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Um Capitão de Quinze Anos - Vol. II / Julio Verne
Um Capitão de Quinze Anos - Vol. II / Julio Verne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Um Capitão de Quinze Anos

Volume II

 

Quando a decisão e a audácia habitam um corpo jovem geram a abnegação e o heroísmo. Agora, pela terra adentro, perdido o Pilgrin nas costas de Angola, em África, não nas Américas, Dick Sand vai penetrando o continente. Florestas e rios, animais, os mais ferozes, são perigos que surgem a cada passo. Mas o verdadeiro perigo é outro... o homem. Só que dick Sand, embora ainda muito jovem, tudo vai conseguir enfrentar, para salvação dos seus e glória do seu nome.

 

NA ÁFRICA

A ESCRAVATURA

A escravatura! Ninguém ignora a significação desta palavra, que nunca devia ser proferida pelos homens. Este tráfico abominável, feito durante muito tempo em proveito das nações europeias que possuíam colónias de além-mar, mas proibido, há já alguns anos, faz-se contudo ainda em grande escala, principalmente na África Central.

Na segunda metade do século XIX, a assinatura de alguns Estados, que se dizem cristãos, ainda se não lê no tratado que aboliu a escravidão.

Seria para acreditar que o tráfico de escravos se não fizesse já, que a compra e venda de criaturas humanas tivesse acabado.

Tal assim não acontece, porém, e é isto justamente o que o leitor deve conhecer se quiser tomar verdadeiro interesse pela segunda parte desta história. Convém saber-se o que são essas caçadas aos homens, que ameaçam despovoar um continente inteiro com o fim de sustentar algumas colónias de escravos, onde e de que modo se fazem essas bárbaras correrias, o sangue que custam, os incêndios e os roubos que provocam e, finalmente, a quem aproveitam.

Foi no século XV que pela primeira vez se viu o tráfico de negros. As circunstâncias em que tal comércio se estabeleceu foram as seguintes:

Os Muçulmanos, depois de expulsos da Espanha, refugiaram-se para além do estreito na costa da África. Os Portugueses, que então ocupavam essa parte do litoral, perseguiram-nos encarniçadamente. Alguns fugitivos foram feitos prisioneiros e levados para Portugal. Reduzidos à servidão, constituíram o primeiro núcleo de escravos africanos que se formou na Europa Ocidental depois do estabelecimento da era cristã.

Mas aqueles muçulmanos pertenciam na sua maioria a famílias opulentas, que os quiseram resgatar a troco de grandes riquezas. Recusaram-se os Portugueses: não tinham em que empregar o ouro estrangeiro. O que lhes faltava eram braços indispensáveis para os rudes trabalhos das colónias nascentes, e, para que tudo se diga, os braços do escravo.

As famílias muçulmanas, não conseguindo resgatar os parentes cativos, propuseram então a sua troca por número maior de negros da África, dos quais facilmente se apoderariam. Aceitaram os Portugueses a oferta, que lhes dava vantagem, e assim se fundou a escravatura na Europa.

Pelos fins do século XVI, este tráfico odioso estava geralmente admitido, sem que repugnasse aos costumes, ainda bárbaros, daqueles tempos. Todos os Estados o protegiam, a fim de mais rapidamente e por modo mais seguro colonizarem as ilhas do Novo Mundo. Os escravos de origem negra resistiriam melhor nos lugares onde os brancos mal aclimatados, e pouco afeitos ao calor inter-tropical, morreriam aos milhares. O transporte de negros para as colónias da América fazia-se então em navios especiais, e foi este ramo de comércio transatlântico a causa de se estabelecerem importantes mercados em diversos pontos da costa da África. A mercadoria custava pouco no país que a exportava, e os lucros eram consideráveis.

Mas, por muito necessária que fosse, sob todos os pontos de vista, a fundação das colónias de além-mar, essa necessidade contudo não justificava a existência dos mercados de carne humana.

Imagem – Não teria ainda a pequena caravana andado cinquenta passos...

Levantaram-se então clamores, protestando contra o comércio de negros e pedindo aos governos europeus a sua abolição em nome dos princípios humanitários.

Em 1751, os quacres puseram-se à frente do movimento tendente à abolição da escravatura no seio da América do Norte, onde cem anos depois rebentava a guerra separatista, a que não foi estranha a questão da escravatura. Diversos Estados do Norte, a Virgínia, o Connecticut, o Massachusetts e a Pensilvânia, decretaram a abolição da escravatura e a libertação dos escravos, trazidos por grandes preços para os territórios desses Estados.

Mas a campanha iniciada pelos quacres não se limitou às províncias setentrionais do Novo Mundo. Os partidários da escravatura foram energicamente perseguidos além do Atlântico. A França, e mais notavelmente a Inglaterra, recrutaram partidários para esta justa causa. «Antes se percam as colónias que os princípios!» Tal foi o lema que ressoou por todo o Velho Mundo e, apesar dos grandes interesses políticos e comerciais que se prendiam a esta questão, atravessou ele eficazmente toda a Europa.

O impulso estava dado. Em 1807, a Inglaterra aboliu a escravatura nas suas colónias, seguindo a França este exemplo em 1814. As duas poderosas nações celebraram um tratado, que foi confirmado por Napoleão durante os Cem Dias, o qual tratado não era então mais do que uma declaração puramente teórica. Os negreiros não cessavam de navegar, indo descarregar nos portos coloniais as cabeças-de-alcatrão.

Para pôr termo a tal comércio adoptaram-se medidas mais práticas. Os Estados Unidos, em 1820, e a Inglaterra, em 1824, declararam o tráfico da escravatura acto de pirataria, e piratas aqueles que o fizessem. Como tais, eram sujeitos à pena de morte, e foram consequentemente perseguidos sem tréguas. A França deu logo depois a sua adesão ao novo tratado; mas os Estados do Sul da América, as colónias espanholas e portuguesas não entraram no acto da abolição, e a exportação de negros continuou a fazer-se em proveito destas, apesar do direito de visita geralmente reconhecido, que se limitava unicamente à verificação da nacionalidade dos navios suspeitos.

A nova lei da abolição da escravatura não teve porém efeito retroactivo. Não se faziam novos escravos, mas não se libertavam os antigos.

Nestas circunstâncias a Inglaterra deu o exemplo. Em 14 de Maio de 1833, um decreto emancipou todos os negros das colónias da Grã-Bretanha, e em Agosto de 1838 seiscentos e setenta mil escravos eram declarados livres.

Dez anos depois, em 1848, a república emancipava os escravos das colónias francesas, isto é, duzentos e sessenta mil negros.

Em 1859, a América do Norte seguia-lhes o exemplo.

As três grandes potências tinham, pois, completado essa grande obra de humanidade. Agora só se faz a escravatura em proveito das colónias espanholas ou portuguesas e para satisfazer as exigências das povoações do Oriente, turcas ou árabes. Se o Brasil ainda não deu a liberdade aos seus antigos escravos, pelo menos não recebe outros novos e os filhos dos negros nascem livres.

É no interior da África, após guerras sangrentas, que entre si fazem os chefes africanos para caçarem homens, que tribos inteiras têm sido reduzidas à escravidão.

Duas direcções opostas seguem as caravanas: uma para oeste, a caminho da colónia portuguesa de Angola *; a outra, a leste, dirige-se a Moçambique.

Dos infelizes negros, de que apenas uma pequena parte chega ao seu destino, são mandados uns para Cuba ou para Madagáscar, outros para as províncias árabes ou turcas da Ásia, Meca ou Mascate. Os cruzadores ingleses e franceses dificilmente conseguem impedir o tráfico, tanto custa a manter a vigilância e cruzeiro eficaz em tão vasta extensão de costas.

Mas é grande ainda o número dessas odiosas exportações?

É. Avalia-se em não menos de oitenta mil os escravos que chegam ao litoral, e este número, segundo parece, representa apenas uma décima parte dos indígenas sacrificados. Depois das horríveis mortandades, os campos devastados ficam desertos, as povoações incendiadas e sem habitantes, os rios levam nas suas correntes muitos cadáveres e. as feras invadem as regiões desoladas. Li-vingstone, no dia seguinte ao daquelas caçadas, não reconhecia as terras que meses antes visitara. Todos os outros viajantes, Grant, Speke, Burton, Cameron e Stanley, falam do mesmo modo dessa região da África Central, coberta por densas matas, teatro principal das guerras entre os chefes indígenas. Na região dos grandes lagos, sobre toda a vastíssima extensão que alimenta o mercado de Zanzibar, em Bornu e em Fezan, .mais ao sul nas margens do Niassa e do Zambeze, e para oeste nas regiões do Alto Zaire, que o audaz Stanley há pouco tempo atravessou, vê-se o mesmo espectáculo: ruínas, mortandades e terras despovoadas. A escravidão só acabará na África com a extinção da raça negra, que terá a mesma sorte que a raça australiana, na Nova Holanda.

Mas o mercado das colónias espanholas e portuguesas fechar-se-á um dia; a venda acabará, os povos civilizados já não podem tolerar a escravatura.

O ano de 1878 verá, sem dúvida, a libertação de todos os escravos possuídos por Estados cristãos. Contudo, durante muitos anos ainda, as nações muçulmanas sustentarão o tráfico, que tanto despovoa o continente africano. É para elas que se faz a emigração de negros em maior quantidade, pois que o número dos indígenas arrancados às suas terras e enviados para a costa oriental excede anualmente o número de quarenta mil. Muito tempo antes da expedição do Egipto, os negros de Sennaar eram vendidos aos milhares aos negros de Daufur, e reciprocamente. O general Bonaparte comprou grande número deles, dos quais fez soldados, com organização semelhante à dos mamelucos. Desde então, durante este século, do qual vão decorridas quase quatro quintas partes, o comércio de escravos não diminuiu na África. Pelo contrário.

O islamismo favorece a escravatura. É mister que o escravo negro substitua nas províncias muçulmanas o escravo branco de outrora. Assim, pois, negreiros de origens diversas fazem em grande quantidade tão nefando tráfico. De tal arte levam um suprimento de população às raças, que pouco a pouco se vão extinguindo, e que desaparecerão um dia, porque se não regeneram pelo trabalho. Estes escravos, como no tempo de Bonaparte, fazem-se muitas vezes soldados. Entre alguns povos do Alto Níger, entram por metade na composição dos exércitos dos chefes indígenas. Em tais condições, a sorte dos escravos não é sensivelmente inferior à dos homens livres. Quando um escravo não é soldado, serve como moeda corrente; no Egipto, como em Bornu, oficiais e empregados são pagos em tal moeda.

Disse-o, porque o viu, Guilherme Lejean.

Tal é o estado actual da escravatura.

Será necessário acrescentar que muitos agentes das grandes potências europeias não se envergonham de mostrar, por este comércio, lamentável negligência? E é contudo verdade; enquanto os cruzadores vigiam as costas do Atlântico e do oceano Índico, a escravatura faz-se no interior, as caravanas caminham sob as vistas de certos funcionários, as carnificinas em que morrem dez negros por cada escravo que se prende executam-se em épocas determinadas.

Assim, pois, compreende-se quanto tinham de terrível as palavras que Dick Sand pronunciara:

 — A África! A África Equatorial! A África dos negreiros e dos escravos!

Não se enganava. Era a África com todos os perigos para os seus companheiros e para ele.

Mas a que ponto do continente africano fora ele levado, por uma inexplicável fatalidade? Evidentemente à costa ocidental, e, circunstância ainda mais agravante, o praticante devia supor que o «Pilgrim» tinha naufragado precisamente no lugar da costa de Angola, aonde chegam as caravanas que fornecem toda esta porção da África. Com efeito, assim era. Estava no continente que Cameron e Stanley atravessariam alguns anos depois, à custa de inauditos esforços, aquele pelo sul e este pelo norte! Deste vasto território, que se compõe de três províncias, Benguela, Congo e Angola, apenas se conhecia o litoral. Estende-se este desde o Cunene, ao sul, até ao Zaire, ao norte. Duas cidades principais dão o nome a dois portos, Benguela e São Paulo de Luanda, capital da colónia, que pertence a Portugal.

Para o interior era então território quase desconhecido. Poucos viajantes se lhe tinham atrevido. Clima pernicioso, terrenos quentes e húmidos, causando febres, indígenas bárbaros, alguns ainda canibais, a guerra permanente entre as tribos, a desconfiança dos guerreiros de qualquer estranho que deseja penetrar os segredos do seu comércio infame, tais são as dificuldades a superar e os perigos que o viajante tem a vencer na província de Angola, uma das mais perigosas da África Equatorial.

Tuckey, em 1816, subiu o Zaire até além das cataratas de Zelala, percorrendo quando muito duzentas milhas. Não bastava esta viagem para dar inteiro conhecimento do território, e contudo causou ela a morte à maior parte dos sábios e oficiais que formavam a expedição.

Trinta e sete anos mais tarde, o Dr. Livingstone caminhou desde o Cabo da Boa Esperança até ao Alto Zambeze. Dali, em Novembro de 1853, com atrevimento nunca excedido, atravessou a África, na direcção do noroeste, passou o Coango, um dos afluentes do Zaire, e chegou a São Paulo de Luanda em 31 de Maio de 1854. Foi a primeira luz que penetrou na escuridão da grande colónia portuguesa.

Dezoito anos depois, dois intrépidos descobridores, vencendo dificuldades de toda a espécie, atravessaram a África na direcção de leste para oeste, um pelo sul, o outro pelo norte de Angola.

O primeiro, pela data, é o tenente da marinha inglesa Verney Howet Cameron. Em 1872 julgava-se, com razão, que a expedição do americano Stanley, que fora enviado em busca de Livingstone, à região dos grandes lagos, se havia perdido. Ofereceu-se Cameron para procurar Stanley. Foi aceita a oferta. Cameron, acompanhado pelo Dr. Dillon, o tenente Cecil Murphy e Robert Moffat, sobrinho de Livingstone, partiu de Zanzibar. Depois de ter atravessado o Ougogo, encontrou o corpo de Livingstone, que os seus servidores fiéis levavam para a costa oriental. Continuando no seu caminho para oeste, com a inabalável vontade de passar de uma para a outra costa, atravessando o Onyanyenibe, Ogunda, Kohuele, onde achou os papéis do famoso viajante, transpondo o Tanganhica, as montanhas de Bombarre, o Lualaba, que não pôde descer, depois de ter visitado todas essas províncias devastadas e despovoadas pelo tráfico da escravatura, Kilemba, Urua, as origens do Lomane, o Ouluda, o Lovale, depois de ter passado para além do Cuanza e das imensas florestas, nas quais Harris perdera Dick Sand e os seus, o enérgico Cameron avistou, enfim, o oceano Atlântico e chegou a São Filipe de Benguela. Esta viagem, que durou três anos e quatro meses, custou a vida a dois dos seus companheiros, o Dr. Dillon e Robert Moffat.

Ao inglês Cameron ia suceder quase imediatamente o americano Henry Moreland Stanley nesta via de descobertas. Como é sabido, o intrépido correspondente do New York Herald, enviado em busca de Livingstone, encontrara-o em 30 de Outubro de 1871 em Ujiji, nas margens do Tanganhica. Mas o que Stanley fizera tão felizmente com um fim puramente humanitário, quis empreendê-lo também por amor à ciência geográfica. Foi então o seu objectivo o reconhecimento completo do Lua-laba, que apenas vira imperfeitamente. Cameron andava ainda errante pelas províncias da África Central quando Stanley, em 1874, saía de Bagamoio, na costa oriental, deixava vinte e um meses depois, em 24 de Agosto de 1876, Ujiji, dizimado por uma epidemia de bexigas, percorria em setenta e quatro dias a distância que vai do lago até Nyamgué, grande mercado de escravos, que Livingstone e Cameron tinham já visitado, e assistia às mais horríveis cenas de extermínio, no país dos Marungus e dos Manyemas, pelos oficiais do sultão de Zanzibar.

Stanley dispôs-se então a reconhecer o curso do Lualaba e a descê-lo até à foz. Cento e quarenta carregadores, contratados em Nyamgué, e dezanove barcos compunham o material e o pessoal da expedição. Foi necessário combater desde o princípio os antropófagos do Ukusu, e desde o princípio também carregar com as embarcações, a fim de tornear cataratas impossíveis de descer. No equador, no ponto em que o Lualaba se inclina para o nor-nordeste, cinquenta e quatro canoas, tripuladas por muitas centenas de indígenas, atacaram a pequena flotilha de Stanley, que conseguiu pô-los em fuga. Depois o valente americano, subindo até ao segundo grau de latitude boreal, certifica-se de que o Lualaba é o Alto Zaire ou Congo, e que seguindo-lhe o curso desceria directamente para o mar. Foi o que fez, combatendo quase todos os dias com as tribos marginais. No dia 3 de Junho de 1877, passando as cataratas de Mâssassa, perdeu um dos seus companheiros, Francisco Pocock, e ele mesmo, a 18 de Julho, era arrastado na sua embarcação para as cachoeiras de Mabelo, escapando da morte por milagre.

Finalmente, a 6 de Agosto, Henrique Stanley chegava à aldeia de Ni Sanda, a quatro dias da costa. Dois dias depois, na Bansa de Mabuco, encontrava as provisões enviadas por dois negociantes de Boma, e descansava, enfim, nesta povoação, tendo envelhecido aos trinta e cinco anos, pelas fadigas e privações, depois de ter atravessado completamente o continente africano, no que despendera dois anos e nove meses da sua vida. Mas estava conhecido o curso do Lualaba até ao Atlântico, e ficara sabido que, se o Nilo é a grande artéria do norte, se o Zambeze é a grande artéria de leste, a África possui ainda para oeste o terceiro dos maiores rios do mundo, o qual, na extensão de duas mil e novecentas milhas (1), sob o nome de Lualaba, de Zaire ou Congo, liga a região dos lagos do oceano Atlântico.

 

*1. Cerca de 4670 quilómetros.

 

Porém, entre os dois itinerários, o de Stanley e o de Cameron, estava a província de Angola, quase desconhecida, no ano de 1873, justamente na época em que o «Pilgrim» se perdia na costa da África. O que apenas se sabia é que ela era o teatro da escravatura no Ocidente, devido isto aos importantes mercados de Bié, Caçange e Kasonde.

Foi para aquela região que Dick Sand foi levado, distante da costa mais de duzentas milhas, com uma mulher extenuada pelo cansaço e pela dor, uma criancinha quase morta, e os negros, presa naturalmente indicada à cobiça dos mercadores de escravos.

Era a África, era, e não a América, onde nem os indígenas, nem as feras, nem o clima são realmente para recear. Não era aquela região propícia situada entre as Cordilheiras e a costa, em que as povoações abundam, e as missões abrem hospitaleiramente as suas portas a todos os viajantes. Estavam longe as províncias do Peru e da Bolívia, aonde a tempestade teria com toda a certeza arrastado o «Pilgrim», se mão criminosa o não tivesse desviado do seu caminho, e onde os náufragos encontrariam meios fáceis de se repatriarem.

Era a Angola terrível, não a parte da costa directamente vigiada pelas autoridades portuguesas, mas o interior da colónia, percorrido pelas caravanas de escravos dirigidos pelo chicote dos verdugos.

O que conhecia Dick Sand deste território em que a traição o lançara? Pouco; o que referiram os missionários dos séculos XVI e XVII, o que disseram os mercadores portugueses, que faziam a viagem de São Paulo de Luanda para o Zaire e São Salvador, o que contou o Dr. Livingstone por ocasião da sua viagem em 1853, e bastava isto para abater um espírito mais forte que o seu.

Realmente, a situação era medonha!

 

HARRIS E NEGORO

No dia seguinte àquele em que Dick Sand e os seus companheiros fizeram a última paragem na floresta, encontravam-se dois homens a três milhas do lugar onde Dick parara, conforme ao que fora de antemão combinado entre os dois.

Eram Harris e Negoro, e vai ver-se que acaso pôs em presença um do outro, na costa de Angola, Negoro, vindo da Nova Zelândia, e o americano, que o seu ofício de traficante de escravos obrigava a percorrer repetidas vezes aquela província da costa ocidental da África.

Harris e Negoro estavam sentados à sombra de uma enorme árvore, na margem de uma ribeira caudalosa, que corria entre uma dupla ala de papiros.

Começava a conversação, porque Negoro e Harris tinham-se encontrado naquele mesmo instante, e antes de tudo falaram nos acontecimentos das últimas horas.

 — Assim, Harris — disse Negoro — , não pudeste levar contigo para mais longe a pequena caravana do capitão Sand, como eles chamam àquele praticante, que apenas conta quinze anos de idade?

 — Não, camarada — respondeu Harris —, e é até para admirar como consegui trazê-los cem milhas pela terra dentro! Havia muitos dias que o meu jovem amigo Dick Sand olhava para mim desconfiado, as suas suspeitas iam-se transformando em realidade, e pela minha parte...

— Mais cem milhas, Harris, e aquela gente estaria com mais segurança entre as nossas mãos. É preciso que não nos escape!

 — Como podem eles escapar-nos? — volveu Harris, encolhendo os ombros. — Repito-te, Negoro, era tempo de os deixar. Li dez vezes nos olhos do meu jovem amigo que ele tinha vontade de me meter uma bala no corpo. Ora eu tenho mau estômago para digerir daquelas amêndoas.

 — Bem — .murmurou Negoro. — Tenho uma continha a ajustar com o praticante...

 — E ajustá-la-ás à tua vontade e com bons juros. Pela minha parte consegui, nos primeiros dias de marcha, fazer-lhe acreditar que esta província era o deserto de Atacama, que noutro tempo visitei; mas o garotinho queria cauchus e beija-flores, a mãe árvore de quina, e o primo teimava em procurar cucuyos! Tinha esgotado toda a minha imaginação, e depois de ter feito engolir, com grande custo, avestruzes por girafas... um achado, Negoro!, já não sabia que inventasse! Bem percebia eu que o meu jovem amigo não aceitava bem as minhas explicações. Depois viemos dar com as pegadas de elefantes. Os hipopótamos também apareceram! Ora tu bem sabes, Negoro, que hipopótamos e elefantes na América são como homens de bem nas prisões de Benguela! Enfim, para acabar de me desmascarar, o velho negro imaginou que viu junto a uma árvore golilhas e correntes deixadas por escravos que conseguiram fugir! No mesmo momento, e para remate ruge o leão, e é difícil fazer tomar o rugido do rei das selvas pelo miar de qualquer gato inofensivo! Só tive, pois, tempo para montar a cavalo e correr para aqui.

 — Compreendo — respondeu Negoro. — Contudo, parece-me que gostaria de os ver cem milhas mais para o interior da província.

 — Fez-se o que se pôde, camarada — declarou Harris. — Quanto a ti, que nos seguias desde a costa, fizeste bem em te conservares a distância. Desconfiavam que andavas próximo.

Aquele Dingo parece que não simpatiza muito contigo. Que lhe fizeste?

 — Nada — respondeu Negoro — , mas daqui a pouco apanhará com uma bala na cabeça.

 — Exactamente como tu a apanharias de Dick Sand, se te mostrasses, pouco que fosse, a duzentos passos de distância da espingarda dele. Ah! Olha que é bom atirador o meu jovem amigo, e, aqui para nós, sou obrigado a confessar que é rapaz atrevido.

 — Pois, por muito que o seja, há-de pagar-me caro as suas insolências — respondeu Negoro, em cuja fisionomia transparecia implacável crueldade.

 — Bem — murmurou Harris — , o meu camarada está como sempre o conheci. As viagens não o mudaram.

Depois de curto silêncio, Harris continuou:

 — É verdade, Negoro, quando tão inesperadamente te encontrei no teatro do naufrágio, só tiveste tempo de me recomendar aquela boa gente, pedindo-me para a conduzir, tão longe quanto fosse possível, através desta suposta Bolívia, mas não me contaste o que fizeste durante estes dois anos. Dois anos na nossa existência aventurosa é muito, camarada! Um belo dia, depois de teres tomado a teu cuidado a condução de uma caravana de escravos por conta do velho Alves, de quem apenas somos muito respeitosos agentes, deixaste Caçange e nunca mais ouvi falar de ti. Pensei que tivesses passado alguns incómodos com o cruzeiro inglês e que tivesses sido enforcado.

 — Por pouco escapei, Harris.

 — Sim, mas alguma vez pagarás tudo.

 — Obrigado.

 — Que queres? — respondeu Harris, com filosófica indiferença. — São percalços do ofício. Não se faz escravatura na costa da África sem correr o risco de morrer fora da cama. Mas, finalmente, foste prisioneiro?...

 — Fui, sim.

 — Dos Ingleses?

 — Qual! Dos Portugueses.

— Antes ou depois de teres entregado o carregamento?

 — Depois... — replicou Negoro, que hesitara um momento em responder. — Os Portugueses agora perseguem os negreiros! Não querem escravatura, conquanto se tivessem por muito tempo aproveitado dela! Fui denunciado e vigiado. Prenderam-me...

 — E condenaram-te?...

 — A passar o resto da minha vida numa enxovia em São Paulo de Luanda.

 — Oh, com mil demónios! — exclamou Harris. — Uma enxovia! Ora aí está um lugar pouco higiénico para quem, como nós, está habituado a viver ao ar livre. Eu antes queria ser enforcado.

 — Não se escapa ao patíbulo — disse Negoro — , mas da prisão...

 — Pudeste evadir-te?...

 — Sim, Harris. Quinze dias apenas depois de me terem prendido, consegui esconder-me no porão de um vapor inglês, que estava de partida para Auckland, na Nova Zelândia. Um barril de água e uma caixa de conservas alimentícias, atrás de que me escondera, deram-me que comer e que beber durante a viagem. Sofri muito por não querer aparecer quando já estávamos no mar; -mas se eu tivesse cometido a imprudência de o fazer, era irremediavelmente mandado para o fundo do porão, e, voluntariamente ou não, a tortura era a mesma. Além disso, logo que chegássemos a Auckland, entregar-me-iam às autoridades inglesas, e eu era afinal reconduzido para a prisão de Luanda, ou talvez enforcado, como tu dizes. Eis a razão por que preferi viajar incógnito.

 — E sem pagar passagem! — exclamou Harris, rindo. — Ah, amigo, isso não é de cavalheiro! Comida e transporte de graça!...

 — É verdade, mas olha que foram trinta dias de viagem no fundo de um porão!...

 — Enfim, o caso é que foste, Negoro. Partiste para a Nova Zelândia, o país dos Maores! E como voltaste? Foi acaso nas mesmas condições?

 — Não, Harris. Deves supor que lá só tinha uma ideia fixa: voltar para Angola e retomar o meu lugar de negociante de negros.

 — É verdade — concordou Harris — , gosta-se do ofício... é hábito!

 — Durante dezoito meses...

Negoro, mal tinha pronunciado estas palavras, calou-se. Apertou o braço do seu companheiro e escutou.

 — Harris — disse ele, baixando a voz — , não ouviste uma espécie de ruído nessa moita de papiros?

 — Pareceu-me ter ouvido qualquer coisa — respondeu Harris pegando na espingarda, pronta sempre a fazer fogo.

Negoro e Harris levantaram-se, olharam em volta deles e escutaram com mais atenção

 — Não é nada — afirmou Harris. — É o ribeiro que a tempestade engrossou e corre mais ruidosamente. Há dois anos, camarada, que perdeste o hábito destes rumores das florestas, mas depressa te acostumarás. Continua a narrativa das tuas aventuras. Quando eu estiver bem ao facto do passado, falaremos do futuro.

Negoro e Harris tinham-se assentado novamente junto da árvore. Aquele continuou nestes termos:

 — Durante dezoito meses vegetei em Auckland. Logo que o vapor chegou, -consegui sair de bordo sem ser visto; mas não tinha um dólar na algibeira! Para viver tive de me empregar em tudo...

 — Até fizeste de homem de bem, Negoro?...

 — Até isso, Harris.

  — Coitado!

 — Esperava uma ocasião, e já me ia tardando quando o baleeiro «Pilgrim» chegou ao porto de Auckland.

 — Era aquele navio que naufragou na costa de Angola?

 — Esse mesmo, Harris, e no qual Mrs. Weldon, o filho e o primo iam embarcar como passageiros. Ora eu, como antigo marinheiro, porque cheguei a ser piloto a bordo de um navio negreiro, não me embaraçava com qualquer serviço. Apresentei-me ao capitão do « Pilgrim», mas à tripulação não faltava ninguém. Felizmente, porém, o cozinheiro do patacho desertara, e como não há marinheiro que não saiba de cozinheiro, ofereci-me para exercer aquele importante cargo. À falta de outro, aceitaram-me, e dias depois o «Pilgrim» tinha perdido de vista as terras de Auckland.

 — Mas — perguntou Harris — , pelo que me contou o meu jovem amigo, o «Pilgrim» não se destinava à costa da África! Como veio, pois, parar aqui?

 — Dick Sand ainda não pôde saber isso, e talvez que nunca o saiba — respondeu Negoro —, mas eu vou explicar-te tudo quanto se passou, e se quiseres podes contá-lo ao teu jovem amigo!

 — Como foi então? Conta lá isso, camarada!

 — O «Pilgrim» — continuou Negoro — , ia de viagem para Valparaíso. Quando embarquei não julgava passar do Chile. É bem metade do caminho entre a Nova Zelândia e Angola, e aproximava-me assim uma boa porção de milhas da costa da África. Mas sucedeu que, três semanas depois de termos saído de Auckland, o capitão Hull, que comandava o «Pilgrim», desapareceu com toda a tripulação, ao perseguir uma baleia. Nesse dia só ficaram a bordo dois marinheiros, o praticante e o cozinheiro Negoro.

 — E tu tomaste o comando do navio? — perguntou Harris.

 — Pensei nisso primeiro, mas percebi que desconfiavam de mim. Havia a bordo cinco vigorosíssimos pretos, gente livre. Não os podia dominar, e, pensando bem, dei-xei-me ficar no que era quando partimos: o cozinheiro do «Pilgrim».

 — Foi então o acaso que trouxe o navio à costa da África?

 — Não, Harris, não há outro acaso em toda esta aventura senão o haver-te encontrado num dos teus giros de traficante, precisamente no ponto da costa onde naufragou o «Pilgrim». Mas pelo que diz respeito ao facto de ter vindo até Angola, foi a minha vontade oculta que o causou. O teu jovem amigo, pouco prático ainda em navegação, não podia fazer o ponto senão pela estima. Pois bem, um dia, a barquinha foi para o fundo. Numa noite a bússola desviou o «Pilgrim», que, levado por violenta tempestade, fez rumo errado. A lonjura da viagem, inexplicável para Dick Sand, tê-lo-ia sido do mesmo modo para o mais consumado marinheiro. Sem que o praticante soubesse, sem que ao menos suspeitasse, montámos o Cabo Horn; mas eu, Harris, reconheci-o entre as brumas. Então a agulha da bitácula retomou, por obra e graça da minha pessoa, a sua verdadeira direcção, e o navio, arrastado para noroeste por aquele terrível vendaval, veio perder-se na costa da África, na terra de Angola, em que eu queria desembarcar...

 — E nessa ocasião, Negoro — interrompeu Harris — , um feliz acaso conduziu-me lá para receber e guiar aquela gente pelo sertão. Julgavam-se e não podiam julgar-se senão na América e foi-me por isso fácil fazer-lhes acreditar que esta província era a baixa Bolívia, com a qual tem alguma semelhança.

 — Acreditaram, como o teu jovem amigo acreditou que mareava a ilha de Páscoa, quando passaram à vista da ilha de Tristão da Cunha!

 — Outro qualquer se enganaria, Negoro.

 — Bem sei, Harris, e eu contava aproveitar este erro. Enfim, o certo é que Mrs. Weldon e os seus companheiros estão a cem milhas da costa, no sertão da África, aonde eu os queria trazer.

 — Mas — tornou Harris — sabem eles agora onde estão!

 — Que importa isso? — disse Negoro.

 — O que contas fazer? — perguntou Harris.

 — O que conto fazer? — repetiu Negoro. — Antes de to dizer, Harris, dá-me notícias de Alves, que eu não vejo há dois anos.

 — Oh! O velhote está óptimo! — -(respondeu Harris.- — Há-de ficar contentíssimo de te ver.

 — Está no mercado do Bié? — perguntou Negoro.

 — Não. Há um ano que se estabeleceu em Kasonde.

 — E como vão os negócios?

 — Menos mal — disse Harris — , ainda que a escravatura esteja de dia para dia mais difícil. Por um lado as autoridades portuguesas, por outro os cruzadores ingleses, impedem a exportação. Só nas proximidades de Moçâmedes, ao sul de Angola, se pode fazer o embarque de negros com probabilidades de escapar (1). Agora estão os barracões cheios de escravos, esperando os navios que devem conduzi-los para as colónias espanholas. Mas passar escravos por Benguela ou por São Paulo de Luanda é impossível. Nem o governador, nem os chefes dos concelhos toleram tal comércio. É, pois, indispensável dirigir a atenção para as feitorias mais do interior e é exactamente o que tenta fazer o velho Alves. Irá para as bandas do Nyamgué e do Tanganhica permutar as fazendas por marfim e escravos. Os negócios são sempre lucrativos com o Alto Egipto e com Moçambique, que abastece Madagáscar. Mas receio que venha tempo em que o comércio de escravos seja completamente impossível. Os Ingleses fazem grandes progressos no interior da África. Os missionários caminham e avançam contra nós. Esse maldito Livingstone, depois de ter explorado a região dos lagos, dirige-se, segundo se diz, para Angola. Fala-se também de um tenente Cameron, que se propõe a atravessar a África de leste para oeste. É para recear que o americano Stanley queira fazer outro tanto. Todas estas visitas prejudicarão as nossas operações, Negoro, e, se nós temos o sentimento dos nossos interesses, nenhum destes visitantes irá contar à Europa o que teve a indiscrição de ver na África!

 

*1. Repetimos: nessa época já se não embarcavam escravos na costa ocidental da África. (N. do T.)

 

Não se diria, ouvindo conversar estes tratantes, que falavam como negociantes honrados, a quem uma crise comercial embaraçasse os negócios? Quem acreditaria que, em vez de sacas de café ou de barricas de açúcar, se tratava de mandar homens como se fossem mercadorias? É que os traficantes de negros não têm o sentimento do justo ou do injusto. Falta-lhes absolutamente o senso moral, e, se o tivessem, depressa o perderiam no meio das horríveis atrocidades da escravatura africana.

No que, porém, Harris tinha razão era em dizer que a civilização penetrava naquelas regiões selvagens, após os atrevidos viajantes, cujos nomes ficarão ligados para sempre às descobertas da África Equatorial.

Na frente, David Livingstone, logo depois Grant, Speke, Burton, Cameron e Stanley(1). Estes heróis deixarão renome imortal entre os beneméritos da humanidade.

Chegada a conversação àquele ponto, sabia Harris a história dos dois últimos anos da vida de Negoro. O antigo agente do negreiro Alves, o fugitivo da prisão de Luanda, reaparecia-lhe como sempre o conhecera, isto é, homem para tudo. Mas o que Negoro tencionava fazer aos náufragos do «Pilgrim» não o sabia ainda Harris, e por isso perguntou ao seu cúmplice:

 — E agora o que projectas fazer daquela gente?

 

*1. Muito tempo antes destes exploradores, já os Portugueses tinham penetrado nos adustos sertões do continente africano, ou fosse nas antigas missões religiosas, ou em expedições militares, ou em tentativas comerciais.

Entre as viagens dos Portugueses ao interior da África contam-se as que foram ordenadas pelo Governo, e são, segundo refere o Dr. José de Lacerda no seu livro Exame das viagens do Dr. Livingstone, publicado em 1867, as seguintes: «a de José Maria de Lacerda em 1787, a do Dr. Lacerda e Almeida em 1798 e 1799, a de Barbosa e Vasconcelos em 1799, a dos majores Monteiro e Gamito em 1831 e 1832, a do tenente Garcia em 1841, a de Joaquim R. Graça, começada em Abril de 1843 e terminada em Outubro de 1847, a de Silva Porto, começada em Setembro de 1853 e concluída em Abril de 1856, e outras, etc». Não se deve esquecer também a viagem que através da África fizeram Pedro João Baptista e o seu companheiro, Amaro ou Anastácio José, os quais, partindo de Caçange em Novembro de 1802 por ordem do tenente-coronel Francisco Honorato Ferreira, com um ofício para o governador do distrito de Tete, aí chegaram a 2 de Fevereiro de 1811, em razão de diversas demoras a que foram obrigados pelos régulos, ficando retidos no Cazembe desde 1806 até 1810.

Ainda aos nomes de tantos intrépidos exploradores da África, portugueses ou estrangeiros, se devem juntar os de Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens, Serpa Pinto e Anchieta. Este último, pelo seu entranhado amor à ciência, anda há mais de doze anos embrenhado pelos sertões de Angola, Benguela, Moçâmedes, etc, explorando e estudando a fauna africana. Grandes são os serviços que este sábio português tem prestado à ciência zoológica, dando ao mesmo tempo lustre ao seu nome e glória ao seu país.

 

 — Divido-a em duas partes — explicou Negoro, como quem tem o seu plano de muito tempo feito —, uma vendo-a, a outra...

Não acabou, mas a sua fisionomia feroz dizia bastante.

 — Quem vendes tu? — perguntou Harris.

 — Os negros que acompanham Mrs. Weldon — respondeu Negoro. — O velho Tom pouco valor terá, talvez; mas os outros são quatro negros robustos, que hão-de valer bom dinheiro no mercado de Kasonde.

 — Acredito, Negoro. São pretos fortes, habituados ao trabalho, e que pouco se parecem com esses negros boçais que nos mandam do sertão. Decerto que os venderás por bom preço. Escravos nascidos na América e expedidos para os mercados de Angola, é mercadoria rara. Mas — acrescentou o americano — não me disseste ainda se havia algum dinheiro a bordo do «Pilgrim»?

 — Ah! Havia uns... centos de dólares, que eu salvei. Felizmente, conto receber...

 — O quê, camarada? — perguntou Harris, cheio de curiosidade.

 — Nada... não é nada — respondeu Negoro, arrependido de ter dito mais do que queria.

 — Agora só resta deitar a mão a toda essa mercadoria de grande valor — volveu Harris.

— É muito difícil? — inquiriu Negoro.

 — Não. A dez milhas daqui, no Cuanza, está acampada uma leva de escravos, conduzida pelo árabe Ibu Hamis, e que só espera pela minha volta para se pôr a caminho de Kasonde. Há lá guardas indígenas mais do que os suficientes para prender Dick Sand e os seus companheiros. Bastaria só que o meu jovem amigo tivesse a ideia de se dirigir para o Cuanza...

 — Mas pensará ele nisso?

 — Com toda a certeza, porque é inteligente e não suspeita o perigo que o espera. Dick Sand não cuida em voltar para a costa pelo caminho que trouxemos. Perder-se-ia nessas florestas imensas. Procurará, por consequência, um dos rios que correm para o mar, para o descer em jangada. Não tem outra coisa a fazer, e porque o conheço afirmo que fará isto.

 — Sim... talvez — admitiu Negoro, reflectindo.

 — Não é «talvez»; é certo que se deve dizer — replicou Harris. — Olha, Negoro, tenho tanta certeza do que te disse como se tivesse combinado com o Dick Sand que nos encontraríamos nas margens do Cuanza!

 — Pois bem — tornou Negoro — , a caminho. Conheço Dick Sand. Não perde uma hora, é necessário chegarmos antes dele.

 — Vamos, camarada!

Harris e Negoro levantaram-se quando o ruído, que já havia chamado a atenção do cozinheiro do «Pilgrim», se ouviu de novo. Era uma agitação de hastes entre os altos papiros.

Negoro parou e agarrou a mão de Harris.

De repente ouviu-se um surdo latido, e junto da encosta apareceu um cão, espumando de raiva e em acção de arremeter.

 — Dingo! — exclamou Harris.

 — Ah! Desta vez não me escapará — bradou Negoro. Dingo ia saltar-lhe quando Negoro, tirando a espingarda de Harris, apontou e fez fogo.

Um prolongado uivo de dor respondeu à detonação, e Dingo desapareceu entre a dupla fileira de arbustos que orlavam o ribeiro.

Negoro desceu imediatamente até à baixa da encosta. Gotas de sangue manchavam alguns troncos de papiros e um extenso rasto vermelho tingia as pedras da margem.

 — Finalmente, tens a tua conta, maldito! — exclamou Negoro.

Harris assistira a toda esta cena sem pronunciar uma palavra.

 — Olá! Negoro, o cão tinha por ti predilecção especial?

 — Assim parece, Harris, mas agora acabou-se aquela boa amizade.

 — E porque te detestava ele tanto, camarada?

 — Oh! Era uma conta antiga que tínhamos que ajustar.

 — Conta antiga? — estranhou Harris.

Negoro calou-se, e Harris concluiu que o seu camarada lhe ocultava alguma aventura do seu passado. Não insistiu.

Instantes depois, seguindo o curso do ribeiro, encaminhavam-se ambos para o Cuanza, atravessando as florestas.

 

A CAMINHO!

África! Este nome, terrível nas circunstâncias actuais, este nome que era forçoso substituir ao de América, não podia tirar-se da ideia de Dick Sand. Quando o jovem praticante se recordava do que acontecera havia poucas semanas, perguntava a si mesmo de que modo o «Pil-grim» veio dar àquela praia cheia de escolhos, como montara o Cabo Horn e passara de um para o outro oceano? Agora sabia decerto explicar a razão por que, apesar do rápido andamento do seu navio, avistara terra tão tarde, porque o caminho que tinha a percorrer para chegar à costa americana parecia ter duplicado!

 — A África! A África! — repetia ele.

Mas quando recordava os incidentes de tão inexplicável viagem, veio-lhe subitamente à ideia de que a bússola podia ter sido desviada. Lembrou-se também de que a agulha da câmara aparecera quebrada, que a linha da barca rebentara também, ficando assim impossibilitado de apreciar com mais exactidão a velocidade do «Pilgrim».

 — Efectivamente — pensava ele — , só ficou a bordo uma bússola, cujas indicações eu não podia verificar!... E uma noite fui acordado por um grito de Tom!... Negoro estava à ré!... Tinha caído sobre a bitácula! Não seria ele o causador da avaria?...

Esclarecia-se o espírito de Dick Sand. Tocava a verdade com as mãos. Compreendia, enfim, quanto havia de suspeito no procedimento de Negoro. Via a mão do cozinheiro em toda a série de acidentes que levaram o «Pilgrim» à sua perda, e que tão extraordinariamente arriscaram aqueles que vinham a seu bordo.

Mas quem era aquele miserável? Teria sido marinheiro, conquanto o ocultasse sempre? Soube ele dominar a odiosa maquinação que lançou o «Pilgrim» sobre uns rochedos na costa da África?

Fosse como fosse, se havia ainda pontos obscuros no passado, o presente não os tinha já. O jovem praticante sabia que estava na África, e muito provavelmente na funesta província de Angola, a mais de cem milhas de distância da costa. Não ignorava também a traição de Harris, e a mais simples lógica ensinava-o a concluir que o americano e Negoro se conheciam de longa data, que um acaso fatal os juntara na costa, e que entre ambos combinaram um plano, cuja execução devia ser funesta para os náufragos do navio baleeiro.

Mas qual era o motivo de tão odioso procedimento? Que Negoro quisesse apoderar-se de Tom e dos seus companheiros, vendê-los como escravos naquelas terras de escravidão, compreendia-se. Que, movido por qualquer sentimento de ódio, tentasse vingar-se de Dick Sand, que o tratara como ele merecia, também se percebia. Mas de Mrs. Weldon, dessa pobre mãe e da pobre criancinha, o que pretenderia fazer aquele perverso?

Se Dick Sand tivesse ouvido, ainda que muito pouco, a conversação entre Harris e Negoro, saberia o que lhe convinha fazer e que perigos o ameaçavam, assim como a Mrs. Weldon e aos negros.

A situação era terrível, mas o jovem praticante não desanimou. Comandante a bordo, era ele quem também comandava em terra. Cumpria-lhe salvar Mrs. Weldon, Jack e todos os que o céu confiara à sua guarda. Os seus trabalhos tinham apenas começado, mas havia de levá-dos ao fim.

Passadas duas ou três horas, durante as quais pesou no seu espírito as probabilidades favoráveis e as contrárias, estas últimas em número maior, Dick Sand levantou-se enérgico e resoluto.

A luz da madrugada iluminava as altas margens do arvoredo da floresta. Exceptuando o praticante e Tom, todos dormiam ainda.

Dick Sand aproximou-se do velho preto.

 — Tom — disse-lhe ele em voz baixa — , ouviste os rugidos do leão, viste os utensílios do mercador de escravos. Sabes, pois, que estamos na África?

 — Sei, Sr. Dick, sei.

 — Pois bem, Tom, nem uma palavra a respeito disso, nem a Mrs. Weldon, nem aos teus companheiros. Basta que sejamos nós dois os únicos a saber e também os únicos a recear.

 — Únicos... sim... É conveniente — concordou Tom.

 — Tom — continuou o praticante — , temos de vigiar com mais atenção do que nunca. Estamos em território inimigo. E que inimigo, e que território!

«Bastará dizer aos nossos companheiros que fomos atraiçoados por Harris para que fiquem prevenidos. Pensarão que podemos ser atacados pelos índios nómadas. É quanto basta.

 — Pode contar com a bravura e dedicação dos meus camaradas, Sr. Dick.

 — Bem sei, assim como conto com o teu bom senso e com a tua experiência. Auxiliar-me-ás bastante, Tom.

 — Em tudo e para tudo estou às suas ordens.

A resolução de Dick estava fixada, e o velho negro aprovou-a. Porque a traição de Harris fora descoberta a tempo, o jovem praticante e os seus companheiros não corriam risco iminente. A vista dos ferros abandonados por alguns escravos, o inesperado rugido do leão, foram a causa do desaparecimento repentino do americano. Percebera que o tinham conhecido e fugiu provavelmente antes de a pequena caravana chegar ao ponto onde devia ser atacada. Negoro, que Dingo pressentira nos últimos dias de «marcha, devia ter-se encontrado com Harris, a fim de tramar de acordo com ele. Em todo o caso, como ainda passariam algumas horas antes de Dick Sand e os seus serem assaltados, convinha aproveitá-las. O único plano era voltar o mais depressa possível para a costa, a qual o jovem praticante tinha razão para supor que devia ser a costa de Angola. Depois de lá chegar, Dick Sand procuraria para o norte ou para o sul os estabelecimentos portugueses, onde os seus companheiros poderiam aguardar com segurança os meios de se repatriarem.

Mas para voltar à costa seria mister retomar pelos mesmos caminhos? Não o julgava conveniente Dick Sand, e neste ponto pensava como Harris, que bem previra que as circunstâncias obrigariam o praticante a procurar caminho mais curto.

E com efeito era muito difícil, senão impossível, caminhar pelas más veredas através da floresta, as quais iam dar só ao ponto de partida. Seria também facilitar aos cúmplices de Negoro um rasto seguro, que eles seguiriam decerto. A maneira de passar sem deixar vestígios só um rio a podia oferecer. Ao mesmo tempo, por este meio eram menos de recear os ataques das feras, que por feliz acaso se haviam conservado até então a grande distância. Uma agressão dos indígenas tinha também menos gravidade. Dick Sand e os seus companheiros, logo que estivessem embarcados numa boa jangada e bem armados, achar-se-iam em melhores condições. O que importava era encontrar um rio.

Deve acrescentar-se que este modo de transporte era o que mais convinha atendendo ao estado de Mrs. Weldon e do filhinho. Sobravam braços, é certo, para pegar na criancinha doente. Na falta do cavalo de Harris podia fazer-se uma padiola com ramos de árvores, na qual Mrs. Weldon seria conduzida. Mas para carregar com a padiola seria necessário empregar dois dos cinco pretos, e Dick Sand queria que todos estivessem em circunstâncias de se defenderem se inopinadamente fossem atacados.

Demais a mais, descendo um rio, o jovem praticante achar-se-ia no seu elemento.

Reduzia-se pois a questão a saber se haveria algum nas proximidades cuja corrente pudesse ser utilizada. Dick Sand julgava que sim, pela seguinte razão:

O rio que se lançava no Atlântico, no sítio onde naufragou o «Pilgrim», não podia dirigir-se nem muito para o norte, nem muito para leste da província, porque uma cadeia de montanhas muito próximas — as mesmas que foram tomadas pelas Cordilheiras americanas — fechavam o horizonte dos dois lados. Por consequência, ou a ribeira descia daquelas alturas, ou se inclinava para o sul, e em ambos os casos Dick Sand depressa daria com ela. Talvez que antes de descobrir o rio — que assim se deve chamar por ser directo tributário do oceano — se visse algum dos seus afluentes, pelo qual se transportariam. Em todo o caso, porém, não devia estar muito longe um curso de água qualquer.

Efectivamente, durante as últimas milhas que se percorreram, notou-se que a natureza dos terrenos era diferente. Os declives mostravam-se menos inclinados e mais húmidos. Aqui e ali serpeavam arroios, indicando que sob o terreno havia uma espécie de tecido aquoso. No último dia da jornada a pequena caravana costeou um desses ribeiros, cujas águas, avermelhadas pelo óxido de ferro, se tingiam nas margens já corroídas. Encontrá-lo novamente não devia ser nem muito demorado nem muito difícil. Não se podia descer evidentemente o seu curso torrencial, mas seria fácil chegar à embocadura seguindo algum afluente mais considerável e de mais fácil navegação. Tal foi o plano simplicíssimo que Dick Sand adoptou depois de haver conferenciado com o velho Tom. Quando despontou o dia, todos os seus companheiros se foram pouco a pouco levantando. Mrs. Weldon passou Jack, ainda adormecido, para os braços de Nan.

O pequenino, extremamente pálido no período da intermitência, fazia pena.

Mrs. Weldon aproximou-se de Dick.

 — Dick — perguntou ela, olhando-o fixamente — , onde está Harris? Não o vejo...

O jovem praticante pensou que, conquanto fosse conveniente fazer acreditar aos seus companheiros que pisavam as terras da Bolívia, não lhes devia contudo ocultar a traição do americano. Por isso, sem hesitar, respondeu:

 — Harris não está aqui!...

 — Foi andando adiante? — tornou Mrs. Weldon.

 — Fugiu — replicou Dick Sand. — Harris é um falso, e foi de combinação com Negoro que nos trouxe até aqui!

 — Com que fim? — perguntou Mrs. Weldon com vivacidade.

 — Ignoro — respondeu Dick — , mas o que sei é que devemos quanto antes voltar para a costa.

 — Traidor! Traidor aquele homem! — repetiu Mrs. Weldon. — Não me enganavam os meus pressentimentos! E julgas, Dick, que ele está combinado com Negoro?

 — Assim deve ser, Mrs. Weldon. Aquele maldito seguia-nos. O acaso fez com que os dois grandes marotos se encontrassem e...

 — E eu espero que eles se não tenham ainda separado, quando eu os encontrar. Quero quebrar-lhes as cabeças uma na outra — interrompeu o gigante, fechando as formidáveis mãos.

 — E o meu filho! — exclamou Mrs. Weldon. — E as comodidades e os cuidados que eu esperava encontrar na hacienda de San Felice!,..

 — Jack há-de restabelecer-se — afirmou o velho Tom — logo que se aproximar dos lugares mais salubres do litoral.

 — Dick — tornou Mrs. Weldon — , tens a certeza de que Harris nos atraiçoou?

 — Sim, Mrs. Weldon, tenho a certeza — respondeu o jovem praticante, que, querendo evitar mais explicações a este respeito, se apressou a acrescentar, olhando para o velho preto:

 — Esta noite, Tom e eu descobrimos a traição, e, se Harris não tivesse fugido no seu cavalo, tê-lo-ia eu morto.

 — Assim... aquela plantação?

 — Não há plantação, nem vila, nem aldeia, por estes lugares mais próximos — respondeu Dick Sand. — Repito-lhe, Mrs. Weldon, é preciso voltar para a costa.

 — E pelo mesmo caminho, Dick?

 — Não. Mrs. Weldon, descendo um rio que nos leve ao mar sem fadigas e sem perigos. Temos de andar algumas, mas poucas, milhas a pé e acredito que...

 — Oh! Sou forte, Dick! — atalhou Mrs. Weldon, lutando contra a própria fraqueza. — Caminharei e levarei o meu filho!...

 — Estamos nós aqui para o transportar, Mrs. Weldon — declarou Bat.

 — Sim, sim, Bat diz bem — acrescentou Agostinho. — Dois ramos de árvores e algumas folhas...

 — Obrigada, meus amigos, obrigada — respondeu Mrs. Weldon —, prefiro porém ir a pé. Posso andar. Vamos, a caminho!

 — A caminho! — repetiu o jovem praticante.

 — Deixe-me levar o menino Jack — pediu Hércules, tirando o pequenino dos braços de Nan. — Quando não carrego, canso-me...

E o robusto preto pegou tão cuidadosamente no pequeno Jack que nem sequer o acordou.

Revistaram-se minuciosamente as armas. Todas as provisões, que ainda restavam, se juntaram num fardo único para só carregar um homem. Acteão pôs o fardo aos ombros e os seus companheiros ficaram completamente desembaraçados.

Primo Bénédict, cujas pernas, compridas e rijas como se fossem de aço, não fatigavam nunca, estava pronto a partir. Notaria ele o desaparecimento de Harris? Não é fácil dizê-lo. Era-lhe, porém, indiferente, estando demais a mais sob a impressão de uma das maiores catástrofes que lhe podia acontecer.

O caso era com efeito grave: primo Bénédict perdera a lente e os óculos.

Felizmente, porém, mas sem que ele o suspeitasse, Bat achou os preciosos aparelhos entre as ervas, no lugar onde tinham pernoitado; mas, por conselho de Dick Sand, Bat guardou-os. Deste modo havia a certeza de que Bénédict caminharia com sossego, pois que, como vulgarmente se costuma dizer, não via um palmo diante do nariz.

Colocado entre Acteão e Agostinho, com ordem terminante de os não deixar, o pobre Bénédict não soltara uma queixa e caminhava como um cego.

Não teria ainda a pequena caravana andado cinquenta passos quando Tom a fez parar, perguntando:

 — E Dingo?

 — É verdade, Dingo não está aqui — notou Hércules. E com a sua potentíssima voz chamou o cão repetidas vezes.

Nenhum latido respondeu ao chamamento.

Dick Sand conservava-se calado. A falta do cão era muito deplorável, porque decerto lhes evitaria surpresas desagradáveis.

 — Dingo terá ido com Harris? — perguntou Tom.

 — Harris!... Não! — respondeu Dick Sand. — Mas talvez procurasse Negoro. O cão pressentiu que ele nos seguia.

 — O maldito cozinheiro mete-lhe com certeza uma bala no corpo! — disse Hércules.

 — Sim! Se acaso Dingo não lhe saltar primeiro às goelas — atalhou Bat.

 — Talvez — disse o praticante — , mas não podemos esperar por Dingo. Se o inteligente animal está vivo, ele saberá vir ter connosco. Vamos para diante!

Fazia intensíssimo calor. Desde o amanhecer que se viam nuvens grossas e pesadas carregando o horizonte. Eram prenúncios de trovoada. Não acabaria o dia sem que ela estalasse. Felizmente, a floresta, apesar de menos densa, conservava frescura à superfície do solo. Aqui e ali grandes matas rodeavam campinas cobertas de plantas altas e abundantes. Em alguns lugares, troncos enormes, já solidificados, jaziam por terra, indícios de terrenos carboníferos, que frequentemente se encontram no continente africano. Nas clareiras dos bosques, os tapetes verdejantes matizavam-se de flores de cores variadas, viam-se as gengibres amarelas e azuis, as lobélias claras e as orquídeas vermelhas, incessantemente beijadas pelos insectos que as fecundam.

As árvores não formavam neste ponto bosques tão impenetráveis; mas eram de qualidades mais várias. Elais Guineensis, ou palmeira espinhosa, que produz o bem conhecido óleo de palma, tão procurado na África, algodoeiros formando moitas de oito a dez pés de altura e cujas hastes produzem um algodão de fios longos, quase igual ao de Pernambuco. Além as árvores de goma-copal, ressumando, por pequenos buracos feitos por insectos, resina aromática, a qual corria até ao solo, onde se juntava e de onde era depois tirada pelos indígenas. Aqui estavam espalhados os limoeiros, as romãzeiras silvestres e muitas outras plantas arbóreas, mostrando a prodigiosa fertilidade desta parte da África Central. Em muitos lugares também o olfacto era agradavelmente impressionado pelo finíssimo aroma da baunilha, sem que fosse contudo possível saber que arbusto o exalava.

Todo aquele conjunto de árvores e plantas verdejava, apesar de ser o pino da estação seca e de só raríssimas trovoadas regarem tão feracíssimos terrenos. Era a época das febres; mas, como notara Livingstone, é fácil a cura, fugindo do lugar onde elas se apanharam. Conhecia Dick Sand esta observação do grande viajante e esperava que Jack a não desmentiria. Comunicou-a a Mrs. Weldon, mas só depois de se haver certificado de que não voltara o acesso periódico, como era de recear, e que o pequenino dormia sossegadamente nos braços de Hércules.

Assim iam caminhando prudente e rapidamente. Algumas vezes encontravam vestígios recentes de passagem de homens ou de animais. Os ramos das moitas de arvoredo ou das brenhas, afastados ou quebrados, facultavam melhor o caminho. Mas, repetidas vezes, múltiplos obstáculos, que era preciso vencer, retardavam a marcha, com o que não pouco se aborrecia Dick Sand. Eram cipós entrelaçados uns aos outros, que com propriedade se comparavam ao aparelho desordenado de um navio, folhas como alfanges, cujas lâminas eram guarnecidas de espinhos compridos, serpentes vegetais de cinquenta a sessenta pés de extensão e que têm a propriedade de se revirarem para ferirem o caminheiro com os seus dardos agudos. Os negros tudo cortavam com os machados, mas os cipós reapareciam constantemente desde a terra até à copa das mais altas árvores que eles engrinaldavam.

O reino animal não era menos notável do que o vegetal nesta parte da província. As aves volitavam em grande número sobre as ramagens, como fácil é de supor, e não tinham a recear os tiros de espingarda de quem queria passar tão rápida e secretamente. Viam-se bandos consideráveis de galinhas do mato, francolins de diversas espécies, e dos quais não é fácil a aproximação, e alguns desses pássaros a que os americanos do Norte têm, por onomato-peia, dado o nome vhip-poor-will, três sílabas que reproduzem com exactidão os gritos dessas aves.

Até então as feras, tão perigosas na África, não se tinham aproximado da pequena caravana. Encontraram-se ainda no primeiro dia de marcha algumas girafas, a que Harris teria sem dúvida dado o nome de avestruzes, mas desta vez sem que fosse acreditado. Aqueles velozes animais passavam rapidamente, assustados pela aparição de uma caravana naquelas pouco frequentadas florestas. Ao longe, na orla das campinas, via-se às vezes espessa nuvem de pó. Era uma manada de búfalos, que na sua carreira imitavam o ruído de grandes carros excessivamente carregados.

Dick Sand seguiu o curso do pequeno ribeiro, na extensão de duas milhas, e que devia ir desaguar em algum rio mais importante. Queria confiar o mais depressa possível os seus companheiros à corrente rápida de um rio que os conduzisse ao litoral. Confiava que os perigos e as fadigas seriam menores.

Ao meio-dia haviam já caminhado três milhas, sem que felizmente tivessem tido qualquer mau encontro. De Harris ou de Negoro não havia o mais leve indício. Dingo também não aparecera. Convinha parar para descansar e comer.

Assentou-se o acampamento dentro de um bambual, que abrigou completamente o pequeno rancho.

Pouco se conversou durante a refeição. Mrs. Weldon tornara a pegar no filhinho; não despegava a vista dele e não podia comer.

 — É preciso que tome algum alimento, Mrs. Weldon — aconselhou repetidas vezes Dick Sand. — Que quer fazer se lhe faltarem as forças? Coma, coma! Daqui a pouco estaremos novamente a caminho, e depois uma corrente rápida nos levará sem cansaço até à costa.

Mrs. Weldon fitava Dick Sand enquanto ele falava. Os olhos brilhantes do jovem praticante exprimiam bem a coragem de que se sentia animado. Vendo-o assim, vendo os bravos negros tão dedicados, ela, que era mulher e mãe, não desesperava. E que razões tinha ela para perder as esperanças? Não se julgava em terra hospitaleira? A traição de Harris não lhe parecia que tivesse graves consequências. Dick Sand, que adivinhava os pensamentos de Mrs. Weldon, esteve quase a desanimar.

 

MAUS CAMINHOS

Nesta ocasião, Jack acordou e abraçou-se ao pescoço de sua mãe. Tinha os olhos menos amortecidos. A febre não voltara.

 — Estás melhor, meu filhinho? — perguntou Mrs. Weldon, aconchegando o pequenino doente ao seu coração.

 — Sim, minha mãe — respondeu Jack — , mas tenho sede.

Não havia para dar ao pequenino senão água, que ele bebeu com sofreguidão.

 — E o meu amigo Dick?

 — Aqui estou — respondeu Dick Sand, correndo a apertar a mão do pequenino.

 — E Hércules?

 — Presente, Sr. Jack — respondeu o gigante, aproximando-se.

 — E o cavalo? — perguntou Jack.

 — O cavalo? Foi-se, menino Jack — informou Hércules —, agora sou eu o cavalo! Sou eu quem carrega com o menino. Acha que tenho mau trote?

 — Não, não! — disse Jack — , mas então agora já não tenho rédeas?

 — Oh! Ponha-me um freio, se quiser — volveu Hércules, abrindo a enorme boca — , e pode puxar depois à sua vontade.

— Tu bem sabes que não puxarei com força.

 — Pois fará mal! Sou rijo de boca.

 — E a plantação do Sr. Harris? — perguntou ainda o pequenino.

 — Já pouco nos falta para chegarmos, Jack — declarou Mrs. Weldon.

 — Quer que continuemos a andar? — interrogou Dick Sand para cortar a conversação.

 — Sim, Dick. Vamos! — acedeu Mrs. Weldon. Levantou-se o acampamento e continuou a marcha na

mesma ordem. Foi necessário passar através de matas cerradas, para não se desviarem do curso do riacho. Outrora havia por ali algumas veredas, mas estavam «mortas», segundo a expressão indígena, isto é, arbustos, espinhos e sarças tinham crescido sobre elas. Tiveram de caminhar assim uma milha, no que gastaram três horas. Os negros trabalhavam sem descanso. Hércules, depois de haver entregado Jack a Nan, foi trabalhar também, e que trabalho era o dele! Aos golpes da sua machada rompia-se a floresta como se lavrasse um incêndio devorador.

Felizmente, este penoso trabalho não devia durar muito. Passada a primeira milha, viu-se um largo corte praticado na mata, o qual conduzia obliquamente ao riacho e seguia pela riba. Era uma passagem feita por elefantes. Centenas destes animais costumavam sem dúvida descer por ali. Grandes buracos, feitos pelas patas dos enormes paquidermes, crivavam o terreno molhado na época das chuvas, o qual, pela sua natureza esponjosa, se prestava aos sinais indeléveis que ali se notavam.

Viu-se depois que a passagem referida não servia só para os gigantes animais. Seres humanos haviam mais de uma vez seguido o -mesmo caminho, mas como rebanhos brutalmente conduzidos para o matadouro. Aqui e ali via-se o chão juncado de ossos, restos de esqueletos já meio roídos pelas feras, e alguns dos quais tinham ainda as algemas dos escravos!

Há na África Central extensos caminhos marcados pelos restos humanos. Centenas de milhas são percorridas pelas caravanas, e muitos infelizes caem na jornada, sob o chicote dos agentes, mortos pelo cansaço ou pelas privações e dizimados pelas doenças. Quantos ainda são assassinados pelos próprios traficantes quando faltam víveres! Não os podendo sustentar, matam-nos a tiro de espingarda, a golpes de sabre ou de machado, e não são raros tais morticínios!

Era pois evidente que caravanas de escravos tinham passado por aquele caminho. Durante mais de uma milha, Dick Sand e os seus companheiros toparam a cada passo com ossadas dispersas, obrigando a fugir grandes aves de rapina, que com o seu voo pesado se levantavam à aproximação de Dick e dos seus, volteando no ar.

Mrs. Weldon olhava, mas não via; Dick Sand receava que ela o interrogasse, porque conservava a esperança de a reconduzir à costa sem lhe dizer que a traição de Harris os perdera no meio de um sertão africano. Felizmente, Mrs. Weldon não percebia quanto via. Quis pegar novamente no filho, que estava a dormir. Jack absorvia-lhe todos os seus pensamentos. Nan caminhava ao pé dela, e nem uma nem outra fizeram ao praticante as perguntas de que ele tanto receava. O velho Tom caminhava com os olhos baixos. Demais sabia ele a razão por que aquele corte da mata estava cheio de ossadas humanas.

Os seus companheiros olhavam surpreendidos para a direita e para a esquerda, como se fossem atravessando um cemitério sem fim, cujas sepulturas tivessem sido revolvidas por um cataclismo. Passavam, porém, sem dizer nada.

Entretanto o leito do riacho, ao mesmo tempo que se tornava mais profundo, alargava-se também. A corrente era menos Impetuosa. Esperava Dick Sand que dentro de pouco tempo seria navegável ou se lançaria em algum rio mais importante, tributário do Atlântico.

Seguir, custasse o que custasse, essa corrente de água era a firme resolução do jovem praticante.

Por isso não hesitava em deixar a aberta da floresta por onde ia caminhando, quando, seguindo uma linha oblíqua, ela se afastou do riacho.

A pequena caravana aventurou-se, mais uma vez, através dos matagais. Seguia, abrindo caminho a machado, por entre plantas e sarças inextricàvelmente embaraçadas. Mas, se estes vegetais obstruíam o solo, não igualavam contudo a densa floresta que confinava com o litoral. As árvores eram raras. Grandes feixes de bambus se levantavam apenas acima das ervas, tão altas que Hércules não as excedia. A passagem da pequena caravana não podia pois ser revelada senão pela agitação das plantas.

Naquele dia, pelas três horas da tarde, foi notado que a natureza do terreno se mostrava completamente diferente. Eram extensas planícies, que deviam ficar inteiramente inundadas durante a estação das águas. O solo, mais húmido, atapetava-se de musgos densos e de belíssimos fetos. Se acaso se elevava por ladeira escarpada, via-se a hematite cinzenta, últimos veios sem dúvida de algum jazigo de mineral.

Dick Sand lembrou-se então, a propósito, do que lera nas viagens de Livingstone. Mais de uma vez o intrépido doutor esteve a ponto de ficar enterrado naqueles traiçoeiros pântanos.

 — Tenham cuidado — recomendou Dick, passando para a frente de todos. — Experimentem o solo antes de caminhar.

 — Na verdade — acrescentou Tom — , parece que estes terrenos foram alagados pelas chuvas, e contudo não tem chovido nestes últimos dias.

 — Não — disse Bat — , mas a tempestade não tardará muito.

 — Razão de mais — tornou Dick Sand — para nos apressarmos em atravessar este paul, antes que ela rebente! Hércules, pegue em Jack. Bat e Agostinho conservem-se junto de Mrs. Weldon, a fim de a amparar sendo preciso. O Sr. Bénédict!... É verdade! Que faz, Sr. Bénédict?...

— Eu... creio — respondeu simplesmente primo Béné-dict, que desaparecia, como se se tivesse aberto um alçapão sob os seus pés.

Com efeito, o pobre homem atrevera-se a passar por uma espécie de pego e sumia-se até metade do corpo em lama viscosa. Deram-lhe a mão e ele levantou-se coberto de lodo, mas satisfeitíssimo por não ter avariado a sua preciosa caixa de entomologista. Acteão foi para o pé dele, com o fim de evitar a repetição das quedas do desastrado míope.

Demais a mais, primo Bénédict escolhera mal o charco em que se foi meter. Quando o tiraram do paul, grande quantidade de bolhas vieram à superfície, as quais, rebentando, exalaram pelo ar gases de cheiro sufocante. Livingstone, que algumas vezes esteve metido até ao peito em lodo igual, comparava aqueles terrenos a uma reunião de enormes esponjas, feitas de terra negra e porosa, de onde com o pó se faziam repuxar inúmeros fios de água. Estes terrenos eram sempre perigosíssimos.

Por espaço de meia milha Dick Sand e os seus companheiros tiveram de caminhar sobre aquele solo esponjoso. Tornou-se mesmo tão mau que Mrs. Weldon foi obrigada a parar, porque se enterrava muito. Hércules, Bat e Agostinho, querendo evitar-lhe mais os incómodos do que a fadiga de andar sobre terreno tão pantanoso, fizeram uma padiola de bambus, na qual ela se assentou. Deram-lhe Jack, e assim se diligenciou atravessar o mais depressa possível o pestífero pântano.

Grandes foram as dificuldades. Acteão segurava vigorosamente primo Bénédict. Tom ajudava Nan, que sem ele teria decerto desaparecido em algum atoleiro. Os três negros que restavam conduziam a liteira. Na frente. Dick Sand apalpava o terreno. A escolha do lugar onde se assentasse o pé não era fácil. Era preferível andar pelos lados, que uma erva espessa e coriácea cobria, mas muitas vezes faltava o ponto de apoio, e todos se metiam no lodo até aos joelhos.

Finalmente, pelas cinco horas da tarde, estando já passado o pântano, o solo retomou a consistência suficiente, devido à sua natureza argilosa, mas por baixo sentia-se húmido. Evidentemente, aqueles terrenos estavam mais baixos que os rios próximos, e a água filtrava-se pelas terras.

O calor, entretanto, tornava-se excessivamente incómodo. Seria até insuportável se as nuvens densas da trovoada se não interpusessem entre os raios ardentes do sol. Ao longe os relâmpagos rasgavam as nuvens, e surdos rumores do trovão retumbavam nas alturas do céu. Uma tempestade formidável ia rebentar.

Estes cataclismos são terríveis na África. Chuvas torrenciais e rajadas de vento, a que não resistem as mais valentes árvores, raios uns após outros, tal é a luta dos elementos nestas latitudes. Sabia-o Dick Sand, e por isso estava extremamente inquieto. Não se podia passar a noite sem abrigo. A planície ameaçava ficar inundada, e não mostrava um único ressalto no qual fosse possível achar refúgio!

Mas onde ir buscar abrigo naquela extensão baixa e deserta, sem árvores, sem uma sarça sequer? As mesmas profundezas do solo não o dariam. A dois pés abaixo da sua superfície ter-se-ia encontrado água.

Contudo, para o lado do norte, uma série de colinas pouco elevadas pareciam limitar a alagadiça planura. Era como a bordo daquela depressão do terreno. Algumas árvores se desenhavam mais além, na linha do horizonte, numa zona mais clara, onde as nuvens não chegavam.

Lá, se o abrigo faltasse ainda, o pequeno rancho não correria o risco de morrer na inundação. Ali estava talvez a salvação de todos.

 — Vamos, meus amigos, vamos para diante — repetiu Dick Sand. — Três milhas ainda, e estaremos mais seguros que nestes terrenos tão baixos.

 — Ânimo! Ânimo! — exclamava Hércules.

O valente negro teria de boa vontade pegado em toda a gente e carregado com ela.

Aquelas palavras animaram os corajosos negros, que, apesar das fadigas de um dia de marcha, avançavam mais do que no princípio da jornada.

Quando a trovoada estalou, o ponto aonde queriam chegar estava ainda a duas milhas. Contudo, o que era mais para temer — a chuva — não acompanhou as primeiras descargas, que se fizeram entre o solo e as nuvens carregadas de electricidade. A obscuridade era quase completa, conquanto o Sol ainda «não tivesse descido para baixo do horizonte. Mas a abóbada de vapores baixava pouco a pouco, como se ameaçasse cair; devia porém resolver-se em chuva torrencial. Relâmpagos, vermelhos ou azulados, a rasgavam em muitas partes e envolviam a planície numa rede de fogo.

Muitas vezes Dick e os seus companheiros estiveram quase fulminados pelos raios. Naquele lugar, despido de árvores, eram eles os únicos pontos salientes que podiam atrair as descargas eléctricas. Jack, acordado pelo estampido dos trovões, escondia-se nos braços de Hércules. Tinha muito medo a pobre criança, mas não o queria manifestar a sua mãe, receoso de mais a afligir. Hércules, andando sempre tão depressa quanto podia, ia-o consolando.

 — Não tenha medo, menino Jack — repetia ele.- — Se o trovão se chegar para cá, eu só com uma das mãos racho-o ao meio! Sou mais forte do que ele...

E realmente a força do gigante tranquilizava um pouco o pequenino Jack.

A chuva, porém, não podia tardar, e quando caísse seriam torrentes que lançariam as nuvens, condensando-se. Que aconteceria a Mrs. Weldon e aos seus companheiros se não achassem abrigo?

Dick Sand parou um instante junto do velho Tom.

 — Que faremos? — disse ele.

 — Continuar a andar, Sr. Dick — respondeu Tom.

— Não podemos ficar nesta planície que a chuva virá transformar numa lagoa!

 — Não, Tom, não podemos, mas o abrigo? Onde está ele? Qual pode ser? Se houvesse ao menos uma cabana!...

Dick Sand interrompera a frase repentinamente. Um relâmpago mais claro alumiara toda a planície.

 — Que vi eu a um quarto de milha daqui? — exclamou Dick Sand.

 — E eu também vi alguma coisa — declarou o velho Tom, abanando a cabeça.

 — Um acampamento não é verdade?

 — Sim, Sr. Dick, deve ser um acampamento... mas de indígenas!

Um outro relâmpago deixou ver mais distintamente o acampamento, que ocupava parte da imensa planície.

Com efeito, não (muito longe, levantavam-se cerca de cem barracas de forma cónica, simetricamente dispostas e medindo dez a quinze pés de altura. Não se via porém um guarda. Estariam eles abrigados dentro das suas tendas, deixando que a tempestade passasse, ou estaria abandonado o campo?

No primeiro caso, Dick Sand, quaisquer que fossem as iras do céu, devia fugir o mais depressa possível. No segundo, estava ali talvez o abrigo que procurava.

 — Eu saberei — disse ele. Depois, dirigindo-se ao velho Tom:

 — Fica aqui. Não consinto que ninguém me siga! Eu irei reconhecer o campo.

 — Deixe que um de nós o acompanhe, Sr. Dick.

 — Não, Tom. Irei só. Posso aproximar-me sem ser visto. Fica.

A pequena caravana que Tom e Dick precedia parou. O praticante marchou para a frente e desapareceu no fcneio da obscuridade, que era profundíssima, excepto quando os relâmpagos rasgavam as nuvens.

Começavam a cair algumas gotas grossas.

— Que é? — perguntou Mrs. Weldon, que se aproximou do velho negro.

 — Enxergámos um acampamento, Mrs. Weldon — respondeu Tom — , um acampamento... ou talvez uma povoação que o nosso capitão quis reconhecer antes de nos conduzir para lá.

Mrs. Weldon ficou satisfeita com a resposta. Três minutos depois voltava Dick Sand.

 — Venham, venham — dizia ele, com voz que bem exprimia o seu contentamento.

 — Está abandonado o campo? — perguntou Tom.

 — Qual! — respondeu o jovem praticante. — Não é acampamento nem povoação... São formigueiros!

 — Formigueiros! — exclamou primo Bénédict, a quem esta palavra encheu de curiosidade.

 — Sim, Sr. Bénédict, mas olhe que são formigueiros de doze pés de altura pelo menos, e dentro dos quais vamos ver se nos metemos.

 — Mas então — continuou primo Bénédict — , serão os formigueiros da térmite fatal ou da térmite mordaz. Só estes industriosos insectos podem levantar tais monumentos, que fariam honra aos mais hábeis arquitectos.

 — Quer sejam térmites quer não, Sr. Bénédict, é preciso desalojá-las, e tomar-lhes o lugar.

 — Devorar-nos-ão! E estarão no seu direito!

 — Vamos, vamos...

 — Mas, esperem! — observou primo Bénédict. — Julgava eu que esses formigueiros só na África se encontravam.

 — Vamos! — repetiu Dick Sand com intimativa, tanto receava que Mrs. Weldon ouvisse as últimas palavras pronunciadas pelo entomologista.

Seguiram Dick Sand a toda a pressa. Levantou-se vento furioso; grossas gotas de água batiam no chão com estrépito. Dentro de poucos instantes as rajadas seriam impetuosíssimas.

Entretanto chegaram a um dos cones, e, por muito terríveis que fossem as térmites, convinha não hesitar em participar com elas da sua habitação, dado o caso de não se conseguir pô-las fora.

Na base, que era feita de uma espécie de argila avermelhada, abriu-se um estreitíssimo buraco, que Hércules alargou com a faca, de modo que desse passagem a um homem da sua estatura.

Com grande surpresa do primo Bénédict, não apareceu uma única dos milhares de térmites que deviam habitar o formigueiro. Estaria por elas abandonado?

Logo que o buraco se alargou, Dick e os seus companheiros penetraram por ele. Hércules foi o último que entrou, e exactamente no momento em que a chuva caía com tal intensidade que parecia apagar os relâmpagos.

Mas nada havia a temer já dos aguaceiros. Um acaso feliz fornecera ao pequeno rancho seguro abrigo, melhor que uma barraca, melhor que uma cabana de indígenas.

Era um desses cones das térmites, que, segundo a comparação do tenente Cameron, são, por serem construídos por pequenos insectos, mais dignos de admiração que as pirâmides do Egipto, que a mão do homem levantou.

 — É — diz ele — como se um povo tivesse feito o monte Everest, uma das mais altas montanhas da cordilheira do Himalaia.

 

LIÇÃO SOBRE AS FORMIGAS DADA NUM FORMIGUEIRO

Naquele momento a tempestade rebentava com violência desconhecida nas latitudes temperadas.

Foi providencial que Dick Sand e os seus companheiros tivessem achado aquele refúgio.

A chuva não caía em gotas distintas, mas em fios de água de grossura variável. Era algumas vezes como que uma massa compacta, um lençol de água, uma catarata, um Niágara. Imagine-se um grande tanque aéreo, que contivesse um mar e se virasse por súbito movimento. Pela acção de tais derramamentos formam-se as barrocas, as planícies transformam-se em lagos, os ribeiros em torrentes, e os rios inundam vastíssimos territórios. É o contrário do que acontece nas zonas temperadas, onde a violência das trovoadas está na razão inversa da sua duração. Na África, por muito fortes Que sejam, duram muitos dias. Como se pode acumular tanta electricidade nas nuvens? Como se podem juntar tantas massas de vapor? É difícil compreender. Mas é assim, e a vista de tais fenómenos transporta-nos às épocas extraordinárias do período diluviano.

Felizmente, porém, o formigueiro, porque tinha paredes muito grossas, era perfeitamente impermeável. Uma toca de castores feita de terra bem amassada não estaria mais seca. Podiam passar sobre ela torrentes de água, sem que uma gota só se filtrasse através dos seus poros.

Logo que Dick Sand e os seus companheiros tomaram posse do cone, trataram de reconhecer a sua disposição interior. Acendeu-se a lanterna, que deu ao formigueiro luz suficiente. O cone, que media doze pés de altura na parte interior, tinha a largura de onze pés, com excepção, porém, da parte superior, que se arredondava em forma de pão de açúcar. As paredes tinham grossura uniforme, de proximamente um pé, e entre os diversos andares de células que as revestiam havia espaços vazios.

Embora cause espanto a construção de tais monumentos por industriosas falanges de insectos, é contudo certo que eles se encontram frequentemente no interior da África. Um viajante holandês do século passado, Smeath-man, ocupou, com mais quatro dos seus companheiros, o vértice de um desses cones. No Lunde, viu Livingstone muitos formigueiros construídos de argila vermelha, cuja altura atingia quinze a vinte pés. O tenente Cameron confundiu muitas vezes com acampamentos aquelas aglomerações de cones, que eriçavam as planícies em Nyamgué. Chegou a parar junto de verdadeiros edifícios, não de vinte pés de altura, mas de quarenta e de cinquenta, cones circulares, enormes, rodeados de pequenos campanários, à semelhança do zimbório de uma catedral! Assim são os que se vêem na África Meridional.

A que espécie de formiga se devia a prodigiosa edificação de tais formigueiros?

«À térmite fatal», respondeu sem hesitar primo Bénédict, logo que reconheceu a natureza dos materiais empregados na construção deles.

E, com efeito, as paredes, como ficou dito, eram feitas de argila vermelha. Se fossem fabricadas de terras de aluvião, pardas ou negras, deviam atribuir-se às «térmites mordazes» ou às «térmites atrozes».

Como se vê, estes animais têm nomes pouco animadores, que não podem agradar senão a um entomologista insigne, como era primo Bénédict.

A parte central do cone, a qual a pequena caravana primeiro ocupou, e que formava o espaço interior, não bastava para acomodar tanta gente; mas grandes cavidades sobrepostas eram como outras tantas cabanas, nas quais qualquer pessoa de meã estatura caberia regularmente. Imagine-se uma série de gavetas abertas, no fundo delas milhões de alvéolos, que as térmites tinham ocupado, e formar-se-á ideia da disposição interior do formigueiro. Em suma, estas gavetas assentavam umas sobre as outras, como os beliches de um camarote de navio, e foi nos beliches superiores que Mrs. Weldon, Jack, Nan e primo Bénédict se abrigaram.

Na carreira inferior ficaram Agostinho, Bat e Acteão. Dick Sand, Tom e Hércules ficaram na parte mais baixa do cone.

 — Meus amigos — disse então o jovem praticante aos dois negros — , o terreno começa a impregnar-se de água. É mister, pois, secá-lo, esboroando a argila da base; mas tenhamos cuidado em não tapar o buraco por onde entra o ar. Não nos arrisquemos a morrer abafados dentro deste formigueiro.

 — Uma noite depressa passa — respondeu o velho Tom.

 — Pois bem, tratemos de descansar de tantas fadigas. Em dez dias é esta a primeira vez que deixamos de dormir ao ar livre.

 — Dez dias! — repetiu Tom.

 — Ora — continuou Dick Sand — , como esta pirâmide é abrigo seguro, talvez nos convenha ficar mais vinte e quatro horas. Durante esse tempo de demora irei reconhecer o -rio que procuramos e que não pode estar longe. Penso mesmo que, enquanto não construirmos uma jangada, o melhor de tudo será não sairmos de dentro deste abrigo. A tempestade não nos chegará. Tornemos, pois, o chão mais resistente e mais seco.

As ordens de Dick Sand foram imediatamente executadas. Hércules com a machada esboroou a primeira ordem de alvéolos, os quais eram feitos de argila friável.

Levantou de mais de um pé a parte interior do terreno lamacento sobre o qual assentava o formigueiro. Depois Dick Sand viu que o ar podia penetrar livremente para o interior do cone através do buraco que este tinha na base.

Foi decerto uma feliz circunstância a de ter sido o formigueiro abandonado pelas térmites. Com alguns milhares destas formigas seria inabitável. Mas tinha ele sido evacuado havia muito tempo, ou estes vorazes neurópteros tinham saído poucos momentos antes? Não era supérflua esta questão.

Antes de todos pensara nisto primo Bénédict, tal era a surpresa que semelhante abandono lhe causava, mas depressa se convenceu de que a emigração fora muito recente.

Não se demorou em descer à parte inferior do cone, e lá, alumiado pela lanterna, investigou por todos os lugares imais recônditos do formigueiro. Conseguiu descobrir o que ele chamou o «celeiro das térmites», isto é, o sítio onde estes industriosos insectos guardavam as provisões da colónia.

Era uma cavidade aberta na parede, não longe da célula real, que o trabalho de Hércules deitara por terra, juntamente com as células destinadas às larvas ainda novas.

Do celeiro tirou primo Bénédict uma pequena quantidade de parcelas de goma e de sucos de plantas apenas solidificadas, o que provava que as térmites as tinham trazido de fora pouco tempo antes.

 — Nãol Não! — exclamou ele como se respondesse a alguma objecção que lhe fizessem. — Não! Este formigueiro não foi abandonado há muito tempo!

 — Quem lhe diz o contrário, Sr. Bénédict? — acudiu Dick Sand. — Recentemente ou não, o que nos importa é que as térmites o tenham deixado, por isso que nos convém ocupá-lo.

 — O que importa — respondeu primo Bénédict — é saber os motivos por que elas saíram! Ontem, esta manhã ainda, esses sagazes neurópteros o habitaram, porque estão aqui substâncias líquidas, e esta noite...

 — Mas quer concluir, Sr. Bénédict? — interrompeu Dick Sand.

 — Quero concluir que um secreto pressentimento as incitou a abandonar o formigueiro. Não só nenhuma delas se conservou nas células, mas tão longe levaram o seu cuidado que carregaram com as pequenas larvas, das quais nem uma só encontro. Repito que nada disto se fez sem motivo e que os perspicazes insectos previram perigo iminente...

 — Previram que nós lhes íamos invadir a casa! — disse Hércules, rindo.

 — Sim! — replicou primo Bénédict, a quem esta resposta do preto chocou visivelmente.- — Com que então julga-se tão forte que seja um perigo para tão corajosos insectos? Bastavam alguns milhares destes neurópteros para o reduzirem a esqueleto, se acaso o encontrassem morto no caminho!

 — Morto, sim! — respondeu Hércules, que não queria ceder —, mas vivo esmigalharia muitos milhões deles!

 — Sim, esmagaria cem mil, quinhentos mil, um milhão mesmo! — replicou primo Bénédict, animando-se — , mas não mil milhões, e mil milhões de térmites devorá-lo-iam, vivo ou morto, até ao mais pequeno pedacinho!

Durante esta conversação, que era menos frívola do que à primeira vista poderia parecer, Dick Sand reflectia sobre a observação que fizera primo Bénédict. Sem dúvida, o sábio conhecia bem os costumes das térmites, para que se pudesse enganar. Se ele afirmava que um secreto instinto as advertira para abandonar recentemente o formigueiro, era porque na realidade poderia haver perigo em estar ali.

Contudo, como não se podia pensar em deixar aquele abrigo, na ocasião em que a tempestade se desencadeava com intensidade pouco vulgar, Dick Sand não procurou saber a explicação do que parecia tão inexplicável, e satisfez-se em responder:

 — Sr. Bénédict, se as térmites deixaram as suas provisões neste formigueiro, não nos esqueçamos de que trouxemos as nossas, e ceemos. Amanhã, quando a tempestade tiver passado, veremos o que nos convém fazer.

Trataram então de preparar a ceia, porque, por muito grande que fosse a fadiga, não pôde ela alterar o apetite de tão bons caminhantes. Pelo contrário. Os víveres, que haviam de durar ainda dois dias, tiveram bom acolhimento. A bolacha conservava-se seca, e, por isso, durante alguns minutos ouviu-se estalar sob os magníficos dentes de Dick Sand e dos seus companheiros. Entre a dentadura de Hércules estava como o grão sob a mó do moinho. Hércules não a trincava, moía-a.

Só Mrs. Weldon comia pouco, e isso mesmo porque Dick Sand instou muito com ela. Parecia ao jovem praticante que esta animosa senhora estava mais preocupada e mais triste do que nunca. No entanto Jack estava melhor; o acesso de febre não voltara, e naquele momento descansava ele, sob as vistas de sua mãe, num alvéolo bem estofado com roupa. Dick Sand não sabia o que julgasse.

Inútil é dizer que primo Bénédict fez honra ao banquete, não porque apreciasse a qualidade ou a quantidade dos comestíveis, que ainda assim devorava, mas porque teve ocasião de fazer uma lição de entomologia sobre as térmites. Ah! Se ele tivesse achado uma térmite, uma só que fosse, no formigueiro abandonado! Mas nada!

 — Estes admiráveis insectos — disse ele, sem tratar de saber se o ouviam ou não — , estes admiráveis insectos pertencem à maravilhosa ordem dos neurópteros, cujas antenas são mais compridas que a cabeça, as mandíbulas muito distintas, as asas inferiores quase sempre iguais às superiores. Cinco tribos constituem esta ordem: panorpas, mirmileões, hemeróbios, térmites e perlídeos. É inútil acrescentar que os insectos, cuja casa ocupamos, talvez indevidamente, são as térmites.

Neste momento Dick Sand ouvia com muita atenção primo Bénédict. O encontro das térmites teria despertado a Bénédict a ideia de que talvez estivesse no continente africano, sem saber por que fatalidade ali fora parar? O praticante estava ansioso por saber isto.

O sábio continuava:

 — Ora as térmites são caracterizadas por quatro articulações nos tarsos, pelas mandíbulas córneas e de extraordinário vigor. Há o género mantispo, o género rafídia, o género térmite, muitas vezes conhecido pelo nome de for-miga-branca, no qual se conta a térmite fatal, a térmite de toracete amarelo, a térmite lucifuga, a mordaz, a daninha...

 — E quais foram as que construíram este formigueiro? — perguntou Dick Sand.

 — Foram as térmites fatais ou belicosas — respondeu primo Bénédict, que pronunciou este nome como se falasse dos Macedónios ou de outro povo guerreiro da Antiguidade. — Sim, foram as térmites belicosas de todas as grandezas! Entre Hércules e um anão, a diferença é menor que entre o maior e o mais pequeno destes insectos. Se entre eles se encontram trabalhadores e operários de cinco milímetros, e soldados de dez milímetros de grandeza, machos e fêmeas de vinte, encontra-se também outra espécie, não menos curiosa, a das «sirafus», que têm meia polegada de comprimento, tenazes em vez de mandíbulas, e a cabeça mais grossa do que o corpo, como os tubarões. São os tubarões dos insectos, e num combate entre um tubarão e as «sirafus» eu apostaria por estas.

 — E onde se encontram esses insectos? — perguntou Dick Sand.

 — Na África — respondeu primo Bénédict —, nas províncias centrais e meridionais. A África é por excelência o país das formigas. É muito para se ler o que diz Livingstone nos últimos apontamentos trazidos por Stanley. Mais feliz do que eu, o doutor assistiu a uma batalha homérica entre um exército de formigas pretas e outro de formigas vermelhas. Estas, que se chamam «drivers» e a que os indígenas dão o nome de «sifarus», ficaram vencedoras. As outras, as «chungus», fugiram, levando ovos e larvas, depois de se terem valentemente defendido. Nunca, segundo refere Livingstone, nunca o furor da peleja foi levado tão longe, nem entre os homens nem entre as feras! Com a sua mandíbula aferradora, as «sifarus» fazem recuar os homens, ainda os mais valentes. Os maiores animais, os leões e os elefantes, fogem delas. Nada as faz parar, nem as árvores, que elas escalam até ao cimo, nem os rios, que atravessam fazendo pontes suspensas com os seus próprios corpos ligados uns aos outros! São numerosas. Um outro viajante africano, Du Chaillu, viu desfilar durante duas horas uma coluna destas formigas, sem parar no caminho! Mas porque nos espantaremos à vista de tantas miríades? A fecundidade dos insectos é assombrosa, e, voltando a falar das térmites fatais, está provado que uma fêmea chega a pôr sessenta mil ovos por dia! Assim, estes neurópteros fornecem aos indígenas suculenta alimentação. Formigas grelhadas, meus amigos, há alguma coisa de melhor neste mundo?

 — Já comeu, Sr. Bénédict? — perguntou Hércules.

 — Nunca — respondeu o sábio professor —, mas ainda hei-de comer.

 — Onde?

 — Aqui.

 — Aqui? Mas nós não estamos na África — acudiu Tom.

 — Não... não... — respondeu Bénédict — e contudo até aqui as térmites fatais e as suas aldeias de formigueiros ainda não foram observadas senão no continente africano. Ora vejam lá como são os viajantes! Não sabem ver. Tanto melhor! Já descobri uma tsé-tsé na América! A esta glória juntarei a de ter visto as térmites fatais no mesmo continente! Que assunto para uma memória, que fará decerto sensação na sábia Europa, e talvez mesmo para algum in-fólio com estampas e gravuras em separado!...

Era evidente que a verdade não penetrara no cérebro de primo Bénédict. O pobre homem e todos os seus companheiros, com excepção de Dick Sand e de Tom, julgavam-se, e tinham razão para isso, em lugar onde realmente não estavam! Outras eventualidades, factos mais graves do que certas curiosidades científicas, deviam acontecer para que se desenganassem.

Eram então nove horas da noite. Primo Bénédict falara muito tempo. Percebeu ele que os seus ouvintes, deitados nos alvéolos, tinham pouco a pouco adormecido durante a lição de entomologia? Não. Dissertava por gosto. Dick Sand, conquanto não estivesse dormindo, não o interrogava e conservava-se imóvel. Hércules resistira mais do que os outros; mas o cansaço obrigou-o por fim a fechar os olhos, e com os olhos os ouvidos.

Primo Bénédict durante algum tempo ainda continuou a dissertar, até que, vencido pelo sono, trepou para a cavidade superior do cone, onde já tinha escolhido lugar.

Profundo silêncio reinava então no interior do formigueiro, enquanto a trovoada enchia o espaço de ruído e de fogo. Não havia sinais que indicassem o fim do cataclismo.

Apagara-se a lanterna. No interior do cone a escuridão era profunda.

Todos dormiam. Só Dick Sand não procurava no sono o repouso, que contudo lhe era tão necessário. Os cuidados absorviam-no. Pensava nos seus companheiros, que queria salvar custasse o que custasse. O naufrágio do «Pilgrim» não marcara o termo das suas cruéis provações, e outras, não menos terríveis, o ameaçavam, se caísse em poder dos indígenas.

E como evitar este perigo, o pior de todos, quando voltassem para a costa? Evidentemente, Harris e Negoro não os tinham levado cem milhas pelo sertão de Angola sem o secreto desígnio de se apoderarem deles. Mas que meditava, então, o maldito cozinheiro? A quem tinha ele ódio? O jovem praticante dizia a si mesmo que só ele o tinha merecido, e recordava todos os incidentes mais notáveis da viagem do «Pilgrim», o encontro do casco abandonado e dos negros, a perseguição da baleia, e a desaparição do capitão Hull e da tripulação...

Dick Sand achara-se então, aos quinze anos, encarregado do comando de um navio, em que a bússola, pela mão criminosa de Negoro, mostrara caminho errado. Lembrava-se de se ver usando da sua autoridade, na presença do insolente cozinheiro, ameaçando-o de o prender a ferros, ou de lhe fazer saltar os miolos com um tiro de revólver! Ah! Porque teria hesitado a sua mão? O cadáver de Negoro teria sido lançado ao mar, e não teriam sucedido tantas catástrofes.

Tal era o curso das ideias do jovem praticante. Depois pensava um instante sobre o naufrágio com que acabara a viagem do «Pilgrim». O traidor Harris aparecia então, e a província da América Meridional transformava-se pouco a pouco. A Bolívia mudava-se em Angola, com o seu mau clima, as feras e os indígenas, ainda mais cruéis! Poderia a pequena caravana escapar a tudo isto, até chegar à costa? Esse rio, que Dick Sand procurava e que esperava encontrar, levá-los-ia ao litoral com mais segurança e menos fadiga? Não queria duvidar, porque sabia que uma marcha de cem milhas, naquela inóspita região e no meio de perigos incessantes, era impossível.

 — Felizmente — pensava ele —, Mrs. Weldon e todos ignoram a gravidade da situação! Só eu e o velho Tom somos os únicos que sabemos que Negoro nos lançou para a costa da África, e que Harris nos trouxe para os sertões de Angola.

Dick Sand chegara a este ponto dos seus aflitivos pensamentos, quando sentiu como um sopro passar pela sua frente. Uma mão se apoiou sobre o seu ombro e uma voz comovida murmurou ao seu ouvido estas palavras:

 — Sei tudo, meu pobre Dick, mas Deus pode salvar-nos ainda! Faça-se a sua vontade!

 

O SINO DE MERGULHADOR

A essa inesperada revelação Dick Sand não podia responder! Além de que Mrs. Weldon voltou imediatamente para o seu lugar ao pé de Jack. Não queria, evidentemente, dizer mais do que dissera, e o jovem praticante não teve a coragem de a reter.

Mrs. Weldon sabia tudo. Os diversos incidentes do caminho tinham-na esclarecido e talvez também a palavra «África», tão desastradamente pronunciada na véspera por primo Bénédict!

«Mrs. Weldon sabe tudo», dizia para consigo Dick Sand. «Talvez seja melhor. A corajosa senhora não desespera! Não desesperarei eu também!»

Tardava o dia a Dick Sand para poder ir explorar os arredores daquela povoação de térmites. Um rio, tributário do Atlântico, dotado de rápida corrente, era o que Dick queria descobrir para transportar todo o seu rancho, e ele tinha uma espécie de pressentimento a segredar-lhe que uma corrente de água não estava longe. O que sobretudo convinha era evitar o encontro dos indígenas, talvez já em sua perseguição, dirigidos por Harris e Negoro.

Mas o dia não vinha. Nenhuma claridade se infiltrava pelo orifício inferior para dentro do cone. Rugidos, que a grossura das paredes abafava, indicavam que a trovoada não se aplacara. E, escutando bem, ouvia-se a chuva cair com grande violência na base do formigueiro, e, como as grossas gotas não batiam sobre terreno duro, era forçoso concluir que toda a planície estava inundada.

Deviam ser onze horas proximamente. Dick Sand sentiu então uma espécie de prostração, se não era verdadeiro sono que se apoderava dele. Em todo o caso seria repouso. Mas no momento em que ia adormecer veio-lhe à ideia de que, pelo amontoamento da argila embebida, o orifício inferior podia obstruir-se. Fechar-se-ia a entrada ao ar exterior, e, dentro, a respiração de dez pessoas prontamente o viciaria, carregando-o de ácido carbónico.

Dick Sand deixou-se, pois, escorregar até ao chão, que se alteara com a argila da primeira ordem de alvéolos.

O pequeno aterro circular estava ainda enxuto e o orifício perfeitamente aberto. O ar penetrava livremente para o interior do cone e com ele a claridade dos relâmpagos e o estampido da trovoada que uma chuva diluviana não podia enfraquecer.

Dick Sand certificou-se de que tudo estava bem. Nenhum perigo parecia, por enquanto, ameaçar aquelas térmites humanas, que substituíram a colónia dos neurópteros. Pensou, pois, o jovem praticante em se refazer da fadiga, dormindo algumas horas, pois que já se sentia dominar pelo sono.

Porém, por extrema precaução, Dick Sand deitou-se sobre o aterro de argila, na base do cone, e perto do estreito orifício. Deste modo nenhum acidente sobreviria sem que ele fosse o primeiro a pressenti-lo. A primeira luz da madrugada acordá-lo-ia decerto, e poderia, por consequência, começar muito cedo a explorar a planície.

Dick Sand deitou-se, com a cabeça apoiada à parede e a carabina na mão. Pouco depois adormeceu.

Não podia dizer quanto tempo durou aquele letargo. Sentiu-se acordado por grande sensação de frio.

Levantou-se e reconheceu, não sem ansiedade, que a água invadia o formigueiro e tão rapidamente que em poucos segundos atingiria a ordem de alvéolos que Tom e Hércules ocupavam.

Estes, acordados por Dick Sand, souberam imediatamente da nova contrariedade.

Acendeu-se a lanterna, que iluminou o interior do cone.

A água chegara até à altura de cinco pés proximamente e ficara estacionária.

 — Que aconteceu, Dick? — interrogou Mrs. Weldon.

 — Não é nada — respondeu o jovem praticante. — A parte inferior do cone está alagada. É provável que com a trovoada alguma ribeira próxima tivesse saído do seu leito e inundado a planície.

 — Bom — disse Hércules —, isso prova que o rio está perto.

 — É verdade — respondeu Dick Sand —, e será ele que nos conduzirá à costa. Descanse, pois, Mrs. Weldon, a água não lhe chegará, nem a Jack, nem a Nan, nem ao Sr. Bénédict!

Mrs. Weldon não respondeu. Primo Bénédict dormia como uma verdadeira térmite.

Entretanto os negros, inclinados sobre a água, que reflectia a luz da lanterna, esperavam que Dick Sand lhes dissesse o que deviam fazer.

Mas Dick Sand nada dizia, e mandava pôr as provisões e as armas onde não chegasse a inundação.

 — A água penetrou pelo orifício? — perguntou Tom.

 — Sim — elucidou Dick Sand — e agora impede que o ar se renove.

 — Não poderíamos fazer um buraco na parede, acima do nível da água? — perguntou o velho negro.

 — Podíamos... Tom; mas se temos cinco pés de água cá dentro, é porque há talvez seis ou sete... ou mesmo mais... lá fora!

 — Sabe isso com certeza, Sr. Dick?

 — Sei, Tom, que a água, subindo no interior do formigueiro, devia ter comprimido o ar na parte superior, e que este ar é agora o obstáculo que se opõe a que ela se eleve mais. E se nós fizéssemos um buraco na parede, pelo qual o ar passasse, ou a água subiria ainda até que igualasse o nível exterior, ou, se excedesse o furo, subiria até ao ponto em que o ar comprimido a contivesse. Devemos estar aqui como os operários nos sinos de mergulhadores.

 — Que se deve fazer então? — perguntou Tom.

 — Pensar bem antes de proceder — retorquiu Dick Sand. — Uma imprudência poderia custar-nos a vida.

A observação do jovem praticante era justíssima. Tinha muita razão em comparar o cone com um sino imenso. A diferença porém está que neste aparelho o ar é incessantemente renovado por meio de bombas, os mergulhadores respiram regularmente, e não têm outros inconvenientes senão os que resultam de uma longa permanência sob a acção de uma atmosfera comprimida e que não está à pressão normal. Mas aqui, além destes inconvenientes, o espaço estava já reduzido à terça parte, pela invasão da água, e o ar não podia ser renovado senão abrindo-se um furo que pusesse o formigueiro em comunicação com a atmosfera exterior.

Poder-se-ia, pois, sem correr os riscos que mencionara Dick Sand, furar a parede, e neste caso não se agravaria a situação?

O que é certo é que a água se mantinha então a um nível tal que duas razões unicamente o fariam subir: ou fazendo-se o furo e sendo mais alto o nível exterior, ou se a altura da cheia aumentasse ainda. Em ambos os casos não ficaria no interior do cone senão um apertado espaço em que o ar, não renovado, se comprimiria ainda mais.

Mas o formigueiro não podia ser arrancado do solo pela inundação, com grande perigo dos que lá estavam dentro? Não; tanto como uma toca de castores, por tal modo estava ele seguro pela base.

O que constituía, pois, a eventualidade mais para temer era a persistência da tempestade e por consequência o crescimento das águas. Trinta pés de água na planície cobririam o cone com dezoito pés de água, e comprimiriam o ar no interior sob a pressão de uma atmosfera.

Reflectindo bem, Dick Sand convenceu-se de que a inundação não era extraordinária, nem devia atribuir-se unicamente ao dilúvio que as nuvens lançavam. Parecia mais provável que um rio próximo, engrossado pelas águas, tivesse saído do seu leito e se espalhasse na planície, que lhe ficava inferior. Mas o que provava que o formigueiro não estava então inteiramente mergulhado, e que não era já possível sair dele, mesmo pela sua calota superior, a qual não seria difícil, nem levaria muito tempo a demolir?

Dick Sand, extremamente inquieto, perguntava a si mesmo o que devia fazer. Conviria esperar ou precipitar o desfecho da situação depois de ter reconhecido o estado das coisas?

Eram três horas da manhã. Todos escutavam, imóveis e silenciosos. Os ruídos exteriores chegavam, mas já muito enfraquecidos, através do orifício obstruído. Contudo um rumor surdo, extenso e contínuo, indicava bem que a luta dos elementos não cessara ainda.

Nesse momento o velho Tom notou que o nível da água se elevava pouco a pouco.

 — Sim — respondeu Dick Sand —, e se sobe, apesar de o ar não poder sair, é porque a cheia cresce e o comprime cada vez mais.

 — Por ora é pouco — disse Tom.

 — É — confirmou Dick Sand —, mas onde parará?

 — Sr. Dick — perguntou Bat —, quer que eu saia do formigueiro? Mergulho e faço diligência para sair pelo buraco...

 — É melhor que eu tente fazer isso — disse Dick Sand.

 — Não, Sr. Dick, não — interveio o velho Tom. — Deixe ir meu filho e confie nele. Se ele não puder voltar, paciência, mas a sua presença, Sr. Dick, é necessária aqui!

Depois, falando mais baixo, continuou: — Não se deve esquecer de Mrs. Weldon e do pequenino Jack.

 — Pois sim — concordou Dick Sand. — Vai, Bat. Se o formigueiro estiver submergido, não tentes entrar. Nós diligenciaremos sair como tu. Mas se o cone emerge ainda, bate na calota grandes pancadas com a machada que contigo levarás. Nós te ouviremos e para nós será esse o sinal de pela nossa parte a demolirmos também. Entendes bem?

 — Muito bem, Sr. Dick — respondeu Bat.

 — Vai, meu rapaz! — acrescentou o velho Tom, apertando a mão do filho.

Bat, depois de ter feito boa provisão de ar por uma longa aspiração, mergulhou na massa líquida, cuja profundidade passava já de cinco pés. Era trabalho muito difícil, pois que tinha de procurar primeiramente o orifício inferior, passar através dele e subir à superfície exterior das águas. Tudo isto requeria pronta execução.

Passou mais de meio minuto. Dick Sand pensava que Bat conseguira passar para o lado de fora, quando o negro apareceu.

 — Então? — exclamou Dick Sand.

 — O buraco está entulhado! — informou Bat logo que cobrou alento.

 — Entulhado! — repetiu Tom.

 — Sim. A água provavelmente fez deslizar a argila... Apalpei com a mão à roda das paredes... Não encontrei passagem!...

Dick Sand abanou a cabeça. Os companheiros e ele estavam presos naquele cone, que a água submergia talvez já.

 — Se não há passagem — observou então Hércules —, é necessário abrir uma.

 — Espera — atalhou o jovem praticante, fazendo parar Hércules, que, com o machado na mão, se dispunha a mergulhar.

Dick Sand reflectiu durante alguns instantes e depois declarou:

 — Vamos proceder de outra maneira. A questão está em saber se a água cobre ou não o formigueiro.

 — Se fizéssemos uma pequena abertura no vértice do cone, sabê-lo-íamos logo. Mas se o formigueiro estiver todo submergido, a água invadi-lo-á completamente e ficaremos perdidos. Procedamos pois por tentativas.

 — Mas depressa — recomendou Tom. Efectivamente, o nível subia sempre e a pouco e

pouco. Havia já seis pés de água no interior. À excepção de Mrs. Weldon, do seu filho, de primo Bénédict e de Nan, que se haviam refugiado nas cavidades superiores, todos tinham mais de meio corpo metido na água.

Era, pois, urgente apressar a resolução que Dick Sand propusera.

Foi um pé acima do nível interior, a sete pés do solo, por consequência, que Dick Samd resolveu abrir um furo na parede de argila.

Se por aquele furo se estabelecesse a comunicação com o ar exterior, era porque o cone emergia. Se, pelo contrário, o furo ficasse abaixo do nível exterior, o ar seria repelido internamente, e em tal caso urgiria tapar o furo com rapidez, ou a água se elevaria até ao orifício. Depois recomeçar-se-ia a experiência um pé mais acima, e assim seguidamente. Mas se, enfim, na parte superior da calota não se encontrasse ainda o ar da atmosfera, era porque havia mais de quinze pés de água na planície, e que toda a aldeia das térmites desaparecera com a inundação! Em tal caso, que esperança restava aos presos do formigueiro de escapar à mais terrível de todas as mortes, a morte por asfixia lenta?!

Tudo isto sabia Dick Sand, mas a sua presença de ânimo não o abandonou nunca. As consequências da experiência que ele queria tentar, calculara-as bem, mas esperar mais tempo era impossível. A asfixia ameaçava-os naquele acanhado espaço, que de instante para instante se reduzia mais, numa atmosfera já saturada de ácido carbónico.

O melhor instrumento que Dick Sand achou para abrir o furo na parede foi uma vareta de espingarda, o qual tinha na extremidade uma rosca, que servia para limpar o cano. Girando rapidamente com a vareta a rosca entraria na argila como uma broca, e far-se-ia o furo pouco a pouco. Não teria maior diâmetro que o da vareta, mas era quanto bastava. O ar penetraria facilmente.

Hércules, com a lanterna levantada, alumiava Dick Sand. Havia velas de reserva; por isso não faltaria a luz.

Um minuto depois de ter principiado a operação a vareta penetrou livremente na parede. Ouviu-se imediatamente um ruído surdo, semelhante ao que fazem as bolhas de ar subindo através de uma coluna de água. O ar saía para fora, e no mesmo momento o nível da água subiu no cone e parou à altura do furo, o que provava que ele se fizera muito baixo, isto é, inferiormente à superfície da massa líquida exterior.

 — Recomecemos — disse com placidez o praticante, depois de ter rapidamente tapado o furo com argila.

A água estacionara novamente dentro do cone, mas o espaço de ar diminuíra mais de oito polegadas. A respiração tornava-se difícil, porque o oxigénio começava a faltar. Via-se também que a luz da lanterna se avermelhava e perdia parte do brilho.

Um pé acima do primeiro furo, Dick Sand começou a fazer segundo, pelo mesmo processo. Se a experiência não desse bom resultado, a água continuaria a subir no interior do cone... mas era mister correr o risco.

Enquanto Dick Sand girava com a sua broca, ouviu-se repentinamente primo Bénédict gritar:

 — Ah! Aí está a razão! Aí está a razão!

Hércules levantou a lanterna e dirigiu a luz sobre primo Bénédict, na cara do qual se revelava a maior satisfação.

 — Sim — repetiu ele —, aí está porque as inteligentes térmites abandonaram o formigueiro! Pressentiram a inundação. Ah! O instinto, meus amigos, o instinto! São mais espertas do que nós, muito mais espertas!

Tal foi a moralidade que primo Bénédict tirou da situação.

Naquele momento Dick Sand retirava a vareta, que atravessara na parede. Ouviu-se um silvo. A água subiu mais um pé no interior do cone. O furo não encontrara o ar livre na parte exterior!

A situação era pavorosa. Mrs. Weldon, a quem a água quase chegava, levantava Jack nos braços. Todos abafavam naquele acanhadíssimo espaço. Sentiam já zunido nos ouvidos. A lanterna dava frouxa luz.

 — O cone estará completamente mergulhado? — murmurou Dick Sand.

Era indispensável sabê-lo, abrindo-se para isso um terceiro furo na calota.

Mas era a asfixia, era a morte imediata, se o resultado desta última tentativa fosse infrutífero. O ar que restava no interior passaria através da camada superior, e a água encheria o cone completamente.

 — Mrs. Weldon — disse então Dick Sand —, conhece bem a situação. Se nos demorarmos, o ar respirável falta-nos. Se falha a terceira tentativa, a água encherá todo este espaço. A única probabilidade de salvação que nos resta é que o vértice do cone esteja acima do nível da cheia. É conveniente tentar esta última experiência. Quer tentá-la?

 — Quero, Dick! — respondeu Mrs. Weldon.

No mesmo momento apagou-se a lanterna naquele meio, já impróprio para a combustão. Mrs. Weldon e os seus companheiros ficaram mergulhados na mais completa escuridão.

Dick Sand tinha trepado nos ombros de Hércules, o qual se agarrava a uma das cavidades laterais, tendo apenas a cabeça fora de água. Mrs. Weldon, Jack e primo Bénédict estavam na última ordem de alvéolos.

Dick Sand começou a furar a parede; a vareta penetrava facilmente na argila. Naquele lugar a parede, mais grossa e mais resistente, foi também menos fácil de furar. Dick Sand apressava-se, não sem terrível ansiedade, porque daquela abertura ou entraria a vida com o ar, ou com a água a morte.

De repente ouviu-se um silvo agudo. O ar comprimido saiu... mas um raio de luz passou através da parede. A água subiu mais oito polegadas somente, e parou, sem que Dick Sand tivesse necessidade de tapar o furo. O equilíbrio entre o nível interior e exterior estava restabelecido. O vértice do cone emergia. Mrs. Weldon e os seus companheiros estavam salvos.

Logo depois de um frenético hurra, no qual dominou a voz de Hércules, as machadas começaram a trabalhar. A calota desfazia-se pouco a pouco. O furo alargava-se, o ar puro entrava às ondas, e com ele os primeiros raios do sol nascente. Assim que o cone estivesse sem a calota, fácil seria trepar pela parede, e então se pensaria no modo de chegar a qualquer altura próxima e ao abrigo das inundações.

Dick Sand foi o primeiro que trepou.

Soltou um grito.

Um estrépito, particularmente conhecido dos viajantes africanos, que fazem as flechas quando sibilam, passou pelo ar.

Dick Sand tivera tempo de ver, a cem passos do cone, na planície inundada, canoas compridas carregadas de indígenas.

Foi de uma dessas canoas que partiu a nuvem de flechas, no próprio momento em que a cabeça do jovem praticante apareceu.

Dick Sand com uma palavra fez compreender tudo aos seus companheiros. Pegando na sua carabina, seguido por Hércules, Acteão e Bat, reapareceu sobre o cone, e todos fizeram fogo sobre uma das canoas.

Caíram muitos indígenas, e gritos selvagens, acompanhados por tiros de espingarda, responderam à detonação das armas de fogo.

Mas o que podiam Dick Sand e os seus contra um cento de africanos que os cercavam por todos os lados?

O formigueiro foi assaltado. Mrs. Weldon, Jack, primo Bénédict, todos enfim, foram brutalmente arrebatados, e sem terem tempo de dizer uma palavra, nem de apertarem a mão a última vez, viram-se separados uns dos outros, decerto em virtude de ordens previamente dadas.

A primeira canoa levou Mrs. Weldon, o pequenino Jack e primo Bénédict. Dick Sand viu-os desaparecer entre o acampamento.

Dick, acompanhado de Nan, do velho Tom, de Hércules, Bat, Acteão e Agostinho, foi atirado para outra canoa, que se dirigiu para outro ponto da colina.

Vinte indígenas tripulavam esta embarcação, que era seguida de mais cinco. Resistir-lhes era impossível, e contudo Dick Sand e os seus companheiros tentaram fazê-lo. Alguns guardas da caravana foram por eles feridos, e decerto Dick e os seus teriam pago a resistência com as vidas se não houvesse ordem terminante de lhas poupar.

Fez-se o caminho em poucos minutos. No momento porém em que a canoa atracava, Hércules deu um salto e lançou-se para a terra. Dois indígenas correram atrás dele, mas o gigante, fazendo da espingarda uma clava, deitou por terra os indígenas, com as cabeças quebradas. Instantes depois, Hércules desaparecia entre as brenhas, no meio de um chuveiro de balas, na mesma ocasião em que Dick Sand e os seus companheiros, depois de terem desembarcado, eram acorrentados como escravos.

 

UM ARRAIAL NAS MARGENS DO CUANZA

O aspecto da região depois que a inundação fizera um lago da planície onde se erguia a aldeia das térmites, tinha mudado completamente. Cerca de vinte formigueiros emergiam apenas os seus vértices e eram os únicos pontos salientes naquela enorme lagoa.

Fora o Cuanza que trasbordara durante a noite, carregado pelas águas dos seus afluentes, engrossados pela tempestade.

O Cuanza, um dos rios de Angola, lança-se no Atlântico a cem milhas distante do lugar onde o «Pilgrim» encalhara. É o mesmo rio que o tenente Cameron devia atravessar anos depois, antes de chegar a Benguela. Deve o Cuanza vir a ser o veículo do comércio do interior de boa porção de Angola. Os vapores percorrem já a parte inferior do rio, e não passarão dez anos sem que naveguem no seu leito superior. Dick Sand procedera, pois, acertadamente procurando para o norte algum rio navegável. O riacho que ele seguira vinha lançar-se no Cuanza. Se não fosse o inesperado ataque, contra o qual não se pudera prevenir, teria Dick encontrado o rio uma milha mais longe; os seus companheiros e ele embarcariam numa jangada fácil de construir, e teriam por consequência todas as probabilidades de descer o Cuanza até às povoações portuguesas onde os vapores fazem escala. Lá, a sua salvação era certa.

Mas não devia acontecer assim.

O arraial que Dick Sand vira estava assente sobre uma altura próxima do formigueiro no qual a fatalidade o lançara como se fosse uma emboscada. No cimo daquela altura elevava-se um enorme sicômoro, que facilmente abrigaria quinhentos homens sob a sua imensa ramagem. Quem nunca viu estas árvores gigantes da África Central não pode delas formar ideia. Os seus ramos formam uma floresta. Mais longe, grandes banianas, das que não dão frutos, completavam o quadro da vastíssima paisagem.

Fora ao abrigo do sicômoro que, escondida como em lugar misterioso, uma caravana, a mesma cuja chegada Harris anunciara a Negoro, tinha parado. Aquela numerosa cáfila de indígenas, arrancados das suas aldeias pelos agentes do traficante Alves, dirigia-se ao mercado de Kasonde. De lá, os escravos, segundo os pedidos, seriam mandados para os barracões da costa ocidental ou para Nyamgué, na região dos grandes lagos, a fim de serem divididos pelo alto Egipto ou pelas feitorias de Zanzibar.

Logo que chegaram ao arraial, Dick Sand e os seus companheiros foram tratados como escravos. Ao velho Tom, ao seu filho Bat, a Agostinho, a Acteão e à pobre Nan, negros de origem, conquanto não pertencessem à raça africana, deram-lhes o tratamento dos cativos indígenas. Depois de terem sido desarmados, ao que opuseram tenaz resistência, foram presos pelo pescoço, dois a dois, por meio de uma vara de seis a sete pés de comprimento, bifurcada nos extremos e fechada por hastes de ferro. De tal arte eram obrigados a caminhar em linha, um atrás do outro, sem se poderem desviar nem para a direita nem para a esquerda. Para maior precaução, uma cadeia pesada os ligava pela cintura. Tinham apenas os braços livres para carregar os fardos, e os pés para andar, mas não para fugir. Era assim que iam percorrer centenas de milhas, sob o azorrague de um condutor!

Estendidos em lugar desviado, prostrados pela reacção que se seguiu aos primeiros momentos da luta contra os negros, não faziam um único movimento. Não terem eles podido seguir Hércules, quando fugiu! E, contudo, que se devia esperar para o fugitivo? Embora vigoroso como era, o que lhe aconteceria naquela terra inóspita, onde a fome, o isolamento, as feras, os indígenas, tudo enfim era contra ele? Não viria ainda a lastimar-se por não ter a sorte dos seus companheiros? E estes, contudo, nenhuma compaixão podiam esperar dos chefes da caravana, árabes ou portugueses, falando uma linguagem que eles não compreendiam, dirigindo-se-lhes apenas com olhares ou gestos ameaçadores.

Dick Sand não estava ligado a nenhum escravo. Era branco e não se atreveram a infligir-lhe o tratamento comum. Desarmado, tinha os pés e as mãos livres, mas um condutor estava encarregado de o vigiar. Observava o arraial, esperando a cada momento ver Negoro ou Harris... Enganou-se. Todavia, não duvidava de que estes dois tratantes haviam dirigido o ataque contra o formigueiro.

Veio-lhe também ao pensamento que Mrs. Weldon, o pequenino Jack e primo Bénédict tivessem sido levados para outro lugar, por ordem do americano e de Negoro. Não via um nem outro, e por isso consigo mesmo dizia que os dois cúmplices acompanhavam talvez ambos as suas vítimas. Que intentariam fazer? Era o seu maior cuidado. Dick Sand esquecia-se de si para apenas pensar em Mrs. Weldon e nos seus.

A caravana, acampada sob o gigantesco sicômoro, não tinha menos de oitocentas pessoas, isto é, quinhentos escravos de ambos os sexos, duzentos guardas, gente para carregar ou para a pilhagem, condutores, agentes ou chefes.

Estes últimos eram de origem árabe ou portuguesa. Custa a imaginar as crueldades que estes desumanos infligem aos cativos. Batem-lhes sem cessar, e aos que caem extenuados, e já nas circunstâncias de não poderem ser vendidos, acabam de os matar ou a tiro ou a machado.

Assim os levam pelo terror; mas o resultado deste sistema é que, à chegada da caravana, cinquenta por cento dos escravos faltam na conta ao traficante, ou porque alguns conseguiram fugir, ou porque as ossadas dos que morreram pelos tormentos ficam marcando os longínquos caminhos do interior até à costa.

Como é de prever, os agentes de origem europeia, em grande parte portugueses, são os facínoras que os seus respectivos países têm expulsado do seu seio, condenados, fugidos das prisões, e negreiros que escaparam de ser presos; numa palavra, a escória da humanidade. Tal era Negoro, tal era Harris, presentemente ao serviço de um dos maiores traficantes de negros da África Central, José António Alves, conhecido de todos os negreiros da província e a respeito do qual o tenente Cameron deu curiosas notícias.

Os guardas que escoltam os cativos são geralmente indígenas pagos pelos traficantes. Mas não têm estes o monopólio dessas correrias que lhes dão escravos em grande número.

Os reis negros também fazem guerras atrozes, com o mesmo fim, e então os vencidos adultos, as mulheres e as crianças, reduzidos à escravidão, são vendidos pelos vencedores aos traficantes, a troco de alguns metros de chita, pólvora, armas de fogo, pérolas cor-de-rosa ou encarnadas, e muitas vezes até, diz Livingstone, por alguns grãos de milho.

Os guardas que escoltavam a caravana do velho Alves podiam dar exacta ideia do que são os exércitos africanos. Era uma horda de bandidos negros, quase nus, armados de grandes espingardas de pederneira, com o cano guarnecido de anéis de cobre. Com tal escolta, a que se juntava a gente de pilhagem, que não vale mais, os agentes têm pela maior parte das vezes muito que fazer. Discutem as ordens, impõem os dias e as horas de descanso, ameaçam deixá-los, e não é raro que os agentes sejam obrigados a ceder às exigências de tal gente.

Conquanto os escravos, homens ou mulheres, sejam em geral obrigados a carregar com os fardos, quando a caravana vai a caminho, há também um certo número de carregadores. Têm estes o nome especial de «pagasis», e são eles os que carregam os pequenos pacotes de objectos valiosos, principalmente marfim. É tal às vezes a grandeza dos dentes do elefante que chegam a pesar cento e setenta libras, sendo precisos dois «pagasis» para os levar às feitorias, de onde esta preciosa mercadoria é expedida para os mercados de Cartum, de Zanzibar e da costa do Natal. À chegada, os «pagasis» recebem o preço ajustado, que consiste habitualmente em vinte metros de tecido de algodão ou de uma fazenda que tem o nome de «mericani», uma pequena porção de pólvora, um punhado de cauris(1)*, algumas pérolas, ou mesmo escravos que tenham difícil saída, se acaso o negreiro não tem outra moeda.

 

* 1. Búzios muito vulgares no continente, e que servem de dinheiro.

 

Entre os quinhentos escravos que contava a caravana viam-se poucos homens feitos. Provinha isto da seguinte causa: acabada a correria e incendiada a povoação, todos os indígenas de mais de quarenta anos são mortos sem piedade e enforcados nas árvores dos arredores. Unicamente os jovens adultos, de ambos os sexos, e as crianças vão abastecer os mercados. Apenas sobrevive a estas caçadas uma décima parte dos vencidos. Assim se explica o extraordinário despovoamento que transforma em desertos os vastíssimos territórios da África Ocidental.

Aqui, as crianças e os adultos tinham por único vestuário um pedaço de «mouzu», tecido feito da casca que certas árvores produzem. Assim, pois, o estado daquele rebanho de seres humanos, formado de mulheres cobertas de chagas feitas pelos chicotes dos condutores, de crianças magras e esfomeadas, com os pés escorrendo sangue, e as quais as mães tentavam levar ao colo, apesar de já carregadas com os fardos, de raparigas e rapazes, presos às forquilhas, mais custosas de sofrer do que as grilhetas das galés, é quanto se pode imaginar de mais lamentável. Na verdade, o aspecto de tais desgraçados, vivos apenas, e cuja voz nem já tinha timbre, «esqueletos de ébano», empregando a expressão de Livingstone, teria tocado o coração das feras; mas não impressionava aqueles árabes insensíveis, nem aqueles portugueses, que, segundo diz Cameron, são ainda mais cruéis (1).

Inútil será dizer que durante as marchas, como nas paragens, os prisioneiros eram tratados com todo o rigor. Assim, Dick Sand compreendeu logo que não podia mesmo tentar a fuga. Mas, então, como encontrar Mrs. Weldon? Que ela e o filho tinham sido levados por Negoro, nada havia de mais certo. O cozinheiro pensara em a separar dos seus companheiros, por motivos que o jovem praticante não descobrira ainda, mas não duvidava da intervenção de Negoro, e o coração despedaçava-se-lhe pensando nos perigos de toda a espécie que ameaçavam Mrs. Weldon.

«Ah!», dizia ele consigo. «Quando penso que tive a vida destes dois homens na boca da minha carabina e que os não matei!...»

 

*1. Eis o que diz Cameron: «Para obter cinquenta mulheres, das quais Alves se dizia proprietário, dez aldeias foram destruídas, dez aldeias tendo cada uma de cem a duzentas almas: a totalidade de mil e quinhentos habitantes; alguns conseguiram fugir, mas a maior parte — quase todos — tinham ou morrido nas chamas, defendendo as suas famílias, ou sucumbido à fome no meio dos matos, se os animais ferozes lhes não deram pronto fim aos sofrimentos...

Estes crimes, perpetrados no centro da África por gente que se vangloria com o nome de cristã e se qualifica de portuguesa, parecerão incríveis aos habitantes dos países civilizados. É impossível que o Governo de Lisboa não saiba das atrocidades cometidas por homens que hasteiam a bandeira portuguesa e que se orgulham de serem seus súbditos.»

 (Tour du Monde, trad. H. Loreau.)

N. B. — Houve em Portugal protestos enérgicos contra as asserções de Cameron.

 

Era este um dos pensamentos que mais obstinadamente acudiam ao espírito de Dick Sand. Quantas desgraças a morte, a justíssima morte de Harris e de Negoro, teria evitado! Quantos sofrimentos de menos para aqueles que os dois corretores de carne humana tratavam agora como escravos!

Todos os horrores da situação de Mrs. Weldon e de Jack se representavam a Dick Sand. Nem a mãe nem o filho podiam contar com primo Bénédict. O pobre homem devia bastar para si! Todos três eram sem dúvida conduzidos para algum distrito remoto da província de Angola. Mas quem levaria o pequenino ainda doente?

«Sua mãe; não podia ser outra pessoa senão sua mãe!», repensava Dick Sand. «Terá achado forças, terá feito o que fazem as desgraçadas escravas, e cairá extenuada também! Ah! Permita Deus que eu ainda me encontre frente a frente com esses malvados, e eu...»

Mas se estava prisioneiro! Se ele se contava por uma cabeça daquele rebanho que os condutores levavam diante de si para o interior da África! Não sabia se Negoro e Harris dirigiam a cáfila, da qual faziam parte as suas vítimas! Dingo não estava ali para descobrir Negoro e dar sinal da sua aproximação. Só Hércules podia socorrer a desgraçada Mrs. Weldon. Mas seria lícito esperar tal milagre?

Dick Sand contudo abraçava esta ideia. A si mesmo dizia que o vigoroso negro estava livre. Da sua dedicação tudo havia a esperar! Tudo quanto humanamente fosse possível fazer, fá-lo-ia Hércules no interesse de Mrs. Weldon; e Hércules tentaria descobrir-lhe os passos e pôr-se em comunicação com eles, ou, não a encontrando, trataria de se combinar com Dick Sand, e talvez arrebatá-lo, por um rasgo de atrevimento! Durante a noite, quando estivessem a descansar, ele, confundindo-se com os prisioneiros, negro como eles, não poderia iludir a vigilância dos guardas, chegar até ao pé de Dick, quebrar-lhe as correntes, levá-lo para a floresta, e, ambos livres, quanto não fariam para salvar Mrs. Weldon? Um rio os levaria ao litoral, e Dick Sand continuaria a pôr em prática, com probabilidades de sucesso, e maior conhecimento das dificuldades, o seu plano tão desgraçadamente malogrado pelo ataque dos indígenas...

O jovem praticante entregava-se assim a alternativas de receios e de esperanças. Resistia, porém, ao abatimento, graças à sua enérgica natureza, e sentia-se pronto para se aproveitar de qualquer acaso que se lhe oferecesse. O que antes de tudo convinha saber era para que mercado os agentes conduziam a leva de escravos. Seria para alguma das feitorias de Angola, e em tal caso era obra de poucos dias de marcha, ou caminharia ainda muitas centenas de milhas através da África Central? O principal mercado dos negreiros é o de Nyamgué, no Ma-nyema, sob o meridiano que divide o continente africano em duas partes iguais e por onde se estende a região dos grandes lagos, que Livingstone então percorria. Mas era muito longe do arraial do Cuanza aquela povoação, e seriam precisos alguns meses de viagem para lá chegar. Era esta uma das mais sérias preocupações de Dick Sand, porque de Nyamgué, ainda mesmo que Mrs. Weldon, Hércules, os outros pretos e ele próprio conseguissem fugir, como seria difícil, para não dizer impossível, voltar ao litoral, por entre os perigos de tão longa jornada!

Mas Dick Sand teve em pouco tempo razão para acreditar que a leva não estava longe de chegar ao seu destino. Conquanto não entendesse a linguagem dos chefes da caravana, isto é, ou o árabe ou o idioma africano, notou contudo que o nome de um importante mercado daquela região foi frequentes vezes pronunciado. Este nome era Kasonde, e não ignorava Dick que lá se fazia grande comércio de escravos. Foi, pois, levado a concluir que em Kasonde se decidiria da sorte dos prisioneiros, ou fosse em favor do rei do distrito, ou por conta de algum rico traficante da província. Não se enganava.

Dick Sand, conhecendo a geografia moderna, sabia o que se podia saber de Kasonde. A distância de São Paulo de Luanda a esta povoação do interior não excede quatrocentas milhas, e, por consequência, duzentas e cinquenta, quando muito, a separavam do arraial assente nas margens do Cuanza. Dick assentava aproximadamente o seu cálculo, tomando por base o caminho feito pelo pequeno rancho sob a direcção de Harris. Ora, nas circunstâncias correntes, este caminho não exigia senão dez a doze dias. Duplicando o tempo, atendendo à necessidade de repouso de uma caravana já cansada por longo caminhar, avaliava Dick Sand em três semanas a duração da viagem do Cuanza a Kasonde. Dick Sand desejava comunicar o que julgava saber a Tom e aos seus companheiros. Terem estes a certeza de que os não levariam para o centro da África, para essas funestas terras de onde não pode haver esperança de sair, seria para eles de algum modo consolador. Bastariam algumas palavras lançadas quando passasse junto deles para lhes dizer o que decerto ignoravam. Conseguiria fazer o que desejava?

Tom e Bat — o acaso tinha reunido o pai e o filho —, Acteão e Agostinho, presos dois a dois, estavam na extremidade direita do arraial. Um condutor e mais doze guardas os vigiavam. Dick Sand, que tinha os movimentos livres, decidiu diminuir pouco a pouco a distância que o separava do grupo que formavam os seus companheiros a cinquenta passos afastados dele. Começou, pois, a proceder de modo que conseguisse o fim que tinha em vista.

Provavelmente, o velho Tom adivinhou o pensamento de Dick Sand. Uma palavra em voz baixa preveniu os seus companheiros para estarem com atenção. Não se moveram, e achavam-se prontos para ver ou para ouvir.

Já Dick Sand tinha avançado com ar indiferente cerca de cinquenta passos. De onde estava teria podido pronunciar, de modo que fosse ouvido de Tom, o nome Kasonde, e dizer qual seria a duração provável da viagem, mas se pudesse dar informações completas e combinar com eles a linha de conduta que deviam seguir, seria decerto melhor. Continuou, pois, a aproximar-se. Já lhe pulsava o coração cheio de esperança, estava apenas a poucos passos do lugar onde queria chegar, quando o condutor, como se tivesse percebido a intenção de Dick, se precipitou sobre ele. Aos gritos do enfurecido condutor acudiram dez guardas, e Dick Sand foi brutalmente repelido para trás, enquanto Tom e os seus companheiros eram conduzidos para a outra extremidade do acampamento.

Dick Sand, desesperado, lançou-se sobre o condutor. Conseguiu quebrar-lhe a espingarda, que quase lhe arrancou das mãos, mas sete ou oito pretos o seguraram ao mesmo tempo, e foi por isso obrigado a deixar o seu adversário.

Furiosos como estavam, tê-lo-iam morto, por certo, se um dos chefes da caravana, um árabe de grande estatura e fisionomia feroz, não interviesse. Este árabe era o chefe Ibn Hamis, de quem Harris falara.

Disse algumas palavras, que Dick Sand não entendeu, e os guardas, contrariados, deixaram-no e afastaram-se.

Era pois evidente que, se por um lado havia formal proibição para o jovem praticante de comunicar com os seus companheiros, era por outro lado certo que se tinha recomendado que lhe não tirassem a vida. Quem teria dado tais ordens senão Harris ou Negoro?

Naquele momento — nove horas da manhã do dia 19 de Abril — os sons rouquenhos de um chavelho de «codu»(1) estrondearam no ar, e o tambor «mefu» também se fez ouvir. Ia findar o descanso.

Todos, chefes, soldados, condutores, escravos, puseram-se de pé. Os fardos carregados, vários grupos de cativos se formaram sob a direcção de um condutor, que desfraldou uma bandeira de cores vivas.

Deu-se o sinal de partida.

 

*1. Ruminante da fauna africana.

 

Ouviram-se então cantos diversos: eram dos vencidos e não dos vencedores.

Eis o que nesses cantos, ameaça em que se revelava sincera fé, diziam os escravos contra os seus opressores, contra os seus algozes:

«Entregais-me à escravidão; mas eu, quando morrer, serei livre, e voltarei para me vingar, matando-vos!»

 

ALGUNS BREVES APONTAMENTOS DE DICK SAND

Conquanto a tempestade da véspera tivesse cessado, o tempo conservava-se ainda turvo. Era então a época chamada da «masica», segundo período da estação das chuvas naquela zona do céu africano. As noites principalmente iam ser chuvosas, por espaço de uma, duas ou três semanas, o que ainda mais aumentava as misérias e sofrimentos da caravana.

Partiu esta no dia referido, estando o céu nublado, e logo que deixou as margens do Cuanza dirigiu-se quase directamente para leste.

Na frente caminhavam cerca de cinquenta guardas, mais de cem de cada um dos lados da caravana, e o resto na retaguarda. Seria impossível aos prisioneiros fugir, ainda mesmo que não fossem ligados por cadeias. Mulheres, crianças e homens caminhavam misturados; os condutores apressavam-nos, dando-lhes chicotadas. Havia entre as negras algumas que eram mães, e tão infelizes que, amamentando um filho, conduziam um segundo com a mão que tinham livre. Outras puxavam os pequeninos, sem vestidos e descalços, sobre as ervas espinhosas do solo.

O chefe da caravana, o feroz Ibn Hamis, que interviera na luta entre Dick Sand e o seu condutor, dirigia toda aquela manada, percorrendo a longa coluna, desde a frente até à retaguarda. Ele e os seus agentes preocupavam-se pouco com os sofrimentos dos cativos, mas tinham de atender mais seriamente ou aos guardas que reclamavam maior ração, ou aos «pagasis» que queriam parar. Dava isto lugar a discussões, e algumas vezes a troca de grosserias. Os escravos tinham então a suportar mais ainda a irritação constante dos condutores. Não se ouviam senão ameaças e gritos de dor, e os que iam nas últimas fileiras pisavam o solo que os primeiros haviam manchado com sangue.

Os companheiros de Dick Sand, postos muito adiante, na vanguarda da caravana, não podiam, pois, comunicar com ele. Caminhavam em filas, com o pescoço metido na pesada forquilha, que lhes não permitia um único movimento de cabeça. Os azorragues não os poupavam a eles mais do que aos seus companheiros de infortúnio!

Bat, ligado a seu pai, marchava adiante dele, cuidando em não abalar a forquilha, procurando os melhores lugares para pôr os pés, porque o velho Tom caminhava logo depois. De espaço a espaço, quando o condutor ficava um pouco para trás, Bat dizia uma ou outra palavra de conforto, algumas das quais chegavam aos ouvidos de Tom. Tentava mesmo diminuir o andamento, quando percebia que seu pai se fatigava. Era um suplício para o bom filho não poder vê-lo, ele que tanto o estimava. Tom gozava a satisfação de ver o filho, mas satisfação que pagava muito cara. Quantas vezes grossas lágrimas lhe saltaram dos olhos, ao ver o chicote do condutor zur-zir o corpo de Bat! Maior o tormento; antes fosse ele o açoutado.

Agostinho e Acteão caminhavam alguns passos mais atrás, ligados um ao outro, e continuamente azorragados. Ah! Muito era o que eles invejavam a sorte de Hércules! Quaisquer que fossem os perigos de que este seu antigo companheiro estivesse ameaçado naquela terra selvagem, podia ao menos usar da força e defender a vida.

Durante os primeiros momentos do seu cativeiro, o velho Tom fizera, enfim, conhecer aos seus companheiros toda a verdade. Dele souberam, com grandíssimo espanto, que estavam na África, que a dupla traição de Negoro e de Harris os lançara primeiro ali, os internara depois, e que nenhuma compaixão deviam esperar dos seus senhores.

Nan não era mais bem tratada. Fazia parte de um grupo de mulheres que ocupava o meio da caravana. Ia presa a uma preta, nova ainda, mãe de dois filhinhos, um de peito, outro de três anos, e que mal podia andar. Condoeu-se Nan da criancinha, e encarregou-se dela. A pobre mãe agradeceu-lhe com lágrimas de reconhecimento. Nan levava, pois, o pequenino, poupando-lhe ao mesmo tempo a fadiga, à qual teria sucumbido, e às chicotadas do condutor. Mas era fardo muito pesado para a velha Nan. Assim receava ela que cedo lhe faltassem as forças, e pensava então em Jack... Via-o nos braços de sua mãe. A doença emagrecera-o, mas devia ser ainda pesado para Mrs. Weldon. Onde estaria ele? Tornaria a vê-lo, a sua velha criada?

Dick Sand tinha sido colocado quase na retaguarda. Não podia ver Tom, nem os seus companheiros, nem a velha Nan. A frente da pequena caravana só para ele era visível quando atravessava alguma planície. Caminhava entregue aos mais tristes pensamentos, de que só e a muito custo o perturbavam os gritos dos agentes. Não pensava em si, nem lhe davam cuidado as fadigas que ainda havia de suportar, nem mesmo as torturas que Negoro lhe tinha talvez reservadas. Só pensava em Mrs. Weldon. Procurava, mas em vão, no terreno, entre os espinhos das veredas, nos ramos rasteiros das árvores, vestígios da sua passagem. Não devia ela ter ido por outro caminho, se, como tudo fazia crer, a levavam para Kasonde. O que não daria ele para encontrar algum indício da sua marcha para o mesmo ponto aonde eles eram conduzidos também!

Tal era a situação física e imoral do jovem praticante e dos seus companheiros. Mas quaisquer que fossem os receios que tivessem, por muito grandes que fossem os seus sofrimentos, o dó era neles ainda maior vendo a lastimosa miséria daquele triste rebanho de cativos e a revoltante brutalidade dos seus senhores. Ah! Nada podiam fazer para dar socorro a uns nem para resistir aos outros!

A região que ficava a leste do Cuanza era uma floresta de vinte milhas de extensão. As árvores, porém, ou porque morressem pela mordedura dos insectos daquelas zonas, ou porque manadas de elefantes as deitassem por terra quando ainda novas, estavam menos aglomeradas do que na região vizinha do litoral. A marcha através dos bosques não devia, por consequência, oferecer obstáculos, e mais embaraçariam os arbustos do que elas. Havia, com efeito, abundância de algodoeiros, de sete a oito pés de altura, cujo algodão serve para fabricar os tecidos listrados de preto e branco, muito em uso no interior da província.

Em alguns sítios o solo cobria-se de espessos canaviais, que encobriam completamente a caravana. De todos os animais da província, unicamente os elefantes e as girafas podiam dominar os juncais, semelhantes a bambus, cuja haste mede uma polegada de diâmetro. Era necessário que os agentes conhecessem muito bem a região para não se perderem.

Todos os dias a caravana partia ao raiar da manhã, e não parava para descansar senão do meio-dia à uma hora. Abriam-se alguns fardos que continham mandioca, que era então parcimoniosamente distribuída aos escravos. Juntavam-lhe batatas, ou carne de cabra e de vitela, se acaso os soldados, na passagem, roubavam algumas aldeias. Mas tão grande era a fadiga, tão insuficiente o repouso, e mesmo impossível durante as noites chuvosas, que, chegada a hora da distribuição da comida, mal podiam comer. Assim, todos os dias desde que se levantou o arraial nas margens do Cuanza, cerca de vinte escravos ficavam extenuados no caminho, à mercê das feras, que seguiam a caravana. Leões, panteras e leopardos aguardavam as vítimas, que não lhes faltavam; e todas as noites, depois do ocaso do Sol, os rugidos destes animais estrugiam os ares, a tão curta distância, que se podia temer um ataque.

Ouvindo aqueles rugidos, que o silêncio da noite tornava maiores, Dick Sand pensava, não sem terror, nos obstáculos que tais encontros podiam levantar aos projectos de Hércules e nos perigos de que a cada passo este seria ameaçado. Contudo, se a Dick se tivesse deparado ocasião de fugir, não teria hesitado.

Eis alguns apontamentos escritos por Dick Sand durante o itinerário do Cuanza a Kasonde. Caminharam-se duzentas e cinquenta milhas em vinte e cinco jornadas. Cada jornada, na linguagem dos traficantes de negros, equivale a dez milhas, com o descanso de dia e de noite.

De 25 a 27 de Abril. — Viu-se uma aldeia cercada por um canavial de oito a nove pés de altura. Campos cultivados de milho, fava, massango e diversas aráquidas. Dois negros feitos prisioneiros. Quinze mortos. População posta em fuga.

No dia seguinte atravessou-se uma ribeira ruidosa, de cento e cinquenta jardas de largura. Ponte flutuante, feita de troncos de árvores ligados; as estacas quase destruídas. Duas mulheres que iam ligadas com a mesma vara caíram na água. Uma levava o filhinho. Agitam-se as águas e tingem-se de sangue. Os crocodilos aparecem entre os madeiros da ponte. Corre-se o perigo de meter os pés nas enormes fauces de tão horríveis répteis.

28 de A bril. — Atravessou-se uma floresta de bauínias. Árvores muito altas, que dão o pau-ferro aos portugueses. Marcha extremamente penosa.

No centro da leva vai a pobre Nan, levando ao colo um pretinho. Caminha com dificuldade. A escrava ligada a ela pela mesma corrente coxeia, e o sangue escorre-lhe dos ombros lacerados pelo azorrague.

Acampados durante a noite sob a copa de uma enorme adansónia de flores brancas e de folhas verdes-claras.

Durante a noite ouvem-se os rugidos dos leões e dos leopardos. Ouviu-se um tiro dado por um indígena sobre uma pantera. Que terá acontecido a Hércules?...

29 e 30 de Abril. — Primeiros frios do que se chama orvalho africano. Orvalho abundantíssimo. Finda a estação chuvosa com o fim de Abril, a qual começa em Novembro. Planícies ainda inundadas. Predominam os ventos de leste, que suspendem a transpiração e desenvolvem mais as febres paludosas.

Nenhuma notícia ou vestígios de Mrs. Weldon, nem do Sr. Bénédict. Aonde os levarão, a não ser para Kasonde? Devem ter seguido o mesmo caminho da caravana e preceder-nos. Estou inquieto. Teria a febre acometido novamente o pequeno Jack nesta insalubre região? Viverá ele ainda?...

De 1 a 6 de Maio. — Atravessaram-se, durante muitas jornadas, extensas planícies que a evaporação ainda não pôde secar. Algumas vezes a água chegava à cintura. Aderem à pele miríades de sanguessugas. É preciso, porém, andar. Em algumas alturas, que estão fora de água, vêem-se lódãos e papiros. No fundo, sob as águas, outras plantas de grandes folhas, sobre as quais se tropeça, o que ocasiona numerosas quedas.

Nestas águas, grande quantidade de pequenos peixes da espécie dos siluros, que os indígenas prendem dentro de caniçados e vendem às caravanas.

Não é possível encontrar bom sítio para acampar durante a noite. Não se avistam os limites da planície inundada. É forçoso caminhar nas trevas. Amanhã faltarão muitos escravos. Que sofrimentos! Quando se cai, melhor é ficar. Bastavam alguns instantes debaixo destas águas para pôr termo a tudo. Não se sofrerá mais, nem de noite nem de dia, o azorrague do condutor!

Assim é... Mas Mrs. Weldon e o seu filho?

Não posso abandoná-los. Resistirei enquanto tiver forças! É o meu dever!

Ouvem-se durante a noite gritos terríveis!

Cerca de vinte soldados arrancaram alguns ramos de árvores resinosas cuja copa emergia. Pálidos clarões durante as trevas.

A causa dos gritos que ouvi foi um ataque de crocodilos. Doze ou quinze destes monstros lançaram-se durante a noite sobre um dos flancos da caravana. Mulheres e crianças foram apanhadas e levadas por eles para as suas «pastagens». Assim chama Livingstone aos antros profundos onde aquele anfíbio vai depor a sua presa, depois de a ter asfixiado, porque só a come depois de ela ter atingido um certo grau de decomposição.

As escamas de um crocodilo roçaram-me asperamente. Um escravo adulto foi colhido perto de mim e arrancado da forquilha que o prendia pelo pescoço. Quebrou-se a forquilha, e que grito de desespero, que gemido de dor! Ouço-o ainda!

7 e 8 de Maio. — No dia seguinte contaram-se as vítimas. Tinham desaparecido vinte escravos.

Logo ao amanhecer procurei Tom e os seus companheiros! Graças a Deus, vivem! Mas deve agradecer-se a Deus? Não será menor infelicidade o termo de tantas desventuras?

Tom vai na frente da caravana. Na ocasião em que Bat fez uma pequena volta, Tom pôde ver-me.

Procuro em vão a velha Nan. Estará confundida no grupo do centro ou teria morrido durante a noite terrível?

No dia seguinte passou-se o limite da planície inundada, depois de vinte e quatro horas de caminho dentro de água. Pára-se sobre uma colina. O sol seca-nos um pouco. Come-se, mas que alimentos! Uma pequena porção de mandioca e alguns punhados de milho.

Nada há para deitar na água! Dos prisioneiros estendidos no solo, quantos jamais se levantarão!

Não, não é possível que Mrs. Weldon e o seu filho tenham sofrido tanto! Deus quis decerto que fossem conduzidos a Kasonde por outro caminho. A desgraçada mãe não teria resistido!

Novos casos de bexigas na caravana, o «nedué», como eles dizem. Os doentes não poderão ir muito longe. Abandoná-los-ão.

9 de Maio. — Continua a marcha ao alvorecer. Desta vez não ficou gente para trás. O azorrague do condutor excitou aqueles que as fadigas ou as doenças prostravam. Estes escravos têm valor! São como dinheiro! Os agentes não os deixarão no caminho enquanto eles puderem andar. Estou rodeado de esqueletos vivos. Nem sequer já têm voz para se queixarem.

Vi, finalmente, a velha Nan! Faz pena! Já não traz ao colo a criança. Caminha só! Será para ela menos penoso, mas a corrente ainda lhe pende da cintura e ela pôs o outro extremo sobre os seus ombros.

Apressando-me, consegui aproximar-me dela. Dir-se-ia que não me reconheceu! Estarei, pois, tão mudado?

 — Nan! — disse eu.

A velha criada olhou-me muito tempo, e por fim disse:

 — Ah! O Sr. Dick!... Eu não posso resistir!

 — Tenha ânimo — respondi, ao mesmo tempo que abaixava os olhos para não ver o que não era mais do que o esqueleto exangue da infeliz preta!

 — Morro — continuou ela —, não tornarei a ver a minha querida senhora, nem o meu menino Jack! Meu Deus, meu Deus, tende piedade de mim!

Quis ajudar a velha Nan, cujo corpo tremia sob os seus esfarrapados vestidos.

Seria um favor ligarem-me a ela para a aliviar de uma parte do peso da corrente, que ela carregava sozinha desde que morrera a sua companheira.

Um braço vigoroso me afasta, e a desgraçada Nan, envolvida no chicote, é atirada para o meio dos escravos. Quis lançar-me sobre aquele brutal condutor. O chefe árabe apareceu, agarrou-me pelo braço e teve-me seguro até que passou a última fileira da caravana.

Por sua vez pronunciou este nome:

«Negoro!»

Negoro! Será por ordem dele que procede assim comigo e me trata de maneira diferente dos meus companheiros de infortúnio?

Que sorte me espera?

10 de Maio. — Passámos hoje perto de duas aldeias incendiadas. As chamas rebentam por todos os lados. Os cadáveres estão suspensos nas árvores que o incêndio respeitou. A população vai de fugida. Campos devastados. É a «guerra». Duzentas mortes, talvez, para conseguir uma dúzia de escravos.

Chegou a noite. Fez-se a paragem. Assentou-se o acampamento sob grandes árvores. Ervas muito altas crescem por toda a orla da floresta.

Alguns dos cativos conseguiram fugir na véspera, tendo previamente quebrado as forquilhas. Foram apanhados e tratados com crueldade extraordinária. Aumenta a vigilância dos guardas e dos condutores.

Veio a noite. Rugidos de leões e de hienas. Roncos longínquos dos hipopótamos. Há, sem dúvida, algum lago ou rio nas proximidades.

Apesar do cansaço, não posso dormir. Assaltam-me o espírito tantas coisas!

Parece-me também que ouço andar por entre as ervas. Alguma fera talvez. Ter-se-ia atrevido a forçar a entrada do acampamento?

Escuto. Nada. Um animal, sem dúvida, passa por entre as moitas. Estou desarmado! Contudo, eu me defenderei. Darei sinal de alarme. A minha vida pode ainda ser útil a Mrs. Weldon e aos meus infelizes companheiros!

Olho através das trevas profundas. Não há Lua. A noite está extremamente escura.

Dois olhos brilham na escuridão, entre os papiros. São olhos de hiena ou de leopardo? Desaparecem... tornam a aparecer.

Enfim, sentiu-se um sussurro confuso nas ervas. Um animal salta sobre mim...

Vou gritar.

Felizmente, pude calar-me a tempo!...

Não posso acreditar no que os meus olhos vêem!... É Dingo... Dingo, que está junto de mim! Valente Din-go! Como veio ele até aqui?... Como conseguiu ele dar comigo? Ah! O instinto!... O instinto bastará para explicar tantos prodígios de fidelidade? Lambe-me as mãos. Ah! Meu bom amigo! Meu único amigo! Não conseguiram matar-te!...

Faço-lhe festas. Compreende-me. Quer ladrar...

Sossego-o. Convém que o não ouçam! Que siga a caravana sem ser notado e talvez... Mas esfrega obstinadamente o pescoço de encontro às minhas mãos. Parece querer dizer-me: «Procura». Procuro e encontro uma coisa presa ao pescoço... um pedaço de cana está amarrado na coleira, onde tem gravadas as duas letras S. V., cujo mistério é ainda inexplicável para nós.

Desprendo a cana. Quebro-a! Tem dentro um bilhete.

Mas... não o posso ler. É mister esperar pelo dia!... O dia... Queria segurar Dingo, mas o bom animal, lambendo-me as mãos, parece que tem pressa de me deixar... Compreendeu que tinha já desempenhado a sua missão. Dando um pulo de lado, desaparece sem ruído entre as ervas. Deus o livre dos leões e das hienas!

Dingo voltou decerto a encontrar-se com quem o mandou aqui!

Este bilhete, que não posso ainda ler, queima-me as mãos! Quem o escreveu? Virá de Mrs. Weldon? Será de Hércules? Como foi que o fiel animal, que julgávamos morto, encontrou um ou outro? Que me dirá este bilhete? Será um plano de evasão que me traz, ou dar-me-á unicamente notícias dos que me são caros? Seja como for, este incidente comoveu-me muito e foi um lenitivo aos meus pesares.

Ah! Como o dia custa a chegar!

Espero com ansiedade a primeira luz no horizonte. Não posso dormir. Ouço ainda os rugidos das feras! Meu pobre Dingo, possas tu escapar-lhes!

Finalmente, vem o dia, quase sem aurora, nestas latitudes tropicais. Disponho-me a ler o bilhete sem que me vejam...

Tento lê-lo... Não posso ainda.

Finalmente, li. É de Hércules.

Está escrito a lápis num pedaço de papel.

Eis o que diz:

 

«Mrs. Weldon levada com o menino Jack em uma «kitanda». Harris e Negoro vão com ela. Precedem a caravana três ou quatro «jornadas» com primo Bénédict. Não pude comunicar com ela. Encontrei Dingo, que foi ferido com um tiro... mas curado. Boas esperanças, Sr. Dick. Penso em todos e fugi para lhes ser útil.

Hércules.»

 

Ah! Mrs. Weldon e o seu filho estão vivos. Graças a Deus! Não têm sofrido, como nós, as fadigas destas longas marchas! Uma «kitanda» é uma espécie de liteira feita de ervas secas, suspensa num comprido bambu, e que dois homens carregam aos ombros. Cobre-a uma manta de fazenda. Mrs. Weldon e o meu pequenino Jack vão, pois, em «kitanda». Que farão deles Harris e Negoro? Estes marotos levam evidentemente a mãe e o filho para Kasonde, sim!... Sim! Hei-de tornar a ver Mrs. Weldon, hei-de ver Jack. No meio de tantas misérias, foi uma boa notícia, foi a alegria que Dingo me trouxe.

De 11 a 15 de Maio. — A caravana continua o seu caminho. Os escravos arrastam-se, já não andam.

A maior parte deixam em cada passada uma mancha de sangue. Calculo que são ainda precisos mais dez dias para chegar a Kasonde. Quantos deixarão de sofrer daqui até lá? Pela minha parte, como é preciso que eu chegue, chegarei!

É atroz! Há na caravana desgraçadas cujo corpo é uma chaga! As cordas que as prendem entram na carne!... Desde ontem, uma escrava leva nos braços o filho morto de fome!... Mas não quer separar-se dele.

O caminho fica juncado de cadáveres. As bexigas atacam com extrema violência.

Passámos junto a uma árvore... Estavam presos pelo pescoço alguns escravos. Ali os tinham deixado morrer à fome.

De 16 a 24 de Maio. — Estou quase sem forças, mas não me é lícito fraquejar. As chuvas acabaram completa-mente. Temos dias de «marcha forçada». É ao que os negreiros dão o nome de «tirikesa» ou marcha da tarde. É necessário andar mais depressa, e o terreno eleva-se em declives muito ásperos.

Passa-se por entre ervas muito resistentes. É o «nyassi», cujas hastes me ferem a cara e as sementes espinhosas se metem entre a minha pele e o fato todo cortado. O meu calçado, fortísimo, tem felizmente resistido.

Os agentes começaram a abandonar os escravos muito doentes para poderem continuar. Demais a mais, os víveres principiam a rarear; guardas e «pagasis» revoltam-se se lhes diminuem a ração. Não se atrevem a tirar-lhes nada, e neste caso pior para os cativos.

 — Que se comam uns aos outros — disse o chefe.

Seguiu-se disto que pequenos escravos, ainda vigorosos, morreram sem aparentarem moléstia. Lembro-me do que a tal respeito disse o Dr. Livingstone: «Esses infelizes queixam-se do coração, põem as mãos e caem. É positivamente o coração que se lhes despedaça. É isto peculiar aos homens livres, reduzidos à condição de escravos, sem que para tal estivessem preparados!»

Hoje vinte cativos, que não podiam já arrastar-se, foram mortos pelos condutores! O chefe árabe não se opôs a esta mortandade.

A cena foi terrível.

A pobre velha Nan caiu também sob o cutelo, naquela horrível matança. Caminhando, tropeço no seu cadáver. Não posso sequer dar-lhe sepultura cristã!...

É o primeiro dos náufragos do «Pilgrim» que Deus chamou à sua presença. Pobre mulher! Pobre Nan!

Todas as noites espero por Dingo. Não volta. Ter-lhe-ia acontecido alguma desgraça ou a Hércules? Não... não! Não quero acreditar em tal. Este silêncio, que tão longo me parece, prova que Hércules não tem notícias a dar-me. Convém que seja prudente e acautelado.

 

KASONDE

A 21 de Maio a caravana de escravos chegava a Kasonde. Cinquenta por cento dos prisioneiros feitos nesta última correria tinham ficado no caminho. Contudo, o negócio era ainda bom para os traficantes. Afluíam os pedidos, e os preços dos escravos iam subir nos mercados da África.

Angola fazia nesta época grande comércio de negros. As autoridades portuguesas de São Paulo de Luanda e de Benguela não poderiam senão muito dificilmente pôr-lhe obstáculos, porque as levas dirigiam-se para o interior do continente africano. Os barracões do litoral estavam cheios de prisioneiros; os poucos navios negreiros que conseguiam passar entre os cruzadores não eram bastantes para embarcar tantos negros para as colónias espanholas da América (1).

Kasonde, situado a trezentas milhas da foz do Cuanza, é um dos principais «lakonis», um dos mercados mais importantes desta província. É na grande praça, a «tchitoka», que se fazem os negócios. Lá, são os escravos expostos e vendidos, e é deste ponto que as caravanas irradiam para a região dos grandes lagos.

 

*1. Como dissemos numa nota na primeira parte desta obra, há já muito tempo que acabou o comércio de escravos nas nossas províncias ultramarinas, e os barracões de escravos acabaram ao mesmo tempo que a escravatura. (O Tradutor).

 

Kasonde, como todas as grandes povoações da África Central, divide-se em duas partes distintas: uma é o bairro dos negociantes árabes, portugueses ou indígenas, e nela estão os barracões; a outra é a residência do rei negro, um feroz beberrão coroado, que reina pelo terror e vive das subvenções em géneros que os traficantes lhe dão generosamente.

Em Kasonde, o bairro comercial pertencia então a José António Alves, acerca de quem falaram Harris e Negoro, seus agentes. Era lá o principal estabelecimento daquele mercador de escravos, que possuía um segundo no Bié e um terceiro em Caçange, onde o tenente Cameron foi encontrá-lo alguns anos depois.

Uma grande rua central, de um e do outro lado grupos de casas «tembés», tendo os tectos sem inclinação, as paredes rebocadas de terra, e pátios quadrados servindo de currais de gado; na extremidade da rua a vasta «tchitoka» rodeada de barracões, dominando tudo por árvores altas, de ramadas enormes; aqui e ali palmeiras plantadas como se fossem vassouras que estivessem com as palhas viradas para o ar, recebendo o pó das ruas, e algumas aves de rapina, encarregadas da salubridade pública. Tal é o bairro comercial de Kasonde.

Perto corre o Luhi, rio cujo curso está ainda desconhecido, mas que é um afluente do Zaire, ou pelo menos do Cuango, rio tributário do Zaire.

A residência do rei de Kasonde, que confina com o bairro comercial, é um montão de cubatas pouco asseadas, ocupando o espaço de uma milha quadrada. Algumas delas têm entrada fácil, outras estão cercadas de paliçadas de canas ou rodeadas de figueiras-do-inferno. Um cerrado particular, que uma orla de papiros rodeia, cerca de trinta palhotas, servindo de habitações dos escravos e dos chefes, um grupo de cubatas para as mulheres, um «tembé» maior, mais elevado e mais escondido nas plantações de mandioca, forma a residência do rei de Kasonde, Moini Lunga, homem de cinquenta anos de idade e já muito inferior em prestígio aos seus antepassados. Não tem quatro mil soldados, ali onde os traficantes portugueses já viram vinte mil, e não pode, como noutro tempo, ordenar a imolação de vinte e cinco a trinta escravos por dia.

Era o rei um velho precoce, gasto pelos vícios, queimado pelas bebidas espirituosas, i maníaco, fazendo por mero capricho mutilar os seus súbditos, os seus oficiais ou os seus ministros, cortando a uns o nariz ou as orelhas, os pés ou as mãos a outros. A sua morte, proximamente esperada, devia ser acolhida com grande indiferença.

Um único homem em todo o reino de Kasonde perderia talvez com a morte de Moini Lunga. Era o mercador de negros José António Alves, que se entendia perfeitamente com o beberrão, a quem toda a província prestava vassalagem. Tinha Alves a recear que a exaltação ao trono da primeira das mulheres do rei, a rainha Moina, tivesse contestação, que os estados de Moini Lunga fossem invadidos por um competidor vizinho, um dos reis de Ukusu. Este, mais novo e mais activo, tinha-se já apoderado de algumas aldeias dependentes do reino de Kasonde, e era ajudado por um outro mercador de negros, rival de Alves, Tipo-Topo, preto árabe de puríssima raça, que mais tarde visitou Carneran, em Nyamgué. Eis quem era Alves, o verdadeiro soberano, no reino do embrutecido negro, cujo vício ele desenvolvera e explorava:

José António Alves, homem de avançada idade, não era, como se poderá julgar, um «musungo», isto é, homem de raça branca. De português tinha apenas o nome, usado sem dúvida para o seu comércio. Era um preto muito conhecido por todos os mercadores de escravos e cujo verdadeiro nome era Kendelé. Nascido no Dondo, nas margens do Cuanza, começou por simples agente dos corretores de escravatura e acabara em traficante de grande nomeada, isto é, como grande infame, dizendo-se, não obstante, o homem mais honesto deste mundo.

Foi este mesmo Alves que Cameron, pelos fins do ano de 1874, encontrou em Kilembe, capital de Kasongo, chefe de Oriza, e que o conduziu, percorrendo setecentas milhas, bem como toda a caravana de Cameron, até ao seu estabelecimento no Bié.

O comboio de escravos, logo que chegou a Kasonde, foi conduzido para a praça principal.

Os cálculos de Dick Sand estavam justificados. A viagem durara trinta e oito dias, a contar desde a partida do acampamento assente nas margens do Cuanza. Foram cinco semanas das mais terríveis misérias que entes humanos podem sofrer! Era meio-dia quando entraram em Kasonde. Os tambores refuvam, os sons dos chavelhos de «codu» atroavam os ares e sobressaíam as detonações das armas de fogo. Os guardas da caravana descarregam as suas espingardas e os criados de José António Alves correspondiam com entusiasmo. Todos estes bandidos se sentiam felizes por se tornarem a ver, depois de quatro meses de ausência. Iam, finalmente, descansar e recuperar na orgia e na embriaguez o tempo perdido.

Os prisioneiros, na sua maioria já sem forças, eram ainda duzentos e cinquenta. Depois de terem sido enxotados para diante como um rebanho, iam ser fechados dentro dos barracões, que os rendeiros da América não aproveitariam para currais de gado. Aguardavam-nos ali outros cem ou duzentos escravos, que deviam ser expostos à venda no dia seguinte no mercado de Kasonde.

Encheram-se os barracões com os escravos recém-chegados. Tiraram-lhes as pesadas forquilhas, mas conservavam-nos acorrentados.

Os «pagasis» tinham ficado na praça, onde depuseram as cargas de marfim, que entregaram aos negociantes de Kasonde. Depois, pagos com alguns metros de chita ou de qualquer outra fazenda de maior valor, voltaram ao encontro da caravana.

O velho Tom e os seus companheiros estavam enfim livres das golilhas que traziam havia cinco semanas.

Bat e seu pai abraçavam-se finalmente. Todos apertavam as mãos, mas era com dificuldade que conseguiam falar. Que poderiam eles dizer que não fossem palavras de desespero. Bat, Acteão e Agostinho, acostumados ao trabalho rude, tinham resistido às fadigas, mas o velho Tom, enfraquecido pelas privações, estava extenuado. Alguns dias mais, e o seu cadáver seria abandonado, como foi o da velha Nan, à ferocidade das feras daquela região!

Todos os quatro, logo que chegaram, foram metidos em um acanhado barracão, cuja porta se fechou imediatamente sobre eles. Ali recebiam alguns alimentos e ali esperavam a visita do mercador de escravos, junto do qual pretendiam, mas inutilmente, fazer valer a sua qualidade de americanos.

Dick Sand ficara na praça sob a vigilância especial de um condutor.

Estava finalmente em Kasonde, aonde não duvidava que Mrs. Weldon, o pequenino Jack e primo Bénédict tinham já chegado. Procurara-os com a vista quando atravessou os diversos lugares da povoação, penetrando até ao fundo dos «tembés» que orlavam as ruas, e na «tchitoka» que então estava quase deserta.

Mrs. Weldon não estava lá!

«Não a teriam conduzido para aqui?», perguntava a si mesmo Dick Sand. «Mas onde estaria ela? Não! Hércules não se enganou decerto. Demais, isto devia fazer parte dos secretos desígnios de Harris e de Negoro!... E, contudo, também não os vejo...»

Pungente ansiedade dominava Dick Sand. Que Mrs. Weldon, feita prisioneira, lhe fosse ainda escondida, explicava-se; mas Harris e Negoro — este principalmente — deviam ter pressa de ver o jovem praticante, que agora estava em poder deles, ainda que fosse só para gozarem do seu triunfo, para o insultarem, para o torturarem, para, finalmente, se vingarem dele.

Porque não estavam ali, devia concluir-se que tinham tomado outra direcção, e que Mrs. Weldon fora levada para qualquer outro ponto da África Central? Ainda que a presença do americano e de Negoro fosse o sinal do suplício de Dick, este desejava-a com impaciência. Harris e Negoro em Kasonde seria para ele a certeza de que Mrs. Weldon e o seu filho ali se encontravam também!

Dick Sand pensava então que, depois daquela noite em que Dingo lhe trouxera o bilhete de Hércules, nunca mais o cão voltara. Uma resposta que o jovem praticante preparara ao acaso, na qual recomendava a Hércules que só pensasse em Mrs. Weldon, que não a perdesse de vista, e que a tivesse quanto fosse possível ao facto de tudo quanto se passava, esta resposta não conseguira Dick fazê-la chegar ao seu destino. O que Dingo pudera fazer uma vez, isto é, penetrar até junto da caravana, porque não tentara Hércules fazê-lo segunda vez? Teria o fiel animal morrido em alguma tentativa sem resultado, ou Hércules continuava a seguir as pisadas de Mrs. Weldon como teria feito Dick Sand? Ter-se-ia Hércules, seguido de Dingo, internado nas profundezas daquele planalto da África, coberto de matas, com a mira de chegar a alguma feitoria do interior?

Que podia imaginar Dick Sand se efectivamente nem Mrs. Weldon, nem os seus raptores, estivessem ali? Acreditara tanto — talvez com razão — que os encontraria em Kasonde, que foi para ele um terrível golpe não os ver logo que chegou. Teve um momento de desespero que não pôde dominar. Se a sua vida não era já útil às pessoas que ele estimava, para nada serviria e só lhe restava a morte! Mas, pensando deste modo, Dick Sand desconhecia o seu carácter. Sob a acção de tais provas, a criança fizera-se homem, e o desânimo nele não era mais do que um tributo acidental pago à natureza humana.

Formidável concerto de cornetas e de gritos se ouviu naquele momento. De repente, Dick Sand, que acabámos de ver prostrado na «tchitoka», levantou-se. Qualquer incidente podia dar-lhe indicações daqueles que procurava. O desesperado de um momento antes estava agora cheio de confiança! «Alves! Alves!» — este nome era repetido pela multidão de indígenas e de soldados que invadiam a grande praça. O homem de quem dependia a sorte de tantos infelizes ia, enfim, aparecer!

Era provável que os agentes Harris e Negoro estivessem com ele. Dick Sand estava de pé, tinha os olhos extraordinariamente abertos e as ventas dilatadas. Os dois traidores iam encontrar o jovem praticante, de quinze anos de idade apenas, resoluto e firme, e encarando-os sem receio. Não seria o capitão do «Pilgrim» que tremeria na presença do antigo cozinheiro de bordo!

Uma maca, coberta com uma manta velha, remendada, desbotada e franjada pelos rasgões, apareceu na extremidade da rua principal. Dela desceu um negro, já idoso. Era o traficante de escravos José António Alves.

Acompanhavam-no alguns criados, que faziam grande algazarra.

Ao mesmo tempo que Alves, aparecia também o seu amigo Coimbra, filho do major Coimbra, do Bié, e, segundo refere Cameron, o maior bandido de toda aquela província, ente imundo, quase nu, de olhar inflamado, guedelha áspera e encarapinhada, tez amarela, vestindo uma camisa esfarrapada e um saiote feito de ervas. Dir-se-ia que era uma velha horrivelmente feia com um chapéu de palha roto na cabeça. Era Coimbra, o confidente, a alma danada de Alves, o planeador das correrias, e muito digno de dirigir os bandidos do traficante de escravos.

Este, vestindo trajo de turco no dia seguinte ao de Carnaval, tinha talvez aspecto menos sórdido que o seu acólito. Contudo não dava boa ideia dos proprietários das feitorias, que faziam o comércio de negros em grande escala.

Com grande espanto do praticante, nem Harris nem Negoro acompanhavam Alves. Tinha, pois, Dick Sand de perder a esperança de os ver em Kasonde?

Entretanto, o chefe da caravana, o árabe Ibn Hamis, apertava a mão a Alves e a Coimbra. Recebeu ele muitas felicitações.

A falta de cinquenta por cento no número total dos escravos obrigou Alves a fazer uma careta; mas o negócio, apesar de tudo, era ainda bom. Estes escravos, juntos ao que o traficante possuía de mercadorias humanas nos seus barracões, bastavam-lhe para poder satisfazer aos pedidos que tinha do interior, trocá-los por dentes de marfim e «hahnas» de cobre, semelhantes a cruzes de Santo André, sob a forma das quais aquele metal se exporta no centro da África.

Não se pouparam cumprimentos aos condutores; quanto aos carregadores, o traficante ordenou que lhes pagassem imediatamente.

José António Alves e Coimbra falavam uma espécie de português, misturado com um idioma indígena, que um lisboeta não compreenderia com facilidade. Dick Sand não percebia uma única palavra do que aqueles negociantes diziam um ao outro. Tratar-se-ia dele e dos seus companheiros, traiçoeiramente metidos na caravana? Não duvidou o jovem praticante, logo que, a um aceno do árabe Ibn Hamis, um condutor se dirigiu para o barracão onde Tom, Agostinho, Bat e Acteão tinham sido fechados. Quase ao mesmo tempo, os quatro americanos foram conduzidos à presença de Alves.

Dick Sand aproximou-se lentamente. Não queria perder nada daquela cena.

A cara de José António Alves brilhou de alegria quando viu aqueles negros tão robustos, aos quais o descanso e sustento abundante fariam recuperar o natural vigor. Olhou desdenhosamente para o velho Tom. A idade deste tirava-lhe o valor; mas os três restantes seriam vendidos por bom preço, no próximo «lakoni» de Kasonde.

Foi então que Alves procurou lembrar-se de algumas palavras inglesas, que alguns agentes, tais como o americano Harris, lhe haviam ensinado, e o velho «macaco» entendeu dever cumprimentar ironicamente os seus novos escravos.

Tom, que compreendera o traficante, avançou, e, apontando para os seus companheiros e para si, declarou:

 — Somos homens livres! Somos cidadãos dos Estados Unidos!

Alves entendeu-o sem dúvida, porque respondeu, fazendo uma carantonha de bom humor e abanando a cabeça ao mesmo tempo:

 — Sim... Sim... americanos! Pois estimo vê-los... estimo vê-los...

 — É verdade... Estimamos vê-los — acrescentou Coimbra.

O filho do major do Bié avançou então para Agostinho, e como um mercador que examina uma amostra, depois de lhe ter apalpado o peito e os ombros, quis obrigá-lo a abrir a boca a fim de lhe ver os dentes.

Mas nesta ocasião o senhor Coimbra recebeu na cara o mais valente murro que jamais apanhou um filho de major!

O confidente de Alves foi cair a dez passos de distância. Alguns guardas correram sobre Agostinho, que ia talvez pagar muito caro aquele ímpeto de cólera.

Alves, com um gesto, fê-los parar. Ria da desgraça que acontecera ao seu amigo Coimbra, que perdera dois dentes, dos cinco ou seis que lhe restavam.

José Agostinho Alves não queria que lhe estragassem a sua mercadoria.

Demais a mais tinha carácter alegre, e havia muito tempo que não ria com tanta vontade.

Animou, porém, o contundido Coimbra, e este, já de pé, voltou para o seu lugar junto ao traficante, fazendo para Agostinho gestos ameaçadores.

No mesmo momento, Dick Sand, empurrado por um condutor, foi levado à presença de Alves.

Este sabia evidentemente quem era o jovem praticante.

de onde vinha e como fora preso no arraial do Cuanza.

Assim, depois de lhe ter lançado um olhar rancoroso» disse em mau inglês:

 — O pequeno ianque.

 — Sim, ianque — respondeu Dick Sand. — Que pretendem fazer dos meus companheiros e de mim?

 — Ianque! Ianque! O pequeno ianque! — repetia Alves.

Não teria compreendido ou não queria compreender a pergunta que lhe fizeram? Dick Sand, pela segunda vez, perguntou o que pretendiam fazer dos seus companheiros e dele. Dirigiu-se também a Coimbra, que pelas feições, conquanto alteradas pelo excesso das bebidas alcoólicas, reconheceu que não era de origem indígena.

Coimbra tornou a fazer o mesmo gesto ameaçador que fizera a Agostinho, e não respondeu.

Enquanto isto se passava, Alves conversava animadamente com o árabe Ibn Hamis a respeito de coisas que evidentemente diziam respeito a Dick Sand e aos seus amigos. Iam sem dúvida separá-los novamente, e quem sabe se teriam outra ocasião de trocar entre si algumas palavras.

 — Meus amigos — disse Dick Sand a meia voz, e como se falasse consigo mesmo —, recebi por Dingo um bilhete que me escreveu Hércules. Seguiu a caravana. Harris e Negoro levaram Mrs. Weldon, Jack e o Sr. Bénédict. Para onde? Não sei, se acaso não estão aqui, em Kasonde. Tenham paciência e coragem e estejam prontos para tudo. Deus tenha compaixão de nós!

 — E Nan? — perguntou o velho Tom.

 — Morreu!

 — Foi a primeira!

— E a última! — respondeu Dick Sand. — Porque...

Neste momento, alguém lhe pôs a mão sobre o ombro, dizendo ao mesmo tempo as seguintes palavras pronunciadas com um certo tom de amabilidade que ele conhecia bem:

 — Olá, meu jovem amigo, creio que me não engano! Muito folgo de o tornar a ver!

Dick Sand voltou-se.

Harris estava diante dele.

 — Onde está Mrs. Weldon? — perguntou Dick Sand, crescendo para o americano.

 — Ah! — respondeu Harris, afectando dó. — Pobre senhora! Como poderia ela sobreviver!...

 — Morreu! — exclamou Dick Sand. — E o filho?...

 — A inocente criancinha — volveu Harris, no mesmo tom — era impossível que resistisse a tantas fadigas!...

Assim, pois, tudo quanto Dick Sand mais estimava não existia já. Que se passou no seu íntimo? Um irresistível movimento de cólera, a necessidade de vingança, que devia satisfazer, custasse o que custasse, se apoderou dele.

Dick Sand saltou sobre Harris, tirou um punhal do cinto do americano e cravou-lho no coração.

 — Maldição! — exclamou Harris caindo. Estava morto.

 

UM DIA DE FEIRA

Foi tão rápido o ímpeto de Dick Sand que não puderam evitá-lo. Alguns indígenas correram sobre ele para o matarem, quando Negoro apareceu.

A um sinal deste afastaram-se os indígenas, que levantaram e levaram o cadáver de Harris. Alves e Coimbra exigiram a morte imediata de Dick Sand, mas Negoro disse-lhes em voz baixa que não perderiam com a demora. Deu-se então ordem para levar o jovem praticante, com a recomendação de não o perderem de vista.

Dick vira enfim Negoro, pela primeira vez, depois de haverem partido da costa. Sabia que este malvado era o único culpado do naufrágio do «Pilgrim»... Devia odiá-lo ainda mais do que odiava o seu cúmplice; contudo, depois de ter morto o americano, não pensou sequer em dirigir uma única palavra a Negoro.

Dissera Harris que Mrs. Weldon e o seu filho tinham sucumbido! Nada mais o interessava, não se preocupava até com o destino que lhe dariam. Levavam-no; para onde? Era-lhe indiferente.

Dick Sand, depois de bem amarrado, foi metido numa barraca sem janelas, uma espécie de cárcere, onde o traficante Alves prendia os escravos condenados à morte por motivo de rebelião ou por outros crimes. Ali não podia Dick comunicar com o exterior. Era-lhe indiferente...

Vingara aqueles que tanto estimava e que já não eram deste mundo. Fosse qual fosse a sorte que lhe estivesse reservada, não a temia.

Fácil é de supor que, se Negoro fez parar os indígenas que queriam castigar o assassino de Harris, é porque resolvera que Dick Sand padecesse um desses terríveis suplícios que só os indígenas conhecem. O cozinheiro de bordo tinha em seu poder o capitão de quinze anos. Só faltava Hércules para completar a sua vingança.

Dois dias depois, a 28 de Maio, abriu-se o mercado, o grande «lakoni», no qual se deviam encontrar os traficantes vindos das principais feitorias do interior e os indígenas das províncias vizinhas de Angola. Não era a feira especialmente destinada para a venda de escravos, mas sim, também, para a de todos os produtos daquela região da África, que ali afluíam com os seus produtores.

Desde a manhã que havia grande animação na vasta «tchitoka» de Kasonde, da qual não é fácil dar ideia exacta. Era uma aglomeração de quatro a cinco mil pessoas, entrando neste número os escravos de José António Alves, entre os quais estavam Tom e os seus companheiros. Estes desgraçados, porque eram estrangeiros, não deviam ser menos procurados pelos corretores de carne humana.

Alves, o primeiro entre todos, acompanhado por Coimbra, fazia os lotes de escravos, com que os mercadores que tinham vindo do interior formariam as caravanas. Entre os mercadores notavam-se alguns mestiços de Ujiji, principal mercado do lago Tanganhica, e árabes, que neste género de negócio se avantajam aos mestiços.

Encontravam-se também ali grande número de indígenas: crianças, homens e mulheres. Mostravam estas grande paixão pelo comércio de escravos, e, pela propensão para o negócio, poderiam servir de exemplo às suas semelhantes de cor branca. Nas feiras das grandes cidades, até mesmo nos dias de maior animação, não há mais bulha nem se fazem tantos negócios. Entre os povos civilizados, a necessidade de vender excede talvez o desejo de comprar. Entre os selvagens da África, as ofertas igualam os pedidos.

Para os indígenas de ambos os sexos, o «lakoni» era um dia de festa, e, se não envergavam por isso os seus melhores trajos, traziam contudo os seus mais ricos ornamentos. As guedelhas eram apartadas em quatro partes, cobertas de enfeites e formando trancinhas ligadas umas às outras como um chignon, ou dispostas como cabos de caçarolas sobre a parte anterior da cabeça e enfeitadas com penas vermelhas; outras tinham pontas recurvadas e empastadas com terra encarnada e óleo, como o mínio, que serve para untar as juntas das máquinas a vapor; e naquelas massas de cabelos fingidos ou verdadeiros, pregos, alfinetes de ferro ou de marfim, e não raro, entre os elegantes, uma faca lavrada, espetada na carapinha, cujos cabelos, enfiados a um por um em pérolas de vidro, davam ao todo o aspecto de bordados de missangas de várias cores. Tais eram as trunfas que geralmente se viam na cabeça dos homens. As mulheres preferiam dividir os cabelos, formando pequenas poupas do tamanho de uma cereja, com formas variadas, ou então em pequenos caracóis, dispostos aos lados das faces. Algumas, as mais simples e quiçá as mais belas, deixavam cair os cabelos sobre as costas, afectando a moda inglesa; outras, à moda francesa, traziam-nos em franjas, recortados sobre a testa. E quase sempre naquelas grenhas uma -massa de gordura, de argila ou brilhante «nkola» — substância vermelha extraída do sândalo —, fazendo parecer que tais elegantes estavam toucadas com telhas.

Não se julgue contudo que este luxo de enfeites se aplicava só aos cabelos. Para que serviriam as orelhas aos indígenas, se não as atravessassem por pequenas cavilhas de madeira rica, por anéis de cobre e tranças de palha de milho, ou não lhes pendurassem pequenas cabaças, em que guardam o tabaco — de tal modo que os lóbulos distendidos destes apêndices caem às vezes sobre os ombros dos seus proprietários? Os selvagens da África não têm algibeiras, e como as poderiam ter? Disto resulta a necessidade de colocarem onde é possível as facas, os cachimbos e outros objectos de seu uso. O pescoço, os braços, os pulsos, as pernas e os artelhos são para eles destinados para trazer braceletes de cobre ou de latão, chavelhos recurvados e cravejados de botões brilhantes, fios de pérolas vermelhas, chamadas «sainessanies» ou «talakes», e que então estavam em moda. Assim, pois, com tantas alfaias profusamente ostentadas, os ricos do lugar eram como que joalheiros ambulantes.

Demais, se a natureza deu dentes aos indígenas não foi certamente para que arrancassem os incisivos superiores e inferiores, para que os limassem em pontas aguçadas, os recurvassem em forma de ganchos como os dentes das cobras de cascavel? Se lhes plantou unhas nas pontas dos dedos, que outro fim teve senão o de tornar quase impossível o uso da mão pelo exagerado comprimento delas? Se a pele negra ou parda cobre a estrutura humana, não foi para que azebrassem de «tembos» ou lavores, representando árvores, pássaros, luas cheias ou crescentes, ou de linhas onduladas, nas quais Livingstone julgou ver os desenhos do antigo Egipto? Os lavores que usam os pais, feitos com uma matéria azul introduzida nas incisões, é copiada ponto por ponto nos corpos dos filhos, reconhecendo-se assim facilmente a que tribo e família pertencem. Quando não se pode pintar o brasão na portinhola da carruagem, grava-se no peito.

Tais eram os enfeites em moda entre os indígenas. Pelo que respeitava ao vestuário, resumia-se: para os senhores, a um avental feito de pele de antílope, caindo até aos joelhos, ou a um saiote de tecido vegetal, de cores muito vivas; as mulheres traziam uma cinta de pérolas, prendendo sobre os rins uma saia verde bordada de seda e ornada de missangas ou de cauris; algumas vezes traziam tangas de ulamba», fazenda de tecido vegetal, azul, preta e amarela, muito procurada pelos zanzibaritas.

Refere-se o que fica dito aos negros da alta sociedade, porque os outros, mercadores ou escravos, andavam quase nus. As mulheres, pela maior parte das vezes, eram quem carregava, e vinham ao mercado trazendo às costas cestos enormes, que seguravam por meio de uma correia passada sobre a testa. Tomavam lugar, desenfardavam as mercadorias e sentavam-se nos cestos vazios.

A espantosa fertilidade do território fazia afluir ao «lakoni» produtos alimentícios de primeira qualidade. Havia abundância de arroz, que dá cento por um, de milho, que, em três colheitas no espaço de oito meses, produz duzentos por um, gergelim, pimenta de Urua, mais forte que a de Caiena, mandioca, massango, noz-moscada, sal e óleo de palma. Encontravam-se também ali centenas de cabras, porcos, carneiros sem lã, peixe, até. Louça de barro bem feita, chamando a atenção pelas cores fortes. As variadas bebidas que os pequenos indígenas apregoavam com voz aguçada e tentavam os amadores eram o vinho de banana, o «pombe», licor fortíssimo muito apreciado, o malufo, bebida doce, feito de bananas, e o hidromel, límpida mistura de mel e água, fermentada com cevada.

Entre os tecidos contavam-se por milhares os «chukas», o «mericani», algodão cru vindo de Salem, no Massachusetts, o «kaniki», chita azul de trinta e quatro polegadas de largura, o «sohari», tecido de quadrados azuis e brancos com orla encarnada com alguns fios azuis, fazenda menos cara que os «diules» de seda de Surrate, de fundos verdes, vermelhos ou amarelos, cujo valor regula por sete dólares, para os cortes de três jardas, e oitenta dólares quando no tecido se encontram fios de oiro.

O marfim vinha em grande cópia de todos os pontos da África Central, com destino a Cartum, a Zanzibar ou à costa de Natal, e grande número de negociantes se empregam exclusivamente na exportação deste importantíssimo ramo do comércio africano.

Imagine-se quantos elefantes são necessários para fornecer os quinhentos mil quilogramas de marfim(1) que a exportação lança todos os anos nos mercados da Europa e principalmente nos de Inglaterra! Só o Reino Unido consome quarenta mil. A costa ocidental da África dá ao comércio cento e quarenta toneladas desta preciosa mercadoria. A média do peso de cada par de dentes de elefante é de vinte e oito libras, que em 1874 valeram mil e quinhentos francos; mas alguns há que atingem o peso de cento e setenta e cinco libras, e, na feira de Kasonde, os amadores poderiam admirar alguns magníficos espécimes de bom marfim translúcido, fácil de trabalhar, de casca parda, não perdendo a alvura e não amarelecendo com o tempo, como acontece ao marfim de outras procedências.

Disto isto, resta saber como se regulavam entre compradores e vendedores as diversas operações comerciais. Qual era a moeda corrente? Entre os traficantes da África não podia deixar de ser o escravo.

 

*1. A cutelaria de Sheffield consome 170 000 quilogramas de marfim.

 

O indígena paga com pérolas de vidro de fabricação veneziana, chamadas «cachocolos», se têm a brancura da cal, «bubulos» quando são negras, e «sikundereches» quando são cor-de-rosa. Estas pérolas ou missangas, reunidas em seis fiadas ou «khetes», fazendo duas voltas à roda do pescoço, formam o «fundo», cujo valor é grande. A medida mais usual destas pérolas é o «frasilah», que pesa sessenta libras.

Livingstone, Cameron e Stanley tiveram sempre o bom cuidado de estarem bem providos de tal moeda. Faltando as pérolas de vidro, o «picé», moeda de Zanzibar de valor correspondente a quatro centésimos do franco, e os «viunguas», conchas peculiares à costa oriental, têm curso nos mercados do continente africano. As tribos antropófagas ligam algum valor aos dentes e maxilas humanas, e no «lakoni» viam-se enfiadas de dentes nos pescoços dos indígenas, que sem dúvida tinham devorado os seus possuidores; os dentes, porém, começam a ser agora depreciados.

Tal era o aspecto do grande mercado. Ao meio-dia a animação atingira o mais alto grau, a bulha era extraordinária. O furor dos vendedores desprezados, a cólera dos compradores a quem pediam preços exorbitantes, não se podem exprimir. Disto nasciam frequentes lutas, e, como é de prever, poucos guardas havia para apaziguar tão ruidosa multidão.

Foi pelo meio-dia que Alves ordenou que conduzissem para a praça os escravos que ele pretendia vender. Aumentou-se a multidão com mais de dois mil desgraçados, de todas as idades, que o traficante tinha fechados nos seus barracões havia já dois meses. Este depósito estava magnífico. O descanso prolongado e a alimentação farta tinham posto os escravos em condições de figurar vantajosamente no «Lakoni». Os últimos que vieram, porém, não se podiam comparar com os primeiros, e, se tivessem ficado mais um mês nos barracões, Alves tê-los-ia vendido melhor; mas eram tantos os pedidos da costa oriental que se decidiu a apresentá-los tais como estavam.

Foi uma desgraça para Tom e para os seus companheiros. Os condutores levaram-nos para o rebanho, que encheu a «tchitoka». Estavam agrilhoados; os seus olhares exprimiam ao mesmo tempo o furor e a vergonha que os oprimia.

 — O Sr. Dick Sand não está aqui — observou Bat, logo que percorreu com a vista a vasta praça de Kasonde.

 — Não está — respondeu Acteão — , porque decerto o não vendem!

 — Matá-lo-ão, se acaso não está já morto! — acrescentou o velho negro. — Pelo que nos diz respeito, só uma esperança nos resta: é a de sermos comprados pelo mesmo mercador. Teríamos ao menos a consolação de nos não separarmos.

 — Ah!... Quando penso que meu pai pode ir para longe de mim trabalhar como escravo!... Ah! Meu pobre e velho pai! — exclamou Bat, soluçando.

 — Não — disse Tom. — Não nos separarão, e talvez possamos...

 — Se Hércules aqui estivesse... — murmurou Agostinho.

Mas o gigante não tornara a aparecer. Desde as notícias que teve Dick Sand, nunca mais se ouviu falar nem dele nem de Dingo. Seria a sua sorte digna de inveja? Era, decerto, porque, se Hércules havia sucumbido, ao menos não tinha arrastado, como eles, os grilhões da escravidão.

Começara a venda. Os agentes de Alves conduziam por entre a multidão lotes de homens, mulheres e crianças, sem cuidarem de saber se separavam as mães de suas crias. Não se poderão designar assim aqueles desgraçados, que eram tratados como animais? Tom e os seus companheiros foram assim conduzidos de compradores em compradores. Um agente caminhava adiante deles, apregoando o preço porque seria adjudicado o lote. Os corretores árabes ou mestiços das províncias centrais vinham examiná-los. Não lhes encontravam os sinais peculiares à raça africana, sinais já modificados nestes americanos desde a segunda geração. Mas estes negros vigorosos e inteligentes, diferindo muito dos negros trazidos das margens do Zambeze ou do Lualaba, tinham para os compradores não pequeno valor. Apalpavam-nos, viravam-nos, examinavam-lhes os dentes, como se fossem cavalos. Depois atirava-se um pau para longe e obrigavam-nos a correr, para o apanharem, e julgavam assim da sua agilidade.

Era o método empregado por todos, e todos se submetiam a estas humilhantes provas. Não se julgue que aqueles desgraçados olhavam com indiferença para o modo como os tratavam. Não. Exceptuando as crianças, que não podiam compreender o estado da degradação a que as reduziam, todos os mais, homens ou mulheres, se sentiam vexados. Não lhes poupavam injúrias nem chicotadas. Coimbra, meio embriagado, juntamente com os agentes de Alves, tratava-os com grande brutalidade, e nas mãos dos novos senhores, que os tinham comprado a troco de marfim, de fazendas ou de pérolas, não encontravam melhor acolhimento. Arrancados violentamente os filhos às mães, os maridos às mulheres, ou separados os irmãos, não lhes era permitido um derradeiro abraço ou um beijo sequer. No «lakoni» viam-se pela última vez.

As necessidades do comércio exigem que os escravos tenham destino diferente segundo o sexo a que pertencem. Os mercadores que compram os homens não compram mulheres.

Estas, em virtude da poligamia, que é lei entre os muçulmanos, são mandadas principalmente para as terras árabes, onde as trocam por marfim. Os homens, destinados para mais rudes trabalhos, vão para as feitorias da costa ocidental e oriental, e são dali exportados para as colónias espanholas, ou para os mercados de Mescate e de Madagáscar. Esta escolha é a causa de cenas que despedaçam o coração, entre aqueles que os agentes separam e que decerto morrerão sem nunca mais se verem.

Tom e os seus companheiros deviam participar da sorte comum. Não a receavam, porém. Melhor era para eles, com efeito, que os exportassem para alguma colónia de escravos. Aí teriam ao menos alguma probabilidade de serem reclamados, ao passo que, pelo contrário, retidos numa província da África Central, perderiam a esperança de tornar a ser livres.

Aconteceu como desejavam. Tiveram até a quase inesperada consolação de não serem separados.

O seu lote foi muito disputado pelos mercadores de Ujiji. José António Alves batia as mãos de contentamento. Todos corriam a ver esses escravos de valor até então desconhecido no mercado de Kasonde, mas cuja procedência Alves teve o cuidado de ocultar. Tom e os seus companheiros, porque não sabiam a língua da terra em que estavam, não podiam protestar.

Foram comprados por rico traficante árabe, que dentro de poucos dias ia mandá-los para o lago Tanganhica, onde se faz a maior passagem de escravos, e dali para as feitorias de Zanzibar.

Chegariam eles tão longe, caminhando através das mais insalubres e perigosas terras da África Central? Mil e quinhentas milhas a percorrer em tais condições, no meio de guerras frequentes, levantadas entre uns e outros potentados, e sob a acção de um clima mortífero! Teria o velho Tom bastante força para suportar tantos trabalhos? Não ficaria no caminho, como aconteceu a Nan?

Mas estes infelizes ao menos não estavam separados. Pareciam-lhes por isso menos pesadas as correntes que os prendiam. O traficante árabe fê-los conduzir para um barracão especial. Evidentemente tinha cuidado na mercadoria, que lhe prometia bons lucros em Zanzibar.

Tom, Bat, Acteão e Agostinho saíram da praça e não viram, por isso, nem souberam da cena com que ia acabar o grande «lakoni» de Kasonde.

 

UM PONCHE OFERECIDO Ao REI DE KASONDE

Eram quatro horas da tarde quando se ouviu um estrépito de tambores, timbales e outros instrumentos africanos, no extremo da rua principal. A animação aumentou então em todos os lugares do mercado. A gritaria e as lutas de tantas horas não tinham feito enrouquecer nem quebrado os braços e as pernas aos desesperados negociantes. Havia ainda para vender grande número de escravos; os traficantes disputavam os lotes com frenesi nunca visto na Bolsa de Londres nos dias de subida de fundos.

Mas, quando se ouviu a desafinada música, suspenderam-se as transacções e os pregoeiros puderam, enfim, descansar das suas fadigas.

O rei de Kasonde, Moini Lunga, vinha honrar com a sua visita o grande «lakoni». Séquito numeroso, formado pelas suas mulheres, altos dignitários, soldados e escravos, acompanhava o rei. Alves e outros traficantes vieram ao encontro do monarca, exagerando muito as zumbaias que lhe faziam e que mais particularmente agradavam àquele selvagem coroado.

Moini Lunga vinha num palanquim, de que desceu no meio da grande praça, ajudado por algumas pessoas.

Tinha cinquenta anos, mas parecia ter oitenta; era como que um macaco decrépito e de idade avançada.

Na cabeça trazia uma espécie de tiara ornada com garras de leopardo pintadas de encarnado e enfeitada com tufos de pêlo branco: era a coroa dos soberanos de Kasonde. Na cintura, dois saiotes de couro, bordados de pérolas, e mais encoscorados que um avental de ferreiro. No peito, grande número de desenhos, sinal da antiga nobreza do rei, e os quais, dando-se-lhes fé, mostravam que a genealogia de Moini Lunga se perdia na noite dos tempos. Nos artelhos, nos pulsos e nos braços de Sua Majestade, braceletes de cobre, engastados de «sofis», e os pés metidos numas botas de lacaio com canhão amarelo, presente que lhe fizera Alves havia já vinte anos. Na mão direita uma grande bengala com castão de prata, na esquerda uma ventarola com o cabo enfeitado de missangas, no nariz a lente e os óculos de primo Bénédict, que tinham sido encontrados na algibeira de Bat, e finalmente coberto por um velho chapéu de sol, tão cheio de remendos que parecia feito dos calções dos arlequins. Tal é o retrato fiel da majestade negra, que fazia tremer a província num perímetro de cem milhas.

Moini Lunga, porque ocupava um trono, pretendia ser de origem celeste; aqueles entre os seus súbditos que duvidassem seriam por ele mandados para o outro mundo, a fim de se certificarem. Dizia que não tinha necessidades mundanas. Se comia é porque queria, se bebia é porque isso lhe dava prazer. Contudo não havia quem bebesse mais. Os seus ministros e empregados, ébrios requintados, podiam dizer-se sóbrios quando comparados com ele. Era uma majestade alcoolizada no último grau e sempre embebida em licores fontes, em «pombe», e principalmente numa qualidade de aguardente que Alves lhe fornecia com abundância.

Moini Lunga tinha no seu harém mulheres de todas as idades e condições. A maior parte delas acompanhavam-no nesta visita ao «lakoni». Moina, a mais antiga, e à qual chamavam rainha, era uma megera de quarenta anos e de sangue real, como as suas colegas.

Envergava uma espécie de blusa aos quadrados de cores vivas, uma saia feita de ervas tecidas e bordadas de missangas; tinha enfiadas de pérolas por toda a parte, trunfa recortada, fazendo como que uma moldura enorme à pequena cabeça, enfim, um monstro. As outras mulheres, primas ou irmãs do rei, ricamente vestidas, mas mais novas, caminhavam atrás dela, prontas, ao mais leve aceno do seu senhor, a servir de móveis humanos, que na verdade não são outra coisa aquelas desgraçadas. Se o rei quer assentar-se, curvam-se duas das suas mulheres e servem-lhe de cadeira, enquanto os reais pés descansam sobre outros corpos de mulheres conno sobre um chão de ébano!

No séquito de Moini Lunga vinham os empregados, oficiais e mágicos, e saltava logo à vista que àqueles selvagens, que titubeavam diante do seu senhor, faltava uma parte qualquer do corpo: a uns uma orelha, a outros um olho, a este o nariz, àquele uma das mãos. Não havia um único que estivesse completo, porque em Kasonde aplicam-se duas espécies de castigo: a mutilação e a morte, segundo a vontade do rei. Pela mais pequena falta, uma amputação; e os mais castigados são aqueles a quem se tiram as orelhas, por ficarem privados do gosto de trazer brincos!

Os capitães dos quilolos, governadores dos distritos, hereditários ou nomeados por quatro anos, usavam como uniforme barretes de pele de zebra e coletes encarnados. Brandiam compridas bengalas de rota, untadas em uma das pontas com drogas mágicas.

Os soldados tinham por armas ofensivas e defensivas arcos enfeitados com franjas e em cuja madeira estava enrolada uma corda de sobresselente, facas afiadas como línguas de serpentes, lanças largas e compridas, escudos de madeira de palma guarnecidos de arabescos. O uniforme, porém, não custava absolutamente nada ao tesouro de Sua Majestade.

Finalmente, na comitiva do rei vinham em último lugar os mágicos da corte e os músicos.

Os feiticeiros, «megangas», são os médicos do reino. Dão aqueles selvagens grande fé aos ofícios adivinhatórios, aos encantos e aos feitiços — figuras de argila com malhas brancas e encarnadas, representando animais fantásticos ou pequenas estátuas de homens e de mulheres, feitas de madeira. Os mágicos, contudo, não estavam menos mutilados que os cortesãos, porque sem dúvida alguma o monarca lhes pagava com a mutilação as curas que não conseguiam fazer.

Os músicos, homens e mulheres, agitavam estrídulas matracas, faziam ressoar ruidosos tambores ou vibrar por meio de baquetas terminadas por bolas de cauchu as marimbas, feitas de duas ordens de cabeças de diversos tamanhos. O conjunto de todos estes sons era insuportável para quem não tivesse ouvidos africanos.

Sobre a multidão que compunha o séquito real tremulavam bandeiras e galhardetes, e em chuços, espetados, os crânios embranquecidos de alguns dos chefes rivais que Moini Lunga vencera.

Logo que o rei desceu do palanquim, romperam de todos os lados as aclamações. Os guardas das caravanas descarregavam para o ar as espingardas, cujas fraquíssimas detonações não se podiam ouvir, tal era a algazarra que fazia a multidão. Os condutores, «halvidares», depois de terem pintado a negra cara com cinábrio em pó, que traziam num saco, prostraram-se. Depois Alves, dirigindo-se para o rei, entregou-lhe uma porção de tabaco — erva mitigativa — como lhe chamam na região; e tinha Moini Lunga grande necessidade de alguma coisa que o acalmasse, porque estava, sem se saber a razão, de muito mau humor.

Ao mesmo tempo que Alves, foram Coimbra, Ibn Hamis e os traficantes árabes ou mestiços cumprimentar o poderoso soberano de Kasonde. «Marhaba», diziam os árabes, palavra que na sua língua da África Central quer dizer — bem-vindo — ; outros batiam com as mãos e curvavam-se até ao chão; alguns enlambuzavam-se com lodo, e davam à horrenda majestade todas as provas do mais baixo servilismo.

Moini Lunga mal via toda aquela gente e caminhava abrindo as pernas, como se o terreno balanceasse como um barco. Andou assim, ou antes cambaleou, entre os lotes de escravos, e se os traficantes receavam que ele tivesse a fantasia de tomar para si alguns dos cativos, estes não temiam menos de cair em poder de semelhante bruto.

Negoro não deixava Alves um momento, e junto a ele apresentava os seus respeitosos cumprimentos ao rei. Conversavam na língua indígena, se a palavra «conversar» pode ser empregada para dar ideia de um diálogo no qual Moini Lunga só tomava parte empregando monossílabos, que a muito custo saíam dos seus lábios avinhados, e ainda assim era para pedir ao seu amigo Alves que lhe renovasse a provisão de aguardente que se gastara em grandes libações.

 — Bem-vindo seja o rei Moini Lunga à feira de Kasonde! — dizia o mercador de escravos.

 — Tenho sede — respondia o monarca.

 — Terá o rei a sua parte nos negócios do grande «lakoni» - — acrescentava Alves.

— Dá-me de beber — insistia Moini Lunga.

 — O meu amigo Negoro está satisfeitíssimo por tornar a ver o rei de Kasonde depois de tão grande ausência.

 — Quero beber — repetia o beberrão, que exalava de toda a sua pessoa desagradável cheiro a álcool.

 — Pois bem, terá ponche e hidromel — afirmou José António Alves, como quem percebia bem aonde Moini Lunga queria chegar.

 — Não... não — atalhou o rei. — Quero aguardente, Alves, e por cada gota darei...

 — Uma gota de sangue de um branco — propôs Negoro depois de ter feito a Alves um sinal, que ele entendeu e aprovou.

 — Um branco!... Matar um branco! — replicou Moini Lunga, cujos instintos ferozes se despertaram com a proposta do ex-cozinheiro.

 — Um agente de Alves foi morto por um branco — continuou Negoro.

 — É verdade, foi o meu agente Harris — -informou o traficante de escravos — , e a sua morte requer vingança.

 — Pois bem; mandem esse branco ao rei Massongo no Alto Zaire, do reino dos Assuas. Cortá-lo-ão em pedaços e comê-lo-ão vivo! Ainda não se esqueceram do gosto que tem a carne humana! — declarou Moini Lunga.

Era, com efeito, Massongo o rei de uma tribo de antropófagos. Em algumas províncias da África Central o canibalismo é usado ainda. Refere-o Livingstone nos seus apontamentos de viagem. Nas margens do Lualaba, os Manyemas comem não só os homens mortos na guerra, mas até compram escravos para devorar, e dizem que a carne humana é ligeiramente salgada e exige pouco condimento! Cameron encontrou canibais em Moéné Bougga, onde comem os cadáveres depois de os terem amolecido em água corrente. Stanley viu igualmente entre os habitantes de Ukussu a antropofagia, evidentemente generalizada entre as tribos do centro. Mas por muito cruel que fosse o género de morte proposto pelo rei para Dick Sand, não convinha ele a Negoro, que não desejava perder de vista a sua vítima.

 — Foi aqui — explicou ele — que o branco matou o nosso camarada Harris.

 — É aqui que ele deve morrer — acrescentou Alves.

 — Morrerá onde quiseres, Alves — respondeu Moini Lunga — ; mas gota de aguardente por gota de sangue!...

 — Decerto — concordou o traficante de escravos. — Hoje vereis que bem merece ela tal nome. Fá-la-emos deitar chamas! José António Alves oferecerá um ponche ao rei Moini Lunga!...

O borrachão bateu nas mãos do seu amigo Alves. Estava louco de alegria. As concubinas e os cortesãos participavam do delírio do seu senhor. Nunca tinham visto a aguardente em chamas, e contavam bebê-la nesse estado. Demais a mais à sede de álcool juntava-se a sede do sangue, igualmente imperiosa entre os selvagens.

Pobre Dick Sand, que horrível suplício o esperava! Quando se pensa nos efeitos terríveis ou ridículos da embriaguez nos países civilizados, compreende-se a que excessos pode ela levar gente bárbara.

Acredita-se facilmente que o pensamento de torturar um branco não podia desagradar nem aos indígenas nem a José António Alves, negro como eles, nem a Coimbra, mestiço de sangue negro, nem finalmente a Negoro, animado como estava de ódio feroz contra a gente da sua cor.

Veio a noite, noite sem crepúsculo, hora propícia para se verem as chamas do álcool.

Fora na verdade magnífica ideia que Alves tivera de oferecer um ponche à negra majestade e de lhe fazer saborear a aguardente sob outra forma. Moini Lunga começara a achar que a aguardente não justificava bastante o seu nome. Talvez que chamejante excitasse mais agradavelmente as papilas já insensíveis da sua língua! O programa da noite era, por conseguinte, um ponche primeiro, um suplício depois.

Dick Sand, rigorosamente encerrado na escura prisão, só devia sair dela para morrer. Os escravos, vendidos ou não, tinham sido reenviados para os respectivos barracões. Na «tchitoka» estavam apenas os traficantes, os condutores e os soldados, prontos para provar do ponche, se o rei e a sua corte os deixassem.

José António Alves, por conselho de Negoro, dispôs tudo bem.

Trouxeram uma larga bacia de cobre, em que podiam caber cem canadas de líquido, e a qual foi colocada no meio da grande praça. Despejaram-se na bacia alguns barris de álcool de inferior qualidade, mas muito forte. Não se poupou a canela, pimenta e outros ingredientes que pudessem tornar ainda mais forte este ponche feito para selvagens.

Todos haviam cercado o rei. Moini Lunga dirigiu-se cambaleando para a poncheira. Dir-se-ia que aquela tina de aguardente o fascinava e que ia precipitar-se nela.

Alves, porém, reteve-o e deu-lhe para a mão uma mecha acesa.

 — Fogo! — exclamou ele, fazendo semblante de fingida satisfação.

 — Fogo! — repetiu Moini Lunga, agitando o líquido com a extremidade inflamada da mecha.

Que facho e que efeito quando as chamas azuladas flutuaram na superfície da bacia! Alves, para sem dúvida fazer o álcool ainda mais acre, tinha-lhe misturado alguns punhados de sal marinho. As faces dos assistentes tomaram então a lividez dos espectros que a imaginação dá aos fantasmas. Aqueles negros, já ébrios, começavam a gritar, a gesticular e, agarrando nas mãos uns dos outros, dançavam à roda do rei de Kasonde.

Alves, com uma enorme colher, remexia o líquido, que lançava grandes mas pálidos clarões sobre aqueles macacos delirantes.

Moini Lunga avançou. Tirou a colher das mãos de Alves, mergulhou-a na bacia e, retirando-a cheia de ponche a arder, chegou-a aos beiços.

Grito terrível foi o que então deu o rei de Kasonde!

Produzira-se um fenómeno de combustão espontânea. Pegara fogo no rei como em petróleo! Mas este fogo, que desenvolvia pouco calor, consumia bastante.

À vista de tal espectáculo, a dança dos indígenas parou. Um dos ministros de Moini Lunga precipitou-se sobre o seu soberano para lhe apagar o fogo; mas, porque não estava menos alcoolizado do que o seu senhor, começou também a arder.

Toda a corte de Moini Lunga corria grande risco de se incendiar! Alves e Negoro não sabiam como socorrer Sua Majestade. As mulheres, cheias de espanto, tinham fugido. Coimbra, porque conhecia bem a sua natureza combustível, retirou-se depressa.

O rei e o ministro, que tinham caído, rojavam-se no chão, sofrendo horrivelmente.

Nos corpos tão profundamente alcoolizados, a combustão produz apenas uma ténue chama azulada, que a água não pode extinguir. Abafada que estivesse no exterior, continuaria interiormente. Quando os licores têm penetrado em todos os tecidos, não há meio de fazer parar a combustão.

Instantes depois, Moini Lunga e o seu ministro tinham sucumbido, mas ardiam ainda, e não tardou muito que no lugar em que ambos caíram se vissem apenas alguns restos carbonizados, um ou dois pedaços da coluna vertebral, dedos das mãos e dos pés, que o fogo não consome no caso da combustão espontânea, mas que cobre com uma espécie de ferrugem infecta e nauseabunda.

Era quanto restava do rei de Kasonde e do seu ministro!

 

UM ENTERRO REAL

No dia seguinte, 29 de Maio, a grande sanzala de Kasonde apresentava extraordinário aspecto. Os indígenas, aterrados, não saíam das cubatas. Nunca tinham visto um rei, que pretendia ser de origem divina, nem sequer um simples ministro, sucumbir de tão horrível morte. Já tinham queimado alguns dos seus semelhantes, e os mais idosos não podiam esquecer certos preparativos culinários que se relacionavam com o canibalismo. Sabiam, pois, com que dificuldade se opera a incineração dos corpos humanos, e contudo o rei e o seu ministro haviam ardido rapidamente! Parecia-lhes, e devia parecer-lhes com efeito, que isto era um acontecimento inexplicável.

José António Alves conservava-se em casa, sem nada dizer. Temia que o fizessem responsável pelo fatal acidente. Negoro fez-lhe compreender a razão daquele acontecimento e advertiu-o para que tivesse cuidado. Lançar à sua conta a morte de Moini Lunga seria um mau negócio, do qual não se sairia bem sem grande custo.

Teve, porém, Negoro uma boa ideia. Por diligências suas, Alves fez espalhar a notícia de que a morte do soberano de Kasonde fora sobrenatural, imorte que o grande Manitu reservava unicamente para os seus escolhidos, e os indígenas, sempre propensos para a superstição, aceitaram sem repugnância este embuste. O fogo que saía do corpo do rei e do seu ministro era o fogo sagrado. Restava pois honrar Moini Lunga, fazendo-lhe um enterro digno de um homem elevado até à ordem dos deuses.

O funeral, com todas as cerimónias que o acompanhavam, entre as tribos africanas, dava boa ocasião a Negoro para fazer com que Dick Sand desempenhasse nele um papel.

Não se acreditaria facilmente quanto sangue ia custar a morte do rei Moini Lunga se os viajantes da África Central, e entre outros o tenente Cameron, não tivessem relatado certos factos de que não é lícito duvidar.

A herdeira natural do rei de Kasonde era a rainha Moina. Procedendo, sem demora, às cerimónias, fazia acto de autoridade soberana e podia assim afastar os competidores, entre os quais estava o rei de Ukusu, que tentava usurpar os direitos dos soberanos de Kasonde. Além disto, Moina, porque era proclamada rainha, não teria a sorte cruel reservada para as outras mulheres do defunto, e, ao mesmo tempo, livrava-se das mais novas, de quem ela, primeira em data, tinha com certeza motivos para se lastimar. Este resultado convinha particularmente ao temperamento feroz da megera. Fez pois anunciar, ao som de chavelhos de «codu» e de marimbas, que o funeral do defunto rei se realizaria na tarde do dia seguinte com todas as cerimónias do estilo.

Não houve um único protesto, nem da gente da corte, nem dos indígenas. Alves e outros traficantes de escravos nada tinham a recear pela exaltação da rainha Moina. Com alguns presentes e lisonjas facilmente a submeteriam à sua influência. A herança real transmitia-se, pois, sem dificuldades. Só no harém houve terror, e não foi sem razão.

No mesmo dia, deu-se princípio aos trabalhos preparatórios do funeral. Na extremidade da rua principal de Kasonde corria uma ribeira profunda e torrencial: era um afluente do rio Cuango. Tratou-se de desviar o curso da ribeira, a fim de lhe descobrir o leito, para nele se cavar a sepultura do rei. Depois do enterro, a ribeira tornaria a seguir o seu antigo curso.

Os indígenas construíram uma espécie de dique, que obrigou a ribeira a formar um leito provisório, atravessando a planície de Kasonde. No fim da fúnebre cerimónia, romper-se-ia o dique, e a torrente retomaria o seu antigo caminho.

Negoro destinava Dick Sand para complemento do número de vítimas que deviam ser sacrificadas sobre a sepultura do rei. Vira o ímpeto de cólera do jovem praticante quando Harris lhe notificou a morte de Mrs. Wel-don e de Jack. Negoro, que era mau, mas covarde, não se expôs a ter a mesma sorte que o seu cúmplice. Agora, porém, em presença de um prisioneiro bem amarrado de pés e mãos, supôs que nada tinha a recear, e resolveu ir visitá-lo. Era Negoro um desses miseráveis que se não contentam só com as torturas das suas vítimas. Querem o gozo de as ver sofrer.

Foi, pois, pelo meio-dia ao barracão onde Dick Sand estava guardado à vista; ali, rigorosamente amarrado, jazia o praticante, quase privado de alimentos, havia vinte e quatro horas, enfraquecido pelas privações passadas, torturado pelas cordas que lhe apertavam as carnes, podendo apenas voltar-se, mas aguardando a morte, por mais cruel que fosse, como o fim de tantos sofrimentos.

Contudo, vendo Negoro, sobressaltou-se. Fez um esforço instintivo para quebrar os nós que o impediam de se lançar sobre aquele miserável e vingar-se dele; mas nem Hércules seria capaz de os quebrar. Compreendeu que um outro género de luta se ia travar entre ambos e, armado de paciência, Dick Sand limitou-se a olhar para Negoro, fitamente, decidido a não lhe dar a honra de uma resposta, dissesse ele o que dissesse.

— Julguei do meu dever — disse Negoro, para dar princípio à conversação — vir cumprimentar ainda mais esta vez o meu jovem comandante, e dizer quanto sinto que não governe aqui como governava a bordo do «Pilgrim».

Mas vendo que Dick Sand não respondia, continuou:

 — Pois quê, capitão, dar-se-á o caso de que não conheça o seu antigo cozinheiro? Saiba que venho receber as suas ordens, e perguntar-lhe o que quer almoçar.

Ao mesmo tempo Negoro empurrava brutalmente com o pé o jovem praticante, que estava estendido no chão.

 — Tenho também — acrescentou Negoro — uma pergunta a fazer-lhe, meu jovem capitão. Poderá, finalmente, explicar-me como foi que, querendo ir para a costa da América, veio parar à costa de Angola?

Dick Sand não carecia das palavras de Negoro para compreender o que já tinha adivinhado, quando reconheceu que a agulha do «Pilgrim» fora desviada por aquele malvado. A pergunta de Negoro equivalia a uma confissão. Dick Sand respondeu-lhe com desdenhoso silêncio.

 — Deve confessar, capitão, que foi uma felicidade ter encontrado a bordo um marinheiro como o que encontrou. Onde estaríamos agora se não fosse ele! Em vez de morrer sobre os escolhos para onde o atirasse o temporal, o capitão chegou, por favor dele, a porto de salvamento, e, se a alguém deve o estar em lugar seguro, é a esse marinheiro, que o meu capitão teve o mau gosto de desprezar.

Falando desta maneira, Negoro, cujo sossego aparente era o resultado de imenso esforço, chegara por tal modo a cara a Dick Sand, e tão feroz estava que parecia até querer devorá-lo. O furor daquele patife não se podia reprimir por mais tempo.

 — A cada um a sua vez! — exclamou ele repentinamente, no paroxismo de violenta agitação, que mais lhe excitava a passividade da sua vítima. — Hoje sou eu o comandante, sou eu o senhor! A tua carreira e a tua vida estão nas minhas mãos!

 — Pois dispõe dela — respondeu-lhe Dick Sand, sem se alterar. — -Fica sabendo, porém, que há no céu um Deus que castiga todos os crimes, e a tua punição não tarda!

 — Se Deus se ocupa dos homens, é tempo que pense em ti.

 — Estou pronto para aparecer ante o Supremo Juiz — retorquiu friamente Dick Sand. — Não temo a morte.

 — Isso veremos! — gritou Negoro. — Contas talvez com algum socorro! Socorro em Kasonde, onde Alves e eu somos poderosos. Estás louco! Imaginas talvez que os teus companheiros ainda aqui estão, o velho Tom e os outros! Desengana-te! Há muito tempo que foram vendidos e que partiram para Zanzibar. Muito felizes serão se não morrerem por esses caminhos!

 — Deus tem muitos meios de administrar a sua justiça — replicou Dick Sand. — O menor instrumento lhe basta. Hércules está livre.

 — Hércules! — exclamou Negoro, batendo com o pé no chão. — Esse há muito que morreu às garras dos leões e das panteras, e só lastimo que as feras tivessem adiantado a minha vingança.

 — Se Hércules morreu — volveu-lhe Dick Sand — , Dingo vive ainda. Um cão como Dingo é de mais para matar um homem da tua casta. Conheço-te bem, Negoro, não és valente. Dingo procura-te, há-de achar-te, e então morrerás despedaçado por ele.

 — Maldito! — exclamou, cheio de desespero, o ex-cozinheiro. — Maldito! Dingo morreu com um tiro que lhe disparei! Está morto como Mrs. Weldon e o seu filho, e como hão-de morrer todos os náufragos do «Pilgrim»!...

 — E como tu morrerás também, não tardará muito tempo! — respondeu Dick Sand, cujo olhar tranquilo fazia empalidecer Negoro.

Este, fora de si, esteve quase a passar das palavras às acções e a estrangular por suas próprias mãos o seu prisioneiro desarmado. Tinha-se lançado sobre ele e sacudia-o enraivecido. Repentina reflexão, porém, o fez parar. Compreendeu que ia matar a sua vítima, que tudo acabaria ali, e que por tal modo lhe poupava vinte e quatro horas de torturas que lhe havia preparado. Levantou-se, disse algumas palavras ao guarda, que ficara impassível, e, recomendando-lhe que vigiasse bem o prisioneiro, saiu do barracão.

Em vez de o abater, esta cena fez recuperar a Dick Sand toda a força moral, de cuja influência se ressentiu a sua energia física. Negoro, agarrando-se a ele desesperadamente, teria de algum modo alargado as cordas que até então lhe impossibilitavam qualquer movimento? É provável, porque Dick Sand percebeu que os seus membros se moviam melhor do que antes da chegada do seu algoz. O jovem praticante, sentindo-se aliviado, pensou que talvez fosse possível soltar os braços sem grandes esforços. Encerrado como estava numa prisão, seria sem dúvida um incómodo, um suplício de menos, mas há momentos na existência em que o menor bem-estar tem grande valor.

Dick Sand nada esperava. Nenhum socorro humano lhe podia vir senão de fora; mas de onde? Estava, pois, resignado. Não lhe interessava viver. Pensava naqueles que haviam morrido antes dele e só aspirava a encontrá-los na outra vida. Negoro repetia-lhe o que Harris já lhe havia dito: isto é, que Mrs. Weldon e Jack tinham sucumbido. Era verosímil que Hércules, exposto a tantos perigos, tivesse sofrido morte cruel! Tom e os seus companheiros estavam já longe, e era crível que para sempre perdidos para Dick Sand. Esperar outra coisa que não fosse o fim dos seus sofrimentos, pela morte que não lhe podia ser mais terrível do que lhe era a vida, seria grande loucura. Preparava-se, pois, para morrer, entregando-se a Deus e rogando-lhe que lhe desse coragem para chegar ao fim dos seus tormentos sem fraquejar. É grande e inefável o prazer que se sente em pensar em Deus. Não é em vão que se eleva a alma Àquele que tudo pode; e, quando Dick Sand acabou a sua súplica, percebeu que, se fosse possível penetrar até ao mais fundo do seu coração, ver-se-ia talvez um ténue raio de esperança, que a um sopro divino podia transformar-se em brilhante luz.

Decorreram horas. Veio a noite. Os raios do dia, que se filtravam através do colmo do barracão, foram-se pouco a pouco enfraquecendo e apagando. Os últimos ruídos da «tchitoka», que durante aquele dia estivera mais silenciosa, depois do horroroso alarido da véspera, extinguiram-se também. Havia profunda obscuridade no interior da acanhada prisão. Dentro de pouco tempo tudo repousaria na sanzala de Kasonde.

Dick Sand dormiu um pequeno sono reparador, que durou duas horas. Depois acordou refeito. Conseguiu desprender um dos braços, já um pouco inchado, e sentiu enorme prazer em o estender e encolher à vontade.

A noite devia estar em meio. O guarda dormia profundamente, devido a uma garrafa de aguardente, cujo gargalo segurava ainda. O selvagem tinha-a bebido até à última gota. Dick Sand lembrou-se então de se apoderar das armas do seu carcereiro, as quais lhe podiam ser de grande auxílio dado o caso de evasão; mas, quando assim pensava, julgou ouvir esgaravatar levemente na parte inferior da porta do barracão. Com a ajuda do braço que tinha livre conseguiu arrastar-se até ao umbral, sem que o guarda acordasse.

Dick Sand não se enganara: continuava o mesmo ruído, mas mais distintamente. Parecia que da parte de fora escavavam o terreno por debaixo da porta.

«Hércules! Se fosse Hércules!», pensou o jovem praticante, e os seus olhos fixaram-se sobre o guarda: estava imóvel, dormia profundamente. Dick Sand, aproximando a boca do limiar da porta, atreveu-se a murmurar o nome de Hércules. Um gemido, como um latido abafado e lamentoso, foi a resposta que teve.

«Não é Hércules», disse consigo mesmo Dick Sand, «é Dingo! Pressentiu-me neste barracão! Dar-se-á o caso que traga algum bilhete de Hércules? Mas se Dingo não morreu, mentiu Negoro, e talvez que...»

Neste momento passou por debaixo da porta uma pata de cão. Dick agarrou-a e reconheceu que era de Dingo. Mas se ele tivesse um bilhete, só ao pescoço o devia ter. Como faria? Seria possível aumentar o buraco para que pudesse passar a cabeça de Dingo? Fosse como fosse, convinha experimentar.

Mas apenas Dick Sand começou a escavar a terra com as mãos ouviram-se na praça latidos que não eram de Dingo. O fiel animal fora descoberto pelos cães indígenas e teve sem dúvida de fugir. Estrondearam no ar algumas detonações. O guarda estava meio acordado. Dick Sand, não podendo já pensar em se evadir, porque o sinal de alarme estava dado, voltou novamente para o seu canto, e, depois de crudelíssima espera, viu, finalmente, brilhar o dia, que para ele devia ser o último.

Durante todo este dia a sepultura cavava-se com grande actividade. Muitos indígenas trabalhavam nela sob a direcção do primeiro-ministro da rainha Moina. Devia estar tudo pronto para a hora marcada, sob pena de mutilação, porque a nova soberana prometia seguir, ponto por ponto, todos os métodos do defunto rei.

Foram desviadas as águas do ribeiro, e foi no seu leito, completamente seco, que a grande cova se abriu. Tinha dez pés de profundidade, sobre cinquenta de comprido e dez de largura.

Pelo fim do dia começaram a juncar-lhe o fundo e a revestir-lhe as paredes com mulheres vivas, escolhidas entre as escravas de Moini Lunga. Habitualmente, estas escravas são enterradas vivas. Màs, em razão da extraordinária e quase milagrosa morte de Moini Lunga, decidiu-se que elas morressem afogadas juntas ao corpo do seu senhor(1).

 

*1. Não se imagina o que são estas horríveis hecatombes nas tribos do centro da África quando se trata de honrar dignamente a memória de um poderoso chefe. Cameron refere que mais de cem vítimas foram sacrificadas no funeral do rei de Kasonde.

 

É também de uso que o rei defunto, antes de ser metido na sepultura, seja vestido com o seu mais rico vestuário. Mas desta vez, porque da real pessoa apenas restavam alguns ossos calcinados, era mister proceder de outro modo. Fez-se um manequim, que representava suficientemente, e talvez com vantagem, Moini Lunga, e meteram-se-lhe dentro os restos que o fogo poupara. Revestiu-se depois com o fato real, o espólio, que, como se sabe, nada valia, e puseram-se-lhe, como ornamento, os óculos de primo Bénédict. Havia nesta máscara alguma coisa de cómico e de horrendo.

A cerimónia devia fazer-se à luz dos archotes e com grande aparato. A ela devia assistir toda a população de Kasonde, indígena ou não.

Assim que veio a noite, um longo cortejo desceu pela rua principal, desde a «tchitoka» até ao lugar onde estava cavada a sepultura. Gritos, danças fúnebres, feitiços dos mágicos, bulha de instrumentos, detonações de velhos mosquetes, nada faltava.

José António Alves, Coimbra, Negoro, os traficantes árabes como os seus condutores, engrossavam as alas de povo de Kasonde. Ninguém deixara ainda o grande «lakoni». Não o permitira a rainha Moina, e não seria prudente infringir as ordens daquela que começava a exercer o papel de soberana.

O corpo do rei, deitado num palanquim, ia no fim do cortejo, rodeado pelas suas concubinas de segunda categoria, algumas das quais o acompanhariam para além da vida. A rainha Moina, vestida de gala, caminhava atrás do que se pode talvez chamar esquife. Era noite escura quando chegaram às margens da ribeira, mas os brandões de resina, agitados por aqueles que os levavam, Rançavam sobre a multidão sinistros clarões.

Viu-se então distintamente a cova. Estava alcatifada com corpos de negras ainda vivas, porque se Viam mexer sob as cadeias que as prendiam ao solo. Cinquenta escravas aguardavam ali que a torrente voltasse para o seu antigo leito, correndo sobre elas. A maior parte eram novas e, se umas estavam resignadas e mudas, outras soltavam gemidos.

As concubinas do rei que deviam perecer, ornadas como se fossem para uma festa, tinham sido escolhidas pela própria rainha.

Uma das vítimas, a que usava o título de segunda mulher, curvou-se sobre as mãos e joelhos, para servir de cadeira real, assim como fazia durante a vida do monarca; a terceira esposa sustentou o manequim, enquanto a quarta se deitava aos pés em guisa de almofada.

Em frente do manequim, na extremidade da vala, saía da terra um poste pintado de encarnado. Nele estava um branco, que se ia também contar entre as vítimas daquela ostracíssima cerimónia.

Era Dick Sand. No seu corpo, meio nu, viam-se os sinais das torturas que lhe haviam sido infligidas por ordem de Negoro. Ligado ao poste, esperava a morte como quem só na outra vida tem esperança!...

Não chegara, porém, ainda o momento em que se devia romper o dique.

A um sinal da rainha, a quarta esposa, a que estava deitada aos pés do rei, foi degolada pelo carrasco de Kasonde, e o sangue da vítima correu na cova. Foi o princípio de uma horrorosa cena de carnificina. Cinquenta escravas caíram sob os cutelos dos executores; no leito do ribeiro correram ondas de sangue.

Durante meia hora os gritos das vítimas confundiram-se com as vociferações da multidão, e em vão se procuraria entre aquela gente um sentimento de indignação ou de pena.

Finalmente, a rainha Moina fez um aceno, e a barreira que retinha as águas superiores começou a abrir-se pouco a pouco. Com requintada maldade, deixaram filtrar a corrente, em vez de a precipitar por meio de uma grande ruptura. A morte lenta em vez da morte rápida.

A água cobriu primeiramente o tapete de escravas que enchiam o fundo da sepultura. Viram-se as horríveis oscilações daquela gente ainda viva, lutando contra a asfixia. Viu-se também Dick Sand, submerso até aos joelhos, tentar um derradeiro esforço para quebrar as correntes que o prendiam.

Mas a água subia, subia sempre. As últimas cabeças escondeu-as a torrente, que retomava o seu antigo curso, e já não havia sinal de que no fundo daquela ribeira se cavara uma vala onde cem vítimas tinham perecido em honra do rei de Kasonde.

A pena recusar-se-ia a traçar tais quadros se o amor pela verdade não impusesse o dever de os descrever com toda a sua execranda realidade. A humanidade está ainda, naquelas tristes regiões, qual a pintámos. Convém que todos o saibam.

 

O INTERIOR DE UMA FEITORIA

Harris e Negoro tinham mentido quando disseram que Mrs. Weldon e Jack estavam mortos. Ela, Jack e primo Bénédict achavam-se então em Kasonde.

Depois do assalto ao formigueiro, foram levados para além do acampamento do Cuanza por Harris e Negoro, acompanhados por doze guardas indígenas.

Um palanquim («kitanda»), então em uso, serviu para transportar Mrs. Weldon e o pequenino Jack. Porque eram tantos os cuidados da parte de um homem como Negoro?

Mrs. Weldon não se atrevia a explicá-los.

Rapidamente e sem fadiga se fez a jornada desde o Cuanza até Kasonde. Primo Bénédict, a quem as desgraças não pareciam abalar, caminhava bem. Como o deixavam ver à vontade, para um e outro lado, não se queixava. O pequeno rancho chegou, pois, a Kasonde, oito dias antes da caravana de Ibn Hamis. Mrs. Weldon, com o filho e primo Bénédict, foi recolhida na feitoria de Alves.

Jack estava muito melhor. Logo que saiu da região pantanosa, onde fora atacado pelas febres, foi o seu estado pouco a pouco melhorando, e estava bem. Nem ele nem sua mãe teriam podido suportar as fadigas da caravana. Nas condições, porém, em que fizeram a última jornada, durante a qual não lhes recusaram um certo número de cuidados, o seu estado era satisfatório, pelo menos considerado fisicamente.

Dos seus companheiros não teve Mrs. Weldon notícias. Depois de ter visto Hércules, fugindo, embrenhar-se pela floresta, nunca mais soube dele. Pelo que respeita a Dick Sand, esperava, porque Harris e Negoro não estavam com ele, que a sua qualidade de homem branco lhe evitaria maus tratamentos. Nan, Tom, Bat, Agostinho e Acteão, por serem negros, era crível que como tais fossem tratados! Pobre gente, que bom lhe fora nunca ter pisado aquela terra da África, onde a traição os lançara!

Quando a caravana de Ibn Hamis chegou a Kasonde, Mrs. Weldon, porque estava incomunicável, nada pôde saber.

Os ruídos do «lakoni» em nada a instruíram. Soube apenas que Tom e os seus camaradas tinham sido vendidos a um traficante de Ujiji e que brevemente partiriam. Não teve, porém, conhecimento, nem do suplício de Harris, nem da morte do rei Moini Lunga, nem das cerimónias do régio funeral, que haviam juntado Dick Sand ao número das vítimas.

A desgraçada senhora achava-se, pois, só em Kasonde, à mercê dos negreiros e em poder de Negoro. Para lhes escapar não podia, sequer, pensar na morte, porque tinha consigo o filho!

Mrs. Weldon ignorava completamente a sorte que a esperava. Durante o tempo da jornada do Cuanza a Kasonde, nem Harris nem Negoro falaram com ela.

Depois da chegada nunca mais os tornara a ver, e não podia ela sair do cercado que fechava a feitoria do rico negreiro.

Será necessário dizer que Mrs. Weldon não teve auxílio de espécie alguma de primo Bénédict? É fácil supor-se que não teve.

Logo que o digno sábio soube que não estava no continente americano, como julgava, não se inquietou em investigar a razão de tal acontecimento. Não pensou nisso!

O seu primeiro sentimento foi de despeito. E, com efeito, os insectos que imaginou ter sido o primeiro a ver na América, as tsé-tsé, e muitos outros, eram simplesmente hexápodes africanos, que muitos naturalistas antes dele haviam já descoberto nos lugares donde tais insectos são oriundos.

Adeus, pois, sonhada glória de ligar o nome a tão grandes descobertas! Que poderia haver de maravilhoso no que fizera primo Bénédict: classificar insectos africanos, estando na África?

Mas, passado o primeiro ímpeto de despeito, primo Bénédict a si mesmo disse que a «Terra dos Faraós» — teimava ele em lhe chamar assim — possuía incomparáveis riquezas entomológicas, e que por não estar na «Terra dos Incas» não perdera com a troca.

 — Ah! — repetia ele a si mesmo e a Mrs. Weldon, que o -não ouvia. — É a pátria das manticoras, coleópteros de pernas compridas e aveludadas, clitos ligados e cortantes, grandes mandíbulas, e a mais notável das quais é a manticora tuberculosa! É o país dos colosonos de pontas douradas — auropuntactus; dos cetonirs polyphemas da Guiné e do Gabão, cujas pernas são guarnecidas de serras; das anthias mosqueadas, que põem os ovos nas cascas dos caracóis; dos ateuchgus sagrados, que os habitantes do Alto Egipto veneravam como deuses. É daqui que são oriundas as acheronteas atropos, já tão espalhadas por toda a Europa, e essas Idias Bigoti, cuja mordedura é muito temida pelos naturais da costa do Senegal. Há aqui, sem dúvida, importantes achados que fazer, e fá-los-ei eu se esta «boa gente» me deixar.

Sabe-se quem era a «boa gente» de quem primo Bénédict não achava motivo de se queixar. Como ficou dito, o entomologista gozara na companhia de Negoro e de Harris de certa liberdade, que lhe não fora consentida por Dick Sand, durante a viagem desde a costa até ao Cuanza. O ingénuo sábio estava, pois, muito grato por tal condescendência.

Enfim, primo Bénédict teria sido o mais feliz dos entomologistas se não fosse a perda que tivera, para ele tão sensível. Conservava a caixa de folha, mas os óculos já lhe não pousavam no nariz, nem a lente lhe pendia do pescoço!

Ora, um naturalista, sem lente e sem óculos, não se compreende. Mas primo Bénédict não tornaria a ver estes dois aparelhos de óptica, porque ambos haviam sido enterrados com o real manequim.

Assim, pois, quando apanhava algum insecto, era obrigado a metê-lo pelos olhos, para lhe distinguir as particularidades mais elementares. Ah! Era isto motivo de grande amargura para primo Bénédict, que por bom preço teria pago um par de óculos, se este artigo se encontrasse à venda nos mercados de Kasonde. Apesar de tudo, porém, primo Bénédict podia andar livremente na feitoria de José António Alves. Sabiam que ele era incapaz de tentar fugir. Demais a mais, uma estacada alta separava a feitoria do resto da sanzala, estacada que não era fácil de saltar.

Mas este bem seguro cerrado não tinha menos de uma milha de circunferência. Árvores e arbustos de espécies peculiares da África, ervas altas, alguns delgados cursos de água, o colmo dos barracões e das cubatas, era quanto bastava para conter os raros insectos do continente e fazer, se não a riqueza, pelo menos a felicidade de primo Bénédict. Efectivamente descobriu alguns hexápodes, e esteve quase perdendo a vista por ter querido estudá-los sem óculos, mas conseguiu, enfim, aumentar a sua preciosa colecção e lançar os fundamentos de uma grande obra sobre a entomologia africana. Quisesse a sua boa estrela que ele descobrisse um insecto, a que ligasse o seu nome, e nada mais ambicionaria neste mundo.

Se a feitoria de Alves era suficientemente espaçosa para as excursões científicas de primo Bénédit, parecia imensa ao pequeno Jack, que podia correr por ela à vontade.

Mas a pobre criancinha procurava pouco os brinquedos tão naturais na sua idade.

Raras vezes deixava a mãe, que não gostava de o deixar só, receando sempre alguma desgraça. Jack falava frequentes vezes de seu pai, que de longa data não via! Pedia que o levassem para junto dele. Perguntava por todos, pela velha Nan, pelo seu amigo Hércules, por Bat, Agostinho, Acteão e por Dingo, que parecia tê-lo também abandonado. Queria ver o seu camarada Dick Sand. A sua tenra imaginação vivia apenas destas recordações. Às perguntas de Jack, Mrs. Weldon respondia abraçando o filho e cobrindo-o de beijos. Tudo o que podia fazer era não chorar diante dele!

Contudo, Mrs. Weldon não deixava de notar que, se os maus tratamentos lhe tinham sido poupados durante a viagem do Cuanza até ali, nada indicava que na feitoria de Alves mudassem de conduta a seu respeito. Aqui, só havia os escravos ocupados no serviço do negreiro. Todos os mais, os que eram objecto de comércio, tinham sido metidos nos barracões da «tchitoka» e vendidos depois aos corretores vindos do interior. Naquela ocasião os armazéns da feitoria trasbordavam de fazendas e de marfim, aquelas destinadas para as permutações nas províncias do centro, este para ser exportado para os principais mercados do continente.

Em poucas palavras, na feitoria havia pouca gente. Mrs. Weldon ocupava com Jack uma cubata especial, e primo Bénédict uma outra. Não comunicavam com os criados do negreiro. Comiam juntos. A alimentação, que se compunha de carne de cabra ou de carneiro, legumes, mandioca, inhame e frutos da região, era abundante. Halima, jovem escrava especialmente destinada ao serviço de Mrs. Weldon, testemunhava-lhe, como sabia e podia, uma certa afeição selvagem, mas sincera.

Mrs. Weldon raras vezes via José António Alves, que ocupava a casa principal da feitoria, e nunca via Negoro, que estava alojado fora, mas cuja ausência era bastante inexplicável.

Tal reserva não deixava de a espantar e de a inquietar ao mesmo tempo.

«Que quer ele? Que espera ele?», pensava Mrs. Weldon. «Porque nos trouxe para Kasonde?»

Assim se passaram os oito dias que precederam a chegada da caravana de Ibn Hamis, isto é, os dois dias antes das cerimónias fúnebres, e finalmente os seis dias seguintes.

No meio de tantas ansiedades, Mrs. Weldon não podia esquecer que o seu marido devia estar aflitíssimo, vendo que nem a sua mulher nem o seu filho chegavam a São Francisco.

Mr. Weldon não podia saber que sua mulher tinha resolvido embarcar-se a bordo do «Pilgrim», e devia acreditar, pelo contrário, que ela teria tomado passagem em um dos vapores da companhia transpacífica. Os vapores chegavam regularmente, e nem Mrs. Weldon, nem Jack, nem primo Bénédict vinham a bordo. Também já era tempo para o «Pilgrim» estar fundeado no porto da chegada. Como, porém, não aparecia, James Weldon devia classificá-lo entre os navios considerados perdidos por falta de notícias. E que terrível golpe seria quando recebesse dos seus correspondentes de Auckland o aviso da partida do «Pilgrim» e do embarque de Mrs. Weldon!

Que teria ele feito? Ter-lhe-ia custado a acreditar que ela e o seu filho tivessem perecido no mar! Mas, em tal caso, aonde dirigiria ele as suas investigações? Evidentemente para as ilhas do Pacífico, e talvez para todo o litoral americano. Mas nunca, nunca, lhe acudiria ao pensamento que ele tivesse sido levado para a costa da África!

Assim pensava Mrs. Weldon. Mas que podia ela tentar? Fugir? Como? Se a vigiavam tanto! E demais, fugir, para se aventurar, por entre as densas florestas, no meio de perigos sem número, a empreender uma viagem de mais de duzentas milhas para chegar à costa! Contudo, Mrs. Weldon estava resolvida a fazê-lo se não se lhe oferecesse outro meio de recuperar a sua liberdade. Antes, porém, queria saber com certeza quais eram as intenções de Negoro.

Soube-as enfim.

No dia 6 de Junho, sete dias depois do funeral do rei de Kasonde, Negoro entrou na feitoria, aonde ainda não tinha ido depois da sua volta, e dirigiu-se para a cubata ocupada pela prisioneira.

Mrs. Weldon estava só. Primo Bénédict andava numa das suas excursões científicas; Jack, vigiado pela escrava Halima, brincava no pátio da feitoria.

Negoro empurrou a porta e, sem preâmbulos, informou:

 — Mrs. Weldon: Tom e os seus companheiros foram vendidos para os mercados de Ujiji.

 — Deus os proteja! — respondeu Mrs. Weldon, limpando uma lágrima.

 — Nan morreu no caminho, Dic Sand foi morto...

 — Quê? Nan morreu! E Dick... também! — exclamou Mrs. Weldon.

 — Sim, era justo que o seu capitão de quinze anos pagasse com a vida o assassinato de Harris — replicou Negoro. — Agora está só em Kasonde, senhora, só em poder do antigo cozinheiro do «Pilgrim», absolutamente só, entende-me bem?...

O que dizia Negoro era verdade, até no que se referia a Tom e aos seus camaradas. O velho negro, com seu filho Bat, Acteão e Agostinho, tinham partido na véspera com a caravana do negreiro de Ujiji, sem terem a consolação de tornar a ver Mrs. Weldon, sem saberem mesmo que a sua companheira de desgraça estava em Kasonde, na feitoria de Alves. Tinham partido para a região dos lagos, viagem que se conta por centenas de milhas, que poucos conseguem fazer e de onde ainda menos voltam!

 — Ah! — murmurou Mrs. Weldon, fitando Negoro e sem lhe responder.

 — Mrs. Weldon — continuou o ex-cozinheiro secamente — , podia vingar-me da maneira como fui tratado a bordo do «Pilgrim». Mas a morte de Dick Sand basta para satisfação da minha vingança. Agora sou negociante,! e eis quais são os meus projectos a seu respeito. Mrs. Weldon fitava-o sem lhe dizer nada.

 — A senhora — continuou Negoro — , o seu filho e esse imbecil que se diverte a apanhar moscas, têm um certo valor comercial que eu pretendo aproveitar. Assim, pois, vou vendê-los.

 — Sou de raça livre — respondeu Mrs. Weldon com energia.

 — É escrava, porque eu quero.

 — E quem comprará uma branca?

 — Um homem que me dará tudo quanto eu lhe pedir(1)...

Mrs. Weldon curvou a cabeça, porque bem sabia que naquele terrível continente tudo era possível.

 — Entendeu-me? — perguntou Negoro.

 — Quem é esse homem a quem quer vender-me?

 — Vender ou revenderl... Suponho-o pelo menos... — continuou Negoro, sorrindo-se.

 — O nome desse homem? — insistiu Mrs. Weldon.

 — James W. Weldon!

 — Meu marido! — exclamou Mrs. Weldon, que não podia acreditar no que ouvia.

 — Sim, Mrs. Weldon, o seu marido, a quem eu não quero entregar, mas fazer pagar por bom preço, a mulher, o filho e primo Bénédict!

Mrs. Weldon perguntava a si mesma se Negoro não lhe estaria preparando uma cilada. Contudo pareceu-lhe que ele falava seriamente. Pode-se confiar num miserável para quem o dinheiro está acima de tudo, quando se trata de negócios, e neste caso tratava-se de um negócio?

 — E quando pensa fazer essa operação? — inquiriu Mrs. Weldon.

 — O mais cedo possível.

 — Onde?

— Aqui! James W. Weldon não hesitará em vir até Kasonde buscar a mulher e o filho...

 — Não hesitará decerto! Mas quem o avisará?

 — Eu! Irei a São Francisco procurar James Weldon. E não me faltará dinheiro para fazer a viagem.

 — O dinheiro roubado de bordo do «Pilgrim»?

 — Sim... esse... e outro mais — respondeu impudentemente Negoro.- — Mas se a quero vender com brevidade, quero também vendê-la por bom preço. Julgo que James Weldon não fará questão de cem mil dólares...

 — Não, decerto, se os puder dar — respondeu friamente Mrs. Weldon. — Mas meu marido, a quem decerto dirá que estou retida como prisioneira em Kasonde, na África Central...

 — Exactamente.

 — Não o acreditará sem provas, e não cometerá a imprudência de vir até Kasonde fiado unicamente na sua palavra.

 — Virá se eu lhe levar uma carta que Mrs. Weldon lhe há-de escrever, e na qual lhe dirá qual é a sua situação, e me pintará como um servo fiel, fugido aos selvagens...

 — Nunca a minha mão escreverá tal carta — afirmou ainda mais friamente Mrs. Weldon.

 — Recusa? — exclamou Negoro.

 — Recuso!...

A lembrança dos perigos que correria o seu marido vindo até Kasonde, a pouca confiança que mereciam as promessas de Negoro, a facilidade que este teria de reter James Weldon, depois de haver recebido o preço ajustado, todas estas razões fizeram que no primeiro momento Mrs. Weldon, não pensando senão em si, e esquecendo tudo, até mesmo seu filho, recusasse sem hesitar a proposta de Negoro.

 — Há-de escrever! — teimou Negoro.

 — Não... — afirmou outra vez Mrs. Weldon.

 — Ah! Tome bem conta! — exclamou Negoro.

— Olhe que não está aqui só. O seu filho também está em meu poder, e eu bem sei o que tenho a fazer!...

 Se Mrs. Weldon quisesse responder, ser-lhe-ia impossível. O coração batia-lhe extraordinariamente. Não podia falar.

 — Mrs. Weldon — avisou Negoro — , pense bem na proposta que lhe fiz. Daqui a oito dias, ou me entregará uma carta dirigida a James Weldon, ou se arrependerá se o não fizer!

Dito isto, o ex-cozinheiro do «Pilgrim» retirou-se sem dar expansão à sua cólera; mas era fácil de ver que nada haveria que o impedisse de obrigar Mrs. Weldon a obedecer-lhe.

 

BREVE NOTÍCIA DO DR. LIVINGSTONE

Quando Mrs. Weldon ficou só, pensou antes de tudo que decorreriam ainda oito dias até que Negoro lhe viesse pedir a resposta definitiva. Era tempo bastante para reflectir e tomar qualquer resolução. Na probidade de Negoro não havia que confiar, mas sim no seu interesse. O valor comercial que ele dava à prisioneira devia sem dúvida salvaguardá-la e acautelá-la, temporariamente pelo menos, contra qualquer tentativa desagradável. Talvez que ela conseguisse achar um meio termo pelo qual pudesse ser entregue a seu marido sem que este fosse obrigado a vir até Kasonde. James Weldon, vendo uma carta de sua mulher, partiria e afrontaria os perigos de uma viagem através das mais terríveis regiões da África. Mas chegado que fosse a Kasonde, e quando Negoro tivesse já nas suas mãos os cem mil dólares, que garantia teriam James W. Weldon, sua mulher, Jack e primo Bénédict de que os deixariam partir? Não os impediria qualquer capricho da rainha Moina? A entrega de Mrs. Weldon e dos seus não se faria em melhores condições em um ponto determinado da costa, evitando a James W. Weldon os perigos da viagem pelo interior e as dificuldades, para não dizer as impossibilidades, da volta?

Era no que reflectia Mrs. Weldon. Foi por isto que recusou aceder imediatamente à proposta de Negoro de lhe dar uma carta para seu marido. Pensava também que, se Negoro tinha fixado a segunda visita para daí a oito dias, era, sem dúvida, porque necessitava desse tempo para preparar a viagem; senão viria decerto mais cedo obrigá-la a escrever.

«Pretenderá ele realmente separar-me do meu querido filho?», murmurava ela.

No mesmo momento, Jack entrou na cubata, e por um movimento instintivo a mãe agarrou-o, como se ali estivesse Negoro para lho arrancar dos braços.

 — Mãe, tens algum desgosto? — perguntou a criança.

 — Não, meu Jack, não tenho! — respondeu Mrs. Weldon. — Lembrava-me do teu papá! Gostavas de o ver agora?

 — Oh, se gostava! Então ele vem cá?

 — Não, não. Não é necessário que ele venha!

 — Então vamos nós ter com ele?

 — Sim, meu Jack.

 — Com o meu amigo Dick... e Hércules... e o velho Tom?

 — Sim... Sim! — respondeu Mrs. Weldon, baixando a cabeça para esconder as lágrimas.

 — O papá escreveu? — perguntou Jack.

 — Não, meu querido.

 — Então é a mamã que lhe vai escrever?

 — Sim... sim... talvez!

E, sem o saber, Jack entrava directamente nos pensamentos de sua mãe, que, para não lhe responder de outro modo, o cobriu de beijos.

Convém dizer que aos diversos motivos que levaram Mrs. Weldon a resistir às exigências de Negoro se juntava um outro, de não pequeno valor. Mrs. Weldon tinha talvez a probabilidade inesperada, é certo, de ser posta em liberdade sem intervenção de seu marido e até contra a vontade de Negoro.

Era apenas um vago clarão de esperança, mas era esperança.

Com efeito, algumas palavras de uma conversação, que ela ouvira dias antes, tinham-lhe deixado antever a possibilidade de socorro em época próxima. Podia dizer-se que era um socorro providencial.

Alves e um mestiço de Ujiji conversavam a alguns passos da cabana que Mrs. Weldon ocupava. Não é de estranhar que o assunto da conversação destes honrados negociantes fosse a escravatura. Os dois mercadores de carne humana falavam de negócios. Discutiam o futuro do seu comércio e mostravam-se inquietos pelos esforços que faziam os Ingleses para o destruir, não só nas costas marítimas com os cruzadores, mas no interior do continente, servindo-se dos missionários e dos viajantes.

José António Alves era de opinião que as explorações destes atrevidos viajantes se opunham à liberdade das transacções counerciais. O seu interlocutor tinha absolutamente as mesmas ideias, e dizia que esses visitantes deviam ser todos recebidos a tiro de espingarda.

Pouco menos lhes fariam, mas, com grande desprazer dos negociantes, se acaso matassem alguns dos tais curiosos, vinham logo outros. Estes, de volta ao seu país, contavam «exagerando», dizia Alves, os horrores do tráfico de escravos, o que fazia grande mal a este comércio, já muito decaído.

O mestiço concordava e deplorava, sobretudo pelo que dizia respeito aos mercadores de Nyamgué, de Ujiji, de Zanzibar e de toda a região dos lagos. Ali tinham ido sucessivamente Speke, Grant, Livingstone, Stanley e outros. Era uma invasão. Dentro em pouco, a Inglaterra e a América ocupariam todo o território.

Alves lastimava sinceramente o seu colega, e confessava que as províncias da África Ocidental tinham sido até ali menos maltratadas, isto é, menos visitadas; mas a epidemia dos viajantes ia-se espalhando. Se Kasonde havia sido poupada, não acontecia outro tanto a Caçange e ao Bié, onde Alves possuía também feitorias. Não deve ter-se esquecido que Harris falou a Negoro de um certo tenente Cameron, que poderia ter talvez o atrevimento de atravessar a África de uma costa para a outra, entrando por Zanzibar, para sair pela província de Angola.

O negreiro tinha, com efeito, razões para recear, pois é sabido que, alguns anos depois, Cameron pelo sul e Stanley pelo norte, exploravam essas ignotas províncias de oeste e descreviam as grandes atrocidades da escravatura, patenteavam as cumplicidades criminosas dos agentes estrangeiros e faziam recair toda a responsabilidade sobre quem realmente a deve ter.

Da exploração de Cameron e de Stanley nada podiam saber ainda, nem Alves nem o mestiço; o que porém sabiam, o que disseram, o que Mrs. Weldon ouviu, o que era de grandíssimo interesse para ela, numa palavra, o que a firmara na recusa de satisfazer imediatamente às exigências de Negoro, foi o seguinte:

O Dr. Livingstone devia chegar a Kasonde dentro de pouco tempo.

Ora a chegada de Livingstone, com a sua escolta, a muita influência que o grande viajante tinha na África, o concurso das autoridades portuguesas de Angola, que não deixariam de lhe prestar auxílio, tudo isto podia contribuir para pôr em liberdade Mrs. Weldon e os seus, contra a vontade de Negoro e de Alves! Era talvez a sua repatriação, em época próxima, e sem que James W. Weldon tivesse de arriscar a vida numa viagem cujo resultado não podia deixar de ser mau.

Mas haveria alguma probabilidade de que o Dr. Livingstone viesse proximamente visitar esta parte do continente? Havia, porque, seguindo tal itinerário, completava a exploração da África Central.

É conhecida a vida heróica do filho do pequeno negociante de chá de Blantyre, vila do condado de Lanark. Nascido em 13 de Março de 1813, David Livingstone, o segundo dos seis filhos, obteve, à força de estudar, os diplomas de teólogo e médico, e, depois de ter feito o seu noviciado em London Missionary Society, desembarcou em 1840 no Cabo da Boa Esperança, com o intento de se juntar ao missionário Moffat, na África Meridional.

Do Cabo passou o futuro viajante para o reino dos Bechuanas, que pela primeira vez explorou, voltou a Kuruman, desposou a filha de Moffat, essa valente companheira que tão digna foi dele, e, em 1843, fundava uma missão no vale de Mabotsa.

Quatro anos depois, encontrava-se Livingstone estabelecido em Kolobeng, duzentas e vinte e cinco milhas ao norte de Kuruman, no reino dos Bechuanas.

Dois anos depois, em 1849, Livingstone deixava Kolobeng, acompanhado por sua mulher, pelos seus três filhos e por mais dois amigos, Oswell e Murray. No dia 1 de Agosto do mesmo ano descobria o lago Negami e voltava para Kolobeng descendo o Zuga.

Durante esta viagem, Livingstone, contrariado pela má vontade dos negros, não conseguira ir além de Negami. Não foi mais feliz na segunda tentativa. À terceira devia ser bem sucedido. Seguindo novamente a caminho do norte, com a sua família e Mr. Oswell, depois de misérias terríveis, falta de víveres e de água, pensando que lhe custaria a vida dos seus filhos, chegou, finalmente, caminhando ao longo do Chobé, afluente do Zambeze, ao reino dos Macolobos. O chefe, Sebituane, veio ter com Livingstone a Linyanti. No fim de Junho de 1851, o Zambeze estava descoberto, e o doutor voltava para o Cabo a fim de mandar a sua família para Inglaterra.

O intrépido Livingstone queria ser o único a arriscar a vida na difícil viagem que ia empreender.

Propunha-se desta vez, partindo do Cabo, atravessar a África obliquamente do sul para o oeste e ir a São Paulo de Luanda.

Partiu, com efeito, acompanhado por alguns indígenas, a 3 de Junho de 1852. Chegou a Kuruman e atravessou o deserto de Kalahari. A 31 de Dezembro entrou em Litubaruba e foi encontrar a terra dos Bechuanas assolada pelos Boers, antigos colonos holandeses, senhores do Cabo da Boa Esperança antes de os Ingleses tomarem posse dele. Livingstone saiu de Litubaruba a 15 de Janeiro de 1853, penetrou até ao centro do reino dos Bamanguatos e, a 23 de Maio, chegou a Linyanti, onde o poderoso soberano dos Macololos, Sekeletu, o recebeu com honras.

Aí, o doutor, retido por intensas febres, entregou-se ao estudo dos costumes da região, e pela primeira vez teve ocasião de ver os danos que fazia na África o comércio de escravos.

um mês depois desceu o Chobé, viu o Zambeze, entrou em Naniele, visitou Katonga e Libonta, chegou ao confluente do Zambeze e do Leba, projectando subir por este rio até às possessões portuguesas do oeste, e voltou a Linyanti para se preparar para tal viagem depois de nove semanas de ausência.

A 11 de Novembro o doutor, acompanhado por vinte e sete macololos, deixou Linyanti, e a 27 de Dezembro chegou à embocadura do Leba. Subiu este rio até ao território dos Balundas, no lugar onde recebe o Makondo, que vem de leste. Era a primeira vez que um homem branco aparecia naquela região.

Em 14 de Janeiro de 1854 entrou Livingstone na residência de Shinte, o mais poderoso soberano dos Balundas, que o recebeu bem, e a 26 do mesmo mês, depois de haver atravessado o Leba, chegava até junto do rei de Katema. Aí teve igualmente boa recepção e daí partiu sem detença a pequena caravana, que a 20 de Fevereiro acampou nas margens do lago Dilolo.

A partir deste ponto, regiões más, exigências dos indígenas, ataques das tribos, revolta dos que o acompanhavam e ameaças de morte, tudo se juntou, tudo conspirou contra Livingstone, e um homem menos enérgico teria sucumbido.

O doutor resistiu sempre, e a 4 de Abril chegou às margens do Cuango, corrente de água caudalosa a que forma a fronteira das possessões portuguesas, e, caminhando para o norte, vai lançar-se no Zaire.

Seis dias depois Livingstone entrou em Caçande, onde Alves o viu, e a 31 de Maio chegou a São Paulo de Luanda.

Pela primeira vez, e depois de dois meses de viagem, era a África atravessada obliquamente do sul para o oeste.

A 24 de Setembro do mesmo ano, David Livingstone deixou Luanda e, seguindo pela margem direita do Cuanza, rio que tão funesto foi a Dick Sand e aos seus companheiros, chegou à confluência do Lombe, encontrando numerosas caravanas de escravos, tornou a passar por Caçande, de onde partiu a 20 de Fevereiro de 1855, atravessou o Cuango e entrou no Zambeze em Kawawa. A 8 de Junho tornou a encontrar o lago Dilolo, foi a Shinte, desceu o Zambeze e deu entrada em Linyanti, de onde partiu a 3 de Novembro.

A segunda jornada em direcção à costa oriental devia completar a viagem através da África do oeste para leste.

O Dr. Livingstone, depois de ter visto a famosa catarata Vitória, o «fumo ruidoso», deixou o Zambeze para se dirigir ao nordeste. Atravessou o território dos Batocas, indígenas embrutecidos pelo fumo do cânhamo, visitou Semalembue, chefe poderoso, atravessou o Kafue, voltou ao Zambeze, visitou o rei Beburuma, viu as ruínas de Zumbo, antiga cidade portuguesa, encontrou-se em 17 de Janeiro de 1856 com o chefe Mepende, que então estava em guerra com os Portugueses, e chegou finalmente a Tete, nas margens do Zambeze, no dia 2 de Março. Tais foram os factos mais notáveis deste itinerário.

Em 22 de Abril, Livingstone deixou esta região, tão rica outrora, desceu até ao delta do rio e chegou a Quelimane em 20 de Maio, quatro anos depois de ter partido do Cabo. Em 12 de Julho embarcou para a ilha Maurícia e a 22 de Dezembro voltou a Inglaterra, ao cabo de dezasseis anos de ausência.

Prémios da Sociedade de Geografia de Paris, a primeira medalha da Sociedade de Geografia de Londres, recepções brilhantes, nada faltou ao ilustre viajante.

No seu lugar outros teriam pensado que o repouso lhes era devido. Não o julgou assim o doutor, e no 1.o de Março de 1858 partiu novamente, acompanhado por seu irmão Carlos, pelo capitão Bedindfield, pelos Drs. Kirk e Mel-ler e por Mr. Thornton e Mr. Baines, chegando em Maio à costa de Moçambique, tendo por fim o reconhecimento do vale do Zambeze.

Alguns destes exploradores não deviam voltar desta viagem.

Um pequeno vapor, o «Mac-Robert», permitiu aos exploradores subir o grande rio, entrando pela boca do Kangone. Chegaram a Tete a 8 de Setembro. Reconheceram em Janeiro de 1859 o curso inferior do Zambeze e do Chire, seu afluente na margem esquerda, visitaram o lago Chirua em Abril, exploraram o território dos Manguenjas, e descobriram o lago Niassa a 10 de Setembro, voltando às cataratas Vitória em 9 de Agosto de 1860.

Em 31 de Janeiro de 1861, Mackenzie e os missionários que o acompanhavam chegaram ao Zambeze; em Março fez-se a exploração do Rovuma, a bordo do «Pionier»; em Setembro de 1861 voltaram ao lago Niassa, onde ficaram até aos fins de Outubro. A 30 de Janeiro de 1862 chegou Mrs. Livingstone em outro vapor, o «Lady Niassa». Tais foram os factos mais notáveis da segunda expedição. A este tempo já o bispo Mackenzie e um dos missionários tinham sucumbido pela acção do clima, e, em 27 de Abril, Mrs. Livingstone morreu nos braços de seu marido.

Em Maio tentou o doutor fazer segundo reconhecimento do Rovuma, e nos fins de Novembro entrou no Zambeze, subiu o Chobé, perdeu o seu companheiro Thornton em Abril de 1863, e mandou para a Europa o seu irmão Carlos e o Dr. Kirk, extenuados pelas doenças. A 10 de Novembro viu pela terceira vez o Niassa, do qual completou o estudo hidrográfico. Três meses depois voltou novamente à foz do Zambeze, de passagem para Zanzibar, e a 20 de Julho de 1864, depois de cinco anos de ausência, chegou a Londres e publicou o seu livro: Exploração do Zambeze e dos seus afluentes.

Em 28 de Janeiro de 1866, Livingstone desembarcou de novo em Zanzibar; começava então a sua quarta viagem.

A 8 de Agosto, depois de ter assistido às terríveis cenas que o comércio de escravos produzia naquela ilha, o doutor, levando apenas consigo, desta vez, alguns sipaios e negros, estava novamente em Mokalaose, nas margens do Niassa. Seis semanas depois a maior parte da gente que o acompanhava fugiu, voltando para Zanzibar, onde se espalhou o falso boato da morte de Livingstone.

Este, porém, não recuava. Queria visitar as terras que ficavam entre o Niassa e o Tanganhica. A 10 de Dezembro, guiado por alguns indígenas, atravessou a ribeira de Loangula, e a 2 de Abril do ano seguinte descobriu o lago Liemba. Aí esteve um mês entre a vida e a morte. Apenas restabelecido, a 30 de Agosto chegou ao lago Moero, do qual viu toda a margem setentrional, e a 21 de Novembro entrou em Cazembe, onde esteve quarenta dias, durante os quais por duas vezes renovou a sua exploração ao lago Moero.

De Cazembe, Livingstone caminhou para o norte com o desígnio de chegar à importante cidade de Ujiji, no Tanganhica.

Contrariado pelas cheias e abandonado dos guias, teve de voltar a Cazembe. Desceu para o sul a 6 de Julho de 1868, e seis semanas depois estava no grande lago de Banguelo. Ali se demorou ele até 9 de Agosto, tentando então nova marcha para o Tanganhica.

Que viagem! Desde 7 de Janeiro de 1869, a fraqueza do heróico doutor era tal que tinham de o transportar.

Em Fevereiro chegou ao lago e entrou em Ujiji, onde encontrou alguns objectos que lhe haviam sido enviados pela Companhia Oriental de Calcutá.

Livingstone tinha então uma única ideia: era descobrir as origens ou o vale do Nilo, subindo o Tanganhica.

Em 21 de Setembro estava em Bambarre, no Manyema, região de canibais; pouco depois chegou ao Lualaba — o Lua-laba que Cameron suspeitaria e Stanley descobriria ser o Alto Zaire ou Congo. Em Mamohela esteve o doutor doente oitenta dias, tendo apenas três servos. A 21 de Julho de 1871 voltou para o Tanganhica, e só a 23 de Outubro estava de volta a Ujiji. Era um esqueleto.

Antes desta época, porém, havia muito que não se recebiam notícias do famoso viajante. Na Europa julgavam-no morto. O próprio Livingstone chegou a perder a esperança de ser socorrido.

Onze dias depois da sua chegada a Ujiji, a 3 de Novembro, ouviram-se muitos tiros de espingarda a cerca de um quarto de milha do lago. Acode o doutor. Um homem, um branco, aparece diante dele.

 — Suponho que é o Dr. Livingstone...

 — Sim — respondeu este, tirando o boné, e com um sorriso benevolente.

E apertaram as mãos com efusão.

 — Dou graças a Deus por o ter encontrado!

 — E eu considero-me muito feliz em me achar aqui para o receber.

O branco era o americano Stanley, correspondente do New York Herald, que Mr. Bennett, director do jornal, enviara em busca de David Livingstone.

No mês de Outubro de 1870, este americano, sem hesitar, sem alardear, mas simplesmente como um herói, embarcou em Bombaim com destino a Zanzibar, e, seguindo proximamente o itinerário de Speke e Burton, depois de grande número de provações e tendo muitas vezes a vida em grande risco, chegou a Ujiji.

Os dois viajantes, já amigos, fizeram então juntos uma expedição ao norte do Tanganhica. Embarcaram, foram até ao Cabo Malaga, e, depois de minuciosa exploração, concordaram que o grande lago tinha por desaguadouro um dos afluentes do Lualaba. Foi isto mesmo que Cameron e o próprio Stanley determinaram poucos anos depois.

A 12 de Dezembro, o Dr. Livingstone e o seu companheiro estavam novamente em Ujiji.

Stanley dispôs-se para partir. A 27 de Dezembro, ao cabo de oito dias de navegação, o doutor e Stanley chegaram a Urimba, e a 23 de Fevereiro do ano seguinte entravam em Kuihara.

O dia 12 de Março foi o da despedida.

 — Fez — disse o doutor ao seu companheiro — o que poucos homens seriam capazes de fazer, e muito melhor do que alguns viajantes notáveis. Fico-lhe muito obrigado. Deus o acompanhe, meu amigo, e o abençoe!

 — Permita Ele — desejou Stanley, apertando a mão de Livingstone — que o nosso caro doutor volte são e salvo.

Stanley separou-se rapidamente, voltando-se para esconder as lágrimas.

 — Adeus, doutor! Adeus, caro amigo! — disse com voz sufocada.

 — Adeus — respondeu fracamente Livingstone. Stanley partiu, e a 12 de Julho de 1872 desembarcava

em Marselha.

Livingstone continuou nas suas investigações. A 25 de Agosto, tendo passado cinco meses em Kuihara, acompanhado pelos seus criados pretos, Susi, Chumba e Amada, de mais dois criados de Jacob Wainuright e cinquenta e seis homens enviados por Stanley, dirigiu-se para o sul do Tanganhica.

Um mês depois, no meio de trovoadas, que grandes secas haviam provocado, chegou a caravana a Mura. As chuvas, a má vontade dos indígenas e a perda das cavalgaduras, mortas pelas mordeduras da tsé-tsé, contrariaram não pouco a pequena caravana, que chegou, no entanto, a Chkanokue. A 27 de Abril de 1872, tendo contornado por leste o lago Banguelo, caminhou em direcção à aldeia de Chitambo.

Foi neste ponto que alguns traficantes de escravos tinham deixado Livingstone. É isto o que, por eles, sabiam Alves e o seu colega de Ujiji. Era crível que o doutor, depois de explorar o lado sul do lago, se aventurasse em procurar para o ocidente regiões desconhecidas, seguindo depois para Angola, visitando os territórios infestados pela escravatura, passando por Kasonde. Era o itinerário provável, e era verosímil que Livingstone o seguisse.

Era, pois, com a próxima chegada do grande viajante que Mrs. Weldon contava, porque no princípio de Junho havia mais de dois meses que ele devia ter chegado ao sul do lago Banguelo.

A 13 de Junho, véspera do dia em que Negoro viria reclamar de Mrs. Weldon a carta que devia render-lhe cem mil dólares, espalhou-se uma triste notícia, a qual alegrou imenso Alves e os outros negreiros.

No dia 1 de Maio de 1873, ao romper da manhã, o Dr. David Livingstone tinha morrido.

A pequena caravana chegara com efeito, a 29 de Abril, à aldeia de Chitambo, na margem sul do lago. O doutor era conduzido numa padiola. Na noite do dia 30, sob a influência de excessivos sofrimentos, soltou ele este lamento que mal se ouviu: "Oh! dear! dear!", e caiu em grande torpor.

Uma hora depois chamava o seu criado Susi, pedia alguns medicamentos e murmurava com voz extremamente fraca:

 — Muito bem! Agora pode retirar-se!

Pelas quatro horas da manhã, Susi e mais cinco homens entravam na cabana do doutor.

David Livingstone estava ajoelhado junto do leito, com a cabeça apoiada entre as mãos. Parecia estar orando.

Susi pôs-lhe cautelosamente o dedo na face: estava fria.

David Livingstone já não era deste mundo.

Nove meses depois o seu corpo, transportado pelos seus criados fiéis, à custa de esforços inauditos, chegava a Zanzibar, e a 12 de Abril de 1874 era sepultado na Abadia de Westminster, entre os grandes homens que a Inglaterra honra a par dos seus reis.

 

AONDE PODE CONDUZIR UMA MANTICORA

Qual é a tábua de salvação a que não se agarre o desgraçado? Qual é a luz de esperança, por vaga e ténue que seja, que o condenado não procure descobrir?

Assim aconteceu a Mrs. Weldon, e compreender-se-á o que ela sentiu quando soube, porque o ouviu a Alves, que Livingstone tinha morrido havia pouco tempo numa pequena aldeia próxima do lago Banguelo. Pareceu-lhe que estava mais isolada que nunca, que uma espécie de laço, que a prendia ao viajante, e com ele ao mundo civilizado, se desfizera. A tábua de salvação escapava-lhe das mãos, a luz de esperança fugira-lhe dos olhos. Tom e os seus companheiros tinham partido de Kasonde para a região dos lagos.

De Hércules não havia a menor notícia. Mrs. Weldon não podia contar com pessoa alguma. Tinha por consequência de aceder à proposta de Negoro, tratando de a modificar e de lhe assegurar bom resultado.

A 14 de Junho, dia fixado, Negoro apresentou-se na cabana de Mrs. Weldon.

O ex-cozinheiro do «Pilgrim» foi, como sempre, e como ele próprio dizia, perfeitamente prático. Não teve de ceder sobre a importância, que aliás a sua prisioneira não discutiu. Mrs. Weldon, porém, mostrou-se também muito prática, porque lhe disse:

 — Se quer realizar um negócio, não o torne impossível propondo condições inaceitáveis. A troca da nossa liberdade pela quantia que exige obtém-se sem que o meu marido precise de vir a uma terra onde se sabe o que pode acontecer a um branco. Ora, custe o que custar, não quero que ele venha aqui!

Depois de pequena hesitação, Negoro cedeu, e Mrs. Weldon conseguiu que James Weldon não tivesse necessidade de se aventurar até Kasonde. O navio que o transportasse surgiria na baía de Moçâmedes, porto muito conhecido de Negoro. Seria ali que este levaria James W. Weldon e ali que, em data determinada, os agentes de Alves conduziriam Mrs. Weldon, o pequeno Jack e primo Bénédict.

A soma ajustada seria entregue aos agentes, a troco dos prisioneiros, e Negoro, que teria passado para James Weldon por homem honrado, desapareceria logo depois da chegada do navio.

Era importantíssimo o que Mrs. Weldon obtivera. Evitava a seu marido os perigos da viagem até Kasonde, ou da volta para o litoral, e o risco de ser retido como prisioneiro depois de ter pago o resgate ajustado. As seiscentas milhas que separavam Kasonde de Moçâmedes não causariam a Mrs. Weldon, percorrendo-as nas mesmas condições em que tinha viajado desde que partiu do Cuanza, senão pequena fadiga, mas o interesse de Alves — porque tinha parte no negócio — era que os prisioneiros chegassem sãos e salvos.

Combinadas assim as coisas, Mrs. Weldon escreveu a seu marido, no sentido indicado, deixando a Negoro o cuidado de se apresentar como servo dedicado, fugido aos indígenas. Negoro pegou na carta, que não dava a James Weldon motivo de hesitação para o seguir até Moçâmedes, e no dia seguinte, escoltado por vinte negros, dirigia-se para o norte. Porque seguia esta direcção? Teria a intenção de ir embarcar em algum dos navios que frequentam a embocadura do Zaire, evitando deste modo as autoridades portuguesas, assim como as cadeias de que já fora hóspede involuntário? É provável. E foi justamente esta razão que deu a Alves.

Depois da partida de Negoro, Mrs. Weldon devia dispor-se a passar o melhor que fosse possível o tempo que ainda tivesse de demora em Kasonde. Eram três ou quatro meses, admitindo as hipóteses mais favoráveis. A ida e volta de Negoro não exigia decerto menos tempo.

Não tencionava Mrs. Weldon deixar a feitoria. Ali, ela, o filho e primo Bénédict estavam relativamente seguros. Os cuidados de Halima suavizavam um pouco os rigores da prisão. Era também verosímil que o traficante os não deixasse sair.

A boa maquia que lhe havia de dar o resgate da prisioneira valia bem a pena de a guardar com todas as cautelas. Fora bom que Alves não tivesse sido obrigado a sair de Kasonde, para visitar as suas duas feitorias de Bié e de Caçande. Coimbra fora substituí-lo na expedição de novas correrias; nunca havia motivo para sentir a ausência deste borrachão.

Finalmente, Negoro, antes de partir, fizera as mais vivas recomendações a respeito de Mrs. Weldon. Convinha vigiá-la rigorosamente. Não se sabia o que era feito de Hércules. Se tivesse escapado aos muitos perigos da terrível província de Kasonde, era possível que tentasse aproximar-se da prisioneira e arrancá-la das mãos de Alves. O traficante tinha compreendido bem uma situação que representava bom número de dólares. Respondia por Mrs. Weldon, como pelo seu dinheiro.

A vida monótona para a prisioneira, durante os primeiros dias que passou na feitoria, logo depois da chegada, continuou ainda. O que se passava dentro do cerrado reproduzia com exactidão os diversos actos da existência indígena. Alves tinha os hábitos dos naturais de Kasonde. As mulheres pertencentes à feitoria lidavam, como se estivessem na sanzala, trabalhando em proveito dos seus maridos ou senhores. O arroz era pisado com pilões dentro de almofarizes até estar completamente descascado; escolhia-se, joeirava-se o milho, e faziam-se-lhe todas as manipulações necessárias para lhe extrair uma substância granulosa que serve para fazer a sopa a que na região se dá o nome de «metylé»; a colheita de uma espécie de milho «miúdo, que naquela época estava perfeitamente em estado de se panhar; a extracção do óleo odorífero dos caroços de «mepafu», espécie de azeitona, cuja essência constitui um aroma muito apreciado pelos indígenas; a fiação do algodão, cujas fibras são torcidas com um fuso de um pé de comprimento, e ao qual as fiandeiras imprimem rápido movimento de rotação; a fabricação, por meio de macetes, dos tecidos vegetais; a extracção da raiz de mandioca e a preparação da terra para os diversos produtos da região: a farinha de mandioca, as favas chamadas «mosksamés», cujas vagens têm quinze polegadas de comprimento e crescem em árvores de vinte pés de altura, as pistaceiras, destinadas a fazer óleo, as ervilhas vivazes, azuis-claras, conhecidas pelo nome de «chibolés», cujas flores tornam melhor o gosto um pouco desenxabido do caldo de massango, o café indígena, as canas-de-açúcar, cujo suco se transforma em melaço, as cebolas, as goiabas, o gergelim, os pepinos, cujas pevides são assadas como castanhas; a preparação das bebidas fermentadas, o malufo, feito de bananas, o «pombe» e outros licores; o tratamento dos animais, como as vacas, que se não deixam ordenhar sem que tenham à vista os próprios filhos ou um vitelo feito de palha, as bezerras, de raça pequena, de chavelhos curtos, e algumas das quais têm corcova, as cabras, que, na região onde a carne delas serve para a alimentação, são objecto importante para as permutações, e até, pode dizer-se, moeda corrente, como é o escravo; finalmente, o tratamento das aves domésticas e dos porcos, dos carneiros, bois, etc; toda esta extensa enumeração mostra quais são os rudes trabalhos que incumbem ao sexo fraco naquelas selváticas regiões do continente africano. Enquanto as mulheres trabalham, os homens fumam tabaco ou cânhamo, caçam elefantes ou búfalos, contratam-se com os traficantes para fazer correrias. Colheita de milho ou escravos é sempre colheita, que se faz em épocas determinadas.

Destas diversas ocupações, Mrs. Weldon conhecia apenas na feitoria do Alves as que eram desempenhadas por mulheres. Algumas vezes parava para as ver, mas estas acolhiam-na mal. O instinto da raça levava aquelas desgraçadas a odiar uma branca, e decerto não se lhes encontraria no coração comiseração por ela. Halima era a única excepção, e Mrs. Weldon, tendo aprendido um pouco da língua indígena, conseguia trocar algumas palavras com a jovem escrava.

Jack acompanhava muitas vezes a mãe, quando esta passeava dentro do cerrado, mas teria maior prazer se o deixassem sair. Havia porém lá dentro, sob a copa de uma enorme adansónia, ninhos de marabus, feitos com pequenas varinhas, e de «suimangas» de peito e pescoço encarnado, as quais se assemelham aos tecelões; viam-se também as viúvas, que, para abrigo da sua prole, tiram as palhinhas ao colmo; «calaos», cujo canto é agradável; papagaios cinzentos-claros e de cauda vermelha, os quais no Manyema se chamam «suss» e dão nome aos chefes das tribos; e finalmente «drugos» insectívoros, semelhantes a pintarroxos que tivessem o bico grande e vermelho. Pelo ar esvoaçavam centenas de borboletas de diferentes espécies, principalmente na proximidade dos ribeiros que atravessavam a feitoria, mas isto interessava mais a primo Bénédict do que a Jack, que tinha muita pena de não ser maior para poder ver por cima dos muros. Ah! Onde estaria o seu bom amigo Dick Sand, que na mastreação do «Pilgrim» subia com ele a tão grande altura! Como ele o seguiria sobre os ramos daquela árvore, que se elevava a mais de cem pés! Que grandes divertimentos teriam ali!

Primo Bénédict achava-se sempre bem onde estava, contanto que não lhe faltassem os insectos.

Tinha descoberto na feitoria — porque estudava quanto podia sem lente e sem óculos — uma abelha minúscula, que formava os alvéolos entre o caruncho da madeira, e um «sphex» dos que põem os ovos nas células que lhe não pertencem, exactamente como faz o cuco no ninho dos outros pássaros. Os mosquitos também não faltavam, perto dos arroios de água, e mordiam por tal modo primo Bénédict que o tornavam desconhecido. Quando Mrs. Weldon o censurava por se deixar devorar de tal maneira por tão importunos insectos, respondia, coçando-se até fazer escorrer sangue:

 — É o instinto, prima Weldon, é o instinto. Não lhes devemos querer mal por isso!

Enfim, um dia — foi a 17 de Junho — , primo Bénédict esteve quase sendo o mais feliz dos entomologistas. Mas esta aventura, que teve inesperadas consequências, merece ser contada com algumas particularidades.

Eram pouco mais ou menos onze horas da manhã. Insuportável calor obrigara os habitantes da feitoria a conservarem-se nas suas cabanas, e não se encontrava um indígena nas ruas de Kasonde.

Mrs. Weldon estava sentada perto de Jack, que dormia.

Primo Bénédict, que não escapara à influência daquela temperatura tropical, abandonara as suas caçadas favoritas, o que não deixava de lhe ser extremamente sensível, porque sob os ardentíssimos raios do sol do meio-dia ouvia ele zunir milhares de insectos. Tinha-se pois abrigado, com grande pena, dentro da sua cubata, e o sono começava a apoderar-se dele durante aquela sesta involuntária.

Repentinamente, quando os olhos mal se lhe fechavam, sentiu um estremecimento, isto é, um desses insuportáveis zumbidos de insectos; alguns destes pequenos animais dão quinze a dezasseis mil bateduras de asas em um segundo.

 — Um hexápode! — exclamou Bénédict, que imediatamente acordou, passando instantaneamente da posição horizontal para a posição vertical.

Que era um hexápode que zumbia dentro da cubata de primo Bénédict, não havia dúvida. Mas se primo Bénédkt era muito míope, tinha em compensação um ouvido delicadíssimo, a tal ponto que podia distinguir um insecto do outro pela intensidade do zumbido. Pareceu-lhe, porém, que este lhe era desconhecido, conquanto fosse produzido por um gigante da espécie.

«Que hexápode será?», perguntava a si mesmo primo Bénédict.

E ei-lo tentando distinguir o insecto, o que era muito difícil para a sua vista desarmada, mas procurando principalmente conhecê-lo pela agitação das asas.

O instinto de entomologista advertiu-o de que tinha boa caçada e que o insecto, tão providencialmente entrado na sua cabana, não devia ser o primeiro.

Primo Bénédict, sentado no chão, não se mexia. Escutava. Alguns raios de sol penetravam na cubata até onde ele estava. Os seus olhos descobriram então um grande ponto negro, que adejava, mas que não passava perto o bastante para que ele o pudesse reconhecer. Reprimia a respiração e, se se sentisse picado na cara ou nas mãos, estava decidido a não fazer o menor movimento sequer que obrigasse a fugir o hexápode.

Finalmente o insecto, zunindo sempre e depois de ter girado muito tempo em volta do entomologista, pousou-lhe na cabeça. A boca de primo Bénédict estendeu-se um pouco, como se fosse para sorrir; e que sorriso! Sentia o ligeiro animalzinho a correr-lhe pelos cabelos. Teve num momento vontade de lhe deitar a mão; mas resistiu, e fez bem.

«Não, não!», pensou ele. «Podia escapar-me ou, o que seria pior ainda, podia fazer-lhe -mal. Deixá-lo chegar mais! Cá anda ele! Desce agora! Sinto-lhe as delicadas pernas sobre a minha cabeça! Deve ser um hexápode de bom tamanho. Oh! Meu Deus! Se ele descesse até à ponta do meu nariz, aí, envesgando um pouco os olhos, podia vê-lo, e determinar a que ordem, género, espécie ou variedade pertence!»

Assim pensava primo Bénédict. Mas era longe do seu crânio oblongo à ponta do seu comprido nariz. Muitos outros caminhos podia seguir o caprichoso insecto; para o lado das orelhas ou do alto da cabeça, caminhos que o afastariam dos olhos do sábio, sem contar que de um instante para o outro podia tornar a voar, sair da cubata e perder-se nos raios do sol, onde passava a sua vida, entre os zumbidos dos seus congéneres, que de fora o atraíam.

Primo Bénédict pensou tudo isto. Nunca durante toda a sua vida de entomologista passara tantas emoções em tão curto espaço de tempo. Um hexápode africano, de espécie, ou pelo menos de variedade, ou talvez de subvariedade nova, estava sobre a sua cabeça, e não podia reconhecê-lo, a não ser que ele se dignasse passear a menos de uma polegada dos olhos do paciente entomologista.

Porém a súplica de primo Bénédict devia ser ouvida. O insecto, depois de haver caminhado sobre aquela cabeleira eriçada, como na copa de um arbusto inculto, começou a descer pela testa de primo Bénédict, e a este sorriu enfim a esperança de que ele se aventuraria até ir à ponta do nariz. Chegado onde estava, porque não desceria mais?

«No seu lugar, com certeza, eu descia», pensava o digno sábio.

O que é verdade é que qualquer outro teria dado uma grande palmada na testa, a fim de esmagar o insecto importuno, ou de, pelo menos, o obrigar a fugir. Sentir seis perninhas a moverem-se sobre a pele, sem falar no receio de ser mordido, e não fazer um gesto sequer, deve confessar-se que era heroísmo. O espartano, deixando que uma raposa lhe devorasse o peito, o romano, conservando entre os dedos carvões incandescentes, não resistia melhor do que primo Bénédict, descendente sem dúvida destes dois heróis.

O insecto, depois de dar algumas pequenas voltas, chegou ao alto do nariz. Primo Bénédict teve um momento de indecisão. O hexápode subiria ou desceria?

Desceu. Primo Bénédict sentiu-lhe as pernas aveludadas mexerem-se perto do nariz. O insecto não se inclinou, nem para a direita nem para a esquerda. Conservou-se ao meio, sobre a aresta levemente quebrada daquele nariz de sábio, tão bem disposto para trazer óculos. Transpôs a pequena cova feita pelo uso incessante de tal instrumento de óptica, que tanta falta fazia ao pobre primo, e parou finalmente na ponta do seu apêndice nasal.

Foi o melhor lugar que o hexápode podia ter escolhido. A tal distância, os dois olhos de primo Bénédict, fazendo convergir os raios visuais, podiam, como duas lentes, lançar sobre o insecto duplo olhar.

 — Oh! Louvado seja Deus! — exclamou primo Bénédict, que não se pôde conter. — A manticora tuberculosa!

Não era preciso gritar, bastava apenas pensar. Não seria, porém, exigir muito do mais entusiasta de todos os entomologistas?

Ter na ponta do nariz uma manticora tuberculosa, de grandes élitros, um insecto da tribo das cincidelas, exemplar raríssimo nas colecções, e que parece ser especial das regiões meridionais da África, e não soltar um brado de admiração, era superior às forças humanas!

Infelizmente, a manticora ouviu um grito, que foi quase seguido de um espirro, que sacudiu o apêndice sobre o qual ela estava pousada. Primo Bénédict quis agarrá-la, estendeu a mão, fechou-a violentamente e conseguiu apenas agarrar a ponta do nariz.

 — Maldita! — exclamou ele.

Mas depois deu provas de notável paciência.

Sabia que a manticora tuberculosa apenas esvoaça, que melhor anda do que voa. Ajoelhou-se e conseguiu distinguir, a menos de dez polegadas de distância dos olhos, um ponto negro passando rapidamente pelos raios do sol.

Antes estudá-la em completa liberdade. Convinha porém não a perder de vista.

«Posso apanhar a manticora, mas corro o risco de a esmagar!», pensou primo Bénédict. «Nada, não! Segui-la-ei! Admirá-la-ei primeiro! Tenho muito tempo para lhe deitar a mão.»

Enganar-se-ia? Ou se se enganasse ou não, ei-lo de pés e mãos pelo chão, com o nariz quase junto à terra, como um cão que fareja, e seguindo o magnífico hexápode, à distância de quatro a cinco polegadas. Pouco depois estava fora da cubata, sob a acção do ardente sol do meio-dia, e minutos depois junto da paliçada que circundava a feitoria de Alves.

Iria a manticora voltear por cima do cerrado, e de tal sorte pôr uma parede entre ela e o seu adorador? Não! Não estava isso na sua natureza, bem o sabia primo Bénédict. Assim, pois, seguiu-a sempre, arrastando-se como uma cobra, bastante longe para entomològicamente reconhecer o insecto, mas à distância indispensável para poder distinguir aquele grande ponto móvel que caminhava pelo solo.

A manticora, chegando perto do cercado, encontrou a entrada de uma toca de toupeiras, que perto dela se abria. Sem hesitar, penetrou por aquela galeria subterrânea, porque é dos seus hábitos procurar os lugares escuros. Primo Bénédict julgou que ia perdê-la de vista, mas, com grande surpresa, verificou que o furo aberto pelas toupeiras tinha a largura de dois pés pelo menos, e que a toca formava uma espécie de galeria em que o seu corpo magro e delgado podia caber. Nesta caçada, era ele como o furão, e por isso nem sequer percebeu que, enterrando-se por aquele modo, passava por debaixo da paliçada, porque a toca punha em comunicação natural o exterior com o interior da feitoria. Em meio minuto primo Bénédict achava-se do lado de fora. Não era porém coisa que o preocupasse. Todo o seu espírito estava concentrado na contemplação do elegante insecto que o guiava. Este, porém, tinha já caminhado bastante. Os élitros afastaram-se, as asas abriram-se. Primo Bénédict conheceu o perigo,  e ia fazer da mão prisão provisória para a manticora, quando esta, frrrr... voou!

Ficou desesperado! A manticora, porém, não podia ir longe. Primo Bénédict levamtou-se, olhou e avançou as mãos estendidas e abertas.

O insecto esvoaçava-lhe por cima da cabeça; ele apenas distinguia um grande ponto negro, sem forma apreciável.

A manticora viria repousar novamente na terra, depois de ter traçado alguns círculos caprichosos em torno da cabeça desgrenhada de primo Bénédict? Tudo fazia supor que assim sucederia.

Infelizmente, porém, a parte da feitoria de Alves, que estava situada na extremidade norte da povoação, confinava com uma vasta floresta, que cobria o território de Kasonde na extensão de muitas milhas quadradas. Se a manticora se metesse pela espessura do arvoredo, e lá começasse a voar de ramo em ramo, estava perdida a esperança de a fazer figurar na famosa caixa de folha, da qual ela seria jóia preciosa.

Foi o que aconteceu. A manticora pousara novamente no chão. Primo Bénédict, tendo a inesperada probabilidade de a tornar a ver, precipitou-se imediatamente com o nariz para a terra; mas a manticora já não andava, saltava.

Primo Bénédict, cansado, com os joelhos e as unhas ensanguentados, saltava também. Os braços e as mãos parecia que se desmanchavam, ora para a direita, ora para a esquerda, conforme o ponto negro saltava de um ou do outro lado. Dir-se-ia que o entomologista nadava de bruços sobre aquele solo ardentíssimo.

Trabalho inútil! Fechava as mãos repetidas vezes, mas sempre as fechava vazias. O insecto fugia-lhe sempre também, e, logo que chegou debaixo da fresca ramagem das árvores, elevou-se, mas depois de ter roçado levemente as orelhas de primo Bénédict e feito o mais irónico zumbido que podem produzir asas de coleóptero.

— Maldita! — exclamou pela segunda vez primo Bénédict. — Escapar-me! Ingrato hexápode! Tu, que tinhas um lugar de honra marcado na minha colecção! Pois não te deixarei! Perseguir-te-ei até que te apanhe!...

Esquecia-se, o desconcertado primo, que os seus olhos de míope não lhe permitiam distinguir a manticora entre a folhagem. Mas estava fora de si. O despeito e a cólera faziam-no louco. E era ele, e só ele, o culpado da sua infelicidade! Se tivesse agarrado o insecto quando devia, em vez de o seguir para o ver em «liberdade», nada disto lhe teria acontecido e possuiria aquele admirável exemplar das manticoras africanas, cujo nome é o do animal fabuloso que tinha a cabeça de homem e o corpo de leão!

Primo Bénédict estava com a cabeça perdida. Não pensava que a mais imprevista circunstância lhe dera a liberdade. Não percebia que a toca da toupeira, na qual se introduzira, lhe abriu uma saída, e que estava fora da feitoria de Alves. Achava-se, porém, na floresta, e sobre as árvores, a sua fugitiva. Queria tornar a vê-la, custasse o que custasse.

Ei-lo, pois, correndo através do denso mato, sem consciência do que fazia, imaginando sempre ver o precioso insecto, e movendo os longínquos braços, como um grande aranhiço! Onde ia, como voltaria, não pensava, e assim andou mais de uma milha, embrenhando-se nos bosques, com o risco de ser encontrado pelos indígenas ou atacado pelas feras.

Repentinamente, como passasse junto a uma balça, um vulto enorme pulou e saltou sobre ele. Depois, exactamente como primo Bénédict teria feito à manticora, o vulto deitou-lhe uma das mãos à nuca e a outra às costas, e, sem que Bénédict tivesse tempo de reconhecer quem era, foi levado pelo bosque dentro.

Primo Bénédict perdera naquele dia a melhor das ocasiões para se proclamar o mais feliz de todos os entomo-logistas das cinco partes do mundo!

 

UM MEGANGA

Quando, no dia 17, Mrs. Weldon não viu aparecer à hora do costume primo Bénédict, ficou extremamente inquieta. Não era crível que ele tivesse conseguido fugir da feitoria, cujo cercado era muito alto. Além de que Mrs. Weldon conhecia bem o seu primo. Se lhe tivessem proposto fugir, abandonando a caixa de folha e a colecção de insectos africanos, teria recusado sem a menor hesitação. Ora, a caixa estava na barraca, intacta, contendo tudo quanto o sábio conseguira apanhar desde a sua chegada ao continente africano. A hipótese, pois, de que ele voluntariamente se separara do seu tesouro ento-mológico era inadmissível.

Contudo, primo Bénédict não se encontrava dentro da feitoria de José António Alves.

Durante todo o dia Mrs. Weldon procurou-o obstinadamente, juntamente com Jack e com a escrava Halima. Foi inútil.

Mrs. Weldon teve, pois, de aceitar esta hipótese pouco animadora: o prisioneiro fora levado dali por ordem do traficante, e por motivo que ela não podia descobrir. Mas, em tal caso, o que lhe fez Alves? Encarcerou-o num dos barracões da praça principal? Qual era a razão de tal surpresa, depois de feita a convenção entre Mrs. Weldon e Negoro, convenção que compreendia primo Bénédict no número dos prisioneiros que o traficante devia conduzir a Moçâmedes, para serem entregues, a troco de dinheiro, a James W. Weldon? Se Mrs. Weldon tivesse visto a cólera de Alves, quando este soube do desaparecimento do prisioneiro, teria percebido que Alves não fora a causa de tal desaparecimento. Mas se primo Bénédict se evadira voluntariamente, porque não lhe confiou o segredo da evasão?

Entretanto as pesquisas de Alves e dos seus servos, feitas com o maior cuidado, levaram à descoberta da toca das toupeiras que estabelecia comunicação entre a feitoria e a floresta vizinha. O traficante ficou convencido de que o «apanha-moscas» fugira por aquela abertura. Julgue-se qual foi o seu furor quando pensou que a fuga de Bénédict seria lançada à conta da sua responsabilidade, e consequentemente diminuída a parte que lhe devia caber!

«Não valia muito aquele parvo», pensava ele «e contudo há-de custar-me caro! Ah! Se eu o tornasse a apanhar...»

Apesar, porém, das buscas que se fizeram dentro da feitoria, e conquanto se tivessem batido os matos em larga extensão, foi impossível encontrar traços do fugitivo. Mrs. Weldon teve de conformar-se com a perda do seu primo, e Alves de lastimar a fuga do seu prisioneiro. Como não era provável que este tivesse restabelecido relações com o exterior, parecia evidente que foi o acaso que lhe deparou a toca das toupeiras, e que por ela fugira, pensando tanto nos que deixava na feitoria como se eles nunca tivessem existido.

Mrs. Weldon foi obrigada a julgar que assim devia ser, mas não pensou por tal motivo em querer mal àquele pobre homem, que não tinha consciência dos actos que praticava.

«Desgraçado! Que lhe acontecerá?», dizia ela consigo mesmo.

Inútil será dizer que no mesmo dia foi tapada com o maior cuidado a entrada da toca e que aumentou a vigilância tanto da parte de dentro como do lado de fora da feitoria.

A vida monótona dos prisioneiros continuou, pois, para Mrs. Weldon e para Jack.

Entretanto produziu-se na província um fenómeno climatérico raríssimo naquela época do ano. Em 19 de Junho começaram chuvas persistentes, apesar de o período da «masica», que finda em Abril, ter já passado. O céu estava coberto, e aguaceiros contínuos inundavam o território de Kasonde.

Isto, que foi desagradável para Mrs. Weldon, por não poder continuar os seus passeios no interior da feitoria, para os indígenas era uma calamidade. Os terrenos baixos, cobertos de searas já em estado de se ceifarem, ficaram completamente alagados. Os habitantes da província, aos quais as colheitas faltavam tão repentinamente, viram-se a braços com a miséria. Todos os trabalhos próprios da estação estavam paralisados, e a rainha Moina não sabia, nem os seus ministros, de que modo afrontariam a catástrofe.

Recorreu-se então aos feiticeiros, mas não aos que curam os doentes por meio de encantamentos ou bruxarias ou que lêem as sinas aos indígenas. Como se tratava de uma calamidade pública, pediu-se aos melhores megangas, que têm a faculdade de provocar ou de fazer cessar as chuvas, que conjurassem o perigo.

Perderam o tempo. Entoaram cânticos monótonos, agitaram os guizos e campainhas, empregaram os mais preciosos amuletos e usaram particularmente de um chavelho cheio de lodo e de casca de árvores, em cuja ponta tinha três pequenas protuberâncias; esconjuraram, atirando com bolas de esterco ou cuspindo na cara das mais augustas personagens da corte; mas, apesar de tudo, não conseguiram expulsar os maus espíritos que presidiam à formação das nuvens.

As coisas iam de mal a pior quando a rainha Moina se lembrou de mandar chamar um célebre meganga, que se achava então ao norte, nos sertões de Angola. Era um mágico de primeira ordem, cujo valor era tanto mais maravilhoso quanto, como era certo, nunca fora experimentado naquela província, onde ainda não estivera. Mas tratava-se unicamente dos seus sucessos na região das «masicas».

Foi na manhã de 25 de Junho que o novo meganga anunciou ruidosamente a sua entrada em Kasonde, por grande bulha de guizos e de campainhas.

Veio o feiticeiro direito à «tchikoka» e logo a multidão de indígenas se precipitou para ele. O céu tinha aspecto menos chuvoso, o vento indicava que ia mudar, e estes sintomas de bonança, coincidindo com a chegada do meganga, predispunham os espíritos em seu favor.

Era um homem magnífico, um negro perfeito. Media seis pés de altura, e devia ser extraordinariamente vigoroso. Tal gentileza impô-lo à multidão.

Normalmente os feiticeiros reúnem-se aos três, aos quatro ou cinco, quando percorrem as povoações, e são sempre acompanhados por alguns ajudantes. Este porém vinha só. Tinha o peito todo zebrado com malhas brancas feitas com giz. A parte inferior do corpo era tapada por um amplo saiote feito de tecido vegetal, cuja «cauda» não desdenhariam damas elegantes. Trazia ao pescoço um colar feito de crânios de pássaros, na cabeça um casco de couro com penas enfeitadas com missangas, sobre os rins um cinto de cobre do qual pendiam centenas de guizos, mais ruidosos do que os dos arreios dos machos espanhóis. Assim estava vestido o magnífico exemplar da corporação dos necromantes indígenas.

Todo o material da sua arte consistia numa espécie de saco, cujo fundo era formado por uma cabaça, cheio de conchas, amuletos, ídolos pequenos de madeira e outros feitiços, e além disso uma não pequena quantidade de bolas de esterco, acessórios importantes dos encantamentos e necromancias do centro da África.

Uma particularidade notou toda a gente: o meganga era mudo, mas este defeito orgânico aumentava ainda mais a consideração que lhe tributavam. Fazia apenas ouvir um som gutural, grave e prolongado, sem significação. Mais uma razão para ser bem aceite em assuntos de sortilégios.

O meganga principiou a dar a volta à praça principal, executando uma espécie de pavana, que fazia ressoar o carrilhão de guizos que consigo trazia. Seguia-o a multidão, imitando-lhe os movimentos. Dir-se-ia um bando de macacos seguindo um enorme quadrúmano. Depois, mas de repente, o feiticeiro tomou pela rua principal de Kasonde e dirigiu-se à residência real.

Logo que a rainha Moina teve conhecimento da chegada do novo adivinho, apareceu, acompanhada por todos os seus cortesãos.

Então o meganga inclinou-se até ao chão e levantou-se logo, mostrando a sua bela estatura. Levantou os braços para o céu, onde corriam rapidamente nuvens esfarrapadas. Apontou para elas, imitou-lhes os movimentos de rotação que se não podia travar.

Repentinamente e com grande surpresa do povo e da corte o feiticeiro agarrou pela mão a temível rainha de Kasonde. Alguns cortesãos quiseram opor-se a este acto, que contrariava as etiquetas da corte; mas o vigoroso meganga, deitando a mão ao pescoço do que estava mais próximo, fê-lo ir cair a quinze passos de distância.

A rainha pareceu não desaprovar este arrogante modo de proceder e fez para o necromante -uma espécie de careta, que devia ser um sorriso. O necromante levou a rainha com passo arrebatado; a multidão seguia-os.

Foi para a feitoria de Alves que se dirigiu o feiticeiro. Chegou à porta, que estava fechada. Meteu-lhe os ombros, atirou-a por terra e fez entrar a rainha.

O traficante, com os seus guardas e escravos, correram a castigar o imprudente que se atrevia a arrombar as portas sem esperar que lhas abrissem. Porém, vendo a soberana, que nada dizia, pararam, ficando em atitude respeitosa.

Alves ia, sem dúvida, perguntar à rainha qual era a causa a que devia a honra da sua visita, mas não lhe deu tempo o mágico, e, fazendo recuar a multidão, para que ficasse grande espaço livre em volta dele, recomeçou a pantomima com maior animação ainda. Mostrou as nuvens, ameaçou-as, esconjurou-as, primeiro fez-lhes gestos para que parassem, depois para que se afastassem. Encheu as enormes bochechas e soprou sobre aquela massa de vapores, como se tivesse poder de os dissipar. Em seguida endireitou-se, pareceu querer obrigá-las a parar. Dir-se-ia que a sua enorme estatura lhe dava a faculdade de lhes deitar as mãos.

A supersticiosa Moina, «empalmada», é o termo, por aquele grande farsante, não era senhora de si. Soltava gritos. Delirava, e repetia instintivamente os gestos do meganga. Os cortesãos e a plebe imitavam a rainha, e os sons guturais do mudo confundiam-se com os cânticos, gritos e os urros em que tanto abunda a linguagem indígena.

Cessariam as nuvens de se levantar do horizonte para o lado do oriente e de velar aquele céu tropical? Iriam desfazer-se sob a influência dos exorcismos do recém-chegado feiticeiro? Não. E já quando a rainha e o seu povo imaginavam rendidos os espíritos malignos que ameaçavam de a submergir com chuvas torrenciais, o céu, menos carregado desde a madrugada, escureceu profundamente, e grossos pingos de chuva, como a das trovoadas, caíram, crepitando no solo.

Então operou-se grande mudança na opinião de todos. Desconfiaram que este meganga não valia mais do que os outros, e, por um franzimento de sobrancelhas da rainha, perceberam que ele, pelo menos, tinha as orelhas em muito risco. Os indígenas haviam apertado o círculo em torno do meganga, ameaçavam-no, e iam talvez castigá-lo, quando um incidente imprevisto mudou as disposições hostis.

O meganga, que pela sua altura dominava aquela agitada multidão, estendera o braço para um ponto do recinto onde estavam. Foi tão imperioso este gesto que todos olharam.

Mrs. Weldon e Jack, atraídos pelo tumulto e clamores, tinham saído da sua palhota. Foram eles que o mágico, com um movimento de cólera, designou com a mão esquerda, apontando com a direita para o céu.

Eles, eram eles! Era a branca e o seu filho que causavam tantos males! Deles provinham tantos malefícios! Tinham trazido aquelas nuvens das suas pluviosas regiões para inundar o território de Kasonde.

Compreenderam-no. A rainha, apontando para Mrs. Weldon, fez um sinal ameaçador. Os indígenas, soltando gritos terríveis, correram para ela.

Mrs. Weldon julgou-se perdida, e, apertando o filho entre os seus braços, ficou imóvel como uma estátua ante aquela plebe exaltada.

O meganga dirigiu-se para ela. Afastaram-se para dar passagem ao feiticeiro, que, descobrindo a causa do mal, parecia ter achado o remédio.

O traficante Alves, para quem a vida da prisioneira era preciosa, aproximou-se também, sem contudo saber o que fizesse.

O meganga lançara as mãos a Jack, e, arrancando-o dos braços da mãe, ofereceu-o ao céu. Acreditou-se que lhe ia quebrar a cabeça de encontro ao solo para apaziguar a ira dos deuses!

Mrs. Weldon deu um grito terrível e caiu desmaiada.

Mas o meganga, depois de ter feito um sinal à rainha, que sem dúvida a tranquilizou sobre as intenções dele, levantou a infeliz mãe e levou-a, bem como ao filho, enquanto a multidão, perfeitamente dominada, lhe abria caminho.

Alves, furioso, não entendia as coisas do mesmo modo. Depois de ter perdido um prisioneiro entre três que tinha, não queria ver fugir o depósito que estava confiado à sua guarda, e, com o depósito, a grossa quantia que lhe reservava Negoro, embora desaparecesse sob outro dilúvio todo o território de Kasonde! Quis porém opor-se àquele rapto.

Foi então contra Alves que se revoltaram os indígenas. A rainha ordenou aos seus guardas que o prendessem, e o traficante, sabendo quanto lhe podia custar a sua ousadia, aquietou-se, amaldiçoando, porém, a estúpida credulidade dos súbditos da augusta Moina.

Os selvagens esperavam ver limpar o céu, com o desaparecimento dos que tinham atraído as nuvens, e não duvidavam de que o mágico quisesse conter as águas, que tantos danos lhes causaram, com o sangue dos estrangeiros.

Entretanto o meganga levava as suas vítimas, como um leão leva dois cabritinhos na boca poderosa, Jack espantado, Mrs. Weldon sem sentidos. A multidão seguia-o enraivecida, mas o meganga saiu da feitoria, atravessou Kasonde, meteu-se pela floresta, caminhou perto de três milhas, sem que fraquejasse uma única vez e finalmente — os indígenas tinham compreendido que ele não queria que o seguissem — -chegou junto a uma ribeira, cuja rápida corrente se dirigia para o norte.

Aí, no fundo de uma larga cavidade, por detrás de compridas folhas pendentes de uma sarça que escondia a margem, estava amarrada uma canoa coberta por uma espécie de colmo.

O meganga embarcou, depôs dentro dela o duplo fardo que trazia, e afastou-a com um pé, lançando-a para a corrente, que rapidamente lhe pegou; depois disse com voz bem clara e distinta:

 — Meu capitão, aí tem Mrs. Weldon e o menino Jack! A caminho agora, e que todas as nuvens do céu se abram sobre os idiotas de Kasonde!

 

À MERCÊ DA CORRENTE

Era Hércules, impossível de reconhecer sob os atavios de mágico, quem assim falava, e era a Dick Sand que ele se dirigia — a Dick Sand, tão fraco ainda, que necessitava de se apoiar em primo Bénédict, perto de quem Dingo estava deitado.

Mrs. Weldon, que recuperara os sentidos, apenas pôde proferir estas palavras:

 — Tu, Dick! Tu aqui!

O praticante levantou-se, mas já Mrs. Weldon o abraçava e Jack lhe prodigalizava milhares de carícias.

 — O meu amigo Dick! O meu amigo Dick! — repetia ele.

Depois, voltando-se para Hércules, disse-lhe:

 — E eu que te não conheci!

 — Que tal era o disfarce! — respondeu Hércules, esfregando o peito para tirar as manchas que o zebravam.

 — Estavas muito feio!- — disse Jack.

 — Pudera não! Se eu era o diabo, e o diabo nunca foi bonito.

 — Obrigada, Hércules! — agradeceu Mrs. Weldon, estendendo a mão ao valente negro.

 — Libertou-a — acrescentou Dick Sand — como me salvou a mim, apesar de ele não ser desta opinião.

 — Salvos! Salvos! Por ora ainda não! — respondeu Hércules! — E demais, se não fosse o Sr. Bénédict, que nos veio dizer onde estava Mrs. Weldon, nada poderíamos fazer!

Fora com efeito Hércules quem, cinco dias antes, saltara sobre o sábio, na ocasião em que este, depois de se haver distanciado duas milhas da feitoria, andava em perseguição da manticora. Se não fosse tal incidente, nem Dick Sand nem o negro saberiam onde estava Mrs. Weldon, e portanto Hércules não se teria arriscado a ir a Kasonde com o vestuário de mágico.

Enquanto a canoa era levada pela rápida corrente, naquele ponto mais apertado do rio, Hércules contou o que se passara desde a sua fugida no arraial junto ao Guanza, como seguira, sem que fosse visto, a «kitanda» em que era conduzida Mrs. Weldon e o seu filho; como encontrara Dingo ferido por uma bala; de que modo ambos haviam chegado até aos arredores de Kasonde; como um bilhete de Hércules levado pelo cão instruíra Dick Sand do que acontecera a Mrs. Weldon; como, depois da inesperada chegada de primo Bénédict, tentara, mas em vão, penetrar na feitoria, mais rigorosamente vigiada do que nunca; como, finalmente, encontrara aquela oportunidade de roubar a prisioneira ao terrível José António Alves. A ocasião oferecera-se naquele mesmo dia. Um meganga que andava em giro de bruxarias — o célebre mágico tão impacientemente desejado — passou próximo da floresta por onde Hércules vagueava todas as noites, espiando, escutando e sempre pronto para tudo. Saltar sobre o meganga, espoliá-lo das vestimentas e do trem de mágico, prendê-lo ao tronco de uma árvore com voltas de cipó e por tal modo que nem os irmãos Davenport seriam capazes de se desprenderem, pintar o corpo tomando o feiticeiro para modelo, e desempenhar o seu papel, foi tudo obra de poucas horas; mas ainda assim era necessária a extraordinária credulidade dos indígenas para serem de tal modo enganados.

Na narrativa de Hércules não se falava de Dick Sand.

 — E tu, Dick Sand? — perguntou Mrs. Weldon.

— Eu — respondeu o praticante — nada lhe posso dizer. O meu último pensamento foi para Mrs. Weldon e para Jack!... Quis, mas em vão, quebrar as cordas que me prendiam ao poste... A água cobriu-me a cabeça... Perdi os sentidos... Quando os recuperei, servia-me de abrigo um buraco, escondido entre os canaviais da margem que nos fica além, e Hércules, ajoelhado, cuidava de mim.

 — Demónio! — respondeu Hércules. — Pois se eu sou médico, necromante, feiticeiro, mágico e se, além disso, leio sinas!...

 — Hércules — perguntou Mrs. Weldon — , como conseguiste salvar Dick Sand?

 — Então julga que fui eu? E não seria possível que a corrente tivesse quebrado o poste a que estava preso o nosso capitão, e o arrastasse, já alta noite, sobre aquela viga de onde eu o tirei meio-morto? Demais, não era difícil, naquelas trevas profundas, confundir-se qualquer com as vítimas que estavam no fundo da sepultura, esperar que se rompessem os diques, nadar entre duas águas e com um poucochinho de força arrancar ao mesmo tempo o nosso capitão e o cepo a que aqueles patifes o tinham amarrado. Nisto nada há de extraordinário! Todos o podiam fazer. Até o Sr. Bénédict ou mesmo Dingo! E, é verdade, porque não seria Dingo?...

Ouviu-se um pequeno latido, e Jack, agarrando a cabeça do cão, deu-lhe pequenas palmadas de amizade, perguntando-lhe:

 — Dingo, foste tu que salvaste o nosso amigo Dick? E ao mesmo tempo obrigou a cabeça do cão a abanar

da esquerda para a direita.

 — Olha, Hércules: diz que não! Bem vês que não foi ele.

 — Dingo, foi Hércules quem salvou o nosso capitão? O pequenito obrigou a cabeça do fiel animal a mover-se cinco ou seis vezes de baixo para cima.

 — Diz que sim, Hércules! Diz que sim! — exclamou Jack. — Agora não podes negar!

— Ah! Dingo — disse Hércules, afagando o cão — , isso não se faz. Tinhas prometido não me descobrir!

Foi, com efeito, Hércules quem arriscara a sua vida para salvar a de Dick Sand. Mas era feito assim, e a sua modéstia não lhe permitia confessar a verdade. Além de que julgava que era coisa simples, e repetiu que nenhum dos seus companheiros em tais circunstâncias teria hesitado em proceder como ele.

Deu isto causa a que Mrs. Weldon falasse do velho Tom, de Bat, de Acteão, de Agostinho, dos seus companheiros de desgraça.

Iam de marcha para a região dos lagos. Hércules vira-os passar com a caravana de escravos. Seguira-os, mas nunca se lhe ofereceu ocasião de comunicar com eles. Tinham partido! Estavam irremediavelmente perdidos!

E ao riso franco de Hércules sucederam-se grossas lágrimas, que ele não tentou reprimir.

 — Não chores, meu amigo--disse-lhe Mrs. Weldon.

 — Quem sabe? Talvez Deus nos faça a mercê de os tornarmos a ver!

Alguns esclarecimentos mais foi quanto bastou para que Dick Sand ficasse sabendo tudo quanto se passou durante o tempo que Mrs. Weldon esteve na feitoria de Alves.

 — Quem sabe? — acrescentou ela. — Talvez fosse melhor ter ficado em Kasonde...

 — Muito desastrado sou eu! — exclamou Hércules.

 — Não, Hércules, não és! — respondeu Dick Sand. — Aqueles malditos acharam talvez meio de armar alguma cilada a Mrs. Weldon. Convém, pois, fugirmos sem demora! Chegaremos à costa antes de Negoro estar de volta, em Moçâmedes. Lá teremos o auxílio e a protecção das autoridades portuguesas, e quando o traficante Alves se apresentar para receber os cem mil dólares...

 — Receberá cem mil cacetadas na cabeça! — acrescentou Hércules. — Eu me encarregarei de lhe fazer as contas!

Não deixava, porém, de ser o caso complicado; contudo Mrs. Weldon não pensava voltar a Kasonde. Era forçoso chegar antes de Negoro. Todos os ulteriores projectos de Dick Sand deviam tender para este fim.

Dick Sand conseguira, finalmente, realizar o que desde muito tempo havia imaginado: encaminhar-se para o litoral, aproveitando a corrente de uma ribeira ou de um rio. Encontrara-a enfim; dirigia-se para o norte e era possível que fosse misturar as suas águas com as do Zaire.

Em tal caso, Mrs. Weldom e os seus companheiros, em vez de irem directamente a São Paulo de Luanda, seria à embocadura daquele grande rio que iriam parar. Era-lhes, porém, indiferente, porque não lhes faltariam socorros por toda a costa de Angola.

A primeira ideia que teve Dick Sand, já decidido a descer a corrente do pequeno rio onde estava, foi a de se fazer transportar, como se fosse numa jangada, nalguma das muitas ilhas de capim (1) que se encontram com frequência nas correntes dos rios da África.

Mas Hércules, vagueando pela margem durante a noite, teve a fortuna de achar uma embarcação, que ia abandonada e à tona de água. Assim o desejava Dick Sand. O acaso favoreceu-o. Não era, com efeito, dessas estreitíssimas canoas de que os indígenas usam frequentemente, mas das que medem trinta pés de comprimento por três de largura, e que, ao impulso de grande número de pás, correm com extraordinária velocidade sobre as águas dos grandes lagos. Mrs. Weldon e os seus companheiros podiam, pois, acomodar-se bem dentro dela, e bastaria conservá-la direita na corrente da água, por meio de uma ginga, para descer bem o rio.

Dick Sand, desejando passar sem ser visto, imaginou viajar unicamente durante a noite. Mas andar só doze horas por dia, e essas mesmas à mercê da corrente, equivalia a duplicar o tempo de viagem, que não podia ser longa.

 

*1. Cameron fala repetidas vezes destas ilhas flutuantes.

 

Felizmente, Dick teve a lembrança de fazer cobrir a canoa com um tecto de capim, sustentado sobre uma vara comprida, posta de vante a ré; e como o capim pendia até à superfície das águas, escondia a ginga. Dir-se-ia que era um montão de ervas correndo entre ilhotas flutuantes. E era tão engenhosa a disposição daquela choça que os pássaros se enganavam; as gaivotas de bico encarnado, as anhingas de penas negras, e os maçaricos cinzentos e brancos vinham repetida vezes pousar sobre elas e debicar no capim.

Além disto, aquele tecto de verdura servia de abrigo contra os ardores do sol. Uma viagem em tais condições, pois, podia fazer-se sem fadiga, mas não sem perigos.

Devia ser longa e, além disso, era mister prover dia a dia do sustento quotidiano. Daqui provinha a necessidade de caçar em uma e na outra margem, quando a pesca não bastava; e Dick Sand tinha apenas a espingarda que Hércules conservara, depois do assalto contra o formigueiro. Esperava, porém, não perder um único tiro. Talvez que passando a espingarda através da cobertura da embarcação pudesse atirar com mais certeza.

Entretanto a canoa deslizava mansamente pela acção da corrente, cuja velocidade Dick Sand não estimava em menos de duas milhas por hora. Esperava, por consequência, percorrer proximamente cinquenta milhas em vinte e quatro horas. Mas, em razão da rapidez da corrente, convinha que a vigilância não fosse interrompida, para evitar os obstáculos, tais como rochas, troncos de árvores e baixios. Havia ainda o receio dos saltos e das cataratas, que tão frequentemente se vêem nos rios africanos.

Dick Sand, a quem a alegria de tornar a ver Mrs. Weldon e seu filho fizera recuperar o antigo vigor, fora postar-se na proa da embarcação. Por entre o capim observava o curso do rio para o lado da foz e, ou por palavras ou por gestos, indicava a Hércules, que manejava a ginga, o que convinha fazer para seguirem bom caminho.

Mrs. Weldon, estendida no meio da canoa sobre uma cama feita de folhas secas, ia absorvida nos seus pensamentos. Primo Bénédict, taciturno, franzindo os sobrolhos quando olhava para Hércules, a quem não perdoava a sua intervenção na caçada à manticora, pensando também na sua colecção, nos seus apontamentos entomológicos, a que os indígenas de Kasonde não dariam o menor apreço, estava ali, de pernas estendidas, os braços cruzados sobre o peito, fazendo às vezes o movimento instintivo de levantar para a testa os óculos, que já lhe não descansavam no nariz. Jack compreendera que não devia fazer bulha, mas, como não lhe era proibido mexer-se, imitava o seu amigo Dingo, correndo com as mãozinhas pelo chão de um ao outro extremo da canoa.

Durante os primeiros dois dias sustentaram-se Mrs. Weldon e os seus companheiros dos alimentos que Hércules conseguira arranjar antes da partida. Dick Sand só parou durante a noite para descansar algumas horas. Não desembarcou, porém, querendo fazê-lo unicamente quando a necessidade de se abastecer de provisões a isso o obrigasse.

Nenhum incidente notável se deu no princípio da viagem naquele rio desconhecido, o qual em média não tinha mais de cinquenta pés de largura. Algumas ilhas de capim eram arrastadas também pela corrente, com velocidade igual à da embarcação.

Não havia pois receio de atracar com elas, se, por acaso, inopinado obstáculo as fizesse parar.

As margens pareciam desertas. Evidentemente aquela porção de território de Kasonde era pouco frequentada pelos indígenas.

Nas praias crescia grande número de plantas selvagens, de cores muito vivas e variadas. Asclépias, espadanas, lírios, clematites, balsaminas, aloés, fetos arbóreos e arbustos odoríferos formavam uma orla de incomparável beleza. Algumas florestas vinham quase banhar-se no rio e receber a frescura das suas águas correntes.

As árvores de onde se extrai a goma-copal, as acácias, as bauínias, de que se corta a madeira conhecida pelo nome de pau-ferro e cujos troncos estavam cobertos de líquenes do lado oposto àquele de onde sopram os ventos frios, e outras árvores de diversas espécies levantadas sobre as raízes, semelhando estacadas, como os mangues, e algumas mais de grandes lançamentos, inclinavam-se sobre o rio. As ramadas mais altas, entrelaçando-se e confundindo-se a grande altura, formavam uma abóbada que os raios do Sol não penetravam. Em alguns lugares lançavam-se de um lado para o outro uma espécie de pontes formadas de plantas enredadiças. Por uma dessas pontes viu Jack, com grande espanto seu, na manhã de 27, passar um bando de macacos, segurando-se com a cauda, para se acautelarem da queda, se porventura a ponte quebrasse.

Pertenciam à família dos chimpanzés, que na África Central são conhecidos pelo nome de «sokos». São horrendos exemplares da sua raça: testa pequena, focinho amarelo-claro e orelhas grandes. Vivem aos bandos de dez, ladram como cães e são muito temidos pelos indígenas, a quem roubam algumas vezes as crianças, que agatanham e mordem. Ao passar pela ponte de cipós, mal cuidavam eles que, sob aquele montão de ervas que a corrente levava, havia uma criança, com a qual eles se poderiam divertir bastante. O aparelho imaginado por Dick Sand estava tão bem disposto que enganava aqueles perspicazes animais.

No mesmo dia, vinte milhas mais abaixo, a embarcação estacou repentinamente.

 — Que é isto? — perguntou Hércules, que se conservava ao leme.

 — Um obstáculo natural.

 — Que é forçoso vencer, Sr. Dick.

 — Sim, Hércules, mas a machado. Já algumas ilhas de capim caíram sobre ele, e ele resistiu!

 — Nesse caso, mãos à obra, meu capitão! Mãos à obra! — disse Hércules, dirigindo-se para a proa da embarcação.

Era o obstáculo produzido pelo enlaçamento de uma planta resistente, de folhas lustrosas, que por si mesmo se junta e comprime, tornando-se muito resistente. Chamam-lhe «tikatika», e pode dar passagem sobre as ribeiras a quem não recear enterrar os pés cerca de doze polegadas no seu tabuleiro ervoso. Cobriam-lhe a superfície magníficas ramificações de lódãos.

Começava a cair a noite. Hércules pôde sem grande imprudência sair da embarcação, e tão bem manejou o machado que duas horas depois o obstáculo estava vencido, a corrente prolongava sobre as margens as duas metades cortadas por Hércules, e a canoa corria novamente sobre as águas serenas do rio.

É forçoso dizê-lo! Primo Bénédict, sempre criança, apesar da idade, teve por um momento a esperança de que não continuariam para diante. A viagem era-lhe fastidiosa. Tinha saudades da feitoria de José António Alves e da palhota onde se conservava ainda a sua preciosa caixa de entomologista. Era verdadeira a pena que sentia, e fazia dó ver o pobre homem. Nem um insecto sequer!

Qual foi a sua alegria quando Hércules — que fora seu discípulo — lhe deu um horrendo animalzinho, que apanhara numa haste da «tikatika». Coisa notável, o negro parecia estar um pouco embaraçado quando lho entregou.

Mas que exclamações soltou primo Bénédict quando aproximou o insecto, que tinha entre os dedos polegar e o indicador, o mais próximo possível dos seus olhos de míope, aos quais faltavam os óculos e a lente.

 — Hércules! — exclamou ele. — Hércules! Ah! Este insecto vale o teu perdão. Prima Weldon! Dick! Vejam, um hexápode único no seu género e de origem africana! Este, ao menos, hão-de permitir-me que só me deixe com a vida!

 — Então é muito precioso? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Se é precioso! — disse primo Bénédict.

— Um insecto que não é coleóptero, nem neuróptero, nem hime-nóptero; que não pertence a nenhuma das ordens reconhecidas pelos sábios, e que seria talvez bem classificado na segunda secção dos aracnídeos! Uma espécie de aranha, que seria aranha se tivesse oito pernas, mas que é um hexápode, porque apenas tem seis! Ah! Meus caros, o céu devia dar-me esta alegria. Vou finalmente ligar o meu nome a uma descoberta científica! Este insecto chamar-se-á «Hexápode Bénédictus»!

O entusiasta sábio estava contentíssimo, esquecia todas as suas desgraças passadas e futuras. Mrs. Weldon e Dick Sand não lhe pouparam cumprimentos.

Entretanto a canoa deslizava nas águas escuras do rio. O silêncio da noite era apenas interrompido pelo ruído das escamas dos crocodilos ou pelo ronco dos hipopótamos que pastavam pelas margens.

Por entre as fendas do colmo, a Lua, que se via através das ramadas do arvoredo, lançava a suave claridade no interior da embarcação.

Mas de repente ouviu-se na margem direita um estrondo longínquo, depois um ruído surdo, como se fossem bombas gigantescas a trabalhar.

Eram muitas centenas de elefantes que, fartos de raízes lenhosas, que durante o dia haviam devorado, vinham beber água antes de repousarem. Poder-se-ia julgar que todas as trombas destes animais, abaixando-se e elevando-se por um mesmo movimento automático, iam estancar o rio.

 

VÁRIOS INCIDENTES

Durante oito dias foi a pequena embarcação levada pela corrente, nas condições que ficam relatadas. Não se deu nenhum acontecimento importante. Na extensão de muitas milhas banhava o rio as orlas de magníficas florestas; depois nas terras, já despidas das belas árvores, até ao horizonte, só se viam juncais.

Se não havia indígenas naquela região — o que Dick Sand não lastimava — abundavam os animais. Zebras correndo pelas margens, alces, caamas, espécie de antílopes extremamente graciosos, que se escondem à noite, quando aparecem os leopardos, cujos bramidos se ouviam, e os leões, que se viam saltando por cima das moitas. Até então os fugitivos não sofreram dano causado pelos ferozes carniceiros, ou fosse dos que povoavam a terra ou dos que viviam no rio.

Contudo, todos os dias, normalmente de tarde, Dick Sand aproximava-se de uma das margens, atracava, desembarcava e explorava os lugares vizinhos. Era mister renovar o sustento quotidiano, e naquele território inculto não havia mandioca, massango, milho ou os frutos que constituem a alimentação vegetal dos indígenas. Estes vegetais, que cresciam sem amanho, não podiam servir de comestíveis. Dick Sand via-se, pois, obrigado a caçar, apesar de a detonação da sua espingarda lhe poder atrair algum mau encontro.

Obtinha-se fogo pela fricção de dois pedaços de madeira, segundo o uso indígena, ou como se afirma que fazem os gorilas. Depois cozia-se uma porção de carne de alce, ou de corça, que durasse para muitos dias. No dia 4 de Julho, Dick Sand conseguiu matar com um único tiro um «pokou», que deu boa porção de alimento. Era animal de cinco pés de comprimento, tinha chavelhos compridos, guarnecidos de anéis, pele amarela-avermelhada, cheia de pontos brilhantes, e ventre branco; a carne deste animal era excelente.

Em razão dos desembarques quase quotidianos e das horas de descanso durante a noite, o caminho andado até 8 de Julho não se devia calcular em mais de cem milhas.

Era já bastante, e Dick Sand perguntava a si mesmo até onde o levaria aquele rio sem fim, que recebia pequenos tributos de água e que pouco se alargava. A direcção, que se conservara por muito tempo ao norte, inclinou-se então para o noroeste.

O rio fornecia também alimentos. Compridos cipós, armados de espinhos em guisa de anzóis, traziam alguns «sandjikas», de sabor delicado, os quais, secos, se conservavam facilmente; «usakas»» muito apreciados, «monndés» de grande cabeça, e que nas gengivas têm, em vez de dentes, uma espécie de barbas de escova, «dagalas», pequenos peixes que frequentam de preferência as águas correntes, pertencentes ao género dos arenques, e que fazem lembrar os «whitebeats» do Tamisa.

No dia 9 de Julho, Dick Sand deu provas do seu grandíssimo ânimo. Estava só em terra esperando um caama, cuja cabeça se via por cima de uma pequena mata; tinha feito fogo, quando, a trinta passos de distância, saltou um outro caçador, mas que vinha sem dúvida reclamar a sua parte da presa, e não se mostrava disposto a abandoná-la.

Era um leão enorme, daqueles a que os indígenas dão o nome de «karamos», e não dos que pertencem à espécie que não tem juba, chamados leões de Nyassi. Este media cinco pés de altura; era formidável.

Com o salto que deu, caiu sobre o caama que o tiro de Dick Sand lançara por terra, e que, ainda vivo, berrava sob as garras do terrível animal.

Dick Sand, desarmado, não teve tempo de carregar novamente a sua carabina.

O leão vira-o logo, mas não fez mais do que olhar para Dick Sand.

Este, muito senhor de si, não fazia um movimento sequer. Lembrou-se de que em tais circunstâncias a imobilidade pode ser a salvação. Não tentou carregar a arma nem fugir.

O leão, sempre com os olhos fixados em Dick Sand, olhos de gato, brilhantes e luminosos, hesitava entre as duas presas, a que mexia e a que estava completamente imóvel. Se o caama não se estorcesse entre as garras do leão, Dick Sand estava perdido.

Passaram assim dois minutos. O leão não despegava a vista de Dick Sand e Dick Sand fixava o leão sem pestanejar sequer.

Então o leão, abocando o caama ainda palpitante, levou-o como um cão leva uma lebre, e, sacudindo os arbustos com a cauda, meteu-se pelo mato dentro.

Dick Sand ficou imóvel ainda alguns instantes, depois saiu do lugar onde estava e veio juntar-se aos seus companheiros, sem lhes contar o perigo de que escapara pelo seu valoroso ânimo. Mas se, em vez de irem levados pela corrente, os fugitivos tivessem de atravessar as planícies e as florestas frequentadas pelas feras, talvez que àquela hora não existisse um único dos náufragos do «Pilgrim». Aquela região, que então se via desabitada, não o fora sempre. Mais de uma vez em certas depressões do terreno se encontravam vestígios de antigas aldeias. Um viajante como David Livingstone, habituado a percorrer aquelas terras, não se teria enganado. Quem visse as estacadas de eufórbios resistindo ainda, quando já não havia sinais de cubatas, a árvore sagrada elevando-se no meio da antiga povoação, afirmaria que ali existia uma aldeia. Mas, segundo os usos indígenas, a morte de um chefe basta para obrigar os habitantes a abandonar as suas casas e a transportarem-se para outro lugar.

É também possível que naquela região, que o rio atravessava, as tribos vivessem debaixo da terra, como em outros lugares da África. Estes selvagens, colocados no mais baixo grau da humanidade, apenas saem de noite para fora dos seus antros, como os animais que saem dos covis, e tanto seria para temer o encontro de uns como o de outros.

Dick Sand não duvidava de que aquele território fosse habitado por antropófagos. Por três ou quatro vezes, em alguma clareira, entre cinzas mal frias, viam-se ossos humanos, meio calcinados, restos sem dúvida de horrendo banquete. Um funesto acaso podia atrair os canibais do alto Kasonde àquelas margens, exactamente quando Dick Sand desembarcasse. Não parava, pois, sem que fosse obrigado por grande necessidade e sem que Hércules lhe prometesse que, ao mais leve sinal, a embarcação seria impelida para o meio do rio. O bom preto prometera com efeito, mas, quando Dick Sand desembarcava, custava-lhe muito a esconder a sua inquietação a Mrs. Weldon.

Durante toda a noite de 10 de Julho foi preciso usar ainda de mais prudência. Na margem direita do rio estava uma aldeia formada de habitações lacustres. O alargamento do rio ali formava como que uma espécie de lago, cujas águas banhavam cerca de trinta cubatas construídas sobre estacadas. A corrente metia-se por debaixo das habitações e a canoa tinha de passar sob elas, porque, perto da margem esquerda, o rio, semeado de rochedos, não era navegável.

A aldeia era habitada. Viam-se brilhar algumas luzes por debaixo dos colmos. Ouviam-se vozes que pareciam rugidos. Se por desgraça, como acontece muitas vezes, estivessem redes estendidas entre as estacas, podia dar-se o alarme enquanto a canoa forcejasse a passagem.

Dick Sand, na proa, abaixando a voz, dava as indicações para não abalroar de encontro àquelas carcomidas construções. A noite estava clara. Via-se bastante para se poder dirigir a embarcação, e bastante também para se ser visto.

Houve um momento terrível. Dois indígenas, que conversavam em voz baixa, estavam acocorados rente da água sobre as estacas, por entre as quais a corrente ia levar a canoa, e cuja direcção não se podia modificar em razão de a passagem ser muito estreita. Era mais que provável que a vissem, e não era de recear que os seus gritos de alarme despertassem toda a população?

Havia ainda a percorrer um espaço de cem pés de extensão proximamente quando Dick Sand ouviu os dois indígenas falar mais animadamente. Um mostrava ao outro o montão de ervas que vinha à tona de água e que ameaçava destroçar as redes que eles estavam lançando. Suspendendo-a apressadamente, chamaram para que os auxiliassem.

Cinco ou seis pretos desceram pelas estacas e puseram-se sobre os barrotes transversais que as ligavam e sustinham, gritando por modo tal que difícil é fazer ideia. Na canoa, o contrário: absoluto silêncio, interrompido apenas por algumas ordens dadas por Dick Sand em voz muito baixa; imobilidade completa, a não ser do movimento de vaivém do braço direito de Hércules, manobrando a ginga; às vezes um bramido abafado de Dingo, cujas maxilas Jack comprimia com as mãozinhas; fora, o murmúrio da corrente de encontro às estacadas; nas margens, os rugidos das feras e dos canibais.

Entretanto os indígenas alavam as redes com rapidez. Se fossem colhidas a tempo, a embarcação passaria; senão embaraçar-se-ia nelas e acabariam todos os que a canoa transportava. Modificar e suspender o andamento não o podia fazer Dick Sand, e tanto menos quanto era mais forte a corrente, em razão das construções que apertavam o rio.

Em meio minuto a canoa estava entre as estacadas. Por grande, mas rara fortuna, os indígenas conseguiram tirar as redes.

Mas, ao passar, como receava Dick Sand, a canoa perdeu parte do capim que lhe cobria o lado direito.

Um dos indígenas soltou um grito. Teria ele tido tempo para ver o que o colmo escondia, e teria avisado os seus camaradas? Era mais que provável.

Dick Sand e os seus estavam já fora do alcance, e, dentro de poucos minutos, sob o impulso da corrente transformada numa espécie de salto, perderam de vista a aldeia lacustre.

 — Guina para a margem esquerda! — mandou Dick Sand por prudência. — O rio torna a ser navegável.

 — Para a margem esquerda! — repetiu Hércules, fazendo mover vigorosamente o remo com que governava.

Dick Sand veio postar-se junto dele, observando a superfície das águas que a Lua iluminava. Nada viu que lhe causasse suspeita. Nem uma canoa os perseguia. Talvez que aqueles selvagens não as tivessem, e, quando despertou o dia, não se viu um único indígena na praia ou na terra alta. Contudo, e por maior precaução, a canoa conservou-se sempre encostada à margem esquerda.

Durante os quatro seguintes dias, de 11 a 14 de Julho, Mrs. Weldon e os seus companheiros não deixaram de notar que aquela porção de território de Kasonde tinha aspecto diferente. Não era só uma região deserta, mas o próprio deserto, e podia-se compará-lo a esse Kalahari, explorado por Livingstone na sua primeira viagem. A aridez do solo não fazia lembrar os feracíssimos campos da região elevada.

E sempre aquele rio sem fim! Merecia este nome, pois parecia ir desaguar no Atlântico!

Era difícil em território tão estéril obter alimentação. Haviam-se acabado todas as provisões. A pesca dava pouco, a caça absolutamente nada. Alces, antílopes, «pokus» e outros animais não tinham de que viver em tal deserto. A falta deles era a causa de faltarem os carnívoros.

Não se ouviram, pois, durante a noite, os rugidos do costume. O que unicamente perturbava o silêncio era o concerto das rãs, que Cameron compara à bulha dos calafates, dos ferreiros abatendo rebites, e dos furadores fazendo girar os roquetes, num estaleiro de construções navais.

A terra das duas margens era baixa e sem arvoredo, até às colinas longínquas que se erguiam a leste e a oeste. Só as euforbiáceas cresciam profusamente, não as euforbiáceas que produzem a farinha de mandioca, mas aquelas de que se extrai óleo e que não servem para comer.

Era mister, porém, prover à alimentação. Dick Sand não sabia o que devia fazer, quando Hércules lhe lembrou que os indígenas comiam às vezes os rebentos ainda novos dos fetos e a medula da haste dos papiros. E ele quando seguia, por entre as florestas, a caravana de Ibn Hamis, mais de uma vez lançou mão de tal recurso para matar a fome. Felizmente os fetos e os papiros abundavam em ambas as margens e a medula, cujo sabor é adocicado, foi apreciada por todos, e principalmente por Jack.

Era contudo substância pouco alimentar; mas no dia seguinte, graças a primo Bénédict, tiveram melhor sustento.

Desde a descoberta do «Hexápode Bénédictus», que devia imortalizar o seu nome, primo Bénédict recuperara a sua antiga feição. Tendo o insecto em sítio seguro — espetado no forro do chapéu — o sábio entregava-se de novo às suas pesquisas, assim que punha pé em terra. Foi neste dia que, procurando entre as plantas, fez levantar um pássaro cujo canto lhe chamara a atenção.

Dick Sand ia fazer fogo, quando primo Bénédict gritou:

 — Não atire! Não atire! — repetiu primo Bénédict. — Um pássaro para cinco pessoas é pouquíssimo!

— É quanto basta para Jack — respondeu Dick Sand, apontando segunda vez para o pássaro, que não se apressava em fugir.

— Não atire! Não atire! — tornou a repetir primo Bénédict. — É um «indicador», que nos vai mostrar grande abundância de mel!

Dick Sand desviou a arma, calculando que algumas libras de mel valiam mais do que um pássaro, e imediatamente foram em perseguição do indicador, que, ora pousando, ora voando, os convidava a acompanhá-lo.

Não tiveram de ir longe: alguns minutos depois descobriram troncos velhos, escondidos entre os eufórbios, e rodeados por enxames de abelhas.

Primo Bénédict teria preferido não despojar estes industriosos himenópteros «do fruto do seu trabalho» — foi assim que ele se expressou — mas Dick Sand não o entendeu do mesmo modo. Afugentou as abelhas com fumo de ervas secas, e apoderou-se de grande quantidade de mel. Depois, deixando ao indicador os favos, que são o seu quinhão, voltou para a canoa com primo Bénédict.

Foi bem recebido o mel, mas era pouco, e todos teriam sofrido grande fome se no dia 12 a canoa não tivesse parado perto de uma angra, onde pululavam gafanhotos. Contavam-se por miríades, em duas ou três ordens, cobrindo a terra e os arbustos.

Como primo Bénédict tivesse já dito que os indígenas se sustentavam frequentemente destes ortópteros — o que era exacto — , apanharam grande quantidade daquele maná. Era tão grande quantidade que se podia carregar duas vezes a embarcação. Grelhados em fogo lento, aqueles gafanhotos comestíveis teriam agradado mesmo a gente que tivesse menos fome. Primo Bénédict comeu boa porção deles — suspirando, é certo — , mas enfim comeu.

Era já tempo que esta larga série de provações morais e físicas tivesse fim. Conquanto a viagem naquele rio não fosse tão incómoda como a marcha por entre as primeiras florestas do litoral, o calor excessivo do dia, a humidade da noite, os ataques incessantes dos mosquitos, tudo tornava ainda muito penosa a descida pelo rio. Era já tempo de chegar, e, contudo, Dick Sand não podia prever ainda o termo da viagem! Demoraria oito dias ou um mês? Nada havia que o indicasse. Se o rio tivesse corrido directamente para o oeste, estariam já na costa do norte de Angola; mas a direcção inclinava-se mais para o norte, e podiam caminhar assim muito tempo antes de chegar ao litoral.

Dick Sand estava extremamente inquieto quando, na manhã de 14 de Julho, mudou a direcção do caminho.

Jack estava na proa da embarcação, olhando através do colmo, quando um grande espaço coberto de água lhe apareceu no horizonte.

 — O mar! — exclamou ele.

A estas palavras Dick Sand estremeceu e correu para onde estava Jack.

 — O mar! Não, ainda não, mas, pelo menos, um rio que corre para oeste, e do qual este em que vamos é afluente. É talvez o Zaire!

 — Deus te ouça, Dick — disse Mrs. Weldon.

Era, com efeito, o Zaire ou Congo, que Stanley devia reconhecer alguns anos depois. Não havia, pois, mais do que descer o seu curso para chegar às feitorias portuguesas, que estão próximas da sua foz. Dick Sand esperava que fosse assim, e tinha razões para isso.

Durante os dias 15, 16, 17 e 18 de Julho, a embarcação corria entre terras menos áridas, levada pelas águas prateadas do rio. Contudo, continuavam as mesmas precauções, e era sempre o mesmo montão de ervas que a corrente arrastava.

Mais alguns dias e, sem dúvida, os náufragos do «Pil-grim» veriam o termo de tantos trabalhos e privações. A cada um caberia uma parte de tanta dedicação, e se o jovem praticante não reivindicasse para si a maior, dar-lha-ia Mrs. Weldon.

Mas a 18 de Julho, pela noite, produziu-se um acontecimento que ia arriscando a salvação de todos.

Às três horas da madrugada, ouviu-se um ruído longínquo, ainda pouco distinto, na direcção de oeste. Dick Sand, cheio de ansiedade, quis saber a causa de tal ruído. Enquanto Mrs. Weldon, Jack e primo Bénédict dormiam, chamou Hércules à proa e pediu-lhe que escutasse com atenção.

A noite estava serena. Nem a mais leve aragem agitava as camadas atmosféricas.

 — É a bulha do mar! — disse Hércules, a quem os olhos brilhavam de alegria.

 — Não — discordou Dick Sand, sacudindo a cabeça.

 — Que é então? — perguntou Hércules.

 — Esperemos o dia, e entretanto vigiemos ainda com mais atenção.

Ouvindo esta resposta, Hércules voltou para a popa.

Dick Sand ficou à proa. Escutava sempre. O ruído aumentava. Parecia já um rugido afastado.

Nasceu o dia, quase sem aurora. Rio abaixo, sobre ele, à distância de meia milha, proximamente, flutuava na atmosfera uma espécie de nuvem. Mas não eram vapores de água, o que evidentemente se mostrou quando, aos primeiros raios do Sol, apareceu um arco-íris de uma a outra margem.

 — Anda para a praia! — gritou Dick Sand, por tal modo que acordou Mrs. Weldon. — Cataratas além. Aquela névoa é a água dividida em partículas tenuíssimas, como que pulverizada! Anda para a praia, Hércules!

Não se enganava Dick Sand.

Mais abaixo donde estavam, o solo deprimia-se mais de cem pés, e as águas precipitavam-se com imponente mas irresistível impetuosidade. Meia milha mais, e a embarcação teria sido levada para o abismo.

 

S. V.

Hércules, com uma vigorosa remada, dirigiu-se para a margem esquerda. A corrente não se acelerava ainda naquele lugar e o leito do rio conservava até junto das cataratas a sua inclinação normal. Era, como fica dito, o solo que faltava de repente, e a atracção só se sentia a trezentos ou quatrocentos pés da catadupa.

Na margem esquerda erguiam-se grandes e densos bosques. Nem um raio de luz passava através da sua impenetrável espessura. Dick Sand via com terror aquele território habitado pelos canibais do Zaire e que, contudo, era preciso atravessar, pois que a embarcação não podia continuar a seguir o curso do rio.

Transportá-la para baixo das quedas de água não era possível.

Este inesperado golpe atingia aquela infortunada gente, quando estava quase a ponto de chegar às feitorias portuguesas! Tinham lutado bastante. Não os auxiliaria agora o céu?

A canoa atracou à margem. À medida que ela se aproximava, Dingo dava sinais de impaciência e de tristeza.

Dick Sand, que o observava — porque por toda a parte há perigos — , julgou que estaria alguma fera ou algum indígena escondido entre o alto capim que orlava a praia. Reconheceu, porém, que não era um sentimento de cólera que agitava o animal.

— Parece que chora! — observou Jack, abraçando Dingo.

O cão, porém, fugiu-lhe e, saltando para a água, quando a canoa chegou à distância de vinte pés da terra, desapareceu por entre o capim.

Nem Mrs. Weldon, nem Dick Sand, nem Hércules sabiam o que pensar.

Atracaram, instantes depois, no meio da escuma verde de confervas e de outras plantas aquáticas. Alguns pica-peixes, dando assobios agudos, e pequenas garças, brancas como a neve, levantaram voo. Hércules amarrou a canoa ao tronco de um rizóforo, e depois treparam todos pela encosta, no cimo da qual se debruçavam árvores enormes.

Nem uma vereda se encontrava na floresta. Contudo, as ervas pisadas do solo indicavam que aquele sítio fora recentemente visitado pelos indígenas ou pelos animais.

Dick Sand, com a carabina engatilhada, e Hércules, de machado, não tinham ainda caminhado dez passos quando descobriram Dingo. Este, de nariz no chão, farejava, ladrando sempre. Primeiramente, fora atraído por um inexplicável pressentimento para aquela margem, depois era um outro que o levava pelo bosque dentro. Foi isto notado por todos.

 — Atenção! — recomendou Dick Sand. — Mrs. Weldon, Sr. Bénédict, Jack, sigamos! Atenção, Hércules!

Nesta ocasião Dingo levantava a cabeça, e, pulando, parecia desafiá-los a que o seguissem.

Um instante depois Mrs. Weldon e os seus companheiros reuniram-se a Dingo, junto a um velho sicômoro, escondido no lugar mais fechado do bosque.

Aí, erguia-se uma cabana arruinada e desconjuntada, diante da qual Dingo ladrava tristemente.

 — Quem está aí? — perguntou Dick Sand.

E entrou na cabana, seguido de Mrs. Weldon e dos outros.

O solo estava juncado de ossos, já embranquecidos pela acção descorante da atmosfera.

 — Nesta cabana morreu um homem! — afirmou Mrs. Weldon.

 — E era conhecido de Dingo — acrescentou Dick Sand. — Foi, deve ter sido o seu dono! Ah! Vejam!

Dick Sand mostrou no fundo da cabana o tronco despido do sicômoro.

Nele distinguiam-se ainda duas grandes letras vermelhas, quase apagadas pela acção do tempo.

Dingo pôs a pata direita sobre a árvore, como para mostrá-las.

 — S. V. — exclamou Dick Sand. — As mesmas letras que Dingo reconheceu entre todas! As mesmas iniciais que tem na coleira!...

Não acabou. Abaixou-se e pegou numa pequena caixa de cobre, oxidada, que estava num canto da cabana.

Abriu a caixa e tirou dela um pequeno papel, no qual Dick Sand leu estas poucas palavras:

 

Assassinado... roubado pelo meu guia Negoro... 3 de Dezembro de 1871... aqui... a 120 milhas da costa... Dingo! Dingo!

S. Vernon.

 

Este bilhete explicava tudo. Samuel Vernon, tendo partido com o seu cão para explorar o centro da África, foi guiado por Negoro. O dinheiro que aquele trazia excitou a cobiça deste infame, que resolveu roubá-lo. O viajante francês, chegado àquele ponto das margens do Zaire, estabeleceu o seu acampamento naquela cabana. Aí foi mortalmente ferido, roubado e abandonado. Feito o assassinato, Negoro fugiu, e foi então que caiu nas mãos dos Portugueses. Reconhecido como um dos agentes de Alves e conduzido para Luanda, foi condenado a prisão perpétua. Sabe-se como conseguira evadir-se e desembarcar na Nova Zelândia, como depois embarcou a bordo do «Pilgrim», para desgraça daqueles que nele vinham! Mas o que acontecera depois do crime? Nada que não fosse fácil de compreender! O infeliz Vernon, antes de morrer, havia evidentemente tido tempo de escrever um bilhete, no qual, com a data e o móbil do assassinato, indicava o nome do assassino. Metera o bilhete na caixa de cobre, onde sem dúvida estava o dinheiro roubado, e, por último esforço, com o dedo ensanguentado traçou como epitáfio as iniciais do seu nome. Ante aquelas duas letras vermelhas esteve Dingo muitos dias! Aprendeu a conhecê-las! Não se devia esquecer! Depois, voltando à costa, fora recolhido pelo capitão do «Valdeck», e finalmente a bordo do «Pilgrim», onde se encontrara com Negoro. Durante este tempo os ossos do viajante faziam-se brancos no meio daquela floresta perdida da África Central, e apenas revivia na lembrança do seu cão. As coisas deviam ter acontecido assim, e já Dick Sand e Hércules se dispunham a dar sepultura cristã aos restos de Samuel Vernon quando Dingo deu um uivo de cólera e correu para fora da cubata.

Pouco depois ouviram-se a curta distância gritos horríveis. Era evidentemente um homem que estava lutando com o vigoroso animal.

Hércules fez como Dingo. Saiu, correndo, da cubata, seguido por Dick Sand, Mrs. Weldon, Jack e Bénédict, que o viram lançar-se sobre um homem, que se debatia em terra, e a quem os terríveis dentes do cão tinham seguro pelas goelas.

Era Negoro.

Dirigindo-se para a embocadura do Zaire, a fim de se passar à América, este malvado, deixando ficar para trás a gente que o acompanhava, veio ao mesmo sítio onde assassinou o viajante que a ele se confiara.

Não era, porém, sem motivo, como por todos foi visto quando deram com alguns punhados de dinheiro francês em ouro, que brilhava numa cova recentemente feita junto a uma árvore. Era, pois, evidente que depois do assassínio, e antes de cair «nas mãos dos Portugueses, Negoro escondera o roubo, com a intenção de voltar mais tarde para o levar, e ia lançar mão deste ouro quando Dingo o descobriu e lhe saltou às goelas. O miserável, surpreendido, arrancara o punhal e ferira o cão, exactamente no momento em que Hércules corria sobre ele, gritando:

 — Ah! Patife. Vais enfim morrer às minhas mãos!

Era desnecessário! O antigo cozinheiro do «Pilgrim» já não dava sinais de vida, fulminado, para assim dizer, pela justiça divina, e no mesmo lugar onde o crime fora cometido. Mas o fidelíssimo cão, que recebera um golpe mortal, arrastou-se até à cubata e foi morrer onde fora morto Samuel Vernon.

Hércules enterrou profundamente os restos do viajante; e, Dingo, chorado por todos, foi metido na mesma cova com o seu antigo dono.

Se Negoro não existia já, os indígenas que o acompanhavam desde Kasonde não podiam estar longe. Não o vendo, procurá-lo-iam com toda a certeza para a banda do rio. Era isto não pequeno perigo.

Dick Sand e Mrs. Weldon pensaram sobre o que convinha fazer, e sem perda de tempo.

Ficara bem demonstrado que aquele rio era o Congo, a que os indígenas chamam Kuango, ou Ikutu-ya-Kongo, que é o Zaire até certa longitude e o Lualaba em outra. Era, com efeito, a grande artéria da África Central, à qual os geógrafos deveriam dar agora o nome de Stanley, em honra do jornalista americano que quatro anos depois lhe descobriu o curso.

Não havia, pois, motivo para duvidar de que era o Congo, como era certo também que o bilhete do viajante francês indicava que a embocadura do grande rio distava ainda cento e vinte milhas daquele ponto, e, infelizmente, naquele lugar não era navegável. Cataratas imponentes, provavelmente as cataratas de Ntemo, obstavam a que as embarcações continuassem a navegar. Havia, pois, mister de seguir por uma ou por outra margem, pelo menos até que fossem passadas as quedas de água, isto é, na extensão de duas milhas, e construir depois uma outra jangada para de novo correr à tona de água.

 — Resta decidir — disse Dick Sand — se desceremos a margem esquerda, onde estamos, ou a margem direita. Ambas, Mrs. Weldon, me parecem perigosas, e em ambas os indígenas são para temer. Contudo, deste lado parece-me que corremos mais risco em razão de recearmos a gente de Negoro.

 — Passemos para a outra margem — decidiu Mrs. Weldon.

 — E poder-se-á ir por ela? — observou Dick Sand. — O caminho para a foz do Zaire é decerto melhor pela margem esquerda, porque Negoro o escolhia. Seja como for! Não há tempo para hesitações, mas, antes de atravessarmos todo o rio, convém que eu saiba se o podemos descer até abaixo das cataratas.

Era proceder com prudência, e Dick Sand quis realizar o seu projecto imediatamente.

O rio naquele lugar não tinha mais de trezentos a quatrocentos pés de largura. Atravessá-lo era obra fácil para o jovem (praticante, habituado como estava a governar com a ginga.

Mrs. Weldon, Jack e primo Bénédict deviam ficar entregues à guarda de Hércules, esperando o regresso de Dick Sand.

Dispostas as coisas assim, ia este partir quando Mrs. Weldon lhe disse:

 — Não receias ser arrastado para as cataratas?

 — Não, Mrs. Weldon, porque passarei a quatrocentos pés acima delas!

 — Mas na outra margem?...

 — Não desembarcarei, se vir o menor perigo.

 — Leva a tua carabina.

 — Sim, levarei, mas não tenha cuidado em mim.

— Talvez fosse melhor não nos separarmos, Dick — acrescentou Mrs. Weldon, como que impressionada por um pressentimento.

 — Não... deixe-me ir só... — pediu Dick Sand. — Convém que assim seja, para a salvação de todos! Antes de uma hora estarei de volta. Hércules, toma muito cuidado!

Depois desta resposta, a embarcação, desamarrada, levou Dick Sand para o outro lado do Zaire.

Mrs. Weldon e Hércules, escondidos entre o capim, seguiam-no com a vista.

Dick Sand em pouco tempo estava a meio rio; a corrente, sem que fosse muito forte, sentia-se mais devido à atracção das cataratas. À distância de quatrocentos pés o estrondo enorme das águas enchia o espaço, e as brumas, açoutadas pelo vento oeste, chegavam ao jovem praticante. Tremia ele pensando que a canoa, se não tivesse havido tanta vigilância durante a última noite, se teria perdido naquelas catadupas. Mas já não havia motivo para recear, e naquela ocasião a ginga, habilmente manobrada, bastava para conservar a canoa em direcção um pouco oblíqua à corrente.

Um quarto de hora depois Dick Sand chegou à margem oposta e dispunha-se para saltar na praia...

Ouviram-se então gritos, e doze indígenas se precipitaram sobre o tecto de capim, que ainda cobria a embarcação.

Eram os canibais da aldeia edificada sobre estacas no meio do rio. Durante oito dias seguiram eles a margem direita. Sob o colmo da canoa, que se abrira de encontro às estacas que lhes sustentavam as casas, tinham visto os fugitivos, isto é, presa certa, porque contavam que as cataratas obrigariam estes infelizes a desembarcar mais cedo ou mais tarde em uma das margens.

Dick Sand julgou-se perdido, mas perguntou a si mesmo se com o sacrifício da sua vida não poderia salvar os seus companheiros. Senhor de si, de pé na proa da embarcação, com a carabina apontada, conservava os canibais em respeito.

Estes, entretanto, tinham arrancado o colmo, debaixo do qual supunham encontrar outras vítimas. Quando perceberam que o jovem praticante era o único que lhes caíra nas mãos, julgaram-se por tal modo logrados que soltaram vociferações de espanto. Um rapaz de quinze anos para dez!

Mas um dos indígenas reparou e, apontando com o braço para a margem esquerda, mostrou Mrs. Weldon e os seus companheiros, que, tendo visto tudo, e não sabendo o que fazer, tinham subido a encosta.

Dick Sand não pensava em si: esperava do céu uma inspiração que os pudesse salvar.

A embarcação fora impelida para fora da praia. Os canibais iam atravessar o rio. Diante da carabina, apontada para eles, não se atreviam a mexer-se porque conheciam o efeito das armas de fogo. Mas um deles lançara a mão à ginga e manejava-a como quem sabia; a canoa atravessava o rio obliquamente. Estava já a cem pés de distância da margem esquerda.

 — Fuja! — gritou Dick Sand para Mrs. Weldon. — Fuja imediatamente!

Nem Mrs. Weldon nem Hércules se mexeram. Dir-se-ia que tinham os pés pegados ao solo.

Para que lhes servia fugir? Em menos de uma hora estariam em poder dos canibais!

Compreendeu-o Dick Sand. Então teve a inspiração suprema que ele pedia ao céu. Entreviu a possibilidade de salvar aqueles que ele tanto estimava, fazendo o sacrifício da sua própria vida!... Não hesitou.

 — Deus os proteja — murmurou ele — e que a sua infinita bondade tenha piedade da minha alma!

E no mesmo instante Dick Sand disparou sobre o indígena que manobrava a embarcação, quebrando-lhe a ginga.

Os canibais soltaram um grito de terror.

Com efeito, a canoa, sem governo, caíra no veio da água. A corrente arrastava-a com velocidade crescente, e poucos instantes depois distava apenas cem pés das cataratas.

Mrs. Weldon e Hércules tinham compreendido tudo. Dick Sand tentara salvá-los precipitando com ele os canibais no abismo. Jack e sua mãe, ajoelhados na praia, enviaram-lhe um último adeus! Hércules estendia-lhe o seu braço, agora impotente!...

Então os indígenas, querendo tentar chegar a nado à margem esquerda, atiraram-se para fora da embarcação, que fizeram virar.

Dick Sand não perdera o ânimo em presença da morte que de tão perto o ameaçava. Acudiu-lhe então ao pensamento que a canoa, por isso mesmo que estava voltada, podia servir para o salvar.

Havia efectivamente dois perigos para recear, no momento em que Dick Sand chegasse às cataratas: a asfixia pela água e a asfixia pelo ar. Ora aquele casco voltado era como caixa, na qual ele poderia talvez conservar a cabeça fora de água, ao mesmo tempo que ficava abrigado do ar exterior, que decerto o sufocaria em razão da rapidez da queda. Em tais condições parece que qualquer homem teria probabilidade de escapar à dupla asfixia, até mesmo descendo as cataratas de um Niágara!

Dick Sand viu tudo isto como um relâmpago. Agarrou-se instintivamente ao banco que prendia as duas bordas da embarcação, e, com a cabeça fora de água dentro da canoa virada, sentiu a irresistível corrente arrastá-lo a cair quase perpendicularmente...

A canoa sumiu-se no abismo cavado pelas águas junto à catadupa, e, depois de ter mergulhado profundamente, voltou à superfície. Dick Sand, como bom nadador, percebeu que a sua salvação dependia agora do vigor dos seus braços.

Um quarto de hora depois chegava à «margem esquerda e encontrava Mrs. Weldon, Jack e primo Bénédict, que Hércules ali conduzira apressadamente. Mas já os canibais haviam desaparecido no redemoinho das águas. Eles, que não foram protegidos pela embarcação soçobrada, morreram antes mesmo de chegar às profundidades do abismo, e os seus corpos foram despedaçar-se de encontro às rochas aguçadas, onde se quebrava a corrente inferior do rio.

 

CONCLUSÃO

Dois dias depois, a 20 de Julho, Mrs. Weldon e os seus companheiros encontravam uma caravana que se dirigia para Boma. Não eram mercadores de escravos, mas honrados negociantes portugueses, que comerciavam em marfim. Tiveram os fugitivos bom acolhimento, e a última parte da viagem fizeram-na em condições mais suportáveis.

O encontro daquela caravana foi realmente um favor da Providência. Dick Sand não poderia numa jangada descer o Zaire. Desde as cataratas de Ntemo até Yallala, o rio não é mais do que uma série de catadupas e saltos de água. Stanley contou setenta e duas, e é certo que nenhuma embarcação se lhes atreve. Foi ali que o intrépido viajante sustentou, quatro anos mais tarde, o último dos trinta e um combates que ele se viu obrigado a dar aos indígenas, e escapar por milagre dos perigos das cataratas de Mebelo.

A 11 de Agosto, Mrs. Weldon, Dick Sand, Jack, Hércules e primo Bénédict chegavam a Boma, onde os Srs. Mota Veiga e Harrison os recebiam com generosa hospitalidade. Estava a partir um vapor para o istmo de Panamá. Mrs. Weldon e os seus companheiros embarcaram nele e chegaram felizmente à costa americana.

Um telegrama, expedido para São Francisco, avisou James Weldon da chegada inesperada da sua mulher e filho, de quem em vão procurava notícias em todos os pontos onde supunha que o «Pilgrim» tivesse naufragado.

Finalmente, no dia 25 de Agosto, o caminho de ferro conduzia os náufragos para a capital da Califórnia! Ah! Se o velho Tom e os seus companheiros pudessem estar com eles!...

Que se dirá agora de Dick Sand e de Hércules? Um ficou como filho, o outro como amigo da casa. James Weldon sabia quanto era devedor ao jovem praticante e ao valente e bom preto. Foi realmente bom que Negoro não chegasse a procurá-lo, porque decerto teria dado toda a sua fortuna para resgatar a sua mulher e o seu filho. Teria partido para a costa da África, e lá quem sabe a quantos perigos e perfídias se exporia!

Uma palavra mais a respeito de primo Bénédict. No mesmo dia da chegada, o digno sábio, depois de ter apertado a mão de James Weldon, fechou-se no seu gabinete e entregou-se ao trabalho, como se o tivesse interrompido na véspera. Meditava uma obra enorme, sobre o «Hexápodes Bénédictus, um dos desideratos da ciência ento-mológica.

No seu gabinete, cheio de insectos por toda a parte, achou logo uma lente e uns óculos... Ah! Que grito de desespero foi o que ele deu quando pela primeira vez se serviu dos dois instrumentos de óptica para estudar o único exemplar que lhe forneceu a entomologia africana.

O «Hexápode Bénédictus» não era um hexápode! Era uma aranha vulgar! E se tinha apenas seis pernas, em vez de oito, é porque lhe faltavam as duas de diante! E se lhe faltavam, é porque Hércules, quando a apanhou, lhas cortou desastradamente! Tal mutilação reduzia o pretendido «Hexápode Bénédictus» ao estado de exemplar incompleto e classificava-o entre os aracnídeos mais vulgares, o que a miopia de primo Bénédict impedira de ver mais cedo! Esteve doente por causa disto, mas curou-se, felizmente.

Três anos depois, tinha Jack oito, Dick Sand ensinava-lhe as lições ao mesmo tempo que não descansava nos seus trabalhos. Apenas chegou a terra, lembrando-se de tudo quanto lhe faltara, dedicou-se ao estudo com uma espécie de remorso, o que tem o homem a quem, faltando a ciência, se acha acima do que vale.

 — Na verdade — dizia ele repetidas vezes. — Se a bordo do «Pilgrim» eu soubesse tudo quanto um marinheiro deve saber, quantas desgraças teria evitado!

Assim falava Dick Sand. Aos dezoito anos tinha terminado com distinção os estudos de pilotagem, e, munido da respectiva carta, por favor especial, ia comandar os navios da casa James Weldon.

Eis até onde chegara pela sua conduta, pelo seu trabalho, o pobre e pequenino órfão, encontrado na ponta de Sandy-Hook. Via-se, apesar da sua mocidade, rodeado pela estima e pode dizer-se pelo respeito de todos, mas era tão simples e tão modesto que o não enchiam de orgulho tais provas de consideração. Não suspeitava sequer, conquanto não se lhe pudessem atribuir dessas acções de que toda a gente fala, que a audácia, o valor e a constância de que dera tantas provas tivessem feito dele um herói.

Contudo, absorvia-o um pensamento. Durante os raros momentos de descanso, que lhe deixavam os seus estudos, lembrava-se sempre do velho Tom, de Bat, de Agostinho e de Acteão, pela desgraça dos quais se julgava responsável!

James Weldon, Dick Sand e Hércules revolveram céus e terra para os descobrir. Conseguiram-no afinal, por meio dos correspondentes que o rico proprietário de navios tinha por toda a parte do mundo. Foi em Madagáscar, onde demais a mais a escravatura ia ser abolida, que Tom e os seus companheiros foram vendidos. Dick Sand queria dar as suas pequenas economias para resgatar os pobres pretos, mas não o consentiu James Weldon. Um dos seus correspondentes fez o negócio, e um dia, a 15 de Novembro de 1877, quatro negros batiam à porta da casa de James Weldon.

Eram o velho Tom, Bat, Acteão e Agostinho. Os pobres homens, depois de haverem escapado a tantos e tão grandes perigos, estiveram a ponto de morrer sufocados pelos abraços dos seus amigos.

De quantos o «Pilgriim» lançara na funesta costa da África, faltava ali somente a pobre Nan; mas à velha criada, como a Dingo, ninguém lhes podia dar vida. E foi na verdade um grande -milagre que só dois entes tivessem sucumbido no meio de tantas desgraças.

Aquele dia, de mais será dizê-lo, foi todo de festa em casa do rico negociante da Califórnia, e a melhor saúde, a que todos aclamaram entusiasticamente, foi a que Mrs. Weldon levantou a Dick Sand, ao herói de quinze anos.

 

                                                                                            Julio Verne

 

 

                      

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