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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MULTIPLICAÇÃO DOS FILHOS / Mia Couto
A MULTIPLICAÇÃO DOS FILHOS / Mia Couto

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A MULTIPLICAÇÃO DOS FILHOS

 

Certa vez, Mulando sentiu vontade de ver os seus filhos. Como fossem muitos, decidiu dedicar todo o tempo que lhe restava em paternais visitas. Queria saber das outras vidas de sua vida.

Como se, em final da existência, ele avaliasse a única eternidade que nos é certa: continuarmo-nos em nossos filhos.

Começou pelo mais velho. O filho varão se admirou da visita. Alguma suspeita o fez ficar de coração atrás: porquê tão tardia visita? Mas ele esmerou em simpatia.

Festejaram esse milagre de haver pai e filho, como flor que morre na imortalidade da semente. Beberam, comeram, entornaram as primeiras gotas no chão dos antepassados. O pai se hospedou por uns dias. Foi um tempo de transbordar a alma.

Na despedida, o filho mais velho disse que havia uns tantos irmãos espalhados pelos lugares. E o pai seguiu a prestar visitas a seus outros descendentes. Aqui e além foi encontrando mais uns. Que revelaram outros. E outros apontaram mais outros. Até que Mulando descobriu que eram muitos, bem para além dos muitos que ele imaginava.

Já cansado de tanta visitação, Mulando sentou-se a contemplar as linhas da palma da mão. Lhe pareceu ver que elas tinham mudado de desenho. Mulando se orgulhava de ter as linhas da mão em inacabado estado, sempre fugidias. Mas agora uma nova vaidade se sobrepunha: o ser tanto pai. Riu-se de suas façanhas. Já visitara mais de duas dúzias e ainda havia mais prole. Chegaria ao ponto de não ter tempo de terminar sua peregrinação? Contou as linhas das mãos e lembrou o desafio do seu tio materno perante as estrelas: contar, contar, contar até chegar a um ponto em que já não há número. E ele desistia como o dedo do tio desmaiando perante as tantas estrelas.

Um longo braço da preguiça amoleceu a sua vontade de prosseguir. Havia um bar e ele passou por lá, passou por um copo, uma garrafa, uma neblina. A seu lado, uma mulher de ninguém escutou a sua missão. A moça, estranhamente, lhe perguntou:

- Esses todos seus filhos: sabe o que é?

- Gostava de saber.

- É que, no fundo, todos, neste mundo, são nossos filhos.

- Você também?

E Mulando riu-se, cabeça tombada para trás, repetindo com ante-sabidas intenções:

- Você também é minha filha?

A prostituta sorriu-se, triste, faz conta estreasse o sentimento de ter um pai. Mulando olhou para as mãos, a ganhar fôlego e estendeu as pernas:

- Então, minha filha, sente-se aqui no meu colo.

Ela demorou a ajeitar-se no vivo assento. Ele cruzou os braços sobre ela, em subtil prisão. E lhe segredou que ela, por momentos, fizesse de conta que era outra. Uma mulher sem pecado, isenta de maus olhados. A prostituta o afastou com firmeza. Escapou do colo de Mulando e se encrispou toda, até quase perder a voz:

- Crime é um pai não cuidar dos filhos.

- Isso é verdade. Isso é um crime sem perdão.

Ele dava o assunto na bandeja, sem demais. Mulher que não queria o seu colo deixava de existir. Além disso, o clima não estava para disputas. Mulando lançou o jornal para se resguardar da luz e encerrou-se para balanço.

A manhã se adiantara, calor adentro, quando Mulando despertou. O bar estava deserto, da prostituta nem sobrara o perfume. Em redor, as formas ainda se acertavam, o nublado era um céu dentro da cabeça dele. E naquele esbotar de contornos ele sentiu alguém se postar diante.

Se as vistas eram sombras, os sons pareciam bem mais nítidos. E a voz do outro lhe chegou, em bom recorte:

- Venho lhe matar!

Nem lhe veio discernimento para a devida resposta. Tentou focar o rosto do outro e notou que ele a si se semelhava. Um mais filho? Daquela idade?

- Meu filho: eu vou seguindo, daqui vou para mais adiante.

- Não sou seu filho!

- Não é? Mas você me parece. Então você é o quê?

- Sou seu pai.

  E ditas as três palavrinhas desfechou uma matraca sobre o outro. Uma, duas, quatro chambocadas. As suficientes, mortais. Mulando já não usava o pescoço. Insustentável, a cabeça lhe descaíra para trás, olhos escancarados perante o sol. Pela primeira vez, as linhas da mão de Mulando se moldaram em desenho fixo.

O outro fez regressar a matraca em sua bolsa e falou nos seguintes termos para o chão:

- Sou seu pai e você nunca me veio visitar.

  Dizem assim: o funeral de Mulando nunca se viu tristeza mais repleta. Nesse momento, o homem cumpria, de uma só vez, a promessa de visitar toda a sua descendência. Estavam lá os filhos todos, visitando-o na sua última mudança de residência. Em sua nova maneira de ver, Mulando acreditou presenciar no cemitério a inteira humanidade.

 

                                                                                            Mia Couto

 

 

                      

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