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Aventuras de Três Russos e Três Ingleses / J.Verne
Aventuras de Três Russos e Três Ingleses / J.Verne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Aventuras de Três Russos e Três Ingleses

 

NA SELVA AFRICANA - AVENTURAS DE TRÊS RUSSOS E DE TRÊS INGLESES

Um grupo de exploradores a quem a África oferece os mais incríveis contratempos e empolgantes sucessos.

Mais de meio século após a sua morte, Júlio Verne conquista a plena actualidade! Com efeito, o que no tempo do grande romancista francês era mirabolante ou fantástico, é presentemente uma realidade de que todos somos testemunhas. A nova colecção que apresentamos - inteiramente revista e incluindo ilustrações da edição original francesa - assinala o espectacular ressurgimento de um escritor que só hoje encontra, verdadeiramente, o seu público.

- É ali que escondeu os registos! - exclamou o bushman.

Era para recear que o macaco escapasse saltando de árvore em árvore. Porém, Mokoum apontou cuidadosamente e fez fogo. O chacma, ferido numa perna, caiu de ramo em ramo. Numa das mãos trazia os registos, que tirara do cruzamento de duas pernadas. Nicolau Palander, quando tal viu, saltou como uma camurça, agarrou o chacma e começou a lutar com ele.

Que luta! A raiva duplicava as forças do calculador! Aos latidos do macaco respondiam berros de Palander. Era uma Babel de gritos discordes! Não havia meio de distinguir quais eram do macaco, quais do matemático! Era impossível apontar ao macaco com receio de ferir o homem.

- Atirem! Atirem a ambos! - bradou Mateus Strux, fora de si; e talvez o fizesse ele próprio se não tivesse a espingarda descarregada.

 

NAS MARGENS DO ORANGE.

A 21 de Janeiro de 1854, dois homens, sentados à sombra de um chorão gigantesco, estavam conversando, enquanto examinavam atentamente o curso do rio Orange. Este rio, denominado Groot-river pelos holandeses e Gariep pelos hotentotes, rivaliza com as três grandes artérias africanas, o Nilo, o Níger e o Zambeze. Tem, como estes, cheias, cachões e catadupas. Thompson, Alexander, Burchell, viajantes que percorreram diversas partes do seu curso, são acordes em exaltar-lhe a limpidez das águas e formosura das margens.

No ponto onde repousavam os nossos interlocutores, o rio, encostando-se às montanhas do Duque de Iorque, mostrava um panorama sublime. Rochedos inacessíveis aqui, além montes enormes de pedras e de troncos mineralizados pela acção do tempo, cavernas sombrias, densas florestas não profanadas pelo machado do settler (1), compunham o quadro magnífico que os montes Gariapinos encaixilhavam no último plano. As águas do Orange referviam no leito em demasia apertado para contê-las e, faltando-lhes repentinamente o solo, despenhavam-se de quatrocentos pés de altura. A montante da cachoeira encapelavam-se as ondas em volta dos rochedos coroados de verdura. A jusante tumultuava o sombrio turbilhão precipitado do alto, e sobre ele adejava uma nuvem de vapores irisados pelas sete cores prismáticas.

 

*(1)   Colono agrícola.

 

Irrompiam do abismo mugidos atroadores, repercutidos e aumentados diversamente pelos ecos do vale.

Um dos homens, que naturalmente tinham chegado àquela parte da África austral pelos acasos de alguma viagem de exploração, olhava distraído para o pitoresco panorama que o cercava. Era esse indiferente um caçador bushman, famoso tipo daquela raça enérgica, distinta pela viveza do olhar e pela rapidez do gesto, que vive nómada nas florestas. Bushman, palavra inglesada que deriva do holandês bochjesman, significa literalmente ((homem dos bosques". Aplicam esta denominação às tribos que percorrem o sertão ao noroeste da colónia do Cabo da Boa Esperança. As famílias bushmen nunca são sedentárias. Vagueiam na região compreendida entre o Orange e as montanhas orientais, saqueando as herdades e destruindo as colheitas dos colonos altivos, que os repeliram para os sertões áridos, onde mais se encontram pedras que plantas.

Aparentava o bushman quarenta anos de idade, era de avantajada estatura e dotado de grande força muscular. Ainda no repouso parecia activo. A correcção, a elegância e liberdade dos movimentos indicavam homem enérgico, vazado no molde do célebre Meias de Couro, herói das campinas canadenses. Mas o rubor repentino da face, animado pelo rápido fluxo de sangue, não permitia atribuir-lhe a placidez do caçador favorito de Cooper.

Não era selvagem como os antigos Saquas, seus congéneres, porém, mestiço de pai inglês e de mãe hotentote. No convívio dos europeus mais lucrara do que perdera; falava correntemente a língua paterna. O vestuário, meio inglês, meio hotentote, compunha-se de camisola de flanela vermelha, jaqueta e calção de antílope, polainas de pele de gato bravo. Pendia-lhe do pescoço um saquitel para guardar a navalha, cachimbo e tabaco. Na cabeça trazia um gorro de pele de carneiro. Cingia-lhe o corpo um cinturão de couro verde. Nos pulsos nus mostrava braceletes de marfim artisticamente contornados e lavrados. Dos ombros caía um krass, manto de pele de tigre, que lhe chegava aos joelhos. Ao pé dele dormia um cão de raça indígena.

 

O bushman levava repetidas vezes aos lábios um cachimbo de osso, e dava sinais inequívocos de impaciência.

- Sossega, Mokoum - dizia-lhe o outro interlocutor. - Nunca vi homem mais impaciente... quando não andas à caça. Bem vês que não podemos modificar a situação. Agora ou logo chegarão os que aguardamos; se não for hoje, amanhã será.

O companheiro do bushman era um rapaz de vinte e cinco a vinte e seis anos, que fazia completo contraste com o caçador africano. Em tudo manifestava frieza de ânimo. Ao vê-lo, ninguém hesitaria em reconhecer a sua nacionalidade inglesa. O vestuário, demasiadamente burguês, mostrava que não era homem dado a viagens. Parecia algum empregado de gabinete perdido em país selvático; dava vontade de procurar se não traria pena atrás da orelha, como os caixeiros, amanuenses, escriturários, fiéis e outras variedades da grande família burocrática.

William Emery não era efectivamente nenhum viajante, senão antes um sábio, agregado ao Observatório do Cabo, útil estabelecimento que há muito presta relevantes serviços à ciência.

O astrónomo, contrafeito talvez naquela região deserta da África austral, a centenas de milhas da Cidade do Cabo, a custo continha a natural impaciência do seu fogoso companheiro.

- Mas, senhor Emery - respondeu o caçador, em inglês corrente -, vai para oito dias que estamos junto da catarata de Morgheda, ponto de encontro combinado. É a primeira vez que sucede a algum membro da minha família o estar oito dias no mesmo sítio! Não sabe que somos nómadas, e que nos ferve o sangue com este forçado repouso?

- Amigo Mokoum - replicou o astrónomo -, esqueces que vêm de Inglaterra os que esperamos; é justo conceder-lhes oito dias de espera. Devemos atender aos transtornos de uma viagem marítima, a quaisquer obstáculos para a sua lancha a vapor subir o Orange, às mil dificuldades enfim com que tropeçam empresas semelhantes. Ordenaram-me que fizesse os preparativos necessários para uma viagem de exploração na África austral, e que esperasse, junto da catadupa de Morgheda, o coronel Everest, meu colega, astrónomo no Observatório de Cambridge. Estamos esperando à margem do Orange, junto de Morgheda. Que mais queres, meu caro bushman?

Mais alguma coisa queria decerto o bushman, porque apertava freneticamente a coronha da carabina, soberba arma de Manton, de bala cónica, com que era fácil ferir o gato bravo ou o antílope à distância de 800 a 900 jardas. Bem se vê que o mestiço preferia as armas europeias ao carcás de aloés e às flechas envenenadas dos seus compatriotas.

- Talvez se enganasse, senhor Emery. Foi no fim deste mês de Janeiro, e perto da cachoeira de Morgheda, que lhe deram ordem de esperar?

- Decerto - respondeu plàcidamente William Emery.

- Aqui está a carta de Mr. Airy, director do Observatório de Greenwich, que bem claramente o diz.

O bushman pegou na carta que o seu companheiro lhe apresentava. Virou-a e revirou-a como pessoa pouco familiar com os mistérios caligráficos. Depois entregou-a logo a William Emery, dizendo-lhe:

- Nada! Veja antes o senhor Emery o que determina esse bocado de papel rabiscado.

O moço astrónomo, cuja paciência não conhecia limites, repetiu ainda o que mil vezes antes referira ao caçador. No fim do ano anterior recebera uma carta avisando-o da próxima chegada do coronel Everest e de uma comissão científica internacional com destino à África austral. Quais eram os projectos e os fins dessa comissão, e porque vinha desembarcar num extremo do continente africano? Não podia dizê-lo Emery, porque a carta de Mr. Airy nada esclarecia. Apenas dava instruções para que o jovem astrónomo preparasse em Lattakou, uma das estações mais setentrionais da Hotentótia, carros, víveres, todos os objectos necessários para o provimento de uma caravana de bochjesmen. Emery cumprira as ordens recebidas, e, tendo conhecimento da valia do caçador Mokoum, companheiro de Anderson em caçadas na África ocidental, e do intrépido David Livingstone na sua primeira viagem de exploração ao lago Ngami e às cataratas do Zambeze, convidou-o para assumir o comando da caravana.

Ajustaram que o bushman, familiarizado perfeitamente com o terreno, guiasse William Emery até à catadupa de Morgheda, onde esperariam a comissão científica. Embarcara esta a bordo da fragata "Augusta", da Marinha de Guerra britânica, a qual devia levá-la até à foz do Orange, na costa ocidental da África, junto do cabo Volpas. Dali subiria a comissão o curso do Orange numa lancha a vapor até Morgheda. Emery e Mokoum tinham trazido um carro, que os esperava no fundo do vale, a fim de transportar a Lattakou os membros da comissão e as suas bagagens, se eles não preferissem viajar pelo Orange e seus afluentes, depois de tornearem por terra as quedas do rio.

Concluída esta narração e especificada de modo que o bushman não tornasse a esquecê-la, encaminhou-se este até um pequeno promontório sobranceiro ao abismo, em cujo fundo se precipitavam com fragor as águas espumantes. O astrónomo acompanhou-o. Dali avistavam para jusante o curso do rio até bastantes milhas de distância.

Mokoum e o seu companheiro estiveram alguns minutos observando atentamente a superfície das águas, que voltavam à tranquilidade primitiva um quarto de milha abaixo da cachoeira. Nenhum objecto, barco ou piroga cortava o rio. Eram três horas da tarde. O mês de Janeiro corresponde ali ao Julho dos países do Norte; o Sol, quase a prumo sobre o paralelo 29, aquecia o ar até 150° Fahrenheit (2) à sombra. Sem a brisa de oeste que refrescava o ar, aquela temperatura seria insofrível para outro que não fosse bushman. Entretanto, o moço astrónomo inglês, seco de corpo, todo ele osso e nervo, pouco sofria. Além disso, a densa copa das árvores que se debruçavam sobre o abismo defendia-o da acção directa dos raios solares. Naquelas horas cálidas nem uma ave animava a solidão. Nem um quadrúpede deixava o fresco abrigo dos matagais para cortar as clareiras. Ainda que a catadupa não ensurdecesse, nenhum ruído se ouvia naquele deserto.

 

*(2) 40,55 graus centígrados.

 

Após dez minutos de observação, Mokoum voltou-se para Emery, batendo impaciente o pé. Apesar do extraordinário alcance da sua vista, nem um indício descobrira.

- Com que então não aparecem? - perguntou ele ao astrónomo.

- Eles aparecerão, meu valente caçador. É gente de

palavra e serão exactos como astrónomos. Demais, não há razão de queixa. A carta anuncia a sua chegada em fins de Janeiro. Estamos a 27; os colegas têm ainda direito de exigir que esperemos mais quatro dias na cachoeira de Morgheda.

- Mas se não aparecerem passados os quatro dias? - perguntou o bushman.

- Ora! Então teremos ensejo de mostrar até que ponto somos pacientes: esperaremos até não haver esperança de que venham.

- Pelo deus Kó! - bradou o bushman com voz retumbante. - O senhor Emery era capaz de esperar até que o Gariep deixasse de precipitar as águas tumultuosas naquele abismo!

- Não, amigo, não! - respondeu Emery, cada vez mais plácido. - É a razão que deve dirigir as nossas acções. Que nos diz a razão? Que o coronel Everest e os seus companheiros, cansados de uma viagem difícil, privados talvez do necessário, perdidos nesta região deserta, se chegassem aqui e não nos encontrassem, teriam justos motivos de queixa. Se acontecesse alguma desgraça, os responsáveis seríamos nós. Permaneçamos, pois, neste ponto, enquanto o dever no-lo ditar. Nada nos falta. Temos no fim do vale o carro, que nos dá abrigo seguro para a noite. Mantimentos abundam. Aqui a natureza é magnífica e digna de admiração! Para mim é felicidade nova a de passar alguns dias à sombra destas florestas soberbas, ao lado deste rio formosíssimo! Para si, que pode desejar? Abunda caça terrestre, de volataria e altanaria; a sua carabina fornece-nos invariavelmente a mesa todos os dias. Cace, meu amigo, mate o tempo atirando a búfalos e veados. Vá, vá! Entretanto esperarei os retardatários. Assim fica certo de que não deita raízes no chão.

O caçador entendeu que o conselho era bom. Resolveu, pois, fazer uma batida aos matagais e bosques dos arredores.

 

Para um Nemrod habituado, como ele, às florestas africanas, não eram de recear leões, hienas ou leopardos. Assobiou a Top, espécie de cão-hiena do deserto kalahárico, descendente de uma raça que os balambas antigamente aproveitavam para galgos. O inteligente animal, tão impaciente como o dono, levantou-se aos pulos e mostrou por alegres latidos o seu assentimento aos projectos do bushman. Momentos depois, caçador e cão sumiam-se num bosque, cuja espessa ramaria assombreava a parte superior da cachoeira.

Ficando só, deitou-se William Emery debaixo do chorão e, enquanto não lhe chegava o sono que a elevação da temperatura devia provocar, entrou a reflectir na sua presente situação. Estava ali, longe das comarcas habitadas, junto do Orange ainda pouco conhecido. Esperava europeus, compatriotas que deixavam a terra natal para afrontarem os perigos de uma expedição longínqua. Qual seria o fim dessa expedição? Que problema científico tentaria resolver nos sertões da África austral? Que observações projectaria empreender na altura do trigésimo paralelo sul? Não o dizia a carta do célebre Mr. Airy, director do Observatório de Greenwich. Pedia só a Emery a sua cooperação, alegando estar habituado ao clima das latitudes meridionais; alegava que, tratando-se de investigações científicas, não podia ser duvidoso que ele auxiliaria os seus colegas do Reino Unido.

Enquanto o moço astrónomo assim cogitava e fazia mil perguntas para as quais não encontrava resposta, ia-lhe o sono pesando nas pálpebras até que adormeceu profundamente. Quando enfim acordou, o Sol escondia-se já além das colinas ocidentais que recortavam o perfil pitoresco do horizonte inflamado. As contracções do estômago lembraram a William Emery que chegara a hora da comida. Eram seis horas da tarde e convinha encaminhar-se para o carro abrigado no fundo do vale.

Exactamente neste momento ecoou a detonação da arma de fogo num maciço de urzes arborescentes, de 12 a 15 pés de altura, que pela direita se prolongava descendo os flancos das colinas. Passados poucos momentos apareceram o bushman e Top na orla do bosque. Mokoum arrastava o cadáver de um animal que matara.

 

- Ande daí, amigo fornecedor - bradou William

Emery. - Que traz para a ceia?

- Um spring-bok, senhor William - respondeu o caçador, atirando ao chão um animal cujas armas se arqueavam em forma de lira.

Era uma espécie de antílope, geralmente conhecido sob o nome de bode saltador, e muito vulgar em toda a África austral. Aquele lindo animal tem o corpo cor de canela, a parte posterior do lombo coberta de pêlos sedosos, brancos de neve, e o ventre manchado de castanho. A sua carne, excelente veação, foi destinada para a ceia.

O caçador e o astrónomo pegaram no animal por meio de um pau que puseram aos ombros, desceram do promontório vizinho da cachoeira, e passada meia hora chegaram ao acampamento, estabelecido numa estreita garganta do vale. Ali encontraram o carro guardado por dois condutores de raça bochjesman.

 

APRESENTAÇÕES OFICIAIS.

Durante os dias 28, 29 e 30 de Janeiro não deixaram Mokoum e William Emery o local aprazado. Enquanto aquele, movido pelos seus instintos de caçador, perseguia a caça e os animais ferozes na região arborizada que rodeava a cachoeira, o astrónomo vigiava o curso do rio. O aspecto daquela natureza grandiosa e selvática encantava-o e despertava-lhe no coração sensações novas. Aquele homem de algarismos, aquele sábio curvado dia e noite sobre os catálogos de estrelas, preso à ocular da sua luneta, onde espreitava a passagem dos astros pelo meridiano ou as ocultações das estrelas, saboreava a existência ao ar livre, à sombra das florestas impenetráveis que vestiam os pendores das colinas, nos cerros desertos que os nevoeiros do Morgheda cobriam de húmida poeira. Era para ele uma alegria nunca sentida o compenetrar-se da poesia das amplas solidões, não pisadas pelo homem, o refocilar o espírito cansado de especulações matemáticas. Assim enganava o aborrecimento da espera e robustecia alma e corpo. A novidade da sua situação explicava a inalterável paciência que o bushman não partilhava. Todos os dias recomeçavam as recriminações do caçador; sempre eram calmas as respostas do astrónomo, mas não acalmavam o nervoso Mokoum.

Chegou enfim o dia 31 de Janeiro, extremo do prazo fixado na carta de Airy. Se a comissão anunciada não chegasse naquele dia, deveria William Emery tomar alguma resolução, o que para ele era o máximo embaraço.

 

A demora poderia prolongar-se indefinidamente, e como esperar indefinidamente?

- Sr. Emery - disse o caçador-, porque não vamos ao encontro dos estrangeiros? Não podemos passar por eles sem os ver. Há um caminho só, o caminho do rio; se o subirem, como diz o seu pedaço de papel, inevitavelmente os encontraremos.

-A ideia parece-me excelente, Mokoum. Façamos um reconhecimento para baixo da cachoeira. O pior que pode suceder-nos será termos de voltar ao acampamento pelos vales opostos do sul. Diga-me, porém: conhece toda a extensão do curso do Orange?

-Ora! Já o subi duas vezes desde o cabo Volpas até à confluência com o Hart, nas fronteiras da República do Transval.

- É navegável em toda a parte, excepto nas quedas de Morgheda?

- Como diz - respondeu o bushman. - Contudo, no fim da estação seca, o Orange está quase sem água até cinco ou seis milhas da foz. Forma-se ali uma coroa, sobre a qual rebentam com violência as vagas do ocidente.

- Isso não vale nada, porque a foz devia estar desembaraçada na época em que os europeus desembarcaram. Não há razão que explique a sua demora, e portanto chegarão breve.

O bushman não respondeu. Deitou a carabina ao ombro, assobiou ao cão e encaminhou o inglês num carreiro estreito, que encontrava a quatrocentos pés de distância vertical às águas inferiores da cachoeira.

Eram nove horas da manhã. Os dois exploradores, que bem podia chamar-se-lhes tais, desceram ao longo do rio pela margem esquerda. O caminho não apresentava os perfis planos e fáceis de um cais ou de um caminho de sirga. As margens do rio, eriçadas de mato, desapareciam debaixo da vegetação, de espécies variadíssimas. O cynanchum filiforme, mencionado por Burchell, corria em festões cruzados de árvore para árvore e estendia uma rede de verdura na frente dos viandantes. Por isso não parava a navalha do bushman cortando impiedosa as grinaldas importunas. William Emery respirava com avidez os perfumes penetrantes da floresta, entre os quais dominava o da cânfora, espalhado pelas inúmeras diósmeas em flor. Felizmente apareciam de espaço a espaço algumas clareiras, posições de riba despidas de vegetação, ao longo das quais corriam pacificamente as águas piscosas. Graças a estas facilidades, puderam o caçador e o seu companheiro adiantar-se mais rapidamente para oeste. Às onze horas da manhã tinham andado quatro milhas.

Soprava então a brisa do poente, levando os sons para o lado oposto. Assim os mugidos da cachoeira já não se ouviam, e pelo contrário, seriam facilmente sentidos todos os ruídos produzidos a jusante.

William Emery e o caçador, detendo-se neste lugar, avistavam o curso do rio que se estendia em linha recta por espaço de duas a três milhas. As águas corriam em leito profundo entre duas escarpas cretáceas, de duzentos pés de altura.

- Esperemos aqui - propôs o astrónomo - e descansemos. Não tenho pernas como as suas, amigo Mokoum; estou mais habituado a percorrer o firmamento estrelado que os caminhos terrestres. Agora descansemos. Deste sítio podemos vigiar duas ou três milhas ao longo do rio; veremos a lancha a vapor logo que dobre aquela última volta.

O moço astrónomo deitou-se ao pé de um eufórbio agigantado, cuja copa se elevava a quarenta pés de altura. Dali avistava ao longe o rio. O caçador, pouco habituado a sentar-se, continuou passeando na margem, enquanto Top levantava nuvens de aves silvestres, a que o seu dono nenhuma atenção prestava.

Haveria meia hora que o bushman e o seu companheiro ali estavam, quando William Emery viu que Mokoum, distante cem passos para o lado do rio, dava indícios de prestar maior atenção. Teria o bushman avistado o barco tão impacientemente esperado?

O astrónomo, deixando a cama musgosa, encaminhou-se para o caçador, e em poucos momentos chegou ao pé dele.

- Vê alguma coisa, Mokoum? - perguntou ao bushman.

 

- Nada, não vejo nada, senhor William - respondeu o caçador-, mas, além dos ruídos da Natureza que me são familiares, afigura-se-me que na parte inferior do rio algo de estranho se produz!

E dizendo isto, e tendo pedido silêncio ao inglês, o bushman deitou-se ao comprido, encostou o ouvido ao chão e escutou com atenção.

Passados alguns minutos ergueu-se, abanou a cabeça e declarou:

- Talvez me enganasse. O ruído que me pareceu ouvir será o ciciar da brisa por entre a ramaria ou o murmúrio da água nas pedras da praia. Contudo...

O caçador tornou a escutar, mas não ouviu nada.

- Olhe, Mokoum - acudiu William Emery-, se o ruído que julgou ouvir é produzido pela máquina a vapor da lancha, há-de ouvi-lo melhor escutando ao lume de água. Esta propaga os sons com mais clareza e velocidade que o ar.

- Tem razão, senhor William - respondeu o caçador. - Mais de uma vez pressenti desse modo a passagem de um hipopótamo atravessando o rio.

O bushman desceu a riba, muito alta naquele sítio, agarrando-se às trepadeiras e às ervas. Mal chegou ao rio, entrou na água até ao joelho, e, curvando-se, aplicou o ouvido à superfície.

- Sim! - exclamou, tendo escutado alguns minutos. -Sim, sim! Não me enganei. Ouve-se, algumas milhas para baixo de nós, a bulha da água batida com violência. É um chocalhar monótono e contínuo no interior da corrente.

- O ruído da hélice? - sugeriu o astrónomo.

- Talvez, senhor Emery. O que estamos aguardando não vem longe.

William Emery, que bem conhecia a finura dos sentidos do caçador, quer fosse a vista, quer o ouvido, quer o olfacto, não duvidou do que ele dizia. O bushman tornou a subir a riba; resolveram esperar ali, donde podiam facilmente vigiar parte considerável do curso do Orange.

Decorreu meia hora, que pareceu infinita a William Emery, apesar da sua habitual placidez. Quantas vezes não se lhe afigurou divisar o contorno indistinto de um barco deslizando sobre a água. Mas sempre se enganava.

 

Enfim, fez-lhe palpitar o coração uma exclamação do bushman.

- Fumo! - bradou Mokoum.

Emery, olhando na direcção indicada pelo africano, avistou a custo um ténue penacho de fumo, que flutuava na volta do rio. Não havia dúvida possível.

A lancha adiantava-se rapidamente. Dentro em pouco avistou William Emery a chaminé golfando torrentes de fumo negro, cortado por jactos de vapor esbranquiçado. A tripulação activava o fogo para aumentar a velocidade e chegar no dia ajustado ao ponto de reunião. Estaria então o barco a sete milhas da cachoeira de Morgheda.

Seria meio-dia. O sítio não era propício para desembarque, e, portanto, resolveu o astrónomo que voltassem para o pé da queda da água. Deu conhecimento do seu projecto ao caçador, que, sem responder, começou a desandar o caminho percorrido de manhã. Seguiu-o William Emery, e, tendo olhado para trás numa curva do rio, viu a bandeira inglesa flutuando à popa da lancha.

Caminharam rapidamente, e pela uma hora pararam a um quarto de milha abaixo da catarata. Naquele sítio as margens, recortadas em semicírculo, formavam uma pequena enseada, no fundo da qual podia a lancha encostar-se a terra por haver bastante profundidade junto da riba.

Não devia a lancha estar longe, porque certamente andara mais rápida que os caminhantes, por muito que estes apertassem o passo. Não aparecia ainda, porque a disposição das margens do rio, sombreadas de árvores enormes, limitava o horizonte. Era, porém, fácil ouvir, senão o resfolegar do vapor, ao menos os assobios agudos da máquina, que sobressaíam aos mugidos contínuos da cachoeira.

Os assobios não cessavam. A tripulação indicava assim a sua presença nas proximidades de Morgheda. Eram sinal.

Respondeu o caçador descarregando a carabina, cuja detonação os ecos repetiram com estrondo.

Apareceu enfim a lancha. A gente de bordo avistou também William Emery e Mokoum.

Obedecendo aos sinais do astrónomo, a lancha mudou de rumo e veio brandamente encostar-se à terra. Atiraram de bordo um cabo. O bushman deitou-lhe a mão e foi prendê-lo a uma raiz.

Imediatamente saltou com ligeireza em terra um homem de estatura elevada, que se encaminhou para o astrónomo enquanto os seus companheiros desembarcavam.

William Emery também se dirigiu para o recém-chegado e perguntou-lhe:

- É o senhor coronel Everest?

- Tenho a honra de falar com o senhor William Emery? - perguntou por sua vez o coronel.

O astrónomo e o seu colega do Observatório de Cambridge saudaram-se e apertaram as mãos.

- Senhores - disse então o coronel Everest-, tenho a honra de lhes apresentar o senhor William Emery, astrónomo do Observatório da Cidade do Cabo, que teve a bondade de esperar-nos em Morgheda.

Os outros quatro passageiros que estavam perto do coronel Everest saudaram sucessivamente o moço astrónomo, que retribuiu. Depois o coronel apresentou-os oficialmente, dizendo com a sua frieza britânica:

- Sr. Emery, apresento-lhe Sir John Murray, do Devonshire, nosso patrício; o senhor Mateus Strux, do Observatório de Poulkowa; o senhor Nicolau Palander, do Observatório de Helsingfors, e o senhor Miguel Zom, do Observatório de Kiew, três distintos astrónomos russos que representam o Governo do czar nesta comissão internacional.

 

O TRANSPORTE.

Terminadas as apresentações, declarou William Emery que estava às ordens dos recém-chegados. Pela sua posição de simples astrónomo do Observatório do Cabo, era hierarquicamente subordinado ao coronel Everest, delegado do Governo inglês, o qual partilhava com Mateus Strux a presidência da comissão científica. Conhecia-o também como sábio ilustre, que tinha ganho grande nomeada por várias reduções de nebulosas e cálculos de ocultações de estrelas. O coronel teria cinquenta anos, era homem frio e metódico, cuja existência andava matematicamente pautada hora por hora. Para ele não existia o imprevisto. A sua exactidão em tudo não era inferior à dos astros nas suas passagens meridianas. Poderia afirmar-se que todos os actos da sua vida eram regulados pelo cronómetro. Bem o sabia William Emery, que, por isso, não duvidara nunca de que a comissão chegasse no dia aprazado.

Esperava o moço astrónomo que o coronel declarasse qual era a missão de que vinha encarregado. Porém, como ele guardava silêncio, não julgou conveniente interrogá-lo. Naturalmente ainda não soara para Everest a hora em que premeditara explicar-se.

William Emery também conhecia pela fama Sir John Murray, riquíssimo sábio, émulo de James Ross e de Lord Elgin, que, sem título oficial, honrava a Inglaterra com os seus estudos astronómicos. Devia-lhe a ciência sacrifícios pecuniários de grande valia.

 

Destinara a importante soma de vinte mil libras esterlinas à compra e instalação de um reflector enorme, rival do telescópio de Parson-Town, e com o qual tinham sido determinados os elementos de algumas estrelas duplas. Era homem que contaria aproximadamente quarenta anos de idade, de modos fidalgos, mas cuja fisionomia impassível não denunciava a índole.

Os nomes dos três russos, Strux, Palander e Zorn, não eram novos para Emery. O jovem astrónomo não os conhecia, porém, pessoalmente. Nicolau Palander e Miguel Zorn mostravam-se respeitosos com Strux, o que, à falta de merecimento, seria justificado pela posição oficial deste.

William Emery notou apenas que os astrónomos ingleses e russos eram em número igual: três ingleses e três russos. A própria tripulação da lancha a vapor, a "Queen and Tzar"(1), era composta de dez homens, cinco filhos da Inglaterra e cinco da Rússia.

 

*(1) Rainha e Czar.

 

- Sr. Emery - disse o coronel Everest, findas as apresentações-, conhecemo-nos actualmente como se juntos tivéssemos vindo de Londres ao cabo Volpas. Pela minha parte considero-o particularmente graças aos seus trabalhos, que em verdes anos lhe granjearam merecida nomeada. Eu próprio pedi ao Governo inglês que o designasse para tomar parte nos estudos que vamos fazer na África austral.

William Emery saudou, agradecendo, e julgou que saberia enfim os motivos que traziam aquela comissão científica ao hemisfério sul. Mas o coronel Everest não deu explicação nenhuma.

- Sr. Emery - continuou ele -, estão terminados os seus preparativos?

- Completamente, coronel - respondeu o astrónomo. - Conforme as ordens que recebi de Mr. Airy, parti da Cidade do Cabo, há um mês, e dirigi-me à estação de Lattakou. Reuni neste ponto todos os elementos necessários para uma viagem ao interior da África, víveres e carros, cavalos e bochjesmen. Espera-nos em Lattakou uma escolta de cem homens aguerridos, que será comandada por um inteligente e célebre caçador, o bushman Mokoum, que peço licença para apresentar-lhe.

- O bushman Mokoum - exclamou o coronel Everest, se a frieza com que falou admite o verbo. - Conheço perfeitamente esse nome.

- É o nome de um hábil e valente africano - acrescentou Sir John Murray, voltando-se para o caçador, que a presença daqueles europeus e os seus modos cerimoniosos não perturbavam.

- O caçador Mokoum - apresentou William Emery. - O seu nome é conhecidíssimo em todo o Reino

Unido - acudiu o coronel Everest. - Foi amigo de Anderson e guia do ilustre David Livingstone, que me honra com a sua amizade. Agradece-lhe a Inglaterra pela minha boca; felicito o senhor Emery por tê-lo contratado para chefe da nossa caravana. Na sua qualidade de caçador deve estimar as armas de boa qualidade. Temos um arsenal bastante completo, e peço-lhe que escolha a arma que lhe agradar mais. Sei que ficará em muito boas mãos.

Desenhou-se um sorriso de satisfação nos lábios do bushman. Agradou-lhe decerto o muito que na Inglaterra era estimado; porém, aprouve-lhe ainda mais a oferta do coronel Everest. Agradeceu, portanto, com palavras corteses e deixou-se estar de parte enquanto continuava a conversação entre os europeus.

O moço astrónomo deu mais amplos pormenores acerca da expedição, os quais agradaram muito ao coronel Everest. Faltava, pois, alcançar sem demora a povoação de Lattakou, donde a caravana devia partir nos primeiros dias de Março, passada a estação das chuvas.

- Coronel - disse William Emery-, queira decidir de que modo jornadearemos até Lattakou.

- Pelo rio Orange e o Kurumano, seu afluente, que passa perto de Lattakou.

- Poderia ser, mas por muito sólida e veloz que seja a lancha, não pode subir a cachoeira do Morgheda!

- Tornearemos a cachoeira, senhor Emery - volveu o coronel. - Transportando a lancha algumas milhas por terra, poderemos lançá-la a vogar a montante. Daí até Lattakou os rios são navegáveis para barcos que

exijam pouca água.

 

- Decerto, coronel, mas a lancha é tão pesada...

- A lancha - explicou o coronel Everest - é uma obra-prima construída nas oficinas de Leard & C.a, de Liverpul. Desarma-se e arma-se com grande facilidade. Basta à nossa gente uma chave com que tire alguns parafusos. Não trouxe carro para Morgheda?

- Sim, coronel - disse William Emery. - O carro está a uma milha de distância.

- Pois então pedirei ao bushman que mande trazê-lo para aqui. Carregaremos as peças da lancha e a máquina, que se desarma também, e subiremos até ao ponto superior à cachoeira onde o rio se torna navegável.

Foram cumpridas as ordens do coronel Everest. O bushman desapareceu nos bosques, tendo prometido que voltaria passada uma hora. Entretanto foi a lancha rapidamente descarregada. E a carga não era muita: caixas de instrumentos, uma colecção respeitável de espingardas da fábrica de Purdey Moore, de Edimburgo, garrafões de aguardente, barris de carne seca, caixas de munições, malas reduzidas ao mínimo volume, lonas para barracas e todos os mais pertences em óptimo estado de conservação, uma canoa de guta-percha cuidadosamente dobrada e que ocuparia tanto espaço como um cobertor enrolado, objectos necessários para acampar, etc, uma espécie de metralhadora em forma de leque, arma pouco perfeita ainda, mas que se tornaria perigosa para qualquer inimigo que se aproximasse da lancha.

Todos estes objectos foram arrumados na margem do rio. A máquina, da força de oito cavalos e pesando duzentos e dez quilogramas, dividiu-se em três partes, a caldeira com as grelhas, o motor, que uma volta de chave desprendera da caldeira, e a hélice passando debaixo do cadaste. Retiradas estas partes ficou livre o interior do barco.

A lancha, além do espaço destinado à máquina e aos paióis, compunha-se da câmara da proa para a tripulação e câmara de ré para o coronel Everest e seus companheiros. Num momento desapareceram as anteparas e foram tiradas as caixas e as macas. Ficou o barco reduzido ao casco.

 

O casco, de 35 pés de comprimento, compunha-se de três partes, como o do "MaRobert", lancha a vapor que serviu ao Dr. Livingstone na sua primeira viagem ao Zambeze. Era de aço galvanizado, leve e sólido. A ligação das chapas com a vedação do barco era feita por meio de cavilhas e parafusos.

William Emery admirou" maravilhado, a simplicidade e rapidez do trabalho. Apenas chegara havia uma hora o carro, conduzido pelo caçador e dois bochjesmen, já o barco estava pronto para ser carregado.

O carro, veículo primitivo, assentava sobre quatro rodas maciças, formando dois jogos separados um do outro por um intervalo de vinte pés. No comprimento era um verdadeiro car americano. A pesada máquina, cujo leito sobressaía um pé para fora das rodas, era arrastada por seis búfalos domesticados, jungidos dois a dois e muito sensíveis ao comprido aguilhão do boieiro. Só animais daqueles poderiam puxar semelhante veículo assim carregado. Apesar da destreza do carreiro, mais de uma vez ficara encravado nos lamaçais.

A tripulação da "Queen and Tzar" tratou de carregar o carro, de modo que ficasse bem equilibrado. Não foi desmentida a proverbial perícia dos marinheiros. As peças pesadas da lancha descansaram sobre os eixos nas partes mais sólidas do carro.

Entre elas ficaram arrumadas as caixas, malas, barris e outros objectos mais leves e mais frágeis. Para os viajantes, uma jornada de quatro milhas serviria de agradável passeio.

Às três horas da tarde, estando tudo pronto, deu o coronel Everest o sinal de marcha. Foram adiante ele e os seus companheiros, guiados por William Emery. O bushman, os marinheiros e os condutores do carro seguiram este com mais vagar.

O caminho foi fácil. As rampas que levavam à parte superior da cachoeira eram suaves, por serem extensas. Excelente circunstância para o carro, que, indo pesado, chegaria seguramente, embora gastando mais tempo, ao fim da jornada.

Os membros da comissão científica trepavam ligeiros pelos pendores mais próximos do rio.

 

Generalizava-se a conversação entre eles. Nenhum falou, porém, do fim da expedição. Os europeus admiravam principalmente o panorama formosíssimo, a cada instante renovado. Aquela natureza grandiosa, bela na sua aspereza, encantava-os como encantara Emery. Ainda a viagem não os habituara com as belezas naturais daquela região africana. Admiravam, mas discretamente, como ingleses inimigos de quanto fosse improper. A cachoeira alcançou alguns aplausos de bom-tom, dados com cerimónia, mas ainda assim significativos. A divisa daqueles sábios não era totalmente o nil admirari.

Além de tudo julgava-se William Emery obrigado a fazer aos seus hóspedes as honras da África austral. Estava em sua casa e, como certos burgueses entusiastas, não perdoava nem uma minúcia do seu parque africano.

Pelas quatro horas e meia estavam torneadas as quedas de Morgheda. Os europeus, chegando à parte de cima, viram o curso superior do rio desenrolar-se diante deles até os limites do horizonte. Acamparam, aguardando a chegada do carro.

Pelas cinco horas apareceu o veículo no alto das colinas. Fizera a jornada sem transtorno. O coronel Everest mandou proceder à descarga, declarando que partiriam no dia seguinte, ao raiar da aurora.

Trabalhou-se toda a noite. A tripulação da "Queen ande Tzar" mostrou a sua perícia e zelo, recompondo em menos de uma hora o casco, assentando a hélice, levantando as anteparas metálicas, reformando os paióis, embarcando os diversos fardos. Ingleses e russos eram gente escolhida, homens disciplinados e hábeis, nos quais podia haver ilimitada confiança.

No dia seguinte, 1 de Fevereiro, estava a embarcação pronta. Ao nascer do Sol enovelava-se o fumo negro saindo da chaminé em rolos, através dos quais lançava o maquinista jactos de vapor para activar a tiragem. A máquina era de alta pressão, sem condensador, perdendo o vapor a cada pancada do êmbolo, como as máquinas das locomotivas. A caldeira, provida de fervedores engenhosamente dispostos, apresentava grande superfície de aquecimento: bastava meia hora para estar em vapor. Tinham feito grande provimento de lenha de ébano e guáiaco, abundantíssima nos arredores, e queimavam com indiferença estas madeiras preciosas.

Às seis horas da manhã deu o coronel Everest ordem de largar. Embarcaram sem delonga os passageiros e a tripulação. O caçador, para quem era familiar o caminho do rio, foi para bordo, deixando os dois bochjesmen encarregados de levar o carro a Lattakou.

Quando iam colher a amarra, perguntou o coronel Everest ao astrónomo:

- É verdade, senhor Emery, sabe o que vamos fazer?

- Nem o suspeito, coronel.

- Pois é simples, senhor Emery. Vamos medir um arco do meridiano na África austral.

 

EXPLICAÇÕES A RESPEITO DO METRO.

Pode afoitamente afirmar-se que sempre no espírito humano existiu a ideia de uma medida universal e invariável, cuja avaliação rigorosa proviesse da própria natureza. Convinha, efectivamente, que essa medida pudesse ser de novo exactamente determinada, quaisquer que fossem os cataclismos que a Terra sofresse. Decerto pensaram deste modo os antigos, mas careciam de métodos e instrumentos para determinarem com suficiente aproximação a unidade métrica.

O melhor meio de alcançar uma base imutável era derivá-la do esferóide terrestre, cuja circunferência pode ter-se por invariável, sendo portanto necessário medir matematicamente essa circunferência toda, ou parte dela.

Tentaram os antigos determinar essa grandeza. Aristóteles, ao dizer de outros sábios do seu tempo, considerava o estádio, ou a medida linear egípcia do tempo de Sesóstris, como sendo a centésima milésima parte da distância do pólo ao equador. Eratóstenes, no século dos Ptolomeus, calculou aproximadamente o comprimento do arco de um grau entre Sienia e Alexandria. Mas Possidónio e Ptolomeu não puderam tornar suficientemente exactas as operações geodésicas que empreenderam. Outro tanto sucedeu aos seus sucessores.

Foi Picard quem, na França, começou a tornar regulares os métodos para a medida do arco de um grau, e em 1669 mediu a grandeza do arco celeste e do arco terrestre entre Paris e Amiens, achando o comprimento do arco de um grau igual a 57060 toesas.

As medidas de Picard foram prolongadas até Dunquerque e até Collioure por Domingos Cassini e Lahire, entre os anos de 1683 e 1718. Estas medidas foram verificadas em 1739 desde Dunquerque até Perpinhão, por Francisco Cassini e Lacaille. Finalmente, a medida deste arco ainda foi prolongada por Mechain até Barcelona. Tendo falecido Mechain, em consequência do enorme trabalho desta operação, só em 1807 recomeçaram Arago e Biot a medida do meridiano da França, que estes dois geómetras prolongaram até às ilhas Baleares. O arco vai desde Dunquerque até Formentera, sendo cortado ao meio pelo quadragésimo quinto paralelo norte, equidistante do pólo e do equador; em tais condições, para calcular o valor do quarto do meridiano, não era necessário atender ao achatamento da Terra. Deu esta medida 57025 toesas para grandeza média do arco de um grau em França.

Até então foram especialmente os geómetras franceses que trataram desta difícil determinação. Também foi a Constituinte que em 1790, sob proposta de Talleyrand, promulgou um decreto encarregando a Academia das Ciências de escolher o modelo invariável de todas as medidas e de todos os pesos. O relatório, assinado pelos nomes célebres de Borda, Lagrange, Laplace, Monge, Condorcet, propôs para unidade linear a décima milionésima parte do quarto do meridiano e para unidade de peso de todos os corpos o da água destilada no máximo de densidade, sendo adoptado o sistema decimal para formar os múltiplos e submúltiplos das medidas e dos pesos.

Posteriormente, em vários outros pontos do Globo se mediram arcos do meridiano terrestre, porque, sendo o nosso globo, não uma esfera, mas Um elipsóide, eram necessárias medidas multiplicadas para determinar o achatamento nos pólos.

Em 1736, Maupertuis, Clairaut, Camus, Lemonnier, Outhier e o sueco Celsius mediram um arco setentrional na Lapónia e acharam para o comprimento do arco de um grau 57419 toesas.

Em 1745, no Peru, La Condamine, Bouguer, Godin, coadjuvados pelos espanhóis João e António Ulloa, acharam 56737 toesas para grandeza do arco peruano.

Em 1752, Lacaille determinou em 57037 toesas a grandeza do arco do meridiano no Cabo da Boa Esperança.

Em 1754, os padres Maire e Boscowith obtiveram 56973 toesas para o arco entre Roma e Rimini.

Em 1762 e 1763, Beccaria avaliou o grau piemontês em 57468 toesas.

Em 1768, os astrónomos Mason e Dixon, nos confins do Maryland e da Pensilvânia, Estados Unidos, encontraram 55888 toesas para o grau americano.

No século xix foram medidos muitos outros arcos, em Bengala, no Piemonte, na Finlândia, na Curlândia, em Hanôver, na Prússia oriental, na Dinamarca, etc; os ingleses e os russos, porém, mostraram muito menor actividade que os outros povos nestas avaliações difíceis. A principal operação geodésica que tentaram foi a dirigida em 1784 pelo major-general Roy, a fim de ligar as medidas francesas às inglesas.

De todas as medidas mencionadas pode concluir-se que o grau médio anda por 57000 toesas, ou 25 léguas antigas da França; multiplicando por este número os 360° que a circunferência da Terra contém, vê-se que ela conta 9000 léguas em volta.

Porém, como demonstram os números apontados, as medidas dos arcos em diversos lugares da Terra não são absolutamente concordantes. Da média, contudo, de 57000 toesas para comprimento do arco de um grau, deduziu-se a grandeza do metro, isto é, da décima milionésima parte do quarto do meridiano terrestre, o qual se calculou ser 0,513074 toesas, ou 3 pés, 11 linhas e 286 milésimas de linha.

Na verdade, é algarismo pequeno de mais. Cálculos posteriores, nos quais se atendeu ao achatamento da Terra nos pólos, o qual anda por 1 /299.15, e não por 1/334, como ao princípio se julgara, dão 10000856 metros, e não só 10000000 de metros para comprimento do quarto do meridiano. A diferença de 856 metros é pouco apreciável em tal grandeza; porém, matematicamente, é forçoso dizer que o metro, tal qual está adoptado, não representa exactamente a décima milionésima parte do quarto do meridiano.

 

Está errado proximamente duas décimas milésimas de linha.

O metro acima determinado não foi aceite por todas as nações civilizadas. A Bélgica, a Espanha, a Grécia, a Holanda, as antigas colónias espanholas, as repúblicas do Equador, da Nova Granada, de Costa Rica, etc., adoptaram-no quase imediatamente; porém, apesar da superioridade evidente do sistema métrico sobre todos os outros, a Inglaterra não quis recebê-lo até hoje.

Se não fossem as complicações políticas que assinalaram o fim do século xvIII, talvez o povo do Reino Unido o aceitasse sem relutância. Quando, em França, a Assembleia Constituinte promulgou, a 8 de Maio de 1790, o decreto sobre pesos e medidas, foram convidados para reunir-se aos geómetras franceses os da Sociedade Real Inglesa. Para determinar a grandeza do metro devia resolver-se se convinha escolher o comprimento do pêndulo simples de segundas sexagesimais, ou o comprimento de uma fracção de algum dos círculos máximos da Terra. Os acontecimentos políticos obstaram à projectada reunião.

Só em 1854 resolveu a Inglaterra aceitar o sistema métrico, por ter desde muito apreciado as suas vantagens e saber que se fundavam associações de sábios e de negociantes para adiantarem a sua propagação.

O Governo inglês resolveu, porém, conservar em segredo a sua resolução até que novas operações geodésicas, ordenadas por ele, permitissem atribuir ao grau terrestre valor mais exacto. Julgou, porém, conveniente pôr-se de acordo com o Governo russo, que também parecia disposto a adoptar o sistema métrico.

Foi, pois, escolhida entre os membros mais distantes das sociedades científicas uma comissão composta de três astrónomos ingleses e de três astrónomos russos. Como vimos, a Inglaterra nomeou o coronel Everest, Sir John Murray e William Emery; a Rússia escolheu Mateus Strux, Nicolau Palander e Miguel Zorn.

 

A comissão internacional, numa reunião que realizou em Londres, resolveu tentar a medida de um arco do meridiano no hemisfério austral. Medir-se-ia, depois, outro arco no hemisfério boreal, e do conjunto das duas medidas se deduziria o valor exacto próprio para satisfazer a todas as condições do programa proposto.

Faltava escolher entre as diversas possessões inglesas do hemisfério austral, como são a colónia do Cabo, a Austrália e a Nova Zelândia. A Nova Zelândia e a Austrália, situadas nos antípodas da Europa, obrigavam a comissão a uma viagem demorada. Além disso, as guerras contínuas dos maoris e dos indígenas da Austrália contra os invasores europeus podiam dificultar a operação. Pelo contrário, a colónia do Cabo apresentava importantes vantagens: 1. Está situada no mesmo meridiano que certas comarcas da Rússia europeia, de modo que seria possível comparar dois arcos do mesmo meridiano, um no hemisfério austral, outro no setentrional, sem que se divulgasse o segredo dos trabalhos; 2. Ser relativamente curta a viagem para os territórios ingleses da África austral; 3. Poderem os astrónomos russos e ingleses verificar na própria localidade as determinações do francês Lacaille, que atribuíra 57037 toesas de comprimento ao arco de um grau no Cabo da Boa Esperança.

Resolveram, pois, fazer a medida no Cabo. Os dois Governos aprovaram as deliberações da comissão internacional. Foram-lhe concedidas avultadas quantias. Determinou-se a fabricação em duplicado de todos os instrumentos precisos. Ordenou-se ao astrónomo William Emery que fizesse os preparativos para uma viagem demorada no interior da África austral. A fragata "Augusta", da Marinha de Guerra inglesa, recebeu ordem de transportar a comissão até à embocadura do rio Orange.

Não esqueça dizer que, ao par da questão científica, havia motivos de orgulho nacional que exaltavam os sábios reunidos. Era necessário exceder a França nas suas avaliações numéricas, vencer na exactidão dos trabalhos os seus astrónomos mais célebres, e tudo isto numa região bárbara e quase desconhecida.

 

Por isso os membros da comissão anglo-russa estavam dispostos a sacrificar tudo, até a própria vida, para alcançarem resultados úteis para a ciência e ao mesmo tempo gloriosos para as suas nações. Eis a razão por que nos últimos dias de Janeiro de 1854 estava o astrónomo William Emery junto da cachoeira de Morgheda, nas margens do rio Orange.

 

UMA POVOAÇÃO HOTENTOTE.

Foi rápida a viagem na parte superior do curso do Orange. O tempo tornou-se chuvoso, mas os passageiros, comodamente abrigados na câmara da lancha, nada sofreram com as chuvas torrenciais próprias da estação. A "Queen and Tzar" corria veloz. Não encontrava cachões nem baixios, e a força da corrente não era bastante para demorar o andamento.

As margens do Orange continuavam apresentando o mesmo aspecto encantador. Seguiam-se umas às outras florestas de variadas espécies, animadas por inúmeras famílias de aves. Grupavam-se aquém e além árvores da família das proteáceas, principalmente as wagen-boom, de madeira vermelha e ondeada, cujas folhas azul-escuras e grandes flores de um amarelo-claro produziam singular efeito; apareciam também as zwartebast de casca preta, as karrees de folhagem escura e persistente. Umas vezes os bosques prolongavam-se muitas milhas para longe das margens do rio, sempre sombreadas pelos chorões. Outras vezes apareciam de repente grandes clareiras. Eram planícies cobertas de colocíntias e cortadas por moitas de açúcar, compostas de proteáceas melíferas, donde se levantavam milhares daquelas aves de canto harmonioso, que os colonos do Cabo denominam suikervogels.

Do mundo alado havia numerosas espécies. Mostrava-as o bushman a Sir John Murray, grande amador de caça de todas as espécies. Deste modo travavam íntimas relações o caçador inglês e Mokoum, ao qual o fidalgo, cumprindo a promessa do coronel Everest, dera uma carabina excelente do sistema Paply e de grande alcance. Não pode descrever-se a alegria que sentiu o bushman ao receber aquela magnífica arma.

Os dois caçadores entendiam-se às mil maravilhas. Sir John Murray, não obstante ser um astrónomo ilustre, adquirira fama de ser um dos mais hábeis hunterfox (1) da velha Caledónia. Ouvia, curioso, com inveja, as histórias cinegéticas do bushman. Ardia de impaciência quando o bushman lhe mostrava na floresta vários ruminantes selváticos, ora bandos de quinze a vinte girafas, ora búfalos de seis pés de altura com a cabeça armada de chavelhos negros em espiral, ora gnus bravios com a cauda de cavalo; mais adiante, bandos de cuamas, que são enormes gamos de olhos vermelhos, cujas armas apresentam um triângulo; por toda a parte, enfim, nas densas florestas ou nas planícies escalvadas, as inúmeras variedades de antílopes que pululam na África austral, tais como a camurça bastarda, o gemsbok, a gazela, o bode das moitas, o bode saltador, etc. Sobejavam elementos para despertar os instintos venatórios; as caçadas de raposas nas planícies escocesas não sofriam paralelo com as proezas de um Cummins, de um Anderson, ou de um Baldwin?

Deve dizer-se que os companheiros de Sir John Murray não se comoviam igualmente com o aspecto daquele paraíso venatório. William Emery examinava os colegas, procurando ler-lhes os génios nos rostos impassíveis. O coronel Everest e Mateus Strux, ambos proximamente da mesma idade, eram igualmente metidos consigo, discretos e cerimoniosos. Falavam com pausada gravidade, todas as manhãs; parecia que nunca se tinham visto antes da noite anterior. Não era de esperar que viesse a estabelecer-se intimidade entre aquelas duas altas personalidades. Acontece soldarem-se dois pedaços de gelo justapostos, nunca se ligam dois sábios que chegam a posição eminente no mundo científico.

 

*(1) Caçador de raposas.

 

Nicolau Palander, de cinquenta e cinco anos de idade, era um daqueles homens que nunca foram novos, nem se fazem nunca velhos. O astrónomo de Helsingfors, sempre absorto em cálculos, seria uma máquina admiravelmente organizada, mas não passava de máquina, espécie de ábaco ou de contador universal. Designado para calculador da comissão anglo-russa, era um daqueles fenómenos que fazem de cabeça multiplicações com factores de cinco algarismos, um Mondeux quinquagenário.

Miguel Zorn, pela semelhança da idade, pelo temperamento entusiástico, pela constante alegria, aproximava-se mais de William Emery. O seu génio amável não obstava a que fosse astrónomo de grande merecimento e precocemente célebre. Tinham causado grande impressão na Europa científica os descobrimentos feitos por ele, ou sob a sua direcção, no Observatório de Kiew a respeito da nebulosa da Andrómeda. A par de talentoso era modesto, e nunca procurava fazer-se valer.

William Emery e Miguel Zorn deviam ser amigos. Aproximavam-nos os mesmos gostos, idênticas aspirações. Estavam sempre conversando. Entretanto, o coronel Everest e Mateus Strux mediam-se desconfiados, Palander extraía de cabeça raízes cúbicas sem conceder um olhar aos panoramas encantadores da paisagem, e Sir John Murray e o bushman formavam projectos de hecatombes cinegéticas.

Nenhum incidente ocorreu durante a viagem na parte superior do Orange. Por vezes, as alcantiladas ribas graníticas que apertavam o curso sinuoso do rio pareciam fechar o caminho.

Outras vezes surgiam ilhas umbrosas a meio rio, que poderiam tornar a derrota incerta. Mas o bushman não duvidava nunca, e a "Queen and Tzar" tomava o melhor caminho, ou saía sem dificuldade dos ásperos desfiladeiros. Nunca o homem do leme se arrependeu de obedecer às indicações de Mokoum.

Em quatro dias a lancha percorreu as 240 milhas que separam Morgheda da foz do Kurumano, afluente que passa junto de Lattakou, para onde se dirigia a expedição do coronel Everest. A trinta léguas da cachoeira formava o rio um cotovelo e, modificando a sua direcção geral de ocidente para oriente, tornejava para sueste, roçando o ângulo agudo que o território da colónia do Cabo forma ao norte.

 

Dali dirigia-se para nordeste, indo perder-se trezentas milhas além nas regiões arborizadas da República do Transval.

No dia 5 de Fevereiro, pela manhã e debaixo de copiosa chuva, a "Queen and Tzar" atingiu a estação de Klaar-water, aldeia hotentote junto da confluência do Kurumano e do Orange. O coronel Everest, que não queria perder um instante, passou rapidamente à vista das poucas cabanas bochjesmen que compõem a aldeia; pouco depois a lancha, impelida pela hélice, começou a subir a corrente do afluente. A grande velocidade da corrente, segundo observavam os passageiros da "Queen and Tzar", é devida a uma particularidade singular. Com efeito, o Kurumano, larguíssimo na origem, diminui descendo por efeito da evaporação. Mas naquela época do ano, estando o rio engrossado pela cheia e pelo Moschona, seu afluente, era profundo e rápido. O maquinista activou, pois, o fogo, e a lancha subiu o Kurumano à razão de três milhas por hora.

Durante a travessia, o bushman descobriu no rio grande número de hipopótamos. Estes enormes paquidermes, a que os holandeses do Cabo chamam vacas-marinhas, grossos e pesados animais, de 8 a 10 pés de comprimento, não se mostravam agressivos. O resfolegar do vapor e o bater da hélice metiam-lhes medo. Julgavam ver no barco algum novo monstro de que deviam desconfiar; o arsenal de bordo era com efeito perigoso. Sir John Murray quisera experimentar balas explosivas naquelas moles de carne; o bushman, porém, afirmou-lhe que nos rios do norte encontrariam abundância de hipopótamos e, por isso, resolveu o caçador inglês aguardar ocasião mais propícia.

Em cinquenta horas andou a lancha as 150 milhas que vão da embocadura do Kurumano à estação de Lattakou. A 7 de Fevereiro, às três horas da tarde, estavam chegados os exploradores.

Logo que ficou amarrada a lancha do vapor junto da riba que servia de cais, veio a bordo a cumprimentar William Emery um homem de cinquenta anos, de aspecto grave e sério, mas de fisionomia bondosa. O astrónomo, apresentando o recém-chegado aos seus companheiros de viagem, anunciou:

- O reverendo Tomás Dale, membro da Sociedade das Missões de Londres e chefe da estação de Lattakou.

Os europpeus saudaram o reverendo Tomás Dale, que lhes deu os parabéns pela boa viagem e pediu as suas ordens.

A vila de Lattakou, ou antes grande aldeia assim chamada, é a estação de missionários mais arredada do Cabo para norte. Divide-se em velha e nova Lattakou. A velha, hoje quase abandonada e onde a "Queen and Tzar" aportara, ainda no começo do século contava doze mil habitantes, que depois emigraram para nordeste. A povoação decadente foi substituída pela nova Lattakou, construída perto, numa planície outrora vestida de acácias.

Esta nova Lattakou, para onde os europeus se dirigiam guiados pelo missionário, compreendia uns quarenta grupos de casas, habitadas por cinco a seis mil almas da grande tribo dos Bechuanas.

Nesta vila residiu o Dr. David Livingstone três meses, em 1840, antes de empreender a sua primeira viagem ao Zambeze, viagem em que atravessou toda a África central, desde a baía de Luanda até ao porto de Quelimane, na costa de Moçambique.

O coronel Everest, logo que chegou à nova Lattakou, entregou ao chefe da missão uma carta do Dr. Livingstone, o qual recomendava a comissão anglo-russa a todos os seus amigos da África austral. Tomás Dale leu a carta com extrema alegria e restituiu-a ao coronel Everest, dizendo que lhe poderia ser útil durante a viagem, visto que o nome de Livingstone era conhecido e estimado em toda aquela parte da África.

Os membros da comissão hospedaram-se na ampla casa das missões, construída sobre uma elevação e rodeada de sebe robusta como se fora recinto fortificado. Os europeus estavam ali mais bem acomodados que nas cabanas dos Bechuanas, que, no entanto, são limpas e bem arrumadas. No chão destas, de argila batida, não é fácil ver um grão de poeira; o tecto, de colmo espesso, é impenetrável à chuva; entretanto sempre são choças, onde se entra por um buraco redondo, que mal deixa passar uma pessoa.

 

Naqueles recintos vivem em comum, e o contacto imediato dos Bechuanas bem longe está de ser grato.

Um tal Moulibahan, chefe da tribo e residente em Lattakou, entendeu que devia visitar e cumprimentar os europeus. Era Moulibahan homem bem-apessoado, não tendo da raça negra nem os lábios grossos nem o nariz achatado, de cara redonda e não aguçada para os queixos como a dos hotentotes. Vestia manto de peles cosidas com habilidade e um avental que na língua daquela região chamam pukogue. Calçava sandálias de couro de boi, e trazia na cabeça um barrete também de couro. Nos cotovelos tinha braceletes de marfim; de cada orelha pendia-lhe uma chapa de cobre de quatro polegadas de comprimento. Estes brincos são tidos como amuletos. Da ponta do barrete caía-lhe pelas costas abaixo uma cauda de antílope. Na mão segurava um pau, dos que usam nas caçadas, encimado por um ramalhete de penazinhas de avestruz. Não era possível conhecer a cor natural do corpo do chefe bechuana, tal era a camada de ocre que o revestia. O número de inimigos que Moulibahan matara estava indicado por incisões indeléveis nas coxas.

Este chefe, tão sério pelo menos como Mateus Strux, chegou-se aos europeus e puxou-lhes pelo nariz. Os russos consentiram, conservando a máxima gravidade, mas os ingleses mostraram-se mais recalcitrantes. Este uso africano significa obrigação solene de ser hospitaleiro com os europeus.

Terminada a cerimónia, Moulibahan retirou-se sem pronunciar palavra.

- Agora que estamos naturalizados Bechuanas - observou o coronel Everest-, tratemos, sem perda de tempo, de preparar os nossos trabalhos.

Efectivamente não se perdeu tempo, mas ainda assim não pôde a comissão partir senão nos primeiros dias de Março, tantos cuidados e tantas minúcias exigiam os preparativos para tal expedição. Acabava a estação das chuvas, e a água represada nas depressões de terreno proporcionaria valiosos recursos aos viajantes no sertão.

Marcou-se para a partida o dia 2 de Março. Naquele dia estava toda a caravana formada sob a direcção de Mokoum.

 

Os europeus despediram-se dos missionários de Lattakou e saíram da povoação às sete horas da manhã.

- Aonde vamos, coronel? - perguntou William Emery, quando passavam a última cabana da terra.

- Vamos sempre em frente, senhor Emery - respondeu o coronel -, até acharmos terreno plano para medir uma base.

Às oito horas transpusera a caravana as colinas baixas e arborizadas que cercam a povoação. Logo se desdobrou perante os viajantes o deserto cheio de perigos, de trabalhos, de azares.

 

TRAVA-SE MAIS AMPLO CONHECIMENTO.

Compunha-se de cem homens a escolta comandada pelo bushman. Aqueles indígenas eram todos bochjesmen, gente activa, mansa, nada rixosa e capaz de afrontar prolongados trabalhos. Noutro tempo, antes das prédicas dos missionários, os bochjesmen, mentirosos e pouco hospitaleiros, só tratavam de mortes e roubos, aproveitando o sono dos seus inimigos para os assassinar. Os missionários modificaram em parte estes costumes bárbaros; contudo ainda aqueles negros não desgostam de assaltar herdades e roubar gados.

O material pesado da expedição constava de dez carros, semelhantes àquele que o bushman levara até à cachoeira de Morgheda. Dois carros, espécie de casas ambulantes, apresentavam certos cómodos e deviam servir para os europeus pernoitarem. Assim, andavam o coronel Everest e os seus companheiros seguidos por duas casas de madeira, de sobrado seco, cobertas com encerados impermeáveis e munidos de camas e objectos de toilette. Quando acampassem poupariam tempo, porque iam as barracas já armadas.

Um dos carros era destinado ao coronel Everest e os seus compatriotas, Sir John Murray e William Emery. No outro habitavam os russos, Mateus Strux, Nicolau Palander e Miguel Zorn. Havia dois outros carros do mesmo modelo, um para os cinco marinheiros ingleses, outro para os cinco russos, da tripulação da "Queen and Tzar".

 

Escusado é dizer que o casco e a máquina da "Queen and Tzar", desarmados e arrumados num dos carros, acompanhavam os europeus na sua viagem pelo deserto africano. Abundam lagos no interior deste continente. Se existisse algum no trajecto que a comissão escolhesse, a lancha prestaria excelente auxílio.

Noutros carros eram transportados os instrumentos, víveres, bagagens, armas, munições e diversos acessórios necessários para a triangulação projectada, tais como pirâmides portáteis, mastros de sinal, revérberos, cavaletes para a medida da base e enfim todos os objectos necessários para os cem homens da escolta. Os víveres dos bochjesmen consistiam principalmente em biltonga, carne de antílope, de búfalo ou de elefante, cortada em tiras compridíssimas e que, seca ao sol ou a fogo lento, se conserva por meses. Este modo de preparação economiza sal, e por isso é muito usado em todas as regiões onde este precioso mineral falta. Os bochjesmen entendiam substituir o pão por diversos frutos ou raízes, o mendubi, os bolbos de certas espécies de mesembriântemos, tais como o figo indígena, castanhas, ou a medula de uma variedade de zamic, que tem o nome de pão-de-cafre. Estes alimentos vegetais seriam colhidos no caminho à proporção do necessário. Da alimentação animal proveriam os caçadores da caravana, que admiravelmente sabiam servir-se dos arcos de aloés e das azagaias, que são umas lanças compridas.

Cada um dos carros era puxado por seis bois originários do Cabo, de pernas compridas, espáduas altas e grandes armas. Os aparelhos eram de pele de búfalo. Assim movidos, os pesados veículos, grosseiros espécimes de uma construção primitiva, não receavam nem subidas nem atoleiros, e as rodas maciças rolavam segura, senão rapidamente.

As cavalgaduras destinadas para os viajantes eram cavalos pequenos de raça espanhola, pretos ou rucilhos, importados da América meridional e muito apreciados pela sua força e mansidão. Havia também meia dúzia de cuagas amansados. São estes uma espécie de burros de pernas finas, nutridos, e cujo zurrar lembra o latido dos cães. Deviam servir nas explorações parciais necessárias para as operações geodésicas, transportando instrumentos e utensílios nos caminhos por onde os carros não pudessem andar.

O bushman montava com destreza e elegância um animal magnífico que Sir John Murray, grande apreciador, não se cansava de admirar. Era uma zebra, cujo pêlo, riscado transversalmente de cinzento, ostentava incomparável beleza. Tinha sete pés de comprimento da boca à cauda e quatro de altura na espádua. A zebra, desconfiada e assustadiça, não consentia outro cavaleiro além de Mokoum, o qual a domesticara para seu uso.

Nos flancos da caravana corriam alguns cães da espécie impropriamente designada pelo nome de hienas caçadoras. Nas formas e na grandeza das orelhas lembravam o perdigueiro europeu.

Tal era o conjunto da caravana que tentava penetrar nos desertos da África. Marchavam tranquilamente os bois guiados pelo jambox (1) dos condutores, que os picavam nas ilhargas. Era curioso o espectáculo daquela comitiva caminhando ordenadamente ao longo das colinas.

Para onde se dirigia a caravana ao sair de Lattakou?

- Vamos sempre em frente - dissera o coronel Everest.

Com efeito, ainda então, nem o coronel nem Mateus Strux podiam tomar qualquer direcção determinada. Antes de começarem as operações trigonométricas, precisavam encontrar um terreno amplo, regularmente plano, a fim de estabelecerem ali a base do primeiro dos triângulos cuja rede devia cobrir a região austral da África na extensão de alguns graus.

O coronel Everest disse ao bushman o que procuravam. Com a firmeza de sábio para quem era familiar a tecnologia matemática, o coronel falou ao caçador de triângulos, ângulos adjacentes, base, medida do meridiano, distâncias zenitais, etc. O bushman deixou-o falar algum tempo; depois declarou, interrompendo-o impaciente:

- Coronel, não entendo nada de ângulos, bases e meridianos. Nem percebo sequer o que vão fazer no deserto africano.

 

*(1) Aguilhão comprido.

 

Nem me importa. Que pretende? Uma grande e ampla planície, direita, regular? Pois vou procurá-la.

Por ordem do bushman a caravana, que acabava de subir as colinas de Lattakou, inclinou para sudoeste. Esta direcção conduzia ao sul da povoação, isto é, para a comarca banhada pelo Kurumano. O caçador esperava encontrar ao nível deste afluente a desejada planície.

Desde então habituou-se o bushman a caminhar à frente da caravana. Sir John Murray, cujo cavalo era excelente, não o deixava; de vez em quando alguma detonação fazia saber ao resto da comitiva que Sir John travava conhecimento com a caça africana. O coronel, absorto em mil pensamentos, deixava o cavalo à vontade e pensava no futuro da expedição, cuja direcção era em verdade difícil naquelas regiões desconhecidas. Mateus Strux, ora a cavalo, ora de carro, conforme o terreno permitia, não abria os lábios. Nicolau Palander, péssimo cavaleiro, ia quase sempre a pé ou metia-se no carro, embebendo-se nas mais profundas abstracções da alta matemática.

William Emery e Miguel Zorn, se de noite dormiam cada um no seu carro, reuniam-se de dia durante a marcha da caravana. Cada vez estreitavam mais íntima amizade, cimentada pelos mil incidentes da jornada. De uma a outra estação cavalgavam a par. Muitas vezes afastavam-se, ora fazendo excursões nos flancos da caravana, ora precedendo-a a algumas milhas quando o caminho se desenrolava a perder de vista. Ficavam livres então e como que perdidos no meio daquela natureza selvática. Conversavam de tudo, excepto a respeito da ciência! Esqueciam algarismos, problemas, cálculos e observações! Não eram astrónomos entregues à contemplação da abóbada estrelada, mas rapazes em férias atravessando felizes os bosques fechados, cortando as planícies infindas, respirando o ar livre perfumado de aromas penetrantes. Riam, sim, riam, como simples mortais e não como gente grave que vive habitualmente com os cometas e outros astros. Se não zombavam nunca da ciência, escarneciam daqueles sábios austeros que não parecem gente deste mundo. E não era por maldade. Pela sua índole expansiva, amorável, delicada, faziam contraste completo com os seus chefes, o coronel Everest e Mateus Strux, mais empertigados que austeros.

Muitas vezes lhes davam estes dois sábios assunto de conversação. Miguel Zorn descrevia-os ao seu amigo Emery.

- É verdade - dizia aquele -, observei-os durante a viagem no "Augusta", e desgraçadamente reconheci que têm ciúme um do outro. Embora o coronel Everest pareça ter a direcção suprema, Mateus Strux é seu igual. O Governo russo fixou claramente a sua posição. Estes dois chefes são igualmente imperiosos. Enfim, repito-lhe, sentem ciúmes de sábios, que de todos os ciúmes são os piores.

- E os menos razoáveis - retorquiu William Emery - porque na ciência tudo se prende, e sempre o trabalho de um aproveita a todos. As suas observações são exactas, e por isso mesmo receio da nossa expedição. Precisávamos acordo completo para que desse bom resultado esta operação difícil que vamos intentar.

- Decerto, mas receio muito que não haja acordo. Veja qual não será a nossa confusão se cada minúcia, a medida de base, os métodos de cálculo, a escolha dos pontos geodésicos, a verificação das observações, der todos os dias origem a polémicas! Ou me engano muito, ou vamos sofrer repetidos desaguisados, quando tivermos de cotejar os registos em duplicado das operações e de notar medidas cuja exactidão chegue a quatro centésimas milésimas de toesa (2).

- Assusta-me, meu caro Zorn. Seria doloroso arriscar-mo-nos a perder tudo por falta de concórdia. Permita Deus que os seus receios não se realizem.

- Bem o desejo, Emery; repito-lhe, porém, que durante a viagem por mar fui testemunha presencial de disputas sobre métodos científicos, que provam teimosia indesculpável do coronel Everest e do seu rival. Tudo aquilo era torpe ciúme.

- Mas não se separam um do outro. Ninguém os encontrará distantes. São inseparáveis, ainda mais inseparáveis que nós.

 

*(2) Duas centésimas de milímetro.

 

- É verdade - replicou Miguel Zorn -, de dia não há quem os veja separados, mas não trocam uma dúzia de palavras. Vigiam-se, espreitam-se. Se um deles não conseguir anular o outro, trabalharemos em circunstâncias desagradabilíssimas.

- E a seu ver - perguntou William Emery, hesitando-, qual dos dois desejaria?...

- Meu caro amigo - respondeu Miguel Zorn, com inteira franqueza-, aceitarei lealmente por director aquele que souber impor-se como tal. Nesta operação científica nenhuns preconceitos me impressionam, nem ainda o amor-próprio nacional. Mateus Strux e o coronel Everest são igualmente homens distintos. Equivalem-se. A Inglaterra e a Rússia tiram igual proveito do resultado dos nossos trabalhos científicos, quer estes sejam dirigidos por um inglês, quer por um russo. Que lhe parece?

- Estou plenamente de acordo. Não nos deixemos impressionar por absurdos preconceitos e, conforme as nossas forças, liguemo-nos para o bem comum. Talvez não seja impossível desviar os golpes que os dois adversários se joguem. Além disto o seu compatriota Nicolau Palander...

- Este sim! - acudiu Miguel Zorn, rindo. - Não vê, não ouve, não percebe nada. Contanto que o deixassem, calcularia por conta do imperador Teodoro. Não é russo, nem inglês, nem prussiano, nem chinês. Não é mesmo habitante deste globo sublunar. É Nicolau Palander e nada mais.

- Não posso dizer o mesmo do meu colega John Murray. Este fidalgo é inglês até à ponta dos cabelos, mas caçador incorrigível. Preferia seguir uma girafa ou um elefante a embrenhar-se na discussão de métodos científicos. Contemos só connosco para amortecer os choques dos nossos chefes. Escusado é dizer que, suceda o que suceder, andaremos sempre franca e lealmente unidos.

- Sempre, suceda o que suceder! - exclamou Miguel Zorn, estendendo a mão ao seu amigo William Emery.

Entretanto, a caravana continuava a entranhar-se para o sul, dirigida pelo bushman. No dia 4 de Março, pelo meio-dia, chegou à base das extensas colinas arborizadas que seguia desde Lattakou. Não se enganara o bushman: guiara a expedição para a planície. Esta, porém, bastante acidentada ainda) não se prestava aos trabalhos preliminares da triangulação. Não se interrompeu, portanto, a jornada. Mokoum continuou caminhando à testa da caravana, enquanto Sir John Murray, William Emery e Miguel Zorn faziam todos três um reconhecimento para a frente.

Ao entardecer, toda a comitiva chegou a uma daquelas estações ocupadas pelos agricultores nómadas, ou bures (3), que a abundância das pastagens demora por alguns meses em certas localidades. O coronel Everest e os seus companheiros foram hospitaleiramente recebidos pelo colono holandês, chefe de uma família numerosa, e que não quis aceitar nenhuma recompensa dos seus serviços. Era o colono um daqueles homens valorosos, sóbrios e trabalhadores, cujo diminuto capital, aplicado com discernimento na criação de bois, vacas e cabras, lhes granjeia em pouco tempo haveres abundantes.

O holandês indicou ao coronel Everest uma grande planície a quinze milhas de distância, que devia convir maravilhosamente às operações geodésicas.

Ao romper da aurora seguinte pôs-se a caravana em marcha. Andou toda a manhã. Nenhum incidente interromperia a monotonia da jornada se a carabina de Sir John Murray não tivesse morto um animal curioso, com focinho de boi, cauda branca e comprida, cabeça armada de compridos chavelhos. Era um gnu, boi selvagem, que ao cair soltou um gemido surdo.

Quem ficou assombrado foi o bushman vendo o animal, apesar da distância, cair fulminado por um só tiro. O gnu, cuja altura anda por cinco pés, dá grande quantidade de carne excelente. Foram, portanto, recomendados esses animais aos caçadores da caravana.

Pelo meio-dia chegavam ao sítio designado pelo colono. Era uma planície ilimitada para o norte, lisa e plana. Não podia haver melhor terreno para a medida da base. Por isso o bushman, tendo examinado tudo, voltou para junto do coronel Everest, e disse-lhe: - Eis a planície, coronel.

 

*(3) "Bur", aportuguesamento do holandês bóer.

 

A BASE GEODÉSICA.

O trabalho geodésico empreendido pela comissão internacional consistia, como todos sabem, em estabelecer uma triangulação que servisse para medir o arco do meridiano que a cortasse. A medida de um ou mais graus do meridiano directamente por meio de réguas graduadas metálicas, dispostas umas em seguida às outras, seria absolutamente impraticável, considerada a questão pelo que respeita à exactidão matemática. Além disso, em parte alguma do Globo se acharia uma planície lisa de centos de léguas que se prestasse eficazmente à realização de uma medida tão delicada. Por felicidade é possível proceder de modo mais exacto, dividindo todo o terreno atravessado pelo meridiano em triângulos aéreos, cuja determinação e resolução não apresentam dificuldades.

Obtêm-se os triângulos apontando instrumentos de confiança, tais como o teodolito ou o círculo repetidor, para sinais naturais ou artificiais, que podem ser as grimpas dos campanários, torres, revérberos, postes, etc. Cada sinal é vértice de triângulo, cujos ângulos são medidos pelos referidos instrumentos com exactidão matemática. Com efeito, a posição de qualquer objecto, de dia um campanário, de noite um revérbero, pode ser determinada com perfeito rigor por qualquer observador hábil que aponte para ele uma luneta cujo campo seja cruzado pelos fios de um retículo. Obtêm-se assim triângulos cujos lados medem muitas milhas de comprimento.

 

Assim ligou Arago a costa de Valência, na Espanha, às ilhas Baleares por meio de um enorme triângulo, cujo lado maior tem oitenta e duas mil quinhentas e cinquenta e cinco toesas de comprimento (1).

 

*(1) Proximamente 160 quilómetros ou 32 léguas.

 

Ora, segundo um princípio de geometria, fica inteiramente conhecido qualquer triângulo quando são dados um dos seus lados e dois ângulos, porque destes elementos se deduz a grandeza do terceiro ângulo e dos outros dois lados. Logo, tomando por base de novo triângulo um dos lados de outro triângulo já calculado e medindo os ângulos adjacentes a esta base, obtém-se sucessivamente uma série de triângulos, que podem ser levados até aos limites do arco que se quer medir. Por este método alcança-se o comprimento de todas as linhas compreendidas na rede dos triângulos, e por uma série de cálculos trigonométricos obtém-se o comprimento do arco do meridiano entre as duas estações extremas da triangulação.

Dissemos que fica conhecido um triângulo desde que sejam dados um lado e dois ângulos. Os ângulos são medidos exactamente por meio do teodolito ou do círculo repetidor. Mas, o primeiro lado, base de todo o sistema, há-de por força ser medido directamente no terreno com extraordinária exactidão. Este é o trabalho mais melindroso de toda a triangulação.

Delambre e Mechain, quando mediram o meridiano da França desde Dunquerque até Barcelona, escolheram para base da sua triangulação uma recta traçada na estrada de Melun a Lieusaint, departamento de Sena-e-Marne. Tinha esta base doze mil cento e cinquenta metros, e foi medida em quarenta e cinco dias. Os meios que eles empregaram para obter exactidão matemática na sua medida serão indicados pelos trabalhos do coronel Everest e de Mateus Strux, que procederam de modo semelhante. Veremos até que ponto chega o rigor.

Os trabalhos geodésicos começaram no dia 5 de Março com grande assombro dos bochjesmen, que não percebiam nada de tudo aquilo. O caçador julgava perfeita zombaria de sábios a ideia de medir a Terra com réguas de seis pés de comprimento, assentes topo a topo. No entanto, cumpria o seu dever. Pediram-lhe uma planície bem lisa. A planície ali estava.

O local fora na verdade bem escolhido para a medida directa de uma base. A planície, coberta de relva curta e seca, desenrolava-se até aos confins do horizonte sempre rigorosamente nivelada. Decerto não foram tão felizes os astrónomos que operaram na estrada de Melun. Na parte posterior do terreno corria uma série de outeiros ondulados, que formavam o limite sul do deserto de Kalahari. Para norte era o infinito. A leste desciam em rampas suaves os últimos pendores das colinas que compõem a breia (2) de Lattakou. Para ocidente, a planície, continuando a baixar, tornava-se pantanosa e embebida de água estagnada proveniente dos confluentes do Kurumano.

 

*(2)   Planalto.

 

- Parece-me, senhor coronel Everest - disse Mateus Strux, tendo observado aquele enorme lençol de verdura -, que depois de estabelecida a base poderemos fixar aqui mesmo o ponto inicial do meridiano.

- Será talvez essa a minha opinião, senhor Strux- respondeu o coronel Everest-, depois de termos determinado a longitude exacta deste ponto. Precisamos examinar, por meio de um traçado na carta, se o arco do meridiano assim escolhido não corta obstáculos invencíveis que se oponham às operações geodésicas.

- Não me parece - replicou o astrónomo russo.

- Veremos. Tratemos de medir a base nesta planície, que se presta perfeitamente, e depois examinaremos se convirá ligá-la por uma rede de triângulos auxiliares à triangulação geral cortada pelo arco do meridiano.

Decidido este ponto resolveram proceder sem demora à medida da base. Devia esta operação ser demorada, porque os membros da comissão anglo-russa desejavam, sobretudo, uma rigorosa exactidão. O seu dever era exceder em rigor as medidas geodésicas feitas em França a contar da base de Melun, medidas aliás tão perfeitas que outra base medida posteriormente perto de Perpinhão, na extremidade sul da triangulação, e destinada a verificar a exactidão dos cálculos em toda a série dos triângulos, indicou apenas a diferença de onze polegadas entre o comprimento medido e o calculado, apesar de as duas bases distarem trezentas e trinta mil toesas (cento e vinte e oito léguas) uma da outra.

Foram, pois, expedidas ordens para se estabelecer o acampamento, e em breve ficou improvisada uma aldeia bochjesman, uma espécie de kraal. Dispuseram-se os carros como verdadeiras casas, e a aldeola dividiu-se em bairro inglês e bairro russo, por cima de cada um dos quais flutuava a respectiva bandeira. No centro havia uma praça comum. Fora da linha circular dos carros pastavam os cavalos e bois, guardados pelos condutores; de noite todos eram recolhidos no recinto dos carros para livrá-los da voracidade dos animais ferozes, vulgaríssimos no interior da África austral.

Mokoum encarregou-se de organizar caçadas para abastecer a povoação. Sir John Murray, cujo auxílio não era indispensável para a medida da base, cuidava principalmente do serviço de víveres. Convinha poupar as conservas alimentícias e dar quotidianamente aos viajantes carne fresca. Graças à habilidade de Mokoum, à sua prática consumada e à destreza dos seus companheiros, nunca faltou caça. Os caçadores percorriam as colinas e planícies circunvizinhas, e por toda a parte ecoavam as detonações das armas europeias.

A 6 de Março começaram de facto as operações geodésicas. Os dois astrónomos mais jovens foram encarregados dos trabalhos preliminares.

-A caminho, camarada - disse alegremente Miguel Zorn a William Emery - e que o Deus da exactidão vele por nós!

A primeira operação consistiu em traçar sobre o terreno, na parte chã e mais lisa, uma linha recta. A disposição do solo deu-lhe a orientação de sueste a noroeste. A sua direcção foi obtida por meio de estacas cravadas no chão, muito próximas umas das outras, e que formavam uma série de balizas. Miguel Zorn, com uma luneta de retículo, verificava a colocação das estacas e dava-a por boa quando o fio vertical do retículo cortava em duas partes iguais a imagem focal delas.

 

A linha recta assim traçada atingiu nove milhas de comprimento, e tal era a extensão que os astrónomos projectavam dar à sua base. Cada estaca tinha na parte superior uma mira para facilitar a colocação das réguas metálicas. Foram precisos alguns dias para este trabalho ficar concluído. Os dois jovens astrónomos fizeram-no com o máximo esmero.

Tratava-se em seguida de colocar topo a topo as réguas destinadas a medir directamente a base do primeiro triângulo, operação que talvez pareça simples, mas que na verdade exige muitas precauções e de que depende em grande parte o bom êxito de uma triangulação.

Eis as disposições adoptadas para o assentamento das réguas:

Na manhã de 10 de Março foram colocados socos de madeira na direcção rectilínea fixada. Cada um destes socos, em número de doze, assentava pela parte inferior sobre três parafusos de ferro, cuja rosca tinha apenas algumas polegadas, e que os impediam de mover-se, mantendo-os em posição invariável.

Sobre os socos foram assentes varas de madeira bem desempenadas, destinadas a sustentar as réguas metálicas, seguras em corrediças, que fixavam a sua direcção sem obstar aos efeitos da dilatação pela acção da temperatura. Estes efeitos haviam de ser tomados em conta.

Fixados os doze socos, e assentes sobre eles as varas, trataram o coronel Everest e Mateus Strux, coadjuvados pelos dois jovens astrónomos, da dificílima colocação das réguas. Nicolau Palander, de lápis na mão, iria notando no duplo registo os números que lhe fossem ditados.

As réguas eram seis, e tinham sido rigorosamente aferidas por comparação com a antiga toesa francesa, unidade geralmente adoptada nas medidas geodésicas.

Cada uma tinha duas toesas de comprimento, seis linhas de largura e uma linha de espessura. O metal empregado na sua fabricação foi a platina, metal inalterável ao ar em circunstâncias ordinárias e completamente inoxidável a frio ou a quente. Porém, estas réguas de platina haviam de alongar-se ou encurtar-se pela acção das variações de temperatura. Como fosse necessário atender a estes efeitos, imaginaram munir cada uma de um termómetro - termómetro metálico fundado na propriedade que os metais gozam de dilatar-se desigualmente. Portanto, cada régua de platina tinha em cima outra de cobre, mais curta. Um nónio (3), colocado no extremo da régua de cobre, indicava com exactidão o alongamento relativo dela, o que permitia calcular o alongamento absoluto da régua de platina. É fácil ver que se operava com o máximo rigor. Cada nónio tinha um microscópio que deixava avaliar quartos de centésima milésima de toesa. Foram, pois, assentes as réguas sobre as varas de madeira, topo a topo, mas sem se tocarem, porque era mister evitar o choque, embora pequeníssimo, resultado do contacto imediato. O coronel Everest e Mateus Strux colocaram por sua mão a primeira régua. A cem toesas de distância, acima da primeira estaca, estava uma mira, e, como cada régua tinha duas pontas verticais de ferro implantadas no seu eixo, era fácil pôr todas na direcção rectilínea da base. Com efeito, Emery e Zorn, colocando-se à retaguarda e deitando-se no chão, examinavam se as duas pontas de ferro se projectavam exactamente no meio da mira. Assim era certo estar a régua bem dirigida.

- Agora - declarou o coronel Everest - precisamos determinar exactamente o ponto de partida da nossa medição, deixando cair um fio de prumo tangente ao extremo da primeira régua. Nenhuma montanha exerce acção sensível sobre o fio (4) e, portanto, o prumo marcará exactamente no solo a origem da base.

- Está claro - respondeu Mateus Strux -, contanto que atendamos à semiespessura do fio no ponto de tangência.

- Era escusado dizê-lo - replicou logo Everest. Fixado exactamente o ponto de partida, continuou o trabalho.

 

*(3) Instrumento que serve para fraccionar o intervalo entre as divisões de uma linha recta ou arco de círculo.

(4) A proximidade de uma montanha desvia, pela sua atracção, o fio de prumo. Foi a vizinhança dos Alpes que produziu diferença sensível entre o comprimento calculado e o medido do arco entre Andrade e Moodovi.

 

Não bastava, porém, colocar exactamente a régua na direcção rectilínea da base, também era preciso determinar a sua inclinação relativamente ao horizonte.

- Não pretendemos, creio eu - observou o coronel Everest-, colocar a régua perfeitamente horizontal...

- Decerto, não - concordou Strux -, basta-nos medir com o nível o ângulo de cada régua com o horizonte. Deste modo poderemos reduzir o comprimento medido ao comprimento do verdadeiro.

Estando os dois sábios de acordo, procedeu-se à medida da inclinação por meio de um nível especialmente construído para este fim, e composto de uma alidade móvel em torno da charneira colocada no extremo de um esquadro de madeira. Um nónio dava a inclinação pela coincidência de alguma das suas divisões com as de uma régua fixa, contendo um arco de 10°, dividido de cinco em cinco minutos.

Aplicou-se o nível sobre a régua e fez-se a leitura. Quando Nicolau Palander ia inscrever o resultado nos registos, exigiu Strux que se invertesse o nível para verificação. A diferença das duas leituras seria o duplo da inclinação. O conselho do astrónomo russo tem sido posteriormente seguido em todas as operações da mesma natureza.

Estavam então determinadas duas circunstâncias importantes: a direcção da régua e a sua inclinação. Os resultados destas observações foram consignados em dois registos, e rubricados pelos membros da comissão anglo-russa.

Faltavam duas observações não menos importantes para ficar concluído o trabalho relativo à primeira régua; primeiramente a temperatura, depois a avaliação exacta do comprimento medido.

A variação termométrica foi determinada facilmente pela comparação das diferenças de comprimento entre a régua de platina e a régua de cobre. O microscópio, observado sucessivamente por Mateus Strux e pelo coronel Everest, indicou o algarismo absoluto da variação da régua de platina. Esta variação foi inscrita no duplo registo para os comprimentos serem posteriormente reduzidos à temperatura de 16° centígrados.

 

Assim que Nicolau Palander escreveu os números obtidos, logo os conferiram todos os membros da comissão científica.

Restava obter o comprimento realmente medido. Para alcançar este resultado era mister assentar a segunda régua na vara de madeira, em seguida à primeira, mas deixando pequeno intervalo entre elas. Esta segunda régua foi colocada como a primeira, tendo-se verificado escrupulosamente que as quatro pontas de ferro estavam alinhadas pelo meio da mira.

Finalmente, era preciso medir o intervalo entre as duas réguas. Na extremidade da primeira, na parte não coberta pela régua de cobre, havia uma linguetazinha de platina, que podia escorregar com leve atrito entre duas corrediças. O coronel Everest empurrou a lingueta, de modo que tocasse a segunda régua. Como ela estava dividida em décimas milésimas de toesa e tinha numa das corrediças um nónio com microscópio, que dava centésimas milésimas, avaliava-se com exactidão matemática o intervalo deixado de propósito entre as duas réguas. O número correspondente foi inscrito nos dois registos e conferido.

Por conselho de Miguel Zorn ainda se tomou outra precaução própria para obter resultados mais exactos. A régua de cobre cobria a de platina. Podia pois suceder que, sob a influência dos raios solares directos, a platina abrigada aquecesse mais lentamente que o cobre. A fim de evitar esta diferença na variação termométrica, foram as réguas cobertas por um tectozinho levantado algumas polegadas, de modo que não embaraçasse as observações. De tarde e de manhã, quando os raios oblíquos do Sol entravam por baixo do tecto, estendia-se um pano do lado conveniente.

Durante um mês trabalharam os astrónomos com a paciência e a minúcia que deixamos demonstradas. Quando tinham sido postas quatro réguas, e verificadas debaixo do quádruplo ponto de vista da direcção, inclinação, dilatação e comprimento efectivo, recomeçava o trabalho com a mesma regularidade, arrancando os socos, colocando-os mais adiante, assentando as varas de madeira, e pondo a primeira régua adiante da quarta, que ficara imóvel. Todas estas operações levavam muito tempo a despeito da habilidade dos astrónomos, Nunca conseguiram medir mais de duzentas e vinte a duzentas e trinta toesas por dia, e, ainda assim, em ocasiões desfavoráveis, quando o vento soprava com força e prejudicava a estabilidade dos aparelhos, era preciso suspender o trabalho.

Cada dia, ao entardecer, pouco mais ou menos antes que a falta de luz impedisse leitura perfeita, os astrónomos suspendiam os trabalhos desse dia e tomavam-se as precauções seguintes para recomeçarem no dia imediato. A régua número 1 era colocada provisoriamente e marcava-se no chão o ponto donde ela devia partir. Nesse ponto abria-se uma cova e enterrava-se uma estaca tendo na cabeça uma lâmina de chumbo. Colocava-se de novo a régua nº 1 na sua posição definitiva, depois de ter observado a sua inclinação, variação termométrica e direcção; notava-se o comprimento medido pela régua nº 4; em seguida, por meio de um prumo tangente à extremidade anterior da régua nº 1, marcava-se um ponto na lâmina da cabeça da estaca. Sobre esse ponto traçavam-se duas linhas cortando-se em ângulo recto, uma dirigida no sentido da base, outra perpendicular a esta. Em seguida cobria-se a lâmina de chumbo com uma tampa de madeira, enchia-se a cova de terra, deixando a estaca enterrada até ao dia seguinte. Deste modo, embora qualquer acidente desarranjasse os aparelhos durante a noite, não era necessário recomeçar a medida desde o princípio. No dia seguinte descobria-se a lâmina de chumbo, e tornava-se a colocar a régua nº 1 na posição da véspera, por meio do prumo, cujo vértice devia cair no ponto marcado na véspera. Tais foram as operações feitas durante trinta e oito dias naquela planície tão favoravelmente nivelada. Todos os algarismos foram escritos em duplicado, verificados, conferidos e aprovados por todos os membros da comissão.

Poucas discussões se levantaram entre o coronel Everest e o seu colega russo. Às vezes trocavam palavras agridoces por causa de alguns números lidos nos nónios e que davam quatro centésimas milésimas de toesa. Sendo, porém, chamada a maioria a decidir, predominava a opinião desta, e era mister sujeitar-se a ela.

Só um ponto deu causa a polémica tão acerba que foi necessário intervir Sir John Murray.

 

Foi a questão do comprimento que a base havia de ter. Era certo que, quanto mais comprida fosse, mais fácil seria de medir, por mais aberto, o ângulo no vértice do primeiro triângulo. Contudo, esse comprimento não podia ser indefinidamente prolongado. O coronel Everest propunha que a base tivesse seis mil toesas, comprimento igual ao da base de Melun. Mateus Strux insistia em que fosse de dez mil toesas, visto o terreno ser favorável.

Nesta questão não quis o coronel Everest transigir. Mateus Strux também não cedia. Depois de argumentos mais ou menos plausíveis, a polémica tornou-se de alusões pessoais. A cada instante surgia a questão de nacionalidade. Não eram dois sábios, eram, em face a face, um inglês e um russo. Felizmente o mau tempo que persistiu bastantes dias pôs termo no debate, os espíritos serenaram e a maioria decidiu que a base tivesse proximamente oito mil toesas, o que foi cortar a questão a meio.

Enfim, a operação concluiu-se e foi dirigida com extremo rigor. Mais tarde se verificaria o seu verdadeiro valor matemático, medindo outra base no extremo setentrional da triangulação.

A base directamente medida acusou a extensão de oito mil e trinta e sete toesas e setenta e cinco centésimas. Dela partiria a série de triângulos cuja rede havia de cobrir a África austral no espaço de alguns graus.

 

O VIGÉSIMO QUARTO MERIDIANO.

A medida da base custara trinta e oito dias de trabalho. Tendo começado a 6 de Março, terminara a 13 de Abril. Sem perda de tempo, resolveram os chefes da expedição começar a série dos triângulos.

Primeiramente era necessário obter a latitude do ponto sul em que começasse o arco do meridiano que se tratasse de medir. A mesma operação seria feita no ponto extremo norte do arco, e pela diferença das latitudes se reconheceria quantos graus o arco teria.

A 14 de Abril começaram as "observações exactíssimas para determinar a latitude. Já nas precedentes noites, quando se suspendia a medida da base, tinham William Emery e Miguel Zorn tomado muitas alturas de estrelas por meio do círculo repetidor de Fortin. Operavam com tal cuidado que o limite das discrepâncias extremas das observações não chegou a dois segundos sexagesimais, e ainda assim eram essas discrepâncias devidas provavelmente a irregularidades na retracção, dependentes da mudança de forma das camadas atmosféricas.

Destas observações, minuciosamente repetidas, deduziu-se com aproximação mais que suficiente a latitude do extremo austral do arco.

Esta latitude era de 27,951789 graus decimais.

Obtida a latitude, calculou-se a longitude e marcou-se o ponto numa excelente carta da África austral em grande escala. Representava este mapa os descobrimentos geográficos recentes naquela parte do continente africano, e os caminhos dos viajantes e naturalistas, tais como Livingstone, Anderson, Magyar, Baldwin, Vaillant, Burchell, Lichteinstein. Na carta havia de ser escolhido o meridiano de que se pretendia medir um arco entre duas estações afastadas bastantes graus uma da outra. É fácil ver que, quanto mais comprido for o arco, mais ficarão atenuados os erros possíveis na determinação da latitude. O arco de Dunquerque a Formentera compreendia perto de 10 graus do meridiano de Paris: 9,56 graus aproximadamente.

Na triangulação anglo-russa devia a escolha do meridiano ser feita com extrema cautela. Era mister não ir de encontro a obstáculos naturais, tais como montanhas inacessíveis, grandes extensões de água, etc, que detivessem os observadores. Felizmente, aquela parte da África austral prestava-se maravilhosamente às operações geodésicas. As desigualdades do terreno mantêm-se naquela direcção em proporções modestas. Há poucos rios, e fáceis de transpor. Os astrónomos encontrariam perigos, mas não obstáculos invencíveis.

A região onde pretendiam operar é ocupada pelo deserto de Kalahari, vastíssima extensão de território que vai desde o rio Orange até ao lago de Ngami, entre o vigésimo e o vigésimo nono paralelos meridionais. A sua largura é o espaço compreendido entre o Atlântico a ocidente e o vigésimo quinto meridiano oriental contado de Greenwich. Até este meridiano chegou o Dr. Livingstone em 1849, seguindo o limite oriental do deserto, quando se dirigiu ao lago Ngami e às cataratas do Zambeze. O deserto não merece a bem dizer este nome. Não são, como poderia crer-se, as planícies arenosas do Saara, sem vegetação, e que a sua aridez torna ínvias. O Kalahari produz muitas plantas; cobrem-lhe o solo abundantes bamburrais; possui matos fechados e florestas de árvores de grande porte; abundam nele animais tanto inofensivos como ferozes; é habitado ou percorrido por muitas tribos sedentárias ou nómadas de bochjesmen ou de balakoris. Falta-lhe, porém, água na máxima parte do ano; estão em seco os leitos dos numerosos rios que sulcam, e a secura do solo é o único obstáculo sério à exploração desta parte da África. Entretanto, quando os nossos astrónomos chegaram aos limites do Kalahari, findava apenas a estação chuvosa, e fácil seria encontrar abundantes depósitos de água estagnada em lagoas, pauis e regatos.

Tais foram as informações dadas pelo caçador. Mokoum Conhecia perfeitamente o Kalahari, que percorrera em caçadas por sua conta, ou como guia de explorações geográficas.

 

O coronel Everest e Mateus Strux concordaram em que o citado deserto apresentava excelentes condições para uma triangulação.

Faltava escolher o meridiano no qual se medira o arco de alguns graus. Poderia o meridiano ser escolhido numa das extremidades da base, o que evitaria ligar esta a qualquer outro ponto do Kalahari por uma rede de triângulos auxiliares (1).

Examinaram atentamente esta questão e, após larga discussão, reconheceram que o extremo sul da base podia servir de ponto de partida. Mediram, pois, o vigésimo quarto meridiano a oriente de Greenwich; corria este na extensão aproximada de sete graus, do vigésimo ao vigésimo sétimo paralelo, sem encontrar obstáculos naturais. Pelo menos o mapa nenhuns indicava. Apenas ao norte o meridiano atravessaria o lago Ngami na sua parte oriental, mas não provinha daqui nenhuma dificuldade invencível; maiores encontrara Arago e as vencera, quando ligou geodesicamente a costa de Espanha às ilhas Baleares.

 

*(1) Para que os leitores não habituados com a geometria compreendam o que seja uma triangulação geodésica, tirámos as seguintes linhas das Novas Lições de Cosmografia, de H. Garcet, professor de matemática no Liceu de Henrique IV. Por meio da figura junta é fácil a compreensão de quanto temos dito.

"Seja A B o arco do meridiano cujo comprimento se pretenda medir. Mede-se com rigor uma base A C, da extremidade A do meridiano à primeira estação C. Depois escolhem-se de um e de outro lado do meridiano outras estações D, E, F, G, H, i, ele, de cada uma das quais sejam visíveis as estações vizinhas; medem-se com o teodolito os ângulos de cada um dos triângulos ACD, CDE, EDF, efe, que formam entre si. Esta primeira operação permite resolver os diversos triângulos; no primeiro são conhecidos os ângulos A e C, pode calcular-se o lado CD; no segundo são conhecidos os ângulos C e D, calcula-se D E; no terceiro são conhecidos os ângulos D e E, calcula-se EF, e assim por diante. Determina-se depois em A pelos meios ordinários a direcção do meridiano e mede-se o ângulo MAior dessa direcção com a base; são pois conhecidos no triângulo o A cM, o lado A C e os ângulos adjacentes; pode calcular-se então o primeiro troço A Aí do meridiano. Ao mesmo tempo se calculam o ângulo Aí e o lado C M; portanto, no triângulo MDN são conhecidos o lado D Aí = C D - C Aí e ângulos adjacentes; logo pode calcular-se o segundo troço Aí V do meridiano e mais o ângulo N e o lado DN. Portanto, no triângulo N EP são conhecidos o lado EN= D E-D N, e os ângulos adjacentes; pode calcular-se o terceiro troço NP do meridiano, e assim por diante. £ fácil ver que deste modo se medirá o comprimento total A B."

 

Decidiu-se, pois, que o arco a medir seria tomado no vigésimo quarto meridiano, o qual, prolongado para a Europa, cortaria o império moscovita, onde se poderia medir mais tarde um arco setentrional do mesmo meridiano.

Imediatamente começaram as operações, cuidando os astrónomos de escolher a estação que servisse de vértice ao primeiro triângulo, tendo por lado a base directamente medida.

Essa primeira estação foi tomada à direita do meridiano. Era uma árvore isolada, vegetando a dez milhas de distância numa elevação de terreno. Avistava-se perfeitamente das extremidades sueste e noroeste da base, pontos onde o coronel Everest mandou levantar duas pirâmides de madeira. O vértice adelgaçado da árvore permitia determiná-lo com extrema exactidão no campo óptico das lunetas.

Trataram, pois, os astrónomos de medir o ângulo que a árvore fazia com o extremo sueste da base. O ângulo foi medido por meio de um círculo repetidor de Borda, apropriado para observações geodésicas. Estavam colocadas por tal arte as duas lunetas do instrumento, que os seus eixos ópticos ficavam ambos no plano do círculo graduado; uma olhava para o extremo noroeste da base, a outra para a árvore isolada escolhida como sinal a nordeste; assim indicavam a distância angular das duas estações. Não é necessário acrescentar que o instrumento, construído com a máxima perfeição, permitia aos observadores atenuarem os erros de observação quanto quisessem. Com efeito, pelo método de repetição, os erros, quando são muitas as repetições, tendem a compensar-se e a destruir-se mutuamente. Os nónios, níveis e fios de prumo, destinados a assegurar a estável e boa colocação do instrumento, não poderiam ser excedidos em perfeição. Possuía a comissão anglo-russa quatro círculos repetidores. Dois deviam servir para as observações geodésicas, tais como a medida dos ângulos da triangulação; os outros dois, cujos círculos estavam verticais, serviriam, por meio de horizontes artificiais, para medir distâncias zenitais e para determinar, portanto, ainda numa só noite, a latitude de qualquer estação com a aproximação de uma pequena fracção de segundo.

 

Com efeito, neste grandioso trabalho de triangulação é necessário obter não só os valores dos ângulos dos triângulos geodésicos, mas também medir de vez em quando a altura meridiana das estrelas, altura igual à latitude.

Os trabalhos começaram no dia 14 de Abril. O coronel Everest, Miguel Zorn e Nicolau Palander calcularam e mediram o ângulo do extremo sueste da base com o meridiano; Mateus Strux, William Emery e Sir John Murray foram medir o ângulo do extremo noroeste com a mesma árvore.

Levantava-se, entretanto, o acampamento, os bois eram jungidos aos carros e a caravana, sob a direcção do bushman, dirigia-se para a primeira estação onde devia esperar e acampar. Os observadores ficaram acompanhados por dois caamas e os seus condutores, a fim de transportarem os instrumentos.

O tempo apresentava-se claro e favorável ao bom êxito da operação. Tinham os astrónomos decidido que, se o estado da atmosfera obstasse às medidas, seriam as observações feitas de noite com o auxílio de revérberos e de lâmpadas eléctricas.

Neste dia foram, pois, medidos os dois ângulos; os resultados ficaram inscritos nos registos, bem e devidamente conferidos. Ao entardecer estavam os astrónomos reunidos com a caravana debaixo da árvore que servira de mira.

Era um baobá enorme, cuja circunferência media mais de oitenta pés. A casca cor de sienite dava-lhe aspecto singular. Sob a imensa ramaria do gigantesco vegetal, povoada por inúmeros esquilos ávidos dos seus frutos ovais, de polpa branca, houve lugar para toda a caravana. Não faltava veação fresca, com a qual o cozinheiro da lancha preparou o jantar dos europeus. Os caçadores tinham morto bastantes antílopes nas circunvizinhanças. O cheiro das costeletas fumegantes perfumou a atmosfera e aumentou o apetite dos sábios, que na verdade não carecia de aperitivos.

 

Depois de jantar retiraram-se os astrónomos para os seus carros, enquanto Mokoum distribuía sentinelas em volta do acampamento. Com ramos secos do baobá acendeu grandes fogueiras, que mandou alimentar toda a noite, a fim de conservar distantes as feras, atraídas pelo cheiro da carne fresca.

Contudo, Miguel Zorn e William Emery levantaram-se tendo dormido apenas duas horas. Não terminara o seu trabalho de observadores. Queriam determinar a latitude da estação pela altura das estrelas. Os dois, sem cuidarem do cansaço do dia, começaram de novo o trabalho e, enquanto ecoavam na planície sombria os uivos das hienas e os rugidos do leão, mediram ambos o deslocamento que o zénite sofrera ao passarem da primeira estação à segunda.

 

O "KRAAL".

No dia seguinte, 15, continuaram sem interrupção os trabalhos geodésicos. Foi medido com exactidão o ângulo que fazia a estação do baobá com os dois extremos da base indicada pelas pirâmides. Esta medida completou o primeiro triângulo. Depois, escolheram os astrónomos duas novas estações à direita e à esquerda do meridiano, uma num outeiro bastante visível a seis milhas de distância, outra indicada por um poste a sete milhas.

Continuou a triangulação sem dificuldade durante um mês. A 15 de Maio já os observadores haviam adiantado um grau para norte, tendo para isso construído sete triângulos.

Nesta primeira série de operações raras vezes tinham estado em relações contínuas o coronel Everest e Mateus Strux. Já vimos que na distribuição e verificação dos trabalhos andavam sempre separados. Operavam todos os dias em estações distanciadas muitas milhas; esta separação era segurança contra qualquer questão de amor-próprio. Ao anoitecer iam todos para o acampamento, mas cada um se recolhia logo ao seu carro. Houve por vezes alguns debates acerca da escolha de estações, que tinha de ser feita por comum acordo, mas nunca terminaram em polémicas perigosas. Miguel Zorn e o seu amigo William Emery cobravam esperanças de que, graças à separação dos dois rivais, os trabalhos geodésicos continuariam sem alteração desagradável.

A 15 de Maio, os observadores, que, como já ficou dito, haviam ganho um grau desde o ponto austral do meridiano, achavam-se no paralelo de Lattakou. A aldeia africana situava-se a trinta e cinco milhas para o oriente da sua estação.

Neste sítio fora recentemente construído um grande kraal. Era, portanto, ocasião propícia para descansarem um pouco, e, sob proposta de Sir John Murray, assim se resolveu. Miguel Zorn e William Emery deviam aproveitar este tempo de repouso em tomar alturas do Sol. Nicolau Palander trataria de rever as medidas obtidas, corrigindo-as do efeito das diferentes altitudes das miras e reduzindo todas ao nível do mar. Sir John Murray pretendia descansar dos trabalhos científicos estudando" de espingarda ao ombro, a fauna daquela região.

Chamam os indígenas da África do Sul kraal a uma espécie de aldeia ambulante que é transportada de pastagem para pastagem. Compõe-se de um recinto contendo cerca de trinta cabanas, habitadas por alguns centos de pessoas.

O kraal onde a comissão anglo-russa chegara era um importante agregado de cabanas dispostas circularmente nas margens de um ribeiro, afluente do Kurumano. Estas cabanas são formadas por esteiras dispostas sobre uma armação grosseira de madeira; as esteiras são tecidas de junco, e impermeáveis. Pareciam cortiços baixos, cuja entrada, fechada por uma pele, obrigava os habitantes a arrastarem-se de gatinhas. Por esta única abertura saía em rolos espessos o fumo acre da fogueira. Só para bochjesmen ou hotentotes é habitável semelhante pocilga.

Ao chegar a caravana pôs-se em movimento toda a gente do kraal. Os cães de guarda a cada cabana ladravam com fúria. Os guerreiros da aldeia, armados de azagaias, de navalhas, de maças e protegidos por escudos de couro, marchavam ao encontro dos recém-chegados. Andariam por duzentos, o que indicava a importância do kraal, que não tinha menos de sessenta a oitenta cabanas. Estas eram inacessíveis às feras, por ser toda a aldeia cercada de uma paliçada guarnecida de piteiras com cinco ou seis pés de altura.

Desapareceu, porém, prontamente a atitude belicosa dos indígenas mal o caçador Mokoum falou a um dos chefes do kraal.

 

A caravana obteve licença de acampar junto das paliçadas, nas margens do ribeiro. Os indígenas nem sequer disputaram o gozo das pastagens, que de um lado e outro se estendiam por muitas milhas. Portanto, os cavalos, os bois e os outros ruminantes da caravana encontraram alimentação farta, sem prejuízo da aldeia ambulante.

Por ordem e sob a direcção do bushman, dispôs-se imediatamente o acampamento segundo o modo usual. Os carros ficaram agrupados circularmente e cada um dos viajantes tratou de si.

Sir John Murray, deixando os companheiros absortos em cálculos ou entretidos em observações, partiu sem demora na companhia de Mokoum. Ia o caçador inglês no seu cavalo e o bushman na zebra domesticada. Seguiam-nos às carreiras e aos pulos três cães de raça africana. Sir John Murray e Mokoum levavam cada um a sua carabina de bala explosiva, o que indicava intenção de acometer os animais ferozes.

Dirigiram-se para nordeste, onde havia uma comarca arborizada distante algumas milhas do kraal. Os caçadores cavalgavam juntos e conversavam.

- Espero, amigo Mokoum - dizia Sir John Murray-, que há-de cumprir a promessa, que me fez nas cachoeiras de Morgheda, de guiar-me à região mais abundante de caça no mundo inteiro. Fique sabendo que não vim à África austral para perseguir lebres ou matar raposas. Disso tenho fartura nas highlands da Escócia. Antes de uma hora hei-de ter morto...

- Em menos de uma hora! - respondeu o bushman. - Dê-me licença para dizer-lhe que é demasiada pressa; o primeiro requisito para ser bom caçador é ter paciência. Por mim só tenho paciência quando caço. Então resgato a contínua impaciência da minha vida. Não sabe, Sir John, que perseguir caça grossa é uma ciência difícil. Convém conhecer o terreno que se pisa, saber os costumes dos animais, estudar-lhes as pistas, depois torneá-los por horas e horas até poder chegar-se-lhes contra o vento. Sabe que um grito intempestivo, um passo dado em falso e que produza ruído, um olhar indiscreto, bastam para se perder tempo - tempo e trabalho?

 

Várias vezes tenho andado um dia inteiro à espreita de qualquer búfalo ou gemsbok, e se, passadas trinta e seis horas de astúcia, de paciência, consigo matar o animal, julgo ter aproveitado o tempo.

- Está dito, amigo - concordou Sir John Murray -, aqui estou revestido de paciência. Não esqueçamos, porém, que a demora nesta paragem não excederá três ou quatro dias, e que não podemos perder nem uma hora, nem um minuto!

- Por esse lado tem razão - respondeu o bushman com tal paciência que surpreenderia William Emery, seu companheiro de viagem até o Orange. - Toca a matar tudo quanto nos aparecer e sem fazer escolha. Antílope ou gamo, grou ou gazela, tudo nos servirá.

- Antílope ou gazela! - exclamou Sir John Murray-, não peço tanto para estrear-me nas terras da África. Então que espera apresentar-me?

O caçador africano olhou de modo estranho para o seu companheiro, e depois respondeu ironicamente:

- Desde que fique satisfeito, nada mais desejo. Julguei que não se contentaria com menos de um casal de rinocerontes ou de um par de elefantes...

- Irei para onde me conduzir, Mokoum. Matarei o que me disser que mate. Avante, e não percamos tempo com palavreados!

Meteram os cavalos a meio-galope, e dirigiram-se rapidamente para a floresta.

A planície que atravessavam subia em rampa suave para nordeste. Cobriam-na moitas floridas de plantas, segregando uma resina viscosa, transparente, perfumada, que os colonos usam para curativo de feridas. Levantavam-se aqui e além grupos pitorescos de nwanas, que são umas figueiras-sicômoros, cujo tronco, nu até trinta ou quarenta pés de altura, sustenta uma enorme umbela de verdura. Por entre a espessa ramaria pairavam inúmeros papagaios gritadores, que bicavam os figos acídulos do sicômoro. Por outra parte apareciam acácias com os seus cachos de flores amarelas, árvores de prata sacudindo as plumas sedosas, aloés florescendo em compridas espigas vermelho-brilhantes, que pareciam arborizações de coral arrancadas do fundo do mar. O solo,  esmaltado de formosas amarílis azuladas, não opunha obstáculos à andadura dos cavalos. Uma hora depois de saírem do kraal, chegavam Sir John Murray e Mokoum à orla da floresta. Era um bosque de acácias altíssimas que cobria muitas milhas quadradas de terreno. As inúmeras árvores, dispostas desordenadamente, cruzavam e enlaçavam as pernadas, não deixando chegar os raios do Sol até ao chão coberto de plantas espinhosas e de fartas ervagens. A zebra de Mokoum e o cavalo de Sir John embrenharam-se sem repugnância sob a abóbada sombria e abriam caminho através dos troncos irregularmente distanciados. Havia a espaços algumas clareiras, onde os caçadores se detinham para examinar a espessura.

Força é dizer que esta primeira excursão não foi favorável ao caçador inglês. Ele e o seu companheiro percorreram debalde grande parte da floresta. Nenhum exemplar da fauna africana se incomodou para recebê-los, de modo que Sir John se lembrou mais de uma vez, com saudade, das planícies escocesas onde abundavam ocasiões de empregar um tiro. Talvez a proximidade do kraal contribuísse para afastar a caça desconfiada. Mokoum não mostrava surpresa, nem despeito. Para ele aquela caçada não era caçada, mas uma correria precipitada através da floresta.

Pelas seis horas da tarde tiveram de pensar no regresso ao acampamento. Sir John Murray ia envergonhado, embora não o confessasse. Voltar de mãos vazias um caçador emérito, era incrível! Por isso jurou com os seus botões que atiraria ao primeiro animal, ave ou quadrúpede, herbívoro ou fera, que lhe passasse ao alcance.

O acaso foi-lhe propício. Já os caçadores estavam a três milhas do kraal quando saltou de uma moita, a cinquenta passos de Sir John, um roedor, da espécie africana conhecida pelo nome de lepus rupestris, uma lebre enfim. O inglês não hesitou e atirou ao animal uma bala de carabina.

O bushman deu um grito de indignação. Empregar bala numa lebre, para a qual bastaria chumbo número seis! Porém, Sir John queria por força o animal e, por isso, correu a galope para o sítio onde ele devia ter caído.

Trabalho inútil! Não aparecia nenhum vestígio da lebre; algumas gotas de sangue no chão e nem um pêlo, Sir John procurava nas moitas, revolvia na erva. Os cães em vão buscavam nos silvedos.

- Mas eu feri-a! - exclamou Sir John, no auge do desespero.

- Demais a feriu - respondeu tranquilamente o bushman. - Quem atira a lebres com balas explosivas, pouco deve admirar-se de não encontrar nem um pedacito!

Com efeito, a lebre fora despedaçada e dispersa em átomos impalpáveis. O astrónomo, despeitado de todo, montou a cavalo e seguiu para o acampamento sem proferir palavra.

No dia seguinte esperava o bushman que Sir John lhe propusesse outra caçada. Porém, o inglês, ferido no seu amor-próprio, fugia de encontrar Mokoum. Fingiu ter posto de lado todos os seus projectos cinegéticos e andou todo o dia entretido em verificar os instrumentos e fazer observações. Para distrair-se visitou depois o kraal dos bochjesmen, observando os homens, que se exercitavam em atirar ao arco ou tocavam gorah, instrumento composto de uma corda de tripa tensa num arco e que o músico faz vibrar assoprando por uma pena de avestruz. Entretanto cuidavam as mulheres dos arranjos domésticos, fumando ao mesmo tempo matokouané, que vem a ser o cânhamo insalubre, muito usado pelos africanos. Dizem os viajantes que a inalação do fumo de cânhamo aumenta as forças físicas com detrimento de energia moral. Com efeito, muitos bochjesmen pareciam atordoados pela embriaguez do matokouané.

No dia seguinte, 17, Sir John Murray foi despertado ao romper da aurora por esta frase que lhe murmuravam ao ouvido:

- Creio, milorde, que seremos hoje mais felizes. Mas não atiremos a lebres com obuses de montanha.

Sir John Murray fingiu não ouvir este conselho irónico e aprontou-se para a partida. Os dois caçadores adiantaram-se algumas milhas para a esquerda do acampamento antes de os companheiros se erguerem. Sir John levava apenas uma espingarda, excelente arma de F. Goldwin, mais própria que a terrível carabina para caçar gamos ou antílopes. Poderiam aparecer na planície paquidermes ou carnívoros, mas ainda pesava no coração do inglês a explosão da lebre. Antes queria atirar a um leão com chumbo miúdo que dar outro tiro como aquele, sem precedentes nos anais do desporto.

Naquele dia, como predissera Mokoum, mostrou-se a fortuna favorável aos dois caçadores. Mataram um casal de harrisbucks, que são umas gazelas negras, raras, ágeis e desconfiadas. Eram lindíssimos animais, com quatro pés de altura, grandes armas divergentes e arredondadas com elegância em forma de cimitarra. Tinham o focinho delgado e comprimido lateralmente, os cascos negros, o pêlo espesso e macio, as orelhas delgadas e agudas. O ventre e a face, brancos de neve, contrastavam com o cabelo preto do dorso, afagado pela crina ondulosa. O melhor caçador devia satisfazer-se com tal resultado, pois que o harris-buck foi sempre o sonho dourado dos Delegorgue, dos Valhberg, dos Cuimmnins, dos Baldwin, e é um dos mais formosos espécimes da fauna austral.

Porém, o coração do caçador inglês bateu apressado quando o bushman lhe mostrou certas pegadas na orla de uma mata fechada, ao pé de uma grande e profunda lagoa, cercada de gigantescos eufórbios, e cujas águas constelavam as corolas azul-celestes do lírio aquático.

- Se milorde quiser, amanhã, ao nascer da aurora, pôr-se de emboscada aqui neste sítio, será bom que traga a sua carabina.

- Que razão tem para dar-me esse conselho, Mokoum? - perguntou Sir John Murray.

-As pegadas frescas que vemos na terra húmida.

- Como? Pois estas grandes covas são pegadas de animais? Nesse caso os pés que as deixaram têm meia toesa de circunferência!

- O que prova que o animal a que pertencem mede pelo menos nove pés de altura na espádua - replicou serenamente o bushman.

- Então é um elefante! - exclamou Sir John.

- Decerto, milorde; se não me engano é um macho adulto chegado à máxima estatura.

- Então até amanhã, Mokoum.

- Até amanhã, milorde.

Os dois caçadores voltaram ao acampamento, levando os harrisbucks sobre o cavalo de Sir John.

 

A caravana admirou os formosos animais, tão difíceis de matar. Todos deram parabéns a Sir John Murray, com excepção talvez do sério Mateus Strux, que a respeito de animais só conhecia a Ursa Maior, o Dragão, o Centauro e outras constelações da bicharia celeste.

No dia imediato, pelas quatro horas da madrugada, já os dois companheiros de caçadas estavam a cavalo e imóveis com os cães ao lado, espreitando no meio do matagal a chegada dos paquidermes. Por novas pegadas tinham verificado que os elefantes vinham em bando beber na lagoa. Ambos os caçadores traziam carabinas raiadas, de bala explosiva. Examinavam o mato haveria duas horas quando viram a escura selva animar-se a cinquenta passos da água.

Sir John Murray deitou a mão à carabina, mas o bushman segurou-lhe o braço e acenou-lhe que tivesse paciência.

Apareceram em breve uns vultos enormes. Ouvia-se o ruído do mato estalando sob o impulso de uma pressão enorme; as árvores rangiam, os ramos, esmagados, crepitavam, sentia-se um assoprar ruidoso através da ramaria. Chegava o bando de elefantes. Caminhavam vagarosamente para a lagoa seis daqueles animais gigantescos, quase tão grandes como os seus congéneres da índia.

A claridade, que aumentava, deixou a Sir John admirar os potentes paquidermes. Atraiu-lhe principalmente a atenção um macho de enorme corpulência. A grande testa abaulada aparecia entre enormes orelhas, que lhe caíam até abaixo do peito. As formidáveis dimensões do colosso pareciam acrescentadas pela penumbra. O elefante projectava rapidamente a tromba por cima do matagal e com os dentes curvos feria as árvores, que estalavam ao choque. Talvez o animal pressentisse perigo próximo.

Entretanto, o bushman encostava os lábios ao ouvido de Sir John e dizia-lhe:

- Convém-lhe?

O inglês respondeu com um gesto afirmativo.

- Bem - acrescentou Mokoum -, tratemos de separá-lo dos outros.

Os elefantes chegavam à borda da água e enterravam as patas esponjosas na lama branda.

 

Tiravam água com a tromba e, vazando-a na ampla goela, faziam um gluglu estrondoso. O macho maior, deveras inquieto, olhava em torno de si e aspirava ruidosamente, a fim de perceber qualquer emanação suspeita.

De repente, o bushman deu um grito particular. Imediatamente os cães, ladrando com vigor, saíram do mato e correram para os paquidermes. Ao mesmo tempo Mokoum, tendo dito ao seu companheiro "Espere!)), fez saltar a zebra e correu para fora do bosque, de modo que cortasse a retirada do elefante escolhido.

Este magnífico animal não pensou em salvar-se por meio da fuga. Sir John observava-o com o dedo no gatilho da espingarda. O elefante açoitava as árvores com a tromba e sacudia freneticamente a cauda, mostrando, não já inquietação, mas raiva. Até então só farejava o inimigo. Mal o viu carregou sobre ele.

Sir John Murray achava-se então a sessenta passos do animal. Esperou que ele chegasse a cinquenta passos, levou a arma à cara e desfechou. Porém, um movimento do cavalo desviou o tiro, de modo que a bala só atravessou carnes moles e, como não encontrasse resistência, não rebentou.

Furioso, o elefante precipitou a carreira, antes passo rapidíssimo que galope. Porém, esse passo era bastante para alcançar o melhor cavalo.

O cavalo de Sir John empinou-se e saltou para fora do mato, sem obedecer ao cavaleiro. O elefante seguiu-o, arrebitando as orelhas e fazendo soar a tromba como um clarim. O caçador, arrebatado pelo cavalo e apertando-o entre as pernas musculosas, procurava meter um cartucho na câmara da espingarda.

Entretanto o elefante aproximava-se. Perseguidor e perseguido em breve chegaram à planície, fora do abrigo das árvores. Sir John rasgava com as esporas os flancos do cavalo, que tomava o freio nos dentes. Dois dos cães, ladrando-lhes às pernas, fugiam desesperadamente. O elefante ficava a dois corpos para trás. Sir John sentia-lhe a respiração ruidosa, ouvia os assobios da tromba açoitando o ar. A cada momento esperava ser arrancado da sela por aquele laço vivo.

De repente, o cavalo curvou-se sobre as pernas.

 

A tromba do elefante, ao cair, batera-lhe na garupa. O animal rinchou com a dor e fugiu com o corpo para o lado. Este desvio salvou Sir John de morte quase certa. O elefante, cedendo à velocidade adquirida, passou além, mas, varrendo o chão com a tromba, agarrou um dos cães e sacudiu-o no ar com incrível violência.

O único meio para Sir John se salvar era esconder-se no bosque. O instinto do cavalo também o levava para ali; Sir John deu-lhe a mão e o animal, num pulo, saltou a orla.

O elefante, conseguindo deter-se na carreira, furioso, voltou a persegui-lo brandindo o desgraçado cão, cuja cabeça despedaçou de encontro a um sicômoro ao penetrar na floresta. O cavalo saltou para um silvedo fechado de lianas espinhosas e parou.

Sir John, ferido, ensanguentado, mas sem perder a presença de espírito, voltou-se e apontou cuidadosamente a carabina ao jogo da espádua através duma rede de lianas. A bala, encontrando um osso, rebentou. O elefante cambaleou e quase imediatamente o feriu no flanco esquerdo outro tiro, disparado da orla do bosque. Caiu o colosso perto de um charco meio oculto pela erva. Ali começou a chupar água com a tromba e a regar com ela as feridas, dando bramidos de dor. Então apareceu o bushman. --É - nosso! É nosso! - gritava ele. Com efeito, o enorme animal estava ferido de morte. Jemia, a respiração assobiava-lhe na garganta, agitava debilmente a cauda, e a tromba, aspirando sangue do charco onde ele o derramara, espargia de chuva vermelha os arbustos próximos. Faltando-lhe depois as forças, caiu de joelhos e morreu instantaneamente.

Então saiu Sir John Murray da moita espinhosa, onde procurara abrigo. Estava seminu. Do seu vestuário de caça restavam farrapos. Mas daria por bem paga com a própria pele a sua glória de caçador.

- Famoso animal, bushman! - gritava ele, examinando o cadáver do elefante - famoso animal, mas pesadito para a bolsa de um caçador.

- Ora! milorde. Vamos desmanchá-lo aqui mesmo e levaremos os melhores bocados.

 

Repare, que magníficas armas lhe deu a natureza! Pesam pelo menos vinte e cinco libras cada uma, e a cinco xelins a libra de marfim, faz uma conta redonda.

Ao mesmo tempo que falava, ia o caçador desmanchando o animal. Cortou-lhe os dentes a machado, separou as patas e a tromba, que são óptimas para comer, e com que desejava obsequiar os membros da comissão científica. O trabalho exigiu bastante tempo, de modo que os caçadores só pelo meio-dia chegaram ao acampamento.

O bushman cozeu as patas do gigantesco animal à moda africana, enterrando-as numa cova bem aquecida por meio de carvões incandescentes.

O assado foi muito do gosto dos europeus, sendo gabado até pelo indiferente Palander. Sir John Murray recebeu mil cumprimentos e parabéns dos colegas.

 

O coronel Everest e Mateus Strux, enquanto residiram no kraal dos bochjesmen, andaram sempre afastados um do outro. Sem o seu auxílio tinham sido feitas as observações de latitude. Não sendo obrigados a falar um com o outro por motivos científicos, não falavam. Na véspera da partida, o coronel Everest limitou-se a mandar um bilhete de visita a Mateus Strux com as palavras "A despedir-se"; o astrónomo russo respondeu do mesmo modo.

No dia 19 de Maio a caravana levantou o acampamento e pôs-se a caminho. Tinham sido medidos os ângulos adjacentes à base do oitavo triângulo, cujo vértice era indicado à esquerda do meridiano por um pico judiciosamente escolhido a seis milhas de distância. Era necessário chegar a esta última estação para continuar as operações geodésicas. De 19 a 29 de Maio foram fechados mais dois triângulos cortados pelo meridiano. Todas as medidas haviam sido feitas com rigor matemático. A operação caminhava bem, e até então nenhumas dificuldades sérias se tinham manifestado. O tempo fora favorável às observações diurnas e o terreno sempre desembaraçado. Talvez até por ser muito plano não se prestasse bem à medida dos ângulos. Era um deserto de verdura cortado de regatos, que corriam entre fiadas de karrée-kout, árvores semelhantes na folhagem ao salgueiro e cujos ramos os bochjesmen empregaram para fabricar arcos. O terreno, coberto de fragmentos de rochas em decomposição e composto de argila, areia e partículas ferruginosas, apresentava em certos sítios evidentes sinais de aridez. Nessas localidades desapareciam todos os vestígios de humidade e a flora compunha-se apenas de poucas plantas mucilaginosas, que resistem às máximas securas. Durante muitas milhas toda a comarca não apresentava nenhuma elevação do solo que pudesse servir de estação natural. Então era preciso levantar postes de indicação, ou construir pirâmides de dez ou doze metros de altura para servirem de miras. Tudo isto acarretava perdas de tempo, que demoravam o progresso da triangulação. Depois de feitas as observações era preciso desmanchar as pirâmides e levar os materiais a algumas milhas de distância para formar o vértice de outro triângulo. Entretanto o trabalho não era muito difícil. A tripulação da "Queen and Tzar", que estava encarregada dele, fazia-o com a máxima celeridade. Os homens, bem industriados, operavam rapidamente, e só haveria que louvá-los da sua habilidade se muitas vezes as questões de amor-próprio nacional não levantassem a discórdia entre eles.

Com efeito, o imperdoável ciúme dos dois chefes reflectia-se nos subalternos e exacerbava os marinheiros uns contra os outros. Miguel Zorn e William Emery usavam de grande discernimento e consumada prudência para combaterem estas tendências deploráveis, mas nem sempre eram felizes. Daí provinham polémicas, que entre gente grosseira podiam originar rixas. O coronel e o sábio russo intervinham então, mas de tal modo que sempre envenenavam as questões, defendendo cada um os seus compatriotas, quer tivessem razão, quer não. Assim as disputas subiam dos subalternos aos chefes e cresciam proporcionalmente às massas, conforme Miguel Zorn dizia. Dois meses depois da partida de Lattakou, só este e William Emery conservavam entre si as cordiais relações necessárias para o bom êxito do trabalho. Até Sir John Murray e Nicolau Palander, por muito entretidos que andassem, este nos cálculos e aquele nas caçadas, se envolviam já nas questões. Enfim, um dia exacerbou-se a polémica até ao ponto de Mateus Strux dizer ao coronel Everest:

- Não deve ser tão soberbo, senhor coronel, com astrónomos do Observatório de Poulkowa, cuja poderosa luneta logrou reconhecer que o disco de Urano é perfeitamente circular.

A isso respondeu o coronel Everest que bem tinha direito de ser ainda mais soberbo quem possuía a honra de pertencer ao Observatório de Cambridge, cuja enorme luneta permitiu classificar a nebulosa de Andrómeda entre as nebulosas irregulares.

Em seguida, tendo Mateus Strux levado as alusões pessoais até ao ponto de afirmar que a luneta de Poulkowa com a sua famosa objectiva deixava ver as estrelas de décima terceira grandeza, o coronel Everest acudiu logo que a objectiva da luneta de Cambridge media catorze polegadas como a de Poulkowa, e que durante a noite de 31 de Janeiro de 1862 descobrira o satélite misterioso que causa as perturbações de Sirius!

Quando os sábios chegam a agredir-se por esta forma, não há reconciliação possível. Devia, pois, recear-se pelo futuro da triangulação, ameaçado por esta incurável rivalidade.

Felizmente até então as polémicas tinham versado apenas sobre sistemas ou factos estranhos às operações geodésicas. Por vezes as leituras do teodolito ou do círculo repetidor provocavam debates, mas, em vez de prejudicá-las, a discussão demonstrava o seu extraordinário rigor. A escolha das estações não dera causa a nenhuma desinteligência.

A 30 de Maio o tempo, que fora sempre claro e, por isso, favorável às observações, mudou de repente. Em qualquer outra região seria natural predizer tempestade e chuvas torrenciais. Cobriu-se o céu de nuvens pesadas, iluminadas de vez em quando pelos relâmpagos. Não se condensaram, porém, os vapores das regiões superiores, nem caiu sequer uma gota de água. Apenas o céu se conservou encoberto por alguns dias. Este nevoeiro intempestivo embaraçava as operações. Os pontos de mira deixavam de ser visíveis a mais de uma milha de distância. A comissão anglo-russa, não querendo perder tempo, resolveu estabelecer sinais de fogo para trabalhar de noite. Por conselho do bushman foram tomadas precauções a fim de proteger os observadores. Com efeito, de noite, os animais ferozes, atraídos pelo clarão da luz eléctrica, agrupavam-se em matilhas de roda das estações. Os astrónomos ouviam então os uivos dos chacais e o grito rouco das hienas, que lembra o riso particular dos negros ébrios.

Durante as primeiras observações nocturnas, feitas no centro de um círculo ruidoso de feras, entre as quais o leão soltava às vezes formidáveis rugidos, os astrónomos a miúdo sentiam distracções inevitáveis. O trabalho adiantou-se mais vagaroso, embora não menos exactamente. Os sábios não entreviam sem receio os olhos inflamados que os fitavam atravessando a negrura da noite. Em tal caso carecia-se de muito sangue-frio e imperturbável força de ânimo para medir as distâncias zenitais e as angulares dos revérberos. Porém, os membros da comissão tudo afrontaram. Passados os primeiros dias já não sentiam sobressalto nenhum e trabalhavam no meio das feras tão rapidamente como nas salas sossegadas dos observatórios. Os observadores eram sempre protegidos por alguns caçadores de espingarda em punho. Daí resultou serem mortas algumas hienas mais atrevidas. Escusado será dizer que Sir John Murray achava soberbo aquele modo de medir uma triangulação. Com o olho fito na ocular da luneta, não largava da mão a carabina de Goldwin, e mais de uma vez desfechou a arma entre duas observações zenitais.

Portanto, a inclemência do tempo não atrasou os trabalhos geodésicos. Nada sofreu a sua exactidão, continuando a adiantar-se para o norte a medida do meridiano.

Desde 30 de Maio até 17 de Junho não ocorreu nenhum incidente notável. Formaram-se mais triângulos por meio de estações factícias. O coronel Everest e Mateus Strux esperavam medir até ao fim do mês outro grau do meridiano, se não sobreviesse transtorno.

A 17 de Junho cortou-lhe o caminho um rio bastante largo, afluente do Orange. Pouco custava aos membros da comissão atravessá-lo levando os instrumentos científicos. Dispunham de uma canoa de cauchu expressamente destinada a transpor lagos e rios de medíocre largura. Porém, os carros- e o material da caravana não podiam passar assim. Era preciso procurar vau a jusante ou a montante.

Resolveu-se, contra a opinião de Mateus Strux, que os europeus e os instrumentos ópticos atravessariam o rio, enquanto Mokoum e o resto da caravana iriam procurar, algumas milhas a jusante, um vau, de que o caçador tinha notícia.

O afluente do Orange media meia milha de largura no lugar a que chegaram. A corrente rápida, cortada por agudas pontas de rochedos e troncos de árvores encalhadas no lodo, apresentava certo perigo para embarcação tão frágil como a canoa era. Por isso Mateus Strux fizera algumas objecções. Não querendo, porém, recuar em face de um perigo que os seus companheiros não temiam afrontar, seguiu a opinião da maioria.

Decidiram, contudo, que Nicolau Palander acompanhasse o resto da caravana na procura do vau. (Não o faziam porque o bom do calculador manifestasse qualquer receio. Andava tão absorto nos seus cálculos, que nem pressentia os perigos. Não era, porém, a sua presença indispensável para os trabalhos geodésicos, e, sem inconveniente, podia separar-se dos seus companheiros por um ou dois dias. Além disso, a embarcação, sendo pequena, poucos passageiros podia conter. Ora mais valia passar o rio só uma vez e transportar todos os homens, os instrumentos e alguns víveres para a margem direita. Eram precisos marinheiros hábeis para dirigir a canoa. Por isso Nicolau Palander cedeu o seu lugar a um dos marinheiros ingleses da "Queen and Tzar", muito mais útil naquele cargo que o ilustre astrónomo de Helsingfors.

Marcou-se ponto de reunião ao norte do rio, e a caravana começou a descer a margem esquerda, sob a direcção do caçador. Em breve desapareceram ao longe os últimos carros; o coronel Everest, Mateus Strux, Emery, Zorn, Sir John Murray, dois marinheiros e um bochjesman hábil em matéria de navegação fluvial ficaram na margem do Nosoub.

Assim denominavam os indígenas aquele rio, muito engrossado então pelos ribeiros tributários formados na estação das chuvas.

- Bonito rio! - dizia Miguel Zorn ao seu amigo William, enquanto os marujos preparavam a canoa de cauchu.

- Bonito, mas difícil de atravessar - respondeu William Emery. - Estas torrentes vivem pouco e procuram gozar a vida!

 

Daqui a algumas semanas, chegada a estação seca, talvez no leito do rio, agora soberbo e empolado, não haja uma sede de água para qualquer caravana. Corre depressa e secará breve! Tal é, querido amigo, a lei da natureza física e moral. Não podemos, porém, perder tempo em considerações filosóficas. A canoa está pronta. Veremos como afronta aqueles cachões.

Com efeito, acabava de ser lançada ao rio a canoa, aberta e tensa pela armação interna. Esperava os viajantes junto de uma rampa suave de granito cor-de-rosa. Ali, graças ao remanso formado pela projecção de uma língua de terra, a água tranquila beijava sem ruído os canaviais enredados de plantas trepadeiras. O embarque foi fácil. Meteram os instrumentos no fundo da canoa, arrumados sobre feno seco, para não levarem alguma pancada. Os passageiros sentaram-se por forma que não impedissem o movimento dos remos puxados pelos marujos europeus. O bochjesman pôs-se ao leme.

Este indígena era o foreloper da caravana, isto é, o homem que serve de guia. O caçador recomendara-o como muito hábil na travessia de rios. Sabia algumas frases inglesas e recomendou aos passageiros que se conservassem calados durante a passagem do Nosoub.

Desamarraram a canoa, e à força de remos saíram para fora do remanso. Logo se fez sentir a acção da corrente, que cem jardas além se convertia em cachão. Eram executadas prontamente as ordens que o foreloper dava aos marinheiros. Umas vezes tornava-se necessário erguer os remos para não os quebrar de encontro a algum tronco semimergulhado, outras vezes fazer força de remos para vencer algum redemoinho. Depois, quando a corrente espumava, excessivamente rápida, bastava deixar correr o frágil barquinho, conservando-o no fio da água. O indígena, de cabeça erguida e empunhando a cana do leme com mão firme, *?86obviava assim a todos os perigos da navegação. Os europeus examinavam com certo receio aquela situação nova. Sentiam que os arrebatava uma força irresistível. O coronel Everest e Mateus Strux olhavam-se sem darem palavra. Sir John Murray, sem largar a inseparável carabina, examinava as aves multicores que roçavam com a asa rápida as águas do Nosoub.

 

Os dois moços astrónomos admiravam despreocupados e sem receio as margens que fugiam com rapidez vertiginosa.

Em breve, chegou a canoa ao verdadeiro cachão, que devia cortar obliquamente, a fim de atingir na margem oposta águas mais tranquilas. Os marinheiros, por ordem do bochjesman, puxaram os remos com ânsia. A despeito, porém, dos seus esforços, a canoa, irresistivelmente arrebatada pela torrente, fugia para jusante paralelamente à margem. O leme não funcionava; os remos não venciam a violência da torrente. Tornava-se a situação perigosa, porque a canoa podia bater de encontro a qualquer rochedo ou tronco, e soçobrar.

Os passageiros bem viram o perigo, mas permaneceram calados.

O foreloper levantou-se. Observou a direcção seguida pelo barco, a qual não podia modificar em águas que, levando o mesmo rumo que ele, tornavam nula a acção do leme. A duzentas jardas pela proa erguia-se fora da água uma ilhota formada pelo perigoso entrelaçamento de árvores e pedras. Era impossível fugir-lhe. Em poucos momentos aí chegaria a canoa e se quebraria.

Com efeito, imediatamente se sentiu o choque, menos violento, porém, do que era para recear. O barco inclinou-se; grande quantidade de água entrou-lhe dentro. Os passageiros lograram não sair dos seus lugares. Olharam para a proa... A rocha negra, em que tinham batido, movia-se "e agitava-se entre o referver da água.

O suposto escolho era um hipopótamo monstruoso, que a corrente arrastara até à ilhota e que não ousava nadar no cachão para chegar a qualquer das duas margens. Sentindo o choque da canoa, levantou a cabeça, e agitando-a horizontalmente, observou em volta com os olhinhos espantados. O enorme paquiderme, com dez pés de comprimento, de pele dura, escura, sem cabelos, e de boca aberta apresentava os incisivos superiores e caninos grandíssimos. Imediatamente se atirou ao barco, que aferrou com os dentes, ameaçando despedaçá-lo.

Lá estava, porém, Sir John Murray. Não perdeu a presença de espírito. Levou sossegadamente a carabina ao ombro e feriu o animal com uma bala junto da orelha. O hipopótamo não largou a presa, antes sacudiu a canoa como os galgos fazem às lebres. Carregando a carabina sem perda de tempo, meteu-lhe outra bala na cabeça. Foi mortal o tiro, porque toda aquela enorme mole de carne flutuou ao sabor da corrente, não sem ter antes, num esforço supremo da agonia, atirado a canoa para fora das águas da ilha.

Antes que os passageiros pudessem tornar a si do susto e do sobressalto, a canoa, apanhando a água de través e volteando como um pião, tomou obliquamente o caminho da margem direita. Poucas jardas a jusante, uma curva rápida do Nosoub quebrava a violência da corrente. Ali chegou a canoa em vinte segundos. Deteve-a uma pancada violenta, e os passageiros saltaram sãos e salvos em terra, tendo sido arrastados duas milhas para baixo do ponto de partida.

 

ENCONTRA-SE NICOLAU PALANDER.

Continuaram os trabalhos geodésicos. Serviram para formar outro triângulo duas estações escolhidas na margem direita juntamente com a última do lado oposto do rio. Não foi difícil, tendo, contudo, os astrónomos de acautelar-se contra as serpentes, abundantíssimas naquela região. Eram os mambas, que têm dez a doze pés de comprimento, e são tão venenosos que a sua mordedura é mortal.

Decorridos quatro dias depois da passagem do Nosoub, a 21 de Junho, estavam os sábios no meio de uma região selvática. Mas os bosques, sendo formados de árvores de pequeno porte, não impediam os trabalhos geodésicos. Em todos os pontos do horizonte apareciam eminências a algumas milhas de distância, em excelentes condições para se estabelecerem nelas sinais de fogo e pirâmides. Aquele extenso tracto de terreno, deprimido abaixo do nível geral, por isso mesmo era húmido e fértil. William Emery encontrou milhares de figueiras da Hotentótia, cujos frutos acídulos são muito apreciados pelos bochjesmen. As clareiras abertas entre o arvoredo exalavam perfumes suaves, provenientes de plantas de raiz bolbosa, muito semelhante ao cólquio. Eram os seus frutos, amarelos, de duas a três polegadas de comprimento, que embalsamavam a atmosfera. A estes frutos, que as crianças comem com avidez, chamam os indígenas da África austral kucumakranú.

 

Nos planos mundanos apareciam campinas de colocíntidas e inúmeras moitas de hortelãs, cuja aclimatação é facílima na Inglaterra.

Aquela região extratropical, embora fértil e própria para grandes empresas agrícolas, parecia pouco frequentada pelas tribos nómadas. Não se encontrava nenhum vestígio humano. Não se avistava nenhum kraal, ou ainda fogueiras de acampamento. Abundava, contudo, água, formando regatos, lagoas e algumas ribeiras de corrente rápida, que deviam desaguar nos tributários do Orange.

Naquele dia resolveram os astrónomos acampar, a fim de esperarem o resto da caravana. Ia no fim o prazo marcado pelo caçador, e, a não haver engano nas suas previsões, deveria chegar sem demora, tendo passado o Nosoub no vau de jusante.

Decorreu, porém, o dia em vão. Não apareceu nenhum bochjesman. Teria a expedição encontrado algum obstáculo que a demorasse? Pensava Sir John Murray que, sendo o Nosoub invadiável naquela época do ano em que abundam ainda as águas, o caçador se vira obrigado a procurar ao sul outro vau mais fácil. O raciocínio era plausível. Tinham caído chuvas abundantes na estação própria e, por isso, seriam as cheias maiores.

Os astrónomos esperavam. O coronel Everest começou, porém, a inquietar-se quando passou o dia 22 de Junho sem aparecer ninguém da comitiva de Mokoum. Não podia prosseguir para a frente faltando-lhe o material da expedição. Ora a demora, a prolongar-se, prejudicaria o bom êxito dos trabalhos.

Então lembrou Mateus Strux que o seu parecer fora acompanhar a caravana depois de ter ligado geodesicamente a estação da margem direita com as duas da esquerda; sendo seguido este conselho, não se veria a expedição em apuros; que se o bom êxito da triangulação perigasse pela demora, seria a responsabilidade daqueles que teimaram... etc... Que em qualquer caso os russos... etc. Como é de ver, protestou o coronel Everest contra insinuações tais do seu colega, lembrando que tudo fora resolvido em comum. Interveio Sir John Murray, pedindo que sem demora terminasse aquela polémica estéril. O que estava feito, feito estava, e não seriam recriminações que iam melhorar a situação. Combinou-se que no dia seguinte, se a caravana bochjesman não chegasse, William Emery e Miguel Zorn, que para tal se ofereceram, iriam procurá-la descendo para sudoeste e guiados pelo foreloper. Entretanto permaneceriam o coronel e os seus companheiros no acampamento, esperando a volta para resolverem o que mais conviesse.

Dispostas as coisas deste modo, todo o dia se conservaram os dois rivais afastados um do outro. Sir John Murray matou o tempo à caça nos matagais vizinhos. Apenas encontrou algumas aves pouco gratas ao paladar. Porém, se o caçador fora infeliz, teve o naturalista por que felicitar-se. O chumbo da sua espingarda matou pássaros de duas espécies notáveis. Trouxe um lindo francolino, de treze polegadas de comprimento, curto de pernas, com o dorso acastanhado, bico e pernas vermelhas, e cujas rémiges elegantes eram sombreadas de cor castanha; tipo notável da família dos tetraónidas, à qual pertence a perdiz. A outra ave que Sir John ferira com grande habilidade era de rapina: espécie de falcão próprio da África austral, e que tem o pescoço vermelho, a cauda branca e formas muito esbeltas. O foreloper esfolou habilmente as duas aves, tirando-lhes a pele inteira.

Tinham decorrido as primeiras horas do dia 23 de Junho. Não aparecia a caravana e estavam os jovens astrónomos para partir, quando os detiveram latidos longínquos. Em breve apareceu o caçador Mokoum, cavalgando a zebra na curva de uma mata de aloés, à esquerda do acampamento.

O bushman tinha-se adiantado à caravana e aproximava-se rapidamente.

- Avie-se, avie-se, meu grande caçador! - bradou alegremente Sir John Murray. - Já desesperava de vê-lo! Nunca me consolaria de não tornar a encontrá-lo! Não acho caça desde que não me serve de guia. Vamos festejar o seu regresso com um copo de usquebaugh da Escócia.

Mokoum não deu resposta a estas palavras benévolas e amigáveis. Mirava com atenção cada um dos europeus. Contava-os a um e um. Desenhava-se-lhe no rosto grande ansiedade.

 

Bem o conheceu logo o coronel Everest, e, chegando-se ao caçador, que se apeara, perguntou-lhe:

- Que procura, Mokoum?

- O senhor Palander - respondeu o caçador.

- Pois não acompanhou a caravana? Não vem consigo? - continuou o coronel.

- Não sei dele! - replicou Mokoum. - Esperava encontrá-lo aqui! Perdeu-se!

Mateus Strux, que se adiantara, ao ouvir estas palavras exclamou:

- Nicolau Palander perdeu-se! Perdeu-se o sábio entregue ao seu cuidado, um astrónomo que lhe fora confiado! Pois não sabe que é responsável por ele e que não basta dizer: Perdeu-se o senhor Nicolau Palander!?

Estas palavras do astrónomo russo irritaram Mokoum, que, não andando à caça, não tinha razão nenhuma para ser paciente.

- Ora adeus, senhor astrólogo de todas as Rússias- volveu com modo irritado -, tome cuidado com o que diz! Então eu estou encarregado de guardar o seu companheiro, que não sabe guardar-se a si próprio? Vem-me tomar contas a mim, e não tem razão, ouviu? O senhor Palander perdeu-se por culpa muito sua! Encontrei-o mais de vinte vezes absorto em algarismos e a ponto de separar-se da caravana. Vinte vezes o adverti e encaminhei. Mas anteontem, ao cair da noite, desapareceu, e por mais que o procurasse não dei com ele. Seja mais hábil se é capaz. Visto que sabe tão bem mexer os óculos, olhe por eles e trate de descobrir o seu companheiro!

O bushman teria sem dúvida continuado neste tom, com grande zanga de Mateus Strux, que, de boca aberta, não encontrava ensejo para dizer palavra, se porventura Sir John Murray não tivesse apaziguado o irascível caçador. Felizmente para o sábio russo terminou a polémica entre ele e o bushman. Porém, Mateus Strux, fazendo uma insinuação infundada, foi ferir o coronel Everest, que tal não esperava.

- Seja como for - rematou com modo sacudido o astrónomo de Poulkowa -, não abandonarei o meu companheiro neste deserto. Pela minha parte farei todo o possível para encontrá-lo.

 

Se tivesse desaparecido o senhor William Emery ou o senhor Murray, creio que o coronel Everest não teria dúvida em suspender os trabalhos geodésicos para socorrer os seus compatriotas. Não vejo porque haja de fazer-se menos a bem de um sábio russo que a bem de um sábio inglês!

O coronel Everest, ofendido deste modo, não pôde conservar a placidez habitual.

- Senhor Mateus Strux - exclamou ele, cruzando os braços e fitando com altivez o adversário -, está resolvido a injuriar-me todos os dias sem motivo? Quem julga que somos nós? Quando lhe demos direito de pôr em dúvida os nossos sentimentos numa questão humanitária? Que motivo teve para supor que não socorreríamos o desastrado calculador...

- Senhor!... - bradou o russo, ouvindo a qualificação dada a Nicolau Palander.

- Sim! Desastrado - repetiu o coronel Everest, articulando todas as sílabas do epíteto -; e, para voltar contra si a questão que levianamente sustentava ontem, acrescentarei que, se os trabalhos falharem por este motivo, a culpa será dos russos e não dos ingleses!

- Coronel - exclamou Mateus Strux, cujos olhos fuzilavam -, as suas palavras!...

- As minhas palavras são todas comedidas. E, posto isto, entenda-se que, desde agora até encontrarmos o calculador, ficam suspensos os trabalhos! Está pronto para partir?

- Já o estava antes de o coronel falar! - disse Mateus Strux.

Dito isto, os dois adversários separaram-se e cada um dirigiu-se para o seu carro, porque chegava a caravana.

Sir John Murray, que acompanhava o coronel Everest, não pôde deixar de dizer-lhe:

- Ainda bem que o desastrado não perdeu o registo duplicado das medidas.

- Já pensara nisso - respondeu simplesmente o coronel.

Os dois ingleses interrogaram o caçador Mokoum. Contou-lhes este que Nicolau Palander desaparecera havia dois dias; que o tinham visto pela última vez no flanco da caravana, a doze milhas de distância do acampamento; que Mokoum o procurara logo que tivera notícia da falta dele, o que fora causa da sua demora; que, não o encontrando, quisera saber se o calculador teria ido ao encontro dos seus companheiros ao norte do Nosoub. Ora, como não era assim, propunha que o procurassem para nordeste na parte arborizada da região, acrescentando até que não havia tempo a perder se queriam encontrá-lo vivo.

Era, com efeito, preciso não perder tempo. Havia dois dias que o sábio russo andava errante num território infestado de animais ferozes. Não era homem para tirar-se de apuros, porque vivia sempre na região dos algarismos e fora do mundo real. Onde qualquer outro encontraria alimentos, morreria o pobre homem inevitavelmente de fome. Importava, pois, socorrê-lo sem demora.

Pela uma hora o coronel Everest, Mateus Strux, Sir John Murray e os dois jovens astrónomos punham-se em marcha guiados pelo caçador. Todos montavam cavalos velozes, mesmo o sábio russo, que se agarrava à sela de modo ridículo e praguejava entre dentes contra o desgraçado Palander, causador daqueles incómodos. Os seus companheiros, homens sérios e delicados, fingiram não reparar nos trejeitos cómicos que o astrónomo de Poulkowa fazia sobre o cavalo, animal fino e de boca sensível.

Antes de partirem do acampamento pedira Mokoum ao foreloper que lhe emprestasse o cão, animal inteligente, de muito faro, e que o bushman tinha na devida conta. O cão farejou um chapéu de Palander e correu para nordeste excitado pelo assobio do dono. Os europeus seguiram-no e em breves instantes desapareceram numa selva fechada.

Todo o dia andaram o coronel Everest e os seus companheiros seguindo o cão, o qual compreendera perfeitamente o que exigiam dele, mas não achara ainda o rasto do perdido sábio. O cão, farejando as emanações do solo, ia para a frente, voltava para trás, mas não encontrava pista segura.

Por sua parte os sábios não desprezavam meio de indicarem a sua presença naquela região deserta. Gritavam, disparavam tiros, esperando que Palander os ouvisse, por grande que fosse a sua distracção. Já tinham percorrido os arredores do acampamento num raio de cinco milhas, quando sobreveio a noite, que fez suspender a busca. Decidiram recomeçar no dia seguinte, ao nascer do Sol.

A noite passaram-na abrigados por um grupo de árvores, em volta das quais o bushman cuidadosamente conservou fogueiras acesas. Por vezes ouviram rugidos de animais ferozes, o que lhes dava grandes cuidados sobre o destino de Nicolau Palander. Este infeliz, fatigado, cheio de fome, tremendo de frio, sujeito aos ataques das hienas, abundantes naquela parte da África, deixava poucas esperanças de poder ser salvo! Era o cuidado e o receio de todos. Os seus colegas passaram horas e horas discutindo, formulando projectos, apurando tramas para encontrá-lo. Os ingleses mostraram dedicação tal que deveria comover o próprio Mateus Strux, por muito prevenido que estivesse. Resolveram que encontrariam o sábio russo, morto ou vivo, embora para isso fosse necessário adiar indefinidamente os trabalhos trigonométricos.

Decorrida aquela noite, cujas horas lhes pareceram séculos, raiou enfim a aurora. Selaram rapidamente os cavalos e começaram a busca numa área mais extensa. O cão tomara a dianteira e os europeus seguiam-no.

Caminhando para nordeste, o coronel Everest e os seus companheiros percorriam uma região muito húmida. Multiplicavam-se regatos e ribeiras, embora de pequeno volume. Facilmente os passavam a vau, tendo cautela com os crocodilos, dos quais Sir John Murray viu então os primeiros exemplares. Eram répteis de grande corpulência, chegando alguns a medir vinte e cinco a trinta pés de comprimento, animais temíveis pela sua voracidade e perigosos nas águas dos lagos e rios. O bushman, não querendo perder tempo em dar-lhes batalha, fugia deles fazendo rodeios, e impedia Sir John de lhes atirar. Quando algum daqueles monstros aparecia nos juncais, os cavalos, metendo a galope, num momento lhes fugiam. Apareciam às dúzias no meio dos grandes pauis formados pelas cheias, levantando a cabeça acima da água, devorando algum animal à maneira dos cães e mastigando com os dentes formidáveis.

Entretanto os europeus continuavam a busca, já sem esperança de bom êxito, umas vezes em matagais fechados difíceis de percorrer, outras vezes na planície por entre a rede complicada de regatos, examinando o chão, analisando os vestígios mais insignificantes, aqui um ramo quebrado na altura de um homem, além uma pouca de erva pisada de fresco, mais adiante algum rasto meio apagado e cuja origem não era possível descobrir. Mas não apareciam indícios da passagem do infeliz Palander. (Nesta altura estavam a dez milhas ao norte do acampamento, e por conselho do caçador iam dirigir-se para sudoeste quando o cão deu evidentes sinais de inquietação. Ladrava e mexia a cauda com frenesi. Afastava-se alguns passos farejando o terreno, repelindo com o sopro a erva seca. Depois voltava ao mesmo lugar, chamado por alguma emanação particular.

- Coronel - exclamou então o bushman -, o cão fareja alguma coisa. Que inteligente animall Achou rasto de caça, perdão!... do sábio que procuramos. Deixem-no! Deixem-no!

- Sim - repetiu Sir John Murray-, o cão deu com o rasto. Não o ouvem latir? Parece que fala consigo próprio, que discute lá no seu foro íntimo. De boa vontade daria cinquenta libras pelo animal, se nos fizer encontrar Nicolau Palander.

Mateus Strux não fez caso do modo como falavam do seu companheiro. O que mais importava era encontrá-lo. Todos aguardavam, pois, que o cão achasse definitivamente o rasto.

Não tardou muito; o cão ladrou com força, saltou por cima de uma balça e meteu-se por entre o arvoredo.

Os cavalos é que não podiam segui-lo naquela espessura. Por isso o coronel Everest e os seus companheiros tornearam o bosque, guiando-se pelo ladrar afastado do cão. Reanimavam-se as esperanças. Certo era que o animal ia no rasto do extraviado sábio e, se não perdesse a pista, devia dar naturalmente com ele.

Havia apenas uma dúvida. Estaria Nicolau Palander morto ou vivo?

Eram onze horas da manhã. Durante vinte minutos calaram-se os latidos, pelos quais os caçadores se guiavam. Seria por causa da distância, ou teria o cão perdido a pista? O bushman e Sir John, que iam na frente, ficaram deveras inquietos. Não sabiam que direcção tomar quando ouviram de novo ladrar a meia milha para sudoeste e fora da floresta. Imediatamente correram para ali.

Em breve chegaram a um terreno pantanoso. Ouvia-se o cão, mas não era possível vê-lo. O solo estava coberto de canaviais com doze a quinze pés de altura.

Os cavaleiros apearam-se, e, tendo prendido os cavalos a uma árvore, meteram-se por entre as canas, seguindo a direcção indicada pelo ladrar do cão.

Em breve atravessaram aquele terreno difícil de percorrer e foram dar a uma extensa planície coberta de água e de plantas aquáticas. Na parte mais baixa estendiam-se as águas turvas de uma lagoa de meia milha de raio.

O cão, parado nas margens lodosas da lagoa, ladrava com fúria.

- Lá está ele! Lá está ele! - anunciou o bushman.

Com efeito, avistaram, na extremidade de uma pequena península, Nicolau Palander, sentado num tronco caído, sem ver nada, nem ouvir, mas de lápis em punho e livro de apontamentos sobre os joelhos, naturalmente calculando!

Os seus companheiros não puderam calar um grito. O sábio russo era espreitado, a vinte passos de distância quando muito, por um bando de crocodilos que erguiam a cabeça fora da água, mas que Palander não via. Os vorazes animais adiantavam-se a pouco e pouco e num momento podiam deitar-lhe a boca!

- Depressa! Depressa! - recomendou o caçador, em voz baixa -; não sei o que esperam os crocodilos para se deitarem a ele.

- Talvez aguardem que esteja podre! - exclamou Sir John Murray, aludindo ao facto, observado pelos indígenas, de os crocodilos não comerem nunca carne fresca.

O bushman e Sir John recomendaram aos companheiros que os esperassem ali e tornearam a lagoa, dirigindo-se para o apertado istmo que os podia levar junto de Nicolau Palander.

Teriam andado duzentos passos quando os crocodilos, saindo da água, começaram a arrastar-se pelo lodo, direitos a Palander.

 

O sábio não via nada. Não tirava os olhos do livro de apontamentos. Escrevia ainda algarismos.

- Boa pontaria, sangue-frio, ou ele estará perdido! - murmurou o caçador ao ouvido de Sir John.

Ajoelharam ambos, apontaram aos répteis mais próximos de Palander e desfecharam. Retumbou a dupla detonação. Dois crocodilos, com a espinha dorsal quebrada, deram uma cambalhota e caíram na água; os restantes fugiram e mergulharam.

Nicolau Palander levantou a cabeça ouvindo os tiros. Conheceu os companheiros e correu para eles agitando o canhenho.

- Achei! Achei! - exclamava entusiasmado.

- Achou o quê, senhor Palander? - perguntou Sir

John.

- Um erro de decimal no centésimo terceiro logaritmo da tábua de James Wolston!

E achara com efeito, o bom sábio! Achara um erro de logaritmo! Ganhara o prémio de cem libras oferecido pelo editor Wolston! Nisto passara o astrónomo de Helsingsfors os quatro dias que andara perdido naquele deserto.

 

ESTAÇÃO AGRADÁVEL PARA SIR JOHN.

Estava enfim encontrado o calculador russo. Quando lhe perguntaram como vivera aqueles quatro dias, não foi capaz de responder. Não é provável que tivesse consciência dos perigos que correra. Contaram-lhe o caso dos crocodilos: não quis acreditar e pensou que seria brincadeira. Tivera fome? Também não. Vivera de algarismos, e tão bem vivera que descobrira o erro da tábua de logaritmos!

Na presença dos colegas não quis Mateus Strux, por orgulho nacional, repreender Nicolau Palander; em particular é provável que não passasse sem áspera repreensão pelo passado e severas admoestações para que no futuro não tornasse a distrair-se com estudos logarítmicos.

Imediatamente recomeçaram os trabalhos e prosseguiram durante alguns dias sem qualquer incidente. O tempo manteve-se claro e favorável, portanto, à medida angular das estações e à determinação das distâncias zenitais. Formaram-se novos triângulos, cujos ângulos foram rigorosamente medidos.

A 28 de Junho tinham os astrónomos obtido geodesicamente a base do décimo quinto triângulo. Segundo pensavam, com este triângulo devia acabar o troço do meridiano entre o 2º e o 3º grau. Para completá-lo era mister medir os dois ângulos adjacentes à base, apontando a uma estação situada no vértice.

Apareceu, porém, uma dificuldade física. O terreno, coberto de matas até aos confins do horizonte, não se prestava ao estabelecimento de sinais. A sua inclinação geral, bastante pronunciada de sul para o norte, tornava difícil, não a colocação, mas a observação de pirâmides.

Apenas um ponto, situado a grande distância, poderia servir para se colocar um sinal de fogo. Era o cume de uma montanha de mil e duzentos a mil e trezentos pés de altura, que se elevava a cerca de trinta milhas para noroeste. Nestas circunstâncias, os lados do décimo quinto triângulo excederiam vinte mil toesas de comprimento, mas em diversas triangulações têm sido tomadas extensões quádruplas. Contudo, ainda a comissão anglo-russa não empregara triângulos tão grandes (1).

Os astrónomos, tendo examinado maduramente o caso, resolveram colocar um revérbero eléctrico na montanha e acampar até estar pronto o sinal. O coronel Everest, William Emery e Miguel Zorn, acompanhados por três marinheiros e dois bochjesmen, dirigidos pelo foreloper, foram encarregados de ir à nova estação estabelecer a mira luminosa destinada a medidas nocturnas. A distância era grande de mais para se poder observar de dia com suficiente exactidão.

A expedição partiu na manhã de 28 de Junho, levando caamas com os instrumentos, aparelhos e víveres. O coronel Everest esperava chegar no dia seguinte à falda da montanha, mas, se a ascensão fosse difícil, não poderia o revérbero ficar colocado senão durante a noite de 29 para 30. Os observadores, que ficavam acampados, só deviam procurar passadas trinta e seis horas o vértice luminoso do décimo quinto triângulo.

Durante a ausência do coronel Everest, Mateus Strux e Nicolau Palander mataram o tempo conforme costumavam. Sir John Murray e o bushman caçaram nos arredores e conseguiram abater alguns antílopes, de que há tanta variedade na África austral.

Sir John coroou as suas proezas cinegéticas perseguindo uma girafa, formoso animal, raro nas regiões do norte, mas vulgar nas planícies do sul.

 

*(1) Na medida do meridiano de França até Formentera, Arago no seu 15.o triângulo mediu um lado de 160904 metros da costa de Espanha à ilha de Iviça.

 

A caça da girafa é considerada excelente desporto pelos amadores. Sir John e o bushman toparam com um bando de vinte animais, muito desconfiados e de que não puderam aproximar-se a menos de quinhentas jardas. Entretanto, tendo-se uma girafa fêmea separado do bando, resolveram persegui-la. O animal fugiu a meio-trote, perdendo voluntariamente terreno, mas, quando viu os caçadores próximos, retorceu a cauda e partiu com extrema velocidade. Foi necessário persegui-la mais de duas milhas. Enfim derrubou-a uma bala com que Sir John a feriu no jogo da espádua. Era um exemplar magnífico da espécie, cavalo pelo pescoço, boi pelos pés e pelas pernas, camelo pela cabeça, como diziam os romanos. Tinha o pêlo avermelhado e manchado de branco. Não media aquele singular ruminante menos de onze pés de altura desde a unha até à extremidade dos chavelhitos, cobertos de pele e de pêlos.

No dia seguinte tomaram os astrónomos russos diversas alturas de estrelas, que serviram para determinar a latitude do acampamento.

Decorreu o dia 29 sem qualquer incidente. Esperaram a noite próxima com certa ansiedade para divisarem o vértice do décimo quinto triângulo. Chegou a noite, noite escura, sem luar, sem estrelas, mas seca, limpa de nevoeiro e, portanto, própria para avistar um sinal luminoso muito afastado.

Tinham sido tomadas todas as disposições preliminares: a luneta do círculo repetidor, apontada de dia para o cume da montanha, deveria avistar rapidamente o revérbero eléctrico se a distância o tornasse invisível a olho nu.

Portanto, toda a noite de 29 para 30 se renderam Mateus Strux, Nicolau Palander e Sir John Murray diante da ocular do instrumento; o cume da montanha conservou-se obscuro e nem uma luz brilhou no seu ponto mais alto.

Concluíram os observadores que certamente a ascensão apresentara dificuldades sérias, e que o coronel Everest não chegaria ao vértice do cone antes da noite. Adiaram, pois, a observação, certos de que o aparelho eléctrico ficaria assente no dia seguinte.

Grande foi, por isso, a sua surpresa quando no dia 30 de Junho, pelas duas horas da tarde, chegaram ao acampamento o coronel Everest e os seus companheiros, cujo regresso ninguém esperava.

Sir John correu ao encontro dos colegas.

- Por aqui coronel? - exclamou ele.

- É verdade, Sir John.

- Então a montanha é inacessível?

- Muito acessível, pelo contrário - respondeu o coronel Everest -, mas afirmo-lhe que bem defendida. Vimos buscar reforços.

- Como! Encontraram indígenas?

- Sim. Indígenas de quatro patas e juba negra, que nos devoraram um cavalo!

Em poucas palavras referiu o coronel as peripécias da sua jornada, que fora fácil até à falda da montanha. Esta só era acessível por um contraforte sito a sudoeste. Ora, exactamente no desfiladeiro único que ia dar àquele contraforte, tinha um bando de leões estabelecido o seu kraal, como dizia o foreloper. Debalde tentou o coronel Everest desalojar os formidáveis quadrúpedes; achando-se mal armado, teve de bater em retirada, não sem perder o cavalo, ao qual um soberbo leão quebrara os rins com uma sapatada.

Esta narração inflamou Sir John Murray e o bushman. Era mister conquistar a montanha dos leões, não só por ser indispensável à continuação dos trabalhos geodésicos, como pelo perigo e pela glória. Apresentava-se excelente ocasião de lutar contra a espécie mais terrível da raça felina e não convinha desprezá-la. Logo se organizou outra

expedição.

Quiseram entrar nela todos os sábios europeus, sem exceptuar o pacífico Palander; entretanto alguns tinham de ficar no acampamento para medir os ângulos adjacentes à base do novo triângulo. Vendo o coronel Everest que a sua presença era indispensável para verificar a medida, resolveu ficar em companhia dos dois astrónomos russos. Não havia motivo para reter Sir John Murray. Portanto, o destacamento encarregado de conquistar a montanha foi composto de Sir John, William Emery e Miguel Zorn, que muito instaram para não ficar; do bushman, que não cederia o lugar a ninguém; e de três indígenas, cujo valor e sangue-frio Mokoum conhecia. Pelas quatro horas da tarde os três europeus apertaram a mão aos colegas, saíram do acampamento e embrenharam-se na floresta em direcção à montanha. Marcharam rapidamente, e às nove horas da noite tinham andado trinta milhas.

Chegando a duas milhas do monte apearam-se e escolheram lugar próprio para passar a noite. Não acenderam fogueiras, porque Mokoum nem queria despertar a atenção dos animais que desejava combater de dia, nem provocar um ataque nocturno. Toda a noite ouviram rugidos. É, com efeito, durante a obscuridade que os leões saem do covil e começam a caçar. Nenhum dos caçadores dormiu nem uma hora; o bushman aproveitou a insónia para lhes dar conselhos que a sua prudência tornava preciosos;

- Senhores - disse ele com voz tranquila-, não se enganando o coronel Everest, teremos de bater-nos com uma matilha de leões de juba preta, que são os mais ferozes e mais perigosos. Tomemos cuidado connosco. Recomendo-lhes que evitem o primeiro salto dos animais, que de um pulo galgam dezasseis a vinte passos. Desde que lhes falha o primeiro, é raro darem outro. Falo por experiência própria. Como voltam ao covil mal raia o dia, então os atacaremos. Hão-de defender-se, e defender-se bem. Acrescentarei que de manhã os leões, estando fartos, são menos ferozes e talvez menos valentes: questão de estômago. Também é questão de sítio, porque são mais tímidos nas zonas onde o homem os persegue sem descanso. Aqui não. Nesta região selvagem mostrarão toda a ferocidade do deserto. Recomendo-lhes também que avaliem com cuidado as distâncias antes de atirarem. Deixem o animal aproximar-se, não atirem sem certeza de acertar, e apontem ao jogo da espádua. Abandonaremos os cavalos. Estes espantam-se em face do leão e arriscam a segurança do cavaleiro. Combateremos a pé, e conto com o vosso sangue-frio.

Os companheiros do bushman escutaram silenciosamente os seus conselhos. Mokoum mostrava-se de novo um caçador paciente. Sabia que haveria luta séria. Com efeito, se o leão raras vezes ataca o homem que passa sem provocá-lo, enfurece-se extremamente quando é atacado então é uma fera medonha, à qual a natureza deu agilidade para saltar, força para despedaçar e raiva que o torna terrível. Por isso o bushman tornou a recomendar aos europeus o máximo sangue-frio, principalmente a Sir John, a quem a audácia muitas vezes cegava.

- Atire ao leão - dizia ele - como se atirasse a uma perdiz, sem maior comoção. Disto depende tudo.

Disto depende tudo, com efeito. Mas poucos podem afirmar que se conservarão de sangue-frio em face do leão, quando não estejam acostumados a combatê-lo.

Às quatro horas da manhã ergueram-se os europeus, prenderam bem os cavalos dentro do bosque e puseram-se a caminho. Ainda não era dia. Apenas algumas tintas avermelhadas cortavam as névoas orientais. Reinava completa obscuridade.

O bushman recomendou aos companheiros que examinassem bem as armas. Sir John e ele, levando cada um a sua carabina de carregar pela culatra, meteram-lhe cartuchos metálicos e examinaram se as molas funcionavam bem. Miguel Zorn e William Emery, que levavam espingardas raiadas, renovaram as escorvas que a humidade da noite poderia ter prejudicado. Os três indígenas estavam armados com arcos de aloés, em cujo uso são habilíssimos. Raro era o que não tinha morto mais de um leão.

Os seis caçadores caminharam em grupo compacto para o desfiladeiro, cuja entrada os moços astrónomos tinham examinado na véspera. Nenhum falava e metiam-se sem ruído por entre os troncos de árvores, como os peles-vermelhas da América atravessam os silvedos e matagais das suas florestas.

Em breve chegaram à garganta estreita, por onde se entrava no desfiladeiro. Ali começava uma trincheira cortada entre duas muralhas de granito, que conduzia às primeiras rampas do contraforte. A meio caminho da trincheira, num ponto onde ela se alargava por efeito de um desmoronamento, ficava o covil da matilha de leões.

Tomou então o bushman as disposições seguintes: Sir John Murray, um dos indígenas e ele deviam caminhar sós e de gatas pelas arestas superiores do desfiladeiro. Esperavam chegar assim perto do covil e contavam fazer sair as terríveis feras, expulsando-as para o extremo inferior do desfiladeiro.

 

Ali os dois moços europeus e os dois bochjesmen, emboscados, deviam atirar contra eles, empregando espingardas e arcos.

O local era propício para esta táctica. Erguia-se ali um sicômoro enorme que dominava as brenhas próximas, e cuja ramaria oferecia um esconderijo seguro aonde os leões não chegariam.

É sabido que os leões não podem trepar às árvores como os seus congéneres da raça felina. Os caçadores assim colocados a certa altura estão fora do alcance dos saltos e atiram em condições favoráveis.

A parte perigosa da empresa pertencia, pois, a Mokoum, Sir John Murray e um dos indígenas. A uma observação de William Emery, o caçador respondeu que não podia ser de outro modo, e negou-se a modificar o seu plano. Os europeus tiveram de resignar-se.

Raiava a aurora. O pico mais alto da montanha brilhava como um facho pelo efeito da projecção dos raios solares. O bushman, tendo visto os seus quatro companheiros instalados nos ramos do sicômoro, deu o sinal de marcha. Sir John, o bochjesman e ele arrastaram-se ao longo de um carreiro sinuoso aberto na parede direita do desfiladeiro.

Assim andaram perto de cinquenta passos os três audazes caçadores, parando a espaços e examinando a estreita trincheira que dominavam. O bushman pensava que os leões, terminado o seu passeio nocturno, estariam no covil, ou devorando as presas feitas, ou descansando. Talvez fosse possível surpreender os animais adormecidos e matá-los rapidamente.

Um quarto de hora depois de terem entrado no desfiladeiro, Mokoum e os seus dois companheiros chegaram diante do covil, junto do desmoronamento indicado por Miguel Zorn. Deitaram-se no chão e espreitaram.

Era uma escavação larga, mas cuja profundidade se perdia na escuridão. A entrada estava escondida por montões de ossos e de restos de animais. Não havia engano possível: estava ali o antro dos leões que o coronel Everest vira.

Naquele momento, contra o que Mokoum esperara, parecia a caverna deserta. O bushman engatilhou a carabina,

deixou-se escorregar para o chão e, arrastando-se Sobre os joelhos, chegou à entrada do covil.

Bastou-lhe um olhar para adquirir a convicção de que estava vazio.

Esta circunstância, com que aliás contava, levou-o logo a modificar o seu plano. Num momento se lhe reuniram Os dois companheiros.

- Sir John - explicou o caçador-, a caça ainda não veio, mas pouco pode tardar. Parece-me que faremos bem ocupando-lhe o covil. Com inimigos tais, vale mais ser sitiado que sitiador, principalmente tendo próximo um exército de auxílio. Que lhe parece?

- Também me parece melhor, bushman. Estou às suas ordens e obedeço.

Mokoum, Sir John e o indígena entraram no covil. Era uma gruta profunda, semeada de ossos e de carnes sangrentas. Os caçadores, tendo reconhecido que estava absolutamente deserta, deram-se pressa de barricar-lhe a entrada com grandes pedras que rolaram a custo e que acumularam umas sobre outras. Taparam os intervalos entre as pedras com ramaria e mato seco, que arrancaram da parte baixa do desfiladeiro.

Para esta obra bastaram poucos minutos, visto que a entrada da gruta era estreita. Depois meteram-se os caçadores por detrás da barricada, munida de seteiras, e aguardaram.

Não tiveram de esperar muito. Pelas cinco horas e um quarto apareceram, a cem passos do covil, um leão e duas leoas. Eram animais de grande corpulência. O leão, sacudindo a negra juba e varrendo o chão com a cauda formidável, trazia na boca um antílope, que sacudia como os gatos fazem aos ratos. O peso do animal não lhe cansava os músculos potentes; movia agilmente a cabeça. As duas leoas, de cor fulva, acompanhavam-no pulando.

Sir John - confessou-o ele depois - sentiu o coração palpitar-lhe com violência. Abriu enormemente os olhos, franziu a testa, e sentiu uma espécie de medo convulsivo, misto de espanto e de angústia; pouco lhe durou, porém, esta sensação, e em breve recobrou o sangue-frio. Os seus dois companheiros mostravam o sossego do costume. Entretanto o leão e as leoas pressentiram o perigo.

 

À vista do covil entupido, detiveram-se. Estavam apenas a sessenta passos. O leão soltou um rugido rouco e, seguido pelas leoas, meteu-se numa moita à direita, um pouco abaixo do sítio onde os caçadores primeiro tinham parado. Por entre o mato apareciam distintamente os medonhos animais, mostrando a pele aleonada, as orelhas erectas e os olhos flamejantes.

- Lá estão as perdizes - murmurou Sir John ao ouvido do bushman. - Uma para cada um de nós.

- Não - respondeu Mokoum, em voz baixa-, não está completa a ninhada. A bulha dos tiros assustaria o resto.

Depois, voltando-se para o indígena, perguntou-lhe;

- Está seguro de acertar a esta distância?

- Sim, Mokoum - respondeu o africano.

- Então atire ao lado esquerdo do leão, e atravesse-lhe o coração.

O indígena encurvou o arco, apontou com atenção através do mato. A seta partiu, silvando. Respondeu-lhe um rugido. O leão deu um salto e caiu a trinta passos do covil. Ali ficou imóvel, deixando ver os dentes agudos que se destacavam sobre as fauces vermelhas de sangue.

- Bravo! - bradou o caçador.

Então as leoas, saindo da moita, correram para o cadáver do macho. Ao som dos seus rugidos formidáveis apareceram mais três animais na volta do desfiladeiro, sendo um macho velho, de garras amarelas, outro mais novo e uma leoa. Excitados por inaudito furor eriçavam a juba negra, o que os fazia parecer gigantescos. Mostravam o duplo do volume ordinário. Pulavam, dando rugidos atroadores.

- Agora fogo com eles - ordenou o bushman. - Atiremos-lhe a voo, visto não quererem poisar.

Soaram duas detonações. Um dos leões, ferido junto dos rins pela bala explosiva do bushman, caiu fulminado. O outro leão, ao qual Sir John apontara, correu para a barricada, com uma pata partida. Seguiram-no as leoas furiosas. Os formidáveis animais queriam forçar a entrada do covil e certamente o conseguiriam se não fossem as balas.

 

O bushman, Sir John e o indígena tinham-se retirado para o fundo do covil. As armas estavam carregadas de novo. Bastavam dois ou três tiros para as feras caírem mortas, quando sucedeu um caso imprevisto que tornou perigosíssima a situação dos três caçadores.

A caverna encheu-se de fumarada negra. Uma das buchas, caindo no mato seco, tinha-lhe pegado fogo. Em breve brilhou entre os homens e os animais uma toalha de chamas ateadas pelo vento. Os leões recuaram. Os caçadores não podiam permanecer no covil sem perigo de morrerem sufocados.

A situação era terrível. Não havia que hesitar.

- Para fora! Para fora! - bradou o bushman, meio asfixiado.

Imediatamente os três caçadores apartaram o mato com as coronhas das armas, empurraram as pedras e saltaram para fora, meio sufocados pelos rolos espessos de fumo.

Mal o indígena e Sir John se tinham recomposto do sobressalto, e já ambos estavam em terra, o africano derrubado por uma cabeçada e o inglês pelo chicote da cauda de uma leoa ainda incólume. O indígena, ferido em cheio no peito, perdeu os sentidos. Sir John cuidou ter a perna partida e caiu de joelhos. No momento em que a leoa voltava à carga, alcançou-a o bushman com uma bala que, encontrando osso, lhe fez explosão no corpo.

Ao mesmo tempo, Miguel Zorn, William Emery e os dois bochjesmen, aparecendo na volta do desfiladeiro, vieram, muito a propósito, tomar parte no combate. Já dois leões e uma leoa tinham morrido por efeito dos tiros e das flechas. Mas os sobreviventes, duas leoas e o leão a que Sir John partira uma pata, ainda eram para temer. As espingardas raiadas apontadas por mãos firmes fizeram excelente serviço. Caiu outra leoa, ferida na cabeça e no flanco. O leão ferido e a terceira leoa, armando um salto enorme e passando por cima da cabeça dos recém-vindos, desapareceram na mata do desfiladeiro, saudados ainda por duas balas e uma flecha.

Sir John soltou um urro de triunfo. Estavam vencidos os leões. Jaziam quatro cadáveres no solo.

Os outros caçadores correram em socorro do valente inglês. Com o auxílio dos amigos conseguiu levantar-se.

 

Felizmente não tinha a perna partida. O indígena derrubado também se recompôs, porque apenas ficara atordoado pela violência da pancada. Decorrida uma hora estavam os caçadores de regresso junto dos cavalos, sem encontrarem o casal de leões fugidos.

- Então-perguntou Mokoum a Sir John:

- gosta das nossas perdizes da África?

- Muito, imenso! - respondeu Sir John, esfregando a perna contusa. - Mas sempre têm um demónio de cauda, meu querido bushman...

 

COM O AUXíLIO DO FOGO.

Entretanto o coronel Everest e os seus companheiros aguardavam com justificada impaciência o resultado do combate travado na falda da montanha. Se os caçadores vencessem, apareceria de noite a mira luminosa. Imagine-se como passaram inquietos todo o dia. Tinham os instrumentos prontos. Apontaram-nos para o cume da montanha, de modo que lhes aparecesse no campo ocular qualquer clarão, embora fraco! Apareceria, porém, alguma luz?

O coronel Everest e Mateus Strux não lograram descansar um momento. Unicamente Nicolau Palander, sempre absorto, esquecia-se, em cálculos intrincados, de que os seus companheiros corriam perigo. Não o acusem de egoísmo excêntrico! Podia aplicar-se-lhe o que disseram do matemático Bouvard: "Deixará de calcular quando deixar de viver!" E talvez mesmo Nicolau Palander só deixará de viver quando deixar de calcular. Deve dizer-se, contudo, que, apesar da sua inquietação, os dois sábios inglês e russo pensavam pelo menos tanto nos trabalhos geodésicos quanto nos perigos dos seus colegas. Pertencendo à ciência militante, teriam afrontado os mesmos perigos. Dava-lhes, porém, cuidado o resultado. Qualquer obstáculo físico, que não pudessem vencer, podia interromper definitivamente a triangulação, ou, pelo menos, suspendê-la por muito tempo. Compreende-se facilmente a ansiedade dos dois astrónomos durante aquele dia, que parecia não findar nunca.

 

Anoiteceu enfim. O coronel Everest e Mateus Strux, devendo observar cada um meia hora, renderam-se junto da ocular. No meio da obscuridade não pronunciavam palavra e substituíam-se com exactidão cronométrica. Ambos desejavam observar primeiramente o sinal esperado com tanta impaciência.

Decorreram as horas vagarosamente. Passou a meia-noite. Nada aparecera no pico sombrio.

Enfim, às duas horas e três quartos, o coronel Everest, endireitando-se de repente, disse apenas:

- O sinal!

Fora-lhe favorável o acaso, com muito despeito do seu colega russo, que teve de verificar a aparição da luz. Mateus Strux logrou, porém, conter-se e não pronunciou palavra.

Mediram o ângulo com extrema exactidão e, após repetidas observações, concordaram em que era de 73 graus 58 minutos 42 segundos, 413. Vê-se que a aproximação atingia milésimas de segundo, isto é, a medida podia ter-se por absolutamente exacta.

No dia seguinte, 2 de Julho, ao romper da aurora, levantaram o acampamento. O coronel Everest queria reunir-se quanto antes aos companheiros. Tinha pressa de saber se custara sangue a conquista da montanha. Puseram-se a caminho os carros dirigidos pelo foreloper e ao meio-dia estavam reunidos todos os membros da comissão científica. Nem um faltava. Os vencedores contaram todas as peripécias do combate com os leões e receberam calorosos parabéns.

Durante a manhã tinham Sir John Murray, Miguel Zorn e William Emery medido do alto da montanha a distância angular de outra estação ao ocidente do meridiano. Podiam sem demora continuar os trabalhos. Os astrónomos, tendo tomado a distância zenital de várias estrelas, calcularam a latitude do pico, do que Nicolau Palander concluiu que desde as últimas medidas trigonométricas se obtivera mais um grau do meridiano. Havia, pois, dois graus deduzidos desde a base por uma série de quinze triângulos.

Imediatamente prosseguiram os trabalhos.

 

As condições topográficas e meteorológicas eram excelentes e já se podia prever que não se oporia nenhum obstáculo físico à feliz conclusão da empresa. Durante cinco semanas sempre a atmosfera se conservou propícia. O terreno, algum tanto acidentado, prestava-se ao estabelecimento das miras. Os acampamentos organizavam-se regularmente sob a direcção de Mokoum. Víveres não faltavam. Os caçadores da caravana, com Sir John à frente de todos, faziam abundantes provisões de carne fresca. O fidalgo inglês já nem contava as variedades de antílopes ou de búfalos que as suas balas prostravam. Tudo caminhava optimamente. A saúde em geral era satisfatória. Nunca faltara água nas depressões do terreno. Moderavam-se as polémicas entre o coronel Everest e Mateus Strux, com muita alegria dos seus companheiros. Todos rivalizavam em zelo, e já podia anunciar-se o bom êxito definitivo da triangulação quando uma dificuldade local obstou às observações e excitou as rivalidades nacionais.

Foi a 11 de Agosto. Desde a véspera percorria a caravana uma região arborizada, onde os bosques e matas se renovavam a cada passo. Na manhã citada detiveram-se os carros diante de uma enorme floresta de árvores de grande porte, cujos limites iam além do horizonte. Não há coisa mais imponente que estas massas de verdura formando uma cortina de cem pés de altura a cobrir todo o solo. Nenhuma descrição pode dar ideia exacta das árvores lindíssimas que compõem uma floresta africana. Misturam-se espécies muito variadas: a gunda, o mosocoso, o moucondu, que dá excelente madeira de construção naval, os grossos ébanos, cuja casca cobre lenho absolutamente negro, a bauínia de fibra rijíssima, as bueneras de flores de laranja, magníficos roodeblatts de tronco branco e folhagem carmesim que apresentam singularíssimo aspecto, milhares de guáiacos, alguns com quinze pés de circunferência. Da enorme espessura rompe murmúrio comovente e grandioso, que lembra o ruído das ondas rebentando em praia arenosa. Era o vento que, passando através da ramaria potente, expirava na orla da floresta.

À pergunta feita pelo coronel Everest respondeu o caçador:

- É a floresta de Rovuma!

- Que largura tem de oriente a ocidente?

 

- Quarenta e cinco milhas.

- E que profundidade de norte a sul?

- Cerca de dez milhas.

- Como havemos de passar através daquele arvoredo fechado?

- Não passaremos através dele, nem há senda viável. Só temos um meio: tornear a floresta pelo oriente ou pelo ocidente.

Ficaram perplexos os chefes da expedição ao ouvir as respostas tão precisas do bushman. Era impossível colocar miras na floresta, assente em terreno absolutamente plano. Torneá-la, isto é, afastar-se vinte a vinte e cinco milhas para um ou outro lado do meridiano, era aumentar os trabalhos da triangulação e ter de acrescentar talvez dez triângulos auxiliares à série trigonométrica.

Neste obstáculo natural aparecia, pois, uma dificuldade séria. A questão era importante e de resolução intrincada. Portanto, logo que formaram acampamento à sombra de árvores magníficas afastadas meia milha da orla da floresta, reuniram-se os astrónomos em conselho a fim de deliberarem. Puseram de banda a questão de triangular através da enorme espessura de árvores. O único recurso consistia, pois, em tornear o obstáculo pela esquerda ou pela direita, sendo o afastamento o mesmo para qualquer lado, visto que o meridiano encontrava a floresta a meio.

Os membros da comissão anglo-russa concluíram que era mister tornear a enorme barreira. Pouco importava que fosse por oriente ou por ocidente. Ora exactamente sobre esta questão levantou-se polémica violenta entre o coronel Everest e Mateus Strux. Os dois rivais, que até àquele momento tinham dissimulado, manifestaram a animosidade antiga, a qual passou do estado latente ao estado sensível e degenerou em séria disputa. Os colegas em vão tentaram conciliá-los. O inglês preferia a direita, direcção que aproximava a caravana do caminho seguido por David Livingstone na sua primeira viagem às cachoeiras do Zambeze. Ao menos dava uma razão, a de que essa região, mais conhecida e mais frequentada, podia apresentar certas vantagens. O russo opinava pela esquerda, mas únicamente para contrariar a opinião do coronel. Se este optasse pela esquerda, teria o russo preferido a direita.

A disputa prolongou-se e acirrou-se a ponto de ser para recear a desunião dos astrónomos.

Miguel Zorn, William Emery, Sir John Murray e Nicolau Palander, não conseguindo nada, saíram da reunião, deixando os dois chefes entender-se um com o outro. Tal era a teimosia destes, que tudo devia recear-se, até que os trabalhos fossem continuados por duas séries de triângulos oblíquos.

Passou o dia sem se conciliarem as opiniões opostas.

No dia seguinte, 12 de Agosto, prevendo Sir John que os dois teimosos não concordariam ainda, foi ter com o bushman e propôs-lhe uma caçada nos arredores. Talvez, entretanto, se entendessem os chefes. E em qualquer hipótese, não faria mal um pedaço de veação fresca.

Mokoum, sempre condescendente, assobiou ao seu cão Top, e os dois caçadores, batendo o mato, ou percorrendo a orla da floresta, afastaram-se, conversando ou caçando a algumas milhas do acampamento.

Naturalmente versava a conversação sobre o acidente que impedira a continuação dos trabalhos geodésicos.

- Estou vendo - disse o bushman - que temos de conservar-nos bastante tempo junto da floresta de Rovuma. Nenhum dos nossos chefes quer ceder. Consinta que os compare a dois bois jungidos ao mesmo carro, mas dos quais um vai puxando para a direita e o outro para a esquerda. Deste modo não se anda.

- É um transtorno deplorável - concordou Sir John Murray - e receio que tenhamos de separar-nos. Se não fossem os interesses da ciência, pouco me importaria essa rivalidade de astrónomos. Estas regiões africanas, tão abundantes de caça, têm muito com que me distrair; até que concordassem, divertir-me-ia caçando.

- Espera que eles cheguem a concordar? Por mim creio que ficam teimando até à consumação dos séculos.

- Também o receio, Mokoum. Os nossos chefes disputam sobre uma questão fútil e para a qual não há solução científica. Ambos têm razão e ambos não a têm. O coronel Everest declarou categoricamente que não cederia; Mateus Strux jurou que resistiria às pretensões do coronel.

 

Os dois sábios, que cederiam em face de qualquer argumento científico, nunca farão concessões em pontos de amor-próprio. Na verdade é para lamentar, no interesse da ciência, que o meridiano corte esta maldita floresta!

- Demónios levem as florestas - replicou o bushman - quando se trata de trabalhos destes! Mas também que ideia têm os sábios de medir a largura ou o comprimento da Terra? Ficam mais adiantados depois de a medirem aos pés e às polegadas? Por mim estimo mais não saber nada disso! Prefiro julgar imenso, infinito, este globo que habito; creio que medi-lo é minguá-lo! Não, Sir John, embora vivesse cem anos, não acreditaria na utilidade dos seus trabalhos.

Sir John não pôde deixar de sorrir. Mais vezes discutira esta tese com o caçador, e o ignorante filho da natureza, o livre vagabundo de florestas e planícies, o intrépido caçador de feras, nunca compreendera o interesse científico de uma triangulação. Às vezes Sir John apertava-o com razões, mas o caçador respondia-lhe usando argumentos tirados de certa filosofia natural, e apresentava-os com eloquência selvática, cujo encanto era apreciado pelo inglês, semi-sábio, semicaçador.

Conversando assim, perseguiam Sir John e Mokoum a caça miúda das planícies, tal como a lebre dos rochedos, os giosciuros, uma espécie nova de roedores que Ogilly denominou graphycerus elegans, algumas aves de pio agudo e bandos de perdizes pintalgadas de castanho, amarelo e negro. Pode dizer-se que só Sir John caçava. O bushman poucas vezes atirava. Parecia preocupá-lo a rivalidade dos dois astrónomos, que certamente arriscaria o bom êxito da viagem. O incidente da floresta impressionava-o mais que a Sir John Murray. A caça, embora variadíssima, não lhe merecia atenção.

Com efeito, fervilhava-lhe no cérebro uma ideia, a princípio informe, mas que a pouco e pouco foi tomando corpo. Sir John ouvia-o falar a sós, perguntar, responder. Via-o com a arma em descanso, desprezando as provocações da caça terrestre ou alada, parar de repente, tão absorto como Nicolau Palander em busca de algum erro de logaritmo.

 

Sir John respeitou aquela preocupação e não quis distrair o seu companheiro.

Duas ou três vezes se chegou Mokoum a Sir John perguntando-lhe:

- Então pensa que o coronel Everest e Mateus Strux de modo nenhum concordarão?

Sir John, invariavelmente, respondia que lhe parecia difícil a concórdia e que receava muito a separação dos ingleses e dos russos.

Pela última vez, ao entardecer e a poucas milhas do acampamento, fez Mokoum aquela pergunta e recebeu a mesma resposta. Mas desta vez acrescentou:

- Pois então fique descansado: achei meio de contentar ambos os sábios ao mesmo tempo!

- Deveras, amigo? - perguntou Sir John, surpreso.

- Repito-lhe que sim. Antes de amanhecer, o coronel Everest e o senhor Strux não terão motivo para disputas, se o vento for favorável.

- Que quer dizer, Mokoum?

- Bem me entendo, Sir John.

- Pois faça isso, meu amigo. Bem merecerá da Europa científica, que consignará o seu nome nos anais da ciência!

- É demasiada honra para mim, Sir John - respondeu o bushman. E remoendo o seu projecto não acrescentou mais palavra.

Sir John respeitou este mutismo e não pediu explicação nenhuma ao bushman. Mas realmente não podia adivinhar por que meio tentava o seu companheiro pôr de acordo os dois teimosos, que arriscavam tão ridiculamente o bom êxito da empresa.

Os caçadores chegaram ao acampamento pelas cinco horas da tarde. A questão não adiantara nem um passo e até se tornara pior a situação respectiva dos russos e dos ingleses. Não dera resultado a intervenção muitas vezes repetida de Miguel Zorn e de William Emery. Actualmente a concórdia era impossível, porque os dois sábios se tinham ofendido com interpelações pessoais e insinuações lamentáveis. Até se receava que a disputa, por tal forma envenenada, acabasse por alguma provocação a duelo. O êxito da triangulação estava, pois, arriscadíssimo se os dois astrónomos não resolvessem continuá-la separadamente, cada um por seu lado. Neste caso dividir-se-iam sem demora em dois grupos, perspectiva que magoava ambos os rapazes, habituados um ao outro e ligados por simpatia recíproca.

Sir John compreendeu o que eles sentiam. Adivinhou a causa da sua tristeza. Talvez pudesse tranquilizá-los, referindo-lhes as palavras do bushman; mas, embora confiasse muito neste, não queria dar falsas esperanças aos dois amigos, e resolveu esperar para o dia seguinte o cumprimento das promessas do caçador.

Este, durante o resto da tarde, não se afastou do seu procedimento habitual. Organizou a guarda do acampamento de costume. Vigiou a disposição dos carros e tomou todas as providências necessárias para a segurança da caravana.

Sir John cuidou que ele pusera de banda os seus projectos. Antes de recolher-se tentou, porém, sondar o coronel Everest a respeito do astrónomo russo. O coronel mostrou-se inflexível, zeloso dos seus direitos, acrescentando que, se Mateus Strux não cedesse, separar-se-iam ingleses e russos, visto que havia coisas que não podiam sofrer-se, nem a um colega".

Ouvido isto, Sir John Murray, bastante inquieto, foi deitar-se, e, fatigado pelo muito que todo o dia andara, adormeceu logo.

Pelas onze horas acordou sobressaltado. Os indígenas andavam extraordinariamente agitados. Corriam por um e outro lado e gritavam.

Sir John levantou-se imediatamente e encontrou todos os seus companheiros de pé.

A floresta ardia.

Que cena! Através da noite escura, projectando-se no fundo negro do céu, a enorme toalha de chamas parecia levantar-se até ao zénite. Num momento tinha o incêndio abraçado a largura de muitas milhas.

Sir John Murray olhou para Mokoum, que estava imóvel ao pé dele: Mas o caçador não correspondeu àquele olhar interrogativo. Sir John entendera. O fogo abriria caminho aos astrónomos através da floresta secular.

O vento, soprando do sul, favorecia os projectos do bushman.

 

Precipitava-se o ar como saindo de um fole colossal, activava o incêndio e saturava de oxigénio o braseiro ardente. Avivava a chama, arrancava grandes ramos em ignição, carvões incandescentes, e levava-os de longe para os matagais fechados, que logo se tornavam novos focos de incêndio. O teatro do fogo alargava e profundava. No acampamento sentia-se calor intenso. A madeira seca, amontoada debaixo das escuras ramarias, crepitava. No meio das toalhas de fogo, alguns fogachos mais activos produziam rápidos fulgores. Eram as árvores resinosas que ardiam como archotes. Ouvia-se estrondo como de fuzilaria, estalidos, crepitações distintas conforme a natureza das árvores, e de vez em quando detonações produzidas pelos troncos secos do pau-ferro, que rebentavam como bombas. O céu reflectia a conflagração enorme. Parecia que as nuvens, de um vermelho-vivo, se inflamavam também, como que propagando-se o incêndio até às alturas do firmamento. A abóbada sombria constelava-se de cachos de fagulhas, que brilhavam entre os rolos de fumarada negra.

Depois rebentaram do seio da floresta ardentes rugidos, uivos e mugidos de animais. Perpassavam sombras, matilhas assustadas correndo para todos os lados, grandes espectros negros que os seus formidáveis rugidos denunciavam entre o bando fugitivo. Todas aquelas hienas, búfalos, leões e elefantes eram arrastados por invencível terror até aos limites últimos do horizonte tenebroso.

O incêndio durou toda a noite, o dia seguinte e ainda a noite imediata. Quando raiou a aurora de 14 de Agosto, uma extensa área, devorada pelo fogo, tornava a floresta acessível na largura de milhas. Estava aberto caminho ao meridiano, e desta vez fora o futuro da triangulação salvo pelo acto atrevido do caçador Mokoum.

 

DECLARAÇÃO DE GUERRA.

Nesse mesmo dia continuaram os trabalhos. Tinham desaparecido os pretextos para disputas. O coronel Everest e Mateus Strux não se reconciliaram, mas continuaram juntos os trabalhos geodésicos.

À esquerda da larga abertura feita pelo incêndio levantava-se um montículo, à distância de cinco milhas. O seu ponto culminante podia ser tomado como sinal e servir de vértice a um triângulo. Mediram o ângulo que formava com a última estação, e no dia seguinte toda a caravana marchou para a frente através da floresta incendiada.

Era um caminho macadamizado de carvões. O solo queimava ainda; de espaço a espaço fumegavam troncos caídos, e de todos os lados se levantava um nevoeiro incandescente. A cada passo apareciam cadáveres carbonizados de animais surpreendidos nos covis e que não tinham podido fugir a tempo. Ao longe avistavam-se turbilhões de fumo, indicando a existência de focos parciais. Era para recear que o fogo não estivesse apagado de todo e que, ateado pelo vento, se propagasse de novo, devorando a floresta inteira.

A comissão científica caminhou, pois, rapidamente. Se a caravana fosse apanhada num círculo de fogo, estava perdida. Sentia pressa de atravessar o teatro do incêndio, cujos planos laterais ardiam ainda. Mokoum excitava sem descanso o zelo dos condutores de carros, de modo que pelo meio-dia se estabeleceu o acampamento no sopé do outeiro, tomado como ponto geodésico.

O aglomerado de rochas que coroava aquela elevação de terreno era tão regular que devia ser afeiçoado pela mão do homem. Parecia um dólmen, um grupo de pedras druídicas, cuja presença naquele lugar surpreenderia qualquer arqueólogo. Toda a massa era encimada por um enorme pedaço cónico de grés, que rematava o monumento primitivo, - espécie de altar africano.

Os dois jovens astrónomos e Sir John Murray desejaram visitar aquela construção singular. Subiram por uma das vertentes do monte até ao planalto superior. Acompanhava-os o bushman.

Estavam a vinte passos do dólmen quando apareceu de repente um homem, escondido até então por detrás de uma das pedras da base; depois desceu rapidamente o montículo, quase aos rebolões, e sumiu-se numa mata fechada que o fogo poupara.

O bushman só o viu num relance, mas foi o bastante para o reconhecer.

- É um macololo! - bradou ele, e correu nas pegadas do fugitivo.

Sir John Murray, inspirado pelos seus instintos, seguiu o caçador. Mas ambos percorreram a mata sem descobrirem o indígena. Conseguira este chegar à floresta, onde conheceria as mínimas sendas. Não era possível ao melhor farejador dar com ele.

O coronel Everest, logo que teve conhecimento do facto, chamou o bushman e interrogou-o. Quem era aquele indígena? Que fazia ali? Porque correra Mokoum atrás dele?

- Coronel, é um macololo, um indígena das tribos do norte, que infestam os afluentes do Zambeze. É não só um inimigo dos bochjesmen, mas também um ladrão temido por todos os viajantes que penetram no interior da África austral. Aquele homem espreitava-nos, e talvez venhamos a lamentar o não termos podido deitar-lhe a mão.

- Mas, bushman, que receio podemos ter de uma quadrilha de ladrões? Não somos bastantes para resistir?

- Actualmente, sim - respondeu o bushman -, mas estas tribos de ladrões encontram-se com maior frequência ao norte, e então é difícil escapar-lhes. Se o macololo é espião, como creio, reunirá em breve centenas de ladrões ao longo do nosso caminho, e, quando estiverem reunidos, não dou uma pitada de tabaco por todos os seus triângulos.

O coronel Everest ficou bastante contrariado com este encontro. Sabia que o bushman não exagerava perigos e que convinha atender aos seus conselhos. As intenções do indígena eram suspeitas. A sua aparição súbita e a fuga imediata de sobejo indicavam que fora surpreendido em flagrante delito de espionagem. Em breve seria a presença da comissão científica denunciada a todas as tribos do norte. Em todo o caso, o mal não tinha remédio. Resolveram caminhar mais cautelosamente e vigiar sempre os flancos; depois continuaram a trabalhar.

A 17 de Agosto obtiveram terceiro grau do meridiano. Por boas observações de latitude determinaram exactamente o ponto onde estavam. Tinham medido três graus do meridiano por meio de vinte e dois triângulos a contar da base austral.

Tendo examinado a carta, verificaram que a cem milhas a nordeste do meridiano se situava a aldeia de Kolobeng. Reuniram-se os astrónomos em conselho e resolveram descansar alguns dias naquela aldeia, onde sem dúvida encontrariam notícias da Europa. Havia perto de seis meses que tinham partido das margens do Orange e que, embrenhados nas solidões da África austral, estavam sem comunicações com o mundo civilizado. Em Kolobeng, povoação importante, estação principal de missionários, talvez conseguissem reatar o laço civil cortado entre eles e a Europa. Ali descansaria a caravana e poderia talvez renovar as provisões.

O pedregulho enorme que servira de sinal na última observação foi tomado como ponto final do primeiro trabalho geodésico. Ali começariam as operações futuras. Determinou-se rigorosamente a sua latitude. O coronel Everest, tendo assim fixado este ponto, deu ordem de marcha, e toda a caravana se dirigiu para Kolobeng.

No dia 22 de Agosto chegaram os europeus àquela aldeia sem qualquer incidente.

 

Kolobeng é um grupo de Cabanas indígenas, dominadas pelo estabelecimento dos missionários. Nalgumas cartas dão-lhe o nome de Litou-barouba, e também antigamente lhe chamavam Lepelolé. Ali esteve o Dr. David Livingstone alguns meses do ano de 1843, e se familiarizou com os costumes dos bechuanas, mais comumente chamados "ibacouins" naquela parte da África austral.

Os missionários receberam hospitaleiramente os membros da comissão científica. Proporcionaram-lhes todos os recursos da região. Ainda existia a cabana de Livingstone, tal qual a viu o caçador Baldwin, isto é, arrumada e saqueada; os bures não a respeitaram na sua correria de 1852.

Os astrónomos, mal se acomodaram no hospício dos padres, perguntaram por notícias da Europa. O chefe da missão não pôde satisfazer-lhes a curiosidade. Havia seis meses que não vinha nenhum correio ao estabelecimento. Era, porém, esperado em breves dias um indígena portador de jornais e cartas, que fora visto nas margens do alto Zambeze. Não tardaria mais de uma semana. Era exactamente o tempo que os astrónomos queriam descansar. Passaram, pois, a semana toda em completo farniente, que Palander aproveitou para rever os cálculos.

O áspero Mateus Strux pouco se deu com os ingleses e conservou-se de parte. William Emery e Miguel Zorn aproveitaram utilmente o tempo em passeios nos arredores de Kolobeng. Unia-os profunda amizade; não entreviam facto que pudesse quebrar aquela intimidade, fundada em mútuas simpatias de inteligência e de coração.

A 30 de Agosto chegou o mensageiro impacientemente esperado. Era um indígena de Quelimane, vila situada numa das embocaduras do Zambeze. Um navio mercante da ilha Maurícia, que negociava em gomas e marfim, tinha ancorado naquele ponto em princípios de Julho e ali deixara os jornais e cartas para os missionários de Kolobeng. Já tinham dois meses de atraso, porque o correio indígena levara quatro semanas a subir o curso do Zambeze.

Sucedeu nesse dia um facto, que deve ser referido minuciosamente, porque as suas consequências ameaçaram deveras o futuro da expedição científica.

 

O chefe da missão, logo que o correio chegou, deu ao coronel Everest um maço de jornais europeus. Pertenciam pela maior parte às colecções do Times, do Daily News e do Journal des Débats. As notícias que traziam tinham importância especial como vamos ver.

Os membros da comissão estavam reunidos na sala principal da missão. O coronel Everest, tendo aberto o maço de jornais, pegou num número do Daily News, de 13 de Maio de 1854, para o ler aos colegas.

Apenas, porém, leu o título do primeiro artigo, mudou de rosto, franziu a testa e tremeram-lhe as mãos. Passados alguns momentos conseguiu dominar-se e readquiriu a placidez habitual.

Sir John Murray levantou-se e perguntou ao coronel Everest:

- Que notícias traz esse jornal?

- Notícias muito graves, senhores - respondeu o coronel. - Eu lhas comunico já.

O coronel continuava segurando o número do Daily News. Os colegas, com os olhos fitos nele, admiravam a sua atitude.

O coronel ergueu-se. Com a admiração de todos, e principalmente de Mateus Strux, dirigiu-se para este, e declarou:

- Antes de comunicar as notícias que este jornal traz, desejo dizer-lhe algumas palavras.

- Estou pronto a ouvi-lo - volveu o astrónomo russo. O coronel Everest, com ademanes graves, disse então: - Até aqui, senhor Strux, têm-nos já dividido e obstado à nossa colaboração no trabalho importante de que estamos encarregados rivalidades antes pessoais que científicas. Julgo que esta situação difícil deve ser atribuída à circunstância de sermos ambos igualmente chefes da expedição. Por isso existia entre nós antagonismo incessante. Qualquer empresa, seja qual for, deve ter apenas um chefe. Não lhe parece?

Mateus Strux abaixou afirmativamente a cabeça.

- Senhor Strux - continuou o coronel -, esta situação, para ambos penosa, vai findar por sobreviverem novas circunstâncias. Antes, porém, consinta dizer-lhe que sinto pela sua pessoa profundíssima estima, merecida pela posição eminente que tem no mundo científico. Peço-lhe, pois, que acredite no meu sincero pesar por tudo quanto tem sucedido.

O coronel pronunciou estas palavras com muita dignidade e até com singular altivez. Não havia humilhação naquela desculpa nobremente dada.

Nem Mateus Strux nem os seus colegas atingiram o fim do coronel Everest. Não sabiam que motivo imperava nele. Talvez até que o astrónomo russo, não sendo influenciado pelas mesmas razões que o seu colega, estivesse menos resolvido a esquecer ressentimentos pessoais. Contudo venceu a sua antipatia e respondeu:

- Coronel, estou de acordo em que as nossas rivalidades, cuja origem não investigo, por modo nenhum devem prejudicar a empresa científica em que estamos empenhados ambos. Sinto também pela sua pessoa a estima que o seu talento merece, e para o futuro farei quanto esteja ao meu alcance para evitar novos conflitos. Falou, porém, de uma mudança que as circunstâncias vão produzir na nossa situação. Não entendo...

- Vai entender, senhor Strux - declarou o coronel Everest, com ar de tristeza. - Antes dê-me a sua mão.

- Ei-la - respondeu Mateus Strux, depois de certa hesitação.

Os dois astrónomos apertaram as mãos e ficaram silenciosos alguns instantes.

- Ainda bem! - exclamou Sir John Murray. - Somos todos amigos!

- Não, Sir John! - emendou o coronel Everest, largando a mão do astrónomo russo. - Seremos de futuro inimigos! Inimigos separados por um abismo! Inimigos que não podem encontrar-se nem mesmo no campo da ciência!

Depois, voltando-se para os outros colegas, informou:

- Senhores, rebentou a guerra entre a Inglaterra e a Rússia. Aqui estão os jornais ingleses e franceses que trazem a notícia.

Tinha começado então a guerra de 1854. Os ingleses, ligados com os franceses e os turcos, lutavam em frente de Sebastopol. A questão do Oriente era tratada a tiros de canhão no mar Negro.

 

As últimas palavras do coronel Everest produziram o efeito do raio. Foi violenta a impressão nos ingleses e nos russos, igualmente possuídos do sentimento nacional. Todos se ergueram de salto. Bastaram as palavras: "rebentou a guerra". Já não eram companheiros, colegas, sábios unidos para desempenharem uma missão científica: eram inimigos que se mediam com o olhar, tamanha influência exercem no coração humano esses duelos nacionais.

Os europeus arredaram-se instintivamente uns dos outros. Até o próprio Nicolau Palander obedeceu à influência comum. Somente William Emery e Miguel Zorn se olhavam antes com tristeza que com animosidade e lamentavam não terem podido apertar as mãos antes da comunicação do coronel Everest.

Não se trocou mais palavra. Os ingleses e os russos saudaram-se e retiraram-se.

Esta situação nova, a divisão da comissão científica, ia tornar dificílimo o prosseguimento dos trabalhos geodésicos, mas não suspendê-los. Cada grupo, por interesse do seu país, queria continuar a obra encetada. Deviam, porém, medir dois meridianos diferentes. Todas estas minúcias foram reguladas numa derradeira entrevista entre o coronel Everest e Mateus Strux. A sorte decidiu que os russos continuassem a medida do meridiano primitivo. Os ingleses, ficando com o direito ao trabalho realizado em comum, escolheriam outro arco a sessenta ou oitenta milhas para ocidente, ligando-o ao primeiro por uma série de triângulos auxiliares. Continuariam depois a triangulação nestas condições, levando-a até ao vigésimo paralelo.

Todas estas questões foram resolvidas pelos dois sábios sem contestação nenhuma. A rivalidade pessoal era ofuscada pela grande rivalidade nacional. Mateus Strux e o coronel Everest não trocavam nem uma palavra mal-soante e mantinham-se nos limites da mais estrita cortesia.

Resolveram dividir a caravana em dois grupos, cada um com o seu material. A sorte deu aos russos a posse da lancha a vapor, que evidentemente não podia ser repartida.

O bushman, muito afeiçoado aos ingleses e particularmente a Sir John Murray, assumiu a direcção da caravana inglesa.

 

O foreloper, homem igualmente hábil, foi encarregado de guiar a caravana russa. Cada secção ficou de posse dos seus instrumentos, assim como de um dos registos duplicados onde até então tinham sido escritos os resultados das observações.

A 31 de Agosto separaram-se os membros da anterior comissão internacional. Os ingleses partiram primeiro, a fim de ligarem o novo meridiano à estação antiga.

Saíram de Kolobeng às oito horas da manhã, depois de agradecerem aos missionários a hospitalidade que tinham recebido.

Se alguns momentos antes da partida dos ingleses tivesse algum missionário entrado no quarto de Miguel Zorn, teria visto William Emery apertando a mão ao seu amigo de outrora, agora inimigo pela vontade de Suas Majestades a rainha e o czar!

 

MAIS UM GRAU.

Estava resolvida a separação. Continuando os trabalhos geodésicos ficavam os astrónomos mais sobrecarregados, mas a exactidão das medidas nada sofria. Tudo se faria com a mesma precisão, o mesmo rigor; não se desprezaria verificação nenhuma. Os três sábios ingleses, dividindo o trabalho entre si, iriam mais devagar e cansar-se-iam mais. Mas não era gente que fugisse do trabalho. O que os russos iam fazer também eles fariam no meridiano novo. Sustentá-los-ia o orgulho nacional naquela empresa demorada e penosa. Teriam três homens de perfazer a obra de seis, e, portanto, dedicariam ao trabalho todo o tempo e todos os pensamentos. William Emery sonharia menos; Sir John Murray estudaria menos de espingarda em punho a fauna da África austral.

Organizou-se novo programa, distribuindo o trabalho pelos três astrónomos. Encarregaram-se Sir John Murray e o coronel Everest das medidas angulares e zenitais. William Emery substituiu Nicolau Palander como calculador. Escusado seria dizer que a escolha das estações e a disposição das miras eram resolvidas em comum. O valente Mokoum continuaria sendo, como no passado, caçador e guia da caravana. Os cinco marinheiros ingleses que formavam metade da tripulação da "Queen and Tzar" seguiam os seus compatriotas. Tendo a lancha a vapor cabido aos russos, ficaram os ingleses com a canoa de cauchu, bastante capaz para atravessar rios e ribeiras. Os carros foram divididos segundo a espécie de provimentos que levavam.

 

Estavam, pois, assegurados o abastecimento e a comodidade das duas caravanas. Os indígenas que formavam o destacamento dirigido pelo bushman tinham-se dividido em dois grupos iguais, não sem mostrarem ostensivamente que lhes desagradava a desunião. Talvez tivessem razão pelo que respeita à segurança geral. Além disso, os bochjesmen viam-se levados para fora dos lugares que lhes eram familiares, para longe das pastagens e dos rios que costumavam frequentar, dirigindo-se a uma região setentrional infestada por tribos nómadas hostis aos africanos do sul. A separação era muito mais perigosa em tais circunstâncias. Porém, o bushman e o foreloper exortaram-nos à obediência, mostrando-lhes que as duas caravanas andariam sempre pouco afastadas e na mesma região.

A comitiva do coronel Everest, tendo saído de Kolobeng a 31 de Agosto, dirigiu-se para o dólmen que servira de estação nas últimas observações. Voltou à floresta incendiada e chegou ao montículo. A 2 de Setembro recomeçaram as operações. Um grande triângulo, cujo vértice se apoiou à esquerda de uma pirâmide levantada sobre uma pequena colina, levou os observadores a dez ou doze milhas para ocidente do antigo meridiano.

Seis dias depois, a 8 de Setembro, ficou terminada a série dos triângulos auxiliares, e o coronel Everest, de acordo com os colegas, tendo examinado os mapas, escolheu o novo meridiano que devia ser medido até ao vigésimo paralelo sul. Este meridiano ficava um grau ao ocidente do primeiro. Era o vigésimo terceiro contado a oriente do meridiano de Greenwich. Os ingleses trabalhariam a sessenta milhas de distância dos russos, distância suficiente para que não se cortassem os triângulos de uns e de outros. Em tais condições era impossível encontrarem-se os dois partidos, nas medidas trigonométricas e improvável, portanto, que a escolha de algum sinal desse origem a contestações ou até rixas.

A região que os observadores ingleses percorreram no mês de Setembro era fértil e acidentada, mas sem povoações. Favorecia o andamento da caravana. O céu mostrava-se sempre descoberto, claro, sem nevoeiro, nem nuvens. Faziam-se facilmente as observações.

 

Poucas florestas importantes havia; apenas matas afastadas umas das outras, amplas planícies dominadas às vezes por colinas que favoreciam a colecção dos sinais diurnos ou nocturnos e bom emprego dos instrumentos. Ao mesmo tempo era uma região admirável, abundante de todos os produtos naturais. Quase todas as flores atraíam, pelos perfumes activos, milhares de insectos e particularmente umas abelhas, pouco diferentes das europeias, que fabricavam nas fendas dos rochedos, ou nas fissuras dos troncos, mel branco, muito líquido e de gosto delicioso. Às vezes apareciam de noite animais muito corpulentos nas redondezas do acampamento. Eram girafas, muitas variedades de antílopes, algumas feras, tais como hienas, rinocerontes e também elefantes. Mas Sir John não queria distrair-se. Trabalhava com a luneta do astrónomo e não com a carabina do caçador.

Em tais circunstâncias, Mokoum e outros indígenas desempenhavam as funções de fornecedores, mas é de crer que o estrondo dos tiros apressasse o pulso do fidalgo inglês. O bushman matou dois ou três grandes búfalos das campinas, a que os bechuanas chamam bocolocolos, e que medem quatro metros do focinho à cauda e dois metros da unha à espádua. Têm a pele negra com reflexos azulados. São animais temíveis, com os membros curtos e robustos, cabeça pequena, olhos bravios e cuja fronte feroz sustenta grossos chavelhos. Excelente suprimento de carne fresca para tornar variada a mesa dos viajantes.

Os indígenas prepararam a carne de modo que se conservasse quase indefinidamente, a exemplo do pemmican, tão útil para os índios da América do Norte. Os europeus observaram curiosamente aquela operação culinária, que a princípio lhes repugnou. A carne foi cortada em tiras delgadas, que secaram ao sol; depois meteram-na numa pele curtida e bateram-na com manguais, reduzindo-a a pó impalpável. Era então pó de carne, carne pulverizada. Meteram este pó em sacos de pele, comprimiram-no e humedeceram-no com gordura fervente, tirada também do búfalo. A esta gordura, na verdade algum tanto sebácea, juntaram os cozinheiros africanos tutano fino e bagas de arbustos, cujos princípios sacarinos deveriam brigar com os elementos azotados da carne.

 

Depois amassaram a carne, trituraram-na, bateram-na, de modo que, depois de fria, formou um bolo duro como pedra.

Estava pronto o preparado. Mokoum pediu aos astrónomos que provassem. Os europeus acederam às instâncias do caçador, que gabava o pemmican por ser guisado nacional. A princípio o sabor não agradou aos ingleses; em breve, porém, habituaram o paladar àquele pudim africano, de que por fim chegaram a ser gulosos. Era na verdade um alimento nutriente, próprio para as necessidades de uma caravana perdida em terras desconhecidas, onde podem faltar víveres frescos; substância alimentícia de fácil transporte, quase perfeitamente inalterável e de que um pequeno volume continha grande quantidade de elementos nutritivos. Graças ao caçador, em breve houve depósito de muitos centos de arráteis do pemmican, que permitiriam socorrer a todas as necessidades do futuro.

Assim iam decorrendo os dias. As noites eram sempre empregadas em observações. William Emery não esquecia nunca o seu amigo Miguel Zorn, deplorando os azares cruéis que num instante despedaçam os laços da amizade mais íntima. Sim! Faltava-lhe Miguel Zorn, e o seu coração, sempre cheio das impressões que lhe causava aquela grandiosa e selvática natureza, não tinha onde expandir-se. Embebia-se nos cálculos, refugiava-se nos algarismos com a tenacidade de um Palander, e assim passava as horas. O coronel Everest era sempre o mesmo homem, com o mesmo temperamento frio, que se apaixonava só pelos trabalhos trigonométricos. Sir John sentia saudades da sua meia liberdade de outrora, mas não se queixava.

Entretanto, a fortuna propícia permitia durante alguns dias que o fidalgo inglês se desforrasse uma vez ou outra. Se não podia já explorar as charnecas e perseguir as feras africanas, em ocasiões tiveram estas a condescendência de o procurarem, tentando interromper as observações. Neste caso, sábio e caçador formavam uma só entidade. Sir John Murray caçava usando o direito de legítima defesa. Foi assim que a 12 de Setembro sustentou combate renhido contra um rinoceronte das cercanias. A batalha custou-lhe cara, como vamos ver.

 

Havia dias que o animal andava nos flancos da caravana. Era um enorme chucuru, que assim chamam os bochjesmen àquele paquiderme. Media catorze pés de comprimento e seis de altura, e pela cor denegrida da pele, menos rugosa que a dos seus congéneres da Ásia, tinha o bushman reconhecido ser animal perigoso. As espécies negras são, com efeito, mais ágeis e mais agressivas que as brancas: mesmo sem provocações acometem o homem e os animais.

Naquele dia fora Sir John Murray, em companhia de Mokoum, examinar a seis milhas de distância uma colina, sobre a qual o coronel Everest projectara colocar um poste de mira. Certo pressentimento lhe aconselhara que levasse a carabina de bala cónica e não apenas uma espingarda de caça. Embora o rinoceronte não tivesse aparecido nos últimos dois dias, Sir John não queria andar desarmado em território desconhecido. Mokoum e os seus companheiros tinham perseguido o paquiderme, mas sem o ferirem, de modo que talvez o enorme animal não renunciasse aos seus desígnios.

Sir John felicitou-se depois por ter procedido com prudência. Ele e o seu companheiro chegaram sem incidentes ao outeiro indicado, subiram-no até ao ponto mais escarpado. De repente, ao olharem para baixo, avistaram o chucuru na planície próxima do monte e à saída de um matagal baixo e pouco denso.

Nunca Sir John o vira tão de perto. Era na verdade uma fera medonha. Flamejavam-lhe os olhos pequeníssimos. Os chavelhos agudos, um pouco curvos para trás, inseridos um adiante do outro, quase de igual comprimento, que seria de dois pés, solidamente implantados na massa óssea do nariz, formavam uma arma terrível.

O bushman descobriu o animal, agachado a meia milha de distância, debaixo de uma moita de lentiscos.

- Sir John - avisou ele -, favorece-o a fortuna! Lá está o chucuru!

- O rinoceronte? - exclamou Sir John, cujos olhos brilharam.

- Isso mesmo - confirmou o caçador. - É, como vê, um magnífico animal, e que parece resolvido a cortar-nos a retirada. Não sei porque implica connosco, visto ser herbívoro; enfim, ele está espreitando e precisamos desalojá-lo!

- Pode subir até aqui? - perguntou Sir John.

- Não pode. A rampa é áspera de mais para as suas patas curtas e grossas. Por isso esperará!

- Pois que espere - afirmou Sir John. - Em acabando de examinar a estação, entender-nos-emos com aquele vizinho incómodo.

Sir John Murray e Mokoum continuaram o exame que tinham interrompido. Observaram cuidadosamente a disposição da colina e escolheram o lugar onde havia de ser cravado o poste. Outros montes elevados que se situavam para noroeste permitiriam construir mais um triângulo em óptimas condições.

Terminado o trabalho, Sir John voltou-se para o bushman e disse:

- Quando quiser, Mokoum. - Estou às suas ordens.

- O rinoceronte ainda nos espera? - Ainda.

- Desçamos e, por muito valente que seja, bastará uma bala da carabina para dar cabo dele.

- Uma bala! Milorde, não sabe o que é um chucuru. São animais que têm a vida cavilhada ao corpo. Nunca bastou uma bala só, por bem apontada que fosse, para matar um rinoceronte.

- Ora! - exclamou Sir John. - Não empregaram balas cónicas!

- Que sejam cónicas, que sejam redondas, nunca as primeiras balas mataram semelhante animal!

- Pois então, meu caro Mokoum - replicou Sir John, cego pelo amor-próprio de caçador -, vou mostrar-lhe o que valem as nossas armas europeias, visto que duvida delas.

E Sir John engatilhou a carabina, preparando-se para fazer fogo logo que chegasse a distância conveniente

- Perdão, Sir John - tornou o bushman, algum tanto despeitado e detendo-o com o gesto. - Quer fazer uma aposta comigo?

- Porque não?

- Não sou rico - continuou Mokoum -, mas aposto uma libra contra a primeira bala.

- Aceito! - acudiu Sir John. - Ganha uma libra se eu com a primeira bala não matar o rinoceronte.

- Está dito?

- Está.

Os dois caçadores desceram as rampas ásperas da colina e em breve chegaram a quinhentos pés do chucuru, que não deu um passo. Apresentava-se em circunstâncias muito favoráveis a Sir John, que podia apontar à vontade. O bom do fidalgo estava tão certo de ganhar que, antes de fazer fogo, querendo consentir que o bushman reconsiderasse, perguntou-lhe:

- Ainda está resolvido?

- Sim - respondeu tranquilamente Mokoum.

O rinoceronte continuava imóvel como um alvo. Sir John podia escolher o lugar onde ferir para causar morte imediata. Resolveu feri-lo no focinho e, animado pelo amor-próprio de caçador, apontou com cuidado, contando com a exactidão extraordinária da carabina. Soou a detonação. Mas a bala só bateu no chavelho recuado do rinoceronte, cuja ponta voou em estilhas. O animal nem deu mostras de sentir o choque.

- Esse tiro não vale - declarou o bushman. - Milorde não feriu as carnes.

- Não! não - respondeu Sir John, um tanto envergonhado. - O tiro conta-se, bushman. Perdi uma libra, mas vamos ao dobro da parada.

- Como quiser, mas olhe que perde!

- Veremos!

Sir John carregou cuidadosamente a arma, apontou à espádua do chucuru e desfechou. Mas a bala, encontrando um sítio onde a pele se sobrepõe em lâminas córneas, caiu no chão apesar da sua força penetrante. O rinoceronte moveu-se e deu alguns passos.

- Duas libras! - disse Mokoum.

- Vamos outra vez dobrar a parada?

- Pois não!

Desta vez Sir John, já encolerizado, revestiu-se de todo o seu sangue-frio e apontou à testa do animal.

 

A bala atingiu o alvo, mas ressaltou como se chocasse contra uma chapa de metal.

- Quatro libras! - disse tranquilamente o bushman.

- Ainda à dobra! - bradou Sir John, exasperado.

Então a bala penetrou no jogo da espádua do rinoceronte, que deu um pulo formidável; em vez, porém, de cair morto, o animal atirou-se aos arbustos e despedaçou-os com fúria incrível.

- Creio que ainda se mexe! - observou serenamente o africano.

Sir John já não estava em si. Perdeu todo o sangue-frio. Apostou ainda oito libras e perdeu. Dobrou a parada, perdeu; tornou a perder e só ao nono tiro caiu o vivaz paquiderme, porque a bala lhe atravessou o coração.

Então o inglês soltou um estrondoso hurra! Esqueceu apostas, despeitos, tudo, para se lembrar só de uma coisa: matara o rinoceronte.

Porém, como disse depois aos seus colegas do Hunter Club de Londres: ((Era um animal de preço!".

Custara-lhe com efeito trinta e seis libras, quantia considerável que o bushman recebeu com a sua habitual calma nas caçadas.

 

SUCESSOS VÁRIOS.

Ao fim do mês de Setembro tinham os astrónomos adiantado mais um grau para o norte. Compreendia quatro graus o arco do meridiano medido por meio de trinta e dois triângulos. O trabalho chegara ao meio. Os sábios ingleses manifestavam extraordinário zelo; reduzidos, porém, a três, sentiam às vezes tal cansaço que tinham de suspender os trabalhos por dois ou três dias. O calor era fortíssimo então e quebrava as forças. O mês de Outubro no hemisfério austral corresponde ao de Abril no boreal, e na latitude do 24.o paralelo sul reina a temperatura elevada das plagas argelinas. Durante o dia, as horas próximas do meio-dia não permitiam trabalho nenhum. Por isso as operações trigonométricas sofriam demoras que desassossegavam principalmente o bushman. Eis a razão:

O meridiano a cem milhas ao norte da última estação cortava uma região extraordinária, um karrou, como lhe chamam os indígenas, análogo ao que existe junto das montanhas de Roggeveld, na colónia do Cabo. Na estação húmida apresenta o karrou sintomas de admirável fertilidade; bastam alguns dias de chuva para o solo se cobrir de vigorosa vegetação; brotam flores por toda a parte; em pouco tempo germinam inúmeras plantas; os bamburrais crescem e engrossam todos os dias; formam-se regatos e ribeiras; dos montes descem rebanhos de antílopes e apoderam-se daqueles prados improvisados. Decorrido um mês, seis semanas o muito, toda a humidade da terra, sorvida pelo sol, transforma-se em nuvens, que o vento leva. A terra endurece e sufoca os germes vegetais; desaparece a vegetação em poucos dias; os animais fogem daquela região inóspita, e desdobra-se o manto pulverulento do deserto sobre a terra pouco antes rica e fértil.

Tal era o karrou que a comitiva do coronel Everest devia atravessar para chegar ao verdadeiro deserto confinante com as margens do lago Ngami. Vê-se que o bushman tinha razão de querer atravessá-lo antes que a seca destruísse todas as fontes de vida. Deu parte destas circunstâncias ao coronel Everest. Este compreendeu perfeitamente e prometeu apressar os trabalhos quanto possível. Mas a pressa não devia prejudicar a exactidão. As medidas angulares nem sempre são fáceis, nem podem ser feitas a qualquer hora. Só se observa bem dadas certas condições atmosféricas. Por isso mesmo os trabalhos não caminharam mais rapidamente, apesar das instantes recomendações do bushman, o qual previa que, quando chegassem ao karrou, já a sua fertilidade teria desaparecido sob a influência dos raios solares.

Enquanto os progressos da triangulação não conduziam os astrónomos aos confins do karrou, podiam inebriar-se na contemplação da esplêndida natureza que se lhes apresentava. Os acasos da expedição nunca os tinham levado a região mais formosa. Apesar da elevação da temperatura, inúmeros regatos mantinham a atmosfera fresca. Naquelas campinas encontrariam pastagem abundante rebanhos de milhares de cabeças. Aqui e além apareciam florestas verdejantes cobrindo o solo disposto à maneira de parque inglês. Só lhe faltavam bicos de gás.

O coronel Everest parecia não ver estas belezas naturais, mas Sir John Murray, e principalmente William Emery, experimentavam mil sensações poéticas emanadas daquele paraíso perdido no meio dos desertos africanos. O juvenil sábio muitas vezes lamentava a perda de Miguel Zorn e das expansões confidenciais que permutavam ambos! O seu amigo sentiria as mesmas impressões e, entre duas observações, poderiam expandir de comum acordo o coração?

A caravana caminhava assim por uma região magnífica.

 

Numerosos bandos de aves animavam com o canto e com o voo as campinas e os bosques. Os caçadores mataram por vezes casais de korans, que são uma espécie de abetardas próprias da África austral, e dikkops, caça delicada e de grande apreço. Outras aves chamavam a atenção dos europeus, embora não fossem comestíveis. Na margem dos regatos, ou à superfície das ribeiras que roçavam com a asa rápida, umas aves grandes perseguiam a todo o transe as gralhas vorazes, que procuravam roubar-lhes os ovos de dentro dos ninhos de areia. Grous azuis, de pescoço branco, flamingos vermelhos que perpassavam como chamas vivas entre os canaviais, cegonhas, maçaricos, narcejas, kalas muitas vezes empoleiradas nos dorsos dos búfalos, tarambolas, íbis que pareciam fugidos de algum obelisco hieroglífico, pelicanos enormes marchando em filas compridíssimas, davam vida àquela região, onde só faltava o homem. Mas entre aqueles inúmeros exemplares do mundo volátil, provocavam principalmente admiração os engenhosos tecelões, cujos ninhos esverdeados, compostos de juncos e de ervas entretecidas, pendiam como pêras enormes dos ramos dos chorões. William Emery, tomando-os como frutos de alguma espécie ignota, colheu um ou dois, e grande foi o seu espanto ouvindo aqueles supostos frutos chilrear como pássaros! Seria desculpável pensar, a exemplo de antigos viajantes na África, que certas árvores deste continente produzem frutos cujas pevides são aves vivas. Na verdade, as cercanias do karrou apresentavam aspecto encantador. Tinham as melhores condições para nelas viverem ruminantes. Por isso eles pululavam- Ora apareciam gnus de casco agudo, que na frase de Htarris parecem compostos de triângulos, ora alces, camurças e gazelas. Que variedade de caça, que paraíso cinegético para qualquer membro do Hunter Club! A tentação era demasiadamente forte para Sir John Murray, o qual, tendo obtido do coronel Everest dois dias de descanso, os empregou em cansar-se muito mais. Mas também que de triunfos obteve, de mãos dadas com o seu amigo bushman, enquanto William Emery os seguia como amador! Que de tiros felizes não registou na sua carteira de caça! Que de troféus cinegéticos não poderia levar para o seu castelo nas Highlands!

 

Como esqueceu naqueles dias de férias todas as operações geodésicas, triangulação e meridiano! Quem poderia pensar que as suas mãos, tão hábeis no uso da espingarda, já tinham movido as lunetas delicadas do teodolito! Quem julgaria que os seus olhos, tão prontos em alcançar nos pulos o veloz antílope, haviam por entre as constelações celestes descoberto estrelas de 13.a grandeza. Sim! Naqueles dias de folguedo, Sir John Murray foi completa, única e exclusivamente caçador. O astrónomo eclipsara-se por tal arte, que era de recear não aparecesse mais.

Entre várias proezas cinegéticas de Sir John, convém citar uma, notável pelos seus resultados estranhos, e que causou ao bushman bastante receio quanto ao futuro da expedição científica. Aquele caso justificava os temores que o sagaz caçador comunicara em tempo ao coronel Everest.

Foi a 15 de Outubro. Havia dois dias que Sir John cedia completamente aos seus imperiosos instintos. Os exploradores tinham anunciado a presença de um rebanho de ruminantes a duas milhas pela direita da caravana. Mokoum reconheceu pertencerem à formosa espécie de antílopes chamados órix, e cuja captura, dificílima, ilustra o caçador africano que a realiza.

Portanto, o bushman avisou Sir John do feliz ensejo que se lhe proporcionava, e deu-lhe de conselho que o aproveitasse. Informou-o de que os órix eram difíceis de perseguir, que a sua velocidade excede a do cavalo mais rápido; que o célebre Cumming, quando caçava em terras dos Namaquois, embora montasse cavalos de grande fundo, só conseguira apanhar em toda a sua vida de caçador quatro daqueles maravilhosos antílopes!

Era o bastante para exaltar o bom do inglês, que se declarou imediatamente prestes a perseguir os órix. Escolheu o melhor cavalo, a melhor espingarda, os melhores cães, e tão impaciente andava que foi antes do pacato Mokoum para a orla de uma mata, além da qual se desdobrava a imensa planície frequentada pelos órix.

Passada meia hora de jornada, pararam os cavalos. Mokoum, escondido por detrás de um grupo de sicômoros, mostrou ao seu companheiro o rebanho que pastava do lado do vento, a poucos centos de passos. Os animais, embora muito desconfiados, não pressentiam ainda os caçadores e pastavam tranquilamente. Um deles conservava-se arredado dos outros. O bushman mostrou-o a Sir John.

- É uma sentinela - informou ele. - Aquele órix, velho manhoso provavelmente, vela pela segurança comum. Mal pressentir perigo dará um rincho, e todo o rebanho deitará a fugir. É preciso atirar-lhe a boa distância e matá-lo ao primeiro tiro.

Sir John respondeu com um aceno afirmativo e procurou posição favorável para observar o rebanho.

Os órix continuavam pastando sem desconfiança. A sentinela, a que talvez algum remoinho tivesse levado emanações suspeitas, levantava a miúdo a cabeça ornada de chavelhos e mostrava certo desassossego. Estava, porém, longe de mais para que os caçadores pudessem atirar-lhe. Quanto a perseguir o rebanho naquela enorme planície que lhe apresentava pista favorável, nem pensar nisso era bom. Talvez os animais viessem a aproximar-se da mata, e então poderiam Sir John e o bushman apontar em condições favoráveis.

O acaso favoreceu os caçadores. Os ruminantes, seguindo o seu guia, aproximaram-se a pouco e pouco das árvores. Naturalmente não se julgavam seguros na planície descoberta e vinham abrigar-se debaixo da ramaria fechada. Logo que a sua intenção se tornou patente, o bushman aconselhou ao seu companheiro que se apeasse. Prenderam os cavalos junto de um sicômoro, com as cabeças embrulhadas nos xairéis, para se conservarem quietos e calados. Depois, Mokoum e Sir John, acompanhados pelos cães, romperam por entre o mato, seguindo a orla sarmentosa do bosque, mas encaminhando-se para uma ponta, que se projectava até trezentos passos do rebanho.

Ali esconderam-se os caçadores e esperaram com as armas engatilhadas. Do lugar em que estavam podiam observar os órix e admirar até minuciosamente aqueles animais elegantíssimos. Distinguiam-se pouco os machos das fêmeas, e até, constituindo excepção rara na natureza, as fêmeas, mais bem armadas que os machos, tinham chavelhos curvos para trás e elegantemente adelgaçados. Não há animal mais esbelto que o antílope cuja variedade é o órix; nenhum apresenta no corpo desenhos negros dispostos com maior esbelteza. Na garganta flutua-lhe um pincel de cabelos, tem a crina direita e a cauda farta arrasta pelo chão.

Entretanto o rebanho, composto de vinte cabeças, ficou parado depois de se ter aproximado do bosque. A sentinela evidentemente levava os órix a sair da campina descoberta. Corria por entre as ervas e tentava reunir os companheiros em grupo compacto, como o cão de gado faz às ovelhas confiadas ao seu cuidado. Mas os órix, brincando alegres, não pareciam resolvidos a afastar-se do prado luxuriante. Resistiam, fugiam saltando e recomeçavam a pastar a poucos passos de distância.

Estes movimentos espantavam o bushman. Fê-los notar a Sir John, mas sem saber dar explicação deles. O caçador não compreendia a teima do vigia, nem a razão por que pretendia levar para o bosque o rebanho de antílopes.

Entretanto a situação prolongava-se sem modificação. Sir John apertava impaciente o guarda-mato da espingarda. Ora queria atirar, ora marchar para a frente. Mokoum a custo o detinha.

Passou deste modo uma hora, e muitas mais passariam se um cão, talvez tão impaciente como Sir John, não ladrasse com força, correndo para o campo.

Desesperado, o bushman de boamente daria um tiro no maldito animal! Mas o veloz rebanho fugia já com rapidez fulminante, e então reconheceu Sir John que nenhum cavalo o alcançaria. Em breves momentos já os órix pareciam apenas pontos negros saltando por entre a erva viçosa.

Mas, com grandíssimo espanto do bushman, o macho de vigia não dera ao rebanho o sinal de fuga. Contra os costumes daqueles ruminantes, o extraordinário guarda ficara imóvel no mesmo sítio, sem acompanhar os órix confiados na sua vigilância.

Depois da fuga destes tentava até esconder-se por entre as ervas, buscando provavelmente alcançar o bosque.

- É coisa singular! - disse o bushman. - Que terá aquele órix! É esquisito o seu andar! Estará ferido, ou será velho?

 

- É o que vamos ver! - volveu Sir John, correndo para o animal com a espingarda à cara.

O órix, vendo o caçador, ainda mais se escondeu entre as ervas. Mostrava só os enormes chavelhos, de quatro pés de altura, cujas pontas agudas dominavam a verde superfície da campina. Não tentava fugir, senão antes esconder-se. Sir John aproximou-se facilmente do extraordinário animal. Chegando a cem passos, apontou com cuidado e desfechou. Soou a detonação. A bala ferira o órix na cabeça, porque os chavelhos, até então erectos, estavam agora deitados no chão.

Sir John e Mokoum correram apressados. O bushman levava aberta a faca de mato, para estripar o animal se não estivesse morto.

Mas esta precaução era inútil. O órix estava morto, bem morto, tão morto que, quando Sir John o puxou pelos chavelhos, arrastou apenas uma pele vazia e mole, a que faltava todo o esqueleto!

- Por São Patrik! Ora aí estão coisas que só a mim sucedem! - exclamou com ar tão cómico, que faria rir qualquer outro que não fosse o bushman.

Mokoum não ria. Nos lábios franzidos, na contracção das sobrancelhas e no piscar dos olhos, revelava grande sobressalto. De braços cruzados e voltando a cabeça para a direita e para a esquerda, espreitava em torno de si.

De repente avistou um objecto inesperado: uma bolsa de couro pintada com arabescos vermelhos que estava caída no chão. O bushman apanhou-a e examinou-a com atenção.

- Que é isso? - perguntou Sir John.

- Isto - informou Mokoum - é o saco de um macololo.

- Como viria aqui parar?

- Porque o dono o deixou cair, fugindo apressadamente.

- E o macololo?

- Perdoe - explicou o bushman, colérico e apertando os punhos -, o macololo estava escondido nesta pele de órix, e foi contra ele que milorde fez fogo.

Ainda não tivera Sir John tempo de manifestar a sua admiração, quando Mokoum, vendo a erva agitar-se a quinhentos passos de distância, atirou rapidamente naquela direcção. Depois Sir John e ele desataram a correr.

Mas não viram nada. Na erva amassada havia claros indícios de que por ali passara um ser vivo. O macololo desaparecera, e seria loucura procurá-lo na planície imensa que se desdobrava até o horizonte.

Os dois caçadores voltaram ao acampamento, inquietos por este incidente, que devia assustá-los deveras. A presença de um macololo no dólmen da floresta incendiada, o disfarce muito usado entre os caçadores de órix com que se ocultara, mostravam forte persistência em seguir naquela região deserta a comitiva do coronel Everest. Não era sem motivo que um indígena da tribo dos bandidos macololos espionava assim os europeus e a sua escolta. Quanto mais estes se adiantassem para o norte, mais correriam perigo de ser acometidos pelos salteadores do deserto.

Sir John, chegando aborrecido ao acampamento, declarou ao seu amigo William Emery:

- Na verdade, meu caro Emery, ando infeliz! Logo o primeiro órix que matei, estava morto antes de eu o matar!

 

OS ASSOLADORES.

O bushman, depois daquele incidente, teve uma conferência prolongada com o coronel Everest. Na sua opinião, aliás confirmada pelos factos, a caravana era seguida, espiada e, portanto, perigava. Se os macololos não a tinham atacado já seria por lhes convir deixá-la adiantar-se mais para o norte, para a região habitualmente infestada por aquelas quadrilhas de ladrões.

Em presença de tal perigo conviria retroceder? Dever-se-ia interromper a série dos trabalhos tão felizmente realizados até então? Fariam os selvagens africanos aquilo que a natureza não pudera? Impediriam os sábios ingleses de cumprir a sua missão científica? Tal era a importante questão que urgia resolver.

O coronel Everest pediu a Mokoum que lhe referisse quanto sabia acerca dos macololos. Eis a sua narração:

Pertencem os macololos à grande tribo dos bechuanas, e são os últimos que estanciam perto do equador. Em 1850, o Dr. David Livingstone, na sua primeira viagem ao Zambeze, hospedou-se em Sesheke, residência habitual de Sebitouané, então chefe supremo dos macololos. Era este indígena um guerreiro temível, que em 1824 ameaçara as fronteiras da colónia do Cabo. Sebitouané, sendo homem de grande inteligência, obteve a pouco e pouco ascendente soberano sobre as tribos nómadas do centro da África, e reuniu-as num grupo compacto e ameaçador. Em 1853, morrera este chefe nos braços de Livingstone, sucedendo-lhe seu filho Sekeletou.

 

Mostrou-se este a princípio muito favorável aos europeus que percorriam as margens do Zambeze. Ao Dr. Livingstone não deu nenhuma razão de queixa. Mas o procedimento do régulo africano mudou muito depois da partida do célebre viajante. Sekeletou e os guerreiros da sua tribo perseguiram e aprisionaram não só os estrangeiros, mas também os indígenas próximos. Aos vexames seguiram-se roubos em grande escala. Os macololos percorriam o território, mormente na parte compreendida entre o lago Ngami e o alto Zambeze. Era perigoso internar-se naquela região com uma pequena caravana, principalmente quando a marcha desta era conhecida, espionada e provavelmente condenada a catástrofe certa.

Tais foram, em resumo, as informações que Mokoum deu ao coronel Everest.

Acrescentou que julgara do seu dever não lhe ocultar nada, mas que obedeceria às ordens do coronel e não recuaria se resolvessem continuar a marcha para o norte.

O coronel Everest chamou a conselho os seus dois colegas, Sir John Murray e William Emery, e nele resolveram continuar os trabalhos geodésicos a despeito de tudo. Estavam medidos quase cinco oitavos do arco e, qualquer que fosse o perigo, entendiam os ingleses que a si próprios e à sua nação deviam não deixar a obra em meio.

Tomada esta resolução, foi continuada a série trigonométrica. A 27 de Outubro a comissão cortava perpendicularmente o trópico de Capricórnio, e a 3 de Novembro, tendo fechado o quadragésimo primeiro triângulo, verificou, por observações zenitais, que estava medido mais um grau do meridiano.

Durante um mês foi a triangulação continuada com ardor, sem encontrar obstáculos naturais. Naquela formosa região, tão propiciamente acidentada, cortada só de ribeiros vadiáveis e não de rios importantes, os astrónomos trabalhavam bem e depressa. Mokoum, sempre alerta, vigiava os flancos e a frente da caravana, e não consentia que os caçadores se afastassem muito. Entretanto nenhum perigo imediato parecia ameaçá-la, e até era possível não virem a realizar-se os receios do bushman. Pelo menos durante o mês de Novembro não apareceu nenhuma quadrilha de salteadores, nem foi possível descobrir vestígios do indígena que seguira teimosamente a caravana desde o dólmen da floresta queimada.

Contudo, várias vezes, apesar de o perigo parecer transitoriamente removido, notou o caçador sintomas de hesitação entre os bochjesmen que dirigia. Não fora possível esconder os casos do dólmen e da caçada dos órix. Ora macololos e bochjesmen são tribos inimigas, que não se dão quartel. Os vencidos não podem esperar misericórdia dos vencedores, de modo que o seu número diminuto assustava os indígenas da caravana, reduzidos a metade depois da declaração de guerra. Os bochjesmen viam-se a mais de trezentas milhas das margens do Orange, e sabiam que teriam de internar-se mais de duzentas milhas para o norte. Esta perspectiva assustava-os. Antes de os contratar para a empresa não lhes escondera Mokoum a excessiva duração e as dificuldades dela, e certamente eram homens capazes de sofrer os trabalhos da jornada. Mas, desde que ao trabalho físico se juntava o perigo de lutar com inimigos encarniçados, não era de admirar que vacilassem. Daí resultaram expressões de pesar, queixumes e má vontade, que Mokoum fingia sempre não ver nem ouvir, mas que aumentavam os seus receios a respeito do futuro da expedição científica.

Um facto sucedido a 2 de Dezembro aumentou as más disposições dos supersticiosos bochjesmen e até certo ponto provocou uma revolta contra os chefes.

Desde a véspera que o tempo, tão claro então, começou a encobrir-se. Sob o influxo de um calor tropical, a atmosfera, saturada de humidade, indicava grande tensão eléctrica. Já se podia anunciar tempestade próxima, e as tempestades naquele clima são quase sempre violentíssimas.

Com efeito, na manhã de 2 de Dezembro o céu cobriu-se de nuvens de aspecto sinistro, que não enganariam qualquer meteorologista. Eram cúmulos enovelados como montões de algodão, e cuja massa, cinzento-escura aqui, amarela acolá, apresentava cores destacadas. O sol mostrava tintas pálidas. O ar estava tranquilo, o calor sufocava. Parara a baixa barométrica anunciada desde a véspera. Não se movia uma folha na atmosfera pesadíssima.

Os astrónomos tinham observado este aspecto sombrio do céu, mas não interromperam os trabalhos.

 

William Emery, acompanhado por dois marinheiros, quatro indígenas e um carro, fora duas milhas ao oriente do meridiano estabelecer um poste determinado a formar vértice de triângulo. Tratava de assentar a mira no alto de um outeiro, quando a rápida condensação de vapores produzida por uma corrente de ar frio desenvolveu enorme abundância de electricidade. Imediatamente começou a cair basta chuva de pedra, cujos granizos, fenómeno raro, eram luminosos. Parecia que choviam gotas de metal inflamado. Do chão ferido por eles rebentavam faíscas; das partes metálicas do carro que transportava o material projectavam-se jactos luminosos.

Os granizos em breve adquiriram volume enorme. Era uma verdadeira lapidação que não se afrontava sem perigo. Não deve espantar a intensidade do fenómeno, quando ocorrer que o Dr. Livingstone viu em Kolobeng, durante uma trovoada semelhante, estoirarem os vidros das janelas e serem mortos cavalos e antílopes pelas enormes pedras.

William Emery largou o trabalho e, sem perda de tempo, chamou os companheiros para procurarem no carro abrigo menos perigoso que o de qualquer árvore. Mas apenas descera do cume do monte, um relâmpago tenebroso e deslumbrante, seguido imediatamente por um trovão atroador, abrasou a atmosfera.

O astrónomo caiu como morto. Os dois marinheiros, assombrados um instante, correram para ele. Felizmente fora poupado pelo raio. Em virtude de um daqueles efeitos singulares que certos casos de fulminação apresentam, o fluido como que escorregara em volta dele, envolvendo-o num lençol eléctrico; a sua passagem estava provada pela fusão das pontas de um compasso que o astrónomo levava na mão.

William Emery, levantado pelos marinheiros, em breve recobrou os sentidos. Mas não fora nem a única, nem a mais malferida vítima do raio. Perto do poste cravado no alto do monte jaziam mortos dois indígenas a vinte passos um do outro. Um, cujos fluidos vitais estavam desorganizados pela acção mecânica da electricidade, mostrava o corpo carbonizado envolto no vestuário intacto. O outro, ferido no crânio, caíra fulminado instantaneamente.

 

Portanto, três homens, dois indígenas e William Emery, tinham sofrido o choque de um raio de dardo tríplice. Este fenómeno da trissecção do raio é raro, mas já tem sido observado. Às vezes é considerável o afastamento angular dos três dardos.

Os outros bochjesmen, aterrados primeiro pela morte dos companheiros, deitaram depois a fugir, a despeito dos brados dos marinheiros e com perigo de serem fulminados, porque, fugindo, rarefaziam o ar atrás de si. Não quiseram ouvir nada e voltaram ao acampamento, correndo a bom correr. Os dois marinheiros levaram William Emery para o carro, meteram também neste os cadáveres dos indígenas, e depois abrigaram-se igualmente, porque tinham o corpo contuso pelas pancadas do granizo que continuava caindo. A tempestade rugiu três quartos de hora com enorme violência. Depois começou de amainar. Cessou a chuva de pedra e o carro voltou para o acampamento.

Já ali o precedera a notícia da morte dos dois indígenas. Produziu lastimoso efeito no espírito dos bochjesmen, que não viam sem terror as operações geodésicas, para eles incompreensíveis. Juntaram-se em conciliábulo, e alguns deles, mais timoratos que os restantes, declararam que não iriam para diante. Houve começo de revolta, que ameaçou tomar grandes proporções. Foi preciso que o bushman empenhasse toda a sua influência para dominá-la. O coronel Everest interveio também, e teve de prometer-lhes aumento de soldada para os conservar no serviço. Foi difícil restabelecer a boa harmonia. Houve resistências e chegou a estar seriamente ameaçado o porvir da expedição. Com efeito, que sucederia aos membros da comissão naquele deserto, afastados de qualquer povoado, se lhes faltasse a escolta para os proteger, e condutores para dirigirem os carros? Obviou-se a esta dificuldade, e, depois do enterro dos dois indígenas, a caravana levantou o acampamento e encaminhou-se para o outeiro onde tinham morrido os dois negros.

William Emery ressentiu-se alguns dias do choque violento que sofrera. A mão esquerda, em que segurava o compasso, ficou-lhe algum tempo paralítica; depois todos os incómodos desapareceram e o astrónomo do Cabo continuou a trabalhar.

Nos dezoito dias seguintes, até 20 de Dezembro, não sucedeu coisa notável. Não apareciam macololos, e Mokoum, embora desconfiado, principiava a sossegar. Estavam só a cinquenta milhas do deserto e o karrou continuava, como até ali, sendo uma região esplêndida, cuja vegetação, ainda refrescada pelas águas vivas do solo, não encontraria rival em parte alguma do mundo. Era, pois, de esperar que até ao deserto, os homens, naquela região fértil e abundante de caça, e os animais, que se enterravam em erva fresca e nutriente, não sofreriam nada. Não contavam, porém, com os ortópteros, cuja invasão é ameaça de contínuo impendente sobre as colónias agrícolas da África austral.

Na tarde de 20 de Dezembro, uma hora antes do pôr do Sol, estava formado o acampamento. Ao pé de uma árvore descansavam os três ingleses e o bushman, conversando acerca dos seus projectos futuros. O vento norte, que começava de soprar, refrescava a atmosfera.

Os astrónomos tinham ajustado que de noite tomariam alturas de estrelas para calcularem a latitude do lugar. O céu estava límpido; era quase lua nova; as constelações apareciam resplandecentes e, portanto, as delicadas observações zenitais seriam feitas em condições favoráveis. Assim, o coronel Everest e Sir John Murray sofreram cruel desengano quando, pelas oito horas da tarde, William Emery se levantou e, apontando para norte, observou:

- O céu encobre-se; receio que a noite não seja tão propícia como julgávamos.

- É verdade - respondeu Sir John -; aquela nuvem negra cresce e, como o vento refresca, em breve invadirá o firmamento.

- Teremos outra trovoada? - perguntou o coronel.

- É de recear, porque estamos na região intertropical - respondeu William Emery. - Corremos perigo de não podermos fazer observações esta noite.

- Que lhe parece, Mokoum? - perguntou o coronel Everest.

O caçador olhou atentamente para o norte. A nuvem era limitada por uma linha curva alongada e tão bem definida como se fosse traçada a tira-linhas. O sector, que recortava acima do horizonte, tomaria três a quatro milhas. Aquela nuvem, negra como fumo, apresentava aspecto singular que impressionou o bushman. Às vezes o Sol no ocaso iluminava-a com reflexos arroxados, que ela reflectia como se fora corpo sólido e não massa de vapores.

- Esquisita nuvem! - comentou Mokoum sem mais explicações.

Momentos depois veio um dos bochjesmen prevenir o caçador de que os animais, cavalos, bois, etc, apresentavam sintomas de agitação. Corriam desatinados pela pastagem e não queriam entrar no acampamento.

- Pois deixem-nos passar a noite fora! - recomendou Mokoum.

- Mas as feras?

- Ah! As feras andarão tão entretidas esta noite que não pensarão neles.

O indígena retirou-se. O coronel Everest ia pedir ao bushman explicação da sua estranha resposta. Mas Mokoum afastou-se alguns passos e ficou-se absorto na contemplação daquele fenómeno.

A nuvem aproximava-se rápida. Podia já notar-se que vinha muito baixa, talvez poucas centenas de pés acima do solo. Aos assobios do vento que refrescava associava-se agora como que um murmúrio formidável, se estas duas palavras podem combinar-se. Aquele murmúrio provinha da nuvem.

Ao mesmo tempo, e por cima dela, apareceu um enxame de pontos negros destacando-se na cor pálida do céu. Aqueles pontos volteavam de baixo para cima, embebiam-se na massa sombria e logo saíam dela. Eram aos milhares.

- Olá! Que pontos negros são aqueles? - perguntou Sir John Murray.

- São aves - esclareceu o bushman. - Abutres, águias, falcões, milhafres. Vêm de longe, seguem a nuvem, e só a deixarão quando ela for destruída ou dispersa.

- Mas a nuvem o que é?

- Não é nuvem - explicou Mokoum, estendendo a mão para a massa sombria que já ia invadindo a quarta parte do céu -, ou, antes, é uma nuvem viva, é uma nuvem de gafanhotos!

Não se enganava o caçador. Iam os europeus assistir a uma daquelas terríveis invasões de ortópteros, infelizmente frequentes, e que numa noite transformam uma região fértil em deserto árido e nu. Os gafanhotos, pertencentes ao género locusta, os grylli devastadores dos naturalistas, chegavam aos milhares de milhões. Alguns viajantes têm visto plagas cobertas daqueles insectos, formando massa de quatro pés de altura e cinquenta milhas de comprimento!

- Sim - continuou o bushman -, estas nuvens vivas são um flagelo terrível para os campos, e praza aos céus que não nos prejudiquem muito!

- Mas aqui não temos searas nem pastagens que nos pertençam! Que podemos recear daqueles insectos?

- Nada, se nos passarem apenas por cima da cabeça; tudo, se pousarem no território que havemos de atravessar. Neste caso, ficarão as árvores sem folhas, as campinas sem fêvera de erva. Não lhe ocorre, coronel, que, se nos sobejam alimentos para nós, carecemos de pastagens para os bois, para os cavalos e para as mulas? Que será deles em campinas assoladas?

Os companheiros do bushman permaneceram alguns instantes silenciosos. Observavam a massa animada, que crescia incessante. Redobrava o murmúrio, cortado pelos gritos das águias e dos falcões que, precipitando-se sobre a nuvem animada, devoravam gafanhotos aos milhares.

- Parece-lhe que pousem nesta região? - perguntou William Emery a Mokoum.

- Receio-o. O vento empurra-os para aqui. Além disso, eis que se põe o Sol. A brisa fresca da noite enfraquecerá as asas dos gafanhotos. Descerão sobre as árvores, sobre os arbustos, sobre os prados, e então...

O bushman não terminou a frase. No mesmo instante se realizava a sua profecia. Num momento caiu sobre o chão a nuvem enorme que excedia já o zénite. Em volta do acampamento e até aos limites do horizonte cobriu-se o solo de uma massa negra e movediça. O acampamento também se encheu literalmente. Carros, barracas, tudo desapareceu debaixo daquele granizo vivo.

 

A massa de gafanhotos excedia um pé de altura. Os ingleses, enterrados até meia perna na grossa camada de insectos, esmagavam-nos aos centos a cada passo. Mas que importava se tantos biliões eram?

E, contudo, não faltavam causas de destruição dos gafanhotos. As aves caíam sobre eles dando gritos roucos e devoravam-nos com avidez. Por baixo, as serpentes, atraídas pela gostosa presa, absorviam quantidades enormes. Os cavalos, os bois, as mulas, os cães, comiam neles com indizível alegria. A caça das planícies, as feras, leões, hienas, elefantes, rinocerontes, engoliam alqueires de gafanhotos nos estômagos insaciáveis. Até os bochjesmen, gulosos daquela pescaria aérea, os aproveitavam como maná celeste. Mas o seu número era tal que zombava de todas as causas de destruição, e até da própria voracidade, porque os gafanhotos comem-se uns aos outros.

Por instâncias do bushman provaram os ingleses aquele manjar caído do céu. Cozeram milhares de gafanhotos e temperaram-nos com sal, pimenta e vinagre, escolhendo para isso os mais novos, verdes e não amarelados, e que são menos coriáceos que os velhos, alguns dos quais medem quatro polegadas de comprimento. Os gafanhotos novos, da grossura de um canudo de pena, com quinze a vinte linhas de comprimento, e que não puseram ainda ovos, são considerados pelos amadores como excelente guisado. Passada meia hora de cocção, o bushman serviu aos europeus um prato apetitoso de gafanhotos. Os insectos, privados das cabeças, das pernas e dos élitros, eram saborosíssimos. Sir John Murray, que à sua parte comeu centos deles, recomendou que fizessem grande provimento. Demais, bastava abaixar-se e apanhá-los!

Cerrada a noite, todos se foram deitar. Mas nem os carros tinham escapado à invasão. Era impossível entrar neles sem esmagar inúmeros gafanhotos. Não podia agradar semelhante cama. Por isso, como o céu estava puro e as constelações brilhavam esplêndidas, passaram os astrónomos a noite medindo alturas de estrelas. Melhor era que enterrarem-se até ao pescoço no colchão movediço. Além disso não poderiam os europeus conciliar o sono enquanto na campina e nos bosques rugiam as feras, que corriam à caça dos gafanhotos!

No dia seguinte ergueu-se o Sol com o horizonte límpido e começou a descrever o arco diurno num céu brilhante, que prometia intenso calor. Logo que a temperatura se elevou, ouviu-se o murmúrio surdo dos élitros na massa enorme de gafanhotos, que se preparavam para voar, levando mais longe a assolação e a fome. Pelas oito horas da manhã desdobrou-se no firmamento o véu enorme e eclipsou o Sol. O ar e o chão cobriram-se de trevas, como se a noite retrocedesse e invadisse as horas do dia. Depois, refrescando o vento, moveu-se a nuvem colossal. Duas horas esteve passando sobre o acampamento com formidável ruído, e desapareceu enfim no horizonte ocidental.

Quando raiou de novo a luz, estavam cumpridas as predições do bushman. Nem uma folha nas árvores, nem uma fêvera de erva nos campos. Tudo fora destruído. Aparecia o chão amarelado e terroso. Os ramos despidos de folhas apresentavam perfis sinistros. Sucedia ao Verão o Inverno com a rapidez de uma mudança de vista! Aparecia o deserto em vez da terra luxuriante de verdura e flores.

Podia aplicar-se aos gafanhotos devoradores o provérbio oriental ainda justificado pelo instinto depredador dos Osmanlis: "Não nasce erva onde passou o Turco!" Não nasce erva onde os gafanhotos pousam!

 

O DESERTO.

Desdobrava-se agora o deserto diante dos passos dos viajantes, e quando no dia 25 de Dezembro, medido outro grau do meridiano e fechado o quadragésimo oitavo triângulo, o coronel Everest e os seus companheiros chegaram ao limite setentrional do karrou, não acharam diferença nenhuma entre a região que deixavam e a nova comarca árida e requeimada na qual entravam.

Sofriam de falta de pastos os animais empregados no serviço da caravana. Também faltava a água. Tinham secado nos charcos as últimas gotas. O terreno era mistura de argila e areia imprópria para a vegetação. A água da estação das chuvas, filtrando-se através das camadas arenosas, desaparecia rapidamente.

Aparecia, enfim, uma daquelas regiões áridas, que o Dr. Livingstone atravessou mais de uma vez nas suas aventurosas explorações. Ali terra e atmosfera são tão secas que os objectos de ferro expostos e abandonados ao ar livre não criam ferrugem. Conforme as descrições do sábio inglês, as folhas das árvores estavam flácidas e enrugadas; as das acácias conservavam-se fechadas de dia como costumam de noite; pondo-se um escaravelho no chão, morria em poucos segundos; enfim, ao meio-dia, enterrando-se a três polegadas de profundidade na areia a bola de um termómetro de Fahrenheit, marcava o instrumento cento e trinta e quatro graus! (1)

 

*(1) 56 graus centígrados.

 

Tal foi o aspecto que certas regiões da África austral mostraram ao ilustre viajante; tal também o que apresentou aos astrónomos ingleses a porção de território compreendido entre os limites do karrou e o lago Ngami. Grandes foram os seus trabalhos, extraordinários os seus sofrimentos, mormente por falta de água. Desta sofriam mais que tudo os animais domésticos, mal alimentados pela erva fraca, rara, seca e empoeirada. Aquela extensão do terreno é deserta não só pela aridez, mas ainda porque fogem dali quase todos os seres vivos. As aves retiram-se para além do Zambeze, onde encontram árvores e flores. As feras não entram naquela planície, porque não encontrariam nem água nem alimento. Apenas, nos primeiros dias de Janeiro, avistaram os caçadores da caravana dois ou três casais de uns antílopes que podem passar semanas sem beber; eram, entre outros, alguns órix semelhantes aos que tão grande despeito causaram a Sir John, principalmente caamas de olhos meigos, pelagem cor de cinza com manchas amareladas. Os caamas são animais inofensivos, muito apreciados pela excelente qualidade da sua carne, e que preferem as planícies áridas às campinas das regiões férteis.

Entretanto os astrónomos enfraqueciam visivelmente, andando debaixo de um sol de fogo, respirando aquela atmosfera privada do mínimo átomo de vapor aquoso, continuando os trabalhos geodésicos dia e noite, sem que nenhuma brisa moderasse o calor. Diminuía o seu depósito de água, guardada em barris quentes do sol. Já estavam reduzidos a rações parcas, com o que muito sofriam. Entretanto, era tão ardente o seu zelo, tão exaltado o seu valor, que venciam o cansaço e privações, e não desprezavam nenhuma minúcia do seu enorme e delicado trabalho. A 25 de Janeiro estava calculada a sétima porção do meridiano, compreendendo mais um grau, por meio de nove triângulos. Eram já cinquenta e sete os que tinham construído até então.

Só lhes faltava atravessar uma pequena extensão do deserto, e na opinião de Mokoum chegariam às margens do lago Ngami antes do fim de Fevereiro. O coronel e os seus companheiros europeus confiavam em si e contavam resistir ao cansaço.

 

Mas a escolta da caravana, os bochjesmen assalariados, que o zelo científico não exalta e cujos lucros eram diversos dos interesses da ciência, aqueles indígenas pouco resolvidos a internar-se mais para o norte, esses sofriam mal as agruras da jornada. Atormentava-os principalmente a falta de água. Já tinham sido postas de parte algumas bestas de carga, enfraquecidas pela fome e pela sede. Era de recear que aumentasse muito o número dos animais inutilizados. Cresciam, com o cansaço, os murmúrios e as recriminações dos indígenas. A missão de Mokoum tornava-se difícil e a sua influência diminuía consideràvelmente.

Em breve se tornou patente que a falta de água seria obstáculo invencível, que haveria necessidade de suspender a marcha para o norte e de retrogradar ou torcer o caminho para a direita do meridiano, embora se encontrassem com a expedição russa, a fim de chegar às aldeias estabelecidas em terreno menos árido na direcção do itinerário de David Livingstone.

Por essa altura o bushman deu parte ao coronel Everest de todas estas dificuldades, contra as quais em vão lutava. Os condutores de carros já lhe desobedeciam. Todas as manhãs, ao levantar o acampamento, se manifestavam sintomas de insubordinação por parte de quase todos os indígenas. Na verdade causavam dó aqueles infelizes, prostrados pelo calor e devorados pela sede. Além disso, os bois e os cavalos, mal alimentados de erva curta e seca, privados de água, não queriam andar.

O coronel Everest conhecia perfeitamente a situação. Sendo, porém, áspero para si próprio, também assim era para os outros. Não quis de modo algum suspender os trabalhos da rede trigonométrica, e declarou que marcharia para a frente, ainda que fosse só. Os seus colegas sustentavam a mesma opinião e diziam que seguiriam o seu chefe até onde ele quisesse.

O bushman, à custa de insanos esforços, obteve dos indígenas que o seguissem mais algum tempo. Segundo as suas apreciações, a caravana só distava do lago Ngami cinco a seis dias de marcha. Ali encontrariam os animais pastagens frescas e florestas umbrosas. Os homens achariam para refrescar-se um mar de água doce.

 

Mokoum apresentou todos estes argumentos aos principais bochjesmen. Mostrou-lhes que, para se proverem de água e víveres, o melhor era prosseguirem para o norte. Inclinar para o ocidente era caminhar ao acaso; retroceder seria cair no karrou assolado e cujos ribeiros deviam estar já secos. Enfim, os indígenas convenceram-se e a caravana, quebrada de forças, continuou a marcha para o Ngami.

Felizmente as operações geodésicas corriam rápidas naquela planície infinda. Bastava enterrar alguns postes ou assentar pirâmides. Para poupar tempo, os astrónomos trabalhavam noite e dia. Por meio da luz eléctrica obtinham excelentes ângulos, medidos com o máximo rigor.

Continuavam, pois, os trabalhos com união e método, e a rede geodésica crescia a pouco e pouco.

Em 16 de Fevereiro a caravana julgou por momentos que encontraria finalmente e com abundância a água de que a natureza tão avara se mostrava.

Julgaram avistar no horizonte uma lagoa de uma a duas milhas de diâmetro.

Compreende-se quanto a notícia seria festejada! Toda a caravana marchou velozmente para a lagoa, que brilhava com o reflexo dos raios do Sol.

Chegaram ali pelas cinco horas da tarde. Alguns cavalos, quebrando os aparelhos e fugindo aos condutores, correram a galope para a água tão apetecida. Cheiravam-na, aspiravam-na e mergulhavam nela até ao pescoço.

Mas voltaram quase imediatamente para terra. Não podiam matar a sede nos líquidos lençóis; os bochjesmen, quando atingiram a borda da água, verificaram com dor que não era potável por estar impregnada de sal!

O desengano, ou antes o desespero, foi cruel. Mais que tudo custa uma esperança iludida! Mokoum chegou a cuidar que não poderia levar os indígenas além do lago salgado. Por felicidade para o futuro da expedição, já a caravana estava mais próxima do Ngami ou dos afluentes do Zambeze que de qualquer outro ponto onde pudesse encontrar água potável. Da marcha para a frente dependia, pois, a salvação comum. Dentro de quatro dias, se os trabalhos geodésicos não demorassem, chegariam às margens do Ngami.

Partiram, pois. O coronel Everest, aproveitando as favoráveis disposições do terreno, construiu triângulos de grandes dimensões que exigiam poucas miras e poucas medidas angulares. Como trabalhavam principalmente durante noites transparentes, avistavam muito bem os sinais eléctricos e mediam os ângulos com facilidade e rigor por meio do teodolito ou do círculo repetidor. Mas, forçoso é dizê-lo, aqueles denodados sábios ardendo em zelo científico, aqueles indígenas pungidos pela sede sob um céu de fogo, os próprios animais empregados no serviço da caravana, careciam de chegar sem demora ao Ngami. Nenhum poderia afrontar mais quinze dias de marcha em condições tais.

A 21 de Fevereiro, o solo, até esse momento plano e liso, começou a mudar de aspecto. Tornou-se áspero e acidentado. Pelas dez horas da manhã apareceu no horizonte, a noroeste e à distância de quinze milhas, um monte de quinhentos a seiscentos pés de altura. Era o monte Scorzef.

O bushman observou com atenção o terreno e, passado tempo, gritou, estendendo a mão para o norte:

- Lá está o Ngami!

- O Ngami! O Ngami! - bradaram os indígenas, acompanhando os gritos com ruidosas demonstrações de alegria.

Os bochjesmen queriam marchar para a frente e transpor de corrida as quinze milhas que os separavam do lago. O caçador conteve-os, porém, lembrando-lhes que era conveniente não se separarem naquela região infestada pelos macololos.

Ao mesmo tempo o coronel Everest, querendo apressar a chegada da sua gente ao lago, resolveu ligar directamente a estação onde estava com o Scorzef, por meio de um só triângulo. O cume do monte, terminando por um pico agudíssimo, era bom sinal e prestava-se a uma medida de confiança. Portanto, não era preciso aguardar a noite, nem mandar para a frente nenhum destacamento de marinheiros e indígenas para colocar luz eléctrica no alto do Scorzef.

Instalaram, pois, os instrumentos e mediram de novo naquela estação o ângulo no vértice do último triângulo já obtido ao sul.

 

Mokoum, impaciente por chegar às margens do Ngami, mandou apenas formar um acampamento provisório. Esperava atingir o suspirado lago antes de anoitecer; não desprezou, porém, nenhuma das cautelas habituais e mandou explorar os arredores por alguns cavaleiros. À direita e à esquerda encontravam-se matagais que convinha examinar. Entretanto, desde a caçada dos órix que não aparecia nenhum vestígio de macololos e, naturalmente, fora abandonada a espionagem da caravana. Mas o desconfiado bushman queria estar precavido para fazer face a qualquer eventualidade.

Enquanto o caçador velava, tratavam os astrónomos de formar o novo triângulo. Segundo os cálculos de William Emery, esse triângulo havia de conduzi-los muito próximo do vigésimo paralelo, onde se tinha resolvido que terminasse o arco africano. Com poucos trabalhos mais além do Ngami ficaria medido o oitavo troço do meridiano. Verificar-se-iam depois os resultados obtidos pela medição de outra base, e estaria terminada a grande empresa. Compreende-se o ardor daqueles sábios audazes, que entreviam já o fim da sua obra.

Entretanto, que teriam feito os russos? Decorridos seis meses depois da separação, onde estariam Mateus Strux, Nicolau Palander e Miguel Zorn? Teriam afrontado tão dolorosas privações como os seus colegas ingleses? Sofreriam também faltas de água e os calores sufocantes daqueles climas? Seria o terreno menos árido na sua marcha, que se aproximava sensivelmente do itinerário de David Livingstone? Talvez, porque a partir de Kolobeng havia aldeias e povoados, como Schokuané, Schoschong e outros pouco arredados à direita do meridiano, onde a caravana russa facilmente poderia abastecer-se. Mas não seria para temer que naquelas regiões menos desertas e, portanto, mais percorridas pelas tribos salteadoras, a comitiva de Mateus Strux tivesse sofrido algum assalto? Depois que os macololos pareciam ter abandonado a fracção inglesa da expedição, era de recear que tivessem seguido os vestígios da russa.

O coronel Everest, sempre preocupado pelos seus trabalhos, não pensava ou não queria pensar em coisas tais; porém, Sir John Murray e William Emery a miúdo falavam a respeito do destino dos seus ex-colegas. Tornariam a vê-los? Seriam os russos felizes no seu trabalho? As duas expedições, que tinham continuado simultânea mas separadamente a construção da rede trigonométrica, obteriam o mesmo resultado matemático, isto é, a mesma grandeza para o arco de um grau naquela parte da África? Depois, William Emery pensava no companheiro, cuja ausência tanto o magoava, e estava certo de que Miguel Zorn não o esqueceria também.

Começara, entretanto, a medida das distâncias angulares. Para obter o ângulo na estação em que estavam, era mister apontar a duas miras, das quais uma era o cume cónico do Scorzef. Para segunda mira, à esquerda do meridiano, foi escolhido um outeiro que se situava a quatro milhas de distância. A sua direcção foi dada por uma das lunetas do círculo repetidor.

O Scorzef, como dissemos, ficava bastante longínquo. Mas os astrónomos não tinham por onde escolher, visto ser aquele monte o único ponto culminante da região. Nenhuma outra elevação se avistava ao norte ou ao ocidente, nem além do lago Ngami, ainda não visível. Este afastamento do Scorzef obrigava os astrónomos a caminhar excessivamente para a direita do meridiano; tendo, porém, pensado maduramente, verificaram não haver outro recurso. Apontaram, pois, com extremo cuidado a segunda luneta do círculo para aquele monte isolado, e acharam assim a distância angular entre o Scorzef e o outeiro, isto é, o ângulo na estação. Para alcançar maior aproximação fez o coronel Everest vinte repetições sucessivas, modificando a posição das lunetas no círculo. Desta forma dividiu por vinte os erros possíveis das leituras, e obteve a medida angular com exactidão quase absoluta. Todas estas observações, a despeito da impaciência dos indígenas, foram feitas pelo impassível coronel Everest com o mesmo cuidado que empregaria no Observatório de Cambridge. Assim passou todo o dia 21 de Fevereiro e só ao entardecer, pelas cinco horas e meia, quando a leitura dos limbos graduados já era difícil, terminou o coronel as suas observações.

- Às suas ordens, Mokoum - disse ele então ao bushman.

 

- Já não é cedo, coronel - respondeu Mokoum -; sinto que não pudesse acabar o seu trabalho antes da noite, porque transporíamos o acampamento para as margens do lago.

- E quem nos impede de partirmos já? - perguntou o coronel Everest. - Não pode assustar-nos uma jornada de quinze milhas, embora a noite seja escura. O caminho é direito pela planície fora e não há risco de nos perdermos.

- Sim!... É verdade!... - volveu o bushman, pensativo -; vamos tentar a jornada, embora eu preferisse caminhar de dia nas proximidades do Ngami! A nossa gente anseia por marchar para a frente e chegar à água doce do lago. Vamos lá, coronel.

- Quando quiser, Mokoum! - respondeu o coronel Everest.

Sendo esta resolução unanimemente aprovada, os negros num momento jungiram os bois aos carros, enquanto os europeus encaixotavam os instrumentos. Às sete horas os astrónomos montaram a cavalo, o bushman deu o sinal da partida e toda a caravana, aguilhoada pela sede, marchou direita ao lago Ngami.

O bushman, obedecendo aos instintos de vagabundo, pediu aos europeus que levassem as armas e munições. À sua parte não largou a carabina que lhe dera Sir John e não lhe faltavam munições na cartucheira.

Caminharam. A noite estava escuríssima. O céu desaparecia, velado por uma densa camada de nuvens. Entretanto a atmosfera, nas camadas próximas do solo, mostrava-se limpa de brumas. Mokoum, que possuía vista agudíssima, volteava na frente e nos flancos da caravana. Algumas palavras que ele dissera a Sir John, provavam que não julgava o terreno limpo. Por isso o inglês ia pronto para tudo.

A caravana andou durante três horas para o norte, mas ia devagar, devido a estar abatida e cansada. Muitas vezes era mister deter-se para aguardar os retardatários. Andavam apenas três milhas por hora e, por isso, às dez horas da noite ainda se encontravam a seis milhas das margens do Ngami. Os animais ofegavam e respiravam a custo naquela noite abafadiça, no seio de uma atmosfera tão seca, que o higrómetro mais sensível não encontraria vestígios de humidade.

Apesar de repetidas instâncias do bushman, a caravana deixou de conservar-se unida. Os homens e os animais caminhavam em comprida fila. Caíam pelo caminho os bois, que sucumbiam ao cansaço. Arrastavam-se a custo cavaleiros desmontados, que a mínima quadrilha de indígenas facilmente capturaria. Por isso Mokoum, cada vez mais inquieto, não poupava gestos nem palavras, ia deste para aquele, e procurava reconstituir a caravana, mas não o conseguia, e até, sem ele o saber, lhe faltavam já alguns homens.

Pelas onze horas da noite os carros que iam na frente distavam só três milhas do Scorzef. Através da escuridão aparecia distintamente aquele monte isolado e erguia-se na sombra como enorme pirâmide. A noite, aumentando-lhe as dimensões reais, dobrava a sua altitude.

Se Mokoum não estivesse iludido, devia o Ngami aparecer por detrás do Scorzef. Assim era mister costear o monte para chegar pelo caminho mais curto à enorme toalha de água doce.

O bushman colocou-se à frente da caravana em companhia dos três astrónomos. Ia encaminhar-se para a direita, quando o detiveram de repente detonações distintas, embora afastadas.

Também os ingleses sustiveram os cavalos. Escutavam com ansiedade fácil de explicar. Numa região em que os indígenas empregam só lanças e flechas, as detonações de armas de fogo eram para surpreender e assustar.

- Que é isto? - perguntou o coronel.

- São tiros! - respondeu Sir John.

- Tiros! - exclamou o coronel -, em que direcção? Esta pergunta era dirigida ao bushman, que respondeu:

- Os tiros são disparados no cume do Scorzef. Vejam as sombras iluminarem-se por cima! Ali combatem! São naturalmente macololos atacando algum grupo de europeus.

- Europeus! - exclamou William Emery.

- Decerto, senhor William - volveu Mokoum. - Aquelas detonações estrondosas são produzidas por armas europeias, e, direi mais, por armas modernas. -Os europeus serão porventura...? Mas o coronel, interrompendo-o, exclamou: - Sejam quem forem aqueles europeus, devemos correr em seu auxílio.

- Sim! Sim! Vamos! Vamos! - repetiu William Emery, cujo coração se apertava dolorosamente.

Antes de marchar para a montanha, quis o bushman reunir de novo a sua gente, a qual podia ser cercada por um bando de salteadores. Mas quando voltou para trás, a caravana estava dispersa, os cavalos soltos, os bois abandonados e algumas sombras, errantes na planície, fugiam para o sul.

- Cobardes! - exclamou Mokoum. - Sede, cansaço, tudo esquecem para fugirem!...

Depois, voltando-se para os sábios e para os valentes marinheiros, bradou-lhes:

- Vamos nós para a frente e depressa!

Os europeus e o caçador correram para o norte, tirando dos pobres cavalos o que lhes restava ainda de força e velocidade. Passados vinte minutos ouviram distintamente o grito de guerra dos macololos. Era impossível avaliar quantos seriam. Os bandidos indígenas assaltavam evidentemente o Scorzef, cujo cume aparecia coroado de fogo. Já os europeus entreviam cachos de homens trepando pelas íngremes ladeiras.

Em breve chegaram o coronel Everest e os seus companheiros à retaguarda da guerrilha assaltante. Largaram então os cavalos semimortos, soaram um hurra formidável que os sitiados deviam ouvir e deram uma descarga na massa compacta dos indígenas. Os macololos, ouvindo as detonações repetidas de armas de tiro rápido, julgaram que os atacava uma força numerosa. Recuaram surpreendidos, sem fazerem uso das flechas e das azagaias.

Sem perda de tempo, o coronel Everest, Sir John Murray, William Emery, o bushman e os marinheiros, avançando e atirando sem parar, caíram sobre a quadrilha de ladrões. Já estavam prostrados alguns quinze cadáveres.

Os macololos dividiram-se, abrindo caminho.

 

Os europeus correram pela aberta e, derrubando os indígenas mais próximos, subiram recuando as rampas do monte.

Em dez minutos chegaram ao cume perdido na sombra, porque os sitiados tinham suspendido o fogo com receio de ferirem os que tão inesperadamente vinham socorrê-los.

Os sitiados eram os russos. Lá estavam todos, Mateus Strux, Nicolau Palander, Miguel Zorn e os seus cinco marinheiros. Dos indígenas que compunham a caravana, só ficara o dedicado foreloper. Os cobardes bochjesmen também os tinham abandonado na ocasião do perigo.

Mateus Strux, no momento em que apareceu o coronel Everest, saltou do coroamento de um muro que cercava o cume do Scorzef.

- Sois vós, senhores ingleses? - exclamou o astrónomo de Poulkowa.

- Somos nós, senhores russos! - respondeu serenamente o coronel. - Mas neste lugar não há russos, nem ingleses! Há só europeus, unidos para se defenderem!

 

TRIANGULAR OU MORRER.

As palavras do coronel Everest respondeu um viva entusiástico. Em face dos macololos, perante o perigo que os ameaçava, os russos e os ingleses, esquecendo a guerra internacional, deviam unir-se para a defesa comum. A situação dominava tudo, e, com efeito, a comissão anglo-russa reconstituiu-se em frente do inimigo, mais forte que antes. William Emery e Miguel Zorn abraçaram-se com ardor. Os outros europeus selaram com apertos de mão a sua nova aliança.

A primeira coisa que os ingleses fizeram foi beber água, que os russos tiravam abundantemente do lago. Em seguida, os europeus abrigaram-se na casamata do fortim abandonado, existente no cume do Scorzef. Entretanto os marinheiros vigiavam os macololos, que lhes concediam alguns momentos de repouso.

Primeiramente, porque estavam os russos naquele monte, situado muito à esquerda do seu meridiano? Pela mesma razão que levara os ingleses para a direita. O Scorzef, assente a meio caminho entre os dois arcos, era a única eminência daquela região que pudesse servir de estação nas margens do Ngami. Naturalmente as duas expedições rivais, operando na mesma planície, tinham ambas procurado o ponto que às suas observações convinha. Os dois meridianos, russo e inglês, encontravam ambos o lago em pontos distantes um do outro. Daí provinha a necessidade de ligar geodesicamente a margem meridional do Ngami à setentrional.

 

Mateus Strux deu depois alguns pormenores acerca dos trabalhos que fizera. A partir do Kolobeng continuara a triangulação sem incidentes. O meridiano que a sorte concedera aos russos atravessava território fértil, levemente acidentado e que se prestava com facilidade ao estabelecimento da rede trigonométrica. Os astrónomos russos haviam sofrido, como os ingleses, os calores excessivos próprios do clima, mas não lhes faltara nunca água. Abundavam rios naquela região e mantinham humidade salutífera. Os bois e os cavalos tinham por assim dizer passeado numa pastagem imensa, cortando prados verdejantes, alternados aqui e além por florestas e matas. Conservando durante a noite fogueiras acesas em volta do acampamento, sempre fora fácil afastar as feras. Os indígenas eram das mesmas tribos sedentárias das aldeias e casais onde o Dr. David Livingstone encontrara quase sempre benévola hospedagem. Durante esta jornada nunca os bochjesmen tiveram motivo de queixa. A 20 de Fevereiro chegaram os russos ao Scorzef e já ali estavam havia trinta e seis horas quando apareceram na planície trezentos a quatrocentos macololos. Imediatamente desertaram os bochjesmen assustados, deixando os russos entregues a si próprios. Os macololos roubaram os carros reunidos na falda do monte; felizmente já os instrumentos tinham sido levados para o fortim. Além disso, conservava-se intacta a lancha a vapor, porque os russos haviam tido tempo de armá-la antes da chegada dos salteadores. Achava-se fundeada numa enseadazinha do Ngami. Daquele lado os flancos do monte caíam a pique na margem direita do lago, e tornavam-na inacessível. Ao sul, o Scorzef descia para a planície em rampas não muito ásperas, de modo que os macololos, no assalto que tentaram, talvez tomassem o fortim se não fora a chegada providencial dos ingleses.

Tal foi em suma a narração de Mateus Strux. O coronel Everest referiu-lhes os incidentes da sua viagem para o norte, os sofrimentos e trabalhos da expedição, a revolta dos bochjesmen, as dificuldades e perigos que fora necessário afrontar. De tudo resultava terem os russos sido mais favorecidos que os ingleses depois da separação em Kolobeng.

 

A noite de 21 para 22 de Fevereiro passou sem novidade. Junto das muralhas do fortim tinham ficado de sentinela o bushman e os marinheiros. Os macololos não intentaram novo assalto. As fogueiras acesas no sopé do monte mostravam que os bandidos acampavam ali e não punham de parte os seus projectos.

No dia seguinte, 22 de Fevereiro, ao raiar da aurora, saíram os europeus da casamata e observaram a planície. Os primeiros alvores matutinos iluminaram quase instantaneamente aquele extremo território até aos confins do horizonte. Do lado do sul estendia-se o deserto amarelento, nu, árido. Ao pé do monte encurvava-se o acampamento dos macololos, no qual formigavam trezentos ou quatrocentos indivíduos. Ainda conservavam fogueiras acesas. Sobre os carvões ardentes assavam pedaços de carne. Era evidente que os macololos não queriam abandonar o cerco, embora já estivesse em seu poder tudo quanto a caravana possuía de precioso: material, carros, cavalos, bois, mantimentos. Não lhes bastava tudo isso, e certamente queriam assassinar os europeus e tirar-lhes as armas, de que o coronel e os seus companheiros tinham feito uso tão terrível.

Os sábios russos e ingleses, depois de observarem o acampamento macololo, conversaram largamente com o bushman. Urgia assentar nalguma resolução definitiva. Mas esta devia depender de várias circunstâncias, e primeiro que tudo convinha determinar a posição exacta do Scorzef.

Os astrónomos já sabiam que o monte dominava ao sul as imensas planícies que terminavam no karrou. A oriente e ocidente prolongava-se o deserto no sentido do seu menor diâmetro. Para ocidente apontavam no horizonte os contornos indistintos das colinas que orlam o reino fértil dos macololos, cuja capital, Maketo, se situa a cem milhas a nordeste do Ngami.

Para norte dominava o Scorzef uma região totalmente diferente. Que contraste com as áridas campinas do sull: Água, árvores, pastagens, todo aquele veio da terra que a humidade persistente alimenta! O Ngami desdobrava de oriente para ocidente, na extensão de cem milhas pelo menos, as límpidas águas, animadas então pelos raios do Sol nascente. As maiores dimensões do lago eram no sentido dos paralelos terrestres. De sul a norte não mediria mais de trinta a quarenta milhas. Para além dele subia o terreno com inclinação suave, variadíssimo de aspectos, entrecortado de bosques, pastagens e ribeiros afluentes do Liambia e do Zambeze. No fundo, sempre ao norte, mas à distância de oitenta milhas pelo menos, uma cadeia de montanhas baixas encaixilhava este panorama com os seus recortes pitorescos. Formosa região, qual oásis no meio dos desertos! Respirava vida o solo, admiravelmente regado e sempre revivificado pela rede de veias líquidas. Era o Zambeze, o grande rio, que pelos seus tributários mantinha aquela vegetação prodigiosa! Imensa artéria que está para a África austral como o Danúbio para a Europa, ou o Amazonas para a América do Sul!

Tal era o panorama que se desenrolava em face dos europeus. O Scorzef erguia-se sob a própria riba do lago e, conforme dissera Mateus Strux, os flancos do norte caíam aprumados nas águas do Ngami. Não há, porém, pendores tão ásperos que marinheiros não subam e desçam, de modo que, por um apertado carreiro que corria de rocha em rocha, tinham chegado ao nível do lago, no sítio onde a lancha a vapor ancorara. Não existia, pois, dificuldade em colher abastecimento de água, de modo que a fraca guarnição do fortim abandonado poderia sustentar-se enquanto não faltassem víveres.

Mas porque existia aquele fortim no deserto, empoleirado no cume de um monte? Interrogaram Mokoum, que percorrera aquela comarca quando fora guia de David Livingstone. Respondeu prontamente.

Os arredores de Ngami eram noutro tempo visitados a miúdo pelos traficantes de marfim ou de ébano. O marfim é dado pelos dentes de elefante e de rinoceronte. O ébano é a carne humana, a carne viva em que traficavam os corretores da escravatura. Toda a região do Zambeze é infestada ainda pelos desprezíveis estrangeiros que comerciam em escravos. Das guerras, das razias e dos latrocínios no interior resultam muitos prisioneiros, que são vendidos como escravos. Ora, aquela margem do Ngami era lugar de trânsito para os negreiros vindos do ocidente.

 

O Scorzef fora outrora centro para acamparem as caravanas. Ali descansavam antes de empreenderem a descida do Zambeze até à sua foz. Os traficantes fortificaram, portanto, aquela posição para se defenderem a si e aos seus escravos contra as depredações dos salteadores, pois não era raro que os prisioneiros indígenas fossem retomados pelos próprios que os tinham vendido e que os tornavam a vender.

Tal era a origem daquele fortim, mas na época da expedição científica caía em ruínas. Mudara o itinerário das caravanas. Já não percorriam as margens do Ngami, já o Scorzef não podia defendê-las e as muralhas caíam pedra por pedra. Do fortim restava um recinto em forma de sector, cujo arco olhava para o sul e a corda para o norte. No centro existia ainda um reduto casamatado, com seteiras, tendo em cima uma torre de madeira, cujo perfil, reduzido pela distância, servia de mira às lunetas do coronel Everest. Ainda que estivesse muito arruinado, o fortim dava abrigo seguro aos europeus. Por detrás dos muros formados de grossas pedras de grés, dispondo de armas aperfeiçoadas, podiam resistir a um exército de macololos, uma vez que não lhes faltassem víveres e munições. Até talvez pudessem concluir dali a triangulação.

O coronel e os seus companheiros possuíam munições de sobejo, porque o cofre que as continha fora posto no carro que servia ao transporte da lancha a vapor e, como sabemos, aquele carro escapara à rapacidade dos indígenas. Quanto a víveres, o caso era diferente. Aí estava a dificuldade da situação. Os carros de mantimentos tinham caído em poder dos macololos. Não havia provisões para alimentar durante dez dias os dezoito homens reunidos no fortim, isto é, três astrónomos ingleses, três russos, dez marinheiros da "Queen and Tzar", o bushman e o foreloper.

Este facto foi verificado pelo inventário feito pelo coronel Everest e por Mateus Strux.

Depois de concluírem o inventário e de almoçarem frugalmente, os astrónomos e o bushman reuniram-se no reduto central enquanto os marinheiros guardavam o forte. Discutiu-se a circunstância grave da penúria de víveres, e não aparecia remédio para este mal certo e próximo, quando o caçador fez a seguinte observação:

- Inquietam-se com a falta de mantimentos e não vejo porque receiam. Temos víveres só para dois dias! Mas quem nos obriga a demorar-nos dois dias aqui? Não podemos partir amanhã, hoje até? Quem nos impede? Os macololos? Mas, que eu saiba, não andam nas águas do Ngami; com a lancha a vapor em poucas horas chegaremos à margem setentrional do lago!

Ouvindo esta proposta, olharam os sábios uns para os outros e voltaram-se depois para o bushman. Parecia incrível não lhes ter ocorrido aquela ideia tão simples.

E não ocorrera decerto! Nem podia ocorrer àqueles audaciosos, que, nesta memorável expedição, deviam até ao fim mostrar-se heróis da ciência.

Foi Sir John Murray quem tomou a palavra para responder ao bushman.

- Mas, meu caro Mokoum, ainda não terminámos o nosso trabalho.

- Qual trabalho?

-A medida do meridiano!

- Pensa que os macololos se importam com o meridiano? - respondeu o caçador.

- É possível que não lhes importe a eles - replicou Sir John Murray -, mas importa-nos a nós, e não deixaremos esta grande obra incompleta. Não é assim, colegas?

- Também o pensamos - acudiu o coronel Everest, que, falando em nome de todos, interpretou fielmente a opinião unânime. - Não abandonaremos a medida do meridiano! Enquanto for vivo algum de nós, enquanto esse puder observar com uma luneta, continuará a triangulação! Observemos, se for preciso, com a espingarda numa das mãos e o instrumento na outra, mas não desertaremos do nosso posto.

- Viva a Inglaterra! Viva a Rússia! - bradaram os valentes sábios, que acima de todos os perigos punham os interesses da ciência.

O bushman olhou os companheiros e não respondeu. Tinha entendido.

Estavam todos de acordo. Os trabalhos geodésicos continuariam a despeito de tudo.

 

Mas não os tornariam impossíveis as dificuldades locais, o obstáculo do Ngami, a escolha de outra estação?

Apresentaram a questão a Mateus Strux. O astrónomo russo, que chegara ao Scorzef dois dias antes, devia estar habilitado para responder.

- O trabalho será difícil, minucioso, exigirá paciência e zelo, mas não é impraticável. Que precisamos? Ligar geodesicamente o Scorzef com alguma estação ao norte do lago? Existirá estação conveniente? Existe e até eu já escolhera no horizonte um pico que servisse de mira. Fica a noroeste do lago, de modo que do lado correspondente do triângulo cortará o Ngami segundo uma linha oblíqua.

- Bem - observou o coronel Everest-, se existe mira conveniente, que dificuldade temos?

- A dificuldade consiste na distância entre o Scorzef e esse pico.

- Que distância é? - perguntou o coronel Everest. - Cento e vinte milhas pelo menos.

- Não é demasiada para o alcance das nossas lunetas.

- Mas teremos necessidade de colocar um sinal de fogo no alto do pico.

- Colocar-se-á.

- Mas será preciso lá ir?

- Iremos.

- Entretanto, defender-nos-emos dos macololos! - acrescentou o bushman.

- Defender-nos-emos.

- Senhores - concluiu o bushman -, estou às suas ordens e farei o que determinarem.

Com estas palavras do dedicado africano terminou a conferência em que se decidira a sorte da operação científica. Os sábios, todos concordes no mesmo pensamento e decididos a sacrificar-se quando fosse preciso, saíram da casamata para observar o território ao norte do lago.

Mateus Strux indicou o pico que escolhera. Era o monte Volquiria, tão distante que custava a distingui-lo. Levanta-se a grande altura e, apesar da distância, não seria difícil ver, no foco das lunetas armadas com boas oculares, um brilhante farol eléctrico. Havia, porém, necessidade de levar esse farol ao cume do monte, a cem milhas de distância.

 

Tal era a dificuldade grandíssima, mas não invencível. Por um lado o ângulo que formava o Scorzef com o Volquiria, pelo outro o ângulo do Scorzef com a estação precedente completariam provavelmente o último triângulo necessário para a medida do meridiano, visto o Volquiria pouco distar do vigésimo paralelo. É fácil de ver a importância desta operação e, portanto, qual seria a vontade dos astrónomos de a levarem a cabo.

Primeiro que tudo era preciso colocar o revérbero eléctrico, fazendo jornada de um cento de milhas por terras desconhecidas. Ofereceram-se Miguel Zorn e William Emery. Foram aceites. O foreloper consentiu em acompanhá-los e logo todos três se prepararam para partir.

Empregariam a lancha a vapor? Não. Queriam deixá-la à disposição dos colegas, que talvez tivessem de retirar-se rapidamente depois de terminada a observação, a fim de escaparem com facilidade à perseguição dos macololos. Para atravessar o Ngami bastava construir uma canoa de casca de bétula, daquelas que os indígenas fazem em poucas horas e que são leves e resistentes. Mokoum e o foreloper desceram para a margem do lago, cortaram a árvore que lhes pareceu melhor e em breve construíram o barco.

Às oito horas da noite estavam embarcados os instrumentos, o aparelho eléctrico, alguns víveres, armas e munições. Ajustou-se que os astrónomos se encontrariam na margem setentrional do Ngami, numa enseadazinha que o bushman e o foreloper conheciam. Resolveram que, logo depois de aparecer o sinal do Volquiria e de tomadas as distâncias angulares, o coronel Everest acenderia um sinal de fogo no cume do Scorzef, para Miguel Zorn e William Emery determinarem a posição deste monte.

Miguel Zorn e William Emery despediram-se dos colegas, saíram do fortim e desceram para a canoa. Já o foreloper e dois marinheiros, um russo, outro inglês, os tinham precedido.

A noite estava escuríssima. Largaram a amarra e a frágil embarcação, impelida pelos remos, navegou silenciosamente sobre as águas sombrias do Ngami.

 

OITO DIAS NO CUME DO MONTE SCORZEF.

Não foi sem aperto do coração que os astrónomos viram partir os jovens colegas. Que trabalhos, que perigos não teriam que afrontar os valentes rapazes, atravessando cem milhas de território inexplorado! Contudo, o bushman sossegou os seus amigos louvando a perícia e o valor do foreloper. Também parecia provável que os macololos, entretidos em volta do Scorzef, não percorriam a região ao norte do lago. Enfim, e não se iludia, Mokoum julgava o coronel Everest e os seus companheiros mais arriscados no fortim que os dois jovens exploradores ao norte de Ngami.

Os marinheiros e o bushman fizeram quartos de sentinela durante a noite. A escuridão podia encobrir algum projecto hostil dos macololos. Porém, estas "serpentes", assim lhes chamava o caçador, não se atreveram a assaltar o Scorzef. Talvez esperassem reforços para invadirem a montanha simultaneamente por todos os lados e aniquilarem, pelo número, os meios de resistência dos sitiados.

iNão se enganou Mokoum nas suas conjecturas. Ao nascer do Sol verificou o coronel Everest que aumentara muito o número dos macololos. O seu acampamento, disposto com habilidade, envolvia a base do Scorzef e fechava o passo a qualquer tentativa de fuga pela planície. Felizmente eles não podiam guardar as águas do Ngami e, em caso de apuro, sempre seria possível a retirada pelo lago, salvo circunstâncias imprevistas.

 

Porém, os sitiados não pensavam em fugir. Ocupavam um posto científico, um posto de honra, donde não queriam desertar. A este respeito havia completo acordo entre todos. Não se manifestavam vestígios das rivalidades pessoais que dantes existiam entre o coronel Everest e Mateus Strux. Nunca se falava também na guerra entre a Rússia e a Inglaterra. Nem sequer aludiam a esse estado violento. Ambos os sábios procediam de acordo; ambos os sábios queriam colher resultados igualmente úteis para as duas nações e concluir a sua empresa científica.

Enquanto esperavam a aparição do farol eléctrico no pico do Volquiria, cuidaram os dois astrónomos de concluir a medida do triângulo precedente. Este trabalho, que consistia em apontar com as duas lunetas para as duas últimas estações do itinerário inglês, não encontrou dificuldade, e Nicolau Palander escriturou o resultado. Alcançada esta medida, resolveram que nas noites seguintes fariam muitas observações de estrelas para alcançarem com exactidão a latitude do Scorzef.

Antes de qualquer outra havia que resolver uma questão importante, a respeito da qual era necessário ouvir a opinião de Mokoum. Qual era o mínimo do tempo que Miguel Zorn e William Emery poderiam gastar na jornada até à cordilheira que avultava ao norte do Scorzef, e cujo pico principal havia de servir de vértice ao último triângulo?

O bushman calculou que a jornada não duraria menos de cinco dias. A distância andava por cem milhas. Os astrónomos e os seus companheiros iam a pé, e, atendendo às dificuldades próprias de um território cortado de ribeiros, cinco dias ainda na verdade era pouco.

Adoptou-se, pois, o máximo de seis dias, e com esta base se regulou o consumo dos víveres.

Era pobríssimo o depósito deles, principalmente depois de se ter cedido certa porção aos expedicionários para se manterem, enquanto não pudessem recorrer à caça. Os víveres que ficavam no fortim apenas chegariam para cada homem ter ração completa durante dois dias. Consistiam em poucos arráteis de bolacha, carne seca e pemmican. O coronel Everest, de acordo com os colegas, resolveu que a ração quotidiana ficasse reduzida ao terço.

 

Deste modo poderia a guarnição esperar seis dias que aparecesse no horizonte a almejada luz. Os quatro sábios, os oito marinheiros e o bushman, treze pessoas ao todo, sofreriam com tão escassa alimentação, mas não eram homens que tais sofrimentos assustassem.

- Além disso não é proibido caçar! - disse Sir John Murray ao bushman.

Este abanou a cabeça com ar duvidoso. Parecia-lhe difícil haver caça num monte isolado. Não era esta, porém, razão para deixar a espingarda em repouso, e, por isso, enquanto os colegas tratavam de calcular os elementos consignados no duplo registo de Nicolau Palander, Sir John saiu logo do fortim em companhia de Mokoum para reconhecer o Scorzef.

Os macololos, sossegadamente acampados no sopé do monte, não pareciam resolvidos a tentar novo assalto. Talvez quisessem tomar os sitiados pela fome!

Rapidamente se fez o inventário do Scorzef. O local onde fora construído o fortim não teria mais de um quarto de milha no sentido da maior dimensão. O solo, coberto de erva bastante densa misturada com pedras, era composto de algumas moitazinhas de espadanas. O resto da flora da montanha constava de urzes vermelhas, de próteas com folhas prateadas e de ericáceas estendidas em longos festões. Nos flancos, mas em pendores ásperos formados pelas saliências dos rochedos, vegetavam arbustos espinhosos, de dez pés de altura, dando cachos de flores com cheiro de jasmim, e cujo nome o bushman não sabia. Passada uma hora de observação ainda Sir John não descobrira exemplar nenhum da fauna local. Apenas se levantaram das moitas algumas aves de asas escuras e bico encarnado, que ao primeiro tiro fugiram para não voltarem mais. Portanto, não havia esperança de que a caça pudesse reabastecer a guarnição.

- Sempre poderemos pescar no lago - lembrou Sir John, detendo-se na vertente setentrional do Scorzef e contemplando as magníficas águas do Ngami.

- Pescar sem rede e sem linha - objectou o bushman -, é querer agarrar pássaros no voo. Não desesperemos, porém. Milorde sabe que o acaso nos tem sido propício até agora; creio que nos favorecerá ainda uma vez mais.

- O acaso! - replicou Sir John Murray. - Mas o acaso, quando a Deus apraz encaminhá-lo, é o mais fiel servidor do género humano! Não há gente mais útil, nem mordomo mais atilado! O acaso fez-nos encontrar os nossos amigos russos, trouxe-os pela mão ao ponto para que nos dirigíamos também, levar-nos-á a todos brandamente até onde queremos ir.

- E também nos dará que comer? - perguntou o bushman.

- Decerto, amigo Mokoum, e não fará mais que a sua obrigação.

As palavras de Sir John eram na verdade consoladoras. O bushman não quis responder-lhe que o acaso é um servidor com exigências de ser servido pelos seus amos. Consigo mesmo protestou auxiliá-lo quando conviesse.

No dia 25 de Fevereiro não houve mudança na posição relativa de sitiadores e sitiados. Os macololos permaneciam no acampamento. Nos pontos mais próximos do Scorzef, onde as infiltrações da água conservavam bamburrais abundantes, apascentavam rebanhos de bois e carneiros. Os carros saqueados tinham sido transportados para o acampamento. Mulheres e crianças, que se haviam reunido à tribo nómada, ocupavam-se nos misteres caseiros. De tempos a tempos, algum chefe, notável pela riqueza das peles que trajava, subia as rampas do monte e examinava os carreiros acessíveis que se dirigiam para o cume. Mas as balas das carabinas raiadas obrigavam-no logo a retirar para a planície. Os macololos respondiam então à detonação com o seu grito de guerra, atiravam flechas inofensivas, brandiam as azagaias e depois recaía tudo no sossego primitivo.

Contudo, no dia 26 de Fevereiro, fizeram os indígenas uma tentativa mais séria; uns cinquenta escalaram o monte por três lados ao mesmo tempo. Toda a guarnição saiu para fora do fortim e se postou junto da muralha. As armas europeias, de tiro rápido, fizeram grande estrago nas fileiras dos macololos.

 

Entretanto, apesar da intensidade do fogo, tornou-se patente que os sitiados podiam sucumbir ao número. Se o assalto fosse dado simultaneamente por centenas de indígenas, seria difícil resistir-lhe por todos os lados. Sir John Murray lembrou então que conviria defender a frente do fortim por meio da metralhadora, que estava a bordo da lancha a vapor. A dificuldade consistia em içar a pesada máquina por cima dos rochedos aprumados, muito árduos de subir. Porém, os marinheiros da "Queen and Tzar" mostraram tal destreza, tal agilidade, tal audácia até, que no mesmo dia 26 ficou a metralhadora assestada numa canhoneira do recinto fortificado. Com os vinte e cinco canos dispostos em forma de leque, crivava de metralha toda a frente do fortim. Em breve haviam os indígenas de travar conhecimento com aquele instrumento mortífero, que as nações civilizadas adoptaram vinte anos depois para o seu material de guerra.

Durante a sua obrigada inacção no alto do Scorzef, todas as noites tinham os astrónomos tomado alturas de estrelas. O céu mantinha-se puríssimo, a atmosfera seca, e, portanto, as observações saíam óptimas. Verificaram ser a latitude de Scorzef de 19 graus 37 minutos 18 segundos, 265, valor aproximado até às milésimas, isto é, não susceptível de erro maior que um metro. Seria impossível levar mais longe a exactidão. Este resultado manifestou, como os astrónomos previam, que só distavam meio grau do extremo setentrional do arco a medir, e que, portanto, o triângulo com o vértice no pico do Volquiria seria o último da triangulação.

Durante a noite de 26 para 27 de Fevereiro não deram os macololos outro assalto. O dia 27 pareceu infindo à fraca guarnição. Como o foreloper e os seus companheiros tinham partido havia cinco dias, era possível, favorecendo-os as circunstâncias, que nesse mesmo dia chegassem ao cume do Volquiria. Portanto era necessário, durante a noite seguinte, observar cuidadosamente o horizonte, porque poderia aparecer o farol. O coronel Everest e Mateus Strux haviam já apontado o instrumento para o pico, de modo que este caísse todo no campo óptico. Esta precaução evitava busca, que sem pontos de referência seria dificílima em noite escura.

 

Se aparecesse luz no cimo do Volquiria, logo seria vista e se mediria o ângulo.

Todo aquele dia andou Sir John batendo as mais insignificantes moitas. Não descobriu nenhum animal pouco ou muito comestível. As próprias aves, cujo sossego fora interrompido, procuravam nas árvores das margens do Ngami asilo mais seguro. Muito se desgostava com isto o valente caçador, porque não caçava então por divertimento, mas trabalhava pro domo sua, se o vocábulo latino pode aplicar-se ao ventre de um inglês. O pobre Sir John, cujo robusto estômago não se contentava com um terço da ração, tinha fome deveras. Os seus colegas sofriam mais facilmente o jejum, ou porque tivessem o estômago menos exigente, ou porque, seguindo o exemplo de Palander, pudessem substituir o tradicional bifesteque por uma ou duas equações do segundo grau. Os marinheiros e o bushman sentiam fome como Sir John. Ora o magro depósito de víveres estava a findar. Decorresse mais um dia e acabar-se-iam os últimos alimentos; se a expedição do foreloper encontrasse obstáculos de qualquer natureza na marcha, depressa sucumbiria a guarnição do forte.

Passou-se em observações toda a noite de 27 para 28. A treva tranquila e pura favorecia muito os astrónomos. Mas o horizonte permaneceu imerso em densas sombras. Nem uma luz as rasgou. Nada apareceu na objectiva da luneta.

Entretanto apenas fora atingido o mínimo do prazo concedido à expedição de Miguel Zorn e William Emery. Os colegas deviam, pois, revestir-se de paciência e esperar.

No dia 28 a guarnição do Scorzef comeu o último pedaço de bolacha e de carne. Não enfraquecia ainda a esperança dos valorosos sábios, e, embora devessem alimentar-se de erva, não deixariam o posto sem estar concluída a sua obra.

Ainda não deu resultado a noite de 28 de Fevereiro para 1 de Março. Uma ou duas vezes julgaram os astrónomos ver o clarão do farol. Verificando, porém, sempre reconheceram ser o que divisavam alguma estrela brilhando por entre as brumas longínquas.

No dia 1 de Março não comeram. O coronel Everest e os seus companheiros afrontavam mais facilmente do que julgariam este jejum completo, talvez por estarem já acostumados a insuficiente alimentação. Contudo, se não lhes valesse a Providência, sofreriam no dia imediato torturas cruéis.

No dia seguinte a Providência abandonou-os: não apareceu nenhuma peça de caça aos olhos famintos de Sir John Murray. Porém, a guarnição, que não estava em casos de fazer escolha de alimento, conseguiu refazer-se algum tanto.

Com efeito, Sir John e Mokoum, apertados pela fome e com os olhos espantados, percorriam o cume do Scorzef. A fome tenaz despedaçava-lhes as entranhas. Ver-se-iam obrigados a pastar a erva que pisavam aos pés, como dissera o coronel Everest?

"Se tivéssemos estômagos de ruminantes!)), pensava o pobre Sir John, "como nos deitaríamos a esta farta pastagem! E nem um animal, nem uma ave!"

Assim pensando, olhava Sir John para o amplo lago que lhe brilhava quase aos pés. Os marinheiros da "Queen and Tzar" tinham tentado pescar, mas sem resultado. As aves aquáticas que roçavam com asa veloz a espuma das ondas, eram desconfiadas e fugidias.

Passado algum tempo, Sir John e Mokoum, que estavam abatidíssimos, deitaram-se na erva, ao pé de um montículo de terra de cinco a seis pés de altura. Pesou-lhes no cérebro um sono doloroso; antes entorpecimento que sono. Assim oprimidos, fecharam-se-lhes involuntariamente as pálpebras. Depois caíram em sonolência. Aniquilava-os o vazio que sentiam em si. Aquele torpor suspendia ao menos momentaneamente as torturas da fome.

Nem o bushman, nem Sir John eram capazes de dizer quanto tempo duraria aquele dormitar; porém, uma hora depois, Sir John foi despertado por muitas picadas desagradabilíssimas. Sacudiu-se e tentou tornar a adormecer; mas as picadas continuaram, de modo que, impacientando-se, abriu os olhos.

Corriam-lhe pelo fato legiões de formigas-brancas. Tinha o rosto e as mãos cheias delas. Esta invasão de insectos fê-lo erguer-se como impelido por alguma mola. O movimento repentino acordou o bushman, deitado a seu lado. Também Mokoum estava coberto de formigas-brancas.

 

Mas o africano, com enorme surpresa de Sir John, em vez de repelir os insectos, agarrava-os às mãos-cheias, levava-os à boca e devorava-os com avidez.

- Irra, Mokoum! - exclamou Sir John, enjoado por aquela voracidade.

- Coma! Coma! Faça como eu! - aconselhou o caçador, sem perder mão-cheia. - Coma! É o arroz dos bochjesmen!...

Mokoum dera definitivamente aos insectos a denominação indígena. Os bochjesmen comem de boamente aquelas formigas, de que há duas espécies, brancas e pretas. As formigas-brancas são, no dizer deles, de qualidade superior. O único defeito do insecto, considerado sob o aspecto alimentar, é de ser necessário engolir quantidades enormes. Por isso os africanos costumam misturá-las com a goma das mimosas. Preparam assim alimento mais substancial. Como não havia mimosas no Scorzef, Mokoum contentava-se em comer o arroz cru.

Sir John, a despeito da repugnância, não pôde resistir à fome que à vista da comida do bushman aumentava. Resolveu imitá-lo! As formigas saíam aos biliões do enorme formigueiro constituído pelo montículo de terra junto do qual se tinham deitado os dois famintos. Sir John agarrou-as aos punhados e levou-as à boca. E não lhe souberam mal! Achou-lhes até um gostinho ácido muito agradável e sentiu acalmarem-se-lhe as cãibras do estômago.

Mokoum não esqueceu os seus companheiros de infortúnio. Correu ao forte e trouxe consigo toda a guarnição. Os marinheiros não puseram dúvida em lançar mão daquele esquisito alimento. O coronel, Mateus Strux e Palander hesitaram talvez. Resolveu-os, porém, o exemplo de Sir John, e os pobres sábios, meio mortos de fraqueza, enganaram ao menos a fome, engolindo quantidades enormes de formigas-brancas.

Porém, um incidente inesperado proporcionou alimento mais sólido ao coronel Everest e aos seus companheiros. Mokoum, para fazer provimento de insectos, lembrou-se de deitar abaixo um lado do formigueiro colossal. Era, como fica dito, um montículo cónico" rodeado de cones mais pequenos, dispostos circularmente na base daquele. Já o caçador dera com o machado algumas pancadas no edifício, quando um ruído singular lhe chamou a atenção. Parecia um grunhido proveniente do interior do formigueiro. O bushman suspendeu o trabalho demolidor e escutou. Os companheiros olharam silenciosos para ele. O bushman deu mais algumas machadadas. Ouviu-se outro grunhido mais distinto.

Então o caçador esfregou as mãos, contente, e brilharam-lhe os olhos de cobiça. Trabalhou mais activamente, abrindo um buraco com um pé de diâmetro. As formigas fugiam espavoridas, mas o africano não curava delas, deixando aos marinheiros o trabalho de apanhá-las e metê-las em sacos.

De repente apareceu no buraco um animal singular. Era um quadrúpede de focinho comprido, boca pequena, língua extensível, orelhas direitas, pernas curtas, cauda comprida e aguçada. Tinha o corpo coberto de sedas compridas, cinzentas e amareladas; as patas armadas com enormes garras.

Mokoum matou-o com uma pancada no focinho.

- Aqui temos assado - exclamou ele. - Demorou-se, mas nem por isso será pior! Venha lume, uma vareta de espingarda para espeto, e jantaremos como não jantámos nunca!

O bushman não se enganava. O animal, que esfolou rapidamente, era um oricterope, espécie de tamanduá ou papa-formigas, a que os holandeses chamam porco-da-terra. É vulgar na África austral, onde as formigas não têm pior inimigo. Este mirmicófago destrói legiões de insectos, e quando não pode entrar nas apertadas galerias dos formigueiros pesca as formigas com a língua extensível.

Num instante ficou pronto o assado. Talvez lhe faltassem algumas voltas de espeto, mas os famintos são tão impacientes! Comeram do animal e acharam-lhe excelente a carne, branca, rija e salubre, embora impregnada de ácido fórmico. Que jantar, e como restaurou as forças, a coragem e a esperança aos animosos europeus!

E na verdade era preciso que tivessem a esperança bem arreigada no coração, porque ainda na noite seguinte não apareceu nenhum clarão no pico sombrio do Volquiria!

 

"FIAT LUX!"

Havia nove dias que tinham partido o foreloper e os seus companheiros. Que motivos lhes demorariam a jornada? Ter-lhes-iam oposto obstáculo invencível os homens ou os animais? Qual a causa da demora? Deveria concluir-se que Miguel Zorn e William Emery tinham sido absolutamente detidos? Estariam perdidos sem remédio?

Imagine-se que transes, que receios, que alternativas de esperança e de desespero sentiram os astrónomos prisioneiros no fortim do Scorzef. Havia nove dias que tinham partido os seus amigos e colegas! Em seis ou sete deviam ter feito a jornada. Eram homens activos e corajosos, impelidos pelo heroísmo científico. Da sua chegada ao pico do Volquiria dependia o êxito da empresa. Bem o sabiam, e não teriam desprezado meio algum de lá chegarem. A demora não podia ser por culpa deles. Portanto, se nove dias depois da partida não aparecera o farol no cume do Volquiria, certamente teriam sido mortos ou aprisionados pelas tribos nómadas!

Tais eram os pensamentos desconsoladores, as hipóteses aflitivas que se formavam na mente do coronel Everest e dos seus companheiros. Com que impaciência não esperavam o ocaso do Sol no horizonte para recomeçarem as observações nocturnas! Com que cuidado as fariam! Toda a sua esperança estava ligada à ocular que devia tornar visível o longínquo clarão!

 

No dia 3 de Março sofreram como nunca tinham sofrido; andavam errantes nas vertentes do Scorzef, trocando apenas poucas palavras, dominados todos por uma só ideia! Não, não os tinham prostrado tanto nem os calores excessivos do deserto nem o cansaço de jornadas incessantes sob os raios do sol dos trópicos!

Naquele dia devoraram os últimos pedaços do oricterope e ficou a guarnição reduzida à alimentação insuficiente que o formigueiro lhes proporcionava.

Chegou a noite, noite sem lua, tranquila, profunda, especialmente própria para observações. Nenhum clarão revelou o pico do Volquiria. Até aos primeiros alvores matutinos, o coronel Everest e Mateus Strux renderam-se, vigiando o horizonte com admirável persistência. Nada, não apareceu nada, e em breve os raios do Sol obstaram às observações!

Por parte dos indígenas não havia que recear. Os macololos pareciam resolvidos a fazer capitular os sitiados pela fome. E na verdade deviam obter bom êxito. No dia 4 de Março a fome de novo torturou os cativos do Scorzef; os desgraçados europeus só conseguiam minorar as ânsias mastigando as raízes bolbosas das espadanas, que vegetavam entre os rochedos nos pendores do monte.

Cativos! Isso não! O coronel Everest e os seus companheiros não o estavam! A lancha a vapor, fundeada na enseadazinha, podia, caso quisessem, levá-los sobre as águas do Ngami para campinas férteis, onde não lhes faltariam nem caça, nem frutas, nem plantas leguminosas! Muitas vezes tinham discutido se conviria mandar o bushman à margem setentrional, a fim de, pela caça, abastecer a guarnição. Mas, além do perigo de esta viagem ser descoberta pelos indígenas, arriscariam a lancha e, portanto, a salvação de todos, se outras tribos de macololos andassem ao norte do Ngami. A ideia fora rejeitada. Deviam fugir ou ficar todos juntos. Em deixar o Scorzef antes de terminadas as observações geodésicas nem pensaram sequer. Haviam de esperar até estarem esgotadas todas as probabilidades de bom êxito. A questão era de paciência! Seriam pacientes!

- Quando Arago, Biot e Rodrigues - lembrou o coronel Everest aos seus colegas-quiseram prolongar o meridiano de Dunquerque até à ilha de Ibiza, viram-se em circunstâncias semelhantes às nossas. Tratava-se de ligar a ilha à costa de Espanha por meio de um triângulo cujos lados excediam cento e vinte milhas. O astrónomo Rodrigues foi para as montanhas da ilha e ali conservou faróis acesos, enquanto os sábios franceses viviam em barracas no meio do deserto das Palmas. Durante sessenta noites espreitaram Biot e Arago o farol cuja direcção queriam determinar! Já desanimando, iam renunciar ao seu projecto quando, na sexagésima primeira noite, lhes apareceu no campo da luneta um ponto luminoso, que só a sua imobilidade deixava distinguir das estrelas de sexta grandeza! Eia, pois, senhores, não se dirá que os astrónomos russos e ingleses não fizeram pelo interesse da ciência aquilo mesmo que os dois sábios franceses conseguiram!

Todos responderam ao coronel com um hurra afirmativo. Poderiam observar, contudo, que nem Biot nem Arago sofreram nunca os tormentos da fome durante a sua demora no deserto das Palmas!

No mesmo dia começaram os macololos acampados no sopé do Scorzef a mover-se de modo desusado. Andavam para um lado e para o outro, o que inquietava o bushman. Quereriam os indígenas, depois de anoitecer, intentar outro assalto ao monte, ou resolveriam retirar? Mokoum concluiu, do exame atento a que procedeu, que o movimento revelava intenções hostis. Os macololos preparavam as armas. Contudo, as mulheres e crianças, que estavam com eles, abandonavam o acampamento e, conduzidas por alguns guias, dirigiam-se para oriente, aproximando-se das margens do Ngami. Parecia natural quererem os inimigos atacar outra vez o forte antes de retirarem definitivamente para Maketo, sua capital.

O caçador deu parte das suas observações aos europeus. Resolveram ser mais vigilantes essa noite e ter as armas à mão. Os assaltantes poderiam ser numerosos. Nada obstava a que escalassem o Scorzef às centenas. O recinto do fortim, arruinado em diversos pontos, talvez desse acesso a algum destacamento de indígenas. O coronel Everest julgou, portanto, prudente tomar algumas precauções para o caso de a guarnição ter de bater Em retirada e deixar momentaneamente a sua estação geodésica. Deu ordem para que a lancha a vapor estivesse pronta a largar ao primeiro sinal. Um dos marinheiros, maquinista da "Queen and Tzar", ficou encarregado de acender as fornalhas e de conservá-la em vapor para o caso de ser necessário fugir. Esperaria, porém, o pôr do Sol, para não revelar aos indígenas a existência de uma lancha a vapor nas águas do lago.

A ceia compôs-se de formigas-brancas e raízes de espadanas. Triste sustento para homens que talvez estivessem para bater-se! Todos, porém, se mostravam resolutos, superiores a qualquer temor, e esperavam tranquilos a hora fatal.

Pelas seis horas da tarde, quando a noite caía já com a rapidez própria das regiões intertropicais, o maquinista desceu as rampas do Scorzef e começou a aquecer a caldeira da lancha. Escusado é dizer que o coronel Everest só projectava fugir em último caso, quando já não fosse possível suster-se no forte. Repugnava-lhe abandonar de noite o seu observatório, porque podia aparecer no cume do Volquiria o farol de William Emery e Miguel Zorn.

Os outros marinheiros foram postados junto das muralhas do forte com ordem de defenderem a todo o transe a entrada das brechas. Estavam prontas as armas. A metralhadora, carregada e com munições ao pé, estendia os terríveis canos pela canhoneira.

Esperaram muitas horas. O coronel Everest e o astrónomo russo, postados na apertada torre de madeira e rendendo-se a miúdo, examinavam continuamente o pico do Volquiria. O horizonte estava sombrio, cintilavam no zénite as constelações mais formosas do céu austral. Nem um sopro atravessava a atmosfera. Era imponente o silêncio da Natureza.

Entretanto o bushman, de pé sobre uma saliência do rochedo, escutava os ruídos que vinham da planície. A pouco e pouco tornavam-se mais distintos. Não se iludira Mokoum nas suas conjecturas: os macololos iam tentar o assalto supremo.

Até às dez horas não se moveram os sitiantes. Tinham apagado as fogueiras. O acampamento e a planície perdiam-se na mesma escuridão.

 

De repente entreviu o bushman algumas sombras movendo-se nas vertentes do

monte. Os assaltantes distariam cem pés do plaino ocupado pelo fortim.

- Alerta! Alerta! - bradou Mokoum.

Imediatamente saiu a pequena guarnição para fora da frente sul e começou o fogo vivíssimo contra os macololos. Estes responderam com o grito de guerra e, a despeito do fogo incessante, continuaram subindo. O clarão dos tiros mostrava um formigueiro de indígenas em número tal que parecia inútil qualquer resistência. Entretanto as balas, das quais nenhuma se perdia, causavam enorme mortandade. Os macololos caíam às dúzias e rolavam até à base do monte. Nos intervalos curtíssimos das detonações, os europeus ouviam os seus rugidos ferozes. Nada os detinha. Subiam sempre em massas compactas, sem arremessarem flechas para não perderem tempo, mas persistindo em atingir o cume do monte.

O coronel Everest fazia fogo à frente da sua gente. Os companheiros, como ele bem armados, coadjuvavam-no às mil maravilhas, sem exceptuar Palander, que provavelmente pegava numa espingarda pela primeira vez. Sir John, ora sobre um rochedo, ora sobre outro, agora em pé, logo ajoelhado ou deitado, fazia prodígios, e a carabina, aquecida pela rapidez do fogo, já lhe queimava as mãos. Naquela luta sangrenta o bushman manifestava-se caçador paciente e atrevido, como o conhecemos.

Entretanto nada podiam contra a torrente inimiga, nem o admirável valor dos sitiados, nem a certeza dos seus tiros, nem a intensidade do fogo que sustentavam. Morto um indígena, substituíam-no vinte, e era de mais para aqueles treze homens! Decorrida meia hora de combate reconheceu o coronel Everest que seria torneado.

Com efeito, a onda dos assaltantes crescia não só na vertente sul, mas também nas rampas laterais. Os cadáveres de uns serviam de degraus para outros; muitos serviam-se dos mortos como escudos, e assim trepavam com menor perigo. Tudo aquilo era aterrador, sinistro, visto à luz rápida e funérea dos tiros. Era de ver que tais inimigos não dariam quartel. Parecia assalto de feras a investida daqueles ladrões sequiosos de sangue, piores que os mais terríveis animais da fauna africana! Valiam bem os tigres que faltam naquele continente!

Às dez e meia chegaram os primeiros macololos ao planalto do Scorzef. Os sitiados não podiam lutar corpo a corpo, porque seriam esmagados pelo número. Portanto era urgente abrigarem-se por detrás dos muros do fortim. Felizmente nenhum estava ferido, porque os assaltantes não tinham utilizado as flechas nem as azagaias.

- Retirem! - gritou o coronel, dominando com a voz o tumulto do combate.

Os sitiados, dando mais uma descarga e seguindo o seu chefe, recuaram para dentro dos muros do forte.

A retirada foi saudada pelos macololos com gritos terríveis. Os indígenas logo se apresentaram diante da brecha maior para tentarem o assalto.

Mas, de repente, ouviu-se um estoiro formidável, como interrupção de uma enorme descarga eléctrica que lhe multiplicasse as detonações. Tomava a palavra a metralhadora manobrada por Sir John Murray. Os vinte e cinco canos dispostos em leque expeliam balas num sector de cem pés sobre o planalto atulhado de negros. As balas, renovadas incessantemente por um mecanismo automático, caíam sobre os macololos como granizo. Foi tudo varrido num momento. Às detonações do terrível engenho responderam primeiro gritos rapidamente abafados, depois uma nuvem de flechas que não fez, nem podia fazer, mal aos sitiados.

-A música vai bem! - disse serenamente o bushman, chegando-se a Sir John. - Quando estiver cansado, também eu toco uma ária!...

Mas então calava-se a metralhadora. Os macololos, fugindo à torrente de metralha, desapareceram. Correram para os flancos do fortim, deixando o campo coberto de mortos.

Neste intervalo de repouso, que faziam Mateus Strux e o coronel Everest? Estavam na torre de madeira e com os olhos na luneta do círculo repetidor espreitavam na sombra o pico do Volquiria. Não os comoviam nem gritos nem perigos! Com o coração sossegado, o olhar límpido, mostrando espantoso sangue-frio, rendiam-se em face da ocular, e observavam com tanta exactidão quanta obteriam sob a cúpula de um observatório. Quando, passados alguns momentos de repouso, os berros dos macololos lhes indicaram que recomeçara a luta, combinaram render-se junto do precioso instrumento, de modo que um combatesse e outro observasse.

Com efeito, recomeçara a luta. Já não bastava a metralhadora para derrubar os indígenas, que, dando gritos de morte, acometiam ao mesmo tempo todas as brechas. Em tais condições, e diante daqueles rasgões defendidos tenazmente, continuou o combate mais meia hora. Os sitiados, protegidos pelas armas de fogo, apenas tinham arranhões feitos por pontas de azagaias. O encarniçamento era igual de parte a parte, a raiva crescia naquelas lutas corpo a corpo.

Foi então, pelas onze horas e meia, no mais aceso do combate, por entre o estrondo do tiroteio, que Mateus Strux se aproximou do coronel Everest. Tremia-lhe a pupila, ao mesmo tempo espavorida e radiante. Tinha o chapéu atravessado por uma seta que lhe tremulava ainda sobre a cabeça.

- O farol! O farol! - anunciou ele.

- Hem! - exclamou o coronel, carregando a espingarda.

- Sim! O farol!

- Viu-o?

- Vi!

O coronel descarregou pela última vez a carabina, deu um brado de triunfo e correu para a torre, seguido pelo seu valente colega.

Junto do círculo repetidor o coronel ajoelhou e, comprimindo as palpitações do coração, olhou. Ah! Naquele momento toda a vida se lhe concentrava no olhar! Sim! Lá estava o farol brilhando entre os fios do retículo! Sim! A luz esplendia no pico do Volquiria! Sim! Estava fechado enfim o último triângulo!

Seria espectáculo maravilhoso ver operar os dois astrónomos entre o fragor da luta. Os indígenas, vencendo pelo número, tinham entrado no recinto. Sir John e o bushman disputavam-lhes o terreno palmo a palmo. Às balas respondiam as flechas dos macololos, aos golpes de azagaias os machados.

 

E, entretanto, o coronel Everest e Mateus Strux, um após outro, observavam, curvados, sobre o instrumento! Multiplicavam as repetições para corrigirem os erros da leitura; o impassível Nicolau Palander escrevia no registo os números lidos! Mais de uma vez lhes roçaram flechas pela cabeça, indo despedaçar-se na parede interna da torre. Eles, porém, olhavam para o farol, depois liam com os microscópios as indicações dos nónios, e um verificava sempre os resultados colhidos pelo outro!

- Mais uma observação - dizia Mateus Strux, fazendo girar as lunetas sobre o limbo graduado.

Enfim, um pedregulho, arremessado por algum macololo, arrancou o registo das mãos de Palander, derrubou o círculo repetidor e fê-lo em pedaços.

Estavam, porém, concluídas as observações! A direcção do farol ficara determinada com aproximação de uma milésima de segundo!

Agora era mister fugir e salvar o resultado daqueles gloriosos e magníficos trabalhos. Os indígenas entravam já na casamata, e de um momento para o outro podiam aparecer na torre. O coronel Everest e os seus dois companheiros deitaram mão das armas, Palander apanhou o seu precioso registo e todos fugiram por uma das brechas. Lá estavam os companheiros, prontos a cobrir a retirada, embora alguns estivessem levemente feridos.

No momento, porém, em que desciam as vertentes setentrionais do Scorzef, Mateus Strux exclamou:

- E o nosso sinal?!

Com efeito, era preciso responder ao farol dos astrónomos por meio de sinal luminoso. Para ficar concluída a operação geodésica, deviam Miguel Zorn e William Emery apontar as lunetas do seu teodolito para o cume do Scorzef; decerto no pico, onde estavam, esperavam impacientes a aparição do sinal de fogo.

- Mais um esforço! - bradou o coronel Everest.

E enquanto os seus companheiros repeliam com vigor sobrenatural as fileiras dos macololos, voltou à torre.

Era esta formada por uma armação complicada de madeira. Bastava uma faísca para incendiá-la. O coronel largou-lhe fogo por meio de uma escorva. A madeira crepitou logo e o coronel, correndo para fora, reuniu-se aos companheiros.

 

Minutos depois desciam os europeus as rampas, debaixo de uma chuva de flechas e pedras que os indígenas atiravam sobre eles. Adiante de si levavam a metralhadora, que não queriam abandonar. Tendo mais uma vez repelido os indígenas com a mortífera fuzilaria, chegaram à lancha.

O maquinista, obedecendo às ordens recebidas, tinha vapor na caldeira com tensão suficiente. Largaram a amarra, a hélice começou a mover-se e a "Queen and Tzar" cortou veloz as águas sombrias do lago.

Em breve se afastou a lancha o suficiente para os passageiros descobrirem o cume do Scorzef. A torre ardia com brilho igual ao de um farol; certamente o clarão seria avistado do pico do Volquiria.

Os ingleses e os russos saudaram com um viva entusiástico aquele enorme facho, cuja luz rasgava em ampla periferia a escuridão da noite.

William Emery e Miguel Zorn não tinham razão de queixa!

Haviam mostrado uma estrela, respondiam-lhes com um sol!

 

NICOLAU PALANDER FURIOSO.

Ao romper da aurora chegava a lancha à margem setentrional do lago. Não havia por ali vestígio de indígenas. O coronel Everest e os seus companheiros, que se tinham preparado para resistir a qualquer inimigo, desarmaram as carabinas, e a "Queen and Tzar" ancorou numa enseada aberta entre duas rochas.

O bushman, Sir John Murray e um dos marinheiros pesquisavam os arredores. Não apareceu vivalma. Nem vestígio de macololos. Felizmente para aqueles famintos não faltava caça. Entre a erva fartíssima das pastagens e à sombra das matas andavam bastos rebanhos de antílopes. As margens do Ngami abundavam igualmente em aves aquáticas, congéneres dos patos. Os caçadores voltaram com ampla provisão. O coronel Everest e os seus companheiros restauraram as forças com a veação saborosa que nunca mais lhes faltaria.

Na manhã de 5 de Março organizaram acampamento na margem do Ngami, ao pé de um pequeno regato e à sombra dos salgueiros. O ponto de encontro ajustado com o foreloper na margem setentrional do lago era nesse sítio que uma balazinha chanfrava. Ali deviam o coronel Everest e Mateus Strux esperar os colegas; era natural que estes regressassem com maior facilidade e, portanto, mais rapidamente. Entretanto tinham alguns dias de descanso, os quais não desagradaram a ninguém após tão ásperos trabalhos. Nicolau Palander aproveitou o tempo para calcular o resultado das últimas observações trigonométricas.

 

Mokoum e Sir John refocilaram o corpo caçando como desesperados naquela região abundante, fértil, perfeitamente irrigada e que o inglês de boamente compraria por conta do Governo britânico.

Três dias depois, a 8 de Março, algumas detonações anunciaram a chegada do foreloper. William Emery e Miguel Zorn, os dois marinheiros e o bochjesman voltavam de perfeita saúde. Traziam intacto o seu teodolito, único instrumento que restava à comissão anglo-russa.

Não se descreve o modo como os moços astrónomos foram recebidos. Não lhes pouparam parabéns. Em poucas palavras contaram a viagem. A ida fora difícil. Tinham andado perdidos dois dias nas extensas florestas que precediam a região montanhosa. Sem nenhum ponto de referência para seguirem, orientando-se pelas indicações vagas da bússola, nunca atingiriam o Volquiria se não fora a sagacidade do seu guia. O foreloper sempre se havia mostrado inteligente e dedicado. Fora difícil a ascensão do pico. Destas circunstâncias provieram as demoras, tão dolorosas para os expedicionários como para os seus companheiros cercados no Scorzef. Tinham chegado enfim ao pico do Volquiria.

O farol eléctrico ficou colocado no dia 4 de Março, e a sua luz, aumentada por um reflector potente, fulgiu no pico durante a noite de 4 para 5. Portanto, os observadores do Scorzef viram-na logo que apareceu.

Miguel Zorn e William Emery tinham visto facilmente o fogo intenso que brilhou no cume do Scorzef quando o coronel Everest incendiou a torre. Haviam determinado a sua direcção por meio do teodolito e concluído assim a medida do triângulo, cujo vértice era no pico do Volquiria.

- Determinaram a latitude desse pico? - perguntou o coronel Everest.

- Exactamente, coronel, por meio de excelentes observações de estrelas-respondeu William Emery.

- Então o pico situa-se?

- Por 19 graus 37 minutos 35 segundos, com as aproximações de 337 milésimas de segundo.

- Bem - replicou o coronel. - Pode dizer-se cumprida a nossa missão.

 

Medimos um arco do meridiano de mais de oito graus por meio de sessenta e três triângulos; quando estiverem calculados os resultados das observações, saberemos exactamente qual é o valor do grau, e por conseguinte o do metro, nesta parte do esferóide terrestre.

- Hurra! Hurra! - bradaram ingleses e russos, ligados pelo mesmo sentimento.

- Agora - acrescentou o coronel Everest - devemos dirigir-nos para o oceano Índico descendo o curso do Zambeze. É esta a sua opinião, senhor Strux?

- É, coronel - respondeu o astrónomo de Poulkowa -, mas devemos verificar matematicamente os nossos trabalhos. Proponho que continuemos a rede trigonométrica para oriente até acharmos lugar próprio para a medida de outra base. A concordância entre o comprimento calculado e o medido desta base indicará o grau de crédito que convém atribuir aos nossos trabalhos geodésicos.

A proposta de Mateus Strux foi aprovada sem contestação. Era indispensável a verificação de toda a série dos trabalhos trigonométricos desde a primeira base. Resolveram, pois, construir para oriente uma série de triângulos auxiliares, até que um lado de algum deles pudesse ser medido directamente por meio das réguas de platina. A lancha a vapor, descendo os afluentes do Zambeze, aguardaria os astrónomos a jusante das célebres cataratas de Vitória.

Combinadas as coisas deste modo, a pequena comitiva, dirigida pelo bushman, partiu na madrugada de 6, com excepção de quatro marinheiros encarregados de conduzirem a "Queen and Tzar". Escolheram estações para oriente, mediram ângulos, e naquele território propício à colocação de miras era de esperar que a triangulação auxiliar caminharia rápida. O bushman tinha conseguido agarrar um cuaga, espécie de cavalo bravio, de crina castanha e branca, dorso avermelhado e em riscas. Com ou sem vontade do cuaga, fez dele besta de carga para transportar a pouca bagagem da caravana, o teodolito, as réguas e os cavaletes destinados à medida da base. Todos estes objectos haviam sido salvos na lancha.

 

A viagem foi rápida. Os trabalhos pouco demoraram os observadores. Os triângulos auxiliares, de pequena extensão, eram fáceis de formar naquela região acidentada. Corria tempo favorável e não foi preciso recorrer a observações nocturnas. Os observadores quase sempre podiam abrigar-se na sombra dos bosques espessos que cobriam o solo. A temperatura não era excessiva e, por influência da humidade que os ribeiros e pauis mantinham na atmosfera, erguiam-se vapores que enfraqueciam o ardor dos

raios solares.

A caça satisfazia todas as necessidades alimentícias da caravana. Não apareciam indígenas. Era provável que as quadrilhas de salteadores vagueassem mais ao sul e além do Ngami.

As relações entre o coronel Everest e Mateus Strux não causavam polémicas como dantes. Parecia estarem enfraquecidas as rivalidades pessoais. Não existia intimidade amigável entre os dois sábios, mas não se lhes podia

exigir tanto.

Desde 6 a 27 de Março, isto é, durante vinte e um dias, não ocorreu incidente notável. Procuravam uma planície própria para a medida da base, mas o solo não se prestava. Para esta operação careciam de grande extensão de terreno plano e horizontal; ora os movimentos e intumescências favoráveis ao estabelecimento de miras opunham-se à medição directa da base. Marchavam, pois, para nordeste, seguindo quase sempre a margem direita do Chobé, um dos tributários maiores do alto Zambeze, tratando de afastar-se de Maketo, principal povoado dos macololos.

Sem dúvida, era de esperar que o regresso da comissão se realizaria sempre em condições favoráveis, que a natureza não oporia aos astrónomos obstáculos ou dificuldades materiais, que não voltaria o período das provações. O coronel Everest e os seus companheiros percorriam território relativamente conhecido, e em breve encontrariam as aldeias do Zambeze, havia pouco visitadas pelo Dr. Livingstone. Pensavam, pois, que estava cumprida a parte árdua da sua missão. Não se enganavam em geral e, contudo, um incidente, cujas consequências poderiam ser da máxima gravidade, esteve a ponto de arriscar irreparàvelmente os resultados de toda a expedição.

Foi Nicolau Palander o herói, ou antes a vítima dessa aventura.

O intrépido, mas inconsciente calculador, absorto sempre em algarismos, perdia-se muitas vezes dos companheiros. Em terreno plano e descoberto não havia perigo. Davam facilmente com os rastos do perdido. Porém, nas regiões selváticas, as distracções de Palander podiam ter graves consequências. Por isso Mateus Strux e o bushman lhe faziam mil recomendações a esse respeito. Nicolau Palander prometia acautelar-se, embora se admirasse da prudência excessiva dos colegas. O bom do homem nem sequer dava notícia das suas distracções!

Ora, exactamente no dia 27 de Março, Mateus Strux e o bushman passaram muitas horas sem verem Nicolau Palander. Atravessavam então extensos matos, fechados de árvores baixas e juntas, que limitavam muito o horizonte. Mais que nunca era mister conservarem-se em grupo compacto, porque seria dificílimo encontrar os rastos de uma pessoa extraviada nos bosques. Mas Nicolau Palander, que não via nem previa nada, caminhara de lápis numa das mãos e registos na outra para o lado esquerdo da caravana, e depois desaparecera.

Imagine-se o sobressalto de Mateus Strux e dos seus companheiros quando, pelas quatro horas da tarde, deram pela falta de Nicolau Palander. Ainda se lembravam do caso dos crocodilos; de todos só talvez o distraído calculador o esquecera.

Portanto, grande susto dos astrónomos e impossibilidade de marcharem para a frente sem Nicolau Palander aparecer.

Chamaram. Em vão. O bushman e os marinheiros espalharam-se na área de um quarto de milha de raio batendo as moitas, espreitando debaixo de todas as árvores, arredando as ervas altas, atirando tiros de espingarda! Nada! Não aparecia Nicolau Palander.

Então cresceu a inquietação de todos, devendo dizer-se que, no ânimo de Mateus Strux, ao receio se juntava extrema irritação contra o incómodo colega. Era a segunda vez que sucedia igual caso por culpa de Nicolau Palander, e, na verdade, se o coronel Everest o increpasse, Mateus Strux não teria que responder.

Naquelas circunstâncias só um expediente era possível: acampar no bosque e empreenderem-se buscas minuciosas para encontrar o calculador.

Já o coronel e os seus companheiros faziam alto junto de uma grande clareira quando, a alguns centos de passos à esquerda do bosque, ressoou um grito que não parecia humano. Logo em seguida apareceu Nicolau Palander. Corria a bom correr. Vinha com os cabelos eriçados, seminu, porque apenas lhe caíam em roda da cintura alguns farrapos.

Chegou o infeliz junto dos companheiros, que lhe fizeram mil perguntas. Mas ele, com os olhos esbugalhados, a pupila dilatada, o nariz esmurrado e a respiração arquejante e incompleta, não podia falar. Quis responder, mas não conseguiu articular palavra.

Que sucedera? Qual a causa daquele desvario, do espanto, cujos sintomas gravíssimos Nicolau Palander apresentava? Era impossível sabê-lo.

Enfim, da garganta árida de Palander saíram estas palavras quase ininteligíveis:

- Os registos! Os registos!

Ouvindo-o, todos os astrónomos estremeceram de terror. Tinham entendido! Os registos, os dois registos onde fora inscrito o resultado de todas as operações trigonométricas, os registos que o calculador não largava nunca, nem quando dormia, os registos estavam perdidos! Nicolau Palander já não trazia os registos! Tinham-lhos furtado? Que importava? Os registos estavam perdidos! E perdidos com eles tantos trabalhos, tantas privações, porque seria preciso começar de novo!

Enquanto os outros astrónomos se olhavam aterrados, dava Mateus Strux largas à sua cólera. Não podia conter-se! Como tratou o calculador! Que nomes injuriosos lhe chamou! Ameaçava-o com a indignação do Governo russo, acrescentando que iria apodrecer na Sibéria, se não o matassem a golpes de cnute!

A tudo respondia Nicolau Palander agitando afirmativamente a cabeça de cima para baixo.

 

Parecia concordar com todas as injúrias, aceitar todos os castigos, confessar que merecia tudo e que tudo ainda era pouco!

- Mas então roubaram-no? - interrogou por fim o coronel Everest.

- Pouco importa! - exclamou Mateus Strux, fora de si. - Para que se afastou este indigno? Porque não se conservou ao pé de nós, depois de todas as recomendações que lhe fizemos?

- Tem razão - admitiu Sir John -, mas convém saber se ele perdeu os registos, ou se lhos roubaram. Roubaram-no, senhor Palander? - acrescentou o inglês, voltando-se para o pobre homem, que à força de cansado se deixara cair no chão! - Roubaram-no?

Nicolau Palander fez um sinal afirmativo.

- Quem o roubou? - continuou Sir John. - Foram indígenas, macololos?

Nicolau Palander fez um sinal negativo.

- Foram europeus, brancos? - perguntou de novo Sir John.

- Não! - respondeu Nicolau Palander, com voz sumida.

- Mas então quem foi? - exclamou Mateus Strux, estendendo os punhos cerrados para a cara do infeliz.

- Não! - disse Nicolau Palander. - Nem indígenas... nem brancos... foram os macacos.

Decerto que, se as consequências daquele incidente não fossem tão sérias, todos os europeus teriam desatado a rir! Nicolau Palander fora roubado por macacos!

Então explicou o bushman aos companheiros que o facto era frequente. Muitas vezes, que ele soubesse, tinham viajantes sido roubados pelos chacmas, cinocéfalos de cabeça de porco, que em bandos numerosos habitam as florestas da África. O calculador fora roubado por estes macacos, não sem resistir-lhes, como o estado do seu vestuário provava. Isso não o desculpava. Nada lhe teria sucedido se marchasse ao pé dos colegas, e, quaisquer que fossem os ladrões, estavam perdidos os registos da comissão científica, isto é, o fruto de tantos trabalhos, sacrifícios e perigos!

 

- O caso é - observou o coronel Everest - que não valia a pena medir um arco do meridiano no interior da África, para que um desastrado...

Não concluiu a frase. Para que acabrunhar mais o infeliz Palander, já tão pungido pelas censuras da própria consciência, e ao qual o irascível Mateus Strux prodigalizava epítetos injuriosos.

Entretanto era necessário tomar alguma resolução, e tomou-a o bushman. Como o prejuízo não era directamente seu, foi o único que se conservou de sangue-frio. Os europeus, sem excepção, estavam abatidos e com a cabeça perdida.

- Senhores - interveio o bushman -, compreendo o vosso desespero, mas o tempo é precioso e não devemos perder nem um instante. Tiraram os registos ao senhor Palander. Foram roubados pelos macacos; pois então persigamos os ladrões sem demora. Os chacmas costumam guardar cuidadosamente os objectos roubados! Os registos não são coisas de comer e, portanto, se dermos com os ladrões, acharemos os papéis!

O conselho era bom. O bushman deixava entrever uns clarões de esperança. Nicolau Palander reanimou-se ouvindo aquelas palavras. Mostrou-se outro homem. Compôs os farrapos que lhe restavam, aceitou a jaqueta de um marinheiro, o chapéu de outro e disse estar pronto a guiar os seus companheiros para o teatro do crime.

Sem demora mudaram de caminho e, guiando-se pelas indicações de Palander, inclinaram para ocidente.

A noite e o dia seguinte não deram resultado favorável. Em muitos lugares, por certos rastos deixados no chão, reconheceram o bushman e o foreloper que pouco antes tinham passado os cinocéfalos. Nicolau Palander afirmava que fora acometido por uns dez macacos. Em breve, porém, puderam seguir-lhes a pista e então começaram a andar com extremo cuidado, encobrindo-se sempre com as árvores, porque os chacmas são sagazes, inteligentes e não deixam que se lhes aproxime ninguém. O bushman só esperava bom êxito se conseguisse surpreender os macacos.

No dia seguinte, pelas oito horas da manhã, um marinheiro russo, que se adiantara aos companheiros, avistou, se não o ladrão, pelo menos um dos camaradas do ladrão de Nicolau Palander. Retrocedeu com prudência para avisar o bushman.

Mandou este que fizessem alto. Os europeus, resolvidos a obedecer-lhe em tudo, esperavam as suas instruções. Mokoum recomendou-lhes que não se movessem, e, levando consigo Sir John e o foreloper, marchou para a parte do bosque visitada pelo marinheiro, indo sempre ao abrigo das árvores e do mato.

Pouco depois viram o macaco anunciado e, quase ao mesmo tempo, mais uns dez que saltavam por entre as árvores. O bushman e os seus companheiros, escondidos atrás de uma árvore, examinavam-nos com atenção.

Era, como o bushman dissera, um bando de chacmas, com o corpo coberto de pêlos esverdinhados, as orelhas e a face negras, a cauda comprida e sempre em movimento varrendo o chão; animais robustos, que se fazem temer até das feras pela força dos seus músculos, pelas garras enormes e pelos dentes grandes e agudos. Os chacmas, verdadeiros ladrões da gente simiana, incorrigíveis salteadores dos campos de trigo e milho, são o flagelo dos bures, cujas habitações assolam. Os réus do atentado contra Nicolau Palander brincavam nas árvores, ladrando e latindo como canzarrões mal feitos, com os quais se parecem nas formas. Nenhum deles descobrira os caçadores que os espreitavam.

Estaria no bando o roubador de Nicolau Palander? Esta era a questão. Ora desvaneceram-se as dúvidas todas quando o foreloper mostrou aos companheiros um chacma, tendo enrolado em volta do corpo um pedaço de pano, tirado do fato do calculador russo.

Oh! Como renasceu a esperança no coração de Sir John Murray! Não duvidava de que fosse aquele macaco o receptador dos registos roubados! Tornava-se necessário agarrá-lo a todo o custo e, para isso, proceder com a máxima cautela. Bastaria qualquer movimento errado para todo o bando fugir para os bosques sem ser possível alcançá-lo.

- Deixe-se estar aqui - recomendou Mokoum ao foreloper. - Milorde e eu vamos buscar os nossos companheiros e cercar os macacos. Não os perca de vista!

 

O foreloper escondeu-se no posto designado, e o bushman voltou com Sir John para junto do coronel Everest. Cercar o bando dos cinocéfalos era o único meio de apanhar o ladrão. Dividiram-se os europeus em dois destacamentos: um, composto de Mateus Strux, de William Emery, de Miguel Zorn e de três marinheiros, foi ter com o foreloper, devendo desenvolver-se em semicírculo. O outro destacamento, formado por Mokoum, Sir John, o coronel, Palander e três marinheiros, cortou sobre a esquerda, torneando os macacos e impelindo-os para os outros caçadores. Conforme as recomendações do bushman, caminhavam cautelosamente. Levavam as espingardas engatilhadas e tinham combinado atirar todos ao macaco que trazia os pedaços de pano.

Nicolau Palander, cujo ardor era preciso moderar, caminhava ao pé de Mokoum. Este vigiava-o, com receio de que a sua fúria o levasse a cometer alguma loucura. Na verdade o bom do astrónomo não podia conter-se. Para ele era questão de vida ou de morte.

Passada meia hora de marcha semicircular, interrompida por frequentes paragens, o bushman julgou chegado o ensejo de convergirem sobre os macacos. Os seus companheiros, distantes vinte passos uns dos outros, marchavam silenciosos. Não diziam palavra, não arriscavam um gesto, não faziam estalar nenhum ramo. Parecia uma quadrilha de Pawnies arrastando-se na pista de guerra. De repente o caçador parou. Detiveram-se também os seus companheiros com o dedo no gatilho e prontos para levarem as espingardas à cara.

Avistaram o bando dos chacmas. Estes pressentiam o que quer que fosse. Principalmente um mais alto, que fora o roubador dos registos, dava inequívocos sinais de inquietação. Nicolau Palander reconhecia o ladrão. Parecia, porém, que o macaco não tinha guardado os registos em si; pelo menos não os deixava ver.

- Cara de ladrão! - murmurava o sábio. O macaco, ansioso, fazia sinais aos camaradas. Tinham-se reunido em grupo algumas fêmeas com os filhos às costas. Os machos andavam em volta delas.

Os caçadores chegaram-se mais. Todos haviam reconhecido o ladrão e poderiam apontar-lhe com segurança.

 

Mas Nicolau Palander, fazendo um movimento involuntário, disparou a espingarda.

- Maldição! - exclamou Sir John, apontando e desfechando rapidamente.

Que efeito! Responderam-lhe dez detonações. Caíram mortos três macacos. Os outros, dando pulos prodigiosos, passaram como se tivessem asas por cima da cabeça do bushman e dos outros caçadores.

Ficou só um chacma: era o ladrão. Em vez de fugir, saltou ao tronco de um sicômoro, trepou com agilidade de saltimbanco e desapareceu entre os ramos.

- É ali que escondeu os registos! - exclamou o bushman.

Era para recear que o macaco escapasse saltando de árvore em árvore. Porém, Mokoum apontou cuidadosamente e fez fogo. O chacma, ferido numa perna, caiu de ramo em ramo. Numa das mãos trazia os registos, que tirara do cruzamento de duas pernadas. Nicolau Palander, quando tal viu, saltou como uma camurça, agarrou o chacma e começou a lutar com ele.

Que luta! A raiva duplicava as forças do calculador! Aos latidos do macaco respondiam berros de Palander. Era uma Babel de gritos discordes! Não havia meio de distinguir quais eram do macaco, quais do matemático! Era impossível apontar ao macaco com receio de ferir o homem.

- Atirem! Atirem a ambos! - bradou Mateus Strux, fora de si; e talvez o fizesse ele próprio se não tivesse a espingarda descarregada.

Continuava a luta. Nicolau Palander, ora por cima, ora por baixo, tentava estrangular o animal. Tinha os ombros ensanguentados, porque o chacma rasgava-o com as garras. Enfim, o bushman levantou o machado e, escolhendo ocasião favorável, feriu o macaco na cabeça e matou-o.

Levantaram Nicolau Palander desmaiado. Com a mão apertava contra o peito os preciosos registos. O cadáver do chacma foi levado para o acampamento, e à ceia os convivas, incluindo o roubado, comeram o ladrão tanto por vingança como por gosto, porque a carne era excelente.

 

AS CACHOEIRAS DO ZAMBEZE.

Eram leves os ferimentos de Nicolau Palander. O bushman, que de tudo sabia alguma coisa, esfregou-lhe os ombros com algumas ervas, de modo que já no dia seguinte pôde o astrónomo de Helsingsfors meter-se a caminho. Ia exaltado pelo triunfo alcançado. Em breve, porém, lhe passou a exaltação, voltando a ser o sábio distraído, que só vivia no mundo dos algarismos. Deixaram-lhe um registo, mas, por prudência, entregaram a William Emery o que continha cópia de todos os cálculos. Palander consentiu de bom grado.

Continuaram os trabalhos. A triangulação prosseguia depressa e bem. Restava só encontrar planície favorável para a medida da base da verificação.

A 1 de Abril os europeus atravessaram extensos pântanos que lhes demoraram a jornada. A estas campinas húmidas seguiram-se numerosos charcos, cujas águas exalavam cheiro pestilento. O coronel Everest e os colegas cuidaram de atravessar rapidamente aquele terreno doentio, dando para isso maior grandeza aos triângulos.

Eram excelentes as disposições de todos e reinava amigável concórdia. Miguel Zorn e William Emery felicitavam-se por verem os chefes completamente de acordo. Pareciam estes esquecer que os devia separar uma questão internacional.

- Meu caro William - disse um dia Miguel Zorn ao seu amigo-, espero que, quando voltarmos à Europa, já estarão em paz a Inglaterra e a Rússia. Poderemos continuar amigos na Europa, como o temos sido na África.

- Assim o espero também, meu caro Miguel - volveu Emery. - As guerras modernas duram pouco. Depois de uma ou duas batalhas assina-se tratado de paz. Esta guerra importuna começou vai um ano; penso que estará concluída ao chegarmos.

- Mas não tenciona voltar para o Cabo? - perguntou Miguel Zorn. - Parece-me que o observatório não exigirá imperiosamente o seu serviço, e espero servir-lhe de cicerone em Kiew.

- Decerto, meu amigo - respondeu William Emery. - Acompanhá-lo-ei à Europa e não voltarei para a África sem visitar a Rússia. Há-de, porém, pagar-me alguma vez a visita à Cidade do Cabo, não é verdade? Virá perder-se comigo por entre as nossas formosas constelações austrais. Observará que firmamento tão rico e como é verdadeiro prazer observá-lo muitas vezes! Olhe, se quiser, desdobraremos juntos a estrela 8 do Centauro! Prometo-lhe não começar senão consigo.

- Está dito, William?

- Está dito, Miguel. Guardo-lhe a 8 e em paga irei a Kiew reduzir uma das suas nebulosas!

Excelentes jovens! Parecia que o céu era deles! E com efeito a quem pertence senão aos sábios perspicazes que lhe medem as mais remotas profundezas?

- Primeiro que tudo - observou Miguel Zorn -, é mister que a guerra esteja terminada.

- Há-de estar, Miguel. As batalhas a tiros de canhão duram menos que as contestações a golpes de estrelas! A Rússia e a Inglaterra hão-de reconciliar-se primeiro que o coronel Everest e Mateus Strux!

- Então não acredita na sua reconciliação sincera depois de tantas provações em comum? - perguntou Miguel Zorn.

- Eu não - respondeu William Emery. - Bem sabe o que são rivalidades de sábios, e principalmente de sábios ilustres!

- Então, tratemos de ser pouco ilustres e muito amigos.

 

Tinham decorrido onze dias depois do caso dos cinocéfalos, quando a caravana chegou a uma planície extensa junto das cachoeiras do Zambeze. O terreno era óptimo para a medida da base. No seu extremo havia uma aldeia de poucas cabanas. A população, composta ao todo de uns dez indígenas, era inofensiva, e mostrou-se hospitaleira. Foi um feliz acaso, porque os europeus, privados de carros, de barracas e da maior parte do material de acampamento, dificilmente poderiam acomodar-se ao ar livre. Ora, a medida da base duraria talvez dois meses, e não era cómodo nem salutar passá-los sem abrigo.

A comissão científica instalou-se nas cabanas, previamente apropriadas ao seu novo uso. Além disso, os sábios contentavam-se com pouco. Só uma coisa os preocupava: a verificação dos trabalhos anteriores, que ia realizar-se pela medida directa de outra base, isto é, do último lado do último triângulo. Pelo cálculo estava o comprimento deste lado matematicamente determinado; quanto mais a medida directa se aproximasse da calculada, mais seria exacta a determinação da grandeza do arco do meridiano.

Começaram sem demora esta medida directa. Assentaram sobre o terreno liso os cavaletes, as varas de madeira e as réguas de platina. Tomaram todas as minuciosas cautelas usadas na medida da primeira base. Atenderam às condições atmosféricas, às variações termométricas, à inclinação das réguas, etc. Enfim, não desprezaram nada nesta operação suprema, e quase viveram só do trabalho.

Tendo começado a 10 de Abril concluíram a 15 de Maio. Gastaram cinco semanas naquela medida delicada. Nicolau Palander e William Emery calcularam imediatamente as medidas.

Na verdade palpitava o coração a todos quando os resultados foram proclamados. Que recompensa dos seus trabalhos, das suas provações, se a verificação completa daquela obra imensa "pudesse permitir legá-la incontestável à posteridade!"

Tendo os calculadores reduzido os comprimentos obtidos a arcos referidos no nível médio do mar, e à temperatura de 61 graus do termómetro de Fahrenheit (16,11 graus centígrados), Nicolau Palander e William Emery apresentaram aos seus colegas o quadro seguinte:

Última base medida 1 sobre 499,15 ...

Comprimento 0,513074 elevado, deduzido da primeira base e de toda a rede trigonométrica ... 5075 Diferença entre o cálculo e a observação ...

A diferença é apenas de catorze centésimas de toesa, quer dizer, menos de dez polegadas. Portanto, as duas bases encontram-se distantes uma da outra seiscentas milhas.

Quando se mediu o meridiano francês entre Dunquerque e Perpinhão, a diferença entre a base de Melun e a de Perpinhão foi de onze polegadas. A concordância obtida pela comissão anglo-russa é muito mais notável, e torna o seu trabalho, feito em circunstâncias difíceis nos desertos africanos, entre perigos e privações, a mais perfeita operação geodésica conhecida.

O resultado admirável da triangulação, sem precedente nos anais científicos, foi saudado por um tríplice hurra!

Qual é o valor do arco de um grau meridiano naquela parte do esferóide terrestre? Exactamente de cinquenta e sete mil e trinta e sete toesas, segundo os cálculos de Nicolau Palander. É com diferença de uma toesa o número achado em 1752 por Lacaille, no Cabo da Boa Esperança. Com intervalo de um século, os resultados do astrónomo francês e os da comissão anglo-russa concordavam de modo admirável.

Quanto ao valor do metro, era necessário para deduzi-lo aguardar o resultado de operações semelhantes no hemisfério norte. Esse valor deve ser a décima milionésima parte do quarto do meridiano terrestre. Segundo cálculos anteriores, este quarto, atendendo ao achatamento da Terra calculado ser de valor incompreensível, contém dez milhões oitocentos e cinquenta e seis metros, o que dá para grandeza do metro 0,513074, ou três pés, onze linhas, duzentas e noventa e seis milésimas de linha. Será verdadeiro este algarismo? Devem dizê-lo as observações ulteriores da comissão anglo-russa.

 

Estavam concluídos os trabalhos geodésicos. Tinham os astrónomos cumprido a sua missão. Agora restava-lhes dirigirem-se à foz do Zambeze, seguindo, em sentido contrário, o itinerário que o Dr. Livingstone havia de percorrer na sua segunda viagem de 1858 a 1864.

A 25 de Maio, depois de jornadas penosas, numa região cortada de rios, chegaram os europeus às cachoeiras de Vitória.

Estas admiráveis quedas de água justificam o nome indígena, que significa fumo atroador. Os lençóis de água, com uma milha de largura, despenham-se de altura dupla da do Niágara e ostentavam-se coroadas por um tríplice arco-íris. Passando através do profundo corte do basalto, a torrente colossal produz estrondo comparável ao de vinte trovões troando juntos.

A jusante da catadupa, e na superfície já tranquila do rio, estava a lancha a vapor esperando os passageiros. Chegara quinze dias antes, navegando por um afluente inferior do Zambeze. Os europeus embarcaram.

Só ficaram dois homens em terra, o bushman e o foreloper. Mokoum era mais do que um guia dedicado: era amigo que os ingleses, e principalmente Sir John, deixavam no continente africano. Sir John oferecera ao bushman trazê-lo à Europa e hospedá-lo quanto tempo ele quisesse; porém, Mokoum, tendo compromissos futuros, desejava cumpri-los. Com efeito, devia acompanhar David Livingstone na segunda viagem que o atrevido geógrafo faria brevemente ao Zambeze. Mokoum não queria faltar à sua palavra.

Ficou, pois, bem recompensado, e, o que ele estimava mais, muito abraçado pelos europeus, que lhe deviam tanto. A lancha afastou-se da margem, procurou a corrente no meio do rio e o último gesto de Sir John Murray foi um adeus ao seu amigo bushman.

A descida do rio africano, na lancha veloz, entre numerosas aldeias espalhadas pelas margens, fez-se sem cansaço nem incidentes notáveis. Os indígenas contemplavam com supersticioso terror o barco fumegante, que sem mecanismo visível cortava rápido as águas do Zambeze. Nunca intentaram deter-lhe a marcha.

 

A 15 de Junho chegavam o coronel Everest e os seus companheiros a Quelimane, cidade importante na embocadura principal do Zambeze.

O primeiro cuidado dos europeus foi perguntarem notícias da guerra ao cônsul inglês...

A guerra continuava; Sebastopol resistia ainda aos exércitos anglo-franceses.

Esta notícia foi ao mesmo tempo decepção e desgosto para os astrónomos, que os interesses da ciência uniam. Calaram-se, porém, e fizeram rápidos preparativos de partida.

Estava a sair para o Suez o "Novara", navio mercante austríaco. Os membros da comissão resolveram embarcar a seu bordo.

No dia 18, quando estavam prestes a largar, reuniu o coronel Everest os colegas e disse-lhes com voz serena:

- Senhores, nos meses que temos vivido juntos sofremos bastantes provações, mas concluímos uma empresa que toda a Europa científica aplaudirá. Devo acrescentar que desta vida em comum deve resultar para nós amizade inquebrantável.

Mateus Strux saudou sem responder.

- Entretanto - acrescentou o coronel - continua com pesar nosso a guerra entre a Inglaterra e a Rússia. Os nossos exércitos batem-se junto de Sebastopol e até que a praça se renda...

- Não se renderá! - interrompeu Strux - apesar da França...

- Não nos pertence o futuro - respondeu secamente o coronel. - Seja como for, enquanto durar a guerra, entendo que devemos outra vez considerar-nos inimigos.

- É o meu voto - respondeu simplesmente o astrónomo de Poulkowa.

Assim ficou definida a situação, e nestas condições seguiram viagem a bordo do "Novara".

Passados poucos dias chegaram ao Suez. No momento da separação dizia William Emery, apertando a mão a Miguel Zorn:

- Sempre amigos, Miguel?

- Sim, meu caro William, sempre e a despeito de tudo!

 

                                                                                            Julio Verne

 

 

                      

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