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A Casa a Vapor - Vol. II / Julio Verne
A Casa a Vapor - Vol. II / Julio Verne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Casa a Vapor

Volume II

 

      O NOSSO SANITARIUM

      A expressão magnífica: Os incomensuráveis da criação, de que se servia o mineralogista Haúy para qualificar os Andes americanos, não seria mais justamente aplicável ao conjunto da cordilheira do Himalaia, que o homem ainda não pôde medir com rigor matemático? 

      É esta a ideia que desperta o aspecto desta região incomparável, no meio da qual o coronel Munro, o capitão Hod, Banks e eu próprio íamos estacionar durante algumas semanas.

      Não só estes montes são incomensuráveis, disse-nos o engenheiro, como o seu cume deve ser considerado inacessível, porque o organismo não pode suportar tais altitudes, onde o ar não tem a densidade suficiente para ser respirado!

      Uma barreira de rochas primitivas granito, gneisse, Micaxisto do comprimento de dois mil e quinhentos quilómetros, que se estende desde o meridiano setenta e dois até ao meridiano noventa e cinco, cobrindo duas presidências, Agra e Calcutá, dois reinos, o Butão e o Nepal uma cordilheira, cuja altitude média é superior em um terço de altura ao cume do Monte Branco, compreende três zonas distintas, das quais a primeira, da altitude de cinco mil pés, dá uma colheita de trigo durante o Inverno; a segunda, de cinco a nove mil pés, cobre-se de neve, que se derrete quando volta a Primavera; a terceira, de nove mil a vinte e cinco mil pés, reveste-se de gelos tão espessos que na própria estação quente resistem aos raios solares; uma tumescência do Globo, através da. qual, a vinte mil pés de altitude, há onze passos que, incessantemente ameaçados pelas avalanchas, escavados pelas torrentes, invadidos pelos gelos, só a custo de grandes dificuldades permitem que se vá da índia ao Tibete; por sobre este espinhaço, umas vezes formando grandes cúpulas, outras raso como a montanha da Mesa, no cabo da Boa Esperança, sete ou oito picos agudos, alguns vulcânicos, dominando as nascentes do Cogra, do Djumna e do Ganges, o Doukia e o intchindjinga, que se elevam a mais de sete mil metros, o Dhiodunga a oito mil, o Davalaghiri a oito mil e quinhentos, o Tchamulari a oito mil e setecentos, o monte Evereste, que ergue o seu pico a nove mil metros e de cuja altura o olhar de um observador pode percorrer uma periferia igual à da França; finalmente, uma sobreposição de montanhas, cuja altura não seriam capazes de exceder os Alpes sobre os Alpes, os Pirinéus sobre os Andes, tal é a colossal elevação, cujos últimos cumes talvez não sejam nunca trilhados pelos mais ousados alpinistas, e que se chamam os montes Himalaia!

      Os primeiros degraus destes propileus gigantescos são fortes e densamente arborizados. Aí se encontram diversos representantes da família das palmeiras, que, numa zona superior, cedem o terreno às vastas florestas de carvalhos, de ciprestes e de pinheiros, às opulentas espessuras de bambus e de plantas herbáceas.

      Banks, que é quem nos dá estas particularidades, informa-nos também que, se na vertente indiana da cordilheira a linha inferior das neves desce a quatro mil metros, na vertente do Tibete sobe a seis mil. Provém isto de que os vapores, trazidos pelos ventos do sul, são detidos pela enorme barreira. É por este motivo que do outro Lado se têm podido estabelecer aldeias até uma altitude de quinze mil pés, rodeadas de campos de cevada e de magníficos prados.

      A acreditar o que dizem os indígenas, basta o espaço de uma noite para que um campo de erva cubra aquelas paragens!

       Na zona média, representam a família alada pavões, perdizes, faisões, codornizes, abetardas. Abundam ali as cabras e pululam os carneiros.

       Na zona alta só se encontram o javali, o cabrito montês, o gato selvagem, e a águia é a única ave que paira sobre os raros vegetais, que não passam de humildes espécimes de uma flora árctica.

      Nada disto, porém, era de tentar para o capitão Hod.

      Se não tinha de passar da caça doméstica, para que havia de vir este Nemrod às regiões do Himalaia? 

      Felizmente para ele não deviam escassear os grandes carnívoros, dignos da sua Enfield e das suas balas explosivas.

      Efectivamente, no sopé das primeiras escarpas da cordilheira estende-se uma zona inferior, a que os indianos chamam o cinto de Tarryani. É uma extensa planície em declive, da largura de sete a oito quilómetros, húmida, quente, de vegetação sombria, coberta de espessas florestas, nas quais as feras procuram refúgio de bom grado.

      Era provável que o capitão Hod visitasse os planos inferiores do Himalaia de preferência às zonas superiores. E contudo ali, segundo a opinião do mais humorístico dos viajantes, Vítor Jacquemont, ainda há importantes descobertas geográficas a fazer.

       Esta cordilheira só muito imperfeitamente se conhece?  perguntei a Banks.

       Muito imperfeitamente respondeu o engenheiro.

       O Himalaia é uma espécie de pequeno planeta, que se agregou ao nosso globo, e ainda guarda os seus segredos.

       Mas observei têm-no percorrido, têm-no explorado quanto tem sido possível.

       Oh! Não faltam exploradores himalaianos! retorquiu Banks. Os irmãos Gérard de Webb, os oficiais Kirpatrik e Fraser, Hogdson, Herbert, Lloyd, Hooker, Cunningham, Strabing, Skinner, Johnson, Moorcroft, Thompson, Griffith, Vigne, Hugel, os missionários Hue e Gabet e mais recentemente os irmãos Schlagintweit, o coronel Wangh, os tenentes Reuillier e Montgomery, após consideráveis trabalhos, tornaram conhecida em grande parte a disposição orográfica desta cordilheira.

      Não obstante, meus amigos, ainda falta realizar muitos desideratos. A altura exacta dos principais picos tem dado origem a rectificações sem conto. Por exemplo, em outros tempos o Davalaghiri era o rei de toda a cordilheira; depois, segundo novas medidas, teve de ceder o lugar ao Kintchindjinga, que parece agora estar destronado pelo Evereste.

       Até agora, este é que leva a palma aos seus rivais. Mas, no dizer dos Chineses, o Kouin-Lun, ao qual é verdade que ainda não foram aplicados os métodos dos geómetras europeus, excede um pouco o monte Evereste, e não é no Himalaia que se deve procurar o ponto mais elevado do Globo. Em realidade, estas medidas não poderão ser consideradas como matemáticas senão no dia em que se houverem obtido baromètricamente e com todas as precauções que comporta esta determinação directa.

      Mas como as obteremos sem levar um barómetro ao ponto extremo desses picos quase inacessíveis?  Pois isto é que ainda não se fez.

       - Há-de fazer-se - redarguiu o capitão Hod -, como se hão-de um dia fazer as viagens ao pólo Sul e ao pólo Norte!

       -Evidentemente.

      - A viagem até às profundezas do oceano!

      - Sem dúvida.

      - A viagem ao centro da Terra!

      - Como tudo se há-de fazer - acrescentei.

      Mesmo uma viagem a cada um dos planetas do mundo solar! retorquiu Hod, para quem já não havia dificuldades.

      Não, capitão discordei. O homem, simples habitante da Terra, não poderia transpor-lhe os limites!

      Mas, se está preso à sua crusta, pode também penetrar-lhe todos os segredos.

       Pode e deve! volveu Banks. Tudo quanto se compreende nos limites do possível deve ser e há-de ser realidade. Depois, quando o homem já nada tiver que aprender no globo que habita. . .

       Desaparecerá com o esferóide que já não tem mistérios para ele concluiu o capitão Hod.

       Isso é que não! protestou Banks. Senhor da Terra, tirará dela melhor partido. Mas, amigo Hod, visto que estamos nas regiões do Himalaia, vou ensinar-lhe a fazer, entre outras, uma curiosa descoberta, que por certo o interessará deveras.

       De que descoberta se trata, Banks? 

       Na descrição das suas viagens, o missionário Hue fala de uma árvore singular, que se chama no Tibete a árvore das dez mil imagens . Segundo a lenda hindu, Tong Kabac, o reformador da religião búdica, foi transformado em árvore, uns poucos de milhares de anos depois que a mesma aventura sucedeu a Filémon, a Baucis, a Dafné, esses curiosos entes vegetais da flora mitológica.

      Segundo a lenda, os cabelos de Tong Kabac transformaram-se nas folhas da árvore sagrada e nessas folhas afirma o missionário ter visto, visto com os seus próprios olhos vários caracteres tibetanos distintamente formados pelos traços das suas nervuras.

      Uma árvore com folhas impressas! exclamei.

       E nas quais se lêem sentenças da moral mais pura volveu o engenheiro.

       Vale a pena verificar-se isso disse eu, rindo.

       Pois verifiquem, meus amigos tornou Banks.

      Se existem árvores dessas na parte meridional do Tibete, também se devem encontrar na zona superior, sobre a vertente sul do Himalaia. Nas suas excursões, procurem portanto esse. . . como dizer? , esse livro de sentenças . . .

       Isso é que não! protestou Hod. Estou aqui para caçar. Nada tenho a ganhar com o mister de alpinista!

       Essa agora, amigo Hod! observou Banks. Pois um trepador tão destemido não há-de fazer uma ascensão na cordilheira? 

       Nunca!

       Mas porquê? 

       Renunciei às ascensões!

       Desde quando? 

       Desde o dia em que, depois de arriscar muitas vezes a vida em empresas dessas, consegui chegar ao cume do Vrigel, no reino de Butão. Afirmava-se que nenhuma criatura humana havia posto o pé no cimo daquele pico! Por isso, o meu amor-próprio interessou-se na ascensão.

      Finalmente, depois de perigos sem conto, cheguei ao cume, e que vejo?  As seguintes palavras, gravadas num rochedo: Durand, dentista, Rua Caumartin, 14, Paris .

      Desde então, deixei-me de escaladas.

      Ah, valente capitão! Não pudemos deixar de rir a bom rir à vista da cara que ele fez, ao contar-nos a peça.

      Tenho falado inúmeras vezes dos sanitariums da península.

      Estas estações, situadas nas montanhas, são muito frequentadas, durante o Estio, pelos rendeiros, funcionários e negociantes da índia, debilitados pela ardente canícula da planície.

      Em primeiro lugar deve colocar-se Simla, situada no paralelo trinta e um, a oeste do meridiano setenta e cinco. É um pedaço da Suíça, com as suas torrentes, os seus regatos, os seus chalés agradavelmente construídos à sombra dos cedros e dos pinheiros, dois mil metros acima do nível

      do mar.

      Depois de Simla, devo citar Dorjiling, com a sua casaria alvejante, que domina o Kintchindjinga, a quinhentos quilómetros ao norte de Calcutá e a dois mil e trezentos metros de altitude, por 86° de longitude e 27° de latitude um local encantador no mais belo país do mundo. Além destes, outros sanitariums existem nos diversos pontos da cordilheira do Himalaia.

      A estas residências frescas e saudáveis, que o ardente clima da índia torna indispensáveis, devemos agora acrescentar a nossa Steam House . Mas pertence-nos. Proporciona todas as comodidades das mais luxuosas residências da índia. Quando nos acharmos numa zona favorável, havemos de encontrar nela, a par da satisfação de todas as exigências modernas, um sossego que debalde se procura em Simla ou em Dorjiling, onde abundam os anglo-indianos.

      O local foi acertadamente escolhido. A estrada que dá serventia à parte inferior da montanha bifurca-se naquela altura para ligar algumas aldeolas espalhadas a leste e a oeste.

      A mais próxima fica a cinco milhas da Steam House .

      É habitada por uma raça hospitaleira de montanheses, criadores de cabras e de carneiros, cultivadores de férteis campos de trigo e de cevada.

      Graças ao auxílio do nosso pessoal, sob a direcção de Banks, bastaram algumas horas para organizar um acampamento, em que devemos estacionar seis ou sete semanas.

      Um dos contrafortes, que se desprendem dos caprichosos renques de montes que servem de apoio à enorme massa do Himalaia, proporcionou-nos um planalto suavemente ondulado, do comprimento de quase uma milha e da largura de meia milha.

      A alfombra de verdura, que o cobre, é um fino e espesso tapete de erva rente, cerrada e por assim dizer felpuda, estrelada de violetas. Moitas de rododendros arbóreos, do tamanho de pequenos carvalhos, açafates naturais de camélias, representam nessa alfombra um matiz de flores cujo aspecto é encantador.

      A natureza não teve necessidade de operários do Ispaão ou de Esmirna para fabricar este tapete de alta lã vegetal. Alguns milhares de sementes trazidas para aquele fértil terreno pelo vento do sul, uma pouca de água, um pouco de sol, foram suficientes para produzir aquele tecido fofo e desusado.

      Sobre o planalto desenvolvem-se vários grupos de árvores magníficas.

      Dir-se-iam guardas avançadas da imensa floresta que eriça as faldas do contraforte e sobe a uns seiscentos metros pelos montes vizinhos. Cedros, carvalhos, pendanus de grandes folhas, faias, bordos, ali se confundem com as bananeiras, os bambus, as magnólias, as alfarrobeiras, as figueiras-do-japão.

      Alguns destes gigantes alongam os seus ramos mais elevados a uma altura de cem pés acima do solo. Parecem ter sido dispostos neste lugar para dar sombra a alguma casa florestal.

      A Steam House, chegando a propósito, vem completar a paisagem. Os tectos arredondados dos seus dois pagodes casam-se perfeitamente com toda esta ramagem variada, composta de ramos flexíveis ou rijos, de folhas pequenas e frágeis como asas de borboletas, ou longas e compridas

      como pangaios polinésicos.

      As carruagens desapareceram sob uma espessura de verdura e de flores.

      Nada revela a existência naquele local da casa ambulante, e o que se vê parece uma residência sedentária, fixa no solo, construída para dali não se mexer mais.

      Detrás, uma corrente, cuja argêntea faixa se pode seguir por espaço de muitas milhas, corre à direita da paisagem sobre o flanco do contraforte, e precipita-se num reservatório natural, sombreado por um bosquezinho de bonitas árvores.

      O que transborda deste reservatório forma um regato, que desliza através da planície e acaba numa ruidosa cascata, a qual cai num abismo, cuja profundidade se chega a perder de vista.

      Eis como a Steam House foi colocada para a maior comodidade da vida comum e para mais completo deleite dos olhos.

      A primeira casa da Steam House foi posta à direita, em sentido oblíquo, de modo que o panorama do sul se pode desfrutar tanto da varanda como das janelas laterais da sala, da casa de jantar e dos gabinetes da esquerda. Pela parte de cima desta posição avistam-se grandes cedros, cujo negrume vigorosamente se destaca sobre o fundo da grande cordilheira, revestidas de neves eternas.

      À esquerda, está a segunda casa encostada ao flanco de um enorme rochedo de granito, queimado pelo sol. Este rochedo, tanto pela sua forma exótica como pela sua cor agreste, lembra os gigantescos plum-puddings de pedra, de que fala Russell Killough, na narrativa da sua viagem através da índia meridional. Desta casa, reservada ao sargento Mac Neil e aos seus companheiros de serviço, só se vê o flanco do rochedo.

      Acha-se colocada a vinte passos da casa principal, como o anexo de algum pagode mais importante. Do alto de um dos tectos sai uma espiral de fumo azulado, proveniente do laboratório culinário de Monsieur Parazard. Mais à esquerda, um grupo de árvores, que pouco se afastam da floresta, sobe pela encosta de oeste, e forma o plano lateral da paisagem.

      Ao fundo, entre as duas casas, perfila-se gigantesco mastodonte. É o nosso Gigante de Aço. Deram-lhe por estrebaria um caramanchel de grandes árvores.

      com a sua tromba levantada, dir-se-ia que se repasta nos ramos superiores do arvoredo. Está, porém, parado. Descansa, apesar de não ter necessidade alguma de descanso.

       Agora, como sentinela inabalável da Steam House, como um enorme animal antediluviano, defende a entrada das duas casas, no cimo daquela estrada por onde arrastou toda a povoação ambulante.

      É para notar que, apesar das suas colossais proporções, o nosso animal já não parece ter nada daquele gigante artificial com que Banks dotou a fauna indiana, salvo se pelo pensamento o separarmos da cordilheira que se ergue seis mil metros acima do planalto.

       Uma mosca na fachada de uma catedral! disse o capitão Hod. não sem revelar algum despeito.

      E não havia nada mais verdadeiro. Detrás ficava uma mole de granito, da qual facilmente se cortariam mil elefantes do tamanho do nosso, e essa mole era apenas um degrau, um dos cem degraus da escada que sobe até à crista da montanha e que o Davalaghiri domina com o seu pico agudo.

      Às vezes o céu deste quadro baixa à vista do observador.

       Não só os cumes mais elevados, mas até a parte média da cordilheira, desaparecem um instante. São espessos vapores, que correm pela região média do Himalaia e lhe velam toda a parte superior.

      A paisagem diminui de proporções, e, por um efeito de óptica, dir-se-ia que as habitações, as árvores, os cumes vizinhos e o próprio Gigante de Aço readquirem o seu tamanho natural.

      Sucede também que, impelidas por certos ventos húmidos, as nuvens, pouco elevadas ainda, se desenrolam pela parte inferior do planalto. A vista só descobre então um mar encapelado de nuvens, e o sol produz na sua superfície admiráveis efeitos de luz. Tanto em cima como em baixo, o horizonte desapareceu, e parece que fomos transportados para alguma região aérea fora dos limites da terra.

      Mas muda o vento; uma refrega do norte, precipitando-se pelas gargantas da cordilheira, vem varrer todo este nevoeiro, o mar de vapores condensa-se quase instantaneamente, a planície eleva-se da banda do sul, as sublimes projecções do Himalaia novamente se desenham sobre o fundo límpido do céu, a moldura do quadro readquire o seu tamanho normal, e o olhar, cujo alcance já coisa alguma limita, abraça em todas as particularidades um panorama cujo horizonte tem sessenta milhas de extensão.

     

      MATIAS VAN GUITT

      No dia seguinte, 26 de Junho, despertou-me logo ao romper do dia um ruído de vozes bem conhecidas. Levantei-me no mesmo instante. O capitão Hod e o seu camarada Fox estavam em conversa muito animada na casa de jantar da Steam House .

      Fui logo ter com eles. Naquele instante, Banks saía do seu quarto, e o capitão interpelava-o com a sua voz sonora:

       Até que enfim, amigo Banks disse ele, chegámos a sítio favorável! Desta vez é coisa decisiva. Não se trata de uma paragem de algumas horas, mas de uma demora de alguns meses.

      Sim, meu caro Hod redarguiu o engenheiro, e pode agora organizar as suas caçadas completamente à vontade. O apito do Gigante da Aço não o chamará ao acampamento.

       Ouves, Fox?

       Sim, meu capitão respondeu o impedido.

       Que a sorte me favoreça, e eu não deixarei o sanitarium da Steam House enquanto não deitar por terra o meu quinquagésimo! O quinquagésimo, nota bem, Fox!

      Tenho a cisma de que este há-de ser particularmente difícil de matar!

       Mas havemos de o matar garantiu Fox.

       Donde lhe vem essa ideia, capitão Hod?  perguntei.

      Oh! Maucler, é um pressentimento de caçador, nada mais.

       Visto isso observou Banks, já hoje vão deixar o acampamento e bater terreno?

       Já hoje, é verdade respondeu o capitão Hod.

      Principiaremos por efectuar um reconhecimento nos arredores, a fim de se explorar a zona inferior, descendo até às florestas do Tarryani. Contanto que os tigres não tenham abandonado este local. . .

       Julga isso?

      Ora! A minha pouca sorte!

       Pouca sorte! . . . no Himalaia! . . . observou o engenheiro.

       É lá possível, isso?

       Em suma, veremos. Acompanha-nos, Maucler?

      perguntou o capitão Hod, voltando-se para mim.

       Decerto.

       E o senhor?  perguntou a Banks.

       Eu também respondeu o engenheiro, e parece-me que Munro o acompanhará como eu. . . na qualidade de amador.

      Oh! redarguiu o capitão Hod. Como amadores, seja, mas como amadores bem armados! Não é nenhum passeio de bengala na mão. Isso humilharia as feras do Tarryani!

       Está combinado! concordou o engenheiro.

       Portanto, Fox prosseguiu o capitão, voltando-se para o impedido, não haja engano desta vez! Estamos no país dos tigres. . . Quatro carabinas Enfield para o coronel, Banks, Maucler e para mim, e duas espingardas de bala explosiva para ti e para Gumi.

       Fique descansado, meu capitão volveu Fox.

      A caça não há-de ter razão de queixa!

      Aquele dia devia ser consagrado ao reconhecimento daquela floresta do Tarryani, que eriça a parte inferior do Himalaia, por baixo do nosso sanitarium.

      Por isso, depois do almoço, por volta das onze horas, eu, Sir Edward Munro, Hod, Banks, Fox e Gumi descíamos a estrada que toma obliquamente na direcção da planície, mas deixando no acampamento os nossos dois cães, que não serviriam de nada nesta expedição.

      O sargento Mac Neil também ficou na Steam House, na companhia de Storr, de Kalouth e do cozinheiro, a fim de concluírem os trabalhos de instalação.

      Depois de uma viagem de dois meses, o Gigante de Aço precisava de ser, interiormente e exteriormente, revisto, limpo, posto em ordem. Era uma tarefa demorada, minuciosa, delicada, que não deixaria à boa vida os cornacas ordinários do elefante, o fogueiro e o maquinista.

      Às onze horas tínhamos deixado o sanitarium, e minutos depois, na primeira curva da estrada, a Steam House desaparecia detrás do seu denso cortinado de verdura.

      Já não chovia.

      Acossadas por um nordeste fresco, as nuvens, agora esfarrapadas, corriam velozes pelas zonas mais altas da atmosfera.

      O céu estava pardacento, o que proporcionava uma temperatura conveniente aos peões, mas era inteiramente desfavorável aos efeitos de luz e sombra, encanto das grandes florestas.

      Dois mil metros por um caminho direito seria tarefa para vinte e cinco a trinta minutos, se a estrada não se tornasse mais extensa nas curvas que dava para evitar os grandes declives.

      Precisámos de nada menos de hora e meia para chegarmos ao limite superior das florestas do Tarryani, quinhentos a seiscentos pés acima da planície. Fizemos a caminhada de muito bom humor. Atenção! recomendou o capitão Hod. Entrámos nos domínios dos tigres, dos leões, das panteras, dos lobos, tigres e de outros animais benévolos da região do Himalaia!

       É muito bom destruir as feras, mas é muito melhor não ser destruído por elas! Não nos afastemos uns dos outros e sejamos prudentes.

      Uma tal recomendação da boca de tão intrépido caçador tinha considerável importância. Por isso, tomámo-la todos na devida conta. Carregámos as carabinas e as espingardas, visitámos as baterias, os cães foram postos no descanso.

      Estávamos preparados para qualquer acontecimento.

      Havia não só que recear os carnívoros, como também as serpentes, as mais perigosas das quais se encontram nas florestas da índia.

      As belangas, as serpentes verdes, as serpentes-chicote e muitas outras são extremamente venenosas. O número das vítimas que anualmente sucumbem às mordeduras destes répteis é cinco ou seis vezes mais considerável que o número dos animais domésticos ou dos homens que perecem sob as garras das feras.

      Nesta região do Tarryani é portanto uma simples medida de prudência estar atento a tudo, ver onde se põe o pé, onde apoia a mão, prestar o ouvido aos menores ruídos que soam por debaixo da relva ou se propagam através das moitas.

      Ao meio-dia e meia hora entrávamos nós debaixo das primeiras grandes árvores da floresta.

      A sua elevada ramagem estendia-se por cima de algumas largas alamedas, pelas quais o Gigante de Aço, seguido dos seus carros, poderia facilmente passar. Esta parte da floresta há muito que estava preparada para passagem das carradas de lenha cortadas pelos montanheses.

      Conhecia-se isto pelos sulcos abertos de fresco no barro mole.

      Estas alamedas principais corriam no sentido da cordilheira e, seguindo no sentido do comprimento do Tarryani, ligavam as clareiras abertas na selva pelo machado dos lenhadores; mas, de qualquer dos lados, só davam acesso a estreitos atalhos, que se perdiam sob o arvoredo impenetrável.

      Seguíamos estes caminhos mais como geómetras do que na qualidade de caçadores, a fim de reconhecermos a sua direcção geral.

      Nenhum uivo de fera perturbava o silêncio da floresta.

      Contudo, visíveis vestígios, recentemente gravados no solo, atestavam que os carnívoros não tinham abandonado o Tarryani.

      De repente, quando virávamos uma das curvas da alameda, que a base de um dos contrafortes fazia tomar para a direita, deteve-nos uma exclamação do capitão Hod, que ia na frente.

      A vinte passos de distância, no ângulo de uma clareira, orlada de grandes árvores, elevava-se uma construção, que era singular, pelo menos na forma.

      Não era uma casa, pois que não tinha nem chaminé nem janelas. Também não era uma cabana de caçadores; não tinha nem frestas nem seteiras, Dir-se-ia antes um túmulo indiano, perdido no mais

      profundo da floresta. Imagine-se uma espécie de grande cubo, formado de troncos postos verticalmente, solidamente cravados no solo, ligados na sua parte superior por um espesso entrelaçamento de ramos. Por telhado, outros troncos transversais, solidamente cimentados na parte superior.

      Era fora de dúvida que o construtor deste reduto quisera dar-lhe uma solidez a toda a prova em todas as suas cinco faces.

      Media quase seis pés de alto, doze de comprido, cinco de largo. De abertura, não havia indício algum, salvo se estava oculta, na face anterior, por um grosso madeiro, cujo topo arredondado saía um pouco para fora do todo daquela construção.

      Por cima do tecto levantavam-se grandes varas flexíveis, dispostas de um modo singular e ligadas entre si.

      Da extremidade de uma alavanca horizontal, que sustentava a armação das varas, pendia um nó corredio, ou, melhor dizendo, um laço, formado de cipós entrançados.

       Que é isto?  perguntei.

      Isto respondeu Banks, depois de olhar com atenção é simplesmente uma ratoeira; mas podemos imaginar que espécie de ratos apanha!

       Uma armadilha para tigres?  exclamou o capitão Hod.

       Sim tornou Banks, uma armadilha para tigres, cuja porta foi fechada pelo madeiro, que estava preso por esta laçada de cipós, porque na alavanca interior tocou algum animal.

       É a primeira vez disse Hod que vejo numa floresta da índia uma armadilha deste género. Uma ratoeira, efectivamente. Aí está uma coisa que não é digna de um caçador!

       Nem de um tigre acrescentou Fox. Decerto ponderou Banks, mas se se trata de destruir estes ferozes animais, e não de os caçar por divertimento, o melhor laço é o que os apanha na maior quantidade.

       Ora, este parece-me muito bem armado para atrair e apanhar feras, por muito desconfiadas e vigorosas que sejam.

       É minha opinião disse então o coronel Munro que, visto ter a alavanca que segura a porta perdido o equilíbrio, é porque, provavelmente, caiu algum animal.

       É o que havemos de ver exclamou o capitão Hod e também se o rato não morreu. . .

      E, juntando o gesto às palavras, o capitão fez estalar os fechos da carabina. Os outros imitaram-no e aprontaram-se para fazer fogo.

      Não podíamos pôr em dúvida que a construção fosse uma armadilha, do género das que frequentemente se encontram nas florestas da Malásia. Fosse ou não obra de um indiano, oferecia todas as condições que tornam muito práticos estes engenhos de destruição: sensibilidade delicada, solidez a toda a prova.

      Tomadas as nossas disposições, o capitão Hod, Fox e Gumi aproximaram-se da armadilha, em roda da qual queriam primeiramente dar uma volta. Não encontraram nenhum interstício, entre os troncos verticais, que lhes permitisse olhar para o interior da gaiola.

      Puseram-se atentamente à escuta.

      Nenhum ruído denunciava a presença de criatura viva naquela caixa de madeira, tão calada como um túmulo.

      O capitão Hod e os seus companheiros voltaram para a face anterior.

      Certificaram-se de que o madeiro móvel deslizara entre dois encaixes largos, abertos em sentido vertical. Bastava pois levantá-lo para se poder entrar no interior da armadilha.

      Nem o menor ruído! disse o capitão Hod, que encostara o ouvido à porta. Nem um fôlego! A ratoeira não tem um rato!

       Em todo o caso sejamos prudentes observou o coronel Munro.

      E foi sentar-se num tronco de árvore, à esquerda da clareira.

      Coloquei-me junto dele.

      Vamos, Gumi disse o capitão Hod. .

      Gumi, ligeiro, baixo mas airoso, ágil como um macaco, flexível como um leopardo, um verdadeiro clow indiano, compreendeu o que o capitão queria.

      A sua ligeireza estava-o naturalmente designando para o serviço que se esperava dele.

      De um salto pôs-se em cima do tecto da armadilha, e num instante chegou, à força de pulso, a uma das varas que formavam a armação superior.

      Depois, deslizou pela alavanca até à extremidade do madeiro que fechava a abertura.

      Enfiou então o madeiro na laçada. Bastava agora produzir um movimento de vaivém, pesando sobre a outra extremidade da alavanca.

      Para isso, porém, foi preciso recorrer às forças reunidas do nosso pequeno grupo.

      Eu, o coronel, Banks e Fox dirigimo-nos para as traseiras da armadilha, a fim de fazermos esse movimento. Gumi deixara-se ficar na armação, para soltar a alavanca, dado o caso de que não funcionasse livremente.

       Meus amigos gritou-nos o capitão Hod, se sou preciso lá, vou, mas, se podem passar sem mim, preferia ficar em frente da armadilha. Ao menos, se sair um tigre, será cumprimentado na passagem por uma bala.

       E esse perfaz o número quarenta e dois?  perguntei ao capitão.

       Porque não há-de perfazer?  replicou Hod. Se cair ao meu tiro, cai ao menos em liberdade!

       Não vendamos a pele do urso. . . retorquiu o engenheiro enquanto ele não estiver morto!

       Sobretudo quando o urso pode muito bem ser um tigre! . . . acrescentou o coronel Munro.

      - À uma, meus amigos bradou Banks, à uma!

      O madeiro era pesado. Escorregava mal nos encaixes.

      Sempre conseguimos abalá-lo. Oscilou por um momento e ficou suspenso à altura de um pé acima do solo.

      O capitão Hod, meio agachado, com a carabina à cara, diligenciava ver se alguma enorme pata ou alguma goela ofegante aparecia no orifício da armadilha.

      Nada aparecia ainda.

       Mais um esforço, meus amigos! gritou Banks.

      E graças a Gumi, que veio dar algum auxílio, o madeiro principiou a subir pouco a pouco.

      Não tardou que houvesse uma abertura suficiente para dar passagem mesmo a um animal de grande tamanho.

      Mas animal nenhum, fosse de que raça fosse, aparecia.

      Em todo o caso, era possível que, em consequência do ruído que se fazia em volta da armadilha, o animal se refugiasse na parte mais afastada da sua prisão. Talvez até só esperasse o momento favorável para sair de um salto, derribar quem se opusesse à sua fuga, e desaparecer nas profundezas da floresta.

      A situação era bastante dramática.

      Vi então o capitão Hod dar alguns passos à frente, o dedo no gatilho, e manobrar de modo que pudesse mergulhar a vista até ao fundo da gaiola.

      O madeiro estava levantado de todo e entrava pelo orifício luz bastante.

      Neste momento ouviu-se um ligeiro ruído através das paredes da gaiola, em seguida um roncar abafado, ou, melhor dizendo, um bocejo, que me pareceu muito suspeito.

      Não havia dúvida de que estava ali um animal que dormia, e acabávamos de o acordar de repente.

      O capitão aproximou-se mais e apontou a carabina sobre uma massa que viu mexer-se na penumbra.

      De repente fez-se um movimento lá dentro.

      Ouviu-se um grito de terror, que foi logo seguido destas palavras, em bom inglês:

       Não atire, pelo amor de Deus! Não atire!

      Saltou para fora da armadilha um homem.

      Foi tal o nosso espanto que largámos a armação, e o madeiro caiu com um ruído abafado, fechando novamente o orifício.

      A inesperada personagem, que acabava de aparecer, avançou para o capitão, cuja carabina lhe fazia pontaria ao peito, e com um tom bastante pretensioso, acompanhado de um gesto enfático, dizia-lhe:

       Queira arredar a sua arma, senhor. Não tem diante de si um tigre do Tarryani. . .

      Após alguma hesitação, o capitão pôs a carabina em posição menos ameaçadora.

       A quem temos a honra de falar?  perguntou Banks, dirigindo-se para a personagem.

       Ao naturalista Matias Van Guitt, fornecedor habitual

       de paquidermes, tardígrados, plantigrades, proboscídeos, carnívoros e outros mamíferos das casas Charles Rice, de Londres, e Hagenbeck, de Hamburgo!

      Depois, designando-nos com um gesto circular:

       Os senhores? . . .

       O coronel Munro e os seus companheiros de viagem respondeu Banks, indicando-nos.

       De passeio pelas florestas do Himalaia! retrucou o fornecedor. Digressão encantadora, na verdade! Para o que for prestável, meus senhores, para o que for prestável!

      Quem era este original que tínhamos diante de nós?

      Não seria caso para desconfiarmos de que a cabeça se lhe desarranjara durante a sua permanência na armadilha dos tigres?  Estava doido ou tinha a cabeça no seu lugar?  Finalmente, qual a categoria de bímanos a que pertencia este indivíduo?

      íamos sabê-lo, e para diante havíamos de vir a reconhecer melhor esta personagem singular, que se intitulava naturalista e o fora efectivamente.

      O senhor Matias Van Guitt, fornecedor de colecções de feras, era um sujeito de óculos, de cinquenta anos de idade.

      A cara esverdeada, os olhos piscos, o nariz no ar, a agitação contínua de toda a sua pessoa, os gestos ultra-expressivos, apropriados a cada uma das frases que lhe saíam da grande boca, tudo isto lhe dava ares de comediante de província.

      Quem é que não tem encontrado pelo mundo um desses antigos actores, cuja existência, limitada ao horizonte de uma rampa e de um pano de boca, não saiu nunca dos bastidores de um teatro de melodrama?

      Palradores infatigáveis, gesticuladores incómodos, charlatães enfatuados de si mesmos, trazem sempre alta, deitando-a para trás, a cabeça, muito vazia na velhice, para que alguma vez estivesse bem cheia na idade madura.

      Neste Matias Van Guitt havia com certeza alguma coisa de velho actor.

      Ouvi uma vez contar esta anedota engraçada, a respeito de um pobre cantor, que julgava dever sublinhar com um gesto especial cada frase do seu papel.

      O cantor quando, na ópera Masaniello, entoava em voz cheia:

      Um pobre pescador em grão-monarca o seu braço direito estendido para a sala, agitava-se febrilmente, como se na extremidade da linha tivesse o peixe que acabou de apanhar com o anzol.

      Depois, continuando:

      Se um dia o céu quisesse transformar. . .

      enquanto uma das mãos se erguia direita para o zénite, a fim de marcar o céu, a outra, descrevendo um círculo em volta da cabeça, levantada com altivez, figurava uma coroa real.

      Desprezando as sentenças do destino todo o seu corpo resistia com violência a um impulso

      que tendia a deitá-lo para trás.

      E diria guiando o seu barco. . .

      E então os seus dois braços, movidos com precipitação, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, davam prova da sua perícia em dirigir uma embarcação.

      Pois estes processos, tão familiares ao cantor em questão, eram pouco mais ou menos os do fornecedor Matias Van Guitt.

      Só empregava expressões muito escolhidas, e devia ser muito incómodo para o interlocutor que não se pudesse pôr fora do alcance dos seus gestos.

      Como depois soubemos pela sua própria boca, Matias Van Guitt era um antigo professor de história natural, no museu de Roterdão, que não se dera bem com o professorado, com efeito, o bom do homem devia prestar-se à caçoada, e se os discípulos frequentavam a sua aula era para se divertirem, não para aprenderem. Afinal de contas, as circunstâncias tinham feito com que ele, farto de ensinar sem resultado a zoologia teórica, viesse às índias fazer zoologia prática.

      Saiu-se melhor neste género de negócio, e conseguiu ser fornecedor oficial das importantes casas de Hamburgo e de Londres em que geralmente se fornecem as colecções públicas e particulares dos dois mundos.

      E se Matias Van Guitt então se encontrava no Tarryani, era que ali o levara uma importante encomenda de feras para a Europa.

      Efectivamente, o seu acampamento não estava a mais de duas milhas da armadilha de que acabávamos de o tirar.

      Mas porque se encontrava o fornecedor no próprio laço que armara?

      Eis o que Banks logo lhe perguntou, e foi assim que ele respondeu numa linguagem acompanhada de grande variedade de gestos:

       Foi ontem. O Sol havia já feito o semicírculo da sua rotação diurna. Veio-me à lembrança ir visitar uma das armadilhas para tigres preparadas pelas minhas próprias mãos. Saí, pois, do meu kraal, que os senhores se hão-de dignar honrar com a vossa visita, e cheguei a esta

      clareira. Achava-me só, o meu pessoal ocupava-se de trabalhos urgentes, dos quais não queria distraí-lo. Foi uma imprudência. Quando cheguei à armadilha, notei logo que o alçapão, formado pelo madeiro móvel, estava levantado. Donde concluí, não sem alguma lógica, que nenhuma fera ali caíra. Entretanto, sempre quis verificar se a isca continuava ainda no seu lugar e se podia contar com o bom funcionamento da alavanca. Foi por isso que, por um movimento muito destro de reptação, me introduzi pela estreita abertura.

      A mão de Matias Van Guitt indicava com uma ondulação elegante o movimento de uma serpente que se insinua através das ervas muito altas.

       Quando cheguei ao fundo da armadilha prosseguiu o fornecedor examinei o quarto de cabra, cujas emanações deviam atrair os frequentadores daquele ponto da floresta. Ia retirar-me quando uma pancada involuntária do meu braço fez girar o vaivém; a armação cedeu, o alçapão caiu, e eis-me preso no laço, que eu próprio armara, sem meio algum de poder sair.

      Neste ponto, Matias Van Guitt calou-se por um momento, para melhor fazer ver toda a gravidade da sua situação.

       Entretanto, senhores tornou ele, não lhes escondo que encarei a coisa pelo seu lado cómico. Estava preso, bem! Não tinha carcereiro que me abrisse a porta, de acordo! Mas reflecti que a minha gente, não me vendo voltar ao kraal, se inquietaria com a minha ausência prolongada e se entregaria a pesquisas que, cedo ou tarde, dariam resultado. Era apenas questão de tempo. Na prisão que fazer senão cismar! , disse um fabulista francês.

       Pus-me, pois, a cismar, e passaram-se horas e horas sem que viesse coisa alguma modificar a minha situação.

       Chegando a noite, a fome fez-se sentir.

       Pareceu-me que o melhor que poderia fazer seria enganá-la com o sono.

      (Tomei a minha resolução com filosofia, e adormeci profundamente.

       A noite passou-se tranquilamente, no meio do profundo silêncio das florestas.

      Coisa alguma me perturbava o sono, e talvez ainda dormisse se um ruído insólito não me acordasse. Erguia-se o alçapão, a luz do dia entrava no meu silencioso reduto, quando vi o instrumento da morte apontado ao meu peito. Um instante mais, ia ser ferido! A hora da minha libertação seria a última da minha vida! . . . Mas o senhor capitão dignou-se ver em inim uma criatura da sua espécie. . . e só me resta agradecer-lhe, senhores, o terem-me restituído a liberdade.

      Tal foi a narrativa do fornecedor. Devemos confessar que não foi sem custo que pudemos disfarçar o sorriso que o seu tom e os seus gestos desafiavam.

      Visto isso, senhor perguntou-lhe Banks, o seu acampamento está estabelecido nesta parte do Tarryani?

       Sim, senhor respondeu Matias Van Guitt.

      Como tive o gosto de lhe dizer, o meu kraal fica a umas dez milhas daqui, e se o quiserem honrar com a vossa presença, terei muito gosto em recebê-los.

       Por certo, senhor Van Guitt volveu o coronel

      Munro, lá iremos visitá-lo!

       Somos caçadores acrescentou o capitão Hod e examinar a instalação de um kraal interessar-nos-á.

      Caçadores! exclamou Matias Van Guitt. Caçadores!

      Não pôde deixar de mostrar no rosto que tinha pelos filhos de Nemrod uma estima muito limitada.

       Os senhores caçam as feras. . . para as matar, decerto?  tornou ele, dirigindo-se ao capitão.

      Unicamente para as matar respondeu o capitão Hod.

      Pois eu, unicamente para as apanhar! volveu o fornecedor, com um belo gesto de altivez.

       Pois muito bem, senhor Van Guitt, não lhe faremos concorrência! redarguiu o capitão.

      O fornecedor abanou a cabeça.

      Em todo o caso, a nossa qualidade de caçadores não o fazia desistir do convite.

      Quando se dignam seguir-me?  disse ele, inclinando-se com galantaria.

      Mas naquele momento ouviram-se muitas vozes na floresta, e na curva da alameda apareceram meia dúzia de indianos.

       Ah! Eis aí a minha gente! exclamou Van Guitt.

      Depois aproximou-se de nós e disse-nos, estendendo um pouco os lábios e pondo um dedo na boca:

       Nem uma palavra a respeito da minha aventura!

      É preciso que o meu pessoal não saiba que me deixei apanhar na minha armadilha como um animal vulgar!

      Poderia diminuir um pouco o grande prestígio que devo conservar a seus olhos. . .

      Um sinal de assentimento da nossa parte tranquilizou o fornecedor.

       Senhor disse então um dos indianos, cuja cara inteligente e impassível atraiu a minha atenção, andamos à sua procura há uma hora, sem que. . .

       Estava com estes senhores, que se dignam acompanhar-me ao kraal explicou Van Guitt. Mas antes de saírmos da clareira é conveniente que ponhamos a armadilha em bom estado.

      Por ordem do fornecedor, os indianos trataram de pôr tudo em ordem.

      Entretanto, Matias Van Guitt convidou-nos a visitar o interior da gaiola.

      O capitão Hod seguiu o fornecedor, e eu segui também o capitão.

      O local era acanhado para o desenvolvimento dos gestos do nosso hóspede, que procedia ali como numa sala.

       Os meus cumprimentos disse o capitão Hod, depois de examinar o aparelho. É muito bem imaginado. Fique certo, capitão assegurou Matias Van Guitt, este laço é muito preferível às antigas covas guarnecidas de espeques de madeira endurecida, às árvores curvadas em arco, em que há um nó corredio. No primeiro caso, o animal fica estripado; no segundo, estrangulado.

       Isto pouco importa, é claro, a quem só quer destruir as feras. Mas este, que aqui vê, quere-as vivas, intactas, sem nenhum estrago!

       Sem dúvida alguma redarguiu o capitão Hod, o nosso procedimento não é o mesmo.

      O meu é talvez o bom! replicou o fornecedor. Se se consultassem as feras. . .

       Não as consulto! protestou o capitão.

      Decididamente o capitão Hod e Matias Van Guitt haviam de chegar com dificuldade a um acordo.

       Mas perguntei eu ao fornecedor, depois de apanhados os animais, como é que os tiram para fora?

       Aproximamos da armadilha uma gaiola de rodas explicou Van Guitt; os presos atiram-se eles mesmos para a gaiola, e eu não tenho mais que conduzi-los ao kraal, ao passo lento e tranquilo dos meus búfalos.

      Apenas acabávamos de dizer isto, ouviram-se gritos da banda de fora.

      O meu primeiro impulso e o do capitão Hod foi corrermos para fora da armadilha.

      Que se passara?

      Uma serpente-chicote, da espécie mais maligna, acabava de ser cortada em duas pela varinha que um indiano tinha na mão, e isto no momento em que o réptil venenoso ia lançar-se sobre o coronel.

      Este indiano era aquele em que eu fizera reparo. Como nós próprios tivéramos ocasião de observar, a sua intervenção rápida salvara Sir Edward Munro de morte imediata.

      Os gritos que acabávamos de ouvir eram de um dos servidores do kraal, que se torcia no solo nas últimas contorções de agonia.

      Por uma deplorável fatalidade, a cabeça da serpente, completamente decepada, saltara-lhe ao peito, mordera-o, e o infeliz, contaminado pelo veneno subtil, expirava em menos de um minuto, sem que fosse possível socorrê-lo. Aterrados a princípio por este horroroso espectáculo, corremos em seguida para o coronel Munro.

       Não foste mordido?  perguntou Banks, que lhe agarrou precipitadamente na mão.

       Não, Banks, sossega respondeu Edward Munro.

      Em seguida, dirigindo-se para o indiano a quem devia a vida, disse-lhe:

       Obrigado, meu amigo. com um gesto o indiano deu a entender que por isso não se lhe devia nenhum agradecimento.

      Como te chamas?  perguntou o coronel Munro.

       alagani respondeu ele.

     

      O KRAAL

      A morte daquele desgraçado impressionara-nos em extremo, principalmente pelas condições em que se dera.

      A mordedura daquela espécie de serpentes é fatal.

      Era mais uma vítima a acrescentar aos milhares delas que anualmente estes répteis fazem na índia.

      Disse-se por gracejo, suponho que em outros tempos na Martinica não havia serpentes, e que foram os Ingleses que para lá as levaram, quando tiveram de ceder a ilha à França.

      Os Franceses não tiveram necessidade de servir-se deste género de represálias quando abandonaram a conquista da índia.

      Era inútil, e deve-se convir que a natureza foi pródiga a este respeito.

      Sob a influência do veneno, o corpo do indiano decompunha-se rapidamente.

      Foi preciso enterrá-lo logo.

      Trataram disso os companheiros, e foi deposto numa cova bastante funda para que as feras não o pudessem desenterrar.

      Concluída esta triste cerimónia, Matias Van Guitt convidou-nos a que o seguíssemos ao kraal, convite que foi aceite com satisfação.

      * Em 1877 pereceram pela mordedura das serpentes 1677 criaturas humanas. Os prémios pagos pelo Governo para a destruição daqueles répteis demonstram que naquele mesmo ano se mataram 127 295.

      Bastou-nos meia hora para chegarmos ao acampamento do fornecedor.

      Neste acampamento justificava-se perfeitamente o nome de kraal, que é a designação empregada mais especialmente pelos colonos da África do Sul.

      Era um amplo cerrado, formado no mais profundo da floresta, no centro de uma vasta clareira.

      Matias Van Guitt dispusera-o com perfeito conhecimento das necessidades do seu mister.

      Cingia-o uma paliçada muito alta, com uma porta assaz vasta para poderem entrar carros.

      A meio da parede do fundo havia uma grande cubata, construída de troncos de árvores e de tábuas, que servia de habitação única a todos os habitantes do kraal. Seis gaiolas, divididas em muitos compartimentos, montada cada uma delas em quatro rodas, estavam enfileiradas na extremidade à esquerda do recinto. Pelos rugidos que dali saíam, podia calcular-se que não faltavam moradores.

      À direita estavam enfileirados, ao ar livre, uma dúzia de búfalos, alimentados pelas opulentas pastagens das montanhas.

      Estes búfalos constituíam o tiro ordinário das casas dos bichos, movediças.

      Completavam o pessoal do acampamento seis carreiros, destinados à condução dos carros, e dez indianos, especialmente exercitados na caça às feras.

      Os carreiros eram só contratados para o tempo que durasse a caçada.

      Consistia o seu serviço em guiar os carros aos lugares da caçada, e depois à estação mais próxima do caminho de ferro. Aí os carros eram colocados em truks e podiam rapidamente, por Allahabad, chegar a Bombaim ou a Calcutá.

      Os caçadores, indianos de raça, pertenciam à casta dos caçadores de profissão, chamados chikaris.

      A sua missão consiste em procurar os vestígios dos animais ferozes, desemboscá-los e proceder à sua captura.

      Tal era o pessoal do fornecedor.

      Matias Van Guitt vivia com a sua gente no kraal havia alguns meses.

      Achavam-se ali expostos não só aos ataques dos animais ferozes, mas também às febres de que o Tarryani é particularmente infeccionado.

      A humidade das noites, a evaporação dos fermentos prejudiciais do solo, o calor húmido desenvolvido sob as ramadas das árvores, que a evaporação só imperfeitamente penetra, fazem da zona inferior do Himalaia uma região doentia.

      Contudo, o fornecedor e o seu pessoal estavam tão bem aclimatados que a malária atacava-os tanto como atacava os tigres ou os outros frequentadores do Tarryani.

      Nós, porém, não poderíamos impunemente permanecer no kraal. Depois, não entrava essa permanência nos planos do capitão Hod.

      Exceptuando algumas noites passadas à espreita dos animais, devíamos viver na Steam House, na zona superior, onde não podiam chegar as emanações da planície.

      Éramos, pois, chegados ao acampamento de Matias Van Guitt. A porta abriu-se para nos dar entrada.

      Matias Van Guitt parecia lisonjear-se muito particularmente com a nossa visita.

       Agora, senhores disse-nos, permitam-me que lhes faça as honras do kraal. Este acampamento satisfaz a todas as exigências da minha profissão. Em realidade, é apenas uma cabana em ponto grande, o que na península os caçadores chamam um huddi.

      Falando deste modo, o fornecedor franqueava-nos as portas da cubata, que ocupava em comum com a sua gente.

      Não havia coisa menos luxuosa.

      Uma primeira divisória para o patrão, outra para os chikaris e outra ainda para os carreiros. Em todos estes compartimentos, por único mobiliário, uma cama de viagem; uma quarta divisória, um pouco mais espaçosa, servia de cozinha e de casa de jantar.

      Como se vê, a habitação de Matias Van Guitt achava-se ainda em estado rudimentar e merecia com razão a qualificação de huddi. O holandês era simplesmente um cabaneiro na sua cabana.

      Depois de visitarmos a residência destes bírnanos pertencente ao primeiro grupo dos mamíferos, fomos convidados a ver mais de perto a morada dos quadrúpedes.

      Era a parte mais interessante das instalações do kraal.

      Lembrava mais depressa a disposição de uma casa de bichos do que as jaulas confortáveis de um jardim zoológico.

      Só ali faltavam os cenários, suspensos de cavaletes, representando com violentas cores um domador vestido de fato de malha cor-de-rosa e casaquinho de veludo, no meio de uma horda de feras prestes a saltar que, de fauces abertas e garras distendidas, se encolhem sob as chicotadas de um Bidel ou de um Pezon heróico! É verdade que não havia público para invadir a galeria.

      A curta distância via-se um grupo de búfalos domésticos.

       Ocupavam, à direita, uma parte lateral do kraal, aonde quotidianamente lhes levavam a ração de forragem fresca.

      Não se podia deixar vaguear estes animais pelas pastagens próximas.

      Como elegantemente dissera Matias Van Guitt, a liberdade de pastar, permitida nas regiões do Reino Unido, é incomparável com os perigos que apresentam as florestas do Himalaia.

      A casa dos bichos propriamente dita compreendia seis jaulas, montadas sobre quatro rodas.

      Cada jaula, gradeada na frente, era dividida em seis compartimentos. Uma porta, ou antes umas divisórias, que subiam e desciam, permitindo fazer passar os animais de um compartimento para o outro, conforme as necessidades do serviço.

      As jaulas continham então sete tigres, dois leões, três panteras e dois leopardos.

      Disse-nos Matias Van Guitt que o seu fornecimento não ficaria completo sem ter apanhado mais dois leopardos, três tigres e um leão. Deixaria então o acampamento, dirigir-se-ia à estação do caminho de ferro mais próxima e tomaria a direcção de Bombaim.

      As feras, que se podiam ver à vontade nas jaulas, eram magníficas e muito ferozes.

      Tinham sido apanhadas recentemente e ainda não se haviam habituado a este estado de sequestro.

      Conhecia-se isto pelos rugidos terríveis, pelos seus passeios repentinos de uma divisória para outra, pelas grandes patadas que atiravam através dos varões de ferro das jaulas, falseados em muitos pontos.

      Quando chegámos em frente das jaulas, estas violências aumentaram, sem que Matias Van Guitt parecesse impressionar-se com tal.

       Pobres animais! exclamou o capitão Hod.

       Pobres animais! repetiu Fox.

      Julga então que estas feras são mais dignas de dó que as que o senhor mata?  perguntou o fornecedor num tom bastante seco.

       São menos dignas de dó que de censura. . . por se terem deixado agarrar! redarguiu o capitão Hod.

      Se é verdade que algumas vezes os carnívoros, em regiões como o continente africano, têm de passar por grandes privações, porque aí são raros os ruminantes, de que unicamente se nutrem, não sucede o mesmo em toda a zona do Tarryani. Abundam aqui os bisões ou búfalos, os zebus, os javalis, os antílopes, aos quais os leões, os tigres e as panteras dão caça incessantemente.

      Além disso, as cabras, os carneiros, sem falarmos dos pastores que os guardam, proporcionam-lhes uma presa segura e fácil. Encontrariam, portanto, nas florestas do Himalaia com que amplamente satisfazer a fome. Por isso, a sua ferocidade, que nunca se desarma, não tem desculpa.

      Era principalmente de carne de bisão e de zebra que o fornecedor alimentava os seus bichos, e os chikaris é que tinham por obrigação fornecer-lhes a despensa em certos dias.

      Erra quem julgar que esta caça não oferece perigo.

      Pelo contrário, o próprio tigre tem muito que recear do búfalo silvestre, que é um animal terrível quando ferido.

      Mais de um caçador o tem visto arrancar com os chifres a árvore onde procurou refúgio.

      É verdade dizer-se que os olhos do ruminante são umas verdadeiras lentes de aumentar, que para eles o tamanho dos objectos triplica, e que o homem, sob este aspecto gigantesco, lhe impõe respeito. Também há quem pretenda que a posição vertical da criatura humana, quando caminha, é própria para assustar os animais ferozes, e que mais vale arrostá-los em pé que agachado ou deitado.

      Não sei o que há de verdade nestas asserções, mas o certo é que o homem, ainda quando se ergue a toda a altura, não impressiona o búfalo selvagem, e, se a sua arma lhe falha, está quase perdido.

      É o que sucede com o bisão da índia, de cabeça curta e quadrada, chifres esbeltos e achatados na base, lombo corcovado característica que o aproxima do seu congénere da América, pernas brancas, desde o casco até ao joelho, e medindo às vezes, do começo da cauda até à extremidade do focinho, quatro metros. O bisão, embora talvez menos feroz quando pasta em rebanho as altas ervas da planície, torna-se terrível para o caçador que imprudentemente o ataca.

      Tais eram, pois, os ruminantes especialmente destinados a alimentar os carnívoros da colecção Van Guitt.

      Os chikaris, para os apanharem com mais segurança, e quase sem perigo, procuravam de preferência caçá-los com armadilhas, de onde os tiravam ’mortos ou pouco menos.

      Como homem que sabia do seu ofício, o fornecedor alimentava parcimoniosamente os seus hóspedes. Todos os dias, ao meio-dia, distribuía-lhes quatro ou cinco libras de carne, e mais nada.

      E, além disso, e não era decerto por motivos religiosos, deixava-os jejuar de sábado até segunda-feira.

      Triste domingo de dieta, na verdade! Também quando, passadas quarenta e oito horas, chegava a modesta refeição, era uma raiva impossível de conter, um concerto de uivos, uma terrível agitação, formidáveis pulos que imprimiam às jaulas ambulantes um movimento oscilatório, que fazia recear que elas se desmanchassem.

      Sim, pobres animais! tem a gente a tentação de repetir com o capitão Hod.

      Mas Matias Van Guitt não procedia assim sem razão.

      Esta abstinência no encarceramento livrava as suas feras de afecções cutâneas e fazia-as subir de preço nos mercados da Europa.

      Como facilmente se imagina, enquanto nos mostrava a sua colecção, mais na qualidade de naturalista do que na de domador de feras, Matias Van Guitt não conservava a língua em sossego. Falava, contava, recontava, e como os carnívoros do Tarryani é que constituíam o principal tema dos seus períodos redundantes, o fornecedor interessava-nos até certo ponto.

      Por isso também não devíamos deixar o kraal senão quando a zoologia do Himalaia nos confiasse os seus últimos segredos.

       Mas, senhor Van Guitt disse Banks, poderá dizer-me se os interesses da profissão estão em proporção com os riscos?

       Senhor respondeu ele, antigamente eram bem remunerados. Nestes últimos anos, porém, sou obrigado a reconhecê-lo, os animais ferozes baixaram de cotação.

      Podem avaliar pelos preços correntes. O nosso principal mercado é o Jardim Zoológico de Antuérpia. Voláteis, felinos, exemplares das famílias dos ofídios, símios e sáurios, representando carnívoros dos dois mundos, é para ali que despacho habitualmente. . .

      O capitão Hod inclinou-se perante esta palavra.

       . . . os produtos das nossas aventurosas batidas nas florestas da península. Seja como for, o gosto do público pareceu modificar-se, e os preços de venda hão-de chegar a ser inferiores aos preços do custo! Ultimamente, um avestruz macho só se vendeu por mil e cem francos, e a fêmea apenas por oitocentos. Uma pantera negra só encontrou comprador por mil e seicentos francos, um tigre de Java por dois mil e quinhentos, e uma família de leões pai, mãe, tio, dois filhos, que prometiam um

      grande futuro, todos juntos, sete mil francos.

       É na verdade uma miséria! concordou Banks.

      Quanto aos proboscídeos. . . prosseguiu Matias Van Guitt.

       Proboscídeos?  perguntou o capitão Hod.

       Damos este nome científico aos paquidermes a quem a natureza confiou uma tromba.

       Ah! Os elefantes.

       Sim, os elefantes desde a época quaternária; os mastodontes nos períodos pré-históricos. . .

       Obrigado volveu o capitão Hod.

       Quanto aos proboscídeos continuou Matias Van Guitt, deixamo-los em paz, salvo se lhes pretendemos

      as presas, porque o consumo do marfim não tem diminuído

       Mas, desde que alguns autores dramáticos, esgotados todos os expedientes, têm imaginado apresentá-los

      nas suas peças, os empresários andam com eles de cidade em cidade, e o mesmo elefante, correndo as províncias com a companhia ambulante, chega para a curiosidade de todo um país. Por isso os elefantes são menos procurados que noutros tempos.

       Mas perguntei eu o senhor fornece estes exemplares da fauna indiana somente às colecções da Europa?

      Há-de perdoar-me, senhor volveu Matias Van Guitt, se a este respeito, apesar de eu não ser muito

      competente, lhe faça uma pergunta. Inclinei-me em sinal de assentimento.

       O senhor é francês prosseguiu o fornecedor.

      Conhece-se, não só pela sua pronúncia, como também pelo seu tipo, que é um misto agradável de galo-romano e de celta. Ora, na sua qualidade de francês, pouca propensão há-de ter para viagens remotas e com certeza que não fez ainda uma viagem à roda do mundo?

      Aqui, o gesto de Matias Van Guitt descreveu um dos grandes círculos da esfera.

       Ainda não tive esse prazer respondi.

       Perguntar-lhe-ei, pois continuou o fornecedor, não se já foi às índias, porque o senhor aqui se encontra,

      mas se conhece a fundo a península indiana?

       Por enquanto, imperfeitamente. Contudo, já visitei Bombaim, Calcutá, Benares, Allahabad, o vale do Ganges.

      Vi os seus monumentos, admirei. . .

       Ora, mas o que é isso, sim, o que é isso?  interrompeu Matias Van Guitt, voltando o rosto, enquanto a sua mão, agitada febrilmente, manifestava um supremo desdém.

      Depois, procedendo por hipotipose, isto é, entregando-se a uma descrição viva e animada, continuou:

       Sim, o que é isso, se ainda não visitou as colecções desses magníficos rajás que conservam o culto dos soberbos animais de que se honra o território sagrado da índia! O que lhe digo é que torne a pegar no bordão de viajante! Vá ao Guicowar prestar homenagem ao rei de Baroda! Veja as suas jaulas, que me devem a maior parte dos bichos leões de Kathiawar, ursos, panteras, tchitas, linces, tigres! Assista à celebração do casamento dos seus sessenta mil pombos, que todos os anos se celebra com grande pompa! Admire os seus quinhentos bulbuls, rouxinóis da península, de cuja educação se cuida como se fossem os herdeiros do trono! Contemple os seus elefantes, um dos quais, destinado a executor das penas de morte, tem por missão esmagar a cabeça do condenado sobre a pedra do suplício! Depois, dirija-se aos domínios do rajá de Maissur, o mais rico dos soberanos da Ásia! Entre no seu palácio, onde se contam às centenas os rinocerontes, os elefantes, os tigres e todas as feras de alta categoria, pertencentes à aristocracia animal da índia!

      E, depois de ver tudo isto, não poderá ser acusado de ignorância com relação às maravilhas deste incomparável país!

      Não tinha mais do que inclinar-me perante as observações de Matias Van Guitt. O seu modo entusiástico de expor as coisas nem por sombras admitia a discussão.

      Não obstante, o capitão Hod interrogou-o mais directamente a respeito da fauna especial daquela região do Tarryani.

       Por favor disse o capitão, dê-me algumas informações acerca dos carnívoros que vem procurar a estes lados da índia. Apesar de não passar de um simples caçador, repito, não lhe farei concorrência, senhor Van Guitt, e até, se puder, ajudá-lo-ei de muito bom grado.

      Mas, completa a colecção, não há-de desaprovar que me entregue à destruição de alguns animais para meu recreio pessoal.

      Matias Van Guitt tomou a atitude de um homem resignado a sofrer o que desaprova, mas que não pode evitar. Entretanto sempre concordou que o Tarryani encerrava um grande número de animais daninhos, geralmente pouco pedidos nos mercados da Europa, e cujo sacrifício lhe parecia permitido.

      Mate os javalis, consinto disse ele. Apesar de que estes animais, da ordem dos paquidermes, não serem carnais. . . .

      Carnais?  estranhou o capitão.

       Entendo por isto que são herbívoros. É tal a sua ferocidade que fazem correr os maiores perigos aos caçadores bastante audaciosos para os atacarem!

       E os lobos?

       Os lobos são numerosos em toda a península e muito temíveis quando caem em bandos sobre alguma granja solitária. Parecem-se um pouco com os lobos da Polónia, e faço tanto caso deles como de chacais ou de cães selvagens. É verdade que não nego os estragos que fazem, mas como não têm nenhum valor comercial e são indignos de figurar entre os zoocratas das altas classes, também lhos deixo, capitão Hod.

       E os ursos?  perguntei eu.

       Os ursos têm as suas coisas boas, senhor respondeu o fornecedor, aprovando com sinal de cabeça. Se os da índia não são procurados com tanto interesse como os seus congéneres da família dos ursinos, possuem contudo um valor comercial que os recomenda à benévola atenção dos conhecedores. O gosto pode hesitar entre os dois tipos que devemos aos vales de Caxemira e às colinas do Raymahal. Mas, excepto talvez o período de hibernação, estes animais são quase inofensivos e não podem tentar os instintos cinegéticos de um verdadeiro caçador, tal qual se apresenta aos nossos olhos o capitão Hod.

      O capitão inclinou-se com ares significativos, mostrando claramente que, sem licença de Matias Van Guitt ou com ela, só à sua própria opinião se reportaria nestas questões especiais.

       Demais acrescentou o fornecedor, estes ursos não passam de botanófagos.

       Botanófagos?  disse o capitão. Sim retorquiu Matias Van Guitt, não vivem senão de vegetais, e não têm nada de comum com as espécies ferozes de que a índia com razão se ufana.

       Inclui o leopardo no número das feras?  perguntou o capitão.

       Decerto, senhor. Este felino é ágil, ousado, corajoso, trepa às árvores, e por isso mesmo é às vezes mais temível que o tigre.

      Oh! exclamou o capitão Hod.

       Senhor contrapôs Van Guitt com secura, se um caçador não pode contar com um refúgio nas árvores, está muito arriscado a ser caçado em vez de caçar!

       E a pantera?  inquiriu o capitão Hod, que quis cortar toda a discussão.

       Oh! É soberba a pantera respondeu Matias Van Guitt, e os senhores mesmos podem avaliar, porque tenho magníficos espécimes! Assombrosos animais, que por uma singular contradição, uma antilogia, para empregar palavra menos usual, podem ser adestrados para a caça! Sim, senhores, no Guicowar especialmente, os rajás exercitam as panteras neste nobre mister! Trazem-nas num palanquim, com a cabeça coberta com um capuz, como um gerifalte ou um esmerilhão! São verdadeiros falcões de quatro pés! Logo que os caçadores avistam um bando de antílopes, tiram o capuz à pantera e esta corre sobre os tímidos ruminantes, cujas pernas, por muito ágeis que sejam, não os podem pôr a salvo das suas terríveis garras! Sim, senhor capitão, encontrará panteras no Tarryani! Há-de talvez encontrar ’mais do que quer, mas caridosamente o previno de que essas não estão domesticadas.

       Assim o espero redarguiu o capitão Hod.

       Como também não o estão os leões acrescentou o fornecedor, um pouco escandalizado com a resposta.

       Ah! Os leões! disse o capitão Hod. Se me faz obséquio, falemos um pouco dos leões.

       Sempre lhe digo, capitão, que considero estes reis da animalidade como inferiores aos seus congéneres da antiga Líbia. Aqui o macho não tem a juba, que é o apanágio do leão africano, e na minha opinião não passam de uns Sansões tristemente tosquiados! Demais, têm desaparecido quase de todo da índia central para se refugiarem no Kathiawar, no deserto de Theil e no Tarryani.

      Estes felinos degenerados vivem agora como eremitas e solitários, e não podem retemperar-se com a convivência dos seus semelhantes. Por isso, também, não os coloco em primeiro lugar na escada dos quadrúpedes. Na verdade, senhores, pode escapar-se ao leão, mas não ao tigre!

      Sim, ao tigre repetiu Fox.

       O tigre, prosseguiu Matias Van Guitt, animando

      _se, para ele a coroa! Diz-se o tigre real, não o leão real, e é justo! A índia pertence-lhe toda e resume-se nele!

      Não foi ele o primeiro que ocupou esta região. Não lhe assiste o direito de considerar invasores, não só os representantes da raça anglo-saxónia, mas também os filhos da raça solar?  Não é ele o verdadeiro filho desta terra santa da Argavarta?  É por isso também que vêem estas admiráveis feras espalhadas por toda a superfície da península, e não abandonaram um só dos distritos dos seus antepassados, desde o cabo de Comorin até à fronteira himalaiana!

      E o braço de Matias Van Guitt, depois de ter figurado da banda do sul um promontório avançado, subiu para o norte, para descrever uma cumeada de montanhas.

       No Sunderbund prosseguiu estão em sua casa! Reinam ali como soberanos, e desgraçados dos que quisessem disputar-lhes aquele território. Nos Nilgheries, vagueiam em massa, como gatos selvagens. Si parva licet componere magnis! * Hão-de já compreender porque é que estes felinos magníficos são pedidos em todas as cidades da Europa e são o orgulho dos beluários! Qual é o grande atractivo das colecções de bichos públicas ou particulares?  O tigre!

      Quando é que receamos pela vida do domador?  Quando o domador entra na jaula do tigre! Qual é o animal que os rajás pagam a peso de ouro para ornamento dos seus jardins reais?  O tigre! Quem causa a alta nos mercados de animais de Londres, de Antuérpia, de Hamburgo?

      O tigre! Quais são as caçadas em que se ilustram os caçadores indianos, oficiais do exército real ou indígena?  Na caça do tigre!

       Sabem qual é o prazer que os soberanos da índia independente oferecem aos seus hóspedes?  Traz-se um tigre real numa jaula que é colocada em meio de uma vasta planície. O rajá, os seus convidados, os seus oficiais, os seus guardas armados de lanças, de revólveres, de carabinas e a maior parte montados em valentes solípedes. . .

      * Se é licito comparar as pequenas coisas às grandes (Virgílio, Geórgicas).

       Solípedes?  perguntou o capitão Hod.

      Os seus cavalos, se preferem essa palavra um pouco vulgar. Mas estes solípedes, assustados com a proximidade da fera, com o seu cheiro selvático, com o fulgor que dardeja dos seus olhos, encabritam-se e é preciso toda a destreza dos cavaleiros para os sopear. De repente, abre-se a porta da jaula! O monstro corre para fora, pula, voa, lança-se sobre os grupos espalhados, imola à sua raiva uma hecatombe de vítimas! Se alguma vez consegue quebrar o círculo de ferro e de fogo que o estreita, a maior parte das vezes sucumbe. É um contra cem, e a sua morte é gloriosa, porque é de antemão vingada!

       Bravo, senhor Matias Van Guitt! proclamou o capitão Hod, que também se animava. Sim deve ser um belo espectáculo! O tigre é o rei dos animais!

       Uma realeza que desafia as evoluções! acrescentou o fornecedor.

       E, se o senhor os tem apanhado retorquiu o capitão, eu tenho-os matado, e espero não deixar o Tarryani enquanto o quinquagésimo não cair sob os meus golpes.

       Capitão disse o fornecedor, franzindo o sobrolho, deixei-lhe os javalis, os lobos, os ursos, os búfalos!

      Não são suficientes para satisfazer os seus instintos de caçador?

      Vi que o nosso Hod ia tomar tanto calor como Matias Van Guitt sobre este palpitante problema.

      Teria um deles apanhado mais tigres do que o outro matara?  Que tema para discussão! Valeria mais apanhá-los ou destruí-los?  Que tese para sustentar!

      Já ambos, o fornecedor e o capitão, principiavam a trocar frases rápidas, e, para dizerem tudo, a falar ao mesmo tempo sem se compreenderem.

      Banks interveio.

       Os tigres afirmou são os reis da criação, está decidido; mas permita-me que acrescente que são uns reis muito perigosos para os seus vassalos. Em 1862, se não me engano, estas excelentes feras devoraram todos os telegrafistas da estação da ilha de Sangor. Menciona-se também um tigre fêmea que, no espaço de três anos, não fez menos de cento e dezoito vítimas, e outro que, no mesmo espaço de tempo, matou cento e vinte e sete pessoas. É demais para rainhas! Finalmente, depois do desarmamento dos sipaios, no intervalo de três anos, foram vítimas dos tigres doze mil quinhentos e cinquenta e quatro indivíduos.

       Mas o senhor parece esquecer-se de que esses animais são omófagos! retorquiu Matias Van Guitt.

      São. . . Omófagos?  perguntou o capitão Hod.

       Sim, devoradores de carne crua, e os indianos pretendem até que, depois de provarem a carne humana, já não querem outra.

      E então?  perguntou Banks.

       Então, senhor respondeu Matias Van Guitt, sorrindo, obedecem aos impulsos da natureza! . . . Não podem deixar de comer!

     

      UMA RAINHA DO TARRYANI

      Esta observação do fornecedor serviu de remate à nossa visita ao kraal. Eram horas de voltarmos para a Steam House .

      Afinal, o capitão Hod e Matias Van Guitt não se separavam como os melhores amigos do mundo.

      Se um queria destruir as feras do Tarryani, o outro queria apanhá-las, e contudo havia bastantes para contentar ambos.

      Em todo o caso combinou-se que as relações entre o kraal e o sanitarium seriam frequentes. Far-se-iam mútuas prevenções quando houvesse boas empresas a tentar.

      Os chikans de Matias Van Guitt, muito versados neste género de expedições, conhecedores de todos os desvios do Tarryani, estavam aptos a prestar serviços ao capitão Hod, indicando-lhe os caminhos frequentados pelos animais. O fornecedor pô-los obsequiosamente ao seu serviço, e muito especialmente Kalagani.

      Este indiano, apesar de ter entrado havia pouco tempo para o serviço do kraal, mostrava-se muito entendido, e podiam confiar nele absolutamente. Em compensação, o capitão Hod prometeu ajudar, dentro dos limites dos seus recursos, a captura das feras que faltavam à colecção de Matias Van Guitt. Antes de deixar o kraal, Sir Edward Munro, que provavelmente não tencionava fazer ali muitas visitas, agradeceu mais uma vez a Kalagani, cuja intervenção o salvara. Disse-lhe que seria sempre ’bem recebido na Steam House .

      O indiano inclinou-se friamente.

      Se alguma satisfação experimentou por ouvir assim falar o homem que lhe devia a vida, o certo é que não o deu a conhecer.

      Tínhamos regressado por causa da hora de jantar.

      Como bem se imagina, Matias Van Guitt constituiu o tema da conversa.

       com os demónios! Que bonitos gestos tem o tal fornecedor! repetia o capitão Hod. Que palavras tão escolhidas. Que expressões tão figuradas! Mas, se vê nas feras apenas animais para exposição, engana-se.

      Nos dias seguintes, 27, 28 e 29 de Junho, choveu com tal violência que os caçadores, apesar do seu muito entusiasmo, não puderam sair! É verdade que neste tempo horrível é impossível descobrir os rastos dos animais, e os carnívoros, que gostam tanto de água como podem gostar os gatos, não saem dos seus antros.

      No dia 30, o tempo e o céu apareceram melhores. Eu, o capitão Hod, Fox e Gumi fizemos os nossos preparativos para descer ao kraal.

      De manhã, alguns montanheses vieram visitar-nos.

      Tinham ouvido dizer que aparecera um pagode milagroso na região do Himalaia, e trazia-os a Steam House uma curiosidade muito grande.

      A raça que vive na fronteira do Tibete é de um belo tipo, são indígenas dotados de qualidades guerreiras, de uma lealdade a toda a prova, que praticam em larga escala a virtude da hospitalidade e muito superiores física e moralmente aos indianos das planícies.

      Se o suposto pagode os maravilhou, o Gigante de Aço impressionou-os a ponto de lhes inspirar gestos de adoração.

      E estava parado! Que seria se aquela boa gente o tivesse visto a expelir fumo e chamas e a subir as íngremes rampas das suas montanhas!

      O coronel acolheu favoravelmente estes indígenas, alguns dos quais percorrem com mais frequência os territórios de Nepal, nos limites da fronteira indo-chinesa.

      A conversa convergiu por um momento sobre a parte da fronteira onde Nana Sahib procurara refúgio, depois da derrota dos sipaios, quando foi perseguido por todo o território da índia.

      Afinal os montanheses apenas sabiam o que nós mesmos sabíamos. Chegara-lhes o boato da morte do nababo e não pareciam pô-lo em dúvida.

      Quanto aos companheiros que lhe tinham sobrevivido, nem deles já se falava.

      Talvez houvesse ido procurar refúgio nas profundezas do Tibete; mas encontrá-los naquela região era difícil. Se o coronel Munro subira para o norte da península com a ideia de conhecer tudo quanto de perto se referia a Nana Sahib, as respostas que obteve foram desencorajantes.

       Por isso, ao ouvir os montanheses, ficou triste e deixou de tomar parte na conversa.

      Quanto ao capitão Hod, esse fez-lhes outras perguntas, mas de um género muito diferente.

      Informaram-no de que as feras, e mais especialmente os tigres, faziam terríveis razias na zona inferior do Himalaia.

      Tinham chegado a ficar abandonadas aldeias inteiras.

      Estavam já exterminados rebanhos inteiros de cabras e de carneiros, e contavam-se numerosas vítimas entre os indígenas.

      Apesar do prémio considerável oferecido pelo Governo trezentas rupias por cada cabeça de tigre, o número destas feras não parecia diminuir, e perguntava-se se o homem não seria obrigado dentro de pouco a ceder-lhes o lugar.

      Também os montanheses acrescentaram que os tigres não se limitavam ao Tarryani. Em todos os sítios onde a planície lhes proporcionava o abrigo das ervas altas dos juncais, de mato em que pudessem pôr-se de emboscada, encontravam-se em grande número.

       Animais sanguinários! disseram eles.

      Aquela boa gente, e com razão já se vê, não alimentava a respeito dos tigres as mesmas ideias do fornecedor Matias Van Guitt e do nosso amigo o capitão Hod.

      Os montanheses retiraram-se encantados com o acolhimento recebido e prometeram repetir a sua visita à Steam House .

      Depois de eles se retirarem e feitos os nossos preparativos, o capitão Hod, comigo e com os nossos dois companheiros, todos bem armados e prontos para qualquer encontro, desceu na direcção do Tarryani.

      Ao chegarmos à clareira onde se encontrava a armadilha, da qual com tanta felicidade havíamos tirado Matias Van Guitt, apareceu-nos este, não sem alguma cerimónia.

      Uns cinco ou seis indivíduos da sua comitiva, no número dos quais estava Kalagani, tratavam de fazer passar da armadilha para uma jaula com rodas um tigre que se tinha deixado apanhar durante a noite.

      Era um magnífico animal, e escusado será dizer se despertou ou não apetite ao capitão Hod.

       Um a menos no Tarryani! murmurou entre dois suspiros, que encontraram eco no peito de Fox.

       Mais um na colecção retorquiu-lhes o fornecedor.

       Mais dois tigres, um leão, dois leopardos, e ficarei habilitado a satisfazer os meus compromissos antes do fim da campanha. Vêm comigo ao kraal, meus senhores?

       Agradecemos-lhes disse o capitão Hod; mas hoje caçamos por nossa conta.

       Kalagani está à sua disposição, capitão Hod retorquiu o fornecedor. Ele conhece perfeitamente a floresta e pode ser-lhes útil.

       Nós aceitamo-lo de boa vontade como guia.

       Então, meus senhores acrescentou Matias Van Guitt, boa sorte! Mas prometam-me que não matam tudo.

       Alguma coisa lhe havemos de deixar respondeu o capitão Hod.

      E Matias Van Guitt, cumprimentando com um gesto magnífico, desapareceu sob as árvores em seguimento da jaula ambulante.

       A caminho, senhores convidou o capitão Hod.

      Vamos ao meu quadragésimo segundo!

       Ao meu trigésimo oitavo! acrescentou Fox.

       Ao meu primeiro! ajuntei eu.

      Mas o tom como proferi estas palavras fez sorrir o capitão. A verdade é que eu não tinha o fogo sagrado.

      Hod voltou-se para Kalagani.

       Conheces bem o Tarryani?  perguntou-lhe.

      Tenho-o percorrido muitas vezes, de dia e de noite, em todas as direcções respondeu o indiano.

      Já ouviste falar nalgum tigre que atraia mais especialmente as atenções em volta do kraalt.

       Sim, mas é uma fêmea. Viram-na a duas milhas daqui, na parte superior da floresta, e há alguns dias que a procuram apanhar. Quer o senhor que. . .

       Sim, queremos! respondeu o capitão Hod, sem deixar o guia concluir a frase.

      Na verdade o que havia de melhor a fazer era seguir Kalagani, e foi o que fizemos.

      É fora de dúvida que as feras são muito numerosas no Tarryani, e neste sítio, como nos outros, precisam pelo menos de dois bois por semana para o seu consumo particular!

       Calculem o que esta alimentação custa a toda a península!

      Mas, embora os tigres sejam numerosos, não se imagine que percorrem a região sem necessidade.

      Enquanto a fome os não impele, conservam-se ocultos nos seus covis, e seria erro julgar que se encontram a cada passo.

      Quantos viajantes não têm percorrido as florestas e os juncais sem os terem visto!

      Por isso, quando se organiza uma caçada, deve-se tratar primeiramente de operar um reconhecimento sobre os passos que o animal costuma dar, e principalmente descobrir o regato ou nascente aonde vão habitualmente dessedentar-se.

      Isto ainda não basta, é preciso atraí-los. Consegue-se isso com facilidade colocando um quarto de boi, preso a um poste, em algum lugar rodeado de árvores ou de rochedos que possam servir de abrigo aos caçadores.

      É assim pelo menos que se procede na floresta.

      Na planície é diferente, e o elefante torna-se o mais útil auxiliar do homem nestas perigosas caçadas. Mas os elefantes devem estar perfeitamente adestrados. Ainda assim, apodera-se deles muitas vezes o pânico, o que torna muito perigosa a posição dos caçadores empoleirados no seu dorso.

      E, depois, o tigre não hesita em lançar-se sobre o elefante.

       A luta entre o homem e a fera trava-se então sobre o dorso do gigantesco paquiderme, que se enfurece, e é raro não terminar desfavoravelmente para o elefante.

      Todavia, é assim que se fazem as grandes caçadas dos rajás e dos caçadores ricos da índia, as caçadas dignas de figurarem nos anais cinegéticos.

      Mas não procedia assim o capitão Hod.

      Era a pé que ia em busca dos tigres, era a pé que ia habitualmente combatê-los.

      Seguíamos Kalagani, que caminhava rápido. Reservado como um indiano, pouco conversava e limitava-se a responder em poucas palavras às perguntas que lhe dirigiam.

      Dali a uma hora fazíamos alto junto de uma torrente, em cujas margens se viam pegadas ainda recentes de animais.

      No meio de uma clareira erguia-se um poste, do qual pendia um quarto de boi inteiro.

      A isca não fora completamente respeitada. Acabava de ser encetada pelos dentes dos chacais, esses gatunos da fauna indiana, sempre em busca de alguma presa, ainda que a presa não lhes seja destinada.

      Quando chegámos, fugiu uma dúzia destes carnívoros, deixando-nos o lugar livre.

       Capitão informou Kalagani, é aqui que vamos esperar a fêmea. Bem vê que o lugar é muito favorável para uma emboscada.

      Efectivamente, era fácil colocarmo-nos em uma das árvores ou detrás dos rochedos, de modo que pudéssemos cruzar os fogos sobre o posto isolado no meio da clareira.

      Foi o que imediatamente se fez. Eu e Gumi tomámos lugar no mesmo ramo.

      O capitão Hod e Fox, empoleirados ambos na primeira bifurcação de dois grandes carvalhos verdejantes, estavam em frente um do outro.

      Quanto a Kalagani, esse estava meio oculto atrás de um rochedo elevado, por onde podia subir se o perigo se tornasse iminente.

      O animal ficaria pois envolvido num círculo de fogos, de que não poderia sair. Todas as probabilidades eram portanto contra ele, ainda que sempre seria bom contar com o imprevisto.

      Só tínhamos que esperar.

      Os chacais, espalhados em todos os sentidos, continuavam a fazer ouvir os seus uivos rouquenhos, no mato vizinho, mas já não se atreviam a vir atirar-se ao quarto de boi.

      Não decorrera ainda uma hora quando cessaram os uivos. Em seguida, dois ou três chacais saltaram da espessura, atravessaram a clareira e desapareceram no mais embrenhado do bosque.

      Um sinal de Kalagani, que se preparava para subir o rochedo, prevenia-nos de que nos devíamos acautelar.

      A fuga precipitada dos chacais só podia ser causada pela aproximação de alguma fera o tigre decerto e devíamo-nos preparar para o vermos aparecer de um momento para o outro em algum ponto da clareira.

      Tínhamos as armas preparadas. As carabinas do capitão Hod e do seu impedido, já apontadas para o sítio do bosque de onde tinham aparecido os chacais, só esperavam a pressão do dedo para desfecharem.

      Não tardou que me parecesse notar uma ligeira agitação nos ramos superiores da espessura.

      Ouviu-se no mesmo instante um estalido de ramos secos.

      Um animal qualquer avançava, mas prudentemente, sem se apressar.

      Dos caçadores que esperavam emboscados na espessa folhagem não podia com certeza ter nenhum indício. Não obstante, o instinto sempre lhe devia fazer pressentir que não havia ali segurança para ele. com certeza que, se a fome o não impelisse, se o quarto de boi o não atraísse com as suas emanações, não se atreveria a avançar mais.

      Contudo, sempre assomou por entre os ramos de mato e parou desconfiado.

      Era efectivamente um tigre fêmea, grande, de formidável cabeça e corpo flexível. Começou a avançar rastejando, com o movimento ondulatório de um réptil.

      De comum acordo, deixámos a fera aproximar-se do poste.

      Farejava o solo, erguia-se depois, tufava o dorso, como um gato enorme que se dispõe a saltar.

      De repente, soaram dois tiros de carabina.

       Quarenta e dois! bradou o capitão Hod.

       Trinta e oito! bradou Fox.

      O capitão e. o impedido tinham desfechado ao mesmo tempo, e tão certeiramente que o tigre, com uma bala no coração, senão duas, revolvia-se no chão.

      Kalagani correra para o animal. Nós também saltámos para o chão.

      Mas a quem pertenciam as honras do tiro mortal?  Ao capitão ou a Fox?  Como se imagina, o caso era muito importante.

      Abriu-se o animal. O coração fora atravessado por duas balas.

       Ora vamos disse o capitão, não sem algum pesar, metade para cada um!

       Metade, meu capitão confirmou Fox, no mesmo tom.

      E parece-me que nenhum deles seria capaz de ceder a parte que entendia caber-lhe.

      Eis as circunstâncias destes maravilhosos tiros, cujo resultado mais incontestável era que o animal sucumbisse sem luta, e, por conseguinte, sem perigo para os caçadores, acontecimento muito raro nas caçadas deste género.

      Fox e Gumi ficaram no campo de batalha, a fim de despojarem o animal da sua pele magnífica, enquanto eu e o capitão Hod voltámos para a Steam House .

      Não é meu intento expor em pormenor os incidentes das nossas expedições no Tarryani, a menos que estes incidentes apresentem algum carácter particular.

      Limito-me por isso a dizer, daqui em diante, que o capitão Hod e Fox não tiveram razão de queixa.

      A 10 de Julho, por ocasião de uma caçada ao hudd, isto é, de cabana, foram favorecidos por um acaso feliz, que não lhes permitiu incorrer em perigo.

      O huddi é, além disso, muito próprio para a emboscada às grandes feras.

      É uma espécie de forte com ameias, cujas paredes, guarnecidas de seteiras, dominam as margens de um regato aonde os animais têm por hábito beber.

      Costumados a verem estas construções, não desconfiam e expõem-se directamente aos tiros dos caçadores. Mas neste modo de caçar, como em outro qualquer, é preciso ferir mortalmente o animal logo ao primeiro tiro, senão a luta torna-se perigosa porque o huddi nem sempre deixa o caçador ao abrigo das feras, cujo ferimento as torna furiosas.

      Foi o que precisamente sucedeu nesta ocasião, como se vai ver.

      Matias Van Guitt acompanhava-nos. Talvez esperasse que algum tigre, ligeiramente ferido, pudesse ser levado para o kraal, onde se encarregaria de o tratar e curar.

      Naquele dia, o nosso grupo de caçadores teve de bater-se com três tigres, que a primeira descarga não impedira que saltassem sobre as paredes do huddi.

      com grande pena do fornecedor, os dois primeiros foram mortos ao segundo tiro, quando transpunham o recinto fortificado.

      Quanto ao terceiro, pulou para dentro, com a espádua vertendo sangue, mas não ferido mortalmente.

       Este havemos de apanhá-lo! exclamou Matias Van Guitt, expondo-se um pouco. Havemos de apanhá-lo vivo. . .

      Ainda não concluíra a sua frase imprudente e já o animal se precipitava sobre ele e o derrubava. E o fornecedor teria ficado logo ali se uma bala do capitão Hod não acertasse na cabeça do tigre, que caiu fulminado.

      Matias Van Guitt levantou-se rapidamente.

      Em vez de agradecer ao nosso companheiro, exclamou:

      Capitão, poderia ter esperado um pouco!

       Esperar. . . o quê?  respondeu o capitão Hod.

      Que o animal lhe esmagasse o peito com uma patada?

       Uma patada não é coisa de morte!

       Bem! replicou serenamente o capitão- Hod.

      Para a outra vez esperarei.

      A verdade é que o animal, incapaz de figurar na colecção do kraal, só estava bom para um tapete de quarto.

      Esta feliz expedição elevou a quarenta e dois para o capitão e a trinta e oito para o impedido o número de tigres mortos por ambos, sem falar na metade de tigre que já figurava no seu activo.

      Não se suponha que estas grandes caçadas faziam esquecer as pequenas. Não consentiria em tal Monsieur’ Parazard.

      Antílopes, cabritos monteses, grandes abetardas, que eram muito numerosas em volta da Steam House, perdizes e lebres forneciam à nossa mesa grande variedade de caça.

      Quando íamos bater o Tarryani, Banks raramente ia connosco. Se a mim começavam a interessar estas expedições, ele é que não tomava gosto por elas.

      As zonas superiores do Himalaia ofereciam-lhe sem dúvida mais atractivos, e ele comprazia-se nessas excursões, principalmente quando o coronel Munro consentia em acompanhá-lo.

      Mas só uma vez ou duas os passeios do engenheiro se fizeram nestas condições. Pude observar que, depois da sua instalação no sanitarium, Sir Edward Munro se tornara apreensivo.

      Falava menos, conservava-se afastado, conferenciava algumas vezes com o sargento Mac Neil.

      Estariam ambos planeando algum novo projecto que quisessem esconder até do próprio Banks?

      No dia 13 de Julho, Matias Van Guitt veio fazer-nos uma visita.

      Menos afortunado que o capitão Hod, não pudera acrescentar qualquer novo exemplar à sua colecção. Nem tigres, nem leões, nem leopardos pareciam dispostos a deixar-se apanhar.

      É que, certamente, a ideia de irem figurar em exposições nas regiões do Extremo Ocidente não os tentava.

      O fornecedor estava muito despeitado e não procurava disfarçar o despeito.

      Kalagani e dois chikaris do seu pessoal acompanhavam Matias Van Guitt.

      A instalação do sanitarium, naquele local encantado, agradou-lhe sobremodo.

      O coronel Munro convidou-o para jantar. Aceitou com gosto e prometeu mostrar-se bom conviva.

      Enquanto esperava pelo jantar, Matias Van Guitt quis visitar a Steam House, cujo conforto formava contraste com a modesta instalação do kraal.

      As duas casas rodantes mereceram-lhe alguns elogios; mas devo confessar que o Gigante de Aço não lhe despertou admiração.

      Um naturalista da sua força não poderia deixar de ficar insensível diante daquele primor de mecânica. Como é que ele havia de aprovar, por muito admirável que fosse, a criação daquele bicho artificial? 

       Não fique mal impressionado com o elefante, senhor Matias Van Guitt! disse-lhe Banks. É um animal possante, e não teria qualquer dificuldade se o obrigassem a puxar, juntamente com os nossos dois carros, todas as jaulas da sua casa ambulante.

       Tenho os meus búfalos, e prefiro o seu passo tranquilo e seguro.

       O Gigante de Aço não teme nem as garras nem os dentes dos tigres! acrescentou o capitão Hod.

      Também porque haviam as feras de atacá-los?  retorquiu Matias Van Guitt. Não- fazem caso de carne de folha de ferro.

      Em compensação, se o naturalista não dissimulou a sua indiferença pelo nosso elefante, os indianos, e em especial Kalagani, não cessavam de devorá-lo com os olhos, um momento sequer.

      Via-se que na sua admiração pelo gigantesco animal entrava certa dose de supersticioso respeito.

      Kalagani até se mostrou surpreendido quando o engenheiro repetiu que o Gigante de Aço era mais forte que todos os animais de tiro juntos que havia no kraal.

      Foi um ensejo para o capitão Hod contar, não sem algum orgulho, a nossa aventura com os três proboscídeos do príncipe Guru Singh.

      Nos lábios do fornecedor pairou um sorriso de incredulidade, mas não disse nada.

      O jantar decorreu com boa disposição. Matias Van Guitt mostrou-se bom conviva.

      Deve dizer-se que a despensa estava muito bem guarnecida com os produtos das nossas últimas caçadas, e que Parazard caprichara em se mostrar superior a si próprio.

      A adega da Steam House forneceu-nos algumas bebidas variadas, que o nosso hóspede pareceu apreciar, principalmente dois copos de vinho francês, cuja absorção foi seguida de um incomparável estalo de língua.

      E tão apreciador se mostrou que depois de jantar, quando nos separámos, pudemos reconhecer, pela incerteza do seu andar, que se o vinho lhe subira à cabeça também lhe descera às pernas.

      À noite despedimo-nos muito amigos, e graças aos seus companheiros de caminho, Matias Van Guitt pôde regressar ao kraal sem novidade.

      Contudo, no dia 16 de Julho, houve um incidente que por pouco não semeou a discórdia entre o fornecedor e

      o capitão Hod. O capitão matou um tigre no momento em que o animal ia entrar na armadilha. Por isso, se este veio a ser o quadragésimo terceiro de Hod, não veio a ser o oitavo do fornecedor.

      Após algumas explicações trocadas com vivacidade, reataram-se as boas relações, graças à intervenção do coronel Munro, e o capitão Hod comprometeu-se a respeitar as feras que mostrassem tenções de se deixar cair nas armadilhas de Matias Van Guitt.

      Nos dias seguintes o tempo esteve detestável. com vontade ou sem ela, tivemos de ficar na Steam House . O nosso maior desejo era que terminasse a estação das chuvas, o que não podia tardar, porque já tinha mais de três meses.

      Executando-se o programa nas condições em que o assentara Banks, apenas nos restavam seis semanas a passar no sanitarium. No dia 23 de Julho vieram alguns montanheses da fronteira fazer segunda visita ao coronel Munro. A sua aldeia, chamada Suari, situada quase no extremo superior do Tarryani, distava, apenas cinco milhas do nosso acampamento.

      Disse um deles que havia algumas semanas que um tigre fêmea fazia grandes estragos naquelas paragens. Os rebanhos andavam dizimados, e já se falava em abandonarem Suari, que se tornava inabitável.

      Já não havia segurança, nem para os animais domésticos, nem para as pessoas. Laços, armadilhas, coisa alguma servia para aquele animal feroz, que já entrava para o número das feras afamadas a que os ’montanheses velhos se referiam.

      Como bem se imagina, esta descrição era própria para excitar os instintos do capitão Hod.

      Ofereceu-se imediatamente aos montanheses para os acompanhar à aldeia de Suari, inteiramente disposto a pôr a sua experiência de caçador e a segurança do seu golpe de vista ao serviço daquela boa gente, que, segundo me parece, contava um pouco com aquele oferecimento.

       Vem, Maucler?  perguntou-me o capitão Hod com um tom de quem não procura exercer influência alguma numa determinação.

       Decerto respondi. Não quero faltar a uma expedição tão importante.

      Desta vez acompanhá-los-ei declarou o engenheiro.

       Boa ideia, Banks.

       Sim, Hod! Desejo muito vê-los em acção.

       E eu não vou, meu capitão?  perguntou Fox.

       Ah, velhaco! exclamou o capitão Hod. Teima por força em completar a sua metade de tigre fêmea. Sim, Fox, farás parte da expedição!

      Como se tratava de deixar a Steam House por três ou quatro dias, Banks perguntou ao coronel se lhe conviria acompanhar-nos à aldeia de Suari.

      Sir Edward Munro agradeceu. A sua tenção era aproveitar a nossa ausência para visitar, acompanhado por Gumi e pelo sargento Mac Neil, a zona média do Himalaia, pela parte superior do Tarryani.

      Banks não insistiu.

      Resolveu-se que partiríamos naquele mesmo dia para o kraal, a fim de pedirmos a Van Guitt alguns dos seus chikaris, que podiam ser-nos úteis.

      Dali a uma hora, por volta do meio-dia, chegávamos ao kraal. Pusemos o fornecedor a par dos nossos projectos. Não ocultou a sua secreta satisfação ao saber das proezas daquela fera, própria, dizia ele, para realçar, na opinião dos conhecedores, a reputação das feras da península.

      Em seguida, pôs à nossa disposição três dos seus indianos sem falar em Kalagani, sempre pronto a marchar para o perigo.

      Entretanto, ficou bem assente entre o capitão Hod e o fornecedor que se, por um acaso extraordinário, aquela fera se deixasse apanhar viva, ficaria pertencendo por direito à colecção de Matias Van Guitt.

      Que grande atractivo não seria o de um papel pregado nos ferros da jaula, que em algarismos eloquentes contasse as notáveis proezas de uma das rainhas do Tarryani, que não devorara menos de cento e trinta e oito pessoas de ambos os sexos!

      A nossa pequena expedição deixou o kraal às duas horas.

      Antes das quatro, depois de subir obliquamente na direcção de leste, chegava a Suari sem novidade.

      O pânico estava no seu auge.

      Naquela mesma manhã, uma infeliz indiana, surpreendida pelo tigre junto de um ribeiro, fora arrebatada para o mato.

      Fomos hospitaleiramente recebidos em casa de um dos montanheses, abastado cultivador inglês.

      O nosso hospedeiro tinha, como nenhum outro, razões de queixa contra a intangível fera, e daria de boa vontade muitos milhares de rupias pela sua pele.

      Capitão Hod disse ele, há alguns anos, na província do centro, um tigre fêmea obrigou habitantes de treze aldeias a fugirem, e tiveram de ficar de baldio duzentas e cinquenta milhas quadradas de terra! Pois aqui, por pouco tempo que isto continue, será a província inteira que precisaremos de abandonar!

      - E têm empregado todos os meios possíveis para acabarem com essa fera?  perguntou Banks.

      Todos, senhor engenheiro: armadilhas, fossos, até iscas preparadas com estricnina! Nada deu resultado!

       Meu amigo disse o capitão Hod, não afirmo que lhe vamos satisfazer os seus desejos; todavia havemos de fazer tudo quanto pudermos!

      Assim que terminámos a nossa instalação em Suari, organizámos uma batida. À nossa gente e aos chikaris do kraal reuniram-se uns vinte montanheses, que conheciam perfeitamente a região onde se ia operar.

      Apesar de não ser grande caçador, parecia-me que Banks seguia a nossa expedição com o maior interesse.

      Durante três dias, 24, 25 e 26 de Julho, toda aquela parte da montanha foi esquadrinhada, sem que as nossas pesquisas dessem resultado algum, salvo dois tigres de que não se falava e que morreram às balas do capitão.

       Quarenta e cinco! limitou-se o capitão Hod a dizer com displicência.

      Finalmente, a 27, o tigre fêmea anunciou a sua presença com um novo malefício. Um búfalo, pertencente ao nosso hospedeiro, desapareceu de uma pastagem próxima do Suari, e só se lhe encontraram os restos a um quarto de milha da aldeia. O assassinato, morte com premeditação, como diria um legista, efectuara-se um pouco antes do romper do dia.

      O assassino não podia estar longe.

      Mas o autor do crime seria efectivamente aquele tigre, inutilmente procurado até então?

      A esse respeito os indianos do Suari não alimentavam a menor dúvida.

       Foi o meu tio, não pode ser senão ele, o autor dos estragos disse-nos um dos montanheses.

      É por meu tio que os indianos geralmente designam o tigre na maior parte da índia.

      Desta vez poderiam dizer com mais razão: foi a minha tia!

      Tomou-se logo a resolução de procurar o animal, sem se esperar sequer pela noite, porque a noite punha a fera mais a salvo das nossas pesquisas.

      Demais, devia estar farta, e não sairia do covil por dois ou três dias.

      Pusemo-nos em campo. A partir do sítio onde o búfalo fora apanhado, as manchas de sangue marcavam o caminho seguido pelo tigre. Acabavam numa pequena mata, que já fora batida muitas vezes, sem que se pudesse descobrir coisa alguma.

      Resolvemos por isso cercar a mata, de modo que o animal não pudesse sair sem ser visto.

      Os montanheses dispersaram-se em volta, formando um círculo que iam apertando à medida que caminhavam para o centro.

      Eu, o capitão Hod e Kalagani íamos de um lado; Banks e Fox do outro, mas em comunicação constante com a gente do kraal e da aldeia.

      Evidentemente, cada ponto da circunferência era perigoso, porque em cada ponto o tigre podia facilmente tentar romper o cerco.

      Depois, não havia dúvida de que a fera estivesse na mata. Os vestígios de sangue, que aí iam dar de um lado, não se tornavam a ver do outro. Que fosse aquele o seu refúgio habitual, não estava provado, porque ali a tinham procurado debalde, mas todos os indícios faziam supor que a mata lhe servia naquela ocasião de refúgio.

      Eram oito horas da manhã. Tomadas todas as disposições, avançámos pouco a pouco, sem ruído, fechando cada vez mais o círculo de ataque.

      Dali a meia hora achávamo-nos junto das primeiras árvores.

      Até então não se dera nenhum incidente, coisa alguma denunciava a presença do animal e eu perguntava-me se tudo aquilo não redundava em pura perda.

      Neste momento só se podiam ver uns aos outros os que ocupavam um arco muito limitado da circunferência, e contudo era preciso marchar em perfeita uniformidade.

      Combinara-se previamente que se disparasse um tiro de espingarda no momento em que entrasse no bosque o primeiro caçador.

      Foi feito o sinal pelo capitão Hod, que ia sempre na frente, e assim se transpôs a entrada do bosque.

      Consultei o relógio. Indicava oito e trinta e cinco.

      Dali a um quarto de hora, tendo-se apertado o círculo, tocávamos uns nos outros, e parávamos no mais denso da mata, sem termos encontrado coisa alguma, O silêncio só fora perturbado até ali pelos ruídos dos ramos secos que, apesar das nossas precauções, estalavam debaixo dos nossos pés.

      Ouviu-se então um uivo.

       A fera está acolá! exclamou o capitão Hod, apontando para a boca de uma caverna, escavada num montão de rochedos rodeados de arvoredo.

      O capitão não se enganava.

      Se não era o antro habitual do tigre, era pelo menos o lugar onde se refugiara, ao sentir-se perseguido por um bando de caçadores.

      Hod, Banks, Fox, Kalagani e alguns homens pertencentes ao kraal tinham-se aproximado da estreita abertura, aonde vinha terminar o trilho ensanguentado.

       É preciso entrar lá dentro disse o capitão Hod.

       Empreendimento arriscado! observou Banks.

      O primeiro que entrar corre perigo de ficar gravemente ferido.

       Em todo o caso eu entro declarou o capitão Hod, verificando se a sua carabina estava pronta para fazer fogo.

       Depois de mim, meu capitão acudiu Fox, que se curvou para a abertura da caverna.

       Não, Fox, não! exclamou Hod. A mim é que me pertence!

      Ah, meu capitão volveu Fox brandamente, em tom de queixa, tenho sete a menos! . . .

      Ainda num momento daqueles estavam a contar os seus tigres!

       Nem um nem outro entra! interveio Banks.

      Não, não consentirei. . .

       Haverá talvez um meio lembrou então Kalagani, interrompendo o engenheiro.

      Que meio?

       Encher de fumo esta caverna explicou o indiano.

       O animal ver-se-á obrigado a fugir. Matá-lo-emos fora com mais facilidade e menos risco.

       Kalagani tem razão afirmou Banks. Vamos, meus amigos, ervas e ramos secos. Tapem convenientemente a abertura. O vento fará entrar na caverna o fumo e as chamas. A fera não terá remédio senão fugir ou deixar-se assar.

       Pois que fuja volveu o capitão. Cá estaremos para a saudar na passagem.

      E, num ápice, empilharam à entrada da caverna um montão de tojo, de lenha, de ervas secas, em suma, de toda a casta de matérias combustíveis, de que havia naquele mato grande abundância.

      Lá dentro nada se movera. Naquele corredor sombrio, que devia ser bastante comprido, não assomava coisa alguma.

      Não obstante, os ouvidos não se tinham enganado.

      O uivo por certo que tinha partido dali.

      Lançou-se fogo às ervas e a chama levantou-se logo.

      A fogueira deitava um fumo acre e espesso, que o vento acamava e que devia tornar lá dentro o ar irrespirável.

      Segundo rugido, mais furioso que o primeiro, ouviu-se então. O animal sentia-se acossado no seu último refúgio, e, para não morrer sufocado, ia ver-se obrigado a saltar para fora.

      Nós esperávamos o animal postados em esquadria ao longo das paredes laterais do rochedo, meio encobertos

      pelos troncos das árvores, de modo que evitássemos o choque do primeiro salto.

      Quanto ao capitão, escolhera outro lugar, o qual, devemos admitir, era o mais arriscado. Postara-se em frente

      de uma abertura do mato, a única saída por onde a fera poderia passar, quando procurasse fugir através do bosque.

      Hod pôs um joelho em terra, a fim de fazer tiro mais certeiro, e meteu a carabina à cara com toda a firmeza.

      Todo ele tinha a imobilidade do mármore.

      Eram decorridos três minutos apenas depois que se lançara fogo ao monte de lenha, quando um terceiro

      uivo, ou, melhor dizendo, um estertor do animal sufocado, se ouviu à entrada do covil.

      Num relance, a fogueira espalhou-se, e apareceu um corpo enorme entre os rolos de fumo.

      Era efectivamente o tigre.

      Fogo! - bradou Banks.

      Soou o estampido de dez tiros de espingarda, mas verificámos depois que nenhuma das balas tocara o animal.

      Fora muito rápido o seu aparecimento. Como é que se lhe poderia fazer pontaria com alguma precisão em meio

      das nuvens de fumo que o envolviam?

      Depois do primeiro pulo, se o animal pousou em terra, foi só para obter novo ponto de apoio e saltar para a

      espessura com um novo pulo ainda mais comprido que o primeiro.

      O capitão Hod esperava-o com o maior sangue-frio, e, apanhando-o por assim dizer no voo, enviou-lhe uma bala que o alcançou por cima da espádua.

      Rápido como o relâmpago, o animal precipitou-se sobre o nosso companheiro, deitou-o por terra e ia despedaçar-lhe o crânio com as suas enormes garras.

      Kalagani saltou empunhando uma faca.

      Ainda se ouvia o grito que soltáramos e já o corajoso indiano caía sobre a fera, e agarrava-a pelo pescoço no

      momento em que ela ia descarregar a garra direita sobre o crânio do capitão.

      Surpreendido por este inesperado ataque, o animal derrubou o indiano com um movimento dos quartos traseiros

       e voltou-se para ele.

      Mas o capitão Hod levantara-se de um pulo e, apanhando a faca que Kalagani deixara cair, enterrou-a toda com mão firme no coração do animal.

      O tigre rolou pelo solo.

      Tinham bastado cinco segundos para se desenrolarem as diversas peripécias desta cena comovente.

      O capitão Hod estava de joelhos ao chegarmos ao pé dele.

      Kalagani, com o ombro em sangue, acabara de levantar se.

      Bag, mahryaga! Bag mahryaga! gritavam os indianos, o que significava: O tigre está morto!

      E bem morto! Que soberbo animal! Tinha dez pés de comprimento do focinho à extremidade da cauda, corpo em proporção, patas enormes, munidas de compridas garras aceradas, que pareciam ter sido aguçadas em pedra de afiar.

      Enquanto admirávamos a fera, os indianos, muito rancorosos, e com razão, cobriam-na de invectivas.

      Quanto a Kalagani, aproximara-se do capitão Hod.

      Obrigado, capitão disse.

      Como? ! Obrigado? ! exclamou Hod. Mas eu é que devo agradecer-te, meu valente! Se não fosse a tua coragem era uma vez um dos capitães do primeiro esquadrão de carabineiros do exército real!

       Se não fosse o capitão, estava eu morto a estas horas redarguiu friamente Kalagani.

       com mil demónios! Pois não foste tu que te precipitaste de faca em punho sobre a fera no momento em que ela me ia despedaçar o crânio? 

       O capitão é que a matou, e com este perfaz quarenta e seis!

       Viva! Viva! gritaram os indianos. Viva o capitão Hod!

      E, na verdade, o capitão tinha todo o direito de lançar este tigre na sua conta, mas sempre deu um bom aperto de mão a Kalagani.

      Volte à Steam House disse-lhe Banks. Tem o ombro rasgado, mas nós encontraremos na farmácia de viagem com que tratar a sua ferida.

      Kalagani inclinou-se em sinal de quem concordava, e depois de nos despedirmos dos montanheses do Suari, que se desfizeram em agradecimentos, dirigimo-nos para o sanitarium.

      Os chikaris despediram-se de nós para voltarem para o kraal. Ainda desta vez regressaram com as mãos vazias, e, se Matias Van Guitt contava com aquela rainha do Tarryani, tinha de deitar luto, se bem que em tais condições seria impossível apanhá-la.

      Por volta do meio-dia chegávamos à Steam House.

      com grande dissabor nosso, soubemos que o coronel Munro, o sargento Mac Neil e Gumi tinham partido.

      Um bilhete dirigido a Banks dizia-lhe que não se inquietasse com a sua ausência, que Sir Edward Munro, desejoso de levar o seu reconhecimento até à fronteira do Nepal, queria esclarecer certas dúvidas relativas aos companheiros de Nana Sahib, e que estaria de volta antes da época em que devíamos abandonar o Himalaia.

      Ao ouvir a leitura deste bilhete, pareceu-me que Kalagani fazia um movimento de contrariedade, quase involuntário.

      Qual a razão daquele movimento?  Enganava-me de certo.

      

      ATAQUE NOCTURNO

      A retirada do coronel não deixava de nos causar grandes inquietações.

      Relacionava-se com um passado que julgávamos nunca mais voltar.

      Que fazer, porém?

      Devíamos ir no encalço de Sir Edward Munro?

      Ignorávamos que direcção tinha tomado e que ponto da fronteira do Nepal pretendia alcançar.

      Por outro lado, não podíamos deixar de confessar que, se ele não falara em coisa alguma a Banks, era porque receava as observações do amigo, às quais queria subtrair-se.

      Banks bastante se arrependeu de nos haver acompanhado naquela expedição.

      Não tínhamos remédio senão resignar-nos e esperar.

      com certeza que o coronel Munro estaria de volta antes do fim de Agosto, porque este mês era o último que devíamos passar no sanitarium, antes de tomarmos, por sudoeste, o caminho de Bombaim.

      Bem tratado por Banks, Kalagani só esteve vinte e quatro horas na Steam House.

      O seu ferimento depressa deveria cicatrizar, e deixou-nos para voltar ao seu serviço no kraal.

      O mês de Agosto começou ainda com grandes chuvas, um tempo capaz de constipar o demónio, como dizia o capitão Hod. Em todo o caso sempre menos chuvoso que o mês de Julho, por conseguinte mais propício às nossas excursões ao Tarryani.

       As relações eram frequentes com o kraal. Matias Van Guitt continuava a estar pouco satisfeito.

      Também ele tencionava levantar o acampamento nos primeiros dias de Setembro.

      Mas na sua colecção faltavam ainda um leão, dois tigres, dois leopardos, e tinha dúvidas se poderia ainda completá-la.

      Em compensação, à falta dos actores que ele queria contratar por conta dos seus comitentes, apresentaram-se na sua agência outros que não lhe serviam para nada. No dia 4 de Agosto deixou-se cair na armadilha um urso magnífico.

      Sucedeu exactamente estarmos no kraal quando os chikaris trouxeram na jaula de rodas um prisioneiro de grande estampa, pêlo negro, garras aceradas, orelhas compridas guarnecidas de peles, o que é peculiar nos representantes da família ursina na índia.

       Ora, para que serve este inútil plantigrade! comentou o fornecedor, encolhendo os ombros.

       Irmão Ballon! Irmão Ballon! exclamavam os indianos.

      Segundo parece, os indianos consideram-se sobrinhos dos tigres e irmãos dos ursos.

      Porém, Matias Van Guitt, não obstante este grau de parentesco, recebeu o irmão Ballon com umas disposições de mau humor pouco equívocas.

      Agarrar ursos quando precisava de tigres não era coisa que o satisfizesse.

      O que havia de fazer daquele importuno bicho?

      Não lhe convinha muito sustentá-lo sem esperanças de se indemnizar das despesas.

      Nos mercados da Europa é pouco pedido o urso da índia.

      Não tem o valor comercial do grizzly da América, nem do urso polar, e por isso Matias Van Guitt, bom comerciante, não dava apreço a um animal incomodativo, de que só se desfaria com dificuldade.

       Quer este bicho?  perguntou ao capitão Hod.

       E o que quer que faça dele?  retorquiu o capitão.

      Faça bifes disse o fornecedor, se me é permitido servir-me desta catacrese.

       Senhor Van Guitt voltou-lhe Banks, com muita seriedade, a catacrese é uma figura permitida quando, à falta de outra expressão, traduz convenientemente o pensamento.

       É também essa a minha opinião replicou o fornecedor.

       Então, Hod prosseguiu Banks, fica ou não fica com o urso oferecido pelo senhor Van Guitt?

       Isso é que não! respondeu o capitão Hod.

      Comer bifes de urso que está morto, vá, mas matar de propósito o urso para fazer bifes é uma coisa que não me provoca apetite.

       Nesse caso, restitua-se a liberdade a esse plantígrado ordenou Matias Van Guitt, voltando-se para os seus chikaris.

      O fornecedor foi obedecido. A jaula foi trazida para fora do kraal. Um dos indianos abriu a porta.

      O irmão Ballon, que parecia muito envergonhado pela sua situação, não precisou que lho dissessem duas vezes.

      Saiu tranquilamente da jaula, fez um pequeno movimento com a cabeça, que se podia tomar por um agradecimento, e abalou soltando um grunhido de satisfação.

       Foi uma boa acção que o senhor praticou disse Banks. Há-de conseguir-lhe boa sorte, senhor Van Guitt.

      Banks não podia falar mais acertadamente. O dia 5 de Agosto devia recompensar o fornecedor, proporcionando-lhe uma das feras que faltavam na sua colecção.

      Eis como foi. Matias Van Guitt, acompanhado por mim, pelo capitão Hod, por Fox, pelo maquinista Storr e por Kalagani, batia desde o romper da alva um espesso matagal, formado de cactos e de lentiscos, quando se ouviram uns uivos meio abafados.

      No mesmo instante, com as espingardas preparadas, bem agrupados todos os seis, de modo que ficássemos em posição de rechaçar qualquer ataque inesperado, dirigimo-nos para o local suspeito.

      Cinquenta passos mais adiante, o fornecedor fez-nos parar. Pela natureza dos rugidos, parecia que tinha reconhecido o que era, e, dirigindo-se especialmente ao capitão Hod, recomendou-lhe:

       Sobretudo, nada de tiro inútil.

       Depois, avançando alguns passos, fazendo-nos ao mesmo tempo sinal para que ficássemos atrás, exclamou:

       Um leão!

      Efectivamente, preso pela extremidade de uma sólida corda, segura à pernada de uma árvore, debatia-se um leão.

      Era um desses leões sem juba, que por esta particularidade se distinguem dos seus congéneres de África, mas um verdadeiro leão, o leão que Matias Van Guitt exigia.

      A fera, pendurada por uma das suas patas dianteiras no nó corredio da corda que lha apertava, dava formidáveis esticões, sem conseguir soltar-se.

      Apesar da recomendação do fornecedor, o primeiro impulso do capitão Hod foi desfechar.

      Não atire, capitão! exclamou Matias Van Guitt.

      Por amor de Deus, não atire!

       Mas. . .

       Não! Não, repito! Esse leão caiu num dos meus laços e pertence-me!

      Era um laço efectivamente um laço dos que chamam de forca, coisa a um tempo simples e engenhosa.

      A um ramo de árvore, forte e flexível, amarra-se uma corda resistente. Faz-se vergar o ramo para o solo, de modo que a extremidade inferior da corda, terminada por um nó corredio, se possa prender no corte de um poste solidamente cravado no chão. No poste põe-se uma isca, de modo que, se algum animal quiser tocar

      nela, terá de meter na laçada a cabeça ou uma das patas.

      Logo que isso acontece, a corda solta-se do corte, o ramo endireita-se, o animal é levantado do chão, e no mesmo instante um pesado cilindro de madeira, deslizando ao longo da corda, puxa pela laçada, segura-a com força e impede que ela possa soltar-se com os esforços do prisioneiro.

      Este género de armadilha prepara-se muitas vezes nas florestas da índia, e as feras caem nela mais frequentemente do que se poderia crer.

      Na maior parte dos casos, o que sucede é o animal ficar preso pelo pescoço, provocando uma estrangulação quase imediata, ao mesmo tempo que a cabeça lhe fica meio esmagada pelo pesado cilindro de madeira. Mas o leão que se debatia à nossa vista só ficara preso pela pata.

      Estava pois vivo e bem vivo, e pronto a figurar entre os comensais do fornecedor. Encantado com a aventura, Matias Van Guitt enviou Kalagani ao kraal com ordem de trazer a jaula de rodas com o respectivo condutor.

      Durante este tempo, pudemos observar, muito à nossa vontade, o animal, cujo furor aumentava com a nossa presença.

      O fornecedor não tirava os olhos da fera. Andava à roda da árvore, mas tendo sempre o cuidado de se conservar fora do alcance das patadas que o leão despedia para a direita e para a esquerda.

      Dali a meia hora chegava a jaula, puxada pelos dois búfalos. Meteram nela o prisioneiro, não sem alguma dificuldade, e tornámos a tomar o caminho do kraal.

      Começava na verdade a desesperar disse-nos Matias Van Guitt. Os leões não figuram em número importante entre as feras nemorais da índia. . .

       Nemorais?  perguntou o capitão Hod.

       Sim, os animais que habitam nas florestas; e eu felicito-me por ter podido apanhar esta fera, que honrará a minha colecção!

      Daquele dia em diante, Matias Van Guitt não teve que se queixar da sua má sorte.

      No dia 11 de Agosto foram apanhados juntos dois leopardos na armadilha que primeiro descrevemos e donde tiráramos o próprio fornecedor.

      Eram dois tchitas, semelhantes ao que tão audaciosamente atacara o Gigante de Aço nas planícies de Rohilkhande, e de que nos não tínhamos podido apoderar.

      Só faltavam dois tigres para ficar completo o fornecimento de Matias Van Guitt.

      Estávamos a 15 de Agosto.

      O coronel Munro não tinha ainda aparecido.

      Notícias dele não havia nenhumas.

      Banks estava mais inquieto do que poderia parecer.

      Interrogou Kalagani, que conhecia a fortaleza do Nepal, acerca dos perigos que Sir Edward Munro podia correr em se aventurar por aqueles territórios independentes.

      O indiano assegurou-lhe que já não restava sequer um partidário de Nana Sahib nos confins do Tibete.

      Todavia, pareceu penalizado por o coronel não o haver escolhido como guia, porque os seus serviços ter-lhe-iam sido úteis num país cujos menores atalhos lhe eram conhecidos.

      Agora, porém, nem se podia pensar em alcançá-lo.

      Entretanto, o capitão Hod e Fox continuavam nas excursões pelo Tarryani.

      Auxiliados pelos chikaris do kraal, conseguiram matar três outros tigres de tamanho médio, não sem grande perigo.

      Duas das feras foram lançadas na conta do capitão, a terceira na conta do impedido.

      Quarenta e oito. disse o capitão Hod, que desejava alcançar a cifra redonda de cinquenta antes de deixar o Himalaia.

      Trinta e nove! dissera Fox, sem falar de uma temível pantera, morta por ele.

      No dia 20 de Agosto, o penúltimo dos tigres reclamados por Matias Van Guitt deixava-se cair num dos fossos, dos quais, quer por acaso, quer por instinto, se livrara até ali.

      Como quase sempre sucede, o animal feriu-se na queda, mas o ferimento não apresentava gravidade.

      Bastariam alguns dias de descanso para o curarem, e da ferida não restaria indício quando se fizesse entrega do animal por conta de Hagenbeck, de Hamburgo.

      O emprego dos fossos é considerado pelos entendedores como bárbaro. Quando se trata de matar os animais, é claro que todos os meios são convenientes, mas, quando se pretende apanhá-los vivos, a morte é quase sempre consequência da queda, principalmente quando caem nos fossos de profundidade de quinze a vinte pés, destinados aos elefantes.

      De entre os animais que caem, poucos se contarão que não tenham alguma fractura mortal. Por isso, até no Mysore, onde principalmente este sistema está em voga, disse-nos o fornecedor, principiam a abandoná-lo.

       Afinal, só faltava um tigre na colecção do kraal, e Matias Van Guitt bem desejaria tê-lo em seu poder. Precisava

       de partir quanto antes para Bombaim.

      Devia a sorte permitir que depressa o alcançasse, mas por que preço! Precisa isto de ser contado miúdamente, porque o animal custou caro, muito caro. . .

      Graças ao capitão Hod, organizou-se uma expedição para a noite de 26 de Agosto.

      As circunstâncias favoreciam a caçada; o céu estava limpo de nuvens, a atmosfera tranquila, a Lua no minguante.

      Quando as trevas são muito densas, as feras não saem facilmente dos covis. Mas já uma meia obscuridade as convida a sair. Precisamente naquela noite, o menisco, palavra usada por Matias Van Guitt para designar o crescente lunar, ia derramar alguma claridade depois da meia-noite.

      Formavam o núcleo desta expedição eu, o capitão

      Hod, Fox, o próprio Storr, que tomara gosto por estas empresas, e deviam-se-lhe juntar o fornecedor, Kalagani e alguns indianos.

      Terminado o jantar, depois de nos despedirmos de Banks, que declinou o convite para nos acompanhar, deixámos a Steam House por volta das sete horas, e às oito chegámos ao kraal, sem termos tido nenhum encontro desagradável.

      Matias Van Guitt acabava de cear. Recebeu-nos com as suas habituais manifestações. Formou-se conselho, e assentou-se logo no plano da caçada.

      Tínhamos de nos ir emboscar à beira de uma torrente, no fundo de um dos desfiladeiros chamados nullah, a duas milhas de distância do kraal, num lugar visitado regularmente de noite por um casal de tigres.

      Não se pôs previamente ali nenhuma isca. Segundo os indianos, era inútil. Uma batida, que recentemente se fizera naquela região do Tarryani, provou que a necessidade de matarem a sede era bastante para atrair os tigres ao fundo daquele nullah.

      Também se sabia que era fácil tomar ali uma posição vantajosa. Não devíamos deixar o kraal antes da meia-noite, e ainda eram apenas sete horas.

      Tratava-se pois de esperar, sem grande aborrecimento, o momento de nos pormos a caminho.

       Senhores disse-nos Matias Van Guitt. a minha residência está inteiramente à vossa disposição. Convido-os a fazerem o que eu faço: deitarem-se. É preciso sermos mais do que madrugadores e algumas horas de sono dispor-nos-ão melhor para a luta. Tem vontade de dormir, Maucler?  perguntou o capitão Hod.

      Não respondi eu, e prefiro esperar a hora passeando a ver-me obrigado a acordar quando estiver profundamente adormecido.

      Como os senhores quiserem respondeu o fornecedor. Pela minha parte, já sinto o pestanejar espasmódico das pálpebras, que a necessidade de dormir costuma ocasionar. Bem vêem, já estou nos meus primeiros movimentos de pendiculação.

      E Matias Van Guitt, levantando os braços, deitando para trás o tronco e a cabeça, por efeito de uma involuntária

       distensão dos músculos abdominais, soltou alguns bocejos significativos.

      Por isso, depois de bastante pendicular muito à sua vontade, fez-nos um último gesto de despedida, passou ao seu cubículo, e decerto não levou muito tempo a adormecer.

      E nós, o que vamos fazer?  perguntei.

      O capitão Hod respondeu-me:

      Vamos passear para o kraal. Está uma bela noite e assim encontrar-me-ei mais bem disposto para a jornada do que se carregasse as pálpebras com o peso de três ou quatro horas de sono. Demais, se o sono é o nosso melhor amigo, é um amigo que muitas vezes se faz esperar.

      E começámos então a passear pelo kraal, umas vezes meditando, outras conversando.

      Storr, a quem o seu melhor amigo não tinha por costume fazer esperar, estava deitado ao pé de uma árvore e dormia já. Os chiharis e os carreiros estavam igualmente agachados no seu canto, e não havia ninguém que velasse dentro do recinto.

      Isto, afinal, tornava-se inútil, pois o kraal era hermeticamente fechado em redor com uma sólida paliçada.

      O próprio Kalagani foi certificar-se se a porta tinha sido cuidadosamente fechada; feito isto, depois de nos dar as boas-noites quando passou por nós, recolheu-se ao compartimento que ele e os seus companheiros ocupavam.

      Eu e o capitão Hod estávamos completamente sós.

      Não só os homens de Matias Van Guitt dormiam, como também os animais domésticos e ferozes, estes nas suas jaulas, aqueles em grupos, debaixo das grandes árvores, na extremidade do kraal.

      Silêncio absoluto, tanto dentro como fora do kraal.

      No nosso passeio fomos ter primeiramente ao lugar ocupado pelos búfalos.

      Estes magníficos ruminantes, mansos e pacíficos, nem sequer estavam peados. Habituados a repousar sob a folhagem dos gigantescos bordos, ali estavam, tranquilamente estendidos, os chifres entrelaçados, as pernas dobradas para baixo do corpo, e ouvia-se uma lenta e ruidosa respiração que saía daquelas massas enormes.

      Nem despertaram à nossa aproximação. Apenas um levantou por um instante a grande cabeça, deitou-nos o olhar sem fixidez, que é particular aos animais daquela espécie, depois confundiu-se novamente com a massa total.

      Aí está ao que os reduz a domesticidade, ou, melhor dizendo, a domesticação observei eu para Hod, Sim respondeu-me o capitão, e, não obstante os búfalos são, no estado selvagem, animais terríveis.

      Mas, se têm a seu favor a força, não têm a flexibilidade, e o que podem os seus chifres com o dente dos leões ou a garra dos tigres?  Decididamente, a vantagem pertence às feras.

      Assim conversando, tínhamos voltado para junto das jaulas. Aqui o sossego era absoluto. Tigres, leões, panteras, leopardos, dormiam nos seus compartimentos separados.

       Matias Van Guitt só os reunia depois de amansados por algumas semanas de cativeiro, e tinha razão.

      Nos primeiros dias de prisão, as feras com certeza se devorariam umas às outras.

      Três leões, absolutamente imóveis, estavam deitados em semicírculo como gatos muito grandes. Só se viam as cabeças, escondidas num montão de pêlo escuro, e dormiam o sono dos justos.

      Mas No compartimento dos tigres a modorra era menos completa.

      Na escuridão flamejavam pupilas. De quando em quando aparecia uma grande pata agatanhando os varões da jaula.

      Era um sono de feras que pretendiam quebrar os ferros da prisão.

      Têm sonhos maus, e compreendo isso! disse o capitão, condoído.

      Alguns remorsos, ou, pelo menos, alguns pesares, agitavam também as três panteras. Àquela hora, se estivessem soltas, andariam a correr pelo- mato. Vagueariam em volta das pastagens, em busca de carne viva.

      Quanto aos leopardos, nenhum pesadelo lhes perturbava o sono. Dormiam sossegadamente. Duas destas feras, o ’macho e a fêmea, ocupavam o mesmo compartimento, e achavam-se aí tão bem como se estivessem no fundo do seu covil.

      Só um compartimento ainda estava vazio era o destinado ao sexto tigre, que não se deixava apanhar, e pelo qual Matias Van Guitt só esperava para deixar o Tarryani.

      O nosso passeio durou quase uma hora.

      Depois de darmos uma volta pelo recinto interior do kraal, voltámos para junto de uma enorme mimosa.

      Reinava em toda a floresta um silêncio profundo. O vento, que murmurava por entre a folhagem até ao cair do dia, emudecera. Nem uma folha bulia nas árvores.

      O espaço estava tão sereno na superfície do solo como nas altas regiões, privadas de ar, por onde a Lua girava com o seu disco meio chanfrado.

      Eu e o capitão Hod, sentados um ao pé do outro, já não conversávamos. Não obstante, o sono entrava connosco, ou, para melhor dizer, a absorção, mais moral que física, cuja influência se faz sentir durante o perfeito repouso da natureza.

      Nessas ocasiões pensamos, mas não formulamos os nossos pensamentos.

      Sonhamos como sonharia um homem que não dormisse, e o olhar, que as pálpebras ainda não velam, tende antes a perder-se nalguma visão fantástica.

      Contudo, havia uma particularidade que espantava o capitão, e em voz baixa, como se faz quase inconscientemente quando tudo se cala em volta de nós, observou-me:

      Maucler, um silêncio destes causa-me assombro!

      As feras rugem habitualmente na escuridão, e de noite a floresta costuma ser ruidosa. À falta de tigres ou de panteras, são os chacais que nunca descansam. Este kraal, cheio de criaturas vivas, devia atraí-los às centenas, e contudo não ouvimos nada, nem um uivo, nem um estalido sequer sobre o solo. Se Matias Van Guitt estivesse acordado, não ficaria menos surpreendido do que eu.

      Meu caro Hod, a sua observação é justa, e não sei a que deva atribuir a ausência desses vagabundos nocturnos.

      Mas tomemos cuidado em nós mesmos; aliás, no meio deste sossego, acabaríamos por adormecer.

      Resistamos, resistamos! retorquiu o capitão, estendendo os braços. Vai chegando a hora de partir.

      E continuámos a conversar, mas as frases saíam a custo e eram intercaladas de longos silêncios.

      Não sei dizer quanto tempo durou este divagar. De repente sentiu-se uma surda agitação, que me tirou subitamente deste estado de sonolência.

      Igualmente sacudido do seu torpor, o capitão Hod levantara-se ao mesmo tempo que eu.

      Não havia que duvidar, a agitação dava-se nas jaulas. Leões, panteras e tigres, pouco antes tão sossegados, soltavam agora um ’murmúrio abafado de cólera. Em pé nos compartimentos, andando de um lado para o outro vagarosamente, aspiravam com força algumas emanações de fora, e levantavam-se, bufando raivosos, de encontro aos varões de ferro das suas jaulas.

       Que terão os animais?  perguntei.

       Não sei respondeu o capitão, mas receio que tenham sentido a aproximação de. . .

      De repente, soaram formidáveis rugidos em volta do kraal.

      - São tigres! exclamou o capitão Hod, correndo para a residência de Matias Van Guitt.

      Mas fora tal a violência dos rugidos que todo o pessoal do kraal já se encontrava levantado, e o fornecedor, seguido dos seus homens, apareceu à porta.

      Um ataque! . . . exclamou.

      Assim me parece volveu o capitão Hod.

       Espere! É preciso ver! . . .

      E, sem perder tempo em concluir a frase, Matias Van Guitt agarrou numa escada e encostou-a à paliçada. Num ápice chegou ao último degrau.

      Dez tigres e uma dúzia de panteras! exclamou.

      Isto vai ser sério afirmou o capitão Hod. Queríamos ir caçá-los, e são eles que nos vêm caçar!

      Às espingardas! ÀS espingardas! gritou o fornecedor. E todos nós, obedecendo às suas ordens, nos achámos, no espaço de vinte segundos, preparados para fazer fogo.

      Estes ataques de bandos de feras não são raros nas índias. Quantas vezes os habitantes dos territórios frequentados por tigres, e mais particularmente os dos Sunderbunds, não têm sido assaltados nas suas habitações!

      É esta uma terrível eventualidade, e na maior parte das vezes os assaltantes é que levam a melhor.

      Aos rugidos de fora juntavam-se os de dentro. O kraal respondia à floresta. Já ninguém se podia entender dentro do kraal.

       À paliçada! exclamou Matias Van Guitt, que se fez compreender mais pelo gesto que pela voz.

      E todos nós nos precipitámos para o recinto. Os búfalos, já assaltados pelo terror, agitavam-se para se afastarem do seu lugar. Os carreiros em vão diligenciavam contê-los.

      De repente, a porta, que estava com certeza mal trancada, abriu-se violentamente, e um bando de feras forçou a entrada do kraal.

      Não obstante, Kalagani fechara aquela porta com o maior cuidado, como costumava fazer todas as noites Para casa! Para casa! bradou Matias Van Guitt, correndo para ali, que era o único refúgio que se lhe deparava.

      Mas teríamos tempo de lá chegar?

      Já dois chikaris, alcançados pelos tigres, acabavam de cair por terra. Os outros, como já não podiam chegar à choupana, fugiam rapidamente através do kraal, à procura de um abrigo qualquer.

      O fornecedor, Storr e seis indianos já se encontravam na residência, cuja porta se fechou no momento em que duas panteras iam ali precipitar-se.

      Kalagani, Fox e outros indianos, trepando pelas árvores, tinham-se empoleirado nos primeiros ramos.

      Eu e o capitão Hod não havíamos tido tempo nem possibilidade de nos reunirmos a Matias Van Cuitt.

       Maucler! Maucler! bradou o capitão Hod, cujo braço direito acabava de ser rasgado por um golpe de garra de um dos animais.

      com uma só pancada de cauda, um tigre enorme acabava de me deitar por terra.

      Levantei-me no momento em que o animal voltava sobre mim e corri para o capitão Hod a fim de o socorrer.

      Só um refúgio nos restava então. Era o compartimento vazio da sexta jaula. Ali nos metemos num instante, e a porta fechada punha-nos momentaneamente ao abrigo das feras, que saltavam uivando sobre os varões de ferro.

      Então, foi tal o encarniçamento destes vizinhos, que a jaula, oscilando sobre as rodas, esteve a ponto de se voltar.

      Mas os tigres abandonaram-me logo para se voltarem para alguma presa mais segura.

      Que espectáculo, de que não perdíamos nenhum pormenor, através dos varões do nosso compartimento!

       É o mundo às avessas exclamou Hod, que se desesperava.

       Nós de dentro e eles de fora!

       E a sua ferida?  perguntei.

      Não é nada!

      Ouviram-se cinco ou seis tiros. Partiam da choupana ocupada por Matias Van Guitt, contra a qual se encarniçavam dois tigres e três panteras.

      Um dos animais caiu fulminado por uma bala explosiva, que devia ter saído da carabina de Storr.

      Quanto aos outros, tinham-se logo precipitado sobre o grupo de búfalos, e estes pobres ruminantes iam achar-se sem defesa contra os adversários.

      Fox, Kalagani e os indianos, que se viram obrigados a deitar fora as armas para poderem trepar mais depressa às árvores, não podiam socorrê-los.

      O capitão Hod, metendo a espingarda por entre os varões da nossa jaula, fez fogo. Apesar de o seu braço direito, meio paralisado pela ferida, não lhe permitir atirar com a precisão habitual, teve ainda a sorte de matar

      o seu quadragésimo nono tigre.

      Neste momento os búfalos, espantados, precipitaram-se uivando através do recinto. Debalde procuraram fazer rente aos tigres, os quais, dando pulos formidáveis, se livravam das marradas. Um dos búfalos, levando em cima de si uma pantera, cujas garras lhe despedaçavam a cernelha, chegou à porta do kraal e saltou para fora.

      Cinco ou seis outros, perseguidos de mais perto pelas feras, saíram atrás dele e desapareceram.

      Alguns dos tigres foram em sua perseguição, e os búfalos que não tinham podido abandonar o kraal, degolados ou estripados, jaziam já sobre o solo.

      Das janelas da casa do fornecedor partiam outros tiros.

      Da nossa parte, eu e o capitão Hod, fazíamos o que podíamos. Ameaçava-nos um novo perigo.

      Os animais fechados nas jaulas, excitados pelo encarniçamento da luta, pelo cheiro a sangue e pelos uivos dos seus congéneres, debatiam-se com indescritível violência.

      Conseguiriam despedaçar os varões?  Devíamos recear isso, na verdade.

      Efectivamente, uma das jaulas dos tigres foi derribada.

      Julguei por um momento que as suas paredes despedaçadas iam dar-lhes saída! . . . Felizmente, não sucedeu nada disso, e os prisioneiros nem sequer puderam ver o que se passava da parte de fora, porque o lado dos varões é que tinha ficado voltado para o chão.

      Decididamente, são de mais! murmurou o capitão Hod, carregando a carabina.

      Neste momento um tigre deu um salto prodigioso e, com a ajuda das garras, conseguiu pendurar-se nas pernadas de uma árvore, sobre a qual dois ou três chikaris tinham procurado refúgio.

      Um destes infelizes, apanhado pela garganta, procurou debalde resistir, acabando por precipitar-se no solo.

      Uma pantera veio disputar ao tigre este corpo já privado de vida, cujos ossos estalavam em meio de um lago de sangue.

       Fogo! Fogo! bradou o capitão Hod, como se se pudesse fazer ouvir de Matias Van Guitt e dos seus companheiros.

      Quanto a nós, era-nos impossível intervir. Já tínhamos gasto todos os cartuchos e só podíamos ser agora os espectadores impotentes daquela luta!

      Mas, de repente, no compartimento vizinho do nosso, um tigre, que diligenciava quebrar os varões, conseguiu com uma violenta sacudidela destruir o equilíbrio da jaula. Esta oscilou por um momento e voltou-se.

      Magoados um pouco pela queda, levantámo-nos sobre os joelhos. As paredes tinham resistido, mas não podíamos ver nada do que se passava da banda de fora.

      Em todo o caso, se não se via, sempre se ouvia. Que estrondear de uivos dentro do kraal! Que cheiro de sangue impregnava a atmosfera!

      Parecia que a luta tinha tomado um carácter mais violento.

      Que se passara?  Teriam fugido os prisioneiros das outras jaulas?  Estariam atacando o reduto de Matias Van Guitt?  Ou os tigres e as panteras saltariam sobre as árvores para de lá arrancar os indianos?

      E não se poder sair desta caixa! exclamava o capitão Hod, verdadeiramente desesperado.

      Perto de um quarto de hora um quarto de hora cujos intermináveis minutos contávamos! se passou nestas condições.

      Depois, o ruído da luta foi diminuindo gradualmente. Os uivos enfraqueceram. Os saltos dos tigres que ocupavam um dos compartimentos da nossa jaula foram rareando.

      Teria então terminado a carnificina?

      De repente, ouvi a porta do kraal fechar-se com estrondo.

      Depois, Kalagani chamou por nós em grandes gritos.

      A sua voz juntava-se à de Fox, repetindo:

      Meu capitão! Meu capitão!

      Por aqui respondeu Hod.

      Foi ouvido, e quase no mesmo momento senti que a jaula se levantava.

      Dali a pouco estávamos livres.

      Fox! Storr! exclamou o capitão, cujo primeiro pensamento foi para os seus companheiros.

      Presentes! responderam o maquinista e o impedido Nem feridos estavam. Matias Van Guitt e Kalagani

      achavam-se igualmente sãos e salvos. No solo jaziam sem vida dois tigres e uma pantera. As outras feras tinham

      abandonado o kraal, cuja porta Kalagani acabava de fechar.

      Estávamos pois em segurança.

      Nenhuma das feras da colecção conseguira fugir durante a luta, e o fornecedor até contava um prisioneiro a mais.

      Era um tigre novo, preso na jaula de rodas, a qual se voltara sobre ele e o apanhara como uma armadilha.

      O fornecimento de Matias Van Guitt achava-se pois completo, mas como lhe saíra caro!

      Estavam mortos cinco búfalos, os outros tinham fugido, e três indianos, horrivelmente mutilados, nadavam no próprio sangue sobre o solo do kraal!

     

      O ÚLTIMO ADEUS DE MATIAS VAN GUITT

      O resto da noite decorreu sem novidade, quer dentro, quer fora do recinto. Desta vez a porta ficara muito bem trancada. Como fora que ela se abrira no momento em que o bando das feras andava em roda da paliçada?

      Era inexplicável, pois que o próprio Kalagani tinha metido as fortes trancas de madeira nos respectivos encaixes da parede.

      A ferida do capitão Hod incomodava-o bastante, embora fosse apenas uma esfoladura. Pouco faltou, porém, para não perder o braço direito.

      Pela minha parte já nada sentia da violenta pancada da cauda que me atirara por terra.

      Quanto a Matias Van Guitt, salvo a mágoa muito verdadeira de ter perdido três dos seus servidores, não se mostrava desesperado com a situação, embora a falta dos seus búfalos devesse colocá-lo em alguma dificuldade na ocasião de se pôr a caminho.

      São os percalços do ofício disse-nos ele, e eu tinha uma espécie de pressentimento de que me havia de suceder alguma coisa neste sentido.

      Depois mandou enterrar os três indianos, cujos restos foram depositados a um canto do kraal, a bastante profundidade, para que as feras não os pudessem desenterrar.

      Não tardou que a alva branqueasse a parte inferior do Tarryani, e, depois de muitos apertos de mão, despedimo-nos de Matias Van Guitt.

      Para nos acompanhar pelo menos durante o trânsito através da floresta, o fornecedor queria pôr à nossa disposição Kalagani e os seus dois indianos.

      Foi aceite o oferecimento, e às seis horas transpúnhamos o recinto do kraal.

      No regresso não tivemos nenhum mau encontro.

      Não se viam sinais de tigres nem de panteras. As feras, muito fartas, tinham decerto regressado ao antro, e a altura não era propícia de aí as ir perseguir.

      Quanto aos búfalos, que tinham fugido do kraal, ou estavam mortos e jaziam sobre as altas ervas, ou andavam perdidos pelas profundezas do Tarryani e não se devia esperar que o instinto os fizesse voltar ao kraal.

      Kalagani e os dois indianos deixaram-nos à saída da floresta. Uma hora depois, Phann e Black anunciaram o nosso regresso à Steam House .

      Contei a Banks as nossas aventuras. Escusado é dizer que nos felicitou por havermos sido tão felizes.

      Muitas vezes, nos ataques deste género, não voltava sequer um atacado que pudesse contar as proezas dos atacantes!

      Quanto ao capitão Hod, não teve remédio senão pôr o braço ao peito. Mas o engenheiro, que era o verdadeiro médico da expedição, não reconheceu ser grave a ferida, e afirmou que em poucos dias não restaria dela indício.

      No seu íntimo, o capitão Hod estava muito mortificado por ter recebido um ferimento sem o haver retribuído, apesar de ter acrescentado um tigre aos quarenta e oito que figuravam no seu activo.

      No dia seguinte, 27 de Agosto, de tarde, ouviram-se os cães latir com força, mas alegremente.

      Era o coronel Munro, Mac Neil e Gumi que voltavam ao sanitarium.

      O regresso foi para nós motivo de verdadeira satisfação.

       Realizaria Sir Edward Munro com êxito a sua expedição?  Ainda não o sabíamos. Voltava, porém, são e salvo, e era isso que importava.

      Banks correra logo para ele, apertava-lhe a mão, interrogava-o com o olhar.

       Nada! limitou-se o coronel a responder com um simples sinal de cabeça.

      Esta palavra significava não só que as pesquisas na fronteira do Nepal tinham sido infrutíferas, mas também

       que toda a conversa a este respeito se tornava inútil.

      Parecia-nos dizer que nem já se devia falar em semelhante coisa.

      Mac Neil e Gumi, a quem Banks interrogou naquela noite, foram mais explícitos. Informaram-no de que o coronel Munro efectivamente quisera tornar a ver aquela região indostânica onde Nana Sahib se refugiara antes da sua reaparição na presidência de Bombaim.

      Averiguar o que fora feito dos companheiros do nababo, indagar se restava algum vestígio, saber se, à falta de Nana Sahib, seu irmão Balão Rao não se ocultaria naquele território subtraído ainda ao domínio inglês, tal

      fora o fim de Sir Edward Munro. Destas pesquisas colhera-se a certeza de que os rebeldes tinham abandonado o país.

      Do acampamento, onde se tinham celebrado as falsas exéquias destinadas a fazer crer a morte de Nana Sahib, já não havia sinal. De Balão Rao também não se dava notícia. Dos seus companheiros não se encontravam vestígios por onde se pudesse seguir-lhes a pista.

      Morto o nababo nos desfiladeiros dos montes Sautpurra, dispersos os seus, muito provavelmente para além dos limites da península, a obra do vingador já não tinha lugar.

      No que unicamente devíamos pensar era em deixarmos a fronteira do Himalaia, continuarmos para o sul a viagem de regresso, e terminarmos finalmente o nosso itinerário de Calcutá a Bombaim.

      Decidiu-se que partíssemos dali a oito dias, a 3 de Setembro.

      Convinha deixar ao capitão Hod o tempo necessário para a completa cura do braço. E, depois, o coronel Munro, visivelmente fatigado com aquela rude excursão numa região de trânsito difícil, tinha necessidade de alguns dias de descanso.

      Entretanto, Banks trataria dos preparativos da viagem.

       Pôr o nosso trem em estado de tornar a descer a estrada do Himalaia à presidência de Bombaim dava-lhe trabalho para uma semana.

      Primeiro que tudo, combinou-se que o itinerário se modificasse pela segunda vez, de modo que se evitassem as grandes cidades do noroeste, Mirat, Deli, Agra, Gwalior, Jamie e outras, nas quais a revolta de 1857 deixara grandes ruínas. com os últimos rebeldes da insurreição desaparecera tudo quanto podia recordar este facto ao coronel Munro.

      Em virtude desta resolução, as nossas casas rodariam através das províncias, mas sem se deterem nas idades principais, o que não importava, porque aquelas regiões mereciam ser visitadas, quando mais não fosse por causa das suas belezas naturais.

      Sob este aspecto, o imenso reino de Sindia não fica abaixo de qualquer outro.

      Em frente do nosso Gigante de Aço iam-se desenrolar as estradas mais pitorescas da península.

      A monção terminara com a estação das chuvas, cujo período não se prolonga além do mês de Agosto.

      Os primeiros dias de Setembro prometiam uma temperatura agradável, que devia tornar menos penosa esta segunda parte da viagem.

      Durante a segunda semana da nossa permanência no sanitarium, Fox e Gumi tiveram de se arvorar em fornecedores quotidianos da cozinha. Acompanhados dos dois cães, percorreram a zona onde abundam as perdizes, os faisões e as abetardas.

      Estes voláteis, conservados na geleira da Steam House, deviam fornecer carne excelente para a jornada.

      Fomos mais duas ou três vezes visitar o kraal. Aqui, também Matias Van Guitt se ocupava dos seus preparativos de viagem para Bombaim, encarando os seus contratempos e dissabores como filósofo que está acima das pequenas ou grandes misérias do mundo.

      Já sabemos que em resultado da captura do segundo tigre, que tão cara saíra, o fornecimento estava completo.

      Por conseguinte, Matias Van Guitt só tinha de se preocupar com os búfalos de tracção.

      Nenhum dos ruminantes que fugiram durante o ataque tornara a aparecer no kraal. Segundo todas as probabilidades, o que se devia crer era que, dispersos pela floresta, tivessem perecido de morte violenta. Havia, portanto, que os substituir, o que não deixava de ser algo difícil naquelas circunstâncias.

      Para esse fim, o fornecedor enviara Kalagani em visita às herdades e aldeias vizinhas do Tarryani, e esperava o seu regresso com alguma impaciência.

      Esta última semana que residimos no sanitarium passou-se sem novidade.

      A ferida do capitão Hod ia-se curando a pouco e pouco. Talvez até que ele contasse encerrar a campanha com uma última expedição; teve, porém, de desistir disso por instâncias do coronel Munro. Se ainda não estava inteiramente seguro do braço, para que é que se havia de expor?  Pois não teria um ensejo muito natural de tirar a sua desforra se durante o resto da viagem encontrasse pelo caminho alguma fera?

       Demais ponderou-lhe Banks, o capitão ainda está vivo, e pela sua mão já foram mortos quarenta e nove tigres, sem falar nos feridos! A balança pende, pois, para o seu lado!

      Sim, quarenta e nove respondeu o capitão Hod, suspirando, mas o que eu desejava era completar os cinquenta!

      Incontestavelmente, era um pesar que o afligia.

      Chegou o dia 2 de Setembro. Achávamo-nos em véspera da partida.

      Naquele dia, pela manhã, Gumi veio anunciar-nos a visita do fornecedor.

      Efectivamente, Matias Van Guitt, acompanhado de Kalagani, chegava à Steam House . No momento de partir,

       queria decerto despedir-se de nós com todas as formalidades.

      O coronel Munro recebeu-o cordialmente. Matias Van Guitt lançou-se então numa longa conversação, onde se

      observava todo o improviso da sua fraseologia habitual.

      Pareceu-me, porém, que os seus cumprimentos ocultavam algum pensamento reservado, que ele hesitava em formular.

      Por acaso, Banks tocou o ponto principal da questão, quando perguntou a Matias Van Guitt se tivera a sorte de poder renovar os seus animais de tiro.

      Não, senhor Banks respondeu o fornecedor; Kalagani debalde percorreu as aldeias; apesar de ir munido dos meus plenos poderes, não pôde obter uma parelha sequer destes úteis ruminantes.

      Vejo-me pois obrigado a confessar, com bastante pena, que, para dirigir a minha colecção para a estação mais próxima, me falta exactamente o motor. A dispersão dos meus búfalos, ocasionada pelo súbito ataque da noite de 25 para 26 de Agosto, coloca-me em sérios embaraços.

      As minhas jaulas, com os seus moradores de quatro pés, são pesadas. . .

      E o que vai fazer para as conduzir à estação? perguntou o engenheiro.

      Não sei lá muito bem respondeu Matias Van Guitt. Procuro, combino, hesito. . . Entretanto, soou a hora de partir, e é a 20 de Setembro, isto é, dentro de dezoito dias, que devo entregar em Bombaim a minha encomenda de feras. . .

      Dezoito dias observou Banks, mas então não tem uma hora a perder!

      Bem sei, senhor engenheiro. Por isso só me resta um meio, um só. . .

      Qual?

      E, sem querer com isto incomodá-lo de forma alguma, vou fazer ao coronel um pedido muito indiscreto. . . decerto. . .

      Explique-se, senhor Van Guitt disse o coronel Munro e, se puder obsequiá-lo, creia que o farei com satisfação.

      Matias Van Guitt inclinou-se, levou a mão direita aos lábios, meneou suavemente a parte superior do corpo, e tomou a perfeita atitude de um homem que verga ao peso de inesperados favores.

      Afinal, o fornecedor perguntou se, dada a potência de tracção do Gigante de Aço, não seria possível prender as jaulas de rodas às traseiras do nosso comboio, e puxá-las deste modo até Etawah, que era a mais próxima estação do caminho de ferro de Deli a Allahabad.

      Era um trajecto que não excedia trezentos e cinquenta quilómetros, e que se fazia sobre uma estrada bastante

      cómoda.

       Será possível fazer-se o que o senhor Van Guitt pretende?  perguntou o coronel ao engenheiro.

       Não vejo nisso dificuldade alguma respondeu Banks, e o Gigante de Aço nem sequer dará por esse aumento de carga.

       Concedido declarou o coronel Munro. Conduziremos o seu material até Etawah. Entre vizinhos é preciso

       auxiliarmo-nos mutuamente, mesmo no Himalaia.

       Coronel redarguiu Matias Van Guitt, conhecia a sua bondade, e, para falar com franqueza, como se tratava de m embaraço em que eu me encontrava, contara um pouco com o seu génio obsequiador. . .

      Fez bem volveu o coronel.

      Combinado isto, Matias Van Guitt dispôs-se a voltar para o kraal, a fim de despedir uma parte do seu pessoal,

      que se tornava desnecessário. Só contava conservar consigo

       quatro chikaris, os precisos para cuidarem das jaulas.

       Então até amanhã disse o coronel Munro.

      Até amanhã, senhores correspondeu Matias Van Guitt. Espero no kraal a chegada do seu Gigante de Aço.

      E o fornecedor, muito satisfeito com o resultado da sua visita à Steam House, retirou-se, não sem ter feito a sua saída à maneira de um actor que recolhe a bastidores conforme todas as tradições da comédia moderna.

      Kalagani, depois de olhar por bastante tempo para o coronel Munro, cuja viagem à fronteira do Nepal parecia tê-lo preocupado seriamente, seguiu o fornecedor.

      Estavam concluídos os nossos últimos preparativos.

      O material fora arrumado. Do sanitarium da Steam

      House já não restava coisa alguma de pé. Os dois carros só esperavam pelo nosso Gigante de Aço. O elefante devia descê-los até à planície e depois ir ao kraal buscar as jaulas para se formar todo o comboio.

      Feito isto, partiria directamente através das planícies de Rohilkhande.

      No dia seguinte, 3 de Setembro, às sete horas da manhã, o Gigante de Aço estava pronto para novamente se encarregar das funções que conscienciosamente desempenhara até então.

      Neste momento, porém, com grande espanto de todos nós, produziu-se um incidente inesperado.

      A fornalha, encerrada nos flancos do animal, fora atulhada de combustível.

      Kalouth, que acabava de a acender, teve então a ideia de abrir a caixa do fumo, a cujas paredes vêm soldar-se os tubos destinados a conduzir os vapores da combustão através da caldeira, para ver se alguma coisa embaraçava a tiragem.

      Mas, mal abriu as portas do compartimento, recuou precipitadamente ante uma espécie de correias que dali eram arremessadas, sibilando de um modo singular.

      Eu, Banks e Storr olhávamos para aquele fenómeno sem lhe podermos compreender a causa.

      Olá, Kalouth, que temos?  perguntou Banks.

      Um molho de serpentes, senhor respondeu o fogueiro. Efectivamente, aquelas correias eram serpentes, que tinham escolhido domicílio nos tubos da caldeira, para ali decerto dormirem melhor. As primeiras chamas acabavam de as alcançar. Alguns dos répteis, já queimados, tinham caído no solo, e se Kalouth não abrisse o compartimento teriam todas morrido queimadas certamente.

      Que é isto! exclamou o capitão Hod, que acudiu.

       O nosso Gigante de Aço tem um ninho de serpentes nas entranhas!

      Era verdade, e das mais perigosas, das whip snakes, serpentes-chicotes, gulabis, cobras negras, najas de olhos

      orlados de um círculo, pertencentes todas às mais peçonhentas espécies.

      E ao mesmo tempo um formidável pitão-tigre, da família das jibóias, metia a cabeça pontiaguda pelo orifício da chaminé, isto é, aparecia na extremidade da tromba do elefante, a qual se desenrolava no meio das primeiras volutas de vapor.

      As serpentes, que saíam vivas dos tubos, tinham-se dispersado rápida e desembaraçadamente pelo mato, sem nos darem tempo de as destruirmos.

      Mas o pitão é que não pôde tão facilmente safar-se.

      Por isso, o capitão Hod foi logo buscar a carabina e despedaçou-lhe a cabeça com uma bala.

      Gumi subiu então ao Gigante de Aço, chegou-se ao orifício superior da tromba e, auxiliado por Storr e Kalouth, conseguiu tirar para fora o enorme réptil.

      Nada tão magnífico como esta jibóia, com a sua pele verde com reflexos azuis, decorada de anéis regulares, e que parecia ter sido cortada da pele de um tigre. Não media menos de cinco metros de comprimento e era da grossura de um braço.

      Tínhamos diante de nós um esplêndido exemplar dos ofídios da índia, que vantajosamente poderia figurar na colecção de Matias Van Guitt, visto o nome de pitão-tigre que lhe dão. Devo, porém, confessar que o capitão Hod

      não entendeu dever lançá-lo na sua conta.

      Feita a execução, Kalouth fechou o compartimento, a tiragem operou-se regularmente, o fogo da fornalha ateou-se com a passagem da corrente de ar, a caldeira não tardou a roncar surdamente, e três quartos de hora depois o manómetro indicava uma pressão suficiente de vapor. Não havia senão que partir.

      Atrelaram-se os dois carros um ao outro, e o Gigante de Aço manobrou para se colocar à frente do comboio.

      Olhámos pela última vez para o esplêndido panorama que se desenrolava ao sul, e para a admirável cordilheira, cujo contorno se recortava para a banda do norte, no fundo do céu. Demos um último adeus ao Davalaghiri, cujo cimo dominava todo aquele território da índia setentrional, e um apito anunciou o momento de partir.

      Realizou-se sem dificuldade a descida pela estrada sinuosa. O freio atmosférico sopeava irresistivelmente as

      rodas sobre os declives muito íngremes.

      Dali a uma hora o nosso comboio parava no limite inferior do Tarryani, na extremidade da planície.

      Desprendeu-se então o Gigante de Aço, e sob a direcção de Banks, do maquinista e do fogueiro, meteu-se lentamente por uma das largas estradas da floresta.

      Passadas duas horas, ouviam-se os seus silvos, e desembocava da espessa mata, puxando as seis jaulas da colecção.

      Assim que chegou, Matias Van Guitt renovou os seus agradecimentos ao coronel Munro.

      As jaulas, precedidas de uma carruagem destinada à residência do fornecedor e dos seus homens, foram atreladas ao nosso trem um verdadeiro comboio composto de oito vagões.

      A um novo sinal de Banks, a um novo apito regulamentar, o Gigante de Aço oscilou e avançou majestosamente pela magnífica estrada que descia na direcção do sul.

      A Steam House e as jaulas de Matias Van Guitt, carregadas de feras, não pareciam pesar-lhe mais que um simples carro de mudança.

      Então que lhe parece, senhor fornecedor?  perguntou o capitão Hod.

      Parece-me, capitão respondeu com alguma razão Matias Van Guitt -, que se esse elefante fosse de carne e osso ainda seria mais extraordinário!

      A estrada já não era a mesma que nos conduzira à base do Himalaia.

      Inclinava-se para sudoeste, na direcção do Philibit, pequena cidade situada a cento e cinquenta quilómetros do nosso ponto de partida.

      Este trajecto fez-se tranquilamente, com uma velocidade moderada, sem obstáculos nem contratempos.

      Matias Van Guitt tomava quotidianamente lugar à mesa da Steam House, onde o seu magnífico apetite fazia sempre as devidas honras à cozinha de Monsieur Parazard.

      Não tardou que o consumo da despensa exigisse que os fornecedores habituais contribuíssem com a sua quota, e o capitão Hod, já completamente curado- e o tiro à cabeça do pitão provara isso, tornou a pegar na sua espingarda de caçador.

      Depois, era necessário sustentar, além do nosso pessoal, também o do fornecedor.

      Este cuidado competia aos chikans.

      Estes hábeis indianos, sob a direcção de Kalagani, também destro atirador, não deixavam diminuir a carne de bisão e de antílope.

      Kalagani era na verdade um homem excepcional.

      Apesar de pouco comunicativo, o coronel Munro tratava-o muito amigavelmente, porque o coronel não era homem que facilmente esquecesse qualquer serviço que lhe prestassem.

      No dia 10 de Setembro, o comboio passava à vista de Philibit, sem aí parar, mas não pôde evitar um juntamento considerável de indianos, que vieram vê-lo.

      Incontestavelmente, as feras de Matias Van Guitt, por muito notáveis que fossem, não podiam admitir comparação com o Gigante de Aço.

      Nem sequer olhavam para elas através dos varões das jaulas, e a admiração geral convergia sobre o elefante mecânico. O comboio continuava a descer aquelas extensas planícies da índia setentrional, deixando a algumas léguas a oeste Bareilli, uma das principais cidades do Rohilkhande.

       Avançava ora por meio de florestas povoadas de uma multidão de aves, de que Matias Van Guitt nos fazia admirar a brilhante plumagem, ora através da espessura de acácias espinhosas, da altura de dois a três metros, chamadas pelos Ingleses wai-a-bitbush. Encontravam-se ali em grande quantidade javalis, que são muito gulosos da baga amarelada que estes arbustos produzem.

       Matámos, não sem perigo, alguns destes animais, verdadeiramente bravios e perigosos. O capitão Hod e Kalagani tiveram em diversas ocasiões de exibir a destreza e o sangue-frio que faziam deles dois caçadores excepcionais.

      Entre Philibit e a estação de Etawah, o comboio teve de transpor uma parte do alto Ganges, e pouco tempo depois um dos seus mais importantes tributários, o Kali-Nadi.

      Desprendeu-se todo o material de tracção do fornecedor, e a Steam House, transformada em aparelho flutuante, facilmente passou de uma margem para a outra sobre as águas do rio.

      Não sucedeu o mesmo com o trem de Matias Van Guitt.

      Foi preciso recorrer às jangadas, e as jaulas tiveram de atravessar as duas correntes uma depois de outra.

      Se a passagem exigiu certo tempo, ao menos efectuou-se sem grandes dificuldades. O fornecedor não se estreava nesta manobra e a sua gente já tivera de transpor muitos rios quando se dirigiu para a fronteira do Himalaia.

      Em resumo, sem incidentes que mereçam relatar-se, alcançávamos a 17 de Setembro o caminho de ferro de Deli a Allahabad, a menos de cem passos da estação de Etawah.

      Era aqui que o nosso comboio se ia dividir em duas partes, as quais não deviam tornar a juntar-se.

      A primeira deveria descer para o sul, através dos territórios do vasto reino de Sindia, de modo que alcançasse os Vindhyas e a presidência de Bombaim.

      A segunda, colocada sobre os truks dos caminhos de ferro, dirigia-se para Allahabad, e daí pelo caminho de ferro de Bombaim alcançava o litoral do mar das índias.

      Parámos e organizámos o acampamento para a noite.

      No dia seguinte, logo de madrugada, enquanto o fornecedor tomava a direcção do sueste, devíamos nós, cortando esta direcção em ângulo recto, seguir pouco mais ou menos o meridiano setenta e sete.

      Mas, ao mesmo tempo que nos deixava, Matias Van Guitt ia separar-se do pessoal que não lhe servia. com excepção de dois indianos, necessários ao serviço das jaulas, de ninguém mais precisava.

      Quando chegasse ao porto de Bombaim, onde o esperava um navio com destino à Europa, o transbordo da sua mercadoria far-se-ia pelos carregadores habituais do porto.

      Resultava daqui que alguns dos chikaris se tornavam livres, e principalmente Kalagani.

      Sabe-se de que forma e por que razão nos havíamos afeiçoado deveras a este indiano, depois dos serviços que ele prestara ao coronel Munro e ao capitão Hod.

      Depois de Matias Van Guitt despedir a sua gente, Banks desconfiou de que Kalagani não sabia muito bem o que fazer, e perguntou-lhe por isso se lhe convinha acompanhar-nos até Bombaim.

      Após um momento de reflexão, Kalagani aceitou o oferecimento do engenheiro, e o coronel Munro manifestou-lhe a sua satisfação por lhe poder servir de alguma coisa neste ensejo.

      Ia, portanto, o indiano fazer parte do pessoal da Steam House .

      Dado o conhecimento que tinha de toda esta parte da índia, podia ser-nos muito útil.

      No dia seguinte o acampamento levantou-se. Já não tínhamos interesse em prolongar a nossa demora.

      O Gigante de Aço estava em pressão. Banks deu ordem a Storr para estar pronto.

      Só faltava despedirmo-nos do nosso amigo fornecedor.

      Da nossa parte foi uma coisa muito simples; da parte de Matias Van Guitt foi coisa mais teatral, como era de supor.

      Os agradecimentos de Matias Van Guitt pelos serviços que o coronel Munro acabava de lhe prestar tomaram necessariamente a forma significativa. Desempenhou de um modo notável o último acto, e foi perfeito na grande

      cena da despedida.

      Por um movimento dos músculos do antebraço, a sua mão direita colocou-se em pronação, de modo que a palma ficava voltada para o chão.

      Queria isto dizer que, neste mundo, não esqueceria nunca o que devia ao coronel Munro, e, que se o reconhecimento fora banido da Terra, achara um último asilo no seu coração.

      Depois, por um movimento inverso, ergueu a mão em supinação, isto é, revirou-a, levantando-a para o zénite.

      O que significava que, mesmo lá em cima, os sentimentos não se extinguiam nele, e que toda uma eternidade e gratidão não seria suficiente para satisfazer as obrigações que contraíra.

      O coronel Munro agradeceu como devia a Matias Van Guitt, e alguns minutos depois o fornecedor das casas de Hamburgo e de Londres desaparecia aos nossos olhos.

     

      A PASSAGEM DO BETWA

      Na data precisa de 18 de Setembro, eis qual era a nossa posição, calculada segundo a distância do ponto de partida, do ponto em que fizéramos alto, e do ponto a que nos dirigíamos.

      1. º De Calcutá, trezentos quilómetros;

      2º Do sanitarium do Himalaia, trezentos e oitenta quilómetros;

      3. º De Bombaim, mil e seiscentos quilómetros.

      Considerando apenas a distância, não tínhamos ainda percorrido metade do nosso itinerário; tomando, porém, em conta as sete semanas que a Steam House estacionara junto à fronteira do Himalaia, decorrera mais de metade do tempo que se destinara para a viagem.

      Deixáramos Calcutá a 6 de Março.

      Em menos de dois meses, se nada embaraçasse a nossa marcha, esperávamos chegar ao litoral oeste do Indostão.

      Demais, o nosso itinerário ia, até certo ponto, ser reduzido. A resolução que tomáramos de evitar as grandes cidades comprometidas na revolta de 1857 obrigava-nos a descer mais directamente para o sul. Através das magníficas províncias do reino de Sindia estendiam-se estradas esplêndidas, transitáveis para veículos, e o Gigante de Aço não devia encontrar nenhum obstáculo, pelo menos até às montanhas do centro.

      A viagem prometia fazer-se nas melhores condições de facilidade e segurança.

      O que devia torná-la ainda mais fácil era a presença de Kalagani entre o pessoal da Steam House

      Este indiano conhecia admiravelmente toda esta parte da península. Naquele mesmo dia Banks pôde reconhecer isso.

      Depois do almoço, enquanto o coronel Munro e o capitão Hod dormiam a sesta, Banks perguntou-lhe em que

      condição ele percorrera muitas vezes aquelas províncias.

      Eu fazia parte explicou Kalagani de uma dessas numerosas caravanas de banjaris, que transportam sobre o dorso de bois carregamentos de cereais, quer por conta do Governo, quer por conta de particulares. Nesta qualidade tenho muitas vezes descido e subido aos territórios do centro e do norte da índia.

       E essas caravanas percorrem ainda esta parte da península?  perguntou o engenheiro.

       Sim, senhor respondeu Kalagani, e muito me admiraria se nesta época do ano não encontrássemos um bando de banjaris em marcha para o norte.

       Muito bem, Kalagani redarguiu Banks, o perfeito conhecimento que tem destes territórios ser-nos-á muito útil. Em vez de passarmos pelas grandes cidades do reino de Sindia, atravessaremos os campos e será nosso guia.

       Como quiser retorquiu o indiano, com o tom frio que lhe era habitual.

      Depois acrescentou:

       Quer que lhe indique, de um modo geral, a direcção que devemos seguir?

       Se lhe apraz. . .

      E Banks, para verificar a exactidão das informações de Kalagani, estendeu sobre a mesa um grande mapa, que

      apresentava a parte da índia por onde viajávamos.

      O indiano tomou novamente a palavra:

       Nada mais simples. Uma linha quase directa vai conduzir-nos do caminho de ferro de Deli ao caminho de ferro de Bombaim, que fazem junção em Allahabad.

      Da estação de Etawah, que acabamos de deixar, à fronteira do Bundelkund, só haverá uma corrente importante

      a transpor, o Jumna, e desta fronteira aos montes Vindhyas uma segunda corrente, o Betwa. Dado até o caso de haver cheia nestes dois rios por causa das chuvas, o trem flutuante não terá grande dificuldade, parece-me, em passar de uma corrente para a outra.

       Não haverá nenhuma dificuldade séria confirmou o engenheiro. E logo que chegarmos aos Vindhyas?

       Inclinaremos um pouco para sueste, a fim de se escolher um desfiladeiro praticável. Ainda aí nenhum obstáculo embaraçará a nossa marcha. Conheço uma passagem cujos declives são suaves. É o desfiladeiro de Sirgur, por onde as carroças seguem de preferência. Por onde passarem os cavalos não pode passar o nosso Gigante de Aço?  observei eu.

      com certeza respondeu Banks; mas, para além do desfiladeiro de Sirgur, o solo é muito acidentado. Não nos poderíamos meter pelos Vindhyas, dirigindo-nos através de Bopal?

      Aí as cidades são numerosas elucidou Kalagani; será difícil evitá-las, e os sipaios que ali vivem distinguiram-se imenso na guerra da independência.

      Fiquei um pouco surpreendido com a qualificação de guerra da independência que Kalagani aplicava à revolta de 1857. Depois, não parecia que Kalagani houvesse tomado parte na revolta, ou, pelo menos, ele nunca dissera coisa que nos levasse a crer em tal.

       Pois bem retorquiu Banks, deixaremos as cidades de Bopal a oeste, e se tem a certeza de que o desfiladeiro de Sirgur nos dá acesso a qualquer estrada praticável. . .

      Uma estrada que eu tenho muitas vezes percorrido, senhor, e que, depois de contornar o lago Puturia, vai, a quarenta milhas daí, terminar no caminho de ferro de Bombaim a Allahabad, junto de Jubbulpore.

      Efectivamente observou Banks, que seguia no mapa as indicações fornecidas pelo indiano. E a partir deste ponto?

       A estrada real dirige-se para o sudoeste e corre por assim dizer ao longo da via férrea até Bombaim.

       Fica entendido aprovou Banks. - Não vejo nenhum obstáculo sério em atravessar os Vindhyas, e este itinerário convém-nos. Aos serviços que já nos tem prestado, Kalagani, acrescenta outro, que não esqueceremos.

      Kalagani inclinou-se, e ia retirar-se quando, reconsiderando, se voltou novamente para o engenheiro.

       Tem alguma pergunta a fazer-me?  inquiriu Banks.

       Sim, senhor respondeu o indiano. Permita-me que lhe pergunte porque é que tem tanto interesse em evitar as principais cidades do Bundelkund?

      Banks olhou para mim. Não havia motivo para ocultar a Kalagani o que dizia respeito a Sir Edward Munro, e o indiano foi informado da situação do coronel.

      Kalagani escutou muito atentamente o que o coronel lhe disse. Depois, num tom de quem estava um pouco surpreendido, retorquiu:

       O coronel nada tem a temer de Nana Sahib, pelo menos nestas províncias.

       Nem nestas províncias nem em outras contrapôs Banks. Porque diz nestas províncias ?

       Porque se o nababo, como pretenderam, reapareceu, lá alguns meses atrás, na presidência de Bombaim, não foi possível conhecer o seu esconderijo, e é provável que novamente transpusesse a fronteira indo-chinesa.

      A sua resposta parecia provar o seguinte: que Kalagani ignorava o que se passara nas regiões dos montes Sautpurra e que Nana Sahib fora morto por soldados do exército real no vale de Tandit.

      Vejo, Kalagani disse então Banks -, que as notícias que correm pela índia chegam com alguma dificuldade às florestas do Himalaia!

      O indiano olhou para nós fixamente, sem responder, como homem que não entende o que lhe dizem.

       im continuou Banks. Kalagani parece ignorar que Nana Sahib morreu.

       Pois Nana Sahib morreu?  exclamou Kalagani.

       Decerto respondeu Banks, e foi o Governo que deu a saber em que circunstâncias ocorreu a sua morte.

       A sua morte?  volveu Kalagani, abanando a cabeça.

       Onde foi então que mataram Nana Sahib?

       No pai de Tandit, nos montes Sautpurra.

      E quando?

      Há quase quatro meses esclareceu o engenheiro -, no dia 25 de Maio último.

      Kalagani, cujo olhar me parecera estranho naquele momento, cruzara os braços e ficara silencioso.

       Tem razões perguntei-lhe para não querer na morte de Nana Sahib?

       Nenhuma limitou-se Kalagani a responder.

      Acredito no que me dizem.

      Um instante depois, Banks, a sós comigo, acrescentou, não sem razão:

       Todos os indianos são o mesmo! O chefe dos sipaios revoltados tornou-se legendário. Nunca estes supersticiosos acreditarão que ele morreu, porque não o viram enforcar.

      Sucede com eles observei exactamente o que sucedia com os caturras do Império, que, vinte anos depois de Napoleão ter morrido, sustentavam que ele continuava ainda vivo!

      Depois da passagem do alto Ganges, que a Steam House efectuara quinze dias antes, uma fértil região desenrolava as suas magníficas estradas diante do Gigante de Aço.

      Esta região era o Doâb, o qual se compreende no ângulo formado pelo Ganges e pelo Jumna, antes de se reunirem junto de Allahabad.

      Planícies de aluvião, arroteadas pelos brâmanes vinte séculos antes da era cristã, processos de cultura ainda muito rudimentares entre os campónios, grandes trabalhos de canalização devidos aos engenheiros ingleses, campos de algodoeiros, os quais se dão especialmente naqueles terrenos, gemidos do engenho que funciona junto de cada aldeia, canções dos homens de trabalho que põem o engenho em movimento, tais são as impressões que me ficam do Doâb, onde foi outrora fundada a primitiva igreja.

      A viagem realizou-se nas melhores condições. As perspectivas variavam por assim dizer ao sabor da nossa fantasia.

       A nossa residência desdobrava-se, sem fadiga, para deleite dos nossos olhos.

      Não era isto, como Banks dissera, a última palavra do progresso na arte da locomoção?

      Carros de bois, carruagens de cavalos ou de mulas, vagões de caminhos de ferro, que sois ao pé das nossas casas de rodas!

      No dia 19 de Setembro, a Steam House parava sobre a margem esquerda do Jumna.

      Este importante rio separa, na parte central da península, o país dos rajás propriamente dito, ou Rajastão, do Indostão, que é mais particularmente o país dos indianos. Uma primeira cheia principiava a elevar as águas do Jumna. A força da corrente fazia-se mais rapidamente sentir; mas, ainda que tornava a nossa passagem um pouco menos fácil, não podia impedi-la.

      Banks tomou algumas precauções. Foi preciso procurar um ponto melhor para abordar a terra. Achou-se esse

      ponto. Meia hora depois, a Steam House subia a margem oposta do rio.

      Aos comboios dos caminhos de ferro são precisas pontes muito dispendiosas, e uma dessas pontes, de construção tubular, atravessa o Jumna junto da fortaleza de Selimgarh, perto de Deli. Ao nosso Gigante de Aço, aos dois carros que puxava, as correntes ofereciam uma via tão fácil como as belas estradas macadamizadas da península.

      Para além do Jumna, os territórios do Rajastão contam certo número dessas cidades que a previdência do engenheiro queria afastar do seu itinerário.

      À esquerda ficava Gwalior, na margem do rio de Sawunrika, erguida sobre a sua mole de basalto, como a magnífica mesquita de Musjid, o palácio de Pal, a curiosa fonte dos elefantes, a fortaleza célebre, o Vihara de criação búdica; cidade velha, à qual a cidade moderna de Lashkar, edificada dois quilómetros mais longe, faz agora uma concorrência muito séria. Ali, no fundo dessa Gibraltar da índia, a Rani de Jansi, a companheira dedicada de Nana Sahib, lutara heroicamente até ao último instante.

       Fora ali que, no encontro dos dois esquadrões do 8 de hússares do exército real, ela morrera, como se sabe, às mãos do próprio coronel Munro, que tomara parte na acção com um batalhão do seu regimento.

      Daquele dia, como se sabe também, é que datava o ódio implacável de Nana Sahib, que o nababo procurara satisfazer até ao último dia da sua vida. Sim, mais valia que Sir Edward Munro não fosse avivar as suas recordações às portas de Gwalior!

      Depois de Gwalior, na parte ocidental do nosso novo itinerário, havia Antri e a sua vasta planície, de onde emergem por todos os lados grande número de picos, como as ilhotas de um arquipélago. Havia também Duttiah, que ainda não conta cinco séculos de existência, da qual se admiram as casas graciosas, a fortaleza central, os templos de variadas agulhas, o palácio abandonado de Birsing-Deo, o arsenal de Tôpe-Kana, formando tudo isto a capital deste reino de Duttiah, talhado no ângulo norte do Bundelkund, que se colocou sob o protectorado da Inglaterra. Do mesmo modo que Gwalior, Antri e Duttiah tinham sido gravemente prejudicadas com o movimento insurreccional de 1857.

      Encontrava-se, afinal, Jansi, da qual passávamos a menos de quarenta quilómetros, no dia 22 de Setembro.

      Esta cidade forma a mais importante estação militar do Bundelkund, e nas camadas inferiores o espírito de revolta conserva-se ali sempre vivaz.

      Jansi, cidade relativamente moderna, faz importante comércio de musselinas indígenas e de algodões azuis.

      Não se encontra nela nenhum monumento anterior à sua fundação, a qual data do século XVII. Contudo, são coisas dignas de se visitarem a sua cidadela, cujas muralhas interiores não puderam ser destruídas pela metralha dos ingleses, e a necrópole dos rajás, de um aspecto extremamente pitoresco.

      Foi ali a principal fortaleza dos sipaios revoltados da índia central. Foi ali que a intrépida Rani promoveu o primeiro levantamento, que depressa devia propagar-se por todo o Bundelkund. Sir Hugh Rose teve de ali lançar

      um combate, que não durou menos de seis dias, durante o qual perdeu quinze por cento dos seus efectivos. Apesar do seu encarniçamento e de serem auxiliados por uma guarnição de doze mil sipaios e de um exército de socorro em número de vinte mil, Tantia Topi, Balão Rao, irmão de Nana Sahib, e finalmente a Rani tiveram de ceder diante da superioridade das armas inglesas! Como nos contara Mac Neil, fora naquela cidade que o coronel Munro salvara a vida do seu sargento, fazendo-lhe esmola da última gota de água que lhe restava.

      Sim, mais depressa que qualquer outra das cidades de funestas recordações, devia ser riscada de um itinerário cujas paragens tinham sido escolhidas pelos melhores amigos do coronel.

      No dia seguinte, 23 de Setembro, um encontro, que nos demorou por espaço de algumas horas, veio justificar uma das observações precedentemente apresentadas por Kalagani.

      Eram onze horas da manhã.

      Terminado o almoço, sentámo-nos todos para dormir a sesta, uns debaixo do toldo, outros na sala da Steam

      House .

      O Gigante de Aço caminhava na razão de dez quilómetros por hora.

      Uma estrada esplêndida, sombreada de belas árvores, ia-se desenrolando diante dele, por entre campos de algodoeiros e de cereais. O tempo estava bom e o sol muito forte. Uma rega municipal naquela estrada não seria para desprezar, e o vento- levantava uma nuvem de fina poeira branca em frente do nosso comboio.

      Foi, porém, muito pior quando, ao fim de duas ou três milhas, a atmosfera nos apareceu tão cheia de poeira que nem no deserto da Líbia, quando o violento simum revolve os incomensuráveis areais.

       Não percebo como se pode produzir este fenómeno disse Banks, porque o vento não sopra com muita força.

       Kalagani há-de explicar-nos isso retorquiu o coronel Munro.

      Chamámos o indiano, que se aproximou da varanda, observou a estrada e respondeu sem hesitar:

       É uma grande caravana que sobe para o norte, e, como já o preveni, senhor Banks, é muito provavelmente

      uma caravana de banjaris.

       Visto isso disse Banks, Kalagani vai decerto encontrar entre eles alguns dos seus antigos companheiros.

       É possível, senhor admitiu o indiano, porque vivi muito tempo entre essas tribos nómadas.

      Tenciona então deixar-nos para se lhes reunir?  perguntou o capitão Hod.

       Não tenho tal ideia respondeu Kalagani.

      O indiano não se enganara. Daí a meia hora, o Gigante de Aço, apesar de toda a sua grande força, era obrigado a suspender a marcha diante de uma muralha de ruminantes.

      Mas não tivemos motivo para nos arrepender. O espectáculo que se oferecia a nossos olhos valia a pena ser observado.

      Para a banda do sul, uma manada, que não teria menos de quatro ou cinco mil bois, impedia a estrada numa extensão de muitos quilómetros.

      Como Kalagani acabava de dizer, este comboio de ruminantes pertencia a uma caravana de banjaris.

      Os banjaris explicou Banks são os verdadeiros ciganos do Indostão. Mais um povo do que uma tribo, sem localidade fixa, vivem no Verão sob tendas, de Inverno em cabanas. São os carregadores da península, e vi-os na sua lida durante a insurreição de 1857. Por uma espécie de convenção tácita entre os beligerantes, deixavam-se os seus comboios atravessar as províncias alvorotadas pela revolta. Efectivamente, eram os fornecedores do país, e alimentaram tanto o exército real como o exército indígena. Se fosse absolutamente preciso determinar na índia a pátria destes nómadas, essa pátria seria a Raputana, e talvez mais especialmente o reino de Milwar.

       Mas como eles vão desfilar por diante de nós, meu querido Maucler, convido-o a examiná-los atentamente.

      O nosso comboio afastara-se prudentemente para um dos lados da estrada. Não poderia resistir àquele avançar

      de animais cornígeros, diante dos quais as próprias feras não hesitam em fugir.

      Como Banks me havia recomendado, observei com atenção aquele grande cortejo, mas primeiramente devo declarar que a Steam House não pareceu produzir o seu efeito costumado.

      O Gigante de Aço, tão habituado a concitar a admiração geral, mal despertou a atenção dos banjaris, decerto acostumados a não se espantarem com coisa alguma. Os homens e as mulheres daquela raça vagabunda eram admiráveis: os homens, altos, vigorosos, feições delicadas, nariz aquilino, cabelos encaracolados, cor de um bronze em que o cobre avermelhado dominasse o estanho, trajados de túnica comprida e de turbante, armados de lança, escudo, rodela e da grande espada que se traz a tiracolo; as mulheres, altas, bem proporcionadas, aspecto altivo como os homens da sua tribo, o busto resguardado num corpete, a parte inferior do corpo perdida por entre as pregas de uma farta saia, e sobre este trajo, da cabeça aos pés, lançado um manto elegante, e, como adorno, brincos nas orelhas, colares no pescoço, e nos tornozelos anilhas de ouro, de marfim, de conchas. Ao pé dos homens, dos velhos, das crianças, caminhavam, com o seu passo tranquilo, milhares de bois, sem sela nem arreata, agitando as glandes vermelhas ou fazendo tilintar as campainhas que lhes enfeitam a cabeça e trazendo no dorso um duplo saco em que transportam trigo ou outros cereais.

      Era uma tribo inteira, que se pusera a caminho em caravana, sob a direcção de um chefe eleito, o naik, cujo poder é ilimitado enquanto dura o seu mandato. Só a ele pertence dirigir o comboio, determinar as horas de paragem, designar a disposição do acampamento.

      À frente vinha um touro de grande estampa, majestosos movimentos, coberto de brilhantes tecidos e enfeitado de campainhas e de conchas.

      Perguntei a Banks se sabia quais eram as funções deste magnífico animal.

       Kalagani é que nos pode responder positivamente a tal respeito disse o engenheiro. Onde é que ele

      está?

      Chamou-se Kalagani. Não apareceu. Procuraram-no. Não estava na Steam House .

       Foi decerto renovar conhecimento com algum dos seus antigos companheiros sugeriu o coronel Munro; mas há-de tornar a aparecer antes de nos pormos a caminho.

      Era a coisa mais natural. A ausência momentânea do indiano não era motivo para nos inquietarmos; não obstante, pela minha parte, não deixava de me preocupar.

      Pois se não me engano informou então Banks, esse touro nas caravanas dos banjaris é o representante da sua divindade. Vão para onde ele vai. Quando ele pára, acampa a caravana, mas a mim parece-me que ele obedece secretamente às prescrições do naik. Numa palavra, é nele que se resume toda a religião daqueles nómadas.

      Só ao fim de duas horas é que principiámos a ver o fim da interminável comitiva.

      Procurava Kalagani na retaguarda, quando ele apareceu, acompanhado de um indiano que não pertencia ao tipo banjari.

      Era, sem dúvida alguma, dos indígenas que temporariamente alugam os seus serviços às caravanas, como muitas vezes fizera Kalagani.

      Iam ambos conversando friamente, por meias palavras, poder-se-ia dizer.

      De que ou de que falavam eles?

      Provavelmente a região que a tribo em marcha acabava de atravessar, região que íamos percorrer sob a direcção do nosso novo guia.

      Este indígena, que ficara na cauda da caravana, parou por um instante ao passar por diante da Steam House . Observou com interesse o trem precedido do seu elefante artificial, e pareceu-me que olhava mais particularmente para o coronel, mas não nos dirigiu a palavra. Depois, dizendo adeus com a mão a Kalagani, incorporou-se novamente no cortejo e não tardou que desaparecesse em meio de uma nuvem de poeira.

      Quando voltou para junto de nós, Kalagani, sem esperar que o interrogassem, ]imitou-se a dizer:

       Um dos meus antigos companheiros, que está há dois meses ao serviço da caravana.

      Mais nada.

      Kalagani tomou lugar no nosso trem, e daí a pouco a Steam House deslizava sobre a estrada, em que se viam as grandes pegadas daquela enorme quantidade de bois.

      No dia seguinte, 24 de Setembro, parávamos, durante a noite, a cinco ou seis quilómetros a leste de Ourtcha, na margem esquerda do Betwa, um dos tributários do Jumna.

      De Ourtcha não há mais nada que dizer nem que ver.

      É a antiga capital do Bundelkund, cidade que foi florescente na primeira metade do século XVIII. Mas, por um lado os Mongóis, por outro os Maratas, dirigiram-lhe terríveis ataques, dos quais nunca mais se restaurou.

      E, agora, uma das grandes cidades da índia central não passa de uma aldeia, onde miseravelmente se abrigam

      algumas centenas de campónios.

      Disse que viéramos acampar nas margens do Betwa.

      É porém mais verdadeiro dizer que o comboio fez alto a uma certa distância da margem esquerda.

      Este importante rio, onde então havia grande cheia, transbordava, espalhando-se extensamente pelas margens.

      Originavam-se talvez desta circunstância algumas dificuldades para nós passarmos.

      Ficava para o dia seguinte o exame dessas dificuldades.

       A noite estava demasiado escura para Banks tomar alguma resolução. Por isso, logo depois da sesta da tarde,

      cada qual voltou para o seu camarote e foi deitar-se.

      Nunca, salvo em ocasiões extraordinárias, vigiávamos o acampamento durante a noite.

      Para quê?  Podiam por acaso roubar-nos as nossas casas ambulantes?  Não!

      Podiam roubar-nos o elefante?  Menos. Bastava o seu peso para o defender. Quanto à possibilidade de um ataque da parte de uns ratoneiros que vagueiam por aquelas províncias, seria coisa inverosímil.

      Demais, se nenhum de nós fazia sentinela de noite, lá estavam os dois cães, Phann e Black, que nos preveniriam de qualquer aproximação suspeita.

      Foi precisamente o que sucedeu naquela noite.

      Por volta das duas horas acordou-nos o ladrar dos cães.

      Levantei-me logo e achei os meus companheiros a pé.

      - Que temos?  perguntou o coronel Munro.

       São os cães que ladram respondeu Banks, e com certeza que o não fazem sem razão.

       Alguma pantera que rosnou nas sebes próximas! supôs o capitão Hod. Apeemo-nos e vamos visitar a entrada da floresta, e por cautela levemos as nossas espingardas.

      O sargento Mac Neil, Kalagani e Gumi estavam já na frente do acampamento, escutando, discutindo, procurando averiguar o que se passava no escuro.

      Juntámo-nos a eles.

       ntão disse o capitão Hod, não teremos que nos haver com duas ou três feras que viessem beber ao rio?

       Kalagani diz que não lhe parece que seja assim observou Mac Neil.

       Que julga então?  perguntou o coronel Munro ao indiano, que se nos reunira.

       Não sei o que seja, senhor coronel volveu Kalagani, só sei que não se trata nem de tigres, nem de panteras, nem de chacais. Parece-me entrever debaixo das árvores uma massa confusa. . .

       Nós averiguaremos! exclamou o capitão Hod, continuando a pensar no quinquagésimo tigre que lhe faltava.

      Espere, Hod advertiu Banks. No Bundelkund é sempre conveniente desconfiar dos vadios das estradas.

       Somos numerosos e estamos bem armados redarguiu o capitão Hod. Quero ficar descansado a este respeito.

       Pois seja! acedeu Banks.

      Os dois cães continuavam a latir, mas sem manifestarem sintomas dessa cólera que é inevitavelmente causada pela aproximação de animais ferozes.

       Eu parto em reconhecimento com Hod, Maucler e Kalagani, e Munro fica no acampamento com Mac Neil e os outros.

      - E tu vens? gritou o capitão Hod ao seu impedido, fazendo ao mesmo tempo sinal para que ele o acompanhasse.

      Hann e Black, por baixo já das primeiras árvores, iam indicando o caminho. Não havia mais nada a fazer do que segui-los.

      Mal nos metemos pelas árvores, ouviu-se ruído de passos. Era evidente que numeroso bando batia a estrada ao longo do nosso acampamento.

      Entreviam-se alguns vultos silenciosos, fugindo através do mato.

      Os dois cães, ladrando, corriam alguns passos adiante de nós, ora avançando, ora recuando.

       Quem vem lá?  gritou o capitão Hod. Não obteve resposta.

       Ou essa gente não quer responder disse Banks, ou não compreende o inglês.

       Ora, hão-de compreender a língua do país volvi eu.

       Kalagani ordenou Banks, grite-lhes na sua língua que, se não respondem, fazemos fogo.

      Kalagani, servindo-se do idioma especial dos indígenas da índia central, deu ordem aos rondadores que avançassem.

      Houve a mesma resposta que da primeira vez.

      Soou um tiro de espingarda. O impaciente capitão Hod acabava de atirar, ao acaso, sobre um vulto que ia a fugir por entre as árvores. À detonação da carabina seguiu-se uma grande agitação.

       Pareceu-nos que um bando de indivíduos se dispersava à direita e à esquerda.

      Tivemos até a certeza disso quando vimos Phann e Black, que tinham corrido para a frente, voltarem sossegadamente, sem darem nenhum sinal de inquietação.

       Fossem quem fossem, rondadores ou ratoneiros, fugiram depressa! observou o capitão Hod.

       Exactamente confirmou Banks, e não temos mais que fazer do que voltar para a Steam House . Porém,

       por precaução, far-se-á sentinela até ao romper do dia.

      Poucos instantes depois, estávamos junto dos nossos companheiros. Mac Neil, Gumi e Fox combinaram entre si o modo de fazer guarda ao acampamento e nós recolhemo-nos aos nossos camarotes.

      O resto da noite passou-se sem novidade.

      Era, pois, de crer que os visitantes, tendo visto que a Steam House estava bem defendida, haviam desistido da ideia de prolongarem a sua visita.

      No dia seguinte, 25 de Setembro, enquanto se faziam os preparativos para nos pormos a caminho, eu, o coronel

      Munro, o capitão Hod, Mac Neil e Kalagani lembrámo-nos de, pela última vez, explorar a entrada do bosque.

      Do bando que por ali andara de noite não restavam vestígios. Fosse como fosse, não tínhamos de nos preocupar com semelhante coisa.

      De regresso, Banks tomou as suas disposições para efectuar a passagem do Betwa. Este rio transbordara muito, derramando as águas amareladas muito para além das margens.

      A corrente deslizava com extrema rapidez, e seria preciso que o Gigante de Aço lhe fizesse cabeça, para não derivar muito para a foz.

      Primeiro que tudo, o engenheiro tratara de procurar o lugar mais próprio para o desembarque.

      com o seu óculo de alcance em posição, diligenciava descobrir o ponto onde lhe conviria alcançar a margem direita.

      Naquele sítio, o leito do Betwa atingia a largura de cerca de uma milha. Seria este, portanto, o trajecto náutico mais extenso que o trem flutuante teria de fazer.

       Mas perguntei eu como é que os viajantes ou os comerciantes, em ocasião de cheias como esta, conseguem passar o rio?  Parece coisa difícil que as barcaças possam resistir a correntes tão rápidas.

       Ora respondeu o capitão Hod, não há nada mais simples! Não passam!

       Passam, sim, senhor, quando têm elefantes à sua disposição! replicou Banks.

       Ora essa! Pois os elefantes podem transpor tamanhas distâncias a nado?

       com certeza, e eis como se procede explicou o engenheiro. As bagagens são todas postas sobre o dorso destes. . .

       Proboscídeos! . . . concluiu o capitão Hod. Diga assim, em lembrança do seu amigo Matias Van Guitt.

       E os mahuls obrigam-nos a entrar na corrente prosseguiu Banks. A princípio, os animais hesitam, recuam, soltam berros; mas depressa se decidem, entram no rio, deitam-se a nado e atravessam a corrente com arreganho. Admito que às vezes alguns sejam levados pela corrente; mas raras vezes isto sucede quando é um guia hábil que os dirige.

       Bem ponderou o capitão Hod, se não temos elefantes, temos ao menos um elefante. . .

       E esse bastará volveu Banks. Não se parece ele com o oructor amphibolis do americano Evans, que desde 1804 rodava sobre a terra e nadava sobre as águas? 

      Cada um tomou o seu lugar no trem, Kalouth à fornalha, Storr na torre e Banks junto dele, fazendo de timoneiro.

      Era preciso percorrer uns cinquenta pés de extensão sobre a praia inundada antes que se alcançassem as primeiras águas da corrente.

      O Gigante de Aço pôs-se em movimento e principiou a caminhar suavemente.

      Molhava já as grandes patas, mas ainda não flutuava.

      A passagem do terreno sólido para a superfície líquida só se devia fazer com precaução.

      De repente, o ruído daquela agitação que houvera de noite chegou-nos de novo aos ouvidos.

      Uns cem indivíduos, gesticulando e careteando, saíam do mato.

      Oh! com os demónios! Eram macacos! exclamou o capitão Hod, rindo com gosto.

      Efectivamente, um grande bando de representantes da raça simiana dirigia-se em coluna cerrada para a Steam House .

       Que querem eles?  perguntou Mac Neil.

       Atacarem-nos por certo respondeu o capitão Hod, que estava sempre pronto para a defesa.

       Não! Não há nada a recear disse Kalagani, que tivera tempo para observar os macacos.

       Mas, afinal, o que pretende a bicharia?  perguntou outra vez o sargento.

       Passar o rio na nossa companhia, mais nada! respondeu o indiano.

      Kalagani não se enganava. Não tínhamos de nos haver com gibões, de grandes braços cabeludos, nem com os membros da família aristocrática que reside no palácio de Benares.

      Eram macacos da espécie dos langurds, os maiores na península, ligeiros quadrúmanos, de pele negra, face esverdeada, circundada de um colar de barbas brancas, que lhes dá o aspecto de velhos advogados.

      Quanto a atitudes extravagantes e gestos descompassados, poderiam dar lições ao próprio Matias Van Guitt.

      Tinham o pêlo pardacento nas costas, branco no ventre, e traziam a cauda arqueada, em forma de trombeta.

      Soube então que aquela raça de macacos é uma espécie sagrada em toda a índia.

      Diz uma lenda que descendem dos guerreiros de Rama, que conquistaram a ilha de Ceilão.

      Em Amber, ocupam um palácio, o Zenanah, do qual fazem amigavelmente as honras aos viajantes.

      É expressamente proibido matá-los, e a desobediência a esta lei tem já custado a vida a muitos oficiais ingleses.

      Muito mansos, facilmente domesticáveis, são deveras perigosos quando os atacam, e se ficam levemente feridos, diz Luís Rousselet, tornam-se tão temíveis como panteras ou hienas.

      Mas não se tratava de atacar os langurds, e o capitão Hod pôs a espingarda no descanso.

      Tivera, pois, Kalagani razão em dizer que todo aquele bando, não se atrevendo a meter-se à corrente da cheia, queria aproveitar-se do nosso aparelho flutuante para passar o Betwa?

      Era possível, e ía-mos vê-lo. O Gigante de Aço acabava de chegar ao leito do rio.

      Não tardou que flutuasse com todo o material.

      Naquele sítio, uma curva do rio produziu uma espécie de borbulhar de águas estagnadas, e a Steam House

      ficou logo imóvel.

      O bando de macacos aproximara-se e patinhava já na água pouco profunda que cobria o talude da margem.

      Não houve demonstrações hostis, mas, de súbito, machos e fêmeas, velhos e novos, de mãos dadas, aos pulos e fazendo toda a casta de cabriolas, saltavam para cima do trem, que parecia esperá-los.

      Em poucos segundos havia dez sobre o Gigante de Aço, trinta em cima de cada uma das casas, ao todo uns cem, alegres, familiares, dir-se-ia até conversadores, pelo menos lá uns com os outros, e felicitando-se decerto por terem encontrado tão a propósito um aparelho de navegação que lhes permitia continuar a viagem.

      O Gigante de Aço meteu-se pela corrente, e, voltando para a parte de cima, fez cabeça à força das águas.

      Por um momento, Banks receou que o comboio ficasse muito pesado com aquele aumento de passageiros.

      Não havia motivo para isto. Os macacos tinham-se distribuído de uma maneira muito judiciosa.

      Empoleiravam-se sobre a garupa, sobre a torre, sobre o pescoço do elefante, até à extremidade da tromba, não mostrando o menor receio dos jactos de vapor. Havia-os em cima dos tectos arredondados dos carros, uns agachados, outros em pé, uns sobre as patas, com o lombo em curva, outros pendurados pela cauda na parte inferior do dossel que cobria os balcões.

      Graças à boa disposição dos seus reservatórios de ar, a Steam House mantinha-se na linha de flutuação, e nada tinha a recear daquele aumento de peso.

      O capitão e Fox estavam maravilhados, sobretudo Fox. Pouco faltava para fazer as honras da Steam House àquele bando’ todo caretas e sem-cerimónia.

      Falava com eles, apertava-lhes a mão, tirava-lhes o chapéu. Teria até dado cabo de todas as gulodices da despensa, se Parazard, formalizado por se achar em semelhante companhia, não pusesse cobro àquilo.

      O Gigante de Aço ia manejando rudemente as quatro patas, que batiam na água e funcionavam como grandes

      esparrelas. Seguia, derivando, a linha oblíqua por onde devíamos alcançar a terra.

      Daí a meia hora chegava ao seu destino; mas, assim que tocou em terra, todo o bando dos clowns quadrúmanos saltou na margem e desapareceu com grandes cabriolas.

       Podiam ter dito obrigado! exclamou Fox, descontente com a sem-cerimónia dos seus companheiros de passagem.

      Respondeu-lhe uma gargalhada. Era quanto merecia a observação do impedido.

     

      HOD CONTRA BANKS

      Estavam transposto o Betwa.

      Cem quilómetros nos separavam já da estação de Etawah.

      Decorreram quatro dias sem incidentes, até sem incidentes de caça.

      Naquela região do reino de Sindia as feras eram em pequeno número.

       Decididamente> repetia o capitão Hod, não sem algum despeito, chegarei a Bombaim sem ter morto o

      meu quinquagésimo!

      Kalagani guiava-nos com maravilhosa sagacidade através daquela porção menos povoada do território, cuja topografia conhecia muito bem, e a 29 de Setembro os nossos veículos principiavam a subir o reverso setentrional dos Vindhyas, a fim de irem alcançar o desfiladeiro de Sirgur.

      Até aqui a jornada através do Bundelkund efectuara-se sem dificuldade.

      Não obstante, este país é um dos mais suspeitos da índia. Os criminosos procuram nele refúgio. Não faltam ali os salteadores de estradas.

      É por isso conveniente grande prudência ao atravessar aquele território.

      A parte pior do Bundelkund é exactamente a região montanhosa dos Vindhyas, por onde ia embrenhar-se a Steam House;). O trajecto não era muito extenso, cem quilómetros o muito, até Jubbulpore, a estação mais próxima do caminho de ferro de Bombaim a Allahabad.

      Não podíamos, porém, contar com uma marcha tão rápida, tão fácil como a que efectuáramos através das planícies de Sindia.

      Declives bastante íngremes, estradas mal construídas, terrenos pedregosos, caminhos com grandes curvas e em certos pontos muito estreitas, tudo devia concorrer para reduzir a média da nossa velocidade.

      Banks não contava obter mais de quinze a vinte quilómetros durante as dez horas de que se compunham os

      nossos dias de marcha. Além disso, dia e noite, havíamos de ter o cuidado de vigiar com extrema cautela as vizinhanças das estradas e dos acampamentos.

      Kalagani fora o primeiro a dar-nos estes conselhos.

      Não era porque não estivéssemos em força e bem armados.

      O nosso pequeno grupo, com as suas duas casas e a torrinha, verdadeira casamata que o Gigante de Aço levava às costas, poderia oferecer grande resistência.

      Os bandidos, dacoits, ou outros, os próprios tugues que fossem, caso os houvesse ainda naquela região do Bundelkund, hesitariam com certeza em nos atacar. Mas a prudência nunca faz mal, e mais valia estarmos preparados para todas as eventualidades.

      Chegámos pela manhã ao desfiladeiro de Sirgur, e os veículos meteram-se por ele sem grande dificuldade.

      Houve momentos, ao subirmos alguns desfiladeiros um pouco íngremes, em que foi preciso darmos mais força ao vapor, mas o Gigante de Aço, sob a mão de Storr, desenvolvia instantaneamente a força necessária e muitas vezes galgámos rampas de doze a quinze centímetros por metro.

      Quanto a erros de itinerário parece que não devíamos ter receio disso.

      Kalagani conhecia perfeitamente as passagens sinuosas da região dos Víndhyas, e principalmente o desfiladeiro de Sirgur.

      Por isso, nunca hesitava, nem quando diversas estradas vinham dar a alguma encruzilhada perdida entre as altas rochas, no fundo de estreitos desfiladeiros, em meio das espessas florestas de árvores alpestres, que a duzentos ou trezentos passos de distância limitavam o olhar.

      Se às vezes nos deixava, se partia adiante, umas vezes acompanhado por mim, por Banks ou por outro qualquer companheiro nosso, era para reconhecer, não a estrada, mas o seu estado de viabilidade.

      As chuvas, durante a húmida estação que terminara, não deixaram de deteriorar os macadames, de formar barrancos no solo, circunstâncias estas que era preciso tomar em muita conta, antes de nos metermos pelos caminhos onde o recuo não seria fácil. Sob o simples ponto de vista da locomoção, ia tudo o melhor possível.

      A chuva cessara completamente. O céu, meio velado por ligeiras nuvens, que filtravam os raios do sol, não encerrava nenhuma ameaça dessas tempestades cuja violência se receia principalmente na região central da península.

      Apesar de não ser intenso, o calor não deixava de nos incomodar um pouco, durante algumas horas do dia; em

      todo o caso, porém, conservava-se em termo médio, temperatura muito suportável para viajantes perfeitamente

      fechados e abrigados. Não faltava a caça miúda, e os nossos caçadores ocorriam às necessidades da mesa, sem precisarem de se afastar da Steam House mais do que convinha.

      O  capitão Hod, e por certo também Fox, podia estar penalizado com a ausência das feras, que abundavam no Tarryani. Mas deviam esperar ver leões, tigres, panteras, em sítios onde faltavam os ruminantes necessários

       à sua alimentação?  Mas, se estes carnívoros faltavam na fauna dos Vindhyas, ofereceu-se-nos ensejo de mais amplamente travarmos conhecimento com os elefantes da índia, quero dizer, com os elefantes não domesticados, de que até ali só tínhamos visto raros exemplares.

      Foi no dia 30 de Setembro, por volta do meio-dia, que descobrimos dois destes magníficos animais em frente do nosso comboio.

      Quando nos aproximámos, afastaram-se para os lados da estrada, a fim de deixarem passar aquele trem novo

      para eles, que por certo os assustara.

      Matá-los sem necessidade, por simples satisfação de caçador, para que servia? 

      O capitão Hod nem nisso pensou.

      Contentou-se com admirar aqueles magníficos animais, que em liberdade percorriam os desfiladeiros desertos, onde regatos, torrentes e pastagens deviam chegar para todas as suas necessidades.

      Eis uma bela ocasião para o nosso amigo Van Guitt nos fazer um curso de zoologia prática! disse ele.

      Sabe-se que a Índia é o país dos elefantes. Ali, estes paquidermes pertencem todos a uma mesma espécie, que é um pouco inferior à dos elefantes da África, tanto os que percorrem as diferentes províncias da península, como aqueles cujos vestígios se vão procurar na Birmânia, no reino de Sião e até em todos os territórios situados a leste do golfo de Bengala.

      Como se apanham?  A maior parte das vezes num kiddah, recinto fechado por um tapume.

      Quando se trata de apanhar uma manada inteira, os caçadores, em número de trezentos a quatrocentos, dirigidos especialmente por um djamadar ou sargento indígena, vão-os pouco a pouco acossando para dentro do kiddah, fecham-nos aí, separam-nos uns dos outros com o auxílio de elefantes domesticados, ensinados ad hoc, prendem-lhes as patas traseiras, e fica realizada a captura.

      Mas este método, que exige tempo e certo aparato de forças, deixa de ser a maior parte das vezes eficaz quando se querem apanhar os machos muito grandes.

      Estes são efectivamente mais matreiros, assaz inteligentes para romper o círculo dos perseguidores, e sabem

      evitar o aprisionamento no kiddah. Por isso, para os poderem apanhar, mandam-se fêmeas domesticadas segui-los por espaço de alguns dias. As fêmeas levam em cima do dorso os seus mahuts, embrulhados em panos escuros, e quando os elefantes, que de nada suspeitam, se entregam tranquilamente às doçuras do sono, são apanhados e levados, sem terem tempo sequer de perceber o que lhes sucede.

      Como já tive ocasião de dizer, outrora apanhavam-se os elefantes por meio de fossos, que se abriam nos caminhos que eles costumavam seguir, fossos da profundidade de quinze pés, mas na queda o elefante feria-se ou morria, e este meio bárbaro está geralmente abandonado.

      Finalmente, o laço é ainda empregado em Bengala e no Nepal.

      É uma verdadeira caçada, cheia de interessantes peripécias.

      Montam em elefantes bem ensinados três homens: no pescoço, o mahut que os dirige; na traseira, o indivíduo que os estimula ou com o malho de pau ou com o croque; no dorso, o indiano encarregado de atirar o laço, munido de nó corredio.

      Equipados desta maneira, os paquidermes perseguem o elefante selvagem, às vezes durante horas, pelas planícies através das florestas, muitas vezes para maior dano dos que os montam, e finalmente o animal, quando o laço o apanha, cai pesadamente ao chão, ficando à mercê dos caçadores.

      com estes diversos métodos apanham-se anualmente na índia grande número de elefantes.

      Não é má especulação. Uma fêmea chega a ser vendida por sete mil francos, um macho por vinte mil e até por cinquenta mil quando é de sangue puro.

      São realmente úteis estes animais para se pagarem por tais preços?  Sim, quando bem alimentados. Dando-se-lhes seiscentas a setecentas libras de forragem verde de dezoito em dezoito horas, isto é, quase o que eles podem transportar numa jornada regular, obtêm-se deles verdadeiros serviços: transporte de soldados e de munições, condução de artilharia nas regiões montanhosas ou nos juncais inacessíveis aos cavalos, carretos por conta de particulares, que os empregam como animais de tracção.

      Estes gigantes, fortes e dóceis, que, levados de um instinto especial de obediência, se ensinam fácil e rapidamente, são de um emprego geral nas diversas províncias do Indostão. Ora, como eles não se multiplicam no estado doméstico, é preciso fazer-lhes continuadamente caça para se ocorrer às necessidades da península e do estrangeiro.

      É por isso que são perseguidos, cercados, apanhados pelos referidos meios. E contudo, apesar do consumo que deles se faz, o seu número não parece diminuir, e ainda existe grande abundância destes animais por toda a índia. E até digo que existe demasiada abundância, como se vai ver. ,

      Como disse, os dois elefantes tinham-se afastado para deixar passar o nosso trem. Depois, haviam continuado a sua marcha por um momento interrompida.

      Mas, no mesmo instante, apareciam atrás deles outros elefantes, e, precipitando o passo, juntavam-se ao grupo

      que acabávamos de deixar para trás de nós.

      Um quarto de hora depois, podia-se contar uma dúzia

      de elefantes.

      Observaram a Steam House, seguiam-nos, conservando-se a uma distância de cinquenta metros o muito.

      Não pareciam ter desejos de nos alcançar, nem de nos abandonar. E alcançarem-nos seria coisa fácil, porque sobre as rampas que ladeiam os principais cumes dos Vindhyas o Gigante de Aço não poderia acelerar o passo.

      Depois, um elefante pode andar com uma velocidade mais considerável do que seria para julgar. Segundo M. Sanderson, que é muito competente neste assunto, essa velocidade é às vezes superior a vinte e cinco quilómetros por hora. Por conseguinte, nada mais fácil para os elefantes que tínhamos à vista do que alcançarem-nos ou passarem-nos adiante.

      Mas não parecia que fosse esta a sua intenção, pelo menos por agora.

      O que eles queriam, por certo, era reunirem-se em maior número, tanto que aos gritos que lançavam, como uma chamada, das vastas goelas, correspondiam outros gritos de retardatários que seguiam o mesmo caminho.

      Por volta da uma hora depois do meio-dia marchavam atrás de nós uns trinta elefantes, em massa cerrada.

      Agora era uma verdadeira manada.

      Nada provava que o seu número ainda não aumentasse.

      Se uma manada destes paquidermes se compõe ordinariamente de trinta a quarenta indivíduos, que formam uma família de parentes mais ou menos próximos, não é raro encontrar ajuntamentos de cem animais, e os viajantes não deixam de encarar com inquietação esta eventualidade.

      Eu, Munro, Banks, Hod, o sargento e Kalagani tomámos o lugar na varanda do segundo carro, e observávamos

      o que se passava atrás de nós.

      O número continua a aumentar disse Banks com certeza há-de aumentar com todos os elefantes dispersos pela região! Contudo observei, não podem estender-se além de um espaço bastante limitado.

       Não volveu o engenheiro, mas dá-lhes o faro, e tal é a delicadeza do seu olfacto que os elefantes domesticados

       reconhecem a presença dos elefantes selvagens, mesmo a três ou quatro milhas de distância.

       É uma verdadeira migração disse então o coronel Munro. Veja-me, vem atrás de nós uma verdadeira manada, dividida em grupos de dez a doze elefantes. É preciso apressar a marcha do nosso comboio, Banks.

       O Gigante de Aço faz o que pode, Munro retorquiu o engenheiro. Estamos com cinco atmosferas de pressão, há tiragem, e a estrada é muito íngreme.

       Mas para que havemos de nos apressar?  exclamou o capitão Hod, a quem estes incidentes nunca deixavam de pôr de bom humor. Deixemo-nos acompanhar destes amáveis animais! É um cortejo digno do nosso trem. A região apresentava-se-nos deserta, já não está, e vamos escoltados como rajás que viajam!

       Que remédio senão deixá-los fazer o que quiserem!

      Não vejo maneira de obstar a que eles nos sigam retorquiu Banks.

       Mas o que receiam? perguntou o capitão Hod.

       Não ignoram que uma manada é menos temível que um elefante solitário! São uns excelentes animais! . . . Carneiros, grandes carneiros de tromba, é o que eles são.

       Bem, aí temos Hod a entusiasmar-se! disse o coronel Munro. Não posso deixar de admitir que, se a tal manada se conserva à distância, nada temos a recear; mas, se lhe dá o capricho de nos querer passar para a frente nesta estrada estreita, poderá resultar daí vários prejuízos para a Steam House .

      E, depois acrescentei eu, não sabemos que espécie de acolhimento eles farão ao Gigante de Aço quando se encontrarem na sua frente.

       Cumprimentá-lo-ão, com a breca! exclamou o capitão Hod. Cumprimentá-lo-ão, como cumprimentam os elefantes do príncipe Guru Singh.

       Esses eram elefantes domesticados observou, não sem razão, o sargento Mac Neil.

       Ora! replicou o capitão Hod. Estes domesticam-se, ou, por outra, em presença do nosso Gigante de Aço apoderar-se-á deles um espanto que se mudará em respeito.

      Como se vê, o nosso amigo nada tinha perdido do seu entusiasmo pelo elefante artificial, essa obra-prima mecânica, devida à habilidade de um engenheiro inglês!

       Depois acrescentou, estes proboscídeos o capitão afeiçoara-se à palavra, são muito inteligentes: discorrem, formam o seu juízo, associam ideias, dão mostras de uma inteligência quase humana.

      Isso é contestável retorquiu Banks. Como! Contestável? ! exclamou o capitão Hod.

       É preciso não ter vivido na índia para falar assim! Pois não empregam estes dignos animais em todos os usos domésticos?  Há algum criado de dois pés, sem penas, que os possa igualar?  Não está o elefante em casa do seu dono pronto para todos os serviços?  Pois Maucler não sabe o que dizem os escritores que melhor o têm conhecido?  A crer o que eles dizem, o elefante é obsequiador para aqueles a quem ama, descarrega-os dos seus fardos, vai colher para eles flores ou frutos, pede esmola para a comunidade, como fazem os elefantes do célebre pagode de Willenoor, próximo de Pondichery, paga nos bazares as canas-de-açúcar, as bananas ou as mangas que compra por sua própria conta, no Sunderbund protege das feras os rebanhos e a habitação do seu senhor, tira água das cisternas, passeia as crianças que lhe confiam com mais cuidado que a melhor ama de toda a Inglaterra.

      Humano e reconhecido, porque a sua memória é prodigiosa, não esquece os benefícios nem os agravos.

       Olhem, meus amigos, a estes gigantes da humanidade não seriam capazes de fazer esmagar um insecto inofensivo! Um amigo meu isto são rasgos que não podem esquecer viu colocarem em cima de uma pedra um bichinho chamado boi-de-deus e mandarem a um elefante domesticado que o esmagasse! Pois o excelente paquiderme levantava a pata todas as vezes que passava por cima da pedra, e nem ordens nem pancadas foram capazes de o resolverem a pisar o insecto! E, pelo contrário, se lhe mandavam que o fosse buscar, trazia-o delicadamente, com aquela espécie de mão maravilhosa que tem na extremidade da tromba, e dava-lhe liberdade! Há-de agora dizer, Banks, que o elefante não é bom, generoso, superior a todos os animais, até ao macaco, ao cão, e devemos reconhecer que os indianos têm razão quando lhe atribuem tanta inteligência como tem o homem. E o capitão Hod, para terminar o seu discurso, não achou coisa melhor do que tirar o chapéu e cumprimentar a temível manada que nos seguia a passos contados.

      - Bem falado, capitão Hod! aprovou o coronel

      Munro, sorrindo. Os elefantes têm no capitão um entusiástico defensor.

       Pois não tenho absolutamente razão, meu coronel?  perguntou o capitão Hod.

       O Sanderson não aprecia o elefante de modo tão lisonjeiro afirmou então Banks.

       E o que diz o seu Sanderson?  perguntou o capitão, em tom desdenhoso.

       Pretende que o elefante tem uma inteligência muito medíocre, que os actos mais admiráveis que se vêem praticar a estes animais resultam apenas de uma obediência bastante servil às ordens que os cornacas lhes dão mais ou menos secretamente.

      - Ora essa! retrucou o capitão Hod, já um pouco exaltado.

       Por isso, observa ele continuou Banks, os indianos nunca escolheram os elefantes como símbolos de inteligência para as suas esculturas ou para os seus desenhos sagrados, e deram preferência à raposa, ao corvo e ao macaco.

       Protesto! exclamou o capitão Hod, cujo braço, gesticulando, tomava os movimentos ondulatórios de uma tromba.

      - Proteste, meu capitão, mas escute prosseguiu Banks. Sanderson acrescenta que o que distingue mais particularmente o elefante é ter no mais alto grau a bossa da obediência, o que lhe deve produzir sobre o crânio uma protuberância menos má.

      Observa também que se deixa cair em laços infantis, infantis é o termo que ele emprega, tais como fossos

      cobertos de ramos de árvores, e que não faz nenhum esforço para sair deles. . . Nota que o elefante se deixa meter em cerrados onde seria impossível meter outros animais selvagens. . .

      (Finalmente, afirma que os elefantes cativos, que logram fugir, deixam-se apanhar outra vez com uma facilidade que não faz muita honra ao seu tino. A experiência nem sequer lhes ensina a serem prudentes!

       Pobres animais retorquiu o capitão Hod num tom cómico, como este engenheiro vos rebaixa!

       Finalmente, acrescenta, e é um último argumento em favor da minha tese tornou Banks, que os elefantes resistem muitas vezes a todas as tentativas de domesticação, por falta de inteligência, e é principalmente difícil domá-los quando são novos ou quando pertencem ao sexo frágil!

       É uma semelhança mais com as criaturas humanas! retorquiu o capitão Hod Pois não são os homens mais fáceis de submeter que as mulheres e as crianças? )

       Meu capitão respondeu Banks, ambos somos celibatários e não temos grande competência sobre a matéria.

      Bem respondido!

       Para concluir acrescentou Banks, digo que não nos devemos fiar muito na bondade suposta do elefante, que seria impossível resistir a um bando destes gigantes, se por algum motivo se enfurecessem, e estimaria muito que os que neste momento nos acompanham tivessem que fazer na banda do norte, visto que nos dirigimos para o sul. . .

      Tanto mais, Banks ponderou o coronel Munro, que, enquanto os senhores discutem, o seu número aumenta numa proporção inquietante.

     

      CEM CONTRA UM

      Sir Edward Munro não se enganava.

      Uma manada de cinquenta a sessenta elefantes marchava agora atrás de nós. Vinham em fileiras muito unidas, e os da frente tinham-se aproximado bastante da Steam House já estavam a menos de dez metros para se poderem observar minuciosamente.

      À frente vinha um dos maiores do grupo, embora o seu tamanho, medido verticalmente na espádua, não excedesse com certeza três metros.

      Como já disse, é um tamanho inferior ao dos elefantes de África, alguns dos quais atingem quatro metros. , As presas, também menos compridas que as do seu congénere africano, não tinham mais de um metro e cinquenta na curva exterior. Se se encontra nas ilhas de Ceilão um certo número destes animais privados das presas armas formidáveis de que se servem com destreza os mucknas, que é o nome que lhes dão, no território propriamente dito do Indostão animais sem presas são muito raros.

      Atrás deste elefante vinham muitas fêmeas, que são as verdadeiras condutoras da caravana.

      Se não fosse a presença da Steam House, teriam elas formado a vanguarda, e o macho viria atrás.

      Os machos, efectivamente, nada entendem da condução da manada. Também não se encarregam dos filhos.

      Não sabem quando é preciso parar para ocorrer às necessidades dos nenés, nem que espécie de acampamentos lhes convêm.

      São pois as fêmeas que no lar doméstico têm moralmente a seu cargo os filhos e que dirigem as grandes migrações.

      Mas, o que fazia pôr-se todo aquele bando em movimento através dos desfiladeiros dos Vindhyas?  Seria a necessidade de abandonar pastagens já esgotadas, a precisão de evitarem a picada de certas moscas muito noviças ou o desejo de seguirem o estranho comboio?  Era uma questão bastante difícil de resolver.

      A região que atravessavam tinha pouco arvoredo, e conforme com os seus hábitos, quando não caminham por

      florestas, os elefantes viajavam de dia.

      E deter-se-iam quando caísse a noite, como nós mesmos seríamos obrigados a fazê-lo?

      É o que havíamos de ver.

      Capitão Hod observei ao nosso amigo, olhe a retaguarda dos elefantes que aumenta. Persiste em não recear nada?

       Qual? respondeu o capitão. Porque é que esses animais nos hão-de querer mal?  Não são tigres, não é verdade, Fox?

       Nem panteras, sequer! disse Fox, que se associava, como era natural, ás ideias do amo.

      Mas a estas palavras vi Kalagani abanar a cabeça em sinal de desaprovação.

      Era claro que não participava da tranquilidade dos dois caçadores.

       Não me parece sossegado, Kalagani observou-lhe Banks, que olhava naquele momento para ele.

      Não se poderia apressar o andamento do comboio?  volveu unicamente o indiano.

      É muito difícil replicou o engenheiro. Vamos em todo o caso experimentar.

      E Banks, retirando-se da varanda de trás, voltou à torrinha onde Storr se encontrava.

      Logo em seguida, os apitos do Gigante de Aço tornaram-se mais precipitados, e a velocidade dos trens aumentou consideràvelmente. Pouco resultado deu isso, porque a estrada era má.

      Mas ainda que se conseguisse aumentar o andamento, a situação não se modificaria. O que os elefantes fariam seria apressarem também o passo, mais nada.

      Foi até o que eles fizeram, e a distância que os separava da Steam House não diminuía.

      Passaram-se assim muitas horas sem modificação importante. Depois do jantar, viemos outra vez para a varanda da segunda carruagem.

      Neste momento, a estrada desenrolava-se à nossa retaguarda numa direcção rectilínea da extensão de duas milhas pelo menos. Por conseguinte, o nosso olhar já não estava limitado por quaisquer curvas súbitas do caminho.

      Qual não foi então o nosso desassossego ao ver que o número dos elefantes aumentara durante a última hora!

      Não se contavam menos de cem.

      Estes animais marchavam então em duas ou três fileiras, conforme a largura do caminho; silenciosos, por assim dizer, com o mesmo passo, uns com a tromba, outros com as presas levantadas.

      A noite ia-se avizinhando, uma noite a que haviam de faltar a claridade da Lua e o esplendor das estrelas.

      Nas altas zonas do céu corria uma espécie de nevoeiro. Como Banks dissera, quando a noite fosse profunda não nos poderíamos obstinar em seguir aquelas estradas difíceis, e não teríamos remédio senão parar.

      O engenheiro resolveu por isso parar logo que qualquer alargamento do vale ou algum desfiladeiro menos estreito permitisse à ameaçadora manada passar pelos lados do comboio e continuar a sua migração para o sul.

      Mas os elefantes fariam isso, ou acampariam, antes, no mesmo lugar onde nós mesmos acampássemos?

      Esta é que era a questão importante.

      Depois, ao cair da noite, percebeu-se bem que os elefantes manifestavam alguma apreensão, da qual durante o dia não observámos nem um sintoma.

      Dos seus vastos pulmões saía uma espécie de mugido, poderoso mas sonoro.

      A este ruído inquietador sucedeu outro, de natureza particular.

       Que é isto agora?  perguntou o coronel.

       É o som que estes animais soltam quando na sua presença se acha algum inimigo respondeu Kalagani.

       E é a nós que eles consideram como inimigos. Não pode ser senão a nós objectou Banks.

       Assim receio retorquiu o indiano. Lembrava o estrondo que se produz no teatro pela vibração de uma folha de zinco suspensa.

      Roçando a tromba pelo solo, soltavam sopros imensos, resultado de uma aspiração prolongada. Era isto que produzia a sonoridade formidável que sobressaltava como o ribombar do trovão.

      Eram então nove horas da noite. Naquele sítio, uma pequena planície, da largura de meia milha, servia de desembocadura ao lago Puturia, junto do qual Kalagani tivera a lembrança de assentar o nosso acampamento.

      O lago, porém, achava-se ainda a quinze quilómetros, e tínhamos de desistir da ideia de o alcançarmos durante

      a noite. Banks deu o sinal de parar.

      O Gigante de Aço ficou estacionário, mas não se desatrelou. Nem sequer se empurrou o lume para o fundo da fornalha. Storr recebeu ordem de a conservar sempre em pressão, para que pudéssemos partir ao primeiro sinal. Convinha estarmos prontos para qualquer eventualidade.

      O coronel Munro recolheu-se ao seu camarote.

      Quanto a Banks e ao capitão Hod, não quiseram deitar-se, e eu preferi fazer-lhes companhia.

      Depois, o pessoal estava todo a pé. Mas que poderíamos fazer se os elefantes tivessem o capricho de se lançarem sobre a Steam House ?  Durante a primeira hora em que estivemos de vigia continuou a propagar-se em volta do acampamento um murmúrio abafado.

      Não havia dúvida de que o bando se estendia pela pequena planície. Atravessá-la-iam os elefantes e continuariam a sua marcha para o sul?

       Afinal, é possível admitiu Banks

      É até provável acrescentou o capitão Hod, cujo optimismo não vacilava.

      Cerca das onze horas o ruído foi diminuindo e, passados dez minutos, cessara completamente.

      A noite estava então perfeitamente sossegada. O mais pequeno som estranho chegar-nos-ia aos ouvidos.

      Nada, porém, se ouvia, além do surdo rouquido do Gigante de Aço. Nada se via também, a não ser o feixe de espirros que lhe saía às vezes da tromba.

       ntão disse o capitão Hod, tinha ou não razão?

       Foram-se os bons dos elefantes.

       Boa viagem volvi eu.

       Foram-se acudiu Banks, abanando a cabeça.

      É o que vamos saber. . .

      Em seguida chamou pelo maquinista.

       Storr disse, os faróis.

       Pronto, senhor Banks.

      Vinte segundos depois, dois feixes de luz eléctrica jorravam dos olhos do Gigante de Aço e, por um maquinismo automático, giravam por todos os pontos do horizonte.

      Os elefantes lá estavam, formando um grande círculo em volta do acampamento, parecendo que dormiam, e talvez dormindo efectivamente.

      Estes fogos, que iluminavam de um modo confuso as suas massas profundas, pareciam animá-las com uma vida sobrenatural.

      Por uma simples ilusão de óptica, os monstros sobre que incidiam os violentos meniscos de luz tomavam então proporções gigantescas, dignas de rivalizarem com as do Gigante de Aço.

      Feridos por aquelas vivas projecções, punham-se subitamente de pé, como se tivessem sido tocados por um aguilhão de fogo. Enristavam a tromba, levantavam as presas.

      Dir-se-ia que iam assaltar o comboio.

      Soltavam das vastas goelas roucos grunhidos. Não tardou que aquele súbito furor se comunicasse a todos, erguendo-se em redor do nosso acampamento um concerto ensurdecedor, como se cem clarins soltassem ao mesmo tempo um toque de chamada.

      Apaga! gritou Banks.

      A corrente eléctrica foi subitamente interrompida, e a matinada cessou instantaneamente.

      Lá estão em círculos informou o engenheiro, e ainda ali estarão ao raiar do dia!

       Olá! exclamou o capitão Hod, cuja confiança nos pareceu um pouco abalada.

      Que resolução se devia tomar?  Kalagani foi consultado.

      Não ocultou a sua inquietação.

      Era possível deixar o acampamento no meio daquela noite tão escura?  Não. Depois, de que nos serviria?

      O bando dos elefantes seguir-nos-ia decerto, e as dificuldades seriam maiores do que durante o dia.

      Combinou-se, portanto, que só ao romper da manhã nos poríamos a caminho. Seguiríamos com toda a prudência e toda a celeridade possíveis, mas sem espantar aquele terrível cortejo.

       E se eles teimam em nos escoltar?  perguntei.

      Diligenciaremos alcançar algum lugar onde a Steam House possa ficar fora das suas investidas respondeu Banks.

       E encontraremos esse lugar antes de saírmos dos Vindhyas?  perguntou o capitão Hod.

       Há um respondeu o indiano.

       Que lugar?  perguntou Banks.

       O lago Puturia.

       A que distância fica?

       Cerca de nove milhas.

      Mas os elefantes nadam observou Banks e talvez melhor que qualquer outro quadrúpede! Tem-se visto elefantes sustentarem-se à superfície da água por espaço de mais de meio dia. Não é pois de recear que eles nos sigam sobre o lago Puturia e a situação da Steam House não fique ainda mais comprometida?

       Não vejo outro meio de nos subtraírmos ao seu ataque disse Kalagani.

      Tentá-lo-emos, pois! retorquiu o engenheiro.

      Era efectivamente a única resolução que se poderia tomar.

      Talvez os elefantes não ousassem aventurar-se a nado naquelas condições, e talvez até os pudéssemos vencer em velocidade.

      Esperámos impacientemente pelo dia. Não tardou que aparecesse. Durante o resto da noite não houvera nenhuma demonstração hostil; porém, ao romper do Sol, víamos que nem um elefante sequer se mexera e que a Steam House estava rodeada por todos os lados.

      Deu-se então um movimento geral no acampamento.

       Dir-se-ia que os elefantes obedeciam a um sinal combinado.

      Sacudiram a tromba, esfregaram as presas contra o solo, fizeram as suas lavagens, aspergindo-se com água fresca, acabaram de comer num ou noutro ponto alguns punhados de erva tenra, que abundava naquelas paragens, e finalmente aproximaram-se da Steam House a ponto de lhes podermos chegar às lançadas através das janelas, Banks recomendou-nos expressamente que não os provocássemos.

      O que importava era não dar nenhum pretexto a uma agressão inesperada.

      Alguns elefantes chegavam-se mais para o nosso Gigante de Aço.

      Evidentemente queriam reconhecer o que era aquele enorme animal, tão imóvel.

      Considerá-lo-iam como um dos seus congéneres?  Suspeitariam que havia nele uma força maravilhosa?

      Na véspera não tiveram ocasião de o ver em acção, porque as suas primeiras fileiras tinham-se sempre conservado a alguma distância para trás de nós.

      Mas que fariam eles quando o ouvissem relinchar, quando a sua tromba lançasse novelos de fumo, quando

      o vissem levantar e baixar as suas grandes patas articuladas, pôr-se em marcha, levar atrás de si dois carros de rodas!

      Eu, o coronel Munro, o capitão Hod e Kalagani tínhamos tomado lugar na frente; o sargento Mac Neil e os seus companheiros conservavam-se atrás.

      Kalouth estava em frente da fornalha, que ele continuava a carregar de combustível, apesar de a pressão do vapor chegar já a cinco atmosferas; Banks, na torrinha, ao pé de Storr, apoiava a mão no regulador.

      O momento de nos pormos a caminho era chegado.

      A um sinal de Banks, o maquinista carregou na alavanca e fez soar um violento apito.

      Os elefantes arrebitaram as orelhas; depois, recuando um pouco, deixaram o caminho livre na extensão de alguns passos. O fluido entrou nos cilindros, saiu da tromba um jacto de vapor, as rodas da máquina, postas em movimento, actuaram nas patas do Gigante de Aço, e o comboio moveu-se todo a um tempo.

      Nenhum dos meus companheiros me há-de contradizer se eu lhes afirmar que os animais que estavam nas primeiras filas fizeram logo um vivo movimento de surpresa.

      Abriram mais largo caminho, e a estrada pareceu-nos suficientemente livre para que se pudesse imprimir à Steam House uma velocidade igual à de um cavalo a pequeno trote.

      Mas no mesmo instante toda a massa proboscídea segundo uma expressão do capitão Hod se moveu, tanto na frente como na retaguarda.

      Os primeiros grupos puseram-se à frente do cortejo, os últimos seguiram o comboio.

      Todos se mostravam resolvidos a não o abandonarem.

      Ao mesmo tempo, dos lados da estrada, que naquele ponto era mais larga, puseram-se a acompanhar-nos outros elefantes, como cavaleiros às portinholas de uma carruagem.

      Estavam misturados machos e fêmeas. Havia-os de todos os tamanhos, de todas as idades, adultos de vinte e cinco anos, homens feitos de sessenta, velhos paquidermes mais que centenários, meninos ao pé das mães, andando e mamando ao mesmo tempo, com a boca apoiada às tetas, a boca e não a tromba, como algumas vezes se tem suposto.

      Todo o bando guardava certa ordem, não se apressava mais do que era preciso, regulando o passo pelo Gigante de Aço.

      Que nos escoltem assim até ao lago disse o coronel

       Munro, consinto. . .

      Sim retorquiu Kalagani, mas que sucederá quando a estrada se tornar mais estreita?

      Era nisto que estava o perigo.

      Não houve nada de extraordinário durante as três horas que levámos a transpor onze quilómetros dos quinze que media a distância do acampamento ao lago Puturia.

      Apenas por duas ou três vezes alguns elefantes se atravessaram na estrada, como se fosse sua intenção impedirem o caminho; mas o Gigante de Aço, com as presas apontadas horizontalmente, marchou sobre eles, cuspiu-lhes o seu vapor no focinho e eles afastaram-se para dar passagem.

      Às dez horas da manhã faltavam quatro a cinco quilómetros para chegar ao lago. Ali, pelo menos assim o esperávamos, estaríamos relativamente em segurança.

      Escusado é dizer que, se as demonstrações hostis da enorme manada não se acentuassem antes da nossa chegada ao lago, Banks tencionava deixar o Puturia, para oeste, sem aí parar, por forma que saísse no dia seguinte da região dos Vindhyas.

      Depois, até à estação de Jubbulpore, seria apenas questão de algumas horas.

      Devo acrescentar que a região que atravessávamos era não só silvestre, mas absolutamente deserta.

      Não se via uma aldeia, uma herdade, e, o que era motivado pela insuficiência das pastagens, nem sequer uma caravana ou um viajante.

      Desde que entrámos na parte montanhosa do Bundelkund não tínhamos encontrado vivalma.

      Pelas onze horas, o vale por onde seguia a Steam House, entre dois formidáveis contrafortes da cordilheira, começou a apertar. Como Kalagani dissera, a estrada ia tornar-se muito estreita até ao sítio onde desembocava sobre o lago.

      A nossa situação, já muito inquietadora, não podia dali em diante senão agravar-se.

      Os elefantes que nos ladeavam não podiam conservar-se no mesmo lugar. Ou nos esmagariam contra as rochas que formavam os lados da estrada, ou seriam lançados nos precipícios que se encontravam em alguns pontos.

      Por instinto, trataram de formar adiante e atrás do comboio. Daqui resultou que dentro em pouco se tornou impossível recuar ou avançar.

       Isto vai-se complicando observou o coronel Munro.

       im, disse Banks, e eis-nos na necessidade de romper esta massa.

       Pois rompe-se, rompe-se! exclamou o capitão Hod. Que demónio! As presas de aço do nosso gigante valem bem as presas de marfim desses tolos animais!

      Os proboscídeos já não passavam de animais tolos para o volúvel e inconstante capitão!

       Já se vê que valem acudiu o sargento Mac Neil, mas nós somos um contra cem!

      Para a frente, em todo o caso! exclamou Banks.

      Ou toda essa manada vai passar por cima de nós!

      Algumas golfadas de vapor imprimiram mais rápido movimento ao Gigante de Aço.

      As suas presas tocaram na garupa de um dos elefantes que se encontravam na frente.

      O animal soltou um grito de dor, a que responderam os clamores furiosos de todo o bando.

      Estava pois iminente uma luta, cujas consequências não eram fáceis de prever.

      Pegámos nas armas. As espingardas estavam carregadas de balas cónicas, as carabinas de balas explosivas,

       os revólveres munidos dos seus cartuchos.

      Era preciso estarmos preparados para repelir qualquer agressão.

      A primeira investida partiu de um macho gigantesco, de feroz aspecto, o qual, com presas em riste, as patas traseiras fortemente apoiadas sobre o solo, se voltou para o Gigante de Aço.

       Um gunesh! exclamou Kalagani.

       Ora! Tem só uma presa! objectou o capitão Hod, encolhendo os ombros em sinal de desprezo.

       Por isso mesmo é mais terrível tornou o indiano. Kalagani dera àquele elefante o nome de que se servem os caçadores para designarem os machos que só têm uma presa.

      São animais particularmente venerados dos indianos, principalmente quando é a presa do lado direito que lhes falta.

      Era o que sucedia a este, e, como dissera Kalagani, era muito temível, como todos os da sua espécie.

      Viu-se isso logo. O gunesh soltou uma demorada nota de clarim, recurvou a tromba, de que os elefantes nunca se servem para combater, e precipitou-se sobre o Gigante de Aço.

      A sua presa bateu em cheio na chapa de ferro do peito, atravessou-a de lado a lado; mas, encontrando a espessa armadura da fornalha interior, quebrou-se logo com a força da pancada.

      Todo o trem sentiu o abalo. Contudo, em resultado da força adquirida, continuou para a frente e repeliu o gunesh, que, marrando em vão, procurou resistir.

      Mas o grito do gunesh fora ouvido e compreendido.

      Todos os elefantes que marchavam à frente do Gigante de Aço pararam e apresentaram um invencível obstáculo de carne viva. No mesmo momento, os grupos da retaguarda, continuando a sua marcha, impeliram-se violentamente uns aos outros contra a varanda.

      Como resistir a semelhante esmagamento?

      Ao mesmo tempo os dos lados, com as trombas erguidas, agarravam-se à armação das carruagens, as quais sacudiam com violência. Não devíamos parar, senão adeus comboio, mas devíamos defender-nos. Não havia hesitação possível. Carabinas e espingardas foram logo apontadas para os assaltantes.

       Não percamos um tiro! bradou o capitão Hod.

       Meus amigos, façam-lhes pontaria ao sítio onde começa a tromba ou à cavidade por baixo do olho. É infalível!

      O capitão Hod foi obedecido.

      Soaram muitas detonações, que foram seguidas de uivos de dor.

      Três ou quatro elefantes, feridos em lugar seguro, caíram em sentido lateral, circunstância feliz, porque os

      cadáveres não nos obstruíram o caminho.

      Os primeiros grupos recuaram um pouco, e o trem pôde continuar a sua marcha.

       Tornem a carregar e esperem! bradou o capitão Hod.

      Se o que ele esperava era o ataque de todo o bando, esse ataque não se fez esperar muito tempo. E deu-se com tamanha violência que nos julgámos perdidos.

      Levantou-se subitamente um concerto de uivos cavos e furiosos.

      Dir-se-ia o uivar dos elefantes de combate que os indianos, graças a um tratamento particular, levam a essa sobreexcitação de raiva chamada musth.

      Não há nada mais terrível, e os arrojados elephantadors, educados no Guicowar para lutarem contra estes temíveis animais, haveriam decerto recuado diante dos assaltantes da Steam House .

       Avante! bradou Banks.

       Fogo! gritava Hod.

      E aos silvos mais precipitados da máquina juntavam-se as detonações das armas.

      Em meio daquela informe massa, tornava-se difícil fazer boa pontaria, como o capitão recomendara.

      Cada uma das balas achava sempre algum pedaço de carne para furar, mas não feria de morte.

      Por isso, os elefantes, feridos, redobravam de furor, e aos nossos tiros correspondiam com arremessos das presas, que estripavam as paredes da Steam House .

      Às detonações das carabinas, que desfechávamos na frente e na traseira do comboio, ao rebentar das balas explosivas no corpo dos animais, juntavam-se os assobios do vapor, excessivamente aquecido pela tiragem artificial.

      A pressão ia sempre aumentando. O Gigante de Aço carregava sobre o bando, dividia-o, repelia-o.

      Ao mesmo tempo a sua tromba móvel, erguendo-se e caindo como formidável maça, despedia repetidas pancadas sobre o montão de carne, que as presas iam dilacerando ao mesmo tempo.

      Avançávamos entretanto pela estrada estreita. Por vezes, as rodas escorregavam na superfície do solo, mas acabavam por morder o terreno com as cambas raiadas, e aproximávamo-nos do lago.

       Hurra! gritava o capitão Hod, como um soldado que se lança no mais aceso da refrega.

       Hurra! Hurra! secundávamos nós.

      Mas, de repente, baixa uma tromba sobre a varanda da frente. Vejo que o coronel Munro vai ser arrebatado

      por este laço vivo e precipitado sob as patas dos elefantes.

      E assim seria se não fosse a intervenção de Kalagani, que cortou a tromba com um vigoroso golpe de machado.

      Como se vê, ao mesmo tempo que tomava parte na defesa comum, o indiano não perdia de vista Sir Edward Munro.

      Na sua dedicação, que nunca se desmentira, pela pessoa do coronel, parecia compreender que era ele a quem devíamos proteger primeiro que tudo.

      Ah! Que força o nosso Gigante de Aço continha nos flancos! com que segurança avançava sobre o bando, à maneira de uma cunha, cuja força de penetração era por assim dizer infinita!

      De repente, ouviu-se um novo ruído em meio do estrondo geral.

      Era a segunda carruagem que um grupo de elefantes esmagava de encontro às rochas da estrada.

      Venham para ao pé de nós! Venham para ao pé de nós! bradou Banks aos nossos companheiros que defendiam traseira da Steam House . Gumi e o sargento Fox já tinham, precipitadamente, passado da segunda para a primeira carruagem.

       E Parazard?  perguntou o capitão Hod.

      Não quer abandonar a cozinha respondeu Fox.

       Arranquem-no de lá!

      Ao tomar aquela atitude o nosso chefe cozinheiro considerava como uma desonra para ele abandonar o posto que lhe fora confiado. Mas resistir aos braços vigorosos de Gumi, quando ele se punha em acção, era o mesmo que pretender resistir aos dentes de uma tenaz.

       Estão aí todos?  perguntou Banks.

      Sim, senhor respondeu Gumi,

      Cortem o jogo dianteiro,

       Abandonar uma parte do comboio! . . . exclamou o capitão Hod.

       Assim é preciso! volveu Banks.

      E, feito isto, despedaçada a pontezinha de passagem a golpes de machado, a nossa segunda carruagem ficou  para trás.

      Era tempo.

      A carruagem foi sacudida, levantada, depois voltada, e os elefantes, caindo-lhe em cima, acabaram de a destroçar com todo o seu peso.

      Era agora apenas uma ruína informe, que obstruía a estrada no sítio por onde acabávamos de passar.

       E então! exclamava o capitão Hod, num tom que nos faria rir se a situação fosse para isso. E dizerem que estes animais não são capazes de esmagar um bichinho sequer!

      Se os elefantes tratassem a primeira carruagem como haviam tratado a segunda, não podíamos alimentar ilusões sobre a sorte que nos esperava.

       Ateia a fornalha, Kalouth! ordenou o engenheiro.

      Mais meio quilómetro, um último esforço, e alcançaríamos talvez o lago Puturia!

      Este último esforço, que esperávamos do Gigante de Aço, fê-lo o possante animal, dirigido pela mão de Storr, que abriu todo o regulador.

      Produziu uma verdadeira aberta na muralha dos elefantes, cujos quartos traseiros se desenhavam por sobre

      a massa total como as enormes garupas de cavalos que se vêem nos quadros de Salvador Rosa.

      Depois não se limitou a espicaçá-los com as suas presas:

       lançou-lhes esguichos de vapor ardente, como fizera aos peregrinos de Phalgou, vergastou-os com jactos de água a ferver. . .

      Estava esplêndido!

      Se o nosso trem pudesse resistir mais dez minutos, ficaria relativamente em segurança.

      Os elefantes decerto que perceberam isso, o que provava a favor da sua inteligência, cuja causa o capitão advogara. Quiseram por um último esforço derribar a nossa carruagem.

      Mas os tiros ribombaram novamente.

      Sobre os primeiros grupos caiu uma chuva de balas. Apenas cinco ou seis elefantes nos impediam ainda a passagem.

      A maior parte tombara, e as rodas rangeram sobre um solo coberto de sangue.

      A cem passos do lago foi preciso repelir os animais que ainda formavam um último obstáculo.

       Mais, mais ainda! gritou Banks ao maquinista.

      O Gigante de Aço roncava como se tivesse dentro de si uma oficina de dobadouras mecânicas.

      O vapor esguichava pelas válvulas sob uma pressão de oito atmosferas.

      Carregando-as mais, pouco que fosse, far-se-ia saltar a caldeira, cujas paredes vibravam.

      Não foi preciso, felizmente. A força do Gigante de Aço era agora irresistível.

      Parecia que saltava sob os movimentos do pistão. O que restava do comboio seguiu-o, esmagando os membros dos elefantes deitados por terra, em risco de se virar. Se tal sucedesse, ficariam perdidos todos os que iam na Steam House .

      Não se deu semelhante acidente. Chegámos finalmente à beira do lago, e daí a nada o comboio flutuava sobre as águas tranquilas.

       Louvado seja Deus! disse o coronel.

      Dois ou três elefantes, cegos de furor, precipitaram-se no lago, e procuraram perseguir à superfície das águas o que não tinham podido aniquilar em terra firme.

      Mas as patas do Gigante de Aço fizeram o seu dever.

      O comboio foi pouco a pouco afastando-se da margem, e umas últimas balas, a que se deu boa pontaria, livraram-nos dos monstros marinhos, no momento em que iam baixar a tromba sobre a varanda de trás.

      Agora, meu capitão, que pensa da mansidão dos elefantes da índia?

       Ora! Não chegam aos tigres! respondeu o capitão.

       Se em vez desses cem paquidermes, fossem trinta tigres a atacar-nos, garanto-vos que neste momento nem um de nós estaria vivo para narrar o acontecimento!

     

      O LAGO PUTURIA

      O lago Puturia, onde a Steam House acabava de procurar provisoriamente refúgio, está situado a quase quarenta quilómetros a leste de Dumoh.

      Esta cidade, que é a capital da província inglesa a que deu o nome, está em franca prosperidade, e com os seus doze mil habitantes, reforçados por uma pequena guarnição, domina a perigosa região do Bundelkund.

      Mas, na direcção oriental da província, na região mais inculta dos Vindhyas, cujo centro é ocupado pelo lago, a sua influência só dificilmente se faz sentir.

      Afinal, que podia agora suceder-nos pior do que o encontro com os elefantes, de que havíamos saído sãos e salvos?

      Entretanto, a situação não podia deixar de ser inquietante, pois que a maior parte do nosso material havia desaparecido.

      Uma das carruagens de que se compunha o comboio da Steam House estava inteiramente destruída.

      Não tínhamos meio algum de a consertar.

      Derribada no solo, esmagada de encontro aos rochedos, do seu madeiramento, sobre o qual inevitavelmente passara a maioria dos elefantes, só deviam restar informes destroços.

      E essa carruagem, ao mesmo tempo que servia para abrigar o pessoal da expedição, continha não só a cozinha

      e a despensa, mas também a reserva dos mantimentos e das munições.

      Destas só nos restavam uma dúzia de cartuchos, mas não era provável que tivéssemos de nos servir de armas de fogo antes de chegarmos a Jubbulpore.

      Quanto aos alimentos, era essa outra questão, e mais difícil de resolver.

      Das provisões da despensa já não restava nada.

      Supondo que chegássemos no outro dia à noite à estação, distante ainda setenta quilómetros, teríamos de nos resignar a passarmos vinte e quatro horas sem comer. Palavra que nos havíamos de conformar!

      Nestas circunstâncias, quem mais consternado se mostrou foi, como era natural, Parazard.

      A perda da sua despensa, a destruição do seu laboratório, a dispersão da sua reserva, tinham-no ferido no coração.

      Não ocultou o seu desespero, e, esquecendo os perigos aos quais acabávamos quase milagrosamente de escapar, só se mostrou preocupado com a situação pessoal que lhe fora criada.

      Por isso, no momento em que, reunidos na sala principal, íamos discutir a resolução que em tais circunstâncias se devia tomar, Monsieur Parazard, sempre solene, assomou ao limiar da porta e pediu licença para fazer uma comunicação da mais alta gravidade.

       Fale, Monsieur Parazard disse-lhe o coronel

      Munro, convidando-o a entrar.

       Senhores começou gravemente o nosso cozinheiro negro, não ignoram que todo o material que se continha na segunda carruagem da Steam House foi destruído pela catástrofe! Ainda que se desse o caso de nos restarem algumas provisões, ver-me-ia muito embaraçado, por falta de cozinha, para lhes preparar uma refeição, mesmo ainda a mais modesta que fosse!

      Bem sabemos isso, Monsieur Parazard redarguiu o coronel Munro. É triste, mas faremos o que pudermos, e jejuaremos se for preciso jejuar.

       E, com efeito, senhor, é tanto mais triste recomeçou o nosso cozinheiro que à vista desses grupos de elefantes

       que nos atacavam e dos quais mais de um caiu sob as vossas balas mortíferas. . .

       Bonita frase, Monsieur Parazard! . . . exclamou o capitão Hod.

       com algumas lições há-de chegar a exprimir-se como o nosso amigo Van Guitt.

      Parazard inclinou-se perante este cumprimento, que ele tomou muito a sério; e, depois de soltar um suspiro, continuou: Digo, pois, meus senhores, que se me ofereceu uma ocasião única de me distinguir nas minhas funções.

      A carne de elefante, apesar de tudo quanto se tenha pensado a respeito dela, não é boa em todas as suas partes, algumas das quais são incontestavelmente duras e coriáceas; mas parece que o Autor de todas as coisas quis reservar nesta massa carnuda duas partes que são de primeira qualidade, dignas de serem servidas na mesa do vice-rei das índias. Refiro-me à língua do animal, que é extraordinariamente saborosa, quando preparada segundo uma receita cuja aplicação é propriamente minha, e os pés do paquiderme. . .

       Paquiderme! . . . Muito bem, ainda que proboscídeo seja mais elegante! disse o capitão Hod, aprovando com um gesto.

      Pés prosseguiu Parazard, - com os quais se faz uma das melhores sopas conhecidas nessa arte culinária da qual sou representante na Steam House .

       Monsieur Parazard faz-nos crescer água na boca redarguiu Banks. Mas, infelizmente por um lado e felizmente pelo outro, os elefantes não nos seguiram no

      lago, e receio que tenhamos de desistir, pelo menos por algum tempo, da sopa de pés e do guisado de língua desse saboroso animal.

       Não seria possível tornou o cozinheiro voltar a terra para se obterem. . .

       Não é possível acudiu Banks. - Por muito perfeitas que fossem as suas preparações, não podemos correr o risco. . .

       Nesse caso, meus senhores, recebam a expressão de todo o pesar que me causa esta deplorável aventura.

       O seu pesar está expresso, Monsieur Parazard volveu o coronel Munro, e dele lhe passamos certidão.

      Quanto ao jantar e ao almoço, não se preocupe com eles enquanto não chegarmos a Jubbulpore.

      Só me resta retirar concluiu Parazard, inclinando-se sem perder coisa alguma da sua gravidade habitual.

      Houvéramos de bom grado rido da atitude do nosso cozinheiro se não tivéssemos então outras preocupações.

      Vinha juntar-se uma complicação a tantas outras. Banks declarou-nos que naquele momento o que mais tínhamos de sentir não era a falta de víveres nem de munições, mas de combustível. Esta falta não era para admirar, porque havia quarenta e oito horas que não era possível renovar a provisão de lenha necessária para alimentação da máquina.

      Ao chegarmos ao lago tínhamos toda a nossa reserva esgotada. Se carecêssemos de mais uma hora de marcha, não nos teria sido possível alcançá-lo, e a primeira carruagem da Steam House houvera tido a mesma sorte que a segunda.

       Agora acrescentou Banks nada mais temos que queimar, a pressão vai diminuindo, já desceu a duas atmosferas, e não há meio de a elevar.

       Pois a situação é tão grave como pareces supô-la?

      perguntou o coronel Munro.

      Se se tratasse de voltar à margem, de que ainda estamos pouco afastados, a coisa era possível respondeu Banks. Bastaria um quarto de hora para lá chegarmos.

       Mas, voltarmos ao sítio onde a manada de elefantes ainda está reunida, seria muito imprudente. Não, o que convém, pelo contrário, é atravessarmos o Puturia e procurar na margem do sul um ponto de desembarque.

       Que largura terá o lago nesse sítio?  perguntou o coronel Munro.

       Kalagani calcula-a numas sete a oito milhas. Nas condições em que nos encontramos, seriam necessárias muitas horas para a transpormos, e em menos de quarenta minutos a máquina estará impossibilitada de funcionar.

       Pois nesse caso ponderou Sir Edward Munro passemos sossegadamente a noite no lago. Estamos aqui em segurança. Amanhã veremos o que se terá de fazer.

      Era o mais aconselhável. Demais, necessitávamos de um bom descanso. Na última vez que fizemos alto, tínhamo-nos visto rodeados de elefantes e ninguém pudera dormir na Steam House, passando-se, como se costuma dizer, a noite em branco.

      Mas se aquela se passara em branco, esta tinha de se passar em negro, e mais em negro do que convinha.

      com efeito, por volta das sete horas, principiou a levantar-se sobre o lago um ténue nevoeiro.

      Na noite precedente, como não deve ter esquecido, já grandes nuvens corriam pelas altas zonas do céu.

      Em razão da diferença das localidades, aqui dera-se uma modificação.

      Se no acampamento dos elefantes estes vapores se conservavam a algumas centenas de pés acima do solo, não sucedia o mesmo sobre a extensão do Puturia, graças à evaporação das águas.

      Após um dia bastante quente, entraram a confundir-se as camadas altas com as camadas baixas da atmosfera,

      e não tardou que todo o lago desaparecesse sob um denso nevoeiro, a princípio pouco intenso, mas que de momento para momento ia engrossando.

      Como Banks dissera, era uma complicação que tinha de se tomar em conta.

      Como também o engenheiro anunciara, fizeram-se ouvir os últimos gemidos do Gigante de Aço, os movimentos do pistão tornaram-se menos rápidos, as patas articuladas cessaram de bater na água e a pressão desceu abaixo de uma atmosfera.

      Combustível já não havia, nem meio de o obter.

      O Gigante de Aço e a única carruagem que ele puxava flutuavam agora serenamente sobre as águas do lago,

      mas já não se deslocavam.

      Nestas condições, em meio do nevoeiro, era difícil calcular exactamente a nossa situação.

      Durante o pouco tempo que a máquina funcionara, o comboio dirigia-se para a margem sueste do lago, a fim

      de aí procurar um ponto de desembarque. Como o lago Puturia dá ares de uma oval bastante alongada, era possível que a Steam House não estivesse muito distante de alguma das suas margens.

      É escusado dizer que os berros dos elefantes, que nos tinham perseguido durante quase uma hora, agora, apagados pela distância, já não se ouviam.

      Pusemo-nos a conversar a respeito das diversas eventualidades que nos reservava esta nova situação.

      Banks chamou Kalagani, a quem desejava consultar.

      O indiano apresentou-se logo e pediu-se-lhe o seu parecer.

      Estávamos então reunidos na casa de jantar, a qual, como recebia a claridade pela clarabóia superior, não tinha janelas laterais. Por este motivo, as luzes com que nos alumiávamos não podiam ser vistas.

      Esta precaução era conveniente, precaução útil, afinal, porque se desejava que a situação da Steam House não fosse conhecida de quaisquer rondadores que acaso andassem pelas margens do lago.

      Às perguntas que se lhe fizeram, Kalagani pelo menos assim me pareceu como que hesitou a princípio em responder.

      Tratava-se de determinar a posição que o Gigante de Aço devia ocupar sobre as águas do Puturia, e concordei que a resposta não deixava de ser embaraçosa.

      Quem sabe se a brisa do noroeste teria actuado sobre a marcha da Steam House ?  Quem sabe também se uma corrente pouco forte nos arrastava para a extremidade inferior do lago?

      Vejamos, Kalagani disse Banks ao indiano, você conhece perfeitamente qual é a extensão do Puturia?

       Decerto, senhor respondeu o indiano, mas é difícil, no meio deste nevoeiro.

       Poderia avaliar aproximadamente a distância a que nos achamos agora da margem mais próxima?

       Posso respondeu Kalagani, depois de reflectir por algum tempo. A distância não deve exceder milha e meia. A leste?  perguntou Banks.

       A leste.

      Posto isto, se tomássemos terra nesta direcção, achar-nos-íamos mais perto de Jubbulpore do que de Dumoh?

      Com certeza.

       Seria, pois, em Jubbulpore que nos conviria reabastecer-nos disse Banks. Ora quem sabe quando e como poderemos alcançar a margem. Isto pode durar um ou dois dias, e as nossas provisões estão esgotadas. . .

       Mas tornou Kalagani não seria possível tentarmos, ou pelo menos um de nós tentar desembarcar esta noite mesmo?

       Mas como?

       Alcançando a terra a nado.

       Milha e meia, no meio deste espesso nevoeiro!

      observou Banks. Seria arriscar a vida.

      Não é uma razão para se não experimentar retorquiu o indiano.

      Não sei porquê, mas tornou a parecer-me que a voz

      de Kalagani não tinha a sua franqueza habitual.

       Era capaz de tentar a passagem do lago a nado?

      perguntou o coronel Munro, que observava atentamente o indiano.

       Sim, coronel, e tenho razões para crer que hei-de sair-me bem.

       Pois, meu amigo, prestar-nos-ia um grande serviço!

      Se alcançasse a terra, ser-lhe-ia fácil ir à estação de Jubbulpore e trazer-nos os socorros de que temos necessidade.

       Estou pronto para partir declarou Kalagani com toda a simplicidade.

      Esperava que o coronel Munro agradecesse ao nosso guia, que se oferecia para desempenhar tão arriscada empresa, mas o coronel, depois de olhar para ele mais atentamente ainda, chamou por Gumi.

       Gumi disse, tu és um excelente nadador?

       Sim, meu coronel.

       Milha e meia nesta noite, pelas águas tranquilas do lago, não seria para ti de grande dificuldade?

       Nem uma milha, nem duas.

       Pois aqui está Kalagani que se oferece para alcançar a nado a margem mais próxima de Jubbulpore

      tornou o coronel. Julgo que tanto no lago como nesta parte de Bundelkund, dois homens inteligentes e atrevidos, que se auxiliem mutuamente, têm mais probabilidades de êxito. Queres acompanhar Kalagani?

       Pronto, meu coronel! respondeu Gumi.

       Não tenho necessidade de pessoa alguma objectou Kalagani, mas se o coronel Munro assim o quer, aceito

      de boa vontade Gumi por companheiro.

       Vão pois, meus amigos rematou Banks, e sejam tão prudentes como são corajosos.

      Combinado isto, o coronel Munro, chamando Gumi à parte, fez-lhe algumas recomendações formuladas em poucas palavras.

      Dali a cinco minutos, os dois indianos, com a trouxa do fato à cabeça, deixaram-se deslizar pelas águas do lago, O nevoeiro era então muito intenso, e bastaram algumas braçadas para os pôr fora do alcance da vista.

      Perguntei então ao coronel Munro porque é que mostrara tantos desejos de dar um companheiro a Kalagani.

       Meus amigos respondeu Sir Edward Munro, as respostas deste indiano, de cuja fidelidade não desconfiara até hoje, não me pareceram francas. Experimentei a mesma impressão disse eu.

       Da minha parte, coisa alguma notei observou o engenheiro.

       Ouve lá, Banks tornou o coronel Munro.

      Quando se nos ofereceu para ir a terra, Kalagani tinha um pensamento reservado.

       E que pensamento?

       Não sei, mas se me pediu para desembarcar não foi na ideia de ir buscar socorros a Jubbulpore!

      Que é isso?  perguntou o capitão Hod.

      Banks olhava para o coronel, carregando muito as sobrancelhas.

       Munro disse ele, até aqui este indiano tem-se mostrado muito dedicado, principalmente a ti! Hoje pretendes que Kalagani nos atraiçoa! Que provas tens disso?

       Enquanto Kalagani falava respondeu o coronel Munro, vi-lhe enegrecer a cara, e quando isto sucede aos indivíduos de cor acobreada é porque ’mentem! Muitas vezes tenho por este ’modo perturbado indianos e bengalis, e nunca me enganei. Repito, pois, que Kalagani, apesar de todas as presunções em seu favor, não diz a verdade. Como muitas vezes verifiquei depois, esta observação de Sir Edward Munro era fundada.

      Quando mentem, os indianos escurecem levemente, como os brancos coram.

      Este sintoma não escapara à perspicácia do coronel, e devia tomar em conta a sua observação.

      

       Mas quais serão então os projectos de Kalagani, e porque nos atraiçoará ele?  perguntou Banks.

       É o que mais tarde havemos de saber. . . respondeu o coronel Munro tarde de mais talvez!

       Tarde de mais! exclamou o capitão Hod. Ora!

      Parece-me que não estamos perdidos!

       Em todo o caso, Munro acrescentou o engenheiro, fizeste bem em lhe juntares Gumi. Este ser-nos-á dedicado até à morte. Esperto, inteligente, se suspeitar algum perigo, saberá. . .

      Tanto mais interrompeu o coronel Munro que está prevenido e desconfiará do seu companheiro.

       Bem disse Banks, agora só temos de esperar

      o dia. Este nevoeiro desfar-se-á decerto com o sol, e então veremos que resolução devemos tomar.

      Efectivamente tínhamos de esperar! Aquela noite devia-se passar numa insónia completa.

      O nevoeiro tornara-se mais denso, mas nada fazia pressagiar a aproximação do mau tempo. E ainda bem que assim era, porque, se o nosso aparelho podia flutuar, não tinha construção para aguentar o mar.

      Enquanto o nosso pessoal tomava lugar na casa de jantar, instalávamo-nos nos divãs do salão, conversando pouco, mas prestando ouvidos ao menor ruído exterior.

      De repente, por volta das duas horas da noite, um concerto de feras veio perturbar o silêncio.

      A margem ficava, portanto, além, na direcção de sueste, mas devia estar ainda bastante afastada.

      Os rugidos chegavam muito enfraquecidos pela distância, a qual Banks calculou em menos de uma boa

      milha.

      Um bando de animais selvagens viera decerto mitigar a sede na extremidade do lago.

      Depressa também verificámos que, sob o impulso de uma ligeira brisa, o aparelho flutuante ia derivando para a argem de uma maneira lenta e continuada.

      Efectivamente, não só os uivos nos iam chegando mais distintamente aos ouvidos, como já se diferenciava o

      grave rugido do tigre e do bramido rouco da pantera.

      Hem?  Que excelente ocasião de matar o quinquagésimo!

       Outra vez será, meu capitão! retorquiu Banks.

      Quando romper o dia, apraz-me pensar que, no momento em que tocarmos em terra, o bando das feras já nos terá cedido o lugar.

       Haverá algum inconveniente em pôr os faróis eléctricos em actividade?

       Não me parece respondeu Banks. Provavelmente esta parte da margem só está ocupada por animais que vêm beber, e portanto não haverá inconveniente em proceder a um reconhecimento.

      E por ordem de Banks projectaram-se na direcção de sueste dois fachos luminosos. Mas a luz eléctrica, impotente perante aquele opaco nevoeiro, só pôde iluminar um pequeno sector em frente da Steam House, e a margem continuou absolutamente invisível para nós.

      Entretanto, estes uivos, cuja intensidade ia pouco a pouco aumentando, indicavam que o comboio não cessava

       de derivar sobre a superfície do lago. Os animais reunidos na margem deviam ser muito numerosos, o que não admirava, porque o lago Puturia é como um bebedouro natural para as feras daquela região do Bundelkund.

       Contanto que Kalagani e Gumi não caíssem no meio do bando! exclamou o capitão Hod.

       Não são os tigres que eu receio por Gumi! contrapôs o coronel Munro.

      Decididamente as suspeitas continuavam a aumentar no espírito do coronel.

      Pela minha parte principiava a partilhá-las. Os obséquios de Kalagani desde a nossa chegada à região do Himalaia, os seus serviços incontestáveis, a sua dedicação naquelas duas circunstâncias em que ele arriscara a vida pelo coronel Edward Munro e pelo capitão Hod, tudo depunha em seu favor. Mas quando o espírito se deixa invadir pela dúvida, a valia dos factos consumados altera-se, muda a sua fisionomia, esquece-se o passado, receia-se pelo futuro.

      Contudo, qual poderia ser o móbil que levava o indiano a atraiçoar-nos?  Teria motivos de ódio pessoal contra os viajantes da Steam House ?  Não, por certo! Porque os teria atraído a uma cilada?  Era inexplicável. Todos se perdiam em confusas suposições, e a impaciência pelo desenlace da situação apoderava-se de nós.

      De repente, pelas quatro horas da manhã, os animais cessaram de repente os seus rugidos.

      O que sobretudo atraiu o nosso reparo foi que eles não se afastaram pouco a pouco, uns depois dos outros, voltando o último rugido após o último golo.

      Não, foi instantâneo. Dir-se-ia que uma circunstância fortuita acabava de os perturbar na sua tarefa e os fizera fugir.

      Era claro que regressavam aos seus covis, não como animais que se retiram, mas como animais que fogem!

      O silêncio sucedera ao ruído sem transições.

      Produziu-se um efeito cuja causa ainda não conhecíamos, mas que não deixou de aumentar a nossa inquietação.

      Por prudência, Banks deu ordem de apagar os faróis. Se os animais tinham fugido diante de algum bando destes salteadores de estrada que frequentam os Vindhyas e o Bundelkund, era conveniente ocultar com toda a cautela a situação da Steam House . Agora, o silêncio nem já era perturbado pelo ligeiro marulhar das águas.

      A brisa amainara.

      Era impossível saber se a Steam House continuava ou não a derivar. Mas o dia não tardaria a romper, e havia decerto de varrer aqueles nevoeiros, que pairavam nas camadas inferiores da atmosfera.

      Consultei o relógio. Eram cinco horas.

      Se não fosse o nevoeiro, a alva já teria alargado o campo de visão por espaço de algumas milhas. Avistar-se-ia a margem. Mas o véu não se rasgava. Era preciso enchermo-nos de paciência por mais algum tempo ainda.

      Eu, o coronel e Mac Neil na parte da frente do salão, Fox, Kalouth e Parazard na parte de trás da casa de jantar, Banks e Storr na torrinha, o capitão Hod escarranchado no lombo do gigantesco animal, próximo da tromba, como um marinheiro de vigia na proa do navio, esperávamos que um de nós gritasse: Terra!

      Pelas seis horas levantou-se uma brisa, a princípio pouco sensível, mas que depressa refrescou.

      Os primeiros raios do Sol romperam a névoa, e o horizonte surgiu aos nossos olhos.

      Descobrimos a margem a sueste. Formava na extremidade do lago uma espécie de angra em bico, muito coberta de arvoredo no plano do fundo.

      Os vapores foram pouco a pouco subindo e deixaram ver um fundo formado de montanhas, cujos cumes rapidamente se descobriram.

       Terra! bradou o capitão Hod.

      O comboio flutuante não estava então a mais de duzentos metros da angra do Puturia e derivava impelido pela brisa que soprava do noroeste.

      Nada se descobriu em terra.

      Nem um animal, nem uma criatura humana. Parecia estar absolutamente deserta. Nem uma plantação sob a densa ramada das primeiras árvores.

      Parecia, portanto, que se podia tomar terra sem haver perigo.

      Como o vento ajudava, fez-se isto com facilidade junto de uma margem muito plana, como se fora uma praia de areia. Mas, por falta de vapor, não era possível nem subi-la nem tomar por uma estrada que, segundo a direcção dada pela bússola, devia ser a estrada de Jubbulpore.

      Sem perda de um instante, seguimos o capitão Hod, que fora o primeiro a saltar em terra.

      Vamos ao combustível! bradou Banks. Numa hora, estaremos em pressão, e avante!

      A apanha era fácil. Havia lenha por todos os lados, e o solo estava bastante seco para a podermos imediatamente utilizar.

      Bastava encher a fornalha, carregar o tênder.

      Deitaram-se todos à faina.

      Só Kalouth ficou diante da sua caldeira, enquanto nós apanhávamos combustível para vinte e quatro horas.

      Não precisávamos de mais para alcançar a estação de Jubbulpore, onde o carvão não nos faltaria.

      Quanto ao alimento, cuja necessidade se fazia sentir, não seria proibido aos caçadores que se fornecessem pelo caminho.

      O cozinheiro pediria lume emprestado a Kalouth, e iríamos saciando a fome conforme pudéssemos.

      Dali a três quartos de hora, o vapor tinha pressão suficiente, e o Gigante de Aço punha-se em movimento e assentava finalmente as patas no declive da praia, à entrada da estrada.

       Para Jubbulpore! bradou Banks.

      Mas não tinha ainda Storr bem tempo de dar meia volta ao regulador, quando à beira da floresta reboaram gritos furiosos.

      Caía sobre a Steam House um bando de nada menos de cento e cinquenta indianos.

      A torrinha do Gigante de Aço, a carruagem, tanto pela frente como pela parte de trás, eram invadidas ainda antes de termos tempo de compreendermos o que se passava.

      Quase no mesmo instante, os indianos levavam-nos para cinquenta passos de distância do comboio, tirando-nos a possibilidade de fugir!

      Avalie-se a nossa cólera e a nossa raiva perante a cena de destruição e saque que se seguiu!

      Os selvagens, de machado em punho, precipitaram-se ao assalto da Steam House .

      Foi tudo saqueado, roubado, destruído. Dentro em pouco, nada restava da mobília interior! Depois o fogo acabou a obra de destruição, e em poucos minutos tudo o que podia arder da nossa última carruagem foi destruído pelas chamas!

       Poltrões! Canalhas! exclamou o capitão Hod, que muitos indianos com dificuldade continham.

      Mas, como nós, via-se reduzido a inúteis injúrias, que os selvagens não podiam compreender sequer.

      Quanto à fuga, nem nisso devíamos pensar.

      Extinguiram-se as últimas chamas, e daí a pouco apenas restava o esqueleto informe do pagode ambulante, que acabava de atravessar metade da península! Os indianos assaltaram em seguida o nosso Gigante de Aço. Também o queriam destruir.

      Mas perante ele achavam-se impotentes. Nem o machado nem o fogo podiam coisa alguma contra a espessa armadura de chapas de ferro que formava o corpo do elefante artificial, nem contra a máquina que trazia dentro de si.

      Apesar dos esforços dos selvagens, o Gigante ficou imóvel, com grandes aplausos do capitão Hod, que soltava

      hurras de prazer e de raiva. Apareceu naquele momento um homem. Devia ser o chefe dos assaltantes.

      O bando veio logo formar todo em frente dele.

      Acompanhava-o outro homem.

      Tudo se explicou. O segundo era Kalagani, o nosso guia.

      De Gumi não havia vestígios.

      Desaparecera o fiel, restava o traidor.

      A dedicação do nosso bravo servidor custara-lhe a vida, e não> devíamos tornar a vê-lo!

      Kalagani avançou para o coronel Munro, e friamente, sem baixar os olhos, disse, apontando para ele:

       Este!

      A um gesto, Sir Edward Munro foi agarrado, levado à força, e desapareceu no meio do bando, que subiu a estrada na direcção do sul, sem ter podido apertar-nos a mão pela última vez, nem dizer-nos um último adeus!

      O capitão Hod, Banks, o sargento, Fox, todos nós,

      enfim, nos quisemos soltar para o arrancarmos das mãos dos selvagens!

      Cinquenta braços nos lançaram por terra.

      Mais um movimento que fizéssemos e esganavam-nos.

       Nada de resistência recomendou Banks.

      O engenheiro tinha razão. Nada podíamos fazer neste momento para livrar o coronel Munro.

      Portanto, valia mais reservarmo-nos, na previsão de ulteriores acontecimentos.

      Dali a um quarto de hora os indianos abandonavam-nos e partiam no encalço do primeiro bando.

      Se os seguíssemos, poderia ocasionar uma catástrofe sem proveito para o coronel Munro, e não obstante íamos tentar tudo para nos reunirmos a ele. . .

       Nem mais um passo! ordenou Banks.

      Obedecemos-lhe.

      Afinal, era com certeza ao coronel Munro, a ele só, que vinham buscar os companheiros de Kalagani.

      Quais seriam as intenções daquele traidor?

      Era claro que não procedia por conta própria. Mas a quem obedecia?  Ocorreu-me o nome de Nana Sahib Acaba aqui o manuscrito redigido por Maucler. O jovem francês não teria ocasião de relatar mais nada dos sucessos que iam precipitar o desenlace deste drama.

      Estes sucessos, porém, foram conhecidos mais tarde e, reunidos sob a forma de uma narrativa, completam a relação desta viagem através da índia setentrional.

     

      FRENTE A FRENTE

      Os tuges, de sanguinária memória, de que o Indostão parece ter ficado livre, deixaram sucessores dignos deles, os dacoits, espécie de tugues transformados.

      Mudou a maneira de execução destes malfeitores, o fito dos assassinos já não é o mesmo, mas o resultado é idêntico: é a morte premeditada, o assassinato.

      Já não se trata, na verdade, de uma vítima à Kali, deusa da morte. Se os novos fanáticos não operam por estrangulação, envenenam para roubar.

      Aos estranguladores sucederam criminosos mais práticos, mas igualmente temíveis.

      Os dacoits, que formam bandos em certos territórios da península, acolhem todos os assassinos que a justiça anglo-indiana deixa escapar pelas malhas da sua rede.

      Batem dia e noite as estradas principais, particularmente nas regiões mais selváticas, e é sabido que o Bundelkund proporciona teatros já preparados para estas cenas de violência e de roubo.

      Muitas vezes os bandidos reúnem-se em maior número para atacarem uma aldeia isolada. Os habitantes só têm um recurso: fugir. A tortura, com todos os seus requintes, espera aqueles que ficam em poder dos dacoits.

      As tradições dos inquisidores do Extremo Ocidente renovam-se. A crer o que diz Luís Rousseleí, os ardis daqueles miseráveis, os seus meios de acção, ultrapassam tudo o que os mais fantasiosos romancistas têm imaginado!

      Fora em poder de um bando de dacoits, guiados por Kalagani, que o coronel Munro caíra.

      Ainda antes de poder apreciar a sua situação, brutalmente separado dos companheiros, fora violentamente

      impelido pela estrada de Jubbulpore.

      O procedimento de Kalagani, desde o dia em que entrara em relações com os hóspedes da Steam House, não fora mais que o de um traidor.

      Pelo próprio Nana Sahib é que ele fora enviado, por ele é que fora escolhido para lhe preparar a vingança.

      Hão-de estar lembrados que no dia 24 de Maio último, em Bopal, por ocasião das últimas festas do Moharum, em que audaciosamente se infiltrara, o nababo foi prevenido da partida de Sir Edward Munro para as províncias

      setentrionais da índia.

      Por sua ordem, Kalagani, um dos indianos mais inteiramente dedicados à sua causa e à sua pessoa, deixara o Nepal.

      Lançar-se nas pegadas do coronel, encontrá-lo, segui-lo, não mais o perder de vista, jogar a vida, se preciso fosse, para se fazer admitir na comitiva do implacável inimigo de Nana Sahib, tal era a sua missão.

      Kalagani pusera-se logo a caminho, dirigindo-se para as regiões do norte.

      Em Cawnpore pôde alcançar a Steam House .

      A partir daquele momento, sem se deixar ver, pôs-se à espreita de ocasiões que não apareceram.

      Foi por isso que enquanto o coronel e os seus companheiros se instalavam no sanitarium do Himalaia, decidia e a entrar para o serviço de Matias Van Guitt.

      O instinto de Kalagani dizia-lhe que forçosamente se estabeleceriam relações quase quotidianas entre o kraal e o sanitarium. Foi o que efectivamente sucedeu, e logo no primeiro dia foi tão feliz que não só se fez notado pelo coronel Munro, como até adquiriu direitos ao seu reconhecimento.

      O ’mais difícil estava feito.

      Sabe-se o resto.

      O indiano foi muitas vezes à Steam House .

      Pôs-se ao facto dos projectos ulteriores dos seus hóspedes e pôde conhecer o itinerário que Banks tencionava seguir.

      A partir de então, uma ideia dominou todos os seus actos: conseguir que o aceitassem como guia da expedição, quando esta descesse para o sul.

      Para alcançar este fim, Kalagani não desprezou a mais pequena coisa.

      Não hesitou em arriscar, não só a vida dos outros, mas também a sua.

      Em que circunstâncias?

      O leitor não o deve ter esquecido.

      Acudira-lhe ao pensamento que, se acompanhasse a expedição desde o princípio da viagem, ficando ao mesmo tempo ao serviço de Matias Van Guitt, desvanecer-se-ia Qualquer suspeita, e até o próprio coronel Munro se lembraria de oferecer-lhe o que ele queria precisamente obter.

      Mas, para alcançar isso, era preciso que o fornecedor, privado dos seus búfalos, se visse obrigado a pedir o

      auxílio do Gigante de Aço.

      Provém daqui o assalto das feras.

      Em risco de ocasionar um desastre, não hesitou, sem que dessem por isso, em destrancar as portas do kraal.

      Os tigres e as panteras precipitaram-se no recinto, os búfalos foram dispersos ou aniquilados, muitos indianos sucumbiram, mas o plano de Kalagani deu bom resultado.

      Matias Van Guitt viu-se obrigado a recorrer ao coronel Munro para poder pôr-se novamente a caminho de Bombaim com a sua casa de bichos ambulante com efeito, renovar os seus animais de tiro naquela região quase deserta do Himalaia seria difícil. Em todo o caso, foi Kalagani que se encarregou desta diligência por conta do fornecedor.

      Como não podia deixar de ser, nada conseguiu, e foi assim que Matias Van Guitt, caminhando a reboque do Gigante de Aço, desceu com todo o seu pessoal até à estação de Etawah.

      Aí o caminho de ferro é que devia incumbir-se do material da colecção.

      Despediram-se os chikaris, e Kalagani, que já não servia para coisa alguma, ia partilhar a sua sorte.

      Foi então que se mostrou muito embaraçado com o que ia ser dele.

      Banks caiu no logro.

      Disse consigo que aquele indiano, inteligente e dedicado, conhecendo perfeitamente todas aquelas regiões da índia, poderia prestar verdadeiros serviços.

      Kalagani ofereceu-se-lhe para guia até Bombaim, e daquele dia em diante a sorte da expedição ficou imediatamente nas mãos do miserável.

      Ninguém podia suspeitar um traidor naquele homem sempre pronto a sacrificar a sua pessoa.

      Houve um momento em que Kalagani se ia denunciando.

       Foi quando Banks lhe falou na morte de Nana Sahib.

      Não pôde conter um gesto de incredulidade, e meneou a cabeça como homem que não podia acreditar o que ouvia. Mas não sucederia o mesmo a todo o indiano, para quem o legendário nababo era um desses entes sobrenaturais perante os quais a morte é impotente? !

      Teria Kalagani a confirmação desta nova quando e isto não foi acaso encontrou um dos antigos companheiros na caravana dos banjaris?  Ignoramos, mas é de supor que ficasse sabendo a verdade.

      O certo é que o traidor não abandonou os seus desígnios odiosos, como se quisesse realizar por sua conta os projectos do nababo.

      Foi por isto que a Steam House continuou a sua jornada através dos desfiladeiros dos Vindhyas, e, depois das peripécias que conhecem, os viajantes chegaram às margens do Puturia, ao qual foi preciso pedir refúgio. Aí, quando Kalagani quis deixar o comboio flutuante, sob pretexto de se dirigir a Jubbulpore, denunciou-se.

      Por muito bem que ele se soubesse dominar, um simples fenómeno fisiológico, que não podia escapar à perspicácia do coronel, tornara-o suspeito, e sabe-se agora que as suspeitas de Sir Edward Munro eram muito fundadas.

      Deixaram-no partir, mas agregaram-lhe Gumi. Precipitaram-se ambos nas águas do lago, e, passada uma hora, alcançavam a margem sueste do Puturia.

      Ei-los, pois, marchando de companhia, pela escuridão da noite, um suspeitando do outro e Kalagani sem saber

      que se tornara suspeito. A vantagem estava então da parte de Gumi.

      Por espaço de três horas, os dois indianos foram assim caminhando por aquela grande estrada que atravessa as pequenas cordilheiras de montes meridionais dos Vindhyas e vai terminar na estação de Jubbulpore.

      O nevoeiro era muito menos intenso no campo que no lago. Gumi vigiava de perto o seu companheiro. Levava à cinta uma sólida faca.

      Ao primeiro movimento suspeito, como era de carácter muito decidido, tencionava saltar sobre Kalagani e impossibilitá-lo de fazer mal.

      Infelizmente, o fiel indiano não teve, como esperava, tempo de operar.

      Não havia luar e a noite estava muito escura.

      A vinte passos não se poderia distinguir um homem em marcha.

      Ao chegar a uma curva da estrada, ouviu-se repentinamente uma voz que chamava Kalagani.

       Sim, Nassim! respondeu o indiano.

      E ao mesmo tempo um grito agudo, muito estranho, soou à esquerda da estrada.

      O grito era o kisri das tribos ferozes do Gundwana, que Gumi conhecia muito bem.

      Gumi, surpreendido, nada pudera tentar.

      Depois, morto Kalagani, que teria ele podido fazer contra um bando de selvagens ao qual este grito devia servir de sinal de reunir?

      Disse-lhe um pressentimento que fugisse e tentasse prevenir os companheiros.

      Sim, primeiro ficar livre, depois voltar ao lago, e procurar alcançar a nado o Gigante de Aço, para impedir que se chegasse à margem, era só o que tinha a fazer. Gumi não hesitou. No momento em que Kalagani se juntava a (Nassim, que lhe respondera, saltou para o lado e desapareceu nos juncais que ladeavam a estrada.

      E quando Kalagani voltou com o seu cúmplice, na intenção de se desembaraçar do companheiro que o coronel

       lhe impusera, Gumi já ali não se encontrava.

      Nassim era o chefe de um bando de dacoits, dedicado à causa de homens através dos juncais.

      Queria a todo o custo tornar a apanhar o honrado servidor que acabara de fugir.

      As pesquisas foram inúteis. Gumi, ou porque se perdesse na escuridão, ou porque se refugiasse em alguma cova, desaparecera e deviam perder as esperanças de o encontrar.

      Mas, em suma, que podiam esses dacoits temer de Gumi, entregue só aos seus recursos, no meio daquela região selvática, aí a três horas de marcha do lago Puturia, aonde ele não poderia, fosse qual fosse a sua diligência, chegar primeiro que eles!

      Kalagani resignou-se.

      Conferenciou um instante com o chefe dos dacoits, que parecia esperar as suas ordens.

      Depois, tornaram todos a descer a estrada, dirigindo-se apressadamente para o lago.

      Se aquele bando deixara os desfiladeiros dos Vindhyas, onde acampava havia algum tempo, fora porque Kalagani pudera participar aos bandidos do lago Puturia a próxima chegada do coronel Munro. Mas por quem?

      Por aquele indiano, que não era outro senão Nassim, o qual seguia na caravana dos banjaris. A quem?  Àquele

      cuja mão dirigia nas trevas toda aquela ’maquinação!

      O que se passara, o que se passava então, era o resultado de um plano bem concebido, ao qual o coronel Munro e os seus companheiros não se podiam subtrair.

      Por isso, os dacoiis, no momento em que o comboio alcançava a ponta meridional do lago, puderam atacá-lo sob as ordens de Nassim e de Kalagani.

      Mas os ódios eram só contra o coronel. Dos seus companheiros, abandonados naquela região, destruído o seu último refúgio, nada havia que recear.

      Levaram-no por isso à força, e às sete horas da manhã seis milhas o separavam do lago Puturia.

      Não era admissível que Kalagani conduzisse o coronel à estação de Jubbulpore.

      Por isso, Munro dizia consigo que não devia deixar a região dos Vindhyas, e que, logo que caíra em poder

      dos seus inimigos, talvez nunca mais dali saísse. Mas aquele homem corajoso nada perdera do seu sangue-frio.

      Caminhava no meio daqueles miseráveis, disposto a tudo. Até fingia não dar pela presença de Kalagani.

      O traidor pusera-se à frente do bando, e com efeito era o seu chefe.

      Fugir tornava-se impossível. Apesar de não ir amarrado, o coronel Munro não via nem na frente, nem na retaguarda, nem nos flancos da escolta, nenhuma aberta que lhe pudesse dar passagem. Depois, ainda que assim não fosse, seria logo apanhado.

      Reflectia, por isso, nas consequências da sua situação. Seria lícito imaginar que em tudo aquilo andasse a intervenção de Nana Sahib?  Não! Para ele, o nababo estava bem morto. Mas algum companheiro do antigo chefe dos rebeldes, talvez Balão Rao, tivesse resolvido satisfazer o seu ódio, realizando aquela vingança, à qual

      seu irmão dedicara a existência. Sir Edward Munro pressentia algum manejo deste género.

      Ao mesmo tempo lembrava-se do infeliz Gumi, que não estava prisioneiro dos dacoiis.

      Teria ele podido fugir?  Era possível. Ou teria logo sucumbido?  Era mais provável. Poder-se-ia contar com o seu auxílio dado o caso de estar são e salvo?  Decerto.

      Se Gumi entendera dever ir à estação de Jubbulpore pedir socorro, chegaria muito tarde.

      Se, pelo contrário, fora ter com Banks e os seus companheiros à ponta meridional do lago, que haviam eles

      de fazer, quase desprovidos de munições?  Meter-se-iam pela estrada de Jubbulpore?  Mas primeiro que lá chegassem teria o prisioneiro sido levado para algum inacessível esconderijo dos Vindhyas!

      Deste lado, portanto, não se devia alimentar esperança alguma.

      O coronel Munro encarava friamente a situação.

      Não desesperava, não era homem que esmorecesse, e preferia ver as coisas em toda a sua realidade a entregar-se a alguma desilusão indigna de um espírito que coisa alguma podia perturbar.

      Entretanto o bando ia marchando apressadamente. Era evidente que Nassim e Kalagani queriam chegar antes do pôr do Sol a algum lugar convencionado, onde a sorte do coronel se havia de decidir.

      Se o traidor tinha pressa, o coronel Munro não tinha menos, fosse qual fosse a sorte que o esperasse.

      Só uma vez, próximo do meio-dia, por espaço de meia hora, Kalagani mandou fazer alto.

      Os dacoits iam prevenidos de víveres e comeram à beira de um pequeno regato.

      Puseram à disposição do coronel um pouco de pão e de carne seca, que ele recusou.

      Não havia comido nada desde a véspera, e não queria dar aos seus inimigos a alegria de o verem, fraquejar fisicamente na hora suprema.

      Durante esta marcha tinham-se percorrido dezassete milhas.

      Por ordem de Kalagani puseram-se novamente a caminho, continuando sempre na direcção de Jubbulpore.

      Só por volta das cinco horas da tarde é que o bando dos dacoits abandonou a estrada pública, para se dirigir para a esquerda.

      Se o coronel Munro podia, enquanto ia pela estrada, conservar uns restos de esperança, agora devia compreender que a sua salvação só estava em poder de Deus.

      Dali a um quarto de hora Kalagani e os seus atravessavam um estreito desfiladeiro, que formava o limite extremo do vale de Nerbudda, na direcção da parte mais sertaneja do Bundelkund.

      O lugar de que falamos ficava a uns trezentos e cinquenta quilómetros do vale de Tandit, a leste dos montes de Sautpurra, que se pode considerar como o prolongamento ocidental dos Vindhyas.

      Num dos últimos contrafortes elevava-se a velha fortaleza de Ripore, abandonada havia muito tempo, porque não podia ser reabastecida logo que os desfiladeiros de oeste se achassem ocupados pelo inimigo, ainda que fosse em pequena extensão.

      Dominava esta fortaleza uma das últimas saliências da cordilheira, espécie de redentes naturais, da altura de quinhentos pés, a pique sobre um grande envasamento do desfiladeiro, no meio das cumeadas circunvizinhas.

      A fortaleza só era acessível por um estreito caminho, tortuosamente aberto na rocha, caminho apenas praticável para peões. No alto ainda se erguiam algumas muralhas desmanteladas, alguns bastiões em ruínas.

      No meio da esplanada, resguardada do lado do abismo por um parapeito de pedra, levantava-se um edifício que servira outrora de quartel à pequena guarnição de Ripore e que não se queria agora nem para estábulo.

      No meio do planalto central restava um só engenho de guerra de entre os que em outros tempos se alongavam através das canhoneiras da muralha. Era uma peça enorme, assestada na direcção da face anterior da esplanada.

      Muito pesada para ser descida, e também muito deteriorada para conservar um valor qualquer, tinha para ali sido abandonada, sobre o reparo, à acção destruidora da ferrugem que lhe ia comendo o ferro.

      Pelo comprimento e pela grossura era, na verdade, rival digna do célebre canhão de Bhilsa, fundido no tempo de Jehanghir, canhão enorme do comprimento de seis metros, e com um calibre de quarenta e quatro.

      Poder-se-ia também compará-la com o não menos famoso canhão de Bidjapur, cuja detonação, no dizer dos indígenas, não deixaria de pé um só dos monumentos da cidade.

      Tal era a fortaleza de Ripore, para onde o prisioneiro foi conduzido pelo bando de Kalagani.

      Eram cinco horas da tarde quando ali chegou, após um dia de marcha de mais de vinte e cinco milhas.

      Perante qual dos seus inimigos ia finalmente achar-se o coronel Munro?

      Não devia tardar que o soubesse.

      Um grupo de indianos ocupava então o edifício em ruínas, que se elevava no fundo da esplanada.

      Este grupo afastou-se das ruínas, enquanto o bando dos dacoits formava um círculo, ao longo do parapeito.

      O coronel Munro ocupava o centro do círculo. De braços cruzados, esperava.

      Kalagani deixou o lugar que ocupava na fileira e deu alguns passos em direcção do grupo.

      À frente vinha um indiano, vestido com toda a simplicidade.

      Kalagani parou diante dele e inclinou-se.

      O indiano, estendeu a mão e Kalagani beijou-lha respeitosamente.

      Um sinal de cabeça deu-lhe a saber que estava contente com os seus serviços.

      Depois, o indiano avançou para o prisioneiro lentamente, mas com os olhos incendiados, com todos os sintomas de uma cólera mal refreada.

      Dir-se-ia uma fera avançando para a presa.

      O coronel Munro deixou-o aproximar-se, sem recuar um passo, fitando-o com tanta fixidez como o fitavam

      a ele.

      Quando o indiano apenas distava dele uns cinco passos, o coronel exclamou, num tom que revelava o mais profundo desprezo:

       É apenas Balão Rao, irmão do nababo!

       Olha melhor! retorquiu o selvagem.

       Nana Sahib! exclamou o coronel Munro, recuando desta vez, mau grado seu. Nana Sahib ainda vive! . . .

      Sim, era o próprio nababo, o antigo chefe da revolta dos sipaios, o implacável inimigo de Munro!

      Mas quem sucumbira então no encontro no vale de Tandit?

      Fora Balão Rao, seu irmão.

      A extraordinária semelhança destes dois homens, ambos chupados da cara e com o mesmo dedo da mesma mão amputado, enganara os soldados de Lucknow e de Cawnpore, que não hesitaram em tomar pelo nababo aquele que era afinal seu irmão, e ser-lhes-ia impossível evitar tal engano.

      Quando se dirigiu às autoridades, comunicando-lhes que Nana Sahib já não vivia, quem já não existia era Balão Rao.

      Nana Sahib tivera todo o cuidado em explorar aquela nova circunstância.

      Mais uma vez ela lhe garantia uma segurança quase absoluta. Seu irmão não devia ser procurado pela polícia inglesa com o mesmo furor, e não o foi efectivamente.

      Não só a carnificina de Cawnpore não lhe era imputada, como não tinha sobre os indianos do centro a influência perniciosa que o nababo possuía.

      Nana Sahib resolvera fingir de morto até ao momento em que pudesse definitivamente pôr-se em acção, e, renunciando temporariamente aos seus projectos de insurreição, entregara-se completamente à sua vingança.

      Depois, nunca as circunstâncias tinham sido tão favoráveis.

      O coronel Munro, sempre vigiado pelos seus agentes, acabava de deixar Calcutá, a fim de seguir uma viagem que o devia levar na direcção de Bombaim Não seria possível encaminhá-lo para a região dos Vindhyas, através das províncias do Lundelkund?

      Nana Sahib assim pensou, e foi com esse fim que ele fez partir o inteligente Kalagani.

      O nababo deixou o pai de Tandit, que já não lhe oferecia asilo seguro.

      Meteu-se pelo vale do Nerbudda, até aos últimos desfiladeiros dos Vindhyas.

      Elevava-se ali a fortaleza de Ripore, que lhe pareceu um lugar de refúgio aonde a polícia não se lembraria de o ir procurar, porque o devia julgar morto.

      Nana Sahib aí se instalou com alguns indianos dedicados à sua pessoa.

      Reforçou-os logo com um bando de dacoits, dignos de serem comandados por um tal chefe, e aguardou.

      Mas que esperava ele havia quatro meses?  Que Kalagani desempenhasse a sua missão e lhe fizesse saber a próxima chegada do coronel Munro a esta parte dos Vindhyas, onde ficaria à sua mercê.

      Um receio, porém, se apoderou de Nana Sahib.

      Foi que a notícia da sua morte, espalhada subitamente por toda a península, viesse a chegar aos ouvidos de Kalagani.

      Se o indiano acreditasse nessa notícia, não abandonaria a sua empresa traiçoeira contra o coronel Munro?

      Para evitar esse risco enviou outro indiano através do Bundelkund, Nassim, que, fazendo parte da caravana dos banjaris, encontrou o comboio da Steam House na estrada de Sindia, se pôs em comunicação com Kalagani

      ( e o instruiu do verdadeiro estado das coisas.

      Feito isto, Nassim, sem perda de uma hora, voltou à fortaleza de Ripore, e informou Nana Sahib de tudo quanto se passara desde o dia em que Kalagani deixara Bopal.

      O coronel Munro e os seus companheiros avançavam por pequenas jornadas na direcção dos Vindhyas. Kalagani guiava-os, e era com certeza nos arredores do lago Puturia que deveria esperá-los.

      Saíra, pois, tudo à medida dos desejos do nababo. Não lhe podia fugir a vingança.

      E, com efeito, ali tinha o coronel Munro na sua presença, só, desarmado, à sua mercê.

      Trocadas as primeiras palavras, os dois contemplaram-se por um momento sem dizerem nada.

      Mas de repente, como a imagem de Lady Munro se lhe representasse mais vivamente na lembrança, o coronel sentiu o sangue subir-lhe do coração à cabeça.

      Precipitou-se sobre o assassino dos prisioneiros de Cawnpore.

      Nana Sahib limitou-se a dar dois passos atrás.

      Tinham-se lançado sobre o coronel três selvagens, e facilmente o subjugaram.

      Sir Edward Munro tornara-se senhor de si. O nababo decerto assim o compreendeu, porque fez afastar os três selvagens com um gesto.

      Os dois inimigos acharam-se outra vez frente a frente.

       Unro disse Nana Sahib, os teus amarraram à boca dos seus canhões os cento e vinte prisioneiros de Peschawar, e desde esse dia mais de mil e duzentos sipaios pereceram por esse meio horroroso! Os teus mataram sem piedade os fugitivos de Lahore;, degolaram, depois da tomada de Deli, os três príncipes e vinte e nove membros da família do rei, trucidaram em Lucknow seis mil dos nossos e três mil depois da campanha do Pendjabli Ao todo, pelo canhão, pela espingarda, pela forca ou pela espada, cento e vinte mil oficiais e soldados nativos e duzentos mil indígenas têm pago com a vida este levantamento pela independência nacional!

      ’À morte! À morte! exclamaram os dacoits e os indianos formados em volta de Nana Sahib.

      O nababo impôs-lhes silêncio com um gesto, e esperou que o coronel Munro respondesse.

      O coronel não respondeu.

      Quanto a ti, Munro prosseguiu o nababo, mataste com a tua própria mão a Rani de Jansi, minha fiel companheira. . . e ela não está ainda vingada!

      O coronel Munro não lhe deu resposta.

       Finalmente, há quatro meses continuou Nana Sahib, meu irmão Balão Rao caiu sob as balas inglesas dirigidas contra mim. . . e meu irmão ainda não foi vingado!

       À morte! À morte!

      Desta vez os gritos soavam com mais violência e todo o bando fez um movimento para cair sobre o prisioneiro . Silêncio! exclamou Nana Sahib. Aguardem a hora da justiça!

      Calaram-se todos.

      Munro prosseguiu o nababo -, foi um dos teus antepassados, Heitor Munro, o primeiro que ousou aplicar este horroroso suplício, de que os teus fizeram tão horrível uso durante a guerra de 1857! Foi ele que deu ordem de amarrar vivos, à boca das peças, os indianos, os nossos parentes, os nossos irmãos. . .

      Novos gritos, novas demonstrações, que daquela vez Nana Sahib não poderia reprimir.

      Por isso, acrescentou:

       Munro, morrerás pela mesma forma por que morreram tantos dos nossos!

      Voltando-se, disse:

      Vês esta peça?

      E mostrava o enorme canhão do cumprimento de cinco metros, que estava no centro> da esplanada.

      Vais ser amarrado à boca deste canhão. Está carregado, e amanhã, ao romper do Sol, a sua detonação, prolongando-se até ao fundo dos Vindhyas, fará saber a todos que a vingança de Nana Sahib se consumou finalmente!

      O coronel Munro olhava fixamente para o nababo com uma serenidade que não podia ser perturbada pelo anúncio do seu próximo suplício.

       Muito bem disse, fazes o que eu teria feito se tivesses caído em meu poder!

      E foi ele próprio colocar-se diante da boca do canhão, ao qual, com as mãos atadas atrás das costas, foi amarrado com fortes cordas.

      Então, durante uma longa hora, todo o bando de dacoits e de indianos veio cobardemente insultá-lo.

      Dir-se-iam índios Sioux em volta de um prisioneiro amarrado ao poste de tortura.

      O coronel Munro conservou-se impassível perante o ultraje, como queria conservar-se perante a morte.

      Sobreveio a noite, e Nana Sahib, Kalagani e Nassim retiraram-se para a velha caserna.

      Cansado finalmente, o bando retirou-se e reuniu-se aos chefes.

      Sir Edward Munro ficou em presença de Deus e da morte.

     

      NA BOCA DE UMA PEÇA

      Não durou muito tempo o silêncio.

      Tinham-se posto provisões à disposição do bando dos dacoits.

      Enquanto comiam, podia-se ouvir os miseráveis gritar e vociferar sob a influência desse violento licor de araca, de que faziam tão imoderado uso.

      Mas todo este ruído se foi apaziguando pouco a pouco.

      O sono não devia tardar a apoderar-se daqueles brutos, já muito derrancados por um longo dia de fadiga.

      Iria pois Sir Edward Munro ficar sem sentinela até ao momento em que soasse a hora da sua morte?  Não faria Nana vigiar o seu prisioneiro, embora este, solidamente amarrado por cordas, que em muitas voltas lhe circundavam os braços e o peito, ficasse impossibilitado de fazer um movimento?

      O coronel fazia esta pergunta a si mesmo quando, por volta das oito horas, viu um indiano sair da caserna e avançar pela esplanada.

      Este homem tinha ordem de se conservar por toda a noite junto do coronel Munro.

      Primeiro que tudo, depois de atravessar obliquamente a planura, veio direito à peça para se certificar de que o prisioneiro ainda ali se encontrava com pulso vigoroso experimentou as cordas, que não cederam.

      Depois, sem se dirigir ao coronel, mas falando consigo mesmo, disse:

      Dez libras de boa pólvora! Há muito tempo que não fala o velho canhão de Ripore, mas amanhã há-de falar! . . .

      Esta reflexão fez assomar um sorriso de desdém ao rosto altivo do coronel.

      A morte, por muito horrorosa que tivesse de ser, não era coisa para o assustar.

      Depois de examinar a parte exterior da boca de fogo, o indiano voltou atrás, afagou a culatra e pôs por um momento o dedo no ouvido da peça, que a pólvora enchia até acima.

      Em seguida deixou-se ficar encostado ao botão da culatra. Parecia ter esquecido completamente que o prisioneiro ali se encontrava, como o condenado junto à forca, à espera que o alçapão lhe fuja debaixo dos pés. Ou fosse indiferença ou efeito da araca que acabava de beber, o indiano pôs-se a cantar por entre os dentes um velho estribilho de Gundwana.

      Calava-se por momentos e recomeçava como um homem que, por efeito da sua embriaguez, só emitisse o pensamento pouco a pouco.

      Passado um quarto de hora, o indiano endireitou-se. Passou a mão pelo cano da peça. Rodeou-a e, parando em frente do coronel, olhou para ele, murmurando palavras incoerentes.

      Instintivamente, tacteou mais uma vez as cordas, como para as apertar mais solidamente; depois, abanando a cabeça como homem que ficou tranquilizado, foi encostar-se ao parapeito, à esquerda da boca de fogo e na distância de uns dez passos.

      Durante dez minutos, o indiano ali se deixou ficar, umas vezes voltado para a planura, outras debruçado para fora, olhando para o abismo que se escancarava junto à fortaleza.

      Percebia-se que fazia um último esforço para não se deixar vencer pelo sono.

      Mas, por fim, como a fadiga pudesse mais que ele, deixou-se escorregar até ao chão, estendeu-se, e a sombra do parapeito tornou-o absolutamente invisível.

      Demais, a noite apresentava-se já muito escura.

      Espessas nuvens, imóveis, estendiam-se pelo céu.

      A atmosfera estava muito sossegada. Os rumores do vale não chegavam àquela altura. O silêncio era absoluto.

      Como ia o coronel Munro suportar uma tal noite de angústias devemos também dizê-lo, para honra daquele homem enérgico.

      Nem por um momento pensou naquele último instante da sua vida, durante o qual todos os órgãos do seu corpo, violentamente dilacerados, horrivelmente dispersos, iriam perder-se no espaço.

      Afinal de contas, não seria mais que o fulminar do raio, o que não era coisa que abalasse uma índole que nunca fora susceptível do terror físico-moral.

      Restavam-lhe ainda algumas horas para viver, algumas horas daquela existência que tão feliz fora durante longo período.

      Todo o seu passado lhe brotava agora na memória com singular precisão.

      Surgia a seus olhos a imagem de Lady Munro.

      Via, ouvia aquela que ele chorava como nos primeiros dias da sua mágoa, não já com os olhos, mas com o coração!

      Novamente contemplava a donzela na funesta cidade de Cawnpore, naquela residência onde pela primeira vez a admirara, conhecera e amara.

      Aqueles poucos anos de felicidade, repentinamente terminados pela mais horrorosa das catástofres, reavivaram-se no seu espírito.

      Todas as circunstâncias daquele tempo, por mais pequenas que fossem, lhe volveram à memória com uma nitidez tal que a realidade não podia ser mais viva!

      Já passava da meia-noite, e Sir Edward Munro não dera por isso.

      Concentrara-se todo nas recordações do seu viver de outrora com aquela esposa adorada.

      Resumira em três horas os três anos que vivera junto dela.

      Sim, a imaginação arrebatara-o com força irresistível da plataforma da fortaleza de Ripore, arrancara-o da boca daquela peça, a cuja espoleta o primeiro raio de Sol ia por assim dizer deitar fogo!

      Mas naquele momento recordou-se do horrível desfecho do cerco de Cawnpore, da prisão de Lady Munro e de sua mãe, no Bibi Ghar, da carnificina das suas desgraçadas companheiras, e, finalmente, daquele poço, túmulo de duzentas vítimas, sobre o qual, quatro meses antes, fora uma última vez chorar.

      E aquele odioso Nana Sahib, que estava ali, a alguns passos, detrás dos muros daquela caserna em ruínas, fora o mandante daqueles assassinos, o sicário de Lady Munro e de tantos outros infelizes!

      E era em poder daquele homem que ele acabava de cair, ele que pretendera fazer-se o executor do assassino que a justiça não pudera apanhar!

      Impulsionado por uma cólera cega, Sir Edward Munro fez um esforço desesperado para quebrar os laços que o prendiam.

      As cordas gemeram e os nós, esticados, entraram-lhe nas carnes. Soltou um grito, não de dor, mas de raiva impotente.

      A este grito, o indiano estendido à sombra do parapeito levantou a cabeça. Compenetrou-se novamente da sua situação.

      Lembrou-se de que era o guarda do prisioneiro.

      Levantou-se, pois, avançou hesitante para o coronel Munro, pôs-lhe uma das mãos no ombro, para se certificar de que ele ainda ali estava, e no tom de um homem meio adormecido disse:

       Amanhã, ao romper do Sol. . . Pum!

      Depois voltou para a muralha, a fim de aí tornar a procurar um ponto de apoio.

      Assim que lá chegou, deitou-se no chão; e não tardou que adormecesse profundamente.

      Em seguida a este inútil esforço o coronel readquirira uma espécie de serenidade.

      O curso dos seus pensamentos modificou-se, sem que se tornasse a lembrar da sorte que o esperava.

      Por uma associação de ideias muito natural, pensou nos seus amigos, nos seus companheiros.

      Perguntou de si para si se também eles não teriam caído em poder de algum bando de dacoits, que pululam nos Vindhyas, se lhes não estava reservada uma sorte igual à sua, e este pensamento oprimiu-lhe o coração.

      Mas reconsiderou logo que isso não era possível com efeito, se o nababo houvesse resolvido que eles morressem, tê-los-ia reunido no mesmo suplício.

      Quereria aumentar a sua agonia com o espectáculo da dos seus amigos.

      Não! Era nele, nele somente, assim o esperava, que Nana Sahib queria saciar o seu ódio!

      Mas se, pelo mais incrível dos acasos, Banks, o capitão Hod e Maucler se achavam livres, que faziam eles?

      Teriam tomado a estrada de Jubbulpore, pela qual o Gigante de Aço, que os dacoits não tinham conseguido destruir, poderia transportá-los rapidamente?

      Aí os socorros não lhes faltariam! Mas para quê?

      Como haviam eles de saber onde estava o coronel Munro?

      Ninguém conhecia a fortaleza de Ripore, aquele antro de Nana Sahib.

      E, depois, porque lhes havia de vir à ideia o nome do nababo?

      Para eles não morrera Nana Sahib?  Não sucumbira no ataque ao pai de Tandit?  Não, nada poderiam fazer

      em favor do prisioneiro!

      Do lado de Gumi também não restava esperança alguma.

      Kalagani tinha todo o interesse em se desfazer daquele servidor dedicado, e, visto que Gumi ali não se encontrava, é que precedera seu amo na morte.

      Contar com alguma probabilidade de salvação era inútil.

      O coronel Munro não era homem que alimentasse ilusões. Via as coisas sob o seu verdadeiro aspecto, e volveu aos seus primeiros pensamentos, à recordação dos dias felizes que lhe faziam transbordar o coração.

      Ser-lhe-ia difícil avaliar quantas horas tinham decorrido depois que assim sonhava.

      A noite continuava escura.

      Sobre os cumes de leste nada assomava que anunciasse os primeiros alvores matutinos, Mas deviam ser quatro da manhã quando um fenómeno bastante extraordinário despertou a atenção do coronel Munro.

      Até àquele momento, enquanto se recordara da sua existência passada, olhara mais para dentro de si do que para fora.

      Os objectos exteriores, pouco distintos em meio daquelas profundas trevas, não teriam podido distraí-lo; mas agora os seus olhos tornaram-se mais fixos, e todas as imagens invocadas na sua memória se desvaneceram subitamente diante de uma espécie de aparição tão inesperada como inexplicável.

      O coronel já não se encontrava só na plataforma de Ripore.

       Uma luz, ainda indecisa, brilhava na extremidade do caminho, junto ao postigo da fortaleza.

      Avançava, retirava-se, vacilante, turva, ameaçando extinguir-se, tornando a adquirir o brilho, como se a segurasse mão pouco firme, Na situação em que se encontrava o prisioneiro, todo o incidente podia ter importância.

      Não despregou mais os olhos da luz.

      Observou que se desprendia dela uma espécie de vapor fuliginoso e que era móvel.

      Daqui derivava-se a conclusão de que não era possível ser um farol.

       Um dos meus companheiros, disse consigo o coronel Munro. . .

      Gumi talvez!

      Qual! . . . Não viria com uma luz, que o denunciaria. . .

      Quem será?

      A luz aproximava-se lentamente. Deslizou, primeiro ao longo do muro da velha caserna, e Sir Edward Munro teve receios de que a luz fosse vista por alguns indianos que dormiam da banda de dentro.

      Não sucedeu assim. A luz passou sem ser notada.

      De quando em quando a mão que a empunhava agitava-se com um movimento febril, e o seu fulgor ateava-se, adquirindo mais vivo brilho.

      Dali a pouco, o facho chegava ao parapeito, e seguia por sobre ele, como um fogo-de-santelmo em noites de tempestade.

      Então o coronel Munro principiou a distinguir uma espécie de fantasma, sem forma apreciável, uma sombra que o facho vagamente iluminava.

      O ente, qualquer que ele fosse, que assim avançava, devia vir coberto com um comprido manto, sob o qual se ocultavam os braços e a cabeça. O prisioneiro não se mexia.

      Reprimia a respiração.

      Receava assustar a aparição, ver extinguir a chama cuja claridade o guiava na sombra. Conservava-se tão imóvel como a pesada peça de metal, que parecia segurá-lo na sua enorme goela.

      Entretanto, o fantasma continuava a deslizar ao longo do parapeito.

      Não podia suceder que esbarrasse no corpo do indiano adormecido?

      Não. O indiano estava estendido à esquerda da peça, a aparição vinha pela direita, parando às vezes, outras continuando a avançar vagarosamente.

      Por fim, aproximou-se o suficiente para o coronel poder distingui-lo melhor.

      Era uma criatura de estatura mediana, cuja longa tanga lhe cobria efectivamente todo o corpo.

      Debaixo da tanga saía a mão que segurava o ramo inflamado.

       Algum louco, que tem o costume de frequentar o acampamento dos dacoits, disse consigo o coronel e com o qual não há cuidado. Em vez de um facho, porque não traz ele um punhal! ? . . . Talvez eu pudesse. . .

      Não era um louco, e contudo Sir Edward Munro quase adivinhara.

      Era a louca do vale do Nerbudda, a inconsciente criatura que às vezes divagava através dos Vindhyas, sempre respeitada e hospitaleiramente acolhida pelos gunds supersticiosos.

      Nem Nana nem nenhum dos seus companheiros sabiam que parte tomara a Chama Errante no ataque do pai de Tandit.

      Muitas vezes a tinham encontrado naquela região montanhosa do Bundelkund, sem por isso se inquietarem com a sua presença.

      Já muitas vezes, nas suas incessantes deambulações, ela se encaminhara para a fortaleza de Ripore e ninguém se lembrara de a expulsar.

      Era apenas o acaso das suas peregrinações nocturnas que naquela noite ali a trazia.

      O coronel Munro coisa alguma sabia do que dizia respeito à louca.

      Nunca ouvira falar da Chama Errante, e contudo aquele ente desconhecido, que se aproximava, que ia tocar- lhe, falar-lhe talvez, fazia-lhe bater o coração com inexplicável violência.

      A louca fora pouco a pouco aproximando-se da peça.

      O seu facho apenas lançava fracos clarões, e não parecia ver o prisioneiro, apesar de se encontrar em frente dele e de poder olhar através do manto, que tinha buracos como a cogula de um penitente.

      Sir Edward Munro não se mexia.

      Nem com um movimento de cabeça, nem mesmo com uma palavra, procurava atrair a atenção daquela estranha criatura.

      Demais, ela virou quase no mesmo instante para trás, de modo que deu uma volta em redor do imenso canhão, sobre o qual o seu facho desenhava umas pequenas sombras movediças.

      Compreenderia a louca para que servia aquela peça, ali estendida como um monstro, e porque é que aquele homem estava amarrado àquela goela, de onde ia sair um relâmpago e um trovão ao primeiro raiar do dia?

      com certeza que não.

      A Chama Errante andava ali, como sempre, inconscientemente.

      Divagava naquela noite, como já divagara muitas vezes, pela plataforma do Ripore.

      Depois, retirar-se-ia, tornaria a descer o caminho sinuoso, voltaria ao vale, e iria para onde a levasse a sua imaginação extravagante.

      O coronel Munro, que podia virar a cabeça à vontade, seguia todos os seus movimentos.

      Viu-a passar por detrás da peça.

      Depois, a Chama Errante encaminhou-se para a muralha, decerto para seguir ao longo dela, até ao ponto onde se abria o postigo.

      De facto, a Chama Errante tomou esta direcção, mas, parando de súbito, a alguns passos do indiano adormecido, voltou-se.

      Não a deixaria alguma misteriosa causa seguir o seu caminho?

      Fosse o que fosse, inexplicável instinto a reconduziu para junto do coronel Munro, e deixou-se ficar imóvel diante dele.

      Desta vez o coração de Sir Edward Munro bateu com violência tal que desejaria levar aí as mãos para lhe conter as pulsações!

      A Chama Errante aproximara-se mais.

      Levantara o facho à altura do rosto do prisioneiro, como se quisesse vê-lo melhor.

      Através dos buracos da sua túnica, os olhos iluminaram-se-lhe como uma chama ardente.

      Involuntariamente fascinado por aquele fogo, o coronel Munro devorava-a com o olhar.

      Então a louca afastou um pouco as dobras da túnica.

      Deixou ver todo o rosto, e agitou com a mão direita o facho, que lançou um clarão mais intenso.

      O prisioneiro soltou um grito meio sufocado.

       Laurence! Laurence! exclamou.

      Também ele agora se julgava louco! Fechou por um momento os olhos.

      Era Lady Munro! Sim! Lady Munro em pessoa, que tinha diante de si!

       Laurence. . . Tu. . . tu. . . repetiu.

      Lady Munro nada respondeu.

      Não o reconhecia.

      Nem parecia ouvi-lo.

       Laurence! Louca! Louca, sim. . . mas viva!

      Sir Edward Munro não se poderia enganar com uma suposta semelhança.

      Tinha a imagem da esposa muito profundamente gravada na memória.

      Não se enganara, não; mesmo depois de nove anos de uma separação que ele devia julgar eterna, Lady Munro, mudada sim, mas era Lady Munro, que por milagre se salvara dos verdugos de Nana Sahib.

      A infeliz, depois de fazer tudo quanto lhe fora possível para salvar sua mãe, caíra ferida. Não era, porém, de morte o seu ferimento, e, confundida com tantas outras, fora precipitada no poço de Cawnpore, no montão de vítimas que já o enchia.

      Sobrevindo a noite, o instinto da conservação fê-la aproximar-se da borda do poço, e dizemos o instinto porque a razão, em resultado das terríveis cenas que presenciara, já a abandonara.

      Depois de tudo o que ela sofrera desde o princípio do cerco, na prisão de Bibi Ghar, no teatro do morticínio, depois de ver degolar a mãe, perdera o juízo.

      Estava louca, mas viva, como Munro acabava de o reconhecer.

      Louca, arrastara-se para fora do poço, vagueara pelos arredores, pudera deixar a cidade no momento em que Nana Sahib e os seus a abandonavam, após a sangrenta execução. Louca, salvara-se no meio das trevas, caminhando em frente pelos campos fora.

      Evitando as cidades, fugindo de regiões habitadas, num e noutro ponto recolhida pelos pobres raiots, respeitada como uma criatura privada de razão, a pobre louca caminhara assim até aos montes Sautpurra, até aos Vindhyas!

      E morta para todos havia nove anos, mas com a recordação dos horrores do cerco ainda viva no espírito, vagueava sem cessar.

      Oh! Não havia dúvida, era ela!

      O coronel Munro tornou a chamá-la. . . Não respondeu.

      Quanto ele daria para poder estreitá-la nos braços, arrebatá-la, recomeçar junto dela uma nova existência, restituir-lhe a razão à força de cuidados e de amor. . .

      E, contudo, ele achava-se ligado àquela massa de metal, o sangue corria-lhe dos braços pelos cortes que neles faziam as cordas e nada o podiam arrancar com ela daquele lugar maldito!

      Que suplício, que tortura, que nem a cruel imaginação de Nana Sahib chegara a conceber! Ah! Se aquele monstro ali estivesse, se soubesse que Lady Munro estava em seu poder, que alegria horrível não houvera sentido!

      Que requinte não acrescentaria decerto às angústias do prisioneiro!

       Laurence! Laurence! Repetia Sir Edward Munro.

      Chamava-a em voz alta, com risco de despertar o indiano, que dormia a alguns passos, com risco de atrair os dacoits, deitados na velha caserna do próprio Nana Sahib.

      Mas Lady Munro, sem compreender coisa alguma, continuava a olhar para ele com os seus olhos espantados.

      Não percebia os espantosos sofrimentos que aquele infeliz padecia, aquele infeliz que a tornava a encontrar exactamente no momento em que ia morrer!

      Decorreram assim alguns minutos; depois, a sua mão abaixou-se, a túnica caiu-lhe novamente sobre o rosto e recuou um passo.

      O coronel Munro julgou que ela ia fugir!

       Laurence! gritou ele mais uma vez, como se lhe dissesse um supremo adeus.

      Mas não. Lady Munro não tencionava abandonar a plataforma de Ripore, e a situação, apesar de ’muito periclitante, ia ainda agravar-se.

      Lady Munro parou. Indubitavelmente a peça de artilharia atraíra-lhe a atenção. Talvez lhe despertasse alguma recordação vaga do cerco de Cawnpore!

      Aproximou-se outra vez da peça e começou a passear por cima dela a mão que empunhava o facho, e bastaria uma faísca, que inflamasse o rastilho, para que a peça fizesse imediatamente fogo.

      Iria, pois, Munro morrer àquelas mãos?

      Não pôde suportar esta ideia. Mais valia perecer à vista de Nana Sahib e dos seus!

      Munro dispunha-se já a chamar, a despertar os seus verdugos! . . .

      De repente sentiu que de dentro da peça alguém lhe apertava as mãos, que ele tinha amarradas atrás das costas.

      Era, porém, um aperto de mão amiga, que diligenciava desamarrá-lo.

      No mesmo instante, o frio de uma lâmina de aço, que deslizava cautelosamente entre as cordas e os seus pulsos, fez-lhe saber que na alma daquela enorme peça, sem saber por que milagre, existia um libertador.

      Não se podia enganar! Cortavam-lhe as cordas que o amarravam! . . .

      No espaço de um segundo estava isto conseguido.

      Pôde dar um passo em frente.

      Achava-se livre!

      Apesar de muito senhor de si, iria perdê-lo um grito?

      A mão desconhecida saiu da peça. . . Munro agarrou-a, puxou-a, e caiu-lhe aos pés um homem, que saía da boca da peça, graças a um último esforço.

      Era Gumii.

      O fiel servidor, depois de fugir, continuara a subir a estrada de Jubbulpore, em vez de voltar ao lago, para o qual se dirigia o bando de Nassim.

      Chegando ao caminho de Ripore, tivera de se esconder segunda vez.

      Achava-se ali um grupo de indianos a falar do coronel Munro, que os dacoits, dirigidos por Kalagani, iam conduzir àquela fortaleza, onde Nana Sahib lhe reservava a morte pelo canhão.

      Sem hesitar, Gumi deslizara pelo escuro até ao caminho de caracol, e chegara à esplanada, deserta naquele momento.

      Acudira-lhe então a ideia heróica de se introduzir na enorme máquina de guerra, com o pensamento de libertar o seu amo, se as circunstâncias se prestassem a isso, ou, se o não pudesse salvar, acompanhá-lo na morte.

      O dia vai romper! . . . advertiu Gumi em voz baixa. Fujamos! . . .

      - E Lady Munro?

      O coronel, imóvel, em pé, apontava para a louca.

      Vai nos nossos braços, senhor disse Gumi, sem pedir outra explicação.

      Era demasiado tarde!

       No momento em que o coronel e Gumi se aproximavam dela para a agarrarem, Lady Munro, querendo fugir-lhes, agarrou-se à peça, o facho caiu sobre o ouvido, e uma formidável detonação, repercutida pelos ecos dos

      Vindhyas, encheu com um ribombo de trovão todo o vale do Nerbudda.

     

      O GIGANTE DE AÇO

      Ao ruído da detonação, Lady Munro caíra desmaiada nos braços do marido.

      Sem perda de um instante, o coronel Munro precipitou-se pela esplanada fora, seguido de Gumi.

      com a sua grande faca, o indiano livrou-se depressa do guarda, que a detonação fizera acordar espavorido.

      Tomaram ambos pelo estreito caminho que conduzia à estrada de Ripore.

      Sir Edward Munro e Gumi tinham apenas transposto o postigo quando já o bando de Nana Sahib, despertado em sobressalto, invadira a plataforma.

      Houve entre os indianos um momento de hesitação, que podia ser favorável aos fugitivos.

      Nana Sahib raras vezes passava a noite na fortaleza.

      Na véspera, depois de mandar amarrar o coronel Munro à boca da peça, fora ter com alguns chefes da tribo do Gundwana, que ele nunca visitava em pleno dia.

      Era aquela hora em que costumava recolher-se e não devia tardar.

      Kalagani, Nassim, os indianos, mais de cem homens, estavam prontos a lançar-se em perseguição do prisioneiro.

      Só uma ideia ainda os continha. Ignoravam absolutamente o que se passara.

      O cadáver do guarda nada lhes podia dizer.

      De todas as probabilidades, o que podiam concluir era o seguinte: por uma circunstância fortuita, comunicara-se

       fogo à peça, antes da hora determinada para o suplício, e que do prisioneiro só restavam agora leves vestígios.

      O furor de Kalagani e dos companheiros manifestou-se por um concerto de maldições.

      Nem Nana Sahib, nem nenhum deles podiam ter a alegria de assistir aos últimos momentos do coronel Munro!

      Porém, o nababo não estava longe.

      Devia ter ouvido a detonação e voltaria com a maior brevidade à fortaleza.

      O que lhe responderiam quando pedisse contas do prisioneiro que ele ali deixara?

      De tudo isto provinha uma hesitação que dera aos fugitivos tempo de ganharem alguma dianteira, antes de serem avistados.

      Por isso, Sir Edward Munro e Gumi, cheios de esperança, depois daquele milagroso salvamento, desciam rapidamente o sinuoso caracol.

      Apesar de desmaiada, Lady Munro não fazia peso algum nos braços do vigoroso coronel.

      Demais, ia com ele o seu servidor, pronto a auxiliá-lo no que pudesse.

      Cinco minutos depois de transporem o postigo achavam-se ambos a meio caminho da plataforma e do vale.

      Mas principiava a raiar o dia, e os primeiros alvores matutinos iluminavam já o fundo estreito do desfiladeiro.

      Por sobre a cabeça dos fugitivos estrugiam formidáveis brados.

      Debruçado do parapeito, Kalagani acabava de vagamente aperceber os vultos de dois homens que fugiam.

      Um dos homens não podia deixar de ser o prisioneiro de Nana Sahib.

       Munro! É Munro! bradou Kalagani, louco de furor.

      E, transpondo o postigo, lançou-se em sua perseguição, seguido de todo o seu bando.

       Fomos descobertos disse o coronel, sem afrouxar o passo.

       Deterei os primeiros volveu Gumi. Matar-me-ão, mas isso dar-lhe-á tempo de ganhar terreno!

       Ou nos matam ambos, ou ambos lhes fugiremos! exclamou o coronel Munro.

      Sir Edward e Gumi haviam apressado o passo.

      Como tinham chegado- à parte inferior do caminho, já menos íngreme, podiam correr.

      Faltava-lhes apenas uns quarenta passos para alcançarem o caminho de Ripore, que terminava na estrada

      principal, por onde a fuga se lhes tornaria mais fácil.

      É verdade que também mais fácil se tornaria a perseguição.

      Procurar um refúgio era inútil. Depressa seriam descobertos.

      Havia, pois, necessidade de ganhar grande dianteira aos facínoras, e, além disso, de sair antes deles do último desfiladeiro dos Vindhyas.

      O coronel Munro tomou logo a sua resolução. Não cairia vivo nas mãos de Nana Sahib. Aquela que acabava de lhe ser restituída, primeiro a mataria com o punhal de Gumi do que a entregaria ao nababo, e em seguida, com aquele mesmo punhal, daria cabo de si!

      Tinham ganho já um considerável avanço. No momento em que os primeiros indianos transpunham o postigo, já o coronel Munro e Gumi avistavam o caminho a que ia dar o atalho, e a estrada ficava apenas a um quarto de milha.

       Ânimo, senhor! dizia Gumi, pronto para fazer com o seu corpo uma trincheira ao coronel. E em menos de cinco minutos estaremos na estrada de Jubbulpore!

      Permita Deus que nós aí encontremos auxílio!  murmurou o coronel Munro.

      Os clamores dos indianos tornavam-se cada vez mais distintos.

      No momento em que os fugitivos desembocavam no atalho, dois homens que caminhavam rapidamente chegavam ao mesmo ponto, vindos do lado oposto.

      A claridade do dia já era então suficiente para mutuamente se poderem reconhecer, e dois nomes, como dois gritos de ódio, trocaram-se ao mesmo tempo:

       Munro!

       Nana Sahib!

      Ao ouvir a detonação, o nababo acudira e subia a toda a pressa para a fortaleza.

      Não podia compreender porque é que as suas ordens tinham sido executadas antes de tempo.

       Acompanhava-o um indiano, mas, antes que este tivesse tido tempo de dar um passo ou fazer um gesto, caía aos pés de Gumi, ferido mortalmente pela faca que cortara as cordas do coronel.

       A mim! gritou Nana Sahib, chamando pelo bando que descia o atalho.

       Sim, a ti! redarguiu Gumi.

      E com mais rapidez que um raio lançou-se sobre o nababo.

      Fora sua intenção, dado o caso de não o matar ao primeiro golpe, lutar pelo menos com ele, de modo que desse ao coronel Munro tempo de ganhar a estrada. Mas a mão de ferro do nababo suspendera a sua, e a faca acabara de lhe escapar.

      Furioso por se sentir desarmado, Gumi agarrou então o seu adversário pela cintura, e, apertando-o contra o peito, arrebatou-o nos braços vigorosos, resolvido a precipitar-se com ele no primeiro abismo que encontrasse. Entretanto, Kalagani e os seus companheiros aproximavam-se e iam alcançar a extremidade inferior do atalho, ficando assim perdida toda a esperança de lhes poderem escapar.

       Mais um esforço! disse Gumi. Poderei resistir ainda alguns minutos, fazendo do nababo um escudo!

      Fuja, senhor, fuja sem mim!

      Mas apenas algumas centenas de passos separavam agora os fugitivos daqueles que os perseguiam, e o nababo chamava por Kalagani com a voz sufocada.

      De repente, a vinte passos à frente, ouviram-se novos gritos.

      É Munro! Munro! diziam.

      Além, no caminho de Ripore, estava Banks com o capitão Hod, Maucler, o sargento Mac Neil, Fox, Parazard, e a cem passos mais adiante, na estrada principal, o Gigante de Aço, vomitando imensos novelos de fumo, esperava-os com Storr e Kalouth!

      Depois da destruição da última carruagem da Steam House, o engenheiro e os seus companheiros só tinham

      um partido a tomar: utilizarem como veículo o elefante que o bando dos dacoits não pudera destruir.

      Por isso, empoleirados sobre o Gigante de Aço, tinham logo deixado o lago Puturia e subido a estrada de Jubbulpore. No momento em que passavam por diante da estrada que conduzia à fortaleza, ouviram por cima de si uma formidável detonação e pararam.

      Um pressentimento, um instinto, se quiserem, impelira-os a tomarem por ali.

      Que esperavam eles?

      Não teriam podido dizê-lo.

      A verdade é que, alguns instantes depois, estava diante deles o coronel e gritava-lhes:

       Salvem Lady Munro!

       E segurem bem Nana, Nana Sahib, o verdadeiro!  acrescentou Gumi.

      Num esforço derradeiro, lançara por terra o nababo, meio sufocado, e Nana foi logo agarrado pelo capitão Hod, Mac Neil e Fox.

      Em seguida, sem pedirem explicações, voltaram todos para o Gigante de Aço.

      Por ordem do coronel, que o queriam entregar à polícia inglesa, Nana Sahib foi logo amarrado ao pescoço do elefante.

      Quanto a Lady Munro, levaram-na para a torrinha, e seu marido colocou-se ao lado dela.

      Todo entregue a sua mulher, que principiava a voltar a si, observava-a para ver se descobria nela algum vislumbre de razão.

      O engenheiro e os seus companheiros haviam rapidamente trepado pelo Gigante de Aço.

       A toda a força! bradou Banks.

      Era já dia claro! Cem passos atrás aparecia um grupo de indianos.

      Era preciso a todo o custo alcançar, primeiro que eles, o posto avançado do acampamento militar de Jubbulpore, que domina o último desfiladeiro dos Vindhyas.

      O Gigante de Aço tinha em abundância água e combustível, tudo o que era necessário para o manter em pressão e dar-lhe o seu máximo de velocidade. Mas naquela estrada cheia de curvas não se podia lançar às cegas.

      Os gritos dos indianos redobravam então, e era visível que todo o bando lhes ganhava distância.

       Há-de ser preciso defendermo-nos! preveniu Mac Neil.

       efender-nos-emos redarguiu o capitão Hod.

      Restavam ainda algumas balas. Convinha, portanto, não perder uma só, porque os indianos vinham armados,

      e era preciso mantê-los à distância.

      O capitão Hod e Fox, de carabina em punho, postaram-se sobre a garupa do elefante, um pouco atrás da tromba. Gumi, à frente, colocara-se de maneira que pudesse atirar obliquamente.

      Mac Neil, junto de Nana Sahib, com um revólver numa mão e um punhal na outra, estava pronto a matar se os miseráveis se aproximassem dele.

      Kalouth e Parazard, diante da fornalha, atulhavam-na de combustível.

      Banks e Storr dirigiam a marcha do Gigante de Aço.

      A perseguição durava já havia cinco minutos.

      Duzentos passos, o muito, separavam os perseguidores dos perseguidos.

      Se os primeiros podiam caminhar mais depressa, o elefante artificial podia caminhar mais tempo que eles.

      Toda a táctica consistia, portanto, em não os deixar ganhar dianteira.

      Soaram uns dez tiros. As balas passaram sibilando por cima do Gigante de Aço, salvo uma, que o alcançou na extremidade da tromba.

       Não atirem! Não se deve atirar senão com segurança! gritou o capitão Hod. Poupemos as balas! Eles estão ainda muito longe!

      Banks, vendo então diante de si uma milha de estrada em linha recta, abriu largamente o regulador, e o Gigante de Aço, aumentando em velocidade, deixou o bando muito mais para trás.

       Hurra! Hurra! pelo nosso Gigante! exclamou o capitão Hod, que não se podia conter. Ah! Canalhas!

      Não o apanharão!

      Mas, na extremidade da parte rectilínea da estrada, uma espécie de desfiladeiro em subida e sinuoso, última garganta do reverso meridional dos Vindhyas, ia necessariamente retardar a marcha de Banks e dos seus companheiros.

      Kalagani e o seu bando, sabendo isto muito bem, não abandonaram a perseguição.

      O Gigante de Aço alcançou rapidamente esta parte estreita do caminho, que passava entre dois altos taludes de rocha.

      Foi então preciso diminuir a velocidade e só avançar com extrema precaução.

      Em consequência deste retardamento, os indianos recuperaram todo o terreno perdido.

      Se já não tinham esperanças de salvar Nana Sahib, que estava à mercê de uma punhalada, pelo menos vingariam a sua morte.

      Dali a nada soavam novas detonações, mas também nenhum dos tiros alcançou os que iam no Gigante de Aço.

      Isto vai tornar-se sério! disse o capitão Hod, pondo a carabina à cara. Atenção!

      Ele e Gumi fizeram fogo, simultaneamente.

      Dois dos indianos mais próximos, atingidos em cheio no peito, caíram por terra.

       Dois de menos! exclamou Gumi, tornando a carregar a arma.

       Dois por cento! exclamou o capitão Hod. Não é bastante! É preciso dizimá-los mais!

      E as carabinas do capitão e de Gumi feriram mortalmente três outros indianos.

      Mas por aquele desfiladeiro sinuoso não se caminhava depressa.

      A estrada, ao mesmo tempo que estreitava, apresentava um declive muito pronunciado.

      Em todo o caso, mais meia milha que se fizesse, ficaria transposta a última rampa dos Vindhyas, e o Gigante de

      Aço desembocaria a cem passos de um posto quase à vista da estação de Jubbulpore!

      Os miseráveis não eram indivíduos que recuassem diante do fogo do capitão Hod e dos seus companheiros.

      A vida perdia para eles a importância logo que se tratasse de salvar ou vingar Nana Sahib!

      Cairiam dez, vinte, sob as balas, mas ainda restariam oitenta para se lançarem sobre o Gigante de Aço e vencerem o pequeno grupo a que aquela máquina servia de cidade ambulante.

      Por isso redobraram os esforços para alcançarem os perseguidos.

      Kalagani também não ignorava que o capitão Hod e os seus companheiros deviam estar reduzidos às últimas balas, e não tardariam que espingardas e carabinas se tornassem dali a pouco em armas para eles inúteis.

      Efectivamente, os fugitivos haviam esgotado metade das munições que lhes restavam e iam ficar impossibilitados de se defenderem.

      Entretanto soaram ainda quatro tiros e outros tantos indianos caíram mortos.

      Só restavam ao capitão e a Fox duas balas.

      Naquele momento Kalagani, que se poupou até então, avançou mais do que era prudente.

       Ah! Apanhei-te agora! exclamou o capitão Hod, fazendo pontaria com o maior sangue-frio.

      A bala saiu da carabina para ir direita ao meio da testa daquele traidor.

      Kalagani agitou as mãos por um momento, deu uma reviravolta e caiu de chofre.

      Apareceu então a extremidade sul do desfiladeiro. O Gigante de Aço fez um esforço supremo.

      A carabina de Fox fez-se ouvir.

      Mais um indiano caiu morto.

      Mas o bando inimigo, percebendo que o fogo cessara, correu ao assalto do elefante, do qual apenas distava uns cinquenta passos.

      Para terra! Para terra! exclamou Banks.

      Sim, naquela altura era mais aconselhável abandonar o Gigante de Aço e correr para o posto, que não ficava longe.

      O coronel Munro, levando a mulher nos braços, saltou para terra.

      O capitão Hod, Maucler, o sargento e os demais fizeram o mesmo imediatamente.

      Só Banks ficara na torrinha.

       E este patife?  inquiriu o capitão Hod, indicando Nana Sahib, amarrado ao pescoço do elefante.

       Deixe-me fazer o que entendo, capitão! redarguiu Banks em tom singular.

      Depois, dando uma pequena volta ao regulador, apeou-se também.

      Deitaram todos a fugir, de punhal em punho, prontos a vender cara a vida.

      Entretanto, sob a acção do vapor, apesar de entregue a si mesmo, o Gigante de Aço continuava a subir a rampa, mas, como ninguém o dirigia, foi esbarrar contra o talude esquerdo da estrada, e, parando repentinamente, impediu completamente a passagem.

      Banks e os seus companheiros já iam a trinta passos de distância quando os indianos se lançaram em massa sobre o Gigante de Aço, a fim de soltarem Nana Sahib De repente, um estrondo espantoso, igual aos mais violentos trovões, agitou as camadas do ar com indescritível violência.

      Antes de abandonar a torrinha, Banks carregara excessivamente as válvulas da máquina.

      O vapor atingiu por isso uma tensão extrema, e quando o Gigante de Aço esbarrou contra a parede de rocha, não tendo saída pelos cilindros, fez rebentar a caldeira, cujos destroços se espalharam em todas as direcções.

       Pobre Gigante! exclamou o capitão Hod. Morto para nos salvar!

     

      O QUINQUAGÉSIMO TIGRE DO CAPITÃO

      O coronel Munro, os seus companheiros e os seus amigos já nada tinham a recear do nababo, nem dos indianos que seguiam a sua sorte, nem dos dacoits, com os quais ele formara um terrível bando naquela região do Bundelkund.

      Ao estrondo da explosão, os soldados do posto de Jubbulpore haviam saído em número considerável.

      Os restantes companheiros de Nana, vendo-se sem chefe, tomaram logo a fuga.

      O coronel Munro deu-se a conhecer.

      Meia hora depois todos chegavam ao posto, onde encontraram em abundância tudo quanto precisavam, e principalmente víveres, que era o que mais necessitavam.

      Lady Munro foi para um hotel, enquanto não chegava o momento de a conduzirem a Bombaim.

      Aqui, Sir Edward Munro esperava restituir a vida da alma àquela que só tinha a vida do corpo, e que para ele continuaria morta enquanto não recuperasse a razão.

      Para dizer a verdade, nenhum dos seus amigos se resignava a desesperar da próxima cura de Lady Munro.

      Todos esperavam, cheios de confiança, o grande acontecimento, que poderia profundamente modificar a existência do coronel.

      Combinou-se que logo no dia seguinte partiriam para Bombaim.

      O primeiro comboio reconduziria todos os moradores da Steam House à capital da índia ocidental.

      Desta vez seria a locomotiva vulgar que os transportaria com toda a velocidade, e não o infatigável Gigante de Aço, de que só restavam agora fragmentos informes.

      Mas nem o capitão, seu fanático admirador, nem Banks, seu criador engenhoso, nem nenhum outro dos membros da expedição deviam jamais esquecer aquele animal fiel, a quem tinham acabado por dar uma vida real.

      Na sua memória repercutir-se-ia por muito tempo o ruído da explosão que o aniquilara.

      Por isso, não deve causar admiração que, antes de deixarem o posto de Jubbulpore, Banks, o capitão Hod, Maucler, Fox e Gumi quisessem voltar ao teatro da catástrofe.

      Não havia mais nada a recear do bando dos dacoits. Em todo o caso, por excesso de precaução, quando o engenheiro e os seus companheiros chegaram ao posto dos Vindhyas, agregou-se-lhes um destacamento de soldados, e pelas onze horas davam entrada no desfiladeiro.

      Em primeiro lugar encontraram, espalhados pelo solo, cinco ou seis cadáveres mutilados Eram os que tinham investido sobre o Gigante de Aço, a fim de soltarem Nana Sahib.

      Do resto do bando não havia vestígios.

      Em vez de voltarem para o seu refúgio de Ripore, agora conhecido, os últimos fiéis de Nana Sahib deviam ter-se dispersado pelo vale do Nerbudda.

      Quanto ao Gigante de Aço, fora inteiramente destruído pela explosão da caldeira.

      Uma das suas grandes patas tinha sido arremessada a grande distância. Uma parte da tromba, atirada de encontro ao talude, ali se cravara, parecendo um braço gigantesco que saía da rocha.

      Viam-se por toda a parte chapas de ferro empenadas, porcas, cavilhas, fragmentos de cilindros, articulações de bielas.

      No momento da explosão, quando as válvulas carregadas já não podiam dar saída ao vapor, a tensão deste devia ter sido terrível e exceder vinte atmosferas.

      Agora, do elefante artificial, de que tanto se orgulhavam os moradores da Steam House, do colosso que desafiava a supersticiosa admiração dos indianos da obra-prima mecânica do engenheiro Banks, do sonho realizado do rajá fantasista de Bouthan, só restava um arcabouço irreconhecível e sem valor.

      - Pobre animal! não pôde deixar de exclamar o capitão Hod em presença do cadáver do seu querido Gigante de Aço.

      Poder-se-á fabricar outro. . . outro que será ainda mais poderoso! lembrou Banks.

      Decerto retorquiu o capitão, soltando um suspiro, mas já não é o mesmo.

      Enquanto se entregavam a estas investigações, o engenheiro e os seus companheiros lembraram-se de ver se encontrariam alguns restos de Nana Sahib.

      À falta do rosto, fácil de reconhecer, a mão privada de um dedo seria bastante para se verificar a sua identidade.

      Desejavam muito obter a prova incontestável da morte daquele que não se podia confundir com Balão Rao, seu

      irmão.

      Mas nenhum dos restos ensanguentados que juncavam o solo parecia ter pertencido a Nana Sahib. Os seus fanáticos teriam levado consigo até ao último vestígio das suas relíquias?  Era mais que provável.

      Em todo o caso chegava-se a este resultado: logo que não havia prova alguma da morte de Nana Sahib, a lenda ia recuperar os seus direitos, isto é, no espírito das populações da índia- central o intangível nababo continuaria a passar por vivo, enquanto não se fazia um deus imortal do antigo chefe dos sipaios.

      Mas para Banks e seus amigos não era admissível que Nana tivesse podido sobreviver à explosão.

      Voltaram para o posto, não sem o capitão Hod apanhar primeiramente um pedaço das presas do Gigante de Aço, fragmento precioso que ele queria para recordação.

      No dia seguinte, 4 de Outubro, deixaram todos Jubj bulpore num vagão que fora posto à disposição do coronel Munro e do seu pessoal.

      Vinte e quatro horas depois transpunham as Gates ocidentais, aqueles Andes indianos, que se estendem por uma extensão de trezentas léguas, em meio de espessas florestas de banianas, de sicômoros, de tecas, de palmeiras, de coqueiros, de arecas, de pimenteiras, de sândalos, de bambus.

      Horas depois, o comboio depunha-os na ilha de bombaim, a qual, com as ilhas de Salsete, de Elefanta e outras, forma um ancoradouro magnífico, em cujo extremo sueste está a capital da presidência.

      O coronel Munro não devia permanecer naquela grande cidade, onde se acotovelavam árabes, persas, banianos, abexins, parses, guebros, sindos, europeus de todas as nacionalidades, e até, segundo parece, índios.

      Os médicos, consultados acerca do estado de Lady Munro, recomendaram que a levassem para uma vivenda de campo nos arredores, onde a tranquilidade que ali desfrutasse, os cuidados que dia a dia lhe dispensassem e o incessante desvelo do marido não podiam deixar de produzir efeito salutar.

      Passou-se um mês. Nenhum dos companheiros do coronel, assim como dos seus serviçais, se lembrou por momentos de o abandonar.

      Queriam todos estar presentes no dia em que se previa a cura da jovem, dia que não vinha longe.

      Tiveram afinal essa alegria. Lady Munro recuperou pouco a pouco a razão. Aquele espírito encantador começou novamente a pensar.

      Do que fora a Chama Errante não restava nada, nem a lembrança.

       Laurence! Laurence! exclamou o coronel; e Lady Munro, reconhecendo-o afinal, caíra-lhe nos braços.

      Uma semana depois, os viajantes da Steam House estavam reunidos no bungalow de Calcutá. Ia ali recomeçar uma existência bem diferente da que se passara até então naquela rica residência.

      Banks ali devia passar os momentos de ócio que lhe ficassem livres dos seus trabalhos e o capitão Hod as licenças que pudesse obter.

      Quanto a Mac Neil e a Gumi, pertenciam à casa e não deviam nunca separar-se do coronel Munro.

      Por este tempo Maucler foi obrigado a deixar Calcutá para voltar à Europa.

      Fê-lo ao mesmo tempo que o capitão Hod, cuja licença expirava e a quem o dedicado Fox ia seguir aos

      acantonamentos militares de Madrasta.

       Adeus, capitão disse-lhe o coronel Com satisfação penso que nada tem a lastimar na sua viagem à índia setentrional, salvo o não haver morto o seu quinquagésimo tigre!

       Mas é que o matei, coronel.

      Como! Matou-o?

       Pois não?  respondeu o capitão Hod, com um

      gesto magnífico. Pois quarenta e nove tigres e. . . Kalagani. . . não somarão os meus cinquenta?

 

                                                                                            Julio Verne  

 

                      

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