as cabeças um dia erguem-se e acabam com ele.»

    

      1 - O que havia de recear de Portugal, dominado então pelos Espanhóis, que tratavam isto como país conquistado? Três nações, como três abutres, baixaram a cevar-se nos despojos do vencido leão dos séculos XV e XVI: Franceses, Ingleses e Holandeses. Destes ainda recuperámos depois algumas colónias; mas a índia, de que os Ingleses lançaram mão, essa é que nunca reconquistámos. (N. do T.)

   

    No fundo das cavernas de Ellora

     Era efectivamente verdade. O príncipe marata Dandu-Pant, o filho adoptivo de Baji Rao, peischwah de Punah, numa palavra, Nana Sahib talvez então o único sobrevivente dos chefes das revoltas dos sipaios -, pudera fugir do seu inacessível esconderijo do Nepal.

     Valente, audaz, habituado à provação dos perigos imediatos, hábil em iludir os seus perseguidores, profundo na arte de emaranhar os vestígios da fuga, excessivamente ardiloso, aventurara-se pelas próprias províncias do Decão, movido da inspiração sempre nova de um ódio que as terríveis represálias de 1857 não tinham feito senão decuplicar.

     Sim, era um ódio de morte que o Nana votara aos possuidores da índia.

     Era o herdeiro de Baji Rao, e quando o peischwah morreu, em 1851, a Companhia não quis continuar a dar-lhe a pensão de oito laques de rupias (Dois milhões de francos) a que tinha direito. Daqui uma das causas desse ódio, que devia acabar nos maiores excessos.

     Mas que esperava Nana Sahib?

     Havia oito anos que a revolta estava completamente vencida.

     O Governo inglês tomara pouco a pouco o lugar da respeitável Companhia das índias e mantinha toda a península sob uma autoridade muito mais forte que a da associação dos negociantes.

     Da rebelião já não restavam vestígios, nem sequer nas fileiras do exército indígena, inteiramente reorganizado sobre novas bases.

     Pretendia acaso o Nana fomentar um movimento nacional entre as classes inferiores do Indostão?

     Bem depressa serão conhecidos os seus projectos.

     Em todo o caso, o que ele não ignorava era que a sua presença tinha sido descoberta na província de Aurungabad, que o governador-geral tinha disso prevenido o vice-rei, que a sua cabeça estava posta a preço.

     O que era certo é que havia tido de fugir precipitadamente, e pensava em refugiar-se num asilo tão oculto que lhe permitisse escapar às buscas dos agentes da polícia anglo-indiana.

     Durante aquela noite de 6 para 7 de Março, Nana Sahib não perdeu uma hora.

     Conhecia perfeitamente o país. Resolveu alcançar Ellora, situada a vinte e cinco milhas de Aurungabad, a fim de ali se reunir a um dos seus cúmplices.

     Estava escura a noite.

     O falso faquir, depois de se certificar de que não era perseguido, dirigiu-se para o mausoléu, levantado a alguma distância da cidade, em honra do maometano Sha-Soufi, um santo cujas relíquias têm a reputação de operar curas medicinais.

     Mas tudo dormia então junto do mausoléu, padres e peregrinos, e o Nana pôde passar sem que o inquietasse nenhuma pergunta indiscreta.

     Não era, porém, tão profunda a escuridão que, quatro léguas mais ao norte, se não divisasse o contorno do morro de granito onde se ergue o forte inexpugnável de Daulutabad, morro da altura de duzentos e quarenta pés, situado no meio de uma planície.

     Ao avistá-lo, o nababo lembrou-se de que um dos imperadores do Decão, um dos seus antepassados, quisera fazer da cidade, outrora estabelecida na base daquele forte, a capital do seu império.

     E, com efeito, seria uma posição invencível, muito própria para centro de um movimento insurreccional naquela região da índia.

     Mas Nana Sahib voltou a cabeça e só teve um-olhar de ódio para aquela fortaleza, agora em poder dos seus inimigos.

     Passada aquela planície, apareceu uma região mais acidentada.

     Eram as primeiras ondulações de um solo que ia tornar-se montanhoso.

     Nana, ainda em todo o vigor da idade, não moderou o passo quando principiou a subir aquelas encostas tão íngremes.

     Queria fazer vinte e cinco milhas durante a noite, isto é, transpor a distância que separava Ellora de Aurungabad.

     Esperava descansar ali com toda a segurança.

     Por isso não fez alto, nem num caravansará franco para quem passasse, nem num bungalow meio arruinado, onde poderia dormir uma ou duas horas, na parte mais recôndita da montanha.

     Ao romper do Sol, a aldeia de Rauzah, que possui o túmulo, muito singelo, do maior dos imperadores mongóis, Aureng-Zeb, foi contornada pelo fugitivo.

     Chegara finalmente àquele célebre grupo de escavações que tomaram o nome da pequena aldeia vizinha de Ellora.

     A colina, onde foram abertos estes subterrâneos, em número de trinta, tem a forma de crescente.

     Quatro templos, vinte e quatro mosteiros búdicos, algumas grutas menos importantes, tais são os monumentos do grupo.

     A carreira de basalto foi largamente explorada pela mão do homem.

     Mas não foi para construir as obras-primas dispersas em todos os pontos da imensa superfície da península que os arquitectos indianos, nos primeiros séculos da era cristã, extraíram o basalto.

     Não. Aquelas pedras arrancaram-se unicamente para se formarem cavernas no maciço, e aquelas cavernas tornaram-se chaityas ou viharas, segundo o seu destino.

     Destes templos, o mais extraordinário é o dos Kaílas.

     Imagine-se uma grande mole da altura de cento e vinte pés e da circunferência de seiscentos.

     Com uma audácia incrível, aquela mole foi cortada da própria montanha, foi isolada no meio de um espaço de trezentos e sessenta pés de comprimento e de cento e oitenta e seis de largura, espaço que o ferro do trabalhador conquistou à própria carreira basáltica.

     Depois, desprendida esta massa granítica, os arquitectos entalharam-na, como o estatuário faz a um pedaço de marfim.

     No exterior acavalaram colunas, recortaram coruchéus, arredondaram cúpulas, pouparam quanto careciam para obter a saliência dos baixos-relevos, nos quais elefantes, maiores que o natural, parecem sustentar todo o edifício.

     Dentro reservaram uma vasta sala, rodeada de capelas, sala cuja abóbada assenta sobre colunas tiradas da massa total.

     Finalmente, deste monólíto fizeram um templo que não foi, no sentido rigoroso da palavra, «edificado», mas um templo único no mundo, digno de rivalizar com os edifícios mais maravilhosos da índia, e que não pode sequer ser comparado com os hipogeus do antigo Egipto.

     Este templo, agora quase abandonado, começou a ser atacado pela acção do tempo.

     Deteriora-se em certas partes.

     Os baixos-relevos alteram-se, como as paredes do maciço de onde foram tirados.

     Têm apenas mil anos de existência.

     Mas o que para as obras da natureza é somente a juventude, para as obras humanas é já caducidade.

     No rodapé lateral da esquerda já se tinham aberto algumas fendas profundas, e por uma dessas fendas, que a garupa de um dos elefantes de suporte ocultava em parte, é que Nana Sahib se enfiou, sem que ninguém pudesse suspeitar da sua chegada a Ellora.

     A fenda correspondia interiormente a um sombrio corredor, que atravessava o rodapé e ia profundando até à «cella» do templo.

     Nesse ponto abria-se uma espécie de cripta, ou, melhor dizendo, de cisterna, então seca, que servia de receptáculo às águas pluviais.

     Assim que Nana penetrou no corredor, assobiou de um modo particular.

     Respondeu-lhe um assobio idêntico. Não era um efeito do eco. Na escuridão brilhava uma luz.

     Apareceu no mesmo instante um indiano, com uma pequena lanterna na mão.

     - Nada de luz! - disse Nana.

     - És tu, Dandu-Pant? - retorquiu o indiano, que apagou logo a lanterna.

     - Sou eu, irmão!

     - Acaso?...

     - Primeiro quero comer - respondeu Nana -, depois conversaremos. Mas nem para comer nem para falar tenho precisão de luz. Agarra-me a mão e guia-me.

     O indiano pegou na mão de Nana, levou-o para o fundo da estreita cripta e ajudou-o a estender-se sobre um montão de ervas secas, de onde acabava de se levantar.

     O assobio do faquir interrompera-lhe o sono.

     Muito acostumado a girar naquele obscuro recinto, o indiano depressa encontrou algumas provisões: pão, uma espécie de pastel de mourghis, preparado com a carne de frangos, muito vulgares na índia, e uma cabaça com meio quartilho de licor violento conhecido pelo nome de araca. licor produzido pela destilação da seiva do coqueiro.

     O Nana comeu e bebeu sem proferir palavra.

     Morria de fome e de fadiga.

     Toda a sua vida se lhe concentrava então nos olhos, que brilhavam na escuridão como as pupilas dum tigre.

     Sem fazer um movimento, o indiano esperava que ao nababo conviesse tomar a palavra.

     Este homem era Balão Rao, o próprio irmão de Nana Sahib.

     Balão Rao, mais velho que Dandu-Pant, mas um ano apenas, parecia-se fisicamente com o irmão, quase a ponto de se confundirem ambos.

     Sob o aspecto moral, Balão Rao era tal qual Nana Sahib.

     O mesmo ódio aos Ingleses, a mesma astúcia nos projectos, a mesma crueldade na execução, a mesma alma em dois corpos.

     Durante todo o período da insurreição, os dois irmãos não se tinham separado.

     Após a derrota, dera-lhes asilo o mesmo acampamento da fronteira do Nepal.

     E agora, unidos sob o único pensamento de prosseguirem a luta, achavam-se ambos novamente dispostos a porem-se em acção.

     Depois de restaurar as forças com aquela refeição, devorada a toda a pressa, o Nana permaneceu algum tempo com a cabeça apoiada nas mãos.

     Julgando que o irmão queria refazer-se com algumas horas de sono, Balão Rao continuava silencioso.

     Mas Dandu-Pant, levantando a cabeça, agarrou-lhe na mão e exclamou com voz abafada:

     - Fui descoberto na presidência de Bombaim! A minha cabeça foi posta a preço pelo governador. Prometem-se duas mil libras a quem entregar Nana Sahib!

     - Dandu-Pant - exclamou Balão Rao -, a tua cabeça vale mais. Essa quantia seria, o muito, o preço da minha, e em menos de três meses dar-se-iam por muito felizes se apanhassem ambos por vinte mil!

     - Bem - replicou Nana -, daqui a três meses, em 23 de Junho, é o aniversário da batalha de Plassey, cujo centenário, em 1857, devia coincidir com o termo do domínio inglês e a emancipação da raça solar. Haviam-no predito os nossos profetas! Haviam-no cantado os nossos bardos! Daqui a três meses, irmão, terão decorrido cento e nove anos, e a índia continua esmagada pelo pé do invasor!

     - Dandu-Pant volveu Balão Rao -, o que não se conseguiu em 1857 pode e deve conseguir-se dez anos depois. Em 1827, 1837 e 1847 houve movimentos na índia! De dez em dez anos, os indianos experimentam acessos febris de revolta! Pois este ano hão-de curar-se da febre banhando-se em ondas de sangue europeu!

     - Que Brama nos guie murmurou o Nana -, e, então, suplício por suplício! Desgraçados dos chefes que não forem vítimas dos golpes dos nossos sipaios! Lawrence, Barnard, Hope, Napier, Hobson, Havelock, morreram! Porém, alguns sobreviveram!  Campbell e Rose vivem ainda, entre eles aquele a quem sobre todos odeio, o coronel Munro, o descendente do verdugo que foi o primeiro que fez amarrar os indianos à boca das peças, o homem que matou com a sua própria mão a minha companheira, a rani de Jansi! Caia ele em meu poder, e verá se esqueci os horrores do coronel Neil, as carnificinas de Sekander Bagh, as degolações do palácio da begume, de Bareilli, de Jansi, de Morar, da ilha de Hidaspe e de Deli. Verá se esqueci que jurou a minha morte, como eu jurei a sua!

     - Mas ele não deixou o serviço? - perguntou Balão Rao.

     - Oh! - respondeu Nana Sahib. - À primeira revolta que houver, voltará para o exército! Mas, se abortar o levantamento, irei apunhalá-lo no seu próprio bungalow de Calcutá.

     - Bem, e agora?...

     - Agora  é  preciso continuar a obra principiada. O movimento será nacional desta vez. Que os indianos se levantem nas cidades e no campo, e depressa os sipaios farão causa comum com eles. Percorri o centro e o norte do Decão. Encontrei por toda a parte os espíritos dispostos para a revolta. Não há cidade, não há aldeia onde não tenhamos chefes prontos a saírem a campo. Os brâmanes fanatizam o povo. Desta vez a religião arrastará os sectários de Xiva e de Vixnu! Na época aprazada, ao sinal convencionado, levantar-se-ão milhões de indianos, e o exército real será vencido!

     - E Dandu-Pant?... - perguntou Balão Rao, agarrando na mão do irmão.

     - Dandu-Pant - respondeu Nana - não será só o peischwah coroado na fortaleza de Bilhur! Será o soberano da terra sagrada das índias!

     Dito isto, Nana Sahib, com os braços cruzados, o olhar vago dos que contemplam, não já o passado ou o presente, mas o futuro, ficou silencioso.

     Balão Rao tinha o cuidado de não o interromper.

     Aprazia-lhe deixar aquela alma feroz inflamar-se com os seus próprios elementos, e, se tanto fosse preciso, ele ali estava para atear todo o fogo que lavrava no íntimo do irmão.

     Nana Sahib não podia ter um cúmplice mais estreitamente ligado à sua pessoa, um conselheiro que o incitasse com mais ardor à realização dos seus desígnios.

     Como já se disse, era outro Nana Sahib.

     Após alguns momentos de silêncio, o Nana ergueu a cabeça e volveu à consciência da situação em que se achava.

     - Onde estão os nossos companheiros? - perguntou.

     - Nas cavernas de Adjuntah, onde se combinou que nos esperassem respondeu Balão Rao.

     - E os nossos cavalos?

     - Deixei-os a um tiro de espingarda, na estrada que conduz de Ellora a Boregami.

     - É Ralagani quem toma conta deles?

     - Ele mesmo, irmão. Estão bem guardados, bem nutridos, bem descansados, e só esperam por nós para partir.

     - Partamos então - volveu Nana. - É preciso que antes do romper do dia nos achemos em Adjuntah.

     - E daí aonde vamos? - perguntou Balão Rao. - Não te contrariam os projectos esta fuga precipitada?

     - Não respondeu Nana Sahib. - Alcançaremos os montes Sautpurra, cujos desfiladeiros conheço e no meio dos quais posso desafiar as pesquisas da polícia inglesa. Demais, ali estaremos no território dos Bilhs e dos Gunds, que se têm conservado fiéis à nossa causa. Poderei esperar o momento favorável nessa guarida, no meio da montanhosa região dos Vindhyas, onde o fermento da revolta está sempre pronto a levedar.

     - A caminho! - redarguiu Balão Rao. - Ah!  Eles prometeram duas mil libras a quem se apoderasse de ti! Mas não basta pôr uma cabeça a preço, é preciso obtê-la.

     - Não a obterão - volveu Nana Sahib. - Vem daí sem perda de um instante, vem daí, irmão!

     Balão Rao caminhou a passo firme pelo estreito corredor que conduzia àquele escuro recinto, cavado sob o chão do templo.

     Quando chegou ao orifício oculto pela garupa do elefante de pedra, deitou a cabeça de fora com toda a prudência, procurou devassar a escuridão com o olhar para um e outro lado, verificou que estavam desertas as proximidades, e atreveu-se a sair.

     Para maior cautela, deu uns vinte passos pela avenida que se desdobrava no sentido do eixo do templo; depois, como não descobrisse coisa alguma suspeita, deu um assobio, indicando a Nana que o caminho estava livre.

     Passados instantes, os dois irmãos deixavam este vale artificial, do comprimento de meia légua, que é todo perfurado de galerias, de abóbadas, de escavações, em certos lugares sobrepostas até grande altura.

     Evitaram passar perto daquele mausoléu maometano que serve de bungalow aos peregrinos ou aos curiosos de todas as nacionalidades, atraídos pelas maravilhas de Ellora. Finalmente, depois de rodearem a aldeia de Rauzah, acharam-se na estrada que liga Adjuntah e Boregami.

     Era de cinquenta milhas (quase oitenta quilómetros) a distância a percorrer de Ellora a Adjuntah; mas o Nana já não era o fugitivo que se evadia de Aurungabad a pé e sem meios de transporte.

     Como Balão Rao dissera, esperavam-no na estrada três cavalos guardados pelo indiano Kalagani, fiel servidor de Dandu-Pant.

     Os cavalos estavam ocultos numa espessa floresta, a uma milha da aldeia.

     Um era destinado ao Nana, outro a Balão Rao, o terceiro a Kalagani, e dali a nada galopavam os três na direcção de Adjuntah.

     Ninguém se admirava de ver um faquir a cavalo. Efectivamente, grande número destes imprudentes mendigos pedem esmola do alto das suas cavalgaduras.

     Demais, a estrada era pouco frequentada naquela época do ano, menos favorável às peregrinações.

     O Nana e os seus dois companheiros faziam pois rapidamente a sua jornada, sem terem de recear coisa alguma que os pudesse embaraçar ou deter.

     Apenas perdiam o tempo necessário para desaguarem os animais, e durante estas pequenas paragens recorriam às provisões que Kalagani trazia no arção da sela.

     Por este modo evitaram os sítios mais frequentes da província, os bungalows e as aldeias, entre outras a aldeia de Roja, triste montão de casas enegrecidas, que a acção do tempo enfumaçou, como fez às sombrias habitações de Cornouailles e à aldeia de Pulmary, pequeno lugarejo perdido entre as plantações de um país já selvático.

     O solo era plano e igual. Estendiam-se em todas as direcções campos cobertos de mato rasteiro, sulcados de espessos juncais.

     Mas nas proximidades de Adjuntah o país torna-se mais acidentado.

     As formosas grutas deste nome, rivais das cavernas de Ellora, e talvez as mais belas no seu conjunto, ocupam a parte inferior de um pequeno vale, quase a meia légua da cidade.

     Nana Sahib podia portanto deixar de passar por Adjuntah, onde o edital do governador devia já estar afixado. Desaparecia, pois, todo o receio de ser reconhecido.

     Quinze horas após ter deixado Ellora, embrenhava-se com os seus dois companheiros pelo estreito desfiladeiro que conduzia ao célebre vale, cujos vinte e sete templos, abertos no interior da rocha, se debruçavam sobre vertiginosos abismos.

     A noite estava esplêndida, o céu brilhantemente constelado, mas sem Lua.

     Grandes árvores, banianas e algumas dessas bars que figuram entre os gigantes da flora indiana, recortavam-se em cor negra sobre o fundo estrelado do céu.

     Nem a mais pequena aragem perturbava a atmosfera, nem uma folha se mexia, nem um rumor se fazia ouvir, a não ser o murmúrio de uma torrente, que corria a algumas centenas de pés, no fundo do abismo.

     Mas o murmúrio acentuou-se e tornou-se um verdadeiro ronco quando os cavalos chegaram à cascata do Satkhund, que se despenha de uma altura de cinquenta toesas, dilacerando-se na saliência dos rochedos de quartzo e de basalto.

     No desfiladeiro redemoinhava uma poeira líquida, a qual se houvera listrado com as sete cores do arco-íris se a Lua iluminasse o espaço naquela formosa noite de Primavera.

     Tinham chegado o Nana, Balão Rao e Kalagani. Na curva inesperada do desfiladeiro, que faz um cotovelo naquele sítio, deparou-se-lhes o vale enriquecido por aquelas maravilhas da arquitectura búdica. Sobre as paredes dos templos, ornados profusamente de colunas, de florões, de arabescos, de varandas, povoados de figuras colossais de animais de fantásticas formas, escavados de sombrias celas outrora habitadas pelos padres, guardas daquelas sagradas habitações, o artista pode ainda admirar alguns frescos, que se diria pintados de ontem e que representam cerimónias religiosas, batalhas onde figuram todas as armas da época, tais quais eram naquele esplêndido país da índia nos primeiros tempos da era cristã.

     Nana Sahib conhecia todos os segredos daqueles misteriosos hipogeus. Mais de uma vez ele e os seus companheiros, perseguidos de perto pelas tropas reais, aí encontraram refúgio nos dias funestos da insurreição.

     As galerias subterrâneas que os ligavam, os mais estreitos viadutos que se abriam no maciço de quartzo, os sinuosos caminhos que cruzavam em todos os sentidos, as mil ramificações daquele labirinto, cujo enredamento fatigava os mais pacientes, tudo lhe era familiar. Não podia perder-se por ali, ainda quando qualquer facho não alumiasse aquelas negras profundezas.

     E no meio daquela escura noite, como homem que tinha a certeza do que fazia, o Nana foi direito a uma das escavações menos importantes do grupo.

     A entrada desta escavação estava obstruída por um espesso cortinado de arbustos e um montão de grandes pedras, que um antigo desabamento parecia para ali ter lançado, entre as plantas silvestres do solo e as plantas lapidarias da rocha.

     Bastou ao nababo esgaravatar um pouco com a unha no orifício da escavação para anunciar a sua presença.

     Apareceram logo entre os ramos duas ou três cabeças de indianos, seguindo-se-lhes muitas outras; atrás das cabeças os respectivos corpos deslizaram como serpentes por entre as pedras e em breves instantes formava diante do Nana um grupo de uns quarenta homens bem armados.

     - A caminho! ordenou Nana Sahib.

     E sem pedirem explicações, sem saberem aonde os conduziam, os fiéis companheiros do nababo seguiram-no, prontos a deixarem-se matar a um simples sinal dele.

     Estavam a pé, mas as suas pernas podiam competir em velocidade com as de um cavalo.

     O pequeno bando meteu-se pelo desfiladeiro que costeava o abismo, subindo na direcção do norte, e contornou o cume da montanha. Dali a uma hora chegava à estrada de Kandeish, que vai perder-se entre os desfiladeiros dos montes de Sautpurra.

     Ao romper do dia tinham passado para diante do ramal de Bombaim a Allahabad sobre o Nagpore e a própria via principal, que corre na direcção de nordeste.

     Naquele momento corria a toda a velocidade o comboio de Calcutá, lançando o seu alvo vapor às magníficas banianas que lhe ficavam no trânsito, e os seus relinchos às feras assustadas dos juncais.

     O nababo fez parar o cavalo, e com uma voz forte e a mão estendida para o comboio, que se afastava rapidamente, exclamou:

     Vai, vai dizer ao vice-rei das índias que Nana Sahib continua a viver, e que ele há-de afogar no sangue dos invasores essa via de ferro, obra maldita das suas mãos!

   

    O gigante de aço

     Não sei de mais completa estupefacção do que aquela de que os transeuntes parados na estrada de Calcutá a Chandernagor, homens, mulheres e crianças, tanto ingleses como indianos, davam mostras não equívocas na manhã de 6 de Maio.

     Francamente, aquele profundo sentimento de surpresa era bem natural.

     Ao romper do Sol, de um dos arrabaldes da capital da índia, entre duas alas compactas de curiosos, saía um comboio de bem estranho aspecto, se tal nome se podia dar ao espantoso aparelho que subia a margem do Hougly.

     À frente, e como único motor do comboio, um elefante gigantesco, da altura de vinte pés, do comprimento de trinta, e largura proporcional, avançava tranquila e majestosamente. Tinha uma tromba um pouco curva, com a ponta para cima, que lembrava enorme cornucopia. As presas, todas douradas, saíam da enorme queixada, semelhantes a duas foices ameaçadoras. Sobre o seu corpo, caprichosamente sarapintado, desdobrava-se uma rica coberta de cores vistosas, enfeitada de filigranas de ouro e prata, orlada de pesada franja. Trazia sobre o dorso uma espécie de torre, coroada de uma cúpula à moda da índia, e as paredes da torre eram providas de grossos vidros lenticulares, semelhantes às clarabóias de um camarote de navio.

     Puxava o elefante um comboio composto de dois enormes carros, ou, melhor dizendo, de duas verdadeiras casas, espécie de bungalows ambulantes, cada um deles montado em quatro rodas esculpidas nos eixos, nos raios e nas caibas.

     Estas rodas, de que só se via o segmento inferior, moviam-se dentro de caixas meio ocultas pelo rodapé dos enormes aparelhos de locomoção.

     Uma pequena ponte articulada, que se prestava aos caprichos das voltas que era preciso dar, punha o primeiro veiculo em comunicação com o segundo.

     Como podia um só elefante, por muito forte que fosse, puxar aquelas duas maciças construções, sem nenhum esforço aparente? A verdade é que o possante animal a puxava.

     As grandes patas levantavam-se e baixavam-se automaticamente, com uma regularidade puramente mecânica, e imediatamente passava do passo ao trote, sem que se visse a mão ou se ouvisse a voz de um mahout.

     Era isto de que os curiosos se deviam logo admirar quando se conservavam a distância. Mas quando se aproximavam do colosso, faziam novas descobertas, e à admiração sucedia-se a surpresa.

     Primeiro que tudo, uma espécie de mugido cadenciado, muito parecido com o uivo particular dos gigantes da fauna indiana, feria logo o ouvido. Além disso, com pequenos intervalos, saíam da tromba, erguida para o céu, rápidos jactos de vapor.

     Não havia, porém, dúvida de que era um elefante!

     A sua pele rugosa, de um verde-escuro, cobria com toda a certeza uma dessas ossadas poderosas com que a natureza favoreceu o rei dos paquidermes!

     Os seus membros eram dotados de movimentos!

     Mas, se algum curioso se arriscasse a pôr a mão sobre o enorme animal, tudo se explicaria. Aquilo não passava de uma ilusão, de uma imitação surpreendente, que mesmo de perto apresentava todas as aparências de vida.

     O elefante era de aço, nas suas entranhas abrigava-se uma locomotora completa.

     Quanto ao comboio, à «Steam House», para empregarmos o qualificativo que lhe convém, era a habitação ambulante prometida pelo engenheiro.

     O primeiro carro, ou, antes, a primeira casa, servia de habitação ao coronel Munro, ao capitão Hod, a Banks e a mim.

     Na segunda instalava-se o sargento Mac Neil e os indivíduos de que se compunha o pessoal ao serviço da expedição.

     Banks cumprira a sua promessa, o coronel também, e aqui está a razão por que nós tínhamos partido naquela manhã de 6 de Maio, conduzidos por aquele trem verdadeiramente extraordinário, a visitarmos as regiões setentrionais da península indiática.

     Mas para que era aquele elefante artificial? De que servia aquela fantasia, tanto em desacordo com o espírito prático dos Ingleses? Até então nunca ninguém se lembrara de dar a uma locomotiva, destinada a circular, quer pelo macadame das estradas, quer pelos carris dos caminhos de ferro, a forma de qualquer quadrúpede!

     Da primeira vez que nos deixaram ver aquela máquina surpreendente, foi, devemos confessar, geral o espanto!

     Os «porquês» e os «como» caíram à carga cerrada sobre o nosso amigo Banks. Aquela locomotiva para estradas ordinárias fora construída sob a sua direcção e conforme os seus planos.

     Quem, pois, lhe sugerira a extravagante ideia de a ocultar sob as paredes de aço de um elefante mecânico?

     Banks limitou-se a responder com muita seriedade:

     Conheces o rajá de Buthan?

     Conheço respondeu o capitão Hod -, ou antes, conhecia-o, porque morreu há uns treze meses.

     Pois devo dizer-lhes tornou o engenheiro que o rajá Buthan era não só uma criatura inteligente como também vivia de um modo muito diverso do viver de toda a gente. Gostava de faustos, fossem de que género fossem. Não se privava de coisa nenhuma, quero dizer, da que lhe passasse pela ideia. Gastava o cérebro a imaginar o impossível. Se a sua bolsa não fosse inesgotável, tê-la-ia esgotado em realizar o que imaginava.

     «Era rico como os nababos de outros tempos.

     «Nos seus cofres abundavam os laques de rupias.

     «Se alguma vez se incomodava era a cogitar a maneira como havia de gastar os seus milhões de modo menos banal que os seus colegas milionários.

     «Um dia acudiu-lhe uma ideia, que dentro em pouco o preocupava a ponto de não o deixar dormir, uma ideia de que Salomão se houvera orgulhado, levando-a por certo à execução se aquele sábio tivesse conhecido o vapor. Consistia ela em viajar de um modo completamente novo até ao seu tempo, e ter um trem como ninguém fosse capaz de imaginar.

     (Conhecia-me, fez-me comparecer na sua corte, e ele mesmo me desenhou o plano do seu aparelho de locomoção.

     «Ah! Se imaginam, meus amigos, que desatei a rir ao ouvir a proposta do rajá, enganam-se!

     «Compreendi perfeitamente que uma tão grandiosa ideia devia, naturalmente, brotar da cabeça de um soberano indiano, e o meu único desejo foi realizá-lo quanto antes, em condições que pudessem satisfazer o meu poético cliente e a mim mesmo.

     «Um verdadeiro engenheiro não tem todos os dias ensejo de entrar nos domínios do fantástico e de acrescentar um animal do seu gosto à fauna do Apocalipse ou às criações das Mil e uma Noites.

     «Numa palavra, a fantasia do rajá era realizável. Sabem muito bem o que se faz, o que se pode fazer e o que se há-de fazer em mecânica.

     «Pus, portanto, mãos à obra; neste invólucro de aço consegui encerrar a caldeira, o mecanismo, o tênder de uma locomotiva com todos os seus acessórios.

     «A tromba articulada, que, sendo preciso, se pode baixar ou levantar, serviu-me de chaminé; permitiu-me um excêntrico adaptar as pernas do meu animal às rodas do aparelho; dei-lhe aos olhos a disposição das lentes de um farol, de modo que projectassem dois jactos de luz eléctrica, e o elefante artificial concluiu-se.

     «Mas a criação não foi espontânea. Encontrei mais de uma dificuldade, que não se resolveu à primeira.

     «Este motor, jóia enorme, se assim lhe quiserem chamar, custou-me não poucas vigílias, tantas que o meu rajá, que não podia conter a impaciência e passava a melhor parte do seu tempo nas minhas oficinas, morreu antes que a última martelada do operário permitisse ao elefante abalar por esses campos fora.

     «Não teve o infeliz tempo de experimentar a sua casa ambulante! Menos fantasiosos que ele, os seus herdeiros consideravam este aparelho com terror e superstição, como a obra de um doido. Do que tiveram mais pressa foi de se desfazerem dele por vil preço, e comprei tudo por conta do coronel.

     «Já sabem, pois, meus amigos, como é que, no mundo, só nós, afianço-lhes, temos à nossa disposição um elefante a vapor da força de oitenta cavalos, para não dizer da força de oitenta elefantes de trezentos quilogrâmetros! (1)

     Bravo, Banks, bravo! exclamou o capitão Hod. Um mestre engenheiro que é ainda por cima um artista, um poeta de ferro e aço, que é ave rara entre nós!

     Morto o rajá prosseguiu Banks e feita a aquisição do trem, não tive a coragem de destruir o meu elefante e de restituir a locomotiva à sua forma ordinária.

     E fez muitíssimo bem acudiu o capitão. É magnífico o seu elefante, magnífico. E que efeito não havemos nós de produzir com este gigantesco animal quando ele passear pelas planícies e juncais do Indostão. É uma ideia de rajá. Havemos de aproveitar tal ideia, não é verdade, coronel?

     O coronel Munro quase sorriu. Era o equivalente a uma completa aprovação, por ele dada, às palavras de Banks.

     Ficou, pois, resolvida a viagem, e aqui está como um elefante de aço, um animal único no seu género, um leviatão artificial, foi obrigado a puxar a habitação ambulante de quatro ingleses, em lugar de passear com toda a sua pompa um dos mais opulentos rajás da península indiana.

     Qual era, porém, a disposição desta locomotiva de estradas ordinárias, a que Banks tinha aplicado todos os aperfeiçoamentos da ciência moderna?

     É o que vamos expor.

     Achava-se colocado entre as quatro rodas todo o maquinismo: cilindros, bielas, gavetas, bomba de alimentação, excêntricos, tudo isto coberto pelo corpo da caldeira.

     Esta caldeira não é de fogo circular e apresenta uma superfície de aquecimento de sessenta metros quadrados.

     Contém-se toda ela na parte anterior do corpo do elefante, que é de chapa de ferro, e a parte posterior do animal cobre o tênder, destinado à condução da água e combustível.

     Caldeira e tênder, ambos montados no mesmo truck, estão separados por um intervalo, que fica livre para o serviço do fogueiro.

     O maquinista toma lugar na pequena torre, construída à prova de bala, sobre o dorso do animal, e, em caso de agressão séria, toda a nossa gente pode refugiar-se na torre. O maquinista tem diante de si as válvulas de segurança e o manómetro que indica a tensão do fluido, e ao alcance o regulador e a alavanca, que lhe servem, o primeiro para regular a introdução do vapor, o segundo para manobrar as gavetas, e por conseguinte para fazer andar o trem para diante ou para trás. Da torre, através de espessos vidros lenticulares, dispostos de propósito em estreitas seteiras, pode observar a estrada, que se desenrola em frente, e, modificando por meio de um pedal o ângulo das rodas anteriores, segue as curvas, quaisquer que elas sejam.

     Molas do melhor aço, adaptadas aos eixos, sustentam a caldeira e o tênder, de modo que amortecem os solavancos causados pelas desigualdades do solo. As rodas, de solidez a toda a prova, são raiadas nas caibas, para que possam fazer pega no terreno e não arrastarem.

     Como Banks nos disse, a força nominal da máquina é de oitenta cavalos, mas podem obter-se cento e cinquenta efectivos, sem receio de explosão.

     Combinada segundo o sistema de Field, esta máquina é de cilindro duplo. Uma caixa hermeticamente fechada envolve todo o mecanismo, para o resguardar da poeira das estradas, que rapidamente o danificaria.

     O seu extremo aperfeiçoamento consiste sobretudo nisto: em gastar pouco e produzir muito. com efeito, nunca a despesa média, comparada com o efeito utilizado, foi tão bem calculada, quer o aquecimento se obtenha com carvão, quer se obtenha com lenha, porque as grelhas da fornalha são próprias para queimar toda a espécie de combustível.

     Quanto à velocidade normal desta locomotiva de estradas ordinárias, o engenheiro avalia-a em vinte e cinco quilómetros por hora, mas sobre um terreno propício poderá chegar a quarenta.

     Como disse, as rodas não correm perigo de arrastar em vez de rodar, não só em razão da pega que as caibas fazem no solo, mas também porque todo o trem se acha suspenso em molas de primeira qualidade, e esta circunstância faz também distribuir com igualdade o peso, que os solavancos tendem a desequilibrar. Além disso, as rodas podem facilmente travar-se, quer gradual, quer instantaneamente, por meio de freios atmosféricos.

     É notável a facilidade que esta máquina tem de subir as ladeiras.

     Banks obteve os melhores resultados neste sentido, calculando o peso e a força propulsora exercida sobre cada um dos pistões da locomotiva. Por este motivo pode facilmente vencer inclinações de dez a doze centímetros por metro, o que já é considerável.

     Demais, as estradas que os Ingleses têm construído na índia, e cuja rede comporta um desenvolvimento de muitos milhares de milhas, são excelentes.

     Devem prestar-se perfeitamente a este género de locomoção. Para não falar senão do Great Trunk Road, que atravessa a península, basta dizer-se que esta via tem uma extensão, não interrompida, de duzentas milhas.

     Falemos agora da «Steam House», que o elefante artificial arrastava após si.

     O que Banks obtivera dos herdeiros do nababo, por conta do coronel Munro, não era só a locomotiva, era também o que ela puxava.

     Não se hão-de admirar de que o rajá de Buthan a fizesse construir conforme a sua fantasia e segundo a moda indiana.

     Já lhe chamei um bungalow ambulante. Merece efectivamente este nome, e em verdade os dois carros que o compõem são simplesmente uma maravilha da arquitectura do país.

     Imaginem-se como uns pagodes sem minaretes, com duplo telhado em forma de cúpula, balcões sustentados por pilastras esculpidas, uma ornamentação de recortes multicores em madeiras preciosas, todos contornados de curvas graciosas e elegantes, e que nas extremidades anterior e posterior rematavam por varandas esplêndidas. Sim, dois pagodes que se suporiam removidos da colina santa de Sonnaghur, e que, ligados um ao outro, iam correr as estradas principais da índia, puxados por aquele elefante de aço.

     E a isto devemos acrescentar uma circunstância que perfeitamente completa este prodigioso aparelho de locomoção: a de flutuar. A parte inferior do corpo do animal, ou, para melhor dizer, o ventre, que encerra a máquina, como também a parte inferior das duas casas ambulantes, formam ligeiros batéis de chapa de ferro. Apresenta-se por acaso qualquer corrente: o elefante entra nela, o trem segue-o, e as patas do animal, movidas pelas bielas, como se fossem pás, conduzem toda a «Steam House» sobre a superfície dos rios e das ribeiras.

     Incalculável vantagem naquela região das índias, onde abundam as vias fluviais, cujas pontes estão ainda por construir.

     Tal era o trem, único no seu género, e tal o quisera o caprichoso rajá de Buthan. Porém, se Banks respeitara aquele capricho, que dava ao motor a forma de um elefante e aos veículos o aspecto de pagodes, entendera, apesar disso, dever dispor a parte interna ao gosto inglês, apropriando-a para uma viagem de longa duração. Saíra excelente a lembrança.

     Como disse, a «Steam House» compunha-se de dois carros, que interiormente não mediam menos de seis metros de largura. Excediam os eixos das rodas, que tinham apenas cinco. Suspensos sobre molas muito compridas e de extrema flexibilidade, os solavancos eram-lhes tão pouco sensíveis como os mais fracos abalos numa via férrea bem construída.

     O primeiro carro tinha um comprimento de quinze metros. Na dianteira, um elegante alpendre ou dossel, sustentado por ligeiras pilastras, abrigava um grande balcão, no qual meia dúzia de pessoas podiam estar muito à vontade.

     O salão tinha duas janelas e uma porta, e era, além disso, alumiado por mais duas janelas laterais. Consistia a sua mobília numa mesa, numa livraria e fofos divãs, que o guarneciam em todo o comprimento, sendo artisticamente decorado e forrado com magníficos tecidos estofados.

     Cobria-lhe o sobrado um rico tapete de Esmirna. Das janelas, tanto nas do salão como nas dos compartimentos que serviam de quartos, pendiam tattis cortinas transparentes de vetiver -, continuadamente aspergidos de água perfumada, os quais mantinham uma agradável frescura tanto no salão como nos quartos. Do tecto pendia uma punha, espécie de ventarola imensa, agitada automaticamente por uma correia de transmissão durante o andamento do trem, e nas paragens pelo braço de um servidor. Não seria conveniente combater por todos os meios os excessos de uma temperatura que, durante certos meses do ano, se eleva, à sombra, acima de quarenta e cinco graus centígrados?

     Na extremidade do salão oposto à janela do alpendre abria-se segunda porta, de madeira preciosa, que dava entrada para a casa de jantar, iluminada não só pelas janelas laterais, mas também por um tecto de vidro despolido.

     Em volta da mesa, que ocupava o centro do compartimento, podiam sentar-se oito convivas. Nós éramos apenas quatro e, portanto, ficaríamos à vontade.

     Credencias e bufetes, carregados luxuosamente de pratas, cristais e porcelanas exigidas pelo conforto inglês, mobilavam a casa de jantar. Escusado será dizer que os objectos frágeis, meio metidos em encaixes especiais, como se faz a bordo dos navios, estavam a salvo dos choques, mesmo sobre os maus caminhos, dada a hipótese de nos vermos obrigados a meter por eles.

     Na casa de jantar havia outra porta, que dava acesso para um corredor, o qual ia ter a um balcão posterior, também coberto por um elegante alpendre. Ao longo deste corredor havia dois quartos de cada lado, que recebiam luz lateralmente e que continham um leito, um armário, um divã, dispostos como os camarotes dos melhores paquetes transatlânticos.

     O primeiro quarto, à esquerda, era ocupado pelo coronel Munro; o segundo, à direita, pelo engenheiro Banks.

     O quarto do capitão Hod seguia-se, à direita, ao do engenheiro; o meu, à esquerda, seguia-se ao do coronel Munro.

     O segundo carro, do comprimento de doze metros, tinha, como o primeiro, uma varanda, a qual dava luz a uma grande cozinha, flanqueada lateralmente por duas despensas e munida de todo o necessário material.

     Esta cozinha comunicava com um corredor, que na sua parte central alargava em forma de quadrilátero, servindo este de casa de jantar para o pessoal inferior da expedição. Era iluminada por uma clarabóia que havia no tecto.

     Nas quatro faces deste quadrilátero abriam-se quatro camarotes; ocupavam-nos o sargento Mac Neil, o maquinista, o fogueiro e a ordenança do coronel Munro. Na parte anterior havia mais dois camarotes, um destinado ao cozinheiro, o outro à ordenança do capitão Hod, e vários outros compartimentos que serviam de armaria, de geleira, de depósito de bagagens, etc., terminando isto tudo por uma janela de alpendre.

     Como se vê, o engenheiro Banks tinha inteligente e confortàvelmente disposto as duas habitações ambulantes da «Steam House».

     No Inverno (podiam ser aquecidas por meio de um aparelho, cujo ar quente, fornecido pela máquina, circulava pelos aposentos, sem falar em dois pequenos fogões instalados na sala e na casa de jantar. Achávamo-nos, pois, habilitados a arrostar os rigores da estação fria, mesmo nos primeiros declives das montanhas do Tibete.

     Como se deve avaliar, a importante questão das provisões não tinha sido desprezada, e levávamos, em conservas escolhidas, com que sustentar um ano inteiro todo o pessoal da expedição.

     Do que tínhamos maior abundância era de latas de carnes conservadas, das melhores marcas, principalmente vaca cozida e vaca estufada, e também empadas de mourbhis, frangos, cujo consumo é tão considerável em toda a península indiana.

     Tão-pouco havíamos de deixar de ter leite para o almoço de manhã, que precede o jantar da noite, graças aos novos preparados que permitem transportar este alimento a grandes distâncias no estado concentrado.

     Depois de submetido à evaporação, que lhe dá uma consistência de massa, é metido o leite em latas hermeticamente fechadas, na porção de quatrocentos e cinquenta gramas, os quais podem fornecer três litros de líquido, adicionando-lhes o quíntuplo do seu peso em água. Nestas condições é idêntico ao leite normal e de boa qualidade. O mesmo sucede com o caldo, que, depois de ter sido conservado por meios análogos e reduzido a pequenas formas, dá pela dissolução excelentes líquidos alimentícios.

     Quanto ao gelo, de uso tão útil sob aquelas ardentes latitudes, é fácil produzi-lo por meio dos aparelhos Garre, que promovem o abaixamento da temperatura pela evaporação do gás amoníaco liquefeito.

     Um dos compartimentos posteriores era até disposto como uma geleira, e, ou fosse pela evaporação do amoníaco, ou pela volatilização do éter metílico, o produto das nossas caçadas podia ser indefinidamente conservado, graças ao emprego dos processos devidos a um meu compatriota, o francês Ch. Tellier.

     Há-de-se convir que era este um recurso precioso, que devia pôr à nossa disposição, em todas as circunstâncias, alimentos da melhor qualidade.

     Quanto às bebidas, a nossa adega estava bem fornecida. Vinhos de França, cervejas diversas, aguardente, araca, ocupavam lugares especiais e eram em quantidades suficientes para as primeiras necessidades.

     Demais, deve-se observar que o nosso itinerário não devia afastar-nos muito das províncias habitadas da península. A índia não é um deserto; longe disso.

     Dada a condição de não se pouparem as rupias, é fácil obter-se não só o necessário mas também o supérfluo.

     Talvez, quando invernássemos na base do Himalaia, nos víssemos reduzidos aos nossos últimos recursos.

     Ainda neste caso, ser-nos-ia fácil fazer face a todas as exigências de uma existência confortável. O espírito prático do nosso amigo Banks tudo previra, e podia-se descansar nele quanto aos nossos fornecimentos em jornada.

     Em suma, eis qual era o nosso itinerário itinerário que foi estabelecido em princípio, salvo quaisquer modificações, que circunstâncias imprevistas porventura pudessem nele introduzir:

     Partir de Calcutá, seguindo pelo vale do Ganges até Allahabad; subir através do reino de Ube, de modo que se alcançassem as primeiras rampas do Tibete, acampar durante alguns meses ora num lugar ora noutro, dando ao capitão Hod toda a facilidade para organizar as suas caçadas, e depois tornar a descer até Bombaim.

     Eram quase novecentas léguas que andar. Mas a nossa casa, com todo o seu pessoal, viajavam connosco.

     Em tais condições, quem se recusaria a dar, até muitas vezes, volta à roda do mundo?

 

      (1) Chama-se quilogrâmetro à força requerida para se elevar um peso de um quilograma à altura de um metro. (N. do T.)

   

    As primeiras paragens

      No dia 6 de Maio, logo ao romper do Sol, deixei o hotel Spencer, um dos melhores de Calcutá, onde residia desde que chegara à capital da índia.

     Já não tinha segredos para mim esta grande cidade. Passeios a pé, pela manhã, durante as primeiras horas do dia; passeios à tarde, de carruagem, no Strand, até à esplanada do forte William, no meio dos esplêndidos trens dos europeus, que cruzam com bastante desdém por entre as carruagens não menos esplêndidas dos gordos e opulentos babus indígenas; excursões através das curiosas ruas comerciais, a que se dá com muita propriedade o nome de bazares; visitas aos campos de incineração dos mortos, nas margens do Ganges, aos jardins botânicos do naturalista Hooker, à ((senhora Kali», a horrenda mulher de quatro braços, a deusa feroz da morte, que se oculta num pequeno templo de um desses arrabaldes, onde a civilização moderna passa ombro com ombro pela civilização antiga tudo isto estava feito. Contemplar o palácio do vice-rei, que se erguia exactamente em frente do hotel Spencer; admirar o curioso palácio de Chowringhi Road e a Town-Hall, consagrados à memória dos grandes homens da nossa época; estudar minuciosamente a interessante mesquita de Hougly; percorrer o porto, atulhado com as mais belas embarcações mercantes da marinha inglesa; dizer finalmente adeus aos arghilas, ajudantes ou filósofos são aves com tantos nomes!que se encarregam de limpar as ruas e conservar a cidade num perfeito estado salubre, eram também coisas que já estavam feitas, e só me restava partir.

     Por isso, naquela manhã, um palki-ghari, espécie de detestável carruagem de quatro rodas, puxada por dois cavalos, indigna de figurar entre os confortáveis produtos dos segeiros ingleses, veio buscar-me à Praça do Governo e punha-me em pouco tempo à porta do bungalow do coronel Munro.

     A cem passos fora do arrabalde esperava-nos o nosso trem. Para falarmos apropriadamente, não tínhamos mais que tomar posse da casa.

     Escusado é dizer que as nossas bagagens tinham sido antecipadamente arrumadas no seu compartimento especial.

     Demais, só levávamos o indispensável. Apenas em questão de armas, o capitão Hod havia entendido que o indispensável não podia consistir em menos de quatro carabinas Enfield», de balas explosivas, quatro espingardas de caça, dois espingardões, sem contar com um certo número de espingardas e de revólveres, armas suficientes para armar todo o pessoal. Este aparato ameaçava mais as feras que a caça miúda, mas a este respeito não se podia chamar à razão o nosso Nemrod.

     O capitão Hod estava encantado. O prazer de arrancar o coronel à solidão do seu recolhimento, a alegria de partir para as províncias setentrionais da índia num trem como não havia igual, a perspectiva de exercícios ultracinegéticos e de excursões nas regiões himalaicas, tudo isto o animava, o sobreexcitava e lhe arrancava interjeições intermináveis e apertos de mão de quebrar os ossos a uma pessoa.

     Chegara a hora da partida. A caldeira estava em pressão, a máquina prestes a funcionar. O maquinista achava-se no seu posto, com a mão sobre o regulador. Soltou-se o apito regulamentar.

     A caminho! exclamou o capitão Hod, agitando o chapéu. A caminho, Gigante de Aço!

     O maravilhoso motor merecia bem o nome que o capitão lhe acabava de dar, e esse nome ficou-lhe.

     Resta-nos dar alguns esclarecimentos a respeito do pessoal da expedição, que ocupava a segunda casa ambulante.

     O maquinista Storr, um inglês, fora empregado da companhia Great Southern of India, cujo serviço ele deixara havia algum tempo. Banks, que o conhecia e o julgava muito competente, tinha-o feito entrar para o serviço do coronel Munro. Era homem de quarenta anos, hábil operário, muito entendido no seu mister, e que por isso devia prestar-nos grandes serviços.

     O fogueiro chamava-se Kalouth. Pertencia a essa casta de indianos, tão procurados pelas companhias de caminhos de ferro, que podem impunemente suportar o calor tropical das índias, aumentado com o calor da caldeira. O mesmo sucede com os árabes, aos quais as companhias de transportes marítimos confiam o serviço de fogueiros durante a travessia do mar Vermelho. São criaturas excelentes, que se contentam, o muito, com se deixarem cozer, numa situação em que os europeus ficariam assados em poucos instantes. Fora também uma boa escolha.

     A ordenança do coronel Munro era um indiano de trinta e cinco anos de idade, Gurca de raça, chamado Gumi. Fazia parte do regimento que, para dar provas de disciplina, aceitou o uso das novas munições, cuja adopção ocasionou ou, pelo menos, serviu de pretexto para a revolta dos sipaios. Baixo, ligeiro, boa figura, de uma dedicação a toda a prova, trazia ainda o uniforme negro da brigada dos Rifles, uniforme a que ele queria tanto como à sua própria pele.

     O sargento Mac Neil e Gumi eram de corpo e alma os dois fiéis servidores do coronel Munro.

     Depois de se terem batido a seu lado em todas as guerras da índia, depois de o terem ajudado nas suas infrutíferas tentativas para encontrar Nana Sahib, haviam-no acompanhado depois que ele se retirara do serviço e já o não deviam deixar.

     Se Gumi era a ordenança do coronel Munro, Fox, inglês de raça pura, alegre e muito comunicativo, era o impedido do capitão Hod, e caçador não menos entusiasta que seu amo.

     Este excelente moço não trocava a sua posição social por outra, fosse ela qual fosse.

     A sua finura tomava-o digno do nome que tinha. Fox, é, raposa! Mas raposa que já contava os seus trinta e sete tigres três menos que o seu capitão. Além disso, não tencionava ficar por aqui.

     Para completar o pessoal da expedição, devemos ainda citar o nosso cozinheiro negro, que reinava na parte anterior da segunda casa entre as duas despensas.

     Francês de origem, que já fizera assados e fricassés em todas as latitudes, Monsieur Parazard era o seu nome imaginava exercer, não um mister vulgar, mas funções de alta importância.

     Fazia em verdade de pontífice, quando andava de fornalha em fornalha, distribuindo, com a precisão de um químico, o sal, a pimenta e outros condimentos, que tornavam mais apetitosas as suas preparações.

     Em todo o caso, como Monsieur Parazard era sujeito hábil e asseado, perdoava-se-lhe de bom grado a vaidade culinária.

     Portanto, Sir Edward Munro, Banks, o capitão Hod e eu, de um lado, Mac Neil, Storr, Kalouth, Gumi, Fox e Monsieur Parazard do outro ao todo dez pessoas -, tal era a expedição que o Gigante de Aço, com o seu trem de duas casas ambulantes, conduzia para o Norte. Não esqueçamos os dois cães «Phann» e «Black», cujas qualidades na caça grossa e miúda o capitão já conhecia muito bem.

     Bengala é talvez, senão a mais curiosa, pelo menos a mais rica das presidências do Indostão. Não é com certeza o país propriamente dito dos rajás, que abraça mais especialmente o centro deste vasto reino; mas esta província estende-se sobre um território muito populoso, que pode ser considerado como o verdadeiro país dos indianos. Estende-se ao norte até às fronteiras intransitáveis do Himalaia, e o nosso itinerário ia permitir-nos atravessá-lo obliquamente.

     Depois de uma discussão a respeito dos primeiros lugares onde devíamos parar, concordámos todos neste projecto: subir durante algumas horas o Hougly, o braço do Ganges que banha Calcutá, deixar à direita a cidade francesa de Chandernagor, daí seguir a linha férrea até Burdwan, depois atravessar obliquamente o Behar, de modo que se fosse encontrar o Ganges em Benares.

     Meus amigos dissera o coronel Munro -, entrego-lhes absolutamente a direcção da viagem... Resolvam sem mim. Tudo o que fizerem será bem feito.

     Meu caro Munro redarguiu Banks -, sempre conviria que desses o teu parecer...

     Não, Banks tornou o coronel -, pertenço-te, e em rigor não prefiro visitar esta ou aquela província. Entretanto, quando chegarem a Benares, que direcção tencionam seguir?

     A direcção do norte! exclamou impetuosamente o capitão Hod. A estrada que sobe directamente até às primeiras rampas do Himalaia, através do reino de Ude.

     Pois nessa ocasião, meus amigos volveu o coronel Munro -, talvez lhes peça... Mas falaremos nisso quando for tempo. Até então, como quiserem!

     Estas palavras de Sir Edward Munro não deixaram de me causar algum espanto. Que ideia era a sua? Não consentiria ele na viagem persuadido de que o acaso talvez o servisse melhor ainda que a sua própria vontade? Diria ele consigo que, se Nana Sahib não tivesse morrido, talvez o encontrasse ao norte da índia?

     Quanto a mim, tinha um pressentimento de que algum pensamento reservado guiava o coronel Munro, e pareceu-me que o sargento Mac Neil devia conhecer o segredo do amo.

     Durante as primeiras horas daquela manhã ocupámos o salão da «Steam House».

     Estavam abertas a porta e as duas janelas da varanda, e a punka, agitando o ar, tornava suportável a temperatura.

     O Gigante de Aço ia a passo, mantido neste andamento pela mão de Storr.

     Uma pequena légua à hora era o que por enquanto lhe exigiam os viajantes, desejosos de ver o país que atravessavam.

     À saída dos arrabaldes de Calcutá tínhamos sido seguidos por um certo número de europeus, aos quais o nosso trem maravilhava, e por uma multidão de indianos, que o contemplavam com admiração e ao mesmo tempo com respeito.

     A multidão fora rareando, mas não podíamos subtrair-nos ao assombro dos transeuntes, que nos prodigalizavam os seus wahs! wahs! admirativos.

     Escusado é dizer que todas estas interjeições não eram tanto para os dois soberbos carros como para o gigantesco elefante que os puxava, vomitando grandes novelos de vapor.

     Às dez horas, pôs-se a mesa na casa de jantar, e, com certeza menos sacudidos do que o seríamos no compartimento de um vagão-salão de primeira classe, fizemos as honras ao almoço de Monsieur Parazard.

     O comboio, que o nosso trem seguia, costeava então a margem esquerda do Hougly, o mais ocidental dos braços do Ganges, rio que no seu conjunto compreende a rede inextricável do delta dos Sunderbunds.

     Toda esta porção do território é de formação aluvionária.

     O que está vendo, meu caro Maucler - disse-me Banks -, é uma conquista do rio sagrado sobre o golfo não menos sagrado de Bengala. Questão de tempo. Não há talvez uma parcela dessa terra que não viesse das fronteiras do Himalaia, transportada pela corrente do Ganges. O rio tem pouco a pouco desagregado a montanha para compor o solo desta província, onde formou para si próprio um leito...

     Que muitas vezes abandona por outro acrescentou o capitão Hod. Ah! É um rio caprichoso, fantasioso, lunático, este Ganges! Levanta-se nas suas margens uma cidade e, alguns séculos depois, a cidade acha-se no meio de uma planície, os seus cais estão a seco, o rio mudou de direcção e de foz! Foi o que sucedeu a Rajmahal, a Gaur, agora morrendo à sede em meio dos arrozais dessecados da planície!

     Não será para recear que sorte igual esteja reservada a Calcutá? volvi eu.

     - Quem sabe?

     Ora, para que servimos nós? retorquiu Banks. É uma questão de diques! Se for preciso, os engenheiros saberão muito bem conter as inundações do Ganges. Vestir-se-lhe á a camisa de forças!

     - Felizmente para si disse Hod que os indianos não lhe ouvem falar por esse modo do seu rio sagrado! Não lhe perdoariam.

     Efectivamente observou Banks -, o Ganges é um filho de Deus, se não é o próprio Deus, e aos olhos dos indianos nada do que ele faz é mau!

     Nem as febres, a cólera, a peste, que ele mantém no estado endémico! exclamou o capitão Hod. É verdade que os tigres e os crocodilos, que formigam nos Sunderbunds, não se dão muito mal com isso. Pelo contrário! Parece até que o ar empestado convém àqueles animais, como o ar puro de um sanitarium convém aos anglo-indianos na estação das calmas. Ah! estes animais carnívoros!

     Fox acrescentou Hod, voltando-se para o seu impedido, que servia à mesa.

     Meu capitão?

     Não foi acolá que mataste o teu trigésimo sétimo?

     Sim, meu capitão, a duas milhas do porto Canning respondeu Fox. Era uma noite...

     Basta, Fox!volveu o capitão, acabando de beber um grande grogue. Conheço a história do trigésimo sétimo. A do trigésimo oitavo é que me havia de interessar mais.

     O  trigésimo oitavo ainda não está morto, meu capitão.

     Hás-de matá-lo, Fox, como eu hei-de matar o meu quadragésimo primeiro!

     Nas conversas do capitão Hod e do seu impedido a palavra «tigre», como se vê, nunca se proferia.

     Era escusado. Os dois caçadores compreendiam-se maravilhosamente.

     À medida que avançávamos, o Hougly, que tem quase um quilómetro de largo em frente de Calcutá, ia estreitando. A montante da cidade, são muito baixas as suas margens. É ali que muitas vezes se engolfam os ciclones, cujos desastres se estendem por toda a província.

     Bairros completamente destruídos, centenas de casas derrubadas, imensas plantações devastadas, milhares de cadáveres juncando a cidade e os campos, tais são as ruínas que estes irresistíveis meteoros deixam após si, e dos quais o ciclone de 1864 foi um dos mais terríveis exemplos.

     É sabido que o clima da índia compreende três estações: a estação chuvosa, a estação fria e a estação quente. A última é a que menos dura, mas também a que mais custa a passar. Março, Abril e Maio é a mais quente. Nesta época, expor-se ao sol durante certas horas do dia é arriscar a vida, pelo menos para os europeus. Não é raro, mesmo à sombra, a coluna termométrica elevar-se a cento e seis graus Fahrenheit, isto é, quase 41 centígrados.

     Os homens, diz o Senhor Valbezen, resfolgam então como cavalos, e, durante a guerra de repressão, oficiais e soldados foram obrigados a recorrer aos duches de água fria a fim de evitarem as congestões.»

     Contudo, graças à marcha da «Steam House)), à agitação do ar produzida pelos movimentos da punha, à atmosfera húmida que circulava através das cortinas de vetiver, regadas com frequência, não nos incomodava muito o calor. Depois, a estação das chuvas, que dura desde o mês de Julho até ao mês de Outubro, não vinha longe. Afinal, nas condições em que se operava a nossa viagem, não tínhamos nada grave que recear.

     Pela uma hora da tarde, depois de um delicioso passeio a pequena velocidade, que fizemos sem sair de casa, chegámos a Chandernagor.

     Eu já visitara este canto de terra, o único que resta à França em toda a presidência de Bengala.

     Esta cidade, abrigada pela bandeira tricolor, e que não tem direito a mais de quinze soldados para a sua própria guarda, esta antiga rival de Calcutá, durante as lutas do século XVIII, está hoje bem decaída, sem indústria, sem comércio, com os bazares abandonados, o forte desocupado.

     Talvez Chandernagor houvesse recuperado alguma vitalidade se o caminho de ferro de Allahabad a atravessasse, ou pelo menos lhe costeasse os muros; mas, em presença das exigências do Governo francês, a companhia francesa teve de fazer obliquar a via, de modo que só contornasse o nosso território, e Chandernagor perdeu então a única ocasião de alcançar alguma importância comercial. O nosso trem não entrou na cidade. Parou na estrada, à distância de três milhas, à entrada de uma floresta de lataneiros.

     Depois de se organizar o acampamento, parecia um começo de aldeia que ali acabava de se fundar. Mas era móvel a aldeia, e logo no dia seguinte, 7 de Maio, recomeçou a sua marcha interrompida, após uma noite tranquila, passada nos nossos confortáveis camarotes.

     Durante esta paragem, Banks fizera renovar o combustível. Apesar de que a máquina consumira pouco, queria que o tênder trouxesse sempre a sua carga completa, isto é, que trouxesse em água, lenha ou carvão o preciso para caminhar durante sessenta horas.

     O capitão Hod e o seu fiel Fox não deixaram de aplicar esta regra a si mesmos, e a sua fornalha interior, quero dizer, o seu estômago, que apresentava grande superfície de aquecimento, andava sempre fornecido de combustível azotado, indispensável para fazer marchar bem e por muito tempo a máquina humana.

     Agora a viagem devia ser mais demorada, íamos viajar dois dias, descansar duas noites, de maneira que chegássemos a Burdwan e visitássemos esta cidade durante o dia 9.

     Às seis horas da manhã, Storr soltava um apito agudo, descarregava os cilindros, e o Gigante de Aço tomava um andamento um pouco mais rápido que na véspera.

     Por espaço de algumas horas costeámos a via férrea, que por Burdwan vai tomar o vale do Ganges, que ela depois segue até além de Benares.

     O comboio de Calcutá passou por nós, em grande velocidade. Parecia desafiar-nos com as exclamações admirativas dos viajantes.

     Não respondemos ao desafio.

     Podiam eles caminhar mais rapidamente que nós, mas não com mais comodidade!

     A região que se atravessou, durante estes dois dias, era plana, e por isto mesmo bastante monótona.

     Num ou noutro ponto, balouçavam-se alguns flexíveis coqueiros, os últimos dos quais iam ficar para trás, para além de Burdwan.

     Estas árvores, que pertencem à grande família das palmeiras, dão-se bem nas orlas do mar e gostam de encontrar algumas moléculas de ar marinho na atmosfera que respiram. Por isso não se encontram fora de uma zona bastante estreita, que confina com o litoral, e é escusado procurá-las na índia central. Mas a flora do interior não é por isso menos interessante e variada.

     De ambos os lados da estrada, o terreno, para falar propriamente, não era senão um imenso tabuleiro de arrozais, que se estendia a perder de vista.

     O solo estava dividido em quadriláteros, rodeados de diques, como as salinas ou os parques de ostras de um litoral. Mas a cor verde predominava, e a colheita prometia ser excelente sobre aquele terreno húmido e quente, cujos lamaçais indicavam a prodigiosa fertilidade.

     No outro dia à tarde, à hora aprazada, com uma exactidão para ser invejada por um expresso, a máquina imprimia o seu último esforço de vapor e parava as portas de Burdwan.

     Administrativamente, esta cidade é a capital de um distrito inglês, mas o distrito pertence propriamente a um marajá, que não paga menos de dez milhões de impostos ao Governo.

     É em grande parte composta de casas baixas, separadas por formosas alamedas de coqueiros e arecas. Estas alamedas eram bastante largas para dar passagem ao nosso trem.

     Fomos, pois, acampar num lugar encantador, cheio de sombra e de frescura.

     Naquela noite a capital do marajá contou mais um pequeno bairro. Era a nossa aldeia portátil, a nossa vila composta de duas casas, e não a trocaríamos por todo o bairro onde se eleva o esplêndido palácio de arquitectura anglo-indiana do soberano de Burdwan.

     Como se deve imaginar, o nosso elefante produziu ali o efeito costumado, isto é, uma espécie de terror admirativo em todos os bengalis, que acudiam de vários lados, sem nada na cabeça, os cabelos cortados, e tendo, por único fato, os homens uma tanga em volta dos rins, e as mulheres um sari branco, que as envolvia da cabeça até aos pés.

     Só tenho um único receio disse o capitão Hod, é que o marajá queira comprar o nosso Gigante de Aço, e ofereça uma tal quantia que sejamos obrigados a vendê-lo a Sua Alteza!

     Nunca! exclamou Banks. Fabricar-lhe-ei outro elefante quando ele quiser, e tão potente que possa arrastar toda a sua capital de uma extremidade dos seus estados à outra Mas o nosso não lho vendemos por preço nenhum. Não é verdade, Munro?

     Por preço nenhum! - repetiu o coronel, no tom de um homem a quem o oferecimento de um milhão não seria capaz de seduzir.

     Não houve contudo ocasião para discutir a compra do nosso colosso. O marajá não estava em Burdwan.

     A única visita que recebemos foi a do seu kandar, espécie de secretário particular, que veio examinar o nosso comboio.

     Em seguida ao exame, esta personagem propôs-nos, o que foi aceito com muito boa vontade, que visitássemos os jardins do palácio, plantados dos mais belos exemplares da vegetação tropical, humedecidos por águas de nascentes, distribuídas em lagos ou deslizando em regatos, e igualmente o parque, ornado de caprichosos quiosques do mais belo efeito, atapetado de verdejantes tabuleiros de relva, povoado de cabritos, de cervos, de gamos, de elefantes, representantes da fauna doméstica, e de tigres, de leões, de panteras e de ursos, representantes da fauna selvagem, metidos em grandes jaulas.

     Tigres de gaiola como os pássaros, meu capitão! exclamou Fox. Até me mete dó!

     Sim, Fox! volveu o capitão. Se as consultassem, essas boas feras diriam que preferiam vaguear livremente nos juncais... mesmo ao alcance da bala explosiva de uma carabina!

     Ah! meu capitão, como eu compreendo isso retorquiu a ordenança, soltando um profundo suspiro.

     No dia seguinte, 10 de Março, deixámos Burdwan.

     A «Steam House», bem abastecida, atravessava a via férrea numa passagem de nível e dirigia-se directamente para Ramghur, cidade situada a quase setenta e cinco léguas de Calcutá.

     É verdade que este itinerário deixava à nossa direita a importante cidade de Murchedabad; Monghir, espécie de Birmingham do Indostão, empoleirada num promontório que domina a corrente do rio sagrado; Patna, capital do reino de Behar, que íamos atravessar obliquamente, famoso centro de comércio do ópio, e que tende a desaparecer sob a invasão das plantas trepadeiras em que a sua flora abunda. Porém, tínhamos coisa melhor que fazer, e era seguir na direcção mais meridional, a dois graus acima do vale do Ganges.

     Nesta parte da viagem deu-se mais alguma força ao Gigante de Aço, que sustentou um trote miúdo, e esta circunstância permitiu-nos apreciar a perfeita instalação das nossas casas suspensas. Além disso, a estrada era excelente e prestava-se à experiência.

     Coisa incrível! Na passagem do gigantesco elefante, vomitando fumo e fogo, as feras parece que se assustavam. A verdade, com grande assombro do capitão Hod, é que não víamos nenhuma no meio dos juncais daquele território. No entanto, era através das regiões setentrionais da índia, não nas províncias de Bengala, que ele esperava satisfazer os seus instintos de caçador, e por isso não se queixava ainda.

     A 15 de Maio, estávamos perto de Ramghur, quase a cinquenta léguas de Burdwan. A média da velocidade fora de quinze léguas por doze horas, não mais que isso.

     Três dias depois, a 18, o trem parava, cem léguas mais adiante, próximo da pequena cidade de Chittra.

     Nenhum incidente assinalara aquele primeiro período da viagem. Os dias estavam quentes, mas como era fácil a sesta ao abrigo dos toldos Passámos debaixo deles as horas mais ardentes, num farniente delicioso,

     À tarde, Storr e Kalouth, sob a vigilância de Banks, ocupavam-se em limpar a caldeira e examinar a máquina.

     Durante isto, eu e o capitão Hod, acompanhados de Fox, de Gumi e de dois cães de caça, íamos caçando nos arredores do acampamento.

     Não passava por enquanto de caça miúda; mas se o capitão lhe dava pouco apreço como caçador, dava-lhe muito como gastronome, e no dia seguinte, com extremo contentamento seu e grande satisfação de Monsieur Parazard, a lista do jantar contava algumas peças saborosas, que economizavam as nossas conservas.

     Às vezes Gumi e Fox ficavam, para desempenharem o cargo de lenhadores e carregadores de água. Pois não era preciso foinecer o tênder para a jornada do dia seguinte?

     Por esta razão, Banks também escolhia sempre, para as paragens, lugares situados junto de alguma ribeira, próximos de algum bosque. Os indispensáveis abastecimentos operavam-se sempre sob a direcção do engenheiro, que não desprezava nenhuma minuciosidade.

     Concluído tudo, acendíamos os nossos charutos, excelentes produtos das fábricas de Manila, e fumávamos, conversando ao mesmo tempo acerca deste país, que Hod e Banks conheciam a fundo.

     Quanto ao capitão, desprezando o charuto vulgar, aspirava com os vigorosos pulmões de que a natureza o dotara, através de um tubo de vinte pés de comprimento, o fumo aromatizado de um houkah, preparado pela mão do impedido.

     Era sempre o nosso maior desejo que o coronel Munro nos acompanhasse nas excursões aos arredores do acampamento. Invariavelmente lhe propúnhamos isto no momento de partir, mas também invariavelmente ele recusava o nosso oferecimento e ficava com o sargento Mac Neil. Punham-se ambos a passear, de cá para lá, na extensão de uns cem passos.

     Falavam pouco, mas pareciam entender-se maravilhosamente e não tinham necessidade de trocar palavras para trocar os pensamentos.

     Absorviam-se ambos nas funestas recordações, que nada podia apagar-lhes da memória.

     Quem sabe até se essas recordações se não avivavam à medida que eles se aproximavam do teatro da insurreição!

     Evidentemente, alguma ideia fixa, que só mais tarde conheceremos, e não o simples desejo de não se separar de nós, levava o coronel Munro a tomar parte nesta expedição ao Norte da índia.

     Devo dizer que Banks e o capitão Hod tinham a mesma opinião a este respeito. Por isso, nós três perguntávamos no nosso íntimo se aquele elefante de aço, correndo através das planícies da península, arrastava após si um drama completo.

   

    Os peregrinos de Phalgou

     OBehar formava outrora o império de Magadha. Era uma espécie de território sagrado no tempo dos budistas, e ainda está coberto de templos e de mosteiros.

     Há já, porém, muitos séculos que os brâmanes sucederam aos padres de Buda. Apoderaram-se dos viharas, exploraram-nos e vivem dos produtos do culto; de todas as partes vêm ter com eles os fiéis; fazem concorrência às águas sagradas do Ganges, às peregrinações de Benares, às cerimónias de Jaggernaut; finalmente, pode dizer-se que todo o território lhes pertence.

     Região rica, com os seus imensos arrozais verde-esmeralda e as suas vastas plantações de papoila, povoada de inúmeras aldeias, perdidas por entre a verdura, das tamareiras, das taras, sobre as quais a natureza lançou uma espécie de rede inextricável de cipós.

     As estradas que a «Steam House» segue formam outros tantos caminhos cobertos de densas latadas, cuja frescura é alimentada por um solo sempre húmido.

     Os relinchos do nosso elefante misturam-se com o concerto ensurdecedor da população alada e com a gritaria discordante das tribos simianas. O fumo da máquina enrola densas espirais nas fénix campestres e nas bananeiras, cujos frutos dourados se destacam como estrelas em meio de ligeiras nuvens.

     Quando o trem passa levantam-se nuvens de aves do arroz, cujas penas brancas se confundem com as brancas espirais do vapor.

     Num ou noutro ponto, grupos de banianas, pequenos bosques de pamplumossas, tabuleiros de dalhs espécie de ervilhas arbóreas, cujo tronco tem um metro de altura destacam-se vigorosamente, servindo de contraste às paisagens de fundo.

     Mas que calor! Apenas um pouco de ar húmido entra pelas cortinas de vetiver das janelas. Os hot winds, os ventos quentes, que se carregam de calórico ao perpassarem pela superfície das extensas planícies do Norte, bafejam a campina com o fôlego abrasado.

     Não é sem tempo que a monção de Junho venha modificar o estado atmosférico.

     Ninguém poderia suportar a acção deste sol de fogo sem risco de alguma sufocação mortal.

     Por isso o campo está deserto. Os próprios raiots, apesar de bastante habituados a estes jactos de lume, não poderiam dar-se aos trabalhos da cultura.

     Só é transitável a estrada coberta de ramagem, e ainda assim com a condição de a percorrermos ao abrigo do nosso bungalow ambulante.

     É preciso que o fogueiro Kalouth seja, já não digo de platina, porque a platina fundiria, mas de carbono puro, para não entrar em fusão diante da grelha ardente da caldeira. Não! O bravo indiano resiste. Como que adquiriu uma segunda organização refractária na sua vida sobre as plataformas das locomotivas, a correr pelos caminhos de ferro da índia central.

     No dia 19 de Maio, o termómetro Fahrenheit, suspenso da parede da casa de jantar, indicou cento e seis graus, ou 41 centígrados.

     Naquela tarde não pudemos dar o nosso passeio higiénico do hawakana.

     Esta palavra significa «devorar o ar», isto é, que, depois das sufocações produzidas por um dia tropical, se vai respirar um pouco do ar tépido e puro da tarde. Agora, se déssemos um tal passeio, seria a atmosfera que nos devoraria.

     Senhor Maucler - disse-me o sargento Mac Neil, lembra-me isto os últimos dias de Março, durante os quais Sir Hugh Rose, com uma bateria de duas peças apenas, procurava abrir brecha na muralha de Lucknow. Havia dezasseis dias que transpuséramos o rio Betwa, e durante esses dias nem uma só vez se tinham desenfreado os cavalos. Batíamo-nos entre enormes muralhas de granito, que vale o mesmo que dizer entre as paredes de tijolos de um alto forno. Chitsis, que traziam água nos odres, atravessavam as nossas fileiras, e, enquanto nós atirávamos, despejavam-nos o líquido sobre a cabeça, sem o que cairíamos fulminados. Espere. Lembro-me ainda! Estava exausto. Parece que me estalava o crânio. Ia cair... O coronel Munro vê-me e, arrancando o odre das mãos de um chitsi, despeja-o sobre mim... e era a última água que os chitsis tinham podido obter!... Isto nunca se esquece, sabe? Não! Gota de sangue por gota de água! Mesmo que eu desse todo o meu sangue pelo coronel, ainda ficava devedor!

     Eu perguntei então ao sargento:

     Não acha que o coronel Munro, depois que se pôs a caminho, tem o aspecto mais preocupado do que de costume? Parece que de dia para dia...

     Sim, senhor interrompeu com vivacidade Mac Neil ; mas isso é muito natural! O meu coronel aproxima-se de Lucknow, de Cawnpore, do lugar onde Nana Sahib fez assassinar... Ah! Não posso falar de semelhante coisa sem que me suba o sangue à cabeça! Talvez tivesse sido melhor seguir outro itinerário, e não atravessar as províncias que a revolta devastou. Não vão ainda muito longe esses terríveis acontecimentos, para que a sua lembrança esteja já um pouco desvanecida!

     Porque não mudamos, nesse caso, de caminho? perguntei. Se quer, Mac Neil, vou falar nisso a Banks, ao capitão Hod...

     Já  é  tarde respondeu  o  sargento. Demais, tenho motivos para crer que o meu coronel deseja tornar a ver, talvez pela última vez, o teatro dessa guerra horrível, que quer ir ao sítio onde Lady Munro foi assassinada, e de que modo!

     Se lhe parece, Mac Neil retorqui, é melhor deixar o coronel fazer o que entende, e não alterar em nada os nossos projectos. É muitas vezes uma consolação à nossa dor o virmos chorar sobre o túmulo daqueles que nos são caros...

     Sobre o túmulo, decerto! - exclamou Mac Neil.

     Mas pode-se chamar túmulo a esse poço de Cawnpore, onde tantas vítimas foram precipitadas em montão? Tem isso por acaso semelhanças com os monumentos funerários dos cemitérios da Escócia, conservados por mãos piedosas, cobertos de flores, ensombrados pelas copas das árvores, e onde se lê um nome, um nome só, o da pessoa que já não existe? Ah! senhor, receio bem que a dor do coronel seja terrível! Mas, repito, é já tarde para o fazer mudar de caminho. Quem sabe se ele imediatamente não recusaria acompanhar-nos! Deixemos ir tudo como vai, e que Deus nos guie!

     Não podia haver dúvida de que Mac Neil, ao falar assim, sabia o que devia pensar a respeito dos projectos de Sir Edward Munro. Mas diria ele tudo quanto sabia, não teria sido exactamente o projecto de tornar a ver Cawnpore que havia resolvido o coronel a sair de Calcutá? A verdade é que parecia que um íman o atraía ao teatro onde se dera o desenlace daquele funesto drama!... Era preciso deixá-lo.

     Lembrei-me então de perguntar ao sargento se desistia, pela parte que lhe dizia respeito, de toda a ideia de vingança, numa palavra, se julgava que Nana Sahib houvesse morrido.

     Não respondeu-me muito terminantemente ; apesar de que não tenho nenhum indício sobre que possa fundar a minha opinião, não creio, não posso crer que Nana Sahib morresse sem ter sido castigado de tantos crimes! Não! E, contudo, não sei nada, nada pude saber! É uma espécie de instinto que me impele! Ah! Senhor, votar-se a uma vingança legítima já seria alguma coisa na vida de uma pessoa. Permita o céu que os meus pressentimentos não me enganem, e um dia...

     O sargento não concluiu. O seu gesto indicou o que a boca não quisera dizer.

     O criado era digno do amo!

     Quando referi esta conversa a Banks e ao capitão Hod, concordaram ambos que o itinerário não devia nem podia ser modificado.

     Depois, nunca viera à discussão se devíamos ou não passar por Cawnpore, e, transposto o Ganges em Benares, o que devíamos era subir directamente para o norte, atravessando a parte oriental dos reinos de Ude e do Rohilkande.

     Pensasse Mac Neil o que pensasse, não havia a certeza de que Sir Edward Munro quisesse tornar a ver Lucknow ou Cawnpore, que lhe despertariam tão horríveis recordações. Mas, em suma, se ele quisesse isso, não o haviam de contrariar.

     Quanto a Nana Sahib, era tal a sua fama que, se a notícia da sua presença na presidência de Bombaim não mentia, deveríamos ter ouvido novas dele. Mas quando partimos de Calcutá, já não se falava do nababo, e as informações colhidas pelo caminho faziam crer que a autoridade fora enganada.

     Em 19 de Maio, pelo meio-dia, tínhamos passado além da aldeia de Chittra. A «Steam House» achava-se agora a 450 quilómetros do seu ponto de partida.

     No dia seguinte, ao cair da noite, o Gigante de Aço chegava, após um dia tórrido, aos arredores de Gaya.

     Fez-se alto na margem de um rio sagrado, o Phalgou, que é bem conhecido dos peregrinos. A casa ambulante estacionou numa bonita praia, sombreada por belas árvores, quase a duas milhas da cidade.

     Era nossa intenção passar trinta e seis horas naquele lugar, isto é, duas noites e um dia, porque aquele sítio é muito curioso e merece ser visitado.

     No dia seguinte, logo às quatro horas da manhã, a fim de evitarmos os calores do meio-dia, eu, Banks e o capitão Hod, depois de nos despedirmos do coronel Munro, dirigimo-nos para Gaya.

     Afirma-se que cento e cinquenta mil devotos afluem anualmente àquele centro dos estabelecimentos bramânicos. Efectivamente, nas proximidades da cidade, achavam-se os caminhos invadidos por um grande número de homens, de velhos e crianças.

     Toda esta gente caminhava processionalmente através do campo, depois de suportar as fadigas de uma longa (peregrinação, para cumprir os seus deveres religiosos.

     Banks já visitara aquele território do Behar na época em que fazia os estudos de um caminho de ferro, que não está ainda em via de execução.

     Conhecia portanto a região; não podíamos ter melhor guia. Obrigou o capitão Hod a deixar no acampamento todo o seu equipamento de caçador. Não havia, pois, receio de que o nosso Nemrod nos abandonasse no caminho.

     Um pouco antes de chegarmos à cidade, a que se pode com razão chamar santa, Banks fez-nos parar diante de uma árvore sagrada, à roda da qual os peregrinos de todas as idades e de ambos os sexos se achavam na postura da adoração.

     A árvore era um pipal de enorme tronco; mas, apesar de que os seus ramos já estavam a cair de velhice, não devia contar mais de duzentos a trezentos anos de existência. Era isto que Louis Rousselet devia verificar, dois anos depois, durante a sua interessante viagem através da índia dos rajás.

     Árvore Boddhi, tal era o nome, em leligião, desta última representante da geração dos pipals sagrados, que sombrearam este mesmo lugar durante uma longa série de séculos, e o primeiro dos quais foi plantado quinhentos anos antes da era de Cristo.

     É provável que, para os fanáticos prostrados diante dela, fosse a mesma que Buda consagrou naquele lugar. Actualmente erguia-se sobre um terraço em ruínas, muito perto de um templo em tijolos, cuja origem é evidentemente bastante antiga.

     Não foi vista com muito bons olhos a presença de três europeus em meio daqueles milhares de indianos.

     Nada nos disseram, mas não pudemos chegar ao terraço, nem penetrar nas ruínas do templo. Também, os peregrinos atulhavam-nos e seria muito difícil abrir caminho por entre eles.

     Se  houvesse  por aqui  algum  brâmane disse Banks -, a nossa visita seria mais completa, e poderíamos visitar o edifício até aos seus subterrâneos.

     Como? observei Pois um padre seria menos severo que os seus próprios fiéis?

     Meu caro Maucler redarguiu Banks -, não há padre que resista ao oferecimento de algumas rupias. Depois, sempre é preciso que os brâmanes vivam!

     Pois eu não vejo que seja preciso tornou o capitão Hod, que cometia a falta de não ter com os costumes, superstições e objectos de veneração dos indianos a tolerância que os seus compatriotas com tanto respeito lhes concedem.

     Por então a índia não era para eles senão uma vasta região de caças reservadas, e à população da cidade ou dos campos preferia incontestavelmente as feras dos juncais.

     Depois de uma demora conveniente junto da árvore sagrada, Banks conduziu-nos pela estrada em direcção a Gaya.

     À medida que nos aproximávamos da cidade santa, crescia a multidão de peregrinos. Dali a pouco, por entre uma abertura da verdura, aparecia-nos Gaya, sobre o cimo do rochedo, que ela coroa com as suas construções pitorescas.

     O que principalmente atrai a atenção dos viajantes naquele lugar é o templo de Vixnu.

     É de construção moderna, porque foi reedificado, há apenas alguns anos, pela rainha de Holcar.

     A principal curiosidade deste templo são os vestígios que o próprio Vixnu ali deixou, quando se dignou baixar à terra para lutar com o demónio Maya.

     Não podia ficar duvidosa por muito tempo a luta entre um deus e um diabo. O demónio sucumbiu, e uma grande pedra, visível no próprio recinto de Vixnu-Pad, atesta, pelos profundos vestígios dos pés do seu adversário, que este diabo tivera de se haver com inimigo muito sério.

     Disse «uma pedra visível», mas apresso-me a acrescentar que é visível só para os indianos.

     Nenhum europeu é admitido a contemplar aqueles divinos vestígios. Talvez que, para bem os distinguir sobre a pedra milagrosa, seja precisa uma fé robusta, que já não se encontra entre os crentes dos países ocidentais.

     Desta vez Banks teve de guardar as suas rupias, apesar de ter algumas.

     Nenhum padre quis aceitar o que teria sido o preço de um sacrilégio.

     Se a quantia esteve ou não à altura da consciência de um brâmane, é o que não ouso resolver.

     A verdade é que não pudemos entrar no templo, e ainda estou para saber qual é a forma do pé daquele formoso e meigo mancebo de cor cerúlea, vestido como um rei dos tempos antigos, celebrado pelas suas dez encarnações, que representa o princípio conservador oposto a Xiva, o feroz emblema do princípio destruidor, e que os vixnuístas, adoradores de Vixnu, conhecem como o primeiro dos trezentos e trinta milhões de deuses que povoam a sua mitologia eminentemente politeísta.

     Não havia motivo para nos arrependermos da nossa excursão à cidade santa nem ao Vixnu-Pad. Seria impossível descrever a confusão de templos, a sucessão de pátios, a aglomeração de vihaias que nos era preciso contornar ou atravessar para se chegar ao sagrado recinto.

     Naquele labirinto era capaz de se perder o próprio Teseu, com o fio de Ariane na mão!

     Tornámos a descer o rochedo de Gaya.

     O capitão Hod estava furioso. O seu desejo era pregar uma peça ao brâmane que nos recusara o acesso do Vixnu-Pad.

     Passa-lhe semelhante coisa pela ideia, Hod? disse-lhe Banks, contendo-o. Não sabe que os indianos olham os seus padres, os brâmanes, não só como criaturas de um sangue ilustre, mas também de natureza superior?

     Quando chegámos à parte do Phalgou que banha o rochedo de Gaya, desdobrou-se extensamente aos nossos olhos a prodigiosa aglomeração de peregrinos. Numa confusão indescritível, acotovelavam-se homens e mulheres, velhos e crianças, gente do campo e da cidade, ricos babus e pobres raiots da mais baixa categoria; vaichyas, mercadores e agricultores; kchatryas, os feros guerreiros da região; suaras, miseráveis operários de seitas diferentes; párias, que estão fora da lei, e cujos olhos poluem os objectos para que olham numa palavra, todas as classes ou todas as castas da índia, o radjupt vigoroso acotovelando desdenhosamente o bengali definhado, os habitantes do Pendjab, opostos aos maometanos do Sinde.

     Uns vieram de palanquim, outros em veículos puxados por grandes bois de corcova.

     Uns jornadearam nos seus camelos, cuja cabeça viperina se estende pelo solo, e estão deitados junto deles, outros vieram a pé, continuando a chegar ainda mais de todos os lados da península.

     Por todo o acampamento vêem-se levantadas tendas, carros desatrelados, choças de ramos, que servem de habitações provisórias a toda aquela gente.

     Que balbúrdia! disse o capitão Hod.

     As águas do Phalgou não devem ser agradáveis de beber ao pôr do Sol! observou Banks.

     Mas porquê? - perguntei.

     Porque todas estas águas são sagradas, e toda esta multidão suspeita vai banhar-se nelas, como os habitantes do Ganges fazem nas águas do seu rio.

     Estamos então para a banda de baixo do rio? perguntou Hod, estendendo- a mão na direcção onde se achava o nosso acampamento.

     Não, meu capitão, sossegue retorquiu o engenheiro, estamos para a banda de cima.

     Ainda bem, meu Banks! É preciso não saciar nesta corrente impura o nosso Gigante de Aço!

     Nós íamos atravessando por meio- dos indianos amontoados num espaço bastante acanhado.

     O que feria mais os ouvidos era o ruído discordante de cadeias e de campainhas. Eram os mendigos que faziam apelo à caridade pública.

     Viam-se ali fervilhar as variadas amostras dessa confraria de vadios, tão considerável em toda a península indiana.

     A maior parte ostentava chagas fingidas, como os Clopin-Trouillefou da Idade Média. Mas se os mendigos de profissão são na maior parte falsos mendigos, não sucede o mesmo com os fanáticos.

     É difícil levar mais longe a convicção religiosa.

     Viam-se faquires quase nus, cobertos de cinza; este com uma anquilose no braço por efeito de prolongada tensão; aquele com a mão atravessada pelas unhas dos próprios dedos.

     Outros haviam-se imposto a condição de medirem com o corpo todo o caminho percorrido desde o ponto de partida. Deitando-se no chão, levantando-se, tornando a deitar-se, tinham feito centenas de léguas por este modo, como se houvessem servido de medida de agrimensor.

     Aqui, vários fiéis embriagados pelo hang ópio líquido, misturado com uma infusão de cânhamo estavam pendurados em ramos de árvores por meio de ganchos de ferro, cravados nos ombros. Suspensos por este modo, giram sobre eles próprios até que a carne lhes venha a faltar e caiam no Phalgou.

     Além, vários outros, em honra de Xiva, com as pernas atravessadas, a língua perfurada, e frechas que os atravessavam de lado a lado, faziam lamber por serpentes o sangue que lhes corria das feridas.

     Para um europeu este espectáculo não podia deixar de ser senão muito repugnante. Por isso eu tinha pressa de passar; mas Banks deteve-me de repente, dizendo-me:

     A hora da oração!

     Neste momento apareceu um brâmane no meio da multidão.

     Ergueu a mão direita para o Sol, oculto até ali pelo rochedo de Gaya.

     O primeiro raio do astro do dia foi o sinal.

     A multidão, quase nua, entrou pelas águas sagradas.

     Como nos primeiros tempos do baptismo, houve simples imersões; devo, porém, dizer que não tardaram a tornar-se em verdadeiras folias balneatórias, cujo carácter religioso era de difícil percepção.

     Ignoro se os iniciados, ao recitarem os slocas ou versículos, que por um preço convencionado lhes ditavam os padres, cuidavam mais de lavarem o corpo que a alma. A verdade é que, depois de apanharem água no côncavo da mão, de aspergirem os quatro pontos cardeais, atiravam algumas gotas ao rosto, como banhistas que se divertem com as primeiras ondas numa praia de banhos.

     Devo também acrescentar que não se esqueciam de arrancar pelo menos um cabelo por cada pecado que tinham cometido. Quantos não haveria que merecessem sair calvos das águas do Phalgou!

     Eram tais as evoluções balneatórias destes fiéis, umas vezes turvando a água com os seus súbitos mergulhos, outras dando aos calcanhares como nadadores de mérito, que os crocodilos, assustados, fugiam para a margem oposta. Ali, com os olhos esverdeados fitos naquela multidão ruidosa, que lhes invadia os domínios, conservavam-se em linha, ferindo os ares com o bater das suas queixadas formidáveis. Os peregrinos faziam tanto caso deles como de lagartos inofensivos.

     O almoço reuniu-nos à mesa, e o resto do dia, que foi extremamente quente, passou-se sem incidente algum.

     À tarde, o capitão Hod foi bater os arredores, e trouxe alguma caça miúda. Entretanto, Storr, Kalouth e Gumi renovavam a provisão de água e de combustível e enchiam a fornalha. Tratava-se de partir ao romper do dia.

     Às nove horas tínhamo-nos todos recolhido.

     Preparava-se uma noite serena, mas muito escura.

     Espessas nuvens ocultavam as estrelas e sobrecarregavam a atmosfera.

     O calor nada perdia da sua intensidade, nem com o pôr do Sol.

     A atmosfera era tão sufocante que a custo adormeci.

     Através da minha janela, que eu deixara aberta, apenas entrava um ar ardente, que me parecia muito impróprio para o funcionamento regular dos pulmões!

     Deu meia-noite sem eu ter tido um só momento de repouso, apesar de me haver deitado na firme resolução de dormir três ou quatro horas antes de me pôr a caminho. Debalde, porém, eu chamava pelo sono; o sono fugia de mim. A vontade nada pode neste acto da vida, bem pelo contrário.

     Devia ser quase uma hora da noite quando me pareceu ouvir uma espécie de rumor, que se propagava pelas margens do Phalgou.

     O que logo me acudiu à ideia foi que, sob a influência de uma atmosfera muito saturada de electricidade, algum vento tempestuoso começava a levantar-se para oeste. Seria por certo um vento ardente, mas, em suma, sempre deslocaria as camadas do ar e tornaria mais respirável o ambiente.

     Enganava-me. A ramagem do arvoredo, que abrigava o acampamento, conservava imobilidade absoluta.

     Deitei a cabeça fora da janela e escutei.

     Tornou a ouvir-se o longínquo rumor, mas não vi nada. O vasto lençol líquido do Phalgou jazia em trevas, sem nenhum dos trémulos reflexos produzidos pela água que se agita.

     Não vinha o rumor nem das águas nem do ar, mas nada vi de suspeito.

     Tornei a deitar-me e, como me vencesse o cansaço, principiei a cair em modorra.

     De quando em quando chegavam-me lufadas deste inexplicável murmúrio, mas acabei por adormecer de todo.

     Duas horas depois, no momento em que os primeiros alvores da aurora rompiam a espessura das trevas, acordei de sobressalto.

     Chamavam pelo engenheiro.

     Senhor Banks?

     Que me querem?

     Venha cá.  Reconheci a voz de Banks e a do maquinista que acabavam de entrar no corredor.

     Levantei-me logo e saí do meu camarote.

     Banks e Storr já estavam na varanda da frente.

     Também me precedera o coronel Munro, e o capitão Hod não tardou a reunir-se connosco.

     Que há de novo? - perguntou o engenheiro.

     Olhe, senhor - respondeu Storr.

     À vaga claridade do dia nascente, podiam-se observar as margens do Phalgou e uma parte da estrada, que se estendia em frente por espaço de muitas milhas.

     Foi grande a nossa surpresa quando avistámos muitas centenas de indianos, deitados em grupos, enchendo as margens e estorvando caminho.

     São os nossos peregrinos de ontem - disse o capitão Hod.

     Que fazem eles ali? - perguntei.

     Esperam decerto que nasça o Sol respondeu o capitão para se banharem nas águas sagradas!

     Não observou Banks. Pois não podiam fazer as suas abluções mesmo em Gaya? Se aqui vieram, foi que...

     Foi que o nosso Gigante de Aço produziu o seu habitual  efeito! exclamou  o  capitão  Hod. É  que souberam que um elefante gigantesco, um colosso, como nunca viram nenhum, estava nas proximidades, e vieram admirá-lo.

     O caso é que se limitem a admirá-lo retorquiu o engenheiro, abanando a cabeça.

     Então o que receias? - perguntou o coronel Munro.

     Ora, receio... que esses fanáticos nos impeçam o caminho e nos estorvem a marcha.

     Em todo o caso, prudência! com tais devotos todos os cuidados são poucos.

     Certamente concordou Banks.

     E em seguida chamou pelo fogueiro e perguntou:

     Kalouth, a fornalha está preparada?

     Sim, senhor.

     Bem, então acende-a.

     Sim,  Kalouth, acende a fornalha! exclamou o capitão Hod. Atiça o fogo, Kalouth, e que o nosso elefante lance na cara de todos esses peregrinos o seu hálito de fumo a vapor!

     Eram três horas e meia da manhã. Bastava meia hora, o muito, para que a máquina estivesse na pressão devida.

     Depressa se acendeu a fornalha, a lenha crepitou nas grelhas, e um fumo negro saiu da gigantesca tromba do elefante, cuja extremidade se perdia por entre os ramos das grandes árvores

     Aproximaram-se neste momento alguns grupos de indianos. Houve um movimento geral na multidão. Rodearam de mais perto o trem.

     Nas primeiras filas, os peregrinos levantavam os braços para o ar, estendiam-nos para o elefante, curvavam-se, ajoelhavam, prostravam-se até tocarem no pó.

     Era evidentemente uma adoração, levada ao mais alto grau.

     Eu, o coronel Munro e o capitão Hod assistíamos da varanda àquela cena, bastante inquietos por não sabermos onde iria parar aquele fanatismo.

     Mac Neil reunira-se-nos e conservava-se silencioso.

     Quanto a Banks, fora com Storr tomar lugar na torrinha que o enorme animal levava sobre o dorso, e da qual podia manobrar à vontade.

     Às quatro horas já a caldeira roncava.

     Este ronquido devia ser considerado pelos indianos como o rosnar colérico de um elefante de ordem sobrenatural.

     Neste momento o manómetro indicava uma pressão de cinco atmosferas, e Storr deixava sair pelas válvulas o vapor, como se este saísse da pele de gigantesco paquiderme.

     Estamos em pressão, Munro! gritou Banks.

     A caminho, Banks volveu o coronel -, mas com prudência, não esmaguemos alguém.

     Era quase dia. A estrada que corre ao longo do Phalgou estava completamente tomada por aquela multidão de devotos, pouco dispostos a deixarem-nos passar.

     Em tais condições, avançar sem esmagar ninguém não era coisa fácil.

     Banks soltou dois ou três apitos, aos quais os peregrinos responderam com berros frenéticos.

     Arredem-se!  Arredem-se! gritou  o  engenheiro, ordenando ao maquinista que abrisse um pouco o regulador.

     Os rugidos do vapor, que se precipitava nos cilindros, fizeram-se ouvir. As rodas da máquina deram meia volta. Da tromba do elefante saiu um formidável jacto de fumo branco.

     A multidão apartara-se por um momento.

     Abriu-se metade do regulador. Os ronquidos do Gigante de Aço aumentaram, e o nosso trem começou a mover-se por entre as fileiras compactas dos indianos, que pareciam querer abrir caminho.

     Banks, toma cuidado! exclamei de súbito. Debruçando-me da varanda, acabara de ver uma dúzia daqueles fanáticos deitarem-se na estrada com a intenção bem evidente de se deixarem esmagar debaixo das rodas da pesada máquina.

     Atenção! Atenção! Afastem-se gritava o coronel Munro, que lhes fazia sinal para se levantarem.

     Que idiotas! - exclamou o capitão Hod. - Tomam o nosso mecanismo pelo carro Jaggernaut! Querem fazer-se esmagar debaixo dos pés do elefante sagrado!

     A um sinal de Banks, o maquinista fechou a introdução do vapor.

     Os peregrinos, estendidos pelo caminho, pareciam resolvidos a não se levantarem.

     Em roda deles, a multidão fanatizada soltava gritos e animava-os com o gesto.

     A máquina parara. Banks já não sabia que havia de fazer e achava-se muito embaraçado.

     De súbito, ocorreu-lhe uma ideia.

     Agora é que vamos ver! - disse.

     Abriu no mesmo instante a torneira, e intensos jactos de vapor esguicharam ao longo do solo, ao mesmo tempo que soavam apitos estridentes.

     Bravo! Bravo! Bravo! - exclamou o capitão Hod. - Escalda-os, amigo Banks, escalda-os!

     O meio era bom. Apanhados pelos jactos de vapor, os fanáticos levantaram-se, soltando gritos de indivíduos que se sentiam escaldados. Fazerem-se esmagar, vá! Queimarem-se é que não!

     A multidão afastou-se e o caminho ficou livre. Abriu-se então todo o regulador, e as rodas começaram a trilhar o solo com segurança.

     Avante! Avante! bradou o capitão Hod, que batia as palmas e ria com muito gosto.

     E com um andamento mais rápido o Gigante de Aço, correndo em linha recta pela estrada, desapareceu depressa aos olhos da multidão espantada, como um animal fantástico envolto em nuvens de vapor.

   

    Algumas horas em Benares

     Diante  da  «Steam  House»  estava  agora  livre  a estrada a estrada que, por Sasseram, nos ia conduzir à margem direita do Ganges, em frente de Benares. Uma milha além do acampamento, a máquina tomou um andamento mais vagaroso, isto é, de quase duas léguas e meia por hora. A tenção de Banks era acampar a vinte e cinco léguas de Gaya, e passar tranquilamente a noite nos arredores da pequena cidade de Sasseram.

     Geralmente, na índia, as estradas evitam tanto quanto é possível as correntes, as quais tornam necessárias as pontes, que são muito custosas de edificar naqueles terrenos de formação aluviana. É por isso que as pontes ainda estão por construir, em muitos lugares onde foi impossível evitar que algum rio ou ribeira estorvasse o caminho. Aí, porém, existe sempre a barcaça, esse antigo e rudimentar aparelho, que seria com certeza insuficiente para transportar o nosso trem.

     Felizmente podíamos dispensá-la. Naquela  tarde,  exactamente, foi  preciso atravessar uma importante via fluvial, o Sone. Este rio, alimentado acima de Rhotas pelos seus afluentes do Coput e do Coyle, vai perder-se no Ganges, quase entre Arrah e Dinapore. A passagem foi a coisa mais fácil. O elefante transformou-se muito naturalmente em motor marítimo.

     Desceu a praia num sítio em que esta era mais suave, entrou no rio, sustentou-se à superfície da água, e com as grandes patas, que batiam no líquido como as pás de uma roda motora, puxou brandamente o trem, que flutuava após ele.

     O capitão Hod não cabia em si de alegria.

     Uma casa que roda! exclamou e que ao mesmo tempo é uma carruagem e um barco a vapor! Só lhe faltam asas para se transformar em aparelho voador e atravessar o espaço!

     Isso um dia ou outro há-de fazer-se, amigo Hod replicou o engenheiro, muito a sério.

     - Bem sei, amigo Banks retorquiu o capitão não menos seriamente. Tudo se há-de fazer! Mas o que não se há-de fazer será ressuscitarmos daqui a duzentos anos para vermos essas maravilhas. A vida nem sempre é alegre, e, não obstante, eu de boa vontade viveria dez séculos por simples curiosidade.

     À noite, a doze horas de Gaya, depois de havermos passado por baixo da magnífica ponte tubular em que assenta a via férrea, a oitenta pés acima do leito do Sone, acampávamos nos arredores de Sasseram.

     Tratava-se só de passar uma noite naquele local, para renovarmos a provisão da lenha e água e tornar a partir ao romper da aurora.

     Este programa foi executado em todos os seus pontos, e no dia seguinte pela manhã, 22 de Maio, antes das horas ardentes que nos reservava o sol fortíssimo do meio-dia, já estávamos outra vez a caminho.

     A região continuava com o mesmo aspecto, isto é, muito fértil e muito cultivada. É assim que ela se apresenta nas proximidades do esplêndido vale do Ganges.

     Não falarei das numerosas aldeias que se perdem em meio dos inúmeros arrozais, entre os bosques das taras de densa folhagem em abóbada, à sombra das mangueiras e de outras árvores de magnífico aspecto.

     Não parávamos. Quando sucedia estar o caminho impedido por algum carro, puxado pelo passo lento dos zebus, dois ou três apitos faziam-no afastar, e o nosso trem passava, com grande pasmo dos raiots.

     Naquele dia tive o prazer incomparável de ver grande número de campos de rosas. Efectivamente não estávamos muito longe de Ghazipore, grande centro da produção da água de rosas, ou, melhor dizendo, da essência daquelas flores.

     Perguntei a Banks se me podia dar algumas informações a respeito daquele produto tão procurado, que parece ser a última palavra da arte em matéria de perfumaria.

     Eis alguns algarismos respondeu-me Banks, os quais lhe vão mostrar quão dispendioso é um tal fabrico. Submetem-se primeiramente quarenta libras de rosas a uma destilação lenta por meio de fogo brando, e isto tudo produz cerca de trinta libras de água de rosas. Esta água é deitada sobre um novo montão de quarenta libras de flores, cuja destilação é levada ao ponto de ficar a mistura reduzida a vinte libras. O resultado desta operação expõe-se durante doze horas ao ar fresco da noite, e no dia seguinte encontra-se, coalhada na superfície, o quê? Uma onça de líquido odorífero. Portanto, de oitenta libras de rosas quantidade que, segundo se diz, não contém menos de duzentas mil flores só se tira, afinal, uma onça de líquido! É uma verdadeira carnificina! Por isso não deve admirar que no próprio país produtor uma onça de essência de rosas custe quarenta rupias, ou cem francos.

     Olhem lá! observou o capitão Hod. Se para fabricar uma onça de aguardente fossem precisas oitenta libras de uva, um grogue custaria uma quantia por aí além!

     Naquele dia tivemos ainda de atravessar o Karamnaca, um dos afluentes do Ganges.

     Os indianos fizeram deste inocente rio uma espécie do infernal Estige, no qual não é conveniente navegar. As suas margens não são menos amaldiçoadas que as do Jordão ou do mar Morto. Os cadáveres que lhe confiam leva-os ele direitos ao inferno bramânico. Não discuto estas crenças; mas protesto contra a asserção de que as águas deste diabólico rio sejam desagradáveis ao gosto e prejudiciais ao estômago. São, pelo contrário, excelentes.

     À noite, depois de atravessarmos uma região muito pouco acidentada, entre os imensos campos de papoilas e o vasto tabuleiro de arrozais, acampámos na margem direita do Ganges, em frente da antiga Jerusalém dos indianos, cidade santa de Benares.

     Paragem de vinte e quatro horas!declarou Banks.

     A que distância estamos agora de Calcutá? perguntei ao engenheiro.

     A quase trezentas e cinquenta milhas, e há-de confessar, meu amigo, que não demos nem pela extensão do caminho nem pelas fadigas da jornada!

     O Ganges! Haverá algum rio cujo nome desperte mais poéticas lendas? Não parece que toda a índia se resume nele? Existe, porventura, no mundo um vale comparável a este, que, para lhe dirigir o curso grandioso, se estende por um espaço de quinhentas léguas e não conta menos de cem milhões de habitantes? Haverá algum ponto do Globo onde, desde a aparição das raças asiáticas, se tenham acumulado maior número de maravilhas? Ó que não diria Vítor Hugo do Ganges, ele que de um modo tão altíloquo cantou o Danúbio! Sim, um rio pode ser orgulhoso quando tem:

     ... como o mar a vaga, E sobre o mundo se estende Qual serpente, quando corre De ocidente para oriente

     Mas o Ganges tem a sua vaga, os seus ciclones, mais terríveis que os vendavais do rio europeu.

     Também ele desliza como uma serpente pelas mais poéticas regiões do mundo. Também corre do ocidente para o oriente.

     Mas não é num medíocre maciço de colinas que ele nasce! É da mais alta cordilheira do Globo, das montanhas do Tibete, que ele se precipita, recebendo todos os afluentes do seu curso! Desce nada menos que do Himalaia!

     No dia seguinte, 23, ao romper do Sol, o vasto lençol de água cintilava diante dos nossos olhos. Na areia branca alguns grupos de crocodilos, de grande tamanho, pareciam beber os primeiros raios do dia. Estavam imóveis, voltados para o astro radioso, como se fossem os mais fiéis sectários de Brama.

     Arrancaram-nos, porém, à sua adoração alguns cadáveres que passavam flutuando.

     Diz-se que estes cadáveres, que a corrente leva, deslizam de costas, quando são homens, de bruços quando são mulheres.

     Pude verificar que não há nada de verdade nesta asserção.

     Passados instantes, os crocodilos lançaram-se sobre a presa, que as águas da península quotidianamente lhes fornecem, e levaram-na para as profundidades do rio.

     O caminho de ferro de Calcutá, antes de se bifurcar em Allahabad para correr sobre Deli, ao noroeste, e sobre Bombaim, ao sudoeste, segue constantemente a margem direita do Ganges, cujas numerosas sinuosidades economiza, graças à sua direcção em linha recta.

     Da estação de Mogul-Serai, de aue apenas estávamos afastados algumas milhas, parte um ramal, que, atravessando o rio, passa por Benares e pelo vale de Goumti, vai até Jaunpore, percorrendo uns sessenta quilómetros de extensão.

     Benares fica, pois, na margem esquerda. Não era, porém, neste lugar que devíamos transpor o Ganges. Era só em Allahabad.

     O Gigante de Aço ficou, por isso, no acampamento que se escolheu na véspera à noite, 22 de Maio.

     À margem achavam-se amarradas várias gôndolas prontas a conduzirem-nos à cidade santa, que eu desejava visitar com alguma atenção.

     O coronel Munro nada tinha para ver, nada tinha que aprender nesta cidade tantas vezes visitada por ele. Não obstante, naquele dia teve, por momentos, ideias de nos acompanhar; mas, depois de reflectir, resolveu fazer uma excursão às margens do rio, em companhia do sargento Mac Neil.

     Efectivamente, ainda antes de nos pormos a caminho, deixavam ambos a «Steam House».

     Quanto ao capitão Hod, que já estivera na guarnição de Benares, era seu intento ir visitar alguns camaradas. Portanto, só eu e Banks o engenheiro quis servir-me de guia é que íamos visitar a cidade, levados por um simples sentimento de curiosidade.

     Como disse que o capitão Hod estivera na guarnição de Benares, é bom saber que as tropas do exército real não residem habitualmente nas cidades indianas.

     As suas casernas estão situadas no meio de acantonamentos, que por este facto se tornam verdadeiras cidades inglesas. É o que sucede em Allahabad, em Benares e em outros pontos do território, onde não só os soldados, mas também os funcionários, os negociantes, os rendeiros, se agrupam de preferência.

     Cada uma destas cidades é, portanto, dupla.

     Uma com todo o conforto da Europa moderna, outra conservando os costumes do país e os usos indianos com toda a sua cor local!

     A cidade inglesa anexa a Benares é Sécrole, cujos bungalows, avenidas e igrejas cristãs são pouco interessantes para se visitarem.

     Sécrole é uma cidade como costumam ser todas as outras, e que os fabricantes do Reino Unido poderiam expedir em caixotes, para se armarem no local destinado. Nada oferece de curioso.

     Depois de embarcarmos numa gôndola, atravessámos obliquamente o Ganges, de modo que podíamos com a vista abraçar no seu todo aquele magnífico anfiteatro formado por Benares na parte superior de uma praia elevada.

     Benares disse-me Banks é por excelência a cidade sagrada dos indianos. É a Meca indiana, e quem nela viver, só vinte e quatro horas que seja, tem garantida uma parte da ventura eterna. Por isto se compreende que afluência de peregrinos uma tal crença pode atrair e que número de habitantes deve contar uma cidade a que Brama reservou imunidades de tamanha importância.

     Dão a Benares mais de trinta séculos de existência. Por esse cálculo devia ter sido fundada na época em que Tróia ia desaparecer.

     Depois de haver exercido uma influência, não política, mas espiritual, sobre o Indostão, foi o centro mais autorizado da religião búdica até ao nono século.

     Realizou-se, então, uma revolução religiosa. O bramanismo destruiu o antigo culto. Benares tornou-se a capital dos brâmanes, o centro de atracção dos fiéis, e afirma-se que trezentos mil peregrinos a visitam anualmente, e A autoridade metropolitana conservou à cidade santa o seu rajá.

      Este príncipe, escassamente estipendiado pela Inglaterra, habita uma residência magnífica em Ramnagur, sobre o Ganges.

      É um descendente autêntico dos reis de Kaci, antigo nome de Benares, mas já não dispõe de nenhuma influência, caso de que ele se consolaria facilmente se a sua pensão não se achasse reduzida a um laque de rupías, isto é, a cem mil rupias, ou cerca de duzentos e cinquenta mil francos, o que apenas perfaz o dinheiro da algibeira de um nababo de outros tempos.

     Como quase todas as cidades do vale de Ganges, Benares foi por um momento invadida pela insurreição de 1857.

     Nesta época, a sua guarnição compunha-se do 37.º Regimento indígena, de um corpo de cavalaria irregular e de um regimento sikh. Em tropas reais, só tinha meia bateria de artilharia europeia.

     Este punhado de homens não podia pretender desarmar os soldados indígenas. As autoridades, por esse motivo, esperaram, não sem alguma impaciência, a chegada do coronel Neil, que se pusera a caminho para Allahabad com o 10.º Regimento do exército real.

     O coronel Neil entrou em Benares com duzentos e cinquenta homens apenas, e deu-se ordem para uma parada no campo de manobras.

     Reunidos os sipaios, mandou-se-lhes que depusessem as armas. Recusaram.

     Empenhou-se então a luta entre eles e a infantaria do coronel Neil. Aos revoltosos reuniu-se logo a cavalaria irregular, depois os sikhs, que se julgaram traídos.

     Então parte da bateria rompeu fogo, cobriu os revoltosos de metralha, e, apesar do seu valor, apesar do seu encarniçamento, foram completamente derrotados.

     Dera-se este combate fora da cidade. Dentro dela houve apenas uma tentativa de revolta dos muçulmanos, que hastearam a bandeira verde, tentativa que logo abortou.

     Desde aquele dia, enquanto durou a revolta, Benares nunca mais foi perturbada, mesmo nas horas em que a insurreição parecia triunfar nas províncias do oeste.

     Banks dera-me estas poucas informações, enquanto a nossa gôndola deslizava lentamente sobre as águas doGanges.

     Meu amigo disse-me ele -, vamos visitar Benares; muito bem. Mas apesar de esta capital ser muito antiga, não encontrará nela nenhum monumento que conte mais de trezentos anos de existência. Não se admire. É a consequência das lutas religiosas, em que o ferro e o fogo desempenharam um papel bem lastimoso. Em todo o caso, Benares não deixa por isso de ser uma cidade curiosa, e não se há-de arrepender do passeio.

     Dali a nada parava a nossa gôndola a uma distância que nos permitia contemplar, no fundo de uma baía azul como a de Nápoles, o pitoresco anfiteatro das casas que se vão sobrepondo pela colina, e a aglomeração dos palácios, um grupo dos quais ameaça desabar por efeito da acção destruidora que as águas do rio vão exercendo nos seus alicerces.

     Um pagode nepalês, de arquitectura chinesa, consagrado a Buda, uma floresta de torres, de agulhas, de minaretes, de pináculos, projectados pelos templos e mesquitas, dominados pela agulha de ouro do lingam de Xiva, e as duas mesquinhas agulhas da mesquita de Aureng-Zeb, coroam este maravilhoso panorama.

     Em vez de desembarcar num dos ghats, ou escadas, que ligam as praias à plataforma das escarpas, Banks fez passar a gôndola pela frente dos cais, cuja base é banhada pelo rio.

     Encontrei ali uma reprodução do panorama de Gaya, mas com outra paisagem. Em vez das verdes florestas do Phalgou, serviam de fundo ao quadro os últimos planos da cidade.

     Quanto ao assunto, esse era quase o mesmo.

     Milhares de peregrinos cobriam a praia, os terraços, as escadas, e vinham devotadamente mergulhar nas águas, em grupos de três e quatro fileiras.

     Não se suponha que o banho era gratuito.

     Vários guardas, de turbante vermelho e sabre ao lado, postados nos últimos degraus dos ghats, exigiam o tributo, em companhia de industriosos brâmanes, que vendiam rosários, amuletos e outros piedosos objectos.

     Além disso, havia não só peregrinos que se banhavam por sua própria conta, mas também comerciantes cujo negócio consistia unicamente em transportar esta água sagrada aos pontos mais afastados da península.

     Como garantia, cada frasco é marcado com o sinete dos brâmanes.

     É de supor, porém, que a fraude se exerça em grande escala, tão considerável se tornou a exportação deste milagroso líquido.

     Talvez que até toda a água do Ganges não bastasse para as necessidades dos fiéis! disse-me Banks.

     Perguntei-lhe então se aqueles banhos não ocasionavam algumas vezes acidentes, que, segundo observava, não se tratava de evitar. Não havia ali banheiros para deter os imprudentes que se aventuravam na corrente rápida do rio.

     Efectivamente respondeu-me Banks -, são frequentes os sinistros, mas, se o corpo do devoto se perde, salva-se a alma. Por este motivo não se dá muita importância ao caso.

     E os crocodilos? perguntei.

     Os crocodilos conservam-se geralmente afastados. Qualquer ruído os assusta. Não são os monstros que se temem, mas os malfeitores, que mergulham, deslizam por baixo da água, agarram as mulheres, as crianças, levam-nas e arrancam-lhes as jóias. Cita-se até um desses patifes que, sobrepondo uma cabeça artificial, fez por muito tempo o papel de falso crocodilo, e ganhou uma pequena fortuna nesse mister, a um tempo perigoso e lucrativo.

     «Um dia o falso anfíbio foi devorado por um verdadeiro, e só se lhe encontrou depois a cabeça de pele curtida, que flutuava sobre o rio.

     Além disso, há fanáticos alucinados que voluntariamente procuram a morte nas águas do Ganges, e fazem-no até com algum requinte. Amarram ao corpo uma enfiada de urnas vazias e sem tampa. A água vai pouco a pouco enchendo as urnas e submerge-os vagarosamente, com grandes aplausos dos devotos.

     A gôndola conduziu-nos depressa a Manmenka-Ghat.

     Nesta ghat sobrepõem-se as piras a que se confiam os cadáveres de todos os mortos que cuidaram da vida futura.

     A cremação neste lugar é avidamente procurada pelos fiéis, e as piras ardem noite e dia.

     Os ricos babus dos territórios afastados fazem-se transportar a Benares, assim que se sentem atacados de doença fatal.

     É que, sem contradição, Benares é o melhor ponto de partida para a «viagem do outro mundo».

     Se o defunto só se acusa de faltas veniais, a sua alma, levada nos fumos do Manmenka, irá direita à mansão das felicidades eternas. Se foi grande pecador, a sua alma, pelo contrário, deverá antecipadamente regenerar-se no corpo de algum brâmane que esteja para nascer.

     É então de esperar que, tendo sido exemplar a sua vida durante a segunda encarnação, não lhe seja imposto terceiro castigo antes da sua admissão definitiva à partilha das delícias do céu de Brama.

     Empregámos o resto do dia em visitar a cidade, os seus principais monumentos, os seus bazares guarnecidos de lojas escuras à moda árabe.

     Vendem-se neles principalmente finas musselinas de precioso tecido, e o kinkôb, espécie de fazenda de seda bordada a ouro, que é um dos principais produtos da indústria de Benares.

     As ruas estavam muito limpas e bem conservadas, mas eram estreitas, como convém às cidades sobre as quais os raios do sol tropical dardejam continuamente.

     Apesar de nelas se encontrar sombra, o calor ainda abafa. Causavam-me dó os condutores do nosso palanquim, mas eles não pareciam queixar-se muito.

     Depois, aqueles pobres diabos tinham ocasião de ganhar algumas rupias, e isto dava-lhes força e coragem. Mas nem desse estímulo precisava um certo indiano, ou, melhor dizendo, bengali, de olhar vivo, fisionomia astuciosa, que, sem fazer grande diligência para se ocultar, nos seguiu durante toda a nossa excursão.

     Ao desembarcar no cais de Manmenka-Ghat, tinha eu, conversando com Banks, proferido o nome do coronel Munro.

     O bengali, que estava a ver a nossa gôndola abordar a terra, estremecera.

     Não dei então ao facto mais atenção do que convinha, mas veio-me à ideia a comoção do bengali quando vi esta espécie de espião incessantemente atrás de nós.

     Não nos largava senão para aparecer, instantes depois, adiante ou atrás.

     Era amigo ou inimigo?

     Não sabia, mas era um homem para quem com certeza não parecia ser indiferente o nome do coronel Munro.

     Dali a pouco o nosso palanquim parava no princípio da escadaria de cem degraus que sobe do cais à mesquita de Aureng-Zeb.

     Outrora os devotos só subiam de joelhos esta espécie de Santa Scala, à imitação dos fiéis de Roma. Era então o templo de Vixnu que ali se erguia, ao qual sucedeu a mesquita do conquistador.

     Desejaria contemplar Benares do alto de um dos minaretes desta mesquita, cuja construção é tida por um prodígio arquitectónico.

     De altura de cento e trinta e dois pés, tem apenas o diâmetro de uma simples chaminé de oficina, e dentro de tão estreito âmbito sobe uma escada de caracol.

     Já não se pode lá subir, e com razão. Os dois minaretes afastam-se sensivelmente da vertical, e, menos dotados de vitalidade do que a torre de Pisa, acabarão um dia por cair.

     Quando saímos da mesquita de Aureng-Zeb, encontrei o bengali, que nos esperava à porta.

     Desta vez fitei-o, e ele baixou os olhos.

     Antes de chamar a atenção para este incidente, quis ver se continuava o proceder equívoco do bengali, e não disse nada.

     Naquela maravilhosa cidade de Benares é aos centos que se contam os pagodes e as mesquitas.

     O mesmo sucede com os palácios esplêndidos, dos quais o mais belo, sem contradição, pertence ao rei de Nagpore.

     São poucos os rajás que deixam de ter uma residência na cidade santa, que vão ali na época das grandes festas religiosas de Mela.

     Não podia ter a pretensão de visitar todos aqueles edifícios no pouco tempo de que dispúnhamos.

     Limitei-me a visitar o templo de Bicheshwar, onde se ergue o lingam de Xiva.

     Esta pedra informe, considerada como uma parte do corpo do mais feroz dos deuses da mitologia indiana, cobre um poço cuja água estagnada possui, segundo se diz, virtudes milagrosas.

     Vi também o Mankarnika, ou a fonte sagrada, na qual se banham os devotos, para maior proveito dos brâmanes, depois o Man-Mundir, observatório edificado há duzentos anos pelo imperador Akbar, cujos instrumentos, todos de uma imobilidade marmórea, são apenas figurados em pedra.

     Eu ouvira também falar de um palácio dos macacos, que os turistas não deixam de visitar em Benares. Era natural um parisiense supor que ia encontrar-se diante da célebre jaula do Jardim Zoológico. Nada disso.

     O palácio é apenas um templo, o Durga-Khund, situado um pouco fora dos arrabaldes. Data do século IX e figura entre os mais antigos monumentos da cidade.

     Os macacos não estão encerrados em nenhuma jaula.

     Vagueiam livremente através dos pátios, saltam de um muro para o outro, sobem ao cimo das enormes mangueiras, disputam entre si, com grandes gritos, os grãos torrados, de que são muito gulosos e que os visitantes lhes trazem.

     Ali, como em toda a parte, os guardas cobram uma pequena retribuição, que torna incontestavelmente este mister um dos mais lucrativos da índia.

     É escusado dizer que estávamos sofrivelmente fatigados com o calor quando, para a noite, tratámos de regressar à ((Steam House».

     Havíamos almoçado e jantado em Secrole num dos melhores hotéis da cidade inglesa, e contudo devo dizer que esta cozinha nos fez ter saudades da de Monsieur Farazard.

     Quando a gôndola voltou para junto do gath, a fim de nos reconduzir à margem direita do Ganges, encontrei pela última vez o bengali, a dois passos da embarcação.

     Esperava-o uma canoa tripulada por um indiano. Ele embarcou.

     Quereria passar o rio e seguir-nos até ao acampamento?

     Tornava-se isto muito suspeito.

     Banks avisei eu então em voz baixa, indicando o bengali -, eis ali um espião que não nos tem largado.

     Bem o vi redarguiu Banks, e observei que foi o nome do coronel, proferido pelo meu amigo, que lhe despertou a atenção.

     Não seria ocasião...? - perguntei.

     Não! Deixemo-lo à vontade. É melhor que não saiba que se desconfia dele... Demais, já não se vê.

     Efectivamente a canoa do bengali já havia desaparecido em meio das numerosas embarcações de toda a espécie que então sulcavam as águas sombrias do Ganges.

     Banks, voltando-se para o nosso barqueiro, perguntou-lhe num tom aparentemente indiferente:

     Conheces aquele homem?

     Não; é a primeira vez que o vejo respondeu o marinheiro.

     Caíra a noite. Centenas de barcos embandeirados, iluminados de lanternas multicores, cheios de cantores e de instrumentistas, cruzavam-se em todos os sentidos pêlo rio festivo.

     Da margem esquerda subiam aos ares fogos de artifício variadíssimos, que me recordavam que não ficava longe o Celeste Império, onde esses fogos são tão estimados.

     Seria difícil dar uma descrição deste espectáculo, que é na verdade incomparável.

     A que propósito se celebrava esta festa nocturna, que parecia improvisada, e na qual tomavam parte indianos de todas as classes, foi o que não pude saber.

     No momento em que ela acabava, chegava a gôndola à outra margem.

     Foi como uma visão. Durou apenas o que duraram aqueles fogos efémeros, que iluminaram por um instante o espaço e se sumiram nas sombras da noite.

     Mas, como já disse, a Índia venera trezentos milhões de deuses, de toda a espécie, de santos de categoria superior e inferior, e o ano não tem horas, minutos e segundos suficientes que se possam consagrar a cada uma destas divindades.

     Quando chegámos ao acampamento, já ali se encontravam Munro e Mac Neil.

     Banks perguntou ao sargento se não tinha havido novidade na nossa ausência.

     Nenhuma respondeu Mac Neil.

     Não viu nenhum vulto suspeito vaguear por aqui?

     Nenhum, Senhor Banks. Tem alguma razão para desconfiar?

     Fomos seguidos na nossa excursão a Benares respondeu o engenheiro e não gosto que nos espiem.

     E o espião era...

     Um bengali, a quem o nome do coronel Munro despertou a atenção.

     O que pode esse homem querer de nós?

     Não sei, Mac Neil. Será bom vigiar!

     Vigiar-se-á redarguiu o sargento.

   

    Allahabad

     Entre Benares e Allahabad, a distância é quase de cento e trinta quilómetros.

     A estrada segue quase invariavelmente a margem direita do Ganges, entre o caminho de ferro e o rio.

     Storr obtivera carvão e carregara o tênder.

     Ficava, pois, o elefante com a alimentação garantida para muitos dias. Bem limpo, ia dizer bem escovado e limpo, asseado como se saísse da oficina onde o acabassem de armar, esperava impacientemente o momento de partir.

     Não campeava como quadrúpede que era, mas alguns frémitos das suas rodas demonstravam a tensão dos vapores que lhe enchiam os pulmões de aço.

     Partimos no dia 24, muito cedo, com uma velocidade de três a quatro milhas por hora.

     A noite passara sem incidentes e não tornáramos a ver o bengali.

     Declaremos, uma vez para sempre, que o programa de todos os dias, compreendendo horas de levantar, de deitar, do almoço, do lanche, do jantar, da sesta, se executava com uma exactidão militar.

     Na «Steam House» a existência deslizava tão regularmente como no bungalow de Calcutá.

     A paisagem modificava-se incessantemente a nossos olhos, sem que a nossa residência parecesse deslocar-se.

     Já estávamos completamente habituados a esta nova vida, como um passageiro à vida de bordo de um paquete transatlântico, menos a monotonia, porque não nos víamos encerrados num mesmo horizonte do mar.

     Naquele dia, às onze horas, encontrámos na planície um curioso mausoléu, de arquitectura mongólica, que fora levantado em honra de duas santas personagens do Islão, Kassim Solimão, pai e filho.

     Meia hora depois surgia-nos a importante fortaleza de Chunar, cujas pitorescas muralhas coroam um rochedo inexpugnável, situado a pique, cento cinquenta pés acima do Ganges.

     Não se tratou de saber se visitaríamos ou não esta fortaleza, uma das mais importantes do vale do rio sagrado, cuja posição lhe permitia economizar pólvora e balas em caso de ataque. Toda a coluna que procurasse chegar às suas muralhas seria esmagada por uma avalancha de rochedos dispostos para este fim.

     Em baixo está edificada a cidade do seu nome, cujas habitações graciosas quase desaparecem sob a verdura.

     Como vimos, em Benares existem muitos lugares privilegiados, que são tidos pelos indianos como os mais sagrados do mundo.

     Se bem se contasse, encontrar-se-iam centenas de sítios desta espécie por toda a península.

     A própria fortaleza de Chunar também possui um sítio maravilhoso. Mostra-se nela a laje de mármore sobre a qual um deus qualquer vem regularmente dormir a sesta. É verdade que o tal deus é invisível, e por isso também nós não procurámos vê-lo.

     Ao descair do dia, o Gigante de Aço fazia alto perto de Mirzapore, para aí passar a noite.

     Além de não ser desprovida de templos, a cidade tem também oficinas e um porto, para se carregar o algodão que aquele território produz.

     Há-de vir um dia a ser uma cidade comercial.

     No dia seguinte, pelas duas horas, transpusemos a vau a ribeira de Tonsa, cujas águas, naquela época, não tinham um pé de altura,

     Às cinco horas, tínhamos passado a ponte onde liga o grande ramal de Bombaim a Calcutá.

     Quase no lugar onde o Jumna desagua no Ganges, admirámos o magnífico viaduto de ferro, cujos dezasseis pilares, da altura de sessenta pés, mergulham nas águas daquele magnífico confluente.

     Chegados à ponte de barcos, do comprimento de um quilómetro, que liga a margem direita à margem esquerda do rio, atravessámo-la sem grandes dificuldades, e à noite acampámos no extremo de um dos arrabaldes de Allahabad.

     O dia 26 devia ser consagrado à visita daquela importante cidade, da qual partem os principais caminhos de ferro do Indostão.

     É admirável a sua posição no meio de um dos mais ricos territórios, entre os dois braços do Jumna e do Ganges.

     A natureza dispôs tudo para que Allahabad seja a capital da índia inglesa, o centro do Governo, a residência efectiva do vice-rei.

     Não é pois impossível que um dia o venha a ser, se os ciclones pregarem algumas partidas a Calcutá, a metrópole actual. O que é certo é que alguns espíritos claros já têm previsto esta eventualidade.

     Nesse vasto corpo chamado índia, Allahabad jaz no coração, como Paris jaz no coração da França.

     É verdade que Londres não está no centro do Reino Unido; mas também Londres não tem sobre as grandes cidades inglesas, Liverpool, Manchester, Birmingham, a proeminência de Paris sobre todas as outras cidades da França.

     E a partir deste ponto vamos seguir directamente para o norte? perguntei a Banks.

     Sim respondeu Banks -, ou pelo menos quase directamente. Allahabad é, no oeste, o limite da primeira parte da nossa expedição.

     Até que enfim! exclamou o capitão Hod. Correr as grandes cidades é bom, mas correr as grandes planícies, os grandes juncais, é melhor ainda! Se continuássemos a seguir ao longo dos caminhos de ferro, acabaríamos por correr por cima deles, e o nosso Gigante de Aço passaria ao estado de simples locomotiva! Que decadência!

     Sossegue, Hod, não sucederá assim volveu o engenheiro. Não tarda que nos metamos pelas regiões da sua predilecção.

     Nesse caso, Banks, iremos direitos à fronteira indochinesa, sem atravessarmos Lucknow?

     A minha opinião é visitarmos essa cidade, e principalmente Cawnpore, muito cheia de funestas recordações para o coronel Munro.

     Tem razão retorqui -, e nunca passaremos suficientemente longe dela!

     Diga-me, Banks perguntou o capitão Hod, durante a sua visita a Benares não soube nada a respeito de Nana Sahib?

     Nada respondeu o engenheiro. É provável que o governador de Bombaim fosse mais uma vez enganado, e que Nana nunca reaparecesse na presidência de Bombaim.

     É provável, efectivamente admitiu o capitão -, senão já o antigo rebelde teria dado que falar.

     Seja como for acrescentou Banks -, tenho pressa de deixar este vale do Ganges, que foi o teatro de tantos desastres durante a insurreição dos sipaios, desde Allahabad até Cawnpore. Mas é preciso, sobretudo, que o nome desta cidade não seja proferido diante do coronel, assim como o de Nana Sahib! Deixemo-lo pensar à vontade.

     No dia seguinte, Banks quis acompanhar-me mais uma vez durante as horas que ia consagrar a Allahabad.

     Talvez não fossem precisos menos de três dias para se verem as três cidades que a compõem, mas que, em suma, sempre é menos curiosa que Benares, apesar de também figurar no número das cidades santas.

     Da cidade indiana não há nada que dizer. É uma aglomeração de casas baixas, separadas por meio de ruas estreitas, ensombradas nalguns sítios por tamarinheiros, que são magníficos.

     O mesmo, com respeito à cidade inglesa e seus acantonamentos.

     Belas alamedas com boas árvores, ricas habitações, largas praças, todos os elementos de uma cidade destinada a ser uma grande capital.

     Tudo isto está situado numa vasta planície, limitada ao norte e ao sul pelos dois rios, o Ganges e o Jumna.

     Chamam a esta planície a «Planície das Esmolas», porque em todos os tempos ali têm ido os príncipes indianos praticar obras de caridade.

     Segundo refere Rousselet, que cita uma passagem da Vida de Hionen Thsang, «é mais meritório dar neste lugar uma só moeda do que mil em qualquer outra parte».

     O Deus dos cristãos, esse só dá na razão de cem. É menos, por certo; mas inspira-me mais confiança.

     Uma palavra acerca do forte de Allahabad, que é curioso e merece a pena visitar-se.

     Está construído a oeste da grande planície das Esmolas, e ergue com altivez as suas altas muralhas de grés vermelho, cujos projécteis podem, permita-se-nos a expressão, quebrar os braços aos dois rios. No meio do forte, um palácio, que se tornou num arsenal, outrora residência do sultão Akbar, a um canto, o Lat de Feroze-Schachs, magnífico monólito de trinta e seis pés, que serve de pedestal a um leão; pouco distante do monólito, um pequeno templo, que os indianos, aos quais se recusa a entrada no forte, não podem visitar, apesar de ser um dos lugares mais sagrados do mundo, tais são os principais pontos da fortaleza que atraem a atenção dos viajantes.

     Informou-me Banks de que o forte de Allahabad tem também a sua legenda, que lembra a legenda bíblica relativa à reconstrução do templo de Salomão, em Jerusalém.

     Quando o sultão quis construir o forte de Allahabad, parece que as pedras se mostraram muito rebeldes.

     Apenas um muro se construía, desabava logo.

     Consultou-se o oráculo. Segundo o costume, o oráculo respondeu que era precisa uma vítima voluntária para conjurar a fatalidade.

     Ofereceu-se um indiano em holocausto. Foi sacrificado, e o forte concluiu-se.

     Este indiano chamava-se Brog, e eis a razão por que a cidade ainda hoje é designada pelo duplo nome de Brog-Allahabad.

     Banks conduziu-me em seguida aos jardins de Khusru, que são célebres e merecem bem a sua celebridade. Ali, à sombra dos mais belos tamarinheiros do mundo, elevam-se muitos mausoléus de maometanos.

     Um deles é a última morada do sultão de que estes jardins tomaram o nome.

     Num dos muros de mármore branco está incrustada uma palma de mão, enorme.

     Mostraram-na com uma complacência que não encontrámos para os vestígios sagrados de Gaya.

     É verdade que não era agora o vestígio do pé de um deus, mas o da mão de um simples mortal, sobrinho do profeta Maomet.

     Durante a insurreição de 1857, não correu em Allahabad menos sangue que nas outras cidades do Ganges.

     O combate que o exército real deu aos revoltosos, no campo de manobras de Benares, provocou a revolta das tropas indígenas, e em especial a do 6.º Regimento do exército de Bengala.

     Foram mortos oito alferes, mas, graças à atitude enérgica de alguns artilheiros europeus, pertencentes ao corpo dos inválidos de Chunar, os sipaios acabaram por depor as armas.

     Foi mais sério nos acantonamentos. Os naturais revoltaram-se, foram abertas as prisões, as docas saqueadas, as casas europeias incendiadas.

     A este tempo, o coronel Neil, depois de haver restabelecido a ordem em Benares, apareceu com o seu regimento e cem fuzileiros do regimento de Madrasta.

     Retomou a ponte de barcos aos revoltosos, ganhou os arrabaldes da cidade no dia 18 de Junho, dispersou os membros de um governo provisório instalado por um muçulmano e tornou-se senhor de toda a província.

     Durante esta pequena excursão a Allahabad, eu e Banks observámos cuidadosamente se éramos seguidos, como nos sucedera em Benares.

     Mas desta vez nada vi de suspeito.

     Não importa disse-me o engenheiro -, será bom sempre desconfiar! Eu desejaria passar incógnito, porque o nome do coronel Munro é demasiado conhecido dos naturais desta província!

     Às seis horas voltávamos para jantar.

     Sir Edward Munro, que deixara o acampamento por uma hora ou duas, estava de volta e esperava-nos.

     Quanto ao capitão Hod, que fora visitar alguns dos seus camaradas em guarnição nos acantonamentos, regressava quase ao mesmo tempo que nós.

     Notei então, e fi-lo notar a Banks, que o coronel Munro parecia, não mais triste, mas mais preocupado que de ordinário.

     Parecia-me surpreender nos seus olhares um fogo que as lágrimas deviam ter apagado há muito.

     Tem razão volveu-me Banks, alguma coisa há! Que sucederia?

     Se Banks interrogasse Mac Neil? sugeri eu.

     Sim, Mac Neil talvez saiba.

     E o engenheiro, saindo da sala, foi abrir a porta do camarote do sargento.

     O sargento não estava ali.

     Onde está Mac Neil? perguntou Banks a Gumi, que se preparava para nos servir à mesa.

     Deixou o acampamento respondeu Gumi.

     Há quanto tempo?

     Há quase uma hora, e por ordem do coronel Munro.

     Não sabe aonde ele foi?

     Não, Senhor Banks, nem mesmo a razão por que ele saiu.

     Não sucedeu novidade na nossa ausência?

     Nada.

     Banks voltou, informou-me da ausência do sargento, ausência cujo motivo todos ignoravam, e rematou:

     Não sei o que há, mas com certeza que há alguma coisa. Esperemos.

     Pusemo-nos à mesa.

     De ordinário, o coronel Munro tomava parte na conversa durante a hora das refeições.

     Gostava que lhe contássemos as nossas excursões.

     Interessava-se pelo que havíamos feito durante o dia, e eu tinha o cuidado de não lhe falar, mesmo por alto, da insurreição dos sipaios.

     Creio que ele notava a minha reserva, mas agradecer-me-ia...?

     Sempre devo dizer que era uma reserva difícil, quando se tratava de cidades, tais como Benares ou Allahabad, que haviam sido teatro de cenas insurreccionais.

     Hoje, durante o jantar, tinha eu razão para temer que me visse obrigado a falar de Allahabad.

     Foi um receio infundado. O coronel Munro não me interrogou, nem interrogou Banks acerca do que havíamos feito durante o dia.

     Esteve calado todo o jantar. Até parecia que aumentava a sua preocupação à medida que o tempo avançava.

     Olhava frequentemente para a estrada que ia ter aos acantonamentos, e parece até que muitas vezes esteve prestes a levantar-se para ver melhor nessa direcção.

     Era evidentemente o regresso do sargento Mac Neil que Sir Edward Munro aguardava com impaciência.

     Por isso o jantar correu bastante triste.

     O capitão Hod perguntava a Banks com o olhar o que havia. Ora Banks não sabia mais que ele.

     Terminado o jantar, em vez de dormir a sesta, como tinha por costume, o coronel Munro desceu o degrau da varanda, deu alguns passos pela estrada, alongou mais uma vez o olhar por ela fora e depois, voltando-se para nós, disse:

     Banks, Hod e o senhor também, Maucler, poderiam fazer-me o favor de me acompanhar até às primeiras casas dos acantonamentos?

     Levantámo-nos imediatamente da mesa e seguimos o coronel, que caminhava lentamente sem dizer palavra.

     Após uns cem passos, Sir Edward Munro parou diante de um poste, que se erguia à direita da estrada, e no qual havia um letreiro.

     Leiam pediu.

     Era o edital, que já tinha nada menos de dois meses de existência, em que se punha a preço a cabeça do nababo Nana Sahib, anunciando-se a sua presença na residência de Bombaim.

     Banks e Hod não puderam conter um gesto de desapontamento.

     Até então, tanto em Calcutá como durante toda a viagem, tinham conseguido evitar que o edital fosse visto pelo coronel.

     Um funesto acaso acabava de transtornar as suas precauções.

     Banks perguntou Sir Edward Munro, agarrando na mão do engenheiro -, conhecias este edital?

     Banks não respondeu.

     Há já dois meses continuou o coronel que sabias da presença de Nana Sahib em Bombaim, e nada me disseste!

     Banks conservou-se calado, não sabendo que responder.

     Sim, meu coronel exclamou o capitão Hod, sim, é verdade, sabíamos, mas para que lho havíamos de dizer? Quem nos prova que o facto anunciado neste edital seja verdade, e de que serve despertar-lhe recordações que tanto o incomodam?

     Banks exclamou o coronel Munro, em cujo rosto acabava de se operar uma espécie de transformação, pois tu esqueces que é a mim, a mim mais que a ninguém, que pertence justiçar esse homem? Fica sabendo o seguinte: se consenti em deixar Calcutá, foi porque a viagem me devia levar para o Norte da índia, foi porque nunca esqueci os meus deveres de justiceiro! Se parti, foi só com uma ideia, com uma esperança! Para me aproximar do meu destino, contei com os acasos da viagem, com o auxílio de Deus! Tive razão! Deus conduziu-me até este edital! Não é já ao Norte que se deve ir procurar Nana Sahib, é ao Sul! Bem! Irei ao Sul!

     Não nos tinham enganado os nossos pressentimentos! Era verdade, e bem verdade! Um pensamento reservado, uma ideia fixa, para melhor dizer, dominava ainda, dominava mais que nunca o coronel Munro.

     Ele acabava de, completamente, nos revelar essa ideia.

     Munro disse então Banks -, se te não falei em nada foi porque não acreditava na presença de Nana Sahib na presidência de Bombaim. É fora de dúvida que a autoridade foi mais uma vez enganada. Este edital tem a data de 6 de Março e de então para cá nada veio ainda confirmar a notícia da aparição do nababo.

     O coronel Munro não respondeu logo a esta observação do engenheiro.

     Deitou um último olhar para a estrada e depois declarou:

     Meus amigos, vou saber o que há. Mac Neil foi a Allahabad com uma carta para o governador. Dentro de pouco saberei se Nana Sahib efectivamente reapareceu numa das províncias de oeste, se ainda aí se encontra, ou se já desapareceu.

     E se foi visto, se o facto é indubitável, que tencionas fazer, Munro? perguntou Banks, travando da mão do coronel.

     Partirei! - respondeu Sir Edward. Irei a toda a parte aonde for do meu dever ir em nome da justiça!

     É uma resolução decidida, Munro?

     Sim, Banks, absoluta. Continuarão sem mim a viagem, meus amigos... Esta noite mesmo tomarei o comboio de Bombaim.

     Bem, mas não irás só! - retorquiu o engenheiro, voltando-se para nós. Acompanhar-te-emos, Munro!

     Sim, meu coronel, sim - exclamou o capitão Hod. - Não o deixaremos partir sem nós. Em vez de caçarmos as feras, caçaremos os malvados!

     Coronel  Munro acrescentei -,  há-de  permitir que me reúna ao capitão e aos meus amigos!

     Sim, Maucler respondeu Banks -, e esta noite deixaremos todos Allahabad.

     É escusado! disse uma voz grave. Voltámo-nos.

     O sargento Mac Neil estava diante de nós com um jornal na mão.

     Leia, meu coronel disse. Eis o que o governador me encarregou de lhe apresentar.

     E Sir Edward leu o que se segue:

     «O governador da presidência de Bombaim faz saber, para conhecimento do público, que o edital de 6 de Março último, com respeito ao nababo Dandu-Pant, passa a ser considerado de nenhum efeito. Ontem, Nana Sahib, atacado nos desfiladeiros dos montes Saubpurra, onde se refugiara com o seu bando, foi morto na luta. Não há dúvida possível a respeito da sua identidade. Foi reconhecido pelos habitantes de Cawnpore e de Lucknow. Faltava-lhe um dedo da mão esquerda, e sabe-se que Nana Sahib fizera amputação de um dos dedos, quando pretendeu, com falsas exéquias, fazer acreditar na sua morte. O reino da índia já não tem pois nada a temer do cruel nababo, que lhe custou tanto sangue.»

     O coronel Munro lera estas linhas com voz abafada; depois deixou cair o jornal.

     Nós calávamo-nos. A morte de Nana Sahib, indiscutível desta vez, livrava-nos de todo o futuro receio.

     Depois de alguns minutos de silêncio, o coronel Munro passou a mão pelos olhos, como que para apagar horríveis recordações.

     Quando é que devemos deixar Allahabad? perguntou.

     Amanhã, ao romper do dia respondeu o engenheiro.

     Banks tornou o coronel Munro -, não nos poderíamos demorar algumas horas em Cawnpore?

     Queres?...

     Sim, Banks, desejava... quero ver mais uma vez... uma última vez, Cawnpore!

     Lá chegaremos daqui a dois dias! - respondeu simplesmente o engenheiro.

     E depois?...

     Depois?... acrescentou  Banks. Continuaremos a nossa expedição para o Norte da índia!

     Sim!... para o Norte! para o Norte!...disse o coronel, com uma voz que me comoveu profundamente.

     Parecia que Sir Edward Munro conservava algumas dúvidas a respeito do resultado daquela última luta entre Nana Sahib e os agentes da autoridade inglesa.

     Teria ele razão contra o que parecia a própria evidência?

     O futuro é que no-lo há-de dizer.

   

    Via Dolorosa

     O reino de Ude foi outrora um dos mais importantes da península e é ainda um dos mais ricos da índia.

     Teve diversos soberanos, fracos uns, outros enérgicos.

     A fraqueza de um deles, Wajad-Ali-Schah, foi o que motivou a anexação do seu reino ao domínio da Companhia, em 6 de Fevereiro de 1857.

     Como se vê, dava-se isto poucos meses antes de rebentar a insurreição, e foi precisamente neste território que se cometeram as mais horríveis carnificinas, seguidas das mais terríveis represálias.

     A partir de então ficaram tristemente célebres duas cidades: Lucknow e Cawnpore.

     Lucknow é a capital, Cawnpore uma das principais cidades do antigo reino.

     Era a Cawnpore que o coronel Munro queria ir, e foi ali que nós chegámos na manhã de 29 de Maio, depois de seguirmos a margem direita do Ganges, através de uma planície coberta de numerosas plantações de algodão.

     Durante dois dias, o Gigante de Aço caminhara com uma velocidade média de três léguas por hora, transpondo os duzentos e cinquenta quilómetros que separam Cawnpore de Allahabad.

     Achávamo-nos então quase a mil quilómetros de Calcutá, nosso ponto de partida.

     Cawnpore é uma cidade de cerca de sessenta mil habitantes.

     Ocupa sobre a margem direita do Ganges uma faixa de terreno do comprimento de cinco milhas.

     Tem um acantonamento militar, onde estão aquartelados sete mil homens.

     Debalde o viajante procura nesta cidade algum monumento digno de atrair a sua atenção, apesar de ser povoação muito antiga, e anterior, dizem, à era cristã.

     Nenhum sentimento de curiosidade nos poderia atrair a Cawnpore. Só aí nos levava a vontade de Sir Edward Munro.

     Deixámos o nosso acampamento no dia 30 de Maio. Eu, Banks e o capitão Hod seguíamos o coronel e o sargento Mac Neil por aquela via dolorosa, cujas estações Sir Edward Munro queria visitar mais uma vez.

     Eis o que é preciso saber, e que vou dizer em breves palavras, resumindo o que Banks me dissera.

     Cawnpore, que estava guarnecida por tropas de muita confiança no momento em que fora anexada ao reino de Ude, apenas contava no começo da insurreição duzentos e cinquenta soldados do exército real contra três regimentos nativos de infantaria, o 1.º, o 53.º e o 56.º, dois regimentos de cavalaria e uma bateria de artilharia do exército de Bengala.

     Além disso, achava-se ali um grande número de europeus, empregados, funcionários, negociantes, etc., e mais algumas centenas de mulheres e crianças, família dos militares do 32.º Regimento do exército real, que tinha guarnição em Lucknow.

     O coronel habitava Cawnpore havia muitos anos. Foi ali que ele conheceu a donzela a quem deu o título de esposa.

     Miss Laurence Honlay era uma menina inglesa, encantadora e inteligente, carácter cheio de elevação, coração nobre, índole heróica, digna de ser amada por um homem como o coronel, que a admirava e adorava. Residia com a mãe num bungalow, nos arredores da cidade, e foi ali, em 1855, que Edward Munro a desposou.

     Dois anos depois, em 1857, quando rebentaram as primeiras explosões da revolta em Mirat, o coronel Munro teve de reunir-se ao seu regimento sem perda de um dia.

     Viu-se por isso obrigado a deixar a mulher e a sogra em Cawnpore, recomendando-lhe que fizessem imediatamente os seus preparativos para partirem para Calcutá.

     O coronel entendia que Cawnpore não oferecia segurança e, infelizmente, os factos vieram justificar demasiadamente os seus pressentimentos.

     A partida de Mrs. Honlay e de Lady Munro sofreu demoras, que tiveram funestas consequências. As infelizes senhoras foram surpreendidas pelos acontecimentos e não puderam sair de Cawnpore.

     A divisão era então comandada pelo general Sir Hugh Wheeler, soldado recto e leal, que dentro de pouco devia ser vítima dos manejos astuciosos de Nana Sahib.

     O nababo ocupava então, a dez milhas de Cawnpore, o seu castelo de Bilhur, e havia muito tempo que fingia viver nas melhores relações com os europeus.

     Entretanto davam-se as primeiras tentativas de insurreição em Mirat e em Deli.

     A nova destas tentativas chegou em 14 de Maio a Cawnpore.

     Neste mesmo dia mostrava o 1.º Regimento de sipaios disposições hostis.

     Foi então que Nana Sahib ofereceu ao Governo o seu préstimo.

     O general Wheeler, imprudentemente, acreditou na boa fé daquele traidor, cujos soldados particulares vieram logo ocupar o edifício da tesouraria.

     No mesmo dia, um regimento irregular de sipaios, de passagem por Cawnpore, assassinava os seus oficiais europeus mesmo às portas da cidade.

     O perigo apareceu então tal qual era, imenso.

     O general Wheeler deu ordem a todos os europeus que se refugiassem na caserna onde habitavam as mulheres e as crianças do 32.º Regimento de Lucknow, caserna situada no ponto mais próximo da estrada de Allahabad, a única por onde poderiam chegar os socorros.

     Foi ali que Lady Munro e sua mãe tiveram de se encerrar.

     Durante todo o tempo deste encerramento, a jovem mostrou uma dedicação sem limites pelos seus companheiros de infortúnio.

     No dia seguinte, mortas ou vivas, mulheres e crianças eram precipitadas num poço próximo, e quando chegaram os soldados de Havelock, o poço, cheio de cadáveres até à borda, fumegava ainda.

     Principiaram então as represálias. Um certo número de revoltosos, cúmplices de Nana Sahib, haviam caído em poder do general Havelock.

     Este publicou a seguinte terrível ordem do dia, cujos termos nunca esquecerei:

     «O poço onde repousam os restos mortais das pobres mulheres e crianças assassinadas pelo descrente Nana Sahib será acabado de encher e escrupulosamente tapado à maneira de túmulo. Desempenhará este piedoso dever um destacamento de soldados europeus, comandado por um oficial. A casa e os aposentos onde se praticou o atentado não serão limpos nem lavados pelos compatriotas das vítimas. Entende e resolve o brigadeiro que cada gota de sangue inocente seja apanhada ou lambida com a língua dos condenados, antes da execução, proporcionalmente à sua casta e à parte que tomaram na carnificina. Em conformidade com esta ordem, todo o condenado, depois de ouvir a sentença de morte, será conduzido à casa do morticínio e obrigado a limpar certa porção do sobrado. Procurar-se-á tornar a tarefa tão revoltante quanto for possível aos sentimentos religiosos do condenado, e o preboste-marechal fará uso do látego, se tanto for preciso. Depois de cumprir o que se lhe impõe, a sentença será executada na forca levantada próximo da casa.»

     Tal foicontinuou Banks, muito impressionado, a ordem do dia. Cumpriu-se religiosamente. Mas das vítimas pouco restava. Tinham sido assassinadas, mutiladas, despedaçadas! Quando o coronel Munro, chegando dois dias depois, quis reconhecer alguns dos restos de Lady Munro e de sua mãe, nada encontrou... nada!

     Eis o que Banks me contara antes da nossa chegada a Cawnpore, e era para o próprio lugar onde se dera o horrendo morticínio que o coronel se dirigia. Mas primeiro quis ver o bungalow onde residira Lady Munro, onde passara a sua mocidade, a morada onde pela última vez a vira, o limiar da porta onde recebera dela os ósculos da despedida.

     Este bungalow era edificado um pouco fora dos arrabaldes, a pequena distância da linha dos acantonamentos militares.

     Ruínas, paredes ainda enegrecidas, algumas árvores derrubadas e ressequidas, era quanto restava daquela habitação.

     O coronel não consentira que se reparasse coisa alguma.

     O bungalow estava ainda, ao fim de seis anos, no estado em que o pusera o facho dos incendiários.

     Passámos uma hora naquele lugar desolado.

     Sir Edward Munro caminhava silenciosamente através daquelas ruínas, onde se lhe deparavam tantas recordações.

     O seu espírito evocava toda aquela existência de felicidade que já não lhe podia ser restituída.

     Representava-se-lhe na imaginação a jovem, vivendo feliz na casa onde nascera, onde a conhecera, e algumas vezes fechava os olhos como para melhor a contemplar!

     Mas afinal, repentinamente, como quem tem de se violentar, retrocedeu e tirou-nos dali para fora.

     Banks julgou que o coronel se limitaria a visitar o bungalow... Mas não! Sir Edward Munro resolvera esgotar até à última as amarguras que lhe reservava aquela cidade funesta.

     Depois da residência de Lady Munro, quis tornar a ver a caserna, onde tantas vítimas, às quais a enérgica senhora heroicamente se dedicara, haviam sofrido todos os horrores de um cerco.

     Esta caserna era situada na planície, fora da cidade, e naquele lugar, onde toda a população de Cawnpore tivera de procurar refúgio, edificava-se então uma igreja (A igreja comemorativa concluiu-se depois. Era lápidas de mármore conserva-se a memória dos engenheiros do caminho de ferro East Indian, que morreram de doença ou de ferimentos durante a grande insurreição de 1857, dos soldados, sargentos e oficiais do 34.º Regimento do exército real, mortos no combate de 17 de Novembro em frente de Cawnpore, do capitão Stuart Beatson, dos oficiais, homens e mulheres do 32.º Regimento que morreram durante os cercos de Lucknow e Cawnpore, ou durante a insurreição, finalmente a memória dos mártires de Bibi-Ghar, assassinados em Julho de 1857.)

     Para nos dirigirmos para ali, seguimos uma estrada macadamizada, sombreada por belas árvores.

     Era o local onde se representara o primeiro acto da horrível tragédia.

     Ali tinham vivido, sofrido, agonizado, Lady Munro e sua mãe, até ao momento em que a capitulação entregou ao poder de Nana Sahib aquela multidão de vítimas, já votadas a um horrendo morticínio, e que o traidor prometera conduzir sãs e salvas a Allahabad.

     Em volta das construções por concluir, distinguiam-se ainda restos de muralhas de tijolo, vestígios das obras de defesa levantadas pelo general Wheeler.

     O coronel Munro conservou-se por muito tempo imóvel e silencioso diante daquelas ruínas. Avivavam-se-lhe na memória as horríveis cenas de que elas tinham sido o teatro.

     Depois do bungalow, onde Lady Munro tinha vivido feliz, a caserna onde sofrera além de quanto se pode imaginar!

     Faltava visitar BibiGhar, a morada que Nana Sahib transformou em prisão, onde se abria o poço no fundo do qual a morte havia confundido as vítimas.

     Quando Banks viu o coronel dirigir-se para aquele lugar, agarrou-lhe no braço como para o deter.

     Sir Edward encarou-o bem de frente e disse-lhe com uma voz em que havia horrível serenidade:

     Vamos!

     Munro, peço-te...

     Irei então só!

     Não era possível resistir.

     Dirigimo-nos então para o Bibi-Ghar, atravessando pelos jardins bem traçados e plantados de formosas árvores que o precedem.

     Eleva-se naquele local uma colunata em estilo gótico, de forma octogonal. Rodeia esta colunata o sítio onde se abria o poço, cuja boca está agora coberta com um revestimento de pedras.

     Este revestimento forma uma espécie de soco, que sustenta uma estátua de mármore branco, o Anjo da Piedade, uma das últimas obras devidas ao cinzel do escultor Marochetti.

     Lord Canning, governador-geral das índias durante a revolta de 1857, foi quem fez elevar este monumento expiatório, construído pelos desenhos do coronel Yule, e à sua própria custa.

     Diante daquele poço, onde as duas senhoras, mãe e filha, depois de feridas pelos algozes de Nana Sahib, haviam sido precipitadas, talvez ainda com vida, Sir Edward Munro não pôde conter as lágrimas.

     Caiu de joelhos sobre a pedra do monumento.

     Junto dele, o sargento Mac Neil chorava em silêncio.

     Nós tínhamos todos o coração despedaçado, não encontrando nada com que consolar aquela dor, esperando que Sir Edward Munro ali exaurisse as últimas lágrimas dos seus olhos!

     Ah! Se ele houvesse sido dos primeiros soldados do exército real que chegaram a Cawnpore, que penetraram no Bibi-Ghar depois da horrível carnificina, o coronel Munro teria morrido de dor!

     Eis o que refere um dos oficiais ingleses, narração que foi recolhida por Rousselet:

     «Apenas entrámos em Cawnpore, corremos em busca das pobres mulheres, que nós sabíamos estarem em poder do odioso Nana, mas depressa fomos informados da horrenda execução. Torturados por uma terrível sede de vingança e compenetrados do sentimento dos espantosos sofrimentos que as desgraçadas vítimas deviam ter padecido, sentimos despertar em nós ideias estranhas e selváticas.

     Impetuosos e meio doidos, corremos para o triste lugar do martírio.

     O sangue coagulado, misturado de restos informes, cobria o chão do pequeno aposento onde elas tinham estado encarceradas e davam-nos pelo artelho.

     Juncavam o chão molhado compridas e lustrosas tranças, pedaços de vestidos, sapatinhos e brinquedos de crianças.

     Nas paredes, em laivos de sangue, viam-se vestígios de horrível agonia.

     Apanhei um livrinho de orações, em cuja primeira página se liam as seguintes palavras sensibilizadoras: 27 de Junho, desembarcámos... 7 de Julho, prisioneiros do Nana... dia fatal.»

     Não eram só, porém, estes os horrores que nos esperavam. Muito mais horrível era a vista do poço profundo e estreito onde tinham amontoado os restos mutilados daquelas ternas criaturas!

     Sir Edward Munro não se achava presente quando os soldados de Havelock começaram a apoderar-se da cidade! Só chegou dois dias depois da odiosa imolação! Agora só tinha diante dos olhos o local onde se abria o funesto poço, túmulo sem nome das duzentas vítimas de Nana Sahib!

     Desta vez, Banks, ajudado pelo sargento, conseguiu tirá-lo dali à força.

     O coronel Munro não devia nunca esquecer as duas palavras que um dos soldados de Havelock traçara com a baioneta no bocal do poço:

      Remember Cawnpore! Lembra-te de Cawnpore!

   

    Mudança de monção

      As onze horas estávamos de volta ao acampamento, porque tínhamos, como se compreende, a maior pressa de sair de Cawnpore; mas algumas reparações, que havia a fazer na bomba de alimentação da máquina, não permitiam partir antes do dia seguinte de manhã.

     Restava-me, portanto, meio dia.

     Julguei que não podia empregá-lo melhor do que em visitar Lucknow.

     A intenção de Banks era não passar por aquela cidade, onde o coronel Munro se encontraria num dos principais teatros da guerra, e tinha razão! Eram ainda recordações muito pungentes para ele.

     Ao meio-dia, depois de ter deixado a «Steam House», tomei pela pequena linha que liga Cawnpore a Lucknow.

     O percurso não excede vinte léguas, e cheguei em duas horas a essa importante capital do reino de Ude, de que só queria tomar uma vista sumária o que se chama uma impressão.

     Reconheci, de resto, a verdade do que ouvira dizer a propósito dos monumentos de Lucknow, construídos no reinado dos imperadores muçulmanos do século XVIII.

     Foi um francês, de Lião, chamado Martin, um simples soldado do exército de Lally-Tollendal, quem, em 1730, tornado favorito do rei, criou, organizou e, poder-se-ia dizer, arquitectou essas pretendidas maravilhas da capital de Ude.

     A residência oficial dos soberanos, o Kaiserbagh, reunião heteróclita de todos os estilos que podiam sair da imaginação de um cabo, é apenas uma obra superficial.

     Nada por dentro, tudo por fora, mas esse exterior é ao mesmo tempo indiano, chinês, mourisco e... europeu.

     Sucede o mesmo com outro palácio mais pequeno, Farid Bakch, que é igualmente obra de Martin.

     Quanto ao Imambara, edificado no meio da fortaleza de Kaifiatulla, o primeiro arquitecto das índias no século XVIII, é realmente soberbo e produz um efeito grandioso com os mil coruchéus que lhe eriçam os muros.

     Não podia deixar Lucknow sem visitar o palácio Constantin, que é ainda obra pessoal do cabo francês e tem por nome palácio de Martinière.

     Quis ver também o jardim próximo, o Secunder Bagh, onde foram assassinados aos centos os sipaios que haviam violado o túmulo do cabo Martin antes de abandonarem a cidade.

     Deve-se acrescentar que o nome de Martin não é o único nome francês celebrado em Lucknow. Um antigo oficial inferior de Caçadores de África, chamado Duprat, distinguiu-se de tal modo pela sua bravura durante o período insurreccional, que os revoltosos lhe propuseram que se pusesse à frente deles.

     Apesar das riquezas que lhe prometeram, apesar das ameaças com que o perseguiram, Duprat recusou nobremente. Conservou-se fiel aos Ingleses.

     Mas, particularmente apontado aos golpes dos sipaios, que não tinham podido fazer dele um traidor, foi morto num recontro.

     Cão infiel disseram os revoltosos, serás nosso, mau grado teu!

     E pertenceu-lhes, mas morto.

     Os nomes destes dois soldados franceses foram, pois, reunidos nas mesmas represálias.

     Os sipaios, que tinham violado o túmulo de um e aberto a cova de outro, foram sem piedade assassinados.

     Finalmente, depois de admirar os magníficos jardins que cingem esta grande cidade, de quinhentos mil habitantes, com um cinto de verdura e de flores, depois de percorrer sobre dorso de elefante as suas ruas principais, o seu magnífico bouleward de Hazrat Gaudj, tornei a meter-me no caminho de ferro e voltei naquela mesma noite para Cawnpore.

     No dia seguinte, 31 de Maio, logo de madrugada, estávamos a caminho.

     Até que finalmente exclamou o capitão Hod, acabámos com as Allahabad, as Cawnpore, as Lucknow e outras cidades que me importam tanto como um cartucho vazio!

     Sim, acabámos, Hod redarguiu Banks, e agora vamos marchar directamente para o norte, de modo que chegaremos quase em linha recta à base do Himalaia.

     Bravo! tornou o capitão. O que eu chamo a índia por excelência não são as províncias eriçadas de cidades ou povoadas de indianos, é a região onde vivem em liberdade os meus amigos elefantes, leões, tigres, ursos, panteras, lobos, búfalos, serpentes! Essa é que é verdadeiramente a parte habitável da península! Verá, Maucler, e não terá saudades das maravilhas do vale do Ganges!

     Na sua companhia de nada terei saudades, capitão redargui eu.

     Contudo disse Banks, há ainda no nordeste outras cidades muito interessantes: Deli, Agra, Lahore.

     Ora, amigo Banks exclamou Hod -, quem é que jamais ouviu falar dessas miseráveis aldeias?

     Miseráveis aldeias retorquiu Banks -, isso é que não, Hod, mas cidades esplêndidas!

     Fique descansado, meu amigo acrescentou o engenheiro, voltando-se para mim -, nós diligenciaremos mostrar-lhas sem transtorno para os planos de campanha do capitão.

     Como quiser, Banks replicou Hod; mas é só hoje que verdadeiramente principia a nossa viagem.

     Depois, com uma voz forte:

     Fox! gritou.

     O impedido acudiu logo.

     Pronto, meu capitão!

     Fox, as espingardas, as carabinas e os revólveres estão prontos a disparar?

     Estão.

     Examina as fecharias.

     Já examinei.

      Prepara os cartuchos.

     Estão preparados,

     Está tudo pronto?

      Tudo pronto.

      Pois mais pronto ainda, se for possível.

      Aprontar-se-á.

      O trigésimo oitavo! - exclamou o impedido, por cujo olhar passou  um  relâmpago. vou  preparar-lhe uma boa balazinha explosiva de que não há-de ter razão de queixa.

     Anda Fox, anda!

     Fox fez a continência, deu meia volta e foi fechar-se no seu arsenal.

     Eis agora qual é o itinerário da segunda parte da nossa viagem, itinerário que não deve ser modificado, salvo se se derem sucessos impossíveis de prever.

     Por espaço de quase setenta e cinco quilómetros, este itinerário sobe o curso do Ganges, dirigindo-se para noroeste; mas, a partir deste ponto, endireita para o norte, por entre um dos afluentes do grande rio e outro afluente importante do Gutmi.

     Por esta forma evita um certo número de braços fluviais, que irradiam para a direita e para a esquerda, e por Biswah eleva-se obliquamente até às primeiras ondulações das montanhas do Nepal, através da parte ocidental do reino de Ude e de Rohilkhande.

     Este trajecto fora judiciosamente escolhido pelo engenheiro, de modo que se torneassem todas as dificuldades.

     Se o carvão era mais difícil de encontrar no norte do Indostão, a lenha não devia faltar.

     Quanto ao Gigante de Aço, poderia facilmente girar, fosse com que andamento fosse, por aquelas estradas, tão bem conservadas, através das mais belas florestas da península indiana.

     Distanciavam-nos uns oitenta quilómetros da pequena cidade de Biswah.

     Concordou-se que os transporíamos com uma velocidade muito moderada: em seis dias.

     Este prazo permitiria pararmos quando o sítio agradasse, e os caçadores da expedição teriam tempo de praticar as suas proezas. Além disso, o capitão Hod e o impedido Fox, aos quais Gumi se juntava de muito boa vontade, poderiam facilmente bater a estrada enquanto o Gigante de Aço caminhava a passos contados. Não me era proibido acompanhá-los nas suas batidas, apesar de eu ser caçador pouco experimentado, e algumas vezes me reuni com eles.

     Devo dizer que desde o momento em que a nossa viagem entrou numa nova fase o coronel Munro se conservou menos afastado.

     Pareceu-me que se tornava mais sociável fora dos muros das cidades, no meio das florestas e planícies, longe do vale do Ganges, que acabávamos de percorrer.

     Nestas condições como que encontrava a tranquilidade da vida que passava em Calcutá. E, contudo, podia ele esquecer que a sua casa ambulante se encaminhava para o norte da índia, aonde o atraía alguma fatalidade irresistível? Em todo o caso, a sua conversa era mais animada durante as horas da comida e da sesta, e muitas vezes prolongava-se até muito tarde nessas formosas noites que a estação calmosa ainda nos dava.

     Quanto a Mac Neil, desde a visita ao poço de Cawnpore, parecia-me mais sombrio do que de costume.

     Teria a vista de Bibi-Ghar despertado nele um ódio que ainda esperava saciar?

     Nana Sahib disse-me ele um dia ; não, senhor, não! Não é possível que no-lo tenham morto!

     O primeiro dia passou-se sem incidentes que valha a pena contar.

     Nem o capitão Hod nem Fox tiveram ocasião de fazer pontaria ao mais insignificante animal.

     Era desolador, e até bastante extraordinário, sendo caso para se perguntar se a aparição do Gigante de Aço não conservava a distância as terríveis feras daquelas planícies.

     Efectivamente custearam-se alguns juncais, que são as guaridas habituais dos tigres e de outros carnívoros da raça felina. Não apareceu nenhum, apesar de os dois caçadores se haverem afastado uma ou duas milhas dos flancos do nosso comboio.

     Tiveram portanto de se resignar a levarem consigo Black e Phann para apanharem caça miúda, de que Monsieur Parazard exigia fornecimento quotidiano.

     O nosso cozinheiro negro não admitia desculpas a esse respeito; quando o camarada lhe falava de tigres, lobos-tigres ou de outras feras pouco comestíveis, encolhia desdenhosamente os ombros e dizia:

     Isso não é coisa que se coma!

     Ao anoitecer, acampámos ao abrigo de um grupo de banianas enormes.

     Esta noite foi tão tranquila como o dia fora sossegado. O silêncio não foi sequer perturbado pelos uivos das feras.

     Entretanto o nosso elefante descansava. Já não se ouviam os seus relinchos. Tinham-se apagado os fogos do acampamento e, para satisfazer o capitão, Banks nem mesmo estabelecera a corrente eléctrica, que transformava os olhos do Gigante de Aço em dois poderosos faróis. Nada!

     Sucedeu o mesmo nos dias 1 e 2 de Junho. Era para desesperar.

     Mudaram-me o meu reino de Ude! repetia o capitão Hod. Transportaram-no para o meio da Europa! Não há mais tigres aqui do que nas terras baixas da Escócia!

     É possível, amigo Hod observou o coronel Munro, que por estes terrenos se tenham dado recentemente batidas, e que os animais emigrassem em massa. Mas não desespere, e deixe-nos aproximar das montanhas do Nepal. Há-de lá encontrar em que utilmente empregue os seus instintos de caçador.

     É preciso ter esperança redarguiu Hod, abanando a cabeça; aliás, só nos restaria derreter as balas para transformá-las em grãos de chumbo.

     O dia 3 de Junho foi um dos mais quentes que suportámos até ali.

     Parece-me que teríamos ficado assados na nossa morada ambulante se a estrada não fosse sombreada por grandes árvores.

     O termómetro subiu quarenta e sete graus à sombra, e não soprava a mais leve aragem. Em vista disto, era possível que, sob uma tal temperatura, sob aquela atmosfera de fogo, os animais carnívoros nem se lembrassem de deixar os seus antros, mesmo durante a noite.

     No dia seguinte, ao nascer do Sol, o horizonte mostrou-se, pela primeira vez, bastante enevoado para a banda do ocidente. Presenciámos então o esplêndido espectáculo de um fenómeno de miragem, que em certos pontos da índia se chama seekote, ou castelos aéreos e, noutros, dessasur, ou ilusão.

     Não era um suposto lençol de água, com os seus curiosos efeitos de retracção, que se desdobrava diante dos nossos olhos: era toda uma cordilheira, composta de colinas pouco elevadas, encimadas pelos mais fantásticos castelos do mundo, alguma coisa parecida com as alturas do vale do Reno, coroadas com as suas antigas residências de burgraves.

     Víamos-nos num momento transportados, não só à porção romana da velha Europa, mas a quinhentos ou seiscentos anos atrás, em plena Idade Média.

     Este fenómeno, cuja nitidez era surpreendente, dava-nos o sentimento de uma realidade absoluta. Por isso, o Gigante de Aço, com todo o seu aparelho de moderno mecanismo, avançando em direcção a uma cidade do século XV, parecia-me muito mais deslocado do que quando corria, todo emplumado de vapores, pela região de Vixnu e de Brama.

     Obrigado, senhora natureza! exclamou o capitão Hod. Depois de tantos minaretes e cúpulas, de tantos pagodes e mesquitas, aí temos alguma velha cidade da época feudal, com as maravilhas romanas ou góticas que ela desenrola a nossos olhos!

     Que poeta que está o nosso amigo Hod esta manhã! observou Banks. Engoliria ele alguma balada antes do almoço?

     Ria, Banks, graceje, zombe retorquiu o capitão Hod, mas olhe! Eis os objectos que avultam nos primeiros planos! Eis os arbustos que se tornam em árvores, colinas que se tornam em montanhas, os...

     Os simples gatos que se tornariam em tigres, se houvesse gatos, não é assim, Hod?

     Ah! Banks, não seria coisa para desprezar!... Bravo! exclamou o capitão. Eis os meus castelos do Reno que abatem, a cidade que se desmorona, e caímos na realidade, uma simples paisagem do reino de Ude, que nem as feras querem habitar!

     O Sol, transpondo o horizonte oriental, acabava de instantaneamente modificar o efeito da refracção. Como castelos de cartas, os burgos desabavam com a colina, que se transformava em planície.

     Ora bem disse Banks -, visto que a miragem se desfez e com ela se dissipou toda a veia poética do capitão Hod, querem os meus amigos saber o que este fenómeno pressagia?

     Diga, engenheiro! - exclamou o capitão.

     Uma mudança muito próxima de tempo explicou  Banks. Demais,  estamos  nos primeiros dias  de Junho, que ocasionam modificações climatéricas. A mudança da monção vai-nos trazer a estação das chuvas periódicas.

     Meu caro Banks - observei eu, - estamos fechados e abrigados, não é verdade? Pois que venha a chuva! Diluviana que ela seja, parece-me preferível a estes calores...

     Há-de ficar satisfeito, meu caro amigo respondeu Banks. Parece-me que a chuva não vem longe, e que não tardará que vejamos surgirem as primeiras nuvens do sudoeste.

     Banks não se enganava. Para o norte, o horizonte ocidental começou a carregar-se de vapores, o que indicava que a monção, como sucede a maior parte das vezes, ia estabelecer-se durante a noite.

     Era o oceano Índico que nos enviava, através da península, os seus nevoeiros saturados de electricidade, como outros tantos grandes odres do deus Eolo, onde se continham o tufão e a tempestade.

     Alguns outros fenómenos, a respeito dos quais um anglo-indiano não poderia ter dúvida alguma, tinham-se também manifestado durante aquele dia. Espirais de uma poeira muito fina tinham-se visto redemoinhar sobre a estrada durante a marcha do nosso comboio.

     O movimento das rodas, aliás pouco rápido tanto das rodas do nosso motor como as dos dois carros -, poderiam decerto levantar esta poeira, mas não com tamanha intensidade. Dir-se-ia uma nuvem dessa penugem que aparece no ar junto de uma máquina eléctrica posta em movimento.

     O sol podia, pois, ser comparado a um imenso receptor, no qual a electricidade se houvesse acumulado por” espaço de muitos dias. Depois, essa poeira tingia-se de reflexos amarelados, do efeito mais singular, e em cada molécula brilhava um pequeno centro luminoso.

     Houve momentos em que o nosso aparelho pareceu marchar em meio de chamas, chamas sem calor, mas que, nem pela cor nem pela vivacidade, lembravam as do fogo-de-santelmo.

     Storr contou-nos que vira algumas vezes os comboios correr pelos carris entre duas paredes formadas de poeira luminosa, e Banks confirmou o que o maquinista dizia.

     Durante um quarto de hora pude observar aquele singular fenómeno através dos vidros da torrinha, donde se dominava a estrada na extensão de cinco a seis quilómetros.

     Levantava-se grande poeira da estrada sem árvores, aquecida a um ponto insuportável pelos raios verticais do Sol. Pareceu-me até que naquele momento o calor da estrada era superior ao da fornalha da máquina.

     Era em todo o caso um ambiente insuportável, e quando vim respirar um ar mais fresco debaixo das asas oscilantes da punha estava meio sufocado.

     À noite, pelas sete horas, «Steam House» parava.

     O sítio da paragem, escolhido por Banks, foi à beira de uma floresta de esplêndidas banianas, que parecia dilatar-se para o norte numa extensão infinita.

     Atravessava-a uma bela estrada, que prometia para o dia seguinte um trajecto mais fácil por debaixo de altas e vastas cúpulas de verdura.

     As banianas, esses gigantes da flora indiana, são verdadeiras avós, e poder-se-ia dizer chefes de família vegetal, aos quais rodeiam os filhos e os netos.

     Estes, evolvendo de uma raiz comum, perfilam-se em volta do tronco principal, do qual estão completamente soltos, e vão perder-se no meio da alta verdura paternal.

     Dão ares de serem criados sob esta espécie de folhagem, como os pintos sob as asas da mãe.

     Daí o curioso aspecto que apresentam estas florestas muitas vezes seculares.

     As velhas árvores parecem pilares isolados, que sustentam a imensa abóbada, cujas finas nervuras se apoiam em banianas ainda novas, que um dia hão-de vir a transformar-se em pilares.

     Naquela noite o acampamento foi organizado mais completamente do que era costume. Se o dia seguinte fosse tão quente como havia sido o que acabava de passar, Banks tencionava prolongar a paragem, ainda que tivesse de seguir viagem de noite.

     O que mais desejava o coronel Munro era exactamente passar algumas horas naquela formosa floresta, tão umbrosa e tão sossegada.

     Todos se puseram do lado do coronel, uns porque tinham verdadeira necessidade de descanso, outros porque queriam ver se enfim encontravam algum animal digno do tiro de espingarda de um Anderson ou de um Gérard.

     Adivinha-se quem eram os últimos.

     Fox, Gumi, são apenas sete horas! bradou o capitão Hod. Uma volta pela floresta antes de se cerrar completamente a noite! Acompanha-nos, Maucler?

     Meu caro Hod disse Banks, antes de eu ter tempo de responder, faria melhor não se afastar do acampamento. O céu está seriamente ameaçador. Se a tempestade se desencadear, talvez tenha alguma dificuldade em se nos reunir. Amanhã, se ainda aqui estivermos, irá!...

     Amanhã será dia redarguiu o capitão Hod e a hora é própria para tentar a aventura.

     Bem sei, Hod, mas a noite que se prepara não é nada tranquilizadora. Em todo o caso, se quer por força ir, não se afaste para longe. Dentro de uma hora será noite fechada, e pode ver-se em grandes dificuldades para tornar a encontrar o acampamento.

     Fique descansado, Banks. São apenas sete horas, e só peço ao meu coronel uma licença de duas horas.

     Vá, amigo Hod acedeu Sir Edward Munro -, mas tenha em atenção as recomendações de Banks.

     Sim, meu coronel.

     O capitão Hod, Fox e Gumi, armados de umas excelentes carabinas de caça, deixaram o acampamento e desapareceram por baixo das altas banianas que orlavam a direita da estrada.

     Tinha-me fatigado tanto o calor naquele dia que preferi ficar na «Steam House».

     Entretanto, por ordem de Banks, em vez de se apagar completamente o lume, deixou-se o calor suficiente para conservar a caldeira com uma ou duas atmosferas de pressão.

     O engenheiro queria estar preparado para qualquer eventualidade.

     Storr e Kalouth ocuparam-se então em renovar a água e o combustível. Um regato à esquerda da estrada forneceu-lhes o líquido necessário, e as árvores próximas a lenha para carregar o tênder.

     Parazard tratava entretanto das suas ocupações habituais, e, ao mesmo tempo que servia o resto do jantar do dia, meditava no que havia de compor o jantar do dia seguinte.

     Havia ainda bastante claridade. O coronel Munro, Banks, o sargento Mac Neil e eu fomos dormir a sesta à borda do regato.

     A corrente da água límpida refrescava a atmosfera, que realmente sufocava mesmo àquela hora.

     Não se pusera ainda o Sol. A sua luz, por oposição, tingia de azul a massa de vapores que pouco a pouco se via acumular no zénite, através dos rasgões das folhagens.

     Eram nuvens pesadas, espessas, condensadas, cujo movimento parecia não ser produzido por vento algum e cujo motor parecia residir nelas mesmo.

     Durou até quase às oito horas a nossa conversa.

     De quando em quando, Banks levantava-se e observava o horizonte de um ponto de vista mais largo, avançando até à floresta, que cortava de improviso a planície a um quarto de milha do acampamento.

     Quando regressava, abanava a cabeça com ar pouco tranquilo.

     A última vez acompanhámo-lo. A escuridão começava já a reinar por baixo das banianas. Chegando à borda da floresta, vi que uma planície imensa se estendia para oeste até uma série de pequenas colinas contornadas por modo indeciso e que já se confundiam com as nuvens.

     Era então terrível o aspecto do céu em meio da sua serenidade.

     Nenhuma aragem agitava as altas folhas nas árvores.

     Não era o repouso da natureza adormecida que os poetas têm tantas vezes cantado; era, pelo contrário, um sono pesado e doentio. Parecia que na atmosfera havia uma tensão reprimida.

     A melhor comparação que achei para o espaço foi a de uma gaveta de vapor de uma caldeira, quando o fluido muito comprimido está prestes a fazer explosão.

     As nuvens da tempestade achavam-se a grande altura, como geralmente sucede por cima das planícies, e apresentavam largos contornos curvilíneos delineados com muita nitidez. Pareciam até dilatar-se, diminuir em número e aumentar em tamanho, e era fora de dúvida que brevemente se fundiriam todas numa só massa, que aumentaria a densidade de uma nuvem única. As pequenas nuvens adicionais já sofriam uma espécie de influência atractiva, e batendo, esmagando-se umas contra as outras, repelindo-se mutuamente, perdiam-se confusamente no conjunto.

     Pelas oito horas da noite, um relâmpago em ziguezague, de ângulos muito agudos, rasgou a sombria massa numa extensão de dois mil e quinhentos a três mil metros.

     Sessenta e cinco segundos depois estalava um trovão, cujos surdos ribombos, inerentes à natureza deste género de relâmpagos, duraram quase quinze segundos.

     Vinte e um quilómetros disse Banks, depois de consultar o relógio. É quase a distância máxima a que o trovão se pode fazer ouvir. Mas a tempestade, uma vez desencadeada, chegar-nos-á depressa, e é preciso não esperarmos por ela. Recolhamo-nos, meus amigos.

     E o capitão Hod? perguntou o sargento Mac Neil.

     O trovão está-lhe dando ordem de voltar retorquiu Banks. Espero que obedecerá.

     Dali a cinco minutos estávamos de volta ao acampamento e tomávamos lugar na varanda do salão.

   

    Tríplices fogos

     A índia partilha com certas regiões do Brasil, entre outras a do Rio de Janeiro, o privilégio de ser de todos os países do Globo o mais perturbado pelas tempestades.

     Se em França, na Inglaterra, na Alemanha, nesta parte central da Europa, não se calculam em mais de vinte por ano o número de dias em que se ouvem os ribombos do trovão, deve-se ficar sabendo que na península indiana esse número se eleva anualmente além de cinquenta.

     Eis quanto à meteorologia em geral.

     No caso particular de que tratamos, em razão das circunstâncias especiais em que ele se dava, devíamos esperar uma tempestade de extrema violência.

     Logo que entrámos na «Steam House», consultei o barómetro. Na coluna mercurial dera-se uma súbita descida de duas polegadas, isto é, de vinte e nove para vinte e sete polegadas. (Quase setecentos e trinta milímetros.)

     Fiz notar isto ao coronel Munro.

     Inquieta-me a ausência do capitão Hod e dos seus companheiros volveu ele. Está iminente a tempestade, a noite chega, as trevas aumentam. Os caçadores afastam-se mais do que prometem e até mais do que querem. Como hão-de encontrar o caminho nesta profunda obscuridade?

     Doidos! exclamou Banks. Não foi possível trazê-los à razão! Teriam feito muito melhor não indo.

     Decerto, Banks, mas foram-se, e é preciso fazer o possível para que voltem observou Munro.

     Não há meio de indicarmos o lugar onde estamos? perguntei ao engenheiro.

     Há respondeu  Banks -, acendendo os  nossos faróis eléctricos, que são de grande intensidade iluminante e se vêem de muito longe. Vou estabelecer a corrente.

     Excelente ideia, Banks.

     Quer que vá em busca do capitão Hod? perguntou o sargento.

     Não, meu velho Neil respondeu o coronel -, não o acharias e perder-te-ias também.

     Banks preparou-se logo para utilizar os fogos de que dispunha.

     Foram postos em actividade os elementos da pilha, estabeleceu-se a corrente, e depressa os dois olhos do Gigante de Aço, como dois faróis eléctricos, projectaram o seu feixe luminoso por baixo da sombria abóbada das banianas.

     É indubitável que em meio daquela noite tão escura o alcance dos dois fogos devia ser considerável e podia guiar os nossos caçadores.

     Neste momento desencadeou-se uma espécie de furacão de violência extrema. Quebrou os ramos superiores das árvores, obliquou para o solo e sibilou através das colunazinhas das banianas, como se atravessasse os tubos sonoros de um órgão.

     Foi súbito.

     Caía sobre a estrada um chuveiro de ramos secos, de folhas arrancadas.

     Os tectos da «Steam House» ressoaram de um modo plangente sob esta projecção, que produzia como um rimbombo prolongado.

     Tivemos de nos abrigar no salão e fechar todas as janelas.

     A chuva ainda não caía.

     É uma espécie de tofan disse Banks.

     Os indianos dão este nome às tempestades de ventos impetuosos e súbitos, que mais particularmente devastam as regiões montanhosas e são muito temidas no país.

     Storr gritou  Banks ao maquinista -, fechaste bem as janelas da torre?

     Sim, Senhor Banks respondeu o maquinista. Desse lado não há nada a recear.

     Onde está Kalouth?

     Acaba de arrumar o combustível no tênder.

     Amanhã volveu o engenheiro -, não temos mais do que nos darmos ao incómodo de apanhar a lenha no chão. O vento faz-se lenhador! Poupa-nos trabalho! Conserva a tua pressão, Storr, e torna a abrigar-te.

     Vou já, senhor.

     Tens os  depósitos cheios,  Kalouth? perguntou Banks.

     Sim, Senhor Banks respondeu o fogueiro.

     Bem; recolhe-te, anda!

     O maquinista e o fogueiro tomaram depressa lugar na segunda carruagem.

     Os relâmpagos eram então frequentes, e a explosão das nuvens eléctricas fazia ouvir um abafado ribombo. O tufão não refrescara a atmosfera. Era um vento tórrido, um vento abafado, que queimava como se saísse da boca de um forno.

     Apenas saíamos do salão para ir à varanda. Olhando para a alta ramagem das banianas, víamo-la desenhar-se como fina renda sobre o fundo ígneo do céu.

     Não brilhava um relâmpago que não fosse seguido, com intervalo de segundos, pelos ribombos do trovão.

     Não tinha um eco o tempo de se extinguir, quando já um novo ribombo repercutia após ele. Daqui resultava um desferir continuado de notas de baixo profundo, sobre o qual se destacavam a espaços essas detonações secas que Lucrèce tão propriamente comparou com o estalido do papel que se rasga.

     Pois ainda a tempestade não os trouxe? dizia o coronel Munro.

     Talvez lembrou o sargento o capitão Hod e os seus companheiros achassem algum abrigo na floresta, no côncavo de alguma árvore ou de algum rochedo, e só se nos reunam amanhã pela manhã! O acampamento continuará sempre no mesmo sítio para os receber.

     Banks abanou a cabeça como homem que não está convencido. Não parecia participar da opinião de Mac Neil.

     Neste momento, eram quase nove horas, começou a chuva a cair com violência. Vinha misturada de granizo enorme, que nos lapidava e crepitava sobre o tecto sonoro da «Steam House».

     Era uma espécie de rufar de tambores.

     Teria sido impossível ouvirmo-nos uns aos outros, mesmo que os ribombos do trovão não atroassem o espaço.

     As folhas das banianas, cortadas por esta chuva de pedra, redemoinhavam por todos os lados.

     Banks não conseguia explicar-nos o facto de viva voz no meio deste tumulto ensurdecedor e por isso estendeu o braço e mostrou-nos o granizo que batia nos flancos do Gigante de Aço.

     Custava a crer! Tudo cintilava ao contacto daqueles corpos duros.

     Dir-se-ia que o que caía das nuvens eram verdadeiras gotas de um metal em fusão que, batendo na chapa de ferro, produziam um jacto luminoso.

     Banks, com um gesto, fez-nos entrar no salão e fechou a porta que se abria sobre a varanda.

     Havia, com certeza, ao ar livre, perigo na exposição às influências eléctricas.

     Ficámos no interior.

     Qual não foi a nossa admiração quando vimos que a nossa própria saliva era luminosa! Para isso devíamos estar impregnados, a um ponto extraordinário, do fluido ambiente.

     «Cuspíamos fogo», para nos servirmos de uma expressão com que se tem caracterizado este fenómeno, raras vezes observado, mas sempre temível e assustador.

     Na verdade, em meio desta deflagração contínua, fogo por dentro, fogo por fora, no meio dos ribombos acentuados pelo estalar formidável dos raios, o coração mais firme não podia deixar de bater rapidamente.

     E eles! - disse o coronel Munro.

     E eles!... sim!... eles! - repetiu Banks.

     Era horrivelmente inquietador. Nada podíamos fazer em auxílio do capitão Hod e dos seus companheiros, muito seriamente ameaçados.

     Efectivamente, se algum abrigo tinham encontrado, não podia ser senão debaixo das árvores, e é sabido, em tais condições, que perigo se corre durante as tempestades.

     No meio desta floresta, tão densa, como se poderiam eles colocar a cinco ou seis metros de uma vertical que passe pela extremidade dos ramos mais compridos, segundo se recomenda às pessoas surpreendidas nas proximidades das árvores?

     Acudiam-me ao espírito todas estas reflexões quando um trovão, mais destacado que os outros, estalou subitamente.

     Um intervalo de um segundo apenas o separara do relâmpago.

     A «Steam House» tremeu e como que se levantou sobre as molas. Julguei que se ia virar o trem.

     Ao mesmo tempo derramou-se no espaço um cheiro forte o cheiro penetrante dos vapores nitrosos e com toda a certeza que na água da chuva que se recolhesse durante aquela tempestade se devia encontrar grande quantidade de ácido nítrico.

     Caiu um raio... - informou Mac Neil.

     Storr! Kalouth! Parazard!gritou Banks.

     Os três homens acudiram ao salão. Felizmente nenhum tinha sido ferido.

     O engenheiro empurrou então a porta da varanda e chegou-se ao balcão.

     Eis! Vejam! disse.

     Uma enorme baniana, a dez passos, à esquerda da estrada, fora fulminada.

     Graças aos incessantes clarões eléctricos, via-se então como se fosse dia claro. O tronco da baniana, que os ramos já não podiam sustentar, tinha caído, atravessado, sobre as árvores próximas. Estava perfeitamente descascado em todo o seu comprimento, e uma comprida tira de cortiça, que a ventania agitava como uma serpente, torcia-se, fustigando o ar.

     A árvore devia ter sido despojada de baixo para cima, sob a acção de um raio ascendente de extrema violência.

     Um pouco mais, e «Steam House» teria sido fulminada! afirmou o engenheiro. Mas deixemo-nos ficar. Sempre é abrigo mais seguro que o das árvores.

     Fiquemos! concordou o coronel Munro.

     Neste momento ouviram-se gritos. Seriam os nossos companheiros que, afinal, voltavam?

     É a voz de Paiazard disse Storr. Efectivamente o cozinheiro, que estava debaixo do toldo, chamava por nós em grandes gritos.

     Fomos logo ter com ele.

     Para trás, a mais de cem metros, à direita do acampamento, a floresta das banianas estava incendiada.

     O cimo das árvores mais altas desaparecia já detrás de uma cortina de chamas.

     O incêndio desenvolvia-se com incrível intensidade e avançava para a «Steam House» com maior velocidade do que se poderia imaginar.

     Era iminente o perigo. Uma longa seca, a elevação da temperatura durante os três meses da estação calmosa, haviam ressequido as árvores, os arbustos, as plantas.

     O incêndio alimentava-se com todo este combustível inflamável.

     Como frequentemente sucede nas índias, toda a floresta estava em risco de ser consumida pelo incêndio.

     O fogo ia-se propagando. Se chegasse ao local do acampamento, em poucos minutos seriam destruídos os dois carros, porque as suas delgadas chapas de ferro não podiam livrá-los do fogo, como sucede com as paredes de um cofre de segurança.

     Permanecíamos silenciosos em presença daquele perigo. O coronel estava de braços cruzados.

     Afinal, disse com simplicidade:

     Banks, é a ti que pertence tirar-nos daqui!

     Sim, Munro volveu o engenheiro -, e, visto que não temos meio algum de extinguir o incêndio, é preciso fugir dele!

     A pé! - exclamei.

     Não, com o nosso comboio.

     E o capitão e os seus companheiros? - perguntou Mac Neil.

     Nada podemos fazer em seu auxílio. Se até ao momento de partirmos não aparecerem, partiremos apesar disso!

     Não devemos abandoná-los - declarou o coronel.

     Munro volveu Banks -, quando o comboio se achar em segurança, fora do alcance do fogo, voltaremos e bateremos a floresta até os encontrarmos!

     Faze o que dizes, Banks retorquiu Munro, que teve de se conformar com o parecer do engenheiro, o único que na realidade se podia seguir.

     Storr ordenou Banks, à tua máquina! Kalouth, à tua caldeira e atiça o lume! Que pressão há no manómetro?

     Duas atmosferas respondeu o maquinista.

     É preciso que em dois minutos tenhamos quatro! Vamos, meus amigos, vamos.

     O maquinista e o fogueiro não perderam um instante.

     Dali a pouco saíam nuvens de fumo negro da tromba do elefante, as quais se misturaram com as torrentes de chuva que o gigante parecia arrostar.

     Aos relâmpagos, que abrasavam o espaço, respondia com feixes de faíscas.

     Sibilava na chaminé um jacto de vapor e a tiragem artificial activava a combustão da lenha que Kalouth amontoava na fornalha.

     Eu tinha-me deixado ficar na varanda de trás com Sir Edward Munro e Banks, e observávamos os progressos do incêndio através da floresta.

     Eram rápidos e assustadores esses progressos.

     As grandes árvores abatiam na imensa fornalha, os ramos crepitavam com estrondo de revólveres; os cipós estorciam-se de um tronco ao outro, e o fogo comunicava-se quase imediatamente a novos focos.

     No espaço de cinco minutos o incêndio avançara cinquenta metros, e as chamas, farpadas, e poder-se-ia dizer esfarrapadas pela ventania, subiam a uma tal altura que os raios as sulcavam em todos os sentidos.

     É preciso que em cinco minutos tenhamos saído daqui, ou fica tudo incendiado afirmou Banks.

     E o incêndio caminha rapidamente! - observei eu.

     Mas  nós  havemos  de  caminhar  mais  depressa que ele.

     Se Hod aqui estivesse, se os seus companheiros já se achassem de volta... - disse Sir Edward Munro.

     Apitem, apitem! - exclamou Banks. Talvez que eles ouçam.

     E, correndo à torre, atroou os ares com agudos sons, que sobressaíam de entre os ribombos do trovão e deviam ouvir-se longe.

     Pode-se imaginar esta situação, o que não se pode é descrevê-la!

     Por um lado, a necessidade de fugir o mais rapidamente possível; por outro, a obrigação de esperar os que não tinham regressado!

     Banks voltara para a varanda de trás. A faixa incendiada estendia-se agora a menos de cinquenta pés de distância da «Steam House».

     Desenvolvia-se um insuportável calor, e o ar, já ardente, tornar-se-ia depressa irrespirável.

     Numerosas faúlhas já quase caíam sobre o nosso trem.

     Por grande fortuna, os chuveiros torrenciais protegiam-no até certo ponto, mas com certeza que não nos poderiam defender do ataque directo do fogo.

     A máquina continuava a soltar os seus apitos estridentes; mas nem Hod, nem Fox, nem Gumi apareciam.

     Neste momento o maquinista chegou-se a Banks e anunciou-lhe:

     Estamos em pressão.

     Pois então, a caminho, Storr!volveu Banks mas não muito rapidamente!... O suficiente para nos conservar fora do alcance do incêndio!

     Espera,  Banks,  espera! recomendou o coronel Munro, que não podia resolver-se a deixar o acampamento.

     Mais três minutos, Munro redarguiu Banks, friamente, mas nada mais. Dentro de três minutos pegará fogo na retaguarda do trem!

     Decorreram dois minutos.

     Era impossível conservarmo-nos na varanda. Não podíamos pôr a mão sobre as chapas de ferro, que, já em brasa, começavam a arquear.

     Seria a maior das imprudências permanecer ali mais alguns instantes.

     A caminho, Storr! ordenou Banks.

     - Ah! exclamou o sargento.

     - Ei-los!... - disse eu.

     O capitão Hod e Fox apareciam à direita da estrada. Traziam nos braços Gumi, como um corpo inerte, e chegaram ao degrau de trás.

     Morto! - exclamou Banks.

     Não, ferido pelo raio, que lhe despedaçou a espingarda na mão--volveu o capitão Hod, e apenas paralisado da perna esquerda.

     Louvado seja Deus! - disse o coronel Munro.

     Obrigado, Banks!acrescentou o capitão. Se não fossem os seus apitos, não poderíamos encontrar o acampamento.

     A caminho! exclamou Banks. A caminho! Hod e Fox tinham-se precipitado no trem, e Gumi, que não perdera os sentidos, foi deposto no seu camarote.

     Que pressão temos? - perguntou Banks, que acabava de se reunir ao maquinista.

     Quase cinco atmosferas - respondeu Storr.

     A caminho! - repetiu Banks.

     Eram dez horas e meia. Banks e Storr foram tomar lugar na torrinha.

     Abriu-se o regulador, o vapor precipitou-se nos cilindros, ouviram-se os primeiros mugidos, e o trem partiu a pequena velocidade, no meio da tríplice intensidade de luz, produzida pelo incêndio da floresta, pelos fogos eléctricos dos faróis e pelas fulgurações do céu.

     O capitão Hod contou-nos em poucas palavras o que sucedera durante a excursão.

     Não tinham encontrado, nem ele nem os seus companheiros, vestígios de animais.

     Com a aproximação da tempestade, a escuridão crescera mais rapidamente e sobretudo mais profundamente do que eles julgavam.

     Surpreendeu-os por isso o primeiro trovão quando já se encontravam a mais de três milhas do acampamento.

     Quiseram então voltar para trás; mas, por mais que fizessem para se orientar, não tardaram a perder-se no meio daqueles grupos de banianas, que se parecem todos uns com os outros, e sem que nenhum caminho lhes indicasse a direcção que deviam seguir.

     Dali a pouco a tempestade desencadeava-se com extrema violência.

     Neste momento achavam-se os três fora do alcance dos fogos eléctricos.

     Não puderam por isso dirigir-se em linha recta para a Steam House».

     A chuva e o granizo caíam em torrentes. Abrigo não tinham nenhum, salvo a coma insuficiente das árvores, a qual não tardou que fosse rota pela tempestade.

     De repente, estalou um trovão, acompanhado de um imenso relâmpago.

     Gumi caiu fulminado junto do capitão Hod. aos pés de Fox.

     Da espingarda que tinha na mão, só restava a coronha. Cano, fecharia, tudo o que era de metal, desaparecera.

     Os companheiros julgaram-no morto.

     Felizmente, não sucedeu assim. Só a perna esquerda, ainda que não atacada directamente pelo fluido, lhe ficara paralisada. O pobre Gumi não podia dar um passo. Era preciso transportá-lo.

     Debalde ele pedia que o deixassem, ainda que tivessem de o ir buscar mais tarde.

     Os companheiros não eram dessa opinião, e, agarrando-o um pelos ombros, outro pelos pés, meteram-se pela floresta conforme puderam.

     Por espaço de duas horas, Hod e Fox vaguearam ao acaso, hesitando, parando, pondo-se novamente a caminho, sem ponto algum de referência que lhes pudesse indicar a direcção da «Steam House».

     Felizmente, afinal, os apitos, mais perceptíveis no meio do estrondo dos elementos do que o seriam os próprios tiros de espingarda, ouviram-se acima do ruído do temporal.

     Aqueles apitos eram a voz do Gigante de Aço.

     Dali a um quarto de hora chegavam os três, no momento exactamente em que o lugar da paragem ia ser abandonado.

     Era tempo!

     Se o comboio corria pela estrada larga e plana da floresta, o incêndio caminhava com igual velocidade.

     O que tornava o perigo mais ameaçador era a mudança do vento, mudança frequente durante aquelas tempestades.

     Em vez de soprar de lado, soprava agora pela banda de trás, e com a sua violência activava o incêndio, como um ventilador que satura qualquer fornalha de oxigénio.

     O fogo avançava a olhos vistos.

     Os ramos em ignição, as faúlhas ardentes choviam no meio de uma nuvem de cinzas quentes, levantadas do solo como se alguma cratera arremessasse para o espaço matérias eruptivas.

     E, na verdade, não se podia achar melhor comparação para este incêndio do que a marcha de um rio de lava, correndo através do campo e tudo destruindo na sua passagem.

     Banks viu isto, e, se não visse, tê-lo-ia sentido pelo sopro requeimado que perpassava pela atmosfera.

     Trataram, pois, de apressar a marcha, apesar do perigo que isso oferecia por aquele caminho desconhecido.

     Mas a estrada, alagada pelas águas do céu, estava agora tão cheia de barrancos que não foi possível darem à máquina tanta força quanta queriam.

     Pelas onze horas e meia, novo raio, novo trovão, que foi terrível!

     Soltámos um grito. Julgámos que Banks e Storr tinham ambos sido fulminados na torre de onde dirigiam a marcha.

     Escapámos a esta desgraça. Fora o nosso elefante que acabara de ser fulminado na extremidade de uma das suas grandes orelhas pendentes.

     Felizmente, não resultara disto nenhum prejuízo para a máquina, e pareceu até que o Gigante de Aço quis responder aos ímpetos da tempestade com os seus mugidos mais precipitados.

     Hurra! bradou o capitão Hod. Hurra! Um elefante de carne e osso teria caído fulminado pelo raio! Mas tu, tu arrostas o próprio fogo do céu, e nada te pode deter! Hurra!, Gigante de Aço, hurra!

     Durante meia hora o trem manteve a distância conveniente. com receio de esbarrar nalgum obstáculo, Banks apenas lhe dava a velocidade necessária para que o fogo o não pudesse alcançar.

     Da varanda onde eu tomara lugar com Munro e Hod, víamos passar grandes sombras, que saltavam no meio das projecções luminosas dos relâmpagos e do incêndio.

     Eram finalmente as feras!

     Por precaução, Hod lançou mão da espingarda, porque podia suceder que os animais, assustados, quisessem arremessar-se para dentro dos veículos e aí procurar um refúgio.

     Efectivamente, tentou fazê-lo um tigre enorme; porém, ao formar um salto prodigioso, ficou preso pelo pescoço entre duas banianas novas. A árvore principal, curvando-se então sob o sopro da tempestade, puxou os seus rebentos como duas imensas cordas, as quais estrangularam o animal.

     Pobre animal! - disse Fox.

     Animais daqueles retorquiu o capitão Hod, indignado fizeram-se para serem mortos pela bala decente de uma carabina! Sim, também digo: pobre animal!

     Na verdade, aquilo era ainda a má sorte do capitão Hod! Quando procurava tigres, não os via, e quando os não procurava passavam voando, sem que lhes pudesse atirar, ou ficavam estrangulados como um rato nos arames de uma ratoeira!

     À uma hora da noite, o perigo, apesar de ser já muito grande, aumentou ainda.

     Sob a acção daqueles ventos desatinados, que saltavam para todos os pontos do espaço, o incêndio tomara-nos a dianteira e estávamos absolutamente cercados.

     Entretanto, a tempestade diminuíra muito em violência, como sucede quase invariavelmente quando estes meteoros passam por cima de uma floresta, cujas árvores atraem e esgotam pouco a pouco a matéria eléctrica.

     Mas se os relâmpagos eram mais raros, os trovões mais espaçados, se a chuva caía com menos força, o vento continuava a correr sobre a superfície do solo com incrível furor.

     Custasse o que custasse, era preciso apressar a marcha do trem, ainda que com perigo de este esbarrar nalgum obstáculo, ou de se precipitar nalgum barranco.

     Foi o que Banks fez; mas fê-lo com admirável sangue-frio, os olhos chegados aos vidros lenticulares da torre e a mão sobre o regulador, que ele não largava.

     O caminho parecia ainda um pouco livre entre duas alas de fogo. Era forçoso portanto passar entre aquelas duas alas.

     Banks precipitou-se resolutamente por entre elas com uma velocidade de seis a sete milhas por hora.

     Julguei que ficaríamos ali, principalmente quando foi preciso atravessar um sítio muito estreito da fornalha numa extensão de cinquenta metros.

     As rodas do Gigante de Aço rangeram sobre as brasas que juncavam o solo, e uma atmosfera ardente envolveu-nos completamente...

     Finalmente, às duas horas da manhã, a orla extrema da floresta apareceu-nos ao fulgor de raros relâmpagos.

     Para trás de nós desenrolava-se um vasto panorama de chamas.

     O incêndio só devia extinguir-se depois de haver consumido até à última baniana da imensa floresta.

     Parámos finalmente quando era dia; a tempestade dissipara-se completamente, e formámos um acampamento provisório.

     O nosso elefante, que foi revistado com toda a atenção, tinha a ponta da orelha direita esburacada, e as rebarbas dos buracos curvavam-se em diversas direcções.

     Qualquer outro animal, que não fosse de aço, ferido por um raio daqueles, teria caído para nunca mais se levantar, e o incêndio consumiria depois o perdido comboio.

     Às seis horas da manhã, depois de um pequeno descanso, continuávamos o caminho, e ao meio-dia vínhamos a acampar nos arredores de Rewah.

   

    Proezas do Capitão Hod

     Passaram-se tranquilamente no acampamento o resto do dia e a noite de 5 de Junho.

     Depois de tantas fadigas, aumentadas por tantos perigos, era-nos devido este repouso.

     Não era agora o reino de Ude que desenrolava diante de nós as suas férteis planícies.

     A «Steam House» corria então através daquele território, ainda fértil, mas cortado de nullahs, ou barrancos, que forma o Rohilkhande.

     Bareilli é a capital deste vasto quadrado de cento e cinquenta e cinco milhas de terreno acidentado, banhado por numerosos afluentes e subafluentes do Cogra, matizado de grupos de magníficas mangueiras, coberto, a espaços, de juncais espessos, que tendem a desaparecer diante da cultura.

     Foi ali o centro da insurreição, depois da tomada de Deli; foi ali que Sir Colin Campbell fez uma das suas campanhas; foi ali que a coluna do brigadeiro Walpole sofreu a princípio alguns reveses; foi ali que pereceu um amigo de Sir Edward Munro, o coronel do 93.º escocês, que muito se distinguira nos dois assaltos de Lucknow, em 14 de Abril.

     Em vista da disposição deste território, não podia haver outro mais favorável à marcha do nosso comboio. Belas estradas, muito bem niveladas, correntes fáceis de transpor entre as duas artérias mais importantes que descem do norte, tudo concorria para facilitar esta parte do itinerário.

     Apenas nos restavam alguns centos de quilómetros a percorrer, antes de percebermos as primeiras elevações do solo, que ligam à planície as montanhas do Nepal.

     Era preciso, porém, tomar muito em conta a estação das chuvas, que se aproximava.

     A monção, que reina de noroeste para sudoeste durante os primeiros meses do ano, acabava de mudar.

     O período pluvioso é mais violento no litoral que no interior da península, e também um pouco mais tardio.

     É isto devido a que as nuvens se esgotam antes de chegarem ao centro da índia. Depois, a sua direcção é um pouco modificada pela barreira das altas montanhas, que ocasionam uma espécie de redemoinho atmosférico.

     Na costa do Malabar, a monção principia no mês de Maio; no meio das províncias centrais e setentrionais, só se faz sentir algumas semanas mais tarde, no mês de Junho.

     Ora, nós estávamos no mês de Junho, e era nestas circunstâncias particulares, mas previstas, que a nossa viagem ia dali em diante efectuar-se.

     Devo já declarar que logo no dia seguinte o nosso bom Gumi, tão desastradamente desarmado pelo raio, melhorou.

     Foi apenas temporária a paralisia da perna esquerda. Não conservou dela vestígios, nem tão-pouco ficou por isso com rancor ao fogo celeste.

     Durante os dias 6 e 7 de Junho, o capitão Hod fez melhor caça com a ajuda de Phann e de Black. Conseguiu matar um casal dos antílopes chamados nilgós no país.

     São os bois azuis dos indianos, a que seria mais razoável chamar veados, porque se parecem mais com estes animais do que se parecem com os congéneres do deus Ápis.

     Deveria até dar-se-lhes o nome de veados gris-perle, porque a sua cor lembra mais a cor do céu tempestuoso do que a do céu azul. Afirma-se, contudo, que em alguns destes magníficos animais, de pequenos chavelhos acerados, cabeça comprida e ligeiramente arqueada, o pêlo se torna completamente azul, cor que a natureza parece ter invariavelmente recusado aos quadrúpedes, mesmo à chamada raposa azul, cujo pêlo é, pelo contrário, negro.

     Não era, porém, em carnívoros que consistiam os sonhos do capitão Hod. Contudo, o nilgó, se não é feroz, não deixa de ser perigoso quando, ligeiramente ferido, volve sobre o caçador.

     Uma primeira bala do capitão, uma segunda de Fox, fizeram parar na corrida aqueles dois esplêndidos animais.

     Foram, por assim dizer, mortos no voo. Por isso, para Fox, aquilo não passava de caça de pena!

     Monsieur Parazard, esse, foi de opinião inteiramente diversa, e as excelentes pernas dos bichos, que ele naquele mesmo dia nos serviu assadas, fizeram-nos passar para o seu lado.

     No dia 8 de Junho, logo de madrugada, deixávamos o nosso acampamento, que fora estabelecido junto de uma pequena aldeia de Rohilkhande.

     Tínhamos ali chegado na véspera à noite, depois de transpormos os quarenta quilómetros que a separam de Rewah.

     Havíamos, portanto, caminhado com uma velocidade muito moderada naquele solo que as chuvas continuavam a encharcar. Além disso, os ribeiros começaram a engrossar, e vários vaus causaram-nos uma demora de algumas horas.

     A região montanhosa, onde contávamos instalar a nossa «Steam House» durante alguns meses do Estio, como no meio de um sanitarium, tínhamos a certeza de a alcançar antes do fim de Junho.

     Por consequência, a este respeito nenhuma inquietação podíamos ter.

     Durante o dia 8, o capitão Hod teve a lastimar a perda de um bom tiro.

     A estrada era ladeada de densos juncais de bambus, como frequentemente se encontram em roda destas aldeias, que parecem estabelecidas em meio de açafates de flores.

     Não era ainda o verdadeiro juncal, porque este nome, no sentido indiano, aplica-se à planície escabrosa, desprovida de vegetação, estéril, sobre a qual se alinham escuros matagais.

     Nós, pelo contrário, estávamos numa região cultivada, no meio de um fértil território, a maior parte das vezes enxadrezado de pantanosos arrozais.

     O Gigante de Aço ia avançando tranquilamente, dirigido pela mão de Storr, soltando os seus belos penachos de fumo, que o vento espalhava sobre os bambus do caminho.

     De repente, com surpreendente agilidade, saltou um animal sobre o pescoço do elefante.

     Um tchita! Um tchita! exclamou o maquinista. A este grito, o capitão Hod correu à varanda da frente e deitou a mão à espingarda, que estava sempre ali pronta.

     Um tchita! exclamou ele também, por sua vez.

     Então atire-lhe! exclamei eu.

     Tenho muito tempo! redarguiu o capitão Hod, que se limitou a conservar a pontaria.

     O tchita é uma espécie de leopardo especial das índias, mais pequeno que o tigre, mas quase tão temível como este animal, tão vivo, tão flexível de espinha, tão robusto de membros ele é.

     Eu, o coronel Munro e Banks, em pé sobre a varanda, observávamos o animal, à espera do tiro do capitão.

     Incontestavelmente, o leopardo enganara-se com o nosso elefante. Precipitara-se atrevidamente sobre ele, mas, onde julgara achar carne viva, em que pudesse enterrar as garras ou os dentes, achara ferro, em que os seus dentes e garras não podiam entrar.

     Furioso com o engano, pendurou-se às compridas orelhas do falso animal, e ia com certeza abandoná-lo quando deu connosco.

     O capitão Hod continuava a tê-lo debaixo da pontaria da espingarda, como caçador que, seguro do seu tiro, não quer ferir o animal senão no momento oportuno e em parte adequada.

     O tchita endireitou-se, rugindo. Conheceu decerto o perigo, mas não pareceu que quisesse evitá-lo. Talvez procurasse o movimento favorável para se precipitar sobre a varanda.

     Efectivamente, vimo-lo em seguida trepar à cabeça do elefante, abraçar com as patas a tromba que servia de chaminé, e subir até ao orifício de onde saíam jactos de vapor.

     Então atire, Hod  - disse eu outra vez.

     Tenho muito tempo! - volveu o capitão.

     Depois, sem perder de vista o leopardo, que olhava para nós, prosseguiu:

     Nunca matou nenhum tchita, Maucler?

     Nunca.

     Quer matar um?

     Capitão respondi, não quero privá-lo desse tiro magnífico.

     Ora retorquiu o capitão com desdém, não é tiro digno de um caçador! Pegue numa espingarda e aponte à extremidade da espádua. Se lhe falhar o tiro, eu apanharei o animal no salto!

     Como quiser...

     Fox, que voltara para junto de nós, deu-me uma carabina de dois tiros que tinha na mão. Peguei nela, armei-a, apontei ao leopardo, que permanecia imóvel, e atirei.

     O animal, ferido, porém, ligeiramente, deu um pulo enorme e, passando por cima da torre do maquinista, veio cair sobre o primeiro tecto da ((Steam House».

     Apesar de muito bom caçador, o capitão Hod não tivera tempo de lhe acertar na passagem.

     Vem, Fox, vem! exclamou.

     E ambos, precipitando-se para fora da varanda, foram postar-se na torre.

     O leopardo, que andava de cá para lá, saltou o segundo tecto, depois de transpor a ponte de um salto. No momento em que o capitão ia fazer fogo, o animal, com outro salto, caiu no solo, levantou-se com ímpeto vigoroso e desapareceu no juncal.

     Stop! Stop! - gritou Banks para o maquinista, o qual, fechando a comunicação do vapor, travou instantaneamente todas as rodas com o freio atmosférico.

     O capitão e Fox saltaram para a estrada e meteram-se pela espessura em busca do tchita.

     Passaram-se alguns minutos. Pusemo-nos à escuta, não sem alguma impaciência.

     Não se ouviu nenhum tiro de espingarda.

     Os dois caçadores voltaram sem coisa alguma.

     Desapareceu! Voou! exclamou o capitão Hod. E nem um sinal de sangue nas ervas!

     Foi culpa minha! disse eu ao capitão Hod. Teria feito melhor atirando em meu lugar O animal não escapava.

     Bem volveu Hod -, o senhor acertou-lhe, mas não foi no lugar conveniente!

     Não é aquele que fará o meu trigésimo oitavo, nem o seu quadragésimo primeiro! lamentou Fox, bastante descoroçoado.

     Ora adeus! - exclamou o capitão Hod, num tom de indiferença um pouco afectado. Um tchita não é um tigre. Se não fosse isso, meu caro Maucler, não teria tomado a responsabilidade de lhe ceder este tiro.

     Para a mesa, meus amigos disse o coronel Munro. O almoço está à nossa espera e consolá-los-á...

     Tanto mais acrescentou Mac Neil que tudo isto foi culpa de Fox!

     Culpa minha! - retorquiu o impedido, muito confuso com esta inesperada observação.

     Com certeza, Fox tornou o sargento. A carabina que deste ao Senhor Maucler tinha apenas chumbo!

     E Mac Neil mostrava o segundo cartucho, que acabava de tirar da arma de que eu me servira.

     Efectivamente, não continha senão carga de chumbo para perdizes.

     Fox! - disse o capitão Hod.

     Meu capitão?

     Dois dias de prisão.

     Sim, meu capitão.

     E Fox retirou-se para o seu camarote, resolvido a não tornar a aparecer senão passadas quarenta e oito horas.

     Estava todo vexado do seu erro e queria ocultar a sua vergonha.

     No dia seguinte, 9 de Junho, o capitão Hod, Gumi e eu fomos bater a planície ao longo da estrada, durante o meio dia de paragem que Banks acabava de conceder.

     Chovera durante toda a manhã; mas por volta do meio-dia o céu serenara um pouco, e podia-se contar com uma aberta de algumas horas.

     Desta vez não era o perseguidor de feras que me levava consigo, era o caçador.

     No interesse da nossa mesa, ia vaguear pelas proximidades dos arrozais, em companhia de Black e de Phann.

     Parazard fizera saber ao capitão que a despensa estava vazia, e esperava que Sua Honra se dignasse tomar as medidas necessárias para a encher.

     O capitão resignou-se, e partimos armados com simples espingardas de caça.

     Durante duas horas, a nossa batida não deu outro resultado senão fazer voar algumas perdizes ou levantar algumas lebres, mas a tais distâncias que, apesar da boa vontade dos nossos cães, tiVemos de abandonar toda a esperança de as alcançar.

     O capitão Hod estava por isso de muito mau humor. Demais, no meio daquela vasta planície, sem juncais, sem mato, coberta de aldeias e de estabelecimentos agrícolas, não podia esperar o encontro de qualquer carnívoro que o indemnizasse do leopardo da véspera.

     Viera ali na qualidade de fornecedor, e lembrava-se da recepção que lhe faria Parazard se voltasse com a bolsa de caça vazia.

     Mas não era culpa nossa.

     Às quatro horas não havíamos ainda tido ocasião de atirar um só tiro. Como já disse, a caça levantava-se toda fora de alcance.

     Meu caro amigo disse-me então o capitão Hod -, decididamente isto vai mal! Ao saírmos de Calcutá prometi-lhe excelentes caçadas, e uma má sorte, uma persistente fatalidade, acerca da qual nada compreendo, impede-me que cumpra a minha promessa.

     Ora, meu capitão, não se deve desesperar. Se sinto algum pesar, é mais por si que por mim!... Nós nos desforraremos nas montanhas do Nepal!

     Sim  - disse o capitão Hod, aí, nas primeiras encostas do Himalaia, estaremos em melhores condições para operar. Sabe, Maucler, que ia apostar que os nossos veículos, com todo o seu mecanismo, os seus rugidos do vapor, e principalmente com o seu elefante gigantesco, assustam essas malditas feras, mais ainda que as assustaria um comboio de caminho de ferro, e sucederá sempre assim enquanto estivermos em marcha! Parados, é de esperar que sejamos mais felizes. Na verdade, aquele leopardo era um doido! Era preciso que estivesse a morrer de fome para se atirar sobre o nosso Gigante de Aço, e merecia que o tivessem morto redondamente com uma boa bala de calibre próprio! Maldito Fox! Nunca esquecerei o que ele fez! Que horas são?

     Quase cinco.

     Já cinco horas e ainda não pudemos queimar um só cartucho!

     Só às sete horas nos esperam no acampamento. Pode ser que até lá...

     Não! Não estamos em sorte exclamou o capitão Hod e só o estar em sorte constitui o bom êxito!

     E também a perseverança volvi eu. Em todo o caso, capitão, deve concordar que não havemos de voltar com as mãos vazias! Está por isto?

     Estou! - exclamou Hod.  - Não torno com a palavra atrás.

     Está dito!

     Olhe, Maucler, mais depressa voltarei com um arganaz ou um esquilo do que irei com as mãos a abanar!

     Eu, Gumi e Hod achávamo-nos na disposição de espírito em que nada se perdoa. A caçada continuou-se com uma teimosia digna de melhor sorte; mas parecia que os pássaros mais inofensivos adivinhavam as nossas intenções hostis. Era impossível aproximarmo-nos de um só que fosse.

     Fomos assim continuando entre os arrozais, ora para um lado, ora para o outro, voltando muitas vezes para trás, a fim de não nos afastarmos muito do acampamento. Baldado empenho! Às seis horas e meia da tarde, tínhamos ainda intactos os cartuchos. Poderíamos ter vindo à caça com uma bengala em vez de uma espingarda. O resultado seria o mesmo.

     Olhava para o capitão Hod. Levava os dentes cerrados.

     Tinha na fronte, entre as sobrancelhas, uma profunda ruga, indício de raiva concentrada.

     Resmungava entre os lábios fincados não sei que vãs ameaças contra qualquer animal de pêlo ou pena, de que não aparecia um só espécime naquela planície.

     Com toda a certeza, havia de chegar a disparar a espingarda contra um objecto qualquer, árvore ou rochedo maneira cinegética com que ele fazia passar a cólera.

     A arma queimava-lhe os dedos, via-se. Punha-a no braço, colocava-a a tiracolo, encostava-a ao ombro, tudo isto como contra vontade. Gumi olhava para ele.

     O capitão dá em doido se isto continua! disse-me ele, abanando a cabeça.

     Decerto volvi eu -, e eu daria bem trinta xelins pelo mais modesto pombo doméstico que qualquer mão caridosa lhe lançasse ao alcance da espingarda! Sossegá-lo-ia.

     Mas nem por trinta xelins, nem pelo dobro, nem pelo triplo, se poderia àquela hora obter a peça de caça menos custosa e mais vulgar.

     Era deserta a campina, e já não avistávamos nem aldeia nem herdade.

     Com efeito, parece-me que, se fosse possível, teria mandado Gumi comprar por todo o preço uma ave qualquer, uma galinha, depenada que fosse, para a entregar como represália, aos tiros do nosso despeitado capitão.

     A noite ia-se aproximando.

     Em menos de meia hora já não haveria claridade suficiente para se poder continuar aquela infrutífera expedição.

     Apesar de havermos concordado em não aparecer no acampamento com a bolsa vazia, íamo-nos ver obrigados a isso, salvo se quiséssemos passar a noite na planície. Mas, além de estar a noite chuvosa, o coronel Munro e Banks, não nos vendo voltar, ficariam numa inquietação que era preciso evitar-lhes.

     O capitão Hod, com os olhos muito abertos, que relanceava para a direita e para a esquerda com a prontidão de um pássaro, levava uma dianteira de dez passos e caminhava numa direcção que não nos aproximava positivamente da «Steam House».

     Eu ia apressar o passo, para lhe dizer que se deixasse enfim de lutar contra a má sorte, quando se ouviu à minha direita um forte bater de asas. Olhei.

     De entre o mato elevava-se lentamente uma forma esbranquiçada.

     Rapidamente, sem dar ao capitão Hod tempo de se voltar, pus a espingarda à cara, e os meus dois tiros partiram sucessivamente.

     A ave desconhecida a que eu acabava de atirar caiu pesadamente à beira de um arrozal.

     Phann deu um pulo, apoderou-se da caça que eu acabava de abater, e trouxe-a ao capitão.

     Finalmente! exclamou Hod. Se o Sr. Parazard não ficar satisfeito, que se atire ao caldeiro, de cabeça para baixo.

     Mas será ao menos caça que se coma? perguntei.

     Com  certeza...  à  falta  de  outra!replicou  o capitão.

     Felizmente, Senhor Maucler, que ninguém o viu! disse-me então Gumi.

     Que fiz então que mereça censura?

     Ora! Matou um pavão, e é proibido matar os pavões, que são aves sagradas em toda a índia.

     O demónio leve as aves sagradas e aqueles que as consagram! - exclamou o capitão Hod. Este está morto, havemos de comê-lo... devotamente, se quiserem, mas havemos de comê-lo!

     Efectivamente, na região dos brâmanes, o pavão é animal sagrado como nenhum, desde a expedição de Alexandre, época em que se espalhou na península.

     Os indianos fizeram dele o emblema da deusa Saravasti, que preside aos nascimentos e aos consórcios.

     É proibido destruir esta ave, ficando sujeito a certas penalidades quem o fizer, o que os Ingleses confirmaram.

     Este exemplar dos galináceos, que enchia de alegria o capitão Hod, era esplêndido, com as suas asas verde-escuras com reflexos metálicos, orladas de listras de ouro.

     A cauda, muito farta e delicadamente oculada, formava magnífico leque de sedosas franjas.

     A caminho! A caminho! disse o capitão. Amanhã, Parazard há-de dar-nos a comer pavão, digam o que disserem todos os brâmanes da índia! Se o pavão não passa, afinal, de um animal vaidoso, este, com as pernas artisticamente levantadas, há-de fazer um belíssimo efeito em cima da nossa mesa!

     Em suma, está satisfeito, meu capitão?

     Satisfeito... com o senhor, decerto, meu caro amigo, mas comigo é que não estou nada contente! A minha má sorte continua, e é preciso que não continue. A caminho!

     Voltámos, afinal, para os lados do acampamento, de onde nos devíamos ter afastado umas três milhas. Eu e o capitão caminhávamos um ao pé do outro pela estrada que desenrolava a sua faixa sinuosa através do matagal de bambus.

     Gumi seguia-nos a dois ou três passos com a caça.

     O Sol ainda não desaparecera, mas velavam-no grandes nuvens, e era-nos preciso procurar o caminho em meia escuridão.

     De repente, numa espessura, à direita, soou um formidável rugido.

     Este rugido pareceu-me tão temeroso que parei repentinamente, ainda que a pesar meu.

     O capitão Hod agarrou-me na mão.

     Um tigre! - disse.

     Em seguida soltou uma praga.

     Ah! Raios das índias! - exclamou. Nas espingardas só temos chumbo de perdizes!

     Era bem verdade, e nem Hod, nem Gumi, nem eu tínhamos cartuchos com bala!

     Demais, não teríamos tempo para carregar as armas.

     Dez segundos depois de soltar o rugido, o animal saltava rapidamente da espessura e caía num só pulo a vinte passos, na estrada.

     Era um magnífico tigre, da espécie a que os indianos chamam devoradores de homens, ferozes carnívoros, cujas vítimas se contam anualmente aos centos.

     Era terrível a situação.

     Eu olhava para o tigre, devorava-o com os olhos, a espingarda tremia-me na mão, confesso.

     Media nove a dez pés de comprimento, era cor de laranja, listrado de riscas brancas e pretas.

     Também olhava para nós. Os seus olhos de gato flamejavam na escuridão. Varria febrilmente o solo com a cauda. Rojava-se e encolhia-se como para formar salto.

     Hod nada perdera do seu sangue-frio.

     Conservava o animal em mira e murmurava num tom impossível de reproduzir:

     Chumbo de  perdizes. Fulminar um  tigre com chumbo de perdizes! Se não lhe atiro à queima-roupa, nos olhos, estamos...

     Não pôde concluir. O tigre avançava, não aos pulos, mas com um passo miúdo.

     Gumi, agachado atrás, também lhe fazia pontaria, mas a sua espingarda só tinha chumbo miúdo. A minha nem carregada estava!

     Nenhum de nós se mexia.

     O tigre avançava lentamente. Já não movia a cabeça, que ele havia pouco balouçava. Olhava fixamente, mas como que debaixo para cima.

     Parecia aspirar as emanações do solo, com as fauces entreabertas e quase de rojo.

     Quis tirar uma carga da cartucheira.

     Nem um movimento segredou-me o capitão. O tigre dava um salto, e é preciso que o não faça!

     Dali a nada a fera já estava só a dez passos do capitão.

     Hod, muito firme nas pernas, imóvel como uma estátua, concentrava toda a sua vida no olhar.

     A formidável luta que se preparava, e de onde nenhum de nós ia talvez sair vivo, não lhe fazia decerto bater o coração mais rapidamente.

     Julguei naquele momento que o tigre ia afinal saltar.

     Deu mais cinco passos. Foi-me precisa toda a minha energia para não gritar ao capitão Hod:

     - Mas atire! Atire!

     Não! O capitão dissera e era evidentemente o único meio de salvação que era forçoso acertar nos olhos do animal; mas, para isso, era preciso desfechar à queima-roupa.

     O tigre deu mais três passos e ergueu-se para saltar...

     Soou uma violenta detonação, que logo foi seguida de outra.

     A segunda detonação produzira-se mesmo no corpo do animal, que, depois de três ou quatro convulsões e rugidos de dor, caiu inanimado no solo.

     Prodígio! - exclamou o capitão Hod. - Tinha então a espingarda carregada com bala, e bala explosiva! Ah! desta vez obrigado, Fox, obrigado!

     Pois será possível! - exclamei.

     Veja!

     E, descansando a arma, o capitão Hod tirou o cartucho do cano esquerdo.

     Era um cartucho com bala.

     Tudo se explicava.

     O capitão Hod tinha uma carabina de dois canos e uma espingarda igualmente de dois canos, ambas do mesmo calibre. Ao mesmo tempo que Fox, por engano, carregara a carabina com os cartuchos de chumbo, carregara a espingarda com os cartuchos de bala explosiva. Se na véspera o engano salvara a vida ao leopardo, hoje salvou-nos a vida a nós.

     Nunca observou o capitão Hod me vi tão perto da morte

     Meia hora depois voltávamos ao acampamento. Hod fazia comparecer Fox à sua presença e contava-lhe o que se passara.

     Meu capitão redarguiu Fox -, prova isso que, em lugar de dois dias de prisão, merecia quatro, porque me enganei duas vezes!

     É essa a minha opinião volveu o capitão Hod; mas visto que o teu engano me fez apanhar o meu quadragésimo primeiro bicho, é também minha opinião que te devo oferecer este guinéu...

     Que me apresso a aceitar e a agradecer respondeu Fox, metendo o dinheiro na algibeira.

     Tais foram os incidentes que caracterizaram o encontro do capitão Hod e do seu tigre número quarenta e um.

     No dia 12 de Junho, à tarde, parava o nosso comboio junto de um lugarejo pouco importante, e no dia seguinte tornávamos a pôr-nos a caminho para transpor os cento e cinquenta quilómetros que ainda nos separavam das montanhas do Nepal.

   

    Um contra três

     Mais alguns dias e íamos, finalmente, subir as primeiras rampas daquelas regiões setentrionais da índia, que, de planura em planura, de colina em colina, de montanha em montanha, atingem as mais elevadas altitudes do Globo.

     Até então o solo apresentara uma desnivelação insensível, o seu declive mal se conhecia, e o nosso Gigante de Aço nem parecia dar por ele.

     O tempo estava tempestuoso, chuvoso principalmente, mas a temperatura mantinha-se numa média suportável. Os caminhos ainda não estavam maus, e resistiam bem às grandes cambas das rodas, apesar do enorme peso dos veículos.

     Quando se encontrava algum barranco mais profundo, um quarto de volta nas válvulas de introdução acrescentava instantaneamente à sua força efectiva algumas dúzias de cavalos-vapor.

     Até aqui não tínhamos senão razões para nos congratularmos, tanto por este género de locomoção como pelo motor que Banks adoptara e pelo conforto das nossas casas rolantes, que nos proporcionavam continuamente horizontes novos, que sem cessar se modificavam aos nossos olhos.

     Efectivamente, já não tínhamos diante de nós a planície infinita que se estende desde o vale do Ganges até aos territórios do Ude e do Rohilkhande.

     Os cumes do Himalaia formavam ao norte uma gigantesca muralha, contra a qual vinham esbarrar as nuvens impelidas pelo vento do sudoeste.

     Ainda não era possível divisar perfeitamente o pitoresco perfil de uma cadeia que se recortava a uma altura média de oito mil metros acima do nível do mar; mas nas proximidades da fronteira do Tibete o aspecto da região tornava-se mais selvática, e os juncais invadiam o solo, com sacrifício dos campos cultivados.

     Por isso a flora desta parte do território indiano já não era a mesma.

     As palmeiras haviam desaparecido para dar lugar às magníficas bananeiras, às mangueiras copadas, que forneciam o melhor fruto da índia, e principalmente aos grupos de bambus, cujos ramos formavam um feixe que chegava à altura de cem pés.

     Também se encontravam magnólias, de grandes flores, que embalsamavam o ar com penetrantes perfumes, bordos magníficos, carvalhos de várias espécies, castanheiros com frutos eriçados de espinhos como os oiriços-do-mar, árvores de cauchu, cuja seiva corria pelas suas veias entreabertas, pinheiros de folhas enormes da espécie dos pendanus, e, de tamanho mais modesto, de cores mais brilhantes, gerânios, rododendros, loureiros dispostos em alegretes à beira dos caminhos.

     Algumas aldeias com choupanas de palha ou de bambus, dois ou três estabelecimentos agrícolas perdidos no meio de grandes árvores, ainda apareciam, porém já separados por maior número de milhas. A população diminuía à aproximação das terras elevadas.

     Sobre estas vastas paisagens, como fundo do quadro, desdobrava-se agora um céu pardacento e enevoado.

     Acrescentarei até que a chuva caía em fortes bátegas.

     Durante quatro dias, de 13 a 17 de Junho, não tivemos nem meio dia de bom tempo. Por isso víamos-nos obrigados a conservar-nos no salão da ((Steam House», víamo-nos precisados de entreter as longas horas como se faz numa habitação sedentária, fumando, conversando, jogando o whist.

     Entretanto as espingardas jaziam para um canto, com grande dissabor do capitão Hod; porém, dois chelemes, que fez numa só noite, restituíram-lhe de pronto o habitual bom humor.

     Pode-se sempre matar um tigre disse ele -, não se pode fazer sempre um cheleme!

     Não havia que responder a proposição tão justa e formulada com tanta nitidez.

     No dia 17 de Junho o acampamento estabeleceu-se junto de um semi, nome que se dá aos bungalows reservados especialmente aos viajantes.

     O tempo aclarara um pouco, e o Gigante de Aço, que rudemente trabalhara durante aqueles quatro dias, reclamava, senão algum repouso, pelo menos alguns cuidados.

     Concordou-se por isso em passarmos a tarde e a noite seguinte naquele lugar.

     O serai é o caravansará, a estalagem pública das estradas da península, um quadrilátero composto de edifícios pouco elevados, rodeando um pátio interior, que lhe dá um aspecto inteiramente oriental.

     No serai funciona um pessoal especialmente destinado ao serviço interior, o bhisti, ou o portador de água, o cozinheiro, essa providência dos viajantes que, pouco exigentes, sabem contentar-se com ovos e frangos, e o khansama, isto é, o fornecedor dos víveres, com o qual se pode tratar directamente e na maior parte das vezes por preços razoáveis.

     O guarda do serai, o peão, é simplesmente um agente da respeitável Companhia, à qual pertencem a maior parte destes estabelecimentos, e que os faz inspeccionar pelo engenheiro-chefe do distrito.

     Adopta-se ali um costume que, apesar de bastante singular, não deixa de ser mantido com o maior rigor. Todo o viajante pode ocupar o serai durante vinte e quatro horas; dado o caso que nele queira residir mais tempo, precisa para isso de uma licença do inspector. Faltando esta autorização, o primeiro que chegue, inglês ou indiano, pode exigir que lhe cedam o lugar.

     É escusado dizer que, assim que chegámos, o Gigante de Aço produziu o seu efeito habitual, isto é, tornou-se muito reparado, talvez mesmo invejado.

     Devo, porém, afirmar que os hóspedes actuais do serai o contemplaram com uma espécie de desdém desdém muito afectado para ser real.

     É verdade que não tratávamos com simples mortais que viajassem para comerciar ou para se divertir. Não estava ali nenhum oficial inglês que se dirigisse aos acantonamentos da fronteira do Nepal, nem nenhum mercador indiano conduzindo a sua caravana para as estepes do Afeganistão, para além de Lahore ou de Peshawar.

     Era nada menos que o príncipe Guru Singh em pessoa, filho de um rajá independente do Guzarate, rajá também, e que viajava com grande magnificência no norte da península indiana.

     Ocupava não só as três ou quatro salas do serai, mas também todas as dependências, que tinham sido acomodadas para alojamento da sua comitiva.

     Não tinha ainda visto nenhum rajá em viagem. Por isso, logo que preparámos tudo para a nossa paragem, quase a um quarto de milha do serai, num sítio encantador, na margem de um pequeno ribeiro e ao abrigo de magníficos pendanus, fui, em companhia do capitão Hod e de Banks, visitar o acampamento do príncipe Guru Singh.

     O filho de um rajá, que muda de local, não o faz sozinho. Longe disso!

     Se há no mundo criaturas que eu não invejo são decerto aquelas que não podem mexer uma perna nem dar um passo sem pôr imediatamente em movimento alguns centos de indivíduos.

     Mais vale ser simples peão, de mala às costas, bordão na mão, espingarda ao ombro, do que príncipe nas índias, com todo o cerimonial que a sua posição lhe impõe.

     Não é um homem que vai de uma cidade para a outra disse-me Banks -, é uma aldeia inteira que modifica as suas coordenadas geográficas!

     Prefiro a «Steam House» redargui eu, e não me trocava por esse filho de rajá!

     E quem sabe retorquiu o capitão Hod se esse príncipe não preferiria a nossa casa ambulante a toda essa incómoda equipagem de jornada!

     Basta  dizer uma  palavra exclamou  Banks e fabrico-lhe um palácio a vapor, contanto que o pague!

     Mas enquanto ele não faz a encomenda, vejamos um pouco este acampamento, se é que vale a pena.

     Não compreendia menos de quinhentas pessoas a comitiva do príncipe.

     Fora, debaixo das grandes árvores da planície, havia duzentos carros, colocados simetricamente, como as barracas de um vasto acampamento.

     Uns eram puxados por zebus, outros por búfalos, sem falar em três soberbos elefantes, que tinham sobre o dorso palanquins da maior riqueza, e uns vinte camelos, oriundos das regiões a oeste da índia, que se arreiam à Daumont.

     Nada faltava nesta caravana, nem os músicos que deleitavam os ouvidos de Sua Alteza, nem as bailadeiras que lhe encantavam os olhos, nem os pelotiqueiros que lhe entretinham as horas vagas.

     Trezentos condutores e duzentos alabardeiros completavam aquele pessoal, cujos soldos esgotariam qualquer bolsa que não fosse a de um rajá independente da índia.

     Os músicos eram tocadores de tamboril, de címbalo, de tanta, pertencentes à escola que substitui os sons pelos ruídos; depois, arranhadores de guitarra e de violas de quatro cordas, cujos instrumentos não tinham nunca passado pelas mãos do afinador.

     Entre os pelotiqueiros havia alguns sapwallahs, ou encantadores de serpentes, que atraem ou afugentam as serpentes com os seus encantamentos; nutuis, muito hábeis no exercício do sabre; acrobatas, que dançavam na corda bamba, com uma pirâmide de vasos de barro na cabeça e chifres de búfalos nos pés; e, ainda, prestidigitadores, que têm o talento de transformar em peçonhentas cobras velhas peles de serpente, ou vice-versa, à vontade do espectador.

     Quanto às bailadeiras, pertenciam à classe dessas lindas boundelis, tão procuradas para as nautchs ou soirees, nas quais desempenham o papel duplo de cantoras e dançarinas. Vestidas com muita decência, umas de musselina bordada a ouro, outras de saias de pregas e com faixas que elas fazem ondular nos passes, estas bailarinas estavam enfeitadas com ricas jóias, braceletes preciosos nos braços, do príncipe, tornou-se-me impossível verificar se ele tinha razão.

     No dia seguinte, 18 de Junho, achava-se tudo preparado para nos pormos a caminho ao romper da manhã.

     Às cinco horas, Kalouth começou a acender as fornalhas.

     O elefante, que fora desatrelado, estava a cinquenta passos dos veículos, e o maquinista ocupava-se em renovar a provisão da água.

     Nós passeávamos, entretanto, pela margem do ribeiro.

     Quarenta minutos depois, a caldeira achava-se em pressão suficiente, e Storr ia principiar a recuar quando se aproximou um grupo de indianos.

     Eram cinco ou seis, ricamente trajados, de vestes brancas, túnicas de seda, turbantes com bordados de ouro.

     Acompanhava-os uma dúzia de guardas, armados de mosquetes e de sabres. Um dos soldados trazia uma coroa de folhas verdes, o que indicava a presença de alguma personagem importante.

     Efectivamente a personagem importante era o príncipe Guru Singh em pessoa, homem de seus trinta e cinco anos, aspecto altivo, tipo menos mal acabado dos rajás legendários, em cujas feições se encontrava o característico marata.

     O príncipe não se dignou, sequer, notar a nossa presença. Deu alguns passos em frente e chegou-se ao gigantesco elefante que a mão de Storr ia pôr em marcha.

     Depois de o examinar, não sem alguma curiosidade, apesar de nada querer manifestar no rosto, perguntou a Storr:

     Quem fez esta máquina?

     O maquinista indicou o engenheiro, que se nos reunira e se conservava a alguma distância.

     O príncipe Guru Singh exprimia-se muito facilmente em inglês e, voltando-se para Banks, perguntou-lhe em voz quase imperceptível:

     Foi o senhor que...?

     Fui eu que... respondeu Banks.

     Disseram-me que tinha sido um capricho do falecido rajá de Bouthan?

     Banks fez com a cabeça um sinal afirmativo. .  ; -,<

     Mas para que servevolveu Sua Alteza, encolhendo os ombros indelicadamente -, para que serve uma pessoa fazer-se conduzir por uma máquina, tendo elefantes de carne e osso ao seu serviço?

     É que provavelmente respondeu Banks este elefante é mais forte que todos os elefantes de que o defunto rajá fazia uso.

     Oh! exclamou Guru Singh,  estendendo desdenhosamente os lábios. Mais forte...!

     Muitíssimo mais! retrucou Banks.

     Nenhum dos elefantes de Vossa Alteza seria capaz de fazer mexer um pé a este elefante se ele não o quisesse mexer-disse então o capitão, a quem os modos do rajá desagradavam soberanamente.

     Diz que...? soltou o príncipe.

     Afirma um meu amigo replicou o engenheiro e eu afirmo com ele, que este animal artificial poderia resistir à tracção de dez parelhas de cavalos, e que os seus três elefantes, atrelados juntos, não conseguiriam fazê-lo recuar um passo!

     Nessa é que eu não creio redarguiu o príncipe.

     Pois faz mal em não acreditar no que dizemos volveu o capitão Hod.

     E quando Vossa Alteza quiser pagá-lo pelo seu valor acrescentou Banks, comprometo-me a fornecer-lhe um que terá a força de vinte elefantes escolhidos entre os melhores das suas estrebarias.

     Essas  coisas  dizem-se... replicou  Guru  Singh muito secamente.

     E fazem-se tornou Banks.

     O príncipe principiava a amuar-se. Via-se que não tolerava facilmente a contradição.

     Podia-se fazer aqui mesmo a experiência sugeriu ele depois de um momento de reflexão.

     Pode-se confirmou o engenheiro.

     E também acrescentou o príncipe Guru Singh fazer dessa experiência o objecto de uma aposta considerável, salvo se recuar diante do receio de perder, como recuaria decerto o seu elefante, se tivesse de lutar com os meus!

     O Gigante de Aço recuar! exclamou o capitão Hod. Quem se atreve a sustentar que o Gigante de Aço recuaria?

     Eu respondeu Guru Singh.

     E o que apostava Vossa Alteza? perguntou o engenheiro, cruzando os braços.

     Quatro mil rupias respondeu o príncipe, se tem quatro mil rupias para perder!

     Eram quase dez mil francos. O bolo era considerável, e via-se bem que Banks, apesar da sua boa vontade, não estava para arriscar uma tal quantia.

     O capitão Hod, esse, apostaria o dobro, se lho permitisse o modesto soldo.

     Recusa! - disse então Sua Alteza, para quem quatro mil rupias representavam o preço de um passageiro capricho. Receia arriscar quatro mil rupias?

     Aceito! disse o coronel Munro, que acabava de se aproximar e intervinha com esta simples palavra, que tinha seu valor.

     O coronel Munro aposta quatro mil rupias? perguntou o príncipe Guru Singh.

     E até dez mil respondeu Sir Edward Munro -, se convém a Vossa Alteza.

     Como quiser...retorquiu Guru Singh. Em verdade, o caso tornava-se interessante.

     O engenheiro apertara a mão do coronel, como para lhe agradecer o não o ter deixado humilhado diante daquele desdenhoso rajá, mas as sobrancelhas contraíram-se-lhe por um momento, e perguntei a mim mesmo se ele não presumira demasiado da força da sua máquina.

     O capitão Hod estava radiante, esfregava as mãos e, avançando para o elefante, exclamou:

     Sentido, Gigante de Aço! Trata-se de trabalhar pela honra da nossa velha Inglaterra!

     Toda a nossa gente formara a um lado da estrada.

     Uns cem indianos tinham largado do acampamento do serai e corriam a assistir à luta que se preparava.

     Banks deixara-nos para subir à torre e colocara-se ao lado de Storr, que, por meio de uma tiragem artificial, atiçava a fornalha, que lançava um jacto de vapor pela tromba do elefante.

     A um sinal do príncipe Guru Singh, alguns dos seus servidores foram ao serai, e trouxeram os três elefantes, desembaraçados de todos os seus arreios de viagem.

     Eram três soberbos animais de Bengala e de tamanho superior ao dos seus congéneres da índia meridional. Os valentes bichos, em todo o vigor da idade, não deixavam de me inspirar algum receio.

     Os mahuts, escarranchados nos enormes pescoços dos paquidermes, dirigiam-nos com a mão e excitavam-nos com a voz.

     Quando os elefantes passaram por diante de Sua Alteza, o maior dos três, um verdadeiro gigante da espécie, parou, dobrou os joelhos, levantou a tromba e cumprimentou o príncipe como cortesão bem-educado que era.

     Depois chegou-se com os dois companheiros ao Gigante de Aço, parecendo olhar para ele com uma admiração misturada com algum medo.

     Confesso que o coração me batia. O capitão Hod devorava o bigode e não podia parar.

     Quanto ao coronel Munro, conservava-se tranquilo, direi até mais tranquilo que o príncipe Guru Singh.

     Estamos prontos disse o engenheiro. Quando Sua Alteza quiser...

     Quero já respondeu o príncipe.

     Guru Singh fez um sinal, os mahuts soltaram um assobio particular, e os três elefantes, escachando as poderosas pernas sobre o solo. puxaram com perfeita combinação.

     A máquina começou a recuar.

     Soltei um grito. Hod bateu com o pé.

     Trava as rodas! disse o engenheiro simplesmente, voltando-se para o maquinista.

     E com um movimento rápido, que foi seguido de um assobio de vapor, o freio atmosférico foi aplicado instantaneamente.

     O Gigante de Aço parou, e não se moveu mais.

     Os mahuts incitaram os três elefantes, que, retesados os músculos, fizeram novo esforço.

     Foi inútil. O nosso elefante parecia ter-se enraizado no solo.

     O príncipe Guru Singh mordeu os lábios até fazer sangue.

      O capitão Hod bateu as palmas.

     Avante! bradou Banks.

     Sim, avante! repetiu o capitão.

     Abriu-se todo o regulador, da tromba saíram, umas atrás das outras, grandes volutas de vapor, as rodas, desentravadas, giraram lentamente, mordendo o macadame da estrada, e eis os nossos três elefantes, apesar da sua resistência formidável, arrastados de recuo, abrindo no solo profundos trilhos.

      Go ahead! Go ahead! berrava o capitão Hod.

     E continuando o Gigante de Aço em frente, os três enormes animais caíram de lado, e foram arrastados durante uns vinte passos, sem que o nosso elefante parecesse sequer dar por isso.

     Hurra!  Hurra!  Hurra!gritava o capitão Hod, que não era senhor de si. Pode-se juntar aos seus elefantes todo o serai de Sua Alteza! Tudo isso será uma pena para o nosso Gigante de Aço.

     O coronel Munro fez um sinal com a mão. Banks fechou o regulador, e o aparelho parou.

     Nada mais deplorável ”do que ver os três elefantes de Sua Alteza, com a tromba em desatino, as patas para o ar, agitando-se como escaravelhos gigantescos deitados de costas.

     Quanto ao príncipe, não menos irritado que vexado, retirara-se, sem esperar sequer pelo fim da experiência.

     Foram então desatrelados os três elefantes.

     Levantaram-se, muito visivelmente humilhados com a sua derrota.

     Quando tornaram a passar pela frente do Gigante de Aço, o maior, a despeito do seu cornaca, não pôde deixar de dobrar o joelho e de cumprimentar com a tromba, como fizera diante do príncipe Guru Singh.

     Um quarto de hora depois, um indiano, o kamdar ou secretário de Sua Alteza, chegava ao nosso acampamento e entregava ao coronel um saco que continha dez mil rupias, o preço da aposta perdida.

     O coronel Munro pegou no saco e atirou com ele desdenhosamente, dizendo:

     Para a gente de Sua Alteza!

     Em seguida, dirigiu-se tranquilamente para a «Steam House».

     Não era possível ensinar melhor o príncipe arrogante, que tão desdenhosamente nos provocara.

     Atrelado o Gigante de Aço, Banks deu logo sinal de partida, e, no meio de uma enorme multidão de indianos maravilhados, o nosso comboio abalou com grande velocidade.

     Foi saudado em altos gritos na passagem, e daí a pouco perdemos de vista, numa curva da estrada, o serai do príncipe Guru Singh.

     No dia seguinte, a «Steam House» começou a elevar-se pelos primeiros declives que ligam a planície à base da fronteira do Himalaia.

     Esta subida foi um brinquedo para o nosso Gigante de Aço, ao qual os oitenta cavalos encerrados nos seus flancos tinham permitido lutar sem dificuldade contra os três elefantes do príncipe Guru Singh. O Gigante meteu-se por isso facilmente pelas íngremes estradas desta região, sem que fosse necessário exceder a pressão normal do vapor.

     Era na verdade um espectáculo curioso ver o colosso, vomitando jactos de faíscas, arrastar com silvos menos precipitados, mas mais extensos, os dois carros que se elevavam pela faixa das estradas.

     A camba raiada das rodas estriava o solo, o qual, escavando-se, rangia.

     O nosso pesado animal, devemos confessá-lo, deixava após si profundos sulcos e estragava a estrada, já encharcada pelas chuvas torrenciais.

     Em todo o caso, a «Steam House» ia subindo, o panorama dilatava-se na nossa retaguarda, a planície baixava, e para o sul, o horizonte, alargando-se em mais vasto perímetro, distanciava-se a perder de vista.

     O efeito tornava-se ainda mais sensível quando a estrada se embrenhava durante horas por baixo das árvores de espessa floresta. Então, ao abrir-se alguma vasta clareira como janela imensa, sobre o dorso da montanha, o comboio parava, por um instante, se algum húmido nevoeiro escurecia a paisagem, ou por espaço de meio dia, se esta se delineava mais nitidamente aos nossos olhos.

     Nessas ocasiões íamos os quatro encostar-nos à varanda de trás, e ficávamos muito tempo a contemplar o magnífico panorama que se desenrolava a nossos olhos.

     Esta ascensão, cortada de paragens mais ou menos prolongadas, interrompida pelos acampamentos da noite, não durou menos de sete dias, de 19 a 25 de Junho.

     Com um pouco de paciência subiríamos até aos últimos cumes do Himalaia! dizia o capitão Hod.

     Nem tanta ambição, capitão Hod redarguiu-lhe o engenheiro.

     Ele era capaz de o fazer, Banks!

     Sim, Hod, era capaz se não viesse a faltar-lhe a estrada praticável, e se levasse combustível, que lhe havia de faltar através das geleiras, e também ar respirável, que lhe faltaria a duas mil toesas de altura. Mas não precisamos de transpor a zona habitável do Himalaia. Quando o Gigante de Aço alcançar a altitude média dos sanitarium, deter-se-á em algum ponto agradável, à beira de uma floresta alpestre, em meio de uma atmosfera refrescada pelas correntes superiores do espaço. O nosso amigo Munro terá transportado o seu bungalow de Calcutá para as montanhas do Nepal, e aí nos conservaremos tanto tempo quanto quisermos.

     O local onde devíamos acampar durante alguns meses encontrámo-lo, felizmente, no dia 25 de Junho.

     Havia quarenta e oito horas que a estrada se tornava cada vez menos praticável, ou porque estivesse mal construída, ou porque as chuvas tivessem cavado nela profundos barrancos.

     O Gigante de Aço teve ali maior tiragem, e saiu-se da dificuldade devorando um pouco mais de combustível.

     Alguns bocados de lenha, acrescentados à fornalha de Kalouth, era quanto bastava para aumentar a pressão do vapor.

     Porém, nunca foi preciso carregar as válvulas, as quais só deixavam escapar o fluido sob uma tensão de sete atmosferas, tensão que não foi excedida.

     Havia quarenta e oito horas que também o nosso trem se aventurava por um território quase deserto.

     Já não se encontravam vilas nem aldeias.

     Mal se nos deparava, às vezes, alguma habitação isolada, ou alguma fazenda perdida no meio dos extensos pinheirais que eriçam o dorso meridional dos contrafortes.

     Somente por três ou quatro vezes é que encontrámos alguns montanheses, que nos saudaram com as suas interjeições admirativas. Ao verem aquele aparelho maravilhoso elevar-se na montanha, não deveriam crer que Brama tivesse a fantasia de transportar um pagode inteiro para alguma altura inacessível da fronteira do Nepal?

     Afinal, no dia 25 de Junho, Banks pela última vez nos arremessou esta palavra: Alto!, que terminava a primeira parte da nossa viagem na índia setentrional.

     O trem parou no meio de uma vasta clareira, junto de uma torrente, cuja água límpida devia ocorrer a todas as necessidades de um acampamento de alguns meses.

     Dali o olhar podia abraçar a planície no perímetro de cinquenta a sessenta milhas.

     A «Steam House» achava-se então a trezentas e vinte e cinco léguas do seu ponto de partida, quase a dois mil metros acima do nível do mar e junto à base do Davalaghiri, cujo cimo se perdia nos ares a vinte e cinco mil pés de altura.

   

    O «Pal» de Tandit

     É preciso abandonar por um instante o coronel Munro e do mesmo modo os seus companheiros, o engenheiio Banks, o capitão Hod, o francês Maucler, e interromper por espaço de algumas páginas a narrativa desta viagem, cuja primeira parte, compreendendo o itinerário de Calcutá à fronteira indochinesa, termina na base das montanhas do Tibete.

     Não deve ter esquecido ainda o incidente que assinalou a passagem da «Steam House» por Allahabad.

     Um número do jornal daquela cidade, datado de 25 de Maio, informava o coronel Munro da morte de Nana Sahib.

     Esta nova, muitas vezes espalhada, sempre desmentida, seria verdadeira desta vez?

     Em vista de tão precisas informações, poderia Sir Edward Munro duvidar ainda? Não deveria, finalmente, renunciar à intenção de fazer por suas próprias mãos justiça ao rebelde de 1857?

     É o que se há-de avaliar.

     Eis o que se passara depois daquela noite de 7 para 8 de Março, durante a qual Nana Sahib, acompanhado de Balão Rao, seu irmão, escoltado pelos seus mais fiéis companheiros de armas e seguido do indiano Kalagani, deixara as cavernas de Adjuntah.

     Sessenta horas depois, o nababo chegava aos estreitos desfiladeiros dos montes Sautpurra, depois de atravessar o Tapi, que vai desaguar na costa ocidental da península, junto de Surate. Achava-se então a cem milhas de Adjuatab, numa parte pouco frequentada da província, o que por então lhe garantia alguma segurança.

     O local era bem escolhido.

     Os montes Sautpurra, de altura medíocre, dominam ao sul a bacia de Nerbudda, cujo limite setentrional é coroado pelos montes Vindhyas.

     Estas duas cordilheiras correm paralelas uma à outra, enredam as suas ramificações e formam, nesta região acidentada, esconderijos difíceis de descobrir.

     Mas se os Vindhyas, na latitude vinte e três graus, cortam a índia em quase toda a sua extensão de ocidente para oriente, formando um dos grandes lagos do triângulo central da península, não sucede o mesmo com os Sautpurra, que não passam além da longitude de setenta e cinco graus e vêm ligar-se neste ponto ao monte Kaligong.

     Nana Sahib achava-se à entrada da província dos Gunds, terríveis tribos de antiga raça, imperfeitamente submetidas, que ele queria impelir à revolta.

     Um território de duzentas milhas quadradas, uma população de mais de três milhões de habitantes, tal é o distrito do Gudwana, cujos habitantes Rousselet considera autóctones e onde os fermentos de rebelião estão sempre prestes a levedar.

     É uma importante parcela do Indostão, e, para dizer a verdade, só nominalmente se acha sob o domínio inglês.

     O caminho de ferro de Bombaim a Allahabad atravessa efectivamente este distrito de sudoeste a nordeste, lança até um ramal que chega ao centro da província de Nagpore, mas a despeito de tudo isto as tribos têm-se conservado selvagens, refractárias a toda a ideia de civilização, impacientes contra o jugo europeu e, portanto, muito difíceis de submeter no interior das suas montanhas, e Nana Sahib não ignorava estas circunstâncias.

     Foi por isso que ele quis ali procurar asilo enquanto não soava a hora de provocar o movimento insurreccional.

     Se o nababo conseguisse o que queria, se os Gunds se levantassem à sua voz e marchassem após ele, a revolta poderia rapidamente tomar considerável extensão.

     Efectivamente, ao norte do Gudwana fica o Bundelkund, que compreende toda a região montanhosa situada entre o planalto superior dos Vindhyas e o importante rio Jumna.

     Neste território, coberto, ou melhor dizendo, eriçado das mais belas florestas virgens do Indostão, vive um povo de bundelas, traiçoeiro e cruel, entre o qual todos os criminosos, políticos ou não, procuram e acham facilmente refúgio; acumula-se uma população de dois milhões e meio de habitantes numa superfície de vinte e oito mil quilómetros quadrados, continuam na barbárie as províncias, e vivem ainda os velhos partidários que lutaram sob o mando de Tippo Sahib contra os invasores. Foi neste distrito que nasceram os célebres estranguladores thugs, que por tanto tempo foram o terror da índia, os mesmos fanáticos que, sem nunca derramarem sangue, fizeram inúmeras vítimas; nele os bandos de Pindarris exerceram quase impunemente as mais odiosas carnificinas e pululam ainda os terríveis dacoits, seita de envenenadores, que seguem as pegadas dos thugs; fora ali, em suma, que se refugiara o próprio Nana Sahib, depois de escapar às tropas reais, senhoras de Jansie, e que transviara todas as pesquisas antes de ir pedir asilo mais seguro aos inacessíveis esconderijos da fronteira indochinesa.

     A leste do Gudwana fica o Kondistão, ou reino dos Khunds. Assim se chamam os ferozes sectários de Tado Pennor, o deus da Terra, e de Maunk Soro, o deus vermelho dos combates, esses sanguinários adeptos dos meriahs, ou sacrifícios humanos, que aos Ingleses tanto custa a exterminar, esses selvagens dignos de serem comparados aos naturais das ilhas mais bárbaras da Polinésia, contra os quais, de 1840 a 1854, o major-general John Campbell, os capitães Macpherson, Macviccar e Frye empreenderam penosas e longas expedições fanáticos capazes de tudo quando, sob qualquer pretexto religioso, pulso vigoroso os impelisse.

     A oeste do Gudwana fica um território de um milhão e quinhentas a dois milhões de almas, ocupado pelos Bhils, poderosos outrora no Malwa e no Rajastão, divididos agora em clãs, espalhados por toda a região dos Vindhyas, quase sempre embriagados com a aguardente que a árvore de mhowah lhes fornece, mas valentes, atrevidos, robustos, ágeis, e ouvido sempre à escuta do kisri, que é o seu grito de guerra e de roubo.

     Como se vê, Nana Sahib fizera uma boa escolha. Nesta região central da península, em lugar de uma simples insurreição militar, esperava desta vez promover um movimento nacional, em que tomariam parte todos os indianos da costa.

     Antes, porém, de empreender qualquer coisa, convinha estabelecer-se no distrito, a fim de exercer sobre as populações influência eficaz e na proporção que as circunstâncias lhe permitissem.

     Portanto, precisava de encontrar um asilo seguro, embora momentâneo, ainda que tivesse de o abandonar, por esse asilo se tornar suspeito.

     Foi este o primeiro cuidado de Nana Sahib.

     Os indianos que o haviam seguido desde Adjuntah podiam livremente percorrer toda a presidência. Balão Rao, se não fosse a sua semelhança com o irmão, também poderia gozar da imunidade, porque a ele não se referia a ordem do governador.

     Desde a sua fuga até à fronteira do Nepal, a atenção não convergia nunca sobre a sua pessoa, e havia toda a razão para o julgarem morto; mas se o tomassem por Nana Sahib, seria preso, o que era necessário evitar a todo o custo.

     Para estes dois irmãos, unidos no mesmo pensamento, trabalhando para o mesmo fim, era necessário portanto um mesmo asilo.

     Não devia ser demorado nem difícil encontrá-lo nos desfiladeiros dos montes Sautpurra.

     Efectivamente, logo lho indicou um dos indianos da comitiva, um gund, que conhecia o vale até nos seus mais profundos refúgios.

     Na margem direita de um pequeno afluente do Nerbudda achava-se um pai abandonado, chamado o pai de Tandit.

     O pai é menos que uma vila, apenas um lugarejo, um grupo de cabanas, e até muitas vezes uma habitação isolada. A família nómada que o ocupa vem ali estabelecer-se temporariamente.

     Depois de queimar algumas árvores, cujas cinzas vivificam o solo durante uma certa estação, o gund e os seus construíram a sua morada. Mas como o território nada tem de seguro, a casa tomou aparência de fortaleza. Rodeia-se de uma paliçada, e pode defender-se de uma surpresa. Oculta, além disso, em alguma espessura, sepultada, por assim dizer, sob latada de cactos e de moitas, não é fácil descobri-la.

     A maior parte das vezes, o pai coroa algum montículo, no reverso de estreito vale, entre dois botaréus escarpados, no meio de impenetráveis bosques.

     Não parece que tenham podido procurar ali refúgio criaturas humanas. Estradas que lá conduzam, nenhumas; caminhos que lhe dêem acesso, não se vê sinal nenhum de que existam. Para lá chegar, é preciso algumas vezes subir o leito cheio de barrancos de uma torrente, cuja água apaga depois todo o vestígio. Quem o percorre não deixa sinal de que por ali passasse.

     Na estação quente a água dá pelo tornozelo, na estação fria, pelo joelho. Depois, uma avalancha de rochas, que uma criança era capaz de fazer desabar, esmagaria qualquer que tentasse chegar ao pai contra vontade dos seus moradores.

     Mas, por muito isolados que estivessem nos seus ninhos inacessíveis, os gunds podiam rapidamente comunicar de uns pais para os outros. Dos píncaros desiguais dos Sautpurra, os sinais transmitem-se numa extensão de vinte léguas dentro de alguns minutos.

     Uma fogueira no cimo de algum rochedo, uma árvore transformada em gigantesco archote, um simples penacho de fumo no cume de um contraforte, eis em que consistem os sinais.

     Sabe-se o que isto significa. O inimigo, isto é, um destacamento de soldados do exército real, um grupo de agentes da polícia inglesa, penetrou no vale, sobe o curso do rio Nerbudda, esquadrinha as gargantas da cordilheira em busca de algum malfeitor, ao qual o distrito oferece de bom grado abrigo.

     O grito de guerra, tão familiar aos ouvidos dos montanheses, torna-se um grito de alarme. Um estrangeiro confundi-lo-ia com o pio das aves nocturnas ou o sibilo dos répteis. O gund, porém, não se engana.

     É preciso velar, ele vela; é preciso fugir, foge. Os pais suspeitos são abandonados, queimados até!

     Estes nómadas refugiam-se noutros distritos, que também abandonam se são perseguidos de muito perto, e nos terrenos cobertos de cinzas os agentes das autoridades apenas encontram ruínas.

     Fora a um destes pais o pai de Tandit que Nana Sahib e os seus tinham vindo buscar refúgio. Fora ali que logo os conduzira o fiel gund, dedicado à pessoa do nababo. Nele se instalaram no dia 12 de Março.

     Logo que tomaram posse do pai, o primeiro cuidado dos dois irmãos foi passar um escrupuloso reconhecimento aos arredores.

     Observaram em que direcção e a que distância o olhar podia alcançar.

     Fizeram com que lhes mostrassem quais eram as habitações mais próximas e inquiriram quem eram os que as ocupavam.

     A posição do píncaro isolado onde assentava o pai de Tandit, em meio de uma espessura, foi por eles estudada, e convenceram-se afinal da impossibilidade de alguém lá subir sem seguir o leito de uma torrente, a torrente do Nazzur, que eles próprios acabavam de subir.

     O pai de Tandit oferecia, pois, todas as condições de segurança, tanto mais que se elevava por cima de um subterrâneo, cujas saídas misteriosas davam para a encosta do contraforte, e favoreciam a fuga, quando as coisas chegassem a tal extremo.

     Nana Sahib e o irmão não podiam ter encontrado melhor asilo.

     Não bastava porém a Balão Rao saber o que era actualmente o pai de Tandit, queria saber o que fora, e, enquanto o nababo visitava o interior do pequeno forte, continuava a interrogar o gund.

     Ainda  mais  algumas  perguntas disse. Há quanto tempo foi abandonado este pai?

     Há mais de um ano respondeu o gund.

     Quem morava nele?

     Uma família vagabunda, que aqui esteve alguns meses.

     Porque o abandonaram?

     Porque o solo não os podia sustentar.

     E, depois que se foram, ninguém procurou aqui refúgio, que tu saibas?

     Ninguém

     Nem nenhum soldado do exército real, nenhum agente da polícia pôs pé neste pai?

     Nunca.

     Nenhum... estrangeiro o visitou?

     Nenhum... respondeu  o  gund salvo  uma mulher.

     Uma mulher redarguiu Balão Rao, com vivacidade.

     Sim, uma mulher, que há três anos vagueia pelo vale do Nerbudda.

     Quem é?

     Ignoro respondeu o gund. Donde veio também não o posso dizer, e em todo o vale ninguém sabe mais do que eu a tal respeito! É uma estrangeira? Uma indiana? Nunca se pôde saber!

     Balão Rao reflectiu um momento e depois perguntou:

     Que faz essa mulher?

     Anda de um lado para o outro. Vive unicamente de esmolas. Têm por ela em todo o vale uma espécie de veneração supersticiosa. Muitas vezes a recebi no meu próprio pai. Nunca fala. Podia-se supor que é muda, e não me admirava que o fosse. De noite vêem-na divagar com um ramo resinoso aceso. Por isso, ninguém a conhece senão pelo nome de Chama Errante.

     Mas observou  Balão  Rao -,  se  essa  mulher conhece o pai de Tandit, não poderá aparecer quando o ocuparmos e não teremos nada a recear dela?

     Nada respondeu o gund. Perdeu a razão. A sua cabeça já não funciona; os seus olhos já não vêem aquilo para que olham; os seus ouvidos já não ouvem o que escutam; a sua língua já não sabe proferir uma palavra! É como se fosse muda, cega, surda para as coisas exteriores. É, em suma, doida, e uma doida é uma criatura morta que continua a viver!

     Na linguagem especial dos indianos das montanhas, o gund acabava de traçar o retrato de uma estranha criatura, muito conhecida no vale, a Chama Errante do Nerbudda.

     Era uma mulher, cujo rosto pálido, formoso ainda, não velho, mas avelhentado, desprovido completamente de expressão, não indicava nem idade nem origem.

     Dir-se-ia que os seus olhos espantados acabavam de se fechar para a vida cerebral por efeito de alguma terrível cena, que continuava a ver interiormente.

     Os montanheses tinham acolhido benevolamente aquela criatura inofensiva e privada da razão.

     Para os gunds, como para todas as populações selvagens, os doidos são criaturas sagradas, a quem um respeito supersticioso protege.

     Em toda a parte onde se apresentava, a Chama Errante era recebida hospitaleiramente. Nenhum pai lhe fechava a porta.

     Davam-lhe de comer quando ela tinha fome, davam-lhe cama quando caía de fadiga, sem esperarem uma palavra de agradecimento, que a sua boca já não podia formular.

     Há quanto tempo durava esta existência? Donde viera aquela mulher? Em que época aparecera no Gudwana? Era difícil responder precisamente a estas perguntas.

     Porque divagava ela com um facho na mão? Era para procurar caminho? Era para fazer fugir as feras? Não se sabia.

     Sucedia desaparecer meses inteiros. Para onde ia então? Deixaria os desfiladeiros dos montes Sautpurra pelas gargantas dos Vindhyas? Transporia o Nerbudda e chegaria nas suas divagações até ao Malwa e ao Bundelkund? Ninguém o sabia.

     Mais de uma vez, tanto se prolongou a sua ausência que se chegou a supor que tivesse tido fim a sua triste existência.

     Não era assim, porque tornava a aparecer, sempre a mesma, sem que a fadiga, ou mesmo a doença, parecessem prejudicar-lhe o organismo, tão frágil na aparência.

     Balão Rao escutara o indiano com extrema atenção.

     Entrava em dúvida se não oferecia perigo a circunstância de ser conhecido da Chama Errante o pai de Tandit, onde ela já procurara refúgio, e onde o instinto a podia tornar a trazer.

     Insistiu por isso neste ponto, e perguntou ao gund se ele ou os seus não sabiam onde a louca se achava actualmente.

     Ignoro respondeu o gund. Há mais de seis meses que ninguém a vê no vale. É possível que morresse. Mas, em suma, se ela reaparecesse e voltasse ao pai de Tandit, não haveria que temer da sua presença. É apenas uma estátua que vive. Não vos veria, não vos ouviria, não saberia quem sois. Fixar-se-ia no vosso lar por espaço de um ou dois dias, depois tornaria a acender o seu facho apagado, e deixar-vos-ía para tornar a divagar de casa em casa. Consiste nisto toda a sua existência. Depois, a sua ausência prolonga-se tanto desta vez que é provável que não volte. A que já estava morta de espírito deve estar morta do corpo...

     Balão Rao entendeu que não devia falar deste incidente a Nana Sahib, e ele mesmo não lhe ligava dali a pouco importância alguma. Depois de chegarem ao pai de Tandit, não houve por espaço de um mês notícias da Chama Errante do vale do Nerbudda.

   

    A chama errante

     Nana Sahib, durante um mês, de 12 de Março a 12 de Abril, manteve-se oculto no pai. Queria dar às autoridades inglesas o tempo de se iludirem, quer seguindo pistas falsas, quer abandonando todas as pesquisas.

     Se durante o dia os dois irmãos não saíam, os seus fiéis seguidores percorriam o vale, visitavam as aldeias e os lugarejos, anunciavam em frases misteriosas a aparição de um terrível multi, meio deus, meio homem, e preparavam os espíritos para um levantamento nacional.

     Quando a noite chegava, Nana Sahib e Balão Rao resolviam sair do seu refúgio. Aventuravam-se até às margens do Nerbudda.

     Iam de aldeia em aldeia, de pal em pal, esperando pela hora em que pudessem percorrer com alguma segurança o domínio dos rajás enfeudados aos Ingleses. Demais, Nana Sahib sabia que muitos deles, mais independentes e impacientes contra o jugo estrangeiro, seguiriam a sua voz. Mas neste momento só se tratava das populações selvagens do Gudwana.

     Estes bhils bárbaros, estes kunds nómadas, estes gunds tão pouco civilizados como os naturais das ilhas do Pacífico, encontrou-os Nana Sahib prestes a sublevarem-se, prestes a seguirem-no.

     Se, por prudência, não se deu a conhecer senão a dois ou três poderosos chefes de tribo, bastou-lhe isto para lhe provar que o seu nome arrastaria milhões dos indianos que se acham espalhados sobre o planalto central do Indostão.

     Quando os dois irmãos se recolhiam ao pai de Tandit, relatavam mutuamente o que tinham ouvido, visto e feito.

     Os companheiros reuniam-se-lhes então, trazendo de todos os lados a notícia de que o espírito de revolta passava, como um vento tempestuoso, no vale do Nerbudda.

     Os gunds não pediam outra coisa senão que os deixassem soltar o grito de guerra dos montanheses, o kisri, e precipitara-se sobre os acantonamentos militares da presidência.

     Esse momento não chegara ainda.

     Efectivamente, não bastava que o incêndio lavrasse entre os montes Sautpurra e os Vindhyas.

     Era preciso que o incêndio tomasse maior desenvolvimento.

     Para isso era preciso amontoar os elementos combustíveis nas províncias vizinhas do Nerbudda, que mais directamente estavam sob a autoridade inglesa.

     De cada uma das cidades, das aldeias do Bhopal, do Malwa, do Bundelkund, e de todo o vasto reino de bindia, importava fazer uma imensa fogueira, prestes a incendiar-se. Mas Nana Sahib não queria, com razão, incumbir senão a si próprio a missão de visitar os antigos partidários da insurreição de 1857, todos esses naturais que, tendo-se conservado fiéis à sua causa e não havendo mesmo acreditado na sua morte, esperavam vê-lo aparecer de um dia para o outro.

     Um mês depois de chegar ao pai de Tandit, Nana Sahib entendeu que podia com toda a segurança pôr-se em acção. Pareceu-lhe que a notícia da sua reaparição na província tinha sido reconhecida como falsa. Vários conspiradores traziam-no ao facto de tudo quanto o governador da presidência de Bombaim fizera para se realizar a sua captura.

     Sabia que durante os primeiros dias a autoridade procedera às pesquisas mais activas, mas sem resultado.

     O pescador de Aurungabad, o antigo prisioneiro de Nana, caíra aos golpes do seu punhal, e ninguém pudera suspeitar que o faquir fugitivo fosse o nababo Dandu-Pant, cuja cabeça acabava de ser posta a prémio.

     Uma semana depois, os rumores extinguiram-se, os pretendentes ao prémio de duas mil libras perderam a esperança, e o nome de Nana Sahib recaíra no esquecimento.

     Portanto, o nababo podia pôr-se em acção pessoalmente, e, sem receio de ser reconhecido, tornar a principiar a sua campanha insurreccional.

     Ora sob o trajo de um parse, ora sob o de um simples raiot, umas vezes por outras acompanhado pelo irmão, começou a afastar-se do pai de Tandit, a subir para o norte, transpondo o Nerbudda, e passando além da encosta setentrional dos Vindhyas.

     Um espião que o quisesse seguir em todas as excursões encontrá-lo-ia já em Indore no dia 12 de Abril.

     Aí, nessa capital do reino de Holcar, Nana Sahib, conservando sempre o mais rigoroso incógnito, pôs-se em comunicação com a numerosa população rural, empregada na cultura dos campos de papoilas. Eram Rihillas, Mekranis, Valayalis, ardentes, corajosos, fanáticos, na maior parte sipaios desertores do exército nativo, que se disfarçavam sob o trajo do camponês indiano.

     Em seguida, Nana Sahib passou o Betwa, confluente do Junina, que corre na direcção do norte, pela fronteira ocidental do Bundelkund, e no dia 19 de Abril, atravessando um vale magnífico, onde as mangueiras e as tamareiras se multiplicam em profusão, chegava a Suari.

     Elevavam-se ali construções curiosas, de uma antiguidade muito remota.

     São topes, espécie de túmulos, cobertos de zimbórios hemisféricos, que constituem o grupo principal de Saldhara, ao norte do vale.

     Daqueles monumentos funerários, daquelas moradas dos mortos, cujos altares, consagrados aos ritos búdicos, estão abrigados por guarda-sóis de pedra, daqueles túmulos vazios há tantos séculos, saíram, à voz de Nana Sahib, centenas de fugitivos.

     Sepultados naquelas ruínas para se subtraírem às terríveis represálias dos Ingleses, bastou uma palavra para lhes fazer compreender o que o nababo esperava do seu concurso. Bastava também um gesto, quando soasse a hora, para os arremessar em massa sobre os invasores.

     Em 24 de Abril, Nana Sahib estava em Bhilsa, capital de um distrito importante do Malwa, e nas ruínas da cidade antiga reunia os elementos da revolta, que a cidade moderna não lhe ministraria.

     Em 27, Nana Sahib chegou a Raygurh, junto da fronteira do reino de Pannah, e, em 30, aos restos da velha cidade de Sangor, não longe do lugar onde o general Sir Hugh Rose deu aos insurgentes uma batalha sanguinolenta, com a qual ganhou, com o desfiladeiro de Maudanpore, a chave dos desfiladeiros dos Vindhyas.

     Aqui reuniu-se-lhe o irmão, a quem Kalagani acompanhava, e ambos se deram a conhecer aos chefes das principais tribos, de cuja fidelidade tinham a mais completa e inabalável segurança.

     Nestes conciliábulos foram discutidos e ficaram assentes os preliminares de uma insurreição geral.

     Enquanto Nana Sahib e Balão Rao operavam ao sul, os seus aliados deviam manobrar nas faldas setentrionais dos Vindhyas.

     Antes de regressarem ao vale de Nerbudda, os dois irmãos ainda quiseram visitar o reino de Pannah. Meteram-se ao longo das margens do Keyne, à sombra de tecas gigantes, de bambus colossais, ao abrigo dessas inumeráveis árvores que se multiplicam sem cessar e que parecem destinadas a invadir toda a índia.

     Angariaram ali numerosos e ferozes adeptos entre o miserável pessoal que explora, por conta do rajá, as ricas minas de diamantes do território.

     Este rajá, disse Rousselet, «compreendendo a posição em que o domínio inglês coloca os príncipes de Bundelkund, preferiu o papel de um rico proprietário territorial ao de um insignificante principezinho».

     Era com efeito rico proprietário! A região diamantífera que ele possui tem uma extensão de trinta quilómetros ao norte de Pannah, e a exploração das suas minas de diamantes, os mais estimados nos mercados de Benares e de Allahabad, emprega um grande número de indianos.

     Mas entre estes desgraçados, sujeitos aos mais duros trabalhos, que o rajá faz decapitar assim que baixa o rendimento da mina, Nana Sahib devia encontrar, e encontrou efectivamente, milhares de partidários, prontos a morrer pela independência do seu país.

     Daqui desceram em direcção do Nerbudda, a fim de voltarem ao pal de Tandit. Entretanto, antes de irem promover o levantamento do Sul, que devia coincidir com o do Norte, quiseram deter-se em Bhopal.

     É uma importante cidade muçulmana, que ficou sendo a capital do islamismo na índia, e cuja begume se conservou fiel aos Ingleses durante o período insurreccional.

     Nana Sahib e Balão Rao, acompanhados de uns doze gunds, chegaram a Bhopal em 24 de Maio, último dia das festas do Moharum, instituídas para celebrar o restabelecimento do exército muçulmano.

     Tinham ambos vestido o trajo dos joguis, sinistros mendigos religiosos, armados com os seus punhais de folha arredondada, com que se ferem por fanatismo, mas sem grande perigo nem grande mal.

     Os dois irmãos, que ninguém podia conhecer sob o seu disfarce, seguiam a procissão pelas ruas da cidade, em meio de numerosos elefantes, que traziam sobre o dorso tadzias, espécie de templos pequenos da altura de vinte pés; puderam misturar-se com os muçulmanos, ricamente vestidos de túnicas bordadas de ouro e adornados de turbantes de musselina, e confundiram-se por entre a multidão dos músicos, dos soldados, das bailadeiras, dos mancebos vestidos de mulher curiosa aglomeração que dava àquela cerimónia um aspecto carnavalesco.

     Com estes indianos de todas as castas, entre os quais contavam numerosos adeptos, puderam trocar uma espécie de sinal maçónico, familiar aos antigos rebeldes de 1857.

     À noite, toda esta gente se dirigiu para o lago que banha o arrabalde oriental da cidade.

     Aí, em meio de gritos ensurdecedores, de detonações de armas de fogo, do estalar de bombas, ao clarão de mil archotes, todos aqueles fanáticos arremessaram os tadzias às águas do lago.

     As festas do Moharum estavam acabadas.

     Neste momento, Nana Sahib sentiu que lhe tocavam no ombro.

     Voltou-se. Estava a seu lado um bengali.

     Nana Sahib reconheceu nele um dos seus antigos companheiros de armas de Lucknow.

     Interrogou-o com o olhar.

     O bengali limitou-se a murmurar as palavras seguintes, que Nana Sahib ouviu sem que um gesto denunciasse a sua comoção:

     O coronel Munro deixou Calcutá.

     E onde se encontra agora?

     Estava ontem em Benares.

     Para onde se dirige?

     Para a fronteira do Nepal.

     Com que fim?

     Para ali residir alguns meses.

     E depois?

     Voltar a Bombaim.

     Um indiano meteu-se por entre a multidão e aproximou-se de Nana Sahib. Era Kalagani.

     Parte no mesmo instante ordenou o nababo. Alcança Munro, que sobe para o norte. Não o largues. Impõe-te por algum serviço prestado, e arrisca até a vida, se for preciso. Não o deixes enquanto ele descer os Vindhyas, até ao vale do Nerbudda. Então, só então, vem avisar-me da sua presença.

     Kalagani limitou-se a responder com um gesto afirmativo, e desapareceu entre a multidão.

     Um gesto do nababo era para ele uma ordem. Dali a dez minutos deixava Bhopal.

     Neste momento, Balão Rao aproximou-se do irmão.

     É tempo de partir? perguntou.

     Sim respondeu Nana Sahib, é preciso chegarmos antes de romper o Sol ao pai de Tandit.

     A caminho.

     Ambos, seguidos dos seus gunds, subiram a margem setentrional do lago até uma fazenda isolada. Esperavam-nos ali os seus cavalos e os da escolta.

     Eram desses cavalos velozes, aos quais dão um alimento muito carregado de especiarias, e que podem fazer cinquenta milhas numa noite.

     Às oito horas galopavam pela estrada de Bhopal aos Vindhyas.

     Se o nababo queria chegar antes do romper do dia ao pai de Tandit, era unicamente por prudência. Efectivamente, convinha mais que o seu regresso ao vale passasse despercebido.

     O pequeno bando galopava com toda a rapidez dos seus cavalos.

     Nana Sahib e Balão Rao, um ao pé do outro, não se falavam, mas o mesmo pensamento os preocupava.

     Da excursão além dos Vindhyas traziam mais que a esperança: traziam a certeza de que inúmeros partidários seguiam a sua causa.

     O planalto central da índia estava todo nas suas mãos.

     Os acantonamentos militares distribuídos por todo aquele vasto território não poderiam resistir aos primeiros assaltos dos rebeldes. O seu aniquilamento deixaria o campo livre à revolta, que depressa levantaria de um litoral a outro uma verdadeira muralha de indianos fanatizados, contra a qual viria despedaçar-se o exército real.

     Ao mesmo tempo, Nana Sahib pensava naquele favor da sorte que lhe ia entregar o coronel Munro. O coronel acabava de deixar Calcutá, onde era difícil feri-lo.

     Dali em diante nenhum dos seus movimentos escaparia ao nababo.

     Sem que ele desse por isso, a mão de Kalagani guiá-lo-ia para a selvática região dos Vindhyas, e aí ninguém o poderia subtrair ao suplício que lhe reservava o ódio implacável de Nana Sahib.

     Balão Rao não sabia ainda o que se passara entre o bengali e o irmão.

     Só nas proximidades do pai de Tandit, enquanto os cavalos tomavam fôlego por um momento, é que Nana Sahib se limitou a participar-lho nestes termos:

     Munro saiu de Calcutá e dirigiu-se para Bombaim.

     A estrada de Bombaim respondeu Balão Rao chega até ao oceano Índico.

     Desta vez a estrada de Bombaim só chegará aos Vindhyas! retorquiu Nana Sahib.

     Esta resposta dizia tudo. Os cavalos tornaram a pôr-se a galope e precipitaram-se através do arvoredo que orlava o vale do Nerbudda.

     Eram cinco horas da manhã. O dia começava a romper. Nana Sahib, Balão Rao e os seus companheiros acabavam de chegar ao leito torrencial do Nazzur, que descia do pai.

     Os cavalos pararam neste lugar e foram entregues ao cuidado de dois gunds, encarregados de os conduzir à aldeia mais próxima.

     Os outros gunds seguiram os dois irmãos, que subiam os degraus abalados pelas águas da torrente.

     Estava tudo tranquilo. Os primeiros rumores do dia ainda não tinham interrompido o silêncio da noite.

     De repente soou um tiro, que foi seguido de muitos outros. Ao mesmo tempo ouviram-se estes gritos:

     Hurra! Hurra! Avante!

     Na crista do pai apareceu um oficial seguido de uns cinquenta soldados. Aquele gritou novamente:

     Fogo! Que nenhum escape!

     E outra descarga, quase à queima-roupa, caiu sobre o grupo dos gunds que rodeava Nana Sahib e o irmão.

     Caíram cinco ou seis indianos. O resto, precipitando-se no leito do Nazzur, desapareceu por baixo das primeiras árvores da floresta.

     Nana Sahib! Nana Sahib!bradaram os ingleses, metendo-se pelo apertado desfiladeiro.

     Então um dos que foram feridos de morte ergueu-se, estendendo a mão para eles.

     Morte aos invasores! gritou com uma voz ainda terrível. E caiu sem movimento.

     O oficial aproximou-se do cadáver.

     Este será com certeza Nana Sahib? perguntou.

     - É ele responderam dois soldados do destacamento, que, por terem estado na guarnição de Cawnpore, conheciam perfeitamente o nababo.

     Agora aos outros! - bradou o oficial.

     E todo o destacamento se precipitou na floresta em perseguição dos gunds.

     Assim que os soldados desapareceram, começou um vulto a descer a escarpa onde o pai assentava.

     Era a Chama Errante, envolta numa comprida tanga escura, que era apertada na cintura pelo cordão de um languti.

     Na véspera à noite, a louca fora guia inconsciente do oficial inglês e da sua gente.

     De volta ao vale, dirigiu-se maquinalmente ao pai de Tandit, para o qual a impelia uma espécie de instinto.

     Mas, agora, a criatura singular, que julgavam muda, soltava dos lábios um nome, um nome apenas, o do autor do morticínio de Cawnpore!

     Nana Sahib! Nana Sahib!repetia ela, como se a imagem do nababo, por efeito de algum inexplicável pressentimento, lhe despertasse na lembrança.

     Este nome fez estremecer o oficial. Seguiu os passos da louca.

     A Chama Errante não pareceu sequer vê-lo nem ver os soldados que a seguiram até ao pai.

     Seria, pois, ali que se refugiara o nababo, cuja cabeça fora posta a prémio?

     O oficial tomou as medidas necessárias e fez guardar o leito do Nazzur enquanto não raiava o dia.

     Quando Nana Sahib e os seus gunds se meteram pelo desfiladeiro, recebeu-os uma descarga, que deitou muitos por terra, e entre eles o chefe da insurreição dos sipaios.

     Tal foi o encontro que o telégrafo noticiou naquele mesmo dia ao governador da presidência de Bombaim.

     Este telegrama espalhou-se por toda a península, os jornais reproduziram-no imediatamente, e foi assim que o coronel Munro teve dele conhecimento na «Gazeta de Allahabad» de 26 de Maio.

     Não havia agora que duvidar da morte de Nana Sahib. A sua identidade fora confirmada e o jornal podia dizer com razão:

     «Doravante, o reino nada tem que temer do cruel rajá, que tanto sangue lhe fez verter.»

     Depois de abandonar o pai, a louca principiou a descer o leito do Nazzur.

     Nos seus olhos espantados brilhava uma espécie de fulgor proveniente de um fogo interno, que subitamente se houvesse acendido, e maquinalmente soltava dos lábios o nome do nababo.

     Chegou assim ao lugar onde jaziam os cadáveres, e parou diante daquele que fora reconhecido pelos soldados de Lucknow.

     O rosto contraído do morto parecia ainda exprimir ameaça.

     Dir-se-ia que, depois de só ter vivido para a vingança, o ódio sobrevivia nele.

     A louca ajoelhou, pôs as mãos sobre aquele corpo atravessado pelas balas, e cujo sangue lhe manchou as dobras da tanga.

     Contemplou-o por muito tempo; depois, levantando e abanando a cabeça, desceu lentamente o leito do Nazzur.

     A Chama Errante recaíra na sua indiferença habitual, e a louca já não repetia o nome maldito de Nana Sahib.

 

                                                                                            Julio Verne

 

                          II Volume

 

                      

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