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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ENIGMA E O ESPELHO / Jostein Gaarder
O ENIGMA E O ESPELHO / Jostein Gaarder

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ENIGMA E O ESPELHO

 

"A alegria é como uma borboleta que esvoaça baixinho sobre os campos mas a dor é como um pássaro de grandes asas negras e robustas que nos transporta acima da vida que existe lá em baixo ao sol por entre a verdura. E esse pássaro voa alto, até onde os anjos da dor estão de vigília sobre o leito da morte."

EDITH SODERGRAN, 16 anos

 

A porta do quarto tinha ficado aberta. Os cheiros a Natal que emanavam do andar de baixo, chegavam até Cecilie. Ela tentou distinguir um aroma do outro.

Um era sem dúvida o chucrute e o outro deveria ser ao incenso que o pai tinha posto na lareira, antes de irem para a igreja. E o que ela agora sentia, não seria o fresco aroma da árvore de Natal?

Cecilie voltou a reter a respiração. Ela imaginou poder cheirar as prendas que estavam junto à árvore de Natal, o papel brilhante, vermelho e dourado, com cartões e laços de seda. No ar, pairava ainda um outro cheiro encantador e mágico: era a própria atmosfera natalícia.

Ao mesmo tempo que ela sentia aquelas fragrâncias, tacteava as janelas do calendário do Advento. As vinte e quatro janelas estavam abertas. A maior fora aberta hoje. Ela voltou a fixar o seu olhar no anjo debruçado sobre a manjedoura do Menino Jesus. Maria e José estavam ao fundo e pareciam não notar a presença do anjo.

Será que eles não o viam no estábulo?

Cecilie olhou em volta. Ela dirigira tantas vezes os olhos para o candeeiro vermelho no tecto, para as cortinas brancas com miosótis azuis e para as estantes com livros, bonecas, cristais e pedras decorativas, que tudo aquilo se tornara uma parte de si própria. Sobre a escrivaninha em frente à janela, ao lado da velha Bíblia infantil e do livro de mitologia de Snorre, estava o guia turístico de Creta. Na parede contígua ao quarto de dormir dos pais, havia um calendário grego com uns gatos adoráveis. Nesse mesmo canto estava pendurado o velho colar de pérolas que a avó lhe dera.

Quantas vezes não teria ela contado as argolas do varão das cortinas? Porque é que um lado teria treze argolas e o outro catorze? Quantas vezes não teria ela contado os números da revista Ciência Ilustrada empilhados por baixo da escrivaninha? Mas acabara por desistir. Desistira também de contar as flores das cortinas. Um ou outro miosótis escondia-se sempre numa prega.

O diário chinês estava por baixo da cama. Cecilie tocou-lhe com a mão... claro, a caneta de feltro também lá estava.

Este diário era um livrinho de apontamentos com capa de tecido que um médico lhe oferecera no hospital. Os fios de seda, em preto, verde e vermelho, brilhavam contra a luz.

Ela não tinha disposição para escrever no diário, nem tão-pouco havia muito que escrever, no entanto, tinha decidido que, enquanto permanecesse de cama, havia de registar os seus pensamentos. E prometera que nunca eliminaria aquilo que anotara, cada palavra ficaria registada até ao Dia Final. Que estranho seria ler aquilo quando fosse crescida. Na primeira folha, ela escrevera: NOTAS PESSOAIS DE CECILIE SKOTBU.

E voltou a deitar-se sem forças sobre a almofada, tentando escutar o que se passava lá em baixo. De quando em vez, ouvia a mãe mexer nos talheres; a não ser isso, a casa estava mergulhada em silêncio absoluto...

Os outros chegariam da igreja a qualquer momento. O Natal soaria a cada instante. Quando não ouviam os sinos da igreja de Skotbu, eles subiam as escadas para os ouvir melhor.

Mas este ano Cecilie não conseguia ouvir os sons do Natal a subir pelas escadas. Ela estava doente, não apenas ligeiramente doente, como acontecera em Outubro e Novembro. Agora ela estava tão debilitada, que o Natal era como uma mão cheia de areia que se lhe escapava por entre os dedos, enquanto dormia ou dormitava. Mas, ao menos, escapou ao internamento no hospital, que estava decorado com motivos de Natal desde o início de Dezembro.

Ainda bem que já tinha vivido outros Natais. Cecilie achava que o Natal era a única coisa que se mantinha inalterável em Skotbu. Durante vários dias, as pessoas faziam o mesmo que haviam feito, ano após ano, sem pensar por que o faziam. Costumavam dizer: "É a tradição." E bastava.

Nos últimos dias, ela tentara acompanhar o que se passava no andar de baixo. Os ruídos provenientes da cozinha e da montagem das decorações subiam até ao andar de cima, como pequenas bolhas de som. Cecilie imaginou que o rés-do-chão era a Terra e que ela se encontrava no Céu.

Ontem à noite trouxeram a árvore de Natal para casa e o pai esteve a decorá-la depois de Lasse ter ido para a cama. Cecilie ainda não a vira. Ela não vira a árvore de Natal!

Ainda bem que tinha um irmãozinho conversador. Ele comentava tudo aquilo que os outros se limitavam a ver ou a pensar. É evidente que ele bisbilhotara os preparativos e decorações de Natal e fora o informador secreto de Cecilie sobre o que se passava no mundo subterrâneo.

Em cima da mesa-de-cabeceira estava uma campainha que ela tocava quando tinha de ir à casa de banho ou precisava de algo. Lasse prontificava-se quase sempre. Uma vez por outra, ela tocara a campainha para que ele contasse como tinham preparado ou decorado os bolos.

O pai prometera que levaria Cecilie, ao colo, para a sala, quando abrissem as prendas. Ela queria uns esquis novos. Os velhos já estavam muito pequenos. A mãe sugeriu que o equipamento de esqui fosse comprado quando Cecilie recuperasse, mas ela protestou. Ela queria uns esquis para o Natal e ponto final!

- Não me parece que consigas esquiar este ano, Cecilie.

Ela arremessou uma Jarra de flores ao chão.

- Sem esquis, é que não posso esquiar.

A mãe, impávida, foi buscar uma vassoura e uma pá sem dizer uma palavra. Isso é que foi o pior. Depois, enquanto apanhava as flores e os estilhaços da Jarra, disse:

- Pensei que preferisses uma coisa engraçada com que brincar na cama.

Cecilie sentiu a cabeça a latejar. "Com que brincar na cama!" E voltou a empurrar um prato e um copo de sumo para o chão. Mas nem mesmo desta vez a mãe se zangou. Ela nada mais fez senão varrer e apanhar com a pá, apanhar com a pá e varrer.

Para jogar pelo seguro, Cecilie acrescentou que queria também uns patins e um trenó...

Desde o princípio de Dezembro que fazia um frio de rachar lá fora. Uma vez ou outra, Cecilie saíra da cama, arrastando-se até à Janela. A neve estendia-se pela paisagem gelada como um edredão fofinho. O pai pôs as luzes de Natal no pinheiro alto do jardim em honra dela. Dantes

costumava colocá-las no pinheirinho diante da entrada. Por entre os ramos do pinheiro grande, ela avistava Ravnekollen à distância.

A natureza jamais apresentara contornos tão nítidos como nestes dias que antecederam o Natal. Um dia, Cecilie viu o carteiro chegar de bicicleta, apesar de fazer uns dez graus negativos e a estrada estar coberta de neve. Ela sorriu primeiro. Bateu depois no vidro e acenou-lhe. A bicicleta virou-se na neve solta, quando ele olhou para cima e acenou com ambos os braços. Quando o carteiro desapareceu atrás do celeiro, ela voltou para a cama e chorou. Era como se a vida fosse um carteiro de bicicleta sobre um piso gelado.

De outra vez, quando estava à Janela, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Ela sentia uma enorme vontade de viver as fantasias de inverno. Diante do celeiro dois piscos saltitavam alegremente de um lado para outro. Cecilie começou a rir. Como ela gostaria de ser um pisco! Sentiu uma lágrima ao canto do olho e limpou-a com o dedo, desenhando um anjo no vidro da janela. Ao aperceber-se que desenhara um anjo com as suas próprias lágrimas, riu-se uma vez mais. Qual era a diferença entre lágrimas de anjo e anjos de lágrimas.

Depois dormitou provavelmente durante algum tempo, porque acordou em sobressalto quando a porta da entrada se abriu.

Voltaram da igreja! Cecilie ouviu-os a sacudir a neve dos sapatos. E não estaria também a ouvir os sinos?

- Feliz Natal, mamã!

- Feliz Natal, meu filho.

- Feliz Natal também para ti, Tone.

O avô pigarreou:

- Cheira a Natal.

- Ajuda o avô a tirar o casaco, Lasse.

Cecilie imaginou estar a vê-los a todos. A avó sorria e distribuía abraços por todos, a mãe tirava o avental vermelho enquanto abraçava a avó, o pai acariciava a cabeça de Lasse, o avô acendia um charuto...

Nos últimos tempos, Cecilie tornara-se perita em visualizar com os ouvidos.

Mas, de repente, o ambiente alegre do rés-do-chão deu lugar a um leve murmúrio. E logo a seguir o pai subiu as escadas em quatro ou cinco passadas.

- Feliz Natal, Cecilie!

Aproximou-se dela e abraçou-a. Depois afastou-a e abriu a janela de par em par.

- Estás a ouvir?

Ela levantou a cabeça da almofada e disse que sim:

- São cinco horas.

O pai voltou a fechar a janela e sentou-se na beira da cama.

- Vou ter uns esquis novos?

Cecilie fez a pergunta como se esperasse por uma resposta negativa. Este seria um pretexto para se zangar, o que seria preferível a sentir-se triste.

O pai pôs-lhe um dedo sobre os lábios.

- Não serás tratada de forma especial, Cecilie. Vais saber na altura certa.

- Claro que vou.

- Tens a certeza de que não queres ficar no sofá durante o jantar?

Ela disse que não com a cabeça. Já tinham combinado isso nos últimos dias. Seria melhor que ela estivesse sossegada durante a distribuição das prendas. De qualquer maneira, não lhe apetecia a comida de Natal. Se a comesse poderia vomitar.

- Mas as portas ficam abertas.

- Com certeza!

- Falem alto... e façam muito barulho à mesa.

- Era o que mais faltava!

- E quando a oração de Natal acabar, a avó vem cá para cima ler para mim.

- Sim, isso já está combinado.

E Cecilie deixou-se cair sobre o almofadão.

- Podes dar-me o meu walkman?

O pai entregou-lhe a cassete e o leitor de cassetes que estavam na estante.

- O resto faço eu.

O pai deu-lhe um beijo na testa.

- Eu preferia ficar contigo - murmurou ele. - Mas, como sabes, também devemos pensar nos outros. Mas ficarei ao pé de ti nos outros dias desta quadra de Natal.

- Eu disse que festejassem o Natal como de costume.

- Sim, como de costume.

Ele saiu pé ante pé.

Cecilie introduziu uma cassete com música de Natal no walkman, absorveu prontamente o espírito natalício daquela música, retirou os auscultadores... e já estavam todos à mesa.

A oração foi dita pela mãe e, no fim, cantaram uma canção de Natal.

Então a avó subiu as escadas. Cecilie planeara tudo.

- Estou a chegar, Cecilie!

- Fala baixinho! Só vais ler...

A avó sentou-se na cadeira, diante da cama, e leu:

- "Naquele tempo, o imperador Augusto ordenara que fosse efectuado o recenseamento de toda a população."

Ao levantar o olhar da Bíblia, ela reparou que Cecilie tinha lágrimas nos olhos.

- Estás a chorar?

Ela assentiu.

- Mas nem sequer é triste...

Cecilie acenou novamente com a cabeça.

- "E, numa manjedoura, encontrareis um Menino, envolto num manto."

- É por ser tão bonito.

Pela terceira vez, Cecilie abanou a cabeça afirmativamente.

- Choramos por coisas tristes - disse a avó passados uns instantes. - E deixamos também cair uma lágrima se uma coisa é bela.

- E não rimos quando uma coisa é fèia.

A avó teve de reflectir.

- Rimos dos palhaços, porque são cómicos. E, na verdade, porque também são feios... Olha para mim!

Ela torceu o rosto numa horrível careta e Cecilie largou a rir.

A avó continuou:

- É provável que a beleza nos entristeça, porque sabemos que éefémera. E rimos com uma coisa feia, porque sabemos que é apenas para ter graça.

Cecilie olhou para a avó. Ela era a pessoa mais sábia do mundo.

- Vai lá para baixo para junto dos outros palhaços - disse Cecilie.

A avó endireitou a almofada e acariciou-lhe a face.

- Daqui a pouco vou ficar muito contente, quando vieres ter connosco. Agora vamos jantar...

Logo que a avó chegou às escadas, Cecilie procurou, às apalpadelas, a caneta de feltro e o livro de notas. Os seus primeiros apontamentos foram:

já não me encontro numa praia desconhecida do mar Egeu. Mas as vagas continuam a bater contra a praia e os calhaus deslizam para a frente e para trás, mudando eternamente de lugar.

Ela releu tudo o que escrevera até agora e continuou:

Choramos por coisas tristes. E deixamos também cair uma lágrima se uma coisa é bela. Rimos com algo engraçado ou feio. Éprovável que a beleza nos entristeça. porque sabemos que é efémera. E rimos com uma coisa feia porque sabemos que é apenas para ter graça. Os palhaços são engraçados devido à sua fealdade. Ao tirarem a máscara diante do espelho. tornam-se muito belos. Por isso mesmo. é que os palhaços parecem tão tristes e infelizes sempre que entram na sua caravana. fechando a porta com ímpeto. atrás de si.

Cecilie voltou a dormitar e só despertou quando o pai a veio buscar.

- Distribuição de presentes. - Anunciou ele.

Ele deslizou as mãos sob o corpo de Cecilie e levantou-a com o edredão vermelho. A almofada ficou na cama e o cabelo louro, que entretanto crescera, pendia.

O avô e Lasse estavam ao fundo das escadas.

Pareces um anjo - comentou o avô. - O edredão parece uma nuvem de rosas.

- Como um anjo caído das nuvens - disse Lasse.

A meio das escadas, virou a cabeça e olhou também para eles.

- Disparates! - protestou. - Os anjos andam sobre as nuvens. Não andam por baixo delas.

O avô sorriu satisfeito e expeliu uma baforada de fumo de charuto que ficou a pairar na sala.

O pai deitou Cecilie no divã vermelho, aconchegando-a com almofadas para que ela pudesse ver a árvore de Natal. Ela ergueu o olhar:

- Não é a mesma estrela do ano passado.

Então a mãe apressou-se a explicar, como se o facto de tudo não estar como no ano anterior a incomodasse.

- Não. Sabes porquê? Não a encontrámos. Por isso o pai comprou uma nova.

- Que esquisito...

Cecilie olhou em volta e os outros registaram aquele movimento. Observaram Cecilie e acompanharam o trajecto do seu olhar.

Nenhum lado da árvore estava às escuras. Cecilie contou vinte e sete velas, o mesmo número das argolas da vara das cortinas. Que coincidência!

As prendas estavam sob a árvore. O que era diferente do ano anterior, é que o avô desta vez não era Pai Natal. E a decisão partira de Cecilie:

- Já não tenho paciência para essa tolice do Pai Natal!

A mesa estava posta com pratos, chávenas de café, pratos de bolos e figuras de massapão colorido, de fabrico caseiro.

- Queres alguma coisa?

- Talvez um pouquinho de sumo de limão. E um bolo folhado sem ginja.

Estavam todos à volta dela. Lasse deixou-se ficar atrás. Ele parecia achar um tanto estranho que Cecilie tivesse descido para ver a entrega dos presentes. Pelo menos, tudo se tornava muito solene.

- Feliz Natal, Lasse.

- Feliz Natal!

- E agora vamos aos presentes - disse o avô. - Cabe-me a mim esta tarefa importante.

Reuniram-se todos em redor da árvore e o avô começou a ler os cartões que acompanhavam os presentes. Cecilie observou que nenhum daqueles pacotes podia ser o trenó ou os esquis, mas não se deu por achada. Eles ainda poderiam aparecer de algures em qualquer canto da casa. Isso já acontecera antes.

- Para a Cecilie da Marianne.

Marianne era a melhor amiga de Cecilie. Ela vivia no outro lado do rio Leira, mas andavam na mesma classe.

Era um pacote pequenino. Seria uma jóia? Ou talvez uma pedra nova para a colecção...

Cecilie rasgou o papel e abriu uma caixinha amarela. Sobre um tufo de algodão, estava uma borboleta vermelha, um alfinete de peito... Cecilie tirou-o da caixinha e, ao tocar-lhe, a cor passou de vermelho a verde e depois também a azul e a lilás.

Uma borboleta mágica...

que muda de cor consoante a temperatura. - anuiu o pai.

Todos quiseram tocar-lhe. Quando a apertavam contra a palma da mão, ela ficava verde e azul. Só que na mão de Cecilie ela ficava violeta.

- Uma borboleta com febre - disse Lasse. Mas ninguém deu mostras de ter ouvido.

A prenda seguinte foi para ele. Eram esquis, em miniatura, da parte da tia Ingrid e do tio Einar.

- Eu teria preferido uns esquis a sério - disse Cecilie. Mas tanto se me dá.

As prendas seguiram-se umas às outras. Os presentes iam desaparecendo pouco a pouco da árvore, ao mesmo tempo que se amontoavam objectos sobre as cadeiras e a mesa. O pai apanhava os papéis e metia-os num saco plástico.

Entretanto, o avô saiu da sala. Os adultos tomavam café, Lasse bebia sumo e Cecilie ingeria medicamentos.

Quando regressou à sala, o avô trazia um pacote comprido e pesado, embrulhado em papel de Natal azul, com estrelas douradas.

Cecilie ergueu-se do sofá:

- Os meus esquis!

- Para a vedeta esquiadora, da avó e do avô - leu o avô.

- Vedeta esquiadora?

- Ou deusa do esqui - explicou a avó. - Tu sabes que és tu.

Cecilie rasgou o papel. O papel era vermelho e os esquis eram azuis.

- Que giros! Quem me dera poder experimentá-los imediatamente.

- Esperamos que recuperes depressa.

Enquanto os outros presentes eram distribuídos, Cecilie guardou os esquis no sofá. O último presente destinava-se a Cecilie e era tão grande que tiveram de ir buscá-lo lá fora. Ainda à distância, ela adivinhou do que se tratava.

- O trenó! Não posso acreditar...

A mãe debruçou-se sobre ela e deu-lhe um leve beliscão na bochecha.

- Achas que nos teríamos atrevido a dar-te outra coisa?

Ela sacudiu os ombros.

- Vocês atreveram-se a não comprar patins.

- É verdade. Imagina que tivemos esse desplante.

Chegou o momento de servir o interminável café. Cecilie regozijava-se com as bandejas de bolos, fruta, massapão, doçaria caseira e frutos secos. Era assim que o Natal devia ser. Mas não comeu mais nada, para além de um bocado de bolo. E pediu também uma fatia de pão com mel.

O avô falou do Natal de outrora. Nos últimos sessenta anos, ele festejara-o nesta sala e, uma vez, estivera doente na cama.

Quando iam começar a dançar à volta da árvore de Natal, Cecilie sentiu-se ensonada e pediu que a levassem para o quarto.

Pediu também que pusessem os presentes todos lá em cima, o que fez com que Lasse e a mãe andassem numa correria escada abaixo escada acima. Depois de trocados os últimos votos de continuação de uma quadra feliz, Cecilie voltou para a cama ao colo do pai.

Adormeceu ao som alegre dos cânticos de Natal e da dança à roda da árvore no andar de baixo, com a avó ao piano.

 

Cecilie acordou sobressaltada. A julgar pelo silêncio absoluto em que a casa estava mergulhada, devia ser noite.

Abriu os olhos e acendeu a luz que ficava por cima da cama.

Então ouviu uma voz perguntar:

- Dormiste bem?

Quem seria? Não havia ninguém sentado na cadeira diante da cama. Nem sequer havia ninguém acordado àquela hora.

- Dormiste bem? - ouviu ela novamente.

Cecilie levantou-se, olhando em redor. Estremeceu ao ver um vulto no parapeito da janela. Somente uma criança poderia caber ali, mas não era Lasse. Quem poderia ser, então?

- Não tenhas medo - disse o estranho com uma voz nítida e clara.

Ele ou ela estava vestido com uma camisa branca comprida e os pés estavam descalços. Cecilie conseguiu divisar um rosto contra a luz intensa que provinha da árvore lá fora.

Ela esfregou os olhos, mas aquele vulto não arredou pé.

Seria uma rapariga ou um rapaz? Cecilie não tinha a certeza, pois ele ou ela não tinha um único cabelo na cabeça. Ela decidiu que deveria ser rapaz, mas também poderia ter optado pelo contrário.

- Não podes dizer se dormiste bem - repetiu a misteriosa figura.

- Claro que posso... Mas quem és tu?

- Ariel.

Cecilie voltou a esfregar os olhos.

- Ariel?

- Sim, Cecilie. Sou eu.

Ela abanou a cabeça:

- Continuo sem saber quem és.

- Mas nós sabemos quase tudo a vosso respeito. É precisamente como um espelho.

- Como um espelho?

Inclinou-se de tal maneira para a frente que até pareceu que ia cair sobre a escrivaninha:

- Vocês apenas se vêem a vós próprios. Não conseguem ver o que está do outro lado.

Cecilie assustou-se. Quando era mais nova, ela sentara-se muitas vezes diante do espelho a imaginar que havia um outro mundo do lado de lá. Algumas vezes, ficava com receio de que alguém estivesse a espreitá-la enquanto se arranjava. Ou ainda pior: imaginava que esse alguém podia saltar subitamente do espelho, indo plantar-se no meio da casa de banho.

- Já estiveste aqui antes? - perguntou ela.

Ariel disse que sim com um ar cerimonioso.

- Como é que entras aqui?

- Nós entramos em todo o lado, Cecilie.

- O meu pai costuma fechar a porta à chave. No Inverno fechamos mesmo todas as janelas...

Ariel jogou na defensiva:

- Para nós, isso não faz diferença.

- Isso?

- Quero dizer, portas com trincos e coisas assim.

Cecilie reflectiu. Era como se estivesse a presenciar efeitos cinematográficos especiais. Ela fez retroceder a bobina e voltou ao princípio da película.

- Dizes "nós" e "nos" - precisou ela. - São assim tantos?

Ele acenou com a cabeça.

- Sim, imensos. Está a aquecer.

Mas Cecilie estava a ficar farta de adivinhar e disse:

- Na Terra vivem cinco biliões de pessoas. Li também que o Mundo tem cinco bilhões de anos. Já alguma vez pensaste nisso?

- Com certeza. Vocês vêm e vão.

- Que disseste?

- Cada segundo que passa, umas quantas crianças, novinhas em folha, saem da manga do casaco de Deus. Abracadabra! Cada segundo que passa, desaparecem também muitos seres humanos. Uma fila muito, muito comprida, até que chega a vez de Cecilie...

Ela sentiu as faces a escaldar.

- Tu também vens e vais - disse ela.

Ele abanou a cabecinha careca energicamente:

- Sabias que este foi o quarto de dormir do teu avô?

- Claro que sei. Mas como é que tu sabes disso?

Ariel tinha começado a abanar as pernas, de um lado para outro. Cecilie achava-o parecido com uma boneca.

- Agora já estamos no bom caminho - anunciou ele.

- O quê?

- Ainda não respondeste se dormiste bem. Mas já estamos no caminho certo. Leva sempre algum tempo a encontrar o caminho certo.

Cecilie reteve a respiração e, depois de expirar profundamente, disse:

- Também não respondeste como é que sabias que este foi o quarto de dormir do meu avô.

- "Como é que sabias que este foi o quarto de dormir do meu avô" - repetiu Ariel.

- Exactamente!

As pernas dele oscilavam cada vez mais:

- Nós existimos desde os primórdios dos tempos, Cecilie. Quando o teu avô era pequeno, e, muito antes de existirem medicamentos adequados, ele esteve de cama com uma pneumonia muito grave.

- Estiveste também aqui nessa altura?

Ariel acenou afirmativamente:

- Nunca esquecerei os olhos dele, tristes como dois passarinhos abandonados.

- "Como dois passarinhos abandonados" - suspirou Cecilie.

Ele elevou o olhar e apressou-se a acrescentar:

- Mas tudo passou e ele recuperou.

- Sim, recuperou por completo.

Ariel fez um movimento brusco e numa fracção de segundo, levantou-se do parapeito da janela e tapou a janela quase toda. A contraluz impedia que Cecilie lhe visse o rosto com nitidez.

Como se teria ele levantado sem cair sobre a escrivaninha. - Parecia que nunca caía.

- Lembro-me também dos pastores nos campos - contou ele.

Cecilie recordou-se da passagem da Bíblia que a avó lera.

- "Louvado seja Deus e paz na Terra aos homens de boa vontade" - citou ela. - É nisso que estás a pensar?

- Sim, o exército celeste. Éramos uma multidão animada.

- Não creio.

Quando Ariel inclinou a cabeça, Cecilie viu-o melhor. Ele fazia lembrar um dos bonecos de Marianne.

- Pobrezita - disse ele.

- Porque estou doente?

Ariel disse que não com a cabeça.

- Deve ser horrível não acreditar com quem falas.

- Deixa-te de tretas!

- É verdade que a desconfiança vos deixa numa escuridão interior?

Cecilie deixou transparecer uma careta mal-humorada.

- Fiz apenas uma pergunta - afirmou ele. - Apesar de termos visto que as pessoas chegam e partem, não sabemos exactamente como é ser de carne e osso.

Cecilie contorceu-se na cama. Mas Ariel persistiu:

- A desconfiança não é desagradável?

- Deve ser muito pior mentir na cara de uma criança doente.

Apanhado de surpresa, ele tapou a boca e deu um suspiro de espanto:

- Os anjos não mentem, Cecilie!

Depois foi a vez de Cecilie conter a respiração:

- És realmente um anjo?

Ariel abanou levemente a cabeça com a maior das naturalidades. Depois disso Cecilie tornou-se mais afável e, passados uns segundos, disse:

- Foi o que pensei. Mas não ousei perguntar com medo de estar enganada. É que não sei se acredito em anjos.

O anjo protestou com um gesto:

- Vamos pôr de parte esse jogo. Imagina se eu te dissesse que não acredito em ti. Nessa altura, seria impossível provar qual de nós é que teria razão.

Como se quisesse demonstrar que era um anjo saudável e hábil, ele saltou para a escrivaninha diante da janela e começou a andar sobre o tampo, de um lado para outro. Por duas vezes, deu a impressão de que ia cair, mas endireitou-se na hora H. Outra vez, pareceu mesmo que se endireitara demasiado tarde.

" Um anjo em minha casa" - murmurou Cecilie para si mesma, como se se tratasse do título de um livro que ela lera.

- Nós designamo-nos por filhos de Deus - replicou Ariel.

Cecilie olhou de esguelha:

- Ao menos tu...

- Que queres dizer com isso?

Cecilie tentou endireitar-se na cama, mas caiu pesadamente na almofada, dizendo:

- Não passas de um anjo infantil.

Ele riu baixinho.

- Onde é que está a piada? - perguntou ela.

- "Anjo infantil". Não achas uma expressão com piada

Cecilie não entendeu, porque ela não achara piada.

-Tu não és um anjo adulto - disse ela. - Por isso, deves ser um anjo infantil.

Ariel riu ainda mais alto.

- Os anjos não crescem nas árvores - disse ele. - Nós não crescemos nem um nadinha; por isso mesmo não nos tornamos "adultos".

- Acho que vou desmaiar. - exclamou Cecilie.

- Seria uma pena quando a conversa já vai tão animada.

- Mas eu julgava que os anjos eram todos adultos - insistiu ela.

Ariel encolheu os ombros:

- A culpa não é tua. Apenas tens de adivinhar o que está do outro lado.

- Queres dizer que não existem anjos?

Ariel deu uma gargalhada sincopada. Era um som semelhante ao que se ouvia quando Lasse espalhava os berlindes pelo chão da cozinha. Só que, desta vez, não seria ela a apanhá-los do chão.

- Com que então, não existe um único anjo adulto no céu - concluiu ela. - A mim, tanto se me dá. Mas sendo assim, nenhum padre fala verdade, porque todos eles apregoam que o céu pulula de anjos adultos.

Ariel quebrou o momento de silêncio estendendo um braço com elegância:

- "O céu pulula de anjos adultos" - interrompeu ele. - "pulula!"

Como Cecilie não respondeu imediatamente, ele continuou:

- É engraçadíssimo conversar contigo, Cecilie.

Ela começara a morder o polegar. E então perguntou:

- Como será ser adulto?

Ariel sentou-se na escrivaninha, deixando pender as pernas nuas:

- Queres falar sobre isso?

Cecilie continuou estendida na cama a olhar para o tecto:

- O meu professor diz que a infância não passa de uma passagem para a maturidade. É por isso que temos de seguir as lições como preparação para a vida adulta. Não é tolice?

Ariel fez que sim com a cabeça:

- É precisamente o contrário.

- O quê?

- Ser adulto não passa de uma passagem para que nasçam mais crianças.

Cecilie reflectiu bem antes de responder:

- Mas os adultos foram criados primeiro. Se assim não fosse, não nasceriam crianças.

Ariel sacudiu a cabeça:

- Erraste de novo. As crianças foram criadas primeiro. Caso contrário, nunca se tornariam adultas.

Cecilie teve uma ideia genial:

- Quem teria aparecido primeiro: a galinha ou o ovo?

O anjo recomeçou a oscilar as pernas:

- Ainda existe essa velha adivinha? Na Índia, há milhares de anos, um homem idoso, que criava galinhas, fez-me essa mesma pergunta. Ele agachou-se junto de uma galinha que acabara de pôr um ovo e, coçando na cabeça, perguntou: "Quem teria aparecido primeiro: a galinha ou o ovo?"

- Claro que o ovo apareceu primeiro.

- Porquê?

- Se não fosse assim, a galinha não teria aparecido. Não acreditas, por acaso, que a primeira galinha apareceu a voar pelo espaço?

Cecilie começava a ficar confusa. Ela não sabia se tinha compreendido tudo o que o anjo lhe dissera, mas o que ela percebera parecia fazer sentido. Finalmente, julgou ter encontrado a resposta para o velho enigma. Se, ao menos, conseguisse lembrar-se de tudo até amanhã...

- O mesmo se passa com as crianças - continuou Ariel. - Elas chegam primeiro ao mundo. Os adultos aparecem a cambalear depois e tornam-se cada vez mais cambaleantes à medida que a idade avança.

Cecilie achou as palavras de Ariel tão ajuizadas que teve vontade de as registar no livro de notas. Porém, não ousou fazê-lo na sua presença e acrescentou:

- Mas Adão e Eva eram adultos.

Ariel fez-lhe sinal que não:

- Tornaram-se adultos. E aí é que foi a grande asneira. Quando Deus criou Adão e Eva, eles eram crianças curiosas que trepavam às árvores e corriam pelo jardim do Paraíso que tinha sido acabado de criar. Não faria qualquer sentido possuir um amplo jardim, se as crianças não pudessem brincar lá.

- Mas isso é verdade?

- Já disse que os anjos não mentem.

- Conta mais coisas!

- A serpente convenceu-os, então, a comer frutos da árvore da Sabedoria e eles começaram a crescer. Quanto mais comiam, mais adultos se tornavam. Foi assim que, gradualmente, eles foram expulsos do paraíso da infância. Aqueles marotos estavam tão sedentos de sabedoria que acabaram por abandonar o paraíso.

Cecilie ficou embasbacada. Ariel olhou para ela complacentemente e disse:

- Certamente já ouviste tudo isto antes.

Ela respondeu que não.

- Ouvi dizer que Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, mas ninguém me disse que se tratava do paraíso da infância.

- Podias ter percebido alguma coisa. Mas os seres humanos não compreendem a totalidade. Vêem tudo através de um espelho, como se se tratasse de um enigma...

Cecilie sorriu com um ar astuto:

- Acho que consigo imaginar como os miúdos Adão e Eva correram outrora, por entre as árvores do imenso jardim.

- O que é que eu te disse?

- O quê?

- Afinal, chegas lá! Sabes que os seres humanos utilizam somente uma pequena percentagem do cérebro?

Cecilie disse que sim, porque tinha acabado de ler sobre isso na revista Ciência Ilustrada.

- Conta-me mais coisas sobre Adão e Eva - pediu ela.

Então ela soergueu-se um pouquinho na cama e Ariel começou a contar, ao mesmo tempo que balançava as pernas:

- Eles começaram por crescer, as extremidades alongaram-se e acabaram por amadurecer sexualmente. Foi em parte um castigo, mas também um consolo para Deus e para os seres humanos.

- Porquê?

- Porque assim podiam vir novas pessoas ao Mundo. E tem sido assim desde então. Deus destinou assim para que não parem de nascer crianças que, por seu turno, voltarão a descobrir o Mundo. Desta maneira, Ele assegurou a continuidade da criação. O Mundo sofre uma renovação, cada vez que nasce uma criança.

- Quando uma criança nasce, o Mundo é, até certo ponto, completamente novo para essa criança, não é assim?

Ele anuiu dizendo:

- Podes perfeitamente dizer que o Mundo vai ao encontro da criança. Nascer significa ter o Mundo como presente: o Sol durante o dia, a Lua e as estrelas à noite. O mar ondulante nas praias, os bosques tão profundos que mal conhecem os seus segredos, os animais que animam a paisagem. O Mundo nunca envelhece, nem embranquece como o cabelo das pessoas.

São os seres humanos que envelhecem e ficam grisalhos. Enquanto as crianças vierem ao Mundo, este continuará novinho em folha como no sétimo dia em que Deus descansou.

Cecilie estava boquiaberta e o anjo Ariel continuou:

- Adão e Eva não foram os únicos a serem criados. Tu também foste criada. De repente, foi a tua vez de ver o que Deus tinha criado. Saíste da manga do casaco divino e ganhaste vida por artes mágicas. E pudeste ver como tudo é divinal.

Cecilie não conseguiu conter o riso. E perguntou: É verdade que vocês estão aqui desde sempre?

O anjo abanou a cabeça com um ar formal:

- Sim, aqui e ali. Mas a curiosidade, no que diz respeito à obra da Criação, continua imutável. E isso não admira, quando se contempla tudo do outro lado. Na obra da Criação, somente a curiosidade infantil tem termo de comparação com a nossa. Até certo ponto, vem também do exterior.

Ao longo da sua doença, Cecilie tinha por várias vezes pensado em algo semelhante: Os adultos precisam de reflectir cada vez que decidem fazer qualquer coisa engraçada. Nada lhes causa admiração. E dizem sempre: "É simplesmente assim, Cecilie."

- Mas Deus também gosta dos adultos? - indagou ela com cautela.

- Com certeza, apesar de eles nunca mais terem sido os mesmos desde o pecado original.

- Nunca mais terem sido os mesmos?

- Eles vêem o Mundo como uma coisa habitual. O mesmo não acontece no Céu com os anjos apesar da nossa existência eterna. Continuamos a ter admiração pelo que Deus criou. Ele próprio se admira. Por isso, Ele regozija-se mais com a curiosidade das crianças do que com as atitudes indiferentes dos adultos em relação ao Mundo.

Cecilie não parava de pensar e sentia a cabeça a faiscar. Isto já lhe tinha acontecido várias vezes. Durante a doença, ela sentia que a sua cabeça era como um autêntico carrocel de pensamentos engenhosos. Mas com a diferença de não precisar de pagar bilhete como para andar na montanha-russa.

- Quase todos os adultos se acomodaram no Mundo e aceitam a obra da Criação como um dado adquirido - precisou Ariel. -É um pensamento quase ridículo, porque eles estão aqui só de passagem.

- De acordo.

- Estamos a falar do Mundo, Cecilie, Como se o Mundo não fosse uma sensação, Talvez o Céu devesse enviar regularmente o seguinte anúncio para os jornais de maior tiragem:

"Informação importante para todos os cidadãos do Mundo! Isto não é apenas um boato: O MUNDO EXISTE!"

Cecilie sentia-se estonteada com as palavras de Ariel, que agitava e batia as pernas, e perguntou:

- Não teria sido preferível se Deus tivesse expulsado essa horrível serpente do Paraíso para que Adão e Eva brincassem eternamente às escondidas no grande jardim?

Inclinando a cabeça, Ariel respondeu:

- Isso não é assim tão simples. Visto que vocês são de carne e osso, não são eternos como os anjos. Mas Deus não teve coragem de eliminar as crianças da obra da Criação. Seria um pouco melhor se eles crescessem primeiro.

- Porquê?

- É muito mais fácil alguém despedir-se do Mundo com meia dúzia de netos e, ao mesmo tempo, já menos lúcido e, sobretudo, saciado da vida.

Cecile não se deixou impressionar com a última parte.

- Acontece também que algumas crianças morrem replicou ela. - Não é parvoíce?

"Não é parvoíces repetiu Ariel. - "Não é parvoíce"?

Ariel nada mais adiantou e Cecilie perguntou:

- Tens a certeza absoluta de que Adão e Eva foram crianças?

- Sim, absoluta. Nunca te passou pela cabeça que as crianças são os seres que mais se parecem com os anjos.-., já viste um anjo com cabelo grisalho, dores nas costas ou rugas fundas na cara?

Algo naquela pergunta fez com que Cecilie protestasse:

- Apesar da idade, não acho a minha avó feia.

- "A minha avó feia" - repetiu Ariel. - Eu não disse isso. Naquele corpo envelhecido há uma pequena Eva que um dia veio ao mundo. A outra cresceu só por fora com o passar dos anos.

Cecilie deu um suspiro fundo:

- Se me permites, acho que a obra da Criação foi organizada de forma idiota.

- Porquê?

- Não tenho vontade nenhuma de me tornar adulta. E de morrer, ainda menos. Nunca!

O anjo assumiu um semblante sombrio, dizendo:

- Deves tentar conservar a criança que há dentro de ti. A tua avó conseguiu. Não acontece que ela, às vezes, faz de palhaço para que tu te rias?

- Estavas lá também?

- Claro que estava!

No instante seguinte, o anjo Ariel pôs-se de pé. Cecilie não o viu saltar da escrivaninha, mas, de repente, ele estava diante da estante de livros a observar os cristais e pedras decorativas. Ele era ligeiramente mais pequeno do que Lasse.

- Uma boa colecção - disse ele de costas.

E virando-se para ela:

- Já pensaste que cada pedra é um bocadinho da Terra?

- Muitas vezes. Eu apenas colecciono as peças mais bonitas...

- Mas provavelmente nunca pensaste que tu própria, de certo modo, arrancaste um pedacinho da Terra.

Ela estremeceu:

- Porquê?

- Movimentas-te agilmente na obra da Criação. Uma pedra não consegue fazer isso.

Pela primeira vez, Cecilie viu a cara do anjo nitidamente. Embora mais pálida, a sua pele era muito mais lisa e fresca do que a pele humana. Ela começara a habituar-se à calvície de Ariel e reparou que ele não possuía pálpebras, nem sobrancelhas.

O anjo avançou na direcção dela e sentou-se na cadeira diante da cama. Deslocava-se com tanta leveza que dava a impressão de não tocar com os pés no chão; parecia antes que deslizava pelo soalho. Os olhos, azuis-esverdeados, cintilavam como pedras preciosas e os dentes brilhavam como bocadinhos de mármore branco.

Enquanto conversavam, Cecilie olhava fixamente para a cabeça dele e disse:

- Posso fazer-te uma pergunta a respeito do teu cabelo?

Ele riu-se:

- Claro que podes. Depois talvez possamos falar da tua barba.

Ela olhou para o edredão:

- Eu julgava que os anjos tinham cabelo comprido e claro.

- O que acontece é que vês tudo através de um espelho e, em consequência disso, é quase inevitável que te vejas a ti própria.

Ela não ficou satisfeita com a resposta:

- Não me podes dizer porque é que não tens cabelo na cabeça?

E ele respondeu:

- Pêlos e pele crescem no corpo e andam constantemente a cair. É algo que interliga a carne e o sangue, protegendo das impurezas, do frio e do calor. Os pêlos e a pele são semelhantes às peles dos animais e nada têm a ver com anjos. Poderias perfeitamente perguntar-me se lavamos os dentes ou se cortamos as unhas, ao sábado, de quinze em quinze dias.

- Vocês não fazem, uma coisa nem outra, pois mão?

Ele disse que não.

- Não é isto que nos torna semelhantes.

- O que é, então?

Ele baixou o olhar para ela:

- Tanto os anjos como os seres humanos têm uma alma criada por Deus. Mas os seres humanos têm um corpo que segue um caminho próprio: crescem e desenvolvem-se à semelhança das plantas e dos animais.

- Que estupidez! - suspirou Cecilie. - Não gosto de pensar que sou um animal.

Ariel continuou a falar, como se nada tivesse ouvido:

-A vida das plantas e animais parte de pequenas sementes ou células. São tão pequenas a princípio que é impossível distingui-las umas das outras. Depois é que sofrem um desenvolvimento gradual até se tornarem em framboeseiras ou macieiras, seres humanos ou girafas. Leva muitos dias a distinguir um feto de porco do feto humano. Sabias?

Ela concordou:

- Quase não fiz outra coisa nas últimas semanas senão ler a revista Ciência Ilustrada.

- Mesmo assim, não existem duas pessoas exactamente idênticas. Nem mesmo existem duas palhas iguais na obra da Criação.

Cecilie lembrou-se do saco com bolas de papel japonesas que o pai lhe dera havia muitos anos. Ela não conseguia distingui-las de tão pequenas que eram. Mas, quando se metiam na água, expandiam-se e transformavam-se em figuras distintas, de cores diversas. Nenhuma era igual.

- Já te disse que não gosto de pensar que sou um animal - repetiu ela.

Ariel pousou, ao de leve, a mão sobre o edredão. Ela mal sentiu que ele lhe tocara na perna.

- Tu és um animal com alma de anjo, Cecilie. E de ambos tens o melhor. Não é esplêndido?

- Não sei...

- A arte está precisamente nesta combinação. Quando estás plenamente consciente, és como os anjos no céu. "Boa tarde, jovem! Chamo-me Cecilie Skotbu. Concede-me a próxima dança?"

O anjo Ariel estendeu um braço e fez uma vénia profunda, como se tivesse vindo directamente da escola de dança. E prosseguiu:

- Mas o corpo em que habitas, Cecilie é de carne e osso, à semelhança das vacas e dos camelos. Por essa razão é que nasce cabelo em todo o teu corpo e, sobretudo, na cabeça, embora pouquíssimo no princípio. Depois, à medida que o tempo passa, aparece cada vez mais depressa e a um ritmo mais acelerado! A natureza desenvolve-se como uma camada cada vez mais espessa em redor da criança que um dia veio ao Mundo. Ao abandonar a mão do Criador, são frescos e macios como os anjos no Céu. Mas isso é apenas exteriormente, porque o pecado original já está em curso. Dentro do corpo, a carne e osso estão em actividade permanente, o que faz com os seres humanos não sejam eternos.

Cecilie mordeu o lábio. Ela não gostava de falar sobre o corpo, nem da ideia de estar a crescer.

- Até à idade de dois anos, o meu irmão Lasse não tinha um único cabelo na cabeça - disse ela.

- Escusas de me dizer isso.

- Sendo assim, sabes também que me deram medicamentos muito fortes no hospital e que por causa disso, perdi todo o cabelo.

Ele confirmou:

- Nessa altura, éramos ainda mais parecidos.

- Eu estava para repetir o tratamento, mas mudámos de ideias...

- Eu sei.

- Foi a avó quem convenceu todos, inclusive os médicos. Ela é incrível quando decide uma coisa. Foi só fazer a mala e deixar o hospital. Mas a Kristine, que é enfermeira, vem aqui várias vezes por semana...

- Eu sei de tudo isso.

Cecilie olhou para o tecto e, por momentos, fez uma retrospectiva dos acontecimentos dos últimos meses. Depois voltou-se para Ariel:

- Tens a certeza de que és mesmo um anjo?

- Já disse que os anjos não mentem.

- Mas se mentes, não és anjo, e pode dar-se o caso de estares a mentir.

Ele suspirou profundamente:

- Mas que desconfiança!

Cecilie sentiu um arrepio frio por todo o corpo. Seria causado pela desconfiança?

- Posso fazer-te uma pergunta estúpida? - indagou ela.

- Não há perguntas estúpidas.

Ela não perdeu tempo:

- És rapaz ou rapariga?

Ariel deu uma gargalhada cristalina. Cecilie achou aquele som idêntico à música que ela tocara com garrafas cheias de água. O som era tão engraçado que ela repetiu a pergunta:

- És rapaz ou rapariga?

Ele observou-a certamente com atenção, porque, antes de responder, voltou a rir, mas desta vez de uma forma esforçada.

- Foi uma pergunta tipicamente terrestre.

Ela sentiu-se ofendida. Não tinha ele acabado de dizer que não havia perguntas estúpidas?

- No Céu, não existem essas diferenciações peculiares afirmou ele solenemente. - Mas podes perfeitamente chamar-me "rapaz" e assim seremos um de cada sexo.

- Por que razão existirão estas diferenciações peculiares aqui?

- Já falámos sobre isso. São necessários dois sexos diferentes para que venham novas crianças ao mundo. Tu sabes isso, Cecilie. Para dizer a verdade, este não é um tema interessante para um anjo.

- Desculpa!

- Não, não faz mal. Estou certo de que Deus não teria feito distinção entre rapazes e raparigas, se o propósito não fosse a reprodução quando eles se tornam homens e mulheres. Provavelmente ele tomou essa decisão, porque no momento não lhe ocorreu melhor ideia. Tens uma sugestão melhor?

- Não sei.

Ele mostrava-se agora muito entusiasmado:

- Se a reprodução humana fosse gemípara, gostarias certamente de saber porquê. Mas, mesmo que fosse assim, poderia perfeitamente ter sido muito diferente. Vocês poderiam, por exemplo, viver no interior do globo terrestre, em vez de se movimentarem fora dele. Se as condições fossem propícias, poderiam ser construídas cidades e quintas no interior do globo terrestre. Caso contrário, teriam de ser criadas condições. Criar um mundo é, sem dúvida, uma arte prodigiosa.

- É absolutamente absurdo pensar nisso - opinou Cecilie. - E torna-se ainda mais absurdo quanto mais se pensa.

- No quê?

- Que existem duas espécies de pessoas na Terra.

Sentado, com um ar gaiato, ele disse:

- Discutem-se estas coisas no Céu. Mas não é bem a mesma coisa.

- Porque não?

- Porque não estamos a discutir sobre nós próprios. Deve ser ainda mais surpreendente achar-se estranho ser aquilo que se é. Não me parece que uma pedra ache estranho o facto de ser pedra. Nem uma tartaruga acha estranho o facto de ser tartaruga. Mas certas pessoas acham estranho o facto de serem seres humanos. Eu nunca me senti ao nível das pedras nem das tartarugas.

- Não achas estranho seres anjo?

Ele não respondeu de imediato.

- O meu caso é completamente diferente, porque sempre fui anjo. Mas tu és Cecilie Skotbu há pouco tempo.

- Exactamente! E continuo a achar muito estranho que eu seja eu.

- Toda a obra da Criação é, indubitavelmente, um mistério - concluiu Ariel. - O mais estranho, contudo, é que algures nesse mistério existem umas quantas criaturas que se consideram um mistério.

- Porque será assim tão estranho?

É como se um poço pudesse mergulhar na sua própria e inexplicável profundeza.

- Mas eu fiz isso muitas vezes - assegurou Cecilie.

- O quê?

- Diante do espelho, olhei-me nos olhos. E imaginei-me ser um poço tão profundo que não conseguia discernir o que estava no fundo.

- Isso deve-se certamente às tuas mutações constantes. Não é de admirar que uma pessoa que muda pouco a pouco, também se surpreenda. Se uma larva pudesse pensar, ficaria certamente perplexa ao compreender que se transformava em borboleta. E isso acontece de um momento para outro. Mas os anjos do Céu sentem-se igualmente estupefactos por uma rapariguinha, de repente, se transformar numa mulher adulta. Para nós, aquele pequeno lapso de tempo não tem grande significado.

- Porque não?

- Os anjos têm muito tempo, Cecilie, e a diferença entre uma menina e uma mulher adulta é abissal.

- É verdade que discutem isso no Céu?

Atrapalhado, Ariel anuiu com a cabeça. E, lançando um olhar pelo quarto, disse:

- Mas evitamos fazer isso quando Deus está presente. Ele é muito sensível a críticas.

- Eu não fazia ideia.

- Vocês acreditam em tantas coisas. Vocês não podem esperar ver as coisas sob a mesma perspectiva dos anjos do Céu.

- O que eu queria dizer, é que julgava que Ele era superior a qualquer crítica.

- Nunca o viste cara a cara. Se tu, por acaso, também tivesses criado um mundo, serias certamente sensível a críticas. Estamos a falar de coisas descomunais. Apesar de Ele contemplar a Sua obra de Criação com satisfação, isto não significa que certas coisas não pudessem ter sido deferentes.

Extenuado e com tudo criado, Ele descansou ao sétimo dia.

Depois, sucumbiu simplesmente, percebes? Há-de transcorrer muito tempo, antes de Ele voltar a tentar outra proeza com esta magnitude.

Absorvida nos seus pensamentos, Cecilie disse:

- Imagina se só existisse um sexo. Se formos a ver, o melhor ainda seriam três.

- Não achas que o homem e a mulher arranjam complicações que bastam?

- Mas as complicações podem ser motivadas pelo facto de serem só dois, sobretudo em famílias com muitas crianças. Dá a impressão de que não sabes grande coisa sobre a vida na Terra.

Ariel encolheu os ombros.

- Gostaria de aprender mais.

- Se a produção de crianças dependesse de três sexos diferentes - insistiu Cecilie, - nasceria menos gente, o que poderia evitar o superpovoamento...

- Espera lá - objectou Ariel. - Estás a andar com demasiada pressa.

Desanimada, Cecilie suspirou.

- Eu pensava que os anjos conseguiam acompanhar o ritmo das aulas.

- Esse não é o caso quando se trata de nascimentos e coisas análogas. Nessa altura, distanciamo-nos o mais possível do Céu.

- Quero dizer com isto que três pessoas com muita afeição entre si teriam mais dificuldade em decidir ter um filho em conjunto, do que duas pessoas que se apaixonam uma pela outra e têm um filho antes de alcançarem a maturidade.

- Esse é um cálculo puramente matemático. Se os dois sexos precisassem de um terceiro para terem filhos. É aí que queres chegar?

Ela abanou a cabeça:

- Se dois dos três sexos tivessem vontade de ter filhos, é provável que o terceiro dissesse: "Não, pelo menos um de nós tem de ser razoável. Temos de esperar mais um ano ou dois. Eu não estou disposto a ter mais filhos por agora ou ficaremos muito sobrecarregados."

Ela riu-se com esta saída e o seu riso contagiou Ariel.

- É precisamente sobre pensamentos engraçados como estes que nós especulamos no Céu.

Mas Cecilie continuou:

- Nesse caso, seriam uns quantos mais a tomar conta das crianças, por exemplo, quando elas adoecem. Dois dos adultos poderiam dedicar mais tempo um ao outro, enquanto a mamã ou o papá número três cuidava dos filhos. Seriam igualmente mais pessoas a afeiçoar-se às crianças. Ao fim e ao cabo, seriam muito mais pessoas a gostar umas das outras.

Ariel tinha uma expressão indecifrável. Era como se ele tivesse tido sempre esta máscara e retorquiu:

- É apenas no seio das famílias que as pessoas gostam umas das outras?

- Talvez não seja assim, mas haveria seguramente mais amor no mundo se os progenitores fossem três ou quatro. Só que...

- O quê?

- ...só que a dor aumentaria também.

- Dor?

Cecilie voltou a morder os lábios, dizendo:

- Quando alguém morresse, seriam mais pessoas de luto.

Ariel abanou a cabeça negativamente:

- Acho que estás novamente a tirar conclusões precipitadas.

- Porquê?

- Se assim fosse, também haveria no Mundo o dobro da consolação.

- Nessa ordem de ideias, um compensaria o outro.

Ele concordou:

- Mas se cada família tivesse apenas dois filhos, os seres humanos acabariam por desaparecer da face da Terra.

- Porquê?

- Se três adultos tivessem somente dois filhos, os seres humanos diminuiriam pouco a pouco até se extinguirem completamente.

Cecilie riu-se:

- Um belo dia restaria apenas um Adão e uma Eva, como no início. Se fossem redimidos do pecado original, poderiam viver no Paraíso para a eternidade. Não foi uma boa ideia?

- Nada má. Mas discutamos sobre a organização da obra da Criação.

- E isso adianta alguma coisa? Pareces a mamã quando diz que não adianta nada que me queixe da doença. Agora também não quero falar de doenças e de coisas do género.

- Não fui eu que falei de doenças. Prometo-te que, quando voltar a falar com Deus, abordarei o assunto dos três sexos. Ele, ao menos, tem sentido de humor.

- A sério?

Ele sorriu com indulgência:

- Nunca viste um elefante? Nem fazes ideias das anedotas que temos no Céu sobre elefantes! Sobre girafas temos também umas quantas.

Cecilie não sabia se estava certa que os anjos contassem anedotas no Céu sobre a obra da Criação. Isso tornava esta questão demasiado frívola.

- Espero que não contem anedotas sobre mim - disse ela.

- Nem pensar. Nunca ouvi uma única anedota sobre Cecilie. Apesar de compreenderes as coisas parcialmente, Já percebeste por certo que é demasiado tarde para endireitar a obra da Criação.

- Talvez...

- Queres que te conte uma boa?

- Sim.

- Acontece que falamos como tudo é e como poderia ser e Deus, estendendo os braços e com um semblante resignado, diz para si próprio: "Estou ciente de que uma coisa ou outra poderia ter sido diferente, mas o que está feito está feito e eu não sou todo-poderoso."

Cecilie ficou boquiaberta.

- Nem um único padre acreditaria nisso! - Sendo assim, um deles está enganado, ou os padres ou Deus!

Cecilie levou uma mão à boca e bocejou. O anjo assumiu uma expressão retraída.

- A tua mãe está mesmo a chegar - disse ele. - Tenho de despachar-me...

- Não ouço nada.

- Mas ela vem aí agora mesmo.

Cecilie ouviu o despertador tocar no quarto ao lado.

- Vais-te embora?

Ele fez-lhe sinal que não com a cabeça:

- Vou sentar-me à janela.

- A minha mãe consegue verte?

- Não me parece.

No momento seguinte, a mãe de Cecilie entrava no quarto:

- Cecilie?

- Mmm...

- A luz está acesa?

- Não estás a ver?

- Só queria certificar-me como estás.

- Já é dia?

- São três horas.

- Mas ouvi o despertador.

- Eu pus o despertador para as três.

- Porquê?

- Porque gosto de ti. Não posso deixar que a noite passe, sobretudo a Noite de Natal.

- Vai dormir, mamã.

- E tu, consegues dormir?

- Umas vezes durmo, outras vezes, estou acordada. Não consigo fazer a distinção entre uma coisa e outra.

- Queres alguma coisa?

- Tenho água...

- Não precisas de ir à casa de banho?

Ela sacudiu a cabeça.

- Foi tão bonito quando cantaram! Eu adormeci com a avó ao piano.

- Queres que areje um pouco o quarto?

- Talvez um pouco.

A mãe dirigiu-se para a Janela. Cecilie julgou poder ver Ariel no parapeito, mas ele foi esmaecendo à medida que a mãe se aproximou.

- Estás a ver as rosetas de gelo no vidro? - perguntou ela. - Não é estranho como se desenham a si próprias?

A mãe abriu a janela.

- Há muitas coisas estranhas, mamã. Agora que estou doente, parece que compreendo tudo muito melhor. Parece que o Mundo tem os cantos mais definidos.

- Costuma ser assim. Basta uma gripe forte para ouvirmos os pássaros de forma diferente.

- Contei-te que o carteiro me acenou?

- Sim, contaste-me... mas agora vou fechar.

Voltou-se de novo para a cama e abraçou Cecilie.

- Então, dorme bem. Vou pôr o despertador para as sete horas.

- Não é preciso. É Natal.

- Precisamente por isso. Ouve Cecilie...

- Sim?

- Não é melhor passar a tua cama para o nosso quarto?

- Talvez seja mais confortável para ti... e mais fácil para o pai e para mim.

- Não é preferível que vocês venham cá?

- Sim, claro. Toca a campainha as vezes que quiseres. mesmo a meio da noite.

- Sim, claro. Mas, mamã...

- O que é?

- Se eu fosse Deus, teria criado o Mundo de modo a que toda a gente tivesse, no mínimo, três progenitores.

- Porque dizes isso?

- Porque vocês não se cansariam tanto e poderiam estar mais tempo um com o outro, enquanto o terceiro, mãe ou pai, estava comigo ou com o Lasse.

- Não digas isso.

- Porque não? Sei que não é possível mudar a obra da Criação. Mas, às vezes, acho que Deus é um parvalhão. Ele nem sequer é todo-poderoso.

- Acho que sentes uma certa revolta interior por estares um pouco doente.

- Um pouco?

- Ou melhor, muito. Dorme bem. Não ajuda nada senti revolta, Cecilie.

- "Não ajuda nada sentir revolta, Cecilie". Já disseste isto centenas de vezes.

- Mas espero e rezo a Deus para que fiques boa. Todos nós o fazemos.

- Claro que vou ficar bem. É, sem dúvida, a coisa mais parva que disseste nos últimos tempos.

- A Kristine vem dar-te a injecção amanhã.

- Estás a ver?

- O quê

- Acreditas que ela viria de tão longe no Dia de Natal, se não estivesse convicta de que o medicamento ajudava?

- És uma grande tola, mamã! Por teres vivido tanto tempo, estás maluca de todo.

- Claro que ela acredita que o medicamento ajuda! E eu também... Tens mesmo a certeza de que não queres vir para o nosso quarto?

- Em breve, serei adulta. Não entendes que eu quero o meu próprio quarto? - - Claro que sim.

- Não tem qualquer piada estar na cama a ouvi-los ressonar.

- Também entendo isso.

- Não leves isto a peito ... Ah, obrigada pelos presentes!

- Queres que eu apague a luz?

- Não, eu trato disso. Logo que eu acabe de pensar, apago.

Depois de a mamã regressar ao seu quarto, Cecilie pegou na lapiseira e no livro de notas que estavam sob a cama e escreveu:

Cada segundo que passa. umas quantas crianças. novinhas em folha. saem da manga do casaco de Deus. Abracadabra. Em cada segundo que passa. desaparecem também muitos seres humanos. Uma fila muito. muito comprida. até que chega a vez de Cecilie ...

Não somos nós que vimos ao Mundo, mas o Mundo que vem ao nosso encontro. Nascer significa ter o Mundo como presente.

Deus, estendendo os braços e com uma expressão resignada. diz para si próprio: "Estou ciente de que uma coisa ou outra poderia ter sido diferente, mas o que está feito, está feito e eu não sou todopoderoso."

Cecilie voltou a empurrar o livro e a lapiseira para debaixo da cama e adormeceu por momentos.

Ao abrir os olhos, olhou para o tecto, sem fazer ideia quanto tempo tinha passado. As luzes da árvore alta do jardim iluminavam o quarto. As rosetas de gelo na janela pareciam de ouro.

- Ariel - murmurou ela.

- Estou aqui.

- Não consigo ver-te.

- Aqui...

Só nesse momento é que ela o viu. Ele instalara-se na parte superior da estante, onde não havia livros.

- Como é que conseguiste aí chegar?

- Para um anjo não há qualquer problema. Dormiste bem?

Logo a seguir, ele desceu. Ela não o vira saltar, nem ouvira qualquer estrondo. Sem mais nem menos, ele encontrava-se simplesmente no chão a tocar nos esquis.

- Bons esquis - disse ele. - O trenó também é jeitoso.

Ariel virou-se e Cecilie reparou como ele era lindo. Os olhos eram ainda mais cristalinos, verdes-azulados e enigmáticos do que ela se lembrava e assemelhavam-se a uma pedra preciosa que ela vira num livro sobre pedras de joalharia. Não seria a safira?

- Como é que sabias que a minha mãe estava a chegar perguntou ela.

- "Que a minha mãe estava a chegar" - repetiu Ariel.

"Como é que sabias que a minha mãe estava a chegar?"

- Estás a imitar-me!

- Estou apenas a saborear as palavras.

- Saborear as palavras?

Ele abanou a cabeça:

- É a única coisa que um anjo consegue saborear.

- Soube-te bem?

- Foi um pouco esquisito.

- Porquê?

- Não achas também estranho que, outrora, tivesses andado a chapinhar no ventre dela?

Cecilie deu um suspiro condescendente. Ela pensou para consigo que tudo o que se relacionava com nascimentos se distanciava o mais possível do Céu e perguntou:

- Como é que sabias que ela vinha?

- Ela tinha posto o despertador para as três horas.

- Não consegues ver através das paredes, pois não?

Ele deu um passo em direcção a ela:

-Vê se acabas com essas tolices. O que chamas "paredes", não são paredes para nós!

Cecilie levou a mão à boca.

- Nesse caso, tiras radiografias. Consegues ver através do meu corpo?

- Se eu quiser, consigo. Mas eu desconheço a sensação dos alimentos a serem digeridos no estômago para se transformarem em carne e osso.

Ela ficou toda arrepiada:

- Acho que vamos mudar de conversa.

- Para mim está bem.

- Podes aproximar-te um pouco?

Ele sentou-se logo na cadeira, diante da cama de Cecilie. Era como se tivesse trocado de lugar, sem pousar os pés no chão, mais ou menos como um diapositivo que se projecta na sala mediante a deslocação da máquina projectora.

- Eu não notei que te tivesses mexido - disse ela. - E, de repente, já estavas aí sentado.

- Ao contrário dos seres humanos, nós não precisamos de "movimento". A única coisa que precisas de fazer, é dizer-me onde me queres e eu lá estarei.

- Explica-me melhor. Diz-me como consegues transpor portas fechadas, que é coisa que nunca percebi.

Ele hesitou:

- Conto-te sob uma condição.

Cecilie sobressaltou-se:

- Não fazia ideia que os anjos punham condições pelas suas boas acções!

- Não me estás a pedir apenas uma boa acção, mas sim que te revele segredos celestiais.

- Qual é a condição?

- Que me fales dos segredos terrestres.

- Que Coisa? já sabes tudo.

Sentado na cadeira, Ariel inclinou-se para a frente e disse:

- Não sei o que é ter membros de carne e osso. Não sei o que é crescer. Tão-pouco sei o que é comer, sentir frio ou ter sonhos cor-de-rosa.

- Não sou certamente o primeiro ser humano com quem falas. Não me disseste que os anjos existem desde sempre e para sempre

- Eu disse também que os anjos não cessam de admirar a obra da Criação. E nós revelamo-nos muito raramente. A última vez que fui anjo da guarda, foi na Alemanha há mais de cem anos.

- Anjo da guarda de quem?

- Ele chamava-se Albert e estava muito doente.

- Que se passou com ele?

- Infelizmente, não estava bem. Foi por isso que estive lá.

Cecilie resmungou:

- Então é somente quando algo vai mal que vocês fazem uma visita. É a coisa mais parva que ouvi até hoje.

- Nunca é demasiado tarde para consolar uma pessoa que está aflita.

- Ele não te contou o que é ser humano, de carne e osso?

Ariel disse que não com a cabeça:

- Ele era demasiado pequeno.

- Que pena...

- Porquê?

- Porque agora terei mais trabalho.

- Mas manténs a promessa?

Cecilie tentou levantar-se um pouco na cama.

- Vou tentar - disse ela. - Mas tu é que começas.

- De acordo!

Ariel endireitou-se na cadeira. Sob a camisa branca surgiram duas pernas despidas. Ele estendeu-as sobre a cama de Cecilie. As pernas eram acetinadas como as de uma criança recém-nascida. Ela não viu um único poro na pele dele.

Antes do encontro de Cecilie com Ariel, ela nunca imaginara que os pêlos do corpo pertenciam ao reino vegetal e animal. E foi então que se apercebeu como seria estranho um anjo ter pêlos nas pernas. Podia crescer e medrar um pouco de tudo em árvores muito antigas. O mesmo acontecia com os seres humanos e com os animais. Mesmo sobre as pedras, crescia musgo e líquenes. Mas num anjo nada crescia.

Depois prestou atenção às unhas dos pés dele. Era óbvio que elas não precisavam de ser cortadas e faziam lembrar uma das pedras da sua colecção. Seria a que se chamava cristal de rocha?

- Os anjos sentem cansaço? - perguntou.

- O que é que te faz crer tal coisa

- Colocaste as pernas sobre a cama.

Ele sorriu com bondade:

- Tenho observado como os seres humanos se sentam quando fazem uma confidência.

- Estás a imitar-me outra vez. Porque não te comportas naturalmente? A minha mãe costuma dizer: "não tenhas vergonha".

- Se é assim, talvez possas levantar-te um pouco da cama. Sabes que está a tornar-se aborrecido conversar contigo sempre aí prostrada?

- Eu estou bastante doente.

- Levanta-te, Cecilie.

Ela tentou fazer o que o anjo lhe pediu e sentou-se ficando voltada para ele. Cecilie estava na cama e Ariel na cadeira. Ela sentia-se muito melhor agora. Há muito tempo que não se sentava direita e pensava nos segredos terrestres que iria contar ao anjo.

Ariel começou:

- Muitos seres humanos julgam que um anjo é uma sombra, desprovida de membros, que esvoaça entre o Céu e a Terra...

- Era assim que eu imaginava dantes.

- Mas é precisamente o oposto. Para nós, os seres humanos são leves e frágeis. Quando tu dás um pontapé numa pedra, o teu pé esbarra na pedra. Se eu fizesse o mesmo, o meu pé atravessaria a pedra de lado a lado. Para mim, a pedra não tem uma consistência maior do que um tufo de nevoeiro.

- Então já percebo como é que vocês conseguem, atravessar portas e paredes sem se magoarem. Mas não entendo como éque as paredes não ficam danificadas.

- Quando atravessas o nevoeiro, também não o estragas. E os teus pensamentos também não causam danos no Mundo à tua volta.

- Isso é verdade. Mas se consegues transpor uma parede, é porque não tens um corpo a sério.

- Toca no meu pé, Cecilie.

- Ela pôs dois dedos à volta do dedo grande do pé dele e apertou. Parecia aço.

Ariel disse:

- Temos membros mais duros do que outros da obra da Criação. Os anjos jamais se magoam. E isso deve-se ao facto de não termos um corpo, de carne e osso, de que a nossa alma se possa separar.

- Podes regozijar-te...

- Com a natureza é diferente: tudo se estraga com facilidade. Mesmo uma montanha sofre a erosão lenta das forças da natureza, acabando por transformar-se em terra e areia.

- Obrigada pela informação, mas estou ao corrente disso.

- Vocês é que são as nossas sombras, Cecilie. Nunca ao contrário. Vocês aparecem e desaparecem. Vocês não duram. Surgem repentinamente. É maravilhoso quando uma criança recém-nascida é colocada sobre o ventre da mãe. Mas vocês desaparecem com a mesma rapidez. É como se Deus soprasse bolas de sabão convosco.

Cecilie entreabriu os olhos:

- Desculpa que te diga directamente, mas isto cheira-me a esturro.

Ele concordou:

- Talvez não esteja mal formulado. Tudo o que existe na natureza é como um incêndio lento. Toda a obra da Criação está sobre uma fogueira de musgo.

- Não acho isso agradável, como também não gosto do pensamento de ser "uma sombra".

Ariel pôs a mão na boca, como se compreendesse que falara de mais.

- Mas os seres humanos não são sombras uns dos outros. - acrescentou ele prontamente. - O teu pai não precisa

de segurar-te bem e contrair os músculos quando te leva ao

colo para a sala, no andar de baixo?

- Isso é só conversa!

Que te leva a dizer isso

- Tens sempre respostas ajuizadas para todas as minhas

perguntas. Mas não vejo que seja verdade aquilo que dizes.

- Voltámos ao princípio?

- a Onde?

to - Continuas a julgar que minto.

Ela fingiu não ouvir:

- Podes, por exemplo, atravessar a parede e ver se os meus pais dormem?

- Não vamos repetir muitas vezes esses jogos...

- Então, só esta vez

Ariel levantou-se da cadeira e atravessou o quarto. Ao alcançar a parede, ele continuou a andar. Cecilie viu-o deslizar pela

parede. O pé que ficou atrás passou a parede e desapareceu.

- Estão ambos a dormir - disse ele. - O braço do teu

pai está sobre o ombro da tua mãe. O despertador está marcado para as sete horas.

- Bravo! - gritou Cecilie, batendo palmas. - Nesse caso,

não preciso de ficar no quarto da minha mãe e do meu pai.

- Não, se algo acontecer, posso acordá-los mais depressa

do que um despertador.

- É verdade?

Certamente por Cecilie não crer nele, o anjo sorriu desanimado e disse:

- Isso tem sempre piada. Eles julgam que acordam sozinhos e costumam dizer: "Não é estranho que eu tivesse acordado agora mesmo? Pressenti que alguma coisa estava mal."

- Em todo o caso, é uma cena divertida!

- Também é engraçado observar os adultos durante o

sono. Parecem-se com crianças. Provavelmente sonham que

estão a brincar na neve, na rua.

Então, Cecilie disse com vivacidade:

- Deste-me uma boa ideia! Não poderás ir lá fora buscar uma bola de neve? Nem sequer precisas de abrir a porta.

Ariel já se levantara da cadeira.

- Só preciso de meter a mão através do vidro da janela disse ele. - Há muita neve acumulada no peitoril.

E foi o que ele fez. Saltou primeiro para a secretária e Cecilie viu-o meter a mão pela janela fechada. E, de imediato, apareceu no chão com uma bolinha de neve nas mãos. O vidro continuava intacto.

Ela arregalou os olhos.

- Fantástico!

- Agora já estás contente?

- Não plenamente. Quem me dera poder sentir a neve.

- Toma lá - disse Ariel, atirando a bola de neve para o edredão. Cecilie apanhou-a com as mãos.

- Que gelado - disse ela. É a primeira vez que toco na neve deste ano.

- "Neve deste ano" - repetiu Ariel. - Soa quase a "fruta da época" ou "frutos do mar".

Cecilie levou ao rosto a bola de neve, que começava a derreter. Logo a seguir, colocou-a dentro do copo que estava na mesa-de-cabeceira. Ariel sentou-se na cadeira.

- Eu nunca senti a neve - disse ele levemente amuado.

Sei que nunca poderei fazê-lo. Nunca!

- Estás a dizer disparates. Acabaste de tocar nela.

- Sim, mas nada senti. Os anjos nada sentem, Cecilie.

- Não sentiste que ela era fria?

Ariel mostrou um ar desalentado:

- Não tem nenhuma graça brincar contigo, se não aprendes depressa! Tocar numa bola de neve é para nós a mesmissima coisa que agarrar num pensamento. Tu também não te recordas com precisão como era a neve do ano passado.

Cecilie abanou a cabeça e Ariel perguntou:

- Que sentes quando seguras numa bola de neve?

- Frio... gelado.

Ela fez um grande esforço:

- Pica na pele e faz comichão como hortelã-pimenta forte.

Dá vontade de retirar a mão e a pele fica arrepiada. Mas, ao mesmo tempo, é muito agradável.

Enquanto Cecilie falava, Ariel inclinou-se para ela.

- Nunca provei hortelã-pimenta - disse ele. - E jamais senti a pele arrepiada.

Cecilie compreendia agora que era tão dificil para Ariel entender as coisas terrestres como para ela as coisas celestiais e disse:

- Que sensação desagradável deve ser tocar numa coisa que não se sente! O que mais detesto, é ser anestesiada pelo dentista.

- "Anestesiada pelo dentista" - repetiu ele.

- Mas deve ser ainda pior ter uma anestesia total. Nesse caso, vocês não sentem que vivem.

O anjo adquiriu uma expressão indecifrável e perguntou:

- Sentes a bola de neve em todo o corpo?

Cecilie riu-se:

- No cabelo, não. Nem nas unhas.

- Mas sentes onde tens pele e isso acontece praticamente em todo o corpo. Trata-se de um fato mágico que reveste a carne e os ossos e proporciona aos seres humanos sentirem o meio em seu redor. Consegues entender como isso é possível?

- Um fato mágico?

- A tua pele, Cecilie, refiro-me a esse tecido fino com ramificações nervosas. Deus criou o Mundo de uma forma tão inteligente, permitindo que a obra da Criação fosse sentida. Concordas que Ele foi esperto?

- Talvez...

- Os seres humanos têm a mesma sensibilidade em todo o corpo?

Ela refectiu:

-Tenho mais cócegas numas partes do corpo do que noutras. É muitíssimo agradável quando me fazem cócegas em certas partes do corpo. Às vezes é tão agradável que até chega a magoar. Fazias Ideia de que algo quase Pode magoar

de tão agradável que é?

- "Fazias ideia de que algo quase pode magoar de tão agradável que é?"

- Estás a imitar-me novamente.

Ariel discordou:

Estou simplesmente a tentar perceber o que dizes. Como é igualmente possível uma coisa magoar tanto a ponto de tornar-se agradável?

- Não...

- Desculpa a pergunta. Os anjos desconhecem o que é a dor.

- É verdade que sois tão insensíveis como a terra e as pedras?

Ariel acenou solenemente com a cabeça:

- É verdade!

- Não sei o que é preferível.

- Ser pedra ou anjo?

- O que quero dizer é que, se eu nada sentisse, jamais sentiria dor. Talvez o melhor fosse estar totalmente anestesiada.

- Se formos a ver bem, do que tu não gostas é do dentista e não da anestesia local.

Cecilie concordou:

- Mas acho um Pouco difícil crer que os anjos não distingam o agradável da dor.

Por um triz, ela não repetiu que duvidava da existência dos anjos. E apressou-se a acrescentar:

- Porque não tens asas.

Ariel riu:

"Asas de anjo" não passa de uma velha superstição dos tempos em que as pessoas acreditavam que o mundo era plano como uma panqueca e que os anjos voavam, num vaivém, entre o Céu e a Terra. Não é assim tão simples.

- COMO é, então?

- Os pássaros, que são de carne e osso, precisam de asas para voar. Nós, no entanto, somos puramente espírito e não necessitamos de asas para nos deslocarmos através da obra da Criação.

Ela sorriu.

- É mais ou menos como os meus pensamentos, que não dependem de asas para voar pelo mundo.

Cecilie mal tinha acabado de falar e já Ariel saíra da cadeira, levitando pelo quarto como um balão. Cecilie acompanhou-o com o olhar.

- Que estilo! - exclamou. - Deve ser uma sensação fantásrica.

Ele voltou a pousar no chão, diante da estante.

- Não sinto nada.

- Deve ser uma sensação esquisita. Deve ser estranho nada sentir.

- Ao contrário do que acontece quando tens uma bola de neve na mão, os teus pensamentos não sentem o que pensam.

Ele levantou os novos esquis e colocou-os à frente dela:

- É bom esquiar?

Cecilie fez sinal que sim:

- Em breve, irei experimentá-los...

- Deve ser uma experiência "fria", especialmente quando vocês caem sobre a neve. Não ficarei com o sabor arrepiante a hortelã-pimenta forte por todo o corpo?

- Isso não acontece, se tivermos roupa suficiente. O que sentimos é a neve fofinha como algodão. Às vezes, tiramos os esquis e fazemos anjos de neve. É giríssimo!

Ariel colocou os esquis no seu lugar e disse:

- Apreciamos muito que façam isso. Prova também que as crianças humanas estão próximas das crianças de Deus, no Céu.

- A sério?

O anjo respondeu solenemente:

- Em primeiro lugar, porque fazem anjos, em vez de fazerem outra coisa totalmente diferente. Em segundo lugar, porque é um divertimento para vocês. Os anjos gostam de coisas divertidas.

- Mão te parece que os adultos gostam de coisas divertidas também?

Ariel encolheu os ombros.

- Já viste um esquiador adulto fazer-se à neve funda para modelar anjos?

Cecilie respondeu:

- Uma vez a avó fez precisamente o que estás a dizer.

- Então, estás a ver!

- O quê?

- É evidente que ela não perdeu o contacto com a criança que há nela.

Ariel volta a esvoaçar pelo quarto. Ao pousar na cadeira diante da cama de Cecilie, disse:

- Lamento dizer isto, mas esta conversa não ata nem desata.

- O quê?

O anjo suspirou de desalento:

- Este é um raro encontro entre a Terra e o Céu. Eu estava para te contar muitos dos segredos celestiais, se explicasses o que é ser de carne e osso.

Cecilie achava que Ariel repetia as coisas e estava a ficar extenuada, dizendo:

- É aborrecido estar sempre deitada.

O anjo concordou:

- Até agora, esta não foi a minha vigília mais divertida.

- Vamos para a sala? Estive lá apenas durante a entrega dos presentes...

- "Vamos para a sala" - repetiu Ariel - - Para mim, está bem. É ainda noite de Natal.

- Poderás ajudar-me a descer?

- Com certeza.

- Consegues levantar-me?

- Para nós, os seres humanos são imponderáveis.

- Então, leva-me para baixo.

Ariel meteu o braço por baixo do corpo de Cecilie e levantou-a da cama. Quando o pai a levantava, era muito diferente: respirava e ofegava como um vendaval. Apesar do anjo ser mais pequeno do que ela, nos braços dele, Cecilie sentia-se leve como uma pena.

Pé ante pé, abandonaram o quarto e desceram a escada até ao rés-do-chão. O avô já não estava a fumar charuto no vestíbulo. Se ele lá estivesse, poderia ver o anjo Ariel? Ou imaginaria ele que Cecilie levitava?

À excepção da luz acesa sobre a poltrona, a sala estava quase toda às escuras.

- Costumam deitar-me no divã - disse ela.

O anjo colocou-a suavemente no divã vermelho e Cecilie elevou os olhos:

- Eles apagaram as luzes da árvore de Natal! Que estupidez!

A ficha foi ligada à tomada instantaneamente. Ariel colocou-se diante da árvore de Natal, de braços estendidos. As luzes acesas encheram a sala com a atmosfera natalícia.

- Foi rápido - disse ela. - Fazes-me lembrar um espirito luminoso que realiza todos os desejos... Estás a ver como a árvore é linda?

Com um ar solene, ele disse:

- Parecem-se com as luzes do Céu.

- É mesmo? Foi uma coisa em que sempre pensei. Usam também algodão por lá?

- As luzes celestiais são as estrelas e os planetas - explicou Ariel. - Os planetas estão envolvidos por diversos gases. Não achas que é por esse motivo que o algodão serve para decorar as luzes da árvore de Natal?

- Nunca pensei nisso. Todos os anos temos sempre grandes discussões por causa do algodão. A mãe e a avó detestam, mas este ano não se atreveram a contrariar-me.

- Ao menos, há uma estrela na parte superior da árvore.

Cecilie elevou os olhos:

- A que tínhamos antes desapareceu sem mais nem menos. A propósito, esta está um pouco de lado...

O anjo elevou-se logo para o topo da árvore. Cecilie arregalou os olhos. A árvore fora decorada com anjos de papel, brancos e dourados, e, agora, era um anjo verdadeiro que voava à sua volta.

- Já está direita.

- Acho que sim... Não desças ainda. É tão bonito ver-te esvoaçar de um lado para o outro.

Ariel permaneceu mesmo junto ao tecto e ficou em equilíbrio um metro acima da mesa da sala.

- Quem me dera poder voar! - disse Cecilie. - Se pudesse voar, deixaria tudo para trás.

O anjo apontou para um grande prato de bolos e de doces de massapão.

- Eles não retiraram o prato dos bolos.

- Não, serve-te à vontade.

Ariel contornou o prato e disse:

- Seria bom, se eu pudesse.

- Claro que podes. Nem fazes ideia a quantidade que eles fizeram.

Ariel suspirou fundo:

- Já te disse que os anjos não comem. Nós não podemos comer.

Ele suspirou uma vez mais.

- Ah... tinha-me esquecido.

- Os tempos chegam, passam e uma geração sucede a outra. É assim que novas mesas são constantemente postas com diversos tipos de comida e bebidas.

- Mas, no Céu, os anjos jamais hão-de compreender o que é a fruição dos prazeres terrestres.

- Podes passar-me um bolo de canela?

Ariel desceu e tirou um bolo de canela. Depois atravessou o quarto a voar e entregou-o a Cecilie. Enquanto ela mordiscava o bolinho, ele pairou sobre o sofá onde Cecilie estava estendida.

- Tem imensa piada ver comer - disse ele.

- Porquê?

- Os seres humanos levam qualquer coisa à boca, dão estalidos, mastigam sem parar e saboreiam primeiro, antes da transformação em carne e sangue.

- Mas é assim mesmo!

- Quantos sabores diferentes existem?

- Não faço ideia. Não me parece que alguém tenha feito um catálogo completo.

- Qual é a coisa de que mais gostas?

Cecilie reflectiu bem:

- Talvez morangos... morangos com gelado.

Ariel virou os olhos:

- Parece um pouco estranho que levem à boca bocados frios de hortelã-pimenta. Não ficam com a sensação de arrepio e com cócegas por dentro?

- Dizes isso com um ar misterioso. Mas é certo que, às vezes, faz cócegas no fundo da barriga. É uma sensação agradabilíssima!

Ariel continuou a levitar sobre o divã. Umas vezes recuava alguns centímetros, outras, aproximava-se de Cecilie.

O anjo apontou para a mesa:

- Há morangos na travessa!

Ela riu:

- São os morangos de massapão do meu irmão Lasse.

- Difere muito do sabor dos outros morangos?

- Muitíssimo. Mas ambos podiam constar do catálogo de sabores excelentes.

Cecilie olhou para os olhos do anjo penetrantes e cor de safira.

- Consegues explicar a diferença entre um morango comum e um morango de massapão? - indagou Ariel.

Ela estava ainda a mastigar o bolinho de canela. Olhou para o prato dos morangos de massapão e, respirando fundo, replicou:

- Um morango do campo é, ao mesmo tempo, doce e ácido e, obviamente, vermelho. No entanto, se comeres um morango de massapão, ele é também vermelho devido ao uso de corantes artificiais, mas tem o excelente sabor a massapão, seco e doce.

- "o excelente sabor a massapão, seco e doce ..."

- Sabias que o massapão é feito de amêndoas? Por as amêndoas serem secas é que digo seco e doce. O doce provém do açúcar refinado, em pó.

Lambendo umas migalhas de bolo que estavam na mão, ela acrescentou:

- Agora que estou doente, nada me apetece. Mas, por ser Natal, acho que lhes devo dedicar um pensamento.

Consternado, Ariel abanou a cabeça:

- Não fiquei mais sábio com a descrição. Os sabores e outras coisas assim são um mistério inconcebível para os anjos.

- Mas não para Deus, porque foi Ele quem nos criou.

Ariel aproximou-se e pousou sobre as pernas de Cecilie. Não pesava absolutamente nada. Ela nem sequer sentiu o seu toque nem qualquer comichão.

- Nem sempre compreendemos o que criamos - disse ele.

- Porque não?

- Tu podes desenhar ou pintar algo no papel. Mas isto não significa que percebas o que está lá.

- É totalmente diferente. É inanimado.

O anjo sacudiu a cabeça energicamente:

- É justamente esta a parte estranha.

- O quê?

- Que vocês sejam seres animados.

Cecilie elevou o olhar para o tecto:

- Tens razão. Deus não percebe o que é estar doente na noite de Natal...

Ariel interrompeu:

- Podemos voltar a falar de Deus um pouco mais tarde. Mas tu vais contar agora o que é ser humano, de carne e osso.

- Pergunta, lá! Pergunta o que quiseres.

- Falámos de sabores. Mas o olfacto é igualmente inexplicável; o nariz nem sequer precisa de estar na proximidade daquilo que os seres humanos cheiram. Que são estas "fragrâncias" que pairam na obra da Criação.

- Tu também não sentes o cheiro da árvore de Natal, pois não?

Resignado, ele suspirou:

- Os anjos não possuem sentidos, Cecilie. Esta não é uma lição de cristianismo, mas é já altura de aprenderes.

- Desculpa lá.

- Que cheiro tem a árvore de Natal?

- Verde... ácido e fresco... em leve decomposição e, ao mesmo tempo, adocicado. Eu diria mesmo que a árvore de Natal cria metade da atmosfera natalícia. O chucrute e o incenso vêm em segundo e terceiro lugares. Em quarto lugar fica o charuto do avô que, às vezes, pode ser em excesso.

- As luzes emanam cheiro?

- Não, nem por isso.

- Quer dizer que não sabes ao certo?

- A árvore emite um aroma diferente se está decorada com luzes que se acendem. É um cheiro suave que tem grande significado para a atmosfera da quadra.

- Bem, bem. Não me parece que se vá adiantar mais nada com os aromas do que com os sabores. Há também um sem fim de fragrâncias.

- É perfeitamente possível, mas não me parece que os seres humanos tenham um bom olfacto. Talvez consigam distinguir uma centena de fragrâncias, enquanto os sabores serão uns milhares. Os cães têm um olfacto mais apurado. Penso que eles distinguem vários milhares de odores, o que não admira, porque metade do focinho é um enorme nariz.

- Ao fim e ao cabo, não te explicas nada mal. Podes falar da vista.

- Vês o mesmo que eu vejo?

Ariel saiu do sofá, atravessou o quarto pelo ar, sentando-se na poltrona verde. Ele parecia afundar-se nela, de tão pequeno que era. E disse então:

- Mas eu não vejo da mesma maneira que tu. Não sou de terra nem de água. Não sou um bocado de barro com vida.

- Que ideia tens de ti?

- Podes chamar-me uma presença espiritual.

- Vês-me?

Sacudindo a cabeça, o anjo respondeu:

- Encontro-me simplesmente aqui.

- Eu também. E vemo-nos um ao outro, não é certo?

Ele desvaneceu-se.

- Queres dizer que vês enquanto sonhas.

- Quando sonho, vejo muitas vezes as coisas com nitidez.

- Mas não com os olhos?

- Não. Quando durmo, os olhos estão fechados.

- Então, talvez entendas que há várias maneiras de ver. Umas pessoas são cegas e têm de usar a visão interior. É essa mesma visão que utilizas nos sonhos bonitos.

- "Visão interior"?

Ariel continuou:

É totalmente diferente quando pestanejas e utilizas as lentes vivas para captar a natureza à tua volta. Os olhos ficam irritados ao descascar uma cebola ou quando uma partícula entra nos olhos. No pior dos casos, podes cegar por completo. Mas nada pode danificar a visão interior.

- Porque não?

- Porque não é de carne e osso.

- De que é, então?

- De espírito e reflexão.

- Isso quase mete medo.

Ariel apoiou os braços na poltrona e, sentado lá no fundo, parecia ser ainda mais pequeno. Então disse:

- Acho mais inquietante que dois olhos vivos, derivados de átomos e moléculas, possam ver tudo o que os rodeia. e Podem mesmo contemplar o universo e ter uma ideia do esplendor celestial. Essas bolas vidradas com que vocês veem

estão em estreita ligação com os olhos de peixe.

- A forma como te exprimes, torna tudo extremamente misterioso.

Ariel fez um gesto de protesto e continuou:

- Não mais misterioso do que é. Há milhares de anos, um determinado tipo de peixes foi dotado de um par de barbatanas, como meio locomotor. Os pequenos anfíbios subiram para terra e olharam à sua volta em busca de alimento. Presentemente os seres humanos podem vislumbrar milhares de anos-luz pelo

Universo, com os mesmos olhos que outrora não viam outras

estrelas a não ser estrelas-do-mar e ouriços. Podeis mesmo olhar um anjo do Criador nos olhos, sentados num sofá vermelho.

Cecilie riu-se:

- Acho que é realmente estranho pensar em tudo isto.

- Se Deus não tivesse criado os órgãos da visão, a obra da Criação nunca seria partilhada convosco. O Jardim do Éden continuaria nas trevas.

- "Nas trevas" - repetiu Cecilie, com uma entoação muitíssimo triste.

- Cada olho é um pontinho do mistério divino - continuou Ariel. - A visão é o ponto de encontro entre a matéria e o pensamento, é o portão entre o Céu e o espírito. Os olhos humanos são o espelho onde o espaço criativo da consciência divina encontra o espaço criado no exterior.

Cecilie interrompeu-o:

- Parece que não compreendi a última parte.

E o anjo Ariel explicou:

- Certos anjos são de opinião que cada olho que vê a obra da Criação é o próprio olho divino. Quem disse que Deus não tem vários biliões de olhos? É provável que Ele tenha polvilhado biliões de pequenas células fotoeléctricas pela Criação para que possa a qualquer momento contemplar a Sua própria obra, de biliões de diferentes ângulos. Os seres humanos não podem mergulhar a centenas de metros abaixo do nível da água, razão pela qual Ele também dotou os peixes com olhos. As pessoas não podem voar, mas há sempre um enorme bando de pássaros atentos ao que se passa cá em baixo. E não é tudo...

- Continua.

- Uma vez ou outra, acontece que um ser humano ergue o olhar para a sua origem celestial. É como se Deus se visse ao espelho.

Cecilie suspirou.

- Céu e mar! - exclamou.

- Sim, como o céu e o mar.

- O quê?

- Como o céu se reflecte no mar, Deus também pode reflectir-se nos olhos dos seres humanos. Os olhos são o espelho da alma e Deus pode espelhar-se neles.

Cecilie estava bastante impressionada:

- Se tudo isso não é heresia, tu deverias ser padre.

Ariel sorriu com um ar maroto:

- No Céu, não ligamos muito a essas coisas. Sempre soubemos que a obra da Criação é um grande mistério e um mistério é para ser desvendado.

Ela encolheu os ombros:

- Quando te tornas tão solene, sinto um arrepio pela espinha acima. Pode ser o efeito da febre. Tens mesmo de continuar a falar dos sentidos?

- Só faltam mais dois. Gostas de canto e música?

- Agora prefiro ouvir os cânticos de Natal de Sissel Kirkjebo. Antes de apareceres, achava que ela fazia lembrar um anjo. Mas agora percebo que o "cabelo de anjo" só confirma a sua descendência dos macacos. Há quem diga que eu me pareço com ela.

- Ah, sim?

- Que achas?

- Posso ver a semelhança. Já a viste. Não foi possível evitar que isso acontecesse. De que sentido estamos a falar?

Ariel riu-se:

- É mesmo giro falar contigo, Cecilie! Perguntei-te se gostavas de música, para que me explicasses o que é ouvir. Para os anjos, é absolutamente inacreditável que carne e osso possuam esse dom.

- É assim tão esquisito?

- Não achas estranho o chilrear sonoro dos pássaros, fazendo-se ouvir a quilómetros de distância? Aqueles novelinhos são como flautas cheiinhas de vida que não param de tocar. E não é menos espantoso que as minhas palavras cheguem até ti.

- Volto a achar que estás a acentuar as disparidades entre os anjos e nós. Tu também consegues ouvir o que digo.

Ariel suspirou profundamente:

- Se voltas a fazer a comparação entre nós, pelo simples facto de quereres tornar tudo mais fácil para ti, ponho-me a andar para outro paciente. Há imensa gente doente que nunca teve a visita de um anjo.

Cecilie apressou-se a retomar a palavra:

- Queres com certeza dizer que não ouves com ouvidos como os meus, mas que trocamos apenas pensamentos...

- Sim, algo do género. Desculpa que te tenha falado de outro paciente. Não tens culpa de perceberes apenas uma parte. Tu vês tudo através de um espelho, através de um enigma.

- "Através de um espelho, através de um enigma ..."

- Foi a tua vez de imitar-me - disse Ariel.

- Não fiz outra coisa senão saborear as palavras!

- O Mundo foi outrora deserto e vazio - concluiu Ariel. - E, com o decorrer do tempo, adquiriu a capacidade de escutar os seus próprios sons. Durante milhões de anos, relampejou, trovejou, o mar embateu contra os rochedos e os vulcões cuspiram torrentes de lava com enorme violência. Mas ninguém ouvia o que quer que fosse. Hoje em dia, este planeta consegue ouvir os seus próprios sons. Vénus ou Marte nada ouvem. Se tudo ficar silencioso, basta escutar um concerto de órgão de Johann Sebastian Bach. Mas ainda prefiro os grandes concertos ao ar livre. E os mais belos sons deste planeta viajam em efervescência pelo espaço celeste. Isto para não falar nos concertos radiofónicos! O planeta toca a sua própria música. Em redor de um sol incandescente da Via Láctea, gira um pequeno planeta musical.

- Talvez devesses ser poeta - sugeriu Cecilie. - Mas não de estilo antiquado.

- Antes queria ser cientista. É que não entendo muito bem o que se passa quando vocês falam uns com os outros; saem da boca palavras invisíveis que penetram através de um canal apertado, acabando por fundir-se no cérebro numa massa gelatinosa.

O que o anjo descrevera era o que se estava a passar agora mesmo. As suas palavras estranhas fundiam-se no cérebro de Cecilie, transformando-se em pensamentos. Ela reflectia sobre o que acabara de ouvir e Ariel retomou a conversa:

- É também admirável que os seres humanos formem palavras na boca. Umas vezes elas fluem a toda a velocidade e parecem sair sem ajuda. Não é verdade que vocês dizem coisas sem reflectir nelas?

Cecilie baixou o olhar:

- Nem sempre pensamos no que fazemos. Quando corro para a escola, não penso que estou a correr. Não tenho tempo de pensar como devo mexer as pernas, ou arriscava-me a tropeçar. Quando falamos uns com os outros, acontece o mesmo. Por vezes, tropeçamos nas palavras.

- Vocês precisam de conter a respiração e expirar depois. Isto acontece automaticamente?

- Acho que sim.

- Parece pavoroso. Bastaria que não respirassem uma só vez e o coração deixaria de bater. E, se deixasse de bater...

- Deixa-te disso! - interrompeu Cecilie. - Felizmente não temos de pensar em tudo.

Ele tapou a boca com a mão:

- Sorri. Estávamos a falar da formação das palavras invisíveis na boca, antes de saltarem da boca para o ouvido. É verdade que os seres humanos têm vozes absolutamente distintas?

Cecilie disse que sim:

- Quando a minha mãe pergunta "Dormiste bem?", ela emite um som diferente da voz do meu pai ou da minha avó ao fazerem a mesma pergunta. Mesmo com a cabeça debaixo do edredão, consigo reconhecer quem está a falar comigo. Cada palavra é pronunciada de forma desigual pelas diversas pessoas. Com os instrumentos musicais passa-se o mesmo. Se um clarinete e um violino usarem a escala de dó, emitirão sons diferentes. Li também que dois instrumentos nunca emitem sons idênticos. O mesmo acontece com as vozes humanas.

- Isto só comprova que a voz e o ouvido são instrumentos muito sensíveis.

- Mesmo com a janela fechada, consigo ouvir o vento soprar na rua ou o carteiro a aproximar-se de bicicleta. Havias de ter visto quando ele deixou cair a bicicleta...

- Eu estava à Janela contigo.

- Pelos vistos, estás em todo o lado... Às vezes, quando a casa está em silêncio, consigo ouvir a neve cair lá fora.

Cecilie esticou o braço, como se fosse um golpe de esgrima:

- E consigo ver com os ouvidos.

- Disparate!

O anjo Ariel mostrou-se constrangido:

- Apesar de estarmos a falar de coisas estranhas, isto não quer dizer que eu seja louco.

- Mas é verdade. Quando estou deitada na cama, pelos sons que chegam até mim, consigo perceber o que eles estão a fazer e como vão as coisas lá em baixo.

- Se é assim, tens um nadinha da vista de anjo.

Cecille levantou-se do sofá:

- Sempre achei que acentuavas a diferença entre os anjos e os seres humanos!

- O que é ainda mais inexplicável, se tomarmos em consideração as nossas origens diferentes. Os seres humanos resultam da fusão de milhões de moléculas num planeta ao acaso do espaço celeste, e estão apenas de passagem. Não obstante, saltitam pela obra da Criação com pezinhos de lã. No entanto, falam, riem e têm pensamentos tão inteligentes como os anjos, no Céu.

- Também não achas esquisito ser anjo?

- Já falámos disso antes. A diferença é que existimos eternamente e sabemos que jamais cairemos no vazio à semelhança de uma bola de sabão quando rebenta. Existimos simplesmente, Cecilie. Somos e seremos como sempre temos sido. Vocês vêm e vão...

O anjo suspirou profundamente.

- Quem me dera ter dedicado mais tempo a meditar sobre a vida.

- Nunca é demasiado tarde voltar atrás.

- Não sei porquê, mas de repente fiquei triste...

Ariel interrompeu-a:

- Não te entristeças! Mas que coisa! Às vezes, fico com a impressão de que os seres humanos não param de queixar-se e lamentar-se.

- É fácil falar assim!

- Só falta um sentido. Apesar de mais vago, nem por isso deixa de ser menos misterioso.

Cecilie limpou uma lágrima:

- Não me lembro do nome do quinto sentido... tacto?

Ariel fez-lhe sinal que sim.

- Já falámos da camada fina de pele e penugem que cobrem a carne e os ossos, de cima a baixo. Para saborear os alimentos, há a língua. Mas, em certa medida, conseguem saborear com todo o corpo. O paladar revela-se através do frio e do calor, se uma coisa é líquida ou sólida, lisa ou áspera...

- Isso não me parece estranho.

- Essa é a coisa que mais intriga um anjo. As pedras àbeira-mar não sentem a fricção de umas contra as outras, quando as ondas se lançam com ímpeto contra a praia. Uma pedra não sente quando lhe tocas. Em contrapartida, tu sentes a pedra.

- Reparaste bem na minha colecção de pedras? Umas foram compradas por mim, outras foram-me oferecidas, mas a maioria achei na praia. Numa "praia desconhecida".

- Queres dizer, em Creta?

Cecilie quase se sentiu traída:

- Também sabias?

- Várias vezes enquanto dormias, admirei as tuas pedras. --Mas nunca chegarei a entender o que é senti-las com as mãos.

- Então, perdes algo fundamental. Algumas são tão redondinhas e lisas que dá vontade de rir.

Ariel levantou-se da poltrona verde, dirigindo-se para o tecto. Ao elevar-se, disse:

- Já falámos dos cinco sentidos...

Cecilie interrompeu:

- Mas há ainda um sexto sentido.

- Ah, sim?

- Há quem diga que existe um sexto sentido que faz com que percepcionemos coisas que os cinco sentidos não captam, por exemplo, adivinhar o futuro. Ou saber onde foi que alguma coisa se perdeu. Mas outras pessoas consideram isso uma superstição.

Ele acenou, com um ar misterioso:

- É talvez esse sentido que permitirá, um dia, encontrar a velha estrela de Natal.

- Sabes onde ela está?

- Vamos ver...

Cecilie estava a pensar no Natal e disse:

- Será que a própria atmosfera natalícia não terá correlação com o sexto sentido? Pode ser que sejamos mais parecidos com os anjos na quadra do Natal do que no resto do ano. De uma forma ou de outra, o Natal engloba todos os sentidos. Eu cheiro, saboreio, vejo e ouço o Natal e apalpo os pacotes para adivinhar o seu conteúdo.

A face de Ariel brilhava:

- "O seu conteúdo". Também quero falar sobre isso.

- Sobre o conteúdo dos presentes de Natal?

- Não, sobre o que está dentro de ti.

- Mas que coisa desagradável!

- É curioso.

- O quê?

- Que aches desagradável falar da matéria de onde provéns. Se uma pedra não quisesse conceber a ideia de que era pedra, seria uma pedra desditosa, porque sentiria repulsa de si própria durante milhares de anos, até desagregar-se em saibro e areia. Mas os seres humanos não vivem muito tempo.

- Vamos falar do que se passa dentro de nós, mas sob uma condição.

- Que condição?

- Que quando chegar a tua vez, me contes as coisas maravilhosas do Céu.

- Os anjos nunca quebram promessas.

- Claro que não. Senão, eu perderia a confiança em tudo.

- Talvez me possas esclarecer uma coisa que abordamos muitas vezes no Céu, sem que cheguemos a uma conclusão. É um pouco delicado, mas...

- Pergunta lá!

E, tomando coragem, Ariel perguntou:

- Vocês sentem o sangue correr pelas veias?

- Sim, quando sangramos ou fazemos análises de sangue. É quando o sangue sai...

- Que Sensação é?

- Às vezes dá comichão e, depois, arde.

- Mas não sentem a carne e os ossos dentro de vocês?

Cecilie abanou a cabeça:

- Julgo que fomos criados, por forma a não sentir o que está sob a pele. A pele permite-nos o contacto com outras pessoas, mas, felizmente, não precisamos de andar a apalpar o nosso próprio corpo.

- Alguma coisa devem sentir.

Cecilie reflectiu um momento e fez sinal que não.

- Enquanto temos saúde, nada sentimos. Apenas quando temos dores...

- Dores?

- Quando pica... lateja... ou arde.

Ariel abriu os braços, deixando transparecer desalento:

- "pica ... lateja... ou arde ... "

Cecilie perguntou:

- Nunca deste um beliscão no braço?

- Não, nunca.

- Devias experimentar ou nunca saberás se realmente estás acordado.

Cecilie viu que Ariel tentou beliscar o braço, mas sem qualquer sucesso. Então ele disse:

- Os anjos não conseguem beliscar o braço. Nada sentimos.

Cecilie estremeceu:

Nesse caso, não sabes se és verdadeiro.

Por uma fracção de segundo, Ariel pareceu ter desaparecido. Ou talvez Cecilie tivesse apenas pestanejado.

Quando regressou, disse:

- Tens de voltar depressa para a cama.

- Porquê?

- São sete horas. O despertador vai tocar dentro de segundos. Pronto, já está a tocar...

Quando acordou, Cecille sentia o corpo pesado. Lá fora estava limpo e claro como é frequente no Dia de Natal.

Ela tinha uma vaga recordação do que se passara na noite anterior: Ariel levara-a ao colo para a sala e trouxera-a mais tarde para o quarto quando o despertador do quarto dos pais tocou.

- Ariel! - murmurou.

Mas não obteve resposta. Provavelmente o anjo só iria aparecer à noite...

A um toque da campainha que estava na mesa de cabeceira, a mãe apareceu imediatamente e com a mesma rapidez com que Ariel acendera as luzes da árvore de Natal. A mãe aparecia como se fosse um espírito luminoso.

- Com que então, já acordaste?

A mãe ajoelhou-se perto da cama:

- É quase uma hora. Estiveste sempre a dormir?

Cecilie respondeu que não:

- Como estás?

- Estive a olhar em volta e a ouvir os sons. Se escutarmos atentamente, uma casa tem também sons à noite. Às vezes, até ouço nevar lá fora.

- E o que é que viste.--,

- Vi uma luz tão bonita que entrava pela janela...

- Poderias ter tocado a campainha.

- Estive a pensar em muitas coisas.

- Tiveste dores?

- Não... Nem por isso.

- O que é que sentes?

- Também tu vais começar?

- O quê?

- Não, não foi nada. Sinto-me sem forças...

- Quando vim cá às sete horas, dormias como uma pedra.

- Oh, mãe! As pedras não dormem.

- Enquanto dormias, sorrias.

- As pedras tão-pouco sorriem... Eu tinha acabado de adormecer quando vieste até cá.

- Achas mesmo que foi assim?

- Pelo menos, ouvi o relógio tocar.

A mãe pousou a mão sobre a testa de Cecilie.

- A Kristine chegou e está lá em baixo a provar os doces de massapão que o Lasse fez.

- Bom proveito!

- Que queres dizer com isso?

- Não me apetece massapão. Será que de repente te tornaste seni .

- Não, espero bem que não.

- Diz-lhe que suba. As injecções já não me metem medo - Mas vamos primeiro à casa de banho.

- Mas mamã...

- Sim,

-Não poderá a Kristine dar-me a injecção e pôr-se andar?

- O quê?

- Vocês andam sempre a perguntar-me como estou e ou tras coisas por aí além. Já não suporto essa lengalenga. Além disso, hoje é Dia de Natal.

- É provável que tenha de observar-te.

- Mas tens de ficar aqui. Promete-me que a levas daqui para fora se ela começar com essas conversas. É que já nem sei o que responder.

- Vou tentar.

- Oh, mãe. Prometo-te que vou ficar boa.

- Sim, claro que vais.

- Mas sou eu que digo que estou a melhorar. Se são vocês, até fico a pensar que o que querem é arreliar-me.

- Sua brincalhona!

Cecilie olhou para a mãe.

- Estás a chorar?

A mãe levou os dedos aos olhos.

- Não...

- Mas tens lágrimas nos olhos.

- É que estive a cortar uma cebola.

- Outra vez?

Depois de Cecilie tomar os medicamentos, as pessoas da casa vieram, uma a uma, vê-la ao quarto. Lasse tinha estado lá fora a experimentar os esquis pelas encostas que iam dar ao rio. Com o rio gelado nem se ouvia a água que corria por baixo. Alguns rapazes patinavam na parte mais larga do rio.

O pai chegou com um novo número da revista Ciência Ilustrada. No primeiro número que Cecilie lera, havia um artigo sobre minerais e pedras decorativas que se intitulava "As montanhas são o tesouro do mundo". Ela leu também outros artigos e tornou a pedir mais coisas para ler. Mas isso fora há muito tempo. Agora só lia um pouco de cada vez.

O avô insistiu em falar de Creta onde toda a família tinha ido passar férias. Foi por essa altura que tiveram conhecimento da doença. Cecilie não se lembrava se fora antes ou logo depois da viagem. Já tinha ido algumas vezes ao médico....

Todos acharam que aquelas tinham sido umas férias maravilhosas. Foram catorze dias em que tomaram banhos de sol e frequentaram restaurantes com empregados simpáticos, enquanto naquela altura, na Noruega, as outras pessoas iam à escola ou trabalhavam. Uma vez, foram até à ilha vulcânica de Santorini e visitaram a enorme cratera deixada pela erupção vulcânica de há 3500 anos. Nessa altura, metade da ilha afundara-se no oceano. Foram também até à cidade de Thera por um caminho escarpado, montados em mulas. Mais tarde, tomaram banho numa praia de areia negra como carvão, proveniente da lava, e a água quase que escaldava de tão quente que o sol estava.

Algumas tardes passearam todos juntos pela extensa praia de calhau à procura de pedras bonitas. Mas tinham de prestar atenção às ondas que rebentavam ruidosamente, fazendo com que os calhaus arranhassem as pernas naquele vaivém. Cecilie escolheu as pedras que deviam trazer para casa. Ao todo, trouxe vários quilos. O avô fez questão em salientar que fora ele quem encontrara a pedra mais bonita.

- Que belos dias, Cecilie...

Aquela viagem maravilhosa a Creta foi em finais de Setembro. Desde então Cecilie nunca mais esteve completamente bem de saúde. Mas, mesmo assim, foi à escola até ao princípio de Novembro, seguindo-se umas semanas no hospital. A professora veio visitá-la umas duas vezes e falou-lhe do que acontecia na escola.

A última visita foi a da avó. Ainda Cecilie era pequena e ela Já lhe contava histórias, de preferência, sobre a mitologia Viking. Lia também excertos do livro de mitologia de Snorre, que eram tão interessantes como quaisquer outras histórias de aventuras. Nos últimos tempos, ela lera umas partes de uma Bíblia infantil muito antiga, do tempo em que a sua mãe era ainda pequena.

Nesse dia, a avó falara dos corvos de Odin. Um chamava-se Hugin e o outro Alunin e voavam à volta do Mundo para se inteirarem do que ia acontecendo. Hugin significava "pensamento" e Munin "espírito".

Quando os corvos regressavam ao fim da tarde, contavam a Odin o que tinham visto. Desta forma Odin andava ao corrente de tudo o que se passava no Mundo. Mas ele também tinha medo que um dia não regressassem mais. Para além disso, os corvos eram aves de rapina que aJudavam Odin a

encontrar os mortos. Odin costumava sentar-se em Asgard num local elevado chamado Lidskjalv.

Sendo o mais sábio de todos os deuses, era também o mais sorumbático. Somente ele sabia que Ragnarok, a grande destruição, estava a chegar.

A avó contou ainda muito mais coisas sobre Odin e Cecilie só adormeceu ao fim da tarde. Começou por dormitar e acabou por adormecer profundamente. Acordou mais tarde com os sons do jantar que estava a ser servido no andar de baixo. Tinham certamente acabado de sentar-se à mesa, porque Cecilie ouviu a mãe dizer: "Vou passar a sopa à volta da mesa, porque assim é mais fácil ... "

No Dia de Natal era costume servir-se a sopa de couve-flor antes da carne de vaca.

Cecille apanhou o livro de notas do chão e folheou-o. Umas semanas antes, a avó oferecera-lhe um lindo colar de pérolas antigo que tinha herdado. Cecilie escreveu:

Quando eu morrer e o fio de prata se estragar. as pérolas hão-de saltar e deslizar até ao fundo do mar em busca da madre pérola. Quando eu desaparecer. ird lá alguém à procura das minhas pérolas." Quem saber, que me pertenceram? Quem saber, que. um dia. o mundo esteve pendurado à volta do meu pescoço?

Ela mordiscava a caneta de feltro, enquanto tentava lembrar-se da conversa com Ariel na noite anterior. E anotou no livro o que lhe veio à cabeça:

Os anjos jamais se magoam, E isso deve-se ao facto de não terem um corpo de carne e osso de que a sua alma se possa separar. Com a natureza é diferente: tudo se estraga com facilidade. Mesmo uma montanha sofre a erosão lenta das forças da natureza, acabando por transformar-se em terra e areia. Tudo o que existe na natureza é como uma combustão lenta. Toda a obra da Criação parece de alguma forma borbulhar musgo.

Nem sempre compreendemos o que criamos. Posso desenhar ou pintar algo no papel. Mas isso não significa que percebo como é ser o que está lá. O que eu desenho é inanimado. E esta é que é a parte mais estranha: eu sou um ser animado!

Como não tinha mais nada para escrever, Cecilie pousou o livro no chão e empurrou-o para debaixo da cama.

Depois deve ter adormecido, porque acordou com uma voz que lhe dizia:

- Dormiste bem?

Cecilie olhou para cima e viu o anjo Ariel sentado de joelhos aos pés da cama.

- Estive aqui sempre contigo - afirmou ele.

- Mas não te vi.

Uns momentos depois ele respondeu:

- Talvez ainda não te tivesse contado, mas os anjos fazem dois tipos de visitas: O mais comum, é quando estamos presentes sem nos mostrarmos. A outra é aparecermos como está a acontecer agora.

- Mas são ambas vigílias?

- Sim, ambas são vigílias.

- Qual foi a visita que fizeste ao rapazinho na Alemanha?

- Apenas estive lá presente.

- Não compreendo como é que tu podes estar presente no quarto sem que eu te veja.

- A explicação é fácil.

- Então conta-me como

- Se sonhasses com uma praia desconhecida, isso não

significaria em certa medida que estiveste lá?

- Sim, até certo ponto...

- Mas achas que as pessoas que estavam lá te viam?

- Não, é evidente que não.

- E poderias também viajar com a agência de viagens até essa praia, mas nesse caso, como aparecias, as pessoas ver-te-iam.

Ele olhou para ela com os seus olhos verdes-azulados como safiras.

- Que ideia genial... Olha lá, tu enfiaste-me na cama mesmo antes de a minha mãe acordar.

- Foi por um triz.

- Ela teria apanhado um choque se não voltássemos a tempo. Se calhar, ia pensar que eu recuperara completamente e diria: "Mas que bom, Cecilie! De repente ficaste boa!"

Ariel riu-se:

- Tem muita piada ver-te dormir.

- Os anjos nunca dormem?

Ele fez-lhe sinal que não:

- Nós, os anjos, não fazemos a menor ideia do que é o sono. E tu?

- Para ser sincera, também não...

- Mas já alguma vez sentiste o que se passa na tua cabeça quando estás prestes a adormecer?

Ela encolheu os ombros:

- Desligo-me de tudo.

- Não entendo como ousas fazer uma coisa dessas.

- E porque não?

- Como é que sabes se voltarás a acordar... Poderias tentar descrever o que é dormir?

Cecilie suspirou levemente:

- Quando adormecemos, deixamos de estar acordados e entramos num estado de sem consciência. É por isso mesmo que ninguém sabe ao certo o que é adormecer.

- É incrível! Deve haver uma pequena revolução dentro da cabeça.

- Se esse é o caso, acontece quando já estamos adormecidos e, então, é demasiado tarde e está fora de questão pensar qualquer coisa do género: "Adormeci agora mesmo." A cabeça é quase como uma máquina que se desliga automaticamente.

- Mas se ela se desliga automaticamente da corrente, como poderá voltar a ligar-se umas horas mais tarde.

- Que perguntas difíceis. Nós adormecemos, mas acordamos passadas umas horas. O meu pai tem um relógio dentro da cabeça. Ele acorda todas as manhãs às cinco para as sete para desligar o despertador que iria tocar dentro de cinco minutos. Mas isto é só nos dias da semana, quando ele sabe que tem de se levantar. No entanto, aos domingos dorme muito mais tempo e, nem mesmo o despertador, o acorda.

O anjo Ariel estendeu os braços:

- Creio que estamos a falar do maior de todos os mistérios do espaço celeste.

- Já disseste isso muitas vezes.

- Não me refiro apenas ao sono.

- A que te referes, então?

Cecilie levantou-se da cama e Ariel olhou-a fixamente:

- Os seres humanos surgiram a partir de átomos e de moléculas de um pequeno planeta do Universo. Têm pele, pêlos e cinco ou seis sentidos que fazem com que possam contemplar o Mundo à sua volta. Mas no interior do crânio, que é uma coisa semelhante a gesso ou calcário, há uma massa mole que os deixa dormir ou sonhar, pensar ou recordar-se de coisas.

Ela desviou o olhar para o colar de pérolas que contornava o calendário grego que tinha imagens de gatos e disse:

- Já te disse que não gosto de falar do que está no interior do corpo.

- Então vamos falar da alma, Cecilie. A alma está no interior do corpo, mas não é parte integrante do corpo como o coração e os rins.

Cecilie olhou de novo para Ariel:

- Fala então da alma e vê se deixas de parte o coração e os rins.

- A coisa mais misteriosa é ainda aquilo a que vocês chamam "memória". Com ela podes, por exemplo, reconhecer uma pessoa que viste há muito tempo. Se tu voltasses a encontrar aquele empregado de mesa que te fez gracinhas no cabelo na praça de uma grande cidade, não o reconhecerias logo entre centenas de pessoas?

- Também estiveste em Creta?

Ele anuiu dizendo:

- Se tu estás numa sala ou em Creta, isso é irrelevante para mim. Reconhecê-lo-ias ou não?

- Lembro-me muito bem dele.

Ariel acomodou-se na cadeira:

- O que é que sentes quando te recordas de uma coisa? Que acontece com todos os átomos e moléculas na tua cabeça? julgas que eles voltam ao mesmo lugar em que estavam quando aquele episódio se passou?

Cecilie ficou boquiaberta de espanto: é a primeira vez que penso nisso.

Ariel estava a ficar impaciente:

- Crês que os seixos da praia podem recordar como estava tudo dois minutos antes?

- Nem pensar. Nada é mais fácil de esquecer que o sítio que os seixos ocupam na praia. Além disso, as praias não se recordam de nadinha.

- No entanto, os átomos e as moléculas da tua cabeça recordam-se de coisas que se passaram muitos anos antes e, ao longo dos tempos, um número incalculável de novos pensamentos e recordações terão entretanto afluído. Não serão os pensamentos ou recordações senão os seixos da praia da consciência?

Cecilie contorceu-se:

- Tu também te recordas. Disseste que o meu avô teve pneumonia...

- É verdade, mas a minha alma não é constituída por centenas de milhares de átomos e moléculas.

- De que pensas que é feita a tua alma, então?

- Ela emergiu da mente divina.

Depois de reflectir, Cecilie disse:

- A minha alma que é composta de átomos e moléculas talvez tenha emergido também da mente divina.

Ariel interrompeu-a nesse momento:

- Não íamos falar agora do Céu...

- Mas tu prometeste falar do Céu...

- O Céu pode esperar, Cecilie. Quando falamos da alma humana, falamos de algo muito próximo do Céu.

Cecille olhou para o tecto:

- A minha avó diz que a alma é divina.

- Não há dúvida que a tua avó é muito sábia.

- Ela sabe quase de cor a Bíblia e o livro de mitologia de Snorre.

- Pois é! Fomos bater ao mesmo.

- Ao quê?

- Uma parte do grande mistério é como a tua avó decora. Já pensaste que o cérebro humano é uma das matérias mais misteriosas do espaço celeste?

- Só agora...

- Os átomos do teu cérebro provêm de estrelas e, sem se compreender como, tornaram-se naquilo a que se chama consciência. A alma humana sofre vibrações ao passar por um cérebro que provém de poeira salpicada pelas estrelas do firmamento. Os pensamentos e os sentimentos humanos dependem desta poeira cósmica que, por seu turno, desencadeia um sem fim de novas combinações nas ramificações nervosas.

- Quem sabe se o meu cérebro não terá poeira da estrela de Belém!

- E talvez também os teus pensamentos e as tuas recordações.

Enquanto Ariel falava, Cecilie tentou ver o que se passava na rua.

- Como deve ser estranho ser um cérebro vivo do espaço celeste. É quase como um pequeno universo no interior do grande universo circundante. No teu cérebro há pelo memos tantos átomos e moléculas como as estrelas e planetas do espaço celeste...

Cecilie interrompeu-o:

- E até ao fundo dos meus pensamentos é talvez a mesma distância que até às estrelas mais longínquas desse mesmo espaço celeste.

Ele concordou:

- Mas a diferença é que apenas um cérebro está consciente de si próprio e, a qualquer momento, pode julgar a sua actividade. O espaço celeste não tem essa capacidade. Não consegue erguer-se e dizer: "Eu sou eu." Para uma tal coisa, o auxílio dos seres humanos é indispensável.

Cecilie sorriu triunfante:

- Concordo que essa é a diferença crucial.

- Não explicaste ainda o que sentes quando te recordas de uma coisa.

- Já me tinha esquecido.

- Para te dizer a verdade, isso é tão interessante como a outra coisa.

- O quê?

- "Tinha-me esquecido." Em vez da outra coisa, falemos do que é esquecer.

- Esquecer é simplesmente desaparecer.

- "Simplesmente desaparecer" - repetiu Ariel, tentando imitar a voz de Cecilie.

- Mas pode voltar a aparecer de repente. Às vezes tenho as coisas "debaixo" da língua.

- "Debaixo" da língua?

- É apenas uma forma de dizer.

- Eu julgava que isso nada tinha nada a ver com a memória. Não quererás tu dizer que saboreias as palavras como se faz com os morangos, pois não?

Cecilie riu:

- Eu costumo dizer: "Creio que sei" e, se não for perturbada, aquilo que desapareceu em geral reaparece. O avô diz que não devemos chorar por um pensamento que nos fugiu...

- E porque não?

- Um pensamento é como um peixe que foge do anzol mas que emerge depois ainda mais gordo.

Ariel sacudiu a cabeça energicamente:

- Então, talvez eles até tenham razão.

- A quem te estás a referir?

- Alguns anjos são de opinião que jamais chegaremos a compreender as coisas terrestres. Mas eu nunca aceitei isso. Tentei sempre compreender como é ser de carne e osso.

- Não é certo que te possa ajudar, quando nem eu compreendo.

Ariel subiu para o ar e, de lá de cima, disse:

Lembras-te das minhas palavras quando te vi pela primeira vez?

Cecilie reflectiu:

- Estavas sentado no parapeito da janela, mas não me lembro do que disseste.

- "Não me lembro ... "

- Não foi olá ou qualquer coisa assim?

Ele abanou a cabeça e ficou em silêncio uns momentos. Por fim, Cecille mexeu o braço:

- Espera lá! Tenho debaixo da língua...

- Deita já cá para fora antes que volte a desaparecer.

Ariel sentou-se no mesmo lugar em que aparecera a Cecilie pela primeira vez. Ela observou-o e disse:

- Não me perguntaste se tinha dormido bem?

- Parabéns!

- Não foi assim tão difícil.

-Mas eu é que presenciei um grande mistério. Ao perguntar-te se te lembravas de uma coisa, disseste que te esqueceras por completo! Mas onde estaria aquilo de que te esqueceste?

Desanimada, Cecille deu um suspiro:

- Concordo que é estranho pensar nisso. As coisas ocorrem-me às vezes, sem mais nem menos.

Mas diz-me, de onde?

- Da cabeça.

Daí a uns instantes Ariel perguntou:

- E aonde vão dar?

Cecilie riu-se:

À cabeça.

Então, é da cabeça para a cabeça e estamos a falar de uma mesma cabeça. Os seres humanos não só se lembram e memorizam aquilo que vêem e ouvem e que, mais tarde, se recordam de novo. Também o cérebro trabalha sozinho e a isto chama-se pensar. Dir-se-ia que é como os seixos da grande praia que andam de um lado para outro sem a ajuda das ondas.

Cecilie riu-se novamente:

- Estou a tentar imaginá-lo aos saltinhos de um lado para o outro.

- Um pensamento é como, por exemplo, a estrela de Natal desaparecida: pode ser posto de parte durante algum tempo, mas pode voltar mais tarde à consciência. É como um retrocesso do mesmo pensamento. Parece-me que os seres humanos muitas vezes repetem os mesmos antigos pensamentos que há muito deveriam estar resolvidos.

- Eu diria antes que os pensamentos aparecem de novo sozinhos. Nem sempre depende de nós memorizar ou esquecer uma coisa. Pensamos por vezes em coisas que não queremos. E outras vezes falamos de mais e dizemos coisas sem raciocinar e isso pode deixar-nos em situações embaraçosas.

Do parapeito, Ariel não parava de fazer sinal que sim com a cabeça.

- Deve ser como suspeitava.

- O quê?

- Os seres humanos não só têm uma alma, mas sim duas ou mesmo várias. Se esse não fosse o caso como havias de explicar o facto de pensarem em coisas que não querem?

Não sei.

-Esses pensamentos indesejáveis estão certamente controlados por algo alheio à vossa consciência. Eu diria que écomo um teatro em que vocês não fazem a menor ideia sobre a peça que irá ser apresentada.

- Queres tu dizer com isso que a alma é o teatro e que os pensamentos são os seus protagonistas que voltam ao palco constantemente para desempenhar os diferentes papéis?

- Algo do género. Mas no teatro da consciência existem também com certeza muitos compartimentos e variadíssimas cenas.

Deslocando-se do parapeito para o ar, Ariel descreveu um meio-círculo e veio sentar-se aos pés da cama de Cecilie, dizendo:

- És capaz de tentar descrever o que sentes quando pensas?

- Eu não sinto nada.

- Não sentes cócegas quando pensas numa coisa divertida? E também não sentes um leve ardor ao pensar em coisas desagradáveis e tristes?

- Eu diria que sinto cócegas quando penso numa situação divertida e até um certo ardor se for uma coisa triste. No entanto as cócegas e o ardor não pertencem à cabeça, mas sim à alma e a alma é diferente da cabeça.

- Eu pensava que fazia comichão nas ramificações nervosas - replicou Ariel.

Cecilie lançou-lhe um olhar em desafio:

- Também não me vais dizer que os anjos não pensam, pois não?

- É claro que te vou dizer isso, porque os anjos não mentem.

- Acho que agora estás a ir demasiado longe!

- Nós não pensamos como as pessoas de carne e osso. Não precisamos de raciocinar para encontrar a resposta. Tudo o que sabemos ou que podemos saber está sempre presente no consciente. Deus deixou-nos compreender apenas uma parte do grande mistério e, quando não percebemos uma coisa, mantemo-nos calados.

Cecilie reflectiu em tudo aquilo e disse:

- Connosco é diferente. Tentamos sempre compreender cada vez mais e, subitamente, encontramos a resposta. Os que têm mais sorte são contemplados com o Prémio Nobel, especialmente se tiverem feito descobertas de grande significado para a humanidade. Como o corpo cresce, também a compreensão aumenta.

- Mas vocês esquecem-se de coisas, o que significa que são dois passos dados para a frente e dois para trás.

- É possível. Mas, apesar de esquecermos algumas coisas, isso não quer dizer que elas desaparecem para sempre. Podem vir a aparecer de repente por artes mágicas.

- Aí está a grande diferença entre os seres humanos e os anjos: desconhecemos o que é esquecer e tão-pouco sabemos o que é recordar uma coisa. Eu sei hoje o que sabia há dois mil anos atrás. Porém, nesse lapso de tempo, a compreensão humana sofreu um aumento considerável e nem todos os anjos apreciam essa diferença abissal.

- Não sabia que os anjos sentiam inveja.

Ele riu:

- Mas não se trata de inveja profunda.

- E os vossos pensamentos são aprofundados? O meu avô fala de pensamentos profundos.

Ariel respondeu negativamente:

Os nossos pensamentos estão sempre presentes no consciente e, por isso, nunca nos surpreendemos com subtilezas repentinas. O estado de semiconsciência não existe para nós. Em contrapartida, o nosso consciente não é um mar revolto, em que os pensamentos esquecidos voltam a surgir de repente como os peixes gordos das profundezas do oceano.

- Disseste que os anjos não dormem...

- Pois não. Nós nunca dormimos e, por isso, tão-pouco sonhamos. Qual é a sensação? Eu não sinto nada.

Ariel explicou:

- Eu não sinto a levitação, nem o contacto com uma bola de neve...

Cecilie continuou:

- Sonhar é uma forma de pensar... ou de ver. Ou talvez seja mesmo as duas coisas simultaneamente. Enquanto sonhamos, nem escolhemos o que pensar nem o que ver.

- Explica-te um pouco melhor.

- Durante o sonho, a cabeça pensa sozinha. É então que poderás falar de teatro verdadeiro. Às vezes quando acordo, lembro-me de que sonhei com uma peça de teatro ou mesmo um filme do princípio ao fim.

- Filme esse que tu própria produzes, pois interpretas todos os papéis.

- De certo modo, sim.

Ariel mostrava-se agora muito entusiasmado:

- Podemos então dizer que as células cerebrais exibem a película umas às outras e que esta está ao fundo da sala a ver-se projectada no ecrã.

- Mas que explicação estranha! "As células cerebrais exibem a película umas às outras..." Parece mesmo que estou a vê-las.

- Durante o sonho, sois ao mesmo tempo os actores e a audiência. Não é misterioso?

Cecilie protestou:

- Que assunto desagradável!

- Mas que experiência engraçada não deve ser! Sem que lances um único foguete para o ar, presencias no interior da tua cabeça um espectáculo pirotécnico de pensamentos e imagens.

É quase um espectáculo gratuito.

Cecilie anuiu:

- Às vezes é divertido e às vezes mete medo, pois nem sempre os sonhos têm qualquer graça. Há também sonhos maus e desagradáveis...

O anjo mostrou-se compreensivo:

- Claro que é pena que vocês sejam importunados com esses episódios desagradáveis. Seria ideal poder desligar um sonho que não agradasse. Deveria haver uma saída de emergência na sala de cinema. Mas como a sala de cinema é a vossa alma, que, aliás, escolhe o reportório, tal coisa éimpossível. Os seres humanos não podem evadir-se da sua própria alma, nem morder a própria cauda. Ou será mesmo isso que fazem? Mordem-se na cauda e depois choram aos berros.

Cecille começou a roer as unhas e disse:

- Eu não gostaria que fosse assim, mas não posso escolher os sonhos agradáveis. Tenho de aceitar o que sonho. Às vezes, quando a noite acaba, acordo totalmente convencida que estive em Creta. E até certo ponto, estive mesmo lá. Porque, enquanto o sonho perdura, penso estar onde o sonho se desenrola.

Ariel examinava-a com aquele olhar determinado e cristalino como safiras:

- Exactamente.

- O quê?

- Espera lá! Vocês também acreditam que voam e atravessam portas fechadas?

- Num sonho, tudo, ou praticamente tudo, é possível. Nem sequer preciso de dormir para fazer isso. Mesmo acordada, deixo os meus pensamentos voar: voo pela casa... ou parto para um país estranho. Uma vez, até sonhei que estava na Lua. Eu e a Marianne encontrámos uma nave espacial atrás da antiga leitaria, pressionámos um botão e lá nos pusemos a caminho.

Ariel levitava agora sob o tecto e, depois de dar a volta ao quarto, voltou a sentar-se na cadeira:

- Está dentro da caixa - disse.

Cecille fez um movimento de desalento com a cabeça:

- Não estou a perceber nada.

E Ariel apontou para a testa dela e disse:

Os seres humanos fazem com o pensamento, o que os anjos fazem com o corpo inteiro. Enquanto dormem, as vossas cabeças fazem o que os anjos efectuam na obra da Criação.

Cecilie sentia-se levemente baralhada:

- Esse pensamento nunca me ocorreu...

- E não é tudo - continuou Ariel. - Durante o sono, nada vos magoa e sois tão invulneráveis como os anjos no Céu. Essas experiências vêm pura e simplesmente da consciência, sem qualquer recurso aos cinco sentidos.

Cecille foi fulminada por um novo pensamento. Então indireitou-se e disse com voz determinada:

Nessa ordem de ideias, a nossa alma é imortal. Talvez seja imortal como os anjos no Céu.

Ele moveu os ombros:

- Agora talvez percebas melhor o que é ser anjo. Temos falado sobretudo das pessoas de carne e osso, mas agora é altura de compreenderes um pouco mais sobre as coisas celestiais porque o Céu se reflecte na Terra.

Ela fez uma nova tentativa:

- Mas a alma é divina, não é verdade?

Como Ariel não respondesse, Cecilie pensou impedi-lo de desaparecer e disse:

- Prometeste que irias contar-me mais coisas.

Ariel virou a cabeça e disse:

- A tua mãe vem agora mesmo a subir. Vou atravessar o espelho.

Olhando em volta, Cecilie perguntou:

- A que espelho te referes?

O anjo saiu da cadeira, atravessou a sala e os contornos esmoreceram-se pouco a pouco. No momento em que desaparecia, ainda disse:

- A obra da Criação é um espelho, Cecilie. O Mundo éum mistério.

Durante dias a fio o anjo não apareceu. No entanto, havia sempre um ou outro familiar sentado na cadeira diante da cama. A Kristine veio quase todos os dias, apesar de a mãe e da avó terem aprendido a aplicar-lhe a injecção. Nem sempre Cecilie sabia em que dia estava ou que horas eram. Se estivesse com disposição, anotaria os seus novos pensamentos no livro.

Os esquis e o trenó estavam junto à parede que dava para o quarto de dormir dos pais. O Inverno ainda não acabara e estava bom para esquiar e ela estava determinada a melhorar, antes do degelo, pois não suportava ter de esperar mais um ano para esquiar.

Cecilie nunca falou de Ariel a ninguém, visto que ele nada tinha a ver com o resto da família. Não obstante ser um membro da família Skotbu, ela também era um ser humano que se encontrava sozinha entre o Céu e a Terra.

Mas que se passaria com o anjo? Não tinha ele prometido que lhe iria contar mais coisas sobre o Céu? Não tinha ele dito também que os anjos não mentem?

Será que Ariel a enganara? E não teria sido induzida a contar coisas sobre os seres humanos, de carne e osso, para logo desaparecer sem cumprir a sua parte da promessa?

Abriu os olhos quase no momento em que a mãe entrou e se sentou na cama. Cecille olhou para a mãe com um olhar vazio.

- Estiveste outra vez a cortar cebola? - sussurrou.

A mãe fez-lhe sinal que não, mas, mesmo assim, Cecilie acrescentou:

- Vocês comem demasiada cebola.

A mãe passou-lhe a mão pela cabeça:

- É quase meia-noite. Os outros já se deitaram há muito e agora é a minha vez de tentar dormir um pouco.

- Tentar dormir?

- Não, vou tomar um comprimido.

- Não te deves habituar a essas coisas.

- Não há perigo.

Cecilie olhou para a mãe:

- Tenho andado a pensar porque é que precisamos de dormir.

- É para repousar. Há quem pense que sonhar é uma necessidade.

- Porquê?

A mãe reteve a respiração e depois expirou pesadamente: - Não sei.

- Mas eu creio ter resposta para isso.

- Ah, sim?

- Creio que sonhamos para darmos largas à fantasia.

- Mas que imaginação tu tens, Cecilie.

- Há gente que sofre tanto que morreria de desgosto, se não tivesse um ou outro sonho engraçado pelo meio de toda a sua tristeza.

A mãe passou-lhe um pano húmido pelo rosto e vestiu-lhe uma camisa de noite lavada.

-Não te inquietes com a minha doença. Acho que já estou a melhorar.

- Talvez...

- Não foi o que a Kristine também disse?

Ela encolheu os ombros:

- O que ela disse foi que temos de dar tempo ao tempo.

- Talvez eu me levante amanhã de manhã para tomar o pequeno almoço...

- Um dia de cada vez.

- Mas prometeste que eu iria experimentar os meus novos esquis brevemente

- Ao menos, preparados já eles estão! Toca à campainha mesmo que seja só para conversar, e o pai virá imediatamente fazer-te companhia.

- Não é necessário.

- Mas somos nós que queremos.

- Não te surpreendas se me ouvires falar sozinha.

- Costumas fazer isso.

Cecilie olhou para a mãe e disse Não se lembrar.

A mãe abraçou-a com força:

És a rapariga mais corajosa do Mundo! Sem ti, o Mundo seria triste e vazio.

Cecille sorriu.

Mas que conversa tão séria para umas boas-noites

Mal a mãe deixou o quarto, Cecilie adormeceu. Ao cabo de uns momentos acordou com o som de nós dos dedos a bater na vidraça. Ao abrir os olhos, deu de caras com Ariel do outro lado da Janela. A luz da árvore lá fora, ele fazia lembrar um anjo russo que Cecilie vira num número da revista Ciência Ilustrada. Ou seria um Menino Jesus?

O anjo fez-lhe um aceno e transpôs a janela até junto da secretária mas a vidraça continuou como estava.

Cecilie arregalou os olhos:

- Já falámos sobre isso mas continuo sem perceber como consegues fazer essa proeza.

Ariel caminhou até Cecilie e sentou-se na cadeira. Que sorte o pai ainda não ter aparecido

- É coisa sem importância - disse ele. - Nem vale a pena falar nisso.

Cecilie sentou-se na cama, pondo uma perna sobre o edredão.

- Onde estiveste? - Quis saber.

- Tiveste muitas visitas - respondeu o anjo.

Cecile concordou:

- E essa é a única razão de não teres passado por aqui durante tanto tempo?

Em vez de responder àquela pergunta, disse com um ar afirmativo.

- Estamos quase em lua-cheia e quando a luz se projecta sobre a paisagem coberta de neve, quase parece dia...

- Mas que maravilha! Quem me dera a mim poder sair para ver a Lua com os meus próprios olhos.

- Será que podes?

- Estou muito melhor...

- Óptimo. Estava a tornar-se aborrecido ver-te aí sem forças.

- Posso mesmo?

Ariel saiu da cadeira e levantou o trenó e os esquis pelo ar:

- Sabes que não tens autorização dos teus pais para sair a meio da noite.

- Mas tu dás-me licença?

Ariel concordou com um ar misterioso e Cecilie desembaraçou-se imediatamente do edredão, dizendo:

Se os anjos autorizam uma coisa, não importa o que os outros possam dizer. Além disso, toda a gente nesta casa está a dormir.

Será apenas um passeio curto. Agasalha-te bem para não te transformares num autêntico novelo de hortelã-pimenta.

Cecilie levantou-se e, de pé no chão firme, não se sentiu nada estonteada. Disse:

- Agora vou experimentar os meus esquis.

E dirigiu-se ao armário onde a roupa de inverno estava arrumada numa prateleira desde o início de Novembro. Retirou uma camisola, um par de collants, um pulover, as calças de esquiar e o blusão. Vestiu tudo isto depois de despir a camisa de noite. Tirou também um cachecol, um gorro, luvas e as meias de lã e sentou-se na cama para apertar os atacadores das botas. Depois, fixando Ariel nos olhos, disse:

Podes levar-me os esquis?

Em seguida caminharam juntos para a porta e desceram sorrateiramente ao primeiro andar. Cecilie abriu a porta principal para dar passagem aos esquis que Ariel carregava, voltando a fechar a porta com cuidado pelo lado de fora.

Perto do celeiro havia uma descida íngreme que ia dar ao riacho e à extensa floresta de abetos. Cecilie fixou as botas aos esquis e ajustou os laços dos bâtons à volta dos pulsos. A luz da Lua iluminava a neve.

- Agora vou experimentar esta descida - disse ela. - Vem atrás de mim. Há muito que ansiava por esta oportunidade.

E desceu por ali abaixo, Ariel voando a seu lado.

- Agora estamos ambos a voar - disse ele. - Mas eu nada sinto.

-Mas que excelente! - gritou Cecilie. - É quase tão bom como ser anjo!

Cecilie caiu na neve macia ao chegar ao fundo da descida e riram-se ambos.

Depois, de pé, apontou para a floresta de abetos:

- Há uma pista óptima até Ravnekollen. De lá vê-se todo o vale.

Ele pareceu examiná-la por um segundo.

- Apetece-te ir até lá?

Mas Cecilie já estava em marcha.

- Agora sinto-me forte como um touro! - gabou-se.

E seguiu por um trilho profundo com a ajuda do bâton; por sua vez Ariel acompanhava-a de cabeça no ar como se fosse um cão alado a passear ao domingo, ora virando-se para a direita ora para a esquerda, mas também usou as pernas para correr.

- Não sentes frio quando andas com os pés descalços na neve? - indagou Cecilie.

Soltando um suspiro condescendente, Ariel perguntou:

- Não vamos voltar ao princípio, pois não?

Cecilie riu-se:

- Mas que cómico é ver-te assim. Sabias que alguns faquires conseguem desligar os sentidos para não sentirem frio nem ardor? E até podem deitar-se a dormir num colchão de pregos.

Ele fez sinal que sim:

- Nós tanto podemos estar na índia como na Noruega.

E foram pela pista que coleava entre os troncos muito próximos uns dos outros. Ariel encurtou o caminho, atravessando os troncos e, uma vez, até passou por um matagal espessíssimo, que, para ele, era como se fosse um tufo de algodão.

Para a subida da última encosta de Ravnekollen, Cecilie recorreu à técnica de "espinha de peixe" para evitar escorregar para trás com os esquis e depressa chegaram ao cimo daquela colina despida de árvores. Com um dos bâtons, Cecilie apontou para a paisagem gelada onde o luar azulado se espraiava e disse:

- Quando era pequena, imaginava que este seria o topo do mundo e, quando a minha avó contava que Odin estava sentado num sítio alto a contemplar o Mundo, eu julgava que este seria esse sítio. Não ouviste falar dos dois corvos?

Ariel disse-lhe que sim:

- Hugin e Alunin significam pensamento e espírito.

- A minha avó também me disse o mesmo e, até certa medida, eram o pensamento e o espírito dele que viajavam pelo Mundo.

Ariel voltou a responder que sim, fazendo este estranho comentário:

- Lembras-te de termos dito que a visão interior dos seres humanos é essencial para os cegos? Esta visão interior compõe-se também de espírito e de pensamento. Pois era através de Hugin e Munin que Odin via.

Cecilie ficou boquiaberta. Como é que isto não lhe ocorrera antes

O anjo continuou:

- Deus é omnipotente e obíquo. Odin não podia estar em vários lugares ao mesmo tempo, mas para isso tinha os dois corvos. Até certo ponto também se tornou omni-sapiente.

Cecilie voltou a apontar para o vale com o bâton e perguntou:

- Estás a ver aquelas quintas? Conheço pelo menos uma pessoa de cada uma das famílias que lá vivem. A escola está ao fundo... estás a ver aquela faixa esbranquiçada que se estende pela paisagem? É o rio Leira. A Marianne vive na casa amarela, na outra margem do rio.

- Eu sei, Cecilie.

- As luzes que avistamos ao fundo, à esquerda, pertencem a Klofta e à distância fica a colina de Hekseberg- Jessheim fica do outro lado.

Ariel disse-lhe:

- Eu sei de tudo isso.

- Vês o nosso celeiro lá em baixo com a casa escondida atrás da árvore grande com luzes? A janela do meu quarto é a que está no primeiro andar, àesquerda.

- Foi por lá que entrei muitas vezes - disse Ariel.

O anjo pairava agora a uns vinte e cinco centímetros do chão para vê-la falar e os olhos dele verdes-azulados cintilavam como safiras à luz ao luar. Continuou:

- Se estivesses agora à janela a olhar cá para cima, poderias ver-nos e nós acenar-te-íamos.

Cecilie levou a mão à boca. Isto fora formulado de uma forma um tanto misteriosa.

Algo não batia certo, mas ela não conseguia dizer exactamente porquê.

- O meu pai pode entrar no meu quarto a qualquer momento para me ver e, se isso acontecesse, ficaria surpreendido e tenho a certeza que diria: "Ora esta! O pássaro acaba de abandonar o ninho."

- Queres que eu veja se ele dorme?

- Consegues mesmo?

Ariel ausentou-se um instante e Cecilie ficou sozinha entre o Céu e a Terra. Pareceu-lhe então ter perdido um irmão gémeo nesse lapso de tempo. De volta e já ao lado dela, o anjo tranquilizou-a, dizendo:

Estão ambos a dormir. A tua mãe dorme com a cabeça aninhada no pescoço do teu pai. A hora de despertar está marcada para as três e meia.

Cecilie suspirou aliviada e voltou a apontar para a paisagem com o dedo:

- Nunca cheguei a perceber como é que a Lua consegue emitir tanta luz.

- É porque tudo o resto está escuro. Quando se projecta luz pela escuridão, nem um único raio de luz se perde.

- Mas a Lua não emite luz própria - retorquiu Cecilie.

A Lua não passa de um espelho que pede luz emprestada ao Sol.

Ariel concordou:

- O Sol tão-pouco emite a sua própria luz. É antes como um espelho que recebe luz de Deus.

É mesmo assim como dizes?

Achas que te engano na presença do Senhor?

Claro que não... mas nunca pensei que o Sol recebesse a luz de Deus, da mesma maneira que a Lua recebe a luz do Sol.

Cecilie inclinou-se sobre os bâtoms a olhar para a neve e, quando elevou o olhar, já Ariel não estava no mesmo sítio, mas voava à frente dela a uns centímetros do chão, dizendo:

- A tua luz também provém de Deus, Cecilie, porque tu és o espelho de Deus. Que seria de ti sem o Sol e que seria do Sol sem Deus?

No rosto de Cecilie desenhou-se um sorriso aberto.

- Nessa ordem de ideias, eu também sou uma pequena Lua.

- Que me iluminas.

- Mas que maneira estranha de dizer. Usas sempre um tom tão solene para tudo, que fico arrepiada.

O anjo disse:

- Quando se trata de maravilhas celestes, há sempre uma certa solenidade envolvida.

- Vais falar agora do Céu?

- Já estou a fazê-lo.

Ariel olhou para a abóbada celeste e a luz intensa do luar fazia com que umas estrelas não passassem de pontinhos desvanecidos na noite.

- Tens de começar a perceber que já estás no Céu - disse ele.

- Isto é o Céu?

Ariel anuiu:

- Mas o que é que julgas que era? O Mundo não tem grande significado num contexto universal.

- Nunca pensei nesses termos.

-Este é o mundo celestial, Cecilie, o jardim do Éden onde os seres humanos vivem. Porém, os anjos andam por todo o lado.

- Queres dizer pelo espaço?

- Ou espaço celeste, o que vai dar ao mesmo.

Cecilie apoiou-se nos bâtons e observou o chão coberto de neve. Depois disse:

- Que misterioso! É muito misterioso!

Ariel desafiou-a com o olhar:

- Pessoalmente, até acho que é muito fácil compreender isso.

Cecilie moveu a cabeça e, exprimindo desalento, disse:

- Andei a vida inteira a dar volta ao miolo para saber onde está o Céu, mas também até agora nem um único astronauta viu a cor de Deus nem dos anjos.

- Até agora, nem um único cientista viu a cor do pensamento nem tão-pouco se pode prezar de ter visto um sonho que seja. No entanto, isso não quer dizer que não existem pensamentos e sonhos nas cabeças das pessoas.

- Claro que não...

- Quando sonhaste com o episódio na praia, ninguém te viu, pois não? já falámos deste assunto antes.

- Queres dizer que há anjos sem conta pelo Universo?

- Sim, claro que há. Crês que Deus criou um universo grandioso sem um propósito determinado? Nós andamos por todos os corpos celestes, porque o frio não nos destrói e o fogo não nos devora. A Terra é que tem de ser adaptada às pessoas de carne e osso. Se vivessem noutro sítio, seria ou demasiado quente ou demasiado frio. Se a Terra estivesse mais próxima do Sol, a vida seria incomportável para os seres humanos. Também seria incomportável para a vida humana se a Terra estivesse mais próxima de Plutão, porque tudo se transformaria em figuras de gelo.

O anjo deu uma volta rápida pelo ar e veio colocar-se diante de Cecilie, a meio metro do chão.

- Já estiveste na Lua? - perguntou esta.

- Costumo lá dançar ballet - replicou Ariel.

- Na Lua?

Fazendo sinal que sim, disse:

- Foi engraçadíssimo quando os primeiros homens chegaram à Lua. Éramos um grande grupo, mas, mesmo assim, nem Armstrong nem os outros astronautas nos detectaram. Pensaram que estavam sós, julgavam-se pioneiros... Sabes o que Armstrong disse ao sair da nave?

- "Um pequeno passo para mim, mas um grande passo para a Humanidade" - respondeu Cecilie.

- Nem mais nem menos!

Cecille ficou levemente irritada como representante da Humanidade. Os cientistas estavam convictos de que a sua chegada à Lua era inédita, mas já havia quem os espreitasse. E disse:

- Sinto ganas de escrever para os jornais: "Notícias frescas: a Lua pulula de anjos. Um novo radar desvenda um segredo antigo."

Ariel riu.

- Já ouviste falar de asteróides?

Cecilie sentia-se nos sete céus, porque estava no seu elemento. Lera mais sobre o Universo do que a maioria das crianças da sua idade e, nos últimos tempos, devorara um monte de números da revista Ciência Ilustrada.

- Claro que já! - replicou. - São planetas minúsculos que gravitam à volta do Sol. Há tantos asteróides e são tão pequenos que nem têm nomes. Muitos deles não são mais que um número.

Ariel aplaudiu:

- Bravo! Tu sabes mais sobre as maravilhas do Céu do que julgavas. Se eu desejar um retiro, digamos, de cinquenta ou cem anos, vou para cima de um asteróide. No Céu há muitos anjos, mas asteróides ainda há mais. É bastante relaxante andar num planeta pequeno depois de uma discussão acesa num amplo salão de reuniões. Eu até salto ao jogo da macaca de asteróide em asteróide. É divertidíssimo!

Pareceu-lhe demasiado fantástico para ser verdade e Cecilie disse:

- Penso que estás a mentir.

Olhou de novo para aqueles olhos verdes-azulados e, ao compreender a gravidade da acusação, voltou a baixar a vista.

- É pena, porque os anjos nunca mentem e tu não crês em mim.

- Conta-me mais coisas - pediu Cecilie secamente.

Ariel prosseguiu:

- Para mim, a coisa mais divertida que há é andar num cometa.

- Num cometa?

- Sim, no cometa Halley, por exemplo. A sua trajectória à volta do Sol dura setenta e seis anos, mas a sua órbita prolonga-se pelo Universo e desloca-se a velocidades incríveis. Andar num cometa pode comparar-se a andar no escorrega, mas no primeiro caso não é preciso subir para voltar a descer.

Cecilie anuiu dizendo:

- Pois bem. Eu também não me importava nada de andar nele. Mas nunca me passou pela cabeça que os anjos gostassem de brincar.

O anjo fitou-a nos olhos:

- Contei-te que Deus criou Adão e Eva para que alguém corresse por entre as árvores e jogasse às escondidas no amplo jardim. Não faria pois qualquer sentido criar um jardim daquele tamanho se também não existissem crianças que lá brincassem.

Cecilie concordou novamente e Ariel continuou:

- A existência de um universo com miríades de estrelas e planetas, luas e asteróides pressupõe que haja anjos que façam uso daquela magnificência.

Cecilie encolheu os ombros com indiferença:

Concordo que foi bem pensado. No entanto, nem um nadinha do que estás para aí a dizer, vem na Bíblia.

Em vez de responder ao que ela acabara de dizer, Ariel disse:

-Se Deus tivesse criado tudo com a finalidade de se exibir, é porque queria ser o foco das atenções. No cosmos existem cem biliões de galáxias e cada galáxia tem aproximadamente cem biliões de sóis. Já podes fazer uma ideia de quantos planetas e luas existem e isto sem falar nos asteróides. Apesar de haver os anjos que há, não nos podemos queixar de falta de espaço para espairecer. E tempo também não nos falta.

- Pois é, isso é mais que certo. Bom proveito.

- Nós somos o elo de ligação do Universo, Cecilie. Deus nunca teve dois corvos ao ombro, mas em contrapartida, tem um exército de anjos.

Cecilie, ao mesmo tempo que escavava a neve com o bâton, disse:

- Se escrevesses um livro sobre essas coisas, ganharias um ou talvez mesmo dois prémios Nobel.

- Mas porquê dois?

- Um seria em teologia e o outro em astronomia, claro está se não Juntassem os dois prémios em apenas um. No pior dos casos, serias galardoado com o bem merecido Prémio Nobel da Fantasia.

Ariel riu-se:

Eu jamais competiria com esses cientistas de semblante sombrio que julgam que os segredos da natureza podem ser desvendados com microscópios e telescópios e, além disso, só acreditam no que pode ser pesado ou medido. E é assim, porque eles não vêm a globalidade nem entendem que tudo é visto através de um espelho, através de um enigma. Mas um anjo não pode ser pesado nem medido, e examinar um espelho ao microscópio não serve de nada e apenas terá como resultado que a imagem do próprio cientista será vista mais nitidamente. Nesse caso, será melhor usar a fantasia.

Cecilie, que agora fazia um buraco na neve com mais força, disse:

- Eu adoraria saltar à macaca de asteróide em asteróide. Gostaria também de dançar ballet na Lua ou agarrar-me a um cometa engraçado e navegar pelo espaço. Tu dizes que tudo pertence ao Céu...

- Sim,

- Muita gente acredita que vamos ter ao Céu quando morremos. Mas é assim mesmo?

Ariel suspirou profundamente:

- Vocês estão agora no Céu. O Céu é cá. Acho que é altura de acabar com as discussões e as contendas. Não é bonito fazerem guerra na presença de Deus.

- Mas tu não respondeste à minha pergunta.

- Os seres humanos vêm e vão, vão-se embora, mas voltam a aparecer à semelhança das estrelas e dos planetas.

- Isso é só conversa!

Cecilie bateu com o bâton no chão.

- Estás zangada?

Cecilie sabia que era verdade. No entanto, estava ciente de que poderia dar-se a esse luxo:

- Andaste aí a desbobinar que os seres humanos são de carne e osso. Disseste ainda que carne e osso são efémeros, o que eu acho injusto. Gostaria também de poder saltar à macaca de asteróide em asteróide durante uns milhares de anos e depois descansar uns dois milhões de anos num planeta exótico de uma galáxia longínqua. Por isso mesmo é que me pergunto constantemente se nós, seres humanos, não teremos uma vida eterna.

E levou a mão à boca. De onde viriam aquelas palavras?

Ariel disse:

Ninguém vive eternamente e, muito menos, os anjos. Os anjos não vivem, não sentem e não se desenvolvem. Já falámos, aliás, disso antes.

Cecilie baixou os olhos.

- Acho que vocês são uns parvos. Queixam-se que não vivem, mas voam pelas estrelas e planetas eternamente.

-Tu também voas até praias distantes em sonhos - respondeu Ariel. - Mas imagina se a tua vida não passasse de um sonho!

Cecilie encolheu os ombros:

- Se fosse um bom sonho que durasse eternamente, acho que o preferiria à vida. E tu, que escolherias: a efemeridade de anos da vida humana ou a vida eterna de um anio?

- Nenhum de nós tem uma opção possível e, portanto, nem vale a pena debater essa questão. No entanto, parece-me preferível contemplar o Universo, ao menos uma vez, do que não ter essa oportunidade. Quem ainda não nasceu, não poderá exigir ficar por cá.

Cecilie reflectiu uma vez e tornou a reflectir sobre o que Ariel lhe acabara de dizer e concluiu:

- Se formos a ver, talvez preferíssemos não ser criados a termos uma vida efémera. É que, se não tivéssemos sido criados, nunca chegaríamos a saber a oportunidade que perdemos.

Ariel não replicou. Repentinamente, apareceu no ar, observou a casa e disse:

- São três horas. Temos de voltar depressa antes que eles acordem.

Cecile desceu as encostas e Ariel voava a seu lado.

Havia pouco espaço entre as árvores, mas mesmo assim Cecilie percorreu a pista sem se baixar. Ariel transpunha os troncos, como se não existissem e, num abrir e fechar de olhos, alcançaram a última ladeira que ia dar ao celeiro.

Ariel segurou o capuz do blusão de Cecilie e disse-lhe:

- Não temos tempo para dar a volta.

- Não temos tempo?

E sem mais nada, agarrou-a, levando-a pelo ar e chegaram ao quarto de dormir através da janela fechada.

Cecilie ainda tinha os esquis nos pés e a Janela continuava intacta. No entanto, havia água espalhada pelo chão.

- O que irão eles dizer? - balbuciou apontando para os esquis e para o chão.

- Eu trato disso - retorquiu Ariel.

Os esquis e a roupa foram tirados à pressa e substituídos pela camisa de noite. Cecilie enfiou-se na cama ao mesmo tempo que registava a velocidade vertiginosa com que Ariel dobrava a roupa devolvendo-a ao armário. O equipamento de esqui foi arrumado junto à parede e, no fim, um único sopro de Ariel eliminou os vestígios de água e de neve. Agora era impossível perceber que Cecilie andara a passear à luz da Lua.

- Fenomenal! - disse ao adormecer.

Quando Cecilie acordou, o pai estava sentado na cadeira. -

- Que horas são? - quis ela saber.

- São sete horas.

- Já estás aqui há muito tempo? -

- Há algumas horas...

Então Cecille lembrou-se do passeio nocturno de esqui e olhou pelo quarto. Ninguém poderia ver que os esquis tinham sido usados. Se calhar o passeio nem foi na noite anterior. Poderia ter sido alguns dias antes. Cecille sentia-se mais fraca do que nunca. Seria por causa de ter saído com Ariel? -

- Não me sinto muito bem - disse.

O pai segurou-lhe a mão e disse:

- E tu não estás mesmo bem.

- Que dia é hoje?

Olhando para o relógio, ele disse:

- 22 de Janeiro.

- Então a Noite de Natal foi quase há um mês!

Ele confirmou:

- A mãe está a chegar com a injecção.

- "Com a injecção ... "

- Pois é, ela está ali na casa de banho.

- Estou fartíssima de tudo isto.

O pai apertou-lhe a mão:

- Claro que deves estar - respondeu laconicamente.

Cecille tentou soerguer o olhar:

- Quando crescer, vou estudar astronomia.

- É... é muitíssimo interessante.

- Um dia alguém terá que descobrir tudo.

- Em que estás a pensar?

- Oh, pai! A doente sou eu...

- Claro, claro que és tu a doente.

- ..mas vocês é que não seguem a lição. Quero dizer que alguém terá que descobrir como as coisas são de facto, porque não podem continuar assim.

- A ciência está em constante evolução...

- Acreditas nos anjos?

- Porque é que perguntas isso?

- Acreditas ou não?

O pai disse que sim.

- E tu também?

- Não sei... Ele é tão imbecil. Sabes que colocou um anjo de plantão em cada asteróide que existe? Mas, se eles quiserem, podem permanecer lá para sempre e não precisam de cortar as unhas, nem de lavar os dentes. Alguns anjos andam em cometas a velocidades espantosas à volta do Sol. Lá do alto, observam a Terra e são tão curiosos que especulam como será ser de carne e osso...

- Penso que estás a delirar.

- enquanto Deus, o Todo-Poderoso, está confortavelmente sentado a fazer bolas de sabão connosco, somente com o intuito de se exibir perante os anjos do Céu.

- Estou certo de que Ele não faz isso.

- Como é que podes estar certo? Imagina então que Ele é um grande malandro!

- Há muita coisa que não podemos compreender, Cecilie.

- Já ouvi isso antes... Nós, os seres humanos, compreendemos apenas uma parte e vemos tudo através de um espelho, através de um enigma...

- Pois é assim mesmo. Mas que palavras acertadas!

Cecilie observou-o consternada.

Passaram-se uns momentos e Cecilie tinha vontade de continuar a conversa, mas sentia-se desfalecida. Parecia querer que lhe sacassem as palavras da cabeça, para não abrir a boca. Então perguntou:

- Lembras-te da viagem a Creta?

Tentando esboçar um sorriso, o pai respondeu:

- Como poderia esquecer?

- Refiro-me à viagem propriamente dita, seu patetinha.

O pai fez-lhe um sinal que sim:

- Até me lembro que serviram frango com batatas na ida e, na vinda, almôndegas com molho de pimentão...

- Oh, papá, não me fales em comida. Eu só queria dizer que olhei através da janela e vi a terra lá em baixo.

E ficou-se por ali. Mas o que ela estava a pensar era que, lá de cima, viam o mundo com cidades, estradas, montanhas e talhões de terra. No regresso, sobrevoaram as nuvens que lhes deram a sensação de estarem entre o Céu e a Terra e, ao chegar à Noruega, na descida para Gardermoen, mergulharam por baixo daquele imenso algodão e um mundo maravilhoso iluminado de cores variegadas deparou-se-lhes pela frente.

Cecilie disse:

- Quando nascemos, recebemos o mundo de presente.

O pai concordou, mas deixou transparecer que não gostava que ela falasse tanto.

- Não somos os únicos que vimos ao Mundo. Poderias antes dizer que é o Mundo que vem ter connosco.

- Vai dar ao mesmo.

- Eu penso que possuo o Mundo.

O pai segurou-lhe a outra mão.

- De certo modo, até possuis.

- Não me refiro apenas a esta casa... a RavnkoIlen... e ao rio lá ao fundo. Também possuo uma parte da planície de Lasithi, em Creta... e a ilha de Santorini. Parece-me ter vivido no antigo palácio de Cnossos. Sou dona do Sol e da Lua e das estrelas do firmamento, porque já vi tudo.

O pai tocou a campainha que estava sobre a mesinha de cabeceira. Porque é que ele teria feito aquilo? Será que também ele estava doente?

Cecilie prosseguiu:

- Ninguém jamais poderá privar-me disto. Será sempre o meu mundo. Será o meu mundo eterno.

Mal a mãe chegou, o pai saiu precipitadamente do quarto. Estivera ali, por certo, muito tempo e agora precisava de ir depressa à casa de banho.

- Cecilie?

Esta virou-se para a mãe que lhe dirigiu um olhar de censura.

- Cecilie!

- Dá-me lá a injecção, mãe. Não precisamos de falar mais sobre isso.

E adormeceu imediatamente. Ao acordar, Ariel estava na cadeira em frente da cama.

Sentia-se muito melhor agora do que antes com os pais no quarto. Teria a presença do anjo um efeito benéfico para a sua saúde?

- Dormiste bem? - perguntou Ariel.

Cecilie levantou-se e sentou-se no canto da cama. Depois olhando para a janela, viu que fazia dia lá fora e disse:

- É dia. Às vezes, ando completamente baralhada.

Ariel moveu a cabeça e disse enigmaticamente:

- O Mundo anda à roda sem parar.

E Cecilie riu-se sem perceber porquê. Mas, nesta ocasião, achou piada que o Mundo rodasse ininterruptamente e comentou:

- Alguém disse que o Mundo é o palco de um teatro. Se é assim, deve então ser um palco giratório.

- Evidentemente - afirmou Ariel. - Mas tu sabes porquê?

Cecilie encolheu os ombros:

- Na realidade, isso não faz diferença, porque não sinto que ele roda. Por mim, poderia até ser um carrocel. Mas imagina lá... que catástrofe não seria para a Grande Roda!

Ariel saiu da cadeira, circulou pelo ar, indo sentar-se na secretária. De um ponto mais alto, olhou para Cecilie:

- A Terra roda sem parar para que todos os seres humanos possam contemplar o Universo de todos os cantos e observar praticamente todas as estrelas e o demais que por lá existe, seja em que parte da Terra vivam.

- Nunca tal coisa me ocorreu.

Com um gesto decidido, o anjo continuou:

- Quer vivam em Jessheim ou em Java, nem a mais ínfima parte do esplendor do firmamento ficará oculta. Seria injusto se os raios solares só beijassem metade da Humanidade, enquanto que a outra metade nem uma meia-lua via. No entanto, tanto o Sol como a Lua pertencem da mesma maneira aos seres humanos.

- Mas teria sido esse o único motivo para Ele fazer tudo rodopiar?

- Claro que foi. Mas houve outro...

- Continua então!

- Foi também para que os anjos do Céu pudessem contemplar o Mundo a partir de qualquer objecto em que estivessem. É que é mais fácil vigiar um planeta em rotação do que quando mostra apenas uma face.

Cecilie achou que era entusiasmo a mais. O anjo falava sem parar e começara a oscilar as pernas:

- Já te contei que radiografamos, mas não cheguei a dizer-te que também temos vista de longo alcance.

- Queres tu dizer com isso que os anjos conseguem ver as pessoas na Terra, de qualquer planetazito do Universo?

- Nem mais nem menos. Lá em cima não há muitos motivos de conversa, mas quando estamos confortavelmente sentados num planetazito qualquer, podemos olhar para a Terra e acompanhar o desenrolar de cenas que se passam em Creta ou em Klofta, nesse teatro celeste.

- "Nesse teatro celeste"?

Ariel respondeu que sim:

- O Mundo, Cecilie. A vida humana na Terra é uma peça de teatro que não acaba. Os seres humanos vêm e partem numa fila que nunca termina...

Cecilie manteve-se imóvel na beira da cama por uns instantes e depois disse:

- Isso cheira-me a esturro!

E deu um valente pontapé na cadeira.

- Se assim fosse, seria muitíssimo injusto.

Ariel ficou um pouco admirado e, sem deixar de abanar as pernas, disse:

- Não falemos mais nisso.

- Não sei se me apetece continuar a falar.

Ariel deixou de oscilar as pernas por uns instantes, dizendo:

- Tu estás amargurada, Cecilie.

- E depois?

- É por isso que estou aqui.

Cecilie baixou o olhar.

- Não consigo compreender porque é que o Mundo não foi criado de uma forma um pouco diferente.

- Já falámos disso antes. Estou certo de que aqueles bonitos desenhos que tencionavas fazer, não saíram exactamente como tinhas planeado...

- Isso acontece-me frequentemente. E até é aliciante, porque nunca sei como vai acabar.

-É assim porque não tens pleno controlo sobre o que desenhas.

Cecilie não respondeu e só disse:

- Se eu quisesse desenhar uma coisa e soubesse de antemão que o desenho.viria a ganhar vida, jamais ousaria fazê-lo. Eu nunca criaria uma coisa que não se pudesse defender da vivacidade dos lápis de cor.

O anjo encolheu os ombros:

- De qualquer maneira, as tuas figuras compreenderiam somente uma parte e não veriam a totalidade.

Cecilie suspirou fundo:

- Os teus mistérios começam a enervar-me.

- É pena, porque não era essa a minha intenção.

- Um idiota qualquer afirmou que o mais importante é ser ou não ser. Cada vez mais concordo com essa pessoa - ele ou ela. Tu também disseste que, no mundo espiritual, o sexo da pessoa não é fundamental...

- "Ser ou não ser" - repetiu Ariel. - Mas que expressão exacta! É que não há mesmo nada pelo meio.

- Eu quero dizer que estamos agora no Mundo e jamais voltaremos!

- Sei que estás doente, Cecilie...

Esta interrompeu-o:

-Não permito que me perguntes o que tenho. Nem mesmo os anjos estão autorizados a falar nisso.

- Eu só queria dizer-te que estou aqui para te confortar.

Entre resmungos, Cecille disse:

- Mas que coisa!

Enquanto conversavam, Ariel saiu da secretária e pôs-se a voar pelo quarto.

Cecille disse:

Creio que vou morrer de velhice e depois voltarei a ser criança e viverei no Céu como os anjos. Seremos então como os corvos de Odin e isso será óptimo...

- Crês mesmo que será assim? - perguntou Ariel.

- "Crês mesmo?". "Crês mesmo?". Tu é que deves saber.

O anjo voou até diante da cama e deixou o antigo colar de pérolas e o calendário grego dos gatos na penumbra.

- Não sei nada - disse severamente. - A obra da Criação e o espaço celestial são um mistério tão grandioso que nem os seres humanos nem os anjos o compreendem.

- Nesse caso, tanto se me dá falar com o meu pai como com a minha avó.

Ariel concordou:

- Eles também pairam algures no grandioso mistério divino.

Cecilie ergueu o olhar:

- Já estiveste com Deus? Quero dizer, pessoalmente.

Estou neste momento na presença de um dos Seus pontinhos. Aquilo que presenciei e discuti com um dos Seus mais pequeninos, também presenciei e discuti com Ele.

Cecilie reflectiu:

- Se essa é a única maneira de o encontrar, será muito difícil derrotá-lo.

Ariel riu-se:

- Para isso, ele teria de se derrotar a si próprio.

Depois de algum silêncio, acrescentou:

- Quando tu acusas Deus de parvo, talvez seja Deus que se está acusar a si próprio. Já te esqueceste do que Ele disse ao ser crucificado?

Cecille fez-lhe sinal que não. A avó lera-lhe muitas passagens da Bíblia nos últimos tempos, mas ela esquecera-se daquela a que Ariel se referia.

- O que é que ele disse?

- Disse: "Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?"

E de repente Cecilie compreendeu que nunca pensara que Jesus era Deus. Ao ser crucificado, Deus falou consigo mesmo. E também não teria falado consigo mesmo quando se dirigiu aos Apóstolos em Getsérnani? Mas eles nem se deram ao trabalho de ficar acordados durante o cativeiro.

- "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" repetiu ela.

Ariel aproximou-se dela, fitando-a com aquele olhar de safiras, e disse:

- Repete, Cecilie. Repete muitas vezes. Há algo no espaço celeste que não bate certo. O grande desenho tem certamente um erro.

Ela tentou reflectir.

- Tens a certeza de que isto é tudo o que sabes sobre o lado de lá?

O anjo disse que sim:

Vemos tudo através de um espelho. Tu espreitaste pelo vidro embaciado, mas eu não consigo limpá-lo completamente. Porém, se tal acontecesse, passarias a ver tudo mais nitidamente e deixarias de ver-te a ti própria.

Cecilie olhou-o com surpresa.

- Mas que pensamento profundo!

Com um sinal de cabeça, o anjo disse:

- Não se pode penetrar demasiado na carne e no osso, porque carne e osso são pouco profundos. Eu consigo ver areia e pedras por baixo do chão.

- É assim mesmo?

Ariel anuiu.

- Carne e osso são terra e água em que Deus incutiu o seu espírito com um sopro. Por isso é que há algo de divino dentro de vós.

Cecilie estendeu os braços mostrando desalento:

- Não sei o que dizer.

- Podias felicitar-te.

- Mas não é o meu aniversário!

Ariel fez-lhe sinal que não:

- Podias felicitar-te porque, como ser humano, efectuaste uma viagem aliciante em redor de um sol escaldante do espaço celeste. E testemunhaste um bocadinho da eternidade. Contemplaste o Universo, Cecilie! Elevaste o teu olhar do papel em que estás desenhada e viste a tua suprema majestade no imenso espelho celeste.

Cecilie assustou-se com a solenidade daquelas palavras e disse:

- Acho que deves parar por aí. Já não suporto mais.

- Só mais uma coisa! - disse ele.

E com um olhar mais límpido e penetrante que o mar Egeu, disse ao mesmo tempo que se esvanecia:

- As estrelas também caem um dia. Mas uma estrela é apenas uma faísca da grandiosa fogueira celeste...

Cecille adormeceu imediatamente e, ao acordar, os pais e a avó estavam sentados junto da cama.

- Estão todos aqui?

Os três disseram que sim, enquanto a mãe lhe humedecia a boca com um pano.

- Onde é que está Lasse?

- Está na rua com o avô. Foram patinar juntos.

- Quero falar com a avó.

- Então, queres que saiamos?

Ela disse que sim.

Quando ambos deixaram o quarto, a avó afagou-lhe as mãos.

- Lembras-te de teres falado em Odin? - perguntou Cecilie.

- Claro que me lembro.

- Ele tinha um corvo em cada ombro. Todos os dias, ao amanhecer, os corvos abalavam para tomarem conhecimento das coisas que se passavam pelo mundo fora e, no regresso, contavam-lhe o que tinham visto...

- Agora é a tua vez de me contares - disse a avó.

Cecilie calou-se e a avó retomou a narração:

- De certo modo, era o próprio Odin que andava a voar pelo mundo porque, apesar de tranquilamente sentado naquele lugar alto, viajava pelo Mundo nas asas dos corvos. E tu sabes que os corvos têm uma vista extraordinária...

Cecille interrompeu-a:

- Era mesmo isso que queria dizer-te.

- O quê?

- Quem me dera a mim ter dois corvos como aqueles ou, pelo menos, ser um deles.

A avó apertou-lhe agora as mãos com mais força.

- Começo a esquecer-me das coisas que me contaste disse Cecilie.

- Eu acho até que te lembras muito bem.

- Não me disseste que a beleza nos entristece às vezes? Ou terias dito que nos tornamos belos com algo triste?

A avó não respondeu, limitou-se a segurar-lhe os pulsos e fitou-a nos olhos.

Cecilie disse:

- Podes apanhar o livro de notas que está debaixo da minha cama?

A avó soltou-lhe uma das mãos e inclinou-se para apanhar o livro e a caneta de feltro preta que estava ao lado.

- Poderás escrever-me uma coisa?

A avó soltou agora a outra mão e Cecille ditou:

- "Vemos tudo através de um espelho, através de um enigma. Às vezes espreitamos pelo vidro embaciado e vemos alguma coisa do outro lado. Porém, se o vidro fosse completamente limpo, passaríamos a ver tudo mais nitidamente, mas também deixaríamos de nos ver a nós próprios... "

A avó levantou o olhar do livro de notas.

Não é um pensamento profundo? - perguntou Cecilie.

A avó disse que sim e derramou umas lágrimas.

- Estás a chorar? - perguntou Cecilie.

- Sim, estou a chorar, minha filha.

- Porque foi belo ou triste?

- Por ambas as coisas.

- Mas ainda não acabou.

- Então, diz lá...

- "Se eu quisesse desenhar uma coisa e soubesse de antemão que

essa coisa viria a ganhar vida, jamais ousaria fazê-lo. Eu nunca criaria algo que não pudesse defender-se da vivacidade dos lápis de cor..."

O quarto ficou em silêncio total, silêncio que, aliás, reinava por toda a casa.

- O que achaste? - perguntou Cecilie.

- Bonito...

- Podes escrever mais?

A avó voltou a chorar e depois disse que sim. Cecilie continuou a ditar:

- "A obra da Criação e o espaço celeste são um mistério grandioso que nem os seres humanos nem os anjos compreendem. Há algo no espaço celeste que não bate certo. O grande desenho tem certamente um erro. "

A avó elevou de novo o olhar do papel.

- Mais uma coisa só para terminar.

A avó disse que sim e Cecilie acrescentou:

- "As estrelas também caem um dia. Mas uma estrela é apenas uma faísca da grandiosa fogueira celeste. "

Uma tarde Cecilie acordou com a mãe a seu lado e um melro preto na parte de fora da janela.

- Porque é que a janela está escancarada? - perguntou.

- Na rua está tão agradável e ameno que até parece Primavera.

- E a neve já desapareceu totalmente?

- Nem pensar.

- Então, o rio ainda está gelado?

A mãe disse que sim:

- Mas não é de se fiar nele.

Cecilie pensou em Ariel. A última vez que estiveram juntos, tinha sido muito formal. Teria ele então revelado os derradeiros segredos do Céu?

Agora havia sempre alguém presente. Num serão em que os pais estavam sentados junto de Cecilie, ela disse que não queria gente ali toda a noite.

- Um de nós ficará aqui - disse o pai.

- Mas porquê?

Ninguém lhe respondeu e ela disse:

- Se acontecer alguma coisa, toco a campainha.

O pai passou-lhe a mão pela cabeça:

- Não sei se terás forças.

- Se não tiver forças, peço a um anjo que vos acorde.

Houve troca de olhares.

Cecilie disse então:

- Vocês não julgam que me vou embora, pois não?

O pai fez sinal que não e a mãe falou:

- Estamos agora aqui contigo como quando eras pequenina.

- Ficaram com um medo súbito de que o passarinho abandone o ninho?

E Cecilie quase que os ameaçou para que saíssem do quarto. Quando ela acordou mais tarde, Ariel estava sentado no parapeito da janela.

- És tão linda quando dormes.

- Não quero falar. O que quero é sair!

- Mas tens forças?

- Claro que tenho! Quero ver o rio, antes que o gelo desapareça.

Ariel suspirou.

- É maçador. É preciso vestires toda aquela roupa.

- Mas eu quero sair - insistiu ela.

- Então, só um passeiozinho e acabou!

Cecille ajudou-o a encontrar a roupa de inverno no armário.

- Hoje levamos o trenó - disse ela terminantemente.

Ariel sorriu.

- É a primeira vez que ando de trenó.

- Pelo menos este ano - acrescentou Cecilie.

Quando Cecilie já estava pronta, puseram-se a observar juntos as pedras decorativas que estavam na estante. E ela disse:

- Vêm de quase todos os cantos do mundo. Cada pedra é um pequeno bocado do planeta.

- "Um pequeno bocado do planeta" - repetiu Ariel.

Ele apontou para a borboleta que Marianne oferecera a Cecilie e depois perguntou:

- Esta também?

Em vez de lhe responder, ela meteu-a na algibeira do blusão. - Esta agora vai voar lá para fora.

- "Voar lá para fora" - imitou Ariel. - "Agora vai voar lá para fora! "

- Vai ver primeiro se todos dormem.

Com um ar de esperto, Ariel perguntou:

Vamos juntos?

Foram em direcção à porta e deixaram o trenó nas escadas. Depois dirigiram-se sem ruído até ao limiar da porta do quarto de dormir dos pais. Cecilie levou um dedo à boca e balbuciou:

Calado.

A não ser a claridade projectada pela lanterna do celeiro, o quarto estava às escuras e os pais dormiam juntinhos.

- Não parecem mesmo crianças a dormir? - sussurrou o anjo.

E Cecilie acrescentou:

- Pergunto-me: com que estarão a sonhar?

Depois saíram e foram para o quarto de Lasse. Cecilie caminhou com cuidado para não pisar as peças de Lego que estavam espalhadas pelo quarto, enquanto Ariel voava a poucos centímetros do chão.

Sentia tanta ternura pelo irmão que as lágrimas caíram-lhe pela face. Não é estranho que se verta lágrimas quando se gosta de alguém? Nas últimas semanas, ela mal estivera com o irmão Lasse e quase se sentiam como estranhos.

Esgueiraram-se depois pela escada abaixo até ao rés-do-chão com o trenó atrás.

- Os meus avós vivem na casa ao lado - disse Cecilie baixinho.

Ariel disse:

- Mas a tua avó está a dormir agora no sofá aqui na sala.

Cecille olhou para certificar-se: a avó estava efectivamente deitada completamente vestida no sofá com um cobertor a tapá-la. Ela tinha-se apercebido de que a avó dormia ultimamente no sofá. A mãe tinha dito que era porque o avô ressonava alto, mas a avó insistia que era para ajudar a dar as injecções a Cecilie.

- É a melhor avó do Mundo - sussurrou.

E Ariel respondeu:

- Eu sei.

- Não é por ser a minha avó, mas é realmente a melhor avó do Mundo.

Ariel imitou-a:

- "A melhor avó do Mundo", "a melhor avó do Mundo."

Quando chegaram ao patamar, fecharam a porta atrás de si. Lá fora fazia um frio de rachar. Havia tantas estrelas naquela noite que parecia que o Céu estava iluminado por uma ténue luz do dia. Como era lua nova, podia ver-se as estrelas ainda melhor.

Cecille subiu o quintal com o treno ao qual a avó amarrara uma corda grossa. A mãe dizia que podia esperar, mas Cecilie e a avó ataram a corda às escondidas.

Do quintal até ao rio, as encostas eram suaves e compridas e Cecille montou de imediato o trenó, já para descer, virando-se para Ariel a gritar:

- Se quiseres fazer-me companhia, vem já para aqui!

O anjo sentou-se agarradinho a ela e só pararam quando o trenó se deteve na neve endurecida ao chegar ao matagal em frente ao rio.

Cecilie disse a rir:

- Batemos o recorde!

E logo se levantou e olhou para Ariel.

- Não foi fantástico?

- Sem dúvida alguma - respondeu o anjo com um semblante triste. - Mas não senti absolutamente nada.

- Vamos atravessar o rio, Cecille.

E abriram passagem pelo matagal até ao gelo.

- Não quiseram dar-me os patins - disse ela. - Mas mesmo assim, ainda consigo patinar.

E pondo o trenó de lado, deslizou com as botas pelo gelo, enquanto Ariel a seguia descalço. Os pés dele deviam ser muito escorregadios porque dava piruetas como um patinador.

De repente, o gelo rachou com um estrondo e Cecilie desatou a correr para o outro lado do rio com Ariel atrás.

Quando se viraram, viram que o trenó tinha ficado sobre uma placa de gelo.

Cecilie gritou:

- O meu trenó!

Antes de ela poder acrescentar fosse o que fosse, Ariel já estava a caminho. Cecilie pensou que ele apanharia o trenó descendo do ar. No entanto, ao chegar à margem do rio continuou pelo gelo e, em certos sítios, até caminhou sobre a água.

Regressou logo de seguida e Cecilie, sem poder afirmar, era capaz de jurar que ele sobrevoara a água como as renas do Pai Natal voam pelo ar.

- Mas que espectáculo! - exclamou.

E o anjo segurava com força a corda do trenó, dizendo:

- Agora vamos visitar a Marianne!

E puseram-se em marcha apressada para a casa amarela que Cecilie já não visitava há meses. Marianne fizera-lhe uma visita antes do Natal, mas isso já fora há semanas.

Cecilie experimentou a entrada, mas deparou-se com a porta fechada à chave.

- Não podemos entrar - disse Ariel. - Eu poderia passar pelo buraco da fechadura, mas ambos, isso é que não.

Cecilie sorriu com um ar malandro e fez sinal para que Ariel a seguisse até ao anexo.

- Sei onde está a chave - disse orgulhosa.

E estava lá mesmo, debaixo de uma caixa de tintas. Em certas alturas, Cecilie passara tanto tempo em casa de Marianne como em sua própria casa, em Skotbu.

Em seguida, entraram pela porta que abriram e atravessaram a sala até ao quarto de Marianne. Cecilie acendeu a luz da parede. Ariel estava em bicos de pés como se fosse um irmão pequeno.

Abriu a porta com cuidado e viu Marianne que dormia com o longo cabelo ruivo sobre a almofada.

Cecille sentia-se livre como um passarinho, mas mesmo assim algumas lágrimas rolaram pelo seu rosto ao ver a amiga. Seria por Marianne estar a dormir ou porque não a via há tanto tempo?

- Estás a chorar? - perguntou Ariel num murmúrio.

- Sim, estou a chorar...

Marianne voltou-se na cama como se fosse acordar.

Ariel agarrou Cecilie pelo blusão e disse:

- Despede-te dela agora mesmo!

Cecille curvou-se e pousou a borboleta, que tinha na algibeira do casaco, suavemente no chão junto à cama de Marianne.

- Porque é que fizeste isso? - perguntou Ariel. - Foi um presente dela para ti.

E Cecilie respondeu de forma evasiva:

- Ora essa! Estou certa de que já não preciso disto.

Quando chegaram à sala em direcção à saída, Marianne sentou-se na cama. E quando fecharam a porta, foram imediatamente colocar a chave no seu lugar no anexo e desceram a pequena encosta de trenó.

Quando o trenó parou, Ariel pôs-se a pairar no ar como um boneco sem peso. Cecilie, sentada no trenó a contemplar o céu estrelado, teve a sensação de partilhar aquela leveza absoluta e disse num suspiro:

- Esta é a eternidade.

- Ou o Céu - disse Ariel. - Ou melhor, o espaço celeste.

- O Universo - continuou Cecilie.

Estavam prestes a rebentar de riso, quando Ariel acrescentou:

- Ou o Cosmos

- Ou o espaço.

- Ou o sal do mundo.

- Ou a realidade.

- Ou simplesmente o Mundo.

- Ou ainda o Grande Enigma! - concluiu Cecilie.

Ariel anuiu solenemente:

- Um órfão tem muitos nomes.

- "Um órfão?"

E o anjo respondeu:

- Não são as crianças desejadas que têm muitos nomes, mas sim as que são encontradas abandonadas numa escada, por exemplo. São as crianças de origem desconhecida que pairam no vazio.

Cecille repetiu:

- Esta é a eternidade.

Ariel veio colocar o trenó a seu lado e disse:

Que é muito mais visível a meio da noite.

Cecilie virou-se para ele e repetiu o que já lhe dissera. Só que pôs mais ênfase em cada sílaba:

- Existo apenas esta vez. E jamais voltarei.

Ariel disse que não com a cabeça dizendo:

- Já estás na eternidade e a eternidade volta sempre.

Caminharam pela margem do rio avistando enormes placas de gelo que desciam vagarosamente pelo vale. Do rio, que se mantivera sereno todo o Inverno, vinham agora ruídos muito intensos, produzidos pela forte corrente. Cecille e Ariel atravessaram para a outra margem através da ponte.

A meio da ponte, Ariel apontou para a água e perguntou:

- Como se chama este rio?

- "Como se chama este rio?" - repetiu ela. - Já te disse que é Leira.

E o anjo fez-lhe um sinal afirmativo:

- Tem um nome bonito este rio. No espelho celeste, mesmo as coisas mais terrestres se tornam, em certa medida, celestes.

- Não estou a perceber nada de nada.

- Leira... - repetiu Ariel.

E acrescentou enigmaticamente:

- Tu vês tudo através de um espelho, através de um enigma.

Cecilie encolheu os ombros com indiferença e ele continuou:

- Experimenta ler "Leira" de trás para a frente.

E Cecilie exclamou pouco depois:

- ARIEL! É ARIEL!.

O anjo disse orgulhosamente:

- Sempre gostei deste vale.

Cecilie estava impressionadíssima.

E ao subir para Skotbu virou a cabeça algumas vezes para trás para contemplar o Universo. De repente viu uma estrela cadente. Mas foi Ariel quem levou a mão à boca e disse:

- Olha uma estrela a cair!

- "Olha uma estrela a cair" - repetiu ela.

Os seus pensamentos foram novamente ter à estrela da árvore de Natal que havia desaparecido. Ariel não tinha dito que sabia do seu paradeiro?

Cecilie palmilhou a última ladeira até ao celeiro de Skotbu puxando o trenó e, olhando para trás, perguntou a Ariel:

- Lembras-te de eu te ter contado que a velha estrela de Natal desapareceu misteriosamente?

Com um olhar indecifrável, o anjo respondeu:

Talvez não seja assim tão misterioso.

É óbvio que não deve ser! - respondeu Cecilie. - Tu sabes onde ela está.

E sentiu um arrepio. Onde quereria Ariel chegar ao dizer que não era assim tão misterioso? Se ele sabia onde a estrela estava, porque não lhe teria contado antes?

Chegaram agora à parte de cima do quintal e, apontando para trás do celeiro, Ariel disse:

- Vem cá!

A velha árvore de Natal, de ramos já pardos, estava encostada à parede do celeiro. Via-se que estivera na rua todo o Inverno e emergia agora da neve que se derretia.

Esta é a árvore do ano passado! - exclamou Cecilie, recordando-se que ela e o pai a tinham trazido cá para fora no ano anterior quando o Natal chegara ao fim.

Ariel deu um pontapé na árvore para sacudir a neve e foi então que Cecilie viu a velha estrela. Nem ela, nem ninguém pensara na hipótese de a estrela ter ficado esquecida na árvore!

A árvore morta era uma imagem de tristeza e desolação. Cecilie lembrou-se da praia de lava preta na ilha de Santorini. Porém, a estrela mantinha-se igualzinha apesar de ter passado o Inverno ao ar livre.

Ariel inclinou-se para tocar na estrela com um dedo e esta iluminou-se como se estivesse ligada à corrente.

Cecilie ficou perplexa:

- Mas que linda!

E quando o anjo retirou a mão, a luz apagou-se.

Cecilie pediu:

- Só mais uma vez.

E o anjo voltou a fazer o mesmo: mal lhe tocou, a estrela acendeu-se e iluminou Cecilie, Ariel, as paredes do celeiro e os montões de neve em redor.

Um sinal de mão foi suficiente para que Cecilie compreendesse que eram horas de voltar a casa e meter-se no quarto antes que alguém acordasse.

O anjo ajudou-a outra vez a ir para a cama, arrumou o trenó junto à parede e, por fim, soprou a neve e a água. Mal chegou à cama, Cecilie adormeceu.

Quando mais tarde abriu os olhos, o pai e a avó estavam no quarto.

- É noite? - perguntou.

A avó humedecia-lhe os lábios com um pano molhado e o pai, ao ouvi-la, respondeu que sim envolvendo com as suas mãos as dela.

- Já sei o que se passou com a velha estrela de Natal - sussurrou Cecilie.

A avó e o pai olharam um para o outro.

- A estrela de Natal? - repetiu o pai.

E Cecilie afirmou:

- A estrela ficou esquecida na árvore de Natal, atrás do celeiro.

E antes de voltar a adormecer, Cecilie elevou o olhar e disse à avó o mais alto e claro que pôde:

- "Não são as crianças desejadas que têm muitos nomes, mas sim as encontradas abandonadas numa escada, por exemplo. São as crianças de origem desconhecida que pairam no vazio. "

Estas palavras foram pronunciadas como se tivessem sido extraídas de um verso que ela sabia de cor.

Cecilie acordou estremunhada, abriu os olhos e depois virou-se para a cadeira onde o pai estava sentado com a velha estrela de Natal.

E, sem saber bem porquê, sentiu uma grande alegria por ver que tinham acreditado nela. A estrela estava de facto nas traseiras do celeiro que Cecille visitara na noite anterior.

- Encontraram-na onde eu disse - murmurou, articulando as palavras com dificuldade.

O pai pousou a estrela sobre o edredão e perguntou baixinho:

- Como sabias que estava na árvore?

E Cecilie disse com um sorriso esforçado:

- Foi um anjo de Deus que me contou.

- Seja como for, encontrámo-la precisamente onde indicaste.

- Mas só Deus consegue iluminá-la.

A mãe, a avó e o avô entraram no quarto daí a pouco. Eles deviam estar ali mesmo ao lado e entraram logo que ouviram falar no anjo.

Cecilie olhou para todos. Hoje sentia-se mais lúcida do que nos últimos tempos, mas muito débil...

A mãe sentou-se numa cadeira junto à cama e os avós ficaram de pé a olhar. O único sorriso vinha da avó.

Queres ver o Lasse? - perguntou a mãe.

Cecille fez-lhe um sinal que sim e a avó foi buscá-lo à entrada. Mas ele estava tão tímido que a avó teve de lhe dar um ligeiro empurrão.

O irmão disse:

- Olá!

- Olá, Lasse.

E perguntou, olhando para ele:

- Como vão os esquis?

- Vão bem...

Cecilie tentou dizer uma graça para quebrar o silêncio:

Oh, seu desarrumado, tens de dar um jeito à confusão que vai no teu quarto.

Todos riram com aquela graça sem sentido mas, à excepção de Cecilie, ninguém sabia da visita nocturna ao quarto de Lasse.

E continuou:

- O gelo está a descer pelo rio.

Todos concordaram e o silêncio voltou a reinar no quarto. As últimas palavras ficaram-lhe a pairar no ouvido por muito tempo: "O gelo está a descer pelo rio." "O gelo está a descer pelo...."

Imagina lá que encontrámos mesmo a velha estrela de Natal - disse a avó. - Fomos juntos ao celeiro.

"Fomos juntos ao celeiro."

Afinal todos eles estiveram lá a remexer a neve como ela e Ariel tinham feito!

- Mas a borboleta não estava lá - disse orgulhosamente. Foi-se embora!

A mãe levantou-se de súbito da cadeira e fez menção de dar um passo. Iria procurá-la à estante. Mas a avó deteve-a imediatamente, dizendo que se sentasse:

- Tone!

O silêncio voltou a reinar.

Cecille estranhava que, apesar de estar tão lúcida, se sentisse também sonolenta.

- Creio que vou dormir outra vez - sussurrou. - Mas desta vez só digo até já.

Um pouco mais tarde, acordou. A janela estava aberta, mas no quarto não viu ninguém.

Ariel entrou voando pela janela aberta de par em par e foi sentar-se sobre a secretária. Cecilie foi para o meio do quarto.

- Voltaste? - perguntou.

E, em vez de lhe responder directamente, o anjo perguntou:

- Queres voar um pouco comigo?

Cecilie riu-se:

- Mas eu não sei voar.

Ariel sorriu:

- Já é altura de acabares com essas tontices. Vamos!

Cecilie caminhou em direcção a Ariel e saíram juntos de mão dada pela janela.

Primeiro passaram pelo celeiro e atravessaram aquela paisagem que se espraiava na madrugada de um dia de Inverno com o sol prestes a romper.

- Que bom! - exclamou Cecille - Fantástico!

Voar era ainda mais fantástico do que ela imaginara. Quando sobrevoavam as copas dos pinheiros, Cecilie sentia um nervoso miudinho e, ao elevar a cabeça, discerniu lugares a milhas de distância como Gardermoen, a colina de Hekseberg e os lagos Hurdal e Miosa. À distância, viu o fiorde de Oslo e ainda mais longe vislumbrou o mar.

Lá do alto, Ravnekollen parecia um torrão de açúcar em pequeno formato.

Disse:

- Agora somos os corvos de Odin.

- Precisamente - respondeu o anjo Ariel. Quando estivermos sentados na mão direita de Deus contar-lhe-emos o que vimos.

E quando regressaram um pouco mais tarde, tornaram a entrar pela janela de par em par, e, à semelhança do que Ariel fizera na primeira vez, sentaram-se lado a lado no parapeito.

Então, olharam para a cama. E Cecille não estranhou ver-se deitada na cama com o cabelo claro espalhado sobre a almofada e com a estrela de Natal sobre o edredão.

- Concordo que sou bonita quando estou a dormir disse.

O anjo segurou-lhe a mão com força e olhando-a fixamente nos olhos, disse:

- Agora que estás deste lado, és ainda mais bonita!

- Mas porque estou do outro lado do espelho, deixei de me ver.

E quando acabou de falar, Ariel soltou-lhe a mão e disse:

- Pareces-te com uma borboleta bela que esvoaçou das mãos de Deus.

Cecille olhou pelo quarto e viu que o sol matinal projectava nesse momento um raio estreito sobre a secretária e o chão e iluminava a parte de baixo da cama onde os fios de seda do livro de notas cintilavam de tão brilhantes que eram.

 

                                                                                            Jostein Gaarder

 

 

                      

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