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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DANÇA DOS GIGANTES / Rob Macgregor
A DANÇA DOS GIGANTES / Rob Macgregor

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INDIANA JONES

A Dança dos Gigantes

 

O jovem Indiana Jones conseguiu o seu primeiro emprego no Departamento de Arqueologia da Universidade de Londres. A sua mais brilhante, e também a mais bonita, Deirdre Campbell,que diz ter descoberto um pergaminho dourado, prova da existência de Merlim, feiticeiro lendário.

        Indy fica intrigado com esta tese... e também com Deirdre.

        Intrigado também está o membro do parlamento Adrian Powell,que procura ressuscitar a antiga Ordem dos Druidas, cujos segredos o poderão conduzir à conquista do mundo.

        Mas para isso precisa do pergaminho. E está disposto a matar para o conduzir.

     Apanhou uma picareta do chão e colocou o cabo na boca. Com precaução, subiu para o fundo da escada improvisada. O seu peso fê-la esticar quase até ao solo, mas não rompeu.   Ergueu o pé, escalando para o nível a seguir, e depois para o terceiro.

     Mas o pé escorregou-lhe da corda, e apanhou-a com o joelho. A corda que segurava com a mão esticou-se. Subitamente, uma das estacas saltou da parede e Indy foi cair por cima de Deirdre, derrubando-a para o chão...

 

                  

 

O PACOTE-SURPRESA

Verão de 1925

      Para onde olhasse, só avistava figuras envoltas em trajes negros e encapelados, as cabeças cobertas com capuzes.Entoavam, vezes sem conta, um cântico monótono e ritmado. Era infindável, de enlouquecer.

      Espreitou por entre a neblina acinzentada, tentando situar-se. Ou amanhecia ou anoitecia; não sabia bem, e tal facto perturbava-o. Percebia que se encontrava no interior do que lhe parecia ser um templo. Era circular e destelhado, com pilares em pedra, imensos, arqueando na direcção do céu cimeiro.

      Ele não pertencia ali; aquele não era o seu lugar. A sua cabeça salientava-se acima de todas as outras, e era o único que não usava túnica. Olhou para baixo e viu que não tinha nada vestido. Apercebeu-se, então, que estava em cima de uma rocha plana e que essa era a razão por que era mais alto do que as outras pessoas.

     O que estaria ele a fazer ali? Como chegara àquele lugar?

     Olhavam agora para ele. Todas as cabeças se encontravam voltadas para si. O sussurro aumentou de intensidade;martelava contra ele. Por que estariam a avançar para ele? Por que não se moveriam os seus pés? Por que sentia o corpo como se fosse de chumbo?

     Um homem avançava na frente de todos os outros. Apontou para ele.

     - Jones, sabemos que está a chegar. Sabemos que está a chegar. Era isso - o cântico.

     Agora corriam para ele, um mar de negridão, as vestes esvoaçando nos tornozelos.  Olhou freneticamente em redor, em busca de uma saída. Os seus braços elevavam-se, os pés emitiam ruídos por baixo dele, mas não pareciam deslocar-se para lado nenhum. Eles deviam tê-lo drogado; mas, quem eram eles?

     Girou a cabeça. Estavam quase em cima dele. Mexe-te. Mexe-te. Depressa.

      Explodiu ar dos seus pulmões. Um rosto sorridente incidiu sobre ele. O céu enviesou-se. Os pilares inclinaram-se na sua direcção. Subitamente, despertou, os braços contraídos, os pés estremecendo, um grito balançado na extremidade da língua.

      Conteve a respiração e olhou em redor. Mas continuava a ouvir o cântico incessante.  Pestanejou, orientando-se. O comboio. Claro. As carruagens rolando sobre os carris, o som do cântico, e alguém batia a porta do compartimento.

      Endireitou-se no assento e passou as mãos pela fronte ensopada de transpiração.

      - Quem é?

      O bater parou. A porta abriu-se e um inglês magro, de cabelo grisalho, vestindo a farda de revisor, espreitou.

      - Mr. Jones? Lamento incomodá-lo.

      Indy esfregou o rosto.

      - Não tem importância. O que se passa?

     O revisor mostrou um pacote.

     - Estava à sua espera na última paragem.

     - Tem a certeza de que é para mim? - Indy pegou na caixa plana e rectangular. Estava envolta em papel branco, com um envelope colado onde se lia Indy Jones. -É provável que só exista um de nós a bordo. - Agradeceu ao revisor, que sorriu timidamente, anuiu e retirou-se.

     Voltou o pacote na mão. Parecia uma caixa de bombons. Chocalhou ao ser agitada. Aproximou do nariz; cheirava vagamente a chocolate. Quem poderia lhe enviar chocolates? interrogou-se ao retirar um cartão do envelope.

     A mensagem vinha dactilografada: Desejo-te uma viagem agradável, e boa sorte para o teu novo trabalho. Henry Jones Senhor.

     Pestanejou e voltou a ler. Como é que diabo sabia o seu pai que ele estaria neste comboio? E desde quando é que ele lhe enviava caixas de bombons? Já não falavam há mais de dois anos, desde que Indy o informara que trocara os seus  estudos de Lingüística por Arqueologia, atitude que o pai descrevera como tola e pérfida.

     O seu franzir de sobrolho suavizou-se então, e um sorriso aflorou-lhe nos lábios. Era obra de Shannon; tinha de ser.Jack Shannon estava ao corrente do relacionamento que tinha com o seu pai. O pacote não passava de uma brincadeira, pelo menos para alguém com o fraco sentido de humor de Shannon.

     Abanou a cabeça e pousou o cartão sobre a caixa.

     Olhou pela janela para a paisagem ainda em tons de cinzento e pensou na última noite que passara em Paris. Uma nuvem de fumo azulado pairava no ar do clube nocturno, enquanto a mulher negra oscilava e cantava no palco, a voz  profunda e sonora, um acompanhamento perfeito para os sons nobres do cornetim tocado nas sombras atrás dela. No momento em que as últimas notas da canção foram lentamente abafadas pelos aplausos do público, o músico alto desceu do palco.

     Apertou mãos, anuiu e sorriu ao abrir caminho por entre as mesas. Por fim, sentou-se na cadeira de uma mesa posicionada num dos cantos mais afastados do palco.

     - A tua actuação foi excelente, Jack. A tua e a de Louise, -disse Indy.

     - Obrigado. Tem corrido tudo muito bem nos últimos seis meses.

     - Vou sentir falta disto.

     Shannon mirou-o.

    - Não te censuro por partires. Está a ficar demasiado doentio. O cenário mudou. - Inclinou-se para a frente e acendeu um cigarro na vela acesa sobre a mesa. - Por vezes, olho à minha volta e não avisto, praticamente, nenhum parisiense. Só turistas. Todas as noites novas caras. Os freqüentadores habituais só aparecem lá mais para o fim do espectáculo. Se é que aparecem.

    Indy colocou o chapéu.

    - Sabes que a tua visita será sempre bem-vinda.

    - Sou capaz de aceitar o teu convite. Gostaria de voltar a Londres.

    Indy afastou estas recordações e observou o que o rodeava. A paisagem rural fora substituída por fábricas de tijolos e chaminés fumegantes; estaria na Victoria Station dentro de meia hora. Depois de partir de Paris no princípio da  semana,passara dois anos na Bretanha, onde examinara algumas das ruínas megalíticas existentes na região. Depois, esta manhã, atravessara o canal de barco e apanhara o comboio.

    Desembrulhou o pacote. Chocolates franceses vindos de Paris.

    - Boa jogada, Shannon.

    Estava prestes a tirar a tampa e a provar um chocolate quando o comboio começou a reduzir velocidade, ao chegar a uma estação. Nesse instante, um livro deslizou do banco. Inclinou-se e apanhou-o. A capa abrira-se numa  epígrafe na primeira página do volume do século dezoito, a qual dizia: Felix qui potuit rerum cognoscere causas.

    - Afortunado ? aquele que pode ter acesso ao significado intrínseco das coisas - proferiu.

    Fechou a capa. O livro intitulava-se Coro Gaur, O Grande Centro dos Antigos Druidas,  Habitualmente Denominado Stonehenge. Riu-se para si mesmo. Não necessitava de ponderar mais sobre o significado do seu sonho. Estivera a  ler este livro antes de adormecer. Contudo, por que vestes negras? interrogou-se. Tinha a certeza de que os druidas trajavam de branco. Mas, quem disse que os sonhos tinham de fazer sentido?

    O comboio retomou a marcha. Bateu os dedos sobre o pacote,abriu de seguida a tampa e levou a mão ao interior para retirar um chocolate. Só algum tempo depois compreendeu o que estava a ver e a sentir.

      Algo negro e peludo rastejava pelos seus dedos, e não era feito de chocolate. Soltou um grito abafado, abanou a mão e observou a caixa. Havia alguns chocolates, mas as restantes divisões continham aranhas do tamanho de nozes.

      Deu um pulo, lançando a caixa no ar. Os chocolates e as aranhas caíram sobre ele. Sacudiu-se e pôs-se de pé. Pisou aranhas e esmagou chocolates, libertando os braços, pernas e corpo das criaturas rastejantes, tentando não  pensar como estivera perto de dar uma dentada numa coisa daquelas.

      Por fim, analisou o banco e voltou a sentar-se, mas, ao fazê-lo, sentiu uma deslizando no interior das calças e outra dentro do colarinho. Quase deu um salto para fora das roupas. Agitou a perna até a aranha cair no chão e esmagou-a sob o sapato. Depois, com precaução, sacudiu o pescoço.

      Riu-se nervoso quando um chocolate saltou para o chão. Mais tranqüilo, sentou-se, mas sentiu imediatamente um formigueiro na barriga da perna e puxou as calças para cima. Dezenas de pequenas aranhas, acabadas de ser chocadas, emaranhavam-se na sua perna.

      - Ah... ah... - Os seus dentes rangeram e estremeceu.

      Abateu-as, servindo-se de um jornal enrolado. Inspeccionou depois a perna para se assegurar de que não restava nenhuma. Pegou na caixa e examinou-a. A questão é que a caixa de chocolates não fora invadida por aranhas. Alguém as colocara lá dentro.

      - Shannon? - disse, em voz alta. Dar-se-ia ele a todo aquele trabalho por uma partida a que nem sequer iria assistir?

      Talvez , mas isto não se tratava de uma partida.

     Observou de novo o cartão. Talvez fosse efectivamente do seu pai. Não, não podia ser. Não era possível. Além disso, fora endereçado a Indy Jones, e o pai nunca o tratava assim. Mas Shannon estava ao corrente desse facto.

     Se pretendia pregar uma partida, por que razão não o endereçou a Henry Jones Jr.,como era habitual nas cartas que o pai lhe enviava quando eram colegas de quarto em Chicago?

     Ouviu bater à porta.

     - Sim?

     O revisor abriu-a.

     - Gostaria de ver o seu bilhete, por favor.

     Indy levou cuidadosamente a mão à algibeira do casaco e entregou o bilhete ao revisor.

     - Importa-se que mude de compartimento durante o resto da viagem? Este tem aranhas.

     - Aranhas? - Os olhos do revisor percorreram o compartimento; os seus ombros contraíram-se. Indy compreendeu-o, perfeitamente. Apontou para uma aranha que subia pela armação da janela.  O revisor devolveu o bilhete a Indy e retorceu para fora do compartimento.

     - Por aqui, sir.

     Indy reuniu, rapidamente, os seus livros e o revisor levou-lhe a bagagem. No último instante, deitou a mão à caixa vazia e ao papel de embrulho, na esperança de que contivessem qualquer pista quanto à origem do suposto presente.

Quando já se encontrava de novo instalado, perguntou ao revisor como poderia descobrir de onde viera o pacote que recebera.

     - É fácil. Certifique-se apenas do número que está no canto do papel de embrulho.

     Indy alisou o papel.

     - Doze.

     - É isso. Colocam sempre um número na encomenda para que a estação possa notificar o remetente de que a encomenda foi entregue, se esse serviço for solicitado.

     - Então, onde fica o doze?

     O revisor sorriu.

     - É fácil. Foi enviado de Londres.

      Indy olhou por cima do ombro ao atravessar o portão da universidade e vislumbrou um homem alto e de cabelo escuro,que se deslocava atrás dele. Há três manhãs que este homem o vinha a seguir. Olhou de novo para trás, mas o indivíduo desaparecera num grupo de estudantes. Talvez se tratasse apenas de alguém que fazia o mesmo caminho.

      Embora já tivessem decorrido seis semanas desde o seu primeiro dia de aulas, não conseguia esquecer o incidente com as aranhas. Queria pensar que se tratara apenas de um erro,que a caixa de bombons não se destinara a ele.

      Mas sabia que isso não era verdade. Só não sabia porquê. Encontrava-se na expectativa de que algo iria suceder, de algum a indicação quanto ao significado da caixa, mas nada.

      Apesar de todos os esforços, não conseguiu localizar a origem do pacote. Shannon jurara que não tinha conhecimento de nada, e Indy acreditava nele. A pessoa que o remetera tomara todas as precauções para não deixar rastos.

      Mas estava demasiado ocupado para perder muito tempo com esta questão. Chegava todos os dias às oito à universidade, lia os seus apontamentos no gabinete, e dava uma aula de duas horas às nove e outra à uma. Embora as suas

aulas terminassem às três, era então que o seu trabalho se iniciava. Regressava ao gabinete ou à biblioteca, onde pegava nos resumos das aulas, abria os livros, e começava a preparação da próxima aula.

      Bocejou ao entrar em Petrie Hall. Grande parte da matéria que leccionava era nova para ele, pelo que, para além de professor, era também aluno. Na melhor das hipóteses, estava uma semana adiantado em relação aos seus alunos e, nalguns dias, ainda menos. Na maioria das vezes, sentia-se satisfeito por poder ter acesso aos resumos, pois forneciam-lhe uma discriminação geral dos tópicos a serem discutidos no decorrer da semana. Mas, outras ocasiões, esses mesmos resumos restringiam-no. Antevia já processos de melhorar as aulas, se as voltasse a dar, mas não havia garantia de tal coisa.

 

REPRESENTAÇÃO NA AULA

      Só dentro de duas semanas, quando o período  de Verão terminasse, poderia saber se estaria ali a leccionar no Outono.Ter conseguido este emprego tão pouco tempo depois do seu doutoramento constituiu uma verdadeira surpresa. Com efeito, não lhe teria desagradado a ideia de permanecer em Paris e procurar uma posição numa das universidades da cidade,mantendo, em simultâneo, o trabalho em part-time no laboratório de arqueologia em Sorbonne. Mas, Marcus Brody, um velho amigo da família e conservador de um museu de Nova Iorque, abrira-Lhe as portas para este emprego. Brody, um nativo londrino, enviara-lhe um telegrama, informando de que um dos seus contactos na Universidade de Londres lhe comunicara sobre uma vaga de professor de Arqueologia num curso de Verão, lugar esse que se poderia tornar efectivo no Outono.

      Não pensara ter muitas hipóteses, mas mesmo assim concorrera, sobretudo, para mostrar a Brody que apreciara a ajuda. Embora a colocação fosse para um curso introdutório,baseava-se, essencialmente, nos monumentos megalíticos ingleses, matéria que estudara apenas superficialmente nos seus estudos. Uma semana mais tarde, pediram-Lhe que se deslocasse a Londres para uma entrevista, e, alguns dias depois, recebeu uma carta informando-o de que fora contratado.

      Embora a entrevista tivesse corrido bem, estava convencido de que Brody tinha mais influência nos círculos profissionais do que ele imaginara.

      Quando entrou na sala de aulas, dirigiu-se ao quadro e escreveu duas palavras em letras grandes: CAMINHADA CAMPESTRE. Subiu depois para o estrado e pousou o bloco de apontamentos. Alinhadas às paredes da sala estavam estantes de madeira, contendo exposições bem ordenadas de pedaços de cerâmica, fragmentos de ossos, e alguns crânios. Numa mesa junto do estrado, encontravam-se empilhados livros de consulta e manuais e, atrás desta, o quadro e uma parede repleta de fotografias de escavações, as quais documentavam descobertas ou pormenorizavam procedimentos técnicos.

      Cumprimentou os alunos, reparando na loura que dava estalos com a pastilha, os jovens rapazes sérios com fatos de lã e gravatas, e as raparigas de camisolas com rabos-cavalo e fitas nos cabelos. Os seus olhos demoraram-se, por momentos, na ruiva bonita, sentada no centro da fila dianteira. Era a que mais lhe interessava de todos os alunos, mas também, aquela com quem lidava com maior cautela. Falava com freqüência, com demasiada freqüência, interrompendo com uma pergunta ou comentário, ou respondendo a perguntas que ele fizera à turma como se ela fosse a única pessoa presente. Mas essa não era a única razão por que agia com prudência em relação a ela. Chamava-se Deirdre Campbell, e era filha da Dra. Joanna Campbell, chefe do departamento e sua patroa.

      Abriu o bloco de apontamentos na lição que preparara há dois dias.

      - A arqueologia é uma profissão em que se podem fazer agradáveis passeios no campo -, começou - e trabalhar ao mesmo tempo.Existe até um nome para isso. Chama-se caminhada campestre. Indy olhou para as filas de cabeças baixas de alunos tomando notas. Contudo, Deirdre fitava-o. Explicou que a caminhada campestre pressupunha procurar desvios na paisagem. Ligeiras sinuosidades poderiam indicar os restos de uma vala antiga ou a localização de uma aldeia medieval. Uma alteração na cor do solo ou da densidade da vegetação constituía outro indicador. Se o limite de um campo mudava sem nenhuma razão aparente ou as margens de um curso de água seguiam uma peculiar linha direita, poderia significar a presença de um antigo muro.

      Olhou para cima e viu uma mão erguer-se. Ela não demorou a começar.

      - Sim, Miss Campbell?

      - E no caso de Stonehenge?

      Falava com sotaque escocês, pronunciando StoonheengeH.

      Indy olhou para ela sem entender.

      - Não compreendo.

      - Bom, a caminhada campestre não resultou nesse caso. As pessoas caminharam por Stonehenge e pela área circundante e não detectaram qualquer alteração na paisagem, porque era demasiado evidente.

     Graças a Deus que sabia ao que ela fazia referência. Não tinha nada nos seus resumos sobre a utilização de fotografia aérea, mas estivera já a preparar algum material para uma próxima aula sobre Stonehenge e lera sobre as fotos tiradas às ruínas.

     - Bem observado, - disse, e passou rapidamente a explicar. -Quase no final da guerra, foi construído um aeroporto militar a curta distância das ruínas. Fotografias tiradas por um esquadrão da Royal Air Force, no Verão de 1921, revelaram alguns pormenores surpreendentes. Descobriu-se que, numa determinada área a partir do monumento, os cereais cresciam em cores mais escuras do que os restantes cereais vizinhos. No entanto, essa diferenciação era impossível de ser feita a nível do solo.

     -Alguém sabe o que pode ter ocasionado tal facto? -inquiriu.

    Claro que Deirdre sabia.

     - Isso revela que o terreno foi escavado nessas zonas mais escuras, e que as raízes das plantas conseguiram penetrar na camada mais espessa de greda que fica logo abaixo do solo superior.

    - Efectivamente - disse Indy. - Em Setembro de vinte e três, Crawford e Passamore começaram a estudar essas áreas mais escuras, servindo-se das fotografias como única orientação.

      Descobriram a entrada exacta para a ruína e uma estrada direita que se  estendia praticamente até Salisbury, oito milhas a norte. É possível que Stonehenge seja o primeiro local arqueológico a tirar partido das fotografias aéreas.

      Estou certo que estas irão ser utilizadas nos anos vindouros.

      Mas podemos agradecer à Royal Air Force por ter alargado o nosso conhecimento sobre Stonehenge.

       Indy avistou de novo a mão de Deirdre. Sabia que a maioria dos professores adoraria ter nas suas aulas uma dezena de alunos brilhantes como Deirdre, mas ela começava a implicar com o seu sistema nervoso.

      - E o que me diz sobre a controvérsia com as autoridades militares? - perguntou ela.

     O tom que colocou na pergunta indicava que já sabia a resposta. O que raio estava ela a fazer? A pô-lo em teste em nome da mãe? Desta vez, sentiu-se descalço. Embora levasse bastante tempo a preparar as lições, sabia que havia falhas no seu conhecimento, e esta devia ser uma delas.

     - Lamento. Não sei a que se refere.

     - É compreensível - retorquiu Deirdre num tom de voz altivo.- Está há pouco tempo em Inglaterra, e ouvi dizer que os acontecimentos ingleses não são noticiados com muito rigor nos vossos jornais. Mas aqui a questão foi bastante controversa.

     Quase no final da guerra, as autoridades queriam derrubar Stonehenge, porque, na opinião deles, as pedras poderiam constituir perigo para aviões a baixo vôo.

     - Está a brincar.

     - Nem por sombras. Foi uma autêntica batalha.

     Indy reparou que diversas cabeças anuiam em acordo.

     - Bom, terei de me documentar. - Tossiu. Sentia-se embaraçado e irritado com Deirdre. Parecia que era ela quem estava a dar a aula. Tinha de a pôr no seu devido lugar, e rapidamente.

     A rapariga deve ter sentido o desagrado dele, pois só voltou a falar umas duas vezes até ao final da aula. Quando esta chegou ao fim, Indy informou que na lição seguinte falariam sobre Stonehenge.

     - Já conversamos sobre menires e dólmens, e agora poderão adicionar trilitos ao vosso vocabulário. Como trabalho de casa, vão ler todos os artigos intitulados Escavações em Stonehenge, do coronel William Hawley, e que têm sido publicados no Antiquaries Journal desde 1920. Hawley, como sabem, é o arqueólogo responsável pelas escavações que estão a ser feitas em Stonehenge. Falaremos do que ele descobriu até agora e sobre as suas implicações. A propósito, alguém sabe o que ele encontrou por baixo da conhecida pedra da matança?

     Alguns segundos depois, Deirdre levantou a mão, mas desta vez apenas ao nível do ombro. Indy aguardou mais uns instantes para ver se outras mãos se erguiam, mas tal não aconteceu.

     - Diga, Miss Campbell.

        - Encontrou utensílios de pedra, fragmentos de cerâmica e armações de veados, mas penso que o artigo a que se está a referir é uma garrafa de Porto lá deixada por um outro arqueólogo, William Cunnington, há cento e vinte anos.

  Todos se riram.

        - Muito bem. Roubou-me a piada. Não se importa de falar comigo depois da aula, Miss Campbell? Terminamos, por hoje. E não se esqueçam, para aqueles que esperaram, e são bastante, amanhã é a data-limite para a aprovação do tema para o teste do período.

       Enquanto os alunos iam saindo, Indy reuniu os apontamentos e meditou no que iria dizer. Depois de todos terem abandonado a sala, com excepção de Deirdre, permaneceu no estrado como se fosse continuar a aula apenas para uma turma de um elemento.

       Ela aproximou-se do estrado com as mãos unidas na frente por cima de um livro de notas. Era uma mulher pequena, com pouco mais de metro e meio. Os seus longos cabelos ruivos caíam-lhe em caracóis sobre os ombros. Tinha uma pele pálida e olhos cor de violeta. Usava apenas um leve toque de maquilhagem. Havia algo de contraditório no seu aspecto. Era frágil, mas inteligente; inocente, mas sofisticada. Por alguma razão,quando olhava para ela recordava-se de uma frase que o seu pai costumava citar quando a mãe se sentia agitada com algo que ele considerava trivial: Oh, pesada leveza, séria futilidade!

      - Miss Campbell é escocesa, não ?? - começou.

      - Sim, sou.

      - Também eu. Quero dizer, o meu pai é, ou era. Nasceu na Escócia. - Mau começo.

      Ela fitou-o directamente nos olhos, desafiando-o, com um leve sorriso nos lábios.

      - Foi para isso que me pediu para ficar depois da aula, para discutirmos os nossos antepassados?

     Indy tossiu. Estava nervoso. Deveria ser ela a estar nervosa, mas sucedia o contrário.

      - Quero perguntar-lhe se você...

      - Sim?

       Indy baixou os olhos para o estrado.

  .. Se você se importaria... Miss Campbell, por que está a fazer este curso? Quero dizer, você parece conhecer a matéria,e seguramente que a sua mãe tem mais conhecimentos sobre arqueologia britânica do que eu.

    - Mas quem está a dar o curso é o senhor. Não ela. Não é o nome de família que me vai dar currículo.

    Jones sabia que se a irritasse, esse facto poderia chegar aos ouvidos da mãe, e tal representaria o fim das suas hipóteses de voltar a ser contratado no Outono, mas tinha de dizer alguma coisa.

        - Miss Campbell...

        - Pode tratar-me por Deirdre.

        Indy enfrentou o olhar dela.

       - Deirdre, gostaria que desse aos outros alunos a possibilidade de intervir.

       Os olhos dela pestanejaram rapidamente.

       - O que quer dizer?

       - Penso que você os intimida.

       - Sim? Não há motivo para isso. Têm toda a liberdade para dizerem o que quiserem.

      - Claro que têm. - Indy olhou para baixo, como se os seus apontamentos lhe pudessem indicar o que dizer.

     - Posso fazer uma observação, professor?

     - Com certeza.

    - Na minha opinião, quem está intimidado é o senhor.

    Indy encolheu os ombros.

    - Intimidado não, apenas um pouco irritado.

    - Porquê?

    - Esta é a primeira vez que estou a ensinar. Nunca efectuei pesquisas arqueológicas neste país. Não sou inglês.

    - Não precisa de se desculpar perante mim por não ser inglês. Lembre-se que eu também não sou.

     Indy não achou graça.

     - E a sua mãe é a minha chefe.

    - Não necessita tornar esse facto numa acusação. Se quer saber, estou a gostar das suas aulas. Penso que está a fazer um excelente trabalho, e já falei nisso a Joanna, a minha mãe.

    - Oh, muito obrigado.

    - Está sempre a brincar comigo por sua causa. - Sorriu desajeitada, o rosto enrubescendo. - É melhor ir-me embora.

    Indy viu-a partir. Sorriu para si mesmo. Pessoa estranha.

Decidiu que gostava dela. Mas isso também já sabia desde o primeiro dia de aulas.

 

COMPANHEIROS DE QUARTO

        - Sei que fica por aqui. Ainda a semana passada comi cá, -disse Indy, parando numa rua no coração de Soho.

       Jack Shannon enfiou as mãos nas algibeiras e olhou em redor.

       - Não te preocupes. Por mim, como em qualquer lugar. Estou esfomeado.

      Shannon chegara, inesperadamente, há dois dias, aproveitando a oferta que Indy fizera, antes de deixar Paris. Mas, devido à agenda sobrecarregada de Indy, tinham passado pouco tempo juntos. Esta noite seria a primeira vez que conversariam por mais do que uns escassos minutos.

      - Ali está, do outro lado da rua - exclamou Indy. - Vamos.

     - Não tem grande aspecto - disse Shannon ao atravessarem a estrada.

     - E depois? A comida é tão boa quanto em Paris. Bem, quase.

    O facto de Indy ter encontrado um restaurante francês que lhe lembrava os pequenos bares de Paris não era de admirar.Pelo menos, em Soho. Milhares de Huguenotes vindos de França instalaram-se nas vizinhanças nos finais do século dezassete, seguidos de suíços, italianos, chineses, indianos, e outros. As ruas eram autênticas miscelâneas vociferantes, com mercados e lojas oferecendo tudo o que Marco Polo encontrara na sua longínqua viagem, e muito mais. Embora a variedade de cozinha estrangeira barata constituísse a principal atracção, com o avançar da noite as ofertas em algumas das ruas visavam satisfazer outros desejos fortes.

     Um empregado conduziu-os a uma mesa, e Indy pediu uma garrafa de vinho.

     - Hoje, o jantar é por minha conta. Trata-se de uma celebração.

     Shannon sorriu e afagou a pera** ruiva.

    - Ainda bem que o encaras sob esse prisma. Espero que não consideres uma imposição. Se quiseres, posso procurar um quarto em qualquer lugar.

** Nota do Revisor: porção da barba que se deixa crescer na extremidade inferior do queixo; bigode imperial.

        - Não te preocupes com isso. Passo lá pouco tempo, e descansa que, se me atrapalhares, logo te informo. Conta-me,como é que arranjaste este emprego?

       - Vinha a caminhar pela Oxford Street com o meu trompete,quando vi a porta do clube aberta de par em par. Pensei para comigo que não perdia nada e entrei. Fiz ao proprietário um belo discurso ao estilo de Chicago e soprei algumas notas.

Antes que pudesse recuperar o fôlego, dois fulanos do conjunto da casa estavam já sentados ao meu lado, e pronto. Disseram-me para começar esta noite.

      - Óptimo. Mas, e Paris e o Jungle?

      - O que queres que te diga? Apetece-me variar, Indy. O conjunto está a sair-se bem sem mim. De qualquer forma, estou a dar a outra pessoa a possibilidade de tocar trompete. O homem de Louise é de Nova Orleans. Já tocou com o King Oliver e é muito vivido. Tem garra.

     O vinho chegou e fizeram um brinde ao futuro, e a Londres.Indy falou com confiança das hipóteses que tinha de permanecer em Londres durante mais um ano. Começava a gostar da cidade e,dali, podia viajar para qualquer lado. Os ingleses encontravam-se, activamente, envolvidos em escavações arqueológicas desde a Guatemala ao Egipto.

      - É, realmente, o centro das coisas.

     Shannon bebericou o vinho e mirou Indy, com uma expressão aborrecida.

     - Para mim, estes ingleses estão a fazer-te uma lavagem ao cérebro. Não tarda nada, estás a falar como seria bom viver nas boas velhas colônias.

     - Jack, estou apenas a emitir uma opinião. Londres é cosmopolita.

     - Conheço bem essa palavra. Como se diz em francês?

     Indy riu-se.

     - Tens a certeza de que queres trabalhar aqui?

     Shannon encolheu os ombros.

     - Por algum tempo. Penso que poderei melhorar o meu modo de tocar. Estava tudo a ficar demasiado fácil para mim no Jungle. Necessito de variar.

     "Como conheço bem este desencanto em Shannon", pensou Indy. O mesmo sucedera em Chicago e na maior parte do tempo em Paris. Era como se a cultura do jazz exigisse uma certa perspectiva mordaz da vida. Dissonância. Ritmo sincopado, o sotaque perfeitamente deslocado.

 

     Terminaram os hors d'oeuvres e a comida chegava quando Shannon levantou um assunto que Indy vinha a tentar apagar da mente.

     - Nunca mais soubeste nada do paspalho que te enviou a caixa de aranhas?

     - Não. Nada.

     - Quando recebi a tua carta, pensei, no início, que se tratava de uma brincadeira.

     Indy levou à boca uma garfada da sua enguia grelhada.  -Também pensei que era uma piada, até abrir a caixa.

     Shannon fez uma careta e abanou a cabeça.

     - Aranhas. Eu teria enlouquecido se isso se tivesse passado comigo. Mas, quem diabo poderia ter feito uma coisa dessas?

     -Não faço ideia. Mas o responsável teve um péssimo sentido de humor. Eram aranhas viúvas negras e, se uma delas me tivesse mordido, provavelmente, não estaria agora aqui.

     Shannon lançou-se às suas ervilhas, que formavam um monte alto junto da carne assada.

     - Como sabes que eram viúvas negras?

     -Por fotografias que já vi em enciclopédias.

     - Pergunto a mim mesmo onde, em Londres, alguém poderia arranjar viúvas negras, - afirmou Shannon.

     - Não sei. Se dispusesse de tempo, tentaria descobrir.

     Shannon anuiu pensativamente.

     - Se Belecamus ainda andasse por aqui, diria que era obra dela.

     - Bom, mas não anda, - replicou Indy, brevemente, cortando o assunto. Dorian Belecamus fora a sua primeira professora de arqueologia na Sorbonne, Paris, e convencera-o a acompanhá-la a Delfos, Grécia, para trabalhar com ela como assistente. Dera-lhe a conhecer não só a pesquisa em campo mas também a traição. Maquinara contra ele, utilizando numa conspiração contra o rei da Grécia, o que quase custou a vida a Indy.  Mas Indy fizera uma descoberta significativa em Delfos. Encontrara e recuperara uma antiga relíquia sagrada, conhecida como a Omfalos, a qual estava agora em Nova Iorque, em exposição no museu de arqueologia de Marcus Brody.  Apesar da perfídia de Belecamus, que terminou na sua morte violenta, e de ter escapado por pouco ao mesmo destino, a experiência convencera-o de que a arqueologia era a carreira que desejava.

      - Como está a enguia? - inquiriu Shannon.

      - Boa. E o teu jantar? Ainda não fizeste nenhum comentário.

      - Aceitável. A carne está crua, mas o molho é bom.

      - Jack, é assim que a carne deve ser apresentada. Se estivesse demasiado cozinhada, não teria sabor. Mas, desde quando és perito em boa cozinha?

     Shannon pousou o garfo.

      - O que raio se passa contigo? Não tens cá estado toda a noite. Agora, estás a implicar comigo.

       - Não é nada.

      - Tens alguma coisa em mente. Deixa-me adivinhar, é uma mulher, certo?

      Indy bebeu um pouco do copo de água.

     - Recebi hoje uma carta de Leeland Milford.

     - Meu Deus, esse velho doido? Como está ele?

     - Bem, suponho, e não é doido. É apenas um pouco excêntrico.

     Shannon riu-se.

     - Sim. Um pouco.

     Milford era um professor aposentado, uma autoridade de renome em Inglaterra medieval, e um amigo do pai de Indy.Shannon conheceu-o quando ele e Indy eram colegas de quarto e Milford se deslocou à cidade para fazer uma palestra. Shannon ficara com a noção de que o professor era um homem estranho, pois, durante o jantar, Milford esquecera-se, por duas vezes,quem era Shannon , uma vez quando Shannon regressara à mesa com café e mais tarde quando fora buscar o trompete. De ambas as ocasiões, Indy teve de o apresentar de novo.

     - O que tinha ele para dizer, ou não conseguiste ainda decifrar a língua de trapos dele?

     - É inglês arcaico, não língua de trapos, e não foi assim que escreveu a carta. - Para além de ser esquecido, Milford tinha também o hábito perturbador de mudar para inglês arcaico durante as conversas, mesmo quando o assunto nada tinha a ver com a sua especialidade. - Diz que o meu pai continua aborrecido por eu ter seguido arqueologia. Na opinião dele, estou a desperdiçar a minha vida, e tudo o que me ensinou. Por outras palavras, nada de novo.

     - O que podes fazer? Tens de seguir a tua vida.

     - Tenta dizer isso ao meu pai. De qualquer forma, recebi a carta mesmo a tempo. Milford chega amanhã e quer encontrar-se comigo.

     - Que sorte a tua - disse Shannon. - Importas-te que não te faça companhia?

     Indy riu-se.

     - Já calculava. Vou esperá-lo à estação e depois vamos almoçar.

     - Será melhor praticares o teu inglês arcaico para o professor emérito.

  Indy não respondeu. Olhava na direcção da entrada do restaurante, vendo duas mulheres serem conduzidas para uma mesa de canto. Era Joanna Campbell e Deirdre. O seu olhar foi arrastado para a jovem. Mesmo do outro lado da sala, estava deslumbrante. Trajava um vestido azul-marinho com um grande colarinho branco à marinheiro, e um laço na frente. O vestido era justo em redor das ancas e caía-lhe até aos tornozelos com uma franja branca no fundo. Um chapéu a condizer com uma aba voltada para baixo cobria-lhe a cabeça,e o seu cabelo ruivo descia-lhe em caracóis sobre os ombros.

        Shannon seguiu-lhe o olhar para o outro lado do restaurante.

       - Conhece-las?

       - A ambas. É a minha chefe e a filha. Prepara-te para nos irmos embora. Vou até lá cumprimentá-las.

       - Espero-te lá fora.

      Deirdre foi a primeira a vê-lo.

      - Professor Jones. Que surpresa. - Estendeu a mão, que ele tomou por instantes. Havia nela uma mística que Indy não conseguia definir, algo oculto que lhe fazia sobressair a beleza, a fonte da sua força. Foi com verdadeiro esforço que

desviou o olhar, enquanto ela lhe apertava rapidamente a mão.

      A Dra. Campbell estendeu uma mão elegante. O seu cabelo negro estava raiado de linhas prateadas. As feições, tais como as da filha, eram finamente cinzeladas. Apresentava o ar distinto de sempre, esta noite com um leve toque de mistério num vestido negro, uma capa e um lenço de seda vermelho que lhe caía até às coxas.

      Enquanto faziam conversa sobre o restaurante e as redondezas, Indy esforçou-se por se mostrar interessado no que a Dra. Campbell dizia. Era como se houvesse uma atracção magnética que lhe arrastava os olhos, e os pensamentos para Deirdre. Interrogou-se sobre o que ela estaria a pensar, e no que lhe

iria dizer de seguida.

      - Então?-perguntou a Dra. Campbell.

      - Lamento. Deve-me ter escapado qualquer coisa.

     A professora sorriu e mirou a filha e depois Indy.

     - Perguntei a sua opinião sobre a arqueologia britânica quando comparada com a grega.

     - Penso que é um pouco como a diferença entre as línguas.

     Quando nos tornamos fluentes, é fácil entrosar as duas.

     - E o senhor é fluente, tal como diz, na forma britânica.

     Perguntou-se quanto teria Deirdre contado à mãe sobre a aula, e se ela teria mencionado a repreensão que lhe dera por dominar o debate nas aulas.

     - Estou em processo de desenvolvimento.

     - É uma resposta justa para uma pergunta injusta, pelo menos injusta por ter partido de mim - replicou a Dra. Campbell.

     - Nem por isso - respondeu Indy e tentou pensar em algo para dizer para que pudesse partir dignamente.

     - A propósito - disse a Dra. Campbell, inclinando-se para ele, - ouvi rumores de que coisas peculiares têm acontecido às pessoas que tiveram nas mãos a Omfalos. De tal forma que já não permitem que seja tocada. Aconteceu-Lhe alguma coisa no gênero quando a encontrou em Delfos?

        Indy sorriu e encolheu os ombros.

        - As pessoas têm uma imaginação fértil, como sabe. Pensam que estão a tocar no Oráculo de Delfos, ou qualquer coisa assim, e sobe-lhes à cabeça.

       Indy olhou em redor da sala, não observando nada em particular. Pela sua própria experiência, e a de outros, em relação à Omfalos, sabia que a pessoa que segurava na pedra ficava submetida a um tipo qualquer de transformação a nível mental e sensorial. No seu caso, vira o seu futuro como se estivesse a viver numa cadência rápida, e algumas das coisas que vira já tinham ocorrido.

      Apesar do encanto de tudo aquilo, nunca mais quisera pegar na Omfalos. Coisas como aquela não deveriam acontecer e, além do mais, no momento da experiência e, logo de seguida, sentiu-se como que perdendo a sanidade. Seguramente que não iria discutir isso com Joanna Campbell.

      - Professor Jones, sente-se bem? - perguntou Deirdre.

     Despertou dos seus devaneios.

     - Peço desculpa. Estava a tentar recordar de que forma me afectara e, para ser honesto, não me lembro de nada significativo.

     - Posso compreender, - replicou a Dra. Campbell -considerando as circunstâncias. - Voltou-se para Deirdre. -Tanto quanto sei, houve naquela altura em Delfos uma tentativa para derrubar o rei da Grécia, e um dos arqueólogos gregos estava de certa forma envolvido. Não é verdade?

     - Houve alguns momentos perturbados. Bom, o meu amigo está à minha espera. Tenho de me despedir. - Levantou-se e inclinou a cabeça para a Dra. Campbell e depois para Deirdre.

     - Professor Jones - disse a Dra. Campbell antes que ele tivesse oportunidade de se afastar -, mais uma coisa. Conhece a relação que existe entre os gregos e os antepassados desta ilha?

     Indy sorriu, pouco à vontade.

     - Não sei concretamente a que se refere, Dra. Campbell.

     Ela fitou-o por instantes.

     - Pense bem, Jones. Estou certa de que sabe. Faz parte dos seus antecedentes. Prazer em vê-lo.

     - Vemo-nos amanhã -disse Deirdre e reluziu um brilhante sorriso.

     - Vemos? Oh, nas aulas. Obviamente. - Inclinou de novo a cabeça para as duas mulheres, retorceu, e dirigiu-se para a porta.

     Shannon aguardava no exterior.

     - Pensei que ias jantar outra vez.

     - Lamento. Vamos embora daqui.

     Desceram a larga avenida, passando por um ajuntamento de pessoas na esquina onde alguém falava italiano. A qualquer hora do dia, as ruas de Soho mostravam-se repletas de pessoas, e parecia que as línguas variavam de rua para rua.

      Atravessaram a Greek Street pouco depois, e Indy ficou verdadeiramente surpreendido por não ouvir ninguém falar grego.  Shannon, entretanto, estava noutro mundo. Em cada passo que dava, estalava os dedos, como se estivesse a ouvir uma música dentro da cabeça.

      - Bem bonita.

     Indy olhou em redor.

     - Quem?

     - Quem te parece? A ruiva.

     - Oh, Deirdre. É mais do que isso, Jack. É uma das minhas alunas, a mais inteligente de todos. Na verdade, parece que entrou em competição comigo nas aulas.

      - O que queres dizer?

     - Não sei. Age como se soubesse tanto quanto eu, se não mais.  - Talvez saiba.

     - Muito obrigado, amigo.

    Shannon bateu-lhe no ombro com o punho.

    - Estava a brincar. Mas, se sabe assim tanto, por que assiste às aulas?

    - Foi exactamente isso que lhe perguntei. Diz que é necessário para o seu currículo. Mas pergunto a mim mesmo se não me estará a espionar.

     - A espionar? Em nome de quem? - Shannon desviou-se de um homem de sobretudo e chapéu de coco que fazia gestos furtivos para uma mulher encostada à parede. Esta usava um vestido de folhos e os olhos estavam pintados de tal forma que lhe pareciam cobrir metade do rosto.

     Ali perto, outra prostituta do Soho gesticulou para Indy. Este olhou, momentaneamente, para ela e depois desviou a cara.

      - Da mãe dela, claro. Estou à prova. Só em Setembro saberei se ficarei a trabalhar a tempo inteiro.

     - Penso que te estás a deixar levar pela imaginação.Provavelmente, a rapariga não passa de uma boa aluna. Desde que tiveste aquele problema com Dorian Belecamus, não confias em nenhum a mulher que encontres.

     - Isso não é verdade. E pára de mencionar o nome dela como se tivesses a acenar uma bandeira vermelha na minha frente.

     - Sabes o que devias fazer? - disse Shannon, ignorando o ataque de raiva de Indy.

     - O quê?

     - Convidá-la para sair. Conhecê-la melhor. Ela pode abonar a teu favor. Com o diabo, se ela janta fora com a mãe, é provável que não tenha namorado.

     - Jack, pelo amor de Deus, isso seria a pior coisa que podia fazer. Sair com uma aluna não é forma de provar nada, a não ser que estou disposto a pôr em risco o emprego.

        Shannon não pareceu convencido. Caminharam em silêncio, cada um imerso nos seus pensamentos. Indy tentou, intencionalmente,não pensar em Deirdre. Em vez disso, ponderou por momentos na pergunta que a Dra. Campbell lhe fizera ao sair. Não sabia se ela se referia aos celtas, ou a povos mais antigos, e não fazia idéia de que forma estavam relacionados com os gregos.

      Mais uma falha no seu conhecimento. Mas, qual seria a finalidade da pergunta? Testá-lo? Talvez fosse algo importante que ele deveria saber. Era melhor descobrir.

      Interrogou-se se a Dra. Campbell seria o professor que Marcus Brody conhecia, o que informara Marcus sobre a vaga.

     Por estranho que pareça, o facto decisivo na entrevista fora o seu nome.

     - Indy Jones - dissera ela, e sorrira. Os outros dois professores tinham-se rido, e um inquirira se estava de alguma forma relacionado com Inigo.

     Inigo quem? quase perguntara, mas conteve-se a tempo. Nos dias que antecederam a entrevista, passara horas imerso no estudo de textos sobre as velhas ruínas da Inglaterra, e lembrou-se de ter lido sobre Inigo Jones, arquitecto do rei Jaime I e Carlos I.

     - Oh, não me parece. Existem muitos Jones e nenhum parente meu pensaria que Stonehenge fora construído pelos romanos.

     Claro que isto se passou há trezentos anos, e tanto se alterou sobre o que conhecemos sobre os antigos. - O comentário,pensou, deve ter agradado à Dra.   Campbell e determinara a sua decisão.

      Por fim, chegaram ao clube. Uma noite de jazz era exactamente o que ele necessitava. Esta era a primeira noite em que saía desde que chegara a Londres. Como ele mudara, ao recordar-se da altura em que ele e Shannon frequentavam o último ano na Universidade de Chicago. Estiveram tão envolvidos na descoberta do submundo do jazz que desplotou subitamente em Chicago, que quase não aguentaram o ritmo. Para Indy, a experiência tomara o cariz de aventura; para Shannon, fora um empreendimento sério que o mudou para sempre e, mesmo,alterou o seu futuro. Abdicara de um emprego seguro como contabilista numa companhia de camionagem em crescimento por uma vida incerta como músico de jazz.

      Ao descerem as escadas que conduziam ao clube nocturno situado na cave, Indy sentiu que alguém o observava e olhou por cima do ombro. Avistou um homem no passeio que se dirigia a ele.

      Era alto e magro, o cabelo negro impecavelmente penteado para trás, com olhos estreitos, e rondando a idade de Indy.

Era o homem que ele pensara estar a segui-lo até a universidade.

      O indivíduo passou pelo clube e prosseguiu o seu caminho sem olhar para trás.

     - Viste aquele tipo? - perguntou Shannon, abrindo a porta.

     O cheiro a cerveja e fumo veio ao encontro deles quando estacaram na escada.

        Indy escutou o som do tilintar de copos e o ruído de vozes.

        - O que tem?

        - Vi-o na rua do restaurante enquanto estava à tua espera e tenho a certeza que já o vi pela Russell Square junto do apartamento.

        Indy observou o homem que desaparecia de vista.

       - Não deve passar de uma coincidência - disse, encolhendo os ombros.

       Mas não acreditava que fosse.

 

ENTRE AS PRATELEIRAS

        Durante toda a manhã, Indy amaldiçoou-se por se ter deitado tão tarde. Embora hoje não tivesse aulas, estava de serviço no gabinete. De acordo com as normas do curso, fazia parte das suas funções aprovar com antecedência o tema que constituiria o trabalho final do período de cada aluno, e há quase duas horas que os escutava, um atrás do outro. Sentia-se esvaziado,e não terminara ainda. Embora tivesse vindo a encorajar os alunos durante as últimas trás semanas para se reunirem com ele o mais breve possível, praticamente metade esperara pelo dia final para o fazer.

       Levantou o olhar para o miúdo delgado em pé na sua frente.

      - Stonehenge.

      - O que tem? - inquiriu Indy.

      - É esse o meu tema.

     - Sente-se. Não pode limitar-se a escrever sobre Stonehenge. Tem de ser mais específico.

     - Muito bem. - Fitou Indy. - Escreverei sobre os primeiros investigadores.

     - Continua a ser pouco restritivo. Escolha um século.

     - Dezassete.

     - Certo. Seleccione agora dois pesquisadores desse século e compare e diferencie as deduções a que eles chegaram.

     - Tenho de os escolher agora? - lamentou-se. -Gostaria de pensar sobre isso.

  Indy sorriu e esfregou a nuca. Era óbvio que o rapaz não tinha qualquer nome em mente.

     - Não se esqueça de se certificar que os dois que escolher trabalharam, efectivamente, no mesmo século.

    - Entendi. - Ergueu-se e saiu do gabinete.

    Indy massajou as têmporas enquanto aguardava por outro aluno.

        - O seguinte - chamou, inclinando-se para a frente e esticando o pescoço ao olhar para a porta exterior. Quando ninguém apareceu, reclinou-se na cadeira.

        - Hurra, - disse, em voz baixa.

       Mirou o relógio de parede. O tempo de que dispunha era  justo. À horas de ver chegar o comboio de Leeland Milford. Puxou o fecho da pasta, ergueu-se, e preparava-se para sair quando Deirdre Campbell surgiu na entrada.

      Ostentou um sorriso.

      - Espero não chegar demasiado tarde para conversar consigo sobre o meu trabalho.

      Indy deixou-se cair de novo na cadeira. Sentia-se desapontado por não ter conseguido sair. Contudo, estava satisfeito por ser Deirdre a retê-lo ali.

      - Sente-se, e fale sobre os seus planos.

 

      A presença dela parecia alegrar a sala; era como se a sua pele pálida ou os caracóis brilhantes e ruivos irradiassem uma luz própria. Ou talvez fosse a sua inteligência. Depois de ter escutado diversos alunos como o último, que se contentavam em fazer o mínimo possível para passar no curso, Deirdre era uma mudança refrescante. Indy apreciava o seu entusiasmo, e sentia-se arrependido de lhe ter pedido para se controlar.

      - Muito obrigada, - afirmou ela, e sentou-se na cadeira em frente da secretária.      - Foi uma surpresa encontrá-lo ontem a noite.

      - Sim. Uma surpresa- respondeu Indy.

      Deirdre baixou os olhos para as mãos.

      - Contei à minha mãe o que o senhor me disse ontem no final da aula, e ela concordou consigo. Acho que me tenho exibido um pouco. Ela pediu-me que fosse um pouco mais apagada.

      - Apagada?

      - É uma expressão escocesa, significa comedida.

     Indy mirou-a por cima dos óculos de aros finos.

     - Compreendo.

     -Talvez eu fale tanto porque alguns ingleses encaram os escoceses como se nós, as pessoas do Norte, fôssemos ignorantes. - Ergueu o olhar e sorriu. - Por outro lado,talvez só pretendesse impressioná-lo. - A sua confissão proferida em tom suave era tão desarmante que Indy não conseguiu desviar os olhos dela. Deirdre era como uma flor abrindo as pétalas e pedindo desculpa pela sua beleza.

     - Não se preocupe por me tentar impressionar - respondeu.

     - Estou impressionado.

     Ela fitou também e os seus olhos ficaram presos.

Indy sentiu vontade de lhe pegar na mão e levantá-la da cadeira. Gostaria de saber qual seria o sabor dos lábios dela,qual seria a sensação de a ter nos braços. Calma, rapaz,comandou uma voz dentro de si.

  Queres manter este emprego ou não.

  - Deixe-me adivinhar. - Tossiu e assumiu um tom neutro. - O seu trabalho vai ser sobre Stonehenge, como quase o de toda a gente.

  - Não. Sobre a gruta Ninian, na Escócia.

  Indy repetiu o nome.

  - Não me parece que tenhamos falado sobre isso nas aulas. O que a faz interessar-se por essa gruta?

  - Foi aí que Merlin foi sepultado.

  Indy sorriu.

  - A sério?

  - Sim. - Não parecia estar a brincar.

  - Merlin, o conselheiro do rei Artur?

  - Esse mesmo.

  - Merlin não passa de uma lenda, Deirdre. Estamos num curso de arqueologia, não de mitologia.

  - Tenho provas!

  - Tem? Que tipo de provas?

  Ela sorriu.

  - Terá de ler o meu trabalho. Penso que o achará interessante.

  - Se o que me diz é verdade, será mais do que interessante. Será surpreendente.

  - Nesse caso, aprova a idéia?

  Indy sorriu.

  - O que propões é mais do que um trabalho de final de período, Deirdre. É um trampolim para uma carreira. Se conseguir provar que Merlin existiu realmente, obterá mais reconhecimento do que a maioria dos arqueólogos em todas as

suas carreiras.

  Ela ergueu-se, graciosamente, da cadeira.

  - Vou meter imediatamente mãos ao trabalho.

  Indy viu-a deixar o gabinete. Talvez não fosse tão inteligente quanto ele considerara. Com outro aluno qualquer,teria desaprovado imediatamente a ideia. Não se enquadrava nem um pouco no âmbito de um trabalho para um curso de iniciação.

Era mais um tema para um doutoramento e, mesmo assim, bastante ambicioso.

  Se ainda ninguém provara a existência de Merlin, o que poderia ela saber que fosse suficiente para alterar as opiniões? Estava com curiosidade em saber. Ao deixar o gabinete e ao correr para o metropolitano, ocorreu-lhe um

pensamento desagradável. Deirdre devia ter contado à mãe sobre esta suposta prova da existência de Merlin. Fosse o que fosse,era provável que Joanna Campbell não concordasse com a filha.

Cresceu nele a sensação súbita e nauseante que se poderia encontrar no meio de uma disputa mãe-filha.

  Que maravilha. Exactamente o que ele necessitava.

  O comboio vindo de Portsmouth, onde o barco de Leeland Milford atracara, chegou a horas, mas Indy não. Quando alcançou a plataforma, a maioria dos passageiros tinha já desembarcado. Avistou um jovem casal com duas crianças, um homem de kilt e um grupo de raparigas com o uniforme do colégio. Viu então Milford, caminhando pela plataforma, com uma mala de couro em cada mão.

  Trajava um sobretudo longo e escuro, visivelmente pouco propício para a estação. A cabeça era calva, com excepção de pequenos amontoados brancos por cima de cada orelha, e tinha um bigode alvo. Os olhos eram de um azul-pálido e aquosos.

  Embora não conhecesse bem Milford, Indy sabia que podia ser imprevisível. Podia ser franco e cordial num momento, o oposto noutro. Sorriu ao ver os lábios de Milford moverem-se,provavelmente, libertando qualquer exclamação pelo atraso de Indy. Quando se aproximou, Indy ouviu-o, distintamente, afirmar:

  - Maldito comboio. Chegava mais rápido de bicicleta.So whylome wont.

  Depois Milford passou por ele. Continuou a andar.

  - Dr. Milford. - Indy correu atrás dele. - Dr. Milford. Sou eu. Indy.

  Milford estacou e virou-se, lentamente, um franzir de sobrolho começando a desenhar-se na sua fronte.

  - Ah, Indy. Que surpresa. - Apertou a mão de Indy, mas sem qualquer sinal de entusiasmo. - O que faz por aqui?

  - Recebi a sua carta.

  - Recebeu?

  - Lembra-se, escreveu pedindo que me encontrasse consigo na estação.

  Milford parecia perplexo.

  - Bom, se assim o diz.

  Indy ofereceu-se para lhe levar uma das malas, mas Milford recusou.

  - Estou bem assim, meu jovem. Só se deve levar para o mar ou terra aquilo que se pode carregar. Ou so whylome wont.

  - Não me esquecerei disso. - So whylome wont era uma frase em inglês arcaico que Milford usava. Indy soubera há muito que significava assim dizem, mas Milford utilizava-a, frequentemente, em conversação e nunca explicava o seu significado.

  Quando chegaram à rua, Indy acenou para um táxi e entraram no carro.

  - O que vai fazer em Londres, Dr. Milford? A sua carta não era explícita quanto a isso.

  - Tenho diversos assuntos a tratar. - Inclinou-se para a frente e tocou no ombro do motorista. - Para a Biblioteca do British Museum, bom homem. Avançar - afirmou, no seu inglês arcaico.

  O motorista voltou-se e olhou para Indy e Milford.

  - De onde é, sir, da Terra recém-descoberta?

  - Siga caminho, amigo, - disse Indy, virando-se depois para Milford. - Tem a certeza de que não quer comer qualquer coisa primeiro antes de ir para o museu?

  - Já comi. Além do mais, a minha verdadeira fome, como sempre, é de conhecimento.

  Indy anuiu.

  - É uma boa biblioteca.

  - A melhor biblioteca do seu gênero em todo o mundo, por Deus - proclamou Milford. - Tudo o que foi publicado na Grã-Bretanha desde 1757 se encontra lá. Vários milhões de volumes e milhares de manuscritos e papiros antigos. A melhor colectânea de obras escritas da Idade Média.Praticamente tudo o que se possa querer saber sobre a história da Grã-Bretanha pode aí ser encontrado.

  A descrição da biblioteca trouxe de novo à mente de Indy o comentário que Joanna Campbell fizera no restaurante.

  - Dr. Milford, conhece alguma relação entre a Grécia antiga e os primeiros povos das ilhas Britânicas?

  Milford ficou em silêncio por momentos.

  - Isso foi antes do meu tempo.

  Indy sorriu.

  - Creio que sim. - Apesar do que ele parecia querer dizer, Indy sabia que, para Milford, antes do seu tempo significava antes da Idade Média, o período em que era especialista.

  - Contudo, recordo-me com efeito de um colega meu falar sobre esse tema, oh, talvez há uns vinte anos. - Coçou a cabeça calva com o dedo indicador. - É engraçado as coisas que nos vêm à lembrança, mas não tão engraçadas as coisas de que nos esquecemos.

  - O que lhe disse ele?

  - Quem?

  Indy riu-se.

  - O seu colega. O que Lhe falou ele sobre a relação entre os gregos e os bretões antigos?

  O motorista do táxi parou em frente da biblioteca.

  - Oh, se quer realmente saber, poderá encontrar a resposta dentro destas portas.

  Indy pagou o táxi quando Milford se afastou, correndo depois atrás do velho professor que subia já as escadas do edifício.

  - Pode dar-me algum indício?

  - Deve ser sempre a própria pessoa a encontrar as suas respostas e não pedir a outrém que lhas encontre - disse o homem mais idoso ao subir os degraus.

  - Era isso o que o meu pai sempre dizia, - replicou Indy sombriamente.

  Milford estacou no cimo das escadas e pousou as malas. Fitou Indy.

  - Ele foi sempre um pouco duro para consigo, - disse, suavemente. - Posso dar-Lhe o indício de que necessita.

Procure nas escritas de Hecateu. - Pegou de novo nas malas enquanto Indy lhe abria as portas. - Mas tenha presente de que nada do que ele escreveu sobreviveu aos tempos.

  Indy franziu o sobrolho e ficou a olhar para Milford, o qual avançava para o átrio.

  - O que quer dizer?

  Milford olhou por cima do ombro.

  - Pense, meu caro rapaz, pense. Conhecemos as escritas de Hecateu porque tem sido citado por outros. Desta forma, ele é mais o tema do que o autor.

  Uma lição sobre como utilizar um catálogo de biblioteca. Indy forçou um sorriso.

  - Okay, vou procurar. Onde vai ficar, entretanto? - inquiriu Indy ao seguir Milford para uma sala em forma de bacia, com passagens semelhantes a raios que partiam do centro.

  Milford franziu o sobrolho, levou um dedo aos lábios e depois virou-se.

  Indy abanou a cabeça e afastou-se, a fim de iniciar a pesquisa no vasto armazém do conhecimento. Provavelmente, Milford lançara apenas um nome. E talvez não o mais adequado.

  O que sabia ele sobre Hecateu? Conhecia o nome dos seus estudos, associando a Hécate, uma deusa da terra, da lua, e do submundo, habitualmente, conectada com a feitiçaria. Hecateu escrevera sobre os gregos antigos e sobre a sua relação com um povo misterioso conhecido por Hiperboreais, termo oriundo da mitologia grega que referenciava um povo nortenho. Alguns eruditos acreditavam tratar-se de uma referência ao povo da Atlântida. Mas era tudo o que conseguia recordar-se sobre o assunto.

  O catálogo geral ficava localizado na base da sala em forma de bacia. Este listava todas as existências na biblioteca, e era com posto por uma dezena de volumes, cada um com cerca de quinhentas páginas. Mas acabou por encontrar o nome na categoria de assunto, sendo ironicamente remetido para um livro intitulado Biblioteca Histórica, da autoria de Diodoro de Sicília, um historiador grego que viveu grande parte da sua vida em Roma e que fora contemporâneo de César e de Augusto. A Biblioteca Histórica levou trinta anos a ser escrita por Diodoro e era composta por quarenta volumes.

Felizmente, e porque Indy procurara as referências a  Hecateu, foi imediatamente remetido para o número de volume e páginas apropriadas. , Dirigiu-se a um balcão de referência próximo e foi encaminhado para outra sala. Aí, um segundo bibliotecário localizou-lhe o livro antigo. O homem franziu o sobrolho a Indy, e alertou de que o livro era velho e valioso e de que teria de o manusear com extrema precaução. Ao ler as escritas de Hecateu, parafraseado do seu livro já  inexistente, Circuito da Terra, Indy apercebeu-se de que a sua descrição da ilha Hiperboreal era muito mais específica do que imaginara. Tratava-se de um país mais extenso do que a Sicília, situado em frente de Gaul. Parecia ser a Grã-Bretanha, mas podia ser qualquer uma das ilhas escandinavas. Leu, de seguida, que existia, na ilha, um vasto templo em forma circular, e mudou de opinião. O templo assemelhava-se a Stonehenge. Decidiu que Hiperboreais deveria ser o nome antigo dos habitantes das ilhas Britânicas.

  Hecateu falava, igualmente, da boa vontade entre os hiperboreais e os gregos. A história explicava também que certos gregos visitaram a ilha Hiperboreal e que deixaram votivos com inscrições gregas. E havia mais. A ilha Hiperboreal era supostamente o local de nascimento de Leto, a filha de gigantes, que foi mãe de Apolo.

  Por essa razão, os hiperboreais adoravam Apolo, e o seu templo circular era-lhe consagrado. Segundo rezava a história,Apolo visitava o templo em cada dezanove anos, num grandioso festival no qual dançava entre os seus adoradores e tocava harpa. A sua aparição coincidia também com um ciclo de dezanove anos, no qual as estrelas regressavam aos seus pontos de origem no céu.

  Apolo era a ligação, pensou Indy. Ao fechar o livro, recordou as palavras de Joanna Campbell: "Estou certa de que sabe. Faz parte dos seus antecedentes. O mito de Apolo,particularmente quando associado a Delfos, era efectivamente isso. Só não estabelecera a ligação entre a ilha Hiperboreal e as ilhas Britânicas. Mas fazia  sentido. Apolo era conhecido como um interpolador no Olimpo grego, e dizia-se que passava parte de cada ano para além do vento norte". Agora, que já ponderara na pergunta dela, interrogou-se se a Dra. Campbell não estaria apenas a testar o seu conhecimento, ou se teria qualquer razão específica em mente.

  Esfregou o rosto. Deveria ir para casa e dormir um pouco. Preparava-se para se levantar da mesa quando detectou um par de olhos observando através de uma prateleira. Tentou agir como se não soubesse que estava a ser observado. Folheou de novo o livro, esticando os braços. Os olhos permaneciam no mesmo local.

  Talvez fosse um bibliotecário, certificando-se de que ele não danificava o livro. Havia algo de familiar naqueles olhos. Assemelhavam-se aos do homem que, acreditava, andava a segui-lo.

  Subitamente, como um corredor ao som da pistola de partida,saltou da cadeira e lançou-se para a extremidade da estante de livros. Quando a contornou, viu um homem alto lançar-se por um corredor e passar entre outra fila de estantes. O Olhos Estreitos estava, efectivamente, a tentar escapar-Lhe, e Indy perseguiu-o através do labirinto de prateleiras.

  Parou e olhou em volta. Perdera-o.

  - Raios. Onde se meteu ele?

  Avançou devagar, espreitando por entre as estantes até alcançar um outro corredor. Olhou para ambos os lados e virou à direita.

  Avistou-o então, no momento em que este saía pela porta para o átrio. Indy atravessou a sala e localizou-o quando o indivíduo se infiltrou na enorme sala de leitura em forma de bacia.

  Da entrada da sala, Indy tinha a visão de todo o compartimento, mas não descortinou o Olhos Estreitos em lado algum. Indy interrogava-se onde o homem poderia ter ido quando escutou um ruído, alguém tentando conter um ataque de tosse.

   Virou, repentinamente, a cabeça para a direita e ali estava ele, comprimido contra a parede, a escassos três metros da porta.

  Assim que Indy o localizou, o Olhos Estreitos correu para ele, empurrando-o para um dos corredores. Caíram derrubados no pavimento, rolando sobre o chão. A meio caminho do corredor, o Olhos Estreitos decidiu que já chegava. Libertou-se do aperto de Indy, pôs-se de pé e voltou para a ponta do corredor. Agora, todos os presentes na sala observavam a perseguição silenciosa.

  Olhos Estreitos encontrava-se, praticamente, na porta quando Indy o agarrou pela camisa e o lançou ao chão. Rolaram diversas vezes até que embateram numa mesa. O homem aí sentado deu um salto na cadeira.

  - Qual o motivo para esta explosão de selvajaria? Tenho-me feito acompanhar pela loucura e por um louco?

  Indy libertou a camisa do Olhos Estreitos ao escutar a voz familiar.

  - Dr. Milford, eu... eu não posso falar agora. - Olhos Estreitos rastejou sob a secretária de Milford em direcção a um outro corredor.

  - Desculpe - disse Indy e pulou a secretária, mas perdera o indivíduo de vista. Detectou-o, depois, rastejando debaixo de mesas em direcção a um terceiro corredor. Indy colocou-se de joelhos e rastejou atrás dele. Alguém lhe deu um pontapé de lado; pessoas gritavam, pedindo ajuda.

  Meu Deus, a que dera ele origem? A sua única intenção fora capturar o homem nas estantes da outra sala e exigir que lhe dissesse por que razão o vigiava. Indy cortou a saída ao Olhos Estreitos, pelo que o homem correu para a estrutura central, esquivando-se a mesas e bibliotecários.

  Indy perseguiu-o e acabou por detectar a sua oportunidade. Atirou-se de barriga para cima duma mesa e prendeu o Olhos estreitos pelo cinto.

  - Está deitado em cima da minha mesa, meu filho - disse uma velha senhora. Bateu-lhe, por duas vezes, na cabeça com um jornal dobrado, e Olhos Estreitos conseguiu libertar-se.

  Indy colocou-se de pé, instantaneamente, e apressou-se a seguir Olhos Estreitos. Mas este ganhara avanço e estava quase na porta. Indy tencionava desistir da perseguição quando surgiu uma perna, e Olhos Estreitos caiu derrubado de cara no chão.

  - Esse rosto imundo no solo, homem traiçoeiro, - gritou Milford no seu inglês arcaico.

  Indy colocou-se em cima da figura prostrada, impedindo-o de se levantar. Depois, agarrando-o pelo colarinho, ergueu um punho cerrado.

  - Muito bem, quem raio é você? Por que anda a perseguir-me?

  O homem rosnou para ele; os seus olhos muito juntos e negros eram autênticas pedras de carvão. Alteraram o foco, fitando algo para trás de Indy. Nesse instante, Jones recebeu um golpe na cabeça com um livro. Olhos Estreitos afastou-se e desapareceu.

  Indy voltou-se e deparou com a mulher que o atingira com o jornal.

  - A senhora não está a compreender.

  - Pode crer que não - replicou esta e acertou no olho de Indy com a extremidade de borracha de um lápis.

  Indy gritou de dor e cobriu o rosto. Foi então que escutou a voz de Olhos Estreitos pela primeira vez.

  - Jones, escute.

  Indy ergueu a cabeça e, com o olho são, viu o homem na entrada.

  - Estou a avisá-lo. Mantenha-se afastado de Deirdre Campbell.

  - Exactamente. Mantenha-se longe dela - afirmou a velha senhora, e ergueu o livro de novo.

  Milford colocou-se, subitamente, ao seu lado.

  - Pare de lhe bater. Eu trato disto. Ele está comigo.

  - Óptimo, pensou Indy. Que maravilha. Espancado por uma velhota. Salvo pelo Dr. Milford. E tudo por causa de Deirdre e de um namorado ciumento.

 

A TORRE DE LONDRES

                 Na aula, um dia depois.

  - Se quisermos entender qual a precisão que os antigos procuravam atingir, quando examinamos os seus trabalhos, os nossos erros têm de ser tão diminutos que se tornem insignificantes perante os erros deles, - disse Indy, lendo os apontamentos. - Se eles tiverem descido ao centésimo mais próximo de uma polegada, então nós teremos de descer ao milésimo mais próximo, para nos inteirarmos de quais eram os seus conceitos de precisão.

  Indy parou para beber um gole de água. Tinha o olho esquerdo inchado e fechado devido ao golpe que recebera na biblioteca, e colocara um a pala negra sobre a vista. Comunicara a turma que sofrera um acidente e que o médico recomendara que usasse a pala durante alguns dias.

  O olho não ferido percorreu os rostos. Alguns olhavam em frente com atenção, na expectativa das suas próximas palavras; outros escrevinhavam, furiosamente, nos cadernos. Na fila da frente, Deirdre recostava-se na cadeira, cruzando e descruzando os dedos. Trajava hoje um vestido comprido que lhe chegava aos tornozelos, os quais estavam recolhidos por baixo da secretária.

  Era como se o vestido constituísse uma metáfora para as mentiras que ela encobria. Tinha o caderno fechado e os lábios cerrados. Antes da aula, perguntara o que acontecera e, numa voz azeda, Indy pediu-lhe que se sentasse. Talvez a tivesse tratado de forma rude, mas retribuía-lhe apenas o favor. Deirdre deve ter comentado algo ao namorado, ou o que quer que fosse que o Olhos Estreitos era, para lhe provocar ciúmes. Ela estava a usá-lo; provavelmente, aos dois, para atingir os seus fins manipuladores. Indy não queria fazer parte dos esquemas dela.

  - Devo dizer-vos que estas palavras não são da minha autoria - prosseguiu Indy. - Foram proferidas por Sir Flinders Petrie,o conhecido egiptólogo, que também estudou alguns dos novecentos círculos de pedra existentes nas ilhas Britânicas,  incluindo Stonehenge. Na pesquisa que efectuou em 1877, tomou medidas extremamente precisas ao monumento e elaborou um plano exacto, o qual foi publicado numa escala de um por duzentos.Alguns de vocês que têm em mãos um trabalho sobre Stonehenge, poderão já ter deparado com referências ao livro de Petrie,Stonehenge: Planos, Descrições e Teorias.

  Indy explicou que Petrie continuava a ser um dos mais respeitáveis investigadores de Stonehenge porque sempre evitara a especulação barata. Essa, explicou, era a cilada de Stonehenge, e passaria agora a referir algumas das teorias bizarras apresentadas nos últimos cem anos.

  - Vejamos o trabalho de um investigador do século dezoito, John Smith. Foi o primeiro a notar que, se permanecêssemos no centro de Stonehenge ao amanhecer no solstício de Verão,verificaríamos que o sol se ergue directamente por cima da pedra de ponta localizada fora do anel interior de pedras. Até aqui tudo bem. Mas ele pensava também que Stonehenge fora construído por druidas.

  - Na verdade, essa é, provavelmente, a teoria mais generalizada em relação a Stonehenge. Os druidas eram celtas, e a cultura céltica só começou a ter expressão cerca de dois mil anos depois da primeira fase de Stonehenge ter sido construída, por volta de 1900 a.C. Mesmo na fase mais tardia,que inclui o Círculo Sarsen e as cinco arcadas verticais, ou triliões, no interior do círculo, foi terminada por volta de 1550 a. C. Mesmo assim demasiado cedo para os druidas.

  Deirdre ergueu a mão pela primeira vez. Indy olhou rapidamente para ela e depois baixou os olhos para os apontamentos.

  - Contudo, durante cerca de dois séculos, os antiquários como antes se chamava aos arqueólogos - acreditavam que...

  - Professor Jones?

  - Miss Campbell, as perguntas ficarão para o fim - afirmou rapidamente. - Se eu interromper de cada vez que você ou qualquer outro erguer a mão, não conseguirei terminar hoje a matéria.

  - Peço desculpa. - Afundou-se no seu lugar. Indy reparou que alguns alunos se riram à socapa, como se pensassem que chegara a altura de fazer ver a Deirdre que devia deixar de o interromper.

  - Como estava a dizer, durante alguns séculos os antiquários acreditaram que Stonehenge fora construído por druidas. Mas tal facto não é de surpreender. Com efeito, o segredo mais bem guardado em relação à arqueologia é que estamos quase sempre errados. Retrocedam um século e verão que praticamente tudo o que acreditávamos ser verdade está ultrapassado. A história da arqueologia é constituída por informações errôneas misturadas com hipóteses românticas e calculadas, e em lado algum isso corresponde mais à verdade do que na exploração de Stonehenge,o monumento da antiguidade mais famoso neste país.

  Desejou que as suas palavras estivessem a produzir o efeito desejado: que ele era alguém que falava com conhecimento de causa.

  Na verdade, estava apenas a repetir uma afirmação de um dos seus professores de francês, um egiptólogo que trabalhara com Flinders Petrie.

  - O que sabemos de Stonehenge é que este monumento pode ser classificado, tal como a Grande Pirâmide do Egipto, como o empreendimento mais espectacular que sobreviveu à Antiguidade. Tem constituído um tema de aceso debate desde o século XVI, e tem sido interpretado como uma câmara de sepultura, um monumento comemorativo, e um templo associado a sacrifícios

humanos.

  Alguns afirmaram que fora edificado por druidas, outros por romanos, outros ainda por vikings.

 

  Um aluno ergueu a mão.

  - Posso fazer uma pergunta ou devo esperar?

  - Acabou de fazer. Diga. - Indy suspirou.

  - E aqueles druidas que se reúnem de vez em quando em Stonehenge como se fossem donos do lugar?

  Indy riu-se.

  - São místicos mal informados. Proclamam o local como deles, mas estão enganados.

  Quando a aula chegou ao fim, Indy pegou no relógio de bolso e enfiou-o na algibeira.

  - Não se esqueçam de que têm de entregar os trabalhos até segunda-feira.

  Reuniu os livros e apontamentos, preparando-se para sair.

  Prometera encontrar-se com Milford na Torre de Londres dentro de uma hora. Depois do incidente na biblioteca, acompanhara o velho professor ao clube onde aquele estava hospedado, e o médico, que aí fazia serviço, examinara-lhe o olho ferido. Milford ficara, simultaneamente, aterrorizado e surpreendido por Indy se ter envolvido numa luta com um estranho, e logo para mais numa biblioteca.

  Apesar dos esforços de Indy para tranqüilizar o amigo,Milford estava convencido que Indy sofria de problemas emocionais, e tinha a certeza de que se relacionavam com a disputa entre pai e fiLho. Por fim, o velho professor sugerira que se encontrassem na Torre para continuarem a conversa.

  - Professor Jones?

  Levantou o olhar; Deirdre estava na sua frente. Os seus olhos violeta buscavam uma explicação.

  - Em que posso ajudá-la? - disse, rispidamente.

  - Estou com pressa.

  - Por que razão está aborrecido comigo? Hoje, não fiz muitas perguntas, e já estava irritado antes de a aula começar.

  - Não tem nada a ver com as suas perguntas. É o seu comportamento fora da aula.

  Deirdre abanou a cabeça.

  - O que quer dizer?

  - Pergunte ao seu namorado.

  A rapariga foi apanhada de surpresa. A sua segurança desapareceu. Mostrou um ar inocente e frágil.

  - Não sei do que está a falar, professor Jones.

  - O que quero dizer é isto: tenho sido seguido por um tipo qualquer, e, ontem, depois de nos termos envolvido numa pequena querela, disse-me para me manter longe de si. Que motivo poderia ele ter para me pedir tal coisa? Não faço a mínima idéia e você?

  - Lamento. Lamento, sinceramente. Mas não tenho namorado. -Voltou-se, abruptamente, e saiu com rapidez da sala.

  - Sim, claro. - Indy consultou o relógio. - Atrasado, como de costume.

 

  Indy saiu da estação de metrô de Tower Hill cinco minutos depois da hora marcada para o encontro com Milford.

  A Torre de Londres datava do século XI, quando foi construída por Guilherme, o Conquistador, depois da batalha de Hastings e, à medida que Indy se aproximava do edifício, sentiu como se estivesse a voltar atrás no tempo. Torres erguiam-se em espiral na direcção dos céus; bandeiras flutuavam ao vento. Um antigo fosso tinha agora por objectivo evitar que os turistas, e já não os inimigos, escalassem as muralhas, e uma ponte levadiça oferecia passagem para o interior. Não avistou Milford por perto, pelo que Indy pôs-se a escutar as palavras de um guia que se dirigia a um grupo de turistas. "A Torre Branca", explicava o homem, "fora edificada não só para proteger a cidade de ataques mas também para vigiar o tráfego marítimo no Tamisa e para lembrar aos cidadãos o poder de Guilherme, o Conquistador".

  "A construção iniciou-se em 1078 e terminou em 1100 com Rannulf Flambard, bispo de Durham, que, ironicamente, foi o primeiro prisioneiro encarcerado nas suas muralhas.

  Muitos mais se seguiram, e a lista de prisioneiros proeminentes era impressionante", continuou o guia, realçando os nomes da realeza: o rei David II da Escócia, rei João,o Bom, de França, rei Jaime I da Escócia, duque de Orleães, e a princesa Isabel, que mais tarde se tornou na rainha Isabel I. De entre aqueles executados ou assassinados na torre contavam-se: Henrique VI, Eduardo V e o seu irmão, o duque de York, Sir Thomas More, as rainhas de Henrique VIII, Anne Boleyn e Catherine Howard, Thomas Cromwell, e o duque de Monmouth. A notoriedade da torre cresceu em paralelo com as suas dimensões. Com o decorrer dos séculos, foram acrescentadas novas torres até ao número de treze. Foram mais tarde circundadas por uma muralha com mais seis torres".

  - Venho sempre aqui quando me encontro em Londres - afirmou Milford ao surgir por trás de Indy. - É um local de história concreta, onde a realeza encontrou um trágico destino, onde feitos obscuros foram engendrados. História concreta.

  - Boa tarde, Dr. Milford. - Embora com uma temperatura moderada e um dia relativamente solarento, Milford vestia o seu sobretudo preto.

  - Como está hoje o seu olho? - inquiriu o professor,afagando o bigode ao dirigir-se a Indy. - Parece que está mascarado à pirata.

  - A ideia foi do seu médico. Não tardarei a ficar bom.

  - Gosto dessa disposição - disse Milford, ao atravessarem o fosso em direcção a uma das torres. - Parece estar a reagir bem a este estado mental.

  Indy sabia que seria uma perda de tempo discutir a sua estabilidade mental.

  - As coisas descontrolaram-se um pouco na biblioteca. Mas estou bem.

  - Hum, espero bem que sim.

  - O que queria exactamente dizer com história concreta? -perguntou Indy, mudando de assunto ao alcançarem a parte mais afastada do fosso e um grupo de turistas, reunidos à volta do guia por baixo de uma das torres.

  - Escute o que ele diz - afirmou Milford, anuindo na direcção do guia.

  - Esta é a Torre do Sino, concebida por Ricardo I por volta de 1190 e concluída no século XIII. Nas trincheiras que correm a norte da Torre Beauchamp localiza-se o Caminho da Princesa Isabel.

  Sua Alteza constitui uma das histórias de sucesso da Torre.Embora tivesse estado aqui cativa durante vários meses, tornou-se mais tarde rainha Isabel I.

  - Vejamos agora a Torre Sangrenta, iniciada por Henrique III, onde os prisioneiros não tiveram a sorte da princesa Isabel I.

  "Eduardo V e o duque de York foram aí assassinados, entre outros.

  Depois, seguiremos para a Torre Wakefield, onde Henrique VI foi assassinado, e para o lado mais amplo, onde ainda são guardadas as Jóias da Coroa".

  - História concreta, Indy -disse Milford quando o grupo seguiu caminho. - Sabemos que essas pessoas viveram e morreram.

  "Encontra-se registado". Ninguém argumenta contra esses factos. É disso que eu gosto.

Mas se regressarmos atrás outros cinco  séculos ou isso antes da construção desta torre, a história concreta torna-se suave e sentimental. Lenda e história misturam-se livremente. Realidade e fantasia não se distinguem claramente.

  "Território traiçoeiro. - Fez uma breve pausa observando Indy. - Tal como Samuel Johnson afirmou há dois séculos atrás:

Tudo o que se sabe efectivamente sobre o antigo estado da Grã-Bretanha pode ser contido em poucas páginas.

  Indy anuiu.

  - Muito certo. - Milford parecia hoje descontraído e calmo e, em conseqüência, mais coerente. Havia menos falhas de memória e menos trocas para o inglês arcaico. - É uma pena não existirem catálogos de história para locais como Stonehenge, como há para a Torre de Londres.

  Milford riu-se.

  - Depois os arqueólogos não teriam pré-história para criar.  Não teriam nada para fazer senão caçar tesouros, o que acredito não aborreceria nada muitos deles.

  - Agora parece o meu pai a falar. Também tem alguma coisa contra a arqueologia?

  Milford estacou e ergueu o olhar para a Torre Branca, a estrutura original no centro do complexo de torres.

  - Talvez não seja fácil para mim mudar, Indy, mas, quando tinha a sua idade, os verdadeiros estudiosos sentiam que o seu tempo era mais bem aproveitado, analisando as escritas antigas que já possuímos nas nossas bibliotecas. A tarefa de partir em busca de novas escritas era deixada aos estudiosos de segunda categoria, aqueles que não preenchiam os requisitos da verdadeira educaçao escolar. Eram esses que eram relegados para sujarem as mãos e corações em empreendimentos meramente aventureiros.

  - As coisas mudaram, Dr. Milford. A arqueologia já não está no século XX.

  - So whylome wont. Talvez esteja certo. O nosso amigo Marcus Brody concordaria. - Milford gesticulou para a entrada da torre.

  - Esteve com Marcus, recentemente? - inquiriu Indy.

  Milford parou mesmo na entrada para a torre. Os seus olhos azuis aquosos fixaram-se nos de Indy, o bigode retorcido.

  - Encontrei-me, com efeito, com Marcus e, sabe, ele queria que eu lhe dissesse qualquer coisa. - Encolheu os ombros e abriu a porta. - Hei-de lembrar-me.

  Subiram uma escada para o interior da estrutura normanda de quatro andares. No segundo andar, Milford examinou a colecção de armas e armaduras que datavam dos primeiros anos da Idade Média.

  - É pena não terem aqui a Excalibur - disse Indy, desejando provocar Milford para que este exprimisse os seus pensamentos sobre o mito arturiano.

  - As lendas enganam, Indy. - Milford percorreu a mão sobre a lâmina de uma espada.

  - Há uma que afirma que Merlin construiu Stonehenge.

  Milford apontou a espada a Indy.

  - Se desejas honrar o sepulcro destes homens com uma obra que permaneça para todos os tempos, buscai a...

  - Geoffrey de Monmouth - interrompeu Indy. - História Regum Britanniae.

  - Muito bem - disse Milford. - Está a par da sua literatura da Idade Média.

  - Um pouco. - Indy tivera de ler as Histórias dos Reis Britânicos quando ainda criança. Era a fonte principal de muitas das lendas arturianas e, apesar da linguagem arcaica, o pai insistira para que ele as lesse e compreendesse.

  Milford pousou a espada.

  - Conhece esta? - Tossiu e declamou:

 

     " Pois ele, por intermédio de palavras, podia convocar

     o céu, O sol e a lua, e fazê-los obedecer-lhe,

     A terra para o mar, e o mar para a terra secar,

     E a noite mais negra em dia tornar".

 

  Indy abanou a cabeça.

  - Não creio.

  Milford sorriu.

  - Edmund Spenser, do século XVI.

  - Acredita que Merlin viveu realmente, Dr. Milford?

  - Se viveu, adorava o deus do Sol e não o filho de Deus e, é óbvio, na Grã-Bretanha do século vi isso não era aceitável. Os pagãos eram uma força em extinção. A época deles terminara.Lenda ou realidade, os cristãos chamavam a Merlin o filho do Diabo.

 

  Desceram, lentamente, as escadas de pedra, e a voz de Indy ecoou, estranhamente.

  - Pensa que é possível provar que Merlin era uma pessoa histórica?

  - Indy, os estudiosos passaram vidas inteiras a tentar provar isso. Mas não conseguiram apresentar argumentos convincentes. Receio que nunca passará de especulação.

  - Talvez os arqueólogos possam encontrar a prova.

  Sairam da Torre Branca. Milford girou a cabeça e olhou para o cimo da torre.

  - Se isso alguma vez acontecer, terei de rever as minhas idéias sobre a arqueologia, bem como sobre Merlin. Nesse caso, terei, igualmente, de começar a acreditar em dragões.

  Indy riu-se. Sentia-se satisfeito por ter concordado encontrar-se com Milford. Quando o velho professor estava descontraído, continuava a ser o homem encantador e bem-humorado de sempre.

  Recordou-se de uma noite, há diversos anos atrás, que passara com o pai, Milford e Marcus Brody, quando visitou Nova Iorque, nas férias de Natal do colégio. Comemoravam a nomeação de Brody como director do museu, e a sua mudança de Chicago para Nova Iorque.

  Milford sugerira que Brody deveria inaugurar o seu posto, exibindo os esqueletos dos primeiros presidentes da América.

Acrescentou em tom baixo que sabia onde se encontravam alguns deles e que não estavam em sepulturas. Brody lançou um olhar desconfiado a Milford, pois não sabia se ele falava a sério ou não. Murmurara depois qualquer coisa sobre as suas dúvidas de que o público americano aceitasse tal exibição.

  - É claro que seria diferente se se tratasse de chefes índios, - acrescentara o pai de Indy. - Certo, Marcus?

  Brody não respondera. Meditava ainda nas palavras de Milford, e perguntou numa voz casual onde poderiam esses esqueletos estar ocultos. Milford inclinara-se para a frente na sua cadeira, colocara uma mão por cima da boca e murmurara:

  - Nos armários da Casa Branca. Todos os presidentes tiveram lá os seus esqueletos.

  Indy foi, repentinamente, interrompido nos seus pensamentos ao avistar uma jovem que os seguia com o olhar lá de cima, do Caminho da princesa Isabel. Trazia um vestido longo e os cabelos caíam-lhe sobre os ombros. A distância, podia ser tomada pela princesa, uma figura espectral, regressando para visitar o seu local de cativeiro. Quando se aproximaram, a mulher infiltrou-se nas sombras e pareceu, literalmente,deslizar pela porta aberta da torre.

  - Viu-a, Indy?

  - Sim, vi.

  - Dizem que há aqui fantasmas - afirmou Milford em tom baixo. - Contudo, é o primeiro que vejo.

  Indy anuiu, em concordância. Talvez existissem fantasmas na torre, mas aquela não era. Reconhecera o vestido e a mulher.

Não tinha dúvidas de quem se tratava. Deirdre seguira-o, e gostaria de saber porquê.

 

O ERRO DE DEIRDRE

  Deirdre subiu os degraus familiares da rua, abriu o portão de ferro e percorreu o caminho que dava acesso à casa da mãe em Notting Hill. Considerava a casa de família como sendo da mãe, muito embora sempre lá tivesse vivido. Mas a presença da mãe era tão dominadora que, por vezes, se sentia mais como uma visita do que como membro da família.

  A casa estava repleta de mobiliário oriental, grande parte do qual foi adquirido pelo avô de Deirdre, que fora embaixador inglês na China. Mesas baixas, jarras compridas, cadeiras de costas altas, feitas de mogno, biombos, leques de papel demasiado grandes.

  Tudo era preto ou vermelho, coberto de cetim ou altamente polido.

  Deirdre detestava aquelas coisas, mas Joanna passara os primeiros doze anos da sua vida na China e a mobília constituía o seu passado. Havia para Deirdre algo de misterioso no Oriente.

  Misterioso e proibitivo. E, embora amasse a mãe, havia uma faceta nela tão enigmática quanto a mobília.

  O quarto de Deirdre era o seu único santuário, e fazia nele o que bem entendia. As paredes estavam cobertas com pinturas de tranquilas paisagens inglesas, ainda que com aquarelas vivas, e de antigas ruínas. Mas não havia lugar para elas fora do seu quarto.

  "Eram demasiado modernas", dizia Joanna. Não se enquadrariam com a decoração oriental.

  - Deirdre, és tu? - chamou Joanna da sua sala de trabalho.

  - Claro que sou. - Dirigiu-se ao andar superior. Um dia haveria de ter o seu próprio apartamento, e arranjaria as coisas a seu gosto, e se decidisse deixar o casaco no sofá ou na sala de jantar por uma hora ou um dia, deixaria. Entrou no quarto e atirou-se para cima da cama. Mas, para além destes triviais problemas caseiros, havia algo mais que lhe provocava má disposição.

  Era Adrian. Não sabia o que fazer com ele. Estava a sugar-lhe a força, a vontade própria. Controlava a sua vida, geria-a.

  Ouviu bater à porta.

  - Deirdre, querida, o que se passa?

  - Nada. - Rolou para baixo e enfiou a cabeça na almofada.

  A porta abriu-se.

  - Nem sequer me foste cumprimentar. Tiveste um mau dia, querida?

  Deirdre não respondeu.

  As molas estalaram quando Joanna se sentou à beira da cama.

  - O que aconteceu? Por favor, conta-me.

  - Oh, Mãe Joanna. - Desde que o pai morrera quando ela tinha quinze anos, a mãe encorajara-a a tratá-la pelo primeiro nome, para ser sua amiga para além de mãe. No início, parecera-lhe estranho e chamava-a Mãe Joanna. Agora, só utilizava a frase em tom carinhoso, quando envolvia algo de pessoal.

  - É Adrian.

  - O que se passa? - A voz de Joanna ficou tensa. Nenhuma delas gostava de conversar sobre Adrian. - O que fez ele?

  - Não me quer deixar em paz. Ia contar-te, mas não te queria aborrecer.

  - O que fez ele? - repetiu Joanna.

  - Mandou vigiar-me e o patife começou agora a seguir o professor Jones - disse.

  - Como sabes? - inquiriu Joanna.

  - No final da aula de hoje, ele disse-me que alguém o avisara para se manter afastado de mim. Penso que devem ter lutado, porque o professor Jones tem uma pala sobre o olho.

  Joanna hesitou antes de responder.

  - Não posso dizer que esteja surpreendida, Deirdre. Não conheces Adrian como eu.

  - Quem me dera nunca o ter conhecido.

  Conhecera Adrian por mero acaso quando regressou à Escócia, vinda de uma viagem, e encontrou Joanna recebendo diversos convidados para jantar. Adrian estava entre eles. Era mais velho e mundano do que ela, e sentiu-se atraída pela sua doçura, pelos seus conhecimentos, pelas pessoas que conhecia.Quando lhe pedira para se encontrar com ele de novo, acima de tudo, sentiu-se honrada.

  Ele oferecia-lhe ingresso num mundo de riqueza e poder que ultrapassava tudo o que ela pudesse imaginar, e Deirdre queria saber como esse mundo era.

  - Bem... - disse Joanna. Raramente criticava Deirdre e esta única palavra era típica como resposta.

  - Pronto, admito, estavas certa em relação a ele desde o início. - Joanna tentara desencorajá-la a encontrar-se com Adrian quando soube que ele a convidara para almoçar. - Mas sabes que só saímos três vezes e que nada sucedeu entre nós dois.

  "Nada de especial", pensou.

  - Três vezes foram demais - disse Joanna.

  - Nunca podia supor que ele era assim. Sabe que não o quero ver. Por que não me deixa em paz?

  - Com a idade, tornar-te-ás mais sensível à capacidade de discernir entre pessoas sinceras e honradas e aquelas que só pensam nelas próprias.

  Deirdre admirava a paciência de Joanna. Se tivesse procedido de acordo com os conselhos da mãe, teria, provavelmente, evitado muitos desagravos. Mas era teimosa. Tinha de descobrir as coisas por si mesma. Joanna, devia dizer, nunca lhe cobrara por isso.

  - O que mais disse o professor Jones?

  - Nem quer falar comigo.

  Ficaram ambas em silêncio durante tanto tempo que Deirdre levantou a cabeça para ver se a mãe deixara o quarto. Reparou, pela primeira vez, que Joanna vestia um dos seus robes orientais de seda e que os seus cabelos lhe caíam soltos sobre os ombros. Fitava uma das pinturas de Deirdre, uma paisagem marítima que pintara aos quinze anos. A água lançava-se contra uma rocha na base de um penhasco e, por cima da espuma, avistava-se a entrada oval e negra de uma gruta. Se fosse examinada com atenção, detectar-se-ia que a espuma formava o rosto de um homem de barbas.

  Fora dado à pintura o nome "A Caverna de Merlin", e era a predilecta de Joanna.

  Deirdre levantou-se e alisou as pregas do vestido comprido.

  - Bom, é melhor deitar mãos à obra. Tenho um trabalho para entregar na segunda-feira.

  - Para o professor Jones?

  - Sim, e posso dizer-te que segui a tua sugestão.

  - Ah, qual foi a reacção dele? - inquiriu Joanna com curiosidade.

  Deirdre encolheu os ombros, permitindo-se, depois, um sorriso.

  - Interesse. Muito interesse.

  - Não me surpreende - respondeu Joanna.

  Deirde abraçou-a.

  - Obrigada por me ouvires, Mãe Joanna.

  - Não te preocupes com Adrian. Não serve de nada. Esquece apenas que alguma vez o conheceste.

  - Vou tentar.

  Joanna preparou-se para sair, mas estacou.

  - Se precisares de ajuda para o trabalho, diz-me.

  Deirdre lançou a mãe um olhar céptico.

  - Não parece coisa tua. - Joanna nunca dera respostas nem a auxiliara na preparação de trabalhos. Aconselhava-a, mas obrigava-a sempre a cumprir as obrigações por si mesma.

  Joanna sorriu, tomou a mão de Deirdre e afagou-a.

  - Talvez queira que impressiones o professor Jones.

  Deirdre olhou tristemente para ela.

  - Acho que já o impressionei, graças a Adrian.

  Joanna apertou-lhe a mão.

  - Não te preocupes. Vai correr tudo bem.

 

  Pela primeira vez desde o início do curso, Deirdre não se sentou no centro da primeira fila. Escolheu um assento trás filas mais atrás, numa das pontas. Era a sua forma de mostrar a Jones que respeitava o pedido que Lhe fizera para se manter longe dele. Mas desejava, igualmente, que ele sentisse como estava magoada, e a injustiça das suas acusações.

  Um homem na fila da frente virou-se e sorriu.

  - Por que estás aí hoje sentada, escocesa? Com medo do professor?

  - Cala-te e vira-te para a frente.

  - Caramba, como estamos azedos para os colegas - disse e voltou-se.

  Seguramente que não fizera amigos nesta aula, mas pouco se importava. Ou melhor, não se importava até o professor Jones se ter voltado contra ela.

  - Não lhe dês ouvidos - disse a rapariga sentada ao seu lado, e sorriu.

  - Obrigada, não darei. - Pelo menos, nem todos a odiavam.

  Nesse instante, Jones entrou na sala e cumprimentou os alunos. Continuava com a pala no olho, e o outro parou por uma fracção de segundo no lugar vazio na fila da frente, pesquisando de seguida a sala até a encontrar. Desviou o olhar de imediato, mas não com a rapidez suficiente. Óptimo. Ele reparou.

  Deirdre sentiu um vazio ao vê-lo iniciar a lição. Achava tudo nele interessante; desde os modos desprendidos, a mente aberta, o entusiasmo ao bom aspecto e suaves olhos cinzentos.

  Estava irritada consigo mesma por se exibir nas aulas. Por que não se contivera e deixou que os seus conhecimentos sobre o tema fossem lentamente assimilados por Jones, em vez de os impor a ele? Deveria ter pensado que um jovem professor ensinando pela primeira vez ficaria mais aborrecido do que satisfeito com um aluno que revelava um conhecimento superior.

  Antes de permitir que Deirdre se juntasse a ela nas escavações durante o Verão, Joanna exigira que a filha estudasse os mesmos textos de apoio que os seus alunos finalistas. Deirdre quisera provar o seu valor aos alunos mais velhos e, com a ajuda de Joanna, os seus conhecimentos não ficavam muito atrás dos alunos da mãe. Aceitara fazer o curso de Jones quer para agradar a Joanna, que o recomendara, quer para aumentar o seu currículo.

  - Vou fazer uma variação ao assunto que planeei para hoje, - começou Jones a falar de um tema relacionado com a arqueologia e que inspira alguns arqueólogos e irrita outros.- Começava sempre devagar, como que aquecendo. O seu                               entusiasmo ia crescendo, gradualmente, até que atingia um tal fervor que Deirdre não conseguia evitar de participar com uma pergunta ou comentário. Por estranho que pareça, ninguém na sala reagia como ela.

  Agiam como se estivessem a assistir a uma dissertação de psicologia do Dr. Mahoney, ouvindo-o arrastar-se sobre estudos de determinados casos e análises freudianas. Era como se a turma fosse apenas constituída pelos dois, Indy e Deirdre.

Pelo menos fora assim, até Adrian interferir.

  - Estou a referir-me a mitologia e lenda, dois termos relacionados e por vezes interligáveis para a pseudo-história.

Na pior das hipóteses, mitos e lendas não passam de especulações e mentiras, produtos da ignorância do povo e da superstição. É por essa razão que muitos arqueólogos nem querem ouvir falar nestas coisas, mesmo quando estão ligadas ao seu próprio trabalho.

  O seu olho percorreu a turma, mas evitou-a. Deirdre interrogou-se se ele a teria visto na Torre de Londres.

Seguira-o na esperança de encontrar o patife que Adrian contratara para a seguir.

  Queria entregar-lhe uma mensagem para Adrian: chamaria a polícia se alguém voltasse a segui-la ou a Jones. Mas não localizara o patife em lado algum.

  - Embora os mitos nunca devam ser cegamente aceitos como explicação para acontecimentos ocorridos no passado, torna-se não apenas lógico que os arqueólogos estudem aqueles que se relacionam com a determinada cultura que estão a investigar mas também relevante e necessário. Praticamente, todos os mitos contêm uma essência de verdade, um significado oculto,ou uma pista que possa ser seguida pelo arqueólogo.

  Um aluno ergueu a mão.

  - Não encontro este tema no programa, professor Jones.

  - Não está, com efeito. Fui eu que o incluí.

  - Vamos fazer um teste sobre isso? - perguntou outro.

  Jones virou o rosto para um dos lados da sala, como que distraído por um ruído no corredor. Deirdre percebia que ele estava aborrecido com perguntas tão banais, e teve pena por ele.

  Calculou que Jones nem levara em consideração o que eles perguntaram.

  - Do vosso teste final fará parte uma pergunta de desenvolvimento opcional - disse. - Agora, se me permitirem que prossiga, gostaria de vos contar uma história. Já bastante antiga.

  Deirdre recostou-se na cadeira e ouviu Jones contar uma lenda antiga sobre um povo que vivia para "além do vento norte". Conhecia bem a história, mas sentia curiosidade em saber o desenvolvimento que ele lhe daria.

  - A descrição de Hecateu sobre a ilha refere-se quase, seguramente, às ilhas Britânicas - afirmou ao concluir a narração. - Embora subsista a dúvida se uma mulher de nome Leto alguma vez nasceu na ilha ou se mais tarde gerou um deus imortal, a história indica, efectivamente, que os gregos da Antiguidade e os distantes antecessores dos celtas se conheciam. O que podemos então concluir sobre estes lendários hiperboreais?

  Deirdre viu-o olhar com expectativa na sua direcção. Tinha uma boa resposta para a pergunta, mas manteve as mãos sobre a mesa. Por fim, Jones apontou para um homem na fila de três.

  - Os hiperboreais poderão ter viajado para sul e possivelmente visitado Delfos, onde Apolo reinava - disse o aluno. - Mais tarde, levaram consigo histórias do deus, que passaram de geração em geração.

  - Okay - disse Jones. - Mas lembre-se que o mito é de origem grega. Como poderiam os gregos saber que Apolo visitava a ilha dos hiperboreais de dezanove em dezanove anos?

  Outro aluno ergueu a mão.

  - Talvez um dia os gregos tivessem aparecido nas costas da Grã-Bretanha e descoberto que um deus do Sol era aqui adorado, tal como na terra deles. Assim, inventaram a história de que era Apolo, e de que visitava a ilha e que a mãe dele nascera aí.

  Jones anuiu.

  - É possível. Mas os gregos, apesar de todas as suas glórias na arquitectura e escultura, matemática e astronomia, não eram grande coisa em geografia. Não ficaram conhecidos como grandes viajantes, como os fenícios. Mas é possível que alguns gregos, a nível individual, tenham partido por sua conta e risco e viajado por rotas comerciais estabelecidas por outros povos.

  O olhar de Jones pousou de novo em Deirdre. Esta percebeu que ele lhe solicitava que participasse da discussão. Ela opôs-se.

  - Vamos agora debruçarmo-nos um pouco sobre a lenda de Stonehenge.

  Deirdre escutou Jones relatar a lenda que lhe era ainda mais familiar do que a história sobre os hiperboreais. A acção decorria por volta do ano 460, depois das legiões romanas terem abandonado a Grã-Bretanha. Era um período de grande instabilidade quando os saxões, chefiados por Hengist,atacaram, repetidamente, os bretões, governados por Vortigern.

  Por fim, foi efectuada uma conferência de paz entre os rivais, tendo sido pedido aos que iam assistir que fossem desarmados. Mas Hengist disse aos seus homens para esconderem adagas nas roupas e a conferência de paz transformou-se numa chacina, durante a qual centenas de nobres bretões foram assassinados. Pouco depois, Aurélio Ambrósio, que vivia afastado no exílio em Brittany, sucedeu ao Vortigern assassinado como rei de Inglaterra, e Hengist foi afastado do poder. Ambrósio decidiu prestar homenagem aos assassínios em massa, erigindo um monumento no local do massacre.

  - Queria que o monumento durasse para sempre, pelo que convocou o mago Merlin para o auxiliar - prosseguiu Jones.Consultou os apontamentos. - E Merlin respondeu: "Se desejas honrar o sepulcro destes homens com uma obra que permaneça para todos os tempos, buscai a Dança dos Gigantes, que fica em Killaraus, uma montanha na Irlanda. Pois, existe aí uma estrutura de pedras que ninguém, destes tempos, pode erguer..." Porque as pedras são grandes, e em lado algum há pedras de maior virtude. Estas que se reúnam então aqui em círculo, tal como se encontram agora dispostas, e permaneçam aqui para todo o sempre.

  - Desculpe, professor Jones - interrompeu um aluno. - Mas de que forma está esta lenda relacionada com a arqueologia?   Quero dizer, todos sabemos que Stonehenge foi construído muito antes da época de que está a falar.

  - Claro que você tem razão. Mas deixe-me terminar e, quem sabe, poderá aperceber-se da ligação entre o mito e a ciência.

  Ambrósio reuniu um exército que navegou para a Irlanda sob o comando de Uther de Pendragon com Merlin ao seu lado. Derrotaram um exército irlandês, que desafiou as grandes pedras, mas que se viu incapaz de deslocar os enormes blocos, só o conseguindo depois de Merlin efectuar uma determinada magia. A partir daí, os soldados não revelaram qualquer dificuldade em transportar as pedras para os navios e regressaram a Inglaterra. Ainda com o auxílio de Merlin, os blocos de pedra foram erigidos na mesma forma que tinham em Killaraus.

  Jones fez uma pausa e olhou na direcção do aluno que fizera a última pergunta.

  - Sem dúvida, trata-se de fantasia. A estrutura é muito anterior ao século quinto, e os cientistas consideram que a origem das pedras é próxima do local.  Tornava-se óbvio que estava a preparar a turma para algo.

  Deirdre sentia-se cativada; não fazia ideia onde ele queria chegar.

  - Permitam-me que faça agora referência a um artigo que apareceu não há muito tempo no Antiquaries Journal, mais precisamente, na edição de Julho de 1923. O artigo é de autoria do Dr.Herbert Thomas e intitula-se A Origem das Pedras de Stonehenge. Thomas avança com provas convincentes de que as pedras-lipes - as que foram utilizadas na primeira construção - não podiam ter origem na àrea para lá do planalto de Salisbury, o local mais frequentemente atribuído como sendo a sua origem. Pelo contrário, o eminente geólogo oferece provas convincentes de que estas vieram das montanhas Prescelly, no Sul de Gales, a cento e trinta e cinco milhas de Stonehenge.

  Jones afastou-se do estrado e colocou-se na frente da turma.

  - É óbvio que Gales fica bastante longe da Irlanda. Contudo, a nova informação parece confirmar, parcialmente, a lenda de Geoffrey de Monmouth de que os construtores de Stonehenge transportaram as pedras por uma longa distância e que atravessaram água. Como vêem, o mito continha apenas uma centelha de verdade, e torna-se ainda mais surpreendente quando tomamos em consideração a verdadeira idade de Stonehenge, pois a roda, tanto quanto sabemos, não era usada há quatro mil anos.

  Deirdre não estava apenas impressionada com a importância da história mas também satisfeita por Jones ter feito referência a Merlin. Ele não tardaria a descobrir muito mais sobre o velho mago.

  Quando a aula terminou, os alunos fizeram fila junto da secretária de Jones e entregaram os seus trabalhos. Prometeu que os devolveria no final da semana, altura em que seria realizado o exame final. Quando Deirdre entregou o seu, Jones falou.

  - Obrigado, Miss Campbell. Estou ansioso por o ler.

  Deirdre sorriu, mas não proferiu qualquer palavra por momentos. Talvez o seu silêncio fosse tão patético quanto o seu anterior comportamento.

  - Estou ansiosa por saber a sua opinião - respondeu e deixou rapidamente a sala.

 

ESCORPIÕES EM LONDRES

  Com uma pilha de trabalhos enfiados debaixo dum braço, Indy levou a mão à algibeira do casaco para tirar as chaves do seu apartamento em Russell Square. Apontou as chaves à fechadura e falhou. Apontou de novo e mais uma vez As chaves caíram-lhe da mão e estatelaram-se no chão de madeira.

  - Raios. - Dobrou-se e equilibrou os trabalhos num joelho.

  Apalpou o chão, sentindo poeira e lixo, mas nada de chaves.

  - Então, onde estão vocês?

  Se tivesse sido um pouco mais exigente para consigo no início da semana, já teria terminado de classificar os trabalhos. Mas só conseguira analisar pouco mais de metade e agora teriam de estar concluídos amanhã para o exame final.

  Espreitou em redor da pilha de trabalhos na luz fraca do átrio e localizou as chaves atrás dos calcanhares. Premiu o queixo contra os trabalhos e estendeu a mão por entre as pernas. Agarrou nas chaves com a ponta dos dedos, mas os trabalhos bojaram no meio, ameaçando espalhar-se no átrio.

Ajustou a pilha o melhor que conseguiu, e ergueu-se. Procurou a chave que queria. Mas, quando estendeu a mão para a fechadura, a maçaneta rodou de dentro e a porta abriu-se alguns centímetros.

  - Jack, pega aqui nalguns trabalhos, não te importas? – Indy mal voltara a ver Shannon desde que o amigo arranjou trabalho no clube. Shannon dormia quando Indy saía de manhã e, quando Indy chegava, Shannon partira para o trabalho. Mas, naquela manhã, Shannon estava acordado e disse que estava em casa à noite.

  - Jack? - Indy entrou de costas no apartamento. No momento em que se voltava, as suas pernas receberam um pontapé, fazendo-o desequilibrar-se. Caiu no chão. Os trabalhos voaram-lhe das mãos.

  - Raios te partam, Shannon - gritou, tentando levantar-se. -O que diabo estás tu...

  Algo pesado embateu-lhe na nuca. A dor foi forte, mas breve; de seguida, resvalou para o solo.  Torceu o nariz. Alguma coisa lhe estava a fazer cócegas. Quando despertou, o seu primeiro pensamento foi que devia estar atrasado para a aula.

Apercebeu-se então que se encontrava no solo, deitado entre folhas de papel. Na sua frente avistou um par de polainas.

  - Não te mexas - disse uma voz. A voz de Shannon.

  Indy sentiu de novo a sensação de cócegas na face. Virou o olho são para o lado, mas não conseguiu ver o que a estava a provocar. Ergueu levemente a cabeça e levantou o olhar no preciso momento em que Shannon se agachou.

  - Não te mexas! - disse Shannon mais uma vez.

  O braço de Shannon estava erguido e parecia que ia esbofetear Indy com as costas da mão. Depois, com um movimento repentino do pulso, retirou qualquer coisa do ombro de Indy.

 

Dois passos rápidos. Um pé esmagou-se contra o chão, e Indy ouviu algo a estalar, como se fossem ramos secos.

  - O que era? - Indy levantou a cabeça.

  - Um escorpião.

  - O quê?

  - Ouviste bem. A cauda estava erguida contra a tua cara como se fosse picar.

  Indy pôs-se de pé e observou a carcaça do animal junto do pé de Shannon. Fora esmagado em cima da página de cobertura de um dos trabalhos. Atravessou a sala coberta de papéis e deu um pontapé ao que restava do bicho. Um arrepio percorreu-lhe as costas como se um dedo gelado lhe tivesse descido sobre a espinha.

  - Meu Deus. - Foi tudo o que conseguiu proferir.

  - Estás bem? - inquiriu Shannon.

  Indy tocou no pescoço.

  - Sim, acho que estou.

  - O que aconteceu? - Shannon mirou de cima a baixo como se esperasse encontrar outros escorpiões em cima dele.

  - Não sei. - Indy olhou para os trabalhos dispersos pelo chão, abanou a cabeça e estremeceu quando uma dor súbita Lhe irradiou do pescoço para o ombro direito. - Olha para esta confusão.

  Shannon percorreu a sala, pesquisando os cantos, entre os livros, atrás da mobília.

  - Vejamos. Chegas a casa e, antes de fechares a porta, tropeças, deixas cair os trabalhos e desmaias. Depois, não sei como, um escorpião trepa para o teu ombro.

  - Não exactamente.

  - Bem me parecia.

  - Estava aqui alguém. Deu-me um golpe na nuca antes que o pudesse ver. - Puxou do relógio de bolso e apercebeu-se que tinham decorrido vinte minutos desde que chegara ao apartamento.

  - À primeira vista, não estou a dar pela falta de nada. Tudo parece estar em ordem. Não há sinal de roubo.

  - Não havia grande coisa para levar. - Indy caminhou sobre os papéis. Dirigiu-se à casa de banho, molhou uma toalha e colocou-a no pescoço. Foi então que o avistou. - Jack. Vem cá.

  Na berma da sanita estava empoleirado outro escorpião. Indy pegou numa toalha e, cautelosamente, empurrou para a frente até cair no interior do aparelho sanitário. Puxou o autoclismo, impulsionando a criatura para o esgoto.

  Olhou para Shannon.

  - O que te parece tudo isto?

  - Não sei. Mas, deitando-me a adivinhar, diria que existe alguma relação entre as viúvas negras e os escorpiões. Na verdade, era capaz de apostar dinheiro.

  - Não entendo.

  - Vai estender-te um pouco. Eu vou dar uma vista de olhos por aqui. Onde há dois, pode haver mais.

  Indy foi para o quarto e puxou os lençóis cuidadosamente para trás. Vendo que não havia sinais de escorpiões, deitou-se e fechou os olhos. Estava prestes a adormecer quando sentiu algo deslocando-se sob a orelha. Voltou-se e, lentamente, ergueu a almofada.

  - Ah... - conteve um grito. -Deixem-se ficar aí - murmurou e rolou para fora da cama.

  Shannon entrou no quarto.

  - Disseste alguma coisa?

  - Quatro, debaixo da almofada. É melhor veres na tua cama.

  - Vamos primeiro tratar desses bichos. - Shannon desapareceu e regressou alguns segundos depois com uma caixa e uma vassoura. Varreu os escorpiões para a caixa que Indy segurava e fechou a tampa.

  - Estamos a ficar bons nisto. Talvez fosse bom nos estabelecermos num negócio de exterminação de escorpiões -riu-se Shannon. - Parece ser um problema corrente por cá.

  - É engraçado, Jack. Antes de tudo, vamos revistar a casa.

  Passaram a meia hora seguinte percorrendo o apartamento,desde o cimo das estantes e das saliências no topo das armações das janelas aos cantos e por baixo da mobília. Shannon descobriu mais dois escorpiões aninhados num dos sapatos de Indy. Foram atirados para junto dos outros dentro da caixa.

  - Acho que não nos escapou nenhum lugar - disse Indy ao carregar um monte de papéis para a sua secretária. Ia para os pousar quando avistou outro escorpião pondo a cabeça de fora de um orifício na secretária. Largou os papéis. - Agora, foi a gota de água. Não fico nem mais um minuto aqui e vou chamar a polícia.

  - Não, não podemos. - Shannon esmagou o escorpião com um livro.

      - Não tenho autorização de residência. Seria expulso. 

      - Digo que és um turista.

      - Não. Se alguém me vir no clube, tu também podes arranjar problemas por me estares a encobrir.

       Indy olhou para a secretária.

       - Não podemos simplesmente ignorar isto como se nunca tivesse ocorrido. Temos aqui a prova - disse, apontando para a caixa.  Shannon levou a caixa para a cozinha onde abriu uma janela que dava para um muro de tijolos. Levantou a tampa com um a mão e atirou os escorpiões pela janela.

  - Por que fizeste isso? - Indy espreitou pela janela, mas os escorpiões tinham desaparecido no beco escuro dois pisos abaixo.

  - Deixa por minha conta. Vou descobrir o que se passa.

  - E como pensas fazer isso?-perguntou Indy.

 Shannon desviou o olhar.

 -Tenho contactos. Hei de deslindar o caso.

  Indy conhecia Shannon, ou talvez não. Havia uma faceta nele de que raramente falavam. O irmão de Shannon e, provavelmente, os restantes membros masculinos da sua família estavam envolvidos na Mafia irlandesa em Chicago, e embora Shannon tenha declinado essa vida, parecia que nunca conseguiria escapar completamente a ela, estivesse onde estivesse. A família mantinha-se ligada a ele através de contactos na Europa, e Indy sabia que era muito possível que Shannon fosse pedir auxílio a esses contactos.

  - Não sei - disse Indy pouco seguro. - Não quero ser responsável por mais sarilhos.

 - Tem calma. Não falei em quebrar dedos ou braços, nem nada que se pareça. Vamos apenas descobrir quem é o nosso perito em criaturas venenosas, e estabelecer, concretamente, qual o problema dele em relação a ti. Na minha opinião, está ligado ao namorado da filha da tua chefe.

  Indy sentou-se no chão e empilhou todos os trabalhos.

 - Não. Não pode ser.

  - Por que não?

  - Porque as aranhas na caixa de chocolates foram enviadas ainda antes de eu conhecer Deirdre.

 Shannon ficou em silêncio, meditando.

 - Bem visto. Mas, sabes uma coisa?

 - O quê?

 - Continuo a pensar que existe uma relação. Diz-me o meu sexto sentido.

- Bom, vou passar a noite no meu gabinete. O meu antecessor deixou uma cama portátil no armário.

- Por Deus, Indy, por que não vais para um hotel?

Jones pegou no monte de papéis.

- Não, assim termino de analisar os trabalhos.

 

ESPLUMOIR

Eram quase duas da manhã, e Indy passara as últimas três horas classificando os trabalhos. Tinha os pés pousados sobre a secretária, e bocejou ao escrever uma observação na página de cobertura daquele que terminara de ver. Anotou um B menos no final da observação, colocando-o depois no monte.

  Esfregou a nuca. O trabalho, como praticamente todos que acabara de analisar, não continha um único pensamento original. Nenhum indício de especulação, nenhum delinear duma conclusão controversa, nenhuma contestação de autoridades a menos que tal tenha acontecido por parte de uma autoridade mais recente. Na sua maioria, eram meras repetições do que já fora dito. Mas, o que poderia ele esperar? Este era um curso introdutório, e o objectivo era aprender as bases, não criar algo de novo.

 Adiou intencionalmente a leitura do trabalho de Deirdre,deixando-o para o fim. O dela seria diferente; pelo menos sabia isso.

  O facto de ela ir especular era aceitável. Mas ir concretamente tentar provar que Merlin vivera parecia tão fora do âmbito do curso que agora tinha dúvidas quanto ao que Deirdre lhe dissera quando reuniram.

  Segurou o trabalho nas mãos, sentindo-lhe o peso. Era composto por vinte e cinco páginas, cerca de três vezes mais extenso do que qualquer um dos outros. O título era sugestivo: Merlin e o Esplumoir: Indícios Sugerindo que o Lendário Mago era uma Personagem Histórica. O trabalho começava por afirmar que, embora fosse virtualmente impossível separar a vida de Merlin do mito, em breve seria possível provar que Merlin era mais do que um mito. Em seguida, sem elucidar qual seria a suposta evidência, Deirdre passou a um esboço biográfico.

 Quer se tratasse de uma figura mítica ou histórica, Merlin vivera nos finais do século sexto na zona baixa da Escócia, na época em que o Cristianismo se implantava fortemente na Grã-Bretanha e o paganismo entrava em declínio. Fora um druida, um profeta, e um enganador, vivendo num enclave pagão, dizia ela. Tudo  o que Deirdre escrevera fora baseado em escritas datadas de séculos posteriores, e Indy conhecia bem as histórias. Leu aquela parte rapidamente, e fez uma anotação, sugerindo que havia também provas de que a lenda de Merlin poderia ter derivado de um bardo galês chamado Myrddin Embreis, que vivera um século antes.

  Em seguida, passou para a lenda da morte de Merlin, afirmando que a história era relevante para os fins a que se propunha. Embora Merlin fosse mais bem conhecido como o consultor de Artur e de outros dois reis ingleses antes dele,

a história do que acontecera ao grande conjurador nos últimos anos constituía um dos aspectos mais misteriosos da lenda.

 Conta-se que conheceu Vivien, uma virgem, e que se apaixonou.

 Ela jurou ser a sua esposa, mas apenas se ele lhe ensinasse o segredo de como poderia capturar alguém permanentemente, por intermédio de palavras, para que ele nunca pudesse escapar.

  Merlin sentia-se tão atraído pela jovem mulher que lhe concedeu o desejo. Contudo, desde o início que Vivien planeava defender-se a si mesma. Utilizou o feitiço de imediato para aprisionar Merlin numa gruta. A partir desse momento, Merlin nunca mais foi visto, mas gritava do seu túmulo, e o seu lamento era ouvido com freqüência na floresta.

  No entanto, numa outra versão da história emitida num texto antigo denominado Didot-Perceval, o mágico retirou-se, voluntariamente, da vida e as suas últimas palavras foram as seguintes: "Vou agora retirar-me para o meu esplumoir e não

mais serei visto.", Talvez Merlin sempre soubesse que Vivien planeava iludí-lo, especulava Deirdre. Era um mágico com enorme sabedoria, que conhecia bem os processos dos homens e mulheres. De coração partido e desapontado, limitou-se a concretizar os desejos dela. Tal facto levanta uma questão: O que era o esplumoir, e onde se localizava?

  Indy fez uma pausa na leitura, e reclinou-se na cadeira.

Deirdre estava bem avançada em relação aos outros alunos, porque fizera referência a duas origens distintas do mito, e depois especulara sobre o significado das variações. Era óbvio que o que ela escrevera não iria longe como tema base de uma tese para doutoramento. Podia ouvir os seus velhos professores atacando-a por todos os lados. Primeiro que tudo, depositara demasiada fé ao assumir o mito como uma experiência real de vida que fora apenas mal interpretada. De igual modo, fechara também os olhos a uma importante parte do mito. Se Merlin decidiu despedir-se do mundo por sua própria vontade, por que razão gritava do túmulo?

  Voltou a página, na esperança de que as provas não fossem meramente outro mito.

  Fornecia de seguida uma explicação pormenorizada sobre a origem e significado da palavra esplumoir. Com efeito, Deirdre dizia que a palavra era de origem misteriosa, mas que,aparentemente, as suas raízes pareciam ser plumae (penas) e mutare (mudar). Literalmente, a palavra referia-se ao processo de mudança de um pássaro. Contudo, encarada simbólicamente, significava transformar-se a si próprio.

  Indy pegou no lápis vermelho, circundou mutare, e fez um ponto de interrogação na margem. O seu conhecimento sobre raízes de palavras era mais do que superficial, e duvidou da derivação. Encontrou também uma outra explicação para o significado da palavra e escreveu: "Pode ter origem num verbo latino: ex-plumae - retirar as penas." A diferença era mínima, mas não podia deixar passar sem um comentário.

  Os estudiosos que se debruçaram sobre o significado de esplumoir, prosseguia ela, viam invariavelmente nele um símbolo da transformação da vida para a morte. Mas o esplumoir pode efectivamente ser um local físico, um local para onde Merlin se retirou para elaborar a crônica da sua vida com uma pena de escrever. No meu ponto de vista, esse local, o esplumoir, é uma gruta situada próxima de Whithorn, na Escócia ocidental. Esta afirmação é suportada por uma nova prova sob a forma de uma carta escrita por um monge do século XV. A carta foi encontrada nos arquivos da Igreja Priory em Whithorn, e encontra-se aqui traduzida do original em latim.

  "Aqui vamos nós", pensou Indy. "Vejamos o que ela arranjou". A carta datava de 7 de Abril de 1496, e estava endereçada ao Papa Alexandre VI.

 

  Escrevo-lhe sobre um assunto de premente preocupação. Há nove meses atrás, fui nomeado para explorar as ruínas de Candida Casa, a primeira igreja cristã na Escócia, que foi fundada na aldeia de Whithorn, pelo Santo Ninian nos últimos anos do século quarto do nosso Senhor. Fiz aí, recentemente, uma descoberta de natureza muito invulgar. Trata-se de um pergaminho dourado que dizia conter as palavras do lendário feiticeiro conhecido como Merlin. Tal facto é já por si perturbador, considerando onde foi encontrado, mas ainda mais desconcertante é a natureza do que está escrito no pergaminho. Em vez de transcrever as palavras profanas, envio-Lhe este pergaminho à sua atenção. Como deve saber, existe uma caverna, próximo de Whithorn que não só tem o nome do fundador de Candida Casa como é também chamada pelo foklore local por a Caverna de Merlin, e diz-se que o homem que muitos afirmam ser o filho do diabo aí habitou nos últimos anos da sua existência, enegrecendo, assim, a natureza sagrada da gruta. Trago este assunto ao seu conhecimento porque acredito que isto não só apoia a veracidade quanto ao suposto autor do pergaminho mas também porque pode haver razão para exorcizar a gruta da presença do homem-demônio que muitos afirmam continua a habitá-la em espírito.

  O seu humilde servo,

               Padre James Thomas Mathers

 

  Indy continuou a ler. Estava fascinado com a carta, e queria saber mais. Mas pouco mais havia. Deirdre reiterou as suas conclusões, mas não mencionou quem encontrara a carta, quando fora encontrada, ou se fora autenticada. Tanto quanto sabia, a carta podia ser um logro. Raios, talvez Deirdre tivesse inventado. Talvez a mãe a tivesse incentivado a fazê-lo para ver se ele o engolia sem mais provas. Tudo era possível quando uma aluna do nível dela elaborava um trabalho deste tipo num curso de iniciação.

  Não sabia se lhe haveria de dar um Muito Bom ou um Mau, ou ambos. Provavelmente, a carta não passava de uma fraude, mas talvez ela não fosse responsável. Ponderava na nota que iria dar quando escutou um ruído, como uma porta rangendo. Olhou para cima, esticando o pescoço. Quando ali chegou, os gabinetes do departamento de arqueologia encontravam-se às escuras e trancados.

  Passos. Estava ali alguém. Esperou. O ruído dos passos aumentou de intensidade e depois parou. Quem quer que fosse deve ter avistado a luz por baixo da sua porta. Imaginou o Olhos Estreitos no corredor com um balde de escorpiões ou viúvas negras, ou talvez algumas cascavéis destinadas ao seu gabinete. Desejava agora ter reagido mais cedo e desligado as luzes.

 Bateram à porta. "Faz qualquer coisa", disse a si mesmo.

 - Quem é? - perguntou com voz grossa.

  - Joanna Campbell. É você, professor Jones?

  Indy deu um salto, desejando não ter utilizado aquele tom de voz. Apressou-se a abrir a porta.

  - Entre. Peço desculpa, não sabia quem era.

  Era a primeira vez que via a Dra. Campbell com o cabelo solto, e a visão teve um efeito estranho nele. Comprido e prateado, o cabelo caía-lhe por cima dos ombros e da capa preta. Parecia mais uma feiticeira do que uma arqueóloga. Mas talvez a leitura recente dos trabalhos estivesse a afectar-lhe os pensamentos.

  - Vi a luz -, disse ela, entrando no gabinete e observando rapidamente em redor, os olhos parando por momentos na cama portátil. - Está a trabalhar até tarde.

- Estou a classificar os trabalhos do período. - Pensou que el a iria responder com uma observação por ter esperado até ao último minuto. Talvez o tivesse pensado, mas não o proferiu.

 - Por vezes, tenho dificuldade em dormir à noite, e venho para aqui para tratar de pormenores administrativos. Penso que consigo adiantar muito mais quando não está cá ninguém.

  - Compreendo.

  Indy bateu com a ponta dos dedos sobre o trabalho de Deirdre e interrogou-se se a Dra. Campbell iria dizer algo sobre ele.

  - Espero não a incomodar por estar aqui.

  Joanna Campbell avançou no gabinete e voltou-lhe as costas, como se examinasse os livros numa prateleira.

  - Não, não incomoda. Na verdade, está na altura de conversarmos. - Olhou por cima do ombro para ele. - A altura e local parecem-se tão adequados quanto quaisquer outros. Isto é, se estiver de acordo.

  - Não há problema. - De que poderia ela querer falar? - Pode ficar com a minha cadeira, se quiser. - Indy fez um gesto com a mão na direcção dela. - Ou prefere ir para o seu gabinete?

  Joanna voltou-se e sorriu.

  - Disparate. Sente-se. Esta cadeira está óptima. - Colocou as mãos sobre as costas direitas da cadeira de madeira posicionada em frente da secretária dele, mas não se sentou.

  Indy sentou-se, pouco à vontade. Aguardou que ela começasse.

  - Está a gostar de cá estar?

  - Bastante.

  Ela anuiu.

  - Disseram-me que você nem sempre segue o programa que lhe forneci.

  Aqui estava: precisamente o que ele receara. Deirdre contara-lhe tudo. De forma alguma lhe ocultaria o que ocorria nas aulas.

  - Bom, tenho tentado, mas houve ocasiões em que senti ser importante expandir-me em relação a certos temas.

  - É pouco habitual nesta universidade um professor iniciado fazer derivações ao programa, sobretudo um professor com tão pouca experiência prática em arqueologia inglesa.

  - Eu sei, mas por vezes é importante avançar com as nossas próprias ideias. Penso que isto se adequa tanto a um professor iniciado quanto a um já experimentado.

  - Aceito esse ponto de vista e, tanto quanto sei, é um professor envolvente, seguramente um grande melhoramento em relação ao seu antecessor. - Olhou de novo para a cama portátil e pareceu divertida. - Todos pensávamos que ele era muito dedicado porque passava bastante tempo no gabinete. A verdade é que ele guardava uma garrafa de uísque numa das gavetas e lia romances de revistas até adormecer.

  - Já tinha ouvido falar sobre esses hábitos de leitura dele. 

  - A Dra. Campbell estava a fazer-lhe confidências e Indy sentiu-se mais tranqüilo, mas apenas por instantes.

 - Devo dizer-lhe que sinto alguma apreensão quando um elemento do meu pessoal de ensino, a quem falta experiência local das ilhas Britânicas, como é o seu caso, está a ministrar um curso que foca os nossos monumentos da Antiguidade.

  - É compreensível, mas trata-se de um curso de iniciação, -acrescentou Indy rapidamente - e, mal haja uma oportunidade,gostaria de participar em pesquisas concretas. Na verdade, ainda há pouco tempo conversei com o professor Stottlemire sobre as escavações que vão ser efectuadas, oportunamente, na trincheira do forte de Herefordshire Beacon. Pareceu-me muito interessado na minha colaboração.

  - É um local interessante e agradável para se passear, mas você não gostaria de trabalhar com Stottlemire. Ele ficaria com a fama de quaisquer novas idéias ou achados que você fizesse. O forte de Beacon é, sem sombra de dúvidas, o território dele.

  Indy encolheu os ombros.

  - Bom, eu procurava apenas uma abertura, e...

  - Óptimo, Jones. Mas deveria ter-me feito a pergunta há já algumas semanas.

  - Não queria parecer presunçoso, dado que não tinha garantias de que estaria aqui no Outono.

  Ela acenou uma mão.

  - Não se preocupe. Está a fazer um trabalho louvável. O seu lugar está seguro. Isto é, se o quiser.

  - Sim, claro que quero.

  - Ainda bem. Nesse caso, a questão que temos pendente é a pesquisa concreta em campo.

  Indy sentiu-se, subitamente, aliviado. Ia ficar na Inglaterra e não haveria aranhas nem escorpiões em Londres que o pudessem impedir. Ainda por cima, a Dra. Campbell queria falar em trabalho de pesquisa em campo.

  - Tem alguma sugestão, escavações que tivesse iniciado?

  - Tenho, com efeito. Eu própria vou estar à frente de uma escavação em Whithorn, na Escócia.

  - Whithorn? - Indy olhou para baixo para o trabalho de Deirdre, e depois de novo para a Dra. Campbell. - Estava precisamente a ler o trabalho da sua filha sobre...

  - Estou ao corrente. Deirdre também irá como minha assistente. Espero que se junte a nós.

  - Sim. Certamente, mas... - Pegou no trabalho de Deirdre. -Isto tem alguma coisa a ver com os seus planos de escavação?

  - Claro que tem. Tem tudo a ver com isso.

 

O "CRUC"

  Uma voz inglesa distinta, seguramente da classe elevada, falava através das ondas aéreas.

  - Torna-se imperativo que os membros activos do Parlamento se unam para combater esta ameaça conhecida por Commonwealth. Se este plano algum a vez se concretizasse, representaria o primeiro passo para a dissolução do Império Britânico, e isso nunca poderemos permitir que aconteça nas nossas vidas.

 "- Obrigado, Mr. Powell" - disse outra voz de rádio. -"Antes de avançarmos, gostaria de lhe perguntar..."

   - Jack, não te importas de desligar essa maldita coisa? -pediu Indy.

 

  Ouviu Shannon desligar o rádio na sala.

   - Precisas de ajuda? - perguntou Shannon.

  As roupas de Indy encontravam-se espalhadas em cima da cama enquanto este enchia a mochila.

  - Não, acho que consigo arranjar a minha própria mochila.

  - Eh, talvez fosse melhor voltares a pôr a pala no olho -afirmou Shannon.

  - Para quê?

- Confere-te um ar mais feroz. Condiz com a tua disposição carrancuda.

 - Desculpa, mas há três noites que não durmo bem. Fartei-me de acordar, pensando que havia um maldito escorpião subindo-me pelo pescoço.

  - O apartamento está limpo. Posso garantir.

  - Eu sei. Mas, mesmo assim...

  Shannon encostou-se ao toucador, pousando sobre ele um braço longo e magro.

  - Quando regressas?

  - As aulas do período do Outono começam dentro de três semanas. Devo estar de volta pelo menos dois dias antes.

 - Se souber alguma coisa do homem-insecto, envio-te uma carta. Não te esqueças de ir ao correio.

  Indy enfiou um par de meias na mochila.

  - Quero apagar totalmente tudo isso da minha mente. Talvez andassem atrás de qualquer outra pessoa e se tenham enganado no apartamento.

  - É possível. Contudo, tenho as minhas dúvidas. Continuo a pensar que as aranhas e os escorpiões estão de alguma forma relacionados.

  Indy não respondeu. Dobrou umas calças de caqui e uma camisola na mochila e fechou-a.

  - Falaste nos escorpiões à tua namorada?

  - Não, não falei, e ela não é minha namorada. É minha aluna.

  - É verdade. - Shannon afastou-se do toucador e deu uma palmada no ombro de Indy. - Aposto que a música será diferente quando regressares da Escócia.

  - Jack, a mãe dela também vai.

  - Nesse caso, é melhor tomares cuidado com as duas.

  - Pára com isso, faz favor.

  - Desculpa. Estava apenas a brincar. Mas gostas da rapariga, não gostas?

  Indy encolheu os ombros.

  - Claro que gosto. Mas não me venhas falar em Dorian Belecamus, porque Deirdre não é nada parecida. São totalmente diferentes. E vou conversar com ela sobre o namorado, ou antigo namorado, seja o que for. Só não tive apenas oportunidade para isso.

  - Certo, totalmente diferentes - troçou Shannon. - Ela  é bonita, inteligente, um pouco misteriosa. Nada que se assemelhe a Belecamus.

  Shannon tinha razão. Mas a atitude de Deirdre era inteiramente oposta.

  - Pode não me ter contado a história da sua vida, mas não é traiçoeira. Há nela uma certa frescura, uma inocência. Sei que posso confiar nela.

  - O amor é cego, Indy.

  Indy dobrou uma camisola interior.

  - Shannon, sabes que mais? És a pessoa mais desconfiada que jamais conheci.

  - Tenho de ser. Mas também não ganho a vida numa torre de marfim.

  Indy atirou com a camisola interior para cima da cama, e virou-se para o companheiro de quarto.

  - Tens algum problema com o meu modo de vida? É isso?

  Shannon ergueu as mãos.

  - Não. Não tenho problema nenhum. É a tua atitude. És ingênuo. Precisas de conhecer melhor a vida. - Na tua opinião, um pouco da tua experiência não me faria mal, não é?

  Shannon sorriu.

  - É o que penso.

  - Posso dizer-te uma coisa. Posso não ser grande coisa a julgar as mulheres, mas Deirdre é boa rapariga. Tenho a certeza.

  - Podes ficar surpreendido por me ouvires dizer isto, mas concordo contigo. Ela é tão ingênua quanto tu.

  "Como se ele a conhecesse", pensou Indy, mas não tencionava discutir. Olhou para o relógio de parede.

  - Pronto, vou despedir-me de Milford. Tens a certeza que não queres vir?

  Shannon riu-se.

  - Absoluta. Ele não se iria recordar de mim.

  - Para ser sincero, ficarias surpreendido. Tenho a impressão que se lembraria. Parece que só se esquece das coisas recentes. Tem um a memória extraordinária para acontecimentos passados.

  - Acredito em ti. - Shannon seguiu até à porta. - Nesse caso, estarás de volta às quatro, certo?

  - Foi o que eu disse. Quatro horas. - Abriu a porta e voltou-se. - Desde quando te preocupas tanto com as minhas entradas e saídas?

  Shannon levantou as mãos.

  - Eh, só me quero despedir antes de ir para o clube. Só isso.

  - Fica combinado, se não te encontrar aqui, vou até lá tomar uma bebida.

  - Limita-te a estar aqui às quatro, está bem?

 

  Indy caminhou pela espessa carpete da entrada até à recepção do Clube Empire, onde Milford se encontrava hospedado. Nas paredes, pendiam retratos de homens emoldurados em armações douradas, diversos deles com monóculos, e o mobiliário era constituído por pesadas peças de mogno. Na recepção, estava um homem magro e angular. Tinha um bigode que mais parecia ter sido desenhado a lápis. Quando Indy lhe perguntou onde ficava o quarto de Milford, passou a ponta dos dedos pelo bigode e, numa voz tão abafada quanto o ambiente, disse:

  - Dr. Milford. Ele aguarda-o?

  - Sim, está à minha espera.

  A expressão do recepcionista tornou-se afectada.

  - Lamento, senhor, mas ele saiu. Parece que falou qualquer coisa em ir ao Madame Saud.

  - Disse mesmo? - afirmou Indy, imitando o tom do homem.

  - Nesse caso, acho que vou indo.

  Indy virou-se e dirigiu-se à estação de metrô mais próxima.

  Dez minutos depois, encontrou Milford no museu de cera,de pé e imóvel junto de Henrique VIII e as suas seis esposas.Segurava nas lapelas do sobretudo e ele próprio parecia uma figura de cera colocada no século errado.

  - Autêntica, não é? - disse Indy.

  Milford voltou lentamente a cabeça. Os seus olhos azuis aquosos fitaram Indy, e o bigode espesso contraiu-se.

  - Sim, mas deixe mostrar-lhe outra coisa.

  Indy abanou a cabeça ao seguir o homem idoso para uma outra sala. Não surpreendia minimamente o facto de ele estar ali. "Mas também não era bom sinal", pensou. Tinha a esperança de o encontrar hoje em boas condições. Na sexta feira de manhã, o dia do exame final, Milford estava à espera de Indy no seu gabinete. O professor agira de forma incoerente, insistindo que tinha algo de importante para dizer a Indy, mas, quando não conseguiu lembrar-se do que era, insistiu que já lhe deveria ter contado.

  Perderam alguns minutos numa questão supérflua, até que chegou a hora de Indy ir para a aula. Apressou-se a marcar uma data para almoçarem no clube, na esperança de que Milford se recordasse daquilo que considerava tão importante. A conversa  abalara-lhe tanto os nervos que se esqueceu dos trabalhos já classificados no gabinete e tivera que lá voltar para os entregar.

- Observe aqui Robespierre e Marat - disse Milford,aproximando-se das figuras de cera dos dirigentes da Revolução Francesa. - Estes sim, a sua aparência é especialmente autêntica.

  - Porquê? - inquiriu Indy.

  - Porque as suas cabeças foram usadas como moldes pela Madame Saud imediatamente a seguir de serem decapitados.

  Indy tossiu.

  - Deu realmente jeito. Aposto que não tiveram que lhes pedir para se sentarem quietos.

  - Não, creio que não - disse Milford com uma gargalhada. -Felizmente, evitaram que eles vissem os seus corpos sem cabeça, pelo que Lhes falta um certo ar de horror nas suas expressões.

  - O que quer dizer? Se alguém perdeu a cabeça, como poderia saber qual seria a visão do seu corpo?

  - Ah, mas sabe, antigamente era prática usual, o carrasco agarrar na cabeça decepada imediatamente depois da guilhotina a ter cortado e virá-la para o corpo. Dado que existia ainda sangue e oxigênio no cérebro, sentia-se que havia ainda consciência durante uns trinta segundos.

  - Isso é verdade?

  Milford encolheu os ombros.

  - Pelos olhos esbugalhados e bocas abertas de que há descrição, é de acreditar que sim. Mas talvez não passasse da reacção dos nervos.

  - Contudo, só de pensar... - Indy não conseguiu terminar.

  - Sim, é surpreendente as coisas que fazemos uns aos outros,- disse Milford após um curto silêncio. - Gostamos de pensar no passado como um período de comportamento bárbaro, mas pondere bem no nosso século. Milhares e milhares sacrificaram-se pelo país na Grande Guerra. Aldeias francesas apinhadas de corpos.

  Campos ensopados em sangue. Se me pergunta, não foi melhor...

  Perambularam pelo museu durante quase uma hora. Indy nem se incomodou em perguntar a Milford se já se lembrava do que tinha para lhe contar. Aparentemente, hoje não seria o melhor dia para testar a memória curta do velho homem. Por fim, persuadiu Milford a tomar o chá da tarde com ele num pequeno restaurante próximo do museu. Quando já se encontravam sentados, com o chá e os biscoitos na sua frente, Indy falou dos seus planos para ir à Escócia. Explicou que ia efectuar escavações no ermitério de São Ninian, uma caverna que fora utilizada pelos antigos cristãos, como local de meditação e,segundo o mito, onde Merlin passara os últimos anos. Acrescentou que a gruta podia ter sido o esplumoir de Merlin.   Observou a expressão de Milford ao mencionar a palavra esplumoir, mas o velho professor afagava lentamente o bigode branco e franzia o sobrolho ao olhar pela janela. Indy voltou-se para ver se ele fitava alguma coisa em particular, mas parecia que estava apenas absorto.

  Milford reparou que Indy parara de falar. Pestanejou e olhou para o seu chá.

  - Raios, Indy, tinha qualquer coisa para lhe dizer. Espere um pouco. Já lhe falei nisso?

  Indy tentou não perder a calma, mas ficou irritado.

 - Dr. Milford, não vamos voltar a esse tema. Tudo o que mencionou é que tinha alguma coisa para me dizer.

  Milford coçou a orelha.

  - Bom, se já não lhe disse, tenho a certeza de que me hei-de lembrar. Estava a contar-me qualquer coisa sobre a Escócia, não era?

  Indy repetiu o que acabara de dizer.

  - Vejam só, escavações em busca de Merlin?  -Não é propriamente por Merlin, mas...

  Milford coçou o queixo, e tocou no bigode.

 - Sabe, tenho a impressão de que, ainda recentemente, estive a conversar com alguém sobre esse mesmo tema.

 - Comigo.

  - Huh?

  - Falamos os dois sobre isso no outro dia, na Torre de Londres.

  Mostrou fortes dúvidas que se pudesse provar que Merlin alguma vez tenha vivido.

  - Sim, é claro.

Indy deu uma dentada no biscoito e bebericou o chá.

  - A propósito, sabe alguma coisa sobre o esplumoir de Merlin?

  Milford repetiu a palavra.

  - Sim, sim. Essa é uma daquelas palavras - murmurou.

  - O que quer dizer?

  - Uma daquelas palavras em que houve uma má interpretação entre o francês e o inglês quando traduziram histórias de uma língua para a outra. - Fez um aceno com a mão, parecendo aborrecido. - É uma autêntica loucura. Podia-se passar toda uma carreira tentando chegar a uma conclusão em relação a essas palavras.

  Era precisamente esse tipo de carreira que Indy queria evitar, seguindo arqueologia em vez de lingüística. Mas estava interessado no que Milford tinha para dizer, e pediu-lhe para explicar.

  - Não sei o suficiente sobre esse esplumoir, mas posso dar-lhe outro exemplo sobre o seu amigo, Merlin. Sabe o que é um dólmen?

  Indy bebeu um pouco de chá.

  - Seguramente,já sou arqueólogo há alguns meses. Trata-se de um molde de terra ou pedra construído por cima de um túmulo. A Grã-Bretanha está cheia deles.

- Com efeito, e se Merlin fosse uma pessoa histórica, ele estaria sepultado num.

  Indy ficou surpreendido com o tom de absoluta certeza com que Milford proferiu estas palavras.

  - Por que diz isso?

  - Estou certo que conhece a história Le Cri de Merlin, em que ele gritava do seu túmulo.

  Indy anuiu.

  - Bom, trata-se de um erro. - Milford mexia o chá.

  - Não compreendo.

  - Um erro na tradução encontrada nos textos franceses, mais tarde repetido pelos ingleses. A palavra original era cruc,que é uma palavra antiga inglesa para dólmen, mas foi traduzida como cri. Depois, Geoffrey de Monmouth pegou no cri francês e traduziu-o para grito.

  Milford mirava Indy. Encontrava-se em pleno controlo das suas faculdades naquele momento, e não tinha ainda terminado.

  - Por exemplo, se me permite que regresse ao típico de se perder a cabeça, "quando Eldol cortou a cabeça a Hengist,aquele ergueu um grande grito sobre a sua cabeça", escreveu Geoffrey de Monmouth. É óbvio que tem de ser um dólmen que foi erguido por cima da sua cabeça. Era esse o costume quando um chefe de tribo saxão era sepultado.

  Indy pousou a chávena.

  - Sério?

  - Sim, claro que sim. Há anos que discuto este ponto com o seu pai.

- Quer então dizer que Merlin está sepultado num dólmen e não numa gruta - afirmou Indy.

  - Exactamente. De qualquer forma, a história de ele estar encurralado numa gruta não fazia sentido. Por que haveria um mágico experimentado como Merlin permitir que uma jovem o enganasse se era demasiado sábio para isso.

  "Interessante", pensou Indy. O último ponto de vista emitido por Milford era mais ou menos o mesmo apontado por Deirdre no seu trabalho.

  - E quanto às suas últimas palavras? Ele disse que ia se retirar para o seu esplumoir.

  - É como disse. Não conheço bem esta palavra. Mas lembro-me efectivamente que este esplumoir seria o modo como ele tinha de exprimir que ia morrer, mudar de penas, por assim dizer. Ou so whylome wont. Na minha opinião, o significado é totalmente diferente. Lembre-se que, naqueles tempos, se escrevia com penas. Atente na raiz da palavra. O galês plufawr, penas, vem do latim pluma. Quer, provavelmente, dizer que ele se retirou da vida activa e foi para um local isolado para pegar na pena, para escrever.

 

  Passavam alguns minutos das quatro quando Indy regressou ao apartamento na Russel Square, depois de ter acompanhado Milford ao seu quarto, no clube. Sentia-se exausto e decidiu que se iria deitar alguns minutos. Fazer companhia a Milford cansava-o.

Talvez porque tinha de estar sempre alerta, nunca sabendo como Milford ia agir, se passaria para o inglês medieval,falando incoerentemente, ou se se zangaria com ele. Apesar dos seus esquecimentos, Milford parecia capaz de cuidar de si mesmo, e nunca se esquecia - pelo menos por muito tempo - o que tinha determinado fazer num dado momento.

  - Jack, estás cá? - chamou, ao fechar a porta. Nenhuma resposta. Shannon devia ter saído. Agora, via-se obrigado a sair à noite, embora tivesse de partir cedo pela manhã.

Desejou não ter feito a promessa, mas talvez se sentisse com mais vontade de sair depois de descansar.

  Olhou para a secretária, a fim de procurar uma mensagem deixada por Shannon. Escutou um ruído. Parecia uma tosse contida.

  Voltou a cabeça. A porta do quarto estava fechada. Não estava assim quando saiu. Nunca a fechava.

  Mais sarilhos não. Não precisava nem queria. Ponderou sair para a rua e chamar a polícia. Mas quem sabia o que encontraria quando regressasse? Deu alguns passos cautelosos em direcção à porta e levou a mão à maçaneta.

  Subitamente, esta abriu-se por entre gritos e vivas e viu-se rodeado de pessoas.

  - Surpresa!

  Olhou à sua volta, perplexo. Por breves instantes, não percebeu quem eram. Pareciam conhecidos, mas... Claro, os seus alunos.

  - Professor Jones! - Era Deirdre. Avançou do meio da enchente que o rodeava. - Espero que não se importe. Todos se queriam despedir e desejar-lhe o melhor para as suas escavações.

  Indy riu-se.

  - Não. Acho que não me importo. Afinal, já cá estão todos.

  No tecto, esvoaçavam balões vermelhos, azuis e verdes, e fitas de papel materializaram-se vindas do nada. Um dos alunos segurava um bolo. Este tinha escrito por cima Feliz Escavação e, por baixo das palavras, um desenho dum homem e duma mulher, ambos com pás e de mãos dadas.

  - O que é isto? - Deirdre espreitava o desenho, pressionando o ombro contra o braço dele. - Não tive nada a ver com aquilo - disse, enfaticamente. Indy apreciava o som da sua voz escocesa, mesmo quando a elevava.

  Os presentes riram-se e diversos alunos emitiram algumas piadas. Era óbvio que todos acreditavam que alguma coisa se passava entre eles ou, se não, que se deveria passar.

  O rosto de Indy enrubesceu, e evitou olhar para Deirdre.

Localizou depois Shannon do outro lado da sala, encostado à parede. Tinha os braços cruzados e um sorriso maroto na cara.

  - Jack, estás de alguma forma envolvido nisto?

  - Eu? - Shannon bateu com as mãos no peito, as sobrancelhas erguendo-se. - Limitei-me a abrir a porta.

 - Oh, não, ele também participou - alguém gritou.

  - Desde o início - acrescentou outra voz.

  - Eu sabia - disse Indy. - Por isso insististe tanto para que estivesse de volta às quatro.

  Circulavam copos de bebidas leves e vinho.

  - Corte o bolo - disse alguém.

  O jovem que ia fazer o trabalho do período sobre pontos de vista no século XVII em relação a Stonehenge avançou com uma faca.

 - Devo ser eu a cortá-lo - afirmou. - No meu trabalho sobre Stonehenge, comparei as idéias do arquitecto Inigo Jones com as do professor Indy Jones.

  - E conseguiu passar - acrescentou Indy.

  - Vamos parti-lo na mesa - disse a rapariga que segurava o bolo, e dirigiu-se para a cozinha, seguida por uma fila de alunos.

  Indy olhou em volta e viu Deirdre de costas, afastada dos outros. Aproximou-se e tocou-lhe levemente nas costas.

  - Obrigado. Gostei muito. Nunca poderia imaginar.

  - Imaginar o quê? - perguntou ela.

  Indy sorriu.

  - Imaginar que me iriam fazer isto.

  Ela mirou-o.

  - Eu própria não tinha a certeza. -Parecia que falavam de algo mais do que da festa.

 

  - Estou ansioso por partir para a Escócia.

  - Também eu. Vai ser bom regressar a casa.

  - Você é dessa região da Escócia? - inquiriu Indy, apercebendo-se do pouco que sabia em relação a ela.

  - Sou de Whithorn. Cresci na aldeia.

  - Oh. - Indy ficou surpreendido. - Não sabia.

 Bateram à porta e Indy voltou-se para ver Shannon abri-la.

Joanna Campbell entrou.

- Joanna! O que fazes aqui? - exclamou Deirdre e atravessou a sala.

  "Surpresa atrás de surpresa", pensou Indy ao segui-la. Parou por breves instantes, dando oportunidade à mãe e filha para falarem a sós. Trocaram meia dúzia de palavras e a Dra. Campbell virou-se e sorriu para Indy.

  Este aproximou-se e Joanna tocou-lhe no antebraço.

  - Espero que não fique aborrecido com esta invasão é sua privacidade, mas os seus alunos foram insistentes. É provavelmente o professor mais querido que jamais integrou o meu pessoal.

  Nunca me lembro de ter ouvido comentários tão entusiásticos como os que foram tecidos em relação a si.

  O cumprimento dela deixou-o perplexo.

  - Oh, muito obrigado, Dra. Campbell. Nunca o poderia ter imaginado, com os olhares aborrecidos que às vezes detecto nas aulas.

  - Pode tratar-me por Joanna. Não necessita ser formal.

  - Óptimo. Deixe-me arranjar-lhe um copo de vinho, ou gostaria de outra coisa? Também temos bolo. - Sentiu-se aliviado por estar já partido às fatias, pois assim não tinha que explicar o desenho.

  - Não, nada, obrigada. Não vou ficar. - Inclinou-se para a frente e falou em tom de confidência. - Na verdade, não fui oficialmente convidada e penso que embaracei Deirdre. - Lançou uma mirada à filha.

  - Oh, isso não é verdade - protestou Deirdre.

  Joanna emitiu um sorriso mas a sua expressão tornou-se imediatamente séria.

  - Vim até cá por uma razão particular. Deirdre, também deves ouvir isto.

  - Estou a ouvir. - Deirdre transparecia um certo sarcasmo, mas também alguma curiosidade.

  - Receio que tenha havido uma alteração nos meus planos.   Preciso de ficar em Londres mais alguns dias.

  - Mas, Joanna, prometeste...

  A mãe dela ergueu uma mão.

  - Deixa-me acabar, Deirdre. Creio que não há necessidade de mudar os nossos planos. Quero que partam os dois para Whithorn sem mim, e eu seguirei assim que puder.

  - Mas o que vamos fazer? - Deirdre parecia desesperada.

  - O equipamento está pronto a seguir viagem. Conheces bem a zona, e o professor Jones é um arqueólogo perfeitamente qualificado. - Voltou-se para Indy. - Preparei instruções escritas que vos servirão de directrizes. Terão de contratar dois aldeãos.

Deirdre poderá ajudá-lo nisso. Ela conhece toda a gente, incluindo aqueles com quem já trabalhei. De qualquer forma, quando estiverem a postos para começar, eu já deverei lá estar. Pode ser assim?

  Indy sentiu um certo alívio. Tudo estava a desenrolar-se com uma certa rapidez, mas não podia pensar numa alteração de planos mais interessante.

  - Penso que nos conseguiremos arranjar até a sua chegada.

  - Eu sei que conseguirão - replicou ela.

  Indy acompanhou-a à porta, e abriu-a.

  - Tenho uma dúvida que gostaria de esclarecer. Tanto quanto entendi, o objectivo da escavação é encontrar o pergaminho dourado mencionado na carta do monge.

  Joanna sorriu.

  - Sim, é claro.

  - Bom, é que... não vejo de que forma concluiu da carta que o pergaminho está enterrado na gruta.

 - Ainda bem que referiu isso. Tenho estado tão ocupada que não tivemos tempo para conversar sobre os antecedentes disso.

  Saíram e Indy fechou a porta, bloqueando o barulho.

  - Sabe, depois de ler a carta - prosseguiu Joanna - contactei um amigo meu, que, por acaso, tem uma excelente relação com o Vaticano. Ele descobriu que nunca foi recebido qualquer pergaminho ou carta, e que não foi efectuado nenhum pedido para exorcizar a Caverna de Ninian.

 - Já me interrogara sobre isso, uma vez que a carta fora encontrada em Whithorn.

  - Exactamente. Nunca foi enviada. Nem o pergaminho. O que descobri realmente foi que o padre Mathers permaneceu em Whithorn até a sua morte, que ocorreu cinco anos mais tarde. A minha teoria e que, dado que o pergaminho nunca apareceu, deve encontrar-se na caverna.

  - Talvez o ouro tenha sido fundido.

 Ela abanou a cabeça.

 - Não é muito provável. Existia um procedimento aprovado que teria de ser seguido. Teria de existir registos, e não há.

  - Mesmo assim, penso que estamos a jogar um pouco com a sorte.

Um sorriso leve aflorou-lhe nos lábios.

 - Tenho um forte pressentimento em relação a isto, Jones. Muito forte. Não sei explicar. Algo que me diz que a escavação vai produzir resultados.

  - Espero que esteja certa. A propósito, estou agora um pouco confuso em relação ao trabalho de Deirdre. Quero dizer, foi você...

  - Quem o escreveu? Claro que não, Indy. Mas sugeri realmente o tema a Deirdre. Tinha a esperança de que o trabalho o aliciasse ajuntarse a nós.

  - Não foi preciso muito para me despertar interesse. Estou ansioso por começar.

  Joanna fitou-o.

  - Aprecio o seu entusiasmo. Mas não se esqueça que espero igualmente de si que se comporte de forma profissional enquanto estiver acompanhado pela minha filha.

  - Oh, é claro.

 

AS BOAS-VINDAS EM WHITHORN

  A costa sudoeste da Escócia era selvagem e arborizada, um território em que extensões de colinas eram interceptadas por empolgantes lagos e vales estreitos. "Uma terra de fadas", pensou Indy ao seguir a cavalo em direcção à aldeia, na luz esmorecida do começo da noite. Era difícil para ele compará-la com o deserto do sudoeste americano onde ele crescera. Aí, o que prevalecia era um a sensação de imensidade. Aqui, a escala era menor, mas mais diversa. Era como se a natureza tivesse perfeita consciência do pouco espaço disponível, pelo que tudo tinha de ser compacto, dimensionado à escala.

  Tinham chegado tarde, de comboio, na noite passada, e, nessa manhã, iniciado as preparações para a escavação. Encontraram-se com o presidente da câmara da aldeia, um amigo de longa data de Joanna, e Indy informara-o dos seus planos. Mais tarde,  encontraram dois carpinteiros que trabalharam com Joanna na última escavação que esta efectuou na gruta, e tratou de tudo o necessário para que eles começassem a trabalhar no dia seguinte.

  Só a meio da tarde conseguiram partir para a gruta. A entrada para a Caverna de Ninian tinha apenas alguns centímetros, mas, uns seis metros mais adiante abria-se numa larga caverna. Enquanto Deirdre regressara à aldeia para reunir certos apetrechos de que iriam necessitar, ele deitou imediatamente mãos ao trabalho, tirando medidas á caverna e estabelecendo planos para a grelha que iriam construir.

  Nos dias que se seguiram ao convite de Joanna para participar na escavação, lera o máximo possível sobre Candida Casa e a Caverna de Ninian. Um relatório, efectuado em 1914 pela Comissão Real para Monumentos Antigos da Escócia,descrevia pequenos fragmentos de pedra esculpidos à mão e pedaços de cruzes cristãs desenterradosjunto da gruta. Joanna Campbell era descrita como a arqueóloga responsável pela escavação. Não havia referências no relatório ao esplumoir de Merlin nem ao pergaminho dourado, e Indy suspeitou que o trabalho fora efectuado antes de ela saber sobre a carta ou antes de ela decidir que o pergaminho se encontrava na gruta.

  Desmontou no estábulo e caminhou para a singular pensão onde estavam hospedados. Era um edifício de pedra de três andares, do século dezoito, que fora remodelado para permitir a instalação da electricidade e canalizações modernas.

Atravessou a enorme sala de jantar e subiu as escadas para o segundo andar, onde ficava o seu quarto. Aquele quarto era especial, dissera a dona da pensão, porque era o único com banheira no quarto. Indy ofereceu-o a Deirdre, mas ela preferira o quarto do lado, que era de canto e maior. Fechou a porta e acendeu a luz. Ouviu de imediato um bater na parede vindo do quarto adjacente. Sorriu, aproximou-se da parede e repetiu o mesmo padrão de sons. Deirdre preparava-se sem dúvida para o jantar, e estava na hora de ele fazer o mesmo.

  Ao lavar e trocar de roupa, Jones desejou que ele e Deirdre jantassem a sós naquela noite. O clima existente entre os dois não fora o melhor e desejava conversar com ela, romper o abismo que se abrira. Embora estivesse ansioso por passar algum tempo sozinho com ela, sentia-se perseguido pelas palavras de despedida de Joanna, razão por que mantivera, propositadamente, as distâncias. O seu lugar na universidade estava agora virtualmente seguro, mas sabia que Joanna retiraria a oferta se ele atravessasse uma dada fronteira invisível em relação à filha. Agora, contudo, queria tornar claro a Deirdre que o seu procedimento no comboio não tivera nada a ver com os seus verdadeiros sentimentos para com ela.

Não sabia exactamente como lhe iria explicar isso, mas ia fazê-lo.

  O jantar dessa noite era da responsabilidade da aldeia. Ia ser efectuado em honra deles no bar local, e muitos dos velhos amigos de Deirdre estariam presentes. Indy endireitou a gravata no espelho, deixou o quarto e bateu na porta ao lado.

Tinha de aproveitar bem o tempo em que estava com ela.

  - É você, Indy? - perguntou Deirdre e depois abriu a porta alguns centímetros. Espreitou, mas não abriu mais a porta. -Saio já. Estou quase pronta.

  A porta fechou-se-Lhe na cara. Indy não se moveu por alguns segundos; parte dele tinha esperanças de que ela a reabrisse e o convidasse a entrar. Quando tal não aconteceu, retorceu e encostou-se à parede do corredor mal iluminado. Que bom. Agora, quem estava a ser reservado era ela. As coisas corriam mesmo bem. Como diabo iam eles trabalhar juntos na caverna?

  Por fim, a porta abriu-se e caminharam pelo corredor. Ela vestia uma saia de xadrez e uma blusa branca aos folhos, e o cabelo estava apanhado, com algumas madeixas caindo-lhe sobre os ombros.

  - Está com um aspecto... muito escocês, esta noite - disse Indy quando chegaram às escadas.

  - Você também não está nada mal, professor Jones.

  - Eu? - Indy possuía dois casacos de fato, um em tweed, o qual usava em quase todas as aulas, e o casaco azul de lã que vestia agora com um a camisa branca e gravata azul. Viu-a olhar para os seus pés ao chegarem às escadas. Calçara as botas, o único calçado que trouxera.

  - Esqueci-me de trazer os sapatos.

  "Os sapatos onde encontrou escorpiões", pensou.

  - Não se preocupe. Está em Whithorn, não em Londres. Ninguém vai reparar e, se repararem, pouco se importam. - Riu-se, e aquele som fê-lo desejar ainda mais derrubar a barreira que os separava. - Na verdade, são até capazes de aprovar -acrescentou Deirdre.

  - Fico satisfeito por saber isso.

  Enquanto caminhavam pela rua, Indy deu o seu melhor para conduzir a conversa para a relação que existia entre os dois, ou para a que não existia.

  - Já alguma vez viajou sozinha? - começou.

  - Pensava que não estava sozinha.

  - Quero dizer, sem a sua mãe.

  - Bom, se põe as coisas nesses termos, estou habituada a viajar sozinha e a passar longos períodos de tempo afastada de Joanna. É uma boa mãe, mas vive muito ocupada e em constantes viagens, assistindo a conferências e reuniões, fazendo escavações. - Encolheu os ombros.

- A vida de um arqueólogo.

  - Acho que me tenho revelado um pouco distante desde que partimos de Londres.

  - Acha? - Afastou o olhar. - Não reparei, para ser sincera.

  Indy tossiu.

  - A sua mãe disse-me para me acautelar consigo.

  Deirdre riu-se.

  - Disse? Porquê, sou perigosa?

  - Não, penso que ela acredita que eu sou...

  - Não admira que você tenha agido como se eu lhe fosse morder.

  Continuaram a andar.

  - Compreende a minha situação, não compreende? - perguntou Indy.

  - Tenha calma. Penso que nos podemos dar muito bem.

  Ter calma, claro. Como poderia ele ter calma em redor dela?

 

  No pub, o cheiro a comida e alegre conversação saudou-os. Na terra dele, pensou, o bar da cidade seria um local pouco adequado para um jantar em honra de alguém, sobretudo de uma jovem. Mas, aqui, os pubs eram mais voltados para a família do que os americanos.

 O local estava repleto de aldeãos, e um breve olhar em volta indicou-lhe que representavam pelo menos três gerações de habitantes de Whithorn.

  - Ali está ela - disse a voz de um homem. - Ali está a moça,Deirdre.

  Uma mulher do outro lado da sala alvitrou:

  - E olhem para o homem dela.

  Todos ficaram em silêncio, observando-os.

  - Quanto a si, acertaram - murmurou Indy -, mas quanto a mim não sei.

  Depois, o presidente da câmara, um homem de bochechas rosadas e entradas no cabelo, ergueu-se e fez-Lhes sinal para que se unissem a ele numa grande mesa no centro do pub. Vestia um kilt que incluía uma bolsa de couro à cintura. Sentada junto do presidente da câmara estava uma mulher matronal que ele apresentou como sua esposa, Marlis, e o padre Philip Byrne, um sacerdote idoso de cabelos alvos que usava uma batina preta. Igualmente à mesa encontravam-se diversas jovens que Deirdre apresentou como velhas amigas.

Eram todas mais ou menos da idade dela e vestiam trajes semelhantes.

  Apesar das explicações de Deirdre sobre quem Indy era, os olhares e sorrisos dos outros sugeriam que eles pensavam de maneira diferente, que sabiam que os dois eram namorados. As sobrancelhas do padre ergueram-se quando olhou para eles, como se tentasse decidir se estariam a cometer adultério. Indy imaginou-o puxando Joanna à parte e dizendo-lhe que esta teria de fazer alguma coisa em relação ao libido do jovem arqueólogo.

  Aproximou-se um empregado que serviu Indy e Deirdre de uma marca local de Scotch. Indy deu um trago demasiado grande e sentiu-o queimar durante todo o percurso até ao estômago. Tossiu, colocando uma mão à frente da boca.

- Um bom lote, no lhe parece, professor Jones? - disse o presidente da câmara, erguendo o copo.

 - Óptimo. - Apetecia-lhe abanar a boca.

 - Ah, é pena a sua mãe não poder estar aqui - disse o padre Byrne para Deirdre.  - Ela estará cá dentro de dias, padre, e pode ter a certeza que o irá visitar.

  As espessas sobrancelhas brancas do sacerdote vincaram-se, e a Indy pareceu-lhe detectar uma expressão de preocupação no rosto dele, como se a ausência de Joanna, ou talvez a sua próxima chegada, o afectasse de algum modo. Interrogou-se sobre o que o sacerdote saberia sobre o pergaminho dourado, considerando que as cartas do monge tinham vindo dos arquivos da sua igreja. Estava prestes a fazer a pergunta, quando Byrne se lançou numa história sobre o passado de Deirdre.

  - Aos doze anos, ela organizou um grupo de dança constituído por raparigas da paróquia e, depois de terem actuado num casamento, um coreógrafo de dança vindo de Edimburgo, que fazia parte dos convidados, convidara o grupo a actuar naquela cidade.

  -As raparigas estavam todas excitadas; só depois, souberam que iriam actuar para o rei Jorge. Pobre Deirdre, estava tão nervosa com a aproximação do dia que não conseguiu comer.

Pensei que ela fosse desmaiar no palco. Mas, é claro que tudo correu muito bem, e alguém ouviu o rei dizer que ficara bastante impressionado com as garotas.

  Deirdre, que estivera a conversar com uma das raparigas, escutou o final da história. Acenou uma mão.

  - Oh, fomos apenas um dos muitos grupos que actuaram perante o rei.

  Byrne fez sinal com a cabeça na direcção das outras mulheres sentadas à mesa.

  - Todas elas fizeram parte do grupo original.

  Quando o jantar foi finalmente servido, Indy deu consigo comendo um prato de órgãos de carneiro, servido no interior do revestimento do estômago do mesmo animal.

  - Que tal lhe parece? - inquiriu Byrne, apontando para o prato de Indy.

 

  - Bom, muito bom. - Não lhe agradava mentir a um padre, mas sentia que não seria correcto afirmar que a ideia de servir miúdos de carneiro dentro de um estômago não o cativava mesmo nada. Contudo, comeu. Com os diabos, já comera pior e, após algumas garfadas, decidiu que afinal não era assim tão mau.

  - Quais são os seus planos para a escavação, professor Jones? - perguntou Byrne.

 - Bom, vamos trabalhar no interior da gruta. Andamos à procura de um pergaminho dourado, aquele a que era feita referência na carta do monge que foi encontrada...

  - Sim, eu sei. Encontrei a carta nos arquivos.

  - Oh, nesse caso, talvez me possa contar mais sobre isso, -disse Indy.

  Byrne encolheu os ombros.

  - Não há muito para dizer. Por que acha que o pergaminho está na caverna?

  - Não sei se está. Mas a Dra. Campbell parece convencida que o encontramos lá. Tem lógica ter sido escondido naquele lugar. É tanto a caverna de Merlin quanto de Ninian. Certo?

  A expressão de Byrne alterou-se, as feições assumindo uma expressão severa de um homem que passou toda uma vida suportando o peso da sua posição de guardião da vida religiosa dos seus fiéis.

  - É a Caverna de São Ninian - afirmou com firmeza. - Aqueles que lhe chamam Caverna de Merlin são pessoas que nem interessa conhecer.

  - Oh, por que não?

  Byrne parecia perturbado com o tema da conversa e apressou-se a mudar de assunto.

  - Um dia destes voltaremos a falar nisso.

  Indy comeu mais um pouco e reflectiu sobre a renitência de Byrne.

  - Sabe por que razão o padre Mathers nunca chegou a enviar a carta ao Vaticano?

  - Como já disse, um dia destes voltaremos a falar nisso.

  Nesse instante, o presidente da câmara levantou-se, salvando-os do silêncio desagradável. Expressou um cumprimento típico a Deirdre e à mãe, à contribuição delas em prol da comunidade, e como a falta delas era sentida. Apresentou depois Indy a todos os presentes e ofereceu-Lhe um kilt. O presidente da câmara levantou o presente no ar e rodou-o lentamente, um sorriso largo no rosto. Indy ouviu risos sufocados vindos das mesas próximas, e viu cabeças aproximando-se e bocas tapadas. Riu-se também, não sabendo bem do quê.

  - Este kilt professor Jones, é uma oferenda do povo de Whithorn; acontece que é também o padrão de xadrez do clã Campbell - explicou o presidente da câmara.

  Indy aceitou o kilt.

  - Muito obrigado. Não sei bem o que está implícito com o padrão, mas faço uma idéia. - Todos se riram de novo e olhou para Deirdre. Sorria, mas o rosto estava vermelho de embaraço.

- É bastante bonito - acrescentou. - No início, não estava bem seguro se seria ao meu estilo mas, quanto mais olho para ele,mais me agrada.

  - É isso o que gostamos de vestir - disse o presidente da câmara. - Não se importa de o experimentar?

  Indy sorriu.

  - Está a brincar.

  - Não tenha vergonha - afirmou um homem de barbas, na mesa próxima. Levantou-se e Indy avistou o kilt dele. - Venha daí, rapaz, acompanho-o à sala das traseiras e poderá trocar aí de roupa.

 Indy olhou para Deirdre, e viu que esta o encorajava.

Encolheu os ombros e seguiu o homem. Depois de se mudar, mirou-se no espelho. Levantou o kilt, descobrindo as coxas peludas. Abanou a cabeça em descrença.

  - Não acredito que estou a fazer isto.

  Quando regressou à sala, todos levantaram a cabeça. Para sua surpresa, Deirdre ergueu-se da cadeira, aproximou-se dele, e deu-lhe o braço. Os presentes soltaram vivas.

 - Agora estamos vestidos como gêmeos - murmurou ele.

  Deirdre juntou-se mais a ele e murmurou-lhe ao ouvido.

  - Agora, parece um verdadeiro homem, professor Jones.

  - Fico satisfeito por saber isso. Nunca teria imaginado -disse ao sentarem-se. - E trate-me apenas por Indy, está bem?

  - Indy - disse Deirdre, como que experimentando o nome.

  Subitamente, o pub encheu-se de som quando uma banda de tocadores de gaitas de fole marcharam pela porta dentro. Indy reconheceu dois deles como os irmãos Carl e Richard, que contrataram para trabalhar na gruta.

  - Obrigada por participar nisto - disse Deirdre.

  Os seus olhos encontraram-se e Indy sentiu que o fosso que existira entre eles fora ultrapassado. Nesse momento, diversas jovens com saias de xadrez juntaram-se à banda e iniciaram uma dança tradicional escocesa.

Indy tocou nas costas da mão de Deirdre. Fez sinal para as dançarinas.

  - Era isto o que vocês costumavam fazer?

  - O que quer dizer "costumavam fazer"? - Deu praticamente um salto da cadeira e gesticulou para as amigas. Uniram-se às moças mais novas. Observou Deirdre, de mãos nas ancas,levantar um joelho e dançar ao som inebriante das gaitas de fole.

  Indy não conseguia tirar os olhos dela. Sentia-se tão inchado quanto um garoto com a sua primeira namorada. Talvez devido ao Scotch que bebera, aos sons contagiantes da música,à beleza de Deirdre. Tudo junto.

 

A CAVERNA DE MERLIN

  - Chá, professor Jones?

  Indy olhou para Lily, a dona da pensão, e anuiu. Gostaria mais de tomar café ao pequeno-almoço, mas sabia que não havia essa opção. Era como a restante refeição, pão torrado de um lado e ovos estrelados, mal passados por cima e queimados por baixo. Ou os aceitava ou iniciava uma discussão sobre como cozinhar, o que, às sete da manhã, era uma idéia pior do que comer a comida tal como era apresentada.

  Observou a antiquada mulher de meia-idade, que usava sempre um chambre e rolos de cabelo, servir-lhe meia chávena de chá, que completou depois com leite, e colocar-lhe uma taça com cubos de açúcar amarelo na frente.

  - Obrigado. - Pegou num cubo, mas voltou a colocá-lo na taça quando a mulher se afastou. Quando realmente bebia chá, não era com leite nem açúcar, mas uma coisa que aprendera nas suas viagens é que tinha de se ajustar à comida local e aos costumes e não tentar mudá-los para as suas necessidades particulares. Tornava tudo mais fácil e, hoje, o primeiro dia de escavação, queria que tudo corresse sobre rodas.

  Alguns minutos depois, Deirdre desceu as escadas.

  - Bom dia, Indy.

  Vestia umas calças castanhas e uma camisa larga de xadrez.

  O cabelo ruivo estava preso numa trança e coberto com um lenço, e um par de luvas projectava-se nas traseiras das calças.

  - Bom dia. Toma o pequeno-almoço?

  Ela abanou a cabeça.

  - Já cá estive em baixo a tomar o meu chá.

  Indy afastou a cadeira da mesa.

  - Bom, parece que está pronta para sair por aí fora e encontrar ouro - disse, com um sorriso.

  - Acredita realmente que o pergaminho dourado está na caverna? Sabe que o monge o encontrou nas ruínas do velho mosteiro.

  - Para mim, podia tê-lo ocultado em qualquer lugar, mas a sua mãe parece confiante que o encontraremos na gruta.

  A expressão de Deirdre tornou-se pensativa. Os seus olhos eram suaves lagos de violeta que enfraqueciam os joelhos de Indy.

  - Mas Joanna tem razão. Se o pergaminho está em Whithorn, a gruta é o lugar mais lógico.  - Vale a pena procurar.

Encontro-me consigo na entrada dentro de dez minutos. . Ela anuiu.

  - Lá estarei.

  De volta ao quarto, Indy vestiu o casaco de cabedal e colocou o chapéu. Preparava-se para sair quando se lembrou de algo. Abriu a mochila e tirou um chicote enrolado. Passou as mãos sobre ele.

  Talvez fosse patético levá-lo consigo, mas prometera a si mesmo há dois anos na Grécia que o traria sempre consigo nas escavações.

  Prendeu-o ao cinto. Também, caramba. Se não servisse para mais nada, ao menos seria um amuleto, uma superstição que concedia a si próprio.

  Deirdre aguardava na estrada em frente da casa, segurando as rédeas de dois cavalos. Não o viu, e Indy observou-a por momentos da entrada. Afagava o focinho de um dos cavalos e falava suave mente com ele. Podia desprezar o facto de ela ainda não ter explicado claramente a situação com o antigo namorado. Era compreensível. Tudo nela era certo. Era atraente e inteligente, e tinham inclusive interesses semelhantes. Em todas as mulheres que conhecera em Paris nos últimos dois anos faltava pelo menos um desses atributos.

 Indy saiu para a estrada e os seus olhos foram arrastados para o céu. Estava uma manhã cinzenta e ventosa e as nuvens eram tão espessas que, literalmente, o pressionavam. Talvez fosse o contraste com os céus limpos do dia anterior e o sol radioso que lhe transmitia uma sensação de inquietude. Talvez fosse o seu interesse crescente por Deirdre, misturado com a sua preocupação com o que aconteceria se os seus desejos fossem realizados.

  - Parece que vai chover - brincou ele.

  Deirdre ergueu os olhos, como que reparando no céu carregado pela primeira vez.

  - A chuva aqui não é um acontecimento; faz parte do dia-a-dia.

  - Cresci num deserto onde era algo insólito - respondeu ele.

  Ao montar o cavalo, a boca de Deirdre desenhou-se naquele sorriso fácil que parecia fazer tanto parte dela quanto o sotaque escocês.

  - Estou ansiosa por encontrar algo insólito, e espero que seja em breve. - Com estas palavras, bateu no lombo do animal com os pés e partiu a galope. Indy montou rapidamente o seu e seguiu atrás dela, os olhos grudados naquela figura pequena.

  Passaram por agregados de faias imensas e por campos de malmequeres e urze, um autêntico deslumbre para a vista. O percurso de três milhas de estrada desde a aldeia à caverna era histórico por direito próprio. Era conhecido como o caminho do peregrino, porque os cristãos, incluindo os primeiros reis escoceses, visitavam a gruta depois de prestarem culto na capela de São Ninian, em Whithorn. Indy lera num manuscrito francês que a estrada era também conhecida como uma Krota real percorrida pelo rei Artur, que visitara a gruta depois da morte de Merlin. Mas os escritores que passaram a escrito as lendas de Artur e Merlin não estavam de forma alguma de acordo que a gruta constituisse o local da morte de Merlin, e nenhum deles lhe chamava o esplumoir.

  Não abrandaram até alcançarem a Ilha de Whithorn, que não era propriamente uma ilha mas uma península. Seguiram por uma trilha até chegarem à base de um rochedo escarpado.

Desmontaram e prenderam os cavalos a um ramo de árvore.

  - Você monta bem - disse-lhe ele.

  - Obrigada. Um dia destes mostro-lhe os meus troféus eqüestres.

  "Outra surpresa", pensou Indy, ao caminharem para junto dos dois carpinteiros, Carl e Richard, ocupados a descarregar madeira.

  Os dois homens chegaram antes deles com uma carroça carregada de equipamentos e materiais. Tinham de construir uma bancada e armários para armazenar apetrechos. Dado que a gruta ficava distante e era raramente visitada, Indy não considerou a possibilidade de roubo. No entanto, Joanna insistira não só para que tivessem fechaduras nos armários como para que contratassem alguém para guardar as ruínas durante a noite. Até ali, Indy não tivera sorte em contratar uma pessoa para esta última tarefa.

  - O equipamento já está na caverna, à vossa espera - disse Richard, enquanto ele e o irmão levantavam diversos dois-por-quatros para cima de um carrinho de transporte. - E instalamos os archotes.

  - Óptimo. Parece que a dra. Campbell vos treinou bem.

  - Trabalhamos numa meia dúzia de escavações com a dra.Campbell por toda a Escócia. Sabe, nós fazemos parte da Liga Escocesa de Arqueologia Amadora.

 - Fico satisfeito por saber - afirmou Indy.

  Subiram a trilha ventosa que conduzia à gruta, localizada bem alto no rochedo escarpado. Quando alcançaram a entrada da caverna, Indy parou e olhou para o mar. Observou uma gaivota vagueando pelo céu, transportada pelo vento. Ondas de crista espumosa corriam pela superfície, o único contraste com a água negra e infatigável e o céu solene. Levou a mão ao chapéu quando o vento quase o arrancou da sua cabeça.

  - Ainda bem que estamos no Verão - disse. - Nem quero imaginar como isto é no Inverno.

  - Na verdade, no interior da gruta as alterações não são significativas. A temperatura permanece por volta dos dezoito graus durante todo o ano.

  - É suportável. - Afastou-se da berma do rochedo. – Pelo menos para o monge que aqui esteve.

  - E para Merlin - acrescentou Deirdre.

  - E para Merlin - concordou Indy com um riso. - Mas talvez a temperatura não fosse importante para ele.

  Entraram na gruta.

  - A sua mãe fez algum trabalho no interior da caverna nas primeiras escavações que aqui fez?

  - Muito pouco. - À luz dos archotes, a pele dela era de um laranja estranho. Quando voltou a cabeça de lado e o brilho desapareceu, caíram-Lhe manchas sombrias sobre o rosto. - Fez algumas perfurações de amostragem, mas isso foi antes do padre Byrne lhe mostrar a carta.

  Indy sabia que os exteriores de cavernas eram os locais predilectos dos arqueólogos, sobretudo lugares com vestígios da presença do homem primitivo.

  Era onde os resíduos da vida quotidiana - cerâmica partida,ossos de animais, pedaços de ferramentas - se encontravam depositados. Neste caso, era onde os restos de cruzes de pedra tinham sido achados. Não era, contudo, um local provável para encontrar um pergaminho de ouro, ou qualquer coisa intencionalmente oculta.

  - Por que razão lhe mostrou Byrne a carta? Tudo o que está relacionado com Merlin não parece ser do agrado dele.

  Deirdre riu-se.

  - Também Joanna se interrogou sobre isso. Na opinião dela,ele queria saber se a carta deveria ser levada a sério. Não sabia o que fazer com ela. Contudo, não creio que estivesse à espera que a minha mãe começasse a procurar o pergaminho.

  - O que diz ele sobre isso agora?

  - Oh, nem quer falar no assunto. Joanna acredita que ele é mesmo capaz de ter destruído a carta, o que seria uma pena.

  - Se é verdade, seria realmente uma pena. Fiquei com a sensação de que ele não estava muito radiante aqui com o nosso trabalho, por aquilo que disse ao jantar.

  - É uma pessoa estranha, em certos sentidos. Tanto quanto sei, preocupa-se muito com os druidas. Porquê, não sei.

  "Era então isso", pensou Indy. Era a isso que Byrne se referira com o comentário sobre aqueles que lhe chamavam a caverna de Merlin. O padre preocupava-se com os pagãos.

  - Sabe, muitos dos habitantes desta terra nem sequer aqui entram - disse Deirdre. - Dizem que aconteceram aqui coisas estranhas, e que isso Lhes trará má sorte.

  - E Carl e Richard? Não parecem preocupados com isso.

  - Eles não são de Whithorn. Só cá vivem há alguns anos.

  - Bom, se encontrarmos o pergaminho, talvez as pessoas percam os receios em relação a este local. Vamos trabalhar.

  Passaram o resto da manhã posicionando marcadores e esticando cordas entre os marcadores para criar uma grelha que lhes serviria de base para definir as áreas de escavação. Por recomendação de Joanna, iriam concentrar-se na câmara dos fundos, que tinha um tecto com cerca de cinco metros e uma extensão de nove metros no seu ponto mais largo,estreitando-se para dois metros na entrada.

  A tarde iniciara-se já quando prenderam corda em redor das últimas cavilhas, posicionadas no canto mais profundo da caverna. Dali, a entrada não passava de uma indistinta abertura de luz. Por cima da sua cabeça, ardia uma tocha num suporte na parede, iluminando o chão da gruta.

  - Pronto. - Indy levantou-se, apreciando o trabalho que tinham executado.

  - Está na altura para um intervalo, não acha? - Deirdre aproximou-se dele.

  Indy pareceu detectar algo no olho dela que não tinha nada a ver com a gruta, com arqueologia ou com Merlin. As luvas de Indy foram lançadas para o chão da caverna enquanto Deirdre tirava o lenço. Abanou a cabeça, e o cabelo caiu solto.

Parecia estonteante à luz do archote. Indy estendeu a mão e puxou para trás uma madeixa que pendia sobre o rosto dela.

  A caverna era como um autêntico casulo. Enclausurava-os do resto do mundo, e todas as considerações sobre propriedade caíram por terra. Não eram necessárias palavras; o consentimento era mútuo. As mãos dele rodearam-lhe a cintura esbelta. Deirdre ergueu a cabeça, os lábios entreabertos. Indy inclinou-se para a frente; os seus lábios roçaram os dela.

  Então, Deirdre afastou-se.

  - E Richard e Carl?

  Ele sorriu.

- Saíram para almoçar, há quinze minutos.

  Os dedos dela traçaram a sobrancelha, a maçã do rosto e queixo de Indy. Sentiram-lhe os ombros largos, o peito.

  - Indy, tenho desejado que isto acontecesse. Não sabia se o mesmo se passava consigo, pelo menos até ontem à noite no pub.

  Ele percorreu levemente as mãos pelas partes laterais do corpo dela, os polegares acariciando com leveza o inchaço dos pequenos seios.

  - O seu coração martela - murmurou Indy.

 Deirdre introduziu a língua na boca dele. Parecia sugar-lhe o ar dos pulmões. Os dedos de Indy mergulharam nos cabelos dela e percorreram-lhe as costas. Puxou-a para si, sentindo as coxas pressionadas contra as dele. Uniram-se fortemente e, de súbito, o mundo explodiu; a terra estremeceu.

  Moveu-se; moveu-se, efectivamente.  Por instantes, o ruído e vibração fortes sob os seus pés pareceu-lhes natural, como fazendo parte deles, autocriados pela fúria e fome repentinas da paixão. Então, um abalo lançou-os ao chão e um som semelhante ao rebentar de mil trovões ensurdeceu-os. A gruta ficou invadida de poeira. Ouviu Deirdre tossir algures por perto.

  - O que aconteceu? - perguntou ela com dificuldade, aproximando-se a rastejar.

  Um tremor de terra, uma derrocada, uma explosão.

  - Não sei. Está bem?

  - Mordeu-me a língua.

  - Desculpe. Vamos sair daqui.

  Indy ajudou-a a pôr-se de pé. Tinham dado mais três ou quatro passos quando uma outra onda de choque sacudiu a gruta. Foram arremessados ao solo, e cobriram as cabeças para se protegerem da chuva de destroços.

  Deirdre tossiu.

  - Mal consigo respirar. O que se está a passar?

  Lentamente, Indy ergueu a cabeça; a resposta cheirou-lhe.

  - Pólvora. Alguém dinamitou a entrada.

 

AR IMPRÓPRIO

  A poeira acumulava-se na garganta de Indy à medida que este abria caminho por entre os destroços. Perdera as luvas e,passados quinze minutos, tinha as pontas dos dedos em sangue. Uma dor insistente e latejante nas têmporas reduzia-lhe as forças.

  Deirdre, com o rosto sujo de terra, trabalhava ao seu lado, afastando pedra após pedra.

  - A este ritmo, levaremos dias - disse Indy.

  - Os aldeãos virão em nosso auxílio. Não nos deixarão ficar aqui. - Afirmou estas palavras com tal convicção que Indy se sentiu a acreditar. Mas continuou a escavar, agarrando nas rochas e atirando-as para o lado.

  Deirdre preparava-se para levantar outra pedra quando se sentou e esfregou a cabeça de lado.

  - Sinto-me tonta. Dói-me a cabeça.

  - Talvez fosse melhor apagar o archote. Começo a preocupar-me com o ar.

  Deirdre franziu o sobrolho e olhou em redor.

  - Deve estar a entrar ar por algum lado.

  Indy cheirou o ar.

  - Cheira-me a qualquer coisa.

  - A quê? - Parecia frenética.

  - Fumos.

  - É por isso que estamos com dores de cabeça. Está a entrar gás. - Agarrou na tocha mais próxima e enterrou-a nos destroços, apagando a chama. Fez o mesmo à outra.

  - Deixe uma acesa - pediu Deirdre - senão não conseguiremos ver nada.

  - Bem pensado. - Pegou em Deirdre pelo braço e seguiram para o fundo da caverna. - Mantenha-se baixa e respire pausadamente. - Tinha a testa arenosa e húmida de transpiração, mas a dor de cabeça diminuiu um pouco ao avançarem para o recesso da caverna. Tropeçou numa das picaretas, parou e voltou-a na mão. Espetou o archote e de seguida bateu no solo com a picareta.

  - O que está a fazer?

  - Talvez o gás seja mais leve do que o ar. Se escavarmos dois buracos, poderemos sobreviver por mais tempo respirando o ar abaixo do nível do solo.

  A terra voou em todas as direcções quando martelou o chão. Mesmo que fosse mais leve do que o ar, sabia que não lhes restaria muito tempo até serem atingidos pelos efeitos do gás. Interrogou-se por onde andariam Richard e Carl. E se eles já tivessem regressado e deparado com a pessoa responsável pela explosão? Ninguém os viria procurar tão depressa. Possivelmente, só dentro de dias.

  Escavou um segundo buraco para Deirdre e depois deitou-se de barriga para baixo e enfiou o rosto no seu orifício. Deirdre fez o mesmo.

- Que maneira estúpida de morrer, Indy.

  - Eu sei. Por isso, vamos ver se não morremos.

  Retirou uma mão-cheia de terra do orifício, alargando-o.

Esfregou os dedos e aproximou a mão do archote.

  - O que é? - inquiriu Deirdre.

  - Cinza. Isto era uma fornalha.

- Indy, esta não é altura para arqueologia.

  Indy olhou para o tecto da caverna, que sabia erguer-se cerca de quatro metros acima da sua cabeça.

 - Não, mas é altura de encontrarmos uma saída.

  Uma fornalha no fundo de uma caverna significava a existência de uma chaminé. Levantou-se e pediu a Deirdre que segurasse no archote. No início, tudo o que conseguiram ver foi uma superfície irregular sem qualquer abertura. Apercebeu-se então que havia um recorte quase directamente por cima. A chaminé estava coberta, mas que espessura teria?

  Deirdre seguiu-lhe o olhar.

  - Uma chaminé?

  - Exacto.

  - Mas, como poderemos chegar lá acima?

  Indy pegou num malho e nalgumas estacas que tinham sobrado.

  - Trepamos.

  Tinha de agir com rapidez. Pregou estacas de meio em meio metro na parede e, segurando na tocha com uma mão, escalou rapidamente a parede. Agora, conseguia avistar melhor a chaminé. A abertura na base tinha cerca de um metro. Estreitava-se rapidamente e fechava. Talvez conseguisse enfiar-se pela abertura e fazer qualquer coisa a partir daí. O problema, contudo, era que a chaminé estava cerca de dois metros afastada da parede.

  Voltou a descer.

  - Por ali não dá.

  - Eu poderia ter-lhe dito isso. - Deirdre parecia agora ainda mais agitada, e Indy podia compreendê-la. Ela olhou na direcção da entrada da caverna.

  - Talvez pudéssemos desenterrar a madeira que os carpinteiros trouxeram para a gruta e construir uma escada.

  Indy abanou a cabeça.

  - É demasiado perigoso. Seríamos afectados pelo gás antes de alcançarmos o primeiro dois-por-quatro. Tenho uma idéia melhor.

  Ancorou o archote num dos suportes de parede, pegou nas restantes estacas e deslocou-se para a parede oposta onde pregara as outras. Espetou-as, rapidamente, na parede mais ou menos ao mesmo nível. Agarrou, então, numa nova bobina de corda e começou a desenrolá-la. Atou uma extremidade na estaca mais baixa e depois atravessou para a parede oposta. Havia corda suficiente pelo que, em vez de a cortar, passou para a estaca seguinte, envolveu-a e voltou a cruzar. Continuou a seguir para trás e para a frente, subindo as estacas ao avançar, até criar uma teia que chegava ao tecto.

  - Indy, temos de nos apressar. Cheira-me de novo a gás. Está a ficar mais forte.

  A cabeça de Indy doía-lhe outra vez.

  - Eu sei.

  Apanhou uma picareta do chão e colocou o cabo na boca. Com precaução, subiu para o fundo da escada improvisada. O seu peso fê-la esticar quase até ao solo, mas não rompeu. Ergueu o pé, escalando para o nível a seguir, e depois para o terceiro.

Mas o pé escorregou-lhe da corda e apanhou-a com o joelho. A corda que segurava com a mão esticou-se. Subitamente, uma das estacas saltou da parede e Indy foi cair por cima de Deirdre,derrubando-a para o chão.

  Tirou a picareta da boca. Uma das pontas rasgara-Lhe a camisa, arranhando-lhe o peito. Sentiu um fio de sangue escorrendo por cima do estômago. Rolou para o lado.

  - Está bem? - perguntou.

  - Estou. E você?

  - Não há problema - respondeu e voltou à tarefa interrompida. Detectou a estaca que se libertara e, desta vez, pregou-a até ao fundo na parede. Procedeu de igual forma com as outras em ambas as paredes, colocando-se de seguida por baixo da chaminé. - Desta vez, não se ponha mesmo por baixo de mim.

  Deirdre tossiu.

  - Por favor, apresse-se.

  Apesar da insistência dela, Indy levou o seu tempo, escalando cuidadosamente a teia de corda até a sua cabeça se encontrar ao nível da chaminé.

  - Raios. Esqueci-me da picareta.

  - Eu posso atirá-la - sugeriu Deirdre.

  Indy imaginou-se a esticar-se para apanhar a picareta e toda a teia a desmoronar-se. Ou então Deirdre a enterrá-la nas suas costas, pensou. Tinha outro plano.

  - Não, mantenha-a ao pé de si por agora.

  Foi subindo, voltou-se, e conseguiu comprimir as omoplatas contra um dos lados da chaminé. Conteve a respiração ao levantar lentamente a perna direita, e estendeu-a para o lado oposto. Se a corda rebentasse agora, sabia que a queda seria de seis metros e aterraria de costas. Os dedos tocaram na parede e depois o pé. Com um movimento rápido, içou a outra perna. Deslocou os ombros até as costas estarem direitas contra a parede.

  Aliviado e agora mais confiante, tocou no chicote, ainda preso ao cinto, e soltou-o.

  - Ate a picareta na extremidade - disse, deixando o chicote desenrolar-se.

  Enquanto esperava, levou a mão ao topo da chaminé e sentiu trás pedras do tamanho de bolas de basquetebol cobrindo o orifício.

  Terra, acumulada ao longo dos anos, enchia os espaços entre as pedras. Não ia ser fácil.

 Depois de puxar a picareta para cima, voltou a prender o chicote ao cinto e começou a fragmentar uma das pedras. A posição só lhe concedia um espaço de manobra de dois metros com a mão. Pedaços de terra caíam-lhe sobre o peito e rosto; a poeira criou-lhe lágrimas nos olhos.

  Depois de uma dezena de golpes, parou. As pedras continuavam firmes no lugar. Mesmo que soltasse uma das pedras, esta poderia cair mesmo em cima dele e derrubá-lo. Começava a sentir-se desesperado quando um monte de terra se libertou duma ranhura entre duas das pedras e um raio de luz se filtrou através de um orifício. A luz conferiu-lhe esperança e retomou com determinação o ataque às pedras. Quando parou para recuperar o fôlego, estava cheio de terra mas pouco progredira.

 

  - Indy, tenho uma idéia - disse-lhe Deirdre.

  - O que é?

  - Consegue prender mais algumas estacas aí dentro da chaminé?

  - Acho que sim. Porquê?

  - Se as meter ao lado das ancas, dar-lhe-ão um apoio. Depois poderá tratar das pedras com os pés.

  Pensou em diversas razões por que não resultaria. As estacas poderiam soltar-se. O ângulo poderia ser demasiado pequeno para lhe conceder a acção de alavanca de que necessitava. Levaria demasiado tempo. Mas os progressos até agora obtidos também eram nulos.

  - É capaz de resultar - concedeu.

  Desenrolou de novo o chicote, e Deirdre atou duas estacas e o malho na ponta. Seria proeza difícil martelar as estacas na mesma parede contra a qual estava encostado.

  Não conseguia ver o que fazia, e bateu nos dedos diversas vezes. Mas, por fim, após demasiados golpes, ambas estavam em posição. Testou a firmeza delas segurando nas estacas e deixando as pernas cair.

  Quando se sentiu seguro de que resistiram, caminhou para a parede oposta até se encontrar enrolado numa bola com os pés para cima. Os joelhos comprimiam-se contra o seu peito. Agora estava a postos. Atacou uma das pedras, martelando-a repetidamente com os calcanhares e solas das botas.Mantinha-se teimosamente no lugar. Deu uma série de golpes sucessivos contra a pedra. Choveu terra por cima dele. Tinha a boca seca e arenosa; os olhos aquosos.

  E a pedra nem cedeu um pouco.

  Parou para recuperar o fôlego.

  - Deirdre?

  Nenhuma resposta.

  Baixou as pernas e olhou para baixo. Não a conseguia ver.

  - Deirdre! - gritou desta vez.

  - Professor Jones? Onde está?

  Indy olhou em redor, confuso. Era a voz de um homem, não a de Deirdre. Estava abafada e não conseguia distinguir de onde provinha. Escutou-a de novo.

  Olhou para cima.

  - Estou aqui.

  - Onde?

  Tirou a picareta do cinto e bateu-a nas pedras.

  - Carl, encontro-me Aqui.

  Meu Deus, os carpinteiros.

  - Estou mesmo aqui - gritou de novo.

  Subitamente, caiu mais terra por cima dele. Uma das pedras deslocava-se. Empurrou-a com os pés e sentiu-a rolar do orifício.

  A luz jorrou na caverna, cegando-o. Deixou cair as pernas e olhou para baixo. Agora não conseguia ver nada.

  - Deirdre, consegue ouvir-me?

  Baixou-se, mantendo-se preso às duas estacas, de braços estendidos. O cheiro a gás era agora mais forte. Parecia que tinha um martelo na cabeça; sentia-se tonto. Avistou-a então estendida no solo. Por cima dele, o ar fresco penetrava através do buraco. Puxou-se para cima, respirou fundo, conteve a respiração e estendeu os braços de novo. Ficou suspenso por momentos a cerca de dois metros do solo, e soltou-se. Já não conseguia ver a teia de corda, e o pé direito ficou preso numa das cordas mais baixas. Aterrou violentamente de lado.

  Estremeceu, praguejou e depois rastejou em direcção a Deirdre.

  Virou-a para cima e inclinou-se junto da boca dela. A respiração era fraca. Ela não resistiria muito mais tempo, nem ele. Embora  estivesse a conter a respiração, cheirava o gás. Puxou de uma navalha e cortou rapidamente três das cordas, uniu-as e atou uma das extremidades sob os braços de Deirdre e segurou a outra ponta entre os dentes. Pensou deslocá-la directamente para baixo do orifício, mas mudou de opinião.

  Fitou com dificuldade a chaminé. Os seus olhos ajustavam-se à luz e avistou mãos retirando outra pedra. Desenrolou o chicote, moveu o pulso e envolveu por diversas vezes a ponta em redor de uma das estacas da chaminé. Libertou lentamente o ar dos pulmões e içou-se. Tentou servir-se do que restava da teia, mas os pés escorregaram.

  Encontrava-se a meio caminho entre o solo da caverna e a chaminé quando escutou algo a estalar. Olhou para cima mesmo a tempo de ver um a das pedras soltar-se, oscilando perigosamente por cima da sua cabeça. Um dos homens que segurava  na outra pedra deixou-a e deitou as mãos a esta.

Segurou-a por diversos segundos mas, naquele instante, ambas as pedras deslizaram, caindo, simultaneamente. Uma não atingiu por pouco o seu lado esquerdo e a outra raspou-lhe apenas o cotovelo direito.

  Contudo, não teve tempo para pensar na sorte que tivera. A estaca a que o chicote se encontrava preso começou a soltar-se da parede. Estava prestes a cair de costas quando um dos homens agarrou no chicote.

Os rostos dos dois carpinteiros surgiram por cima dele e puxaram o chicote até que um deles pegou no pulso de Indy. Momentos depois era içado através do orifício para o ar puro. Tirou as cordas da boca.

  - Puxem-na depressa. Gás.

  Tentou sentar-se e ajudá-los, mas caiu para trás para cima de um canteiro de urze. Exausto, bebeu grandes quantidades do melhor ar que jamais saboreara.

 A última coisa de que teve consciência foi de ver Deirdre deitada a alguns centímetros dele e os dois homens inclinados sobre ela.

 - É melhor levá-la já ao médico - disse um deles.

 - Não sei se escapará, Richard. Mal respira.

 

VISITANTES

Deirdre abriu os olhos, não sabendo bem o que a despertara.

Sentia um colchão, lençóis, uma almofada baixa, um cobertor de lã. Não sabia como chegara ali, ou há quanto tempo ali estava, ou sequer onde se encontrava.

  Bateram.

  - Quem é?

  - Eu, Deirdre.

  - Indy?

  - Quem?

  Aquela voz, aquela voz suave e melosa. Não era a de Indy. Um terror frio invadiu-a e sentou-se na cama quando a porta se abriu. Uma luz branca penetrou no quarto e surgiu uma figura no centro dela. Não conseguia ver com clareza, mas sabia que era Adrian. Podia cheirá-lo. Aquele aftershave caro que usava, a pele, o sorriso. Sim, até o sorriso dele transmitia um certo odor.

  - O que fazes aqui? - Tentou mostrar-se em perfeito controlo de si mesma, mas a voz traía-a. Estremecia. Tinha a certeza que ele reparara.

  - Ouvi o que aconteceu. - Encontrava-se agora junto da cama. Ostentava um sorriso largo, acentuando a cova no queixo. O cabelo ondulado mostrava-se perfeito como sempre. A sua aparência estava exactamente igual à que ela vira, recentemente, nos jornais. - Quis ter a certeza de que te encontravas bem.

  - Eu sei que foste tu o culpado. - Puxou os lençóis para si, desejando que ele fosse embora, mas tal não aconteceu. Ele sacudiu um grão invisível de poeira da lapela do fato elegante.

  - Eu não, querida.

  - Arranjas sempre alguém para levar a cabo os teus trabalhos sujos, não é?

  Ele riu-se.

  - Ah, Deirdre. Devias saber que se eu quisesse matar-te,já estarias morta.

  Aproximou-se mais. A presença dele gelava o quarto e Deirdre esfregou as mãos nos braços. Podia avistar a brilhantina no cabelo dele, mantendo as ondas no lugar, e de novo o brilho do seu sorriso. Provocava-lhe náuseas.

  - Já te disse que não quero nada contigo. Deixa-me em paz.

  - Mas isso já não é possível. Aracne sabe demasiado.

  - O quê?

  Ele riu-se então, um riso completo e gutural, e afastou-se da cama.

  - Deixa-me em paz! - gritou ela.

 

  Ele riu-se de novo e, subitamente, começou a desaparecer.

Deirdre conseguia ver através dele - o contorno da porta, a parede. O riso dele pareceu permanecer no ar enquanto ela se sentou, esfregando os olhos, beliscando-se no braço para ter a certeza de que estava efectivamente acordada. Estava, sim. Viu as paredes cor de pêssego, um retrato de uma família que lhe parecia vagamente familiar, uma pintura de um castelo, e outra de um Jesus benevolente, o coração em chamas no peito.

  Ergueu-se, apoiada nos cotovelos; sentia-se atordoada e fraca. Agarganta e pulmões ardiam-lhe. Viu a mala junto da cama, mas continuava sem saber onde se encontrava. Não era neste quarto que estava hospedada. Contudo, era-lhe familiar.

Espreitou por entre a abertura nas cortinas e avistou ao longe colinas de tom azulado. Soube de imediato que se tratava dos Machars, e reconheceu a vista. Estava no seu velho quarto. As paredes foram pintadas, e os quadros não eram dela, mas era o quarto da casa onde crescera.

  A porta abriu-se; Marlis, a esposa matronal do presidente da câmara, encontrava-se na entrada. Claro. A família do presidente da câmara comprara a casa depois de Deirdre e os pais terem mudado para Londres.

  - Deirdre, estás bem? - O rosto bolachudo e pálido de Marlis espreitou através da porta. - Ouvi-te gritar.

  Deirdre esforçou um sorriso.

 - Deve ter sido um pesadelo. - Adrian, pensou. Qualquer coisa relacionada com Adrian. - Há quanto tempo estou aqui?

  - Praticamente h? dois dias. Não te lembras? Já estiveste acordada umas duas vezes.

  Recordava-se vagamente de conversar com alguém: o médico, ou teria sido Adrian? Estava, verdadeiramente, confusa.

  - Estávamos tão preocupados contigo. Todos ficamos tão aliviados quando o médico disse que ias ficar bem. Queria ver-te assim que despertasses de novo.

  - Espere - disse Deirdre quando Marlis se preparava para fechar a porta. - Joanna, a minha mãe...

  - Mandamos um telegrama para Londres. Deve estar a chegar.

  Deirdre agradeceu-lhe, e voltou a instalar-se na cama quando a porta se fechou.

  Dormitou outra vez, e acordou com a chegada do médico. Era um homem tranqüilo, de meia-idade, que vivia na aldeia desde que Deirdre era criança. Auscultou-lhe o coração e examinou-Lhe os olhos e garganta. Tomou algumas notas num pequeno bloco de apontamentos preto, que tirou da maleta, e receitou-lhe mais descanso.

  - A queimadura dos pulmões desaparecerá gradualmente, à medida que o veneno for sendo eliminado do teu sistema.

  - Quanto tempo levará?

 O médico bateu com a caneta no bloco.

  - Oh, uns dois a sete dias. Depende. Tiveste muita sorte, Deirdre. A quantidade de gás que ingeriste não foi suficientemente forte para te matar. Se tivesses estado mais próxima da fonte ou se lá tivesses permanecido por mais tempo, a história poderia ter sido diferente.

  - Por que tenho dormido tanto?

  - Estavas a precisar de repouso. Dei-te um sedativo quando vi que estavas livre de perigo.

  - Penso que estou a ter problemas de memória. Lembro-me muito pouco do que aconteceu.

  - Não é de surpreender. Trata-se de uma condição temporária. Há de desaparecer quando o efeito da droga passar.

 Quando se preparava para partir, sorriu-lhe e contou-lhe que tinha uma visita, mas que só poderia ficar por alguns minutos e que ela não podia excitar-se.

 - Quem é? - perguntou Deirdre, com suspeita.

  - O professor Jones.

  - Obrigada, doutor. Peça-lhe que me dê alguns minutos. -

Quando o médico saiu, girou lentamente as pernas para a berma da cama e tirou uma escova da mala. A sensação que tinha era que nunca usara o corpo. Quando ouviu baterem à porta, tinha já escovado o cabelo e lavado os dentes. Encontrava-se sentada na cama quando Indy bateu.

  - Entre.

  - Como estou contente por a ver de olhos abertos - disse ele ao entrar no quarto. Revelava um ar, simultaneamente, preocupado e feliz.

  - Também estou contente por o ver. - As roupas de Indy estavam cheias de terra e o rosto sujo. Parecia que não trocara de roupa desde a derrocada. - Já lá voltou, não é verdade?

  - Tenho ajudado Richard e Carl a remover as pedras da entrada. - Olhou para a sua roupa. - Quando Marlis me disse que estava acordada, quis vir de imediato. Sempre que vinha saber de si estava a dormir.

  A sujidade acumulada na testa e faces de Indy fazia-o parecer-se com um rapazito.

  - Para mim está óptimo, Indy. Estou feliz só por estar aqui.

  - Nem sabe como tenho andado preocupado. - Sentou-se no canto da cama.

  A intensidade do olhar dele fê-la recordar-se dos últimos momentos que tiveram juntos antes da derrocada. Parecia agora um sonho que fora interrompido por um despertador. Pensou que ele deveria estar a pensar o mesmo. Lembrou-se então que Marlis e o médico lhe tinham dito como Indy a salvara.

 - Obrigada por me ter tirado dali. Contaram-me o que você fez.

- Deve também agradecer a Carl e Richard - replicou Indy. - Se não tivessem aparecido, nenhum de nós teria escapado.

 - Eles viram quem foi o responsável? - inquiriu ela.

  Indy abanou a cabeça.

  - Com alguma sorte, quando retirarmos todos os destroços alguma coisa há de provar que foi uma explosão.

  - Claro que foi uma explosão. O que está a dizer?

  - Até agora não há provas disso. O que se depreende até agora foi que o tecto desabou.

  Deirdre sentou-se para a frente.

  - Mas, e o gás?

  - Agora não há sinais dele.

 - Mas, Indy, tenho a certeza...

  Indy levantou uma mão para a acalmar.

  - Claro que havia gás. Ambos sabemos isso.

  Ela preparava-se para dizer que queria falar com a pessoa encarregada da investigação do acidente quando bateram à porta.

  - Deirdre, tem aqui outra visita.

  Marlis abriu a porta antes de Deirdre ter possibilidade de dizer alguma coisa. A esposa do presidente da câmara afastou-se para o lado e Joanna entrou a correr no quarto.

Atirou os braços em redor da filha.

  - Vim logo que soube. - Depois de abraçar Deirdre, sentou-se na cama. - Marlis disse que ias ficar bem. Que alívio.

  Voltou-se para Indy.

  - Afinal, o que aconteceu realmente? Quero saber tudo.

  Indy levantara-se quando Joanna entrou no quarto. Sentou-se na cadeira junto da cama e explicou, o melhor que conseguiu, omitindo apenas o que estavam a fazer quando a explosão os lançou ao solo.

  - Talvez fosse alguém tentando amedrontar-nos. Não sei. -

Passou uma mão pelo cabelo. - De que forma podem as nossas escavações naquela caverna colidir com os interesses de alguém?

Joanna olhou pela janela em direcção às colinas.

  • Há pessoas que podem considerar aquilo que estamos a fazer como uma ofensa - disse, obscuramente.

    Depois, após uma pausa, acrescentou:

      - Os velhos métodos não estão completamente esquecidos na Escócia.

      - Referes-te àqueles estúpidos druidas? - Deirdre franziu o sobrolho para a mãe.

      - Há aqui druidas? - perguntou Indy.

      - Sempre houve rumores sobre a existência deles por estas partes - afirmou Joanna sem grande relevo. - Contudo, e na minha opinião, só nos visitam de tempos a tempos.

      - Mas, se estão assim tão preocupados com a caverna, por que a fariam explodir? - inquiriu Indy.

      - Talvez estejam mais preocupados connosco. Em pôr-nos daqui para fora - disse Joanna. Levantou-se da cama. – Deveria ter-lhe pedido para não fazer comentários sobre o pergaminho. Tenho tentado manter essa questão o mais despercebida possível nos círculos acadêmicos até dispormos de mais dados, mas nunca pensei que esse procedimento fosse importante nestas paragens.

      - O que poderia levar as pessoas a considerar-nos uma ameaça? - perguntou Deirdre. - Não compreendo.

      - Os fanáticos vêem ameaças onde os outros não vêem - respondeu Joanna.

      - O que vamos fazer? - perguntou Deirdre.

      - Acho que deves regressar a Londres. Será mais seguro.

      "Típico", pensou Deirdre. Joanna estava sempre a tentar protegê-la.

      - E tu? O que vais fazer?

    - O professor Jones e eu retomaremos as escavações assim que os destroços forem retirados. Vou contratar guardas armados para vigiarem a gruta. Solicitarei a presença de alguns alunos meus, e daremos o nosso melhor durante umas duas semanas.

      - Vou ficar também, Joanna.

      - Deirdre, por favor. Não estás em condições de trabalhar, e quero que vás a um especialista em Londres.

      - Não farei nada disso. Cresci aqui. Este é o meu verdadeiro lar. E por que razão estaria mais segura em Londres?

      Deirdre olhou para Indy em busca de apoio, mas este desviou o rosto, como que para evitar intrometer-se entre as duas.

    - Não metas o professor Jones nisto, Deirdre. O assunto é entre mim e ti.

      - Se não se importam, vou-me lavar - disse Indy. Caminhou para a porta e depois voltou-se. - Sei que o assunto não me diz respeito, Joanna, mas penso que Deirdre estaria em maior segurança connosco do que partindo sozinha.

      - Vês, Joanna.

      Joanna comprimiu os lábios. Os seus ombros abateram-se levemente ao expirar.

      - Está bem. Podes ficar, mas, por favor, não andes por aí sozinha. Não sabes aquilo que teremos de enfrentar.

      - E tu, sabes?

      - Penso que tenho uma idéia.

     

 Algum tempo depois, quando Deirdre se encontrava de novo sozinha, Marlis trouxe-Lhe um tabuleiro e uma enorme tijela de sopa. Enquanto comia, veio-lhe à memória fragmentos da conversa que tivera em sonho com Adrian. Ele mencionara um nome, Aracne. Sentia-se intrigada. Não foram os druidas quem dinamitou a caverna. Fora Adrian. Mas, por que não dissera nada a Joanna?

  Pousou a colher na tijela. Não, Adrian não estava ali. Era um sonho. Por isso não    dissera nada. Não acontecera. Contudo, parecera tão real. Não se tratava de um cenário de sonho onde nada fazia sentido. Fora exactamente ali. Adrian entrara por aquela porta, ficara de pé junto da cama e conversara com ela.

Lembrou-se então que ele não tinha saído; limitara-se a desaparecer. Tinha de ser um sonho.   Ouviu baterem e ficou petrificada. Fitou a porta, desejando que quem quer que ali estivesse se fosse embora. Não queria saber quem era.

  Depois, a porta abriu-se ligeiramente e apareceu a cabeça de Marlis.

- Deirdre, estás acordada?

Ela esfregou as têmporas.

  - Sim, e já terminei a sopa. Obrigada, Marlis.

- O padre Byrne veio ver-te. Queres que lhe diga que estás demasiado cansada para o receberes?

  Deirdre pensou por alguns instantes.

  - Não, traga-o. - Voltou a deitar-se na cama, e Marlis ajudou-a com os cobertores.

  - Eu digo-lhe que não se deve demorar, que estás cansada -, afirmou e pegou no tabuleiro para o retirar.

  - Boa noite - disse Byrne ao entrar no quarto. - Espero não te vir incomodar.

  - Não, obrigada por ter vindo.

 

  O padre sentou-se na cadeira mais próxima da cama e perguntou-lhe como se sentia. Deirdre começou por dizer que se sentia melhor, mas, repentinamente, rompeu a chorar. Tal como uma criança num confessionário, contou ao sacerdote tudo sobre Adrian, como o conhecera, o facto de ter ignorado os conselhos da mãe, o ter sido seguida. Por fim, contou-lhe o sonho.

  Enquanto ela falava, Byrne enterrou o rosto nas mãos e baixou a cabeça. Deirdre achou estranho conversar com ele daquela maneira, mas era, provavelmente, aquela a postura que assumia quando escutava confissões.

  Quando terminou, alisou os lençóis com as mãos.

  - Lamento, padre. Mas realmente já não sei o que fazer.

  Ele levantou o rosto das mãos e pestanejou. Tinha os olhos vermelhos, talvez um atributo da idade, e não propriamente uma reacção emocional à história dela, pensou Deirdre.   A voz dele era suave.

 - Não, foi bom contares-me. Precisavas de deitar isso para fora.

  - Mas, o que vou fazer?

  Byrne reclinou-se na cadeira, de braços cruzados.

  - O que sentes em relação ao professor Jones?

  - Bem, eu...

  - A razão por que pergunto, moça, é porque parece que se te mantivesses afastada dele, era possível que esse Adrian te deixasse em paz.

- Não, não vou permitir que ele me faça isso. Indy é... eu amo-o, padre.

  Byrne ergueu uma mão.

  - Muito bem, moça, era isso o que eu queria ouvir. E o que sente o professor Jones por ti?

 - Penso que sente de igual forma.

  - Seria doido se não sentisse - replicou Byrne, e sorriu. - Na minha opinião, o melhor que tens a fazer é deixares Whithorn com o professor Jones e a tua mãe, o mais depressa possível.

  - Mas Joanna está tão empenhada na escavação. Não quererá ir embora.

  - Isso não quer dizer que tu e o professor Jones tenham de ficar. Tenho a certeza de que Joanna se preocupa com a tua segurança, e tomará a decisão mais acertada.

  - E Indy? Acha que Lhe devo contar sobre Adrian?

  - Bem, não podes ter a absoluta certeza de que foi Adrian o responsável pela derrocada e, por outro lado, não queres perder o homem que amas. No entanto...

  - Eu sei. Ele merece uma explicação.

  - Mas não te preocupes. As coisas hão de correr bem. Verás. Agora, descansa. Aqui estás em segurança.

  Viu o velho padre sair do quarto, coxeando. Desejou ter a fé dele.

 

ARACNE

  Indy ia abrindo caminho por entre os destroços, virando pedras, retirando à pazada montes de terra e rochas que lançava para um carrinho de mão. Dois dias tinham decorrido desde a explosão. O tecto junto da entrada da gruta cedera, e a caverna encontrava-se repleta de rochas e entulho, bloqueando a passagem para a câmara do fundo. Ele e Joanna discutiram a possibilidade de trabalhar naquela câmara, servindo-se do orifício no tecto como entrada, mas rapidamente decidiram que seria má ideia. A câmara estava cheia de destroços e entrava pouco ar fresco por cima.

  Joanna partira há uma hora, depois de terem conseguido desbloquear a entrada. Sentia-se ansiosa por recomeçar a escavação no dia seguinte, e Deirdre estava em condições de sejuntar a eles. Richard e Carl eram dedicados a Joanna e montaram acampamento no local, vigiando por turnos durante a noite. Naquele momento, os dois carpinteiros ocupavam-se a reunir o que restava da madeira e a localizar ferramentas subterradas. Indy, por seu lado, tentava descobrir qualquer outra coisa que estivesse ainda enterrada. Não havia sinal dos explosivos nem da fonte do gás.

  Reparou num monte de entulho a que não prestara atenção num dos lados da caverna. Afastou lixo e calhaus com a bota, e sentiu uma coisa sólida. Colocou-se de joelhos e esgravatou a terra em redor com as mãos enluvadas. Atirou depois uma mão-cheia de terra para o chão com desprezo.

  - Fantástico. Outra rocha.

  Indy deu um pontapé no chão. Tinha de estar ali algo que fornecesse uma pista para o que acontecera e, com alguma sorte, algo que ajudasse a identificar os malfeitores. Joanna continuava convencida de que as culpas deviam ser atribuídas a uns quaisquer protectores pagãos de Merlin, druidas que queriam evitar que os arqueólogos escavassem a gruta. Mas, no fundo da sua mente, havia recordações de aranhas e escorpiões.

E havia também a questão do antigo namorado de Deirdre. Talvez estivesse a atacar de novo. Indy não sabia o que pensar.

 

  - Indy - chamou Carl.

  Voltou-se e viu as mãos enluvadas de Carl esgravatarem no solo. Correu para onde o carpinteiro trabalhava, junto da berma interior da área danificada pela explosão. Avistou um cilindro verde parcialmente enterrado. Indy inclinou-se, cheirou, e torceu o nariz.

  - É isto mesmo. Encontrou, Carl.

  Indy ajoelhou-se e escavou cautelosamente em redor do cilindro. De seguida, os dois homens ergueram-no e retiraram-no do buraco. Pousaram-no sobre uma pilha de rochas.

Carl olhou para cima quando o irmão se aproximou.

- Estás a ver isto, Richard? Uma vasilha de cloro gasoso ou, pelo menos, o que resta dela.

  Indy inclinou-se e examinou-a de perto.

  - Como sabe, Carl?

  - É como aquelas que foram usadas na guerra.

  - Você e Deirdre podem agradecer a sorte ainda estarem vivos - afirmou Richard. - Deve ter sido colocada aqui, aberta, e depois detonada a carga para bloquear a entrada. Não se aperceberam, contudo, que a explosão tinha potência suficiente para subterrar também a vasilha.

  Carl pegou no cilindro.

  - Vamos levá-la ao chefe da polícia, professor. Estou certo que ficará interessado nisto. Talvez agora possamos ver alguma acção.

  - Na vossa opinião, de onde poderá ter vindo?

  Carl olhou para o irmão e depois para Indy.

  - Para mim, veio do velho paiol do exército. Fica a umas duas milhas da aldeia.

  - Quem tem acesso a ele?

  - Tanto quanto sei, só os soldados que aí estão destacados.

  Indy regressou a aldeia e, quando chegou à pensão, seguiu directamente para o quarto de Deirdre. Estava ansioso por lhe contar o que tinham descoberto. Mas decidiu tomar banho primeiro.

  Já no seu quarto, abriu a torneira da banheira e despiu a roupa. Ao enfiar-se na banheira, escutou ruídos vindos do quarto de Deirdre. O que estava ela a fazer? A mudar a mobília? Recostou-se na banheira e bateu duas vezes na parede.

Estranhou o facto de ela não retribuir o bater, mas não teve muito tempo para pensar no que isso poderia significar, pois, subitamente, a porta do seu quarto abriu-se com violência e dois homens entraram de roldão.

  Usavam capuzes negros de malha, com orifícios nos olhos, narizes e bocas. Indy olhou para eles e deu um salto, mas o homem mais próximo avançou, agarrou pelos ombros e enfiou-o de novo na banheira. A água transbordou pelos lados. Indy debateu-se para se libertar, mas o homem era mais forte. Os dedos dele pressionavam a maçã de Adão de Indy, empurrando-o cada vez mais  para a água. Indy posicionou o calcanhar da mão sob o queixo do indivíduo, impeliu-lhe a cabeça para trás e viu de relance uma cicatriz na garganta dele - depois, a água cobriu-lhe a cabeça. A imagem do rosto revestido com capuz pairava acima dele como um abutre gigante cujos braços lhe extraíam gradualmente a vida.

  O ar borbulhava dos seus lábios. Lutou, mas em vão. Os dedos do homem continuavam a forçar, a forçar. Começava a desfalecer. Viu-se em criança, sentado no regaço da mãe, de seguida assistindo ao funeral dela junto do pai, interrogando-se sobre o que era a morte. Agora tinha a certeza que a voltaria a ver. Ela aguardava-o.

  Estava prestes a perder a consciência quando ouviu um baque.

  O seu coração, pensou com pesar. O seu coração estava nos espasmos da morte. A pressão sobre a garganta diminuiu um pouco e aproveitou esse facto. Içou os pés para o ar; atingiram o homem no queixo, derrubando para trás. As mãos dele foram retiradas e Indy explodiu para fora da água, enchendo os pulmões de ar, indo cair em cima do assaltante.

  Mas estava tão fraco que não conseguiu resistir. O homem forçava-o de novo para debaixo de água.

  Ouviu o bater de novo. Alguém na porta. O seu grito de socorro foi inútil e abafado. Desesperado, lançou novo pontapé. Os seus pés tocaram no peito do homem e Indy empurrou com todas as forças que lhe restavam. O homem caiu para trás.

  Indy endireitou-se com dificuldade, e tinha já uma perna fora da banheira quando o encapuçado se lançou a ele outra vez, chocando contra a parede.   Indy estendeu a mão, pegou num quadro de natureza morta pendurado na parede e esmagou-o na cabeça do assaltante.

Naquele momento, a porta foi forçada e aberta e uma voz gritou:

- Eh, o que raio se passa aqui?

  Indy viu que era Jack Shannon mas, antes que o pudesse alertar, o outro encapuçado atacou-o por trás, enfiou o punho no ventre de Shannon e deu-lhe um pontapé de lado.

  - Vamos embora daqui ! -gritou para o companheiro, que tinha ainda o quadro enfiado na cabeça.

  O homem empurrou Indy de novo contra a parede e depois deixou-o. Indy escorregou para a banheira e aí permaneceu até recuperar o fôlego. Apoiando-se aos lados da banheira, elevou-se. Rastejou atordoado para junto do armário, onde Shannon se punha de pé, gemendo suavemente, uma mão pressionando a parte lateral do corpo.

  - Estás bem, Jack?

  - Pergunta-me para a semana.

  Indy levantou-se do chão, tirou o roupão de um cabide e vestiu-o e quase não chegava a tempo ao lavatório antes de vomitar. Quando se virou, Shannon conversava com Lily, que espreitava do corredor.

  - Vou chamar a dra. Campbell - disse e desapareceu.

 

  Shannon voltou-se da porta.

  - Andas com más companhias, Indy.

  - Parece que sim. - O quarto estava numa autêntica desordem. Gavetas tiradas da cômoda e arremessadas para o chão. O colchão meio deslocado da cama. Recordou-se subitamente do ruído que escutara no quarto de Deirdre. Saiu do quarto, sentindo-se ainda atordoado.

  Shannon foi atrás dele.

  - Onde vais?

  Abriu a porta do quarto de Deirdre e constatou que fora submetido ao mesmo tratamento selvagem que o seu.

  - De que raio andavam eles à procura? - inquiriu Shannon.

  Indy levantou uma ponta duma cômoda virada ao contrário, pondo a descoberto um monte de roupa.

  - Ouro, diria.

- Ouro?

- Sim. - Indy voltou-se. - A propósito, o que diabo fazes tu aqui?

  Antes que Shannon pudesse responder, o som de vozes no corredor interrompeu-o.

  - Indy?

  Deirdre apareceu na porta e, atrás dela, estava Joanna e Lily.

  Deirdre mirou em redor, de olhos esbugalhados, a boca aberta, como se a confusão de mobiliário e roupas a desorientasse. Deu uns passos vacilantes para o interior do quarto e Indy aproximou-se quando ela se atirou nos seus braços.

  Com o auxílio da dona da pensão, Shannon puxou o colchão de novo para a armação da cama, e Indy deitou Deirdre cuidadosamente sobre ela.

  - Estou bem - murmurou. - Estou bem. Só preciso de recuperar um pouco o fôlego.

  - Você viu quem fez isto? - perguntou Joanna.

  - Viu-os com certeza. Quase o liquidaram - disse Shannon.

  - Quem é você? - inquiriu Joanna com suspeita.

  - É um velho amigo meu, o meu colega de quarto - disse Indy.

  Olhou para Shannon.

  - Só me veio visitar, penso.

  - Afinal, o que aconteceu aqui?

  Indy contou-lhe o assalto e como a chegada de Shannon lhe salvara a vida.

  - Eram tipos corpulentos, com capuzes negros de malha sobre os rostos.

  Joanna voltou-se para Lily.

  - Viu-os?

  Lily abanou a cabeça.

  - Não vi ninguém entrar ou sair.

  - Desculpem-me por uns instantes - disse Joanna e saiu.

  Indy franziu o sobrolho e voltou-se para Lily.

  - Tem a certeza que não viu ninguém?

  - Bom, saí por alguns minutos e eles podem ter-se esgueirado para dentro da casa, mas não compreendo como podiam ter saído. Eu já estava lá em baixo quando este seu amigo chegou.

  Indy reflectiu por momentos.

  - Isso só pode significar uma coisa. Foram para um outro quarto.

  Saiu para o corredor e dirigiu-se ao quarto de Joanna. Esta estava à entrada quando chegou. Indy conseguiu dar uma vista de olhos ao interior antes de ela fechar a porta.

  - Fizeram o mesmo com o meu - disse Joanna. – Possivelmente saíram mesmo agora. A porta estava aberta, e não estava quando chegamos cá acima.

  - Falta alguma coisa?

  - Penso que nenhum de nós se terá de preocupar com isso. Não são ladrões vulgares. Andam à procura do pergaminho.

  - Um pergaminho? - disse Shannon. - Pensei que tinhas falado em ouro.

  - Esquece. Vamos lá ver em baixo. - Correram para o piso inferior e pesquisaram todo o andar. Tudo parecia em ordem e não havia ninguém por perto.

  - Vamos até ao pub tomar uma bebida, e conversar – sugeriu Shannon.

  Indy olhou para o cimo das escadas.

  - Deixa-me vestir e ver como está Deirdre. Volto já.

 

  - Diz-me então, o que estás tu a fazer aqui? – perguntou Indy ao caminharem pela rua, alguns minutos mais tarde.

  - Estava para te enviar uma carta, mas, quanto mais pensava no assunto, mais certeza tinha de que não a receberias a tempo. Parece que tinha razão.

  - E qual seria o conteúdo da carta?

Shannon deu-lhe um beliscão.

  - Primeiro, ia dizer-te que não há dúvidas que as aranhas e escorpiões estão relacionados.

  - Sim. De que forma?

  Shannon sorriu.

  - Ambos são aracnídeos. Têm oito patas.

  - E os seus nomes também começam por vogais. Mas não creio que tenhas viajado até Whithorn para me dares uma lição de biologia.

  - Não, propriamente. Esse nome não te diz nada, Indy?

  - Aracnídeos?

  - O perito em mitologia grega és tu. Então, Indy – incitou Shannon.

  Indy não teve de pensar muito.

  - Aracne. Desafiou A terra para uma disputa de tecelagem, e foi transformada numa aranha.

  - Certo.

  - Deixa-me adivinhar, Jack. Acreditas que Joanna é a mulher-aranha.

  - Então já sabes.

  - Tudo o que sei é que observei por escassos instantes o quarto de Joanna antes de ela me fechar a porta na cara. O lugar estava completamente voltado do avesso e, escrita no espelho por cima do toucador, estava uma palavra em grandes letras pretas e araneiformes.

  - Aracne?

 - Acertaste.

 - Isto está a ficar cada vez mais interessante, e ainda agora acabei de chegar - disse Shannon ao alcançarem o pub.

  O estabelecimento estava cheio de pessoas e barulhento, mas conseguiram encontrar uma mesa desocupada num dos cantos.

Pediram cerveja e pratos com peixe e batatas fritas.

  - O que sabes então que eu não sei, Jack?

  - Muita coisa. Mas primeiro conta-me o que perdi.

  Indy informou rapidamente do que se tinha passado desde a sua chegada. Interrompeu um a vez para pedir outra rodada de cerveja. Ergueram os copos e depois Indy prosseguiu, contando ao amigo sobre a explosão e os acontecimentos posteriores.

Shannon escutou calmamente. Se estava surpreendido, não o revelou.

  - Cloro gasoso, eh? Para mim, alguém bem posicionado e com bons contactos poderia facilmente deitar as mãos a uma vasilha dessas.

  - Penso que sim - replicou Indy, interrogando-se sobre o que estaria Shannon a pensar.

  Os jantares chegaram.

  - Okay. É a tua vez, Jack. Conta-me uma história.

  Shannon provou o peixe frito.

  - Bem, primeiro que tudo, parece que os nossos amigos de oito patas têm vindo de uma loja de animais exóticos na periferia de Londres. Não adivinhas quem é o proprietário.

  - Continua - disse Indy impacientemente, ao morder uma batata frita ensopada em vinagre.

  - O proprietário chama-se Adrian Powell. Acontece que é membro do Parlamento.

  - Um MP?

  - Isso mesmo, um jovem político do Partido Conservador em plena ascensão.

O seu trabalho de fundo é opor-se duramente ao plano de Congregação das Nações Britânicas, e debate-se contra isso sempre que tem oportunidade. Na opinião dele, significará o fim do império.

  - Penso que já ouvi falar nele. Como pode ter tempo para gerir uma loja de animais, pelo amor de Deus?

  - Não tem. Alguém a gere por ele.

  - Mas por que diacho está interessado em me dificultar a vida?

  - Deixa-me terminar. Sabes, ele comprou a loja a Joanna Campbell. O dono era o marido dela, antes de morrer. A propósito, foi mordido por uma cobra coral, na sua própria loja.

  - Um bom modo de se morrer.

  - Adivinha quanto pagou Powell pela loja.

  Indy abanou a cabeça.

  - Não faço idéia.

  - Apenas uma libra. - Shannon bebeu um grande trago de cerveja e depois pousou a caneca.

  - O que pensas disso?

  - Não sei, mas não é tudo.

  - Bem tinha a impressão que havia mais qualquer coisa - replicou Indy. - Continua.

  - Powell começou a interessar-se bastante pela tua amiga, Deirdre. Saíram juntos algumas vezes até que ela rompeu a ligação. Parece que Joanna não queria que a filha se envolvesse com ele.

  - Isso continua a não explicar por que razão ele me enviou uma caixa de chocolates com aranhas antes de eu chegar a Londres.

  Shannon afagou a pêra ruiva.

  - Aí é que está o enigma. Tem de existir uma ligação que ainda não detectamos. A menos que fosse apenas para aborrecer Joanna.

  Isso não fazia muito sentido a Indy.

  - Aborreceu-me muito mais a mim do que a ela. Se não gostava de Powell, por que haveria de lhe dar a loja de animais?

  - Talvez tivesse mudado de opinião.

  - Qual é o aspecto deste Powell?

  Shannon levou a mão à algibeira, retirou uma folha de jornal dobrada e entregou-lha. Indy endireitou-a. A fotografia era a de um homem com cerca de trinta anos, cabelo ondulado e um sorriso de vencedor. Indy abanou a cabeça.

  - Não é o mesmo tipo da biblioteca.

  Shannon riu-se quando Indy lhe devolveu a folha de jornal.

  - Acreditas que um membro do Parlamento te andaria a perseguir pela Biblioteca do Museu Britânico? Não seria muito provável.

  - Eu é que o persegui - respondeu Indy com dureza.

  - Perseguiste uma pessoa qualquer que ele contratou para te vigiar.

  Indy pousou a sua cerveja.

  - Continua a ser difícil de acreditar. Eu mal conhecia Deirdre, e seguramente que a mim pouco me interessa o rumo que a Commonwealth possa tomar.

  - Devia interessar-te - replicou Shannon, e riu-se de novo.

  - Sabes, aposto que Powell tem bons contactos militares com acesso a armas químicas.

  Indy coçou a nuca.

  - Sim, disso não tenho dúvidas.

  - Como estão as coisas entre ti e Deirdre? Não pude deixar de reparar como ela se aninhou nos teus braços.

  - Não sei se foi exactamente o que ela fez, mas podes dizer que o clima melhorou. Pelo menos até que se deu a derrocada.

  Shannon sorriu.

  - Decidi que ela é boa rapariga. Não gostaria que a desapontasses.

  - O que queres dizer com isso?

  - Hoje aqui, amanhã ali, sabes como é. Sempre tiveste a reputação de destruidor de corações.

  - Desta vez é diferente. Acho que a amo. Ela é realmente algo especial.

  - Claro.

  - Não sei definir o que é, Jack. Mas estou constantemente a pensar nela. Não consigo imaginar ninguém que pudesse ser melhor para mim.

  - Meu Deus, estarei a escutar os sinos da igreja?

  Indy preparava-se para dizer a Shannon que não estava assim tão doido, mas não o fez.

  - Tenho de falar com ela sobre Powell - disse, vagamente.

  - Não acredito que estejas pronto a dar o nó. Isso não parece teu.

  Indy espetou uma batata com o garfo.

  - Pensas mal de tudo, Jack. Esse é o teu problema.

  - Sim, é possível. - Shannon olhou em redor do pub. – Acho que esta noite vou cedo para a cama. Tive um dia longo.

  - Vou ver como está Deirdre.

  - Engraçado, isso não me surpreende. Mas mantém-te alerta com a mãe Campbell. É difícil prever o que ela tem em mente.

  - Aí estou de acordo.

  Levantaram-se para partir.

  - A propósito, antes de te deitares, será melhor revistares bem a cama - pediu Shannon.

  - Porquê?

  - Por causa de acarinos. Também são aracnídeos.

  - Óptimo! - Só de pensar nisso, Indy ficou com a pele arrepiada.

 

DEPOIS DO ESCURECER

  Doença do amor. Era isso o que a afligia.

  Deirdre afastou o tabuleiro do jantar para longe da cama, depois de ter comido apenas algumas garfadas. Sentia-se cansada de estar frágil e doente. Não era a sua maneira de ser. Além disso, não se sentia realmente mal. Tivera apenas

uma recaída momentânea.

  Quando Lily acorrera a contar-lhe que o professor estava em mau estado, Deirdre pensara o pior. A reacção que tivera fora apenas o alívio por ver que Indy se encontrava bem. Tentara explicar isso a Joanna, sem afirmar que estava perdidamente apaixonada por Indy, mas de nada serviu. Joanna convencera-se

que Deirdre estava doente. Apoiou a cabeça sobre a almofada, fechou os olhos, e imaginou Indy deitado junto dela. Só pensar nele a agitava. Calculou que fosse esse o modo como as pessoas se sentiam quando estavam apaixonadas, mas preferiu pensar nisso como uma sensação pessoal e muito especial. Seguramente não era nada que alguma vez tivesse sentido por Adrian ou por qualquer outro.

  Mas de nada servia imaginá-lo com ela quando Indy não se encontrava por perto. Inquieta, levantou-se da cama e, pela terceira vez naquela última hora, bateu levemente na parede que dava para o quarto de Indy. De novo, nenhuma resposta.Desejou poder sair e ir procurá-lo, mas sabia que isso seria impossível. Joanna, preocupada que os encapuçados pudessem regressar, requisitara um aldeão para lhe guardar a porta. Deirdre escutara a mãe dizendo ao homem que não permitisse que ela saísse sozinha do quarto.

  Deambulou pelo aposento. Por que haveria de estar ali encurralada? Não era justo.

  Olhou para o tabuleiro; teve uma idéia. Pegou nele e levou-o para a porta. Abriu-a e sorriu para o guarda. Era um homem corpulento com cerca de vinte e cinco anos, o filho ou o primo do presidente da câmara. Não se lembrava qual deles era. Lembrava-se que ele ganhava sempre os torneios de arremesso de

toros na reunião anual dos clãs. Estendeu o tabuleiro.

  - Não se importa de levar isto lá abaixo à Lily, por favor?Não consigo comer mais.

  - Claro, minha senhora.

  Assim que ele desapareceu de vista, Deirdre pegou numa camisola de cima da cadeira e apressou-se a correr para as escadas das traseiras e a sair pela porta de serviço. Caminhou com rapidez pelo beco imerso num nevoeiro nocturno.

Aconchegou-se mais à camisola quando alcançou a esquina, e depois passou para a rua principal. O pub ficava logo no quarteirão a seguir.

  O nevoeiro era agora mais denso, denso como nunca se lembrava de ver a noite. Não conseguia avistar mais do que uns centímetros à sua frente. Talvez estivesse a cometer um erro. Não, só mais um quarteirão. Prosseguiu em frente.

  Havia algo mais de estranho na noite para além do nevoeiro, decidiu. Estava tão tranqüila que podia escutar a sua própria respiração. E por onde andariam as pessoas? Ainda era suficientemente cedo para os habitantes da aldeia darem um

passeio ou fazerem compras na rua principal. Mas não encontrara ninguém.

  Então, quando se aproximou do pub, o nevoeiro começou a dissipar-se e sentiu-se melhor. Podia avistar os edifícios, e também algumas pessoas, um grupo distante do pub. Mas a sensação de alívio foi de curta duração. Os homens vestiam vestes negras e formavam uma roda, como se planeassem qualquer coisa. Embora nenhum deles olhasse na direcção dela, sentiu-se em perigo, uma ameaça fria e penetrante que lhe provocava arrepios na espinha.

  Vindo de algures, escutava-se o som de gaitas de foles, numa melodia que em nada se assemelhava a melodia. Notas de música que lhe soavam familiares, mas ao mesmo tempo não. O que era parecia vagamente uma marcha que ouvira vezes sem conta, mas numa autêntica confusão. Apercebeu-se então do que se tratava.   As notas estavam a ser tocadas ao contrário.

  A sua respiração tornou-se ofegante. Apesar do frio, a transpiração pingava-Lhe da testa e da nuca. De trás para a frente, pensou, tal como os homens. Então, repentinamente, separaram-se em dois grupos, de costas ainda voltadas para

ela, e uma figura solitária pareceu deslizar entre eles na direcção dela. Vestia um traje negro tal como os outros, deslocando-se com rapidez, de frente para ela.

  Adrian.

  Escutou o riso dele, reconheceu-o, e depois pôde ver claramente as suas feições, o seu cabelo ondulado, o seu rosto bonito, a cova no seu queixo.

  - Minha querida, a sonhar de novo?

  Deirdre deu um passo atrás.

  - Deixa-me em paz.

  - Isto não passa de um sonho, Deirdre. - Riu-se e, desta vez,  os outros uniram-se a ele. Simultaneamente, viraram-se; os seus rostos eram sombras por baixo dos capuzes.

Deslocavam-se na direcção dela. O riso era horrível. Apercebeu-se então que não era riso, mas o som de gaitas de foles. O nevoeiro avançava em turbilhão; eles aproximavam-se cada vez mais, estendendo as mãos para ela.

  O rosto de Adrian surgiu na sua frente. Deirdre gritou, e sentou-se na cama. Conteve a respiração, levando uma mão à boca. A porta abriu-se de roldão.

  - Está bem, minha senhora?

  Fitou o guarda. Tinha a boca seca, mas o cabelo estava colado à nuca humedecida.

  - Eu... eu... - Abanou a cabeça. - Não sei o que se passou.

  O homem anuiu, pouco a vontade.

  - O professor esteve cá para a ver. Disse-lhe que estava a dormir. Quer que o vá chamar? Está lá em baixo na sala de jantar.

  - Sim, por favor.

  Deirdre olhou para o lado da cama quando o guarda começava a fechar a porta.

  - Espere.

  - Sim?

  - O tabuleiro do meu jantar. O que Lhe aconteceu?

  - Miss Lily levou-o. Pensou que a senhora já não ia querer mais, uma vez que dormia.

  - Ela levou-o, diz você. Mas... não o entreguei a si primeiro?

  - Não.

  Deirdre desviou o olhar.

  - Obrigada.

  Fechou os olhos. O que lhe estava a acontecer? Estaria a perder o juízo? Levantou-se com esforço e dirigiu-se ao lavatório. Molhou o rosto, secou-se e pegou numa escova.

  - Deirdre?

  A cabeça de Indy espreitava pela porta. Os seus olhos colidiram, e depois ele entrou no quarto.

  - O que aconteceu? O guarda disse que gritaste.

  Ela atirou com a escova para o lavatório e as palavras saíram-lhe em torrente.

  - Não sei o que se está a passar, Indy. Saí às escondidas para ir a sua procura. Tenho quase a certeza que saí. Vi-o, mas foi apenas um sonho. Penso que sim. Nem sequer sei.

  Indy ergueu ambas as mãos.

  - Espera um pouco. Viste quem? Senta-te e começa do princípio. Vai com calma.

  Ela anuiu, e sentou-se sobre a cama enquanto Indy puxava duma cadeira para perto dela. Deirdre contou-Lhe tudo sobre Adrian Powell, começando pelo primeiro encontro que teve com ele. A sua voz vibrava de medo, ira e frustração.

  - Devia ter-te contado sobre ele, queria fazê-lo, mas tive receio que já não quisesses nada comigo. Ele não me deixa em paz.

 Indy levantou-a da cama, tomou-a nos braços e juntou-a a si.

 - Está tudo bem.

 - Quem me dera que estivesse. - Desviou o olhar e secou de novo os olhos.

 - Mas, por que gritaste? Ainda não me disseste.

 - Parece loucura - afirmou. Deambulando pelo quarto, contou-lhe o sonho que tivera na casa do presidente da câmara e, de seguida, descreveu o que acabara de lhe acontecer.

 - Tudo isso não passou de um pesadelo, Deirdre. Estavas a pensar nos homens que assaltaram os quartos quando adormeceste e a tua imaginação encarregou-se do resto. Apenas isso.

 Deirdre parou na frente dele.

 - Mas nunca tive um sonho assim. Talvez se tratasse de um sonho, mas estava ainda acordada.

 Indy afastou-lhe o cabelo do rosto.

 - Não podias estar acordada. O guarda disse que nunca deixaste o quarto e que ninguém entrou. - Afagou-lhe a face. - Mas estou satisfeito por no teu sonho andares à minha procura.

 - Quem me dera ter-te encontrado - replicou, pesarosamente.

 - E encontraste. Estou aqui. - Beijou-a. Desta vez, não houve hesitação. A respiração dela tornou-se mais rápida; o seu pulso acelerou; ele sentiu-se tão bem contra o corpo dela.

 Deirdre desejou que aquele momento nunca terminasse.

 Indy murmurou que a amava, a boca contra a dela, e Deirdre pousou a cabeça no peito dele.

  - Indy?

  - Sim?

  - O guarda.

- Vou dizer-lhe para se ir embora. Está em boas mãos

  Deirdre deu um passo atrás as mãos nas ancas dele.

  - Eu sei. Vamos dar um passeio.

  Indy ficou surpreendido.

  - Um passeio?

  - Por favor?

  Sabia que ele tinha outras idéias, mas não se sentia preparada.

  Ainda não.

  - Tens a certeza de que queres sair?

  • Penso que me ajudará a superar esta sensação de que o sonho foi real, e que não estou a ficar louca.

      - Claro. Tudo bem. Mas podes acreditar na minha palavra, n?o est?s a enlouquecer.

     

     Passava das oito quando saíram, e a aldeia não estava nem calma nem agitada. Passaram por diversas pessoas de aspecto normal ao caminharem pela alameda,

     sob a luz esbatida dos candeeiros de rua. Embora estivessem em Agosto, as noites eram frias em Whithorn, pelo que se sentia satisfeita por ter trazido a camisola.

  - Vês, não há nevoeiro - disse Indy, olhando para a lua quase cheia. - Foi meramente um sonho. Só isso.

  Ela apertou-lhe a mão.

- Espero que tu não sejas um sonho.

  - Lamento, mas sou real.

  Quando passaram pelo pub, Deirdre observou-o e abanou a cabeça.

  -Era tão estranho, tão diferente antes.

  Uns dois quarteirões mais adiante, alcançaram o limiar da aldeia.

  - Está uma noite agradável - afirmou Deirdre. – Vamos continuar.

  Indy olhou para trás para a aldeia.

  - Está bem, mas não para muito longe.

  A aldeia não tardou a ficar para trás deles, e grupos de faias ladeavam ambas as bermas da estrada. As suas folhas revelavam-se tingidas de prata à luz do luar, uma floresta encantada, se alguma jamais existiu. Deirdre teceu um comentário à noite fria e ao cheiro fresco a terra e floresta.

Algum tempo depois, ela disse:

  - Falaste com Joanna esta noite?

  - Não, não tive oportunidade.

  - Está a pensar desistir da escavação. Diz que está A tornar-se demasiado perigoso permanecermos aqui.

  - Talvez tenha razão.

  Deirdre lançou-lhe um olhar de soslaio.

  - Parece que o teu amigo Jack apareceu em má altura.

  - No que me diz respeito, chegou na hora H. Duvido que estivesse agora a falar contigo se ele não tivesse aparecido.

  - Nesse caso, ainda bem que veio. - Apertou-Lhe de novo a mão. - Como o conheceste?

  - Partilhávamos o mesmo dormitório no colégio. Mais tarde, arranjamos um apartamento para os dois. Era o único tipo do dormitório com quem senti que conseguiria viver na mesma casa.

  - Porquê?

  - Não sei. Talvez devido ao seu modo de encarar a vida.

Estudava economia mas tocava também jazz, o que Lhe moldava a vida.

  - Como encara ele a vida?

  - Tem algo a ver com a música dele. Os timbres são fora do ritmo, não são convencionais. Onde habitualmente os esperamos.

- Olhou para ela, interrogando-se se estaria a compreender minimamente o que lhe dizia. - Assim, o inesperado torna-se no essencial e não na excepção. Entendes?

 

  Deirdre anuiu, lentamente.

  - Agora sei qual a origem da expressão americana.

  - Qual expressão?

  - Quando se diz que uma pessoa é fora do ritmo.

  Indy riu-se.

  - Penso que sim. Nunca pensei nisso nesses termos.

  - E tu? És uma pessoa fora do ritmo?

  Indy soltou uma gargalhada.

  - Fora da convenção, talvez. A arqueologia é como o jazz, nesse sentido.Temos um padrão básico com o qual devemos trabalhar, mas é necessário inovar, fundir o que é conhecido com o que não passa ainda de uma possibilidade. Pelo menos, é assim que o encaro.

Caminharam em silêncio por alguns momentos.

  - Quero saber tudo sobre o teu passado - disse ela. – Tenho a certeza de que foi muito mais excitante do que o meu.

  - Oh, não sei.

 - Não sejas modesto. Recordo-me do que Joanna disse naquela noite no restaurante sobre a tua experiência na Grécia.

  • Conta-me mais coisas.

      Ouviu contar como quase perdera a vida e como inadvertidamente descobrira a Omfalos. Mencionou uma mulher de nome Dorian e, embora tivesse tentado evitar qualquer referência ao relacionamento deles, Deirdre percebeu, pelo modo como Indy falou, que tinham sido amantes e que ela o desapontara.

      - Parece-me fascinante.

      - Há muito mais. Esta Omfalos, É... Bem, qualquer dia falo-te dela. Penso que está na hora de regressarmos.

      Caminharam de novo em silêncio. O cascalho estalava sob os seus pés. Na história sobre a Grécia, Indy mencionara que Jack Shannon aparecera inesperadamente em Delfos, e tal facto fê-la ponderar se o aparecimento dele aqui não seria mais do que uma visita amigável.

      - Sabias da chegada do Jack?

      - Não. Mas é típico de Jack.

      - Só veio para te ver? - inquiriu ela, cepticamente.

      - Tinha novidades para me dar.

      - Oh? Que tipo de novidades?

      Indy estacou, como que ponderando no que responder.

      - Queres ouvir outra história?

      - Claro.

      Contou lhe sobre aquele incidente com aranhas numa caixa de chocolates, e o outro com escorpiões no seu quarto.

      - Por que não me contaste isto antes?

      - Não te contei porque não sabia se estava relacionado contigo.

      - E está?

      - Receio bem que sim. - Indy informou-a que Shannon descobrira a origem das criaturas, a loja de animais que o pai dela antes possuíra. Disse-lhe depois quem era o actual proprietário e quanto Powell pagara por ela.

      Deirdre parou no meio da estrada.

      - Não posso acreditar. Deve tratar-se de um erro. Por que haveria Joanna de lhe passar a loja de mão beijada?

      - Não sei. Por que haveria Powell de me querer matar antes de eu te conhecer?

      - Ele tentou matar-nos a ambos aqui. O meu sonho estava correcto.

      - Não sabemos se foi ele.

      - Tenho que falar com Joanna - afirmou Deirdre.

      - Também eu. Vamos.

      Indy tomou-lhe a mão e recomeçaram a andar.

      - Lamento ter-te envolvido nesta confusão. A culpa é minha.

      - Não, não é. - As suas sombras desenhadas pelo luar alongavam-se na estrada. Ela abraçou-o enquanto ele lhe afagava o cabelo.

      - Vai correr tudo bem. Verás - murmurou Indy.

      - Espero que não penses que Joanna é responsável por aquilo que aconteceu aqui.

      - O meu palpite é que ela sabe mais do que contou a qualquer um de nós, mas que também está a ser vítima.

      Deirdre abanou a cabeça.

      - Não consigo compreender nada.

      Nesse instante, Deirdre escutou um ruído mais a frente. As árvores eram espessas, e o pálido luar emitia sombras na estrada. Estacou, e o corpo de Indy ficou rígido. Deirdre conteve a respiração.

      - O que é? - indagou ela.

      Indy voltou-se lentamente e seguiu-lhe o olhar. Ela detectou um ligeiro movimento junto das árvores. Talvez fosse apenas um animal esgueirando-se na berma da estrada. Deirdre escutou o som de novo, desta vez mais distinto. Passos. Alguém se aproximava, deslocando-se ao longo das sombras profundas na berma da estrada. Quem quer que fosse podia avistá-los à luz do luar.

      - Indy, estou com medo.

      - Quem está aí? - Tinha os punhos cerrados e colocou-se na frente dela. Nunca deviam ter deixado a casa. A culpa fora dela. Mas agora era tarde de mais.

      Uma forma negra surgiu das trevas, um homem vestido de preto.

      - Deirdre? Professor Jones?

      - Quem é? - inquiriu Indy.

      Mas, quando ele falou, Deirdre soube de imediato de quem se tratava. O luar incidiu lateralmente no rosto do indivíduo e reconheceu o velho sacerdote.

      - Padre Byrne!

      - Desculpem se os assustei. Vim dar um passeio e deparei convosco. Estavam tão envolvidos um com o outro que pensei seria uma pena interromper.

      - Espero que nós não o tenhamos assustado - disse Indy.

      O padre de cabelos brancos riu-se, num riso profundo e amigável.

      - Meu Deus, como poderia,a visão de uma moça beijando o seu namorado,me assustar? Posso ser um padre, mas sei o que é um beijo dado nas trevas, numa noite bonita. - Depois, corrigiu-se. - Ou, pelo menos, sei como deve ser.

      - Ainda bem que é o senhor - disse Deirdre. - Pensamos que poderia ser outra pessoa.

      - Queres dizer, Adrian Powell? - perguntou Byrne, sombriamente.

     

    REVELAÇÕES

      Shannon despertou com um salto. O telegrama!

      Olhou para o relógio junto da cama. Nove e meia. Dormira praticamente durante duas horas. Passou as mãos pelo rosto.

      - Raios  - murmurou. - Estou a ficar tão esquecido quanto Milford.

      Levantou-se da cama e abriu o estojo do trompete. Por baixo do forro de veludo estava um telegrama remetido de Nova Iorque para Indy, o qual chegara depois de Shannon já ter decidido ir a Escócia. Atirou o telegrama para cima da cama e vestiu-se. Tinha de encontrar Indy para Lho entregar. Simultaneamente, poderia contar-lhe que Milford passara pelo apartamento no mesmo dia em que o telegrama chegou. Foram necessários diversos minutos para convencer o velho professor de que Indy tinha viajado. Mesmo recordando-lhe que Indy se despedira dele antes de partir, não obteve grandes resultados. Por fim, Milford aceitou que Indy partira. Balbuciara qualquer coisa que se assemelhou a uma imprecação em inglês medieval e fora-se embora.

      Shannon seguira Milford até ao corredor da entrada e dissera-lhe que ia viajar para a Escócia para se encontrar com Indy, no caso de ele querer que lhe entregasse alguma mensagem. Milford voltara-se e ponderara nas palavras de Shannon.

      - Sim, diga-lhe... - Os olhos azuis-pálidos de Milford focaram para lá do seu ombro. - Oh, não se preocupe. Eu próprio lhe direi. - Era realmente triste. Shannon percebeu que a razão pela qual Milford não lhe dera a mensagem fora porque esta se varrera já da sua mente.

      Pegou no telegrama e dirigiu-se ao quarto de Indy. Bateu à porta. Aguardou. Nenhuma resposta. Inclinou-se e começou a enfiá-lo sob a porta, mas depois decidiu tentar o quarto de Deirdre. Enquanto esperava, ouviu vozes que provinham das escadas. Quando ninguém respondeu, avançou no corredor e espreitou por cima do corrimão. 

     Duas figuras conversavam no fundo das escadas.

      Joanna falava com um homem, mas Shannon só lhe avistava as costas.

      - Se estavas tão interessado em encontrá-lo, por que fizeste explodir a caverna?

      - Isso não foi obra minha. Foi trabalho do bom padre Byrne e dos seus jovens fanáticos, que estão a tentar contrariar os seus e os meus esforços.

      - Não acredito.

      - Acredite no que quiser. Preciso desse pergaminho e vou consegui-lo de uma maneira ou de outra. A propósito, lamento o que se passou com os vossos quartos, mas necessitava de ter a certeza de que ainda não o tinham encontrado.

      - Deixa Deirdre em paz.

      O homem riu-se.

      - Se se preocupasse assim tanto com a vida dela, nunca deveria ter tentado me defraudar.

      Joanna esbofeteou-o com força. A cabeça dele oscilou, e Shannon reconheceu Adrian Powell.

  • Há de lamentar isto. - Atravessou a sala de jantar e saiu para a rua.

      Joanna subiu praticamente as escadas a correr, e Shannon apressou-se a regressar ao quarto, fechando a porta no momento em que Joanna virava a esquina. Encostou-se á porta.

      - Raios. Onde diabo anda Indy?

      Levantou o telegrama na mão. Podia ser importante e, com pessoas vasculhando os quartos como se tornara ali habitual, podia perdê-lo. Abriu-o.

               INDY - MÁS NOTÍCIAS STOP OMFALOS ROUBADA STOP MARCUS.

     

      Indy não ficaria satisfeito quando soubesse esta novidade, mas havia agora algo mais premente com que se preocupar. Tinha de encontrar Indy e contar-lhe sobre o padre Byrne. Nesse momento, ouviu passos no corredor. Entreabriu ligeiramente a porta e viu Joanna junto das escadas.

      Enfiou o telegrama na algibeira e saiu em silêncio para o corredor. Joanna atravessava a sala de jantar e dirigia-se para a porta.

      - Onde diabo irá ela? - murmurou, e desceu as escadas atrás dela.

     

      Indy sentiu a pressão da mão de Deirdre no braço. Não era um aperto de afecto, mas sim de alarme.

      - Conhece Adrian, padre? - perguntou Indy.

      Byrne fez sinal com a cabeça na direcção da aldeia.

      - Vamos até ao presbitério. Podemos tomar um chá. E conversar.

      - Padre, não compreendo - disse Deirdre.

      Byrne ergueu uma mão.

      - Por favor, espera até chegarmos para que possamos falar de forma civilizada. - Caminhou alguns passos à frente deles, como que indicando o caminho. Deirdre olhou para Indy. Este encolheu os ombros como que dizendo que outra alternativa tinham?

      Cerca de um minuto depois, Byrne abrandou um pouco.

      - Diga-me então, o que faria com esse tal pergaminho de ouro se o encontrasse?

      A pergunta surpreendeu Indy.

      - Para ser franco, ainda não pensei nisso. Primeiro que tudo, a decisão caberia à dra. Campbell. Mas não é uma questão relevante nesta altura. Penso que a dra. Campbell vai interromper por agora a escavação.

      - Talvez seja melhor. Mas, independentemente disso, o que significaria para si encontrar o pergaminho?

      - Bom, seria uma descoberta arqueológica surpreendente. Ficaria feliz por participar nesse acontecimento.

      - Transformaria a lenda em realidade - afirmou Deirdre.

      Indy pensou que não era isso o que Byrne queria ouvir.

      - Até certo ponto. Continuaria a não constituir prova de que o homem Merlin empreendeu tudo o que dizem a seu respeito.

      Byrne ficou em silêncio e nenhum deles proferiu uma palavra até alcançarem os limites da aldeia. Quando voltou a falar, foi como se a conversa não tivesse sido interrompida.

      - E se as provas que encontrasse confirmassem de alguma forma que Merlin possuía, efectivamente, poderes sobrenaturais?

      O arqueólogo encolheu os ombros e interrogou-se por que estaria Byrne tão interessado em Merlin e nas escavações.

      - Tal como disse, não estou a ver isso acontecer.

      - Digamos que acontece. Isso não alteraria por completo a forma como vemos o mundo? - insistiu o padre. - Não daria à fonte de poder demoníaca do mago uma nova vida, uma nova força sobre o mundo?

      Indy sorriu, compreendendo finalmente onde o velho sacerdote queria chegar. Preocupava-se que eles pudessem encontrar algo que colocasse uma luz positiva sobre o paganismo, o trabalho do demônio tal como ele o via e, assim, denegrisse o Cristianismo.

      - Padre, muito honestamente eu não me preocuparia com isso. Se quer saber a minha opinião, essa história de Merlin ser o filho do diabo e virgem é pura fantasia.

      Byrne pousou a mão sobre o portão de ferro quando alcançaram o presbitério junto da igreja.

      - Alguém tem de se preocupar, professor. O facto de ignorarmos o mal não o faz desaparecer.

      Por breves instantes, Indy detectou um brilho nos olhos do velho sacerdote, algo que nunca vira antes, uma obsessão, uma determinação que dizia que nada o impediria de levar a cabo aquilo que considerava a sua missão. Depois, essa expressão desapareceu e Byrne sorriu, abriu o portão e deixou-os passar na frente dele.

      Seguiram por um caminho que os conduziu a uma casa de tijolo de dois pisos, e entraram numa sala de estar onde um fogo ardia fraco numa lareira de pedra. O soalho de madeira apresentava-se bastante polido e um espesso tapete oval jazia em frente da lareira. Por cima desta, um crucifixo pendia na parede.

      - Deus por cima, o fogo por baixo - comentou Indy.

      Byrne parou e observou a lareira, como se a visse pela primeira vez.

      - Algumas pessoas, por intentos malignos ou pura ignorância, podem alimentar as chamas do inferno, professor.

      Apareceu uma governanta, e Byrne fez-lhe sinal para que lhes trouxesse chávenas de chá. Indy sentia curiosidade em saber o que o padre sabia sobre Powell, e esperou que ele começasse.

    Quando se tornou aparente que Byrne estava à espera do chá, Deirdre contou-lhe o que se passara na pensão. O padre escutou com atenção, e depois fez-lhes algumas perguntas sobre o incidente até o chá chegar.

      - Agora, em relação a Mr. Powell. - Byrne fitava o chá fumegante e mexia. Tinha as espessas sobrancelhas brancas contraídas e afundava-se na cadeira como se carregasse um enorme fardo sobre os ombros. - Depreendo que vocês já se aperceberam que ele não é o homem que a maioria das pessoas acredita que ele é. Penso que se encontra aqui em Whithorn e podem ter a certeza de que ele é o responsável pelos vossos problemas.

      - Como o conhece? - inquiriu Indy.

      Byrne reflectiu na pergunta. Levou tanto tempo a responder que quase pareceu a Indy que o padre inventava uma resposta.

      - Nos últimos dez anos, tenho-me interessado pelos vários  grupos de druidas existentes na Grã-Bretanha - começou. - Ouvem-se muitas histórias, e queria chegar a conclusões por mim mesmo. A maioria destes druidas são indivíduos desorientados, pobres almas que sofrerão pelas suas vidas instáveis. Mas são relativamente inofensivos.   Bebericou o chá antes de prosseguir.

      - No entanto, existe um grupo que considero muito diferente dos outros, e extremamente perigoso. Chamam-se a si mesmos hiperboreais.

      - Hiperboreais? - Indy olhou para Deirdre. Estava tão surpresa quanto ele.

      - Sim, e Adrian Powell é um deles - disse Byrne. - O líder do grupo.

      - Padre, o que quer ele? Eu quase morri na caverna e Indy quase se afogou.

      Byrne não hesitou em responder.

      - Anda atrás do pergaminho. Tal como vocês.

      - Então, também sabe da existência do pergaminho. - A voz dela era baixa.

      Byrne tossiu, e fitou a sua chávena de chá.

      - Há muitos anos, ainda antes de eu saber sobre os hiperboreais, ele veio ter comigo para me fazer perguntas sobre velhos registros que pudessem estar relacionados com a lenda de Merlin. Freqüentava nessa altura a Universidade e disse que era um trabalho de pesquisa para um curso que estava a tirar. Tentei persuadi-lo a escolher outro tema, mas apenas esse parecia despertar-lhe o interesse. Por fim, pedi-lhe que se fosse embora, mas regressou no dia seguinte e, por alguma razão, mostrei-lhe a carta. Mesmo nessa altura suspeitei que a sua insistência se devia a algo mais do que simples interesse, mas não o consegui dissuadir. A carta concedeu-lhe ainda maior ímpeto para continuar a sua pesquisa.

      Indy achou estranho que o sacerdote tivesse cedido à curiosidade de um aluno universitário. Interrogou-se se a história estaria bem contada.

      - Afinal, o que quer Powell?

      - Poder. Poder para governar e controlar. Sabem, os hiperboreais são homens, e algumas mulheres, que já são poderosos ou ricos, ou ambas as coisas. São banqueiros, generais, legisladores e nobreza, e todos partilham o objectivo de impedir a formação da Commonwealth britânica. Encaram tal facto como o primeiro passo para a decadência do império britânico. Mas, impedir a Commonwealth será apenas o primeiro passo. O principal objectivo de Powell é expandir o império do seu próprio poder, seja a que preço for.

      Indy abanou a cabeça, perplexo.

      - Como pode ele pensar que um pergaminho de ouro o auxiliará nos seus planos?

      Byrne dobrava e desdobrava os dedos.

      - O demônio atinge melhor os seus intentos quando os seus processos desafiam o entendimento.

      O velho sacerdote ergueu-se e caminhou de um lado para o outro na frente deles.

      - A minha investigação sobre os hiperboreais revelou algo interessante. Eles acreditam que este pergaminho está de alguma forma relacionado com uma pedra antiga e demoníaca, e que aquele que levar a Stonehenge a pedra e o pergaminho será detentor de grande poder.

      - Como descobriu isso? - inquiriu Indy.

      Byrne ignorou-o.

      Deirdre abanou a cabeça, em descrença.

      - Será que Joanna tem conhecimento destes factos?

      Indy tinha a sensação de que Joanna sabia muita coisa sobre Powell. Assim que saíssem dali, iria confrontar-se com ela.

      - Ele acredita que se transformará em Merlin, ou qualquer coisa do gênero? - perguntou Deirdre.

      - Ele não quer ser um Merlin. - irritou-se Byrne. - Quer ser Adrian Powell, primeiro-ministro da Inglaterra, uma Inglaterra com firme controlo sobre o mundo, um poder governado pelo agente do demônio.

      - Que pedra é essa que referiu? - inquiriu Indy.

      Nesse instante, Joanna surgiu na porta da cozinha. Deve ter entrado pela porta dos fundos; estivera à escuta.

      - Sabe bem que pedra é, Indy. É a Omfalos. E Adrian já a tem em seu poder.

      O rosto de Indy ficou pálido e a sua boca abriu-se.

      - De que está a falar? A pedra está num museu em Nova Iorque.

      Joanna avançou para a sala.

      - Para ser honesta, Indy, a verdadeira razão que me levou a contratá-lo foi a Omfalos. Tinha esperança que o conseguiria persuadir a convencer Marcus Brody a mudar a pedra para uma localização mais segura. Mas agora é tarde de mais.

      - Marcus?

      - Sim. Há um ano que trocamos correspondência. Cheguei a viajar até Nova Iorque para lhe rogar pessoalmente. Disse-lhe que, enquanto a Omfalos estivesse em exposição ao público, estaria em perigo.

      Quanto mais Indy descobria, mais perguntas se lhe colocavam.

      - Como sabia que Powell ia roubar a Omfalos?

      - Porque sei sobre os hiperboreais. Eu própria fui um deles até me aperceber do que Adrian andava a fazer.

      - Joanna, nunca me contaste nada disto - disse Deirdre.

      - Então você era um deles - afirmou Indy. - Foi por essa razão que lhe deu a loja de animais do seu marido?

      Joanna olhou para Deirdre, para Byrne e depois para Indy.

      - Está bem. Eu conto tudo.

      - Joanna! - insurgiu-se Byrne. - Não faças nenhuma loucura.

      - Não, Phillip, está na altura de pôr tudo em pratos limpos.

      - Deirdre, Adrian é teu meio-irmão. Nasceu ilegítimo e dei-o para adopção cinco anos antes de eu conhecer o teu pai.

      Durante longos segundos, ninguém falou ou se moveu. Depois,

    Deirdre murmurou:

      - Meu meio-irmão? Mas quem... - Estacou no meio da frase, incapaz ou relutante de continuar.

      Joanna apontou para Byrne.

      - Phillip é o pai de Adrian.

      - Não acredito - afirmou Deirdre, erguendo-se da cadeira. - Nunca me disseste nada.

      Joanna deu uns passos na direcção dela, mas Deirdre afastou-se. Parecia horrorizada.

      - Não me contaste nada, mesmo sabendo que eu me encontrava com ele.

      - Tentei manter-vos afastados. Não sabes como desejava poder contar-te. Mas tinha medo do que ele pudesse fazer. Só esperava que me desses ouvidos.

      - Ele sabe, não sabe? - Os olhos de Deirdre encheram-se de lágrimas.

      - Sim, claro que sabe. Tornar-se teu amigo foi o melhor processo de chegar até mim. Sabes, ele encontrou-me há alguns anos atrás. Contei-lhe a verdade. Senti pena dele e, quando o teu pai morreu, dei-lhe a loja de animais e apresentei-o aos

    hiperboreais.

      - Como pudeste...

      - Por favor, escuta-me. - Joanna suplicava agora. – Se alguma vez tivesse pensado que te estavas a apaixonar por ele...

      "Tal como o rei Artur e a sua meia-irmã Morgan le Fay", pensou Indy. Só que ao contrário. Powell era o mago malévolo e o sedutor; Deirdre, a inocente.

      - Por que razão se envolveu com druidas? - perguntou Indy, a sua curiosidade espicaçada.

      - Por desprezo e vingança - intrometeu-se Byrne. - Aliou-se a eles quando me recusei a deixar o sacerdócio por ela.

      - Não acredito no que ouço - disse Deirdre, abanando a cabeça. Estavam todos de pé, com excepção de Byrne, que permanecia sentado com o chá, como que tentando manter uma certa decência.

      - Os hiperboreais nunca tiveram intenções demoníacas – disse Joanna. - Os caminhos dos druidas seguem a natureza, a terra e o espírito. Envolve lendas, canções e dança, tudo ligado à relação do homem com a terra e o espírito.

      - O que tem isso a ver com a Omfalos? - quis saber Indy.

      - Acreditávamos que a Omfalos seria descoberta e acabaria por ser levada a Stonehenge onde pertence e que, por esse facto, o mundo se tornaria melhor. O intento do druida é que a terra entre em equilíbrio e harmonia com o universo, e

    devolver a pedra sagrada a Stonehenge constituía um passo simbólico para esse objectivo. Essa era a nossa única intenção.

      - Porque afirma que a pedra pertence a Stonehenge? - perguntou Indy.

      - Conhecimento antigo e secreto. É tudo o que lhe posso dizer.

      - E contou isso ao padre Byrne, suponho - afirmou Indy.

      - Fizemos um acordo - disse Byrne. - Ela contou-me alguns segredos druidas e, em recompensa, mostrei-lhe a carta do monge.

      - Foi também ele quem descobriu para mim que o Vaticano nunca recebeu o pergaminho de ouro de Whithorn – continuou Joanna. - Não me queria ajudar, mas preocupava-se tanto quanto eu em travar Adrian.

      Deirdre deu o braço a Indy.

      - Por favor, vamos embora.

      - Deixa-me terminar - disse Joanna. - Adrian não é o único elemento perigoso. - Virou-se para Byrne. - Estou ao corrente dos teus soldados, Phillip. Vais todas as semanas ao paiol do exército, mas não é para escutares confissões, pois não? Recrutaste o teu pequeno exército de fanáticos para combaterem contra os hiperboreais ou contra qualquer outra pessoa que se intrometesse no teu caminho. Foram eles quem dinamitou a caverna e que quase mataram a minha filha.

      Byrne derrubou a chávena ao erguer-se.

      - Não podemos permitir que ninguém encontre o pergaminho, tu ou Adrian. Não podemos tolerar a vossa ignorância do mal.

      Nesse momento, ouviu-se um forte ruído vindo da cozinha. Todos se viraram e a governanta surgiu na porta. Um homem de nariz arrebitado com luvas negras cobria a boca dela com uma mão e apontava-lhe uma faca à garganta. Indy avistou a cicatriz no pescoço do homem e percebeu que se tratava do mesmo que quase o afogara. O indivíduo entrou na sala, e o parceiro, nada mais do que o Olhos Estreitos, seguiu-o, de revólver na mão.

      Então, Adrian Powell passou no meio dos dois homens.

      - Tem razão, padre, não podemos tolerar a ignorância, sobretudo aquela a que você aderiu.

     

    A CAVERNA DA MORTE

      Adrian Powell deslocou-se para o centro da sala. Não era figura que impressionasse, a não ser pelos olhos. "Olhos que nos aprisionavam", pensou Indy. Olhos apelativos, de um líder, de um homem de visão.

      Powell parou na frente de Indy.

      - Perguntava sobre a Omfalos, professor Jones? Posso assegurar-lhe que se encontra em boas mãos, e que será usada para os melhores intentos.

      - Se fosse a si, Powell, tomaria cuidado com essa pedra.

    Pode provocar coisas estranhas.

      Powell riu-se.

      - Estranhas e maravilhosas. Disso não tenho dúvida. Só idiotas deixariam uma relíquia de tal poder numa vitrina de museu. Sabe, professor, aprendi a arte da necromância, e aprendi-a bem. Veja onde me levou. Tem-me dado tudo o que

    consegui realizar. Mas não é nada comparado com o futuro.

      Sorriu para Deirdre.

      - Fico feliz por teres sobrevivido ao veneno do padre louco, querida irmã. Seria um modo terrível de se morrer.

      Voltou-se para Byrne e Joanna.

      - Mãe e pai. Sabem, é a primeira vez que vos vejo juntos. Acalenta-me o coração.

      - O que queres, Adrian? - perguntou Joanna.

      - Devia saber, mãe. Foi você quem me introduziu ao conhecimento. Levou-me para os druidas. O que não esperava era que eu achasse os processos deles como uma visão legítima e poderosa e que, ainda por cima, usurpasse a sua própria posição.

      - O demônio fala dentro de ti - balbuciou Byrne. – Não escaparás às leis do Senhor.

      - Pai, pai. Fornicador. Assassino malogrado. E, mesmo assim, fala de Deus. - Aproximou-se do sacerdote. - Muitos anos se passaram desde que vi a carta do monge. Quero vê-la de novo.

      - Nunca - rosnou Byrne.

      Powell virou-se para o homem que aprisionava a governanta.

      Este anuiu e empurrou a mulher para a frente, comprimindo ainda mais a faca contra o pescoço dela.

      - Quer ver a garganta dela rasgada ou vai cooperar?

      Os olhos da mulher esbugalharam-se enquanto o padre ponderava nas hipóteses.

      - Já não a tenho. Queimei-a.

      - Está a mentir. Mata-a - ordenou Powell.

      - Não. Pára. Vou buscá-la - disse o sacerdote.

      Powell fez sinal ao Olhos Estreitos que seguisse Byrne e deixaram a sala. Voltou-se para os outros.

      - Onde ficamos?

      - Optaste pelas artes negras, e isso não tem nada a ver com os propósitos dos hiperboreais - disse Joanna. - A Omfalos deve ser usada para o bem da humanidade, não como um instrumento de poder pessoal.

      Powell riu-se.

      - Para o bem da humanidade. O que quer isso dizer, Joanna?   O que é bom para uns é mau para outros. Sempre foi assim.

      Virou-se para Indy.

      - Não concorda, Jones? Você é um homem terra a terra racional.

      - E você um homem muito perturbado - respondeu Indy.

      Powell aproximou-se dele. Indy sentiu o aroma do aftershave dele.   Os seus olhos hipnóticos pareciam cativá-lo.

      - Eu sabia que a Omfalos seria encontrada e que aquele que a encontrasse seria meu inimigo de morte. Sabia que você viria para Inglaterra e que tentaria bloquear o regresso inevitável da Omfalos ao seu verdadeiro lar, Stonehenge.

      Indy desviou o olhar e Powell riu-se de novo.

      Olhos Estreitos regressou e trazia mais do que a carta.

      - Tinha-a escondida dentro de uma caixa por baixo da cama.   Mas olhe o que encontrei no armário. - Estendeu uma vasilha semelhante à que fora encontrada na caverna. - Cloro gasoso. E tem outra. Talvez mais.

      Powell examinou a vasilha e depois olhou para o padre.

      - Coisa feia, meu pai. Coisa feia. - Tirou uns óculos de ler e sentou-se com a carta. Os dois malandrins, entretanto, reuniram toda a gente no mesmo local e vigiaram-nos.

      Por fim, Powell baixou a carta.

      - Pai, diga-nos, por que razão esta carta nunca foi enviada ao Papa?

      O sacerdote mirou o filho e permaneceu em silêncio.

      - Pode contribuir com alguma idéia, dra. Campbell?

    - Quando ela não respondeu, Powell acrescentou: - As suas contribuições serão levadas em linha de conta quando decidirmos o que fazer consigo.

      - Matarias a tua própria mãe sem pensares duas vezes, não é  assim, Adrian?

      - Tal como o padre mataria para conseguir os seus intentos.   É um mundo cruel, mãe. O sentimento não passa daqui.

      Powell era a pessoa mais detestável que Indy jamais conhecera.

      Como lhe daria prazer esmurrar o bonito rosto do membro do Parlamento. Subitamente, Byrne falou.

      - Não existiam bons meios de transporte no século quinze.

      Provavelmente, a carta esperou largos meses para ser levada. Ou perdeu-se ou o monge decidiu não a enviar. Acabou por ficar misturada com os registos e diários da época.

      Aliando-se ao inimigo, pensou Indy. Onde estava agora todo o fervor pela justiça do bom padre? Não era melhor do que o filho traiçoeiro.

      - Obrigado, meu pai. Agradeço-lhe a ajuda. Acredita que o pergaminho possa estar enterrado na caverna?

      Byrne hesitou.

      - Não sei.

      - Bom, amigos, membros da família, o meu palpite é que a escavação será produtiva. Que escavação, interrogam-se vocês. A nossa. Vamos todos passar a noite na caverna. Ninguém sairá de lá até encontrarmos as nossas respostas. - Virou-se para Deirdre e sorriu. - Uma noite no esplumoir de Merlin. Passei alguns dias na tua casa depois de partires e tive a oportunidade de ler o teu trabalho.

      - O que estiveste a fazer lá em casa? - perguntou Deirdre.

      - A conversar com Joanna, tentando persuadi-la a unir-se à minha causa. Foi pena não me ter dado ouvidos.

      - Para que quer o pergaminho, Powell? - inquiriu Indy. – Já tem a Omfalos.

      - O pergaminho contém a chave para desencadear o poder da Omfalos. Fica agora a saber um pouco sobre o antigo conhecimento celta, professor - este só se inicia quando o comando é dado.

      - Diabos me levem - disse Shannon ao ver a parada de prisioneiros serem conduzidos da casa do padre para uma carrinha. - E agora?

      Seguira Joanna até ali, e vira-a espreitar por uma janela, esgueirando-se de seguida em redor da casa. Deslocava-se pela propriedade como se a bem conhecesse, facto que se confirmou quando puxou de uma chave e abriu a porta. Shannon movera-se para uma janela da frente e estava precisamente a vê-la entrar na sala quando escutou uma carrinha a aproximar-se.

      Deitara-se ao chão e aguardara que Powell e dois comparsas contornassem a casa e entrassem silenciosamente pela mesma porta que Joanna utilizara.

      Não foi preciso muito tempo para que Shannon se apercebesse que o amigo estava realmente metido em sarilhos, e que teria de fazer alguma coisa. Mas não lhe ocorria nada que pudesse fazer.

      Observava agora a carrinha a arrancar. Afastou-se da casa e viu em que direcção seguiu. Tinha quase a certeza que se dirigiam para a caverna.

      - Oh, inferno.

      Shannon começou a caminhar atrás da carrinha. Quando chegou a Whithorn, passara pelo pub e perguntara onde estavam os arqueólogos hospedados. Nessa altura, Lily dissera-lhe que Indy estava na caverna e dera-lhe indicações sobre o caminho.

    Assegurara-lhe que o passeio seria bastante agradável. Que seria bom para o sangue. Mas a tarde ia já avançada pelo que decidira que uma cerveja ou duas no pub seria ainda mais agradável.

      Cerca de dez minutos depois, deixou de avistar a aldeia e encontrava-se em pleno campo. Shannon olhava constantemente para os bosques escuros de ambos os lados da estrada. O local provocava-lhe arrepios. Caminhou vezes sem conta em grandes cidades a altas horas da noite sem pensar duas vezes. Mas, aqui, era diferente. Incivilizado. Pairava no ar a sensação de que qualquer coisa podia acontecer.

      Naquele momento, escutou o ruído de ramos quebrando-se algures na estrada e estacou. "O que raio foi aquilo?" Esperou. Não conseguia ver absolutamente nada. Ponderou na hipótese de dar meia volta mas pensou que, provavelmente, já estaria a meio do caminho. De qualquer forma, não podia abandonar Indy. Tinham as suas divergências, mas nunca conheceu ninguém que arriscasse a vida pelos outros como Indy.

    Em Chicago, Indy salvara-o de sarilhos em bares de má reputação em diversas ocasiões. Além do mais, Indy era o único tipo que conhecia disposto a freqüentar os lugares onde hoje se tocava jazz.

      Shannon prosseguiu. O que quer que estivesse por ali, seria melhor permanecer nas trevas onde pertencia. Fazer de herói não era exactamente o que Shannon considerava um bom divertimento, e, quanto mais avançava, mais se interrogava o

    que estaria a fazer ali. Pensou de novo no telegrama. Aquela pedra, a Omfalos, estava de alguma forma relacionada com os sarilhos em que Indy se metera. Apostava nisso.

      Por fim, Shannon alcançou a base do rochedo e encontrou a carrinha vazia. Sabia que a gruta devia ficar algures por ali, mas não fazia idéia onde. Tentou escutar o som de vozes, mas nada ouviu.

      Caminhou até onde lhe foi possível pela base do penhasco, mas não  avistou nada que se assemelhasse à entrada de uma gruta. Foi então que afastou para o lado um ramo, espetou o pescoço e viu uma luz trêmula que emanava a uma certa altura da parede do rochedo.

      - Era de esperar, o local mais difícil de chegar. - Regressou à carrinha e, após alguns esforços, localizou a trilha que conduzia ao rochedo acima. Caminhou passo a passo, parando com freqüência, evitando praguejar em voz alta quando

    algum ramo estalava sob os seus pés.

      Estacou ao avistar a entrada da caverna, e ocultou-se por detrás de uma rocha saliente. Continuava demasiado afastado para conseguir escutar ou ver fosse o que fosse no interior da gruta. Amontoados de destroços resultantes da explosão

    encontravam-se juntos do lado mais afastado da entrada da caverna, e percebeu que, se conseguisse lá chegar sem ser visto, disporia de um local abrigado com pelo menos uma vista parcial.

      De tempos a tempos, alguém empurrava um carrinho cheio de terra e pedras até a berma do rochedo e despejava-o pela encosta. Shannon aguardou que o homem desaparecesse na caverna, respirou fundo e lançou-se a correr. Estava

    completamente desabrigado, o luar imprimindo a sua sombra na parede rochosa.

      Chegou ao outro lado da entrada para a gruta e escondeu-se por entre os destroços. O coração batia-lhe com força. Quase esperava que um guarda surgisse vindo do nada e lhe apontasse uma arma à cabeça. Quando nada sucedeu, espreitou para a caverna. Avistou archotes nas paredes e cerca de uma dezena de pessoas escavando na fraca luz alaranjada. Powell encontrava-se afastado dos outros. Despira o casaco e desapertara um pouco a gravata e fumava um cigarro.

      Uma cavidade no tecto da caverna, resultante da explosão, iniciava-se a uns três metros para lá da entrada. Quando reparou nela, Shannon teve uma ideia. Se conseguisse trepar para aquela superfície relativamente plana por cima da gruta,

    poderia observar de lá sem a mínima preocupação.

      Afastou-se do seu esconderijo, correndo em bicos de pés, agachado numa forma furtiva. Embateu numa rocha, vacilou, recuperou o equilíbrio e deslizou para trás de um rochedo proeminente. Shannon aguardou, esperando ser detectado a qualquer momento pelos homens de Powell. Mas, mais uma vez, não o viram nem ouviram.

      Deparou então com o que lhe pareceu uma trilha que conduzia ao topo do rochedo.

      Apressou-se a seguir pelo caminho, que, na verdade, não passava de uma série de apoios para os pés e saliências naturais. Seria o tipo de trilha que, em condições normais, nem sequer consideraria trepar durante o dia, muito menos à

    noite.

    Mas as circunstãncias estavam longe de serem normais, pelo que não teve alternativa. Rastejou, trepou, deslizou pelo rochedo acima.

      Daria tudo para estar naquele momento num palco de um clube mal iluminado e repleto de fumo, tocando o seu trompete, vagueando, relaxando, escapando. Mas ali estava ele, prisioneiro de um mundo que desprezava, lugar de esquemas, fraudes, ódio. E tudo ocorria ao ar livre, sob o luar.

      Nada do que se passava na caverna respeitava minimamente qualquer método arqueólogo, pensou Indy. Mesmo nada. Era como se estivessem a cavar um poço, uma vala, uma sepultura. Sim, uma sepultura. Essa era uma hipótese provável.

      Três horas tinham pelo menos já decorrido. Ninguém localizara nada na câmara dos fundos onde escavavam, com excepção de pedras e terra, e mais pedras e terra. Quando chegaram à gruta, encontraram Carl e Richard amarrados e amordaçados. Outros quatro homens, do grupo de Powell, ocupavam-se a fazer buracos.

      Powell assumira de imediato o comando, e ordenara que os homens presos fossem libertados e pegassem em pás. Mandara dois dos seus homens retirarem a terra para fora da caverna com o auxílio de carrinhos de mão, enquanto todos os outros cavavam buracos até uma profundidade de metro e meio.

      Deirdre trabalhava perto de uma parede a pouca distância de Indy. Joanna escavava ao longo da parede oposta, e Byrne e os outros encontravam-se dispersos entre eles. Ninguém falava; todos estavam de mau humor, incluindo Powell.

      Durante quanto tempo pensaria Powell que eles conseguiriam continuar? A governanta de Byrne estava já enroscada num canto, para onde um dos malandrins a empurrara depois de ela ter arremessado repetidamente a pá para o chão e rogado misericórdia.

      Poderia levar cerca de dois dias a baixar todo o nível do solo em cerca de metro e meio, e os progressos seriam consideravelmente retardados junto da entrada, onde se encontravam amontoadas pilhas de destroços provenientes da explosão.

      Mas, talvez quanto mais tempo levasse a encontrar o pergaminho, mais tempo eles vivessem, e existia sempre a possibilidade de nunca o encontrarem. Talvez nunca tivesse sido ali enterrado, ou alguém o tivesse achado há muito tempo e derretido o ouro. Este pensamento ocorria-lhe no preciso momento em que ouviu Deirdre chamar por ele.

      - Indy. - A voz dela era estridente mas baixa.

      Aproximou-se dela.

      - O que foi?

      - Parece-me que encontrei qualquer coisa.

      Parara de escavar e colocara-se de joelhos. Indy olhou Por cima  dos ombros, e viu que ninguém a escutara.

    Posicionou-se ao lado dela. No buraco, a cerca de um metro abaixo da superfície, avistava-se um vaso de cerâmica de gargalo estreito, parcialmente exposto. A boca estava selada com uma rolha e cera e só o gargalo tinha pelo menos uns vinte centímetros de comprimento.

      - Pensas que pode estar no interior? - murmurou ela.

      Indy iniciou outro buraco, na tentativa de não despertar atenções.

      - Não sei. Continua a escavar. Mostra-te ocupada.

      Deirdre afastou a terra dos lados, alargando o buraco. Indy sacou outra pá de terra para o lado e, num movimento rápido, quebrou o gargalo do vaso com a pá. Este estalou e despedaçou-se contra a terra dura por baixo. Ajoelhou-se e introduziu cuidadosamente a mão no interior.

      - Vem aí alguém - alertou Deirdre.

      Indy atirou terra para cima do vaso e retomou o seu próprio buraco no preciso momento em que um dos homens de Powell passou com o carrinho por eles.

      - Sentiste alguma coisa?

      Indy abanou a cabeça.

      Deirdre baixou-se, sacudiu a terra do vaso e virou-o ao contrário.

      - Indy, tem qualquer coisa.

      - O que é? - sussurrou este.

      - Penso que é um pergaminho.

      Indy aproximou-se dela e ajoelhou-se quando esta o tirou para fora.

      - Não o ponhas à vista - disse entre dentes, ao ver que alguém caminhava na direcção deles.

      - Ora vejam, o que temos aqui, irmãzinha?

      Powell encontrava-se atrás deles, bramindo uma arma.

      - Nada - respondeu Deirdre.

      - O que acabaste de desenterrar?

      - Já disse que não foi nada.

      Powell pressionou a arma contra a nuca dela.

      - Espero bem que não estejas a mentir, querida irmã.

      - Dê-lhe isso - afirmou Indy.

      - Ah, então estás mesmo a esconder alguma coisa. – Powell chamou dois dos seus homens. Estalou os dedos e apontou para o buraco. Os seus comparsas desenterraram rapidamente o vaso partido e o pergaminho.

      - Vejamos, o que poderá ser isto? - Powell parecia curioso e simultaneamente desiludido por não se tratar do pergaminho de ouro. - Vigiem-nos com cautela. - Aproximou-se de um dos archotes montados na parede.

      - Espero que se desfaça nas mãos dele - murmurou Indy.

      - Não digas isso - replicou Deirdre. - Pode ser algo importante.

      Tinha o rosto coberto de terra e o cabelo ruivo pendia-lhe solto sobre as faces.

      - É exatamente disso que tenho receio. - Esticou o pescoço para ver o mais possível.

      Com o auxílio de um dos seus homens, Powell desenrolou lentamente o pergaminho. Mas era inexperiente com aquele tipo de material e quebrou-o em três pedaços. Os óculos estavam de novo no seu devido lugar e observava a escrita. Indy decidiu que se lhe pedissem para decifrar alguma coisa, enganaria Powell intencionalmente. 

     Powell não levou muito tempo a ponderar no seu próximo passo. Dirigiu-se a um grupo dos seus comparsas.

      - Okay, amarrem-nos. Os pulsos aos tornozelos. Toda a gente menos o padre.

      - O que vais fazer comigo? - perguntou Byrne enquanto os homens executavam as ordens.

      - O senhor vai ser o meu tradutor, querido pai. Sei que o seu Latim é excelente. Vai também ser o meu bode expiatório. Será acusado pelas mortes deles, porque o chefe da polícia irá encontrar a outra vasilha na sua casa.

      - Ele nunca acreditará nisso - rosnou Byrne.

      Powell encolheu os ombros.

      - Talvez não. Mas, se efectuarem uma investigação rigorosa, descobrirão a verdade sobre si e os seus recrutas. Estou certo que, submetido a uma certa pressão, um desses vulneráveis jovens soldados dará com a língua nos dentes.

      - Não te safarás - ameaçou Byrne. - As leis de Deus são mais fortes.

      Powell riu-se.

      - Levarei isso em consideração.

      O Olhos Estreitos sorriu para Indy ao colocar-lhe a corda nos tornozelos. Foi quanto bastou para o arqueólogo. Recolheu as pernas e, num impulso, esmagou os pés contra o peito do homem. O Olhos Estreitos foi apanhado desprevenido; tombou para o lado.

      Indy lançou-se à arma que o indivíduo tinha no coldre e conseguiu retirá-la, mas Olhos Estreitos agarrou nos pulsos de Indy com as mãos. Lutaram, mas Indy dispunha de um melhor âmbito de movimento. Libertou as mãos, e retrocedeu oscilando a arma de um lado para outro.

      - Não se mova, Jones! - Powell apontava o revólver à cabeça de Deirdre. - Atire a arma ao chão. Já. Ou ela morre.

      Indy deixou cair a arma.

      - De rosto no chão! - gritou Powell.

      Olhos Estreitos agarrou na arma e esmagou a coronha nas costas de Indy, derrubando-o para o solo. Esfregou a cara de Indy na terra e, com o auxílio de um dos outros, amarrou-lhe os punhos atrás das costas e depois aos tornozelos.

      Indy cuspiu terra. Powell emitiu um sorriso trocista.

      - O espírito de sobrevivência é forte. Tão forte. – Fez sinal com a cabeça para Olhos Estreitos. - Trata de tudo. Está na hora de nos irmos embora.

      Olhos Estreitos desapareceu de vista. Quando Indy o voltou a ver, compreendeu o que Powell destinara para eles. O vilão pousou a vasilha de cloro gasoso sobre uma rocha plana a menos de trás metros do local onde ele e Deirdre estavam amarrados.

    Próximos deles estava Joanna e a governanta e, um pouco mais afastados, Carl e Richard. A única esperança que lhes restava era que a vasilha já estivesse vazia ou defeituosa.

      Powell baixou-se e apanhou os fragmentos do pergaminho que caíram quando Indy tentara escapar. Passou-os a Byrne, enquanto Olhos Estreitos terminava os seus preparativos com o gás venenoso.

      - Leia, padre. Agora.

      - Não.

      Powell suspirou.

      - Como quiser. Não é o único que sabe latim. Mas agora terá de morrer com os outros.

      - Está bem. Dê-me isso.

      Shannon encontrava-se estendido no solo, observando a caverna lá em baixo. Podia ver Indy e Deirdre deitados no chão e as pernas de Joanna. Não conseguia avistar Powell, mas sabia que devia estar perto, pelo som da voz.

      Quando alcançou o topo do rochedo, estendera-se ao lado do orifício no tecto da gruta e aguardara. Podia ver a luz dos archotes, mas nada mais. Encontravam-se a trabalhar numa zona muito afastada da entrada. Tudo o que ouvia era o som

    ocasional de uma pá embatendo numa rocha ou o crepitar das rodas dos carrinhos de mão.

      Shannon imaginou-se entrando pela frente da caverna.

    Enquanto todos escutavam Powell, esgueirar-se-ia despercebido ao longo da parede, passando directamente por baixo de uns archotes. Talvez se lançasse para um dos buracos, e agarrasse em Powell pelo tornozelo quando este caminhasse de um lado para o outro. Desarmava-o e todos os outros largariam as armas quando vissem o chefe cativo. Esse era o tipo de coisa que lhe agradaria fazer, mas sabia que não conseguiria levar o plano avante e sair vivo. Essas cenas eram próprias dos filmes.

    Aqui, era real; demasiado real para ele.

      Ponderou na hipótese de voltar rapidamente à aldeia em busca de auxílio, mas recordou-se então de como Indy lhe contara ter escapado ao gás e à explosão. Tinha de existir um outro orifício. Recuou da berma da cavidade e rastejou de gatas pelas trevas, em busca da abertura. Por fim, Shannon parou para descansar junto de uma rocha, avistando então o buraco do outro lado.

      Desejou que Powell e os seus amiguinhos se fossem embora com o que quer que fosse que tinham encontrado. Quando tivesse a certeza de que tinham partido, desceria e libertaria toda a gente. Mas o que se estaria a passar? Inclinou-se para a frente o mais que conseguiu e pôs-se à escuta.

      Daquele ângulo podia avistar as pernas de Byrne e viu que este segurava algo na mão. Um dos homens devia estar perto dele com um archote, porque incidia luz por detrás dele.

      Byrne tossiu.

      "- Cinco meses passaram desde que escrevi sobre o pergaminho de ouro. O mensageiro do Vaticano chegou hoje, mas receio que me seja lançado um feitiço pelo que não me atrevo a enviar a carta ou o pergaminho. Perdoai me pelos meus actos, mas vejo-me obrigado a proceder desta forma, seja ela certa ou errada. O Senhor julgará a minha culpa ou inocência.

      As palavras que Merlin escreveu são deveras surpreendentes, e a humanidade tomará conhecimento delas em devido tempo.

    Vejo-me obrigado a enviar o pergaminho de ouro para o lugar mais próximo a que ele verdadeiramente pertence. Não irá Para o pontificado, mas para a minha irmã no convento de Amesbury, com instruções para que seja ocultado no mais secreto dos locais dentro do convento. Assim, aquele que busca o pergaminho de ouro de Merlin deverá procurá-lo lá."

      - Amesbury, a poucos passos de Stonehenge - disse Powell. - Será perfeito...

      Subitamente, originou-se um verdadeiro caos, com gritos e correrias.

      Shannon levantou a cabeça e olhou para trás. Ter-se-ia enfiado demasiado no orifício e alguém o tivesse localizado?

    Ergueu-se, pronto a correr, mas estacou ao ouvir um grito.

    Indy levantou a cabeça quando Byrne disparou para a entrada da caverna. Um dos homens de Powell, rápido na perseguição, tropeçou num buraco. Um outro estatelou-se por cima dele, praguejando em voz alta. Içaram-se para fora do buraco e correram na direcção da entrada.

      Mas, ainda os indivíduos não tinham dado uma meia dúzia de passos quando Indy escutou um grito de terror, um som profundo e horrível que enfraqueceu e morreu.

      Por momentos, não compreendeu o que se tinha passado. Só depois tomou consciência de que o padre se devia ter precipitado pelo penhasco.

      Quer de forma intencional ou acidental, o padre Byrne desaparecera e, com ele, o pergaminho. Já não tinha de se preocupar com Powell ou com a polícia. A sua missão de salvar o mundo das palavras de Merlin terminara.

      - E assim os pecadores são castigados - disse Powell quando os dois comparsas regressaram.

      - Adrian, toma consciência do que fazes - afirmou Joanna.

      - Lamento que tenha de terminar desta forma, mãe. Adeus. Desejo-lhe uma boa viagem.

      Sorriu, tristemente, para Deirdre.

      - Querida irmã, é uma pena as coisas não terem corrido de forma diferente. Se não me tivesses desprezado, poderíamos nos ter tornado grandes amigos e aliados. Sabes, nem todo o amor requer união física. Eu ia contar-te. Verdade que sim.

      - Adrian, não faças isto - suplicou Deirdre.

      Mas Powell ignorou-a e voltou-se para o Olhos Estreitos.

      - Vamos.

      - Deirdre, querida, quando o gás chegar, respira profundamente e tudo terminará depressa - disse Joanna.

      - Não lhe dês ouvidos - replicou Indy. - Contém a respiração. Reza por um milagre.

      Mãe e filha fizeram as suas despedidas; Indy recusou-se a dizer adeus. Escutou um ruído quando o gás sibilou para fora da vasilha, e conteve a respiração pela última vez antes de o cloro gasoso contaminar o ar. Da sua linha de visão do solo,

    avistou Powell e os seus homens partirem. Comprimiu os olhos contra o cloro. Não conseguiu evitar de inalar algum; sentiu-o arder no interior do nariz.

      Alguém que nos salve. Nesse instante, uma figura caiu do céu, do tecto, de algures. Uma criatura, um deus, com faces como balões. Apercebeu-se então de quem se tratava; mal podia acreditar. Shannon, os pulmões e bochechas cheias de ar, sabia exactamente o que fazer. Agarrou na primeira pá que encontrou.

    Pegou na vasilha com a pá, atirou-a para cima do carrinho meio cheio de terra e abafou-a o melhor que conseguiu. Depois, sem hesitar mais um segundo, conduziu o carrinho por entre os buracos e montes de destroços para fora da gruta. Com um último impulso, empurrou o carro por cima da berma do

    penhasco.

      Este desapareceu na noite, e Shannon deixou-se cair no chão de mãos e joelhos. Deixou entrar nos pulmões grandes golfadas de ar fresco e puro. Depois, pensou nos outros. Tinha de os ajudar.

      Ergueu-se com dificuldade e regressou apressadamente à caverna.

      - Indy!

      Nenhuma resposta.

      Meu Deus, estariam todos mortos?

      Tossiu e sufocou devido ao cloro gasoso que permanecia no ar. Ajoelhou-se junto de Indy e pousou-lhe uma mão no ombro.

      - Shannon - disse uma voz fraca. - Tira-nos daqui. Rápido.

      Puxou da navalha de bolso e cortou a corda que atava os pés e mãos de Indy. Ouviu os dois guardas tossindo e Deirdre gemendo e choramingando, ao mesmo tempo que dizia qualquer coisa, repetidamente. No início pensou tratar-se do efeito do gás; estava com dores. Mas, quando lhe cortou a corda, entendeu o que ela dizia.

      - Mãe Joanna. Mãe Joanna. - Vezes sem conta.

      Indy libertou-se da corda e aproximou-se para ajudar Deirdre. Shannon virou-se para Joanna. Viu de imediato que era tarde demais.

      Joanna estava morta.

     

    AS ENSEADAS

      Os olhos de Deirdre encheram-se de lágrimas quando a urna com o cadáver da mãe foi descido para o solo no cemitério de Whithorn. A cerimônia terminou e os aldeãos começaram a dispersar. Mais um dos seus que se reunia aos locais.

      Indy sabia que muitas destas pessoas estiveram ali no dia anterior para o funeral do padre Byrne e que poucos, se alguns, estavam a par das reais circunstâncias das mortes do sacerdote ou de Joanna. Corria o rumor de que foram provocadas por uma explosão de gás utilizado nos trabalhos na caverna.

    Joanna Campbell falecera; o padre Byrne precipitara-se do rochedo ao tentar escapar. Se alguém se interrogava o que estaria o padre a fazer na caverna, ninguém perguntou a Indy.

      - Pergunto a mim mesma se, antes de morrer, ela terá visto Jack que nos vinha salvar - murmurou Deirdre.

      Indy não sabia o que responder.

      - Não penses nisso.

      - Não consigo deixar de pensar. Podia estar viva, Indy.

      Talvez ela não quisesse viver, pensou este.

      - É melhor irmos.

      - Dá-me mais um minuto.

      Indy afastou-se um pouco. Tinham passado três dias desde o incidente na gruta, e nem ele nem Deirdre estavam em grande forma. Ocasiões havia em que os seus pulmões ainda ardiam e as cabeças lhes doíam. Mas decidiram que, mal o funeral terminasse, seguiriam para Amesbury a fim de se juntarem a Shannon, que partira na frente deles.

      A razão era simples; tinham de impedir Powell. Não porque receassem o que pudesse suceder se ele encontrasse o pergaminho de ouro e o unisse à Omfalos numa qualquer cerimônia druida em Stonehenge. Tal era irrelevante. O homem estava demente, e era perigoso. Só de pensar que ocupava uma posição de influência no governo britânico e que o seu objectivo era subir ainda mais fazia Indy estremecer. Não sabia bem o que iriam fazer, mas algo tinha de ser feito, e Amesbury era o local apropriado.

    Deirdre voltou-se da sepultura.

      - Estou pronta.

      Indy tomou-lhe a mão quando começaaram a afastar-se, mas ela puxou-a, cruzou os braços e olhou em frente. Quando se aproximaram do portão do cemitério, Indy avistou Carl que esperava por eles.

      - Como está Richard? - perguntou Deirdre.

      - Ainda de cama. Penso que ele foi o mais atingido. Isto é, para além da dra. Campbell.

      - Desejo-lhe as melhoras por nós - disse ela.

      Este anuiu e depois virou-se para Indy.

      - Já sabe? A investigação terminou.

      - Não, o que decidiram?

      - O chefe da polícia encontrou duas vasilhas de cloro gasoso na casa do padre Byrne, e afirma que o sacerdote é o responsável pela morte de dra. Campbell.

      Indy anuiu.

      - Nada sobre Powell?

      Carl abanou a cabe?a.

      - Cá para mim, é tudo política. Do relatório do chefe de polícia não consta nem uma palavra sobre ele.

     - Obrigado, Carl. Já esperava isso. - Começaram a afastar-se. - Mais uma razão para chegarmos a Amesbury o mais depressa possível - murmurou.

      - Indy - chamou Carl e correu atrás dele. - Por favor, leve isto consigo.

      Entregou-lhe qualquer coisa embrulhada em papel e atada com um fio. Era pesada, e parecia ser uma arma.

      - O que é?

      - Uma Webley 455. Pode vir a precisar.

     É um caso de o baixo ser alto, pensou Indy, olhando pela janela enquanto o comboio avançava pela enseada ocidental. Apesar do nome, a enseada não era uma terra baixa, antes um planalto, elevando-se a cerca de uma centena de metros acima do nível do mar.

      Tinham atravessado Salisbury Plain, completamente indistinta do resto da enseada, com excepção de que era marginada por dois rios e uma guarnição de colinas. Para Indy, tudo não passava de uma paisagem vasta e estéril.

      Deirdre inclinou-se para a frente. Quanto mais se aproximavam de Amesbury, mais ansiosa ficava.

      - Já consegues avistar a aldeia?

      Indy abanou a cabeça.

      - Não te estejas a enervar. Estamos quase lá.

      - Não consigo evitar. Estou preocupada, e assustada.

      Indy colocou-lhe um braço em redor dos ombros e afastou-lhe uma madeixa de cabelos ruivos do rosto. Sentiu-a retrair-se, afastar-se dele. Sabia que ela sofria ainda com a morte da mãe, mas tinha de haver algo mais.  Suspeitava que tinha algo a ver com o relacionamento dela com Powell. Queria dizer-lhe que pouco importava o que se passara entre eles. Mas era difícil encontrar as palavras correctas. Sabia que Deirdre poderia interpretar mal o que lhe dissesse, ou pior, assumir que ele dizia uma coisa mas que pensava outra. Pelo que  nada dissera e a barreira permanecia.

      - Deirdre, o que se passa?

      - Acabei de te dizer.

      - Não, quero dizer entre nós.

      O compartimento ficou em silêncio. Ela evitou o olhar dele.

      - Não sabia que havia alguma coisa entre nós, boa ou má.

      Negação.

      - Penso que existe, e tu também o sabes. Podemos não nos conhecer há muito tempo, mas algo de especial se desenvolveu.

      - O quê?

     - Estou apaixonado por ti, é isso.

      Ela mordeu o lábio inferior e olhou para ele. Os seus olhos brilhavam. Pestanejou, combatendo as lágrimas.

     - Raios, Indy. Como podes dizer isso? Como podes me amar? Sinto-me tão suja. Ele era meu meio-irmão.

      - Não tem importância. - Mas perguntou a si mesmo o que significariam aquelas palavras.

      - Tem, sim.

      - Deirdre, tu e Adrian...

      - Não, claro que não. Mas beijou-me, e...

      Indy riu-se.

      - E depois? Irmãos e irmãs beijam-se.

      Ela abanou a cabeça.

      - Daquela forma não. Meu Deus, ele sabia, Indy. Sabia e,  mesmo assim, queria fazer amor comigo. É um homem horrível. Odeio-o.

      - Mas não fizeste. Acabaste de dizer que não fizeste.

      - Não interessa. Fico enojada só de pensar nisso. Por isso Joanna era tão severa em relaçã o a ele. Mas também não me contou, e ainda não consigo perdoar-lhe por isso.

      - Deirdre, agora terminou. Esquece esse assunto. – Indy sabia que isso não era exactamente verdade. Seguramente que não fora a última vez que viram Powell.

      Deirdre lançou os braços em redor do pescoço dele e deitou o rosto no seu ombro. Quando falou, a sua voz era abafada.

      - Quem me dera que tivesse tudo realmente acabado.

      - Verás. Terminará tudo em breve.

      - Amo-te, Indy.

      Jones beijou-lhe o pescoço, o queixo, a boca. As suas línguas bateram-se em duelo. Ele desejava-a, e Indy sabia que ela compartilhava da sua paixão, mas que estava distraída, absorta pelos acontecimentos que os rodeavam.

     Deirdre afastou-se ligeiramente.

      - Talvez possamos encontrar Jack, e regressarmos a Londres sem voltarmos a pensar em Adrian. Esquecer tudo isto.

      Esquecer era aquilo que ele mais desejava. Mas queria saber o que Shannon descobrira. Foi o que lhe disse ao deslizar os dedos pelos cabelos dela, o seu perfume invadindo, intoxicando.

      - Indy?

      - Mmmm?

      - Não tenho um bom pressentimento em relação ao que se vai passar.

      - Não te preocupes - proferiu, com maior convicção do que realmente sentia.

      - Preocupo-me sempre.

      - Vou dizer-te uma coisa. - Tocou-lhe no queixo, erguendo-lhe o rosto. - Quando regressarmos a Londres, gostaria de me casar.

      Nem acreditava que tivesse acabado de dizer tal coisa, e ela parecia igualmente surpreendida.

      - Com quem?

      - Com, uh, contigo.

      Ela riu-se suavemente, muito suavemente.

      - Isso é um pedido?

      - Sim. - O sorriso dele cresceu. - Sim, creio que é.

      - Sim. - Foi tudo o que disse, apenas sim, a mais doce palavra que Indy jamais ouvira.

      - Amesbury - gritou o revisor, deslocando-se pelo corredor entre os compartimentos.

      Nesse momento, o comboio abrandou e Indy avistou a aldeia.

      Localizava-se numa concavidade do planalto onde o rio Avon rasgara um desvio na sua rota através do Sul de Inglaterra. Fora construída no local de antigas ruínas de pedra, mas era sobretudo conhecida como a aldeia mais próxima de Stonehenge.

      - Bom, chegamos.

      - Espero que Jack esteja bem.

      - Pode não ser o melhor espécimen físico, mas garanto que Jack sabe cuidar de si mesmo.

      - Achas que vamos ter dificuldades em encontrá-lo?

      - Traçamos um plano. Ele iria deixar uma mensagem na primeira estalagem que lhe surgisse quando deixasse a estação.

      Ao desembarcarem, um garoto de cabelo louro farto e orelhas

    salientes veio até eles e perguntou-lhes se desejavam uma viagem de charrete para as ruínas. Parecia ter uns onze ou doze anos, mas era alto para a idade.

      - Agora não - respondeu Indy e continuou a andar.

      - Não encontrarão um quarto - gritou o garoto atrás deles.

      - Miúdo esperto - murmurou Indy.

      Seguiram pela rua principal da aldeia. A maioria das casas de paredes brancas estavam decoradas em azul-pálido, vermelho ou preto, constituindo o único contraste sob o céu cinzento e o planalto castanho uniforme. Localizaram a primeira estalagem dois quarteirões a seguir à estação.

      Um homem de idade encontrava-se sentado por detrás de um balcão de madeira num átrio pequeno. Espessas suíças ladeavam-lhe as faces como se fossem pele prateada. Bebia chá, e só olhou para cima quando Indy tossiu.

      - Está com sorte, jovem. Temos um quarto disponível para o fim-de-semana. A reserva foi cancelada.

      - Só um quarto? - perguntou Deirdre.

      - Óptimo - disse Indy. - Tem algum recado para Henry Jones?

      - Henry Jones. - O homem franziu o sobrolho e dirigiu-se a uma parede com cubículos. - Deixe-me ver - disse, introduzindo a mão num cubículo de canto.

      Deirdre olhou para Indy.

      - Henry? - inquiriu, em voz baixa.

      - O meu nome de código - murmurou.

      O velhote voltou ao balcão, trazendo o chá.

      - Não, hoje não há nada.

      - E de ontem ou de anteontem? - perguntou Indy, imperturbado.

      - Bom, eu realmente tinha uma mensagem para um Mr. H. Jones, mas não podia ser o senhor.

      - Por que não?

      - Porque o Jones já a veio levantar.

      - Sim? E como era esse Jones? Penso que sou capaz de o conhecer.

      O velhote estudou Indy por momentos e depois encolheu os ombros.

      - Não me recordo.

      Indy levou a mão à algibeira e pousou algumas moedas sobre o balcão, junto da campainha.

      - Tem a certeza?

      O homem mirou o dinheiro.

      - Pensando bem, parece que me lembro agora qualquer coisa sobre ele. Um tipo bem-parecido, muito sociável. Bem vestido. Tinha uma pequena cova no queixo.

      Powell. Não havia dúvidas.

      - Obrigado. Mr. Shannon está no quarto?

      O velhote esfregou o queixo e olhou para os cubículos na parede, como se Shannon estivesse escondido num deles, e depois de novo para as moedas sobre o balcão.

      - Shannon, Shannon. O nome não me é estranho.

      Indy acrescentou mais alguns trocados para lhe avivar a memória.

      - Foi ele quem deixou a mensagem.

     - Oh, é claro. Cancelou a estada. Ficou uma noite e pagou por trás. Por isso tenho um quarto disponível.

      - Deu alguma razão para se ir embora? - perguntou Deirdre

    . - Nada. Na verdade, quem cancelou o quarto por ele foi o Jones. Reuniu as coisas dele e levou-as.

      - O Jones está aqui hospedado? - perguntou Indy, e juntou a última das suas moedas ao monte.

      O homem pousou o chá.

      - Conhece este tal Jones?

     - Claro.   É meu irmão.

      - Por que não disse logo? Está no velho convento. Aquilo lá está cheio de pessoas.

      - O que estão a fazer?

      O velhote franziu o sobrolho para Indy.

      - Ele não lhe disse?

      - Não entrou em pormenores - replicou Indy. - Tenho a impressão que me vai pôr a trabalhar e só queria descobrir em que me vou meter.

      - Bem pensado. Estão a inspeccionar toda a estrutura, fundações, tudo. Aquilo está fechado há anos. Agora parece que vai aparecer dinheiro para a restauração, mas têm de saber em que estado está o convento.

      - Que óptimo - afirmou Deirdre. - Quero dizer, que alguém queira arranjar o convento.

      - Tudo isto começou num àpice. - Inclinou-se para a frente, tocou nas moedas e depois fez uma careta. - Tudo política, se me perguntam.

      - Se o meu irmão está envolvido, compreendo que assim seja.

      - Indy virou-se para Deirdre.

      - E se fôssemos até lá dar uma vista de olhos?

      O velho estalajadeiro espreitou com curiosidade para eles, por cima dos óculos de aros de metal.

      - Não vão precisar primeiro do quarto? Todas as estalagens estão sem vagas.

      - Porquê? - indagou Indy.

      A aldeia não parecia particularmente cheia de visitantes. Na verdade, Indy avistara poucas pessoas que pudesse identificar como estranhos ao local.

      - Por causa do festival.

      - Um festival? - inquiriu Deirdre.

      - De dezanove em dezanove anos, os druidas organizam um grande festival que é assistido por pessoas que vêm de toda a Grã-Bretanha e do continente. - Inclinou-se sobre o balcão e levou uma mão à boca. - Pessoal supersticioso, sabem como é. Durante duas noites, Stonehenge é só deles.

      - Quando começa? - perguntou Indy, interrogando-se se o festival teria algo a ver com o plano de Powell em relação ao pergaminho de ouro e à Omfalos.

      - Começou ontem a noite. Durou até ao amanhecer.

      - Quantas pessoas estiveram presentes? - perguntou Indy ao assinar o livro de registro.

      - Centenas, pelo que ouvi. Dizem que este é especial porque vai coincidir com um eclipse do Sol. Sabem, eles pensam que aquelas velhas pedras foram ali postas para vigiar as estrelas. Toda a vida ouvi dizer isso. Pode ser verdade. Também cá vêm para o solstício. Reúnem-se todos os vinte e um de Junho de madrugada, observando o Sol a erguer-se por cima da grande rocha no exterior, aquela a que chamam a pedra de ponta. - Inclinou-se para a frente e pestanejou. - Pedra do inferno, é o que eu lhe chamo.

      Indy conhecia bem o ritual do solstício de Verão, mas isso não o interessava naquele momento.

      - Onde estão agora todos esses druidas? Não vi muitas pessoas na rua.

      - Estão lá todos outra vez. Dormiram algumas horas e voltaram logo para lá. Ouvi dizer que vão servir uma refeição antes.

      - Quando vai ser o eclipse? - indagou Indy.

     O velhote olhou para o relógio do avô atrás dele.

     - Três e vinte e dois. Daqui a duas horas.

      Indy olhou para Deirdre.

      - E se fôssemos assistir antes de visitarmos o meu irmão no convento?

     - Boa ideia.

      - A mim é que não me apanhavam lá fora, muito menos à noite com aquele pessoal - disse o homem.

      - Por que não? - quis saber Deirdre.

      - Na última vez que fizeram um destes festivais, há dezanove anos atrás, dois rapazes da aldeia, mais ou menos da vossa idade, foram lá espreitar. Regressaram, mas nunca mais foram os mesmos. Um matou-se um ano depois. Esmagou a cabeçaa numa daquelas pedras. O outro está num asilo em Londres desde há vários anos.

      Indy pegou nas malas.

      - Obrigado pela dica.

      O velhote entregou a chave a Deirdre e guardou as moedas.

      - O quarto fica no cimo das escadas? esquerda.

      - E Jack? - perguntou Deirdre ao subirem as escadas.

      - Se bem conheço Jack, provavelmente, apercebeu-se que Powell andava na sua al?çada e desapareceu antes que lhe deitassem a mão. Talvez o encontremos no eclipse.

      Indy abriu a porta e entraram no quarto. Olhou com desapontamento para as duas camas individuais e depois pousou as malas no chão.

      - E a mensagem que ele deixou?

      Indy sentou-se numa das camas, testando as molas.

      - Provavelmente, Powell apoderou-se dela quando descobriu que Shannon desaparecera. -Pelo menos, era isso o que esperava tivesse acontecido.

      - Nesse caso, Adrian devia estar ao corrente de que n?s v?ínhamos a caminho. Por que n?ão terá mandado alguém para nos deitar as mãos? - perguntou ela.

      - Por causa do eclipse. Devemos ter chegado na altura correcta.

      - Talvez fosse melhor irmos antes ao convento, se toda a gente está nas ruínas.

      Indy pensou no caso.

      - Podíamos, mas, e se Powell j? encontrou o pergaminho e o  tem com ele? Poder? ser a nossa única hipótese de o agarrar.

      - Mas como?

  •   Indy levantou-se.

      - Vamos ver como as coisas correm. Se, de alguma forma,  conseguirmos tirar-lhe a Omfalos, pode ser que tudo se resolva s? por si.

  •   Preparava-se para abrir a porta quando Deirdre lhe tocou no  braço.

      - Indy, respondes-me com sinceridade acerca de uma coisa?

      Ele virou-se, encostou-se à porta e colocou-lhe as mãos na cintura.

      - Vou tentar.

      - Acreditas realmente em mim quando digo que nunca dormi  com Adrian?

      Ele riu-se e apertou-lhe os ombros.

      - Claro que sim.

      Deirdre abra?çou-o.

      - Estava t?ão preocupada que pudesses pensar... n?ão sei. Que eu... n?o era limpa, ou qualquer coisa assim.

      - Deirdre, esquece isso. - Puxou-lhe o cabelo para tr?s e afagou lhe o rosto, beijando-a de seguida.

  •   Os l?ábios dela entreabriram-se e puxou-o mais para si.

    Indy abriu um olho e mirou a cama a apenas alguns passos.

      - De nada serve l? chegar demasiado cedo - murmurou ao ouvido dela quando terminaram o beijo.

      Ela sorriu.

      - Pode at? ser perigoso chegarmos muito antes do eclipse.

      Indy anuiu, encaminhando-a para a cama.

      - Concordo, inteiramente.

     

    O ECLIPSE EM STONEHENGE

      Stonehenge ficava a duas milhas a oeste da aldeia, mas Indy não fazia idéia se se dirigiam às ruínas ou na direcção oposta. Procurou um meio de transporte, mas Amesbury não era Londres, e, dos poucos carros estacionados ao longo da rua, nenhum parecia ser um táxi.

      - Se vamos ter de caminhar até lá, muito provavelmente não assistiremos ao eclipse - disse Deirdre.

      Indy olhou para o céu. A sólida cobertura de nuvens cinzentas mantinha-se inalterável.

      - O eclipse também não será relevante. Tenho a certeza que será apenas parcial e, com estas nuvens, somos capazes de nem nos apercebermos dele.

      Naquele momento, pouco importava que chegassem às ruínas ou não. Sentia-se ainda em perfeita êxtase depois de ter feito amor com Deirdre. Se Shannon surgisse naquele preciso instante, consideraria mesmo a hipótese de esquecer por completo Powell e os druidas e regressar a Londres no próximo comboio. Poderiam fazer um relatório sobre o que acontecera a Joanna à Scotland Yard e informá-los que a investigação local fora uma autêntica farsa.

      Essa seria a forma civilizada de conduzir o assunto, mas tinha quase a certeza de que Powell sairia intocado.

     Nesse instante, escutaram o som de cascos e voltaram-se para ver um cavalo e uma charrete que se aproximavam a passo lento.

      Indy parou e preparava-se para acenar ao condutor quando reparou tratar-se do garoto de cabelo louro.

      - Querem ir para Stonehenge? Ainda lá podem chegar antes do eclipse.

      - Era mesmo de ti que andávamos à procura - disse Indy quando o rapaz desceu para abrir a porta da charrette.

      - Vocês não são druidas, pois não? Não me pareceu - acrescentou rapidamente o rapaz, respondendo à sua própria pergunta.

      - Como sabes?

      - Vocês não andam de vestes e, a esta altura, já lá estão todos.

      - Tiveste muito negócio hoje, aposto - disse Deirdre ao subir para a charrete.

      - Não. Os druidas vão a pé. - Abanou a cabeça como se os druidas fossem sinônimo de aborrecimento. Indy ficara com a mesma sensação do velho estalajadeiro. Os druidas eram tolerados, mas não pessoas que agradassem aos aldeãos.

      - Não há problema se formos até lá? - perguntou ela.

      O garoto riu-se, fechando a porta depois de Indy entrar.

      - Não vão ser os únicos turistas presentes. Terão apenas de se manter todos num só lado.

      Isso é que era bom, pensou Indy.

      - Conduz com cuidado - pediu Deirdre ao miúdo quando ele montou e pegou nas rédeas.

      - Conduzo isto desde que me lembro - disse numa voz estranha que, sem dúvida, queria fazer soar a adulto.

      Indy sorriu.

      - Estará em condições de se reformar quando chegar aos vinte e um anos.

     O garoto olhou para trás para eles.

      - Mais três anos e já posso ter carro. Dizem que, mais dia menos dia, os carros vão afastar aqui os cavalos das estradas, tal como fizeram nas cidades.

      - A isso chama-se progresso, garoto - disse Indy. - Vamos.

      - O meu nome é Randolph, mas podem me chamar Randy. Toda a gente me trata assim, excepto o meu pai.

      - Eu sou Deirdre. Este é Indy.

      Indy lançou-Lhe um olhar duro.

      - Bem pensado. Diz a todos que estamos cá - afirmou, em tom baixo.

      Enquanto a carruagem seguia em frente e deixava a aldeia para trás, Indy analisou o aterro antigo e as reminiscências megalíticas que ladeavam trás lados da aldeia. Mas a maioria das pedras maciças e em estado bruto tinha sido removida há muito, pelo que o local pouco possuía da impressionante aparência do lugar para onde se dirigiam.

      Alguns minutos depois, Indy localizou Stonehenge. As rochas erguiam-se no Salisbury Plain como um conjunto de torres que Lhe recordavam vagamente um castelo. Contudo, o círculo de pedras parecia pequeno e isolado, não o centro do mundo, mas uma relíquia deslocada, perdida no tempo, com os destroços de um naufrágio no deserto.

      Ao aproximarem-se das ruínas, avistou uma linha de figuras liliputianas vestidas de vestes brancas movendo-se por debaixo dos pilares de pedra. Ao chegarem mais perto, apercebeu-se que as figuras encapuçadas eram homens e mulheres adultos tornados pequenos pelas rochas maciças. A charrete circulou para a direita, virando na direcção do final da trilha.

    Podia ver que alguns druidas carregavam ramos de carvalho, outros longas trompas, e que outros seguravam incensários rodeados por nuvens de fumo.

    Nenhum deles pareceu prestar a menor atenção à carruagem. , Indy estimou que estariam presentes entre duzentos e trezentos druidas, e tinha quase a certeza de que representavam diversas ordens diferentes. Lembrava-se de que, quando o proprietário do terreno o entregou ao governo nacional em 1918, pelo menos cinco ordens de druidas tinham requerido autorização para efectuarem ali cerimônias. Sabia também que as ordens coexistiam numa aliança tremida e que diversos desentendimentos ameaçavam pôr fim a essa aliança.Pararam próximo da pedra de ponta, uma rocha enorme com o formato de uma gigantesca batata, erguendo-se sobre uma das extremidades. Estacionadas ali perto encontravam-se outras carruagens, e, reunidos em redor da pedra, estava um grupo de espectadores que olhava na direcção do círculo de pedra. Dois druidas de vestes, homens robustos com espessas barbas que lhes pendiam sobre o peito ao estilo druida tradicional, vigiavam os espectadores.

     Ao apear-se da charrete, Indy observou a multidão. Shannon não se encontrava entre eles e, de alguma forma, tal não o surpreendia. Pagou a Randy e deixou o chapéu sobre o assento.

    O garoto disse que estaria de volta dentro de uma hora. Com estas palavras, virou a carruagem e partiu.

      - Parece que não quer ficar para o eclipse.

      - Realmente parecia ansioso por se ir embora. E agora? - inquiriu Deirdre ao caminharem para junto do grupo de pessoas na pedra de ponta.

      - Vamos pôr-nos à escuta.

      - Chegamos mesmo a tempo - disse uma mulher que usava um enorme chapéu e um vestido cor de púrpura até aos tornozelos.

      - O eclipse vai começar em menos de quinze minutos.

      Indy ignorou-a. Dirigiu-se ao par de druidas.

      - Adormecemos, e saímos com tanta pressa que nos esquecemos de trazer as vestes. Têm por acaso algumas a mais?

      Nenhum pareceu ansioso por ajudar. Um deles franziu o sobrolho para Deirdre e depois mirou Indy.

      - Vocês estão com quem?

      - Somos da Ordem dos Bardos... e Ovados. - Lembrava-se de ter lido o nome e pensado que talvez aceitassem mulheres nas suas congregações uma vez que ovado se relacionava com ovo.

      - Não há vestes a mais - rosnou o homem.

      Indy avançou, a mão a escassos centímetros do chicote que trazia ao cinto, e a Webley colocada atrás das costas. Fitou o homem bem nos olhos.

      - Estamos aqui para honrar Adrian Powell, chefe da ordem dos hiperboreais, e se não nos for permitida a entrada, vocês serão responsáveis por um cisma que poderá afectar todos os druidas. - roçou com o indicador no peito do homem e acrescentou: - Vae victis!

      As duas últimas palavras, proferidas em Latim, “desgraça para os derrotados”, incutiram uma certa intranquilidade nos homens. Olharam um para o outro e, com um encolher de ombros, um despiu a veste. O outro indivíduo procedeu de igual forma.

      - Isto é melhor do que o eclipse - disse a mulher do chapéu enorme. - É simplesmente fascinante o modo como estas pessoas se relacionam.

      Indy entregou uma das vestes a Deirdre.

      - Toma, isto é tamanho único. - Envergaram rapidamente as vestes e puxaram os capuzes para as cabeças. - Pronta?

      - Tenho alternativa? - Deirdre perdia-se na veste de largas dimensões. Pegou nos lados com as mãos e apressaram-se a sair dali. O fim da procissão passava através do eixo principal do círculo de pedra quando a alcançaram. Os druidas murmuravam um cântico baixo e repetitivo que soava a um enxame de abelhas zangadas.

      Indy fitou Deirdre. Os seus olhos estavam muito abertos; era f?cil de perceber que estava assustada.

      - A mania que tu tens de te envolveres nas coisas mais estranhas - murmurou ela.

      Ele sorriu na esperança de a tranquilizar, voltando depois a sua atenção para os pilares de pedra na frente deles. A procissão desfazia uma curva em redor do interior do círculo e mirou estupefacto a pedra mais próxima. Sabia que as rochas direitas pesavam umas quarenta toneladas e que os blocos de granito alojados por cima pesavam, cada um, dez ou doze toneladas. Sentia-se cativado só de pensar que a estrutura datava, pelo menos, de há trinta e cinco séculos atrás.

      - Indy, olha!

      Viu que a frente da procissão circundara já as pedras, e que os elementos de vestes brancas se reuniam à volta de uma das pedras que se encontrava deitada. A pedra da chacina. Assim como não foram os druidas a construir Stonehenge, também era muito provável que a pedra da chacina não fosse um local de antigos sacrifícios. Era simplesmente uma das pedras do círculo que caíra da estrutura. Mas a história dos rituais druidas e a imaginação dos primitivos investigadores tinham deixado as suas marcas, pelo que Indy não ficaria surpreendido se os druidas considerassem, efectivamente, a pedra como um lugar de sacrifício ritual.

      - Vamos ver mais de perto. Talvez encontremos Powell.

      Deixaram o fim da procissão e contornaram a ferradura interior de pedras até se encontrarem entre o grupo maior de druidas em cântico. Indy tentou entender as palavras. Ouvia freqüentemente a frase, axis mundi, mas havia outras que não compreendia. Escutou então atentamente um druida de barbas junto dele. Axis mundi est chorea gigantum. Então era isso. O centro do mundo à  Dança dos Gigantes.

      - Vês Powell nalgum lado? - murmurou Deirdre.

      Ele abanou a cabeçaa.

      A luz enfraquecia visivelmente, mas as nuvens obscureciam o céu e o Sol que desaparecia. Os restantes elementos da procissão chegavam agora e dispersaram de junto da pedra da chacina, enchendo o espaço em redor da ferradura interior. O local emanava uma sensação estranha, pensou Indy, como se a própria textura do ar se tivesse alterado.

      Subitamente, como que orquestrado em benefício da multidão, As nuvens abriram-se e raios diáfanos da cor de um artefacto de ouro baço inundou as ruínas. Cabeças encapuçadas voltaram-se para cima. O entoar do cântico cessou. Corvos crocitaram dos seus ninhos em pilares de pedra. Três quartos do Sol tinham escurecido; o crepúsculo caiu sobre as ruínas.

    Os corvos levantaram vôo bruscamente dos seus poisos, as suas asas batendo no ar sombrio, os seus gritos um estranho peã*** a deuses desconhecidos. Indy sentiu arrepios nos braços. Deirdre  tomou lhe a mão e ele apertou-a com força, sem saber concretamente quem conferia conforto a quem.

      Diversas figuras de vestes, os rostos ocultos pelos capuzes, subiram para a pedra da chacina.

      - Quem são eles? - sussurrou Deirdre.

      - Provavelmente, líderes das diferentes ordens.

      Os homens conferenciaram por alguns segundos e depois um deles avançou e ergueu a cabeça. Indy não ficou admirado por ver Powell. Virou-se para Deirdre para se certificar de que o rosto dela estava bem enfiado no capuz, e puxou o seu para a frente.

      Powell ergueu as mãos acima da cabeça para chamar a atenção de todos. Começou por dar as boas-vindas às várias ordens a Stonehenge, a que ele chamou o local mais sagrado dos druidas.

      - Conhecem a história de como Merlin erigiu este grande templo circular. Possuía primitivamente setenta janelas, e era o observatório de Merlin do cosmo. Era o ponto de entrada dos deuses para o nosso mundo. Este festival celebra não só o regresso do nosso deus-sol Apolo da sua viagem de dezanove anos à sua terra natal mas também lhe irá mostrar este grande monumento restaurado como o centro sagrado do nosso mundo. De novo Stonehenge se tornará na Dança dos Gigantes, o ponto de entrada dos deuses.

    *** Hino em honra de Apolo; canto de guerra, de vitória, de festa.

      Indy olhou para os druidas reunidos e interrogou-se como podiam eles engolir esta miscelânia de mitos. Powell dava a entender que Merlin e Apolo viveram na mesma época, ou mesmo que Merlin, como edificador de Stonehenge, precedia Apolo. Não fazia sentido algum.

      - A maioria de vocês, tenho a certeza, conhece os feitos dos nossos antepassados. No ano 280 a. C., uma expedição de guerreiros celtas e sacerdotes druidas desembarcaram na Grécia e marcharam até Delfos. O seu objectivo era capturar a Omfalos, a pedra sagrada que pertencia a Stonehenge e que marcava o centro do mundo.

      -Mas o destino virou-se contra os nossos bravos antepassados. O próprio oráculo profetizava que seria salva pelas virgens brancas. Os guerreiros riram-se perante aquela previsão, e disseram que não poderiam esperar até as virgens brancas aparecerem. Mas os sacerdotes, conhecedores da sabedoria do oráculo, não acharam graça. Preocuparam-se e meditaram na estranha profecia, mas decidiram prosseguir a marcha para Delfos. Nesse dia, formou-se, vindo do nada, uma feroz tempestade de neve que subterrou os nossos guerreiros, matando muitos e forçando os sobreviventes a retirar. Com humildade, reconheceram que as virgens brancas, assumindo a forma de tempestade de neve, saíram vitoriosas e que o oráculo estava certo.

     Indy escutou, simultaneamente, fascinado e irritado. Sabia o que viria a seguir, e apercebeu-se que Powell era um gênio ao invocar esta história de um fracasso, fazendo-a seguir de uma lenda de vitória.

      Com a decadência do oráculo de Delfos, a Omfalos perdeu-se para a humanidade durante muitos séculos, continuou Powell. Contou então a sua recuperação há dois anos atrás.

      -Durante esses dois anos, esteve exposta num museu e não surpreende que muitas pessoas tenham recentemente afirmado que Nova Iorque, precisamente o local do museu a que me refiro, não tardará a substituir Londres como o centro do mundo civilizado. Mas a Omfalos não pertence a um museu. Pertence aqui, na Dança dos Gigantes. Forças magnéticas emanam daqui do interior da terra. É um grande centro, um centro cósmico, equilibrado por cima pela estrela polar. É com grande satisfação que vos comunico que, hoje, a Omfalos regressou finalmente a Stonehenge.

      Inclinou-se, enfiou a mão num saco de cabedal e ergueu a relíquia em forma de cone por cima da cabeça. Levantou-a por diversos segundos e depois baixou-a, entre os braços.

      - Amanhã ao amanhecer, antes do término deste festival, a grande profecia será cumprida. Merlin falará realmente do passado directamente connosco e, com essas palavras, será activado o poder da Omfalos.

      A visão de Powell ostentando a relíquia roubada e falando tão jovialmente fez crescer em Indy uma ira repentina e irracional.

      Tocou com os dedos no chicote enquanto a sua irritação crescia. As suas mãos vibravam para estalar o chicote e derrubar Powell pelos tornozelos. As suas pernas tremiam para avançar, e os dedos de Deirdre cerraram-se em redor do seu braço.

      - Não. Não faças isso.

      Indy pestanejou. A fúria abrandou um pouco. Olhou em redor para o mar de vestes e compreendeu que qualquer tentativa para atacar Powell seria infrutífera. Ninguém o escutaria mesmo que tivesse oportunidade de gritar algumas palavras antes de os gorilas de Powell se atirarem a ele.

      Deirdre puxou para trás e Indy misturou-se com a multidão.

      Powell continuava a falar, mas passou a escutar apenas frases soltas. Era como se Powell falasse numa língua estrangeira.  Quando se acalmou, ponderou no que presenciava. Estava perplexo por Powell segurar na Omfalos como se esta não passasse de uma pedra vulgar. Parecia não lhe provocar qualquer efeito. Tal fez Indy interrogar-se no que lhe teria acontecido quando a segurou em Delfos. Teriam as fantásticas experiências, as visões, realmente sucedido tal como as recordava? Como poderia uma pedra ocasionar tais coisas? A Omfalos era um artefacto valioso, um símbolo de poder, um ponto focal. Mas talvez tudo o resto tivesse sido fruto da sua imaginação.

      Lembrou-se então do que Powell dissera na casa de Byrne. De acordo com o conhecimento secreto da ordem, a Omfalos não possuiria o seu poder até ser lida a mensagem do pergaminho de ouro. Tal não fora necessário antes. Por que não.  Mas Powell não tinha o pergaminho de ouro. Se o tivesse, Indy tinha a certeza que Powell não o traria aqui para o eclipse. Ainda não o encontrara e, de alguma forma, sabia que constituía a chave para deslindar Powell e o enigma da Omfalos.  A escuridão regredia do Sol, tal como a fúria regredira nele, como se os dois acontecimentos estivessem interligados. O campo de vestes brancas começou a agitar-se e Indy apercebeu-se que Powell parara de falar e que as pessoas se afastavam. Deirdre apertou-lhe a mão.

      - Vamos embora daqui.

      Já fora do anel de pedras gigantes, Indy sentiu uma sensação de alívio. Era como se um certo poder se tivesse apoderado dele quando se encontravam no interior e que não os libertou até saírem.

    Na frente deles, um monte desorganizado de druidas, muitos deles removendo as vestes, afastavam-se das ruínas.

      - Ali está Randy - disse Deirdre.

      O cavalo e a charrete, com o garoto sentado no local do condutor, aguardava-os junto da pedra de fundo.

    Indy esperava ouvir uma exclamação de surpresa vinda do garoto em relação ao que tinham vestido. Em vez disso, Randy disse-lhes uma coisa que fez Indy esquecer tudo sobre os druidas.   Sorriu a Indy e a Deirdre.

      - Ainda bem que me encontraram. Conhecem um homem chamado Feddie Keppard?

      - Não - respondeu Deirdre ao mesmo tempo que Indy dizia  - Sim.

      - Conheces? - Deirdre parecia confusa.

      Indy falou em tom baixo.

      - É o nome dum dos heróis de Jack. Um trompetista de Chicago - Voltou-se para o garoto.

      - Ele anda à vossa procura - disse Randy.

      - Onde podemos encontrar Kep? - inquiriu Indy, sabendo que se tratava de Shannon em pessoa.

      - No velho convento. Venham comigo. Levo-vos até lá.

     

    O CONVENTO

      Randy parou a carruagem num grupo de árvores a uma curta distância do convento. Saltou para baixo e fez-Lhes sinal para o seguirem.

      - Venham. O seu amigo pediu-me que os levasse por um caminho nas traseiras.

      Indy olhou cautelosamente em redor. Não havia ninguém à vista, mas mesmo assim sentia-se exposto e vulnerável. Se Shannon não tivesse usado o nome de Keppard, não estaria ali. Disso tinha a certeza.

      - Não sei se estaremos a agir bem, Indy. - disse Deirdre quando este abriu a porta. - Este seria o último lugar onde esperaria encontrá-lo.

      - Também eu, mas talvez fosse exactamente isso o que Shannon tinha em mente. Seria mesmo ao seu estilo. Além disso, a mensagem deve ser dele. Mais ninguém usaria o nome de Keppard.

      Atravessaram o pequeno bosque e pararam quando o convento surgiu à vista.

      - Sabes, este local é lendário. A rainha Guinavere procurou aqui refúgio depois de abandonar a corte do rei Artur, e aqui permaneceu até ao fim dos seus dias.

      - E Artur encontrou-a aqui e dela se despediu antes da sua última batalha com os saxões - acrescentou Deirdre.  Indy olhou para ela e sorriu. Nunca conhecera uma mulher que conseguisse responder tão depressa e tão acertadamente a uma das suas alusões míticas. Avançaram para o convento e passaram sob uma arcada. Randy abriu depois a porta nas traseiras do edifício e fez-lhes sinal para entrarem.

      Indy espreitou para um longo e escuro corredor com um tecto elevado e arqueado.

      - Óptimo local para te esconderes, Jack - disse para si mesmo ao entrarem.

      O som das botas de Indy sobre o chão de laje ecoou no corredor.

      Quando chegaram ao fim, Randy assinalou para a direita, e seguiu por um corredor mais curto até alcançarem uma enorme porta de carvalho com um topo redondo.  Randy bateu levemente na porta e assegurou-lhes que não tardariam a ver Shannon. O tom solícito do miúdo traiu-o; Indy pressentiu que algo estava errado. Depois, a porta abriu-se e avistou um homem de meia-idade com cabelo semelhante a palha, um rosto sulcado e orelhas salientes não muito diferentes das de Randy.

     O homem fitou-os e depois fez-Lhes sinal para que entrassem.

      Indy deu um passo em frente. O homem atravessou a sala e abriu outra porta.

      - Esperem aqui - disse, fechando a porta atrás de si.

      Indy caminhou para a porta por onde o homem saíra e tentou o fecho.

      - Ele trancou-a.

      A porta por onde entraram cerrou-se por detrás de Deirdre. O ferrolho foi colocado no devido local.

      - Ele trancou-nos aqui - exclamou ela, puxando pela porta.

      - Eu sabia que havia algo de errado nisto tudo.

      - Ele conduziu-nos para uma armadilha.

      - Não acredito que nos tenha feito uma coisa destas.

      - Não acredito como nos deixamos cair. - Indy olhou em redor. O aposento era comprido e estreito, com cerca de três metros de largo e o dobro de extensão. Existiam duas pequenas aberturas no alto da parede por onde se filtrava a luz cinzenta do dia. Havia velas enfiadas em diversos suportes nas paredes. Uma mesa antiga com duas cadeiras constituía o único mobiliário. Parecia uma sala de espera, ou talvez usada outrora para armazenagem.

      Subitamente, a porta interior abriu-se e Shannon entrou no aposento. Parecia perturbado, mas Indy nem tempo teve sequer para o cumprimentar. Logo atrás de Shannon surgiram dois homens, Olhos Estreitos e Orelhas.

      - Vejam bem, é só dar ao rato um pouco de queijo que este logo se encaminha para a armadilha - riu-se Olhos Estreitos.

      Indy levou a mão à Webley, mas Olhos Estreitos estava atento. Ergueu uma mão e apontou uma arma à cabeça de Indy.

      - Lança a arma e o chicote no chão, e, já agora, essa navalha que trazes ao cinto.

      Indy assim fez.

      - O que se passa aqui? - perguntou Deirdre.

      Olhos Estreitos emitiu um som estranho, meio riso, meio escárnio.

     - O homem das respostas não sou eu, minha senhora, mas posso dizer-lhe que, muito em breve, desejará ter morrido com a sua mãe naquela caverna.

      O Orelhas apanhou o chicote e a navalha e os dois homens saíram.

      - Lamento - disse Shannon quando a porta se fechou. – Eles deitaram-me logo as mãos.

      - A nós também - respondeu Indy.

      - Foi um rapaz louro que vos trouxe aqui? – inquiriu Shannon.

      - Foi.

      - Aquele filho da mãe. Dei-lhe uma mensagem para vos ser entregue um pouco antes de me prenderem. Devia ter-vos dito que fossem para Salisbury. Era para aí que eu seguia. Não era seguro permanecer aqui.

      - E usaste Keppard como pseudônimo.

      - Certo.

      - Creio que o garoto não sabe distinguir os tipos maus dos tipos bons - murmurou Indy, e caminhou pelo aposento, que lhe parecia menor. - Falando de tipos maus, quem era aquele com as orelhas?

      - Williams - respondeu Shannon. - É o zelador do convento, mas trabalha agora para Powell. Faz tudo o que ele lhe mandar.

      - Óptimo. Há cá mais alguém? - perguntou Indy.

     - Só os homens de Powell. Convenceu o presidente da câmara de que se encontra aqui para ver se o Parlamento deverá prestar auxílio financeiro para a recuperação do convento. Tem o lugar nas mãos.

      Deirdre atirou-se para cima de uma das cadeiras e cruzou os braços.

      - Ele pode fazer praticamente tudo o que quiser.

     Shannon movia-se de um lado para o outro, enquanto Indy se encostava à parede junto de Deirdre.

      - Têm destruído o convento à procura desse pergaminho. Mas suspeito que Powell começa a ficar preocupado. Queria Tê-lo em posse dele até hoje.

      - Para o eclipse - disse Indy e contou a Shannon a excursão deles às ruínas e o discurso de Powell. - Se não obtiver o pergaminho até logo à noite, vai decepcionar muitos druidas. Considerá-lo-ão como um líder falhado, um falso profeta, e o festival só se repetirá daqui a dezanove anos.

      - Porquê esperar dezanove anos? - indagou Shannon.

     - É quando eles afirmam que Apolo regressa – respondeu Deirdre.

      - É igualmente o tempo que leva ao ano solar e ao ano lunar para se realinharem no calendário - acrescentou Indy. – Por outras palavras, leva dezanove anos até que fique lua cheia outra vez na mesma data. Chama-se um ciclo metoniano, nome que advém de Méton, um astrônomo grego da antiguidade.

      - Mas, se ele encontrar o pergaminho agora, todos saberão que ele é o líder eleito - afirmou Deirdre. - Não é assim, Indy?

      - É precisamente isso - respondeu ele.  Shannon continuou a mover-se de um lado para o outro.

      - Se ele o encontrar ou não, isso pouco nos afectará. Em qualquer das hip?teses, os nossos futuros não se revelam muito risonhos. Isto se Powell não for impedido.

     Deirdre encontrou uma caixa de fósforos junto de um dos suportes das velas.

    - Talvez se arranjarmos um pouco de luz, as coisas não nos pareçam tão más. - Acendeu uma das velas. - Quem sabe, ele é capaz de nos pôr em liberdade quando o festival terminar.

     Shannon inclinou-se à parede e bateu-lhe com o calcanhar como que fazendo um protesto final contra a situação em que se encontravam.

     - Não acredito. Sabemos demasiado.

      Deirdre acendeu as velas nos suportes. Um brilho amarelo inundou o aposento.

      - Tens razão. Foi elibado da morte da minha mãe, mas eu sei o que ele fez e nunca o deixaria escapar.

      Shannon não respondeu. Baixara-se sobre um joelho e examinava a parede.

      - O que é? - perguntou Indy.

      - Esta pedra está solta. É uma pena ser uma parede interior

     - Levantou-se, deu-lhe novo pontapé e afastou-se.

      Mas Indy não tirou os olhos da pedra. Ajoelhou-se, correu os dedos sobre ela e esgravatou o cimento em desagregação à volta das arestas.

      - Que pena não ter a minha navalha. Gostaria de ver o que há por detrás desta parede. Poderia levar-nos para alguma saída.

      Shannon meteu a mão na bota e retirou uma navalha com uma lâmina com cerca de dez centímetros.

      - Experimenta a minha. Não me revistaram a rigor.

      - Excelente - disse Indy. - Deirdre, segura aqui a vela.

      - E se eles voltarem? - inquiriu esta.

      - Diremos que são ratos.

      Cuidadosamente, Indy inseriu a lâmina por entre as pedras. Agitou-a de um lado para o outro e depois retirou-a.

      - O cimento não é muito espesso. Não levará muito tempo a ver o que há do outro lado.

      Ocupou-se a desfazer o cimento e, quando o tinha quase todo retirado, puxou o bloco de pedra, mas não tinha uma boa base de apoio. Assim, decidiu empurrá-lo e este moveu-se. Shannon colocou uma mão na pedra e ambos fizeram força; com um forte ruído, o bloco caiu sobre um chão de pedra do outro lado da parede. Indy olhou para a porta, mas ninguém a abriu. Calculou que não houvesse ninguém de guarda.

      Entretanto, Deirdre baixou-se e espreitou através do buraco negro, segurando a vela na sua frente.

    - É uma outra sala, mas não vejo grande coisa.

      Deirdre afastou-se e Indy testou as pedras por cima e por baixo daquela que tinham removido. Decidiu que a de cima sairia com maior facilidade.

      - Se conseguir retirar mais uma, poderemos esgueirar-nos por aqui.

      - E se tu não conseguires, eu consigo - informou-o Deirdre.

      Indy despiu o casaco de cabedal e esgravatou o cimento.

    Alguns minutos depois, endireitou as costas e bateu na pedra com o pé.

      Permaneceu firme no lugar e Shannon aproximou-se e agarrou-a.

      Com um impulso rápido, atirou-a com o ombro para a outra sala.

     Sem se levantar do chão, Indy enfiou as pernas pela abertura e rastejou para a frente até a cintura ter ultrapassado o orifício.

      - Se conseguir fazer passar o peito e os ombros, estou lá.

      Estendeu as mãos por cima da cabeça e conteve a respiração enquanto Shannon o empurrava pelos ombros. Estava quase a conseguir quando arranhou o sovaco. Moveu a cabeça e esta embateu na parte inferior da parede. O cimento raspava-lhe o rosto e o cabelo.

      - Espera, Shannon - disse, com dificuldade. - Pára de empurrar.

      Fechou os olhos e serpenteou o resto do percurso através do buraco até se encontrar sentado na outra sala. Tocou nas partes doridas na cabeça e sob o braço.

      O local cheirava a bafio e não via melhor pelo facto de ter os olhos abertos. Depois Deirdre passou-lhe a vela através da abertura, seguida do blusão e do chapéu.

      A sala era maior do que aquela de onde viera, e não tinha qualquer peça de mobiliário. As paredes estavam vazias. O único ornamento era uma lareira de pedra na parede oposta.

    Nada mais.

      - Não há grande coisa aqui. Nem sequer uma porta.

      - Uma sala sem portas - disse Deirdre. - Deixa-me ver. Vou passar.

      Enfiou-se pela abertura com a cabeça para a frente. Indy ajudou-a a pôr-se de pé, rodeou-a com um braço e beijou-a.

    Apesar da situação delicada em que se encontravam, sentia-se satisfeito por estar com ela. Mas se queria gozar uma vida com Deirdre, teriam de sair vivos do convento.

      - Estás bem?

      - Estou óptima. Nem sequer bati com a cabeça. - Acendeu uma vela a partir da que Indy tinha na mão e deslocou-se ao longo das paredes. - Tens razão. Não há portas.

      Shannon resmungou ao rastejar através da cavidade, mas, como era mais magro que Indy, fê-lo sem dificuldade.

      - Na minha opinião, a parede que atravessamos foi construída para selar esta sala - afirmou Indy. - É por isso que a outra sala tem umas dimensões tão estranhas.

      Ajoelhou-se em frente da lareira e examinou minuciosamente o seu chão e paredes. Ergueu a vela acima da cabeça e esticou o pescoço. Sem dizer uma palavra, enfiou-se no interior da lareira e levantou-se na chaminé.

     - Por que terão encerrado esta sala? - disse Deirdre. – Indy ... onde estás?

      - Aqui.

      - Onde?

      Indy baixou-se e saiu de dentro da lareira.

      - O que há lá em cima? - inquiriu Shannon.

      Indy estendeu a mão.

      - Olha bem para isto.

      - O que é? - perguntou Deirdre.

      - Pó.

      - Estou impressionado - afirmou Shannon. - Ele descobriu pó.

      - Certo, pó, mas não fuligem. A lareira não é verdadeira. Existe uma escada de ferro na chaminé. Calculo que conduza a um alçapão no telhado. Era um ponto de fuga.

      - Por que haveriam de precisar disso num convento? - perguntou Deirdre.

      - Recorda-te da idade deste local. Os saxões não eram propriamente uns guerreiros delicados. Para eles, matar freiras era-lhes igual.

      - Quem se importa por que existe essa escada – afirmou Shannon. - Vamos embora daqui.

      - Fala mais baixo, Jack - disse Indy. - Vão vocês à frente. Vou pôr as pedras no lugar para os empatar.

      - Precisas de ajuda? - inquiriu Deirdre.

      - Não, eu trato disso.

      - Tem cuidado - disse ela e abraçou-o. - E, por favor, despacha-te. - Enfiou-se na lareira.

      - Não faças nada estúpido - acrescentou Shannon e seguiu-a.

      Indy atravessou a sala e levantou uma das pedras. Mas depois pousou-a de novo. Sabia que Powell poderia entrar em qualquer altura, mas tinha igualmente consciência de que bloquear o buraco não serviria de muito, a menos que ocultasse as pistas deles e criasse uma diversão. Rastejou de novo através da cavidade e esmagou o cimento com as botas, espalhando-o depois pelo soalho o melhor que conseguiu. De seguida, apagou as velas que ainda permaneciam acesas, reduzindo a luminosidade da sala. Deslocou-se para a porta por onde Shannon entrara e retirou a navalha da algibeira do blusão. Esgravatou a madeira em redor da fechadura, retirando lasca atrás de lasca.

      A idéia era que Powell visse a madeira falhada em redor da fechadura e pensasse que tinham saído por ali de alguma forma, encontrando-se escondidos dentro do convento. Ele e os seus comparsas revistariam o interior, enquanto eles escapavam através da chaminé. Indy contava que Powell reagisse rapidamente e não parasse para pensar naquilo que via. Por fim, quando Powell não os conseguisse localizar, analisaria a situação e compreenderia que, se tivessem escapado daquela sala, teriam escolhido a outra porta, a que conduzia ao exterior. Depois, detectaria as pedras soltas mas, nessa altura, já eles teriam descido para o solo e escapado.

      Subitamente, Indy ficou paralisado ao ouvir uma chave girar na fechadura, a escassos centímetros da sua mão. Fora apanhado desprevenido. Não dispunha de tempo para fugir. Encostou-se à parede e estendeu a navalha, pronto a defender-se. A maçaneta girou e a porta abriu-se ligeiramente. Conteve a respiração, apertando a navalha.

     Escutou então a voz de Powell.

      - Não disse que a podias já abrir. Espera até que as travessas da comida cheguem.

      A porta fechou-se de novo e Indy literalmente mergulhou através do buraco. Com rapidez, ergueu a pedra da parte inferior da parede e encaixou-a. Pegou de seguida na outra e começou por introduzir uma ponta, voltou-a e empurrou-a até esta se encontrar firmemente no lugar.

      Viu-se envolto pelas trevas. Apalpou as algibeiras e depois estalou os dedos. Tinha uma vela mas fósforos não. Atravessou a sala às escuras, tentando acertar com a localização da lareira. Mas a distância era mais curta do que estimara.

    Praguejou em voz baixa e deslocou-se para a esquerda, tacteando a parede ao avançar. Três passos depois, as mãos tocaram na berma da lareira.

      Enfiou-se para o interior e ergueu-se dentro da chaminé.

      Emanava uma luz suave da parede algures por cima da sua cabeça.

      Deviam ter-lhe deixado uma vela. Vinha a calhar, pensou.

      A mão encontrou um dos degraus de ferro, o pé outro, e começou a trepar.

      Ao aproximar-se da luz, apercebeu-se que esta não provinha da parede em si mas do que parecia um orifício. Escutou então murmúrios.

      O buraco na parede da chaminé abria-se para uma outra sala.

      Era estreita e confinada e, lá dentro, estavam Deirdre e Shannon, examinando qualquer coisa no chão.

      Indy fitou-os abismado.

      - O que raio estão vocês a fazer?

      - Olha - disse Deirdre, a voz tremendo de excitação. – Aqui está o pergaminho de ouro.

      - O quê? - Atravessou a abertura e empurrou Shannon para o lado. À luz da vela, sobre um pano de veludo vermelho, estava o pergaminho. Deirdre desenrolara-o parcialmente, e, gravado no metal amarelo, estavam filas e filas de texto manuscrito.

      - Estava para ali no chão, envolto neste pano – disse Deirdre.

     Indy rastejou para mais perto e tocou no pergaminho como se não acreditasse no que via.

      - Parece estar em perfeitas condições.

     - Eu sei - afirmou Deirdre. - Acho que o poderemos desenrolar totalmente sem o perigo de o quebrar ou estalar. Consegues lê-lo?

      - Diria que está em inglês antigo do quinto ou sexto século.

    - E conseguia realmente lê-lo. Era uma das perícias que o pai lhe ensinara, e era precisamente devido às suas capacidades de decifrar a língua que o pai o encorajara a seguir a carreira de lingüística.

      - Sugiro que nos vamos embora daqui e o leiamos mais tarde - afirmou Shannon.

      - Não, vamos saber o que diz - contrapôs Deirdre.

      Indy não estava bem certo sobre o que deveria fazer. Queria, tanto quanto Deirdre, conhecer o texto, mas, por outro lado, compreendia que Shannon também tinha razão. Mirou o pergaminho e viu que estava escrito em inglês medieval, e que o manuscrito estava legível.

      - Jack, o melhor será subires e veres se encontras o alçapão e, a partir daí, um processo de descermos do telhado. Nós seguimos dentro de alguns minutos.

      - Quer dizer, agora faço de batedor, não é? Lembrem-me para nunca mais subir uma chaminé acompanhado de dois estudiosos. - Shannon enfiou-se no buraco e passou para as escadas. Espreitou para trás para eles. - Não levem todo o dia com isso.

     Ainda Shannon não desaparecera de vista e já eles desenrolavam o pergaminho. Depois de terem sido revelados mais alguns centímetros, Indy começou a ler enquanto Deirdre espreitava por cima do seu ombro.

      - É sobre Merlin - murmurou ele. - Está escrito na primeira pessoa.

      - Meu Deus, na primeira pessoa - disse Deirdre com voz contida.

      - É um retrato de Merlin sobre a sua vida. Espera aí. Isto não faz sentido. - Deu uma palmada leve no pergaminho. – Olha para a data dada por ele como sendo a do seu nascimento. Não é possível.

      - Não consigo ler. O que diz?

      - Que nasceu há mais de quatro mil anos. - Indy lançou uma gargalhada. - Diria que se trata de um inglês antigo, e a data  lia-se no calendário juliano, que só começou a ser usado a partir de 46 a. C.

    - Sorriu e atirou a cabeça. - Bom, as pessoas dizem que Merlin era um trapaceiro. Vamos embora.

      Deirdre abanou a cabeça.

      - Espera. Não entendo.

      - Na minha opinião, isto foi escrito há uns quatrocentos anos e não há quatro mil. - O seu tom de voz reflectia o seu desapontamento. - Por outras palavras, não passa de outra lenda de Merlin com uma pincelada a ouro. Provavelmente, foi o próprio monge Mathers quem o escreveu. Sabia, sem dúvida, o suficiente de inglês antigo para o forjar.

      - Mas, para quê?

      - Provavelmente, estava aborrecido com a vida que levava em  Whithorn e achou tratar-se de um bom divertimento deixar em repouso num mosteiro as palavras de um tão poderoso mágico pagão.  -De qualquer forma, lá. Por favor.

      - Está bem. - Indy tocou na superfície do pergaminho. Falou lentamente, traduzindo o texto para o inglês moderno.

      - Quando moço jovem, era estudante de necromancia, um aprendiz dos caminhos do oculto. Um dia, andando por distantes montanhas para lá das águas, uma flamejante pedra negra caiu no meu caminho. Nesse dia, a minha vida alterou-se para todo o sempre. Quando a pedra arrefeceu e nela peguei, escutei os deuses falando comigo.

      - Disseram me que eu devia erigir um grande templo circular usando rochas da montanha onde a pedra em chamas caíra, e instruíram-me onde construir o templo. Mas eu disse que era para mim impossível fazer tal coisa por o local se encontrar a tão larga distância. Responderam que, com a pedra, todas as coisas eram possíveis. Os deuses necessitavam do templo como ponto de entrada no nosso mundo. Erigi o templo e, quando vi como os deuses pulavam de um lado para o outro ao chegarem, chamei-lhe a Dança dos Gigantes. Por fim, e a solicitação dos deuses, enterrei a pedra sagrada no centro do templo.  Só então descobri os poderes que eu próprio adquirira com a pedra sagrada, poderes inimagináveis. Eu era um deus, imortal; e a pedra permitia que passasse através do tempo como se atravessasse um mero portão. Vivi uma vida na Grécia e, a meu mando, foi enviado um mensageiro a Inglaterra para que trouxesse a pedra sagrada. Coloquei-a em Delfos e a ela foi dado o nome de Omfalos.

      Indy parou de ler para desenrolar o pergaminho mais um pouco.

      - Desloquei-me de novo através das portas do tempo para o futuro distante onde agora existo como Merlin. Vim até cá por uma razão especial. Pois esta é uma era em que os poderes dos velhos deuses estão em decadência.

    Rochas derrubadas é tudo o que resta de Delfos e a Dança dos Gigantes há muito perdeu a sua força.   Contudo, tinha confiança de que os meus poderes seriam suficientemente potentes para fazer reviver os antigos costumes. Mas depressa percebi que tal não iria suceder, pois a Omfalos estava destinada a dormir.  Passei a vida o melhor que consegui. Servi de conselheiro a três reis e, embora os meus poderes permaneçam amplos, encontram-se muito enfraquecidos com a perda da pedra sagrada, e já não sou imortal. Amaldiçoado sou eu, por morrer nestes tempos em que os velhos deuses esgotam as suas vidas. Estou velho e cansado, e não permanecerei por muito tempo. Entregue-me agora ao lugar onde ninguém me procurará, no próprio coração da nova religião. Em breve, respirarei pela útima vez, no dia em que a luz enfraquecer ao meio-dia.

      - Ainda há mais - afirmou Deirdre e desenrolou o pergaminho até às últimas linhas.

      - As minhas palavras finais são de esperança, pois a minha visão do futuro permanece inalterada. A Omfalos regressará à Dança dos Gigantes, quando, de novo, a luz enfraquecer ao meio-dia e as estrelas se alinharem para o festival de Apolo. Aquele que ler estas palavras deve reter em mente o que sabe sobre a Omfalos, pois permanecerá verdadeiro à sua natureza. É tudo o que necessita de saber.

      Indy olhou para cima, incapaz de falar.

    - O que significa esse final? - inquiriu Deirdre.

      - Algo enigmático, não é?

      - Continuas a pensar que foi o monge quem o escreveu?

    Indy ponderou.

      - Bem, isso explicaria por que razão nunca foi enviado ao Vaticano. - Mesmo ao proferir estas palavras, Indy sabia que a explicação soava fraca, e Deirdre apressou-se a acrescentar que um mero divertimento não seria uma justificação plausível e suficiente.

      - Não estás a levar em conta o que aí se diz. Trata-se da Omfalos, Indy.

      - Bom, é fascinante o facto de ligar Stonehenge e Delfos.

      - E quem poderia pensar que Merlin e Apolo eram os mesmos?

      Indy riu-se.

      - Não podes acreditar em tudo o que lês, Deirdre, sobretudo se é sobre Merlin. Mas Merlin não é o Apolo com que nos temos de preocupar neste momento.

      - Crês que Powell acredita ser Apolo?

      Indy enrolou cuidadosamente o pergaminho.

      - Bem, os nomes deles são parecidos. Tenho a certeza que ele ficaria feliz por assumir o papel de um deus.

     

    PAREDES DE VIME

      - Ouviste? - disse Deirdre.

      Indy envolveu o pano em redor do pergaminho ao terminar de enrolá-lo.

      - O que foi?

      - Vozes. Devem ter descoberto as pedras soltas.

      - Vamos embora daqui. Depressa.

      Deirdre rastejou através da abertura na chaminé.

      - Onde está Jack?

      - À nossa espera no telhado. Espero. - Enfiou o pergaminho na algibeira do blusão e observou Deirdre colocar um pé num degrau de ferro e começar a trepar. Alcançou o topo, seguida imediatamente por Indy.

      - Não consigo ver nada - murmurou ela. Deslocou-se para o lado, permitindo que Indy se colocasse ao seu lado, no mesmo degrau.

      - Vejamos - disse ele. O seu braço envolvia a cintura dela e podia escutar-lhe a respiração. O cabelo dela tocava-lhe na face, e memórias do recente amor que fizeram surgiram-lhe de novo na mente. Afagou-lhe o pescoço.

      - Indy, este não é propriamente o local adequado. Não vês?   Termina aqui.

      - E eu que pensava que estava precisamente a começar. - Mordiscou-lhe a face.

      - Olha para aqui, não te importas?

      Pressionou as mãos no telhado e sentiu as vigas.

      - Tem de haver uma saída. Shannon não desapareceu no ar.

      - Talvez se acender uma vela... - Mas não terminou. As vozes lá em baixo eram agora mais fortes e um brilho de luz apareceu subitamente na lareira. Os homens de Powell tinham penetrado na sala e Indy compreendeu que se defrontavam com uma situação séria. Era preciso encontrar uma saída.

      - Eh, vocês os dois já acabaram com as brincadeiras? - Afirmou Shannon em tom baixo algures à esquerda de Indy.

      Indy tateou a parede da chaminé e sentiu uma abertura logo  abaixo do tecto. Então, uma luz súbita explodiu no seu rosto quando Shannon acendeu um fósforo na frente do seu nariz. Indy pestanejou rapidamente, ajustando-se à luz, e avistou Shannon agachado a pouca distância.

      - Vai à frente - sussurrou para Deirdre. - Depressa.

      No momento em que ela penetrava na estreita passagem, uma  lanterna incidiu no interior da chaminé. Indy esgueirou-se rapidamente atrás dela.

      - Não digam uma palavra - murmurou.

      Foram rastejando pelas trevas, mas, cerca de uns dez metros depois, o túnel dividia-se em dois canais e Shannon seguiu por aquele que parecia conduzir ao interior do edifício.

      - Jack, encontraste alguma saída? - perguntou-lhe Indy.

     Shannon estacou. O espaço mal dava para se sentarem.

      - Tentei seguir pelo outro. Dividia-se em dois braços e ambos eram becos sem saída.

      - Tem de existir nalgum lado uma rota de escape – afirmou Deirdre.

      A menos que tenha sido bloqueada, pensou Indy.

      - Vamos ver onde este vai dar.

      - Podes ir à frente - disse Shannon. - Já cumpri a minha obrigação como batedor.

      Indy escutou vozes e percebeu que os homens de Powell trepavam pela chaminé. Esgueirou-se para a frente de Shannon e penetrou nas trevas. A passagem era abafada e cheirava a madeira apodrecida. Parou ao avistar um outro túnel que se abria à direita e uma luz fraca que provinha de algures ao longe.

      Esperou que os outros chegassem.

      - Parece que estamos no bom caminho. Vejo luz.

      - Raios, alguma coisa me mordeu - queixou-se Shannon.

      - Cala-te, Jack. Ouço-os lá atrás - disse Deirdre.

      Indy sentiu qualquer coisa rastejando-lhe pelo pescoço e removeu-a. Continuou a andar, mas parou e percorreu as mãos pelos braços. Formigas. Era o que faltava. Corriam-lhe pelos dedos, mãos, pulsos e braços e, provavelmente, dirigiam-se às pernas. Tinham de escapar dali e não apenas por Powell.

      Escutou sons guturais, palmadas, um grito abafado ao prosseguir em frente, e percebeu que estavam todos a ser atacados. A luz aumentava gradualmente de intensidade.

      Parou então quando reparou que esta vinha de baixo, não de cima. Tratava-se dum nó de madeira e, para lá dele, mais um beco sem saída.

      - Indy, há formigas por todo o lado - disse Deirdre num murmúrio. - Estou coberta delas. E mordem.

      Olhou para trás e viu Deirdre passando freneticamente as mãos pelos braços e pernas. Agora, podia avistar hordas de formigas marchando por todo o lado.

      Shannon retorcia-se, esfregava-se e praguejava.

      - Não pares agora, raios! Estamos sobre um maldito ninho de formigas.

      - Não posso seguir em frente. Temos de voltar para trás.

      - Não podemos voltar para trás - afirmou Deirdre.

      As formigas banqueteavam-se nas suas pernas; deu-lhes uma sapatada.

      Desesperadamente, Indy ergueu as mãos e fez força contra o tecto, na esperança de que o alçapão estivesse mesmo por cima dele. Empurrou as mãos e ombros contra o tecto, dando impulso com as pernas. Nem se moveu. Mas outra coisa moveu-se. A madeira apodrecida sob os seus pés estalou e depois rompeu o estuque do tecto da sala por baixo.

      - Oh, que diabo! - gritou Shannon.

      Indy viu-se inundado de luz; cambaleou, oscilando sobre os dedos dos pés e das mãos. Mas a gravidade venceu. Os pés escorregaram da madeira e mergulhou. O peito embateu na placa deteriorada; deslizou até a extremidade. No último instante, agarrou-se com as mãos aos lados da placa. Esta dobrou-se com o peso de Indy e ele oscilou.

      Por cima, viu os pés de Shannon e as pernas de Deirdre. Por baixo, o sol do final da tarde infiltrava-se através de uma janela. Avistou um quarto com duas camas individuais e, na entrada, Adrian Powell. Escutou qualquer coisa bater no chão e percebeu que era o pergaminho de ouro. O quarto rodopiou; as formigas mordiam-lhe os dedos e braço, pernas e tornozelos.

    Ouviu um estalo quando a tábua pendeu mais um pouco.

      - Indy, vamos cair - gritou Deirdre.

      Então, sem mais aviso, o chão cedeu e caiu por cima dele.

     

      - Maldito comboio. Apeadeiro atrás de apeadeiro. Ninguém me disse que chegaria no meio da noite. É o meio de transporte mais lento depois do caminhar. So whylome wont.

      Leeland Milford coçou a cabeça calva, e o seu bigode espesso e branco contraiu-se ao observar a estação de Amesbury.

    Trajava o seu longo sobretudo preto e trazia consigo uma pasta de cabedal preta com fecho. Vinha em missão e, desta vez, não se iria esquecer. Escrevera mesmo uma anotação para si mesmo, não fosse tal acontecer.

      - Precisa de transporte, sir?

      Milford estacou e olhou em redor, confuso com a voz.

    Voltou-se então e viu que se tratava de um rapaz com pouco mais de metro e meio.

      - Estava a falar comigo, meu jovem?

      - Sim, sir. Perguntava se precisava de se deslocar na minha charrete?

      - De me deslocar na sua charrete? Porquem me toma, jovem homem? Este seu servidor sabe perfeitamente que nenhum local nesta minúscula povoação dista mais de cinco minutos a pé. So whylome wont. Compreendeu bem as minhas palavras?

  - Creio que sim. Posso então carregar-lhe a pasta.

  - Nem pensar. Vá, desande. - Milford começou a andar a um determinado ritmo, mas, depois de deixar a estação, reparou que o moço o seguia. - Vou dar uma lição a este atrevido - murmurou. Deu meia volta, apontou um dedo e afirmou, no seu inglês arcaico, - Sei quem procuras, pois é Merlin quem procuras; por isso, não procures mais, eu sou ele.

  O rapaz retorceu.

  - Deve estar aqui para o festival.  -Nem por sombras. Nem por sombras. - Milford caminhou para o passeio. - Espero não ter de entrar em muitas estalagens até encontrar Indy. Também, seguramente que não existiriam muitas naquela terreola.

  - Já não asssistiu ao eclipse.

  O diabinho continuava atrás dele. Milford parou, virou-se e analisou o rapaz de cabelos louros por momentos.

  - Talvez tenha interpretado mal. Afinal de contas, Merlin era conhecido pelos seus disfarces ocasionais, como, por exemplo, de uma criança loura de quatorze anos de idade, simulado de bagagieiro.

  - Chamo-me Randy.

  - Bom, jovem Randy, não gosto nem de comboios, nem de eclipses nem de festivais. Disso pode ter a certeza. Mas poderia dizer-me se viu um homem que... Oh, não se incomode.

 - Procura um homem que anda de chicote?

  - Por todos os santos, não. Nunca ouvi tal coisa. Contudo, o homem usa, com efeito, um blusão de cabedal e um chapéu.

  - Sim? É o Indy. Sei onde o pode encontrar.

  - Sabe?

  - Sim, e podemos ir até lá na minha carruagem.

  - Por que não disse logo? Vamos embora.

 

  Quando Deirdre despertou, gemeu, exprimindo no rosto um trejeito de dor. O corpo estava dorido. Sentou-se, esfregou a cabeça e zentiu um alto atrás da orelha direita. Na frente dela, ergue-se robusto posto de vime e perguntou a si mesma o que seria aquilo. Recordou-se então do que acontecera e viu que se encontrava rodeada de postes de vime. Estava numa jaula, numa jaula de vime.

  - Como te sentes, Deirdre?

  A voz de Adrian parecia estranha, distante. Não conseguia perceber de onde vinha, nem o conseguia ver a ele. Olhou à sua volta; encontrava-se numa câmara ampla e vazia com um tecto elevado. Nas paredes, havia janelas de vidro pintado, mas nenhuma luz incidia através delas.

  Avistou-o então à sua direita. Estivera sempre ali, observando-a do outro lado da sala. Vestia uma túnica e estava flanqueado por dois homens, trajando de igual forma. Os capuzes cobriam-lhe as cabeças. Adrian começou a dirigir-se a ela e os outros indivíduos seguiram-no.

  Não, isto não estava certo, pensou para consigo mesma. Então isto já não lhe acontecera? Sim, em frente do pub, mas isso fora um sonho, e este deveria ser outro.

  - Obrigado por teres encontrado o pergaminho por mim. Duvido que o tivesse encontrado a tempo sem a tua ajuda. Pelo que parece, a sala que localizaste quando tu e os teus amigos retiraram as pedras deveria ser muito especial, exactamente aquela onde Guinevere habitou. A irmã do monge escondeu o pergaminho na chaminé antes da parede ser construída, selando aquela sala para todo o sempre.

  Deirdre envolveu os braços em redor de si mesma, esperando que ele desaparecesse para que ela pudesse despertar. Mas ele aproximava-se cada vez mais, e conseguia detectar os pormenores do rosto de Adrian, o seu sorriso, a cova no queixo, e aqueles olhos negros que a atravessavam.

  - Não me enganas. Não és real. Estou a sonhar.

  - Oh, estás a sonhar? Não te recordas de cair do tecto? Tiveste sorte. Caíste em cima de uma das camas, mas, infelizmente, rebolaste e bateste com a cabeça no chão.

  - Onde estão Indy e Jack?

  Adrian parou fora da jaula e correu os dedos ao longo de uma das barras.

  - Que diferença faz? Isto é apenas um sonho, não é assim?   Ele riu-se. Os pêlos dos braços dela eriçavam-se. Cerrou os olhos, desejando que ele desaparecesse. Ordenou a si mesma que acordasse. Ela e Indy devem ter adormecido depois de fazerem amor, e estava a sonhar tudo aquilo. Nada disto acontecera. Eles não foram a Stonehenge, nem ao convento. Seguramente que não tinham atravessado uma parede e trepado por uma chaminé. Sonhara apenas que encontraram o pergaminho de ouro e que rastejaram por passagens sob o telhado e depois caído pelo tecto de um quarto.

  Claro que era um sonho. Costumava ter sonhos em que deambulava por casarões enormes e velhos. Mas depois sentiu as mordidelas nos braços e pernas e, na última vez que vira Adrian em sonho, ele vestia uma túnica preta, não branca como a que usava agora.

  - Não voltes a adormecer, Deirdre. Detestaria que perdesses todo o divertimento.

  A voz parecia tão real. Abriu os olhos e ele continuava ali.

Tocou na zona dorida na cabeça e esfregou os braços. Não era um sonho. Era real e era horrível.

  - Tira-me daqui. Não te safas desta, Adrian.

  Ele contornou ajaula como se inspeccionasse um animal.

  - Onde está Indy? - exigiu saber.

  - Receio que tenhas visto o teu professor Jones pela última vez, Deirdre. - Fez sinal para os homens e cada um deles pegou numa das pontas da jaula. Ergueram-na e transportaram-na na direcção de umas portas duplas.

  - Ponham-me no chão! - gritou ela, mas ninguém lhe ligou.

Agarrou-se às barras ao ser conduzida aos tombos através do ar húmido do convento. - Adrian, pára com isto. Não tem graça.

  Adrian estacou junto das portas duplas e voltou-se para ela.

  - És realmente afortunada, Deirdre. Realmente,afortunada. És a escolhida, a seleccionada. Serás recordada.

  Ela não sabia a que ele se referia, nem queria saber. Powell abriu as portas e a noite engoliu-a.

 

MILFORD RECORDA-SE

  Indy estava sentado num chão frio de pedra. Tinha cada mão atada às pernas duma cama atrás dele. Shannon encontrava-se ao seu lado, atado do mesmo modo a outra cama. Estavam prisioneiros no quarto onde caíram. Indy aterrara de pés depois da queda, mas Shannon caíra por cima dele e ambos se esmagaram no solo. Quando Indy se recompôs, viu Powell apontando-lhe uma arma.

  Indy tentara ajudar Deirdre quando a viu resvalar para fora da cama, mas Powell mantivera-o afastado dela. Quando os comparsas dele acabaram por aparecer, levaram-na consigo e, desde então, não mais a vira. Nem a Powell.

  Agora, Williams ficara de guarda à porta com a Webley de Indy na mão, a navalha de Indy num dos lados do cinto, e o chicote de Indy no outro lado. Indy perguntara-lhe como estava Deirdre, e para onde a tinham levado, mas o zelador não respondera. Não dissera uma palavra, excepto para lhes dizer que não falassem.

  Há muito que se encontravam em silêncio, pelo que Indy decidiu tentar nova táctica. Tentou iniciar uma conversação.

 - Tem alguma experiência com chicotes?

  Williams ignorou.

  - Indy poderia dar-lhe uma pequena lição se desatasse a corda por alguns instantes - disse Shannon.

  - Jack, deixa que eu...

  - Já vos disse, nada de conversas. - Williams bateu com a coronha do revólver de Indy na palma da mão.

  - Desculpe - disse Shannon em tom baixo.

  Agora, tinha de esperar, pensou Indy, e tentar de novo.

 A tranca da porta foi retirada e Powell entrou, vestindo uma túnica branca.

  - Espero que estejam confortáveis, cavalheiros. Vou-me embora agora, mas voltarei mais tarde para tratar de vocês.

- Obrigado, a propósito, por terem encontrado o pergaminho de ouro. Não poderia ter surgido em melhor altura. Faz-me ter consciência de que tudo se desenrola de acordo com o estabelecido.

  - O que fez a Deirdre? - inquiriu Indy.

  - Não se preocupe. Está em boas mãos. Tem o seu papel a desempenhar. - Abriu a porta para sair.

  - Se lhe fizer algum mal, Powell, enfio-lhe essa Omfalos pela garganta abaixo.   Um sorriso cruel aflorou nos lábios de Powell.

  - Não, não me parece. A Omfalos será enterrada no Recinto de Merlin, e ninguém a retirará de lá durante mil anos.

  - Ou até o próximo arqueólogo pegar numa pá - disse Indy.

- Tal nunca acontecerá - afirmou Powell com confiança. Ainda a semana passada, o Parlamento autorizou um decreto permitindo a plantação de uma árvore no ponto central de Stonehenge, e a delimitação do local com proibição de escavações. Na verdade, estou aqui como representante do Parlamento. É claro que os meus colegas não estão ao corrente da Omfalos nem que o sangue de Deirdre consagrará o solo por cima da pedra sagrada quando a árvore for plantada ao amanhecer. Mas tudo faz parte da profecia, o nosso legado.

  - O diabo é que faz! - gritou Indy, esforçando-se por se libertar.

  - Passará o resto da sua vida na cadeia - disse Shannon. - Alguém há de falar.

  - É pouco provável, mesmo muito pouco provável. Sabem tão pouco a meu respeito. Mas chega de conversa. Os outros aguardam a minha chegada.

  A porta fechou-se e Williams colocou-se na frente dela.

 - Parece que ele planeou uma noite em grande – murmurou Shannon.

  - Temos de fazer alguma coisa - disse Indy entre dentes, enquanto observava Williams. Se conseguisse que o guarda se colocasse ao alcance dos seus pés, poderia passar-lhe uma rasteira e pô-lo inconsciente com um pontapé na cabeça. Podiam levantar as tábuas e passar as cordas por baixo das pernas. Mas ele estava do lado da cama mais afastada de Williams, o que tornava o plano difícil de concretizar.

  - Indy, tu deves saber alguma coisa sobre druidas – afirmou Shannon. - Eles sacrificam, realmente, pessoas, tal como Powell acabou de dizer?

  - Os antigos druidas sim. Os verdadeiros. - Enquanto falava, Indy vigiava Williams pelo canto do olho. - Dedicavam-se a sacrificar animais e humanos.

  - Nesse caso, penso que Powell herdou deles os seus maus hábitos - replicou Shannon.

  - Parem de falar dessas coisas - disse Williams. - Vocês os...

  Williams parecia pouco tranquilo. Era óbvio que o que eles diziam o perturbava  muito mais do que o simples facto de estarem a falar.

  - É bom que você ouça o tipo de coisas que os seus amigos se preparam para fazer - disse Indy. - Os druidas matavam por imolação, enforcamento ou afogamento. Representavam os três elementos: fogo, ar e água.

  - Não há água nem árvores em Stonehenge, e o fogo não é permitido - respondeu Williams.

  - Também esfaqueavam as vítimas - afirmou Indy. - Serviam-se das entranhas para adivinhação.

  Williams meditou em silêncio nas palavras de Indy.

  - Parece que você não conhece grande coisa sobre Powell. Ele nem sequer permite que você tenha uma arma - disse Shannon.

  O homem rosnou e desviou o olhar.

  - Talvez receie que você dê um tiro no seu próprio pé- acrescentou Shannon.

  Williams endireitou a cabeçaa e fitou Shannon friamente.

  Indy decidiu ir mais longe.

  - Você não é um druida, pois não? Não tem uma túnica vestida nem vai assistir à cerimônia.

  - Talvez ele ainda esteja a treinar - disse Shannon.

  Williams deu alguns passos em frente e golpeou as costelas de Shannon com a coronha da arma.

  - Não sou druida. Sou carpinteiro e o zelador deste local.

  - Você  é um pau-mandado - gritou Indy.

  Williams ergueu a Webley e dirigiu-se a Indy. Óptimo. Chegara a sua oportunidade. Tornou as pernas tensas, pronto a derrubar  Williams com um golpe rápido. Um pouco mais para a frente; só mais um passo. Anda.

  Mas o zelador parou bruscamente e virou-se quando a porta se abriu. Indy praguejou em voz baixa quando Williams saiu do seu alcance. Indy viu que era o garoto, Randy. Muito obrigado, meu pequeno bastardo.

  - O que fazes aqui, Randolph? Mandei-te ficares afastado daqui - afirmou Williams com dureza.

  - Pai, escute. Tem de os libertar.

  - O que estás para aí a dizer? Isso não te diz respeito. Não podemos fazer nada, ou os outros matam-nos.

  Randy olhou para Indy e Shannon.

  - Estão a obrigar-nos a fazer estas coisas. O meu pai não é um homem mau. Deram-lhe muito dinheiro para construir uma jaula, e obrigaram-no a ficar com o dinheiro.

  - Uma jaula? - perguntou Indy. - Que tipo de jaula?

  - Feita de vimes. O pai é um excelente carpinteiro. Mas disseram que ele lhes ficava a dever serviços por causa do dinheiro que ele recebeu. O pai não se podia negar. No primeiro dia, foram apenas pequenas tarefas, depois obrigaram-no a vigiar o vosso amigo e a mim a controlar a estação de comboios. Mesmo agora ainda tenho de vigiar a estação em busca de pessoas invulgares sempre que chega um comboio.

  Randy voltou-se para a porta e, nesse instante, a última pessoa que Indy esperava ver entrou no quarto.

  - Dr. Milford, o que faz aqui?

  - Isso pouco importa agora. - Milford pousou a pasta preta no chão e olhou em volta. - O que diabo se passa aqui? - Franziu o sobrolho e fitou o pai de Randy. - Ordeno-lhe que liberte estes homens. Não são criminosos. Pelo menos, tanto quanto sei.

  Williams parecia tão surpreso quanto Indy.

  - Não posso. Powell matar-me-ia.

  - Nesse caso, eu próprio os liberto - disse Milford e, antes que o homem pudesse reagir, sacou-lhe a navalha do cinto.

Aproximou-se de Indy e começou a cortar a corda.

  - Pare com isso - ordenou Williams. Ergueu a coronha da arma acima da cabeça.

  - Não, pai, não. - Randy tentou tirar-lhe a arma, e pai e filho debateram-se por ela.

  Indy puxou o braço com toda a força enquanto Milford cortava. Subitamente, esta cedeu, Indy rodou, ergueu a perna da cama e libertou o outro braço. Pôs-se de pé com um salto e sacou o revólver das mãos de Williams.

  O homem retorceu para a parede.

  - O que me vão fazer?

 - Passe-me o meu chicote.

  Williams hesitou, mas depois obedeceu a Indy.

  - Não me bata. Eu não lhes ia fazer mal.

  - Não, estava apenas a guardar-nos para que outra pessoa nos matasse mais tarde.

  Randy levantou a outra cama e Shannon libertou-se.

  - Agora, já sei de onde o conheço - disse Milford para Shannon. - Foi você quem tocou trompete na casa de Indy depois do jantar.

  - Com efeito. - Shannon parecia admirado.

  - Sim, tocou tão alto que os ouvidos me doeram durante dias.

  - Lamento imenso - disse Shannon, aproximando-se de Indy.

Agarrou em Williams pelo colarinho. - Não gostei nada do modo como me bateu com aquela arma.

  - Podem fazer o que quiserem de mim, mas não maltratem o meu rapaz - disse Williams.

  - Não vamos maltratar nenhum de vocês - afirmou Indy. Só queremos um pouco de colaboração e, se as coisas correrem bem para o nosso lado, não terá problemas com Powell.

  - Nós ajudamos - disse Randy. - Pode contar conosco.

  O pai desviou o olhar e anuiu, severamente.

  - Onde está Deirdre? - perguntou Indy.

  - Levaram-na para Stonehenge na jaula que eu construi.

  - Óptimo. Mantém-no sobre olho, Jack - disse Indy e depois virou-se para Milford.  -Diga-me agora, dr. Milford, o que diabo faz o senhor aqui?

  - Vim numa missão importante.

  Indy fitou o velho professor.

  - Veio?

  - Sim, vim. - Baixou-se para a pasta e tentou abrir o fecho. - trancado. O que raio fiz das chaves? - Ergueu-se e começou a procurar nas algibeiras.

- Como sabia que me encontrava aqui?

  - Bem, você não estava em casa e... - Retirou uma chave da algibeira, examinou-a, e depois ajoelhou-se e experimentou-a.

  Abanou a cabeça.

  - Não, não é esta. Também não sei de onde é, de qualquer forma. - Levantou-se e continuou a vasculhar os bolsos.

  - Eu não estava em casa, pelo que calculou logo que deveria estar por aqui? - perguntou Indy em tom de cepticismo.

  - Não, foi Marcus quem calculou.

  - Brody?

  - Sim. Marcus ficou preocupado e mandou-me um telegrama, perguntando-me se tinha seguido as instruções dele.

  - Que instruções? - inquiriu Indy.

  - Era precisamente isso que eu queria saber. Por isso, lhe remeti outro telegrama perguntando a que ele se referia. - Tirou um lenço e desdobrou-o. - Ah, aqui está a chave. Embrulhei-a para que não me esquecesse onde a guardei.

  - E quais eram as instruções de Marcus?

  - Bom, mandou-me outro telegrama lembrando-me que eu trazia comigo uma coisa para lhe entregar. - Estava sempre no fundo da mala, mas estava numa caixa debaixo de alguns papéis, e...

  Indy sentia-se desesperado.

- Dr. Milford, de que está a falar? De que se trata?

  • Da Omfalos.

     Indy abanou a cabeça.

      - Foi roubada por Adrian Powell, o homem que nos aprisionou aqui.

      Milford acenou uma mão.

      - Não, essa é falsa. Marcus teve a ideia de fazer uma réplica depois de a dra. Campbell ter sido tão insistente em relação à Omfalos e de o alertar que iria ser roubada. Por isso, mal teve o duplicado, trocou-a pela verdadeira.

    - O velho Marcus foi brilhante. - Indy parou, revelando uma expressão de perplexidade. - E depois deu-lhe a si a verdadeira para que me fosse entregue.

      O rosto de Milford iluminou-se.

      - É verdade. Eu já tinha viagem marcada para Londres e ele  pensou que ninguém iria suspeitar do que eu trazia. – Milford coçou a madeixa de cabelo branco de lado na cabeça. – Claro que as coisass se atrapalharam um pouco quando me esqueci dela por completo. Depois, para cúmulo, quando a encontrei, não o conseguia localizar a si, mas Marcus falou qualquer coisa sobre um eclipse em Stonehenge e que, provavelmente, estaria aqui.

      - Ele acertou bem.

      Milford abriu a pasta e ergueu uma caixa quadrada simples.

      - Aqui tem, Indy. A propósito, Marcus disse-me que, por uma razão qualquer, não se deverá agarrar na pedra com as mãos.

      - Sim, já sabia.

     

    A FESTANÇA

    - Preciso que me emprestes a charrete por algum tempo - disse Indy a Randy. - Tenho de ir em auxílio de Deirdre.

      Shannon abriu a porta.

      - Vou contigo.

      - Eu não - disse Williams. - Eu não vou até lá.

      - Pai! Disse que ajudava.

     - Não precisamos de mais sarilhos, Randolph.

     - Muito bem, fica aqui com o seu filho e com o dr. Milford - disse Indy. - Vá ao chefe da polícia e conte-lhe que os druidas planeiam assassinar uma mulher nas ruínas.

      - Não posso fazer isso - afirmou Williams.

      Indy lançou ao homem um olhar sombrio.

      - Por que razão?

      - Porque o chefe da polícia está no meio deles, usando uma  dessas túnicas. Ele é um druida.

      - Óptimo. Que maravilha. Vamos embora, Jack. Dr. Milford , obrigado pela sua ajuda. Eu próprio me encarregarei de que a  Omfalos regresse em segurança para Marcus.

      - Quer deixá-la comigo?

      Indy não tinha grande interesse em levá-la consigo, mas a sugestão de Milford não parecia melhor.

      - Levo-a comigo.

     - Como quiser. Se não se importam, vou-me estender um pouco numa destas camas. Já passa bastante da minha hora de dormir.

      Indy abriu a tampa da caixa e observou o artefacto negro e cônico, com o seu rendilhado petrificado na superfície.

    Surpreendia o facto de uma relíquia como aquela, tão pouco atractiva e descritiva, poder provocar tanta confusão. Não acreditava, grandemente, no que o pergaminho de ouro afirmava sobre a vida de Merlin, mas uma coisa sobre a Omfalos era verdade. Caíra, efectivamente, do céu. Fora um meteorito que, no passado longínquo, ficara moldado na sua actual forma, provavelmente, por ter sido esfregado com um abrasivo quando em águas correntes.

      Abriu o blusão e voltou a caixa ao contrário. A Omfalos caiu de nariz para baixo no interior da algibeira. Ficava um pouco em saliência, mas Indy correu o fecho. Bateu com a mão no bolso inchado, sentindo o peso acrescentado.

      - Muito bem, vamos a isso.

      Indy e Shannon deixaram o quarto e seguiram por um labirinto de corredores até alcançarem uma capela. Dirigiram-se directamente, para a porta principal, movendo-se a um determinado ritmo. Chegaram, simultaneamente, às portas duplas, mas viram-se obrigados a parar.

     - Trancadas - exclamou Indy.

      Shannon retorceu.

      - E agora?

      - Eu conheço a saída - gritou Randy do outro lado da capela.

    - Sigam-me.

      Indy encolheu os ombros.

      - Vamos.

      Atravessaram a capela, passaram por outra porta e para um corredor que dava acesso a uma saída na parte lateral do edifício. O cavalo e a carruagem estavam ali perto.

      - Eu conduzo - disse Randy. - Vão precisar da minha ajuda.

      - Não vais ter problemas com o teu pai?

      - Não - afirmou Williams, aproximando-se da charrete. – Eu também vou - disse, carrancudo. - Já estamos metidos em sarilhos. Nada pode ficar pior do que já está.

      Indy sentou-se ao lado de Randy, enquanto Shannon e Williams se instalavam no interior. Afastaram-se do convento e dirigiram-se para Stonehenge. Não sabia o que o esperava mas estava seguro que a noite não ia ser calma nas ruínas.

     

      Deirdre estava deitada na jaula de vimes, junto da pedra da chacina. percebia que Powell falava para a multidão e alguns dos druidas encontravam-se a curta distância dela. Mas não sentia força de vontade para pedir auxílio. Nada parecia importar. Sentia-se pesada, sonolenta e desprendida. Era um sono mágico. Fora isso que Adrian lhe chamara. Talvez tivesse posto qualquer coisa na água que ela bebera, ou talvez fosse apenas a voz de Adrian. Seguira com ela nas traseiras do caminhão e durante todo o percurso, falara sem parar de coisas de druidas, sobre o deus-sol e Merlin, o submundo e o outro mundo, e Deirdre interrogara-se sobre o que teria acontecido ao homem do Parlamento.

      Agora, contudo, ao ouvi-lo relatar um mito celta percebia a ligação. Era a história de um rapaz que caçava numa época em que a maioria das pessoas não possuía força de vontade nem um coração forte. Pelo caminho, o rapaz deparou com o castelo do rei do Sofrimento e, num pátio interior, avistou um vaso de ouro.  

    Descobriu que o vaso tinha a capacidade de devolver a vida aos mortos e de curar e, quando o levou do castelo e o mostrou à população, o desespero foi-se e as pessoas ficaram fortes de novo.

      Deirdre percebeu que era uma parábola ao intento de Powell de acabar com a Commonwealth, que ele considerava enfraquecer a força da nação; aqueles que a apoiavam não tinham nem força de vontade nem um coração forte.

      Algures ao longe, pensou ouvir um batuque constante e o som de gaitas de foles. Mas Powell continuava a falar. - O vaso de ouro não é de todo diferente do pergaminho de ouro, o qual, como prometi, trouxe até vós. Com ele renasce uma grande esperança e traz de volta o poder da Omfalos à Dança dos Gigantes. Escutem agora a extraordinária história de Merlin.

      Ouviu depois Powell ler o pergaminho. Agarrou nas barras de vimes com ambas as mãos e pôs-se de pé. Conseguiu avistar Powell em cima da pedra da chacina e reparou que ele não lia do pergaminho, mas de uma folha de papel. Um dos seus seguidores mais letrados deve ter-lhe feito a tradução. Quando terminou, Powell falou numa voz ritualista.

      - O que foi aqui escrito em tempos remotos confirma o que sabemos, mas muitos têm revelado dúvidas. Merlin, um druida, foi, com efeito, o arquitecto de Stonehenge. Ele é o responsável pela Omfalos, e previu este dia em que as portas do poder se voltariam a abrir para a Dança dos Gigantes.

      -Vamos agora enterrar a Omfalos e, ao amanhecer, depois da consagração estar finalizada, os grandes poderes da Omfalos revelar-se-ão quando Apolo e Merlin se fundirem num só, e eu, vosso servo, tomar o lugar deles na carne. Acreditem nas minhas palavras, colegas das grandes ordens. Se o que eu digo não for verdade, que o céu se derrube sobre o meu rosto, e as terríveis chamas dos deuses me destruam.

      Espero bem que sim. O pensamento pareceu ocorrer na mente de Deirdre vindo de fora dela, e começou a fazê-la reflectir na situação em que se encontrava e sobre o que sucedia a sua volta. O que estou aqui a fazer? Tenho de sair daqui.

      O bater dos tambores aumentou de intensidade; o som das gaitas de foles assemelhava-se a um vento desvairado e assombroso. Deirdre olhou por cima do campo de vestes brancas e viu, Adrian deslocando-se para o centro da ferradura interior. Baixou qualquer coisa para o solo. Quando se ergueu, fitou-a, directamente, aprisionando-lhe o olhar.

      Por muito que tentasse, Deirdre não conseguiu desviar o olhar.

      Por fim, ele sorriu e ela virou-se para a congregação. Não acreditava no que via. Ficou sem respiração. Cerrou os olhos com força. Recusava-se a ver. Não pode ser. Não acredito.

      Depois,obrigou-se a olhar. Com uma estranha sensação de alívio, abençoou a visão dos druidas de túnicas. O que se passava com ela? Por instantes, teve quase a certeza de que vira na sua frente um rebanho de veados.

      - Esta não é a noite para discursos; esta é a nossa noite para festejar, para grandes aventuras - gritou Powell. - Escutem os tambores e as gaitas de foles que se aproximam. – A voz dele era hipnótica. - Libertem-se, voem, elevem-se com a noite.

     

      Randy parou a carruagem junto do caminhão, nas redondezas das ruínas.

      - Foi assim que trouxeram a jaula até aqui. - Randy apontou para o caminhão.

      Aproximara-se do veículo, mas, assim que Indy viu que estava abandonado, voltou a atenção para o monumento de pedra. Podia escutar o som de música e avistar figuras sombrias movendo-se a um determinado ritmo.

      - Vamos ver mais de perto.

      - É melhor ficares aqui, filho - disse o pai de Randy ao rapaz.

     - Já cheguei até aqui. Também quero ir.

      - Disse-te para ficares.

      - O teu pai tem razão, Randy - afirmou Indy. - É melhor permaneceres por aqui.

      - Oh, está bem. - Lançou-lhes um olhar magoado e partiu para junto da charrete.

      - Cuidado-disse Shannon em tom baixo. - Vem aí alguém.

      Os três homens atiraram-se para detrás do caminhão e viram duas figuras de vestes aproximarem-se da carruagem.

     - O que fazes aqui? - inquiriu um deles quando viu Randy.

     Williams preparava-se para se levantar, mas Indy puxou-o para baixo.

    - Vim ver se alguém precisa de transporte para regressar - disse o rapaz, em tom inocente.

     - Ainda não terminamos e, além disso, gostamos de caminhar - disse um dos druidas. - Vai-te embora.

      - Deixa ficar por algum tempo - replicou o outro homem. - Talvez alguém venha a precisar de transporte.

      - Fica exactamente aqui. Não te aproximes mais - alertou o primeiro homem. - Compreendes?

      - Sim, sir.

     - Muito bem, Randy - murmurou Indy numa voz que só Shannon e Williams podiam escutar.

      Quando os guardas desapareceram de vista, Indy fez sinal para avançarem e lançaram-se a correr para o anel exterior de pedras. Pararam por baixo de uma das pedras, misturando-se com a sua sombra gigantesca.

      Indy segurou na arma com firmeza, olhou em redor, mas ninguém os vira.

      O som dos tambores era forte. Ecoava nos ouvidos de Indy. A estes unia-se a música das gaitas de foles e o ar misturava-se de sons. Diversas garrafas de vinho passavam entre a assistência.

      Viu alguém vestido como um touro e outra pessoa com um ornamento de pássaro na cabeça. Por instantes, viu de relance um homem usando apenas uma tanga, dançando e tocando harpa.

      Alguns dos druidas, quer homens quer mulheres, moviam-se no solo, deslocando os braços como se fossem pássaros elevando-se no céu da noite. Sabia que as práticas dos velhos druidas celtas derivavam de xamanismo antigo, e tornava-se óbvio que estes novos druidas seguiam os mesmos padrões nas suas práticas rituais. Recordava-se ainda de como um dos seus professores da Sorbonne descrevera o processo numa aula sobre xamãs do Paleolítico Superior: Estimulação sensual, stress emocional e desorientação induzem desassociação, transe, visão, êxtase. Mas agora não era a altura para avaliar o comportamento druida. Tinham de tirar partido da situação.

    Precisava encontrar Deirdre antes dela se tornar na vítima da festança. Fez sinal a Shannon e Williams para aguardarem e afastou-se do local onde se encontravam ocultos.

      Apenas a curta distância, um dos druidas vacilava e oscilava na sua direcção. Indy agarrou no homem pelo capuz e bateu-lhe com a coronha da arma na cabeça.

      O indivíduo caiu, e Indy retirou-lhe de imediato a túnica e vestiu-a, largando o revólver para uma algibeira. Shannon e Williams miravam o homem derrubado por Indy, surpresos com a rapidez dos acontecimentos.

      - Vigiem-no enquanto arranjo mais duas vestes. - Indy puxou o capucho e afastou-se das sombras das rochas. Diversos homens de vestes montavam uma fogueira em cima da pedra da chacina e compreendeu que tinha de se apressar. Sentiu uma mão no ombro e ficou paralisado. Voltou-se e reconheceu o mesmo druida corpulento e de barbas que estivera de guarda na pedra de ponta antes do eclipse. O homem estendeu uma garrafa de vinho.

      Indy aceitou-a e bebeu o resto do líquido.

      - Obrigado, irmão.

      O druida franzia agora o sobrolho.

      - Eh, foi você quem levou a minha túnica e não ma devolveu.

      - Contudo, vejo que arranjou outra. Importa-se de me emprestar também esta?

      - O quê?

      Indy bateu com a garrafa na cabeça do homem e este perdeu a consciência. Agarrou por baixo dos braços e arrastou-o para junto dos companheiros.

     - Este tipo está a precisar de perder peso - disse arfando, enquanto Shannon e Williams o ajudavam.

      Despiram a veste do grande homem, e Shannon colocou-a.

      Caiu-lhe até aos pés.

      - Podias ter arranjado alguém mais baixo.

      - Não há tempo para ser esquisito. Estão já a preparar a fogueira.

      - Cuidado! Vem aí gente - disse Williams.

      Indy olhou para cima mesmo a tempo de avistar outro druida.

      Este, contudo, aproximava-se com cautela.

      - O que se passa aqui? - inquiriu, olhando para os homens sem túnica estendidos no solo. Indy agarrou em Williams pelo colarinho.

      - Apanhamos estes tipos a espiar-nos.

      - Williams, o que faz aqui?

     - Você conhece-o? - perguntou Indy.

      - Sou o chefe da polícia. Estou encarregado da segurança. - Baixou-se para observar os dois homens no solo e Shannon agarrou nele pelo pescoço e atirou-o contra um bloco direito de pedra.

     Mas o chefe da polícia ficou menos atordoado. Vacilou alguns passos e depois puxou de uma pistola. Indy afastou Williams para longe de si, levando simultaneamente a mão á algibeira da veste para retirar a Webley. O chefe da polícia nivelou a pistola na direcção de Shannon. Uma arma disparou. Shannon saltou para trás, surpreendido. Mas foi o polícia quem caiu.

      - Meu Deus, dei-lhe um tiro. - Indy fitava o corpo imóvel.

      - Obrigado- disse Shannon. - É por isso que estou vivo. - Tirou a veste ao chefe da polícia e passou-a a Williams.

      - Nem pensar nisso - disse Williams, apontando para o orifício no peito e para a mancha de sangue.

     - Parece vinho derramado - afirmou Shannon. - Ou a veste ou vai-se embora. Decida-se.

      Com relutância, Williams vestiu a túnica e os trás, com os capuzes nas cabeças, afastaram-se das rochas. Shannon pisou de imediato a túnica e tropeçou, mas conseguiu recuperar o equilíbrio. Puxou a veste para cima e pegou numa das pontas com a mão, tal como Deirdre fizera. Os seus movimentos estranhos não atraíram a atenção de ninguém, pois praticamente toda a gente dava voltas, girando ao som da música, e cada vez mais dos presentes entravam em transe, estremecendo, abanando, ondulando.

      Ainda bem que assim era, pensou Indy, tentando neutralizar a sensação doentia que sentia. Encaminharam-se para a pedra da chacina e viu a fogueira já a arder. Pensou em Deirdre e a sua determinação intensificou-se. Cerca de uma dezena de druidas rodeavam a pedra. Entre eles encontravam-se figuras com túnicas tocando tambores ou trompas, e um indivíduo saltitava de um lado para o outro, usando asas de penas e um ornamento na cabeça semelhante a uma serpente.

      - Ali, atrás da pedra da chacina - disse Indy para Shannon quando localizou a jaula de vimes. Voltou-se para Williams. - Comece a dançar e siga-me.

      Indy bateu o pé, agitou os braços como se nadasse e serpenteou o caminho em redor da maciça pedra. Olhou uma vez para trás e viu Williams iniciando os seus passos, e Shannon improvisando os seus próprios movimentos. Tinha as mãos na boca como se estivesse a tocar o seu trompete, e girava ao seu ritmo.  Então, Indy avistou Deirdre deitada no fundo da jaula de vimes. Não se mexia. Os filhos da mãe, provavelmente, drogaram-na, pensou. Tinham tanta confiança que ela não sairia dali que ninguém a vigiava.   Apressou-se para a porta da jaula, e Shannon posicionou-se atrás dele, continuando a dan?ar.

      - Deirdre - murmurou Indy. - Acorda.

      Ela virou a cabeça, pestanejando. Abriu a boca.

      - Indy!

      - Shh!

      Observou o ferrolho e sentiu a dureza das barras de vime. Williams agachou-se junto dele.

     - Dá-me a minha navalha. Consigo abri-lo, rapidamente, sem a chave.

      Indy olhou para Williams, interrogando-se de novo se poderia confiar nele.

      - Está bem. Tome.

      O carpinteiro pegou na navalha, endireitou-a, sorriu e lançou mãos ao trabalho. Dez segundos mais tarde, o ferrolho estalou e a porta abriu-se. Deirdre começou a rastejar para fora. Foi então que os sarilhos começaram.

     

    AXIS MUNDI

      - Indy! - gritou Shannon.

      Indy voltou-se e viu-o branco.

      Uma horda de druidas descendo sobre eles. Shannon ergueu a pistola do chefe da polícia, mas não a disparou. Williams largou a navalha e Indy limitou-se a fitar a enorme massa de homens e mulheres de túnica. No último instante, saiu da sua apatia e lançou-se ao chão. Puxou Deirdre também para baixo. Rastejou sob pernas, andou aos ziguezagues, torceu-se, rolou. Pisaram-no e deram-lhe pontapés. Foi agarrado por mãos, puxado pelos cabelos, arrastado pelos braços e pernas. Ele mordeu, arranhou e socou. Mas tudo em vão.

      Ouviu alguém gritar.

      - Cordeiros, cordeiros. Vão buscar os cordeiros. Não deixem os cordeiros escapar.

      Mãos sem fim agarraram-no; empurravam, puxavam, batiam. Por fim, foi atirado através de uma abertura e sentiu um mar de braços e pernas a sua volta. Alguém lhe empurrou os pés e uma porta fechou-se. Rolou para o lado e embateu numa pessoa.

      - Indy, estás bem? - Era Shannon.

     Conseguiu sentar-se e recuperar o fôlego. Encontrava-se na jaula e Deirdre, Shannon e Williams compartilhavam com ele o reduzido espaço.

      - Parece que não fomos bem sucedidos.

      A porta da jaula foi trancada com uma corda e os druidas começaram a dispersar a fim de prosseguir com a festança, como se nada tivesse sucedido.

      - A culpa é minha - disse Deirdre. - Vocês deviam ter escapado enquanto tinham oportunidade.

      - Essa opção nem sequer se punha - disse Shannon.

      - Mas olha agora a posição em que nos encontramos.

      Indy pegou na mão de Deirdre.

      - Não te preocupes. Powell não nos pode matar na frente de toda esta gente. Pode pensar que é um druida, mas vive no século vinte como todos nós.

      - O que está a dizer, Jones?

      Indy olhou para cima e mal acreditou no que viu. Powell usava apenas uma tanga e uma grinalda feita de folhas de carvalho e ramos. Tinha uma harpa debaixo de um dos braços e o rosto tão maquilhado que mais parecia uma máscara.

      - Disse que não nos pode matar na frente de toda esta gente. Nem todos são corruptos como você. Não conseguirà safar-se.

      Powell riu-se e tocou a harpa com imperfeição.

      - Jones, você não faz ideia dos meus poderes. Eles vêem o que eu quero que eles vejam. Vocês serão carneiros de sacrifício, e nada mais. Mesmo agora, riem-se e falam de como os carneirinhos quase escaparam quando a porta da jaula se abriu. - Powell tocou a harpa de novo. - Agora, meus carneirinhos, tenho que vos deixar, mas voltaremos em breve.

     Powell foi-se embora, como uma criança divertindo-se.

      - Ele é doido - rosnou Shannon.

      Deirdre apertou a mão de Indy.

      - Acho que o que ele diz é verdade. Deve ter qualquer capacidade para fazer as pessoas verem o que ele quer que elas vejam.

      Indy observou os druidas através das barras de vime.

     - Hipnose colectiva. Li uma vez que os antigos druidas dominavam essa arte. - Powell era ainda mais perigoso do que ele supusera.

      - Isso explica por que não consegui a arma – afirmou Shannon. - Deixei, praticamente, que ma tirassem da mão.

      - É bruxaria - disse Williams. - É isso o que eles são, feiticeiros. Algo me fez deixar cair a navalha antes sequer de me tocarem.

      - Seja sob que forma que encaremos a situação, nada podemos fazer contra ele - disse Deirdre, esfregando as mãos no rosto.

    - Somos como formigas prestes a sermos esmagadas sob o seu polegar.

      - Não falemos de formigas - suplicou Shannon. - Tenho as pernas ainda em fogo onde as malditas me mastigaram.

      Indy tentou colocar-se numa situação mais confortável. Do local onde se encontrava podia avistar o brilho da fogueira para lá da pedra da chacina.

      - Okay, vamos reflectir um pouco sobre isto. Primeiro que tudo, Powell não é invencível. Pode ter criado um efeito temporário qualquer em nós, mas não nos controla. De outra forma, não seria obrigado a manter-nos nesta jaula.

      - E então? Não avançamos grande coisa - disse Shannon.

      - Então, só temos de pensar numa forma de o enganar.

      - Mas como? - inquiriu Deirdre.

      - Primeiro que tudo, temos de tirar partido da arrogância dele. Ele pensa que é mais poderoso do que efectivamente é.

    Atirou-nos para uma jaula, mas não nos amarrou nem amordaçou.

    - Apalpou a parte lateral do corpo. - Ficaram com a minha arma, mas não com o chicote.   Ou com a Omfalos, pensou.

      - Ele não precisa de nos amarrar ou de nos vigiar – disse Williams, desesperado. - Não podemos fazer nada contra ele.

      - Talvez tivesse sido melhor não se ter envolvido com os maus da fita - disse Shannon secamente.

      - Nunca estive do lado de Powell. Não estava nas minhas mãos.

      - Parece um problema rotineiro na sua vida – comentou Shannon.

     Indy acenou com uma mão para o fazer calar.

      - Jack, já chega. Estamos a perder tempo.

      - Psst. Psst.

      Todos se voltaram e viram Randy agachado por detrás da jaula.

      - Vai-te embora daqui - pediu Williams.

      - Fique satisfeito por ele estar aqui - disse Shannon.

      - Tenho uma faca. Posso libertar-vos.

      Indy estendeu as mãos por entre as barras de vime.

      - Dê-me a faca. Volta agora para a carruagem e espera por nós, ou ainda acabas aqui dentro.

      Randy anuiu. Rastejou depois para o anel exterior de rochas e infiltrou-se nas trevas, enquanto Indy começava a cortar a corda que mantinha a porta fechada.

      - Dispam as túnicas. Assim correrão mais depressa - disse.

    - Mas eles ver-nos-ão - protestou Shannon.

      - Pouco importa. Ver-nos-ão como carneiros, não como druidas.

      Continuou a cortar a corda e estava prestes a terminar quando Shannon lhe tocou no braço.

      - Esconde a faca.

      Indy ocultou-a quando diversos homens se aproximaram.

    Contornaram a jaula e agarraram nas barras de vime. Um deles contou até três e ergueram a jaula em uníssono. Deslocaram-na alguns centímetros mas voltaram a descê-la para o solo, reagrupando-se de novo.

      - São pesados - proferiu um deles.

      - Sim, não somos carneiros, rapazes. Abram os olhos – disse Shannon.

      Um deles olhou para cima, e Indy reconheceu Olhos Estreitos.

      - Nem todos nós precisamos de nos disfarçar. Mas os vossos gritos não resultarão com os outros. Adrian é poderoso. Tudo o que eles escutarão é o balido dos carneiros antes de serem mortos em sacrifício.

      Desta vez ergueram a jaula para os ombros e começaram a andar. A multidão afastou-se, abrindo caminho.

      Indy avistou línguas alaranjadas de chamas lambendo o céu da noite ao aproximarem-se da fogueira. Tinha de agir e rapidamente.

      Puxou da faca e golpeou as mãos que seguravam na jaula. Os homens gritaram. O sangue jorrou das feridas. A jaula vacilou, esmagou-se no solo e partiu-se aos pedaços. Mas a faca escorregou das mãos de Indy quando este caiu.

      Indy afastou com as mãos e pés o vime partido e rolou para fora da jaula. Levou a mão ao cinto e desenrolou o chicote, enquanto os outros escapavam do interior da jaula. As pessoas fitaram-nos, talvez inseguras do que viam. Agarrou em Deirdre pelo braço.

      - Corre - gritou ele.

      - Prendam os animais antes que estes escapem – alertou alguém, e a multidão agitou-se. Túnicas esvoaçaram; braços estenderam-se. Os fugitivos correram por entre as figuras fantasmagóricas mas viram-se encurralados, rodeados por todos os lados.

      - Baixem-se! - gritou Indy para os outros e esticou o chicote.

      Oscilou-o por cima da cabeça com dureza e rapidez, e a ponta em nó açoitou faces e queixos, narizes e testas. Um após outro, os druidas mais próximos foram-se atirando para o cho, agarrando os rostos.

      - Eles têm garras - alguém gritou.

      - Vão, vão - gritou Indy ao abrirem-se clareiras no círculo.

      Enquanto os outros partiam de gatas em direcção ao grupo de rochas mais próximas, Indy cobria-os, envolvendo o pescoço de um dos druidas que tentou parar Deirdre. Fez o homem girar e arremessou-o ao solo, e diversos outros druidas tropeçaram sobre ele.

      Indy puxou o chicote e investiu contra um grupo de druidas, correu em frente e afastou-se das ruínas.

      Dois druidas perseguiam-no de perto; mas Indy avistou a carruagem e correu velozmente. Os outros estavam já no interior da charrette e Randy em posição, pronto a colocar os cavalos em movimento.

      -  Só mais nove metros. Seis. Quatro. Estou quase lá.

      Então, um dos homens mergulhou e capturou-o pelo tornozelo.

      Indy tropeçou, escorregou e rolou. Tentou levantar-se, mas o outro indivíduo agarrava-o, fortemente. Segurou no atacante pelo pescoço e socou-o no queixo. A cabeça do homem sacudiu para trás e Indy rolou para longe dele. Pôs-se de pé com um salto, mas o outro homem prendeu-o pelo ombro. Indy deu meia volta, dobrando-lhe o braço. O homem baixou-se e ergueu as mãos, e Indy limitou-se a empurrá-lo. De seguida, lançou-se a correr atrás da carruagem, que seguia já adiante.

      Shannon agarrou no punho de Indy e puxou-o para cima.

      - Conseguiste - gritou Deirdre quando a carruagem foi ganhando velocidade.

      Indy tentava recuperar o fôlego ao apoiar-se à porta do veículo.

      - Todos conseguimos.

      - Deu-lhes algo em que pensar com aquele chicote, meu rapaz - gritou Williams com vivacidade.

      -  Devem ter pensado que eram os carneiros mais ruins que já  mais viram na vida - riu-se Shannon.

      Indy olhou para cima. Alguma coisa estava errada. Avistou então os contornos das rochas maciças surgindo ao longe. A carruagem estava a dar meia volta. Regressava ao mesmo local.

      - O que estás a fazer? - gritou Indy.

      - Não sou eu - gritou Randy desvairado. - Não os consigo controlar.

      Os cavalos galopavam a toda a força em direcção a Stonehenge,  a uma tal velocidade que Indy quase se desprendeu da porta da  carruagem. Puxou-se para o lado do veículo, subiu para cima da cobertura e alcançou a traseira do banco de madeira de Randy. O  garoto inclinava-se para a frente, estendendo as mãos para as rédeas, que se tinham libertado do seu aperto.

      Indy deslocou-se para o assento e agarrou no ombro de Randy.

  • Chega-te para lá.

     O rapaz desviou-se e Indy esticou-se o mais que conseguiu.  Mas, mesmo assim, não conseguia alcançar as rédeas; estavam presas nas costas de um dos cavalos. Só havia uma coisa a fazer.

     Deu um salto para a frente, aterrando no costado de um dos cavalos. Agarrou nas rédeas e puxou-as. Mas os cavalos pareciam correr ainda mais depressa. , Necessitava de uma  posição melhor. Segurando nas rédeas  para se equilibrar, levantou-se, colocando um pé nas traseiras de  cada cavalo.

    Inclinou-se depois para trás e puxou as rédeas com  força. Os cavalos abrandaram subitamente a marcha, derrubando  Indy da sua posição. Voou pelo ar e aterrou no solo.

      Indy deve ter ficado inconsciente por alguns segundos, porque,  quando abriu os olhos, viu a carruagem virada de lado e escutou pedidos de auxílio. Ergueu-se sobre as mãos e joelhos. Nesse instante, o seu chapéu, que deixara na carruagem quando chegaram,  caiu na sua frente. Junto dele estavam pés. Pernas.

     - Não se esqueça do chapéu, Jones.

      Levantou a cabeça e avistou Powell, agora trajando uma túnica. Apontava-lhe uma arma e, por detrás dele, o monumento de pedra sobressaía na noite, a sua silhueta recortada pelo brilho alaranjado da fogueira.

     - Gostou da viagem, professor? Os cavalos escutaram a minha chamada e obedeceram ao meu comando. Tenho uma afinidade muito especial com os animais, como pode verificar. - Riu-se. Talvez devido ao facto de possuir uma loja de animais.

      Powell gesticulou com a arma para a carruagem virada.

      - Reúna agora os restantes cordeirinhos. O divertimento aguarda-nos.

      Subitamente, Randy emergiu das trevas e, atrás dele, apareceu Olhos Estreitos.

      - Apanhei este pequeno patife a tentar fugir.

      Ao caminhar para a carruagem, Indy sentiu uma dor de lado e tocou com a mão na algibeira saliente do blusão. Aterrara sobre a Omfalos e magoara uma costela. Mas sentiu-se aliviado por esta não se ter perdido. A relíquia era a única esperança que lhe restava.  O som das trompas e tambores cessara, e os druidas entoavam, de novo, cânticos e oscilavam de um lado para o outro. Axis mundi est chorea gigantum. Vezes e vezes sem conta.

      Powell conduziu Deirdre para a formação de pedras em ferradura no centro de Stonehenge, enquanto Indy e os outros eram mantidos sob a vigilância de armas num dos lados da ferradura, a curta distância da fogueira.

      Powell ergueu uma mão e o cântico esmoreceu e terminou.

      - Agora, vai finalmente iniciar-se a mais sagrada das nossas cerimônias - informou Powell à congregação. Um druida avançou com um pequeno carvalho e plantou-o num buraco junto de Powell. Indy calculou que fosse o mesmo local onde a falsa Omfalos estivera enterrada.

      Outro druida aproximou-se e entregou a Powell um punhal longo de punho esculpido.

      - Não o deixem fazer isto - gritou Deirdre.

      - Escutem o carneiro balindo antes do sacrifício – afirmou Powell.

  • É uma mulher; abram os olhos - exclamou Indy em voz alta.

      Olhos Estreitos esmagou a arma nas costas de Indy.

      - Ninguém o pode ouvir. Não acreditam que os carneiros falem, por isso não ouvem nada.

      Alguém no meio daquela multidão tinha de os ver, de os escutar, pensou Indy, agora já em desespero. Não era possível que uma pessoa pudesse controlar tantas mentes. Mas não havia tempo para se interrogar sobre o que a multidão via. Quando o terreno em redor da árvore foi alisado com uma pá e o druida se afastou, Powell ergueu o punhal para a garganta de Deirdre.

      Indy abriu a algibeira do blusão.

      - Powell, você não tem a Omfalos. Está aqui nas minhas mãos. A sua é falsa.

      Retirou-a da algibeira e ergueu-a acima da cabeça.

      - Pare, Jones - ordenou olhos Estreitos. - Ou disparo.

      Mas Indy avançou na direcção de Powell, ignorando a ameaça.  A multidão soltou murmúrios.

      - Quem é este homem? De onde apareceu ele? É um de nós?

     Agora eles viam-no. Sentia que assim era, e Olhos Estreitos  não apertou o gatilho.

      Powell foi apanhado desprevenido. Baixou o punhal quando  Indy parou a pouca distância dele. Indy não sabia o que fazer a seguir, mas, subitamente, ao comprimir a Omfalos contra o peito ; sentiu que já não interessava.

      Viu uma àguia. A sua àguia. Conhecia esta àguia. Fazia parte do seu passado. Era a sua protectora. A última vez que a vira  fora quando segurara na Omfalos, em Delfos. Agora, estava ali,  voando sobre as ruínas, gravando um círculo sobre as pedras.

      - O que hei-de fazer? - perguntou Indy, não sabendo se as  palavras eram faladas ou pensadas.

      A águia completou o seu primeiro círculo e, de repente, Indy viu as pedras iluminadas com uma luz etérea que parecia emanar do interior delas mesmas. Apresentavam-se agora diferentes. O círculo de pedras e todo o templo estavam completos. Onde antes estivera a pedra da chacina erguia-se agora uma rocha inteira. Indy sentia-se tão fascinado com o que presenciava que não se apercebeu no início que um homem alto de manto e capuz cinzentos se encontrava à sua esquerda. O homem olhava em frente e, pousado no seu ombro direito, estava um mocho.

    Indy conseguia ver parte de uma longa barba branca, mas nada mais.

      O homem falou:

      - Pergunta.

      - Pergunto o quê?

      - Tenta de novo.

      - Onde estou?

      - Tu sabes.

      - Mas não parece o mesmo local.

      - Setenta janelas abrem-se para o universo e para a mente  universal.

      - Onde estão as pessoas?

      - Estão aqui.

      Indy fitou o homem, tentando obter uma visão melhor.

      - Quem é você?

      - Já leste a minha história, falsa tal como acreditas que é.

      Tenho muitos nomes e, dentro de poucos anos, renascerei em  conhecimento como Gandalf. Gosto desse nome. - O homem voltou-se ligeiramente e Indy avistou um rosto pálido e enrugado, um nariz longo e o esboço de um sorriso. - Mas não percas tempo. Pergunta aquilo que ainda não sabes.

      Indy não sabia o que perguntar.

      - Por que se chama a Dança dos Gigantes?

      - Outrora, os deuses dançantes carregavam as pedras de energia, as quais constituem grandes baterias de poder e cura.

      - O poder pode ser usado para o mal?

      - A energia não é boa nem má. Existe apenas.

      - Adrian Powell tornar-se-á primeiro-ministro?

      - Digo que um elemento das ordens se tornará primeiro-ministro. Mas tu podes impedir Powell.

      - Como?

      - Dando-lhe o que ele quer.

      Sentiu um puxão e, olhando para baixo, viu um par de mãos sobre a Omfalos. De súbito, viu-se numa verdadeira disputa com Powell, que lhe queria tirar a relíquia, e tudo regressou ao estado anterior. O estranho de capuz desaparecera, tal como a àguia. Mas as palavras do velho mágico ecoavam na sua mente.

    Largou a pedra, e Powell pressionou a Omfalos contra o seu próprio peito. Pareceu surpreendido por Indy lha ter entregue de forma tão fácil.

      Depois, a sua expressão alterou-se. Parecia atordoado. A sua boca abriu-se; deu um passo vacilante e depois ajoelhou-se sobre um joelho.

      Olhos Estreitos dirigiu-se a Powell e perguntou-lhe se se sentia bem. Powell ergueu-se. Tinha os olhos muito abertos mas fitava Olhos Estreitos como se não o reconhecesse ou compreendesse o que ele dizia.

      - A cerimônia tem de ser completada - disse, num tom de voz estranho. Afastou uma mão da Omfalos e retirou da túnica o punhal cerimonial. Com um golpe rápido, esfaqueou Olhos Estreitos no estômago, retirou depois e rasgou até a clavícula. Olhos Estreitos cambaleou para trás, o sangue jorrando-lhe do estômago e peito. Caiu derrubado no solo.

      Indy sacou a Omfalos a Powell e agarrou-a. Preparava-se para seguir para junto de Deirdre, mas parou a meio do caminho. Mais uma vez, avistou a àguia voando sobre as ruínas. Esta desceu e pousou no seu ombro, e Indy compreendeu que estava protegido.

      A figura de manto cinzento encontrava-se junto dele nas ruínas que deixaram de ser ruínas. O mágico ergueu uma mão como lhe indicando para falar. Desta vez, Indy não hesitou.

      - O que se passa?

      O homem alto riu-se.

      - Mais do que aquilo que vês.

      - O que viu Powell quando segurou na Omfalos?

      - A paisagem da sua própria mente. Uma mente de grande força, mas de igual avidez, com pouco interesse pelos outros. Tudo se derruba à volta dele, incluindo o próprio céu acima dele.

    Perdeu a visão.

      - Se não é Powell, quem é o druida que se tornará primeiro-ministro?

      - Isso não te diz respeito. Não te preocupes com tal coisa. Será um líder com pujança, mas com muito pouco de druida. - Afagou a cabeça do mocho sobre o seu ombro. - Não é assim, Churchill?

      Depois, virou-se para Indy pela última vez.

      - Vê agora o que está a acontecer.

      Subitamente, Indy sentiu um puxão e viu que Powell lhe tirara a Omfalos de novo das mãos. Afastou-se de Indy, elevando a Omfalos acima da cabeça.

      - Sou invencível. A minha força é imensurável. Eu controlo.

      Indy avistou então Olhos Estreitos por detrás de Powell.

    Estava de pé, sangrando e vacilando. Powell retrocedeu até ele, e Olhos Estreitos envolveu com os braços e ambos giraram como dois dançarinos.

      - Deixa-me - gritou Powell. - Que monstro me agarrou?

      Depois, com todas as forças que lhe restavam, Olhos Estreitos empurrou Powell para a frente e para a fogueira. Os dois homens desapareceram nas chamas. O fogo bramiu, como que em aprovação.

      Indy abraçava Deirdre bem junto de si, mal acreditando no que os seus olhos viram.

      - Terminou. Terminou tudo.

      Mas, repentinamente, Powell reapareceu na berma do braseiro. A pele estava enegrecida e em chamas, mas segurava ainda a Omfalos. Por instantes, Indy pensou que Powell se ia atirar a eles. Mas, com um grito final e cortante de terror, caiu de novo no inferno.

     

    A SETA DE APOLO

    Um fio de fumo elevava-se das cinzas da fogueira. Deirdre observava a luz do amanhecer enquanto Indy e Shannon abriam caminho até ela. Deirdre não quisera participar nas buscas.

    Não se aproximaria nem mais um pouco daqueles restos. Sofrera já demasiado horror, e, agora, tudo o que desejava era dormir.

    Um sono longo e profundo. Queria esquecer. Só isso.

      Indy trazia consigo um saco de pano e, pela forma, parecia que tivera sucesso na recuperação da Omfalos.

      - Pelos vistos, encontraste-a - disse.

    - Sim, depositou-se na caixa toráxica, e uma das extremidades...

      Ela acenou uma mão.

      - Não me contes. Não quero saber.

      - Contudo, encontramos ainda outra coisa que sei vais querer saber - disse Shannon.

      - O quê?

      Mostrou um pedaço chamuscado de metal amarelo.

      - É o pergaminho de ouro. O que resta dele.

      - Oh, não!

      - Receio que assim seja - disse Indy. - Powell devia tê-lo numa algibeira da túnica. Era um fogo quente.

      - E ainda é - afirmou Shannon. - Olha para isto. – Levantou o pé; a sola da bota ainda fumegava.

      - Consegue-se recuperar? - perguntou ela.

      - A bota?

      - Não, Jack, não me refiro à tua bota.

      - A escrita dsapareceu totalmente - respondeu Indy. – Agora não passa de um pedaço de ouro, apenas alguns gramas.

      Shannon entregou-lho.

      - Toma, é teu. Foste tu quem o encontrou.

      - O que vou fazer com isto?

      - Podias organizar uma grande cerimônia de casamento, contratar uma banda de jazz e pagar-lhes bem. Tenho precisamente uma em mente.

      Deirdre riu-se e olhou para Indy, desviando de seguida o olhar.

      Depois do que se passara, sentia-se algo mudada, uma pessoa diferente, em nada parecida com aquela excitada com a expectativa de regressar a Londres e casar-se. Estava insegura; necessitava de tempo para pensar, para sarar, para se libertar do passado.

      Naquele preciso momento, necessitava de dormir. Talvez depois de descansar, tudo se desenrolasse como tinham planeado. Fitou o que restava do pergaminho de ouro e encolheu os ombros.

     - Bem, parece que já nada nos prende aqui. Podemos ir embora? Estou pronta para cair numa cama.

      Indy colocou o braço em redor do ombro de Deirdre.

      - Também eu. Vamos.

      - E a falsa Omfalos? - inquiriu Shannon.

      - Vamos deixá-la - proferiu Indy. - Será um bonito gesto  simbólico do regresso da Omfalos.

      Shannon encolheu os ombros.

      - Não creio que faria grande diferença qual das duas fosse ali plantada, pois não?

      Indy olhou para Shannon, que nunca segurara na Omfalos.

      - Não, creio que não. ; Deveriam sentir-se aliviados e excitados, com esperança no futuro, mas algo mudara entre ele e Deirdre, alterado como o solo durante um terramoto, pensou Indy. Pareciam pessoas diferentes. No entanto, sabia que mais do que uma pessoa que sobrevivera a uma situação de ameaça de vida sentia um inexplicável enfraquecimento depois de ultrapassado o perigo. A sensação acabaria por passar, estava certo, e voltariam a estar juntos. Pelo menos, era assim que ela acreditava que as coisas resultariam.

      Retirou o braço de cima do ombro de Deirdre e mirou pela última vez as formações de pedra. Reparou que as pedra-lipes, que formavam uma ferradura no interior das cinco rochas grandes no centro das ruínas, eram cônicas, tal como a Omfalos. O cone e o paralelogramo eram as duas formas de pedras consideradas como mais sagradas pelos antigos gregos, e ambas essas formas estavam presentes em Stonehenge. Mas Stonehenge foi concebido e erigido antes de os gregos terem alcançado notoriedade. Pensou no pergaminho de ouro com a história de Merlin, e na estranha visão do homem alto com manto cinzento. Stonehenge, decidiu, era um local onde o mito e a realidade se fundiam, e a verdade era talvez tão estranha quanto o mito e a realidade.

      Passaram perto de uma das grandes rochas e Indy parou ao deparar com a sua Webley junto da base. Pegou nela e depois mirou  o maciço bloco de pedra, deslizando as mãos sobre ela.

      - O que estás a fazer? - perguntou Shannon.

      - Estou apenas a ver. Não tive realmente oportunidade para o fazer desde que aqui chegamos.

      - Uma pedra é uma pedra, Indy, por muito grande que seja - afirmou Shannon.

      - Tal como a música de jazz é toda igual.

      Shannon esfregou o pescoço e sorriu.

      - Muito bem. Compreendi a mensagem. Cada pedra tem uma história diferente para contar.

      - Venham, vocês os dois. Vamos embora - disse Deirdre. A carruagem aguardava-os. Randy levara o pai de regresso à aldeia logo ao raiar da manhã e voltara para os buscar. Sabia que Deirdre estava ansiosa por partir.

      Indy preparava-se para se voltar quando avistou qualquer coisa. Alguns centímetros acima da sua cabeça, no bloco de pedra, havia uma gravação. Era uma adaga com cerca de trinta centímetros que apontava para baixo. O cabo parecia semelhante a gravações de adagas de Egeus que estudara, datadas do século II a. C.

      - Agora o que estás a fazer? - perguntou Deirdre.

      Indy apontou para a adaga.

      - Estás a ver isto?

      Deirdre aproximou-se mais da pedra.

      - Parece uma seta.

      Ele encolheu os ombros.

      - Penso que lhe podes chamar isso. Talvez seja a seta de Apolo.

      - O que é isso? - perguntou Shannon.

      - Apolo deu uma seta ao mago Abaris que viajou por toda a terra sobre ela.

      - Por que haveria de ter feito aqui uma paragem? – perguntou Shannon.

      Indy virou-se e observou o vasto e desolado planalto. Pensou nas histórias sobre Apolo e Merlin e interrogou-se.

      - Quem sabe? Talvez Apolo o tenha enviado aqui para levar algo que tivesse aqui enterrado há muito.

 

                                                                                            Rob Macgregor

 

 

                      

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