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A Galera Chancellor / Julio Verne
A Galera Chancellor / Julio Verne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Galera Chancellor

 

Charleston

27 de Setembro de 1869. - Desamarrámos do cais da Bateria às três horas da tarde, na preia-mar. A corrente leva-nos velozmente para o largo. O capitão Huntly manda largar o pano todo, e a brisa do norte impele o Chancellor através da baía.

Em breve dobrámos o forte Sumter, deixando pela esquerda as baterias rasantes da costa. Pelas quatro horas passámos o canal da barra, pelo qual correm velozes as águas da vazante.

Fica ainda longe o mar alto, do qual nos separam os canais apertados que as correntes cavaram entre os bancos de areia. O capitão manda meter pelo canal do sudoeste, avistando o farol da ponta pelo ângulo esquerdo do forte Sumter. O Chancellor braceia as vergas de bolina e pelas sete horas da tarde o navio passa a última ponta de areia, e surge no Atlântico com todo o pano largo.

O Chancellor, bonita galera de novecentas toneladas, pertence à poderosa casa Leard e Irmãos, de Liverpul. O navio, construído há dois anos, é forrado e cavilhado de cobre, o tabuado exterior de teca e tem os mastros reais, excepto o da gata, de ferro, e o aparelho fixo de arame. Este valente e veloz navio, classificado em primeira classe pelo "Veritas", faz actualmente a sua terceira viagem entre Charleston e Liverpul.

Ao sair da barra de Charleston arria o pavilhão britânico, mas nenhum homem do mar desconheceria a sua nacionalidade: é realmente o que parece, inglês desde a linha de flutuação até aos topos dos mastros.

Direi agora a razão por que embarquei a bordo do Chancellor de volta para Inglaterra.

Não existe carreira directa de vapores entre a Carolina do Sul e a Grã-Bretanha. Para alcançar alguma das linhas transatlânticas é mister ou ir ao Norte dos Estados Unidos, a Nova Iorque, ou ao Sul, até Nova Orleães. Navegam entre Nova Iorque e o Antigo Continente vapores de muitas linhas inglesas, francesas e hamburguesas. Em barcos como o Scotia, o Pereire, o Holsatia, faria rapidamente a viagem. Entre a Nova Orleães e a Europa também fazem excelentes viagens os vapores da National Steam Navigation C.a que se ligam com as linhas transatlânticas francesas de Colombo a Aspinwall. Vi, porém, o Chancellor amarrado ao cais de Charleston, Agradou-me, e, não sei por que instinto, resolvi examinar o navio, no qual achei excelentes acomodações. Além disso, a navegação à vela, quando favorecida pelo vento e mar, quase tão rápida como a vapor, torna-se por muitos títulos preferível. E no começo do Outono ainda reina bom tempo nestas paragens próximas do equador.

Resolvi, portanto, embarcar no Chancellor.

Fiz bem ou mal? Terei de lamentar esta resolução? Há-de o futuro dizê-lo. Redijo quotidianamente estes apontamentos e ao presente sei tanto como quem ler este diário - se alguém o ler.

 

Os passageiros do Chancellor

28 de Setembro. - Já disse que o capitão do Chancellor se chama Huntly, de apelido, e de nome John Silas. Escocês e natural de Dundee, terá cinquenta anos de idade, e disseram-me ser navegador perito do Atlântico. É de estatura mediana, delgado de ombros, com a cabeça pequena e por costume algum tanto inclinada sobre a esquerda. Conquanto não presuma de fisionomista de grande força, creio que avalio perfeitamente o capitão Huntly, embora só o conheça de poucas horas.

Não contesto que Silas Huntly goze reputação de bom oficial e passe por mestre na sua profissão; mas nego terminantemente que seja um homem de ânimo firme, de provada energia física e moral. Não é possível, não!

Na atitude mostra-se pesado e parece andar sempre abatido.

Na indecisão do olhar, nos movimentos inertes das mãos, no modo de oscilar sobre as pernas, bem indica quanto seja indolente. Não se lhe contraem os olhos, o queixo é frouxo, não fecha, por costume, os punhos; logo, falta-lhe vigor moral, nem pode chegar a ser teimoso: Acho-lhe além disto certo ar estranho, que não sei explicar ainda. Hei-de examiná-lo com a atenção que merece o comandante do navio, aquele "senhor abaixo de Deus".

Se não me iludo, existe a bordo, entre Deus e Silas Huntly, outro homem que, em circunstâncias apuradas, me parece talhado de molde para desempenhar papel predominante. Vem a ser o imediato do Chancellor, que não conheço ainda bem, e de que só para diante poderei falar com verdadeiro conhecimento.

Além do capitão Huntly, do imediato Roberto Kurtis e do oficial chamado Walter, a tripulação do Chancellor compõe-se de um mestre e catorze marinheiros ingleses ou escoceses. Ao todo dezoito homens, que tantos bastam para as manobras de uma galera de novecentas toneladas. Todos parecem hábeis na sua profissão. Já posso dizer com certeza que às ordens do imediato manobraram com perícia na saída da barra de Charleston.

Completarei a enumeração das pessoas embarcadas a bordo do Chancellor citando o despenseiro Hobbart, um cozinheiro preto chamado Jynxtrop e dando a lista dos passageiros.

São estes, ao todo, oito, contando comigo. Mal os conheço ainda, mas em breve nos ligará a monotonia da viagem, os mil casos quotidianos, o contacto permanente de pessoas reunidas em pequeno espaço, a necessidade natural de trocar ideias, a curiosidade inata no coração humano. Até ao presente tínhamo-nos conservado apartados por causa da azáfama do embarque e da escolha dos camarotes, dos preparativos e precauções para uma viagem que durará vinte a vinte e cinco dias. Ontem e hoje nem sequer todos os convivas compareceram à mesa do capitão; talvez alguns sofram enjoo. Não os vi ainda, mas sei que entre eles se contam duas senhoras, a quem couberam os camarotes com janelas, na popa.

Eis finalmente a lista dos passageiros, tal qual a copiei da lista de bordo:

Mr. e Mrs. Kear, americanos, de Búfalo; Miss Herbey, inglesa, criada grave de Mrs. Kear; Monsieur Letourneur e seu filho André Letourneur, franceses, do Havre; William Falsten, inglês, engenheiro, de Manchester; John Ruby, também inglês, negociante em Cardife; J. R. Kazallon, de Londres, autor deste diário.

 

29 de Setembro. - No manifesto de carga do capitão Huntly, isto é, o documento do qual consta o carregamento do Chancellor e as condições do transporte, lê-se o seguinte:

BRONSFIELD & C.a, NEGOCIANTES DE COMISSõES.

CHARLESTON

Eu, abaixo assinado, John Silas Huntly, de Dundee(Escócia), capitão da galera Chancellor, de novecentas toneladas, aproximadamente, agora fundeada neste porto de Charleston, para, logo que o tempo o permita, seguir directamente, com o auxílio de Deus, para o porto de Liverpul, onde é minha direita descarga, declaro ter recebido no meu dito navio, e debaixo de coberta enxuta, dos Srs. Bronsfield & C.a, negociantes de comissões em Charleston, 1700 fardos de algodão, no valor de 26.000 libras, em bom estado e bem acondicionados, com a marca e números à margem, que me obrigo a conduzir em bom estado, salvo os riscos e perigos do mar, a Liverpul e entregar aos Srs. Leard & Irmãos, ou à sua ordem, pagando-me 2000 libras de frete, segundo a carta de fretamento, sendo as avarias segundo os usos e costumes do mar. Para cumprimento do que obrigo a minha pessoa e bens e o dito navio, com todos os seus pertences.

Em fé do que assino três conhecimentos do mesmo teor, dos quais só um terá valor.

Feito em Charleston, a 1 de Setembro de 1869.

J. S. Huntly.

Leva, portanto, o Chancellor para Liverpul 100 fardos de algodão. Expedidores: Bronsfield & C.a, de Charleston.

Consignatários: Leard & Irmãos, de Liverpul.

O carregamento foi cuidadosamente arrumado, sendo o navio expressamente construído para o transporte de algodão. Os fardos enchem o porão, excepto um pequeno espaço destinado às bagagens dos passageiros, e formam massa compacta que foi comprimida à força de prensas. Não há nenhum espaço perdido no porão, o que constitui grande vantagem, por ser aproveitado todo em carga.

 

De 30 de Setembro a 6 de Outubro. - O Chancellor é muito veleiro e facilmente deixaria pela popa qualquer navio de igual porte. Desde que a brisa refrescou fica atrás dele a perder de vista uma extensa e larga esteira. Parece tira de renda branca estendida sobre o fundo azul do mar.

O Atlântico continua pouco agitado pelo vento. Ninguém a bordo vai incomodado com o balanço e arfagem do navio. Verdade é que todos os passageiros já fizeram viagens e andam acostumados ao mar. Por isso não fica nenhum lugar devoluto em redor da mesa do jantar.

Já começa a convivência entre os passageiros, tornando menos monótona a vida de bordo. O Sr. Letourneur e eu conversamos amiudadas vezes.

Este francês é homem de cinquenta anos, alto, de cabelos brancos e barba grisalha. Parece mais velho, porque tem sofrido muito. Mortificaram-no grandes desgostos e, devo dizê-lo, mortificam-no ainda. Parece pungi-lo invencível tristeza, que bem se revela no quebramento do corpo e na cabeça descaída sobre o peito. Nunca ri, mal sorri, e unicamente para o filho. Tem o olhar benévolo, mas parece que velado por húmida cortina. No rosto, cuja expressão geral é de cariciosa bondade, divisam-se-lhe em mistura característica amor e desgosto.

Dir-se-ia que o Sr. Letourneur se julga culpado de alguma desgraça involuntária.

Sim! Mas que alma se não comoverá ao saber quais são os remorsos, decerto injustificados, daquele infeliz pai?

O Sr. Letourneur viaja em companhia do seu filho André, moço de cerca de vinte anos, cuja fisionomia revela bondade e atrai afectos. O filho parece o retrato, algum tanto desbotado, do pai, e daí provém a mágoa incurável de Letourneur: é aleijado.

A perna esquerda, extremamente destorcida para fora, torna-o tão coxo que só pode andar apoiado a uma bengala.

O pai adora André e só vive por ele. Mais que o aleijado, sofre da enfermidade deste e talvez lhe peça até perdão! É permanente a sua dedicação pelo filho. Não o deixa, adivinha-lhe os mínimos desejos, espreita-lhe todas as acções.

Os braços pertencem-lhe menos que ao filho; abraçam-no, amparam-no quando ele passeia no convés do Chancellor.

O Sr. Letourneur relacionou-se principalmente comigo e sempre conversamos a respeito do filho.

Hoje disse-lhe eu:

- Estive há pouco com o Sr. André. Tem um óptimo filho, Sr. Letourneur. É realmente um jovem ilustrado.

- É verdade, Sr. Kazallon - respondeu Letourneur, esboçando um sorriso -, é uma alma formosa encerrada em corpo enfermo; alma como a de minha infeliz mulher, que faleceu dando-o à luz.

- É muito seu amigo.

- Querido filho! - murmurou Letourneur, baixando a cabeça. - Oh! mal pode compreender quanto sofro vendo-o aleijado... aleijado de nascença.

- Parece-me, Sr. Letourneur - respondi eu -, que, na desgraça que os fere a si e a seu filho, os quinhões não são iguais. O Sr. André decerto merece dó, mas não lhe será ampla compensação o amor dedicado do seu pai? Melhor se sofrem as enfermidades físicas que as dores morais; a dor moral é principalmente sua. Tenho examinado seu filho com atenção e creio que, se alguma coisa o magoa intimamente, é a sua aflição, Sr. Letourneur.

- Que eu não lha revelo! - replicou Letourneur com vivacidade. - Só uma coisa me preocupa: trazê-lo sempre distraído. Descobri que, a despeito de ser aleijado, meu filho gosta muito de viagens. O espírito dele parece ter pernas e até asas; por isso há uns poucos de anos que viajamos de companhia. Percorremos a Europa toda e vimos agora de visitar os principais Estados da União americana. Encarreguei-me eu próprio da educação de André, que não quis mandar para o colégio; trato de completá-la por meio de viagens. André possui inteligência penetrante e ardente imaginação. É muito sensível e apraz-me às vezes crer que, apaixonando-se pelos grandes espectáculos da natureza, esquece o próprio aleijão!

- Decerto, Sr. Letourneur, decerto...

- Mas se ele o esquece - continuou Letourneur, apertando-me a mão -, não o esqueço eu nunca! Julga que meu filho nos perdoará, a sua mãe e a mim, o termo-lo procriado defeituoso?

Corta-me o coração a dor daquele pai acusando-se de uma desgraça cuja responsabilidade não é de ninguém. Desejo confortá-lo, mas nesse instante aparece o filho. Letourneur corre para ele e vai ajudá-lo a subir a escada íngreme que conduz ao tombadilho.

Chegado ali, senta-se num dos bancos dispostos por cima das capoeiras e o pai coloca-se ao lado. Conversam e tomo parte na conversação. Falamos da viagem do Chancellor, das probabilidades dela, do programa de vida a bordo. O Sr. Letourneur está de acordo comigo em fazer fraca ideia do capitão Huntly. A indecisão deste oficial, a sua indolência, causam-lhe desagradável impressão. Pelo contrário, aprecia muito o imediato, Roberto Kurtis, homem de trinta anos, bem constituído, de grande força muscular, sempre activo e cuja vontade enérgica a cada instante está preparada para manifestações externas.

Roberto Kurtis saiu neste momento. Examinei-o com atenção e impressionaram-me os sintomas da sua força e da sua expansão vital. Lá está ele com o corpo bem aprumado, andar firme, olhar altivo e os músculos orbitários pouco contraídos. Logo se vê ser homem enérgico e dotado do valor sereno que convém ao marítimo. E ao mesmo tempo alma bem formada, porque mostra grande simpatia por André Letourneur e está sempre pronto a ser-lhe útil.

O imediato examina o estado do céu e o velame do navio; depois chega-se para nós.

Reconheço que André gosta de conversar com ele.

Roberto Kurtis presta-nos informações acerca dos passageiros que mal conhecemos ainda.

Mr. e Mrs. Kear são americanos dos Estados do Norte, que enriqueceram explorando nascentes de petróleo. Hoje é esta a origem das grandes riquezas americanas. Mr. Kear, porém, homem de cinquenta anos e parecendo antes enriquecido que rico, é triste comensal. Só cuida dos seus cómodos e noutra coisa não pensa. Anda sempre a tinir com o dinheiro nas algibeiras, donde não tira as mãos. Cheio de orgulho e vaidade, admirador de si próprio e desprezador dos outros, afecta indiferença suprema por quanto lhe é alheio. Enfona-se como o pavão, "cheira-se, prova-se, saboreia-se", na frase do ilustre fisionomista Gratiolet. É tolo e ainda por cima egoísta. Não posso acertar com os motivos por que embarcou a bordo do Chancellor, mero navio mercante que não proporciona as comodidades dos grandes paquetes transatlânticos.

Mrs. Kear é mulher sem valor, indolente, cheia de indiferença, ferida já pelo dobrar do cabo dos quarenta anos, nenhum espírito, nem instrução, nem amabilidade. Olha, mas não vê; escuta, mas não ouve. Pensará? Não posso afirmá-lo.

A sua preocupação única é fazer que sem cessar a sirva Miss Herbey, sua criada grave, inglesa de vinte anos de idade, meiga e paciente criatura, que só à custa de mil humilhações ganha as poucas libras que lhe arremessa o negociante de petróleo.

Miss Herbey é formosíssima. Tem os cabelos louros, os olhos azuis-escuros; no rosto gracioso não mostra a frieza própria de muitas inglesas. A boca seria lindíssima, se ela alguma vez pudesse sorrir. Mas porque, a propósito de que, sorriria a pobre rapariga, incessantemente vítima das birras, dos ridículos caprichos da sua ama? Entretanto, se Miss Herbey sofre, esconde a tristeza e parece resignada com a sua condição.

William Falsten é um engenheiro de Manchester, de aspecto completamente inglês. Dirige uma grande oficina hidráulica na Carolina do Sul e vai à Europa comprar aparelhos e máquinas aperfeiçoados, principalmente moinhos de força centrífuga de Cail. Andará pelos quarenta e cinco anos; é uma espécie de sábio que só pensa em máquinas, embebido em cálculos e mecânicas, que noutra coisa não pensa. Quando em conversação agarra uma pessoa, escusado é tentar fugir-lhe; não há remédio senão atravessar toda aquela engrenagem.

O Sr. Ruby não passa de comerciante vulgar, sem educação nem originalidade. Há muitos anos que não faz senão comprar e vender, e, como geralmente vende mais caro que compra, já tem bastante de seu. O que projecta fazer, nem ele o sabe. Ruby embruteceu no comércio a retalho, não pensa, reflecte; o cérebro fechou-se-lhe para qualquer impressão. Este não justifica de modo nenhum o pensamento de Pascal: "O homem evidentemente foi feito para pensar. Nisto consistem a sua dignidade e todo o seu merecimento."

 

7 de Outubro. - Saímos há dez dias de Charleston e creio que temos andado bastante e bom caminho. Converso muitas vezes com o imediato e travámos até relações íntimas.

Hoje disse-me Roberto Kurtis que devemos achar-nos perto do arquipélago das Bermudas, isto é, ao largo do cabo Hatteras.

Tomado o ponto ao meio-dia, achamo-nos por 2 graus e 20 de latitude norte e 64 graus e 50 de longitude oeste de Greenwich.

- Antes da noite avistaremos as Bermudas e principalmente a ilha de São Jorge - afirmou o imediato.

- Como! - respondi eu -, pois dirigimo-nos para as Bermudas? Sempre ouvi dizer que os navios em viagem de Charleston para Liverpul deviam fazer rumo pelo norte e seguir a Gulf-Stream!

- Tem razão, Sr. Kazallon; tal é a rota geralmente adoptada. Parece, porém, que desta vez o capitão não quer segui-la.

- Porquê?

- Não sei. Indicou a rota por leste e o Chancellor navega para leste!

- Mas não lhe fez notar?...

- Disse-lhe que tal não é costume, mas ele respondeu-me que bem sabia o que fazia!

E, falando assim, Roberto Kurtis franziu muitas vezes o sobrolho, passou maquinalmente a mão pela testa. Parece-me que não disse quanto quereria.

- Note, porém - prossegui eu -, que já estamos a 7 de Outubro e que não parece ensejo propício para tentar rotas novas. Não há que perder tempo, se queremos chegar à Europa antes dos temporais outoniços!

- Verdade é, Sr. Kazallon, que não devemos perder nem um dia!

- Ora diga-me, Sr. Kurtis, será indiscrição perguntar-lhe o que pensa do capitão Huntly?

- Ora o que penso! Penso que... é o capitão do navio.

Essa resposta evasiva sobressalta-me.

Não se enganava Roberto Kurtis. Pelas três horas o vigia de proa anuncia terra por barlavento, a nordeste, mas aparece ainda como sombra indistinta.

Às seis horas subo ao convés em companhia dos franceses e examinamos o grupo das Bermudas, ilhas relativamente rasas, defendidas por uma perigosa rede de escolhos.

- Eis o arquipélago deleitoso - observou André Letourneur -, o grupo pitoresco que o seu poeta Thomas Moore, Sr. Kazallon, descreveu em odes imortais! Já em 1643 o desterrado Walter fazia entusiásticas descrições destas ilhas. Se a memória não me ilude, creio que durante algum tempo não queriam as senhoras inglesas servir-se de chapéus que não fossem feitos da palha de uma palmeira bermúdica.

- É verdade, meu caro André - respondi eu -, o arquipélago das Bermudas durante o século xvII andou na moda; hoje está completamente esquecido.

- Demais, Sr. André - acudiu Roberto Kurtis -, os poetas que falam com tanto entusiasmo deste arquipélago não estão de acordo com os homens do mar, porque este recanto de terra, cujo aspecto os maravilhou, é perigoso para quem o demanda. A duas ou três léguas da terra formam os escolhos uma faixa semicircular submersa, que oferece grande risco. Direi ainda que a serenidade do céu, tão gabada pelos apaixonados das Bermudas, é a miúde perturbada por vendavais. Estas ilhas são açoutadas pela cauda das tempestades que devastam as Antilhas; a tal cauda, como a das baleias, é a parte mais temível. Não aconselho, pois, aos peregrinos do oceano que se fiem nas narrações de Walter e de Thomas Moore.

- Olhe, Sr. Kurtis - respondeu André Letourneur, sorrindo -, creio que deve ter razão. Felizmente os poetas são como os provérbios: nunca falta um para contradizer o outro. Se o arquipélago das Bermudas foi exaltado por Thomas Moore e Walter como terra deliciosa, pelo contrário, Shakespeare, o maior dos seus poetas e que certamente o conhecia muito melhor, achou plausível fazer passar nestas paragens as cenas mais temerosas da sua Tempestade!

São com efeito perigosos os mares das Bermudas. Os próprios Ingleses, a quem o arquipélago pertence desde a descoberta, apenas o aproveitaram como posto militar entre as Antilhas e a Nova Escócia. Mas deve crescer e engrandecer-se. Com o tempo - princípio essencial dos lavores da natureza -, o arquipélago, já hoje com perto de cento e cinquenta ilhas ou ilhotas, aumentará muito, porque as madréporas trabalham sem descanso na construção de novas Bermudas, que se ligam entre si, e a pouco e pouco formarão novo continente.

Nem os outros passageiros nem Mrs. Kear quiseram dar-se ao incómodo de subir ao convés para verem este curioso arquipélago. Miss Herbey, mal chegara ao tombadilho, logo foi chamada pela voz lânguida de Mrs. Kear, que a queria ao pé de si.

 

De 8 a 13 de Outubro. - O vento começa a soprar do nordeste com certa força, e o Chancellor tem de meter de capa seguida com as gáveas nos terceiros e o traquete.

O mar está cavado e o navio balouça muito. As anteparas da câmara e dos camarotes gemem com ruído importuno. Os passageiros conservam-se quase todos debaixo do tombadilho.

Por mim, prefiro passear no convés, embora a chuva finíssima me encharque com as moléculas pulverizadas pelo vento.

Andamos assim durante dois dias. O vento foi sempre aumentando de força até se declarar tufão. Os mastaréus de joanete foram arriados. O vento atingia a velocidade de cinquenta a sessenta milhas por hora.

Apesar das suas excelentes qualidades, o Chancellor abate muito para o sul. O estado do céu, coberto de nuvens, não permite tomar a altura, e, portanto, estamos reduzidos a marcar o ponto pela estima.

Os meus companheiros de viagem, aos quais o imediato não disse nada, mal sabem que a nossa derrota é completamente inexplicável. A Inglaterra demora-nos a nordeste e fazemos constantemente rumo para sueste!

Roberto Kurtis não logra compreender a teimosia do capitão, que devia ao menos mudar de amuras e navegar para noroeste, a fim de aproveitar as correntes favoráveis. Porém, não! Desde que o vento rondou para nordeste, cada vez nos entranhamos mais para o sul.

Achando-me só no tombadilho com Roberto Kurtis, perguntei-lhe:

- Então o capitão está doido?

- Talvez o Sr. Kazallon possa dizê-lo melhor que eu, porque o tem examinado com atenção!

- Não sei bem que ajuizar, mas devo dizer que me surpreende aquela fisionomia singular, os olhos às vezes espantados... Já navegou com ele?

- Nunca. Esta é a primeira vez.

- E não lhe fez novas ponderações a respeito da rota que levamos?

- Fiz, porém respondeu-me que assim íamos bem.

- Diga-me uma coisa, Kurtis, que pensa o Sr. Walter e o mestre deste modo de proceder?

- Pensam como eu.

- E se o capitão Huntly quisesse levar o navio até à China?

- Haviam de obedecer como eu.

- Mas a obediência tem limites?

- Não, enquanto o procedimento do capitão não puser o navio em perigo.

- Mas se estiver doido?

- Se endoidecer, verei então o que hei-de fazer.

Eis uma complicação que eu não esperava quando embarquei a bordo do Chancellor.

Entretanto o tempo piorara, e naquela parte do Atlântico desencadeava-se um vendaval. O navio meteu de capa, com as gáveas nos terceiros e a vela de estai, isto é, fez, por assim dizer, cabeça contra o vento, desafiando o mar com a proa.

Mas, como já disse, abatia muito e cada vez nos achávamos mais ao sul.

Não podia a este respeito haver dúvidas, porque o Chancellor, na noite de 11 para 12, entrou no Mar de Sargaços.

Este Mar de Sargaços, apertado pelas águas tépidas da Gulf-Stream, é uma ampla extensão de água, coberta de bodelhas, a que os Espanhóis e Portugueses chamam sargaço. Os navios de Colombo a custo puderam romper aquela vigorosa vegetação marinha, da primeira vez que atravessaram o oceano.

Ao amanhecer, apresenta o Atlântico singularíssimo aspecto, que os Letourneur vêm observar apesar das rajadas violentas, que fazem vibrar a enxárcia metálica como verdadeiras cordas de harpa. O nosso fato, apegado ao corpo, voaria pelos ares se apresentasse presa ao vento. O navio salta no mar, cujas águas tornam densas as prolíficas famílias dos fucos, ampla planície verdejante, que corta com a roda da proa como soco de charrua. Às vezes em volta dos cabos enrolam-se compridos filamentos arrancados pelo vento, como sarmentos de vinha virgem, e formam de um a outro mastro verdadeiros caramanchões de verdura. Dessas extensas algas - há fitas intermináveis de trezentos a quatrocentos pés de comprimento - algumas trepam até aos topos dos mastros, onde flutuam como flâmulas. Durante horas é necessário lutar contra esta invasão de bodelha; em certas ocasiões o Chancellor, com a mastreação coberta de hidrófitos ligados por limos caprichosos, deve parecer um bosque ambulante no meio de prado imenso.

 

14 de Outubro. - O Chancellor saiu finalmente deste oceano vegetal e o vento amainou bastante. É apenas vento fresco, e navegamos rapidamente com as gáveas nos segundos.

Hoje apareceu o Sol e brilha no céu desanuviado. A temperatura aumenta bastante. Marca-se o ponto em boas condições e dá 21 graus 33 de latitude norte e 50 graus 17 de longitude oeste. O Chancellor desviou-se mais 10 graus para o sul.

Pois continuamos no rumo de sueste!

Quis ajuizar da inexplicável teimosia do capitão Huntly e fui para isso conversar com ele. Está em seu juízo ou endoideceria? Não sei que pensar. Em geral fala razoavelmente.

Sofrerá de loucura parcial, relativa principalmente às coisas da sua profissão? Há exemplos de semelhantes casos patológicos. Falo nisso a Roberto Kurtis, que me ouve friamente. Disse-me ele uma vez e repete ainda: "Não tenho direito de depor o capitão senão em caso de perigo causado por acto de loucura bem manifesta. Proceder de outro modo seria incorrer em grave responsabilidade."

Meti-me no camarote às oito horas da noite, e à luz do candeeiro de balanço levei uma hora lendo e meditando; depois deitei-me e dormi.

Acordo horas depois ouvindo ruído desusado. Soam passos pesados no convés e ouvem-se ordens dadas em voz alta.

Parece-me que a gente da tripulação corre precipitada. Qual será a causa deste movimento extraordinário? Talvez braceiem as vergas para virarmos de bordo... Mas não! Não pode ser, porque o navio continua inclinado para estibordo e, portanto, não mudou de amuras.

Resolvo-me a subir ao convés, mas o ruído cessa. Ouço o capitão Huntly entrar na sua câmara, situada adiante do tombadilho, e encolho-me outra vez no beliche. Naturalmente a causa do ruído foi alguma manobra. Mas a arfagem e o balanço do navio não aumentam. Logo, não refrescou o vento.

No dia seguinte, 14, subo ao tombadilho às seis horas da manhã e examino o navio.

Aparentemente não há novidade a bordo. O Chancellor navega, amurado por bombordo, com papa-figos, gáveas e joanetes. Vai bem compassado e porta-se maravilhosamente no mar, encrespado pela brisa fresca e de feição. A sua velocidade é grande bastante; não descerá de onze milhas por hora.

Passados poucos momentos apareceram no convés Letourneur e o filho. Ajudo André a subir ao tombadilho. Respira com delícia o vívido ar da manhã, impregnado de perfumes marítimos.

Pergunto-lhes se não os acordou de noite certo ruído e passos indicando agitação a bordo.

- Por mim, não - responde André Letourneur -, levei toda a noite de um sono.

- Dormias efectivamente muito bem, porque também fui despertado pelo ruído de que o Sr. Kazallon fala. Até me pareceu ouvir estas palavras: "Depressa! depressa! Fechem as escotilhas!"

- Ah! - respondo eu.

- Que horas seriam?

- Pouco mais ou menos três da madrugada - replica Letourneur.

- Não sabe a causa desse tumulto?

- Eu não, Sr. Kazallon. Mas decerto não houve perigo, porque nenhum de nós foi chamado para cima.

Olho para as escotilhas à proa e à ré do mastro grande que comunicam com o porão. Estão fechadas segundo o costume, mas noto que as cobriram com encerados, estando tudo disposto de modo que fiquem hermeticamente vedadas. Para que tomaram semelhantes precauções? Houve para isso motivo que não posso descortinar. Roberto KurtiS me dirá qual foi. Espero que chegue o quarto do imediato, e não digo as observações que fiz, preferindo não sobressaltar Letourneur.

O dia deve estar lindo porque temos um magnífico nascer do Sol em céu limpo de vapores; é bom presságio. Ainda se vê acima do horizonte o disco meio cerceado da Lua, que só há-de pôr-se às dez horas e cinquenta e sete minutos da manhã. Daqui a três dias é quarto minguante e a 24 será lua nova. Consulto o meu almanaque e vejo que nesse dia teremos grande maré de sizígia. Pouco nos importa a nós que, navegando no alto mar, não sentimos os efeitos da maré; mas nas costas dos continentes e ilhas há-de ser curioso observar o fenómeno, porque a Lua levantará as águas a grande altura.

Estou só no tombadilho. Os Letourneur desceram para tomar chá; espero o imediato.

Às oito horas entra Roberto Kurtis de quarto, substituindo Walter. Vou apertar-lhe a mão.

Ainda antes de me dar os bons-dias, Kurtis olha rapidamente para o convés do navio e franze o sobrolho. Depois examina o estado do céu e o velame do navio.

Aproximando-se de Walter, diz-lhe:

- Onde está o capitão?

- Ainda não o vi hoje.

- Que há de novo?

- Nada.

Roberto Kurtis e Walter falam alguns momentos em voz baixa.

A uma pergunta daquele responde Walter com um gesto negativo.

- Queira mandar-me aqui o mestre - diz o imediato, quando Walter se vai afastando.

O mestre não se demora, e Kurtis faz-lhe algumas perguntas, às quais ele responde em voz baixa, encolhendo os ombros.

Depois o mestre, por ordem de Kurtis, chama a gente do quarto e manda-lhe regar o encerado que cobre a escotilha grande.

Passados momentos dirijo-me para o imediato e falamos ao princípio de coisas insignificantes. Vendo que o oficial não alude ao que desejo saber, digo-lhe naturalmente:

- É verdade! Então esta noite houve novidade a bordo?

Roberto Kurtis olha-me com atenção, sem responder.

- Ouvi ruído desacostumado - continuo eu -, que também acordou Letourneur. Que foi?

- Nada, ou quase nada, Sr. Kazallon -respondeu Roberto Kurtis. - O homem do leme deu uma guinada e fez desviar o navio. Foi necessário bracear depressa, o que causou certo movimento no convés. Em breve se emendou o erro e o Chancellor continua sem novidade.

Parece-me que Roberto Kurtis, normalmente muito franco, não fala agora verdade.

 

De 15 a 19 de Outubro. - A viagem continua nas mesmas condições, mantendo-se o vento ao nordeste. Qualquer ânimo despreocupado julgaria não haver novidade a bordo.

Mas alguma coisa há! Os marinheiros reúnem-se aos grupos, conversam animadamente, mas calam-se quando nos chegamos para eles. Muitas vezes tenho ouvido a palavra "escotilha", que também impressionou Letourneur. Que sucede no porão do Chancellor para serem necessárias precauções tão minuciosas?

Porque estão as escotilhas hermeticamente fechadas? Decerto que, se tivéssemos gente inimiga presa na coberta, não tomaríamos maiores precauções para bem a guardar!

No dia 15, como passeasse à proa, ouvi o marinheiro Owen dizer aos camaradas:

- Sabem vocês, rapazes? Não serei eu que espere até ao fim! Cada um por si.

- Mas que projectos fazes, Owen? - pergunta-lhe o cozinheiro Jynxtrop.

- Ora! - responde o marinheiro. - As embarcações não se fizeram para os golfinhos!...

De repente interrompem a conversação e não consigo saber mais nada.

Andarão conspirando contra os oficiais do navio?

Surpreenderia Roberto Kurtis alguns sintomas de insubordinação? Sempre há motivos para temer a má vontade de certos marinheiros e convém impor-lhes disciplina de ferro.

Decorreram três dias, durante os quais não vi nada de extraordinário.

Assim mesmo noto que desde ontem o capitão e o imediato têm frequentes conferências. Roberto Kurtis não pode conter os gestos de impaciência - o que admira em homem tão senhor de si -, mas parece-me que, em seguida a essa conversação, cada vez o capitão Huntly persiste mais nas suas ideias. Além disso, afigura-se-me que o comove grande excitação nervosa, cuja causa desconheço.

O Sr. Letourneur e eu temos notado, durante as refeições, a taciturnidade do capitão e a inquietação mal disfarçada de Roberto Kurtis. Às vezes tenta o imediato animar a conversação, mas esta descai logo e nem o engenheiro Falsten, nem Mr. Kear são homens para sustentá-la. Ruby ainda menos.

Estes passageiros começam, porém, a queixar-se, não sem razão, da demora na viagem. Mr. Kear, que julga os elementos obrigados a andarem amoldados ao seu sabor, parece tornar o capitão Huntly responsável pela demora e trata-o com sobranceria.

No dia 17 e daí por diante, em virtude de ordens terminantes do imediato, é o convés baldeado muitas vezes ao dia. O costume é fazer esta faina de manhã cedo, mas talvez agora a repetição seja motivada pelo excesso do calor, porque nos temos desviado muito para o sul. Há todo o cuidado em conservar constantemente os encerados húmidos; o apertado do tecido torna-os absolutamente impermeáveis. O Chancellor tem bombas que tornam fáceis estas contínuas lavagens. Creio que não há maior limpeza a bordo das luxuosas goletas do Iacht Club. Talvez a tripulação devesse queixar-se deste excesso de trabalho, mas o caso é que não se queixa.

Na noite de 18 para 19 parece-me ter aumentado bastante a temperatura dos camarotes e na câmara abafa-se. Embora o mar seja de vaga grossa, sou obrigado a deixar aberta a vigia do meu camarote, situado a estibordo. Bem se vê que estamos debaixo dos trópicos!

No dia 19 venho para o convés ao romper da alva. Fenómeno inexplicável, não acho a temperatura exterior em harmonia com a do interior do navio! Até se pode dizer que a manhã está fresca, porque o Sol mal aponta no horizonte. É certo, porém, que não me enganei, e que finalmente fazia bastante calor debaixo do tombadilho.

A tripulação trabalha na incessante baldeação do convés; as bombas jorram água que, seguindo a inclinação do navio, sai pelos embornais de estibordo ou de bombordo.

Os marinheiros correm descalços naquele lençol líquido, que espuma em pequenas ondulações. Não sei porquê, dá-me vontade de imitá-los. Descalço-me, tiro as meias e eis-me patinhando na fresca água do mar.

Com grande surpresa minha, acho o convés sensivelmente quente e não posso conter um grito de espanto.

Ouve-me Roberto Kurtis, que se volta, caminha para mim e, respondendo a uma pergunta que não tive tempo de formular, diz-me serenamente:

- É verdade, sim! Temos fogo a bordo!

 

Continuação de 19 de Outubro. - Explica-se agora tudo: os conciliábulos da marinhagem, o seu ar inquieto, as palavras de Owen, as baldeações do convés, que pretendem conservar constantemente húmido, o calor, enfim, da câmara, que chega já a ser insuportável. Sentem-no como eu os outros passageiros, mas não encontram explicação plausível.

Roberto Kurtis fica silencioso depois de me dar esta triste notícia. Aguarda as minhas perguntas, mas confesso que no primeiro momento fico todo trémulo. Não pode haver perigo maior para um navio perdido na imensidade do oceano; nenhum homem, por muito senhor de si que seja, ouve sem terror as palavras sinistras: fogo a bordo! Contudo recobro depressa o sangue-frio e a primeira pergunta que faço é:

- Há quantos dias temos fogo?

- Há seis dias!

- Seis dias! - exclamo. - Foi então naquela noite?

- É verdade - responde Roberto Kurtis. - Foi na noite em que sentiu tumulto no convés do Chancellor. Os marinheiros de quarto viram sair algum fumo pelas fendas da escotilha grande.

O capitão e eu fomos avisados logo. Não havia que duvidar!

Tinha-se incendiado o carregamento, muito acumulado no porão, e nenhum meio existia de chegar até ao foco do incêndio.

Fizemos o que era possível em tal conjuntura, isto é, fechámos e vedámos as escotilhas para impedir a entrada do ar no porão.

Esperávamos abafar assim este começo de incêndio. E, com efeito, ao princípio, julgámos tê-lo dominado! Infelizmente, nos últimos dias verificámos que o fogo progride. O calor aumenta continuamente e, sem a ordem que dei de conservar o convés sempre húmido, não seria já suportável. No fim de tudo, estimo que o Sr. Kazallon saiba tudo isto e por isso lho digo.

Oiço em silêncio a narração do imediato. Reconheço quanto a situação é grave, a cada momento aumenta a intensidade do incêndio, que talvez já nenhum poder humano possa dominar.

- Sabe como pegou o fogo? - pergunto a Roberto Kurtis.

- Provavelmente, pela combustão espontânea do algodão.

- Costuma suceder isso a miúdo?

- A miúdo não, mas algumas vezes. Se o algodão não está bem seco quando é metido a bordo, pode manifestar-se inflamação espontânea, porque o porão é húmido e não há meio de o ventilar. É certo não reconhecer outra causa no fogo manifestado a bordo.

- A causa pouco importa afinal - replico. - Pode tentar-se algum remédio?

- Nenhum que eu saiba, Sr. Kazallon. Repito-lhe que fizemos o possível em casos destes. Ocorreu-me o mandar fazer um pequeno rombo no costado, abaixo da linha de flutuação, para inundar o porão. Apagado o fogo, seria fácil esgotá-lo com as bombas. Pareceu-me, porém, certo que o fogo era na zona média do carregamento e só enchendo completamente o porão poderíamos apagá-lo. Assim mesmo mandei furar o convés em vários pontos e de noite despejámos água no porão. Mas não bastou. Restou-nos, pois, só um recurso, único empregado em casos tais: tentarmos abafar o fogo vedando completamente o acesso ao ar exterior, de modo que a combustão cessasse por falta de oxigénio.

- Mas o incêndio aumenta?

- Aumenta! Esse facto prova que entra ar no porão por alguma abertura que, a despeito de minuciosas pesquisas, não pudemos encontrar.

- Há exemplos de navios que resistissem em circunstâncias semelhantes, Sr. Kurtis?

- Oh! isso muitos, Sr. Kazallon. É frequente chegarem ao Havre ou a Liverpul navios com carregamento de algodão, levando grande parte da carga ardida. Nesses casos foi possível durante a viagem extinguir ou pelo menos circunscrever o fogo. Conheço bastantes capitães que assim chegaram ao porto com o convés ardendo-lhe debaixo dos pés.

Então descarregam rapidamente o navio, salvando o casco e a parte ainda intacta do carregamento. O nosso caso é diferente, pois que reconheço que o incêndio, em vez de diminuir, progride incessantemente! Não pode deixar de haver abertura, para nós desconhecida, que é a causa de todo o mal!

- Não haveria meio de desandar e de navegarmos para a terra mais próxima?

- Talvez - responde Roberto Kurtis. - Eu, Walter e o mestre vamos discutir logo esse ponto com o capitão. Digo-lhe, contudo, em segredo que já tomei sobre mim a responsabilidade de mudar o rumo do navio. Vamos de vento em popa correndo ao sudoeste, isto é, para a costa.

- Os passageiros não sabem nada do perigo que os ameaça? - pergunto ainda ao imediato.

- Nada absolutamente, e peço-lhe que guarde para si tudo quanto lhe disse. Convém que o terror das mulheres ou dos homens pusilânimes não aumente as nossas dificuldades. Por isso, a tripulação recebeu ordem de guardar segredo.

Reconheço que o imediato tem razão no seu procedimento e prometo-lhe segredo completo.

 

20 e 21 de Outubro. - Nestas circunstâncias continua o Chancellor fazendo força de vela quanto pode aguentar. Às vezes os mastaréus do joanete vergam a ponto de ameaçarem quebrar; porém Roberto Kurtis vai alerta. Sempre junto da roda do leme, não deixa que o marinheiro do governo tome a responsabilidade da direcção do navio. Dando a propósito guinadas bem dirigidas, orça quando o navio pode perigar; governado por mão hábil, o Chancellor perde o menos possível da sua velocidade.

No dia 20 todos os passageiros sobem ao tombadilho. Decerto notaram já a elevação anormal da temperatura na câmara e camarotes, mas, como não podem suspeitar da verdade, não se assustam. Além disso, andando bem calçados, não sentem o calor que penetra as tábuas do convés, apesar de serem continuamente humedecidas. O movimento repetido das bombas deveria ao menos causar-lhes admiração. Não sucede assim, e, quase todos deitados sobre os bancos, deixam-se embalar pelo balanço do navio, sem inquietação nenhuma.

Só Letourneur parece suspeitoso e se admira de que a tripulação se dê a um excesso de limpeza pouco vulgar em navios mercantes. Disse-me algumas palavras a esse respeito e respondi-lhe coisas indiferentes.

O francês é homem enérgico e bem poderia revelar-lhe tudo, mas prometi guardar segredo e cumpro a promessa.

Depois, quando penso nas consequências da catástrofe provável, aperta-se-me o coração. Somos vinte e oito pessoas a bordo, talvez vinte e oito vítimas, às quais as chamas não deixarão nada intacto! Verificou-se hoje a conferência do capitão, do imediato, de Walter e do mestre; dela depende a salvação do Chancellor, dos passageiros e da tripulação.

Roberto Kurtis informou-me das deliberações tomadas. O capitão Huntly está completamente abatido, como era fácil prever. Perdeu a energia e o sangue-frio, e tacitamente entregou o comando a Roberto Kurtis. São inegáveis os progressos do incêndio no interior do navio e no alojamento da proa já é difícil permanecer alguém. Evidentemente o fogo não pode ser dominado, e mais dia menos dia rebenta com violência.

Em tal caso que fazer? Há apenas um expediente possível: arribar à terra mais próxima. Segundo os cálculos do imediato, é das Pequenas Antilhas, e esperamos alcançá-la em breve, graças ao vento persistente do nordeste.

Sendo adoptado este parecer, mandou Roberto Kurtis continuar no rumo seguido nas últimas vinte e quatro horas. Os passageiros, sem pontos de referência na amplidão do oceano e pouco habituados às indicações da agulha, não podem conhecer a mudança de rumo do Chancellor, que, com todo o pano, sobres e cutelos fora, voga para as Antilhas, que demoram ainda a seiscentas milhas de distância.

Só Letourneur desconfiou da mudança de rumo, e por isso interrogou Roberto Kurtis. Respondeu-lhe este que, não podendo ganhar nada para barlavento, ia procurar a oeste correntes favoráveis.

E foi esta a única observação que sugeriu a mudança de rumo do Chancellor.

No dia seguinte, 21, continua a mesma situação.

Para os passageiros a navegação faz-se em circunstâncias normais e nada foi mudado no programa da vida a bordo.

Os progressos do incêndio não se manifestam exteriormente, o que me parece bom sinal. Todas as aberturas estão hermeticamente fechadas, de modo que o fumo não revela a combustão interior. Talvez seja possível concentrar o fogo no porão, e talvez, por falta de ar, se extinga ou fique abafado sem se comunicar a todo o carregamento.. Roberto Kurtis, para não desprezar cautela nenhuma, até mandou tapar os orifícios dos tubos das bombas, que, descendo até ao fundo do porão, poderiam dar passagem ao ar. Valha-nos o céu, que pelo nosso esforço não podemos nada! Todo o dia teria passado sem novidade se o acaso não me fizesse ouvir algumas palavras de uma conversação, da qual resulta que a nossa situação, já muito grave, se pode tornar espantosa.

Julguem.

Estava sentado no tombadilho e a pequena distância conversavam dois passageiros em voz baixa, sem se lembrarem de que me chegavam aos ouvidos algumas das suas palavras. Eram o engenheiro Falsten e o comerciante Ruby, que sempre costumavam andar juntos.

Atraíram a minha atenção dois ou três gestos expressivos do engenheiro, que parecia repreender energicamente o seu interlocutor. Não pude conter-me que não escutasse, e ouvi o seguinte:

- Mas isso é absurdo! - dizia Falsten. - Não há maior imprudência!

- Ora! - respondia Ruby, descuidosamente. - Não há-de ser nada!

- Podem, pelo contrário, suceder grandes desgraças! - continuava o engenheiro.

- Nada! Já tenho feito o mesmo muitas vezes!

- Mas basta qualquer choque para produzir explosão!

- O boião está bem encaixotado, Sr. Falsten. Afianço-lhe que não há perigo!

- Porque não avisou o capitão?

- Porque ele não quereria receber isso a bordo!

Tendo acalmado o vento durante alguns instantes, deixei de ouvir; é claro, porém, que o engenheiro insiste, enquanto Ruby se contenta com encolher os ombros.

Enfim posso apanhar mais algumas frases.

- Sim! sim! - repete Falsten. - É necessário prevenir o capitão! Deve deitar o boião ao mar. Não estou para ser vítima da explosão!

Explosão! Estremeci ouvindo estas palavras. Que quer dizer o engenheiro? A que alude? Ele não sabe da situação do Chancellor, ignora que o fogo lhe devora as entranhas. Outra palavra, palavra terrível na conjuntura presente, faz-me erguer de salto! Essa palavra, ou, antes, essas palavras são picrato de potássio, repetidas bastantes vezes.

Num momento chego ao pé dos dois passageiros e, sem pensar o que falo, agarro Ruby pela gola do casaco com força irresistível.

- Há picrato a bordo?

- Sim! - responde Falsten. - Um boião com cerca de trinta libras.

- Onde?

- No porão, juntamente com as mercadorias!

 

Continuação de 21 de Outubro. - Não tenho palavras para referir o que sinto em mim, ouvindo a resposta de Falsten. Não é espanto nem temor; parece antes não sei que espécie de resignação! O facto completa a situação e será, porventura, o melhor desenlace! Por isso me dirijo friamente para Roberto Kurtis, que está à proa.

Roberto Kurtis não pestaneja; apenas se lhe enruga a testa e dilatam as pupilas ao saber que existe a bordo, no fundo do porão, no próprio foco do incêndio, um boião com trinta libras de picrato, o bastante para fazer voar pelos ares qualquer montanha, e que o Chancellor pode de um instante para outro ser despedaçado por uma explosão tremenda.

- Bem! - respondeu ele. - Não diga nada a ninguém. Onde está Ruby!

- No tombadilho.

Chegámos ao tombadilho onde Ruby e Falsten ainda questionavam. Roberto Kurtis dirige-se para eles.

- Fez o que me dizem? - pergunta a Ruby.

- Fiz sim, ora aí está! - responde sossegadamente Ruby, que se julga apenas culpado de fraude.

Há um momento em que me parece que Roberto Kurtis vai despedaçar o desgraçado passageiro, que nem compreende a gravidade da sua imprudência! Mas o imediato logra conter-se, vejo-o apertar as mãos por detrás das costas para resistir à tentação de esganar Ruby.

Depois interroga-o com voz tranquila. Ruby confirma a minha narração. Entre os volumes da sua bagagem há um boião com trinta libras da substância explosiva. O passageiro procedeu neste caso com a imprudência que, força é confessá-lo, constitui um dos caracteres salientes da raça anglo-saxónica.

Meteu o picrato no porão, como qualquer francês faria com um inofensivo garrafão de vinho. Se não fez declaração nenhuma, foi porque bem sabia que o capitão recusaria receber semelhante substância a bordo.

- No fim de contas - acrescenta, encolhendo os ombros -, o caso não é de morte de homem! Se o tal boião os incomoda tanto, peguem nele e deitem-no ao mar! Segurei toda a bagagem!

Ao ouvir esta resposta, não posso ter mão em mim, porque nem todos possuem o admirável sangue-frio de Roberto Kurtis.

Cega-me a ira. Atiro-me a Ruby, antes que o imediato possa obstar-me, e brado:

- Infame! Pois não sabes que temos fogo a bordo?

Apenas pronuncio estas palavras, já lamento a minha imprudência, mas é tarde! Não se descreve o efeito que produziram em Ruby. Apodera-se dele um terror convulsivo.

Fica-lhe o corpo paralisado e com rigidez tetânica, eriçam-se-lhe os cabelos, dilatam-se-lhe as pupilas, anseia como asmático, perde a fala. Todo ele é terror. De repente agita os braços, olha para o convés do Chancellor, que naquele instante pode voar feito em pedaços; salta abaixo do tombadilho, cai, ergue-se, corre pelo navio gesticulando como doido. Depois recobra a fala e fogem-lhe dos lábios estas palavras sinistras:

- Fogo a bordo! Fogo!

Ouvindo tais gritos, corre toda a tripulação para o convés, crendo que o fogo irrompeu para fora e que finalmente é chegado o momento de fugir nas embarcações. Sobrevêm os passageiros, Mr. Kear, sua mulher, Miss Herbey e os dois Letourneur. Roberto Kurtis tenta impor silêncio a Ruby, mas ele perdeu a razão.

Neste momento tudo é desordem e confusão. Mrs. Kear cai desmaiada; o marido não cuida de acudir-lhe e deixa que miss Herbey a socorra. Os marinheiros já engataram as talhas na lancha para a deitar ao mar.

Entretanto revelo a verdade aos Letourneur, isto é, digo-lhes que o carregamento está ardendo; o pai só pensa em André, que abraça apertadamente. O filho, esse não perde a presença de espírito e tranquiliza o pai, dizendo-lhe que o perigo não é imediato.

Porém Roberto Kurtis, auxiliado por Walter, consegue deter a sua gente. Afirma-lhes que o incêndio não progride, que Ruby não sabe o que faz nem o que diz, que não lhes convém serem precipitados e que, se o perigo aperta mais, terão tempo de abandonar o navio...

Quase todos os marinheiros obedecem ao imediato, que estimam e respeitam. Kurtis obtém deles o que o capitão nunca conseguiria e a lancha permanece nos picadeiros.

Felizmente Ruby não falou do picrato metido no porão. Se a tripulação soubesse a verdade toda, se tivesse conhecimento de que o navio é um vulcão prestes, talvez, a rebentar-lhe debaixo dos pés, perderia a força moral, não seria possível contê-la e fugiria a toda a pressa.

Só o imediato, Falsten e eu conhecemos de que modo terrível se agravou o perigo do navio; é mister que o segredo fique entre nós.

Restabelecida a boa ordem, Kurtis e eu vamos ter ao tombadilho com o engenheiro. Falsten ali ficou de braços cruzados, ruminando qualquer problema de mecânica, sem fazer o mínimo caso do geral terror.

Recomendamos-lhe que não diga nada a respeito da temerosa complicação devida à imprudência de Ruby.

Falsten promete guardar segredo. Roberto Kurtis encarrega-se de revelar ao capitão Huntly a extrema gravidade da situação.

Antes, porém, é necessário agarrar Ruby, porque o desgraçado está doido varrido. Não tem consciência de si e dos seus actos; corre pelo convés bradando sempre:

- Fogo! Fogo!

Roberto Kurtis ordena aos marinheiros que o segurem; conseguem enfim amordaçá-lo e prendê-lo. Em seguida transportam-no para o camarote, onde fica guardado à vista.

A temerosa revelação ainda não lhe saiu dos lábios!

 

22 e 23 de Outubro. - Roberto Kurtis referiu tudo ao capitão. Nem podia proceder de outro modo, visto que Huntly é de direito, senão de facto, o chefe supremo a bordo.

Huntly não respondeu nem uma palavra à importante comunicação que o seu oficial lhe fazia; passou a mão pela testa, como querendo arredar alguma ideia importuna, e voltou sossegadamente para a sua câmara, sem dar ordens.

Reunimo-nos, pois, em conselho, Roberto Kurtis, Walter, o engenheiro Falsten e eu. Admiro o sangue-frio de nós todos.

Discutimos todas as probabilidades de salvação e o imediato resume assim a questão:

- O incêndio não pode ser vencido e já se torna insuportável a temperatura no alojamento de vante. Talvez cedo chegue a tal ponto a intensidade do fogo que as chamas rompam por entre as tábuas do convés. Se antes desta nova fase da catástrofe o estado do tempo permitir lançar as embarcações ao mar, abandonaremos o navio. Se, pelo contrário, não pudermos sair do Chancellor, lutaremos contra o fogo até à última. Quem sabe se poderemos vencê-lo, quando se manifestar a descoberto? Talvez seja mais fácil combater o inimigo patente que o inimigo oculto!

- É também o meu parecer - responde sossegadamente o engenheiro.

- E o meu - acrescento. - Mas vejo, Sr. Kurtis, que não considera a circunstância de termos no porão cerca de trinta libras de uma substância altamente explosiva?

- Não considero, não, Sr. Kazallon - responde o imediato, com supremo sangue-frio. - Isso é apenas um acidente em que não vale a pena pensar! Para que havemos de examinar o caso?

Posso, porventura, ir buscar o picrato ao meio do algodão inflamado, ao fundo do porão, onde não devemos deixar que penetre ar? Não! Nem quero pensar nisso! Pode a explosão manifestar-se antes de eu terminar a palavra que estou pronunciando? Pode. Logo, ou o fogo lhe chega ou não. A circunstância de que fala, para mim, é como se não existisse. A Deus pertence, e não a mim, preservar-nos dessa catástrofe suprema!

Roberto Kurtis disse tudo isto com ar grave e nós abaixámos a cabeça sem responder. Posto que, atendendo ao estado do mar, não é possível fugir imediatamente, devemos com efeito esquecer aquela circunstância.

- A explosão não é necessária, não passa de contingente, como diria qualquer formalista.

Quem fez esta observação com o mais plácido sangue-frio foi o engenheiro.

- Peço-lhe que me responda a uma pergunta - digo eu então. - O picrato de potássio pode inflamar-se sem choque?

- Ah! isso pode - responde ele. - Em circunstâncias normais o picrato não é mais inflamável que a pólvora ordinária, mas é tanto. Ergo...

Falsten disse: "Ergo". Parecia estar descrevendo alguma experiência de curso de química.

Subimos ao convés. Ao sair da sala aperta-me Roberto Kurtis a mão, exclamando sem esconder a comoção:

- É cruel, Sr. Kazallon, ver devorar pelo fogo este magnífico navio, a que tenho afecto, e não poder fazer nada para salvá-lo!...

- Sr. Kurtis, a sua comoção...

- Não posso dominá-la! Só o Sr. Kazallon saberá quanto sofro. Acabou-se! - continua, não sem fazer violento esforço.

- Julga a situação desesperada? - pergunto eu.

- Eu lha descrevo e julgue - responde Kurtis, já com serenidade. - Estamos em cima de um fornilho de mina com o rastilho já aceso! A questão está em saber se é comprido!

Depois retira-se.

Felizmente, a tripulação e os outros passageiros não conhecem toda a grandeza do perigo.

Mr. Kear, desde que teve conhecimento do fogo, só cuida de enfardar os seus objectos mais preciosos, e naturalmente não pensa na mulher. Intimou ao imediato ordem de apagar o fogo, tornando-o responsável por todos os prejuízos na sua pessoa e bens, recolheu-se ao camarote e não mais apareceu. Mrs. Kear geme e, a despeito de todos os seus ridículos, mete dó. Miss Herbey, agora mais que nunca, se julga obrigada a cumprir os seus deveres: cuida da ama com dedicação absoluta. Admiro o procedimento daquela mulher, que põe o dever acima de tudo.

No dia seguinte, 23 de Outubro, manda o capitão chamar Roberto Kurtis à sua câmara. Eis o que se passou, conforme o imediato me descreveu:

- Sr. Kurtis - começou o capitão, cujos olhos, espantados, indicavam perturbação das faculdades mentais -, tem-me por homem do mar, não é assim?

- Decerto, capitão.

- Pois faça de conta que não sei nada da minha profissão... não sei o que em mim sinto... mas esqueço... mas já não sei nada... Não temos seguido o rumo de nordeste desde que saímos de Charleston?

- Não, Sr. Huntly; segundo as suas ordens, temos seguido o de sueste.

- Mas o nosso destino é para Liverpul!

- Decerto.

- E o?... Como se chama o navio, Sr. Kurtis?

- Chancellor.

- Ah, sim! Chancellor! Em que paragem estamos?

- Ao sul do trópico.

- Bem! Não tomo sobre mim reconduzi-lo ao norte!... Não!... não posso... Desejo não sair do camarote... Faz-me mal a vista do mar!...

- Porém, espero com algum tratamento...

- Sim, sim, veremos... depois... Entretanto vou dar-lhe uma ordem, mas é a última.

- Diga, Sr. Huntly - respondeu o imediato.

- Daqui por diante não sou nada a bordo, e o Sr. Kurtis assume o comando do navio... As circunstâncias são superiores à minha vontade, e reconheço que não posso lutar com elas... Perco a cabeça! Sofro muito, Sr. Kurtis - concluiu Silas Huntly, apertando a testa com as mãos.

O imediato examinou atentamente aquele que até ali comandava a bordo e limitou-se a responder:

- Está bem!

Depois sobe ao convés e conta-me o sucedido.

- Sim - respondo eu -, o capitão está fraco de cabeça, senão completamente louco. Melhor é que se demitisse espontaneamente do comando.

- Vou substituí-lo em circunstâncias apertadas - volve Roberto Kurtis -, não importa. Ainda assim hei-de cumprir o meu dever!

E, dito isto, chama um marinheiro e ordena-lhe que vá procurar o mestre.

Este chega sem demora.

- Mestre - recomenda-lhe Roberto Kurtis -, forme a tripulação junto do mastro grande.

O mestre retira-se e passados poucos momentos está a gente do Chancellor reunida no sítio indicado.

Roberto Kurtis dirige-se para eles e fala-lhes com voz tranquila.

- Rapazes, na situação presente e por motivos imperiosos teve o Sr. Silas Huntly por conveniente demitir-se do comando. Agora sou eu quem manda a bordo.

Realizou-se deste modo a mudança, que pode ser proveitosa para todos. Temos para dirigir-nos um homem enérgico, seguríssimo e que não hesitará em adoptar todos os meios possíveis para nos salvar. Os Letourneur, o engenheiro Falsten e eu felicitámos Roberto Kurtis; Walter e o mestre imitam-nos.

Por ordem do novo capitão mantém-se o rumo de sudoeste e faz-se força de vela a fim de alcançar com a maior brevidade a Pequena Antilha mais próxima.

 

De 24 a 29 de Outubro. - O mar tem estado muito grosso nestes cinco dias. O Chancellor sofre furiosos balanços, embora tenha renunciado à luta contra ele e corra com vento e mar. Não podemos descansar nem um momento durante esta navegação num brulote. Contemplamos com olhar ávido a água que cerca o navio, que atrai e fascina.

- Diga-me uma coisa, Sr. Kurtis. Não é possível abrir agulheiros no convés? Porque não vazamos torrentes de água no porão? Embora o navio ficasse cheio, poderíamos esgotar a água com as bombas logo que se apagasse o fogo. Que mal haveria nisto?

- Sr. Kazallon - responde Roberto Kurtis -, já lhe disse e repito-lhe: se abrirmos passagem ao ar, por pouco que seja, o fogo propaga-se num momento e as chamas envolvem o navio todo desde a quilha ao galope! Estamos condenados à inacção; em circunstâncias como estas - é preciso ter valor para cruzar os braços.

Sim, fechar hermeticamente todas as aberturas é o meio único de combater o incêndio. A tripulação não cuida de outra coisa.

São, porém, incessantes os progressos do fogo, mais rápidos talvez do que cuidamos. O calor aumenta a ponto de os passageiros terem de retirar-se para o convés; só os camarotes de ré, ventilados pelas janelas da popa, podem ainda ser habitados. Não sai de um Mrs. Kear, o outro foi destinado pelo imediato para o comerciante Ruby. Já fui umas poucas de vezes visitar este desgraçado, que está doido varrido. É preciso tê-lo amarrado para que não despedace a porta do camarote. É singular que, apesar da loucura, conserve o sentimento do terror e dê gritos horríveis, como se, pela influência de algum fenómeno fisiológico, houvesse sentido as dores de queimaduras.

Também algumas vezes visito o ex-capitão; encontro-o tranquilo e falando com acerto, excepto acerca de assuntos relativos à sua profissão. A este respeito está louco.

Ofereço-me para tratá-lo, porque o vejo sofrer bastante; ele, porém, recusa e persiste em não sair do camarote.

Hoje foi o alojamento da marinhagem invadido por fumo acre e nauseabundo que sai pelas frinchas da antepara. O fogo ateia-se para aquele lado; escutando com atenção, já é fácil ouvir rugidos surdos. Aonde vai aquele fogo buscar o oxigénio que o alimenta? Que abertura escapa às nossas pesquisas? Está iminente a temerosa catástrofe! Talvez se demore poucos dias, poucas horas até; infelizmente os mares andam tão grossos que não é possível fugir nas embarcações.

Por ordem de Roberto Kurtis cobre-se a antepara com um encerado, que se conserva sempre molhado. Apesar desta precaução, continua o fumo respirando; espalha-se à proa intenso calor húmido e o ar torna-se ali quase irrespirável.

Felizmente que são de ferro o mastro grande e o do traquete.

Aliás já teriam vindo abaixo, queimados pelo pé, e estaríamos perdidos sem remédio.

Roberto Kurtis manda fazer força de vela quanto possível, e o Chancellor voga com rapidez, impelido pelo vento de Oeste, que refresca. Há catorze dias que o fogo começou, e sempre tem progredido apesar dos nossos esforços. A manobra torna-se cada vez mais difícil.

No tombadilho, cujo pavimento não está em relação directa com o porão, ainda se pode parar; mas no convés até ao castelo não é possível andar nem com calçado de sola grossa. Já não há água que refresque as tábuas lambidas pela chama e que se torcem sobre os vaus. A resina da madeira de pinho fervilha e encoscora-se à roda dos nós, as costuras abrem, o alcatrão derrete-se e corre desenhando arabescos fantasiosos consoante as exigências do balanço. E, por cúmulo de desgraça, o vento salta de repente para noroeste e sopra furioso! um furacão dos que por vezes se manifestam nestas regiões, afasta-nos das Antilhas, onde tanto precisamos arribar!

Roberto Kurtis tenta resistir capeando, mas o vento é tão forte que o Chancellor não pode aguentar a capa, e se vê obrigado a correr com o tempo para evitar os golpes de mar, muito perigosos quando apanham um navio pelo través.

No dia 29 atinge a tempestade o máximo furor. O mar levanta-se em vagalhões enormes, cujo rebentar cobre o navio todo. Qualquer embarcação que deitássemos ao mar seria imediatamente feita em pedaços. Refugiamo-nos no tombadilho, mas nem podemos falar.

No boião de picrato nem pensamos. Esquecemos esse acidente, para usar da frase de Roberto Kurtis. Quase que desejo, não sei bem, a explosão do navio, que poria termo nestas agonias infindas. Esta frase deve dar ideia dos nossos ânimos. O homem por muito tempo ameaçado de algum perigo chega a desejar que ele sobrevenha, porque aguardar uma catástrofe inevitável é pior ainda que sofrê-la! Enquanto era tempo, mandou Kurtis remover parte dos víveres guardados na despensa, onde já agora não seria possível entrar. O calor estragou bastantes mantimentos; mas conseguimos salvar uns poucos de barris de carne salgada e bolacha, um pipote de aguardente e barris de aguada; a isto juntamos cobertores, vários instrumentos, uma bússola, velas, tudo disposto de modo que pudéssemos num momento abandonar o navio.

Pelas oito horas da noite ouvimos fortes rugidos por entre o tumultuar da tormenta. As escotilhas erguem-se empurradas pela pressão do ar aquecido, e pela abertura saem torrentes de fumo negro, assobiando como o vapor que foge das válvulas de uma caldeira.

A tripulação corre para Roberto Kurtis como pedindo-lhe ordens. Uma só ideia domina toda a gente: fugir do vulcão que nos rebenta debaixo dos pés!

Kurtis olha para o mar, cujos monstruosos vagalhões arrebentam em lençóis de espuma. Não é possível chegar à lancha colocada sobre picadeiros a meio navio, mas pode lançar-se mão do bote içado nos turcos de estibordo, bem como da baleeira pendurada nos da popa.

Já os marinheiros correm para a canoa.

- Não! - brada Roberto Kurtis. - Não! Seria arriscarmos num golpe de mar o derradeiro meio de salvação!

Alguns marujos, loucos de terror e capitaneados por Owen, querem, apesar de tudo, lançar a embarcação ao mar. Roberto Kurtis corre para o tombadilho e, deitando mão a uma machadinha, grita-lhes:

- Racho a cabeça ao primeiro que tocar nas talhas!

Os marujos retiram-se. Uns trepam aos enfrechates dos ovéns, outros fogem até às gáveas. Às onze horas ouvimos detonações violentas no porão. São as anteparas que rebentam, abrindo caminho ao ar quente e ao fumo. Irrompem jorros de vapor pela porta do alojamento de vante, e uma comprida língua de fogo vai lamber o mastro do traquete.

Cruzam-se os gritos de susto. Mrs. Kear, amparada por Miss Herbey, foge precipitadamente dos camarotes invadidos pelo fogo. Depois aparece Silas Huntly, com o rosto enegrecido pela fumarada. Vem sereno, cumprimenta Roberto Kurtis, dirige-se para os ovéns de ré, trepa aos enfrechates e posta-se no cesto da gávea da gata.

A vista de Huntly lembra-me que ficou outro homem preso debaixo do tombadilho, no camarote que vai talvez ser devorado pelas chamas.

Devemos deixar morrer o desgraçado Ruby? Corro para a escada... Mas o louco, tendo despedaçado as cordas que o amarravam, arromba a porta e aparece no convés, com os cabelos chamuscados e o fato a arder. Sem dar um gemido, percorre o convés e não sente queimarem-se-lhe os pés! Atira-se aos novelos de fumo, e o fumo não o sufoca! Parece salamandra humana correndo através das chamas! Sobrevém outra detonação maior; a chalupa voa feita em pedaços; a escotilha do meio rebenta, despedaçando os encerados que a cobrem; um jacto de fogo muito comprimido ergue-se, enroscando-se até meio mastro.

O doido dá gritos estridentes, entre os quais se lhe ouve bradar:

- O picrato! O picrato! Vamos voar todos pelos ares! Voar todos! Voar todos!...

E depois, sem que haja tempo de o deter, atira-se pela escotilha á fornalha ardente.

 

Noite de 29 de Outubro. - Esta cena foi espantosa, e todos, apesar da nossa situação desesperada, sentimos o horror dela.

Ruby já não é deste mundo, mas as suas palavras derradeiras vão ter talvez consequências funestíssimas. A marinhagem ouviu-lhe gritar: "O picrato! O picrato!" Compreenderam que o navio está prestes a voar pelos ares e que não é já apenas o incêndio que nos ameaça, mas principalmente uma explosão espantosa.

Alguns homens, perdendo a cabeça, querem fugir a todo o transe e sem demora.

- O bote! O bote! - bradam eles.

Não vêem, não querem ver, cegos pelo terror, que o mar está horrível e que nenhuma embarcação pode arrostar com as vagas que rebentam a enorme altura! Nada pode contê-los, já não obedecem à voz do capitão. Roberto Kurtis corre para o meio da tripulação, mas em vão. O marinheiro Owen incita os camaradas.

Largam por mão as fundas do bote e empurram-no para fora.

A frágil embarcação oscila um instante no ar e, acompanhando o balanço do navio, bate no corrimão da borda. Consegue safá-lo um esforço violento da marinhagem e está para chegar ao mar quando a toma por baixo uma vaga monstruosa, arreda-a do navio, balança-a, e vem despedaçá-la enfim contra o costado do Chancellor.

Já perdemos lancha e bote; apenas nos fica uma baleeira pequena e fraca.

Os marinheiros, aterrados pela perda da sua louca esperança, ficam imóveis. Ouvem-se apenas os assobios do vento na enxárcia e os rugidos do incêndio. Cava-se mais profunda a fornalha a meio navio e sobem até ao céu torrentes de vapores fuliginosos que golfam da escotilha. Do tombadilho não se avista já o castelo, porque um véu de chamas divide o Chancellor em duas partes.

Os passageiros e dois ou três homens da tripulação refugiam-se na grinalda. Mrs. Kear desmaiou e está estendida sobre uma das capoeiras. Miss Herbey não a abandona. Letourneur agarrou o filho nos braços e aperta-o contra o peito. De mim apodera-se violenta agitação nervosa, que não consigo acalmar. O engenheiro Falsten consulta friamente o relógio e aponta a hora na sua carteira de lembranças.

Que se passa à proa, onde estão provavelmente Walter, o mestre e o resto da tripulação que não podemos ver? Estão interrompidas todas as comunicações entre as duas metades do navio e ninguém poderia atravessar o lençol de chamas que sai da escotilha grande.

Chego-me a Roberto Kurtis e pergunto-lhe:

- Está tudo perdido?

- Não. Como a escotilha está aberta, vamos despejar torrentes de água naquela fornalha. Talvez consigamos apagá-la!

- Mas como se há-de trabalhar com as bombas no convés incandescente, Sr. Kurtis? Como dar ordens à tripulação através daquela cortina de chamas?

Roberto Kurtis não responde.

- Está ou não está tudo perdido? - pergunto de novo.

- Não está! - replica Kurtis. - Não! Não desanimarei enquanto sentir uma tábua do navio debaixo dos pés!

Redobra a violência do fogo e o mar tinge-se de clarões avermelhados. Por cima de nós iluminam-se com luz fúnebre as camadas inferiores das nuvens. As escotilhas vomitam enormes línguas de fogo. Tivemos de refugiar-nos todos na grinalda.

Pusemos Mrs. Kear na baleeira içada nos turcos e Miss Herbey senta-se ao lado dela.

Espantosa noite, cujo horror a pena não pode descrever!

O vendaval, atingindo agora a máxima violência, sopra o braseiro como fole gigante. O Chancellor, embora em árvore seca, corta veloz a treva densa como se fora brulote colossal.

Com a própria velocidade atiça o fogo que o devora. Não há por onde escolher: ou atirar-se ao mar ou morrer nas chamas!

Não se incendiará, finalmente, a picrato? Não se abrirá o vulcão debaixo dos nossos pés? Mentiria Ruby? Não haverá no porão uma matéria enormemente explosiva?

Às onze horas e meia, exactamente quando o mar levanta maiores escarcéus, um estrondo particular, temido dos marinheiros, ajunta-se ao ruído dos elementos enfurecidos. Da proa grita o vigia:

- Escolhos! Escolhos a estibordo!

Roberto Kurtis salta sobre a borda, lança um olhar rápido para as vagas prateadas pela espuma e, voltando-se para o homem do leme, brada-lhe com voz imperiosa:

- Leme todo a estibordo!

É tarde. Pressinto que o navio se ergue no dorso de um vagalhão enorme; depois sobrevém um choque violento.

O navio toca de popa, bate umas poucas de culapadas e o mastro da gata, partido pela enora, cai ao mar.

O Chancellor fica imóvel.

 

Continuação da noite de 29 de Outubro. - Não é ainda meia-noite. Não faz luar e reina profunda obscuridade. Não sabemos onde encalhou o navio. Terá sucedido que ele, arrastado pela tormenta, tenha chegado à costa americana? Haverá terra à vista?

Disse que o Chancellor dera umas poucas de culapadas e depois ficara imóvel. Passados momentos o ruído de cadeias à proa faz saber a Roberto Kurtis que largaram ferro.

- Bem! Bem! - disse ele. - Walter e o mestre largaram dois ferros! É de esperar que não garrem!

Vejo então Roberto Kurtis caminhar sobre a borda até ao limite que as chamas não deixam transpor. Depois passa sobre a mesa de estibordo, lado para onde o navio se inclina, e ali se conserva alguns minutos apesar das violentas pancadas do mar.

Reparo que escuta. Dir-se-ia que deseja ouvir algum ruído particular por entre o estridor da tormenta.

Passado um quarto de hora volta ao tombadilho.

- A água entra no navio, e esta água, valha-nos Deus!, talvez extinga o incêndio!

- Mas depois! - digo eu.

- Sr. Kazallon - respondeu Roberto Kurtis -, depois é o futuro, o que Deus quiser! Cuidemos só do presente!

A primeira coisa a fazer seria ver se há água nas bombas, mas neste momento é impossível chegar ao pé delas por causa do fogo: é provável que dê entrada à água alguma tábua do fundo arrombada, porque a violência do incêndio parece diminuir.

Ouvimos assobios atroadores, que provêm da luta dos dois elementos. Certamente o líquido salvador já chega à base do fogo incandescente e afoga a primeira camada de fardos de algodão. Seja! Apague a água o incêndio que a ela nós a combateremos depois! Talvez seja menos temível que o fogo! A água é o elemento de que o marítimo está habituado a triunfar.

Durante as três horas que dura ainda esta noite infinda, esperamos com indescritível ansiedade. Onde estamos? Certo é que o mar se retira pouco a pouco e se apazigua a fúria das vagas. O Chancellor encalharia uma hora depois da preia-mar, mas, por falta de cálculo e de observação, é impossível saber a verdade. Sendo como julgamos, é lícito esperar, se o fogo ficar extinto, que na próxima maré safaremos o navio.

Pelas quatro horas e meia da manhã dissipa-se a pouco e pouco a cortina de chamas estendida a meio navio e avistámos um grupo negro à proa. É a tripulação refugiada no apertado espaço do castelo. Em breve se restabelecem as comunicações entre os dois extremos do navio e vêm unir-se connosco no tombadilho o novo imediato e o mestre, passando por cima da borda, porque não é ainda possível andar sobre o convés.

O capitão Kurtis, Walter e o mestre discutem na minha presença e concordam em que não convém fazer nada antes de amanhecer. Se houver terra próxima, se o mar tiver caído, tentaremos alcançar a costa na baleeira ou numa jangada. Não sendo assim, se o Chancellor encalhou num recife isolado, tentar-se-á pôr a nado, de modo que possa continuar a navegar até chegar à terra mais próxima.

- Mas - diz Roberto Kurtis, e neste ponto com Walter e o mestre -, é difícil adivinhar onde estamos, porque com os ventos do noroeste deve o Chancellor ter corrido para o sul.

Há muito que não posso tomar a altura, mas, como não tenho conhecimento de nenhum escolho nesta parte do Atlântico, é possível que estejamos encalhados nalguma terra da América do Sul.

- Mas - observo eu -, continuamos ainda sujeitos ao perigo de explosão. Não poderíamos abandonar o Chancellor e refugiar-nos...

- No recife? - volve Roberto Kurtis. - Porém, que configuração e que altura tem ele? Não será coberto pela preia-mar? Podemos examiná-lo nesta escuridão? Deixemos que amanheça e veremos então.

Vou imediatamente referir estas palavras de Roberto Kurtis aos outros passageiros. Não são tranquilizadoras de todo, mas ninguém quer ver o novo perigo proveniente da situação do navio, se por acaso estamos nalgum rochedo isolado a centenas de milhas de qualquer costa. Uma única consideração impera em todos: é que actualmente a água combate por nós e luta vantajosamente contra o incêndio e, portanto, contra as probabilidades de explosão. Às chamas fulgurantes substitui-se a pouco e pouco fumarada negra que golfa da escotilha em húmidos rolos. Ainda se projectam algumas línguas de fogo por entre as sombrias volutas, mas apagam-se em breve. Aos rugidos do incêndio sucedem assobios da água, que se evapora no foco interno. É certo que o mar consegue em pouco tempo o que não lograriam nunca bombas e baldes; era precisa uma inundação para apagar o incêndio ateado em 1700 fardos de algodão!

 

30 de Outubro. - Já os primeiros alvores matutinos prateiam o horizonte, mas as névoas do mar limitam a vista num círculo apertado. Não aparece terra próxima; contudo sondamos com olhar impaciente a parte ocidental e meridional do oceano.

O mar retirou-se quase de todo, de modo que não haverá mais de seis pés de água em volta do navio, que, carregado de todo, exige quinze pés para flutuar. Emergem aquém e além pontas de rochedos, e vê-se, pelas cores do fundo, que o escolho é composto de rochas basálticas. Como foi o Chancellor arremessado tanto para o interior do recife? Alguma vaga enorme o levantou e assim me pareceu tê-lo sentido pouco antes de encalharmos. Por isso, depois de examinar o círculo de rochas que nos rodeiam, pergunto a mim mesmo como poderemos safar o navio. O Chancellor está metido de proa, tanto que é difícil andar de pé no convés; além disso, inclina-se mais e mais para bombordo à proporção que o mar vai descendo. Roberto Kurtis chegou a temer que o navio tombasse na baixa-mar. A inclinação fixa-se, porém, de modo que por esse lado nada há a recear.

Às seis horas da manhã sentimos choques violentos. É o mastro da gata que, depois de ter sido arrastado pelo mar, vem como aríete bater no costado do navio.

Ao mesmo tempo ouvem-se gritos e é repetido muitas vezes o nome de Roberto Kurtis.

Olhamos na direcção dos gritos e à claridade dúbia da aurora entrevemos um homem agarrado à gávea da gata. É Silas Huntly, que fora arrastado na queda do mastro e que milagrosamente escapou da morte.

Roberto Kurtis corre em auxílio do ex-capitão e, arrostando mil perigos, consegue reconduzi-lo a bordo. Silas Huntly não diz uma palavra e vai sentar-se no recanto mais afastado do tombadilho. Aquele homem tornou-se passivo, não serve para nada a bordo.

Conseguimos depois fazer passar o mastro da gata para sotavento e ali o amarramos com segurança ao navio, cujos flancos não ameaça já. Talvez aquele resto de mastro nos seja ainda útil. Quem sabe?

Agora já começa a ser dia claro, rasga-se a bruma. O olhar pode suficientemente percorrer o perímetro do horizonte a mais de três milhas, mas não aparece nada que denuncie a costa. A linha dos recifes corre de sudoeste para nordeste no comprimento de uma milha; ao norte emerge das ondas um ilhéu de forma irregular. Constitui-o uma aglomeração pitoresca de rochas, a duzentas braças o muito do sítio em que o Chancellor encalhou. Terá cinquenta pés de altura. Deve dominar o nível das marés mais altas. Por meio de uma espécie de calçada muito estreita, mas acessível na baixa-mar, conseguiremos chegar à ilhota se nos for preciso.

Além reassume o mar a sua cor sombria; são portanto águas profundas. O escolho termina ali.

A situação do navio justifica o desânimo que se apodera de nós todos. É provável que o recife não esteja próximo de terra nenhuma.

Neste momento são sete horas, é de todo dia claro e as névoas desapareceram. Em volta do Chancellor descobre-se o horizonte com perfeita nitidez, mas as linhas do céu e do mar confundem-no no mesmo contorno. Não vemos senão água.

Roberto Kurtis, imóvel, observa o oceano, principalmente para oeste. Os Letourneur e eu espreitamos-lhe os gestos e lemos claramente as ideias que lhe brotam do cérebro.

Mostra-se surpreendido, porque devia crer-se muito próximo de terra, visto ter navegado sempre para o sul a partir das Bermudas. Contudo, não há nenhum vestígio de costa.

Roberto Kurtis, deixando o tombadilho, vai pelas bordas até à enxárcia grande, salta nos enfrechates, agarra-se à enxárcia da gávea, transpõe os vaus e atinge rapidamente as encapeladuras do joanete; dali examina atentamente o horizonte durante alguns minutos. Depois, agarrando um brandal, vem abaixo até às mesmas e volta ao tombadilho.

Interrogamo-lo com o olhar.

- Não há terra à vista! - responde friamente.

Então Mr. Kear adianta-se para ele e pergunta-lhe com mau modo:

- Onde estamos, senhor capitão?

- Não sei - responde Roberto Kurtis.

- Devia sabê-lo! - replica tolamente o negociante de petróleo.

- Pois sim, mas não sei!

- Pois fique sabendo - prossegue Mr. Kear - que não estou resolvido a ficar eternamente a seu bordo. Intimo-o a que parta.

Roberto Kurtis contenta-se com encolher os ombros.

Volta-se depois para Letourneur e para mim, afirmando-nos:

- Se puder ver o Sol, hei-de tomar a altura e então saberemos para que ponto do Atlântico nos arremessou a tempestade.

Em seguida manda distribuir víveres aos passageiros e à tripulação. Bem o precisávamos, porque estamos a cair de cansaço e fome.

Comemos bolacha e conserva de carne. Terminada esta parca refeição, começam por ordem de Roberto Kurtis os trabalhos necessários para safar o navio.

Diminuiu muito o incêndio e já no exterior do porão deixaram de aparecer línguas de fogo. O fumo escasseou, mas conserva-se negro. É certo que o Chancellor tem muita água no porão, mas não se pode verificar até que altura chegue, porque o convés ainda escalda.

O capitão manda regar as tábuas fumegantes e duas horas depois já os marinheiros podem andar sobre elas.

A primeira coisa essencial é sondar o porão e o mestre recebe ordem de começár essa faina. O prumo acusa cinco pés de água, mas o capitão ainda não manda esgotá-la, porque a quer deixar completar a sua obra salvadora. Primeiro o fogo. Depois a água. Posto isto, convirá mais refugiarmo-nos no escolho ou permanecermos a bordo? O capitão Kurtis prefere a segunda alternativa, e neste parecer é seguido pelo imediato e pelo mestre. Com efeito, quando os mares andem grossos, há-de ser impossível manter-se gente ainda nas rochas mais altas, que devem ser varridas pelas vagas. O perigo de explosão acha-se ao presente muito diminuído; decerto a água invadiu aquela parte do porão onde foi arrumada a bagagem de Ruby, e, portanto, cobriu o boião de picrato. Resolve-se, pois, que nem os passageiros nem os tripulantes abandonem o Chancellor.

Trata-se então de arranjar à popa, sobre o tombadilho, uma espécie de acampamento, no qual se colocam, para uso das senhoras, alguns colchões poupados pelo fogo. Os tripulantes, que salvaram os sacos, arrumam-nos avante. Ali se abrigarão como puderem, porque o seu alojamento está completamente inabitável.

Felizmente não houve grandes estragos na despensa; escaparam grande parte dos víveres, assim como tanques da aguada. Está intacto o paiol do pano situado à proa.

Enfim, talvez estejamos chegados ao termo dos nossos sofrimentos. Dá vontade de esperá-lo, porque desde pela manhã amainou o vento e ao largo abateram muito as ondas. É circunstância favorável, porque, se as vagas viessem despedaçar-se no Chancellor, na posição em que ele está certamente o esmagariam de encontro aos ásperos basaltos.

Os Letourneur e eu falamos longamente dos oficiais de bordo, da tripulação, e acerca do modo como todos se comportaram durante o período do máximo perigo. Todos mostraram valor e energia. Distinguiram-se principalmente o novo imediato Walter, o mestre e o carpinteiro Daoulas. São valentes, óptimos homens do mar, nos quais pode depositar-se confiança plena. O procedimento de Roberto Kurtis é superior a todos os louvores. Agora, como sempre, parece multiplicar-se, em toda a parte aparece; não há dificuldade que não resolva de pronto; anima os marinheiros com a palavra e o gesto, é a alma da tripulação, que só por ele vive.

Pelas sete horas da manhã começa a enchente da maré! São agora onze horas e já desapareceram debaixo da água todas as pontas dos recifes. É de esperar que o nível da água suba no porão do Chancellor à proporção que o mar sobe também. Assim sucede. A sonda anuncia em breve nove pés, de modo que ficam inundadas mais camadas de algodão. Ainda bem!

Na preia-mar desaparecem quase todos os rochedos que cercam o navio; apenas emerge o contorno de uma pequena bacia circular, de duzentos e cinquenta a trezentos pés de diâmetro, em cujo extremo norte está o Chancellor. Naquele espaço mantém-se o mar tranquilo; as vagas não chegam até ao casco da galera, circunstância propícia, porque, estando o navio absolutamente imóvel, seria batido como um rochedo.

Pelas onze horas mostrou-se muito a propósito o Sol, que desde as dez estivera quase sempre velado por nuvens.

O capitão, que já antes calculara um ângulo horário, prepara-se para tomar a altura meridiana e ao meio-dia faz uma observação bastante exacta.

Depois desce ao seu camarote, calcula o ponto, volta ao tombadilho e informa-nos:

- Estamos por 18 graus e 5 de latitude norte e 45 53 de longitude oeste.

Em seguida explica a situação a todos quantos não estão habituados aos números representativos das latitudes e longitudes. Com boa razão entende não dever ocultar nada, para que todos saibam o que devem pensar acerca do nosso futuro.

O Chancellor encalhou, por 18 graus e 5 de latitude norte e 45 graus e 53 de longitude oeste, num recife não indicado nas cartas marítimas. Como podem existir tais perigos nesta parte do Atlântico, sem que estejam reconhecidos já? Será este escolho um ilhéu de formação recente e produzido por algum movimento plutónico? Não encontro outra explicação.

Seja como for, o certo é que estamos a oitocentas milhas das Guianas, que são as terras mais próximas.

Eis o que sem dúvida nenhuma indica o ponto marcado na carta de bordo.

O Chancellor foi, ortanto, arrastado até ao paralelo de 18 graus, primeiro pela teimosia louca de Silas Huntly, depois pelo vendaval do noroeste, diante do qual tivemos de correr.

Por isso ainda o Chancellor terá de navegar mais de oitocentas milhas antes de chegar à costa mais próxima.

Eis a situação. É séria, mas não resulta má impressão destas informações, pelo menos por ora. Que perigos podem fazer trepidar quem, como nós, escapou às ameaças do fogo e da explosão? Esquecemos que a água invade o porão, que fica longe a costa, que o Chancellor quando se fizer ao mar, pode ir a pique... Os ânimos ainda estão impressionados pelos terrores do passado e, podendo agora repousar, confiam no futuro.

Que vai agora fazer Roberto Kurtis? Simplesmente o que o bom senso manda: extinguir completamente o incêndio, alijar todo o carregamento ou parte dele, sem esquecer o boião de picrato, vedar o rombo e, aliviado assim o navio, aproveitar qualquer preia-mar para safar o navio com a máxima brevidade.

 

Continuação de 30 de Outubro. - Converso com Letourneur acerca da nossa situação, e parece-me poder afirmar-lhe que pouco nos demoraremos aqui se as circunstâncias nos favorecerem. Letourneur não partilha a minha opinião.

- Receio bem - respondeu ele -, que estejamos muito tempo presos nestes rochedos.

- E porquê? Deitar pela borda fora alguns centos de fardos de algodão não é trabalho demorado nem difícil. Pode estar acabado em dois ou três dias.

- Decerto, Sr. Kazallon, seria obra de pouco tempo se a tripulação já hoje pudesse começar essa faina. Mas por ora é absolutamente impossível entrar no porão do Chancellor, privado de ar respirável. Quantos dias serão precisos para ali se poder descer, visto que ainda arde a camada média de algodão! Depois poderemos fazer-nos ao mar logo que diminuir o fogo? Não! Será necessário tapar o rombo, que deve ser grande, e calafetá-lo com cuidado, se não quisermos ir a pique, tendo escapado ao perigo de morrer queimados. Não, Sr. Kazallon, não me iludo e pensarei que fomos felizes se dentro em três semanas conseguirmos sair daqui. Queira Deus que não se desencadeie alguma tempestade antes de estarmos ao largo, porque o Chancellor seria despedaçado como vidro neste recife, que se tornaria o nosso túmulo!

É efectivamente o maior perigo que nos ameaça. O incêndio apaga-se de todo, o navio põe-se a nado, pelo menos tudo indica que assim será; mas estamos à mercê de qualquer vendaval. Admitindo que o ponto mais alto dos rochedos possa servir de refúgio durante uma tempestade, que seria dos passageiros e dos tripulantes do Chancellor se o navio fosse despedaçado?!

- Sr. Letourneur - pergunto eu -, confia em Roberto Kurtis?

- Completamente, Sr. Kazallon, e foi uma bênção do céu o facto de o capitão Huntly lhe dar o comando. Tenho a certeza de que Roberto Kurtis fará quanto for humanamente possível para nos resgatar deste perigo.

Quando pergunto ao capitão se calcula que nos demoraremos muito tempo no escolho, responde-me ele que não sabe ainda calcular a demora, porque depende principalmente das circunstâncias, mas que espera bom tempo. O barómetro sobe continuamente e sem oscilar, como faz quando as camadas atmosféricas estão ainda mal equilibradas. Há sintomas de serenidade duradoura, feliz presságio de bom êxito dos nossos trabalhos.

E não se perde nem um momento, e todos metem mãos à obra com indefesa actividade.

Roberto Kurtis cuida primeiro de apagar completamente o fogo, que rói ainda a camada superior dos fardos de algodão acima do nível atingido pela água do porão. Não se pensa em poupar o carregamento; o único processo aceitável consiste em abafar o incêndio entre duas camadas líquidas. Portanto, começam as bombas a trabalhar.

Neste primeiro período a tripulação é suficiente para tocar as bombas. Não se exige trabaLho dos passageiros, mas todos oferecemos os braços, e o nosso auxílio mais tarde será aproveitado, quando se tratar da descarga do navio. Por isso os Letourneur e eu passamos o tempo conversando e lendo; emprego algumas horas na redacção do meu relatório. O engenheiro Falsten, pouco conversador, anda sempre absorto em cálculos, ou risca projectos de máquinas com planta, corte e alçado. Quisera Deus que ele inventasse algum aparelho poderoso, próprio para desencalhar o Chancellor! Os Kear conservam-se retirados e poupam-nos o enfado de ouvir as suas contínuas recriminações. Por desgraça não deixam que saia do pé deles Miss Herbey, a quem raríssimas vezes temos o prazer de falar. Silas Huntly não se intromete em nada do que respeita ao navio; morreu nele o marítimo; o homem vegeta apenas. O despenseiro Hobbart faz o seu serviço do costume, como se o navio prosseguisse regularmente. Este Hobbart é uma criatura obsequiosa, dissimulada e poucas vezes de acordo com o cozinheiro Jynxtrop, negro de má cara, brutal, cínico nos modos, e que convive com os marinheiros mais do que seria conveniente.

Pouquíssimas distracções temos a bordo. Felizmente acode-me a ideia de explorar o recife desconhecido em que o Chancellor encalhou. É provável que o passeio não seja extenso nem divertido, mas sempre agrada deixar o navio durante algumas horas e explorar terrenos cuja origem deve ser curiosa.

Além disso, convém levantar com exactidão a planta do recife, não indicado nas cartas náuticas. Parece que os Letourneur e eu podemos incumbir-nos deste trabalho hidrográfico, deixando ao capitão Kurtis a missão de completá-lo quando calcular de novo, com a máxima exactidão, a longitude e latitude do lugar.

Os Letourneur aprovam a minha proposta. O capitão põe às nossas ordens o bote, sondas e um marinheiro para o conduzir.

Partimos do Chancellor na manhã de 31 de Outubro.

 

De 31 de Outubro a 5 de Novembro. - Começamos por dar volta ao recife, cujo comprimento anda por um quarto de milha.

Completamos rapidamente esta pequena circum-navegação e com as sondas verificamos que por fora dos escolhos há muito fundo. É fora de dúvida que a massa dos rochedos foi projectada para fora do mar por uma sublevação rápida, por uma impulsão violenta produzida pela acção das forças plutónicas.

Além disso, a composição da rocha dissiparia quaisquer dúvidas. É meramente vulcânica. Compõe-se de massas basálticas, dispostas ordenadamente e cujos prismas regulares imprimem no todo tal ou qual aspecto de cristalização colossal. O mar é maravilhosamente transparente na prumada dos contornos do recife e deixa ver curiosos feixes de fustes prismáticos sustentando toda a singular estrutura.

- Curioso ilhéu! - exclama Letourneur. - A sublevação é provavelmente muito recente.

- É evidente, meu pai - responde André -, digo mais, o fenómeno que sucedeu aqui foi semelhante aos que se manifestaram com a ilha Julia, na costa da Sicília, e com o grupo de Santorino, no Arquipélago. Parece que à natureza aprouve preparar de propósito o naufrágio do Chancellor.

- Com efeito - acrescento eu -, a sublevação deve ser recentíssima, porque estes rochedos não aparecem nas cartas modernas e não era possível que não dessem na vista aos navegadores desta parte do Atlântico, que é bastante frequentada. Exploremos, pois, minuciosamente, para aviso dos outros.

- Quem sabe se o recife não desaparecerá brevemente pelo efeito de acção semelhante à que o ergueu - lembra André Letourneur. - Bem sabe, Sr. Kazallon, que estas ilhotas vulcânicas muitas vezes têm apenas duração efémera. Quando os geógrafos inscreverem esta na carta, talvez já tenha ela desaparecido!

- Pouco importa, meu filho - volve Letourneur. - Vale mais indicar um perigo que não existe que omitir um perigo existente. Os marítimos não se queixarão se não encontrarem escolhos onde lhos indicarmos!

- Tem razão, meu pai. Até quem sabe se estes rochedos não durarão tanto como os grandes continentes. Se tem de desaparecer, bem estimará o capitão Kurtis que seja daqui a alguns dias, depois de reparadas as avarias do navio, porque nos pouparia o trabalho de o pormos a navegar!

- Em boa verdade, Sr. André - observo eu, prazenteiramente -, que pretende dispor da natureza como soberano senhor! Manda-lhe que levante e deprima recifes segundo as nossas conveniências e que, tendo criado estes rochedos de propósito para nos ajudar a extinguir o fogo, os faça desaparecer ao aceno da sua varinha de condão para safarmos o Chancellor!

- Não quero mais, Sr. Kazallon - respondeu André, sorrindo -, que dar graças a Deus pela protecção visível com que se amerceou de nós. Aprouve-lhe fazer encalhar o navio neste recife, e há-de lançá-lo ao mar quando chegar ensejo propício.

- E coadjuvá-lo-emos com todo o nosso esforço. Não é assim, meus amigos?

- Oh! decerto, Sr. Kazallon, porque o trabalho e a mútua cooperação são leis eternas da natureza, mas André tem razão de confiar na Providência divina. É certo que o homem, arrostando os perigos do mar, emprega nobremente as faculdades que a natureza lhe outorgou, mas, no oceano infindo, quando se desencadeia a tormenta, bem reconhece quanto é frágil o navio que o transporta, quanto ele próprio é fraco e inerme! Por isso eu creio que o mote do homem do mar deve ser: "Confiança em si, e fé em Deus!"

- Grande verdade, Sr. Letourneur! Parece-me que poucos marítimos haverá cujo coração repila teimoso às impressões religiosas!

Conversando assim, íamos examinando com atenção as rochas que servem de base ao ilhéu. Tudo revela a sua recente origem.

Às ásperas muralhas de basalto não aderem nem uma concha nem uma fêvera de vareques. Os naturalistas perderiam o tempo rebuscando naquele acervo de pedras, onde a natureza vegetal e animal não imprimiu ainda vestígios de vida. Faltam completamente tanto moluscos como hidrófitos. Não transportou ainda o vento para aqui nem um só germe animado, ainda as aves pelágicas não buscaram refúgio nestas rochas. Apenas os geólogos podem achar assunto para realizar estudos, examinando a substrutura basáltica, que quimicamente apresenta vestígios da formação plutónica.

Neste momento chega o bote à ponta sul da ilhota, no sítio onde o Chancellor encalhou. Proponho aos meus companheiros que desembarquem e eles aceitam.

- Se esta ilha está condenada a desaparecer - diz André, sorrindo -, convém que antes disso seja percorrida por criaturas humanas.

O bote encosta à rocha basáltica e desembarcamos.

Vai adiante André, porque o piso é fácil e o aleijado não carece de braço que o ampare. Segue atrás dele o pai e depois eu. Nesta ordem subimos uma rampa suave até ao ponto mais alto do rochedo.

Um quarto de hora nos basta para andarmos este caminho, e sentamo-nos todos três sobre um prisma basáltico que forma o ponto culminante do ilhéu. André Letourneur tira um bloco do bolso e começa a desenhar o recife, cujos contornos se projectam bem distintos no fundo verde da água.

O céu está sereno e, sendo baixa-mar nesse momento, ficam a descoberto os últimos rochedos ao sul, deixando entre si o estreito canal que o Chancellor então seguiu antes de encalhar.

A forma do recife é singular e lembra exactamente a de um presunto de Iorque, cuja parte central se levanta até à proeminência onde estamos.

Por isso, depois de André traçar o contorno do ilhéu, observa-lhe o pai:

- Olha que desenhaste um presunto!

- É verdade, meu pai, mas presunto basáltico, cujas dimensões contentariam o próprio Gargantua. Se o capitão Kurtis consentir, chamaremos a este recife Ham-Rock.

- É bem posto o nome! - exclamo eu. - Recife de Ham-Rock! Bem podem os navegadores passar ao largo, porque não têm dentes para entrar com ele!, O Chancellor encalhou na extremidade sul do ilhéu, isto é, no pernil do presunto, numa pequena enseada formada pela curva desse pernil. O navio está inclinado para estibordo e nesta ocasião bastante tombado, por ser baixa-mar.

Acabado o desenho de André Letourneur, descemos por outra vertente que descai brandamente para oeste, em breve avistamos uma grutazinha. Vista deste lado parece construção arquitectónica, semelhante às que a natureza delineou nas Hébridas e principalmente em Staffa. Os Letourneur, que já visitaram a gruta de Fingal, encontram-na reproduzida aqui em proporções mínimas. Semelhante disposição de prismas concêntricos resultante do resfriamento dos basaltos, semelhantes arquitraves de vergas pretas com as juntas ligadas por cimento amarelado, igual pureza de arestas prismáticas que o cinzel do escultor não traçaria com maior firmeza, enfim, semelhante murmúrio do ar através dos basaltos sonoros, que os Gaels figuravam ser harpas dos espíritos fingálicos. A única diferença consiste em que na gruta de Staffa o pavimento é uma toalha líquida, aqui só chegam ao solo as vagas erguidas pelo sopro da tempestade. O corte dos fustes prismáticos forma pavimento sólido.

- Além disso - lembra André Letourneur -, a gruta de Staffa é uma enorme catedral gótica, esta não passa de capela da catedral! Quem esperaria, porém, encontrar esta maravilhosa construção num recife isolado na amplidão do mar?

Descansamos uma hora na gruta do Ham-Rock. Depois, seguimos o litoral do ilhéu e voltamos ao Chancellor. Informamos Roberto Kurtis dos nossos descobrimentos. O ilhéu fica inscrito na carta com o nome que lhe impôs André Letourneur.

Todos os dias seguintes damos passeios até à gruta, onde passamos horas agradáveis. Roberto Kurtis já a visitou também, mas como homem a quem os muitos cuidados não deixam admirar os prodígios da Natureza.

Lá foi também Falsten uma vez para examinar a natureza das rochas e arrancar-lhes pedaços com a crueza de geólogo. Mr. Kear não esteve para incomodar-se, deixou-se ficar a bordo. Convidei Mrs. Kear para nos acompanhar num dos nossos passeios, mas não aceitou, com medo de embarcar no bote e de se cansar.

Letourneur perguntou a Miss Herbey se gostaria de percorrer o recife. Ela aceitou prontamente, dando-se por feliz de fugir, por uma hora que fosse, à tirania caprichosa da ama.

Porém, quando pediu licença a Mrs. Kear para desembarcar, ouviu uma recusa peremptória.

Indignou-me este procedimento e empenhei-me com Mrs. Kear para ela dar a licença pedida. Aqui foi Tróia, porém, como tive ensejo por vezes de prestar alguns serviços à egoística passageira, que receia vir ainda a precisar de mim, triunfei por fim.

Miss Herbey acompanhou-nos, por isso, algumas vezes nas excursões pelos rochedos. Muitas vezes também temos pescado no litoral do ilhéu e almoçámos alegremente na gruta ao som das harpas basálticas pulsadas pela brisa. Alegra-nos o prazer de Miss Herbey achando-se algumas horas livre. Por muito pequeno que seja o ilhéu, nunca a pobre menina gozou da liberdade em mais amplo espaço! Também nós sentimos afecto pelo árido recife, onde não há pedra que não conheçamos, carreiro que não tenhamos percorrido! Comparado com o convés apertado do Chancellor, é amplo passeio, estou certo de que, ao soar a hora da partida, não o deixaremos sem saudade.

"A propósito da ilha de Staffa, informou-nos André Letourneur de que ela pertence à família Mac Donald, que a dá de arrendamento pela quantia de doze libras anuais."

- E os senhores cuidam que haveria quem desse por esta mais de meia coroa? - pergunta Miss Herbey.

- Nem um vintém, miss - respondo eu, rindo. - Porventura quer tomá-la de renda?

- Não, Sr. Kazallon - acode ela, reprimindo um suspiro, - apesar de ser o único lugar da Terra onde tenho gozado felicidade!

- E também eu!- murmura André.

Quantos sofrimentos não revela a resposta de Miss Herbey!

Infeliz rapariga! Pobre, órfã, desprotegida, só achou ventura - ventura de poucos instantes - num rochedo perdido no Atlântico!

 

De 6 a 15 de Novenbro. - Nos primeiros cinco dias depois do naufrágio ainda sai fumo acre e espesso do porão do Chancellor, diminui enfim pouco a pouco, e no dia 6 de Novembro está o fogo apagado de todo. Roberto Kurtis, por prudência, manda que as bombas continuem trabalhando, de modo que na preia-mar o navio está cheio de água até à coberta.

Quando a maré baixa, também a água abate no porão, nivelando-se as duas superfícies líquidas interna e externa.

- Prova este facto - diz-me Roberto Kurtis -, que temos grande avaria, visto a água despejar rapidamente.

Com efeito, o rombo do casco mede nada menos de quatro pés quadrados de superfície. Flaypol, um dos nossos marinheiros, mergulhou durante a baixa-mar e determinou a grandeza e posição do rombo. Fica a trinta pés da popa, tendo sido arrombadas três tábuas por um rochedo agudo, coisa de dois pés acima do alefriz da quilha: O choque foi violentíssimo por estar o navio muito metido e o mar furioso. Admira até que o fundo não se abrisse por diversas partes. Enfim, quando se tiver tirado ou removido o carregamento, poderá o carpinteiro chegar até ao rombo, e então se verá se é possível tapá-lo ou não. Só daqui a dois dias estará o porão acessível e poderemos tirar os fardos poupados pelo fogo.

Enquanto aguardamos, não descansa Roberto Kurtis, e a marinhagem trabalha com zelo em várias reparações importantes.

Conseguimos pôr no seu lugar o mastro da gata, que veio abaixo quando o navio encalhou. Puxamo-lo primeiro para cima do recife com todo o seu aparelho, armamos uma cábrea e com o auxílio dela colocamos o mastro em cima do troço inferior, que o carpinteiro Daoulas escarvou convenientemente. Arroteou-se a ligação e cavilhou-se a ferro.

Feito isto, consertou-se e melhorou-se todo o aparelho, tesaram-se os ovéns, brandais e estais, substituíram-se algumas velas, bem como cabos de laborar. Pelo que respeita ao aparelho, podemos navegar com segurança.

Fizeram-se também grandes reparações à proa e à ré, porque o tombadilho e o alojamento da marinhagem sofreram bastantes avarias. Remediou-se tudo com tempo e cuidado. Tempo não falta, e cuidados são incessantes, de modo que em breve podemos voltar para os nossos camarotes.

No dia 8 começa a descarga do Chancellor. Estando os fardos de algodão metidos na água que durante a preia-mar enche o porão, colocaram-se talhas à boca das escotilhas e todos os passageiros ajudaram a equipagem a içar os pesados fardos, quase todos avariados. Metemo-los a um e um no bote, que os transporta para o recife. Tirada a primeira camada de carregamento, é preciso esgotar, ao menos em parte, a água que enche o porão. Para isso temos de embaçar o rombo no costado. Este trabalho é difícil, mas o mestre e Flaypol fazem-no com zelo inexcedível. Na baixa-mar mergulham a estibordo e pregam uma folha de cobre no rombo; porém, como esta não poderia resistir à pressão quando o nível interno da água baixasse pela acção das bombas, Roberto Kurtis lembrou-se de segurar a tapagem apertando fardos de algodão de encontro às tábuas despedaçadas.

Como não falta material, em breve está o fundo revestido com uma camada de fardos pesados e impermeáveis, com o auxílio dos quais talvez resista a folha de cobre.

A ideia do capitão dá bom resultado. Assim que a marinhagem toca as bombas, baixa a pouco e pouco o nível da água no porão e pode continuar a descarga.

- É provável - declara-nos Roberto Kurtis -, que possamos chegar até ao rombo e consertá-lo interiormente. Seria melhor querenar o navio e substituir as tábuas deterioradas, mas faltam-nos meios para tão grande reparação. Além disso, receio que sobrevenha mau tempo estando o navio querenado, porque nesse caso o mar imediatamente o despedeçaria. Creio, porém, poder afirmar-lhes que o rombo ficará tapado e que em breve tentaremos navegar para a costa em condições suficientes de segurança. Em dois dias de trabalho despeja-se quase completamente o porão e termina a descarga dos fardos. Temos de tocar à bomba para ajudar a tripulação, e fazemo-lo com vontade. O próprio André Letourneur, apesar do seu aleijão, trabalhou ao nosso lado e todos, cada um conforme as suas forças, cumprimos o nosso dever.

Terrível trabalho é este de tocar às bombas, precisamos repetidas vezes de descansar. O vaivém dos braços mói os membros e os rins, agora compreendo a repugnância dos marinheiros por esta faina. E ainda nós trabalhamos em condições favoráveis, pois o navio está encalhado e não pressentimos o abismo aberto debaixo dos pés. Não defendemos a vida contra a invasão do mar, não há luta entre nós e a água, que entra à proporção que a tiram!

Deus queira que nunca passemos por semelhante transe em navio prestes a afundar-se.

 

De 16 a 20 de Novembro. - Hoje é examinado o porão, descobrimos afinal o boião de picrato, arrumado à ré em sítio aonde o fogo felizmente não chegou. O boião está intacto, nem sequer a água avariou o picrato. O capitão mandou-o pôr no recife em lugar seguro. Porque não o deitamos já ao mar? Não sei. O caso é que fica guardado.

Roberto Kurtis e Daoulas verificaram, na sua visita ao porão, que o convés e os vaus sofreram menos do que se receava.

O calor intenso do incêndio torceu e empenou o grosso tabuado, mas sem o carbonizar profundamente. Parece que a acção do fogo afectou principalmente o costado.

Com efeito, o forro interno foi devorado em grande extensão, aquém e além aparecem pontas de cavilhas de madeira carbonizadas e desgraçadamente também a ossada foi muito atacada, a estopa saiu das juntas e costuras. Parece milagre que o navio não abrisse muito antes do naufrágio.

Estas circunstâncias são muito desagradáveis, devemos confessá-lo. O Chancellor sofreu avarias tais que não podem ser eficazmente reparadas com os escassos meios de que dispomos.

O navio não alcançará a solidez necessária para travessias demoradas.

O capitão e o carpinteiro mostram-se pensativos e tristonhos. As avarias são tão sérias que o capitão, se estivesse numa ilha e não apenas num recife varrido pelo mar, não duvidaria de desmanchar o navio para reconstruir outro mais pequeno que merecesse confiança.

Roberto Kurtis, porém, toma rapidamente uma resolução e reúne todos, passageiros e tripulantes, no convés do Chancellor.

- Meus amigos - informa ele -, as avarias são muito maiores do que suspeitávamos, e o casco do navio está muito arruinado. Como não há meio de o consertar a valer, e como neste ilhéu, sujeito à invasão do mar, não podemos construir outro barco, eis o que projecto fazer: tapar o rombo o melhor possível e navegar para o porto mais próximo. A costa de Paramaribo, que forma o litoral do norte da Guiana holandesa, demora apenas a oitocentas milhas. Em dez ou doze dias, com tempo de feição, alcançaremos terra!

Não havia outro expediente. Por isso foi unanimemente aprovado o projecto de Roberto Kurtis. Daoulas e os seus ajudantes tratam de tapar interiormente o rombo e de consolidar o mais possível o cavername roído pelo fogo. É evidente, porém, que o Chancellor não apresenta solidez bastante para navegação demorada e que há-de ser condenado no primeiro porto a que chegar. O carpinteiro calafeta também as costuras do costado na parte que emerge na baixa-mar, não pode, porém, examinar a que fica mergulhada, tendo de contentar-se com o calafeto interior.

Todos estes trabalhos duram até ao dia 20. Então Roberto Kurtis, tendo feito quanto era humanamente possível para consertar o navio, resolve fazê-lo sair ao mar.

Escusado é dizer que, depois de livre do carregamento e da água acumulada no porão, o Chancellor flutua ainda antes da preia-mar. Como está amarrado de popa e proa, o navio não descaiu para o recife e conservou-se na pequena enseada natural, defendido dos dois lados pelos rochedos, que nem a preia-mar cobre. A enseada, na parte mais larga, é suficiente para o Chancellor fazer rotação, manobra que facilmente se realiza por meio de espias dadas para a terra. O navio está agora aproado ao sul.

Parece, pois, que será fácil fazer sair o Chancellor, ou largando o pano, se o vento for de feição, ou levando-o à espia para fora quando seja contrário. Mas esta operação apresenta sérias dificuldades, que é necessário vencer.

Com efeito, a saída da enseada está fechada por uma espécie de soleira basáltica, acima da qual na preia-mar existe apenas água bastante para o Chancellor flutuar sem lastro. Se transpôs a soleira quando encalhou, foi, repito, porque uma vaga enorme o ergueu e arremessou para dentro da enseada. Além disso, hoje é não só maré de lua nova, mas também a maior do ano, devem decorrer muitos meses antes que haja outro fluxo equinocial tão forte.

Ora é claro que Roberto Kurtis não pode esperar uns poucos de meses. Hoje é preia-mar de sizígia e convém aproveitá-la para safar o navio, em saindo do recife, o alastrará para aguentar o pano e seguir viagem.

Exactamente está o vento de feição porque sopra de nordeste, e por isso na direcção da saída. Mas o capitão não quer ir de pano largo contra um obstáculo que pode deter um navio cuja solidez é muito problemática. Por isso, depois de conferenciar com Walter, o carpinteiro e o mestre, resolve que o melhor será levar o Chancellor à espia. Em consequência desta resolução largamos ferro pela popa para reconduzir o navio ao actual ancoradouro no caso de a tentativa falhar, espiam-se outros dois ferros, pela proa, fora do canal da saída, cujo comprimento não excede duzentos pés. Os viradores são gornidos no bolinete que a marinhagem vira, pelas quatro horas da tarde começa o movimento do Chancellor.

Às quatro horas e vinte e três minutos deve ser preia-mar.

Por isso, dez minutos antes é o navio levado tanto quanto permite a água que demanda, até que, começando a parte anterior da quilha a roçar no basalto, se suspende o movimento.

E agora, que o patilhão já venceu o obstáculo, não há razão para que a força do vento não coopere com a acção mecânica do bolinete. Desfralda-se, pois, todo o pano e braceia-se com vento pela popa.

Soou a hora. É preia-mar. Os passageiros e os tripulantes viram aos bolinetes. Os Letourneur, Falsten e eu tomamos a nosso cargo a balança de estibordo. Roberto Kurtis está no tombadilho vigiando toda a manobra, Walter sobre o castelo e o mestre ao leme.

O Chancellor estremece, o mar que sobe, levanta-o algum tanto e felizmente está plano.

- Vamos, rapazes - brada Roberto Kurtis, com voz tranquila e animadora. - Força e todos à uma. Vá!

Movem-se as balanças do bolinete. Ouve-se o tinido dos linguetes, os viradores esticam-se a pouco e pouco, e fazem força nos escovéns. Refresca o vento e, como o navio não pode adquirir suficiente velocidade, vergam e arqueiam os mastros.

Adiantamos uns vinte pés. Um dos marinheiros entoa uma daquelas cantigas guturais cujo ritmo favorece a coordenação dos movimentos. Empenhamos todas as forças e o Chancellor estremece...

Mas, esforços vãos. A maré já vaza. Não podemos então passar.

Ora, visto que o navio não passa, não deve ficar meio em seco sobre a soleira do basalto, porque infalivelmente se partiria na baixa-mar. Por ordem do capitão ferra-se rapidamente tudo e entra logo em serviço a âncora espiada pela popa. Não se pode perder um momento. Vira-se o bolinete para fazer recuar o navio e há um momento de ansiedade terrível... Felizmente a quilha do Chancellor escorrega sobre a rocha e a galera volta à caldeira que lhe serve de prisão.

- Capitão - perguntou o mestre -, como havemos de passar?

- Não sei ainda - respondeu Roberto Kurtis -, mas o certo é que passaremos.

 

De 21 a 23 de Novembro. - É mister, com efeito, sair daquela apertada caldeira e sem demora. O tempo, que nos foi favorável todo o mês de Novembro, vai mudar. Desde ontem que o barómetro desce e já se levanta bastante vaga em torno do Ham-Rock. É impossível resistir-lhe no ilhéu com mau tempo. O Chancellor seria despedaçado num abrir e fechar de olhos.

Durante a baixa-mar da noite, Roberto Kurtis, Falsten, o mestre, Daoulas e eu vamos examinar a soleira de basalto agora descoberta. Existe um só meio de abrir caminho: é cortar o rochedo a pancadas de alvião no comprimento de seis pés e na largura de dez. Basta um corte de oito ou nove polegadas para que o Chancellor passe. Balizando com cuidado este pequeno canal, o navio transporá o obstáculo e chegará a águas bastante profundas.

- Mas este basalto é duro como ferro - nota o mestre. - Temos trabalho para muito tempo, porque só poderemos escavar durante a maré baixa, isto é, apenas duas horas em cada vinte e quatro!

- Maior razão, mestre - volve Roberto Kurtis -, para começarmos já.

- Mas, capitão - objecta Daoulas -, olhe que nem num mês temos obra completa! Não seria possível rebentar estas rochas a tiro? Temos pólvora a bordo?

- Desgraçadamente pouca - responde o mestre.

A situação torna-se gravíssima. Um mês de trabalho?

Mas antes disso é o navio despedaçado pelo mar!

- Temos coisa melhor que a pólvora - lembrou então Falsten.

- O quê? - pergunta Roberto Kurtis, voltando-se para o engenheiro.

- O picrato de potássio! - responde Falsten.

É verdade! O picrato de potássio! O boião metido a bordo pelo infeliz Ruby. A substância explosiva, que por pouco não despedaçou o navio, servirá agora para salvá-lo! Abrindo um furo de mina no basalto, destruiremos o obstáculo que nos prende!

Como disse, o boião de picrato de potássio foi guardado no ilhéu em lugar seguro. É admirável, providencial até que o não deitassem ao mar quando o tiraram do porão.

Os marinheiros vão buscar alviões. Daoulas, dirigido por Falsten, abre um furo de mina na direcção mais proveitosa.

Esperamos com razão que o furo ficará pronto esta noite e que ao alvorecer, produzindo a explosão o desejado efeito, teremos o caminho livre.

Todos sabem que o ácido pícrico é um produto amargo, cristalino, que se extrai do alcatrão da hulha e que, combinando-se com a potassa, produz um sal amarelo denominado picrato de potássio. O poder explosivo desta substância é inferior ao do algodão-pólvora e da dinamite, mas superior ao da pólvora ordinária. Inflama-se pela acção de choque violento, ou também por meio de escorvas de fulminato.

Daoulas e outros marinheiros trabalham com vontade, mas ao amanhecer ainda lhes falta muito para concluírem. Com efeito, só podem trabalhar durante a baixa mar ou pouco mais, isto é, apenas uma hora por dia. Serão precisas quatro marés para o furo atingir a necessária profundeza.

Só no dia 23, pela manhã, fica a obra pronta. A soleira de basalto é atravessada por um furo oblíquo, que pode conter umas dez libras de sal explosivo. Vamos sem demora carregar a mina. São oito horas.

Quando se trata da carga, acode Falsten.

- Parece-me que é melhor misturar o picrato com pólvora ordinária. Por este processo poderemos largar fogo à mina por meio de um rastilho, em lugar de uma espoleta cuja explosão houvesse de ser produzida pelo choque, com o rastilho é mais fácil. Além disso, é fora de dúvida ser a mistura de picrato e pólvora preferível para as rochas duras. O picrato, violento por natureza, abre caminho à pólvora, que, mais comedida e demorada no arder, despedaçará depois o basalto.

Poucas vezes fala o engenheiro Falsten, mas força é confessar que, quando fala, fala bem. É adoptado o seu conselho. Misturam-se as duas substâncias, introduz-se um rastilho até ao fundo do furo, carrega-se este e ataca-se com uma boa bucha.

O Chancellor está bastante afastado da mina, que não pode prejudicá-lo. Entretanto, por cautela, refugiam-se passageiros e tripulantes na gruta situada no extremo oposto do recife.

Até o Sr. Kear teve, apesar dos seus ásperos queixumes, de sair do navio.

Falsten, encarregado de largar fogo ao rastilho, que deve durar dez minutos, cumpre a sua missão e foge para o pé de nós.

Dá-se a explosão. É surda e muito menos ruidosa do que se julgava. Assim sucede, porém, sempre às minas cavadas a grande profundidade.

Corremos para o canal... A explosão deu excelente resultado.

A soleira de basalto ficou literalmente reduzida a pó, e agora dispomos de um pequeno canal, que a enchente começa a cobrir. Damos um viva geral. Está aberta a porta do cárcere e já os presos podem evadir-se.

Na preia-mar, o Chancellor, levado à espia, transpõe o canal e flutua no mar largo.

Temos, porém, necessidade de nos determos mais um dia junto do ilhéu, porque o navio não pode navegar como está, precisamos meter lastro para lhe dar estabilidade. Portanto, nas vinte e quatro horas seguintes trabalhamos no embarque de pedras e de alguns fardos de algodão menos avariados.

Os Letourneur, Miss Herbey e eu aproveitamos este dia para dar ainda um passeio por entre os basaltos do recife, que não tornaremos a ver mais e no qual vivemos três semanas. André Letourneur grava artisticamente numa das colunas da gruta o nome do Chancellor, o do recife e a data em que encalhámos, depois dizemos o adeus derradeiro àqueles rochedos entre os quais passámos bastantes dias, que serão talvez os melhores da nossa vida.

Finalmente, a 24 de Novembro, na maré da manhã, o Chancellor aparelha com papa-figos, gáveas e joanetes, e passadas duas horas desaparece no horizonte a ponta mais alta do Ham-Rock.

 

De 24 de Novembro a 1 de Dezembro. - Eis-nos outra vez ao largo e num navio cuja solidez é mais que duvidosa, felizmente a travessia é curta. São apenas oitocentas milhas, e, mantendo-se o vento de nordeste por alguns dias, o Chancellor, navegando à popa, não se fatigará muito e com certeza há-de chegar à costa da Guiana.

Seguimos rota de sudoeste, e a bordo recomeça a vida monótona dos primeiros dias de viagem.

A princípio não há novidade. O vento é sempre de feição, mas Roberto Kurtis não quer fazer força de vela. porque receia que o navio abra água se o obrigar a navegar com demasiada velocidade.

É sempre triste uma viagem em circunstâncias destas, quando não há confiança no navio! E depois desandámos para a América, em vez de nos aproximarmos da Europa! Por isso vamos todos tristonhos e pensativos, sem que haja aquela animação expansiva que nasce de navegação segura e muito rápida.

No dia 29, o vento ronda uma quarta para o norte. Não é possível continuar navegando à popa. O capitão manda bracear as vergas com amuras a estibordo. Daí resulta que o navio inclina muito.

Roberto Kurtis ferra joanetes, porque reconhece quanto a inclinação fatiga o casco do Chancellor. E tem razão, visto que o nosso fim não é chegar depressa, porém, sim, chegar com segurança.

A noite de 29 para 30 apresenta-se escura e nevoenta. A brisa refresca e infelizmente salta para o noroeste. Quase todos os passageiros recolhem aos camarotes, mas o capitão Kurtis não deixa o tombadilho e toda a marinhagem fica em cima. O navio continua muito inclinado, apesar de não levar nenhum pano sobranceiro.

Pelas duas horas da madrugada estou resolvido a recolher ao meu beliche, mas de repente aparece o marinheiro Burke, que descera ao porão, e clama:

- Dois pés de água!

Roberto Kurtis e o mestre descem pela escada e verificam que a triste nova é verdadeira. Ou se descoseu o rombo, apesar de todas as cautelas tomadas, ou se abriram algumas costuras mal calafetadas. O caso é que o navio mete muita água.

O capitão, logo que regressa ao convés, manobra para navegar à popa, a fim de fatigar menos o navio, e aguarda o raiar da aurora.

Ao nascer do Sol sonda-se e achamos três pés de água...

Olho para Roberto Kurtis. Empalidece um momento, mas conserva todo o sangue-frio. Do sucedido informa os passageiros que subiram para o convés, porque seria impossível ocultar-lhes a verdade.

- Outra desgraça! - diz Letourneur.

- Era de esperar - respondo eu -, mas devemos estar perto de terra, e creio que chegaremos à costa.

- Deus o oiça! - replica Letourneur.

- O quê! Pois Deus está a bordo? - exclama o engenheiro Falsten, encolhendo os ombros.

- Está sim, Sr. Falsten! - acode Miss Herbey.

O engenheiro curva-se respeitoso perante esta afirmativa repassada de fé, que não admite discussão.

Por ordem de Roberto Kurtis começa o movimento das bombas, a marinhagem trabalha, antes resignada que animosa, é questão de vida ou de morte e, por isso, a gente, dividida em dois turnos, rende-se a tocar às bombas.

Durante o dia o mestre sonda muitas vezes o porão, e verifica que o mar entra devagar, mas, teimosamente.

Por desgraça, as bombas, à força de trabalho, sofrem frequentes desarranjos a que é preciso acudir. Muitas vezes são entupidas ou por cinza ou por fêveras de algodão existentes no fundo do porão em grande quantidade. Não há remédio senão limpá-las a miúdo, do que resulta perder-se parte do trabalho feito.

No dia seguinte a sonda dá cinco pés de água. Se por qualquer motivo cessasse o trabalho das bombas, o navio alagar-se-ia logo. Seria apenas questão de tempo - e de muito pouco tempo. A primitiva linha da flutuação já vai um pé afogada e o navio começa a caturrar, porque se eleva pouco com a vaga. Vejo o capitão Kurtis franzir o sobrolho, cada vez que o mestre ou o imediato lhe vêm trazer informações. Mau agouro!

O trabalho das bombas continua todo o dia e toda a noite.

Mas a água sobe. A tripulação cai de cansaço, já se manifestam sintomas de desânimo. O mestre e o imediato exortam a gente, e os passageiros acodem ao trabalho.

A situação é bem diferente daquela em que nos vimos com o navio encalhado nos rochedos de Ham-Rock, o navio flutua sobre insondáveis abismos, que podem instantaneamente tragá-lo.

 

De 2 a 3 de Dezembro. - Ainda lutamos com energia mais vinte e quatro horas, conseguindo evitar que a água suba, é, porém, evidente que não tardará a hora de as bombas não poderem tirar tanta quanta entra pelo casco descosido.

Hoje, o capitão Kurtis, que não descansa um momento, vai em pessoa examinar o porão, resolvo acompanhá-lo juntamente com o carpinteiro e o mestre. Afastamos alguns fardos de algodão e verificamos, aplicando o ouvido, que se ouve um marulhar, uma espécie de gluglu, para empregar a expressão onomatopaica.

Reabrir-se-ia o rombo, ou haveria deslocação geral de todo o casco? Não é possível verificá-lo exactamente. Roberto Kurtis resolve tornar o navio menos permeável à ré, embrulhando-o exteriormente com velas alcatroadas. Talvez assim consiga vedar, ao menos parcial e provisoriamente, a comunicação de fora para dentro. Se conseguirmos suspender por algum tempo a entrada da água, tocaremos as bombas com melhor resultado e aliviaremos o navio.

Esta operação é mais difícil do que pode supor-se. Primeiro há-de diminuir-se a velocidade do Chancellor, depois mergulhar debaixo da quilha velas de lona grossa aguentadas junto à quilha por meio de retenidas, em seguida fazê-las escorregar até ao sítio do rombo e prender, enfim, os cabos, de modo que fique revestida a popa do navio. Assim o fizemos.

Desde então as bombas dão vencimento e, por isso, trabalhamos com vontade. O mar ainda entra, mas em menor quantidade, e ao anoitecer verificamos que o nível interior baixou algumas polegadas! Só algumas polegadas! Pouco importa!

As bombas expelem agora mais água pelos embornais, do que entra no porão. Trabalhamos sem descansar.

O vento refresca muito de noite, conservando-se o céu carregado. Apesar disso, o capitão Kurtis tem feito força de vela quanto possível, porque bem sabe como é precário o remédio empregado, e tem pressa de avistar terra. Se passasse algum navio, não duvidaria chamá-lo à fala com sinais de socorro, transbordar os passageiros e a própria marinhagem, embora ficasse ele só a bordo até ao momento do Chancellor ir a pique.

Todos os esforços deviam, porém, ser baldados.

Com efeito, durante a noite cedeu o invólucro da lona à pressão exterior, e no dia seguinte o mestre, depois de sondar, não pôde conter estas palavras, seguidas de mil pragas:

- Outra vez seis pés de água no porão!

O facto é irrecusável! O navio enche-se outra vez, e afunda-se sensivelmente.

Tocamos às bombas ainda com mais vigor, e neste trabalho consumimos em breve as forças. Temos os braços doridos, as mãos sangrentas, mas, a despeito de tudo, o mar assoberba-nos.

Roberto Kurtis manda estabelecer um cordão de gente à boca da escotilha grande, e os baldes passam rápidos de mão em mão.

Tudo é inútil! Às oito e meia da manhã verifica-se novo aumento de água no porão. Bastantes marinheiros desanimam.

Roberto Kurtis ordena que continuem a trabalhar. Desobedecem. Entre eles está um homem propenso à insubordinação, cabeça de motim de quem já falei: é o marinheiro Owen. Terá quarenta anos. O rosto aguça-se-lhe para a barba, as suíças avermelhadas são escassas e mal semeadas nas faces. Os lábios encurvam-se-lhe para dentro, os olhos alconados têm um ponto vermelho no canto das pálpebras. O nariz é direito, as orelhas muito afastadas, a testa sulcada de rugas de mau carácter.

É o primeiro que deserta do seu posto.

Imitam-no mais cinco ou seis, entre outros o cozinheiro Jynxtrop, homem igualmente de má índole.

Owen responde com recusa formal à ordem de Roberto Kurtis, que lhe manda tocar à bomba.

O capitão repete a ordem. Owen desobedece terceira vez.

Roberto Kurtis caminha para o marinheiro insubordinado.

- Tome conta, não me toque! - avisa Owen com frieza, subindo ao castelo.

Então Roberto Kurtis dirige-se para o tombadilho e entra no seu camarote e sai com um revólver engatilhado.

Owen olha atento para o capitão, mas Jynxtrop acena-lhe e todos voltam ao trabalho.

 

4 de Dezembro. - A atitude enérgica do capitão consegue dominar a primeira tentativa de revolta. Será Roberto Kurtis tão feliz para outra vez? Assim o devemos esperar, porque a indisciplina da marinhagem tornaria desesperada a nossa situação, já de si muito grave.

Durante a noite as bombas não dão vencimento. Já o navio torna a caturrar e, sendo-lhe difícil erguer-se com a vaga, recebe golpes de mar que o alagam e entram pelas escotilhas.

Mais água que se junta à do porão.

Em breve será a nossa situação tão perigosa como nas últimas horas do incêndio. Todos os passageiros e tripulantes sentem que o navio lhes falta a pouco e pouco debaixo dos pés e vêem subir, lenta mas continuamente, as vagas, não menos ameaçadoras que as chamas.

A marinhagem trabalha, contudo, obrigada pelas ameaças de Roberto Kurtis, com ou sem vontade, os marinheiros lutam com vigor, mas vão-lhes faltando as forças. E depois não podem esgotar a água, que sem interrupção se renova e cujo nível cresce de hora para hora. Os que trabalham com baldes têm já de fugir do porão, onde mergulham até à cinta, fugindo ao perigo de morrerem afogados, retiram para o convés.

Só um recurso nos resta, e no dia seguinte, 4, resolvem lançar mão dele, o capitão, Walter e o mestre, é abandonar o navio. Como possuímos só o bote, que não pode acomodar tanta gente, trata-se de construir uma jangada. A tripulação continua tocando às bombas até receber ordem de embarcar.

É avisado o carpinteiro Daoulas, e decide-se que a jangada será construída sem demora com as vergas de sobresselente e madeiras das antenas, cortadas com o comprimento necessário. O mar, bastante manso, contraria pouco este trabalho, sempre difícil ainda nas circunstâncias mais propícias.

Portanto, sem perda de tempo, Roberto Kurtis, o engenheiro Falsten, o carpinteiro e dez marinheiros, armados com machados e serras, escolhem e cortam as vergas antes de as deitarem ao mar. Deste modo só têm depois de ligá-las bem, formando uma plataforma valente sobre a qual assentará o sobrado corrido da jangada, que deve ter quarenta pés de comprido sobre vinte a vinte e cinco de largo. Os outros passageiros e o resto da tripulação trabalham nas bombas. Ao pé de mim vejo os dois Letourneur, o pai não desprega os olhos do filho, que contempla com profunda comoção. Que será feito dele, quando tiver de lutar contra as vagas, em circunstâncias em que mal pode salvar-se um homem robusto e sem aleijões? Em todo o caso, aqui estamos dois que o não abandonaremos.

Ainda não revelámos a iminência do perigo a Mrs. Kear, que está em completo estado de prostração e quase desmaiada.

Miss Herbey tem vindo umas poucas de vezes ao convés, mas não se demora. Está pálida de tanto sofrer, mas continua animosa e resoluta. Recomendo-lhe que esteja pronta para tudo.

- Estou sempre pronta, Sr. Kazallon - responde Miss Herbey, que volta logo para o pé de Mrs. Kear.

André Letourneur segue-a com o olhar, desenhando-se-lhe no rosto expressão de grande tristeza.

Pelas oito horas da noite está quase pronta a plataforma da jangada. Trata-se agora de deitar ao mar barricas vazias e bem vedadas, destinadas a assegurar a flutuação daquela máquina.

São atadas entre os madeiros.

Passadas duas horas ouvimos altos gritos no tombadilho e aparece Mr. Kear, bradando:

- Vamos a pique! Vamos a pique!

Ao mesmo tempo vejo Miss Herbey e Falsten transportarem Mrs. Kear, completamente desmaiada.

Roberto Kurtis corre ao seu camarote e volta com um mapa, um sextante e uma agulha.

Ouvem-se gritos de terror, reina grande confusão e a marinhagem corre para a jangada, que não pode ainda receber a gente porque lhe falta o sobrado.

Não posso descrever as ideias que me acodem à mente neste instante, nem dar ideia da rápida visão que antevejo de toda a minha vida! Parece que a existência inteira se concentra neste minuto supremo, em que talvez chegue ao seu termo! Sinto o convés abater-se-me debaixo dos pés, vejo o mar subir em volta do navio, como se o oceano se cavasse debaixo dele!

Muitos marinheiros fogem para as enxárcias, dando gritos de terror. Vou segui-los...

Seguram-me. É Letourneur, que aponta para o filho, enquanto lhe correm lágrimas ardentes pelas faces.

- Sim - asseguro-lhe eu, apertando-lhe freneticamente o braço. - Nós havemos de salvá-lo!

Mas ainda antes de mim chega Roberto Kurtis ao pé de André, e vai levá-lo para a enxárcia grande quando o Chancellor, até então impelido velozmente pelo vento, pára de repente.

Sentimos um grande abalo. O navio afunda-se! Chega-me a água às pernas. Instintivamente deito a mão a um cabo... Mas de repente o navio deixa de mergulhar e fica imóvel no momento em que tem já sobre o convés dois pés de água.

 

Noite de 4 para 5 de Dezembro. - Roberto Kurtis levanta nos braços André Letourneur e, correndo pelo convés alagado, vai colocá-lo na enxárcia de estibordo. O pai e eu trepamos para junto dele.

Olho depois em volta do navio. A noite está clara o suficiente para se poderem distinguir ainda os objectos a certa distância. Roberto Kurtis, tendo voltado ao seu posto, está de pé no tombadilho. Na grinalda não submergida ainda diviso, na sombra, Mr. Kear, sua mulher, Miss Herbey e Falsten, no castelo estão Walter e o mestre, nas gáveas e nas enxárcias o resto da tripulação.

André Letourneur conseguiu subir até à gávea grande com o auxílio do pai, que lhe foi pondo os pés nos enfrechates, apesar do balanço chegou ali sem novidade. É impossível colocar em melhor sítio Mrs. Kear, que teima em permanecer no tombadilho, embora corra perigo de ser arrastada pelas vagas se o vento refrescar. Por isso ficou ao pé dela Miss Herbey, que protestou não a abandonar.

O primeiro cuidado de Roberto Kurtis, mal o navio cessou de afundar-se, foi desenvergar todo o pano e deitar ao convés as vergas e mastaréus de joanete, para não arriscar a estabilidade do navio. Confia em que, graças a estas precauções, o Chancellor não fará da quilha portaló. Não poderá, porém, ir de repente a pique? Vou ter com Roberto Kurtis e faço-lhe essa pergunta.

- Não afirmo coisa nenhuma - responde ele com metal de voz que indica o máximo sangue-frio -, porque tudo depende do estado do mar. O certo é que o navio está equilibrado nas condições actuais, mas, infelizmente, podem estas mudar de um momento para outro.

- E o Chancellor pode navegar com dois pés de água sobre o convés?

- Não, Sr. Kazallon, mas pode cair para a terra pela acção da corrente e do vento e, continuando assim alguns dias, pode chegar a qualquer ponto da costa. Além disso, temos como derradeiro recurso a jangada, que em breves horas estará pronta. Ao amanhecer poderemos embarcar nela.

- Então ainda não desespera? - pergunto, admirado.

- Nunca se deve desesperar, Sr. Kazallon, nem ainda nas circunstâncias mais perigosas. Sobre cem probabilidades temos noventa e nove contra uma a favor. Mas esta existe. Se a memória não me engana, o Chancellor, meio submergido, está exactamente nas mesmas condições em que se encontrou a galera Juno, no ano de 1795. Aquele navio permaneceu assim vinte dias suspenso entre duas águas. Os passageiros e tripulantes refugiaram-se nas gáveas, até que avistaram terra e salvaram-se os que resistiram ao cansaço e à fome. É facto tão conhecido nos anais marítimos que não pode deixar de acudir-me à memória! Não há razão para que os náufragos do Chancellor sejam menos felizes que os da Juno.

Não me faltaria que responder a Roberto Kurtis, porém desta conversação resulta que o capitão ainda confia.

Entretanto, como as condições de equilíbrio podem mudar a cada momento, convém abandonar o Chancellor quanto antes.

Resolve-se, por isso, que no dia seguinte, mal o carpinteiro acabar a jangada, embarcaremos logo.

Imagine-se, pois, qual não seria a violência do desespero da tripulação quando, pela meia-noite, Daoulas reconheceu que desaparecera o madeiramento da jangada. O deslocamento vertical da galera partiu as amarras, embora fossem valentes, há certamente mais de uma hora que a jangada se foi à tona de água.

Os marinheiros, logo que tiveram notícia desta nova desgraça, deram gritos de desesperação.

- Ao mar a mastreação toda! Ao mar! - bradavam aqueles infelizes, com a cabeça perdida.

E queriam cortar o aparelho para virem abaixo os mastaréus de gávea e com eles se construir outra jangada.

Interveio, porém, Roberto Kurtis.

- Ânimo, rapazes! - grita ele. - Não cortem nem um fio sem minha ordem! O Chancellor está equilibrado! O Chancellor não vai ainda a pique!

Ouvindo a voz firme e serena do capitão, a tripulação cobra ânimo e, a despeito da má vontade de alguns marinheiros, todos vão para os postos que lhes são indicados.

Ao amanhecer, Roberto Kurtis sobe aos vaus de joanete para examinar o horizonte. Inútil busca! A jangada já vai fora de vista! Convirá guarnecer o bote e tentar pesquisas talvez demoradas e perigosas? É impossível, porque o mar está grosso de mais para que possa afrontá-lo uma frágil embarcação. Não há remédio senão construir outra jangada, e logo se põe mãos à obra.

Desde que o mar embraveceu, consentiu enfim Mrs. Kear em sair da grinalda da popa e conseguiram transportá-la para a gávea grande, onde se deitou em estado de completa prostração.

Mr. Kear está com Silas Huntly na gávea do traquete. Ao pé de Mrs. Kear e de Miss Herbey estão os Letourneur, todos muito apertados naquela pequena superfície, que mede apenas doze pés no maior diâmetro. Estão passados cabos de um a outro ovém, que permitem aos náufragos resistir ao balanço. Além disso, Roberto Kurtis mandou estender por cima da gávea uma vela, que abriga as duas pobres senhoras.

Foram içados até às gáveas e ligados aos estais alguns barris que flutuavam entre os mastros do navio depois da sua submersão parcial. São provisões de conservas e bolacha, bem como caixas de aguada, que constituem o nosso único recurso.

 

5 de Dezembro. - O dia está quente. No paralelo de 16 graus, o mês de Dezembro já não é de Outono, mas verdadeiramente de Estio. Teremos de resignar-nos a sofrer calores excessivos, se as brisas não moderarem o ardor do sol.

O mar conserva-se muito picado. O costado do navio, submerso na máxima parte, é assaltado pelas vagas como se fora escolho firme. A espuma ressalta até às gáveas, de modo que os salpicos nos atravessam o fato como chuva miúda.

Eis o que resta do Chancellor, isto é, o que se acha fora da água: os três mastros e os seus mastaréus, o gurupés, no qual está suspenso o bote, a fim de não ser despedaçado pelo mar, o tombadilho e o castelo, ligados apenas pelo contorno das bordas. O convés acha-se completamente submerso.

É difícil a comunicação entre as gáveas, só os marinheiros, trepando pelos estais, podem ir de uma à outra. Abaixo disto, entre os mastros, desde a grinalda até ao castelo, quebra o mar como num rochedo, e vai a pouco e pouco despedaçando as amuradas do navio, cujos destroços são cuidadosamente aproveitados. Para os passageiros refugiados na gávea é vista aterradora a do oceano, que lhe brame debaixo dos pés. Os mastros estremecem a cada pancada do mar e receamos que venham a quebrar.

Seguramente o melhor é não olhar, não reflectir, porque o abismo fascina e sentimos impulsos de nos precipitar nele!

Entretanto, a marinhagem trabalha com actividade na construção de outra jangada. Emprega nesta obra parte dos mastaréus da gávea, os do joanete e as vergas. Roberto Kurtis dirige o trabalho com acerto. O Chancellor não dá indícios de se submergir mais, é provável que, conforme o capitão afirmou, permaneça equilibrado entre duas águas. Por isso, Roberto Kurtis se esforça para que a jangada atinja a máxima solidez possível. A viagem é longa, porque a costa da Guiana, que nos fica mais próxima, ainda demora a bastantes centenas de milhas. É preferível ficarmos mais um dia na gávea, contanto que mereça confiança a máquina flutuante destinada a salvar-nos.

A este respeito não há divergências.

Os marinheiros andam mais animados e agora trabalham com subordinação e vontade.

Apenas há um velho marinheiro, de cabelos e barba encanecidos no mar, cuja opinião não se conforma com a ideia de abandonarmos o Chancellor. É um irlandês, por nome O'Ready.

Veio ter comigo, quando eu estava ainda no tombadilho, e disse-me, mascando um pedaço de tabaco com indiferença completa:

- Olhe, Sr. Kazallon, todos os camaradas querem que deixemos o navio. Cá eu, não. Já naufraguei nove vezes, quatro ao largo, na costa cinco. A falar a verdade, a minha verdadeira profissão é a de náufrago. Nisso leio de cadeira. Pois quer que lhe diga? Raios me partam se não tenho visto sempre morrerem desgraçadamente os espertos que fogem nas embarcações ou em jangadas! Enquanto o navio flutua, o melhor é deixar-se estar nele. Fique sabendo!

E depois de me dar este conselho com intimativa e, ao que parecia, por descargo de consciência, o velho irlandês nunca mais disse palavra.

Pelas três horas da tarde vejo Mr. Kear e o ex-capitão Silas Huntly em conversação muito animada na gávea do traquete. O negociante de petróleo parece apertar com o seu interlocutor, o qual opõe objecções a alguma proposta sua. Por muitas vezes examina Silas Huntly atentamente o aspecto do céu e do mar e abana a cabeça. Por fim, depois de uma hora de conferência animada, desce pelos estais de traquete para o castelo, mete-se num grupo de marinheiros e perco-o de vista.

Pequena importância dou a este facto e subo de novo para a gávea grande, onde os Letourneur, Miss Herbey, Falsten e eu conversamos durante algumas horas. O sol está quente e, sem a vela que nos abriga, não poderíamos permanecer ali.

Às cinco horas jantamos em comum um pedaço de bolacha, carne seca e meio copo de água a cada pessoa. Mrs. Kear, abatidíssima pela febre, não come. Miss Herbey apenas consegue proporcionar algum alívio à enferma humedecendo-lhe de tempos a tempos os lábios ardentes. A pobre mulher padece deveras, penso que não resistirá por muito tempo a tão árduas provações.

O marido nem uma só vez pergunta por ela. Contudo, pelas seis horas menos um quarto, entro em dúvida se algum sentimento de compaixão não faz ainda palpitar aquele coração de egoísta. Com efeito, Mr. Kear chama alguns marinheiros do castelo e pede-lhes que o ajudem a descer da gávea do traquete. Quererá vir ter com a mulher à gávea grande? Ao princípio, os marinheiros não respondem à voz de Mr. Kear.

Este insiste com vivacidade e até promete pagar bem aos que lhe prestarem o serviço solicitado.

Imediatamente, dois marinheiros, Burke e Sandon, saltam sobre a borda, alcançam a enxárcia de traquete e trepam à gávea.

Chegados ao pé de Mr. Kear, discutem por muito tempo com ele. É claro que pretendem muito e que Mr. Kear só quer dar pouco. Chego a crer que os marinheiros o deixam na gávea.

Porém, não, enfim, concordaram. Mr. Kear tira do cinto um maço de notas e entrega-o a um dos marinheiros. Este conta com atenção e julgo não serem menos de cem dólares.

Trata-se agora de descer Mr. Kear até ao castelo pelos estais de traquete. Burke e Sandon atam-lhe um cabo em volta da cintura, depois deixam-no escorregar como um fardo, não sem lhe darem uns poucos de puxões que provocam ditérios dos outros marinheiros.

Enganei-me. Mr. Kear não projectava vir reunir-se com a mulher na gávea grande. Fica no castelo junto de Silas Huntly que o esperava, a escuridão da noite oculta-os depois à minha vista.

Anoitece, cai o vento, mas o mar conserva-se cavado. A Lua, que nasceu às quatro horas da tarde, só raras vezes aparece por entre as nuvens. Algumas destas, dispostas em compridos estratos, coram-se de vermelho, que prenuncia vento forte para amanhã. Deus queira que a brisa venha de nordeste e nos empurre para terra, qualquer mudança de vento nos seria funesta na jangada que só pode andar à popa!

Pelas oito horas sobe Roberto Kurtis para o pé de mim.

Imagino que o inquieta o estado do céu, tenta adivinhar o tempo que amanhã teremos. Permanece um quarto de hora observando o horizonte, depois aperta-me a mão em silêncio, desce e vai para o seu posto na grinalda.

Esforço-me por dormir no apertado espaço de que posso dispor, mas não o consigo. Acometem-me pressentimentos funestos. Assusta-me a tranquilidade presente da atmosfera, que me parece calma de mais. Apenas de tempos a tempos perpassa um fraco sopro na enxárcia e faz vibrar os fios metálicos. Além disso, o mar pressente o quer que seja, porque está de vaga grossa, produzida pela acção indirecta de alguma tempestade longínqua.

Pelas onze horas a Lua brilha com esplendor por entre duas nuvens, e o mar esplende como se fora iluminado por algum clarão submarino.

Levanto-me e olho em volta. Coisa singular! Parece-me avistar, durante breves instantes, um ponto negro que sobe e desce na intensa brancura das vagas. Não pode ser rochedo, porque acompanha as ondulações do mar, talvez me engane, será ilusão óptica. Depois as nuvens velam outra vez a Lua, a noite torna-se escuríssima e deito-me junto da enxárcia de bombordo.

 

6 de Dezembro. - Logrei dormir algumas horas. Às quatro da manhã acorda-me o assobiar do vento na enxárcia, oiço a voz de Roberto Kurtis dominando o ruído das rajadas, cujo impulso arqueia os mastros.

Levanto-me, seguro-me com força à enxárcia e trato de ver o que sucede abaixo e em torno de mim.

O mar ruge nas trevas, e por entre os mastros, a que o balanço imprime amplas oscilações, passam grandes lençóis de espuma mais lívidos que brancos. À popa destacam-se duas sombras negras na cor esbranquiçada do mar. São o capitão Kurtis e o mestre. As suas vozes, mal distintas entre o bramir do mar e os assobios do vento, chegam-me aos ouvidos quase como gemidos. Que sucede?

Neste momento passa ao pé de mim um marinheiro, que subiu à gávea para amarrar um cabo.

- Que há de novo? - pergunto eu.

- Mudou o vento...

O marinheiro acrescenta palavras que não posso ouvir claramente. Pareceu-me ouvir-lhe dizer: "quadrante oposto".

Quadrante oposto! Mas então rondou de nordeste para sudoeste e empurra-nos para o largo! Ai! que não me enganaram os meus pressentimentos!

Amanhece a pouco e pouco. O vento não foi completamente para o quadrante oposto, porém, caso não menos funesto para nós, sopra de noroeste e afasta-nos da terra. Além disso, temos agora cinco pés de água sobre o convés e a borda desapareceu completamente. O navio mergulhou mais de noite e já o castelo e o tombadilho estão ao nível do mar, que os varre sem descanso. A sotavento trabalham Roberto Kurtis e a tripulação no acabamento da jangada, mas pouco adiantam por causa da braveza do mar, têm de tomar muita cautela para que o madeiramento não se desfaça antes de completamente consolidado.

Neste momento chegam os Letourneur ao pé de mim, e o pai, abraçando André, consegue ampará-lo contra as oscilações do balanço.

- O mastro parte! - exclama Letourneur, ouvindo os estalos da apertada plataforma onde estamos.

Miss Herbey ergueu-se ao ouvir estas palavras e, apontando para Mrs. Kear, deitada sem movimento, pergunta:

- Que havemos de fazer, meus senhores?

- Deixar-nos ficar onde estamos - respondo eu.

- Miss Herbey - acrescenta André -, este ponto de refúgio ainda é o melhor de todos. Não receie...

- Por mim nada temo - responde com voz serena a corajosa rapariga -, receio só por aqueles que têm motivos para estimar a vida!

Às oito horas e um quarto grita o mestre à gente da tripulação:

- Ó da proa!

- Que é, mestre? - responde um marinheiro, O'Ready, creio eu.

- Tem aí o bote?

- Não, mestre.

- Então foi-se à tona da água.

- Efectivamente. o bote já não está suspenso do gurupés. Quase ao mesmo tempo verifica-se que desapareceram Mr. Kear, Silas Huntly e três homens da tripulação, um escocês e dois ingleses. Agora adivinho sobre que versava na véspera a conversação entre Mr. Kear e Silas Huntly. Por temor de que o Chancellor fosse a pique antes de concluída a jangada, tramaram fugir e a peso de dinheiro decidiram os três marinheiros a apoderar-se do bote. Já sei o que era o ponto negro por mim entrevisto durante a noite. O infame abandonou sua mulher! O indigno capitão deixou o seu navio! E roubaram-nos o bote, única embarcação de que podíamos dispor.

- Cinco salvos! - diz o mestre.

- Cinco perdidos! - corrige o velho irlandês.

O estado do mar parece dar razão ao teimoso O'Ready.

Já somos só vinte e dois a bordo. Quanto diminuirá ainda este número?

A tripulação, ao saber da cobarde deserção e do roubo do bote, invectiva contra os fugitivos, que seriam asperamente castigados da sua traição se o acaso os reconduzisse a bordo!

Peço que não revelem a Mrs. Kear a fuga do marido. A infeliz mulher sofre de uma febre contínua que não podemos combater, porque a rápida submersão do navio não consentiu que salvássemos a caixa dos medicamentos. E, acaso a tivéssemos, de que serviriam na situação em que vemos Mrs. Kear?

 

Continuação de 6 de Dezembro. - É evidente que o Chancellor já não se conserva equilibrado entre duas águas.

Naturalmente o costado vai-se descosendo e por isso o navio afunda-se a pouco e pouco.

Felizmente a jangada ficará pronta de tarde e logo poderemos embarcar nela, se Roberto Kurtis não preferir fazê-lo no dia seguinte ao amanhecer. A construção ficou bastante sólida. Todas as peças de madeira foram atadas com bons cabos, e, como se cruzam umas sobre outras, a face superior está dois pés acima do nível do mar.

Para o sobrado aproveitaram-se as tábuas da borda arrancadas pelas vagas. De tarde começa o carregamento dos víveres, velas, instrumentos e ferramentas que conseguimos salvar. Não há tempo a perder, porquanto agora já a gávea grande levanta apenas dez pés acima da superfície do mar, e do gurupés resta só a extremidade do pau da bujarrona, que sai obliquamente do mar.

Naturalmente o dia de amanhã será o último para o Chancellor.

Em que estado moral estamos todos? Examino o que sinto em mim e parece-me ser antes indiferença inconsciente que resignação. Letourneur vive todo pelo filho, o qual só pensa no pai. André mostra-se digno, valoroso e cristamente resignado, só posso compará-lo com Miss Herbey. Falsten é sempre o mesmo, e, valha-me Deus, ainda continua fazendo cálculos no bloco! Mrs. Kear está agonizante, a despeito dos cuidados de Miss Herbey e dos meus.

Pelo que diz respeito aos marinheiros, dois ou três mostram-se serenos, porém os outros têm quase a cabeça perdida. Alguns, inspirados pela índole grosseira, parecem resolvidos a praticar brutais desvarios. Será difícil manter submissa na jangada aquela gente, sobre a qual influem Owen e Jynxtrop.

Walter vai muito abatido, apesar do seu ânimo, não pode continuar a fazer serviço. Roberto Kurtis e o mestre, enérgicos, inquebrantáveis, são verdadeiros temperamentos e corpos de ferro.

Pelas cinco horas da tarde deixa de sofrer uma das nossas companheiras de infortúnio. Mrs. Kear morreu depois de uma agonia dolorosa, talvez sem conhecimento do seu estado. Deu alguns suspiros e ficou-se. Miss Herbey, até ao derradeiro suspiro, tratou-a com esmero e carinho, que nos comoveram profundamente!

De noite não houve novidade. No dia seguinte, de madrugada, tomei o pulso à defunta, estava fria e já tinha os membros inteiriçados. Não podemos demorar mais o cadáver na gávea.

Miss Herbey e eu embrulhámo-la nos vestidos, rezámos algumas orações pela alma da infeliz criatura e arremessámos às vagas a primeira vítima de tantos sofrimentos.

No mesmo momento um marinheiro que está na enxárcia diz estas palavras espantosas:

- Lá vai um cadáver cuja perda lamentaremos.

Volto-me. Foi Owen quem falou assim.

Depois ocorre-me que talvez um dia nos faltem víveres!

 

7 de Dezembro. - O navio submerge-se cada vez mais, o mar já chega às arreigadas do velacho. O tombadilho e o castelo estão completamente mergulhados, o pau da bujarrona desapareceu, do mar já não emergem senão os mastros-reais.

Porém, a jangada acha-se concluída e embarcamos a bordo dela tudo quanto conseguimos salvar. À proa arranjou-se uma carlinga para um mastro, amparada por ovéns fixos nas bordas

da plataforma. Envergando a vela de sobrejoanete grande poderemos talvez navegar até à costa.

Quem sabe se não conseguirá aquele fraco agregado de madeiros, menos fácil de submergir que um navio, aquilo que o Chancellor não logrou? A esperança existe arreigada tão funda no coração humano que não desanimo ainda!

São sete horas da manhã e vamos para embarcar quando, de repente, a galera afunda tão rapidamente que o carpinteiro e a gente já embarcada na jangada se vêem obrigados a cortar as amarras para não serem engolidos no redemoinho.

Sentimos então pungente ansiedade, porque exactamente quando o navio é tragado pelo abismo, nos foge à tona da água a única tábua de salvação.

Dois marinheiros e um grumete perdem a cabeça e atiram-se ao mar, mas em vão lutam contra a vaga. Logo se torna patente que nem podem atingir a jangada, nem voltar ao navio afrontando vento e mar. Roberto Kurtis ata um cabo à cintura e atira-se ao mar para socorrê-los. Dedicação perdida! Antes de chegar ao pé deles, os três infelizes, que em vão lutam, desaparecem estendendo-nos os braços.

Retiramos Roberto Kurtis contuso pelos choques da ressaca levantada de encontro ao arco da gávea.

Entretanto Daoulas e os seus camaradas, remando com tábuas, tentam alcançar o navio, mas só depois de uma hora de trabalho, hora que nos parece um século, hora durante a qual o mar sobe até às gáveas, conseguem vencer a distância de duas amarras que nos separa. O mestre atira um cabo e consegue prender a jangada ao calcês do mastro grande.

Não há tempo a perder, porquanto já redemoinha um turbilhão violento por cima do casco submergido e sobem ao lume da água inúmeras e enormes bolhas de ar.

- Toca a embarcar! Toca a embarcar! - brada Roberto Kurtis.

Atiramo-nos para a jangada. André Letourneur, depois de cuidar da instalação de Miss Herbey, chega felizmente à plataforma e o pai segue-o logo. Pouco depois estamos todos embarcados, todos, excepto o capitão Kurtis e o velho marinheiro O'Ready.

Roberto Kurtis, em pé na gávea grande, só quer deixar o navio quando ele se sumir no abismo. É o seu dever e o seu direito. Imagine-se qual não é a sua mágoa ao deixar para sempre o Chancellor que comanda ainda, a que tem profundo afecto.

O irlandês ainda está na gávea do traquete.

- Embarca, velho! - brada-lhe o capitão.

- Então o navio vai a pique? - pergunta o teimoso, com o máximo sangue-frio.

- Vai, sim.

- Não há remédio - replica o irlandês, quando a água lhe chega à cintura.

E, abanando a cabeça, salta para a jangada.

Roberto Kurtis ainda se conserva um momento no seu posto, olha em volta de si e, finalmente, passa para a jangada.

Era tempo. Corta-se a amarra e a jangada afasta-se vagarosa.

Olhamos todos para o sítio onde a galera vai a pique.

Desaparece primeiro o mastro do traquete, depois o topo do mastro grande. Nada resta do bonito navio que se chamou Chancellor.

 

Continuação de 7 de Dezembro. - Vogamos noutra máquina flutuante. Não é possível que vá a pique, porque hão-de sobrenadar, suceda o que suceder, as peças de que é formada.

Resistirá, porém, no conjunto, aos embates do mar? Não se despedeçarão os cabos que ligam as diversas peças? Não perecerão todos os náufragos acumulados sobre ela?

De vinte e oito pessoas embarcadas no Chancellor ao partir de Charleston, já contamos menos dez.

Somos ainda dezoito, dezoito naquela jangada que tem a forma de quadrilátero irregular com quarenta pés de comprimento e vinte de largura.

Eis os nomes dos que sobrevivem: os Letourneur, o engenheiro Falsten, Miss Herbey e eu, passageiros, o capitão Roberto Kurtis, o imediato Walter, o mestre, o despenseiro Hobbart, o cozinheiro preto Jynxtrop, o carpinteiro Daoulas, os sete marinheiros Austin, Owen, Wilson, O'Ready, Burke, Sandon e Flaypol.

Já a Providência nos impôs bastantes provações nos setenta e dois dias decorridos desde que largámos da costa americana, cessará enfim a sua mão poderosa de pesar sobre nós? Não ousam esperá-lo os mais optimistas.

Deixemos, porém, o futuro e, cuidando só do presente, vamos registando todas as peripécias do drama à proporção que aparecem.

Já mencionámos os passageiros da jangada. Eis agora os recursos de que dispõem.

Roberto Kurtis só conseguiu salvar os restos das provisões tiradas da despensa, cuja máxima parte se perdeu no acto de submergir-se o convés do Chancellor. Mal chegam para dezoito pessoas, sendo provável que decorram ainda muitos dias antes que avistemos algum navio ou a terra. Possuímos apenas um barril de carne seca, uma barrica de bolacha, um pipote de aguardente e dois barris de aguada. Não há remédio senão pormo-nos a ração desde já.

Fato para mudar não temos nenhum. Hão-de servir-nos de colchão e abrigo apenas algumas velas. Os instrumentos e utensílios que nos restam são: as ferramentas de Daoulas, o sextante, uma agulha, um mapa, as navalhas, uma chaleira de metal e um copo de lata que O'Ready não quis largar nunca.

Todas as caixas arrumadas no convés para serem postas a bordo da primeira jangada se perderam no momento da submersão parcial da galera. Desde esse momento nunca mais foi possível descer ao porão.

Eis a situação. É perigosa mas não desesperada.

Infelizmente, temos sobejos motivos para recear que a muitos desfaleça a energia moral ao mesmo tempo que a força física, além disso, não faltam entre nós homens cujos maus instintos será difícil dominar!

 

Continuação de 7 de Dezembro. - Neste primeiro dia não sucedeu coisa notável.

Pelas oito horas da manhã o capitão Kurtis reuniu toda a gente, passageiros e tripulantes.

- Meus amigos - disse ele -, tomem nota disto. Comando nesta jangada como comandava a bordo do Chancellor, e espero que todos, sem excepção, me prestem obediência. Pensemos só na salvação comum, vivamos unidos e olhe Deus por nós!

Estas palavras encontraram bom acolhimento.

A brisa ligeira que neste momento sopra, e cuja direcção o capitão determina por meio da agulha, refresca, rondando para norte. É uma circunstância feliz que devemos aproveitar sem demora para nos aproximarmos da costa. O carpinteiro Daoulas arvora o mastro na carlinga preparada à proa e aguenta-o com duas escoras. Enquanto trabalha, envergam os marinheiros o sobrejoanete grande na verga para isso destinada.

Às nove horas e meia está arvorado o mastro e tesados os ovéns que o amparam. Iça-se a vela, amura-se, caça-se, e a jangada, impelida pelo vento à popa, desloca-se sensivelmente pela acção da brisa, que continua refrescando.

Terminada esta faina, cuida o carpinteiro de arranjar leme que permita o governo da jangada. Auxiliam-no com bons conselhos o capitão Roberto Kurtis e o engenheiro Falsten, de modo que em duas horas de trabalho se arma à popa uma espécie de leme semelhante ao que usam as embarcações malaias.

Entretanto faz o capitão as observações necessárias para achar a longitude, e ao meio-dia toma uma altura do Sol bastante exacta.

O ponto, obtido com suficiente aproximação, dá: Latitude, 15 graus e 7 norte Longitude, 49 graus e 35 oeste de Greenwich.

Marcado o ponto na carta, reconhecemos que nos achamos a seiscentas e cinquenta milhas ao nordeste da costa de Paramaribo, isto é, da parte mais próxima do continente americano, que, como disse já, é o litoral da Guiana holandesa.

Ora, tomando a média de todas as probabilidades, não podemos esperar, ainda favorecidos pelo sopro contínuo dos ventos gerais, andar mais de dez a doze milhas por dia num aparelho flutuante tão imperfeito como uma jangada, que só pode correr com vento à popa. Temos, pois, diante de nós dois meses de navegação nas hipóteses mais favoráveis, salvo o caso pouco provável de encontrarmos algum navio. O Atlântico é menos frequentado nestas paragens que mais ao norte ou mais ao sul.

Infelizmente, achamo-nos no intervalo entre as rotas seguidas pelos paquetes franceses e ingleses para as Antilhas e para o Brasil. O melhor é não contar com o encontro fortuito de algum navio. Além disso, se sobrevierem calmarias, se o vento, mudando, nos levar para leste, teremos de navegar não direi dois, mas quatro ou seis meses, e decerto nos faltarão víveres antes de findar o terceiro mês!

Manda, pois, a prudência que desde já nos limitemos ao absolutamente indispensável. O capitão Kurtis pede-nos conselho a este respeito, e formulamos com severidade o programa da alimentação a bordo. Para todos, sem distinção nenhuma, são as rações calculadas de modo que fiquem a fome e a sede meio saciadas. A manobra da jangada pequeno dispêndio exige de força física e, portanto, deve bastar alimentação parca. A respeito da aguardente, cujo barril contém só cinco galões será distribuída com a máxima parcimónia e ninguém lhe tocará sem licença expressa do capitão.

Fica, pois, regulado deste modo o regime de bordo: cinco onças de carne e cinco onças de bolacha por dia e cabeça.

É pouco, mas não há meio de dar maior ração, porque dezoito bocas, ainda consumindo tão pouco, gastarão por dia pouco mais de cinco libras de cada substância, isto é, em três meses quinhentas libras. Ora não temos mais de quinhentas libras de carne e bolacha. Portanto é força restringirmo-nos. A quantidade de água calcula-se ser de cento e trinta galões, e, por isso, se resolve que o consumo seja de um quartilho, de modo que também chegue para três meses.

A distribuição dos víveres será feita pelo mestre, todas as manhãs, às dez horas. Cada pessoa receberá por uma só vez a ração de bolacha e carne, podendo comê-la quando e como quiser. Como não temos vasilhas para receber água, pois só há uma chaleira e o copo do irlandês, será distribuída duas vezes por dia, às dez da manhã e seis da tarde, devendo cada um beber logo o seu quinhão.

Não esquecer que existem duas probabilidades de acrescentarmos a provisão de mantimentos: a chuva que dê água, a pesca que dê peixe. Por isso preparamos duas barricas para receberem água da chuva, e os marinheiros cuidam de arranjar linhas de pesca para podermos levar sempre duas na água.

Eis as disposições tomadas. São aprovadas e rigorosamente mantidas. Só pela observância de preceitos severos conseguiremos evitar a fome. Bastos exemplos nos ensinam a providenciar, e, se nos virmos a braços com duras privações, não será culpa nossa mas da sorte, ainda não cansada de ferir-nos!

 

De 8 a 17 de Dezembro. - Ao anoitecer deitamo-nos debaixo de umas poucas de velas, e por mim, cansado de muitas horas que passei na mastreação da galera, consegui dormir algum tempo. Como a jangada, por ser leve, sobe fàcilmente com a vaga e esta não rebenta, não nos chega a água.

Desgraçadamente, se o mar não se mostra picado, é porque o vento amaina. Pela madrugada vejo-me obrigado a lançar no meu diário esta nota: "calmaria".

Até ao romper do Sol nada tive que apontar. Os Letourneur também dormiram parte da noite e mais de uma vez nos apertamos as mãos. Miss Herbey igualmente descansou, de modo que no seu rosto, menos abatido, transparece a serenidade habitual.

Estamos ao sul do paralelo de onze graus. De dia faz muita calma e o Sol brilha com áspero esplendor. Parece a atmosfera impregnada de vapores ardentes. Como a brisa sopra por lufadas, a vela pende ao longo do mastro durante os recalmões, que são bastante longos. Por certos indícios que só os homens do mar conhecem, Roberto Kurtis e o mestre estão convencidos de que somos arrastados para oeste por uma corrente de duas a três milhas por hora. Esta circunstância favorável pode abreviar muito a viagem.

Queira Deus que o capitão e o mestre não se iludam, porque já nos primeiros dias o calor tropical faz que a ração de água não baste para matar a sede! Certo é, porém, que depois de abandonarmos o Chancellor, ou antes as suas gáveas, para embarcarmos na jangada, melhorou muito a nossa situação, porque a galera podia de um momento para outro ir a pique e, relativamente, é sólida e estável a plataforma onde nos refugiamos. Sim, repito, a situação é menos perigosa, e todos nos sentimos melhor. Quase que gozamos certas comodidades e até podemos andar. De dia reunimo-nos, conversamos, discutimos, contemplamos o mar. De noite dormimos, abrigados pelas velas. Tudo nos interessa: as observações do horizonte e a vigilância sobre as linhas de pesca.

- Sr. Kazallon - diz-me André Letourneur alguns dias depois de vivermos na jangada -, parece que voltamos aos dias tranquilos que desfrutámos no Ham-Rock.

- É verdade, meu caro André.

- Digo ainda: a jangada vale mais que o recife, porque caminha!

- Enquanto o vento for de feição, André, decerto a jangada é preferível. Porém, se mudar...

- Não pensemos em coisas tristes, Sr. Kazallon!

Ânimo e confiança em Deus.

Certamente! Confiança a ninguém falta! Sim! Todos cuidam que findaram os dias de provação e de perigo, para não voltarem mais! Tornaram-se as circunstâncias mais favoráveis, todos nos sentimos tranquilos e esperançados!

Não sei o que vai pela alma de Roberto Kurtis, nem posso dizer se partilha as nossas esperanças, porque se mantém quase sempre arredado de nós. Pesa sobre ele enorme responsabilidade! Como chefe, cumpre-lhe salvar não só a sua vida, mas também as de todos nós! Sei que assim entende ele seus deveres. Não me admira vê-lo absorto em reflexões, de que não nos atrevemos a distraí-lo.

Durante estas longas horas quase todos os marinheiros dormem à proa da jangada. Por ordem do capitão deixaram a popa aos passageiros, e conseguimos armar aqui uma barraca que nos dá alguma sombra. Em suma, o nosso estado de saúde é bom. Unicamente o imediato Walter não consegue cobrar forças. Não lhe aproveitam os cuidados que lhe prestamos e cada dia vai definhando mais.

Nunca apreciei tão bem André Letourneur como na actual conjuntura. Aquele excelente rapaz é a alma desta pequena colónia. Distingue-se pela originalidade do espírito, pela singularidade do modo de ver, pela novidade inesperada como considera as coisas e os factos. A sua conversação distrai sempre e muitas vezes instrui. Enquanto fala anima-se-lhe o rosto, habitualmente doentio. O pai parece que lhe bebe as palavras e, às vezes, tomando-lhe a mão, conservo-a horas inteiras apertada nas minhas.

Miss Herbey também conversa a miúdo connosco, apesar do constante recato da sua vida, todos nos esforçamos por fazer-lhe esquecer, com mil cuidados e carinhos, que perdeu os que deveriam ser seus naturais protectores. A pobre menina encontrou em Letourneur um amigo dedicado, como segundo pai, e fala-lhe com a liberdade que a idade dele consente e justifica. Instada por ele refere-lhe a história da sua vida, daquela vida de tristeza e abnegação que a sorte destina às órfãs desvalidas.

Havia dois anos que entrara para casa de Mrs. Kear, e agora ei-la sem meios no presente, sem haveres no futuro, sempre animosa porque não receia arrostar com as mais duras provações. Miss Herbey, pelo seu génio, pela sua energia moral, impõe respeito: nem um dos homens grosseiros de bordo ousou ainda afrontá-la por palavras ou por gestos.

Nos dias 12, 13 e 14 de Dezembro nenhuma mudança sobrevém na situação, o vento continua soprando do oriente em rajadas desiguais. Nenhum incidente náutico. Não é preciso manobra nenhuma. Não há que tocar no leme ou, antes, esparrela. A máquina corre com vento à ponta e não é bastante veleira para andar às guinadas a um e a outro bordo. À proa vão sempre alerta alguns marinheiros de quarto com ordem de vigiarem atentamente.

Decorreram sete dias desde que abandonámos o Chancellor, e reconheço que nos habituamos ao regime imposto pelas circunstâncias, ao menos relativamente a víveres. Verdade é que nenhum trabalho físico põe à prova as nossas forças.

Gastamo-nos pouco, expressão vulgar que traduz a minha ideia, e em tal caso pouco basta para uma pessoa se alimentar. Apenas sofremos por ser escassa a ração de água com tanto calor, neste ponto sentimos verdadeira privação.

No dia 15 apareceu em torno da jangada um cardume de peixes da espécie dos sargos. Embora os aparelhos de pesca constem apenas de cabos compridos munidos de pregos recurvados a que servem de isca bocadinhos de carne seca, apanhámos muitos dos tais sargos, tão vorazes eles são.

É na verdade pescaria milagrosa, há festa a bordo. Assámos parte do peixe, e cozemos outra parte em água salgada, servindo-nos de uma fogueira acesa à proa. Que bródio! Até ganhámos a vantagem de poupar os mantimentos normais. Tanto abundam os sargos que em dois dias apanhámos cerca de duzentas libras deles. Se agora chovesse, tudo iria pelo melhor.

Por desgraça, o cardume não se conservou muito tempo nas nossas águas. No dia 17 apareceram ao lume de água alguns formidáveis tubarões, pertencentes à espécie monstruosa dos que chegam a atingir quatro a cinco metros de comprimento.

Têm as barbatanas e o dorso negro com manchas e riscos transversais brancos. A presença daqueles formidáveis esqualos é sempre assustadora, porque, em consequência da fraca altura da jangada, estamos quase ao nível deles e muitas vezes dão com a cauda pancadas formidáveis nos madeiros. Os marinheiros conseguiram afastá-los à força de pancadas com os croques, admirar-me-ia bastante que não nos seguissem teimosamente como presa predestinada à sua voracidade. Antipatizo com estes monstros que têm pressentimentos.

 

De 18 a 20 de Dezembro. - Hoje mudou o tempo e refrescou a brisa. Ainda bem que é de feição. Limitamo-nos a consolidar o mastro com escoras para que a tensão da vela não o quebre.

A jangada caminha com velocidade maior e deixa comprida esteira após si.

De tarde começa o céu a cobrir-se de nuvens e abranda o calor. O mar, mais picado, balouça bastante a jangada, que já três ou quatro ondas galgaram. Felizmente, o carpinteiro, por meio de três ou quatro tábuas, arranja uma borda de dois pés de altura, que nos protege melhor contra a vaga.

Atámos fortemente por meio de cabos as barricas de mantimentos e os barris da aguada. Se o mar no-las arrebatasse, ficaríamos reduzidos a terrível miséria. Não se pode pensar sem tremer em tal eventualidade! No dia 18 apanharam os marinheiros algumas das plantas marinhas chamadas sargaços, quase semelhantes às que encontrámos entre as Bermudas e o Ham-Rock. São laminárias sacarinas, assim denominadas por conterem um princípio açucarado. Aconselho aos meus companheiros que lhes chupem os talos. Assim o fazem, e conseguem refrescar a garganta e os lábios.

Durante este dia nada de novo. Noto apenas que alguns marinheiros e principalmente Owen, Burke, Flaypol, Wilson e o preto Jynxtrop celebram frequentes conciliábulos para fins que ignoro. Observo também que se calam ao aproximar-se qualquer oficial ou passageiro. Roberto Kurtis já notou o mesmo.

Aquelas conversações secretas trazem-no cuidadoso e por isso vigia cautelosamente os marinheiros de quem desconfia. O negro Jynxtrop e Owen são evidentemente dois tratantes que inspiram receio porque podem aliciar outros.

No dia 19 faz excessivo calor. No céu nem uma nuvem. A brisa mal pode inchar a vela e a jangada permanece sem seguimento.

Alguns marinheiros mergulham no mar e este banho alivia-os bastante, diminuindo a sede que os queima. É, porém, perigoso banhar-se no mar infestado por tubarões e nenhum de nós segue o exemplo daqueles imprudentes. Quem sabe se mais tarde não nos veremos obrigados a imitá-los? A imobilidade da jangada, as amplas ondulações do oceano sem uma ruga, a vela caída ao longo do mastro, pressagiam talvez grande demora nesta nossa precária situação.

O estado de saúde do imediato Walter assusta-nos cada vez mais. Arde em febre lenta, que se manifesta por acessos irregulares. Talvez o sulfato de quinino debelasse esta febre.

Mas, repito, a submersão do tombadilho do Chancellor foi tão rápida que não houve tempo de salvar a farmácia de bordo. Além disso, o pobre rapaz certamente está tísico, e desde algum tempo que a incurável moléstia todos os dias se agrava. Não podem enganar-nos os sintomas externos. Walter tem ataques de tosse seca, respira com dificuldade e transpira abundantemente pela madrugada; emagrece, afila-se-lhe o nariz, as maçãs do rosto, muito salientes, destacam-se pela vermilhão na palidez geral do rosto, as faces encovam-se, retraem-se os lábios, tem as conjuntivas luzidias e algum tanto azuladas. Ainda que a doença estivesse pouco adiantada, a ciência nada poderia contra aquele mal que não perdoa.

No dia 20, igual elevação de temperatura, a mesma imobilidade da jangada. Os raios ardentíssimos do Sol atravessam a lona da barraca, de modo que o calor nos abate e até às vezes nos dificulta a respiração. Com que impaciência não esperamos o momento em que o mestre faz a parca distribuição de água, e com que sofreguidão não bebemos as poucas gotas aquecidas pelo sol! Mal pode compreender-me quem nunca sofreu os tormentos da sede.

Walter sofre securas contínuas e é de todos nós o que mais padece pela míngua de água. Vi Miss Herbey guardar quase toda a sua ração para ele. A pobre rapariga, compadecida e caridosa, faz quanto pode, senão para extinguir, ao menos para minorar os sofrimentos do nosso infeliz companheiro.

Hoje diz-me Miss Herbey:

- Aquele desgraçado cada dia está mais fraco, Sr. Kazallon.

- É verdade, miss - respondo eu -, por infelicidade não podemos valer-lhe.

- Cautela! - recomenda Miss Herbey. - Olhe não nos oiça ele!

Depois vai sentar-se na extremidade da jangada e fica imóvel e pensativa, com a cabeça encostada às mãos.

Também sucedeu hoje um facto lastimoso que devo registar.

Durante uma hora estiveram conversando animadamente Owen, Flaypol, Burke e o preto Jynxtrop. Discutiram em voz baixa e nos gestos demonstravam grande irritação. Depois Owen levantou-se e dirigiu-se com ar resoluto para a popa, parte da jangada reservada para os passageiros.

- Aonde vais, Owen? - pergunta-lhe o mestre.

- Aonde não é da sua conta! - responde o insolente marinheiro.

O mestre sai do seu posto ao ouvir esta réplica grosseira, porém, ainda antes dele se coloca Roberto Kurtis em frente de Owen.

O marinheiro afronta o olhar flamejante do capitão e diz-lhe com ar descarado:

- Capitão, preciso falar-lhe da parte dos camaradas.

- Fala - responde serenamente Roberto Kurtis.

- É a respeito da aguardente - continua Owen. - Bem sabe que temos um barrilito... É para os peixes ou para os oficiais que o estão guardando?

- E depois? - diz Roberto Kurtis.

- Pedimos que todas as manhãs nos seja distribuída uma ração como era costume.

- Não! - responde o capitão.

- Então diz?

- Digo: não.

O marinheiro olha fito para Roberto Kurtis e franze-lhe os lábios um sorriso de mau agouro. Hesita e consulta consigo se deve persistir, mas contém-se e, sem acrescentar palavra, volta para junto dos companheiros e com eles conversa em voz baixa.

Faria bem Roberto Kurtis recusando de modo tão peremptório?

O futuro o dirá! Quando lhe falo deste incidente, ele responde-me:

- Dar aguardente a tais homens! Preferiria atirar o barril ao mar.

 

21 de Dezembro. - Este incidente não teve ainda consequência nenhuma, ao menos hoje.

Durante algumas horas aparecem de novo sargos em volta da jangada e conseguimos apanhar bastantes. O capitão manda empilhar muitos numa barrica vazia e este aumento de víveres dá-nos esperanças de que não sofreremos fome.

Vai caindo a tarde. Sem a atmosfera refrescar como é costume.

Geralmente as noites são frescas nos trópicos, mas esta promete ser abafadiça, erguem-se pesadamente do mar grandes massas de vapores. À uma hora e trinta minutos da madrugada será lua nova. Por isso está a noite escuríssima, até que começam a iluminar o horizonte relâmpagos de calor deslumbrantemente fulgurantes. São extensas e demoradas descargas eléctricas, sem forma determinada e que abrangem quase todo o horizonte. Não ouvimos trovões e até se torna medonha a tranquilidade da atmosfera, tão absoluta é.

Durante duas horas, Miss Herbey, os Letourneur e eu, esperando respirar algumas lufadas de ar fresco, contemplamos estes preliminares de tempestade, que são como ensaio da Natureza, e esquecemos a nossa situação presente, absortos na admiração do sublime espectáculo que resulta do combate travado entre nuvens carregadas de electricidade. Dir-se-iam serem fortins ameiados coroando-se de fogos intensos. Até as almas mais endurecidas se comovem com estas grandes cenas da Natureza, por isso vejo os marinheiros admirarem atentos a contínua deflagração das nuvens. Sem dúvida os assustam aqueles relâmpagos vagabundos, que não irrompem de nenhum ponto determinado do horizonte e indicam próxima luta dos elementos. E têm razão. Que será da jangada, débil joguete das fúrias do céu e do mar? Conservamo-nos sentados à popa até à meia-noite. Os eflúvios luminosos, cuja brancura a escuridão aumenta, banham-nos de tintas lívidas, semelhantes à cor espectral dos objectos iluminados pela luz do álcool salgado.

- Tem medo da tempestade Miss Herbey? - pergunta André Letourneur.

- Não, Sr. André! Este espectáculo antes me inspira respeito que susto. Não há fenómeno mais formoso!

- Tem razão, Miss Herbey - responde André Letourneur -, e principalmente quando o trovão estrondeia e ruge. O ouvido não pode sentir ruído mais majestoso, em comparação com o qual mais vale o troar da artilharia, estrondo seco, e sem os rufos prolongados do trovão. Este enche a alma, é antes som que ruído, som que se amplia e decresce como as notas de um tenor.

Para lhe dizer a verdade, Miss Herbey, nunca voz de artista me comoveu tanto como esta grande e incomparável voz da Natureza.

- Voz de baixo profundo - digo eu, rindo.

- Assim é - concorda André -, e queira Deus que a ouçamos sem demora, porque estes relâmpagos sem trovões tornam-se monótonos!

- Que ideia, meu caro André! - replico eu. - Afrontemos a tempestade, mas não a desejemos.

- Ora! A tempestade é o vento que nos falta!

- E decerto também água - acrescenta Miss Herbey -, água de que tanto carecemos.

Não me faltaria que responder àqueles moços imprudentes, mas não quero velar com a minha triste prosa a sua ridente poesia.

Contemplam a tempestade sob um aspecto especial, e durante uma hora os ouço devanear, invocando o furacão com todo o ardor do seu desejo.

Entretanto o céu vai-se cobrindo de nuvens carregadas, e no zénite apagam-se sucessivamente os astros pouco depois de a neblina ter ocultado as constelações zodiacais. Enovelam-se por cima das nossas cabeças nuvens negras e pesadas que ocultam as últimas estrelas do céu. Incessantemente raiam aquela massa escura grandes clarões lívidos que recortam nuvenzinhas acinzentadas.

Até agora tem-se despejado sem ruído todo aquele reservatório de electricidade acumulado nas altas regiões da atmosfera. Como o ar está muito seco, e por isso mesmo é mau condutor, o fluido só poderá dissipar-se à custa de choques terríveis. Parece-me impossível que a tempestade não rebente em breve com enorme violência.

É também a opinião de Roberto Kurtis e do mestre. A este só o inspira o instinto infalível do homem do mar. No capitão juntam-se ao instinto de "adivinho do tempo" os conhecimentos próprios de um oficial instruído. Mostra-me no zénite um grupo de nuvens que os meteorologistas chamam "cloud-ring" e que se forma quase exclusivamente nas regiões da zona tórrida, saturadas da humidade que os ventos constantes trazem de todos os pontos do oceano.

- Olhe, Sr. Kazallon - diz-me Roberto Kurtis -, estamos na região das tempestades, porque o vento arrastou a jangada para a zona em que um observador de ouvido fino sentiria continuamente o estrondear do trovão. Esta observação já tem sido feita e julgo-a exacta.

- Parece-me - respondo, apurando o ouvido - que sinto efectivamente o rufar contínuo que diz.

- Ouve decerto, mas estes são os primeiros bramidos da tempestade que antes de duas horas atingirá a máxima violência. Bem! Preparemo-nos contra ela.

Ninguém pensa em dormir! Nem seria fácil, tanto a atmosfera está abafadiça. Cresce a área dos relâmpagos, abraçam o horizonte num arco de 150 graus e depois correm o círculo inteiro em que o céu parece encontrar o mar. Toda a atmosfera envolve uma espécie de clarão fosforescente.

Enfim acentua-se o estourar do trovão e redobra de intensidade, mas - seja-me permitida a expressão - são ainda sons redondos sem ângulos de recrudescência, rufos que os ecos não alimentam. Parece que o céu está almofadado pelas nuvens, cuja elasticidade abafa o troar das descargas eléctricas.

Até agora o mar tem-se conservado manso, pesado, quase em estagnação. Mas os marinheiros não se iludem com as amplas ondulações que se vão manifestando. No dizer deles o mar prepara-se para a luta, e já pressente a agitação da tempestade longínqua. Não tardará o vento temeroso, por cautela já um navio teria metido de capa, mas a jangada não pode manobrar, o seu único recurso é correr com o tempo.

Pela uma hora da noite, um enorme relâmpago, seguido em poucos segundos pelo trovão, indica que o vendaval já vem sobre nós. De repente, o horizonte desaparece numa névoa húmida, como que carregando sobre a jangada.

Ouve-se um marinheiro bradando:

- O tufão! O tufão!

 

Noite de 21 para 22 de Dezembro. - O mestre corre para a adriça e arria a verga sem demora. Era tempo, porque o tufão desaba sobre nós rápido como o raio. Se não fora o grito do marinheiro que nos avisou, seríamos derrubados e talvez atirados ao mar. A barraca da popa foi arrebatada pela ventania.

Porém, se a jangada não tem que recear directamente do vento, se é muito rasa para dar-lhe presa, tem tudo a temer dos vagalhões monstruosos erguidos pelo tufão.

Durante alguns minutos a vaga mostra-se achatada e como deprimida pela acção das camadas de ar, depois levanta-se mais furiosa e a sua altura cresce na proporção em que foi deprimida.

A jangada segue o movimento desordenado da vaga e, como não corre adiante dela, oscila sem descanso de um bordo a outro, de popa à proa.

- Amarrem-se! Amarrem-se! - grita o mestre, atirando-nos cabos.

Roberto Kurtis corre rapidamente em nosso auxílio e em breves momentos os Letourneur, Falsten e eu estamos bem amarrados ao madeiramento, o mar só nos arrastará se a jangada se desconjuntar. Miss Herbey ligou-se pela cintura a um dos suportes da barraca, e ao lívido clarão dos relâmpagos vejo-lhe o rosto sempre sereno.

Agora a electricidade revela-se sem interrupções por trovões e relâmpagos. Temos os olhos e os ouvidos cheios. Os trovões são contínuos, os relâmpagos nunca se extinguem. Aquelas fulgurações resplendentes parece que incendeiam a abóbada celeste. E dir-se-ia que o mar se inflama também, porque vejo enormes relâmpagos ascendentes, que, irrompendo das ondas, se cruzam com os que descem do céu. A atmosfera está impregnada de emanações sulfurosas, porém, o raio poupa-nos e só fere o mar.

Pelas duas horas atinge a tempestade a sua máxima fúria. O vento é tufão, a vaga, de espantosa grandeza, ameaça desconjuntar a jangada. O carpinteiro Daoulas, Roberto Kurtis, o mestre e alguns marinheiros trabalham por consolidá-la com cabos. A miúdo desabam verticalmente sobre nós enormes rolos de mar, que nos molham todos de água quase morna. Letourneur atira-se ao encontro dos maiores vagalhões, cobrindo com o seu o corpo do filho.

Miss Herbey conserva-se imóvel. Parece a estátua da resignação.

Neste momento entrevejo ao rápido clarão dos relâmpagos nuvens densas, extensas e provavelmente profundas, de cor arroxada. Ouve-se crepitação como de fuzilaria. É um crepitar especial produzido por séries de descargas eléctricas, transmitidas entre as nuvens por torrentes de granizo. E, com efeito, encontrando-se uma nuvem tempestuosa com alguma corrente de ar frio, forma-se granizo que começa a cair com extrema violência. Somos lapidados por pedras do tamanho de nozes, que ressaltam na jangada com som metálico.

O meteoro dura meia hora e abate a violência do vento, porém, este, tendo rondado por todos os rumos da agulha, redobra em breve de violência. Arrebenta a enxárcia do mastro, que verga sobre o pavimento da jangada, alguns marinheiros dão-se pressa de tirá-lo da carlinga para que não quebre pelo pé. Uma vaga faz saltar o leme improvisado, que vai à tona de água, sem haver meio de o reter. Ao mesmo tempo é arrancada a borda da jangada do lado do bombordo, e o mar entra pela abertura.

O carpinteiro e os marinheiros tentam reparar esta avaria, mas os balanços enormes não lhes dão tréguas, derrubam-nos e fazem-nos rolar uns sobre os outros no momento em que a jangada, erguida por vagas monstruosas, atinge inclinação de mais de quarenta e cinco graus. Como não são aqueles homens arrebatados pelo mar? Como não quebram os cabos que nos ligam?

Como não somos todos arrastados para o abismo? Eis o inexplicável! Por mim, parece-me impossível que a jangada não se volte de cima para baixo e nós, que estamos ligados ao madeiramento, não pereçamos nas convulsões da asfixia.

Com efeito, pelas três horas da manhã, o vendaval desencadeia-se mais violento que nunca e a jangada, erguida no dorso de uma onda, coloca-se quase vertical. De todos os lados rompem gritos de "Cristo! A jangada vira-se!..." Não... Manteve-se na crista da vaga a enorme altura e, à luz dos relâmpagos que se cruzam de todos os lados, contemplamos espavoridos e aterrados o mar que espuma, como na ressaca da costa.

Depois a jangada volta rápida à posição horizontal, mas durante o seu deslocamento oblíquo rebentaram os cabos de atracção dos barris. Vi um deles ir pela borda fora e outro arrombar-se, vertendo a água que continha.

Alguns marinheiros correm a segurar um barril de carne seca.

Porém, um deles entala o pé numa fenda entre as tábuas do pavimento, cai e solta gritos de dor.

Pretendo socorrê-lo, consigo desatar o cabo que me liga... É tarde, um relâmpago deslumbrante deixa-me ver aquele infeliz, cujo pé se solta, arrebatado por um rolo de mar que vem quebrar sobre nós. Outro marinheiro desaparece com ele, sem que seja possível valer a nenhum dos dois.

O rolo de mar derrubou-me sobre o sobrado da jangada e, como bati com a cabeça numa trave, perdi os sentidos.

 

22 de Dezembro. - Raia finalmente a aurora e rompe o Sol por entre as últimas nuvens que a tempestade deixou após si. A luta dos elementos poucas horas durou, mas foi temerosa, agitando-se o ar e a água com indescritível furor.

Pude só indicar os acidentes principais, porque o desmaio subsequente à queda não me deixou ver o fim do cataclismo. Sei apenas que, pouco depois de quebrar sobre nós o formidável vagalhão que arrebatou dois homens, a tempestade abateu pela acção de grossas bátegas de água e diminuiu a tensão eléctrica da atmosfera. A luta durou só a noite. Mas em tão pouco tempo causou-nos enormes danos, infligiu-nos perdas irreparáveis e preparou-nos dolorosas misérias! Nem sequer conseguimos guardar uma gota daquela água que as nuvens despejaram em torrentes.

Volto a mim, graças aos cuidados dos Letourneur e de Miss Herbey, mas a Roberto Kurtis devo não ter sido arrebatado pelo mar.

Um dos dois marinheiros que perdemos durante o tufão foi Austin, excelente rapaz de vinte e oito anos, activo e animoso. O outro foi o velho irlandês O'Ready, sobrevivo de tantos naufrágios!

Já somos só dezasseis na jangada, isto é, desapareceram quase metade dos que embarcaram a bordo do Chancellor.

E agora que víveres nos restam?

Roberto Kurtis procede a balanço exacto. Em que consistem os nossos recursos e para quanto tempo chegam?

Não falta ainda água, porque no fundo do barril arrombado ficaram cerca de catorze galões e temos outro barril intacto. Porém o mar roubou-nos o barril da carne salgada e aqueloutro onde guardáramos o peixe que tínhamos apanhado.

Nada resta dessa provisão. A respeito de bolacha, calcula Roberto Kurtis que salvámos apenas umas sessenta libras.

Sessenta libras, para dezasseis pessoas, dão-nos apenas alimento para oito dias, a meia libra por cabeça.

Roberto Kurtis informa-nos da situação. Ouvimo-lo silenciosos. Silenciosos passamos também todo o dia 22 de Dezembro, concentrando-se cada um em si próprio; é, porém, evidente que são comuns as nossas ideias. Parece que nos olhamos com modos diferentes, e que todos antevemos já o espectro da fome. Até o presente não sofremos ainda privação absoluta de comida e bebida. Agora, porém, é necessário reduzir a ração de água e a respeito da ração de bolacha...

Em certa ocasião chego-me para o grupo dos marinheiros, deitados à proa, e ouço Flaypol dizer com voz irónica:

- Os que têm de morrer fariam bem apressando-se.

- É verdade - responde Owen. - Pelo menos deixariam o seu quinhão aos outros!

Assim passamos o dia, tristes e abatidos. Cada um recebe a sua meia libra regulamentar de bolacha. Uns devoram-na imediatamente com certa espécie de raiva, outros poupam-na com prudência. Parece-me que o engenheiro Falsten divide o seu quinhão em tantas partes quantas eram as vezes que costumava comer ao dia.

Se algum de nós escapar, será Falsten.

 

De 23 a 31 de Dezembro. - Depois do tufão mudou o vento para nordeste e conservou-se fresco. Convém aproveitá-lo, porque nos aproxima da costa. Daoulas mete novamente o mastro no seu lugar, iça-se a verga, larga-se a vela, e a jangada, com vento à popa, deita duas a duas e meia milhas por hora.

Tratamos de arranjar outro leme por meio de um barrote e de uma tábua, o qual remedeia, à falta de outro melhor, felizmente, com o andamento que a jangada leva não é preciso dar grande esforço ao leme.

Trata-se depois de reparar o vigamento com cabos e cunhas, que apertam as peças desconjuntadas. Substitui-se a borda de bombordo arrancada pelo mar, e assim ficamos livres dos insultos deste. Faz-se enfim quanto é possível para consolidar aquele conjunto de mastros e vergas, mas o pior mal não é esse.

Com a limpidez da atmosfera volta o calor tropical, que tanto nos fez sofrer já. Hoje ainda a brisa o modera e, como restabelecemos a barraca à popa, abrigamo-nos alternadamente nela.

Ao mesmo tempo começa a fazer-se sentir a deficiência da alimentação. Sofremos visivelmente de fome. Temos as faces cavadas e os rostos embaciados. Em quase todos está afectado o sistema nervoso central, e a constrição do estômago produz sensação dolorosa: Se, ao menos, para enganar, para adormecer a fome, tivéssemos qualquer narcótico, tabaco ou ópio!... Mas tudo nos falta!

Só um de nós vai isento desta dolorosa privação. Walter, sempre consumido pela febre ardente que o alimenta, a este é a sede que o tortura. Miss Herbey não só reserva para o enfermo parte do seu quinhão, mas também obteve de Roberto Kurtis um suplemento de ração de água, de quarto em quarto de hora humedece os lábios do mísero oficial. Walter, a custo, balbucia algumas palavras, e com os olhos agradece à sua caridosa enfermeira. Infeliz rapaz! Está perdido, não logram salvá-lo os mais dedicados socorros. Ele, pelo menos, não sofrerá muito!

Parece que o doente tem consciência do seu estado, porque me chama por acenos. Vou sentar-me ao pé dele. Reúne as derradeiras forças para falar e diz-me com voz entrecortada:

- Sr. Kazallon, durarei ainda muito?

Pouco me demoro em responder, mas Walter nota a minha hesitação.

- Diga-me a verdade! - continua ele. - A verdade! Toda!

- Não sou médico e não posso...

- É o mesmo! Suplico-lhe que responda!...

Examino atentamente o enfermo, e depois encosto-lhe o ouvido ao peito. Em poucos dias progrediu a tísica medonhamente. Um dos pulmões não funciona e o outro mal satisfaz as necessidades da respiração. Walter tem a febre que indica o fim próximo das afecções tuberculosas.

Que responder à sua pergunta?

Ele olha-me tão fito, que não acerto com o que deva dizer-lhe e procuro alguma evasiva!

- Meu caro amigo, nesta nossa situação quem pode contar com vida dilatada? Quem sabe se antes de oito dias todos quantos estamos na jangada...

- Antes de oito dias! - murmurou Walter, fitando-me com olhar ardente.

Depois volta a cabeça e cai em sonolência.

Nos dias 24, 25 e 26 não muda nada a nossa situação. Por pouco favorável que seja, parece que nos habituamos a não morrer de fome. As descrições dos naufrágios apresentam muitas vezes factos que concordam com os observados por mim. Quando as lia, julgava tudo exagerado. Enganava-me, e agora verifico que se pode sofrer falta de alimentos por muito mais tempo do que eu pensava. Além disso, o capitão entendeu que devia juntar algumas gotas de aguardente à nossa ração de meia libra de bolacha. Este regime ampara-nos as forças muito mais do que seria razoável esperar. Se tivéssemos dois meses, para um mês ao menos, certeza de igual ração! Mas a provisão esgota-se, e todos prevemos o momento em que faltará esta mesma parca alimentação.

Precisamos, pois, a todo o custo, pedir ao mar algum suplemento de víveres, mas agora é dificílimo. Contudo, o mestre e o carpinteiro fabricam linhas com pedaços de cabos destorcidos e armam-nas com pregos arrancados das tábuas do sobrado.

Concluída a fabricação destes toscos aparelhos, fica o mestre muito satisfeito.

- Os pregos - diz-me ele -, não são anzóis perfeitos, mas apanhariam peixe se não nos faltasse isca! Ora, só temos bolacha, que para isso não presta. Se eu apanhasse um peixe, com a carne dele arranjaria isca. Portanto, a dificuldade é apanhar um peixe!

O mestre tem razão, e provavelmente a pesca será infrutífera. Assim mesmo resolve experimentar e larga as linhas, mas, como era de prever, nem um peixe pega. Manda a verdade que se diga que estes mares são também muito pouco piscosos.

Nos dias 28 e 29 em vão repetimos tentativas. Dissolvem-se na água os pedaços de bolacha que pretendemos usar como isca, renunciamos a esse meio. É gastar inutilmente o nosso único alimento, de que temos apenas migalhas.

Esgotado esse recurso, lembra-se o mestre de empregar como isca pedaços de pano. Miss Herbey dá-lhe um bocado do xaile vermelho que costuma trazer. Talvez aquele farrapo, brilhando debaixo de água, atraia assim algum peixe mais voraz.

Fazemos a experiência no dia 30. Largamos as linhas muitas horas a fio, mas, quando as tiramos, vê-se que o trapo está intacto.

O mestre desanima completamente. Falha outro recurso. Quanto não daríamos por apanhar o primeiro peixe, que talvez nos fornecesse outros muitos!

- Ainda há um meio de iscar os anzóis - diz-me o mestre, a meia voz.

- Qual? - pergunto eu.

- Depois lhe direi! - responde ele, com ar singular.

Que significam semelhantes palavras na boca de um homem que sempre me pareceu discreto? Pensei nelas toda a noite.

 

De 1 a 4 de Janeiro. - Há mais de três meses que partimos de Charleston a bordo do Chancellor, e já decorreram vinte dias desde que andamos nesta jangada ao sabor do vento e mar.

Teremos adiantado para oeste, aproximando-nos da costa americana, ou levar-nos-ia a tempestade para o largo? Nem sequer podemos sabê-lo. O furacão, que tamanhos prejuízos nos causou, fez em pedaços os instrumentos náuticos, a despeito de todas as cautelas tomadas. Roberto Kurtis nem possui a agulha para indicar a direcção que seguimos, nem sextante para tomar a altura. Estaremos próximos ou a muitas centenas de milhas da costa? Deus o sabe. É porém de crer que, tendo tido as circunstâncias todas contra nós, estejamos muito longe de terra. Esta ignorância absoluta da situação é para desanimar, porém, como a esperança nunca morre no coração humano, muitas vezes nos embalamos, embora sem razão, com a crença de que a costa fica a pequena distância. Por isso observamos amiúde o horizonte e procuramos enxergar na sua nítida linha alguma aparência de terra. A este respeito, nós, os passageiros, com a vista pouco habituada a descobrir longes marítimos muitas vezes nos iludimos e sofremos as amarguras do desengano.

Julgamos avistar... e não é terra! Não se avista costa, nenhum navio recorta o perímetro acinzentado onde o mar e o céu se confundem. A jangada ocupa sempre o centro da enorme circunferência deserta.

A 1 de Janeiro comemos a última bolacha, ou, antes, as últimas migalhas de bolacha. A 1 de Janeiro! Quantas recordações traz esse dia, quantas saudades e, comparativamente, como nos parece lamentoso! O começo de ano novo, as boas-festas deste dia, as aspirações que nele se expandem, as íntimas alegrias da família, a esperança com que enche todos os corações, nada disso é para nós! A frase: "muito boas festas!" que tantas mil almas hoje dizem, entre sorrisos, qual de nós ousaria pronunciá-la? Qual de nós espera ainda mais um dia para si próprio? Entretanto o mestre chega-se a mim e diz-me com modos estranhos:

- Muito boas festas, Sr. Kazallon...

- Boas festas!

- Sim! Mas unicamente para o dia de hoje, e não é pouco! Na jangada já não existe nada que comer!

Nada mais, bem o sabemos, e, contudo, no dia imediato, à hora costumada da distribuição, sentimos nova dor. Não podemos crer na privação absoluta!

De tarde sinto no estômago cãibras violentíssimas. Causam-me bocejos dolorosos e depois acalmam passadas duas horas.

No dia seguinte, 2, admiro-me de não sofrer mais. Sinto em mim como que um vácuo imenso, mas esta sensação é pelo menos tanto moral como física. A cabeça, pesada e mal equilibrada, oscila-me sobre os ombros. Sinto vertigens, como as que produz a vista de um abismo sobre o qual nos debruçamos.

Mas os sintomas da fome não são iguais para todos, e alguns sofrem horrorosamente. Citarei o carpinteiro Daoulas e o mestre, ambos grandes comilões. As dores arrancam-lhes gemidos involuntários, para acalmá-las apertam o estômago com um cabo.

Estamos apenas no segundo dia!

Oh! A meia libra de bolacha, a parca ração que mal nos chegava há dias, como o desejo a engrandece agora, como era enorme segundo nos parece nestas horas de privação absoluta!

Se nos distribuíssem ainda aquele pedaço de bolacha, metade, a quarta parte que fosse, bastar-nos-ia para muitos dias!

Comê-la-íamos migalha a migalha!

Nas cidades bloqueadas, ainda chegadas ao máximo extremo, sempre é possível achar nos escombros, nos enxurros, em qualquer canto, algum osso descarnado, alguma raiz desprezada que por momentos engane a fome! Mas sobre estas tábuas, tantas vezes lambidas pelo mar, na qual esquadrinhámos as mínimas fendas e raspámos os cantos onde o vento poderia acumular quaisquer migalhas, que procurar ainda?

Muito compridas são as noites, mais compridas ainda que os dias! Debalde pedimos ao sono algum lenitivo momentâneo! O sono, se logra fechar-nos os olhos, é entorpecimento febril cortado de pesadelos.

Contudo, esta noite, sucumbindo ao cansaço, consegui dormir algumas horas, em que a fome adormeceu também.

No dia seguinte, pelas seis horas, acordam-me gritos e pragas. Levanto-me prestes e vejo à proa o preto Jynxtrop, os marinheiros Owen, Flaypol, Wilson, Burke e Sandon reunidos em atitude agressiva. Os malvados lançaram mão das ferramentas do carpinteiro, machados, enxós, formões, e ameaçam o capitão, o mestre e Daoulas. Corro a reunir-me a Roberto Kurtis e aos seus. Falsten segue-me imediatamente. Só temos por armas as nossas navalhas, mas apesar de tudo estamos resolvidos a defender-nos.

Owen e o seu bando crescem sobre nós. Estão ébrios. De noite arrombaram o barril da aguardente e beberam à larga. Que pretendem?

Owen e o preto, menos ébrios que os outros, incitam-nos a que nos assassinem, domina-os uma espécie de vertigem alcoólica.

- Abaixo Kurtis! - gritam eles. - Ao mar o capitão! Owen que comande! Owen que comande!

Owen é o chefe, tendo Jynxtrop por imediato. O ódio daqueles dois malvados contra os seus superiores manifesta-se por um acto violento, que não melhoraria em nada a sua situação, ainda quando fosse bem sucedido. Torna-os temíveis a força dos seus parciais, incapazes de pensar e armados, enquanto nós estamos inermes.

Roberto Kurtis sai-lhes ao encontro e brada com voz imperativa:

- Abaixo as armas!

- Morra o capitão! - vocifera Owen.

O infame excita os companheiros com um gesto, mas Roberto Kurtis, afastando a turba temulenta, encaminha-se para ele.

- Que queres tu? - pergunta-lhe.

- Não queremos capitão! - respondeu Owen. - Aqui somos todos iguais! Estúpido animal! Pois não somos todos iguais em face da fome?

- Owen - repete o capitão -, abaixo as armas!

- Vá, rapazes! - brada Owen.

Trava-se a luta. Owen e Wilson atiram-se a Roberto Kurtis, que apara os golpes com um pedaço de barrote, enquanto Burke e Flaypol atacam Falsten e o mestre. Em frente de mim vejo o preto, que brande uma enxó e tenta ferir-me. Abraço com ele para lhe paralisar os movimentos, mas o malvado excede-me em força muscular, tendo lutado alguns instantes, sinto que vou ser derrubado, quando de repente Jynxtrop cai por terra, arrastando-me na queda. Foi André Letourneur que, agarrando-lhe uma perna, o deitou ao chão.

Salvou-me este auxílio. O preto ao cair larga a enxó, apanho esta arma e ergo o braço para despedaçar o crânio ao meu adversário, porém, André detém-me.

Efectivamente, os revoltosos recuam repelidos para a proa da jangada. Roberto Kurtis, depois de aparar todos os golpes de Owen, apanha um machado e, erguendo o braço, atira-lhe um bote formidável.

Owen salta para o lado e o machado fere Wilson em cheio no peito. O malvado cai de costas fora da jangada e desaparece.

- Salvem-no! Salvem-no! - grita o mestre.

- Está morto! - respondeu Daoulas.

- Ora! Por isso mesmo!... - exclama o mestre, sem completar a frase.

Com a morte de Wilson termina o combate. Flaypol e Burke, caindo de todo embriagados, estão prostrados sem movimento, atacamos então Jynxtrop e amarramo-lo ao mastro.

O carpinteiro e o mestre seguram Owen. Roberto Kurtis chega-se para ele com o machado sangrento em punho e ordena-lhe:

- Pede perdão a Deus, que vais morrer!

- Forte pressa tem de comer-me! - responde Owen, com atrevimento inaudito.

Esta resposta atroz salva-lhe a vida. Roberto Kurtis atira fora o machado erguido sobre Owen, empalidece e vai sentar-se à popa da jangada.

 

5 e 6 de Janeiro. - Esta cena causou profunda impressão.

Nas circunstâncias presentes a resposta de Owen fez sucumbir os mais enérgicos.

Logo que o meu espírito serenou agradeci com fervor a André, cujo auxílio me salvou a vida.

- Agradece-me - volveu ele -, quando deveria antes maldizer-me!

- Maldizê-lo, André!

- Não fiz mais que prolongar os seus sofrimentos, Sr. Kazallon.

- Embora assim seja, Sr. Letourneur - acode Miss Herbey, que se chegou para nós. - É certo que cumpriu o seu dever.

Sempre o sentimento do dever animando esta desgraçada mulher!

As privações emagreceram-na, o vestido, desbotado pela humidade, rasgado por mil encontrões, cai-lhe em farrapos, mas não solta dos lábios um queixume e decerto nunca se mostrará abatida.

- Sr. Kazallon - pergunta ela -, a nossa sorte é morrer de fome, não lhe parece?

- Sim, Miss Herbey - respondo, quase com aspereza.

- Quanto tempo se pode viver sem comer?

- Mais do que se julga! Talvez compridos, intermináveis dias!

- As pessoas de constituição robusta são as que mais sofrem, não é verdade?

- É verdade, porém, mais depressa morrem. Sempre há compensação!

Não sei como tenho ânimo para responder assim à pobre rapariga. Nem uma palavra animadora lhe disse! Atirei-lhe brutalmente a verdade às faces! Estarão extintos em mim todos os sentimentos de benevolência? André Letourneur e o pai, neste momento próximos de nós, contemplam-nos espavoridos, com os olhos enormemente dilatados pela fome. Parece perguntarem se na verdade estou eu falando.

Tempo depois, quando ficámos a sós, diz-me Miss Herbey a meia voz:

- Sr. Kazallon, quererá fazer-me um obséquio?

- Sim, miss - respondo, comovido e pronto já para tudo quanto ela quiser.

- Se eu morrer antes do Sr. Kazallon - continuou Miss Herbey -, o que pode suceder, embora seja mais fraca, prometa-me deitar o meu cadáver ao mar.

- Miss Herbey, perdoe-me. Ainda agora não soube o que disse...

- Deixe, deixe - acrescentou ela, esboçando um sorriso. - Fez bem falando-me assim, mas prometa fazer o que lhe peço. É uma fraqueza. Viva, não receio nada... porém morta... Prometa deitar o meu corpo ao mar.

E prometi. Miss Herbey estende-me a mão, e sinto que com os seus dedos emagrecidos aperta os meus.

Decorre mais outra noite. Às vezes é tão atroz o meu padecer, que dou gritos pungentes, outras vezes as dores abrandam e caio numa espécie de torpor. Quando torno a mim, admiro-me de ver os meus companheiros ainda vivos.

De todos eles é o despenseiro Hobbart que parece sofrer menos. Pouco tenho falado dele. É um homenzito de rosto dúbio, olhar adocicado, sorrindo muitas vezes com um riso que não lhe passa dos lábios. Andando com olhos sempre meio fechados, parece querer esconder o que pensa. Todo ele transpira hipocrisia e falsidade. Se digo que as privações parecem molestá-lo menos que aos outros, não é porque ele se queixe pouco, pelo contrário, geme continuamente, mas não sei porque me parecem fingidos os seus ais tão sentidos. Veremos. Hei-de vigiá-lo, pois tenho a seu respeito suspeitas que convém verificar.

Hoje, 6 de Janeiro, chama-me Letourneur de parte, e, levando-me para a popa da jangada, diz que tem necessidade de me confiar um segredo. Deseja não ser visto nem ouvido por outrem.

Vou com ele para o ângulo de bombordo e, começando já a ser escuro, ninguém nos vê.

- Sr. Kazallon - diz-me Letourneur em voz baixa -, há-de ter visto que o meu filho está muito fraco! André morre de fome! Não posso ver isto mais tempo! Não, não posso ver!

Letourneur fala-me com certo modo em que reconheço raiva a custo contida, o acento é selvático. Vejo quanto deve sofrer aquele desgraçado pai!

- Sr. Letourneur - respondo, apertando-lhe a mão -, não desesperemos. Talvez algum navio...

- Não venho pedir-lhe consolações banais, Sr. Kazallon. Bem sabe que não avistaremos navio nenhum. Não. Trata-se de outra coisa. Há quanto tempo não se alimentam meu filho, o Sr. Kazallon e todos os mais?

Respondo a esta pergunta, que me surpreende:

- A bolacha começou a faltar no dia 2. Estamos a 6. Há portanto quatro dias que...

- Que não comem! - interrompe Letourneur. - Pois saiba que eu há oito dias!

- Oito dias!

- Sim! Economizei para meu filho!

Ouvindo estas palavras, rebentam-me as lágrimas dos olhos. Agarro as mãos de Letourneur... Não posso falar. Olho para ele!... Oito dias!

- Sr. Letourneur - digo enfim -, que pretende de mim?

- Schiu! Fale mais baixo! Não suceda que nos ouça alguém!

- Mas diga!...

- Quero... - acrescenta ele, baixando a voz - quero que ofereça ao André...

- Mas porque não o faz pessoalmente?

- Não! Não!... Julgaria que me abstive por sua causa!... Recusaria... Não! É preciso que seja o Sr. Kazallon...

- Sr. Letourneur!...

- Pelo amor de Deus! - exclama o infeliz pai. -, Faça-me este favor... o maior que pode prestar-me... Além disso, pelo seu incómodo...

E, dizendo assim, Letourneur pega na minha mão e acaricia-a brandamente.

- Pelo seu incómodo... sim... pode também comer... um bocadinho!...

Mal-aventurado pai! Ouvindo-o, tremo como uma criança! Todo o meu ser se comove, o coração pula-me no peito! Ao mesmo tempo sinto que Letourneur me mete na mão um bocadinho de bolacha.

- Olhe não o vejam! - recomenda-me ele. - Malvados! Eram capazes de o assassinar! O que lhe dou chega para um dia... mas amanhã... dar-lhe-ei outro tanto!

Desconfia de mim! E talvez tenha razão porque, ao sentir na mão o pedaço de bolacha, estou a ponto de levá-lo à boca!

Resisti, e adivinhem os leitores o que não sei descrever!

Anoitece com a rapidez própria dos países tropicais.

Vou disfarçadamente ter com André Letourneur e entrego-lhe o pedaço de bolacha como dado por mim.

André pega-lhe com avidez, e depois diz-me:

- E o meu pai?

Respondo-lhe que Letourneur teve quinhão... eu também... que amanhã... nos dias seguintes, lhe poderei dar mais... Que coma!... Que coma!...

André não me pergunta onde eu arranjei a bolacha e leva-a avidamente aos lábios.

E essa noite, apesar da oferta de Letourneur, não comi nada... nada!...

 

7 de Janeiro. - Nos últimos dias, a água salgada que lava continuamente o sobrado da jangada assim que o mar se cava, põe em carne viva os pés e as pernas de bastantes marinheiros.

Principalmente é deplorável o estado de Owen, que o mestre tem tido amarrado à proa desde a cena da revolta, a pedido nosso desamarraram-no. Sandon e Burke também foram atacados pela mordência daquelas águas salinas. Nós temos escapado até agora unicamente porque o mar não chega tanto à proa da jangada.

Hoje o mestre, acometido por um ataque de furor famélico, deitou-se a farrapos de velas, topos de madeira, ainda ouço o ruído dos dentes cravando-se nestas substâncias. O infeliz, apertado pela fome, tenta encher o estômago para lhe distender a mucosa. Enfim, à força de esquadrinhar, acha forro de sola num dos mastros de que é formado o madeiramento da jangada.

Aquele couro é matéria animal que ele arranca e devora com indescritível avidez, parece que a ingestão desta substância lhe porporciona algum lenitivo. Todos o imitamos. Um chapéu de sola, as palas dos bonés, tudo que é substância animal fica roído em poucos momentos. Arrasta-nos um instinto bestial que não podemos reprimir. Neste momento, parece que não temos nada de humano, nunca esquecerei semelhante cena.

Se não matamos a fome, pelo menos conseguimos acalmar as dores. Mas nem todos podemos resistir àquela revoltante alimentação, alguns são atacados de náuseas.

Perdoem-me semelhantes pormenores! Não quero esconder nada do que sofreram os náufragos do Chancellor! Pela minha narração saber-se-á quantos males físicos e morais podem seres humanos arrostar! Seja tal a lição deste diário, hei-de dizer tudo, e desgraçadamente adivinho que não chegámos ainda ao máximo das provações!

Durante esta cena fiz uma observação que confirma as minhas suspeitas a respeito de Hobbart. O despenseiro, sem descontinuar de gemer, queixando-se até mais, não tocou nos indigestos comestíveis que descobrimos. Pelo que diz, morre de fraqueza, mas na aparência parece isento das torturas gerais.

Terá aquele hipócrita algum depósito de víveres? Espreito-o, mas não descobri nada.

O calor continua intenso e insuportável, quando a brisa não o modera. A ração de água é minguada, mas em nós a fome mata a sede. E quando penso que a falta de água nos faria padecer ainda mais que a de alimentos, não posso crê-lo, ou, pelo menos, imaginá-lo agora. Muitos o têm, contudo, experimentado, e Deus queira furtar-nos a mais esse tormento! Felizmente o barril, meio arrombado pela tormenta, contém ainda alguns quartilhos de água, o outro barril conserva-se intacto. Apesar de já sermos menos, o capitão, a despeito de alguns queixumes, reduziu a ração quotidiana a meio quartilho (1) por cabeça.

Por mim aprovo completamente.

A respeito da aguardente, só resta um quarto de galão, que foi posto em lugar seguro, à popa da jangada.

Hoje, 7, pelas sete horas e meia da tarde, deixou de existir um de nós. Ficamos apenas catorze! O imediato Walter expirou-me nos braços, sem que valessem para salvá-lo os cuidados de Miss Herbey e os meus. Aquele já não sofre.

Walter, pouco antes de morrer, agradeceu a Miss Herbey e a mim com voz quase extinta.

- Sr. Kazallon - disse, deixando cair da mão trémula uma carta amarrotada -, esta carta... de minha mãe... Desfaleço... Foi a última que recebi... Ela diz-me: "Espero-te, filho, quero tornar a ver-te!" Não, minha mãe, nunca mais me verá! Sr. Kazallon, esta carta... Chegue-ma aos lábios... Ah! Aí!... Deixe-me morrer beijando-a... Minha mãe... Meu Deus!...

Meti a carta na mão já fria de Walter e levei-lha aos lábios. O olhar do moribundo ainda brilhou um momento, e ouvimos como que o leve sopro de um beijo.

Assim morreu Walter! Deus tenha a sua alma!

 

8 de Janeiro. - Fiquei toda a noite ao pé do cadáver daquele desventurado e algumas vezes veio Miss Herbey orar pela alma dele.

Ao amanhecer, já o corpo estava completamente frio. Por mim tinha pressa... sim! verdadeira pressa de o deitar ao mar, e por isso pedi a Roberto Kurtis que me coadjuvasse neste triste encargo. Logo que envolvermos o cadáver no pobre e roto fato, atirá-lo-emos pela borda fora e, graças à sua extrema magreza, espero que não flutuará.

Logo de madrugada, Roberto Kurtis e eu, não sem tomarmos muita cautela para não sermos vistos, tiramos-lhe das algibeiras diversos objectos, que entregaremos a sua mãe se algum de nós sobreviver.

No momento, porém, de envolver o desgraçado oficial no fato que vai servir-lhe de mortalha, não posso disfarçar um gesto de horror.

Ao cadáver falta o pé direito; a perna termina por um coto sangrento.

Quem praticou semelhante sacrilégio? Então é certo que de noite sucumbi ao cansaço e que aproveitaram o meu sono para mutilarem o corpo! Mas quem foi?

Roberto Kurtis espreita em volta de nós, e o seu olhar é terrível. Mas não parece haver novidade a bordo, sendo o silêncio interrompido por ais dolorosos. Talvez estejam vigiando as nossas acções! Demo-nos pressa de atirar o corpo ao mar para evitarmos cenas ainda mais atrozes! Por isso, tendo o capitão murmurado algumas orações, deitamos o cadáver pela borda fora, e vemos com alegria que se afunda imediatamente.

- Raios do diabo! Sempre são bem amigos dos tubarões!

Quem falou por tal modo? Volto-me. Foi o preto Jynxtrop.

Nesta ocasião está o mestre ao pé de mim.

- Pensa que foi algum daqueles desgraçados que cortou o pé?...

- O pé... Ah! sim - responde o mestre com modo singular. - No fim de contas estavam no seu direito!

- No seu direito! - exclamo eu.

- Olhe, quer que lhe diga? - responde o mestre. - Mais vale comer os mortos que os vivos!

Não atino com a réplica a esta resposta, dada com a máxima frieza, e vou deitar-me à popa.

Pelas onze horas sucede um caso feliz. O mestre, que logo pela manhã deitou as linhas ao mar, não se enganou desta vez.

Com efeito, apanhou três peixes. São três grandes badejos, de oitenta centímetros de comprimento, pertencentes à espécie que, depois de seca, é pelos Ingleses chamada stockfish.

Mal o mestre tira os peixes da água, logo os marinheiros se deitam a eles. O capitão Kurtis, Falsten e eu corremos em auxílio do mestre e logo se restabelece a ordem. Três badejos pouco é para catorze pessoas, mas todos recebem o seu quinhão. Uns, e são os mais, devoram o peixe cru, bem se pode dizer vivo. Roberto Kurtis, André Letourneur e Miss Herbey conseguem dominar a fome. Acendem um punhado de aparas a um canto da jangada e assam os bocados de peixe. Quanto a mim, não consegui ter ânimo para tanto e comi-o ainda sangrento!

Letourneur foi tão fraco como eu e muitos mais. Deitou-se como lobo esfaimado ao seu quinhão de peixe. Como vive ainda aquele desgraçado, que há tanto tempo não come? Não sei! Disse que o mestre manifestara grande alegria, delírio quase, ao retirar as linhas com peixe. Certo é que, se a pesca continua dando bom resultado, pode salvar-nos da morte horrível dos famintos.

Vou por isso conversar com ele, e lembro-lhe que seria bom tentar outra vez.

- Sim? - diz ele -, Sim... decerto... tentarei outra vez... esteja descansado!...

- Então porque não deita já as linhas? - pergunto.

- Agora não! - responde, com modo evasivo. - Para apanhar peixe grande é preferível a noite ao dia. É preciso poupar a isca, porque fomos tão estúpidos que não guardámos nem um bocadinho de peixe para este efeito.

Tem razão e talvez o nosso erro não tenha emenda.

- Porém - digo afinal -, se tirou já uma vez bom resultado sem isca...

- É que eu tinha isca.

- E boa?

- Excelente, porque o peixe lhe pegou!

Olho atento para o mestre, que me fita também.

- E tem ainda algum bocado de isca para guarnecer as linhas? - pergunto eu.

- Sim - responde o mestre em voz baixa. E afasta-se de mim sem acrescentar palavra.

Entretanto bastou aquele parco alimento para recobrarmos forças e com elas esperança. Falamos da pescaria feita pelo mestre e parece-nos impossível que ele não seja mais vezes feliz. Cansar-se-ia enfim a fortuna de perseguir-nos?

A prova mais evidente de que temos o espírito mais tranquilo é que volvemos a falar do passado. Já não temos o pensamento invariavelmente fixo neste presente doloroso e no futuro horrível que nos ameaça. Os Letourneur, Falsten, o capitão e eu recordamos os factos ocorridos desde o naufrágio, revemos os perdidos companheiros, os pormenores do incêndio, o encalhar do navio, o escolho do Ham-Rock, a água aberta, a medonha navegação nas vergas, a jangada, o tufão, todos os incidentes enfim que tão remotos parecem já. Sim! Tudo isso nos sucedeu e vivemos ainda! Vivemos! Será isto viver? De vinte e oito estamos reduzidos a catorze e talvez brevemente a treze.

- Número de mau agoiro! - exclama André Letourneur -, mas creio que nos seria difícil arranjar o décimo quarto comensal!

Durante a noite de 8 para 9, tornou o mestre a deitar as linhas à popa da jangada, e ele próprio as vigia, não querendo confiar este encargo de ninguém.

Ao romper da manhã vou ter com ele. Mal se vê ainda; o mestre, com olhos inflamados, tenta sondar a escuridão do mar.

Não me viu, nem me sentiu andar ao pé dele.

Toco-lhe ao de leve no ombro. Volta-se para mim.

- Então, mestre?

- Então os malditos tubarões não comeram a isca toda! - responde ele com voz abafada.

- E não tem mais?

- Não! Sabe o que isto prova? - diz ele, apertando-me o braço com força. - Prova que a gente não deve parar a meio caminho...

Ponho-lhe a mão na boca! Agora entendo tudo! Pobre Walter!

 

De 9 a 10 de Janeiro. - Hoje sobrevém outra vez calmaria.

O sol queima, a brisa cai de todo, e nem uma ruga encrespa as amplas ondulações do mar que se ergue insensivelmente. Não havendo alguma corrente, cuja existência e direcção não temos meio de verificar, deve a jangada permanecer absolutamente imóvel.

O calor é na verdade insuportável. Mais insuportável ainda é a sede que nos causa. Pela primeira vez sentimos os tormentos da falta de água, e prevejo que virá a causar torturas mais dolorosas que as da fome. Já quase todos sentimos a boca, a garganta e a faringe contraídas pela secura; as mucosas encarquilham-se pela acção do ar quentíssimo que respiramos.

A instâncias minhas, resolve o capitão modificar por esta vez o regime habitual. Concede dupla ração de água e por isso, bem ou mal, conseguimos matar a sede quatro vezes ao dia. Digo bem ou mal, porque a água que resta no fundo do barril, embora coberta com um pano, acha-se morna, quase quente.

Em suma, o dia de hoje é péssimo, e os marinheiros, outra vez atormentados pela fome, de novo desesperam.

Não se reanima a brisa com o nascer da Lua, quase cheia. Assim mesmo sentimos algum alívio, porque nas regiões tropicais as noites são frescas; durante o dia o calor é insuportável, e pelo seu próprio excesso indica que a jangada abateu muito para o sul.

Nem sequer nos esforçamos já por avistar terra. Parece que o globo terrestre é todo esfera líquida. Sempre e por toda a parte este mar infindo!

A 10, igual calmaria, igual calor. O céu parece derramar sobre nós chuva de fogo: o ar que respiramos abrasa. O desejo de beber água torna-se irresistível a ponto que faz esquecer os tormentos da fome; esperamos com impaciência furiosa o momento em que Roberto Kurtis distribui as poucas gotas de água da ração. Oh! quem nos dera beber uma vez a fartar, embora consumíssemos a água toda e morrêssemos logo!

Neste momento, meio-dia, é um dos nossos companheiros atacado de dores violentas, que o obrigam a soltar altos gritos. É o infame Owen que, deitado à proa, se estorce em horríveis convulsões.

Arrasto-me para o pé de Owen. Qualquer que tenha sido o seu porte, manda a humanidade que tente proporcionar-lhe algum alívio se for possível.

Eis, porém, que o marinheiro Flaypol dá um grito. Volto-me. Flaypol está de pé, subido aos cunhos do mastro; e com a mão indica um ponto a leste do horizonte.

- Uma vela! - brada ele.

Erguemo-nos todos de salto. Reina a bordo absoluto silêncio.

O próprio Owen se levanta e sufoca os gemidos.

Aparece com efeito um ponto branco na direcção indicada por Flaypol. Distingue-se pouco! Será uma vela? Que pensam os marinheiros, cuja vista é tão penetrante?

Olho para Roberto Kurtis, que, de braços cruzados, observa também o ponto branco. As maçãs do rosto sobressaem-lhe, todas as partes da face sobem pelo efeito da contracção violenta dos orbiculares, franze o sobrolho, tem os olhos meio fechados, emprega toda a potência visual de que pode dispor. Se o ponto branco for uma vela, deve avistá-la forçosamente.

Mas abana a cabeça e os braços caem-lhe inertes ao longo do corpo.

Olho. Já não diviso o ponto branco. Não era navio, seria reflexo, rebentar de crista de vaga; ou, se era navio, desapareceu!

Como sucede rápido o desânimo àquele clarão de esperança!

Todos nos deitamos como de costume. Só Roberto Kurtis permanece imóvel, mas não observa já o horizonte.

Redobram com maior força os gritos de Owen. Contorce o corpo por efeito de dores horríveis, o seu aspecto é medonho. Tem a garganta apertada por contracções espasmódicas, a língua seca, o ventre inchado, o pulso pequeno, rápido, irregular. O mísero sofre convulsões violentíssimas e até contracções tetânicas.

Este cortejo de sintomas não deixa sombra de dúvida: Owen foi envenenado com um sal de cobre.

Não possuímos antídotos para combater os efeitos deste veneno. Podemos, contudo, provocar o vómito para lhe fazer sair do estômago a substância deletéria. Para isso, o melhor é água morna, e peço a Roberto Kurtis que me dê alguma. O capitão acede. Como porém esteja acabado o líquido do primeiro barril, vou buscá-la ao segundo, ainda intacto, mas Owen ergue-se de joelhos e com voz que não parece humana, grita:

- Não! Não! Não!

Qual é a razão desta negativa enérgica? Volto para o pé de Owen e explico-lhe o que tenciono fazer. Ele, ainda com maior energia, responde que não quer semelhante água.

Tento então provocar o vómito pela titilação da úvula e o doente expele matérias azuladas. Não me enganei. Owen está envenenado com sulfato de cobre, ou caparrosa azul: não há remédio que o salve!

Mas como foi ele envenenado? O vómito aliviou-o e pôde finalmente falar. O capitão e eu damo-nos pressa de o interrogar...

Não tentarei descrever a impressão que em nós produziu a resposta daquele infeliz!

Owen, apertado pelos tormentos da sede, roubou alguns quartilhos de água do barril intacto e foi essa água que o envenenou.

 

De 11 a 14 de Janeiro. - Owen morreu de noite com acessos tetânicos que se manifestaram extraordinariamente intensos.

Verdade horrível! O barril envenenado conteve em tempo caparrosa azul. É facto evidente. Por que fatalidade foi semelhante vasilha empregada em guardar água, por que fatalidade, mais terrível ainda, a embarcaram na jangada? Que importa? O certo é que já não temos água. Atirámos sem demora o corpo de Owen ao mar, porque logo se manifestou a putrefacção com tal rapidez que nem o mestre poderia iscar as linhas com carnes já inconsistentes. Assim aquele malvado nem morto pode ser-nos útil!

Todos sabemos qual é a nossa actual situação e ninguém profere palavra. Que diríamos? Além disso, até nos irrita o som das próprias vozes. Com o grau de irascibilidade a que chegámos, melhor é calarmo-nos, porque bastaria uma palavra, um olhar, um gesto para provocar fúrias impossíveis de conter.

Nem eu sei como não endoidecemos já!

A 12 de Janeiro, não recebemos ração de água, porque na véspera consumimos as últimas gotas.

No céu nem uma nuvem que prometa chuva; o termómetro marcaria 104 graus à sombra, se pudesse haver sombra nesta infernal jangada.

No dia 13, continua a mesma situação. A água salgada começa a roer-me os pés, que já estão quase em carne viva, mas não faço caso! Não pioram os que já antes sofriam do mesmo mal.

Oh! como pensar que bastaria evaporar ou solidificar a água que nos rodeia para torná-la potável! Evaporada ou congelada, já não conteria sal e poderíamos bebê-la! Mas não possuímos aparelhos para isso, nem meio de fazê-lo.

Hoje o mestre e dois marinheiros banharam-se no mar, apesar do perigo de serem devorados pelos tubarões. O banho alivia-os bastante e até certo ponto os refresca. Três outros indivíduos e eu, que mal sabemos nadar, deitamo-nos ao mar, amarrados com cabos, e permanecemos meia hora na água. Roberto, Kurtis velava por nós, e felizmente não se avistou nenhum tubarão. A despeito dos nossos rogos e de sofrer muito, Miss Herbey não quis imitar-nos.

No dia 14, pelas onze horas da manhã, chega-se o capitão ao pé de mim e diz-me ao ouvido:

- Não faça nenhum movimento que revele o que vou dizer-lhe, Sr. Kazallon; posso enganar-me e não quero causar outra desilusão aos nossos desgraçados companheiros.

Olho para Roberto Kurtis.

- Agora é certo - continua ele -, avisto um navio!

Bem fez ele em prevenir-me, porque doutro modo não seria eu senhor de mim.

- Olhe - diz ainda ele. - Olhe à popa por bombordo.

Ergo-me com ar de indiferença que bem longe estou de sentir e dirijo o olhar para o arco do horizonte indicado pelo capitão.

Não possuo o olhar penetrante dos homens habituados ao mar; porém, é certo que vejo o contorno indistinto de um navio à vela.

Quase ao mesmo tempo o mestre, que, por acaso, olhara para o mesmo lado, brada:

- Uma vela!

A notícia de termos navio à vista não produz logo o efeito que seria natural esperar, ou porque uns não acreditem, ou porque outros vão de todo desfalecidos.

Ninguém se levanta. Tendo, porém, o mestre bradado muitas vezes: - Uma vela! Uma vela! - todos afinal olham para o ponto indicado.

Desta vez não pode haver dúvida: vemos o suspirado navio! E ele avistar-nos-á?

Os marinheiros discutem entretanto a qualidade, o rumo do navio, principalmente o rumo.

Roberto Kurtis observa-o cuidadosamente e informa:

- É um brigue que vai de bolina com amura a estibordo. Se conservar duas horas o mesmo rumo, há-de forçosamente cortar a esteira que seguimos.

Duas horas! Dois séculos! O navio pode de um momento para outro mudar de rumo, principalmente porque é possível que só dê bordos para barlaventear. Ora, sendo assim, logo que terminar a bordada, virará na outra amura e afastar-se-á. Oh! Se navegasse à popa ou com vento largo, teríamos bem fundadas esperanças!

É preciso a todo o custo fazer que nos avistem do brigue.

Roberto Kurtis determina que se empreguem todos os sinais possíveis, porque o navio ainda nos fica a doze milhas para leste e decerto não nos ouviriam de bordo dele, por muito que gritássemos. Infelizmente não possuímos nenhuma arma de fogo, cujas detonações se propagassem até mais longe; icemos, pois, qualquer bandeira no topo do mastro.

É vermelho o xaile de Miss Herbey e nenhuma cor se destaca melhor nos horizontes do céu e do mar.

Içamos o xaile de Miss Herbey e a leve brisa que encrespa a superfície das vagas desdobra-lhe as pregas. De tempos a tempos flutua e o seu palpitar enche-nos o coração de esperança. É sabido com que energia se agarra aos mínimos objectos uma pessoa em perigo de afogar-se: A bandeira vermelha é para nós a bóia salvadora.

Durante uma hora passamos por mil alternativas. O brigue aproxima-se evidentemente da jangada; às vezes, porém, parece deter-se e espreitamos ansiosos se virará de bordo.

Como navega vagaroso! Vai com todo o pano largo... Avistamos acima do horizonte os sobres... as velas de entre mastros... quase o casco. Mas a brisa é fraca e se continua a sair...

Daríamos anos de vida por mais uma hora!

Pelo meio-dia e meia hora calculam o capitão e o mestre que o brigue fica ainda a nove milhas de distância. Aproximou-se, pois, apenas três milhas em hora e meia; a brisa que perpassa sobre nós mal lhe chega às velas. Parece-me agora que não leva as velas enfunadas, antes estão de encontro aos mastros.

Examino se o vento refresca, mas o mar parece adormecido e expira ao largo a brisa que tanto nos animou.

Coloco-me à popa junto dos Letourneur e de Miss Herbey, e não tiro os olhos de Roberto Kurtis e do navio. O nosso capitão está imóvel à proa, encostado ao mastro, ao pé dele encontra-se o mestre e ambos contemplam o brigue com ávida atenção. Nos rostos, que não podem manter-se impassíveis, lemos todas as sensações que lhes perpassam pela mente.

Ninguém diz palavra, até que o carpinteiro Daoulas brada com acento indescritível:

- O brigue vira de bordo!

Toda a existência se nos concentra no olhar; erguemo-nos em massa, uns de joelhos, outros de pé. O mestre solta uma praga terrível. O brigue ainda está a nove milhas de nós e de tal distância não pode ver os sinais que fazemos! A jangada não passa de um ponto no espaço, perdida na deslumbrante reverberação dos raios solares. É impossível avistá-la! Não a avistaram. O capitão daquele navio, seja ele quem for, se nos visse não seria tão desumano que fugisse sem nos prestar socorro! Não! É inadmissível! Não nos avistou!

- Fogo! Fumo! - exclama então Roberto Kurtis. - Queimemos o tabuado da jangada! Ânimo, rapazes! É a única probabilidade de nos avistarem.

Amontoamos tábuas à proa da jangada. Acendemos lume não sem custo, porque a madeira está húmida, porém, esta humidade torna o fumo mais espesso e, portanto, visível a maior distância. Em breve se ergue a prumo uma coluna anegrada. Se fosse noite, se escurecesse antes de o brigue estar fora de vista, o clarão da fogueira seria visível à distância que nos separa! Porém as horas decorrem, o fogo apaga-se!...

Em tais circunstâncias, para ter resignação, para aceitar submissamente a vontade divina, é necessário possuir extraordinário domínio sobre o próprio ânimo. Não o tenho eu!

Não seria loucura confiar nesse Deus que torna os nossos tormentos mais dolorosos intercalando neles esperanças sempre vãs! Por isso praguejo e blasfemo, como praguejou e blasfemou o mestre! Sinto encostar-se ao meu ombro uma débil mão: é Miss Herbey que aponta para o céu! A taça do sofrimento transborda!

Não quero ver mais nada; deito-me debaixo da vela, cubro a cabeça, e dou largas aos soluços que me enchem o peito...

Entretanto o brigue vira no outro bordo, afasta-se vagaroso para leste, e três horas depois tinha desaparecido completamente da vista dos náufragos.

 

15 de Janeiro. - Depois deste golpe funesto é a morte o único refúgio que podemos esperar. Mais ou menos demorada, é, contudo, certa.

Hoje cobriu-se de nuvens o horizonte para o lado de oeste, e com elas vieram algumas lufadas de vento. A temperatura é mais moderada e, apesar do nosso estado de prostração, sentimos algum alívio. Aspiramos ar menos seco; porém, desde a pesca feita pelo mestre, há sete dias, não tomamos alimento nenhum.

Não existe nada na jangada; ontem dei a André Letourneur o último pedaço de bolacha escondido pelo pai e que este me entregou chorando.

Ontem conseguiu Jynxtrop desatar os cabos que o ligavam, mas Roberto Kurtis não ordenou que o prendessem outra vez. E daí para quê? O jejum prolongado enfraqueceu aquele malvado e os seus cúmplices. Que poderiam tentar agora?

Hoje aparecem à vista alguns tubarões enormes, vemo-los cortar velozmente a vaga com as barbatanas negras. Não posso deixar de considerá-los túmulos vivos, que em breve engolirão os nossos míseros cadáveres. Já não me assustam, atraem-me antes. Aproximam-se até roçarem a jangada e um deles ia cortando o braço que Flaypol tinha pendente no mar.

O mestre, com os olhos fitos e esbugalhados, os dentes cerrados na boca entreaberta, considera os tubarões sob um aspecto diverso do meu. Quer devorá-los em vez de ser devorado por eles. Se pudesse agarrar um, não lhe desprezaria a carne coriácea. Nem nós também. O mestre resolve tentar a empresa e, visto não termos fateixa própria a que possamos atar um cabo, trata de a substituir. Compreendem o seu intento Roberto Kurtis e Daoulas, que por isso se reúnem com ele em conselho, não deixando de deitar diversos objectos ao mar a fim de manterem os esqualos junto da jangada.

Daoulas vai buscar a sua machadinha, com a qual conta improvisar uma fateixa, pois é possível que esta ferramenta, ou pelo gume ou pela parte oposta e pontiaguda, se encrave nas queixadas de algum tubarão que a engula. Ata-se o cabo de madeira da machadinha a uma corda fixa num dos cabeços da jangada.

Estes preparativos mais desafiam a fome. Ansiamos impacientemente e por todos os meios imagináveis despertar a atenção dos tubarões, que não fugirão decerto.

Está pronta a fateixa, mas não temos nada com que iscá-la. O mestre, que anda por um lado e por outro, falando consigo mesmo, que rebusca por todos os cantos, tem jeitos de procurar algum cadáver entre nós!...

Não há remédio senão recorrer ao meio já tentado: envolve-se o ferro da machadinha num pedaço de lã vermelha tirado ao xaile de Miss Herbey.

O mestre, porém, quer proceder com o máximo cuidado. Estará a improvisada fateixa bem segura? O laço que prende o cabo à jangada resistirá aos esticões do monstro? E o cabo terá força para resistir? O mestre examina todas estas condições e, feito isto, deixa correr para o mar aquele improvisado aparelho de pesca.

A água acha-se clara e transparente, por forma que não será difícil distinguir objectos a cem pés de profundidade. Vejo descer vagarosamente a fateixa embrulhada no trapo vermelho, cuja cor se destaca com força na massa azul das águas.

Todos, passageiros e marinheiros, nos debruçamos sobre a borda da jangada, atentos e silenciosos. Parece, porém, que os tubarões desapareceram, desde que se ofereceu aquele engodo à sua voracidade. Não podem, decerto, andar afastados, e qualquer comestível que caisse ao mar seria devorado num momento!

De repente, faz o mestre um aceno com a mão e aponta para um enorme esqualo que escorrega à superfície do mar em direcção à jangada. O animal, que terá doze pés de comprimento, emergiu das profundezas e voga direito a nós. Quando o tubarão chega a quatro braças, o mestre retira mansamente a linha, de maneira a pôr-lhe a isca no caminho, e continua dando à fateixa pequenos movimentos que a fazem parecer coisa viva.

O coração palpita-me com extraordinária violência, como se arriscasse a vida naquele lance!

O tubarão chega-se mais; já vemos brilhar à superfície da água os seus olhos injectados de sangue. As queixadas, desmedidamente abertas, mostram, quando o animal se volta de lado, o céu da boca cravejado de dentes pontiagudos.

Ouve-se um grito!... O tubarão pára e desaparece em seguida nas profundezas do mar.

Qual de nós gritou, decerto involuntariamente?

O mestre ergue-se fulo de raiva.

- O primeiro que falar, mato-o! - brada ele.

E deita outra vez a linha ao mar.

O caso é que ele tem razão.

A fateixa vai de novo pendente, mas durante meia hora nenhum tubarão aparece, sendo necessário deixar correr vinte braças de linha. A mim parece-me que àquela profundidade está a água turva, e que esta turvação indica a presença de tubarões.

De repente, a linha leva um esticão violento e escorrega das mãos do mestre; felizmente fica retida no laço dado em volta de um dos cabeços.

Algum tubarão engoliu a machadinha e se encravou a si próprio.

- A mim, rapazes, a mim! - brada o mestre.

Corremos todos à porfia e começamos a puxar a linha. A esperança restitui-nos forças, mas, ainda assim, a custo colhemos o cabo, tão violentamente se estorce o monstro.

Puxamos à uma e a pouco e pouco se vão agitando as camadas superiores da água aos golpes enérgicos da cauda e das barbatanas peitorais do tubarão.

Debruçando-me, vejo distintamente o corpo enorme que se estorce nas águas ensanguentadas.

- Força! Força! - grita o mestre.

Emerge enfim a cabeça do animal. A machadinha entrou pela boca até ao fundo da garganta, onde se cravou de modo que resiste a todos os esforços. Daoulas deita mão de um machado para dar o último golpe ao tubarão, logo que ele chegue ao nível do sobrado.

Neste momento ouve-se um estalo seco e rápido. O esqualo fechou violentamente as queixadas, cortando cerce o cabo da machadinha. Imediatamente mergulha e desaparece.

De todos os peitos sai um gemido desesperado! O mestre, Roberto Kurtis e Daoulas ainda tentam apanhar algum tubarão, embora já não tenham fateixa nem com que fazê-la. Deitam ao mar cabos com laços corredios, mas estes não acham pega na pele viscosa dos esqualos. O mestre até ousa atrai-los deixando pender uma perna fora da jangada, com perigo evidente de lhe ser comida de uma dentada...

Terminam enfim estas tentativas infrutíferas, e todos voltam para os seus lugares, aguardando a morte, que nenhum meio temos de evitar.

Não me afastei tão depressa que não ouvisse o mestre dizer a Roberto Kurtis:

- Capitão, em que dia tiraremos à sorte?

Roberto Kurtis não respondeu, mas fica posta a questão.

 

16 de Janeiro. - permanecemos todos deitados sobre as velas, e a tripulação de algum navio que passasse julgaria que a jangada só transporta cadáveres.

Sofro horrivelmente. Poderia comer no estado em que tenho os lábios, a língua e a garganta? Não creio; contudo os meus companheiros e eu olhamo-nos com modos selváticos.

Hoje ainda o calor é mais intenso por estar o céu carregado de nuvens tempestuosas. Erguem-se do horizonte vapores densos, mas creio que choverá em toda a parte, excepto na jangada.

Contudo, contemplamos com avidez o engrossar das nuvens, para as quais estendemos os lábios sequiosos. Letourneur, ajoelhado, ergue as mãos suplicantes para o céu implacável!

Escuto se algum ruído longínquo anuncia tempestade. São onze horas da manhã; as névoas cobrem os raios do Sol, mas já não apresentam aparência eléctrica. É evidente que não se desencadeará tempestade, porque a massa de nuvens tomou cor uniforme, fundindo-se num todo acinzentado os seus contornos, que pela manhã eram tão distintos. Agora é só nevoeiro.

Não poderá isto produzir alguma chuva, embora pouca, gotas apenas?

- Chuva! - exclama de repente Daoulas.

Com efeito, a meia milha da jangada parece o céu dividido em fitas paralelas. Chove, e até vejo as gotas de água ressaltarem na superfície do mar. O vento, que refresca, empurra a chuva para nós! Deus queira não se esgote a nuvem antes de passar sobre a jangada.

Amerceia-se Deus dos pobres náufragos: a chuva cai em grossas pingas como de nuvens tempestuosas. Mas o aguaceiro não pode ser demorado e convém aproveitar depressa tudo quanto ele produzir, porque já aparece acima do horizonte uma vívida faixa luminosa que incendeia o bordo inferior da nuvem.

Roberto Kurtis mandou endireitar o barril vazio de modo que receba a máxima quantidade de água; por ordem dele são também estendidas as velas para que se embebam do líquido benéfico.

Depois, deitamo-nos de costas, com a boca aberta. A água rega-me o rosto, os lábios, sinto-a escorregar até ao fundo da garganta! Oh! Gozo inefável! a vida que me corre pelo corpo inteiro! O contacto da água lubrifica as membranas da boca; tanto respiro como bebo a água vivificadora, que penetra até ao âmago do meu ser!

A chuva dura vinte minutos; depois a nuvem, meio esgotada, esvai-se no espaço.

Erguemo-nos melhores; sim! melhores. Apertamos as mãos, falamo-nos! Parece que estamos salvos! Deus misericordioso nos enviará outras nuvens para nos darem a água de que há tanto tempo andamos privados!

Além disso, não se perderá a chuva que caiu na jangada, porque foi recolhida no barril e nas velas. É necessário conservá-la preciosamente e distribuí-la só gota a gota. Com efeito, no barril colhemos cinco a seis quartilhos de água e espremendo as velas encharcadas obteremos maior porção. Já os marinheiros vão começar este trabalho, quando Roberto Kurtis os detém com o gesto.

- Esperem! - diz ele. - Essa água será potável?

Olho para ele admirado. Porque não será potável aquela água, que provém unicamente da chuva?

O capitão espreme na taça de folha algumas gotas da água contida nas dobras de uma vela, prova, e, com grande surpresa minha, cospe-a logo.

Provo também. Aquela água não estava apenas salobra, mas salgada como se fora do mar!

É que as velas, há tanto tempo expostas à acção das vagas, estão impregnadas de sal, que se dissolveu na água colhida por elas. É uma desgraça irremediável! Embora! Reanimou-se em nós a esperança e, além disso, ainda dispomos da porção contida no barril! E demais já choveu uma vez! Choverá outra!

 

17 de Janeiro. - Porque conseguimos mitigar a sede por alguns momentos, redobram naturalmente os tormentos da fome.

Não haverá meio, sem isca nem anzol, de nos apoderarmos de alguns tubarões que formigam em volta da jangada? Não, exceptuando se algum de nós se deitar ao mar, e acometer um daqueles monstros com a navalha e no seu próprio elemento, como fazem os índios nas pescarias de pérolas. Roberto Kurtis quis arriscar-se nessa empresa. Não consentimos. Os tubarões são em grande número e, portanto, seria morte certa sem proveito nenhum.

Aqui cabe notar que é possível enganar a sede, ou banhando-se no mar ou metendo na boca objectos metálicos. Já não sucede outro tanto com a fome, porque não há nada que possa substituir as substâncias nutritivas. Além disso, sempre existe esperança de que algum fenómeno natural, a chuva por exemplo, proporcione água. De modo que, não se devendo nunca desesperar de beber, pode absolutamente desesperar-se de comer.

A este ponto chegamos, e, para confessar a verdade inteira, devo dizer que alguns dos meus companheiros já contemplam os outros com olhares ávidos. Imagine-se por aqui a senda fatal que tomam as nossas ideias, e até a que extremos de crueza podem chegar ânimos possessos de uma ideia única. Todos bebem e tornam a beber com delírio.

Depois de passarem as nuvens tempestuosas que nos deram meia hora de chuva, o céu tornou-se límpido e puro. O vento refrescou por momentos, mas logo acalmou outra vez; agora cai a vela ao longo do mastro. Além disso, já não consideramos o vento como motor propício. Onde está a jangada? Para que ponto do Atlântico foi arrastada pelas correntes? Ninguém o pode dizer, nem desejar que o vento sopre de leste de preferência a norte, ou sul! Só uma coisa pedimos à brisa: é que nos refresque o peito, é que misture alguma humidade no ar seco que nos consome, é que modere o calor intenso que o Sol inflamado derrama do zénite.

Cai a tarde e a noite deve ser escura até à meia-noite, hora do nascimento da Lua em quarto minguante. As constelações, bastante encobertas pela névoa, não projectam a cintilação esplêndida que ilumina as noites frias.

Vítima de uma espécie de loucura provocada pela fome atroz, que geralmente aumenta ao anoitecer, vou deitar-me sobre um rolo de velas posto a estibordo, e debruço-me sobre o mar para aspirar alguma humidade.

Quanto aos meus companheiros, deitados nos sítios do costume, encontram no sono o esquecimento das dores? Talvez nenhum. Por mim sinto o crânio vazio, ou, antes, povoado de pesadelos sinistros.

Domina-me, contudo, uma sonolência dolorosa, que não é sono nem vigília. Não posso dizer quanto tempo permaneci nesta situação inconsciente, de que me arrancou uma sensação singular.

Talvez seja sonho, mas parece-me sentir o olfacto ferido por um cheiro que ao princípio não conheço bem. Não passa de emanação indistinta, que os suspiros da brisa expirante me trazem por momentos. As minhas narinas dilatam-se e aspiram.

- Que cheiro é este? - sinto eu tentações de exclamar. Contenho-me por uma espécie de instinto, e busco como se procurasse na memória uma palavra ou um nome esquecido.

Decorrem alguns momentos. Aumenta a intensidade da emanação odorífera, e com maior ânsia aspiro aquele aroma.

- Espera! - digo de repente e como quem se recorda. - Isto é cheiro de carne assada!

Outra respiração mais enérgica desengana-me de que os sentidos não me iludem; mas na jangada...

Ergo-me sobre os joelhos, aspiro outra vez, sorvo, para assim dizer, o ar ambiente, e de novo vem o mesmo cheiro ferir-me o olfacto. Estou, portanto, a sotavento do objecto que produz esse aroma; logo, esse objecto acha-se à proa da jangada.

Eis, por isso, que deixo o meu lugar, arrasto-me como animal, busco não com a vista mas com o olfacto, meto-me por debaixo das velas, entre os destroços, com prudência felina e tentando a todo o custo não despertar a atenção dos meus companheiros.

Ando assim alguns momentos arrastando-me por todos os cantos, guiado pelo cheiro como sabujo. Umas vezes perco o rasto, ou porque me afasto, ou porque a brisa cai; outras vezes a emanação aumenta de intensidade. Enfim encontro a pista, sigo-a, e pressinto que vou direito ao objecto buscado!

Estou agora no ângulo de estibordo, à proa da jangada, e reconheço que o cheiro é de um pedaço de toucinho de fumeiro.

Não me engano; a cobiça dilata-me todas as papilas da língua!

Agora preciso insinuar-me num rolo enorme de velas. Ninguém me vê, ninguém me ouve. Arrasto-me sobre os joelhos e os cotovelos. Estendo o braço e agarro um objecto embrulhado num pedaço de papel. Tiro-o rapidamente para fora e passo a examiná-lo ao tíbio clarão da Lua, que neste momento se ergue acima do horizonte.

Não é ilusão. Seguro um pedaço de toucinho que mal chega a uma quarta (1), mas que basta para mitigar o sofrimento durante um dia. Vou levá-lo à boca....

Neste momento sinto outra mão agarrar a minha. Volto-me, contendo a custo um rugido, e reconheço o despenseiro Hobbart.

Explica-se agora tudo: a situação particular de Hobbart, a sua saúde relativamente melhor, os seus queixumes hipócritas.

No momento do naufrágio conseguiu salvar alguns víveres, escondeu-os cauteloso e alimentou-se enquanto nós morríamos de fome. Oh! Que infame! Mas não! Hobbart procedeu com juízo!

Parece-me actualmente homem prudente, de bom conselho; se conservou alguns alimentos às escondidas dos companheiros, tanto melhor para ele... e para mim.

Hobbart não se conforma. Agarra-me a mão e tenta tirar-me o pedaço de toucinho, mas sem falar, porque receia despertar a atenção dos companheiros.

Lutamos em silêncio, porque o meu interesse é também calar.

Não quero que venham outros disputar-me a presa; combato com tanta maior fúria quanto ouço Hobbart rosnar entre dentes:

- O último bocado! A última dentada!

A última dentada! Quero-a para mim custe o que custar, quero-a e hei-de tê-la. Seguro o meu adversário pelo pescoço, aperto; ele estrebucha, sufoca-se e cai sem sentidos! E com uma das mãos mantenho Hobbart prostrado, com a outra levo à boca o pedaço de toucinho, que mastigo sensualmente.

Depois largo o infeliz despenseiro, arrasto-me outra vez, e volto para o meu lugar à proa.

Ninguém me viu. Comi!

 

18 de Janeiro. - Espero o dia com extrema ansiedade!

Hobbart, que dirá? Parece-me que ele tem direito de me denunciar! Não! É absurdo! Se eu contar o sucedido, se referir como Hobbart tem vivido enquanto morríamos de fome, como há tantos dias se tem alimentado às escondidas e com prejuízo nosso, os companheiros matam-no sem dó!

Pouco importa! Quereria que já fosse dia.

Saciei momentaneamente a fome, apesar de o toucinho ser bem pouco, uma dentada apenas, a última, como dizia Hobbart. Mas já não padeço e, do fundo do coração o digo, quase sinto remorsos de não ter repartido com os meus companheiros aquele minguado alimento. Deveria pensar em Miss Herbey, em André, em seu pai... Só cuidei de mim!

Entretanto a Lua sobe vagarosa no firmamento e em breve a seguem os primeiros alvores da madrugada. Não tarda o dia, porque estamos nas latitudes equatoriais onde a alva e o crepúsculo não existem.

Não consegui pregar olho; aos primeiros clarões matutinos parece-me ver uma massa informe que pende a meio mastro. Que objecto é aquele? Não posso distingui-lo ainda e deixo-me ficar deitado.

Deslizam enfim sobre o mar os raios do Sol, e à luz deles diviso um corpo balouçando-se de uma corda consoante os movimentos da jangada.

Não resisto ao pressentimento que me chama para o pé daquele corpo, e chego ao pé do mastro...

O corpo é de enforcado; o enforcado é Hobbart, é esse desgraçado! E fui eu, eu sim! que o impeli ao suicídio!

Foge-me dos lábios um grito de horror. Os meus companheiros erguem-se, vêem o cadáver e correm. Não é para saber se nele arde ainda alguma faísca de vida!... Além disso, Hobbart morreu e já o seu cadáver está frio.

Num momento cortam a corda. O mestre, Daoulas, Jynxtrop, Falsten e outros debruçam-se sobre o cadáver...

Não! Não vi! Não quis ver! Não tomei parte naquele horrível festim! Nem Miss Herbey, nem André Letourneur, nem seu pai quiseram mitigar por tal preço os sofrimentos! De Roberto Kurtis, não sei... Não ousei perguntar-lhe. Quanto aos outros, ao mestre, Daoulas, Falsten, aos marinheiros!... Oh! O homem transformado em fera... É espantoso!

Os Letourneur, Miss Herbey e eu escondemo-nos na barraca, não quisemos ver! Já não era pouco ouvir!

André Letourneur pretendia atirar-se àqueles canibais; arrancar-lhes a horrenda presa. Tive de lutar com ele para contê-lo.

E, contudo, aqueles desgraçados estavam no seu direito!

Hobbart morrera! Não o tinham assassinado! Como disse há dias o mestre:

- Mais vale comer os mortos que os vivos!

Agora quem sabe se esta cena não será prólogo de algum drama execrando, que ensanguente a jangada?

Tudo isto disse a André Letourneur, mas sem vencer o horror nele levado até quase ao delírio e que chega a fazer-lhe esquecer os próprios tormentos.

Pensemos porém nisto: nós morremos de fome e talvez oito dos nossos companheiros escapem assim a essa morte atrocíssima!

Hobbart, graças aos víveres que tinha escondido, era o mais corpulento de nós todos. Nenhuma doença orgânica lhe alterara os tecidos. Deixara de viver por um acto brutal, quando estava ainda cheio de saúde!...

Mas que horríveis pensamentos assaltam o meu espírito. Aonde me conduzem? Aqueles canibais causar-me-ão antes inveja que horror?

Neste momento levanta um deles a voz. o carpinteiro Daoulas.

Propõe que evaporem água do mar ao sol para obterem sal.

- E salgaremos o resto - explica ele.

- Tens razão - responde o mestre.

Depois mais nada. Decerto foi aceite a proposta do carpinteiro porque já não ouço nada. Reina profundo silêncio a bordo da jangada, do que concluo que os meus companheiros dormem.

Já não têm fome.

 

19 de Janeiro. - Durante este dia continuam o mesmo estado do céu e a mesma temperatura; cai a noite sem modificar o equilíbrio da atmosfera. Não consegui dormir nem um minuto.

Pela manhã ouço gritos de raiva a bordo.

Os Letourneur e Miss Herbey, que estão comigo na barraca, levantam-se. Afasto o pano e examino o que sucede.

O mestre, Daoulas e os outros marinheiros mostram-se exasperados. Roberto Kurtis, que estava sentado à popa, levanta-se e, informando-se do que dera lugar àquela fúria, tenta apaziguá-los.

- Não! Não! Havemos de saber quem tal fez! - ruge Daoulas, volvendo olhares ferozes em torno de si.

- Sim! - responde o mestre. - Temos ladrão a bordo, porque desapareceu o que nos restava!

- Não fui eu! Nem eu! - bradam à porfia os marinheiros.

E vejo aqueles míseros rebuscando em todos os cantos, levantando as velas, arredando os madeiros. A sua raiva cresce à medida que as pesquisas vão ficando infrutíferas.

O mestre dirige-se para mim.

- Há-de conhecer o ladrão! - diz ele.

- O ladrão de quê? Nem sei o que dizem - respondo.

Aproximam-se Daoulas e alguns marinheiros.

- Procurámos por toda a parte - declarou Daoulas. - Só nos resta revistar na barraca...

- Nenhum de nós saiu daqui, Daoulas.

- É o que vamos ver!

- Não! Deixe em paz os que morrem de fome!

- Sr. Kazallon - volve o mestre, contendo a cólera -, nós não o acusamos... Se qualquer dos senhores tirasse o seu quinhão que ontem não quis, estaria no seu direito. Mas desapareceu tudo, tudo, percebe?

- Busquemos na barraca! - grita Sandon.

Os marinheiros avançam e não posso resistir àqueles infelizes, cegos pela cólera. Apodera-se de mim um susto terrível. Teria Letourneur não para si, mas para o filho, ousado tirar os restos de Hobbart... Se o fez, vai ser despedaçado por estes furiosos! Olho para Roberto Kurtis, invocando o seu auxílio, e o capitão vem colocar-se ao meu lado. Mete as mãos nas algibeiras, mas estou certo de que as tem armadas.

Entretanto Miss Herbey e os Letourneur saíram da barraca por ordem do mestre, que, com os seus companheiros, a examina toda, sem lhes escapar o mínimo recanto. Felizmente foi em vão.

É evidente que, se os restos de Hobbart desapareceram, alguém os deitou ao mar.

O mestre, o carpinteiro e os marinheiros recuam, medonhamente desesperados.

Mas quem fez isto? Examino Miss Herbey e Letourneur; e nos seus olhos leio que nenhum deles foi.

Volto-me depois para André, que desvia o rosto.

Desgraçado rapaz! Seria ele? E, se foi, compreenderá as horríveis consequências do acto que praticou?

 

De 20 a 22 de Janeiro. - Durante os dias seguintes pouco sofreram os que tomaram parte no horrível festim do dia 18.

Não admira, visto terem morto a fome e a sede.

É, porém, impossível descrever o que Miss Herbey, os Letourneur e eu sofremos! Quase lastimamos terem-se perdido os míseros restos de Hobbart! E resistiremos se algum de nós morrer?

O mestre, Daoulas e os marinheiros começam a sentir de novo os tormentos da fome, e olham-nos com ar desvairado.

Julgar-nos-ão presa segura e fácil?

Na verdade, é a sede e não a fome que mais nos faz padecer.

Sim! Entre algumas gotas de água e migalhas de bolacha, nenhum de nós hesitaria na escolha! O mesmo se tem dito dos náufragos em circunstâncias semelhantes às nossas, e é verdade. A sede atormenta mais que a fome, e mata mais depressa.

E em volta de nós - suplício espantoso! - a água do mar, que à vista tanto se parece com a doce! Muitas vezes tentei beber algumas gotas dela, mas causaram-me náuseas invencíveis e sede ainda mais ardente.

Oh! É de mais! Há quarenta e dois dias que deixámos a galera! Quem pode ter ainda ilusões ou esperanças? Pois não estamos condenados a morrer todos uns após outros e da morte mais dolorosa?

Sinto como que um nevoeiro a condensar-se em volta do meu cérebro. Parece que a loucura me invade sucessivamente e luto para segurar a razão que foge. O delírio aterra-me! A que extremo me levará? Terei forças para recuperar o juízo?...

Voltei a mim, passadas não sei quantas horas. Miss Herbey teve a caridosa lembrança de cingir-me a testa com panos molhados em água do mar; sinto, porém, que pouco tempo me resta de vida.

Cena horrível hoje 22. O negro Jynxtrop foi repentinamente acometido de um acesso de loucura furiosa e percorre a jangada rugindo como fera. Quis Roberto Kurtis contê-lo, mas foi em vão! Atira-se a nós para devorar-nos, e temos de defender-nos contra os ataques daquele animal feroz. Jynxtrop apoderou-se de um croque e é difícil aparar os golpes que nos atira.

Porém, de repente, por uma mudança que só o delírio explica, o preto volta a fúria contra si próprio, despedaçando-se com os dentes e as unhas, atirando-nos o sangue às faces e gritando:

- Bebam! Bebam!

Continua assim furioso alguns minutos, e depois dirige-se para a proa da jangada, continuando a bradar:

- Bebam! Bebam!

Afinal atira consigo, e sinto o choque do corpo caindo no mar.

O mestre, Falsten e Daoulas correm para a proa a fim de agarrarem o cadáver, mas só avistam um grande círculo vermelho, dentro do qual brigam tubarões monstruosos!

 

22 e 23 de Janeiro. - Já somos apenas onze a bordo e parece-me impossível que daqui por diante cada dia não conte a sua vítima. Aproxima-se o desfecho da tragédia, seja ele qual for. Dentro de oito dias, ou avistamos terra, ou somos salvos por algum navio, ou expira o derradeiro náufrago do Chancellor.

No dia 23 muda o aspecto do céu e refresca a brisa. Durante a noite rondou o vento para norte. A vela da jangada vai inchada, e a comprida esteira que deixamos pela popa indica que andámos bastante. O capitão avalia a nossa velocidade em três milhas por hora.

De todos nós são Roberto Kurtis e Falsten os mais válidos; apesar da sua extrema magreza, afrontam as privações de modo surpreendente. Não posso descrever o extremo a que Miss Herbey está reduzida. Já não é senão alma, alma valorosa ainda; toda a vida parece ter-se-lhe refugiado nos olhos, que brilham extraordinariamente. Vive no Céu, que não na Terra!

Apesar da sua grande energia, o mestre vai completamente abatido. Está desfigurado. Com a cabeça descaída no peito, as grandes e ossudas mãos estendidas sobre os joelhos, cujas rótulas agudas parecem romper a calça velhíssima, conserva-se sempre sentado a um canto, sem nunca erguer os olhos. Ao contrário de Miss Herbey, vive ele só pelo corpo e tal é a sua imobilidade que muitas vezes o suponho morto.

Ninguém fala, ninguém geme sequer nesta maldita jangada.

Silêncio absoluto. Não trocamos dez palavras por dia; além disso, são quase ininteligíveis as poucas sílabas que articulamos com a língua, com os lábios, inchados e duros. A jangada transporta só espectros, esquálidos, exangues, que nada têm de humano!

 

24 de Janeiro. - Onde estamos? Para que parte doAtlântico tem sido impelida a jangada? Duas vezes perguntei a Roberto Kurtis, mas ele só pôde dar-me indicações vagas.

Entretanto, como nunca deixou de examinar a direcção das correntes e do vento, pensa que temos adiantado para oeste; isto é, para a costa americana.

Hoje caiu a brisa completamente, mas a vaga grossa indica ter havido perturbação a leste. Alguma tempestade agitaria aquela parte do Atlântico. A jangada sofre grande balanço; por isso Roberto Kurtis, Falsten e o carpinteiro gastam as poucas forças que lhes restam em consolidar a ligação das diversas peças que ameaçam separar-se.

Para quê tanto trabalho? Desloquem-se, enfim, essas tábuas, e engula-nos o oceano! Não vale a pena disputar-lhe esta vida atormentada.

Na verdade, as torturas que sofremos atingiram o máximo que o homem pode afrontar; é impossível agravarem-se! O calor atinge tal intensidade, que parece chover chumbo derretido.

Debaixo dos farrapos que mal nos cobrem, suamos copiosamente, o que aumenta a sede. Não, não posso descrever o que sinto!

Faltam palavras para retratar dores sobre-humanas!

Até nos está proibido o único modo de refrescar-nos, de que outrora lançámos mão. Quem pode pensar em banhar-se quando, depois da morte de Jynxtrop, os tubarões nos cercam em manadas!

Tentei hoje arranjar água doce pela evaporação da salgada; porém, a despeito da minha paciência, apenas consegui humedecer um trapo. Além disso, a chaleira, muito velha já, não resistiu ao lume; rachou, obrigando-me a desistir de mais este recurso.

Agora o engenheiro Falsten está completamente prostrado; poucos dias nos sobreviverá! Quando levanto a cabeça, nem já o vejo. Estará deitado debaixo das velas ou morreria? Só se conserva de pé o animoso capitão Roberto Kurtis; da proa examina o horizonte e o mar! Como pensar que aquele homem de ferro... não desespera ainda!

Por mim vou deitar-me à popa e aqui esperarei a morte.

Quanto mais cedo melhor.

Não sei quantas horas decorreram... Ouço gargalhadas.

Decerto endoideceu algum de nós!

Aumentam as gargalhadas. Não ergo a cabeça. Que me importa?

Assim mesmo percebo algumas palavras incoerentes.

- Um prado, um prado! árvores verdes! Debaixo das árvores, uma taberna! Aviar! Aviar! Aguardente e genebra, água a libra cada gota! Deixem estar que pago! Tenho dinheiro! Muito dinheiro!

Pobre louco! Todo o ouro do Banco de Londres não te daria neste momento uma gota de água.

É o marinheiro Flaypol que enlouqueceu e brada com alegria:

- Terra! Terra ali!

Esta palavra galvanizaria um cadáver! Faço um esforço doloroso e levanto-me. Não há terra à vista! Flaypol passeia para um e outro lado, ri, canta, acena para uma costa imaginária! Faltam-lhe certamente as percepções directas da vista, do ouvido, do paladar; supre-as, porém, algum fenómeno meramente cerebral. Por isso fala com amigos ausentes. Leva-os para a sua taberna de Cardife, que tem por tabuleta as Armas de Jorge, e ali oferece-lhes aguardente, uísque, água, água principalmente, água que embriaga! Ei-lo caminhando sobre os corpos desfalecidos dos companheiros, tropeçando a cada passo, caindo, levantando-se, cantando com voz avinhada, de modo que parece chegado ao último grau da embriaguez alcoólica. Dominado pelo delírio, não sofre fome nem sede! Oh! Quereria enlouquecer como ele!

Acabará este desgraçado como acabou o preto Jynxtrop e atirar-se-á ao mar?

Bem o receiam Daoulas, Falsten e o mestre, os quais resolveram que, se Flaypol decidir matar-se, não será sem proveito para eles! Por isso se levantam, seguem-no, espreitam as suas acções e, se Flaypol quiser deitar-se ao mar, hão-de disputá-lo aos tubarões!

Não tinha de ser assim. Flaypol chega realmente ao paroxismo da embriaguez, como se bebera alguma das bebidas alcoólicas que oferecia, e então cai como massa inerte a um canto da jangada e adormece pesadamente!

 

25 de Janeiro. - Foi de nevoeiro a noite de 24 para 25 e quentíssima não sei por que motivo. O nevoeiro abafa. Chega a gente a crer que bastaria uma faísca para largar-lhe fogo como a substância explosiva, abrasando-se todo o espaço. A jangada não só permanece estacionária, mas também imóvel. Às vezes pergunto a mim mesmo se ela flutuará ainda.

Durante a noite tento contar quantos vamos ainda a bordo.

Parece-me que somos onze, mas a custo reuno as ideias necessárias para fazer esta conta. Umas vezes acho dez, outras doze. Devem ser onze depois da morte de Jynxtrop. Amanhã serão só dez, porque eu morro.

Não há dúvida de que está chegado o termo do meu padecer, porque sinto a vida toda concentrar-se na memória; vejo, pela última vez, em sonhos, pátria, família, amigos!

Pela manhã acordei, se pode chamar-se sono à prostração anémica que me tem inconsciente. Deus me perdoe, mas penso seriamente em acabar de vez com tantos sofrimentos!

Grava-se-me esta ideia no cérebro e sinto certo alívio em considerar que porei termo, quando quiser, nos meus males.

Dou parte da minha resolução a Roberto Kurtis, e falo-lhe com singular tranquilidade de espírito. O capitão limita-se a fazer um aceno afirmativo. Depois diz-me:

- Eu é que não posso matar-me, porque seria abandonar o meu posto. Não devo fazê-lo. Se a morte não me levar antes do Sr. Kazallon, serei talvez o último sobrevivente na jangada!

Persiste o nevoeiro, flutuamos no seio de uma atmosfera pardacenta. Nem ao menos se vê a superfície do mar. A névoa levanta-se do oceano como nuvem negra; pressente-se, porém, que acima dela brilha o Sol ardentíssimo, que em pouco sorverá todos estes vapores.

Pelas sete horas parece-me ouvir pios de aves por cima de nós. Roberto Kurtis, sempre de pé, escuta com avidez estes sons, que três vezes se repetem.

À terceira vez chego-me para ele e ouço que murmura com voz sumida:

- Aves!... Mas então... estará a terra próxima!

Parece que Roberto Kurtis ainda acredita na existência de terra! Por mim já não creio! Não existem continentes, nem ilhas; o Globo é um esferóide líquido como foi no segundo período da sua formação!

Entretanto espero com certa impaciência que o nevoeiro se desfaça, não porque creia avistar terra, mas persegue-me a ideia absurda de uma esperança irrealizável e sinto desejo de me livrar dela.

Só pelas onze horas começa o nevoeiro a rarefazer-se; enquanto as suas volutas escuras se enrolam à superfície das vagas, entrevejo por súbitos rasgões o azul do céu.

Os raios ardentes do Sol passam por eles e ferem-nos como flechas de metal em brasa. Porém, a condensação dos vapores opera-se só nas altas regiões atmosféricas, de modo que não é possível avistar o horizonte.

Ainda durante meia hora os rolos de nevoeiro envolvem a jangada e só a custo se dissipam, porque há calmaria completa.

Roberto Kurtis, encostado à borda da jangada, procura penetrar com a vista a opaca cortina de névoas.

Enfim, chegando o Sol ao zénite, limpa a superfície do mar, o nevoeiro recua, alarga-se o campo visual, aparece o horizonte. Esse horizonte é o que tem sido sempre há seis semanas: linha circular contínua na qual se confundem céu e mar!

Roberto Kurtis observa em volta de si e não profere uma só palavra.

Oh! Sinceramente o lamento, porque de nós todos é o único que não pode acabar quando quiser. Por mim estou resolvido a morrer amanhã, e, se a morte não me ferir, eu saberei buscá-la. Ignoro se os nossos companheiros estão vivos ainda; parece-me que decorreram longos dias sem os ver.

Chegou a noite, mas não pude dormir nem um momento. Pelas duas horas causa-me a sede tais dores, que não posso conter gritos e gemidos. Como! Pois antes de morrer não terei o gozo supremo de extinguir o fogo que me queima o peito? Sim!

Beberei o próprio sangue, na falta de alheio! Bem sei que não me servirá de nada, mas pelo menos enganarei o meu mal!

Mal esta ideia me ocorre à mente, logo a ponho em prática.

Consigo abrir a navalha. Arregaço a manga e com um golpe rápido corto uma veia. O sangue sai gota a gota e eis-me matando a sede com o líquido vital! Volta para o meu corpo e apazigua sensivelmente as dores atrozes que me torturam!

Depois pára, nem força tem para correr!

Como tarda o dia de amanhã!

Ao romper da aurora torna o nevoeiro a encobrir o horizonte, estreitando o círculo cujo centro a jangada ocupa. Como ontem, o nevoeiro é quente, semelhante ao vapor que sai de uma caldeira.

Este é o meu dia derradeiro.

Antes de morrer gostaria de apertar a mão de um amigo. Aqui está Roberto Kurtis junto de mim. Arrasto-me para junto dele e pego-lhe na mão. O capitão compreende-me, sabe que é um adeus, mas dir-se-ia que pelo derradeiro clarão de esperança quer reter-me ainda! É inútil! Desejaria tornar a ver os Letourneur, Miss Herbey... Não me atrevo! A pobre rapariga leria nos meus olhos a resolução em que estou! Falar-me-ia de Deus, da outra vida com que devemos contar! Já não tenho ânimo para mais... Deus me perdoe!

Vou à proa da jangada e, a muito custo, consigo pôr-me de pé encostado ao mastro. Pela última vez percorro com a vista o mar implacável, o horizonte imóvel. Se visse terra, se descobrisse uma vela sobre as vagas, julgaria ser mera ilusão... Mas o mar permanece deserto.

São dez horas da manhã. Chegou o momento de morrer. As dores lancinantes da fome, as torturas da sede atormentam-me com dobrada violência; extingue-se em mim o instinto da conservação. Daqui a poucos momentos estará findo o meu martírio!... Deus tenha piedade de mim!

Neste momento ouço uma voz que reconheço ser a de Daoulas. O carpinteiro está próximo de Roberto Kurtis.

- Capitão - diz ele -, vamos tirar à sorte.

Detenho-me quando ia deitar-me ao mar. Porquê, não sei, mas certo é que volto para a popa da jangada.

 

26 de Janeiro. - Está feita a proposta. Todos a ouviram e todos a compreenderam. Há bastantes dias que tal é a ideia predominante, embora ninguém ousasse formulá-la claramente.

Vamos tirar à sorte.

Cada um terá o seu quinhão daquele que o acaso designar.

Seja assim! Se a sorte me escolher, não me queixarei.

Parece-me que alguém propõe exceptuar Miss Herbey: é André Letourneur. Porém os marinheiros murmuram raivosos. Vamos onze a bordo, cada um tem dez probabilidades a favor e uma contra; a excepção alteraria esta proporção. Miss Herbey sujeitar-se-á à regra geral.

São dez horas e meia da manhã. O mestre, reanimado pela proposta de Daoulas, exige que se proceda sem demora. Tem razão. Além disso, nenhum de nós sente amor à vida; o escolhido da sorte apenas muito poucos dias, poucas horas talvez, precederá na morte os seus companheiros: Todos o sabem e ninguém receia morrer. O que se pretende apenas, e o que se vai conseguir, é não sofrer durante um ou dois dias esta fome, esta sede que nos torturam.

Não posso dizer como apareceram todos os nossos nomes escritos em papéis metidos na copa de um chapéu.

Não foi senão Falsten que os escreveu nalguma folha arrancada do seu bloco.

Lá estão os onze nomes; ajusta-se sem discussão que o último nome a sair será o da vítima.

Quem tirará as sortes? Todos parecem hesitar.

- Serei eu! - respondeu um de nós.

Volto-me e reconheço Letourneur.

Está em pé, lívido, com a mão estendida, os cabelos brancos caídos sobre as faces emagrecidas, medonho de sangue-frio.

Oh! Infeliz pai! Compreendo-te! Sei porque pretendes encarregar-te de tirar as sortes e ler os nomes! É inesgotável o teu amor paternal!

- Quando queiram! - diz o mestre.

Letourneur mete a mão no chapéu, tira um bilhete, desdobra-o, lê em voz alta o nome escrito nele e entrega o papel à pessoa que designa.

O primeiro nome que saiu foi o de Burke, que soltou um grito de alegria.

O segundo foi o de Flaypol.

O terceiro, do mestre.

O quarto, de Falsten.

O quinto, de Roberto Kurtis.

O sexto, de Sandon.

Já saíram metade dos nomes e mais um.

O meu ainda não saiu. Tento calcular as probabilidades que me restam: quatro boas, má uma.

Depois do grito de Burke reina profundo silêncio.

Letourneur prossegue na tarefa sinistra.

O sétimo nome é o de Miss Herbey; ela, porém, nem pestaneja!

O oitavo é o meu. Sim! O meu!

O nono nome: Letourneur.

- Qual? - pergunta o mestre.

- André! - responde o pai.

Ouve-se um grito. André cai desmaiado.

- Avia-te - exclama, rugindo, o carpinteiro Daoulas, cujo nome e o de Letourneur são os únicos que restam no chapéu.

Daoulas olha para o seu rival como vítima que pretende devorar. Quanto a Letourneur, esse quase sorri. Mete a mão no chapéu, tira o penúltimo bilhete, desdobra-o devagar e, sem que a voz lhe trema, com uma firmeza que não era de esperar daquele velho, pronuncia esta última palavra:

- Daoulas!

Está salvo o carpinteiro, cujo peito solta um rugido.

Depois Letourneur tira o último bilhete e rasga-o sem ler.

Voou, porém, para um canto da jangada um pedaço de papel rasgado. Ninguém repara senão eu. Arrasto-me para esse lado, apanho o papel e a um canto leio: "And... ".

Letourneur corre para mim, arranca-me violentamente o pedaço de papel, torce-o com os dedos e, olhando para mim com ar sereno e sério, deita-o ao mar.

 

Continuação de 26 de Janeiro. - Não me enganava. O pai sacrificou-se pelo filho e, não possuindo mais que a vida para dar-lhe, deu-lhe a vida.

Entretanto nenhum daqueles famintos quer esperar, e as torturas da fome aumentam à vista da vítima destinada a saciá-la. Para eles, Letourneur não é já homem. Não disseram ainda palavra, mas projectam os lábios, arreganham os dentes prontos a despedaçarem a vítima à maneira de presas de animal feroz e com voracidade não menos brutal. Os infelizes são capazes de se deitarem à vítima e de a devorarem viva!

Quem haveria de crer que, em tal momento, ainda surgisse um apelo para o resto de sentimentos humanos daquela gente e quem preveria que esse apelo seria atendido? Sim! Bastou uma palavra para detê-los quando se atiravam a Letourneur.

Daoulas, com o machado em punho, o mestre, prestes a desempenhar o papel de magarefe, detiveram-se e ficaram imóveis.

Miss Herbey adianta-se ou, antes, arrasta-se para eles.

- Meus amigos - diz ela -, suplico-lhes que esperem um dia mais. Um dia só! Se amanhã não avistarmos terra, se não nos encontrar algum navio, então será o nosso infeliz companheiro vítima da fome que os punge.

Ouço estas palavras e o coração pula-me no peito.

Parece-me que a donzela falou com acento profético e que uma inspiração divina anima aquela angélica criatura! Sinto que a esperança me dilata o peito. A terra! Um navio! Talvez Miss Herbey os entrevisse numa daquelas visões sobrenaturais que Deus envia aos seus escolhidos! Sim! Esperemos mais um dia! Que é um dia depois de tudo quanto temos sofrido?

Pensa como eu Roberto Kurtis, unimos as nossas súplicas às de Miss Herbey, Falsten apoia-nos; imploramos os nossos companheiros, o mestre, Daoulas, todos os mais...

Os marinheiros param e nem um murmúrio soltam.

O carpinteiro deita fora o machado, e o mestre exclama com voz sufocada:

- Até amanhã, ao nascer do Sol.

Diz tudo esta frase. Se amanhã não avistarmos terra ou algum navio, consumar-se-á o sacrifício.

Todos voltamos para os nossos lugares e gastamos as derradeiras forças em afrontar as dores. Os marinheiros deitam-se debaixo das velas e nem cuidam de observar o horizonte. Que lhes importa, se amanhã terão que comer!

Entretanto André Letourneur volta à vida e o seu primeiro olhar é para o pai. Noto depois que tenta contar os passageiros da jangada... Nenhum falta. Em quem recairia a sorte? Quando perdeu os sentidos só havia dois nomes no chapéu, o do carpinteiro e o de seu pai! Mas Letourneur e Daoulas vivem ambos!

Miss Herbey chega-se para ele e diz-lhe simplesmente que não se concluiu o sorteio.

André Letourneur não pergunta mais e aperta a mão do pai. O rosto deste mostra-se tranquilo e quase risonho. Não vê, não compreende senão uma coisa: é que o filho foi poupado. Aqueles dois entes, tão intimamente unidos, vão sentar-se ambos à popa da jangada e conversam em voz bastante baixa.

Ainda não se desvaneceu em mim a impressão causada pela intervenção de Miss Herbey. Creio nalgum socorro providencial, e nem posso dizer como esta ideia lança raízes tão fundas no meu espírito. Não duvidaria de afirmar que chegou o termo das nossas tribulações, e nem teria maior certeza se a poucas milhas a sotavento estivesse à vista a costa ou algum navio!

Ninguém se admire desta preocupação. Tenho o cérebro por tal modo vazio que nele se transformam as quimeras em realidades.

Falo dos meus pressentimentos aos Letourneur. André espera como eu. Pobre rapaz! Se soubesse que amanhã!...

O pai ouve-me com gravidade e anima-me. De boa mente crê, pelo menos assim o diz, que o céu poupará os náufragos do Chancellor ainda vivos, e prodigaliza ao filho mil carícias que, para ele, são as derradeiras.

Depois, quando fica só comigo, Letourneur diz-me ao ouvido:

- Recomendo-lhe o meu pobre filho. Olhe, não venha ele a saber...

Não termina a frase e escorregam-lhe grandes lágrimas pelas faces! A despeito de tudo só dou ouvidos à esperança.

Por isso observo o horizonte sem descanso e percorro com a vista todo o seu perímetro. Está deserto, mas este facto não me assusta. Antes de amanhã avistaremos algum navio.

Roberto Kurtis faz como eu, observa o mar. Miss Herbey, Falsten e o próprio mestre concentram toda a vida no olhar.

Anoitece, mas estou convencido de que durante a escuridão se aproximará algum navio da jangada, e verá os nossos sinais ao romper da aurora.

 

27 de Janeiro. - Não durmo toda a noite e presto atenção aos mínimos ruídos, tais como o marulhar das vagas, o murmurar indistinto do oceano.

Noto que não aparece nenhum tubarão em volta da jangada.

Parece-me de bom agouro.

A Lua ergue-se no horizonte à uma hora e quarenta e seis minutos, mostrando o semidisco da sua quadratura. Dá luz tão fraca que não deixa observar o horizonte de grande raio.

Quantas vezes não me pareceu avistar a poucas braças de distância a almejada vela!

Amanhece e o Sol ilumina o mar deserto.

Aproxima-se o momento terrível, e então sinto desvanecerem-se a pouco e pouco todas as minhas esperanças da véspera. Não aparece navio nenhum. Nem se avista terra. Caio de chofre na realidade e recordo-me! Soou a hora de um assassínio nefando.

Não ouso olhar para a vítima, e quando ela fita em mim os olhos, tão bondosos, tão resignados, abaixo a cabeça.

Comprime-me o peito um sentimento de invencível horror; a cabeça anda-me à roda como se estivera embriagado.

Seis horas da manhã. Já não creio em intervenções providenciais. O meu coração dá mais de cem pulsações por minuto; banha-me o suor da angústia.

O mestre e Roberto Kurtis, de pé, encostados ao mastro, examinam ansiosos o mar. O mestre mete medo. Bem se vê que não adiantará a hora, mas não há-de atrasá-la também. Não posso adivinhar quais sejam as sensações do capitão, mas vejo-lhe a face lívida e parece viver só pelo olhar.

Os marinheiros arrastam-se sobre o sobrado da jangada, e com os olhos ardentes devoram já a sua vítima!

Não posso estar sossegado e arrasto-me para a proa.

O mestre conserva-se de pé, olhando.

- Finalmente! - exclama ele.

Esta palavra enche-me de terror.

O mestre, Daoulas, Flaypol, Burke e Sandon encaminham-se para a popa e o carpinteiro aperta convulsivamente o cabo do machado!

Miss Herbey não pode reprimir um grito.

De repente ergue-se André.

- Meu pai? - exclama com voz entrecortada.

- Designou-me a sorte... - responde Letourneur.

André agarra o pai e aperta-o nos braços.

- Nunca! - ruge ele. - Hão-de matar-me primeiro! Matem-me!

Fui eu que deitei ao mar o cadáver de Hobbart! É a mim, a mim que devem matar!

Desgraçado! Estas palavras acendem mais a raiva dos algozes. Daoulas, indo direito a ele, arranca-o dos braços do pai, dizendo-lhe:

- Ora basta de cerimónias!

André cai de costas e logo dois marinheiros o seguram de modo que não possa mover-se.

Ao mesmo tempo, Burke e Flaypol agarram a vítima e arrastam-na para a proa.

Esta cena medonha foi mais rápida que a descrição. O horror prega-me no meu lugar! Quereria interpor-me entre Letourneur e os seus carrascos, mas não posso!

Neste momento ergue-se Letourneur. Repeliu os marinheiros que lhe rasgaram e arrancaram parte do fato; tem os ombros e os braços nus.

- Esperem! - diz, com acento de energia indomável. - Esperem! Não quero roubar-lhes a razão! Creio, porém, que não tencionam devorar-me hoje todo!

Os marinheiros detêm-se. entreolham-se. escutam espavoridos.

Letourneur continua:

- São ao todo dez! Talvez lhes bastem os meus dois braços?

Cortem-nos e amanhã terão o resto!...

E estende para eles os braços nus...

- Sim! - exclama Daoulas, com voz terrível.

E, rápido como um raio, ergue o machado...

Roberto Kurtis não pôde ver mais. Nem eu! Enquanto formos vivos não se perpetrará o assassínio. O capitão atira-se para o meio dos algozes a fim de lhes arrancar a sua vítima.

Arremeto igualmente contra eles... mas, chegando à proa da jangada, sou repelido violentamente por um marinheiro e caio ao mar...

Fecho a boca, quero morrer asfixiado; porém, a sufocação é mais forte que a minha vontade. Entreabro os lábios e penetram-me na boca alguns golos de água!

Deus misericordioso! É água doce!

 

Continuação de 27 de Janeiro. - Bebi, bebi! Sinto-me renascer! A vida corre-me impetuosa nas veias! Não quero morrer!

Grito e ouvem-me. Kurtis aparece acima da borda. atira-me um cabo, que eu apanho. Trepo por ele e chego ao sobrado da jangada.

As minhas primeiras palavras são:

- Água doce!

- Água doce! - brada Roberto Kurtis: - Amigos, eis a terra!

Ainda é tempo! O crime não foi ainda perpetrado! A vítima não foi ferida! Roberto Kurtis e André tinham lutado com os canibais e estavam prestes a sucumbir também quando ouviram a minha voz!

Suspende-se a luta travada. Continuo gritando: "Água doce!"

- Depois debruço-me da borda da jangada e bebo com avidez!

Miss Herbey é a primeira que imita o meu exemplo. Roberto Kurtis, Falsten e todos os mais precipitam-se para aquela fonte de vida. Todos bebem. As feras de há poucos minutos erguem as mãos ao céu; os marinheiros persignam-se, bradando:

- Milagre! - Todos ajoelham à borda da jangada, e bebem, e tornam a beber com delírio. Ao furor sucede o êxtase! André e seu pai são os últimos a imitar-nos.

- Mas onde estamos? - pergunto enfim.

- Ali é a terra! - responde Roberto Kurtis, apontando para oeste.

Olhamos para o capitão. Estará doido? Não se avista terra.

Antes a jangada continua no centro do enorme círculo líquido!

Mas não há dúvida de que a água é doce! Há quanto tempo o será! Pouco importa! Os sentidos não nos enganaram, porque matámos a sede.

- Sim - continuou o capitão -, a terra está ainda invisível, mas ali a temos a menos de vinte milhas a sotavento.

- Qual terra? - pergunta o mestre.

- Terra da América, a terra onde corre o Amazonas, único rio de corrente tão abundante e impetuosa que repele a água do mar até vinte milhas da foz!

 

Continuação de 27 de Janeiro. - Evidentemente Roberto Kurtis tem razão, porque a embocadura do majestoso Amazonas é o único ponto do Atlântico onde poderíamos encontrar água doce. Eis a terra! Pressentimo-la! O vento empurra-nos para ela!

Neste momento levanta-se para o céu a voz de Miss Herbey; unimos as nossas orações às suas!

André Letourneur está abraçado com o pai à popa da jangada; à proa agrupamo-nos todos os mais, com os olhos fitos no horizonte de oeste.

Passada uma hora, Roberto Kurtis brada:

- Terra!

Termina neste ponto o diário em que lancei os meus apontamentos quotidianos. Fomos recolhidos poucas horas depois de avistarmos terra.

Pelas onze horas da manhã a jangada foi encontrada por caridosos pescadores na ponta Magouri, da ilha de Marajó.

Receberam-nos e socorreram-nos. Depois conduziram-nos à cidade do Pará, onde fomos tratados com amorável carinho.

A jangada tocou terra por 0 graus e 12 de latitude norte.

Abateu pelo menos 15 graus para sudoeste desde que abandonámos o navio.

Digo "pelo menos", por ser evidente que descaímos ainda mais para o sul e que, se chegámos à foz do Amazonas, foi porque a jangada encontrou a Gulf-Stream. Se não fora assim, todos teríamos sucumbido ao sabor das águas do Atlântico.

Das vinte e oito pessoas embarcadas em Charleston, oito passageiros e vinte tripulantes, só escapámos cinco passageiros e seis tripulantes, onze ao todo. Eis o que resta da gente do Chancellor.

As autoridades brasileiras levantaram auto de salvamento dos náufragos.

Assinaram: Miss Herbey, J. R. Kazallon, os Letourneur, Falsten, o mestre, Daoulas, Burke, Flaypol, Sandon e, em último lugar, Roberto Kurtis, capitão.

Devo acrescentar que no Pará nos ofereceram logo meios de

voltarmos à pátria. Embarcámos num navio para Caiena, donde iremos buscar a linha transatlântica de Aspinwall, cujo paquete "Ville de Saint Nazaire" nos conduzirá até à Europa.

E agora, depois de tantas provações em comum, de tantos perigos a que só por milagre escapámos, é natural que os passageiros do Chancellor estejam ligados por indissolúvel amizade. Sejam quais forem as circunstâncias, por muito que o acaso nos separe, é certo que sempre nos lembraremos uns dos outros.

Roberto Kurtis é e será sempre amigo querido dos seus companheiros de desgraça.

Miss Herbey queria deixar a vida secular e dedicar-se ao alívio dos que padecem.

- Pois então meu filho não é doente?... - lembra-lhe Letourneur.

Miss Herbey tem hoje um pai em Letourneur e um irmão em André. Digo "irmão", mas em breve encontrará aquela animosa donzela, na sua nova família, a felicidade que merece e que de todo o coração lhe desejamos.

 

                                                                                            Julio Verne

 

 

                      

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