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Os Rebeldes de Tuglan / Clark Darlton
Os Rebeldes de Tuglan / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Os Rebeldes de Tuglan

 

Os acontecimentos em Vagabundo, o planeta do sol moribundo, provocaram tremendo desgaste nervoso em Perry Rhodan e sua equipe. Pois tinham de se defenderem de algo que atacava inesperadamente das trevas.

Mas agora, possuindo o modelo da Via-Láctea encontrado em Vagabundo, poderiam calcular os dados necessários para o salto. Nada parecia impedir o caminho de regresso para Vega.

No entanto, Gucky, o passageiro clandestino, tinha planos diferentes para a Stardust-III. É por causa de Gucky que Perry Rhodan se defronta com Os Rebeldes de Tuglan...

 

                   

 

O pequeno ser se agachou numa depressão do solo, esperando.

O mundo parecia morto. Colinas avermelhadas até onde o olhar alcançava, estendendo-se até os confins do horizonte; longos vales com vegetação escassa. Um ou outro arbusto ressequido quebrava a monotonia da paisagem. Um sol vermelho-púrpura brilhava no céu, difundindo luz lúgubre e irreal. Fazia frio; a temperatura estava bem abaixo do ponto de congelamento. No firmamento violeta, cintilavam estrelas esparsas.

O ser assemelhava-se a um rato agigantado, com pretensões de passar por castor. A cauda não era longa e pontuda, como a de qualquer rato que se preze; era achatada e forte como a de um castor, mais parecia uma pá de remo.

O animal media cerca de um metro de comprimento. O sol moribundo arrancava reflexos castanho-avermelhados do pêlo liso e espesso. O focinho afilado dava à fisionomia um ar astuto e incomumente esperto.

Os pesados quartos traseiros permitiam deduzir que sua locomoção seria vagarosa. Talvez se desse bem em elemento líquido, porém naquele mundo deserto do sol moribundo não existia água. Não na superfície, pelo menos. Motivo que contribuíra, entre outros, para fazer os ratos-castores morarem debaixo da terra, muito abaixo do chão calcinado do deserto.

A vida era monótona e sem perspectivas, mas os ratos-castores satisfaziam-se com sua sina. Enquanto houvesse um pouco de vegetação para matar a fome, não havia motivo para se preocuparem.

E nenhum deles se preocupava, efetivamente; exceto este, que se destacava dos companheiros por um traço bem peculiar: não ficava, como os demais, privado da inteligência quando a noite caía.

Não tinha nome, entretanto. Era apenas um dos muitos habitantes daquele mundo isolado, totalmente desconhecido. Pastava com seus congêneres na hora do crepúsculo; depois se entocava no chão para dormir. Ao alvorecer, comia e dormia novamente. Dia após dia, sem variedade nem emoções.

Até a chegada dos estranhos, inopinadamente caídos do céu com uma bola imensamente grande. Pousaram e ficaram fazendo buscas nos arredores; tendo encontrado o que queriam, aprestavam-se para levantar vôo de novo.

Com eles chegara ao mundo morto algo que os ratos-castores desejavam inconscientemente: novidade e oportunidade de brincar.

Ele, principalmente, dera por isso. Arrepiado de emoção, o pequeno rato-castor relembrou as excitantes aventuras e brincadeiras em que se envolvera. Aqueles seres peculiares, que andavam eretos, e possuíam braços e pernas, tinham trazido consigo inúmeros aparelhos e máquinas, com as quais se podia inventar deliciosas brincadeiras. Só que os estranhos pareciam não gostar delas; mostravam-se até flagrantemente assustados.

Mas por quê, ora bolas?

Que havia de assustador em fazer os pesados veículos de esteira rodar em círculos? Ou disparar as interessantes armas existentes a bordo? Aquilo tudo não fora feito para funcionar?

O rato-castor encolheu-se ainda mais em seu precário esconderijo. A gigantesca esfera se encontrava a pouca distância dele. Os bípedes estavam atarefados em carregar maquinaria para dentro do enorme ventre de sua nave. Era óbvio que se preparavam para abandonar aquele mundo. Mas o rato-castor detestava a idéia de vê-los partir. A vida voltaria a ser solitária e monótona. Chato não dispor senão de pedras e areia para brincar... Sim, podia erguer algum amigo no ar e deixá-lo cair de novo; mas tal brincadeira acabava perdendo a graça com o tempo. De que lhe servia o poder de mover coisas sem tocá-las se não existiam coisas naquele mundo?

Os últimos caixotes estavam sendo fechados. Com a cabeça inclinada para o lado, o rato-castor refletia. Será que adiantaria pedir uma carona aos estranhos? Eles topariam levá-lo? Mas como perguntar? Eles não o entenderiam, certamente. Poderiam até ter medo dele.

Porém, se quisesse continuar a se divertir com eles, o rato-castor tinha que descobrir um jeito de penetrar na nave. Acompanhá-los na viagem, deixando para trás seu mundo... Mas como?

Os caixotes!

Um deles estava bem pertinho dele, com a tampa ao lado. Só faltava colocá-la no devido lugar. Os fechos magnéticos se encaixariam automaticamente. E não havia bípedes pela vizinhança imediata.

O rato-castor não perdeu tempo em cogitações. Instintivamente, impelido por motivos inconscientes, entrou em ação. Afinal, tudo que queria era brincar, mais nada. E para isso precisava ir com os estranhos. Coisa que só seria possível caso conseguisse se introduzir na grande nave, escondido dentro do caixote.

Não se levantou sobre as patas traseiras, conforme era seu hábito. Arrastando-se de bruços, esgueirou-se para fora do esconderijo; a larga cauda ia desfazendo as marcas deixadas na areia.

O animal — seria de fato um animal, só porque não tinha aparência humana? — chegou ao caixote. Olhando cautelosamente para os lados, saltou com presteza para dentro dele.

A sorte favorecia o pequeno rato-castor. Tratava-se de um dos caixotes de mantimentos da expedição espacial. Como boa parte das provisões já fora consumida, havia espaço de sobra para acomodar seu parco volume corporal. O resto foi simples.

Um dos bípedes, parado a alguma distância, em palestra com um companheiro, verificou que a tampa do caixote flutuava para cima; depois de oscilar indecisa por alguns instantes, baixou e encaixou-se no lugar. Espantado de início, o bípede acabou desprezando o incidente. Dando de ombros, retomou o fio da conversa interrompida. Já estava acostumado com as inofensivas brincadeiras telecinéticas dos gozados habitantes daquele planeta. Afinal, uma tampa de caixote voando não representava motivo para alarma.

E assim o rato-castor conseguiu entrar na enorme nave. Duas horas após, ela deixou seu planeta natal, tomando rumo desconhecido, que ele não era capaz de conceber nem imaginar.

Nem chegou a ver sua pátria, o solitário planeta de um sol moribundo, diminuir até reduzir-se gradualmente a um débil ponto luminoso, que logo se perdeu nas profundezas do espaço.

O aborrecimento voltava a tomar conta dele. O caixote era escuro e apertado. Estranhou o ar dentro da nave, muito mais rico em oxigênio do que a rarefeita atmosfera de seu planeta. Além disso, fazia muito calor. E ele vinha de um planeta de temperatura baixíssima. O mundo deserto, ao qual os estranhos haviam dado o nome de Vagabundo, recebia pouco calor de seu sol em degeneração; durante a noite, a temperatura descia muito abaixo do ponto de congelamento.

O rato-castor começou a transpirar. Afastando a tampa, saiu do caixote. Espantou-se com a enormidade do recinto em que se encontrava; deduziu logo que era uma espécie de depósito, pelas filas e pilhas de caixotes ali guardados. De repente escutou ruídos. Arrastou-se em direção deles, colado ao soalho. Abrir a porta foi fácil. Percorreu lentamente um longo corredor. O piso metálico vibrava sob seus pés, emitindo sons murmurantes.

O rato-castor tomou por uma passagem à direita, e ficou farejando o ar. Cheiro esquisito aquele... E o calor aumentava. Mas sentiu igualmente uma lufada de ar frio. Frio! Era o que queria!

Mais uma porta. Uma porção de bípedes, falando animadamente em seu estranho idioma. Havia diversos panelões sobre suportes; os bípedes remexiam neles com longos e cintilantes bastões. O calor se tornara insuportável.

O rato-castor avistou uma porta entreaberta. Era de lá que vinha o ar frio. Os bípedes nem sequer reparavam nele; além disso, os panelões ofereciam excelente cobertura. Com alguns saltos, alcançou a porta e introduziu-se pela fenda aberta.

Sentiu-se envolvido por um frio acolhedor, enquanto suas narinas detectavam odores desconhecidos. Fazendo a porta cerrar-se, olhou em torno de si, emitindo ondas, como um aparelho de radar. As ondas refletidas desenhavam imagens em suas sensíveis pupilas.

Sentiu fome, e deu com uma fruta. Dura e congelada como uma pedra, mas de sabor delicioso.

De repente, o rato-castor se sentiu à vontade, como se estivesse em seu ambiente habitual. E começou a brincar.

 

O sistema do sol moribundo, com seu planeta único, ficou para trás. A gigantesca esfera espacial ganhava o espaço interestelar, aprontando-se para o arriscado salto através da quinta dimensão.

As coordenadas estavam determinadas.

O sol Vega ficava a dois mil e quatrocentos anos-luz; a Terra e seu sol encontravam-se mais ou menos à mesma distância, porém em outra direção. No entanto, esses trajetos incomensuravelmente longos não constituíam problema algum para a nave espacial Stardust-III. E muito menos para Perry Rhodan.

O comandante da imensa nave, construída há muitos séculos pelos arcônidas, ocupava seu assento estofado, pronto para entrar em ação. Nos olhos cinzentos brilhava viva determinação. O corpo esguio estava tenso como um arco esticado. As mãos delgadas e queimadas de sol repousavam sobre os controles.

No cérebro positrônico estavam registradas as coordenadas do salto. Na escala lia-se o valor 2.401,0734 anos-luz. A nave seria desmaterializada, para reaparecer, quase no mesmo instante, na orla do sistema Vega. De onde seria fácil localizar o objetivo, com auxílio do mapa luminescente encontrado em Vagabundo.

E o objetivo era um planeta solitário e desprovido de sol, vagando perenemente pelo infinito, rumo à eternidade, cujo segredo abrigava em seu seio. Pois era o planeta da vida eterna.

Perry Rhodan aguardou ainda por alguns instantes.

A expectativa enchia-o de ansiosa inquietude. A busca do planeta da vida eterna estava se prolongando demais. Tinham seguido decididamente a pista encontrada em Vega, porém o imortal não lhes facilitara a tarefa. Espalhara um sem-número de enigmas através dos milênios, desvinculados de tempo e espaço. Rhodan e seus amigos tinham conseguido decifrar todos eles, com exceção do último. Apenas o último enigma resistira aos seus esforços.

O arcônida Crest encontrava-se de pé junto a Rhodan. A estatura elevada e os cabelos brancos lhe conferiam imensa dignidade. Sua aparência externa não deixava adivinhar que sua raça decaíra, estando, portanto, fadada à extinção. E, no entanto, os arcônidas dominavam ainda um imenso império estelar, a trinta e quatro mil anos-luz da Terra. Porém seu império se desagregava lenta e irremediavelmente. Os sistemas solares procuravam sua independência, desligando-se dos laços que os uniam ao Grande Império.

Crest descendia da dinastia arcônida reinante, um dos derradeiros representantes da estirpe. Sua expedição em busca da imortalidade acabara num pouso forçado na lua terrestre. Perry Rhodan socorreu-o quando realizava o primeiro vôo espacial tripulado dos terrestres, levando-o para a Terra. E desde então, Rhodan e Crest procuravam juntos a “pedra filosofal”.

O planeta Vagabundo havia lhes fornecido nova pista: um mapa luminoso da Via-Láctea, no qual um traço nítido unia Vega ao planeta da vida eterna. Com o que sua posição estava finalmente determinada.

— Já vai iniciar a transição, Rhodan? — indagou Crest, com um suspiro. — Refletiu bem sobre isso?

— As coordenadas estão corretas, e dispomos de pouco tempo.

O arcônida deu de ombros.

— Ainda estamos perto demais do sol vermelho. Lembre-se que este sistema tem apenas um planeta. Isso pode iludir no cálculo das distâncias.

— Vinte unidades astronômicas — disse Rhodan, com um olhar para o amplo painel de instrumentos. — É o suficiente. Sente-se, Crest. É agora...

Crest continuou de pé. A posição do corpo era indiferente durante a transição. O efeito se manifestaria de forma bastante atenuada, pois os campos gravitacionais próprios da nave compensariam tudo.

Com um sorriso tenso, Perry Rhodan acionou a alavanca de transição.

As telas escureceram, sem mostrar agora estrela alguma.

A matéria deixou de existir, pelo menos no espaço normal. Passou primeiro para a quarta, e depois para a quinta dimensão; desvinculada de tempo e de espaço, percorreu uma distância de 2.401,0734 anos-luz e recomeçou a existir.

Dois mil quatrocentos e um anos-luz?

No preciso instante em que ocorria a transição, Perry Rhodan percebeu que algo saíra errado.

A habitual dor nos membros estava presente, conforme sempre se fizera sentir nos saltos até então executados. Mas os olhos de Rhodan continuavam enxergando. E viram o número no visor da escala de coordenadas dar um pulo acentuado. Chegou a identificar um 3, mais um 3, e a seguir três outros algarismos que não conseguiu ler. Sua vista se turvou, e tudo escureceu.

Desmaterializados, Perry Rhodan e sua nave dispararam pelo Universo, na direção de um alvo desconhecido e estranho.

O gigantesco sol azul flamejava ameaçadoramente no espaço.

 

Era a estrela-mãe de trinta e oito planetas, girando em órbitas diversas. Mas nem a todos ela dava vida. Os planetas internos não recebiam mais do que seu hálito mortal; as massas incandescentes semifluidas só mantinham a forma esférica devido à força da gravidade. A seguir vinha a zona da vida, que se estendia do oitavo ao décimo quinto planeta. Mais além ficavam os enormes mundos gelados, onde a vida natural não encontrava ambiente propício para se desenvolver. Os planetas mais afastados não passavam de sinistros monstros congelados, rodando em torno de seu sol em órbitas cada vez mais distantes, e recebendo dele escassa luz.

Em plena zona da vida, o planeta Tuglan prosperava sob os raios benéficos de seu sol Laton. Quando anoitecia em Tuglan, havia tantas estrelas no céu que se podia ver a própria sombra. Jamais um terrestre havia visto tal ajuntamento de estrelas, pois Laton ficava na orla do conglomerado de estrelas M-13, na constelação de Hércules, a mais de trinta e cinco mil anos-luz da Terra.

O planeta Tuglan era habitado.

As expedições exploratórias do Grande Império arcônida já haviam constatado tal fato há mais de seis mil anos, tratando logo de incorporar Tuglan ao Grande Império. Para os tuglantes, teve início então um período de desenvolvimento econômico e progresso técnico. Em conseqüência da expansão de sua espaçonáutica, fora-lhes possível colonizar os demais planetas habitáveis do sistema.

O contato com os arcônidas resultara na unificação política de Tuglan, que passou a ser governado pelo alto-comissário de Árcon, e pelo lorde de Tuglan.

Porém as visitas das naves arcônidas à distante colônia se tornaram cada vez mais raras, e o contato de Tuglan com o longínquo império afrouxou gradualmente. Apenas a presença do alto-comissário lembrava que os tuglantes eram súditos de um reino mais poderoso.

Mas, na realidade, a situação era ainda mais complicada. Pois, apesar de já não se lembrarem disso, os tuglantes eram descendentes dos arcônidas. Doze mil anos antes, colonizadores pioneiros de Árcon tinham descoberto e povoado o planeta Tuglan. Naquela época, o Grande Império ainda não havia sido constituído nos moldes posteriores, e o episódio não foi divulgado. Portanto, ao redescobrir Tuglan seis mil anos após, os arcônidas julgaram ter encontrado uma raça nova

Os descendentes dos arcônidas não eram mais albinos; em vez de brancos, seus cabelos eram arroxeados, e a pele tinha tom vermelho-azulado.

No palácio do grande lorde de Tuglan reinava uma excitação cuidadosamente contida. Nada transpirava além das paredes, mas os funcionários e dignitários do reino interplanetário de Laton pressentiam algo incomum. Ninguém sabia ao certo do que se tratava, se bem que um ou outro nutrisse conjecturas mais ou menos acertadas.

O grande lorde Alban, homem de estatura imponente e expressão rígida, usou de toda a franqueza com Daros, seu irmão mais moço.

— Já agüentamos demais a tutela desses arcônidas decadentes. Existe algum motivo válido para continuarmos sendo colônia do império deles?

O homem mais jovem fora contemplado pela natureza com traços bem mais simpáticos. Nos olhos escuros refletia-se algo como melancolia e fraqueza; porém a boca enérgica desmentia tal impressão. Era esbelto, e vestia-se como os demais funcionários superiores.

— Sei que você desejaria ver os tuglantes se tornarem independentes — disse o jovem, fitando pensativamente o irmão. — No entanto, pergunto-me que vantagens vê em se desligar do império e ser independente. Existem motivos convincentes para isso?

Alban refutou a objeção com um gesto impaciente da mão.

— Qual a vantagem de ser patriota? É isso que quer saber? Não esqueça que o império arcônida está com os dias contados. Não que estejamos muito a par do que ocorre, mas o alto-comissário deixou escapar há dias uma observação reveladora; deduzi dela que os arcônidas estão tendo dificuldades. E muitas raças pensam como nós.

— E o que é que nós pensamos? — indagou Daros, com ar de desafio.

— Queremos ser livres! — exclamou Alban, em tom patético. — Livres de Árcon! Será este nosso lema.

— Livres de Árcon! — repetiu Daros, sacudindo a cabeça. — Que lema mais sem sentido! Sempre fomos livres no que se refere a Árcon... Está certo, fazemos parte do Grande Império. Mas isso nos trouxe alguma vez inconvenientes?

— Trata-se de ideais nacionais! — clamou Alban, entusiasticamente, dando um murro na mesa. — Nosso sistema possui oito planetas habitados, todos unificados sob o meu governo. Somos fortes e poderosos. Por que deveríamos nos submeter?

Daros suspirou:

— Não entendo seus argumentos, mano. Por que quer lutar com quem nunca nos fez mal algum? O alto-comissário arcônida é homem de boa paz, que jamais se imiscuiu em nossos assuntos. Portanto, somos realmente independentes.

— Sim, mas apenas porque nos opomos há anos ao domínio arcônida. Se bem que de maneira passiva, sem recorrer ao emprego de armas. Considero o alto-comissário mero resquício, que precisa ser afastado.

— Pensa matá-lo? — perguntou Daros, preocupado.

— Se for preciso, sim. Pois ele controla o único sistema radiofônico de comunicação com Árcon. Basta interditá-lo, e ele não terá possibilidade alguma de alarmar os arcônidas. Como vê, pensei em tudo.

— E por que me revela seus planos, se sabe que penso de maneira diversa? — perguntou Daros, intrigado.

O lorde de Tuglan sorriu:

— Não tenho filhos, irmão, e você algum dia se tornará meu sucessor. Quero que seja um governante sábio e esclarecido. Logo, deve tomar conhecimento das razões que me levam a proceder conforme procederei em breve. Até que você poderia ser invejado. Eu libertarei Tuglan, e você é quem governará futuramente uma raça livre.

Daros sacudiu a cabeça, muito sério.

— Frases, Alban, nada mais que frases. Não se pode libertar quem já é livre há muito tempo ou pretende nos tornar mais felizes do que já somos? Não vivemos na paz e na fartura? Em que essa sua apregoada liberdade poderia vir a melhorar nossa situação?

O sorriso de Alban desapareceu.

— A liberdade é um símbolo, nada mais. Concordo, ela não viria modificar as circunstâncias externas, mas só o fato de saber que somos livres... sem dever obediência a ninguém...

Daros ergueu-se. Seus olhos escuros se detiveram sobre o irmão, enquanto duas profundas rugas lhe sulcavam os cantos da boca.

— Não compartilho de seus pontos de vista, Alban. Mas você é o lorde, senhor supremo do poder sobre os oito planetas. Portanto, a decisão é sua. Mas eu aviso: não conte com meu apoio neste caso. Eu lutaria lado a lado com você, se houvesse sentido. Mas desta forma não, sinto muito...

Sem fitar o irmão, com o olhar perdido num canto da sala, Alban replicou com voz contida:

— Talvez seja perigoso se opor aos meus intentos, mano!

— Devo encarar isso como uma ameaça? — respondeu Daros, com um sorriso irônico. — Quem diz que me oponho a você? Apenas não concordo com seus planos, mais nada. Ou julga que vou correndo delatar sua trama ao alto-comissário? Pois saiba que está enganado... E também se engana se supõe que ele continue ignorando tais propósitos por muito tempo. Os tuglantes estão satisfeitos com seu destino, e não fazem questão alguma de se envolverem numa guerra que só lhes acarretaria desgraças.

— Nós venceremos esta guerra!

— Que diferença faz? Guerra nenhuma traz benefícios, nem mesmo ao vencedor.

— Bobagem sua!

Impulsivamente, Daros se aproximou do irmão, colocando-lhe a mão sobre o ombro.

— Alban, imploro-lhe que seja razoável. Mesmo que consiga afastar o alto-comissário arcônida, não se sentiria livre. Árcon fica longe, sim, mas algum dia o Grande Império saberia que nos rebelamos abertamente. Mandariam uma expedição punitiva, e nem ouso pensar nas conseqüências decorrentes da medida...

Alban sorria novamente.

— Viu, Daros? É possível se considerar livre quando pesa sobre nós a ameaça constante de um eventual aniquilamento? E ela está presente dia e noite, constantemente.

Daros recolheu a mão.

— Você não me compreende. Ou não quer compreender...

De peito altivamente erguido, Daros retirou-se da sala, seguido pelo olhar sombrio do irmão.

 

O alto-comissário era um arcônida típico. Pela aparência externa, poderia ser confundido com Crest, porém chegara a um grau de degenerescência bem maior. Padecia de leucemia, sem esperança de cura. Apesar de extremamente inteligente, sua indolência física e mental era acentuada. Suas obrigações eram cumpridas com displicência, resumindo-se principalmente a esporádicos relatórios de rotina para Árcon. Em todos eles afirmava que tudo ia bem no sistema solar de Laton.

Quase nunca recebia resposta.

Mesmo a visita daquele dia não conseguira arrancá-lo de sua letargia. Um jovem tuglante solicitara-lhe audiência, afirmando trazer importante mensagem. Foi recebido com visível contrariedade.

— Vem bastante tarde. Eu já ia acabar...

O tuglante sentou-se sem esperar convite. Parecia exausto.

— Ia acabar? Pois saiba que, se não tomar cuidado, vão é acabar com o senhor! Mantenha-se alerta.

Já mais interessado, o arcônida resolveu dar atenção ao visitante. A testa alta sob os cabelos brancos não apresentava rugas. O comissário Rathon era idoso, porém tinha a aparência de um jovem. E, a despeito de seu marasmo mental, era esperto. No entanto herdara o defeito genético comum à sua altiva raça: era presunçoso.

— Qual, isso é tolice! — exclamou. — Quem ousaria atacar o alto-comissário do Grande Império?! Atrairia sobre si a ira de uma potência capaz de arrasar este sistema solar em dois tempos. Ora, não vale a pena se alterar por isso. E meu tempo é precioso, principalmente meu tempo livre. Passe bem!

O tuglante permaneceu sentado.

— O senhor se superestima, e subestima nossa gente, maneira de pensar muito comum nos arcônidas, segundo parece. Saiba que não é por amor aos seus belos olhos vermelhos que venho lhe oferecer ajuda, mas sim porque amo meu povo. Não quero guerra entre vocês e nós, entende?

— E por que haveria guerra?

— Se for assassinado, comissário, a guerra será inevitável — disse o desconhecido, com brutal franqueza. — E vão assassiná-lo!

Rathon sentiu-se invadido por um desagradável pressentimento.

— Sou o representante e emissário do Grande Império arcônida, meu jovem amigo. Quem me atacar, ataca igualmente o império. E quem quer que planeje tal ato, planeja simultaneamente o fim de Tuglan e de todos os seus planetas-colônias. Pode existir pessoa assim tão alienada?

— Pode, sim. Existe uma pessoa que é alienada a este ponto.

— Quem?

— O grande lorde de Tuglan.

Pesado silêncio caiu sobre os dois interlocutores. Imóvel diante de sua mesa, Rathon perscrutava o visitante. Via-se que refletia esforçadamente. A incrível afirmação que acabava de ouvir devia ter atingido sua altiva impassibilidade. E seu íntimo rejeitava a possibilidade de ver aquela plácida existência ser encerrada por acontecimentos inesperados. A vida era bela e agradável demais para sofrer bruscas alterações.

— Pois bem — acabou dizendo. — Então é o grande lorde de Tuglan... Tem provas do que afirma?

O tuglante sacudiu a cabeça.

— Boatos não podem ser provados, Rathon. Tenho um amigo que trabalha no palácio de Alban. Foi ele que me contou. Dizem que o lorde pretende cortar todo contato com Árcon.

— Conversa fiada! — exclamou Rathon, com menosprezo. — Vou provar que nada disso é verdade. Amanhã mesmo vou procurar lorde Alban para perguntar o que se passa.

O jovem tuglante saltou de sua cadeira, assustado.

— Não, Rathon! De modo algum deve fazer isso! Pode imaginar o que aconteceria a mim e ao meu amigo, caso o lorde descubra nossa traição?

— Se tiver falado a verdade, estará sob minha proteção — tranqüilizou-o o comissário.

— Caso ela ainda valha alguma coisa — murmurou o visitante, dirigindo-se para a porta. De lá voltou-se ainda uma vez, insistindo: — Não vá procurar o lorde, eu lhe peço. Aguarde e mantenha-se atento. É tudo que posso lhe aconselhar. Correrá sério perigo se tentar alertar Alban.

O comissário esperou que a porta fosse fechada. Depois calcou um botão oculto sob o tampo da mesa. Uma tela se iluminou na parede, deixando ver o rosto de um homem. Um tuglante moço, de cabelos escuros. Em seus olhos havia uma expressão de humilde subserviência.

— Ror, venha cá! Tenho trabalho para você.

 

Três robôs cuidavam da hiperestação de rádio arcônida em Tuglan. O pequeno prédio, terminado em cúpula, ficava nos arredores da capital. O decorativo muro que cercava o terreno servia mais de enfeite do que de proteção. Pois jamais, em todos aqueles milênios, alguém se lembrara de pisar o terreno da estação transmissora-receptora.

Havia uma ligação direta, sem fio, para o gabinete do alto-comissário. De sua mesa de trabalho, Rathon podia se comunicar diretamente com Árcon, a vários anos-luz de distância.

Os três robôs constituíam obras-primas da eletrônica arcônida. Estavam equipados com bancos de memórias mecânicos; inexaustíveis pilhas atômicas forneciam a energia necessária ao seu funcionamento. A mão direita articulada permitia-lhes executar qualquer movimento essencial ao seu trabalho; além disso, os mais diversos tipos de ferramentas podiam ser ajustados a ela.

A mão esquerda servia exclusivamente de arma. O pulso-radiador embutido tinha potência suficiente para destruir qualquer inimigo ou agressor reconhecido como tal, mesmo a grandes distâncias. Mas nunca, desde que haviam sido criados, os robôs se haviam visto na necessidade de recorrer ao braço esquerdo. Era seus cérebros eletrônicos existia um circuito bloqueador de impulsos agressivos, enquanto não houvesse provocação. Porém, jamais circunstância alguma os levara à dedução lógica de que era preciso empregar o recurso extremo: suas armas.

Até então, aqueles robôs nada mais tinham sido do que pacíficos funcionários e vigias mudos.

Até então...

 

Os dois vultos indistintos pararam diante do muro. O imenso sol azul já se pusera há muito tempo; o crepúsculo dera lugar à prateada noite estrelada.

— Chegamos! — sussurrou um dos tuglantes, em tom quase inaudível. — Acha que os robôs vão criar problema?

— Ora, por que iriam? — respondeu o outro, igualmente num murmúrio. — Se nem desconfiam do que tramamos! Aliás, não creio que ataquem tuglante algum; jamais fizeram isso até hoje.

— Porque jamais alguém tentou destruir a estação — replicou o primeiro. — Mas o grande lorde está certo: só podemos conseguir nossa liberdade depois de cortar a comunicação com Árcon.

— Política não é o meu forte, velho. Só sei que sempre me considerei livre, e não posso imaginar qual a liberdade que ainda poderia gozar. Mas o lorde deve saber o que faz...

— Psiu! Quieto agora. Ouvi um barulho por trás do muro.

Os dois homens conservaram-se imóveis, porém não ouviram mais nada.

— O muro não é alto. Investiguei ontem, e descobri um ponto apropriado. Tem um ressalto, que dá pé para subir. O resto deve ser sopa.

Continuaram a avançar cautelosamente. Um dos tuglantes percorria o muro com a mão, até dar com o ressalto procurado. Detendo-se bruscamente, cochichou:

— É aqui. Assim que eu tiver subido, você segue. A carga explosiva está pronta?

— Um toque faz funcionar o relógio.

— Qual é o prazo?

— Cinco minutos. Deve ser suficiente.

Evidentemente, os tuglantes marcavam o tempo por sistema diverso. Mas até onde foi possível verificar posteriormente, a bomba explodiu efetivamente cinco minutos após a ativação.

— Ótimo. Cuidado agora!

O vulto desenhou-se nitidamente contra o céu literalmente semeado de estrelas, revelando que o tuglante se encarapitara sobre o muro. Após auxiliar o companheiro a subir, ambos ficaram à escuta. Nada se movia no jardim lá dentro.

O revestimento prateado da cúpula cintilava à luz das estrelas. Em seu ponto mais elevado, uma antena encimada por brilhante bola dourada apontava para o firmamento noturno. Externamente era tudo que se podia ver do potente equipamento.

— Onde colocamos a carga explosiva? — sussurrou o tuglante que subira por último no muro. — Dizem que a cúpula é feita de material indestrutível.

— Exato, de uma liga de arconita. Temos que pôr a bomba lá dentro, onde mais?

— Não sei para que tanta complicação. Era só trazer um canhão de raios mais ou menos usável, e a gente derretia aquilo tudo num instante.

— Idiota! — xingou o outro, furioso. — Não vê que a coisa tem que parecer acidental? Ou, pelo menos, dar a impressão de ter sido obra dos habitantes primitivos do décimo terceiro planeta. De jeito nenhum a suspeita pode cair sobre nós.

Algo se mexia perto da cúpula!

O primeiro tuglante percebeu-o imediatamente. Agachando-se sobre o muro, forçou o companheiro a imitá-lo.

— Para o jardim, ande! Os robôs desconfiaram. Nem imagino o que fariam se nos pilhassem em seu território reservado.

Escorregaram para o chão, que não ficava longe. A terra fofa absorveu o ruído do impacto de seus pés. Durante alguns minutos conservaram-se imóveis, observando o prédio. Mas o movimento não se repetiu. Tudo continuava calmo e silencioso.

 

No interior da construção abobadada, os robôs vigiavam as telas. Em seus cérebros, correntes de impulsos acionavam relés. Zonas até então jamais requisitadas eram ativadas. Pela primeira vez em milênios soava o alarma. Os alto-falantes embutidos despertaram para a vida, emitindo metálicas palavras arcônidas.

— Alguém entrou no jardim — disse o robô 2, serenamente.

O robô 1 acenou com a cabeça, num gesto quase humano.

Muito sabiamente, os arcônidas tinham capacitado seus robôs a reagir a sentimentos e emoções.

— Dois tuglantes, caso o detector não minta. Que querem aqui? O captador de pensamentos não disse.

O terceiro robô mexeu em alguns controles, enquanto fitava uma tela na qual surgiam padrões abstratos. Turbilhonando de forma caótica, acabaram formando uma imagem mais ou menos definida. Depois de estudá-la atentamente, o autômato disse:

— Ondas telepáticas muito inconsistentes, as desses dois. Até onde posso julgar, não vêm como amigos. Pena as ondas serem tão fracas. Vai ser difícil descobrir suas intenções. Mas boas é que não são.

O robô 1 fitou seu braço esquerdo. Percebendo o gesto, o 2 meneou a cabeça.

— Não, 1; não existe perigo imediato. Vou lá fora perguntar aos tuglantes o que querem de nós.

— O que me parece errado — replicou o robô 1, revelando com isso novo aspecto da tática científica arcônida.

Não construíam todos os robôs segundo um mesmo esquema; cada qual recebia identidade e capacidade de raciocínio individual. Robôs idênticos podiam ter opiniões diversas.

— Fique na porta, observando-os, mas não se deixe ver. Talvez assim revelem mais depressa suas intenções.

O robô 2 desapareceu.

Numa das telas via-se o jardim. Os tateantes raios infravermelhos reproduziam exatamente sua imagem sobre o vidro opaco. Até as fisionomias dos dois tuglantes eram reconhecíveis. Conversavam, e agora um deles apontava na direção da cúpula. Depois pularam do muro para o jardim, agachando-se entre alguns arbustos.

— Avistaram o 2 — disse o robô 3, com sua voz desprovida de entonação. — Pena...

— Pena por quê? — discordou o robô 1. — A atitude deles delatou-os. Vários fatos provam que não vêm em visita de cortesia. Primeiro, aparecem sorrateiramente no meio da noite, pulando o muro escondidos. Segundo, uma vez que se escondem do 2, tramam algo inconfessável. Pelo menos sabemos agora em que situação estamos.

— E o que vamos fazer?

Os olhos do robô 1 lançaram um brilho aparentemente ainda mais frio do que o comum. As lentes de cristal fulguravam gelidamente:

— Que diz seu circuito lógico?

Sem refletir um segundo sequer, o 3 respondeu:

— Defesa!

 

Dez minutos de espera, no meio da folhagem, chegaram para esgotar a paciência dos dois tuglantes.

— Olha, acho que nos enganamos; não tem nada lá — murmurou o que não entendia de política ao companheiro.

— Será? — duvidou o segundo, mas acrescentou: — Seja lá como for, não podemos esperar mais. Só que os robôs não podem desconfiar do que planejamos, em hipótese alguma. E, mesmo que nos tenham visto, as ordens do lorde precisam ser cumpridas. Vou na frente; siga-me, com a bomba à mão.

Os dois conspiradores alcançaram o prédio. Não perceberam mais nenhum movimento suspeito, pois o robô 2 já retornara ao interior da estação, trancando a porta. No momento, ele dizia aos outros:

— Tenho certeza de que eles não vêm com boas intenções, 1. Acho melhor perguntar-lhes o que procuram.

— É, talvez você esteja com a razão — concordou o robô 1, convencido com as palavras do colega. — Se não tomarmos nenhuma iniciativa, eles permanecerão lá fora, e nunca saberemos o que queriam. A cúpula é impenetrável; abra a porta.

Os dois tuglantes detiveram-se. Inquieto e nervoso, um deles passava a bomba de tempo de uma mão para a outra, como se não soubesse o que fazer com ela. Ambos estremeceram de susto ao ver parte da parede convexa deslizar para o lado, revelando uma abertura. Nela apareceu um robô. Estarrecidos, os dois intrusos não conseguiam se mover.

Falando o idioma tuglante com acentos metálicos, o robô indagou:

— Que querem de nós? Não sabem que é rigorosamente proibido entrar na estação?

O mais versado em política recuperou o ânimo, e esboçou um sorriso amistoso.

— Viemos avisar vocês — disse, com ar de conspiração. — Estão planejando um atentado contra a estação radiofônica do alto-comissário.

Em vão o robô 2 procurava sondar as ondas mentais dos tuglantes. Eram débeis demais para emitir os impulsos necessários.

— Quem? — perguntou, desconfiado.

— Uma organização secreta, contrária ao Grande Império. O grande lorde foi informado, e pediu que viéssemos alertar vocês.

— Por que não se dirigiram a Rathon? Por que vieram para cá, e em plena noite?

— Ninguém podia saber de nossa missão.

A explicação era aceitável. O robô 2 refletia, enquanto às suas costas o 1 indagava:

— Que querem eles?

— Avisar-nos. Dizem que vamos sofrer um atentado!

Após curta hesitação, veio a ordem:

— Traga-os para dentro!

Um dos tuglantes apertou disfarçadamente o botão da bomba; o mecanismo de ignição começou a funcionar em seu bolso.

Dispunham de cinco minutos para depositar a bomba e porem-se a salvo.

 

Em silêncio o robô 3 presenciou a entrada dos visitantes, seguidos pelos dois autômatos. Percebera modificação nos padrões coloridos projetados na tela receptora de pensamentos. O que permitia conclusões bastante interessantes. Decidiu usar de cautela e vigiar de perto os tuglantes.

O conspirador que levava a bomba procurava febrilmente um lugar para colocar o explosivo. Cinco minutos podiam representar longo espaço de tempo em determinadas circunstâncias. Mas era curto demais quando a própria vida estava em jogo.

O 2 vinha na retaguarda dos tardios hóspedes, enquanto o robô 1 lhes tomava a dianteira, mostrando o caminho. Nutria sérias dúvidas. Que significaria aquela visita? Pois, caso o lorde dos tuglantes fora efetivamente informado do iminente atentado contra a estação, o mais normal seria avisar o alto-comissário de Árcon. Mas, em vez disso, mandava dois homens vir falar com os robôs. Atitude pouco lógica. Havia algo de suspeito naquilo... Os dois tuglantes estariam mentindo?

Bem, isso podia ser constatado sem demora. O robô 1 acenou para o 3, dizendo:

— Observe a tela de pensamentos. Vou fazer-lhes algumas perguntas em sua língua nativa; diga-me se falam a verdade.

E indagou ao primeiro tuglante:

— Vieram por ordem do grande lorde de Tuglan?

Os arabescos coloridos do padrão abstrato não se modificaram quando o homem confirmou, pressurosamente. Não mentia, portanto. Estranho...

— E alguém planeja um atentado contra esta estação?

— Isso mesmo — afirmou o tuglante, sem que houvesse alteração no padrão projetado na tela.

Dois minutos já haviam decorrido. As imagens no captador de pensamentos começaram a fluir, assumindo novas formas. O padrão abstrato movia-se constantemente.

O robô 3 lançou um olhar interrogativo ao 1, acenando de leve.

Os dois tuglantes começavam a demonstrar sinais de nervosismo.

— Só queríamos avisar vocês. Fiquem atentos. Os conspiradores virão ainda esta noite. Mas agora precisamos ir...

— Calma! Para que a pressa? — replicou o robô 1, sacudindo a cabeça.

O tuglante com a bomba olhou em torno, desesperado. O tempo passava, e corriam o risco de voar pelos ares junto com a estação. A bomba ainda continuava em seu bolso. Por que sacrificaria sua vida?

Encontrava-se perto de um painel recoberto por perturbadora quantidade de botões e chaves. Na estreita bancada diante dele havia ferramentas e peças sobressalentes, além de inúmeras caixinhas com parafusos e instrumentos para conserto de equipamento técnico. Disfarçadamente, o tuglante tirou a bomba do bolso, largando-a no meio das caixas. Ali ela não chamaria a menor atenção.

O robô 3 percebeu um redemoinho colorido na tela, sem poder determinar qual dos dois visitantes o provocava. Fez sinal para o 1.

Já se haviam passado três minutos.

— É que queremos evitar um encontro com os conspiradores — explicou o primeiro tuglante. — Arriscamos a vida vindo avisar vocês. Portanto, deixem-nos ir agora.

Os padrões eram agora mais regulares. Logo, eles tinham de fato posto suas vidas em jogo; não estavam mentindo. O robô 1 não conseguia ver claramente a situação. Deveria permitir que os dois fossem embora? Uma sensação indefinida lhe dizia que não.

No quarto minuto, os sinais luminosos da hiperestação radiofônica se acenderam. Um transmissor arcônida chamando. Acontecimento raro e incomum, pois a comunicação com Árcon era muito ocasional e espaçada.

Com a mão direita, o robô 1 acionou algumas chaves, concentrando a atenção sobre uma tela quadrada junto à série de luzinhas. O alto-falante anexo à tela começou a emitir assobios agudos. O vídeo apresentava bom trecho do espaço cósmico. E no meio do infinito flutuava, como um planeta, uma imensa esfera.

— Uma nave de guerra arcônida! — murmurou o robô 3. — A distância de... Já está dentro do sistema de Laton. Não tivemos informação alguma a respeito. Por que se manifestam só agora?

Sem responder, o robô 1 procurou regular o volume do som, porém não conseguiu estabelecer ligação. Depois a tela escureceu bruscamente e o alto falante ficou mudo; em vão o autômato remexia nos controles. O transmissor arcônida deixara de funcionar.

Não havia explicação para o fato.

Quatro minutos e trinta segundos.

Os dois tuglantes, de repente, deram meia-volta e correram para fora. Com alguns saltos, alcançaram a porta ainda aberta e desapareceram entre os arbustos mais próximos.

O robô 2 reagiu prontamente. Seu cérebro cancelou a interdição, transformando o braço esquerdo numa pistola de raios. Com passo pesado, o robô se pôs em movimento, seguindo os fugitivos.

Também o robô 3 chegou à conclusão de que os evadidos representavam o problema mais urgente. Instantes depois, os dois autômatos perscrutavam com seus olhos de cristal as trevas prateadas da noite estrelada; avistaram os dois tuglantes encarrapitados sobre o muro. A seta energética violeta fulgurou por frações de segundo, acabando com suas vidas antes que pudessem alcançar a segurança do outro lado. O alto lorde de Tuglan acabava de perder dois de seus mais fiéis servidores.

Os dois robôs voltaram-se para retornar à estação. Exatamente no instante em que se completavam os cinco minutos desde a ativação da bomba de tempo.

O robô 1 desistira das tentativas.de se comunicar com a nave arcônida. Ela devia ter razões justificadas para interromper a transmissão. Mesmo assim, era dever seu avisar o alto-comissário da ocorrência. O aparecimento de uma nave arcônida nem sempre era bom sinal, pois inspeções são sempre desagradáveis. E havia ainda aquela história do atentado... Motivos mais do que suficientes para acordar o comissário.

Aconteceu enquanto o robô ligava para a residência de Rathon. A primitiva bomba detonou à esquerda do 1, a menos de dois metros dele. Arrebentou a delgada parede de arconita da estação radiofônica, e danificou peças sensíveis do equipamento de transmissão e recepção, peças insubstituíveis nas atuais circunstâncias. Simultaneamente desencadeou, no pequeno reator da central de força, violenta transformação de energia, que provocou por sua vez a explosão de todos os condensadores e transistores, porque a corrente saltava simplesmente por cima dos fusíveis queimados.

Uma lasca metálica atingiu a cabeça do robô 1, privando-o literalmente dos sentidos. Imobilizou-se de pé.

 

A entrevista de lorde Alban com o comissário Rathon, na manhã seguinte, realizou-se a portas fechadas.

O arcônida parecia perturbado. O que era compreensível, pois tinha que controlar um reino com oito planetas apenas com a assistência de seus três robôs. E as notícias que recebera naquela manhã não eram nada animadoras.

— Houve um atentado a bomba contra a hiperestação radiofônica esta noite. As instalações foram destruídas. As comunicações com Árcon estão interrompidas. Como explica isso?

As palavras de Rathon se atropelavam, denotando um princípio de pânico. O ladino Alban percebeu imediatamente que seu interlocutor não tinha a menor suspeita sobre quem se ocultava atrás daquele ato de sabotagem.

— Sim, ouvi comentar o caso — disse, cautelosamente. — Ontem mandei-lhe dois homens, para avisá-lo. Mas parece que chegaram tarde demais.

— Não, eles foram até a estação, e alertaram meus robôs. Porém a bomba explodiu cinco minutos depois de chegarem. Meus robôs tomaram seus mensageiros pelos culpados, e mataram ambos. Lamento, porém seus circuitos logísticos os levaram a considerar inimigos os dois tuglantes.

— Estão mortos? — perguntou Alban, arrastando a voz. Sorte inesperada aquela; mais do que ousara esperar. Agora ninguém poderia saber que fora ele quem ordenara a destruição da estação de rádio. — Eram leais servidores do império. Cumpriam apenas seu dever.

— Um dos robôs sofreu avarias, mas estas podem ser reparadas. A estação, no entanto, ficou definitivamente fora de uso. Um dos geradores emite raios prejudiciais, que desaconselham qualquer permanência mais prolongada num raio de duzentos metros do local. Resolvi levar os robôs para minha residência. Talvez eu necessite de proteção pessoal em breve.

Alban não reagiu à insinuação. Estava muito mais interessado em outra coisa.

— Quer dizer que a comunicação entre Árcon e Tuglan está interrompida? Não existe a menor possibilidade de informar Árcon sobre o ocorrido, então?

— Lamentavelmente, não — confirmou Rathon, desconsolado. — Uma pena... Mas há um detalhe que talvez contribua para lhe erguer o ânimo novamente: pouco antes da explosão da bomba que destruiu nossa estação de rádio, meus robôs captaram um sinal radiofônico. Uma nave arcônida se manifestava. Apareceu até no vídeo. Infelizmente a explosão interrompeu a tentativa de completar a ligação.

— Uma nave de guerra? — indagou Alban, preocupado. Mas logo se lembrou de que as hiperondas tinham alcance praticamente ilimitado, e não gastavam tempo para se propagar. A nave podia se encontrar no outro extremo do Universo.

— Sim, uma nave de guerra. Pretendia nos enviar uma mensagem, mas a interrupção ocorreu logo em seguida. E ao mesmo tempo a bomba explodiu.

— Estranha casualidade... — comentou Alban, pensativo. Porém seu alívio durou pouco. Pois Rathon prosseguiu: — Os detectores revelaram que nossa nave de guerra já se encontra no sistema de Laton. Conto com sua aterrizagem a qualquer momento. Seja como for, precisamos nos preparar para o evento. Também não gostaria de saber que o atentado a bomba lhe ocasionasse problemas. Talvez encontremos uma explicação plausível para o fato. Eu lhe recomendaria um pouco mais de severidade com a resistência subterrânea.

— A nave de guerra arcônida já se encontra entre nós? — Alban encarou o alto-comissário, totalmente desarvorado. Sentia o mundo desabar-lhe sobre a cabeça.

 

Quando Perry Rhodan voltou a enxergar, seus olhos depararam com um mar de estrelas. O salto pelo hiperespaço fracassara!

Aproximando-se em silêncio, Crest contemplou o semicírculo de telas enfileiradas, que reproduziam fielmente o cenário fora da nave. Como estavam muito juntas umas das outras, tinha-se a impressão de estar diante de uma parede transparente. Nada parecia separar os dois homens na central de comando do vazio cósmico.

Por trás deles uma porta deslizou para o lado, dando passagem a um homem atarracado, de cabelos ruivos eriçados. Seus olhos, de um azul muito pálido, fitavam perplexos as telas. Mordazmente comentou:

— Ué, quem foi que fez todos esses furinhos no céu? Não estavam aí antes...

— Não, não estavam — replicou Rhodan, laconicamente. Mas logo deixou de se preocupar com as estrelas, pois outra idéia lhe ocupou a mente. Que acontecera mesmo no exato instante da teleportação? Não percebera que algo saíra errado?

As coordenadas! A distância!

Sim, ali estava ele, o número fatídico: 33.560. Também a direção do salto era diversa da que tinham determinado originalmente. Alguém devia ter alterado as coordenadas no momento do salto.

O recém-chegado, que não era outro senão Reginald Bell, melhor amigo e companheiro de Rhodan, parecia pressentir que algo não ia bem. Crest conservava-se imóvel e de olhos semicerrados junto ao outro extremo do painel de controle, sem pronunciar palavra. Na testa de Rhodan via-se uma ruga vertical, o que sempre representava um indício de mau augúrio. E por fim, havia aquela montoeira de estrelas inteiramente desconhecidas rodeando a Stardust-III; Bell não precisava de outras provas.

Fugazmente ele julgou que o imortal, cuja pista perseguiam, os mistificara mais uma vez com uma fantástica miragem, mas logo repeliu a idéia. O imortal não seria ingênuo a ponto de recorrer duas vezes ao mesmo truque. Um ser capaz de manipular o tempo e o espaço saberia agir de maneira mais sofisticada.

Seria então autêntico o espaço desconhecido lá fora?

— Diabos, que foi que aconteceu? — bradou Bell, acercando-se de Rhodan. — Vá, seja camarada, e me dê uma explicação. Ou o susto lhe fez perder a fala?

— O que não seria de admirar, velho... Por onde andam nossos telecinetas?

Apesar dos olhos meio fechados, Crest prestava atenção à conversa. Bell deu a impressão de ter ficado chateado com a pergunta de Rhodan, que interpretou como manobra evasiva. Portanto, foi de mau humor que respondeu:

— Que quer que os telecinetas façam? Empurrar as estrelas para o lado?

— Deixe suas piadinhas para outra ocasião, sim? Tenho minhas razões para perguntar por eles, e muito justas. As coordenadas foram alteradas no instante da transição. Como não havia ninguém na central de comando além de Crest e eu, o fato só pode ter sido causado telecineticamente. É por isso que pergunto.

No Exército de Mutantes de Perry Rhodan havia três telecinetas: a pequena Betty Toufry, a americana Anne Sloane e o japonês Tama Yokida. Por alguns instantes, Bell encarou Rhodan fixamente; depois voltou-se e saiu da central sem dizer uma só palavra. Devia ter percebido que a hora não era para brincadeiras.

Crest moveu-se. Rhodan quase esquecera a presença do arcônida.

— E então? Se foi realmente coisa dos telecinetas? Haveria uma explicação?

— Não foi nenhum deles — respondeu Rhodan. — Pois quem é que se exporia voluntariamente a tão tremendo risco? Se já não estivéssemos a tanta distância do planeta Vagabundo, poderíamos supor que aqueles ratos-castores birutas tivessem feito mais uma das suas. Mas duvido que seu poder se estenda a vinte unidades astronômicas...

Bell regressou dentro de dois minutos. Nos grandes olhos redondos lia-se uma muda expressão de susto, à qual deu voz sem demora:

— Não foi nenhum dos mutantes, Perry! Que será que aconteceu? Será coisa dos ratos-castores? Mas estamos tão longe da terra deles... Aliás, onde estamos nós?

Rhodan não sabia que pergunta responder primeiro, nem qual delas era mais importante no momento. Crest resolveu o problema à sua maneira.

— Se não me engano, conheço aquele sol — disse, apontando para uma gigantesca estrela azul, em posição diagonal ao rumo do vôo. Seus raios brilhavam com tal intensidade que Rhodan cerrou involuntariamente os olhos. — Vou consultar os mapas, para ver se minha suposição é correta. E, a fim de termos duplo controle, Rhodan, peço-lhe que determine com exatidão quantos graus nos desviamos do rumo original, e qual a distância que percorremos. Acho que desta vez não será tão complicado como há quinze dias, quando fomos parar num universo-fantasma.

Imerso em cogitações, Rhodan viu Crest sair em silêncio.

— Mas, puxa, como é que fomos errar o pulo? — gemeu Bell.

— Estávamos a dois mil e quatrocentos anos-luz de Vega quando iniciamos a transição. E no entanto não pulamos dois mil e quatrocentos anos-luz, e sim trinta e três mil quinhentos e sessenta. Em outra direção, ainda por cima. Estimo o desvio em cerca de sessenta graus, até onde posso calcular. Com isso viemos parar a uns trinta e seis mil anos-luz de Vega. Bela enrascada!

— É, estamos encalacrados!... — resmungou Bell, perplexo. — Tem certeza de que o navegador mecânico não se enganou?

— Toda; ele jamais se enganaria.

— Pois então não entendo mais nada!

Calados, aguardaram a volta de Crest. Este trazia nas mãos uma delgada lâmina de plástico, coberta com inúmeros pontos e linhas tracejadas; uma reprodução em tamanho reduzido do mapa cósmico.

— Mandei fazer uma cópia, Rhodan. Veja, aquela estrela gigante é Laton, um imenso sol com trinta e oito planetas. Está registrado no fichário da Stardust-III, e faz parte de nosso império. Até que tivemos sorte! Lá poderemos obter dados exatos para nossa transição a Vega.

Rhodan não se mostrou muito entusiasmado.

— Crê que encontraremos arcônidas lá?

— Pelo menos um representante, o alto-comissário de Árcon. As raças que colonizamos conservam sua autonomia, e deixamos-lhes a administração de seus próprios sistemas. Nossos fichário diz que Laton possui oito planetas habitados; o décimo primeiro se chama Tuglan, e é o mundo principal, com a sede do governo.

Rhodan percebeu a secreta satisfação de Crest. Fazia muito tempo que não tinha contato com sua terra natal, Árcon. Depois de sua aterrizagem forçada na lua terrestre, o desligamento fora total. Rhodan socorrera-o naquela emergência, e até o presente soubera ardilosamente evitar que Crest se comunicasse com Árcon. Não queria que os senhores do imenso império viessem a conhecer a Terra, que certamente desejariam incorporar aos seus domínios.

Só depois que a Terra se tornasse unida e bastante forte é que poderia haver intercâmbio com Árcon. Pois só o poderoso pode-se permitir transações justas.

Mas recusar-se agora a aterrizar numa colônia de Árcon provocaria o desagrado de Crest. Sem falar em Thora...

Thora, a comandante da nave arcônida na qual Crest ocupara o posto de cientista-chefe, detestava Rhodan, por ser homem. Seu sonho era regressar a Árcon, sua pátria. De maneira alguma aceitaria a recusa de pousar em Tuglan.

— Tomaremos contato com o décimo primeiro planeta de Laton — decidiu Rhodan. — Mas quero que me prometa, Crest, não revelar ao comissário arcônida de lá a posição da Terra. Ainda não julgo conveniente estabelecer um contato desta espécie. Sabe por quê, não?

— Sei, sim — tranqüilizou Crest. — Sabe que compreendo os seus motivos, e lhe dou razão. Durante este nosso contato, tive bastante oportunidade de conhecer os homens e sua capacidade. Ambos temos consciência do fato de que o poderio dos arcônidas se encontra em declínio. E, como prováveis sucessores, apenas os terranos entrariam em consideração. Mas... será que Thora pensa da mesma maneira?

Rhodan não soube responder aquela pergunta.

Uma campainha de alarma soou estridentemente.

Consultando o sistema de comunicação interno da nave, Rhodan verificou que o alarma vinha da cozinha. Estranhou aquilo, pois justamente a cozinha seria o lugar menos provável para acontecimentos anormais. Baixou uma alavanca, ligando uma minúscula tela; nela surgiu a fisionomia de um homem ornado com o característico gorro dos cozinheiros.

— Comandante! — exclamou ele, excitado, antes que Rhodan pudesse fazer qualquer pergunta. — Comandante! Temos um clandestino a bordo! Poderia vir imediatamente à cozinha?

Rhodan ficou tão surpreso que nem se lembrou de perguntar quem era o passageiro clandestino. Quando recuperou a fala, a face do cozinheiro já tinha sumido do vídeo. A tela estava apagada.

— Um passageiro clandestino? — indagou Crest. — Ora, quem poderia ser?

Passando a mão sobre os olhos, Rhodan respondeu:

— Vou até a cozinha. Talvez lá possamos saber...

Sem se preocupar com os dois companheiros, deixou a central de comando. Crest e Bell não tiveram outra alternativa senão segui-lo.

Um passageiro clandestino? No espaço cósmico é que ninguém poderia ter embarcado; e em Vagabundo, a última escala da nave, não existia gente.

Bell chegara até aquele ponto de suas reflexões quando um clarão de reconhecimento lhe iluminou a mente. Seus olhos se contraíram, virando apertadas fendas, e seu queixo se projetou para a frente. Precipitando-se no encalço de Rhodan, que saltava justamente para o elevador antigravitacional mais próximo, a fim de chegar o mais depressa possível à cozinha, Bell berrou:

— Mas claro! Eu devia ter adivinhado logo! Um rato-castor!

Os invisíveis campos magnéticos levaram-no igualmente para baixo, deixando-os na esteira rolante do corredor. A cozinha surgiu à vista. Já de longe se percebia que algo de anormal ocorria dentro dela. Homens excitados corriam de um lado para outro; cozinheiros brandiam furiosamente seus apetrechos culinários, tentando enxotar de seu território os radiotelegrafistas e técnicos.

Rhodan e Bell forçaram passagem por entre o pessoal e entraram na cozinha. Os grandes e refulgentes panelões estavam abandonados; ninguém parecia se preocupar com o horário da refeição seguinte. Em troca, cozinheiros e técnicos se aglomeravam no extremo oposto da ampla peça, falando animadamente. Uns riam, outros praguejavam. Uma incrível balbúrdia, porém nada indicava a existência de perigo imediato.

O cozinheiro-chefe avistou Rhodan e correu ao seu encontro.

— Esse bicho! — gritou ainda de longe. — Deve ter se introduzido a bordo quando carregamos os caixotes. Se pego o relaxado responsável por isso!

E o homem agitava com ar ameaçador sua enorme colher.

Rhodan levantou as mãos:

— Calma, que diabo! Que foi que aconteceu? Será que todo mundo por aqui perdeu o juízo?

— Esse rato-castor! — arquejou o cozinheiro-chefe, que agora se encontrava diante de Rhodan. — Embarcou disfarçadamente, e agora está devorando nossos suprimentos. Veja o senhor mesmo!

Com o corpanzil avantajado, empurrou para o lado, sem a menor cerimônia, os circunstantes, abrindo passagem para Rhodan e Bell, que o seguiram cheios de curiosidade. Diante de uma porta rotulada “Câmara Frigorífica” o ajuntamento era ainda maior. A porta estava aberta.

O rato-castor estava sentado sobre os amplos traseiros, no meio de um montinho de frutas congeladas; segurando uma delas nas hábeis patas dianteiras, comia gulosamente. De vez em quando lançava olhares confidenciais ao seu círculo de espectadores, piscando os olhos, como que querendo dizer: “Está gostoso, pessoal! Muito obrigado, sim?”

Rhodan contemplou a cena sem saber o que pensar.

O rato-castor era evidentemente o autor das alterações provocadas nos controles do hipersalto; seus dons telecinéticos eram mais do que suficientes para ter causado as irresponsáveis brincadeiras. Portanto, pusera em sério perigo a vida de todos eles, e tinha que ser castigado. Além disso, era um passageiro clandestino. Em ambos os casos, as leis espaçonáuticas previam a pena máxima: abandono da nave sem traje protetor.

Por outro lado, no entanto, o rato-castor agira sem más intenções. Aquela mania de brincar constantemente constituía traço fundamental de sua raça. Porém a disciplina exigia punição para o infrator. Mesmo para um infrator tão insinuante.

Junto a Rhodan, Bell olhava fixamente para o estranho ser, que não demonstrava medo algum. Afinal, sua consciência estava tranqüila; e parecia perceber que seu ar cômico contribuía para melhorar sensivelmente o humor dos bípedes.

O rato-castor arreganhou os beiços, expondo seu único dente incisivo. O resultado foi tão engraçado que alguns dos presentes desataram em gargalhadas. Apenas Bell não sentia disposição para rir. Aquele bicharoco metera-os numa complicação danada, pois influenciara a transição. A Stardust-III encontrava-se agora num canto desconhecido do Universo, fato que nem mesmo a cara gozada do rato-castor podia mudar.

Antes que Rhodan pudesse intervir, Bell avançou para o contente roedor, pegando-o pelo cangote. Com um puxão, levantou-o do chão.

— Droga de bicho! Joga nossa nave no meio do angu da Via-Láctea, e agora ainda fica devorando nossos morangos! Não tem pra você! Você vai é ganhar uma dose de leite azedo! Merecia uma boa surra, pestinha! Você vai ver uma coisa!

Sem que ninguém pudesse impedi-lo, Bell aplicou algumas violentas palmadas no traseiro do rato-castor, que guinchava lamentosamente.

Porém no mesmo instante começaram a acontecer coisas estranhas. Com ágeis contorções, o rato-castor desprendeu-se da frouxa sujeição das mãos de Bell, pulando para o chão. Num salto, refugiou-se num canto da câmara frigorífica, de onde ficou contemplando Bell, sentado sobre os quadris. E depois Bell começou a flutuar. Leve como um balão cheio de ar, singrou ao longo do atônito chefe de cozinha, em direção aos imensos caldeirões.

Em vão Bell esperneava, procurando mudar de rumo; suas mãos frenéticas se agitavam à toa, pois não encontravam nada a que pudesse se agarrar. As correntes de energia telecinética geradas pelo rato-castor dominavam-no completamente.

O cozinheiro-chefe sentiu um aperto no coração ao ver Bell se deter acima do panelão de sopa; o espesso caldo borbulhava lentamente. Se Bell caísse lá dentro...

Mas ele seguiu adiante. Apesar de se debater furiosamente, acabou descendo, indo parar dentro de um recipiente cheio d’água até as bordas. Água fria, felizmente... Bell mergulhou no líquido até o pescoço; só a cabeça ficou de fora. Rhodan, que acompanhara a cena com disfarçado deleite, explodiu numa gargalhada.

Os demais seguiram-lhe o exemplo, e o pobre Bell foi logo cercado por todo o pessoal da cozinha, mais os membros da tripulação presentes.

— Isso lá é lugar para tomar banho? — gritou alguém do meio do grupo, irreverentemente.

Rhodan acorreu, ajudando o amigo a se safar da constrangedora situação. Chateado e encharcado, Bell saiu do caldeirão.

Imperturbável, o rato-castor continuava a roer suas frutas congeladas, com evidente apetite. Afinal, não podia saber por quanto tempo os bípedes ainda aturariam sua presença.

— Suma em sua cabina Bell! — disse Rhodan, com um amistoso tapinha no ombro do amigo, — Se cruzar com John Marshall no caminho, mande-o para cá. E aconselho-o a não pensar mais em surrar nosso passageiro clandestino. Conforme verificou, ele se defende.

— Não me diga que vai deixá-lo permanecer a bordo! — rosnou Bell. No entanto, ele próprio já sentia que não teria coragem de eliminar a sangue-frio o bichinho. — Se ele continuar brincando desse jeito...

— É por isso que quero ver Marshall. Talvez ele consiga se entender com o rato-castor. Mande avisá-lo, sim?

Bell saiu, deixando um rastro molhado atrás de si. Rhodan voltou à câmara frigorífica. O rato-castor fitou-o com olhos arregalados e expectantes. As graciosas patas seguravam uma fruta, que ele mordiscava com aparente constrangimento. As grandes orelhas redondas vibravam de leve.

“Tem um olhar de cão”, pensou Rhodan, sentindo-se invadido por uma repentina onda de simpatia por aquele ser. Não nascera na Terra, e sim num mundo estranho e desconhecido. Um alienígena, portanto; quase uma aberração. Apesar disso, gostava dele. Sentimento inexplicável, baseado apenas no jeitinho gracioso do penetra. Ou talvez a culpa fosse dos grandes olhos suplicantes, que pareciam implorar: “Por favor, não me faça mal!”

Rhodan sorriu sem querer. O rato-castor arreganhou os beiços por sua vez, mostrando o dente único. Rhodan sentiu que naquele instante firmava um pacto de amizade com o pequeno ser; porém não podia adivinhar que seria uma longa e duradoura amizade. Pois o rato-castor não era apenas telecineta, mas isso é outra história.

John Marshall, o primeiro telepata do Exército de Mutantes, chegara à cozinha. Já soubera do essencial por intermédio de Bell, de modo que não se mostrou muito surpreso ao ver o rato-castor. Disfarçando o riso, perguntou a Rhodan:

— Então, foi este camaradinha que obrigou Bell a tomar banho?

— Parece-me que Bell vai ter que ouvir isso ainda daqui a dez anos — respondeu Rhodan, rindo. Depois apontou o mascante hóspede acocorado na câmara frigorífica. — Tente se comunicar com ele. Talvez consiga ler seus pensamentos, se é que ele pensa. O mais importante, no entanto, é fazê-lo saber o que nós pensamos. Será que consegue?

— Acho que sim — disse Marshall. — Dependendo, naturalmente, da maneira pela qual seu cérebro reage. Se for sensível...

— Ele domina a telecinésia, que é pura força mental. O que nos permite deduzir que possui cérebro bastante desenvolvido. Experimente, John.

Marshall levou apenas alguns segundos para revelar extraordinária excitação. Acenando repetidamente com a cabeça, falava com o rato-castor que escutava com profunda atenção. Na face astuta brilhou mais uma vez o dente risonho; o animal emitiu alguns guinchos agudos e alegres, depois devolveu a fruta semi-roída ao caixote. Pondo-se de pé sobre as patas posteriores, marchou solenemente para fora da câmara obscurecida, e postou-se diante de Rhodan.

— Deseja cumprimentar você — disse Marshall. — Conseguiu me entender. Seus pensamentos são fáceis de ler, e ele é capaz de captar os nossos; basta lhe ativar a parte até agora desusada de seu cérebro. Com isso, pode se tornar um excelente telepata.

Rhodan se inclinou e estendeu a mão ao rato-castor.

— Vamos lhe dar o nome de Gucky — disse, cordialmente, enquanto apertava com delicadeza a frágil pata. — Se você me entende, acene com a cabeça.

Gucky acenou prontamente.

— Muito bem, então você compreende o que digo. Infelizmente, o oposto não será tão simples, pois não sou telepata. Mas você vai acabar aprendendo nossa língua.

Este homem aqui vai lhe ajudar; chama-se John Marshall.

Gucky tornou a acenar, dando gritinhos agudos, que talvez traduzissem seu contentamento. Depois começou a rodar como um pião, e elevou-se no ar; chegado ao teto, descreveu uma pirueta em forma de 8 e retornou ao chão.

— Muito bacana! — louvou Rhodan. Mas, erguendo o indicador, avisou: — Daqui por diante, você só pode brincar quando eu der licença. Venha comigo; vou lhe mostrar em que encrenca nos meteu. Em seguida poderá voltar para cá, e continuar comendo.

 

À velocidade da luz, a Stardust-III penetrou no sistema do sol Laton. Cruzou a órbita de um dos planetas mais afastados; o trigésimo sétimo planeta, um gigantesco mundo congelado, passou vagarosamente ao longe. Seguiu-se o trigésimo sexto planeta, também desabitado. A nave espacial se aproximava cada vez mais de Tuglan, um mundo pertencente ao vasto império estelar dos arcônidas.

Rhodan, Crest, Thora, Bell e John Marshall estavam reunidos na central de comando. Comportado e obediente, Gucky acocorou-se num canto, tentando separar logicamente as diversas correntes de pensamento que inundavam sua mente. Compreendera que suas brincadeiras haviam resultado numa situação crítica para os bípedes. Agora estava proibido de brincar. Mas tinham lhe prometido que mais tarde, quando aterrizassem em algum lugar, poderia brincar à vontade.

Ele cobraria a promessa!

— Está com medo por acaso? — perguntou Thora, em tom sarcástico, com um olhar de desafio para Rhodan.

Bell, metido num uniforme seco e recém-passado, resmungou algo ininteligível, sem mais manifestações.

— Acha que não percebi que só concorda contra a vontade com nossas sugestões? Receia que o comissário em Tuglan se comunique com Árcon, e então estaria acabada sua brincadeira de esconde-esconde?

“Brincar...” pensou Gucky. “Eles também falam em brincar.”

— Tolice! — replicou Rhodan, com um olhar suplicante para Crest. — Procure, pelo menos uma vez, compreender meu ponto de vista. Caso não queira, lembre-se de nosso trato, ainda em vigor: primeiro achar o planeta da vida eterna, depois a viagem a Árcon. Porém nem um minuto antes... Crest está disposto a manter o combinado. Espero o mesmo de você.

— E o que tem isso tudo a ver com Tuglan?

— Muito simples: não quero que o representante dos arcônidas fique sabendo algo sobre a Terra. É tudo que quero, mas não abro mão da exigência. Necessito, portanto, sua promessa de não mencionar coisa alguma relativa à Terra e aos homens. Passaremos por habitantes de algum mundo colonizado pelo Grande Império. Vamos fazer de conta que procedemos de outro lugar qualquer.

Gucky apontou as orelhas redondas. Fazer de conta? Era o mesmo que brincar. Quer dizer que os bípedes também brincavam? Simpatizava cada vez mais com eles. Pena que lhe tivessem proibido de brincar. Será que não podia tentar, só um pouquinho, apesar disso?

Aqueles instrumentos cintilantes!...

Rhodan voltou-se tão bruscamente que quase derrubou Bell. O hiper-rádio começara a funcionar espontaneamente. Luzes se acendiam, e pequenas telas se iluminavam. Os emissores geravam sinais sem sentido, transferindo-os à central emissora, onde eram transformados e irradiados.

Com um salto, Rhodan chegou ao painel de controle e abaixou furioso uma chave. A transmissão cessou instantaneamente, porém já devia ter sido captada em algum lugar. O circuito do receptor continuou a funcionar sozinho, e levou um sinal de identificação ao alto-falante. Numa das telas surgiu a face metálica de um robô arcônida. A imagem sumiu assim que Rhodan acionou uma segunda chave para a posição de desligamento.

Com movimentos rígidos, Rhodan deu as costas ao painel e encaminhou-se para onde estava Gucky.

O rato-castor encolheu-se, intimidado, gorjeando em seu incompreensível idioma. Os olhos muito abertos fitavam suplicantemente Rhodan, parecendo jurar que dali por diante ele seria realmente comportado. Uma grossa lágrima rolou devagar pela bochecha peluda.

Cerrando os dentes, Bell sacudiu o punho fechado na direção do irrequieto transgressor.

Rhodan parou diante de Gucky.

— Marshall, quero saber por que ele fez isso! Ele me entende, mas eu não tenho meio de saber o que pensa. Pergunte-lhe o que tem a dizer em sua defesa.

O telepata inclinou-se para a criaturinha, perscrutando-lhe os grandes olhos tristonhos.

— E então? — indagou, suavemente. Não tardou a erguer-se, informando: — Ele promete não repetir a brincadeira; jurou e garantiu. Disse que nós vivemos falando em brincar, e então ele achou que também podia...

— Ele não pode! — gritou Rhodan.

Dirigindo-se diretamente a Gucky, disse: — Se mexer, mais uma vez que seja, em alguma coisa aqui dentro da nave sem minha licença, vai ser expulso dela! Entendeu? Sabe o que arranjou? Chamou sobre nós a atenção de desconhecidos, muito menos amistosos do que nós. É bem provável que matem você, caso nos encontrarem. Portanto, tome cuidado daqui por diante. Comporte-se, e permaneça quietinho. Bell, encarregue-se dele!

— Por que eu?

— Precisa tornar-se amigo de Gucky. Quanto mais cedo se acostumar com ele, e vice-versa, tanto melhor para nós todos. Pois acho que Gucky pode ser destacado para o Exército de Mutantes.

— Para o Exército de Mutantes?! — exclamou Bell, engolindo em seco. — Esse rato desengonçado vai fazer parte de nossa tropa de elite? Não, essa eu não agüento!

Calou-se de repente, pois seus pés perderam contato com o chão, e flutuaram a alguns centímetros acima dele. Mas por segundos apenas, e Bell tornou a descer suavemente. Gucky quisera apenas avisá-lo, nada mais. Pondo de lado seu orgulho, Bell acabou concordando:

— Bem, se depender de mim... Talvez ele acabe sendo útil, caso se comporte. De acordo, Gucky?

O rato-castor acenou gravemente.

Fazendo força para não rir, Rhodan dirigiu-se a Crest:

— A situação modificou-se, pois agora devem ter dado por nossa presença. A intensidade do sinal permite supor que a emissão partiu de uma estação deste planeta. E agora?

— Não vejo em que isso possa alterar as coisas. Minha única dúvida é como explicar vocês. Os comissários arcônidas possuem informações detalhadas sobre nossos mundos colonizados. E os terranos não são mencionados nelas.

— Ora, podemos virar arcônidas — sugeriu Bell.

Rhodan fitou-o pensativo, sem responder. Crest, porém, concordou:

— A idéia não é má. Não temos o que perder, e será uma gozação das maiores. Mas como pôr em prática esta sugestão?

— Para que servem nossos doutores? Podem nos arranjar lentes de contato vermelhas, para nos dar olhos de albinos. Tingir os cabelos de branco é rápido e simples. Mais não será necessário — disse Rhodan.

— Tingir os cabelos de branco? — gaguejou Bell.

— Só por algum tempo — tranqüilizou Crest. — Aliás, há mais uma coisa que recomenda esta farsa. Soube há pouco, consultando o fichário de bordo, que os nativos do sistema Laton, chamados tuglantes, sempre ofereceram resistência passiva à soberania do Grande Império. Talvez seja bem conveniente que passemos por membros de uma comissão de inquérito. Por interesse próprio, nosso representante em Tuglan concordará certamente com isso.

Rhodan enrugou a testa.

— Está perdendo de vista nosso objetivo primordial, Crest. O planeta da vida eterna e a raça imortal.

— Ora — disse Crest com um sorriso displicente — até que este episódio inesperado poderia ser útil a você e à Terra. Uma ocasião de mostrar como lidar com povos colonizados. Prove que sabe se safar de situações críticas, pois na verdade não sabemos o que nos espera em Tuglan. Se bem que tudo deve estar em ordem por lá, caso a estação que respondeu ao nosso chamado seja de fato a hiperestação radiofônica de Tuglan. Mesmo assim...

Rhodan compreendeu o que Crest queria dizer. Talvez ele tivesse razão. Portanto replicou:

— Está bem, Crest, avise o Dr. Manoli. Peça-lhe que prepare o estojo de maquilagem. Vamos representar!

 

Alban não conseguia compreender.

— Mas como é que souberam disso tão depressa?! — exclamava seguidamente, fitando o irmão como quem pede auxílio. — A nave de guerra deve ter aparecido no mesmo instante em que a estação de rádio dos arcônidas voava pelos ares. Tem alguma idéia sobre o autor do atentado, Daros?

Daros contemplou longamente o irmão antes de sacudir a cabeça.

— Para que este fingimento, Alban? Não foi você mesmo que me revelou seus planos? Agentes seus destruíram a estação, e é você quem tem que agüentar as conseqüências. Quer minha ajuda nisso?

— Estamos todos na mesma enrascada, quer sejamos contra ou a favor dos arcônidas. Eles não farão a menor diferença. O comissário deve ter dado o aviso antes mesmo da concretização do atentado. Nunca o imaginei tão vivo. Pois os arcônidas podem ser poderosos, mas são também decadentes e irresolutos. Se não fosse pelas superarmas que possuem, daríamos cabo deles em dois tempos.

— Subestimar o adversário é meia batalha perdida — aparteou Daros. — Além disso, vejo-me forçado a desapontá-lo, mano. Nem penso em arriscar a pele por sua causa. Sempre fui contra o levante, e continuo sendo.

— O que significa que somos adversários — concluiu Alban, apoiando ambas as mãos sobre a mesa, e encarando fixamente o irmão. — Meu plano é iludir os arcônidas. Caso o comissário tenha efetivamente dado o alarma, eles não terão o menor motivo para suspeitar de mim. Os dois homens que colocaram a bomba ontem à noite estão mortos. Ninguém sabe quem lhes deu o encargo. Quanto a mim, vou mandar a polícia prender alguns componentes do movimento revolucionário, e executá-los por ocasião da aterrizagem da expedição corretiva. Com isso provo minha lealdade.

Daros olhou para o irmão com nojo.

— Matar seus mais fiéis partidários só para se colocar bem? Mas é horrível!

Alban sorriu friamente.

— Devia me agradecer por isso.

— Agradecer? Mas por quê?

O digno lorde de Tuglan continuava a sorrir.

— Porque não direi a ninguém que foi você quem deu aos dois bandidos a ordem de destruir a estação radiofônica. Sua trama era isolar os arcônidas, me eliminar, e ocupar calmamente o posto de lorde de Tuglan. Não é verdade que alimentava tal ambição?

Daros ficou atônito com as traiçoeiras maquinações do irmão. Ele simplesmente invertia os fatos, jogando toda a culpa sobre outro, e seu próprio irmão ainda por cima. Os arcônidas acreditariam naquela versão, e retornariam tranqüilizados após a sindicância. Talvez exigissem até a punição dos culpados. E Alban podia executar publicamente Daros, que, apesar de contar com a estima do povo, representava uma ameaça para ele.

Daros começou a tomar consciência de sua perigosa posição. Seria capaz de apresentar uma só prova contra Alban? A conversa do dia anterior fora realizada a portas fechadas, sem testemunhas...

— Os arcônidas são inteligentes bastante para adivinhar sua trama, Alban. Entendem um bocado da psicologia das raças coloniais.

— Pensei igualmente nisso, Daros. Já providenciei a prisão de alguns dos revoltosos durante a visita dos albinos. Eles deporão unanimemente que anseiam pela independência de Tuglan, e que tencionavam depor o atual lorde, por este ser fiel partidário do Grande Império. Dirão igualmente que escolheram Daros para ser o novo lorde. E que este quer a liberdade de Tuglan e do império dos oito planetas.

Daros estremeceu de medo.

— Não achará ninguém disposto a sacrificar a vida por mentiras!

— E quem diz que eles mentirão? — perguntou Alban, de cenho franzido. — Vão estar convictos de estarem dizendo a verdade; nem mesmo o detector de mentiras seria capaz de fazê-los mudar de opinião. Não, meu caro, pensei em tudo. Outros afirmarão que você, através de seus asseclas, os instigou a assassinar Rathon; empreitadas que recusaram, por serem leais ao Grande Império.

Daros cerrou os punhos:

— Você é que merecia ser assassinado!

— Por que não tenta? — indagou Alban, com um sorriso de mofa. — Contei com esta hipótese também. Está vendo minhas mãos? Repousam sobre um botão. Basta apertá-lo de leve para uma barreira energética se erguer entre nós. Não poderia me alcançar, por mais força que fizesse.

— Você é diabólico!

— Só demônios obtêm a vitória final; qualquer outro é fraco demais para isso. Os idealistas da liberdade gastam tempo demais tomando suas decisões, pois se preocupam com o bem de seu povo. Eu dispenso este detalhe, portanto posso agir imediatamente. Não preciso perguntar nada a ninguém. Minhas decisões são tomadas na hora, instantaneamente, e o adversário não tem tempo de se ajustar a elas. Entende agora por que eu triunfo e você está perdido?

Daros obrigou-se a conservar a calma.

— Neste caso, não compreendo por que me avisa. Posso sair do palácio quando quiser? Sou livre?

— Naturalmente, irmãozinho. Quanto mais você correr, tanto mais os arcônidas estarão interessados em pegá-lo. Fugir é o mesmo que confessar a culpa. Está claro?

Sim, estava claro. Daros encontrava-se numa armadilha. Se fugisse, confessava-se culpado; se permanecesse em Tuglan, acabaria arrastado pelas provas que Alban acumulara contra ele.

— Neste caso, prefiro ficar. Confio na inteligência dos arcônidas.

— E eu, na sua burrice — concluiu Alban, calmamente. — Veremos quem fica com a razão. E agora, deixe-me só. Tenho muito que fazer para receber condignamente a expedição corretiva arcônida e provar minha lealdade. Minhas primeiras palavras serão de queixa contra os revoltosos.

Levantando-se, Daros se dirigiu para a porta. Mas voltou-se ainda uma vez, perguntando:

— Quando foi que ocorreu a última visita dos arcônidas ao nosso sistema?

Alban levantou os olhos intrigado.

— Há cerca de cinqüenta anos, quando substituíram o comissário anterior. Por quê?

— Alguma coisa pode ter mudado nestes cinqüenta anos.

“Agora tudo vai depender da inteligência dos arcônidas”, pensou Daros.

 

Ao cruzar a órbita do décimo terceiro planeta, Rhodan avistou três espaçonaves, em progressão lenta. Pesadonas e armadas, eram evidentemente naves bélicas. Crest deu ordem para fazer funcionar a estação de rádio comum.

— Será que poderemos compreendê-los? — indagou Rhodan.

— Eles falam intercosmo, a língua do Grande Império. Você, Bell, Haggard e Manoli aprenderam este idioma por ocasião do treinamento hipnopédico. Logo, não terão dificuldade em entender os tuglantes e conversar com eles. Vou mandar dar igualmente uma lição a Marshall; só pode ser vantajoso para todos nós ter um telepata capaz de entender os tuglantes.

Da sala de rádio veio um sinal. A ligação com as três naves fora estabelecida. Rhodan girou um dial e ficou atento à tela. Nela surgiu uma das naves, vista de perto, e depois o rosto de um homem.

Alban, o eminente lorde de Tuglan.

— O império dos oito planetas apresenta seus cumprimentos aos arcônidas, senhores do Universo! — disse ele, no intercosmo, de uso generalizado em todo o império. — Em Tugla, nossa capital, está tudo pronto para recebê-los. Permitem-me indicar o rumo?

A testa de Crest apresentava profundas rugas. Era evidente que a cordialidade da recepção o surpreendia. Rhodan, no entanto, achava muito natural que uma raça colonial saudasse com tanta amabilidade os dominadores do Universo, e não viu nada de extraordinário no fato. Sua mão alisou inconscientemente os cabelos brancos que agora lhe ornavam a cabeça. Calmamente respondeu:

— Sigam na frente; nós os acompanharemos.

Porém o tuglante não se satisfez com a curta resposta, e continuou:

— Chega no momento adequado, senhor. O comissário de Tuglan necessita de seu auxílio. Rebeldes criminosos destruíram ontem à noite a hiperestação radiofônica, sendo mortos na ocasião.

A testa de Crest recuperou o aspecto habitual. Agora sim, a situação se afigurava normal. Começava a luta. Quantas vezes já presenciara esquema parecido em outros mundos! Só faltava saber quem era o agente provocador do incipiente descontentamento. Teriam que descobri-lo. Acenou ligeiramente para Rhodan.

— Foi por isso que viemos — disse Rhodan, displicentemente, como se as palavras de Alban não representassem novidade para ele. — Providencie para que possamos ver o comissário logo após o pouso. Dispomos de pouco tempo.

O tuglante na tela acenou, e sua imagem desapareceu.

Rhodan certificou-se de que a ligação fora cortada antes de perguntar a Crest:

— Quem era?

— O lorde em pessoa, tenho certeza. Falou em dissenções. Com o que você se transforma, muito a contragosto nosso, em emissário do Grande Império! Um ensaio geral para o futuro, por assim dizer. Que tal se sente?

Rhodan sorriu, imaginando que aparência teria com aqueles olhos vermelhos. Seu corpo alto e magro prestava-se bem à personificação de um arcônida; Bell, no entanto, parecia quase ridículo no papel.

— Se aquele era mesmo o lorde de Tuglan, confesso que prevejo dificuldades, pois antipatizei com o homem.

— Não faça afirmações levianas, Rhodan — avisou Crest. — A primeira impressão nem sempre é a mais acertada, principalmente quando se lida com raças estranhas. Convenhamos que os tuglantes se assemelham aos arcônidas, porém no fundo são diferentes. Julgá-los pela aparência física seria injusto. Precisamos aguardar antes de formar juízo definitivo.

Haggard e Manoli entraram na central, igualmente de cabelos brancos e olhos vermelhos. Também eles passariam por arcônidas. John Marshall permaneceria inalterado, e seria apresentado como habitante de um sistema solar afastado, apenas recentemente incorporado ao império.

Marshall não chegou sozinho à central. Trazia Gucky pela mão, que acabara de receber, sob a supervisão de Thora, o treinamento hipnopédico. Com a ajuda de complexo aparelhamento eletrônico podia-se transferir para qualquer cérebro devidamente desenvolvido, no espaço de algumas horas, a sabedoria de gerações inteiras. Portanto ninguém se espantou ao ouvir o rato-castor pipilar no idioma do Grande Império:

— Muito bom dia, senhores. E em inglês acrescentou:

— Também aprendi dialetos provincianos...

Bell ficou tão encantado com o animal falante que esqueceu todas as travessuras anteriores; até o banho no caldeirão! Riu até ficar com lágrimas nos olhos, depois inclinou-se de mão estendida para Gucky.

— Bem-vindo, amiguinho. Vamos fazer as pazes?

O rato-castor exibiu o famoso dente.

— Se me deixar brincar novamente, topo.

Bell ergueu um indicador, avisando:

— Um dia você vai poder brincar à vontade. Não aqui na nave, no entanto. É perigoso demais. Está disposto a prometer que não brincará dentro da nave?

— E quando vou poder brincar então? — piou Gucky, lastimosamente.

— Assim que tivermos pousado. Então disporá de brinquedos em penca. E agora fique quietinho. Temos assuntos muito importantes para discutir.

Gucky acenou, imitando com exatidão os gestos humanos, e acocorou-se sobre os quartos traseiros num canto. Seu olhar astuto observava tudo que se passava em torno.

As três naves tuglantes tinham dado meia-volta, e voavam na frente da Stardust-III. O décimo primeiro planeta do sol azul mostrou-se nas telas laterais, ocupando gradualmente as dianteiras. Entretanto, Rhodan tivera tempo de comparar os dados trazidos por Crest do fichário com suas observações pessoais. Nada se modificara.

A atmosfera de Tuglan era bem parecida com a terrestre; a gravidade era ligeiramente mais elevada. Dois continentes boiavam no oceano que recobria sua superfície, unidos por estreita faixa de terra. As montanhas, de regular altura, acabavam em extensos planaltos cobertos de florestas. Notava-se a ausência de grandes metrópoles, pois Tuglan era um mundo agrícola. A tecnologia limitava-se à construção de naves espaciais, destinadas a manter o contato com os outros sete planetas. Ainda não ultrapassavam a velocidade da luz. Portanto, os tuglantes estavam impedidos de sair de seu próprio sistema.

Compreensivelmente, Tugla dispunha de um espaçoporto de dimensões impressionantes, apesar da inexistência de industrialização. Acomodaria com facilidade três esferas espaciais com as gigantescas medidas da Stardust-III.

Os três cruzadores tuglantes desceram verticalmente, pousando sobre a cauda, nos limites extremos do espaçoporto. Rhodan manobrou a Stardust-III para o meio do campo e fez com que ela descesse vagarosamente. Era fácil imaginar a impressão provocada pelo imenso veículo redondo, com seu cintilante revestimento metálico. Na certa os tuglantes o supunham recheado de armas misteriosas e desconhecidas. Quando a Stardust-III tocou o solo, ainda se erguia a uma altura de oitocentos metros. Uma esfera com oitocentos metros de diâmetro! A Stardust-III já nem era uma nave, mas sim um mundo oco, dentro do qual se vivia, nascia e morria.

Com um só movimento, Rhodan desligou todo o equipamento. As instalações positrônicas automáticas entraram em repouso. Zumbidos e vibrações iam morrendo A Stardust-III chegara ao fim da viagem.

Pelo menos provisoriamente.

Fariam apenas uma escala intermediária, um período de repouso na incessante procura da imortalidade, talvez até umas reparadoras férias.

No entanto, nem mesmo o otimista Bell acreditava nisso.

 

Rathon, o alto-comissário arcônida de Tuglan, apontou resignadamente para as destroçadas instalações da hiperestação.

— A bomba do atentado explodiu exatamente no instante em que o senhor se comunicava conosco. Um de meus robôs foi avariado, mas já conseguimos consertá-lo. Foram dois tuglantes que trouxeram a bomba; ambos perderam a vida ao tentar fugir. Portanto, lamentavelmente não pudemos descobrir quem os encarregou disso.

— Nenhum indício? — indagou Crest, com um olhar disfarçado para Rhodan. — Lorde Alban nos disse ontem que existem grupos de resistência em Tuglan. Suspeita igualmente de seu irmão mais jovem, Daros, conforme pude depreender das alusões de Alban. Daros já se consideraria sucessor do atual governante; portanto, seria lógico que procurasse desmoralizar o irmão diante de nós.

Rathon meneava a cabeça repetidamente.

— Pois eu ouvi uma versão diferente. Poucas horas antes do atentado fui informado, por intermédio de um desconhecido, que era justamente Alban quem tramava contra a minha vida. Consta que pretendia se desligar do domínio arcônida.

Rhodan demonstrou sua contrariedade.

— Como chegaremos a saber a verdade, se as acusações são recíprocas? Onde está este Daros? Por que se oculta?

— Talvez sua consciência não esteja tranqüila.

Sem responder, Rhodan observava absorto a instalação radiofônica; seria impossível consertar aquilo sem os recursos técnicos da Stardust-III. O acaso viera ao seu encontro. Crest e Thora não teriam oportunidade para se comunicar com Árcon, se bem que poderiam tê-lo feito de bordo da nave. O mais importante era que Rathon estava impossibilitado de enviar mensagens a Árcon; o pessoal de lá ficaria bastante admirado ao ouvir falar de uma expedição punitiva que jamais fora despachada.

— Há alguns dias enviei um tuglante de minha confiança ao palácio de Alban — disse Rathon — a fim de apurar se essa onda de boatos tinha algum fundamento. Até agora Ror não voltou.

— Por que não pergunta por ele no palácio? — quis saber Crest.

O comissário provou que ainda lhe restava um resquício de raciocínio lógico. Não seria qualquer armadilha que o apanharia desprevenido.

— Para não me delatar. As informações que recebi provieram de um desconhecido; portanto oficialmente eu não sei que Alban planeja se rebelar contra Árcon.

— Não acredito em tal levante — disse Crest. — Muito menos que Alban seja o mentor. Pois não manda prender e executar constantemente partidários dos rebeldes? Segundo eu soube, age com extremo rigor. Tomaria uma atitude destas caso apoiasse a separação de Tuglan do Grande Império?

Rathon deu de ombros.

— Não tem ligação alguma com seu homem de confiança? — perguntou Rhodan, em tom de reprovação. — Isto é, através de algum engenho eletrônico?

— Claro! O robô 2 está equipado com um receptor, sintonizado com o transmissor embutido no corpo de Ror; tem a forma de uma minúscula sonda, e traz até nós as batidas de seu coração. Podemos saber em que direção ele se encontra, mas não a que distância. Mas isso me permite constatar a qualquer instante se Ror continua vivo.

— É bem pouco o que faz por seu homem — censurou Crest. — Aliás, em que direção está ele?

Com um gesto, Rathon acenou para o robô 2, que os acompanhava.

— Relatório sobre Ror, 2! — ordenou. O autômato reagiu prontamente.

— O receptor acusa aceleração do movimento cardíaco do portador do transmissor. Direção: lá!...

Todos os olhares acompanharam o braço metálico estendido. À distância reconheceram a cobertura fulgurante do palácio. Portanto, Ror continuava nele. E ainda vivia.

Rhodan ia dizer alguma coisa, porém foi interrompido pelo robô.

— As batidas cardíacas pararam. Agora recomeçam, em ritmo interrompido. Distância, a mesma de antes. Pararam de novo. Mais nada... o transmissor está mudo.

Rathon empalideceu, olhando desamparado para Rhodan. Crest observava preocupado o robô. Um minuto... dois minutos...

— Transmissor ainda mudo — informou o robô 2.

— Ror está morto! — murmurou o comissário, com um profundo suspiro. — E deve ter morrido no palácio. Isso lhe basta como prova da culpabilidade de Alban?

— Não! — replicou Rhodan. — Também pode ser prova do contrário. Podem ter assassinado seu homem no interior do palácio a fim de lançar as suspeitas sobre o lorde. Talvez tenham descoberto o transmissor e reconhecido a significação do instrumento. Não, Rathon, se Alban for realmente culpado, teremos que encontrar outras provas.

Voltando-se bruscamente, tomou a direção do pequeno portão que conduzia à rua. O robô 1 já os aguardava, com o veículo usual em Tuglan: um carro com duas rodas e um giroscópio.

 

Alban fora esperto bastante para alterar seus planos. Coisa que Daros não tardou a perceber.

Daros ocupava uma modesta ala lateral num anexo do palácio, de cuja torre observara a aterrizagem da nave arcônida. Ali estavam, portanto, os senhores do gigantesco império, vindos expressamente para regularizar a situação em Tuglan. E no momento exato, dizia Daros a si mesmo.

Não convinha correr imediatamente ao espaçoporto a fim de alertar os arcônidas; eles certamente não lhe dariam crédito. Alban é que era o responsável pela paz com o império, e até o presente a paz não tinha sido comprometida. E, caso fosse rompida, não havia provas contra o culpado. Seria uma tarefa árdua desvendar as verdadeiras intenções de Alban.

E o comissário Rathon? Com ele não poderia contar, pois o arcônida vivia imerso em seus sonhos, muito satisfeito por não o aborrecerem com os problemas dos tuglantes. Não, dele não podia esperar apoio para a vitória da justiça.

E quem poderia ajudar, então?

Repentinamente Daros constatou, perturbado, que não tinha aliados. Os tuglantes pouco se preocupavam com política; e, mesmo que simpatizassem secretamente com os rebeldes, ignoravam quem os chefiava. Ninguém suspeitava que era o grande lorde em pessoa que tramava a revolta.

Alban só se revelaria após a conquista da liberdade, para ser festejado como vencedor. E caso seus planos fracassassem, Daros seria o bode expiatório. Muito bem bolada a trama!

Bem, um passeio lhe faria bem. Sua última entrevista com o irmão deixara tudo claro. Eram adversários; ou melhor, inimigos mortais. Só um dos dois sobreviveria à visita dos arcônidas. E o vencedor governaria o império dos oito planetas.

Refletindo brevemente, Daros pegou na gaveta de sua mesa uma pequena pistola, de aparência perigosa. A chamada agulheira, que lançava minúsculas agulhas envenenadas, propelidas por gás comprimido. O menor contato com a pele bastava para imobilizar qualquer vítima.

Enfiou a arma no bolso e saiu. Ninguém lhe impediu a passagem. Por mais de uma vez, Daros teve a indefinível sensação de estar sendo vigiado por olhos invisíveis, mas talvez fosse fruto de sua imaginação. Já estava vendo fantasmas... Mas como podia adivinhar que Alban já dera instruções concisas a seus adeptos?

Nas ruas, o movimento era intenso. Os tuglantes acorriam para o espaçoporto para saudar os arcônidas. Superado o impacto inicial, confiavam na proclamação de lorde Alban, que garantia que os arcônidas vinham como amigos.

Daros sorriu melancolicamente. Mais um truque de seu ardiloso irmão. A recepção festiva serviria para jogar areia nos olhos dos arcônidas. Ora, um povo aparentemente tão satisfeito com sua sorte, e que os aclamava com tanto entusiasmo, não podia estar pensando em rebelião! Se realmente ocorrera a alguém a idéia de sacudir o jugo arcônida, aquilo era obra de uma reduzida minoria, agora recolhida às sombras, com medo da justificada ira do povo, ou do castigo do lorde.

Não! Pensou Daros, com obstinação. Não se deixaria ver no espaçoporto. Preferia aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Não adiantava se expor desnecessariamente ao perigo.

Tugla era uma cidade extensa, com casas baixas e muitos jardins. O rio que a cortava ao meio fazia dela um porto comercial. Logo além da cidade erguiam-se as montanhas, onde tantas vezes caçara com o irmão. Outrora, quando o pai de ambos ainda ocupava o posto de lorde de Tuglan.

Aquelas montanhas e florestas traziam-lhe à lembrança a despreocupada juventude. Naquela época, a ambição pelo poder, e o receio de se ver novamente despojado dele ainda não haviam envenenado o espírito de Alban. Tinham sido amigos e companheiros, repartindo alegrias e tristezas.

Daros fez sinal para um giromóvel. O condutor se aproximou e abriu a porta.

— Para onde deseja ser levado, senhor?

— Para fora da cidade. Para as montanhas. E ande devagar...

O tuglante sacudiu a cabeça, intrigado com o estranho pedido do passageiro. Todo mundo correndo ao encontro dos arcônidas, e aquele homem queria ir para as montanhas! Bem, não era de sua conta...

A cidade logo ficou para trás. A estrada prosseguia sendo ótima, como no início, e o carro aumentou a velocidade. Há bastante tempo Daros notara que era perseguido. Dois outros giromóveis seguiam o seu, mantendo sempre o mesmo afastamento. Não podia ser casualidade. Portanto, Alban mandava vigiá-lo. Bem, uma vez que isso lhe dava prazer...

Daros teria o cuidado de não tentar algo contra o irmão enquanto não dispusesse de provas concretas contra ele.

Chegaram à floresta. A estrada serpenteava por entre as árvores, em direção às montanhas. Atravessaram um rio, e começaram a subir. Olhando para trás, Daros viu que seus perseguidores tinham desaparecido. Aquilo não combinava com a teoria que alinhavara. Teriam dado volta? Qual seria a significação daquilo tudo?

Mandou o carro parar pouco mais adiante, e pediu ao condutor que o esperasse. Em seguida, embrenhou-se entre as árvores esparsas. Só ali encontraria calma para ordenar seus fervilhantes pensamentos. O ar puro lhe fazia bem.

Por quase uma hora Daros vagou sem rumo de um lado para outro, antes de se decidir a regressar. Por sua vontade, permaneceria ali mesmo, pois no palácio não havia o que o atraísse.

Na volta, quando se aprontavam para cruzar o rio, foram detidos. Um tronco de árvore se abatera diagonalmente sobre a estrada. Em volta dele, diversos carros aguardavam. Alguns dos tuglantes esbravejavam, porém calaram-se bruscamente ao ver Daros desembarcar de seu veículo. Em vez disso, sorriam abertamente. E depois um deles bradou vibrantemente:

— Daros! Viva lorde Daros e a liberdade de Tuglan!

Os demais logo se associaram ao clamor, e logo a floresta reboava aos gritos de: “Abaixo lorde Alban e os arcônidas! Viva lorde Daros, nosso libertador!”

No primeiro momento, Daros não entendeu o que acontecia. Aquela gente devia ter enlouquecido, não havia outra explicação! Procurou se esquivar dos excitados tuglantes, que quase o esmagavam com seu entusiasmo. A muito custo conseguiu se refugiar em seu carro. Minutos depois, o caminho foi desimpedido, e o giromóvel pôs-se em movimento, seguido pela gritaria da multidão agora mais numerosa. Ainda após ter chegado à cidade, os ouvidos de Daros rememoravam as frases:

“Abaixo Alban e seus amigos, os arcônidas! Viva nosso libertador, lorde Daros!”

Daros se sentiu subitamente invadido por um temor sinistro.

 

Rhodan continuava cético. Não lhe agradava ver o comissário arcônida falar mal do lorde de Tuglan. Talvez tentasse apenas encobrir sua própria incapacidade com isso. Que interesse poderia ter Alban em modificar o atual estado das coisas?

Não obstante...

No terceiro dia após a aterrizagem, compareceu, em companhia de Bell, à audiência com o lorde. Foram cumprimentados com o maior respeito pela guarda formada, e, segundo pareceu a Rhodan, até com certa reverência. Na certa temiam as tremendas armas que supunham estar a bordo da nave arcônida.

Alban exibiu sua costumeira amabilidade. Obsequiosamente conduziu os visitantes a um pequeno salão, destinado à recepção de diplomatas. Alban indicou três poltronas.

— Sentemo-nos. O que me dá a honra de sua visita, eminentes arcônidas? Posso saber se estão satisfeitos com o que viram até agora?

Rhodan permaneceu de pé.

— Quem lidera a oposição contra o Grande Império? — perguntou em tom severo. — De quantos elementos é formado o grupo de resistência? Quais são seus objetivos, e quem é o líder?

Alban teve um movimento de recuo; depois sacudiu a cabeça, numa teatral exibição de desalento.

— Bem que eu receava que me fizessem tal pergunta, excelências! Mas, creiam-me, eu tenho condições para resolver a situação sozinho. Não gostaria de aborrecê-los com tais ninharias. Sou o lorde de Tuglan, e castigarei severamente quem se atrever a ofender o Grande Império.

— Mesmo assim eu gostaria de saber quem é o chefe dos rebeldes — insistiu Rhodan. — Há quem afirme que é seu irmão.

Alban baixou os olhos, constrangido, depois encarou Rhodan com surpreendente franqueza.

— Mas isso é absurdo, excelência! Ponho a mão no fogo por meu irmão. Ele nada tem a ver com esse movimento de resistência.

Aquilo pegou Rhodan de surpresa. Esperava que Alban aproveitasse a excelente oportunidade para incriminar Daros. Portanto, os boatos deviam ser falsos. E também Rathon se enganava ao julgar Alban trapaceiro.

— Gostaria de conhecer seu irmão — disse Rhodan.

Alban concordou prontamente, e acenou para um atendente. Dois minutos após, um jovem tuglante se apresentou no salão, detendo-se hesitante na porta, ao avistar os dois supostos arcônidas. Adiantou-se lentamente. Seus olhos estavam fixos sobre Rhodan. Não deu a menor atenção a Alban.

“Do tipo indeciso”, pensou Rhodan consigo mesmo. “Vê-se que está inseguro. Consciência suja? Ou estará oprimido por outra coisa?”

Decidiu perguntar diretamente.

— Sou Rhodan, o comandante da expedição arcônida de investigação. Este é meu eventual substituto — indicou Bell, que inflou orgulhosamente o peito diante das palavras de Rhodan. — Espalhou-se o boato de que existe uma poderosa organização neste planeta, que deseja o desligamento de Tuglan do Grande Império. O atentado contra a central radiofônica arcônida prova que não se trata de conversa fiada. Diz-se que você está ligado a essa organização. Quer nos explicar o porquê de tal correlação?

Daros relanceou um olhar carregado de desprezo pelo irmão.

— É mentira! — afirmou, energicamente. — Meu irmão é um mentiroso. É ele que anseia libertar-se de Árcon. Foi ele que determinou o atentado à estação de rádio. Os homens dele morreram na tentativa de escapar dos robôs. Alban queria até mandar assassinar o comissário Rathon, mas felizmente vocês chegaram a tempo de impedi-lo. Sei que meu irmão quer lançar as suspeitas sobre mim, a fim de ter quem assuma sua culpa. Ele teme que eu ambicione lhe tomar o posto, e pretende me eliminar.

Rhodan examinou atentamente o jovem. Achou-o muito mais simpático do que Alban, e se impressionou com o desabafo. Mas Alban tomara o cuidado de não difamar o irmão; ao contrário, tomara a defesa dele. Fato que depunha a seu favor. E agora Daros fazia as mais sérias acusações ao presente lorde. Como explicar tantas contradições? Em quem deveria acreditar?

Rhodan lamentou não ter trazido Marshall consigo; o telepata esclareceria a situação num instante. Mentira alguma lhe escapava.

Alban sorriu triste e dolorosamente, dizendo:

— Mas Daros, como pode fazer semelhante coisa? Tentei poupá-lo, escondendo do ilustre arcônida sua criminosa atividade. Mas, já que me acusa, sou obrigado a me defender.

Acenou para um ajudante, que aguardava atento, e continuou:

— Ainda bem que tenho gente minha em toda a parte. Você foi vigiado disfarçadamente, Daros. Ainda recentemente, quando você foi se encontrar com seus amigos, meus espiões puderam fornecer-me provas decisivas. Por favor, excelências, vejam e ouçam por si mesmos. Certifiquem-se!

Cortinados cobriram as janelas, obscurecendo a sala. Numa das paredes surgiu uma tela opaca, sobre a qual se projetava a imagem nítida e tridimensional de uma ponte cruzando um rio. Numeroso grupo rodeava um giromóvel ocupado por um tuglante. Os homens aclamavam em altos brados o tuglante, insistindo sempre no mesmo tema: “Abaixo Alban e seus aliados, os arcônidas! Viva lorde Daros, nosso libertador!”

Rhodan percebeu imediatamente que o tuglante no filme era Daros em pessoa. O rebelde entre seus seguidores. Poderia haver prova mais convincente?

Sentiu-se um tanto penalizado. No entanto, a hora não era para sentimentalismos, e sim para consolidar o poderio arcônida. Demonstrar indulgência agora equivalia a se mostrar fraco. E fraqueza significaria perecimento e decadência.

— Daros, lamento, mas vou ter de prendê-lo. O Grande Império não admite desobediência. Permite que ponha seu irmão sob custódia, Alban? Temos celas seguras a bordo da nave.

— Se for preciso — concordou Alban, hesitando. Dirigindo-se a Daros, perguntou: — Por que me acusou? Não tive alternativa senão me defender.

— Traidor! — exclamou Daros, como única resposta. — Estou à sua disposição — disse a Rhodan. — Espero que algum dia, caso não seja tarde demais, possa perdoar a si mesmo tamanho erro.

Calados, Rhodan e Bell se retiraram com o prisioneiro.

Lorde Alban presenciou a retirada na maior impassibilidade. Só nos cantos dos olhos brilhava uma centelha de triunfo.

 

Os rebeldes se reuniam num espaçoso porão, situado em local que só eles conheciam. Porém não era contra os arcônidas que se rebelavam, e sim contra a ardilosa política de Alban. Não pensavam em mudar nada na ordem estabelecida; pelo contrário, advogavam sua continuidade. Daros seria o novo lorde, pois sabiam que ele era a favor da permanência de Tuglan na confederação do poderoso império.

Daros não tinha o menor conhecimento do grupo rebelde, pois não era revolucionário. E nem imaginava que seu irmão possuía inimigos dispostos a derrubá-lo; muito menos que existia uma corrente tramando a deposição de Alban para colocar a ele, Daros, no trono.

Entre os presentes viam-se figuras aventurosas. Muitos exerciam profissões respeitáveis, e eram considerados ótimos cidadãos. Outros, no entanto, viviam ocultos na floresta, aguardando o sinal para o levante. Estes portavam armas, e estavam dispostos a usá-las, pois Alban decretara a morte de qualquer traidor, ameaça que não podia ser desprezada. Uma vez que o tirano não hesitava em executar seus próprios adeptos, puramente por encenação, não teria o menor escrúpulo em eliminar seus inimigos pessoais.

Um homem entrou pela porta dos fundos. Atarracado e meio gordo, revelava, no entanto, surpreendente agilidade de movimentos. O cabelo roxo cintilante estava penteado para trás, colado à cabeça, o que lhe imprimia um ar um tanto diabólico. Era fácil imaginar que bastava aparecer para inflamar as massas.

Mal perceberam sua chegada, os rebeldes entoaram num coro abafado:

— Viva o novo lorde Daros! Viva o império arcônida! Viva a revolução contra Alban, o traidor da unidade!

O recém-chegado ergueu as mãos num gesto conciliador. Era Karolan, apelidado de líder dos justos. Em tom grave disse:

— Tenho uma comunicação a fazer. O dia da liberdade está próximo, porém ainda temos diante de nós a árdua tarefa de provar a culpa de Alban. Habilidosamente, o traidor conseguiu lançar as suspeitas sobre Daros. Ele foi detido pelos arcônidas. Que faremos agora?

Por momentos reinou um silêncio consternado, depois todos começaram a falar ao mesmo tempo. Não se entendia palavra, até que alguém no meio do grupo gritou:

— Libertá-lo, Karolan! Nós vamos libertar Daros!

Karolan sacudiu a cabeça.

— Seria um erro, companheiros. Isso só contribuiria para reforçar as suspeitas que recaem sobre Daros. Não poderíamos fazer maior favor a Alban do que libertar seu irmão. Aos olhos dos arcônidas, sua culpa seria então evidente, e teríamos que contar com medidas de represália. Não, deve existir uma maneira melhor, mais sutil e diplomática.

— Que tal enviar uma comissão aos arcônidas? — sugeriu outro.

— Bem mais razoável — concordou Karolan. — Mas quem nos garante que eles acreditarão em nós? Alban já deve tê-los acautelado contra iniciativas desta espécie. Seu talento para a intriga é incontestável.

— Sem dúvida! — exclamou um homem magro, adiantando-se. — Alban sabe da existência de nosso grupo, porém distorceu nossos objetivos diante dos arcônidas. Disse que somos contra ele, no que diz a verdade, à prova de qualquer detector de mentiras. Mas omitiu o fato de sermos a favor do Grande Império. Podemos acusá-lo de mentiroso por ter calado? Vai ser difícil desmascarar Alban.

— Talvez eu tenha uma solução... — começou Karolan, porém foi interrompido.

Um homem precipitou-se para dentro do recinto, acotovelando sem consideração os presentes, a fim de chegar ao chefe dos rebeldes. Arquejava, como se tivesse corrido por bom espaço de tempo sem descanso; sua testa estava coberta de suor. Por várias vezes tentou falar, sem conseguir emitir um som. Exausto, se apoiou em dois companheiros.

— Que há, Xaron?

— Daros! Os arcônidas prenderam-no no palácio, levando-o para a grande nave esférica.

— Já sabemos disso, Xaron. Correu tanto para trazer notícias velhas?

— Mas vocês não sabem que Daros foi libertado durante o trajeto! Dez homens mascarados assaltaram a viatura em que iam os arcônidas e Daros. E, engraçado, os dois arcônidas não reagiram. Deixaram-se amarrar, foram arrastados para outro giromóvel e levados embora. Daros não foi amarrado.

Karolan permaneceu calado por algum tempo, com acentuadas rugas na fronte. Depois meneou lentamente a cabeça.

— Alban quer incriminar ainda mais Daros. É sabido. Mas percebo que os arcônidas são ainda mais espertos. Sabem que nada lhes poderá acontecer, pois a vingança dos outros seria terrível. Portanto, deixam as coisas correr, a fim de descobrir a verdadeira razão dos fatos. São realmente sábios e astutos. Não é de admirar que tenham conseguido construir e controlar um império. No entanto, não devemos subestimar Alban. Aposto que já está com o próximo golpe preparado.

Ninguém suspeitava de quanto era acertada a suposição de Karolan.

 

A situação era singular.

No caminho para o espaçoporto, a estrada fora repentinamente bloqueada por dez tuglantes mascarados. Bell sacou prontamente sua pistola de raios, pronto para se defender. Na certa teria liquidado com a maior facilidade os bandidos mal armados, porém um gesto de Rhodan fez com que parasse.

— Não, Bell! Isso não nos faria avançar um só passo em direção do objetivo realmente visado. Precisamos saber quem os mandou, e o que tramam. Se for preciso, deixamo-nos prender. Portanto, nada de atos impensados.

Bell recolocou a arma no coldre.

— Como achar melhor, chefe... Mas para mim é errado. Vai solapar nossa autoridade.

— O que é de somenos importância no momento.

O carro parou. Os mascarados cercaram-no, abrindo rudemente as portas.

— Viva Daros, nosso novo lorde! Abaixo os arcônidas!

Dos três, Daros era o mais confuso; não entendia o que se passava. Intimidado e desorientado, encolheu-se ao lado de Bell, sem ter a menor idéia de quem eram seus libertadores. E de modo algum atinava com explicação para o fato de os arcônidas deixarem o incidente acontecer, sem oferecer a mínima resistência.

Rhodan e Bell foram puxados para fora do carro, e privados de suas armas. Daros, pelo contrário, foi cortesmente convidado a descer e a acompanhar os desconhecidos. Aceleradamente, os prisioneiros e o liberto foram conduzidos pela rua estranhamente deserta, e empurrados para o interior de um caminhão de carga à espera. Mal a carroceria sem janela foi fechada, o veículo se pôs em movimento, roncando baixinho. Ninguém sabia em que rumo rodavam.

Os seqüestradores conversavam em seu idioma nativo. Rhodan compreendia quase tudo que diziam. Para sua imensa surpresa, constatou que falavam um dialeto arcônida. Por que Crest não lhe dissera nada a respeito? Desconheceria o fato?

Examinou melhor os homens, que agora estavam sem máscaras. Sem vantagem nenhuma, porém, pois não conhecia nenhum deles. A conversa versava sobre assuntos triviais. Na certa não queriam esclarecer Daros.

Aquilo reforçou as desconfianças de Rhodan. Agora estava certo de que o jovem irmão de Alban ignorava a quem devia sua salvação. Pois então sua atitude teria sido outra. Daros era tão prisioneiro quanto eles, com a diferença de não ter sido amarrado!

Rodaram por cerca de meia hora, antes que o carro se detivesse com um tranco. A porta foi aberta, e os seqüestradores levaram os prisioneiros para um recinto sombrio. O ar era úmido e abafado.

Um dos tuglantes se inclinou diante de Daros, dizendo em intercosmo:

— Foi um prazer libertá-lo das garras dos arcônidas, lorde. Quer fazer o favor de nos seguir?

Daros lançou um olhar perplexo a Rhodan, mas antes que pudesse abrir a boca foi gentilmente forçado a deixar o local. Não teve tempo nem de agradecer aos seus libertadores, nem de protestar contra o seqüestro.

Rhodan não duvidava mais que aquilo tudo era uma cena bem ensaiada.

Um elevador antigravitacional levou Rhodan, Bell e alguns dos tuglantes para baixo. Ali foram trancados numa cela que só continha duas camas e uma mesa. Do lado de fora, os passos dos desconhecidos se afastavam.

Fitando a sólida porta de caibros de madeira, Bell suspirou e se jogou na cama mais próxima. Do teto pendia uma lâmpada mortiça.

— Puxa, entramos numa fria! Acha que eles vão nos soltar facilmente? Que será que fizeram com Daros?

— Deve estar ocupando uma cela igual a esta — replicou Rhodan. — E não se preocupe, Bell. Pelo menos um de nós terá que ser solto. Pois, de que outra maneira os arcônidas saberiam que Daros foi libertado por seus correligionários políticos?

— Tem tanta certeza assim?

— Absoluta! Alban é esperto. Mas talvez seja melhor não falar muito. As paredes podem ter ouvidos.

Bell se espichou sobre a cama.

— Bem, numa situação destas, a coisa mais acertada que se pode fazer é dormir.

Devagar e pensativamente Rhodan sacudiu a cabeça.

Duas horas depois vieram buscar Bell. Para um interrogatório, segundo diziam. Rhodan ficou sozinho na cela. Pressentia que Alban desfechava o golpe seguinte.

Sem desamarrá-lo, instalaram Bell num dos pequenos carros de duas rodas. Além do condutor, um rebelde armado embarcou igualmente. Por um amplo portão o veículo ganhou a rua, perdendo-se logo por entre a corrente de tráfego.

Bell tentou memorizar o trajeto, mas não tardou a ficar completamente desorientado. Passaram por ruas intensamente movimentadas, e por subúrbios mais tranqüilos. Por mais de uma vez Bell teve a impressão de que atravessavam repetidamente a mesma praça. Estariam querendo confundi-lo?

A surpresa aconteceu nas imediações do palácio. Claro que para Bell era difícil imaginar que Rhodan já contava com algum incidente daquela espécie. Pessoalmente, a situação lhe parecia cada vez mais ininteligível, mas não perdeu tempo tentando decifrá-la. O essencial era que o carro tinha sido detido repentinamente por homens uniformizados. O condutor e o vigilante protestavam em altos brados; não lhes foi concedido prazo para explicações; o fulgor de raios energéticos privou-os da fala para sempre. Um dos fardados desamarrou Bell, declarando:

— É uma satisfação poder prestar um serviço ao ilustre arcônida. — Falava intercosmo, e prosseguiu: — Um espião do palácio nos deu a dica. Que bom que Alban tem sua gente em toda a parte!

— Lorde Alban? — admirou-se Bell, decidido a alterar seu conceito sobre o soberano dos tuglantes. — É a ele que devo meu resgate?

— A quem mais, nobre arcônida? Aquela mania de o tomarem por arcônida começava a irritar Bell; porém tinha que continuar representando seu papel, quisesse ou não. Apontando para os seqüestradores mortos, indagou:

— Por que tiveram que morrer?

— Ofereceram resistência.

Bell não havia presenciado nada naquele sentido. Pensando bem, era realmente lamentável, pois agora não poderia lhes perguntar onde ficava a prisão de Rhodan. Será que...?

Uma idéia passou pela mente de Bell. Em vista das alusões de Rhodan, ela de repente tinha sentido.

— Levem-me até Alban! — pediu.

Seu desejo foi atendido com surpreendente prontidão. Dez minutos depois, via-se diante do regente de cabelos escuros. Após escutar por bastante tempo as efusivas congratulações do lorde, Bell interrompeu-o com um gesto imperativo.

— Não há dúvida de que lhe sou imensamente grato pela ajuda recebida, lorde Alban; porém meu comandante continua em poder dos rebeldes. Tem algum indício quanto ao seu paradeiro?

— Lamentavelmente não, eminente arcônida. Meu espião só me contou que viu o senhor na cidade, mais nada. Por conseguinte alertei logo meus guardas, dando-lhes ordem para libertá-lo. Soube ainda que meu irmão foi levado para lugar seguro; desconheço onde se encontra. Temo, no entanto, que tenha se reunido tranqüilamente aos seus seguidores, a fim de preparar a revolução contra mim e o império.

— Ah, então seu irmão pretende depô-lo e separar Tuglan do Grande Império? Ele é contra os arcônidas?

— Infelizmente sim! — concordou Alban, com ar pesaroso. — Não imagino que benefícios ele espera com a independência de Tuglan. Afinal, estamos tão bem na confederação do domínio arcônida, e temos muitos privilégios.

— Isso mesmo! — replicou Bell, enquanto seus pensamentos se atropelavam. — E os amigos de Daros também são a favor de sua deposição, se entendi bem. Não foram eles que destruíram a estação de rádio de Rathon? E aprisionaram Rhodan e a mim? E libertaram Daros?

Acenando animadamente, Alban confirmava as perguntas de Bell. Seus olhos brilhavam.

— Vejo que compreendeu a situação. Portanto, caso deseje pacificar Tuglan, precisa encontrar Daros.

— Primeiro gostaria de encontrar Rhodan — resmungou Bell. — Aliás, onde se acha o comissário Rathon neste momento?

— Fez-se conduzir à nave arcônida.

Bell ergueu-se.

— Grato pelo apoio dado, Alban. Creio agora que o caso da estação de rádio foi obra dos rebeldes, que me parecem pouco numerosos. Não vai ser preciso castigar coletivamente a população de Tugla. Mas, caso nosso comandante Rhodan não reaparecer...

Alban se inclinou para a frente. No seu olhar havia falsidade mal disfarçada.

— Que fariam então? Aniquilar os rebeldes?

— Não. Acho que arrasaríamos Tuglan. Não podemos nos mostrar fracos. Melhor fazer desaparecer todo um sistema solar do que dar mau exemplo a vacilantes governos coloniais. Espero que entenda meu ponto de vista.

Antes de fechar a porta, ainda lançou um rápido olhar para o lorde sentado à sua mesa. A expressão apavorada de Alban encheu Bell de incontida satisfação.

 

Bell nunca vira Crest desorientado, mas desta vez o arcônida parecia realmente ter chegado ao fim de seus recursos. Sem Rhodan, toda a sua pretensa superioridade mirra. Até Thora demonstrava sinais de insegurança, apesar da eventual morte de Rhodan lhe acenar com a possibilidade de retornar mais cedo a Árcon. Pois o trato de procurar primeiro o planeta da vida eterna, para depois ir a Árcon, há cerca de trinta e quatro mil anos-luz da Terra, fora feito com Rhodan, e não com Bell.

— E você não seria capaz de achar novamente o caminho, não é? — insistiu Crest, mais uma vez. — A prisão fica em Tugla, não devia ser impossível encontrá-la. Não me conformo!

— Pois teria opinião diversa se tivesse acompanhado os mil e um rodeios que aqueles caras fizeram. As ruas são todas parecidas umas com as outras. Mas sou capaz de jurar que aquele hipócrita do Alban sabe muito bem onde é que Rhodan está trancado. Pode até ser coisa dele...

— Ordem de Alban? Não é possível!

— Também duvido, para ser franco. Mas que é possível, é, creia-me. Que tal despachar um telepata para o palácio, a fim de sondar o lorde? Seria a maneira mais simples de ter certeza.

— John Marshall?

— Por que não? A idéia já devia nos ter ocorrido antes. Pelo menos ficamos sabendo quem planeja derrubar quem, a fim de introduzir nova ordem.

Repentinamente Bell olhou em torno, exclamando:

— Por onde anda Gucky?!

— O rato-castor? — perguntou Crest, intrigado.

— Sim, ele mesmo! — concordou Bell, com certa inquietude. — É só perder o bichinho de vista e fico preocupado.

— Gosta tanto assim daquele animal? — zombou Thora.

Bell brindou-a com um olhar de desprezo.

— Gosto, sim, por que não? Mas em primeiro lugar penso na promessa que lhe fizemos antes de pousar.

— Que promessa? — perguntou Crest.

— Que poderia brincar à vontade. E imaginem só quanta coisa ele encontraria em Tugla para brincar...

Bell determinou que Marshall acompanhasse Crest ao palácio do lorde, e pôs-se à procura de Gucky. Dez minutos depois sabia que o rato-castor não se encontrava mais a bordo da nave.

 

 

Diversos acontecimentos ocorreram simultaneamente.

Crest dirigiu-se com John Marshall e o comissário Rathon para o palácio de Alban. A entrevista solicitada foi imediatamente concedida.

Desistindo da infrutífera busca a Gucky, Bell procurou o mutante Wuriu Sengu. O robusto japonês era o vidente do Exército de Mutantes. Seu olhar atravessava matéria sólida, reconhecendo o que quer que fosse atrás dela. Lamentavelmente seus dons tinham limite de distância, o que no entanto não impediu que Bell percorresse com Sengu as ruas de Tugla. O japonês tentava desesperadamente localizar Rhodan num dos inúmeros prédios.

Rhodan, entretanto, estava sendo levado para fora do palácio, em veículo fechado, sendo provisoriamente acomodado numa masmorra subterrânea. Pressentia que Alban não tardaria a deixar cair a máscara. Por enquanto não temia pela própria vida.

Daros foi igualmente transferido de cárcere; para um vizinho ao de Rhodan, aliás. Porém, um ignorava a proximidade do outro. Apesar de suspeitar da verdadeira identidade de seu carcereiro, Daros não chegava a compreender a complexidade da intriga. Todas aquelas jogadas lhe pareciam mais uma série de complicadas manobras sem sentido nem objetivo. Em lugar de Alban, Daros agiria de maneira mais direta e clara.

Apenas o quinto acontecimento não tinha sido planejado.

 

Foi fácil para Gucky deixar a nave sem que ninguém percebesse. Todos o conheciam agora, e não receava ser detido. No corredor, um dos pilotos dos caças espaciais se abaixou e coçou-lhe o pêlo.

— Então, Gucky, vai dar um passeio?

O rato-castor acenou gravemente.

— Não me deixam brincar dentro da nave — explicou, com sua voz guinchante. Elevando-a num chilreio de alegre expectativa, acrescentou: — Mas agora posso, desde que seja lá fora. Lá vou encontrar bastante coisa com que brincar.

— Enquanto deixar nossa nave em paz, ninguém vê inconveniente nisso — advertiu o piloto, de dedo em riste. — Mas tome cuidado com os tuglantes. Gucky. Nem todos são nossos amigos.

— Não se preocupe — gorjeou Gucky alegremente, rolando seus olhos de cão fiel. — Não tenho medo.

— Fique perto da nave — aconselhou o piloto, vendo o engraçado animalzinho se afastar ereto e descer com passo gigante pela escada rolante agora parada. Depois se retirou para sua cabina. Não tendo escutado o apelo geral de Bell através do rádio interno, nem lhe ocorreu mencionar a quem quer que fosse o encontro com Gucky.

O rato-castor, por sua vez, não tinha a menor intenção de se conservar nas proximidades da nave. Calmamente marchou na direção das construções à beira do espaço-porto; teleportou-se por cima de uma cerca e viu-se na estrada para a cidade. Cheio de admiração, ficou observando com interesse os numerosos carros, trazendo e levando gente; aquilo se prestaria a espetaculares brincadeiras. Mas talvez fosse mais prudente escolher os que não tivessem ocupantes; os bípedes eram imprevisíveis, e nem sempre compreendiam as coisas.

Gucky achou o que procurava logo adiante, no parque de estacionamento. Os funcionários do espaçoporto deixavam ali suas viaturas. Filas e filas de carros parados, aparentemente sem a menor utilidade. Pelo menos foi o que Gucky julgou. Bem, era fácil remediar a situação.

E enquanto o rato-castor bamboleava decididamente em direção à cidade, cinco dos carros estacionados abandonavam seu lugar na fila, sem o costumeiro zumbido dos motores. Em coluna bem alinhada, rodaram calmamente na dianteira de Gucky, ajustando sua velocidade à de um pedestre.

Aos poucos, a estranha demonstração começou a despertar interesse. Os veículos vindos em sentido contrário desviavam-se habilmente, prosseguindo em sua marcha. Geralmente vinham em velocidade excessiva para seus passageiros terem tempo de atentar para detalhes. Porém não acontecia o mesmo com os que ultrapassavam a coluna; estes tinham ocasião de observar detidamente, e logo estranharam a ausência de motoristas nos cinco giromóveis. Rodavam serenamente para a cidade, em coluna compacta, como se estivessem sendo dirigidos por mãos fantasmas. Muito estranho aquilo, para não dizer outra coisa...

Apesar de ser igualmente uma aparição estranha, Gucky despertava pouca atenção. Praticamente já não existia comércio interestelar em Tuglan, mas sabia-se por tradição que não era raro ver aparecer os viventes mais esquisitos. O Grande Império abrangia inúmeras raças, todas elas diferentes. E como no espaçoporto havia uma nave de guerra arcônida, era provável que tivesse trazido um ou outro representante das raças auxiliares. Aquele camaradinha esquisito devia ser um deles, mas tuglante algum relacionou sua presença com a coluna de carros sem piloto.

Gucky, no entanto, se divertia enormemente com sua brincadeira. Mas não durou muito. O progresso regular dos veículos acabou se tornando monótono.

Exibindo o dente incisivo num sorriso afável, Gucky transmitiu uma ordem ao cérebro. Em conseqüência dela, as viaturas policiais chamadas para estudar o caso tiveram tremenda surpresa.

A ordem era deter a coluna-fantasma. Mas em vez de parar obedientemente, os cinco giromóveis se elevaram etereamente. Ao atingir uns cinqüenta metros de altura, descreveram algumas elegantes curvas, sempre em formação ordenada; concluíram a demonstração com uma série de ousados saltos mortais.

Jamais em sua vida os policiais tinham visto carros voadores. Realmente, a tecnologia de Tuglan era avançada; havia naves espaciais que voavam a grandes velocidades e aviões-foguetes, mas não automóveis aéreos.

O trânsito na ampla estrada entrou em caos total. Os veículos parados aumentavam cada vez mais o engarrafamento. Todo mundo desembarcava para admirar boquiabertos, os automóveis voadores.

Gucky prosseguia calmamente seu rumo. Ninguém lhe dera atenção até agora. Talvez os habitantes da cidade ali adiante fossem mais inteligentes, e apreciassem sua habilidade.

Saturado da primeira brincadeira, Gucky desprendeu o pensamento dos cinco giromóveis. Gingando, seguiu em direção de Tugla.

Prontamente os cinco carros se precipitaram ao solo, já que nada mais os amparava. Ainda bem que Gucky os fizera evoluir um pouco fora da estrada; assim foram cair num campo, completamente destroçados. Policiais e civis correram para o local do impacto, certificando-se de que não havia tuglantes debaixo dos destroços. E ainda não entendiam como é que aqueles veículos de superfície podiam ter voado, ainda mais sem motoristas.

Gucky continuava a marchar serenamente. Levou meia hora para alcançar os limites da cidade; e criou tanta confusão que a notícia dos inexplicáveis acontecimentos voou para o palácio, onde Alban se preparava justamente para receber Crest e Marshall.

Giromóveis se tornavam independentes, não obedecendo mais aos controles. Motoristas apavorados acionavam freneticamente todos os mecanismos de uma só vez, sendo forçados a constatar que seus carros faziam exatamente o contrário do que deveriam fazer. Alguns deixavam simplesmente a estrada, sacolejando pelos campos até parar de repente. Outros, em troca, vogavam a alguns metros de altura e aterrizavam bruscamente em qualquer lugar. Um policial curioso, pasmo com o que ocorria, foi jogado ao chão por violenta pancada nas costas. Virando-se, furioso, a fim de identificar o suposto agressor, ficou com as palavras de protesto entaladas na garganta. Pois acima dele flutuava, com ar ameaçador, um dos cestos de lixo espalhados por toda a parte.

Rememorando todos os pecados anteriormente cometidos, o policial acreditou firmemente que aquilo era castigo dos deuses. Ou então ele estava ficando biruta. Cestos de lixo feitos de tela de arame não voavam. Muito menos agrediriam um funcionário público.

Cautelosamente, sem perder o cesto de vista, o homem tentou se levantar. Porém o cesto subiu um pouco mais, pairando exatamente por cima do policial. Virando cento e oitenta graus, despejou todo seu conteúdo sobre o infeliz, que estreava naquela manhã um uniforme limpo. Depois o cesto ficou privado de apoio, e baixou. Transeuntes socorreram o coitado do policial, desembaraçando-o a custo das apertadas malhas que o aprisionavam como um animal engaiolado.

Muito satisfeito, Gucky seguia em frente. Descobrira que se podia brincar maravilhosamente com aqueles inofensivos bípedes.

Fez uma mulher voar para cima de um telhado. Da esquina da rua ficou observando como a traziam de volta para baixo, com a ajuda de longas escadas. Poderia ter intervindo, mas sua atenção foi subitamente derivada.

Três dos bípedes de cabelos escuros se aproximavam dele, empunhando as mesmas esquisitas pistolas que Rhodan e seus amigos utilizavam em ocasiões de perigo. Portanto, aqueles indivíduos não vinham com intenções amistosas.

— Ele é da nave arcônida! — disse um dos homens.

Gucky não compreendia as palavras diretamente, porém seu multifacetado cérebro pareceu despertar de repente. Captava os pensamentos dos estranhos, transformando-os em impulsos inteligíveis.

— Será um animal, ou um ser racional?

Gucky já os compreendia melhor agora. Tomavam-no por animal...

— Talvez tenha fugido... — opinou outro, baixando a arma. — Podemos até ganhar uma recompensa, caso o peguemos e levemos de volta.

“É, e eu ficaria sem poder brincar”, pensou Gucky, indignado.

— Temos de levá-lo a lorde Alban primeiro; ele decidirá o que fazer.

Evidentemente Gucky estava mais ou menos a par da situação. Não fora à toa que escutara as conversas a bordo. Quer dizer que aqueles homens eram partidários de Alban.

— Cuidado, pessoal! Não podemos assustá-lo. Onde foi que se meteu esse bichinho engraçadinho? Venha, não vamos lhe fazer mal...

Atitude sumamente idiota, considerou Gucky. Não estavam vendo claramente onde ele estava? E medo é que não sentia. Parou e olhou curiosamente os tuglantes com seus imensos olhos redondos. Constatou satisfeito que tinham recolocado as armas nos cintos. Logo, dava mesmo a impressão de ser inofensivo. Meio chato aquilo, mas no momento calhava bem. Iria com eles, caso o tratassem bem. Podia resultar numa boa farra.

Foi surpreendido pela atitude de um dos homens, que se abaixou subitamente, agarrando-o pelo cangote. Doeu, e Gucky reagiu de forma completamente inconsciente, apenas por instinto de defesa.

O homem sentiu um punho invisível socá-lo para cima. Viu o chão desaparecer-lhe debaixo dos pés, e as paredes das casas mergulharem para baixo. Muito distantes, os olhos arregalados dos companheiros o contemplavam, de rostos voltados para o alto. O punho invisível soltou-o, e o homem se precipitou ao encontro da rua, que se aproximava alucinantemente depressa. E mais não sentiu, pois estava morto.

Sacudindo-se, Gucky alisou o pêlo com as patas. Aquele sujeito não tornaria a agarrá-lo, nunca mais! Não tolerava brutalidade. Com um amável sorriso de seu belo dente roedor, voltou-se para os demais tuglantes, repreendendo:

— Não devem me tocar, caso queiram brincar comigo!

O castor falante acabou com a compostura dos apavorados tuglantes. Aquilo já era assombração — vejam o caso do colega voador! Automaticamente levaram as mãos aos cintos, sacando suas pistolas de raios. Aquele animal era perigoso, e precisava ser eliminado. Sabe lá que mais os arcônidas traziam naquela nave!

Gucky presenciou tudo sem se mexer. Seus olhos miravam as ameaçadoras pistolas. Os invisíveis raios energéticos do setor telecinético de seu cérebro se introduziram no mecanismo, interrompendo contatos essenciais. Os dois homens apertaram o disparador, mas nada aconteceu. O raio mortífero ficou ausente. Em troca, as peças metálicas das pistolas ficaram de repente quentíssimas; o plástico derreteu, pingando pesadamente no chão.

Com gritos de imprecação, os estupefatos tuglantes jogaram as armas agora inúteis contra a primeira parede. De boca escancarada, fitaram Gucky por alguns instantes, totalmente desconcertados; depois viraram-se bruscamente e saíram correndo. Ainda por bastante tempo chegaram a Gucky suas desconexas exclamações.

O incidente não passara despercebido. Do lado oposto, quatro tuglantes cruzaram diagonalmente a rua, lançaram um rápido olhar ao morto, e se encaminharam para Gucky. Um deles falou:

— Um dos homens de Alban. Conheço-o. E quem o matou foi aquele camarada ali. Como, não sei; para mim é mistério. De qualquer forma, parece que não topa nossos inimigos. Vamos interrogá-lo?

“Ah, o pessoal da oposição!”, pensou Gucky, interessado. “Talvez sejam mais simpáticos.”

— Se ele vem da nave arcônida, talvez possa nos ajudar. Pois deve ser partidário do império.

— Certo, Xaron. Mas duvido que ele possa nos entender.

Gucky ouvira o suficiente. Aqueles homens estavam em dificuldades, e só ele estava em condições de lhes prestar ajuda. Como não? Com o maior prazer! Seriam aliados de Daros?

Os quatro tuglantes ensaiaram sorrisos amistosos. Um deles apontou o morto, ainda estendido no meio da rua.

— Foi você que fez isso, não é? Boa, baixinho! Era inimigo do império.

— Inimigo de Rhodan, também? — perguntou Gucky, em intercosmo, língua que também aprendera a falar.

— Quem é Rhodan?

— O comandante da nossa nave.

Os tuglantes animaram-se.

— Claro, claro! Vamos lhe explicar tudo. Mas primeiro temos que sumir daqui, pois a polícia já vem vindo.

Com as sirenas soando estridentemente, dois ou três giromóveis dobraram a esquina. Homens fardados saltaram deles quase antes que parassem. De armas apontadas correram para onde estavam Gucky e seus novos amigos.

— Não se assustem! — chilreou o rato-castor, deliciado com a oportunidade de exibir mais uma vez sua habilidade. — Vamos lhes mostrar do que somos capazes!

Antes que os quatro partidários de Karolan dessem pela coisa, tornaram-se leves como plumas e flutuaram para o alto, aterrizando no telhado plano da casa mais próxima. Mal tocaram a superfície sólida com os pés, o peso corporal foi restabelecido. Sem entenderem coisa alguma, agarraram-se freneticamente ao estreito beiral que os. separava do assustador precipício da rua. Mas a curiosidade logo superou o medo. Não podiam deixar de observar as coisas incríveis que aconteciam lá embaixo.

Atônitos, os policiais presenciaram o vôo dos tuglantes. No entanto recuperaram a presença de espírito bem mais depressa do que há meia hora. Automóveis voavam pelo ar, e aquele animalzinho estivera por perto; agora eram homens que voavam, e novamente o peludo se encontrava presente, com o ar mais inocente do mundo. Logo, ele tinha algo a ver com o milagre.

— Peguem-no vivo! — berrou o chefe do valente grupo armado, lançando-se heroicamente sobre Gucky, cujo incisivo vibrava de intensa expectativa. Seu pêlo se eriçou na nuca. Agora sim, a brincadeira era farta, quase mais do que podia controlar de uma só vez! Por ordem, então...

Os policiais se sentiram empurrados de volta para os giromóveis. Sem se dar conta do que ocorria, estavam novamente nos assentos de seus veículos, que saíram andando sem ligar os motores, como que guiados por espíritos. Os carros formaram uma esquadrilha e subiram. Os apavorados policiais viram a cidade se distanciar debaixo deles. Imóveis nas cabinas, não ousavam fazer o menor movimento. Os habitantes de Tugla, porém, foram brindados com o inédito espetáculo de um show de acrobacia aérea, oferecido pela patrulha motorizada de sua força policial. Após dois minutos de evoluções, os giromóveis desceram incólumes no telhado do palácio.

Gucky aproveitara a ocasião para se alçar, com um tremendo salto, para junto de seus amigos rebeldes, que o receberam aliviados. Apesar de não entender em absoluto como o truque funcionava, acabaram aceitando a espantosa demonstração de Gucky como façanha natural de um integrante do todo-poderoso império arcônida. Mais uma razão, portanto, para bater-se pela continuação da aliança com os arcônidas.

Ali em cima do telhado ninguém os perturbava. Gucky recebeu amplas informações sobre a situação política do planeta Tuglan, não tardando a saber mais do que Rhodan sobre aquele sistema solar. Graças aos seus dons telepáticos, Gucky estava certo de que os tuglantes não mentiam.

Quer dizer que Rhodan se encontrava em perigo, aprisionado por Alban? Pois então era mais do que hora de libertá-lo!

— Vamos levar você até Karolan, nosso chefe, Gucky. Ele saberá o que fazer. Você é nossa salvação. Como poderemos lhe agradecer?

Gucky fez um gesto com a pata, dizendo modestamente:

— Ora, desde que me dêem oportunidade de brincar...

A observação permaneceu um tanto dúbia para os tuglantes, mas aquilo não era tão importante no momento. O principal é que agora contavam com um superpoderoso aliado.

E puseram-se a caminho, rumando para o esconderijo de Karolan.

 

Suspendendo a inútil procura por Rhodan, Bell decidiu ir até o palácio, onde Crest e Marshall conferenciavam com lorde Alban. O vidente do Exército de Mutantes não conseguira descobrir indício algum, apesar das paredes das casas não representarem obstáculos para seus olhos. Diante de sua vista penetrante, a estrutura da matéria sólida se modificava, tornando-se transparente até onde ele desejava. Assim ele podia examinar camada após camada, como um aparelho de raio-X, até descobrir o que queria.

Porém Rhodan continuava sumido.

No palácio reinava uma agitação incomum. Bell contemplou pensativamente os giromóveis pousados sobre o telhado plano, imaginando de que jeito teriam ido parar ali. Um guarda lhe explicou, com abundância de detalhes, que o demônio pregara uma peça à polícia. Que os carros tinham levantado vôo apesar dos motores desligados. E que várias outras coisas tinham voado naquele dia: automóveis, policiais, gente...

Como se policiais não fossem gente...

As suspeitas de Bell despertaram. Lembrou-se da vã procura por Gucky na nave. O brincalhão rato-castor teria saído para uma voltinha, a fim de satisfazer seus instintos? Aquilo parecia obra dele. Mas onde estaria Gucky neste momento?

Bell não teve tempo de refletir mais sobre o assunto, pois um tuglante chegava com a resposta de Alban. Os visitantes deveriam aguardar o término da entrevista com o arcônida Crest e seu acompanhante. Crest o queria assim.

Lançando um olhar de entendimento para Sengu, Bell concordou. Assim que viu o guarda fora do alcance de sua voz, sussurrou:

— Por que razão Crest se oporia à nossa presença durante a conferência? Meu caro Sengu, algo está errado nisso.

O mutante japonês acenou gravemente.

— Quer que eu vá verificar?

— Lógico! Espero que aquele sujeito ali não atrapalhe. Não pára de olhar para nós.

— Que nada! Vou fazer de conta que admiro a ornamentação das paredes.

O mutante ativou a zona especial em seu cérebro. As paredes de pedra se dissolveram para ele, deixando o olhar inquiridor penetrar livremente nos recintos que vedavam.

Passivamente sentado numa cadeira, Bell sentia-se o mais inútil dos homens, com uma raiva danada de não ser igualmente mutante.

 

Logo às primeiras palavras de lorde Alban, John Marshall percebeu que ele mentia. Junto com Rathon e Crest, um pelotão os conduzira em verdadeira marcha cerimonial através do palácio, até o salão de audiência do lorde. Com todas as honras militares... ou severamente vigiados. Marshall estava certo de que os fuzis de aço apresentados em continência não eram meros ornamentos. Uma rápida sondagem da mente dos soldados confirmou a suposição.

Alban cumprimentou efusivamente os visitantes, insistindo repetidamente que lamentava muito ter causado incômodos aos arcônidas, e que ele se encarregaria de providenciar o restabelecimento da paz e da ordem. Talvez fosse até melhor que deixassem tudo por conta dele, acabou sugerindo. E encontraria, sem a menor dúvida, o arcônida Rhodan.

Crest notou que Marshall sacudia de leve a cabeça, porém não conseguia adivinhar quais das palavras de Alban eram falsas. Afirmara tantas coisas de uma só vez! O jeito era analisar suas dúvidas uma por uma.

— Considera seu irmão Daros um rebelde contra o império? — perguntou Crest, portanto.

— Ele é o cabeça da rebelião.

Crest olhou para Marshall e soube que Alban mentira novamente.

— Foi ele igualmente que destruiu a hiperestação do comissário?

— Claro, quem mais?

Alban mentira novamente.

— E você, Alban, é um fiel seguidor do império? Deseja que Tuglan continue fazendo parte do Grande Império arcônida como antes?

— Mas claro, eminente arcônida! É meu maior desejo.

As três perguntas eram suficientes para Crest. Sabia o bastante.

Marshall já sacudia a cabeça abertamente.

Crest não via razão para hesitar por mais tempo. Apesar de nem ele nem Marshall terem trazido armas, confiava em sua autoridade para evitar que Alban cometesse algum ato impensado.

— Está mentindo, lorde Alban! — disse com leve tom de reprovação. — Seu irmão Daros nada tem a ver com isso tudo. Receia nele um rival. Foi você quem mandou destruir a hiperestação; e foi também o incentivador do ataque a Rhodan. Onde está Rhodan, Alban? Diga a verdade, ou mando dar ordem de destruir a cidade de Tugla.

Lorde Alban permaneceu imóvel por trás de sua mesa. Os dedos crispados repousavam sobre o tampo. Levou longo tempo para se recuperar da surpresa. Com um sorriso contrafeito exclamou, por fim:

— Que terríveis acusações, Crest! Como pretende prová-las?

— Não preciso de provas. Este homem aqui lê pensamentos, Alban. Sabe perfeitamente que você mentiu.

Alban fitou Marshall com olhos relampejantes.

— Um telepata? Mas como é possível?

— O império abriga muitas raças; entre elas existem também telepatas. Seus pensamentos não constituem mais segredo. Marshall, diga-lhe o que sabe.

— É Alban que deseja sacudir o jugo arcônida — disse Marshall. — Também tenciona afastar o irmão de seu caminho. Por isso fazia recair toda a suspeita sobre Daros, com diabólica habilidade; o que lhe permitira eliminá-lo legalmente, e ao mesmo tempo se eximir de qualquer culpa. Chegamos bem na hora.

Alban conseguira apertar um botão de alarma oculto. Do lado de fora já se ouvia o ruído dos passos das sentinelas, aproximando-se. O lorde sorriu mordazmente.

— E como pensa fazer uso do que sabe? De que forma avisaria sua gente na nave?

— Que quer dizer? — perguntou Crest.

— Muito simples. Os rebeldes de meu irmão vão assaltar e seqüestrar vocês, conforme fizeram com Rhodan. Lamentavelmente não pude evitá-lo, pois ele recusou minha escolta. Não sou responsável pelo que possa ocorrer entre meu palácio e o espaçoporto. Espero que tenham compreendido. Aí vêm eles!

A porta se abriu, dando entrada a seis soldados com espingardas apontadas para os três homens. Marshall leu em suas mentes ódio e determinação. Alban apontou para Crest, Rathon e o telepata.

— Prendam-nos, e levem-nos para baixo. Ponham-nos junto com Rhodan, para que ele tenha companhia e não se sinta tão solitário.

Foi assim que Rhodan recebeu, dez minutos mais tarde, inesperadas visitas. Perplexo, viu os três homens serem empurrados para dentro de sua cela; os guardas empunhavam refulgentes espingardas. A porta tornou a ser fechada.

Erguendo-se, Rhodan perguntou preocupado a Crest:

— Que significa isto? Não venha me dizer que foi aprisionado pelos rebeldes!

— Pelos rebeldes? Sim, poderiam ser denominados desta forma. É muito lamentável sermos forçados a nos submeter ao sacrifício, mas pelo menos agora sabemos em que situação nos encontramos.

— E trouxeram vocês para cá?

— Trouxeram? Estamos no palácio de Alban.

Aquela deixou Rhodan realmente surpreso. Indicando com gesto convidativo o rústico mobiliário, disse:

— Acho que vocês têm muito o que contar. Comecem...

 

Wuriu Sengu estremeceu involuntariamente. Espiando com o rabo do olho a sentinela, cochichou:

— Achei! Rhodan, Crest, John Marshall e o tal comissário de Árcon. Todos trancados num porão escuro. Ao lado tem outra cela, com um tuglante jovem estendido sobre a cama. Pelo traje, é pessoa importante. Daros, talvez?

Bell escutava impassível. Seus pensamentos se precipitavam. Rhodan e Crest presos? Ali no palácio? Mas então Alban é que era o trapaceiro! E se continuasse rodando por ali muito tempo, também acabaria metido numa cela, junto com Sengu. Situação que não traria vantagem a nenhum deles. Ninguém suspeitava da falsidade de Alban. Também não tinha possibilidade de se comunicar com algum dos mutantes, pois nada fora combinado. Portanto restava-lhe uma única alternativa: sumir de cena o quanto antes, e retornar à nave. Levantou-se.

— Venha, Sengu. Temos que ir embora já. Só trago comigo uma pequena pistola portátil, que não serviria para grande coisa em caso de necessidade.

O japonês se ergueu. Mas, mal os dois homens tomaram displicentemente a direção da saída mais próxima, um dos soldados correu atrás deles. Mais uniformizados seguiram-lhe o exemplo.

— O digníssimo senhor lorde Alban está pronto para recebê-los! — comunicou o soldado, pressurosamente.

Bell nem lhe deu confiança; continuou a andar impassível, enquanto dizia:

— Pois diga a seu lorde Alban que pode vir nos ver lá na nave qualquer dia desses, caso tenha vontade, meu filho. Não temos mais tempo agora.

O soldado hesitou. Os outros já tinham chegado perto. Na porta de saída havia mais dois, com as espingardas de raios semi-erguidas.

Bell não era homem de se deixar pegar de livre e espontânea vontade.

— Tome o canhão daquele cara! — ordenou a Sengu, enquanto disparava de dentro do bolso com sua pequena pistola. As sentinelas junto à porta sentiram o formigamento das ondas de energia lhes percorrer o corpo. Os membros se contraíram, forçando-os a largar as armas. Segundos após, rolavam pelo chão, berrando e reagindo freneticamente contra o invisível inimigo. A nenhum deles ocorrera ainda que Bell era o causador de sua aflição.

Sengu aproveitara a ocasião para tomar a arma do soldado confuso, usando um golpe de judô; apontou-a para os cinco guardas, que haviam demorado alguns instantes para pegar suas espingardas.

— Tratem de ser bonzinhos, e deixem os paus-de-fogo pendurados nos ombros — avisou Bell, irônico. — Marchem na nossa frente, na direção da saída. E distribuam ordens sensatas, senão vão se dar mal!

— Lorde Alban quer falar com vocês — murmurou um dos guardas, tremendo.

— Ele que fique falando consigo mesmo; pelo menos estará em companhia do mesmo calibre. Para fora, já! Aliás, como é que aqueles giromóveis foram parar lá em cima do telhado?

Já haviam atingido o pátio do palácio; em passo marcial desfilaram diante de grupos de soldados aparvalhados, que os fitavam boquiabertos. Ninguém ousava o menor movimento em falso.

— Voaram e aterrizaram lá, senhor. Dizem que foi coisa de um bichinho que sabe fazer mágicas; foi ele que executou o truque. Ninguém sabe como.

Bell sorriu de orelha a orelha. Gucky! Sem dúvida o rato-castor se divertira um bocado perturbando os tuglantes. Se conseguisse pelo menos alcançar algum resultado positivo com aquilo tudo! Onde estaria Gucky naquele momento?

Sengu apoderou-se sem demora de um carro, inclusive com motorista. Bell desarmou um por um os soldados de Alban, despachando-os de volta para o palácio. Transeuntes curiosos observavam a cena a respeitosa distância, com inesperada passividade. Pareciam bastante indiferentes ao destino de Alban e de seus militares.

Dez minutos após Bell chegava à Stardust-III e dava o alarma.

 

Karolan levou bom tempo para se refazer da surpresa. Xaron relatava, entretanto, o que se passara com ele e seus três companheiros. Comentou com especial entusiasmo o espetáculo acrobático da patrulha policial, sem se esforçar por dar uma explicação para o incompreensível.

Abaixando-se, o chefe dos rebeldes alisou de leve o sedoso pêlo de Gucky. O rato-castor empertigou-se, e inclinou a cabeça para trás, dizendo:

— Debaixo do pescoço, por favor. É aí que eu gosto mais.

Karolan quase caiu da cadeira em que estava sentado.

— Ei! Ele sabe falar!

— Claro que ele fala! — resmungou Xaron. — Eu não cheguei a contar isso? Ele pertence aos arcônidas.

— Impressionante! Realmente impressionante — murmurou Karolan, atônito. Absorto, acariciava Gucky no local favorito, debaixo do pescoço, enquanto seus pensamentos turbilhonavam. — Quem sabe ele pode nos ajudar a derrubar Alban? E a encontrar Daros? Escute, baixinho, quer cooperar conosco? Tuglan deve voltar a ser um fiel aliado do império.

Gucky revirou a mente de Karolan, constatando que ele falava a verdade. Porém antes que chegasse a dar sua resposta, um homem se precipitou afobado para dentro da sala. Ofegando, gritou:

— Rebelião! Os habitantes de Tugla invadem o palácio! Dizem que os arcônidas recém-chegados os ajudarão a depor o traiçoeiro Alban. Forças misteriosas já estariam em ação, castigando a polícia. Fatos estranhos, que só podem ser atribuídos aos arcônidas, têm acontecido. É um sinal, afirma o povo. Decidiram elevar Daros a lorde...

— Exatamente o nosso objetivo! — comentou Karolan, calmamente. — Até agora tivemos que trabalhar pela causa, em silêncio; mas chegou a hora de podermos lutar abertamente. Xaron, avise nossos homens! Que se armem, e saiam para apoiar os cidadãos. Eu vou também.

Fitando o pequeno rato-castor, indagou:

— E você?

— Vou poder brincar? — perguntou Gucky.

— Brincar? — replicou Karolan, intrigado.

— Sim, brincar. Que mais? Já brinquei o dia todo, e foi maravilhoso.

Karolan julgou compreender.

— Ah, chama a isso brincar? Claro que pode brincar até não querer mais. Mas, deixe-me indicar as ocasiões adequadas, sim? Promete?

Gucky prometeu solenemente, e perguntou:

— Rhodan também está no palácio?

— Rhodan?

— Sim, o comandante da nossa nave.

— Puxa, até que nosso amiguinho acaba de dar um palpite aproveitável — disse Karolan, pensativo, a Xaron.

Minutos após, o grupo de Karolan ganhou a rua, correndo com os excitados habitantes da cidade para o palácio, onde os soldados de Alban se preparavam para defender a própria vida e a do lorde.

 

Bell realizou uma derradeira conferência com o major Deringhouse, comandante dos ágeis caças espaciais, que aguardavam a hora de entrar em ação no possante bojo da Stardust-III.

— Dez caças devem ser suficientes para dar uma boa lição no tal de Alban — disse Bell, acrescentando: — Não queremos causar destruição desnecessária, nem matar tuglantes. A maior parte deles nem suspeita das verdadeiras intenções de seu governante. Mas também devem perceber que conosco não se brinca.

— Preocupo-me extraordinariamente com a sorte de Rhodan — confessou Deringhouse. — Caso Alban perceba nossa intervenção, poderia usá-lo como refém.

— Não diga bobagens, major! — exclamou Bell, muito sério. — Nada acontecerá a Rhodan. Deixou-se prender a fim de descobrir o verdadeiro culpado. E alcançou seu objetivo. Alban deixou cair a máscara. Conhecemos agora nossas posições, e vamos passar à ação. Dez aparelhos, portanto. Sigo para o palácio na frente, com nosso tanque blindado. Permaneceremos em contato radiofônico, e nos encontraremos lá. Aguarde futuras instruções.

Com uma breve continência, Deringhouse se retirou.

Bell mandou chamar os mutantes e selecionou alguns entre eles.

— Trata-se de tornar Alban inofensivo, antes que possa fazer mal maior. Creio que Ralf Marten e Kitai Ishibashi são os elementos adequados. Apossem-se da consciência de Alban assim que ele chegar perto bastante; sugiram-lhe os pensamentos corretos, e ele fará tudo que lhe for exigido. O resto combinaremos no trajeto para Tugla. Vamos, o carro já espera.

Enquanto os caças espaciais emergiam, um a um, da Stardust-III, ganhando lentamente as alturas, o maciço tanque se pôs em movimento. Seu canhão de raios apontava ameaçadoramente o cano espiralado em direção da cidade. Em seu ventre zumbia o pequeno reator arcônida, fonte de toda a energia de que necessitava.

Bell indicou o rumo ao condutor, e ligou para Deringhouse.

— Que está vendo?

— Sobrevoamos o palácio — respondeu Deringhouse, prontamente. — O movimento lá embaixo é fora do comum, porém não por nossa causa. De todos os lados, os habitantes da cidade acorrem para o palácio. Alguns estão armados. Será que foram convocados pelo lorde para defender o palácio contra nós?

— Sabe lá!... — resmungou Bell, digerindo a inesperada novidade. Por outro lado, era... estranho. — Continue observando, e me avise caso aconteça algo importante. Vamos nos apressar.

O trânsito na rua principal intensificava-se. Bell notou que ninguém se espantava com o súbito aparecimento do veículo de combate arcônida. Esperara provocar pânico e correrias; no entanto dava-se justamente o contrário. Os tuglantes, muitos deles de armas na mão, abanavam e aclamavam o tanque.

Bell voltou-se para Fellmer Lloyd, um dos mutantes. Lloyd era um localizador. Não um telepata, propriamente; porém era capaz de captar e analisar o padrão das ondas cerebrais de qualquer ser vivo ao seu alcance. O que lhe permitia distinguir animosidade, alegria e outras reações emocionais.

— Lloyd, tente saber o que está havendo com o pessoal! Por que é que não se assustam com nossa presença? Afinal, deviam temer que iniciássemos nossa atuação com medidas punitivas.

— Certo, comandante — respondeu o corpulento americano, concentrando-se.

Os demais mutantes se conservaram calados, para não perturbá-lo.

Bell aguardava, impaciente.

Depois de dois ou três minutos, durante os quais o tanque forçava penosamente passagem entre a multidão delirante, Lloyd descontraiu e informou, sorridente:

— Até onde posso analisar, eles nos consideram aliados. A disposição de espírito predominante é raiva e ódio, mas não contra nós. O ânimo é revolucionário. Todos têm lorde Alban em mente, com irritação e furor. Tencionam invadir o palácio, e acham que viemos para ajudá-los.

— Rebelião franca, portanto — constatou Bell. — Os tuglantes querem pôr as coisas em ordem. Nosso aparecimento lhes deu coragem para isso. Assim sendo, não podemos desapontá-los. E, pelo jeito, eles sempre souberam que era Alban que queria libertar Tuglan do império, e não Daros.

Nas proximidades do palácio já havia luta. Soldados do lorde tinham abandonado o refúgio seguro dos muros do palácio e tentavam dispersar a multidão. Procediam sem a menor consideração, o que espicaçava ainda mais os agressores. Já havia mortos de ambos os lados. Os cidadãos de Tugla estavam mal armados, e muitos deles agrediam os soldados a socos, com as mãos nuas.

Em algum lugar fez-se ouvir o lamento de uma sirena. Uma coluna motorizada dobrou a esquina, parando de chofre. Civis armados saltaram das cabinas, demonstrando logo de início que haviam sido treinados para escaramuças urbanas. Agitando as armas, gritavam para soldados e cidadãos:

— Viva lorde Daros! Viva o império! Abaixo o traidor Alban!

— Viva lorde Daros! — ecoou a multidão, lançando-se com renovado ímpeto contra os soldados, cuja indecisão aumentava. Os rebeldes de Karolan tinham entrado em cena.

Bell, entretanto, alcançara o portão do palácio. Deringhouse informou que no pátio interno haviam sido colocados pesados canhões de raios, prontos para defender o palácio até o último homem. Pediu instruções para seus caças.

— Procure atrapalhar os preparativos de defesa — ordenou Bell. — Mas lembre-se que Rhodan e Crest estão presos lá dentro. Vou pôr Sengu em ação, a fim de estar devidamente orientado.

O japonês já via. Em voz baixa, informou:

— Crest, Rhodan, Rathon e Marshall ainda continuam em sua cela; perto deles, o jovem tuglante que supomos ser Daros. Os guardas estão sendo retirados. Vou procurar Alban.

Os caças mergulharam, alvejando os soldados no pátio com chuveiros de elétrons. Bell colaborou com o zunir de seu canhão. O enorme portão que impedia a passagem do tanque começou a arder e desmoronou. Sem ligar para a temperatura perigosamente elevada, os civis impacientes se precipitaram pela brecha obtida e invadiram o palácio.

Karolan percebeu que encontraria melhor oportunidade em outro local. Acenando para seus homens, tomou uma rua lateral, acercando-se do palácio pelos fundos. Sua coluna motorizada acompanhava-os mais lentamente. Do alto dos muros partiam tiros isolados, causando pouco prejuízo.

E de repente Gucky tornou a aparecer.

O rato-castor aguardara pacientemente no carro, até receber o sinal convencionado por Karolan. Depois saltou da cabina e gingou, muito senhor de si, através das fileiras dos sorridentes rebeldes. Os demais civis interromperam por instantes seus clamorosos brados, fitando admirados o esquisito ser que andava ereto como um homem e não demonstrava o menor medo. Alguns já tinham ouvido comentários acerca dos estranhos acontecimentos ligados à presença do animalzinho.

Pertinho de Gucky um raio energético derreteu a pavimentação.

Olhando para cima, o rato-castor avistou alguns soldados, protegidos pelo muro. Karolan acenou, portanto podia brincar.

De braços estendidos, e gritando em pânico, os soldados singraram para fora de seu esconderijo; pareciam andorinhas plantando no vento. Foram cair no meio do bando de rebeldes, onde tiveram recepção muito pouco amável.

Karolan deu ordem de parar, e apontou para um portão no muro.

— É aqui — murmurou. — Quem desconfiaria que pretendemos entrar por aqui? Xaron, a bomba!

— O efeito dela é arrasador, Karolan — objetou Xaron, preocupado. — Não temos onde nos proteger. Será que Gucky...?

Karolan compreendeu instantaneamente e chamou Gucky para junto de si.

— Está vendo esta bola preta, Gucky? Quando eu apertar este pino, restam-nos quinze segundos antes que ela exploda e destrua tudo ao seu redor. Compreendeu?

Gucky meneou compenetrado a cabeça.

— Sei o que quer. A bola deve ser posta por trás do portão, para que a explosão empurre o empecilho para fora. Pois bem, aperte o pino e deixe a bola aí no chão.

Rapidamente Karolan atendeu o pedido de Gucky, e começou a contar:

— Um... dois... três...

Gucky olhou para a bola. Uma vez que podia fazer revolutear nos ares automóveis e até veículos blindados, aquela coisinha não constituiria problema. Sua mente irradiou, e...

— ...seis...sete...oito...

A bomba se ergueu lentamente do chão e subiu, em direção do beirai do muro. Rostos perplexos acompanhavam lá de cima o mistério da bola voadora, sem saber interpretá-lo. Os rebeldes esperavam, prendendo a respiração. Apenas Karolan não se alterava, prosseguindo imperturbavelmente em sua contagem. Oscilando, a bomba descreveu um círculo em torno da cabeça de um dos soldados, que tentava desajeitadamente pegá-la. Depois Karolan e seus companheiros a perderam de vista.

— ...doze...treze.

Sem esperar ordens, o grupo debandou, colando-se ao muro. O trecho diante do portão ficou vazio. Ninguém queria ser atingido pelos estilhaços. As fisionomias no alto do muro desapareceram.

— ...catorze...

Gucky sentiu-se agarrado por uma pata, e puxado para o lado. Perdeu o controle da linda bola, e deixou-a cair. O acaso providenciou para que ela rolasse exatamente para junto do portão, do lado de dentro, onde parou.

— ...quinze! — disse Karolan, lançando-se ao solo, e arrastando Gucky consigo.

Um fulgor luminoso ofuscou por instantes o sol azul que brilhava no firmamento. Um estrondo ensurdecedor reboou pelas ruas, quebrando-se contra as paredes das casas. No lugar onde estivera o portão, via-se agora uma brecha.

— Viva lorde Daros! — berrou Karolan, pondo-se de pé. — Abaixo Alban, o traidor!

Rebeldes e civis se lançaram para dentro do palácio.

Com um salto oportuno, Gucky pôs-se em segurança, pois receava ser esmagado pelos pés dos assaltantes.

Esperou até a rua ficar quase deserta, e seguiu tranqüilamente os invasores. Lá dentro devia estar seu amigo Rhodan, e talvez também Bell. Mas primeiro pretendia mostrar ao tal de Alban do que era capaz. O sujeito ia voar como jamais voara na vida.

E enquanto no pátio do palácio se desenrolava furiosa luta, Gucky esgueirou-se por uma janelinha do porão para o subsolo, a fim de procurar Alban e Rhodan.

 

Lorde Alban reconheceu que perdera a jogada. Um único trunfo lhe ficara ainda nas mãos: os arcônidas aprisionados.

Seus canhões de raios tinham sido inutilizados pelos ligeiros caças espaciais. Um tanque arcônida penetrara no pátio interno. Seus soldados se rendiam na primeira ocasião favorável. Rebeldes e amigos de seu irmão já invadiam as dependências do palácio.

Munindo-se de uma pesada pistola de raios, Alban deixou a sala de onde dirigira a luta, e tecera suas intrigas. Decidido a jogar a última cartada, dirigiu-se para o subsolo, a fim de encenar o final do drama. Mas primeiro ligou o gravador, providenciando para que as palavras que acabara de lhe ditar fossem reproduzidas por alto-falantes em todo o palácio.

Depois abandonou o cenário.

 

Bell escutou a voz do traidor ao desembarcar do tanque, e avançar na dianteira de seus mutantes para o palácio.

— Caso os arcônidas queiram tornar a ver vivo seu comandante, devem abandonar imediatamente a luta. Estou com Crest e Rhodan em meu poder, e vou matá-los se o palácio não for evacuado dentro de cinco minutos; tanto por rebeldes, como por arcônidas. É minha primeira e última proposta. Repetindo: Caso os arcônidas...

— Raios! — praguejou Bell, fitando desalentado Lloyd e Sengu. — Onde está Rhodan? Pode localizá-lo, Sengu?

— Nesta direção! — o japonês apontava diagonalmente para baixo. — Alban está entrando na cela neste momento. Tem uma arma na mão. Apontada para Rhodan. Não posso avaliar a distância.

— Vamos! — comandou Bell. Rapidamente retirou as lentes de contato vermelhas dos olhos. — Vamos lhe mostrar quem somos! Sengu, corrija o rumo, caso nos desviarmos. Rápido, pessoal!

E, apesar disso, Bell teria chegado tarde demais, se...

 

Rhodan prestava atenção a todo ruído chegado até sua prisão. Lutava-se lá fora, segundo indicavam os sons que ouvia. O sibilar dos disparos energéticos misturava-se com gritos de desespero; no meio disso tudo, o estrondo de uma explosão. Fora bem perto dali. Seguiu-se um período de silêncio, depois tremenda gritaria. Pés apressados palmilhavam corredores e salões do palácio. Os tiros rareavam. Uma única vez Rhodan identificou o zumbido característico de um pulso-radiador. Aquilo devia ser Bell com seus mutantes.

Depois a voz distorcida de Alban se projetou num alto-falante próximo. Difundia sua última mensagem.

— Bem, a situação foi decidida; menos a nossa, que ainda está por resolver. Alban vai querer nos matar, caso não nos possa utilizar como reféns. Crest, deite-se na cama, e fique quieto. Eu falo com Alban. Marshall, fique junto da porta, e tente sujeitar Alban quando ele entrar. Rathon, mantenha-se passivo também. Entendido?

— Não vai adiantar; não temos armas — discordou Crest. — Como pretende se impor diante de um fuzil de raios?

— Veremos, Crest. Quem desanima facilmente não é digno de governar um império.

Por alguns segundos, o arcônida encarou fixamente Rhodan; depois acenou devagar, compreensivamente. Em silêncio se estendeu sobre a cama. Tinha a testa coberta de suor.

Marshall, que Rhodan livrara das amarras, levou menos tempo para compreender. Com ar decidido postou-se ao lado da porta.

Passos se aproximavam.

“Pensando bem”, considerou Rhodan, “é a primeira vez na vida em que estou diretamente exposto à morte certa. Não posso reagir, e estou nas mãos de um alucinado, que nada lucraria ou perderia se eu morresse. Minhas chances são mínimas, muito mais reduzidas do que meus três amigos imaginam. A rigor, não temos chance alguma. Foi rematada tolice e presunção nos colocarmos espontaneamente em tal situação.”

Os passos se detiveram junto da porta. Uma chave tiniu.

“É agora”, pensou Rhodan, serenamente. “Chegou o momento de saber se seremos capazes de sair desta encrenca; se somos bastante rápidos; se podemos tapear Alban. Basta ganhar tempo, até Bell chegar. Bell é agora nossa derradeira esperança.”

A chave girou na fechadura, e um pontapé escancarou a porta. A primeira coisa que Rhodan viu foi o cano espiralado de uma arma de aparência ameaçadora, apontado diretamente sobre sua pessoa. Por trás dela estava Alban, com o dedo no disparador.

— Vejo apenas três arcônidas — disse o lorde, com surpreendente calma, mas sem se aproximar mais. — Onde está o quarto homem? Atrás da porta? Caso ele não apareça imediatamente, eu atiro.

Diante do gélido olhar de Alban, Rhodan viu que ele falava sério. Sendo telepata, Marshall ainda demorou menos a perceber o perigo iminente. Dando de ombros, conformado, deixou seu esconderijo e se colocou ao lado de Rhodan.

Alban sorriu, satisfeito, e agitou o cano da curta espingarda em círculo.

— Devem ter escutado minha proclamação. A vida de vocês contra a minha. Vocês não têm outra escolha!

— Está desafiando o império! — avisou Rhodan, para ganhar tempo. Bell já devia se encontrar dentro do palácio. Talvez um dos mutantes conseguisse se apossar da mente de Alban em tempo.

— Um de vocês vai subir, a fim de transmitir a ordem de Rhodan de abandonar o palácio. E você, caro arcônida, vai comigo até o hangar secreto debaixo do telhado, onde guardo meu pequeno foguete. Assim que eu levantar vôo, estará livre. John Marshall interrompeu:

— Tapeação, comandante; ele pretende fuzilá-lo antes de se evadir.

— Exatamente o que eu pensava — disse Rhodan, calmamente. — E então, Alban?

Por um instante, o lorde ficou confuso; depois sua fisionomia se contorceu num esgar de fúria. Do corredor vinha um ruído arrastante, entremeado com as pisadas de patas fofas. John Marshall disse em inglês:

— Alguém se aproxima; posso captar seus pensamentos. Pensamentos muito esquisitos. Meu Deus, é Gucky! Procura por nós!

“Ganhar tempo”, pensou Rhodan, frenético. “Talvez o rato-castor seja de alguma utilidade. Mas como é que ele sabia...?”

— Responda! — berrou Alban, manuseando o disparador de sua arma. No estado presente, o tuglante era extremamente perigoso, apresentando as reações de um doente mental. Impossível prever o que faria no instante seguinte. — Responda, ou é o fim!

Rhodan sentiu a febril expectativa dos companheiros. Apurou o ouvido, mas não escutou mais nenhum ruído no corredor. De muito longe vinham brados surdos e abafados. Uma porta bateu, e o som parecia uma detonação.

— Quem deve acompanhá-lo? — perguntou a Alban.

O lorde pareceu se distender com as palavras de Rhodan, porém logo a desconfiança venceu; novamente seus dedos se crisparam sobre a arma.

— Está querendo me iludir, arcônida. Talvez fosse melhor matar vocês todos agora mesmo. Vou...

Então aconteceu o que Rhodan esperava ansiosamente.

Lorde Alban sentiu-se atingido por um soco invisível nas costas; seu fuzil declarou independência, subindo inapelavelmente para o teto, que ficava a uns cinco metros do piso do corredor.

Alban não concebia que seu fuzil pudesse voar, porém de maneira nenhuma queria ser privado dele. Portanto, agarrou-se à arma com todas as forças, e foi içado para cima junto com ela. As pernas balançaram desesperadamente no ar ao perder contato com o chão. O lorde estava como que suspenso numa barra de ginástica, que cordas invisíveis puxavam para cima.

Depois o fuzil tocou no áspero teto de pedra, imprensando as mãos do tuglante. Com um grito de dor, Alban se soltou, caindo para baixo. Três metros não eram altura muito considerável, porém Alban torceu o corpo durante a queda; quando seus pés bateram violentamente no chão, fazendo o tronco vergar, o crânio foi impelido contra uma ponta de rocha saliente na parede. Um baque surdo, e Alban se abateu no solo sem um gesto.

Rhodan chegou tarde demais; um olhar bastou para constatar que Alban estava morto.

Escutando um ruído às costas, voltou-se e deu com os olhos castanhos de Gucky. A expressão canina de seu olhar refletia satisfação e confidencia. Acocorado no meio do corredor, o rato-castor guinchou, entusiasmado:

— Abaixo o traidor Alban! — num gorgeio alegre, terminou: — Viva o Império e Daros, o novo lorde!

Crest, Rathon e Marshall tinham deixado igualmente a cela. Aos poucos, a tensão se dissipava. Crest sorriu debilmente.

— Realmente, o socorro chegou no último momento...

— É, foi por pouco — concordou Rhodan. — Mas quando deixarmos Tuglan, vamos com a certeza de ter deixado o cargo de lorde nas mãos certas. Porém ainda nos falta achá-lo.

Passos cada vez mais enérgicos e decididos se aproximavam. Depois uma voz familiar gritou:

— Tem que ser aqui! Naquela porta! Que disse, Sengu? O quê? O diabo daquele rato? Com Rhodan? Essa não! Eu não agüentaria ver aquele bicho xereta chegar na nossa frente!

O corredor foi inundado de luz. Bell se precipitou por ele, estacando abruptamente ao ver o grupo em torno de Rhodan. Com os punhos cerrados, ameaçou Gucky, que se deixava acariciar por Rhodan.

— Rato miserável! Sempre querendo me passar a perna, não é? Espere só! Você vai é virar ensopado para o jantar!

Pôs-se a protestar furiosamente quando começou a flutuar. Quando suas costas tocaram as pedras do teto, Gucky guinchou:

— Deixo você morrer de fome aí em cima, se não tomar jeito. Como é? Vai ser bonzinho?

Bell grunhiu algo incompreensível. Os mutantes, que já haviam alcançado os demais, desataram em gargalhadas, imitados por Rhodan.

O japonês Sengu sugeriu:

— Devíamos ir libertar Daros. Está na cela ao lado. Também existem outros prisioneiros trancados aqui embaixo.

O grupo se desinteressou de Bell, que remava desamparado com os braços e as pernas. Ele acabou descendo de qualquer jeito pela parede.

Raios energéticos fundiram a fechadura da cela vizinha. Instantes após, retiravam o intimidado Daros do escuro recinto.

 

A Stardust-III decolou já no dia seguinte. Rhodan recebera dos robôs do comissário as coordenadas exatas, indispensáveis para o salto a Vega. Ordenou-lhes guardar rigoroso sigilo a respeito. Sabia que podia confiar nos autômatos; sua hierarquia arcônida era superior à de Rathon.

A população de Tuglan e dos planetas unidos do sistema Laton aclamara Daros como novo lorde. Um tratado comercial foi assinado com Crest, como representante de Árcon; entraria em vigor posteriormente.

A Rathon foi prometida, em futuro próximo, nova hiperestação radiofônica, para que pudesse novamente se comunicar com o império. Só que Rhodan não especificou o prazo exato para cumprimento da promessa.

Enquanto o planeta Tuglan mergulhava nos abismos do espaço, e a Stardust-III se lançava para o ponto de transição, Rhodan teve a cautela muito especial de manter Gucky ao seu lado na central de comando, além de Crest, Thora e Bell.

Os últimos minutos se passavam.

— Pensando bem — comentou Bell, após longo período de evidente reflexão — esta aventura não nos valeu de nada. Tempo totalmente perdido... Tuglan não tem relação alguma com nossa busca ao planeta da vida eterna; ou será que o problema dos tuglantes fazia parte da charada galáctica?

— Se fazia, só indiretamente — replicou Rhodan, pensativo. — Mas acho que se engana ao qualificar de inútil nossa aventura em Tuglan. Afinal, reconquistamos um sistema para os arcônidas. Sem esta nossa escala intermediária, Alban teria executado seus planos. E o império perderia Tuglan.

Bell sorriu sarcasticamente.

— E como foi Gucky que provocou este pouso não previsto, o Grande Império arcônida na certa lhe creditará o mérito do caso.

Rhodan acenou com incomum gravidade.

— E por que não? Confesso que Gucky nos colocou em sério risco, mas ninguém pode negar que ele cooperou decisivamente para nos safar novamente dele. Sem Gucky, talvez eu estivesse morto agora.

Inclinou-se e alisou o pêlo do rato-castor.

Gucky ronronou como um gatinho contente.

Thora interveio, dizendo:

— Em Vega estaremos em condições de calcular a posição do planeta imortal. E sairemos à procura dele sem perder um segundo. Minha paciência tem sido submetida a dura prova até agora.

— Está sendo injusta, Thora — manifestou-se Crest, tomando surpreendentemente a defesa de Rhodan. — A ordem foi restabelecida em Tuglan, e testemunhamos pessoalmente a rapidez com que os terranos conseguiram isso. Representam poderosos aliados para a conservação de nosso desmoronante império estelar. Confio em Rhodan, e sei que algum dia ele nos levará a Árcon. Mas compreendo, igualmente, que precisamos aguardar a hora propícia para isso. Por enquanto, ela ainda não chegou.

Com um breve aceno para Thora, Crest deixou a central de comando, dirigindo-se para sua cabina. A arcônida relanceou um olhar dúbio por Rhodan e Bell, e imitou-o em silêncio.

A luz verde brilhou. Aproximavam-se do ponto de transição. Rhodan inclinou-se para Gucky.

— Nada de tolices agora, Gucky! Você é nosso amigo, não é? Reconhece-me como comandante? Pois então tem que me obedecer. Lembre-se: nada de brincadeiras!

Rhodan levou a mão à alavanca.

— A você eu obedeço, comandante Rhodan — chilreou Gucky, segundos antes da transição que os transportaria, através de trinta e cinco mil anos-luz, até Vega. — Mas recuso aceitar ordens desse monstro de cabelos ruivos sentado ao seu lado...

E enquanto os cabelos de Bell se ericavam furiosamente, Rhodan acionou a alavanca.

Desta vez sabia que não ocorrera erro algum.

 

                                                                                            Clark Darlton

 

 

                      

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