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Miguel Strogoff - Vol. II / Julio Verne
Miguel Strogoff - Vol. II / Julio Verne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Miguel Strogoff

Volume II

 

     Um acampamento tártaro

      A um dia de marcha de Kolyvan, a poucas verstas adiante do lugar de Diachinsk, estende-se uma vasta planície rodeada de grandes árvores: cedros e pinheiros em geral.

      Durante a estação calmosa esta porção da estepe serve ordinariamente de refúgio aos pastores siberianos, que para aqui vêm apascentar os seus numerosos rebanhos. Agora, porém, não se divisava um só desses habitantes nómadas, não é que a planície estivesse deserta, bem pelo contrário, havia em toda ela extraordinária animação.

      Era aqui, efectivamente, que se tinham levantado as tendas dos tártaros. Era aqui também que se achava acampado Féofar-Cã, o cruel emir de Bucara.

      Todos os prisioneiros feitos na véspera em Kolyvan, depois da derrota do pequeno corpo do exército russo, tinham sido conduzidos para este acampamento. Daqueles dois mil homens que se haviam batido contra as duas colunas inimigas, apoiadas simultaneamente sobre Omsk e sobre Tomsk, apenas restavam alguns centos de soldados. Os acontecimentos iam, pois, tomando um carácter grave, e o Governo moscovita começava a lutar com uma situação difícil para lá das fronteiras do Ural.

      Estas dificuldades porém só podiam ser momentâneas, porque os russos, tarde ou cedo, acabariam forçosamente por expulsar as hordas invasoras.

      Entretanto, a invasão progredia, tinha já chegado ao centro da Sibéria, e agora principiava a alastrar, quer sobre as províncias de oeste, quer sobre as de leste. A cidade de Irkutsk achava-se, pois, completamente isolada de toda a comunicação com a Europa. Se as tropas do Amur e da província de Irkutsk não chegassem a tempo de protegê-la, a capital da Rússia asiática, reduzida a uma pequena guarnição, cairia em poder dos invasores. E - circunstância gravíssima! - antes que as tropas russas a pudessem reconquistar, o grão-duque, irmão do imperador, ver-se-ia com certeza exposto à vingança de Ivan Ogareff.

      Que seria feito de Miguel Strogoff? Sucumbiria ao peso de tantas provações? Julgar-se-ia vencido por tão prolongada série de fatalidades? Suporia ele, enfim, que, abaladas todas as esperanças, a sua missão estava irremediavelmente perdida? Miguel Strogoff era um desses homens que só se dão por vencidos quando a morte vem fulminá-los. Ora, ele vivia ainda, não fora reconhecido, não recebera nenhum ferimento, e o ofício do czar continuava a permanecer no fundo do bolso.

      Naturalmente achava-se entre o número desses prisioneiros que os tártaros arrastavam como vis animais atrás das suas colunas, era, porém, manifesto que, aproximando-se de Tomsk, se aproximava também de Irkutsk. Em todo o caso, ia sempre ganhando terreno sobre o traidor Ivan Ogareff.

      «Oh! Hei-de chegar!» - dizia ele a si próprio.

      E, desde que fora preso na estação telegráfica, toda a sua atenção se concentrava num único pensamento: recuperar a liberdade. Como poderia ele escapar-se das escoltas do emir? Vê-lo-ia, quando a ocasião se lhe mostrasse favorável.

      O acampamento de Féofar-Cã constituía um espectáculo surpreendente. Vastas e numerosas tendas, feitas de peles, de lonas ou panos de seda, de cores várias, produziam um efeito deslumbrante iluminadas pelos raios do Sol. As extremidades das suas hastes guarneciam-se de vistosas borlas e penachos, que se balouçavam graciosamente no meio de pendões, flâmulas e bandeiras multicolores. As mais ricas destas barracas de campanha, pertencentes aos seides e aos kodjas, que são as primeiras personagens do canado, apresentavam como distintivo da sua elevada categoria um estandarte especial com a lança adornada por uma cauda de cavalo e vários outros emblemas brancos e vermelhos, dispostos artisticamente. Depois seguiam-se pela planície, a perderem-se nos últimos planos do horizonte, alguns milhares de tendas pertencentes aos turcomanos, as quais se chamam karaoy, e tinham sido para aqui transportadas sobre o dorso de camelos.

      O acampamento não continha menos de cento e cinquenta mil homens, tanto de infantaria como de cavalaria, reunidos todos sob o nome de alamanos. Entre eles figuravam, como tipos mais importantes do Turquestão, os tadjiks, de feições regulares, grande estatura, olhos e cabelos pretos, formando o grosso do exército invasor. Para esta milícia tinham contribuído os canados do Khokhand e de Kunduza com um contingente quase igual ao de Féofar-Cã. Aos tadjiks sucediam-se outros espécimes de diferentes raças, que residem tanto no Turquestão como nos países limítrofes. Eram os usbeques, de estatura mediana e barba ruiva, semelhantes àqueles que se tinham lançado em perseguição de Miguel Strogoff. Eram os quirguizes, de rosto achatado como os calmucos, vestindo cotas de malha, uns armados de lança, arco e flechas de fabricação asiática, outros manejando o sabre, o mosquete e a tschakane, espécie de machadinha de cabo curto, que não produz senão ferimentos mortais. Eram os mongóis, de altura mediana, cabelo preto, preso numa trança que lhes caía sobre as costas, cara redonda, cor escura, olhos encovados, mas brilhantes, pouca barba, trajando cabaias de ganga azul com guarnições de pelúcia preta, cintos de couro com fivelas de prata, botas bordadas de galões vistosos e gorros de seda enfeitados de peles com três fitas roídas atrás. Eram, enfim, os afeganes, de cor acinzentada, os árabes, com o tipo primitivo das belas raças semíticas, os turcomanos, com os olhos semicerrados, que parecem não ter pálpebras. Todos estes bandos de raças diferentes estavam agora alistados sob a bandeira do emir, bandeira de incendiários, bandeira de assassinos.

      A par dos soldados livres contava-se também um certo número de soldados escravos, principalmente persas, comandados por oficiais da mesma origem, e que não eram decerto os menos corajosos do exército de Féofar-Cã.

      Juntem-se a estes grupos os judeus, servindo de criados, com as túnicas presas por uma corda, trazendo na cabeça, em vez do turbante, que lhes não permitem usar, pequenos barretes de pano escuro, acrescentem-se ainda algumas centenas de calândares, espécie de religiosos mendicantes, cobertos de andrajos, sobre os quais pende à guisa de manto, a pele de um leopardo, e ter-se-á formado assim uma ideia quase exacta desta enorme aglomeração de tribos diversas, todas actualmente compreendidas na designação geral de exércitos tártaros.

      Cinquenta mil destes soldados formavam a cavalaria. Os cavalos não ofereciam menos variedade que os cavaleiros. Entre estes animais, presos por grupos de dez a duas cordas fixadas paralelamente uma à outra, com a cauda enrolada em nó, a garupa e as ancas envolvidas numa rede de seda preta, distinguiam-se os turcomanos, finos de pernas, grandes de altura, luzidios de pêlo e garbosos de passo, os usbeques, velozes na carreira, os quirguizes, de pêlo claro, apanhados sobre as margens do rio Emba por meio da arcana, que é para os tártaros o mesmo que o laço para os índios da América, os khokhandianos, que, além do cavaleiro, transportam duas tendas e uma bateria completa de cozinha, e ainda muitos outros produtos de raças cruzadas, inferiores a estes em qualidade.

      As bestas de carga contavam-se por milhares. Eram os camelos, pequenos mas de proporções harmoniosas, com o pêlo comprido, espesso e abundante, especialmente sobre o pescoço, animais submissos e muito mais fáceis de atrelar que o dromedário. Seguiam-se-lhes os nars, outra espécie com uma só giba e o pêlo de um vermelho-escuro formando fartos anéis. Por último, viam-se os burros, afeitos ao trabalho, cuja carne, muito apreciada pelos tártaros, constitui para eles uma parte da alimentação. Sobre este conjunto de homens e animais, os cedros e os pinheiros, dispostos em frondosos grupos, espalhavam uma sombra ameníssima, interrompida num ou noutro ponto pela indiscreta claridade de alguns raios luminosos.

      Nada na realidade tão pitoresco e animado como este quadro, em cuja reprodução o mais opulento dos coloristas esterilmente esgotaria todos os recursos da sua paleta.

      Quando os prisioneiros feitos em Kolyvan passaram por diante das tendas de Féofar-Cã e dos grandes dignitários, rufaram os tambores e soaram as charamelas. A estes sons ruidosos juntaram-se as estridentes descargas da mosquetaria e a detonação mais grave das peças de calibre quatro e seis, que formavam a artilharia do emir.

      A instalação de Féofar-Cã era simplesmente militar. Aquilo que se poderia chamar a sua casa civil, o seu harém e os haréns dos seus aliados tinham ficado em Tomsk, actualmente em poder dos tártaros.

      Logo que o acampamento se levantasse, é que Tomsk passaria a servir de residência do emir Féofar, enquanto ele não pudesse trocar esta cidade pela capital da Sibéria oriental.

      A tenda de Féofar-Cã dominava todas as outras, no centro de uma clareira a que serviam de fundo admiráveis bétulas e colossais pinheiros. Adornavam-na largos cortinados de um tecido de seda brilhantíssimo, com franjas douradas, apanhados por cordões rematados com borlas de ouro. Diferentes penachos e flâmulas, que o vento agitava como leques, e outros variados troféus, que se entrelaçavam em formas caprichosas, encimavam o fecho desta oriental e guerreira habitação.

      Diante dela, sobre uma mesa de laca incrustada de pedras preciosas, via-se aberto o livro sagrado do Corão, com as páginas finamente gravadas em delicadíssimas folhas de ouro. Por cima flutuava o pavilhão tártaro, tendo ao alto as armas do emir.

      Ao redor da clareira levantavam-se, em semicírculo, as tendas dos grandes funcionários de Bucara. Ali residiam o chefe das cavalariças, que tem o direito de seguir a cavalo o emir até à entrada do seu palácio, o grande falcoeiro, o husch-bégui, portador do selo real, o toptschi-baschi, grão-mestre da artilharia, o kodja, chefe do conselho, que recebe a distinção de ser beijado pelo príncipe e que pode apresentar-se diante dele com o cinto despregado, o seheikh-ul-islam, chefe dos ulemás, representante dos sacerdotes, o caziaskev, que na ausência do emir julga todas as contestações suscitadas entre os militares, e, finalmente, o chefe dos astrólogos, cujo emprego consiste em consultar as estrelas sempre que o emir pensa em sair de um para outro ponto.

      Este, na ocasião em que os prisioneiros chegavam ao acampamento, estava recolhido na sua tenda. Foi salutar a sua ausência. Uma palavra ou um gesto seu bastariam para servir de sinal a uma horrorosa carnificina. Ele, porém, encontrava-se naquele isolamento que constitui em parte a majestade dos monarcas orientais. O que se não vê mais facilmente se admira e mais facilmente se teme.

      Os prisioneiros foram metidos num cerrado. Aqueles infelizes, maltratados, escarnecidos e expostos às intempéries, ficariam ali esperando que Féofar-Cã dispusesse deles a seu bel-prazer.

      De todos estes prisioneiros, o mais dócil, se não o mais sofredor, era com certeza Miguel Strogoff. Deixava-se levar sem reagir, porque desta forma se ia aproximando sempre do ponto aonde queria chegar e em melhores condições do que o poderia fazer entregue aos seus próprios recursos. Tentar uma evasão antes de entrar em Tomsk era expor-se a ser de novo apanhado pelos exploradores que batiam a estepe. A linha mais oriental ocupada agora pelas colunas tártaras não se prolongava além do octogésimo segundo meridiano, que passa por Tomsk. Se Miguel Strogoff conseguisse transpor este meridiano, ficaria livre das hordas inimigas, podendo atravessar sem perigo o Yenisei e aproximar-se de Krasnoiarsk antes que Féofar-Cã invadisse esta província.

      - Logo que esteja em Tomsk - dizia ele consigo mesmo a fim de refrear alguns movimentos de impaciência de que nem sempre era senhor -, achar-me-ei em poucos minutos para lá dos postos avançados, e doze horas que possa ganhar sobre Féofar-Cã, outras doze sobre Ivan Ogareff, bastarão para que chegue primeiro do que eles a Irkutsk.

      O que, sobretudo, receava Miguel Strogoff era, e com razão, a presença de Ivan Ogareff no acampamento tártaro. Além do perigo de ser reconhecido, sentia, por uma espécie de instinto, que lhe convinha especialmente fugir dele. Preocupava-o também a junção das tropas de Ivan Ogareff com as de Féofar-Cã, de que resultaria o exército invasor poder marchar em massa sobre a capital da Sibéria oriental. As suas apreensões provinham todas da possibilidade de se realizar esta junção, por isso, a cada instante se punha a observar se os clarins anunciariam a chegada ao acampamento do lugar-tenente do emir.

      A estes receios juntavam-se as saudades de sua mãe e de Nadia, uma retida em Omsk, a outra arrebatada pelos tártaros no Irtyche, e sem dúvida alguma cativa também, como a velha Marfa. E Miguel Strogoff via-se na impossibilidade de ser útil a qualquer delas! Torná-las-ia a ver? Ante semelhante incerteza apertava-se-lhe de amargura o coração.

      Da mesma forma que Miguel Strogoff e muitos outros prisioneiros, também Alcide Jolivet e Harry Blount haviam sido transportados para o acampamento. O correio do czar, surpreendido como eles na estação telegráfica, sabia que os tinha agora por companheiros neste mesmo cerrado, cujas saídas eram vigiadas por numerosas sentinelas. Contudo, não julgou prudente acercar-se deles. Pouco lhe importava o juízo que os dois jornalistas, depois daquela fatal cena de Ichim, pudessem formar a seu respeito. O que ele pretendia era estar só para só também dirigir os seus movimentos.

      Alcide Jolivet, depois que o seu colega caiu ferido junto dele, nunca mais deixou de lhe prodigalizar os maiores cuidados e carinhos.

      Durante o enfadonho trajecto de Kolyvan para o acampamento, isto é, durante muitas horas de marcha, Harry Blount, apoiado ao braço do seu colega, lá foi seguindo como pôde a leva dos prisioneiros. Quis, é certo, fazer valer a qualidade de súbdito britânico, mas de nada lhe serviu essa tentativa, em presença de bárbaros que só sabiam argumentar com cutiladas e lançadas. O correspondente do Daily Telegraph teve, pois, de se sujeitar à sorte comum, embora lhe ficasse livre o direito de reclamar posteriormente contra a maneira como fora tratado. O trajecto, porém, tornou-se-lhe bastante difícil, em consequência do ferimento recebido, e, sem o generoso auxílio de Alcide Jolivet, talvez que o fleumático jornalista não tivesse podido chegar ao acampamento.

      Alcide Jolivet, a quem uma filosofia prática nunca abandonava, procurou, física e moralmente, animar o colega por todos os meios ao seu alcance. O primeiro cuidado que teve, apenas chegou ao termo da jornada, foi sondar a ferida de Harry Blount. Para esse fim despiu-lhe com muita cautela o casaco, verificando que ele apenas fora atingido de raspão, no ombro, por um estilhaço de metralha.

      - Isto não é nada - disse ele -, uma simples arranhadura. Com dois ou três curativos, o meu colega ficará bom de todo.

      - E esses curativos?... - perguntou Harry Blount.

      - Eu mesmo lhos farei.

      - Pois também sabe de medicina?

      - Todos os franceses são mais ou menos médicos.

      E, dizendo isto, Alcide Jolivet rasgou ao meio um lenço de assoar, fazendo de uma das metades fios e da outra chumaços. Depois foi buscar água a um poço, que havia próximo, lavou a ferida, que felizmente não era grave, e com o maior jeito e delicadeza colocou um pacho de fios molhados sobre o ombro do ferido.

      - Estou-o tratando pelo sistema hidropático - informou ele.

      - A água é ainda o mais eficaz sedativo que se conhece para o tratamento de feridas, e hoje o mais adoptado. Os médicos levaram seis mil anos para descobrir esta verdade! É tal e qual! Seis mil anos em números redondos.

      - Aceite os meus agradecimentos, Sr. Jolivet - disse Harry Blount, estendendo-se sobre uma cama de folhas secas preparada pelo correspondente francês à sombra de uma bétula.

      - Não há de quê. O Sr. Blount, no meu caso, teria feito o mesmo.

      - Não sei... - respondeu um pouco ingenuamente Harry Blount.

      - Qual não sabe! Os ingleses são generosos.

      - Decerto, mas os franceses...

      - Os franceses têm bom fundo. São talvez uns tolos, não discuto isso, mas o que os resgata é serem franceses. Não se fala mais de agradecimentos, ou, para melhor dizer, não se fala mais seja em que assunto for. O colega precisa absolutamente de repouso.

      Mas Harry Blount não desejava estar calado. Se o ferido devia,, por prudência, cuidar de si, o correspondente do Daily Telegraph não era homem para estar por isso.

      - Sr. Jolivet, supõe que os nossos telegramas chegassem a passar a fronteira russa? - perguntou Blount.

      - E porque não? A estas horas a minha interessante prima sabe já o que deve pensar acerca do combate de Kolyvan.

      - De quantos mil exemplares é a tiragem de sua prima? - Inquiriu Harry Blount, que pela primeira vez formulava directamente uma pergunta de certo modo inconveniente ao seu confrade.

      - Bom! - respondeu a rir Alcide Jolivet. - Minha prima é uma senhora muito discreta, que não gosta de que se ocupem dela e que ficaria sumamente contrariada se soubesse que podia perturbar o sono de que o amigo tanto precisa.

      - Não tenho vontade de dormir - afirmou o inglês. – Que pensará sua interessante prima com referência à invasão dos tártaros?

      - Que não caminha actualmente com muita vantagem para a Rússia. Mas, no fim de contas, o Governo moscovita é poderoso, não pode inquietar-se grandemente com esta guerra de bárbaros, nem a Sibéria, apesar dos reveses iniciais, deixará de fazer parte do império.

      - O excesso de ambição tem perdido os grandes impérios - ponderou Harry Blount, que não deixava de ter uma certa inveja “inglesa” acerca das pretensões russas sobre a Ásia central.

      - Oh! Não falemos de política - atalhou Alcide Jolivet. - Isso está proibido pela faculdade. A política é prejudicial para os ferimentos no ombro, a não ser que seja aproveitável para sossego dos feridos.

      - Falemos então do que nos cumpre fazer - volveu Harry Blount. - Eu não sinto a menor disposição de ficar aqui indefinidamente prisioneiro dos tártaros.

      - Nem eu tão-pouco.

      - Trataremos, pois, de fugir na primeira ocasião?

      - Assim será, se não houver outro meio de recuperar a liberdade.

      - Sabe de algum outro? - perguntou Harry Blount, olhando para o colega.

      - Certamente! Nós não somos beligerantes, somos neutros. Por consequência reclamaremos.

      - A quem? A esse selvagem de Féofar-Cã?

      - Qual! Não nos compreenderia - respondeu Alcide Jolivet. - Reclamaremos ao seu imediato, ao seu lugar-tenente Ivan Ogareff.

      - Esse é um patife!

      - De acordo, mas é um patife russo. Não ignora, portanto, que se não brinca impunemente com o direito das gentes, e, por fim, que interesse pode ele ter em nos conservar aqui? Há só uma coisa que me prende.

      - Qual?

      - É que não me sorri a ideia de ter de pedir um favor àquele sujeito.

      - Mas ele não está no acampamento, pelo menos eu não o vi - observou Harry Blount.

      - Há-de vir, isso não falha. Precisa de juntar-se ao emir. A Sibéria está cortada pelo meio e, naturalmente, o exército de Féofar-Cã só espera por ele para marchar sobre Irkutsk.

      - E logo que nos acharmos livres que faremos?

      - Assim que isso aconteça, continuaremos também a nossa campanha, seguindo os tártaros, até que os acontecimentos nos permitam passar para o lado oposto. Convém não abandonar a partida. Que demónio! Nós apenas estamos no princípio. O colega já teve a fortuna de ser ferido ao serviço do Daily Telegraph, enquanto eu ainda estou ileso ao serviço de minha prima. Vamos! Vamos! Bem - ajuntou em voz baixa Alcide Jolivet.

      - Deixou-se adormecer! Algumas horas de sono e algumas compressas de água fria bastarão para pôr de pé um inglês. Esta gente parece de ferro batido.

      E, enquanto Harry Blount dormia, Alcide Jolivet velava junto dele, depois de sacar do bolso a carteira, que foi enchendo de notas, muito decidido a reparti-las com o colega, para maior satisfação dos leitores do Daily Telegraph.

      Os acontecimentos haviam-nos ligado estreitamente. Era, pois, tempo que deixassem de existir rivalidades entre eles.

     

     Ivan Ogareff

      Enquanto Harry Blount e Alcide Jolivet desejavam ardentemente a chegada de Ivan Ogareff ao acampamento, Miguel Strogoff fazia votos para que ele não viesse. De facto, os dois jornalistas tinham tudo a ganhar, logo que lhes fosse reconhecida a sua qualidade de correspondentes estrangeiros. O lugar-tenente do emir não deixaria de os pôr em liberdade, obrigando Féofar-Cã a transigir sobre este ponto, embora o sultão de Bucara tivesse vontade de os tratar como espiões.

      Os interesses de Alcide Jolivet e de Harry Blount eram contrários aos de Miguel Strogoff. Este compreendeu tão bem a sua situação e a deles que daí em diante buscou ainda com mais empenho evitar qualquer circunstância que pudesse aproximá-lo dos seus antigos companheiros de viagem.

      Passaram-se quatro dias, durante os quais não houve a menor alteração neste estado de coisas. Os prisioneiros ignoravam se o acampamento estava ou não para ser levantado. Vigiados de perto e com severidade, ser-lhes-ia impossível atravessar o cordão de soldados, a pé e a cavalo, que os guardava de noite e dia. A comida destes infelizes, além de péssima, era deficientíssima. Apenas duas vezes em cada vinte e quatro horas se lhes distribuía uma porção de intestinos de cabra, assados em cima de brasas, ou uns bocados de queijo chamado kruta, feito com leite azedo de ovelha, e que, misturado com leite de égua constitui o manjar quirguiz vulgarmente conhecido pelo nome de kumyss. Nisto se cifrava todo o seu alimento! Acrescente-se, também, que o tempo se tornara detestável. Na atmosfera tinham-se produzido grandes perturbações, dando em resultado uma sucessão de trovoadas e de chuvas copiosas. Os prisioneiros, privados de abrigo e conforto, haviam suportado estas insalubres intempéries sem que os seus verdugos sequer pensassem em lhes suavizar os sofrimentos. Alguns feridos de Kolyvan e muitas mulheres e crianças foram vítimas de tão grande desumanidade, e os seus cadáveres teriam ficado por enterrar se aqueles que sobreviviam não lhes dessem sepultura!

      Alcide Jolivet e Miguel Strogoff, cada um por seu lado, mostraram-se incansáveis nestes dias de provação. Ambos diligentes e serviçais, multiplicavam-se com solicitude, acudindo cheios de zelo aonde os seus companheiros mais precisavam deles.

      Menos quebrantados pela fadiga que muitos outros, e, além disso, robustos por natureza, conseguiram resistir a esta série de inclemências, repartindo os seus conselhos e cuidados por todos aqueles que padeciam e se desesperavam.

      Prolongar-se-ia por muito tempo semelhante situação? Féofar-Cã, satisfeito dos seus primeiros triunfos, quereria demorar-se ainda alguns dias antes de prosseguir na sua marcha sobre Irkutsk? Podia talvez suspeitar-se que assim fosse, mas as circunstâncias incumbiram-se de mostrar o contrário.

      O acontecimento que Harry Blount e Alcide Jolivet desejavam tanto quanto Miguel Strogoff o temia veio a realizar-se na manhã de 17 de Agosto.

      Notou-se nesse dia um estranho movimento. Ouviram-se toques das charamelas, rufaram os tambores e sucederam-se as descargas. É que, para os lados de Kolyvan, levantava-se uma espessa nuvem de poeira, e Ivan Ogareff, seguido de muitos milhares de soldados, entrava no acampamento do emir.

      Era um verdadeiro corpo de exército que ele trazia consigo. Os seus diversos regimentos de cavalaria e de infantaria formavam parte da coluna que se tinha apoderado de Omsk. Ivan Ogareff, não podendo tomar a cidade alta, na qual, como se sabe, se haviam concentrado o governador e a guarnição, desistira por fim desse propósito, para não protrair as operações de que dependia a conquista da Sibéria oriental. Deixara, pois, uma guarnição suficiente na cidade baixa e viera reunir-se ao grosso do exército de Féofar-Cã, marchando à frente das suas hordas e reforçando-as pelo caminho com os vencedores de Kolyvan.

      Os soldados de Ivan Ogareff fizeram alto quando chegaram aos postos avançados do acampamento. Não tiveram ordem para acampar. O projecto do seu general era sem dúvida conduzi-los a Tomsk, cidade importante, destinada, naturalmente, a tornar-se quanto antes o centro das próximas operações.

      Além dos seus regimentos, Ivan Ogareff era também acompanhado por uma leva de russos e siberianos, aprisionados em Omsk e nas diferentes localidades por onde o traidor acabava de passar como vitorioso. Estes infelizes, não podendo ser reunidos aos que já se acumulavam no cerrado, foram mandados distribuir pelos postos avançados, onde ficaram sem abrigo e quase sem alimento. Que sorte lhes destinaria Féofar-Cã? Interná-los-ia em Tomsk, ou reservá-los-ia para algum desses bárbaros suplícios, tão familiares aos chefes tártaros? Só o próprio emir poderia dizê-lo.

      As forças de Ivan Ogareff não tinham saído de Omsk sem trazerem atrás de si essa turba de mendigos, de forrageadores e de boémios que formam habitualmente a retaguarda de um exército em campanha. Todos estes indivíduos, vivendo à custa das localidades que atravessavam, não haviam deixado muito que pilhar para os que viessem depois deles. Tornava-se, portanto, indispensável avançar, ainda que mais não fosse senão para assegurar munições de boca às imensas colunas expedicionárias. Toda a região compreendida entre as margens do Ichim e do Obi, batida pelos exploradores, estava já completamente exausta de recursos.

      Era, pois, um deserto que os tártaros iam deixando por onde passavam, deserto que os próprios russos teriam dificuldade em atravessar posteriormente.

      Entre esses boémios, vindos das províncias ocidentais, figurava o bando tzigano que tinha viajado com Miguel Strogoff a bordo do Cáucaso e que era dirigido por Sangarra. Esta espia, semi-bárbara, alma danada de Ivan Ogareff, nunca desamparava o seu senhor. Viu-se como ambos prepararam em comum, no governo de Nijni-Novgorod, o seu plano de conspiração, e como ambos conseguiram passar despercebidos às investigações da polícia. Fora também juntos que ambos tinham atravessado a cadeia dos Urais, separando-se apenas durante alguns dias - Ivan Ogareff para seguir mais rapidamente, via Ichim, Sangarra para dar entrada com as suas boémias em Omsk, pelo Sul da província.

      Pode imaginar-se facilmente a vantagem que representava para Ivan Ogareff o concurso desta mulher. Pelas suas boémias entrava ela em toda a parte, ouvindo e observando o que se dizia. Ivan Ogareff conhecia até o que se passava no coração das províncias invadidas. Eram cem olhos, cem ouvidos trabalhando por sua conta com afinco e boa vontade. De resto, ele pagava sempre com generosidade esta espionagem, de que tão bons resultados colhia.

      Sangarra, condenada noutro tempo a uma pena grave, tinha sido salva por este oficial russo. Reconhecida desde então pelo favor recebido, nunca mais deixara de pertencer de corpo e alma ao seu salvador.

      Ivan Ogareff, ao lançar-se nos tortuosos caminhos da traição, compreendera logo o partido que podia tirar desta mulher. Fossem quais fossem as ordens que lhe desse, Sangarra executava-as sempre com o maior zelo. Um instinto inexplicável, superior decerto ao da gratidão, levara esta boémia a fazer-se escrava do traidor. Confidente e cúmplice, sem pátria e sem família, Sangarra punha dedicadamente a sua existência vagabunda ao serviço dos invasores, que Ivan Ogareff arremessava sobre a Sibéria. À prodigiosa e natural astúcia da sua raça juntava Sangarra uma energia feroz, incapaz de perdão ou piedade. Era uma selvagem digna de compartir o zuigzuam de um apache ou a choça de uma andamaniana.

      Desde que chegara a Omsk, na companhia das suas tziganas, nunca mais se afastara de junto do seu senhor.

      A situação que pusera Marfa Strogoff em presença de seu filho não lhe era desconhecida. Os receios que perseguiam Ivan Ogareff, com referência à viagem de um correio mandado de Moscovo a Irkutsk, também ela os conhecia e também neles tomava parte. Sangarra era, finalmente, bastante perversa para pôr a tratos a mãe de Miguel Strogoff, com todo o requinte de um pele-vermelha, a fim de lhe arrancar do peito o segredo que ela se obstinava em lá guardar.

      Contudo, Ivan Ogareff ainda não julgara chegado o momento de obrigar a velha siberiana a fazer revelações. Assim, pois, Sangarra continuava a esperar com paciência, não perdendo de vista a sua vítima, espiando-a noite e dia, espreitando-lhe todos os gestos e procurando inutilmente ouvir-lhe pronunciar a palavra “filho”, que Marfa Strogoff, com inalterável impassibilidade, persistia em não deixar sair dos lábios.

      Apenas ressoaram no acampamento os primeiros sons das charamelas e dos tambores, o grão-mestre de artilharia e o chefe das cavalariças do emir partiram logo ao encontro de Ivan Ogareff, seguidos de um ruidoso e brilhante esquadrão de usbeques a cavalo.

      Chegados à sua presença, prestaram-lhe as devidas honras militares e ofereceram-se para o acompanhar até à tenda de Féofar-Cã.

      Ivan Ogareff, imperturbável como sempre, correspondeu friamente às atenções dos altos funcionários que tinham vindo recebê-lo. Vestia com extrema simplicidade, mas, por uma bravata impudente, ainda trazia o uniforme de oficial russo.

      No momento em que largava as rédeas ao cavalo para transpor a entrada do acampamento, Sangarra, atravessando por entre os oficiais do esquadrão, aproximou-se dele e ficou imóvel.

      - Nada? - perguntou-lhe Ivan Ogareff.

      - Nada.

      - Sê paciente.

      - Esperas obrigá-la a falar dentro em pouco?

      - Espero, Sangarra.

      - Quando?

      - Quando chegarmos a Tomsk!

      - E quando chegaremos lá?

      - Daqui a três dias.

      Os rasgados olhos pretos de Sangarra faiscaram de brilho, depois, a boémia afastou-se com passo vagaroso.

      Ivan Ogareff chegou as esporas ao cavalo e, acompanhado do seu estado-maior, composto de oficiais tártaros, dirigiu-se para a tenda do emir.

      Féofar-Cã estava à espera do seu lugar-tenente. O conselho, formado pelo kodja, pelo portador do selo real e por vários outros altos dignitários, ocupava os seus respectivos lugares em redor do príncipe asiático.

      Ivan Ogareff apeou-se e penetrou na tenda, adornada interiormente com excessiva opulência e toda atapetada de alcatifas bucarianas, sob cuja espessa felpa desapareciam os pés.

      Ivan Ogareff achou-se em frente do emir.

      Féofar-Cã era um homem de quarenta anos, alto, rosto pálido, olhar feroz e fisionomia cruel. Uma barba preta, formando sucessivos anéis, descia-lhe sobre o peito. O seu trajo de guerra compunha-se de uma cota de malha de prata e ouro, talabarte cravejado de pedras preciosas, sabre curvo como um latagã, com a bainha recamada de gemas cintilantes, botas com acicates de ouro e capacete adornado por uma roseta de diamantes, que ofuscavam pela esplêndida intensidade de seus lumes.

      Féofar-Cã assim vestido oferecia à vista o aspecto de um Sardanapalo, mais extravagante que imponente. Era este o soberano que dispunha a seu capricho da vida e fortuna dos seus vassalos e a quem, por especial privilégio do seu ilimitado poder, se dava em Bucara a designação de emir.

      No momento em que se apresentou Ivan Ogareff, os grandes dignitários deixaram-se ficar sentados nos seus coxins de veludo franjados de ouro. Féofar, porém, levantou-se de um rico divã em que a profusão dos bordados quase escondia a cor dos estofos.

      O emir caminhou para Ivan Ogareff e deu-lhe um beijo, o que tinha altíssima significação. Este beijo fazia do seu lugar-tenente o chefe do conselho e colocava-o temporariamente acima do próprio kodja. Depois, dirigindo-se a Ivan Ogareff:

      - Não preciso interrogar-te - disse Féofar-Cã. - Fala, Ivan.

      Todos aqui te aguardavam como aquele que muito prezamos.

      - Takhsir! (Tratamento que se dá aos sultões de Bucara, equivale a “Sire”) - respondeu Ivan Ogareff -, prepara-te para me ouvires.

      Ivan Ogareff exprimia-se em tártaro e dava às suas palavras a expressão enfática que tanto caracteriza a linguagem dos orientais.

      - Takhsir, urge que não gastemos o tempo em vãs palavras. O que eu fiz à frente das tuas tropas sabe-lo tu de sobra. Pertencem-nos as linhas do Ichim e do Irtyche, e os cavaleiros turcomanos já podem banhar os seus cavalos nas águas daqueles rios tornados tártaros pelo valor dos nossos soldados. As hordas dos quirguizes levantaram-se à voz poderosa de Féofar-Cã, e é teu todo o caminho que se estende desde Ichim a Tomsk. Podes agora, pois, arremessar as tuas colunas, quer sobre as províncias siberianas onde o Sol nasce, quer sobre aquelas onde o Sol se esconde.

      - E se dirigir o meu corcel para as regiões onde se esconde o Sol? - perguntou o emir, que ouvia Ivan Ogareff sem que no rosto desse a perceber os seus íntimos pensamentos.

      - Se marchares para o poente - respondeu Ivan Ogareff -, aproximar-te-ás da Europa, conquistando na tua passagem triunfal todo o país desde Tobolsk até à cadeia dos Urais.

      - E se me lançar na direcção em que esse facho luminoso se levanta?

      - Fá-lo-ás cair no teu domínio, juntamente com o mais opulento solo da Sibéria.

      - E os exércitos do sultão de Petersburgo? – insistiu Féofar-Cã, designando por este caprichoso título o imperador da Rússia.

      - Nada receies dele, Takhsir - respondeu Ivan Ogareff. – A invasão foi tão rápida que Tobolsk ou Irkutsk hão-de ser tuas antes que as forças russas possam correr em seu auxílio. Os soldados do czar foram vencidos em Kolyvan, como hão-de sê-lo por toda a parte onde as tuas armas se encontrem frente a frente com as hordas moscovitas.

      - E que plano te inspira a tua dedicação pela nossa causa? - Inquiriu o emir, depois de alguns momentos de silêncio.

      - O meu plano - volveu com vivacidade Ivan Ogareff -, consiste em marchar em oposição ao curso do sol, em dar a pastar aos nossos cavalos a erva fresca e abundante das estepes orientais. O meu plano é tomar Irkutsk, capital das províncias de leste, e, juntamente com ela, fazer cair em nosso poder o refém cuja posse vale tanto como um país inteiro. Cumpre que, à falta do czar, seja o grão-duque seu irmão.

      Era esta a verdadeira e suprema aspiração do traidor Ivan Ogareff.

      Ouvindo-o falar assim, julgar-se-ia que ele era algum desses cruéis descendentes de Stepan-Razine, o célebre pirata que devastou a Rússia meridional no século XVIII. Apoderar-se do grão-duque, feri-lo sem piedade, tal era o objectivo que o seu ódio tinha por mira. Além disso, a tomada de Irkutsk colocava imediatamente sob o domínio dos tártaros toda a Sibéria oriental.

      - Que ordens são as tuas, Takhsir?

      - Ordeno que o nosso quartel-general seja hoje mesmo transferido para Tomsk.

      Ivan Ogareff inclinou-se respeitosamente e, seguido do husch-bégui, saiu de pronto para pôr em execução as determinações do emir.

      No momento em que ele ia a montar a cavalo, a fim de voltar aos postos avançados, sentiu-se a curta distância um tumulto, que partia do local destinado aos prisioneiros. Ouviram-se gritos e logo depois a detonação de dois ou mais tiros de espingarda.

      Seria porventura alguma tentativa de revolta ou de evasão que se tratava sumariamente de reprimir?

      Ivan Ogareff e o husch-bégui deram alguns passos para diante, quando, quase de repente, lhes apareceram dois homens, que os soldados mal podiam segurar.

      O husch-bégui, sem mais preâmbulos, fez um gesto que equivalia a uma sentença de morte, e as cabeças destes dois homens iam rolar no chão quando Ivan Ogareff proferiu algumas palavras que suspenderam o sabre já levantado sobre elas.

      O russo acabava de reconhecer que os dois presos eram estrangeiros, e deu ordem para que os levassem à sua presença.

      Eram efectivamente Harry Blount e Alcide Jolivet.

      Desde a chegada de Ivan Ogareff ao acampamento que eles pediam, mas em vão, para que os conduzissem à presença do lugar-tenente do emir. Desta recusa resultou uma tentativa de fuga, seguida de luta entre os correspondentes e as suas sentinelas que dispararam alguns tiros, os quais não chegaram felizmente a feri-los. Entretanto, a sua execução não se teria feito esperar, em vista do expressivo gesto do husch-bégui, se o lugar-tenente do emir não interviesse tão a-propósito.

      Ivan Ogareff examinou com atenção os dois estrangeiros, que lhe eram completamente desconhecidos. Podia-os ter visto na estação de Ichim, quando ali encontrou Miguel Strogoff, contudo, não fizera então reparo algum nas pessoas que tinham presenciado o seu brutal conflito com o correio do czar.

      Harry Blount e Alcide Jolivet, pelo contrário, haviam-no reconhecido perfeitamente, a ponto de este último dizer em voz baixa para o colega:

      - Ora esta! Parece que o coronel Ogareff e o agressor de Ichim são ambos o mesmo indivíduo.

      Depois, acrescentou ao ouvido de Harry Blount:

      - Exponha o nosso caso, meu caro Blount. Obsequiar-me-á nisso extraordinariamente. Este oficial russo no meio dos tártaros faz-me nojo, e, se bem que lhe deva a mercê de estar ainda com a cabeça sobre os ombros, não poderia fitá-lo de frente sem sentir por ele invencível repugnância.

      E, dizendo isto, Alcide Jolivet fez gala em mostrar por Ivan Ogareff a mais completa e altiva indiferença.

      Ivan Ogareff compreenderia acaso o que tinha para ele de ofensiva aquela atitude do prisioneiro? Se o percebeu, não o deu a conhecer.

      - Quem são os senhores? - perguntou ele em russo, com modos secos, mas sem aquela aspereza que era a verdadeira pedra de toque do seu carácter.

      - Dois correspondentes de jornais que se publicam em Londres e Paris - respondeu friamente Harry Blount.

      - Trazem papéis que possam autenticar a vossa identidade?

      - Aqui estão algumas cartas que nos acreditam na Rússia junto das nossas respectivas embaixadas.

      Ivan Ogareff pegou nas cartas que lhe apresentava Harry Blount e leu-as com atenção. Depois acrescentou:

      - Pretendem seguir as nossas operações na Sibéria?

      - Pretendemos apenas ser postos em liberdade – retorquiu secamente Harry Blount.

      - Já o estão, meus senhores - respondeu Ivan Ogareff. – E deixe-me dizer-lhe, que teria certo empenho em ler as suas crónicas no Daily Telegraph.

      - Cada número custa seis pence, fora o porte do correio - replicou Harry Blount com o mais imperturbável sangue-frio.

      E, em seguida, Harry Blount olhou para o colega, que pareceu aprovar completamente a propriedade da resposta.

      Ivan Ogareff não pestanejou e, montando a cavalo, pôs-se à frente da sua escolta, desaparecendo imediatamente numa nuvem de poeira.

      - Então, meu amigo, o que pensa do coronel Ivan Ogareff, general-chefe dos exércitos tártaros? - perguntou Harry Blount.

      - Penso, meu caro colega - respondeu a rir Alcide Jolivet -, que o husch-bégui teve um gesto admirável quando ordenou que nos cortassem a cabeça.

      Fosse qual fosse a razão que levara Ivan Ogareff a ser generoso com os dois jornalistas, o certo é que ambos estavam livres, podendo por consequência percorrer sem obstáculos o teatro da guerra, como era sua intenção. A espécie de antipatia que tinham anteriormente sentido um pelo outro convertera-se em sincera amizade. Unidos pelos acontecimentos, não pensavam já em separar-se, agora que as mesquinhas questões de rivalidade haviam de todo desaparecido. Harry Blount nunca poderia esquecer o que devia ao seu companheiro, embora este procurasse apagar-lhe da memória os serviços já prestados. Finalmente, as relações íntimas dos dois correspondentes, auxiliando-se mutuamente, deviam traduzir-se em proveito manifesto dos seus respectivos leitores.

      - E agora, - perguntou Harry Blount -, que faremos da nossa liberdade?

      - Utilizarmo-nos dela, já se deixa ver - respondeu Alcide Jolivet -, partindo quanto antes para Tomsk, a fim de presenciar o que lá se passa.

      - Até que na primeira ocasião possamos reunir-nos a alguma divisão russa.

      - Exactamente, meu caro Blount. A parte brilhante da actual campanha não pode deixar de pertencer àqueles que trazem com as suas armas os frutos da civilização. Esta onda invasora, com que os povos da Ásia central têm tudo a perder e nada a lucrar, há-de ser mais dia menos dia repelida pelos russos. Isso depende apenas de uma simples questão de tempo. Em vista, pois, do que certamente acontecerá, parece-me que o melhor é não nos deixarmos tartarizar.

      E Harry Blount demonstrou com um gesto afirmativo que aceitava perfeitamente as considerações do seu colega.

     

     As duas cativas

      A chegada de Ivan Ogareff, que tinha proporcionado a liberdade a Harry Blount e a Alcide Jolivet, poderia ser motivo para Miguel Strogoff de uma nova e perigosa complicação.

      Efectivamente, se o acaso permitisse que o correio do czar fosse visto por Ivan Ogareff, era muito de supor que este se recordasse de o ter encontrado na estação de Ichim, e, conquanto Miguel Strogoff não houvesse respondido ao insulto ali recebido, isso não impediria que o seu agressor o reconhecesse, tornando-se por consequência difícil, se não impossível, a continuação da sua viagem.

      Era este o lado mau da questão para Miguel Strogoff. Contudo, uma consequência vantajosa resultou logo para ele da chegada de Ivan Ogareff: a ordem de se levantar o acampamento e de se transferir para Tomsk o quartel-general de Féofar-Cã.

      Era este o mais ardente desejo de Miguel Strogoff. O seu fim, como se sabe, era chegar a Tomsk confundido com os outros prisioneiros, isto é, sem correr o perigo de cair nas mãos dos exploradores tártaros que infestavam os arredores desta importante cidade siberiana.

      Todavia, com a chegada de Ivan Ogareff ao acampamento, e com o receio de ser por ele reconhecido, Miguel Strogoff perguntava a si próprio se não seria melhor renunciar ao seu primeiro projecto, substituindo-o antes por uma evasão durante a viagem para Tomsk.

      Miguel Strogoff ia sem dúvida pôr em acção esta última ideia quando soube que Féofar-Cã e Ivan Ogareff já tinham partido à frente de alguns milhares de cavaleiros.

      «Esperarei, pois, a não ser que no caminho se me apresente alguma ocasião excepcional para fugir. As dificuldades que me rodeiam antes de chegar a Tomsk são enormes, enquanto diminuem imenso para lá daquela cidade. Tudo é por mim logo que eu possa em algumas horas atravessar os postos inimigos que se estendem na linha de leste. Ainda três dias de resignação, e Deus seja comigo!», pensava Miguel Strogoff.

      Era, com efeito, uma viagem de três dias que os prisioneiros, sob a vigilância de uma numerosa escolta de tártaros, tinham de fazer pela estepe. O acampamento só distava da cidade cento e cinquenta verstas, viagem fácil para os soldados do emir, bem providos do necessário, viagem penosíssima para os presos, já quebrantados por anteriores privações. Mais de um cadáver devia ficar marcando pela estrada a passagem destes infelizes!

      Foi às duas horas da tarde do dia 12 de Agosto, sob um céu claro e uma temperatura muito elevada, que o toptschi-baschi mandou pôr a caminho os prisioneiros.

      Alcide Jolivet e Harry Blount, esses, depois de terem comprado dois cavalos, haviam partido para Tomsk, onde a lógica dos acontecimentos ia brevemente reunir as principais personagens desta história.

      No número dos prisioneiros conduzidos ao acampamento por Ivan Ogareff contava-se uma velha siberiana tão concentrada e taciturna que não havia maneira de vê-la trocar uma só palavra com as suas companheiras de infortúnio. De seus lábios cerrados não saía um queixume, um gemido sequer! Dir-se-ia que era a estátua da dor. Esta mulher, quase sempre imóvel, e mais particularmente vigiada pelos guardas, estava longe de suspeitar que outra mulher, a tzigana Sangarra, a não largava de vista. Apesar da sua idade avançada, esta siberiana tivera de seguir a pé a leva dos presos desde Omsk até aqui, ao acampamento, sem que houvesse para com ela o menor vislumbre de caridade.

      Todavia, o destino providencial colocara junto dela um ente bom e corajoso, que parecia vindo do céu para lhe adoçar as amarguras e lhe suavizar as fadigas. Entre os numerosos grupos destas desventuradas, que os invasores roubavam aos carinhos da família e do lar, havia uma rapariga, tão notável pela formosura como pela impassível serenidade do seu porte, que se dedicara desde o princípio a servir de amparo àquela velhice respeitável. Nenhuma palavra ainda se trocara entre estas duas mulheres, uma no desabrochar dos anos, outra no declinar da vida, mas a mais nova nunca deixara de estar ao lado da mais idosa quando, por qualquer motivo, a sua intervenção se tornou imprescindível. É certo que a velha siberiana não aceitara desde logo sem desconfiança os silenciosos obséquios de que era alvo. Entretanto, o franco e aberto olhar da rapariga, a sua recatada reserva e a misteriosa simpatia que uma igual comunhão de sofrimentos estabelecera entre Iguais infortúnios tinham ido pouco a pouco desvanecendo a sobranceira indiferença de Marfa Strogoff.

      Nadia, pois era ela, conseguira, sem o saber, dispensar à mãe uma parte dos cuidados que havia dedicado ao filho. A sua instintiva bondade tinha-a duplamente inspirado. Protegendo a velha prisioneira, era a si própria que se protegia, porque escudava a sua formosura e mocidade no respeito que, até mesmo entre bárbaros, sempre os muitos anos incutem.

      No meio desta multidão de infelizes exacerbados pelo sofrimento, o silêncio daquelas duas mulheres, uma das quais parecia ser avó da outra, impunha a todos interesse e simpatia.

      Nadia, depois de raptada pelos soldados que guarneciam as barcas tártaras na passagem do Irtyche, tinha sido levada para Omsk. Ali esteve prisioneira como muitas outras, padecendo as mesmas inclemências que pesavam sobre todos os desgraçados caídos em poder de Ivan Ogareff. O mesmo é dizer que tivera sorte igual à de Marfa Strogoff.

      Se não fora a sua forte compleição, Nadia não teria resistido certamente ao duplo golpe que a feriu. A interrupção da sua viagem e a morte de Miguel Strogoff haviam-lhe causado uma impressão dolorosíssima. Por cúmulo de fatalidade, Nadia vira de repente desvanecerem-se todas as suas esperanças. Depois de vencidos tantos obstáculos, quando já se julgava quase nos braços de seu pai, viera a invasão afastá-la daquele ente querido, roubando-lhe, além disso, o intrépido companheiro que a Providência parecia ter colocado no seu caminho para lhe servir dedicadamente de protector e de guia!

      Do pensamento da infeliz menina não se apagava a imagem de Miguel Strogoff, que ela vira desaparecer nas águas do Irtyche, ferido de uma lançada. E devia ter assim morrido um homem como aquele? Para quem guardaria Deus os seus milagres, se este justo, que tinha com certeza uma alta missão a cumprir, sucumbira barbaramente antes de a ver concluída? Algumas vezes a cólera e a desesperação sucediam-se às lágrimas e às saudades.

      Aquele pungentíssimo ultraje, feito ao seu companheiro em Ichim, voltava-lhe então à memória, afogueando-lhe o rosto de cólera.

      - Quem vingará aquele infeliz, que já não pode vingar-se por suas mãos? - exclamava ela com exaltação. E nas suas orações a pobre menina dirigia-se ao Altíssimo, pedindo-lhe numa súplica fervorosa:

      - Senhor! Senhor! Permiti que seja eu!

      Se, antes de morrer, Miguel Strogoff tivesse tido tempo de lhe confiar o seu segredo!... Se, apesar de mulher e de criança quase, ela pudesse levar a termo a empresa incompleta deste irmão que Deus lhe não devia ter dado para lho roubar tão depressa!...

      Absorta nestes pensamentos, não era para estranhar que se mostrasse como que insensível às misérias do seu cativeiro.

      Fora então que o acaso a ligara a Marfa Strogoff sem ela o saber. E como poderia supor a jovem livoniana que esta mulher fosse a mãe do negociante de Irkutsk, Nicolau Korpanoff?

      Por seu lado, também, como poderia Marfa Strogoff adivinhar os laços de reconhecimento que prendiam esta rapariga a seu filho?

      O que de princípio atraiu Nadia para a mãe de Miguel Strogoff foi a espécie de resignação secreta com que a corajosa siberiana suportava a sua actual situação. Esta indiferença estóica pelas dores materiais que a rodeavam, este desprezo absoluto pelas privações do corpo, só podia provir de uma dor moral muito mais forte.

      Era isso que Nadia supunha, e era isso que na realidade sucedia. Foi, pois, em virtude de uma simpatia instintiva por este padecer íntimo e reservado de Marfa Strogoff que ela começou a dedicar-lhe extrema afeição. A maneira como a velha siberiana sabia suportar os seus pesares quadrava-se perfeitamente com os sentimentos varonis da filha do exilado. Esta, pois, não procurou oferecer-lhe os seus serviços: deu-lhos espontaneamente. E Marfa Strogoff, sempre Imóvel, nem teve de rejeitá-los, nem teve de agradecê-los. Nas subidas mais íngremes da estrada, Nadia achava-se sempre a seu lado para ampará-la com o auxílio do seu braço. Às horas em que os parcos alimentos eram distribuídos, Marfa Strogoff não se movia para reclamar o seu quinhão, porém, Nadia nunca deixava de repartir com ela do que tinha, e era assim que para ambas se ia encurtando pouco a pouco esta via dolorosa. Graças à protecção da sua jovem companheira, Marfa Strogoff pôde acompanhar as escoltas que iam de guarda aos presos sem ser amarrada ao arção duma das selas, como sucedia a tantos outros dos seus infelizes compatriotas.

      - Que Deus te pague, minha filha, o muito que tens feito pelos meus cansados anos - disse uma vez Marfa Strogoff, e foram estas, durante algum tempo, as únicas palavras que se trocaram entre ambas.

      As horas consumidas nesta viagem eram longas como séculos. Parecia que as duas mulheres deveriam ter pensado em aproveitá-las, conversando uma com a outra sobre as suas recíprocas situações. Entretanto, Marfa Strogoff, por melindres fáceis de avaliar, só dissera até aqui algumas palavras, e essas mesmas de extrema concisão. Não lhe convinha de modo algum aludir a seu filho, nem ao funesto encontro que tivera com ele dias antes.

      Nadia, por seu lado, mostrava-se também, se não muda, pelo menos sóbria, não pronunciando palavras desnecessárias. Contudo, uma vez, reconhecendo que tinha diante de si quem soubesse compreendê-la, e deixando desafogar o coração, principiou a contar a Marfa Strogoff, sem encobrir nenhum, todos os acontecimentos em que se tinha visto envolvida desde a sua partida de Wladimir até à morte de Nicolau Korpanoff. Tudo que Nadia relatava do seu esforçado companheiro parecia interessar de um modo bastante extraordinário à velha siberiana.

      - Nicolau Korpanoff - disse ela - Conheço apenas um homem, um só entre toda a mocidade de agora, que era capaz de fazer o que esse fez. E chamava-se deveras Nicolau Korpanoff? Estás bem certa disso, minha filha?

      - Para que me enganaria ele sobre esse ponto, se foi sempre tão leal comigo em tudo o mais?

      Entretanto, Marfa, movida por uma espécie de pressentimento, dirigia à sua companheira perguntas sobre perguntas.

      - Disseste-me que era intrépido, minha filha. Provaste-me que o tinha sido.

      - Decerto - confirmou Nadia.

      - Era assim também que se teria mostrado o meu Miguel - disse Marfa Strogoff para si mesma.

      Depois acrescentou:

      - Disseste-me também que nunca recuava diante do perigo, que nada o fazia estremecer, que era tão afectuoso no meio da sua própria força, como se juntasse aos ímpetos da coragem as meiguices de mulher, finalmente, que velara sobre ti como só poderia fazê-lo tua mãe?

      - Assim foi - afirmou Nadia. - Os extremos de irmão casavam-se nele com os afagos de mãe.

      - E via-lo sempre como um leão quando se tratava da tua defesa?

      - Um leão, na verdade! - confirmou Nadia. - Um leão... Um herói!

      - Era o meu filho! Só podia ser o meu filho! Só podia ser ele! - pensou mentalmente a velha Marfa. - Disseste-me, porém, que ele suportou uma cruel afronta na estação de posta de Ichim?

      - Assim foi - respondeu Nadia, baixando os olhos.

      - Assim foi? - perguntou Marfa Strogoff, estremecendo.

      - Não o condene, porém. Havia nas suas acções um mistério de que só Deus a estas horas pode ser juiz.

      - E... - continuou Marfa, levantando a cabeça e olhando para Nadia como se quisesse ler até ao fundo da sua consciência – e nessa hora de humilhação sentiste por ele algum desprezo?

      - Admirei-o sem o compreender - declarou Nadia. - Nunca o julguei tão digno do meu respeito como naquele momento.

      Marfa calou-se como para concentrar os seus pensamentos.

      - Era alto? - perguntou.

      - Era.

      - E de boa aparência? Vamos, fala, minha filha.

      - Tinha a beleza própria de um homem - respondeu Nadia, tingindo-se-lhe as faces de uma casta vermelhidão.

      - Era meu filho! Afianço-te que era meu filho - exclamou a velha Marfa, beijando Nadia num transporte de júbilo.

      - Teu filho?... - exclamou Nadia perplexa. - Teu filho?

      - Vamos, minha filha, acaba a tua narração. Esse companheiro, esse amigo, esse protector, tinha mãe, pois não tinha? E falava-te dela? Dize que não me engano.

      - Se falava! Falava-me dela com o mesmo carinho com que eu falava de meu pai a todos os momentos! Ah! E como ele adorava sua mãe!

      - Nadia... Nadia, a história que acabas de me contar é a história de meu filho! - exclamou a velha siberiana.

      E ajuntou com sobressalto:

      - Não te dizia ele que iria ver sua mãe, quando passasse por Omsk?

      - Não lhe era isso possível - respondeu Nadia.

      - Não?! - exclamou Marfa. - Ousas dizer-me que não!

      - Digo, mas devo também acrescentar que por motivos especiais, motivos que eu não conhecia, pareceu-me compreender que Nicolau Korpanoff era obrigado a Passar por Omsk sem se dar a conhecer.

      - Sem se dar a conhecer?

      - Ia nesse incógnito a sua salvação, mais ainda: a sua honra, o seu dever.

      - Dever na verdade, dever imperioso - tornou a velha siberiana -, um desses deveres a que tudo se sacrifica, mesmo a santa alegria de se dar um beijo à própria mãe, o último talvez! Tudo que tu não sabes, minha filha, tudo que eu própria ignorava adivinhei-o agora. Fizeste-me ver tudo num repente. Mas a luz que lançaste nas trevas da minha alma não a posso eu transmitir à tua. O segredo de meu filho, esse segredo que ele te ocultou, cumpre-me a mim guardá-lo. Perdoa-me, Nadia, se não te pago em franqueza todo o bem que me fizeste...

      - Eu nada te peço, minha mãe - interrompeu Nadia.

      Tudo se explicava para a velha Marfa, tudo, até o indecifrável procedimento de seu filho em presença daquela gente que enchia a sala da estação de posta.

      Não podia duvidar por mais tempo de que fora seu filho o companheiro de viagem concedido pela Providência à jovem livoniana. E se ele lhe ocultara com tamanha insistência o carácter oficial da sua missão é porque ia nisso algum segredo importantíssimo.

      - Ah! Meu querido filho! - dizia Marfa Strogoff de si para si. - Descansa, que te não hei-de trair. Que me importa os tormentos destes bárbaros? Nunca eles conseguirão que da minha boca saia a verdade!

      Marfa Strogoff poderia, com uma só palavra, compensar Nadia de toda a sua dedicação. Poder-lhe-ia dizer que o seu companheiro Nicolau Korpanoff, ou antes Miguel Strogoff, não sucumbira nas águas do Irtyche, visto que alguns dias depois lhe tinha ele falado em Omsk. Conteve-se, porém, limitando-se a dizer:

      - Espera, minha filha. A adversidade não há-de sempre obstinar-se em perseguir-nos. Pressagia-me o coração que verás ainda teu pai, e quem sabe mesmo se aquele a quem davas o doce nome de irmão? Deus, todo misericordioso e bom, não podia permitir que se afogasse o teu companheiro e protector. Espera, minha filha, espera sempre. A esperança é o bálsamo dos que padecem. Faze como eu. O luto que trago não é, não pode ser mais, o luto por meu filho.

      Tal era a situação em que reciprocamente se achavam Marfa Strogoff e Nadia Orlik. A velha siberiana tinha acabado por compreender perfeitamente o retraimento de seu filho em Omsk, e se a jovem livoniana ignorava ainda que Miguel Strogoff estava vivo, sabia pelo menos quais os laços que prendiam o seu chorado companheiro àquela de quem se fizera voluntariamente filha. E no seu íntimo rendia graças ao Senhor por lhe ter concedido a suprema alegria de substituir junto da pobre cativa o filho que ela perdera.

      Mas o que nenhuma das duas podia saber é que Miguel Strogoff, surpreendido na estação telegráfica, fazia parte da mesma leva de presos que, tal como elas, se dirigia agora para Tomsk.

      Os prisioneiros trazidos por Ivan Ogareff tinham sido incorporados aos que o emir já tinha no seu acampamento. Estes desgraçados, russos ou siberianos, militares ou civis, contavam-se por milhares e formavam uma coluna que se prolongava na extensão de algumas verstas. Os que entre eles se apontavam como mais perigosos iam presos com algemas e uma comprida grilheta. Havia também mulheres e crianças, ligadas ou suspensas ao arção das selas e desapiedadamente arrastadas pelas agruras do caminho. E assim se transportavam, como um rebanho humano, as vítimas sacrificadas aos horrores da invasão! Os soldados das escoltas obrigavam os presos a ir debaixo de certa ordem, e retardatários só havia aqueles que no chão caíam para nunca mais se levantar! Desta disposição resultava o seguinte: que Miguel Strogoff, metido entre as primeiras filas dos que tinham largado o acampamento, isto é, entre os prisioneiros de Kolyvan, não devia reunir-se aos que vinham de Omsk seguindo as forças de Ivan Ogareff. O correio do czar, portanto, ignorava a presença de sua mãe e de Nadia neste grupo de cativos, da mesma forma que elas não podiam imaginá-lo tão perto de si.

      A viagem do acampamento para Tomsk, feita sob a influência da lança e do chicote dos soldados, não podia deixar de ser mortal para muitos e terrível para todos. A caminhada pela estepe tornava-se insuportável devido à poeira que o emir e a sua numerosa vanguarda levantavam na sua passagem. Havia ordem de marchar depressa e eram raros os momentos concedidos para descanso.

      Estas cento e cinquenta verstas, atravessadas debaixo de um sol ardentíssimo, por mais depressa que se percorressem deviam parecer intermináveis! É extremamente árida a região compreendida desde a margem direita do Obi até à base do contraforte que se destaca dos montes Sayansk, numa direcção de sul para norte. Apenas algumas raquíticas e ressequidas moitas quebram num ou noutro ponto a monotonia desta enorme planície. Não se vêem culturas, porque não existe água. Ora, a falta de água era o maior suplício que atormentava os desgraçados cativos, sequiosos pela dureza de uma extensa e penosa marcha. Para se poder encontrar um afluente seria preciso avançar ainda cinquenta verstas, mesmo até junto do referido contraforte, onde se realiza a divisão das águas entre as duas bacias, do Obi e do Yenisei. Ali, de facto, corre o Tom, pequeno afluente do Obi, que, antes de confundir as suas águas com as desta grande artéria do Norte, banha a cidade de Tomsk. Naquele ponto existia uma corrente abundante, a estepe era menos estéril e a temperatura mais suave. Entretanto, aos comandantes das escoltas haviam-se transmitido as mais positivas ordens para que se apressassem a chegar a Tomsk, uma vez que o emir receava a todo o momento ver-se atacado de flanco por alguma coluna russa vinda a marchas forçadas das províncias do Norte. Resultava, pois, que, devido a estas circunstâncias, os prisioneiros, além das suas angústias e tormentos, nem mesmo tinham a possibilidade de matar a sede que os devorava!

      De que serve prolongar a descrição das privações por que passaram estes desventurados? Basta dizer que muitos deles caíram para nunca mais se levantar, ficando pela estrada os cadáveres insepultos, à espera que viessem as feras fazer ali o seu repasto!

     

     Pena de Talião

      Durante a marcha dos prisioneiros para Tomsk nunca a velha siberiana deixou de encontrar por parte da sua jovem companheira a mais completa dedicação, a mais absoluta solicitude.

      Miguel Strogoff, por seu lado, não estando compreendido no número dos presos mais vigiados, também não regateava aos seus companheiros de infortúnio o auxílio e os serviços que dependessem da sua actividade. Forte e sadio, confortava uns, animava outros, e ia-se assim repartindo nesta doce missão de caridade, caminhando de grupo em grupo, enquanto a lança de algum dos soldados brutalmente o não obrigava a entrar de novo no lugar que lhe fora destinado.

      Porque não tentaria ele fugir? Porque já tinha de si para si resolvido que só deveria fazê-lo quando julgasse a estepe completamente segura e livre. Havia-se habituado à ideia de entrar em Tomsk “por conta do emir” e sobravam-lhe razões para assim pensar. Os sucessivos destacamentos que ele via percorrer a estepe durante a marcha dos presos, tanto na direcção do norte, como na do sul, mostravam-lhe que não andaria duas verstas sem ser de novo apanhado. Os cavaleiros tártaros pululavam, e havia momentos em que se diria que eles saíam da terra, como esses insectos nocivos que uma chuva de trovoadas faz aparecer à superfície dos campos. Além disso, a fuga ainda oferecia outro grande inconveniente, difícil de vencer. É que os soldados da escolta exerciam sob os presos uma rigorosa vigilância, em consequência de arriscarem a cabeça se porventura deixassem de cumprir fielmente as ordens recebidas.

      No dia 15 de Agosto, ao cair da tarde, a leva de presos chegou a Zabadiero, povoação distante de Tomsk apenas trinta verstas.

      Neste ponto a estrada encontrava-se com a corrente do Tom.

      O primeiro impulso dos presos foi saciar nas águas do rio a sede que os devorava, os guardas, porém, não lho consentiram enquanto os seus superiores não deram ordem de fazer alto.

      Se bem que o Tom levasse nesta quadra do ano uma corrente fortíssima, poderia contudo prestar-se à evasão de algum prisioneiro mais audacioso ou mais desesperado, e para evitar esse caso era preciso adoptar medidas extremamente enérgicas. Tratou-se, pois, de estabelecer uma espécie de acampamento, guardado por todos os lados. Numerosas barcas, requisitadas em Zabadiero, foram atravessadas, ligadas umas às outras, sobre o Tom, formando uma espessa muralha de madeira impossível de transpor. Do lado da terra, a linha deste acampamento provisório, apoiada sobre as primeiras habitações de Zabadiero, era defendida por um cordão de sentinelas, que ninguém se atreveria a romper.

      Miguel Strogoff reconhecia cada vez mais quanto lhe teria sido difícil tentar qualquer plano de fuga antes de chegar a Tomsk. Encheu-se, pois, de paciência, esperando por ocasião mais oportuna.

      Os prisioneiros deviam passar toda a noite neste acampamento. O emir adiara para a manhã seguinte a entrada das suas forças em Tomsk. Tinha-se decidido que a instalação do quartel-general tártaro nesta importante cidade seria assinalada por brilhantes festejos militares. Féofar-Cã já ocupava a fortaleza da cidade, mas o grosso do seu exército ainda acampava fora dos muros, esperando o momento de fazer a sua entrada triunfal.

      Ivan Ogareff deixara o emir em Tomsk, aonde ambos tinham chegado na véspera, e voltara ao acampamento de Zabadiero. Era deste ponto que ele devia partir na manhã seguinte com a reserva do exército tártaro. Na povoação fora-lhe destinada uma casa para passar a noite. Ao romper do Sol, infantes e cavaleiros, debaixo do seu comando, deveriam dirigir-se sobre Tomsk, onde o emir Féofar-Cã queria receber o seu lugar-tenente com todas as pompas habituais aos soberanos asiáticos.

      Apenas o serviço das sentinelas foi estabelecido em todo o acampamento, permitiu-se aos prisioneiros que matassem a sede ardente que sofriam por efeito de três dias de marchas forçadas e violentas.

      O Sol já tinha desaparecido,. mas o horizonte mostrava-se ainda iluminado pelos clarões do crepúsculo, quando Nadia, amparando Marfa Strogoff, se acercou da beira do rio. Nenhuma delas pudera até então chegar à desejada corrente, em consequência dos cerrados grupos de presos que as tinham precedido. Aproximou-se, porém, o momento por seu turno de irem beber.

      A velha siberiana curvou-se toda para gozar melhor daquela agradável sensação. Nadia, fazendo das mãos concha, encheu-as de água e levou-as assim aos lábios de Marfa. Depois repetiu para si a mesma operação. Era um alívio, era um refrigério, que tanto uma como outra acabavam de encontrar nesta abundante e cristalina corrente.

      Nadia, porém, quando se dispunha a deixar aquele sítio, sentiu-se estremecer de súbito. Um grito involuntário saiu-lhe da boca.

      Vira Miguel Strogoff a poucos passos de distância! Era ele! Os últimos fulgores crepusculares acabavam de lhe iluminar o rosto! Miguel Strogoff também estremecera ouvindo aquele grito. Mas teve bastante domínio sobre si mesmo para não pronunciar uma palavra que pudesse denunciá-lo.

      E, contudo, acabava igualmente de ver ao lado de Nadia a figura veneranda de sua mãe!

      Miguel Strogoff reconheceu que lhe faltaria a coragem em presença deste duplo e Inesperado encontro, mas, dominando por um supremo esforço os afectos do seu coração, levou a mão aos olhos como para não ver, e afastou-se apressadamente.

      Nadia teve instintivamente o desejo de segui-lo, a velha Marfa, porém, segurou-a, pronunciando-lhe ao ouvido:

      - Não te mexas, minha filha.

      - Mas é ele! - respondeu Nadia com a voz entrecortada pelo júbilo. - É ele, está vivo!

      - É meu filho! - respondeu Marfa Strogoff. - É o meu Miguel, e tu bem vês que nem sequer faço um gesto para ele. Procura imitar-me, minha filha.

      Miguel Strogoff acabava de passar por uma das mais violentas comoções que é dado a um homem experimentar. Sua mãe e Nadia estavam ali, junto dele! As duas cativas, que já quase se confundiam no seu coração, tinha-as Deus impelido uma para a outra neste comum infortúnio! Saberia já Nadia quem ele era? Não, porque vira o gesto de sua mãe impondo silêncio à pobre menina, quando ela corria ao seu encontro. Marfa Strogoff tinha, pois, compreendido tudo e guardava segredo.

      Durante aquela noite Miguel Strogoff esteve por vinte vezes a ponto de ir procurar a mãe para estreitá-la nos braços. Percebeu, contudo, que seria arriscar a sua situação se porventura não soubesse conter os impulsos de filho. A menor imprudência poderia perdê-lo. De resto, havia jurado que não veria sua mãe, e cumpria-lhe guardar o seu juramento. Escravo do dever, só lhe restava seguir o plano traçado: procurar fugir, quando chegasse a Tomsk, embora deixasse para trás, sem um carinho, sem um gesto amável, os dois entes que resumiam toda a sua existência e que tão expostos ficavam aos perigos daquele cruel cativeiro.

      Miguel Strogoff acreditava, pois, que este novo encontro no acampamento de Zabadiero não traria consequências desagradáveis nem para si nem para sua mãe. O que ele, porém, não sabia é que os pormenores daquela cena tão rápida tinham sido notados por Sangarra, a incansável espia de Ivan Ogareff.

      A tzigana achava-se apenas distante alguns passos de Marfa Strogoff, observando-a como sempre, sem que esta de tal desconfiasse. Sangarra não vira, é certo, Miguel Strogoff, que tinha já desaparecido quando ela se voltou, mas surpreendera o gesto da velha siberiana obrigando Nadia a não se mover. O rápido lampejo que Sangarra descobrira no olhar da mãe revelara-lhe a presença do filho.

      Para ela, era fora de dúvida que Miguel Strogoff, o correio do czar, se achava naquele momento em Zabadiero entre os prisioneiros de Ivan Ogareff.

      Sangarra não o conhecia, mas iria jurar que ele estava ali. Não pensou contudo em procurá-lo, porque as sombras da noite e a enorme acumulação de presos deviam tornar-lhe essa busca puramente inútil.

      Considerou também desnecessário continuar a espiar Nadia e Marfa Strogoff. Era evidente que as duas cativas saberiam ser bastante reservadas para não comprometerem com a sua conversação o correio do czar.

      A tzigana teve, pois, um único pensamento: ir citar a Ivan Ogareff o que acabara de presenciar. E, com tal ideia, saiu logo do acampamento.

      Passado um quarto de hora chegava Sangarra a Zabadiero, e era logo introduzida nos aposentos onde estava o lugar-tenente do emir.

      Ivan Ogareff dirigiu-se imediatamente para ela.

      - Que me queres, Sangarra? - perguntou-lhe o traidor.

      - O filho de Marfa Strogoff está no acampamento – informou Sangarra.

      - Como prisioneiro?

      - Como prisioneiro.

      - Ah!... - exclamou Ivan Ogareff. - Vou finalmente saber...

      - Nada saberás, Ivan - asseverou a tzigana. - Lembra-te de que o não conheces.

      - Mas conhece-lo tu, Sangarra.

      - Também não. Entretanto, sua mãe deixou-se trair por um movimento que tudo me revelou.

      - Estás bem certa do que dizes?

      - Estou.

      - Sabes a importância que ligo à prisão desse homem – disse Ivan Ogareff. - Se os despachos que lhe confiaram em Moscovo entram em Irkutsk e se o grão-duque chega a recebê-los, ficará tudo perdido, e não poderei levar por diante o meu plano de vingança. Preciso desses despachos a todo o custo. E tu vens dizer-me que o correio que os leva está em meu poder. Vê bem, Sangarra, vê bem se não te enganas.

      Ivan Ogareff tinha falado com excessiva animação.

      Os seus movimentos precipitados mostravam a grandíssima importância que ligava à posse daqueles despachos.

      Sangarra, sem se Impressionar demasiadamente com a exaltação de Ivan Ogareff, deixou-se ficar impassível diante daquelas perguntas insistentes.

      - Não me engano, Ivan - foi a única resposta que ela deu.

      - Mas, Sangarra, no acampamento há milhares de prisioneiros, e tu afirmas que não conheces Miguel Strogoff...

      - Não conheço - replicou a tzigana, cujo olhar se iluminara de uma alegria feroz. - Não conheço, é verdade, mas conhece-o sua mãe, Ivan! Conhece-o sua mãe!

      Urge, pois, que a obrigues a denunciá-lo.

      - Amanhã será! - exclamou Ivan Ogareff.

      Depois estendeu a mão à tzigana, que lha beijou, sem que neste acto de respeito, habitual nas raças do Norte, houvesse qualquer coisa de servil.

      Sangarra voltou para o acampamento e, dando com o lugar onde estavam Nadia e Marfa Strogoff, passou a noite a observá-las como a fera que espreita a sua presa. A velha siberiana e a sua companheira não dormiam, se bem que a fadiga e a comoção devessem convidá-las ao repouso. Ocorriam diferentes circunstâncias para que ambas se conservassem acordadas. Nadia estava toda entregue à ideia de que o seu protector, tido por morto, lhe aparecera cheio de vida. Marfa Strogoff, mais previdente, porém, olhava para o futuro, que ainda via repleto de nuvens carregadas, Embora estivesse disposta, por seu lado, a todos os sacrifícios, um como que pressentimento lhe dizia que Ivan Ogareff, por qualquer circunstância, poderia vir a saber da presença de seu filho na turba dos prisioneiros.

      Sangarra deixara-se resvalar por entre as sombras até junto das duas mulheres, e assim se conservou pelo espaço de algumas horas com o ouvido à escuta. Nem uma só palavra pôde contudo perceber. Por um sentimento instintivo de prudência, Nadia e Marfa Strogoff conservaram-se toda a noite silenciosas.

      No dia seguinte, logo de manhã, ressoaram à entrada do acampamento os sons festivos das charamelas. Os soldados tártaros puseram-se imediatamente em linha.

      Era Ivan Ogareff que saíra de Zabadiero e se apresentava agora no meio de um luzido estado-maior de oficiais tártaros. Trazia o rosto mais sombrio que de costume, e as feições, contraídas, denunciavam uma cólera surda, que só esperava por um ensejo para explodir.

      Miguel Strogoff, confundido no grupo dos prisioneiros, viu passar aquele homem. Receou que estivesse iminente alguma catástrofe, visto Ivan Ogareff saber já que Marfa Strogoff era a mãe do falado Miguel Strogoff, capitão em exercício no corpo dos correios do czar.

      Ivan Ogareff apeou-se quando chegou ao meio do acampamento, e os oficiais da sua escolta fizeram um largo círculo em redor dele.

      Ao mesmo tempo, Sangarra aproximou-se, dizendo-lhe em voz baixa:

      - Nada mais pude apurar, Ivan.

      Ivan Ogareff limitou-se a transmitir uma ordem rápida ao seu ajudante mais próximo.

      Pouco depois viram-se soldados tártaros percorrer brutalmente as longas filas dos prisioneiros. Estes infelizes, empurrados com as hastes das lanças e chicoteados, tiveram de se levantar à pressa e colocar-se em boa ordem na frente do acampamento. Um quádruplo cordão de soldados de infantaria e cavalaria tornava impossível qualquer tentativa de evasão.

      Depois disto reinou profundo silêncio. A um sinal de Ivan Ogareff, Sangarra dirigiu-se então para o grupo onde estava Marfa Strogoff.

      A velha siberiana, vendo-a avançar, compreendeu decerto o que ia passar-se. Conservou-se, porém, imóvel e com um sorriso de desprezo nos lábios. Depois, voltando-se para Nadia, recomendou-lhe em voz baixa:

      - Daqui por diante, minha filha, eu sou para ti uma desconhecida. Suceda o que suceder e por mais dolorosa que seja esta experiência, nem uma palavra, nem um gesto! Lembra-te que é dele que se trata, e não de mim.

      Ao mesmo tempo, Sangarra, depois de ter examinado por um instante a velha siberiana, pôs-lhe a mão sobre o ombro.

      - Que me queres? - perguntou-lhe com altivez Marfa Strogoff.

      - Segue-me - ordenou Sangarra.

      E, empurrando-a com a mão, fê-la caminhar para o local onde estava Ivan Ogareff.

      Miguel Strogoff conservava as pálpebras meio cerradas para que o fuzilar dos olhos o não atraiçoasse.

      Marfa Strogoff, chegada à presença de Ivan Ogareff, levantou a cabeça, cruzou os braços e esperou que a Interrogassem.

      - És efectivamente a mãe de Miguel Strogoff?

      - Sou - respondeu com serenidade Marfa Strogoff.

      - Sustentas ainda o mesmo depoimento que me fizeste há três dias?

      - Sustento...

      - Ignoras, portanto, se teu filho passou por Omsk?

      - Ignoro.

      - E insistes em dizer que não era ele o homem a quem falaste na estação de posta?

      - Insisto.

      - E desde então nunca mais o tornaste a ver?

      - Nunca mais.

      - Nem mesmo entre os prisioneiros aqui presentes?

      - Nem mesmo entre os prisioneiros aqui presentes.

      - E se to mostrassem, reconhecê-lo-ias?

      - Não.

      Esta resposta, que denotava uma firme e enérgica resolução por parte de Marfa Strogoff, levantou entre os presos um murmúrio de admiração.

        Ivan Ogareff não pôde conter um gesto ameaçador.

      - Repara bem - disse ele a Marfa Strogoff -, teu filho está aqui, e tu vais imediatamente indicar-mo.

      - Não vou.

      - Todos esses homens aprisionados em Omsk e Kolyvan vão desfilar à tua vista. Se não designares qual deles é Miguel Strogoff, receberás tantos açoites quantos os homens que tiverem passado diante de ti.

      Ivan Ogareff compreendera que, quaisquer que fossem os tormentos a que submetessem a siberiana, ela não proferiria uma única palavra. Para descobrir o correio do czar confiava mais no filho que na própria mãe. Parecia-lhe impossível que, ao acharem-se ambos frente a frente, não houvesse um movimento irresistível que os atraiçoasse. Se Ivan Ogareff só quisesse apoderar-se do ofício imperial, bastaria dar ordem para que todos os presos fossem revistados, porém, Miguel Strogoff poderia ter destruído esse ofício depois de decorar o seu conteúdo, e se, feito isso, ele chegasse a evadir-se sem ser descoberto e a penetrar em Irkutsk, os planos do traidor ficariam irremediavelmente perdidos.

      Não era, pois, só o ofício que este malvado pretendia, era também o homem que o levava.

      Nadia, que tinha ouvido tudo, sabia agora quem era Miguel Strogoff e por que motivo ele quisera atravessar incógnito as províncias invadidas da Sibéria.

      Em virtude da ordem de Ivan Ogareff, os prisioneiros desfilaram todos um por um diante de Marfa Strogoff, que permanecia imóvel como uma estátua, sem que o seu olhar exprimisse o mínimo sobressalto.

      Seu filho achava-se nos últimos grupos. Quando lhe chegou a vez de passar diante de Marfa, Nadia fechou os olhos para não ver. Miguel Strogoff conservava-se aparentemente impassível, porém, das palmas das mãos escorria-lhe sangue, dada a violência com que ele nelas cravava as unhas.

      Ivan Ogareff sentiu-se vencido pelo filho e pela mãe! Sangarra, colocada junto dele, segredou-lhe então esta palavra sinistra:

      - O cnute!

      - Sim - vociferou Ivan Ogareff, que não podia já conter-se -, o cnute para esta bruxa! E que lho cravem nas carnes até ela ficar como morta!

      Um soldado tártaro, munido deste horrível instrumento de suplício, aproximou-se então de Marfa Strogoff.

      O cnute é formado por um certo número de tiras de couro, a cujas extremidades estão presos vários fios de ferro torcido. Calcula-se que cento e vinte golpes deste azorrague equivalem a uma condenação à morte. Marfa Strogoff não o ignorava, mas sabia também que nenhum tormento neste mundo a obrigaria a falar, e ela já tinha antecipadamente feito ao filho o sacrifício da vida.

      Marfa Strogoff, segura brutalmente por dois tártaros, foi lançada por terra e obrigada a ficar de joelhos. O vestido rasgado deixou-lhe os ombros a descoberto. Diante do peito colocaram-lhe um sabre nu, que distava dela apenas algumas polegadas. No caso de a dor violenta do cnute a fazer curvar, o peito ser-lhe-ia varado pela extremidade aguçada do ferro.

      O verdugo estava preparado.

      Só aguardava o sinal.

      - Começa! - ordenou Ivan Ogareff.

      As correias do cnute sibilaram.

      Mas antes que o fatal instrumento chegasse a cair sobre a vítima, já ele era arrebatado das mãos que o seguravam.

      Um homem de pulso sólido o arrancara de súbito ao verdugo.

      Era Miguel Strogoff, que, não podendo reprimir o seu furor, viera colocar-se entre a mãe e o verdugo, evitando assim o suplício que lhe destinavam.

      Ivan Ogareff conseguira o seu intento.

      - Até que enfim! - exclamou ele com feroz alegria. – Estás em meu poder!

      Depois avançando:

      - Que vejo!... Miguel Strogoff é o viajante de Ichim?

      - O mesmo! - respondeu este.

      E, brandindo rápida e impetuosamente o cnute, azorragou com ele uma das faces de Ivan Ogareff, que ficou a escorrer sangue.

      - Lembras-te de Ichim? Pois aí tens a minha desforra - bradou Miguel Strogoff desvairadamente.

      - Bravo! Bem respondido! - exclamou um espectador, cuja voz, felizmente para ele, se perdeu na multidão.

      Vinte soldados se lançaram logo sobre Miguel Strogoff com intenção de o matarem.

      Mas Ivan Ogaréff, a quem saíra do peito um grito cavernoso de raiva e de dor, deteve-os com um gesto.

      - Este homem pertence à justiça do emir. Revistem-no imediatamente.

      Entre o fato de Miguel Strogoff encontrou-se o ofício com o selo imperial, que foi logo entregue a Ivan Ogareff. O correio do czar não tivera tido tempo de o destruir! O espectador que proferira aquelas curtas palavras de aprovação era Alcide Jolivet. Ele e o seu colega, tendo-se demorado a ver o acampamento de Zabadiero, acabavam de presenciar a cena precedente.

      - Por Deus! - Disse Alcide Jolivet para Harry Blount. - Estes homens do Norte são de um arrojo que chega ao heroísmo. Confesse, meu amigo, que devemos uma reparação ao nosso companheiro de viagem. O insulto que ele recebeu em Ichim ficou amplamente saldado. Nicolau Korpanoff é digno de Miguel Strogoff. Um vale bem o outro. Nunca a pena de Talião foi tão bem aplicada como agora.

      - Assim é - concordou Harry Blount -, mas o correio do czar deve considerar-se um homem perdido. Por interesse próprio, fora muito melhor que ele se esquecesse do que se passou em Ichim.

      - Pois não! E que deixasse morrer sua mãe sob o cnute.

      - Porventura ganhou ela mais com os arrebatamentos do filho?

      - Não sei se ganhou ou não - respondeu Alcide Jolivet -, mas o que lhe posso afiançar é que eu não teria andado melhor no lugar dele. Que soberba vergastada! Com a fortuna! É preciso mostrar que não somos feitos de água morna. Se nos deixássemos ficar sempre imóveis e impassíveis quando nos insultam, provaríamos assim que, em vez de sangue, só nos corria soro pelas veias.

      - Belo assunto para uma crónica! - comentou Harry Blount. - Se Ivan Ogareff se decidisse unicamente a mostrar-nos o conteúdo daquele ofício...

      Ivan Ogareff, depois de enxugar o sangue que lhe escorria pela cara, rasgara com sofreguidão o sobrescrito do ofício tão cobiçado por Harry Blount, demorando-se a lê-lo e a relê-lo por alguns minutos.

      Dir-se-ia que desejava compenetrar-se bem das indicações nele contidas.

      Acabada a minuciosa leitura daquele documento, deu ordem para que Miguel Strogoff, solidamente amarrado, fosse conduzido sem demora, com os outros presos, para Tomsk.

      E, logo em seguida, colocando-se à frente das tropas acampadas em Zabadiero, marchou com elas ao rufar dos tambores para a cidade, onde o aguardavam o emir e a sua corte.

     

 

     O princípio da festa

      No coração das províncias siberianas achava-se uma das mais importantes cidades da Rússia asiática, fundada em 1604. É Tomsk. Tobolsk, situada acima do sexagésimo grau de latitude, e Irkutsk, assente para lá do centésimo grau de longitude, viram Tomsk desenvolver-se e medrar por assim dizer à sua custa.

      Apesar, porém, da sua importância, Tomsk, como já se disse, não é a capital da província. Essa distinção pertence a Omsk, onde, além do governador-geral, residem todos os empregados civis e militares. Tomsk, contudo, é a cidade mais considerável do extenso território confinante com os montes Altai, quer dizer, com a fronteira chinesa do país dos Khalkas. Nas encostas que destes montes se estendem até ao vale do Tom existem abundantes jazigos de platina, ouro, prata, cobre e chumbo aurífero. Sendo rico o país, não admira que também o seja a cidade, em redor da qual se multiplicam e prosperam muitas empresas mineralúrgicas. Por isso, a elegância que se observa em Tomsk, o luxo e conforto de suas habitações e a riqueza das suas carruagens podem rivalizar com o que há de melhor nas grandes capitais da Europa. É uma cidade de milionários enriquecidos pela picareta e pelo alvião, e, se não tem a honra de ser a residência do representante do czar, consola-se disso, pois conta, entre os seus mais opulentos negociantes, com o principal concessionário das minas do Governo imperial.

      Tomsk passava antigamente por ficar na extremidade do mundo. Quem se dispusesse a visitá-la, tornava-se digno das atenções pela raridade do empreendimento.

      Hoje, ir até lá é apenas uma simples e fácil viagem se os caminhos não estão assolados pela guerra, e amanhã será simplesmente um passeio, logo que esteja concluído o caminho de ferro que a deve ligar com Perm através dos montes Urais.

      Será Tomsk, porém, uma cidade interessante? Convém notar que sob este ponto não se mostram concordes os viajantes. Madame de Bourboulon, que se demorou em Tomsk na sua viagem de Xangai para Moscovo, faz dela uma descrição pouco lisonjeira. A guiarmo-nos pelas suas impressões, Tomsk é uma cidade insignificante, orlada de velhas casas de tijolo e pedra, ruas estreitas, muito diferentes das que geralmente se observam nas grandes cidades siberianas, e bairros imundos, habitados particularmente por tártaros, finalmente, uma cidade na qual avultam os ébrios em estado de apatia, que é comum a todos os povos do Norte sob os efeitos da embriaguez.

      O viajante Henrique Russel Killough, esse, pelo contrário, tece grandes elogios a tudo que observou em Tomsk. Dependerão estas diferentes apreciações de o segundo ter visto a cidade no Inverno envolta no seu lençol de neve, enquanto Madame de Bourboulon só lá esteve no Verão? É possível, e, nesse caso, confirmar-se-ia mais uma vez a opinião de que certos países frios só podem ser apreciados na estação fria, como outros, que são quentes, na própria estação calmosa.

      Seja como for, Russel Killough diz positivamente que Tomsk não é só a mais bonita cidade da Sibéria como também uma das mais bonitas do mundo, com as suas casas de colunatas e peristilos, os seus passeios de madeira em vez de lajedo, as suas ruas espaçosas e regulares, as suas quinze admiráveis igrejas reflectindo-se majestosamente nas águas do Tom, mais extenso que muitos rios da França.

      A melhor cidade do universo, todavia, torna-se feia se porventura se vê a braços com as calamidades de uma invasão. Que teria agora Tomsk para admirar? Defendida apenas por alguns batalhões de cossacos a pé, sempre aquartelados, fora-lhe impossível resistir ao ataque de tropas inimigas. Uma parte da sua população, composta por tártaros, recebera com alegria estas hordas da mesma raça, de sorte que Tomsk não era actualmente mais russa ou siberiana do que outra qualquer cidade de Bucara ou de Khokhand.

      Foi em Tomsk que o emir quis receber os seus soldados vitoriosos. Em homenagem a este poderoso potentado ia também celebrar-se em Tomsk um festim, com músicas, danças e folguedos, a que serviria naturalmente de remate alguma orgia ruidosa.

      O teatro escolhido para esta cerimónia, a efectuar segundo o gosto asiático, era uma enorme esplanada, situada numa colina, que se elevava a cem pés acima do nível do rio. O horizonte que daqui se desfrutava, com a sua vasta perspectiva de casas elegantes, de igrejas majestosas e de cúpulas bojudas, enquadrava-se numa pitoresca faixa de verdura, produzida por alguns soberbos grupos de pinheiros e cedros colossais. As águas do rio, deslizando por entre curvas sucessivas, iam perder-se ao longe entre os últimos planos das florestas, que as brumas tépidas do estio cobriam de um vapor vago e indefinido.

      Do lado esquerdo da esplanada levantara-se provisoriamente, cercado de extensos terraços, uma espécie de palácio de arquitectura caprichosa, Imitação talvez desses monumentos bucarianos, semi-mouriscos e semi-tártaros. Sobre os minaretes, que de todos os lados cobriam este palácio improvisado, e sobre os altos ramos das árvores, que ensombravam a esplanada, viam-se esvoaçar bandos de cegonhas domesticadas, vindas de Bucara juntamente com os exércitos do emir.

      Várias galerias, que davam sobre os terraços, tinham sido reservadas para a corte de Féofar-Cã, para os grandes dignitários dos canados e para os haréns de todos estes soberanos do Turquestão.

      Algumas das odaliscas, escravas, na sua maior parte compradas nos mercados da Transcaucásia e da Pérsia, conservavam o rosto inteiramente coberto, outras envolviam-se num longo véu, sob cujas pregas se lhes desenhava a beleza dos contornos. Das dobras do turbante destas últimas soltavam-se graciosamente as espessas e compridas tranças. O véu, que não as escondia de todo, permitia que se admirassem os olhos negros e fulgurantes, os dentes alvos e formosos e o tom suave da pele, a que servia de realce a pintura das sobrancelhas e das pálpebras, aquelas unidas por um ligeiro traço feito a colírio, estas brandamente esfumadas por um pouco de plumbagina.

      Todas trajavam luxuosamente. Túnicas elegantes, com as mangas apanhadas atrás em tufos caprichosos, descobriam-lhes os braços bem feitos, carregados de braceletes de vistosa pedraria, e as mãos pequeninas, cujos dedos afilados tinham as unhas pintadas com suco do henneh. As túnicas, feitas quer de seda transparente, semelhante na finura a teias de aranha, quer de um ligeiro tecido de algodão de listas estreitas chamado aladja, produziam, quando se agitavam, esse ruge-ruge delicado que tanto seduz e atrai os ouvidos dos orientais. Por baixo das túnicas ostentavam saiotes de brocado, caindo sobre as calças de seda atadas um pouco acima dos riquíssimos borzeguins, em cujas bordaduras o ouro se confundia com as pérolas.

      Junto dos terraços, brilhantemente empavesados com estandartes e auriflamas, estavam  de sentinela os guardas de honra do emir, com os seus duplos sabres de folha recurvada pendendo ao lado, punhal na cinta e lança de dez pés de comprimento em punho. Alguns destes guardas traziam na mão, como distintivo, bastões brancos, outros umas grandes alabardas, adornadas na extremidade com borlas de fio de ouro e prata.

      Em redor das sumptuosas habitações do emir e da sua corte, por toda a extensão da esplanada onde elas assentavam e pela encosta escarpada de que o Tom banhava a base, notava-se o confuso movimento de uma grande multidão cosmopolita, formada pelos diferentes elementos indígenas que habitavam a Ásia central.

      Viam-se os usbeques, com os seus grandes gorros de pele de carneiro preto, barba ruiva, e as suas arkaluks, espécie de túnicas feitas à moda tártara. Acotovelavam-se os turcomanos, trajando o seu fato nacional: calças largas de cor vistosa, casacos e capas de pêlo de camelo, gorros vermelhos de forma cónica ou achatada, botas altas de couro da Rússia e pequenos sabres e punhais presos por uma corrente à cintura. Junto dos seus senhores viam-se também as mulheres turcomanas, de cabelos apanhados com presilhas de pêlo de cabra, camisa aberta adiante, sobre a qual descia a djuba, espécie de roupão listado de verde, azul e escarlate, as pernas envolvidas em fitas de cor, cruzadas até baixo, e nos pés socos de couro. E, como se todas as populações da fronteira russo-chinesa se tivessem levantado à voz do emir, apareciam também os manjus, com a cabeça rapada na frente, cabelo entrançado, compridas cabaias, cinta apertada por cima de uma camisa de seda, chapéus ovais de cetim cor de cereja, com bordados pretos e franja vermelha, e ao lado deles os mais admiráveis tipos dessas mulheres da Manjúria, elegantemente penteadas com flores artificiais e borboletas de lindos Cambiantes presas aos negros cabelos por ganchos de ouro fino. Completavam finalmente esta variada e cosmopolita confusão de raças os mongóis, os bucarianos, os persas e os chineses do Turquestão, convidados a assistir aos esplendores da projectada festa.

      Os siberianos eram os únicos que não estavam presentes nesta recepção aos invasores. Os que não tinham tido tempo de fugir conservavam-se em suas casas, com receio da pilhagem que Féofar-Cã não deixaria decerto de autorizar para terminar brilhantemente aquela cerimónia triunfal.

      Foi só às quatro horas que o emir fez a sua entrada na cidade, ao toque das charamelas, ao rufar dos tambores, ao som dos tantãs e à bulha festiva das salvas e das descargas.

      Féofar-Cã montava o seu cavalo de mais estimação, que trazia na testeira uma roseta de brilhantes. O emir ainda conservava o seu trajo de guerra. Ao lado dele cavalgavam os cãs de Khokhand e de Kunduza, os altos dignitários dos canados, seguindo-se mais atrás um numeroso estado-maior.

      Ao mesmo tempo viu-se aparecer sobre o principal terraço a primeira das mulheres de Féofar, a rainha, se esta classificação se pudesse dar às sultanas dos estados de Bucara. Rainha ou escrava, esta mulher, de origem persa, era, porém, esplendidamente formosa. Em oposição aos costumes maometanos e por um capricho talvez do emir, a valida apresentava-se com o rosto destapado.

      O seu cabelo, dividido em quatro formosas tranças, espreguiçava-se sobre os ombros deslumbrantes de alvura e apenas resguardados por um tenuíssimo véu de seda constelado de palhetas de ouro, que se prendia no alto da cabeça a um toucado guarnecido de gemas esplêndidas. Por baixo da saia de seda azul-celeste com listas dum azul-ferrete aparecia o zir-djameh, de gaze de seda, e por cima da cintura formava infinitas pregas o pirahn, camisa também de gaze, que tanto mais graciosamente se abria quanto mais se aproximava do pescoço. E, desde a cabeça até aos pés, metidos em riquíssimos pantufos persas, era tal a profusão das jóias, dos tonans (Moeda de ouro persa. (N. do T.) de ouro presos a fios de prata, das enfiadas de turquesas e de crisólitos, dos colares de cornalinas, de ágatas, de esmeraldas, de opalas e de safiras que o corpete e a saia desta sultana pareciam ser tecidos de pedras preciosas. Quanto à infinidade de diamantes que lhe cintilavam no pescoço, nos braços, nas mãos, na cintura e nos pés, não bastariam milhares de rublos para resgatar-lhes o valor. Ao ver a intensidade dos lumes que projectavam, dir-se-ia que no meio de cada um deles irrompia um arco voltaico produzido por um raio de sol.

      O emir e os cãs apearam-se, bem como os altos dignitários que vinham no seu séquito. Todos se instalaram no interior de uma tenda sumptuosa, que fora levantada ao centro do terraço principal. Como sempre, em frente da tenda via-se o Corão aberto sobre a mesa sagrada.

      O lugar-tenente de Féofar-Cã não tardo a aparecer. Ainda não eram cinco horas quando as charamelas anunciaram a sua chegada.

      Ivan Ogareff, o vergastado, como já lhe chamavam, trajando agora um rico uniforme de oficial tártaro, apresentou-se a cavalo diante da tenda do emir. Acompanhavam-no uma parte das forças do acampamento de Zabadiero: que formaram em redor da esplanada, ficando apenas livre o lugar reservado para os festejos. No rosto do traidor via-se um profundo vergão, que lhe cortava obliquamente a face direita.

      Ivan Ogareff apresentou ao emir os seus oficiais, e Féofar-Cã, sem perder a natural frieza de que sempre rodeava a sua majestade, dignou-se mostrar-lhes um ar risonho, que os deixou satisfeitos com a recepção.

      Foi isso pelo menos o que supuseram Harry Blount e Alcide Jolivet, os dois correspondentes inseparáveis, ambos agora associados na sua comum tarefa de noticiaristas. Depois do que se passara em Zabadiero, tinham vindo para Tomsk, a fim de presenciarem a entrada das forças vitoriosas. O seu plano fora combinado da seguinte maneira: fingir que acompanhavam os tártaros, a fim de melhor poderem passar-se para o lado dos russos logo que se lhes proporcionasse a ocasião. O que já tinham visto relativamente à invasão e aos incêndios, roubos e assassínios que lhe serviam de cortejo havia-os revoltado tanto que suspiravam pelo momento de se afastarem daqueles lugares.

      Entretanto, Alcide Jolivet ponderara ao seu colega que, antes de sair de Tomsk, desejava tomar umas notas da entrada triunfal de Féofar-Cã, ainda que mais não fosse senão para satisfazer a curiosidade de sua prima. Harry Blount anuíra ao desejo do colega, mas à noite deveriam ambos rumar à estrada de Irkutsk, procurando, com o auxílio de bons cavalos, antecipar-se algumas horas aos exploradores do emir.

      Harry Blount e Alcide Jolivet tinham-se, pois, confundido na multidão, e olhavam de maneira a que lhes não pudessem escapar os pormenores da festa, pensando que sempre encontrariam ali assunto para algumas colunas de crónica. Prestaram, pois, toda a sua atenção à opulência de Féofar-Cã, ao luxo das odaliscas, à riqueza dos uniformes, a toda essa pompa oriental, enfim, de cujos esplendores as cerimónias da Europa não podem sequer dar uma ideia. Voltaram, porém, a cara para o lado com desprezo quando apareceu Ivan Ogareff, esperando ambos com impaciência que a festa principiasse.

      - Está-me a parecer, meu caro Blount, que chegámos cedo demais. Fizemos como os espectadores de boa fé, que desejam aproveitar bem o seu dinheiro. Isto não passa de uma pequena peça de abrir espectáculo. Teria sido mais distinto vir só quando estivesse para começar a dança.

      - Que dança? - perguntou Harry Blount.

      - A dança de rigor, pois quê?! Mas esperem... creio que vai subir o pano.

      Alcide Jolivet falava como um frequentador de teatro, e, tirando o seu binóculo da caixa, preparou-se para examinar, como entendedor, “as primeiras figuras da companhia de Féofar”.

      Havia, porém, uma cerimónia penosa que devia preceder os festejos.

      De facto, o vencedor não podia julgar completo o seu triunfo sem obrigar os vencidos a desfilar diante dele. Foi para esse fim que se trouxeram à sua presença algumas centenas de prisioneiros, impelidos pelo chicote dos guardas. Estes infelizes, antes de serem empilhados com os seus companheiros nas prisões da cidade, deviam passar defronte da tenda do emir.

      Entre eles figurava, logo nas primeiras filas, Miguel Strogoff.

      Em virtude das ordens de Ivan Ogareff, vinha particularmente guardado por um pelotão de soldados. Sua mãe e Nadia caminhavam também no mesmo grupo.

      A velha siberiana, sempre corajosa quando se tratava de si, mostrava-se profundamente abatida, agora que via em perigo a existência de seu filho. Parecia que adivinhava alguma terrível calamidade. Não era sem motivo, pensava ela, que a obrigavam a estar ali. Por isso, a pobre mãe estremecia de terror. Ivan Ogareff, ferido publicamente pelo cnute que Miguel Strogoff arrancara das mãos do verdugo, não podia perdoar a afronta recebida. A sua vingança devia ser tremenda. Algum espantoso suplício, desses que são vulgares entre os bárbaros da Ásia central, ameaçava de perto o correio do czar. Se Ivan Ogareff lhe tinha poupado a vida em Zabadiero é porque bem sabia que suplício maior o aguardava, reservando-o à justiça do emir.

      De resto, filho e mãe não tinham podido acercar-se um do outro desde que o primeiro se dera a conhecer ao traidor. Cruel agravamento das suas penas, pois seria um lenitivo para ambos se lhes deixassem passar juntos os últimos instantes daquele cativeiro.

      Marfa Strogoff teria querido pedir perdão ao seu filho de todo o mal que involuntariamente lhe causara. A desventurada acusava-se de não haver sabido sufocar os seus sentimentos maternais. Se ela se tivesse retraído em Omsk, naquele fatal encontro da estação de posta, seu filho teria passado despercebido, evitando desta forma as desgraças que depois sobrevieram.

      De seu lado, Miguel Strogoff dizia consigo mesmo que, se a velha Marfa estava ali tão perto dele, é porque o infame Ivan Ogareff queria fazê-la assistir à morte do filho, se é que lhe não reservava também algum horroroso suplício.

      Quanto a Nadia, a infeliz menina perguntava a si própria o que poderia fazer em benefício daqueles dois entes, a quem dedicava tanta afeição. Não atinava facilmente com o remédio para tão grande mal, pressentia, porém, vagamente, que lhe convinha não chamar sobre si as atenções, procurando por todos os modos tornar-se nula e invisível. Talvez que assim pudesse roer as malhas que envolviam o leão. Se o acaso lhe proporcionasse depois algum meio de intervir, ela saberia aproveitá-lo, embora tivesse para isso de sacrificar a própria vida.

      Entretanto, a maior parte dos prisioneiros já tinha passado em frente do emir, e cada um deles era obrigado, nessa altura, a prostrar-se com a fronte no chão, beijando a terra em sinal de humildade. Era a escravidão que começava pelo servilismo. Se alguém se mostrava mais remisso neste acto de humilhação, lá estava o chicote dos guardas para obrigá-lo a curvar-se.

      Alcide Jolivet e Harry Blount mostravam-se verdadeiramente indignados à vista de semelhante barbaridade.

      - É uma cobardia! E uma vileza o que se está fazendo àquela pobre gente! Vamo-nos embora - propôs Alcide Jolivet.

      - Espere, meu amigo - respondeu Harry Blount. - Já agora devemos ver tudo.

      - Ver tudo! Ah! - exclamou de repente Alcide Jolivet, agarrando o braço do seu companheiro.

      - O que é? - perguntou este.

      - Olhe, Blount!... É ela!

      - Ela, quem?

      - A irmã do nosso companheiro de viagem! Só e prisioneira também!... Cumpre-nos salvá-la!

      - Modere-se, meu amigo - volveu friamente Harry Blount. – A nossa intervenção em favor daquela rapariga poderia tornar-se-lhe mais fatal que proveitosa.

      Alcide Jolivet, prestes a precipitar-se, conteve-se, e Nadia, que, com o rosto meio velado pelos seus abundantes cabelos, não vira os dois jornalistas, pôde passar despercebidamente diante do emir.

      Entretanto, depois de Nadia, seguia-se a vez de Marfa Strogoff, e, como a pobre velha se não curvasse tão depressa como era mister, os guardas não hesitaram em empurrá-la brutalmente.

      Marfa Strogoff caiu.

      Seu filho fez um impetuoso movimento de furor, que os seus guardas a custo puderam reprimir.

      A velha Marfa levantou-se, porém, e ia confundir-se com os outros presos quando Ivan Ogareff interveio, ordenando brutalmente:

      - Essa mulher que fique!

      Nadia achava-se já a este tempo fora das vistas de Ivan Ogareff, que não fizera reparo nela.

      Miguel Strogoff foi então conduzido perante o emir. Chegado, porém, defronte dele, deixou-se ficar de cabeça levantada, sem baixar sequer os olhos.

      - Joelho em terra! - gritou-lhe Ivan Ogareff.

      - Nunca! - respondeu Miguel Strogoff. Dois soldados quiseram obrigá-lo a dobrar-se, mas foram eles que rolaram no chão, repelidos pelos seus braços hercúleos.

      Ivan Ogareff avançou então para ele e disse-lhe com riso satânico:

      - Sabes que vais morrer?

      - Sei - respondeu com altivez Miguel Strogoff -, mas sei também que a tua face de vilão guardará para sempre, como prémio da infâmia, a marca indelével do cnute!

      A esta resposta, que feriu Ivan Ogareff no coração, o traidor tornou-se horrivelmente pálido.

      - Quem é esse homem? - Perguntou o emir com um tom de voz que era, tanto mais ameaçador quanto mais frio e tranquilo se mostrava.

      - Um espião russo - informou Ivan Ogareff.

      Apresentando Miguel Strogoff como espião, Ivan Ogareff sabia que a sentença pronunciada contra ele seria implacável.

      Miguel Strogoff avançou trémulo de raiva sobre o traidor.

      Os soldados detiveram-no.

      O emir fez então um gesto diante do qual todos se curvaram. Depois apontou para o sítio onde estava o Corão. Assim que lho trouxeram, abriu o livro sagrado, e sobre uma das páginas pousou o dedo indicador.

      Era o acaso, ou, segundo a superstição destes orientais, a própria divindade que ia decidir da sorte de Miguel Strogoff. Os povos da Ásia central dão a esta prática o nome de fal. Logo que o sentido do versículo, apontado pelo juiz, é devidamente interpretado, aplica-se à vítima a sentença.

      Féofar-Cã deixara o dedo apoiado sobre uma página do Corão. O chefe dos ulemás, aproximando-se do emir, leu em voz alta um versículo que terminava com estas palavras:

      «E ele nunca mais tornará a ver as cousas deste mundo.»

      - Espião russo - disse Féofar-Cã -, vieste para ver o que se passava no nosso acampamento. Vais ser satisfeito. Abre, pois, os teus olhos, abre-os bem!

     

     A sentença do Emir

      Miguel Strogoff, com as mãos ligadas atrás das costas, foi colocado em frente do trono do emir. Sua mãe, quebrantada pelo efeito de tantas dores físicas e morais, deixara-se cair no chão, não se atrevendo a ver nem ouvir o que se passava em redor.

      - Abre, pois, os teus olhos, abre-os bem! – repetiu Féofar-Cã, estendendo a mão ameaçadora para Miguel Strogoff.

      Ivan Ogareff, ao facto dos costumes tártaros, havia sem dúvida compreendido o alcance daquela frase, porque os seus lábios entreabriram-se rapidamente num sorriso cruel. Depois, caminhou a passos lentos para junto de Féofar-Cã.

      Em seguida ouviu-se um toque de clarins. Era o sinal para começarem os festejos.

      - Vai principiar a dança - anunciou Jolivet a Harry Blount.

      - Contra o uso estabelecido, estes bárbaros dão-na antes da tragédia.

      Miguel Strogoff, com os olhos bem abertos, conforme lhe recomendara o emir, olhava em todas as direcções.

      Ao mesmo tempo dava entrada no terraço uma nuvem de dançarinas. Diferentes instrumentos tártaros, a dutara, bandolim de duas cordas de seda torcida, com o braço muito comprido feito de pau de amoreira, o cobizo, espécie de violoncelo aberto pela parte do tampo superior, com as cordas de clina, a tschibyzga, comprida flauta de cana, os tamboris, as trombetas e os tantãs casavam os seus variados sons com as vozes guturais dos cantores, formando tudo uma estranha e desusada harmonia. Junte-se a isto os acordes de uma orquestra aérea, composta de uma infinidade de grandes papagaios de papel, que, presos com cordas pelo meio, vibravam ao murmúrio da viração, como se fossem harpas eólicas.

      As danças não se fizeram esperar.

      Eram de origem persa as dançarinas que se apresentaram, e exerciam a sua profissão em plena liberdade.

      Tinham anteriormente figurado nas cerimónias oficiais da corte de Teerão, mas depois da subida ao trono da família reinante, banidas por assim dizer da Pérsia, haviam-se visto obrigadas a tentar fortuna noutros países.

      Trajavam ainda à moda nacional e traziam grande profusão de jóias a adorná-las. Pequenos triângulos de ouro e compridos pingentes balouçavam-se-lhes nas orelhas e tinham em redor do pescoço argolas de prata oxidada.

      Braceletes, formados por uma dupla fila de gemas, cingiam-lhes as pernas e os braços e na extremidade das suas compridas tranças agitavam-se vistosos pingentes, ricamente cravejados de pérolas, turquesas e cornalinas.

      A cinta que as apertava tinha ao centro uma chapa brilhante, parecida com a placa das grã-cruzes europeias.

      Estas dançarinas executaram com extrema graça diversos bailados, tanto a solo como em grupos. Vinham todas com a cara destapada, mas de vez em quando envolviam a cabeça numa nuvem de gaze, que, passando por cima de todos aqueles olhos cintilantes, fazia lembrar um ténue vapor cobrindo um céu ornado de estrelas. Algumas traziam a tiracolo uma faixa bordada de pérolas, à qual estava presa uma pequena escarcela de forma triangular. Destas escarcelas, tecidas de filigrana de ouro e que se abriam em dadas ocasiões, saíam muitas fitas estreitas de seda escarlate, nas quais se viam bordados os versículos do Corão. As dançarinas estendiam as fitas pouco a pouco, formando variadas e compridas tiras, por baixo das quais outras passavam sem interrupção dos seus bailados. Quando sucedia, durante o seu voltear, depararem-se às dançarinas os versículos bordados, segundo os preceitos que eles continham, assim também elas variavam as posições, ora curvando-se profundamente em sinal de respeito, ora levantando-se num salto gracioso como se quisessem ir juntar-se, no céu às huris de Maomet.

      Mas o que era de notar, o que fez impressão a Alcide Jolivet, é que estas persas, em vez de impetuosas, se mostravam indolentes. Faltava-lhes o fogo, a animação, e, tanto pelo género das danças como pelo seu desempenho, faziam lembrar mais as bailadeiras frias e recatadas da Índia do que as almeias apaixonadas do Egipto.

      Quando acabou esta primeira parte da festa, ouviu-se uma voz grave que dizia:

      - Abre, pois, os teus olhos, abre-os bem!

      O homem que repetia agora as palavras do emir, um tártaro de grande estatura, exercia junto de Féofar-Cã as funções sinistras de carrasco. Colocado atrás de Miguel Strogoff, este homem sustinha na mão um sabre de lâmina larga e recurvada, uma dessas lâminas de Damasco, temperadas pelos célebres armeiros de Karchi ou de Hissar.

      Junto dele, dois guardas haviam deposto uma trípode, sobre a qual assentava uma grelha, em que ardiam alguns carvões sem fazer fumo. O ligeiro vapor que se levantava provinha apenas da incineração de uma substância resinosa e aromática, feita de olfbano e benjoim, que de vez em quando atiravam para cima do lume.

      Entretanto, ao grupo das persas sucedera-se imediatamente outro grupo de bailarinas, de raça diferente, que Miguel Strogoff não teve dificuldade em reconhecer.

      Parece que os dois jornalistas as reconheceram também, porque Harry Blount disse para o seu colega:

      - São as tziganas de Nijni-Novgorod, pois não são?

      - São - respondeu Alcide Jolivet. - Estou certo de que os olhos destas espias devem render-lhes mais dinheiro do que os pés.

      E Alcide Jolivet não se enganava fazendo delas criaturas ao serviço do emir.

      Na primeira fila das tziganas figurava Sangarra, admirável com o seu trajo pitoresco e extravagante, que mais lhe fazia realçar a formosura.

      Sangarra não dançava, mas colocou-se, na qualidade de corifeia, no meio das suas dançarinas, cujos bailados de fantasia eram um misto dos diferentes países que esta raça percorre: Boémia, Egipto, Itália e Espanha. As tziganas iam-se entusiasmando com a bulha dos adufes, que agitavam amiúde, com o estrépito dos dairés, pandeiros de pele estridente, que elas faziam ressoar com os dedos.

      Sangarra, meneando freneticamente o seu dairé, era a primeira a excitar este bando de verdadeiras coribantes.

      Então viu-se aparecer um tzigano, de quinze anos quanto muito, trazendo na mão uma dutara, cujas únicas duas cordas ele fazia vibrar por meio de um ligeiro movimento de unhas. O rapazito começou a cantar. Durante a primeira estrofe da sua cantiga, de um ritmo extravagante, veio colocar-se junto dele uma dançarina, que ficou imóvel a escutá-lo. Todas as vezes, porém, que o moço cantor repetia o estribilho, ela recomeçava a dança interrompida, movendo perto dele o seu dairé e aturdindo com o estrondo das castanholas.

      Depois, quando o jovem tzigano soltou a última nota, as dançarinas enlaçaram-no completamente nas mil voltas das suas danças caprichosas.

      Ao mesmo tempo, caía uma chuva de ouro, tanto das mãos do emir e dos seus aliados como das mãos dos outros dignitários e oficiais, e ao ruído que estas moedas de ouro faziam ao bater sobre os adufes das dançarinas juntavam-se ainda os últimos acordes das dutaras e dos tamboris.

      - Perdulários como bandidos! - segredou Alcide Jolivet ao ouvido de Harry Blount.

      E era efectivamente o dinheiro roubado durante a invasão que estes bárbaros distribuíam agora às mãos-cheias, pois com os tamans persas e os cequins tártaros vinham também em tropel os ducados e os rublos moscovitas,  Depois seguiu-se um momento de silêncio, e o carrasco, pousando a mão sobre o ombro de Miguel Strogoff, proferiu de novo aquelas palavras, que, pela sua repetição, se tornavam cada vez mais sinistras:

      - Abre, pois, os teus olhos, abre-os bem!

      Entretanto, o Sol ia declinando sensivelmente. Uma Semi-obscuridade começava a envolver os últimos planos da paisagem. A massa de cedros e pinheiros cada vez se tornava mais indecisa e as águas do Tom começavam gradualmente a confundir-se com as brumas. Não tardaria que as sombras descessem sobre o próprio terraço, onde a festa decorria animadíssima.

      Ao mesmo tempo viram-se entrar muitas centenas de escravos, trazendo archotes na mão. Conduzidas por Sangarra, as dançarinas tziganas e persas reapareceram em frente do trono de Féofar, fazendo sobressair os seus bailados de diversos géneros. Os instrumentos da orquestra tártara iniciaram novamente um concerto selvagem, acompanhado pelos gritos guturais dos cantores. Os papagaios, que se tinham arriado, cercados agora de uma constelação de lanternas multicores, subiram de novo ao ar, e, agitados pela brisa fresca do entardecer, vibravam ainda com mais intensidade no meio desta iluminação aérea.

      Depois veio juntar-se às danças, cada vez mais animadas, um esquadrão de tártaros com os seus uniformes de guerra, que logo começou uma fantasia (A fantasia é um divertimento equestre e militar, usado pelos árabes, que consiste em lançar o cavalo a todo o galope e depois fazê-lo parar de repente ou descrever círculos, evoluções estas acompanhadas de sucessivos tiros de espingarda. (N. do T.) equestre de um efeito caprichoso.

      Estes guerreiros, manejando simultaneamente os sabres e as pistolas de cano comprido, enquanto repetiam todos os movimentos da fantasia equestre, atroavam os ares com as detonações estrepitosas das suas armas de fogo, que formavam verdadeiro contraste ao lado das dutaras, dos tamboris e dos dairés.

      As pistolas, carregadas, à moda chinesa, com pólvora colorida por meio de um ingrediente metálico, vomitavam longos jactos de cores, vermelha, verde e azul, parecendo que todos estes grupos de homens e mulheres se moviam vertiginosamente no meio de fogo de artifício.

      Esta parte dos festejos tinha alguns pontos de contacto com a cibística dos antigos - essa dança militar, talvez legada pela tradição aos povos da Ásia central, em que os corifeus manobravam por entre pontas de espadas e punhais.

      A cibística dos tártaros, porém, tornava-se mais extravagante ainda pelos jactos de cor, que serpenteavam em redor das belas dançarinas, arrancando mil cintilações das lantejoulas dos saiotes. Era como um caleidoscópio resplandecente, cujas combinações variavam infinitamente à medida que se moviam as dançarinas.

      Por mais cansado que estivesse um jornalista parisiense em relação aos efeitos e esplendores do moderno cenário teatral, Alcide Jolivet não pôde reprimir um ligeiro movimento de cabeça, que para um apreciador de fino gosto equivalia a dizer: não é feio, não é feio.

      Depois, como obedecendo a um sinal convencionado, todo este vistoso quadro cessou repentinamente, as danças findaram e as dançarinas desapareceram. Estava concluída a cerimónia, e só os archotes alumiavam a esplanada, há pouco ainda tão deslumbrante de luzes variegadas.

      A um gesto do emir, Miguel Strogoff foi conduzido para o centro do terraço.

      - Meu caro Blount, tem muito empenho em ver o fim de tudo isto? - perguntou Alcide Jolivet.

      - Nenhum - respondeu Harry Blount.

      - Os leitores do Daily Telegraph não suspiram decerto pelos pormenores de um suplício à tártara?

      - Tanto, meu amigo, como sua prima.

      - Pobre rapaz! - acrescentou Alcide Jolivet, olhando com mágoa para Miguel Strogoff. - Era digno de melhor sorte. Aquele valente soldado merecia ter antes caído num campo de batalha.

      - Se nós pudéssemos tentar alguma coisa para o salvar!... - sugeriu Harry Blount.

      - É infelizmente impossível!

      Os dois jornalistas lembravam-se do generoso procedimento de Miguel Strogoff a seu respeito. Sabiam agora por que provações, escravo do dever, ele havia de ter passado, e vendo-o em poder dos tártaros, incapazes de se abalarem por qualquer sentimento de compaixão, lamentavam-se de não lhe poderem ser prestáveis.

      Não querendo, porém, presenciar o suplício que estava reservado àquele infeliz, retiraram-se imediatamente para Tomsk.

      Uma hora depois seguiam ambos a estrada de Irkutsk, levados por dois vigorosos cavalos, com a intenção de se reunirem aos russos. Tinham resolvido continuar na companhia destes o movimento militar, a que Alcide Jolivet, por antecipação, dava o nome de “campanha da desforra”.

      Entretanto, Miguel Strogoff conservava-se de pé, lançando um olhar altivo ao emir e um olhar cheio de desprezo a Ivan Ogareff. Estava preparado para morrer, e, contudo, inutilmente se lhe poderia procurar nas feições o mais pequeno vislumbre de fraqueza.

      Os espectadores que permaneciam em redor do terraço, bem como o estado-maior de Féofar-Cã, para quem este suplício representava apenas um novo atractivo, esperavam o momento em que se efectuasse a execução. Depois de saciada esta bárbara curiosidade, toda aquela turba de selvagens iria mergulhar nas ondas da embriaguez.

      O emir fez outro gesto. Miguel Strogoff, levado pelos guardas até junto do seu trono, ouviu-lhe pronunciar as seguintes palavras em língua tártara:

      - Vieste para ver, espião russo. Não tornarás mais a ver. Os teus olhos vão ser fechados para sempre à luz que alumia a Terra.

      Não era de morte, mas de cegueira, a sentença que feria Miguel Strogoff. Era a perda da vista, mais terrível talvez que a perda da vida! O infeliz estava condenado a ficar cego!

      Todavia, Miguel Strogoff não sucumbiu ao ouvir a sentença que o fulminava. Deixou-se ficar impassível e com os olhos muito abertos, como se quisesse concentrar a vida inteira no seu derradeiro olhar.

      Implorar a protecção destes homens ferozes era inútil e impróprio da coragem de Miguel Strogoff. Nem por momentos pensou em tal. Os seus únicos pensamentos concentravam-se na missão que lhe fora confiada, agora irremediavelmente comprometida, na desventurada mãe e na formosa Nadia, entes queridos que nunca mais tornaria a ver! Contudo, não denunciou sequer a impressão dolorosa e profunda que tão cruéis e pungentes recordações lhe causavam.

      Sentiu depois que, apesar da sua precária situação, um sentimento de vingança lhe dominava ainda todo o ser. E, voltando-se para Ivan Ogareff, bradou-lhe com voz grave e ameaçado-a:

      - Sobre ti, que vendeste a pátria como um infame, sobre ti, que juntas à traição a vilania, caia, prenúncio da justiça do céu, a derradeira ameaça de meus olhos!

      Ivan Ogareff encolheu os ombros.

      Porém, Miguel Strogoff tinha-se enganado. Não era a olhar para Ivan Ogareff que os seus olhos deixariam de ver a luz.

      Marfa Strogoff acabava de se erguer a curta distância de seu filho.

      - Minha mãe! - exclamou Miguel Strogoff. - Oh! Sim! Sim, para ti é que deve ser o meu último olhar, para ti, minha mãe, e não para aquele miserável! Conserva-te aí bem defronte de teu filho. Que eu veja ainda o teu rosto amantíssimo. Que os meus olhos se fechem para sempre contemplando ainda os teus olhos.

      A velha siberiana adiantava-se para seu filho sem proferir uma palavra.

      - Arredem daqui esta bruxa! - gritou Ivan Ogareff.

      Dois soldados vieram empurrar para trás a desditosa Marfa. Ela recuou, mas conservou-se de pé a poucos passos de Miguel Strogoff.

      O algoz apareceu neste momento. Agora trazia na mão o sabre, que acabara de tirar de cima da grelha, onde ardiam os carvões perfumados.

      Iam cegar Miguel Strogoff segundo o desumano costume tártaro, passando-lhe por diante dos olhos uma lâmina candente.

      Miguel Strogoff não procurou resistir. Para quê, se a luta seria estéril? Restava-lhe só contemplar pela última vez a amargurada figura de sua mãe. E como ele a devorava ansiosamente com o olhar! Toda a sua vida estava ali concentrada naquela contemplação final! Marfa Strogoff, com os olhos a quererem saltar-lhe das órbitas, com os braços estendidos numa postura aflitiva, tinha ainda forças para se conservar diante de seu filho.

      O verdugo parou em frente do correio do czar. Depois, levantando a lamina, executou a sentença do emir.

      Ouviu-se um agudíssimo grito de dor. A velha Marfa rolou desamparada sobre a terra.

      Miguel Strogoff estava cego!

      Cumpridas à risca as suas ordens, o emir retirou-se com toda a sua corte. No local do suplício ficara apenas Ivan Ogareff, acompanhado pelos escravos que seguravam os archotes.

      O infame quereria insultar a sua vítima ou aplicar-lhe, depois do verdugo, ainda algum novo tormento?

      Ivan Ogareff aproximou-se lentamente de Miguel Strogoff. Este, sentindo-o mover-se, pusera-se em guarda por instinto.

      Ivan Ogareff, tirando da algibeira o ofício imperial, abriu-o e, por uma suprema ironia, colocou-o diante daqueles olhos que já não podiam ler!

      - Lê agora - disse ele, com escárnio -, lê, Miguel Strogoff, e trata de ir levar a Irkutsk as notícias que acabo de te mostrar. Daqui por diante, eu, Ivan Ogareff, é que sou o verdadeiro correio do czar!

      Dito isto, o infame tornou a dobrar o ofício e meteu-o no peito. Depois retirou-se sem olhar para trás, seguido dos escravos com archotes.

      Miguel Strogoff ficou só, poucos passos distante de sua mãe, que jazia no chão desfalecida, moribunda talvez!

      Ouviam-se ao longe os gritos e os cantares, todo o estrépito confuso de uma orgia ruidosa. Tomsk, iluminada, resplendia como se fosse uma cidade em noite de festa.

      Miguel Strogoff aplicou o ouvido. A esplanada estava deserta e silenciosa.

      Tacteando o terreno, dirigiu-se então para onde sua mãe tinha caído. Encontrando-a por fim, inclinou-se respeitosamente sobre ela, deu-lhe um beijo prolongado e pôs-se a escutar as pulsações do coração. Depois dir-se-ia que lhe estivera a falar em segredo.

      A velha Marfa viveria ainda? estaria acaso ouvindo o que o filho lhe dizia?

      Seja como for, a sua postura continuou a ser a mesma.

      Miguel Strogoff tornou-lhe a beijar o rosto e os cabelos brancos. Seguidamente levantou-se e, começando a tactear o chão com os pés, como para se guiar no meio das sombras, foi assim caminhando devagar até ao extremo limite da esplanada.

      De repente apareceu Nadia.

      A corajosa menina aproximou-se de Miguel Strogoff. Um punhal, que trazia oculto, serviu-lhe para cortar as cordas que prendiam as mãos e os braços do seu companheiro.

      Este, agora cego, não podia saber quem o soltava, porque Nadia se conservava calada. Porém: logo que acabou de o desprender exclamou:

      - Meu irmão!

      - Nadia! - balbuciou Miguel Strogoff. - És tu, Nadia?

      - Cala-te, meu irmão - recomendou Nadia. - Roubaram-te a luz dos olhos, aqui tens, porém, os meus para te servirem de guia. Anda, Miguel, vamos. Agora hei-de ser eu que te conduzirei a Irkutsk!

     

     Um protector inesperado

      Meia hora depois Nadia e Miguel Strogoff estavam já longe de Tomsk. Entretanto, bastantes presos, aproveitando a ocasião, puderam também fugir. Todos os tártaros, oficiais e soldados, mais ou menos embriagados, tinham inconscientemente afrouxado o rigor da disciplina, até ali sempre mantida, quer no acampamento de Zabadiero, quer durante a marcha.

      Nadia, depois de ter passado em frente do emir, conseguira esquivar-se às vistas dos seus guardas, voltando para a esplanada no momento em que iam supliciar Miguel Strogoff.

      Ali, confundida com a turba, pôde ver e ouvir tudo.

      Dos seus lábios, porém, não saiu um só grito de terror quando a lâmina candente do verdugo passou por diante dos olhos do seu companheiro. Sobrou-lhe a coragem para se conservar muda e impassível. Uma inspiração providencial lhe segredara que não arriscasse impensadamente a sua liberdade, para poder servir agora de guia ao filho de Marfa Strogoff. Ele jurara que havia de ir a Irkutsk: era um dever ajudá-lo agora a cumprir o seu juramento.

      Houve só um momento em que o coração de Nadia cessou de bater: foi quando a velha siberiana caiu no solo inanimada. Uma vez mais soube conter-se, restituindo-lhe a energia uma súbita resolução:

      - Serei o cão daquele cego! - decidiu.

      Depois de Ivan Ogareff se retirar, Nadia ocultou-se na sombra, esperando que a multidão deixasse livre a esplanada. Miguel Strogoff, abandonado para ali como um ente miserável, de que já nada havia a recear, ficara só. Nadia vira-o adiantar-se até junto de sua mãe, inclinar-se sobre ela, beijá-la na fronte, e depois levantar-se vagarosamente, afastando-se.

      Passados alguns momentos, ambos, de mãos dadas, desciam a encosta da colina, e, depois de terem seguido o curso do rio até ao extremo da cidade, transpuseram sem obstáculo uma brecha das muralhas.

      A estrada de Irkutsk, mostrava-se em frente deles avançando para leste. Não havia receio de a confundir com outra. Nadia obrigava Miguel Strogoff a marchar precipitadamente. Era possível que no dia seguinte, dissipada a influência da orgia, os exploradores do emir se lançassem de novo pela estepe, cortando todas as comunicações que ainda estivessem livres. Convinha, pois, não perder tempo, e chegar antes deles a Krasnoiarsk, distante ainda de Tomsk quinhentas verstas (533 quilómetros), a fim de só se largar a estrada quando ela se tornasse de todo intransitável. Sair do caminho traçado era seguir o incerto, o desconhecido, era expor temerariamente a vida.

      Como foi que Nadia conseguiu suportar as fadigas desta noite de 16 para 17 de Agosto? Como teve ela a força física necessária para tão larga tirada de caminho? Como foi que os seus pés a sustiveram, apesar de feridos pelas pedras da estrada? Só a sua dedicação poderia explicar este esforço sobre-humano, esta espécie de milagre.

      O certo é que na manhã seguinte, doze horas depois da sua saída de Tomsk, Nadia e Miguel Strogoff chegavam ao lugar de Semilowskoe, com cinquenta verstas de caminho já percorridas.

      Miguel Strogoff, andando sempre sem afrouxar o passo, ainda não tinha pronunciado uma palavra. Em lugar de ser Nadia, como parecia natural, quem oferecera a mão a Miguel Strogoff para o guiar nas duplas trevas dos seus olhos e da noite, fora este que, segurando entre as suas a mão de Nadia, se deixara conduzir por Assim dizer maquinalmente. Contudo, bastava um simples estremecimento daquela mão delicada para indicar ao pobre cego a linha que devia seguir.

      O lugar de Semilowskoe estava, porém, quase deserto.

      Os seus habitantes, receando a aproximação dos tártaros, haviam fugido para a província do Yeniseisk. Viam-se apenas duas ou três casas habitadas. Tudo o que ali existia de utilidade ou valor fora já transportado em carros.

      Contudo, Nadia precisava de repousar algumas horas. Em rigor, tinham ambos necessidade de descanso e de alimento.

      A corajosa menina conduziu, pois, o seu companheiro pelo centro da povoação, onde encontrou uma casa sem moradores, com as portas de todo abertas. Ao entrarem numa delas acharam-se ambos num quarto de dormir. Junto de um grande fogão, como os que sempre há no interior das habitações siberianas, estava um banco tosco de madeira. Sentaram-se nele.

      Nadia fitou então bem de frente o seu companheiro, agora cego. Olhou para ele como nunca até ali se atrevera a encará-lo. Nos seus olhos, velados pelas lágrimas, havia mais que piedade, mais que compaixão. Se Miguel Strogoff pudesse ver, teria lido naquele puro e inocente olhar a expressão de um afecto ilimitado, de uma ternura imensa e profundíssima.

      As pálpebras do cego, avermelhadas pelo efeito da lâmina candente, caíam-lhe sobre os olhos, absolutamente cegos, deixando-os meio cerrados. A esclerótica estava ligeiramente enrugada e como que endurecida, a pupila singularmente dilatada, a íris parecia ser de um azul mais escuro do que dantes, as pestanas e as sobrancelhas estavam em parte queimadas, mas, pelo menos aparentemente, o olhar penetrante de Miguel Strogoff não parecia ter sofrido nenhuma alteração. Se ele não via, se era completa a sua cegueira, isso devia-se à sensibilidade da retina e do nervo óptico ter sido radicalmente destruída pelo terrível efeito da lâmina em brasa.

      Neste momento, Miguel Strogoff estendeu as mãos.

      - Estás aí, Nadia? - perguntou ele.

      - Estou, estou a teu lado para nunca mais te deixar, Miguel.

      Miguel Strogoff estremeceu ao ouvir Nadia proferir pela primeira vez o seu nome. Percebeu que a sua companheira sabia tudo: o que ele era e quais os laços que o prendiam à velha Marfa.

      - Nadia - acrescentou Miguel Strogoff -, é preciso que nos separemos.

      - Que nos separemos! E porquê, Miguel?

      - Não quero ser um estorvo à tua viagem. Teu pai espera por ti. Deves ir ter com ele.

      - Meu pai amaldiçoar-me-ia se soubesse que te abandonava depois de tudo a que por mim te expuseste.

      - Nadia! Nadia! - respondeu Miguel Strogoff, apertando a mão que a jovem livoniana colocara entre as suas. - Cumpre-te só pensar em teu pai.

      - Miguel - interrompeu Nadia -, tu precisas mais de mim que meu pai. Renunciaste, porventura, à ideia de ir a Irkutsk?

      - Oh! Nunca! - exclamou Miguel Strogoff, com um tom de voz em que transparecia uma enérgica resolução.

      - Todavia, já não tens em teu poder o ofício de que eras portador...

      - Roubou-mo aquele infame! Não importa... Passarei sem o ofício. Ivan Ogareff denunciou-me como espião. Será, pois, como espião que daqui por diante me hão-de ter. Irei relatar a Irkutsk tudo que vi e ouvi. E juro, por Deus que me ouve, que o traidor há-de saber ainda uma vez que homem é este espião! Preciso para isso de chegar antes dele a Irkutsk.

      - E falas em separar-te de mim!

      - Nadia... Nadia... Os miseráveis tiraram-me tudo!

      - Restam-me ainda alguns rublos e, acima do dinheiro, o livre uso dos meus olhos, Miguel. Verei por ti e,, na minha companhia, poderás chegar onde sozinho não irias:

      - E de que maneira caminharemos, Nadia?

      - A pé.

      - E como havemos de viver?

      - Da caridade.

      - Seja, Nadia.

      - Vem, Miguel.

      Miguel Strogoff e Nadia já não se tratavam mutuamente por irmão e irmã. Na sua comum desgraça, cada vez se sentiam mais ligados um ao outro. Depois de uma hora de repouso, ambos saíram daquela casa. Nadia, depois de atravessar as diferentes ruas da povoação, conseguiu que lhe dessem alguns bocados de ichornekhleb, espécie de pão de cevada, e uma porção de hidromel, a que na Rússia se dá o nome de méod. Nadia obtivera estas provisões sem despender um kopek. Era o primeiro fruto da sua forçada profissão de mendiga. Com este alimento se bem que modesto, pôde Miguel Strogoff abrandar a fome e a sede que o atormentavam. Nadia reservara-lhe cuidadosamente a melhor parte da minguada refeição. Miguel Strogoff comia pela mão de Nadia os bocados de pão que esta lhe cortava, levando à boca depois o recipiente do méod.

      - Não comes, Nadia? - perguntava Miguel Strogoff com voz meiga.

      - Como, sim, Miguel - respondia a dedicada criança, que apenas se contentava com os restos do seu companheiro.

      Miguel Strogoff e Nadia saíram de Semilowskoe, lançando-se de novo na estrada para Irkutsk. A caminhada, porém, era superior às forças de Nadia. Se Miguel Strogoff pudesse vê-la tão extenuada pela fadiga, decerto se teria oposto a que ela fosse por diante. Nadia, contudo, mostrava-se resignada, e Miguel Strogoff, não lhe ouvindo sair dos lábios qualquer queixume, continuava a andar com uma velocidade que não podia reprimir: Mas porque tinha ele tamanha pressa? Alimentaria ainda por acaso alguma esperança? Não se daria conta de que não possuía meios de locomoção, nem dinheiro, e que, por desgraça, estava cego? E se Nadia, a sua actual providência, viesse a faltar-lhe, não teria de sucumbir obscuramente, para ali abandonado na estrada? Assim parecia, entretanto, se à força de coragem e de perseverança lograsse chegar a Krasnoiarsk, talvez nem tudo estivesse perdido. Miguel Strogoff apresentar-se-ia nesse caso ao governador da cidade e dar-se-ia a conhecer, para que ele lhe proporcionasse os meios de continuar a sua viagem.

      Miguel Strogoff caminhava, pois, falando raras vezes, absorto a maior parte do tempo. Todavia, de vez em quando, como se despertasse das suas íntimas divagações, inquiria com afecto:

      - Porque não falas, Nadia?

      - Para quê, Miguel? Não temos nós, porventura, os mesmos pensamentos?

      E, respondendo assim, a pobre menina procurava não dar a conhecer a sua excessiva prostração. Às vezes, porém, sentindo vergarem-se-lhe as pernas, afrouxava o passo, estendia os braços ao longo do corpo e deixava-se ficar para trás, como se o coração por momentos cessasse de bater. Miguel Strogoff parava então, fixando os olhos muito abertos sobre a pobre Nadia, como se tentasse vê-la através das espessas névoas que lhe velavam a vista. Nos seus lábios esboçava-se um sorriso doloroso, depois, amparando com mais vigor a sua companheira, continuava logo a marcha que interrompera por um instante.

      No meio de tantas provações, de tão grandes amarguras, ocorreu neste dia uma circunstância extraordinária, que transformou beneficamente a situação dos dois infelizes.

      Havia duas horas que eles tinham saído de Semilowskoe quando Miguel Strogoff parou de repente.

      - A estrada está deserta? - perguntou ele.

      - Completamente deserta.

      - Parece-me, porém, que oiço bulha atrás de nós.

      - Tens razão, Miguel.

      - Se forem os tártaros, convém que nos escondamos. Vai ver, Nadia.

      - Espera, Miguel - recomendou Nadia, afastando-se alguns passos para observar a estrada de cima de uma pequena eminência.

      Miguel Strogoff, que ficou só por um momento, estendeu também a cabeça.

        Nadia voltou pouco depois, informando:

      - É uma carroça. Vem nela um rapaz.

      - Só ou acompanhado?

      Miguel Strogoff hesitou um momento. Deveria esconder-se? Ou deveria arriscar-se a pedir um lugar naquele veículo, não para ele, mas para Nadia? Para ela, sim! O infatigável caminhante contentar-se-ia que o deixassem apoiar-se na traseira da carroça, prestando-se até, se fosse preciso, a empurrá-la com as mãos. Pois não dispunha ele ainda dos seus possantes músculos de aço? A pobre Nadia, essa é que já não podia dar um passo, quebrada pelas violentas e penosas marchas que desde Omsk até aqui tinha sido obrigada a fazer.

      Miguel Strogoff decidiu-se a esperar.

      A carroça não tardou que se aproximasse.

      Era um modesto veículo, que apenas podia conter três pessoas, veículo que tem na Sibéria o nome de kibitka.

      A kibitka, ordinariamente, costuma ser puxada por três cavalos, esta porém só tinha um. É verdade que era um cavalo de sangue mongol, o que lhe abonava as suas boas qualidades de vigor e de coragem.

      Guiava-a um rapaz de vinte e tantos anos, trazendo um cão ao lado.

      Nadia reconheceu que era russo aquele rapaz. Tinha uma fisionomia simpática e suave, que inspirava confiança. De resto, não parecia vir muito apressado. Para não cansar o cavalo, caminhava a passo, e quem o encontrasse não diria que ele seguia um caminho que de um momento para o outro poderia estar cortado pelos tártaros.

      Nadia, segurando Miguel Strogoff pela mão, tinha-se afastado com ele para um dos lados da estrada.

      A kibitka parou, e o seu condutor pôs-se a olhar para Nadia com ar afável.

      - Para onde é que tencionam ir nesse passo? - perguntou ele com agrado, abrindo muito os olhos.

      O som desta voz não pareceu estranho a Miguel Strogoff. Iria afirmar que já a tinha ouvido noutro lado. E dir-se-ia que isso bastou para o tranquilizar, porque a sua fronte desanuviou-se de repente.

      - Então para onde é que vão, façam favor de mo dizer? - repetiu o recém-chegado, voltando-se mais directamente para Miguel Strogoff.

      - Vamos para Irkutsk! - respondeu este.

      - Para Irkutsk! Mas é que, daqui até lá, ainda há que andar um bom par de verstas, meu amigo!

      - Bem sei.

      - E tencionas andá-las a pé?

      - Tenciono.

      - Quanto a ti, não digo que não, mas quanto a essa menina...

      - É minha irmã - acudiu Miguel Strogoff, que julgou prudente continuar a dar-lhe este tratamento.

      - Estimo sabê-lo. Pois, como te dizia, tua irmã é que não poderá chegar até Irkutsk.

      - Meu amigo - explicou Miguel Strogoff, aproximando-se da kibitka -, os tártaros roubaram-nos tudo, e não tenho um kopek sequer para te oferecer. Mas se permites que minha irmã vá a teu lado, eu seguir-te-ei a pé, sem atrasar assim a tua jornada.

      - Irmão!... Meu irmão - exclamou Nadia -, não consinto... não consinto. Senhor!... Senhor!... Meu irmão é cego!

      - Cego! - exclamou o russo com voz comovida.

      - Os tártaros queimaram-lhe os olhos - ajuntou Nadia, estendendo as mãos em ar de súplica.

      - Queimaram-lhe os olhos?!... Ah! Que malvados! Olhem: eu vou para Krasnoiarsk. Porque não hão-de vir também comigo? Apertando-nos um pouco, havemos de caber todos. O meu cão, esse que tenha paciência... irá a pé. Devo, porém, preveni-los de uma coisa: é que não vou depressa para não estafar o cavalo.

      - Como te chamas, meu amigo? - perguntou Miguel Strogoff.

      - Nicolau Pigassof.

      - Nunca mais esquecerei esse nome! - declarou Miguel Strogoff com verdadeiro sentimento de gratidão.

      - Não falemos nisso... Então! Vamos, é trepar cá para cima. Tu ficarás ao lado de tua irmã dentro da carroça, eu na almofada para guiar. No fundo há boa palha de cevada e casca de bétula muito macia. É como se fosse um ninho. Safa-te daí, “Serkô”! Deixa o lugar para quem está mais cansado do que tu.

      O cão desceu logo sem se fazer rogar. Era um animal de raça siberiana, pêlo cinzento, cabeça grande e olhar amigo, que parecia ter muita amizade pelo dono.

      Miguel Strogoff e Nadia subiram depressa para a kibitka. Aquele, depois de sentado, estendeu as mãos, como que procurando as de Nicolau.

      - São as minhas mãos que pretendes apertar? - disse Nicolau.

      - Aqui as tens, pobre cego! Aperta-as quanto quiseres.

      A kibitka pôs-se de novo a andar. O cavalo, como advertira Nicolau, ia a passo. Se Miguel Strogoff não melhorava em rapidez, sabia pelo menos que a sua infeliz companheira não teria de suportar novas fadigas.

      E era tal o cansaço da pobre menina que, embalada pelo monótono movimento da kibitka, bem depressa caiu num sono que mais parecia letargo. Miguel Strogoff e Nicolau deitaram-na em cima da palha o melhor que puderam. O compassivo rapaz estava deveras comovido. Se naquele momento não brotou uma lágrima dos olhos de Miguel Strogoff foi porque a lâmina do verdugo lhe tinha para sempre queimado as últimas.

      - E ela é bonita! - observou Nicolau.

      - Se é! - respondeu Miguel Strogoff.

      - Por mais que façam, por maior que seja a sua coragem, nunca têm o vigor de um homem estas delicadas criaturinhas! E já vêm de longe?

      - De muito longe!

      - Coitados! E doeu-te muito quando eles te queimaram os olhos?

      - Doeu - replicou Miguel Strogoff, voltando-se como se estivesse a ver Nicolau.

      - E não choraste?

      - Chorei.

      - Também eu teria chorado. Pensar que se não tornam a ver as pessoas a quem mais queremos! O que vale é que nos vêem elas a nós. Isso ao menos é uma consolação.

      - Assim é. Dize-me, Nicolau - inquiriu Miguel Strogoff -, não te lembras de já me teres encontrado nalgum sítio?

      - Não.

      - É que me pareceu reconhecer o som da tua voz.

      - Ora esta! - volveu Nicolau, a rir. - Parece-te que já ouviste o som da minha voz. Dizes isto talvez para saberes donde venho. Vou satisfazer-te a curiosidade: Venho de Kolyvan.

      - De Kolyvan? - exclamou Miguel Strogoff. - Mas foi então lá que eu te vi. Não eras tu que estavas na estação do telégrafo?

      - Devia ser - admitiu Nicolau -, uma vez que era eu o empregado incumbido de transmitir os telegramas.

      - E conservaste-te no teu posto até aos últimos momentos?

      - Decerto. Não fiz mais do que o meu dever!

      - Lembras-te do dia em que um inglês e um francês disputaram, junto do teu lugar, qual seria o primeiro a transmitir os seus despachos? E lembras-te que o inglês se pôs a telegrafar para Londres os versículos da Bíblia?

      - É possível, mas não me recordo.

      - Como assim? Não te recordas?

      - É que nunca reparo nos despachos que transmito. Cumprindo-me por obrigação esquecê-los, acho que o melhor é ignorá-los.

      Esta resposta definia Nicolau Pigassof.

      Entretanto, a kibitka continuava sempre a ir a passo, embora Miguel Strogoff desejasse que ela andasse mais depressa. Nicolau e o seu cavalo estavam de tal forma habituados a este andamento que não seria fácil obrigá-los a mudar para outro. O cavalo, quer de dia, quer de noite, caminhava três horas e descansava uma. Durante as horas de descanso, o cavalo pastava, e os viajantes da kibitka tomavam as suas refeições na companhia do fiel “Serkô”.

      Nicolau fora tão previdente que acumulara pelo menos provisões para vinte pessoas. Nem mesmo se esquecera de trazer consigo o samovar (Espécie de vasilha usada na Rússia para preparar o chá). O generoso rapaz pusera tudo à disposição dos seus dois hóspedes, que ele julgava serem irmãos.

      Depois de algumas horas de repouso, Nadia tinha recobrado parte das suas forças. Nicolau providenciava para que ela se acomodasse o melhor possível.

      A viagem ia-se fazendo em condições aceitáveis, devagar, é certo, mas com regularidade. Sucedia que às vezes, durante a noite, Nicolau se deixava adormecer, ressonando com uma convicção que bem patenteava a serenidade da sua consciência. Talvez que, nesse momento, quem olhasse com atenção pudesse ver as mãos de Miguel Strogoff procurando as rédeas do cavalo e obrigando este a um andamento mais rápido, com grande espanto de “Serkô”, que, todavia, se conservava silencioso. Aquele trote, porém, voltava novamente ao passo logo que Nicolau acordava, o que não impedia que a kibitka tivesse avançado algumas verstas em relação à sua velocidade habitual.

      Foi assim que se atravessou a ribeira de Ichimsk, as povoações de Ichimskoe, Berikylskoe, Kuskoe, a ribeira de Marünsk, a povoação do mesmo nome, Bogostowlskoe, e finalmente o Tchula, pequeno rio que separa a Sibéria ocidental da Sibéria oriental. A estrada estendia-se agora através de imensa charneca, por entre compridos e cerrados pinhais, que pareciam nunca ter fim.

      Tudo estava deserto. As povoações quase todas abandonadas. Os habitantes do campo tinham fugido para lá do Yenisei, julgando talvez que este enorme rio pudesse servir de barreira à invasão dos tártaros.

      No dia 22 de Agosto chegou a kibitka ao lugar de Atchinsk, distante de Tomsk trezentas e oitenta verstas. Faltavam ainda cento e vinte verstas para chegar a Krasnoiarsk. Nenhum incidente viera perturbar o seguimento da viagem. Havia seis dias que se realizara o encontro de Nicolau com Miguel Strogoff e a sua companheira. Durante algum tempo não se tinha dado mudança alguma entre os três viajantes, um entregue sempre à sua inalterável serenidade, os outros dois sempre inquietos pelo que lhes poderia ainda suceder antes de chegarem a Irkutsk.

      Miguel Strogoff, assim se pode dizer, ia vendo a estrada pelos olhos de Nicolau e de Nadia. Cada um, por sua vez, procurava descrever os lugares que atravessavam. Miguel Strogoff sabia assim se caminhava numa planície, se atravessava uma floresta, se ao longe se divisava alguma cabana, se no horizonte aparecia algum siberiano. Nicolau não se calava. Era falador por vocação, e, qualquer que fossem as suas apreciações, gostava-se sempre de o ouvir.

      Um dia perguntou-lhe Miguel Strogoff que tal estava o tempo.

      - Bom ainda - respondeu Nicolau -, mas o Verão está a despedir-se de nós. O Outono é curto na Sibéria, e não tardará que apareçam os primeiros frios do Inverno. Talvez que os tártaros tencionem acantonar-se durante esse tempo.

      Miguel Strogoff sacudiu a cabeça em ar de dúvida.

      - Não és dessa opinião? - perguntou Nicolau. - Receias que eles avancem até Irkutsk?

      - Receio - afirmou Miguel Strogoff.

      - Tens razão. Os tártaros trazem consigo um infame, que os não há-de deixar arrefecer pelo caminho. Já ouviste falar de Ivan Ogareff?

      - Já.

      - Que me dizes daquele velhaco sem consciência que atraiçoou a nossa pátria? Não achas que praticou uma infâmia imperdoável?

      - Acho - respondeu Miguel Strogoff, diligenciando por se conservar impassível.

      - Olha lá, amigo - tornou de novo Nicolau. - Noto que não te zangas bastante quando se fala desse traidor. Eu entendo que todo o russo que for homem de bem deve indignar-se ao ouvir pronunciar aquele nome.

      - Acredita-me, Nicolau: tenho por esse infame tal rancor que nunca tu poderás odiá-lo tanto como eu o odeio – assegurou Miguel Strogoff, cerrando os punhos numa agitação febril que surpreendeu o companheiro.

      - Isso é que não é possível, não. Quando eu penso naquele maroto e nos grandes males que tem causado à nossa santa Rússia, apodera-se de mim tamanha exaltação que, se o apanhasse a jeito...

      - Que lhe farias?

      - Que lhe faria? Parece-me que o matava!

      - Parece-te! Pois eu afianço-te que o matava – respondeu tranquilamente Miguel Strogoff.

     

     A passagem do Yenesei

      No dia 25 de Agosto, ao cair da tarde, avistou-se da kibitka a cidade de Krasnoiarsk. A viagem de Tomsk até aqui tinha durado oito dias. Se não se caminhara mais depressa, apesar dos bons desejos de Miguel Strogoff, foi porque durante esse período Nicolau tinha dormido muito pouco. Noutras mãos que obrigassem o cavalo a andar mais apressadamente aquele trajecto não deveria com certeza ter durado mais de sessenta horas.

      Felizmente, ainda não havia notícias dos tártaros. As vanguardas do emir não tinham por enquanto sido vistas na estrada que os três viajantes acabavam de percorrer.

      Isto era de facto extraordinário. Só uma circunstância muito grave poderia ter obstado a que as forças de Féofar-Cã continuassem os seus movimentos ofensivos.

      A circunstância grave produzira-se com efeito. Um novo corpo de exército russo, reunido à pressa no governo do Yeniseisk, marchara sobre Tomsk, na intenção de reconquistar aquela cidade aos tártaros. Insignificante, porém, para se medir com as forças inimigas, todas agora concentradas, essas tropas viram-se obrigadas a bater em retirada. Féofar-Cã, juntando os seus soldados aos contingentes dos canados de Khokhand e de Kunduza, contava agora debaixo das suas ordens um exército de duzentos e cinquenta mil homens, contra os quais o Governo russo ainda não podia opor forças consideráveis. Supunha-se por conseguinte, e com algum fundamento, infelizmente, que a invasão não poderia ser tão depressa detida,  devendo esperar-se, como consequência desse mal, a marcha compacta de todas as tropas tártaras sobre a capital da Sibéria oriental.

      A batalha de Tomsk travara-se no dia 22 de Agosto, facto que Miguel Strogoff desconhecia, mas que explicava perfeitamente o motivo por que a vanguarda do emir ainda não chegara a Krasnoiarsk no dia 25.

      O que, porém, Miguel Strogoff sabia, embora ignorasse os acontecimentos ocorridos em Tomsk depois da sua saída, é que tinha ganho alguns dias sobre os tártaros, pelo que não devia desesperar de chegar antes deles a Irkutsk, donde contudo estava afastado ainda oitocentas e cinquenta verstas (900 quilómetros).

      De resto, em Krasnoiarsk, cidade cuja população anda aproximadamente por doze mil almas, Miguel Strogoff contava que não lhe escasseariam os meios de transporte. Uma vez que Nicolau Pigassof tencionava ficar nesta cidade, convinha arranjar um guia e um veículo que pudesse substituir com vantagem a kibitka. Miguel Strogoff, depois de se apresentar ao governador de Krasnoiarsk e de fazer provar a sua qualidade de correio do czar, o que lhe seria fácil, esperava que aquele funcionário não lhe recusaria os meios de chegar a Irkutsk no mais breve espaço de tempo. Conseguido isto, iria agradecer a Nicolau o serviço que lhe prestara, pondo-se logo a caminho com a sua companheira, de quem só deveria separar-se quando a deixasse entregue nos braços de seu pai.

      Todavia, se Nicolau resolvera ficar em Krasnoiarsk, era, como ele tinha dito, na esperança de encontrar ali que fazer.

      Este empregado exemplar, que permanecera na estação de Kolyvan até ao assalto dos tártaros, procurava efectivamente voltar quanto antes para o serviço.

      - Porque hei-de eu estar a receber um ordenado a que não tenho direito, uma vez que não trabalho? - dizia ele muitas vezes.

      Por conseguinte, se os seus chefes o não pudessem aproveitar em Krasnoiarsk, embora o telégrafo devesse ainda funcionar entre esta cidade e Irkutsk, o seu plano era seguir para a estação de Udinsk, ou, em último caso, para a capital da Sibéria oriental. Sendo assim, continuaria a viagem na companhia dos dois irmãos, e onde iriam estes encontrar um guia mais seguro, um amigo mais dedicado?

      A kibitka achava-se então a meia versta apenas de Krasnoiarsk. Viam-se já à direita e à esquerda as numerosas cruzes de madeira que se levantam no caminho quando se está perto da cidade. Eram sete horas da tarde. Sobre o horizonte começavam a desenhar-se os perfis das igrejas e a linha das casas levantadas sobre as ribas do Yenisei. As águas do rio brilhavam com os últimos clarões que lhes enviava o Sol no ocaso.

      A kibitka tinha parado.

      - Onde estamos? - perguntou Miguel Strogoff a Nadia.

      - A meia versta, quanto muito, das primeiras casas, que se avistam na nossa frente - informou ela.

      - Dir-se-ia que vamos para uma cidade de mortos – ponderou Miguel Strogoff. - Não sinto o menor ruído.

      - E não se vê uma só luz brilhar nas sombras, nem levantar-se no ar o mais ligeiro fumo - acrescentou Nadia.

      - Que cidade tão extraordinária! - exclamou Nicolau. - Parece que os moradores costumam deitar-se com as galinhas.

      Um pressentimento de mau agoiro atravessou o espírito de Miguel Strogoff, que pusera todas as suas esperanças na chegada a Krasnoiarsk. Era dali que ele contava seguir sem obstáculos a sua viagem. Não o tinha dito a Nadia, é certo, para não lhe alimentar a imaginação com promessas, que poderiam ainda desvanecer-se. Contudo, Nadia adivinhara-lhe o pensamento, se bem que não compreendesse o motivo por que o seu companheiro persistia em ir a Irkutsk, uma vez que já não estava em seu poder o ofício do imperador. Um dia chegara mesmo a falar-lhe a este respeito.

      - Jurei que havia de ir a Irkutsk, e hei-de cumprir o meu juramento - contentara-se em responder Miguel Strogoff.

      Mas, para se realizar essa viagem, era preciso que em Krasnoiarsk se encontrassem meios fáceis de locomoção.

      - Então, amigo - perguntou Miguel Strogoff a Nicolau -, porque é que não vamos para diante?

      - É que receio acordar os moradores da cidade com a bulha da carroça.

      E com uma ligeira chicotada Nicolau obrigou novamente o cavalo a andar. “Serkô” ladrou por alguns segundos e a kibitka desceu a pequeno trote a ladeira que ia dar a Krasnoiarsk.

      Dez minutos depois entrava a kibitka numa larga rua.

      Krasnoiarsk estava deserta! Não se via um único ateniense naquela Atenas do Norte, como lhe chama Madame de Bourboulon. Nenhuma das opulentas e faustosas carruagens, que ali abundam, percorria as ruas largas e asseadas. Nenhum transeunte seguia pelos passeios que orlam a base daquelas magníficas habitações de madeira de aspecto monumental! Nenhuma elegante siberiana, vestida pelos últimos figurinos de Paris, passeava por entre as avenidas daquele belo parque, rasgado numa floresta de bétulas, que se estendia até às margens do Yenisei! Os pesados sinos da catedral estavam mudos! Os campanários das igrejas não se ouviam e, no entanto, é raro que uma cidade russa não encha constantemente o espaço com o repique alegre dos seus sinos! Mas a solidão era geral e completa! Não se via um único ser vivo nesta cidade, ainda há pouco tempo tão cheia de animação!

      O último telegrama expedido do gabinete do czar, antes de a linha estar interrompida, tinha ordenado ao governador, à guarnição e a todos os habitantes que saíssem de Krasnoiarsk e fossem em busca de refúgio em Irkutsk, levando consigo tudo o que tivesse valor ou pudesse aproveitar aos tártaros. A mesma intimação fora feita aos habitantes das outras povoações da província. O Governo moscovita queria estender um deserto em frente dos invasores. Estas ordens, que faziam lembrar as de Rostopschine, quando mandou incendiar Moscovo, foram executadas pontualmente, sem que uma só voz se atrevesse a discuti-las.

      Eis as razões por que os viajantes da kibitka não encontravam agora um único habitante em Krasnoiarsk.

      Miguel Strogoff, Nicolau e Nadia percorreram em silêncio as ruas da cidade, experimentando, a seu pesar, uma impressão desagradável. Eram eles os únicos a perturbar a sinistra quietação desta cidade sem moradores!

      Miguel Strogoff não deixou transparecer no rosto as amarguras que lhe atormentavam o espírito. A má fortuna persistia ainda em persegui-lo,  destruindo-lhe mais uma vez as suas tão bem fundadas esperanças.

      - E esta! -  exclamou Nicolau. - Não será decerto numa cidade sem população que eu hei-de exercer o meu emprego!

      - Nicolau - propôs Nadia -, o melhor é continuarmos juntos a viagem para Irkutsk.

      - Parece-me que sim - declarou Nicolau. - O telégrafo ainda não deve estar interrompido entre Udinsk e Irkutsk... Olá, amigo... vamos para diante?

      - Será melhor esperar até amanhã - sugeriu Miguel Strogoff.

      - Bem pensado - apoiou Nicolau. - Há que passar o Yenisei, e para isso é necessário ver bem!

      - Ver bem! - murmurou Nadia, olhando para Miguel Strogoff.

      Nicolau ouviu a observação magoada de Nadia, e, voltando-se para Miguel Strogoff, disse-lhe:

      - Desculpa, meu amigo, desculpa. Não me lembrei de que a noite e o dia têm para ti o mesmo valor.

      - Não tenho que te desculpar - disse Miguel Strogoff, passando a mão pelos olhos. - Contigo por guia, ainda poderei servir para alguma coisa. Mas aguardemos o dia de amanhã. Tu precisas de repouso e Nadia também.

      Miguel Strogoff, Nadia e Nicolau não precisaram de gastar muito tempo para achar uma casa disponível. A primeira porta que empurraram ao acaso forneceu-lhes logo um lugar de abrigo. É certo que só encontraram lá dentro alguns feixes de erva muito seca. à falta de melhor, teve o cavalo de se contentar com aquela magra ração. Quanto a provisões de boca, o sortimento da kibitka ainda não estava esgotado, e cada um dos três viajantes Pôde cear à vontade. Depois ajoelharam-se todos diante da imagem da virgem, suspensa numa das paredes, e ainda alumiada pelos últimos clarões de uma lâmpada quase a apagar-se.

      Nadia e Nicolau deixaram-se logo adormecer. Miguel Strogoff ficou velando. Parecia que o cansaço não tinha acção sobre ele.

      No dia seguinte, 26 de Agosto, antes de nascer a manhã, a kibitka, atrelada novamente, começava a atravessar o parque de Krasnoiarsk para se aproximar do Yenisei.

      Miguel Strogoff ia vivamente preocupado. Como se poderia passar o rio, dado o caso de já estarem retirados ou destruídos todos os barcos para dificultar a marcha dos tártaros? Miguel Strogoff conhecia o Yenisei por ter andado nele muitas vezes. Sabia que a sua largura era considerável e perigosos os numerosos rápidos formados pelo duplo leito do rio e pelos seus vários braços. Em circunstâncias normais, e por meio de barcos feitos especialmente para transportar viajantes, carruagens e cavalos, a passagem do Yenisei leva três horas pelo menos, sendo só à custa de inúmeras dificuldades que se consegue chegar à margem oposta. Ora, à falta de qualquer embarcação, como passaria a kibitka de um para o outro lado do rio?

      - Seja como for, hei-de passar! - repetia com tenacidade Miguel Strogoff.

      Começava a despontar o dia quando a kibitka chegou à margem esquerda, justamente no ponto onde terminava uma das grandes avenidas do parque. Naquele local as ribas dominavam perto de cem pés do curso do rio, o que permitia dilatar a vista por uma enorme extensão.

      - Vê-se algum barco de passagem? - perguntou Miguel Strogoff, movendo os olhos por um hábito maquinal, sem dúvida, e como se quisesse ele próprio fixar os objectos que o rodeavam.

      - Começa apenas a amanhecer, meu irmão - respondeu Nadia. - O nevoeiro no rio é tão espesso ainda que nem se distinguem as águas.

      - Mas eu oiço-as agitarem-se.

      Efectivamente, das camadas inferiores deste nevoeiro saía um vago sussurro, causado pelas correntes e contracorrentes que se cruzavam. As águas, muito elevadas nesta época do ano, deviam precipitar-se com extrema violência. Os viajantes puseram-se à espera que o denso véu de neblina se dissipasse. O Sol ia levantar-se brevemente sobre o horizonte, e os seus primeiros raios não poderiam deixar de desvanecer aqueles vapores.

      - Então? - perguntou Miguel Strogoff.

      - As brumas começam a desfazer-se, meu irmão – explicou Nadia. - A luz do Sol já penetra por entre elas.

      - Ainda não vês o nível do rio, minha irmã?

      - Ainda não.

      - Sê paciente, amigo - acudiu Nicolau. - Não tarda que isto tudo se derreta. Bom! O vento principia a soprar, fazendo desaparecer o nevoeiro. As altas colinas da margem direita já se destacam, deixando ver os seus renques de árvores. Tudo se dissolve, tudo se some. Os raios do Sol condensaram toda a grande massa de brumas. Ah! Como tudo isto é belo! E que pena que tu não possas contemplar este sublime espectáculo!

      - Vês por acaso algum barco? - tornou a perguntar Miguel Strogoff, com insistência.

      - Não vejo - afirmou Nicolau.

      - Observa minuciosamente, meu amigo, percorre ambas as margens com a vista, e dize-me se os teus olhos não alcançam alguma embarcação, por pequena que seja, alguma simples canoa, ainda mesmo de cortiça.

      Nicolau e Nadia, segurando-se aos troncos das bétulas que orlavam as ribas, debruçaram-se sobre o rio, perscrutando-o. O espaço patente aos seus olhos era imenso. O Yenisei neste sítio não media menos de versta e meia de largura e formava dois braços de grandeza desigual por onde as águas se lançavam com enorme impetuosidade. Entre estes braços existem diferentes ilhas, onde se vêem amieiros, choupos e salgueiros, que pareciam outros tantos navios verdejantes ancorados serenamente no meio do rio. Para lá da margem direita levantavam-se as altas colinas coroadas de florestas, cuja ramaria começava a purpurear-se de luz. Para baixo e para cima estendia-se majestosamente a vasta superfície das águas. Este admirável panorama fechava-se à vista num perímetro de cinquenta verstas.

      Nem uma só embarcação, porém, se divisava de ambos os lados do rio! Todas tinham sido retiradas ou destruídas por ordem superior. Efectivamente, se os tártaros não trouxessem consigo o material necessário para construir uma ponte de barcas, a sua marcha sobre Irkutsk arriscava-se a ficar interrompida diante desta barreira natural.

      - Agora me lembro - disse então Miguel Strogoff. – Mais adiante, pegado com as últimas casas de Krasnoiarsk, há um pequeno cais de embarque, onde os barcos de passagem costumam ancorar. Vamos, Nicolau, vamos ver se algum deles ali ficaria por esquecimento.

      Nicolau caminhou na direcção indicada. Nadia, estendendo a mão a Miguel Strogoff, seguiu com ele atrás de Nicolau. Um barco, uma simples canoa que pudesse transportar a kibitka, ou, à falta dela, os viajantes, e Miguel Strogoff não hesitaria em atravessar o rio.

      Vinte minutos depois chegavam todos três ao pequeno cais de que falara Miguel Strogoff, todo ladeado de casinhas, que iam quase beijar o nível das águas. Era uma espécie de arrabalde veneziano, situado na parte baixa de Krasnoiarsk.

      Mas nem sombra de barcos de passagem junto da ponte do cais, nem uma única embarcação nas amarras do ancoradouro! Nada! Nem sequer fragmentos de madeira que permitissem construir uma jangada para três pessoas!

      Miguel Strogoff perguntara a Nicolau o que via em torno de si, e este respondera-lhe, desanimadamente, que a passagem do rio lhe parecia ser de todo impossível.

      - Havemos de passar! - volveu com decisão Miguel Strogoff.

      E continuaram todos a procurar. Revistaram-se as diferentes casas espalhadas pelo cais, e tão sós como as outras de Krasnoiarsk. Bastava-lhes empurrar as portas para entrar. Eram na maior parte cabanas de famílias que trabalhavam no tráfego do rio. Todas completamente abandonadas! Nicolau visitava umas, enquanto Nadia percorria outras. O próprio Miguel Strogoff entrava numa ou noutra, procurando com as mãos algum objecto que lhe pudesse servir.

      Nicolau e Nadia, cada um por sua banda, tinham feito, sem resultado, diversas pesquisas, e já se dispunham a dá-las por terminadas quando ouviram uma voz que os chamava.

      Ambos voltaram ao cais e viram Miguel Strogoff no limiar duma porta.

      - Venham cá! - gritava ele.

      Nicolau e Nadia correram para o ponto onde estava Miguel Strogoff, e, seguindo-o, entraram todos três numa casa baixa.

      - Que é isto? - perguntou Miguel Strogoff, tocando com a mão numa rima de objectos empilhados ao fundo de um celeiro.

      - São odres - respondeu Nicolau.

      - Quantos? - insistiu Miguel Strogoff.

      - Cinco.

      - E estão cheios?

      - Estão cheios de kunyss, o que não deixa de vir a propósito para renovar a nossa provisão.

      O kunyss é uma bebida feita de leite de égua ou de camela, bebida que fortifica e até chega a embriagar. Nicolau não ia deixar de se felicitar por tão útil achado.

      - Guarda para nós um dos odres e despeja todos os outros.

      - É só um instante! - respondeu Nicolau.

      - Aqui está o que nos vai ajudar a transpor o Yenisei.

      - E a jangada?

      - Formá-la-á a própria kibitka, que é bastante leve para se sustentar à superfície da água. Demais, tanto o cavalo como a kibitka hão-de ser amparados por estes odres.

      - Excelente ideia, meu amigo - aplaudiu Nicolau. - Agora, e com a ajuda de Deus, havemos de chegar ao nosso destino. Em linha recta é que talvez não, porque a corrente vai muito forte.

      - Que importa! - respondeu Miguel Strogoff. - Primeiro que tudo, urge passar. Quando estivermos do outro lado, então pensaremos no modo de continuar a viagem.

      - Mãos à obra - disse Nicolau, que principiou a despejar os odres e a transportá-los para a kibitka.

      Deixou-se um deles Intacto. Os outros, depois de vazios, encheram-se de ar e fecharam-se hermeticamente.

      Assim preparados, estavam prontos para ser utilizados como aparelhos flutuantes. Dois deles, presos aos flancos do cavalo, haviam de servir para sustentar ao lume da água o animal. Outros dois, colocados adiante das rodas da kibitka, tinham por fim assegurar a linha de flutuação à sua caixa que, deste modo, se transformaria numa verdadeira jangada.

      O trabalho que demandava esta operação fez-se com a maior rapidez.

      - Prometes não ter medo, Nadia? - perguntou Miguel Strogoff.

      - Prometo.

      - E tu, Nicolau?

      - Eu, medo? - exclamou Nicolau. - Como hei-de ter medo, se vejo assim realizado um dos meus sonhos: navegar dentro de um carro!

      Neste ponto a margem tinha bastante inclinação para favorecer a entrada da kibitka no rio. O cavalo foi puxando por ela até se meter na água. Pouco depois a improvisada jangada e o seu motor flutuavam na superfície do rio. Quanto a “Serkô”, a operação tornou-se muito mais simples: o corajoso cão deitou-se afoitamente a nado para seguir o dono.

      Os três passageiros, de pé na caixa da kibitka, tinham-se descalçado por precaução, mas, graças ao auxílio dos odres, a água não lhes chegou aos tornozelos.

      Miguel Strogoff sustinha as guias do cavalo, e, segundo as indicações que lhe dava Nicolau, assim o dirigia, poupando quanto possível para lhe não diminuir as forças numa luta contra a corrente. De princípio tudo correu bem, e ao cabo de alguns minutos já a kibitka estava longe do cais de Krasnoiarsk. É verdade que pendia visivelmente para o norte, parecendo fora de dúvida que só chegaria à margem oposta muito para baixo do ponto de partida. Isso, porém, pouco importava.

      A passagem do Yenisei ter-se-ia, pois, realizado sem grandes dificuldades se a corrente seguisse uma linha regular. Infelizmente, havia muitos redemoinhos nas suas águas revoltas, e a kibitka, apesar de toda a força empregada por Miguel Strogoff para a desviar, não tardou que fosse irresistivelmente atraída para um daqueles sorvedouros.

      A situação tornou-se então muito grave. A kibitka já nem obliquava para a margem direita, nem tão-pouco deslizava com a força da corrente. Inclinando-se para o centro do torvelinho, girava com incrível rapidez sobre si mesma, como um picador às voltas na pista de um circo. Era enorme a velocidade que adquirira. O cavalo sustentava a custo a cabeça fora de água, correndo o risco de se afogar. “Serkô” tivera de saltar para cima da kibitka, a fim de encontrar um ponto de apoio. Esta ia pouco a pouco estreitando os seus círculos concêntricos, e não tardaria que fosse absorvida pelo turbilhão.

      Miguel Strogoff compreendeu com perfeita lucidez o que se passava naquele momento crítico. Não pronunciou, porém, uma palavra. O seu olhar outrora penetrante, bem quisera medir o perigo para melhor poder evitá-lo. Mas se ele já não via!

      Nadia conservava-se calada. Com as mãos agarradas às xalmas da kibitka, sustinha-se assim apesar dos movimentos desordenados do veículo, que cada vez se inclinava mais para o centro do redemoinho.

      E Nicolau? Não percebia ele acaso a gravidade do perigo? Haveria da sua parte fleuma ou desprezo pela morte? Coragem ou simplesmente indiferença? A vida a seus olhos não teria nenhum valor, ou, segundo a expressão dos orientais, considerá-la-ia apenas como sendo uma “pousada de cinco dias”, de que se deve forçosamente sair ao sexto? Seja como for, a sua jovial fisionomia não manifestou sequer a menor alteração.

      A kibitka continuava, pois, envolvida naquele turbilhão, e o cavalo já não tinha forças para lhe resistir. De repente, Miguel Strogoff, despindo parte do fato que lhe poderia paralisar os movimentos, atirou-se ao rio.

      Depois, agarrando com mão vigorosa o freio do cavalo espantado, imprimiu-lhe tamanho impulso que logrou afastá-lo do torvelinho. A kibitka, entrando novamente no fio da corrente, deslizou rio abaixo com maior rapidez ainda:

      - Vitória! - exclamou Nicolau.

      Só depois de duas horas de esforços é que a kibitka pôde atravessar o braço mais largo do rio, indo aportar a uma das ilhas do Yenisei, mais de seis verstas abaixo do ponto donde partira.

      Logo que os três passageiros saltaram para fora do carro, deu-se uma hora de repouso ao valente cavalo, que bem a tinha ganho. Depois atravessou-se a ilha em toda a sua largura, à sombra das magníficas bétulas que a revestiam, e ao cabo deste rápido trajecto a kibitka achava-se junto do pequeno braço do Yenisei.

      A passagem realizou-se agora em melhores condições. Neste segundo leito do rio não havia redemoinhos, mas a sua corrente era tão impetuosa que a kibitka só depois de ter ido rio abaixo por espaço de cinco verstas é que pôde alcançar terra. Quer dizer que se desviou ao todo onze verstas do seu trajecto em linha recta.

      Estes consideráveis volumes de água que atravessam a Sibéria, sobre os quais não existe por enquanto uma única ponte, constituem sérios obstáculos para a facilidade dos transportes. Até aqui todos os rios siberianos tinham sido mais ou menos funestos a Miguel Strogoff. No Irtyche, o barco em que ele ia com a sua companheira foi assaltado pelos tártaros. No Obi, depois de o seu cavalo ser varado por uma bala, só milagrosamente pôde escapar ao destacamento que o perseguia. Enfim, o Yenisei era ainda, de todos eles, o que menos sinistro se tinha mostrado, apesar dos seus perigosos redemoinhos.

      - Isto não seria tão divertido - exclamou Nicolau, esfregando as mãos de contente logo que se viu em terra -, se porventura não fosse tão difícil.

      - E o que para nós foi apenas difícil - respondeu Miguel Strogoff - talvez que para os tártaros seja de todo impossível!

     

     As apreensões de Nicolau

      Miguel Strogoff podia, enfim, supor que estava absolutamente livre para ele o caminho de Irkutsk. Tinha já alguns dias de avanço sobre os tártaros, que ainda permaneciam em Tomsk, e mesmo quando estes chegassem a entrar em Krasnoiarsk não encontrariam os recursos que supunham ali existir. A falta absoluta de comunicações entre as duas margens do Yenisei obrigaria as colunas do emir a perder naquela cidade o tempo necessário para se organizar uma ponte de barcas, por onde pudessem transpor o rio.

      Depois do deplorável encontro com Ivan Ogareff em Ichim, era a primeira vez que Miguel Strogoff se atrevia a respirar, chegando até a parecer-lhe que nenhum obstáculo viria opor-se à realização da sua empresa.

      A kibitka, depois de ter caminhado obliquamente umas quinze verstas em direcção a sudoeste, tornou a meter-se pela via principal.

      A estrada agora mudava de aspecto. De toda ela a parte considerada melhor é a que vai de Krasnoiarsk a Irkutsk. Os viajantes daqui por diante encontram o terreno mais suave e muita abundância de sombras a protegê-los contra os rigores do sol, quando não são verdadeiras florestas de cedros e de pinheiros, cobrindo às vezes um espaço de cem verstas de extensão. Daqui por diante desaparece a enfadonha imensidade da estepe, cuja linha circular se confunde no horizonte com a do céu, e começam a mostrar-se as ricas pastagens e os campos fertilíssimos. Todavia, esta próspera região não apresentava agora o mais pequeno sintoma de vida. Por toda a parte as povoações abandonadas, os casais sem moradores. Pelo caminho não se encontrava sequer um só desses aldeões em que predomina o tipo eslavo. Era um deserto em toda a sua nudez, e de mais a mais um deserto decretado por ordem superior.

      O tempo estava belo, mas já o ar, muito fresco durante a noite, dificilmente aquecia com o calor dos raios do Sol. Aproximavam-se os primeiros dias de Setembro, e por isso nesta região, de latitude elevada, o arco diurno diminui visivelmente sobre o horizonte. O Outono dura aqui pouco tempo, se bem que esta parte do território siberiano não ultrapasse o quinquagésimo quinto grau de latitude, onde também ficam as cidades de Edimburgo e Copenhaga. Sucede até que às vezes vem o frio inopinadamente depois do Verão. É que não podem deixar de ser precoces estes Invernos da Rússia asiática, durante os quais a coluna termométrica desce até ao ponto de congelação do mercúrio (Aproximadamente 42 graus abaixo de zero), considerando-se já como temperatura suportável as médias de vinte graus centígrados abaixo de zero.

      O tempo favorecia, pois, os viajantes. Não chovia nem trovejava. O calor era moderado e as noites frescas. Tanto Miguel Strogoff como Nadia sentiam-se bem de saúde, visto que depois da sua partida de Tomsk um e outro se tinham já pouco a pouco refeito das passadas fadigas.

      Por seu lado, Nicolau Pigassof nunca se achara tão bem disposto como agora. Esta viagem para ele era apenas uma viagem de recreio, uma excursão agradável, na qual ia gastando as suas férias de empregado sem emprego.

      - Decididamente - dizia ele -, isto é muito melhor do que passar doze horas por dia encarrapitado num banco a fazer girar o transmissor.

      Entretanto Miguel Strogoff conseguira que Nicolau fizesse andar o cavalo mais depressa. Para chegar a este resultado dissera-lhe que Nadia e ele iam ver seu pai, desterrado em Irkutsk, e que ambos tinham imenso desejo de o abraçar quanto antes. O cavalo da kibitka devia sem dúvida trabalhar com moderação, uma vez que não havia outro para substituí-lo, mas, concedendo-se lhe descansos repetidos, de quinze em quinze verstas por exemplo, talvez ele pudesse andar regularmente sessenta verstas por dia. De resto, o cavalo era forte e, devido à sua própria raça, muito apto para suportar longas jornadas. Pelo caminho não lhe faltavam as suculentas pastagens. A erva crescia de todos os lados abundante e vigorosa. Por consequência estava bem demonstrado que se deveria exigir dele um aumento de trabalho.

      Nicolau acabara por se convencer com estes argumentos. Ficou até extremamente comovido ao saber que aqueles dois infelizes iam tomar parte voluntária no exílio de seu pai. Nada lhe parecia tão digno de simpatia como aquela dedicação filial. Por isso, com um ar de sincera jovialidade ele voltara-se para Nadia, dizendo-lhe:

      - Deus seja louvado! Que satisfação não vai ter o Sr. Korpanoff quando vir ao mesmo tempo os seus dois filhos, quando puder juntar ambos no mesmo abraço! Se eu for também a Irkutsk, e não me parece que haja nisso grande dificuldade, hão-de dar-me licença para presenciar esse primeiro encontro, sim?

      E logo depois, batendo com a mão na testa:

      - Mas agora me lembro!... Que pesar não há-de ele também sentir quando reparar que o seu filho mais velho está cego! Ah! Como neste mundo as coisas que nos dão prazer andam a par das que nos afligem e desgostam!

      De toda esta conversação resultou finalmente que a kibitka principiou a rodar com maior ligeireza, não devendo agora, segundo os cálculos de Miguel Strogoff, percorrer menos de dez a doze verstas por hora.

      A primeira vantagem desta proveitosa alteração foi que a 28 de Agosto os viajantes deixavam para trás o lugar de Balesk, distante oitenta verstas de Krasnoiarsk, e a 29 o lugar de Ribinsk, distante quarenta verstas de Balesk.

      No dia seguinte, depois de trinta e cinco verstas de caminho, chegava a kibitka a Kamsk, povoação de alguma importância, banhada pela ribeira do mesmo nome, que nasce nos montes Sayansk e é afluente do Yenisei. Esta povoação, com todas as casas de madeira pitorescamente agrupadas em redor de uma praça, era notável pelo grande campanário do seu templo, cuja cruz dourada resplendia agora ao sol.

      As casas, porém, estavam também desabitadas, e a igreja absolutamente deserta. Nenhuma estação de posta em serviço, nenhuma estalagem em movimento. Nem cavalos nas estrebarias, nem rebanhos nos currais. As ordens do Governo moscovita haviam-se cumprido com extraordinário rigor. O que não pudera transportar-se fora completamente destruído.

      Ao sair de Kamsk, Miguel Strogoff preveniu os seus companheiros de que, até se chegar a Irkutsk, só se encontraria uma pequena cidade de alguma importância: Nijni-Udinsk. Nicolau respondeu-lhe que tanto assim era que até podia certificar existir ali uma estação telegráfica. Por conseguinte, se Nijni-Udinsk, à semelhança de tantas outras localidades, estivesse igualmente sem moradores, Nicolau achava-se bem decidido a ir para Irkutsk, onde poderia reassumir as suas ocupações oficiais.

      A kibitka pôde atravessar a vau, e sem grande dificuldade, a pequena ribeira existente adiante de Kamsk. De resto, entre o Yenisei e um dos seus maiores afluentes, o Angara, que banha Irkutsk, já não havia a recear o encontro de qualquer outra grande corrente, a não ser talvez a do Dinka. Por este lado a viagem não sofreria nenhum atraso.

      De Kamsk ao lugar mais próximo a distância foi aproximadamente de cento e trinta verstas. Diga-se, porém, que o cavalo não deixou de ter pontualmente as respectivas horas de descanso, sem o que, ponderava Nicolau, os viajantes se expunham a receber por parte dele alguma justa reclamação. Tinha-se combinado que, percorridas quinze verstas, se daria descanso ao cavalo, e quando se estabelece um contrato, ainda mesmo com animais, a boa equidade manda que se respeitem à risca as diferentes condições.

      Depois de passar a pequena ribeira de Biriusa, a kibitka chegou a Biriusinsk na manhã de 5 de Setembro.

      Nicolau, cujo pecúlio de provisões se ia esgotando, logrou providencialmente encontrar aqui umas doze pogatchas abandonadas dentro de um forno. A pogatcha é uma espécie de bolo preparado com gordura de carneiro e arroz cozido em água. Este feliz achado veio muito a propósito reunir-se à reserva de kumyss, de que a kibitka estava suficientemente abastecida desde a sua saída de Krasnoiarsk.

      Na tarde desse mesmo dia 5, depois de os viajantes haverem jantado e descansado um pouco, recomeçou-se de novo a marcha. A distância que os separava de Irkutsk era actualmente só de quinhentas verstas. Nenhum indício por enquanto assinalava a aproximação das vanguardas tártaras. Miguel Strogoff tinha, pois, razão para supor que a sua viagem se realizaria sem novos obstáculos e que no fim de oito dias, o máximo dez, se acharia na presença do grão-duque.

      À saída de Biriusinsk, saltou uma lebre de um para o outro lado da estrada, a curta distância da kibitka.

      - Ora esta! - disse Nicolau.

      - O que é? - perguntou prontamente Miguel Strogoff, que como homem cego, bastava o menor ruído para pôr de sobreaviso.

      - Não viste? - retorquiu Nicolau, cujo rosto de prazenteiro se tornara sombrio.

      Depois acrescentou:

      - Ah! Sim... não podias ver. E bom foi que não visses.

      - Eu também nada vi - declarou Nadia.

      - Tanto melhor, tanto melhor. Pudesse eu também dizer o mesmo!

      - Mas que foi que viste? - insistiu Miguel Strogoff com mal sofrida curiosidade.

      - Uma lebre que atravessou a estrada perto de nós – informou Nicolau.

      Quando na Rússia uma lebre surge no caminho percorrido por qualquer viajante, a crença popular diz que isso é sinal de desgraça próxima.

      Nicolau, supersticioso como todos os russos, fez   parar a kibitka.

      Miguel Strogoff compreendeu os receios do seu companheiro, e, se bem que não tivesse as mesmas apreensões sobre as lebres fugitivas, procurou, todavia, reanimá-lo.

      - Não há motivo para sustos, meu amigo - disse o correio do czar.

      - Não há para ti, nem para tua irmã, bem sei – respondeu Nicolau. - Mas há para mim... oh! Se há!

      E mudando de tom:

      - É o destino... - disse ele. - Paciência!

      E meteu o cavalo a trote.

      Contudo, apesar do sinistro prognóstico, o dia passou-se sem novidade.

      No dia seguinte, 6 de Setembro, ao meio-dia, parava a kibitka no lugar de Alsalevsk, tão ermo como todos os outros que lhe ficavam atrás.

      Ali achou Nadia, à entrada de uma casa, duas daquelas compridas facas de lâmina rija que os caçadores siberianos empregam nas suas lutas contra os ursos. Deu uma delas a Miguel Strogoff, que a escondeu no peito, e guardou a outra para si. A kibitka distava apenas setenta e cinco verstas de Nijni-Udinsk.

      Nicolau, durante estes dois dias, não tinha podido recuperar a sua habitual jovialidade. O encontro com a lebre causara-lhe profunda impressão, e ele, que era incapaz de estar uma hora sem falar, guardava agora um silêncio tão profundo que Nadia só a muito custo lograva distrai-lo. Estes sintomas denunciavam claramente um espírito apreensivo, o que não deve causar estranheza se se levar em conta que os homens pertencentes às raças do Norte tiveram por antepassados os supersticiosos fundadores da mitologia hiperbórea.

      De Ekaterinburgo em diante a estrada de Irkutsk corre quase paralelamente ao quinquagésimo quinto grau de latitude, mas ao sair de Biriusinsk pende de uma maneira sensível para sudoeste, a ponto de cortar obliquamente o centésimo grau de longitude. Para chegar à capital da Sibéria oriental, a estrada segue o caminho mais rápido, atravessando as últimas encostas dos montes Sayansk. Estes montes são apenas uma ramificação dos Altai, cuja grande cadeia é visível a uma distância de duzentas verstas.

      A kibitka de Nicolau corria agora pela estrada. Corria de facto! Percebia-se perfeitamente que o seu condutor já se não importava com o cavalo e que também tinha pressa de chegar a Irkutsk. Apesar da sua resignação um tanto fatalista, o pobre moço só se julgaria em segurança quando se visse dentro dos muros daquela cidade. Muitos russos pensariam como ele, e mais de um, fazendo o cavalo dar meia volta, teria voltado para trás depois da mal-agourada aparição da lebre.

      Entretanto, algumas observações feitas por Nicolau a Nadia, e transmitidas por esta a Miguel Strogoff, deixaram pressentir que a série das calamidades ainda não tinha terminado para eles.

      Efectivamente, se desde Krasnoiarsk até aqui o território estava tal qual a natureza o fizera, as florestas começavam agora a mostrar sinais de ferro e fogo, e os prados, que se estendiam de ambos os lados da estrada, apresentavam indícios manifestos de recentíssimas devastações.

      Era evidente que algum corpo de exército havia por ali passado.

      Cerca de trinta verstas antes de Nijni-Udinsk puderam os viajantes certificar-se de que só os tártaros seriam capazes de cometer semelhantes estragos.

      Assim, a devastação não se limitava aos campos talados, nem às florestas, em parte destruídas. As poucas habitações que se estendiam pela estrada, além de ermas, estavam umas incendiadas, outras meio demolidas. Nas suas paredes viam-se ainda os sinais por onde as balas tinham penetrado.

      Calcule-se a dúvida e o receio que estas indicações produziam no ânimo de Miguel Strogoff. Era para ele ponto de fé que os tártaros tinham passado ali havia pouco tempo. Contudo, era impossível que fossem os soldados do emir. Quem seriam, pois, estes novos invasores, e por que desconhecido caminho teriam eles vindo até ali? A que perigos teria ainda de se expor o correio do czar?

      Miguel Strogoff não comunicou estes receios aos seus companheiros, para não os inquietar. Contudo, ele estava bem decidido a não interromper a viagem senão quando se levantasse na sua frente algum desses obstáculos difíceis de superar.

      Durante a manhã do dia seguinte, cada vez se foi acentuando mais a passagem recente de forças de cavalaria e infantaria. Começavam ao longe a distinguir-se já algumas espiras de fumo. A kibitka ia seguindo com precaução. Muitas casas das várias povoações abandonadas ardiam ainda, verificando-se facilmente que o fogo lhes fora posto havia menos de vinte e quatro horas.

      Enfim, pelo decurso do dia 8 de Setembro a kibitka parou de repente. O cavalo recusava-se a avançar. “Serkô” ladrava lugubremente.

      - O que é? - perguntou Miguel Strogoff.

      - Parece-me ser um cadáver - respondeu Nicolau, que saltara abaixo da kibitka.

      Era de facto o cadáver de um mujique, já frio e horrivelmente mutilado.

      Nicolau persignou-se. Depois, ajudado por Miguel Strogoff, transportou o cadáver para fora do leito da estrada. O seu desejo seria abrir-lhe uma sepultura, a fim de evitar que as feras devorassem os restos daquele infeliz. Miguel Strogoff, porém, não lhe deu tempo a isso.

      - Vamos, Nicolau - incitou ele. - Convém não perder no caminho um só instante.

      E a kibitka pôs-se logo em movimento.

      De resto, se Nicolau quisesse prestar os últimos deveres aos diferentes mortos que ia encontrando não bastaria para isso toda a sua actividade. Nas proximidades de Nijni-Udinsk os cadáveres eram já às vintenas.

      Os viajantes, porém, só deveriam abandonar a estrada quando corressem perigo iminente de cair nas mãos dos invasores. O itinerário continuou, pois, a ser o mesmo, apesar de o número das devastações aumentar à proporção que iam atravessando os campos e as aldeias. Todas estas povoações, cujos nomes atestam ser a sua fundação devida a exilados polacos, acabavam de passar pelos horrores do incêndio e da pilhagem. O sangue das vítimas ainda não estava completamente coagulado. Como reconhecer, porém, quais as condições em que se tinham levado a efeito semelhantes atrocidades? Pela estrada não se via uma só pessoa que pudesse descrevê-las! Eram quatro horas da tarde quando Nicolau descobriu as cúpulas das igrejas de Nijni-Udinsk, coroadas por grossos rolos de vapores, que não pareciam ser nuvens.

      Nicolau e Nadia puseram-se de observação, descrevendo a Miguel Strogoff tudo que viam. Urgia tomar uma resolução. Se a cidade estivesse desabitada, não haveria perigo em atravessá-la, mas se, por qualquer circunstância imprevista e grave, os tártaros se achassem de posse dela, era indispensável fazer um rodeio para não entrar lá.

      - Avancemos com prudência, mas não deixemos de avançar - disse Miguel Strogoff.

      Percorreu-se assim uma versta.

      - Não são nuvens, são rolos de fumo! - exclamou Nadia. – Meu irmão, os tártaros incendiaram a cidade.

      Nadia, infelizmente, não se enganava. Por entre os vapores apareciam também alguns clarões fuliginosos. As espiras de fumo subiam para o céu, tornando-se cada vez mais espessas. Não se avistava, porém, nenhum fugitivo. Era de supor que os incendiários tivessem encontrado a cidade deserta. Mas seriam os tártaros que a destruíam, ou os russos que a incendiavam, obedecendo às ordens do grão-duque? Quereria o Governo do czar que desde Krasnoiarsk, desde o Yenisei, não existisse uma só aldeia ou cidade que pudesse servir de refúgio aos soldados do emir? E, pelo que dizia respeito a Miguel Strogoff, qual seria melhor: ficar ali ou ir por diante?

      O correio do czar estava indeciso. Todavia, depois de ter encarado a situação por todos os lados, lembrou-se de que, fossem quais fossem as fadigas de uma viagem através das estepes sem caminhos abertos nem trilhados, eram preferíveis essas fadigas a ter de cair pela segunda vez em poder dos tártaros. Ia propor a Nicolau que deixassem a estrada para talvez não tornar a tomá-la senão além de Nijni-Udinsk quando do lado direito se ouviu partir uma detonação e assobiar uma bala: O cavalo da kibitka, ferido mortalmente na cabeça, caiu redondamente no chão.

      Ao mesmo tempo viram-se aparecer na estrada uns doze cavaleiros tártaros, que cercaram imediatamente a kibitka. Miguel Strogoff, Nadia e Nicolau, que não tinham tido tempo sequer de prever um tal ataque, foram num repente feitos prisioneiros e conduzidos para Nijni-Udinsk.

      Apesar do inesperado acontecimento, Miguel Strogoff conservava ainda todo o seu sangue-frio. Não podendo ver os seus inimigos, não lograra também prevenir-se contra eles. E ainda mesmo que não lhe faltasse a luz dos olhos, ter-se-ia abstido de tentar resistir pela força, para não se expor a ser morto no mesmo instante. Mas, se não via, em compensação ouvia e, mais, compreendia a língua de que se serviam os seus novos agressores.

      Efectivamente eram tártaros os soldados que tinham investido com a kibitka, e por algumas das suas palavras Miguel Strogoff pôde saber que eles precediam o exército de Féofar-Cã.

      O correio do czar ficou, portanto, bem inteirado do que se passava, tanto pelo que ouvia agora, como pelo que percebeu depois.

      Estes soldados não estavam directamente sob as ordens do emir, que ainda se conservava além do Yenisei. Faziam parte de uma terceira coluna, especialmente composta de tártaros pertencentes aos canados de Khokhand e de Kunduza, a qual devia proximamente reunir-se às forças do emir nas cercanias de Irkutsk.

      Fora por conselho de Ivan Ogareff, a fim de auxiliar o bom êxito da invasão nas províncias de leste, que esta coluna penetrara pela fronteira do governo de Semipalatinsk, passando ao sul do lago Balcache e seguindo depois pelas faldas dos Altai. Esta coluna, comandada por um chefe importante do canado de Kunduza, chegara à parte superior do Yenisei, saqueando e destruindo tudo o que encontrava no seu caminho. Em seguida, o seu chefe, prevendo o que teria sucedido em Krasnoiarsk por ordem do czar, e desejando facilitar a passagem do rio às tropas do emir, expedira pelo rio abaixo uma flotilha de barcas para, quer como embarcações, quer permitindo estabelecer uma ponte, auxiliarem a marcha de Féofar-Cã sobre Irkutsk. Depois, esta coluna, contornando os montes Sayansk, descera o vale do Yenisei e viera tomar a estrada principal junto de Alsalevsk. Era efectivamente deste lugar em diante que tinham começado os viajantes a notar os grandes estragos e incêndios, tão peculiares às invasões dos tártaros. Nijni-Udinsk não escapara à sorte comum. Os tártaros, em número de cinquenta mil, depois de lhe haverem deitado fogo, tinham ido ocupar as primeiras posições em frente de Irkutsk. Dentro em pouco viriam reforçá-los as colunas do emir.

      Tal era a situação presente, situação das mais graves para esta parte da Sibéria oriental, completamente isolada, e para os defensores, pouco numerosos, da sua capital.

      Foi isto que Miguel Strogoff apurou: a chegada de uma terceira coluna tártara a Irkutsk, que esperava ali pelo grosso das tropas comandadas por Féofar-Cã e Ivan Ogareff. Era, pois, inevitável o cerco de Irkutsk, como também era inevitável a sua capitulação num prazo mais curto do que se poderia supor.

      Compreende-se de que desencontrados pensamentos não deveria ficar possuído o espírito de Miguel Strogoff. Não seria de estranhar, portanto, que ele perdesse de todo a esperança em tão apertado lance. Pois não sucedeu assim. Os seus lábios, contraídos pela cólera, murmuraram apenas estas palavras:

      - Hei-de chegar por força!

      Meia hora depois do ataque à kibitka, Miguel Strogoff, Nadia e Nicolau davam entrada em Nijni-Udinsk. O fiel “Serkô” seguia-os de longe. Os presos não podiam ficar nesta cidade, que ardia por todos os lados.

      Estavam sem saber a sorte que os aguardava quando os obrigaram a montar a cavalo e a partir rapidamente. Nicolau, como sempre, resignado, Nadia de forma nenhuma abalada na sua confiança em Miguel Strogoff, e este, na aparência, indiferente ao que se passava - porém, disposto a aproveitar o primeiro ensejo para fugir.

      Os tártaros não estiveram muito tempo sem dar pela cegueira de Miguel Strogoff. Como era de supor, a sua natural desumanidade levou-os a divertirem-se à custa do prisioneiro cego. Marchava-se depressa. O cavalo de Miguel Strogoff, não tendo quem o guiasse com segurança, caminhava ao acaso, desviando-se amiúde e lançando por vezes a confusão no meio do destacamento. Tanto bastava para que as injúrias e os insultos chovessem sobre Miguel Strogoff, causando profunda mágoa à pobre Nadia e fazendo corar de raiva as faces de Nicolau. Mas que poderiam eles tentar pelo seu companheiro? Não falavam a língua tártara e a sua intervenção seria absolutamente ineficaz.

      Não tardou, porém, que estes soldados, por um requinte de barbaridade, se não lembrassem de trocar o cavalo que montava Miguel Strogoff por outro que era cego. O motivo da troca nascera da seguinte reflexão, que fizera um dos tártaros e que o correio do czar ouvira:

      - E quem nos afiança que este russo é realmente cego?...

      Passava-se isto a sessenta verstas de Nijni-Udinsk, entre os lugares de Tatan e de Chibarlinskoe. Miguel Strogoff foi, pois, mudado para o cavalo que era cego e meteram-lhe, por escárnio, as rédeas na mão. Depois, com chicotadas, gritos e pedradas incitaram o cavalo a largar a todo o galope.

      O pobre animal, não podendo ser dirigido pelo seu cavaleiro, tão cego como ele, ora esbarrava com as árvores, ora saía fora da estrada, provocando choques violentos e quedas repetidas.

      Miguel Strogoff não dizia nada. Da sua boca não se soltava um lamento. Quando o cavalo caía, esperava que o viessem erguer, e, mal o tornava a montar, o animal começava logo a correr, prestando-se, sempre impassível, àquela bárbara distracção.

      Nicolau não podia conter-se diante destes maus tratos. Queria correr em auxílio do seu companheiro, mas as lanças e os chicotes obrigavam-no a voltar para trás.

      Enfim, o estúpido e cruel divertimento prolongar-se-ia indefinidamente, com grande aplauso dos tártaros, se não viesse pôr-lhe cobro um incidente mais grave.

      Pela tarde do dia 10 de Setembro, o cavalo cego desbocou-se e correu direito a um despenhadeiro, de trinta a quarenta pés de profundidade, que ladeava a estrada.

      Nicolau procurou evitar aquele perigo. Detiveram-no porém. O cavalo, sem governo, precipitou-se, com Miguel Strogoff, pelo despenhadeiro abaixo.

      Nadia e Nicolau soltaram um grito de pavor! Deviam julgar que o desventurado cavaleiro ficara feito em pedaços naquela tremenda queda.

      Quando foram levantá-lo, Miguel Strogoff, que pudera desprender-se a tempo da sela, não estava ferido, mas o infeliz animal tinha as pernas partidas.

      Entretanto, deixaram-no para ali ficar sem ao menos lhe darem por comiseração um tiro no ouvido. Miguel Strogoff, esse, preso à sela de um dos tártaros, foi obrigado a seguir a pé o destacamento.

      O mesmo silêncio, porém! Sempre a mesma persistência em não proferir um queixume! Puxado pela corda que o prendia agora, continuava a caminhar com passo rápido. Era em todos os lances o homem decidido de que falara ao imperador o general Kissoff.

      No dia seguinte, 11 de Setembro, o destacamento passava pelo lugar de Chibarlinskoe.

      Produziu-se então um facto que devia acarretar consequências bem funestas.

      Caíra a noite. Os soldados tártaros, que tinham tido algumas horas de descanso, estavam todos mais ou menos embriagados e preparavam-se para continuar a marcha.

      Nadia, que até àquele momento passara como por milagre despercebida, foi repentinamente insultada por um dos soldados.

      Miguel Strogoff não pudera presenciar a cena, mas vira-a Nicolau por ele.

      E, serenamente, sem se alterar, sem talvez ter a consciência do que fazia, Nicolau cresceu sobre o autor do insulto. Antes, porém, que este pudesse fazer o menor movimento para o segurar, Nicolau arrancava-lhe dos coldres uma das pistolas e descarregara-lha em pleno peito.

      Ao som do tiro, aproximou-se o oficial que comandava o destacamento.

      Os soldados iam decerto desfazer o pobre Nicolau quando, a um gesto do seu comandante, o ligaram fortemente, colocando-o em cima de um cavalo. Depois, o destacamento largou a galope.

      A corda que prendia Miguel Strogoff, triturada pelos seus dentes, partiu-se a um puxão mais forte do cavalo, e o tártaro, meio bêbedo e entusiasmado pelo galope, não reparou que lhe ficava para trás o prisioneiro.

      Miguel Strogoff e Nadia acharam-se novamente sós na estrada.

     

     Um mártir da invasão

      Miguel Strogoff e Nadia estavam livres mais uma vez: tão livres como durante a primeira parte da sua viagem de Perm até às margens do Irtyche. Mas como eram agora diferentes as suas condições de viajantes! Então possuíam um sólido tarentass, que voava ligeiro pela estrada, então não lhes faltavam os cavalos nas estações de posta, nem os cuidados atenciosos dos feitores e dos iemschiks! Agora viam-se a pé, sem víveres, sem dinheiro, sem meios de transporte e sem saberem sequer com poderiam chegar ao dia de amanhã! E Miguel Strogoff só via infelizmente pelos olhos da sua companheira! Quanto ao amigo que o acaso lhes concedera, fora-lhes havia pouco arrebatado em circunstâncias bem terríveis.

      Miguel Strogoff conservava-se pensativo e concentrado. Nadia, em frente dele, esperava por uma palavra sua para continuar a andar.

      Eram dez horas da noite. Havia três horas e meia que o Sol desaparecera do horizonte. Não se avistava uma casa, uma cabana sequer. Os últimos tártaros perdiam-se ao longe na estrada. Nadia e Miguel Strogoff estavam efectivamente sós.

      - O que irão eles fazer do pobre Nicolau - exclamou Nadia. - Pobre rapaz! A nossa companhia tinha de lhe ser funesta!

      Miguel Strogoff não respondia.

      - Não sabes, Miguel - tornou Nadia. - Foi ele quem te quis defender contra aqueles malvados, foi ele, enfim, quem arriscou a vida para me vingar de um infamante ultraje.

      Miguel Strogoff persistia no seu mutismo. Imóvel e com a cabeça entre as mãos, em que estaria pensando? E, apesar do seu silêncio, ouviria ele acaso o que a sua companheira lhe dizia? Ouvia, certamente, porque no momento em que ela acrescentava:

      - Aonde queres agora ir, Miguel?

      - A Irkutsk! - respondia-lhe ele.

      - Pela estrada principal?

      - Decerto.

      Miguel Strogoff era ainda o mesmo homem que tinha jurado cumprir a sua palavra, mau grado todas as dificuldades. Seguir pela estrada principal era ir pelo caminho mais curto. Quando a vanguarda das tropas de Féofar-Cã começasse a mostrar-se ao longe, então seria tempo de tomar outra direcção.

      Nadia pegou na mão de Miguel Strogoff e partiu com ele imediatamente.

      Na manhã do dia seguinte, 12 de Setembro, depois de terem andado vinte verstas, pararam ambos na povoação de Tulunowskoe, que estava reduzida a cinzas. Durante a noite, Nadia diligenciava ver se teriam deixado pela estrada o cadáver de Nicolau. Inútil pesquisa. Agora também percorria as ruínas da povoação incendiada, mirando com grande atenção os cadáveres que jaziam no chão. Parecia, por enquanto, que Nicolau ainda não tinha sido sacrificado à vingança daqueles bárbaros. Reservar-lhe-iam algum suplício mais desumano para quando chegassem com ele ao acampamento de Irkutsk?

      Nadia, extenuada pela fome, de que o seu companheiro também padecia cruelmente, teve a fortuna de achar numa das casas queimadas uma certa quantidade de carne salgada e sukharis, pedaços de pão que, depois de secos, podem conservar indefinidamente as suas qualidades nutritivas. Miguel Strogoff e Nadia levaram consigo tudo que puderam. A sua alimentação de muitos dias estava já certa, quanto a água, não lhes devia ela faltar, porque atravessavam agora uma região onde numerosos pequenos afluentes do Angara se cruzam em diversas direcções.

      Continuaram, pois, os dois viajantes a sua marcha. Miguel Strogoff caminhando com um passo firme, que só afrouxava por causa da sua companheira, Nadia fazendo esforços incríveis para não cair na estrada. Felizmente, o correio do czar não podia ver o estado a que o excesso de fadiga tinha reduzido a infeliz menina.

      Contudo, se o não podia ver, pressentia-o pelo menos.

      - Tu já não tens força para mais, pobre criança! - dizia-lhe ele às vezes.

      - Enganas-te, Miguel.

      - Quando não puderes andar, dize-mo, que eu te levarei ao colo.

      - Pois sim, Miguel.

      Neste mesmo dia tiveram os viajantes de atravessar a ribeira de Oka. A passagem não foi difícil, porque ela levava pouca água.

      O céu estava encoberto e a temperatura suave. Podia, contudo, recear-se que viesse a chover, o que seria uma contrariedade a mais para quem já contava tantas. Chegaram mesmo a cair alguns aguaceiros, que por felicidade cessaram.

      Nadia continuava a dirigir os passos de Miguel Strogoff, sem deixar, contudo, de examinar o caminho em todas as direcções. Ambos se abstinham de muitas falas. De dia paravam por duas vezes, de noite descansavam durante seis horas. Nadia ainda encontrou em diferentes cabanas alguns bocados duma carne de carneiro tão comum e tão barata que se adquire cada libra dela por dois kopeks e meio.

      Mas, contra o que talvez devia esperar Miguel Strogoff, não se encontrava por toda esta região um simples cavalo. Os tártaros tinham lançado mão de todos. Era a pé que, infelizmente, deveriam empreender o resto desta viagem.

      Os vestígios da coluna que precedia Miguel Strogoff abundavam pelo caminho. Aqui, encontrava-se um cavalo morto, além, um carro abandonado. Os corpos dos desgraçados siberianos juncavam a estrada, especialmente ao chegar às povoações. Nadia, vencendo a sua repugnância, ia olhando para todos estes cadáveres.

      Ainda assim, o maior perigo não estava no caminho que se percorria: ficava no caminho já percorrido. A vanguarda do principal exército do emir, comandada por Ivan Ogareff, podia aparecer de um momento para o outro. As barcas expedidas no Yenisei pelo chefe da terceira coluna tártara deviam ter servido para se efectuar em Krasnoiarsk a passagem do rio. O caminho ficava assim aberto à invasão, sem que nenhum corpo de exército russo pudesse fazer-lhe frente desde Krasnoiarsk até ao lago Baical. Miguel Strogoff esperava, pois, a todo o momento que Nadia lhe anunciasse a aparição dos primeiros exploradores tártaros.

      Por isso, Nadia trepava repetidas vezes às elevações do terreno para examinar se do lado do ocidente não se levantaria algum turbilhão de poeira denunciando a sua chegada.

      A marcha, interrompida por estas observações, continuava depois, mas se Miguel Strogoff percebia que era ele quem puxava pela sua companheira abrandava logo o passo. As raras vezes que falavam era para se referirem a Nicolau. Nadia não podia esquecer os desinteressados serviços que aquele companheiro de poucos dias tinha prestado.

      Nas suas respostas, Miguel Strogoff procurava sempre alimentar algumas esperanças sobre a sorte de Nicolau. Ele, porém, bem sabia que o infeliz moço estava irremediavelmente perdido.

      Uma vez, Miguel Strogoff perguntou a Nadia:

      - Por que motivo nunca falas de minha mãe?

      E, contudo, se Nadia se conservava calada a esse respeito era porque não queria avivar as saudades do filho, lembrando-lhe o triste fim que tivera a mãe. Pois não vira ela a velha Marfa cair no chão fulminada, quando Miguel Strogoff acabava de ser supliciado?

      - Fala-me dela, Nadia - repetiu Miguel Strogoff. – Acredita que me serão gratas e suaves as palavras que lhe possas dedicar.

      Então, Nadia fez o que ainda até ali não tinha feito. Contou a Miguel Strogoff tudo que se passara entre ela e sua mãe desde Omsk, onde ambas se tinham visto pela primeira vez.

      Contou como, obedecendo a um inexplicável instinto, se sentira atraída para junto daquela veneranda prisioneira, embora não a conhecesse. Contou finalmente quais os carinhos que lhe tinha prodigalizado e quais os conselhos e esperanças que em troca recebera. Àquele tempo, Miguel Strogoff não era para Nadia senão o negociante Nicolau Korpanoff.

      - Infelizmente que o não fui sempre! - respondeu Miguel Strogoff, cuja fisionomia se tornou triste.

      Passados alguns instantes, acrescentou ainda:

      - Faltei ao meu juramento, Nadia! Eu tinha jurado que não iria ver minha mãe!

      - Mas tu não procuraste vê-la, Miguel! Foi só o acaso que te levou à sua presença.

      - Tinha jurado que nunca me daria a conhecer, sucedesse o que sucedesse!

      - Miguel! Miguel! À vista do chicote erguido sobre tua mãe era lá possível que te conservasses imóvel! Não... não podia ser! Não há juramento que obrigue um homem a calar no coração os seus sentimentos filiais.

      - Faltei ao meu juramento, Nadia! - replicava Miguel Strogoff, como que preocupado por um sentimento muito íntimo.

      - Que Deus e o Pai me perdoem o perjúrio!

      - Miguel - volveu Nadia -, tenho uma pergunta a fazer-te. Não me respondas se julgares que não o deves fazer. De ti nada pode vir que me ofenda:

      - Fala, Nadia.

      - Porque é que, não possuindo já a carta imperial, persistes ainda com tanto empenho em chegar a Irkutsk?

      Miguel Strogoff apertou com força a mão de Nadia, mas não lhe respondeu.

      - Conhecias o conteúdo daquela carta antes de saíres de Moscovo? - insistiu ainda em perguntar Nadia.

      - Não.

      - Devo então supor que o desejo de me entregares a meu pai é o único sentimento que te obriga ainda a caminhar?

      - Não é, Nadia - respondeu gravemente Miguel Strogoff. - Enganar-te-ia se te deixasse acreditar em semelhante coisa. Vou aonde o dever me diz que vá. Como poderia eu levar-te a Irkutsk, se és tu agora quem me guia? Não são os teus olhos que alumiam as trevas dos meus? Não são as tuas mãos que me amparam e protegem? Não tens pago tu generosamente os poucos ou nenhuns serviços que... já nem me lembra se tos prestei? Olha... ignoro se a fatalidade se cansaria por te perseguir, mas no dia em que me queiras agradecer por te haver lançado nos braços de teu pai... nesse dia serei eu quem te agradecerá por me haveres conduzido até Irkutsk.

      - Pobre Miguel! - retorquiu Nadia, muito comovida. - Não me fales assim... Não é essa a resposta que te peço. Miguel, Miguel, porque é que tanto te esforças em chegar a Irkutsk?

      - Porque preciso de estar lá antes do infame Ivan Ogareff! - exclamou Miguel Strogoff.

      - Apesar da tua cegueira?

      - Apesar da minha cegueira. E hei-de estar!

      Via-se que nestas palavras de Miguel Strogoff não transparecia unicamente o ódio que votava ao traidor. Nadia compreendeu que o seu companheiro não lhe dizia tudo, e que tinha decerto algum poderoso motivo para lhe ocultar a verdade.

      Três dias depois, a 15 de Setembro, chegavam ambos à povoação de Kuitunskoe, setenta verstas para lá de Tulunowskoe. Nadia já não andava senão a muito custo. Os pés, doridos e triturados, mal podiam sustê-la. A corajosa menina resistia, porém, lutando contra a fadiga e obedecendo a esta ideia:

      - Visto ele não poder ver-me, acompanhá-lo-ei até cair desfalecida!

      De resto, era só a fadiga que apoquentava os viajantes. Desde o encontro dos tártaros que nenhum outro perigo viera tolher-lhes o passo.

      Durou três dias este estado de coisas. Era evidente que a terceira coluna tártara se dirigia rapidamente para leste. Denunciavam-no as ruínas que ia deixando atrás de si, as cinzas frias das casas queimadas e os cadáveres já em decomposição amontoados pelo caminho.

      Do lado de oeste ainda não se avistava a vanguarda do emir. Miguel Strogoff cismava sobre as causas que poderiam explicar esta demora. Acaso os russos, dispondo já de forças respeitáveis, teriam caído sobre os tártaros? Estaria a terceira coluna, isolada das outras duas, em vésperas de ser cortada? Se assim fosse, a defesa de Irkutsk tornar-se-ia fácil para o grão-duque. Todo o tempo que se ganhasse sobre os invasores seria um passo dado para a sua pronta expulsão.

      Miguel Strogoff deixava-se às vezes embalar por estas ilusões, mas não tardava que, vendo quanto elas eram quiméricas, se convencesse de novo que só devia contar consigo, como se a salvação do grão-duque só dele estivesse dependente.

      Sessenta verstas separam Kuitunskoe de Kimilteiskoe, povoação situada a curta distância do Dinka, afluente do Angara. Não era sem uma certa preocupação que Miguel Strogoff pensava naquele rio e nos obstáculos que lhe poderia causar a sua passagem. Lembrava-se, por conhecê-lo de tempos mais felizes, que o seu leito pouco se prestava a ser vadeado. E barcos de passagem, ou quaisquer outras embarcações, não se encontrariam agora com certeza.

      Mas, vencida esta dificuldade, nenhum outro rio ou ribeira vinha interpor-se entre ele e a cidade de Irkutsk, distante ainda duzentas e trinta verstas.

      Não gastaram menos de três dias para chegar a Kimilteiskoe. Nadia já não andava, arrastava-se. Por maior que fosse a força moral, faltavam-lhe as forças físicas.

      Bem o suspeitava Miguel Strogoff.

      Se ele não fosse cego, Nadia ter-lhe-ia dito sem dúvida: «Vai, Miguel, e deixa-me para aí nalguma choupana. Chega tu a Irkutsk. Cumpre a tua missão. Procura meu pai. Dize-lhe onde eu estou, e ambos saberão vir dar comigo. Parte. Não tenho medo. Esconder-me-ei dos tártaros. Viverei para ele e para ti. Vai, Miguel, que eu não posso acompanhar-te por mais tempo!»

      Porém, Miguel Strogoff não via, e a mão da sua companheira era o único recurso que ele tinha para se guiar.

      Às vezes, Nadia parava por não poder andar mais. Miguel Strogoff pegava-lhe ao colo, e, não tendo desde então de preocupar-se com a fadiga da que sustinha nos braços, largava a caminhar rapidamente, sem parecer cansar-se deste esforço.

      No dia 18 de Setembro, às dez horas da noite, estavam ambos em Kimilteiskoe. Do alto de uma colina distinguiu Nadia uma linha menos escura no horizonte. Era o Dinka. Nas suas águas reflectiam-se, sem o fragor do trovão, alguns relâmpagos, que iluminavam brilhantemente o espaço. Nadia acompanhou Miguel Strogoff através da povoação arrasada. A cinza dos Incêndios já arrefecera. Não havia menos de cinco ou seis dias que tinham por ali passado os tártaros.

      Chegada às últimas casas da povoação, Nadia deixou-se cair sobre um marco de pedra.

      - Porque páras, minha irmã? - perguntou-lhe Miguel Strogoff.

      - É que já é noite há muito tempo. Não queres descansar aqui algumas horas?

      - Quereria antes passar o Dinka, estabelecendo assim uma barreira entre nós e a vanguarda do emir - replicou Miguel Strogoff. - Mas tu já nem forças tens para te arrastar, minha pobre Nadia!

      - Vamos, pois! - respondeu Nadia, agarrando na mão de Miguel Strogoff e tornando a seguir com ele.

      Era a uma distância de duas ou três verstas deste ponto que o Dinka atravessava a estrada de Irkutsk. A Infeliz Nadia quis tentar o último esforço que lhe exigia o seu companheiro. Caminhavam ambos à luz dos relâmpagos. Iam andando por um deserto sem limites, em cuja amplidão se perdia o pequeno rio. Nem uma árvore nem um cômoro cortando a monotonia desta enorme planície, que servia de novo cenário à estepe siberiana. Era muda a atmosfera. Não se sentia a mais leve brisa. Confrangia a grandeza deste silêncio, capaz de levar a infinita distância o menor som que se produzisse no ar.

      Miguel Strogoff e Nadia estacam de repente. Dir-se-ia que os seus pés se tinham imobilizado, aderindo fortemente a alguma fenda do solo.

      Os latidos de um cão acabavam de romper aquele assustador silêncio.

      - Não ouviste, Miguel?

      Depois seguiu-se um grito de aflição, um grito profundo e doloroso, um grito que parecia o último apelo de um ser humano que se despede da vida.

      - Nicolau! Nicolau! - exclamou Nadia, como que por um sinistro pressentimento.

      Miguel Strogoff, que também estava à escuta, sacudiu a cabeça.

      - Vem, Miguel, vem daí - ajuntou Nadia.

      E a pobre menina que, pouco antes, mal podia suster-se em pé, recuperou repentinamente as forças, como se obedecesse a uma excitação violenta.

      - Nós não vamos pela estrada? - perguntou Miguel Strogoff, que, em vez de um solo pulverulento, pisava agora um terreno cheio de erva.

      - Assim é preciso - respondeu Nadia. - Foi dali, sobre a direita, que partiu aquele grito aflitivo.

      Passados alguns minutos, achavam-se ambos a meia versta do Dinka.

      Ouviu-se pela segunda vez o cão a latir, e se bem que o som fosse mais fraco, parecia contudo vir de mais perto.

      Nadia parou.

      - Tinhas razão - disse Miguel Strogoff. - É “Serkô” que está ladrando! O fiel animal seguiu o dono!

      - Nicolau! Nicolau! - gritou Nadia.

      Ninguém respondeu à sua voz.

      Apenas algumas aves de rapina levantaram voo, perdendo-se nas alturas.

      Miguel Strogoff aplicava o ouvido. Nadia espraiava os seus formosos olhos pela imensidade daquela planície que, impregnada de eflúvios luminosos, cintilava como um espelho. Nadia, porém, não distinguiu o menor vulto.

      E contudo tornou-se a ouvir uma voz sumida, que balbuciou em tom angustioso: «Miguel!» Em seguida, um cão, todo coberto de sangue, saltou para junto de Nadia.

      Era “Serkô”.

      Nicolau devia estar perto. Só ele poderia ter proferido o nome de Miguel. Onde estaria? Nadia já nem tinha coragem para de novo chamar por ele.

      Miguel Strogoff, andando de rastos, procurava com as mãos.

      De repente, “Serkô” pôs-se outra vez a ladrar, precipitando-se contra uma ave colossal, que já batia com as asas rente ao chão.

      Era um abutre que pairava ali perto. Quando “Serkô” correu sobre a voracíssima ave de rapina, ela afastou-se um pouco, mas, voltando logo, investiu com o dedicado animal. “Serkô” ainda arremeteu de novo! Uma profunda e certeira picada do enorme bico do abutre apanhou-o pela cabeça, e desta vez o pobre animal caiu para nunca mais se levantar! Ao mesmo tempo, Nadia soltava um grito de pavor.

      - Ali! Ali! - exclamou ela.

      Do chão saía uma cabeça! Nadia tê-la-ia pisado se não fosse a intensa claridade que os fogos do céu derramavam sobre a estepe.

      Nadia caiu de joelhos junto daquela cabeça! Nicolau, enterrado até ao pescoço, segundo o bárbaro costume tártaro, fora abandonado na estepe, para ali morrer à fome e à sede, se antes disso não viessem disputá-lo as aves do céu ou as feras do mato. Horrível suplício que, paralisando a vítima completamente, a deixa de braços amarrados, como um cadáver prematuro dentro da sua cova! O infeliz que se vê assim com vida, encerrado no seio da terra, da terra que, de mãe próvida e fecundante, se converte em madrasta cruel e desnaturada, só tem a implorar o lenitivo da morte como termo da sua lenta agonia.

      Fora ali que os tártaros tinham enterrado o seu prisioneiro havia três dias! E o mísero Nicolau esperava ansiosamente por um socorro, que - ai dele! - só devia chegar demasiado tarde! Os abutres tinham visto aquela cabeça destacando-se do chão, e havia algumas horas que o fiel “Serkô” defendia o seu dono contra as carnívoras aves.

      Miguel Strogoff escavou a terra com a sua faca para dela exumar um corpo vivo!

      Os olhos de Nicolau, fechados até então, entreabriram-se por um momento.

      Nicolau reconheceu os seus companheiros de viagem. Olhou para eles com um meigo sorriso, com um sorriso de quem se desprendia deste mundo levando a alma purificada. Depois:

      - Ainda bem que os tornei a ver - balbuciou ele. - O Senhor ouviu a minha prece. Agora, amigos... um derradeiro adeus... um adeus até à eternidade!

      - Nicolau! Nicolau! - exclamou Miguel Strogoff. – Não desanimes... Estamos aqui nós, que havemos de salvar-te!

      - É tarde! É muito tarde! - tornou a balbuciar Nicolau, com a voz quase extinta. - Olha, Miguel... se não tinha razão nas minhas apreensões... Agora rezem por mim!... Adeus!... Adeus para sempre!

      E foram estas as suas últimas palavras.

      Miguel Strogoff continuou a escavar a terra que, muito calcada pelos tártaros, apresentava a rijeza de uma rocha. Depois de algum trabalho, logrou tirar para fora o corpo do desventurado moço. O primeiro cuidado que teve foi ver se o coração de Nicolau pulsava ainda. Baldada esperança! Miguel Strogoff não quis que o corpo do seu dedicado companheiro ficasse exposto às injúrias do tempo. A mesma cova onde Nicolau fora enterrado vivo, alargada agora, ia servir para recebê-lo morto.

      Ao mesmo tempo sentiu-se na estrada um grande tropel de cavalos, à distância, quanto muito, de meia versta. Miguel Strogoff suspendeu a sua piedosa tarefa.

      Pelo barulho reconheceu que era uma força de cavalaria avançando sobre o Dinka.

      - Nadia! Nadia! - chamou em voz baixa Miguel Strogoff.

      A jovem, que se conservava de joelhos em oração, limpou os olhos e levantou-se.

      - Vê o que é - pediu ele.

      - São os tártaros! - segredou-lhe Nadia ao ouvido.

      Era com efeito a vanguarda do emir, que desfilava pela estrada a todo o galope.

      - Sejam embora! - disse Miguel Strogoff com amargura. – Ao menos não me hão-de eles impedir que dê sepultura a este morto!

      E continuou a alargar a cova.

      Pouco depois era lançado nela o corpo de Nicolau com as mãos cruzadas sobre o peito. O fiel “Serkô” ficou também junto do dono.

      Miguel Strogoff e Nadia tornaram a rezar pelo pobre moço, inofensivo e bom, que tinha pago com a vida a sua dedicação por eles.

      - E agora - disse Miguel Strogoff, acabando de cobrir de terra a sepultura - não virão os lobos da estepe devorar as carnes daquele mártir!

      Depois, a sua mão, numa atitude ameaçadora, estendeu-se em direcção aos tártaros, que continuavam a desfilar.

      - A caminho, Nadia! A caminho!

      Miguel Strogoff não podia seguir pela estrada, ocupada agora pelos tártaros. Precisava desviar-se pela estepe, a fim de não se encontrar com as colunas do emir. Já lhe não era preciso atravessar o Dinka.

      Nadia, exausta de forças, não podia andar, mas podia ver. Miguel Strogoff tomou-a nos braços e dirigiu-se com ela para sudoeste.

      Faltavam-lhe ainda percorrer mais de duzentas verstas. Como pôde vencê-las? Como foi que não sucumbiu nesta luta desesperada? Como resistiu à fadiga e como se alimentou pelo caminho? Por que milagre de energia logrou ele atravessar as primeiras encostas dos montes Sayansk? Nem Miguel Strogoff nem a sua companheira saberiam explicá-lo.

      E todavia, doze dias depois desta carreira desesperada, a 2 de Outubro, pelas seis horas da tarde, um imenso lençol de água se estendia aos pés de Miguel Strogoff.

      Era o lago Baical.

      

     A jangada

      O lago Baical está situado a mil e setecentos pés acima do nível do mar. Tem de comprimento, aproximadamente, novecentas verstas e de largura cem. A sua profundidade não é conhecida. Madame de Bourboulon, apoiando-se nas histórias contadas pelos barqueiros, diz ter este lago aspirações a que lhe chamem “senhor mar”. Se, porventura, se limitam a chamar-lhe “senhor lago”, torna-se imediatamente furioso e carrancudo. Entretanto, e apesar destas lendas, não consta que nas suas águas se tenha afogado um único russo.

      Este imenso mar de água doce, alimentado por mais de trezentas ribeiras, fica emoldurado por uma admirável cinta de montanhas vulcânicas. Só tem por escoadouro o rio Angara, que, depois da cidade de Irkutsk, vai lançar-se no Yenisei, um pouco acima da cidade de Yeniseisk. Os montes que lhe servem de cintura constituem uma ramificação dos Tunguzes e derivam também do vasto sistema orográfico dos Altai.

      O frio já começava a sentir-se com violência. Como geralmente acontece neste território, sujeito a condições climatéricas muito especiais, o Outono parecia ter-se transformado num Inverno precoce. Estava-se nos primeiros dias de Outubro. O Sol desaparecia agora do horizonte às cinco horas da tarde, e as compridas noites faziam descer a temperatura ao zero dos termómetros. As primeiras neves, que só deveriam derreter-se no próximo Estio, começavam já a branquear as alturas vizinhas do Baical. Este mar interior, durante o Inverno siberiano, gela de tal arte que os trenós dos correios e das caravanas transitam facilmente por cima dele.

      Ou seja porque se lhe falte aos deveres da delicadeza, chamando-lhe apenas “senhor lago”, ou seja por qualquer outra razão menos lendária e mais meteorológica, o certo, porém, é que o Baical está sujeito no decurso do ano a tempestades violentas. As suas vagas, curtas como as de todos os mediterrâneos, são deveras temidas pelas fragatas de carga e pelos barcos a vapor que o sulcam no Estio.

      Miguel Strogoff acabara de chegar à extremidade sudoeste do lago, trazendo nos braços a pobre Nadia, cuja vida inteira, por assim dizer, estava concentrada no olhar. O que poderiam ambos esperar nesta parte remotíssima da província? Talvez a morte! Morte cruel e ignorada, fruto de cansaço e privações! E, contudo, que distância faltava ainda ao correio do czar para concluir a sua viagem? Apenas sessenta verstas do litoral do lago à entrada do Angara e oitenta do Angara até Irkutsk. Ao todo cento e quarenta verstas, que um homem válido e robusto poderia percorrer a pé no espaço de três dias.

      Estaria Miguel Strogoff ainda em condições de se julgar capaz de empreender semelhante esforço?

      O céu não quis expô-lo a tão cruel e difícil experiência. A fatalidade, que até aqui o perseguia sem tréguas, pareceu querer dar-lhe alguns momentos de alívio. Este ponto extremo do Baical, esta parte afastada da estepe, que Miguel Strogoff julgava deserta e que sempre o costuma ser, achava-se agora concorrida.

      No ângulo formado pelo extremo sudoeste do lago estavam reunidas perto de cinquenta pessoas.

      Nadia deu por aquele ajuntamento apenas Miguel Strogoff saiu do desfiladeiro das montanhas com ela nos braços.

      A companheira-guia de Miguel Strogoff receou à primeira vista que fosse algum destacamento de tártaros encarregado de explorar as margens do Baical. Se semelhante suposição fosse certa, a fuga para ambos tornar-se-ia impossível.

      Não tardou, porém, que Nadia ficasse por seu lado mais sossegada.

      - São russos! - exclamou ela.

      E, depois deste supremo esforço de energia, as suas pálpebras cerraram-se, e a cabeça pendeu-lhe sobre o ombro de Miguel Strogoff.

      Entretanto, a chegada de Miguel Strogoff e Nadia não passara despercebida, e alguns dos russos correram para eles, levando o cego e a sua companheira até um ponto da praia, onde estava presa uma jangada.

      A jangada ia largar.

      Estes russos eram fugitivos de diversas condições que um interesse comum acabava de reunir aqui. Temendo a aproximação dos exploradores tártaros, o seu fim era refugiarem-se em Irkutsk. E, como não pudessem ir por terra, em consequência de os exércitos de Féofar-Cã terem já tomado posições nas duas margens do Angara, pretendiam penetrar naquela cidade indo pelo rio que passa junto dela.

      Miguel Strogoff, o correio do czar, estremeceu de júbilo. Acabava de lhe fulgir a luz de uma derradeira esperança. Teve, contudo, bastante força para se conter, desejando agora mais do que nunca ressalvar o seu incógnito.

      O plano dos fugitivos era muito simples. Uma das correntes do Baical segue ao longo da sua margem superior, atingindo o local por onde se escoam as águas do lago. Era esta corrente que eles contavam aproveitar para se aproximarem da entrada do Angara. Dali por diante a jangada desceria o curso do rio com uma velocidade de dez a doze verstas por hora. Em dia e meio devia-se estar à vista de Irkutsk.

      Na praia, onde acabavam de reunir-se os fugitivos, não existia uma única embarcação. Para vencer esta dificuldade fora preciso construir uma comprida jangada, semelhante às que se vêem ordinariamente nos rios siberianos, empregadas no transporte de madeiras.

      Alguns troncos de pinheiros, cortados num pinhal próximo da praia, tinham servido para fazer a jangada. Esses troncos, unidos uns aos outros por vimes, formavam um estrado enorme, em que podiam caber cem pessoas à vontade.

      Foi para esta jangada que levaram Miguel Strogoff e Nadia. Os fugitivos trataram de repartir com os seus novos companheiros algumas provisões que levavam. Nadia, com as forças agora restauradas, não tardou que se deixasse adormecer profundamente sobre um improvisado leito de folhas secas.

      Nas respostas que Miguel Strogoff dava a todos que o interrogavam não transparecia uma única palavra relativa aos acontecimentos passados em Tomsk. Fez-se passar por um habitante de Krasnoiarsk, transviado no caminho, a quem as tropas do emir não haviam dado tempo de fugir para Irkutsk, e ponderou que o grosso das forças tártaras já devia ter começado a sitiar esta última cidade.

      Não havia, portanto, um só minuto a perder. O frio, de resto, cada vez se tornava mais intenso. A temperatura descia durante a noite abaixo de zero. Pela superfície do Baical já principiavam a aparecer alguns pedaços de gelo. Se a jangada manobrava ali à vontade, talvez não sucedesse o mesmo entre as margens do Angara se fossem progressivamente aumentando aquelas massas de gelo flutuante.

      Por todos estes motivos era indispensável que se partisse sem demora. Às oito horas soltaram-se as amarras da jangada, que, sob o impulso da corrente, começou logo a deslizar. Para lhe dar direcção bastavam as compridas varas, de que alguns possantes mujiques iam munidos.

      A manobra era dirigida por um velho piloto do Baical, homem de sessenta e cinco a setenta anos, de aspecto grave e austero, encanecido na árdua lida do lago. Sobre o peito caía-lhe uma abundante e comprida barba branca. Resguardava-lhe a cabeça um gorro de peles, e o seu farto roupão, apertado na cintura, descia-lhe até aos pés. Aquele velho, taciturno e solene, sentado à ré da jangada, indicava só por gestos os diversos movimentos a fazer.

      Em dez horas seguidas ninguém seria capaz de lhe ouvir pronunciar dez palavras. De resto, a manobra limitava-se a conservar a jangada sobre a linha da corrente, não a deixando desviar para o largo.

      Disse-se já que eram de diferentes condições os russos agrupados nesta jangada. Efectivamente, aos mujiques indígenas, homens e mulheres, velhos e crianças, juntavam-se três peregrinos, surpreendidos pela invasão durante a viagem, alguns monges e um pope.

      Os peregrinos traziam o seu bordão de romagem, ao qual prendiam a cabaça, e salmodiavam com voz dolente os seus cânticos sagrados. Um vinha da Ucrânia, outro do mar Amarelo, outro, enfim, das províncias da Finlândia. Este último, já muito avançado em anos, trazia preso à cintura, como se estivesse à porta de uma igreja, um pequeno mealheiro com cadeado onde se recebiam as esmolas dos fiéis. Mas dessas esmolas nada era para ele. A própria chave do cadeado, que só se abriria no regresso da longa e fatigante peregrinação, não estava em seu poder.

      Os monges, com os hábitos de capuz e mantos de lã, vinham do Norte do império. Havia três meses que tinham saído de Arcangel, dessa cidade a que muitos viajantes atribuem, com fundamento, uma fisionomia oriental. Acabavam de visitar as ilhas Santas, junto da costa da Carélia, o convento de Solovetsk, o de Troitsa, os conventos de Santo António e Santa Teodósia em Kiev, antiga e predilecta residência dos Jagelions (Antiga dinastia que reinou na Lituânia e na Polónia e que teve por fundador o grão-duque Jagiel, depois rei da Polónia. (N. T.), o mosteiro de Simeonof em Moscovo, o mosteiro e a igreja dos Velhos Crentes em Kazan. Finalmente, agora, dirigiam-se, todos, para Irkutsk.

      O pope, esse, era simples pároco de aldeia, um dos seiscentos mil simples pastores que se encontram no império russo e que não têm na sua igreja nem influência nem poder. Trajava com tanta pobreza como qualquer mujique, não sendo na verdade mais do que eles, e passando a vida a lavrar as suas jeiras de terra, a baptizar as crianças, a unir os noivos e a enterrar os mortos. Por fortuna, chegara ainda a salvar a mulher e a filha da brutalidade dos tártaros, fazendo-as retirar para as províncias do Norte. Ele deixara-se ficar até à última no seu posto. Depois fora também compelido a fugir, mas, encontrando fechado o caminho para Irkutsk, viera finalmente parar às praias do Baical.

      Todos estes religiosos, agrupados na proa da jangada, rezavam de espaço a espaço as suas orações, levantando a voz no meio do silêncio da noite e deixando sair dos lábios, ao findar cada meza, o “Slava Bogun”, que quer dizer “Glória a Deus”.

      Nenhum acontecimento viera interromper a regularidade da navegação. Nadia continuava entregue a um profundo letargo. Junto dela velava Miguel Strogoff. O sono só de longe a longe o assaltava, e ainda assim parecendo que lhe deixava livre a imaginação para pensar.

      Ao romper do dia, a jangada, atrasada no seu curso por uma brisa que soprava com força, contrariando a acção da corrente, achava-se ainda a quarenta verstas de distância do Angara. Supunha-se que só chegaria  àquele ponto lá para as três ou quatro horas da tarde. Isto, porém, longe de ser um contratempo, era uma vantagem, porque os fugitivos teriam assim ocasião de descer o rio protegidos pelas sombras da noite.

      O velho piloto somente se preocupava com a formação dos gelos, que de um momento para o outro poderiam mostrar-se à superfície das águas. A noite fora extremamente fria e viam-se já bastantes pedaços de gelo, que se deslocavam impelidos pelo vento. Mas, por enquanto, não eram perigosos, em consequência de aparecerem muito aquém da entrada do Angara. Contudo, havia a temer que os que viessem da parte oriental  do lago, atraídos pela corrente, fossem levados pelo rio abaixo, obstruindo-o. Nesse caso, poderiam surgir complicações, atrasos, e quem sabe mesmo se obstáculos mais sérios, de que resultasse inevitavelmente a suspensão da viagem.

      Miguel Strogoff mostrava, pois, extraordinário empenho em conhecer qual era o verdadeiro estado do lago e se os gelos já se apresentavam em quantidade excessiva. Nadia, que tinha acordado por fim, era quem respondia às perguntas de Miguel Strogoff, pondo-o ao facto de tudo o que se passava. Enquanto estas massas de gelo se moviam, podiam-se ver à superfície do Baical alguns fenómenos curiosos. Eram magníficos jactos de água a ferver, que emergiam de várias nascentes, abertas pela natureza, à guisa de poços artesianos, no próprio leito do rio. Estes jactos elevavam-se a grande altura e difundiam-se em vapores, iriados pelos raios do Sol, que o frio imediatamente condensava. Semelhante espectáculo parecia feito de molde a surpreender e maravilhar qualquer viajante que por aqui passasse, não agora, mas em tempos de paz, e com o fim exclusivo de admirar a natureza.

      Às quatro horas da tarde o velho piloto avistou a entrada do Angara entre os altos rochedos de granito que revestem o litoral. Sobre a margem direita do rio distinguia-se também o pequeno porto de Livenitchnaia, com a sua igreja e as suas casas levantadas na praia.

      Infelizmente, porém, os primeiros gelos, vindos de leste, já começavam a deslizar entre as duas margens do rio. Contudo, o seu número não era ainda bastante avultado para obstruir o Angara, nem o frio bastante forte para poder agregá-los.

      A jangada parou ao chegar a Livenitchnaia. O velho piloto resolvera demorar-se aqui uma hora, a fim de proceder a algumas reparações indispensáveis. Os troncos tinham-se em parte desunido e importava tornar a ligá-los muito bem, para resistirem à corrente do Angara, que é fortíssima.

      Durante o Estio, o porto de Livenitchnaia é estação obrigatória de embarque e desembarque, tanto para os viajantes do lago Baical que se dirigem a Kiakhata, última cidade da fronteira russo-chinesa, como para aqueles que dali regressam. O porto de Livenitchnaia é, pois, muito concorrido naquela época do ano, quer por barcos a vapor, quer pelas pequenas embarcações empregadas na cabotagem do lago.

      O porto, contudo, estava agora absolutamente deserto. Os seus moradores, a fim de evitarem os roubos e as crueldades dos tártaros, haviam mandado para Irkutsk a frota de barcos e fragatas de carga, que passam ali o Inverno, indo eles mesmos depois refugiar-se naquela Cidade com todos os objectos fáceis de transportar.

      O velho piloto não esperava decerto receber novos passageiros no porto de Livenitchnaia, todavia, no momento em que ele atracava, viram-se sair de uma casa próxima dois indivíduos, que deitaram a correr para a praia com toda a velocidade que lhes era possível.

      Nadia, sentada à ré da jangada, olhava distraidamente para os lados.

      De repente, ia quase soltando um grito. Conteve-se, porém, e agarrou-se com força à mão de Miguel Strogoff, que a este movimento levantou a cabeça.

      - Que tens, Nadia? - perguntou-lhe ele.

      - São os nossos antigos companheiros, Miguel.

      - Os estrangeiros que encontrámos nos desfiladeiros dos Urais?

      - Os mesmos, o francês e o inglês.

      Miguel Strogoff estremeceu, porque viu em risco de ser descoberto o rigoroso incógnito que tanto desejava guardar.

      Efectivamente, Miguel Strogoff não poderia continuar a ser para os dois jornalistas o Nicolau Korpanoff dos primeiros tempos. Depois que se separara deles em Ichim, já Harry Blount e Alcide Jolivet o tinham encontrado por duas vezes: uma em Zabadiero, quando as correias do cnute vergastaram a cara de Ivan Ogareff, outra em Tomsk, quando o emir pronunciou a sentença que tornaria cego o correio do czar. Não havia, pois, meio algum de ocultar aos dois correspondentes qual era a verdadeira posição do ex-negociante de Irkutsk.

      Miguel Strogoff tomou rapidamente uma resolução.

      - Nadia - disse ele -, apenas os dois estrangeiros tenham embarcado, pede-lhes o favor de virem ter comigo.

      Eram, de facto, Harry Blount e Alcide Jolivet, que a marcha dos acontecimentos, e não o acaso, tinha levado ao porto de Livenitchnaia, como também sucedera a Miguel Strogoff.

      Como se sabe, ambos haviam assistido em Tomsk a parte dos festejos, retirando-se quando estava para começar o inevitável suplício de Miguel Strogoff. Ambos estavam persuadidos de que o seu companheiro de viagem fora morto, e não podiam imaginar que o tivessem condenado a ficar cego.

      Naquela mesma noite, levados por dois vigorosos cavalos, haviam saído de Tomsk, muito decididos, dali em diante, a não datarem as suas crónicas senão dos acampamentos russos da Sibéria oriental.

      Nesse propósito se puseram a galopar com destino a Irkutsk. Esperavam chegar ali antes de Féofar-Cã, e tê-lo-iam decerto conseguido se não fosse a inopinada aparição daquela terceira coluna tártara, vinda das regiões do Sul pelo vale do Yenisei. Aconteceu-lhes o mesmo que a Miguel Strogoff: acharam o caminho cortado pelos tártaros nas imediações do Dinka, vendo-se por isso obrigados a tomar a direcção do lago Baical.

      Quando conseguiram chegar a Livenitchnaia, encontraram o porto já completamente deserto. Penetrar em Irkutsk por terra era-lhes impossível, visto que os tártaros já tinham começado o cerco da cidade. Estavam, pois, nesta situação embaraçosa, havia três dias, quando apareceu a jangada.

      Depressa ficaram ao facto do plano dos fugitivos. Como houvesse probabilidades de bom êxito nesta viagem arriscada, os dois correspondentes e amigos decidiram-se a tentar a experiência.

      Alcide Jolivet tratou logo de chegar à fala com o velho piloto, pedindo-lhe duas passagens e oferecendo-lhe por elas o dinheiro que quisesse.

      - Os lugares aqui não se pagam. Arriscar a vida vai ser o preço deles - respondeu com gravidade o velho piloto.

      Os dois jornalistas entraram para a jangada e Nadia viu-os sentarem-se à proa.

      Harry Blount continuava a ser o mesmo inglês frio e ponderado, que mal lhe tinha dirigido a palavra em toda a viagem dos montes Urais até Ichim.

      Alcide Jolivet parecia estar um pouco mudado: o seu ar não era tão prazenteiro, e deve-se convir que as circunstâncias justificavam perfeitamente a mudança.

      Quando acabava de se sentar à proa da jangada, Alcide Jolivet sentiu que alguém lhe apoiava a mão sobre o ombro.

      Voltou-se de repente e reconheceu Nadia, a irmã daquele que já não era Nicolau Korpanoff, mas sim Miguel Strogoff, correio do czar.

      Ia a soltar uma exclamação de espanto quando viu que Nadia levava um dedo aos lábios em sinal de silêncio.

      - Queira acompanhar-me - disse-lhe ela.

      Alcide Jolivet seguiu-a com ar de aparente indiferença, depois de fazer sinal a Harry Blount para também se levantar.

      Mas se o espanto dos jornalistas fora grande em presença de Nadia, maior se mostrou ainda quando deram de frente com Miguel Strogoff, que tinham razões para não julgarem vivo.

      À sua aproximação, Miguel Strogoff não se moveu.

      Alcide Jolivet e Harry Blount voltaram-se para Nadia, como que surpreendidos daquela imobilidade.

      - É que ele não vê - informou Nadia. - Os tártaros queimaram-lhe os olhos. O meu pobre irmão está cego!

      Na fisionomia dos dois correspondentes transpareceu um profundo sentimento de piedade. Instantes depois ambos se sentavam junto de Miguel Strogoff, apertando-lhe as mãos e esperando que ele falasse.

      - Peço-lhes, meus senhores - disse Miguel Strogoff em voz baixa -, que finjam ignorar quem eu sou e o que vim fazer à Sibéria. Peço-lhes que respeitem o meu segredo. Prometem-mo?

      - Prometemo-lo sob palavra de honra - apressou-se a responder Alcide Jolivet.

      - À fé de homens de bem - acrescentou Harry Blount.

      - Contava com a vossa discrição, meus senhores.

      - Poderemos ser-lhe úteis nalguma coisa? - perguntou Harry Blount. - Quer que o ajudemos a completar a sua empresa?

      - Obrigado, eu mesmo a completarei.

      - Mas aqueles patifes deixaram-no cego! - exclamou Alcide.

      - Tenho Nadia para ver por mim,  isso me basta.

      Meia hora depois largava a jangada do porto de Livenitchnaia e dava entrada no Angara. Eram cinco horas da tarde. Não tardaria que anoitecesse, e a noite prometia ser muito escura e fria, porque a temperatura já estava abaixo de zero.

      Alcide Jolivet e Harry Blount deixaram-se ficar junto de Miguel Strogoff, apesar da promessa feita em relação ao seu segredo. Puseram-se ambos a conversar em voz baixa com o pobre cego, e este pôde formar uma ideia exacta acerca da invasão, ampliando as informações que tinha com as que os dois jornalistas lhe ministravam.

      Era evidente que as três colunas tártaras haviam feito a sua junção e que o cerco de Irkutsk já tinha começado. Féofar-Cã e Ivan Ogareff deviam, pois, achar-se em frente daquela cidade.

      Mas qual a razão de ser do veemente desejo de chegar a Irkutsk, manifestado pelo correio imperial? Pois não lhe tinham roubado o ofício de que era portador para o grão-duque? Pois não ignorava ele o conteúdo desse ofício?

      Alcide Jolivet e Harry Blount procuravam debalde atinar com a razão de semelhante insistência. Neste ponto não eram mais felizes do que Nadia.

      A sua conversação com Miguel Strogoff nunca aludiu ao passado, senão quando Alcide Jolivet julgou oportuno o ensejo para dizer:

      - É tempo de lhe pedirmos desculpa, meu caro amigo...

      - Desculpa de quê? - Perguntou Miguel Strogoff.

      - De nos termos separado em Ichim sem lhe estendermos a nossa mão.

      - Sobravam-lhes razões para isso. Eu devia-lhes parecer um cobarde naquele momento.

      - Entretanto - acrescentou Alcide Jolivet -, a sua desforra foi completa, e a cara daquele miserável há-de guardar por muito tempo a marca infamante do cnute.

      - Por muito tempo, não creio - respondeu com serenidade Miguel Strogoff.

      Meia hora depois da partida de Livenitchnaia, estavam os dois jornalistas ao facto dos cruéis lances por que tinham sucessivamente passado os dois irmãos.

      Harry Blount e Alcide Jolivet admiravam sem reserva tanto a energia de Miguel Strogoff como a dedicação de Nadia.

      Primeiro pensaram exactamente o que dele tinha dito o czar em Moscovo: «É um homem, na verdade.»

      A jangada ia seguindo por entre as massas de gelo que a corrente arrastava. De ambos os lados do rio era variado e majestoso o panorama que se desenrolava e, por uma ilusão de óptica, a jangada parecia estar imóvel ante esta sucessão de pontos de vista pitorescos. Aqui eram as montanhas de granito erguendo as suas cristas fantasticamente para o céu, acolá os desfiladeiros selváticos, onde se despenhavam com estrépito as torrentes caudalosas, mais adiante as largas abertas, deixando ver ao longe alguma aldeia ainda fumegante, e, por último, os espessos pinheirais, projectando as chamas ateadas por incêndios recentíssimos. Mas, se em todos estes locais os tártaros haviam deixado lembrança atroz da sua passagem, em compensação nenhum deles, por agora, se avistava da jangada. O sítio de Irkutsk obrigava-os a concentrarem-se em torno daquela cidade.

      Entretanto, os peregrinos repetiam em voz alta as suas rezas, e o velho piloto, afastando com uma vara as massas de gelo, que pareciam querer acercar-se cada vez mais, continuava imperturbável a sua manobra pelo meio daquela rápida corrente.

     

     Perigos e sobressaltos

      Às oito horas já se não via nada. A escuridão tornara-se completa, pois, por se estar na Lua nova, esta não espalhava sobre a Terra nenhuma claridade. Do meio do rio nem se divisavam as margens. As ribas confundiam-se a baixa altitude com as pesadas nuvens, que mal se moviam. De espaço a espaço sopravam de leste umas ligeiras brisas, que pareciam expirar nesta espécie de garganta formada pelo Angara.

      As trevas não podiam deixar de favorecer até certo ponto o projecto dos fugitivos. Se bem que os postos avançados dos tártaros devessem estar escalonados sobre as duas margens, a jangada tinha contudo muitas probabilidades de passar despercebida. Não era também natural que os sitiantes houvessem obstruído o rio antes de chegar a Irkutsk, visto saberem que os russos não podiam esperar nenhum socorro pelo sul da província. De resto, não tardaria que a própria natureza se encarregasse de interceptar o Angara, unindo gradualmente as massas de gelo acumuladas entre as duas margens.

      A bordo da jangada reinava agora silêncio absoluto.

      Desde que ela começara a seguir rio abaixo, tinham os peregrinos cessado de entoar os seus hinos sagrados. Rezavam ainda, porém, as suas orações não passavam agora de um ligeiro murmúrio, que prontamente se desvanecia.

      Os fugitivos, estendidos sobre o fundo da jangada, mal cortavam com o corpo a linha horizontal das águas. O velho piloto, colocado à proa junto dos seus homens, preocupava-se, no meio de um silêncio absoluto, em afastar as massas de gelo que, resvalando contra as outras, iam produzindo um surdo estrondo.

      Este perpassar dos gelos, se bem que pudesse vir a ser para diante um obstáculo, significava actualmente auxílio valioso. De facto, se a jangada corresse livremente pelo rio, haveria o perigo de os tártaros a pressentirem apesar das sombras da noite, enquanto assim, por entre essa confusa e movediça aglomeração de tantos gelos conseguia ela ir passando a salvo.

      O frio ia apertando com extrema intensidade. Os fugitivos, abrigados apenas por alguns ramos de bétula, começavam a sentir-se enregelados. Aconchegavam-se uns aos outros, para ver se assim podiam suportar melhor este abaixamento de temperatura, que prometia chegar durante a noite a dez graus abaixo de zero. Era de cortar o pouco vento que fazia, em consequência de ter passado pelas montanhas de leste, já todas cobertas de neve nos seus cumes. Suportavam Miguel Strogoff e Nadia, colocados à ré, com resignação este novo sofrimento. Alcide Jolivet e Harry Blount, junto deles, também afrontavam como podiam os primeiros assaltos do Inverno siberiano. As suas conversas tinham cessado. Era tão séria a situação em que se viam que não pensavam em falar. De um momento para o outro podia surgir um incidente, um perigo, uma catástrofe que viesse causar-lhes gravíssimas inquietações.

      Miguel Strogoff aparentava uma serenidade que não parecia própria de quem estava por tão pouco a ver realizados os seus fins. É verdade que até aqui nunca, nos lances mais difíceis, ele deixara de mostrar a sua grande energia. Pressentia já o momento em que, finalmente, lhe fosse lícito pensar em sua mãe, em Nadia e até em si. Só um receio vinha toldar-lhe o céu azul das suas esperanças: era se a jangada não pudesse chegar a Irkutsk, paralisada no seu andamento por alguma imprevista acumulação de gelos. Preocupava-o de vez em quando esta cheia, entretanto, se a fatalidade ainda lhe levantasse mais algum obstáculo, estava bem decidido a vencê-lo por qualquer supremo acto de ousadia. Nadia, restabelecida pelo repouso de algumas horas, tinha recuperado aquela natural energia, que a desventura suplantara às vezes sem lhe abalar a energia moral.

      Também estava decidida, no caso de Miguel Strogoff querer ainda tentar alguma nova temeridade, a não se afastar dele, para poder servir-lhe de guia. Por outro lado, quanto mais se aproximava de Irkutsk, mais a imagem de seu pai se lhe desenhava distintamente no espírito., Via-o no meio daquela cidade sitiada, lutando contra os invasores com todo o fogo do seu patriotismo. Dentro de poucas horas, se o céu lhe atendesse as fervorosas súplicas, achar-se-ia nos braços desse exilado querido para lhe transmitir as últimas palavras de sua mãe e para nunca mais se apartar dele. Se o exílio de Vassili Orlik tivesse de ser perpétuo, sua filha, também como exilada, ficaria sempre a seu lado. Depois, como ideia associada, lembrava-se do homem a quem era devedora de tornar a ver seu pai, desse homem, generoso e bom, que lhe dera o nome de irmã e que, acabada a guerra com os tártaros, regressaria a Moscovo sem talvez se lembrar mais da sua companheira de viagem!

      Quanto a Alcide Jolivet e Harry Blount, esses só tinham um único e recíproco pensamento: o de acharem extremamente dramático o lance em que se viam, lance que, bem gizado e desenvolvido, deveria render-lhes uma das mais interessantes correspondências do estrangeiro.

      O inglês pensava nos seus leitores do Daily Telegraph, e o francês nos da sua prima Madalena. Porém, tanto um como outro não deixavam de se sentir sumamente impressionados pela gravidade da presente situação.

      - Ora, tanto melhor! - dizia consigo mesmo Alcide Jolivet. - Para impressionar é preciso estar impressionado. Creio até que há um verso notável onde se trata deste pensamento. Mas negro seja eu se me lembro dele!

      E com os olhos muito abertos procurava romper a treva espessa que envolvia todo o rio. Intensos clarões, porém, vinham às vezes quebrar a escuridão desta noite frigidíssima, transformando num cenário maravilhoso a paisagem de ambas as margens do rio. Era uma ou outra floresta, uma ou outra aldeia, que estavam ainda em chamas, sinistra reprodução dos quadros vistos de dia, realçados agora pelo contraste da noite! O Angara mostrava-se, de um ao outro lado, resplendente de luz. As massas de gelo, que obedeciam aos caprichos da corrente, eram como outros tantos espelhos e emitiam, devido às chamas, reverberações de todas as cores. A jangada, confundindo-se com estes gelos, continuava a passar despercebidamente.

      O mal, todavia, não estava ainda nisto.

      Um perigo de diferente natureza ameaçava os fugitivos, perigo que se não podia prever e que sobretudo se não podia evitar. Foi Alcide Jolivet quem deu por ele da seguinte maneira.

      O correspondente francês deitara-se do lado direito da jangada, deixando casualmente cair uma das mãos dentro de água. O contacto dos dedos com a superfície da corrente causara-lhe, porém, notável surpresa. Dir-se-ia que a água era de uma consistência viscosa, como se fosse formada por um óleo mineral.

      Alcide Jolivet, auxiliando-se do olfacto, veio a descobrir o que era. Uma camada de nafta líquida sobrenadava na parte superior do Angara, seguindo a sua corrente.

      A jangada iria, pois, flutuando sobre esta substância tão eminentemente combustível? Donde teria vindo aquela nafta? Seria algum fenómeno natural que a fizera arrojar para ali, ou deveria ela servir de instrumento de destruição premeditado pelos tártaros? Quereriam estes levar o incêndio até dentro de Irkutsk, recorrendo a meios que os direitos da guerra não justificam entre nações civilizadas?

      Tais foram as perguntas que a si próprio formulou Alcide Jolivet. A sua descoberta só a comunicou a Harry Blount, e ambos resolveram não a transmitir aos outros companheiros da jangada, para lhes pouparem este novo susto.

      Sabe-se que o solo da Ásia central é semelhante a uma esponja impregnada de carbonetos e hidrogénio líquidos. As nascentes de óleos minerais surgem aos milhares na superfície dos terrenos, tanto no porto de Bacu, perto da fronteira persa, e na península de Abcheran, no mar Cáspio, como na Ásia Menor, na China, no Yug-Hyan e na Birmânia. A Ásia central é, pois, o “país do óleo”, como também país do óleo é todo o território da América do Norte, onde se encontram idênticas nascentes.

      Durante certas festas religiosas, que se celebram especialmente em Bacu, os indígenas, adoradores do fogo, costumam lançar na superfície do mar Cáspio nafta líquida, que fica a flutuar em consequência de a sua densidade ser inferior á da água. Ao anoitecer e quando uma destas camadas de óleo mineral já se acha bem espalhada pelo mar, então os indígenas lançam-lhe fogo e dão a si próprios o incomparável espectáculo de um oceano de chamas, que ondula e se dilata ao sabor da viração.

      Mas o que apenas seria um espectáculo em Bacu poderia, nas águas do Angara, converter-se em sinistro. Da jangada não havia que recear imprudências. Não se podia afirmar o mesmo em relação aos incêndios que lavravam em ambas as margens do Angara. Bastaria que uma trave inflamada, uma simples faúlha caísse no rio para atear aquela corrente de nafta.

      Compreendem-se melhor do que se descrevem as apreensões que sentiram Alcide Jolivet e Harry Blount. Em vista daquele novo perigo não seria prudente encostar a jangada a uma das margens, desembarcar os passageiros e aguardar os acontecimentos? Os dois jornalistas não sabiam o que mais conviria fazer.

      - Apesar do perigo - observou Alcide Jolivet -, sei de alguém que não quereria desembarcar.

      - Miguel Strogoff, não é assim? - volveu Harry Blount.

      - Esse mesmo.

      Entretanto, a jangada continuava a deslizar por entre os sucessivos gelos, que se iam gradualmente apertando.

      Em nenhuma das duas margens do Angara se tinha até aqui ouvido a algazarra dos tártaros. Isto fazia supor que a jangada ainda não chegara aos postos avançados do emir. Todavia, por volta das dez horas, Harry Blount julgou distinguir diferentes vultos negros, que se moviam em cima das massas de gelo. Estas sombras, saltando de uns para outros blocos, aproximavam-se com rapidez.

      «São os tártaros», disse de si para si Harry Blount.

      E dirigindo-se de mansinho até junto do velho piloto, que não abandonava o seu posto, mostrou-lhe aqueles movimentos suspeitos.

      O velho piloto pôs-se a olhar com toda a sua atenção.

      - São lobos - declarou ele por fim. - Antes isso do que tártaros. Precisamos de defender-nos, mas sem fazer barulho.

      Efectivamente os fugitivos tiveram de lutar em breve contra aqueles animais carnívoros, que a fome e o frio metiam em busca de alimento.

      Os lobos haviam pressentido a jangada e vinham agora atacá-la. Os fugitivos empenharam-se numa luta com eles, mas sem fazerem uso de armas de fogo, para se não denunciarem aos tártaros, de cujos postos avançados não deviam estar longe. As mulheres e as crianças foram colocadas no centro da jangada, e os homens, uns armados de varas, outros de facas e o maior número de paus, estenderam-se em linha para repelir o ataque. Da parte dos atacados não se ouvia o mais leve rumor, os lobos, porém, estrugiam os ares com a força dos seus uivos.

      Miguel Strogoff não tinha querido ficar ocioso. Estendera-se também perto do sítio que o bando dos lobos atacava. De faca em punho, todas as vezes que um lobo passava ao alcance do seu braço era precipitado no rio, ferido mortalmente. Harry Blount e Alcide Jolivet, sem perderem um segundo, desenvolviam também à sua parte actividade surpreendente. Os outros companheiros imitavam-nos com bravura. Esta carnificina dos lobos decorria em silêncio, apesar de muitos dos fugitivos não terem podido evitar algumas graves mordeduras daqueles ferozes animais.

      Parecia, porém, que a luta não tinha fim. Os lobos sucediam-se uns aos outros. Dir-se-ia que a margem direita do Angara era um viveiro destes carnívoros.

      - Então isto não acabará hoje? - perguntava Alcide Jolivet, manejando o seu punhal, a escorrer de sangue.

      Efectivamente, meia hora depois do princípio da luta os lobos ainda corriam aos centos por cima dos gelos.

      Os fugitivos, muito cansados, começavam a afrouxar a sua defesa. O combate não tardaria que lhes fosse desvantajoso. Ao mesmo tempo deram um salto para dentro da jangada uns doze lobos de grandes dimensões, enfurecidos pela resistência e pela fome, e com os olhos a brilhar na sombra como lumes. Alcide Jolivet e Harry Blount lançaram-se sobre eles, e Miguel Strogoff arrastava-se também com o mesmo fim, quando de improviso mudaram completamente as circunstâncias.

      Bastaram apenas alguns segundos para que não só os lobos deixassem a jangada, como também os gelos espalhados pelo rio. Todos aqueles vultos negros se dispersaram como por encanto, fugindo a toda a pressa para a margem direita do rio. É que os lobos, inimigos da luz, precisavam da treva para as suas correrias, e o Angara neste momento apresentava-se todo iluminado por uma intensa claridade.

      Eram os clarões de um enorme e pavoroso incêndio.

      A povoação de Poshkavsk estava toda em chamas. Desta vez a obra destruidora era dos tártaros. A contar deste ponto, as margens do rio estavam ambas ocupadas por eles até além de Irkutsk. Os fugitivos tinham, pois, chegado à zona mais perigosa da sua viagem nas sombras.

      E, contudo, ainda trinta verstas os separavam da capital!

      Eram onze horas e meia da noite. A jangada ia sempre deslizando por entre as massas de gelo, com as quais se confundia completamente. De vez em quando, porém, algumas chapadas de luz vinham bater-lhe em cheio.

      Nesses momentos os fugitivos deitavam-se todos ao comprido para que nem o mais leve movimento pudesse atraiçoá-los. As chamas continuavam com extrema violência a devorar a povoação. As suas casas, construídas de madeira de pinho, ardiam como se fossem grandes archotes de resina.

      Eram pelo menos cento e cinquenta as casas que as labaredas consumiam desta forma. Ao crepitar do incêndio respondia a grita indiferente da soldadesca tártara. O velho piloto, fazendo ponto de apoio num dos maiores pedaços de gelo, conseguira empurrar a jangada para a margem direita, e estavam agora a uns trezentos ou quatrocentos pés do ponto onde lavrava o incêndio.

      Os fugitivos, iluminados por brilhantes reflexos, teriam sido descobertos se os incendiários não estivessem tão entretidos em arrasar a povoação. Compreende-se quais seriam as inquietações dos dois jornalistas, lembrando-se do líquido combustível que cercava a jangada.

      Efectivamente, das casas, que pareciam fornalhas ardentes, soltavam-se repetidas vezes abundantes feixes de faúlhas. Por entre as espiras de fumo, estas faúlhas elevavam-se no ar a mais de quinhentos pés de altura. As árvores  e as ribas da margem direita, recebendo de frente a claridade destas explosões, pareciam estar envolvidas em fogo. Bastaria que uma faúlha caísse no rio para o incêndio alastrar ao lume de água, comunicando-se imediatamente de uma à outra margem. Se isto sucedesse, jangada e todos que nela iam seriam vítimas inevitáveis de uma tremenda desgraça.

      Felizmente, as brisas da noite, muito fracas, não sopravam deste lado. Vinham ainda de leste, e desviavam as chamas para a esquerda. Era, portanto, de esperar que os fugitivos escapassem a esta nova fatalidade.

      De facto, a povoação em chamas ficou dentro em breve para trás da jangada. O brilho do incêndio foi-se pouco a pouco desvanecendo, o estalar das madeiras diminuiu e os últimos clarões desapareceram encobertos pelas altas ribas que se erguiam no sítio em que o rio formava uma curva rápida.

      Era meia-noite pouco mais ou menos. A treva, que tornara a ser completa, protegia de novo os movimentos da jangada. Os tártaros ocupavam com efeito as duas margens. Não se avistavam, mas sentia-se a bulha que faziam, falando e movendo-se de um para o outro lado.

      Já se avistavam perfeitamente as fogueiras dos postos avançados.

      Entretanto, a prontidão da manobra cada vez se tornava mais necessária, porque as massas de gelo iam-se unindo com mais insistência umas às outras, obstruindo completamente o leito do rio.

      O velho piloto pôs-se de pé e os mujiques tornaram a pegar nas varas. Todos tinham então que fazer.

      Miguel Strogoff adiantou-se cautelosamente até à proa da jangada.

      Alcide Jolivet seguiu-o também.

      Ambos se puseram a escutar o que o velho piloto dizia aos seus homens.

      - Olha sobre a direita.

      - Lá começam os gelos a querer unir-se da esquerda.

      - Serve-te da vara para desuni-los e afastá-los.

      - Em menos de uma hora não poderemos avançar!

      - Se Deus assim o mandar... paciência! Contra a sua vontade é que não há nada a fazer - respondeu o velho piloto.

      - Ouve o que eles dizem? - perguntou Alcide Jolivet a Miguel Strogoff.

      - Ouço - respondeu este. - Mas não importa. Deus está connosco.

      Infelizmente a situação crescia de gravidade. Se a jangada chegasse a não poder mover-se, os fugitivos ver-se-iam obrigados a deixá-la, antes que ela se fizesse em pedaços, esmagada pelos gelos. As cordas de vime partir-se-iam então, os troncos de pinho, desconjuntados com violência, iriam perder-se sob a crusta endurecida daquelas moles flutuantes e os fugitivos, que depois desta catástrofe só tinham os próprios gelos para lhes servir de refúgio, seriam de madrugada descobertos pelos tártaros e, acto contínuo, barbaramente assassinados!

      Miguel Strogoff voltou ao sítio onde o esperava Nadia.

      Aproximando-se dela, tomou-lhe as mãos e dirigiu-lhe esta concisa pergunta:

      - Estás pronta, Nadia?!

      Ao que a filha do exilado respondeu como sempre:

      - Estou.

      Durante algumas verstas a jangada foi-se ainda movendo. Porém, a rapidez do seu andamento diminuía a olhos vistos. A acumulação dos gelos continuava a obstruir o Angara. De momento a momento, ou a jangada sofria um choque impetuoso, ou tinha de fazer um desvio. Abalroava aqui para se afastar acolá. Tudo eram atrasos e complicações.

      A noite já estava por poucas horas. Se os fugitivos não chegassem a Irkutsk antes das cinco horas da manhã poderiam perder a esperança de lá entrar.

      Depois da uma hora, apesar de todos os esforços que se fizeram, a jangada esbarrou com um espesso banco de gelo, ficando ali paralisada. As massas de gelo que se lhe seguiam envolveram-na por seu turno e comprimiram-na contra o primeiro obstáculo, deixando-a absolutamente imóvel como se tivesse encalhado.

      O Angara estreitava neste ponto, reduzindo a metade a sua largura normal. Foi desta circunstância que proveio a acumulação dos gelos, agora unidos uns aos outros sobre a dupla influência da pressão, que era considerável, e do frio, que era intensíssimo. Quinhentos passos mais adiante, o leito do rio tornava a alargar, e os gelos, desagregando-se pouco a pouco daquele banco, deslizavam novamente em direcção a Irkutsk. Era, pois, muito de presumir que, se não fosse a estreiteza das margens, nem o banco de gelo se teria formado, nem a jangada se veria obrigada a interromper a viagem. O mal, porém, não tinha remédio, e os fugitivos deviam renunciar a toda a esperança de bom êxito.

      Ainda se eles tivessem à sua disposição os instrumentos de que se servem ordinariamente os baleeiros para rasgar uma passagem através dos ice-fields (Campos de gelo), ainda se eles pudessem romper este banco de gelo até ao ponto onde o rio tornava a alargar, talvez que o tempo lhes não faltasse. Mas a bordo da jangada não havia serras nem picaretas, não havia nada que permitisse cortar esta muralha, tornada, pela baixa temperatura, tão dura como granito.

      Que resolução se deveria tomar?

      Ao mesmo tempo ouviram-se repetidas detonações, tiros de espingarda, partindo da margem direita. Um chuveiro de balas começou a cair sobre a jangada. Teriam sido, porventura, descobertos os fugitivos? Parece que sim, porque da margem esquerda partiram também novas descargas. Os fugitivos, colhidos entre dois fogos, tornaram-se o alvo dos atiradores tártaros. Alguns deles foram feridos, se bem que as balas chegassem ao acaso no meio da escuridão.

      - Vem, Nadia - disse Miguel Strogoff ao ouvido da sua companheira.

      Nadia estendeu a mão a Miguel Strogoff sem lhe dirigir a mínima pergunta.

      - Precisamos de atravessar o banco de gelo - declarou ele baixinho. - Guia-me até à proa da jangada, sem que ninguém dê pela nossa falta.

      Nadia obedeceu. Miguel Strogoff e ela saltaram para cima do banco de gelo, no meio daquelas profundas sombras que apenas eram cortadas pelo rápido clarão dos tiros de espingarda.

      Nadia, agarrando-se às protuberâncias do gelo, trepava adiante de Miguel Strogoff. Em redor deles caíam as balas sem descanso, crepitando sobre o gelo. A superfície daquele banco, áspera e cheia de arestas agudas, deixou-lhes as mãos em sangue, mas não os impediu de avançar.

      Passados dez minutos, Miguel Strogoff e Nadia, depois de repetidos esforços, atingiram a parte inferior do lado oposto do banco. As águas do Angara não estavam geladas a partir daí. Alguns pedaços de gelo, desprendendo-se pouco a pouco do banco, seguiam novamente o curso do rio levados pela corrente.

      Nadia compreendeu qual era o pensamento de Miguel Strogoff. Vendo que um dos maiores blocos de gelo estava prestes a desligar-se dos outros, que formavam o conjunto do banco, disse-lhe:

      - Vem, Miguel.

      E ambos se deitaram sobre aquela massa de gelo, que uma pequena oscilação acabou por desprender.

      O gelo começou a mover-se, e o rio, alargando-se, deixava livre o caminho.

      Miguel Strogoff e Nadia ouviram ainda os tiros de espingarda, as vozes de aflição e os bramidos dos tártaros. Depois, estes gritos de profunda angústia e de estúpida alegria foram-se amortecendo pouco a pouco.

      - Pobres companheiros! - balbuciou Nadia.

      Durante meia hora a corrente empurrou com rapidez o pedaço de gelo que suportava Miguel Strogoff e Nadia, e que de um momento para o outro se poderia desfazer debaixo deles. Levado pela corrente, seguia sempre a meio do rio. Só quando se estivesse próximo do cais de Irkutsk é que conviria dar-lhe uma direcção oblíqua.

      Miguel Strogoff, com os dentes cerrados e o ouvido à escuta, não pronunciava uma só palavra. Nunca ele se vira tão perto do fim que ambicionava. Sentia, finalmente, que lhe estava quase a tocar com as mãos.

      Pelas duas horas da noite uma dupla fileira de pontos luminosos brilhava no sombrio horizonte em que se confundiam as duas margens do Angara.

      À direita, eram as luzes que saíam de Irkutsk, à esquerda, as fogueiras do acampamento tártaro.

      Miguel Strogoff estava apenas a meia versta da cidade.

      - Até que enfim! - exclamou ele.

      Mas de repente Nadia soltou um grito.

      A este grito Miguel Strogoff levantou-se sobre a massa de gelo que oscilava. Estendeu o braço direito em direcção à parte superior do rio. O seu rosto, completamente iluminado por intensos reflexos azulados, estava terrivelmente crispado, como se os seus olhos tivessem recuperado a vista:

      - Maldição! - vociferou ele. - Até a Providência se insurge contra nós!

     

     Irkutsk

      A capital da Sibéria oriental é uma cidade populosa, que normalmente alberga, mais ou menos, trinta mil habitantes. Uma encosta bastante elevada, que parte da margem direita do Angara, serve de base às suas igrejas, entre as quais avulta a catedral, e às suas casas, todas elas espalhadas em pitoresca e agradável confusão.

      Vista do alto do monte, que se levanta na estrada principal a uma distância de vinte verstas, Irkutsk dá ideia de uma cidade oriental, com as suas cúpulas e campanários, com as suas agulhas erguendo-se em forma de minaretes e os seus zimbórios semelhantes a talhas do Japão em ponto grande. Esta fisionomia desaparece, porém, aos olhos do viajante logo que se penetra nos seus muros. A cidade, meio bizantina, meio chinesa, torna-se europeia pelas suas ruas macadamizadas, em que se cruzam os canais e abundam os renques de magníficas bétulas, pelos seus largos passeios, pelas casas de tijolo e madeira, pelas suas numerosas carruagens, onde a par das telegas se encontram os cupés e as caleches, e, finalmente, pela maioria dos habitantes, que se mostram bastante civilizados e a quem são de todo familiares as últimas modas de Paris.

      Irkutsk servia actualmente de residência a muitos siberianos da província, que tinham ido ali procurar um refúgio contra os invasores. Nesta cidade, que é o empório de todas as mercadorias permutadas entre a China, a Ásia central e a Europa, abundavam agora os recursos de vários géneros.

      Não admira, portanto, que se tivessem chamado para dentro dos seus muros os habitantes do vale do Angara, os mongóis khalkas, os tunguzos e os burets, privando assim a invasão das vantagens que lhe deviam dar as localidades povoadas.

      Irkutsk é a residência do governador-geral da Sibéria oriental. Abaixo dele contam-se o governador civil, em cujas mãos está a administração da província, o director da polícia, a quem não falta que fazer numa cidade com tantos exilados, e, finalmente, o administrador municipal e presidente da câmara de comércio, pessoa considerável pela sua imensa riqueza e pela influência que exerce sobre os seus colegas negociantes.

      A guarnição de Irkutsk compunha-se de um regimento apeado de cossacos, com dois mil homens, e de um corpo permanente de polícia de capacete e farda azul agaloada de prata.

      Por circunstâncias particulares, como se sabe, o irmão do czar achava-se retido nesta cidade desde o começo da invasão.

      Este facto requer explicações mais circunstanciadas.

      O grão-duque viera às longínquas províncias da Ásia central numa viagem de carácter puramente político.

      Depois de ter percorrido as principais cidades siberianas, viajando sem nenhum aparato, mais como soldado do que como príncipe, o grão-duque chegara a penetrar nas regiões transbaicalianas, acompanhado apenas pelos seus ajudantes e por uma escolta de cossacos.

      Nikolaevsk, a última cidade russa situada no litoral do mar de Okhotsk, tivera a honra de receber a sua visita.

      Chegado aos confins do imenso império moscovita, o grão-duque voltava a Irkutsk, donde supunha poder seguir para Moscovo, quando recebeu no caminho a notícia que lhe anunciava os primeiros passos desta invasão, tão rápida como terrível. Tratou, portanto, de entrar apressadamente em Irkutsk. Ao mesmo tempo, começavam a estar interrompidas as comunicações com a Rússia europeia. Todavia, receberam-se ainda alguns telegramas de Petersburgo e de Moscovo, a que o grão-duque pôde responder. Depois o fio deixou de trabalhar pelas razões já conhecidas.

      E Irkutsk ficara de todo isolada do resto do império.

      O grão-duque só tinha de ocupar-se da defesa, e foi o que fez, desenvolvendo para isso uma actividade e sangue-frio de que já noutras circunstâncias dera incontestáveis provas.

      As notícias da tomada de Ichim, de Omsk e de Tomsk foram-se recebendo sucessivamente. Tornava-se urgente que se empregassem todos os meios para evitar a queda de Irkutsk. Contar com socorros imediatos não era possível. As poucas tropas espalhadas pelas províncias do Amur e pelo governo de Irkutsk não seriam suficientes para suspender a marcha das colunas invasoras. Uma vez, pois, que Irkutsk não podia escapar às contingências de um cerco, convinha pelo menos colocá-la em condições de resistir aos tártaros com vantagem.

      Os trabalhos de defesa começaram no dia da tomada de Tomsk. Ao passo que este último revés chegava ao conhecimento do grão-duque, sabia-se igualmente que a invasão era dirigida em pessoa pelo emir de Bucara, auxiliado pelos cãs de Khokhand e de Kunduza. O que o grão-duque, porém, ignorava era que o lugar-tenente de todos estes chefes bárbaros fosse Ivan Ogareff, um oficial russo que ele não conhecia, mas que por faltas graves de serviço fora expulso das fileiras.

      Todos os habitantes da província, como já se viu, tinham sido intimados, desde o princípio da invasão, a refugiar-se em Irkutsk. Os que não puderam entrar na capital foram mandados para os territórios transbaicalianos, onde era de presumir que não chegassem as hordas de Féofar-Cã. Recolheram-se dentro da capital todas as reservas de cereais e de forragens, e foi assim que este último baluarte do poder moscovita no Extremo Oriente se preparou para fazer frente por algum tempo à invasão.

      Irkutsk, fundada em 1611, achava-se situada sobre a margem direita do Angara, na confluência deste rio com o Irkutsk. Duas pontes de madeira, assentes sobre estacaria e dispostas de forma que, segundo as exigências da navegação, se pudessem abrir a toda a largura do rio, ligando a cidade com os seus arrabaldes, que se estendem por toda a margem oposta. Deste lado a defesa era fácil. Os arrabaldes foram evacuados e as pontes destruídas. A passagem do Angara, que é muito larga neste ponto, tornar-se-ia impossível sob o fogo dos sitiados.

      O rio, contudo, prestava-se a ser atravessado tanto acima como abaixo de Irkutsk, e nesse caso a cidade correria perigo de ser atacada pela sua parte oriental, onde nenhuma rede de muralhas existia para defendê-la.

      Foi com o fim de remediar esta falta que se encetaram grandes trabalhos de fortificação, em cujo acabamento se andava de dia e de noite. Nunca havia falta de braços. O irmão do czar viu-se rodeado de uma população tão zelosa e diligente no trabalho, como firme e corajosa na defesa. Soldados, lojistas, exilados e camponeses, todos, enfim, se dedicaram com extrema solicitude à salvação comum. Oito dias antes de se avistarem os tártaros já estavam levantadas e guarnecidas muitas muralhas feitas de terra. Entre a escarpa e a contra-escarpa tinha-se aberto um fosso, que se inundou com as águas do Angara. A cidade estava livre de uma surpresa. Os invasores tinham, portanto, de a sitiar.

      A terceira coluna tártara, aquela que viera pelo vale do Yenisei, apareceu à vista de Irkutsk no dia 24 de Setembro, indo ocupar os arrabaldes, completamente desabitados. Deste lado as casas tinham sido mandadas arrasar para não estorvarem a acção da artilharia do grão-duque, Infelizmente pouco numerosa.

      Os tártaros armaram, pois, os seus arraiais, esperando que chegassem as outras duas colunas comandadas pelo emir.

      A 25 de Setembro realizou-se no acampamento do Angara a junção destes diferentes corpos, assumindo Féofar-Cã o comando de todo o exército, à excepção apenas das guarnições que tinha deixado nas principais cidades em seu poder.

      Como era do seu conhecimento, por indicação de Ivan Ogareff, que era impossível a passagem do Angara em frente de Irkutsk, mandou uma grande parte das tropas efectuar essa travessia algumas verstas abaixo da cidade, construindo-se para esse fim uma ponte de barcas. Bem quisera o grão-duque impedir esta passagem. Porém, a falta de artilharia de campanha obrigou-o a deixar-se ficar prudentemente dentro dos muros de Irkutsk.

      Os tártaros puderam, pois, ocupar também a margem direita do rio, e, avançando sobre a cidade, foram queimando no seu trânsito o palácio de Verão do governador-geral, o qual ficava situado num bosque que dominava o rio. Em seguida, cercaram completamente a cidade, tomando posições definitivas.

      Ivan Ogareff, engenheiro hábil, era bastante apto para dirigir os trabalhos de um sítio regular, mas faltavam-lhe os materiais para operar com rapidez, por isso que imaginava surpreender Irkutsk, fim capital de todos os seus esforços.

      Como já se sabe, as coisas tinham caminhado de modo diferente. Por um lado, a batalha de Tomsk retardara a marcha dos invasores, por outro, a actividade que o grão-duque imprimira aos trabalhos de defesa tornara impossível a pronta ocupação de Irkutsk. Estas duas circunstâncias haviam feito malograr os planos do traidor, que se viu obrigado a intentar um cerco em forma.

      Ainda assim, o emir, inspirado pelo seu lugar-tenente, por duas vezes tentou tomar de assalto a cidade, embora a custo de grande sacrifício de homens. Os seus soldados precipitaram-se sobre as fortificações, onde havia alguns pontos fracos, mas de ambas as vezes os sitiantes tiveram de retirar, vencidos e esmagados pelo ardor dos sitiados. O grão-duque e os seus oficiais tinham dado nesses combates o exemplo de bravura, não lhe ficando atrás em denodo e em coragem a população civil de Irkutsk. No segundo assalto haviam chegado os tártaros a forçar uma das portas da muralha, aquela que dava sobre a rua de Bolchaia, via de duas verstas de comprimento, cujo extremo limite é a própria margem do rio. A luta travara-se neste ponto com mais vigor, porém, os cossacos, a polícia e os civis tão viva resistência opuseram que os tártaros se viram obrigados a voltar às suas posições.

      Ivan Ogareff supôs favorável o ensejo para tentar pela traição o que pela força não conseguia. Sabe-se que o seu projecto era penetrar na cidade, apresentar-se ao grão-duque, e, depois de lhe haver captado a confiança, entregar aos sitiantes uma das portas da cidade, reservando-se o bárbaro prazer de saciar a sua vingança na pessoa do irmão do czar.

      A tzigana Sangarra, que o acompanhara até ao acampamento do Angara, incitava-o calorosamente a não desistir do seu projecto.

      Efectivamente, convinha não perder tempo. As tropas russas do governo de Irkutsk, que se tinham concentrado na parte superior do Lena, marchavam pelo vale deste rio em direcção a Irkutsk. Em menos de seis dias deviam estar à vista. Era, pois, indispensável que a cidade caísse pela traição antes de findo este prazo.

      Ivan Ogareff não hesitou, portanto.

      No dia 2 de Outubro reuniu-se à tarde um conselho de guerra no salão nobre do palácio do governador-geral. Era ali que o grão-duque residia.

      Do palácio, levantado na parte superior da rua de Bolchaia, abrangia-se uma grande extensão sobre o rio. Das janelas da sua fachada principal distinguia-se perfeitamente o acampamento inimigo. Se Féofar-Cã tivesse à sua disposição artilharia de sítio de maior alcance há muito que aquele palácio estaria destruído.

      O grão-duque, o general Voranzoff, o governador civil, o director da polícia, o administrador municipal e presidente da câmara de comércio, afora vários outros oficiais superiores também presentes, acabavam de tomar diversas resoluções relativas ao estado de sítio.

      - Meus senhores - expôs o grão-duque -, sabem perfeitamente qual é a nossa actual situação. Por mim tenho a firme certeza de que poderemos resistir até à chegada das tropas a Irkutsk. Guardemos para então o castigo que a insolência destes bárbaros está pedindo. Creiam que não serei dos últimos a fazer-lhes pagar bem caro o ultraje por eles feito ao nosso território.

      - Vossa Alteza bem sabe que pode contar com toda a população de Irkutsk - declarou o general Voranzoff.

      - Sei, general, e presto sincera homenagem ao seu patriotismo - retorquiu o grão-duque. - Tenho admirado nas muralhas a sua decidida coragem, e conto com a ajuda de Deus para que a proteja dos horrores da fome e das epidemias. Folgo que o senhor administrador municipal e presidente da câmara de comércio me esteja ouvindo, e peço-lhe que transmita aos seus concidadãos as minhas palavras.

      - Agradeço a Vossa Alteza, em nome da cidade, essa lisonjeira apreciação - respondeu o administrador municipal. - Agora ser-me-á permitido perguntar qual é o extremo limite que Vossa Alteza marca para a chegada do exército auxiliar?

      - Seis dias, quanto muito - informou o grão-duque.

      - Um emissário corajoso e hábil conseguiu penetrar esta manhã na cidade e participar-me que avançavam a marchas forçadas cinquenta mil russos comandados pelo general Kisselef. Este general estava há dois dias nas alturas do Lena, em Kirensk, e tenho razões para crer que nem o frio nem a neve poderão opor-se à sua chegada. Cinquenta mil homens, bons soldados, apanhando os tártaros de flanco, hão-de forçosamente deixar-nos o campo livre de inimigos.

      - Tomarei a liberdade de acrescentar - disse o administrador municipal - que no dia em que Vossa Alteza ordenar uma surtida estaremos todos prontos a obedecer às suas ordens.

      - Muito bem - respondeu o grão-duque. - Esperemos que apareça com as suas forças o general Kisselef, e então chegará o momento de cairmos sobre os invasores.

      Depois voltando-se para o general Voranzoff.

      - Iremos amanhã ver - disse ele -, as fortificações que defendem os cais da cidade. O Angara começa a levar na corrente alguns pedaços de gelo, e, se chega a gelar de todo, aí ficam os tártaros habilitados a atravessá-lo impunemente.

      - Consente Vossa Alteza que faça uma observação?

      - Faça.

      - Tenho visto mais de uma vez descer a temperatura a trinta e a quarenta graus abaixo de zero, sem que o Angara gele completamente. Isto é devido talvez à velocidade da sua corrente. Se, pois, os tártaros não tiverem outro qualquer plano para atravessar o rio, posso garantir a Vossa Alteza que não entram por esse meio na nossa capital.

      O governador-geral confirmou com um gesto esta asserção.

      - É de muita vantagem semelhante circunstância. Contudo, sempre é bom que estejamos preparados para todas as eventualidades.

        E, voltando-se para o director da polícia, perguntou-lhe:

      - Não tem nenhuma participação a fazer-me?

      - Saiba Vossa Alteza que sim - volveu o director da polícia.

      - Estou encarregado de transmitir a Vossa Alteza uma súplica.

      - Da parte de quem?

      - Dos exilados residentes na cidade, que são, como Vossa Alteza não ignora, em número de quinhentos.

      Desde o começo da invasão que os exilados políticos, disseminados pela província, tinham tido ordem de recolher a Irkutsk. Obedecendo a esta determinação, todos eles se haviam apressado a entrar na cidade, deixando as diferentes localidades onde exerciam as suas profissões, uns de médicos, outros de professores, quer no liceu, quer na escola japonesa, quer na escola naval. O grão-duque mostrara, como o czar, confiança no seu patriotismo, e, dando-lhes armas, já tivera ocasião de ver que se não enganara a seu respeito.

      - E que pedem os exilados? - quis saber o grão-duque.

      - Pedem licença a Vossa Alteza - elucidou o director da polícia - para formar um corpo especial, que irá à frente dos nossos soldados quando se der a primeira surtida.

      - Concedido - apressou-se a dizer o grão-duque, não ocultando a sua comoção. - Esses exilados são russos, e ninguém poderá contestar-lhes o direito de quererem bater-se pela sua pátria.

      - Creio poder afirmar a Vossa Alteza - acrescentou o governador-geral -, que hão-de ser eles os nossos melhores soldados.

      - Mas precisam de um chefe - observou o grão-duque. - Quem é que há-de comandá-los?

      - Os exilados - acrescentou o director da polícia -, desejam que Vossa Alteza se digne confirmar a escolha que eles já fizeram de um dos seus.

      - É homem de confiança? É russo?

      - É das províncias bálticas e tem-se distinguido em muitas ocasiões.

      - O seu nome?

      - Wassili Orlik.

      Este exilado era o pai de Nadia.

      Como se sabe, Wassili Orlik exercia em Irkutsk a profissão de médico. Era tão instruído e bondoso como cheio de coragem e de patriotismo. O tempo que, depois do cerco, não consagrava aos doentes consumia-o em trabalhar na defesa da cidade. Tanto ele como os seus companheiros de exílio já tinham dado nas vistas do grão-duque pela bravura com que se batiam contra o inimigo. Em muitas das surtidas haviam pago com o sangue a sua dívida à Santa Rússia, santa na verdade e bem adorada por seus filhos! Wassili Orlik fora sempre dos primeiros entre todos. O seu nome já diferentes vezes aparecera citado nas ordens do dia, ele, porém, não reclamava graças nem concessões, e, quando os exilados pensaram em formar um corpo especial, Wassili Orlik ignorava até que tivessem a intenção de o escolher para seu chefe.

      Quando o director da polícia pronunciou o seu nome, o grão-duque respondeu que o conhecia.

      - Efectivamente - disse o general Voranzoff -, Wassili Orlik é um homem de coragem e de valor, e sempre teve grande influência sobre os outros exilados.

      - Há quanto tempo está ele em Irkutsk?

      - Há dois anos.

      - E o seu comportamento?

      - O seu comportamento - respondeu o director da polícia – é o de um homem que sabe respeitar as leis especiais a que está subordinado.

      - General, mande-me chamar já esse homem.

      As ordens do grão-duque foram logo cumpridas, e ainda não tinha decorrido meia hora quando o exilado lhe foi apresentado.

      Wassili Orlik era um homem de quarenta anos, alto, fisionomia severa e triste. Percebia-se que toda a sua vida se concentrava numa palavra apenas: lutar. E tinha deveras lutado e padecido. As suas feições faziam lembrar muito as de Nadia Orlik.

      A invasão tártara havia-o ferido a ele mais que a nenhum outro nos seus íntimos afectos, destruindo-lhe a última esperança que o animava neste desterro a oito mil verstas da terra natal. Por uma carta que Nadia lhe escrevera, tinha ele sabido da morte da mulher e da partida da filha, que alcançara do Governo a necessária autorização para vir residir na companhia de seu pai.

      Nadia devia ter saído de Riga a 10 de Julho. A invasão começara a 15 do mesmo mês. Se àquela data Nadia já houvesse passado a fronteira, o que teria sido feito dela, perdida entre os conflitos de uma guerra de bárbaros? Compreende-se facilmente que torturas não deviam afligir este infeliz pai, privado há tanto tempo de notícias de sua filha.

      Wassili Orlik, ao entrar na sala do conselho, inclinou-se diante do grão-duque e esperou que o interrogassem.

      - Wassili Orlik - começou o grão-duque -, sabes que os teus companheiros de exílio pretendem formar um corpo exclusivamente composto de gente sua? Sabes também que nesse corpo devem todos expor a vida com verdadeira e completa abnegação?

      - São esses os seus desejos - asseverou Wassili Orlik.

      - Sabes quem eles escolheram para os comandar?

      - Não sei, Alteza.

      - Foi a ti.

      - A mim?

      - Estás disposto a ser seu chefe? - perguntou-lhe o grão-duque.

      - Estarei, se o bem da Rússia assim o exigir.

      - Comandante Orlik, o teu exílio findou hoje.

      - Agradecido a Vossa Alteza, mas poderei eu comandar homens que ainda não mereceram a mesma graça?

      - Em Irkutsk já não há exilados.

      Era o perdão de todos os seus companheiros de exílio, agora seus companheiros de armas, que o irmão do czar acabava de conceder ao pai de Nadia!

      Wassili Orlik apertou com reconhecimento a mão que lhe estendeu o grão-duque e saiu.

      Este voltou-se então para os membros do conselho, dizendo:

      - O czar não se recusará decerto a aceitar a letra de perdão que hoje saquei sobre ele. Para defender a capital da Sibéria precisamos de heróis, e eu acabo de os criar.

      Era efectivamente um acto de boa política e de boa justiça esta graça tão generosamente concedida aos exilados. Entretanto, caíra de todo a noite. Pelas janelas do palácio viam-se brilhar as fogueiras do acampamento tártaro, inundando de pontos luminosos as alturas além do Angara. O rio continuava a levar diferentes pedaços de gelo, alguns dos quais se detinham nas estacas das pontes destruídas. Os que iam pelo meio da corrente deslizavam com extrema rapidez. Como bem tinha observado o presidente da câmara de comércio, era evidente que o Angara não chegaria a congelar em toda a sua superfície. O perigo, por consequência, de um assalto dos tártaros pelo lado dos cais não devia preocupar os defensores de Irkutsk.

      Acabavam de dar dez horas. O grão-duque ia despedir-se dos membros do conselho e retirar-se para os seus aposentos quando se percebeu um confuso tumulto da parte de fora do palácio.

      Quase ao mesmo tempo abriu-se uma das portas do salão e apareceu um ajudante de campo, que, dirigindo-se para o grão-duque, lhe comunicou:

      - Alteza, acaba de chegar a Irkutsk um correio do czar!

     

     Um correio do Czar

      Por um movimento simultâneo todos os membros do conselho se viraram para a porta do salão. Caso extraordinário, na verdade, a chegada de um correio do czar! Se alguns momentos antes se tivesse apresentado à discussão semelhante hipótese ninguém se atreveria a julgá-la admissível.

      O grão-duque voltou-se precipitadamente para o ajudante de campo.

      - Onde está esse correio? - perguntou ele.

      Ao mesmo tempo entrava um homem no salão. Parecia vir muito extenuado. Vestia como os aldeões siberianos, e o fato, muito usado, apresentava até alguns buracos feitos por bala. Cobria-lhe a cabeça um gorro moscovita. No rosto divisava-se-lhe uma profunda cicatriz. Este homem acabava forçosamente de percorrer uma grande extensão de caminho. As suas botas, meio rotas, Indicavam que parte da viagem devia ter-se realizado a pé.

      - Sua Alteza o grão-duque onde está? - perguntou ele ao entrar.

      O grão-duque aproximou-se, perguntando-lhe:

      - És correio do czar?

      - Saiba Vossa Alteza que sim.

      - Donde vens?

      - De Moscovo.

      - Quando saíste de Moscovo?

      - No dia 15 de Julho.

      - O teu nome?

      - Miguel Strogoff.

      Era Ivan Ogareff que tinha usurpado o nome e a categoria daquele a quem, depois de ver cego, deixara de considerar perigoso. Ninguém, a começar pelo próprio grão-duque, conhecia o traidor Ivan Ogareff, que não se dera mesmo ao trabalho de disfarçar as feições. Ninguém se atreveria a suspeitar da sua identidade, uma vez que trazia consigo documentos para prová-lo. Auxiliado por uma vontade inabalável, Ivan Ogareff vinha terminar pela traição e pelo assassínio o desfecho da sua obra maldita.

      Em seguida à resposta dada por Ivan Ogareff, o grão-duque fez um gesto que todos compreenderam, retirando-se Imediatamente.

      O suposto Miguel Strogoff e o grão-duque ficaram então a sós.

      O grão-duque demorou-se por alguns instantes a olhar com atenção para Ivan Ogareff. Depois perguntou-lhe:

      - Estavas em Moscovo a 15 de Julho?

      - Estava, meu senhor, e na noite de 14 para 15 tive a honra de ser recebido no Palácio Novo por Sua Majestade o czar.

      - Trazes algum ofício de Sua Majestade?

      - Ei-lo, meu senhor.

      E Ivan Ogareff entregou ao grão-duque o ofício imperial, reduzido a dimensões quase Imperceptíveis.

      - Entregaram-te este ofício no estado em que está? - perguntou o grão-duque.

      - Não, meu senhor. Fui eu que me vi obrigado a rasgar-lhe o sobrescrito para melhor o esconder dos soldados do emir.

      - Os tártaros prenderam-te?

      - Saiba Vossa Alteza que sim - respondeu Ivan Ogareff. - Resultou-me até alguma demora dessa prisão, porque, tendo saído de Moscovo a 15 de Julho, conforme indica a data do ofício, só pude chegar a Irkutsk no dia 2 de Outubro, com setenta e nove dias de viagem.

      O grão-duque pegou no ofício. Abriu-o e reconheceu a assinatura do czar, precedida da fórmula sacramental, escrita pelo seu próprio punho. Não podia, pois, restar a menor dúvida, quer sobre a autenticidade do ofício, quer sobre a identidade do correio. Se a fisionomia pouco atraente deste emissário havia primeiramente inspirado certa desconfiança ao grão-duque, essa desconfiança, que ainda assim ele não dera a conhecer, desaparecera de todo à vista da assinatura imperial.

      O grão-duque ficou por alguns momentos silencioso. Lia vagarosamente o ofício, como para se compenetrar do sentido das suas palavras.

        Depois, tornando a voltar-se para o correio, perguntou:

      - Conheces o conteúdo deste ofício?

      - Conheço, meu senhor. Lembrando-me de que talvez fosse obrigado a destruí-lo por causa dos tártaros, tomei a liberdade de o decorar, a fim de vir textualmente relatar a Vossa Alteza todas as suas indicações.

      - Sabes que este ofício nos impõe a obrigação de antes morrermos em Irkutsk do que entregarmos a cidade?

      - Sei, meu senhor.

      - Sabes também quais os movimentos de tropas que se combinaram para fazer frente à invasão?

      - Sei. Permita-me, porém, Vossa Alteza ponderar-lhe que esses movimentos não tiveram o resultado que deles se esperava.

      - Que queres dizer?

      - Quero dizer que Ichim, Omsk e Tomsk, para não falar senão das cidades mais importantes das duas Sibérias, foram sucessivamente ocupadas pelas colunas do emir Féofar-Cã.

      - Mas ao menos houve luta? Os nossos cossacos bateram-se contra os tártaros?

      - Repetidas vezes, meu senhor.

      - E tiveram de retirar?

      - Não dispunham de forças suficientes.

      - Onde se travaram esses combates em que os nossos ficaram mal?

      - Em Kolyvan, em Tomsk...

      Até aqui Ivan Ogareff só tinha dito a verdade, mas, com o fim de abalar a coragem dos sitiados, exagerando as vantagens obtidas pelas tropas do emir, acrescentou:

      - E ainda uma terceira vez em frente de Krasnoiarsk.

      - E esse último recontro? - perguntou o grão-duque, e mal podendo conter o seu desapontamento perante tão más novas.

      - Perdoe-me Vossa Alteza. Foi mais que um recontro, foi uma verdadeira batalha. Vinte mil russos das províncias da fronteira e do governo de Tobolsk vieram arrojar-se sobre cento e cinquenta mil tártaros, mas, apesar da sua muita coragem, foram completamente derrotados.

      - Mentes! - exclamou o grão-duque, que procurou, mas em vão, reprimir a sua cólera.

      - Afianço a Vossa Alteza que digo a verdade – volveu friamente Ivan Ogareff. - Assisti a essa batalha de Krasnoiarsk, e foi lá que eu caí prisioneiro.

      O grão-duque serenou e fez sentir a Ivan Ogareff que não duvidava da sua narração.

      - Em que dia se travou essa batalha? - perguntou o irmão do czar.

      - A 2 de Setembro.

      - E as tropas tártaras estarão agora todas concentradas em redor de Irkutsk?

      - Todas, meu senhor.

      - De quantos homens julgas tu que o emir dispõe?

      - De quatrocentos mil, pelo menos.

      Novo exagero de Ivan Ogareff relativamente às forças de Féofar-Cã, sempre com o fim de semear o desalento no meio dos sitiados.

      - E quando poderão chegar-nos alguns reforços das províncias de oeste? - perguntou o grão-duque.

      - Tarde, meu senhor, nunca antes do fim do Inverno.

      - Pois ouve-me bem, Miguel Strogoff. Ainda que de leste e de oeste nos não cheguem forças auxiliares, ainda que esses bárbaros se vão de dia para dia multiplicando assombrosamente, pela minha honra te juro que nunca eles entrarão nesta cidade.

      Os olhos traiçoeiros de Ivan Ogareff franziram-se ligeiramente. O malvado parecia querer dizer que o grão-duque se esquecia de contar com ele.

      O irmão do czar, dotado de um temperamento nervoso, não podia conter a impaciência que lhe causavam as desagradáveis informações. Percorria de um ao outro lado o salão, passando por diante de Ivan Ogareff,. que já olhava para ele como presa reservada à sua vingança. De vez em quando parava junto de uma janela, estendia a vista pelo acampamento dos tártaros, iluminado por centenas de fogueiras, e punha-se a escutar os murmúrios do rio, causados pelas massas de gelo que a corrente arrastava com rapidez.

      Passou-se um quarto de hora sem que o grão-duque fizesse novas perguntas. Depois tornou a pegar no ofício, fixando a atenção num dos seus períodos.

      - Sabes - disse ele - que se fala nesta carta de um traidor, de um tal Ivan Ogareff, contra quem me devo prevenir?

      - Sei, meu senhor.

      - Parece que esse traidor pretende entrar disfarçado em Irkutsk e captar a minha confiança, para, em determinada ocasião, entregar aos tártaros a cidade.

      - Sei tudo isso, e também sei que Ivan Ogareff jurou vingar-se pessoalmente de Vossa Alteza.

      - E porquê?

      - Corre que esse oficial foi condenado por Vossa Alteza a um castigo impróprio da sua patente.

      - Ah! Agora me recordo. Mas esse castigo foi merecido, e a prova aí está na impudência com que o miserável, esquecendo-se do que deve ao seu país, promove contra ele uma assoladora invasão de bárbaros.

      Ivan Ogareff, ]untando o cinismo à perfídia, deixou-se ficar impassível diante desta apóstrofe veemente.

      - Sua Majestade o czar - disse ele serenamente -, pretendia sobretudo que Vossa Alteza ficasse bem ao facto dos criminosos projectos de Ivan Ogareff.

      - Esta carta previne-me a esse respeito.

      - Sua Majestade o czar dignou-se avisar-me pessoalmente, dizendo que durante a minha viagem pela Sibéria desconfiasse sempre daquele homem.

      - E encontraste-o?

      - Encontrei, meu senhor, depois da batalha de Krasnoiarsk. Se ele imaginasse que eu era portador de uma carta para Vossa Alteza, onde se denunciavam os seus planos, estou certo de que me não teria poupado a vida.

      - Mandar-te-ia fuzilar, decerto - concordou o grão-duque. - Mas como foi que pudeste escapar-lhe?

      - Lançando-me ao Yenisei.

      - E como conseguiste penetrar em Irkutsk?

      - Quando esta tarde os defensores da cidade fizeram uma surtida para repelir um ataque dos tártaros. Confundi-me com eles por essa ocasião, e, dando-me a conhecer, trouxeram-me logo à presença de Vossa Alteza.

      - Está bem, Miguel Strogoff - respondeu o grão-duque. - Apraz-me dizer-te que mostraste muito zelo e dedicação no desempenho da tua difícil empresa. Não me hei-de esquecer de ti. Tens algum pedido a fazer-me?

      - Um só, meu senhor: o de me ser permitido bater-me ao lado de Vossa Alteza todas as vezes que os tártaros intentem atacar a cidade.

      - Concedido. De hoje em diante fazes parte do meu estado-maior. Ficarás a residir neste mesmo palácio.

      - E se Ivan Ogareff, segundo as intenções que se lhe atribuem, ousar apresentar-se a Vossa Alteza debaixo de um nome suposto?

      - Tanto pior para ele, uma vez que tu o conheces. Se tal fizer, prometo, à fé de quem sou, que pagará com a vida o seu hediondo crime de traidor. Podes retirar-te, Miguel Strogoff.

      Ivan Ogareff, não se esquecendo de que encarnava um capitão do corpo dos correios do czar, fez continência ao grão-duque e saiu logo em seguida.

      Ivan Ogareff acabava, pois, de jogar com sorte a sua última cartada. Acabava de ganhar a inteira e absoluta confiança do grão-duque. Poderia até abusar dela como e quando lhe conviesse. Ia habitar o mesmo palácio do Irmão do czar. Estava ao facto de todas as operações combinadas para a defesa. Era sua, pois, a situação. Ninguém o conhecia em Irkutsk, ninguém viria arrancar-lhe do rosto a máscara traiçoeira. Aproximava-se, portanto, o momento de pôr em acção o seu criminoso plano. Convinha não perder um minuto. Era necessário que a cidade caísse antes de estarem à vista os reforços russos que se esperavam do norte e de leste, e apenas restavam alguns dias. Logo que os tártaros se achassem senhores de Irkutsk seria difícil desalojá-los. Ainda mesmo que posteriormente obrigados a retirar, não sairiam da cidade sem a deixarem arrasada e sem que a cabeça do grão-duque rolasse aos pés de Féofar-Cã.

      Ivan Ogareff, estando autorizado a ver, estudar e examinar tudo, tratou logo no dia seguinte de ir visitar as muralhas. Os oficiais, os soldados e os civis recebiam-no por toda a parte com expressivas e cordiais demonstrações de simpatia. Este correio do czar era para eles uma espécie de laço que os prendia mais directamente à mãe-pátria. Ivan Ogareff narrava, com uma audácia que nunca se desmentia, as supostas peripécias da sua viagem. Depois, com extrema habilidade e sem que parecesse querer insistir no assunto, dava a situação por muito delicada, exagerando não só os triunfos obtidos pelos tártaros, como também as forças consideráveis de que eles dispunham. A dar-se-lhe crédito, os socorros que se esperavam, quando mesmo chegassem a aparecer, seriam insuficientes, e qualquer batalha que se ferisse debaixo dos muros de Irkutsk tornar-se-ia tão fatal para a Sibéria como as que se tinham travado em Kolyvan, em Tomsk e em Krasnoiarsk.

      Ivan Ogareff procurava não abusar destas pérfidas insinuações. Era sempre com uma certa reserva que ele se ia gradualmente inoculando no espírito dos sitiados. Fingia só responder quando era muito instado a isso, e ainda assim como que contrariado. Entretanto, sustentava que se devia defender a cidade até ao fim, acrescentando que mais valia fazê-la ir pelos ares do que entregá-la aos Inimigos da Santa Rússia.

      Porque o efeito de tais palavras seria pernicioso se porventura a guarnição de Irkutsk e os seus habitantes não fossem tão decididamente patriotas. De todos estes militares, de todos estes civis encerrados dentro de uma cidade colocada lá nos extremos confins da Rússia asiática, não havia um só que se atrevesse a pensar em capitulação. O desprezo do russo pelos tártaros não conhecia limites.

      Também não houve um só indivíduo que desconfiasse do odioso e repugnante papel que Ivan Ogareff estava a representar. Entre aquela população dedicada quem poderia imaginar que o pretendido correio do czar fosse um infame traidor.

      Por uma circunstância natural estabeleceram-se desde o princípio íntimas relações entre Ivan Ogareff e um dos mais valentes defensores de Irkutsk: Wassili Orlik.

      Sabe-se quais eram os receios e apreensões que afligiam este infeliz pai. Que seria feito de sua filha, Nadia Orlik, se tivesse partido da Rússia na data que a sua última carta, recebida de Riga, mencionava? Continuaria ela ainda a sua viagem através das províncias invadidas, ou achar-se-ia em poder dos tártaros? Wassili Orlik só encontrava lenitivo às suas angústias de pai quando podia bater-se contra o inimigo, o que não sucedia tantas vezes como ele desejava.

      Quando, pois, Wassili Orlik soube da inesperada aparição de um correio do czar, luziu-lhe a esperança de que este homem pudesse dar-lhe notícias de Nadia. Era uma convicção infundada, quimérica, mas, apesar disso, o desventurado pai agarrou-se a ela com afinco. Não tinha este correio sido prisioneiro dos invasores, como sua filha talvez também o fosse agora?

      Wassili Orlik foi procurar Ivan Ogareff, que aproveitou este ensejo para estabelecer relações mais íntimas com o comandante do novo corpo militar. Pensaria o renegado em aproveitar para si as vantagens de semelhante aproximação? Mediria o traidor todos os homens pela  sua desprezível craveira? Julgaria ele que um russo, ainda mesmo um exilado, pudesse ser bastante infame para vender o seu país?

      Seja como for, Ivan Ogareff apressou-se a responder com fingida solicitude às perguntas do pai de Nadia. Este, logo na manhã seguinte à da chegada do falso correio imperial, dirigiu-se ao palácio do governador. Chegado ali, contou a Ivan Ogareff quais as condições em que sua filha devia ter dado começo à viagem e os cuidados que lhe estava dando a falta de notícias acerca do seu destino, dado que ela devia ter-se posto a caminho através das províncias invadidas.

      Ivan Ogareff não conhecia a filha de Wassili Orlik, se bem que a tivesse encontrado na estação de Ichim em companhia de Miguel Strogoff. Nessa ocasião, porém, ele reparara tanto em Nadia como nos dois jornalistas que também ali estavam. Ivan Ogareff não podia, por conseguinte, dar a mínima indicação a este respeito.

      - Em que altura, pouco mais ou menos, supõe que sua filha iniciou a viagem? - perguntou Ivan Ogareff a Wassili Orlik.

      - Sensivelmente ao mesmo tempo que o senhor - respondeu o pai de Nadia.

      - Eu saí de Moscovo a 15 de Julho.

      - Também minha filha deve ter saído dessa cidade na mesma data. A sua carta assim mo afirmava.

      - Ela estava em Moscovo a 15 de Julho?

      - Estava, decerto.

      - Nesse caso... - respondeu Ivan Ogareff.

        Depois, retraindo-se:

      - Nada, não, enganei-me. Ia confundindo as datas -, acrescentou. - É muito de supor que sua filha chegasse a passar a fronteira, e nesse caso só lhe resta uma esperança: é que ela suspendesse a viagem ao ter notícia da invasão.

      Wassili Orlik deixou cair desanimadamente a cabeça. Conhecia a fundo o carácter de sua filha, e bem sabia que nada a faria mudar de resolução.

      Ivan Ogareff acabava de cometer gratuitamente e a sangue-frio um acto de verdadeira crueldade. Com uma só palavra poderia tranquilizar aquele pai aflito. Não quis fazê-lo. É certo que Nadia conseguiu transpor a fronteira da Sibéria da maneira anteriormente relatada. Mas se Ivan Ogareff tivesse apontado a data do edital que proibira aos russos de se ausentarem do império, edital cuja publicação ele presenciara em Nijni-Novgorod, já Wassili Orlik, confrontando essa data com a partida de sua filha, poderia concluir que ela não tinha tido tempo de sair da Rússia europeia, devendo por consequência achar-se livre das vicissitudes da invasão.

      Ivan Ogareff podia dizer essa palavra, chegou a querer dizê-la, mas deixou-se ficar calado, obedecendo aos seus instintos ferozes e à sua índole malvada, que não sabia comover-se com os sofrimentos alheios.

      Wassili Orlik retirou-se com o coração a estalar de dor. Esta demorada conversação acabava de lhe destruir a sua derradeira esperança.

      Durante os dois dias que se seguiram à chegada de Ivan Ogareff, a 4 de Outubro, o grão-duque mandou chamar repetidas vezes à sua presença o suposto Miguel Strogoff, fazendo-lhe repetir tudo o que ele ouvira dizer ao czar no seu gabinete do Palácio Novo. Ivan Ogareff, preparado para todas estas perguntas, respondia sempre sem hesitar. E, premeditadamente, ia insinuando que o Governo imperial tinha sido completamente surpreendido pela invasão; que o movimento fora preparado com o maior segredo; que os tártaros estavam senhores da linha do Obi quando chegaram a Moscovo as primeiras notícias; finalmente, que nas províncias russas ainda não estavam prontas a marchar as forças que deveriam repelir os invasores.

      Depois disto, Ivan Ogareff, inteiramente senhor de andar por toda a parte, começou a estudar a situação de Irkutsk, o estado das suas obras de defesa e os seus pontos fracos, a fim de poder tirar partido deste exame, dado o caso de que, por qualquer circunstância extraordinária, lhe não fosse fácil, pôr em curso o seu plano de traição. A porta de Bolchaia, por onde ele queria dar entrada aos tártaros, é que lhe mereceu a melhor parte das suas atenções.

      Duas vezes foi de noite visitar as defesas desta porta, andando por ali à vontade, sem receio de se expor aos tiros dos sitiantes. E, contudo, os postos avançados dos tártaros ficavam a menos de uma versta das muralhas. Ele bem sabia que não o alvejariam e, de uma das vezes, viu uma sombra que se aproximava furtivamente dos aterros.

      Era Sangarra, que não se importava de arriscar a vida para ver se podia assim comunicar com Ivan Ogareff.

      De resto, havia dois dias que os sitiados desfrutavam de uma tranquilidade a que os tártaros os não tinham habituado desde o começo do cerco.

      Esta suspensão de hostilidades era obra de Ivan Ogareff. Antes de entrar em Irkutsk tinha ele determinado que se evitassem, até nova ordem, todas as tentativas de assalto á cidade. A artilharia do emir conservava-se calada. O traidor esperava, por meio deste ardil, que a vigilância dos sitiados se deixasse abrandar. Entretanto, nos postos avançados de Féofar-Cã estavam numerosas forças preparadas para, ao primeiro sinal, se precipitarem sobre a porta de Bolchaia logo que Ivan Ogareff lhes desse ordem para o fazerem.

      Aproximava-se o momento. Convinha até precipitá-lo antes que chegassem as tropas russas do general Kisselef.

      Ivan Ogareff tomou, pois, uma resolução, e do alto das muralhas caiu nessa noite um bilhete, que Sangarra se deu pressa em apanhar.

      Era para o dia seguinte que ele marcava a entrega da cidade.

      Às duas horas da noite de 5 para 6 de Outubro deviam entrar os tártaros em Irkutsk.

     

     O prémio da traição

      O plano de Ivan Ogareff fora tão bem combinado que, salvo qualquer obstáculo imprevisto, não podia deixar de produzir os resultados que ele desejava. Era indispensável que a porta de Bolchaia estivesse desguarnecida quando se tratasse de a entregar aos tártaros. Para consegui-lo convinha, pois, distrair as atenções dos sitiados. O traidor tinha nesse sentido disposto as coisas, a fim de se dar um ataque simulado.

      Esse ataque devia simultaneamente partir da margem direita do rio sobre a parte norte e sul dos subúrbios da cidade. E, ao mesmo tempo que a acção se empenhasse com vigor por esse lado, da margem esquerda fingir-se-ia que se tentava atravessar o rio em frente da cidade. Considerando isto, era de supor que os sitiados, para acudirem aos pontos ameaçados, desamparassem a porta de Bolchaia, situada a leste de Irkutsk. De mais a mais, os trabalhos de aproches contra esta porta pareciam ter sido abandonados pelos tártaros.

      Estava-se a 5 de Outubro. Antes de decorridas vinte e quatro horas deveria a capital da Sibéria oriental achar-se nas mãos do emir, e o grão-duque, em pessoa, em poder do traidor.

      Por todo este dia notou-se extraordinária animação no vasto acampamento inimigo. Das janelas do palácio do governador e das casas na margem direita viam-se distintamente os preparativos importantes que se faziam na margem oposta. Afluíam de hora a hora corpos de exército ao acampamento, parecendo que vinham reforçar as tropas sitiantes. Eram os preparativos ostensivamente feitos para o ataque já combinado entre o emir e Ivan Ogareff.

      O traidor tratou por sua parte de insinuar ao grão-duque as disposições em que estavam os tártaros de se lançarem ao assalto naquele dia. Disse que tivera conhecimento dessas disposições antes de entrar em Irkutsk, ajuntando que Féofar-Cã pretendia atacar a cidade ao mesmo tempo tanto pelo norte como pelo sul. Concluiu por aconselhar que se reforçassem aqueles dois pontos mais ameaçados.

      Estas recomendações coincidiam de tal arte com os movimentos dos tártaros que o grão-duque não pôde deixar de tomar em consideração o que lhe dizia o traidor. Reuniu-se, pois, no palácio do governador um conselho de guerra, que adoptou logo todas as medidas necessárias para concentrar a defesa não só junto dos cais, em frente do acampamento inimigo, como também dos lados norte e sul da cidade, onde os aterros se apoiavam sobre o rio.

      Era o que pretendia Ivan Ogareff. Ele bem sabia que a porta de Bolchaia não ficaria completamente abandonada, mas contava que o número dos seus defensores fosse muito diminuto. De resto, Ivan Ogareff tencionava imprimir ao ataque uma tal feição que o grão-duque ver-se-ia obrigado a opor-lhe todas as suas forças disponíveis.

      É que Ivan Ogareff tinha imaginado um expediente de gravíssimo alcance para ajudar eficazmente a realização dos seus projectos. Ainda mesmo que Irkutsk não fosse atacada por três pontos distantes da porta de Bolchaia, bastaria esse expediente para atrair todos os sitiados ao local onde o traidor queria que eles precisamente se juntassem. Ivan Ogareff premeditava a consumação de uma espantosa catástrofe.

      Tudo se dispunha, portanto, para que a porta de Bolchaia caísse em poder dos tártaros, ocultamente postados nos espessos arvoredos das florestas existentes do lado oriental da cidade.

      Durante o dia, a população e a guarnição de Irkutsk não descansaram um instante. Tinham-se tomado todas as medidas que reclamava um ataque dirigido contra lugares até ali respeitados. O grão-duque e o general Voranzoff andaram a inspeccionar os diferentes postos, novamente reforçados por sua determinação. O regimento: comandado por Wassili Orlik ocupava o norte da cidade, mas recebera ordem expressa de acudir também aonde  o perigo fosse maior. A margem direita do Angara achava-se defendida pela pouca artilharia de que se pudera  dispor. Graças às medidas tomadas tão a tempo, havia esperanças de que o assalto não se tornasse funesto para a cidade. Era até de supor que os tártaros, momentaneamente desanimados pelo mau êxito do seu ataque, deixassem para mais tarde qualquer nova tentativa. Entretanto, podiam chegar as forças que o grão-duque aguardava. Seguia-se, pois, que a salvação ou perda de Irkutsk dependiam apenas de uma simples questão de tempo.

      Neste dia, o Sol, que nascera às seis horas e vinte minutos da manhã, chegava ao seu ocaso às seis e quarenta minutos da tarde, gastando mais de doze horas a traçar o seu arco diurno sobre o horizonte. O crepúsculo deveria ainda lutar por duas horas contra as sombras da noite. Depois encher-se-ia de espessas trevas o espaço, porque nem a Lua, em conjunção, derramaria luz sobre a Terra, nem as pesadas nuvens que cobriam o céu deixariam brilhar as estrelas.

      Esta profunda escuridão favorecia mais directamente os projectos de Ivan Ogareff.

      Havia já muitos dias que os rigores do Inverno siberiano começavam a preludiar-se por um frio intensíssimo. Parecia, porém, que o frio aumentara agora mais. Os soldados, distribuídos pela margem direita do Angara, não tinham acendido fogueiras, para melhor se furtarem às vistas do inimigo. Calcule-se como não seria para eles intolerável este abaixamento de temperatura. A poucos passos de distância corriam pelo rio abaixo diferentes massas de gelo. Durante o dia já se tinham visto deslizar com bastante rapidez muitas dessas grandes massas, formando grupos compactos. Esta circunstância fora logo tida como auspiciosa pelo grão-duque e pelos seus oficiais. Pensavam eles que, se efectivamente os gelos continuassem assim a precipitar-se uns atrás dos outros, ficaria prejudicado o ataque do inimigo contra os cais da cidade, em consequência de não lhe ser possível o emprego de barcos nem de jangadas para atravessar o rio. Quanto a servirem-se os tártaros dos próprios gelos, a fim de efectuarem a passagem, também não parecia muito aceitável semelhante suposição porque esses gelos, mesmo quando o frio chegasse a reuni-los, nunca ofereceriam bastante consistência para sobre eles poder transitar uma coluna de assalto.

      Parece que Ivan Ogareff deveria lastimar que os defensores de Irkutsk formassem tais conjecturas, pelo simples facto de lhes poderem ser favoráveis. Mas não, o traidor nem se inquietava nem se aplaudia por esse motivo. Ele bem sabia que os tártaros não tinham a menor tenção de atravessar o Angara e que deste lado o seu ataque seria apenas um simulacro.

      Todavia, o rio apresentou-se pelas onze horas da noite debaixo de um novo aspecto, com grande admiração dos sitiados e agora em seu detrimento. A passagem, até aqui inacessível, tornou-se fácil de repente. O leito do rio ficou repentinamente desembaraçado. As massas de gelo cessaram de deslizar. Apenas cinco ou seis ocupavam então o espaço compreendido entre as duas margens, e essas mesmo sem apresentarem já a estrutura das que se formam em condições normais e sob a influência de um frio regular. Eram unicamente pedaços de gelo que pareciam ter-se desprendido de algum ice-field, com as faces perfeitamente lisas, como se fossem cortadas de um só golpe.

      Os oficiais russos que deram por esta mudança trataram logo de a comunicar ao grão-duque. A explicação mais aceitável era que os gelos se tivessem acumulado nalgum ponto mais estreito do Angara, formando uma espécie de barreira.

      Sabe-se que assim tinha acontecido.

      A passagem do rio estava, pois, aberta aos sitiantes.

      Era indispensável que os russos empregassem agora, mais do que nunca, toda a sua atenção.

      Até à meia-noite correu tudo regularmente. Da parte exterior da porta de Bolchaia, sossego completo. Nem uma só fogueira nas cerradas florestas que deste lado se confundiam no horizonte com as nuvens. No acampamento dos tártaros, em frente da cidade, havia pronunciada agitação, que a luz dos archotes e fogueiras denunciava.

      À distância de uma versta para norte e para sul de Irkutsk, nos pontos onde a escarpa se apoiava sobre a margem do rio, um sussurro vago e prolongado mostrava que os tártaros estavam ali próximo, à espera de algum sinal para romper o ataque.

      Passou assim uma hora.

      Iam soar duas horas na torre da catedral, e nenhum movimento viera ainda revelar da parte dos sitiantes as suas intenções hostis.

      O grão-duque e o respectivo estado-maior começavam já a supor que se tivessem enganado, chegando até a duvidar que estivesse realmente nos planos dos tártaros a ideia de atacarem a cidade. As noites precedentes haviam sido muito mais trabalhosas, embora se não notassem os preparativos de um assalto. Pelo menos, agora não havia tiroteio na direcção dos postos avançados, nem se viam os projécteis cortando sucessivamente os ares.

      O grão-duque, o general Voranzoff e os ajudantes de campo continuavam, contudo, em observação, prestes a transmitir no mesmo instante as ordens que as circunstâncias reclamassem.

      Sabe-se que Ivan Ogareff estava alojado no palácio do governador. O seu quarto ficava numa grande sala, situada no rés-do-chão, cujas janelas davam sobre um terraço lateral. Deste terraço avistava-se o rio Angara, que lhe corria mesmo por baixo.

      O quarto de Ivan Ogareff estava completamente às escuras.

      O traidor, de pé, junto de uma janela, aguardava que chegasse a hora tão desejada. Necessariamente o sinal deveria partir dele.

      Dado este, a sua intenção era sair do palácio e dirigir-se à porta de Bolchaia, aproveitando-se, para a abrir aos tártaros, da confusão que se deveria apoderar dos defensores de Irkutsk, atacados por diferentes pontos.

      Ivan Ogareff esperava, pois, no meio das trevas, semelhante à fera que espreita o momento de se lançar sobre a presa. Entretanto, alguns minutos antes das duas horas, o grão-duque mandou chamar à sua presença o correio do czar, Miguel Strogoff, pois era este o único nome que o irmão do imperador podia dar a Ivan Ogareff.

      Imediatamente partiu um ajudante de campo em busca dele. Ao chegar à porta do seu quarto, achou-a fechada. O ajudante de campo bateu.

      Ivan Ogareff, imóvel junto da janela e completamente invisível pela escuridão, absteve-se de responder.

      O ajudante voltou e disse ao grão-duque que o correio do czar não se achava no palácio.

      Nisto deram duas horas. Era o momento aprazado para o ataque simulado dos tártaros.

      Ivan Ogareff abriu a janela do quarto e foi colocar-se no ângulo norte do terraço.

      Por baixo deste sentia-se o rumor das águas agitadas do Angara ao quebrarem-se de encontro às arestas dos pilares.

      Ivan Ogareff tirou da algibeira uma porção de mecha, inflamou-a cautelosamente e acendeu nela depois um morrão impregnado de pólvora, que atirou imediatamente ao rio.

      Fora por indicação de Ivan Ogareff que se tinham arrojado para o Angara aquelas torrentes de óleo mineral! Entre a povoação de Poshkavsk e a cidade de Irkutsk, na margem direita do rio, havia grandes nascentes de nafta. Ivan Ogareff resolveu lançar mão deste meio terrível para atear um incêndio em Irkutsk. Apoderou-se, portanto, dos grandes depósitos que continham este líquido combustível. Bastou mandar arrombar uma das paredes daqueles reservatórios para que a nafta se precipitasse em abundante quantidade no rio.

      Era esse o facto que tinha sucedido naquela mesma noite, algumas horas antes; e eis a razão porque a jangada onde iam o verdadeiro correio do czar, a filha de Wassili Orlik e os outros fugitivos flutuava sobre uma camada de óleo mineral. Das fendas abertas nos depósitos, que continham milhares de metros cúbicos de nafta, correu impetuosamente este líquido, o qual, seguindo as inclinações naturais do terreno, se espalhou dentro em pouco pela superfície do Angara, onde ficou sobrenadando.

      Era assim que Ivan Ogareff entendia a guerra. Aliado dos tártaros, mostrava-se tão cruel como eles, e de mais a mais contra patrícios seus!

      O morrão caíra sobre as águas do Angara. No mesmo instante, como se a corrente fosse composta de álcool, incendiou-se o rio todo com uma rapidez espantosa. De uma para a outra margem começaram a correr espirais de chamas azuladas, lançando imensos vapores fuliginosos, que se estorciam no ar. As raras e diminutas massas de gelo que deslizavam com a corrente, surpreendidas por este líquido inflamado, derretiam-se como cera arremessada à boca de uma fornalha, e a água que se evaporava delas ia-se espalhando em torno com silvos estrondosos.

      Ao mesmo tempo sentia-se romper intensa fuzilaria ao norte e ao sul da cidade. As baterias do acampamento do Angara atroavam também o espaço com as repetidas e formidáveis detonações das suas peças. Milhares de tártaros se precipitaram ao assalto das primeiras muralhas. As casas levantadas à beira do rio, todas construídas de madeira, começaram a arder por diversos lados. Um imenso clarão dissipava agora as sombras da noite.

      - Chegou enfim o momento! - exclamou Ivan Ogareff com feroz alegria.

      E tinha motivos para se alegrar este homem sinistro! Era terrível o ataque por ele imaginado. Os sitiados viram-se colhidos entre a escalada dos tártaros e a devastação do incêndio. Os sinos tocavam a rebate, e não houve um só homem válido na cidade que não corresse, quer a defender os pontos atacados, quer a tentar debelar o fogo, que ameaçava comunicar-se à cidade inteira.

      A porta de Bolchaia estava quase abandonada. Apenas lhe tinham deixado alguns defensores. E até por indicação do traidor, e para que o facto da entrega daquela porta se pudesse atribuir depois a ódios políticos e não às suas pérfidas maquinações, os poucos defensores que tinham ali ficado pertenciam ao novo regimento dos exilados.

      Ivan Ogareff, depois de consumada a sua obra maldita, retirou-se da janela e entrou para o quarto, brilhantemente iluminado agora pelas chamas do Angara, que já lambiam a balaustrada dos terraços do palácio. Em seguida preparou-se para sair.

      Mal, porém, tinha aberto a porta, eis que se lhe precipitou no quarto uma mulher com os cabelos em desalinho e as roupas ensopadas.

      - Sangarra! - exclamou Ivan Ogareff no primeiro movimento de surpresa, supondo que aquela mulher fosse a sua fiel tzigana.

      Não era, porém, Sangarra que acabava de entrar. Era Nadia.

      Quando a filha de Wassili Orlik, ainda sobre o bloco de gelo, soltara um grito de terror ao ver o incêndio alastrar-se por toda a extensão do rio, Miguel Strogoff segurando-a nos braços, mergulhara logo com ela até grande profundidade, a fim de pedir aos recessos do Angara um abrigo momentâneo contra aquelas chamas impetuosas.

      Sabe-se que a massa de gelo em que vinham ambos distava apenas meia versta dos cais de Irkutsk.

      Depois de ter nadado debaixo de água, Miguel Strogoff conseguira aproximar-se, com a sua companheira, de um dos cais.

      O correio do czar terminara a sua viagem. Achava-se finalmente em Irkutsk.

      - Ao palácio do governador! - dissera ele a Nadia.

      Alguns minutos depois chegavam ambos à entrada do majestoso edifício, cujos pilares as chamas do Angara já lambiam, sem que todavia o fogo se pudesse comunicar aos respectivos aposentos.

      Todas as casas espalhadas pela praia ardiam. O incêndio nada poupava.

      Miguel Strogoff e Nadia entraram sem dificuldade neste palácio, aberto a toda a gente. No meio da confusão geral ninguém deu por eles, apesar de trazerem as roupas a escorrer.

      A sala principal do rés-do-chão estava ocupada por grande número de oficiais e de soldados, uns esperando as ordens dos seus chefes, outros preparados para executá-las de pronto.

      Sucedeu que no meio do imenso tumulto que ali reinava Miguel Strogoff e Nadia se viram de repente separados.

      Nadia, aflita e assustada, começou a correr pelas salas daquele pavimento, gritando pelo seu companheiro e pedindo que a levassem à presença do grão-duque.

      Ao mesmo tempo abria-se diante dela a porta de um quarto que estava inundado de luz. Nadia entrou e achou-se, sem saber como, frente a frente com o homem que vira primeiro em Ichim, que vira depois em Tomsk, frente a frente com o miserável que se dispunha naquele mesmo instante a ir franquear as portas da cidade de Irkutsk aos bárbaros de Féofar-Cã!

      - Ivan Ogareff! - exclamou Nadia.

      O infame estremeceu ao ouvir pronunciar o seu verdadeiro nome. Se naquele momento se soubesse quem ele era realmente, ficariam de todo malogrados os seus planos. Havia só um meio de evitar esse contratempo: matar a pessoa que tivera a imprudência de o reconhecer.

      Ivan Ogareff precipitou-se sobre Nadia, mas a filha de Wassili Orlik, puxando pela sua faca e armando-se com ela, encostou-se à parede, muito disposta a defender-se com energia.

      - Ivan Ogareff! - continuou a gritar Nadia, convencida de que ao pronunciar este nome odiado não deixaria alguém de vir em seu auxílio.

      - Cala-te, víbora! - intimou rancorosamente o traidor, procurando aproximar-se de Nadia.

      - Ivan Ogareff! - gritou pela terceira vez a corajosa Nadia, parecendo que o ódio centuplicava a força vibrante da sua voz.

      Cego de furor, Ivan Ogareff tirou da cintura um punhal, correu sobre Nadia, obrigando esta a recuar até um canto do quarto.

      A denodada rapariga estava irremediavelmente perdida. O miserável Ia cravar-lhe no peito a sua arma traiçoeira quando, empurrado violentamente por um braço de ferro, foi rolar no chão a alguns passos de distância.

      - Miguel! Miguel! - exclamou Nadia, profundamente comovida.

      Miguel Strogoff tinha ouvido os gritos de Nadia.  Guiado pela sua voz, caminhara até ao quarto de Ivan Ogareff, entrando pela porta, que ainda se conservava aberta.

      - Não tenhas medo - recomendou Miguel Strogoff, colocando-se entre Nadia e Ivan Ogareff.

      - Acautela-te, Miguel - exclamou Nadia. - Lembra-te de que o infame está armado e, sobretudo, que vê bem!

      Ivan Ogareff levantara-se entretanto e, reconhecendo no recém-chegado a sua vítima de Tomsk, não hesitou em se lançar afoitamente sobre ele.

      O cego, porém, agarrando com mão vigorosa o braço do traidor, afastou-lhe o punhal e fê-lo de novo beijar o sobrado.

      Ivan Ogareff, pálido de raiva e de vergonha, lembrou-se de que trazia consigo uma espada. Desembainhou-a  e voltou de novo à carga.

      Era um cego que tinha diante de si! Como poderia intimidá-lo uma luta em que as vantagens estavam todas do seu lado?

      Nadia, temendo pela sorte do seu companheiro neste combate desigual, acercou-se da porta, bradando por socorro.

      - Fecha essa porta, Nadia! - ordenou Miguel Strogoff. – Não chames por ninguém, quero estar só. O correio do czar vai finalmente ajustar as suas contas e as de Marfa Strogoff com o miserável caluniador que pretendeu açoitar a mãe e perder o filho. Anda, vilão maldito!... Avança para mim se ousas!...

      Ivan Ogareff, que já se erguera do chão, conservava-se numa postura de tigre, sem proferir uma única palavra. O próprio ruído dos seus passos, o próprio som da sua respiração quisera ele que não chegassem aos ouvidos daquele adversário sem vista. O seu empenho era feri-lo de um só golpe, sem que o cego se apercebesse da sua aproximação. Não era um duelo que o Infame buscava, era apenas um assassínio. O renegado juntava à traição a cobardia. Não contente por usurpar o nome de Miguel Strogoff, queria também roubar-lhe a vida.

      Nadia, inquieta por um lado, esperançada por outro, contemplava com uma espécie de admiração esta cena terrível. Dir-se-ia que se lhe comunicava também a serena placidez de Miguel Strogoff. Este só tinha por arma uma faca siberiana, e, circunstância agravante, não via o seu inimigo, que empunhava uma espada. Mas em que se fiaria ele para assim afrontar a sangue-frio um perigo tão iminente? Que auxílio esperaria do Céu contra as ciladas de um adversário tão superior? Porquê tanta impassibilidade e sossego diante daquele homem, que decerto ia matá-lo?

      Ivan Ogareff espiava com visível ansiedade a tranquila posição de Miguel Strogoff. Aquela confiança do cego actuava sobre ele, dominando-o. Debalde apelava para a sua razão, dizendo a si próprio que todas as vantagens da luta seriam por ele. Gelava-o a imobilidade de Miguel Strogoff! Entretanto, recobrou ânimo, buscando calcular de antemão o sítio em que devia ferir a sua vítima. Achou-o por fim. Quem seria capaz de lhe suspender o braço?

      De repente, deu um salto atirando uma estocada, dirigida ao meio do peito de Miguel Strogoff.

      O cego afastou o ferro apenas com um imperceptível movimento da sua faca.

      Miguel Strogoff nem sequer fora ligeiramente ferido, e parecia esperar com assombrosa serenidade a repetição do ataque.

      Do rosto de Ivan Ogareff corria um abundante suor frio. Recuou um passo, depois carregou de novo. Mas, como da primeira vez, foi também repelido este ataque. A faca tornou a rebater com uma ligeira parada o bote vigoroso da lâmina do traidor.

      Ivan Ogareff, espumando de raiva e de furor à vista de tanta impassibilidade, fitou o cego com espanto. Os olhos de Miguel Strogoff, que estavam prodigiosamente abertos, pareciam ler o que se passava no fundo daquela alma vil. Estes olhos que não viam, que não podiam ver, exerciam sobre o traidor uma espécie de aterradora fascinação.

      De repente, Ivan Ogareff soltou um rugido de pavor! Acabava de lhe atravessar o espírito uma súbita revelação.

      - Este homem não está cego! - exclamou Ivan Ogareff. – Este homem vê...

      E, como a fera perseguida que busca refugiar-se no seu covil, assim o traidor começou a recuar aterradíssimo até ao fundo da sala.

      - É verdade que não estou cego, infame, é verdade que vejo, covarde! - retorquiu Miguel Strogoff. - Vejo a cicatriz com que te marquei na face e vejo também o lugar onde vou ferir-te, nojento réptil. Em guarda! Defende-te, se não queres que te mate como um canalha! É um duelo que te concede por favor aquele a quem a tua língua malvada acusou de espião russo! Para a espada de um traidor é mais que suficiente a minha faca.

      - Deus misericordioso! É possível que Miguel não esteja cego! - exclamava Nadia entre lágrimas.

      Ivan Ogareff percebeu que estava perdido. Entretanto, por um esforço da sua vontade, recuperou novos alentos e cresceu sobre o seu impassível adversário.

      Cruzaram-se os ferros, mas ao embate da faca de Miguel Strogoff, brandida por aquela mão possante de caçador siberiano, a espada de Ivan Ogareff partiu-se em dois bocados, e o miserável, ferido mortalmente no peito, baqueou por terra, proferindo uma derradeira blasfémia.

      A porta do quarto, empurrada pela parte de fora, abriu-se naquele momento. No limiar apareceu o grão-duque, seguido por alguns oficiais.

      O grão-duque avançou e reconheceu no cadáver que jazia no chão o homem que até ali fora para ele o correio do czar. Depois, levantando a voz em tom ameaçador, perguntou:

      - Quem matou este homem?

      - Eu - apressou-se a responder Miguel Strogoff.

      Um dos oficiais apontou o revólver à cabeça de Miguel Strogoff, prestes a desfechar contra ele.

      - Como te chamas? - perguntou o grão-duque, suspendendo com um gesto o movimento do seu ajudante de campo.

      - Pergunte-me antes Vossa Alteza como se chamava o homem que está morto a seus pés - respondeu gravemente Miguel Strogoff.

      - Sei quem ele era: um servidor leal de meu irmão. Era o correio do czar.

      - Este homem, perdoe-me Vossa Alteza, não era um correio do czar. Este homem era o ex-coronel Ivan Ogareff.

      - Ivan Ogareff! - exclamou o grão-duque.

      - Ivan, o traidor, Ivan, o infame - acrescentou Miguel Strogoff.

      - Mas tu, tu, quem és?

      - Sou Miguel Strogoff.

     

     Conclusão

      Miguel Strogoff não estava nem nunca tinha estado cego. Um fenómeno puramente humano, físico e moral ao mesmo tempo, havia neutralizado o efeito da lâmina candente que o verdugo de Féofar-Cã lhe passara por diante dos olhos.

      Lembram-se ainda todos que Marfa Strogoff assistira ao suplício de seu filho, estendendo-lhe os braços num paroxismo de dor. Miguel Strogoff olhava para ela, como um filho pode olhar para a mãe sabendo que nunca mais tornará a vê-la neste mundo. As lágrimas que lhe subiram em ondas do coração até aos olhos, e que ele, no seu orgulho de homem forte, mal podia disfarçar, foram-se acumulando sob as pálpebras. A estas lágrimas, que se volatilizaram depois em redor da córnea, deveu Miguel Strogoff não ficar cego. As camadas de vapor que elas produziram, interpondo-se entre a lâmina em brasa e as pupilas do supliciado, aniquilaram completamente a terrível acção do calor. Dera-se nesta ocasião um facto semelhante ao que se observa quando um operário fundidor, depois de ter metido a mão em água, pode impunemente lançar-lhe por cima um jacto de metal em fusão.

      Miguel Strogoff compreendeu logo o perigo que correria se revelasse a alguém o seu segredo. Viu também o partido que lhe seria fácil tirar daquela situação para atingir os seus fins. Se os tártaros o deixavam livre, era porque o supunham cego. Convinha-lhe, pois, ser cego, mas cego para todos, até mesmo para Nadia,, convinha-lhe, finalmente, que nem um gesto sequer pudesse atraiçoá-lo nesta nova fase que tomava a sua viagem. Para convencer todos da sua cegueira deveria arriscar a própria vida, e sabe-se com que abnegação ele se expôs a esta última prova.

      Marfa Strogoff era a única pessoa que sabia a verdade. Seu filho prevenira-a no próprio local do suplício, quando, depois de o deixarem só com ela, se abaixara para a cobrir de beijos.

      Compreende-se agora que no mesmo momento em que Ivan Ogareff, por um requinte de crueldade, colocou o ofício imperial diante dos olhos do suposto cego, o correio do czar pudesse perfeitamente ler o conteúdo daquele documento, onde se desmascaravam os odiosos tramas do traidor. Daí proveio a grande energia que Miguel Strogoff desenvolveu na segunda parte da sua viagem. Daí o seu invencível empenho em chegar a Irkutsk para dar conta verbal da missão que lhe fora confiada. Ele bem sabia que se procurava entrar na cidade por traição. Ele bem sabia que a vida do grão-duque estava em perigo. A salvação da Sibéria e do irmão do czar dependia exclusivamente da sua dedicada perseverança.

      Todas estas peripécias foram em poucas palavras relatadas ao grão-duque, acentuando Miguel Strogoff com visível comoção a grande parte que nelas tinha tido a sua companheira.

      - Quem é esta menina? - Perguntou o grão-duque.

      - É a filha do exilado Wassili Orlik - respondeu Miguel Strogoff.

      - A filha do comandante Orlik não pode ser a filha de um exilado - retorquiu o grão-duque. - Em Irkutsk já não há exilados.

      Nadia, menos forte na felicidade do que o fora na desventura, deixou-se cair aos pés do grão-duque. Este levantou-a com uma das mãos e estendeu a outra a Miguel Strogoff.

      Pouco tempo depois achava-se Nadia nos braços de seu pai.

      Miguel Strogoff, Nadia e Wassili Orlik estavam, finalmente, reunidos. Este encontro era para todos eles a suprema compensação de tantas amarguras anteriores.

      Entretanto, os sitiados haviam repelido os tártaros no seu duplo assalto contra a cidade. Wassili Orlik, à frente de um pequeno número de exilados fizera retirar com grandes perdas, as forças que se tinham apresentado do lado oriental, confiadas na promessa de Ivan Ogareff, que lhes deveria abrir a porta de Bolchaia. Wassili Orlik, por um instintivo pressentimento, não se afastara daquele ponto nem um momento sequer.

      Ao passo que os tártaros eram derrotados em bloco, conseguiam os habitantes de Irkutsk dominar o incêndio. As chamas provocadas pela nafta inflamada na superfície do rio concentraram os seus efeitos destruidores sobre as habitações da praia, poupando os bairros da cidade.

      Antes de amanhecer já as tropas de Féofar-Cã se tinham retirado para novas posições, deixando grande número de mortos espalhados pelo campo.

      Entre esses mortos achava-se o cadáver da tzigana Sangarra, que tinha inutilmente procurado aproximar-se de Ivan Ogareff.

      Durante dois dias os sitiantes não tentaram nenhum novo assalto. A morte de Ivan Ogareff causara-lhes profundo desalento. Este homem era a alma da invasão, e só ele, por meio dos seus planos antecipadamente preparados, conseguira arrastar os cãs e os seus soldados à conquista da Rússia asiática.

      Todavia, nem os sitiados afrouxaram de vigilância nem os tártaros deixaram de continuar o cerco.

      A 8 de Outubro, logo que rompeu a manhã, sentiu-se o troar do canhão sobre as alturas que dominam Irkutsk.

      Era o exército auxiliar, comandado pelo general Kisselef, que anunciava ao grão-duque a sua chegada.

      Em vista destes reforços, Féofar-Cã deu ordem de retirada às suas colunas. O emir não quis correr o risco de uma batalha debaixo dos muros de Irkutsk.

      A capital da Sibéria oriental ia estar livre finalmente!

      Com os primeiros soldados russos entraram também em Irkutsk dois amigos de Miguel Strogoff. Eram os inseparáveis Alcide Jolivet e Harry Blount. Antes que as chamas da nafta chegassem a envolver a jangada, ambos tinham saltado para cima de um banco de gelo, conseguindo assim aproximar-se da margem direita do Angara, seguidos por todos os outros fugitivos. A maneira como Alcide Jolivet conseguira escapar de morrer queimado com os seus companheiros tinha-lhe sugerido a seguinte nota no seu livro de lembranças:

      «Por um triz não conheci a mesma sorte duma ostra em cima das brasas.»

      Foi grande a alegria que tiveram os dois correspondentes quando tornaram a ver Miguel Strogoff e Nadia, sãos e salvos, sobretudo quando souberam que o seu brioso e valente companheiro de viagem não estava cego. O que levou Harry Blount a registar esta observação no seu bloco-notas:

      «Ferro em brasa pode não ser bastante para destruir a sensibilidade do nervo óptico. Ponto a discutir.»

      Depois, os dois jornalistas, bem alojados em Irkutsk, começaram a pôr em ordem as suas impressões de viagem, de que resultou a remessa para Londres e Paris de algumas crónicas interessantes com referência à invasão tártara, as quais, caso raríssimo, somente se contradiziam em pequenos pormenores.

      A retirada dos tártaros tornou-se funesta para o emir e seus aliados. A invasão, inútil como todas as que se propõem atacar o colosso russo, foi-lhes profundamente desvantajosa. Os tártaros foram vencidos pelas tropas do czar, que reconquistaram uma a uma todas as cidades tomadas por Féofar-Cã, apoderando-se ao mesmo tempo das imensas riquezas do emir, cuja distribuição serviu para indemnizar as vítimas dos invasores. Além disso, o Inverno mostrou-se tão rigoroso e os assaltos das tropas fiéis ao czar tão violentos que poucos foram aqueles a quem foi dado tornar a ver as estepes da Tartária.

      O caminho de Irkutsk até aos Urais estava novamente desembaraçado. O grão-duque tinha pressa em regressar a Moscovo, mas retardou a partida para assistir a uma cerimónia tocante, que se efectuou alguns dias depois da entrada das tropas russas.

      Miguel Strogoff fora procurar Nadia e, diante de seu pai, tinha-lhe perguntado:

      - Nadia, minha irmã ainda, quando saíste de Riga para vires ter com teu pai deixaste porventura nessa terra algumas outras saudades que não fossem as de tua mãe?

      - Não, meu irmão - respondeu Nadia.

      - Tens então a certeza de que o teu coração não te ficou lá preso a nenhum afecto?

      - Não ficou, tenho a certeza.

      - Nesse caso, Nadia, não creio que Deus nos pusesse em frente um do outro, expondo-nos juntos a tantos perigos e trabalhos, sem que tivesse decretado na Sua sabedoria a nossa união para sempre.

      - Ah! - exclamou Nadia, lançando-se nos braços de Miguel Strogoff.

        E voltando-se para Wassili Orlik:

      - Que diz meu pai? - perguntou ela, fazendo-se muito vermelha.

      - Digo que a minha maior alegria será poder chamar-vos meus filhos - respondeu Wassili Orlik, muito comovido.

      A cerimónia do casamento realizou-se na catedral de Irkutsk. Muito modesta pela sua simplicidade, tornou-se muito imponente pela categoria dos convidados. Toda a população civil e militar de Irkutsk desejou testemunhar o seu profundo reconhecimento a estes noivos, cuja odisseia se tornara já lendária na cidade.

      Alcide Jolivet e Harry Blount não deixaram também de assistir a este enlace, de que desejavam dar circunstanciada notícia aos seus leitores.

      - E não lhe faz vontade de os imitar? - perguntou Alcide Jolivet ao seu confrade.

      - Qual! Ainda se eu tivesse uma prima!...

      - Minha prima já não está em idade de casar - respondeu a rir Alcide Jolivet.

      - Tanto melhor - ajuntou Harry Blount -, porque, segundo se diz, vão levantar-se algumas dificuldades entre os governos de Londres e de Pequim. O meu prezado colega não sente desejos de ir ver o que se passa pela China?

      - Ora essa, meu caro Blount! - exclamou Alcide Jolivet. – Ia agora mesmo propor-lhe esse passeio.

        E aqui está como os dois inseparáveis jornalistas foram dar consigo no Celeste Império!

      Alguns dias depois do seu casamento, Miguel e Nadia Strogoff, acompanhados por Wassili Orlik, saíram de Irkutsk em direcção à Rússia europeia. Aquela estrada de amarguras na vinda converteu-se num caminho de felicidade no regresso. Os três viajantes corriam agora a bom correr num dos trenós que percorrem as estepes da Sibéria  com a velocidade de um expresso de caminho de ferro.

      Ao chegarem, contudo, às margens do Dinka, detiveram-se um dia., Miguel Strogoff tornou a dar com o local onde o pobre Nicolau fora enterrado. Em cima daquela humilde sepultura colocaram os noivos uma cruz de madeira.

      Nadia rezou ainda mais uma vez pelo eterno descanso do bom e generoso amigo, que nem ela nem seu marido poderiam esquecer jamais.

      Em Omsk, a velha Marfa estava à espera dos noivos, na pequena habitação dos Strogoff. A corajosa siberiana apertou nos seus braços e com extrema ternura aquela a quem, já no íntimo do coração cem vezes chamara filha.

      Nesse dia teve ela o ensejo de dizer bem alto que era mãe de Miguel Strogoff, justamente orgulhosa de tal maternidade.

      Depois de passarem alguns dias em Omsk, Miguel Strogoff, Nadia e seu pai regressaram à Rússia europeia.

      Wassili Orlik foi residir para São Petersburgo e os seus dois filhos só o deixavam quando iam visitar a velha Marfa.

      Miguel Strogoff foi recebido com todas as honras pelo czar, que lhe colocou ao peito a Cruz de São Jorge e o empregou no seu serviço particular.

      Com o tempo, o antigo correio chegou a desempenhar importantes missões e a ocupar elevados cargos no Império. Mas isso não interessa referir. O que interessa revelar são as provações por que passou e os feitos que cometeu para cumprir o seu dever.

                                                                                            Julio Verne

  

                      

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