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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


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Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

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Vasco Borden, 49 anos, puxou as lapelas do paletó e endireitou a gravata, enquanto descia pelo corredor acarpetado. Não estava acostumado a usar terno, embora tivesse aquele azul-marinho, feito sob medida, para atenuar a massa muscular do corpo. Borden era enorme, 1,93 m, 110 kg, um ex-jogador de futebol americano que trabalhava como investigador particular, especialista em resgate de fugitivos. E naquele momento Vasco seguia seu homem, alguém com pós-doutorado, calvo, de trinta anos, fugitivo da MicroProteonomics, de Cambridge, Massachusetts, enquanto seguia para a sala principal da conferência.

A Conferência BioMudança 2006, com o subtítulo entusiasmado "Faça Acontecer Agora!", estava sendo realizada no hotel Ve-netian, em Las Vegas. Os dois mil participantes representavam todos os envolvidos em biotecnologia, inclusive investidores, agentes de RH que contratavam cientistas, agentes de transferência de tecnologia, executivos e advogados de propriedade intelectual. De um jeito ou de outro, quase todas as empresas de biotecnologia dos Estados Unidos estavam ali representadas.

Era o lugar perfeito para o fugitivo se encontrar com seu contato. O fugitivo parecia insignificante; tinha um rosto inocente e uma pequena pinta no queixo; vergava os ombros quando andava, irradiando uma impressão de timidez e inépcia. Mas, na verdade, escapara com doze embriões transgênicos, num frasco Dewar criogênico. Transportara o material através do país para aquela conferência, onde ten-cionava entregá-lo para quem trabalhava.

Não era a primeira vez que alguém com pós-doutorado desistira de trabalhar por um salário. Nem seria a última.

O fugitivo foi até a mesa de registro para pegar seu crachá da conferência e pendurar no pescoço. Vasco parou na entrada, ajeitando seu próprio crachá. Viera preparado para isso. Fingiu examinar a relação de eventos.

Todos os discursos mais importantes seriam no salão principal. Haveria seminários para assuntos como "Sintonize Seu Processo de Recrutamento", "Estratégias Vencedoras Para Manter Talento de Pesquisa", "Remuneração e Benefícios de Executivos", "Administração Empresarial e a CVM", "Tendências do Registro de Patentes", "Anjos Investidores: Bênção ou Praga?", e finalmente "Pirataria de Segredos Industriais: Proteja-se Agora!".

Grande parte do trabalho de Vasco envolvia empresas de alta tecnologia. Já estivera em conferências como aquela antes. Ou eram sobre ciência, ou sobre negócios. Aquela era sobre negócios.

O fugitivo, cujo nome era Eddie Tolman, passou por ele e entrou no salão principal. Vasco seguiu-o. Tolman desceu por algumas filas, e sentou num lugar em que não havia ninguém por perto. Vasco entrou na fileira atrás dele, e sentou um pouco para o lado. O garoto Tolman verificou as mensagens de texto no celular, depois pareceu relaxar. Levantou os olhos para escutar o discurso.

Vasco especulou por quê.

O homem no pódio era um dos mais famosos capitalistas de empreendimentos de risco da Califórnia, uma lenda no investimento de alta tecnologia, Jack B. Watson. O rosto de Watson estava ampliado na tela por trás dele, com o bronzeado característico, uma aparência extraordinária. Parecia mais jovem que seus 52 anos, e cultivava com o maior empenho a reputação de um capitalista com consciência. O que lhe permitira efetuar uma série de acordos financeiros implacáveis. A mídia, no entanto, só falava de sua presença em escolas tradicionais, ou mostrava-o distribuindo bolsas de estudos para jovens menos privilegiados.

Mas naquela sala, Vasco sabia, a reputação de Watson para negócios implacáveis era a maior preocupação de todos os presentes. Ele especulou se Watson seria duro o bastante para adquirir uma dúzia de embriões transgênicos por meios ilícitos. Era provável que sim.

Naquele momento, porém, o discurso de Watson era estimulante e laudatório:

- A biotecnologia está se desenvolvendo cada vez mais. Estamos prestes a conhecer o maior crescimento de qualquer indústria desde os computadores, há trinta anos. A maior empresa de biotecnologia, a Amgen, de Los Angeles, emprega sete mil pessoas. As verbas federais para a pesquisa em universidades ultrapassaram os quatro bilhões de dólares por ano, em campi de Nova York a San Francisco, Boston a Miami. Os capitalistas de novos empreendimentos investem em empresas de biotecnologia numa média de cinco bilhões por ano. A sedução das curas espetaculares, que se tornaram possíveis com as células-tronco, as citoquinas e as proteonômicas, atraem os maiores talentos para essa área. E, com a população global se tornando mais idosa a cada minuto, nosso futuro se torna mais promissor do que nunca. E isso não é tudo!

Ele fez uma pausa, dramático.

- Chegamos ao ponto em que poderemos nos impor à chamada Big Pharma... e é o que faremos. Os grandes laboratórios farmacêuticos, maciços e inchados, precisam de nós, e sabem disso. Precisam de genes, precisam de tecnologia. Eles são o passado. Nós somos o futuro. Estamos onde o dinheiro está!

Essas palavras arrancaram aplausos estrondosos. Vasco mudou a posição de sua corpulência na cadeira. A audiência aplaudia mesmo sabendo que aquele filho-da-puta retalharia sua empresa sem a menor hesitação, se isso fosse conveniente para seus lucros.

- É claro que enfrentamos obstáculos para o nosso progresso. Algumas pessoas... por mais bem-intencionadas que pensem ser... optam por se interpor no caminho da melhoria humana. Não querem que os paralíticos andem, não querem que os pacientes de câncer se recuperem, não querem que as crianças doentes vivam e brinquem. Essas pessoas têm seus motivos para protestar. Religiosos, éticos ou até mesmo "práticos". Mas, quaisquer que sejam seus motivos, eles estão no lado da morte. E não vão triunfar.

Mais aplausos trovejantes. Vasco olhou para o fugitivo, Tolman. O homem estava outra vez verificando o celular. Era evidente que aguardava uma mensagem. E aguardava com muita impaciência.


Isso significava que o contato se atrasara?

Com toda certeza, era mais do que suficiente para deixar Tolman nervoso. Porque em algum lugar, Vasco sabia, o homem guardara um tubo térmico de aço inoxidável, com nitrogênio líquido, onde estavam os embriões. Não se encontrava em seu quarto no hotel. Vasco já o revistara. E cinco dias haviam transcorrido desde que Tolman deixara Cambridge. O sistema de refrigeração não duraria para sempre. E os embriões se tornariam inúteis, se degelassem. Portanto, a menos que Tolman tivesse meios de repor o NL2, a esta altura devia estar ansioso em recuperar seu contêiner, e entregá-lo ao comprador.

O que devia acontecer em breve.

Dentro de uma hora, no máximo, Vasco tinha certeza.

- Claro que haverá pessoas que tentarão obstruir nosso progresso — declarou Watson, do pódio. - Até mesmo nossas melhores empresas se acham envolvidas em litígios judiciais, inúteis e improdutivos. Uma das primeiras empresas que financiei, a BioGen, de Los Angeles, está no tribunal neste momento porque um homem chamado Burnet decidiu que não precisa honrar os contratos que ele próprio assinou. Porque agora mudou de idéia. Burnet tenta bloquear o progresso médico, a menos que lhe paguemos. Um extorsionário cuja filha é a advogada que cuida do processo para ele. Mantendo o caso em família.

Watson sorriu.

- Mas venceremos o caso Burnet. Porque o progresso não pode ser detido!

Watson ergueu as mãos para o alto, acenando para a multidão, enquanto os aplausos espalhavam-se pela sala. Ele se comporta quase como um candidato, pensou Vasco. É isso o que Watson quer? O cara, com certeza, tinha dinheiro suficiente para ser eleito. Ser rico era essencial na política americana atual. Muito em breve...

Ele olhou e viu que Tolman havia desaparecido.

A cadeira estava vazia.

Merda!


- O progresso é nossa missão, nossa vocação sagrada! — gritou Watson. — O progresso para vencer a doença! O progresso para interromper o envelhecimento, banir a demência, prolongar a vida! Uma vida livre de doença, deterioração, dor e febre! O grande sonho da humanidade... que finalmente se torna realidade!

Vasco Borden não prestava mais atenção. Deslocava-se pela fila na direção do corredor lateral, olhando para as saídas. Umas poucas pessoas se retiravam, mas nenhuma parecia com Tolman. O cara não podia ter escapado tão depressa. Tinha de haver...

Ele olhou para trás, a tempo de ver Tolman subindo lentamente pelo corredor central. O homem olhava de novo para o celular.

— Sessenta bilhões de dólares este ano! Duzentos bilhões no ano que vem! Quinhentos bilhões em cinco anos! Este é o futuro de nossa indústria, e esta é a perspectiva que levamos para toda a humanidade!

A multidão levantou-se de repente, oferecendo a Watson uma ovação, de pé. Por um momento, Vasco não pôde mais ver Tolman.

Mas foi apenas por um instante... pois agora Tolman se encaminhava para a saída central. Vasco virou-se e saiu por uma porta lateral. Alcançou o saguão no instante em que Tolman saía, piscando com a claridade mais intensa.

Tolman olhou para o relógio e seguiu para o corredor no outro lado, passando pela parede de vidro que dava para o campanário de tijolos vermelhos de San Marco, reconstituído pelo hotel Venetian e iluminado feericamente à noite. Ele ia para a área da piscina, ou talvez para o pátio. Naquela hora da noite, os dois lugares estariam apinhados.

Vasco permaneceu perto.

Seria agora, pensou ele.

Na sala principal, Jack Watson andava de um lado para outro. Sorria e acenava para a multidão que o aclamava.

 Obrigado... é muita gentileza... obrigado...

Ele inclinava um pouco a cabeça cada vez que dizia isso. Apenas a quantidade certa de modéstia.


Rick Diehl soltou um grunhido de repulsa enquanto observava. Diehl estava nos bastidores, acompanhando tudo num pequeno monitor preto-e-branco. Era o CEO, o principal executivo da BioGen Research, um homem de 34 anos, ainda se empenhando em subir em Los Angeles. Aquele desempenho de seu mais importante investidor externo deixava-o muito apreensivo. Porque Diehl sabia que, apesar dos aplausos e das imagens de crianças negras risonhas que seriam enviadas, ao final do dia, para a imprensa, Jack Watson era um autêntico filho-da-puta. Como alguém comentara:

- O melhor que se pode dizer de Watson é que ele não é um sádico. É apenas um filho-da-puta de primeira classe.

Diehl só aceitara o financiamento de Watson com muita relutância. A esposa de Diehl era rica, e ele começara a BioGen com o dinheiro dela. Seu primeiro empreendimento como CEO fora a aquisição da licença para explorar uma linhagem de células, oferecida pela UCLA, a Universidade da Califórnia em Los Angeles. Era a chamada linhagem de células Burnet, desenvolvida a partir de um homem chamado Frank Burnet, cujo corpo produzia poderosas substâncias químicas que combatiam o câncer, chamadas citocinas.

Diehl não esperava realmente ganhar a licença, mas acabara sendo vencedor. Subitamente, defrontara-se com a perspectiva de apresentar o projeto para que a FDA, a Administração de Alimentos e Drogas, aprovasse os testes clínicos. O custo desses testes começou em um milhão de dólares, mas, num instante, elevou-se para dez milhões, sem contar os custos operacionais e as despesas com o material necessário. Ele não podia mais depender exclusivamente do dinheiro da esposa. Precisava de financiamento externo.

Fora então que descobrira como os capitalistas de empreendimentos de alta tecnologia consideravam as citocinas arriscadas. Muitas citocinas, como as interleucinas, haviam levado anos para chegarem ao mercado. E sabia-se que muitas outras eram perigosas para os pacientes, até mesmo mortais. E, ainda por cima, Frank Burnet entrara com uma ação judicial, questionando a propriedade da BioGen em relação à linhagem de células. Diehl tivera dificuldades até para se reunir com investidores. Ao final, fora obrigado a aceitar o sorridente e bronzeado Jack Watson.


Mas Watson, Diehl sabia, queria simplesmente assumir o controle da BioGen e afastá-lo da empresa.

- Um discurso fantástico, Jack! Fantástico!

Rick estendeu a mão quando Watson finalmente saiu para os bastidores.

— Fico contente que tenha gostado.

Watson não apertou a mão estendida. Em vez disso, tirou da lapela o transmissor sem fio e largou-o na mão de Diehl.

— Cuide disso, Rick.

— Claro, Jack.

— Sua esposa está aqui?

— Não. Karen não pôde vir. — Diehl deu de ombros. — Um problema com as crianças.

— Lamento que ela tenha perdido este discurso.

— Ela receberá o DVD.

— Mas divulgamos as más notícias. Essa é a questão. Todo mundo sabe agora que há uma ação judicial, que Burnet é o bandido, mas que temos o controle da situação. Isso é o mais importante. A empresa assumiu uma posição perfeita.

— Foi por isso que você concordou em fazer o discurso? Watson fitou-o de alto a baixo.

— Pensou que eu queria vir para Las Vegas? Isso é demais! — Ele tirou o microfone e entregou-o a Diehl. — Cuide disto também.

— Claro, Jack.

E Jack Watson virou-se e afastou-se, sem dizer mais nada. Rick Diehl sentiu um calafrio. Graças a Deus pelo dinheiro de Karen, pensou ele. Porque sem isso estaria perdido.

Depois de passar pelas arcadas do Palácio do Doge, Vasco Borden entrou no pátio, seguindo o fugitivo, Eddie Tolman, através da multidão noturna. Ouviu o fone no ouvido estalar. Devia ser sua assistente, Dolly, em outra parte do hotel. Ele tocou no ouvido.

— Pode falar.

— O careca Tolman reservou uma diversão.

— É mesmo?


- É, sim. Ele...

- Espere um instante. Deixe para contar daqui a pouco.

A frente, Vasco via uma coisa em que não podia acreditar. Jack B. Watson surgiu no lado direito do pátio, acompanhado por uma mulher linda e sensual, de cabelos escuros, logo se fundindo com a multidão. Watson era famoso por estar sempre acompanhado por mulheres deslumbrantes. Todas trabalhavam para ele, todas eram inteligentes, e todas eram espetaculares.

A mulher não surpreendeu Vasco. A surpresa foi constatar que Watson seguia direto para cima de Eddie Tolman, o fugitivo. O que não fazia o menor sentido. Mesmo que Tolman estivesse fazendo um negócio com Watson, o famoso investidor nunca se encontraria com ele pessoalmente. Ou, pelo menos, nunca em público. Mas lá estavam os dois, em rotas de colisão, através do apinhado pátio veneziano, bem diante de seus olhos.

O que aquilo significava? Ele não podia acreditar no que estava prestes a acontecer.

Mas depois a mulher tropeçou e parou. Usava um vestido curto e muito justo, com sapatos de saltos altos. Apoiou-se no ombro de Watson, dobrou o joelho, mostrando grande parte da perna, e examinou o sapato. Ajustou a tira do salto, tornou a pôr o pé no chão e sorriu para Watson. Vasco desviou os olhos dos dois para descobrir que Tolman já havia desaparecido.

Watson e a mulher cruzaram o caminho de Vasco, passando tão perto que ele pôde até sentir o perfume que ela usava. Ouviu Watson murmurar alguma coisa. A mulher apertou-lhe o braço e pôs a mão em seu ombro, enquanto andavam. O casal romântico.

Tudo não passaria de um acaso? Ou acontecera de propósito? Haviam-no enganado? Ele comprimiu o fone no ouvido.

- Dolly, eu o perdi.

- Não é problema. Posso vê-lo.

Vasco levantou os olhos. Ela estava no segundo andar, observando tudo lá embaixo.

- Foi mesmo Jack Watson que acabou de passar? - acrescentou Dolly.


 

- Foi, sim. Pensei que talvez...

- Não creio. Não posso imaginar Jack Watson envolvido nisso. Não é o seu estilo. O careca está indo para seu quarto porque tem um encontro marcado. Era isso que eu ia contar. Ele contratou uma diversão.

- Quem?

- Uma russa. Aparentemente, ele gosta de russas. E altas.

- Alguém que conhecemos?

- Não. Mas tenho uma pequena informação. E instalei câmeras na suíte.

- Como conseguiu? — perguntou Vasco, sorrindo.

- Digamos que a segurança do Venetian já não é mais como antigamente. E também é mais barata.

Irina Katayeva, de 22 anos, bateu na porta. Tinha na mão esquerda uma garrafa de vinho, dentro de um saco de veludo de presente, com o cordão fechado. Um homem em torno dos trinta anos abriu a porta e sorriu. Não era atraente.

- Você é Eddie?

- Isso mesmo. Entre.

- Trouxe isto para você. Do cofre do hotel.

Ela entregou a garrafa de vinho. Vasco, que observava a cena por um pequeno monitor portátil, comentou:

- Ela fez a entrega no corredor. Onde seria vista no monitor de segurança. Por que não esperou até entrar?

- Talvez ela tenha sido instruída a fazer assim — sugeriu Dolly.

- A mulher deve ter pelo menos um metro e oitenta. O que sabe a seu respeito?

- Fala um bom inglês. Quatro anos aqui. Estuda na universidade.

- Trabalha no hotel? - Não.

- Então, não é uma profissional?

- Não esqueça que estamos em Nevada.

No monitor, a russa entrou no quarto e a porta foi fechada. Vasco girou um controle em seu monitor portátil, a fim de captar


uma câmera interna. O homem tinha uma enorme suíte, com mais de cem metros quadrados, em estilo veneziano. A mulher balançou a cabeça e sorriu.

— Linda suite.

— Também acho. Aceita um drinque? Ela sacudiu a cabeça em negativa.

— Não tenho tempo.

A russa estendeu a mão para as costas e baixou o zíper do vestido. Deixou-o pendendo dos ombros. Virou-se, fingindo estar perplexa, e deixou que ele admirasse suas costas nuas, até as nádegas.

— Onde fica o quarto?

— Por aqui, meu bem.

Quando eles foram para o quarto, Vasco tornou a usar o controle. Viu o quarto no momento em que a mulher dizia:

— Não sei nada sobre os seus negócios e não quero saber. Negócios são muito chatos.

Ela deixou o vestido cair. Deu um passo para o lado e deitou na cama, completamente nua, agora, exceto pelos sapatos de saltos altos. Tirou-os também.

— Não creio que você precise de um drinque — comentou a russa.

- Sei que eu não preciso.

Tolman jogou-se em cima dela, pousando com algum estrépito. A mulher soltou um grunhido e tentou sorrir.

— Calma, rapaz.

Ele ofegava agora. Estendeu a mão para os cabelos da mulher, a fim de acariciá-la.

— Deixe meus cabelos em paz. — A russa desviou a cabeça. — Basta deitar, e eu o farei feliz.

- Você acredita nisso? — murmurou Vasco, olhando incrédulo para o monitor. - Ele não é sequer o homem de um minuto. Quando uma mulher tem essa aparência, era de se esperar...

— Não importa - disse Dolly, interrompendo-o. — Ela está se vestindo agora.

— É verdade. E com alguma pressa.

— Ela deveria lhe dar meia hora. E se Tolman pagou, eu não vi.


- Eu também não vi. E ele resolveu se vestir também.

- Alguma coisa está acontecendo - disse Dolly. — Ela deixou a suíte.

Vasco acionou o controle, a fim de mudar para uma câmera diferente, mas só captou estática.

- Não posso ver porra nenhuma.

- Ela está saindo. Tolman continua na suíte. Não, espere... ele também vai sair.

- Tem certeza?

- Tenho. E leva a garrafa de vinho.

- Para onde será que ele vai?

Os embriões congelados eram transportados num recipiente térmico de aço inoxidável, revestidos de vidro com borossilicato, chamado de frasco Dewar. Os Dewars eram quase sempre grandes, no formato de latões de leite, mas podiam ser fabricados em tamanho pequeno, com capacidade para um litro. Um Dewar não tinha o formato de uma garrafa de vinho, porque a abertura precisava ser larga. Mas o tamanho era o mesmo. E, com toda certeza, caberia num saco de vinho de veludo.

- Ele deve estar levando o frasco no saco — comentou Vasco.

- Foi o que imaginei. Já os viu?

- Já, sim.

Vasco podia ver o casal no térreo, perto da estação das gôndolas. Andavam de braços dados, o homem levando a garrafa de vinho no braço em gancho, mantendo-a de pé, uma maneira incômoda de carregá-la. Formavam um casal insólito, a linda mulher e o homem tímido, de postura relaxada. Seguiram pelo canal, mal olhando para as lojas por que passavam.

- Estão a caminho de um encontro — disse Vasco.

- Posso vê-los.

Vasco correu os olhos pela rua apinhada e avistou Dolly na outra extremidade. Dolly tinha 28 anos e uma aparência absolutamente comum. Podia ser qualquer pessoa: uma contadora, namorada, secretária, assistente. Sempre podia passar despercebida. Naquela noite, vestia-se ao estilo de Las Vegas, cabelos louros encrespados e


um vestido vistoso, com um decote profundo. Estava um pouco além do peso, o que tornava a impressão ainda mais perfeita. Vasco estava com ela havia quatro anos agora, e trabalhavam muito bem como dupla. Na vida particular, o relacionamento era apenas bom. Ela detestava quando Vasco fumava charuto na cama.

— Estão seguindo para o corredor — avisou Dolly. — Não... estão voltando.

O corredor principal era uma vasta passagem oval, de teto alto e dourado, luzes suaves, colunas de mármore. Ofuscava as multidões que passavam por lá. Vasco ficou para trás.

— Mudaram de idéia? Ou nos perceberam?

— Acho que são cuidadosos.

— Este é o grande momento.

Ainda mais importante do que pegar o fugitivo, eles tinham de saber a quem Tolman entregaria os embriões. Obviamente, era alguém na conferência.

— Não deve demorar muito agora — comentou Dolly.

Rick Diehl andava de um lado para outro, ao longo das lojas junto do canal das gôndolas, com o celular na mão. Ignorava as lojas, repletas de mercadorias caras, do tipo que ele nunca desejara. Diehl crescera como terceiro filho de um médico de Baltimore. Os irmãos foram para a faculdade de medicina e se tornaram obstetras, como o pai. Diehl recusara-se a fazer a mesma coisa, e ingressara na pesquisa médica. As pressões da família acabaram fazendo com que mudasse para a Costa Oeste. Fez pesquisa genética na Universidade da Califórnia em San Francisco por algum tempo, mas sentia-se mais atraído pela cultura empresarial entre as universidades da cidade. Parecia que cada professor que tinha algum valor abrira sua própria empresa, ou integrava os conselhos de várias companhias de biotecnologia. No almoço, a conversa era só sobre transferência de tecnologia, licenciamento cruzado, pagamentos por avanço na pesquisa, compra e venda de controle acionário.

A esta altura, Karen, a esposa de Rick, recebera uma herança substancial. Ele passara a dispor de capital suficiente para começar.


Havia muitas empresas na área de San Francisco, com uma intensa competição por espaço e contratação. Rick decidiu se instalar no norte de Los Angeles, onde a Amgen acabara de construir sua vasta fábrica. Diehl montou uma fábrica moderna, contratou equipes de brilhantes pesquisadores, e começou a trabalhar. O pai e os irmãos foram visitá-lo. E ficaram devidamente impressionados.

Mas... por que ela não ligava de volta? Rick olhou para o relógio. Eram nove horas. As crianças já deviam estar na cama. E Karen deveria estar em casa. A empregada dissera que ela saíra uma hora antes, não sabia para onde. Mas Karen nunca saía sem o celular. Devia estar com ela. Por que, então, não ligava de volta?

Ele não compreendia, o que o deixava bastante nervoso. Estava sozinho naquela maldita cidade, com mais mulheres lindas por metro quadrado do que jamais vira em toda a sua vida. Era verdade que eram o resultado de muita cirurgia plástica, mas nem por isso deixavam de ser sensuais.

A sua frente, ele avistou um cara todo desleixado andando com uma mulher alta, espetacular, cabelos pretos, pele lisa, um corpo esbelto e sensual. O cara devia ter pago para ter a companhia daquela mulher, mas, mesmo assim, era evidente que não a apreciava. Ele segurava uma garrafa de vinho como se fosse um bebê. Dava a impressão de estar tão nervoso que quase suava.

Mas aquela mulher... oh, Deus, que tesão!

Mas por que Karen não retornava sua ligação?

- Ei, veja isso! — exclamou Vasco. — É aquele cara da BioGen, circulando como se não tivesse nada para fazer.

- Já vi.

Dolly estava cerca de um quarteirão à sua frente.

— Mas isso não tem qualquer importância.

Tolman e a russa passaram direto pelo homem da BioGen, que se limitou a abrir o celular e fazer uma ligação. Como era mesmo seu nome? Diehl. Vasco já ouvira algumas coisas a seu respeito. Ele começara uma empresa com o dinheiro da esposa, que talvez tivesse agora o controle do casamento. Ou algo parecido. Mulher rica, família tradicional da Costa Leste, com muito dinheiro. Mulheres assim gostavam de usar calça.

- Restaurante - avisou Dolly. - Eles estão entrando no Terrazo.

 

Terrazo Antico era um restaurante de dois andares, com varandas envidraçadas. A decoração era de bordel moderno, tudo dourado. Colunas, teto, paredes: cada superfície tinha um ornamento. O que deixava Vasco nervoso só de olhar.

O casal entrou, passou pelo balcão de reservas, e foi para uma mesa lateral. Vasco viu que havia um homem corpulento sentado à mesa. Parecia um bandido, a pele escura, as sobrancelhas cerradas. Olhou para a russa e só faltou lamber os beiços.

Tolman falou com o homem de pele escura. O cara parecia perplexo. Não os convidou a sentar. Vasco pensou: Há alguma coisa errada. A russa deu um passo para trás.

Foi nesse instante que houve um súbito clarão. Dolly tirara uma foto. Tolman olhou, compreendeu a situação, e saiu correndo.

- Que merda, Dolly.'

Vasco saiu correndo atrás de Tolman, que se embrenhou pelo restaurante. Um garçom ergueu as mãos.

- Senhor, desculpe...

Vasco empurrou-o e continuou a correr. Tolman ia mais devagar do que poderia, porque tentava não sacudir a preciosa garrafa de vinho. Mas não sabia mais para onde ia; apenas corria. Passou pelas portas de vaivém, entrou na cozinha, com Vasco logo atrás. Todos gritaram e alguns brandiram facas, mas Tolman continuou a correr, aparentemente convencido de que havia uma saída pelos fundos, através da cozinha.

Não havia. Ele estava acuado. Olhou ao redor, frenético. Vasco mostrou um de seus distintivos, numa carteira que parecia oficial.

- Prisão de cidadão - disse ele.

Tolman recuou, todo encolhido, entre dois freezers, contra uma porta estreita, com uma pequena janela vertical. Tolman passou pela porta estreita e fechou-a.

Uma luz piscou ao lado da porta.

Era um elevador de serviço.

Merda!


- Para onde vai o elevador?

- Segundo andar.

- Mais algum lugar?

- Não. Apenas o segundo andar. Vasco apertou o fone no ouvido.

- Dolly?

- Já estou a caminho.

Ela ofegou ao subir a escada correndo.

Vasco postou-se na frente da porta do elevador e esperou. Apertou o botão para o elevador descer.

- Estou na frente do elevador - avisou Dolly. — Eu o vi. Ele desceu.

- É um elevador pequeno - disse Vasco.

- Sei disso.

- Se ele tem mesmo nitrogênio líquido em seu poder, não deveria estar aí dentro.

Dois anos antes, Vasco perseguira um fugitivo até um depósito de material de laboratório. O cara quase sufocara depois de se trancar num closet.

O elevador desceu. Assim que parou, Vasco puxou a alça para abrir a porta. Mas Tolman devia ter acionado a emergência, porque a porta não abriu. Vasco viu o saco de vinho no chão. O veludo fora baixado para mostrar a beira do Dewar de aço inoxidável.

E a tampa fora removida. Um vapor branco saía pela abertura.

Através do vidro, Tolman fitava-o, de olhos arregalados.

- Vamos, filho, não seja tolo — disse Vasco.

Tolman sabia, com toda certeza. Sabia exatamente o que estava fazendo.

— Ele estava aqui em cima - informou Dolly, parada no segundo andar. — Mas a porta não abriu. Vai descer outra vez.

- Volte para a mesa — disse Vasco. — Pode deixá-lo.

Ela compreendeu no mesmo instante o que Vasco queria. Desceu apressada pela escada coberta de veludo vermelho para o térreo. Não ficou surpresa ao descobrir que a mesa a que sentava o homem que parecia um bandido estava vazia. Nada do bandido. E a linda russa também desaparecera. Havia apenas uma nota de cem dólares debaixo de um copo. Ele pagara em dinheiro, é claro. E sumira.

Vasco estava agora cercado por três seguranças do hotel, todos falando ao mesmo tempo. Quase uma cabeça mais alto do que os três, ele pediu que se calassem.

- Quero saber uma coisa. Como podemos abrir o elevador?

- Ele deve ter apertado a emergência.

- Como podemos abrir?

- Temos de desligar a energia.

- A porta abrirá automaticamente?

- Não, mas poderemos arrombá-la assim que o elevador parar.

- Quanto tempo levará?

- Talvez dez ou quinze minutos. Mas não faz diferença, pois esse cara não irá mesmo a parte alguma.

- Vai, sim — murmurou Vasco. O segurança riu.

- Para onde ele poderia ir?

O elevador desceu de novo. Tolman estava de joelhos, com as mãos no vidro da porta fechada.

- Levante-se — disse Vasco. — Vamos, filho, levante-se. Não vale a pena.

Subitamente, Tolman revirou os olhos e caiu para trás. O elevador começou a subir.

- O que aconteceu? — perguntou um dos seguranças. — E, afinal de contas, quem é esse cara?

Merda!, pensou Vasco.

Toman emperrara os mecanismos do elevador. Levaram quarenta minutos para abrir as portas e retirá-lo. Ele já morrera havia bastante tempo, é claro. No instante em que caiu, ficou imerso numa atmosfera de cem por cento de nitrogênio, do nitrogênio líquido que vazava do Dewar. Porque o nitrogênio era mais pesado do que o ar, enchera progressivamente o elevador, de baixo para cima. Quando caiu de costas, Tolman já estava inconsciente, e deve ter morrido em menos de um minuto.


Os seguranças queriam saber o que havia no Dewar, de onde não saía mais vapor. Vasco pôs luvas e pegou o tubo de metal. Não havia nada ali, apenas uma série de clipes vazios nos lugares em que os embriões deveriam estar. Os embriões haviam sido removidos.

— Está querendo dizer que ele se matou? — indagou um dos seguranças.

— Isso mesmo — confirmou Vasco. — Ele trabalhava num laboratório de embriologia. Sabia sobre o perigo do nitrogênio líquido num espaço restrito.

O nitrogênio causava mais fatalidades em laboratórios do que qualquer outra substância química; e metade das baixas era de pessoas que tentavam salvar colegas de trabalho que haviam desfalecido em espaços confinados.

— Foi a sua maneira de escapar de uma situação difícil — acrescentou Vasco.

Mais tarde, voltando de carro para casa com ele, Dolly perguntou:

— O que aconteceu com os embriões? Vasco balançou a cabeça.

— Não tenho a menor idéia. Tolman não os pegou.

— Acha que a mulher os removeu antes de ir para o quarto dele?

— Alguém os removeu. — Vasco suspirou. — O pessoal do hotel não a conhece?

— Estudaram as gravações das câmeras de segurança. Não sabem quem ela é.

— E sua situação como estudante?

— Ela estudava na universidade no ano passado. Não se matriculou para este ano.

— Portanto, ela desapareceu.

— Isso mesmo — confirmou Dolly. — Ela, o cara de pele escura, os embriões. Tudo desapareceu.

— Eu gostaria de saber como tudo isso se junta.

— Talvez não se junte.

— Não seria a primeira vez.

Vasco avistou à frente o cartaz em néon de um restaurante à beira da estrada no deserto. Parou ali. Precisava de um drinque.

 

A divisão 48 do Tribunal Superior de Los Angeles era uma sala revestida de painéis de madeira, dominada por um enorme brasão do estado da Califórnia. A sala era pequena e dava uma impressão de mau gosto. O carpete avermelhado estava puído, com manchas de sujeira. O verniz da madeira na cadeira das testemunhas era todo lascado. Uma das lâmpadas fluorescentes não acendera, deixando o recinto do júri mais escuro que o resto do tribunal. Os jurados usavam roupas informais, jeans e camisas de mangas curtas. A cadeira do juiz rangia sempre que o Meritíssimo Davis Pike virava-se para dar uma olhada em seu laptop, o que acontecia com freqüência ao longo do dia. Alex Burnet desconfiava que ele verificava sua correspondência eletrônica, ou as posições de seus investimentos.

Em tudo e por tudo, aquele tribunal parecia um lugar estranho para litigar complexas questões de biotecnologia. Mas era justamente isso o que faziam ali havia duas semanas, no processo Frank M. Burnet v. Regents ofthe University of Califórnia.

Alex tinha 32 anos, era uma advogada bem-sucedida, sócia júnior em sua firma de advocacia. Sentava à mesa do querelante com outros membros da equipe jurídica que representava seu pai. Naquele momento, observou-o assumir seu lugar na cadeira das testemunhas. Embora exibisse um sorriso tranqüilizador, sentia-se preocupada com o desempenho do pai.

Frank Burnet era um homem de peito estufado que parecia mais jovem do que os seus 51 anos. Dava a impressão de ser saudável e confiante ao prestar juramento. Alex sabia que a vigorosa aparência do pai poderia prejudicar seu caso. E a publicidade antes do julgamento, é claro, fora terrivelmente negativa. A equipe de relações públicas de Rick Diehl empenhara-se ao máximo para apresentar Burnet como um homem ingrato, ganancioso e inescrupuloso. Um homem que interferia com a pesquisa médica. Um homem que não cumpria sua palavra, que só se interessava em conseguir mais dinheiro.

Nada disso era verdade. Na realidade, era o oposto da verdade. Mas nem um único repórter telefonara para Frank Burnet e perguntara qual era a sua versão da história. Absolutamente nenhum. Por trás de Riclc Diehl, estava Jack Watson, o famoso filantropo. A mídia presumia que Watson fosse o mocinho; em conseqüência, o pai de Alex era o bandido. Depois que a versão de moralidade aparecera no New York Times (escrita pelo repórter local de diversões públicas), todos os outros adotaram a mesma orientação. Saíra uma enorme reportagem na base do "eu também" no Los Angeles Times, tentando vilipendiar Burnet ainda mais que a versão de Nova York. o noticiário local mantinha uma barragem diária de condenação ao homem que queria deter o progresso da medicina, ousava criticar a UCLA, esse renomado centro de ensino, a grande universidade da cidade. Meia dúzia de câmeras acompanhavam pai e filha sempre que subiam a escadaria para o tribunal.

Seus próprios esforços para divulgar seu lado da história haviam sido excepcionalmente malsucedidos. O pai contratara um assessor de comunicação bastante competente, mas não era adversário para a máquina bem lubrificada e bem financiada de Jack Watson.

É claro que os jurados já tinham conhecimento de pelo menos uma parte da cobertura da mídia. E o impacto dessa cobertura era uma pressão adicional sobre o pai, que agora precisava não apenas contar sua história, mas também se redimir, contestar os danos já causados pela imprensa, antes mesmo de iniciar seu depoimento na cadeira das testemunhas.

o advogado de Frank Burnet levantou-se e começou a fazer suas perguntas.

— Sr. Burnet, permita-me levá-lo de volta ao mês de junho, há oito anos. O que fazia nessa ocasião?


- Trabalhava em construção - respondeu Burnet, a voz firme. — Supervisionava todas as soldas no gasoduto de gás natural de Calgary.

- E quando desconfiou pela primeira vez que estava doente?

- Comecei a acordar de noite, encharcado de suor.

- Tinha febre?

- Achava que sim.

- Consultou um médico?

- Não por algum tempo. Achava que tinha gripe, ou alguma coisa parecida. Mas os suores nunca cessaram. Depois de um mês, comecei a me sentir muito fraco. Só então fui procurar o médico.

- E o que o médico disse?

- Disse que eu tinha um tumor no abdômen. E me encaminhou para o mais eminente especialista da Costa Oeste. Um professor no Centro Médico da UCLA, em Los Angeles.

- Quem era esse especialista?

- Dr. Michael Gross. Aquele sentado ali.

O pai de Alex apontou para o réu, sentado na mesa ao lado. Alex não virou o rosto. Manteve o olhar fixado no pai.

- E foi examinado pelo Dr. Gross?

- Isso mesmo.

- Ele fez um exame físico?

- Fez.

- Também fez exames de laboratório na ocasião?

- Fez, sim. Tirou sangue, radiografias e uma tomografia computadorizada de todo o meu corpo. E fez uma biópsia da minha medula óssea.

- Como isso foi feito, Sr. Burnet?

- Enfiaram uma agulha no meu quadril, bem aqui. A agulha passa pelo osso e entra na medula. Tiraram o líquido e analisaram.

- E depois que esses exames foram concluídos, ele lhe disse qual era seu diagnóstico?

- Disse que eu tinha leucemia linfoblástica aguda.

- O que compreendeu sobre essa doença?

- Que eu tinha câncer na medula.


— Ele propôs algum tratamento?

— Propôs. Cirurgia e depois quimioterapia.

— E disse seu prognóstico? Qual era o resultado provável dessa doença?

— Disse que não era bom.

— Ele foi mais específico?

— Disse que provavelmente eu teria menos de um ano de vida.

— Pediu uma segunda opinião, de outro médico?

— Pedi.

— E qual foi o resultado?

— Meu diagnóstico era... ele... ahn... ele confirmou o diagnóstico. O pai fez uma pausa. Mordeu o lábio, para reprimir a emoção.

Alex ficou surpresa. Ele costumava ser firme e impassível. Ela sentiu uma pontada de preocupação, mesmo sabendo que aquele momento ajudaria a causa do pai.

— Senti muito medo... fiquei apavorado — continuou o pai. - Todos me diziam... que não tinha muito tempo para viver.

Ele baixou a cabeça. Havia silêncio no tribunal.

— Sr. Burnet, quer água?

— Não precisa. Estou bem.

O pai ergueu a cabeça. Passou a mão pela testa.

— Por favor, continue quando estiver pronto.

— Também pedi uma terceira opinião. E todos me disseram que o Dr. Gross era o melhor médico para essa doença.

— Por isso, iniciou a terapia com o Dr. Gross.

— Isso mesmo.

O pai parecia ter se recuperado. Alex recostou-se na cadeira e respirou fundo. O depoimento continuou tranqüilo agora, uma história que o pai já contara dezenas de vezes antes. Como ele, um homem apavorado, temendo por sua vida, depositara toda a sua fé no Dr. Gross; como se submetera à cirurgia e à quimioterapia, sob a orientação do Dr. Gross; como os sintomas da doença lentamente desapareceram, ao longo do ano seguinte; como o Dr. Gross parecera, a princípio, acreditar que ele estava bem, que o tratamento fora concluído com êxito.

— Fez exames de acompanhamento com o Dr. Gross?

— Fiz. A cada três meses.

— E quais eram os resultados?

— Tudo normal. Engordei, recuperei a energia, meus cabelos cresceram. Sentia-me bem.

— E o que aconteceu depois?

— Cerca de um ano mais tarde, depois de um checkup, o Dr. Gross me chamou para dizer que precisava de mais exames.

— Ele explicou por quê?

— Disse que os resultados dos exames de sangue não pareciam certos.

— Ele disse que exames, especificamente? - Não.

— Disse que você ainda tinha câncer?

— Não. Mas foi esse o meu medo. Ele nunca repetira qualquer dos exames antes. — O pai mudou de posição na cadeira. — Perguntei se o câncer voltara, e ele disse: "Não neste momento, mas precisamos monitorá-lo com todo o cuidado." Ele insistiu que eu precisava fazer exames constantes.

— Qual foi sua reação?

— Fiquei apavorado. De certa forma, foi pior na segunda vez. Quando caí doente pela primeira vez, fiz o testamento, tomei todas as providências. Depois me recuperei, e tive uma nova oportunidade na vida... uma chance de começar de novo. Até que recebi o telefonema, e fiquei apavorado outra vez.

— Acreditava que estava doente?

— Claro. Por que outro motivo ele repetiria os exames?

— Ficou assustado?

— Apavorado.

Alex pensou, enquanto acompanhava a inquirição: É uma pena que não possamos mostrar fotos. O pai parecia agora vigoroso e saudável. Podia lembrar-se dele quando estava frágil, pálido e fraco. As roupas pendiam de seu corpo, como se fosse um homem agonizante. Parecia forte agora, como o operário de construção que sempre fora. Não parecia um homem que se assustava facilmente. Alex sabia que essas questões eram essenciais para estabelecer uma base para a fraude, uma base para o transtorno mental. Mas tinha de ser feito com todo o cuidado. E o advogado principal do pai, ela sabia, tinha o péssimo hábito de ignorar as próprias anotações depois que começava uma inquirição.

- O que aconteceu em seguida, Sr. Burnet? –perguntou o advogado.

- Fui fazer os exames. O Dr. Gross repetiu tudo. Chegou até a recolher material para uma biópsia do fígado.

- Com que resultado?

- Ele me disse para voltar dentro de seis meses.

- Por quê?

- Ele apenas disse: "Volte dentro de seis meses."

- Como se sentia na ocasião?

- Sentia-me saudável. Mas calculei que tivera uma recaída.

- O Dr. Gross lhe disse isso?

- Não. Ele nunca me disse nada. Ninguém no hospital nunca me disse nada. Apenas diziam: "Volte dentro de seis meses."

Como era natural, Burnet acreditara que ainda estava doente. Conhecera uma mulher com quem poderia ter casado, mas não o fizera porque achava que não teria muito tempo de vida. Vendera a casa e se mudara para um pequeno apartamento, pois não queria mais pagar a hipoteca.

- Parece que esperava a morte — comentou o advogado.

- Protesto.'

- Retiro o comentário. Mas vamos seguir adiante. Sr. Burnet, por quanto tempo continuou a ir à UCLA para fazer os exames?

- Quatro anos.

- Quatro anos... E quando desconfiou pela primeira vez que não lhe diziam a verdade sobre sua condição?

- Quatro anos depois, eu ainda me sentia saudável. Nada acontecera. Todos os dias eu esperava que um raio me atingisse, só que isso nunca aconteceu. Mas o Dr. Gross continuava a dizer que eu tinha de fazer mais exames, mais exames. Mudei-me para San Diego queria fazer os exames ali. Mas ele disse que não, que eu tinha de voltar à UCLA para fazer os exames.

— Por quê?

 Ele disse que preferia usar seu próprio laboratório. Mas não fazia sentido. E ele me dava mais e mais formulários para assinar.

— Que formulários?

— A princípio, eram apenas formulários de consentimento, o reconhecimento de que me submetia a um procedimento de risco. Esses primeiros formulários tinham uma ou duas páginas. Não demorou muito para que houvesse outros formulários, que diziam que eu concordava em me envolver num projeto de pesquisa. Cada vez que eu voltava, havia ainda mais formulários. Depois de algum tempo, os formulários tinham dez páginas, escritos numa terrível linguagem jurídica.

— E você os assinava?

— No final, não.

— Por que não?

— Porque alguns dos formulários eram documentos para permitir o uso comercial de meus tecidos.

— Isso o incomodou?

— Claro. Porque pensei que ele não me dizia a verdade sobre o que fazia. A razão para todos os exames. Em uma visita, perguntei ao Dr. Gross se usava meus tecidos com propósitos comerciais. Ele disse que não, absolutamente não, que seus interesses eram apenas de pesquisa. Eu disse que assim era melhor, e assinei tudo, exceto os formulários que permitiam o uso de meus tecidos com propósitos comerciais.

— E o que aconteceu?

— Ele ficou furioso. Disse que não poderia mais me tratar se eu não assinasse todos os formulários. Disse também que eu arriscava minha saúde e meu futuro, que cometia um grande erro.

— Protesto! Testemunho indireto.

— Está bem. Sr. Burnet, quando recusou-se a assinar os formulários de consentimento, o Dr. Gross parou de tratá-lo?

— Parou.


- E consultou um advogado?

- Consultei.

- E o que descobriu em seguida?

- Que o Dr. Gross havia vendido minhas células... as células que retirava de meu corpo durante todos aqueles exames... para um laboratório farmacêutico chamado BioGen.

- E como se sentiu quando soube disso?

- Fiquei chocado. Havia procurado o Dr. Gross quando estava doente, assustado e vulnerável. Confiara em meu médico. Entregara minha vida em suas mãos. Depositava total confiança nele. E de repente descubro que ele mentira para mim, me assustara desnecessariamente por anos, só para poder roubar partes do meu corpo e vendê-las, ganhando muito dinheiro. Ele nunca se importou nem um pouco comigo. Queria apenas tirar minhas células.

- Sabe quanto essas células valiam?

- O laboratório disse que valiam três bilhões de dólares. Os jurados ficaram espantados.

 

ALEX OBSERVAVA os jurados durante todo o final do depoimento. Os rostos mantinham-se impassíveis, mas ninguém se mexia, ninguém mudava de posição. Os murmúrios eram involuntários, o que indicava como todos sentiam um envolvimento profundo com o que ouviam. E os jurados permaneceram atônitos, enquanto as perguntas continuaram.

— Sr. Burnet, o Dr. Gross alguma vez pediu desculpas por tê-lo enganado?

-Não.

— Alguma vez ofereceu partilhar o lucro? - Não.

— Pediu a ele?

— Acabei pedindo. Quando compreendi o que ele fizera. Eram células do meu corpo. Achei que deveria receber alguma coisa pelo que fora feito com elas.

— Mas ele recusou?

— Recusou. Disse que não era da minha conta o que ele fazia com minhas células.

Os jurados reagiram. Vários se viraram e olharam para o Dr. Gross, o que também era um bom sinal, pensou Alex.

— Uma última pergunta, Sr. Burnet. Alguma vez assinou uma autorização para o Dr. Gross usar suas células para propósitos comerciais?

-Não.

— Nunca autorizou a venda?

— Nunca. Mas ele vendeu assim mesmo.

— Não tenho mais perguntas.

O juiz determinou um recesso de quinze minutos. Quando o tribunal recomeçou a sessão, os advogados da UCLA iniciaram a reinquirição. Para aquele julgamento, a UCLA contratara a Raeper Cross, uma firma de advocacia do centro de Los Angeles que se especializava em litígios de grandes empresas. A Raeper representava as principais companhias petrolíferas e os maiores empreiteiros das Forças Armadas americanas. Era evidente que a UCLA não considerava aquele julgamento como uma defesa da pesquisa médica. Havia três bilhões de dólares em jogo; era um grande negócio, e por isso haviam contratado uma firma de grandes negócios.

O principal advogado da UCLA era Albert Rodriguez. Tinha aparência jovem e descontraída, um sorriso cordial, e dava a impressão de ser novo no trabalho, o que desarmava os oponentes. Na verdade, Rodriguez tinha 45 anos e era um advogado de litígio bem-sucedido havia vinte anos. Mas sempre conseguia dar a impressão de que era seu primeiro julgamento, e sutilmente envolvia os jurados para lhe fazerem algumas concessões.

- Imagino que foi terrível, Sr. Burnet, passar pelas experiências que teve nos últimos anos, um esgotamento emocional. Agradeço pelo relato de suas experiências aos jurados, e prometo que não vou retê-lo por muito tempo. Creio que já disse aos jurados que ficou muito assustado, como era natural. Por falar nisso, quantos quilos havia perdido ao procurar o Dr. Gross pela primeira vez?

Vai começar, pensou Alex. Ela sabia aonde aquilo levaria. Pretendiam enfatizar a natureza dramática da cura. Olhou para o advogado sentado ao seu lado, que obviamente tentava pensar numa estratégia. inclinou-se e sussurrou:

- Não o deixe continuar.

O advogado sacudiu a cabeça, confuso. O pai disse:

- Não sei ao certo quanto perdi. Cerca de vinte quilos.

- Quer dizer que suas roupas ficaram folgadas?

- Claro.

- E como era sua energia nessa ocasião? Conseguia subir uma escada?

- Não. Subia dois ou três degraus e tinha de parar.


De exaustão?

Alex cutucou o advogado ao seu lado e sussurrou:

- Pergunta e resposta.

O advogado levantou-se no mesmo instante. Protesto, Meritíssimo. O Sr. Burnet já declarou que foi diagnosticada uma condição terminal.

- É verdade - concordou Rodriguez. — E ele também disse que ficou assustado. Mas acho que os jurados deveriam saber como sua condição era realmente desesperadora.

- Concordo - decidiu o juiz. — Pode continuar.

- Obrigado. Sr. Burnet, havia perdido cerca de um quarto de seu peso, estava tão fraco que não podia subir mais do que dois ou três degraus, e sofria de uma forma fatal de leucemia. É isso mesmo?

- E, sim.

Alex rangeu os dentes. Queria desesperadamente interromper essa linha de reinquirição, que era desfavorável e irrelevante para a questão principal, se o médico do pai agira de maneira imprópria depois de curá-lo. Mas o juiz decidira permitir a continuação, e não havia mais nada que ela pudesse fazer. E não era tão clamoroso que pudesse oferecer uma base para um recurso.

- E para ajudá-lo em seu momento de necessidade, procurou o melhor médico da Costa Oeste para tratar dessa doença? — indagou Rodriguez.

- Isso mesmo.

- E ele o tratou?

- Tratou.

- E o curou. Esse médico competente e dedicado conseguiu curá-lo.

- Protesto! Meritíssimo, o Dr. Gross é um médico, não um santo.

- Protesto deferido.

- Está bem — disse Rodriguez. - Deixe-me colocar de outra maneira. Sr. Burnet, há quanto tempo teve o diagnóstico de leucemia?

- Seis anos.

- Não é verdade que uma sobrevivência de cinco anos no câncer é considerada uma cura?


- Protesto! A pergunta exige a resposta de um perito.

- Protesto deferido. Rodriguez virou-se para o juiz.

- Meritíssimo, não sei por que isso é tão difícil para os advogados do Sr. Burnet. Estou apenas tentando determinar que o Dr. Gross realmente curou o querelante de um câncer fatal.

Ao que o juiz respondeu:

- E eu não sei por que é tão difícil para a defesa fazer essa pergunta expressamente, sem formulações que são passíveis de protesto.

- Obrigado, Meritíssimo. Sr. Burnet, considera que foi curado da leucemia?

- Não tenho mais nada.

- Está completamente curado neste momento?

- Estou.

- Quem o curou, em sua opinião?

- O Dr. Gross.

- Obrigado. Disse ao tribunal que pensou, quando o Dr. Gross lhe pediu que voltasse para exames adicionais, que isso significava que ainda estivesse doente?

- Exato.

- O Dr. Gross lhe disse que ainda tinha leucemia? - Não.

- Alguém em seu consultório, ou alguém em seu departamento, alguma vez lhe disse isso?

-Não.

- Portanto, se bem compreendo, em nenhum momento de seu depoimento disse que recebeu a informação específica de que ainda estava doente?

- Correto.

- Muito bem. Agora, vamos passar para o tratamento. Foi submetido a cirurgia e quimioterapia. Sabe se recebeu o tratamento comum para seu tipo de leucemia?

- Não. Meu tratamento não era padrão.

- Era novo? - Era.


- Foi o primeiro paciente a receber esse tratamento?

 Fui.

- O Dr. Gross lhe disse isso?

- Disse.

- E também disse como esse novo tratamento foi desenvolvido?

- Disse que era parte de um programa de pesquisa.

- E você concordou em participar desse programa de pesquisa?

- Concordei.

- Junto com outros pacientes que tinham a doença?

- Creio que havia outros também.

- E o tratamento indicado pela pesquisa funcionou em seu caso?

- Funcionou.

- Ficou curado?

- Fiquei.

- Obrigado. Sr. Burnet, sabia que na pesquisa médica as novas drogas para ajudar a combater doenças são muitas vezes testadas ou derivadas de tecidos humanos?

- Sabia.

- Sabia que seus tecidos seriam usados dessa maneira?

- Sabia, mas não para propósitos comerciais...

- Desculpe, mas deve responder apenas sim ou não. Quando concordou em permitir que seus tecidos fossem usados para pesquisa, sabia que poderiam ser usados para testar ou derivar novas drogas?

- Sim.

- E se uma nova droga fosse descoberta, esperava que fosse posta à disposição de outros pacientes?

- Sim.

- Assinou uma autorização para que isso acontecesse? Uma longa pausa.

- Sim.

- Obrigado, Sr. Burnet. Não tenho mais perguntas.

- Como acha que me saí? - perguntou o pai, ao deixarem o tribunal. As alegações finais seriam apresentadas no dia seguinte. Seguiam para o estacionamento, ao sol nebuloso do centro de Los Angeles.


- É difícil dizer - respondeu Alex. — Eles confundiram os fatos com bastante êxito. Sabemos que nenhuma droga nova saiu desse programa, mas duvido que os jurados compreendam o que realmente aconteceu. Levaremos mais peritos para depor, explicando que a UCLA fez uma linhagem de células de seus tecidos e usou-a para fabricar uma citocina, da maneira como é fabricada naturalmente dentro de seu corpo. Não há uma "droga nova" aqui, mas os jurados provavelmente não vão entender isso. E há também o fato de que Rodriguez está tentando moldar este caso para parecer com o caso Moore, há vinte anos. Moore foi um caso muito parecido com o seu. Tecidos foram retirados, sob falsas alegações, e vendidos. A UCLA ganhou facilmente, embora não devesse.

- E qual é a nossa posição agora, advogada?

Ela sorriu para o pai, passou o braço por seus ombros, e beijou-o no rosto.

- A verdade? As perspectivas são boas.

 

Barry Sindler, advogado de divórcio de astros e estrelas, mudou de posição na cadeira. Tentava prestar atenção ao cliente sentado no outro lado da mesa, mas tinha muita dificuldade. O cliente era um nerd chamado Diehl, que dirigia uma empresa de biotecnologia. O cara falava de uma maneira abstrata, sem emoção, praticamente sem qualquer expressão no rosto, embora estivesse contando como a esposa o passava para trás. Diehl devia ter sido um péssimo marido. Mas Barry não tinha certeza de quanto dinheiro havia no caso. Parecia que era a mulher quem tinha todo o dinheiro.

Diehl continuou a falar, monótono. Como suas primeiras suspeitas surgiram, ao telefonar de Las Vegas. Como descobrira as contas do hotel a que ela ia todas as quartas-feiras. Como vigiara no saguão e a surpreendera se registrando com seu professor de tênis. A mesma história antiga da Califórnia. Barry já a ouvira uma centena de vezes. Será que aquelas pessoas não sabiam que eram clichês ambulantes? Marido indignado surpreende a mulher com o professor de tênis. Não usariam essa história nem mesmo naquele programa da TV, Desperate Housewives.

Barry desistiu de tentar escutar. Tinha coisa demais em sua mente naquela manhã. Perdera o caso Kirkorivich, e a notícia se espalhara por toda a cidade. Só porque os testes de DNA comprovaram que o bebê não era do bilionário. E depois o tribunal não lhe concedera os honorários de advogado, muito embora os tivesse reduzido à mísera quantia de um milhão e quatrocentos mil dólares. Todos os advogados da cidade estavam exultantes, porque todos tinham algum ressentimento contra Barry Síndler. Ele fora informado de que a L.A. Magazine decidira fazer uma grande reportagem sobre o caso, que certamente lhe seria desfavorável. Não que Barry se importasse com isso. Na verdade, quanto mais ele fosse apresentado como um advogado escroto, sem princípios, implacável, mais clientes o procurariam. Porque as pessoas sempre queriam um escroto implacável para cuidar de seus divórcios. Faziam fila para contratá-lo. E Barry Sindler era, sem dúvida, o mais impiedoso, inescrupuloso, ávido de publicidade, ambicioso, agressivo e filho-da-puta advogado de divórcio do sul da Califórnia. E se orgulhava disso!

Não, Barry não se preocupava com qualquer dessas coisas. Nem mesmo se preocupava com a casa que estava construindo em Montana para Denise e seus dois filhos asquerosos. Também não se preocupava com as reformas da casa que tinham em Holmby Hills, embora só a cozinha já estivesse custando quinhentos mil dólares, e Denise continuasse a fazer alterações. Ela era o que se podia chamar de serial reformadora.

Não, não, e não. Barry Sindler só se preocupava com uma coisa: a locação. Ocupava um andar inteiro num prédio de escritórios na esquina de Wiishire e Doheny. Havia 23 advogados no escritório, e nenhum deles valia porra nenhuma, mas ver todos às suas mesas impressionava os clientes. E eles podiam cuidar dos detalhes de menor importância, como tomar depoimentos e apresentar petições protelatórias... coisas com as quais Barry não perdia tempo. Barry sabia que o litígio era uma guerra de resistência, em particular nos casos de custódia. O objetivo era elevar os custos tão alto quanto possível e prolongar o processo por tanto tempo quanto conseguisse, porque assim Barry ganharia os maiores honorários. Além disso, o cônjuge acabava se cansando das protelações intermináveis, novas petições, e a espiral de custos. Até mesmo os mais ricos se cansavam.

De um modo geral, os maridos eram sensatos. Queriam continuar em sua vida, comprar uma casa nova, viver com a nova namorada para ter um bom boquete à disposição. Queriam que as questões de custódia fossem logo resolvidas. Mas as esposas em geral queriam vingança... e por isso Barry impedia o acerto de contas, ano após ano, até que os maridos cedessem. Milionários, bilionários, celebridades... não fazia a menor diferença. No final, todos cediam. As pessoas diziam que não era uma boa estratégia para as crianças. Ora, que se danassem as crianças. Se os clientes se importassem tanto assim com as crianças, não teriam se divorciado, em primeiro lugar. Continuariam casados e infelizes, como todas as outras pessoas, porque...

O nerd disse alguma coisa que atraiu sua atenção.

- Desculpe, Sr. Diehl, mas pode repetir o que acabou de dizer?

- Eu disse que quero que minha mulher seja testada.

— Posso assegurar que o processo vai testá-la até o limite. E é claro que poremos um detetive particular para vigiá-la, descobrir o quanto ela bebe, se consome drogas, se passa a noite inteira fora de casa, se tem ligações lésbicas, tudo isso. É o procedimento normal.

- Não era a isso que eu me referia - declarou Diehl. - Quero que ela faça testes genéticos.

— Para quê?

- Para tudo. - Ahn...

Barry balançou a cabeça, como se tivesse entendido tudo. Do que o cara estava falando? Teste genético? Num caso de custódia? Ele olhou para os papéis à sua frente. Lá estava o cartão de visita: RICHARD "RICK" DIEHL, PH.D. Barry franziu o rosto, infeliz. Só os idiotas incluíam um apelido num cartão de visita. Estava indicado também que ele era CEO da BioGen Research Inc., uma empresa em Westview Village.

— Por exemplo, aposto que minha mulher tem uma predisposição genética para o transtorno bipolar - continuou Diehl. - Seu comportamento é bastante errático. Pode ter o gene de Alzheimer. Se tiver, exames psicológicos podem mostrar os primeiros sinais de Alzheimer.

— Bom, muito bom...

Barry Sindler acenava com a cabeça vigorosamente agora. Aquela conversa deixava-o feliz. Áreas novas em que podia haver disputas. E Sindler adorava disputas. Aplicar o teste psicológico. Os resultados apresentavam ou não os primeiros sinais de Alzheimer?


Quem podia dizer com certeza? Maravilhoso, maravilhoso... quaisquer que fossem os resultados, seriam contestados. Mais dias no tribunal, mais peritos para entrevistar, batalhas sobre os doutorados, arrastando-se por dias. Os dias no tribunal eram especialmente lucrativos.

E o melhor de tudo, Barry compreendia que aqueles testes genéticos podiam se tornar um padrão em todos os casos de custódia. Sindler seria um pioneiro. Teria uma grande publicidade por isso. Ele inclinou-se para frente, ansioso.

— Continue, Sr. Diehl...

— Teste para o gene do diabetes, o câncer de mama dos genes BRCA, e todo o resto. Minha mulher pode ter também o gene da doença de Huntington, que causa uma degeneração fatal dos nervos. O avô teve Huntington, portanto está na família. O pai e a mãe ainda são jovens, e a doença só se manifesta quando a pessoa fica mais velha. Minha mulher pode ter o gene, e isso significaria uma sentença de morte da Huntington.

— Tem razão... — murmurou Barry Sindler, balançando a cabeça. — Isso pode torná-la incapacitada para ser a responsável primária pelas crianças.

— Exatamente.

— Estou surpreso que ela não tenha feito os exames antes.

— Ela não quer saber — explicou Diehl. - Há uma possibilidade de cinqüenta-cinqüenta de que ela tenha o gene. Se tiver, acabará desenvolvendo a doença e morrerá se contorcendo na demência. Mas ela tem 28 anos. A doença pode não se manifestar por mais vinte anos. Portanto, se ela soubesse agora... poderia arruinar o resto de sua vida.

— Mas pode também aliviá-la, se ela não tiver o gene.

— É um risco muito grande. Ela prefere não fazer o exame.

— Pode pensar em outros tipos de testes?

— Claro que posso. Isso é apenas o começo. Quero que ela seja testada em todas as áreas já pesquisadas. Há no momento mil e duzentos testes genéticos.


Mil e duzentos! Sindler lambeu os lábios à perspectiva. Excelente! Por que nunca ouvira falar nisso antes? Ele pigarreou.

- Mas compreende que se fizer isso ela pode querer que você seja testado também?

- Não tem problema - disse Diehl. - Já fez os testes?

- Não. Apenas sei como falsificar os resultados de laboratório. Barry Sindler recostou-se em sua cadeira.

Perfeito.

 

Por baixo do dossel alto das árvores, o chão da selva era escuro e silencioso. Nenhuma brisa agitava as enormes samambaias, que cresciam até a altura dos ombros. Hagar limpou o suor da testa, olhou para os outros que o seguiam, e continuou em frente. A expedição penetrava fundo pela selva central da Sumatra. Ninguém falava, e era assim que Hagar preferia.

O rio ficava logo em frente. Havia uma piroga na margem próxima e uma corda estendida através do rio, na altura do ombro. Fizeram a travessia em dois grupos. Hagar ficou de pé na piroga, puxando-a pela corda. Depois, ele voltou para buscar os outros. Reinava o silêncio, exceto pelos gritos de um calau distante.

Continuaram a avançar na margem oposta. A trilha na selva foi se tornando mais estreita, lamacenta em alguns pontos. O grupo não gostou. Quase todos haviam insistido que deveriam evitar as áreas enlameadas. Finalmente, alguém perguntou:

— Ainda falta muito?

Só podia ser o garoto. O lamuriento adolescente americano, com espinhas no rosto. Ele olhava para a mãe, uma matrona enorme, usando um chapéu de palha.

-Já estamos quase chegando? - insistiu o garoto.

Hagar levou um dedo aos lábios.

- Quieto!

- Meus pés estão doendo.

Os outros turistas pararam ao redor, um agrupamento de roupas coloridas. Todos olhando para o garoto.

— Se fizerem barulho, não conseguirão vê-los — sussurrou Hagar.

Não estou vendo nada.

O garoto assumiu uma expressão mal-humorada, mas entrou na fila quando a expedição voltou a andar. Quase todos eram americanos hoje. Hagar não gostava de americanos. Mas não eram os piores. Os piores, ele tinha de admitir, eram os...

-Ali!

— Olhem ali!

Os turistas apontavam para frente, excitados, falando sem parar. Cerca de cinqüenta metros à frente, um pouco à direita da trilha, um orangotango macho, ainda jovem, estava de pé numa árvore, o galho balançando suavemente ao seu peso. Era uma criatura magnífica, pêlo avermelhado, pesando em torno de vinte quilos, com uma listra branca característica por cima da orelha. Hagar não via aquele orangotango fazia semanas.

Hagar gesticulou para que os outros ficassem calados e se adiantou pela trilha. Os turistas seguiram-no, amontoados agora, esbarrando uns nos outros, em seu excitamento.

— Psiu! — sussurrou Hagar.

— O que é tão importante? — indagou alguém. — Pensei que fosse um santuário.

— Psiu!

Mas eles estão protegidos aqui...

— Psiu!

Hagar precisava que todos ficassem quietos. Estendeu a mão para o bolso da camisa e apertou o botão para gravar. Tirou o microfone da lapela e suspendeu-o.

Estavam agora a cerca de trinta metros do orangotango. Passaram por uma placa à beira da trilha que dizia SANTUÁRIO DE ORANGOTANGOS DE BUKUT ALAM. Era ali que tratavam dos orangotangos órfãos e os reintroduziam na vida selvagem. Havia um centro veterinário, um posto de pesquisa, uma equipe de pesquisadores.

— Se é um santuário, não entendo por quê...

— George, você ouviu o que ele disse. Fique calado. Vinte metros agora.

- Olhem outro ali! Dois! Ali!

As pessoas apontavam para a esquerda. No alto das árvores, um orangotango de um ano balançava através dos galhos, em companhia de um animal um pouco mais velho. Em movimentos graciosos. Hagar não deu atenção. Estava concentrado no primeiro animal.

O orangotango de listra branca não se mexia. Estava pendurado, agora, por apenas uma das mãos, balançando no ar, a cabeça inclinada para o lado, olhando para as pessoas. Os animais mais jovens no alto das árvores desapareceram. O orangotango de listra branca permaneceu no mesmo lugar, sempre olhando para o grupo.

Dez metros. Hagar estendeu o microfone à sua frente. Os turistas aprontavam suas câmeras. O orangotango olhava para Hagar. Emitiu um som estranho, como uma tosse:

- Dwaas.

Hagar repetiu o som.

- Dwaas.

O orangotango não desviava os olhos dele. Os lábios curvos se mexeram.

- Ooh stomm dwaas, varlaat leanme. Um dos turistas perguntou:

- Foi ele que emitiu esses sons?

- Foi, sim — confirmou Hagar.

- Ele... está falando?

- Macacos não podem falar - declarou outro turista. - Os oran-gotangos são silenciosos. É o que diz o guia.

Vários bateram fotos e filmaram aquele macaco pendurado. O orangotango não demonstrou qualquer surpresa. Mas os lábios tornaram a se mexer:

- Geen lichten dwaas.

- Ele está resfriado? — perguntou uma mulher, nervosa. — Não está tossindo?

- Não é tosse - garantiu outra pessoa.

Hagar olhou para trás. Um homem corpulento atrás da multidão, um homem que tivera de fazer um esforço para acompanhar o grupo, rosto vermelho e ofegante, tinha agora um gravador na mão, estendido na direção do orangotango. Exibia uma expressão determinada. Perguntou para Hagar:

- É algum truque seu? - Não.

O homem apontou para o orangotango.

- Aquilo é holandês. Sumatra já foi uma colônia holandesa.

- Não sei se é - murmurou Hagar.

- Pois eu sei. O animal disse: "Estúpido, deixe-me em paz." E depois disse "Sem luzes", quando as câmeras foram acionadas.

- Não sei o que eram os sons — insistiu Hagar.

- Mas estava gravando.

- Apenas por curiosidade.

- Pegou o microfone antes que o orangotango começasse a emitir os sons. Sabia que o animal ia falar.

- Orangotangos não falam — declarou Hagar.

- Mas este pode.

Todos olhavam agora o orangotango, balançando do galho, segurando com apenas uma das mãos. Coçou-se com a mão livre. E permaneceu calado. O homem corpulento disse em voz alta:

- Geen lichten.

O orangotango fitou-o, aturdido. Piscou lentamente.

- Geen lichten!

O orangotango não deu o menor sinal de compreensão. Depois de um momento, balançou para um galho próximo e começou a subir, com a maior facilidade.

- Geen lichten!

O orangotango continuou a subir. A mulher com o enorme chapéu de palha disse:

- Acho que foi apenas tosse, ou alguma coisa parecida.

- Ei! — gritou o homem corpulento. — Msieu! Comment ça va? O orangotango não parou de subir, balançando num ritmo fácil com os braços compridos. Não olhou para baixo.

- Pensei que ele fosse capaz de falar francês — comentou o homem, dando de ombros. — Acho que não.

Uma chuva leve começou a cair do dossel das árvores. Os outros turistas guardaram suas câmeras. Um deles pôs uma capa leve e transparente. Hagar removeu o suor da testa. À frente, três orango-tangos jovens corriam em torno de uma bandeja com papaias no chão. Os turistas desviaram sua atenção para eles. Um som de resmungo veio do alto das árvores:

— Espèce de con.

As palavras soaram com clareza, surpreendentemente nítidas no ar parado. O homem corpulento virou-se.

— O quê?

Todos olharam para cima.

— Isso foi um palavrão - disse o adolescente. - Tenho certeza que foi um palavrão em francês.

— Cale-se! — disse a mãe.

O grupo ficou olhando para o alto das árvores, procurando na densa massa de folhas escuras. Não podiam avistar o orangotango Já em cima. O homem corpulento gritou: — Quest-ce que tu dis?

Não houve resposta. Apenas o barulho de um animal deslocando-se entre os galhos e o grito distante de um calau.

Chimpanzé insolente OFENDE TURISTAS

(News ofthe World)

AFFE SPRICHTIM dESCHUNGEL, FLÜCHE GEORGE BUSH

(Der Spiegel)

ORANG PARLE FRANÇAIS?!!

(Paris Match, logo abaixo de uma foto de Jacques Derrida

MACACO MUÇULMANO INSULTA OCIDENTAIS

(Weekly Standard)

MACACO ABRE A BOCA, TESTEMUNHAS ESCANCARAM

(National Enquirer)

CHIMPANZÉ FALANTE AVISTADO NA SUMATRA

(New York Times, em correção subseqüente PRIMATAS POLIGLOTAS ENCONTRADOS NA SUMATRA

(Los Angeles Times)

- E, finalmente, alguns turistas na Indonésia juram que foram insultados por um orangotango na selva de Bornéu. Segundo os turistas, o animal insultou-os em holandês e francês. O que significa que provavelmente era muito mais inteligente do que eles. Mas não apareceu nenhuma gravação do animal, o que nos leva a concluir que se você acredita nessa história, pode ter um emprego no governo atual. Há muitos macacos falantes ali!

(Countdown with Keith Obermann, MSNBC News, sem correção,)


 

- Veja isso - Charlie Huggins olhava para a televisão, na cozinha de sua casa em San Diego. O som estava desligado, mas ele lia a legenda embaixo. — Diz "Macaco Falante Citado na Sumatra".

— Ele recebeu uma multa por excesso de velocidade?

A esposa, que preparava o café da manhã, olhou para a tela.

— Não. O sentido aí não é de ter recebido uma multa, mas de alguém dizer que ele estava ali.

— O macaco foi citado? O que significa que pôde ser fitado? Ela era professora de inglês na escola secundária. Gostava desses jogos de palavras.

— A notícia diz que algumas pessoas encontraram um macaco que falava, na selva da Sumatra.

— Sempre pensei que os macacos não pudessem falar.

— Éo que diz a notícia.

— Portanto, deve ser mentira.

— Acha mesmo? Não sei... Britney Spears está se divorciando. Estou aliviado. Ela pode estar grávida de novo. Pelas imagens, é o que parece. E Posh Spice usava um lindo vestido verde numa festa. E Sting diz que pode fazer sexo durante oito horas sem parar.

— Mexido ou mole?

— Tântricô, ao que parece.

— Estava me referindo aos seus ovos.

— Mexidos.

— Pode chamar as crianças, Charlie? Já está quase tudo pronto.

— Está bem.

Charlie levantou-se e se encaminhou para a escada. O telefone tocou no momento em que entrou na sala. Era do trabalho.

 

- VEJA ISSO — Charlie Huggins olhava para a televisão, na cozinha de sua casa em San Diego. O som estava desligado, mas ele lia a legenda embaixo. — Diz "Macaco Falante Citado na Sumatra".

— Ele recebeu uma multa por excesso de velocidade?

A esposa, que preparava o café da manhã, olhou para a tela.

— Não. O sentido aí não é de ter recebido uma multa, mas de alguém dizer que ele estava ali.

— O macaco foi citado? O que significa que pôde ser fitado? Ela era professora de inglês na escola secundária. Gostava desses

jogos de palavras.

— A notícia diz que algumas pessoas encontraram um macaco que falava, na selva da Sumatra.

— Sempre pensei que os macacos não pudessem falar.

— É o que diz a notícia.

— Portanto, deve ser mentira.

— Acha mesmo? Não sei... Britney Spears está se divorciando. Estou aliviado. Ela pode estar grávida de novo. Pelas imagens, é o que parece. E Posh Spice usava um lindo vestido verde numa festa. E Sting diz que pode fazer sexo durante oito horas sem parar.

— Mexido ou mole?

— Tântricô, ao que parece.

— Estava me referindo aos seus ovos.

— Mexidos.

— Pode chamar as crianças, Charlie? Já está quase tudo pronto.

— Está bem.

Charlie levantou-se e se encaminhou para a escada. O telefone tocou no momento em que entrou na sala. Era do trabalho.


No laboratório da Radial Genomics Inc., no bosque de eucaliptos da Universidade da Califórnia em San Diego, Henry Kendall tamborilava com os dedos no balcão, enquanto esperava que Charlie atendesse. A campainha tocou três vezes. Onde ele se metera? Finalmente, a voz de Charlie:

-Alô?

- Aqui é Henry, Charlie. Ouviu a notícia?

- Que notícia?

- O macaco na Sumatra!

— Só pode ser mentira.

- Por quê?

- Ora, Henry, você sabe que é mentira.

- Disseram que o macaco falava holandês.

- É tudo besteira.

— Pode ter sido o pessoal de Uttenbroek — sugeriu Kendall.

— Não é possível. O macaco era grande, já tinha dois ou três anos.

- E daí? Uttenbroek pode ter feito isso há alguns anos. Sua equipe avançou bastante. Além do mais, aqueles caras de Utrecht são todos mentirosos.

Charlie Huggins suspirou.

- É ilegal na Holanda fazer esse tipo de pesquisa.

— Certo. E foi por isso que eles foram realizá-la na Sumatra.

— A tecnologia é muito difícil, Henry. Estamos a anos de produzir um macaco transgênico. Você sabe disso.

— Não sei, não. Ouviu o que Utrecht anunciou ontem? Eles colheram células-tronco de touro e cultivaram-nas em testículos de camundongos. Eu diria que isso é difícil. Eu diria que é o máximo de vanguarda.

- A sorte maior é do touro.

— Não vejo onde está a graça.

— Não pode imaginar o pobre rato se arrastando com enormes e roxos colhões de touro?

— Ainda não dá para rir...

— Henry, está querendo me dizer que ouviu uma notícia sobre um macaco falante e realmente acreditou?

— Acreditei.

- Acreditei.

- Henry, Henry... - Charlie estava irritado. - É a mesma história da cobra de duas cabeças. Faça um esforço para se controlar.

- A cobra de duas cabeças era real.

- Tenho de levar as crianças para a escola. Falarei com você mais tarde.

E Charlie desligou.

Merda!, pensou Kendall. Sua mulher sempre levava as crianças para a escola.

Ele está me evitando.

Henry deu uma volta pelo laboratório, olhou pela janela, andou mais um pouco. Respirou fundo. Claro que sabia que Charlie tinha razão. Só podia ser uma notícia falsa.

Mas... e se não fosse?

Era verdadeque Henry Kendall tinha uma tendência a ser tenso. As mãos às vezes tremiam quando ele falava, ainda mais nos momentos de intenso excitamento. E era desajeitado, sempre tropeçando, esbarrando em coisas no laboratório. Tinha um estômago nervoso. E se preocupava demais.

Mas o que Henry não podia contar a Charlie era o verdadeiro motivo pelo qual se preocupava agora. Por causa de uma conversa que ocorrera uma semana antes. Na ocasião, parecia não ter o menor sentido.

Agora, assumia uma qualidade ominosa.

Alguma secretária insensata do Instituto Nacional de Saúde telefonou para o laboratório e pediu para falar com o Dr. Kendall. Quando ele atendeu, a secretária indagou:

- É o Dr. Henry A. Kendall?

- Isso mesmo.

- É correto que esteve no instituto numa licença sabática de seis meses, há quatro anos?

- É, sim.

- Foi de maio a outubro?

- Acho que sim. Qual é o problema?

- É, sim.

- Obrigada por seu tempo, Dr. Kendall.

Essa fora toda a conversa. Na ocasião, Henry pensara apenas que Beliarmino era um filho-da-puta traiçoeiro; nunca se sabia o que ele estava tramando.

Mas agora... com aquele primata na Sumatra...

Henry sacudiu a cabeça.

Charlie Huggins podia argumentar tudo o que quisesse, mas era um fato que os cientistas já haviam produzido um macaco transgênico. Fora há muitos anos. Havia agora vários tipos de mamíferos transgênicos... cachorros, gatos, uma lista extensa. Não era impossível que o orangotango falante fosse um animal transgênico.

O trabalho de Henry no instituto relacionava-se com a base genética do autismo. Fora ao centro de primatas porque queria saber que genes explicavam as diferenças na capacidade de comunicação entre humanos e macacos. E também fizera algum trabalho com embriões de chimpanzé. Não chegara a nenhuma conclusão. Mal havia começado quando a epidemia de encefalite interrompera a pesquisa. Acabara voltando para Bethesda e trabalhara num laboratório pelo resto de sua licença sabática.

Isso era tudo o que ele sabia.

Pelo menos, tudo o que sabia com certeza.

HUMANOS E CHIMPANZÉS CRUZARAM ATÉ RECENTEMENTE

Separação de Espécies Não

Acabou com Sexo; Pesquisadores

Descobrem um Controvertido

Resultado da Genética

Pesquisadores de Harvard e MIT descobriram que a separação entre humanos e chimpanzés ocorreu mais recentemente do que se pensava antes. Os investigadores genéticos sabiam havia muito tempo que humanos e macacos descendiam de um ancestral comum que viveu na Terra há dezoito milhões de anos. Os gibões se separaram primeiro, há dezesseis milhões de anos. Os oran-gotangos se separaram há cerca de doze milhões de anos. Os gorilas se separaram há dez milhões de anos. Os chimpanzés e seres humanos foram os últimos a se separarem, há cerca de nove milhões de anos.

Contudo, depois de decodificarem o genoma humano, em 2001, os geneticistas descobriram que os seres humanos e chimpanzés diferiam em apenas um e meio por cento de seus genes... cerca de quinhentos genes no total. Era muito menos do que o esperado. Em 2003, os cientistas começaram a catalogar exatamente que genes diferiam entre as espécies. É agora evidente que muitas proteínas estruturais, inclusive a hemoglobina e o citocromo c, são idênticos em chimpanzés e humanos. O sangue do humano e do chimpanzé é idêntico. Se as espécies se separaram há nove milhões de anos, por que ainda são tão parecidas?

Os geneticistas de Harvard acreditam que humanos e chimpanzés continuaram a cruzar por muito tempo depois que as espécies se separaram. Esse cruzamento, ou hibridização, exerce uma pressão evolucionária sobre o cromossomo X, levando-o a mudar mais depressa do que o normal. Os pesquisadores descobriram que os genes mais novos no genoma humano aparecem no cromossomo X.

Por isso, os pesquisadores argumentam que os ancestrais humanos continuaram a cruzar com chimpanzés até cinco milhões e quatrocentos mil anos atrás, quando a separação se tornou permanente. Essa nova posição representa um profundo contraste com a opinião, até aqui de consenso, segundo a qual depois que ocorre a especiação, a hibridização é uma "influência insignificante". Mas, de acordo com o Dr. David Reich, de Harvard, o fato de que a hibridização raramente foi vista em outras espécies "pode simplesmente ser uma decorrência do fato de que não temos procurado por isso".

Os pesquisadores de Harvard advertem que o cruzamento de humanos e chimpanzés não é possível nos dias de hoje. Ressaltam que as notícias da imprensa sobre "humanzés" são invariavelmente inverídicas.

 

A BioGen Research Inc. ficava num cubo revestido de titânio, num parque industrial nos arredores de Westview Village, no sul da Califórnia. Numa posição imponente, por cima do tráfego na Freeway 101, o cubo fora idéia do presidente da BioGen, Rick Diehl, que insistia em chamá-lo de hexaedro. O cubo era impressivo, irradiando uma impressão de alta tecnologia, mas sem revelar absolutamente nada do que acontecia lá dentro... e era assim mesmo que Rick Diehl queria.

Além disso, a BioGen tinha um galpão com mais de três mil metros quadrados, a cerca de três quilômetros de distância. Era ali que ficavam os animais, junto com os laboratórios mais perigosos. Josh Winkler, um jovem pesquisador em ascensão, pegou luvas de borracha e uma máscara cirúrgica numa prateleira junto da porta para as gaiolas dos animais. Seu assistente, Tom Weller, estava lendo um recorte de notícia preso na parede com fita adesiva.

- Vamos logo, Tom — disse Josh.

- Diehl deve estar se cagando todo - comentou Weller, apontando para o recorte. — Já leu isto?

Josh virou-se para olhar. Era uma notícia que saíra no Wall Street Journal.

CIENTISTAS ISOLAM GENE "MESTRE"

Uma Base Genética Para Controlar Outras Pessoas?

TOULOUSE, FRANÇA - Uma equipe de biólogos franceses isolou o gene que leva determinadas pessoas a tentarem controlar outras. Geneticistas do Instituto Bioquímico da Universidade de Toulouse, liderados pelo Dr. Michel Narcejac-Boileau, anunciaram a descoberta hoje, numa entrevista coletiva. "O gene está associado com a dominação social e o forte controle sobre outras pessoas", declarou o Dr. Narcejac-Boileau. "Foi isolado em líderes esportivos, CEOs e chefes de estado. Achamos que o gene poderia ser encontrado em todos os ditadores, ao longo da história."

O Dr. Narcejac-Boileau explicou que a forma mais forte do gene produzia ditadores, enquanto as formas heterozigóticas mais brandas produziam um "impulso moderado, quase autoritário", para dizer às outras pessoas como devem dirigir suas vidas, em geral para o seu próprio bem ou segurança.

"De forma significativa, em testes psicológicos, as pessoas com a forma branda expressarão a opinião de que as outras precisam de suas percepções, e são incapazes de conduzir a própria vida sem a devida orientação. Essa forma do gene existe em políticos, defensores de programas especiais, fundamentalistas religiosos e celebridades. O complexo de convicção é manifestado por um forte sentimento de certeza, somado a um senso poderoso de que se tem direito a isso... e um senso de ressentimento acalentado com o maior cuidado contra aqueles que não querem escutá-los."

Ao mesmo tempo, ele recomendou cautela na interpretação dos resultados. "Muitas pessoas que são impelidas a controlar outras apenas querem que todas continuem como antes. Não podem tolerar as diferenças."

Isso explicava a descoberta paradoxal da equipe de que as pessoas com a forma branda do gene também eram as mais tolerantes com os ambientes autoritários em que prevalecem normas sociais rigorosas e invasivas. "Nosso estudo demonstra que o gene não apenas produz uma pessoa autoritária, mas também uma pessoa disposta a ser mandada. Sentem uma evidente atração pelos estados totalitários." Ele ressaltou que essas pessoas são especialmente reativas a modas de todos os tipos, e suprimem opiniões e preferências que não são partilhadas por seu grupo.

- "Especialmente reativas a modas"... — murmurou Josh. — Isso é uma piada?

- Claro que não — respondeu Tom Weller. - Eles falam sério. Isso é marketing. Tudo é marketing hoje em dia. Leia o resto.

Embora a equipe francesa não chegasse a alegar que a forma branda do gene mestre representasse uma doença genética — um "vício em pertencer ao grupo", como expressou Narcejac-Boileau - mesmo assim sugeriu que as pressões evolucionárias estão levando a raça humana a uma conformidade cada vez maior.

— Incrível... — murmurou Josh. - Esses caras em Toulouse dão uma entrevista coletiva e o mundo inteiro divulga a notícia sobre o tal "gene mestre"? A pesquisa saiu em alguma publicação científica?

— Não. Eles se limitaram a fazer o anúncio numa entrevista coletiva. Não mencionaram a divulgação em qualquer publicação científica.

— O que virá em seguida? O gene escravo? Tudo isso me parece besteira.

Josh olhou o relógio.

— Ou melhor, torcemos para que seja besteira.

— Isso mesmo. Foi o que eu quis dizer. Vamos torcer para que seja besteira. Porque prejudica, com toda certeza, o que a BioGen tem para anunciar.

— Acha que Diehl vai protelar o anúncio? — perguntou Tom Weller.

— Talvez. Mas Diehl não gosta de esperar. E se mostra cada vez mais nervoso desde que voltou de Las Vegas.

Josh pôs as luvas de borracha, os óculos de proteção e a máscara de papel. Pegou o cilindro de ar comprimido, com quinze centímetros de comprimento, e desatarraxou o frasco de retrovírus. Todo o dispositivo era do tamanho de um tubo de charuto. Ele ajustou um pequeno cone de plástico em cima e empurrou para o lugar com o polegar.

— Pegue seu PDA.

Eles passaram pela porta de vaivém, entrando nos alojamentos dos animais.

O odor forte e ligeiramente adocicado de ratos era um cheiro familiar. Havia quinhentos ou seiscentos ratos ali, todos em gaiolas numeradas, empilhadas até dois metros de altura, nos dois lados do corredor que atravessava o meio da sala.

- O que vamos dosar hoje? - perguntou Tom Weller.

Josh leu uma série de números. Tom verificou no PDA as locações numéricas. Desceram pelo corredor até encontrarem as gaiolas que tinham os números do dia. Cinco ratos, em cinco gaiolas. Os animais eram brancos, gordos, movimentavam-se normalmente.

- Eles parecem estar bem. Esta é a segunda dose?

- E, sim.

- Muito bem, meninos, sejam bonzinhos com o papai — disse Josh.

Ele abriu a primeira gaiola, e pegou o rato lá dentro. Segurou o animal pelo corpo, os dedos indicadores apertando-lhe habilmente o pescoço. Ajustou num instante o pequeno cone de plástico no focinho do rato. A respiração do animal embaçou o cone. Houve um breve zunido, enquanto o vírus era liberado. Josh manteve o cone na posição durante dez segundos, enquanto o rato inalava. Depois, largou o animal de volta na gaiola.

- Um pronto.

Tom Weller bateu com o estilo no PDA. Os dois passaram para a gaiola seguinte.

O retrovírus fora criado para levar um gene conhecido como ACMPD3N7, da família de genes que controlavam o aminocarboxi-muconato paraldeído decarboxilase. Dentro da BioGen, eles chamavam de gene da maturidade. Quando ativado, o ACMPD3N7 parecia modificar reações da amígdala e do giro do cíngulo no cérebro. O resultado era uma aceleração do comportamento maturacional... pelo menos em ratos. Por exemplo, filhotes de rato do sexo feminino apresentavam sintomas precursores de comportamento maternal, como rolar fezes na gaiola, mais cedo do que o habitual. E a BioGen tinha evidências preliminares da ação desse gene maturacional também em macacos.

O interesse pelo gene concentrava-se num vínculo potencial com as doenças neurodegenerativas. Uma escola de pensamento argumentava que as doenças neurodegenerativas eram um resultado de disrupções de circuitos maturacionais no cérebro.

Se fosse mesmo verdade — se a ACMPD3N7 estava envolvida, por exemplo, na doença de Alzheimer, ou outra forma de senilidade

- então o valor comercial do gene seria enorme.

Josh passara para a gaiola seguinte. Segurava o cone sobre o segundo rato quando o celular tocou. Gesticulou para que Tom tirasse o aparelho do bolso de sua camisa. Weller olhou para a tela.

— É sua mãe.

— Droga... Pode assumir aqui por um momento?

- O que está fazendo, Joshua?

— Estou trabalhando, mamãe.

— Pode parar?

— Não deveria...

— Porque temos uma emergência. Josh suspirou.

— O que ele fez desta vez, mamãe?

— Não sei. Mas está na cadeia, no centro.

— Peça a Charles para tirá-lo de lá. Charles Silverberg era o advogado da família.

— É o que Charles está fazendo neste momento - informou a mãe. - Mas Adam tem de ir ao tribunal. E alguém precisa levá-lo de carro para casa depois que a audiência terminar.

— Não posso. Estou trabalhando.

— Ele é seu irmão, Josh.

— Mas já tem trinta anos de idade.

Aquilo acontecia havia anos. O irmão Adam era um corretor de investimentos que entrara e saíra da reabilitação uma dúzia de vezes.

— Ele não pode pegar um táxi?

— Não creio que seja sensato, nas circunstâncias.

Josh suspirou.

 O que ele fez, mamãe?

- Ao que parece, tentou comprar cocaína de uma mulher que era agente federal de narcóticos.

- Outra vez?

- Joshua, você pode buscá-lo no tribunal ou não? Um longo suspiro.

- Está bem, mamãe, eu irei.

- Agora? Irá agora?

- Claro, mamãe. Irei agora.

Ele fechou o celular e virou-se para Weller.

- O que acha de deixarmos para terminar aqui dentro de duas horas?

- Não tem problema. Preciso mesmo transcrever algumas anotações no escritório.

Joshua afastou-se. Tirou as luvas ao deixar a sala. Meteu o cilindro, óculos de proteção e a máscara de papel no bolso do jaleco de laboratório, removeu o crachá de radiação, e seguiu apressado para seu carro.

A caminho do centro, ele olhou para o cilindro, projetando-se do bolso do jaleco, que largara no banco de passageiro. Para permanecer dentro do protocolo, Josh teria de voltar ao laboratório e expor os dois ratos restantes antes de cinco horas da tarde. Esse tipo de agenda e a necessidade de mantê-la pareciam representar tudo o que separava Josh do irmão mais velho.

Adam já tivera tudo: aparência, popularidade, a fama pelas proezas atléticas. Seus dias na Westfield School, uma escola secundária da elite, haviam sido um triunfo depois de outro: editor do jornal, capitão do time de futebol, presidente da equipe de debates, Bolsa de Estudo do Mérito Nacional. Josh, em contraste, fora um nerd. Era baixo, gorducho, desgracioso. Andava se balançando, o que não podia evitar. Os sapatos ortopédicos, que a mãe insistia que ele usasse, não ajudavam em nada. Era desdenhado pelas garotas. Podia ouvir suas risadas quando passava por elas nos corredores. A escola secundária fora pura tortura para Josh. Não se saíra bem. Adam fora para Yale. Josh tivera de se contentar com a Emerson State.

Como os tempos haviam mudado...

Um ano antes, Adam fora despedido do Deutsche Bank. Seus problemas com as drogas eram intermináveis. Enquanto isso, Josh começara na BioGen como assistente júnior, mas subira depressa, à medida que a empresa reconhecia seu trabalho dedicado e enfoque criativo. Josh tinha ações da companhia; e se algum dos projetos atuais, inclusive o gene da maturidade, viesse a ter valor comercial, ele se tornaria um homem rico.

E Adam...

Josh parou na frente do tribunal. Adam estava sentado num degrau da escadaria, olhando para o chão. O terno surrado estava sujo e a barba por fazer era de um dia. Charles Silverberg, de pé ao seu lado, falava pelo celular.

Josh tocou a buzina. Charles acenou e se afastou. Adam levantou-se e foi para o carro.

— Obrigado, mano. - Ele embarcou e bateu a porta. — Fico agradecido.

— Não tem problema.

Josh deu a partida. Olhou para o relógio. Teria tempo suficiente para levar Adam até a casa da mãe e voltar ao laboratório antes das cinco horas.

— Interrompi alguma coisa? - perguntou Adam.

Era uma coisa irritante no comportamento do irmão. Gostava de se intrometer e atrapalhar a vida dos outros. Parecia sentir prazer nisso.

— Para ser franco, interrompeu.

— Sinto muito.

— Sente? Se sentisse mesmo, pararia de fazer essas merdas.

— Ei, cara, como eu poderia saber? Foi uma armadilha. Até mesmo Charles disse isso. A sacana montou uma armadilha. Charles disse que pode me livrar com a maior facilidade.

— Não haveria nenhuma armadilha se você não estivesse usando drogas.

- Ora, vá se foder. Não quero ouvir nenhum sermão.

Josh não disse nada. Por que se dera ao trabalho de levantar o assunto? Depois de tantos anos, sabia que nada que dissesse faria qualquer diferença. Nada faria a menor diferença. Houve um longo momento de silêncio, enquanto ele continuava a dirigir.

- Sinto muito - murmurou Adam.

- Você não sente porra nenhuma.

- Tem toda razão. Você está certo. — Adam baixou a cabeça. Soltou um suspiro teatral. — Fiz a maior cagada de novo.

Adam, o arrependido.

Josh já testemunhara essa cena dezenas de vezes antes. O beligerante Adam, o arrependido Adam, o Adam lógico ou negando tudo. Enquanto isso, seu irmão continuava a consumir drogas.

Uma luz laranja acendeu no painel. Havia pouco combustível. Josh avistou um posto à frente.

- Preciso pôr gasolina.

- Ótimo. Posso aproveitar para dar uma mijada.

- Não vai sair do carro.

- Preciso dar uma mijada, cara.

- Fique na porra do carro. - Josh parou ao lado de uma bomba e saltou. — Fique onde eu possa vê-lo.

- Não quero mijar no seu carro, cara...

- É melhor não fazer isso.

- Mas...

- Agüente firme, Adam.

Josh pôs um cartão de crédito na fenda e ligou a bomba. Olhou para o irmão através da janela traseira, e depois para os números correndo na bomba. A gasolina estava muito cara hoje em dia. Provavelmente deveria comprar um carro que consumisse menos gasolina.

Ele terminou e voltou para o carro. O irmão exibia uma expressão estranha. Havia um tênue odor no carro.

-Adam...

- O que é?

- O que você fez?

- Nada.

Josh ligou o carro. Aquele cheiro... Uma coisa prateada atraiu sua atenção. Ele olhou para o chão, entre os pés do irmão, e viu o cilindro prateado. Inclinou-se e pegou-o. Estava muito leve.

- Adam...

- Não fiz nada!

Josh sacudiu o cilindro. Estava vazio.

- Pensei que era gás nitroso ou algo parecido - murmurou o irmão.

- Seu idiota!

- Por quê? Não fiz nada demais.

- Era para um rato, Adam. Você acaba de inalar um vírus para um rato.

Adam arriou no banco.

- Isso é ruim?

- Bom não pode ser.

Quando parou o carro na frente da casa da mãe, em Beverly Hills, Josh já avaliara a situação a fundo. Concluíra que não havia perigo para Adam. O retrovírus era de uma variedade para infectar ratos. Podia também infectar seres humanos, mas a dose fora calculada para um animal que pesava oitocentos gramas. O irmão pesava cem vezes mais. A exposição genética era subclínica.

- Quer dizer que ficarei bem? - indagou Adam.

- Isso mesmo.

- Tem certeza?

- Tenho.

- Sinto muito pelo que fiz — disse Adam. - Mas obrigado por me buscar. Até mais, mano.

- Esperarei até você entrar.

Josh observou o irmão subir pelo caminho e bater na porta. A mãe abriu. Adam entrou, e ela fechou a porta. Nem sequer olhou para Josh. Ele ligou o carro e partiu.

 

Ao meio-dia, Alex Burnet deixou sua sala, na firma de advocacia em Century City, e foi para casa. Não precisava ir muito longe; morava num apartamento em Roxbury Park com Jamie, o filho de oito anos. Jamie estava resfriado, e por isso não fora à escola. O pai ficara com ele para a filha poder trabalhar.

Ela encontrou o pai na cozinha, fazendo um macarrão com queijo. Era a única coisa que Jamie comia agora.

— Como ele está? - perguntou Alex.

— A febre baixou. Ainda tosse bastante e tem corrimento no nariz.

— Ele está com fome?

— Não estava antes. Mas pediu macarrão.

— É um bom sinal. Quer que eu cuide do resto? O pai sacudiu a cabeça.

— Estou cuidando de tudo. Você não precisava voltar para casa agora.

— Sei disso. - Alex fez uma pausa. — O juiz deu sua decisão, papai.

— Quando?

— Esta manhã.

— Qual foi?

— Perdemos.

O pai continuou a preparar o macarrão.

— Perdemos tudo?

-Tudo. Perdemos em todos os itens. Você não tem direito a seus próprios tecidos. Ele considerou que você permitiu que a universidade usasse como quisesse o "material de refugo" de seu corpo. O tribunal acha que você não tem direito a qualquer tecido depois que sai de seu corpo. A universidade pode fazer o que bem quiser.

— Mas eles me chamaram de volta...

— O juiz disse que qualquer pessoa sensata compreenderia que os tecidos estavam sendo colhidos para uso comercial. Portanto, você tacitamente aceitou.

— Mas disseram que eu estava doente!

— Ele rejeitou todos os nossos argumentos, papai.

— Mentiram para mim.

— Sei disso. Mas, segundo o juiz, a boa política social promove a pesquisa médica. Conceder seus direitos agora teria um efeito prejudicial à pesquisa futura. Esse é o pensamento por trás da decisão... o bem comum.

— Isso não tem nada a ver com o bem comum — declarou o pai.

- O objetivo aqui é apenas o de enriquecer. São três bilhões de dólares...

— Eu sei, papai. As universidades querem dinheiro. E o juiz agora, basicamente, manteve o que os juizes da Califórnia têm decidido há vinte e cinco anos, desde o caso Moore, em 1980. Como no seu caso, o tribunal decidiu que os tecidos de Moore eram materiais de refugo a que ele não tinha direito. E essa questão não foi revista em mais de duas décadas.

— O que acontece agora?

— Vamos recorrer. Não creio que tenhamos uma boa base, mas precisamos fazer isso antes de podermos ir ao Tribunal Superior da Califórnia.

— E quando será isso?

— Daqui a um ano.

— Temos alguma chance?

- Absolutamente nenhuma - declarou Albert Rodriguez, olhando para Burnet. Rodriguez e os outros advogados da UCLA haviam ido ao escritório de advocacia de Alex, depois da decisão do juiz. - Não tem a menor chance num recurso, Sr. Burnet.

Estou surpresa que esteja tão confiante sobre a decisão do Tribunal Superior - comentou Alex.

- Não temos a menor idéia de qual será a decisão. Estou apenas dizendo que vocês perderão este caso, independente da decisão do tribunal.

 Como assim?

- A UCLA é uma universidade do estado. A reitoria está disposta, em nome do estado da Califórnia, a ficar com as células de seu pai por domínio eminente.

Alex piscou, aturdida.

- Como?

- Caso o Tribunal Superior decida que as células de seu pai são dele... o que achamos improvável... o Estado reivindicará a propriedade por domínio eminente.

O domínio eminente referia-se ao direito do Estado de desapropriar propriedades particulares sem o consentimento do proprietário. Era quase sempre invocado em questões de utilidade pública.

- Mas o domínio eminente se destina à construção de escolas e estradas...

- O Estado pode fazer isso neste caso — garantiu Rodriguez. — E fará.

O pai estava espantado.

- Está brincando?

- Não, Sr. Burnet. É uma iniciativa legítima, e o Estado exercerá seu direito.

- Então qual é o propósito desta reunião? — perguntou Alex.

- Achamos que seria apropriado informá-los da situação, caso estejam pensando em apresentar algum recurso.

- Está sugerindo que desistamos de toda e qualquer ação judicial?

- É o conselho que eu daria, se fosse meu cliente.

- Encerrar o processo pouparia o Estado de uma despesa considerável.

- Pouparia despesas de todos os envolvidos.

- Então qual é a sua proposta para abandonarmos o caso?

- Não há nenhuma proposta, Sra. Burnet. Lamento se me entendeu errado. Isto não é uma negociação. Estamos aqui apenas para explicar nossa posição, para que possam tomar uma decisão informada, em seu melhor interesse.

O pai limpou a garganta.

- Está me dizendo que vão ficar com minhas células, e o resto que se dane. Venderam-nas por três bilhões de dólares, e o resto que se dane. Não abrirão mão de todo esse dinheiro, e o resto que se dane.

— Eu diria que é uma maneira um tanto rude de expressar a situação, mas não inacurada - respondeu Rodriguez.

A reunião terminou. Rodriguez e sua equipe agradeceram por seu tempo, despediram-se e deixaram a sala. Alex acenou com a cabeça para o pai, e foi atrás dos outros advogados. Através do vidro, Frank Burnet observou-os conversarem mais um pouco.

— Esses filhos-da-puta... — murmurou ele. — Em que tipo de mundo nós vivemos?

- É exatamente o que eu penso — disse uma voz por trás dele. Burnet virou-se. Um jovem de óculos estava sentado no canto da sala de reunião. Burnet lembrava-se dele; entrara durante a reunião, trazendo café e canecas, que pusera no aparador. Depois, permanecera sentado no canto pelo resto da reunião. Burnet presumira que era um associado júnior da firma. Agora, no entanto, o jovem falava com evidente confiança.

— Vamos considerar a situação, Sr. Burnet. Foi explorado e acuado. Possui células que são muito raras e valiosas. São eficientes fabricantes de citocinas, substâncias químicas que combatem o câncer. Diga-se de passagem, suas células produzem citocinas com mais eficiência do que qualquer processo comercial. É por isso que essas células valem tanto dinheiro. Os médicos da UCLA não criaram nada, não inventaram qualquer coisa. Não efetuaram modificações genéticas. Apenas tiraram suas células, cultivaram-nas e venderam para a BioGen. E você, meu amigo, acabou fodido e malpago.

— Quem é você?

- E não tem a menor esperança de justiça, porque os tribunais são totalmente incompetentes - continuou o jovem. - Os tribunais não compreendem a rapidez com que as coisas estão mudando. Não percebem que já estamos num mundo novo. Não entendem os novos problemas. E porque são analfabetos nas questões técnicas, não compreendem os procedimentos que são realizados... ou, neste

caso, que não são realizados. Suas células foram roubadas e vendidas.

Pura e simplesmente. E o tribunal decidiu que isso era certo.

Burnet soltou um longo suspiro.

— Mas os ladrões ainda podem receber sua merecida punição — acrescentou o jovem.

— De que forma?

— Porque a UCLA não fez nada para mudar suas células, outra empresa pode pegar essas mesmas células, efetuar pequenas modificações genéticas, e vendê-las como um novo produto.

— Mas a BioGen já tem minhas células.

— É verdade. Mas as linhagens de células são frágeis. Podem acontecer coisas com elas.

— Que coisas?

— As culturas são vulneráveis a fungos, infecções bacterianas, contaminação, mutação. Todos os tipos de coisas podem sair errados.

— A BioGen deve ter tomado precauções...

— Claro que tomou. Mas às vezes as precauções são inadequadas.

— Quem é você? — perguntou Burnet de novo.

Ele olhou ao redor, através das paredes de vidro da sala de reunião, para a sala maior ao redor. Viu pessoas andando de um lado para outro. Especulou para onde a filha teria ido.

— Não sou ninguém. Nunca se encontrou comigo.

— Não tem um cartão?

O homem sacudiu a cabeça.

— Não estou aqui, Sr. Burnet. Burnet franziu o rosto.

— E minha filha...

— Não tem a menor idéia. Nunca conversei com ela. Isto é entre nós dois.

— Mas está falando sobre uma atividade ilegal.

— Não estou falando nada, porque nunca nos encontramos. Mas vamos considerar como isso pode acontecer.

- Está bem...

— Não pode legalmente vender suas células a esta altura, porque o tribunal decidiu que não as possui mais... são da BioGen. Mas suas células podem ser obtidas de outros lugares. Esteve no Vietnã há quarenta anos. O exército tirou seu sangue. Fez uma cirurgia no joelho há vinte anos, em San Diego. O hospital tirou seu sangue e guardou sua cartilagem. Consultou vários médicos ao longo dos anos. Pediram exames de sangue. Os laboratórios guardam o sangue. Portanto, seu sangue pode ser encontrado, sem maiores dificuldades. E se o sangue puder ser obtido de fontes publicamente disponíveis... se, por exemplo, outra empresa quisesse usar suas células...

— E a situação da BioGen? O jovem deu de ombros.

— A biotecnologia é um negócio difícil. As contaminações acontecem todos os dias. Se alguma coisa sair errada em seus laboratórios, o problema não é seu, não é mesmo?

— Mas como seria possível...

— Não tenho a menor idéia. Muitas coisas podem acontecer. Houve um breve silêncio.

— E por que eu deveria fazer isso? — perguntou Burnet.

— Receberia cem milhões de dólares.

— Pelo quê?

— Biópsias por punção de seis sistemas de órgãos.

— Pensei que poderia obter meu sangue em outros lugares.

— Em teoria. Se houver uma ação judicial, isso seria alegado. Mas, na prática, qualquer companhia quer células frescas.

 Não sei o que dizer.

— Não tem problema. Pense a respeito, Sr. Burnet. — O jovem levantou-se. Ajeitou os óculos. — Pode ter sido enganado, mas não há razão para não reagir.

Do Alummni News, do Beaumont College

AUMENTA DEBATE SOBRE CÉLULAS-TRONCO

"Faltam Décadas"Para Tratamentos Eficazes Professor McKeown Choca Audiência

Max Thaler

Ao falar para uma audiência que lotava o Beaumont Hall, Kevin McKeown, o famoso professor de biologia, chocou os ouvintes ao dizer que a pesquisa de células-tronco era uma "fraude cruel".

Ele declarou: "Tudo isso que estão dizendo a vocês não passa de um mito, visando a garantir financiamento para os pesquisadores, à custa de falsas esperanças para as pessoas que estão gravemente doentes. Agora, vamos revelar a verdade."

As células-tronco, ele explicou, são células que possuem a capacidade de se transformarem em outros tipos de células. Há dois tipos de células-tronco. As células-tronco adultas são encontradas por todo o corpo. Existem nos tecidos do músculo, cérebro, fígado, e assim por diante. As células-tronco adultas podem gerar novas células, mas apenas do tecido em que são encontradas. São importantes porque o corpo humano substitui todas as suas células a cada sete anos.

De um modo geral, não há controvérsias sobre a pesquisa envolvendo as células-tronco adultas. Mas há outro tipo de célula-tronco, a embrionária, que é bastante controvertido. É encontrado no sangue do cordão umbilical, ou derivado de jovens embriões. As células-tronco embrionárias são pluripotentes, o que significa que podem se desenvolver em qualquer tipo de tecido. Mas a pesquisa é controvertida porque envolve o uso de embriões humanos, que muitas pessoas consideram, por razões religiosas e outras, que possuem os mesmos direitos de seres humanos. Este é um debate antigo, e não é provável que se chegue a uma conclusão tão cedo.


CIENTISTAS VÊEM PROIBIÇÃO DA PESQUISA

O atual governo americano tem assumido a posição de que as células-tronco embrionárias podem ser derivadas das linhas de pesquisa existentes, mas não de novos embriões. Os cientistas consideram que as linhas existentes são inadequadas, e por isso acham que há uma proibição de fato da pesquisa. É o motivo pelo qual estão procurando centros particulares para prosseguirem em suas pesquisas, sem verbas federais.

Mas, em última análise, o verdadeiro problema não é apenas uma falta de células-tronco. É o fato de que os cientistas precisam, para que possam produzir efeitos terapêuticos, que cada pessoa tenha as suas células-tronco pluripotentes. Isso nos permitiria fazer um órgão crescer de novo, ou reparar lesões de ferimento ou doença, ou desfazer paralisia. Isso representa o grande sonho. Ninguém é capaz de realizar esses milagres terapêuticos neste momento. Ninguém jamais teve a mais vaga idéia de como pode ser feito. Mas isso exige células.

É claro que, no caso dos recém-nascidos, pode-se recolher o sangue do cordão umbilical e congelá-lo. Já há pessoas fazendo isso com seus recém-nascidos. Mas o que acontece com os adultos? De onde tiramos nossas células-tronco pluripotentes?

Essa é a grande questão.

NA DIREÇÃO DO SONHO TERAPÊUTICO

Só restaram para os adultos células-tronco adultas, que podem fazer apenas um tipo de tecido. Mas não haveria um meio de converter células-tronco adultas em células-tronco embrionárias? Esse procedimento permitiria que cada adulto tivesse um estoque disponível de células-tronco embrionárias. Faria com que o sonho terapêutico se tornasse possível.

Acontece que se pode reverter células-tronco adultas, mas apenas se forem inseridas dentro de um óvulo. Alguma coisa dentro do óvulo desfaz a diferenciação e converte a célula-tronco adulta numa


célula-tronco embrionária. É uma boa notícia, mas um procedimento extremamente difícil de realizar com células humanas. E se o método pudesse funcionar em seres humanos, exigiria um vasto suprimento de células de óvulos humanos. O que torna o procedimento outra vez controvertido.

Por isso, os pesquisadores estão procurando por outros meios de tornar em pluripotentes as células-adultas. Um pesquisador de Xangai tem injetado células-tronco humanas em óvulos de galinha, com resultados indefinidos... enquanto outros cacarejam em desaprovação. Não é evidente agora se tais procedimentos podem ou não dar certo.

E igualmente indefinido se o sonho das células-tronco - transplantes sem rejeição, lesões na medula espinhal reparadas, e assim por diante - pode se tornar realidade. Os defensores da pesquisa têm feito alegações desonestas, e as especulações da mídia são fantásticas há muitos anos. Pessoas com doenças graves foram levadas a acreditar que a cura se encontra logo além da esquina. É lamentável, mas isso não é verdade. Os métodos terapêuticos só surgirão dentro de muitos anos, talvez mesmo de algumas décadas. Muitos cientistas ponderados têm ressaltado, em particular, que não saberemos se a terapia de células-tronco poderá funcionar antes de 2050. Lembram que levou quarenta anos desde a época em que Watson e Crick decodificaram o gene até a terapia genética humana começar.

UM ESCÂNDALO CHOCA O MUNDO

Foi no contexto da esperança febril e exacerbada que o bioquímico coreano Hwang Woo-Suk anunciou, em 2004, que tivera êxito na criação de uma célula-tronco embrionária a partir de uma célula-tronco adulta, por meio da transferência nuclear somática: a injeção num óvulo humano. Hwang era um famoso workaholic, um viciado em trabalho, passando dezoito horas por dia no laboratório, sete dias por semana. O espetacular relatório de Hwang foi publicado em março de 2005, na revista Science. Pesquisadores do mundo inteiro viajaram para a Coréia. O tratamento com célula-tronco humana parecia subitamente à beira da realidade. Hwang era um herói na Coréia. Foi designado para dirigir um novo Centro Internacional de Ce'lula-Tronco, financiado pelo governo coreano.

Mas em novembro de 2005, um colaborador americano de Pittsburgh anunciou que estava encerrando sua associação com Hwang. E, depois, um dos colegas de trabalho de Hwang revelou que ele obtivera os óvulos ilegalmente, de mulheres que trabalhavam em seu laboratório.

Em dezembro de 2005, a Universidade Nacional de Seul anunciou que as linhagens de células de Hwang eram uma ficção, assim como seu relatório publicado. A revista Science repudiou o que publicara. Hwang enfrenta agora um processo penal. A situação está nesse ponto.

PERIGOS DO "EXAGERO DA MÍDIA"

"Que lições podemos extrair de tudo isso?", indagou o professor McKeown. "Primeiro, num mundo saturado pela mídia, o exagero persistente leva a uma credulidade injustificada nas mais delirantes alegações. Durante anos, a mídia apregoou a pesquisa com célula-tronco como o milagre iminente. Assim, quando alguém anunciava que o milagre chegara, as pessoas acreditavam. Isso sugere que há um perigo no exagero da mídia? Podem apostar que sim. Porque não apenas desperta esperanças cruéis entre os doentes, mas também afeta os cientistas. Eles começam a acreditar que o milagre está logo depois da esquina... muito embora devessem saber que não é bem assim.

"O que podemos fazer em relação aos exageros da mídia? Cessaria em uma semana se as instituições científicas quisessem. Mas não querem. Porque adoram o exagero. Sabem que produz financiamentos. Por isso, não vai mudar. Yale, Stanford, ejohns Hopkins promovem o exagero, como a Exxon ou a Ford. O mesmo acontece com os pesquisadores individuais nessas instituições. E, cada vez mais, os pesquisadores e universidades têm motivação comercial, assim como as grandes corporações. Sempre que vocês ouvirem um cientista alegar e suas declarações foram exageradas, ou apresentadas fora do contexto, basta perguntarem se ele escreveu uma carta de protesto para o editor. Noventa e nove vezes em cem, ele não escreveu.

"A próxima lição: A revisão pelos pares. Todos os dados de Hwang em Science foram revisados por seus pares, colegas profissionais. Se alguma vez precisarmos de qualquer prova de que a revisão pelos pares é um ritual vazio, este episódio a proporciona. Hwang fez alegações extraordinárias. Não forneceu provas extraordinárias. Muitos estudos têm demonstrado que a revisão pelos pares não melhora a qualidade dos papéis científicos. Os próprios cientistas sabem que isso não funciona. O público, porém, ainda considera como um sinal de qualidade, e diz:Este ensaio foi revisado pelos pares.” Ou então,Este ensaio não teve revisão pelos pares', como se isso significasse alguma coisa. Não significa.

"Em seguida, os próprios jornais. Onde estava a mão firme do editor da Science? Lembrem-se de que a Science é uma grande empresa. Há 115 pessoas trabalhando na revista. Contudo, uma fraude grosseira, inclusive fotos alteradas com Adobe Photoshop, passou despercebida. E Photoshop é bastante conhecido como um importante instrumento de fraude científica. A revista, no entanto, não detectou nada.

"Não que Science seja a única publicação que foi enganada. Pesquisa fraudulenta já saiu no New England Journal of Medicine, onde os autores omitiram informações críticas sobre os ataques cardíacos relacionados com Vioxx; em Lancet, onde um relatório sobre drogas e câncer oral foi fabricado... nesse, 250 pessoas da relação de pacientes tinham a mesma data de nascimento! Isso deveria ter sido uma indicação. A fraude médica é mais do que um escândalo: é uma ameaça à saúde pública. Mesmo assim, continua a ocorrer."

O CUSTO DA FRAUDE

"O custo dessa fraude é enorme, calculado em trinta bilhões de dólares por ano, provavelmente três vezes mais", disse McKeown. "A fraude na ciência não é tão rara, e não se limita a setores marginais.


As instituições e pesquisadores mais respeitados já foram flagrados em dados falsos. Até mesmo Francis Collins, diretor do Projeto Genoma Humano, do Instituto Nacional de Saúde, foi indicado como co-autor em cinco estudos adulterados, que tiveram de ser retirados.

"A maior lição é que a ciência não é especial... ou pelo menos não é mais. Talvez fosse no tempo em que Einstein conversava com Niels Bohr, e havia apenas umas poucas dezenas de pesquisadores importantes em cada área. Mas há agora três milhões de pesquisadores nos Estados Unidos. Não é mais uma vocação, mas uma carreira. A ciência é uma atividade humana tão corruptível quanto qualquer outra. Seus participantes não são santos; são seres humanos, e fazem o que os seres humanos fazem... mentem, trapaceiam, roubam uns dos outros, processam, ocultam dados, exageram a própria importância, e denigrem injustamente as opiniões opostas. Assim é a natureza humana. E não vai mudar."

 

No Laboratório Animal da BIOGEN, Tom Weller passava pela fileira de gaiolas ao lado de Josh Winkler, que aplicava nos ratos doses de vírus com genes inseridos. Era a rotina diária dos dois. O celular de Tom tocou.

Josh lançou-lhe um olhar. Josh era o superior. Podia receber telefonemas no trabalho. Tom não podia. Ele tirou uma das luvas de borracha e pegou o celular no bolso.

-Alô?

- Tom?

Era sua mãe.

- Oi, mamãe. Estou trabalhando. Josh lançou-lhe outro olhar.

- Posso ligar mais tarde? — indagou Tom.

- Seu pai sofreu um acidente de carro ontem à noite. Ele... morreu.

- O quê?

Tom sentiu uma súbita vertigem. Teve de se encostar nas gaiolas dos ratos, com alguma dificuldade para respirar. Josh lançou-lhe agora um olhar preocupado.

- O que aconteceu, mamãe?

- O carro bateu num viaduto por volta de meia-noite. Levaram-no para o Memorial Hospital de Long Beach, mas ele morreu no início desta manhã.

- Oh, Deus! Você está em casa, mamãe? Quer que eu vá até aí? Rachel já sabe?

- Acabei de falar com ela.

- Irei para aí.

- Tom, detesto lhe pedir isso, mas...

- Quer que eu fale com Lisa?

- Sinto muito. Não sei onde ela está. — Lisa era a ovelha negra da família. A filha mais jovem, acabara de completar vinte anos. Não falava com a mãe havia anos. — Você sabe, Tom?

- Acho que sim. Ela me ligou há poucas semanas.

- Para pedir dinheiro?

- Não. Apenas para me dar seu endereço. Está em Torrance.

- Não consigo falar com ela.

- Irei até lá.

- Avise que o funeral será na quinta-feira, se ela quiser ir.

- Pode deixar.

Tom fechou o celular. Virou-se para Josh, que o fitava com uma expressão preocupada.

- O que aconteceu?

- Meu pai morreu.

- Sinto muito...

- Acidente de carro, ontem à noite. Preciso avisar minha irmã.

- Tem de sair agora?

- Passarei pelo escritório na saída e pedirei a Sandy para vir ajudá-lo.

- Sandy não pode fazer isso. Não conhece a rotina.

- Josh, tenho de ir.

O tráfego era intenso na 405. Tom levou quase uma hora para alcançar o velho e miserável prédio de apartamentos na South Acre, em Torrance. Tocou a campainha do apartamento 38. O prédio ficava próximo da via expressa, e o barulho de tráfego era constante.

Ele sabia que Lisa trabalhava à noite. Eram dez horas da manhã. Talvez ela estivesse acordada. A campainha da porta do prédio soou, e ele empurrou-a. O saguão tinha um cheiro forte de urina de gato. O elevador não funcionava. Tom subiu a escada para o terceiro andar, desviando-se dos sacos de plástico cheios de lixo. Um cachorro abrira um saco, e o conteúdo espalhava-se por dois ou três degraus. Ele parou na porta do apartamento 38. Tocou a campainha.

— Espere a porra de um minuto! — gritou a irmã.

Tom esperou. Depois de um momento, ela abriu a porta. Usava um roupão. Os cabelos pretos curtos estavam penteados para trás. Parecia transtornada.

— A vaca telefonou.

— Mamãe?

— Ela me acordou. — Lisa virou-se e afastou-se da porta. O irmão seguiu-a. — Pensei que era o entregador da loja de bebidas.

O apartamento era o caos. Lisa foi para a cozinha. Tateou entre as panelas e pratos empilhados na pia, até encontrar uma xícara de café. Lavou-a.

— Quer um café? Tom sacudiu a cabeça.

— Mas que merda, Lise... isto é uma pocilga.

— Você sabe que trabalho à noite.

Ela nunca se importara com seu ambiente. Mesmo quando criança, seu quarto vivia desarrumado. Lisa parecia nem notar. Tom olhou pelas cortinas ensebadas da janela da cozinha para o tráfego se arrastando pela 405.

— Como vai o trabalho?

— E na House of Pancakes. E não vai a lugar nenhum. É a mesma porra todas as noites.

— O que mamãe disse?

— Ela queria saber se eu ia ao funeral.

— E o que você disse?

— Mandei que se fodesse. Por que eu deveria ir? Ele não era meu pai.

Tom suspirou. Era uma discussão antiga na família. Lisa achava que não era filha de John Weller.

— Você também acha que não era — acrescentou Lisa.

— Tenho certeza que era.

— Você diz qualquer coisa que mamãe quiser que diga.

Ela tirou uma ponta de cigarro de um cinzeiro transbordando. Inclinou-se para acendê-lo no queimador do fogão.

— Ele estava de porre quando bateu?

- Não sei.

- Aposto que havia enchido a cara. Ou foi por causa daqueles esteróides que usava para desenvolver o corpo.

O pai de Tom era um fisiculturísta. Começara tarde, mas chegara a competir em concursos de amadores.

- Papai não usava esteróides.

- Claro que usava, Tom. Eu costumava dar uma olhada no banheiro. Ele sempre tinha um pacote de seringas.

- Você não gostava dele.

- Isso não tem mais qualquer importância. Ele não era meu pai. Não estou interessada.

- Mamãe sempre disse que ele era seu pai, que você só falava isso porque não gostava dele.

- Quer saber de uma coisa? Podemos esclarecer isso de uma vez por todas.

- Como?

- Com um teste de paternidade.

- Não comece com isso, Lisa.

- Não estou começando, mas acabando.

- Não faça isso. Prometa que não fará. Papai está morto, mamãe transtornada. Quero que prometa.

- Sabia que você é um cagão?

Foi quando Tom percebeu que a irmã estava à beira das lágrimas. Abraçou-a, e ela começou a chorar. Ficaram assim, enquanto ela tremia e balbuciava:

- Sinto muito... sinto tanto...

Depois que o irmão saiu, Lisa esquentou o café no microondas. Sentou à mesa da cozinha, ao lado do telefone. Ligou para Informações. Obteve o número do hospital. Um momento depois, ouviu a telefonista dizer:

- Memorial de Long Beach.

- Quero falar com a Morgue.

- Sinto muito, mas a Morgue fica no departamento de medicina legal do condado. Quer o telefone de lá?

- Alguém de minha família acaba de morrer nesse hospital. Onde o corpo estaria agora?

- Um momento, por favor. Vou transferir a ligação para a patologia.

Quatro dias depois, a mãe tornou a ligar.

- O que pensa que está fazendo?

- Como assim?

- Indo ao hospital e pedindo o sangue de seu pai.

- Ele não é meu pai.

- Nunca se cansa desse jogo, Lisa?

- Não. E posso garantir que ele não é meu pai, porque recebi o resultado do teste genético. Deu negativo. Diz aqui... — ela pegou a folha impressa em computador -.. que há menos de uma chance em 2,9 milhões de que John J. Weller seja meu pai.

- Que teste genético?

- Mandei fazer um teste genético.

- Você é cheia de merda.

- Não, mamãe. Você é que é cheia de merda. John Weller não era meu pai, e o teste genético comprova isso. Eu sempre tive certeza.

- É o que veremos - disse a mãe, desligando em seguida.

Cerca de meia hora depois, seu irmão Tom telefonou.

- Oi, Lise...

Muito descontraído e afável.

- Acabo de receber uma ligação de mamãe, Lise.

- É mesmo?

- Ela disse alguma coisa sobre um teste.

- É verdade. Mandei fazer um teste, Tommy. E adivinhe qual foi o resultado?

- Já sei. Quem fez o teste, Lise?

- Um laboratório aqui em Long Beach.

- Que laboratório?

- O BioRad Testing.

- Hum... Esses laboratórios que anunciam na Internet não são confiáveis. Sabe disso, não é?

— Eles garantiram.

— Mamãe está transtornada.

— Uma pena.

— Sabia que ela quer fazer o teste agora? E mover uma ação judicial? Porque você a está acusando de infidelidade.

— Estou pouco ligando, Tommy. Sabia disso?

— Lise, acho que isso está causando problemas desnecessários em torno da morte de papai.

— Seu pai... não o meu.

 

KEVIN McCORMICK, diretor-administrativo do Memorial de Long Beach, levantou os olhos para o homem atarracado que entrava em sua sala e perguntou:

— Como isso pôde acontecer?

Ele empurrou um maço de papéis através da mesa. Marty Ro-berts, o chefe da patologia, deu uma olhada rápida nos documentos.

— Não tenho a menor idéia.

— A esposa do falecido Sr. John J. Weller está nos processando por entregar seu tecido sem autorização para a filha.

— Qual é a situação legal? — perguntou Marty Roberts.

— Indefinida. O departamento jurídico diz que a filha é da família, e por isso tinha o direito de pedir tecidos para fazer testes de doenças que poderiam afetá-la. O problema é que ela fez um teste de paternidade, e o resultado foi negativo. Portando, ela não é filha do falecido. O que faz com que a entrega dos tecidos seja não-autorizada.

— Não podíamos saber disso na ocasião...

— Claro que não. Mas estamos falando sobre a lei. A questão importante é a seguinte: A família pode nos processar? A resposta é sim, eles têm base para uma ação judicial.

— Onde está o corpo agora?

— Já foi enterrado. Há oito dias.

— Entendi. - Marty tornou a folhear os papéis. — E estão pedindo...

— Além de uma indenização por danos não especificados, querem amostras de sangue e tecido para realizarem novos testes. Temos amostras do sangue ou tecido do falecido?

— Tenho de verificar. Mas presumo que sim.

- Temos mesmo?

- Guardamos muitos tecidos hoje em dia, Kevin. De todos os pacientes que entram no hospital, colhemos tanto quanto é legalmente possível...

— Essa é a resposta errada — declarou McCormick, irritado.

— Então qual é a resposta certa?

- Não temos nenhum tecido desse homem.

- Mas saberão que temos. No mínimo, fizemos um exame toxicológico, por causa do acidente. Por isso, temos amostra do sangue...

— Essa amostra foi perdida.

- Muito bem, foi perdida. Mas de que adianta? Eles sempre podem exumar o corpo para colherem todos os tecidos que quiserem.

- Correto.

— E então?

— E então que deixamos que eles façam isso. É o conselho do departamento jurídico. A exumação exige tempo, autorizações, e dinheiro. Estamos calculando que eles não dispõem de tempo nem dinheiro, e que a ação acabará sendo abandonada.

- Muito bem. E por que me chamou?

- Porque preciso que você volte à patologia e confirme isso para mim, que infelizmente não temos mais amostras do falecido, e que tudo que não foi entregue à filha se perdeu ou extraviou.

— Entendido.

— Ligue para mim dentro de uma hora.

Marty Roberts entrou no laboratório de patologia no porão. Seu subordinado direto, Raza Rashad, um homem de 27 anos, bonito, de olhos escuros, limpava as mesas de aço inoxidável para as próximas autópsias. A bem da verdade, era Raza quem realmente dirigia o laboratório de patologia. Marty sentia-se sobrecarregado com a carga de problemas administrativos, cuidando dos patologistas sêniores, os residentes, os plantões dos estudantes de medicina, e todo o resto. Passara a depender de Raza, que era muito inteligente e ambicioso.

— Oi, Raza. Lembra daquele branco que entrou aqui há uma semana, com lesões de esmagamento? Morto num acidente de carro?

— Lembro. Heller ou Weller.

- A filha pediu o sangue do pai?

- Pediu. E demos.

- Ela mandou fazer um teste de paternidade, e o resultado foi negativo. O cara não era seu pai.

Raza piscou, surpreso.

- É mesmo?

- E, sim. Agora, a mãe está transtornada. Quer mais tecidos. O que temos?

- Eu teria de verificar. Provavelmente o de sempre. De todos os órgãos principais.

- Alguma possibilidade do material ter se extraviado? De tal forma que não pudéssemos encontrá-lo?

Raza acenou com a cabeça, lentamente.

— Talvez. Sempre é possível ocorrer um equívoco na hora de etiquetar. Neste caso, seria muito difícil encontrar.

— Pode levar meses?

— Ou anos. Talvez nunca mais se encontre.

- Seria lamentável. E a amostra de sangue para o exame toxico-lógico?

Raza franziu o rosto.

— Fica com o laboratório. Não teríamos acesso ao depósito em que são guardadas as amostras.

- Quer dizer que eles ainda têm essa amostra de sangue?

— Isso mesmo.

— E não temos acesso? Raza sorriu.

— Talvez eu leve dois ou três dias para conseguir.

- Certo. Faça isso.

Marty Roberts foi para o telefone. Ligou para o diretor-administrativo. Quando McCormick atendeu, ele disse:

— Tenho más notícias, Kevin. Infelizmente, todas as amostras de tecidos foram perdidas ou extraviadas.

- Lamento saber disso - murmurou McCormick, desligando em seguida.

— Marty, há algum problema com esse tal de Weller? - perguntou Raza, entrando na sala.

— Não... não há mais. E já lhe disse antes... não me chame de Marty. Meu nome é Dr. Roberts.

 

No Laboratório da Radial Genomics, em La Jolla, Charlie Huggins virou o monitor de tela plana para mostrar a manchete a Henry Kendall: ALEGADA FRAUDE DE MACACO FALANTE.

- Eu não disse? — indagou Charlie. - Passa uma semana e descobrimos que a história era uma impostura.

- Está bem, está bem, eu me enganei — disse Henry. — Fiquei preocupado sem motivo.

- Muito preocupado...

— Já é passado. Podemos conversar sobre uma coisa importante?

— O que é agora?

— O gene da busca de novidade. Nosso pedido de subvenção foi negado. — Ele começou a digitar no teclado. - Mais uma vez, nos sacanearam... e foi seu favorito pessoal, o Papa da Dopamina, Dr. Robert A. Bellarmino, do Instituto Nacional de Saúde.

Durante os últimos dez anos, os estudos do cérebro concentravam-se cada vez mais num mediador neuroquímico chamado dopamina. Os níveis de dopamina pareciam importantes para a manutenção da saúde, assim como em doenças como parkinsonismo e esquizofrenia. Pelo trabalho no laboratório de Charlie Huggins, parecia que os receptores de dopamina no cérebro eram controlados pelo gene D4DR, entre outros. O laboratório de Charlie estava na vanguarda dessa pesquisa, até que um cientista rival, Robert Bellarmino, do Instituto Nacional de Saúde, começara a se referir ao D4DR como o "gene da novidade", o gene que supostamente controlava o impulso de assumir riscos, procurar novos parceiros sexuais, ou se empenhar num comportamento de busca de emoções.

Como Bellarmino explicava, o fato dos níveis de dopamina serem mais altos nos homens do que nas mulheres era a razão para a maior temeridade dos homens e sua atração por tudo, da escalada de montanhas à infidelidade.

Bellarmino era um cristão evangélico e um eminente pesquisador no instituto. Com extrema habilidade política, era um cientista que compreendia seu tempo. Combinava com perfeição um modesto talento científico com uma excepcional noção do funcionamento da mídia. Seu laboratório fora o primeiro a contratar uma agência de relações públicas; em conseqüência, suas idéias tinham invariavelmente uma boa cobertura da imprensa. (O que, por sua vez, atraía os mais brilhantes e mais ambiciosos pesquisadores de pós-doutorado, que realizavam um trabalho extraordinário para ele, aumentando seu prestígio ainda mais.)

No caso do DR. Bellarmino era capaz de moldar seus comentários de acordo com as convicções da audiência, falando com entusiasmo sobre o novo gene para grupos progressistas, ou menosprezando-o para grupos conservadores. Era pitoresco, orientado para o futuro, e desinibido em suas previsões. Chegava ao ponto de sugerir que um dia poderia ser criada uma vacina para prevenir a infidelidade.

O absurdo desses comentários irritava tanto Charlie e Henry que seis meses antes eles haviam solicitado uma subvenção para testarem a prevalência do "gene da novidade".

A proposta era da maior simplicidade. Enviariam equipes de pesquisa a parques de diversões, a fim de tirar amostras de sangue das pessoas que andavam várias vezes na montanha-russa. Em teoria, essas pessoas teriam mais probabilidade de possuir o gene.

O único problema na solicitação à Fundação Nacional de Ciência era o fato de que a proposta seria lida por avaliadores anônimos. E era bem provável que um dos avaliadores fosse Robert Bellarmino. E Bellarmino tinha uma reputação do que era chamado, em termos polidos, de "apropriação indébita".

- Seja como for, a fundação rejeitou nosso pedido - disse Henry. — Os avaliadores acharam que nossa idéia não era bastante válida. Um deles declarou que era "gaiata".

— O que isso tem a ver com Rob Roubo?

— Lembra onde propusemos realizar o estudo?

— Claro — respondeu Charlie. — Nos dois maiores parques de diversões do mundo, em dois países. Sandusky, nos Estados Unidos, e Blackpool, na Inglaterra.

— Adivinha quem está fora da cidade? — perguntou Henry. Ele apertou o botão de e-mail.

De: Rob Bellarmino

Assunto: Resposta Automática: Viagem

Passarei as duas próximas semanas fora do escritório. Se

precisar de um contato imediato, ligue, por favor, para o

meu escritório.

— Liguei para o escritório... e adivinhe o que descobri? Bellarmino foi para Sandusky, Ohio... e depois vai para Blackpool, Inglaterra.

— Filho-da-puta! Se você vai roubar a proposta de pesquisa de alguém, pelo menos deve ter a cortesia de mudá-la um pouco.

— É evidente que Bellarmino não se importa de sabermos que ele nos roubou - comentou Henry. - Isso não o deixa furioso? O que acha que devemos fazer? Acusá-lo de violações éticas?

— Eu adoraria fazer isso, mas não devemos. Se o acusarmos formalmente de conduta imprópria, o processo consumiria muito tempo, com um excesso de burocracia. Nossas subvenções poderiam secar. E, no final, o protesto não daria em nada. Rob tem a maior influência no Instituto Nacional de Saúde. Dispõe de imensas instalações de pesquisa e distribui milhões em subvenções. Promove reuniões de orações com congressistas. É um cientista que acredita em Deus. É adorado no Congresso. Nunca aceitariam uma acusação de conduta imprópria. Mesmo que o surpreendêssemos enrabando um assistente no laboratório, ele não seria acusado.

— Então simplesmente o deixamos agir?

— Não é um mundo perfeito — disse Charlie. — Temos muito o que fazer. Vamos deixar isso de lado.

 

Barry Sindler estava entediado. A mulher à sua frente falava sem parar. Era um tipo óbvio... a vaca rica da Costa Leste que usava uma calça comprida, Katharine Hepburn com uma atitude, um fundo de investimentos, e um sotaque anasalado de Newport. Apesar de seus ares aristocráticos, no entanto, o melhor que ela podia conseguir era trepar com um professor de tênis, igual a todas as idiotas de peitos falsos de Los Angeles.

Mas ela combinava perfeitamente com o advogado babaca que sentava ao seu lado... um imbecil chamado Bob Wilson, com sua presunção de superioridade, usando um terno listrado, camisa com botões no colarinho, gravata listrada, e aqueles ridículos sapatos de bico fino, com furinhos nas pontas. Não era de admirar que todos o chamassem de Whitey Wilson. O branco azedo. Wilson nunca se cansava de lembrar a todos que era um advogado formado em Harvard... como se alguém desse alguma importância. Barry Sindler, com toda certeza, não dava. Porque sabia que Wilson era um cavalheiro. O que na verdade significava que era um cagão. Não pulava para a jugular.

E Sindler sempre saltava para a jugular.

A mulher, Karen Diehl, ainda falava. Jesus, como aquelas sacanas ricas gostavam de falar! Sindler não a interrompeu porque não queria que Wilson declarasse nos autos que ele pressionara a mulher. Wilson já dissera isso quatro vezes. Assim, Sindler optara por deixar a sacana falar. Deixar que ela contasse em detalhes exaustivos e intermináveis, incrivelmente chatos, como o marido era um péssimo pai e um merda total. Porque a verdade é que fora ela quem arrumara um amante.

Não que isso pudesse ser alegado no tribunal. A Califórnia tinha um divórcio sem culpa, o que significava que não havia necessidade de motivos específicos para o divórcio, apenas "diferenças irreconciliáveis". Mas a infidelidade de uma mulher sempre influenciava o processo. Porque em mãos hábeis - as mãos de Barry — esse fato podia ser facilmente convertido na insinuação de que aquela mulher tinha prioridades mais importantes do que os filhos queridos. Era uma mãe negligente, uma guardiã inconfiável, uma mulher egoísta que procurava os prazeres pessoais e deixava os filhos durante o dia inteiro com uma empregada que só falava espanhol.

E era muito atraente, aos 28 anos de idade, pensou Sindler. O que também depunha contra ela. Na verdade, Barry Sindler já podia ver o tema central de sua argumentação se delineando, sem qualquer dificuldade. E Whitey Wilson parecia um pouco ansioso. Era bem provável que já imaginasse para onde Sindler levaria o caso.

Ou talvez Wilson estivesse preocupado pelo fato de Sindler acompanhar o depoimento. Porque Barry Sindler, normalmente, não conduzia depoimentos de cônjuges. Deixava isso para os peões do escritório, preferindo passar o tempo em audiências que lhe permitissem cobrar honorários maiores. Finalmente, a mulher fez uma pausa para recuperar o fôlego. Sindler aproveitou para interferir:

- Sra. Diehl, eu gostaria de manter essa linha de inquirição e passar para outra questão. Estamos formalmente solicitando que se submeta a uma bateria completa de testes genéticos num centro de reputação incontestável, de preferência a UCLA, e...

A mulher empertigou-se abruptamente, o rosto vermelho.

- Não!

- Não vamos ser precipitados - disse Whitey, pondo a mão no braço de sua cliente.

Ela retirou o braço num movimento brusco, furiosa.

- Não! Absolutamente não! Eu me recuso!

Que maravilha! Uma reação inesperada... e maravilhosa.

- Na expectativa de sua possível recusa - continuou Sindler —, preparamos uma petição para que o tribunal determine esses testes.

Ele estendeu o documento para Whitey e acrescentou:

- Esperamos que o juiz defira a petição.

 Nunca ouvi falar disso — murmurou Whitey, folheando as páginas. - Testes genéticos num caso de custódia...

Mas agora a Sra. Diehl estava completamente histérica.

- Não! Não! Não farei teste nenhum! Foi idéia dele, não foi? O filho-da-puta! Como ele ousa? Aquele filho-da-puta traiçoeiro e covarde!

Whitey fitava a cliente com uma expressão de perplexidade.

- Sra. Diehl, acho que é do seu melhor interesse conversarmos sobre isso em particular...

- Não! Não há conversa! Não farei teste nenhum! Ponto final! Sindler deu de ombros.

- Neste caso, teremos de apresentar a petição...

- Vá se foder! E ele que se foda também! Que se fodam todos vocês! Não haverá nenhuma porra de teste!

Ela levantou-se, pegou a bolsa, e saiu da sala, batendo a porta. Houve um momento de silêncio, até que Sindler disse:

- Vamos registrar que às quinze para as quatro da tarde a testemunha deixou a sala, encerrando, assim, o depoimento.

Ele começou a guardar os papéis em sua pasta. Whitey Wilson comentou:

- Nunca ouvi falar disso, Barry. O que um teste genético tem a ver com a custódia de uma criança?

- Era o que os testes pretendiam descobrir — respondeu Sindler. - Este é um procedimento novo, mas creio que vai descobrir que se tornará um dos mais importantes.

Ele fechou a pasta, apertou a mão flácida de Whitey e foi embora.

 

Josh Winkler fechou a porta de sua sala e se encaminhava para o restaurante da empresa quando seu celular tocou. Era a mãe. Tinha um tom cordial, o que era sempre um sinal perigoso.

- Josh, querido, gostaria que me dissesse uma coisa. O que fez com seu irmão?

- O que fiz com ele? Como assim? Não fiz nada. Não o vejo há duas semanas, desde que fui buscá-lo na cadeia.

- Adam foi indiciado hoje. Charles compareceu, para representá-lo.

- Hum... - Josh ficou esperando pelo resto. - O que aconteceu?

- Adam chegou no tribunal na hora marcada. Usava uma camisa limpa e gravata, terno limpo, cabelos cortados, tinha até os sapatos engraxados. Declarou-se culpado, pediu para ser inscrito num programa de reabilitação, disse que não consumia drogas havia duas semanas, arrumou um emprego...

- O quê?

- Isso mesmo, ele arrumou um emprego. Pelo que sei, como motorista de limusine em sua antiga empresa. Vem trabalhando firme há duas semanas. Charles diz que ele engordou...

- Não acredito.

- Posso entender sua reação. Charles também não acreditava, mas jura que é verdade. Adam é como um novo homem. Adquiriu uma súbita maturidade. Como se tivesse crescido de repente. Não acha que é um milagre? Joshua? Ainda está no telefone?

Uma breve pausa.

- Estou.

— Não é um milagre?

— É, sim, mamãe. Um milagre.

— Liguei para Adam. Ele tem um celular agora. Atendeu no mesmo instante. E disse que você fez uma coisa para ajudá-lo. O que foi?

— Nada, mamãe. Apenas tivemos uma conversa.

— Ele disse que você lhe deu alguma coisa genética. Um inalador. Oh, Deus, pensou Josh. Há regras contra esse tipo de coisa. E regras

sérias. Experimentação humana sem solicitação formal, reuniões do conselho de aprovação, seguindo as normas federais. Josh seria despedido sumariamente.

— Não, mamãe. Ele deve estar se lembrando errado. Estava bastante chumbado em nosso último encontro.

— Ele disse que havia um spray.

— Não havia nada, mamãe.

— Ele aspirou um spray para rato.

— Não, mamãe.

— Ele disse que foi isso.

— Não, mamãe.

— Não seja tão defensivo. Pensei que ficaria satisfeito. Afinal, Joshua, está sempre procurando por novas drogas. Com grandes aplicações comerciais. Já imaginou se esse spray afastar as pessoas das drogas? Se acabar com o vício?

Josh sacudia a cabeça.

— Não aconteceu nada, mamãe.

— Está bem. Você não quer me dizer a verdade. Já entendi. Seu spray era alguma coisa experimental?

— Mamãe...

— Porque falei com Lois Graham a respeito. Ela está desesperada porque seu Eric abandonou a faculdade. Ele está sempre drogado e...

— Mamãe...

— E ela quer experimentar esse spray com o filho. Jesus!

— Não pode falar sobre isso, mamãe.

— E há também Helen Stern. Sua filha é viciada em pílulas para dormir. Bateu com o carro. E estão falando em levar seu bebê para um lar de adoção. E Helen quer...

- Por favor, mamãe! Não pode mais falar sobre isso!

- Ficou louco? Tenho de falar. Você devolveu meu filho. É um milagre. Não compreende, Joshua? Você realizou um milagre. O mundo inteiro vai falar sobre o que fez... quer você goste ou não.

Josh começava a suar, a sentir-se tonto, mas subitamente a visão desanuviou, a mente tornou-se lúcida. O mundo inteiro vai falar sobre isso.

Era verdade, é claro. Se você podia livrar as pessoas das drogas? Seria o mais valioso produto farmacêutico da última década. Todo mundo ia querer comprar. E se fizesse mais do que isso? Poderia curar os transtornos obsessivo-compulsivos? Poderia curar os transtornos do déficit de atenção? O gene da maturidade tinha efeitos comportamentais. Já sabiam disso. O fato de Adam aspirar o aerossol fora uma dádiva de Deus.

E seu pensamento seguinte foi: Qual era a situação do pedido de patente de ACMPD3N7?

Ele decidiu esquecer o almoço e voltou para sua sala.

- Mamãe?

- O que é, Joshua?

- Preciso de sua ajuda.

- Claro, querido. Qualquer coisa.

- Preciso que faça uma coisa por mim, e nunca fale a respeito com ninguém.

- É um pouco difícil...

- Sim ou não, mamãe.

- Está bem, querido.

- Disse que o filho de Lois Graham está sempre drogado e abandonou a faculdade?

- Isso mesmo.

- Onde ele está agora?

-Ao que tudo indica, em alguma pensão ordinária, nas proximidades do campus...

- Sabe onde fica?

- Não, mas Lois foi visitá-lo. Ela me disse que era um lugar miserável. Fica na East Thirty-Eighth, uma velha casa de madeira com venezianas azuis descascadas. Oito ou nove viciados dormem no chão. Mas posso ligar para Lois e perguntar...

— Não faça nada, mamãe.

- Mas você disse que precisava da minha ajuda...

- Para mais tarde, mamãe. Por enquanto, não precisa se preocupar. Ligarei para você daqui a um ou dois dias.

Josh anotou num bloco:

East Thirty-Eighth Street

E pegou as chaves do carro.

Rachel Allen, que trabalhava na seção de distribuição de material, avisou:

- Você ainda não devolveu um tubo de oxigênio que levou há duas semanas, Josh. Nem o frasco de vírus que o acompanhava.

A empresa media os vírus restantes nos frascos devolvidos, como um meio de conferir as dosagens para os ratos. - Tem razão... estou sempre esquecendo.

- Onde está?

- No meu carro.

- No seu carro? Josh, é um retrovírus contagioso.

— Para os ratos.

— Mesmo assim. Deve permanecer sempre num ambiente de laboratório de pressão negativa.

Rachel era bastante rigorosa com as normas, mas ninguém lhe dispensava muita atenção.

— Sei disso, Rach, mas acontece que tive uma emergência de família. Precisei tirar meu irmão... —Josh baixou a voz —... da cadeia.

— É mesmo?

— É, sim.

— O que ele fez? Josh hesitou.

— Assalto a mão armada.

- Que coisa terrível!

— Uma loja de bebidas. Mamãe ficou arrasada. Mas trarei o tubo de volta. Posso levar mais um agora?

- Só permitimos a saída de um tubo de cada vez.

- Preciso de mais um agora. Por favor, Rach. Estou sob muita pressão.

Uma chuva fraca caía. As ruas estavam escorregadias de óleo e tremeluziam em padrões de arco-íris. Sob as nuvens baixas e ameaçadoras, ele dirigia pela East Thirty-Eighth Street. Era uma parte antiga da cidade, ultrapassada pela reconstrução moderna ao norte. Ali, casas construídas nas décadas de 1920 e 1930 ainda estavam de pé. Josh passou por diversas casas de madeira, em variados estados de abandono. Uma delas tinha uma porta azul. Nenhuma tinha venezianas azuis.

Ele acabou numa área de armazéns, com plataformas de carga nos dois lados. Fez a volta e retornou. Dirigia tão devagar quanto podia, até que finalmente avistou a casa. Não ficava exatamente na Thirty-Eighth, mas na Alameda, quase na esquina, recuada, por trás de mato alto e arbustos ralos. Havia um velho colchão, coberto de ferrugem, na calçada na frente da casa. Um pneu de caminhão no jardim. E uma Kombi toda amassada estacionada junto do meio-fio.

Josh parou no outro lado da rua. Ficou observando a casa. E esperou.

 

O caixão subiu ao sol. Parecia igual ao momento em que fora enterrado, uma semana antes, exceto pelos torrões de terra que caíam da parte inferior.

- Tudo isso é uma indignidade — murmurou Emily Weller.

Ela mantinha-se de pé à beira da sepultura, muito tensa, acompanhada pelo filho Tom e pela filha Rachel. Lisa não estava presente, é claro. Ela era a causa de tudo aquilo, mas não quisera se dar ao trabalho de verificar o que fizera com seu próprio pai.

O caixão balançou no ar, enquanto os coveiros puxavam-no para o lado do buraco, sob a orientação do patologista do hospital, um homenzinho nervoso chamado Marty Roberts. O homem tinha mesmo razão para estar nervoso, pensou Emily, se fora ele quem dera a amostra de sangue a Lisa, sem a permissão de ninguém.

- O que acontece agora? - perguntou ela, virando-se para o filho.

Tom tinha 26 anos. Vestia terno e gravata. Fizera o mestrado em microbiologia e trabalhava para uma grande empresa de biotecnologia de Los Angeles. Tom era do bem, assim como a filha Rachel. Rachel cursava o último ano de administração na Universidade do Sul da Califórnia.

- Vão tirar o sangue de Jack aqui? — acrescentou ela.

- Tirarão mais do que sangue — informou Tom.

- Como assim?

- Para um teste genético desse tipo, em que há uma disputa judicial, eles costumam tirar tecidos de vários órgãos.

- Eu não sabia - murmurou Emily, franzindo o rosto.

Ela podia sentir o coração batendo forte. Detestava aquela sensação. Dali a pouco sentiria um aperto na garganta. Era sempre doloroso. Ela mordeu o lábio.

— Você está bem, mamãe?

— Deveria ter trazido meu calmante.

— Vai demorar muito? — perguntou Rachel.

— Não — respondeu Tom. — Deve levar apenas uns poucos minutos. O patologista abrirá o caixão, para confirmar a identidade do corpo. E depois o levará para o hospital, a fim de remover os tecidos para a análise genética. Devolverá o corpo para ser sepultado de novo amanhã ou depois.

— Amanhã ou depois? — Emily fungou e limpou os olhos. — Isso significa que teremos de voltar ao cemitério? Que teremos de enterrar Jack de novo? É tudo tão... tão...

— Eu sei, mamãe. - Tom apertou o braço da mãe. — E sinto muito. Mas não há outro jeito. Eles precisam verificar uma coisa chamada quimera...

— Não precisa dizer nada — murmurou a mãe, acenando com a mão. - Eu não entenderia mesmo.

— Está bem, mamãe.

E ele estendeu o braço pelos ombros de Emily.

Na mitologia antiga, as quimeras eram monstros compostos por partes de diferentes animais. A Quimera original tinha a cabeça de um leão, o corpo de uma cabra, a cauda de uma serpente. Algumas quimeras eram em parte humanas, como a Esfinge Egípcia, com o corpo de um leão, as asas de uma ave e a cabeça de uma mulher.

Mas as verdadeiras quimeras humanas — as pessoas com dois conjuntos de DNA — só haviam sido descobertas recentemente. Uma mulher precisando de um transplante de rim testara os filhos como possíveis doadores, apenas para descobrir que eles não partilhavam seu DNA. Fora informada que os filhos não eram seus, e instada a provar que realmente os gerara. Seguira-se uma ação judicial. Depois de consideráveis estudos, os pesquisadores compreenderam que o corpo da mulher continha dois conjuntos de DNA. Em seus ovários, encontraram óvulos com dois tipos de DNA. As células da pele do abdômen tinham o DNA de seus filhos. A pele dos ombros não tinha. Ela era um mosaico. Em cada órgão do corpo.

Descobriu-se que a mulher tivera originalmente uma irmã gêmea, mas, no início do desenvolvimento, o embrião da irmã se fundira com o seu. Por isso, a mulher era agora, literalmente, ela própria e a irmã.

Mais de cinqüenta quimeras haviam sido descobertas desde então. Os cientistas desconfiavam agora que o quimerismo não era tão raro quanto antes pensavam. E, com certeza, sempre que havia uma questão difícil de paternidade, o quimerismo tinha de ser considerado. Era possível que o pai de Lisa pudesse ser uma quimera. Para determinar isso, no entanto, eles precisariam de tecidos de todos os órgãos do corpo, de preferência de várias partes diferentes do mesmo órgão.

Era por isso que o Dr. Roberts precisava tirar tantas amostras de tecidos; e era por isso que o trabalho teria de ser feito no hospital, não à beira da sepultura.

O Dr. Roberts levantou a tampa do caixão e virou-se para a família, no lado oposto da sepultura.

— Um de vocês pode fazer a identificação, por favor?

— Eu farei - disse Tom.

Ele deu a volta e olhou para o caixão. O pai parecia surpreendentemente inalterado, exceto na pele, que tinha agora uma tonalidade cinza escura. Além disso, braços e pernas davam a impressão de terem encolhido, perdido massa, as pernas em especial, dentro da calça. Numa voz formal, o patologista perguntou:

— Este é seu pai, John J. Weller?

— E, sim.

— Obrigado. Tom disse:

— Dr. Roberts, sei que tem seus procedimentos, mas... se houver alguma possibilidade de retirar os tecidos aqui... para que minha mãe não tenha de passar por outro dia e outro enterro...

— Sinto muito - disse Marty Roberts. — Minhas ações são regidas pelas leis do Estado. Somos obrigados a levar o corpo para o hospital Para exame.

- Se pudesse... só por esta vez... desviar-se um pouco das normas...

- Eu bem que gostaria, mas não é possível.

Tom acenou com a cabeça. Voltou para junto da mãe e da irmã. A mãe perguntou:

- O que foi conversar com ele?

- Só queria fazer uma pergunta.

Tom olhou para trás, e viu que o Dr. Roberts estava agora inclinado, o corpo meio dentro do caixão. Abruptamente, o patologista empertigou-se. Foi falar no ouvido de Tom, para que ninguém mais pudesse ouvir.

- Sr. Weller, talvez devêssemos poupar os sentimentos de sua família. Se pudéssemos manter tudo entre nós...

- Claro. Neste caso...?

- Faremos tudo aqui. Deve demorar apenas alguns momentos. Vou buscar meus equipamentos.

Marty Roberts afastou-se apressado até um furgão próximo. Emily mordeu o lábio.

- O que ele está fazendo?

- Pedi-lhe que fizesse todos os testes aqui, mamãe.

- E ele concordou? Obrigada, querido. - Emily deu um beijo no filho. — Fará aqui todos os testes que teria de fazer no hospital?

- Não. Mas deve obter resultados suficientes para responder às suas perguntas.

Vinte minutos depois, as amostras de tecidos haviam sido recolhidas e guardadas numa série de tubos de vidro. Os tubos foram colocados nos espaços apropriados numa caixa de refrigeração de metal. O caixão foi baixado para a sepultura e desapareceu debaixo da terra.

- Vamos sair daqui - disse Emily Weller para os filhos. - Preciso de um drinque.

No carro, enquanto se afastavam, ela murmurou para Tom:

- Lamento que você tenha precisado fazer aquilo. O corpo do pobre Jack já sofreu muita decomposição?

- Não muita.

- Isso é bom... muito bom.

 

Marty Roberts suava muito quando chegou ao Memorial Hospital de Long Beach. Por causa do que fizera no cemitério, poderia perder sua licença, de um momento para outro. Um dos coveiros poderia pegar o telefone e ligar para a sede do condado. O pessoal do condado poderia especular por que Marty violara o protocolo, ainda mais com uma ação judicial pendente. Quando se retira tecidos no campo, corre-se o risco da contaminação. Todos sabiam disso. Assim, o pessoal do condado poderia se perguntar por que Marty Roberts assumira esse risco. E não passaria muito tempo para que começassem a pensar...

Merda, merda, merda!

Ele parou no estacionamento da emergência, ao lado das ambulâncias. Seguiu apressado pelo corredor do subsolo até a Patologia. Era hora do almoço, e não havia quase ninguém ali. As mesas de aço inoxidável estavam vazias.

Raza limpara tudo.

— Seu idiota! — gritou Marty. — Está querendo nos meter na cadeia?

Raza virou-se, lentamente.

— Qual é o problema?

— O problema é que eu lhe disse para só tirar os ossos quando o corpo fosse cremado. Não nos enterros. Só nas cremações. É tão difícil assim de entender?

— É isso que eu faço.

— Não, não é o que você faz. Acabo de chegar de uma exumação. Sabe o que descobri quando o cara foi desenterrado? Os braços muito finos, Raza. As pernas muito finas. Num enterro?

- Não é isso que eu faço.

- Mas alguém tirou os ossos!

Raza encaminhou-se para o escritório.

- Qual é o nome do defunto? -Weller.

- Esse cara de novo? O mesmo cujos tecidos perdemos, não é?

- Exato. Por isso, a família pediu a exumação. Porque ele foi enterrado.

Raza inclinou-se para a mesa, e teclou o nome do paciente. Olhou para a tela.

- Tem razão. Foi mesmo um enterro. Mas não cuidei desse corpo.

- Não foi você? Então quem foi? Raza deu de ombros.

- Meu irmão veio me substituir. Eu tinha um encontro naquela noite.

- Seu irmão? Que irmão? Ninguém mais deveria...

- Não se preocupe, Marty. Meu irmão vem para cá de vez em quando. Ele sabe o que fazer. Trabalha na morgue do Hilldale.

Marty removeu o suor da testa.

- Oh, Jesus! Há quanto tempo isso vem acontecendo?

- Talvez um ano.

- Um ano!

- Ele só vem à noite, Marty. Tarde da noite. Usa meu jaleco, parece comigo... Somos quase iguais.

- Espere um instante. Quem deu àquela garota a amostra de sangue? Para a tal de Lisa Weller?

- Às vezes ele comete erros.

- E às vezes ele trabalha de tarde?

- Só aos domingos, Marty. E só se eu tenho algum encontro marcado.

Marty segurou a beira da mesa para não perder o equilíbrio. Inclinou-se e respirou fundo.

- Um porra de um cara que não trabalha no hospital deu sem autorização uma amostra de sangue a uma mulher só porque ela pediu? É isso o que está querendo me dizer?

— Não era um porra de um cara, Marty. Era meu irmão.

— Jesus!

— Ele disse que a mulher era um tesão.

— Isso explica tudo.

— Ora, Marty, vamos ser razoáveis - disse Raza, num tom tranqüilizador. - Lamento muito pelo tal de Weller, mas qualquer um poderia ter feito o serviço. Sempre é possível que aconteça no cemitério. Com coveiros trabalhando como fornecedores independentes. Sabe que isso acontece o tempo todo. Pegaram aqueles caras em Phoenix. E os outros em Minnesota. E agora no Brooklyn.

— E estão todos na cadeia, Raza.

— É verdade, Marty. O fato é que eu disse a meu irmão para fazer isso.

— Você disse...

— Isso mesmo. Na noite em que o corpo de Weller chegou, tínhamos um pedido de entrega imediata de osso. O tal de Weller ajustava-se às medidas. Se não atendêssemos ao pedido, o que poderia acontecer? Você sabe que esses compradores de ossos não hesitam em trocar de fornecedor. Para eles, agora significa agora. Ou você fornece, ou está fora do negócio.

Marty suspirou.

— Quando eles dizem imediatamente, você tem mesmo de atender.

— Foi o que eu fiz.

Marty sentou na cadeira e começou a teclar.

— Mas se você retirou aqueles ossos há oito dias, não vejo qualquer transferência de pagamento para a minha conta.

— Não se preocupe. O dinheiro deve estar chegando.

— O correio ainda não entregou o cheque?

— Esqueci de fazer a transferência. Mas você receberá sua parte.

— Trate de providenciar logo. - Marty levantou-se para sair. — E mantenha seu irmão longe deste hospital daqui por diante. Está me entendendo?

— Claro, Marty, claro...

Marty Roberts saiu para tirar seu carro do espaço da emergência. Foi para a área do estacionamento que era exclusiva dos médicos. Passou um longo tempo sentado no carro. Pensando em Raza.

Mas você receberá sua parte.

Parecia que Raza começava a acreditar que o programa era seu. E que Marty Roberts trabalhava para ele. Raza distribuía os pagamentos. Raza decidia quem deveria ajudar. Raza não estava se comportando como um empregado; começava a se comportar como se estivesse no comando, o que era perigoso, por todos os tipos de razões.

Marty tinha de tomar uma providência. E tinha de tomá-la muito em breve.

Ou a perda da licença para exercer a medicina seria o menor de seus problemas.

 

Ao pôr-do-sol, o cubo de titânio que alojava a BioGen Research faiscava com um clarão vermelho ofuscante, e banhava o estacionamento adjacente com uma tonalidade laranja escura. Ao sair do prédio, o presidente da empresa, Rick Diehl, parou para pôr os óculos escuros, antes de se encaminhar para seu carro, um Porsche Carrera SC, novo e prateado. Adorava aquele carro, que comprara na semana anterior, em comemoração a seu divórcio iminente...

- Merda!

Ele não podia acreditar em seus olhos.

- Merda! Merda! Merda!

Sua vaga no estacionamento estava vazia. O carro desaparecera.

Aquela filha-da-puta!

Não sabia como a mulher fizera, mas tinha certeza de que fora ela quem levara seu carro. Provavelmente com a ajuda do namorado. Afinal, o novo namorado era um revendedor de carro. Depois do professor de tênis. Que sacana!

Ele tornou a entrar no prédio, furioso. Bradley Gordon, seu chefe de segurança, estava na área de espera do saguão, debruçado sobre o balcão, conversando com Lisa, a recepcionista. Lisa era atraente. Fora por isso que Rick a contratara.

- Mas que droga, Brad! — disse Rick Diehl. - Precisamos ver as gravações de segurança do estacionamento.

Brad virou-se.

- Por quê? O que aconteceu?

- Alguém roubou meu Porsche.

- Merda! Quando isso aconteceu?

Rick pensou: O cara errado para esse trabalho. Não era a primeira vez que ele pensava assim.

— Vamos verificar as gravações, Brad.

— Claro.

Brad piscou para Lisa. Depois, usou seu cartão magnético para abrir a porta para uma área de segurança. Rick seguiu-o, cada vez mais furioso.

A uma das duas mesas na sala de segurança, de paredes de vidro, um garoto examinava atentamente a palma da mão esquerda. Ignorava por completo os monitores à sua frente.

— Jason — disse Brad, num tom de advertência —, o Sr. Diehl está aqui.

— Oh, merda! - O garoto empertigou-se na cadeira. — Desculpe. Tenho uma erupção na mão. Não sabia se...

— O Sr. Diehl quer ver as gravações das câmeras de segurança. Que câmeras são exatamente, Sr. Diehl?

Oh, Jesus!

— As câmeras do estacionamento.

— Isso mesmo, o estacionamento. Jason, vamos começar há quarenta e oito horas e...

— Trouxe o carro ao vir para o trabalho esta manhã — informou Diehl.

— Certo. A que horas foi?

— Cheguei aqui às sete.

— Certo, Jason. Vamos começar às sete horas desta manhã. O garoto mudou de posição na cadeira.

— Ahn... as câmeras do estacionamento estão desligadas, Sr. Gordon.

— Ah, é isso mesmo. — Brad virou-se para Rick. - As câmeras do estacionamento estão desligadas.

— Por quê?

— Não tenho certeza. Achamos que é um problema de cabo.

— Há quanto tempo estão desligadas?

— Bem...

— Dois meses — disse o garoto.

— Dois meses?!

— Tivemos de encomendar peças para substituição — explicou Brad.

— Que peças?

— Da Alemanha.

— Que peças?

— Eu teria de verificar. O garoto interveio:

— Podemos ver o que as câmeras no telhado registraram. Levaram quinze minutos para voltar atrás na gravação digital e

tornar a projetá-la para frente. Rick viu o Porsche entrar no estacionamento. Ele saltou e entrou no prédio. O que aconteceu em seguida deixou-o surpreso. Dois minutos depois, outro carro parou ao lado, dois homens saltaram, arrombaram o Porsche num instante. Um deles sentou ao volante e partiu.

— Eles estavam à sua espera — comentou Brad. — Ou seguiram seu carro até aqui.

— É o que parece - disse Rick. — Fale com a polícia, e avise a Lisa que quero que ela me leve para casa em seu carro.

Brad ficou consternado ao ouvir isso.

O problema, refletiu Rick, enquanto Lisa o levava para casa, era que Brad Gordon era um idiota, mas não podia despedi-lo. Brad Gordon, que fora um surfista que não pensava em trabalhar, que abandonara a faculdade, alcoólico em reabilitação, era sobrinho de Jack Watson, um dos principais investidores na BioGen. Jack Watson sempre cuidara de Brad, sempre providenciara para que ele tivesse um emprego. E Brad invariavelmente se metia numa encrenca. Corria até o rumor de que Brad trepara com a esposa do vice-presidente da GeneSystems, em Paio Alto, pelo que fora devidamente demitido... mas não sem protestos do tio, que não via motivos para o afastamento do sobrinho. Watson fizera um comentário que se tornara famoso:

— A culpa é do próprio vice-presidente.

Mas agora... Sem câmeras de segurança no estacionamento. Há dois meses. Rick não podia deixar de se perguntar o que mais estaria errado na segurança da BioGen.

Ele olhou para Lisa, que dirigia com a maior tranqüilidade. Contratara-a para ser recepcionista logo depois que descobrira a infidelidade da esposa. Lisa tinha um belo perfil; poderia ter sido modelo. Quem refinara seu nariz e queixo era um gênio. E o corpo dela era adorável, com cintura fina e seios fascinantes. Tinha vinte anos, fazia um estágio de verão durante as férias na Universidade Estadual de Crestview, e irradiava saúde e sensualidade americanas. Todos na empresa sentiam tesão por ela.

Por isso, era surpreendente que Lisa, sempre que faziam amor, ficasse quase imóvel. Depois de alguns minutos, ela parecia perceber a frustração de Rick, e começava a fazer movimentos mecânicos, soltando pequenos grunhidos. Era como se alguém lhe tivesse explicado o que as pessoas faziam na cama. As vezes, quando Rick estava preocupado, distraído na cama, ela falava:

— Vamos, meu amor, vai fundo que já estou quase gozando...

Era como se isso pudesse incendiar a relação. Mas era sempre óbvio que ela mantinha a indiferença.

Rick fizera uma pequena pesquisa e descobrira uma síndrome chamada anedonia, a incapacidade de sentir prazer. Os anedônicos exibiam uma postura impassível, o que explicava o comportamento de Lisa na cama. Um fator interessante na anedonia era a possibilidade de ter um componente genético. Parecia envolver o sistema lím-bico do cérebro. Portanto, podia haver um gene para a condição. Rick tencionava realizar uma bateria de testes em Lisa um dia desses. Só para verificar.

Enquanto isso, as noites que passava com ela poderiam deixá-lo inseguro se não fosse por Greta, a austríaca com pós-doutorado que trabalhava no laboratório de microbiologia. Greta era gorducha, usava óculos, cabelos curtos num estilo masculino, mas trepava com o maior vigor, deixando os dois esbaforidos e cobertos de suor. Greta era de gritar, se contorcer, gemer. Rick sentia-se muito bem depois do ato.

O carro parou no prédio de apartamentos em que ele agora morava. Rick pegou as chaves no bolso. Lisa perguntou, em tom quase de indiferença:

— Quer que eu suba?

Ela era dona de lindos olhos azuis, com pestanas compridas. Lábios lindos e sensuais. Rick pensou: Por que não?

— Claro. Vamos subir.

Ele telefonou para seu advogado, Barry Sindler, a fim de comunicar que a esposa roubara o Porsche.

— Acha mesmo que foi ela? Sindler parecia em dúvida.

— Tenho certeza. Ela contratou dois homens. Uma câmera de segurança registrou a cena.

— Sua mulher aparece na gravação?

— Não. Só os homens. Mas garanto que ela estava por trás.

— Não tenho tanta certeza — comentou Sindler. — Em geral as mulheres vandalizam o carro de um homem, em vez de roubá-lo.

— Estou lhe dizendo...

— Está bem, vou verificar. Mas neste momento preciso repassar algumas coisas com você. Sobre a ação de divórcio.

No outro lado do quarto, Lisa tirava as roupas. Dobrava cada item com todo o cuidado e pendurava no encosto de uma cadeira. Usava um sutiã rosa e uma calcinha também rosa, mal cobrindo o púbis. Sem rendas, apenas um tecido liso, que se moldava ao corpo. Ela estendeu as mãos para trás, a fim de tirar o sutiã.

— Ligo para você mais tarde — murmurou Rick.


 

LOURAS EM EXTINÇÃO

Espécie em Risco de "Desaparecimento em 200 Anos"

Segundo a BBC, "um estudo de especialistas da Alemanha sugere que as pessoas com cabelos louros constituem uma espécie em risco e se tornarão extintas até 2202". Os pesquisadores previram que o último louro natural nasceria na Finlândia, um país que se gaba da mais elevada proporção de louros. Mas os cientistas dizem que bem poucas pessoas possuem agora o gene para que os louros durem por muito mais tempo. Os pesquisadores insinuaram que as chamadas pessoas louras de garrafa "podem ser culpadas pela extinção das rivais naturais".

Nem todos os cientistas concordam com a previsão de extinção iminente. Mas um estudo da Organização Mundial da Saúde indica que os louros naturais devem se tornar extintos nos próximos dois séculos.

Mais recentemente, a probabilidade de extinção foi noticiada em The Times, de Londres, à luz de novos dados sobre a evolução do gene MC 1R, que determina a louridão.

 

A selva estava completamente silenciosa. Não havia uma única cigarra cantando, nenhum grito de calau, nem mesmo o estardalhaço distante de um macaco. Um silêncio total... e não era de admirar, pensou Hagar. Ele balançou a cabeça, enquanto olhava para as dez equipes de televisão, do mundo inteiro, formando pequenos grupos. Muitos protegiam as lentes das câmeras, enquanto esquadrinhavam as copas das árvores. Hagar dissera-lhes que o silêncio era essencial, e por isso ninguém falava. Os franceses fumavam sem parar. Os alemães permaneciam calados, mas o cinegrafista estalava os dedos a todo instante, autoritário, e gesticulava para que seu assistente fizesse isso e aquilo. Os japoneses da NHK não falavam, mas a equipe da CNN de Cingapura, ao lado, sussurrava e trocava lentes, retinia caixas de metal. A equipe britânica da Sky TV, de Hong Kong, viera vestida de maneira imprópria. Agora, haviam tirado os tênis e arrancavam sanguessugas entre os dedos dos pés, resmungando no processo.

Tudo em vão.

Hagar alertara as empresas sobre as condições na Sumatra e as dificuldades de filmar ali. Recomendara que enviassem equipes de filmagem da vida selvagem, com experiência de campo. Ninguém dera atenção. Em vez disso, haviam despachado as equipes mais próximas para Berastagi; em conseqüência, metade das equipes se mantinha de prontidão, microfones estendidos. Parecia até que estavam prestes a emboscar um chefe de estado.

Esperavam ali havia três horas.

Até agora, o orangotango falante não aparecera. E Hagar estava disposto a apostar que ele não apareceria. Fitou um dos membros da equipe francesa e gesticulou para que apagasse o cigarro. O cara deu de ombros e virou as costas para Hagar. E não parou de fumar.

Um dos homens da equipe japonesa foi se postar ao lado de Hagar. Sussurrou:

— Quando esse animal vai aparecer?

— Quando houver silêncio.

— Está querendo dizer que não será hoje?

Hagar fez um gesto de desamparo, com as palmas viradas para cima.

— Somos demais?

Hagar acenou com a cabeça em confirmação.

— Talvez amanhã possamos vir sozinhos.

— Certo.

Houve nesse instante uma onda de excitamento entre as equipes. As pessoas correram para suas câmeras, ajustaram os tripés e começaram a filmar. Hagar ouviu vozes murmurando em várias línguas. O homem da Sky TV segurava o microfone perto dos lábios, falando num sussurro teatral:

— Estamos aqui, no fundo das remotas selvas da Sumatra, e acabamos de avistar a criatura que provocou especulações no mundo inteiro... o chimpanzé que dizem que fala, que até sabe palavrões.

Oh, Cristo, pensou Hagar. Ele virou-se para ver o que estavam filmando. Avistou uma pelagem marrom e uma cabeça escura. O animal não tinha mais que sessenta centímetros, e quase que no mesmo instante soltou o gemido baixo característico do macaco rabo-de-porco.

As equipes estavam emocionadas. Microfones apontavam, como canos de armas, para o animal, que se movia depressa. Mais gemidos soaram em folhagens distantes. Obviamente, havia ali uma tropa de bom tamanho. O alemão foi o primeiro a reconhecer o equívoco.

— Nein, nein, nein!

Ele se afastou de sua câmera, irritado, e acrescentou:

— Es ist ein macaque.

Um dos britânicos virou-se para Hagar.

— Onde está o chimpanzé?

— Orangotango.

— Qualquer coisa. Onde ele está? O tom era de impaciência.

— Ele não tem uma agenda para marcar encontros — respondeu Hagar.

— Mas onde ele costuma ser encontrado? Não podemos pôr uma isca para atraí-lo? Ou qualquer coisa parecida? Por exemplo, imitar o chamado de acasalamento?

— Não, não podemos.

— Não há uma maneira de atraí-lo? É isso o que está querendo dizer?

— É, sim.

— Temos de ficar sentados aqui torcendo pelo melhor? - O jornalista olhou para o relógio. - Eles querem uma matéria ao meio-dia.

— Infelizmente, estamos na selva — disse Hagar. — Acontece quando acontece. É o mundo natural.

— Se ele fala, não é natural. E não tenho a porra do dia inteiro.

— Não sei o que dizer — murmurou Hagar.

— Descubra a porra do macaco!

Os berros assustaram os resos nas árvores, fazendo com que gemessem e fugissem. Hagar olhou para os outros. O francês disse:

— Não seria melhor se todos ficassem quietos?

— Vá se foder, seu babaca! — gritou o britânico.

— Calma, companheiro.

Um homem enorme, da equipe australiana, adiantou-se e pôs a mão no braço do britânico, que se virou e desferiu um soco na direção de seu queixo. O australiano pegou sua mão, torceu-a e empurrou-o para cima de seu tripé. O britânico derrubou o tripé e se estatelou no chão. Os outros britânicos atacaram o australiano, cujos companheiros correram em sua defesa. Os alemães também. Quando o tripé francês caiu, deixando a câmera toda enlameada, as outras equipes entraram na briga.

Hagar limitou-se a olhar.

Não haveria orangotango hoje, ele pensou.

 

Rick Diehl, da BioGen, trocava de roupa no vestiário do Bel Air Country Club. Fora até ali para jogar golfe com alguns investidores que poderiam estar interessados na BioGen. Um cara da Merrill Lynch, seu namorado e um cara do Citibank. Rick tentou fazer com que o encontro parecesse descontraído, mas sentia alguma urgência, porque entrara em pânico desde que observara a esposa atravessar o saguão do hotel com o babaca todo vestido de branco. Sem o apoio financeiro de Karen, Rick ficava exposto à sanha implacável de seu outro grande investidor, Jack Watson. E não era uma situação das mais confortáveis. Ele precisava de dinheiro novo.

Ali, no campo de golfe, com o sol brilhando e uma brisa amena soprando, ele fez seus pequenos discursos sobre as maravilhas emergentes da biotecnologia e o poder das citocinas fabricadas pela linhagem de células Burnet, adquirida pela BioGen. Era uma grande oportunidade de entrar numa empresa que estava prestes a crescer muito depressa. Só que eles não pensavam assim. O cara da Merrill Lynch perguntou:

— As linfocinas não são a mesma coisa que as citocinas? E não ocorreram algumas mortes inexplicadas das citocinas?

Rick explicou que houvera algumas mortes, anos antes, porque alguns médicos se precipitaram no uso da terapia. O cara da Merrill Lynch comentou:

— Entrei nas linfocinas há cinco anos. Nunca renderam um centavo.

O cara do Citibank acrescentou:

— E as tempestades de citocinas?

Essa não!, pensou Rick. As tempestades de citocinas! Ele deu sua tacada curta.

— As tempestades de citocinas, na verdade, não passam de um conceito especulativo. A idéia é que, em certas circunstâncias raras, o sistema imunológico reage de forma exagerada, causando o colapso múltiplo de órgãos...

— Não foi o que aconteceu na epidemia de influenza em 1918?

— Uns poucos acadêmicos disseram isso, mas todos trabalham para os laboratórios farmacêuticos que vendem drogas concorrentes.

— Está querendo dizer que pode não ser verdade?

— Hoje em dia é preciso ter muito cuidado com o que dizem as universidades.

-Mesmo sobre 1918?

— A desinformação assume muitas formas. — Rick pegou sua bola. — A verdade é que as citocinas representam a onda do futuro. Avançam depressa nos testes clínicos e desenvolvimento de produtos. Oferecem o mais rápido retorno sobre o investimento entre todas as linhas de produtos existentes hoje. Foi por isso que fiz das citocinas a primeira aquisição da BioGen. E acabamos de vencer a ação judicial que envolvia...

— Eles não vão recorrer? Ouvi dizer que sim.

— A decisão do juiz tirou-lhes toda a disposição para a luta.

— Mas pessoas não morreram de transferências de gene que provocaram uma tempestade de citocinas? Não foram muitas as pessoas que morreram?

Rick suspirou.

— Nem tantas...

— Quantas? Cinqüenta? Cem?

— Não sei o número exato.

Rick compreendeu que aquele não seria um bom dia. E isso foi uma hora antes dos homens dizerem que, na opinião deles, só um idiota investiria em citocinas.

Era demais.

E, por isso, ele sentia-se exausto e derrotado, sentado num banco do vestiário, arriado, quando Jack Watson, bronzeado e exuberante, vestindo um traje branco de tenista, instalou-se ao seu lado e perguntou:

— O jogo foi proveitoso?

Ele era a última pessoa que Diehl queria ver naquele momento.

— Até que foi.

— Algum daqueles caras vai entrar no negócio?

— Talvez. Vamos esperar para ver.

— Aqueles caras da Merrill Lynch não têm colhões. Sua noção de assumir um risco é mijar debaixo do chuveiro. Eu não prenderia a respiração na expectativa. O que acha do caso da Radial Genomics?

— Que caso?

— Acho que a notícia não se espalhou. Mas calculei que você deveria saber. — Watson inclinou-se e começou a desamarrar os tênis. - E pensei que estivesse preocupado. Não sofreu um roubo recentemente?

— Meu carro foi roubado do estacionamento. Mas estou no meio de um processo de divórcio litigioso.

— E por isso presume que sua mulher tenha levado o carro?

— Isso mesmo.

— Tem certeza de que foi mesmo isso?

— Não, não tenho - respondeu Diehl, intrigado. — Apenas presumi...

— Porque foi assim que começou na Radial Genomics. Pequenos furtos de propriedades físicas. O carro de um assistente do laboratório levado do estacionamento, uma bolsa do restaurante da empresa. Ninguém se preocupou muito... embora, em retrospectiva, fosse evidente que estivessem testando o sistema à procura das fraquezas. Mas só compreenderam isso depois do roubo maciço do banco de dados.

— Roubo do banco de dados?

Diehl endureceu o semblante. Era um problema que tinha um potencial de extrema gravidade. Ele conhecia Charles Huggins, da Genomics. Ligaria mais tarde, para saber o que de fato acontecera.

— É claro que Huggins não está admitindo que tenha acontecido alguma coisa - continuou Watson. - Fizeram a abertura do capital no mês passado, e ele sabe que isso liquidaria qualquer oferta. Dizem, no entanto, que no mês passado ele teve quatro linhagens de células removidas de seus laboratórios e cinqüenta terabytes de dados extraídos da rede, inclusive os backups. Um trabalho muito profissional. E um tremendo prejuízo.

— Lamento que tenha acontecido.

— É mesmo terrível. Pus Charles em contato com o BDG, o grupo de dados biológicos. É uma organização de segurança. Tenho certeza que você conhece.

— BDG? — Diehl não conseguia se lembrar do nome, mas parecia que deveria conhecer. — Claro que conheço.

— Eles fazem a segurança para a Genentech, Wyeth, BioSyn, e uma dúzia de outras empresas. Não que qualquer uma venha a admitir que aconteceu alguma coisa, mas o BDG é, sem dúvida, o melhor quando se tem problemas. Eles entram na empresa, analisam o esquema de segurança, identificam os pontos vulneráveis e fecham as brechas na rede. Tudo rápido, discreto, confidencial.

Diehl pensou que seu único problema de segurança fosse o sobrinho de Jack Watson, mas disse apenas:

— Talvez eu devesse conversar com eles.

Foi assim que Rick Diehl se descobriu sentado num restaurante na frente de uma loura elegante, vestindo um terninho escuro. Ela se apresentara como Jacqueline Maurer. Tinha cabelos curtos e uma atitude decidida. Apertou sua mão com firmeza e entregou-lhe um cartão. Não podia ter mais que trinta anos. Possuía o corpo firme de quem fazia exercícios. Fitava-o nos olhos ao falar, era direta e objetiva. Rick olhou para o cartão. As letras BDG se destacavam em azul, com o nome e telefone da mulher em letras pequenas, embaixo. Nada mais. Ele perguntou:

— Onde o BDG tem escritórios?

— Em muitas cidades do mundo.

— E você?

— Estou baseada em San Francisco, no momento. Antes, operava de Zurique.

Rick prestava atenção ao sotaque. Pensara que fosse francês, mas provavelmente era alemão.

— Você é de Zurique?

— Não. Nasci em Tóquio. Meu pai era do corpo diplomático. Viajei muito, quando pequena. Estudei em Paris e Tóquio. Primeiro, trabalhei para o Crédit Lyonnais em Hong Kong, porque falo mandarim e cantonês. Depois, fui para o Lombard Odier, em Genebra. Um banco particular.

O garçom aproximou-se. Ela pediu água mineral, de uma marca que Rick não conhecia.

— Que água é essa?

— Norueguesa. Muito boa. Ele pediu a mesma coisa.

— E como ingressou no BDG?

— Há dois anos. Em Zurique.

— Quais foram as circunstâncias?

— Lamento, mas não posso dizer. Uma empresa tinha um problema. O BDG foi chamado para resolvê-lo. Fui convidada a ajudar... em algumas questões técnicas. Depois, ingressei no grupo.

— Uma empresa em Zurique tinha um problema? Ela sorriu.

— Lamento, mas não posso dizer mais nada.

— Para que empresas trabalhou desde que ingressou no BDG?

— Não estou autorizada a informar.

Rick franziu o rosto. Refletiu que aquela seria uma entrevista muito estranha, já que ela não podia revelar nada.

— Deve compreender que o roubo de dados é uma preocupação global - disse a loura. - Com perdas avaliadas em um trilhão de euros por ano. Não são muitas as empresas que permitem que seus problemas se tornem públicos. Por isso, respeitamos a privacidade de nossos clientes.

— O que exatamente pode me dizer?

— Pense em qualquer grande empresa bancária, científica, ou farmacêutica. Provavelmente já trabalhamos para ela.

— Com o máximo de discrição.

- Da mesma forma que seremos discretos com você. Enviaremos três pessoas para sua empresa, inclusive eu. Vamos nos apresentar como contadores de uma empresa de capital de risco que está pensando em investir na BioGen. Passaremos uma semana avaliando sua situação e depois apresentaremos um relatório.

Muito franca, muito objetiva. Rick tentou se concentrar no que ela dizia, mas descobriu que a beleza da loura o distraía. Ela não fez um único gesto sensual — nenhum olhar, nenhum movimento do corpo, nenhum contato físico — mas, mesmo assim, era extremamente sensual. Não usava sutiã, dava para perceber, com os seios firmes sob a blusa de seda...

- Sr. Diehl?

Ela fitava-o nos olhos. Sua atenção devia ter vagueado.

- Desculpe. - Rick sacudiu a cabeça. — Tenho passado por momentos difíceis...

— Estamos a par de seus problemas pessoais. E também das questões de segurança... isto é, os aspectos políticos de sua segurança.

— Temos como chefe de segurança um homem chamado Bradley...

— Ele deve ser imediatamente substituído.

— Sei disso. Mas seu tio...

— Deixe isso conosco.

O garçom tornou a se aproximar, e ela pediu o almoço.

A medida que a conversa continuava, Rick foi se sentindo mais e mais atraído pela mulher. Jacqueline Maurer possuía uma qualidade exótica e uma reserva pessoal que ele achava desafiadora. Não foi difícil tomar a decisão de contratá-la. Rick queria vê-la de novo.

Ao final do almoço, os dois saíram juntos. Ela apertou com firmeza a mão de Rick.

— Quando vai começar? — perguntou ele.

- Imediatamente. Hoje, se quiser.

- Seria ótimo.

- Então, está combinado. Visitaremos a sede de sua empresa dentro de quatro dias.

— Não hoje?

— Não é conveniente. Começamos hoje, mas devemos primeiro tratar de seu problema político. Só depois iremos à sua empresa.

Um carro parou na frente do restaurante. O motorista saltou, deu a volta e abriu a porta para Jacqueline Maurer.

— Antes que eu esqueça — acrescentou ela —, seu Porsche foi localizado em Houston. Temos certeza de que não houve qualquer participação de sua esposa.

A mulher entrou no carro. A saia levantou quando sentou. Ela não a baixou. Acenou para Rick. O motorista fechou a porta.

Enquanto a limusine partia, Rick compreendeu que estava ofegante.


 

Era apenas sua maneira de relaxar, Brad Gordon sabia, mas tente explicar isso a alguém. Um sujeito sozinho precisa ter muito cuidado hoje em dia. Era por isso que ele sempre levava um PDA e um celular quando sentava na arquibancada da escola. Fingia enviar mensagens e conversar pelo telefone, como qualquer pai ocupado. Talvez um tio. E não vinha sempre, apenas uma ou duas vezes por semana, durante a temporada de futebol, quando não tinha mais nada para fazer.

Ao sol da tarde, as garotas correndo em seus shorts e meias até os joelhos eram adoráveis. Alunas da sétima série... pernas esguias, seios desabrochando que mal balançavam quando corriam. Algumas tinham quadris largos e bundas bem desenvolvidas, mas a maioria conservava uma fascinante qualidade infantil. Ainda não eram mulheres, mas também não eram mais meninas. Inocentes, pelo menos por mais algum tempo.

Brad sentou no seu lugar habitual, no meio dos degraus, um pouco para o lado da arquibancada, como se mantivesse alguma distância para as suas ligações particulares de trabalho. Ele acenou com a cabeça para os outros freqüentadores habituais, avós e criadas hispânicas. Pegou o PDA e ajeitou o celular no joelho. Com o estilo, começou a teclar no PDA, agindo como se estivesse ocupado demais para olhar as garotas.

- Com licença.

Brad levantou os olhos. Uma asiática estava sentando ao seu lado. Nunca a vira antes, mas ela era graciosa. Talvez dezoito anos, ou perto disso.

— Peço milhões de desculpas, mas preciso ligar para os pais de Emily... — ela acenou com a cabeça para uma garota no campo —.. e minha bateria descarregou. Posso usar seu celular? Só por um minuto?

— Ahn... claro...

Brad estendeu o telefone.

— É apenas uma ligação local.

— Não tem problema.

Ela falou depressa, avisando que já estavam no segundo tempo, e que poderiam vir buscar Emily dali a pouco. Brad fingiu não escutar. A garota devolveu o celular, a mão roçando de leve na sua.

— Obrigada.

— Quando quiser.

— Não o vi em qualquer dos jogos anteriores. Vem aqui com freqüência?

— Não tanto quanto eu gostaria. O trabalho me impede. - Bradley apontou para o campo. - Qual delas é Emily?

— A ponta de lança.

Ela apontou para uma garota negra, no outro lado do campo.

— Sou sua amiga. Kelly.

A garota estendeu a mão. Brad apertou-a.

— Brad.

— Prazer em conhecê-lo, Brad. E você está com...?

— Minha sobrinha foi ao dentista hoje. Só descobri quando cheguei aqui.

Ele deu de ombros.

— Um tio muito simpático. Ela deve sentir-se muito grata por sua presença. Mas não parece velho o suficiente para ser tio de uma das garotas.

Brad sorriu. Por alguma razão, sentia-se nervoso. Kelly estava sentada bem perto dele, a coxa quase encostando na sua. Não podia usar o PDA nem o celular. Ninguém jamais sentara tão perto assim.

— Meus pais são muito velhos — comentou Kelly. — Papai tinha cinqüenta anos quando eu nasci. — Ela olhou para o campo. - Acho que é por isso que gosto de homens mais velhos.

Brad pensou: Que idade ela tem? Mas não pôde pensar numa maneira de perguntar sem parecer óbvio demais. A garota levantou as mãos e estudou as unhas.

— Acabo de fazer as unhas. Gosta desta cor?

— Gosto. É uma bela cor.

— Papai detesta quando pinto as unhas. Acha que isso me faz parecer madura demais. Mas é mesmo uma boa cor. Amor ardente. Esse é o nome da cor.

— Sei...

— De qualquer forma, todas as garotas fazem as unhas hoje em dia. Comecei a fazer as unhas na sétima série. Agora, já me formei.

— Já se formou?

— Já, sim. No ano passado.

Ela abrira a bolsa, e vasculhava lá dentro. Junto com o batom, chave do carro, iPod e estojo de maquiagem, Brad notou dois baseados envoltos por plástico, e uma fieira de camisinhas coloridas, que estalaram quando ela empurrou para o lado. Brad desviou os olhos.

— Está na universidade agora?

— Não. Resolvi tirar um ano de folga. — Kelly sorriu. - Minhas notas não eram muito boas. Eu brincava demais.

Ela tirou da bolsa uma pequena garrafa de plástico com suco de laranja.

— Tem vodca?

— Não comigo - respondeu ele, surpreso.

— Gim?

— Também não.

— Mas pode arrumar, não é? Kelly sorriu.

— Acho que sim.

— Prometo que pagarei - murmurou ela, ainda sorrindo. Foi assim que começou.

Deixaram o campo separados, com um intervalo de alguns minutos. Bradley foi primeiro. Ficou esperando em seu carro, no estacionamento, observando-a aproximar-se. Ela usava sandálias de dedo, saia curta e uma blusa rendada, que parecia do tipo que se usa para dormir. Mas todas as garotas vestiam-se assim hoje em dia. A bolsa enorme batia no lado do corpo, enquanto ela andava. Kelly parou para acender um cigarro. antes de entrar em seu carro, um Mustang preto. Acenou para Brad.

Ele ligou o carro e partiu. A garota foi atrás.

Brad pensou: Não tenha grandes esperanças. Mas a verdade é que eleJá tinha.

 

Marilee Hunter, a pedante diretora do laboratório de genética do Memorial de Long Beach, gostava de ouvir a própria voz. Marty Roberts fazia o melhor possível para parecer interessado. Marilee tinha um comportamento meticuloso, como uma bibliotecária num filme antigo, da década de 1940. Adorava descobrir erros entre o pessoal do hospital. Ligara para Marty para dizer que precisava vê-lo, imediatamente.

— Corrija-me, se estiver enganada nos dados básicos - disse Marilee Hunter. - A filha do Sr. Weller consegue realizar um teste de paternidade postmortem que indica que ela e o pai não partilham o DNA. Mesmo assim, a viúva insiste que Weller é o pai, e exige outro teste. Você me fornece amostras de sangue, baço, fígado, rins e testículos, embora todas tenham sido comprometidas pela infusão na agência funerária. É evidente que procura uma quimera.

— Isso mesmo. Ou um erro no teste original. Não sabemos onde a filha fez o teste com o sangue.

— Os testes de paternidade têm uma porcentagem de erro não-trivial, especialmente em estabelecimentos online — declarou Marilee. — Meu laboratório não comete erros. Testaremos todos esses tecidos, Marty... assim que você providenciar células bucais da filha.

— Certo, certo... — Ele esquecera essa parte. Precisava de células bucais da filha para comparar o DNA do pai. — Mas ela pode não querer cooperar.

— Neste caso, faremos o teste com o filho e a outra filha. Mas quero que compreenda que esses testes de tecidos podem demorar. Talvez tenhamos de esperar semanas pelos resultados.

— Eu compreendo.

Marilee abriu a pasta do paciente Weller, em que havia o carimbo de FALECIDO. Folheou as páginas.

— Enquanto isso, não posso deixar de pensar em sua autópsia original.

Marty levantou a cabeça, num movimento brusco.

— Qual é o problema?

— Mostra aqui que você efetuou um exame toxicológico que deu negativo.

— Fazemos um exame toxicológico em todas as fatalidades em acidentes de carro. E a rotina.

— Hum... — Hunter contraiu os lábios. - Repetimos o exame toxicológico em nosso laboratório. E o resultado não foi negativo.

— É mesmo?

Marty teve de fazer um esforço para controlar a voz. E pensou: Que merda é essa?

— É difícil realizar um exame toxicológico completo depois que todos os preservantes para o funeral foram infundidos, mas temos alguma experiência em lidar com isso. E determinamos que o falecido Sr. Weller tinha elevados níveis intracelulares de cálcio e magnésio...

Marty pensou: Essa não!

—.. junto com significativa elevação hepática de etanol deidro-genase, indicando uma alta taxa de álcool no sangue, na ocasião do acidente...

Marty deu um grunhido interior. Quem fizera o exame toxicológico original? A porra do Raza mandara alguém de fora fazer? Ou apenas dissera que fizera?

—.. e, finalmente, encontramos níveis mínimos de ácido etacrí-nico.

— Ácido etacrínico? - Marty sacudiu a cabeça. - Não faz o menor sentido. Isso é um diurético oral.

— Correto.

— O cara tinha quarenta e seis anos. As lesões eram severas, mas mesmo assim dava para perceber que estava em fantástica forma física... como se fosse um fisiculturista, ou algo parecido. Os fisiculturistas tomam essas drogas. Se ele tomou um diurético oral, está explicada a presença do ácido etacrínico.

— Presume que ele soubesse o que tomava — ressaltou Hunter. - É possível que não soubesse.

— Acha que alguém o envenenou? Ela deu de ombros.

— As reações tóxicas incluem choque, hipotensão e coma. Poderiam ter contribuído para sua morte.

— Não sei como poderia determinar isso.

— Você fez a autópsia - lembrou Hunter, folheando o relatório na pasta.

— É verdade. As lesões de Weller eram maciças. Trauma com esmagamento no rosto e peito, ruptura do pericárdio, fratura da bacia e fêmur. O air bag não abriu.

— O carro foi periciado, não é? Marty suspirou.

— Pergunte à polícia. Não é trabalho meu.

— Deve ter sido periciado.

— Foi uma fatalidade em que havia apenas um carro envolvido. Houve testemunhas. O cara não estava de porre, nem em coma. Segue direto para cima da coluna do viaduto, a cento e cinqüenta quilômetros horários. Quase todas as fatalidades com um único carro são suicídios. Não é de surpreender que a vítima tivesse desligado o air bag antes.

— Mas você não verificou.

— Não, não verifiquei. Porque não havia motivo. O exame toxicológico deu negativo e os eletrólitos estavam essencialmente normais, ao se considerar as lesões e o momento da morte.

— Só que não eram normais.

— Nossos exames deram como normais.

— Hum... Tem certeza de que os exames foram mesmo realizados? E foi nesse momento que Marty Roberts começou a pensar

muito sério em Raza. Raza dissera que havia um pedido urgente do banco de ossos naquela noite. Raza queria atender ao pedido. Por isso, ele não queria que o corpo de Weller permanecesse no gavetão pelo prazo de quatro a seis dias, enquanto as descobertas toxicológicas anormais eram analisadas.

— Terei de verificar para confirmar que foram feitos — respondeu Marty.

- Acho que devemos mesmo fazer isso. Segundo o arquivo do hospital, o filho do falecido trabalha para uma empresa de biotecnologia, e a esposa numa clínica pediátrica. Presumo que ambos tenham acesso a substâncias biológicas. A esta altura, não podemos ter certeza que o Sr. Weller não foi envenenado.

- É possível, embora improvável. Marilee lançou-lhe um olhar gelado.

- Verificarei imediatamente - acrescentou Marty.

Ao voltar para o laboratório, ele tentou decidir o que fazer com Raza. O cara era uma ameaça. Marty agora tinha certeza de que Raza nunca pedira o exame toxicológico, o que significava que o relatório do laboratório fora falsificado. Ou o próprio Raza o falsificara, xerocando outro relatório e mudando o nome, ou tinha um cúmplice no laboratório que falsificara para ele. Provavelmente a segunda hipótese. Oh, Deus, outra pessoa envolvida em tudo aquilo!

E, agora, Miss Encrenca caçava culpados, por causa dos vestígios de ácido etacrínico. Ácido etacrínico... Se John Weller fora mesmo envenenado, Marty tinha de admitir que fora uma escolha das mais hábeis. O cara nutria uma vaidade evidente pelo próprio corpo. Na sua idade, devia passar pelo menos duas a três horas por dia na academia. E devia também tomar uma tonelada de suplementos e outras merdas. Assim, seria difícil provar que não fora ele próprio quem tivera a iniciativa de tomar o diurético.

Merda!

O filho-da-puta do Raza!

Marty começou a pensar num fisiculturista de 46 anos. Um cara dessa idade, com filhos crescidos... trabalhando o corpo daquele jeito, só podia ser por duas razões. Ou ele é gay ou tem uma namorada. De qualquer forma, não está transando com a esposa. E como ela se sente em relação a isso? Furiosa?

Era bem provável que sim. O suficiente para envenenar o marido? Não se podia excluir essa possibilidade. Havia pessoas que matavam cônjuges por menos. Marty descobriu-se a pensar na Sra. Weller, recordando tudo o que acontecera na exumação. Projetou na mente: a viúva chorosa, apoiada no filho alto, a filha submissa parada ao lado, estendendo lenços de papel para a mãe. Tudo muito comovente.

Exceto...

No instante em que o caixão saiu da sepultura, Emily Weller ficou nervosa. Subitamente, a viúva desolada queria acabar com tudo o mais depressa possível. Não leve o corpo para o hospital. Não tire muitas amostras de tecidos. A mulher, que exigira uma análise meticulosa de DNA, parecia de repente ter mudado de idéia.

Por que ela se comportara assim?

Marty só pôde pensar em uma única resposta possível: A Sra. Weller queria o teste de paternidade, mas nunca imaginara que o corpo seria levado de volta ao hospital para os exames. Nunca pensara que tirariam tecidos de vários órgãos. Pensava que apenas pegariam uma amostra de sangue, poriam o corpo de volta na sepultura, e iriam embora.

Qualquer coisa a mais do que isso parecia deixar a Sra. Weller nervosa.

Talvez houvesse uma esperança, no final das contas.

Marty entrou em sua sala e fechou a porta. Precisava ligar para a Sra. Weller. Era um telefonema delicado. Haveria um registro no hospital da hora e data da ligação. Mas por que tinha de ligar para ela? Marty franziu o rosto.

Ah, sim... Porque tinha de colher o DNA dela e dos filhos.

Muito bem. Mas por que não colhera o DNA da família no cemitério? Era apenas uma questão de passar mechas pelas bochechas. Seria apenas um momento.

Resposta: Porque ele pensara que o material já fora coletado pelo laboratório de Miss Encrenca.

Marty considerou essa alegação. Revirou-a em sua mente.

Não pôde encontrar nada de errado. Tinha um bom pretexto para ligar.

Ele pegou o telefone e fez a ligação.

- Sra. Weller, aqui é o Dr. Roberts, do Memorial Hospital. Marty Roberts.

- Pois não, Dr. Roberts. - Uma pausa. — Está tudo bem?

- Está, sim, Sra. Weller. Só queria marcar para que viesse até aqui com seus filhos, a fim de tirarmos amostras de sangue e de tecidos da bochecha. Para o teste de DNA.

— Já fizemos isso. Para a mulher no laboratório.

— Ahn... Refere-se à Dra. Hunter? Desculpe. Eu não sabia. Houve uma pausa, até que Emily perguntou:

— Estão fazendo os testes em Jack agora?

— Isso mesmo. Fazendo alguns testes aqui, enquanto outros são realizados no laboratório.

— Já descobriram alguma coisa? Isto é... estão descobrindo o que esperavam?

Marty sorriu. Ela não perguntara sobre o teste de paternidade. Parecia preocupada com alguma outra coisa que poderiam encontrar.

— Para ser franco, Sra. Weller...

— O que aconteceu?

— Parece haver uma pequena complicação. Mas não é nada importante.

— Que tipo de complicação?

— O laboratório de genética encontrou resíduos de uma substância química inesperada nos tecidos do Sr. Weller. Provavelmente é um erro do laboratório, uma contaminação.

— Que tipo de substância química?

— Só menciono porque sei que queria que seu marido tivesse o descanso final o mais depressa possível.

— Tem toda razão. Não quero que ele seja mais perturbado.

— Eu compreendo. E detestaria se esse descanso final fosse adiado por dias, talvez mesmo semanas, enquanto se fazem indagações sobre essa substância e como foi parar no corpo. Mesmo que seja um erro de laboratório, tudo se torna uma questão legal daqui por diante, Sra. Weller. Eu não deveria estar lhe falando. Mas... acho que me sinto responsável. Como eu disse, detestaria se o repouso final de seu marido fosse protelado por alguma coisa como um inquérito judicial.

— Eu agradeço.

— Claro que nunca a aconselharia a fazer outra coisa que não seguir a lei, Sra. Weller. Mas senti que a exumação de seu marido foi uma experiência emocionalmente extenuante...

— Muito extenuante...

— Mas se não quisesse a exaustão emocional de um novo enterro... sem falar nas despesas... poderia optar por uma solução mais simples. E menos dispendiosa, se estivesse com insuficiência de recursos... Tem o direito de determinar que o corpo seja cremado.

— Eu não sabia disso.

— Tenho certeza de que nunca imaginou que a exumação de seu marido pudesse ser tão traumática.

— Tem razão. Nunca pensei que fosse assim.

— Pode tomar a decisão de não passar pelo mesmo sofrimento outra vez.

— É assim que me sinto neste momento. Marty pensou: Posso apostar.

— É claro que nunca teria permissão para cremar o corpo se soubesse que haveria uma investigação. Nem eu sugeriria a cremação. Mas pode decidir pela cremação por sua própria iniciativa, por motivos pessoais. E se isso acontecesse logo... ainda hoje, ou amanhã de manhã... então seria apenas uma dessas coisas que podem acontecer. O corpo foi cremado antes da abertura do inquérito.

— Eu compreendo.

— Preciso desligar agora.

— Agradeço por ter encontrado tempo para me telefonar. Mais alguma coisa?

— Não. Isso era tudo. Obrigado, Sra. Weller.

— Eu é que agradeço, Dr. Roberts. Clique.

Marty Roberts recostou-se na cadeira. Sentia-se satisfeito com aquela conversa. Muito satisfeito.

Só restava mais uma coisa a fazer, pelo menos por enquanto.

- Laboratório do quinto andar. Aqui é Jennie.

— Jennie, aqui é o Dr. Roberts, da patologia. Preciso que verifique para mim o resultado de um exame de laboratório.

— É recente, Dr. Roberts?

— Não. É antigo. Um exame toxicológico que foi pedido há oito dias. O nome do paciente é Weller.

Ele leu o número de série. Houve uma breve pausa. Marty ouviu o barulho das teclas sendo batidas.

— John J. Weller? Branco, sexo masculino, quarenta e seis anos?

— Isso.

— Fizemos um exame toxicológico completo às três e trinta e sete da madrugada de domingo, dia 8 de maio. Além do toxicológico... nove outros exames.

— E guardaram a amostra do sangue?

— Claro. Guardamos todos os tecidos hoje em dia.

— Pode verificar para mim?

— Dr. Roberts, guardamos tudo agora. Até mesmo os cartões adesivos grudados no calcanhar do recém-nascido. É o exame de PKU, obrigatório por lei, mas mesmo assim guardamos os cartões. Guardamos o sangue do cordão umbilical. Guardamos tecidos da placenta. Guardamos excisões cirúrgicas. Guardamos tudo...

— Sei disso. Mas se importaria de verificar?

— Posso ver a amostra registrada bem aqui, na minha tela. A amostra congelada está guardada no freezer B-7. Será enviada para um depósito externo no final do mês.

— Sinto muito, mas esse caso envolve uma possível questão judicial. Pode fazer uma verificação física, para ter certeza de que a amostra está mesmo no lugar indicado?

— Claro. Mandarei alguém até lá e ligarei de volta.

— Obrigado, Jennie.

Marty desligou e tornou a se recostar na cadeira. Através da parede de vidro, observou Raza esfregar uma mesa de aço, em preparação para a próxima autópsia. Raza fazia um trabalho meticuloso de limpeza. Marty tinha de reconhecer isso: O cara era meticuloso. Prestava atenção aos detalhes.

O que significava que não hesitaria em alterar o banco de dados do hospital para indicar a guarda de uma amostra inexistente. Ou fazia isso pessoalmente, ou encarregava alguém de fazer em seu lugar. O telefone tocou nesse instante.

— Dr. Roberts? Sou eu de novo, Jennie.

— Pois não, Jennie.

— Parece que falei cedo demais. A amostra de Weller é de trinta cc de sangue venoso, congelado. Mas não está no B-7; houve um extravio. Mandarei procurar imediatamente. E o avisarei assim que a amostra for encontrada. Mais alguma coisa?

— Não. Muito obrigado, Jennie.

 

Finalmente!

Ellis Levine encontrou a mãe no segundo andar da loja Polo Ralph Lauren, na esquina da Madison com a Seventy-second, no instante em que ela saía do provador. Vestia uma calça de linho branco e uma blusa toda colorida. Parou na frente do espelho, virou para um lado e outro, antes de avistar o filho.

- Olá, querido. O que você acha?

- O que está fazendo aqui, mamãe?

- Providenciando meu guarda-roupa para o cruzeiro, querido.

- Mas você não vai fazer um cruzeiro.

- Claro que vou. Fazemos um cruzeiro todos os anos. Gostou da bainha da calça?

- Mamãe...

Ela franziu o rosto. Afofou os cabelos brancos, distraída.

- E não tenho certeza sobre esta blusa. Não me faz parecer uma salada de frutas?

- Precisamos conversar - disse Ellis.

- ótimo. Tem tempo para almoçar?

- Não, mamãe. Preciso voltar ao escritório.

Ellis era contador de uma agência de propaganda. Deixara o escritório e seguira às pressas até a loja porque recebera um telefonema em pânico do irmão. Aproximou-se da mãe e murmurou:

- Não pode fazer compras agora, mamãe.

- Não diga bobagem, querido.

- Mamãe, tivemos uma reunião de família...

Ellis e os dois irmãos haviam se reunido com os pais no fim de semana anterior. Fora uma reunião difícil e angustiante, na casa em Scarsdale. O pai tinha 63 anos, a mãe 59- Os irmãos haviam discutido a situação financeira.

— Não pode estar falando sério — disse a mãe agora.

— Estou.

Ele apertou o braço da mãe.

— Ellis Jacob Levine, está sendo impróprio.

— Mamãe, papai perdeu o emprego.

— Sei disso. Mas temos o suficiente...

— E sua pensão foi suspensa.

— É uma situação apenas temporária.

— Não, mamãe, não é temporária.

— Mas temos o suficiente para...

— Não, mamãe, não tem mais. Ela ficou irritada.

— Seu pai e eu conversamos depois que vocês saíram. Ele disse que ficaríamos bem, que toda aquela história de vender a casa e o Jag era absurda.

— Papai disse isso?

— Claro que disse. Ellis suspirou.

— Ele queria evitar que você se preocupasse.

— Não estou preocupada. E ele adora aquele Jag. Seu pai sempre compra um Jag novo todos os anos. Desde que vocês eram pequenos.

Os vendedores começavam a observar os dois. Ellis levou a mãe para um canto.

— Mamãe, as coisas mudaram.

— Ora, por favor!

Ellis desviou os olhos do rosto da mãe. Não podia fitá-la nos olhos. Durante toda a sua vida sentira a maior admiração pelos pais. Eram bem-sucedidos, estáveis, sólidos. Ele e os irmãos tinham altos e baixos... e o irmão mais velho até já se divorciara. Mas os pais eram de uma geração anterior, mais estável. Podia-se contar com eles.

Mesmo quando o pai perdera o emprego, ninguém se preocupara. Era verdade que, na sua idade, ele não teria possibilidade de arrumar outro. Mas tinham investimentos, ações, propriedades em Montana e no Caribe, uma boa pensão. Não havia motivos para preocupação. Só que os pais não mudaram seu estilo de vida. Continuaram a dar festas, viajar, gastar.

Mas agora ele e os irmãos estavam pagando a hipoteca em Scarsdale. E tentavam vender o apartamento em Charlotte Amalie e a casa em Vail.

- Mamãe, tenho dois filhos no pré-escolar. Jeff tem um na primeira série. Sabe o quanto custa uma escola particular nesta cidade? E Aaron tem de pagar a pensão da ex-esposa. Temos nossas próprias vidas. Não podemos arcar com a de vocês.

- Vocês não estão pagando nada para mim ou seu pai!

— Estamos, sim, mamãe. E estou lhe dizendo que não pode comprar essas roupas. Volte e tire-as.

Subitamente, para horror do filho, ela desatou a chorar, levando as mãos ao rosto.

-Tenho tanto medo... O que vai acontecer conosco?

O corpo tremia todo. Ellis passou o braço em torno da mãe.

- Tudo vai acabar bem - murmurou ele, gentilmente. - Vá trocar de roupa. Eu a levarei para almoçar.

— Mas você não tem tempo! — Ela soluçava agora. — Acabou de dizer isso!

— Darei um jeito. Vamos almoçar no Carlyle, mamãe. Tudo acabará bem.

Ela fungou, limpou os olhos. Voltou para o provador de cabeça erguida.

Ellis pegou o celular e ligou para o escritório, avisando que se atrasaria um pouco.

 

No café da manhã de Oração do Comitê de Biotecnologia do Congresso, em Washington, o Dr. Robert Bellarmino esperava impaciente que sua apresentação terminasse. O deputado Henry Waters, famoso pelo interminável fôlego, não parava de falar.

- O Dr. Bellarmino é conhecido por todos nós como um médico com uma consciência, um homem de ciência e um homem de Deus, um homem de princípios numa era de oportunismo, um homem de integridade numa era hedonista, em que qualquer coisa pode acontecer, em particular na MTV. O Dr. Bellarmino não é apenas um diretor do Instituto Nacional de Saúde, mas também um pastor leigo da Igreja Batista Thomas Field, de Houston, e o autor de Turning Points, seu livro sobre o despertar espiritual para a mensagem curativa de Jesus Cristo Nosso Senhor. E sei... ora, ele está olhando para mim e sei que tem de comparecer à audiência no Congresso dentro de uma hora. Portanto, deixem-me apresentar nosso homem de Deus e da ciência, Dr. Robert A. Bellarmino.

Bonito e seguro, Bellarmino encaminhou-se para o pódio. Seu tema, segundo o programa impresso, era "O Plano de Deus Para a Humanidade na Ciência Genética".

— Meus agradecimentos ao Deputado Waters e a todos vocês por terem comparecido. Alguns podem especular como um cientista... ainda mais um cientista genético... consegue conciliar seu trabalho com a palavra de Deus. Mas como Denis Alexander ressalta, a Bíblia nos lembra que Deus, o Criador Universal, está separado de sua criação, mas também a sustenta ativamente, de momento a momento. Assim, Deus é o criador do DNA, que está por trás da biodiversidade do planeta. Pode ser por isso que alguns críticos da engenharia genética dizem que não devemos realizá-la, porque envolve bancar Deus. Algumas doutrinas ecológicas defendem uma visão similar, que a natureza é sagrada e inviolável. Essas convicções, é claro, são pagas.

Bellarmino fez uma pausa, deixando que a audiência saboreasse a palavra. Ele pensou em dizer mais sobre as convicções pagãs, em particular a natureza do culto panteísta que alguns chamavam de "cosmologia da Califórnia". Mas não hoje, decidiu ele. Continue.

-A Bíblia nos diz claramente, em Gênesis 1:28 e 2:15, que Deus concedeu aos seres humanos a missão, a responsabilidade de cuidar da Terra e de todas as criaturas que nela vivem. Não estamos bancando Deus. Temos de responder perante Deus se não somos responsáveis pelo que Ele nos concedeu, em toda a Sua majestade e biodiversidade. Esta é a missão de que Deus nos incumbiu. Somos os zeladores do planeta.

"A engenharia genética usa os instrumentos que o Criador nos deu para realizar nossas boas obras no planeta. As colheitas desprotegidas são devoradas pelos insetos, ou morrem da geada e seca. A modificação genética pode evitar que isso ocorra, usar uma área menor para o cultivo, deixar mais florestas intactas, e ainda assim alimentar os famintos. A engenharia genética nos permite distribuir a generosidade de Deus a todas as suas criaturas, como Ele gostaria. Organismos geneticamente modificados produzem insulina pura para os diabéticos, fatores coagulantes puros para os hemofílicos. Antes, esses pacientes muitas vezes morriam de contaminação. Para nós, com toda certeza, criar essa pureza é obra de Deus. Quem dirá que não é?

"Os críticos alegam que a engenharia genética é antinatural, porque muda a própria essência de um organismo, sua natureza profunda. Essa idéia é grega e pagã. Mas o fato puro e simples é que a domesticação de plantas e animais, como praticada há milhares de anos, muda a natureza profunda de um organismo. Um cão doméstico não é mais um lobo. O milho não é mais uma erva daninha raquítica e incomível. A engenharia genética, em suma, é apenas outro passo nessa tradição há muito aceita. Não representa uma ruptura radical com o passado.

"Às vezes ouvimos que não devemos mudar o DNA, e

ponto final. Mas por que não? O DNA não é fixo. O DNA muda ao longo do tempo. E o DNA interage constantemente com nossa existência cotidiana. Devemos dizer aos atletas para não fazerem exercícios com peso porque isso mudará sua massa muscular? Devemos dizer aos estudantes para não lerem livros, porque isso mudará a estrutura de suas mentes em desenvolvimento? Claro que não. Nossos corpos mudam constantemente e o DNA muda junto.

"Mas, para ser mais direto... há cerca de quinhentas doenças genéticas que podem ser curadas pela terapia do gene. Muitas dessas doenças causam um sofrimento terrível em crianças, uma morte prematura e agoniante. Outras doenças pairam sobre a vida de uma pessoa como uma sentença de prisão; a pessoa tem de esperar que a doença se manifeste e a destrua. Não devemos curar essas doenças se pudermos? Não devemos aliviar o sofrimento sempre que podemos? Se a resposta for afirmativa, então devemos mudar o DNA. É simples assim.

"Portanto, devemos ou não modificar o DNA? Isso é obra de Deus ou arrogância do homem? Essas decisões não podem ser tomadas levianamente. É o que acontece com o problema mais delicado, o uso de células-troncos e embriões. Muitos na tradição judaico-cristã se opõem de forma inequívoca ao uso de embriões. Mas essas posições vão acabar conflitando com o objetivo de curar os doentes e aliviar o sofrimento. Não este ano, nem no próximo ano, mas o momento haverá de chegar. É necessário um pensamento cuidadoso e muita oração para encontrar a resposta. Nosso Senhor Jesus fez homens andarem de novo? Isso significa que não devemos fazer a mesma coisa, se pudermos? É muito difícil, pois sabemos que a arrogância do homem assume muitas formas... não apenas a de querer tudo, mas também por se apegar a isso com toda obstinação. Estamos aqui para refletir a glória de Deus em todas as suas obras, não o ego voluntarioso do homem. Pessoalmente, neste momento, parado aqui, diante de vocês, não tenho uma resposta. Confesso que me sinto confuso, no fundo do coração.

"Mas tenho fé que Deus nos conduzirá, no final, ao mundo que quer para nós. Tenho fé de que seremos orientados para a sabedoria, seremos cautelosos, e não seremos voluntariosos ao cuidarmos de suas obras, de seus filhos sofrendo e de todas as criaturas de sua criação. É por isso que eu oro, com toda humildade, em nome de Deus. Amém."

O discurso funcionou... sempre funcionava. Bellarmino apresentava-o há dez anos, em várias versões. A cada vez, sempre pressionava mais um pouco, falava com mais um pouco de firmeza. Cinco anos antes, não usava a palavra embrião. Já o fazia agora, sempre de uma forma cautelosa e breve. Lançava os fundamentos. Levava as pessoas a pensarem. E pensar nos sofredores deixava-as apreensivas. Assim como a perspectiva de fazer os paralíticos andarem de novo.

É claro que ninguém sabia se isso aconteceria algum dia. Pessoalmente, Bellarmino duvidava que pudesse ocorrer. Mas era melhor deixá-los pensar que isso era inevitável. Deixá-los preocupados. Deveriam pensar que as recompensas eram altas e o ritmo do avanço vertiginoso. Qualquer pesquisa que fosse bloqueada por Washington seria realizada em Xangai, Seul ou São Paulo. E Bellarmino, hábil e bastante santimonial, tencionava impedir que isso ocorresse. Nada, em suma, podia interferir com seu laboratório, sua pesquisa, sua reputação. E ele era muito eficiente em proteger as três coisas.

Uma hora depois, na sala de audiência revestida de madeira, Bellarmino prestou depoimento no Comitê Especial sobre Genética e Saúde da Câmara. A audiência fora convocada para determinar se o departamento de patentes deveria conceder patentes para genes humanos. Milhares dessas patentes já haviam sido concedidas. Era uma boa idéia?

— Não resta a menor dúvida de que temos um problema. - O Dr. Bellarmino não olhou para suas anotações. Memorizara o depoimento e podia prestá-lo olhando para as câmeras de televisão, a fim de causar um impacto maior. — As patentes de genes concedidas à indústria representam uma dificuldade significativa para a pesquisa futura. Por outro lado, as patentes de genes concedidas a pesquisadores científicos causam muito menos preocupação, já que o trabalho é livremente partilhado.

Claro que isso era um absurdo. O Dr. Bellarmino não mencionou que a distinção entre pesquisadores acadêmicos e industriais há muito deixara de existir. Vinte por cento dos pesquisadores acadêmicos eram pagos pela indústria. Dez por cento dos acadêmicos faziam o desenvolvimento de drogas. Mais de dez por cento já tinham um produto no mercado. Mais de quarenta por cento haviam solicitado patentes, ao longo da carreira.

Bellarmino também não mencionou que ele próprio estava empenhado em obter patentes de genes. Nos últimos quatro anos, seu laboratório apresentara 572 pedidos de patentes, cobrindo um amplo espectro de condições, de Alzheimer e esquizofrenia aos transtornos de depressão maníaca, ansiedade e déficit de atenção. Ele já garantira patentes para dezenas de genes para transtornos metabólicos específicos, variando da deficiência de 1-tiroxina-hidrocambrina (associada com a síndrome das pernas inquietas) a um excesso de para-amino-2,4-diidrobentamina (causando freqüência urinária durante o sono).

— Mas posso assegurar a este comitê que a patente de gene, de um modo geral, é um sistema que atende ao bem comum - continuou o Dr. Bellarmino. — Nossos procedimentos para proteger a propriedade intelectual funcionam bem. A pesquisa importante é protegida, e o consumidor, o paciente americano, é o beneficiário final de nossos esforços.

Ele não disse que mais de quatro mil patentes baseadas no DNA eram concedidas todos os anos, duas a cada hora de cada dia útil. Como havia apenas 35 mil genes no genoma humano, a maioria dos especialistas calculava que mais de vinte por cento do genoma já eram de propriedade particular.

Bellarmino não ressaltou que a maior detentora de patentes não era alguma grande corporação, mas a Universidade da Califórnia. Ela possuía mais patentes de genes do que Pfizer, Merck, Lilly e Wyeth juntas. Possuía mais patentes do que o próprio governo dos Estados Unidos.

— A noção de que alguém possui parte do genoma humano parece excepcional para algumas pessoas - disse Bellarmino. - Mas é o que torna a América grande e mantém nossa inovação tão forte. É verdade que causa problemas ocasionais, mas tudo será resolvido com o passar do tempo.

Ao terminar o depoimento, o Dr. Bellarmino deixou a audiência e seguiu para o aeroporto Reagan. Voaria para Ohio, a fim de reiniciar a pesquisa sobre o "gene da novidade", sendo realizada num parque de diversões ali. Era acompanhado por uma equipe do programa de TV 60 Minutos, que preparava um segmento que mostraria sua variada e importante pesquisa genética, além de contar sua história pessoal. O tempo em Ohio seria uma parte significativa do final da reportagem. Porque ali ele interagia com pessoas comuns; e, como diziam os produtores, o toque humano era o mais importante, principalmente com um homem de ciência... e, ainda mais, na televisão.

Centro de Transferência de Tecnologia da Universidade de Massachusetts

CENTRO GOVERNAMENTAL, BOSTON

Para Divulgação Imediata

CIENTISTAS CRIAM ORELHA EM MINIATURA EM LABORATÓRIO

Primeira "Forma de Vida Parcial" no MIT Possíveis Aplicações em Tecnologia de Audição

Os cientistas do MIT desenvolveram uma orelha humana em cultura de tecidos pela primeira vez.

O artista performático australiano Stelarc colaborou com o pessoal do laboratório do MIT para produzir uma orelha extra para si mesmo. A orelha era na escala de um quarto, um pouco maior que uma tampínha de garrafa. O tecido tirado de Stelarc foi cultivado enquanto crescia num biorreator rotativo de microgravidade.

O MIT distribuiu uma declaração de que a orelha extra podia ser considerada "uma forma parcial de vida... em parte construída, em parte crescida". A orelha cabe confortavelmente na palma da mão.

No ano passado, o mesmo laboratório do MIT fez pedaços de carne de tecido de rã sobre uma rede de biopolímeros. Também cultivaram pedaços de carne das células de uma ovelha por nascer. E criaram também o que chamaram de "couro sem vítima". Era a pele criada artificialmente em laboratório, apropriada para sapatos, bolsas, cintos e outros produtos de couro, para o amplo mercado vegetariano.

Várias empresas de acessórios contra a surdez iniciaram negociações com o MIT sobre o licenciamento da tecnologia de produção de orelha. Segundo o geneticista Zack Rabi, "A medida que a população americana envelhece, muitos cidadãos idosos podem preferir crescer orelhas geneticamente modificadas um pouco maiores, em vez de recorrer à tecnologia de aparelhos auditivos". Um porta-voz da Audion, a empresa de aparelhos auditivos, declarou: "Não estamos falando de orelhas de Dumbo. Apenas um pequeno aumento de vinte por cento na pina dobraria a eficiência auditiva. Achamos que o mercado para orelhas ampliadas é enorme. Quando muitas pessoas tiverem, ninguém mais notará. Achamos que orelhas grandes se tornarão o novo padrão, como os implantes de seios de silicone."

 

Era um péssimo dia para Marty Roberts, agravado ainda mais pelo telefonema de Emily Weller.

- Dr. Roberts, estou ligando da agência funerária. Parece que há um problema com a cremação de meu marido.

- Que tipo de problema? - perguntou Marty Roberts, sentado em sua sala, no laboratório de patologia.

- Estão dizendo que não podem cremar meu Jack se ele contiver metal.

- Metal? Como assim? Seu marido não tinha enxertos de metal na bacia ou lesões de guerra, não é?

- Não é nada disso. Estão dizendo que os braços e pernas têm tubos de metal. E que os ossos foram removidos.

- É mesmo? — Marty levantou-se e estalou os dedos no ar, atraindo a atenção de Raza, que estava na sala de autópsia. — Como isso pode ter acontecido?

- Telefonei para perguntar a mesma coisa.

- Não sei o que dizer. Está além da minha compreensão, Sra. Weller. Devo dizer que estou chocado.

A esta altura, Raza já entrara na sala.

- Vou pôr no viva-voz, Sra. Weller, para poder tomar anotações enquanto conversamos. Está com seu marido no crematório neste momento?

- Isso mesmo. E eles dizem que meu Jack tem canos de chumbo nos braços e pernas. Por isso não podem cremá-lo.

- Entendo... — murmurou Marty, olhando para Raza.

Raza sacudiu a cabeça. Rabiscou num bloco: Só tiramos uma perna. Arrume outro culpado.

— Sra. Weller, não sei como isso aconteceu. Deve haver um inquérito. Estou preocupado. Podem ter feito alguma coisa imprópria na agência funerária, ou talvez no cemitério.

— Disseram aqui que ele tem de ser enterrado de novo. Mas também disseram que talvez eu devesse chamar a polícia, porque parece que seus ossos foram roubados. Mas não quero passar pela provação de falar com a polícia e todo o resto. — Uma pausa longa e ameaçadora. - O que acha, Dr. Roberts?

— Sra. Weller, ligarei de volta daqui a pouco. Marty Roberts desligou.

— Seu idiota! Eu disse para pôr madeira, sempre madeira!

— Eu sei. Não fizemos esse trabalho de chumbo. Juro. Sempre pomos madeira.

— Cano de chumbo... - Marty sacudiu a cabeça. - Isso é uma loucura.

— Juro que não fomos nós, Marty. Devem ter sido aqueles desgraçados no cemitério. Sabe como é fácil. Eles realizam a cerimônia, a família joga um pouco de terra em cima do caixão, e todos vão embora. O caixão não é enterrado. As vezes eles retardam por mais de um dia. E tiram os ossos durante a noite. Sabe como funciona.

— Como você sabe? - perguntou Marty, furioso.

— Porque no ano passado uma mulher me telefonou para dizer que o marido fora enterrado com a aliança de casamento, que ela queria de volta. Queria saber se havíamos tirado a aliança durante a autópsia. Eu disse que não ficáramos com nenhum pertence, e prometi que ligaria para o cemitério. O corpo ainda não havia sido enterrado. E ela recebeu a aliança de volta.

Marty Roberts sentou.

— Se houver uma investigação e começarem a verificar as contas bancárias...

— Não vai acontecer. Confie em mim.

— Isso é uma piada.

— Estou lhe dizendo, Marty. Não fizemos isso. Nunca usamos qualquer tubo de metal.

— Está bem, já ouvi. Apenas não acredito.

Raza bateu com a mão na mesa.

— É melhor usar a receita com ela.

— Farei isso. E agora saia daqui, enquanto eu ligo para a Sra. Weller.

Raza atravessou a sala de autópsia e foi para o vestiário. Não havia ninguém ali. Fez uma ligação pelo celular.

— Jesu, que porra você fez? Pôs canos de chumbo naquele homem que morreu no desastre de carro. Marty está furioso. Querem cremar o cara e descobriram os canos de chumbo. Quantas vezes tenho de lhe dizer isso? Use madeira!

- Sra. Weller, acho melhor enterrar seu marido de novo - disse Marty Roberts. — Essa parece ser sua única opção.

— A não ser que eu procure a polícia. Para falar sobre os ossos roubados.

— Não posso lhe dizer o que fazer. Terá de decidir pessoalmente qual o seu melhor caminho. Mas tenho certeza de que uma investigação policial prolongada descobrirá uma receita em seu nome para ácido etacrínico, na Longwood Pharmacy, na Motor Drive.

— Era para meu uso pessoal.

— Sei disso. Resta saber como o ácido etacrínico foi parar no corpo de seu marido.

— O laboratório do hospital encontrou vestígios?

— Encontrou. Mas tenho certeza de que suspenderíamos o trabalho no hospital assim que retirasse a ação judicial contra nós. Avise-me quando decidir o que fazer, Sra. Weller. Até a próxima conversa.

Marty desligou e olhou para o termômetro na sala de autópsia. A temperatura era de 15C, mas Marty suava muito.

- Eu estava especulando quando você apareceria — disse Marilee Hunter, no laboratório de genética. Ela não parecia nem um pouco satisfeita. — Gostaria de saber exatamente que papel você desempenhou em tudo isso.

— Em tudo o quê?

- Kevin McCormick me ligou hoje. Há outra ação judicial da família Weller. Desta vez é do filho do falecido, Tom Weller. O que trabalha para a empresa de biotecnologia.

- Sobre o que é a ação?

- Apenas informei-o de acordo com o protocolo.

- Sei disso. Sobre o que é a ação?

- Ao que parece, seu seguro de saúde foi cancelado.

- Por quê?

- O pai tem o gene BNB71 para doença cardíaca.

- É mesmo? Não faz sentido. O cara era obcecado por saúde.

- Ele tinha o gene. Não significa que se manifestou. Descobrimos nos tecidos. E o fato foi devidamente registrado. A companhia foi informada e cancelou o seguro do filho, como "pré-doente".

- Quem forneceu a informação para a companhia?

- Está online.

- Por quê?

- Há um inquérito legal. Pela lei do Estado, tudo deve ser revelado. Somos obrigados a enviar todas as informações para um FTP, um protocolo de transferência de arquivo. Em teoria, há a proteção de uma senha. Na prática, porém, qualquer um pode acessar.

- Você põe os dados genéticos online:

- Não os dados de todos. Apenas quando há uma ação judicial. Seja como for, o filho alega que não autorizou a divulgação de informações genéticas sobre si mesmo, o que é verdade. Mas se divulgamos as informações sobre o pai, como somos obrigados a fazer pela lei do estado, também divulgamos as informações sobre o filho, o que somos obrigados pela lei a não fazer. Porque os filhos partilham a metade dos genes do pai. De um jeito ou de outro, violamos a lei. - Ela suspirou. - Tom Weller quer seu seguro de volta, mas não vai conseguir.

Marty Roberts inclinou-se sobre a mesa.

- Qual é a situação?

- O Sr. Weller está me processando, junto com o hospital. O departamento jurídico insiste que o laboratório não toque mais em qualquer material dos Weller. - Marilee Hunter fungou. — Estamos fora do caso.

Fora do caso! Mais nenhuma investigação, mais nenhum pedido de exumação do corpo! Marty Roberts sentiu o maior alívio, mas fez um esforço para parecer consternado.

— É muita injusta a maneira como os advogados dirigem a nossa sociedade.

— Não importa. Acabou, Marty. Não temos mais nada a fazer.

Marty voltou para o laboratório de patologia ao final da tarde.

— Raza, um de nós tem de deixar este laboratório.

— Sei disso. E sentirei saudade de você, Marty.

— Como assim?

— Tenho um novo emprego - respondeu Raza, sorrindo. - Hospital Hamilton, em San Francisco. O homem que por lá desempenha as minhas funções acaba de sofrer um infarto. Começo depois de amanhã. Como tenho de arrumar as malas, este é o meu último dia aqui.

Marty Roberts estava espantado.

— Bom...

Ele não sabia o que mais dizer.

— Sei que devo dar um aviso prévio de duas semanas, mas disse ao hospital em San Francisco que era um caso especial e que você compreenderia. Por falar nisso, conheço alguém que daria um bom substituto. Meu amigo Jesu. Muito bom. Como ele trabalha numa agência funerária, a transição não seria muito grande.

— Posso até conversar com ele, mas faço questão de escolher o homem.

— Claro. Não há problema. — Raza apertou a mão de Marty. - Obrigado por tudo, Dr. Roberts.

— Você será lembrado.

Marty sorriu. Raza virou-se e deixou o laboratório.

 

Josh WinNkler olhava pela janela de sua sala, que dava para a área de recepção da BioGen. Havia coisas pairando no ar. O assistente de Josh, Tom Weller, tirara uma semana de licença porque o pai morrera, num acidente de carro em Long Beach. E agora havia também um problema com seu seguro de saúde. O que significava que Josh teria de trabalhar com outro assistente, que não conhecia as rotinas. Lá fora, uma equipe de técnicos consertava as câmeras de vigilância do estacionamento. Na recepção, Brad Gordon conversava mais uma vez com a bela Lisa. Josh suspirou. Que tipo de poder Brad possuía para poder fazer qualquer coisa que quisesse, inclusive assediar a amante do patrão? Porque era evidente que Brad nunca seria despedido.

Lisa tinha lindos seios.

-Josh? Está me ouvindo?

— Estou, mamãe.

— Tem alguma coisa em sua mente?

— Não, mamãe.

De cima, ele podia olhar pelo decote da blusa de Lisa, que revelava os contornos suaves dos seios firmes. Sem dúvida firmes demais, mas isso não incomodava Josh. Todo mundo e tudo era realçado cirur-gicamente hoje em dia. Inclusive os homens. Até mesmo sujeitos na casa dos vinte anos estavam fazendo lifting e implante peniano.

— O que você acha? - perguntou a mãe.

— Como? Desculpe, mamãe. O que era mesmo que estava dizendo?

— Sobre os Levine. Meus primos.

— Não sei. Onde é mesmo que eles moram?

— Scarsdale, querido. Josh lembrou agora. A família Levine tinha pais que gastavam demais.

— Mamãe, não é uma coisa legal.

— Mas você fez com o menino de Lois. Fez pessoalmente.

— É verdade.

Mas Josh só o fizera porque achava que ninguém jamais descobriria.

— E agora o garoto largou as drogas e está trabalhando. Num banco, Josh. Num banco!

— Em que função?

— Não sei direito. Caixa, ou alguma coisa parecida.

— Isso é ótimo, mamãe.

— É mais do que ótimo. Aquele seu spray pode dar muito dinheiro, Josh. — Ela fez uma pausa. - É a droga que todo mundo quer. Você pode finalmente ficar rico.

— Seria ótimo, mamãe.

— Você sabe o que estou querendo dizer. O spray pode fazer maravilhas. — Uma pausa. — Mas você precisa saber como afeta as pessoas mais velhas, não é mesmo?

Josh suspirou. Era verdade.

— Tem razão.

— É nesse ponto que os Levine podem ajudá-lo.

— Está bem. Tentarei arrumar um tubo.

— Para pai e mãe?

— Isso mesmo, mamãe. Para os dois.

Ele fechou o celular. Pensava no que exatamente deveria fazer e - enquanto decidia se faria alguma coisa - ouviu o som de sirenes. Um momento depois dois carros da polícia pararam na frente do prédio. Quatro guardas saltaram dos carros, entraram no prédio e seguiram direto para Brad, que continuava debruçado no balcão, conversando com Lisa.

— Você é Bradley A. Gordon?

No instante seguinte, um dos homens virou-o, puxou seus braços para trás e algemou-o.

Mas que merda!, pensou Josh.

Brad protestou aos berros.

— Mas que porra é essa? O que está acontecendo?

— Sr. Gordon, está preso por agressão com agravantes e estupro de uma menor.

— O quê?

— Tem o direito de permanecer calado...

— O quê?— A voz saía agora ainda mais alta. — Mas que história é essa? Não conheço nenhuma foda de menor!

O guarda fitou-o nos olhos com evidente irritação.

— Está bem, está bem... palavra errada! Não conheço nenhuma menor!

— Acho que conhece, senhor.

— Vocês estão cometendo um grande erro! - berrou Brad, enquanto começavam a levá-lo.

— Apenas venha conosco, senhor.

— Vou processá-los!

— Por aqui, senhor.

Os guardas levaram Brad pela porta para o sol lá fora.

Quando Brad saiu, Josh olhou para as outras pessoas, debruçadas na grade. Metade do escritório olhava para o saguão, sussurrando. Ele avistou Rick Diehl, o presidente da empresa, no outro lado do balcão.

Parado ali, com as mãos nos bolsos, observara toda a cena se desenrolar.

Se Diehl sentia-se transtornado, não deixava transparecer.

 

Brad Gordon franziu o rosto, infeliz, para o vaso sanitário em sua cela. Uma tira de papel higiênico úmido estava pendurada ao lado do vaso. Havia uma poça de líquido marrom na frente do assento. Partículas sólidas flutuavam ali. Brad queria mijar, mas não tinha a menor necessidade de pisar naquele líquido, o que quer que fosse. Não queria nem mesmo pensar a respeito.

Uma chave foi virada na fechadura por trás dele. Um guarda abriu a porta.

— Vamos embora, Gordon.

— O que é?

— Seu advogado está aqui.

O guarda levou Brad pelo corredor, até uma sala pequena. Havia ali um homem mais velho, de terno listrado, e um cara mais jovem, quase um garoto, com um blusão do Dodgers, sentado a uma mesa, na frente de um laptop. O garoto usava óculos de lentes grossas com armação de casco de tartaruga, o que o fazia parecer com uma coruja, Harry Potter, ou qualquer outra coisa parecida. Os dois se levantaram e apertaram sua mão. Ele não registrou os nomes, mas sabia que eram do escritório de advocacia de seu tio.

— O que está acontecendo? - perguntou Brad. O advogado mais velho abriu uma pasta.

— O nome da garota é Kelly Chin. Você a conheceu num jogo de futebol, abordou-a...

— Eu abordei-a?

— E levou-a para o Westview Plaza Hotel, quarto 413...

— Não foi bem assim...

— E depois que estavam no quarto, fez sexo oral, genital e anal com ela, que só tem dezesseis anos.

— Isso nunca aconteceu.

O advogado mais velho não se alterou.

— Está afundado na merda até o pescoço, meu amigo.

— Estou lhe dizendo que isso nunca aconteceu.

Eu ouvi. Os dois foram registrados pelas câmeras de segurança do hotel no saguão e no elevador. As câmeras no corredor registraram sua entrada com a Srta. Chin no quarto 413. Ficaram ali uma hora e sete minutos. Ela saiu sozinha.

— É verdade, mas...

— Ela chorava no elevador.

— O quê?

— Seguiu direto para o Community Hospital de Westview. Apresentou ali a queixa de que fora agredida e estuprada. Foi examinada na ocasião. Tiraram fotos. Ela tinha lacerações e contusões na vagina. Lacerações anais. Extraíram uma amostra de sêmen do reto. Está sendo analisado neste momento, mas ela garante que é seu. É?

— Merda, merda... - murmurou Brad.

— É melhor ser franco. Conte exatamente o que aconteceu.

— Aquela sacana!

— Vamos começar pelo jogo de futebol em que a conheceu. Testemunhas dizem que você já fora visto em outras partidas de futebol das meninas. O que fazia ali, Sr. Gordon?

— Oh, Jesus...

Brad relatou a história, interrompido com freqüência pelo homem mais velho. Levou quase meia hora para explicar exatamente o que acontecera. E para chegar ao quarto do hotel.

— Diz que a garota o atraiu.

— Isso mesmo.

— Não houve beijos ou outras manifestações de afeição no elevador, durante a subida?

— Claro que não. Ela manteve uma atitude reservada. Essa coisa asiática.

— Essa coisa asiática.... Infelizmente, pelas imagens das câmeras, ela dava a impressão de que não era uma participante muito disposta.

— Acho que lhe faltou coragem.

— Quando foi isso?

— Estávamos no quarto, começando a nos acariciar. Ela demonstrava o maior tesão, mas também parecia um pouco esquisita, recuando a todo instante. Mas, de um modo geral, ela queria. Foi quem pôs a camisinha no meu pau. Eu estava pronto. Ela deitou de costas, com as pernas abertas. E, de repente, mudou de idéia. "Não quero mais." Fiquei deitado ao seu lado, de pau duro, e comecei a me sentir irritado. Então ela disse que sentia muito, e caiu de boca em mim. Gozei na camisinha. Ela se comportou como uma profissional, mas sabe como são as garotas hoje em dia. Ela tirou a camisinha, levou para o banheiro, e ouvi a descarga do vaso. Voltou com uma toalha de rosto molhada na água quente, me limpou, disse que sentia muito, mas precisava voltar para casa.

Brad fez uma pausa.

— Fiquei... não sei direito. A esta altura, já imaginava que havia alguma coisa errada com a garota. Ela era esquisita em termos sexuais, talvez uma provocadora, já vi isso antes... talvez até com um transtorno mental. De qualquer forma, eu queria que ela fosse logo embora. Por isso, eu disse: "Claro. Pode ir. Lamento que não tenha sido bom para você." E ela me disse que talvez fosse melhor eu esperar um pouco antes de sair também. Eu disse: "Claro. Não tem problema." Ela foi embora. Esperei um pouco e depois sai também. Juro que foi só isso que aconteceu.

— Ela nunca lhe disse que idade tinha? - Não.

— Você nunca perguntou?

— Não. Ela disse que tinha acabado o curso secundário.

— Não acabou. Ainda está no penúltimo ano.

— Oh, merda!

Um momento de silêncio. O advogado folheou as páginas da pasta de arquivo à sua frente.

— Portanto, sua história é de que essa garota seduziu-o num jogo de futebol feminino, levou-o para um quarto de hotel, recolheu seu esperma num preservativo, foi embora, infligiu lesões genitais em si mesma, pôs seu esperma no reto, foi para o hospital, e apresentou queixa de estupro. É isso?

— Só pode ter sido assim.

— É uma história difícil de aceitar, Sr. Gordon.

— Mas só pode ter sido assim.

— Tem alguma prova de que sua história é verdadeira? Brad ficou calado. Pensando.

— Não - disse ele, depois de um longo momento. — Não tenho nada.

— Vai ser um problema e tanto.

Depois que Brad foi levado de volta à cela, o advogado virou-se para seu jovem companheiro com o blusão do Dodgers e óculos de casco de tartaruga.

— Tem alguma contribuição a oferecer?

— Tenho. — Ele virou a tela para que o homem mais velho pudesse ver uma série de linhas irregulares. - Os medidores de estresse de áudio permaneceram dentro do âmbito normal. Os padrões de hesitação indicam que a interferência pré-frontal com a cognição esteve ausente em todos os momentos. O cara não está mentindo. Ou pelo menos está convencido de que aconteceu assim.

— Interessante... mas não faz diferença. Não há a menor possibilidade de conseguirmos libertar esse cara.

 

Henry Kendall parou o carro no estacionamento do Memorial Hospital de Long Beach. Entrou no hospital por uma porta lateral, levando um recipiente dentro de um saco de pano. Desceu até o laboratório de patologia no porão e pediu para falar com Marty Roberts. Haviam sido colegas na escola secundária em Marin County. Marty veio no mesmo instante.

— Ouvi seu nome e pensei que havia morrido!

— Ainda não. - Trocaram um aperto de mão. - Você está muito bem.

— Um pouco gordo. Você está ótimo. Como vai Lynn?

— Muito bem. As crianças estão ótimas. E Janice?

— Ela me trocou por um cirurgião cardíaco há dois anos.

— Sinto muito. Eu não sabia.

— Já superei. A vida é boa. A atividade por aqui tem sido frenética, mas começa a ficar mais tranqüila. — Marty Roberts sorriu. — Seja como for, você não está muito longe de La Jolla? Não é lá que está agora?

— Isso mesmo. Radial Genomics. Marty acenou com a cabeça.

— Ahn... O que aconteceu?

— Quero que você dê uma olhada em uma coisa. Uma amostra de sangue.

— Claro. Não tem problema. Posso perguntar de quem é?

— Pode perguntar, mas eu não sei. Isto é, não tenho certeza. Ele entregou o recipiente a Marty. Era uma pequena caixa de

isopor, revestida de isolamento. No centro havia um tubo com sangue. Marty tirou o tubo.

- A etiqueta na embalagem diz "Do Laboratório de Robert A. Bellarmino". A coisa é grande, Henry. — Marty levantou a etiqueta e olhou para a outra que havia por baixo, mais antiga. — E o que é isto? Um número? Parece F-102, mas não consigo ler direito.

- Acho que é isso mesmo. Marty fitou seu amigo antigo.

- Muito bem, seja franco comigo. O que é isto?

- Quero que você me diga.

- Serei direto com você. Não farei qualquer coisa ilegal. Não trabalhamos assim por aqui.

- Não é ilegal.

- Mas você não quer analisar em seu laboratório.

- Isso mesmo.

- Então pega o carro e dirige por duas horas até aqui para pedir minha ajuda.

- Marty, apenas faça o que estou pedindo. Por favor.

Marty Roberts olhou pelo microscópio. Ajustou a tela do monitor, para que ambos pudessem ver.

- Muito bem — disse ele. - Morfologia de hemácias, hemoglobina, frações de proteínas, tudo absolutamente normal. É apenas sangue. De quem é?

- E sangue humano?

- Claro que é. O que o leva a pensar que poderia ser sangue animal?

- Só perguntei.

- Se é de certos tipos de macacos, não podemos distinguir. Por exemplo, não há como determinar a diferença entre sangue de chimpanzés e de pessoas. O sangue é idêntico. Lembro que a polícia prendeu um cara coberto de sangue no zoológico de San Diego. Pensaram que ele era um assassino. Mas era sangue menstrual de uma fêmea de chimpanzé. Tive esse caso quando era residente.

- Não dá para saber? E o ácido siálico?

- O ácido siálico é característico de sangue de chimpanzé... Então você pensa que é sangue de chimpanzé?

— Não sei, Marty.

— Não podemos fazer um teste de ácido siálico em nosso laboratório. Não temos as condições adequadas. Mas acho que a Radial Genomics em San Diego pode fazê-lo.

— Muito engraçado.

— Quer me contar o que está acontecendo, Henry?

— Não. Mas quero que faça um teste de DNA dessa amostra e de mim.

Marty Roberts recostou-se.

— Está me deixando nervoso. Meteu-se em alguma coisa estranha?

— Não. Nada disso. Era um projeto de pesquisa. Já tem alguns anos.

— E agora você acha que isto pode ser sangue de chimpanzé. Ou seu sangue?

— Isso mesmo.

— Ou de ambos?

— Vai fazer o teste de DNA para mim?

— Claro. Tirarei uma amostra de seu tecido bucal. E o procurarei para dar os resultados dentro de poucas semanas.

— Obrigado. Podemos manter isso entre nós?

— Está me assustando de novo, Henry. Mas é claro que podemos manter em sigilo. — Marty Roberts sorriu. — Ligarei assim que tiver os resultados.

 

- Estamos falando de submarinos - disse o advogado de patentes para Josh Winkler. — Submarinos de peso.

— Continue — disse Josh, sorrindo.

Os dois sentavam a uma mesa num McDonalds fora da cidade. Todas as outras pessoas ali tinham menos de 17 anos. Não havia a menor possibilidade de que a empresa fosse informada sobre o encontro.

— Você me pediu para procurar patentes ou solicitações de patentes relacionadas com o que você chama de gene da maturidade. Encontrei cinco, desde 1990.

— Hum, hum...

— Duas são submarinos. É assim que chamamos as patentes vagas, solicitadas com a intenção de deixá-las paradas até que outra pessoa faça uma descoberta que as ative. O exemplo clássico é COX-2...

— Conheço o caso. É notícia antiga.

A disputa pela patente do inibidor da COX-2 ficou famosa. Em 2000, a Universidade de Rochester recebera uma patente para um gene chamado COX-2, que produzia uma enzima que causava dor. A universidade processara em seguida o gigante farmacêutico Searle, que produzia e vendia uma droga bem-sucedida contra a artrite, que bloqueava a enzima COX-2. Rochester alegou que o Celebrex violara sua patente de gene, embora sua patente só reivindicasse usos gerais do gene para combater a dor. A universidade não pleiteara uma patente sobre qualquer droga específica.

E foi isso que o juiz ressaltou, quatro anos mais tarde, quando Rochester perdeu. O tribunal decidiu que a patente de Rochester era "pouco mais que um plano de pesquisa". Assim, a ação contra a Searle era inválida.

Decisões desse tipo, no entanto, não alteraram o comportamento a longo prazo do departamento de patentes. Continuou a conceder patentes de genes que só incluíam listas de alegações vagas. Uma patente podia alegar todos os usos de um gene para controlar doenças cardíacas ou a dor, ou para combater infecções. Muito embora os tribunais decidissem que essas alegações não tinham o menor valor, o departamento continuava a conceder as patentes mesmo assim. Na verdade, o ritmo de concessões aumentou. Os dólares do contribuinte em ação.

— Vá direto ao ponto — pediu Josh.

O advogado consultou seu bloco de anotações.

— O melhor candidato é um pedido de patente de 1998 para aminocarboximuconato metaldeídeo deidrogenase, ou ACMMD. A patente reivindica efeitos potenciais sobre os neurotransmissores no giro do cíngulo.

— É o módulo de ação de nosso gene da maturidade — comentou Josh.

— Exatamente. Portanto, se você possuísse o ACMMD, controlaria efetivamente o gene da maturidade, porque controlaria sua expressão. Perfeito, não é mesmo?

— Quem possui a patente do ACMMD?

O advogado tornou a consultar suas anotações.

— A patente foi solicitada por uma empresa chamada GenCoCom, baseada em Newton, Massachusetts. Apresentada para o Capítulo 11, em 1995. Como parte dos estatutos da empresa, todos os pedidos de patentes eram feitos em nome do investidor principal, Carl Weigand, que morreu em 2000. As patentes passaram para a viúva. Ela está doente, com câncer terminal, e pretende doar todas as patentes para o Memorial Hospital de Boston.

— Pode fazer alguma coisa?

— Basta dar a ordem.

— Pois então faça - murmurou Josh, esfregando as mãos.

 

Rick Diehl considerou todo o problema como um projeto de pesquisa. Leu um livro sobre o orgasmo feminino. Dois livros, para ser mais preciso. Um com ilustrações. E assistiu a um vídeo. Passou-o três vezes e até fez anotações. Porque jurara para si mesmo que conseguiria arrancar uma reação de Lisa, de um jeito ou de outro.

Agora, estava entre as pernas de Lisa, os dedos com cãibras, a língua cansada, os joelhos doloridos... mas ela continuava a manter o corpo em total relaxamento, indiferente a todos os seus esforços. Não ocorrera nada do que os livros previam. Nenhuma tumescência labial. Nenhuma inchação perineal. Nenhuma retração do capuz do clitóris. Nenhuma alteração na respiração, tensão abdominal, gemidos ou grunhidos...

Absolutamente nada.

Ele estava se esgotando, enquanto Lisa olhava para o teto, alheia a tudo, como se estivesse no dentista. Como uma pessoa à espera de que uma coisa vagamente desagradável terminasse.

E de repente... espere um instante... a respiração mudou. Só um pouquinho, a princípio, mas depois nitidamente. Com um suspiro. E a barriga começou a se contrair, em movimentos ritmados. Ela passou a apertar os seios, a gemer baixinho.

Estava dando certo!

Rick redobrou o esforço. Lisa reagiu com mais intensidade. Estava mesmo dando certo... ela grunhia agora... ofegava, se contorcia, a caminho do orgasmo... arqueou as costas... e gritou subitamente:

— Agora, Brad, agora!

Rick recuou, como se tivesse levado um soco. Lisa levou a mão à boca e afastou-se dele. Estremeceu por um instante, sentou na cama, empurrou os cabelos para trás, e fitou-o. Tinha as faces avermelhadas, os olhos vibrando de excitamento.

— Puxa... sinto muito...

Foi nesse instante de constrangimento que o celular de Rick tocou. Lisa pegou-o na mesinha-de-cabeceira e estendeu para ele.

— O que é?

Rick falou em tom ríspido, de tanta raiva que sentia.

— Sr. Diehl? Aqui é Barry Sindler.

— Oi, Barry.

— Algum problema?

— Nenhum.

Lisa já saíra da cama e se vestia, de costas para ele.

— Tenho uma boa notícia.

— O que aconteceu?

— Como já sabe, sua esposa recusou-se na semana passada a fazer o teste genético. Providenciamos uma ordem judicial. Foi despachada ontem.

— E o que ela fez?

— Confrontada com a ordem judicial, sua mulher fugiu, para não se submeter ao teste.

— Como assim?

— Foi embora. Deixou a cidade. Ninguém sabe para onde ela foi.

— E as crianças?

— Ela abandonou-as.

— Quem está cuidando delas?

— A empregada. Não liga para elas todos os dias?

— Ligo, sim, de um modo geral, mas tenho andado muito ocupado no trabalho...

— Quando foi a última vez que as procurou?

— Não me lembro direito... talvez há três dias.

— Pois é melhor ir até lá imediatamente. Queria a custódia das crianças e conseguiu. É melhor agora demonstrar para o tribunal alguma responsabilidade paternal.

E ele desligou. Parecia irritado. Rick Diehl inclinou-se para trás, ajoelhado na cama. Olhou para Lisa.

— Tenho de ir — murmurou ele.

— Está bem. Sinto muito.

 

A fiança foi fixada em meio milhão de dólares. O advogado de Brad Gordon pagou. Brad sabia que era dinheiro do tio, mas pelo menos estava livre para sair. Quando deixava o tribunal, o garoto de aparência engraçada, com o blusão do Dodgers, aproximou-se e disse:

- Precisamos conversar.

- Sobre o quê?

- Montaram uma armadilha para você. Sei exatamente o que aconteceu.

- É mesmo?

- É, sim. Precisamos conversar.

O garoto arrumou uma sala de entrevista em outra parte do prédio. Eram só os dois. O garoto fechou a porta, abriu seu laptop, e indicou uma cadeira para Brad. Virou o laptop para que Brad pudesse ver.

- Alguém acessou seus registros telefônicos.

- Como sabe?

- Temos contatos na empresa de telefonia.

- E daí?

- Acessaram seus registros do celular quando se encontrava fora do trabalho.

- Por quê?

- Como provavelmente já sabe, seu celular contém tecnologia de GPS. Isso significa que sua localização é registrada sempre que faz uma ligação. — O garoto bateu numa tecla. - Fizemos um gráfico de suas posições num período de trinta dias e encontramos isto.

O mapa mostrava pontos vermelhos por toda a cidade, mas havia uma concentração de pontos numa parte de Westview. O garoto deu um zoom.

— Este é o campo de futebol.

— Está querendo dizer que sabiam que eu ia até lá?

— Isso mesmo. É o que estou querendo dizer.

— E a garota?

— Estamos trabalhando nela. Não é uma adolescente comum. Achamos que é filipina. Já apareceu na Internet masturbando-se, por dinheiro. Seja como for, o relevante neste momento são as incoerências em sua história. Se observar o registro da câmera de segurança do hotel... — ele apertou outra tecla —.. pode verificar que ela afasta o corpo da câmera, enquanto espera o elevador, abre a bolsa e toca no rosto. Achamos que está pingando gotas ou passando algum irritante nos olhos. Quando entra no elevador, um momento depois, o choro é visível. Mas pense numa coisa: como uma suposta vítima de estupro, chorando no elevador, aparentemente transtornada, não segue direto até a recepção para comunicar que foi estuprada? Não se pode deixar de especular por que não.

— Hum, hum... - murmurou Brad, os olhos contraídos.

— Em vez disso, ela atravessa o saguão direto e vai para seu carro. A câmera de segurança do estacionamento mostra-a saindo dali às 17:17h. Dependendo do tráfego, a viagem entre o hotel e o hospital leva entre 11 e 17 minutos. Ela só chega ao hospital às 18:05h. Quarenta e cinco minutos depois. O que ela fez durante esse tempo?

— Feriu a si mesma?

— Não. Pedimos a vários peritos que examinassem as fotos tiradas no hospital. Além disso, a enfermeira que fez o exame tinha muita experiência de traumas. As fotos são bastante claras. Achamos que ela se encontrou com um cúmplice que produziu as lesões.

— Está dizendo que algum cara...

— Isso mesmo.

— Mas, neste caso, ele deixaria seu DNA, não é mesmo?

— Ele usou camisinha.

— Portanto, há pelo menos duas pessoas envolvidas.

- Para ser franco, achamos que há toda uma equipe envolvida. A armação foi bastante profissional. Quem poderia fazer isso com você?

Brad pensara muito a respeito em sua cela. E sabia que só havia uma resposta.

- Rick. Meu patrão. Ele quer me afastar desde que comecei.

- E você tentava transar com a garota dele... - Tentava, não... transava.

- E agora está suspenso do emprego, tem uma espera pelo menos de nove meses até o julgamento e corre o risco de pegar uma pena de dez a vinte anos, se perder no tribunal. Grande transa.

O garoto fechou o laptop e levantou-se.

- O que acontece agora?

-Vamos trabalhar na garota. Se conseguirmos encontrar antecedentes, talvez algum vídeo na Internet, podemos pressionar o promotor a arquivar as acusações. Mas se o caso for levado a julgamento, não será nada bom.

- O filho-da-puta do Rick!

- Também acho. Mas você estava devendo, companheiro. — Ele foi até a porta. - Faça um favor a si mesmo, está bem? Fique longe daquele campo de futebol.

De "News of the Week", da revista Science

Homem de Neandertal: cauteloso demais para sobreviver?

Cientista encontra um "gene da morte" da espécie

Um antropólogo extraiu um gene de esqueletos de Neandertais que explica, segundo ele, o desaparecimento dessa subespécie. "As pessoas não compreendem que os Neandertais tinham, na verdade, cérebros maiores do que os modernos homens de Cro-Magnon. Eram mais fortes e mais resistentes que os Cro-Magnons, e fabricavam excelentes ferramentas. Sobreviveram a várias idades do gelo, antes que os Cro-Magnons entrassem em cena. Por que então os Neandertais desapareceram?"

A resposta, segundo o professor Sheldon Harmon, da Universidade de Wisconsin, é a de que os Neandertais tinham um gene que os levava a resistirem à mudança. "Os Neandertais foram os primeiros ecologistas. Criaram um estilo de vida em harmonia com a natureza. Limitavam a caça e controlavam o uso de ferramentas. Mas esse mesmo etos também fazia com que fossem extremamente conservadores e resistentes à mudança. Desaprovavam os recém-chegados Cro-Magnons, que pintavam cavernas, faziam ferramentas ornamentadas, e levavam manadas de animais a caírem do alto de penhascos, causando a extinção de espécies. Consideramos hoje que a pintura em cavernas foi um desenvolvimento maravilhoso. Mas os Neandertais consideravam que era tão importante quanto grafite. Achavam que não passava de rabiscos pré-históricos. E estavam convencidos de que as ferramentas elaboradas dos Cro-Magnons eram um desperdício, destrutivas do meio ambiente. Desaprovavam essas inovações e se apegavam aos costumes antigos. Até que acabaram desaparecendo como uma espécie."

Harmon, no entanto, insiste que os Neandertais acasalaram com os modernos Cro-Magnons. "É incontestável, porque identificamos esse mesmo gene nos modernos seres humanos. O gene é com certeza um remanescente Neandertal e promove um comportamento cauteloso ou reacionário. Muitas das pessoas que desejam hoje retornar ao passado glorioso, ou, no mínimo, manter as coisas como estão, são impelidas por esse mesmo gene Neandertal." Harmon descreveu a ação do gene como modificador dos receptores de dopamina no giro do cíngulo lateral posterior e no lobo frontal direito. "Não há dúvida sobre o modo de ação", disse ele.

As alegações de Harmon provocaram uma tempestade de críticas de colegas acadêmicos. Desde que E. O. Wilson publicara sua tese de sociobiologia, vinte anos antes, que não havia uma controvérsia tão furiosa. Segundo Vartan Gorvald, geneticista da Universidade de Colúmbia, Harmon injetou política no que deveria ser uma investigação puramente científica.

"Absolutamente", protestou Harmon. "O gene está presente tanto nos Neandertais quanto nos modernos humanos. Sua ação tem sido confirmada em tomografias de atividade cerebral. A correlação entre esse gene e o comportamento reacionário é indiscutível. Não é uma questão de política, de esquerda ou direita. É uma questão de atitude básica: se você é aberto ao futuro ou o teme; se você vê o mundo como emergente ou em deterioração. Sabemos há muito tempo que algumas pessoas favorecem a inovação e olham para o futuro de uma forma positiva, enquanto outras sentem-se assustadas com a mudança e querem conter a inovação. A linha divisória é genética, e representa a presença ou ausência do gene de Neandertal."

A notícia saiu no New York Times no dia seguinte:

GENE DE NEANDERTAL CONFIRMA PROGRAMA ECOLÓGICO

Medo de "Tecnologia Incontrolada" Justificado

STUTTGART, Alemanha - A descoberta pelo antropólogo Sheldon Harmon de um gene de Neandertal, que promove a preservação ambiental, "prova a necessidade de uma política ecológica sólida", declarou Marsha Madsden, porta-voz do grupo Greenpeace. "O fato de que os Neandertais perderam a batalha pelo ambiente deve servir como uma advertência para todos nós. Como os Neandertais, não vamos sobreviver, se não assumirmos agora uma ação radical global." E no Wall Street Journal:

CAUTELA MATOU OS NEANDERTAIS

O "Princípio Precautório" É Letal?

Oposição ao Livre Mercado É um Risco, Ressalta Grupo Pelo Crescimento

STEVE WEINBERG

Um antropólogo americano concluiu que os Neandertais desapareceram por causa de uma predisposição genética para resistir à mudança. Em outras palavras, "os Neandertais aplicaram o Princípio Precautório, tão apreciado pelos ambientalistas reacionários e antiliberais". Essa foi a opinião de Jack Smythe, do Instituto Americano de Competitividade, um intelectual progressista de Washington. Smythe disse: "A extinção dos Neandertais serve como uma advertência para aqueles que querem deter o progresso e nos levar de volta para uma vida infame, brutal e curta."

 

No canto da sala, a TV mostrava Sheldon Harmon, professor de antropologia e autoproclamado descobridor do "gene de Neandertal", sendo atacado durante uma conferência, com um balde de água despejado em sua cabeça.

Na tela, o evento foi mostrado várias vezes, em câmera lenta, a água molhando um homem magricela e careca, que parecia estranhamente divertido.

- Viu isso? - disse Rick Diehl. - Ele está sorrindo. É tudo um golpe de publicidade para promover o gene.

— Provavelmente — concordou Josh Winkler. — Eles tinham câmeras prontas para registrar a cena.

— Isso mesmo. E, além da publicidade que o cara vem obtendo para seu gene de Neandertal, ele alega um modo de ação muito parecido com o nosso gene da maturidade. A ativação do giro do cíngu-lo e assim por diante. Pode roubar nossa descoberta.

— Duvido muito. Dezenas de genes atuam no giro cingulado.

- Mesmo assim, acho que devemos anunciar nosso gene - declarou Rick. — O mais depressa possível. Quero que o gene da maturidade se torne público.

- Com o devido respeito, Rick, acho que seria prematuro.

- Você vem testando o gene em ratos, e tudo correu bem até agora.

— É verdade. O problema é que isso não chega a ser uma notícia. Mostrar filhotes de rato empurrando cocô para o lado numa gaiola não vai sair no noticiário principal da televisão.

Diehl acenou com a cabeça em concordância, lentamente.

— Tem razão. Precisamos de uma coisa melhor.

— Por que a urgência? - perguntou Josh.

— O conselho. Desde a prisão de Brad que seu tio anda irritado. Parece pensar que os problemas de Brad são culpa nossa. Seja como for, ele tem me pressionado para pôr a empresa em destaque com um grande anúncio.

— Seria ótimo. Mas ainda não estamos prontos.

— Sei disso. O primeiro estágio. Mas não poderíamos... apenas dizer que estamos prontos para começar a testar em seres humanos?

Josh estremeceu.

— Eu não faria isso. Ainda nem solicitamos à FDA...

— Esse é o primeiro passo. Vamos fazer o pedido.

— Rick, você sabe o que é necessário para esse pedido preliminar. É uma pilha de dados de pesquisa e formulários com três metros de altura. E isso apenas para começar o processo. Teríamos de preparar um cronograma de etapas...

Rick acenou com a mão, impaciente.

— Sei de tudo isso. Mas só estou dizendo que devemos anunciar.

— Anunciar quando não estamos fazendo?

— Não. Anunciar que vamos fazer.

— Mas é justamente esse o meu argumento. Ainda se passariam meses antes de podermos sequer apresentar o pedido.

— Os repórteres não se importam. Declaramos apenas que a BioGen Research, de Westview Village, está pronta para realizar os testes do primeiro estágio, e se encontra no processo de apresentar a solicitação à FDA.

— Para o gene da maturidade...

— Isso mesmo. Seria inserido com um vetor de retrovírus.

— E o que diremos que o gene faz?

— Não sei. Poderíamos dizer... que cura o vício em drogas. Josh sentiu um calafrio.

— Por que diríamos isso?

— Não acha que faz sentido? O gene da maturidade promove um comportamento equilibrado e maduro, que é, por definição, livre de... — Eu acho...

— Você acha?. - Diehl virou-se para fitá-lo. — Vamos demonstrar um pouco de entusiasmo, Josh. Tenho certeza que é uma grande idéia. Qual é o índice de recorrência nos programas de tratamento do vício em drogas hoje em dia? Oitenta por cento? Noventa por cento? Cem por cento? A maioria dos métodos de reabilitação não funciona para a maioria das pessoas. Isso é um fato incontestável. Quantos viciados existem neste país? Temos mais de um milhão em prisões. E quantos mais temos nas ruas? Vinte milhões? Trinta milhões?

Josh começava a suar frio.

— A porcentagem deve ser de oito a dez por cento da população.

— Concordo. E quando se inclui o álcool, aposto que dez por cento da população são viciados em drogas. Dez por cento, fácil, fácil. O que torna o gene da maturidade um produto sensacional!

Josh permaneceu calado.

— O que tem a dizer, Josh?

— Acho que é uma boa idéia...

— Não está querendo me sacanear, não é?

— Claro que não.

— Não está me escondendo nada... não tem agido por conta própria, tem?

— Não - murmurou Josh. - Por que pergunta?

— Sua mãe me telefonou hoje. Oh, merda!

— Ela está muito orgulhosa do que você tem feito e queria saber por que ainda não lhe dei uma promoção.

Josh arriou numa cadeira. Sentia-se encharcado de suor frio.

— O que pretende fazer agora? Rick Diehl sorriu.

— Dar a promoção, é claro. Manteve registros das doses que administrou?

 

Numa sala de reunião de paredes de vidro, na Madison Avenue, o pessoal da empresa de marketing Watson Naeme discutia o nome de um novo produto. A sala estava lotada de jovens ainda na adolescência e na casa dos vinte anos, todos em trajes informais, como se estivessem assistindo a um show de rock, em vez da conferência de um professor universitário, de pé atrás de um pódio, usando uma gravata-borboleta. Ele discorria sobre um gene chamado A587996B. Mostrou gráficos da ação enzimática, linhas pretas irregulares sobre um fundo branco. Os jovens mantinham-se arriados em suas cadeiras, navegando em seus BlackBerrys. Apenas uns poucos tentavam se concentrar no material.

Sentado no fundo da sala, o líder da equipe, um psicólogo chamado Paul Gode, girou um dedo no ar, sinalizando para o professor concluir. Gravata-Borboleta ficou surpreso, mas apressou-se em terminar.

— Em suma, nossa equipe na Universidade de Colômbia isolou um gene que promove a harmonia social e a coesão do grupo. Fez isso ao ativar o córtex pré-frontal do cérebro, uma área conhecida como importante para determinar a convicção e a crença. Temos demonstrado a ação desse gene ao expor sujeitos experimentais a idéias convencionais e controvertidas. As idéias controvertidas produzem uma assinatura pré-frontal distintiva, enquanto as idéias convencionais criam uma ativação difusa... o que se pode chamar de efeito warm glow. Ou seja, os sujeitos com o gene demonstram uma acentuada preferência por pensamento convencional e idéias familiares. Também demonstram uma preferência pelo pensamento coletivo de todos os tipos. Gostam de televisão. Gostam da Wikipédia.

Gostam de coquetéis. Gostam de falar o que se costuma chamar de abobrinha. Gostam de estar de acordo com as pessoas ao redor. Nosso gene é uma força importante para a estabilidade social e a civilização. Como é o gene que promove a sabedoria convencional, nós o chamamos de gene convencional.

A audiência permaneceu em silêncio. Aturdida. Até que alguém indagou:

— Chamam de quê?

— Gene convencional.

— Jesus, isso é terrível!

— Suicídio!

— Esqueça!

O professor apressou-se em dizer:

— Também chamamos de gene civilizador. Grunhidos por toda a sala.

— Gene civilizador? Pior ainda!

— Horrível!

— Intragável!

— É melhor saltar de uma ponte! O professor parecia perplexo.

— O que há de errado com esse nome? A civilização não é uma boa coisa?

— Claro que é - disse Paul Gode, levantando-se e indo até o pódio. — O único problema é que ninguém neste país quer pensar em si mesmo como adesista ou civilizador. Preferimos o oposto... somos todos individualistas empedernidos. Somos todos rebeldes. Somos todos contra o sistema. Nós nos destacamos dos outros, somos diferentes, fazemos o que queremos, seguimos nosso próprio caminho. A manada de mentes independentes, como alguém chamou. Ninguém quer sentir que não é um rebelde. Ninguém quer admitir que deseja apenas se ajustar.

— Mas, na verdade, todo mundo quer se ajustar - disse o professor. — Ou pelo menos quase todo mundo. Cerca de 92 por cento das pessoas têm o gene da sabedoria convencional. Não é encontrado nos autênticos rebeldes e eles são...

— Pare por aqui — disse o líder da equipe, erguendo a mão. - Apenas pare. Quer fazer com que seu gene seja valioso. Para isso, seu gene tem de criar alguma coisa que as pessoas querem possuir... alguma coisa emocionante e desejável. Sabedoria convencional não é emocionante nem desejável. É corriqueira. É torrada na manteiga com geléia de uva. É isso que o grupo está querendo lhe dizer.

Ele gesticulou para uma cadeira e acrescentou:

— Talvez queira sentar, professor.

Gode virou-se para o grupo, que agora parecia um pouco mais alerta.

— Muito bem, pessoal, vamos começar. Deixem os BlackBerrys de lado. Sugestões?

— Que tal gene esperto?

— Bom, mas inacurado.

— Gene da simplicidade.

— Pode ser um caminho...

— Gene social.

— Um exagero.

— Gene socializante.

— Terapêutico.

— Gene da sabedoria. Gene sábio.

— Gene sábio... Bom, muito bom.

— Gene do pensamento certo.

— Maoísta demais. Ou budista. Vamos, acordem!

— Gene da festa.

— Gene da diversão.

— Gene porreta. Gene moderno.

— Gene feliz.

— Gene da busca do prazer.

Gode franziu o rosto. Tornou a erguer a mão.

— Vamos voltar. Rebobinar. Repensar. Qual é o nosso problema? Esse gene é realmente o gene para a sabedoria convencional... o gene da sabedoria convencional... mas não queremos dizer isso. Vamos seguir desse ponto. O que é bom na sabedoria convencional? O que a adoção da sabedoria convencional faz por uma pessoa? Depressa agora.


— Você não sobressai.

— Pensa como todos os outros.

— Reduz os atritos.

— Você se ajusta.

— Significa que você lê o Times.

— Ninguém olha para você com uma cara estranha.

— Torna sua vida mais simples.

— Não há discussões.

— Você se sente seguro ao expressar uma opinião.

— Todo mundo concorda com você.

— Você é uma boa pessoa.

— Você se sente bem.

— Você se sente à vontade.

— Você se sente confortável. Gode estalou os dedos.

— Ótimo! O pensamento convencional nos deixa confortáveis... Isso! Sem surpresas, sem aflições. No mundo lá fora, tudo muda constantemente, a cada minuto. Não é um lugar confortável. E todo mundo quer se sentir confortável, não é mesmo? Um velho par de tênis, um trainingconfortável, a poltrona predileta...

— Gene confortável?

— Gene cômodo.

— Gene do conforto.

— Gene do aconchego.

— Gene feliz.

— Gene amigo? Gene da vida fácil?

— Gene tranqüilizante.

— Gene da calma.

As sugestões continuaram mais algum tempo, até que havia nove escritas no quadro branco. Seguiu-se uma animada discussão, em que alguns nomes foram eliminados, embora todos devessem passar por testes de conceito em grupos de foco. Ao final, os participantes concordavam que o vencedor seria gene do conforto.

- Vamos fazer um teste no campo - disse Gode. - Diga-nos uma coisa, professor. Qual o destino desse gene, em termos comerciais?

Ainda era muito cedo para determinar, explicou o professor. Haviam isolado o gene, mas ainda não conheciam toda a extensão das doenças associadas. Mas, como quase todas as pessoas no mundo tinham o gene do conforto, eles achavam que muitas provavelmente sofriam de anomalias genéticas envolvendo o gene. Por exemplo: Pessoas que tinham um desejo extremado de aderir à maioria... isso podia ser um transtorno genético. E pessoas que se sentiam deprimidas quando ficavam sozinhas... podia ser outro transtorno. Pessoas que participavam de marchas de protesto, pessoas que compareciam a competições esportivas, que procuravam situações em que estariam cercadas por outras com a mesma mentalidade... um potencial de transtorno genético. Havia ainda as pessoas que se sentiam obrigadas a concordar com quem quer que conversassem... mais uma possibilidade de transtorno genético. E as pessoas que tinham medo de pensar por si mesmas? Medo da independência do grupo ao redor?

— Temos de admitir que são muitas pessoas — comentou o professor. — Ninguém pensa por si mesmo, se puder evitar.

— Está querendo dizer que todo esse comportamento será considerado patológico? - perguntou alguém.

— Todo comportamento compulsivo é patológico — respondeu o professor.

-Até mesmo o comportamento positivo? As marchas de protesto?

— Nossa posição é a de que estamos na iminência de identificar uma série de estados de doença relacionados com a sociabilidade.

Essas anomalias genéticas envolvendo o gene do conforto ainda não haviam sido determinadas definitivamente, mas a Universidade de Colômbia já solicitara uma patente para o próprio gene. Isso significava que o gene teria um valor crescente, à medida que os transtornos envolvidos fossem identificados com certeza. Gode tossiu.

— Cometemos um erro. Todos os exemplos citados são transtornos de sociabilidade. Este deve ser o gene da sociabilidade.

E assim foi.

De Business Online:

CIENTISTAS DESCOBREM GENE DA SOCIABILIDADE

A tendência para a sociabilidade é herdada? Cientistas do Laboratório Morecomb, na Universidade de Colúmbia, acreditam que a resposta é afirmativa. Informaram que descobriram o gene que a regula. Solicitaram uma patente sobre o gene...

Comentário no New York Times:

GENE DA SOCIABILIDADE? QUANDO ESSE DESATINO VAI PARAR?

Pesquisadores da Universidade de Colúmbia alegam agora que descobriram um gene da sociabilidade. O que virá em seguida? O gene da timidez? O gene reclusivo? O gene monástico? Que tal o gene sai-de-cima-de-meu-pé?

Na verdade, os pesquisadores estão tirando proveito da falta de conhecimento do público sobre a maneira como os genes operam. Não há um gene único que controla qualquer característica compor-tamental. Infelizmente, o público não sabe disso. Acha que há um gene para a cor dos olhos, para a altura, e para os cabelos crespos; então por que não um gene para a sociabilidade? Os geneticistas não se manifestam. Todos sentam nos conselhos de empresas particulares, e se empenham numa corrida para identificar os genes que possam patentear em seu benefício.

Isso nunca mais vai parar? É evidente que não.

SENTE-SE SOCIÁVEL? ISSO É PATENTEADO

O centro de pesquisa da Universidade de Colúmbia solicitou uma patente sobre um gene que diz que controla a sociabilidade. Isso significa que, um dia, todos que tomam antidepressivos, medicamentos para transtorno do déficit de atenção ou medicamentos para ansiedade, terão de pagar royalties para a Colúmbia? Dizem que gigantes farmacêuticos da Suíça estão disputando frenéticos o licenciamento do gene.

 

A audiência de determinação de fatos, no Comitê de Revisão de Bioética do Instituto Nacional de Saúde, em Bethesda, era cuidadosamente estruturada para que as pessoas se sentissem à vontade, sem qualquer intimidação. Todos sentavam à mesma mesa comprida, na sala de reunião no terceiro andar do prédio principal. Era um cenário familiar, com avisos de seminários iminentes fixados nas paredes e a velha cafeteira resmungando no canto. O café era notório por ser péssimo, e por isso ninguém o tomava.

Os seis cientistas no comitê de revisão haviam se vestido de uma maneira um pouco mais formal para aquela reunião. A maioria estava de paletó, e um deles até pusera uma gravata. Mas sentavam relaxados, enquanto falavam com a pessoa sendo investigada, Dr. Ronald Marsh, 41 anos, sentado à mesma mesa.

— E como exatamente essa menina de doze anos morreu?

O Dr. Marsh era professor de medicina na Universidade do Texas, em Austin.

— Ela sofria de deficiência congênita do fator de transporte. — A CTFD, a sigla em inglês, era uma deficiência genética fatal. - A garota foi tratada com dieta e diálise renal desde os nove meses de idade. Apresentava alguns sinais de raquitismo no desenvolvimento físico, mas não havia nenhuma indicação de deficiência mental. A menina e a família queriam o procedimento, na esperança de que ela pudesse levar uma vida normal. Sem ficar ligada a uma máquina para sempre. Como sabem, não é uma vida das melhores, ainda mais para alguém tão jovem.

As pessoas ao redor da mesa escutavam impassíveis.

— E, avaliando o futuro, todos reconhecíamos que ela não poderia ser mantida através da adolescência — continuou Marsh. - As mudanças hormonais já começavam a afetar seu metabolismo. Era inevitável que ela morresse nos próximos três ou quatro anos. Foi nessa base que realizamos o procedimento para inserir o gene em seu corpo. - Ele fez uma pausa. — Os riscos eram conhecidos.

Um dos cientistas perguntou:

- Esses riscos foram discutidos com a família?

- Claro. Em detalhes.

- E com a paciente?

- Também. Era uma menina inteligente. Foi a primeira a propor o procedimento. Lera a respeito na Internet. E compreendia que os riscos eram enormes.

- Apresentaram à família uma estimativa desses riscos?

- Claro. Informamos que as possibilidades de sucesso eram da ordem de três por cento.

- E eles concordaram mesmo assim?

- Isso mesmo. A filha pressionou-os. Achava que se ia morrer de qualquer maneira, podia muito bem correr os riscos.

- Ela era menor...

- Isso mesmo. Mas era também quem tinha a doença.

- Obtiveram autorizações assinadas?

- Claro.

- Lemos essas autorizações. Alguns de nós achamos que tinham um tom positivo irrealista, minimizando os riscos.

- As autorizações foram preparadas pelo departamento jurídico do hospital — explicou Marsh. - E vão constatar que a família assinou uma declaração de que tinha total conhecimento dos riscos. As informações transmitidas aos pais foram registradas nas fichas da paciente. Não teríamos prosseguido sem o consentimento plenamente informado.

Durante essa explicação, o Dr. Robert Bellarmino, presidente do comitê, entrou na sala. Sentou na extremidade da mesa.

- Então fizeram o procedimento? - perguntou um dos cientistas.

- Fizemos.

— Que vetor foi usado?

— Infusão de adenovírus modificado, em combinação com os protocolos padrão de imunossupressão.

— E o resultado?

— Ela teve febre quase que no mesmo instante. Chegou a 41C. Apresentou sinais de falência múltipla dos órgãos no segundo dia. As funções do fígado e rins não se recuperaram. Ela morreu no terceiro dia.

Houve um breve momento de silêncio.

— Se me permitem fazer um comentário, foi uma experiência arrasadora para todos no hospital... e para mim em particular — acrescentou Marsh. — Cuidávamos daquela menina desde que ela era bebê. Ela era... amada por todos na equipe. Era como um pequeno raio de sol sempre que entrava na clínica. Tentamos esse procedimento de risco porque ela queria. Mas agora sempre me pergunto à noite: Fiz o que era certo? E sempre sinto que tinha a obrigação de assumir aquele risco com a paciente, se era isso que ela queria. Ela queria a vida. Como eu poderia lhe negar essa oportunidade?

Uma tosse.

— Mas... ahn... sua equipe não tinha experiência em transplante de genes.

— Não, não tinha. Pensamos em mandá-la para outra equipe.

— Por que não o fizeram?

— Ninguém mais queria realizar o procedimento.

— O que disseram? Marsh suspirou.

— Algum de vocês já viu um paciente morrer de CTFD? Os rins necrosam. O fígado pára de funcionar. O corpo incha, adquire uma tonalidade púrpura-cinza. A pessoa não consegue respirar. Entra em agonia. Leva dias para morrer. Eu deveria esperar que isso acontecesse com aquela menina adorável? Acho que não.

Houve outro momento de silêncio à mesa. O clima era nitidamente desaprovador.

— Por que a família entrou com um processo agora? Marsh sacudiu a cabeça.

— Ainda não consegui falar com eles.

— Declararam no tribunal que não estavam informados.

— Mas estavam. Todos nós esperávamos que desse certo. Todos nós estávamos otimistas. E os pais não podem aceitar a verdade... que um índice de três por cento de sucesso significa que noventa e sete por cento dos pacientes morrem. Isso mesmo, noventa e sete por cento. É quase a morte certa. Eles sabiam disso, mas sentiram-se enganados quando suas esperanças foram destruídas. De qualquer forma, nunca os enganamos.

Depois que o Dr. Marsh deixou a sala, o comitê reuniu-se em sessão fechada. Dos sete membros do comitê, seis estavam indignados. Argumentavam que Marsh não dizia a verdade agora, assim como não dissera a verdade antes. Insistiam que ele fora imprudente. Que dera à genética uma péssima reputação, que teria agora de ser superada. Que agira de forma impensada.

Era evidente que se encaminhavam para uma censura a Marsh, para recomendar que ele perdesse a licença e a possibilidade de receber subvenções do governo.

O presidente do comitê, Rob Bellarmino, não disse nada por um longo tempo. Mas, finalmente, tossiu para chamar a atenção dos outros e interveio na discussão:

— Não posso deixar de refletir que esses argumentos foram exatamente os mesmos dos que protestaram quando Christian Barnard fez o primeiro transplante de coração.

— Mas este caso não é o primeiro de qualquer coisa...

— Agir de forma impensada. Ausência da devida autorização. Passível de ação judicial. Deixem-me lembrá-los quais eram as estatísticas originais de Barnard. Seus primeiros dezessete pacientes morreram quase que imediatamente. Ele foi chamado de assassino e charlatão. Agora, porém, mais de dois mil transplantes de coração são realizados por ano neste país. A maioria dos pacientes continua a viver por um período de cinco a quinze anos. Os transplantes de rim viraram uma rotina. Transplantes de pulmão e fígado, que eram considerados um absurdo há poucos anos, são agora aceitos. Cada nova terapia passa por um estágio pioneiro arriscado. E sempre teremos de contar com pessoas corajosas, como o Dr. Marsh, para assumir os riscos.

— Mas tantas normas foram violadas...

— O que fariam com o Dr. Marsh? — indagou Bellarmino. — O homem não consegue dormir à noite. Dá para perceber em seu rosto. Uma paciente amada morreu sob seus cuidados. Que punição maior poderiam lhe infligir? E quem são vocês para dizer que ele fez a coisa errada?

— As normas éticas...

— Nenhum de nós fitou aquela menina nos olhos. Nenhum de nós conhecia sua vida, sua dor, suas esperanças. Ele a conhecia havia anos. Vamos agora julgá-lo?

Houve silêncio na sala.

Ao final, votaram por uma censura ao departamento jurídico da Universidade do Texas, sem qualquer penalidade para o Dr. Marsh. Bellarmino fizera com que mudassem de idéia. Mais tarde, um dos membros do comitê comentou:

— Foi uma manobra clássica de Rob Bellarmino. Falar como um pregador, com uma sutil invocação de Deus, levando todos a concordarem, não importa quem saísse prejudicado, não importa o que tivesse acontecido. Rob é capaz de justificar qualquer coisa. É brilhante nisso.

Mas antes da votação final, Bellarmino já deixara a sala, porque estava atrasado para a reunião seguinte.

Da reunião do comitê de bioética, Bellarmino voltou a seu laboratório, onde tinha um encontro marcado com um de seus jovens de pós-doutorado. O garoto viera do Centro Médico de Cornell, onde realizara um trabalho extraordinário sobre os mecanismos que controlavam a formação de cromatina.

Normalmente, o DNA de uma célula era encontrado dentro do núcleo. A maioria das pessoas imaginava o DNA com a forma de uma dupla hélice, a famosa escada em caracol descoberta por Watson e Crick. Mas essa escada era apenas uma das três formas que o DNA podia assumir dentro da célula. O DNA podia também formar um único filamento, ou uma estrutura mais condensada, chamada centrômero. A forma específica dependia das proteínas associadas com o DNA.

Isso era importante, porque os genes ficavam indisponíveis para a célula quando o DNA era comprimido. Uma maneira de controlar os genes era mudar a cromatina de várias seções do DNA.

Assim, por exemplo, quando genes eram injetados em novas células, era preciso também tomar providências para manter a cromatina numa forma disponível, através do uso de substâncias químicas.

O novo assistente de Bellarmino realizara uma pesquisa pioneira sobre mediação em determinadas proteínas e seu efeito na estrutura de cromatina. O trabalho do garoto, "Controle de Acessibilidade de Proteína do Genoma e Adenina Metiltransferase", era um modelo de texto lúcido e objetivo. Estava fadado a ser importante, e projetaria a reputação do garoto.

Bellarmino estava sentado em sua sala com o garoto, que parecia muito ansioso enquanto seu trabalho era examinado.

- Excelente, excelente... - Ele bateu com os dedos no ensaio. - Acho que este trabalho é um crédito para o laboratório. E para você também, é claro.

- Obrigado, Rob.

— E você relacionou os sete co-autores — comentou Bellarmino. — Estou no alto da lista.

— Em terceiro lugar. Mas se acha que a segunda posição é mais condizente...

- Na verdade, estou me lembrando de uma conversa que tivemos há poucos meses, sobre os possíveis mecanismos de mediação. Sugeri na ocasião...

— Eu me lembro...

— Os próprios mecanismos que você elucida aqui. Com toda a sinceridade, acho que eu deveria ser o autor principal.

O garoto piscou, aturdido.

-Ahn...

Ele engoliu em seco, enquanto Bellarmino acrescentava:

- Isso garante que o trabalho será citado com mais freqüência, o que é importante para uma contribuição dessa magnitude. E é claro que a posição na lista é uma mera formalidade. Como segundo autor, você será considerado o responsável pelo trabalho básico, pelo empenho para preencher os hiatos. De seu ponto de vista, é a situação mais vantajosa. E poderá, assim, contar com subvenções maiores. - Bellarmino sorriu. — Posso lhe garantir isso. Seu próximo trabalho será todo independente. E dentro de um ou dois anos, poderá contar com seu próprio laboratório.

- Eu... ahn... — O garoto engoliu em seco de novo. - Eu compreendo.

- Melhor assim. Faça essas alterações, mande de volta para mim, e eu encaminharei para a Nature. Acho que isto merece um palanque melhor do que a Science, que anda um pouco por baixo no momento. Ligarei para a Nature e providenciarei para que o editor compreenda a importância deste trabalho e concorde com a publicação imediata.

- Obrigado, Rob.

- Não foi nada.

"arte viva" em exposição

Organismos Transgênicos em Galerias Criaturas Vivas à Venda

Em Londres, a artista plástica sul-africana Laura Cinti apresentou um cacto transgênico, que continha material genético humano e desenvolveu cabelos humanos. Disse Cinti: "O cacto, com os cabelos à mostra, exibe todos os desejos, todos os sinais de sexualidade. Não quer ser contido em seus limites. Quer ser livre."

Quando indagada sobre a reação do público ao cacto, Cinti declarou: "Os homens carecas estão bastante interessados."

A artista plástica Marta de Menezes criou borboletas modificadas, em que uma asa era diferente da outra. E comentou: "As pessoas ficaram muito chocadas, a princípio. Achavam que era uma boa idéia." Ela acrescentou que, em seguida, pretende fazer que as listas de um peixe-zebra sejam verticais, em vez de horizontais, para que o peixe fique mais parecido com a zebra. Essas mudanças seriam herdadas.

O artista plástico finlandês Oron Catts criou asas de porco em cultura, a partir de células-tronco de medula de porco. Acrescentou que sua equipe tocava música para fazer as células crescerem mais depressa. "Baixamos muitas pig songs, as canções de porco... e tocamos para as células." Ele ressaltou que as células pareciam ter um desenvolvimento melhor com a música.

O artista plástico Eduardo Kac, baseado em Chicago, criou um coelho transgênico, a que deu o nome de Alba, que tinha um brilho verde. Injetou no óvulo fertilizado de um coelho albino o GPF, o gene da proteína verde fluorescente de uma água-viva do noroeste do Pacífico. O animal que saiu do óvulo tem um brilho próprio. Kac comentou que "o coelho deixa algumas pessoas contrafeitas", mas ressaltou que o GPF é um instrumento de pesquisa bastante comum e tem sido injetado em levedo, mosca-das-frutas, camundongos e embriões de vaca. Kac acrescentou que aguardava ansioso pela oportunidade de fazer um cachorro fluorescente.


Alba morreu prematuramente, de causas desconhecidas. O mesmo aconteceu com os cactos transgênicos.

Em 2003, o primeiro animal de estimação transgênico foi posto à venda. Um peixe-zebra vermelho fluorescente, foi criado pelo Dr. Zhiyuan Gong, em Cingapura, e licenciado para uma empresa em Austin, Texas. Passou a ser vendido com o nome comercial de GloFish, depois de dois anos de avaliação por agências federais e estaduais, que concluíram que os peixes eram seguros, desde que não fossem comidos.

 

- Madame Bond, seu filho é um menino maravilhoso, mas vem apresentando dificuldades com a matemática — disse a professora da primeira série. - A adição é um aprendizado difícil, e a subtração ainda mais. Mas o francês dele melhorou muito.

— Fico contente em saber disso. - Gail Bond sorriu. - A mudança de Londres para cá foi difícil para ele. Mas devo admitir que estou surpresa com sua dificuldade na matemática.

— Porque é uma cientista?

— Acho que sim. Trabalho no Institut National, aqui em Paris. O pai de Evan é um banqueiro de investimentos. Trabalha o dia inteiro com números.

— Como é geneticista, tenho certeza de que sabe que nem tudo está nos genes. Às vezes o filho de um grande pintor não sabe desenhar. Mas devo dizer que não é bom para seu filho que você faça os deveres de casa dele.

— Fazer os deveres de casa de Evan? Como assim?

— Só pode ser isso. Você ou alguma outra pessoa na casa.

— Não estou entendendo.

— Os deveres de casa de Evan são sempre perfeitos. Mas quando faço perguntas na aula, ele se sai muito mal. É evidente que alguém faz os deveres de casa por ele.

Gail Bond sacudiu a cabeça.

— Não sei quem poderia ser. Só a empregada está em casa quando meu filho volta da escola e faz os deveres. Ela quase não fala francês. Volto às cinco horas, e a esta altura ele já fez todos os deveres. Ou pelo menos é o que me diz.

— Não faz uma revisão?

— Não. Nunca fiz. Evan diz que não há necessidade.

— Então ele vem obtendo ajuda em outro lugar. — A professora pegou vários deveres de casa e espalhou em cima da mesa. - Está vendo? Cada problema resolvido. Tudo perfeito.

— Tem razão. - Gail olhava atentamente para as páginas. — E estas manchas...

Havia manchas pequenas no papel, verdes e brancas, como se fossem gotas.

— Aparecem com freqüência nos deveres. Em geral no fundo da página. Como se alguma coisa tivesse derramado.

— Acho que sei quem está ajudando — murmurou Gail Bond.

— Quem?

— Alguém do laboratório.

Ela abriu a porta do apartamento e ouviu Gerard gritar:

— Olá, querida.

Era exatamente assim que seu marido fazia.

— Oi, Gerard. Quais são as novidades?

— Preciso de um banho.

— Pode deixar que vou providenciar.

Ela entrou no corredor em que Gerard estava, em seu poleiro. Gerard era um papagaio cinza africano transgênico, agora com dois anos. Quando era filhote, recebera diversos genes humanos, até agora sem qualquer efeito perceptível.

— Está linda, meu bem. Senti saudade.

Gerard imitava de novo a voz do marido de Gail.

— Obrigada. Tenho uma pergunta para você, Gerard.

— Está bem, se insiste.

— Qual é a resposta para treze menos sete?

— Não sei. Gail hesitou.

— Qual é a resposta para treze tirando sete?

Era assim que Evan formularia a pergunta. A ave respondeu no mesmo instante:

— Seis.

— Onze tirando quatro?

- Sete.

- Doze tirando dez?

- Dois. Gail franziu o rosto.

- Vinte e quatro tirando onze?

- Essa não! - disse o papagaio, balançando no poleiro. - Está tentando me enganar. Treze.

- Em um-zero-um tirando setenta?

- Trinta e um. Mas nós nunca passamos de dois algarismos.

- Nós?

Gerard não disse nada. Balançou a cabeça num movimento ritmado. Começou a cantar:

- Adoro um desfile...

- Gerard, Evan costuma pedir sua ajuda?

- Claro. — E o papagaio acrescentou, numa imitação perfeita da voz de Evan: — Oi, Gerrie, venha me ajudar. É muito difícil para mim.

Uma pausa e a voz se tornou esganiçada:

- Muito difícil...

- Tenho de pegar a câmera de vídeo - murmurou Gail.

- Sou um artista? Sou um artista?

- É, sim. Você é um astro.

O papagaio disse, num sotaque americano arrastado:

- Lamentamos o atraso, mas tivemos de pegar nosso filho Hank.

- Que filme é esse? Com o mesmo sotaque:

- Ora, Jo, não se irrite.

- Não vai me dizer, não é?

- Preciso de um banho antes da filmagem. Você me prometeu um banho.

Gail saiu apressada para pegar a câmera.

Durante seu primeiro ano de vida, Gerard demonstrara pouco efeito dos transgenes humanos que haviam sido injetados nele quando filhote, por Yoshi Tomizu e Gail Bond, no laboratório de Maurice Grolier, no Institut National, em Paris. O que nada tinha de surpreendente. A inserção bem-sucedida de transgenes era muito difícil. Exigia dezenas e até centenas de tentativas antes que desse certo. Isso acontecia porque inúmeras condições tinham de ser atendidas para que o gene funcionasse num novo ambiente.

Primeiro, o gene tinha de ser incorporado corretamente no material genético existente do animal. Às vezes o novo gene era incorporado de trás para a frente, o que tinha um efeito negativo, ou não tinha efeito nenhum. Às vezes era inserido numa região instável do genoma, o que causava um câncer letal no animal. Isso era bastante comum.

Além disso, os transgênicos nunca se limitavam à inserção de um único gene. Os pesquisadores também tinham de inserir os genes associados necessários para que o gene primário funcionasse. Por exemplo, a maioria dos genes tinha isoladores e promotores. Os promotores podiam produzir proteínas que desligavam os próprios genes do animal, a fim de permitir que o acréscimo fosse absorvido. Ou podiam estimular as funções do gene inserido. Também cuidavam para que o novo material genético permanecesse disponível dentro da célula.

Por mais complexas que fossem, essas considerações não incluíam as complexidades adicionais que podiam derivar de RNAs mensageiros dentro da célula. Ou dos genes que controlavam a tradução. E assim por diante.

Na realidade, a tarefa de injetar um gene num animal e fazê-lo funcionar parecia mais com a depuração de um programa de computador do que com qualquer processo biológico. Você tinha de reparar os erros, efetuar os ajustamentos, eliminar os efeitos indesejáveis, até pôr tudo para funcionar direito. E depois esperar que os efeitos aparecessem mais adiante, às vezes anos depois.

Fora por isso que o laboratório achara que Gail Bond deveria levar Gerard para casa e mantê-lo como animal de estimação, pelo menos por algum tempo. Para verificar se apareciam efeitos positivos ou desfavoráveis. A criação em casa era especialmente importante porque os papagaios cinzentos africanos eram muito inteligentes - em geral considerados tão inteligentes quanto os chimpanzés — e com uma capacidade de linguagem muito maior. Pelo uso da linguagem de sinais ou teclados de computador, uns poucos primatas não-humanos haviam conseguido dominar cerca de 150 palavras. Mas isso era apenas a média para um papagaio cinza. Alguns chegavam a dominar até mil palavras. Por isso, precisavam do tipo de interação e estimulação que se encontrava num ambiente humano. Não podiam ser deixados num centro de guarda de animais, junto com ratos e hamsters, ou acabariam enlouquecendo pela falta de estímulo.

Os ativistas em defesa dos animais acreditavam que muitos papagaios cinzentos mantidos como bichos de estimação eram mentalmente perturbados, em conseqüência de insuficiência de interação. Era como se fossem mantidos em confinamento solitário, ano após ano. Um papagaio cinza exigia pelo menos tanta interação quanto um ser humano. Até mais, na opinião de alguns cientistas.

Gerard fora bem treinado no dedo quando era filhote. Começara a falar bem cedo. Já tinha um bom vocabulário quando Gail, com 31 anos, casada com um banqueiro de investimentos, levara-o para seu apartamento. Ao entrar na sala, Gerard dissera:

— Ei, Gail, um lindo lugar. Dá gosto.

(Infelizmente, ele pegara o jeito de falar dos americanos, de tanto assistir a filmes de Hollywood pela televisão.)

- Fico contente que tenha gostado, Gerard.

— Eu disse por dizer.

— Isso significa que não gosta?

— Significa que eu apenas disse por dizer.

- Está bem.

- Apenas um comentário.

- Certo.

Gail escreveu algumas anotações num diário. A fala de Gerard podia ser bastante significativa. Um dos objetivos do experimento transgênico era o de determinar até que ponto os cientistas podiam modificar o comportamento inteligente de animais não-humanos. Os macacos eram proibitivos — um excesso de normas e regulamentos —, mas as pessoas não eram tão sensíveis em relação aos papagaios. Não havia comitês de ética para supervisionar os experimentos com papagaios. Por isso, o laboratório de Grolier trabalhava com os cinzentos africanos.

Uma das coisas mais procuradas era qualquer indicação de auto-percepção na fala dos papagaios. Sabia-se que os papagaios tinham percepção de si mesmos. Reconheciam-se em espelhos. Mas a fala era diferente. Os papagaios não usavam a palavra eu quando se referiam a si mesmos. De um modo geral, quando usavam o pronome pessoal era para citar alguém.

A questão era determinar se algum dia um papagaio transgênico usaria a palavra eu sem qualquer ambigüidade. E Gail Bond tinha a impressão de que Gerard fizera exatamente isso.

Era um bom começo.

Seu marido, Richard, demonstrara pouco interesse pelo recém-chegado. Sua única reação fora dar de ombros e dizer:

— Não conte comigo para limpar a gaiola.

Gail respondera que não contaria. O filho se mostrara mais entusiasmado. Evan começara imediatamente a brincar com Gerard, pondo-o no dedo e depois no ombro. A medida que as semanas foram passando, era ele quem ficava mais tempo com o papagaio, quase sempre em seu ombro.

E, ao que parecia, quem recebia a ajuda de Gerard.

Gail montou a câmera de vídeo num tripé, ajustou tudo e ligou-a. Alguns papagaios cinzentos eram capazes de contar. Havia alegações até de que uns poucos tinham uma noção rudimentar do conceito de zero. Mas nenhum era capaz de efetuar operações aritméticas.

Exceto Gerard.

Gail teve de fazer um grande esforço para esconder seu excitamento. Disse com a voz mais calma possível:

- Gerard, vou lhe mostrar uma imagem e você me dirá o que é. Ela apresentou uma folha do dever de casa do filho, dobrada,

para mostrar um único problema. Cobriu a resposta com o polegar.

— Eu já fiz esse.

- Mas o que diz? — insistiu Gail, apontando para o problema. Era quinze menos sete.

— Você tem de dizer.

- Pode olhar para o papel e me dar a resposta?

— Você tem de dizer — repetiu Gerard.

Ele se movimentava de um pé para outro no poleiro. Parecia irritado. Olhava a todo instante para a câmera. Gerard não gostava de ficar embaraçado.

— Diz quinze tirando sete.

— Oito — respondeu o papagaio no mesmo instante.

Gail resistiu à tentação de virar-se para a câmera e soltar um grito de satisfação. Em vez disso, com uma calma aparente, virou a página para revelar outro problema.

— Vamos continuar. Quanto dá vinte e três tirando nove?

— Catorze.

— Muito bom. E agora...

— Você me prometeu.

— Prometi?

— Você me prometeu. Sabe o que é... Ele se referia ao banho.

— Cuidarei disso mais tarde. Agora...

— Você me prometeu. — Um tom irritado. - Meu banho.

— Gerard, vou lhe mostrar o problema seguinte. Pergunto: Quanto é vinte e nove tirando oito?

— Espero que estejam assistindo — disse Gerard, numa voz estranha. — Eles verão e saberão e dirão: "Ora, ela não faria mal nem a uma mosca."

— Preste atenção, por favor, Gerard. Quanto é vinte e nove tirando oito?

Gerard abriu o bico. A campainha da porta da frente tocou. Gail estava bastante próxima para saber que fora o próprio Gerard quem emitira o som. Ele podia imitar vários sons com perfeição: campainha da porta, campainha do telefone, descarga do vaso sanitário.

— Gerard, por favor...

O som de passos. O estalido e o rangido da porta da frente sendo aberta.

— Você está linda, meu bem. Senti saudade. O papagaio imitava a voz do marido de Gail.

— Gerard... - protestou ela.

Uma voz de mulher:

— Oh, Richard, já faz tanto tempo... Silêncio. O som de um beijo.

Gail ficou paralisada, sem desviar os olhos de Gerard. O papagaio continuou, o bico mal se mexendo. Era como um gravador. A voz da mulher:

— Estamos sozinhos?

— Estamos. — A voz do marido. - O garoto não volta para casa antes das três horas.

— E sua... ahn...

— Gail viajou para uma conferência em Genebra.

— Então temos o dia inteiro. Oh, Deus! Outro beijo.

Dois pares de passos. Atravessando a sala. O marido:

— Quer beber alguma coisa?

— Talvez mais tarde, querido. Neste momento, tudo o que eu quero é você.

Gail virou-se e desligou a câmera. Gerard perguntou:

— Vai me dar meu banho agora? Ela fitou-o, furiosa.

A batida da porta do quarto. Uma mulher gritando e rindo. Molas rangendo.

— Pare com isso, Gerard - pediu Gail.

— Eu sabia que você queria saber.

- Detesto a porra daquele papagaio — resmungou o marido, naquela noite, os dois trancados no quarto.

— Isso é irrelevante. Você pode fazer o que quiser, Richard. Mas não em minha casa. Não em nossa cama.

Gail já trocara os lençóis, mas mesmo assim não queria sentar na cama. Nem chegar perto. Mantinha-se no outro lado do quarto, junto da janela. Com o tráfego de Paris lá fora.

— Foi só uma vez.

Ela detestava quando o marido lhe mentia.

— Quando fui a Genebra. Quer que eu pergunte a Gerard se houve outras ocasiões?

— Não. Deixe aquele papagaio fora disso.

— Houve outras ocasiões.

— O que você quer que eu diga, Gail? Desculpe, está bem? Sinto muito.

— Não quero que você diga nada. Não quero que faça de novo. Quero que mantenha suas mulheres longe desta casa.

— Está bem. Farei isso. Podemos encerrar o assunto agora?

— Podemos.

— Odeio a porra daquele papagaio.

Gail se encaminhou para a porta do quarto.

— Se tocar nele, eu mato você.

Para onde vai?

— Sair.

Ela se encontrou com Yoshi Tomizu no apartamento dele. Haviam tido um relacionamento um ano antes e retomaram em Genebra. Yoshi tinha mulher e filho em Tóquio. Voltaria para lá no outono. Por isso, era apenas uma amizade com alguns privilégios.

— Parece tensa - murmurou Yoshi, acariciando as costas de Gail. Ele tinha mãos maravilhosas. - Brigou com Richard?

— Só uma discussão.

Ela contemplou o luar que entrava pela janela, com um brilho surpreendente.

— Então o que foi?

— Estou preocupada com Gerard.

— Por quê?

— Richard o odeia. E odeia muito.

— Ele não vai fazer nada. Sabe que é um animal muito valioso.

— Pode fazer. - Gail sentou na cama. - Talvez seja melhor eu voltar agora.

Yoshi deu de ombros.

— Se você pensa assim...

— Sinto muito.

Ele beijou-a de leve.

— Faça o que achar melhor. Gail suspirou.

— Tem razão. Estou bancando a tola. - Ela tornou a se meter por baixo das cobertas. — Diga que sou uma tola, por favor.

Brad Gordon desligou a televisão e gritou:

— A porta está aberta. Pode entrar.

Era meio-dia. Ele estava em seu apartamento no terceiro andar, em Sherman Oaks, assistindo a um jogo de beisebol. Esperava o entregador de pizza. Para sua surpresa, no entanto, quem abriu a porta e entrou no apartamento foi a mulher mais atraente que já vira em toda a sua vida. Tinha elegância estampada em tudo: na casa dos trinta anos, alta, esbelta, roupas européias, saltos não muito altos. Sensual, mas sob controle. Brad inclinou-se para a frente, sem levantar da poltrona. Passou a mão pelo queixo, sentindo a barba por fazer.

— Desculpe, mas não esperava visitas...

— Seu tio, Sr. Watson, mandou-me até aqui.

Ela seguiu direto para a poltrona. Brad apressou-se em levantar.

— Meu nome é Maria Gonzales. — Ela tinha um ligeiro sotaque, mas não parecia espanhol. Era mais alemão. — Sou da firma que faz o trabalho de investimento de seu tio.

Ela estendeu a mão para um aperto. Brad aspirou seu perfume. Não se sentia surpreso por saber que ela trabalhava para tio Jack. Afinal, o velho gostava de se cercar de executivas atraentes e extremamente competentes.

— O que posso fazer para ajudá-la?

— Para mim, nada. - Ela correu os olhos ao redor, à procura de um lugar para sentar. Decidiu permanecer de pé. - Mas pode fazer uma coisa para seu tio.

— Claro. Qualquer coisa.

- Não preciso lembrá-lo que foi seu tio quem pagou a fiança. Ele também vai assumir o custo de sua defesa. Como a acusação envolve sexo com uma menor, a defesa será difícil.

— Mas foi uma armação... Ela ergueu a mão.

- Não é da minha conta. A questão agora é a seguinte: seu tio ajudou-o muitas vezes ao longo dos anos. Agora, ele precisa de sua ajuda em troca... em termos confidenciais.

— Tio Jack precisa da minha ajuda?

- Precisa.

- Claro que farei o que puder.

— Tem de haver um sigilo rigoroso.

- Está bem.

— Não deve conversar a respeito com ninguém. Nunca.

— Certo. Entendido.

- A informação não deve vazar. Se isso acontecesse, você perderia o financiamento de sua defesa no processo. Passaria vinte anos na prisão como molestador de criança. E sabe o que isso significa.

— Claro. — Ele limpou as mãos na calça. — Eu compreendo.

- Não pode errar desta vez, Brad.

- Não errarei. Basta me dizer o que quer que eu faça.

— Sua empresa predileta, a BioGen, está prestes a anunciar uma nova e importante descoberta... um gene que cura o vício em drogas. É o primeiro passo para um produto comercial fabuloso. Atrairá muito financiamento. Seu tio possui no momento uma posição de destaque na empresa. Não quer que essa posição seja diluída por investidores adicionais. Quer que eles sejam afugentados.

— Entendo...

— Por alguma péssima notícia sobre a BioGen.

- Que tipo de notícia?

- No momento, o produto comercial mais importante da BioGen consiste em uma linhagem de células, a linhagem Burnet, que a empresa comprou da UCLA. A linhagem de células produz citocinas, um elemento importante no tratamento do câncer.

— Sei...

— A contaminação dessa linhagem de células seria desastrosa. Ela abriu a bolsa e tirou um pequeno tubo de plástico de uma marca conhecida de colírio. O tubo continha um líquido transparente. Ela tirou a tampa e pingou uma única gota na ponta de cada dedo da outra mão.

— Entendido?

— Entendido.

— Uma gota em cada dedo. Deixe secar.

— Certo.

— Entre na BioGen. Seu cartão magnético ainda funciona. Verifique no computador os locais de armazenamento e os armários de pesquisa contendo a linha Burnet. O número de armazenamento está aqui. — Ela entregou um pequeno cartão com o número BGOX6178990QD. - Há amostras congeladas e incubadores vivos in-vitro. Você pega cada um e... apenas toca.

— Apenas toco? — Brad olhou para o tubo. — O que tem aí?

— Nada que possa afetá-lo. Mas as células não vão gostar.

— As câmeras de segurança registrarão minha presença. O cartão magnético ficará registrado. Saberão quem foi.

— Não se você entrar entre uma e duas horas da madrugada. Os sistemas são desligados para manutenção.

— Não são, não.

— Serão esta semana.

Brad pegou o tubo de plástico e virou-o de um lado para outro.

— Já deve saber que eles guardam as amostras dessa linhagem de células fora da sede.

— Apenas faça o que seu tio pede. E deixe o resto conosco. — Ela fechou a bolsa. - E mais uma coisa. Não telefone nem faça contato com seu tio para tratar desse ou de qualquer outro assunto. Ele não quer registros de qualquer contato com você. Entendido?

— Entendido.

— Boa sorte. E em nome de seu tio, obrigada.

Maria Gonzales tornou a apertar a mão de Brad e foi embora.

NÃO HAVERÁ EXTINÇÃO DE LOURAS, NO FINAL DAS CONTAS

BBC Noticiou Falsa História Sem Confirmação

Não Há Estudo da OMS, Nem Estudo Alemão

Uma Piada de Louro de 150 Anos

A Organização Mundial da Saúde (OMS) negou hoje que tenha realizado ou divulgado qualquer estudo que previa a extinção do gene dos cabelos louros. Segundo um porta-voz da ONU, "A OMS não sabe como essas notícias surgiram, mas gostaríamos de ressaltar que não temos qualquer opinião sobre a futura existência de louros".

Segundo o Washington Post, a notícia da BBC derivou da reportagem de uma agência noticiosa alemã. Essa matéria, por sua vez, baseou-se num artigo publicado dois anos antes na revista feminina alemã Allegra, que citava um antropólogo da OMS como sua fonte. Mas não há registro da existência desse antropólogo.

A notícia nunca seria divulgada, comentou um professor de Comunicação da Universidade de Georgetown, Len Euler, se os editores da BBC efetuassem um mínimo de verificação dos fatos. Alguns observadores da mídia ressaltaram que as organizações noticiosas não mais verificam qualquer coisa. "Apenas publicamos o press release e seguimos adiante", comentou um repórter. Outro repórter, falando sobre a condição de anonimato, disse: "Vamos ser francos. É uma boa notícia. A acurácia acabaria com ela."

Uma verificação adicional pelo site de lenda urbana Snopes.com descobriu várias versões da história da extinção dos louros, há pelo menos 150 anos, desde os tempos de Abraham Lincoln. Em todos os casos, alegava-se a validade científica para aumentar a credibilidade. Um típico exemplo data de 1906:

LOUROS CONDENADOS A DESAPARECER DA TERRA •

Major Woodruff Anuncia Fim dos Louros: É Ciência

A jovem de tranças louras está condenada. Dentro de seiscentos anos os louros estarão extintos. O destino dos louros foi previsto hoje pelo Major CE. Woodruff, numa conferência da Associação para o Progresso da Ciência, na Universidade de Colúmbia...

É claro que não haverá extinção dos louros, mas também não vão acabar as notícias a respeito, já que são repetidas há um século e meio, sem qualquer prova, disse o professor Euler.

 

A esposa de Henry Kendall, Lynn, projetava sites na Internet para ganhar dinheiro. Por isso, geralmente ficava em casa durante o dia. Por volta das três horas da tarde, recebeu um estranho telefonema.

— Aqui é o Dr. Marty Roberts, do Memorial Hospital de Long Beach. Henry está?

— Ele foi assistir a um jogo de futebol. Quer deixar recado?

— Liguei para o escritório e para o celular, mas ninguém atendeu. O tom do Dr. Roberts era de urgência.

— Henry deverá chegar em casa dentro de uma hora - informou Lynn. — Ele está bem, Dr. Roberts?

— Claro que sim. Ele está ótimo. Peça que ligue para mim assim que chegar.

Lynn prometeu que daria o recado.

Mais tarde, quando ele chegou em casa, Lynn foi para a cozinha, onde o marido servia biscoitos e leite para o filho de oito anos, Jamie.

— Conhece alguém no Memorial Hospital de Long Beach? — perguntou ela.

Henry piscou, aturdido.

— Ele telefonou?

— Esta tarde. Quem é ele?

— É um amigo do tempo da escola. Patologista. O que ele disse?

— Nada. Só pediu para você ligar.

Lynn teve de fazer um esforço para não perguntar ao marido qual era o problema.

— Obrigado.

Ela viu Henry olhar para o telefone da cozinha, depois virar-se e seguir para o pequeno escritório que partilhavam. Ele fechou a porta. Lynn ouviu-o falar baixinho pelo telefone. Não conseguiu entender as palavras.

Jamie comia seu lanche. Tracy, a filha de treze anos, tocava música muito alto lá em cima. Lynn gritou pela escada:

— Um pouco menos de barulho, por favor!

Tracy não ouviu. Não havia alternativa que não subir para falar com a filha. Quando ela tornou a descer, Henry estava na sala, andando de um lado para outro.

— Tenho de fazer uma viagem — anunciou ele.

— Está bem. Para onde?

— Tenho de ir a Bethesda.

— Alguma coisa no Instituto Nacional de Saúde?

O instituto ficava em Bethesda. Henry ia até lá duas ou três vezes por ano para conferências.

— Isso mesmo.

Ela observou-o andar de um lado para outro.

— Henry, vai me contar o que está acontecendo?

— Tenho de fazer uma pesquisa... preciso verificar uma coisa... acho... não tenho certeza...

— Tem de ir a Bethesda, mas não tem certeza do motivo.

— Claro que tenho. E... ahn... relaciona-se com Bellarmino. Robert Bellarmino era o diretor de genética do instituto... e não era amigo de seu marido.

— O que há com ele?

— Preciso... ahn... tratar de uma coisa que ele fez. Lynn sentou.

— Eu amo você, Henry, mas confesso que estou meio confusa neste momento. Por que não me conta...

— Não quero falar a respeito agora. Apenas tenho de voltar a Bethesda e ponto final. Só por um dia.

— Algum problema?

— Já disse que não quero falar a respeito, Lynn. Mas tenho de voltar.

- Está bem. Quando?

- Amanhã.

Ela acenou com a cabeça, lentamente.

- Quer que eu reserve...

- Já reservei. Cuidei de tudo. — Ele parou de andar e foi até a mulher. - Não quero que você se preocupe.

- O que é muito difícil, nas circunstâncias.

- É apenas uma coisa que tenho de resolver. Depois não haverá mais nenhum problema.

E isso foi tudo o que ele disse.

Lynn era casada com Henry havia quinze anos. Tinham dois filhos. Ela sabia melhor do que ninguém que Henry era propenso a tíques nervosos e vôos de fantasia. Os mesmos saltos imaginativos que o faziam um bom pesquisador também o tornavam um pouco histérico. Era também inclinado a efetuar autodiagnósticos de doenças temidas. Ele visitava o médico a cada duas semanas e telefonava com uma freqüência ainda maior. Era atormentado por dores difusas, coceiras, erupções e medos súbitos que o acordavam durante a noite. Dramatizava os pequenos problemas. Um acidente sem qualquer conseqüência era um quase encontro com a morte, pela maneira como Henry o relatava.

Por isso, embora seu comportamento em relação à viagem a Bethesda fosse estranho, Lynn tendia a considerá-la como uma coisa de menor importância. Ela olhou para o relógio e decidiu que era tempo de descongelar o molho de espaguete para o jantar. Não queria que Jamie comesse muitos biscoitos, ou ficaria sem apetite. Tracy tornara a aumentar o som da música, ainda mais do que antes.

Em suma, os eventos diários prevaleceram, afastando de sua mente a estranha viagem de Henry. Ela tinha outras coisas a fazer.


 

Henry Kendall deixou o aeroporto Dulles e seguiu para o norte, pela 267, a caminho do Centro de Primatas, em Lambertville. Só depois de quase uma hora é que avistou a cerca de arame e a casa da guarda, por trás dos dois portões. No outro lado dos portões havia imensos bordos, que encobriam o complexo de prédios mais além. Lambertville era um dos maiores centros de pesquisa de primatas do mundo, mas o Instituto Nacional de Saúde não divulgava esse fato, nem sua localização. Em parte, porque a pesquisa com primatas era uma questão politicamente delicada, e, em parte, pela preocupação com a possibilidade de vandalismo de ativistas. Henry parou no portão externo, apertou o botão, disse "Henry Kendall", e deu seu número de código. Não ia ao centro havia quatro anos, mas o código ainda era válido. Ele inclinou-se pela janela, para que a câmera pudesse focalizar seu rosto direito.

— Obrigado, Dr. Kendall.

O portão foi aberto. Henry seguiu até o segundo portão. O primeiro foi fechado. Um guarda saiu do posto para verificar sua identificação. Ele se lembrava vagamente do guarda.

— Não o esperava hoje, Dr. Kendall.

O homem entregou-lhe um cartão magnético temporário.

— Querem tirar as coisas de meu armário.

— Era de se esperar. A situação por aqui se tornou muito rigorosa desde que... acho que já sabe...

— Claro que sei.

O guarda se referia a Bellarmino. O segundo portão foi aberto. Henry entrou no complexo. Passou direto pelo prédio da administração e foi para a área em que ficavam os animais. Os chimpanzés ocupavam antes o Prédio B. Henry presumiu que continuassem ali.

Abriu a porta externa e passou o cartão pela fenda na porta interna. Desceu por um corredor até a Sala de Monitoração B. Havia ali inúmeros monitores, mostrando todos os chimpanzés nos dois andares do prédio. Havia cerca de oitenta animais, de diversas idades e sexos.

O assistente veterinário de plantão estava na sala, usando um uniforme caqui. Mas Rovak, o superintendente da instalação, também se encontrava ali. Devia ter sido avisado pelo guarda no portão. Tinha cinqüenta anos, cabelos grisalhos, porte militar. Mas era um bom cientista.

— Eu já me perguntava quando você ia aparecer. — Rovak apertou a mão de Henry. Parecia cordial. - Recebeu o sangue?

— Recebi.

— O filho-da-puta do Bellarmino teve um ataque. Não tem aparecido por aqui, e achamos que sabemos por quê.

— Como assim?

— Vamos dar uma volta.

Henry deu uma olhada no papel que trouxera.

— Estou procurando a fêmea F-402.

— Não - disse Rovak. — Está procurando o filhote da fêmea F-402. Por aqui.

Desceram por um corredor lateral. Levava a um pequeno centro de treinamento, que era usado para experimentos de ensinamento de curto prazo com animais.

— Você o mantém aqui?

— Não há outro jeito. Você já vai compreender.

Os dois entraram no centro de treinamento. À primeira vista, parecia com uma sala de brinquedos em jardim-de-infância. Havia brinquedos coloridos espalhados ao redor, com um carpete azul cobrindo o assoalho. Um visitante distraído poderia não perceber que todos os brinquedos eram de plástico durável, resistente a impactos. Havia uma parede de vidro para observadores no outro lado. Uma música de Mozart saía pelos alto-falantes.

— Ele gosta de Mozart — comentou Rovak, dando de ombros. Foram para uma sala menor, ao lado da outra. Um raio de sol entrava pelo teto. Havia no centro uma jaula de um metro e meio por um metro e meio. Lá dentro estava sentado um chimpanzé, mais ou menos do tamanho de uma criança de quatro anos. A cara do chimpanzé era mais achatada do que o normal e a pele um pouco mais clara, mas não podia haver qualquer dúvida de que era mesmo um chimpanzé.

— Olá, Dave — disse Rovak.

— Olá - respondeu o chimpanzé, a voz rouca. Ele olhou para Henry. — Você é minha mãe?

Henry Kendall não conseguiu falar. Os lábios se mexeram, mas nenhuma palavra saiu.

— É, sim, Dave. - Rovak olhou para Kendall. - O nome dele é Dave.

O chimpanzé olhava fixamente para Henry, as mãos segurando os dedos dos pés.

— Sei que é um choque — acrescentou Rovak. — Pense no que as pessoas aqui sentiram ao descobrirem. O veterinário quase desmaiou. Ninguém tinha a menor idéia de que ele era diferente, até que inesperadamente um teste de ácido siálico deu negativo. Repetiram o teste, porque acharam que era um erro. Mas não era um erro. E há cerca de três meses ele começou a falar.

Henry suspirou.

— Ele fala bem — continuou Rovak. - Tem alguma dificuldade com os tempos de verbo. Mas também ninguém o está instruindo. Na verdade, vem sendo mantido isolado de todos aqui. Quer deixá-lo sair?

Kendall hesitou.

— Eu... ahn...

Os chimpanzés podiam ser desagradáveis e agressivos; até mesmo os pequenos podiam ser perigosos.

— Não se preocupe. Ele é muito dócil. Afinal, não é um chimpanzé, não é mesmo? — Rovak abriu a porta. — Pode sair, Dave.

Dave saiu, hesitante, como um homem libertado de uma cela. Parecia assustado por se encontrar fora da jaula. Olhou para Henry.

— Vou viver com você?

— Não sei - respondeu Henry.

— Não gosto da jaula.

Ele pegou a mão de Henry.

— Podemos brincar?

Foram para a sala de brinquedos, com Dave na frente. Henry perguntou:

— É a rotina dele?

— É, sim. Ele brinca cerca de uma hora por dia. Quase sempre com o veterinário. Às vezes comigo.

Dave foi até os brinquedos e começou a arrumá-los em formas. Um círculo, depois um quadrado.

— Fico contente que você tenha vindo visitá-lo — murmurou Rovak. — Acho que é importante.

— O que vai acontecer com ele?

— O que você acha? Isto é altamente ilegal, Henry. Um primata superior transgênico? Você sabe que Hitler tentou cruzar um humano com chimpanzé. Stalin também tentou. Pode-se dizer que eles definiram o campo. Imagine só... Hitler, Stalin, e agora um pesquisador americano do Instituto Nacional de Saúde? Não há a menor possibilidade de aceitação, meu amigo.

— Então o que pretende...

— Isto representa um experimento que não foi autorizado. Deve ser encerrado.

— Fala sério?

— Você está em Washington, olhando para dinamite política. O financiamento do instituto já foi reduzido pela atual administração. Pode ser cortado a dez por cento se a notícia vazar.

— Mas este animal é extraordinário!

— Só que não foi autorizado. E isso é tudo com que as pessoas se importam. — Rovak balançou a cabeça. — Não fique sentimental. Você tem um experimento transgênico que nunca foi autorizado. As normas declaram, de forma expressa, que qualquer experimento não aprovado pelo conselho será encerrado, sem exceções.

— O que você fará... ahn...

— Aplicação intravenosa de morfina. Ele não vai sentir nada. Não precisa se preocupar. Cuidaremos bem dele. E, depois da incineração, não haverá mais qualquer prova de que existiu. — Rovak acenou com a cabeça para Dave. — Por que não brinca um pouco? Ele vai gostar de sua companhia. Já está cansado de nós.

Eles fizeram um jogo de damas improvisado, usando blocos de brinquedo que passavam por cima um do outro, com os dois sentados no chão. Henry prestou atenção aos detalhes: as mãos de Dave, que tinham as proporções de mãos humanas; os pés, que eram preênseis como os de um chimpanzé; os olhos, que tinham manchas azuis; e o sorriso, que não chegava a ser totalmente humano, mas também não era de um macaco.

— Isso é divertido - comentou Dave.

— Diz isso porque está ganhando.

Henry não entendia as regras, mas achava que deveria deixar Dave vencer. Era o que costumava fazer com seus próprios filhos. E, depois, ele pensou: Este é meu próprio filho.

Ele sabia que não estava pensando com a devida lucidez. Comportava-se por instinto. Observou atentamente quando Dave foi levado de volta à jaula, a maneira como foi trancado com um cadeado de pressão, a maneira como...

— Deixe-me apertar a mão dele de novo — pediu Henry. - Abra a jaula.

— Não faça isso com você mesmo — murmurou Rovak. — Nem com ele.

— Só quero apertar sua mão.

Rovak suspirou. Abriu o cadeado. Henry observou. Ele apertou a mão de Dave e se despediu.

— Volta amanhã? - perguntou Dave.

— Em breve — respondeu Henry.

Dave virou-se, sem olhar para ele. Henry deixou a sala. A porta foi fechada.

— Você devia se sentir grato por não ser processado e preso — disse Rovak. — Não faça nenhuma besteira. Pode deixar que cuidaremos de tudo. E você continua a tocar sua vida como antes.

— Tem razão. Obrigado.

Henry pediu para ficar no centro até chegar o momento de pegar seu avião. Puseram-no numa sala com um terminal para pesquisadores. Passou a tarde lendo sobre Dave e todas as anotações em sua ficha. Imprimiu todo o arquivo. Circulou pela instalação, foi ao banheiro várias vezes, para que os guardas se acostumassem a vê-lo nos monitores.

Rovak foi para casa às quatro horas. Na saída, parou para se despedir. Os veterinários e guardas trocavam de turno às seis horas. Às cinco e meia, Henry voltou ao centro de treinamento. Foi direto para a sala de Dave.

Destrancou a jaula.

— Olá, mãe — disse Dave.

— Oi, Dave. Gostaria de fazer uma viagem?

— Claro.

— Pois então faça exatamente o que eu disser.

Os pesquisadores muitas vezes passeavam com os chimpanzés, às vezes de mãos dadas. Henry desceu com Dave pelo corredor do centro de treinamento, num ritmo descontraído, ignorando as câmeras. Viraram à esquerda, entrando no corredor principal e seguindo para a saída do prédio. Henry inseriu o cartão magnético na porta interna, passou com Dave, e abriu a porta externa. Como ele esperava, nenhum alarme soou.

A instalação em Lambertville fora projetada para manter os intrusos fora e impedir que os animais escapassem, mas não para evitar que os pesquisadores removessem os animais. Na verdade, por várias razões, os pesquisadores, eventualmente, precisavam remover animais sem passar pela interminável burocracia. Assim, Henry pôs Dave no chão do banco traseiro do carro, e seguiu para o portão de saída.

Era o momento da mudança de turno, com muitos carros entrando e saindo. Henry entregou o cartão magnético e o crachá. O guarda de serviço disse:

— Obrigado, Dr. Kendall.

E Henry partiu pelas colinas verdes ondulantes do oeste de Maryland.

- Vai voltar de carro? - disse Lynn. - Por quê?

— É uma longa história.

— Por que, Henry?

— Não tenho opção. Preciso voltar de carro.

— Está se comportando de uma maneira muito estranha, Henry.

— Era uma questão moral.

— Que questão moral?

— Tenho uma responsabilidade.

— Que responsabilidade? Mas que droga, Henry...

— Meu bem, é uma longa história.

— Já disse isso.

— Pode ter certeza que quero lhe contar tudo. Absolutamente tudo. Mas terá de esperar até eu chegar em casa.

Dave perguntou nesse instante:

— E sua mãe?

— Quem está no carro com você? - indagou Lynn.

— Ninguém.

— Quem acabou de falar? De quem é essa voz rouca?

— Não posso explicar agora. Terá de esperar até eu chegar em casa. Poderá, então, compreender tudo.

— Henry...

— Tenho de desligar agora, Lynn. Eu amo as crianças. Ele desligou. Dave observava-o com olhos pacientes.

— Era sua mãe?

— Não. Outra pessoa.

— Ela está zangada?

— Não. Sente fome, Dave?

— Em breve.

— Pararemos em alguma lanchonete drive-in. Enquanto isso, você terá de usar o cinto de segurança.

Dave parecia perplexo. Henry parou o carro no acostamento, puxou e prendeu o cinto de segurança. Não ficava direito, porque Dave era apenas pouco maior que uma criança.

— Não gosto disso — resmungou Dave, começando a puxar o cinto.

— Mas tem de usar. - Não.

— Sinto muito.

— Quero voltar.

— Não pode voltar.

Dave parou de se debater. Olhou pela janela.

— Está escuro.

Henry passou a mão sobre o pêlo curto na cabeça do animal. Sentiu-o relaxar.

— Está tudo bem agora, Dave.

Ele tornou a partir, seguindo para oeste.


 

- Mas do que está falando? — perguntou Lynn Kendall, olhando aturdida para Dave, sentado em silêncio no sofá da sala. — Esse macaco é seu filho?

— Bom, não exatamente...

— Não exatamente! — Lynn pôs-se a andar de um lado para outro da sala. — O que isso significa, Henry?

Fora uma tarde normal de sábado. A filha adolescente, Tracy, estava no jardim dos fundos, tomando banho de sol e falando ao telefone. Sem fazer os deveres de casa. Seu irmão, Jamie, divertia-se na piscina rasa. Lynn passara o dia dentro de casa, concluindo um serviço com prazo apertado, em que trabalhava havia três dias. Ficou surpresa quando abriu a porta da frente e o marido entrou, trazendo um chimpanzé pela mão.

— Ele é ou não é seu filho, Henry?

— É, sim... de certa forma.

— De certa forma. Agora posso compreender. Ficou tudo bem esclarecido. - Lynn virou-se, furiosa. Um pensamento horrível ocorreu-lhe. - Espere um pouco, só um pouco. Está querendo me dizer que fez sexo com uma...

— Claro que não. — O marido ergueu as mãos. - De jeito nenhum, meu bem. Não houve nada disso. Foi apenas um experimento.

— Apenas um experimento... Um experimento? Que tipo de experimento, Henry?

O macaco sentava enroscado no sofá, a mão segurando os dedos do pé. Observava os dois adultos.

- Tente falar baixo - pediu Henry. - Está deixando-o perturbado.

- Eu o estou perturbando? Eu o estou perturbando? Ele é a porra de um macaco, Henry!

- Chimpanzé.

- Macaco, chimpanzé... O que ele faz aqui, Henry? Por que está em nossa casa?

- Bom... eu... ahn... para ser franco, ele veio viver conosco.

- Ele veio viver conosco... Inesperadamente. Você tem um filho macaco e nunca soube de nada. E, de repente, ele chega com você. Isso é ótimo. Faz muito sentido. Qualquer pessoa pode compreender. Por que não me contou, Henry? Ora, não importa. Vamos fazer uma surpresa. Estou levando meu filho macaco para casa, mas só falarei depois que passar pela porta. Isso é ótimo, Henry. Fico contente que tenhamos feito todas aquelas sessões de terapia sobre intimidade e comunicação.

- Lynn, sinto muito...

- Você sempre sente muito, Henry. O que pretende fazer com ele? Vai levá-lo para o zoológico, ou o quê?

- Não gosto do zoológico — disse Dave, falando pela primeira vez.

- Não lhe perguntei nada - disse Lynn. - Não se meta em nossa conversa.

E ela ficou imóvel. Virou-se. Olhou, aturdida.

- Ele fala?

- Falo — disse Dave. — Você é minha mãe?

Lynn Kendall não chegou a apagar, mas começou a tremer. Quando os joelhos vergaram, Henry amparou-a e ajudou-a a sentar em sua poltrona predileta, de frente para a mesinha de café, ao lado do sofá. Dave não se mexeu. Limitou-se a fitá-la, de olhos arregalados. Henry foi até a cozinha, serviu uma limonada para a esposa e voltou. - Tome aqui - murmurou ele. - Beba isto.

- Quero um martíni.

— Meu bem, esses dias ficaram para trás. Lynn era A.A.

— Não sei mais que dias são o quê. — Ela olhava para Dave. - Ele fala. O macaco fala.

— Chimpanzé.

— Desculpe ter deixado você perturbada - disse Dave.

— Obrigada... ahn...

— O nome dele é Dave - informou Henry. — Não sabe usar direito o tempo dos verbos.

Dave comentou:

— Às vezes as pessoas ficavam perturbadas comigo. E se sentem mal por minha causa.

— Dave, querido, isso não tem nada a ver com você. Parece muito simpático. O problema é com ele. — Lynn sacudiu o polegar na direção de Henry. — O babaca.

— O que é ba-baca?

— É bem provável que ele nunca tenho ouvido um palavrão — ressaltou Henry. — Veja o que diz.

— Como alguém podia ver o que disse? — indagou Dave. — São ruídos. Não se pode ver ruídos.

— É uma expressão — explicou Henry. — Uma maneira de falar.

— Estou vendo - disse Dave.

Houve um momento de silêncio. Lynn suspirou. Henry acariciou seu braço.

— Você tem árvores? — perguntou Dave. — Gosto de subir em árvores.

Foi nesse instante que Jamie entrou em casa.

— Ei, mamãe, preciso de uma toalha e...

Ele parou de falar, olhando espantado para o chimpanzé.

— Olá — disse Dave.

Jamie piscou, atordoado, mas recuperou-se depressa.

— Que bacana! Sou Jamie.

— Meu nome é Dave. Você tem árvores para subir?

— Claro! Uma árvore enorme! Vamos até lá!

Jamie encaminhou-se para a porta. Dave lançou um olhar inquisitivo para Lynn e Henry.

— Pode ir — disse Henry. — Está certo.

Dave saltou do sofá e correu para a porta, atrás de Jamie.

— Como sabe que ele não vai fugir? — perguntou Lynn.

— Não creio que ele fuja.

— Porque é seu filho...

A porta foi batida. Eles ouviram os gritos estridentes da filha.

— O que é isso?

E ouviram a resposta de Jamie:

— É um chimpanzé e estamos subindo na árvore.

— Onde o encontrou, Jamie?

— Papai trouxe.

— Ele morde?

Não deu para ouvir a resposta de Jamie, mas através da janela podiam ver os galhos balançando. Soaram risadas lá fora.

— O que fará com ele? — perguntou Lynn.

— Não sei.

— Ele não pode ficar aqui.

— Sei disso.

— Eu não quis ter um cachorro em casa. Não terei um chimpanzé agora.

— Eu compreendo.

— E, além do mais, não há um quarto para ele.

— Eu sei.

— É mesmo uma terrível confusão.

Henry limitou-se a sacudir a cabeça, sem dizer nada.

— Como isso aconteceu, Henry?

— É uma longa história.

— Estou escutando.

Quando o genoma humano foi decodificado, ele explicou, os cientistas descobriram que o genoma do chimpanzé era quase idêntico.

— Só quinhentos genes separam as duas espécies - disse Henry. É claro que o número era enganador, porque os seres humanos e

os ouriços-do-mar também partilhavam muitos genes. Na verdade, quase todas as criaturas do planeta partilhavam dezenas de milhares de genes. Em termos gerais, havia uma grande unidade latente de toda a vida.

Isso criara muito interesse pelo que causara as diferenças das espécies. Quinhentos genes não chegavam a ser muita coisa, mas um enorme abismo parecia separar chimpanzés de seres humanos.

- Muitas espécies podem cruzar para gerar híbridos: leões e tigres, leopardos e jaguares, golfinhos e baleias, búfalos e vacas, zebras e cavalos, camelos e lhamas. Ursos pardos e ursos polares às vezes acasalavam na vida selvagem, gerando os grolares. Havia uma questão de determinar se chimpanzés e humanos podiam hibridizar para fazer um humanzé. A resposta parece ser não.

— Alguém já tentou?

— Muitas vezes. Começando na década de 1920.

Mas, mesmo que a hibridização fosse impossível, explicou Henry, ainda se podia inserir genes humanos diretamente no embrião de um chimpanzé, para criar um animal transgênico. Quatro anos antes, quando fazia um estágio sabático no Instituto Nacional de Saúde, Henry estava estudando o autismo. Queria saber que genes podiam explicar a diferença na capacidade de comunicação entre chimpanzés e humanos.

— Porque os chimpanzés podem se comunicar — disse Henry. - Possuem uma ampla variedade de gritos e gestos com as mãos. Podem se organizar em eficientes expedições de caça para matar pequenos animais. Ou seja, eles têm comunicação, mas não uma linguagem. Como os autistas mais severos. Era isso que me interessava.

- E o que você fez? - perguntou Lynn.

No laboratório, sob o microscópio, ele inserira genes humanos num embrião de chimpanzé. Seus próprios genes.

— Inclusive os genes da fala?

- Na verdade, todos eles.

- Você inseriu todos os seus genes.

- Nunca imaginei que o experimento pudesse chegar ao termo. Pensava apenas em estudar um feto.

— Um feto, não um animal?

Se o feto transgênico sobrevivesse por oito ou nove semanas antes de ocorrer um aborto espontâneo, haveria diferenciação suficiente para que ele pudesse dissecar o feto e aprofundar seu conhecimento da fala nos chimpanzés.

— Esperava que o feto morresse?

— Isso mesmo. Esperava apenas que durasse pelo tempo suficiente...

— E depois cortaria o feto?

— Exato. A intenção era dissecá-lo.

— Seus próprios genes, seu próprio feto... fez tudo isso para ter alguma coisa para dissecar?

A esposa fitava-o como se ele fosse um monstro.

— Lynn, era um experimento. Fazemos isso durante todo...

Ele parou de falar. Não havia sentido em continuar por esse caminho. Tentou outra coisa.

— Os genes estavam disponíveis. Não precisava obter a autorização de ninguém para usá-los. Era um experimento. Não tinha nada a ver comigo.

— Mas agora tem.

A questão que Henry tentava responder era fundamental. Chimpanzés e humanos haviam se separado de um ancestral comum seis milhões de anos antes. E os cientistas há muito que haviam constatado que os chimpanzés eram mais parecidos com os seres humanos no estágio fetal. Isso sugeria que os seres humanos diferiam dos chimpanzés em parte por causa da diferença no desenvolvimento intra-uterino. Podia-se considerar que o desenvolvimento humano continuava além do estágio fetal do chimpanzé. Alguns cientistas achavam que isso se relacionava com o crescimento do cérebro humano, que dobrava de tamanho no primeiro ano depois do nascimento. Mas o interesse de Henry era a fala; e para que a fala ocorresse, as cordas vocais tinham de descer da boca pela garganta, criando a laringe. Isso acontecia com os humanos, mas não com os chimpanzés. Toda a seqüência de desenvolvimento era bastante complicada.

Henry esperava obter um feto transgênico e com isso adquirir algum conhecimento do que causava a mudança no desenvolvimento humano que tornava a fala possível. Pelo menos era esse o plano experimental original.

— Por que não removeu o feto como tencionava? — perguntou Lynn.

— Porque naquele verão vários chimpanzés contraíram encefalite viral, e os chimpanzés saudáveis tiveram de ser transferidos para áreas de quarentena. Foram levados para vários laboratórios na Costa Leste.

"Nunca mais tive qualquer informação sobre o embrião em que havia implantado meus genes. Presumi que a fêmea tivesse tido um aborto espontâneo em algum centro de quarentena e que o material fetal fora descartado. Não dava para verificar com mais precisão..."

— Porque era ilegal o que fez.

— Essa é uma palavra muito forte. Presumi que o experimento houvesse fracassado, que tudo tivesse acabado.

— Acho que não acabou.

— Tem razão, não acabou.

A fêmea parira um filhote ao final do termo normal. Os dois voltaram para Bethesda. O filhote parecia ser normal, sob todos os aspectos. A pele era um pouco mais clara, especialmente em torno da boca, onde não havia pêlos. Mas os chimpanzés variavam bastante na quantidade de pigmentação que apresentavam. Por isso, ninguém dera a menor importância.

A medida que crescia, o filhote foi parecendo menos normal. O rosto, originalmente achatado, não se projetou com a idade. As feições permaneceram um tanto infantis. Ainda assim, ninguém pensou em questionar a aparência do filhote... até que descobriram, num exame de sangue de rotina, que o filhote testava negativo para a enzima Ge do ácido siálico. Como todos os chimpanzés tinham essa enzima, o teste obviamente estava errado. Foi repetido. O novo teste deu negativo. O filhote não tinha essa enzima.

— A ausência dessa enzima é uma característica humana — disse Henry. - O ácido siálico é uma espécie de açúcar. Nenhum ser humano tem a forma de ácido siálico. Os chimpanzés têm.

- Mas o filhote não tinha.

- Exato. Fizeram o teste de DNA e compreenderam que o filhote não tinha a diferença de um e meio por cento dos genes do ser humano. Tinha muito menos diferenças. E começaram a tirar conclusões.

- E compararam o DNA do chimpanzé com o DNA de todos que haviam trabalhado no laboratório.

- Isso mesmo.

- E descobriram que combinava com o seu DNA.

- Exato. O escritório de Bellarmino me enviou uma amostra há poucas semanas. Acho que queriam que eu tivesse uma idéia da situação.

- O que você fez?

- Levei a um amigo para fazer a análise.

- Seu amigo em Long Beach?

- Isso.

- E Bellarmino?

- Ele simplesmente não quer ser responsável quando a notícia vazar. - Henry sacudiu a cabeça. — Quando eu voltava para casa, pouco depois de Chicago, recebi um telefonema de Rovak, do laboratório de animais. E ele me disse que eu estaria sozinho dali por diante. Essa é a atitude que decidiram assumir. O problema é meu, não deles.

Lynn franziu o rosto.

- Por que isso não é uma importante descoberta? Não deveria torná-lo famoso no mundo inteiro? Afinal, você criou o primeiro chimpanzé transgênico.

- O problema é que posso ser censurado por isso, ou mesmo preso — explicou Henry. — Porque não tinha permissão dos comitês que supervisionam as pesquisas com primatas. Porque o instituto agora proíbe o trabalho transgênico em quaisquer animais além dos camundongos. Porque todos os malucos contra os experimentos com animais vão protestar. Porque o instituto não quer se envolver e negará todo e qualquer conhecimento.

— Portanto, você não pode dizer a ninguém de onde Dave veio? Isso é um problema, Henry, porque não poderá mantê-lo em segredo.

— Sei disso - murmurou ele, angustiado.

— Tracy está no telefone neste momento, contando para todas as suas amigas sobre o chimpanzé sensacional que tem em casa.

— Posso imaginar...

— As amigas estarão aqui dentro de poucos minutos. Como vai explicar Dave para elas? E depois das meninas virão os repórteres. — Lynn olhou para o relógio. - Dentro de uma hora, duas no máximo. O que vai lhes dizer?

— Não sei. Talvez... Direi que Dave foi feito em outro país. Na China. Ou na Coréia do Sul. E mandaram-no para cá.

— E o que Dave dirá quando os repórteres falarem com ele?

— Pedirei a ele para não responder.

— Os repórteres não vão mais nos deixar em paz, Henry. Acamparão na frente da casa, vão circular de helicóptero por cima. Pegarão o próximo avião para a China ou Coréia, a fim de falar com a pessoa que criou Dave. E quando não encontrarem essa pessoa... o que vai acontecer?

Lynn fitou-o por um momento, depois foi até a porta. Olhou para o jardim dos fundos, onde Dave brincava com Jamie. Permaneceu em silêncio por um longo momento. Os dois gritavam e balançavam entre as árvores.

— A pele é bastante clara.

— Eu sei.

— O rosto é achatado, quase humano. Como ele pareceria com os cabelos cortados?

E assim surgiu a síndrome de Gandler-Kreukheim, uma rara mutação genética, causando baixa estatura, um excesso de pêlos no corpo, e deformidades faciais que produziam uma aparência simiesca. A síndrome era tão rara que só fora documentada quatro vezes no último século. Primeiro, numa família húngara aristocrática, em 1923, em Budapeste. Duas crianças nasceram com a síndrome, descrita na literatura médica por um médico austríaco, Dr. Emil Kreukheim. A segunda ocorrência foi numa criança Inuit, nascida no norte do Alasca em 1944. Uma terceira criança, uma menina, nasceu em São Paulo, em 1957, mas morreu de infecção poucas semanas depois. Uma quarta criança nasceu em Bruges, Bélgica, em 1988. Apareceu para a mídia por um breve instante, mas depois sumiu. Seu paradeiro era agora desconhecido.

- Gosto disso. - Lynn digitava rapidamente em seu laptop. — Como é mesmo o nome dessa síndrome dos peludos? Excessiva pilo-sidade familiar?

- Hipertricose — respondeu Henry.

- Certo. - Ela continuou a digitar. — Então a Gandler-Kreukheim está relacionada com... a hipertricose. Na verdade... com a hipertricose lanuginosa congênita. E só houve cinqüenta casos registrados nos últimos quatrocentos anos.

- Está escrevendo ou lendo isso?

- As duas coisas. - Lynn recostou-se. - Isso é tudo o que preciso por enquanto. É melhor você avisar Dave.

- Avisar o quê?

- Que ele é humano. De qualquer forma, é bastante provável que Dave já pense assim.

- Está bem. - Henry foi até a porta. — Acha mesmo que vai dar certo?

- Tenho certeza. A Califórnia tem leis contra a invasão da privacidade de crianças especiais. Muitas dessas crianças têm severas deformidades. Já têm dificuldades suficientes para crescer e freqüentar a escola sem o fardo adicional da exposição na mídia. Há multas enormes previstas se a mídia mostrar alguma coisa. Eles não correrão esse risco.

- Talvez.

- É o melhor que podemos fazer por enquanto. Lynn recomeçou a digitar. Já na porta, Henry hesitou.

- Se Dave é um ser humano, não podemos mandá-lo para um circo.

- E não mandaremos. Dave passa a viver conosco. É parte de nossa família agora... graças a você. Não temos opção.

Henry saiu. Tracy e as amigas estavam paradas debaixo da árvore, apontando para os galhos.

— Olhem o macaco ali!

— Ele não é um macaco - disse Henry. — E, por favor, não façam com que ele se sinta humilhado. Dave sofre uma síndrome genética rara...

E ele explicou para as meninas, que ouviram de olhos arregalados.

Havia uma cama menor por baixo da cama de Jamie, usada quando os amigos dormiam em sua casa. Lynn puxou-a, e Dave dormiu nela, ao lado de Jamie. Suas últimas palavras foram:

— É muito macia.

Ele pegou no sono quase que no instante seguinte, enquanto Lynn passava a mão por seus pêlos. Jamie comentou:

— É muito maneiro, mamãe. Como ter um irmão.

— Eu imagino.

Ela apagou a luz e fechou a porta. Quando foi vê-los mais tarde, descobriu que Dave enroscara os lençóis num círculo ao seu redor, criando uma espécie de ninho no meio da cama.

- Não - disse Tracy, parada na cozinha, com as mãos nos quadris. — Ele não pode ficar em nossa casa. Como pode fazer isso comigo, papai?

— Fazer o quê?

— Sabe o que a turma vai dizer. Que ele é um macaco que parece com uma pessoa, papai. E ele parece mesmo, com aquele nariz achatado. — Ela estava quase em lágrimas. — Ele tem um parentesco com você, não é? Tem os seus genes.

— Ora, Tracy...

— Eu me sinto tão envergonhada! - Tracy começou a chorar. - E eu tinha uma oportunidade de me tornar animadora de torcida...

— Tracy, tenho certeza que você...

— Era o meu ano, papai!

— Ainda é o seu ano.

— Não se tiver um macaco em minha casa!

Ela foi pegar uma Coca-Cola na geladeira. Voltou ainda chorando. Foi nesse instante que a mãe entrou na cozinha.

— Ele não é um macaco — declarou Lynn, em voz firme. — É um menino desafortunado, que sofre de uma grave doença.

— Essa não, mamãe!

— Pode procurar pessoalmente. Está no Google.

— É o que farei!

Ainda chorando, ela foi para o computador. Henry lançou um olhar para Lynn, depois foi espiar por cima do ombro da filha.

Variante do Transtorno de Hipertricose Registrado em 1923

(Hungria)

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— Eu não tinha a menor idéia — murmurou Tracy, olhando para o monitor. - Só houve quatro ou cinco casos em toda a história. Pobre menino!

— Ele é muito especial. Espero que você o trate melhor agora. — Henry pôs a mão no ombro da filha e olhou para a esposa. — Tudo isso em duas ou três horas?

— Fiz o máximo que era possível.


 

Havia cinqüenta repórteres na sala de conferências do Hotel Hua Ting, em Xangai, sentados a mesas cobertas de feltro verde, dispostas em várias fileiras. As câmeras de TV estavam no fundo da sala, enquanto os fotógrafos esperavam no balcão, com suas potentes teleobjetivas.

As luzes foram acesas quando o professor Shen Zhihong, diretor do Instituto de Bioquímica e Biologia Celular, de Xangai, foi se postar diante dos microfones. De terno preto, Shen tinha uma aparência distinta. Seu inglês era impecável. Antes de se tornar diretor do instituto, ele passara dez anos em Cambridge, Massachusetts, como professor de biologia celular no MIT.

— Não sei se o que vou lhes dizer é uma boa ou má notícia — avisou ele. — Mas desconfio que pode ser uma notícia decepcionante. Não obstante, valerá para que certos rumores sejam desmentidos de uma vez por todas.

Por alguma razão, explicou ele, começaram a circular rumores sobre pesquisas antiéticas na China depois do 12 Simpósio Conjunto do Leste da Ásia de Pesquisa Biomédica, realizado na cidade de Shaoxing, província de Xejiang.

-. Não faço a menor idéia do motivo — declarou Shen. - O simpósio não teve nada de extraordinário e só tratou de questões técnicas.

Mas na reunião seguinte, em Seul, repórteres de Taiwan e Tóquio estavam fazendo perguntas insistentes.

— Por isso, fui aconselhado por Byeong Jae Lee, o diretor de biologia molecular, da Universidade Nacional de Seul, a tratar expressamente do problema. Ele tem alguma experiência com a força dos rumores.

Soaram risos na audiência. Shen referia-se, é claro, ao escândalo internacional que estourara em torno de Hwang Woo-Suk, eminente geneticista coreano.

- Por isso, irei direto ao ponto. Há muitos anos que correm rumores de que cientistas chineses estavam tentando criar um híbrido de humano e chimpanzé. Segundo os rumores, em 1967 um cirurgião chamado Ji Yongxiang fertilizou uma fêmea de chimpanzé com esperma humano. A fêmea estaria no terceiro mês de gestação quando cidadãos indignados atacaram o laboratório e terminaram o experimento. A fêmea morreu algum tempo depois. Mas pesquisadores da Academia Chinesa de Ciências reriam declarado que continuariam com a pesquisa.

Shen fez uma pausa.

- Essa é a primeira história. Totalmente inverídica. Nenhuma fêmea de chimpanzé jamais foi emprenhada pelo Dr. Yongxiang ou por qualquer outra pessoa na China. Nenhuma fêmea de chimpanzé foi emprenhada em qualquer lugar do mundo. Se tivesse acontecido, vocês saberiam.

Ele fez outra pausa.

- Em 1980 circulou um novo rumor, de que pesquisadores italianos teriam visto embriões de humanos e chimpanzés num laboratório de Beijing. Ouvi essa história quando era professor no MIT. Pedi para me encontrar com esses pesquisadores italianos. Nunca foi possível localizá-los. Eram sempre amigos de um amigo.

Shen esperou, enquanto os fotógrafos tornavam a entrar em ação. Os clarões eram irritantes. Depois de um momento, ele continuou:

- Depois, há poucos anos, surgiu a notícia de que uma prostituta mongol teve um bebê com as feições de um chimpanzé. Esse homem-macaco pareceria com um ser humano, mas era muito pelu-do, com mãos e pés enormes. O homem-macaco bebia uísque e dizia frases completas. Segundo essa história, ele se encontra agora no quartel-general da Agência Espacial Chinesa, no Distrito de Chão Yang. Pode às vezes ser avistado pelas janelas, lendo um jornal e fumando um charuto. Supostamente, ele será enviado à Lua, porque é perigoso demais mandar um humano.

"Essa história também é falsa. Todas as histórias são falsas. Sei que essas histórias são fascinantes, ou divertidas. Mas não são verdadeiras. E não sei por que dizem que ocorreram na China. Especialmente porque os Estados Unidos são o país com menos regulamentos para os experimentos genéticos. Pode-se fazer quase que qualquer coisa ali. Foi nos Estados Unidos que acasalaram com êxito um gibão e um siamang, o primata preto da Sumatra. Em termos genéticos, as duas espécies são mais distantes do que um ser humano e um chimpanzé. Houve vários nascimentos vivos. Isso aconteceu na Universidade Estadual da Geórgia. Há quase trinta anos.

Depois, ele se ofereceu para responder a perguntas. Segundo a transcrição:

PERGUNTA: Dr. Shen, estão trabalhando num híbrido de chimpanzé

nos Estados Unidos? DR. SHEN: Não tenho motivos para pensar que sim. Apenas ressaltei

que há menos regulamentos nos Estados Unidos.

PERGUNTA: É possível fertilizar uma fêmea de chimpanzé com esperma humano?

DR. SHEN: Eu diria que não. Isso foi tentado por quase meio século. Desde a década de 1 920, quando Stalin ordenou que o mais famoso criador de animais da Rússia fizesse o experimento, para criar uma nova raça de soldados. Seu nome era Ivanov, fracassou e foi para a prisão. Poucos anos depois, os cientistas de Hitler também tentaram... e também fracassaram. Sabemos hoje que os genomas de humanos e chimpanzés são muito próximos. Mas como as condições uterinas são bastante diferentes, eu diria que não é possível.

PERGUNTA: Pode ser feito com a engenharia genética? DR. SHEN: É difícil dizer. Do ponto de vista técnico, seria extremamente difícil. Do ponto de vista ético, eu diria que é impossível.

PERGUNTA: Mas um cientista americano já solicitou a patente de um híbrido humano.

DR. SHEN: Foi o professor Stuart Newman, de Nova York. O pedido de um híbrido parcialmente humano foi indeferido. Mas ele não fez um híbrido. O Dr. Newman disse que solicitou a patente com o objetivo de atrair atenção para os problemas éticos envolvidos. E os problemas éticos continuam sem solução.

PERGUNTA: Dr. Shen, acha que algum dia será criado um híbrido? DR. SHEN: Convoquei esta entrevista coletiva para acabar com as especulações, não para aumentá-las. Mas se quer saber minha opinião pessoal, acho que sim... um dia será feito.


 

A Lembrança atormentava Mark Sanger. Ficara gravada a fogo em sua mente a imagem daquele pobre animal, encalhado na praia à noite, em Costa Rica, impotente quando o jaguar atacara, arrancara sua cabeça e começara a comer sua carne, enquanto as pernas ainda se agitavam, nos estertores da morte. E tudo acompanhado pelo som de ossos esmigalhados. Os ossos da cabeça.

Mark Sanger não esperava testemunhar nada tão terrível. Fora até a praia em Tortuguero para observar as gigantescas tartarugas-de-couro saírem rastejando do mar para depositarem seus ovos na areia. Como biólogo, sabia que era uma grande migração que o planeta testemunhara por milênios. As fêmeas faziam uma extraordinária demonstração de zelo maternal. Saíam rastejando do mar, subiam pela praia, cavavam fundo para depositar os ovos, cobriam com areia usando as nadadeiras exaustas, e varriam a areia para apagar qualquer vestígio dos ovos. Era uma cerimônia lenta e tranqüila, orientada por genes que sobreviviam havia milênios.

Até que surgira o jaguar, uma mancha escura na noite. E, de repente, no último verão, tudo mudara para Mark Sanger. A brutalidade do ataque, sua rapidez e violência, deixara-o profundamente chocado. Confirmara sua suspeita de que o mundo natural estava degringolando. Tudo o que a humanidade fazia no planeta abalara o delicado equilíbrio da natureza. A poluição, a industrialização descontrolada, a perda de habitat... quando os animais eram espremidos e acuados, comportavam-se com extrema violência, num esforço desesperado para sobreviver.

Esta e/a a explicação para o ataque brutal que testemunhara: o mundo natural entrara em colapso. Ele fez esse comentário para o naturalista Ramon Valdez, que o acompanhava. Valdez sacudiu a cabeça.

— Não, Senor Sanger, sempre foi assim. Já era no tempo de meu pai, meu avô e meu bisavô. Eles sempre falaram dos ataques do jaguar à noite. Faz parte do ciclo da vida.

— Mas há mais ataques agora. Por causa de toda a poluição...

— Não há qualquer mudança. A cada mês, os jaguares matam de duas a quatro tartarugas. Temos registros de que isso acontece há muitos anos.

— A violência que testemunhamos aqui não é normal.

A uma curta distância, o jaguar ainda comia a tartaruga. Ainda esmigalhava ossos.

— Mas é normal - insistiu Ramon Valdez. — As coisas são assim. Sanger não quis mais falar a respeito. Era evidente que Valdez defendia os industrialistas e poluidores, as grandes empresas norte-americanas que dominavam a Costa Rica e outros países latino-americanos. Não era de surpreender encontrar uma pessoa assim ali, já que a CIA controlava a Costa Rica havia décadas. Aquilo não era um país; era uma subsidiária dos grandes interesses americanos. E as grandes empresas americanas pouco ligavam para o meio ambiente.

— Os jaguares também precisam comer — comentou Ramon Valdez. - E acho melhor uma tartaruga do que um bebê humano.

Isso, pensou Mark Sanger, era uma questão de opinião.

De volta à sua casa, em Berkeley, Sanger sentou em seu lofie pensou no que fazer. Embora dissesse às pessoas que era biólogo, Sanger não tinha nenhum treinamento formal na área. Passara um ano na universidade antes de abandonar os estudos para trabalhar na firma de paisagismo Cather Holly. Seu único curso de biologia completo fora na escola secundária. Filho de um banqueiro, Sanger possuía um fundo de investimentos substancial, e não precisava trabalhar para se sustentar. A riqueza, em sua experiência, tornava mais difícil a busca pela identidade pessoal. E quanto mais velho se tornava, era mais difícil pensar em voltar à universidade e retomar os estudos.

Recentemente, ele começara a se definir como artista; e os artistas não precisavam de treinamento formal. Na verdade, a educação formal interferia com a capacidade do artista de sentir o Zeitgeist, de deslizar nas ondas da mudança que varriam a sociedade, formulando uma resposta para os problemas. Sanger, em sua opinião, era muito bem informado. Lia os jornais de Berkeley, às vezes revistas como Mother Jones, além de várias publicações ecológicas. Nem todos os meses, mas às vezes. Era verdade que, com freqüência, apenas corria os olhos pelo jornal, lendo os títulos das reportagens. Mas isso era tudo o que precisava para sentir o Zeitgeist.

A arte era sentimento. Como a pessoa se sentia por viver num mundo materialista, com seus luxos extravagantes, falsas promessas e profundos desapontamentos. O que havia de errado com as pessoas hoje era o fato de ignorarem seus sentimentos.

A função da arte era dar vida aos sentimentos verdadeiros. Chocar as pessoas para que tivessem percepção. Era por isso que tantos jovens artistas usavam técnicas genéticas e material vivo para criar arte. A arte viva, como chamavam. A arte dos tecidos vivos. Atualmente, muitos artistas trabalhavam durante o dia inteiro em laboratórios científicos. A arte resultante era essencialmente científica. Um artista cultivara pedaços de carne numa placa de Petri, e comera-os em público, como uma performance (supostamente, o gosto era horrível. Além do mais, eram geneticamente modificados. Argh!). Um artista na França fizera um coelho luminoso, ao inserir genes de um vaga-lume, ou coisa parecida. Outros artistas, ainda, haviam mudado a cor dos pêlos de animais, dando-lhes tonalidades de arco-íris, ou criaram espinhos de porco-espinho num cachorro.

Essas obras de arte provocavam fortes sentimentos. Muitas pessoas reagiam com repugnância. Deviam sentir a mesma repulsa que ele experimentara ao ver a tartaruga ser morta pelo jaguar, numa praia na Costa Rica. Aquela terrível perversão da natureza, aquela repulsiva selvageria que ele não conseguia tirar da cabeça.

E isso, é claro, era motivo para fazer arte.

Não a arte pela arte. Em vez disso, a arte para beneficiar o mundo, a arte para ajudar o meio ambiente. Esse era o objetivo de Mark Sanger, que se empenhou em alcançá-lo.

MÉDICO LOCAL PRESO POR FURTO DE ÓRGÃO

Funcionário do Memorial Hospital de Long Beach Implicado: Ladrões Vendiam Ossos, Sangue e Órgãos

Um proeminente médico de Long Beach foi preso pela venda ilegal de órgãos removidos de cadáveres no Memorial Hospital de Long Beach. O Dr. Martin Roberts, diretor do laboratório de patologia, responsável pelas autópsias no hospital, foi alvo de 143 acusações de retiradas de partes de cadáveres e venda para bancos de tecidos.

Disse a promotora distrital de Long Beach, Barbara Bates: "Este indiciamento é como um filme de horror de classe B." Bates também argumentou no indiciamento que o Dr. Roberts forjou atestados de óbito, falsificou resultados de exames de laboratório e conspirou com agências funerárias e cemitérios para encobrir seu reinado de terror.

O caso é apenas o episódio mais recente numa pandemia nacional de modernos ladrões de cadáveres. Outros casos incluem o "Dr. Mike" Mastromarino, um dentista milionário do Brooklyn, Nova York, que, durante um período de cinco anos, teria roubado órgãos de milhares de cadáveres, inclusive ossos de Alastair Cooke, de 95 anos;

uma firma de biomédica de Fort Lee, Nova Jersey, que vendia o que era roubado por Mastromarino para bancos de tecidos de todos os Estados Unidos; um crematório de San Diego, que teria roubado partes dos cadáveres que lhe eram confiados; outro de Lake Elsinore, Califórnia, onde as partes dos corpos eram guardadas em freezers, antes de serem vendidas; e o Centro Médico da UCLA, onde quinhentos corpos foram retalhados e vendidos por setecentos mil dólares, alguns para a empresa Johnson Johnson.

"O problema é internacional", declarou a promotora Bates. "Furtos de tecidos têm sido denunciados na Inglaterra, Canadá, Austrália, Rússia, Alemanha e França. Achamos que esses furtos agora ocorrem em todos os países do mundo. Os pacientes estão muito preocupados."

O Dr. Roberts declarou-se inocente de todas as acusações no Superior Tribunal de Justiça. Foi solto com o pagamento de uma fiança de um milhão de dólares. Também foram indiciados quatro outros funcionários do Memorial Hospital de Long Beach, inclusive Marilee Hunter, diretora do laboratório de genética.

Kevin McCormick, administrador do Memorial de Long Beach, declarou-se chocado com os indiciamentos. Disse que "o comportamento do Dr. Roberts é contrário a tudo o que nossa instituição representa". Acrescentou que ordenou uma meticulosa revisão dos procedimentos do hospital. Pretende divulgar o relatório assim que ficar pronto.

A promotoria informa que os fatos foram levados a seu conhecimento por Raza Rashad. Estudante do primeiro ano de medicina em San Francisco, o Sr. Rashad trabalhou no laboratório de patologia do Dr. Roberts, onde testemunhou diversas atividades ilegais. "O depoimento do Sr. Rashad foi vital para a promotoria preparar a denúncia", disse Bates.


 

Josh WinNkler entrou apressado no prédio em que ficavam os animais, para verificar o que Tom Weller dizia.

— Quantos ratos morreram? - perguntou ele.

— Nove.

Os corpos rígidos de nove ratos mortos, em nove gaiolas, fizeram com que Winkler começasse a praguejar.

— Quando eles morreram?

— Deve ter sido durante a noite — respondeu Tom. — Foram alimentados às seis horas. Não houve qualquer anotação de problemas na ocasião.

Tom olhava para sua prancheta.

— Em que grupo de estudo eles estavam? — perguntou Josh, temendo já saber a resposta.

— A-7 — informou Tom. — O estudo do gene da maturidade. Oh, Jesus!

Josh fez um esforço para manter a calma.

— E que idade eles tinham?

— Hum... vamos ver... 38 semanas e quatro dias. Oh, Deus!

A vida média de um rato de laboratório era de 160 semanas, um pouco mais de três anos. Aqueles ratos haviam morrido em um quarto desse tempo. Ele respirou fundo.

— E os outros no grupo?

— Havia vinte ratos no grupo de estudo original. Todos idênticos, todos da mesma idade. Dois morreram há poucos dias, de infec-ção respiratória. Não dei muita importância ao fato, na ocasião. Quanto aos outros... é melhor você observar pessoalmente.

Tom levou Josh pela fileira de gaiolas até os outros ratos. Ficou imediatamente evidente em que estado se encontravam.

— Pelagem esfiapada, inatividade, sono excessivo, dificuldade para se erguer sobre as pernas traseiras, definhamento dos músculos, paralisia das pernas traseiras em quatro...

Josh não conseguia desviar os olhos, atordoado.

— Eles estão velhos... todos se tornaram velhos.

— Isso mesmo — confirmou Tom. — E inconfundível: envelhecimento prematuro. Verifiquei os ratos monos que foram examinados há dois dias. Um deles tinha um adenoma de pituitária, enquanto o outro tinha uma degeneração na medula espinhal.

— Sinais de idade...

— Isso mesmo, sinais de idade. Talvez esse gene não seja o produto maravilhoso com que Rick está contando, no final das contas. Não, se causa morte prematura. Seria um desastre.

- Como estou me sentindo? — repetiu Adam, os dois sentados para o almoço. — Eu me sinto ótimo, Josh, graças a você. Um pouco cansado às vezes. E a pele está se tornando seca. Adquiri algumas rugas. Mas me sinto bem. Por quê?

— Eu só queria saber - murmurou Josh, tão casual quanto podia.

Ele tinha de fazer um esforço para se manter impassível enquanto olhava para o irmão mais velho. A aparência de Adam mudara de uma forma drástica. Antes, tinha apenas alguns fios brancos nas têmporas; agora, estava com toda a cabeça grisalha. A linha dos cabelos recuara. A pele junto dos olhos e boca se tornara enrugada. A testa tinha vincos profundos. Ele parecia muito mais velho.

E Adam tinha apenas 32 anos. Oh, Jesus!

Não... ahn... nada de drogas?

— Nunca mais. Isso acabou, graças a Deus.

Adam pedira um hambúrguer, mas parou de comer depois de algumas mordidas.

— Não está bom?

— Tenho um dente dolorido. Preciso ir ao dentista. - Adam tocou no próprio rosto. — Detesto me queixar. Para ser franco, tenho pensado que preciso fazer exercício. As vezes tenho prisão de ventre.

— Vai voltar ao seu antigo grupo de basquete? — perguntou Josh, jovial.

Adam costumava jogar basquete duas vezes por semana com outros corretores de investimentos.

— Ahn... não. Pensei em tênis de duplas. Ou talvez golfe.

— Boa idéia.

Houve silêncio à mesa. Adam empurrou seu prato para o lado.

— Sei que pareço mais velho. Não precisa fingir que não notou. Todo mundo já percebeu. Conversei com mamãe, e ela disse que a mesma coisa aconteceu com papai. Subitamente, ainda na casa dos trinta anos, ele parecia mais velho. Quase que da noite para o dia. Talvez seja um problema genético.

— Pode ser.

— Por que está tão interessado? — indagou Adam. — Sabe de alguma coisa?

— Eu? Não.

— Queria de repente almoçar comigo, com urgência, hoje mesmo. Não podia esperar?

— Não o via fazia algum tempo. Isso era tudo.

— Pare com essa conversa mole, Josh. Você sempre foi um péssimo mentiroso.

Josh suspirou.

— Acho que devemos fazer alguns exames.

— Para quê?

— Verificar a densidade óssea, a capacidade dos pulmões. E uma imagem de ressonância magnética.

— Para quê? Qual o objetivo desses exames? — Adam fitava o irmão nos olhos. — Por causa do envelhecimento?

— Isso mesmo.

— Estou envelhecendo depressa demais? Tem alguma relação com aquele spray do gene?

— Precisamos descobrir. Quero conversar com Ernie. Ernie Lawrence era o médico da família.

— Está bem. Pode marcar tudo.


 

Ao falar em Washington, numa conferência para congressistas, ao meio-dia, durante um almoço, o professor William Garfield, da Universidade de Minnesota, declarou:

— Apesar de tudo o que vocês já devem ter ouvido, ninguém jamais provou que um único gene causa uma característica compor-tamental específica. Alguns colegas acreditam que essas associações podem um dia ser encontradas. Outros estão convencidos de que isso jamais acontecerá, que a interação de genes e ambiente é complexa demais. Mas, seja como for, vemos todos os dias notícias nos jornais de novos "genes para" isso ou aquilo. Só que, no final das contas, nenhum deles jamais foi comprovado.

— Mas, do que está falando? — indagou o assessor do senador Wilson. — É o gene gay, que causa o homossexualismo?

— E apenas uma associação estatística, não de causa e efeito. Nenhum gene causa a orientação sexual.

— E o gene da violência?

— Não foi confirmado em pesquisas posteriores.

— Falaram sobre um gene do sono...

— Em ratos.

— E o gene do alcoolismo?

— Também não foi confirmado.

— E o gene do diabetes?

— Até agora, já identificamos 96 genes envolvidos no diabetes. Não tenho a menor dúvida de que encontraremos mais.

Houve um momento de silêncio aturdido, até que um assessor perguntou:

— Se ainda não foi comprovado que um determinado gene causa um comportamento específico, por que tanto alvoroço?

O professor Garfield deu de ombros.

— Podem chamar de lenda urbana. Podem chamar de mito da mídia. Culpem a educação pública de ciências. Porque o público acredita com certeza que os genes dão origem a um comportamento. Parece fazer sentido. Na verdade, porém, até mesmo a cor dos cabelos e a altura não são características simples determinadas pelos genes. E, com toda certeza, condições como o alcoolismo não são.

— Espere um instante. A altura não é genética?

— Para os indivíduos, é, sim. Se você é mais alto do que seu amigo, provavelmente é porque seus pais são mais altos. Para as populações em geral, no entanto, a altura é uma função do ambiente. Nos últimos cinqüenta anos, os europeus cresceram mais de dois centímetros a cada década. O mesmo aconteceu com os japoneses. É rápido demais para uma mudança genética. É exclusivamente um efeito do ambiente... melhores cuidados pré-natais, nutrição, cuidados com a saúde, e assim por diante. Os americanos, diga-se de passagem, não cresceram nem um pouco nesse período. Encolheram um pouco, talvez por causa das deficiências nos cuidados pré-natais e das dietas com enlatados. O fato é que a relação entre genes e ambiente é muito complicada. Os cientistas ainda não sabem direito como os genes funcionam. Não há sequer um consenso geral sobre o que é um gene.

— Pode dizer isso de novo?

— Entre os cientistas não há uma única definição do que é um gene sobre a qual todos concordem. Há quatro ou cinco definições diferentes.

— Pensei que um gene fosse um segmento do genoma — disse alguém. — Uma seqüência de pares de bases, ATGC, que codifica uma proteína.

— Essa é uma definição — respondeu Garfield. — Porém, é inadequada. Porque uma única seqüência ATGC pode codificar várias proteínas. Alguns segmentos do código são basicamente interruptores que ligam e desligam outros segmentos. Alguns segmentos permanecem inativos, a menos que sejam ativados por estímulos ambientais específicos. Alguns segmentos são ativos apenas durante um determinado período do desenvolvimento, e depois nunca mais se manifestam. Outros ligam e desligam a todo instante, ao longo da vida de um indivíduo. Como eu disse, é complicado.

Alguém levantou a mão. Um assessor do senador Mooney, que recebia contribuições substanciais das grandes empresas farmacêuticas, tinha uma pergunta.

— Professor, tenho a impressão de que sua opinião é minoritária. A maioria dos cientistas não concordaria com sua visão do gene.

— Na verdade, a maioria dos cientistas concorda. E por bons motivos.

Quando o genoma humano foi decodificado, os cientistas ficaram surpresos ao descobrir que continha apenas cerca de 35 mil genes. Esperavam muito mais. Afinal, uma forma de vida inferior como a minhoca tinha vinte mil genes. Isso significava que a diferença entre um ser humano e uma minhoca podia ser de apenas quinze mil genes. Como, então, podia-se explicar as imensas diferenças de complexidade entre as duas espécies?

O problema desapareceu quando os cientistas começaram a estudar as interações entre os genes. Por exemplo, um gene podia fazer uma proteína, enquanto outro gene podia fazer uma enzima que tirava parte de uma proteína e, assim, a modificava. Alguns genes continham múltiplas seqüências codificadoras, separadas por áreas de código sem sentido. O gene podia usar qualquer uma de suas múltiplas seqüências para fazer uma proteína. Alguns genes só eram ativados se vários outros genes fossem ativados primeiro, ou quando ocorriam algumas mudanças ambientais. Isso significava que os genes reagiam muito mais ao ambiente do que se supunha, tanto dentro quanto fora do ser humano. E o fato de haver múltiplas interações de genes significava que havia bilhões de resultados possíveis.

— Não é de surpreender que os pesquisadores estejam se encaminhando para o que chamamos de "estudos epigenéticos", que avaliam como os genes interagem com o ambiente para produzir o indivíduo que vemos — disse Garfield. — Essa é uma área extremamente ativa.

Ele passou a explicar as complexidades. Um a um, os assessores dos congressistas terminaram de comer e se retiraram. Somente uns poucos permaneceram, verificando as mensagens em seus celulares.

Neandertais Foram os Primeiros Louros

Mais Fortes, Cérebro Maior, Mais Inteligentes do Que Nós

As mutações genéticas para a cor dos cabelos indicam que os primeiros louros foram os Neandertais, não os Homo sapiens. O gene louro surgiu em algum momento na glaciação Würm, talvez em reação à relativa ausência de luz do sol na idade do gelo. O gene espalhou-se entre os Neandertais, quase todos louros, segundo os pesquisadores.

"Os Neandertais tinham cérebros um quinto maiores do que os nossos. Eram mais altos e mais fortes. E também eram, sem a menor sombra de dúvida, mais inteligentes", diz Marco Svabo, do Instituto de Genética de Helsinki. "Na verdade, há pouca dúvida de que o homem moderno é uma versão domesticada do Neandertal, assim como o cachorro moderno é uma versão domesticada do lobo mais forte e mais inteligente. O homem moderno é uma criatura degradada e inferior. Os Neandertais eram superiores em termos intelectuais, além de mais bonitos. Com cabelos louros, malares salientes e feições fortes, teriam se destacado como supermodelos.

"Os Homo sapiens, mais magros e mais feios do que os Neandertais, se sentiriam naturalmente atraídos pela beleza, força e inteligência dos louros. Ao que parece, umas poucas mulheres Neandertais se compadeceram dos insignificantes Cro-Magnons e acasalaram com eles. Ainda bem para nós que isso aconteceu. Temos sorte de possuir os genes dos louros Neandertais para impedir que nossa espécie se tornasse irremediavelmente estúpida. É verdade que, mesmo assim, demonstramos muita estupidez." Ele disse que se fingir de louro era uma estupidez, "um preconceito das pessoas de cabelos escuros para desviar a atenção do verdadeiro problema do mundo, que está nas deficiências dos que têm cabelos escuros". E acrescentou: "Faça uma lista das pessoas mais estúpidas da história. Vai descobrir que todas têm cabelos escuros."

O Dr. Evard Nilsson, porta-voz do Instituto Marburg, da Alemanha, que vem seqüenciando todo o genoma Neandertal, comentou que a teoria dos louros era interessante. Nilsson disse: "Minha esposa é loura e sempre faço o que ela me diz para fazer. Nossos filhos são louros e muito inteligentes. Por isso, concordo que há alguma coisa nessa teoria."


 

Os primeiros dias de Dave na casa da família Kendall correram surpreendentemente bem. Quando saía, ele usava um boné de beisebol, que ajudava bastante sua aparência. Com os pêlos aparados, usando jeans, tênis e uma camisa Quicksilver, ele parecia bastante com os outros garotos. E aprendia depressa. Tinha boa coordenação e começou a escrever seu nome com alguma facilidade, instruído por Lynn. Ler era mais difícil.

Dave saía-se bem nos esportes nos fins de semana, embora às vezes fosse desconcertante. Num jogo de beisebol da Little League, uma bola alta saiu do campo e voou na direção do prédio de dois andares da escola. Dave correu, escalou a parede e pegou a bola antes que batesse numa janela no segundo andar. Os garotos encararam esse feito com um misto de admiração e ressentimento. Não era justo, e eles queriam ver a vidraça quebrada. Por outro lado, todos queriam Dave em seu time.

Por isso, Lynn ficou surpresa, numa tarde de sábado, quando Dave voltou mais cedo para casa. Ele exibia uma cara triste.

— O que aconteceu?

— Eu não me ajusto.

— Todo mundo se sente assim às vezes. Dave sacudiu a cabeça.

— Eles ficam me olhando. Lynn hesitou.

— Você não é igual aos outros meninos.

— Não, não sou.

— Eles zombam de você?

Dave acenou com a cabeça em confirmação.

— Às vezes.

- O que eles fazem?

-Jogam coisas. E me chamam de nomes.

- Que nomes?

Dave mordeu o enorme lábio superior.

- Menino-macaco.

Ele estava à beira das lágrimas.

- É mesmo horrível. Sinto muito. — Ela tirou o boné de beisebol da cabeça de Dave e começou a acariciar-lhe a nuca. — Os meninos podem ser maus.

- As vezes meus sentimentos doem.

Triste, ele virou as costas. Tirou a camisa. Lynn passou os dedos por seus pêlos, à procura de equimoses e outros sinais de machucados. Sentiu que Dave relaxava. Sua respiração foi se tornando mais lenta. A disposição parecia melhorar.

Só mais tarde é que ela compreendeu que fazia a mesma coisa que os macacos na vida selvagem. Um virava as costas para o outro, que tirava insetos e fragmentos de seu pêlo.

Lynn decidiu que faria isso todos os dias. Apenas para que Dave se sentisse melhor.

Desde a chegada de Dave, tudo mudara na vida de Lynn. Embora ele fosse, evidentemente, uma responsabilidade de Henry, o chimpanzé demonstrava pouco interesse por ele. Sentira uma atração imediata por Lynn, e alguma coisa em sua atitude ou aparência — os olhos tristes? o comportamento infantil? — deixaram-na comovida. Começara a ler sobre chimpanzés. Aprendera que as fêmeas tinham vários parceiros sexuais e nunca sabiam que macho gerara um filhote. Por isso os chimpanzés quase não tinham noção de paternidade ou de pais. Os chimpanzés tinham apenas mães. Dave parecia ter sido maltratado quando pequeno, ignorado pela mãe chimpanzé. Olhava para Lynn com um anseio ostensivo, e ela reagia de acordo. Era tudo bastante emocional, profundamente inesperado.

- Mamãe, ele não é seu filho - protestou Tracy.

A filha estava numa idade em que disputava a atenção dos pais. Tinha ciúme de qualquer distração.

- Sei disso, Tracy. Mas ele precisa de mim.

- Ora, mamãe, ele não é responsabilidade sua!

Tracy ergueu os braços, num gesto teatral.

— Sei disso.

— Não pode deixá-lo de lado?

— Ele está recebendo muita atenção?

— Até demais!

— Desculpe. Eu não tinha percebido. Lynn envolveu a filha num abraço.

— Não me trate como um macaco! Tracy desvencilhou-se, furiosa.

Mas, no final das contas, eram todos primatas. Os seres humanos também. A experiência com Dave vinha proporcionando a Lynn uma percepção desconfortável do que os humanos partilhavam com os outros primatas: carícias e toques, a atenção física como fonte de relaxamento. Olhos baixos sob ameaça, ou desprazer, ou como um sinal de submissão (Tracy em contato com os namorados, flertando com os olhos baixos). O contato visual direto significava intimidação, uma manifestação de raiva. Pele arrepiada por medo e raiva... esses mesmos músculos da mesma pele faziam com que os pêlos de um chimpanzé se esticassem, para criar uma aparência maior diante da ameaça. O sono igual, o corpo enrascado, como se estivesse num ninho...

E assim por diante.

Primatas.

Eram todos primatas.

Mais e mais, a maior diferença parecia estar nos pêlos. Dave era pelu-do; as pessoas ao seu redor não eram. Segundo as leituras de Lynn, a perda dos pêlos ocorrera depois que os seres humanos se separaram dos chimpanzés. A explicação usual era a de que os seres humanos haviam se tornado por algum tempo criaturas do pântano ou da água. Porque a maioria dos mamíferos era peluda, a pelagem necessária para ajudar a manter a temperatura interna. Mas os mamíferos aquáticos, como golfinhos e baleias, haviam perdido os pêlos para poderem desenvolver uma velocidade maior. E as pessoas também haviam perdido seus pêlos.

Para Lynn, no entanto, a coisa mais estranha era a sensação persistente de que Dave era ao mesmo tempo humano e não-humano. Ela não sabia como lidar com esse sentimento. E, à medida que os dias passavam, não se tornava mais fácil.

LITÍGIO DE GENE CANAVAN TERMINA ÉTICA DE PATENTE DE GENE CONTESTADA

doença de Canavan é um distúrbio genético hereditário que é fatal para as crianças nos primeiros anos da vida. Em 1987, Dan Greenberg e a esposa souberam que o filho de nove meses tinha a doença. Como não havia teste genético disponível na ocasião, os Greenberg tiveram outra criança, uma menina, em que a doença também foi diagnosticada.

Os Greenberg queriam que outras famílias fossem poupadas desse sofrimento, e por isso convenceram o geneticista Reuben Matalon a desenvolver um teste pré-natal para a doença de Canavan. Os Greenberg doaram seus próprios tecidos, os tecidos de seus filhos mortos, e ainda se empenharam para obter tecidos de outras famílias do mundo inteiro com a doença de Canavan. Em 1993, finalmente, foi encontrado o gene para a doença de Canavan. Um teste pré-natal gratuito foi oferecido a famílias de todos os países.

Sem que os Greenberg soubessem, no entanto, o Dr. Matalon patenteou o gene, e começou a exigir altos royalties por testes adicionais. Muitas famílias que haviam contribuído com tecidos e dinheiro, para ajudar a descobrir o gene, não tinham agora condições de fazer o teste. Em 2003, os Greenberg e outras famílias envolvidas processaram Matalon e o Childrens Hospital de Miami, alegando violação de consentimento informado, enriquecimento ilícito, ocultação fraudulenta e apropriação indébita de segredos comerciais. Houve um acordo extrajudicial. Em conseqüência, o teste se tornou mais acessível, embora ainda seja preciso pagar royalties ao Childrens Hospital de Miami. A ética dos médicos e instituições envolvidos neste caso tem sido debatida com veemência.

Psychology News

ADULTOS NÃO CRESCEM MAIS

Pesquisador Britânico Culpa Educação Formal Professores e Cientistas "Extremamente )maturos"

Se você acha que os adultos ao seu redor estão agindo como crianças, é bem provável que esteja certo. Em termos técnicos, é o que se chama de "neotenia psicológica", a persistência do comportamento infantil na vida adulta. E isso está aumentando.

Segundo o Dr. Bruce Charlton, psiquiatra evolucionário de Newcastle upon Tyne, os seres humanos levam agora mais tempo para alcançarem a maturidade mental... e muitos nunca chegam lá.

Charlton acha que isso é um subproduto acidental da educação formal que se prolonga pela casa dos vinte anos. "A educação formal exige uma postura infantil de receptividade", que "neutraliza a consecução da maturidade psicológica", que normalmente ocorreria ao final da adolescência ou início da casa dos vinte anos.

Ele ressalta que "acadêmicos, professores, cientistas e muitos outros profissionais são, com freqüência, extremamente imaturos". Diz ainda que são "imprevisíveis, com desequilíbrio em relação às prioridades, e com tendências para reações exageradas".

As sociedades humanas anteriores, como os caçadores-coletores, eram mais estáveis. Por isso, a vida adulta era alcançada ainda na adolescência. Agora, no entanto, com a rápida mudança social e menos dependência da força física, a maturidade é muitas vezes adiada. Ele observa que sinais da maturidade, como formatura na universidade, casamento e primeiro filho, antes ocorriam em idades determinadas, mas agora podem acontecer ao longo de um período de décadas.

Por isso, "num importante sentido psicológico, algumas pessoas modernas nunca se tornam adultas de fato".

Charlton acha que isso pode ser adaptativo. "Uma flexibilidade infantil de atitudes, comportamentos e conhecimentos" pode ser útil para navegar pela crescente instabilidade do mundo moderno, em que as pessoas têm mais probabilidades de trocar de emprego, adquirir novas habilidades, mudar para novos lugares. Mas isso acontece ao custo de "redução do tempo de atenção, frenética busca de novidade, ciclos cada vez mais curtos da moda arbitrária e... uma ampla superficialidade emocional e espiritual". Ele acrescentou que as pessoas modernas "carecem de uma profundidade de caráter que parecia mais comum no passado".


 

- Ellis, o que é esse tubo? - perguntou a Sra. Levine. O filho segurava um tubo prateado, com um pequeno bocal de plástico na extremidade. Estavam na casa dos pais dele, em Scarsdale. Lá fora, operários martelavam na garagem. Faziam reparos, preparando a casa para a venda.

— O que tem aí?

— É um novo tratamento genético, mamãe.

— Não preciso.

— Rejuvenesce a pele. Vai deixá-la mais jovem.

— Não é o que disse a seu pai. Contou para ele que melhoraria sua vida sexual.

— Bom...

— Ele mandou você fazer isso, não é?

— Não, mamãe.

— Não quero melhorar minha vida sexual. Nunca fui mais feliz do que sou neste momento.

— Vocês dormem em quartos separados.

— Porque ele ronca.

— Mamãe, este spray vai ajudá-la.

— Não quero nenhuma ajuda.

— Prometo que será mais feliz...

— Você nunca escutou, nem mesmo quando era criança.

— Ora, mamãe...

— E nunca melhorou, em toda a sua vida adulta.

— Mamãe, por favor...

Ellis começava a se irritar. Afinal, não deveria estar fazendo aquilo. Seu irmão Aaron é que deveria fazê-lo. Porque sempre fora o predileto da mãe. Mas ele alegara que tinha um encontro romântico. Por isso, Ellis assumira o encargo.

Ele se adiantou, com o tubo na mão.

- Fique longe de mim, Ellis. Ele continuou a avançar.

— Sou sua mãe, Ellis.

A Sra. Levine pisou no dedão do filho. Ellis soltou um grito de dor. No instante seguinte, agarrou a mãe por trás da cabeça, ajeitou o tubo sobre seu nariz e apertou o controle. Ela se debateu e se contorceu.

- Não quero! Não quero!

Ele manteve o tubo na posição por um momento. Era como se a estivesse estrangulando, os mesmos movimentos, a mesma sensação, enquanto ela se debatia em seus braços. Deixava-o imensamente angustiado. A carne das faces contra seus dedos, enquanto ela se debatia e protestava. Podia sentir o cheiro da maquiagem.

Até que Ellis deu um passo para trás.

— Como se atreveu a fazer isso comigo? A mãe saiu correndo da sala, aos gritos.

Ellis encostou-se na parede. Sentia-se tonto por ter obrigado a mãe a fazer uma coisa pela força. Mas tinha de ser feito, ele disse a si mesmo. Tinha de ser feito.


 

As coisas não estavam correndo bem, pensou Rick Diehl, enquanto removia o purê verde de ervilhas do rosto e limpava os óculos. Eram cinco horas da tarde. Fazia calor na cozinha. As três crianças sentavam à mesa da cozinha, gritando e agredindo umas às outras. Jogavam pedaços de cachorro-quente e mostarda. A mostarda manchava tudo.

A filha menor, ainda bebê, sentava na cadeira alta e cuspia a comida. Conchita deveria ter dado comida à menina antes, mas desaparecera naquela tarde. Tornara-se cada vez menos confiável desde que a esposa de Rick fora embora. As mulheres sempre se mantêm unidas. Era bem provável que tivesse de substituir Conchita, o que seria uma chatice, ter de entrevistar e contratar alguém. E é claro que ela o processaria. Talvez pudesse negociar um acordo antes que o caso fosse levado aos tribunais.

— Você quer? Pois então tome!

Jason, o mais velho, amassou seu cachorro-quente junto com um bolinho no rosto de Sam, que soltou um uivo e reagiu como se estivesse sufocando. No instante seguinte, os dois rolaram pelo chão.

— Papai! Papai! Manda ele parar! Está me sufocando!

— Jason, não sufoque seu irmão.

Jason não deu atenção. Rick agarrou-o pela gola e tirou-o de cima do irmão.

— Eu disse para não sufocar seu irmão.

— Eu não estava sufocando! E foi ele quem pediu!

— Quer ficar sem TV esta noite? Não? Então coma seu cachorro-quente e deixe seu irmão comer o dele.

Rick pegou a colher para alimentar a filha, mas ela fechou a boca, obstinada, fitando-o com uma expressão hostil nos olhinhos escuros. Ele suspirou. O que levava uma criança naquela cadeira alta a se recusar a comer e jogar todos os seus brinquedos no chão? Talvez a partida da esposa não tivesse sido uma idéia tão boa, no final das contas, pensou Rick.

E a situação no escritório era ainda pior. Seu antigo chefe de segurança transava com Lisa; e agora que saíra da cadeia, não podia haver a menor dúvida de que voltara a comê-la. A garota tinha um péssimo gosto. Se Brad fosse condenado por pedofilia, seria uma publicidade negativa para a empresa. Mesmo assim, Rick torcia para que isso acontecesse. A droga maravilhosa de Josh Winkler aparentemente estava matando as pessoas. Josh assumira um risco ao realizar testes não-autorizados com seres humanos; mas se ele fosse preso, isso também teria um péssimo reflexo sobre a companhia.

Rick cutucava a filha com a colher quando o telefone tocou. E a situação se tornou ainda pior, muito pior.

- Fílho-da-puta!

Rick Diehl virou as costas aos monitores da segurança.

- Não posso acreditar!

Nas telas, o odiado Brad Gordon usava seu cartão magnético para abrir as portas dos laboratórios, tocar em placas de Petri por toda parte e seguir adiante. Brad fora filmado ao entrar metodíca-mente em todos os laboratórios do prédio. Rick cerrou os punhos.

- Ele entrou no prédio à uma hora da madrugada — informou o chefe de segurança interino. — Devia ter um segundo cartão magnético que ignorávamos, porque o principal foi desativado. Esteve em todos os pontos de armazenamento e contaminou todas as culturas da linhagem de células Burnet.

- Ele é um filho-da-puta, mas não há problema - disse Rick Diehl. - Ainda temos amostras guardadas longe daqui, em San José, Londres e Cingapura.

- Essas amostras foram removidas ontem. Alguém esteve nos locais de armazenamento e levou as linhagens de células. As pessoas tinham com elas as devidas autorizações. E os códigos eletrônicos de segurança certos.

— Quem autorizou?

— Você mesmo. A autorização saiu de seu site de segurança.

— Essa não! — Rick virou-se bruscamente. - Como isso aconteceu?

— Estamos trabalhando para descobrir.

— Mas a linhagem de células... temos outros locais...

— Infelizmente, parece que todos...

— Mas também temos clientes que arrendaram...

— Lamento, mas não temos mais.

— O que está querendo dizer? — Rick começava a gritar. — Que toda a cultura Burnet desapareceu? Que não resta mais porra nenhuma no mundo inteiro?

— Até onde sabemos, é isso mesmo.

— Mas isso é um desastre terrível!

— Evidentemente.

— Pode ser o fim da minha empresa. Essas células eram a nossa rede de segurança. Pagamos uma fortuna à UCLA para obtê-las. Está me dizendo que perdemos tudo? — Rick franziu o rosto, furioso, enquanto a realidade o atingia. — Isto é um ataque organizado e coordenado contra a minha empresa. Tinham agentes em Londres e Cingapura; combinaram tudo.

— Achamos que foi isso mesmo.

— Para destruir minha empresa.

— Possivelmente.

— Preciso recuperar aquelas linhagens de células. Agora.

— Ninguém mais as tem. Exceto, é claro, Frank Burnet.

— Pois então vá buscar Burnet.

— Infelizmente, parece que o Sr. Burnet também desapareceu. Não conseguimos localizá-lo.

— É demais... - Rick virou-se e gritou para seu assistente: — Chame os advogados. Chame o pessoal da porra da UCLA. Quero todo mundo aqui às oito horas desta noite!

— Não sei se...

— Faça o que estou mandando!


 

Gail Bond entrou numa rotina. Passava as noites com Yoshi, voltava para casa às seis horas, a tempo de acordar Evan, preparar o café da manhã e levá-lo para a escola. Uma manhã, descobriu que Gerard havia desaparecido assim que abriu a porta. Sua gaiola estava descoberta no corredor, o poleiro vazio. Gail ficou furiosa. Foi direto para o quarto, onde Richard ainda dormia. Sacudiu-o para acordá-lo.

— Richard, onde está Gerard? Ele bocejou.

— Como?

— Gerard... onde está Gerard?

— Infelizmente, ocorreu um acidente.

— Que acidente? O que você fez?

— A gaiola estava sendo limpa na cozinha, com a janela aberta. Ele saiu voando.

— Impossível. Gerard tinha as asas cortadas.

— Sei disso - murmurou Richard, bocejando de novo.

— Ele não saiu voando.

— Tudo o que posso lhe contar é que ouvi Nadezhda gritar. Corri para a cozinha. Ela apontou para a janela. Quando olhei, o papagaio batia as asas meio desajeitado para chegar lá embaixo. Claro que desci pela escada o mais depressa que pude, mas ele já havia desaparecido quando cheguei na rua.

O desgraçado fazia um esforço para não sorrir.

— O caso é muito grave, Richard. Gerard é um animal transgênico. Se escapar, pode transmitir seus genes para outros papagaios.

— Estou dizendo que foi um acidente.

— Onde está Nadezhda?

— Ela só entra ao meio-dia. Pensei em despedi-la.

— Ela tem um celular?

— Foi você quem a contratou, queridinha.

— Não me chame de queridinha. Não sei o que você fez com aquele papagaio, mas quero que saiba que o caso é muito grave, Richard.

Ele deu de ombros.

— Não sei o que dizer.

Claro que isso arruinava todos os planos de Gail. Planejavam divulgar o experimento online no mês seguinte. Era inevitável que houvesse protestos do mundo inteiro de que suas alegações eram inverídicas. Muitos cientistas diriam que não passava do efeito de Clever Hans, mera imitação. Só Deus sabia o que mais haveria. Todos exigiriam uma apresentação do papagaio. Só que Gerard havia desaparecido.

— Sou capaz de matar Richard - comentou ela para Maurice, o diretor do laboratório.

— E eu contrataria o melhor avocat para defendê-la - declarou ele, sem sorrir. — Acha que seu marido sabe onde está o papagaio?

— Provavelmente. Mas ele nunca me dirá. Odiava Gerard.

— Tiveram uma briga de custódia por um papagaio.

— Vou conversar com Nadezhda. Mas é provável que ele a tenha subornado.

— O papagaio sabia seu nome? O nome do laboratório? Os números de telefones?

— Não. Mas ele memorizou os sons de tones do meu celular. Costumava emiti-los como uma seqüência.

— Então é possível que um dia ele ligue para nós. Gail suspirou.

— Talvez.


 

Alex Burnet estava no meio do julgamento mais difícil de sua carreira, um caso de estupro, envolvendo uma agressão sexual a um menino de dois anos, em Malibu. O réu, Mick Crowley, de 38 anos, era um colunista político baseado em Washington. Visitava a cunhada quando experimentara um impulso irresistível de fazer sexo anal com o filho dela, um menino que ainda usava fralda. Crowley era formado em Yale, rico e mimado, herdeiro de uma fortuna farmacêutica. Contratara um notório advogado de Washington, Abe Ganzler, para defendê-lo.

O gosto de Crowley nas relações amorosas era bem conhecido em Washington, mas Ganzler — como costumava fazer — divulgara o caso com toda a veemência, pela imprensa, nos meses anteriores ao início do julgamento, caracterizando Alex e a mãe da criança como "feministas fundamentalistas fantasiosas", que haviam inventado toda a história, com "suas imaginações doentias e distorcidas". Isso apesar de um exame bem documentado do menino no hospital (o pênis de Crowley era pequeno, mas, mesmo assim, causara graves lacerações no reto do menino).

Foi no meio dos preparativos frenéticos para o terceiro dia do julgamento que Amy, a assistente de Alex, avisou-lhe que o pai estava no telefone. Alex atendeu.

- Estou muito ocupada, papai.

- Não vou tomar seu tempo. Só queria avisar que vou viajar por duas ou três semanas.

- Está bem.

Um dos outros advogados entrou na sala e largou os últimos jornais na mesa de Alex. O Star publicava fotos do menino estuprado e do hospital em Malibu. Também havia fotos pouco lisonjeiras de Alex e da mãe do menino, os olhos contraídos, ao sol forte.

— Para onde vai, papai?

— Ainda não sei. Mas preciso passar algum tempo sozinho. Provavelmente irei para algum lugar em que o celular não funcione. Mandarei um bilhete quando chegar. E um endereço, caso precise se comunicar comigo.

— Está bem, papai. Divirta-se.

Alex folheava o Los Angeles Times enquanto conversava com o pai. Havia anos que o Times lutava pelo direito de acesso e divulgação de todos os documentos judiciais, por mais preliminares, particulares ou especulativos que fossem. Os juizes da Califórnia demonstravam uma extrema relutância em considerar segredo de justiça até mesmo os documentos que envolviam os endereços residenciais de mulheres sendo assediadas e os detalhes anatômicos de crianças estupradas. A política do Times de publicar tudo também significava que os advogados podiam fazer alegações grosseiras e infundadas nas petições antes do julgamento, sabendo que sairiam no jornal. Era o que invariavelmente acontecia. O público tinha o direito de saber. Era mesmo verdade que o público precisava saber da extensão da laceração no reto do menino...

— Você está bem? — perguntou o pai.

— Estou, sim, papai.

— Eles não a estão atormentando?

— Não. Espero pela ajuda das organizações que defendem o bem-estar das crianças, mas elas ainda não divulgaram nenhuma declaração. Um estranho silêncio.

— E tenho certeza de que isso a deixa chocada. O canalha é politicamente correto, não é mesmo? Um tarado asqueroso. Tenho de desligar agora, Lexie.

— Até a volta, papai.

Alex voltou a se concentrar no julgamento. Os resultados do exame de DNA deveriam chegar hoje. As amostras obtidas haviam sido mínimas, e ela estava preocupada.


 

As luzes diminuíram suavemente na suntuosa sala de apresentação da Selat, Anney, Koss Ltd., a importante agência de propaganda de Londres. Na tela, surgiu a imagem de uma rua comercial americana, muitos carros, meio desfocados, passando pela frente de placas e cartazes. Gavin Koss sabia, por experiência pessoal, que aquela imagem tinha a função imediata de promover uma aproximação entre os espectadores. Qualquer coisa que fosse uma crítica à América era infalível.

- As empresas americanas gastam mais em propaganda do que as de qualquer outro país do mundo — disse Koss. — Claro que têm de fazer isso, ao se considerar a qualidade dos produtos americanos...

Risadinhas soaram na escuridão.

- E a inteligência das audiências americanas... Risos contidos.

- Como um de nossos colunistas ressaltou recentemente, a grande maioria dos americanos não é capaz de encontrar o próprio traseiro com as duas mãos.

Gargalhadas ostensivas. Serviam como aquecimento.

- Um povo rude e sem cultura, dando tapinhas nas costas uns dos outros enquanto afundam cada vez mais em dívidas.

Isso deveria ser o suficiente, pensou Koss. Era o momento de mudar de tom.

- Mas desejo chamar a atenção de vocês para o incrível volume de mensagens comerciais, como podem ver aqui, nos cartazes e placas ao longo desta rua. E cada veículo tem o rádio ligado, transmitindo mais mensagens. Calcula-se que os americanos escutem três mil mensagens comerciais todos os dias... ou não escutem, o que é mais provável. Psicólogos têm determinado que a quantidade de mensagens cria uma espécie de anestesia, que se torna arraigada ao longo do tempo. Num ambiente saturado pela mídia, todas as mensagens perdem impacto.

A imagem mudou para Times Square à noite, depois Shinjuku em Tóquio, e Piccadilly em Londres.

- A saturação hoje é global. Mensagens imensas, inclusive em gigantescas telas de vídeo, aparecem nas praças públicas, ao longo de ruas e estradas, nas estações do metrô, nas estações ferroviárias. Temos vídeos em pontos de venda nas lojas de varejo. Em banheiros, salas de espera, bares e restaurantes. Nas salas de espera dos aeroportos e a bordo dos aviões.

"Além disso, invadimos os espaços pessoais. Logotipos, marcas registradas e slogans aparecem em objetos da vida cotidiana, de facas a louça e computadores. Aparecem em todos os nossos objetos pessoais. Os consumidores usam logotipos em roupas, bolsas, sapatos, jóias. É raro que uma pessoa se apresente em público sem isso. Há trinta anos, se alguém previsse que todo o público global se transformaria em outdoor ambulante, anunciando produtos, a perspectiva pareceria fantástica. Mas aconteceu.

"O resultado é um excesso de imagens, exaustão sensorial e uma redução do impacto. O que podemos fazer agora? Como podemos avançar para a nova era da tecnologia? A resposta pode parecer herética, mas é esta"

A tela mudou de uma maneira dramática, para uma imagem de floresta. Árvores enormes projetando-se para o céu, com sombras embaixo. Em seguida, o pico nevado de uma montanha. Uma ilha tropical, um arco de areia branca, água transparente, palmeiras. E, finalmente, um recife debaixo d'água, com peixes nadando entre corais e esponjas.

— O mundo natural está totalmente desprovido de propaganda - continuou Koss. - O mundo natural ainda precisa ser domado. Colonizado pelo comércio. Permanece virgem.

Alguém indagou da escuridão:

- E não é assim que deve ser?

— A sabedoria convencional diria que sim. Mas a sabedoria convencional está invariavelmente desatualizada. Porque no tempo necessário para se tornar convencional... para se tornar o que todos acreditam... o mundo já seguiu adiante. A sabedoria convencional é um resquício do passado. E o que acontece neste caso.

Na tela, a cena no recife mudou subitamente. As ramificações de coral tinham letras em que se lia BP CLEAN. Um cardume de peixes pequenos passou, cada um piscando VODAFONE, VODAFONE. Um tubarão apareceu, com a palavra CADBURY inscrita no focinho. Um baiacu com LLOYDS TSB GROUP em letras pretas nadou sobre os corais, que exibiam na parte superior as palavras SCOTTISH POWER, em laranja. E, finalmente, uma moréia saiu de sua toca. Na pele esverdeada podia-se ler MARKS SPENCER.

— Pensem nas possibilidades — acrescentou Koss.

A audiência estava aturdida... como ele esperava. E continuou a apresentação.

A tela mostrava, agora, uma cena de deserto, com torres de rocha vermelha erguendo-se contra um céu azul, povoado por nuvens. Depois de um momento, as nuvens se juntaram numa única e vasta nuvem, pairando sobre a paisagem, formando as palavras:

BP MEANS CLEAN POWER.

- Essas letras têm trezentos metros de altura — informou Koss. - Estão quatrocentos metros acima da paisagem. São visíveis a olho nu e saem nítidas em fotos. Ao pôr-do-sol, ficam muito bonitas.

A imagem mudou.

- Podem ver agora a aparência à medida que o sol desce para o horizonte... as letras passam de branco para rosa, vermelho, e, finalmente, um índigo profundo. Portanto, possui a qualidade e a impressão de ser um elemento natural dentro da paisagem natural.

Ele voltou à imagem original da nuvem, à luz do dia.

— Essas letras são formadas por uma união de nanopartículas e bactérias clostridium perfringens geneticamente modificadas. Na verdade, a imagem é um nanoenxame. Permanecerá visível no ar por um prazo variável, dependendo das condições... como acontece com qualquer nuvem. Pode se manter apenas por uns poucos minutos. Em outras ocasiões, talvez dure uma hora. Pode aparecer em várias... Na tela, as nuvens tornaram-se o slogan da BP, estendendo-se até o horizonte.

— Creio que todos reconhecerão o impacto desse novo meio de comunicação. O meio natural.

Ele esperava aplausos espontâneos por esse visual dramático, mas havia apenas silêncio na escuridão. Com certeza, porém já deveriam estar demonstrando alguma reação a esta altura. Um anúncio repetido infinitamente, pairando no céu? Isso não podia deixar de animá-los.

— Mas essas nuvens são um caso especial - disse Koss.

Ele voltou à imagem submarina, os peixes deslocando-se pelo recife de coral.

— Neste caso, as imagens são geradas pelas próprias criaturas vivas, por meio de modificações genéticas diretas de cada espécie. Para captar esse novo meio, a rapidez é de extrema importância. Chamamos isso de propaganda genômica. Há apenas uma quantidade limitada de peixes de recife comuns em águas turísticas. Alguns peixes são mais incandescentes do que outros. Muitos são um tanto insossos. Por isso, queremos escolher os melhores. E as modificações genéticas exigirão uma patente do animal marinho em cada caso. Teremos patentes do tubarão da Cadbury, do coral da British Petroleum, da moréia da Marks Spencer, do anjo-do-mar do Bank of Scotland, e da arraia jamanta da British Airways, deslizando silenciosamente lá em cima.

Koss limpou a garganta e acrescentou:

— A rapidez é importante porque estamos entrando numa situação competitiva. Queremos nosso tubarão da Cadbury nadando por aí antes de ser patenteado pela Hersheys ou pelo McDonalds. E queremos uma criatura forte, já que o tubarão da Cadbury vai competir contra os tubarões comuns, e esperamos que prevaleça. Quanto mais bem-sucedido nosso peixe patenteado, com mais freqüência nossa mensagem será vista, e mais depressa o peixe original, sem mensagem, será levado à extinção. Estamos ingressando na era da propaganda darwinista! Que vença o melhor!

Uma tosse na audiência.

- Gavin, perdoe-me por dizê-lo, mas isso parece ser um pesadelo ecológico. Nomes e logotipos em peixes? Slogans em nuvens? E o que mais? Rinocerontes da África com o logotipo do Land Rover? Se começar a fazer isso com as espécies animais, todos os ambientalistas do mundo vão se opor a você.

- Isso não vai acontecer, porque não estamos sugerindo que as empresas marquem as espécies. Estamos pedindo que as empresas patrocinem as espécies. Como um serviço público.

Koss fez uma pausa.

- Pensem em quantas exposições de museus, companhias de teatro e orquestras sinfônicas são totalmente dependentes do patrocínio de empresas. Até mesmo trechos de estradas são patrocinados hoje em dia. Por que o mesmo espírito filantrópico não poderia ser dedicado ao mundo natural... e isso, com toda certeza, não beneficiaria muito mais do que as estradas? As espécies em risco de extinção atrairiam os patrocinadores. As empresas podem empenhar sua reputação na sobrevivência de espécies animais, como outrora a ligavam aos mais chatos programas de televisão. E o mesmo acontece com outros animais que ainda não estão correndo perigo. Para todos os peixes no mar. Estamos falando numa época de magnífica filantropia empresarial... numa escala global.

- Ou seja, este é o rinoceronte preto, oferecido a você pela Land Rover? O jaguar oferecido pela Jaguar?

- Eu não diria de maneira tão tosca, mas é isso mesmo o que estamos propondo. O importante é que se trata de uma situação em que todos saem ganhando. Ganha o meio ambiente. Ganham as empresas. E ganha a propaganda.

Gavin Koss já fizera centenas de apresentações em sua carreira. A reação da audiência nunca lhe escapara. E podia sentir agora que aquele grupo não estava comprando sua idéia. Estava na hora de acender as luzes e responder às perguntas. Ele olhou para as fileiras de rostos franzidos.

— Admito que minha proposta é radical. Mas o mundo está mudando muito depressa. Alguém fará isso. Essa colonização da natureza é inevitável... a única questão é quem vai assumir a vanguarda. Recomendo que considerem esta oportunidade com a maior atenção. Depois, decidam se querem participar.

Nos fundos da sala, Garth Baker, diretor da Midlands Media Associates Ltd., levantou-se.

— É uma idéia bastante nova, Gavin. Mas devo lhe dizer, com toda a segurança, que não vai dar certo.

— É mesmo? E por que não?

— Porque alguém já fez isso.

 

Não havia lua ou qualquer som, exceto o barulho das ondas na escuridão e o gemido do vento úmido. A praia de Tortuguero estendia-se por quase dois quilômetros, ao longo da agitada costa atlântica de Costa Rica, mas naquela noite não era mais do que uma faixa escura e estreita, que se fundia com o céu negro e estrelado. Júlio Manarez parou por um instante, esperando que os olhos se ajustassem à escuridão. Um homem consegue ver à luz das estrelas, se esperar algum tempo.

Não demorou muito para que ele pudesse divisar os troncos das palmeiras e os detritos espalhados pela areia escura, os arbustos açoitados pelo vento que soprava do mar. Podia avistar as cristas brancas das ondas no mar agitado. Sabia que os tubarões rondavam por ali. Aquele trecho da costa do Atlântico era deserto e inóspito.

A menos de meio quilômetro de distância, ele avistou Manuel, um vulto escuro, acocorado ao lado do manguezal. Ele estava se abrigando do vento. Não havia mais ninguém na praia.

Júlio seguiu em sua direção, passando pelos buracos profundos escavados pelas tartarugas nos dias anteriores. Aquela praia era uma das áreas de reprodução das tartarugas-de-couro, que saíam do mar na escuridão para pôr seus ovos. O processo durava grande parte da noite, e as tartarugas se tornavam vulneráveis: no passado, para os pescadores ilegais, e agora para os jaguares que vagueavam pela praia, tão escuros quanto a própria noite. Como recém-designado supervisor de proteção ecológica daquela área, Júlio sabia que tartarugas eram mortas todos os dias ao longo daquela costa.

Os turistas ajudavam a evitar que isso acontecesse; se havia turistas andando pela praia, os jaguares mantinham-se a distância. Mas os jaguares preferiam aparecer depois de meia-noite, quando os turistas já haviam voltado para seus hotéis.

Era possível imaginar uma pressão de seleção evolucionária produzindo alguma defesa contra o jaguar. Quando estava na escola, em San Juan, ele e os outros estudantes costumavam gracejar a respeito. Os turistas eram agentes da evolução? Se os turistas mudavam tudo num país, por que não mudariam também sua vida selvagem? Porque se uma tartaruga possuísse alguma qualidade — talvez uma tolerância para lanternas, ou a capacidade de produzir um som maternal, queixoso e angustiado - se tivesse alguma coisa que atraísse os turistas e os trouxesse para a praia à noite, então teria mais probabilidade de sobreviver, seus ovos teriam mais probabilidade de sobreviverem, e os filhotes teriam mais probabilidade de sobreviverem.

A sobrevivência diferencial que resultava de ser uma atração turística. Essa era a piada na escola. O que era uma possibilidade teórica. E, se fosse verdade o que Manuel dissera...

Manuel percebeu-o, e acenou. Levantou-se quando Júlio se aproximou.

— Por aqui - disse ele, começando a descer pela praia.

— Encontrou mais de uma esta noite?

— Apenas uma. Do tipo que eu falei.

— Muy bien.

Desceram pela praia em silêncio. Não haviam ido muito longe - talvez cerca de cem metros — quando Júlio avistou o tênue brilho púrpura na areia, pulsando ligeiramente.

— É aquilo?

— É, sim — confirmou Manuel.

Era uma fêmea, pesando cerca de cem quilos, com um metro e um quarto de comprimento. Tinha as placas características, mais ou menos do tamanho de sua palma. Marrom, com manchas pretas. Estava meio enterrada na areia, escavando um buraco por trás, com as nadadeiras.

Júlio parou ao lado para observar.

— Começa e pára de repente — explicou Manuel.

E foi então que começou de novo. Um brilho púrpura que parecia emanar do interior das placas individuais do casco. Algumas placas não tinham o brilho e eram escuras. Algumas luziam ocasionalmente. Outras brilhavam a intervalos regulares. Cada pulsação parecia durar cerca de um segundo, aumentando depressa, para se desvanecer devagar.

— Quantas tartarugas assim você já viu? - perguntou Júlio.

— Esta é a terceira.

— E este brilho mantém os jaguares à distância?

Ele continuou a observar a suave pulsação. Sentiu que a qualidade do brilho era estranhamente familiar. Quase como um vaga-lume. Ou uma bactéria luminosa numa onda. Alguma coisa que já vira antes.

— Isso mesmo. Os jaguares não se aproximam.

— Espere um instante. O que é isto?

Júlio apontou para o casco, onde surgia um padrão de placas claras e escuras.

— Só acontece de vez em quando.

— Mas você também vê?

— Claro.

— Parece um hexágono.

— Não sei...

— Mas não acha que parece um símbolo? De uma empresa?

— Talvez sim. É possível.

— O que me diz das outras tartarugas? Apresentam esse mesmo padrão?

— Não. Cada uma é diferente.

— Portanto, isso pode ser um padrão aleatório, que apenas por acaso parece com um hexágono?

— Creio que sim, Júlio. Porque a imagem que você vê no casco não é muito boa, não é simétrica...

Enquanto ele falava, a imagem desapareceu. A tartaruga voltou a ficar escura.

— Pode fotografar este padrão?

— Já fotografei. Foi uma exposição de tempo, sem flash, o que significa que pode haver pouca definição. Mas tenho a foto.

— Ainda bem - murmurou Júlio. — Porque isto é uma mutação genética. Vamos examinar o registro de visitantes para descobrir quem pode ter sido o responsável.


 

- Josh?

Era sua mãe no telefone.

— Sou eu, mamãe.

— Achei que você deveria saber. Lembra do filho de Lois Graham, Eric, que era viciado em heroína? Aconteceu uma terrível tragédia. Ele morreu.

Josh deixou escapar um longo suspiro. Recostou-se na cadeira e fechou os olhos.

— Como?

— Num acidente de carro. Mas depois fizeram a autópsia, ou algo parecido. Eric sofreu um infarto fulminante. E tinha apenas 21 anos, Josh.

— Isso é comum na família? Algum problema congênito?

— Não. O pai de Eric reside na Suíça; tem 64 anos. É alpinista. E Lois tem uma ótima saúde. Claro que ela está arrasada. Todos nós estamos arrasados.

Josh não disse nada.

— Tudo corria muito bem para Eric. Livrara-se das drogas, arrumara um emprego, planejava voltar à universidade no outono... o único problema era que estava ficando careca. As pessoas pensavam que ele havia feito quimioterapia. Perdera a maior parte dos cabelos. E andava encurvado. Josh? Ainda está me ouvindo?

— Estou.

— Eu o vi na semana passada. Ele parecia um velho. Josh ficou calado.

— A família está fazendo um velório. Você deveria ir.

— Tentarei.

— Seu irmão também parece um velho, Josh.

— Eu sei.

— Tentei dizer a ele que o pai também era assim. Para animá-lo. Mas Adam parece mesmo muito velho.

— Eu sei.

— O que está acontecendo, Josh? O que você fez com ele?

— O que eu fiz?

— Isso mesmo, Josh. Deu algum gene para essas pessoas. Ou outra coisa que havia naquele spray. E as pessoas estão envelhecendo.

— Mamãe, foi o próprio Adam quem tomou a iniciativa. Aspirou o spray porque pensou que era alguma droga que o levaria numa viagem. Eu não estava nem presente na ocasião. E você me pediu para aplicar o spray no filho de Lois Graham.

— Não sei como pode pensar tal coisa.

— Você me telefonou.

— Está dizendo coisas absurdas, Josh. Por que eu telefonaria para você? Não sei nada sobre seu trabalho. Foi você quem me ligou e perguntou onde poderia encontrar Eric. E me pediu para não dizer nada à mãe dele. É isso o que lembro.

Josh não disse nada. Comprimiu as pontas dos dedos contra os olhos fechados, até surgirem pontos de luz. Queria escapar. Queria deixar a sala, deixar a empresa. Queria que nada daquilo fosse verdade.

— Mamãe, isso pode ser muito grave.

Josh estava pensando que poderia acabar na cadeia.

— Claro que é grave. Estou assustada agora, Josh. O que vai acontecer? Perderei meu filho?

— Não sei, mamãe. Espero que não.

— Acho que há uma chance. Liguei para os Levine, em Scarsdale. Os dois já são velhos. Passaram dos sessenta anos. E parecem estar muito bem. Helen me disse que nunca se sentiu melhor. E George não se cansa de jogar golfe.

— Isso é ótimo.

— Portanto, talvez eles estejam bem.

— É possível.

— Neste caso, talvez Adam também fique bem.

— Espero que sim, mamãe.

Josh desligou. Claro que os Levine estavam bem. Mandara apenas a solução salina esterilizada nos tubos de spray. Eles não haviam recebido o gene. Josh concluíra que não podia correr o risco de enviar genes experimentais para pessoas em Nova York que não conhecia.

E se isso proporcionava alguma esperança à mãe, muito bem. Era melhor manter assim.

Porque Josh não tinha muita esperança naquele momento. Não pelo irmão. E, em última análise, nem por si mesmo.

Teria de contar tudo a Rick Diehl. Mas não agora. Não por enquanto.

 

O marido de Gail Bond, Richard, que era um corretor de investimentos, muitas vezes trabalhava até tarde, recebendo clientes importantes. E nenhum era mais importante do que o americano sentado à sua frente, no outro lado da mesa, naquele momento: Barton Williams, o famoso investidor de Cleveland.

— Quer fazer uma surpresa para sua esposa, Barton? — perguntou Richard Bond. — Creio que tenho o que procura.

Curvado sobre a mesa de jantar, Williams levantou os olhos para fitá-lo, apenas com um interesse mínimo. Barton Williams, aos 75 anos, parecia bastante com um sapo. Tinha uma papada e bochechas caídas, enormes poros no rosto, o nariz largo e achatado, os olhos esbugalhados. O hábito de pôr os braços em cima da mesa e encostar o queixo nos dedos tornava-o ainda mais parecido com um sapo. Na verdade, ele descansava um pescoço artrítico, já que detestava usar um colete. Achava que fazia com que parecesse mais velho.

Pelo que Richard Bond se importava, ele podia até deitar na mesa. Williams era bastante velho e bastante rico para fazer qualquer coisa que quisesse... e o que ele sempre quisera, ao longo de toda a sua vida, fora mulheres. Apesar da idade e da aparência, continuava a tê-las, em quantidades prodigiosas, em todos os momentos do dia. Richard providenciara para que várias mulheres passassem pela mesa ao final da refeição. Seriam integrantes de sua equipe, trazendo documentos. Ou antigas namoradas, apresentando-se para um beijo e uma apresentação. Umas poucas seriam outras comensais, admiradoras do grande investidor, tão deslumbradas que queriam conhecê-lo.

Nada disso enganava Barton Williams, mas divertia-o. Esperava mesmo que seus associados nos negócios se esforçassem um pouco para agradá-lo. Quando você valia dez bilhões de dólares, as pessoas tinham mesmo de se empenhar para mantê-lo feliz. Era assim que funcionava. E ele considerava um tributo devido.

Naquele momento em particular, no entanto, Barton Williams queria, mais do que qualquer outra coisa, apaziguar a esposa, com quem era casado havia quarenta anos. Por razões inexplicáveis, Evelyn, aos sessenta anos de idade, sentia-se subitamente insatisfeita com o casamento e com as intermináveis escapadas de Barton, como ela as chamava. Um presente ajudaria.

— Mas teria de ser muito bom - disse Barton. — Ela está acostumada a tudo. Villas na França, iates na Sardenha, jóias de Winston, chefs trazidos de avião de Roma para o aniversário de seu cachorro. Esse é o problema. Não posso mais comprá-la. Ela tem sessenta anos e sente-se entediada.

— Prometo que este presente é único no mundo — declarou Richard. — Sua esposa adora animais, não é mesmo?

— Ela tem um zoológico particular em casa.

— Inclusive aves?

— Deve haver uma centena delas. Temos pintassilgos no solário. Cantam o dia inteiro. Ela faz criação.

— Também tem papagaios?

— De todos os tipos. Nenhum fala, graças a Deus. Ela nunca teve muita sorte com papagaios.

— Pois a sorte dela está prestes a mudar. Barton suspirou.

— Ela não vai querer outro papagaio.

— Garanto que vai querer este. É o único de sua espécie no mundo.

— Partirei amanhã, às seis horas da manhã.

— Estará à espera em seu avião.

 

Rob Belarmino sorriu, tranqüilizador.

— Apenas ignorem as câmeras — disse ele às crianças. Estavam na biblioteca da George Washington High School, em Silver Spring, Maryland. Havia três semicírculos de cadeiras em torno de uma cadeira central, onde o Dr. Bellarmino sentava, enquanto falava para os estudantes sobre as questões éticas da genética.

O pessoal da TV tinha três câmeras ligadas, uma nos fundos da sala, outra no lado, perto de Bellarmino, e uma terceira virada para os estudantes, a fim de registrar suas expressões de fascínio ao ouvirem o relato da vida de um geneticista do Instituto Nacional de Saúde. Segundo o produtor do programa, era importante mostrar a interação de Bellarmino com a comunidade. Ele não poderia concordar mais. Os estudantes haviam sido especialmente escolhidos por serem inteligentes e informados.

Ele achava que seria divertido.

Falou sobre sua vida e formação durante alguns minutos, e depois se ofereceu para responder a perguntas. A primeira, formulada por uma jovem asiática, o fez hesitar:

— Dr. Bellarmino, qual é sua opinião sobre aquela mulher do Texas que clonou o gato morto?

Na verdade, Bellarmino achava que toda aquela história do gato morto era ridícula, que diminuía a importância do trabalho que ele e outros vinham realizando. Mas não podia dizer isso.

— Trata-se de uma situação emocional difícil, é claro — comentou Bellarmino, diplomático. — Todos nós gostamos de nossos animais de estimação, mas...

Ele hesitou por um instante.

- Esse trabalho foi realizado por uma empresa da Califórnia chamada Genetic Savings and Clone. Pelo que foi divulgado, o custo chegou a cinqüenta mil dólares.

- Acha que é ético clonar um gato morto? - indagou a jovem.

- Como sabe, vários animais já foram clonados, inclusive ovelhas, ratos, cachorros e gatos. Portanto, não é mais uma coisa extraordinária... Uma preocupação é que o animal clonado não tenha a mesma expectativa de vida de um animal normal.

Outro estudante interveio:

- É ético pagar cinqüenta mil dólares para clonar um animal de estimação quando há tantas pessoas morrendo de fome no mundo?

Bellarmino soltou um gemido interior. Como poderia mudar de assunto?

- Não tenho o menor entusiasmo por esse procedimento, mas não chegaria ao ponto de considerá-lo antiético.

- Não é antiético porque cria um clima de normalidade para clonar um ser humano?

- Não creio que clonar um animal de estimação tenha qualquer efeito sobre as questões relacionadas com a clonagem humana.

- Seria ético clonar um ser humano?

- Felizmente, essa questão ainda se situa num futuro distante - declarou Bellarmino. — Hoje, espero podermos considerar questões contemporâneas reais. Temos pessoas que manifestam preocupação pelos alimentos geneticamente modificados; e também com a terapia genética e as células-tronco. Essas são questões reais. Alguns de vocês partilham essas preocupações?

Um rapaz no fundo da sala ergueu a mão.

- Pois não?

- Acha possível clonar um ser humano?

- É, sim, é possível. Não agora, mas um dia será.

- Quando?

- Não gostaria de dar um palpite. Há perguntas sobre outro assunto? — Outra mão foi levantada. - Pois não?

- Em sua opinião, a clonagem humana é antiética?

Bellarmino tornou a hesitar. Sabia que sua resposta seria transmitida pela televisão. E quem poderia saber como a rede editaria seus comentários? Era bem provável que fizessem tudo para projetá-lo da pior maneira possível. Os repórteres tinham um preconceito incontestável contra as pessoas de fé. E suas palavras também teriam um peso profissional, já que ele dirigia uma divisão do Instituto Nacional de Saúde.

— Vocês já devem ter ouvido muita coisa sobre clonagem, e a maior parte é inverídica. Como cientista, devo admitir que não vejo nada de inerentemente errado na clonagem. Não vejo uma questão moral. É apenas outro procedimento genético. Já fizemos isso com diversos animais, como mencionei. Mas também sei que o procedimento de clonagem tem um alto índice de fracasso. Muitos animais morrem antes que um seja clonado com sucesso. É claro que isso seria inaceitável para seres humanos. Assim, por enquanto, considero a clonagem humana como um não-problema.

— Clonar não é bancar Deus?

— Pessoalmente, não definiria a questão dessa maneira. Se Deus criou os seres humanos e o resto do mundo, então é evidente que Deus criou os instrumentos da engenharia genética. Portanto, nesse sentido, Deus já criou a modificação genética disponível. Isso é uma obra de Deus, não do homem. E, como sempre, cabe a nós usar de maneira sensata o que Deus nos concedeu.

Bellarmino sentiu-se melhor depois disso; era uma das respostas que tinha em seu estoque.

— Acha então que a clonagem é um uso sensato do que Deus nos concedeu?

Contra todos os seus instintos, ele limpou a testa com a manga do paletó. Torceu para que essa cena não entrasse no ar, mas tinha certeza de que seria usada. Estudantes fazem suar o diretor do Instituto Nacional de Saúde.

— Algumas pessoas acham que sabem quais são as intenções de Deus. Mas não creio que eu saiba. E não creio que qualquer pessoa saiba. Só Deus sabe. Estou convencido de que qualquer pessoa que diz que sabe quais são os desígnios de Deus está demonstrando um ego muito humano.

Ele queria olhar para o relógio, mas não o fez. Os estudantes exibiam expressões irônicas, não extasiadas, como ele esperava.

— Há uma ampla variedade de questões genéticas — disse ele. — Vamos seguir adiante.

— Dr. Bellarmino, eu queria perguntar sobre o transtorno da personalidade anti-social — disse um garoto à esquerda. — Li que há um gene para isso, associado com violência e crime, com o comportamento sociopático...

— É verdade. O gene aparece em cerca de dois por cento da população mundial.

— O que pode dizer sobre a Nova Zelândia? Está em trinta por cento da população branca do país e sessenta por cento da população maori...

— Esse dado foi divulgado, mas é preciso ser cauteloso...

— Mas isso não significa que a violência é hereditária? Não deveríamos tentar nos livrar desse gene, da maneira como nos livramos da varíola?

Bellarmino fez uma pausa. Começava a especular quantos daqueles estudantes tinham pais que trabalhavam em Bethesda. Não pensara em perguntar antes os nomes dos estudantes. Mas aquelas perguntas eram muito bem informadas e implacáveis. Um de seus muitos inimigos tentava desacreditá-lo por intermédio daquelas crianças? Toda a rede planejara uma armadilha para fazê-lo parecer o pior? O primeiro passo para afastá-lo do Instituto Nacional de Saúde? Estavam na era da informação; assim se faziam as coisas hoje em dia. Dê um jeito para que o outro pareça mal, pareça fraco. Pressione-o para dizer alguma coisa absurda, e depois observe as palavras serem repetidas durante as 48 horas seguintes em todos os noticiários e em todas as colunas de jornal. Em seguida, os congressistas convocam a pessoa para se retratar. Murmúrios desolados, cabeças balançando... Como ele pode ser tão insensível? Estava mesmo à altura do cargo? Não era um risco para tanta responsabilidade?

E, depois, a pessoa caía fora.

Era assim que se fazia hoje em dia.

Agora, Bellarmino se defrontava com uma pergunta perigosa sobre a genética dos maoris. Deveria dizer o que realmente acreditava, e correr o risco de ser acusado de denegrir uma minoria étnica oprimida? Suavizava seus comentários, mas, ainda assim, corria o risco de defender a eugenia? Como podia dizer qualquer coisa?

Ele decidiu que não podia.

— Essa é uma área de pesquisa muito interessante, mas ainda não temos dados suficientes para responder. Próxima pergunta?

 

Chovera durante o dia inteiro no sul da Sumatra. O solo da selva estava encharcado, as folhas molhadas. Tudo estava molhado. As equipes de televisão do mundo inteiro já haviam sido transferidas para outras missões, fazia muito tempo. Hagar voltara agora com apenas um cliente: um homem chamado Gorevitch. Era um famoso fotógrafo da vida selvagem, que viera de avião da Tanzânia.

Gorevitch instalou-se debaixo de um enorme ficus, abriu uma mochila de lona e tirou um trançado de nylon, parecido com uma rede. Estendeu-o no chão com todo o cuidado. Em seguida, pegou uma caixa de metal, abriu-a e montou um rifle.

— Sabe que isso é ilegal — disse Hagar. - Estamos numa reserva.

— É mesmo?

— Se os guardas aparecerem, é melhor você esconder essa arma.

— Não é problema. - Gorevitch carregou o compressor e abriu a câmara. — Qual é o tamanho do bicho?

— Ainda é jovem. Dois ou três anos. Talvez trinta quilos. Provavelmente menos.

— Neste caso, dez centímetros cúbicos.

Gorevitch tirou um dardo da caixa, verificou o nível, e inseriu-o na câmara. Depois outro. E mais outro. Fechou a câmara, com um estalido. Perguntou a Hagar:

— Quando foi a última vez que o viu?

— Há dez dias.

— Onde?

— Perto daqui.

— Ele pode voltar? Esta área fica em seu território?


— Acho que sim.

Gorevitch espiou pelo visor telescópico do rifle. Virou-o num arco, apontou para o céu, baixou. Satisfeito, largou a arma.

— Vai usar uma dose bastante baixa?

— Não se preocupe.

— E se ele estiver no alto das árvores, não pode atirar porque...

— Eu disse para não se preocupar. — Gorevitch virou-se para fitar Hagar. - A dose é suficiente para deixá-lo apenas atordoado. Ele descerá por sua própria iniciativa, muito antes de perder os sentidos. Talvez tenhamos de procurá-lo no solo.

— Já fez isso antes?

Gorevitch acenou com a cabeça em confirmação.

— Com orangotangos?

— Chimpanzés.

— Chimpanzés são diferentes.

— É mesmo?

O tom era sarcástico.

Os dois caíram num silêncio constrangido. Gorevitch armou uma câmera num tripé. Preparou um microfone de longo alcance, com uma antena parabólica de trinta centímetros, e prendeu no alto da câmera, com uma haste comprida. Era um aparato desgracioso, mas eficiente, pensou Hagar.

Gorevitch acocorou-se e correu os olhos pela selva. Ficaram esperando, atentos ao som da chuva.

As notícias sobre o orangotango falante haviam desaparecido da mídia nas últimas semanas. A história seguira o caminho de outras notícias de animais que não haviam sido comprovadas: o pica-pau de Arkansas que ninguém mais conseguiu encontrar, o macaco de dois metros de altura do Congo que ninguém localizava, apesar dos relatos persistentes dos nativos, e o morcego gigante com quatro metros de envergadura de asa que teria sido avistado na selva da Nova Guiné.

Para Gorevitch, o declínio do interesse era o ideal. Porque a atenção da mídia seria dez vezes maior quando o orangotango fosse redescoberto, o que ocorreria se não fosse assim.


Especialmente porque Gorevitch planejava fazer mais do que filmar e gravar a voz do macaco falante. Tencionava levá-lo.

Ele levantou o zíper do casaco, para se proteger da chuva, e continuou a esperar.

Era final de tarde, e começava a escurecer. Gorevitch cochilava quando ouviu uma voz áspera dizer:

-Alors. Merde.

Ele abriu os olhos. Fitou Hagar, sentado perto.

Hagar acenou com a cabeça.

— Alors. Comment ça va? Gorevitch olhou ao redor, lentamente.

— Merde. Scumbag. Espèce de con. — As palavras eram enunciadas em voz baixa, guturais, como um bêbado num bar. - Fungele a usted.

Gorevitch ligou a câmera. Não podia determinar de onde vinha a voz, mas podia pelo menos gravá-la. Virou a câmera devagar, descrevendo um arco, enquanto observava os níveis do microfone. Como o microfone era direcional, ele pôde constatar que o som vinha... do sul.

Cerca de nove metros da posição em que se encontrava. Ele contraiu os olhos no visor, deu um zoom. Não avistou nada. A selva se tornava mais escura a cada minuto.

Hagar permanecia imóvel ali perto, apenas observando.

Houve um estrépito de galhos, e Gorevitch vislumbrou uma sombra passar pela frente da lente. Levantou os olhos e viu o orangotango subir mais e mais, balançando nos galhos. E em poucos minutos ficou a mais de vinte metros de altura.

— Gods vloek het. Asshole wijkje. Vloek.

Ele tirou a câmera do tripé e tentou filmar. Tudo escuro. Nada. Gorevitch ligou a visão noturna. Divisou apenas manchas verdes, enquanto o animal entrava e saía da folhagem densa. O orangotango subia cada vez mais lateralmente.

— Vloek het. Moeder fucker.

Ele tem uma boca suja.

Mas a voz parecia cada vez mais distante.

Gorevitch compreendeu que tinha de tomar uma decisão... e depressa. Largou a câmera e pegou o rifle. Levantou-o e mirou pelo visor telescópico. Visão noturna militar, um verde brilhante, tudo claro. Avistou o orangotango, viu pontos brancos nos olhos...

— Não! — gritou Hagar.

O orangotango pulou para outra árvore, suspenso no espaço por um momento.

Gorevitch atirou.

Ouviu o zunido do gás e o barulho do dardo batendo nas folhas.

- Errei.

Ele ergueu o rifle de novo.

- Não faça isso...

— Cale-se.

Gorevitch mirou e atirou. Houve uma pausa momentânea no barulho nas árvores lá em cima.

- Acertou-o - murmurou Hagar. Gorevitch esperou.

O barulho entre galhos e folhas recomeçou. O orangotango voltara a se movimentar, agora quase que diretamente por cima.

— Não, não acertei.

Gorevitch ergueu o rifle mais uma vez.

— Acertou, sim. Se atirar de novo... Gorevitch atirou.

O zunido de gás perto de seu ouvido, depois o silêncio. Gorevitch baixou a arma e começou a recarregar, sem desviar os olhos das copas das árvores. Agachou-se de novo, abriu a caixa de metal, e tateou à procura de mais dardos. Sempre olhando para cima.

Silêncio.

- Acertou-o - murmurou Hagar outra vez.

— É possível.

- Tenho certeza que acertou.

- Não, não tem. — Gorevitch inseriu mais três dardos no rifle. - Não pode ter.

— Ele não está se movendo. Foi atingido.

Gorevitch ergueu o rifle, bem a tempo de ver um vulto escuro caindo. Era o orangotango, despencando dos galhos, uma altura de mais de quarenta metros.

O animal bateu no chão, com um estrondo, aos pés de Gorevitch, espirrando lama. Não se mexeu. Hagar acendeu uma lanterna.

Havia três dardos cravados em seu corpo. Um na perna, dois no peito. O orangotango continuou imóvel, os olhos abertos.

- Um trabalho incrível — disse Hagar.

Gorevitch ajoelhou-se na lama, encostou a boca nos enormes beiços do orangotango, e começou a soprar ar em seus pulmões, para ressuscitá-lo.


 

Seis advogados sentavam à mesa comprida, todos mexendo em seus papéis. Soava como uma ventania. Rick Diehl esperou, impaciente, mordendo o lábio. Até que Albert Rodriguez, o diretor de seu departamento jurídico, levantou os olhos.

— A situação é a seguinte — disse Rodriguez. - Você tem bons motivos... ou pelo menos motivos suficientes... para acreditar que Frank Burnet conspirou para destruir as linhagens de células em seu poder, a fim de vendê-las de novo para outra empresa.

— Tem toda razão — concordou Rick.

— Três tribunais decidiram que as células de Burnet são de sua propriedade. Portanto, você tem o direito de tomá-las.

— Ou seja, pegar as células de novo.

Correto.

— Só que o cara se escondeu.

— O que é inconveniente. Mas não altera os fatos materiais da situação. Você é o proprietário da linhagem de células Burnet. Onde quer que essas células possam ser encontradas.

— E isso inclui...

— Os filhos. Os netos. Eles têm provavelmente as mesmas células.

— Está querendo dizer que posso tirar as células das crianças?

— As células são sua propriedade.

— E se as crianças não permitirem?

— Podem não concordar. Mas, como as células são de sua propriedade, as crianças não podem decidir o que fazer.

— Estamos falando de biópsia por punção em fígado e baço. Não são pequenos procedimentos.

— Também não chegam a ser grandes procedimentos - argumentou Rodriguez. - Creio que tais procedimentos não exigem a internação dos pacientes. Claro que você teria de providenciar para que as extrações das células fossem efetuadas por um médico competente. Mas presumo que faria isso.

Diehl franziu o rosto.

— Deixe-me ver se compreendi. Está me dizendo que posso pegar as crianças na rua, levá-las para um médico e remover as células, quer gostem ou não?

— Exatamente.

— E como isso pode ser legal?

— Porque estão andando com células que são legalmente suas. Ou seja, com propriedade roubada. O que é um crime. Pela lei, se você testemunha um crime sendo cometido, tem o direito de efetuar o que se chama de prisão de cidadão. Portanto, se encontrar as crianças Burnet andando na rua, tem o direito legal de prendê-las.

— Eu pessoalmente?

— Claro que não — disse Rodriguez. — Nas circunstâncias, usa-se um profissional treinado... um agente de resgate de fugitivos.

— Está se referindo a um caçador de recompensas?

— Eles não gostam desse termo... e nós também não gostamos.

— Está bem. Conhece um bom agente de resgate de fugitivos?

— Conheço — respondeu Rodriguez.

— Então ligue para ele. Agora.


 

Vasco Borden olhou para o espelho e avaliou sua aparência do ponto de vista profissional, enquanto passava rimel nas pontas grisalhas do cavanhaque. Era um homem grande, com 1,93 me 110 kg, todo músculo, nove por cento de gordura no corpo. A cabeça raspada e o cavanhaque preto aparado faziam com que parecesse o demônio. Um demônio enorme. Queria parecer intimidante e conseguia.

Ele virou a mala na cama. Arrumara ali, meticulosamente, um macacão com o logotipo da empresa de eletricidade Con Ed no peito; um paletó esporte axadrezado; um elegante terno preto italiano; um blusão de motoqueiro com as palavras DIE IN HELL nas costas; um training de veludo; um gesso removível para perna quebrada; uma Mossberg 590 de cano curto; e dois Para. 45s. Naquele dia, usava um paletó esporte de tweed, uma calça esporte e sapatos marrons de cadarços.

Pôs três fotos em cima da cama.

Primeiro, o cara, Frank Burnet. Cinqüenta e um anos, boa forma física, ex-fuzileiro.

A filha, Alex, trinta e poucos anos, advogada.

O neto, Jamie, agora com oito anos.

O velho desaparecera, e Vasco não via motivos para se dar ao trabalho de procurá-lo. Burnet podia estar em qualquer lugar do mundo — México, Costa Rica, Austrália. Era muito mais fácil obter as células de outras pessoas da família.

Ele olhou para a foto da filha, Alex. Uma advogada... nunca era um bom alvo. Mesmo que fizessem tudo com perfeição, ainda assim seriam processados. A mulher era loura, parecia estar em boas condições físicas. Bastante atraente, para quem gostava do tipo. Para o gosto de Vasco, no entanto, magra demais. E era bem provável que tivesse aulas de defesa israelense nos fins de semana. Nunca se sabia. De qualquer forma, havia um potencial de encrenca.

Assim, restava o garoto.

Jamie. Oito anos, segunda série, escola local. Vasco podia ir até lá, pegá-lo, colher as amostras e acabar com tudo antes do fim da tarde. O que seria ótimo para ele. Receberia uma bonificação de cinqüenta mil dólares se resgatasse as células na primeira semana. O valor cairia para dez mil dólares depois de quatro semanas. Portanto, ele tinha todos os motivos para agir o mais depressa possível.

Faça com o garoto, pensou ele. É mais simples e objetivo.

Dolly entrou, com um papel na mão. Hoje, ela usava um terninho azul-marinho, sapatos baixos, camisa branca. Trazia uma pasta de executivo, de couro marrom. Como sempre, a aparência neutra permitia-lhe circular sem atrair atenção.

— O que acha disso? — perguntou ela, estendendo o papel. Vasco pegou-o e leu rapidamente. Era um "A Quem Possa

Interessar", assinado por Alex Burnet. Autorizava o portador a pegar seu filho Jamie na escola e levá-lo para uma consulta com o médico da família.

— Ligou para o consultório do médico?

— Liguei - respondeu Dolly. — Disse que Jamie estava com febre e dor de garganta, e me pediram para levá-lo.

— Portanto, se a escola telefonar para o médico...

— Estamos cobertos.

— E vai se apresentar como sendo do escritório da mãe?

— Exato.

— Providenciou o cartão?

Dolly pegou o cartão de visita com o logotipo da firma de advocacia.

— E se ligarem para a mãe?

— O celular dela está indicado no cartão, como pode ver.

— E o número é de Cindy?

— Isso mesmo.

Cindy era a despachante do escritório, na Playa dei Rey.

— Muito bem, vamos agir. — Vasco passou o braço pelos ombros de Dolly. — Acha que se sentirá bem ao fazer isso?

— Claro. Por que não?

— Sabe por que não.

Dolly tinha uma fraqueza por crianças. Derretia-se sempre que as fitava nos olhos. Haviam localizado um fugitivo no Canadá. Foram ao seu encontro em Vancouver. A criança abrira a porta. Dolly perguntara se o pai estava em casa. Era uma menina, em torno de oito anos. Respondera que não. Dolly dissera que estava bem e se retirara. O cara acabara de entrar de carro na rua, a caminho de casa. A menina fechara a porta, fora até o telefone e avisara ao pai que não devia parar, pois havia alguém à sua procura. Ela era experiente. Fugiam desde que tinha cinco anos. Nunca mais chegaram tão perto do cara.

— Foi só uma vez.

— Houve mais de uma.

— Vasco, tudo vai dar certo hoje.

— Está bem.

E ele deixou que Dolly lhe desse um beijo no rosto.

A ambulância estava estacionada na entrada de carros, com as portas traseiras abertas. Vasco sentiu o cheiro de fumaça de cigarro. Foi até a traseira. Nick estava sentado ali, com um jaleco branco, fumando.

— Jesus, Nick! O que está fazendo?

— Só um.

— Apague isso. Vamos partir agora. Trouxe o material?

— Claro.

Nick Ramsey era o médico que usavam em trabalhos em que havia necessidade de um médico. Trabalhara em salas de emergência até que o vício em drogas e álcool prevalecera. Saíra do centro de reabilitação agora, mas tinha dificuldade para arrumar um emprego.

— Querem punções de fígado e baço. Também querem sangue...

— Já sei. Aspirações com agulhas finas. Estou preparado. Vasco hesitou.

— Andou bebendo, Nick?

— Não. Claro que não.

— Sinto um cheiro diferente em sua respiração.

— Não bebi nada. Ora, Vasco, você sabe muito bem que eu não...

— Tenho um bom olfato, Nick.

— Não bebi.

— Abra a boca.

Vasco inclinou-se para frente e farejou.

— Simplesmente estou com um gosto ruim na boca. Vasco estendeu a mão.

— A garrafa.

Nick estendeu a mão para baixo da maça e pegou uma garrafa pequena de Jack Daniels.

— É demais. — Vasco tornou a se inclinar para ele. — Preste muita atenção. Se fizer mais alguma besteira hoje, eu mesmo vou jogá-lo pela traseira desta ambulância na 405. Se quer fazer uma tragédia de sua vida, providenciarei para que aconteça logo. Está me entendendo?

— Estou, Vasco.

— Melhor assim. Fico contente que tenha entendido. - Vasco deu um passo para trás. — Estenda as mãos.

— Estou bem...

— Estenda as mãos. — Vasco nunca elevava a voz em momentos de tensão. Baixava-a. Para que escutassem com mais atenção. Para que se preocupassem. - Estenda as mãos agora, Nick.

Nick Ramsey estendeu as mãos. Não estavam tremendo.

— Muito bem, entre na ambulância.

— Eu só...

— Entre logo, Nick. Estou cansado de falar.

Vasco foi sentar ao volante, ao lado de Dolly. Deu a partida.

— Ele está bem? — perguntou Dolly.

— Mais ou menos.

— Não vai machucar o garoto, não é?

— Não. Serão apenas duas espetadelas. Tudo acabará em poucos segundos.

— É melhor ele não machucar o garoto.

— Ei, está se sentindo bem ou tem algum problema?

— Claro que estou bem.

— Pois então vamos acabar logo com isso. E Vasco seguiu em frente.


 

Brad Gordon estava com um mau pressentimento quando entrou no Border Café, no Ventura Boulevard, e olhou para os reservados. Era um restaurante barato e não muito limpo, freqüentado por atores. Um cara acenou de um reservado nos fundos. Brad foi até lá.

O homem usava um terno cinza claro. Era baixo e careca. Parecia inseguro. O aperto de mão era fraco.

- Willy Johnson. Sou seu novo advogado para o julgamento iminente.

- Pensei que meu tio, Jack Watson, estivesse providenciando o advogado.

- Foi o que aconteceu. Sou seu advogado. Pederastia é a minha especialidade.

- O que isso significa?

- Sexo com um menino. Mas tenho experiência com qualquer parceria menor de idade.

- Não fiz sexo com ninguém... menor de idade ou não.

- Analisei seu depoimento e os relatórios da polícia — disse Johnson, pondo um bloco de anotações em cima da mesa. — Creio que temos várias possibilidades para sua defesa.

- E a garota?

- Ela não está disponível; deixou o país. A mãe ficou doente, nas Filipinas. Mas fui informado de que voltará para o julgamento.

- Pensei que não haveria um julgamento.

A garçonete aproximou-se. Brad acenou para que ela fosse embora, antes de acrescentar:

- Por que estamos nos encontrando aqui?

— Tenho de comparecer ao tribunal em Van Nuys às dez horas. Achei que seria o mais conveniente.

Brad olhou ao redor, apreensivo.

— O café está lotado. Com muitos atores. E eles gostam de falar.

— Não vamos entrar nos detalhes do caso — garantiu Johnson. — Mas quero definir a estrutura de sua defesa. Nas circunstâncias, proponho uma defesa genética.

— Defesa genética? O que isso significa?

— Pessoas com várias anormalidades genéticas descobrem-se impotentes para reprimir determinados impulsos - explicou Johnson. — Isso faz, em termos técnicos, com que sejam inocentes. Proporemos esse argumento como uma justificativa para o seu caso.

— Não tenho nenhum distúrbio genético.

— Não é uma má idéia. Pense a respeito como uma espécie de diabetes. Você não é responsável por isso. Nasceu assim. Em seu caso, tem um impulso irresistível para fazer sexo com jovens atraentes. - Johnson sorriu. — É um impulso partilhado por cerca de noventa por cento da população masculina adulta.

— Mas que porra de defesa é essa? — indagou Brad Gordon.

— Uma defesa muito eficiente. — Johnson folheou os papéis numa pasta. - Houve várias notícias recentes nos jornais...

— Está querendo me dizer que há um gene para sexo com garotas? Johnson suspirou.

— Eu gostaria que fosse tão simples assim. Infelizmente, não há.

— Então qual é a defesa?

— D4DR.

— O que é isso?

— É o chamado gene da novidade. É o gene que nos leva a correr riscos, a nos empenhar em comportamentos de busca de emoções. Vamos argumentar que o gene da novidade em seu corpo levou-o a um comportamento de risco.

— Isso me parece pura besteira.

— É mesmo? Vamos verificar. Alguma vez já saltou de pára-quedas de um avião?

— Quando estava no exército. E detestei.

— Mergulho no fundo do mar?

— Algumas vezes. Tinha uma namorada que gostava.

— Montanhismo? - Não.

— E mesmo? Sua turma na escola secundária nunca escalou o monte Rainer?

— Escalou, mas isso foi...

— Escalou uma das maiores montanhas americanas — declarou Johnson, balançando a cabeça. — Gosta de dirigir carros esportes velozes?

— Nem tanto.

— Recebeu cinco multas por excesso de velocidade em seu Porsche nos últimos três anos. Pelas leis da Califórnia, você tem corrido o risco de perder a licença para dirigir.

— Apenas a velocidade normal...

— Acho que não. Que tal sexo com a namorada do patrão?

— Bom...

— E sexo com a esposa do patrão?

— Apenas uma vez, no antepenúltimo emprego. Mas foi ela quem me procurou para...

— São parceiras sexuais de risco, Sr. Gordon. Qualquer júri concordaria. E o que me diz de sexo desprotegido? Da ameaça de doenças venéreas?

— Espere um pouco - protestou Brad. — Não quero que entre...

— Tenho certeza que não quer, o que não chega a ser surpreendente, considerando que teve três casos depediculosispúbis... chatos. Dois episódios de gonorréia, um de clamídia, dois episódios de condilomas... ou verrugas genitais... inclusive... um deles perto do ânus. E tudo isso apenas nos últimos cinco anos, segundo os registros de seu médico no Southern Califórnia.

— Como conseguiu obter essas informações? Johnson deu de ombros.

— Salto de pára-quedas, mergulho no fundo do mar, montanhismo, direção temerária em seu carro, parceiras sexuais de alto risco, sexo desprotegido. Se isso não constitui um padrão de alto risco, de busca de emoções, não sei o que mais poderia ser.

Brad Gordon ficou calado. Tinha de admitir que o homenzinho sabia como preparar uma argumentação. Nunca antes pensara em sua vida dessa maneira. Como acontecera quando transava com a esposa do patrão. O tio lhe dera um esporro. Por que você tem de tomar essas decisões idiotas?, indagara o tio. Mantenha o pau dentro da calça! Toque uma punheta! Brad não tinha resposta na ocasião. Sob a repreensão furiosa do tio, suas ações pareciam bastante estúpidas. A mulher nem mesmo era gostosa. Mas parecia agora que Brad tinha uma resposta para as indagações do tio: ele não podia evitar. Era a herança genética que controlava seu comportamento.

Johnson continuou a explicar, oferecendo mais detalhes. Segundo ele, Brad estava à mercê do gene D4DR, que controlava os níveis químicos no cérebro. Uma coisa chamada dopamina levava Brad a assumir riscos, a gostar da experiência nova, a ansiar por outras. Tomografias cerebrais e outros exames comprovavam que pessoas como Brad não podiam controlar o desejo de assumir riscos.

— É o gene da novidade — disse Johnson. — Recebeu esse nome do mais importante geneticista dos Estados Unidos, o Dr. Robert Bellarmino. Ele é o maior pesquisador genético do Instituto Nacional de Saúde. Tem um enorme laboratório. Publica cinqüenta estudos por ano. Nenhum júri pode ignorar suas pesquisas.

— Muito bem, eu tenho o gene. Acha mesmo que isso pode dar certo?

— Claro que pode. Mas quero ter o glacê no bolo antes de irmos a julgamento.

— Como assim?

— Antes do julgamento, você está preocupado, estressado, como é natural.

— E daí?

— Quero que faça uma viagem, para afastar a mente de seus problemas. Quero que percorra o país... e quero que assuma riscos onde quer que for.

Johnson expôs o plano: Multas por excesso de velocidade, parques de diversão, brigas, escaladas de montanhas em parques nacionais... sempre dando um jeito de se meter em discussões, disputas

por questões de segurança, alegações de equipamentos defeituosos. Qualquer coisa que levasse seu nome a constar de um documento, que mais tarde poderia ser apresentado como prova no julgamento.

- Tem de ser assim - concluiu Johnson. — Tornarei a vê-lo dentro de poucas semanas.

Ele estendeu um papel para Brad.

- O que é isto?

- Uma lista das maiores montanhas-russas dos Estados Unidos. Não deixe de visitar pelo menos as três maiores.

- Essa não! Ohio... Indiana... Texas...

- Não quero nem saber se gosta ou não. Enfrenta a possibilidade de vinte anos de prisão, meu amigo, em companhia de um cara enorme, cheio de tatuagens, que vai deixá-lo com coisas muito piores do que verrugas anais. Portanto, faça o que estou dizendo. E deixe a cidade hoje.

De volta a seu apartamento, em Sherman Oaks, Brad arrumou a mala. O pensamento de um cara enorme, cheio de tatuagens, preocupou-o por um momento. Especulou se deveria levar a pistola. Cruzar o país, visitar lugares imprevisíveis como Ohio... quem sabia o que ele podia encontrar. Ele pôs uma caixa de munição na mala, junto com a pistola e o coldre para usar na perna.

Ao se encaminhar para o carro, Brad descobriu que se sentia melhor em relação a tudo. Era um dia de sol, seu Porsche faiscava de tão limpo, e ele tinha um plano.

Uma viagem pela estrada!


 

Lynn Kendall entrou correndo na escola em La Jolla e chegou ofegante à sala da diretora.

— Vim o mais depressa que pude — disse ela. - Qual é o problema?

— É David — respondeu a diretora, uma mulher de quarenta anos. — O menino que você instrui em casa. Seu filho Jamie trouxe-o para a escola hoje.

— Sei disso. Para verificar como ele...

— Lamento dizer, mas ele não se deu bem. Mordeu outra criança no recreio.

— Oh, não!

— Quase arrancou sangue.

— Isso é terrível.

— Já observamos isso em crianças que estudam em casa, Sra. Kendall. Carecem severamente de habilidades de socialização e controles interiores. Não há substituto para o ambiente da escola com seus colegas.

— Lamento que isso tenha acontecido...

— Precisa conversar com David. Ele está detido na sala ao lado. Lynn entrou numa sala pequena. Estava cheia de arquivos de metal, pintados de verde, empilhados. David encolhia-se numa cadeira de madeira, parecendo muito pequeno e marrom.

— O que aconteceu, Dave?

— Ele machucou Jamie.

— Quem?

— Não sei o nome dele. Está na sexta série.

Lynn pensou: Sexta série? Então devia ser um menino muito maior.

— E como foi?

— Ele empurrou e jogou Jamie no chão. Machucou.

— E o que você fez?

— Pulei nas costas dele.

— Porque queria proteger Jamie?

Dave acenou com a cabeça em confirmação.

— Mas não deveria ter mordido, Dave.

— Ele me mordeu primeiro.

— É mesmo? Onde ele mordeu você? - Aqui.

Dave levantou um dedo grosso e musculoso. A pele era pálida e grossa. Podia haver marcas de mordida, mas não dava para ter certeza.

— Contou à diretora?

— Ela não está com minha mãe.

Lynn sabia que essa era a maneira de Dave dizer que a diretora não gostava dele. Os jovens chimpanzés viviam numa sociedade matriarcal, em que as lealdades femininas eram muito importantes e, com freqüência, ressaltadas.

— Mostrou o dedo para ela? Dave sacudiu a cabeça. Não.

— Falarei com ela.

- Então é essa a história dele? - murmurou a diretora. - Não me surpreende. Ele pulou nas costas do outro menino. O que esperava que acontecesse?

— Quer dizer que o outro menino mordeu primeiro?

— Morder não é permitido, Sra. Kendall.

— Mas o outro menino mordeu-o?

— Ele diz que não.

— O menino é da sexta série?

— Isso mesmo. Da turma da Srta. Fromkin.

— Eu gostaria de falar com ele.

— Não podemos permitir — declarou a diretora. - Ele não é seu filho.


— Mas ele acusou Dave. A situação é muito grave. Se tenho de lidar com Dave da maneira correta, preciso saber o que aconteceu entre os dois.

— Já contei o que aconteceu.

— Viu quando aconteceu?

— Não. Mas foi relatado pelo Sr. Arthur, o supervisor do recreio, e posso lhe garantir que ele é muito meticuloso em relação às brigas. E o fato é que não permitimos mordidas.

Lynn tinha a sensação de que uma mão invisível a pressionava. A conversa se tornava cada vez mais difícil.

— Talvez eu devesse conversar com meu filho Jamie.

— A história de Jamie vai combinar com o que David disse. Mas o Sr. Arthur assegura que não foi assim que aconteceu.

— O garoto maior não atacou Jamie primeiro? A diretora se empertigou.

— Sra. Kendall, em casos de controvérsias disciplinares, podemos consultar uma câmera de segurança instalada no recreio. Podemos fazer isso se for necessário... agora ou mais tarde. Mas eu diria que deve se ater à questão da mordida. E foi David quem mordeu. Por mais desagradável que isso seja.

— Entendo... — A situação era evidente. — Muito bem, lidarei com David quando ele voltar da escola.

— Acho que deveria levá-lo agora.

— Prefiro que ele termine o dia e volte para casa com Jamie.

— Não creio...

— Dave tem um problema de integração na sala de aula, como explicou — declarou Lynn. — Acho que não contribuiremos para essa integração se o tirarmos da escola agora.

A diretora balançou a cabeça em concordância, embora relutante.

— Tem razão.

— Falarei com ele de novo, e direi que ficará na escola pelo resto do dia.


 

Alex Burnet saltou do táxi e correu para a escola. Seu coração disparou quando viu a ambulância.

Poucos minutos antes, estava com uma cliente - que chorava — quando a recepcionista avisara que a professora de Jamie telefonara. Alguma coisa sobre uma consulta médica para seu filho. A história era confusa, mas Alex não esperara. Entregara uma caixa de Kleenex para a cliente e saíra correndo. Pegara um táxi e dissera ao motorista para avançar todos os sinais.

A ambulância estava encostada no meio-fio, as portas abertas, um médico de jaleco branco esperando na traseira... ela teve vontade de gritar. Nunca se sentira assim antes. O mundo era de um branco esverdeado; estava nauseada de medo. Passou correndo pela ambulância e entrou no pátio da escola. A mãe na recepção disse:

— Posso ajudar...

Mas Alex sabia onde era a sala de Jamie, no térreo, no fundo do pátio. Seguiu direto para lá. Seu celular tocou. Era a professora de Jamie, Srta. Holloway.

— A mulher está esperando do lado de fora da sala — sussurrou ela. - Entregou uma carta com o número de seu telefone, mas não confiei. Liguei para o telefone em sua ficha...

— Bom trabalho — disse Alex. —Já estou chegando.

— Ela está junto da porta.

Alex contornou o canto do pátio e avistou uma mulher de terninho azul, esperando fora da sala. Foi direto para ela.

— Quem é você?

A mulher sorriu calmamente e estendeu a mão.

— Olá, Sra. Burnet. Casey Rogers. Lamento que tenha vindo até aqui.

Ela parecia tão tranqüila, tão relaxada, que Alex ficou desarmada. Pôs as mãos nos quadris, respirando fundo para recuperar o fôlego.

— Qual é o problema, Casey?

— Não há nenhum problema, Sra. Burnet.

— Trabalha no meu escritório?

— Claro que não. Trabalho no consultório do Dr. Hughes. Ele me pediu que viesse pegar Jamie para a injeção antitetânica. Não é uma emergência, mas precisa ser feito. Ele cortou o tornozelo há uma semana, não é mesmo?

— Não...

— Não? Ora, não posso imaginar... Acho que me mandaram buscar a criança errada. Deixe-me falar com o Dr. Hughes...

A mulher pegou o celular.

— Faça isso.

Dentro da sala, as crianças observavam as duas através do vidro. Alex acenou para Jamie, que sorriu em resposta.

— Talvez seja melhor nos afastarmos para não interromper a aula — sugeriu Casey Rogers. Ao telefone, ela acrescentou: — Dr. Hughes, por favor. Isso mesmo. Aqui é Casey.

Juntas, elas se encaminharam para a entrada da escola. Através da arcada, Alex viu a ambulância e perguntou:

— Você trouxe uma ambulância?

— Claro que não. Não sei por que está aqui. — Ela apontou para o pára-brisa. — Parece que o motorista está almoçando.

Através do pára-brisa, Alex divisou um homem corpulento, de cavanhaque preto, mastigando um sanduíche. Parara na frente da escola apenas para almoçar? Alguma coisa não parecia certa, mas ela não podia determinar o que era.

— Dr. Hughes? Aqui é Casey. Isso mesmo. Estou com a Sra. Burnet neste momento, e ela diz que o filho Jamie não cortou o pé.

— Não cortou — reiterou Alex.

Elas passaram pela arcada e saíram da escola, aproximando-se da ambulância. O motorista pôs o sanduíche no painel e abriu a porta de seu lado. Estava saltando.


- Pois não, Dr. Hughes. Estamos deixando a escola neste momento. - Casey estendeu o celular para Alex. - Gostaria de falar com o Dr. Hughes?

- Claro.

Assim que encostou o celular no ouvido, Alex ouviu um grito eletrônico estridente, que a deixou desorientada. Largou o celular, enquanto Casey Rogers agarrava-a pelos cotovelos e puxava seus braços para trás. O motorista contornara a frente da ambulância e avançava apressado em sua direção.

— Não precisamos do garoto — disse ele. — Ela servirá.

Levou um momento para Alex entender: estava sendo seqüestrada. O que aconteceu em seguida foi instinto. Ela jogou a cabeça para trás, acertando o nariz de Casey. A mulher soltou um grito e largou-a. O sangue esguichou no mesmo instante. Alex agarrou o braço de Casey e jogou-a para frente, ao encontro do grandalhão. Ele se desviou, num movimento ágil. Casey bateu no concreto e rolou, uivan-do de dor. Alex enfiou a mão no bolso.

— Não se aproxime — advertiu ela.

— Não vamos machucá-la, Sra. Burnet.

O homem era pelo menos uma cabeça e meia mais alto do que ela, largo e musculoso. No momento em que ele a alcançava, Alex apertou o botão e lançou spray de pimenta em seu rosto.

- Merda! Merda!

Ele levantou os braços para proteger os olhos, e virou-se parcialmente. Alex sabia que era sua única chance... e acertou com toda força um chute na garganta do homem, usando o calcanhar. Ele gritou em agonia, enquanto Alex caía para trás, na calçada, incapaz de manter o equilíbrio. Mas ela levantou-se no mesmo instante. A mulher também se levantou, o sangue se espalhando pela calçada. Ignorou Alex e foi confortar o grandalhão, que estava encostado na ambulância, o corpo dobrado, as mãos na garganta, gemendo de dor.

Alex ouviu sirenes distantes — alguém chamara a polícia — e agora a mulher ajudava o grandalhão a entrar na ambulância, no banco de passageiro. Tudo acontecia muito depressa. Alex começou a se preocupar que os dois escapassem antes da polícia chegar. Mas não havia muita coisa que ela pudesse fazer. Ao entrar na ambulância, a mulher gritou para Alex:

- Ainda vamos prendê-la!

- Vão o quê? - A irrealidade de todo o incidente começava a impressioná-la. — Vão o quê?

- Vamos voltar, sua vaca! — berrou a mulher, enquanto ligava o motor. - Não poderá escapar!

A luz vermelha acendeu quando a sirene foi ligada. Ela engrenou a ambulância.

- Pelo quê? - gritou Alex.

Ela só podia pensar que tudo não passara de um erro terrível. Mas Vern Hughes era mesmo seu médico. Haviam usado seu nome correto. E vieram buscar Jamie...

Não. Não era um equívoco.

Ainda vamos prendê-la!

O que isso podia significar? Ela virou-se e voltou apressada para a escola. Seu único pensamento agora era Jamie.

Era a hora do lanche. As crianças sentavam às suas mesas, comendo pedaços de frutas cortadas. Algumas tinham iogurte. Faziam bastante barulho. A Srta. Hoiloway entregou-lhe o papel que a mulher trouxera. Parecia ser uma cópia do papel timbrado da firma de advocacia de Alex, com a sua assinatura. Não era um bilhete do consultório do médico.

Isso significava que a mulher de terninho azul era uma agente fria e controlada. Quando surpreendida, mudara sua história sem hesitar. Com um sorriso, um aperto de mão em Alex. E encontrando sem qualquer dificuldade uma desculpa para que as duas saíssem... E oferecendo seu celular, que emitira um som estridente...

Não precisamos do garoto. Ela servirá.

Haviam tentado seqüestrar Jamie. Mas se mostraram dispostos a seqüestrá-la em vez do filho. Por quê? Resgate? Ela não tinha dinheiro suficiente para valer à pena. Seria por causa de alguma ação judicial em que estava envolvida? Cuidara de ações perigosas no passado, mas não havia nenhuma tão importante assim no momento.

Ela servirá.

Ou o filho, ou ela.

— Há alguma coisa que eu deva saber? - perguntou a Sra. Holloway. — Ou que a escola deva saber?

— Não — respondeu Alex. - Mas vou levar Jamie para casa.

— Eles estão quase acabando o lanche.

Alex gesticulou para que o filho se aproximasse. Ele veio, embora relutante.

— O que é, mamãe?

— Precisamos ir embora.

— Quero ficar.

Alex suspirou. O filho era sempre do contra.

— Jamie...

— Perdi muita coisa porque fiquei doente. Pergunte à Srta. Holloway. E quase não vi meus amigos. Quero ficar. Teremos cachorro-quente no almoço.

— Sinto muito, mas temos de ir embora. Vá pegar suas coisas.

Havia dois carros da polícia e quatro guardas na frente da escola. Examinavam a calçada. Um deles perguntou:

— É a Sra. Burnet?

— Isso mesmo.

— Temos um relato de uma mulher no gabinete do diretor que testemunhou toda a cena. — O guarda apontou para uma janela próxima. - Mas há muito sangue aqui, Sra. Burnet.

— A mulher machucou o nariz quando caiu.

— É divorciada, Sra. Burnet?

— Sou.

— Há quanto tempo?

— Cinco anos.

— Portanto, não é recente.

— Não, não é.

— Suas relações com o ex...

— Muito cordiais.

Ela falou com os policiais por mais alguns minutos, enquanto Jamie esperava, impaciente. Alex teve a impressão de que os policiais pareciam estranhamente relutantes em se envolverem; mostravam-se desligados, como se sentissem que se tratava de uma questão particular, uma divergência doméstica.

— Vai apresentar uma queixa?

— Eu gostaria, mas tenho de levar meu filho para casa agora.

— Podemos entregar o formulário para preencher em casa.

— Seria ótimo.

Um dos guardas entregou um cartão e disse para ela telefonar se precisasse de mais alguma coisa. Alex disse que faria isso. E depois foi para casa com Jamie.

Na rua, o mundo ao seu redor parecia de repente completamente diferente. Nada podia ser mais alegre e pacífico do que a luz do sol em Beverly Hills. Mas agora Alex via apenas ameaça.

Não sabia de onde vinha aquela ameaça, nem por quê. Ela segurava a mão de Jamie.

— Vamos voltar para casa a pé? — perguntou o menino, suspirando.

— Isso mesmo, vamos a pé.

Mas mesmo enquanto o filho perguntava, Alex começou a especular. Moravam a poucas quadras da escola. Mas era seguro ir para casa a pé? As pessoas com a ambulância não estariam à espera? Ou se esconderiam melhor na próxima vez?

— É muito longe para andar - protestou Jamie, quase se arrastando. - E faz muito calor.

— Vamos a pé. E ponto final.

Enquanto andavam, ela abriu o celular e ligou para o escritório. Amy, sua assistente, atendeu.

— Quero que você verifique os arquivos recentes do condado. Descubra se meu nome aparece como ré em qualquer processo.

— Há alguma coisa que eu precise saber? — perguntou Amy, rindo.

Mas foi uma risada nervosa. Delitos cometidos por advogados podiam acarretar a prisão de seus assistentes. Havia alguns exemplos recentes.

— Não. Mas acho que tenho caçadores de recompensas atrás de mim.

- Escapou sob fiança de algum lugar?

 Não. E é esse o problema. Não sei o que essas pessoas pensam que estão fazendo.

A assistente disse que ia verificar. Jamie, andando ao lado de Alex, perguntou:

- O que é um caçador de recompensas? E por que aquela mulher estava atrás de você, mamãe?

- É o que estou tentando descobrir, jamie. Acho que foi um engano.

- Queriam machucá-la?

- Não, querido. Nada disso.

Não havia razão para deixá-lo preocupado. A assistente ligou um momento depois.

- Há mesmo um processo contra você. No Tribunal Superior, condado de Ventura.

Ficava a uma hora de carro de Los Angeles, em Oxnard.

- Qual é a queixa?

- Foi apresentada pela BioGen Research Incorporated, de Westview Village. Não posso ler a petição online. Mas está indicado que você não compareceu.

- E quando eu deveria comparecer?

- Ontem.

- Fui intimada?

- Está indicado que foi.

- Não fui.

- O registro diz que foi.

- Há alguma intimação por desacato? Um mandado para a minha prisão?

- Nada consta nos registros online. Mas como sempre há um atraso de um dia, pode ter mais alguma coisa.

Alex fechou o celular. Jamie perguntou:

- Você vai ser presa?

- Não, querido.

- Então posso voltar para a escola depois do almoço?

- Veremos.

O prédio de apartamentos, no lado norte do Roxbury Park, parecia tranqüilo ao sol do meio-dia. Alex parou no outro lado do parque e observou por um momento.

— Por que estamos esperando? — perguntou Jamie.

— Só um minuto.

— Já passou um minuto.

— Não, não passou.

Alex observava o homem de macacão, contornando o lado do prédio. Parecia um leitor do medidor da empresa de eletricidade. Só que ele era enorme, usava uma peruca malfeita, e tinha um cavanhaque preto aparado que ela já vira antes. E os leitores dos medidores nunca vinham pela frente. Sempre usavam a viela nos fundos.

Ela refletiu que se o cara era mesmo um caçador de recompensas, tinha o direito de entrar em seu apartamento sem aviso e sem um mandado judicial. Podia arrombar a porta, se quisesse. Tinha o direito de revistar o apartamento, vasculhar suas coisas, levar o computador para examinar o disco rígido. Podia fazer qualquer coisa que quisesse para capturar um fugitivo. Mas ela não era...

— Podemos entrar, mamãe? - suplicou Jamie. - Por favor?

O filho tinha razão numa coisa. Não podiam ficar parados ali. Havia uma caixa de areia no meio do parque, com várias crianças, babás e mães sentadas ao redor.

— Vamos brincar na caixa de areia.

— Não quero.

— Quer, sim.

— É coisa para bebês.

— Só um pouco, James.

Ele foi, mas batendo os pés. Sentou na beira da caixa de areia. Ficou chutando a areia, irritado, enquanto Alex tornava a ligar para sua assistente.

— Amy, tenho pensado muito na BioGen, a empresa que comprou a linhagem de células de meu pai. Temos alguma petição pendente contra eles?

— Não. Ainda falta um ano para o julgamento de nosso recurso no Supremo Tribunal da Califórnia.

Então o que está acontecendo?, especulou Alex. Que tipo de ação a BioGen movia agora?

— Ligue para o escrevente em Ventura. Descubra sobre o que é o processo.

— Certo.

— Temos notícias de meu pai?

— Não há algum tempo.

— Certo.

Na verdade, não havia nada certo, pois ela sentia agora o forte pressentimento de que tudo aquilo se relacionava com o pai. Ou pelo menos com as células do pai. Os caçadores de recompensa haviam levado uma ambulância — com um médico na traseira — porque iam recolher uma amostra, ou efetuar algum procedimento cirúrgico. Agulhas compridas. Ela vira os raios de sol se refletirem em agulhas compridas envoltas em plástico, quando o médico na traseira da ambulância mexera em seus equipamentos.

E foi nesse instante que lhe ocorreu. Eles queriam tirar suas células.

Queriam células dela ou de seu filho. Não dava para imaginar por quê. Mas era evidente que achavam que tinham esse direito. Deveria chamar a polícia? Ainda não, decidiu Alex. Se houvesse um mandado judicial por seu não comparecimento ao tribunal, ela seria presa. E, nesse caso, o que faria com Jamie? Alex sacudiu a cabeça.

Naquele momento, precisava de tempo para descobrir o que estava acontecendo. Tempo para dar um jeito em tudo. O que deveria fazer? Queria falar com o pai, mas há dias que ele não atendia às suas ligações. Se aquelas pessoas sabiam onde ela morava, também saberiam que tipo de carro ela tinha e...

— Amy, gostaria de usar meu carro por alguns dias?

— O BMW? Claro. Mas...

— E eu ficaria com o seu. Mas você precisaria trazê-lo até o lugar em que estou. Pare com isso, Jamie. Pare de chutar a areia.

— Tem certeza? É um Toyota todo amassado.

— Parece ótimo para o que estou querendo. Venha até o lado sudoeste do Roxbury Park e pare na frente de um prédio de apartamentos branco, em estilo espanhol, com portões de ferro batido.

Alex estava despreparada, por temperamento e treinamento, para a situação em que agora se encontrava. Passara toda a sua vida em jogo limpo. Obedecia às regras. Integrava o sistema judiciário. Participava do jogo. Não avançava quando o sinal ficava amarelo; não estacionava em locais com a indicação de proibido; não recorria a expedientes escusos para pagar menos impostos. No escritório, era considerada formal e rígida, uma advogada que se atinha às normas. Dizia aos clientes:

- As regras são feitas para serem cumpridas, não contornadas.

E falava sério. Cinco anos antes, quando descobriu que o marido pulava a cerca, expulsou-o de casa uma hora depois de saber a verdade. Arrumou uma mala com as roupas dele, pôs do lado de fora da porta, e mandou trocar os segredos das fechaduras. Quando Matt voltou da "pescaria", falou-lhe através da porta e mandou que sumisse de sua vida. Matt transava com uma de suas melhores amigas - ele era assim — e Alex nunca mais falara com a amiga.

É claro que Jamie tinha de ver o pai, e ela providenciava para que isso acontecesse. Entregava o filho a Matt na hora marcada, sempre pontual. Não que ele devolvesse o filho na hora marcada. Na opinião de Alex, porém, o mundo estabilizava uma pessoa de cada vez. Se fizesse a sua parte, os outros acabariam fazendo a mesma coisa.

No trabalho, era chamada de idealista, pouco prática, irrealista. Reagia com a alegação de que, no jargão dos advogados, realista era sinônimo de desonesto. E persistia em suas posições.

Mas era verdade que às vezes achava que se limitava aos tipos de casos que não desafiavam suas ilusões. O diretor da firma de advocacia, Robert A. Koch, dissera isso:

- Você é como alguém que faz a objeção de consciência, Alex. Deixa as outras pessoas lutarem. Mas às vezes temos de lutar. Há ocasiões em que não podemos evitar o conflito.

Koch era um ex-fuzileiro, como o pai de Alex. O mesmo tipo de conversa agressiva. E se orgulhava disso. Alex sempre descartara essa atitude. Agora, não descartava mais nada. Não sabia direito o que estava acontecendo, mas tinha certeza de que não poderia escapar apenas através da conversa.

Também tinha certeza de que ninguém espetaria uma agulha nela. Nem em seu filho. E para evitar que isso acontecesse, faria qualquer coisa que fosse necessária.

Qualquer coisa que tivesse de ser feita.

Ela repassou em sua mente o incidente na escola. Não estava armada na ocasião. Nem tinha uma arma. Mas gostaria de ter, pensou. Se eles tentassem fazer alguma coisa com meu filho, eu seria capaz de matá-los?

E Alex pensou: Seria, sim. Poderia muito bem matá-los.

E sabia que era verdade.

Um Toyota Highlander branco, com o pára-choque dianteiro amassado, parou junto do parque. Alex viu Amy sentada ao volante.

— Vamos embora, Jamie.

— Finalmente!

Ele se encaminhou para o prédio, mas a mãe desviou-o para outra direção.

— Para onde vamos?

— Faremos uma pequena viagem.

— Para onde? - Jamie estava desconfiado. — Não quero fazer nenhuma viagem.

Sem a menor hesitação, Alex declarou:

— Comprarei um PSP para você.

Havia um ano que ela se recusava com firmeza a comprar um desses programas de jogos eletrônicos. Mas agora disse a primeira coisa que surgiu em sua mente.

— Jura? Mil vezes obrigado! — Jamie franziu o rosto. — Mas que jogos? Quero Tony HawkThree, quero Shrek...

— Qualquer coisa que você quiser. Mas entre logo no carro. Vamos levar Amy de volta ao escritório.

— E para onde vamos depois?

— Legoland.

Foi a primeira coisa que ocorreu a Alex.

Na volta para o escritório, Amy disse:

— Trouxe o pacote de seu pai. Pensei que você poderia querer.

— Que pacote?

— Chegou no escritório na semana passada. Você não abriu. Estava muito ocupada com o julgamento do caso de estupro de Mick Crowley. Deve lembrar... aquele jornalista político que gosta de meninos.

Era uma caixa pequena da FedEx. Alex abriu-a e despejou o conteúdo em seu colo.

Um celular barato, do tipo que você compra para usar com um cartão.

Dois cartões telefônicos pré-pagos.

Dinheiro embrulhado em papel laminado: cinco mil dólares em notas de cem.

E um bilhete enigmático: "Em caso de problemas. Não use seus cartões de crédito. Desligue seu celular. Não diga a ninguém para onde vai. Pegue o carro emprestado de alguém. Ligue-me púo pager quando estiver num motel. Mantenha Jamie com você."

Alex suspirou.

— Que filho-da-puta...

— O que foi?

— As vezes meu pai me irrita. — Amy não precisava saber dos detalhes. - Hoje é quinta-feira. Por que não tira um longo fim de semana de folga?

— É o que meu namorado pretende fazer. Quer ir a Pebble Beach para assistir ao desfile de carros antigos.

— É uma grande idéia. Leve meu carro.

— Posso mesmo? Não sei... e se acontecesse alguma coisa? Um acidente ou coisa parecida.

— Não se preocupe com isso. Apenas leve o carro. Amy franziu o rosto. Houve um longo silêncio.

— É seguro?

— Claro que é seguro.

— Não sei em que você está envolvida — murmurou Amy.

- Não é nada grave. Apenas um problema de erro de identidade. Prometo que tudo será resolvido na segunda-feira. Traga o carro de volta na noite de domingo. Voltaremos a nos falar no escritório na manhã de segunda.

- Com certeza?

- Absoluta.

- Meu namorado pode dirigir?

- Claro.

 

Geórgia Bellarmino nunca saberia se não fosse pela caixa de cereal.

Falava ao telefone com um cliente de Nova York, um corretor de investimentos que acabara de ser nomeado para o Departamento de Energia. Conversavam sobre a casa que ele queria comprar para a família em Rockville, Maryland. Geórgia, que havia três anos consecutivos era a Melhor Corretora de Imóveis de Rockville, negociava as condições da aquisição quando a filha de dezesseis anos, Jennifer, gritou da cozinha:

— Mamãe, estou atrasada para a escola! Onde está o cereal?

— Na mesa da cozinha.

— Não está, não.

— Olhe de novo.

— A caixa está vazia, mamãe. Jimmy deve ter comido tudo. A Sra. Bellarmino cobriu o fone com a mão.

— Então pegue outra caixa, Jen. Você tem dezesseis anos. Não é mais uma garotinha desamparada.

— Onde? — perguntou Jennifer. Batendo portas na cozinha.

— Procure no armário por cima do forno.

— Já procurei. Não está lá.

A Sra. Bellarmino disse ao cliente que ligaria mais tarde. Foi para a cozinha. A filha usava um jeans de cintura baixa. A blusa era transparente, do tipo que uma prostituta usaria para trabalhar. Mas hoje em dia até mesmo as adolescentes na escola vestiam-se dessa maneira. Ela suspirou.

— Procure em cima do forno.

— Já procurei.

— Procure de novo.

— Pode pegar para mim, mamãe? Estou atrasada. A Sra. Bellarmino manteve-se firme.

— Em cima do forno.

Jennifer estendeu a mão, abriu a porta do armário, e encontrou a caixa de cereais, que estava mesmo ali desde o início, é claro. Mas a Sra. Bellarmino não olhava para a caixa. Examinava a barriga exposta da filha.

— Jen... você está de novo com aquelas equimoses.

A filha baixou a mão com a caixa. Puxou a blusa, cobrindo a barriga.

— Não é nada.

— Você também estava assim no outro dia.

— Estou atrasada, mamãe. Ela foi até a mesa e sentou.

— Jennifer... mostre.

Com um suspiro exasperado, a filha ficou de pé e levantou a blusa, expondo o abdômen. A Sra. Bellarmino viu uma equimose horizontal de três centímetros de comprimento, um pouco acima da linha do biquíni. E uma segunda, mais fraca, no outro lado da barriga.

— Não é nada, mamãe. Sempre esbarro na mesa.

— Mas não deveria ficar assim.

— Não é nada.

— Tem tomado suas vitaminas?

— Posso apenas comer, por favor, mamãe?

— Sabe que pode me contar qualquer coisa... sabe disso...

— Mamãe, vai me fazer chegar atrasada na escola! E tenho uma prova de francês!

Não havia sentido em pressioná-la agora. De qualquer forma, o telefone começara a tocar... sem dúvida o cliente de Nova York ligando de novo. Os clientes eram impacientes. E esperavam que os corretores de imóveis estivessem disponíveis em todos os minutos do dia. Ela foi atender na sala, abrindo a pasta para revisar os números. Cinco minutos depois, a filha gritou:

- Até mais, mamãe!

Geórgia ouviu a batida da porta da frente. Sentia uma intensa apreensão.

Era apenas um pressentimento, mas ela ligou para o laboratório do marido, em Bethesda. Para variar, Rob não estava em nenhuma reunião. A ligação foi transferida imediatamente. Ela relatou o que acontecera.

- O que acha que devemos fazer? — perguntou Geórgia.

- Reviste o quarto dela. Temos uma obrigação.

- Está bem. Ligarei para o escritório e avisarei que chegarei mais tarde.

- Voarei assim que puder. Mas avise-me logo se descobrir alguma coisa.

 

O Boeing 737 de Barton Williams taxiou até parar no terminal particular do Hopkins, em Cleveland, Ohio. O zumbido dos motores foi diminuindo. O interior do avião era luxuoso. Havia dois quartos, dois banheiros completos, inclusive com chuveiro, e uma sala de jantar para oito pessoas. Mas o quarto principal, que ocupava toda a terça parte posterior do avião, com uma cama enorme e uma colcha de pêlo, a iluminação suave, foi o lugar em que Barton passou a maior parte do vôo. Precisava apenas de uma comissária de bordo, mas invariavelmente viajava com três. Gostava de companhia. Gostava de riso e conversa descontraída. Gostava de carne jovem e macia na colcha de pêlo, com a iluminação vermelha, sensual. E a doze mil metros de altitude era o único lugar em que podia ter certeza de que ficaria a salvo da esposa.

E pensar na esposa arrefeceu sua disposição. Olhou para o papagaio em seu poleiro, na sala de estar do avião. O papagaio disse:

— Você me seqüestrou.

— Como é mesmo seu nome? — perguntou Barton.

— Riley... Doghouse Riley.

Falando num tom engraçado, de rock da pesada.

— Não banque o espertinho comigo.

— Meu nome é Gerard.

— Isso mesmo. Gerard. Não gosto muito. Parece estrangeiro. Que tal Jerry? Serve para você?

— Não, não serve.

— Por que não?

— É estúpido. Uma idéia estúpida.

Houve um momento de silêncio constrangedor.

— É mesmo?

Havia uma insinuação de ameaça na voz de Barton Williams. Ele sabia que era apenas um animal, mas não estava acostumado a ser chamado de estúpido — ainda mais por uma ave - e ninguém o fizera em muitos anos. E sentiu que seu entusiasmo por aquele presente começava a esfriar.

— Jerry, é melhor você se dar bem comigo, porque sou o seu dono agora.

— As pessoas não podem ser possuídas.

— Mas você não é uma pessoa, Jerry. - Barton foi até o poleiro. — Agora, vou explicar como terá de ser. Darei você de presente à minha esposa e quero que se comporte, quero que seja divertido, quero que a elogie e a faça se sentir bem. Entendido?

— Todo mundo faz - disse Gerard.

Ele imitava a voz do piloto, que ouviu e virou a cabeça da cabine de comando para olhar.

— Jesus, às vezes eu não suporto aquele velho peidorrento — acrescentou Gerard.

Barton Williams franziu o rosto.

Ouviu em seguida uma imitação precisa dos motores a jato do avião em vôo, e superposta uma voz de mulher, uma das comissárias:

— Jenny, você vai chupar o velho ou vou eu?

— É a sua vez. Suspiro.

— Está bem.

— Não se esqueça de levar o drinque dele. O estalo de uma porta abrindo e fechando.

Barton Williams começou a ficar vermelho. O papagaio continuou:

— Oh, Barton! Dê isso para mim! Você é tão grande! Oh, Barton! Assim, meu bem! Meu garotão! Adoro isso! Você é tão grande! Ahn...

Barton Williams olhava aturdido para o papagaio.

— Acho que você não será um acréscimo bem-vindo para a minha casa.

- Você é a razão de nossos filhos serem tão feios, queridinho - disse Gerard.

- Já ouvi demais — resmungou Barton, virando-se.

- Oh, Barton! Dê isso para mim! Você é tão grande! Barton Williams cobriu a gaiola com a capa.

- Jenny, meu bem, você tem família em Dayton, não é?

- É, sim, Sr. Williams.

- Acha que alguém em sua família gostaria de ter um papagaio falante?

- Ahn, para dizer a verdade... Claro, Sr. Williams. Tenho certeza que adorariam.

- Ainda bem. Eu agradeceria se você o levasse para sua família ainda hoje.

- Pois não, Sr. Williams.

- E se por acaso sua família não apreciar companheiros emplumados, basta amarrar alguns pesos em suas pernas e jogá-lo no rio. Pois eu nunca mais quero ver esse papagaio.

- Certo, Sr. Williams.

- Eu ouvi isso! - resmungou Gerard.

- Ainda bem - disse Barton Williams.

Depois que a limusine do velho se afastou, Jenny ficou parada na pista, segurando a gaiola coberta.

- O que farei com esta coisa? — murmurou ela. - Meu pai odeia aves. Atira em todas elas.

- Leve para uma loja de animais de estimação — sugeriu o piloto. — Ou dê para alguém que o leve para Utah, México, ou outro lugar parecido.

A Refreshing Paws era uma loja de alta classe em Shaker Heights. Havia ali muitos cachorrinhos. O jovem por trás do balcão era atraente, talvez um pouco mais moço do que Jenny. Tinha um corpo sarado. Ela entrou, carregando Gerard na gaiola coberta.

- Você tem papagaios aqui?

— Não. Só temos cachorros. — Ele sorriu. — O que você tem aí? Sou Stan.

O crachá informava que o nome era STAN MILGRAM.

— Oi, Stan. Sou Jenny. E este é Gerard. É um papagaio cinza africano.

— Vamos dar uma olhada nele. Você quer vendê-lo, ou o quê?

— Quero dá-lo.

— Por quê? Qual é o problema?

— O dono não gosta dele.

Jenny removeu a capa. Gerard piscou e bateu as asas.

— Fui seqüestrado.

— Ei, ele fala muito bem! — exclamou Stan.

— E bem falante - comentou Jenny.

— E bem falante - repetiu Gerard, imitando a voz, para depois acrescentar: — Pare de ser condescendente comigo.

Stan franziu o rosto.

— O que ele está querendo dizer?

— Estou cercado por idiotas — disse Gerard.

— Ele apenas fala demais — murmurou Jenny, dando de ombros.

— Há alguma coisa errada com ele?

— Não. Não tem nada errado.

Gerard virou-se para Stan e declarou, enfático:

— Já disse que fui seqüestrado. Ela está envolvida. É uma das seqüestradoras.

— Ele é roubado? — perguntou Stan.

— Não roubado - protestou Gerard. - Seqüestrado.

— Que tipo de sotaque é esse?

Stan sorria para Jenny. Ela virou-se de lado, a fim de mostrar o perfil dos seios.

— Francês.

— Ele fala como um britânico.

— Veio da França. É tudo o que sei.

— O Ia Ia — murmurou Gerard. — Quer fazer o favor de me escutar?

— Ele pensa que é uma pessoa — explicou Jenny.

- E sou mesmo uma pessoa, sua mulherzinha insignificante - declarou Gerard. — Se quer transar com esse cara, vá em frente. Só não me deixe aqui esperando enquanto requebra seu patrimônio para ele.

Jenny ficou vermelha. O garoto desviou os olhos, mas logo tornou a fitá-la, sorrindo.

- Ele tem uma boca suja — murmurou Jenny, ainda corada.

- Ele costuma dizer palavrão?

- Nunca ouvi.

- Neste caso, conheço alguém que pode gostar dele. Basta que ele não diga palavrão.

- Quem?

- Minha tia que vive na Califórnia. Em Mission Viejo. Fica no condado de Orange. Ela é viúva e mora sozinha. Gosta de animais e é solitária.

- Pode dar certo.

- Você está me dando?. — O tom de Gerard era horrorizado. - Isso é escravidão. Não sou uma coisa que pode ser dada

- Tenho de ir de carro até lá dentro de dois ou três dias. Poderia levá-lo comigo. Tenho certeza que minha tia gostaria. Ahn... o que você vai fazer esta noite?

- Acho que estou livre — murmurou Jenny.

 

O Armazém ficava perto do aeroporto, em Medan. Tinha uma clarabóia, e por isso a iluminação era boa. O jovem orangotango na jaula parecia bastante saudável, os olhos brilhantes e alertas. Dava a impressão de que se recuperara por completo dos dardos.

Mas Gorevitch andava de um lado para outro, na maior frustração, olhando a todo instante para o relógio. Na mesa próxima, sua câmera de vídeo estava virada de lado, a caixa rachada, uma água lamacenta escorrendo. Gorevitch poderia desmontá-la para secar, mas carecia das ferramentas. Carecia... carecia...

Um pouco afastado, Zanger, o representante da rede de televisão, perguntou:

— O que vamos fazer agora?

— Esperamos por outra câmera. — Gorevitch virou-se para o representante da DHL, a firma de transporte, um jovem malaio com um uniforme amarelo brilhante. — Quanto tempo mais?

— Disseram que dentro de uma hora, senhor. Gorevitch soltou uma risada.

— Disseram isso há duas horas.

— É verdade, senhor. Mas o avião já deixou Bekasi e está a caminho.

Bekasi ficava na costa norte de Java. A 1.300 quilômetros.

— E a câmera está no avião?

— Acho que sim, senhor.

Gorevitch recomeçou a andar de um lado para outro, evitando o olhar acusador de Zanger. Era tudo uma comédia de erros. Na selva, Gorevitch empenhara-se em ressuscitar o orangotango durante quase uma hora, antes que o animal apresentasse sinais de vida. Depois, tivera a maior dificuldade para imobilizá-lo e sedá-lo de novo, não muito desta vez. Passara a monitorá-lo com todo o cuidado, para evitar que entrasse no choque de adrenalina, enquanto o levava para o norte, até Medan, a cidade com um aeroporto mais próxima.

O orangotango sobrevivera à viagem sem incidentes, até aquele armazém, onde xingara como um marujo holandês. Gorevitch avisara a Zanger, que voara imediatamente de Nova York.

Quando Zanger chegara, no entanto, o orangotango estava com laringite e não falava mais, exceto por um sussurro rouco.

— De que vai adiantar? — perguntara Zanger. - Não dá para ouvi-lo.

— Não tem importância — dissera Gorevitch. — Vamos filmá-lo e dublaremos a voz mais tarde. Com uma perfeita sincronia com os lábios.

— Pretende dublá-lo?

— Ninguém saberá.

— Ficou louco? Todo mundo saberá. Todos os laboratórios do mundo examinarão o vídeo com os equipamentos mais sofisticados. Descobrirão que houve uma dublagem em cinco minutos.

— Neste caso, vamos esperar até que ele melhore. Zanger também não gostara dessa perspectiva.

— Ele parece bastante doente. Por acaso pegou um resfriado?

— É possível.

Na verdade, Gorevitch tinha quase certeza de que o orangotango pegara seu resfriado durante o procedimento de ressuscitamento boca a boca. Era um resfriado bastante brando para Gorevitch, mas parecia muito grave para o orangotango, que agora se dobrou em espasmos de tosse.

— Ele precisa de um veterinário.

— Não podemos levá-lo - declarara Gorevitch. - Já esqueceu que é um animal protegido e nós o roubamos?

— Você roubou — ressaltara Zanger. — E, se não tomar cuidado, vai matá-lo também.

— Ele é jovem. Vai se recuperar.

E, de fato, no dia seguinte o orangotango voltara a falar, mas tinha tosses espasmódicas e cuspia um horrível catarro verde-amarelo. Gorevitch decidira que era melhor filmar o animal agora. Fora buscar os equipamentos no carro, mas tropeçara e deixara a câmera cair numa vala cheia de lama. A caixa rachara. A menos de três metros da porta do armazém.

E é claro que não havia, em toda a cidade de Medan, uma única câmera de vídeo razoável. Por isso, tiveram de trazer uma de avião de Java. Esperavam agora pela câmera, enquanto o orangotango praguejava, tossia e escarrava de sua jaula. Zanger parou fora do alcance, balançando a cabeça.

— Cristo, que nojeira!

E Gorevitch, mais uma vez, virou-se para o jovem malaio e perguntou:

— Quanto tempo mais?

O malaio limitou-se a balançar a cabeça e dar de ombros. E o orangotango, dentro da jaula, praguejava e tossia.

 

Geórgia Bellarmino abriu a porta do quarto da filha e

começou a efetuar uma rápida revista. O quarto estava uma bagunça, é claro. Havia migalhas nas dobras das roupas de cama amarrotadas, CDs arranhados no chão, latas de Coca-Cola viradas por baixo da cama, além de uma escova de cabelos suja, um ferro de frisar cabelos, um tubo vazio de bronzeador. Geórgia abriu as gavetas da mesinha-de-cabeceira, revelando uma confusão de papéis de goma de mascar, calcinhas amarrotadas, balas de hortelã, rimel, fotos do baile da escola no ano passado, caixas de fósforos, uma calculadora, meias sujas, números antigos das revistas Teen Vogue e People. E um maço de cigarros, o que a deixou infeliz.

Depois, verificou as gavetas da cômoda, vasculhando depressa, tateando até o fundo; em seguida, o closet, o que exigiu um pouco mais de tempo. Uma barafunda de sapatos e tênis no fundo. O armário debaixo da pia e até o cesto de roupa suja.

Nada encontrou que pudesse explicar as equimoses.

Não havia o menor sentido em pôr o cesto ali, ela pensou, já que Jennifer largava as roupas por todo o chão do banheiro. Geórgia Bellarmino abaixou-se para pegá-las, sem pensar a respeito. Foi quando notou as riscas no chão do banheiro. Feitas por borracha. Quase indistintas. Em paralelo.

Ela sabia o que causara aquelas riscas: uma escada.

Levantou os olhos para o teto e concentrou-se no painel que dava acesso ao sótão. Havia manchas borradas de dedos ali.

Geórgia foi buscar uma escada.

Empurrou o painel para o lado. Agulhas e seringas caíram, batendo no chão com algum estardalhaço.

Oh, Deus! Geórgia estendeu a mão para o espaço do sótão, tateando ao redor. Tocou numa pilha de tubos de cartolina, como tubos de pasta de dente. Pegou-os. Todos tinham rótulos médicos: LUPRON, GONAL-F, FOLLESTIM.

Drogas da fertilidade.

O que sua filha estava fazendo?

Geórgia decidiu não ligar para o marido; ele ficaria transtornado. Em vez disso, pegou o celular e ligou para a escola.

 

O Interfone tocava na sala do Dr. Martin Bennett, no consultório em Chicago, mas ele não prestava atenção.

O resultado da biópsia era pior do que ele esperava. Muito pior. Ele passou os dedos pela beira do papel, especulando como daria a notícia à sua paciente.

Martin Bennett tinha 55 anos; era um internista havia quase um terço de século. Ao longo dos anos, já dera más notícias a muitos pacientes. Mas nunca era mais fácil. Ainda mais se a pessoa era jovem, com filhos pequenos. Ele olhou para as fotos de seus filhos na mesa. Ambos estavam na universidade agora, Tad em Stanford, Bill em Colúmbia, fazendo o curso preparatório para a faculdade de medicina.

Uma batida na porta. Sua enfermeira, Beverly, abriu-a e esticou a cabeça.

— Lamento interrompê-lo, Dr. Bennett, mas não atendeu o interfone. E achei que era importante.

— Eu sei. Estava apenas... tentando pensar na melhor maneira de dar a notícia. — Ele levantou-se. — Receberei Andréa agora.

Beverly sacudiu a cabeça.

— Andréa ainda não chegou. Queria informá-lo sobre a outra mulher.

— Que outra mulher?

Beverly entrou na sala e fechou a porta. Baixou a voz:

— Sua filha.

— Mas do que está falando? Não tenho nenhuma filha.

— Tem uma mulher na sala de espera que diz que é sua filha.

— Isso é impossível. Quem é ela? Beverly olhou para a ficha em sua mão.

— O nome é Murphy. Vive em Seattle. A mãe trabalha na universidade. Ela tem 28 anos. Veio acompanhada por uma criança, uma menina, talvez com um ano e meio.

— Murphy? Seattle? — Bennett fez um esforço para se recordar. - Vinte e oito anos, você disse? Não, não é possível.

Ele tivera sua cota de romances durante a faculdade. Mas casara com Emily há quase trinta anos e desde então só fora infiel em conferências médicas. É verdade que havia pelo menos duas por ano, em Cancún, Suíça e outros lugares exóticos. Mas isso só começara há cerca de dez ou quinze anos. Em suma, não era possível que ele tivesse uma filha com aquela idade.

— Acho que nunca se pode ter certeza... — murmurou Beverly. — Vai recebê-la?

-Não.

— Direi a ela. - Beverly baixou a voz para um sussurro ao acrescentar: — Mas não queremos que ela faça uma cena na frente dos pacientes. Ela parece ser um pouco... ahn... instável. E se não é sua filha, talvez seja melhor esclarecer tudo em particular.

Bennett acenou com a cabeça lentamente. Tornou a sentar.

— Tem razão. Mande-a entrar.

- Uma surpresa e tanto, hem? - A mulher parada na porta, com uma criança no colo, era uma loura desgraciosa, de estatura média, usando jeans e camiseta suja. O rosto da criança também estava sujo, o catarro escorrendo. — Desculpe não ter me vestido à altura para a ocasião, mas sabe como são essas coisas.

Bennett levantou-se, sem sair de trás da mesa.

— Entre, por favor... ahn...

— Murphy. Elizabeth Murphy. — Ela acenou com a cabeça para a criança. — Esta é Bess.

— Sou o Dr. Bennett.

Ele acenou para que a mulher sentasse no outro lado da mesa, observando-a atentamente. Não via a menor semelhança. Ele tinha cabelos escuros, a pele clara, com um pouco de excesso de peso. A mulher tinha a pele azeitonada, era muito magra, frágil, tensa.

- Já sei que está pensando que não pareço nem um pouco com você. Mas com a cor natural dos meus cabelos e mais peso, poderia ver a semelhança.

- Sinto muito - disse Bennett, sentando. — Para ser franco, não vejo nenhuma.

- Não tem problema - murmurou a mulher, dando de ombros. - Imagino que deve ser um choque para você... meu aparecimento em seu consultório dessa maneira.

- É sem dúvida uma surpresa.

- Pensei em ligar antes para avisá-lo, mas depois decidi que deveria vir direto. Se falasse antes, poderia se recusar a me receber.

- Eu compreendo. O que a faz pensar que é minha filha?

- Sou mesmo sua filha. Não pode haver a menor dúvida. Ela falava com absoluta confiança.

- Sua mãe diz que me conhece? - Não.

- Alguma vez se encontrou comigo?

- Claro que não.

Bennett soltou um suspiro de alívio.

- Neste caso, não posso entender...

- Irei direto ao ponto. Fez sua residência em Dallas. No Southern Memorial.

Ele franziu o rosto.

- Isso mesmo.

- Verificavam o tipo de sangue de todos os residentes, para o caso de precisarem de doadores de emergência.

- Isso foi há muito tempo.

Bennett estava recordando. Já tinha trinta anos.

- Pois eles guardaram o sangue, papai.

Ele percebeu de novo a convicção na voz da mulher.

- E o que isso significa?

Ela mudou de posição na cadeira.

- Quer pegar sua neta?

— Não, no momento. Obrigado.

A mulher deu um sorriso insinuante.

— Você não é o que eu esperava. Pensei que um médico seria mais... simpático. As pessoas são mais simpáticas na clínica de metadona em Bellevue.

— Sra. Murphy, deixe-me...

— Mas quando me livrei das drogas e tive esta linda filha, queria que minha vida tivesse algum sentido. Queria que a criança conhecesse os avós. E queria finalmente conhecê-lo.

Já era tempo de acabar com aquilo, decidiu Bennett, levantando-se.

— Sra. Murphy, deve compreender que posso mandar fazer um teste genético, que vai comprovar...

— Claro que compreendo.

Ela pôs um papel dobrado na mesa. Bennett abriu-o. Era um relatório de um laboratório de genética de Dallas. Ele leu rapidamente os parágrafos. Ficou atordoado.

— Diz aí que você é incontestavelmente meu pai - declarou a mulher. - Uma chance em quatro bilhões de que não seja. Testaram meu material genético contra seu sangue guardado.

— Isso é um absurdo... - murmurou Bennett, arriando na cadeira.

— Pensei que me daria os parabéns. Não foi fácil descobrir. Minha mãe vivia em St. Louis há 28 anos; era casada na ocasião...

Bennett fizera a faculdade de medicina em St. Louis.

— Mas ela não me conhece?

— Fez inseminação artificial, de um doador anônimo. Que foi você.

Bennett sentiu-se ainda mais tonto.

— Calculei que o doador devia ser um estudante de medicina, porque ela procurou a clínica na faculdade - acrescentou Elizabeth Murphy. — E eles tinham seu próprio banco de esperma. Os estudantes de medicina doavam esperma por dinheiro naquele tempo, não é mesmo?

— É, sim. Vinte e cinco dólares.


— Aí está. Um bom dinheiro para as pequenas despesas naquela época. E podia-se fazer isso... com que freqüência? Uma vez por semana? Ir até lá e se masturbar?

— Mais ou menos isso.

— A clínica foi destruída por um incêndio há quinze anos. Todos os registros se perderam. Mas obtive os anuários dos estudantes e examinei-os. Havia cerca de 120 alunos em cada turma. A metade era de mulheres. Isso significa que havia sessenta homens. Com a eliminação dos asiáticos e outras minorias, sobravam cerca de 35 por ano. Naquele tempo, o esperma não era guardado por mais de um ano. Acabei com 140 nomes para verificar. E foi mais rápido do que eu previa.

Bennett afundou ainda mais na cadeira.

— Mas quer saber a verdade? Quando vi seu retrato no anuário, tive a certeza imediata. Alguma coisa nos seus cabelos, nas sobrancelhas... Seja como for, aqui estou.

— Mas isso nunca deveria acontecer. Éramos todos doadores anônimos. Não podíamos ser descobertos. Ninguém jamais saberia se tínhamos filhos ou não. E naquele tempo o anonimato era uma garantia.

— Podia ser, mas esses dias passaram.

— Mas nunca concordei em ser seu pai. Isso é fundamental. Ela deu de ombros.

— O que posso dizer?

— Eu não estava fazendo uma criança. Apenas ajudava casais inférteis, para que pudessem ter uma criança.

— Sou sua filha.

— Mas tem pais...

— Sou sua filha, Dr. Bennett. E posso provar isso nos tribunais. Houve um momento de silêncio. Os dois ficaram se olhando. A menina babava e se remexia. Bennett finalmente perguntou:

— Por que veio até aqui?

— Queria conhecer meu pai biológico...

— Já conheceu.

— E queria que ele cumprisse seus deveres e obrigações. Pelo que fez comigo.

Então era isso. As cartas caíam na mesa.

— Sra. Murphy, não receberá nada de mim. Bennett levantou-se. Ela também.

— O motivo para eu ser viciada está em seus genes.

— Não diga absurdos.

— Seu pai era alcoólico e você também teve problemas. Tem os genes para o vício.

— Que genes?

— AGS3. Dependência de heroína. DAT1. Vício em cocaína. Tem esses genes e eu também. Deu-me esses genes. Nunca deveria ter doado esperma defeituoso, em primeiro lugar.

— Mas do que está falando? - Bennett sentia-se subitamente nervoso. Era evidente que a mulher seguia um roteiro memorizado. Dava para sentir o perigo. — Doei o esperma há trinta anos. Não havia testes naquele tempo... e não há responsabilidade agora...

— Você sabia — interrompeu ela, ríspida. - Sabia que tinha um problema com cocaína. Sabia que era uma coisa de família. Mas vendeu seu esperma assim mesmo. Pôs seu esperma defeituoso e perigoso no mercado. Sem se importar com quem infectava.

— Infectava?

— Não tinha o direito de fazer o que fez. E uma desgraça para a profissão médica. Infecta outras pessoas com suas doenças genéticas. E não se importa nem um pouco.

Mesmo com toda a sua agitação, Bennett conseguiu manter algum controle.

— Sra. Murphy, não tenho mais nada a lhe dizer.

— Está me expulsando? Vai se arrepender por isso... vai se arrepender amargamente.

E ela saiu da sala, furiosa.

Bennett, sentindo-se subitamente esgotado, arriou na cadeira. Estava em estado de choque. Olhou para a mesa, para as fichas dos pacientes à espera. Nada disso parecia importar agora. Ele ligou para seu advogado e explicou a situação.

— Ela quer dinheiro? — perguntou o advogado.

— Presumo que sim.

— Disse quanto?

— Jeff, não está levando isso a sério, não é?

— Infelizmente, temos de levar. Isso aconteceu no Missouri, e o Missouri não tinha leis claras naquele tempo sobre paternidade em casos de inseminação artificial. Os casos como o seu nunca foram um problema até bem pouco tempo. Mas, como regra geral em disputas de paternidade, o tribunal ordena o sustento infantil.

— Ela tem 28 anos.

— E tem pais, ainda por cima. Mesmo assim, ela pode entrar com uma ação judicial contra você. Com base nessa coisa de gene, pode alegar risco temerário. Pode alegar abuso infantil. E qualquer outra coisa que conseguir tirar da cartola. Talvez obtenha uma reação favorável de um juiz, talvez não. Lembre-se de que as decisões sobre paternidade costumam ser contra os homens. Digamos que você engravida uma mulher e ela decide abortar. Pode fazer isso sem consultá-lo. Mas se ela tomar a decisão de dar à luz, você terá de pagar o sustento, mesmo que nunca tenha concordado em ter a criança. O tribunal dirá que é sua responsabilidade não tê-la engravidado em primeiro lugar. Ou vamos supor que você faça um teste genético com seus filhos e descubra que não são seus... que sua esposa o enganou. O tribunal ainda assim exigirá que pague o sustento de crianças que não são suas.

— Mas ela tem 28 anos. Não é mais uma criança...

— A questão é a seguinte: um médico proeminente quer lutar nos tribunais num caso que envolve não sustentar a própria filha?

-Não.

— Isso mesmo, você não vai querer. Ela sabe disso. E presumo que também conheça as leis do Missouri. Portanto, espere até ela procurá-lo de novo. Marque um encontro e me chame. Se ela tiver um advogado, melhor ainda. Peça que ele também compareça. Enquanto isso, mande-me por fax o relatório genético que ela deixou com você.

— Terei de pagar alguma coisa a ela?

— Pode contar com isso — respondeu o advogado, antes de desligar.

 

A policial de plantão na recepção da delegacia de Rockville era uma negra atraente, a pele lisa, de 25 anos. A placa na mesa dizia POLICIAL J. LOWRY. Seu uniforme era engomado.

Geórgia Bellarmino empurrou a filha até a mesa. Pôs o saco de papel com as seringas na mesa e disse:

— Policial Lowry, quero saber por que minha filha tem estas coisas, mas se recusa a me dizer.

A filha lançou-lhe um olhar furioso.

— Eu odeio você, mamãe.

Lowry não demonstrou qualquer surpresa. Olhou para as seringas. Fitou a filha de Geórgia.

— Esses medicamentos foram receitados por um médico?

— Foram.

— Envolvem questões de reprodução?

— Envolvem.

— Que idade você tem?

— Dezesseis anos.

— Posso ver algum documento de identidade?

— Ela tem mesmo dezesseis anos. - Geórgia Bellarmino inclinou-se para a frente. — E quero saber...

— Desculpe, senhora — interrompeu a policial. — Se ela tem dezesseis anos e essas drogas envolvem questões reprodutivas, a senhora não tem o direito de ser informada.

— Como não tenho o direito de ser informada? Ela é minha filha e só tem dezesseis anos!

— É a lei.

- Mas essa lei é para os casos de aborto. Ela não vai fazer um aborto. Aliás, não sei o que ela está fazendo. Essas são drogas de fertilidade. Ela está tomando drogas para a fertilidade.

- Lamento, mas não posso ajudá-la neste ponto.

- Está querendo dizer que minha filha tem o direito de injetar drogas em seu corpo e eu não tenho permissão para saber o que está acontecendo?

- Não, não tem, se ela não quiser contar.

- E seu médico?

A policial Lowry sacudiu a cabeça.

- Ele também não pode contar. Sigilo médico-paciente. Geórgia Bellarmino recolheu as seringas e guardou de volta no saco.

- Isso é um absurdo.

- Não faço as leis. Apenas as aplico.

Voltavam para casa.

- Meu bem, você está tentando engravidar? - perguntou Geórgia Bellarmino.

-Não.

Sentada ao lado, no carro, de braços cruzados. Furiosa. - Você só tem dezesseis anos, isso não deveria ser um problema... O que está querendo?

- Você me fez sentir como uma idiota.

- Só estou preocupada, meu bem.

- Não está, não. Seu problema é que não passa de uma vaca intrometida. Odeio você e odeio este carro.

Continuou assim por algum tempo, até que Geórgia levou a filha para a escola. Jennifer saltou e bateu a porta.

- E me fez chegar atrasada para a aula de francês!

Fora uma manhã exaustiva e ela cancelara duas reuniões. Agora, tinha de remarcar os encontros e tentar recuperar o tempo perdido. Geórgia entrou no escritório, pôs o saco com as seringas no chão, e começou a fazer uma ligação.

A gerente do escritório, Florence, passou pela mesa, viu o saco, e comentou:

— Não é um pouco velha para isso?

— Não é para mim — resmungou Geórgia, irritada.

— Então... não é sua filha?

Geórgia acenou com a cabeça em confirmação.

— É ela mesmo.

— Deve ser o Dr. Vandickien.

— Quem?

— Um médico de Miami. As adolescentes tomam hormônios, bombeiam os ovários, vendem os óvulos para ele e embolsam o dinheiro.

— E fazem o quê?

— Compram implantes para os seios. Geórgia suspirou.

— É demais...

Ela queria que o marido conversasse com Jennifer, mas infelizmente Rob estava voando para Ohio, onde fariam um segmento de programa de televisão com ele. A discussão — e, com certeza, seria inflamada - teria de esperar.

 

Viajando no transporte subterrâneo do prédio de escritórios do Senado para o restaurante do Senado, o senador Robert Wilson (democrata de Vermont) virou-se para a senadora Dianne Feinstein (democrata da Califórnia) e disse:

— Acho que devemos ser mais proativos nas questões genéticas. Por exemplo, precisamos estudar uma lei que impeça as jovens de venderem seus óvulos por lucro.

— As jovens já estão fazendo isso, Bob. Muitas vendem seus óvulos.

— Para pagar a universidade?

— Talvez algumas. A maioria vende para comprar um carro novo para o namorado, ou para pagar a própria cirurgia plástica.

O senador Wilson parecia perplexo.

— Há quanto tempo isso vem acontecendo?

— Já tem dois ou três anos — respondeu Feinstein.

— Talvez na Califórnia...

— Por toda parte, Bob. Uma adolescente em New Hampshire vendeu para pagar a fiança do namorado.

— E isso não a perturba?

— Não me agrada. Acho que é uma imprudência. Em termos médicos, o procedimento acarreta riscos. Essas jovens podem estar arriscando seus futuros reprodutivos. Mas qual seria a base para proibir? São seus corpos, seus óvulos. — Feinstein deu de ombros. — Seja como for, Bob, o barco já zarpou há algum tempo.

 

NÃO DE NOVO!

EUis Levine encontrou a mãe no segundo andar da loja Polo Ralph Lauren, na esquina da Madison com a rua 72. Ela estava parada na frente do espelho, usando um terninho creme de linho, com uma echarpe verde. Virava para um lado e outro.

— Olá, querido - disse ela, quando o viu. - Vai fazer outra cena?

— O que está fazendo, mamãe?

— Comprando umas coisinhas para o verão, querido.

— Já conversamos sobre isso.

— Só umas coisinhas — murmurou a mãe. — Para o verão. Gosta da bainha nesta calça?

— Mamãe, já passamos por isso antes.

Ela franziu o rosto e afofou os cabelos brancos.

— Gosta da echarpe? Acho que é um pouco exagerada.

— Precisamos conversar - insistiu Ellis.

— Vamos almoçar?

— O spray não funcionou.

— Não sei... — Ela passou a mão pelo rosto. — Senti um pouco de umidificação. Durante cerca de uma semana depois. Mas também não foi muita coisa.

— E continuou a fazer compras.

— Quase não faço mais compras.

— Três mil dólares na semana passada.

— Não se preocupe. Devolvo muitas dessas coisas. — Ela deu um puxão na echarpe. — Acho que o verde faz uma coisa esquisita com a minha pele. Deixa-me com uma aparência de doente. Mas uma echarpe rosa pode ficar muito bem. Tenho de verificar se há desse mesmo tipo em rosa.

Ellis observava-a atentamente, com uma crescente sensação de presságio. Havia alguma coisa errada, concluiu ele. Ela estava parada na frente do espelho, exatamente na mesma posição em que a encontrara semanas antes, quando a mãe demonstrara uma total indiferença a ele, sua mensagem, a situação da família, a situação financeira. Sua atitude era completamente imprópria.

Como contador, Ellis tinha horror a pessoas que eram impróprias em relação ao dinheiro. O dinheiro era real, tangível, fatos concretos e cálculos objetivos. Esses fatos e cálculos não eram uma questão de opinião. Não dependiam da maneira como você os considerava. A mãe não era capaz de reconhecer a realidade fria de sua situação financeira.

Ele observou a mãe sorrir, perguntando à vendedora se tinha a mesma echarpe em rosa. Não, respondeu a moça, não haviam feito rosa naquele ano. Só havia em verde e branco. A mãe pediu para experimentar a branca. A vendedora afastou-se. A mãe sorriu para ele.

Bastante imprópria. Quase como se...

Pode ser demência precoce, pensou Ellis. Pode ser o primeiro sinal.

— Por que está me olhando desse jeito?

— De que jeito, mamãe?

— Não sou louca. Não vão me internar num hospício.

— Como pode dizer isso?

— Sei que vocês querem o dinheiro. É por isso que estão vendendo as casas em Vail e nas Ilhas Virgens. Pelo dinheiro. São gananciosos, todos vocês. São como abutres esperando pela morte de seus pais. E se não morrermos logo, encontrarão outra solução. Como nos internar num hospício. Tirar-nos do caminho. Declarar que somos loucos. O plano não é esse?

A vendedora voltou com uma echarpe branca. A mãe ajeitou-a em torno do pescoço. Jogou a ponta por cima do ombro, num gesto esfuziante.

— Pois saiba que não vai me internar em nenhum hospício, Mister Espertinho. Ponha isso na sua cabeça agora mesmo. — Ela virou-se para a vendedora. - Levarei esta echarpe.

Ainda sorrindo.

Os irmãos reuniram-se naquela noite. Jeff, que era bonito e tinha ligações em todos os restaurantes da cidade, arrumou uma mesa perto da cascata, no Sushi Hana. Embora ainda fosse cedo, o restaurante já estava lotado de modelos e atrizes. Jeff fazia muitos contatos visuais. Irritado, EUis perguntou:

— Como estão as coisas em casa? Jeff deu de ombros.

— Muito bem. Às vezes tenho de trabalhar até tarde. Sabe como é.

— Não, não sei. Porque não sou um grande corretor de investimentos e as mulheres não piscam para mim da maneira como piscam para você.

Aaron, o caçula, que era advogado, falava pelo celular. Acabou a conversa e fechou-o.

— Parem com isso, vocês dois. É a mesma conversa que venho ouvindo desde a escola secundária. O que há com mamãe?

— O que eu disse pelo telefone. É assustador. Ela se mostra sorridente e feliz. Não se importa com nada.

— Três mil dólares na semana passada.

— Ela não se importa. Está comprando mais do que nunca.

— Aquele spray do gene não funcionou — comentou Aaron. — Onde foi que o obteve?

— De um cara que trabalha numa empresa na Califórnia. A BioGen.

Jeff, que estava olhando para trás, virou-se nesse instante.

— Ouvi alguma coisa sobre a BioGen. Parece que eles estão com problemas.

— Que tipo de problemas? - perguntou Aaron.

— Algum produto deles está contaminado e os ganhos despencaram. Foram desleixados em alguma coisa, cometeram um erro. Não consigo me lembrar direito o que é. Parece que terão uma oferta pública de ações, mas não deve dar em nada.

Aaron virou-se para Ellis.

— Acha que aquele spray que você recebeu está afetando mamãe?

— Acho que não. Creio que a coisa simplesmente não funcionou.

— Mas se houve uma contaminação... — insistiu Aaron.

— Pare de bancar o advogado. Foi o filho de uma prima de mamãe quem mandou, como um favor para nós.

— Mas a terapia genética é perigosa — argumentou Aaron. — Já houve mortes de terapia genética. E foram muitas.

Ellis suspirou.

— Não vamos processar ninguém, Aaron. Acho que estamos observando o início de... vocês sabem... deterioração mental. Alzheimer ou coisa parecida.

— Ela só tem 62 anos.

— Pode começar cedo. Aaron sacudiu a cabeça.

— Pense bem, Ellie. Ela tinha uma saúde perfeita. Era inteligente. E agora você me diz que ela está mudada. Pode ser o spray.

— Contaminação — lembrou Jeff, sorrindo para uma mulher.

— Jeff, você vai prestar atenção?

— Estou prestando muita atenção. Olhem só para aquela suspensão.

— É falsa.

— Você gosta de estragar tudo.

— E fez um trabalho no nariz.

— Ela é linda.

— Ela é paranóica.

— Como sabe disso?

— Estou falando de mamãe — disse Ellis. - Ela pensa que vamos interná-la num hospício.

— Talvez seja necessário — declarou Aaron. — E seria muito dispendioso. Mas se tivermos de fazê-lo, será por causa da tal empresa de genética. Você sabe que o público não tem a menor simpatia por essas empresas de biotecnologia. As pesquisas de opinião pública indicam que 92 por cento são contra elas. São percebidas como ines-crupulosas, indiferentes à vida humana. Colheitas geneticamente modificadas, afetando o meio ambiente. Patenteando genes, apro-priando-se de nossa herança comum quando ninguém está olhando.

Cobrando milhares de dólares por drogas que custam centavos. Fingindo que realizam pesquisas, quando na verdade isso não acontece; apenas compram o trabalho de outros. Fingindo que têm custos altos de pesquisa, quando na verdade gastam a maior parte de seu dinheiro em propaganda. E ainda mentem na propaganda. São desgraçados insidiosos, asquerosos, gananciosos. Seria um caso sensacional.

- Não estamos falando de uma ação judicial, mas sim de mamãe — declarou Ellis.

- Papai está bem — interveio Jeff. - Deixem-no cuidar de mamãe.

Ele se levantou e foi até a mesa a que sentavam três jovens de pernas compridas e saias curtas.

- Elas não podem ter mais que quinze anos - comentou Ellis, torcendo o nariz.

- Elas têm bebidas na mesa - ressaltou Aaron.

- Ele tem duas crianças na escola.

- Como estão as coisas em casa?

- Vá se foder.

- Vamos permanecer no assunto — disse Aaron. - Talvez mamãe esteja perdendo o juízo, talvez não. Mas precisaremos de muito dinheiro se ela tiver de ser internada. Não sei se teremos condições.

- O que sugere então?

- Quero saber mais sobre a BioGen e aquele spray do gene que nos mandaram. Muito mais.

- Parece que já está planejando a ação judicial.

- Apenas tento pensar com antecedência.

 

Vai ver o que é bom agora, cara!

Em cima do skate, Billy Cleever, um furioso garoto da sexta série, saiu rasgando do play com uma aérea ao estilo antigo, fez uma virada de 360 graus, e caiu com a traseira na calçada. A manobra radical foi impecável, o que era bom, porque ele sentia que hoje perdera um pouco de seu controle e predomínio. Os quatro garotos em sua esteira estavam calados, em vez de gritarem, como sempre faziam. E isso na longa descida para a Market Street, em San Diego. Mas eles se mantinham calados. Como se tivessem perdido a confiança nele.

Billy Cleever fora humilhado naquele dia. A mão doía demais. Ele dissera à estúpida enfermeira para pôr apenas um Band-Aid, mas a mulher insistira em fazer um curativo, uma enorme coisa branca. Ele arrancara no instante em que as aulas terminaram, mas ainda parecia um inválido. Uma coisa de doente.

Humilhado. Aos onze anos de idade, Billy Cleever tinha 1,75 m de altura e 55 kg, com músculos bastante fortes para um garoto de sua idade. Era pelo menos trinta centímetros mais alto do que todos os outros alunos da escola. Era até mais alto do que muitas professoras. Ninguém se metia com ele.

Aquele merdinha do Jamie, aquele idiota dentuço, deveria ter ficado longe do caminho de Billy. Markie Lester jogara-lhe uma bola de futebol americano; e quando ele recuara para recebê-la, tropeçara em Jamie Dente de Castor e caíra. Arrastara o dentuço na queda. Billy ficara furioso e embaraçado, esparramado no chão na frente de todo mundo, com Sarah Hardy e os outros rindo. O garoto ainda se encontrava estatelado no chão quando ele se levantara. Billy acertara dois ou três chutes com seus tênis, nada demais, apenas uma pequena advertência — e quando o garoto se levantara, atordoado, dera algumas porradas. Sem muita força.

E no instante seguinte, Monkeyboy, o garoto-macaco, saltara em suas costas e puxara seus cabelos, grunhindo em seu ouvido como a porra de um macaco. Billy estendera a mão para trás e o agarrara... e Monkeyboy lhe dera uma mordida. Uma tremenda dor! Ele vira estrelas!

Claro que o monitor, o Mister Ranhoso, não fizera porra nenhuma, apenas se lamuriara:

— Separem, garotos! Separem, garotos!

Monkeyboy ficara detido e chamaram sua mãe para vir buscá-lo. Mas era evidente que a mãe não o levara para casa. Pior para ele. Porque lá estavam os dois agora, no fundo da ladeira, começando a atravessar o campo de beisebol.

Jamie e Monkeyboy.

Vai ver o que é bom agora, cara!

Billy acerta-os de lado, em alta velocidade. Os dois são projetados como pinos de boliche, ao lado do abrigo dos jogadores, na lateral do campo. Jamie desliza de cara na terra, levantando uma nuvem de poeira marrom. Monkeyboy bate de costas na cerca de arame por trás da base do batedor. Ali perto, os amigos de Billy desatam a gritar: Sangue! Queremos sangue!

O garoto, Jamie, fica estendido na terra, gemendo. Billy segue direto para cima de Monkeyboy. Ele ataca com o skate e acerta o desgraçado peludo atrás da orelha, pensando em lhe dar uma lição. As pernas de Monkeyboy cedem e ele arria no chão, como uma boneca de trapos. Billy acerta um chute em cheio, logo abaixo do queixo, levantando sua bunda do chão. Mas Billy não quer sangue de macaco em seus tênis. Por isso, ele torna a atacar com o skate, pensando em atingir o desgraçado na cara, talvez quebrar seu nariz e queixo, deixá-lo ainda mais feio do que ele já é.

Mas Monkeyboy pula para o lado e o skate bate na cerca, com a maior barulheira. Monkeyboy crava os dentes no pulso de Billy e morde com toda a força. Billy solta um grito de dor e larga o skate. Sente a mão dormente. O sangue escorre pelo braço de Billy, pelo queixo de Monkeyboy, que rosna como um cachorro. Os olhos esbugalhados não se desviam de Billy. Parece que seus cabelos estão levantados, como os pêlos de um cachorro em fúria. Billy pensa, num instante de pânico total: Merda! Esse macaco peludo vai me devorar vivo!

A esta altura, seus companheiros se aproximam correndo. Quatro skates acertam em Monkeyboy, que continua a rugir, enquanto Billy grita. Demora uma eternidade até que Monkeyboy larga a mão de Billy e pula no peito de Markie Lester, que cai no mesmo instante. Todos os outros partem para cima dos dois, levantando uma nuvem de poeira, enquanto Billy segura o braço sangrando.

Poucos segundos depois, quando a dor se torna suportável, Billy levanta os olhos e descobre que Monkeyboy subiu pela cerca, está parado cerca de cinco metros acima deles. Olhando para eles. Os outros garotos estão parados por baixo, gritando, sacudindo seus skates. Mas nada mais acontece. Billy levanta-se, cambaleando, e diz:

- Vocês parecem um bando de macacos.

- Queremos que ele desça!

- Só que ele não vai descer. Não é estúpido. Sabe que vamos enchê-lo de porrada se descer. Pelo menos eu vou.

- Então como fazemos para ele descer?

Billy se sente vingativo agora, com uma raiva incontrolável. Quer machucar alguém. Vai até Jamie, e começa a chutá-lo, tentando acertar seu saco. Mas o garoto rola pelo chão e grita por socorro, como o bebê chorão que ele é. Alguns de seus companheiros não gostam.

- Ele não passa de um garotinho, Billy. Não precisa bater mais nele.

Mas Billy pensa: Que sefoda. Quero o desgraçado do macaco aqui embaixo. E aquilo vai atraí-lo, o garoto rolando pela terra, levando um chute atrás do outro. Um chute... outro chute... mais outro... o garoto gritando por socorro...

E, subitamente, os companheiros de Billy começam a fazer o maior alarido.

— Ah, merda!

Merda! Merda!

— Merda!

Saem correndo... e é nesse momento que alguma coisa quente e mole acerta o pescoço de Billy. Ele sente o cheiro estranho e não pode acreditar. Estende a mão para trás e... Jesus! Não dá para acreditar.

— Merda! Ele está jogando merda!

Monkeyboy continua no alto da cerca, de calça arriada, jogando bosta em cima deles. E não erra nunca. Uma mira infalível. Os garotos tratam de se proteger. E é nesse instante que outro arremesso de merda acerta Billy no rosto. Quando ele está com a boca entreaberta.

— Porra!

Ele cospe e cospe, limpa o rosto, cospe de novo, tentando tirar aquele gosto da boca. Merda de macaco! Porra! Merda! Billy ergue o punho.

— Seu filho-da-puta!

E recebe outro arremesso de bosta na testa.

Ele pega o skate e sai correndo. Vai se encontrar com os companheiros. Que também estão cuspindo. É nojento. Gruda em suas roupas, nos rostos. Merda. Todos olham para Billy. Está em seus rostos: Veja em que você nos meteu. É o momento de dar um passo à frente. E Billy sabe como fazê-lo.

— O cara é um animal. E só tem uma coisa que se pode fazer com animais. Meu pai tem uma arma. Sei onde ele guarda.

— Isso é conversa — diz Markie.

— Você é cheio de merda — acrescenta Hurley.

— É isso o que vocês pensam? Pois esperem só para ver. Monkeyboy não vai à aula amanhã. Esperem só para ver.

Billy segue para casa, o skate na mão, andando com alguma dificuldade. Os outros vão atrás. E ele não pára de pensar: Oh, merda, por que eu tinha de prometer isso?

 

Stan Milgram iniciara a longa viagem para visitar a tia na Califórnia. Mas guiava apenas há uma hora quando Gerard começou a se queixar, empoleirado no banco traseiro.

- Isto fede. Fede demais. - Ele olhou pela janela. — Que buraco é este?

- Columbus, Ohio.

- Um lugar nojento.

- Sabe o que dizem? — indagou Stan. - Que Columbus é Cleveland sem o resplendor.

O papagaio não disse nada.

- Sabe o que significa resplendor?

- Sei. Cale a boca e continue a dirigir.

Gerard parecia mal-humorado. E não deveria estar, refletiu Stan, ao se considerar o quanto fora bem tratado nos últimos dias. Stan entrara na Internet para descobrir o que os papagaios cinza comiam. Comprara maçãs especiais e verduras de primeira para Gerard. Deixara a TV ligada na loja à noite, para Gerard assistir. E depois de um dia, Gerard parara de bicar seus dedos. Até permitira que Stan o pusesse no ombro sem morder sua orelha.

- Estamos quase chegando? - perguntou Gerard.

- Não. Só estamos viajando há uma hora.

- Quanto tempo ainda falta?

- A viagem leva três dias, Gerard.

- Três dias. São 24 vezes três, o que dá 72 horas.

Stan franziu o rosto. Nunca ouvira falar de uma ave que soubesse fazer cálculos matemáticos.

— Onde aprendeu isso?

— Sou um homem de muitos talentos.

— Você não é um homem. — Stan riu. - Tirou isso de um filme? Ele tinha certeza de que o papagaio às vezes repetia frases de filmes.

— Dave, esta conversa não pode mais servir a meus propósitos - disse Gerard, sem qualquer inflexão. — Adeus.

— Ei, essa eu conheço! É de Guerra nas estrelas.

Apertem os cintos, pois vai ser uma noite turbulenta. Era uma voz de mulher. Stan franziu o rosto.

— Algum filme de avião...

— Procuram-no aqui, procuram-no ali, esses franceses procuram-no por toda parte.

— Sei que não é um filme. Isso é poesia.

— Afundem-me!

Agora ele falava como um britânico.

— Desisto — murmurou Stan.

— Eu também. - Gerard soltou um suspiro exagerado. - Quanto tempo falta?

— Três dias.

O papagaio olhou pela janela para a cidade.

— Pelo menos eles estão a salvo das bênçãos da civilização.

Era o jeito arrastado de falar de um caubói. E, depois, ele começou a emitir os sons de um banjo dedilhado.

Mais tarde, ainda no primeiro dia, o papagaio começou a cantar canções francesas... ou talvez canções árabes, Stan não podia ter certeza. De qualquer forma, era alguma língua que ele não conhecia. Parecia que Gerard comparecera a um concerto ao vivo, ou pelo menos ouvira a gravação de um concerto, pois imitava os sons da multidão, os instrumentos sendo afinados, e os aplausos quando os artistas entravam em cena, antes de iniciar a canção. Parecia que ele cantava "Didi", ou algo parecido.

Foi interessante por algum tempo, como ouvir uma emissora de rádio de outro país. Mas Gerard tendia a se repetir. Num trecho estreito da estrada, ficaram retidos atrás de uma mulher ao volante. Stan tentou ultrapassá-la, mas não conseguiu. Depois de algum tempo, Gerard disse:

- Le soleil cest beau.

Em seguida, ele emitiu um som que parecia um tiro.

- Isso é francês? - perguntou Stan. Mais tiros.

- Le soleil c'est beau. Bang. Le soleil c'est beau. Bang. Le soleil c'est beau. Bang.

- Gerard...

- Les femmes au volant c'est Ia lachetépersonifié. — O papagaio emitiu um som de estrondo. - Pourquoi elle ne dépassepas?... Oh, oui, merde des travaux.

A mulher finalmente virou à direita. Mas fez a manobra tão devagar que Stan teve de dar uma freada de leve antes de ultrapassá-la.

- LI ne faut jamais freiner... Comme disait le vieuxpère Bugatti, les voitures sont faites pour rouler, paspour s'arrêter.

Stan suspirou.

- Não compreendo uma só palavra do que está dizendo, Gerard.

- Merde, lesflics arrivent!

Ele começou a gemer como uma sirene de polícia.

- Já chega.

Stan ligou o rádio. Já era o final da tarde. Haviam passado por Maryville e se aproximavam de St. Louis. O tráfego aumentou.

- Já estamos quase chegando? - perguntou Gerard. Stan suspirou de novo.

- Não importa.

Seria uma longa viagem.

 

Lynn sentou na beira da banheira e usou uma toalhinha para limpar o talho por trás da orelha.

— Dave, conte-me o que aconteceu.

Ela podia ver que o talho era profundo, mas Dave não se queixava.

— Eles foram atrás de nós, mamãe! — Jamie estava excitado, sacudindo os braços. Ficara todo sujo de terra e tinha equimoses na barriga e ombros. Afora isso, porém, não havia nenhum ferimento grave. — Não fizemos nada! Garotos da sexta série! Eles são violentos!

— Jamie, deixe Dave contar. Como arrumou esse talho?

— Billy bateu com o skate nele — respondeu Jamie. — Não fizemos nada!

— Não fizeram nada? — indagou Lynn, alteando uma sobrancelha. - Está querendo dizer que aconteceu sem qualquer motivo?

— Isso mesmo, mamãe! Eu juro! Apenas voltávamos para casa, e eles nos atacaram!

— A Sra. Lester telefonou. Seu filho chegou em casa coberto de excremento.

— Não era isso, mamãe - protestou Jamie. - Era cocô.

— Como foi que...

— Dave jogou. Ele foi incrível. Os garotos da sexta série estavam batendo na gente, Dave começou a jogar, e eles fugiram. Dave não errou nenhum.

Lynn continuou a limpar o talho, gentilmente.

— Isso é verdade, Dave?

— Eles machucaram Jamie. Bateram e chutaram.

- Por isso você jogou... cocô neles?

- Eles machucaram Jamie - repetiu Dave, como se isso explicasse tudo.

- É mesmo? - murmurou Henry mais tarde, quando chegou em casa.

- Ele jogou fezes nos garotos? Isso é típico comportamento de chimpanzé.

- Pode ser, mas acarreta problemas na escola. Ele está se metendo em brigas no recreio. Já mordeu outras crianças. Agora, jogou fezes... — Lynn sacudiu a cabeça. - Não sei como ser mãe de um chimpanzé.

- Meio chimpanzé.

- Pode ser até um quarto, Henry. Não consigo fazê-lo compreender que não pode se comportar dessa maneira.

- Mas implicam com ele, não é? E esses garotos mais velhos eram da sexta série? Skatistas. São os garotos que vivem entrando e saindo dos reformatórios. Além disso, por que garotos da sexta série perdem tempo com meninos da segunda série?

- Jamie diz que os garotos zombam de Dave. Só o chamam de Monkeyboy.

- Você acha que foi Dave quem começou a briga?

- Não sei. Ele é agressivo.

- Aconteceu no play. Aposto que há uma câmera de segurança ali.

- Henry, você ainda não compreendeu o que estou dizendo.

- Claro que compreendi. Você acha que foi Dave quem começou. E eu tenho o pressentimento de que há algum garoto idiota que quer intimidar os outros...

E foi nesse instante que eles ouviram o tiro no quintal.

 

Os carros arrastavam-se lentamente. A Freeway 405 era um rio de luzes vermelhas na noite. Alex Burnet suspirou. Sentado ao seu lado, Jamie perguntou:

— Ainda falta muito?

— Vai demorar mais um pouco, Jamie.

— Estou cansado.

— Deite e tente dormir um pouco.

— Não vou conseguir.

— Vai demorar mais um pouco - repetiu Alex.

Ela abriu o celular novo, e encontrou o número que registrara, de sua amiga de infância. Não sabia quem mais procurar. Lynn sempre se mostrara disponível quando ela precisara. Na ocasião em que Alex e o marido se separaram, ela e o filho foram para a casa de Lynn e Henry Os meninos, ambos chamados Jamie, brincavam juntos.

Alex passara uma semana ali.

Mas agora ela não conseguia falar pelo telefone com Lynn. A princípio, preocupara-se de não ter o número certo. Depois, pensara que havia algum problema com aquele celular ordinário. Mas logo a secretária eletrônica atendera. E agora...

— Alô? Alô? Quem está falando?

— Lynn, sou eu, Alex. Queria...

— Oh, Alex, sinto muito, mas não posso falar agora...

— Como?

— Não agora. Sinto muito. Mais tarde.

— Mas o que...

Ela ouviu um zumbido.

Lynn já desligara.

Alex ficou olhando as luzes vermelhas na estrada.

— Quem era? - perguntou Jamie.

— Tia Lynn. Mas ela não podia falar. Pareciam muito ocupados.

— Mesmo assim vamos para lá?

— Talvez amanhã.

Alex deixou a freeway em San Clemente e começou a procurar um motel. Por alguma razão, sentia-se estranhamente desorientada pelo fato de não conseguir falar com Lynn. Não percebera antes o quanto contava com isso.

— Para onde vamos, mamãe? Jamie parecia ansioso.

— Passaremos a noite num motel.

— Que motel?

— Estou procurando.

— Sabe onde fica?

— Não, Jamie. Estou procurando.

Passaram por um Holiday Inn, mas era grande demais e parecia exposto. Ela encontrou um Best Western, no Camino Real. Parou na frente. Disse a Jamie para esperar no carro e entrou na recepção.

Havia um garoto alto e magro, com espinhas no rosto, por trás do balcão. Tamborilava com os dedos na superfície de granito polido, cantarolando para si mesmo. Parecia irrequieto.

— Oi — disse Alex. — Tem um quarto para esta noite?

— Tenho, madame.

— Eu gostaria de alugá-lo.

— Só para a senhora?

— Para mim e meu filho.

O rapaz olhou pela porta para Jamie, ainda tamborilando com as unhas no balcão.

— Ele tem menos de doze anos?

— Tem, sim. Por quê?

— Se ele quiser ir à piscina, a senhora terá de acompanhá-lo.

— Está bem.

Ainda tamborilando. Alex entregou-lhe o cartão de crédito e ele passou pela máquina, marcando o ritmo com a outra mão. Começava a deixar Alex nervosa.

— Posso perguntar por que faz isso?

Ele começou a cantarolar em monótono:

— É para encrenca que eu vou, é de encrenca que eu venho. Porque encrenca é meu nome do meio, encrenca é meu pecado. - O rapaz sorriu. — É uma canção.

— Uma canção muito estranha.

— Meu pai costumava cantá-la.

— Entendo.

— Ele morreu.

— Entendo.

— Cometeu suicídio.

— Sinto muito.

— Espingarda.

— Sinto muito.

— Quer ver?

Alex piscou, aturdida.

— Talvez em alguma outra ocasião.

— Eu a guardo bem aqui. - Ele acenou com a cabeça para baixo do balcão. - Descarregada, é claro.

E tamborilando, ele recomeçou a cantar:

— Encrenca é o único lugar em que já estive...

— Assinarei agora.

Ele devolveu o cartão e Alex assinou o papel. Ainda tamborilando, durante todo o tempo. Ela ainda pensou em procurar outro motel. Mas sentia-se cansada. E Jamie estava esperando. Tinha de providenciar comida, comprar roupas, escova de dentes, todo o resto.

— Tudo certo — disse o garoto, entregando as chaves do quarto. Foi só quando voltou ao carro e seguiu para a vaga perto do

quarto que Alex se lembrou que não deveria ter usado seu cartão de crédito.

Tarde demais agora.

— Estou com fome, mamãe.

— Sei disso, querido. Vamos comer agora.

— Quero um hambúrguer.

— Está bem.

Ela atravessou o estacionamento e saiu para a rua. Melhor alimentar o filho antes de entrarem no quarto.

 

Soaram mais dois tiros, enquanto Lynn corria para o quintal. A filha, Tracy, não parava de gritar. Dave, no alto da árvore, também gritava e sacudia os galhos. Jamie estava estendido no chão, o sangue escorrendo da cabeça. Lynn sentia-se atordoada. Correu para frente, e Tracy berrou:

— Mamãe! Fique abaixada!

Os tiros pareciam vir da rua. Quem quer que fosse, atirava atrás da cerca de ripas. Dava para ouvir o som de sirenes distantes. Lynn não podia desviar os olhos de Jamie. Foi avançando em sua direção.

Mais tiros, acertando em folhas nas árvores. Os tiros eram disparados contra Dave, que rugia, sacudia os galhos. E gritou:

— Você morto! Você morto, menino!

— Dave, fique quieto! — gritou Lynn.

Ela começou a rastejar na direção de Jamie. Tracy gritava pelo celular, dando o endereço para 911. Jamie gemia no gramado. Ele era tudo o que Lynn via. Esperava que Henry tivesse saído pela porta da frente e visto quem era, mas sem levar um tiro. Era óbvio que se tratava de alguém tentando acertar Dave.

As sirenes eram mais altas. Ela ouviu gritos e passos correndo na rua. Um carro parara lá na frente, as luzes fortes brilhando através da cerca, projetando listras de sombra.

Lá em cima, Dave soltou um grito de guerra e desapareceu. Tracy berrava. Lynn alcançou Jamie. Havia muito sangue em sua cabeça.

— Jamie, Jamie...

Ela ficou de joelhos e virou-o, gentilmente. O sangue jorrava da testa, escorrendo pelo lado da cabeça. O menino sorriu, sem qualquer ânimo.

- Oi, mamãe.

— Jamie, onde você foi ferido? - Não...

— Onde, Jamie?

— Caí. Da árvore.

Lynn levantou a beira da saia e limpou o ferimento de bala com todo o cuidado. Não viu nenhum buraco de bala. Apenas uma enorme escoriação, que sangrava profusamente.

— Não levou um tiro, querido?

- Não, mamãe. — Jamie sacudiu a cabeça. - De qualquer maneira, não era eu. Ele estava atrás de Dave.

- Quem?

- Billy.

Lynn levantou os olhos para a árvore por cima. Os galhos balançavam, à luz dos faróis. Dave desaparecera.

O primeiro salto fez Dave pousar na calçada. Ele começou a correr, atrás de Billy Cleever em fuga, descendo a rua, de volta para casa. Dave podia se deslocar bem depressa quando queria, de quatro. Corria paralelo à calçada, na grama, porque o concreto machucava seus pés e mãos. Rosnava sem parar, enquanto diminuía a distância que o separava de Billy.

Ao final da quadra, Billy virou-se e avistou Dave se aproximando. Ergueu a arma com as mãos trêmulas e disparou um tiro, depois outro. Dave continuou a avançar. Ao longo da rua, pessoas observavam por suas janelas, que tinham um brilho azulado, dos aparelhos de televisão ligados lá dentro.

Billy virou-se para fugir. Dave alcançou-o e bateu sua cabeça num poste. Ressoou com o impacto. Billy tentou se virar, mas estava apavorado. Dave segurou-o firme e bateu com sua cabeça no concreto. Teria matado Billy, com certeza, se o som das sirenes se aproximando não o fizesse hesitar e levantar os olhos.

Nesse instante, Billy chutou, conseguiu se levantar, e correu pelo caminho de carro da casa mais próxima. Entrou num carro estacionado ali. Bateu a porta e trancou-a no instante em que Dave caía no pára-brisa. Inclinado sobre o capô, Dave espiou o interior.

Billy apontou a arma, mas estava muito abalado e aterrorizado para disparar. Dave pulou para o chão, no lado do passageiro. Tentou abrir a porta, puxando a maçaneta várias vezes. Billy ofegava para respirar, sem desviar os olhos.

E depois Dave abaixou-se, sumindo de sua vista.

As sirenes se aproximaram.

Billy compreendeu lentamente que sua situação era crítica. A polícia se aproximava. Ele estava trancado num carro, com uma arma na mão, cheia de sangue e impressões digitais. Marcas de pólvora e um talho vermelho, onde o percussor da arma beliscara seu dedo. Não sabia direito como atirar. Queria apenas dar um susto neles, mais nada.

A polícia o encontraria ali. Acuado naquele carro.

Cauteloso, ele espiou pela janela de passageiro, tentando ver Dave.

Preto e gritando, Dave pulou de repente, batendo contra a janela. Billy também gritou e se projetou para trás. A arma disparou. A bala atingiu o painel. Fragmentos de plástico cortaram o braço de Billy. O carro ficou cheio de fumaça. Billy largou a arma no chão. Recostou-se no banco, com dificuldade para respirar.

Sirenes. Mais próximas.

Talvez o encontrassem ali, mas era legítima defesa. Isso era óbvio. Monkeyboy era um animal violento. A polícia compreenderia imediatamente que Billy fizera tudo em legítima defesa. Tinha de se proteger. O garoto era violento. Parecia com um macaco e se comportava como um macaco. Era um assassino. Deveria ficar atrás das grades num zoológico...

Luzes vermelhas girando no teto de um carro. As sirenes pararam. Billy ouviu alguém dizer por um megafone:

— Aqui é a polícia. Saia do carro agora. Muito devagar, com as mãos levantadas.

— Não posso! — gritou Billy. — Ele está me esperando!

- Saia do carro agora! - trovejou a voz. — Com as mãos levantadas!

Billy esperou um pouco, depois saiu, as mãos levantadas, piscando para os refletores fortes dos carros da polícia. Um guarda adiantou-se e derrubou-o no chão. Algemou suas mãos nas costas.

- Não foi culpa minha - disse Billy, o rosto comprimido contra a relva. — Foi aquele garoto, Dave. Ele está debaixo do carro.

- Não há ninguém debaixo do carro, filho - disse o guarda, levantando-o. — Só tem você aqui. Mais ninguém. Agora, vai nos contar o que aconteceu?

O pai apareceu. Billy sabia que levaria uma surra. Mas o pai não deu qualquer indicação de que faria isso. Pediu para ver a arma. Perguntou a Billy onde estavam as balas. Billy disse que atirara num garoto mau que o atacara.

O pai de Billy limitou-se a acenar com a cabeça, o rosto impassível. Mas disse que seguiria os guardas até a delegacia, quando levaram Billy para fichá-lo.

Henry disse:

- Acho que temos de admitir que não está dando certo.

- Como assim? - murmurou Lynn, passando os dedos pelos cabelos de Dave. — Não foi culpa de Dave. Você mesmo disse isso.

- Eu sei. Mas parece haver problemas durante todo o tempo. Mordidas, brigas... e agora tiros, pelo amor de Deus! Ele está pondo todos nós em perigo.

- Mas a culpa não é dele, Henry.

- Estou preocupado com o que vai acontecer em seguida.

- Podia ter pensado nisso antes - disse Lynn, numa súbita explosão de raiva. — Por exemplo, há quatro anos, quando decidiu fazer seu experimento. Porque agora é um pouco tarde demais para se arrepender, não acha? Ele é nossa responsabilidade e continuará conosco.

-Mas...

- Somos sua família.

— Atiraram em Jamie.

— Jamie está bem.

— Mas atiraram...

— Foi um garoto maluco. Da sexta série. A polícia o pegou.

— Lynn, você não está me escutando. Ela ficou ainda mais furiosa.

— Acha que pode se livrar dele sem qualquer dificuldade, como se fosse a mistura numa placa de Petri que não deu certo? Não pode simplesmente jogar Dave na lixeira biológica. Você é que não está prestando atenção. Dave é um ser vivo, que pensa e sente. E foi você quem o fez. Você é a razão para que ele exista neste mundo. Não tem o direito de abandoná-lo só porque ele é inconveniente ou tem problemas na escola.

Lynn fez uma pausa, para recuperar o fôlego. Sentia muita raiva.

— Seja como for, não vou renunciar a Dave. E não quero mais falar sobre isso.

-Mas...

— Não agora, Henry.

Ele conhecia aquele tom. Deu de ombros e retirou-se.

— Obrigado - murmurou Dave, inclinando a cabeça para que ela pudesse passar os dedos entre os pêlos em seu pescoço. — Obrigado, mamãe.

 

Alex levou o filho para uma lanchonete drive-in. Pediram hambúrgueres, batatas fritas e milkshakes de morango. Já estava escuro. Ela pensou em ligar de novo para Lynn. Mas a amiga parecia angustiada, e ela decidiu não fazê-lo.

Pagou os hambúrgueres em dinheiro. Foram para uma Walston's, uma dessas lojas que tinham de tudo, dando a impressão de que ocupava uma quadra inteira. Comprou cueca e uma muda de roupa para Jamie; e também comprou roupas para si mesma. Comprou ainda escovas e pasta de dentes.

Seguia para uma caixa na saída quando viu as armas à venda, ao lado das câmeras e relógios. Foi dar uma olhada. Ao longo dos anos, freqüentara estandes de tiro com o pai. Sabia usar uma arma. Disse a Jamie que fosse dar uma olhada no corredor dos brinquedos, e foi até a seção de armas.

- Posso ajudá-la?

Era um cara tímido, de bigode.

- Eu gostaria de ver aquela Mossberg de ação dupla. Alex acenou com a cabeça para a arma.

- É o modelo 590, perfeito para a defesa da casa. Está em oferta especial, só esta semana.

Ela pegou a arma e sentiu-a.

- Vou levá-la.

- Preciso de um documento de identidade e de um depósito Para guardá-la.

- Quero levá-la agora.

- Sinto muito, madame, mas há um período de dez dias de espera na Califórnia.

Alex devolveu a arma.

— Pensarei a respeito.

Ela foi ao encontro de Jamie, comprou o brinquedo do Homem-Aranha com que ele se divertia, e saiu para o estacionamento.

Havia um homem parado atrás do carro, inclinado para a placa. Anotando o número. Parecia um segurança da loja.

Alex pensou: Fuja. Vá embora.

Mas isso não fazia sentido; ela precisava de um cano. Era tempo de pensar depressa. Disse a Jamie que entrasse no carro. Foi para a traseira do carro.

— Precisa saber que ele é um maldito mentiroso.

Quem?

— Meu ex-marido. Alega que o carro é dele, mas não é. Quer apenas me atormentar. Obtive uma ordem judicial para detê-lo. E estou processando um segurança do Wal-Mart.

— Por quê?

— Não banque o estúpido. Sei que recebeu um telefonema de meu ex. Eie se apresenta como advogado, pagador de fiança, ou oficial de justiça. Pede para verificar se o carro está no estacionamento. Diz que está sub judice.

- Ahn...

— Ele está mentindo e agora você foi envolvido. Avisou-o que sou advogada?

— Não. Ele apenas...

— Pois eu sou. E você se tornou cúmplice da violação de uma ordem judicial. Com isso, está sujeito a uma ação de indenização por perdas e danos. Invasão de privacidade e assédio. - Alex tirou bloco da bolsa. - Seu nome é...

Ela contraiu os olhos para ler o crachá e começou a escrever.

— Não quero problemas, madame...

— Então me dê esse papel em que anotou o número da placa e me deixe em paz. E quando meu marido ligar de novo, é melhor dizer a ele que nunca me viu, ou vou processá-lo... e juro que terá muita sorte se apenas perder o emprego.

O segurança acenou com a cabeça e entregou o papel. Suas mãos tremiam. Alex entrou no carro e foi embora.

Ao sair do estacionamento, pensou: Talvez dê certo. Ou talvez não. Acima de tudo, ela sentia-se espantada pela rapidez com que o caçador de recompensas a localizara.

Devia ter seguido seu carro para o norte por duas ou três horas, antes de perceber que ela trocara de carro com sua assistente. Ele e seus companheiros sabiam o nome da assistente e deviam ter verificado no departamento de trânsito. Portanto, sabiam agora qual era o carro que Alex guiava.

Por outro lado, Alex usara seu cartão de crédito. O caçador de recompensas soubera poucos minutos depois. Fixara sua posição num morei em San Juan Capistrano. Como sabia que ela precisava comprar coisas, provavelmente ligara para todas as lojas de conveniências num raio de dez quilômetros do motel, inventando uma história para o pessoal da segurança. Fiquem atentos a um Toyota branco, com placa tal.

E o cara a descobrira.

Sem demora.

A menos que estivesse muito enganada, o caçador de recompensas se encontrava a caminho de Capistrano naquele momento. Se estivesse de carro, chegaria em três horas. Mas se tivesse acesso a um helicóptero, já poderia estar no motel.

Já.

— Mamãe, posso assistir televisão quando chegarmos no motel?

— Claro, querido.

Mas é claro que não voltariam ao morei.

Alex estacionou na esquina antes do motel. De sua posição, podia ver a recepção e o garoto ali. Ele falava ao telefone, olhando ao redor.

Ela pegou seu celular normal e ligou para o morei.

O garoto pôs a outra ligação na espera e atendeu.

— Best Western.

— Aqui é a Sra. Colson. Registrei-me há pouco tempo.

— Pois não, Sra. Colson.

Isso pareceu excitá-lo. Ele tornou a olhar ao redor, frenético agora.

— Deu-me o quarto 204.

— Isso mesmo.

— Acho que há alguém no meu quarto.

— Sra. Colson, não posso imaginar...

— Quero que venha até aqui e abra a porta para mim.

— Se há alguém, provavelmente é a arrumadeira...

— Acho que é um homem.

— Não pode ser...

— Venha até aqui e abra a porta. Ou terei de chamar a polícia?

— Não precisa. Tenho certeza... Já estou a caminho.

— Obrigada.

Ele acessou a outra ligação, falou depressa, e depois deixou a recepção, correndo para os quartos nos fundos.

Alex saltou do carro, atravessou a rua apressada, até a recepção. Foi para trás do balcão, pegou a espingarda e saiu. Era uma Remington de calibre doze, cano serrado. Não seria sua primeira opção, mas serviria por enquanto. Pensaria na munição depois. Voltou ao carro.

— Para que a arma? - perguntou Jamie.

— Para alguma emergência.

Ela arrancou, pegando o Camino Real. Pelo espelho retrovisor, avistou o garoto voltar correndo para a recepção, com uma expressão de perplexidade.

— Quero ver televisão - disse Jamie.

— Não esta noite, pois vamos ter uma aventura.

— Que tipo de aventura?

— Você vai ver.

Alex seguiu para leste, longe das luzes, na direção da escuridão das montanhas.

 

Stan Milgram estava perdido numa escuridão interminável. A estrada à sua frente era uma faixa de luz, mas ele não podia avistar qualquer sinal de vida. Não havia nada ali, exceto a paisagem escura do deserto, estendendo-se pela distância. Para o norte, ainda dava para perceber as montanhas, uma tênue linha de preto contra preto. Mas não havia mais nada... nem luzes, nem cidades, nem casas, absolutamente nada.

Era assim havia uma hora.

Onde ele se metera?

O papagaio, no banco traseiro, soltou um grito penetrante. Stan teve um sobressalto; o som fez seu tímpano doer. Se algum dia planejar fazer uma viagem de carro para o oeste, não dê carona a um papagaio, pensou ele. Era a melhor coisa que se podia fazer. Cobrira a gaiola com um pano havia horas, mas isso não evitara que o papagaio continuasse a falar. De St. Louis através do Missouri, até Gallup, no Novo México. O papagaio não se calara durante todo o percurso. Stan fora para um motel em Gallup. Por volta de meia-noite, o papagaio começara a dar gritos ensurdecedores. E ele tivera de ir embora.

Continuara a dirigir. Winona, Kingman, Barstow, na direção de San Bernardino — San Berdoo, dizia a tia — e só pensava que aquela viagem terminaria em breve. Por favor, Deus. Tinha de acabar antes que ele matasse o papagaio.

Mas Stan estava exausto. Depois de guiar por mais de três mil quilômetros, sentia-se estranhamente desorientado. Ou perdera a saída para San Berdoo, ou... ou não tinha certeza.

Estava perdido.

E o papagaio ainda gritava.

— Seu corpo treme, seu coração dispara, outro beijo é o que precisa...

Stan parou o carro. Abriu a porta do banco traseiro. Tirou o pano de cima da gaiola.

— Por que está fazendo isso, Gerard?

— Você não pode dormir, não pode comer...

— Pare com isso, Gerard. Por quê?

— Tenho medo.

— Por quê?

— É muito longe de casa. - O papagaio piscou. Olhou para a escuridão lá fora. — Que inferno é este?

— Estamos no deserto.

— Está congelando.

— O deserto é frio à noite.

— Por que estamos aqui?

— Vou levá-lo para sua nova casa. - Stan olhou para o papagaio. - Se eu deixar a gaiola descoberta, você ficará quieto?

— Ficarei.

— Não vai mais falar? - Não.

— Prometa.

— Prometo.

— Está certo. Preciso de sossego para descobrir onde estamos.

— Não sei por que amo você como amo, depois de tantas mudanças...

— Tente me ajudar, Gerard. Por favor.

Stan deu a volta e tornou a sentar ao volante. Voltou à estrada e seguiu em frente. O papagaio manteve-se quieto. Os quilômetros foram passando. Até que ele avistou a placa de uma cidade chamada Earp, cinco quilômetros à frente.

— Graciosas saudações, patinho feio — disse Gerard. Stan suspirou.

E continuou a dirigir pela noite.

— Você me lembra de um homem - acrescentou Gerard.

Você prometeu - lembrou Stan.

 Não. Você deveria dizer "Que homem?".

- Cale-se, Gerard.

 Você me lembra de um homem.

- Que homem?

 O homem com o poder.

- Que poder?

- O poder do cefaz.

- Cefaz? - repetiu Stan.

- Você faz.

- Faço o quê?

- Lembra-me de um homem.

- Que homem? - Stan se controlou. — Gerard, cale-se ou eu o porei para fora agora.

- Você não é o coelho das pernas tortas. Stan olhou para o relógio.

Mais uma hora, pensou ele. Mais uma hora e esse papagaio vai embora para sempre.

 

Ellis sentou na frente do irmão Aaron, na sala de Aaron na firma de advocacia. A janela dava para o sul, por cima da cidade, na direção do Empire State Building. Era um dia enevoado, mas ainda assim a vista era espetacular, poderosa.

— Conversei com o tal cara na Califórnia, Josh Winkler - informou Ellis.

— E o que ele disse?

— Garantiu que nunca deu nada para mamãe.

— É mesmo?

— Que só mandou água.

— Era o que se podia esperar que ele dissesse.

— Aaron, foi só água. Winkler disse que não queria enviar qualquer coisa através da fronteira do estado. Como sua mãe insistiu, ele mandou água, para testar o efeito de placebo.

— E você acredita - murmurou Aaron, balançando a cabeça.

— Acho que ele tem a documentação.

— Claro que tem.

— Aviso de remessa, relatório de laboratório e outros documentos exigidos pela empresa.

— Tudo falsificado.

— Essa documentação é exigida pela FDA. A falsificação é crime federal.

— Dar a terapia do gene para amigos também é. — Aaron pegou um maço de papéis. — Conhece a história da terapia de gene? É uma história de horror, Ellie. A partir do final da década de 1980, os caras da biotecnologia começaram a se precipitar e mataram pessoas a torto e a direito. Pelo menos seiscentas pessoas, ao que se sabe, foram mortas. E há muitas outras que ignoramos. Sabe por que ignoramos?

— Não. Por quê?

— Porque eles alegaram... entenda isso... que as mortes não podiam ser informadas por serem informações de patente. Matar os pacientes era um segredo industrial.

— Eles disseram mesmo isso?

— Acha que eu seria capaz de inventar essa merda? E depois ainda cobram do Medicare o custo do experimento que matou o paciente. Eles matam, nós pagamos. E se as universidades são pressionadas, alegam que não precisam ter o consentimento informado dos sujeitos porque são instituições sem fins lucrativos. Duke, Penn, Universidade de Minnesota... grandes instituições já foram processadas. Os acadêmicos acham que estão acima da lei. Seiscentas mortes!

— Não sei o que isso tem a ver...

— Você sabe como a terapia de gene mata as pessoas? De várias maneiras. Eles não sabem o que vai acontecer. Inserem os genes nas pessoas... e podem ser genes cancerígenos, fazendo com que elas morram de câncer. Ou têm tremendas reações alérgicas e morrem. Esses incompetentes não sabem o que estão fazendo. São imprudentes e não seguem as normas. E nós vamos lhes dar uma lição.

Ellis mudou de posição na cadeira, apreensivo.

— Mas o que acontece se Winkler estiver dizendo a verdade? Se estivermos errados?

— Não fomos nós que violamos as regras - declarou Aaron. - Foram eles. Agora, mamãe tem a doença de Alzheimer e eles estão afundados na merda até o pescoço.

 

Quando começou a briga de bar, no Lucky Lucy Saloon, na Pearl Street, em Jackson Hole, Wyoming, Brad Gordon não tinha a menor intenção de acabar no hospital. Os dois caras de camisa axadrezada justa, bolsos com botões de madrepérola, pareciam bichas, e ele calculou que poderia vencê-los com facilidade. Não havia como saber que eram irmãos, não namorados, e não aceitariam de bom grado seus comentários.

E também não havia como saber que o menor era professor de karatê na Universidade Estadual de Wyoming e que ganhara um torneio Bruce Lee de artes marciais em Hong Kong.

E lutavam kickboxing com botas de vaqueiro, as biqueiras de metal. Brad resistira por trinta segundos. E tinha muitos dentes soltos. Estava estendido na porra da enfermaria havia três horas, enquanto tentavam pôr seus dentes de volta no lugar. Havia um periodontista para quem ligavam com insistência, mas ele não atendia, provavelmente porque (como explicou o interno) saíra para caçar durante o fim de semana. Ele gostava de alce... uma carne saborosa.

Alce! A porra da boca estava matando Brad.

Por isso, deixaram-no com compressas de gelo no rosto e os maxilares cheios de Novocaína. De alguma forma, conseguiu adormecer. Na manhã seguinte, a inchação havia diminuído o suficiente para que pudesse falar ao telefone. Ligou para seu advogado, Willy Johnson, em Los Angeles, segurando seu cartão entre o polegar e o indicador machucados. A recepcionista disse, jovial:

-Johnson, Baker e Halloran.

- Willy Johnson, por favor.

— Um momento, por favor.

Houve um estalido, mas ele não foi posto em espera. Ouviu a mulher dizer:

— Faber, Ellis e Condon.

Brad olhou de novo para o cartão em sua mão. O endereço era de um prédio de escritórios em Encino. Ele conhecia o lugar. Era um prédio em que advogados sozinhos podiam alugar um pequeno espaço de escritório e partilhar uma recepcionista, que era treinada para atender o telefone como se trabalhasse numa grande firma de advocacia. Dessa maneira, os clientes não desconfiavam que os advogados trabalhavam sozinhos. O prédio alojava apenas advogados de pouco sucesso. Os que defendiam pequenos traficantes de drogas. Ou que já haviam cumprido uma pena de prisão.

— Com licença... — disse ele ao telefone.

— Desculpe, senhor. Estou tentando localizar o Sr. Johnson. - Ela pôs a mão sobre o fone. — Alguém viu Willy Johnson?

E Brad ouviu uma voz abafada gritar em resposta:

— Willy Johnson tomou um chá de sumiço!

Sentado ali, perto da entrada para a emergência, fraco e sentindo dor, o queixo arrebentado, Brad não se sentiu nada bem pelo que estava ouvindo.

— Descobriu o Sr. Johnson?

— Um momento, senhor. Estamos procurando... Ele desligou.

Tinha vontade de chorar.

Brad saiu para o café da manhã, mas sentia dor demais para comer. Além disso, as pessoas no café fitavam-no de uma maneira estranha. Viu seu reflexo no espelho e constatou que todo o queixo estava inchado e roxo. Ainda assim, o aspecto era melhor do que na noite anterior. Não ia se preocupar com qualquer coisa além de seu advogado, Johnson. Todas as suas suspeitas iniciais do homem se confirmavam. Por que haviam se encontrado num restaurante, não num escritório? Porque Johnson não pertencia a nenhuma firma de advocacia.

Não havia nada a fazer que não ligar para tio Jack.

— Grupo de Investimentos John B. Watson.

— O Sr. Watson, por favor.

Passaram a ligação para a secretária, que a transferiu para o tio.

— Oi, tio Jack.

— Onde você está?

O tio parecia bastante hostil.

— Wyoming.

— Espero que esteja se mantendo fora de encrenca.

— Na verdade, meu advogado me mandou para cá. E é por isso que estou ligando. Fiquei um pouco preocupado. Esse advogado...

— Você tem uma acusação de molestamento de menor e conta com um especialista em molestamento para cuidar de seu caso. Não precisa gostar dele. Pessoalmente, acho que o cara é asqueroso.

— Bom...

— Mas ele ganha os casos. Faça o que ele mandar. Por que está falando de uma maneira tão engraçada?

-Nada...

— Estou ocupado, Brad. E foi instruído a não me telefonar. Clique.

Brad sentia-se pior do que nunca. De volta ao motel, o cara da recepção avisou que alguém da polícia o procurara. Para falar de um crime hediondo. Brad decidiu que era tempo de deixar a bela Jackson Hole.

Foi para seu quarto. Enquanto arrumava a mala, assistia a um programa sobre crime real. Contava como a polícia capturara um fugitivo perigoso ao fingir que ele seria apresentado ao vivo na televisão. Encenaram uma falsa entrevista. Assim que o criminoso relaxara, diante das câmeras, os policiais se aproximaram e algemaram-no.

A polícia estava cada vez mais astuciosa. Brad terminou de arrumar suas coisas, apressado, pagou a conta e foi para seu carro.

 

O autoproclamado pintor ecológico Mark Sanger, recém-chegado de uma viagem a Costa Rica, levantou os olhos do computador, espantado, quando quatro homens arrombaram a porta e invadiram seu apartamento em Berkeley. Os homens vestiam-se da cabeça aos pés em trajes azuis hazmat de borracha, com enormes capacetes de borracha e placas no rosto, luvas e botas de borracha. Carregavam rifles ameaçadores e pistolas enormes.

Ele mal reagira ao choque quando foi agarrado por mãos de borracha, o teclado empurrado para o lado.

— Porcos! Fascistas!

Mas parecia que todo mundo gritava ao mesmo tempo na sala. Enquanto era algemado, ele continuou a berrar:

— Isto é uma indignidade! Porcos fascistas!

Mas dava para perceber em seus rostos, por trás das placas protetoras, que eles estavam com medo.

— Jesus, o que pensam que estão fazendo aqui?

Um deles respondeu, enquanto o virava bruscamente:

— Sabemos muito bem o que anda fazendo, Sr. Sanger.

— Ei! Ei!

Empurraram-no rudemente pela escada do prédio até a rua. Sanger só podia torcer para que a mídia estivesse à espera, as câmeras prontas para filmarem aquela afronta em plena luz do dia.

Mas os repórteres estavam isolados no outro lado da rua. Podiam ouvir os gritos de Sanger e filmá-lo, mas a distância impedia os closes e a confrontação que ele esperava. Na verdade, Sanger compreendeu subitamente como aquela cena devia parecer através de suas lentes: policiais em assustadores trajes de hazmat escoltando um homem barbudo, na casa dos trinta anos, de jeans e camiseta de Che Guevara, que se debatia em seus braços, praguejando e gritando.

Sanger sabia que devia parecer um louco. Como um dos Teds: Ted Bundy, Ted Kaczynski, um desses assassinos perigosos. Os policiais diriam que ele tinha equipamentos de microbiologia no apartamento, que tinha instrumentos de engenharia genética, e que estava produzindo uma praga, produzindo um vírus, produzindo uma doença... alguma coisa horrível. Um louco.

- Ponham-me no chão — pediu ele, fazendo um esforço para se manter calmo. — Posso andar. Deixem-me andar.

- Está bem, senhor.

Os homens largaram-no. Sanger foi andando com toda a dignidade que podia exibir. Ergueu os ombros, sacudiu os cabelos compridos, enquanto o levavam para um carro à espera. Claro que era um carro sem identificação. Ele já deveria ter imaginado. A porra do FBI ou da CIA, ou qualquer outra coisa parecida. Organizações do governo secreto, o governo das sombras. Helicópteros pretos. Sem prestar contas a ninguém, os criptonazistas entre nós.

Furioso, ele não estava preparado para deparar com a Sra. Malouf, a dama negra que morava no segundo andar do prédio, parada na calçada, com os dois filhos pequenos. Quando Sanger passou, ela inclinou-se para a frente e começou a gritar:

- Seu desgraçado! Pôs em risco minha família! Pôs em risco a vida de meus filhos! Frankenstein! Frankenstein!

Sanger tinha plena noção da maneira como aquele momento seria apresentado nos jornais da noite na televisão. Uma mãe negra grita para ele, chama-o de Frankenstein. E as crianças ao seu lado choravam, assustadas com tudo o que acontecia ao redor.

E depois os policiais empurraram-no para o carro, uma das mãos em luvas de borracha na sua cabeça, ajudando-o a sentar no banco traseiro. E quando a porta foi batida, ele pensou: Estou fodido.

Sentado em sua cela na cadeia, olhando para a televisão no corredor, tentando ouvir o locutor acima do barulho das discussões dos outros presos na cela, tentando ignorar o tênue cheiro de vômito e o profundo sentimento de desespero.

Primeiro, apareceu o próprio Sanger, cabelos compridos, vestido como um vagabundo, andando entre dois caras em trajes de hazmat. Parecia ainda pior do que receara. O lacaio das grandes corporações leu a notícia, usando todas as palavras-chave: Sanger era desempregado. Era um vagabundo inculto. Era um fanático e um solitário, que tinha materiais de engenharia genética, em seu apartamento abarrotado e imundo, e era considerado perigoso, porque se ajustava no perfil clássico de bioterrorista.

Em seguida, apareceu na tela um advogado barbudo de San Francisco, de algum grupo de defesa do meio ambiente, para dizer que Sanger deveria ser processado com todo o rigor da lei. Afinal, Sanger causara danos irreparáveis a uma espécie em perigo de extinção, e pusera em risco a própria existência da espécie com suas depredações.

Sanger franziu o rosto. Do que ele estava falando?

A TV apresentou uma imagem de tartaruga-de-couro e um mapa de Costa Rica. Parecia agora que as autoridades haviam sido alertadas para as atividades de Sanger porque ele visitara Tortuguero, na costa do Atlântico de Costa Rica, algum tempo antes. E porque ele cometera graves ameaças ao meio ambiente, relacionadas com as tartarugas-de-couro.

Sanger não podia entender. Nunca fora culpado de qualquer ameaça. Só queria ajudar, mais nada. E a verdade é que não conseguira realizar seus planos depois que voltara para o apartamento. Comprara pilhas de livros sobre genética, mas o assunto era complicado demais. Abrira o menor dos livros e lera algumas legendas de gráficos: "Um plasmídeo abrigando um LoxP normal tem pouca chance de permanecer integrado num genoma em um sítio similar de LoxP, já que a recombinase Cre eliminará o fragmento de DNA integrado." "Os vetores de lentivírus injetados em embriões unicelulares ou incubados com embriões de que se retirou a zona pelúcida eram particularmente..." "Uma maneira mais eficiente de substituir um gene baseia-se no uso de células mutantes, desprovidas do gene HPRT (hipoxantina fosforibosil). Essas células não podem sobreviver no meio HAT, que contém hipoxantina, aminopterina e timidina. O gene HPRT é introduzido no sítio visado por uma recombinação homóloga dupla..."

Sanger parara de ler.

E agora a TV mostrava tartarugas na praia à noite, luzindo com uma estranha cor púrpura... e pensavam que ele fizera aquilo? A própria idéia era absurda. Mas um Estado fascista exigia sangue por qualquer transgressão, real ou imaginária. Sanger podia prever que seria condenado por um crime que não cometera... um crime que nem sabia como cometer.

NOVOS BICHOS

DE ESTIMAÇÃO

TRANSGÊNICOS NO HORIZONTE

Baratas Gigantes, Filhotes Permanentes

Artistas Plásticos e Indústria Empenhados

A artista plástica Lisa Hensley, formada em Yale, aliou-se a uma empresa de genética, Borger Snodd Ltd., para criar baratas gigantes, que seriam vendidas como animais de estimação. As baratas geneticamente modificadas terão um metro de comprimento e cerca de trinta centímetros de altura. "Terão o tamanho de dachshunds grandes, mas não vão latir", disse Hensley.

Ela considera os novos animais de estimação como obras de arte, a fim de elevar a percepção humana para a comunidade dos insetos. "A esmagadora maioria de matéria viva em nosso planeta consiste em insetos", disse Hensley. "Contudo, mantemos um preconceito irracional contra eles. Devemos abraçar nossos irmãos insetos. Beijá-los. Amá-los."

Ela ressaltou que "o verdadeiro perigo do aquecimento global é que podemos causar a extinção de muitos insetos". Hensley reconheceu que foi inspirada pela obra da artista plástica Catherine Chalmers

(bacharel em Engenharia, Universidade de Stanford), cujo projeto Barata Americana foi o primeiro a projetar as baratas como um importante tema na arte contemporânea.

Enquanto isso, numa comunidade suburbana de Nova Jersey, a empresa Kumnick Genomics trabalha para criar um animal que acredita que todos os donos de cachorros querem: os filhotes permanentes. "Os Filhotes Permanentes da Kumnick nunca vão crescer", segundo a porta-voz Lyn Kumnick. "Quando você comprar um Perma-Puppy, pode ter certeza de que permanecerá um filhote para sempre." A empresa trabalha para eliminar o comportamento indesejado de filhote, como roer sapatos, o que dá nos nervos dos donos. "Depois que os dentes crescem, esse comportamento cessa", disse Kumnick. "Infelizmente, nossas intervenções genéticas a esta altura têm inibido por completo o crescimento dos dentes. Mas vamos resolver esse problema." Ela disse que são infundados os rumores de que lançariam no mercado um animal desdentado chamado GummyDog.

Kumnick ressalta que, como a vida adulta em seres humanos está sendo substituída pela permanente adolescência, é natural que as pessoas queiram ser acompanhadas através da vida por cachorros igualmente jovens. "Como Peter Pan, queremos não crescer nunca", diz ela. "A genética torna isso possível!"

 

Ainda perdido, agora dirigindo através de uma região montanhosa, Stan Milgram contraiu os olhos para ler a placa que surgia à frente, na escuridão da estrada: MONTE PALOMAR, 59 KM. Onde ficava isso? Nunca imaginara que a Califórnia fosse tão grande. Passara por duas pequenas cidades, mas às três horas da madrugada tudo estava fechado, inclusive os postos de gasolina. E depois, mais uma vez, entrara numa área vazia e escura.

Deveria ter comprado um mapa.

Stan sentia-se exausto e irritado. Precisava parar e dormir. Mas o desgraçado do papagaio começava a gritar cada vez que ele parava.

Gerard mantivera-se em silêncio durante a última hora. Mas agora, inexplicavelmente, ele começou um ruído de telefone. Como se estivesse ligando para alguém.

— Pare com isso, Gerard.

E o papagaio parou. Pelo menos por um momento. Stan pôde dirigir no silêncio. Mas é claro que não durou muito.

- Estou com fome — disse Gerard.

- Eu também.

— Tem batata frita?

- Acabou.

Haviam comido as últimas na cidade de Earp. Há uma hora? Duas?

- Ninguém conhece os problemas que eu vivi — cantarolou Gerard.

— Não comece - advertiu Stan.

— Ninguém conhece, exceto Jesus...

— Gerard... Silêncio.

Era como viajar com uma criança, pensou Stan. O papagaio tinha o comportamento obstinado e inesperado de uma criança. Era extenuante.

Passaram por trilhos de trem, à direita.

Gerard imitou o barulho de uma locomotiva, acompanhado por um apito prolongado.

— Não vejo o sol brilhar desde não sei quando...

Stan decidiu não dizer nada. Apertou o volante e continuou a avançar pela noite. Percebeu que o céu começava a clarear lá atrás. Isso significava que seguia para oeste. Que era a direção para onde queria ir. Mais ou menos.

E de repente, no silêncio tenso, Gerard recomeçou.

— Senhoras e senhores, mesdames et messieurs, damen und herren, do que era antes uma massa inarticulada de tecidos sem vida, permitam que eu apresente agora um homem experiente, culto, sofisticado! Aproveitem!

— Você está exagerando — disse Stan. — E estou lhe dando um aviso.

— É minha vida... não esqueçam!

O papagaio cantava o mais alto que podia. Parecia que todo o carro vibrava. Stan pensou que as janelas podiam estilhaçar. Estremeceu, apertando o volante com mais força ainda. O canto cessou abruptamente.

— Estamos muito contentes em ver tantas pessoas adoráveis aqui esta noite - disse Gerard, como se fosse um locutor.

Stan balançou a cabeça.

— Oh, Deus!

— Vamos ser felizes e felizes e felizes, digam as palavras agora... - A voz diferente, Gerard acrescentou: — Felizes, felizes, felizes, vamos tentar...

— Pare com isso! — gritou Stan. Gerard não parou.

— Felizes, felizes, felizes, felizes, oh, meu bem, isso mesmo, felizes, felizes...

- Já chega!

Stan parou no acostamento. Saltou do carro, batendo a porta com toda força.

- Você não me assusta, companheiro - disse Gerard.

Stan gritou um palavrão e abriu a porta traseira. Gerard voltara a cantar:

- Tenho notícias para você e vai descobrir em breve que são verdadeiras, e terá de almoçar sozinho...

- Não tem problema - disse Stan —, porque você vai cair fora, companheiro!

Ele agarrou o papagaio de uma maneira um tanto rude — Gerard bicou-o, mas Stan não se importou — e levou-o para o lado da estrada, largando-o na areia.

- Parece que tenciona me deixar aqui, e se isso é real, saiba que não quero...

- É real.

Gerard bateu as asas.

- Não pode fazer isso comigo.

- Não posso? Pois observe.

Stan voltou para a frente do carro e abriu a porta.

- Quero o meu poleiro — disse Gerard. — É o mínimo que pode fazer...

- Que se foda o seu poleiro!

- Não vá embora furioso. Não pode ser tão ruim assim. Não vá embora agora...

- Adeus, Gerard.

Stan bateu a porta. Deu a partida, a toda velocidade, levantando uma nuvem de poeira. Olhou para trás, mas não avistou o papagaio. Viu apenas toda a titica de papagaio no banco traseiro. Droga! Levaria dias para limpar tudo.

Mas agora havia silêncio.

Um bendito silêncio.

Finalmente.

As aventuras de Gerard haviam acabado.

Agora que havia silêncio no carro, a fadiga acumulada envolveu-o. Stan começou a cochilar. Ligou o rádio, abaixou as janelas, estendeu a cabeça para a brisa fria. Nada ajudava. Compreendeu que ia dormir e precisava sair da estrada.

O papagaio mantivera-o acordado. Sentiu-se um pouco consternado por deixá-lo na estrada daquela maneira. Era a mesma coisa que matá-lo. Um papagaio como aquele não duraria muito tempo no deserto. Alguma cascavel ou coiote faria o trabalho. Era provável até que já tivesse acontecido. Não havia razão para voltar.

Stan parou no lado da estrada, no meio de um bosque de pinheiros. Desligou o carro e aspirou a fragrância das árvores. Pegou no sono no mesmo instante.

Gerara passou andando pela areia, na escuridão, de um lado para outro. Queria sair do chão, e por várias vezes tentou pular para os galhos das salvas ao redor. Mas as salvas não suportavam seu peso, e sempre caía. Até que, finalmente, meio saltou meio voou para um galho de junípero, ficando um metro acima do solo. No poleiro improvisado, poderia até dormir, se não fosse pela temperatura, extremamente fria para uma ave tropical. E foi mantido acordado pelos ganidos de uma matilha de animais no deserto.

E os ganidos soavam cada vez mais próximos.

Gerard eriçou as penas, um sinal de inquietação. Olhou na direção dos sons. Avistou diversos vultos escuros deslocando-se pela vegetação rasteira do deserto.

Tornou a eriçar as penas.

E observou a matilha se aproximar.

 

O Helicóptero Robinson R44 desceu numa nuvem de poeira. Vasco Borden saltou, abaixando-se para correr sob as pás do rotor. Embarcou no Hummer preto à espera.

— Fale comigo - disse ele para Dolly, sentada ao volante.

Ela viera antes, enquanto Vasco se ocupava com a perseguição em vão até Pebble Beach.

— Ela se registrou no Best Western às sete e meia desta noite — informou Dolly. — Esteve numa loja Walstons, onde o cara da segurança identificou o carro. Ela inventou uma história sobre um ex-marido e o cara caiu.

— Quando foi isso?

— Pouco antes de oito horas. De lá, ela voltou para o motel, e disse ao garoto na recepção que havia alguém em seu quarto. Enquanto o garoto ia verificar, ela pegou uma espingarda debaixo do balcão e foi embora.

— É mesmo? — murmurou Borden. — A mulher tem coragem.

— Ao que tudo indica, ela tentou comprar uma arma numa loja, mas esbarrou no período de espera de dez dias.

— E agora?

— Estávamos rastreando seu celular, mas ela desligou. Antes de fazer isso, seguia para leste, na direção da Ortega Highway.

— Ou seja, para o deserto. - Vasco balançou a cabeça. — Ela vai dormir no carro e continuar amanhã de manhã.

— Podemos baixar fotos de satélite às oito horas da manhã. E o tempo de processamento mais rápido.

— Ela terá partido muito antes de oito horas. — Vasco encostou-se no Hummer. - Recomeçará a viagem ao amanhecer. Vamos ver...

Ele fez uma pausa, pensando.

— Ela passou a tarde inteira guiando, basicamente para o sul. No instante em que tudo começou, seguia para o sul.

— Está pensando no México? Vasco sacudiu a cabeça em negativa.

— Ela não quer deixar nenhum registro, o que seria inevitável na travessia da fronteira.

— Talvez ela siga para leste e tente fazer a travessia em Brown Field ou Calexico — sugeriu Dolly.

— É possível. - Vasco esfregou o cavanhaque, pensativo. Tarde demais, sentiu que o rimel saía em seus dedos. Teria de se lembrar disso. - Ela está assustada. Acho que segue para um lugar em que pensa que encontrará ajuda. Talvez se encontre com o pai. Ou com alguma outra pessoa que conhece. Um antigo namorado? Colega de escola? Companheira de fraternidade na universidade? Antigo professor? Alguém com quem trabalhou num escritório de advocacia?

— Estamos verificando todos os bancos de dados da Internet para as últimas duas horas, e até agora não encontramos nada.

— Os registros de seu telefone antigo?

— Não houve nenhuma ligação para o código de área de San Diego.

— Há quanto tempo?

— Um ano. Isso é tudo o que está disponível sem uma ordem judicial.

— Portanto, ela não telefona para a pessoa que vai procurar há pelo menos um ano. — Vasco suspirou. — Teremos de esperar que ela tome a iniciativa.

Ele virou-se para Dolly e acrescentou:

— Vamos para o Best Western. Quero descobrir que tipo de arma ela pegou. E podemos descansar um pouco antes do amanhecer. Tenho certeza que a encontraremos amanhã. Tenho um pressentimento. - Vasco bateu com os dedos no peito. — E nunca me engano.

— Meu bem, você acaba de sujar de rimel sua linda camisa.

— Droga!

Vasco suspirou de novo.

— Vai sair - garantiu Dolly. — Limparei para você.

 

Gerard observou os vultos escuros se aproximarem.

Moviam-se em passadas ágeis, soltavam grunhidos e ganidos, às vezes um som de miado. Os corpos eram baixos. As costas mal eram visíveis por cima das salvas. Circularam o poleiro, aproximando-se e depois se afastando.

Mas era evidente que o haviam farejado, porque chegavam cada vez mais perto. Eram seis animais, no total. Gerard eriçou as penas, em parte numa tentativa de aquecer o corpo.

Os animais tinham focinhos compridos. Os olhos faiscavam com um brilho verde. As caudas eram compridas e felpudas. Exalavam um odor almiscarado, bastante desagradável. Gerard podia ver agora que não eram pretos, mas pardos-cinzentos. E se aproximavam mais e mais.

- Estou tre-tremendo... estou tremendo. E agora se encontravam bem perto.

O maior parou a alguns passos e olhou para Gerard, que não se mexeu.

Depois de vários segundos, o animal avançou mais um pouco.

- Pode parar por aí, Mister!

O animal parou no mesmo instante. Chegou até a recuar alguns passos. Os outros animais também recuaram. Todos pareciam confusos com a voz.

Mas não por muito tempo. O animal maior logo avançou de novo.

- Pare onde está!

Desta vez, a pausa foi apenas momentânea. E, depois, o animal continuou a se aproximar.

— Pensam que estão com sorte, seus desgraçados? Acham que podem agüentar? Hem?

O animal avançava bem devagar agora. Farejava Gerard, mais e mais perto... sempre farejando... A criatura tinha um cheiro horrível. E o focinho estava agora a poucos centímetros...

Gerard inclinou-se e deu uma bicada com toda a força no focinho macio do animal. A criatura ganiu e pulou para trás, quase derrubando Gerard de seu poleiro. Mas ele conseguiu recuperar o equilíbrio.

— Cada vez que você se virar pode ficar na expectativa de me encontrar — disse Gerard. - Porque um dia vai se virar e deparar comigo, e eu o matarei, Matt.

O animal estava estendido no chão, esfregando o focinho ferido com as patas dianteiras. Ficou assim por algum tempo. E depois se levantou, rosnando.

— A vida é dura e se torna ainda mais dura se você é estúpido. Todos os animais rosnavam agora. Avançaram, num semicírculo. Pareciam ser coordenados. Gerard eriçou as penas, uma vez e mais outra. Até bateu as asas, tentando se mostrar tão grande e ativo quanto era possível. Mas as criaturas pareciam não se importar.

— Escutem aqui, seus idiotas, não perceberam que correm perigo? Estão atrás de vocês!

Mas as vozes faladas pareciam não ter qualquer efeito. Os animais continuavam a avançar, lentamente. Um deles começou a dar a volta para se postar atrás de Gerard. Ele virou a cabeça para olhar. Nada bom, nada bom.

— Voltem para o lugar a que vocês pertenciam!

Gerard bateu as asas de novo, nervoso, mas aparentemente a ansiedade lhe proporcionava uma nova força, porque elevou-se um pouco acima do galho em que pousava. Os rugidos se aproximaram e...

E Gerard bateu as asas com força... e mais força... e sentiu que subia pelo ar. Havia semanas que não aparavam suas penas... era esse o motivo. Podia voar! Ele sentiu que subia, e descobriu que podia se elevar acima do solo. Não muito, mas um pouco. Os animais fedorentos permaneciam lá embaixo, uivando para ele. Gerard virou para oeste, seguindo a estrada pela qual Stan se afastara. O amanhecer ficava para trás e ele seguia para a escuridão. Com seu profundo senso de olfato, percebera o cheiro de comida, e voava nessa direção.

 

Alex Burnet, dormindo no banco da frente do carro, abriu os olhos para descobrir que estava cercada por homens. Eram três, espiando para dentro do carro. Usavam chapéus de caubói e seguravam bastões compridos, com um arco na extremidade. Ela sentou abruptamente. Um dos homens acenou para que ficasse quieta.

— Só um momento, dona.

Alex olhou para o filho. Jamie continuava mergulhado num sono sereno no banco ao seu lado. Não acordara. Nada acordava Jamie.

Ela soltou um grito abafado quando tornou a olhar para fora. Um dos caubóis ergueu seu bastão. Uma enorme cascavel, com pelo menos um metro e meio de comprimento e tão grossa quanto um antebraço, contorcia-se na extremidade, emitindo um som de chiado com o chocalho.

— Pode sair agora, se quiser.

O homem jogou a cascavel para longe. Alex abriu a porta, cautelosa.

— É o calor do motor — comentou um dos homens. — Atrai as cascavéis para baixo do carro de madrugada.

Ela viu que eram seis homens. Todos tinham o mesmo tipo de bastão e carregavam sacos com o conteúdo se mexendo.

— O que estão fazendo?

— Capturamos cascavéis.

— Por quê?

— Para o Rodeio de Cascavéis na próxima semana. Em Yuma. - Ahn...

— Acontece todos os anos. É uma competição. Quem leva mais cobras.

— É pelo peso. Por isso, só pegamos as grandes. Não queríamos assustá-la.

— Obrigada.

Os homens começaram a se afastar. O primeiro a falar com Alex ficou para trás.

— Não deveria ficar aqui sozinha. Embora eu veja que tem uma arma.

Ele acenou com a cabeça para o banco traseiro do carro.

— Mas não tenho munição.

— Isso não é problema. — O homem encaminhou-se para seu carro, estacionado no outro lado da estrada. — É calibre doze, não é?

— E, sim.

— Esta munição serve.

Ele entregou um punhado de cartuchos vermelhos. Alex meteu-os nos bolsos.

— Obrigada. Quanto lhe devo? O homem sacudiu a cabeça.

— Não deve nada. Só precisa tomar cuidado. Um Hummer preto passou por esta estrada há cerca de uma hora. Um cara grande, de cavanhaque, disse que procurava uma mulher e seu filho pequeno. Explicou que era o tio e os dois estavam desaparecidos.

— O que vocês disseram?

— Não dissemos nada, porque ainda não a havíamos encontrado.

— Para que lado ele seguiu?

— Foi na direção de Elsinore. Mas calculo que poderá voltar a qualquer momento.

— Obrigada.

O homem acenou, começando a se afastar.

— Não pare para pôr gasolina. E boa sorte.

TRANSCRIÇÃO: CBS Sam Francisco

Acusado de Bioterrorismo Solto Hoje

(CBS) Mark Sanger, suspeito de terrorismo, foi solto hoje da cadeia do condado de Alameda, em liberdade condicional de dois anos, por posse de materiais biológicos perigosos. Fontes bem informadas disseram que a complexidade técnica das acusações do governo contra Sanger levou os promotores a concluírem, com a maior relutância, que não conseguiriam manter o suspeito por trás das grades. Em particular, a acusação de que Sanger promovera modificações genéticas em tartarugas na América Central foi posta em dúvida. Sobre isso, conversamos com Júlio Manarez, em Costa Rica.

(Manarez) É verdade que as tartarugas do Atlântico sofreram uma modificação genética que produziu uma cor púrpura em seus cascos. Por enquanto, ainda não há uma explicação sobre a maneira como isso aconteceu. Mas a idade das tartarugas indica que a manipulação genética ocorreu há algum tempo, de cinco a dez anos atrás.

(CBS) Pouco depois de efetuada a prisão, os investigadores determinaram que Sanger não estivera em Costa Rica havia bastante tempo para ser o responsável pela mudança genética. Ele só esteve lá no ano passado. Por isso, Mark Sanger, suspeito de terrorismo, está agora livre, depois de pagar uma multa de quinhentos dólares.

 

Na Sala de Audiência 443 do Congresso, enquanto esperavam que a sessão começasse, o deputado Marvin Minkowsi (democrata de Wisconsin) perguntou ao deputado Henry Wexler (democrata da Califórnia):

— Não acha que deveria haver regulamentos mais rigorosos para limitar a disponibilidade da tecnologia de recombinantes de DNA?

— Está pensando em Sanger?

— Ele é o caso mais recente. Onde será que ele conseguiu o material?

— Na Internet. Pode-se comprar kits de recombinantes de organizações em Nova Jersey e Carolina do Norte. Custam umas poucas centenas de dólares.

— Não acham que estão exagerando?

— Minha mulher adora jardinagem — disse Wexler. - A sua também?

— Agora que as crianças saíram de casa, ela é fanática por suas rosas.

— Pertence ao clube de jardinagem local e todo o resto?

— Claro.

— Muitos adeptos da jardinagem que antes usavam enxertos em raízes agora utilizam kits de DNA para seguir um passo à frente. As pessoas estão agora produzindo rosas geneticamente modificadas no mundo inteiro. Dizem que uma empresa japonesa produziu uma rosa azul usando métodos de modificação genética. Uma rosa azul foi o sonho de cultivadores de rosas durante séculos. O fato é que a tecnologia se difundiu, Marv. É encontrada em grandes empresas e nos jardins das residências. Em toda parte.

- E o que devemos fazer?

- Nada. Não estou disposto a fazer qualquer coisa que possa deixar sua esposa furiosa. Ou a minha. — Wexler levou a mão ao queixo, num gesto que sempre parecia inteligente diante das câmeras. — Mas talvez seja tempo de fazer um discurso expressando minha preocupação com os perigos dessa tecnologia descontrolada.

- Boa idéia - disse Minkowski. - Acho que também farei um discurso.

NOTÍCIAS DE LIPOASPIRAÇÃO

Gordura de Primeiro-Ministro Vendida por US$18 mil

A Seguir: Celebridades Doam Gordura para Caridade

BBC NEWS. Um sabonete feito com a gordura lipoaspirada de Silvio Berlusconi, primeiro-ministro italiano, foi vendido por dezoito mil dólares a um colecionador particular. O sabonete é uma obra de arte intitulada "Mani Pulite" ("Mãos Limpas"), feito pelo artista plástico Gianni Motti, que reside na Suíça. Motti comprou a gordura de uma clínica de Lugarno, onde Berlusconi fizera a lipoaspiração. Moldou o sabonete, que vendeu na feira de arte de Basiléia a um colecionador particular suíço, que "agora pode lavar as mãos com Berlusconi".

Comentaristas ressaltaram que Berlusconi é impopular na Europa, o que pode ter reduzido o preço de sua gordura. A gordura de celebridades do cinema seria consideravelmente mais valiosa. "O céu é o limite para subprodutos de Brad Pitt ou Pamela Anderson", disse um deles.

Celebridades seriam capazes de vender a própria gordura? "Por que não?", disse um cirurgião plástico de Beverly Hills. "Pode ser uma iniciativa de caridade. Afinal, eles faziam a lipoaspiração de qualquer maneira. No momento, jogamos a gordura fora. Mas eles podem muito bem usá-la para ajudar causas meritórias."

Corredor de Lancha Usa o Traseiro

O Impulso Vem de Trás

WIRED NEWS SERVICE. O rico neozelandês Peter Bethune tentará quebrar o recorde mundial de velocidade numa lancha impulsionada pela gordura de seu próprio traseiro. Seu trimarã ecologicamente correto, de 24 metros, Earthrace, é impulsionado só por combustível biodiesel de óleos vegetais e outras gorduras. Na verdade, o traseiro de Bethune dará apenas uma contribuição mínima para a viagem ao redor do mundo. Suas nádegas só proporcionaram um litro de combustível. Contudo, Bethune ressaltou que quase não sofreu e que "foi um sacrifício pessoal" para produzir combustível.

NOTÍCIAS DE LIPOASPIRAÇÃO

Artista Cozinha e Come a Gordura do Próprio Corpo

Protesto Contra "Desperdício" da Sociedade Ocidental

REUTERS. O artista plástico conceituai Ricardo Vega, de Nova York, submeteu-se a uma lipoaspiração, cozinhou sua gordura e comeu-a. Disse que o propósito era chamar a atenção para o desperdício da sociedade ocidental. Ele reservou outras porções de sua gordura para vender, comentando que isso permitiria que as pessoas saboreassem carne humana e experimentassem o canibalismo. Vega não fixou um preço para sua gordura, mas um marchand comentou que valeria muito menos que a de Berlusconi. "Afinal, Berlusconi é primeiro-ministro", ressaltou ele. "Vega é um desconhecido. Ainda por cima, isso já foi feito pelo artista plástico Marcos Evaristta, que fez bolinhos de carne com a gordura de seu corpo."

Marcos Evaristta é um artista nascido no Chile que vive na Dinamarca. Os rumores de que os bolinhos de carne feitos com a gordura de seu corpo seriam leiloados pela Christie's, em Nova York, não puderam ser confirmados, já que os representantes da Christies não retornaram nossas ligações.

 

A AMBULÂNCIA SEGUIA pela estrada em alta velocidade, para o sul. Sentada ao volante, usando seu novo equipamento de fones de ouvido e microfone Bluetooth, Dolly falava com Vasco. Ele estava furioso, mas não havia nada que Dolly pudesse fazer. Ele partira na direção errada pela segunda vez, e era o único culpado por isso.

— Acabamos de receber os registros telefônicos dos últimos cinco anos - informou Dolly. - Chegaram neste minuto. Alex costuma ligar para um número nessa área. Pertence a Henry e Lynn Kendall. Ele é bioquímico; não sabemos o que ela faz. Mas Lynn e Alex são da mesma idade. Achamos que podem ter sido criadas juntas.

— E onde os Kendall moram? — perguntou Vasco.

— Em La Jolla. Fica ao norte de...

— Sei onde fica.

— Onde você está agora?

— Voltando de Elsinore. Estou a uma hora no mínimo de La Jolla. A droga da estrada é cheia de curvas. Tenho certeza de que ela dormiu em algum lugar desta estrada.

— Como sabe?

— Simplesmente sei. Pus meu faro para funcionar.

— É possível que ela esteja mesmo a caminho de La Jolla. Talvez até já tenha chegado.

— E onde você está, Dolly?

— A vinte minutos da casa dos Kendall. Quer que nós os peguemos?

— Como está nosso doutor?

— Sóbrio.

— Tem certeza?

— Bastante sóbrio para um trabalho oficial. Vem tomando café de uma garrafa térmica.

— Verificou esse café?

— Claro. Podemos pegá-los, ou esperamos por você?

— Se for a mulher, Alex, deixe-a em paz. Mas se encontrar o menino sozinho, pode pegá-lo.

— Está certo.

 

- Bob... - Murmurou Alex, o celular encostado no ouvido. Ela ouviu um gemido no outro lado da ligação.

— Que horas são?

— Sete horas da manhã, Bob.

— Oh, Cristo! - Um baque quando a cabeça bateu no travesseiro. - É melhor que seja importante, Alex.

— Passou a noite provando vinho?

Robert A. Koch, distinto diretor da firma de advocacia, dedicava uma enorme atenção ao vinho. Comprava em leilões na Christies; fazia viagens a Napa, Austrália, França. Mas, na opinião de Alex, tudo não passava de pretexto para tomar porres regulares.

— Estou esperando, Alex. E como eu disse, é melhor que seja importante.

— Está bem. Nas últimas vinte e quatro horas fui perseguida por um caçador de recompensas, um cara enorme que mais parece um armário ambulante. Ele quer pegar a mim ou meu filho e nos espetar com agulhas de biópsia, para tirar nossas células.

— Muito engraçado. Continuo esperando.

— Falo sério, Bob. Há um caçador de recompensas atrás de mim edo meu filho.

— Isso surgiu de repente?

— Não. Acho que tem alguma relação com a BioGen.

— Ouvi dizer que a BioGen anda com problemas. E tentam tirar suas células? Provavelmente não podem fazer isso.

— Provavelmente não é o que quero ouvir.

— Sabe que a lei não é clara.

— Meu filho de oito anos está comigo. Querem levá-lo para a traseira de uma ambulância e espetar uma agulha em seu fígado. Não quero ouvir não é clara. Quero ouvir Vamos acabar com isso.

— Pode ter certeza de que tentaremos. É o caso de seu pai?

— Isso mesmo.

— Ligou para ele?

— Ele não atende.

— Chamou a polícia?

— Há um mandado para a minha prisão. Em Oxnard. Há uma audiência em Oxnard hoje. Preciso de alguém bom para ir até lá e me representar.

— Mandarei Dennis.

— Eu disse alguém bom.

Dennis é bom.

— Dennis é bom se tem um mês. A audiência é hoje, Bob.

— Quem você quer?

— Quero você.

— Oh, Cristo! Em Oxnard? E muito longe... e ainda nem tomei os meus remédios...

— Tenho uma espingarda de cano serrado no banco traseiro, Bob. Não me importo se você acha que a viagem é muito longa.

— Está bem, está bem... Fique calma. Tenho de providenciar algumas coisas.

— Mas você vai?

— Vou. Quer me dar uma dica do que está acontecendo?

— Encontrará tudo na pasta de Burnet. Presumo que tem a ver com tirar por eminente domínio ou simples conversão.

— Tirar suas células?

— Eles alegam que as possuem.

— Como podem possuir suas células? Eles possuem as células de seu pai. Ah, já entendi. As mesmas células. Mas isso é besteira, Alex.

— Diga isso ao juiz.

— Não podem violar a integridade de seu corpo ou do corpo de seu filho, mas apenas...

— Poupe tudo para o juiz. Ligarei mais tarde para saber como foi a audiência.

Alex desligou.

Olhou para Jamie. Ele ainda dormia, sereno como um anjo.

Se Koch chegasse em Oxnard ao final da manhã, poderia ter uma audiência de emergência marcada para a tarde. Ela deveria ligar por volta de quatro horas da tarde. O que parecia estar a uma eternidade de distância.

E Alex seguiu para La Jolla.

 

É a última coisa de que precisamos, pensou Henry Kendall. Visitas! Ele observou consternado quando Lynn abraçou Alex Burnet, e depois abaixou-se para abraçar o filho de Alex, Jamie. Os dois haviam aparecido sem qualquer aviso prévio. As mulheres conversavam, excitadas, agitando os braços, felizes por se encontrarem, enquanto seguiam para a cozinha, a fim de providenciarem comida para o Jamie de Alex. Enquanto isso, seu filho Jamie e Dave jogavam Drive ou Die!, no PlayStation. Os sons de metal batendo e pneus rangendo povoavam a sala.

Henry Kendall sentia-se angustiado. Foi para o quarto, a fim de pensar na situação. Acabara de voltar da delegacia de polícia, onde assistira à gravação das cenas ocorridas no dia anterior no playground da escola, feita pela câmera de segurança. A qualidade da imagem não era muito boa... graças a Deus, porque a cena do garoto Billy chutando e socando seu filho era tão perturbadora que ele mal pudera olhar. Tivera de virar o rosto várias vezes. Todos aqueles meninos, a gangue de skatistas, deveriam estar na cadeia. Com um pouco de sorte, seriam expulsos da escola.

Mas Henry sabia que não acabaria por aí. Todo mundo processava todo mundo hoje em dia, e não podia haver a menor dúvida de que os pais dos skatistas abririam um processo para que seus filhos fossem reintegrados na escola. Também processariam a família de Henry, processariam Jamie e Dave. E nessas ações judiciais era inevitável que descobrissem que não havia nenhuma síndrome de Gandalf-Crikey, ou qualquer outra coisa que Lynn inventara. Era certo que se chegaria à conclusão de que Dave, na realidade, não passava de um chimpanzé transgênico.

E o que aconteceria então? Um circo da mídia, além de tudo o que se podia imaginar. Repórteres acampados no gramado da frente durante semanas. Atrás de todas as pessoas da família, onde quer que fossem. Seriam filmados com câmeras de espionagem dia e noite. E suas vidas seriam destruídas. E quando os repórteres cansassem do assédio, começariam as pressões dos religiosos e ambientalistas. Henry e sua família seriam chamados de ímpios. Seriam chamados de criminosos. Seriam chamados de perigosos, antiamericanos, uma ameaça para a biosfera. Em sua imaginação, podia ver comentaristas na TV numa babel de línguas — inglês, espanhol, alemão, japonês — falando com imagens dele e de Dave em segundo plano.

E isso era apenas o começo.

Dave seria levado. Henry podia ir para a prisão (embora ele duvidasse dessa possibilidade; os cientistas violavam as normas sobre testes genéticos havia vinte anos, e nenhum deles jamais fora para a cadeia, mesmo quando os pacientes morriam). Mas, com toda a certeza, ele seria excluído da pesquisa. Poderia ser afastado dos laboratórios por um ano ou mais. Como sustentaria sua família? Lynn não poderia fazê-lo sozinha; e era quase certo que seu negócio na Internet acabaria. E o que aconteceria com Dave? E com seu filho? E com Tracy? E com a comunidade em que viviam? La Jolla era bastante liberal (pelo menos algumas partes), mas as pessoas poderiam não compreender a idéia de um humanzé freqüentando a escola com seus filhos. Era radical, não havia a menor dúvida quanto a isso. As pessoas não estavam preparadas. Os liberais só eram liberais até certo ponto.

Talvez tivessem de se mudar. Poderiam ser obrigados a vender a casa e a ir para algum lugar remoto, como Montana. Embora fosse possível que as pessoas ali demonstrassem ainda menos aceitação.

Esses e outros pensamentos passaram pela mente de Henry, sob o acompanhamento de batidas de carros e rangidos de pneus, as risadas da esposa e da amiga na cozinha. Ele sentia-se acabrunhado. E no meio de tudo, no próprio centro da crise, estava seu profundo sentimento de culpa.

Uma coisa era evidente. Ele não podia mais ignorar o paradeiro dos filhos. Tinha de saber onde se encontravam em todos os momentos. Não podia se arriscar a novos incidentes como o que ocorrera no dia anterior. Lynn mantivera as crianças em casa por uma hora extra, tencionando só deixá-las ir para a escola mais tarde, para que não houvesse novos incidentes com as crianças mais velhas. Aquele garoto Cleever era uma ameaça, e não era provável que ficasse encarcerado. Se limitariam a dar-lhe um susto e o deixariam sair sob a custódia do pai. O pai, Henry sabia, era um analista de defesa para uma empresa local e um fanático por armas. Um desses intelectuais que gostavam de atirar em coisas. Um intelectual viril. Não havia como prever o que poderia acontecer.

Henry virou-se para o pacote que trouxera do laboratório. Tinha a indicação de TrackTech Industries, Chiba City, Japão. Dentro, havia tubos prateados de doze centímetros de comprimento, um pouco mais finos do que canudos de refrigerante. Ele tirou-os e examinou-os. Aquelas maravilhas da miniaturização tinham tecnologia de GPS embutida, além de monitores para temperatura, pulsação, respiração e pressão arterial. Eram ativadas por um ímã que se tocava numa extremidade. Emitia um brilho azul por um instante, e depois não havia mais nada.

Eram projetados para o acompanhamento de primatas de laboratório, macacos e babuínos. Os tubos eram inseridos por um instrumento cirúrgico especial, parecido com uma enorme seringa. Ficavam sob a pele do pescoço, logo acima da clavícula. Henry não podia fazer isso com as crianças, é claro. Portanto, a questão agora era só uma: Onde pôr os tubos?

Ele voltou à sala de estar, onde as crianças ainda se encontravam. Deixaria os sensores nas mochilas da escola? Não. Nas golas de suas camisas? Ele sacudiu a cabeça. As crianças sentiriam.

Então onde?

O instrumento cirúrgico funcionou com perfeição. Os artefatos foram inseridos na borracha do calcanhar do tênis. Ele fez isso no tênis de Jamie, depois no tênis de Dave. Num súbito impulso, foi pegar um tênis do filho de Alex, que também era Jamie.

— Para quê? — perguntou Jamie.

— Preciso medir. Devolvo num segundo. Ele inseriu outro tubo no terceiro tênis.

Sobraram dois. Henry pensou a respeito. Várias possibilidades lhe ocorreram.

 

O Hiimmer parou atrás da ambulância. Vasco saltou. Foi até a ambulância. Dolly abriu a porta de passageiro. Vasco perguntou, ao entrar:

— O que está acontecendo?

Dolly acenou com a cabeça para a casa no final da rua.

- Aquela é a casa dos Kendall. O carro parado na frente é de Burnet. Ela chegou há uma hora.

Vasco franziu o rosto.

- O que houve lá dentro?

— Não sei. Poderia usar o microfone direcional, mas teríamos de ficar em linha reta para as janelas. Calculei que você não fosse querer que chegássemos mais perto.

— Tem toda razão. Não quero.

Vasco recostou-se no banco. Deixou escapar um longo suspiro. Olhou para o relógio.

- Não podemos entrar. - Os caçadores de recompensas tinham permissão para ingressar no domicílio do fugitivo, mesmo sem um mandado judicial; mas não podiam invadir o domicílio de terceiros, mesmo sabendo que o fugitivo estava ali. - Mais cedo ou mais tarde, eles terão de sair. E quando isso acontecer, estaremos à espera.

 

Gerard sentia-se cansado. Voava havia cerca de uma hora desde a última parada, que fora quase um desastre.

Pouco depois do amanhecer, ele pousou num complexo de construções, onde sentira o cheiro de comida. Eram construções de madeira com a tinta esmaecida. Havia carros espalhados, com o mato crescendo ao redor. Animais grandes emitiam grunhidos por trás de uma cerca. Gerard pousou num poste da cerca e observou um menino de macacão azul aparecer com um balde na mão. Sentiu o cheiro de comida.

— Estou com fome — disse ele.

O menino parou. Olhou ao redor por instante, depois continuou em seu caminho.

— Quero comida — insistiu Gerard. — Estou com fome. O menino parou de novo. E tornou a olhar ao redor.

— Qual é o problema? — indagou Gerard. — Você não sabe falar?

— Claro que sei. Onde você está?

— Aqui.

O garoto contraiu os olhos. Foi até a cerca.

— Meu nome é Gerard.

— Essa não! Você sabe falar!

— É emocionante para você.

Gerard podia sentir agora o cheiro do balde. Havia milho e outros grãos. Também podia sentir alguma coisa com um cheiro desagradável. Mas a fome levou a melhor.

— Quero comida.

— Que comida você quer? — O garoto enfiou a mão no balde e pegou um punhado de ração. - Quer isto?

Gerard inclinou-se e provou. Cuspiu no mesmo instante.

— Tem legume fresco? O garoto riu.

— Você fala engraçado. Parece britânico. Qual é seu nome?

— Gerard. Uma laranja? Tem uma laranja? - Ele balançou para a frente e para trás na cerca, impaciente. — Gosto de laranja.

— Como pode falar tão bem?

— Eu poderia lhe fazer a mesma pergunta.

— Quer saber de uma coisa? Vou mostrar você para meu pai. — O garoto estendeu a mão. - Você é manso, não é?

— Você nem imagina!

Gerard subiu na mão estendida. O garoto levou-o para o ombro. Foi andando para o prédio de madeira.

— Aposto que podemos vender você por muito dinheiro. Gerard soltou um grito e voou para um telhado.

— Ei, volte aqui!

Uma voz berrou, do interior da casa:

— Jared, faça suas tarefas!

Gerard observou o garoto seguir relutante para um terreiro, onde jogou no chão punhados dos grãos do balde. Um bando de aves amarelas saltou sobre a comida, cacarejando. Pareciam incrivelmente estúpidas.

Gerard levou um momento para decidir que comeria aqueles grãos, no final das contas. Voou para a terra e soltou um grito alto, para afugentar as aves estúpidas. Depois, começou a comer os grãos. O gosto era repulsivo, mas ele tinha de comer alguma coisa. Quando o garoto mergulhou para agarrá-lo, com as mãos estendidas, Gerard alçou vôo e bicou-o no nariz com toda a força. O garoto soltou um berro de dor. Gerard pousou a pouca distância para recomeçar a comer. As enormes aves amarelas ciscavam ao seu redor.

— Recuem! Afastem-se, todas vocês!

As aves amarelas não lhe deram a menor atenção. Gerard emitiu o som de uma sirene. O garoto mergulhou de novo, errando Gerard por pouco. Era obviamente um garoto estúpido.

— Atacando! Atacando! Seis mil metros de altitude e atacando! Vou empurrar o manche para a frente...

E veio o som de uma estrondosa explosão. As galinhas dispersaram-se. Gerard teve um momento de paz, comendo um pouco.

Mas o garoto voltou com uma rede, para tentar capturá-lo. Era excitamento demais para Gerard, que já começava a sentir dor no estômago da comida horrível. Por isso, ele alçou vôo... e evacuou, acertando o garoto na cabeça com precisão, antes de subir para o céu azul e afastar-se.

Vinte minutos depois, ele alcançou a costa e seguiu-a. Era mais fácil ali, porque havia correntes ascendentes, uma bênção para suas asas cansadas. Não dava para subir muito, mas mesmo assim ajudava. Ele experimentou uma relativa sensação de paz.

Pelo menos até que uma enorme ave branca — mais do que enorme, imensa, gigantesca — avançasse silenciosamente em sua direção, com um zunido ao passar. Criou tanta turbulência que Gerard caiu, fora de controle. Quando se recuperou, a ave já se afastara, com suas enormes asas. Havia um único olho no centro da cabeça, faiscando ao sol. E as asas nunca se mexiam; permaneciam esticadas e retas.

Gerard sentiu-se satisfeito por não haver um bando daquelas aves, mas apenas uma. Ele ficou observando, enquanto a ave fazia um círculo lento para chegar ao solo. E foi nesse momento que ele notou o lindo oásis verde no meio da costa seca. Um oásis! Ficava junto de imensos blocos de pedra. Ao redor dos blocos de pedra, havia palmeiras e jardins exuberantes, com lindos prédios entre o verde. Gerard teve certeza de que haveria comida ali. Era tão convidativo que ele desceu.

Era uma espécie de sonho. Pessoas bonitas, de roupão branco, caminhando em silêncio por um jardim de flores e arbustos, à sombra fresca das palmeiras, com aves de todos os tipos batendo as asas ao redor. Gerard não sentiu cheiro de comida, mas tinha certeza de que devia haver.

E, de repente... laranja! Laranja cortada!

Gerard levou um momento para localizar outra ave, de penas azuis e vermelhas, num poleiro, com muitas laranjas ao redor, numa bandeja por baixo. Laranjas, abacates, pedaços de alface. Gerard foi pousar ao lado, cauteloso.

— Quero que você me queira — disse ele.

— Alô — respondeu a ave vermelha e azul.

— Preciso que precise de mim. - Alô.

— Tem um bom lugar aqui. Meu nome é Gerard.

— Qual é a sua, cara?

— Importa-se se eu pegar uma laranja?

— Alô. Qual é a sua, cara?

— Eu disse que queria uma laranja. - Alô.

Gerard perdeu a paciência. Foi pegar a laranja. A ave tentou bicá-lo, furiosa. Gerard esquivou-se e voou para longe, com a laranja no bico. Pousou no galho alto de uma árvore e olhou para trás. Foi quando percebeu que a outra ave estava acorrentada ao poleiro. Gerard comeu a laranja sem qualquer pressa. Voou para buscar mais. Desta vez, alcançou o poleiro por trás. Depois, foi pelo lado. Voava em momentos inesperados, sempre se esquivando da ave, que só sabia dizer "Alô".

Depois de meia hora, ele sentiu-se satisfeito.

Enquanto comia, observava as pessoas de roupão branco que passavam de um lado para outro, falando de NyQuil e Jell-O. Gerard disse:

— Jell-O, a sobremesa saborosa para toda a família, agora com mais cálcio!

Duas pessoas de roupão branco levantaram os olhos. Alguém riu. E, depois, todos continuaram em seu caminho. Aquele lugar era sossegado; a água murmurava em pequenos córregos, ao longo dos caminhos. Gerard teve certeza de que permaneceria ali por muito e muito tempo.


 

- Vamos entrar em ação - avisou Vasco. Dois meninos saíram da casa dos Kendall. Um era escuro, com um boné de beisebol, as pernas arqueadas. O outro era claro, também com um boné de beisebol. De short caqui e camiseta.

- Parece com Jamie - murmurou ele, dando a partida no carro.

- Não sei... - disse Dolly. — Parece diferente.

- Por causa do boné de beisebol. Pergunte a ele. Dolly baixou a janela. Inclinou-se para fora.

- Jamie, querido? O menino virou-se.

- O que é?

Dolly saltou do carro.

Henry Kendall trabalhava no computador, ativando o TrackTech, quando ouviu o grito estridente lá fora. Compreendeu no mesmo instante que era Dave. Levantou-se de um pulo e correu para a porta. Lynn veio correndo da cozinha. Mas ele notou que Alex permaneceu na cozinha, abraçando o filho, Jamie. E parecia apavorada.

Dave sentiu-se confuso pelo que viu. Jamie falava com a mulher no enorme carro branco, e de repente ela saltou e agarrou-o. Dave não era propenso a atacar mulheres, e por isso apenas observou quando aquela levantou Jamie e carregou-o para a traseira do carro branco, abrindo as portas que havia ali. Dave viu um homem de casaco branco lá dentro, além de muitos equipamentos reluzentes, o que o deixou assustado.

Jamie devia estar assustado também, porque de repente desatou a gritar. A mulher bateu as portas traseiras.

Antes que o carro começasse a andar, Dave gritou e pulou para a traseira, segurando as maçanetas das portas. O carro branco partiu abruptamente, bem depressa. Dave segurou-se nas maçanetas, fazendo um esforço para não perder o equilíbrio. Quando pôde, ergueu-se para espiar pelas janelas traseiras. Viu o homem de casaco branco e a mulher arrastarem Jamie para uma cama e tentarem amarrá-lo ali. Jamie gritava.

Dave sentiu a raiva dominá-lo. Rosnou e arremeteu contra as portas. A mulher levantou os olhos, alarmada. Pareceu chocada ao avistar Dave. E gritou alguma coisa para o motorista.

O motorista deu uma guinada no carro branco. Dave foi lançado para o lado, e quase soltou as maçanetas embutidas. Quando o carro endireitou, ele estendeu a mão para as luzes por cima da porta. Subiu para o teto da ambulância. O vento soprava forte ali. A superfície era lisa. Estendido de barriga para baixo, ele começou a avançar. A ambulância passou a andar mais devagar. Dave ouviu gritos lá dentro.

E continuou a avançar.

- Conseguimos nos livrar dele! - gritou Dolly, olhando pelas janelas traseiras.

- O que era?

- Parecia um macaco!

- Ele não é um macaco; é meu amigo! — berrou Jamie, debatendo-se. — Vai à escola comigo!

O boné de beisebol do garoto caiu. Dolly viu que ele tinha cabelos castanhos escuros.

- Qual é o seu nome?

- Jamie... Jamie Kendall.

- Oh, não!

- Jesus Cristo! - exclamou Vasco, ao volante. - Você pegou o garoto errado?

- Ele disse que seu nome era Jamie!

- É o garoto errado. Você é uma idiota, Dolly. Isto é seqüestro.

— Não é culpa minha...

- E de quem acha que é a culpa?

— Você também viu o garoto.

— Não vi...

- Estava olhando pela janela.

— Oh, Deus, cale a boca! Pare de discutir. Temos de levá-lo de volta.

- Como assim?

- Temos de levá-lo de volta ao lugar em que o encontramos. Isto é seqüestro.

E foi nesse instante que Vasco praguejou e gritou.

Dave estava no teto da cabine, espremido entre a barra com as luzes e a frente da ambulância. Inclinou-se para o lado do motorista. Havia um enorme espelho lateral ali. Ele viu um homem feio e barbudo, guiando e gritando. Teve certeza de que aquele homem ia machucar Jamie. Viu-o mostrando os dentes, num sinal de raiva.

Dave abaixou-se, apoiando seu peso no espelho lateral. Estendeu o braço pela janela aberta. Os dedos fortes agarraram o homem barbudo pelo nariz. O homem gritou e sacudiu a cabeça. Os dedos de Dave soltaram o nariz, mas ele tornou a arremeter e mordeu a orelha do homem, com toda a força. O homem gritou de raiva. Dave podia sentir essa raiva, mas estava dominado pela própria raiva. Puxou com força e sentiu a orelha se soltar, com um fluxo de sangue quente.

O homem gritou e virou o volante.

A ambulância inclinou-se para o lado, as rodas da esquerda saíram do chão. Lentamente, o veículo virou, batendo com o lado direito no chão. O rangido de metal era alto demais. Dave ainda se segurava na ambulância quando caiu, mas largou tudo no impacto. Os pés bateram no rosto do homem barbudo, um deles direto na boca. O veículo parou, caído de lado. O homem mordia e tossia. A mulher lá dentro gritava. Dave tirou o pé do tênis, deixando-o na boca do homem barbudo. O sangue esguichava do lugar em que antes ficava a orelha. Dave arrancou o outro tênis e correu para a traseira da ambulância. Com algum esforço, conseguiu abrir as portas. O homem de casaco branco estava caído de lado, sangrando pela boca. Jamie se encontrava por baixo dele e não parava de gritar. Dave arrastou o homem de casaco branco até as portas e jogou-o na rua. Voltou para pegar Jamie, suspendeu-o para suas costas e saiu correndo de volta para casa.

— Você está machucado? - perguntou Jamie.

A orelha ainda estava na boca de Dave. Ele cuspiu-a em sua mão.

— O que é isso em sua mão? Dave abriu a mão.

— Uma orelha. - Eca!

— Mordi a orelha dele. O homem era mau. Machucou você. - Eca!

A frente, eles viram todos no gramado na frente da casa. Henry e Lynn, além das pessoas novas. Dave pôs Jamie no chão, e ele correu para os pais. Dave ficou esperando que sua mãe, Lynn, viesse confortá-lo, mas ela se concentrava em Jamie. O que fez com que ele se sentisse mal. Largou no chão a orelha em sua mão. Todos se movimentavam ao seu redor, mas ninguém o tocava, ninguém passava os dedos por seu pêlo.

Dave sentia-se mais e mais triste.

E foi nesse instante que ele avistou o carro preto se aproximando. Era enorme, alto, e parou junto do gramado.


 

O tribunal de Oxnard era pequeno e tão frio que Bob Koch pensou que fosse pegar uma pneumonia. Já não se sentia bem antes mesmo de entrar ali. A ressaca deixara-o com uma sensação de azedo no estômago. O juiz era um tanto jovem, em torno dos quarenta anos, e parecia estar de ressaca também. Ou talvez não fosse o caso. Koch limpou a garganta.

— Meritíssimo, estou aqui representando Alexandra Burnet, que no momento não pode comparecer pessoalmente.

— Este tribunal ordenou que ela comparecesse — declarou o juiz. — Pessoalmente.

— Sei disso, Meritíssimo. Mas ela e o filho estão sendo perseguidos no momento por um caçador de recompensas, que tenciona remover tecidos de seus corpos. Ela está em fuga para evitar que isso aconteça.

— Que caçador de recompensas? — indagou o juiz. — Por que há um caçador de recompensas envolvido neste caso?

— É exatamente o que gostaríamos de saber, Meritíssimo - disse Bob Koch.

O juiz virou-se para o outro advogado.

— Sr. Rodriguez?

— Meritíssimo, não há nenhum caçador de recompensas per se.

— O que há então?

— Há um agente profissional de resgate de fugitivos no desempenho de seu trabalho.

— Com que autorização?

— Ele não está autorizado per se. Neste caso, Meritíssimo, está efetuando uma prisão de cidadão.

— Prisão de quem?

— Da Sra. Burnet e seu filho.

— Em que base?

— Posse de propriedade roubada, Meritíssimo.

— Para se efetuar uma prisão de cidadão, a posse da propriedade roubada deve ser testemunhada pela pessoa que efetua a prisão.

— É isso mesmo, Meritíssimo.

— O que foi testemunhado?

— A posse da propriedade em questão, Meritíssimo.

— Está se referindo à linhagem de células Burnet - comentou o juiz.

— Isso mesmo, Meritíssimo. Como foi antes documentado perante este tribunal, essa linhagem de células pertence à UCLA, licenciada para a BioGen, em Westview. A propriedade é comprovada por várias decisões judiciais anteriores.

— Como então foi roubada?

— Meritíssimo, temos evidências de que o Sr. Burnet conspirou para eliminar as linhagens de células em poder da BioGen. Mas quer isso seja verdade ou não, a BioGen tem o direito de restaurar as linhagens de células que possui.

— Pode restaurá-las do Sr. Burnet.

— Pode, Meritíssimo. Como o tribunal decidiu que as células do Sr. Burnet pertencem à BioGen, a empresa pode tirar mais a qualquer momento. É irrelevante se a propriedade está dentro ou não do corpo do Sr. Burnet. A BioGen possui as células.

— Está negando o direito do Sr. Burnet à integridade de seu corpo? — perguntou o juiz, alteando uma sobrancelha.

— Com todo o respeito, Meritíssimo, esse direito não existe. Vamos supor que alguém tenha pegado o anel de sua esposa e engolido. O anel ainda é sua propriedade.

— Tem razão. Mas posso ser obrigado a esperar pacientemente que reapareça.

— Pode, Meritíssimo. Mas vamos supor que o anel, por alguma razão, fique retido no intestino. Não tem o direito de recuperá-lo? É evidente que tem. Não pode lhe ser negado. É sua propriedade, onde quer que esteja. E quem a engole assume o risco da recuperação.

Koch achou que era melhor interferir.

— Meritíssimo, se bem me lembro do curso de biologia na escola secundária, qualquer coisa engolida não está na verdade dentro do corpo, da mesma forma que alguma coisa dentro do buraco de uma rosquinha não está dentro da rosquinha. O anel está fora do corpo.

Rodriguez tentou argumentar:

— Meritíssimo...

Koch continuou, elevando a voz:

— Meritíssimo, espero que possamos todos concordar que não estamos falando de anéis de diamantes que foram roubados. Tratamos aqui de células que residem dentro do corpo humano. A noção de que essas células podem ser possuídas por outra pessoa... mesmo que o tribunal de recursos tenha mantido uma decisão do júri... leva a conclusões absurdas, como se pode constatar aqui. Se a BioGen não possui mais as células do Sr. Burnet, então as perdeu por suas próprias ações insensatas. Se você perde seu anel de diamante, não vai procurar a mina de diamantes e exigir um substituto.

— A analogia é inexata - declarou Rodriguez.

— Meritíssimo, todas as analogias são inexatas.

— Neste caso — insistiu Rodriguez —, eu pediria ao tribunal que se ativesse à questão em discussão e considerasse as decisões judiciais anteriores que são relevantes. O tribunal decidiu que a BioGen possui essas células. Vieram do Sr. Burnet, mas são uma propriedade da BioGen. Argumentamos que temos o direito de recuperar essas células a qualquer momento.

— Meritíssimo, os argumentos deles conflitam diretamente com a Décima Terceira Emenda, contra a escravidão. A BioGen pode possuir as células do Sr. Burnet. Mas não possui o Sr. Burnet. Não pode possuir.

— Nunca alegamos que possuímos o Sr. Burnet, mas apenas suas células - disse Rodriguez. — E isso é tudo o que estamos pedindo no momento.

— Mas a conseqüência prática de sua reivindicação é a de que efetivamente possui o Sr. Burnet, já que reivindica o acesso a seu corpo a qualquer momento...

O juiz parecia cansado.

- Senhores, já sei qual é a questão. Mas o que isso tem a ver com a Sra. Burnet e seu filho?

Bob Koch decidiu recuar. Deixaria Rodriguez se enterrar com a resposta. A conclusão que ele pedia ao tribunal para chegar era inconcebível.

- Meritíssimo, se o tribunal aceita que as células do Sr. Burnet são de propriedade de meu cliente, como creio que deve acontecer, então as referidas células pertencem ao meu cliente onde quer que sejam encontradas — argumentou Rodriguez. - Por exemplo, se o Sr. Burnet doou sangue a um banco de sangue, o sangue doado conteria as células que possuímos. Podemos afirmar a propriedade dessas células e exigir que sejam extraídas do sangue doado, já que o Sr. Burnet não tem competência legal para doar essas células a quem quer que seja. As células são nossa propriedade. Da mesma forma, as células que possuímos... células idênticas... também são encontradas nos filhos do Sr. Burnet e seus descendentes. Portanto, temos também a propriedade dessas células. E temos o direito de tirá-las.

- E o caçador de recompensas?

- O especialista em recuperação de fugitivos está efetuando uma prisão de cidadão na seguinte base. Se ele encontrar descendentes do Sr. Burnet, que por princípio andam com o que nos pertence, é evidente que estão de posse de propriedade roubada, e por isso podem ser presos.

O juiz suspirou.

- Meritíssimo, esta conclusão pode parecer ilógica ao tribunal - continuou Rodriguez —, mas estamos vivendo em uma nova era. O que nos parece estranho agora não será tão estranho dentro de poucos anos. Uma grande porcentagem do genoma humano já é de propriedade particular. As informações genéticas para vários organismos de doenças são de propriedade particular. A noção de que esses elementos biológicos são de propriedade particular só é estranha porque é nova para nós. Mas o tribunal deve decidir de acordo com as conclusões anteriores. As células Burnet nos pertencem.

— Mas no caso dos descendentes, as células são cópias — alegou o juiz.

— É verdade, Meritíssimo, mas não é essa a questão. Se possuo uma fórmula para produzir alguma coisa e alguém tira uma xerox e dá para outra pessoa, a fórmula continua a ser minha propriedade. Possuo a fórmula, não importa como seja copiada, ou por quem. E tenho o direito de recuperar a cópia.

O juiz virou-se para Bob Koch.

— Sr. Koch?

- Meritíssimo, o Sr. Rodriguez pediu que tomasse uma decisão estrita. Pois eu faço a mesma coisa. Os tribunais anteriores decidiram que as células do Sr. Burnet estavam fora de seu corpo. Não lhe pertenciam mais. Não disseram que o Sr. Burnet é uma mina de ouro ambulante que podia ser saqueada à vontade, muitas e muitas vezes, pela BioGen. E, muito menos, não disseram nada que pudesse insinuar que a BioGen tinha o direito de tomar fisicamente essas células, não importando quem as tivesse. Essa reivindicação vai muito além da decisão anterior do tribunal. Na verdade, trata-se de uma nova reivindicação, baseada apenas no desejo da autora da ação. E pedimos ao tribunal que exija que a BioGen chame de volta esse caçador de recompensa.

— Não compreendo em que base a BioGen tomou a iniciativa de agir por contra própria, Sr. Rodriguez — disse o juiz. — Parece ser uma atitude precipitada e injustificada. Podia esperar que a Sra. Burnet comparecesse a este tribunal.

— Infelizmente, Meritíssimo, isso não era possível. A situação de meu cliente é crítica. Como eu disse, estamos convencidos de que somos vítimas de uma conspiração para nos privar do que é nosso. Sem entrar em detalhes, é urgente que as células sejam substituídas imediatamente. Se o tribunal decidir por um adiamento, podemos perder muitos negócios, a tal ponto que a empresa pode ser obrigada a encerrar suas atividades. Tentamos apenas uma reação sem demora para um problema urgente.

Bob percebeu que o juiz cedia ao argumento sobre oportunidade e urgência. Não queria ser o responsável pelo fechamento de uma empresa de biotecnologia da Califórnia. O juiz virou a cadeira para olhar o relógio na parede por trás.

Bob compreendeu que precisava interferir de novo. E tinha de ser rápido.

— Meritíssimo, há uma questão adicional que tem relação com sua decisão. Eu gostaria de chamar sua atenção para a seguinte declaração juramentada do Centro Médico da Universidade Duke, datada de hoje. - Ele entregou uma cópia para Rodriguez. - Resumirei o conteúdo e explicarei como isso afeta sua decisão.

A linhagem de células Burnet, disse Bob, era capaz de produzir grandes quantidades de uma substância química chamada citóxica TLA7D, um potente anticarcinogênico. Era essa substância que tornava tão valiosa a linhagem de células da BioGen.

— Na semana passada, no entanto, o Departamento de Patentes dos Estados Unidos concedeu uma patente para o gene TLA4D. Trata-se de um gene promotor para uma enzima extraída de um grupo hidróxido do centro de uma proteína chamada proteína 4B associada ao linfócito-T citotóxico. Essa proteína é a precursora da citotóxica TLA7D, que se forma quando o grupo hidróxido é removido. A menos que o grupo hidróxido seja eliminado, a proteína não tem atividade biológica. Ou seja, o gene que controla a fabricação do produto da BioGen é da Universidade Duke, que reivindica sua propriedade pelo documento que está agora em suas mãos.

Rodriguez estava ficando muito vermelho.

— Meritíssimo, isso é uma tentativa de confundir o que deveria ser um caso muito simples. Eu recomendaria que...

— É mesmo simples — concordou Bob. — A menos que a BioGen tenha um contrato de licenciamento com a Duke, não pode usar a enzima fabricada pelo gene da Duke. A enzima e seus produtos pertencem a outros.

— Mas isto é...

— A BioGen possui uma célula, Meritíssimo — acrescentou Bob. — Mas não todos os genes dentro dessa célula.

O juiz tornou a olhar para o relógio.

— Estudarei o caso e darei minha decisão amanhã.

— Mas, Meritíssimo...

— Obrigado, senhores. As alegações estão encerradas.

— Mas uma mulher e seu filho estão sendo perseguidos...

— Creio que compreendo a questão. Preciso agora compreender a lei. Até amanhã, senhores.


 

Os Kendall gritaram quando o Hummer avançou. Mas Vasco Borden, grunhindo através dos dentes doloridos, uma das mãos segurando a bandagem contra a orelha sangrando, sabia o que fazia. Atravessou o gramado com o carro e parou, bloqueando a porta da casa. Depois, ele e Dolly saltaram, e pegaram o Jamie de Alex no gramado. Derrubaram a mãe atordoada do menino e entraram no Hummer, partindo a toda velocidade.

— É muito simples - disse Vasco. — Se não está dentro da casa, você é meu.

O Hummer desceu a rua.

— Perdemos a ambulância, mas temos o plano B. — Ele olhou para trás. - Dolly, meu bem, acione a próxima sala de operações. Avise que estaremos lá em vinte minutos. Daqui a uma hora tudo isso será um caso encerrado.

Henry Kendall estava chocado. Ocorrera um seqüestro no gramado na frente de sua casa, e ele não correra para impedi-lo; seu próprio filho chorava, abraçando a mãe; Dave largara a orelha de alguém no gramado; e a mãe do outro menino se levantava, gritando para que chamassem a polícia. Mas o Hummer desaparecera, descendo a rua e virando a esquina.

Ele sentia-se fraco e emasculado, como se tivesse feito alguma coisa errada. A presença da amiga de Lynn deixava-o embaraçado. Por isso, ele entrou e foi sentar de novo na frente do computador. Era ali que estava cinco minutos antes, quando Dave gritara e tudo começara.

Ainda estava no site da TrackTech, onde registrara os nomes e números de série. Fizera isso para Jamie e Dave, mas não para o outro Jamie. Mas fez agora, contrafeito.

A tela ficou em branco, para depois mostrar um mapa sem maiores detalhes, com um quadrado para digitar o número da unidade procurada. Ele registrou a unidade de Jamie Burnet. Se o sensor estivesse em ação, ele poderia acompanhar o deslocamento pela rua. Mas o ponto azul não se mexeu; permaneceu parado. O endereço era Marbury Madison Drive, 348. Ou seja, sua própria casa.

Henry correu os olhos pela sala e avistou os tênis brancos de Jamie no canto, ao lado de sua bolsa de viagem. O menino não tornara a calçar os tênis.

Em seguida, ele digitou o sensor para seu próprio filho. Mesmo resultado. O ponto azul estava parado em sua casa. Moveu-se um pouco; e seu filho Jamie entrou na sala.

- O que está fazendo, papai? A polícia chegou e quer falar com todo mundo.

- Já vou sair.

- Mamãe ficou transtornada, papai.

- Já vou.

- Ela não pára de chorar. Pediu para buscar lenço de papel.

- Sairei com você.

Henry digitou o terceiro número de série, o de Dave. A tela ficou branca. Ele esperou um momento. Viu o mapa mudar. Mostrava agora ruas que levavam para o norte da cidade, na área de Torrey Pines.

O ponto azul estava em movimento.

Norte, Torrey Pines Road, 91 km/h.

Enquanto ele observava, o ponto entrou na Gaylord Road, seguindo para o interior.

De alguma forma, o sensor de Dave estava no Hummer. Ou saíra de seu tênis, ou haviam levado o tênis. Mas o sensor estava ali e funcionando.

- Jamie, vá chamar Alex. Diga que preciso falar com ela por um minuto.

— Mas, papai...

— Faça o que estou mandando. E não diga nada à polícia.

Alex olhava para a tela.

— Vou pegar aquele filho-da-puta e explodir seus miolos. Se fizer qualquer coisa com meu filho, é um homem morto.

A voz era incisiva e gelada. Henry sentiu um calafrio. Ela falava sério.

— Para onde ele vai? - perguntou Alex.

— Deixou a costa e segue para o interior, mas pode estar apenas evitando o tráfego de Del Mar. Pode voltar à costa. Saberemos dentro de poucos minutos.

— A que distância ele está?

— Dez minutos.

— Vamos embora. Leve isso. - Ela acenou com a cabeça para o laptop. - Pegarei minha arma.

Henry olhou pela janela da frente. Havia três carros da polícia com as luzes acesas parados na frente da casa, com seis guardas no gramado.

— Não será fácil.

— Será, sim. Deixei meu carro depois da esquina.

— A polícia disse que quer falar comigo.

— Invente uma desculpa. Ficarei esperando no carro.

Henry disse que Dave precisava de cuidados médicos e tinha de levá-lo para o hospital. Prometeu que daria um depoimento completo quando voltasse, mas agora não podia ficar.

Como Dave tinha as mãos ensangüentadas, os guardas aceitaram. Lynn fitou-o com uma expressão curiosa, e Henry disse:

— Voltarei assim que puder.

Ele foi para os fundos da casa e atravessou o jardim do vizinho. Dave seguiu-o.

— Para onde vamos? — perguntou Dave.

— Encontrar aquele cara... o homem de barba preta.

— Ele machucou Jamie.

— Sei disso.

— Também machuquei ele.

— Eu sei.

— Arranquei sua orelha.

— Eu vi.

— Na próxima vez arranco o nariz.

— Dave, precisamos ter moderação.

— O que é moderação?

Era complicado demais para explicar. O Toyota branco de Alex estava parado logo à frente. Henry sentou na frente, Dave atrás.

— O que é isto? — perguntou Dave, apontando para o banco, ao seu lado.

— Não toque, Dave — disse Alex. — É uma arma. Ela partiu.

Alex ligou para Bob Koch, na esperança de que ele tivesse alguma notícia.

— E tenho — respondeu Bob. — Mas gostaria que fosse melhor.

— O juiz aceitou nossos argumentos?

— Só vai dar a decisão amanhã.

— Você tentou...

— Claro que tentei. Ele está confuso. Não é a área jurídica com que costuma lidar em Oxnard. Provavelmente foi por isso que entraram com a ação ali.

— Quer dizer que a decisão sai amanhã?

— Isso mesmo.

— Obrigada.

Alex desligou. Não havia sentido em contar o que estava prestes a fazer. Nem mesmo tinha certeza se seria capaz. Mas achava que provavelmente faria.

Henry estava sentado no banco de passageiro, olhando para o computador. Agora que se encontrava em movimento, num carro, a conexão às vezes caía por um ou dois minutos. Começou a se preocupar com a possibilidade de perdê-la por completo. Olhou para trás e viu que Dave estava descalço.

— Onde estão seus tênis?

— Saíram.

— Onde?

— No carro branco.

Ele se referia à ambulância.

— Como?

— Um estava na boca do barbudo. E depois o carro caiu.

— E seus tênis saíram dos pés?

— Isso. Saíram dos pés.

Aparentemente, Alex pensava a mesma coisa, porque disse:

— Então os tênis ainda estão na ambulância. Não no Hummer. Seguimos o carro errado.

— Não. A ambulância virou. Não pode ser a ambulância.

— Então o sensor...

— Deve ter caído do tênis e ficou preso de alguma forma nas roupas do homem.

— Pode ter caído de novo.

— É possível.

— Ou podem tê-lo encontrado.

— Também é possível.

Alex não disse mais nada depois disso.

Henry continuou a observar a tela. O ponto azul seguiu para o norte, depois para o leste. O norte. O leste de novo, passando pelo Rancho Santa Fé, de volta ao deserto. Pegou a Highland Drive.

— Já sei para onde estão indo — anunciou Henry. — Solana Canyon.

— O que é isso?

— Um spa. Enorme. De alta classe.

— Com médicos?

— Tenho certeza que sim. Podem até fazer cirurgias. Talvez lif-tings, lipoaspirações, essas coisas.

— Então dispõem de instalações cirúrgicas - murmurou Alex, sombria, enquanto acelerava ainda mais.

Os cem acres conhecidos como Solana Canyon representavam um triunfo do marketing. Apenas umas poucas décadas antes, a região ainda era conhecida por seu nome original, Hellhole Palms, as palmeiras do inferno. Era uma região plana, com enormes blocos de rocha, sem qualquer cânion à vista. Ou seja, Solana Canyon não tinha cânion, nem qualquer relação com a cidade à beira-mar de Solana Beach. O nome apenas soara melhor do que as outras opções, que haviam sido Angel Springs, Zen Mountain View, Cedar Springs, e Silver Hill Ashram. Em comparação com os outros nomes, Solana Canyon transmitia uma qualidade discreta e suave, em consonância com um resort que cobrava milhares de dólares por dia para rejuvenescer os corpos, mentes e espíritos de seus clientes. Isso era realizado por meio de uma combinação de ioga, massagem, meditação, aconselhamento espiritual e dieta, tudo oferecido por uma equipe que cumprimentava os hóspedes com as mãos unidas em oração e um emocionado "Namastê".

Solana Canyon era também um dos centros prediletos de reabilitação de vícios para as celebridades.

Alex passou pelo portão principal, em estilo de adobe, escondido por trás de enormes palmeiras. Seguiam o sinal de rastreamento, que dera a volta para entrar no resort pelos fundos.

— Ele preferiu a entrada de serviço - comentou Henry.

— Já esteve aqui antes?

— Uma vez. Para fazer uma conferência sobre genética.

— E o que aconteceu?

— Não fui convidado a voltar. Não gostaram da mensagem. Conhece o velho ditado. Os professores atribuem a inteligência de seus estudantes ao meio ambiente e a inteligência de seus filhos aos genes. A mesma coisa acontece com os ricos. Se você é rico ou bonito, quer ouvir que foram os genes que o fizeram assim. Isso permite que você sinta uma superioridade inerente em relação às outras pessoas... que merece seu sucesso. Pode então impingir aos outros tantas besteiras quanto quiser... Eles estão parando. Diminua a velocidade.

— E agora?

Estavam num caminho lateral. Havia uma entrada de serviço à frente.

— Acho que foram para o estacionamento.

— Pois então vamos pegá-los.

— Não. — Henry sacudiu a cabeça. — Há sempre seguranças no estacionamento. Se você aparecer com uma arma, teremos problemas.

Henry continuou a observar a tela.

— Estacionado... Agora se movendo outra vez. Estacionado de novo.

Ele franziu o rosto. Alex comentou:

— Se há seguranças, verão Jamie se debatendo quando saltar.

— Talvez o tenham drogado. Ou... não sei. — Henry não quis dizer mais nada ao ver a angústia de Alex. - Estão de novo em movimento. Acho que vão dar a volta para a estrada dos fundos.

Ela engrenou o carro e foi até o portão de serviço. Estava aberto. Não havia ninguém de vigia ali. Alex entrou no estacionamento. A estrada dos fundos ficava no outro lado do estacionamento.

— O que faremos agora? — indagou ela. — Vamos segui-los?

— Acho que não. Se fôssemos atrás, eles nos veriam. É melhor estacionarmos. — Henry abriu a porta. — Vamos dar uma volta pelo lindo resort de Solana Canyon.

Ele fez uma pausa. Olhou para Alex.

— Vai deixar a espingarda aqui?

— Não. - Alex foi abrir a mala. Pegou uma toalha. Enrolou na espingarda. — Estou pronta.

— Então vamos embora.

- Droga!

Vasco pisou no freio. Seguia pela estrada dos fundos para estacionar atrás do centro cirúrgico. O plano era tirar o Dr. Manuel Cajal do centro cirúrgico, para entrar no Hummer, efetuar as biópsias, e sair de novo. Ninguém vê nada, ninguém sabe de nada.

Mas agora a estrada dos fundos estava bloqueada. Duas retroescavadeiras abriam uma enorme vala. Não havia outro caminho, não havia outra estrada. A cem metros apenas do centro cirúrgico.

— Droga! Droga! Droga!

— Fique calmo, Vasco - murmurou Dolly. - Não é tão importante assim. Se a estrada está bloqueada, seguimos a pé, entramos pela porta dos fundos, e fazemos tudo ali.

- Todos nos verão passando pelo resort.

— E daí? Somos apenas visitantes. Além do mais, todas as pessoas aqui só estão interessadas em si mesmas. Não têm tempo para se preocuparem conosco. E se decidirem fazer alguma coisa, chamar alguém... o que tenho certeza que jamais aconteceria... o procedimento teria terminado antes mesmo da ligação ser concluída. Manuel pode fazer mais depressa no centro cirúrgico do que no carro.

- Não gosto disso.

Vasco olhou ao redor, para a estrada, o terreno do spa. Dolly tinha razão. Era uma caminhada rápida através do jardim. Ele virou-se para o garoto.

— Vamos sair para dar uma volta. Se você ficar quieto, tudo acabará bem.

— O que pretendem fazer comigo?

- Nada. Apenas tirar um pouco de sangue.

- Com agulhas?

- Apenas uma agulha pequena, como a que os médicos usam. Vasco virou-se para Dolly e acrescentou:

— Ligue para Manuel. Avise que estamos a caminho. E vamos embora.

Jamie fora devidamente instruído a gritar e chutar se alguém tentasse seqüestrá-lo. Fizera isso quando o agarraram. Agora, no entanto, sentia-se apavorado, com medo de que o machucassem se criasse algum problema. Por isso, foi andando quieto pelo jardim. A mulher mantinha uma das mãos em seu ombro. O cara grande e mau seguia no outro lado, usando um chapéu de caubói para que ninguém percebesse que perdera a orelha.

Passaram por pessoas de roupão, mulheres na maioria, conversando e rindo. Mas ninguém prestou atenção a eles. Atravessavam outro jardim quando Jamie ouviu uma voz perguntar:

— Precisa de ajuda com seus deveres de casa?

Ele ficou tão surpreso que parou. Levantou os olhos. Era uma ave. Uma ave cinzenta.

— Você é amigo de Evan? — indagou a ave. - Não.

— É do mesmo tamanho que ele. Quanto é onze tirando nove? Jamie estava tão surpreso que limitou-se a olhar.

— Vamos embora, querido - disse Dolly. - É apenas uma ave.

— Apenas uma ave Quem está chamando de ave?

Você fala muito — murmurou Jamie.

— E você não — disse a ave. - Quem são essas pessoas? Por que estão detendo você?

— Não estamos detendo ninguém — protestou Dolly.

— Vocês não estão pensando em matar meu filho, não é?

— Oh, Cristo! — exclamou Vasco.

— Oh, Cristo! - A ave reproduziu sua voz com precisão. - Qual é o seu nome?

— Vamos embora — resmungou Vasco.

— Meu nome é Jamie.

— Olá, Jamie. Eu sou Gerard.

— Olá, Gerard.

— Já chega — decidiu Vasco. - Vamos logo embora.

— Isso depende de quem está na sela — disse Gerard.

— Dolly, temos um horário a cumprir — insistiu Vasco.

— A pessoa mais amiga de um menino é sua mãe — disse Gerard, com uma voz estranha.

— Você conhece minha mãe?

— Não, filho - interveio Dolly. — Ele não conhece sua mãe. Está apenas repetindo coisas que já ouviu antes.

— Sua história não parecia muito certa. - Numa voz diferente, Gerard acrescentou: — É uma pena. Não tem uma história melhor.

Mas agora os adultos começavam a empurrar Jamie para a frente. Ele achava que não podia ficar mais; e não queria fazer uma cena.

— Adeus, Gerard.

— Adeus, Jamie.

Andaram em silêncio por algum tempo, até que Jamie comentou:

— Ele era engraçado.

— Era mesmo, querido — murmurou Dolly, mantendo a mão firme em seu ombro.

Ao entrar no jardim, Alex passou primeiro pela área da piscina. Era a piscina mais sossegada que já vira. Não havia qualquer barulho, nem mesmo de corpos caindo na água. Pessoas deitavam ao sol, como cadáveres. Havia um armário com toalhas e roupões empilhados. Alex pegou um roupão e pendurou nos ombros, para esconder a espingarda envolta por uma toalha.

— Como sabe essas coisas? — indagou Henry, observando-a.

Ele estava nervoso. Por andar com uma mulher que levava uma arma como aquela e tencionava usá-la. Não sabia se o barbudo estava armado, mas era bem possível que estivesse.

— Aprendi na faculdade de direito — respondeu ela, rindo. Dave caminhava dois ou três passos atrás. Henry virou-se para ele.

— Não fique para trás, Dave.

— Está bem.

Contornaram uma esquina no caminho, passaram sob uma arcada de adobe, e entraram em outro jardim isolado. O ar ali era fresco, o caminho ensombreado. Havia um pequeno córrego ao lado do caminho. Ouviram uma voz dizer:

— Minhas gentis saudações, patinho feio. Henry levantou os olhos.

— O que foi isso?

— Fui eu.

— É uma ave — disse Henry.

— Com licença, mas meu nome é Gerard.

— Ah, um papagaio falante — murmurou Alex. O papagaio disse:

— Meu nome é Jamie. Olá, Jamie. Eu sou Gerard. Olá, Gerard. Alex ficou imóvel, aturdida.

— Mas é Jamie!

— Conhece minha mãe? - perguntou o papagaio, falando exatamente como Jamie.

— Jamie! — gritou Alex. — Jamie! Jamie!

E, a distância, ela ouviu um grito em resposta:

— Mamãe!

Dave saiu correndo para a frente. Henry olhou para Alex, que permanecia imóvel. Depois, ela largou no chão o roupão e a toalha, e levantou a espingarda, metódica. Engatilhou a arma, com um som metálico. Olhou para Henry.

— Vamos em frente. - Ela se mantinha fria, a arma aninhada no braço. - Talvez seja melhor você ir atrás de mim.

— Está bem.

Ela começou a avançar.

— Jamie!

— Mamãe!

Alex passou a andar ainda mais depressa.

Não podiam estar a mais que seis ou sete metros da porta dos fundos do centro cirúrgico - talvez três ou quatro passos largos, não mais do que isso — quando tudo começou.

E Vasco Borden ficou furioso. Sua assistente de confiança perdendo o controle diante de seus olhos. O menino grita "Mamãe!" e ela o larga. E fica imóvel. Como se estivesse atordoada.

— Mas que droga! Continue a segurá-lo! O que pensa que está fazendo?

Dolly não respondeu.

— Mamãe! Mamãe!

Exatamente aquilo com que eu me preocupava, pensou Vasco. Tinha um menino de oito anos gritando pela mãe e todas aquelas mulheres de roupão andando ao redor. Se não haviam olhado antes para ele e o garoto, faziam-no agora... apontando e falando. Vasco parecia completamente deslocado ali, com 1,94 m e barbudo, todo vestido de preto, com um chapéu preto de caubói que tivera de puxar para baixo, porque a orelha fora arrancada por uma mordida.

Sabia que parecia com um bandido num filme B. Sua mulher não ajudava; não tentava acalmar o garoto nem levá-lo para a frente. A qualquer momento, Vasco tinha certeza, o garoto se viraria e sairia correndo.

Vasco precisava ter o controle ali. Estendeu a mão para sua arma, mas agora mais mulheres surgiam por todos os lados... saíam de uma aula de ioga e se espalhavam pelo jardim, para descobrir por que havia um menino berrando pela mãe.

E o viam, o homem de preto.

Estava perdido.

— Dolly, controle-se! — disse Vasco, ríspido. — Temos de levar o menino para o centro cirúrgico e...

Vasco não terminou a frase, porque um vulto escuro correu em sua direção, saltou pelo ar, balançou no galho de uma árvore a cerca de dois metros de altura e — no mesmo momento em que ele compreendeu que era de novo o garoto escuro, aquele garoto peludo, o que arrancara sua orelha com uma mordida - se jogou em cima dele, com o impacto de uma pedra enorme batendo em seu peito. Vasco cambaleou para trás, em cima de algumas roseiras, e caiu de rabo no chão, as pernas no ar.

E foi isso.

O garoto saiu correndo, gritando pela mãe. E Dolly começou de repente a se comportar como se não o conhecesse. Todo cortado e arranhado, Vasco fez um esforço para sair do meio das roseiras, sem qualquer ajuda. Não há como exibir qualquer dignidade quando você se levanta com o rabo cheio de espinhos. E há pelo menos cem pessoas ao redor para observá-lo. E os seguranças devem aparecer a qualquer momento.

E o garoto preto que parecia um macaco desaparecera. Não podia ser visto em parte alguma.

Vasco compreendeu que tinha de sair dali. Acabou; é uma porra de um desastre. Dolly continuava paralisada, como a porra da Estátua da Liberdade. Ele começou a puxá-la, gritou que precisavam ir embora, sair dali o mais depressa possível. Todas as outras mulheres no jardim começaram a vaiar e assoviar. Uma velha numa malha creme gritou:

— Intoxicação de testosterona! E outras acrescentaram:

— Deixe-a em paz!

— Canalha!

— Machista!

Vasco teve vontade de gritar "Ela trabalha para mim!"... mas é claro que isso não era mais o caso. Dolly continuava atordoada, paralisada. E, a esta altura, as mulheres de malha começavam a chamar a polícia.

Portanto, a situação só podia piorar.

Dolly estava muito lenta, como se estivesse sonâmbula. Vasco tinha de escapar. Passou por ela, atravessou o jardim, numa meio corrida. Seu único pensamento agora era fugir, deixar aquele lugar. No jardim seguinte, deparou com o garoto, ao lado de um homem, os dois atrás da mulher Alex, que segurava uma espingarda como se soubesse usá-la. E ela disse:

— Se algum dia aparecer de novo na minha frente, seu filho-da-puta, eu vou matá-lo.

Vasco não respondeu. Seguiu em frente, passou por ela... e no instante seguinte ouviu uma explosão, viu à sua frente uma nuvem verde de pétalas, folhas e poeira. Ele parou, é claro. E se virou, devagar, as mãos longe do corpo.

— Ouviu o que eu disse? — reiterou a mulher.

— Ouvi, madame.

Sempre polido com uma mulher que tem uma arma nas mãos. Ainda mais se ela parece transtornada. A multidão era imensa agora, as pessoas falavam sem parar, esticavam o pescoço para descobrir o que estava acontecendo. Mas a mulher não queria deixá-lo ir embora. E gritou:

— O que eu acabei de dizer?

— Disse que vai me matar se me encontrar de novo.

— Isso mesmo. E pode ter certeza. Se tocar de novo em meu filho, eu o matarei.

- Sei disso, madame.

Vasco sentiu que o rosto ficava vermelho. Fúria, humilhação, raiva.

- Pode ir agora.

A mulher moveu o cano da espingarda. Apenas um pouco. Sabia o que fazia. Uma advogada que freqüentava o estande de tiro. O pior tipo.

Vasco acenou com a cabeça e se afastou, tão depressa quanto podia. Queria escapar dela, sumir da vista de todas aquelas mulheres. Era como um pesadelo, todas aquelas mulheres de roupão a testemunharem sua humilhação. Um momento depois, ele estava quase correndo. De volta ao Hummer, para longe daquele lugar.

Foi quando ele viu o garoto preto, o que parecia um macaco. Na verdade, era mesmo um macaco, Vasco teve certeza, ao observar seus movimentos. Um macaco vestido como um menino. Mas nem por isso deixava de ser um macaco. Dava a volta pelo jardim. Vasco sentiu a cabeça latejar, no ponto em que antes existia a orelha, só de ver o macaco. Sem um pensamento consciente, sacou sua arma e começou a atirar. Não esperava acertar o pequeno filho-da-puta aquela distância, mas precisava fazer alguma coisa. O macaco correu, contornou uma parede, desapareceu no outro lado.

Vasco seguiu-o até lá. Era um banheiro de mulher. Mas não havia ninguém ali. As luzes lá dentro estavam apagadas. Ele podia avistar a piscina, à sua direita, mas tampouco havia alguém ali naquele momento. Portanto, não havia mais ninguém no banheiro, só o macaco. Ele ergueu a arma e avançou.

Chung! Chung!

Ele ficou imóvel. Conhecia o som de uma espingarda de cano duplo preparada para disparar. Nunca se entrava em qualquer lugar depois de ouvir aquele som. Vasco esperou.

- Acha que está com sorte, seu desgraçado?

Era uma voz rouca. Parecia mulher. Vasco continuou parado na entrada do banheiro, furioso e com medo, até que começou a se sentir ridículo e vulnerável.

— Ora, que se foda!

Ele se virou e começou a voltar para o carro. De qualquer forma, o garoto-macaco não era tão importante assim. Ouviu uma voz dizer, às suas costas:

— Ora, ora, tantas armas na cidade e tão pouca inteligência! Vasco olhou para trás. Mas avistou apenas o tal papagaio, empoleirado na porta do banheiro, a bater as asas. Não dava para determinar de onde partira a voz.

Vasco seguiu apressado para o Hummer. Já pensava no que diria ao pessoal da firma de advocacia e da BioGen. A verdade era que simplesmente não dera certo. A mulher estava armada, fora avisada. Não havia nada que Vasco pudesse fazer. Ele era competente em seu trabalho, mas não podia fazer milagres. O problema era a pessoa que a alertara. Antes de me culparem, pensem em vocês mesmos. Eles tinham um problema em suas organizações.

Ou pelo menos seria isso que Vasco diria.


 

Adam Winkler estava num leito de hospital, frágil e fraco, careca e pálido. A mão descarnada apertava a de Josh.

- Não foi culpa sua - murmurou ele. - Eu estava mesmo tentando me matar. Teria acontecido de qualquer maneira. O tempo que você me deu... prestou-me um grande favor. Olhe para mim. Não quero que você se culpe.

Josh não conseguia falar. Seus olhos se encheram de lágrimas.

- Prometa que não vai se culpar.

Josh acenou com a cabeça em concordância.

- Mentiroso... - Adam deu um sorriso fraco. - Como está a ação judicial?

- Não tem problema. Algumas pessoas em Nova York alegam que inoculamos a doença de Alzheimer em sua mãe. Na verdade, demos apenas água para ela.

- Vão ganhar?

- Claro. Adam suspirou.

- Mentiroso. - Sua mão relaxou. - Cuide-se, mano.

E ele fechou os olhos. Josh entrou em pânico. Removeu as lágrimas. Mas Adam ainda respirava. Dormia, sereno.


 

O juiz de Oxnard tossiu no ar frio, enquanto entregava sua decisão aos advogados. Alex Burnet estava presente, junto com Bob Koch e Albert Rodriguez.

— Como podem constatar, decidi que a propriedade da BioGen sobre as células do Sr. Burnet não lhe dá o direito de tirar essas células de qualquer pessoa, viva ou morta, incluindo o próprio Sr. Burnet. Muito menos podem ser tiradas de pessoas de sua família imediata ou ampliada. Qualquer decisão em contrário conflitaria com a Décima Terceira Emenda, que proíbe a escravidão.

"Dentro do contexto da minha decisão, devo observar que esta situação deriva da confusão de decisões judiciais anteriores sobre o que constitui propriedade num contexto biológico. Primeiro, temos a noção de que o material removido do corpo é refugo, ou material perdido, e por isso não tem a menor importância para a pessoa de quem foi removido. Essa posição é falsa. Se consideramos um feto natimorto, por exemplo, podemos intuir que, embora tenha deixado o corpo da mãe, ainda assim a mãe ou outros parentes podem sentir uma profunda afeição pelo feto, e desejam controlar sua disposição final, quer seja o sepultamento, a cremação, ou a doação para ajudar a pesquisa ou outras pessoas. A noção de que o hospital ou o médico podem dispor do feto como quiserem, apenas porque está fora do corpo e por isso é material de refugo, é evidentemente irracional e inumana. Uma lógica similar aplica-se às células do Sr. Burnet. Embora tenham sido removidas de seu corpo, ele tem direito pleno de achar que ainda são suas. É um sentimento humano, natural e comum. O sentimento não desaparece apenas porque os tribunais decidem de acordo com algum outro conceito jurídico baseado na analogia. Não se pode banir os sentimentos humanos das decisões judiciais. Mas é exatamente o que os tribunais vêm tentando fazer.

"Alguns tribunais têm decidido os casos de tecidos humanos baseados na consideração de que não passam de lixo. Alguns tribunais têm considerado os tecidos humanos como materiais de pesquisa iguais aos livros numa biblioteca. Alguns tribunais consideram que os tecidos humanos são propriedade abandonada que pode ser usada automaticamente em determinadas circunstâncias, como armários de aluguel que podem ser abertos depois de um certo período e o seu conteúdo vendido. Alguns tribunais têm tentado conciliar as alegações conflitantes e chegaram à conclusão de que as alegações da sociedade de pesquisa prevalecem sobre as alegações de propriedade individual.

"Cada uma dessas analogias colide com o fato persistente da natureza humana. Nossos corpos são nossa propriedade individual. Num certo sentido, a propriedade do corpo é o tipo mais fundamental de propriedade que conhecemos. É a experiência básica de nosso ser. Se os tribunais deixam de reconhecer essa noção fundamental, suas decisões serão inválidas, por mais corretas que possam parecer dentro da lógica da lei.

"É por isso que quando uma pessoa doa tecidos a um médico para uma pesquisa não é a mesma coisa que doar um livro para uma biblioteca. Nunca será. Se o médico ou sua instituição de pesquisa desejam mais tarde usar o tecido para algum outro propósito, devem ser obrigados a obter autorização para esse novo uso. E assim por diante, indefinidamente. Se as revistas podem avisá-lo quando o prazo de sua assinatura termina, as universidades também podem avisar quando desejam usar seus tecidos para um novo propósito.

"Somos informados de que isso é oneroso para a pesquisa médica. O inverso é verdadeiro. Se as universidades não reconhecem que as pessoas mantêm um interesse perpétuo por seus tecidos, racional e emocional, então as pessoas não doarão mais seus tecidos para a pesquisa. Em vez disso, passarão a vendê-los para as empresas. E seus advogados apresentarão documentos que proíbem as universidades de sequer usar o exame de sangue, para qualquer propósito, sem um pagamento previamente negociado. Os pacientes não são ingênuos, nem seus advogados.

"O custo da pesquisa médica aumentará de forma astronômica se os médicos e universidades continuarem a agir com tanta arrogância. O verdadeiro bem social, portanto, é criar uma legislação que permita que as pessoas mantenham para sempre os direitos sobre seus tecidos.

"Somos informados de que o direito de um paciente por seus tecidos, assim como seu direito à privacidade, termina com a morte. Isso também é um pensamento obsoleto que deve mudar. Porque os descendentes de uma pessoa morta partilham seus genes, sua privacidade é invadida se há uma pesquisa, ou se é divulgada a sua constituição genética. Os filhos da pessoa morta podem perder seu seguro de saúde simplesmente porque as leis contemporâneas não refletem as realidades contemporâneas.

"Mas, em última análise, o caso Burnet se desencaminhou devido a um erro profundo e fundamental cometido pelos tribunais. As questões de propriedade serão sempre confusas quando as pessoas são capazes de produzir dentro de seus corpos o que o tribunal decidiu que pertence a outras. Isso se aplica às linhagens de células; e se aplica aos genes e determinadas proteínas. Essas coisas não podem ser possuídas. É uma regra de direito permanente que a nossa herança comum não pode ser possuída por qualquer pessoa. É uma regra permanente que os fatos da natureza não podem ser possuídos. Contudo, há mais de vinte anos que decisões judiciais têm deixado de confirmar esse conceito. As decisões judiciais de patentes têm deixado de confirmar esse conceito. As confusões resultantes só aumentarão com o tempo e com os avanços da ciência. A propriedade privada do genoma ou de fatos da natureza se tornará cada vez mais difícil, dispendiosa, obstrutiva. O que tem sido feito pelos tribunais é um erro, e deve ser desfeito. E quanto mais cedo, melhor."

Alex virou-se para Bob Koch.

- Acho que o juiz teve ajuda de alguém.

- É possível - murmurou Bob.


 

Rick Diehl bem que tentava resistir, mas tudo parecia estar desmoronando. O gene da maturidade era um desastre. E, pior ainda, a BioGen estava sendo processada por um advogado de Nova York, muito esperto e inescrupuloso. Os advogados de Rick diziam-lhe que devia fazer um acordo, mas isso acarretaria a falência da empresa. Embora fosse provável que ocorreria de qualquer maneira. A BioGen perdera a linhagem Burnet, não conseguira substituí-la com as células do garoto, e agora tudo indicava que uma nova patente interferia com seu produto, tornando-o sem valor.

A pedido de Diehl, sua esposa saíra do esconderijo e voltara para a cidade. As crianças estavam passando o verão na casa dos pais dela, em Marthas Vineyard. Ela ficaria com a custódia. O advogado dele, Barry Sindler, enfrentava o próprio divórcio litigioso, e quase não tinha mais tempo para Rick. Havia uma grande reação aos pedidos de testes genéticos nos casos de custódia. Sindler fora denunciado por ser o pioneiro da prática, considerada antiética.

Falava-se no Congresso em aprovar leis para limitar os testes genéticos. Alguns observadores, entretanto, duvidavam que o Congresso um dia agiria, porque as companhias de seguros queriam os testes. O que era lógico, já que o objetivo das companhias sempre fora o de não pagar as reivindicações.

Brad Gordon deixara a cidade enquanto aguardava julgamento. Circulava o rumor de que ele viajava pelo Oeste, metendo-se em sucessivas encrencas.

A firma de advocacia de Rodriguez apresentara à BioGen a primeira parcela da conta, de mais de um milhão de dólares. Queria mais dois milhões de dólares de sinal, à luz de todos os litígios pendentes que a empresa teria de enfrentar. O assistente de Rick chamou-o pelo interfone:

— Sr. Diehl, a mulher da BDG, a companhia de seguros, está aqui.

Ele se empertigou na cadeira. Lembrava como Jacqueline Maurer era eletrizante. Irradiava sexualidade e sofisticação. Sentia-se vivo apenas com sua presença. E não a via fazia semanas.

— Mande-a entrar.

Rick levantou-se, apressou-se em enfiar a camisa para dentro da calça e virou-se para a porta.

Uma mulher de trinta anos, usando um terninho azul sóbrio e carregando uma pasta de executivo, entrou na sala. Tinha um sorriso simpático, um rosto rolíço e cabelos castanhos na altura dos ombros.

— Sr. Diehl? Sou Andréa Woodman, da BDG. Lamento não ter podido encontrá-lo antes, mas estivemos muito ocupados com outros clientes nas últimas semanas. Esta é a minha primeira oportunidade de vir até aqui. Fico contente em conhecê-lo.

A mulher estendeu a mão.

Rick apenas ficou olhando, aturdido.

HOMENS DAS CAVERNAS PREFERIAM LOURAS

Antropólogo Registra Rápida Evolução do Gene Claro As Louras São Realmente Mais Sensuais?

Um novo estudo do antropólogo canadense Peter Frost indica que as mulheres européias desenvolveram olhos azuis e cabelos louros ao final da última Idade do Gelo, como um meio de atrair os companheiros. O gene da cor dos cabelos, MC IR, desenvolveu sete variantes há cerca de onze mil anos. Isso ocorreu com extrema rapidez, em termos genéticos. Normalmente, uma mudança assim levaria um milhão de anos.

Mas a preferência sexual pode produzir uma rápida mudança genética. A competição entre as mulheres pelos machos - havia uma escassez naqueles tempos árduos - levou a novas cores nos cabelos e olhos. As conclusões de Frost são apoiadas pelo trabalho de três universidades japonesas, que fixaram a data da mutação genética para as louras.

Frost desconfia que as louras exercem atração sexual porque cabelos e olhos claros são indicadores de elevados níveis de estrogênio nas mulheres, o que significa uma maior fertilidade. Mas nem todos concordam com essa posição. Jodie Kidd, a modelo loura de 27 anos, declarou: "Não creio que ter cabelos louros faça com que a mulher seja mais disposta para a atividade sexual... A beleza é muito mais profunda do que a cor de seus cabelos."

A teoria do professor Frost foi publicada em Evolution and Hurnan Behavior, uma publicação especializada. Sua pesquisa foi confirmada por um estudo da OMS, que previu o fim das louras por volta de 2202. Relatórios subseqüentes contestaram os resultados do estudo da OMS, depois que um comitê da ONU negou sua exatidão.


 

Frank Burnet entrou no moderno escritório de Jack Watson, especialista em investimentos de risco, pouco depois de meio-dia. Os móveis de Mies, a arte moderna... um quadro de Alexandre, o Grande, pintado por Warhol, uma escultura de Koons, um quadro de Tansey mostrando alpinistas, pendurado atrás da mesa de Watson. Os telefones de campainhas abafadas, os tapetes beges... e todas aquelas mulheres deslumbrantes, em movimentos suaves e eficientes. Havia uma mulher de pé ao lado de Watson, com a mão em seu ombro.

— Olá, Frank. - Watson não se levantou. - Já conhece Jacqueline Maurer?

— Acho que não.

Ela apertou a mão de Frank. Muito fria e tranqüila.

— Sr. Burnet.

— E conhece nosso gênio em tecnologia, Jimmy Maxwell? Watson acenou com a cabeça para um homem na casa dos vinte

anos, de óculos de casco de tartaruga e blusão do Dodgers, que levantou os olhos do laptop e acenou para Burnet.

— Como vai? - Oi.

— Pedi que viesse porque estamos quase concluindo toda aquela operação - disse Watson, mudando de posição na cadeira. — A Srta. Maurer acaba de negociar o acordo de licenciamento com a Universidade Duke. Em condições extremamente favoráveis.

A mulher sorriu. Um sorriso de esfinge.

— Sempre me dou bem com cientistas.

- E Rick Diehl acaba de pedir demissão da presidência da BioGen — continuou Watson. — Winkler e os outros assessores sêniores o acompanharam na saída. A maioria enfrenta problemas judiciais, e lamento dizer que a companhia não poderá ajudá-los. Se você viola a lei, perde a cobertura da apólice de seguro da empresa. O que significa que eles estão sozinhos.

- É mesmo triste — murmurou Jacqueline Maurer.

- Mas não há outro jeito. Por causa da crise, o conselho de administração da BioGen pediu-me para assumir o comando e recuperar a empresa. Concordei em fazê-lo, em troca de uma mudança na composição acionária.

Burnet balançou a cabeça.

- Portanto, tudo correu de acordo com o plano. Watson fitou-o com uma expressão estranha.

- Ahn... é verdade. Seja como for, Frank, nada mais o impede de voltar para casa e para sua família. Tenho certeza de que sua filha e seu neto sentirão o maior prazer em revê-lo.

- Espero que sim. Ela deve estar furiosa. Mas vai passar. Sempre passa.

- Tem toda razão.

Ainda sentado, Watson estendeu a mão. Estremeceu um pouco.

- Algum problema? — perguntou Frank.

- Não é nada. Joguei golfe demais ontem.

- Mas é sempre bom tirar uma folga do trabalho.

- Concordo. — Watson exibiu o seu famoso sorriso. — É a pura verdade.


 

Brad Gordon sentiu a multidão que se encaminhava para a Poderosa Kong, a imensa montanha-russa de Cedar Point, em Sandusky, Ohio. Havia semanas que visitava parques de diversões; aquele era o maior e o melhor dos Estados Unidos. Já se sentia quase bom; o queixo quase que não doía mais.

A única coisa que o perturbava era o fato de só ter conversado uma vez com seu advogado, Johnson. O homem era esperto, mas Brad sentia-se apreensivo. Por que o tio não pagara um advogado de primeira classe? Fora o que sempre acontecera antes. Brad tinha o vago pressentimento de que sua vida se encontrava numa encruzilhada.

Mas ele pôs de lado todos esses pensamentos quando olhou para os trilhos e ouviu as pessoas gritando, enquanto os carros passavam. Que montanha-russa! A Poderosa Kong! Com mais de 120 metros de queda, proporcionava motivos suficientes para as pessoas gritarem. A fila de pessoas à espera para comprar os ingressos fervilhava de expectativa. Brad esperou, como costumava fazer, até que duas garotas jovens e atraentes entraram na fila. Eram garotas locais, criadas com muito cuidado, saudáveis, de pele rosada, rostos meigos, os seios começando a desabrochar. Uma das garotas tinha aparelho nos dentes, o que era adorável. Ele sentou atrás delas, ouvindo feliz a conversa vazia, as vozes estridentes. E de repente gritou, como todo mundo, ao começar a queda fantástica.

A viagem deixou-o trêmulo de adrenalina e excitamento acumulado. Sentia-se um pouco trôpego quando saltou do carro. Observou as bundinhas redondas e roliças das garotas, enquanto se afastavam da montanha-russa, a caminho da saída do parque. Espere! Elas iam andar de novo! Perfeito! Brad seguiu-as, entrando na fila pela segunda vez.

Sentia-se sonhador, prendendo a respiração, deixando os olhos vaguearem pelas ondulações dos cabelos, as sardas nos ombros, revelados pelas camisetas. Começava a fantasiar sobre o que faria com uma delas - melhor ainda, com as duas - quando um homem adiantou-se e disse:

— Venha comigo, por favor.

Brad piscou, culpado pelo devaneio.

— Como?

— Poderia me acompanhar, senhor?

Era um rosto bonito e confiante, encorajando-o com um sorriso. Brad ficou desconfiado no mesmo instante. Muitas vezes os policiais se mostravam polidos e cordiais. Mas ele não fizera nada com aquelas garotas, tinha certeza. Não as tocara, não dissera nada...

— Por favor, senhor... É importante. Se quiser me acompanhar, por um momento...

Brad olhou ao redor. Viu algumas pessoas vestindo o que pareciam ser uniformes. Havia também dois homens de branco, como se fossem enfermeiros de um sanatório. E havia ainda uma equipe de televisão filmando a cena. E, subitamente, ele sentiu-se paranóico.

— Senhor — insistiu o homem bonito —, precisamos muito que nos acompanhe...

— Por que precisam de mim?

— Senhor, por favor... — O homem pegou o cotovelo de Brad e apertou-o, num gesto decidido. - Senhor, temos tão poucos repetidores adultos...

Repetidores adultos. Brad estremeceu. Eles sabiam! E agora aquele cara, tão bonito e simpático, de fala macia, levava-o para os homens de casaco branco. Era evidente que queriam capturá-lo. Brad tentou se desvencilhar, mas o cara bonito segurou-o com firmeza.

Brad, o coração disparado, sentiu o pânico dominá-lo. Abaixou-se e tirou a arma do coldre.

— Não! Largue-me!

O homem bonito parecia chocado. Algumas pessoas gritaram. O homem levantou as mãos.

— Vamos com calma. É apenas...

A arma na mão de Brad disparou. Ele não compreendeu o que acontecera até ver o homem cambalear e começar a cair. O cara agarrou-se nele e a arma disparou de novo. O homem caiu para trás. Todos gritavam agora, por toda parte. Alguém berrou:

- Ele atirou em Bellarmino! Ele atirou no Dr. Bellarmino!

A esta altura, Brad já se sentia confuso demais; a multidão fugia para todos os lados. Ele podia ver aquelas bundinhas fascinantes correndo. Estava tudo perdido; e quando mais homens de uniforme apareceram e gritaram para que largasse a arma, Brad atirou neles. E o mundo ficou preto.


 

Na reunião do outono dos agentes da Organização de Transferência de Tecnologia de Universidade, um grupo dedicado ao licenciamento do trabalho de cientistas de universidade, o filantropo Jack B. Watson fez um estimulante discurso programático. Abordou os temas familiares, o espetacular crescimento da biotecnologia, a importância das patentes de genes, a manutenção da Lei Bayh-Dole, e a necessidade de preservar o status quo, para a prosperidade das empresas e a riqueza das universidades.

— A saúde e riqueza de nossas universidades dependem de fortes parceiros de biotecnologia. É essa a chave do conhecimento, a chave para o futuro!

Ele disse o que os presentes queriam ouvir, e deixou o palco sob aplausos estrondosos. Apenas uma minoria notara que ele claudicava um pouco e que o braço direito não balançava com tanta liberdade quanto o esquerdo. Nos bastidores, ele pegou o braço de uma linda mulher.

— Onde está o Dr. Robbins?

— A sua espera na clínica.

Watson soltou um grunhido. Apoiou-se na mulher para seguir até a limusine lá fora. A noite era fria, com uma tênue neblina.

— A porra desses médicos... Não vou fazer mais nenhum exame.

— O Dr. Robbins não mencionou nenhum exame.

O motorista abriu a porta. Watson embarcou, meio sem jeito, a perna arrastando. A mulher ajudou-o. Ele arriou no banco, estremecendo. A mulher embarcou pelo outro lado.

— A dor está muito forte?

— É pior à noite.

— Quer uma pílula?

— Já tomei uma. - Watson respirou fundo. - Robbins sabe o que eu tenho?

— Acho que sim.

— Disse para você? - Não.

— Está mentindo.

— Ele não me disse, Jack.

— Oh, Deus!

A limusine corria pela noite. Watson olhava pela janela, respirando com dificuldade.

A clínica estava deserta àquela hora. Fred Robbins, um homem de 35 anos, bonito como um artista de cinema, esperava Watson em companhia de dois médicos mais jovens, numa sala de exame grande. Robbins acendera as caixas de luz, com os resultados de radiografias, eletroforese e ressonância magnética. Watson arriou numa cadeira. Acenou para os médicos mais jovens.

— Podem sair. - Mas, Jack...

— Diga só para mim, Fred. Dezenove médicos me examinaram nos últimos dois meses. Fiz tantas tomografias e exames de ressonância magnética que até já brilho no escuro. Diga só para mim. — Ele acenou para a mulher. — Espere lá fora também.

Todos se retiraram. Watson ficou a sós com Robbins.

— Dizem que você é o melhor diagnosticador dos Estados Unidos, Fred. Pode começar a falar.

— É um processo bioquímico. Era por isso que eu queria...

— Senti uma dor na perna há três meses. Uma semana depois comecei a arrastar a perna. O sapato ficava gasto na beira. Não demorou muito para começar a ter dificuldade para subir uma escada. Agora, tenho fraqueza no braço direito. Não posso espremer o tubo de pasta de dente com a mão. E começo a ter dificuldade para respirar. Tudo isso em apenas três meses. Diga o que eu tenho.

- É o que se chama de paresia de Vogelman. Não é comum, mas também não é rara. Uns poucos milhares de casos por ano, talvez cinqüenta mil no mundo inteiro. Foi descrita pela primeira vez na década de 1890 por um francês...

- Não pode tratar?

- Neste momento, não há tratamentos satisfatórios.

- Não há nenhum tratamento?

- Medidas paliativas e de apoio, massagem, vitamina B...

- Mas nenhum tratamento.

- É verdade, Jack, não há nenhum tratamento.

- Qual é a causa?

- Pelo menos isso já sabemos. A equipe de Enders na Scripps isolou há cinco anos um gene, BRD7A, que codifica para uma proteína que repara a mielina em torno das células nervosas. Eles já demonstraram que uma mutação no gene produz a paresia de Vogelman em animais.

- Ou seja, está me dizendo que tenho uma doença de deficiência genética como qualquer outra.

- Isso mesmo, mas...

- Há quanto tempo descobriram o gene? Cinco anos? Então é natural que um substituto do gene produza a proteína codificada dentro do corpo...

- A terapia de substituição é arriscada.

- E devo me importar com isso? Olhe para mim, Fred. Quanto tempo me resta?

- O prazo é variável, mas...

- Diga logo.

- Talvez quatro meses.

- Oh, Deus! - Watson respirou fundo. Passou a mão pela testa. Respirou fundo outra vez. — Muito bem, essa é a minha situação. Vamos fazer a terapia. Depois de cinco anos, deve haver um protocolo.

- Não há.

- Alguém deve ter.

- Ninguém tem. A Scripps patenteou o gene e licenciou-o para a Beinart Baghoff, a gigante farmacêutica suíça. Foi parte de um pacote, com cerca de vinte colaborações diferentes. O BRD7A não foi considerado muito importante.

— O que isso significa?

— A Beinart fixou uma taxa muito alta para o licenciamento do gene.

— Por quê? É uma doença rara. Não faz sentido... Robbins deu de ombros.

— É uma companhia grande. Quem sabe por que eles fazem as coisas? A divisão de licenciamento determina as taxas para oitocentos genes que controlam. Há quarenta pessoas na divisão. É uma burocracia. Cobram alto pelo licenciamento...

— Cristo!

— E nenhum laboratório, em qualquer lugar do mundo, trabalhou na doença nos últimos cinco anos.

— Cristo!

— Seria caro demais, Jack.

— Neste caso, comprarei o maldito gene.

— Não pode. Já verifiquei. Não está à venda.

— Tudo está à venda.

— Qualquer venda a ser feita pela Beinart tem de ser aprovada pela Scripps, e o escritório de transferência de tecnologia da Scripps não considera...

— Não importa. Eu mesmo licenciarei o gene.

— Sempre pode fazer isso.

— E providenciarei pessoalmente a transferência do gene. Teremos uma equipe aqui para cuidar disso.

— Eu gostaria que fosse possível, Jack. Mas a transferência de gene é extremamente arriscada, e nenhum laboratório correrá o risco hoje em dia. Ninguém foi para a prisão até agora por uma transferência de gene fracassada, mas tem ocorrido muitas mortes de pacientes e...

— Olhe para mim, Fred.

— Pode fazer em Xangai.

— Não. Quero fazer aqui. Fred Robbins mordeu o lábio.

— Você tem de enfrentar a realidade, Jack. O índice de sucesso é inferior a um por cento. Se contássemos com cinco anos de trabalho no gene, teríamos os resultados de testes com animais, testes com vetores, protocolos imunossupressores, todos os tipos de processos para aumentar as chances de sucesso. Mas assim de repente...

— Não tenho tempo para mais nada. Fred Robbins estava sacudindo a cabeça.

- Cem milhões de dólares - acrescentou Watson. - Para qualquer laboratório que quiser. Compre uma clínica particular em Arcadia. Serei o único paciente. Ninguém mais vai saber. Faça o procedimento ali. Dá certo ou não dá.

Fred Robbins tornou a sacudir a cabeça, desolado.

- Sinto muito, Jack, com toda sinceridade.


 

As lâmpadas no teto da sala de autópsia acenderam, uma depois de outra. O que propiciava uma cena inicial dramática, pensou Gorevitch. O homem de jaleco branco tinha uma aparência sóbria e distinta: cabelos prateados, óculos de armação de metal. Era Jorg Erickson, anatomista de primatas, com uma reputação internacional. A câmera nas mãos, Gorevitch perguntou:

— Dr. Erickson, o que estamos fazendo hoje?

— Examinaremos um espécime famoso no mundo inteiro, o putativo orangotango falante da Indonésia. Dizem que este animal falava pelo menos duas línguas. Vamos examiná-lo.

O Dr. Erickson virou-se para a mesa de metal, onde a carcaça estava coberta por um pano branco. Puxou o pano com um floreio.

— Este é um subadulto ou jovem Pongo abelii, um orangotango da Sumatra, que se diferencia pelo tamanho menor do orangotango de Bornéu. Este espécime é macho, com cerca de três anos de idade, com boa saúde aparente, sem lesões ou cicatrizes externas... Muito bem, agora vamos começar.

Ele pegou um bisturi.

— Com uma incisão sagital, exponho a musculatura anterior da garganta e faringe. Observem a parte superior e a inferior do omo-hióideo e do esternoióideo... Hum...

Erickson inclinava-se sobre o pescoço do animal. Gorevitch tinha dificuldade para filmar.

— O que está vendo, professor?

— Olho agora para os músculos estiloióideo e cricotiróideo, aqui e aqui... E isso é muito interessante. Normalmente constatamos que no Pongo a musculatura anterior é pouco desenvolvida, carecendo do eficiente controle motor do aparelho humano da fala. Mas esta criatura parece ser um caso transicional, com algumas características da faringe pongídea clássica e algumas características mais típicas do pescoço humano. Observem o esternocleidomastóideo...

Gorevitch pensou: Esternocleidomastóideo... é demais! Teriam de dublar em voice-over.

— Professor, não poderia dizer em inglês?

— Não. Os termos são latinos. Não conheço a tradução...

— Pode explicar em termos leigos para nossos espectadores?

— Claro. Todos esses músculos superficiais, a maioria dos quais está ligado ao hióide... ou seja, o pomo-de-adão... esses músculos são mais humanos do que símios.

— O que poderia explicar isso?

— Obviamente, alguma mutação.

— E o resto do animal? É mais humano também?

— Não examinei o resto do animal. Mas chegaremos lá, no momento oportuno. Terei um interesse especial em verificar qualquer rotação do eixo do forâmen magno, e é claro que na profundidade e disposição dos sulcos do córtex motor, na medida em que a massa cinzenta foi preservada.

— Espera encontrar mudanças de um tipo humano no cérebro?

— Para ser franco, não.

Erickson concentrou sua atenção no alto do crânio. Passou as mãos enluvadas sobre os pêlos esparsos, sentindo os ossos por baixo.

— Neste animal, os ossos parietais inclinam-se para dentro, na direção do alto do crânio. Isso é clássico pongídeo ou típico de chimpanzé. Enquanto os humanos têm ossos parietais protuberantes. A parte superior de suas cabeças é maior do que a inferior.

Erickson afastou-se da mesa. Gorevitch perguntou:

— Está dizendo que este animal é uma mistura de humano e símio?

— Não. É um símio. Um símio aberrante, sem dúvida. Mas apenas um símio.

Grupo de Investimentos John B. Watson

Para Divulgação Imediata

John B. "Jack" Watson, filantropo de renome internacional e fundador do Grupo de Investimentos Watson, morreu hoje em Xangai, China. O Sr. Watson era enaltecido no mundo inteiro por suas obras de caridade e seus esforços a favor dos pobres e oprimidos. O Sr. Watson estava doente há bem pouco tempo, mas sofria de uma forma de câncer extremamente agressiva. Internou-se numa clínica particular de Xangai e morreu três dias depois. A morte está sendo lamentada por amigos e colegas do mundo inteiro.

REPORTAGEM E DETALHES MAIS TARDE


 

Henry Kendall ficou surpreso ao descobrir que Gerard podia ajudar Dave com os deveres de matemática. Mas isso não duraria muito tempo. Mais cedo ou mais tarde, Dave provavelmente precisaria de uma educação especial. Dave herdara o curto prazo de atenção dos chimpanzés. Tinha uma dificuldade cada vez maior para acompanhar as outras crianças na escola, em particular na leitura, que era uma agonia para ele. E suas proezas físicas o elevavam para outra liga no recreio. As outras crianças não o deixavam brincar. Por isso, ele se tornara um excelente surfista.

E, agora, a verdade já era conhecida. Uma reportagem fora bastante angustiante. Publicada pela revista People, tinha o título de "A Família Moderna" e dizia: "A família mais avançada não é mais uma família do mesmo sexo, ou uma família mista, ou uma família inter-racial. Tudo isso pertence ao século passado, diz Tracy Kendall. E ela deve saber, porque a família Kendall, de La Jolla, Califórnia, é transgênica e interespécies... criando a maior agitação."

Henry foi convocado para depor no Congresso. Considerou a experiência muito peculiar. Os congressistas falaram para as câmeras durante duas horas. Depois se levantaram e deixaram a sala de audiência, alegando que tinham outros problemas urgentes para tratarem. As testemunhas falaram durante seis minutos cada, mas não havia congressistas presentes para ouvirem seus comentários. Mais tarde, todos os congressistas anunciaram que fariam discursos da maior importância sobre a criação transgênica.

Henry foi aclamado como Cientista do Ano pela Sociedade para a Biologia Libertária. Jeremy Rifkin classificou-o de "criminoso de guerra". Ele foi criticado com veemência pelo Conselho Nacional de Igrejas. O papa excomungou-o, para só descobrir mais tarde que ele não era católico; haviam se fixado no Henry Kendall errado. O Instituto Nacional de Saúde criticou seu trabalho. Mas o substituto de Robert Bellarmino como chefe de genética do instituto foi William Gladstone, que tinha a mentalidade mais aberta e era menos arbitrário do que seu antecessor. Henry estava sempre viajando agora, fazendo conferências sobre técnicas transgênicas em seminários de universidades de todo o país.

Era o alvo de profunda controvérsia. O reverendo Billy John Harker, do Tennessee, chamou-o de "Satã encarnado". Bill Mayer, famoso reacionário de esquerda, publicou um longo e discutido artigo em New York Review ofBooks, intitulado "Banidos do Éden: Por Que Devemos Impedir os Travestidos Transgênicos". O artigo deixava de mencionar que animais transgênicos já existiam havia vinte anos. Cachorros, gatos, bactérias, ratos, ovelhas e gado já haviam sido criados nessas condições. Quando pediram a opinião de um importante cientista do Instituto Nacional de Saúde sobre o artigo, ele tossiu constrangido e indagou:

— O que é a New York Review!

Lynn Kendall criou um site na Internet, em que detalhava a vida cotidiana de Dave, Gerard e seus dois filhos inteiramente humanos, Jamie e Tracy.

Depois de um ano em La Jolla, Gerard começou a emitir sons tones de celular. Já fizera isso antes, mas os sons eram misteriosos para os Kendall. Obviamente, eram de um serviço telefônico estrangeiro, mas não conseguiam identificar o país.

— De onde você veio, Gerard? - perguntavam eles.

— Não consigo mais dormir desde que você saiu pela porta. - Gerard se apaixonara pela música country americana. — Tudo o que você faz é me desapontar.

— Que país, Gerard?

Mas nunca obtinham resposta para essa pergunta. Ele falava um pouco de francês e muitas vezes usava um sotaque britânico. Os Kendall presumiam que fosse europeu.

Até o dia em que um estudante de pós-graduação francês de Henry foi jantar na casa da família Kendall. Ouviu os sons emitidos por Gerard.

- Acho que sei o que ele está fazendo. - O estudante escutou mais um pouco. — Não há o código da cidade, mas afora isso... Vamos tentar.

Ele tirou o celular do bolso e começou a teclar os números.

- Faça de novo, Gerard.

O papagaio repetiu os sons.

- Outra vez.

- A vida é um livro e você tem de ler — cantou Gerard. - A vida é uma história e você tem de contá-la...

- Conheço essa canção — comentou o francês.

- O que é? - perguntou Henry.

- A canção da Eurovision. Os sons, Gerard.

O papagaio acabou repetindo os sons. O estudante de pós-graduação fez a ligação. Sua primeira tentativa foi Paris. Uma mulher atendeu. Ele disse, em francês:

- Com licença, mas por acaso conhece um papagaio cinzento chamado Gerard?

A mulher começou a chorar.

- Deixe-me falar com ele. Gerard está bem?

- Está ótimo.

Seguraram o telefone perto do poleiro de Gerard, e ele escutou a voz da mulher. Balançou a cabeça, excitado, antes de dizer:

- É onde você mora? Mamãe vai adorar isto aqui!

Gail Bond chegou para uma visita poucos dias depois. Passou uma semana. Voltou sozinha para Paris. Gerard, ao que parecia, preferia ficar. Por vários dias depois, ele cantou:

Meu amor costumava passar a noite fora, Ela me fazia chorar, ela me fazia mal, Tanto doeu que abri os olhos, é verdade, As coisas mudam e agora é ela quem chora, Porque eu costumava amá-la, mas acabou...

Em tudo e por tudo, as coisas corriam muito melhor do que qualquer um podia esperar. A família era agitada, mas todos se davam bem. Havia apenas dois motivos de preocupação. Henry notara que Dave tinha agora uns poucos pêlos brancos em torno do focinho. Portanto, era possível que Dave, como a maioria dos outros transgê-nicos, morresse mais cedo do que o normal.

E num dia de outono, quando Dave passeava de mãos dadas com Henry na feira do condado, um fazendeiro de macacão aproximou-se e disse:

— Eu gostaria de arrumar um desses para trabalhar comigo na fazenda.

Isso provocou um calafrio em Henry.

 

                                                                                            Michael Crichton

 

 

                      

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