Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CORTINA / Milan Kundera
A CORTINA / Milan Kundera

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CORTINA

 

Ensaio em sete partes

 

Primeira parte: Consciência da continuidade

Segunda parte: Die Weltliteratur    

Terceira parte: Chegar à alma das coisas

Quarta parte: O que é um romancista?

Quinta parte: A estética e a existência

Sexta parte: A cortina rasgada

Sétima parte: O romance, a memória, o esquecimento

 

Consciência da continuidade

Contava-se uma anedota acerca do meu pai, que era músico. Encontrava-se ele algures com uns amigos, quando, provindos de um rádio ou de um gramofone, ecoam os acordes de uma sinfonia. Os amigos, todos eles músicos ou melómanos, reconhecem imediatamente a Nona de Beethoven e perguntaram ao meu pai: "Esta música, é o quê?" E ele, após uma longa reflexão: "Isso parece ser Beethoven." Todos tiveram que reter o riso: o meu pai não reconhecera a Nona Sinfonia!. "Tens a certeza disso?" "Sim", disse o meu pai, "Beethoven da última fase." "Como é que consegues saber que pertence à última fase?" Então o meu pai chamou-lhes a atenção para uma determinada ligadura harmónica que Beethoven, mais jovem, nunca poderia ter utilizado.

A anedota não passará certamente de uma invenção maliciosa, mas serve bem para ilustrar o que é a consciência da continuidade histórica, um dos sinais através dos quais se consegue distinguir o homem pertencente à civilização que é (ou era) a nossa. Tudo tomava, aos nossos olhos, a velocidade de uma história e aparecia como uma consequência mais ou menos lógica de acontecimentos, de atitudes e de acções. Ainda era eu muito jovem e já conhecia, muito naturalmente e sem ter que me esforçar, a exacta cronologia das obras dos meus autores preferidos. Seria impossível pensar que Apollinaire pudesse ter escrito Álcoois depois de Calligrammes, porque, se tivesse sido esse o caso, seria um outro poeta e a sua obra teria tido um outro sentido! Gosto de cada quadro de Picasso por si só, mas, também, toda a obra de Picasso entendida como uma longa caminhada, da qual conheço, de cor, a sucessão dos diferentes períodos. As famosas questões metafísicas "de onde vimos?" e "para onde vamos?", possuem, ambas, tratando-se da arte, um sentido concreto e claro e não ficam, de forma alguma, sem resposta.

História e valor

Imaginemos um compositor contemporâneo que tenha escrito uma sonata, a qual. pela forma, pelas harmonias e pelas melodias, se parecesse com as de Beethoven. Imaginemos até que essa sonata tivesse sido tão magistralmente composta que, se fosse mesmo de Beethoven, figuraria entre as suas obras-primas. No entanto, por muito magnífica que ela tosse, sendo de autoria de um compositor contemporâneo, prestar-se-ia a troça. Ou melhor, aplaudir-se-ia o seu autor como um virtuoso da imitação.

Como? Então experimentamos um prazer estético diante de uma sonata de Beethoven e não sentimos o mesmo prazer perante uma outra do mesmo estilo e de igual beleza, se for assinada por um dos nossos contemporâneos? Não é o cúmulo da hipocrisia? A sensação de beleza, em vez de ser espontânea e ditada pela sensibilidade, passa então a ser cerebral e a estar condicionada ao conhecimento de uma data?

Não há nada a fazer: a consciência histórica é de tal forma inerente à nossa percepção da arte que esse anacronismo (uma obra de Beethoven datada dos nossos dias) seria espontaneamente (e entenda-se, sem qualquer hipocrisia) considerada como ridícula, falsa, incongruente e, até talvez mesmo, uma monstruosidade. A nossa consciência da continuidade é de tal maneira forte que intervém na percepção de cada obra de arte.

Jan Mukarovsky, o fundador da estética estruturalista, escreveu, em Praga, em 1932: "Somente a suposição do valor estético objectivo concede um sentido à evolução histórica da arte." Dito de outra forma: se o valor estético não existe, a história da arte não é mais do que um imenso depósito de obras cuja sequência cronológica não tem qualquer significado. E, inversamente: é apenas no contexto da evolução histórica de uma arte que o valor estético é perceptível.

Mas de que valor estético objectivo se poderá falar se cada nação, cada período histórico ou cada grupo social têm os seus próprios gostos? Do ponto de vista sociológico, a história de uma arte não tem significado em si mesma - ela faz parte da história de uma sociedade, tal como as suas roupas, os seus ritos funerários e nupciais, os seus desportos ou as suas festividades. É mais ou menos desta maneira que o romance é tratado no artigo que lhe consagra a Encyclopédie de Diderot e Alembert.

O autor desse texto, o cavaleiro de Jaucourt, reconhece ao romance uma grande difusão ("quase toda a gente o lê") e uma influência moral (umas vezes proveitosa, outras vezes nociva), mas nenhum valor específico que lhe seja próprio; além disso, não menciona quase nenhum dos romancistas que hoje admiramos: nem Rabelais, nem Cervantes, nem Quevedo, nem Grimmelshausen, nem Defoe, nem Swift, nem Smollett, nem Lesage, nem o abade Prévost. Para o cavaleiro de Jaucourt o romance não representa nem uma arte nem uma história autónomas.

Rabelais e Cervantes. Que o enciclopedista não os tenha nomeado não é de modo algum escandaloso - Rabelais preocupava-se pouco em ser ou não romancista e Cervantes pensava escrever um epílogo sarcástico à literatura fantástica da época precedente; nem um nem outro se consideravam como "fundadores". Foi somente a posteriori, e progressivamente, que a prática da arte do romance acabou por lhes atribuir esse estatuto. E atribuiu-lho não porque eles tenham sido os primeiros a escrever romances (tinham existido muitos outros romancistas antes de Cervantes), mas porque as suas obras conseguiam fazer compreender, melhor do que as outras, a razão de ser dessa nova arte épica; porque elas representavam para os seus sucessores os primeiros grandes valores romanescos; e não foi senão a partir do momento em que se começou a ver num romance um valor, valor específico, valor estético, que os romances, na sua sucessão, puderam surgir como uma história.

 

Teoria do romance

Fielding foi um dos primeiros romancistas capazes de pensar uma poética do romance - cada uma das dezoito partes de Tom Jones abre com um capítulo consagrado a uma espécie de teoria do romance (teoria leve e agradável, porque é assim que um romancista teoriza: guardando ciosamente a sua própria linguagem e fugindo, como se da peste se tratasse, do linguajar próprio dos eruditos).

Fielding escreveu o seu romance em 1749, ou seja, dois séculos depois de Gargântua e Pantagruel e um século e meio depois de D. Qui-xote e, portanto, mesmo que ele recorra a Rabelais e a Cervantes, o romance foi sempre para ele uma arte nova, se bem que se designe a si próprio como "o fundador de uma nova província literária...". Este novo território é de tal maneira novo que ainda nem sequer tem nome! Para ser mais rigoroso, ele possui em inglês dois nomes, novel e romance, mas Fielding abstém-se de os utilizar, porque, mal tinha sido descoberta, a "nova província" foi logo invadida por "um enxame de romances estúpidos e monstruosos (a swarm of foolish novels and monstruous romances)". Para que não fosse metido no mesmo saco daqueles que ele despreza, Fielding "evita com todo o cuidado usar o termo romance", passando a designar essa arte nova por uma fórmula bastante complicada, mas notavelmente rigorosa: uma escrita prosai-comi-épica (prosai-comi-epic writing)".

Fielding tenta definir essa arte, quer dizer, tenta determinar a sua razão de ser e delimitar o domínio da realidade que o romance tem para iluminar, para explorar e para discernir: "o alimento que nós propomos aqui ao nosso leitor não é mais do que a natureza humana." A banalidade desta afirmação é só aparente - naquela altura, apareciam nos romances histórias engraçadas, edificantes, recreativas e nada mais. Ninguém lhe teria acordado uma meta assim tão geral e, portanto, tão exigente e tão séria, como é o caso do exame da "natureza humana"; ninguém teria elevado o romance à categoria de uma reflexão acerca do homem enquanto tal.

Em Tom Jones, a meio da sua narrativa, Fielding pára de repente para declarar que um dos seus personagens o está a deixar perplexo - o seu comportamento surge-lhe como "o mais inexplicável de todos os absurdos que alguma vez tenham entrado no cérebro desta estranha e prodigiosa criatura que é o homem". De facto, o espanto diante daquilo que é "inexplicável nesta estranha criatura que é o homem" é, para Fielding, o primeiro incitamento para escrever um romance, a razão para o inventar. A "invenção" (em inglês diz-se também invention) é a palavra-chave para Fielding - ele invoca a sua origem latina, inventio, que quer dizer descoberta (discovery, finding out). Ao inventar o seu romance, o romancista descobre um aspecto até essa altura desconhecido, escondido, da "natureza humana". Uma invenção romanesca é, pois, um acto de conhecimento que Fielding define como "uma rápida e sagaz penetração na verdadeira essência de tudo o que constitui objecto da nossa contemplação (a quick and sagacious penetration into the true essence of all the objects of our contemplation)". (Frase notável; o adjectivo "rapide" - quick- faz entender que se trata do acto de uma apreensão específica onde a intuição desempenha um papel fundamental.)

E a forma dessa "escrita prosai-comi-épica"? "Sendo eu o fundador de um novo território literário, tenho toda a liberdade para promulgar as leis nessa jurisdição", proclama Fielding, defendendo-se antecipadamente contra todas as outras normas que lhe quisessem ditar esses "funcionários da literatura" que, para ele, são os críticos. Para Fielding, o romance é definido, e isso parece-me essencial, pela sua razão de ser e pela extensão da realidade que ele tem para "descobrir". A sua forma, em contrapartida, releva de uma liberdade que ninguém poderá limitar e cuja evolução será uma perpétua surpresa.

 

Pobre Alonso Quijada

O pobre Alonso Quijada quis elevar-se enquanto personagem lendária de cavaleiro errante. Para qualquer história da literatura, Cervantes conseguiu precisamente o contrário: remeteu uma personagem lendária para baixo, para o mundo da prosa. Prosa: esta palavra não significa apenas uma linguagem não versificada; ela significa, também, o carácter concreto, quotidiano e corporal da vida. Afirmar que o romance é a arte da prosa não é, pois, uma verdade de La Palisse; aquela palavra define o sentido profundo dessa mesma arte. Homero nem sequer se lembrou de questionar se, após as inúmeras lutas corpo-a-corpo, Aquiles ou Ajax tinham conservado todos os dentes. Pelo contrário, para dom Quixote e para Sancho, os dentes são um contínuo tormento - os dentes que doem e os dentes que faltam. "Aprende, Sancho, que um diamante não é tão precioso como um dente."

Mas a prosa não é apenas o lado penoso ou vulgar da vida - é, também, uma beleza que até aí tinha sido negligenciada: a beleza dos sentimentos modestos, por exemplo, o daquela amizade marcada de familiaridade que Sancho sente por dom Quixote. Este repreende-o pela sua desembaraçada tagarelice, alegando que em nenhum livro de cavalaria qualquer escudeiro alguma vez ousou falar ao seu amo daquela forma. É claro que não, mas a amizade de Sancho foi uma das descobertas cervanteanas da nova beleza prosaica: "...uma criança fá-lo-ia acreditar que é noite ao meio-dia: e é por esta simplicidade que eu gosto dele como da minha própria vida e que nem todas aquelas suas extravagâncias me farão algum dia abandoná-lo", diz Sancho.

A morte de dom Quixote é ainda mais comovedora por ser prosaica, ou seja, desprovida de qualquer ênfase. Dom Quixote já tinha ditado o testamento e, depois, durante três dias, agoniza rodeado pelas pessoas que gostam de si - no entanto, "isso não impediu a sobrinha de comer, a governanta de beber e Sancho de estar de bom humor. Porque o facto de obter por herança qualquer coisa, apaga ou atenua a mágoa que um homem sente pelo defunto".

Dom Quixote explica a Sancho que nem Homero nem Virgílio apresentavam os seus personagens "tal como eles eram, mas sim como deveriam ser para servirem de exemplo de virtude às gerações vindouras". Ora, o próprio dom Quixote é tudo menos um exemplo a seguir. Os personagens romanescos não pedem que os admiremos devido às suas virtudes. O que eles pedem é que os compreendamos e isso é qualquer coisa de completamente diferente. Os heróis das epopeias vencem ou, quando são vencidos, guardam até ao último suspiro a sua dignidade. Dom Quixote é vencido. E sem qualquer dignidade. Porque, logo à partida, tudo é muito claro: a vida humana, enquanto tal. é uma derrota. A única coisa que nos resta perante essa fatal derrota a que chamamos vida é tentar compreendê-la. É nisso que reside a razão de ser  da arte do romance.

 

O pior problema deste Portugal no ano 2007 d.C.

Desemprego? Crescimento anémico? Corrupção? Tudo isso existe e é grave. Mas é a claustrofobia, o autoritarismo na pele de autoridade democrática, a falta

de uma cultura liberal e a opacidade dos negócios que infectam este nosso Portugal

 

O desemprego, de acordo com o INE, apesar de tudo o organismo público que apresenta números mais fiáveis, atingiu um novo máximo. É esse o pior problema

de Portugal? Não: uma taxa de desemprego elevada nem seria uma má notícia, se correspondesse a uma mudança de paradigma económico. O facto de não corresponder

e de os números do desemprego jovem e do de longa duração serem aterradores não chegam para o tornar na pior das nossas maleitas, por muito duro que seja

afirmar isto em voz alta a quem está desempregado.

A taxa de crescimento da economia foi de 2,1 por cento, acima do esperado mas longe do necessário, longe da média europeia e longe do prometido nas eleições.

É o nosso principal problema? Também não, pois corresponde a um progresso, mesmo que se sinta que tal evolução não é sustentável. É daqueles casos onde

temos de esperar para ver, pois mais actividade económica e mais desemprego não costumam rimar.

O nosso maior problema é então o atavismo secular, a autocomiseração, o iliberalismo reinante, a cultura de dependência, o corporativismo irracional, a

reaccionária defesa de "direitos adquiridos", a corrupção pequena, média ou grande? Mais depressa. Mas ainda estamos longe do Portugal de 2007 d.C. (depois

de Cristo). Até porque, se em cada momento da nossa história recente um desses problemas avultou, hoje a ferida mais grave está noutro lugar: na falta

de cultura democrática, no vale-tudo, na ausência de sentido de Estado, na promiscuidade entre o poder político e um poder económico hiperprotegido.

Há quase dois anos que escrevi pela primeira vez que se vivia em Portugal num ambiente de claustrofobia: havia um poder, esse poder era tão tentacular como

imune à vergonha, e escondia um autoritarismo teimoso e calculista que não olhava a meios para atingir os fins. Um só dia passado esta semana em Londres

reforçou esta minha convicção: lá, por mais spin-doctors que esvoacem em torno das redacções, discute-se, debate-se, afronta-se, tem-se frontalidade e

coragem. Aqui não. Aqui ganha quem joga por baixo da mesa, trocando favores ao estilo de Salazar mesmo vestindo Armani ou Hugo Boss.

 

Exemplos? Não faltam. Basta recordar estes dias.

Como é possível que quase ninguém se indigne, quase ninguém se choque, quando o partido do Governo vai buscar ao Tribunal Constitucional, que devia ser

uma pedra angular do nosso sistema democrático, alguém que para lá elegeu há apenas dois meses?

Como é possível que um candidato à Câmara de Lisboa, por acaso o apresentado pelo partido do Governo, lamente não ter conseguido formar uma coligação, quando

essa mesma pessoa inviabilizou quaisquer coligações? Será que tal personagem nem sequer cora ao tornar claro que a data das eleições teria sido outra,

se ele tivesse conseguido que os partidos que insultou repetidamente agora lhe prestassem vassalagem? Será que pensa que somos todos idiotas?

Como se compreende que um Presidente da República nada diga, podendo tê-lo feito na tomada de posse de ontem, que a grosseira ignorância de qualquer sentido

de Estado que representa desestabilizar de novo o Tribunal Constitucional vai contra o que sempre defendeu, quando privilegiou a estabilidade sobre a oportunidade

política?

Como é possível que a PT se prepare para fazer exactamente o contrário do que prometeu no que respeita à separação das redes de cobre e de cabo e todos

estejam calados? Mais: que o banco do Estado, a CGD, pareça estar a actuar como instrumento de tal vilania? E por que é que ninguém se interroga sobre

a forma como, sem explicação plausível, certos grupos de comunicação se tenham rendido ao charme do poder exactamente no momento em que o seu patrão depende

do Governo para concretizar o negócio da sua vida?

Como é possível que ainda ontem o partido da maioria se tenha rendido ao interesse das concessionárias das auto-estradas depois de ter defendido que, quando

há troços em obras, as portagens deviam traduzir uma menor qualidade de serviço?

Falta de transparência, jogos de influência, proteccionismos absurdos, sede de poder. Em 2007 d.C. é este o principal problema do país. E tem como pólo

a mesma casa onde viveu Salazar.

José Manuel Fernandes

O despotismo da "story"

 

Tom Jones é um menino abandonado; vive no castelo de campo de lorde Allworthy, onde este o protege e educa. Ainda jovem, apaixona-se por Sophie, a filha de um vizinho rico e, quando o seu amor se manifesta perante os olhos de toda gente (no final da parte seis), os seus inimigos caluniam-no com tamanha má-fé que Allworthy, furioso, acaba por o expulsar do castelo. Começa então aí a sua longa caminhada (tazendo lembrar a estrutura do romance -picaresco" no qual um único protagonista, um "pícaro", vive uma série de aventuras e encontra a cada passo novos personagens) e é apenas perto do final (nas partes dezassete e dezoito) que o romance regressa à intriga principal: após um furacão de revelações surpreendentes, o enigma da origem de Tom é explicado: ele é o filho natural da muito-querida irmã de Allworthy, morta já há muito tempo. Tom acaba por triunfar e casa, mesmo no último capítulo do romance, com a sua bem-amada Sophie.

Quando Fielding proclama a sua total liberdade para com a forma romanesca, está a pensar desde logo na sua recusa em deixar reduzir o romance àquela mera sequência causal de actos, gestos e palavras a que os ingleses chamam a "story" e que pretende constituir o sentido e a essência de um romance. Contra esse poder absolutista da "story", Fielding reivindica, nomeadamente, o direito de interromper a narrativa, "onde quiser e quando quiser", através da intervenção dos seus próprios comentários e reflexões ou, dito de outra forma, por digressões. Assim, Fielding também utiliza a "story" como se ela fosse a única base possível que permite garantir a unidade de uma dada composição e conseguir a ligação do início ao fim. Foi dessa forma que terminou Tom Jones mesmo que tenha sido, quem sabe, com um secreto sorriso irónico), por meio do toque do gongo do "happy end" de um casamento.

Visto nesta perspectiva, Tristram Shandy, escrito uma quinzena de anos mais tarde, surge como a primeira ruptura radical e completa com a "story". Enquanto Fielding, para não sufocar no meio do longo corredor de uma sucessão causal de acontecimentos, ia abrindo, de par em par e por todo o lado, as janelas das digressões e dos episódios, Sterne renuncia completamente à "story" - o seu romance não é senão uma única digressão multiplicada, um único e divertido baile de episódios cuja unidade, deliberadamente frágil, arrogantemente frágil, só é realizada por alguns personagens originais e suas acções microscópicas e cuja futilidade se presta à risota.

Há quem compare Sterne aos grandes revolucionários da forma romanesca do século XX, e com toda a razão, só que Sterne não era um "poeta maldito" e foi aplaudido por um vasto público. O seu grandioso acto de ruptura cumpriu-o ele sorrindo, troçando e gracejando. Aliás, nunca ninguém o censurou por ser difícil ou incompreensível - se ele irritava era pela ligeireza, pela frivolidade e, ainda mais, pela chocante insignificância dos assuntos por si tratados.

Aqueles que lhe censuravam essa insignificância tinham escolhido a palavra correcta. Mas lembremo-nos daquilo que dizia Fielding: "o alimento que nós propomos aqui ao nosso leitor não é mais do que a natureza humana". Ora, serão verdadeiramente as grandes acções dramáticas a melhor chave para compreender a "natureza humana"? Não se erigirão elas, antes, como uma barreira que dissimula a vida tal como ela é? Um dos nossos maiores problemas não é precisamente a insignificância? Não é ela o nosso destino? E, se sim, então esse destino será a nossa sorte ou a nossa desgraça? A nossa vergonha ou, pelo contrário, o nosso alívio, a nossa evasão, o nosso idílio, o nosso refúgio?

Aquelas questões eram inesperadas e provocadoras e foi o jogo formal de Tristram Shandy que permitiu colocá-las. Na arte do romance, as descobertas existenciais e a transformação da forma são inseparáveis.

 

À procura do tempo presente

Dom Quixote estava a morrer e, no entanto, "isso não impediu a sobrinha de comer, a governanta de beber e Sancho de estar de bom humor". Durante um breve instante esta frase entreabriu a cortina que dissimulava a prosa da vida. Mas, e se quiséssemos examinar esta prosa ainda mais de perto? Em pormenor? Segundo a segundo? Aquele bom humor de Sancho, como é que se manifesta? Ele mostra-se falador? E fala com ambas as mulheres? E de quê? Permanece durante todo o tempo junto da cama do seu amo?

Por definição, o narrador relata o que se passou. Mas cada pequeno acontecimento, a partir do momento em que se torna passado, perde o seu carácter concreto e transforma-se em silhueta. A narrativa é uma recordação, portanto, é um resumo, uma simplificação, uma abstracção. A verdadeira face da vida, da prosa da vida, só se encontra no tempo presente. Mas, como contar os acontecimentos passados e restituir-lhes o tempo presente que eles perderam? A arte do romance encontrou a resposta para isso: passando a apresentar o passado por meio de cenas. A cena, mesmo sendo contada no passado gramatical, é, ontologicamente, o presente: vemo-la e ouvimo-la - desenrola-se à nossa frente, aqui e agora.

Quando os leitores de Fielding o liam transformavam-se em ouvintes fascinados por um homem brilhante que os conseguia manter na expectativa acerca do que lhes estava a ser narrado. Balzac, uns oitenta anos mais tarde, iria transformar os seus leitores em espectadores que olhavam para uma tela (uma tela de cinema antes do tempo) onde a sua magia de romancista fazia-os observar cenas das quais eles nem sequer conseguiam desviar a atenção.

Fielding não inventava histórias impossíveis ou incríveis, não obstante a verosimilhança do que ele estivesse a narrar ser a última das suas preocupações. Ele não pretendia ofuscar os seus ouvintes com a ilusão da realidade, mas sim com o sortilégio da sua efabulação, das suas inesperadas observações ou das surpreendentes situações que ia criando. Pelo contrário, quando a magia do romance passou a consistir na evocação visual e acústica de cenas, a verosimilhança tornou-se a regra das regras: a condição sine qua non para que o leitor acreditasse naquilo que estava a ver.

Fielding mostrava pouco interesse pela vida quotidiana (ele nunca teria acreditado que a banalidade pudesse vir a tornar-se um dia num grande tema de romances). Ele não simulava escutar com a ajuda de microfones secretos as reflexões que passavam pela cabeça dos seus personagens - olhava para eles a partir do exterior e apresentava, acerca dos seus traços psicológicos, hipóteses lúcidas e, muitas vezes, curiosas). As descrições aborreciam-no e Fielding não se detinha na aparência física dos seus heróis (nunca saberemos de que cor eram os olhos de Tom), nem no fundo histórico do romance. A sua narrativa pairava alegremente sobre as cenas, das quais ele só evocava os fragmentos que considerava indispensáveis para a clareza da intriga e da reflexão. Aquela Londres onde se desenlaça o destino de Tom parece-se mais com um pequeno círculo impresso num mapa do que propriamente com uma metrópole real - as ruas, as praças ou os palácios não são nem descritos nem sequer têm nomes.

O século XIX cresceu ao longo de décadas de deflagrações de conflitos que, em várias ocasiões e por todo o lado, transfiguraram a Europa. Na existência do homem qualquer coisa mudou então e durante muito tempo: a História tornou-se na experiência de qualquer pessoa e o homem começou a compreender que não morria no mesmo mundo em que nascera. O relógio da História passou a dar as horas em voz alta, por toda a parte, mesmo até no interior dos romances, cujo tempo, naquele próprio instante, passou a ser contado e datado. A forma de cada pequeno objecto, de cada cadeira, de cada saia passou a ser influenciada pela sua breve desaparição (transformação). Entrou-se na época das descrições. (Descrição: pena pelo que é efémero; salvação do que é passageiro). A Paris de Balzac não se assemelha à Londres de Fielding - ali as praças têm nomes, as casas possuem cores e as ruas cheiros e ruídos. É a Paris de um instante bem definido, uma Paris tal como nunca antes tinha sido e tal como nunca mais voltaria a ser. E cada uma das cenas do romance é marcada (quanto mais não seja pela forma de uma cadeira ou devido ao corte de uma indumentária) pela História, a qual, uma vez saída da obscuridade, passará a modelar e a remodelar, sem cessar, a face do mundo.

Uma nova constelação tinha-se acendido no céu por sobre a estrada do romance, o qual acabara de entrar no seu grande século, o século da sua popularidade, da sua hegemonia. Uma "ideia daquilo que é o romance" fundara-se então e haveria de reinar sobre a arte do romance até Flaubert, até Tolstoi, até Proust - ela fará ocultar num semi-esquecimento os romances dos séculos precedentes (pormenor incrível: Zola nunca leu As Ligações Perigosas) e tornará difícil a futura transformação do romance.

 

As múltiplas significações da palavra "história"

"A História da Alemanha", "a História de França": nestas duas fórmulas o complemento é diferente, enquanto que a noção de história mantém o mesmo sentido. "A história da humanidade", "a história da técnica", "a história da ciência", "a história desta ou daquela arte": não apenas o complemento é diferente, como também a palavra "história" significa, em cada um dos casos, uma coisa diferente.

O ilustre médico A inventa um método genial para tratar uma doença. Mas, uma década mais tarde, o médico B elabora um outro método, mais eficaz, de tal forma que o método precedente (não obstante ser genial) é abandonado e esquecido. A história da ciência possui as marcas do progresso.

Aplicada à arte, a noção de história não tem nada a ver com o progresso - ela não implica um aperfeiçoamento, uma melhoria, uma escalada; ela parece-se com uma viagem levada a cabo com o intuito de explorar terras até aí desconhecidas e de as registar num mapa. A ambição do romancista não é a de fazer melhor do que os que o precederam, mas sim a de conseguir ver aquilo que eles não viram e de ser capaz de dizer aquilo que eles não disseram. A poética de Flaubert não desconsidera a de Balzac, da mesma forma que a descoberta do Pólo Norte não torna obsoleta a da América.

A história da técnica depende pouco do homem e da sua liberdade. Obedecendo à sua própria lógica, ela não pode ser diferente daquilo que foi nem daquilo que virá a ser. Neste sentido, ela é inumana - se não tivesse sido Edison a inventar a lâmpada, alguém a teria inventado. Mas se Laurence Sterne não tivesse tido a ideia louca de escrever um romance sem qualquer "story", ninguém o teria feito em seu lugar e a história do romance não seria aquela que nós conhecemos.

"Uma História da Literatura, ao contrário da História, simplesmente, só deveria conter nomes de vitórias, dado que as derrotas não correspondem aí a qualquer vitória para alguém". Desta frase brilhante de Julien Gracq podem-se tirar todas as ilações pelo facto de a História da Literatura, "ao contrário da História, simplesmente", não ser uma história de acontecimentos, mas sim a história dos valores. Sem Waterloo a História de França não se poderia compreender. Mas as Waterloo dos pequenos e, até mesmo, dos grandes escritores só têm lugar no esquecimento.

A História, "simplesmente", a da Humanidade, é a história das coisas que já não existem e das que já deixaram de participar directamente nas nossas vidas. A História da Arte, porque é a história dos valores e, portanto, das coisas que nos são necessárias, está sempre presente, está sempre connosco - pode ouvir-se Monteverdi e Stravinski no mesmo concerto.

E porque eles estão sempre connosco, os valores das obras de arte estão constantemente a ser postos em causa, defendidos, avaliados e reavaliados. Mas, como avaliá-los? No campo da arte não existem, para esse fim, medidas exactas. Cada avaliação estética é uma aposta pessoal, mas uma aposta que não se fecha sobre a sua subjectividade, que enfrenta outras avaliações, que tende a ser reconhecida e que aspira à objectividade.

Na consciência colectiva, a história do romance, ao longo de toda a sua duração, que se estende desde Rabelais até aos nossos dias, encontra-se, assim, numa perpétua transformação para a qual contribuem a competência e a incompetência, a inteligência e a estupidez e, acima de todas elas, o esquecimento que nào cessa de ampliar o seu já imenso cemitério, onde, ao lado das inutilidades, repousam valores subestimados, desconhecidos ou esquecidos. Esta inevitável injustiça torna a História da Arte profundamente humana.

 

A beleza de uma súbita intensidade da vida

Nos romances de Dostoievski o relógio nunca pára de dar horas: "Eram perto das nove da manhã", é a primeira frase de O Idiota-, nesse momento, por pura coincidência (sim, o romance começa por uma enorme coincidência!), três personagens que nunca se tinham visto antes encontram-se num compartimento dum comboio: Miskine, Rogojine e Lébédev. Na conversa que ocorre entre eles não tarda a aparecer a heroína do romance, Nastassia Eilipovna. São onze horas quando Miskine toca à porta da casa do general Epantchine e é meio-dia e meia quando almoça com a mulher e as três filhas do general. Durante a conversa, Nastassia Eilipovna reaparece: fica-se a saber que um certo Totski, que a sustentou, se esforça a todo o custo por conseguir casá-la com Gania, o secretário de Epantchine, e que, nessa mesma noite, durante a festa organizada para festejar os seus vinte e cinco anos. ela deverá anunciar a sua decisão. Após o almoço. Gania leva Miskine para o apartamento da sua família, onde chegam, quando ninguém os esperava, Nastassia Filipovna e, logo a seguir, também de forma completamente inopinada (cada cena em Dostoievski é ritmada por entradas inopinadas), Rogojine, bêbado, na companhia de mais uns quantos borrachões. O serão em casa de Nastassia decorre num ambiente de excitação: Totski aguarda, impaciente, pelo anúncio do casamento, Miskine e Rogojine declaram, ambos, o seu amor a Nastassia, e Rogojine oferece-lhe, ainda por cima, um embrulho contendo cem mil rublos que ela lança para a lareira. A festa termina a altas horas da noite e, com ela, a primeira das quatro partes do romance; em qualquer coisa como cento e cinquenta páginas, quinze horas de um dia e não mais do que quatro cenários: o comboio, a casa de Epatchine, o apartamento de Gania e o apartamento de Nastassia.

Até aí, uma tamanha concentração de acontecimentos num espaço e num tempo tão restritos só se podiam ver no teatro. Por detrás de uma extrema dramatização das acções (Gania dá uma estalada em Miskine, Varia cospe na cara de Gania, Rogojine e Miskine fazem declarações de amor à mesma mulher, ao mesmo tempo), tudo o que faz parte da vida quotidiana desaparece. É essa a poética do romance em Scott, em Bal-zac, em Dostoievski. O romancista quer dizer tudo por meio de cenas, mas a descrição de uma cena ocupa muito espaço. A necessidade de manter o suspense exige uma extrema densidade de acções - daí o paradoxo: o romancista quer preservar toda a verosimilhança da prosa da vida, mas a cena torna-se de tal maneira rica em acontecimentos e tão transbordante de coincidências que acaba por perder quer o seu carácter prosaico quer a sua verosimilhança.

Apesar disso, não considero que essa teatralização da cena seja uma simples necessidade técnica e, menos ainda, um defeito. Porque essa acumulação de acontecimentos, com tudo o que possa ter de excepcional e de pouco crível, é, antes de mais nada, fascinante! Quando tal nos acontece na nossa própria vida, quem o poderá negar, surpreende-nos! Encanta-nos! Torna-se inesquecível! As cenas em Balzac e em Dostoievski (o último dos grandes balzaquianos da forma romanesca) reflectem uma beleza muito particular, uma beleza muito rara, é certo, mas, no entanto, real e que qualquer pessoa por certo sentiu (ou, pelo menos, aflorou) durante a sua própria vida.

E aconteceu a Boémia libertina da minha juventude: os meus amigos afirmavam que não existe uma experiência mais bela para um homem do que ter sucessivamente três mulheres no decurso de um só e mesmo dia. Não como o resultado mecânico de uma orgia, mas como uma aventura individual e um aproveitamento de uma coincidência incrível de oportunidades, de surpresas, de seduções relâmpago. Esse "dia das três mulheres", extremamente raro, roçando o sonho, teve um encanto fascinante, o qual, consigo vê-lo hoje, não consistiu numa qualquer performance sexual desportista, mas sim na beleza épica de uma sucessão rápida de encontros onde, sobre o fundo daquela que a tinha precedido, cada mulher parecia ainda mais singular e onde aqueles três corpos se

assemelhavam a três longas notas tocadas, cada uma delas, por um instrumento diferente, mas, todas elas, unidas num só acorde. Tratou-se de uma beleza muito particular, a beleza de uma súbita intensidade da vida.

 

O poder do fútil

Em 1879, para a segunda edição de A Educação Sentimental (a primeira datava de 1869). Flaubert procedeu a alterações na disposição das alíneas: nunca dividiu uma alínea em várias, mas, às vezes, ligou-as através de parágrafos mais longos. Isto parece-me revelar a profunda intenção estética de Flaubert: desteatralizar o romance, desdramatizá-lo ("desbalzaquiá-lo"), inserir-lhe uma acção, um gesto ou uma réplica numa sequência mais longa, dissolvendo-os a todos na água bebível do quotidiano.

Quotidiano. Não é apenas aborrecimento, futilidade, repetição, mediocridade; é, também, beleza. For exemplo, o feitiço das atmosferas - cada um de nós já o experimentou a partir das suas próprias vidas: uma música que suavemente se ouve vinda do apartamento ao lado; o vento que faz tremelicar a janela; a voz monótona de um professor de que uma aluna, a viver intensamente um desgosto de amor, se apercebe sem a ouvir. Todas essas circunstâncias fúteis imprimem uma marca de inimitável singularidade a um acontecimento íntimo, o qual se torna, a partir daí, referenciado no tempo e inesquecível.

Mas Flaubert foi ainda mais longe na sua análise acerca da banalidade quotidiana. São onze da manhã, Emma dirige-se para o encontro marcado na catedral e. sem dizer uma palavra, entrega a Léon, o seu amante até aí platónico, a carta na qual lhe revela que não pretende continuar com aqueles seus encontros. A seguir, afasta-se, ajoelha-se e põe-se a rezar. Quando se levanta, está um guia ao seu lado o qual lhe propõe fazer uma visita guiada à igreja. Para sabotar o encontro. Emma aceita e o casal é obrigado a especar-se diante de um túmulo, a erguer as cabeças para a estátua equestre do defunto, a passar por outros túmulos e outras tantas estátuas e a ouvir a dissertação do guia, a qual Flaubert reproduz em toda a sua estupidez e extensão. Furioso e não conseguindo aguentar mais, Léon interrompe a visita, puxa Emma para fora da catedral, chama um fiacre e aí começa a célebre cena durante a qual não vemos nem ouvimos nada, salvo, de vez em quando, uma voz de homem, de dentro do fiacre, dando ordens ao cocheiro para se dirigir numa e noutra direcção, sempre diferente, para que a viagem possa continuar e a sessão de amor nunca mais acabe.

Uma das mais famosas cenas eróticas foi desencadeada por uma banalidade completa: um inofensivo chato e a sua obstinada ladainha. No teatro, uma acção de grande intensidade não pode nascer senão de uma outra acção de grande intensidade. Só o romance seria capaz de descobrir o imenso e misterioso poder do fútil.

 

A beleza de uma morte

Por que é que Ana Karenina se suicidou? Aparentemente, tudo é transparente: desde há uns anos que as pessoas das suas relações se tinham começado a afastar de si, sofria por estar separada de Sérgio, o seu filho, e, mesmo que Vronski a continuasse a amar, Ana temia pelo seu amor. Sentia-se cansada dele, sobreexcitada e de modo doentio (e injustificadamente) ciumenta - sentia-se presa numa armadilha. Sim, tudo isso é transparente, mas, seremos todos levados ao suicídio sempre que somos apanhados numa armadilha? Quantas pessoas se habituam a viver debaixo de uma armadilha! Mesmo que consigamos compreender a profundidade da sua tristeza, o suicídio de Ana permanece um enigma.

Quando toma conhecimento da terrível verdade acerca da sua identidade e quando vê Jocasta enforcada, Édipo vaza os próprios olhos - desde a sua infância que uma necessidade causal o conduzia, como se de uma certeza matemática se tratasse, para aquele trágico desenlace. Mas é na ausência de qualquer acontecimento excepcional que, na sétima parte do romance, Ana pensa pela primeira vez na sua morte possível. Foi numa sexta-feira, dois dias antes do suicídio - atormentada após uma discussão com Vronski, Ana lembrou-se de repente da frase que tinha pronunciado, excitada, algum tempo depois de ter dado à luz: "porque é que não morri?" e, durante muito tempo, manteve-se fixa nela. (Notemos: não é Ana que, ao procurar uma saída para a armadilha, chega, de uma forma lógica, à ideia da morte; esta é-lhe soprada, de uma maneira suave, por intermédio de uma recordação.)

Ana voltou a pensar uma segunda vez na morte, no dia seguinte, sábado: ela diz para si própria que "a única forma de punir Vronski, de reconquistar o seu amor" seria suicidando-se (logo, o suicídio não como uma saída para a armadilha, mas como uma vingança de amor). Para conseguir adormecer, Ana tomou um sonífero e viu-se mergulhada num devaneio sentimental acerca da sua morte - imagina o suplício de Vronski debruçado sobre o seu corpo, mas, mais tarde, apercebendo-se de que a sua morte não passou de uma fantasia, volta a sentir uma imensa alegria de viver: "Não, não, tudo menos a morte! Eu amo-o, ele ama-me, já passámos por situações semelhantes e tudo acabou por se compor."

O dia seguinte, domingo, é o dia da sua morte. Pela manhã, e mais uma vez, eles discutem e mal Vronski sai para ir ver a mãe, à casa de campo, perto de Moscovo, Ana envia-lhe uma mensagem: "Eu é que estou errada; volta para casa, precisamos de falar. Por amor de Deus, volta, tenho medo!" De seguida, Ana decide ir ter com Dolly, a sua cunhada, para lhe confidenciar as mágoas. Sobe para uma caleche, senta-se e deixa que os pensamentos lhe passem livremente pela cabeça. Não se tratou de uma reflexão lógica, mas sim de uma incontrolável actividade do cérebro durante a qual tudo se mistura, fragmentos de pensamentos, observações, recordações. A caleche em movimento constituía um local ideal para um monólogo silencioso como este, porque o mundo exterior, desfilando ali diante dos seus olhos, ia alimentando incessantemente os seus pensamentos: "Escritório e lojas. Dentista. Sim, vou contar tudo à Dolly. Será difícil contar-lhe tudo, mas vou mesmo fazê-lo."

(Stendhal gosta de cortar o som no meio de uma cena: deixamos de ouvir o diálogo e passamos a seguir o pensamento secreto de um personagem - trata-se sempre de uma reflexão repleta de lógica e muito condensada através da qual Stendhal nos revela a estratégia do seu herói, o qual se encontra a avaliar uma dada situação e a tentar decidir o comportamento a seguir. Ora, o monólogo silencioso de Ana não é de forma alguma lógico, nem chega sequer a ser uma reflexão, é sim a torrente de tudo o que, num dado momento, lhe vai pela cabeça. Tolstoi antecipa, assim, aquilo que uns cinquenta anos mais tarde Joyce, de uma maneira muito mais sistemática, seguirá no seu Ulisses e a que se passará a chamar monólogo interior ou stream of consciousness. Tolstoi e Joyce sentiam-se perseguidos por uma mesma obsessão: agarrar o que se passa na cabeça de um homem durante um momento presente, o qual, no segundo seguinte, se irá embora para sempre. Mas existe uma diferença: através do seu monólogo interior, Tolstoi não analisa (tal como Joyce há-de fazer mais tarde), um dia qualquer, quotidiano e banal, mas, pelo contrário, examina os momentos decisivos da vida da sua heroína. E isso é muito mais difícil, porque, quanto mais uma situação for dramática, excepcional e grave, mais aquele que a está a narrar terá tendência para apagar o seu carácter concreto, para esquecer a sua prosa ilógica e para a substituir pela lógica implacável e simplificada da tragédia. A análise tolstoiana da prosa de um suicídio é, pois, uma grande proeza - uma "descoberta" que não tem par na história do romance e que nunca terá.)

Quando Ana chega a casa de Dolly não é capaz de lhe contar nada. Sai quase a seguir, volta a subir para a caleche e vai-se embora. Segue-se o segundo monólogo interior: cenas de rua, observações e associações de ideias. Quando chega a casa, encontra o telegrama de Vronski anunciando-lhe que se encontra no campo, em casa da mãe, e que não voltará para casa antes das dez da noite. Para o seu apelo emotivo daquela manhã ("Por amor de Deus, volta, tenho medo!"), Ana estava à espera de uma resposta também ela emotiva e, ignorando que Vronski não recebera a sua mensagem, sente-se magoada. Decide então tomar um comboio para ir ter com ele. Ana está novamente sentada na caleche quando ocorre o terceiro monólogo interior: cenas de rua, uma pedinte com um filho ao colo, "por que razão é que ela pensa que inspira pena? Não teremos sido, todos nós, atirados para esta terra para nos odiarmos e nos martirizarmos uns aos outros?... Olha, meninos da escola a brincarem... Meu pequeno Sérgio!..."

Ana desce da caleche e instala-se no comboio. É aí que uma força nova entra em cena: a fealdade. Da janela do compartimento Ana observa uma senhora "disforme" a correr ao longo da plataforma - "despe-a na imaginação, assustando-se com a sua fealdade...". Atrás da senhora segue uma menina que "ri com afectação, faz trejeitos e é pretensiosa". Surge um homem, "sujo e feio, com um boné". Por fim, senta-se um casal à sua frente - "eles repugnam-na"; o marido está a contar "parvoíces à mulher". Deixou de existir qualquer tipo de reflexão racional dentro da sua cabeça e a sua percepção estética tornou-se hipersensível - Ana via a beleza a abandonar o mundo uma meia-hora antes de ela própria o abandonar.

O comboio pára e Ana desce para a plataforma. Aí é-lhe entregue uma outra mensagem de Vronski confirmando que regressará a casa por volta das dez horas. Ana continua a andar por entre a multidão, com os sentidos assaltados pela vulgaridade, a fealdade e a mediocridade espalhadas por todo o lado. Um comboio de mercadorias está a dar entrada na estação. De repente, Ana "lembra-se daquele homem trucidado no dia do seu primeiro encontro com Vronski e compreende o que lhe restava fazer". E é só nesse preciso momento que ela toma a decisão de pôr termo à vida.

("O homem trucidado" de que Ana se lembrou era um ferroviário que se tinha atirado para a linha no preciso momento em que ela vê Vronski pela primeira vez na vida. O que é que isto quer dizer, esta simetria, este enquadramento de toda a sua história de amor por uma dupla morte na estação? Será uma manipulação poética por parte de Tolstoi? É a sua maneira de brincar com os símbolos?

Recapitulemos a situação: Ana tinha ido à estação para se reencontrar com Vronski e não para se matar; mal se encontrou na plataforma, viu-se subitamente surpreendida por uma recordação e deixa-se seduzir por uma oportunidade inesperada de dar à sua história de amor uma forma definitiva e bela; de juntar o começo e o final pelo mesmo cenário da estação e pelo mesmo tema da morte nos carris. Porque, sem se dar conta disso, o homem vive sob a sedução da beleza, e Ana, sufocada pela fealdade do ser, tornou-se ainda mais sensível a ela.)

Ana desce uns degraus e está junto dos carris. O comboio de mercadorias aproxima-se. "Uma sensação apodera-se dela, semelhante àquela que experimentava, noutros tempos, quando ia tomar banho e se aprestava para mergulhar na água..."

(Uma frase milagrosa! Num único segundo, o último da sua vida, a extrema intensidade associada a uma recordação agradável, banal e leve! Mesmo na altura patética da morte, Ana está longe da estrada trágica de Sófocles. Ela não abandona a estrada misteriosa da prosa onde a fealdade caminha lado a lado com a beleza, onde o racional cede perante o ilógico e onde um enigma permanece um enigma.)

"Ana encolheu a cabeça entre os ombros e, com as mãos para a frente, lançou-se para debaixo do vagão."

 

A vergonha de se repetir

Durante uma das minhas primeiras estadias em Praga após a queda do regime comunista em 1989, um amigo que lá tinha sempre continuado a viver, disse-me: era de um Balzac que nós teríamos tido necessidade. Porque aquilo que tu aqui vês é o restabelecimento de uma sociedade capitalista com tudo aquilo que ela comporta de cruel e de estúpido, acrescida da vulgaridade dos escroques e dos novos-ricos. A estupidez comercial substituiu a estupidez ideológica. Mas, aquilo que torna pitoresca esta nova experiência é o facto de ela guardar a antiga bem fresca na sua memória, de ambas as experiências se encaixarem e de a História, tal como na época de Balzac, pôr em cena incríveis imbróglios. E contou-me então a história de um homem de idade, antigo alto funcionário do partido, o qual, vinte e cinco anos antes, tinha apoiado o casamento da sua filha com um rapaz oriundo de uma grande família burguesa expropriada e para o qual arranjara, imediatamente (como prenda de casamento), uma bela carreira. Hoje, esse apparatchik está na iminência de terminar os seus dias na solidão, a família do genro recuperou os bens outrora nacionalizados e a filha sente vergonha do pai comunista que ela só secretamente ousa visitar. O meu amigo continua, rindo-se: estás a perceber? - é, palavra por palavra, a história do pai Goriot! O homem poderoso da época do Terror que conseguiu casar as duas filhas com "inimigos de classe", as quais, mais tarde, na época da Restauração, fingem que nem sequer o conhecem, mesmo sabendo que aquele pobre pai nunca se poderia sequer cruzar com elas em público.

Nós rimo-nos durante muito tempo. Mas, hoje, eu paro para reflectir acerca dessa risota. De facto, o que é que nos levou a rir? Será que o velho apparatchik era assim tão ridículo? Ridículo por ter repetido o que outros, como ele, tinham feito? Mas ele não estava a repetir nada! A História é que se estava a repetir. E, para se repetir, é preciso não se ter pudor, não se ter inteligência e não se ter maneiras. Tinha sido o mau gosto da História que nos fizera rir.

Isto faz-me regressar à exortação daquele meu amigo. Será verdade que a época que estamos a viver na Boémia precisa mesmo do seu Bal-zac? Talvez. Talvez, para os checos, fosse elucidativo ler romances acerca da recapitalização do seu país, um ciclo romanesco vasto e rico, com muitos personagens e escrito à maneira de Balzac. Mas nenhum romancista digno desse nome escreverá algum dia um tal romance. Seria ridículo voltar a escrever uma outra Comédia Humana. Porque se a História (a da Humanidade) pode ter o mau gosto de se repetir, a história de uma arte não tolera repetições. A arte não existe para registar, como se fosse um grande espelho, todas as peripécias, as variações e as infinitas repetições da História. A arte não é nenhuma fanfarra que acompanha de perto a História ao longo da sua marcha. A arte existe para criar a sua própria história. Aquilo que um dia ficará da Europa não será a sua história repetitiva, a qual, em si mesma, não exprime qualquer valor - a única coisa que tem hipótese de permanecer, será a História das Artes.

 

Die Weltliteratur

O máximo de diversidade num mínimo de espaço

Quer seja nacionalista ou cosmopolita, enraizado ou desenraizado, o cidadão europeu vive sempre profundamente determinado pela relação com a sua pátria - a problemática nacional é, na Europa, plausivelmente mais complexa, mais séria e, em qualquer dos casos, diferente comparativamente com qualquer outra região. A isso junta-se-lhe uma outra particularidade: ao lado das grandes nações, existem na Europa pequenas nações, entre as quais muitas delas, ao longo dos últimos séculos, adquiriram (ou reencontraram) a sua independência política. Talvez tenha sido a sua existência que me fez perceber que a diversidade cultural é o grande valor europeu. Na época em que o mundo russo pretendeu remodelar o meu pequeno país à sua imagem, formulei o meu ideal da Europa desta forma: o máximo de diversidade num mínimo de espaço; os russos já não governam o meu país natal, mas esse ideal está ainda mais em perigo.

Todas as nações da Europa vivem o mesmo destino comum, mas, cada uma delas, vive-o de maneira diferente, a partir das suas próprias experiências particulares. É devido a esse facto que a história de cada uma das artes europeias (pintura, romance, música, etc.) parece uma corrida de estafetas durante a qual cada uma das diversas nações vai passando o mesmo testemunho de uma para as outras. A polifonia tem as suas origens em França, continua a sua evolução em Itália, alcança uma incrível complexidade na Holanda e atinge a perfeição na Alemanha através da obra de Bach. À aparição do romance inglês do século XVIII segue-se a época do romance francês, depois a do romance russo, mais adiante a do romance escandinavo, etc. O dinamismo e a grande faculdade criadora da história das artes na Europa seriam inexplicáveis sem a existência das nações, cujas diversas experiências constituem um inesgotável reservatório de inspiração.

Veja-se o caso da Islândia. Entre os séculos XIII e XIV nasceu ali uma obra literária de muitos milhares de páginas: as sagas. Nem os franceses nem os ingleses foram capazes de criar naquela época uma tal obra em prosa nas suas respectivas línguas nacionais! Mas meditemos bem nisso até ao fim: o primeiro grande tesouro de prosa na Europa foi criado no mais pequeno dos seus países, o qual, mesmo nos nossos dias, possui menos de trezentos mil habitantes.

 

A irreparável desigualdade

Munique tornou-se o símbolo da capitulação perante Hitler. Mas, sejamos mais concretos: em Munique, no Outono de 1938, os quatro grandes, a Alemanha, a Itália, a França e a Grã-Bretanha, negociaram o destino de um pequeno país a quem eles negaram até o próprio direito de usar da palavra. Numa sala afastada, os dois diplomatas checos tinham-se mantido à espera durante toda a noite para serem conduzidos, já de manhã, através de compridos corredores, até uma sala onde Chamberlain e Daladier, fatigados, entediados e bocejando, lhes anunciaram o veredicto de morte.

"Um país longínquo do qual pouco sabemos (afar away country of which we know little)." Essas famosas palavras com as quais Chamberlain quis justificar o sacrifício da Checoslováquia eram adequadas. É que existem, na Europa, de um lado os países grandes e, do outro, os pequenos; existem as nações que têm assento nas salas de negociações e as que têm que aguardar durante toda a noite na sala de espera.

O que distingue as pequenas das grandes nações não é o critério quantitativo do número dos seus habitantes; o que as diferencia é qualquer coisa de mais profundo: é que a sua existência não é para elas uma certeza evidente, sendo sempre um tormento, uma aposta, um risco - elas desconfiam da História, essa força que as ultrapassa, que não as toma em consideração e que chega mesmo a nem sequer se aperceber delas. ("É apenas opondo-nos à História enquanto tal que nos conseguiremos opor à História dos nossos dias", escreveu Gombrowicz.)

Os polacos são tão numerosos como os espanhóis. Mas a Espanha é uma velha potência que nunca foi ameaçada ao longo de toda a sua existência, ao passo que a História ensinou aos polacos o que quer dizer não ser. Privados do seu Estado, os polacos viveram durante um século no corredor da morte. "A Polónia ainda não caiu" é o primeiro verso patético do seu hino nacional e, há uns cinquenta anos atrás, Witold Gombrowicz, numa carta endereçada a Czeslaw Milosz, escreveu uma frase que jamais ocorreria a qualquer espanhol: "Se, dentro de cem anos, a nossa língua ainda existir..."

Tentemos imaginar que as sagas islandesas tivessem sido escritas em inglês. Os nomes dos seus heróis ser-nos-iam hoje tão familiares como o de Tristão ou o de dom Quixote; o seu carácter estético tão singular, oscilando entre a crónica e a ficção, teria desencadeado um monte de teorias; ter-se-ia debatido com o objectivo de se decidir se se poderia, ou não, considerá-las como sendo os primeiros romances europeus. Não quero com isto dizer que elas foram esquecidas; é que, após alguns séculos de indiferença, essas sagas são hoje em dia estudadas nas universidades do mundo inteiro, embora continuem a pertencer à "arqueologia das letras" e a não influenciar a literatura viva.

Dado que os franceses não estão habituados a fazer a distinção entre Nação e Estado, ouço muitas vezes qualificar Kafka como sendo um escritor checo (com efeito, ele foi, a partir de 1918, cidadão checoslovaco). Claro que é um disparate. Kafka só escrevia, é bom recordá-lo, em alemão e considerava-se, sem quaisquer equívocos, um escritor alemão. Apesar disso, imaginemos durante uns instantes que Kafka tenha escrito os seus livros em checo. Hoje, quem teria conhecimento deles? Antes de conseguir impor Kafka à consciência mundial, Max Brod teve que desenvolver gigantescos esforços durante vinte anos e com o apoio dos maiores escritores alemães! Mesmo que um editor de Praga tivesse conseguido publicar os livros de um hipotético Kafka checo, nenhum dos seus compatriotas (quer dizer, nenhum checo), teria tido a autoridade necessária para dar a conhecer ao mundo aqueles extravagantes textos escritos na língua de um país longínquo "of which we know little. Acreditem em mim: hoje ninguém conheceria Kafka, mas absolutamente ninguém, se ele tivesse sido checo.

Ferdydurke, de Gombrowicz, foi editado em polaco em 1938 e teve que esperar quinze anos para ser lido e, finalmente, recusado por um editor Brandys fala disso nos seus Carnets, Paris 1985-1987: "Um estudante francês tem mais lacunas ao nível do conhecimento da cultura mundial do que um estudante polaco, mas ele pode permitir-se a isso, porque a sua própria cultura abarca mais ou menos todos os aspectos, todas as possibilidades e as diversas fases da evolução mundial."

As pequenas nações mostram-se reticentes ao grande contexto por razões precisamente inversas: elas têm em alta estima a cultura mundial, mas esta mostra-se-lhes como qualquer coisa estranha, um céu demasiado acima das suas cabeças, longínquo, inacessível - uma realidade ideal com a qual a sua literatura nacional pouco tem a ver. A pequena nação inculcou no seu escritor a convicção segundo a qual ele só a ela pertence. Querer fixar o olhar para além das fronteiras da sua pátria e pretender juntar-se aos seus colegas no território supranacional da arte é considerado como pretensioso e desprezível relativamente aos seus. E, uma vez que as pequenas nações passam frequentemente por situações em que a sua própria sobrevivência está em jogo, elas conseguem facilmente expressar a sua atitude como sendo moralmente justificada.

Franz Kafka fala disso nos seus Diários; é a partir do ponto de vista de uma "grande" literatura, entenda-se a alemã, que ele analisa a literatura iydiche e a literatura checa; uma pequena nação, afirma Kafka, manifesta um grande respeito pelos seus escritores, porque estes lhe proporcionam sentir orgulho "face ao mundo hostil que a rodeia"; a literatura é, para uma pequena nação, "menos uma questão de história da literatura" do que "uma questão de âmbito nacional"; e é esta excepcional osmose entre a literatura e o seu povo que leva à "difusão da literatura pelo país, onde ela se agarra aos slogans políticos". Mais adiante, Kafka chega à seguinte observação surpreendente: "Aquilo que, no seio das grandes literaturas, é desprezível e constitui uma cave não indispensável do edifício, passa-se aqui em plena claridade; o que lá provoca apenas uma passageira reacção das pessoas, leva deste lado, no mínimo, a uma questão de vida ou de morte."

Estas últimas palavras fazem-me recordar um coro de Smetana (escrito em 1864) com os seguintes versos: "Regozija-te, regozija-te, oh corvo voraz, estão a preparar-te uma guloseima: com um traidor à pátria tu te vais regalar..." Como é que um disparate sanguinário como este pôde ter sido proferido por um tão grande músico como Smetana? Ter-se-ia tratado de um erro próprio de um jovem? Não, isso não serve de desculpa, porque ele já tinha nessa altura quarenta anos. Além do mais, nessa época, o que é que isso queria dizer, ser "traidor à pátria"? Alistar-se nos comandos que assassinam os seus compatriotas? Nada disso - era considerado traidor qualquer checo que tivesse preferido trocar Praga por Viena e que aí se entregasse, pacificamente, a uma vida alemã típica. Como afirmou Kafka, o que noutras paragens "provoca apenas uma passageira reacção das pessoas, leva deste lado, no mínimo, a uma questão de vida ou de morte."

A possessividade da nação em relação aos seus artistas manifesta-se como um terrorismo do pequeno contexto, o qual subjuga todo e qualquer sentido de uma obra ao papel que esta desempenha no seu próprio país. Abro a velha sebenta policopiada dos cursos de composição musical de Vincent d'Indy na Schola Cantorum de Paris, onde, pelo início do século XX, toda uma geração de músicos franceses se formou. Há nela parágrafos inteiros sobre Smetana e Dvorak, nomeadamente acerca dos dois quartetos para cordas de Smetana. O que é que nela é ensinado? Uma única afirmação, várias vezes repetida, sob variadas formas: esta música "de estilo popular" é inspirada "em canções e danças nacionais". E mais nada? Mais nada. Uma vulgaridade e uma interpretação errónea. Vulgaridade, porque vestígios de canções populares encontram-se por todo o lado, em Haydn, em Chopin, em Lizt, em Brahms; interpretação errónea, porque precisamente esses dois quartetos de Smetana constituem uma confissão musical que não podia ser mais íntima, escrita sob o choque de uma tragédia: Smetana tinha acabado de perder o ouvido; os seus quartetos (esplêndidos!), são, como ele declarou, "o turbilhão da música na mente de um homem que ficou surdo". Como é que Vincent d’Andy pôde enganar-se dessa maneira? O mais provável é que, não conhecendo aquela música, se tivesse limitado a repetir aquilo que tinha ouvido. A sua opinião ia de encontro à ideia que a sociedade checa da época fazia desses dois compositores; para poder explorar politicamente a sua glória (para poder mostrar o seu orgulho "face ao mundo hostil que o rodeia"), ela tinha reunido fragmentos do folclore encontrados na sua música e tinha, com eles, cosido uma bandeira nacional que içava por cima da sua obra. O mundo limitava-se a aceitar educadamente (ou maliciosamente) a interpretação que lhe era oferecida.

 

O provincianismo dos grandes

E o provincianismo dos grandes? A definição permanece invariável: é a incapacidade (ou a recusa) em encarar a sua própria cultura no grande contexto. Há alguns anos atrás, antes do final do século passado, um jornal parisiense procedeu a um inquérito junto de trinta personalidades pertencentes a uma espécie de establishment intelectual da época, constituído por jornalistas, historiadores, sociólogos, editores e alguns escritores. Era pedido que, cada um deles, citasse, por ordem de importância, os dez livros mais notáveis de toda a história de França. De seguida, dessas trinta listas de dez livros, foi extraído um palmarés de cem livros. Mesmo que a maneira como foi feita a pergunta ("quais são os livros que celebraram a França?") pudesse dar azo a várias interpretações, o resultado fornece, apesar disso, uma ideia bastante precisa acerca do que uma elite francesa hoje em dia considera como sendo o mais importante na literatura do seu país.

Desta espécie de competição, Os Miseráveis, de Victor Hugo, saiu vencedor. Um escritor estrangeiro poderá ficar surpreendido. Não tendo nunca considerado este livro importante para si ou para a história da literatura, ele compreenderá imediatamente que a literatura francesa que ele adora não é a mesma que é adorada em França. Em undécimo lugar, as Mémoires de Guerre de De Gaulle. Reconhecer o livro de um estadista, de um militar, um tal valor, seria uma coisa que dificilmente poderia acontecer fora de França. No entanto, não é isso que é desconcertante, mas sim o facto de as maiores obras-primas só aparecerem depois! Rabe-lais só é citado em décimo quarto lugar! Rabelais depois de De Gaulle! A este propósito, li um texto de um eminente universitário francês onde ele declara que falta à literatura do seu país um fundador, como Dante o foi para os italianos, Shakespeare para os ingleses, etc. Notemos que Rabelais é desprovido, aos olhos dos seus compatriotas, da aura do fundador! No entanto, aos olhos de quase todos os grandes romancistas do nosso tempo, ele é, ao lado de Cervantes, o fundador de toda uma arte, a arte do romance.

E o romance dos séculos XVIII e XIX, essa autêntica glória da França? O Vermelho e o Negro, em vigésimo segundo lugar; Madame Bovary, em vigésimo quinto; Germinal, em trigésimo segundo; A Comédia Humana, somente em trigésimo quarto (será possível? A Comédia Humana, sem a qual a literatura europeia seria inconcebível!); As Ligações Perigosas, em quinquagésimo; os pobres Bouvard e Pécuchet, como se de dois cábulas estafados se tratasse, remetidos para o último lugar. E há obras-primas romanescas que nem sequer se encontram entre os cem livros eleitos: A Cartuxa de Parma; A Educação Sentimental; Tiago o Fatalista (de facto, é apenas no grande contexto da Weltliteratur que pode ser apreciada a incomparável novidade deste romance).

E o século XX? Em Busca do Tempo Perdido, em sétimo lugar. O Estrangeiro, de Camus, em vigésimo segundo. E a seguir a esses? Muito pouco. Muito pouco daquilo a que se chama literatura moderna e absolutamente nada da poesia moderna. Como se a imensa influência de França sobre a arte moderna jamais tivesse existido! Como se, por exemplo, Apollinaire (ausente deste palmarés!) não tivesse inspirado toda uma época da poesia europeia!

E há factos mais espantosos ainda: a ausência de Beckett e de Ionesco. Quantos dramaturgos do século passado tiveram a sua força, o seu esplendor? Um? Dois? Não mais. Uma recordação: a emancipação da vida cultural na Checoslováquia comunista ficou ligada às pequenas companhias de teatro nascidas no início dos anos sessenta. Foi aí que eu assisti pela primeira vez a uma representação de Ionesco, a qual foi inesquecível - a explosão de uma imaginação, a irrupção de um espírito irreverente. Já o afirmei muitas vezes: a Primavera de Praga começou oito anos antes de 1968, com as peças de Ionesco levadas à cena no pequeno teatro "Na Balaustrada".

Poder-me-iam objectar que o palmarés que estive a citar testemunha, mais do que um provincianismo, uma recente orientação intelectual que pretende que os critérios estéticos tenham cada vez menos peso: aqueles que votaram em Os Miseráveis não estariam a pensar na importância desse livro para a história do romance, mas sim no grande eco social que teve em França. É um facto, mas isso não faz mais senão demonstrar que a indiferença relativamente ao valor estético impele toda a cultura para o provincianismo. A França não é apenas o país onde vivem os franceses, é também o país para o qual os outros olham e no qual se inspiram. E é segundo os valores (estéticos, filosóficos) que um estrangeiro aprecia os livros nascidos fora do seu país de origem. Mais uma vez, confirma-se a regra: esses valores são pouco perceptíveis do ponto de vista do pequeno contexto, mesmo que o pequeno contexto se sinta orgulhoso de uma grande nação.

 

O homem de Leste

Nos anos setenta troquei o meu país por França, onde, espantado, descobri que me tinha tornado "um exilado da Europa de Leste". Com efeito, para os franceses, o meu país fazia parte do Oriente europeu. Tive que me apressar a explicar por todo o lado qual o verdadeiro escândalo da nossa situação: privados de soberania nacional, encontrávamo-nos anexados não só por um outro país como por um outro mundo, o mundo do Leste europeu, que, enraizado no antigo passado de Bizâncio, possui a sua própria problemática histórica, o seu próprio aspecto arquitectural, a sua própria religião (ortodoxa), o seu alfabeto (o cirílico, derivado da escrita grega) e, também, o seu próprio comunismo (o que é que teria sido o comunismo centro-europeu sem a dominação russa, ninguém o sabe nem nunca saberá, mas, em qualquer dos casos, nunca se teria assemelhado àquele no qual vivemos).

Pouco a pouco fui-me apercebendo de que eu vinha de um "far away country of which we know little". As pessoas que me apoiavam davam uma grande importância à política, mas tinham um conhecimento deplorável da geografia: elas olhavam para nós como "comunisados" e não como "anexados". Para além do mais, não era verdade que os checos tinham pertencido desde sempre ao mesmo "mundo eslavo" que os russos? Eu tentava explicar-lhes que, se existe uma unidade linguística entre as nações eslavas, não existe nenhuma cultura eslava, nenhum mundo eslavo: a história dos checos, da mesma forma que a dos polacos, dos eslovacos, dos croatas ou dos eslovenos (e, claro está, dos húngaros que não são, de todo, eslavos), é puramente ocidental: o Gótico; o Renascimento; o Barroco; ligação estreita ao mundo germânico; luta do catolicismo contra a Reforma. Nada disso tinha a ver com a Rússia que se encontrava bem lá ao longe, como se fosse um outro mundo. Só os polacos viviam com ela numa vizinhança directa, mas que se assemelhava a um combate de morte.

Pura perda de tempo: a ideia de um "mundo eslavo" continua a ser um lugar comum, indesenraizável, da historiografia mundial. Abro a História Universal na prestigiada edição da Plêiade e, no capítulo O mundo eslavo, Jan Hus, o ilustre teólogo checo, irremediavelmente afastado do inglês Wyclif (do qual era discípulo), bem como do alemão Lutero (que vê nele o seu precursor e mestre), é obrigado a suportar, depois da sua morte na fogueira, em Constança, uma sinistra imortalidade na companhia de Ivan o Terrível, com quem nunca sentiu vontade de trocar a mais pequena das conversas.

De nada valeu o argumento da experiência pessoal: por volta do final dos anos setenta, recebi o manuscrito do prefácio escrito para um dos meus romances por um eminente eslavista que me colocava em perpétua comparação (lisonjeira, claro está - na época ninguém me queria mal) com Dostoievski, Gogol, Bounine, Pasternak, Mandelstam e com os dissidentes russos. Aterrorizado, impedi a sua publicação. Não que eu sentisse antipatia por esses ilustres russos; pelo contrário, eu tinha admiração por todos eles, mas, na sua companhia, eu tornava-me noutro. Continuo a lembrar-me da estranha angústia que esse texto me causou: aquele afastamento de um contexto que não era o meu, vivia-o como se tratasse de uma deportação.

 

A Europa Central

Entre o grande contexto mundial e o pequeno contexto nacional é possível imaginar um degrau ao qual chamaremos contexto médio. Entre a Suécia e o mundo, esse degrau é a Escandinávia. Para a Colômbia, é a América Latina. E para a Hungria e para a Polónia? Após ter saído da minha pátria, tentei formular a resposta para essa pergunta e o título de um dos meus textos de então resume-a: Um Ocidente raptado ou a tragédia da Europa Central.

A Europa Central. Mas, o que é isso? O conjunto das pequenas nações situadas entre duas potências, a Rússia e a Alemanha. A orla oriental do Ocidente. Está bem, mas de que nações se trata? Os três países bálticos fazem parte dela? E a Roménia, puxada pela igreja ortodoxa para leste e pela sua língua romana para o ocidente? E a Áustria, que durante muito tempo representou o centro político desse conjunto? Os escritores austríacos são estudados exclusivamente no contexto alemão e não gostariam lá muito (eu, no lugar deles, também não) de se verem atirados para essa barafunda multilinguística que é a Europa Central. Será que todas essas nações alguma vez manifestaram uma vontade clara e definitiva de criarem um conjunto comum? Absolutamente, não. Durante alguns séculos, a maior parte delas pertenceu a um grande estado, o Império dos Habsburgos, do qual, aliás, finalmente, elas só queriam era ver-se livres.

Todas estas observações tornam relativo o alcance da noção de Europa Central e demonstram o seu carácter vago e aproximativo, mas, ao mesmo tempo, acabam por conseguir clarificá-lo. Será verdade que as fronteiras da Europa Central são impossíveis de ser traçadas de uma forma duradoura e com exactidão? É claro! Essas nações nunca foram donas nem do seu destino nem das suas fronteiras. Elas raramente foram sujeitos mas quase sempre objectos da História. A sua unidade era não-inten-cional. Elas estavam próximas umas das outras não por sua livre vontade, nem por simpatia, nem por proximidade linguística, mas sim por razões de experiências semelhantes e devido a situações históricas comuns que as aglutinaram, ao longo de diversas épocas, em configurações diferentes e entre fronteiras móveis e jamais definitivas.

A Europa Central não é redutível à "Mittel-Europa" (eu nunca utilizo este termo), como tanto gostam de lhe chamar, até mesmo nas suas línguas não-germânicas, todos aqueles que a conhecem só a partir das janelas vienesas; ela é polícêntrica e manifesta-se com uma luz diterente vista a partir de Varsóvia, Budapeste ou Zagrebe. Mas, seja qual for a perspectiva a partir da qual seja analisada, transparece sempre uma História comum; a partir da janela checa, encontro nela, em meados do século XVI, a primeira universidade centro-europeia em Praga; encontro nela, no século XV, a revolução hussita a anunciar a Reforma; encontro nela, no século XVI, o Império dos Habsburgos a apoderar-se progressivamente da Boémia, da Hungria e da Áustria; encontro nela as guerras que, durante dois séculos, acabarão por defender o Ocidente contra as invasões turcas; encontro nela a Contra-Reforma com a eclosão da arte barroca, a qual imprimirá uma unidade arquitectural a todo esse vasto território, até aos países bálticos.

O século XIX viu explodir o patriotismo de todos esses povos que se recusavam, a deixar-se assimilar, quer dizer, a germanisar-se. Até mesmo os austríacos, apesar da sua posição dominante no Império, não puderam escapar à escolha entre uma identidade austríaca e uma dependência de uma grande entidade alemã na qual poderiam acabar por vir a ser dissolvidos. E como esquecer o sionismo, também ele nascido na Europa Central da mesma recusa em se deixar assimilar, da mesma vontade sentida pelos judeus de viverem enquanto nação e possuírem a sua língua própria! Um dos problemas fundamentais da Europa, o problema das pequenas nações, nunca se manifestou em mais lado nenhum de uma maneira assim tão reveladora, tão concentrada e tão exemplar.

No século XX, após a guerra de 1914, muitos estados independentes surgiram a partir das ruínas do Império dos Habsburgos e todos eles, à excepção da Áustria, acabaram por se encontrar, trinta anos mais tarde, sob o domínio da Rússia: eis uma situação inédita em toda a história centro-europeia! Seguiu-se-lhe um longo período de revoltas anti-soviéticas, na Polónia, na Hungria ensanguentada, depois na Checoslováquia e, mais uma vez, durante muito tempo e de uma forma vigorosa, na Polónia; não consigo encontrar nada de mais admirável na Europa da segunda metade do século XX do que este fio de ouro constituído pelas revoltas que durante quarenta anos minaram o Império de Leste, o tornaram ingovernável e acabaram por fazer dobrar a finados pelo seu reinado.

 

Os caminhos opostos da revolta modernista

Não creio que se venha a ensinar nas universidades a História da Europa Central como uma disciplina autónoma; no dormitório do Além, Jan Hus respirará sempre as mesmas exalações eslavas de Ivan o Terrível. Eu próprio, de resto, ter-me-ia alguma vez servido dessa noção, e com uma tal insistência, se não tivesse sido sacudido pelo drama político do meu país natal? É evidente que não. Há palavras adormecidas por entre as brumas, que, no momento exacto, acorrem a ajudar-nos. Só pela sua definição, o conceito de Europa desmascarou o embuste de Yalta, esse regateio levado a cabo pelos três vencedores da guerra e que acabou por deslocar a fronteira milenar entre o Leste e o Ocidente europeus de várias centenas de quilómetros para oeste.

A noção de Europa Central veio-me à ideia mais uma vez, e por razões que nada tinham a ver com a política; isso ocorreu quando comecei a ficar surpreendido com o facto de as palavras "romance", "arte moderna" e "romance moderno" não significarem para mim o mesmo que significavam para os meus amigos franceses. Não se tratava de um desacordo; era, muito modestamente, a constatação de uma diferença entre as duas tradições que nos tinham formado. Num breve panorama histórico, as nossas duas culturas surgiram perante mim como duas antíteses quase simétricas. Em França: o classicismo, o racionalismo, o espírito libertino e, depois, no século XIX, a época dos grandes romances. Na Europa Central: o domínio de uma arte barroca particularmente arrebatada e, depois, no século XIX, o idilismo moralisador do Biedermeier, a grande poesia romântica e pouquíssimos grandes romances. A inegável força da Europa Central residia na sua música, a qual, de Haydn a Schonberg e de Liszt a Bartok, abarcou, sozinha, durante dois séculos, todas as tendências essenciais da música europeia; a Europa Central vergou-se sob a glória da sua música.

Em que é que consistiu a "arte moderna", essa fascinante tempestade do primeiro terço do século XX? Uma revolta radical contra a estética do passado; isso é evidente, claro, só que os passados não tinham sido os mesmos. Ao ser anti-racionalista, anticlassicista, anti-realista e antinaturalista, a arte moderna em França prolongou a grande rebelião lírica de Baudelaire e de Rimbaud. Ela encontrou a sua expressão privilegiada na pintura e, antes de mais, na poesia, que foi a sua arte de eleição. O romance, pelo contrário, foi anatematizado (nomeadamente pelos surrealistas), considerado como ultrapassado e definitivamente encerrado na sua forma convencional. Na Europa Central a situação foi diferente - a oposição à tradição arrebatada, romântica, sentimental e musical, guiou o modernismo de alguns génios, os mais originais deles, para aquela arte que constitui a esfera privilegiada Da análise, da lucidez e da ironia: o romance.

 

A minha grande plêiade

Em O Homem Sem Qualidades (1930-1941), de Robert Musil, Clarisse e Walter, "desenfreados como duas locomotivas avançando, lado a lado, a todo o vapor", encontravam-se a tocar piano a quatro mãos. "Sentados nos pequenos assentos, não se sentiam ambos nem irritados, nem apaixonados, nem tristes com nada, nem, nenhum deles, individualmente, com qualquer outra coisa"... e apenas "a autoridade da música os unia [...] Sentia-se ali uma fusão semelhante àquela que se gera nos grandes momentos de pânico, durante os quais centenas de pessoas que no instante imediatamente anterior diferiam completamente entre si, passam a executar os mesmos movimentos, a lançar os mesmos gritos absurdos e a abrir uns olhos esgazeados e uma boca enorme..." Eles mantinham "aqueles ardores tumultuosos, aqueles movimentos emocionais próprios do ser interior, ou seja, aquela agitação nebulosa própria dos subsolos corporais da alma, como aquela linguagem do eterno através da qual os homens acabam por conseguir estar todos unidos".

Este olhar irónico não visa unicamente a música - ele vai mais fundo, até à essência lírica da música, até àquela espécie de feitiço que tanto é capaz de alimentar as festas como os massacres e transforma os indivíduos numa manada extasiada; com essa irritação anti-lírica, Musil faz-me lembrar Franz Kafka, o qual, nos seus romances, tem horror a qualquer gesticulação emocional (o que o distingue radicalmente dos expressionistas alemães) e que escreveu América, como ele próprio afirma, em oposição ao "estilo transbordante de sentimentos"; pelo que Kafka me faz lembrar Hermann Broch, alérgico ao "espírito da ópera", particularmente à de Wagner (daquele Wagner tão apreciado por Baudelaire e por Proust), que ele considera como o próprio modelo do kitsch (um kitsch genial", como ele costumava afirmar); pelo que Broch me faz lembrar Witold Gombrowicz, o qual, no seu famoso trabalho Contra os Poetas, tanto reage ao indesenraizável romantismo da literatura polaca como à poesia enquanto deusa intocável do modernismo ocidental.

Kafka, Musil, Broch, Gombrowicz... Será que eles formavam um grupo, uma escola, um movimento? Não; eles agiam individualmente. Chamei-lhes muitas vezes "a plêiade dos grandes romancistas da Europa Central" e, com efeito, tal como os astros de uma plêiade, cada um deles estava rodeado do vazio, cada um deles estava longe dos outros. Eu achava ainda mais espantoso que as suas obras exprimissem uma orientação estética semelhante: todos eles eram poetas do romance, quer dizer: apaixonados pela forma e pela sua originalidade; preocupados com a intensidade de cada palavra, de cada frase; seduzidos pela imaginação que tenta ultrapassar as fronteiras do "realismo"; mas, ao mesmo tempo, eram insensíveis a qualquer sedução do tipo lírico: hostis à transformação do romance em confissão pessoal; alérgicos a qualquer ornamentalização da prosa; inteiramente concentrados no mundo real. Cada um deles concebia o romance como uma grande poesia antilírica.

 

Kitsch e vulgaridade

A palavra kitsch nasceu em Munique em meados do século XIX e designa aquele lixo pegajoso que sobrou do grande século romântico. Mas talvez tivesse sido Hermann Broch, que via a relação do romantismo e do kitsch em proporções quantitativamente inversas, quem esteve mais perto da verdade: segundo ele, o estilo dominante do século XIX (na Alemanha e na Europa (central) era o kitsch, sobre o qual sobressaíam, como fenómenos excepcionais, algumas grandes obras românticas. Aqueles que conheceram a tirania secular do kitsch (a tirania dos tenores de ópera) mostram uma irritação muito particular contra o véu cor-de-rosa lançado por cima do real, contra a exibição impudica do coração constantemente emocionado, contra - o pão sobre o qual teria sido lançado perfume - (Musil); desde há muito que o kitsch se transformou num conceito muito preciso na Europa Central, onde ele representa o mal estético supremo.

Eu não ponho em dúvida que os modernistas franceses tenham cedido à tentação do sentimentalismo e da pompa, mas, por falta de uma longa experiência do kitsch, a aversão hipersensível a ele não teve em França oportunidade para nascer e para se desenvolver. Foi somente em 1960, portanto cem anos depois do seu aparecimento na Alemanha, que essa palavra foi utilizada em França pela primeira vez; em 1966. o tradutor francês dos ensaiosdoBroch e, mais tarde, em 1974. o dos textos de ; Hannah Arenclt sentiram-se obrigados a traduzir a palavra kitsch por "arte  de pacotilha", tornando assim incompreensível a reflexão pretendida pelos seus autores.

Ao reler as conversas mundanas de salão em Lucien Leuwen, de Stendhal, detenho-me sobre as palavras-chave que definem as diferentes atitudes dos participantes: presunção; vulgaridade; graça ("este ácido de vitríolo que tudo corrói"); ridículo; delicadeza ("infinita amabilidade e sentimentos nulos"); conformismo bem-pensante. E pergunto-me: qual é a palavra que consegue exprimir o máximo de reprovação estética como aquela que a noção de kitsch exprime para mim? Finalmente, encontro-a - é a palavra "vulgar", "vulgaridade". "O senhor Du Poirier era uma pessoa de uma extrema vulgaridade e que parecia orgulhar-se das suas maneiras desprezíveis e ousadas; é dessa forma que o porco se espoja na imundície com uma espécie de voluptuosidade insolente para com o espectador..."

O desprezo por tudo o que fosse vulgar coabitava nos salões de ou-trora, tal como acontece nos de hoje. Recordemo-nos da etimologia: vulgar vem de vulgus, povo; é vulgar tudo o que é do agrado do povo. Um democrata, um homem de esquerda ou um combatente pelos direitos do homem são obrigados a amar o povo; mas são, também, livres de o desprezar, altivamente, em tudo o que considerarem vulgar.

A seguir à enérgica condenação política lançada contra ele por Sartre, após a atribuição do Prémio Nobel que lhe valeu ciúme e ódio, Albert Camus começou a sentir-se pouco à vontade entre os intelectuais parisienses. Explicaram-me que aquilo que, como se o resto não bastasse, também o prejudicara, eram as marcas de vulgaridade que estavam ligadas à sua pessoa: as origens humildes, a mãe iletrada; a condição de pied-noir simpatizando com outros pieds-noirs, gente com "feições tão vulgares" (tão "reles"); o diletantismo filosófico dos seus ensaios; e já nem digo mais. Ao ler os artigos em que esse linchamento se produziu, detenho-me sobre as seguintes palavras: Camus é um "aldeão aperaltado, [...] um homem do povo que, de luvas na mão e sem ter tirado o chapéu da cabeça, entra pela primeira vez num salão. Os outros convidados desviam-se dele, pois já sabem de quem se trata." A metáfora é eloquente: Camus não só não sabia o que era preciso estimar (dizia mal do progresso e simpatizava com os franceses da Argélia), como, mais grave ainda, não se sabia comportar nos salões (nos sentidos próprio e figurado); Camus era vulgar.

Não existe uma reprovação estética mais severa do que em França. Reprovação essa nalguns casos justificada, mas que atingiu até o maior: Rabelais. E Flaubert. "A característica principal de A Educação Sentimental", escreveu Barbey d'Aurevilly, "é, antes de qualquer outra, a vulgaridade. Na nossa opinião, já existem no mundo suficientes seres vulgares, espíritos vulgares e coisas vulgares, para que continue a aumentar o número imergente dessas enjoativas vulgaridades."

Recordo-me das minhas primeiras semanas de expatriação. Tendo já sido unanimemente condenado o estalinismo, toda a gente estava em condições de compreender a verdadeira tragédia que representava para o meu país a ocupação russa e olhavam para mim rodeado da aura de uma considerável tristeza. Lembro-me de estar sentado num bar com um intelectual parisiense que me tinha apoiado e muito ajudado. Era o nosso primeiro encontro em Paris e, na atmosfera por cima de nós, eu via pairar nobres palavras: perseguição, gulag, liberdade, exílio, coragem, resistência, totalitarismo, terror policial. Pretendendo afastar o kitsch desses imponentes espectros, comecei a explicar que o facto de sermos seguidos e de termos microfones da polícia nos nossos apartamentos, nos tinha ensinado a deliciosa arte da mistificação. Eu e um dos meus companheiros tínhamos trocado de apartamentos e, inclusive, os nossos nomes; ele, um grande sedutor, soberanamente indiferente aos micros, acabou por levar a cabo os seus maiores feitos no meu estúdio. Considerando que o momento mais difícil de qualquer história de amor é a separação, a minha expatriação veio mesmo a calhar para ele. Um belo dia, as meninas e as senhoras encontraram o apartamento fechado, sem o meu nome, enquanto que eu me encontrava a enviar de França, com a minha assinatura, curtas cartas de despedida a sete mulheres que eu nunca tinha visto.

Eu pretendia com isso divertir o homem que me era querido, mas o seu rosto tornou-se sombrio até que me disse, e foi como o cutelo de uma guilhotina: "Não acho graça nenhuma a isso."

Continuámos amigos sem nunca termos ficado a gostar um do outro. A recordação do nosso primeiro encontro serviu-me de chave para conseguir compreender o nosso longo e inconfessado desacordo: o que nos separava era o choque entre duas atitudes estéticas - o homem alérgico ao kitsch a esbarrar contra o homem alérgico à vulgaridade.

 

O modernismo antimoderno

"É necessário ser-se completamente moderno", escreveu Arthur Rimbaud. Uns sessenta anos mais tarde, Gombrowicz não estava muito certo de que isso fosse verdadeiramente necessário. Em Ferdydurke (editado na Polónia em 1938), a família Lejeune é dominada pela filha, uma "liceal moderna". É doida por telefones; ignora os autores clássicos; na presença do cavalheiro que se encontra de visita a casa, "limita-se a olhar para ele e, agarrando com os dentes uma chave de fendas que tinha na mão direita, cumprimenta-o com a mão esquerda com a maior das desfaçatezes".

A mãe também é moderna; é membro do "comité para a protecção dos recém-nascidos"; é militante contra a pena de morte e pela liberdade dos costumes; "ostensivamente, com um passo desenvolto, dirige-se aos lavabos", saindo de lá "mais arrogante do que tinha entrado"; à medida que vai envelhecendo, a modernidade torna-se para ela indispensável enquanto única "substituta da juventude".

E o pai? Também ele é moderno; não pensa nada, mas faz por agradar em tudo à filha e à mulher.

Gombrowicz reflectiu em Ferdydurke a principal viragem que se produziu durante o século XX: até essa altura, a humanidade estava dividida em duas partes, os que defendiam o status quo e os que o queriam mudar; ora, a aceleração da História teve as suas consequências: ao passo que, antigamente, os homens viviam no mesmo cenário de uma sociedade que se ia transformando muito lentamente, chegara entretanto o momento em que, de repente, eles começaram a sentir a História movimentar-se sob os seus próprios pés, como se fosse um tapete rolante - o status quo encontrava-se em movimento! De imediato, estar de acordo com o status quo era a mesma coisa do que estar de acordo com a História que se movimenta! Resumidamente, passou a poder ser-se ao mesmo tempo progressista e conservador, conformista e revoltado!

Tendo sido apelidado de reaccionário por Sartre e os seus, Camus encontrou a célebre resposta para aqueles que tinham "colocado a poltrona na direcção da História"; Camus estava certo, somente não sabia que essa preciosa poltrona estava montada sobre rodas e que, desde já há uns tempos a essa parte, toda a gente empurrava para a frente os liceais modernos, as suas mães e os seus pais, da mesma maneira que todos os que se batiam contra a pena de morte, todos os membros dos comités para a defesa dos recém-nascidos e, claro está, todos os políticos que, ao empurrarem a poltrona, viravam as suas faces risonhas na direcção do povo que corria atrás deles e que, por sua vez, também ia rindo, sabendo perfeitamente que só aqueles que se regozijam por serem modernos é que são autenticamente modernos.

Foi então que alguns dos herdeiros de Rimbaud compreenderam esta coisa espantosa: hoje em dia, o único modernismo digno deste nome é o modernismo antimoderno.

 

Chegar à alma das coisas

"A censura que eu faço ao seu livro, é que, nele, o bem está demasiado ausente', comenta Sainte-Beuve na crítica a Madame Bovary. Pergunta ele: por que é que não existe neste romance "um único personagem que seja do género de consolar, de repousar o leitor por meio de um bom espectáculo'!". De seguida, ele mostra ao jovem autor o caminho a seguir: “Conheci nas profundezas de uma região do centro da França uma mulher ainda jovem, de inteligência superior, escaldante de coração, melancólica: sendo casada, mas não sendo mãe, não tendo qualquer filho para criar, para amar, o que é que resolveu fazer para ocupar a excessiva abundância do seu espírito e da sua alma? [...] Decidiu ser uma benfeitora activa [...]. Ensinava a ler e explicava a cultura moral às crianças dos aldeões, muitas das vezes espalhados por grandes distâncias. [...] Existem almas como essas na vida da província e do campo: por que não mostrá-las? Isso eleva, isso consola e a visão da humanidade fica mais completa com elas" (destaquei as palavras-chave).

É tentador para mim escarnecer acerca desta lição de moral que irresistivelmente me faz lembrar as exortações educativas do "realismo socialista" de não há muito tempo. Mas, recordações à parte, será assim tão descabido, afinal de contas, que o mais prestigiado crítico francês daquela época tenha exortado um jovem autor a "elevar" e a "consolar" através de "um bom espectáculo" os seus leitores, os quais merecem, como todos nós, um pouco de simpatia e de encorajamento? De resto, George Sand, quase vinte anos mais tarde, numa carta dirigida a Flaubert, escrevia mais ou menos a mesma coisa: por que é que esconde o "sentimento" que nutre pelos seus personagens?; por que é que não mostra naquele romance a sua "doutrina pessoal"?; por que é que leva aos leitores a "desolação", enquanto que ela, Sand, prefere "consolá-los"? De uma maneira cordial, ela admoesta-o, - "a arte não é só crítica e sátira"

A isso, Flaubert responde-lhe que nunca quis fazer nem críticas nem sátiras. Ele não escreve os seus romances com o intuito de transmitir as suas opiniões aos leitores. Há uma outra coisa que ele toma muito a peito: "Sempre me esforcei por conseguir chegar à alma das coisas..." A sua resposta demonstra-o claramente: a verdadeira causa desse desacordo não é o carácter de Flaubert (é bom ou mau. É frio ou compadecido?), mas sim a questão acerca do que é o romance.

Durante séculos, a pintura e a música estiveram ao serviço da Igreja, o que não as privou de modo algum da sua beleza. Mas colocar um romance ao serviço de uma autoridade, por muito nobre que seja, seria impossível para um verdadeiro romancista. Que absurdo seria querer glorificar através de um romance um Estado, ou até um exército! E, não obstante isso. Vladimir Holan, fascinado por aqueles que em 1945 tinham libertado o seu país, escreveu, em Soldados Vermelhos, belos e inesquecíveis poemas. Eu consigo imaginar um magnífico quadro pintado por Frans Hals que mostrasse uma "benfeitora activa" de uma aldeia, rodeada de crianças às quais ensinava "a cultura moral", mas só um romancista imensamente ridículo poderia fazer daquela boa mulher uma heroína com o intuito de "elevar", através do seu exemplo, o espírito dos seus leitores. Porque é preciso não esquecer: as artes não são todas iguais e é por portas diferentes que, cada uma delas, acede ao mundo. Entre essas diversas portas, uma delas está reservada, em exclusivo, ao romance.

Eu disse "em exclusivo", porque o romance não é, para mim, um "género literário", um ramo entre os ramos de uma só árvore. Não se conseguirá compreender nada do romance se se lhe contestar a sua própria Musa, se não se conseguir ver nele uma arte suigeneris, uma arte autónoma. O romance possui a sua própria génese (localizada num tempo que só a ele pertence); possui a sua própria história ritmada por períodos que lhe são exclusivos (a tão importante passagem do verso á prosa na evolução da literatura dramática não tem qualquer equivalente na evolução do romance; as histórias dessas duas artes não são sincrónicas); possui a sua própria moral (Hermann Broch afirmou-o: a única moral do romance é o conhecimento; um romance que não seja capaz de descobrir nenhuma parcela até aí desconhecida da existência é imoral; assim: "chegar à alma das coisas" e dar um bom exemplo são duas intenções diferentes e inconciliáveis); possui a sua relação específica com o "eu" do autor (para conseguir ouvir a voz secreta, dificilmente audível, da "alma das coisas", o romancista, contrariamente ao poeta e ao músico, deve ser capaz de mandar calar os brados da sua própria alma); possui a sua própria duração de criação (a escrita de um romance ocupa toda uma época na vida do autor, o qual, no fim do trabalho, já não será o mesmo que era no início; abre-se ao mundo para além da sua língua nacional (desde que, na poesia, a Europa acrescentou a rima ao ritmo, deixou de se poder transplantar a beleza de um verso para qualquer outra língua; pelo contrário, a tradução fiel de uma obra em prosa é difícil, mas possível; no mundo dos romances não existem fronteiras entre Estados; os grandes romancistas que se aproveitaram de Rabelais, leram-no, quase todos, em traduções).

 

O erro indesenraizável

Foi logo a seguir á Segunda Guerra Mundial que um círculo de ilustres intelectuais franceses tornou célebre a palavra "existencialismo", baptizando assim uma nova orientação não somente da filosofia como também do teatro e do romance. Teórico das suas próprias peças de teatro, Sartre. através do seu grande sentido das fórmulas, opôs ao "teatro de caracteres" o "teatro de situações". O nosso objectivo, explicou ele em 1946, é o de "explorar todas as situações que sejam as mais usuais na experiência humana", as situações que explicam os principais aspectos da condição humana.

Quem é que algum dia não pôs a si próprio a questão: e se eu tivesse nascido noutro lado, noutro país e noutro tempo, como teria sido a minha vida? Esta questão contém em si mesma uma das mais correntes ilusões humanas, a ilusão que nos leva a considerar a situação da nossa vida como um mero cenário, uma circunstância contingente e permutável através da qual o nosso "eu" passa, independente e constante. Ah, é tão bom imaginar essas outras vidas, uma dezena de possíveis outras vidas! Mas, basta de devaneios! Todos nós estamos desesperadamente cravados à data e ao local do nosso nascimento. O nosso "eu" é inconcebível fora da situação concreta e única da nossa vida - ele só é compreensível nessa e através dessa situação. Se, numa manhã, dois desconhecidos não tivessem ido buscá-lo, anunciando-lhe que tinha sido acusado, Joseph K. teria sido alguém completamente diferente daquele que nós conhecemos.

A personalidade brilhante de Sartre, o seu duplo estatuto de filósofo e de escritor, corrobora a ideia segundo a qual a orientação existencial do teatro e do romance no século XX seria devida à influência de uma filosofia. Eis, mais uma vez, o erro indesenraizável, o erro dos erros, pensar que a relação entre a filosofia e a literatura se efectua num sentido único e que aos "profissionais da narrativa", visto que são obrigados a ter ideias, só lhes resta ir buscá-las aos "profissionais do pensamento". Ora, a viragem que, de uma maneira discreta, fez desviar a arte do romance da sua fascinação psicológica (do estudo dos caracteres) e a orientou para uma análise existencial (o estudo das situações que esclarecem os principais aspectos da condição humana), deu-se vinte ou trinta anos antes de a moda do existencialismo se ter apoderado da Europa; e essa viragem foi inspirada não pelos filósofos, mas sim pela evolução lógica da arte do próprio romance.

 

Situações

Os três romances de Franz Kafka são três variantes da mesma situação: o homem entra em conflito não com um outro homem, mas com um mundo transformado numa imensa administração. No primeiro romance (escrito em 1912), o homem chama-se Karl Rossmann e o mundo é a América. No segundo (1917), o homem chama-se Joseph K. e o mundo é um enorme tribunal que o está a incriminar. No terceiro (1922), o homem chama-se K. e o mundo é uma aldeia dominada por um castelo.

Se Kafka se afasta da psicologia para se concentrar na análise de uma situação, isso não quer dizer que os seus personagens não sejam psicologicamente convincentes, mas sim que a problemática psicológica passou para um segundo plano: que K. tenha tido uma infância feliz ou triste, que tenha sido o queridinho da mamã ou educado num orfanato, que tenha deixado para trás um grande amor ou não, isso em nada alterará o seu destino nem o seu comportamento. É através desta inversão da problemática, desta forma de questionar a vida humana e desta maneira de conceber a identidade de um indivíduo, que Kafka se distingue não apenas da literatura que o antecedeu, mas também dos seus ilustres contemporâneos Proust e Joyce.

"O romance gnosiológico em vez do romance psicológico", escreveu Broch numa carta onde explica a poética de Os Sonâmbulos (escritos entre 1929 e 1932); cada romance desta trilogia - 1988, Pasenow ou o Romantismo; 1903, Esch ou a Anarquia; 1918, Huguenau ou o Realismo (as datas fazem parte integrante dos títulos) - passa-se quinze anos depois daquele que o precedeu, num outro ambiente e com outro protagonista. Aquilo que faz desses três romances (não se podem editar separadamente!) uma única obra, é uma mesma situação, a situação sobreindividual do processo histórico a que Broch chama a "degradação dos valores", face ao qual cada um dos protagonistas encontra a sua própria atitude: primeiro Pasenow, fiel aos valores que, a olhos vistos, se aprestam a desaparecer; mais tarde Esch, obcecado pela necessidade de valores, mas já sem saber como os reconhecer; por fim Huguenau, que se acomoda perfeitamente a um mundo já destituído de valores.

Sinto-me um bocado constrangido ao agrupar Jaroslav Hasek entre aqueles romancistas que, na minha "história pessoal do romance", considero como sendo os fundadores do modernismo romanesco; até porque Hasek se esteve completamente nas tintas para o facto de o considerarem moderno ou não; ele era um escritor popular numa acepção à qual hoje já não se dá valor, um escritor-vagabundo, desprezando o meio literário e desprezado por ele, autor de um único romance que, desde logo, encontrou um vasto público por todo o mundo. Dito isto, parece-me ainda mais notável o facto de o seu O Valente Soldado Chveik (escrito entre 1920 e 1923) reflectir a mesma tendência estética que os romances de Kafka (os dois escritores viveram durante os mesmos anos na mesma cidade) ou de Broch.

"Para Belgrado!", grita Chveik, que, depois de ter sido convocado pelo comité de recrutamento, se deixa empurrar pelas ruas de Praga numa cadeira de rodas enquanto mantém marcialmente erguidas duas muletas emprestadas, sob o olhar divertido dos habitantes da cidade. Isso passa-se no dia em que o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia, desencadeando assim a Primeira Grande Guerra (aquela que representará para Broch o desmoronamento de todos os valores e o tempo final da sua trilogia). Para poder viver sem perigo neste mundo, Chveik exagera de tal forma a sua adesão ao Exército, à Pátria e ao Imperador que ninguém pode afirmar com toda a certeza se ele é um cretino ou um palhaço. Hasek também não no-lo diz; nunca saberemos em que é que Chveik está a pensar quando lança pela boca fora todas aquelas idiotices conformistas, e é exactamente pelo facto de não o sabermos que ele nos intriga. Nos painéis publicitários das cervejarias de Praga, vemo-lo sempre pequeno e rechonchudo, mas foi o célebre ilustrador do livro que o resolveu imaginar assim, pois Hasek nunca escreveu uma só palavra acerca da aparência física de Chveik. Nem sabemos de que família ele veio. Nunca o vemos com nenhuma mulher. Será que passa bem sem elas? Ou será que as mantém em segredo? Não há respostas para isso. Mas, o que é ainda mais interessante, é que também não há perguntas! Quero com isto dizer: é-nos perfeitamente igual que Chveik goste ou não goste de mulheres!

Eis-nos perante uma viragem estética tão discreta como radical: para que um personagem seja considerado "vivo", "forte" e artisticamente "conseguido", deixou de ser necessário fornecer acerca dele todas as informações possíveis; é inútil fazer acreditar que ele é tão real como você ou eu; para que ele seja forte e inesquecível, basta que preencha todo o espaço da situação que o romancista criou para ele. (Neste novo clima estético, o romancista chega ao ponto de se deliciar ao recordar, de vez em quando, que nada daquilo que ele está a relatar é real, que tudo não passa de uma invenção sua - tal como Fellini, que, no final de E La Nave Va (O Navio), nos deixa ver todos os bastidores e todos os mecanismos do seu teatro de ilusões.)

 

O que só o romance consegue expressar

A acção de O Homem Sem Qualidades passa-se em Viena, mas este nome só é pronunciado no romance, se bem me lembro, umas duas ou três vezes. Tal como foi o caso de Londres, noutra ocasião, com Fielding, também a topografia vienense não é mencionada e, ainda menos, descrita.

E qual será aquela cidade sem nome onde se desenrola aquele tão importante encontro entre Ulrich e a sua irmã Agathe? Vocês nunca a conseguiriam descobrir; a cidade chama-se, em checo, Brno, e em alemão, Brünn; eu consegui reconhecê-la facilmente a partir de alguns detalhes, porque nasci lá; mal acabei de dizer isto, senti-me na obrigação de me censurar por ter agido contra a intenção de Musil. Intenção? Mas, que intenção? Teria ele alguma coisa a esconder? Claro que não. A sua intenção era puramente estética: concentrar-se apenas sobre o essencial; não desviar a atenção do leitor com considerações geográficas inúteis.

Apercebemo-nos frequentemente do sentido do modernismo no esforço feito por cada uma das artes para se conseguirem aproximar o mais possível da sua especificidade, da sua essência. Foi assim que a poesia lírica passou a rejeitar tudo o que fosse retórico, didáctico e decorativo, para conseguir fazer brotar a fonte pura da fantasia poética. A pintura renunciou à sua função documental e mimética, a tudo o que pudesse ser representado através de um outro meio (por exemplo, a fotografia). E o romance? Também ele se recusou a estar ali como ilustração de uma época histórica, como descrição de uma sociedade e como defesa de uma ideologia, colocando-se ao serviço exclusivo "do que só o romance consegue expressar".

Estou a recordar-me da novela de Kenzaburo Oé, Tribu Bêlante (escrita em 1958):donoite, num autocarro cheio de japoneses, entra uma chusma de soldados bêbados, pertencentes a um exército estrangeiro, os quais se põem a aterrorizar um dos passageiros, um estudante. Forçam-no a despir as calças e a mostrar o traseiro. O estudante apercebe-se da risota à sua volta. Mas os soldados não se satisfazem apenas com essa vítima e obrigam metade dos passageiros a despir igualmente as calças. O autocarro pára, os soldados descem e os passageiros semidespidos voltam a vestir as calças. Os restantes passageiros despertam da passividade em que se encontravam e obrigam aqueles que foram humilhados a denunciar à polícia o comportamento dos soldados estrangeiros. Um deles, um professor primário, vai atrás do estudante: desce do autocarro com ele, acompanha-o até casa e quer saber o seu nome para poder tornar pública aquela humilhação e acusar os estrangeiros. Tudo acaba numa explosão de ódio entre eles. Magnífica história de cobardia e de indiscrição sádica querendo fazer-se passar por amor à justiça... Mas eu falo desta novela somente para perguntar: quem serão aqueles soldados estrangeiros? Claro que se trata de americanos que, a seguir à guerra, ocupavam o Japão. Se o autor fala, designadamente, dos passageiros "japoneses", por que é que não indica a nacionalidade dos soldados? Censura política? Efeito de estilo? Não. Imaginem que, ao longo de toda a novela, os passageiros japoneses se tivessem confrontado com soldados americanos! Sob a força dessa única palavra, claramente pronunciada, a novela ter-se-ia reduzido a um texto político, a um libelo contra os ocupantes. Bastou renunciar àquele adjectivo para que o aspecto político se cobrisse de uma leve penumbra e que a luz se focalizasse no principal enigma que interessa ao romance, o enigma existencial.

Porque a História, com os seus movimentos, as suas guerras, as suas revoluções e contra-revoluções, as suas humilhações nacionais, não interessa ao romancista em si mesma, enquanto objecto a descrever, a denunciar e a interpretar - o romancista não é um lacaio dos historiadores; se a História o fascina, é porque ela é como um projector que gira à volta da existência humana, lançando luz sobre ela e sobre as suas inesperadas possibilidades, as quais, nos tempos de paz, quando a História se encontra estagnada, não se manifestam, permanecendo invisíveis e incógnitas.

 

Os romances que pensam

O imperativo que exorta o romancista a "concentrar-se no que é essencial" (naquilo que "só o romance consegue expressar") não dará razão àqueles que recusam as reflexões do autor por serem um elemento estranho à forma do romance? Com efeito, se um romancista recorre a meios que não são propriamente os seus, que são mais do domínio dos sábios ou dos filósofos, não será por acaso isso um sinal da sua incapacidade para ser inteiramente romancista e nada mais senão romancista, um sinal da sua fraqueza artística? Para além disso: será que essas intervenções meditativas não se arriscam a transformar as acções dos personagens numa mera ilustração das teses do autor? E mais ainda: não será que a arte do romance, com o seu sentido da relatividade das verdades humanas, exige que a opinião do autor permaneça escondida e que qualquer reflexão deva ficar reservada unicamente para o leitor?

As respostas de Broch e de Musil não podiam ser mais claras: através de uma grande porta escancarada, eles deixaram que o pensamento entrasse no romance como nunca ninguém antes o tinha feito. O ensaio intitulado A Degradação dos Valores, inserido em Os Sonâmbulos (o qual ocupa dez capítulos dispersos ao longo do terceiro romance da trilogia) é uma sucessão de análises, de meditações e de aforismos acerca da situação espiritual da Europa ao longo de três décadas; é impossível afirmar-se que aquele ensaio não se adequa à forma do romance, porque é ele que ilumina a barreira sobre a qual se quebram os destinos dos três protagonistas e é ele que consegue reunir dessa maneira os três romances num só. Nunca será de mais sublinhar: integrar num romance uma reflexão intelectualmente tão exigente e fazer dela, de uma forma tão bela e musical, uma parte indissociável da sua composição, constitui uma das inovações mais audaciosas que um romancista alguma vez ousou introduzir na época da arte moderna.

Mas ainda há uma coisa mais importante segundo o meu ponto de vista: nesses dois vienenses a reflexão deixou de ser mostrada como um elemento excepcional, uma interrupção; é difícil chamar-lhe "digressão", porque nesses romances que meditam ela está constantemente presente, mesmo quando o romancista narra uma acção ou quando descreve um rosto. Tanto Tolstoi como Joyce fizeram-nos ouvir as frases que iam passando pela mente de Ana Karenina e de Molly Bloom; Musil diz-nos aquilo que ele próprio está a pensar quando olha para Léon Fischel e observa as suas performances nocturnas:

"Os quartos de dormir conjugais, quando estão de luzes apagadas, colocam um homem na situação de um actor que tem que representar diante de uma plateia invisível o proveitoso mas, mesmo assim, já um pouco gasto papel de um herói evocando um leão a rugir. Ora, desde há anos que aquele obscuro auditório de Léon não tinha deixado escapar, diante daquele exercício, o mais pequeno aplauso, nem o menor sinal de desaprovação e poder-se-ia afirmar que existiam ali razões mais que suficientes para abalar o mais firme dos nervos. Na manhã seguinte, ao pequeno-almoço, Clementine estava hirta como um cadáver gelado e Léon com os nervos à flor da pele. A própria Gerda, a filha, apercebia-se sempre daquela situação e passou a imaginar, desde então, a vida conjugal como sendo um horror e um amargo aborrecimento, como se fosse uma briga de gatos na escuridão da noite." É desta forma que Musil vai até à "alma das coisas", quer dizer, até à "alma do coito" entre os esposos Fischel. Através do clarão de uma só metáfora, metáfora que medita, Musil ilumina não só a vida sexual do casal, presente e passada, como a vida futura da sua filha.

Sublinhe-se: a reflexão romanesca, tal como Broch e Musil a introduziram na estética do romance moderno, não tem nada a ver com a de um cientista ou a de um filósofo; eu diria mesmo que ela é intencionalmente a-filosófica, entenda-se antifilosófica, ou seja, ferozmente independente de qualquer sistema de ideias preconcebido; ela não dá pareceres; não proclama verdades, não se interroga, não se espanta, não sonda; a sua forma é das mais díspares: metafórica, irónica, hipotética, hiperbólica, aforística, bizarra, provocadora, fantasista; e, sobretudo: ela nunca se afasta do círculo mágico da vida dos personagens - é precisamente a vida dos personagens que a alimenta e a justifica.

Ulrich encontra-se no gabinete ministerial do conde Leinsdorf no dia em que tem lugar uma grande manifestação. Manifestação? Contra o quê? Esta informação, embora sendo fornecida, é secundária; o que interessa, é o fenómeno da manifestação em si mesmo: o que é que quer dizer manifestar-se na rua, o que significa essa actividade colectiva tão sintomática do século XX? Estupefacto, Ulrich observa os manifestantes pela janela; quando se encontram junto do palácio, os rostos levantam-se, enchem-se de cólera e os homens brandem bastões, mas, "alguns passos mais à frente, ao virar de uma esquina, no local onde a manifestação parecia regressar aos bastidores, a maior parte dos manifestantes começou a tirar as suas caracterizações; teria sido absurdo continuar a mostrar aquele ar ameaçador na ausência de qualquer espectador". À luz desta metáfora, os manifestantes não são homens coléricos; são actores da cólera! A partir do momento em que a representação terminou, eles mostram pressa em "tirar as caracterizações"! Muito tempo antes de os politicólogos terem feito disso o seu tema de predilecção, a "sociedade do espectáculo" já tinha sido radiografada, graças a um romancista (Fielding) e à sua "rápida e sagaz percepção" da essência de uma dada situação.

O Homem Sem Qualidades é uma incomparável enciclopédia existencial do seu século; sempre que me decido a reler esse livro, tenho o hábito de o abrir à sorte, seja lá em que página for, sem me preocupar com aquilo que está antes ou com aquilo que se lhe segue; mesmo que a "story" esteja ali, ela avança lenta e discretamente, sem pretender chamar a totalidade da atenção sobre si; é cada um dos capítulos em si mesmo que constitui uma surpresa, que constitui uma descoberta. A omnipresença do pensamento não retirou absolutamente nada ao romance do seu carácter de romance; ela enriqueceu a sua forma e alargou desmedidamente o campo daquilo que só o romance pode descobrir e expressar.

A fronteira do inverosímil já não é vigiada

Duas grandes estrelas iluminaram o céu por cima do romance do século XX: a do surrealismo, com o seu encantador apelo à fusão do sonho com a realidade, e a do existencialismo. Kafka morreu demasiado cedo para poder conhecer os seus autores e os seus programas. No entanto, e isso é notável, os romances que escreveu anteciparam essas duas tendências estéticas e, o que é duplamente notável, conseguiram ligá-las uma à outra, inserindo-as numa mesma perspectiva.

Quando Balzac, ou Flaubert, ou Proust querem descrever o comportamento de um indivíduo num determinado meio social, qualquer transgressão da verosimilhança torna-se deslocada e esteticamente incoerente; mas, quando o romancista focaliza o seu objectivo sobre uma problemática existencial, a obrigação de criar para o leitor um mundo verosímil já não se impõe como regra ou necessidade. O autor pode permitir-se ser bastante mais descuidado relativamente a esse aparelho de informações, de descrições e de motivações que devem conseguir dar àquilo que ele está a narrar a aparência de realidade. E, em casos extremos, o autor pode mesmo achar vantajoso situar os seus personagens num mundo francamente inverosímil.

Depois de ter sido transposta por Kafka, a fronteira da inverosimilhança deixou de ter polícia e alfândega e passou a estar aberta para sempre. Esse foi um grande momento na história do romance e, para que não stejam enganados acerca do seu sentido, digo-vos desde já que os românticos alemães do século XX não foram os seus precursores. A sua fantástica imaginação tinha uma outra significação - encontrando-se desfiada da vida real, ela andava em busca de uma outra vida; ela não tinha grande coisa a ver com a arte do romance. Kafka não era romântico. Ele não morria de amores por Novalis, Tieck, Arnim ou E.T.A. Hoffmann. Era Breton quem admirava Arnim. não ele. Ainda jovem, com o seu amigo Brod, Kafka leu Flaubert, apaixonadamente, em francês. E estudou-o. Flaubert, o grande observador, é que foi o seu mestre.

Quanto mais se observa de uma forma atenta e obstinada uma realidade, melhor se consegue compreender que ela não corresponde à ideia que toda a gente faz dela; sob aquele minucioso olhar de Kafka, ela revelar-se-á cada vez mais e mais absurda, portanto irracional, portanto inverosímil. Foi esse olhar ávido e longamente apontado sobre o mundo real] que conduziu Kafka, e outros grandes romancistas depois dele, para alei da fronteira do verosímil.

 

Einstein e Karl Rossmann

Piadas, anedotas ou histórias cómicas? Não sei muito bem que palavra utilizar para aquele género de narrativas divertidas e extremamente curtas das quais, outrora, beneficiei muitíssimo, porque Praga era o ponto de convergência delas. Piadas políticas. Anedotas sobre judeus. Anedotas sobre aldeões. E acerca dos médicos. E um curioso género de piadas sobre aqueles professores, no mínimo estouvados, que andavam sempre munidos, não sei porquê, de um guarda-chuva.

Einstein tinha acabado de dar uma aula na universidade de Praga (sim, ele deu ali aulas durante uns tempos) e preparava-se para sair. "Senhor professor, leve o guarda-chuva, olhe que está a chover!" Einstein observa com ar pensativo o seu guarda-chuva num dos cantos da sala e responde ao estudante: "Sabe, meu caro amigo, é que eu esqueço-me muitas vezes do guarda-chuva e é por essa razão que tenho dois. Um, tenho-o em casa e, o outro, guardo-o aqui na universidade. É claro que eu poderia pegar neste agora, dado que, como você muito pertinentemente afirmou, está a chover. Mas, se o fizesse, acabaria por ficar com dois guarda-chuvas em casa e nenhum aqui." Tendo acabado de dizer isto, saiu, debaixo de chuva.

América, de Kafka, inicia-se com o mesmo tema de um guarda-chuva que estorva, embaraçante, constantemente perdido; Karl Rossmann transportando uma pesada mala, está a sair de um navio no porto de Nova Iorque, no meio de uma grande confusão. De repente, lembra-se do seu guarda-chuva de que se esquecera nos confins do barco. Confiou a mala a um jovem com quem tinha travado conhecimento durante a viagem e, uma vez que a passagem atrás de si se encontrava obstruída pela multidão, resolveu descer uma escada que lhe era desconhecida e acabou por se perder no meio dos corredores. Finalmente bate à porta dum camarote onde encontra um homem, um guarda do paiol, que se põe de imediato a falar com ele queixando-se dos seus superiores; como a conversa se estivesse a prolongar por algum tempo, convidou Karl a subir para o beliche, para ficar mais cómodo.

A impossibilidade psicológica desta situação entra pelos olhos dentro. De facto, aquilo que nos é narrado não é verdade! É uma anedota, no final da qual, é claro, Karl ficará sem mala e sem guarda-chuva! Sim, éuma anedota, só que Kafka a conta não como se contam as anedotas; ele expõe-na extensamente, em detalhe, explicando cada gesto para que pareça psicologicamente credível; Karl sobe com dificuldade para o beliche e, embaraçado, ri-se da sua falta de jeito; depois de debater durante muito tempo acerca das humilhações sofridas pelo paioleiro, acaba por dizer para si mesmo, com uma surpreendente lucidez, que teria feito bem melhor se tivesse "ido buscar a mala em vez de ter ficado para ali a dar conselhos..." Kafka põe no inverosímil a máscara do verosímil, o que confere àquele romance (e a todos os seus romances) um inimitável charme mágico.

 

Elogio dos gracejos

Piadas, anedotas e histórias cómicas - elas são a melhor prova de que o sentido incisivo do real, juntamente com a imaginação que se ventura pelo inverosímil, podem formar um par perfeito. Panurge não consegue encontrar nenhuma mulher com quem quisesse casar; no entanto, de espírito lógico, teórico, sistemático e previdente, ele decide resolver naquele preciso momento e de uma vez por todas a questão fundamental da sua vida: deve ou não casar-se? Vai saltando de um especialista para outro, de um filósofo para um jurista, de uma vidente para um astrólogo e de um poeta para um teólogo, para chegar, após longas pesquisas, à conclusão de que não existe uma resposta para aquela mãe de todas as questões. Todo o Terceiro Livro se ocupa do relato dessa actividade inverosímil, essa história inventada que se transforma numa longa viagem burlesca através do saber da época de Rabelais. (O que me leva a pensar que, trezentos anos mais tarde, Bouvard e Pécuchet é também uma história cómica prolongada em viagem através do saber de uma época.)

Cervantes escreveu a segunda parte do D. Quixote quando a primeira já tinha sido editada e era conhecida desde há muitos anos. Isso sugere-lhe uma ideia esplêndida: os personagens que dom Quixote vai encontrando reconhecem nele o herói vivo do livro que eles tinham lido; põem-se a debater com dom Quixote as suas aventuras passadas e oferecem-lhe a oportunidade de comentar a sua própria imagem literária, É claro que isso não é possível! - trata-se de uma pura fantasia! De uma história cómica!

Mas, mais tarde, um acontecimento inesperado abala Cervantes: um outro escritor, um desconhecido, antecipou-se-lhe e publicou a sua própria continuação das aventuras de dom Quixote. Enraivecido, Cervantes dirige-lhe, ao longo da segunda parte que se encontra a escrever, ferozes injúrias e aproveita-se de imediato desse desagradável incidente para criar, a partir dele mesmo, uma outra fantasia: após todas as suas desventuras, dom Quixote e Sancho, fatigados e tristes, estão de volta à sua aldeia quando travam conhecimento com um certo dom Álvaro, precisamente um personagem do maldito plágio; Álvaro surpreende-se ao ouvir os seus nomes, pois ele conhece intimamente um outro dom Quixote e um outro Sancho completamente diferentes! Esse encontro tem lugar umas páginas antes do final do romance: um frente-a-frente desconcertante dos personagens com os seus próprios espectros; a prova final da falsidade de todas as coisas; o melancólico luar da última história cómica, a história cómica do adeus.

Em Ferdydurke, de Gombrowicz, o professor Pimko decide transformar Jojo, um homem de trinta anos, num adolescente de dezasseis anos, obrigando-o a passar todos os seus dias num banco do liceu, como um vulgar aluno entre os outros alunos. Essa situação burlesca esconde uma outra questão, de facto bem mais profunda: será que um adulto ao qual toda a gente sistematicamente se dirige como se se tratasse de um adolescente acabará por perder a noção da sua idade real? Ou, em termos mais gerais: aquele homem tornar-se-á naquilo em que os outros o vêem e em como o tratam, ou conseguirá encontrar forças para salvaguardar, contra tudo e contra todos, a sua própria identidade?

Criar um romance a partir de uma anedota, a partir de uma história cómica, poderia parecer aos leitores de Gombrowicz uma provocação de um modernista. E com toda a razão, porque existia uma anedota nesse romance. No entanto, ela encontrava-se enraizada num muito longínquo passado. Na época em que a arte do romance ainda não estava certa nem da sua identidade nem mesmo do seu nome, Fielding chamou-lhe escrita prosai-comi-épica; é necessário que nos lembremos sempre disto: a comédia foi uma das três fadas míticas que se debruçaram sobre o berço do romance.

 

A história do romance vista a partir do atelier de Gombrowicz

Um romancista que fala sobre a arte do romance não é como um professor dissertando a partir da sua cátedra. Imaginem-no antes como um pintor que vos recebe no seu atelier onde, espalhados por todo o lado, os seus quadros vos observam, encostados às paredes. O romancista falar-vos-á dele próprio, mas ainda mais dos outros e dos romances que ele admira e que se encontram secretamente presentes na sua própria obra. Segundo os seus critérios de valor, ele remodelará à vossa frente todo o passado da história do romance e, com isso, far-vos-á descobrir a sua própria poética do romance, a qual só a ele pertence e, portanto, [muito naturalmente, se oporá à poética de cada um dos outros escritores. Dessa forma, ficarão com a sensação de descerem, espantados, até ao porão da História, ali, onde o futuro do romance se está a decidir, a construir, por entre disputas, conflitos, confrontos.

Em 1953, Witold Gombrowicz, no primeiro ano do seu Diário (ele escrevê-lo-á durante os dezasseis anos seguintes, até à sua morte), cita o  de um leitor: "Sobretudo, não se comente a si próprio! Limite-se a :rever! Que pena você não resistir à tentação de escrever prefácios para as suas obras, prefácios e até mesmo comentários!" Acerca disso Gombrowicz responde que vai continuar a explicar-se "tanto quanto consiga e até quando puder", porque um escritor que seja incapaz de falar dos seus livros não é "um escritor completo". Fiquemos por uns instantes no atelier de Gombrowicz. Eis a lista dos seus amores e dos seus desamores, a sua "versão pessoal da história do romance":

Mais do que tudo o resto, ele adora Rabelais. (Os livros sobre Gargantua e Pantagruel foram escritos numa altura em que o romance europeu estava a nascer, ainda longe de quaisquer normas; eles transbordam de possibilidades que a futura história do romance realizará ou abandonará, mas que, todas elas, permanecem connosco como fontes de inspiração: passeios pelo improvável, provocações intelectuais, liberdade da forma. A sua paixão por Rabelais é reveladora do sentido do modernismo de Gombrowicz: este não recusa a tradição do romance, antes reivindica-a; mas reivindica-a completa, com uma particular atenção pelo instante miraculoso da sua génese.)

Balzac é-lhe bastante indiferente. (Gombrowicz insurge-se contra a sua poética, erigida entretanto como modelo normativo do romance.)

Aprecia Baudelaire. (Gombrowicz adere à revolução da poesia moderna.)

Não se sente fascinado por Proust. (Uma encruzilhada: Proust tinha ido até ao fim de uma grandiosa viagem na qual tinha esgotado todas as possibilidades; possuído pela demanda do novo, a Gombrowicz só resta enveredar por outro caminho.)

Não encontra em si próprio afinidades com quase nenhum romancista contemporâneo. (Os romancistas têm por vezes incríveis lacunas nas suas leituras: Gombrowicz nunca leu Broch nem Musil; irritado por causa dos snobs que se tinham apropriado de Kafka, não sente particular inclinação por ele; não sente nenhuma afinidade com a literatura latino-americana; fez troça de Borges, demasiado pretensioso para o seu gosto, viveu na Argentina isolado e onde, entre os grandes, apenas Ernesto Sabato se interessou por ele; Gombrowicz devolveu-lhe essa simpatia.)

Não gosta da literatura polaca do século XIX (demasiado romântica para ele).

De uma maneira geral, Gombrowicz é reservado no que diz respeito à literatura polaca. (Ele sentia-se mal-amado pelos seus compatriotas; no entanto, as suas reservas não são um ressentimento, exprimindo antes o horror de poder vir a ser fechado no colete de forças do pequeno contexto. Afirma acerca do poeta polaco Tuwim: "De cada um dos seus poemas podemos dizer que é 'maravilhoso', mas se nos perguntarem com que elemento tuwimiano Tuwim enriqueceu a poesia mundial, não saberemos verdadeiramente que responder.")

Gosta do vanguardismo dos anos vinte e trinta, (desconfiado relativamente à sua ideologia "progressista" e ao seu "modernismo pró-moderno", ele partilha da sua sede de formas novas e da sua liberdade de imaginação. Gombrowicz recomenda a um jovem autor: inicialmente, escrever vinte páginas sem qualquer controlo racional, de seguida relê-las com um espírito crítico agudo, ficar com o essencial e ir continuando a fazer assim. Como se ele pretendesse atrelar ao carro do romance um cavalo selvagem chamado "embriaguez"lado a lado com um cavalo adestrado chamado "lucidez".)

Gombrowicz despreza a "literatura comprometida". (Facto notável: ele não cria grandes polémicas relativamente aos autores que subordinam a literatura à luta anticapitalista. O paradigma da arte comprometida é, para ele, autor proibido na sua Polónia comunista, a literatura que marcha sob a bandeira do anticomunismo. Desde o primeiro ano do Diário que ele lhe critica o seu maniqueísmo, as suas simplificações.)

Ele não gosta do vanguardismo dos anos cinquenta e sessenta em

frança, nomeadamente o "novo romance" e a "nova crítica" (Roland Barthes). (Dirigido ao "novo romance": "É pobre. É monótono... Solipsismo.

Onanismo..." Dirigido à "nova crítica": "Quanto mais se é instruído, mais

se é ignorante." Ele sentia-se irritado pelo dilema diante do qual esses

novos vanguardismos colocavam os escritores: ou o modernismo à sua

maneira (esse modernismo que ele considera de jargões, universitário,

doutrinário e destituído do contacto com a realidade), ou a arte convencional que reproduz interminavelmente as mesmas formas. Ora, o modernismo significa para Gombrowicz: através de novas descobertas, ir avançando pelo caminho herdado. Tanto quanto for ainda possível. Tanto quanto o caminho herdado do romance ainda exista.)

 

Um outro continente

Tinham passado três meses desde que o exército russo ocupara a Checoslováquia; a Rússia ainda não tinha conseguido dominar a sociedade checa, a qual continuava a viver sob uma grande angústia, mas que (ainda por mais alguns meses) iria continuar a ter bastante liberdade; a União dos Escritores, acusada de ser o centro da contra-revolução, mantinha ainda as suas casas, continuava a editar as suas revistas e a receber os seus convidados. Foi então que, a seu convite, se deslocaram a Praga três romancistas latino-americanos, Júlio Cortázar, Gabriel Garcia Márquez e Carlos Fuentes. Mantiveram-se lá discretamente, apenas na sua qualidade de escritores. Para observarem. Para compreenderem. Para encorajarem os seus colegas checos. Passei com eles uma semana inesquecível. Tornámo-nos amigos. E foi precisamente a seguir à sua partida que eu pude ler, ainda em provas, a tradução checa do Cem Anos de Solidão.

Pensei no anátema que o surrealismo lançara sobre a arte do romance, que ele tinha estigmatizado como antipoético e fechado a tudo o que fosse imaginação livre. Ora, o romance de Garcia Márquez é todo imaginação livre. Uma das maiores obras de poesia que eu conheço. Cada uma das frases resplandece de fantasia, cada frase é surpresa, é espanto: uma resposta fustigante ao desprezo pelo romance proclamado no Manifesto do Surrealismo (e, ao mesmo tempo, uma grande homenagem ao surrealismo, à sua inspiração e ao seu fôlego, que atravessou todo o século).

É também a prova de que a poesia e o lirismo não são duas noções-irmãs, mas sim duas noções que é bem preciso que se mantenham distantes uma da outra. Porque a poesia de Garcia Márquez não tem nada a ver com o lirismo e porque o autor não se confessa, não abre a sua alma, não se inebria senão pelo mundo objectivo que ele eleva até uma esfera onde tudo é, ao mesmo tempo, real, inverosímil e mágico.

E ainda o seguinte: todos os grandes romances do século XIX fizeram da cena o elemento fundamental da composição. O romance de Garcia Marques encontra-se num caminho que segue por uma direcção oposta: em Cem Anos de Solidão não existem cenas! Elas encontram-se completamente diluídas nas vagas arrebatadas da narrativa. Não conheço mais nenhum exemplo de um tal estilo. É como se o romance voltasse uns séculos atrás, para um narrador que não descreve nada, que não faz mais nada senão relatar, mas que o faz com uma total liberdade de fantasia como nunca ninguém antes tinha visto.

 

A ponte prateada

Alguns anos depois desse encontro em Praga mudei-me para França onde. assim quis o destino. Carlos Fuentes era o embaixador do México. Eu morava nessa altura em Rennes e durante as minhas curtas estadias em Paris ficava em sua casa, numas águas-furtadas da embaixada, e tomava com ele pequenos-almoços que se prolongavam em intermináveis trocas de ideias. Logo de início, vi a minha Europa Central na inesperada vizinhança da América Latina: duas fronteiras do Ocidente situadas em extremos opostos; duas terras negligenciadas, desprezadas, abandonadas, duas terras párias; e as duas partes do mundo mais profundamente marcadas pela experiência traumatizante do barroco. Digo traumatizante, porque o barroco chegou à América Latina enquanto arte do conquistador e chegou ao meu país natal levada por uma Contra-Reforma particularmente sangrenta, o que encorajou Max Brod a chamar a Praga a "cidade do mal"; vi duas partes do mundo iniciadas na misteriosa aliança do mal com a beleza.

íamos conversando e uma ponte prateada, leve. tremelicante, cintilante, ia erigindo-se como um arco-íris por cima do século entre a minha pequena Europa Central e a imensa América Latina; uma ponte que ligava as estátuas arrebatadas de Matyas Braun em Praga às igrejas em delírio do México.

E pensei também numa outra afinidade entre as nossas duas terras natais.- ambas tinham ocupado um lugar-chave na evolução do romance do século XX: primeiro, os romancistas centro-europeus dos anos vinte e trinta (Carlos falava-me de Os Sonâmbulos, de Broch, como sendo o melhor romance desse século); a seguir, uns vinte, trinta anos depois, os romancistas latino-americanos, meus contemporâneos.

Um dia, descobri os romances de Ernesto Sabato; em Abaddón el Exterminador (1974), transbordante de reflexões como outrora os romances dos dois ilustres vienenses, pode ler-se, textualmente: "no mundo moderno, abandonado pela filosofia, fraccionado por centenas de especificações científicas, o romance sobra para nós como o último observatório a partir do qual se pode abraçar a vida humana como um todo."

Meio século antes dele, do outro lado do planeta (aquela ponte prateada não cessava de vibrar por cima da minha cabeça), o Broch de Os Sonâmbulos e o Musil de O Homem Sem Qualidades tinham pensado na mesma coisa. Na época em que os surrealistas elevavam a poesia à categoria de primeira das artes, eles, por seu lado, reconheciam esse lugar supremo ao romance.

 

O que é um romancista?

Para conseguir compreender, é necessário comparar

Quando Herman Broch pretende definir um personagem, capta primeiro a sua postura mais característica para se ir aproximando de seguida, progressivamente, dos seus traços mais particulares. Do abstracto, passa ao concreto. Esch é o protagonista do segundo romance de Os Sonâmbulos. Pela sua essência, afirma Broch, ele é um rebelde. O que é um rebelde? A melhor maneira de compreender um fenómeno, afirma ainda Broch, é compará-lo. Broch compara um rebelde com um criminoso. O que é um criminoso? É um conservador que compreende a ordem tal como ela é e nela se quer instalar, considerando os seus roubos e as suas fraudes como uma profissão que faz dele um cidadão como qualquer outro. O rebelde, pelo contrário, combate a ordem estabelecida tentando submetê-la ao seu próprio domínio. Esch não é um criminoso. Esch é um rebelde. Rebelde, afirma Broch, como Lutero o era. Mas, por que é que estou a falar de Esch? O que me interessa é o romancista! Este, a quem se pode comparar?

 

O poeta e o romancista

A quem se pode comparar um romancista? A um poeta lírico. O conteúdo da poesia lírica, afirma Hegel, é o próprio poeta; este empresta a palavra ao seu mundo interior para, dessa forma, despertar nos seus auditores os sentimentos, os estados de alma que ele experimenta. E mesmo que o poema aborde temas "objectivos", exteriores à sua vida, "o grande poeta lírico afastar-se-á deles muito rapidamente e acabará por traçar o retrato de si próprio (stellt sich selber dar)".

A música e a poesia têm uma vantagem sobre a pintura: o lirismo  (das Lyrische), afirma Hegel. E dentro do lirismo, prossegue ele, a música pode ir ainda mais longe do que a poesia, porque aquela é capaz de agarrar os movimentos mais secretos do mundo interior, inacessíveis à palavra. Existe pois uma arte, nesta circunstância a música, que é mais lírica do que a própria poesia lírica. Poder-se-á deduzir daí que a noção de lirismo não se limita a um ramo da literatura (a poesia lírica), mas que designa igualmente uma certa maneira de ser e que, desse ponto de vista, o poeta lírico não é senão a encarnação mais exemplar do homem deslumbrado pela sua própria alma e pelo desejo de a dar a conhecer.

Desde há muito tempo que a juventude é, para mim, a idade lírica, quer dizer, a idade em que o indivíduo, concentrado quase exclusivamente sobre si mesmo, é incapaz de ver, de compreender e de julgar com lucidez o mundo que o rodeia. Se se partir desta hipótese (necessariamente esquemática, mas que, enquanto esquema, me parece adequada), a passagem da imaturidade à maturidade é a transcendência da atitude lírica.

Se eu imaginar a génese de um romancista em forma de uma narrativa exemplar, de "mito", essa génese parecer-me-á como que a história de uma conversão; Saúl vem a ser São Paulo; o romancista nasce sobre as ruínas do seu mundo lírico.

 

História de uma conversão

Vou buscar à minha biblioteca a Madame Bovary na edição de bolso de 1972, a qual contém dois prefácios, um de um escritor, Henry de Montherlant, e o outro de um crítico literário, Maurice Bardèche. Ambos acharam de bom gosto mostrarem-se reservados em relação a um livro no qual ocupam as páginas iniciais. Montherlant: "Nem espírito [...] nem inovação de pensamento [...] nem vivacidade de escrita, nem imprevistas e profundas pesquisas ao coração humano, nem descobertas de sentimentos, nem de linhagens, nem de extravagâncias: a Flaubert falta génio a um tal ponto que nem é fácil acreditar." Sem qualquer dúvida, prossegue, pode aprender-se qualquer coisa com ele, mas na condição de não se lhe conceder mais valor do que aquele que ele tem e desde que se tenha a noção de que Flaubert não é feito "da mesma massa de um Racine, um Saint-Simon, um Chateaubriand, um Michelet".

Bardèche confirma esse veredicto e expõe a génese do Flaubert romancista: em Setembro de 1848, com a idade de vinte e sete anos, lê a um restrito círculo de amigos o manuscrito de A TentaçãodoSanto Antão, a sua "grande prosa romântica", na qual (continuo a citar Bardèche) Flaubert "depositou todo o seu amor, todas as suas ambições", todo o seu "grande pensamento". A condenação foi unânime e os seus amigos aconselharam-no a ver-se livre dos seus "impulsos românticos" e dos seus “grandes movimentos líricos". Flaubert cede e, três anos mais tarde, em Setembro de 1851, começa a escrever Madame Bovary. Ele fá-lo "sem alegria", afirma Bardèche, como se fosse "uma penitência" contra a qual "não pára de praguejar e de se lamentar" nas suas cartas: "Bovary atordoa-me, Bovary aborrece-me, a vulgaridade do tema causa-me náuseas", etc.

Parece-me pouco crível que Flaubert tenha empenhado "todo o seu amor, todas as suas ambições" só para obedecer, contrafeito, à vontade dos seus amigos. Não, aquilo que Bardèche nos relata não é a história de uma autodestruição. É a história de uma conversão. Flaubert tinha trinta anos, a altura certa para romper com a sua crisálida lírica. Que ele de seguida se tenha lamentado que os seus personagens eram medíocres, foi o tributo a pagar pela paixão em que para ele se tornaram a arte do romance e o seu campo de pesquisa, a prosa da vida.

 

O suave vislumbre do cómico

A seguir a um serão mundano passado na presença da senhora Arnoux por quem estava apaixonado, Frédéric de A Educação Sentimental, embriagado com o seu futuro, volta para casa e pára diante de um espelho. Cito: "Ele achou-se bonito - e ficou um minuto a olhar-se ao espelho."

"Um minuto". Nesta medida exacta do tempo reside toda a enormidade da cena. Ele pára, olha-se ao espelho e acha-se bonito. Durante um minuto. Sem se mexer. Frédéric está apaixonado, mas não pensa naquela que ele ama, de tal forma se encontra encadeado por si próprio. Ele olha-se ao espelho. Mas ele não se vê a olhar-se ao espelho (da forma como Flaubert o vê). É que ele encontra-se fechado no seu eu lírico e não se apercebeu de que o doce vislumbre do cómico pousara sobre si e o seu amor.

A conversão antilírica é uma experiência fundamental no curriculum vitae do romancista; distanciado de si próprio, ele vê-se subitamente à distância, espantado por não ser aquele por quem se tomava. A seguir a esta experiência, ele passará a saber que nenhum homem é aquele por quem se toma, que esse mal-entendido é geral, elementar, e que projecta sobre as pessoas (por exemplo, sobre Frédéric postado diante do espelho) o doce reflexo do cómico. (Esse reflexo do cómico, subitamente descoberto, é a recompensa, discreta e preciosa, da sua conversão.)

Emma Bovary, lá para o final da sua história, depois de ter sido mandada embora pelos banqueiros e abandonada por Léon, sobe para a diligência. À frente da porta aberta, um mendigo "emitia uma espécie de grito surdo". Nesse instante, Emma "atirou-lhe, por cima do ombro, uma moeda de cinco francos. Era toda a fortuna que possuía. Tinha-lhe parecido bonito atirá-la daquela maneira".

Era na verdade toda a sua fortuna. Ela estava a chegar ao fim. Mas a última frase que eu coloquei em itálico revela aquilo que Flaubert muito bem viu, mas de que Emma não tinha consciência: ela não tivera apenas um gesto generoso, como se deliciara ao fazê-lo; nem naquele momento de autêntico desespero Emma se privou de exibir o seu gesto, inocentemente, para si mesma, pretendendo parecer bela. Uma expressão de terna ironia nunca mais a abandonará, até mesmo durante a sua caminhada para a morte já tão próxima.

 

A cortina rasgada

Uma cortina mágica, tecida de lendas, encontrava-se suspensa à frente do mundo. Cervantes mandou dom Quixote de viagem e rasgou a cortina. O mundo abriu-se então diante do cavaleiro errante em toda a cómica nudez da sua prosa.

Tal como uma mulher que se maquilha antes de ir a correr para o seu primeiro encontro, o mundo, quando vem ter ao nosso encontro no momento do nosso nascimento, já se encontra maquilhado, mascarado, pré-interpretado. E os conformistas não serão os únicos a deixarem-se iludir por ele; os outros rebeldes, ávidos por se oporem a tudo e a todos, não se aperceberão até que ponto eles próprios são obedientes; não se revoltarão senão contra aquilo que é interpretado (pré-interpretado) como digno de revolta.

A cena do seu célebre quadro A Liberdade Guiando o Povo recopiou-a Delacroix da pré-interpretação: uma jovem sobre uma barricada, de rosto grave, com os seios desnudados de meter medo; ao lado dela, um garoto brandindo duas pistolas. Por mais que eu não aprecie este quadro, seria absurdo se o excluísse das grandes pinturas.

Mas um romance que glorifique tamanhas poses artificiais, tais símbolos gastos, exclui-se a si próprio da história do romance. Porque foi ao rasgar a cortina da pré-interpretação que Cervantes pôs em marcha esta arte nova; aquele seu gesto destruidor reflecte-se e prolonga-se em cada romance digno deste nome; ele é o sinal de identidade da arte do romance.

 

A glória

Na Hugoliade, panfleto contra Victor Hugo, Ionesco, então com vinte e seis anos e a residir ainda na Roménia, escreve: "A característica da biografia dos homens célebres é que eles quiseram ser célebres. A característica da biografia de todos os homens é que estes não quiseram ou nem sequer pensaram em serem célebres. [...] Qualquer homem célebre é odioso..."

Tentemos ser mais precisos: um homem torna-se célebre quando o número daqueles que o conhecem ultrapassa claramente o número daqueles que ele próprio conhece. O reconhecimento de que um ilustre cirurgião goza não é glória: ele não é admirado por um público, mas sim pelos seus doentes e pelos seus colegas. Ele vive em equilíbrio. A glória é um desequilíbrio. Existem profissões que arrastam a fama atrás de si, fatalmente, inevitavelmente: políticos, manequins, desportistas, artistas.

A glória dos artistas é a mais monstruosa delas todas, dado que implica a ideia de imortalidade. E isso constitui uma diabólica armadilha, porque a pretensão grotescamente megalómana de sobreviver à morte está inseparavelmente ligada à rectidão do artista. Cada romance criado com uma verdadeira paixão aspirará muito naturalmente a um valor estético duradouro, o que quer dizer ao valor capaz de sobreviver ao seu autor. Escrever sem ter essa ambição é cinismo: porque se um bombeiro mediano é útil para as pessoas, um romancista mediano que produza conscientemente livros efémeros, vulgares, convencionais, portanto inúteis, portanto saturantes, portanto nocivos, será desprezível. Essa é a maldição do romancista: a sua honestidade está amarrada ao infame poste da sua megalomania.

 

Mataram-me a minha Albertine

Sendo dez anos mais velho do que eu, Ivan Blatny (falecido já há alguns anos) foi um poeta que eu admirei desde os meus catorze anos. Numa das suas antologias, havia um verso, com um nome de mulher, que me vinha frequentemente à memória: "Albertinko, ty", o que quer dizer: "Albertine, tu". Tratava-se de uma alusão à Albertine de Proust, com certeza. Aquele nome tornou-se para mim, então adolescente, o mais sedutor de todos os nomes femininos.

De Proust, eu não conhecia nessa época senão as lombadas de uma vintena de volumes de Em Busca do Tempo Perdido em tradução checa, alinhados na biblioteca de um amigo meu. Graças a Blatny, graças ao seu “Albertinko, ty", mergulhei nele um dia. Quando cheguei ao volume A Sombra das Raparigas em Flor, a Albertine de Proust confundiu-se, de maneira imperceptível, com a Albertine do meu poeta.

Os poetas checos adoravam a obra de Proust, mas desconheciam a sua biografia. Ivan Blatny também não a conhecia. E, aliás, foi só bastante mais tarde que eu próprio perdi o privilégio dessa bela ignorância ao ouvir dizer que Albertine tinha sido inspirada por um homem, uma paixão de Proust.

Mas que história aquela! Inspirada por aquele ou por aquela, Albertine era Albertine, e basta! Um romance é o fruto de uma alquimia que transforma uma mulher em homem, um homem em mulher, a lama em ouro, uma anedota em drama! É esta divina alquimia que faz a força de qualquer romancista, o segredo, o esplendor da sua arte!

Mas já não havia nada a fazer; por mais que eu tomasse Albertine por uma das mais inesquecíveis mulheres, a partir do momento em que alguém me insinuou que o seu modelo era um homem, essa informação inútil instalou-se na minha cabeça como se fosse um vírus enviado para o software de um computador. Um macho tinha-se intrometido entre mim e Albertine, alterando a sua imagem, sabotando a sua feminilidade; umas vezes vejo-a com uns belos seios, para logo a seguir a ver com um peito liso e, noutras ocasiões, até um bigode aparece por sobre a sensível pele do seu rosto.

Mataram a minha Albertine. E recordo as palavras de Flaubert: "O artista deve fazer crer à posteridade que ele não viveu." É muito importante compreender o sentido daquela frase: o que o romancista quer proteger, antes de mais nada, não é a sua pessoa, mas sim as Albertines e as senhoras Arnoux.

 

O veredicto de Marcel Proust

Em Em Busca do Tempo Perdido, Proust não podia ser mais claro: "Neste romance... não há um único facto que não seja fictício, [...] não há um único personagem 'real'." Por mais estreitamente que esteja ligado à vida do seu autor, o romance de Proust encontra-se, sem equívoco, do lado contrário ao de uma biografia; nele não existe qualquer tipo de intencionalidade autobiográfica; Proust não o escreveu para falar da sua vida, mas sim para instruir através dos olhos dos leitores as suas próprias vidas: "...cada leitor é, quando o está a ler, o exacto leitor de si próprio. A obra do escritor não é senão uma espécie de instrumento óptico oferecido ao leitor com o intuito de lhe permitir discernir o que, sem esse livro, ele talvez não tivesse sido capaz de ver em si próprio. O reconhecimento em si próprio, pelo leitor, daquilo que o livro diz é a prova da veracidade deste..." Estas frases de Proust não definem somente o sentido do romance proustiano; elas definem também o sentido da arte, tout-court.

 

A moral do essencial

Bardèche faz o seguinte resumo do seu veredicto sobre Madame Bovary-. "Flaubert não conseguiu alcançar o seu destino de escritor! E, no fundo, é também essa a opinião de tantos admiradores de Flaubert quando afirmam: Ah!, mas se vocês lessem a sua correspondência, que obra-prima, que homem apaixonante ela revela!"

Também eu releio frequentemente a correspondência de Flaubert, ávido por saber o que é que ele pensava da sua arte e da arte dos outros. Contudo, a correspondência, por muito fascinante que possa ser, não é considerada nem obra-prima, nem sequer como fazendo parte da obra. Porque não se considera obra tudo aquilo que um romancista escreveu, tal como cartas, cadernos, diários, artigos. Só se considera como sendo uma obra a conclusão de um extenso trabalho sobre um projecto estético.

E vou ainda mais longe: obra é tudo aquilo que o romancista vier a aprovar na hora do balanço. Porque a vida é curta, a leitura leva tempo e a literatura está a suicidar-se com a sua proliferação insensata. A começar por si próprio, cada romancista deveria eliminar tudo o que fosse secundário e louvar, para si e para os outros, a moral do essencial1.

Mas não existem apenas os autores, as centenas, os milhares de autores; existem também os investigadores, os exércitos de investigadores que, guiados por uma moral oposta, acumulam tudo o que vão recolhendo com o intuito de conseguirem alcançar o Todo, objectivo supremo. O Todo, entenda-se, aquela montanha de rascunhos, de parágrafos rasurados, de capítulos rejeitados pelo autor, mas publicados pelos investigadores em edições ditas "críticas", sob o pérfido nome de "variantes", o que quer dizer, se é que as palavras ainda possuem algum sentido, que tudo o que o autor escreveu teria valor e seria igualmente aprovado por si.

A moral do essencial cedeu o lugar à moral do arquivo. (Ideal do arquivo: a amena igualdade reinante numa imensa fossa comum.)

 

A leitura leva tempo e a vida é curta

Falando com um amigo meu, um escritor francês, insisto para que ele leia Gombrowicz. Quando mais tarde o volto a encontrar, ele diz-me, algo atrapalhado: "Fiz como me disse, mas, sinceramente, não consigo compreender o seu entusiasmo." "O que é que você leu dele?" "Les Envoùtés!" "Oh diabo! Mas, porquê Les Envoùtés?"

Les Envoùtés foi editado somente depois da morte de Gombrowicz. Trata-se de um romance popular que, ainda jovem, Gombrowicz tinha publicado em folhetins, sob pseudónimo, num jornal da Polónia antes da guerra. Ele nunca o editou em livro e nunca tinha sequer mostrado intenção de o fazer. Já perto do final da sua vida, aparece o volume da longa entrevista concedida a Dominique de Roux sob o título Testament. Nela, Gombrowicz teve a oportunidade de comentar toda a sua obra. Toda. Um livro a seguir ao outro. E nem sequer uma palavra sobre Les Envoùtés!

E eu insisto: "Deve ler Ferdydurke! Ou A Pornografia”

Ele olha para mim com um ar melancólico e afirma: "Meu amigo, a vida à minha frente está a encurtar-se. O pedaço de tempo que eu tinha reservado para o seu autor, já se esgotou"

 

O menino e a sua avó

Stravinski rompeu para sempre a sua longa amizade com o chefe de orquestra Ansermet por este pretender proceder a cortes no bailado Jogo de Cartas. Mais tarde, o próprio Stravinski volta a debruçar-se sobre a sua Sinfonia para Instrumentos de Sopro e faz inúmeras correcções. O seu discípulo, o mesmo Ansermet, ficou indignado; é que ele não concordou com aquelas correcções e negou a Stravinski o direito de alterar aquilo que o próprio tinha escrito.

Tanto no primeiro como no segundo caso, as respostas de Stravinski são igualmente pertinentes: "Isso não é da sua conta, meu caro! Não se comporte na minha obra como se comporta no seu quarto de dormir!" Porque aquilo que um autor criou não pertence nem ao seu pai, nem à sua mãe, nem à sua nação, nem à humanidade; isso só pertence a si próprio e ele pode publicá-lo quando quiser e se quiser, pode alterá-lo, corrigi-lo, aumentá-lo, encurtá-lo ou lançá-lo para a sanita e puxar o autoclismo, sem que para isso tenha a mais pequena obrigação de dar explicações seja lá a quem for.

Eu tinha dezanove anos quando, na minha cidade natal, um jovem universitário deu uma conferência pública; corriam os primeiros meses da revolução comunista e, em obediência ao espírito da época, ele dissertou acerca da responsabilidade social da arte. A seguir à conferência, ocorreu um debate; dele, conservo na memória o poeta Josef Kainar (da mesma geração de Blatny e, também ele, falecido já há uns anos), o qual, como resposta ao discurso do cientista, contou uma anedota: um menino está a dar um passeio com a sua avózinha cega. Caminham ao longo de uma rua e, de vez em quando, o menino diz: "Avó, cuidado, uma raiz!" Julgando encontrar-se num caminho da floresta a idosa vai dando saltinhos. Os transeuntes repreendem o menino: "Então, menino, olha lá como tratas a tua avó!" E o menino: "É a minha avó! Eu trato dela como eu quiser!" E Kainar concluiu: "Eis-me, a mim e à minha poesia." Jamais poderei esquecer aquela demonstração dos direitos de autor proclamada sob o olhar desconfiado da jovem revolução.

 

O veredicto de Cervantes

Várias vezes ao longo do seu romance, Cervantes faz longas enumerações de livros de cavalaria. Ele menciona os títulos mas nem sempre considera necessário assinalar o nome dos respectivos autores. Naquela época, o respeito pelo autor e pelos seus direitos ainda não fazia parte dos hábitos.

Recordemos: antes de ter terminado o segundo tomo do seu romance, um outro escritor até aí desconhecido tinha-se-lhe antecipado publicando sob um pseudónimo a sua própria continuação das aventuras de dom Quixote. Cervantes reagiu então como reagiria hoje qualquer romancista: com raiva; atacou violentamente o plagiador e proclamou com orgulho: "Dom Quixote nasceu só para mim e eu só para ele. Ele soube agir e eu soube escrever. Ele e eu somos uma só coisa..."

Desde o tempo de Cervantes, eis pois a marca, primeira e fundamental, de qualquer romance: uma criação única e inimitável, inseparável da imaginação de um só autor. Antes de ser escrito, ninguém teria podido imaginar um dom Quixote; ele foi o próprio inesperado; e, dali em diante, sem o charme daquilo que é inesperado, nenhum grande personagem romanesco (e nenhum grande romance) passou a ser concebível.

O nascimento da arte do romance ficou ligado à tomada de consciência dos direitos de autor e à sua feroz defesa. O romancista é o único senhor da sua obra; ele é a sua obra. Mas isso não foi sempre assim. E nem sempre isso será assim. Mas, quando assim for, a arte do romance, a herança de Cervantes, deixará de existir.

 

A estética e a existência

Onde é que se devem ir procurar as razões mais profundas que levam os homens a sentirem uns pelos outros simpatia ou antipatia, e a poderem ser ou não amigos? Clarisse e Walter, de O Homem Sem Qualidades, são velhos conhecidos de Ulrich. Eles aparecem pela primeira vez em cena no romance quando Ulrich entra em casa deles e os vê a tocarem piano a quatro mãos. "Aquele ídolo atarracado de quatro patas, com uma goela desmesurada, cruzado de buldogue com basset", aquele tenebroso "megafone através do qual a alma lança os seus gritos no Absoluto como um veado no cio" - o piano representa para Ulrich tudo o que ele mais abomina.

Esta metáfora ajuda a perceber o insuperável desentendimento entre Ulrich e aquele casal; um desentendimento que parece arbitrário e injustificado, porque não provém de nenhum conflito de interesses e não é nem político, nem ideológico, nem religioso; mas se ele é a tal ponto incompreensível, é porque as suas raízes já desceram demasiado profundamente até aos fundamentos estéticos de si próprios; a música, lembremo-nos do que afirmava Hegel, é a mais lírica de todas as artes; mais lírica ainda do que a própria poesia lírica. Ao longo de todo o romance, Ulrich esbarrar-se-á contra o lirismo dos seus amigos.

Mais tarde, Clarisse apaixona-se pela causa de Moosbrugger, um assassino condenado à pena de morte e que a sociedade mundana pretende salvar tentando provar a sua demência e, com isso, a sua inocência. "Moosbrugger, é como a música", vai repetindo por todo o lado Clarisse e, por meio desta frase ilógica (intencionalmente ilógica, porque é próprio do espírito lírico mostrar-se através de frases ilógicas), a sua alma lança gritos de compaixão no Universo. Ulrich permanece indiferente a esses gritos. Não que ele deseje a pena de morte para um doente mental, mas sim porque já não consegue aguentar mais aquela histeria lírica dos seus defensores.

Os conceitos estéticos só começaram a interessar-me a partir do momento em que me apercebi das suas raízes existenciais; em que os entendi como conceitos existenciais; porque as pessoas, sejam elas simples ou requintadas, inteligentes ou estúpidas, são constantemente confrontadas nas suas vidas com o belo, o feio, o sublime, o cómico, o trágico, o lírico, o dramático, a acção, as peripécias, a catarse, ou, para falar de conceitos menos filosóficos, a apatia, o kitsch ou o banal; todos esses conceitos são pistas que conduzem a diversos aspectos da existência e que não são acessíveis por qualquer outro meio.

 

A acção

A arte épica foi baseada na acção, e a sociedade exemplar em que a acção se podia manifestar em total liberdade era a da época heróica grega; é o que afirma Hegel e demonstra-o com A Ilíada: mesmo tendo sido Agamémnon o primeiro dos reis, outros reis e outros príncipes se reuniram à sua volta livremente e, à semelhança de Aquiles, também eles se sentiram livres de abandonarem o campo de batalha. Também o povo seguia os seus príncipes de sua livre vontade; não existia qualquer lei que o pudesse impedir; eram apenas os impulsos pessoais, o sentido da honra, o respeito, a submissão diante do mais forte, o fascínio exercido pela coragem de um herói, etc, que determinavam o comportamento das pessoas. A liberdade de participar na luta e, da mesma maneira, a liberdade de a abandonar, garantiam a qualquer pessoa a sua independência. Assim, a acção mantinha um carácter pessoal e, por conseguinte, a sua forma poética.

A esse mundo arcaico, berço da epopeia, Hegel opõe a sociedade do seu tempo, organizada em Estados, dotada de uma constituição, de leis, de justiça, de uma administração omnipotente, de ministérios, de polícia, etc; esta sociedade impõe os seus princípios morais ao indivíduo cujo comportamento passa, dessa forma, a ser determinado muito mais por vontades anónimas vindas do exterior do que por uma personalidade própria. E foi num tal mundo que o romance nasceu. Como outrora a epopeia, também o romance se fundou na acção. Mas, num romance, a acção problematiza-se, surge como uma questão múltipla: se a acção não for senão o resultado da obediência, poderá ainda ser considerada acção? E como distinguir a acção dos gestos repetitivos da rotina? E o que é que quer dizer in concreto a palavra "liberdade" no mundo moderno burocratizado onde as possibilidades de agir são tão ínfimas?

James Joyce e Kafka tocaram nos limites extremos dessas questões. O gigantesco microscópio joyciano aumenta desmesuradamente cada minúsculo gesto do quotidiano, transformando assim um simples dia arquibanal de Bloom numa grande odisseia dos tempos modernos. Tendo sido contratado como agrimensor, K. chega a uma aldeia, pronto a bater-se pelo seu direito de aí viver; mas o balanço do seu combate será lastimoso: após infinitos aborrecimentos, K. não conseguirá mais do que apresentar as suas reclamações a um impotente administrador de aldeia e, a seguir, a um sonolento funcionário subalterno; e nada mais; ao lado da odisseia moderna de Joyce, O Castelo de Kafka é uma ilíada moderna. Uma odisseia e uma ilíada sonhadas sobre o reverso do mundo épico, a cujo momento já não era possível aceder.

Cento e cinquenta anos antes, Laurence Sterne já tinha percebido esse carácter problemático e paradoxal da acção; em Tristram Shandy existem apenas acções infinitesimais; ao longo de muitos capítulos, o pai Shandy tenta, com a mão esquerda, tirar o lenço do bolso direito, ao mesmo tempo que tenta tirar, com a mão direita, a peruca da cabeça; durante muitos capítulos, o doutor Slop tenta desfazer nós, demasiado numerosos e bem apertados, do saco onde estão fechados os instrumentos cirúrgicos destinados ao parto de Tristram. Esta ausência de acção (ou esta miniaturização da acção) é tratada com um sorriso idílico (sorriso que nem Joyce nem Kafka conhecerão e que continuará sem igual ao longo de toda a história do romance). Eu julgo ver nesse sorriso uma melancolia radical: quem age quer vencer; quem vence provoca sofrimento a outrem; a renúncia à acção seria a única via para a felicidade e para a paz.

 

Os agelastos

"Uma afectação da compostura" manifesta-se em tudo à sua volta e o pastor Yorick, um dos personagens de Tristram Shandy, não vê nela senão impostura e "uma capa encobrindo ou a ignorância ou a estupidez". Tanto quanto é capaz, ele ataca-a por meio de comentários "pitorescos e humorados". Essa "imprudente maneira de troçar" revela-se perigosa e "cada dezena de ditos espirituosos acarreta-lhe uma centena de inimigos", de modo que um dia, já não possuindo a força necessária para se aguentar com a vingança dos agelastos, "deita fora a espada" e acaba por morrer "com o coração despedaçado". Sim, ao contar a história do seu Yorick, Laurence Sterne utiliza a palavra "agelastos". Esse foi o neologismo criado por Rabelais a partir do grego para designar aqueles que não sabem rir. Rabelais tinha horror aos agelastos por causa de quem, segundo as suas próprias palavras, pouco faltou para "nunca mais escrever nem uma vírgula". A história de Yorick é uma saudação fraterna que Sterne dirige ao seu mestre a uma distância de dois séculos.

Há pessoas a quem eu admiro a inteligência e aprecio a honestidade, mas com as quais me sinto pouco à vontade: chego a censurar os meus próprios intentos para evitar ser mal entendido, para não parecer cínico ou para não os ferir com alguma palavra demasiado delicada. Eles não se dão bem com a comicidade. Eu não os critico: a sua agelastia está profundamente enraizada neles e já não há nada a fazer. Mas eu também não posso fazer nada e, sem chegar a detestá-los, prefiro então manter-me afastado deles. Não quero acabar como o pastor Yorick.

Cada conceito estético (e a agelastia é um deles) dá acesso a uma interminável problemática. Aqueles que, outrora, lançavam sobre Rabelais anátemas ideológicos (teológicos) eram incitados a isso por qualquer coisa de ainda mais profundo do que a fé num qualquer dogma abstracto. Era um desacordo estético que os ultrapassava: o desacordo visceral com o não-sério; a indignação contra o escândalo de um riso despropositado. Porque se os agelastos são propensos a verem em cada brincadeira um sacrilégio, é porque, de facto, cada brincadeira é um sacrilégio. Existe uma irremediável incompatibilidade entre o cómico e o sagrado e só nos resta interrogarmo-nos onde começa o sagrado e onde é que ele termina. Manter-se-á ele confinado a um único Templo? Ou será que o seu domínio se estende para mais longe e que ele incorpora também aquilo a que se chama os grandes valores laicos, a maternidade, o amor, o patriotismo, a dignidade humana? Todos aqueles para quem a vida é sagrada, totalmente, sem quaisquer restrições, reagem seja a que brincadeira for com irritação, irritação essa que pode ser declarada ou dissimulada, porque, seja lá em que brincadeira for, nela se revela o cómico que, enquanto tal, é um ultraje ao carácter sagrado da vida.

Não se conseguirá compreender a comicidade sem que antes se tenham compreendido os agelastos. A existência deles dá à comicidade a sua plena dimensão, apresentando-a como uma aposta, um risco, desvendando a sua essência dramática.

 

O humor

Em D. Quixote apercebemo-nos de um riso que diríamos ter saído das farsas medievais: rimo-nos do cavaleiro que usa uma taça da barba a servir de capacete, rimo-nos do escudeiro que apanha uma sova. Mas, à parte essa comicidade, umas vezes estereotipada, outras vezes cruel, Cervantes dá-nos a saborear uma outra comicidade totalmente diferente, muito mais subtil:

Um amável fidalgo rural convida dom Quixote para pernoitar na mansão onde ele mora com um filho, que é poeta. O filho, mais lúcido do que o pai, reconhece imediatamente no convidado um louco e delicia-se em manter ostensivamente uma certa distância. Mais tarde, dom Quixote convida o jovem a recitar-lhe a sua poesia; solícito, este aquiesce e dom Quixote profere um grandiloquente elogio ao seu talento; feliz, lisonjeado, o filho fica fascinado com a inteligência do convidado e esquece imediatamente a sua loucura. Quem será então o mais louco, o louco que elogia o lúcido ou o lúcido que acredita no elogio do louco? Entramos assim na esfera de acção de um outro tipo de comicidade, mais maliciosa e infinitamente mais valiosa. Nós não nos rimos porque alguém foi ridicularizado, gozado, ou até humilhado, mas sim porque uma dada realidade, de súbito, se revela na sua ambiguidade, as coisas perdem o seu significado aparente e aquele homem à nossa frente afinal não é o que ele julga ser. Eis o humor (o humor que, para Octavio Paz, constitui a "grande invenção" dos tempos modernos, devido a Cervantes).

O humor não é nenhuma centelha que brota em poucas palavras aquando do desfecho cómico de uma situação ou de uma narração com o intuito de nos fazer rir. A sua discreta luz espalha-se ao longo de toda a vasta paisagem das nossas vidas. Tentemos, como se fosse a bobine de um filme, rever pela segunda vez a cena que acabei de descrever: o amável fidalgo leva dom Quixote para o seu castelo e apresenta-lhe o seu filho, o qual se apressa a mostrar ao extravagante convidado as suas reservas e a sua superioridade. Mas, desta vez, já estamos avisados: já pudemos constatar a felicidade narcisista do jovem no momento em que dom Quixote profere o elogio aos seus poemas; quando revemos agora o começo da cena, o comportamento do filho já nos parece pretensioso, inapropriado para a sua idade, ou seja, cómico logo desde o início. É desta forma que o mundo é visto por um homem adulto que tem atrás de si muita experiência da "natureza humana" (que olha a vida com a sensação de rever bobines de filmes já vistos) e que, desde há muito tempo, deixou de levar a sério a seriedade dos homens.

 

E se o trágico nos tivesse abandonado?

Após várias experiências dolorosas, Creonte compreendeu que aqueles que eram responsáveis pela cidade tinham o dever de conseguir dominar as suas paixões pessoais; plenamente convicto disso, entra em conflito mortal com Antígona, a qual luta, contra ele, pelos deveres não menos legítimos do indivíduo. Creonte mantém-se intransigente, Antígona morre, e ele, esmagado pela culpa, ambiciona "que nunca mais volte a ver o dia de amanhã". Antígona inspirou em Hegel a sua magistral reflexão sobre o trágico: dois antagonistas defrontam-se, cada qual indissoluvelmente apegado a uma verdade parcial, relativa, mas que, se fossem analisadas isoladamente, seriam, ambas, inteiramente justificadas. Cada um deles está prestes a sacrificar a sua vida por ela, mas não a pode fazer triunfar senão com o preço da total derrota do adversário. Dessa forma, ambos são, ao mesmo tempo, justos e culpados. É uma honra para os grandes personagens trágicos serem considerados culpados, afirma Hegel.

É que só uma profunda consciência da culpabilidade torna possível uma futura reconciliação.

Conseguir libertar os grandes conflitos humanos da interpretação simplista de um combate do bem contra o mal e passar a compreendê-los à luz da tragédia, constituiu já um enorme êxito do espírito; a tragédia fez com que se manifestasse a fatal relatividade das verdades humanas e que se tornasse a sentir a necessidade de prestar justiça ao inimigo. Mas a vitalidade do maniqueísmo moral é invencível: ainda me lembro de uma adaptação da Antígona a que assisti em Praga logo após o final da guerra; ao eliminar o trágico na tragédia, o seu autor transformava Creonte num odioso fascista que derrotava uma heroína da liberdade.

As actualizações políticas como essa da Antígona estiveram muito em voga depois da Segunda Guerra Mundial. Hitler tinha não só provocado indescritíveis horrores à Europa, como a tinha ainda espoliado do sentido do trágico. À semelhança do combate contra o nazismo, toda a história política contemporânea seria desde então vista e vivida como um combate do bem contra o mal. As guerras, as guerras civis, as revoluções, as contra-revoluções, as lutas nacionais, as revoltas e as suas repressões foram banidas do campo do trágico e colocadas sob a autoridade de juizes ávidos de punições. Terá sido isso um retrocesso? Uma nova queda no estáciio pré-trágico da humanidade? Mas, nesse caso, quem é que retrocedeu? Terá sido a própria História usurpada dos seus criminosos? Ou terá sido a nossa maneira de entender a História? Eu afirmo isto muitas vezes: o trágico abandonou-nos; e aí reside, talvez, o nosso verdadeiro castigo.

 

O desertor

Homero não duvida das razões que levaram os gregos a cercar a cidade de Tróia. Mas, quando Eurípedes se debruça sobre essa mesma guerra a uma distância de muitos séculos, está bem longe de sentir admiração por Helena e demonstra a desproporção entre o valor daquela mulher e os milhares de vidas sacrificadas por causa dela. Em Oreste, ele põe Apolo a dizer: "Os deuses quiseram que Helena fosse assim tão bela só para conseguirem pôr em conflito os gregos e os troianos e para, através daquela carnificina, aliviar a terra do número demasiado grande de mortais que nela se comprimiam." E, de repente, tudo se torna claro: o sentido da mais célebre de todas as guerras não tinha nada a ver com uma qualquer grande causa; o seu único objectivo era o de uma matança. Mas, nesse caso, poder-se-á ainda falar de trágico?

Perguntem às pessoas qual foi a verdadeira razão que levou à Guerra de 14-18. Ninguém vos saberá responder, mesmo que essa gigantesca matança tenha estado na origem de todo o século recentemente volvido e de todo o mal que nele ocorreu. Se ao menos fossem capazes de nos dizer que os europeus se estiveram então a matar uns aos outros para salvar a honra de um cornudo!

Eurípides não chegou ao ponto de considerar a guerra de Tróia cómica. Mas houve um romance que teve essa coragem. O soldado Chveik, de Hasek, sente que tem tão pouco a ver com os objectivos da guerra que nem sequer chega a contestá-los; ele desconhece-os, até; e nem sequer procura conhecê-los. A guerra é terrível, mas Chveik não a leva a sério. Não se deve levar a sério aquilo que não tem sentido.

Há momentos em que a História, com as suas grandes causas e os seus heróis, pode parecer irrisória e até cómica, mas é difícil, é inumano, é até mesmo sobre-humano, conseguir vê-la dessa forma durante muito tempo. Talvez só os desertores sejam capazes de a ver assim. Chveik é um desertor. Não no sentido jurídico da palavra (aquele que abandona ilegalmente o exército), mas no sentido da sua total indiferença para com um grande conflito colectivo. De todos os pontos de vista, político, jurídico, moral, o desertor parece ser repugnante, condenável, assemelhando-se aos cobardes e aos traidores. Mas o olhar do romancista vê-o de uma outra maneira: o desertor é aquele que se recusa a reconhecer qualquer sentido às lutas dos seus contemporâneos, é aquele que se recusa a ver qualquer grandeza trágica nos massacres. É aquele a quem repugna participar, como se fosse um bobo, na comédia da História. A sua visão das coisas é geralmente lúcida, muito lúcida, mas isso acaba por tornar a sua posição difícil de aguentar; ela quebra-lhe os laços de solidariedade com os seus; ela afasta-o da humanidade.

(Durante a Guerra de 14-18, todos os checos desconheciam os objectivos que tinham levado o Império dos Habsburgos a enviá-los para a guerra; Chveik, estando rodeado de desertores, seria então um desertor excepcional: um desertor feliz. Quando penso na enorme popularidade de que ele sempre gozou no seu país, ocorre-me a ideia de que as grandes situações colectivas como aquela, raras, quase secretas, não partilhadas por todos, podem levar até à razão de ser da existência de uma nação.)

 

A cadeia trágica

Qualquer acto, por mais inocente que seja, nunca acaba sozinho. Ele provoca, como resultado, um outro acto e põe em movimento toda uma cadeia de acontecimentos. Onde é que termina a responsabilidade do homem relativamente ao seu acto que se prolonga assim ininterruptamente, numa transformação incalculável e monstruosa? No longo discurso que pronuncia no final de Rei Édipo, Édipo amaldiçoa todos aqueles que, outrora, salvaram o seu corpo de criança de que os seus pais se queriam ver livres; amaldiçoa a bondade cega que desencadeou uma indescritível dor; amaldiçoa essa sequência de actos em que a honestidade da intenção não desempenha qualquer tipo de papel; amaldiçoa essa cadeia infinita que une simultaneamente todos os seres humanos e faz deles uma singular humanidade trágica.

Será Édipo culpado? Esta palavra retirada do vocabulário jurídico não faz qualquer sentido aqui. No final de Rei Édipo, Édipo vaza os olhos com os colchetes da túnica de Jocasta, que se tinha enforcado. Terá sido um acto de justiça que ele quis aplicar a si próprio? Ou a vontade de se punir? Ou, então, não terá sido senão um grito de desespero? Ou o desejo de nunca mais ver os horrores de que ele tinha sido a causa e o alvo? E, portanto, um desejo não de justiça, mas do nada? Em Édipo em Colono, a última peça que nos ficou de Sófocles, Édipo, já cego, defende-se violentamente das acusações de Creonte e proclama a sua inocência sob o olhar aprovador de Antígona, que o acompanha.

Tendo tido no passado a ocasião de observar estadistas comunistas, fui obrigado a constatar, surpreso, que eles se mostravam, com frequência, extremamente críticos em relação à realidade criada pelos seus actos, que eles viam transformar-se à sua frente numa incontrolável cadeia de consequências. Dir-me-ão vocês: mas se eles eram verdadeiramente assim tão lúcidos, por que é que não bateram com a porta? Terá sido por oportunismo? Ou por amor ao poder? Ou por medo? Talvez. Mas o que não se deve é omitir que, pelo menos alguns deles, agiram guiados pelo sentido da responsabilidade relativamente a um qualquer acto que eles próprios tinham anteriormente contribuído para que viesse ao mundo e dos quais não pretendiam sequer negar a paternidade, alimentando sempre a esperança de que seriam um dia capazes de o corrigir, de o inflectir, de lhe voltar a dar um sentido. Quanto mais essa esperança se revelava ilusória, mais sobressaía o lado trágico da sua existência.

 

O inferno

No décimo capítulo de Por Quem os Sinos Dobram, Hemingway narra o dia em que os republicanos (é com esses que ele simpatiza, como homem e como autor) conquistam uma pequena vila até essa altura em poder dos fascistas. Os republicanos condenam à morte, sem qualquer processo, uma vintena de pessoas e levam-nas para uma praça onde, entretanto, tinham reagrupado homens munidos de malhos, forquilhas e foices com o intuito de assassinarem os culpados. Culpados? À maior parte deles não se lhes poderia acusar mais do que o facto de pertencerem passivamente ao partido fascista, de modo que os seus carrascos, pessoas simples que os conheciam bem e nem sequer os odiavam, se mostraram inicialmente tímidos e reticentes; não foi senão sob o efeito do álcool e mais tarde do sangue que eles se sentiram estimulados, até que a cena (a sua descrição detalhada ocupa quase um décimo do romance!) culmina com um atroz arrebatamento de crueldade onde tudo se transforma num inferno.

Os conceitos estéticos transformam-se constantemente em interrogações; e então, pergunto-me: será que a História é trágica? Vamos formulá-lo de outra maneira: será que a noção de trágico tem um sentido exterior ao destino individual? Quando a História põe em acção as massas, os exércitos, os sofrimentos e as vinganças, deixa-se de conseguir distinguir as vontades individuais; a tragédia é completamente engolida pelas torrentes de esgotos que submergem o mundo.

Em rigor, pode encontrar-se o trágico submerso nos escombros dos horrores, entre a primeira impulsão daqueles que tenham tido a coragem de arriscar as suas vidas pela verdade que defendiam.

Mas há horrores sob os quais nenhuma escavação arqueológica conseguirá jamais encontrar o mais pequeno vestígio de trágico; matanças pelo dinheiro; pior: por uma ilusão; pior ainda: por uma qualquer estupidez.

O inferno (o inferno na Terra) não é trágico; o inferno é o horror sem qualquer sinal de trágico.

 

A cortina rasgada

Pobre Alonso Quijada

Um pobre fidalgo de aldeia, Alonso Quijada decidiu que iria ser um cavaleiro errante e deu a si próprio o nome de Dom Quixote de la Mancha. Como definir a sua identidade? Ele é aquilo que não é.

Dom Quixote furta a um barbeiro a sua taça da barba em cobre, a qual passa a utilizar como elmo. Mais tarde, por acaso, o barbeiro vai a uma taberna onde dom Quixote se encontra acompanhado; repara na sua taça da barba e pretende recuperá-la. Mas dom Quixote, orgulhoso, recusa-se a considerar o seu elmo como sendo uma taça da barba. Assim, um objecto aparentemente tão simples transforma-se em discussão. Aliás, como provar que uma taça da barba enfiada numa cabeça não é um elmo? A maliciosa companhia, divertida, encontra a única maneira objectiva de demonstrar a verdade: o voto secreto. Todas as pessoas presentes participam nele e o resultado não deixa margens para dúvidas: aquele objecto é reconhecido como sendo um elmo. Que admirável piada ontológica!

Dom Quixote está apaixonado por Dulcineia. Ele não a viu senão de fugida, ou até talvez nunca a tenha visto. Está apaixonado, mas, como ele próprio afirma, "apenas porque os cavaleiros errantes são obrigados a estar apaixonados". Infidelidades, traições, decepções amorosas - toda a literatura narrativa desde sempre lidou com elas. Mas em Cervantes, não são os amantes, é o amor, a própria noção de amor, que é posta em causa. Porque, o que é o amor se se ama uma mulher sem a conhecer? Será uma simples decisão de amar? Ou mesmo uma imitação? A questão diz respeito a todos nós: se, logo desde a nossa infância, os exemplos de amor não nos convidassem a segui-los, saberíamos nós o que quer dizer amar?

Um pobre fidalgo de aldeia, Alonso Quijada, começou a história da arte do romance com três questões sobre a existência: o que é a identidade de um indivíduo? o que é a verdade? o que é o amor?

 

A cortina rasgada

Mais uma visita a Praga após 1989. Da biblioteca de um amigo meu retiro ao acaso um livro de Jaromir John, romancista checo do período entre as duas guerras. O romance caiu desde há muito no esquecimento; o seu título é Le Monstre à Explosion e li-o nesse dia pela primeira vez. Escrito por volta de 1932, narra uma história que se tinha passado uns dez anos antes, durante os primeiros tempos da República da Checoslováquia, proclamada em 1918. O senhor Engelbert, conselheiro florestal no tempo do anterior regime da monarquia dos Habsburgos, muda-se para Praga para aí passar a sua reforma; mas, esbarrando com a agressiva modernidade do novel Estado, ele salta de desilusão em desilusão. Situação mais do que conhecida. No entanto, uma coisa era inédita: o horror àquele mundo moderno, a desgraça do senhor Engelbert, não tinha nada a ver com o poder do dinheiro nem com a arrogância dos arrivistas, mas sim com o barulho; não o velho barulho de uma trovoada ou o de um martelo, mas o novo barulho causado pelos motores, sobretudo dos automóveis e das motocicletas - "monstros de explosão".

Pobre senhor Engelbert: instala-se inicialmente numa moradia de um bairro residencial; ali, os automóveis fazem-lhe pela primeira vez descobrir o mal que irá transformar a sua vida numa fuga sem fim. Muda-se então para outra zona residencial, julgando que, naquela rua, a circulação automóvel estivesse proibida. Ignorando que essa interdição era apenas temporária, ficou exasperado na noite em que começou a ouvir de novo os "monstros de explosão" a roncarem debaixo da sua janela. Desde então nunca se deitava sem antes pôr algodão nos ouvidos, compreendendo que "dormir é o mais fundamental dos desejos humanos e que a morte causada pela impossibilidade do sono deve ser a pior das mortes". Passa a procurar o silêncio nos hotéis das regiões rurais (em vão), nas cidades de província em casa de antigos colegas seus (em vão) e acaba por passar as noites em comboios que, com aquele característico barulho suave e arcaico, lhe proporcionam um sono relativamente descansado na sua vida de homem perseguido.

Quando John escreveu aquele romance, podia-se provavelmente contar uma viatura por cada cem ou, sei lá, mil habitantes de Praga. Foi precisamente quando ainda era raro que o fenómeno do ruído (ruído dos motores) se manifestou em toda a sua estonteante novidade. Pode-se deduzir daí a seguinte regra geral: o alcance existencial de um determinado fenómeno social é perceptível com maior acuidade não na altura da sua maior propagação, mas sim quando ele ainda se encontra nos seus primórdios, quando é incomparavelmente mais débil do que aquilo em que se irá transformar mais tarde. Nietzsche observa que no século XVI a Alemanha era o lugar do mundo onde a Igreja era menos corrupta e que terá sido por causa disso que a Reforma nasceu precisamente ali, porque mal os "sinais da corrupção se começaram a sentir foram de imediato considerados como intoleráveis". A burocracia no tempo de Kafka era uma criança inocente em comparação com aquilo que ela é hoje em dia e, não obstante isso, foi Kafka quem revelou a sua monstruosidade, que, mais tarde, se haveria de tornar banal e à qual já hoje ninguém liga. Nos anos sessenta do século XX, brilhantes filósofos submeteram "a sociedade de consumo" a uma crítica que se mostrou no decorrer dos anos tão caricaturalmente ultrapassada pela realidade que hoje até nos custa referirmo-nos a isso. Porque é necessário recordar uma outra regra geral: enquanto a realidade não tem qualquer pejo em se repetir, o pensamento, face à repetição da realidade, acaba sempre por se calar.

Em 1920, o senhor Engelbert ainda se sentia atordoado pelo barulho dos "monstros de explosão"; mas as gerações seguintes passaram a considerá-lo natural; depois de o ter apavorado, de o ter posto doente, o barulho, pouco a pouco, acabou por remodelar o homem; devido à sua omnipresença e à sua constância, ele acabou por lhe inculcar a necessidade de barulho e, com isso, toda uma outra relação com a natureza, com o descanso, com a alegria, com a beleza, com a música (que, tendo-se tornado num ininterrupto fundo sonoro, perdeu o seu carácter de arte) e mesmo com a palavra (que já não ocupa, como outrora ocupava, um lugar privilegiado no mundo dos sons). Na história da existência isso constituiu uma mudança tão profunda e tão duradoura que nenhuma guerra nem nenhuma revolução foram capazes de criar nada de parecido; uma mudança cujo começo, embora de uma forma modesta Jaromir John já tinha observado e descrito.

Eu disse "modestamente", porque John foi um daqueles romancistas a que se chama menores; no entanto, quer fosse grande ou pequeno, ele era um verdadeiro romancista: não recopiava verdades bordadas sobre o pano de cena da pré-interpretação; ele teve a coragem cervantesca de rasgar a cortina. Façamos sair o senhor Engelbert do romance e imaginemo-lo enquanto homem real que se dedica a escrever a sua própria autobiografia; não, ele não se parece de todo com o senhor Engelbert do romance de John! Porque, como a maior parte dos seus semelhantes, ele habituou-se a julgar a vida a partir do que se pode ler na cortina suspensa diante do mundo; ele sabe que o barulho, por mais desagradável que seja, não é digno de interesse. Em contrapartida, a liberdade, a independência, a democracia ou, vistos do lado oposto, o capitalismo, a exploração, a desigualdade, sim, cem vezes sim, essas são noções importantes, capazes de dar sentido a um destino ou de tornar nobre uma desgraça! Também, na sua autobiografia, a qual eu o estou a imaginar a escrever com algodão metido nos ouvidos, ele dá uma grande importância à independência reencontrada pela sua pátria e fustiga o egoísmo dos arrivistas; quanto aos "monstros de explosão", esses, ele relega-os para uma nota de rodapé, como uma simples menção a um aborrecimento anódino que, tudo somado, só dá para rir.

 

A cortina rasgada do trágico

Mais uma vez quero fazer aparecer a silhueta de Alonso Quijada; vê-lo montar no seu Rocinante e partir em busca de grandes batalhas. Ele está disposto a sacrificar a vida por uma causa nobre, mas a tragédia não quer nada com ele. Porque, desde o seu aparecimento, o romance desconfia da tragédia: do seu culto da grandeza; das suas origens teatrais; da sua cegueira em relação à prosa da vida. Pobre Alonso Quijada. Ao redor da sua triste figura, tudo se transforma em comédia.

Provavelmente, nenhum romancista se deixou influenciar mais pelo pathos do trágico do que Victor Hugo em Noventa e Três (1874), romance sobre a Grande Revolução Francesa. Os seus três protagonistas, devidamente caracterizados e com trajos de cena, dão a ideia de terem passado directamente do palco para o romance: o marquês de Lantenac, apaixonadamente dedicado à monarquia; Cimourdain, a grande personagem da Revolução, não menos convencido da sua verdade; por fim, o sobrinho de Lantenac, Gauvain, aristocrata transformado, sob a influência de Cimourdain, num glorioso general da Revolução.

Eis o final da história: a meio de uma batalha terrivelmente cruel num castelo cercado pelo exército da Revolução, Lantenac consegue evadir-se através de uma passagem secreta. Mais tarde, já fora do perigo dos sitiantes, mas ainda nos arredores, vê o castelo em chamas e ouve os lamentos desesperados de uma mãe. Nesse momento, lembra-se que três crianças de uma família republicana estão retidas como reféns atrás de uma porta de ferro de que só ele tem a chave num dos bolsos. Lantenac já viu centenas de mortos, homens, mulheres e idosos e nem sequer pestanejou. Mas a morte de crianças, não, nunca, mil vezes nunca, isso ele não pode permitir! Volta pois a entrar naquela mesma passagem subterrânea e, diante dos seus inimigos estupefactos, liberta as crianças das chamas. Tendo sido preso, é condenado à morte. As convicções morais de Gauvain são abaladas quando toma conhecimento do acto heróico do seu tio: aquele que se sacrificou para salvar a vida de crianças não merecerá ser perdoado? Ele ajuda então Lantenac a evadir-se, sabendo que, com isso, se está a condenar a si próprio. Com efeito, fiel à intransigente moral da Revolução, Cimourdain envia Gauvain para a guilhotina se bem que o ame como se ele fosse o seu próprio filho. Para Gauvain, o veredicto de morte é inteiramente justo e aceita-o serenamente. No preciso momento em que a lâmina começa a descer, Cimourdain, o glorioso revolucionário, dá um tiro no coração.

Aquilo que faz destes personagens os actores de uma tragédia é a sua total identificação com as convicções pelas quais eles estão prontos a morrer, e pelas quais morrem. A Educação Sentimental, escrita cinco anos antes (1869) e que trata também de uma Revolução (a de 1848), passa-se num universo situado completamente no lado oposto do trágico: os personagens têm as suas opiniões, mas são opiniões leves, sem peso, prescindíveis; e eles mudam de opinião facilmente, não em razão de uma qualquer profunda reavaliação intelectual, mas como se estivessem a mudar de gravata só porque a sua cor não lhes agrada. Quando Deslauriers vê serem-lhe recusados os quinze mil francos prometidos por Frédéric para a sua revista, de imediato "morre a sua amizade por Frédéric [...] Assaltou-o um ódio contra os ricos. Ele passou a tender para as opiniões de Sénécal e prometeu a si próprio servi-las". Depois de a senhora Arnoux ter ludibriado Frédéric com a sua castidade, este "desejou, tal como Deslauriers, uma mudança universal..."

Sénécal, o revolucionário mais obstinado, "o democrata", "o amigo do povo", torna-se director de uma fábrica e passa a tratar o pessoal com arrogância. Frédéric: "Ah, para um democrata, você é bem duro!" Sénécal: "A Democracia não é a pouca-vergonha do individualismo. É o nível comum debaixo da lei, a repartição do trabalho, a ordem!" Ele torna-se revolucionário durante as jornadas de 1848 e, mais tarde, de armas na mão, reprimirá essa mesma revolução. No entanto, não seria justo ver nele um oportunista habituado a mudar de opinião. Revolucionário ou contra-revolucionário, ele é sempre o mesmo. Porque - e isso é uma enorme descoberta de Flaubert - aquilo sobre o que se apoia uma atitude política não é uma opinião (essa coisa tão frágil, tão vaporosa!), mas qualquer coisa de menos racional e de mais sólida: por exemplo, em Sénécal, um apego arquetípico à ordem, um ódio arquetípico pelo indivíduo ("pouca-vergonha do individualismo", como ele afirma).

Nada é mais estranho a Flaubert do que julgar moralmente os seus personagens; a sua falta de convicções não torna Frédéric ou Deslauriers condenáveis ou antipáticos; para além do mais, eles são tudo menos cobardes ou cínicos e muitas vezes sentem necessidade de uma acção corajosa; no dia da revolução, no meio da multidão, ao aperceber-se que ao seu lado se encontrava um homem que tinha sido atingido por uma bala nos rins, Frédéric "lançou-se para a frente, furioso...". Mas essas não passam de pulsões passageiras que não se transformam numa atitude duradoura.

Só o mais ingénuo de todos eles, Dussardier, se deixa matar pelo seu ideal. Mas o seu papel no romance é secundário. Numa tragédia, o destino trágico ocupa o proscénio. No romance de Flaubert, é só no segundo plano que se consegue entrever a sua fugaz passagem, como se fosse um clarão que se dispersa.

 

A fada

Lord Allworthy contratou dois preceptores para se dedicarem ao jovem Tom Jones: um, Square, é um homem moderno, aberto aos pensamentos liberais, à ciência, aos filósofos; o outro, o pastor Thwackum, é um conservador para quem a única autoridade é a religião; dois homens letrados, mas, ao mesmo tempo, cruéis e ignorantes. Eles prefiguram perfeitamente o sinistro duo de Madame Bovary. o farmacêutico Homais, apaixonado pela ciência e pelo progresso, e, ao seu lado, o cura Bournisien, um beato.

Por mais sensível que fosse ao papel desempenhado pela estupidez na vida, Fielding via-a como uma excepção, um acaso, um defeito (detestável ou cómico) que nunca seria capaz de alterar profundamente a visão que ele tinha do mundo. Em Flaubert, a estupidez é diferente - não é excepção, acaso, defeito; não é um fenómeno por assim dizer quantitativo, uma falta de algumas moléculas de inteligência que pudesse ser atenuada por meio da instrução; a estupidez é incurável; estando presente em toda a parte, tanto no espírito dos idiotas como no dos génios, ela é uma parte indissociável da "natureza humana".

Lembremo-nos daquilo que Sainte-Beuve censurou a Flaubert: em Madame Bovary, "o bem está demasiado ausente". Como? E Charles Bovary? Dedicado à esposa e aos seus doentes, desprovido de qualquer egoísmo, não será ele antes um herói, um mártir da bondade? Como é possível olvidá-lo, ele que, após a morte de Emma, tendo tido conhecimento de todas as suas infidelidades, não sente qualquer rancor, mas apenas uma tristeza infinda? Como esquecer a intervenção cirúrgica a que ele procedeu no pé boto de Hippolyte, um simples moço de estrebaria? Todos os anjos pairaram sobre ele, a caridade, a generosidade, o amor pelo progresso! Toda a gente o felicitou, e até mesmo Emma, sob o encanto do bem, o beijou, comovida! Alguns dias mais tarde a operação revelou-se ter sido absurda e, após indescritíveis sofrimentos, teve que ser amputada uma perna a Hippolyte. Charles fica abatido e é abandonado por toda a gente. Personagem extraordinariamente bom e, não obstante, tão real, ele é seguramente muito mais digno de compaixão do que a "benfeitora activa" de aldeia que tanto enterneceu Sainte-Beuve.

Não, não é verdade que "o bem está demasiado ausente" em Madame Bovary; não é esse o busílis: a questão é que a estupidez em Madame Bovary está demasiado presente; é por causa dela que Charles não pode ser utilizado para o "bom espectáculo" que Sainte-Beuve gostaria de ter visto. Mas Flaubert não pretende fazer "bons espectáculos"; o que ele pretende é chegar à "alma das coisas". E na alma das coisas, na alma de todas as coisas, por toda a parte, ele vê-a a bailar, a doce fada da estupidez. Essa fada discreta adapta-se tanto ao bem como ao mal, tanto ao saber como à ignorância, tanto a Emma como a Charles, tanto a si, como a mim. Flaubert introduziu-a no baile dos grandes enigmas da existência.

 

A descida até ao fundo sombrio de uma história cómica

Quando Flaubert expôs o projecto de Bouvard e Pécuchet a Turgueniev, este recomendou-lhe vivamente que o tratasse de uma maneira muito resumida. Perfeito parecer de um velho mestre. Porque aquela história não podia conservar a sua eficácia cómica senão sob a forma de uma narração curta; uma exagerada extensão torná-la-ia monótona e maçadora, senão mesmo completamente absurda. Mas Flaubert persistiu e explicou a Turgueniev: "Se (esse assunto) for tratado de uma forma breve, de uma maneira concisa e leve, tornar-se-á numa fantasia mais ou menos espirituosa, mas sem impacto nem verosimilhança, ao passo que, se a detalhar e a desenvolver, darei a entender que eu próprio acredito na minha história e poder-se-á considerá-la então como uma coisa séria e ao mesmo tempo assustadora."

O Processo de Kafka baseou-se numa aposta artística semelhante. O primeiro capítulo (aquele que Kafka leu aos seus amigos e com o qual eles se divertiram imenso) poderia ser entendido (aliás, com toda a razão) como uma simples historieta espirituosa, uma história cómica: um certo K. é surpreendido uma bela manhã na sua cama por dois banais cavalheiros que lhe anunciam, sem qualquer explicação, a sua detenção, que aproveitam a ocasião para tomarem o seu pequeno-almoço e que se comportam no seu quarto de dormir com uma arrogância tão natural que K., em camisa de dormir, tímido e desastrado, nem sabe o que fazer. Se Kafka, depois, não tivesse continuado esse capítulo com outros capítulos cada vez mais e mais sombrios, ninguém se espantaria de os seus amigos se terem rido assim tanto. Mas Kafka não pretendia escrever (retomo as palavras de Flaubert) "uma fantasia mais ou menos espirituosa"; ele queria dar a essa situação cómica um maior "impacto", "detalhá-la e desenvolvê-la", insistir sobre a sua "verosimilhança" para assim poder dar "a ideia de acreditar nessa história" e, dessa forma, fazer dela "uma coisa séria e ao mesmo tempo assustadora". Ele pretendia descer até ao fundo sombrio de uma história cómica.

Bouvard e Pécuchet, dois reformados decididos a apropriarem-se de todos os saberes, são os personagens de uma história cómica, mas, ao mesmo tempo, os personagens de um mistério; eles possuem um leque de conhecimentos bastante mais vasto não apenas do que as pessoas que os rodeiam, mas também do que todos os leitores que iriam ler essa história. Eles conhecem factos, as teorias a eles associadas e até mesmo a argumentação que contesta essas mesmas teorias. Será que cada um deles possui um cérebro de papagaio e não fazem mais do que repetir o que aprenderam? Mesmo isso não é verdade; eles manifestam frequentemente um surpreendente bom senso e damos-lhes inteiramente razão quando se sentem superiores às pessoas das suas relações, quando ficam indignados com a sua estupidez e quando se recusam a suportá-la. No entanto, ninguém duvida que eles são estúpidos. Mas, por que é que eles nos parecem ser estúpidos? Tentem definir a sua estupidez. Tentem, de resto, definir a estupidez enquanto tal! Isso o que é, a estupidez? A razão é bem capaz de desmascarar o mal que perfidamente se esconde por detrás de uma boa mentira. Mas, face à estupidez, a razão mostra-se impotente. Ela não tem nada para desmascarar. A estupidez não usa nenhuma máscara. Apresenta-se tal como é, inocente. Sincera. Nua. E indefinível.

Revejo à minha frente o ilustre trio victorhuguiano, Lantenac, Cimour-dain, Gauvain, esses três heróis íntegros que jamais nenhum interesse pessoal conseguiria fazer desviar da linha recta, e pergunto a mim próprio: aquilo que lhes dá a força de persistirem na sua opinião, sem a mais pequena dúvida, sem a mais pequena hesitação, não é mesmo a estupidez? Uma estupidez orgulhosa, digna, como se tivesse sido talhada sobre mármore? Uma estupidez que, fielmente, os acompanha aos três como outrora as deusas do Olimpo acompanhavam os seus heróis até à morte?

Sim, é o que eu penso. A estupidez não rebaixa em nada a elevação moral de qualquer herói trágico. Inseparável da "natureza humana", ela acompanha o homem constantemente e por todo o lado: tanto na penumbra dos quartos de dormir como nos estrados iluminados da História.

 

A burocracia segundo Stifter

Pergunto a mim mesmo quem terá sido o primeiro a descobrir o significado existencial da palavra burocracia. Provavelmente, terá sido Adalbert Stifter. Se, a um dado momento da minha vida, a Europa Central não se tivesse tornado para mim uma obsessão, quem sabe se eu teria alguma vez lido tão atentamente esse velho autor austríaco, o qual, numa primeira abordagem, se tornou para mim bastante estranho devido à extensão, ao didactismo, ao moralismo e à castidade das suas obras. No entanto, é ele o escritor-chave da Europa Central do século XIX. a mais pura flor dessa época e do seu espírito idílico e virtuoso a que se chama o Biedermeir! O romance mais importante de Stifter, Der Nachsommer ("O Fim do Outono") de 1857, é tão volumoso quanto a sua história é simples: um jovem, Heinrich, no decurso de uma excursão pela montanha, é surpreendido por nuvens que anunciam uma tempestade. Procura refúgio numa mansão cujo proprietário, um velho aristocrata chamado Risach, o acolhe com hospitalidade e que acaba por se tornar seu amigo. Esse pequeno castelo tem o bonito nome de "Rosenhaus", "a casa das rosas", e Heinrich passará depois a visitá-lo regularmente, à razão de uma a duas estadias por ano; ao nono ano ele casará com a afilhada de Risach e é com esse episódio que o romance termina.

O livro não revela o seu sentido profundo senão lá para o final, quando Risach se isola com Heinrich e, durante uma longa conversa a sós, lhe confia a história da sua vida. Esta consiste em dois conflitos: um privado e outro social. É sobre o segundo que eu me detenho: Risach tinha sido outrora um alto funcionário. Um dia, tendo constatado que o trabalho na administração começara a não ser compatível com o seu carácter, com os seus gostos e as suas inclinações, abandonou o seu posto e foi instalar-se no campo, na sua "casa das rosas", para aí poder viver em harmonia com a natureza e os aldeões, longe da política, longe da História.

A sua ruptura com a burocracia é o resultado não das suas convicções políticas ou filosóficas, mas sim do conhecimento que ele tem de si próprio e da sua incapacidade para continuar a ser funcionário público. O que é ser-se funcionário público? Risach explica-o a Heinrich e essa é, tanto quanto eu sei, a primeira (e magistral) descrição "fenomenológica" da burocracia:

À medida que a administração pública se desenvolvia e crescia, havia a necessidade de recrutar um número de cada vez maior de funcionários e, entre eles, inevitavelmente, uns maus e outros até muito maus. Assim, foi imperioso criar um sistema que permitisse que os trabalhos necessários pudessem ser desempenhados sem que a competência desigual dos funcionários os pervertesse ou lhes diminuísse a qualidade. "Para tentar tornar mais claro o meu raciocínio, continua Risach, eu diria que o relógio ideal deveria ser aquele que seria construído de tal forma que funcionasse bem mesmo que se lhe trocassem as peças, substituindo as más pelas boas e as boas pelas más. Um tal relógio, é claro, é inconcebível. Mas a administração pública não pode existir senão, precisamente, sob uma tal forma, ou então, dada a evolução que ela conheceu, deixará de existir." Não se pode exigir a um funcionário que entenda a problemática de que a sua administração se ocupa, mas sim que efectue com zelo diversos trabalhos sem que tenha que entender, e mesmo sem que tente compreender, o que se vai passando nos gabinetes ao lado.

Risach não critica a burocracia. Ele limita-se a explicar as razões pelas quais, devido à sua maneira de ser, ele tinha deixado de lhe poder consagrar a sua vida. O que o impedira de continuar a ser funcionário público, fora a sua incapacidade em obedecer e trabalhar para objectivos que se encontravam além do seu horizonte. E, também, pelo "seu respeito pelas coisas tal e qual elas são em si mesmas" (die Ehrfurcht vor den Dingen wie sie an sich sind), um respeito de tal forma profundo que, durante as negociações, ele não defendia aquilo que os seus superiores exigiam, mas sim o que "as coisas exigiam para si mesmas".

Porque Risach é o homem do concreto; ele tem sede de uma vida na qual fizesse apenas trabalhos cuja utilidade lhe seria compreensível; na qual frequentasse apenas as pessoas de quem conhecesse os nomes, a profissão, a casa, os filhos; na qual até mesmo o tempo fosse constantemente sentido e saboreado sob o seu aspecto concreto: a manhã, a tarde, o sol, a chuva, a tempestade, a noite.

A sua ruptura com a burocracia é uma das mais memoráveis rupturas do homem com o mundo moderno. Uma ruptura tão radical quanto tranquila, dado assentar na atmosfera idílica dessa estranha obra romanesca do Biedermeir.

 

O mundo violado do castelo e da aldeia

Max Weber foi o primeiro dos sociólogos a considerar que "o capitalismo e a sociedade moderna em geral" se caracterizam acima de tudo pela "racionalização burocrática". Weber não considera a revolução socialista (que naquela altura não passava senão de um projecto) nem perigosa nem salutar - ela parece-lhe simplesmente inútil, por ser incapaz de conseguir resolver o problema principal da modernidade, a saber, a "burocratização" (Bürokratisierung) da vida social, a qual, segundo ele, prosseguirá inexoravelmente qualquer que seja o sistema de propriedade dos meios de produção.

Weber formulou as suas ideias acerca da burocracia entre 1905 e a sua morte ocorrida em 1920. Sou tentado a fazer notar que um romancista, no caso Adalbert Stifter, teve a consciência da importância fundamental da burocracia cinquenta anos antes do ilustre sociólogo. Mas evitarei imiscuir-me na controvérsia entre a arte e a ciência acerca da prioridade das suas descobertas, até porque uma e outra não visam os mesmos objectivos. Weber fez uma análise sociológica, histórica e política do fenómeno da burocracia. Stifter colocou a si próprio uma outra questão: viver num mundo burocratizado, o que é que isso significa in concreto para o homem? De que forma a sua existência é alterada por esse facto?

Uns sessenta anos depois de Der Nachsommer, Kafka, esse outro centro-europeu, escreveu O Castelo. Para Stifter, aquele mundo do castelo e da aldeia representava o oásis onde o velho Risach se tinha refugiado para escapar à sua carreira de alto funcionário, para poder viver enfim feliz, rodeado dos vizinhos, dos animais, das árvores e das "coisas tal e qual elas são em si mesmas". Esse mundo, no qual se situam bastantes outras prosas de Stifter (e dos seus discípulos), tornou-se para a Europa Central o símbolo de uma vida idílica e ideal. E é precisamente esse mundo, um castelo com uma paisagem tranquila, que Kafka, leitor de Stifter, faz invadir por escritórios, um exército de funcionários públicos e uma avalanche de processos! De uma forma cruel, Kafka viola aquele símbolo sagrado do idílio antiburocrático impondo-lhe uma significação precisamente oposta: a da vitória total da burocratização total.

 

O sentido existencial do mundo burocratizado

Desde há muito que uma revolta de um Risach rompendo com a sua vida de funcionário público deixou de ser possível. A burocracia tornou-se omnipresente e não lhe conseguiremos escapar em lado nenhum; em lado nenhum será possível encontrar uma "casa das rosas" para aí viver em contacto íntimo com as "coisas tal e qual elas são em si mesmas". Do mundo de Stifter passámos, irrevogavelmente, ao mundo de Kafka.

Quando, noutros tempos, os meus pais iam de férias, compravam os bilhetes na estação dez minutos antes da partida do comboio; ficavam num hotel no campo onde, no último dia, pagavam a conta em dinheiro ao patrão. Eles viviam ainda no mundo de Stifter.

As minhas férias passam-se num mundo diferente: tenho que comprar os bilhetes com dois meses de antecedência e, para isso, preciso de ir para a fila numa agência de viagens; aí, uma burocrata ocupa-se de mim e telefona para a Air France, onde outros burocratas, com os quais jamais estarei em contacto, me atribuem um lugar num avião e registam o meu nome sob um número numa lista de passageiros; o meu quarto, também tenho que o reservar antecipadamente, telefonando para um recepcionista que regista o meu pedido num computador e dá conhecimento disso à sua própria pequena administração; no dia da minha partida, os burocratas de um sindicato, no seguimento de inúmeras discussões com os burocratas da Air France, decidem desencadear uma greve. Depois de inúmeros telefonemas da minha parte, e sem sequer me pedir desculpa (nunca ninguém pedia desculpa a K. - a administração pública encontra-se para além da boa educação), a Air France reembolsa-me e eu compro um bilhete de comboio; durante as minhas férias, pago por toda a parte com um cartão de crédito e cada um dos meus jantares é registado pelo banco em Paris e fica assim à disposição de outros burocratas, por exemplo os do fisco ou os da polícia, no caso de eu vir a ser suspeito de ter cometido algum crime. Para as minhas feriazinhas, toda uma brigada de burocratas se põe em marcha e eu mesmo me transformo em burocrata da minha própria vida (preenchendo questionários, enviando reclamações e colocando no seu devido lugar inúmeros documentos nos meus próprios arquivos).

A diferença entre a vida dos meus pais e a minha vida é impressionante; a burocracia infiltrou-se em toda a estrutura das nossas vidas. “Nunca anteriormente K. tinha visto em mais lado nenhum a administração pública e a vida imbricadas a esse ponto, de tal forma imbricadas que por vezes se tinha a sensação de que a administração pública e a vida tinham trocado de lugar uma com a outra" (O Castelo). Logo para começar, todos os conceitos da existência tinham mudado de sentido:

O conceito de liberdade: nenhuma instituição proíbe o agrimensor K. de fazer aquilo que quer; mas, com toda essa liberdade, o que é que ele pode verdadeiramente fazer? O que é que um vulgar cidadão, com todos os seus direitos, pode alterar no seu espaço mais próximo, desde o parque automóvel que lhe constróem debaixo de casa ao altifalante ensurdecedor que instalaram diante das janelas? A sua liberdade é de tal forma ilimitada que se torna impotente.

O conceito de vida privada: ninguém tem a intenção de impedir K. de fazer amor com Frieda, mesmo sendo ela a amante do omnipotente Klamm; no entanto, todos os olhos do castelo o seguem, e os seus coitos são perfeitamente observados e anotados; os dois ajudantes que lhe atribuíram estão com ele para isso mesmo. Quando K. se queixa da sua importunidade, Frieda protesta: "O que é que tu tens contra os ajudantes, querido? Nós não temos nada a esconder-lhes." Ninguém contestará o nosso direito à vida privada, mas esta já não é o que era: já nenhum segredo a protege; seja lá onde tenhamos estado, as nossas pistas ficam registadas nos computadores; "nós não temos nada a esconder-lhes", diz Frieda; nós até já deixámos de exigir segredo; a vida privada deixou de exigir que fosse privada.

O conceito de tempo: quando se compara um homem com um outro homem, comparam-se dois tempos iguais - dois tempos limitados de vida perecível. Ora, hoje em dia, já deixámos de ser comparados uns com os outros, para o passarmos a ser às administrações públicas cuja existência não conhece nem a juventude, nem a velhice, nem o cansaço, nem a morte, e que se desenrola para além do tempo humano - o homem e a administração pública vivem dois tempos diferentes. Li num jornal a história banal de um pequeno industrial francês a quem foi declarada falência porque um seu devedor não lhe tinha saldado as dívidas. Ele sente que está inocente, quer apoiar-se na justiça, mas, quase de imediato, renuncia a isso: é que o seu caso nunca seria resolvido antes de quatro anos - os autos judiciais levam tempo e a sua vida é curta. Esse caso faz-me lembrar o negociante Block de O Processo, de Kafka: o seu processo já se arrasta há cinco anos e meio sem qualquer julgamento; entretanto ele teve de abandonar os seus negócios, porque "quando pretendemos fazer qualquer coisa pelo nosso processo, já não nos sobra tempo para nos ocuparmos com mais nada" (OProcesso). Não é a desumanidade que destrói o agrimensor K., mas sim o tempo não-humano do castelo - o homem solicita audiências, o castelo adia-as; o litígio prolonga-se, a vida caminha para o fim.

E depois, a aventura: outrora, esse nome exprimia a exaltação da vida concebida como liberdade; uma corajosa decisão individual desencadeava um surpreendente encadeamento de acções, todas elas livres e propositadas. Mas este conceito de aventura não corresponde àquilo que é vivido por K. Ele chega à aldeia, porque, no seguimento de um desentendimento entre dois gabinetes do castelo, lhe tinha sido enviada uma convocatória por engano. Não foi a sua vontade, mas sim um engano administrativo que desencadeou a sua aventura, a qual não tem nada a ver, ontologicamente, com a de um dom Quixote ou a de um Rastignac. Por causa da imensidão do aparelho burocrático, os enganos tornam-se estatisticamente inevitáveis; a utilização de computadores torna-os ainda menos reparáveis e ainda mais irreparáveis. Nas nossas vidas em que tudo é planificado e determinado, a última coisa de que se estaria à espera seria um engano da máquina administrativa, com as suas consequências imprevisíveis. O engano burocrático tornou-se na única poesia (poesia negra) da nossa época.

Ao conceito de aventura assemelha-se o conceito de combate. K. pronuncia muitas vezes essa palavra quando se refere à sua disputa com o castelo. Mas em que é que consiste o seu combate? Em alguns vãos encontros com burocratas e numa longa espera. Não em lutas corpo a corpo; os nossos adversários não têm corpos: companhias de seguros, segurança social, câmara do comércio, justiça, fisco, polícia, governo civil, câmara municipal. Combatemos ao passarmos horas e horas sem fim em gabinetes, salas de espera, arquivos. No final do combate, o que é que nos espera? Uma vitória? Às vezes. Mas uma vitória, o que é isso? De acordo com o testemunho de Max Brod, Kafka imaginava o seguinte fim para O Castelo: depois de todas as suas arrelias, K. acaba por morrer de esgotamento; encontra-se no seu leito de morte, quando (cito Brod:) "acaba de chegar do castelo a decisão na qual se declara que K. efectivamente não tem direito de cidadania na aldeia, mas que, ainda assim, lhe autorizam a viver e a trabalhar nela por consideração com algumas circunstâncias secundárias".

 

As idades da vida dissimuladas atrás da cortina

Deixo que desfilem à minha frente os romances de que me lembro e tento determinar a idade dos seus protagonistas. Curiosamente, todos eles são mais novos do que aquilo que eu pensava. E isso porque eles representavam para os seus autores mais uma situação humana em termos gerais do que a situação específica própria de uma determinada idade. No final das suas aventuras, quando chegou à conclusão de que já não queria continuar a viver no mundo que o rodeia, Fabrice del Dongo decide entrar para um convento. Sempre adorei aquele final. Só que Fabrice é ainda muito jovem. Por quanto tempo um homem daquela idade, por mais dolorosamente desiludido que se sentisse, suportaria viver num convento? Stendhal fez abortar essa questão ao deixar morrer Fabrice após um único ano vivido no convento. Miskine tem vinte e seis anos, Rogojine vinte e sete, Nastassia Filipovna vinte e cinco, Aglaia só tem vinte e será precisamente esta, a mais nova, que no final vai destruir, com aquelas suas insensatas iniciativas, as vidas de todos os outros. No entanto, a imaturidade desses personagens não é examinada enquanto tal. Dostoievski narra-nos o drama dos seres humanos e não o drama da juventude.

Romeno de nascimento, Cioran, em 1937, então com vinte e seis anos, vai viver para Paris; dez anos mais tarde edita o seu primeiro livro escrito em francês e torna-se num dos maiores escritores franceses do seu tempo. Nos anos noventa, a Europa, tão indulgente outrora para com o nazismo recente, lança-se contra as suas sombras com uma corajosa combatividade. O tempo do grande acerto de contas com o passado tinha chegado e as opiniões fascistas do jovem Cioran da época em que ainda vivia na Roménia fazem, subitamente, a actualidade do dia. Em 1995, com a idade de oitenta e quatro anos, morre. Abro um importante jornal parisiense: em duas páginas, uma série de artigos necrológicos. Nem uma palavra acerca da sua obra; é a sua juventude romena que causou vómitos, fascinou, indignou e inspirou os seus escribas fúnebres. Eles vestiram o cadáver do ilustre escritor francês com um traje folclórico romeno e forçaram-no, no caixão, a manter o braço estendido numa saudação fascista.

Algum tempo mais tarde li um texto que Cioran escreveu em 1949, quando tinha trinta e oito anos: "... Eu nem consigo acreditar no meu passado; quando agora penso nele, parece-me trazer à memória os anos de um outro. E é este outro que eu renego, todo o 'eu próprio' se encontra algures, a mil lugares de distância daquele que ele foi." E, mais à frente: "quando volto a pensar [...] em todo aquele delírio do meu eu de então [...] parece-me que ele me está a fazer debruçar sobre as obsessões de um estranho e fico estupefacto ao descobrir que, afinal de contas, esse estranho era eu".

O que mais me interessa nesse texto é o espanto do homem que não consegue encontrar nenhum laço entre o seu "eu" presente e o de outrora e que fica estupefacto diante do enigma da sua identidade. Mas, perguntar-me-ão vocês: todo esse espanto, será sincero? É claro que é! Na sua versão corrente, toda a gente conhece isso: como é que vocês podem ter levado a sério essa corrente filosófica (religiosa, artística, política)?; ou, então (numa forma mais banal): como é que foi possível ficar apaixonado (apaixonada) por uma mulher assim tão parva (por um homem assim tão estúpido)? Ora, se para a maioria das pessoas a juventude passa depressa e os seus desvarios se evaporam sem deixar rastos, a de Cioran tinha-se petrificado; não devemos troçar com um mesmo sorriso condescendente de um amante ridículo e do fascismo.

Estupefacto, Cioran voltou a olhar para os seus anos já vividos e enfureceu-se (e continuo a citar o mesmo texto de 1949): "As desgraças são coisas próprias dos jovens. São eles que promovem as doutrinas da intolerância e as põem em prática; são eles que têm necessidade de sangue, de gritos, de confusão e de barbárie. Quando eu era jovem, a Europa inteira acreditava na juventude, a Europa inteira empurrava-a para a política, para os assuntos de Estado."

Dos Fabrice del Dongo e das Aglaia, Nastassia, Miskine, quantos desses vejo à minha volta! Todos eles se encontram no início da viagem pelo desconhecido; sem qualquer espécie de dúvida, eles andam a errar; mas é uma errância muito particular: eles erram não se sabendo errantes; porque a sua inexperiência é dupla: eles não conhecem o mundo e não se conhecem a si próprios; é apenas quando eles se aperceberem dela ao recuarem da idade adulta que a sua errância lhes aparecerá como errância; e mais: é apenas através desse recuo que eles estarão à altura de compreender a própria noção de errância. Por enquanto, não fazendo a menor ideia do olhar que o futuro um dia lançará sobre a sua juventude passada, eles defendem as suas convicções com muito mais agressividade do que defende as suas um homem adulto que já tenha passado pela experiência da fragilidade das certezas humanas.

A cólera de Cioran contra a juventude revela mais uma evidência: a partir de cada observatório erigido sobre a linha traçada entre o nascimento e a morte, o mundo manifesta-se de uma forma diferente e as atitudes daquele que se concentra nisso transformam-se; ninguém conseguirá entender o outro sem que primeiramente tenha conseguido entender a sua idade. De facto, isso é tão evidente, oh, mas tão evidente! Mas só as pseudo-evidências ideológicas são visíveis à primeira vista. Uma evidência existencial, quanto mais evidente for, menos visível será. As idades da vida vão-se dissimulando por detrás da cortina.

 

Liberdade de manhã, liberdade à noite

Picasso tinha vinte e seis anos quando pintou o seu primeiro quadro cubista: no mundo inteiro, muitos outros pintores da sua geração se juntaram a ele e o seguiram. Mas. se um sexagenário se tivesse então lançado a imitá-lo e fizesse cubismo, teria parecido (e com toda a razão) ridículo. Porque a liberdade de um jovem e a liberdade de um velho são dois continentes que nunca se encontram.

"Jovem, tu tornas-te forte acompanhado e, tu, velho, sozinho", escreveu Goethe (o velho Goethe) no seu epigrama. De facto, quando os jovens se põem a atacar ideias reconhecidas ou formas estabelecidas, gostam de se juntar em bandos; quando Derain e Matisse, no princípio do século XX, passavam juntos semanas intermináveis nas praias de Collioure, pintavam quadros que se assemelhavam, marcados pela mesma estética fauvista; no entanto, nenhum dos dois se sentia epígono um do outro - e, com efeito, nem um nem o outro o foram.

Numa solidariedade alegre, os surrealistas saudaram em 1924 a morte de Anatole France através de um panfleto necrológico memoravelmente parvo: "Os que se parecem contigo, cadáver, não gostamos deles!", escrevia Eluard, de vinte e nove anos. "Com Anatole France, é um pouco da servidão humana que desaparece. Que seja um dia de festa aquele em que se enterra a esperteza, o tradicionalismo, o patriotismo, o oportunismo, o cepticismo, o realismo e a falta de coração!", escrevia Breton, de vinte e oito anos. "Que, então, aquele que acaba de morrer [...] desapareça! Fica pouca coisa de um homem: e já é só por si revoltante pensar que, de qualquer maneira, ele existiu", escrevia Aragon, de vinte e sete anos.

As palavras de Cioran vêm-me à memória a propósito dos jovens e da sua necessidade "de sangue, de gritos, de confusão..."; mas sinto-me impaciente por acrescentar que aqueles jovens poetas que mijavam sobre o cadáver de um grande romancista não deixavam por isso de ser verdadeiros poetas, uns poetas admiráveis; o seu génio e a sua estupidez brotavam da mesma fonte. Eles eram violentamente (liricamente) agressivos para com o passado, e com a mesma violência (lírica) devotados ao futuro do qual se consideravam os mandatários e que lhes parecia bendizer a sua alegre urina colectiva.

Depois chega a altura em que Picasso fica velho. Fica só, é abandonado pelo seu grupo e abandonado também pela história da pintura que, entretanto, tinha tomado um outro rumo. Sem mágoa, com um prazer hedonista (nunca antes a sua pintura tinha transbordado a tal ponto tamanha boa disposição), Picasso instala-se na casa da sua arte, sabendo que o novo não se encontra somente para diante, sobre a estrada principal, mas também à esquerda, à direita, em cima, em baixo, atrás, em todas as direcções possíveis do seu mundo inimitável que é só seu (porque nunca ninguém o há-de imitar - os jovens imitam os jovens; os velhos não imitam os velhos).

Não é fácil para um jovem e inovador artista conseguir seduzir o público e ser apreciado. Mas se, mais tarde, inspirado pela sua liberdade vesperal, ele alterar uma vez mais o seu estilo e abandonar a imagem que dele se fazia, o público poderá hesitar em segui-lo. Estando ligado ao jovem grupo do cinema italiano (esse grande cinema que já não existe), Federino Fellini gozou durante muito tempo de uma admiração unânime; Amarcord (1973) foi o seu último filme com cuja beleza lírica toda a gente concordou. A seguir, a sua fantasia solta-se ainda mais e o seu olhar aguça-se; a sua poesia torna-se antilírica e o seu modernismo antimoderno; os sete filmes dos seus últimos quinze anos são um retrato implacável do mundo em que vivemos: Casanova (imagem de uma sexualidade manifesta, levada aos seus limites grotescos); Ensaio de Orquestra; A Cidade das Mulheres; O Navio (o adeus à Europa cujo barco se dirige rumo ao nada, acompanhado de árias de ópera); Ginger e Fred; Intervista (grande adeus ao cinema, à arte moderna e à arte, simplesmente); La Voce della Luna (o adeus final). No decorrer desses anos, irritados ao mesmo tempo pela sua estética muito exigente e pelo olhar desencantado que Fellini aponta sobre o mundo contemporâneo, as salas de cinema, a imprensa, o público (e até mesmo os produtores) afastam-se dele; não devendo nada a ninguém, passa a deliciar-se com a "alegre irresponsabilidade" (estou a citar) de uma liberdade que, até essa ocasião, ele não tinha podido conhecer.

Durante os seus últimos dez anos, Beethoven já não tem mais nada a esperar de Viena, da sua aristocracia e dos seus músicos que ainda o veneram mas já não o ouvem; ele, aliás, também já não os ouve, quanto mais não fosse porque tinha ficado surdo; Beethoven encontra-se no auge da sua arte; as suas sonatas e os seus quartetos não podem ser comparados com mais nada; pela complexidade da sua construção eles estão longe do classicismo sem que no entanto estejam próximos da espontaneidade fácil dos jovens românticos; na evolução da música, ele enveredou por uma direcção que não foi seguida por mais ninguém; sem discípulos, sem sucessores, a obra da sua liberdade vespertina acabou por ser um milagre, uma ilha.

 

O romance, a memória, o esquecimento

Amélie

Mesmo quando já ninguém ler os romances de Flaubert nunca será esquecida a frase "Madame Bovary sou eu". Essa famosa frase nunca foi escrita por Flaubert. Ficámos a devê-la à menina Amélie Bosque!, romancista medíocre que manifestou ter um grande afecto pelo seu amigo Flaubert ao fazer uma severa crítica à A Educação Sentimental em dois artigos particularmente parvos. A alguém cujo nome ficou para sempre desconhecido, essa Amélie confiou uma informação muito valiosa: em certa ocasião, perguntou a Flaubert que mulher era o modelo de Emma Bovary, ao que ele respondeu: "Madame Bovary, sou eu". Impressionado, esse desconhecido passou por sua vez a informação a um certo senhor Deschermes o qual. também ele muito impressionado, tratou de a difundir. As montanhas de comentários inspirados por esse apócrifo dizem muito acerca da futilidade da teoria literária, a qual, impotente diante de uma obra de arte se limita a debitar indefinidamente clichés acerca da psicologia do autor. E também dizem muito acerca daquilo a que chamamos a memória.

 

O esquecimento que apaga e a memória que transforma

Recordo-me de um dos reencontros da minha turma do liceu, vinte anos depois do exame final do ensino secundário: J. dirige-se jovialmente a mim nestes termos: "Ainda te estou a ver a dizer ao professor de Matemática: merda, senhor professor!" Ora, a fonética checa da palavra merda sempre me repugnou e eu estava absolutamente seguro de nunca ter dito aquilo. Mas todos a nossa volta desataram a rir. dando mostras de se lembrarem daquela minha bela proclamação. Chegando à conclusão que o meu desmentido não convencia ninguém, acabei por sorrir com modéstia e sem protestar, porque, admito acrescentá-lo à minha vergonha, agradou-me o facto de me ver transformado em herói ao ter cuspido essa palavra feia na cara do maldito professor.

Toda a gente viveu histórias desse género. Quando alguém se lembra de citar aquilo que vocês disseram durante uma conversa, vocês nunca se reconhecem nisso; os vossos propósitos são, no melhor dos casos, brutalmente simplificados, algumas vezes pervertidos (quando a vossa ironia é levada a sério) e muitas vezes não correspondem a nada daquilo que vocês alguma vez tenham podido dizer ou pensar. E não é preciso que fiquem admirados ou indignados com esse facto, porque esta é a evidência das evidências: o homem é separado do passado (mesmo de um passado velho de dois segundos) por duas forças que, de imediato, põem mãos à obra e cooperam entre si: a força do esquecimento (que apaga) e a força da memória (que transforma).

É a evidência das evidências, mas é difícil de admitir, porque, quando pensamos nela até ao fim, em que é que se tornam todos os testemunhos sobre os quais repousa a historiografia, em que é que se transformam as nossas certezas sobre o passado e em que é que se transforma a própria História, à qual nos referimos todos os dias, com credulidade, cândida e espontaneamente? Por detrás da fina fronteira do incontestável (não há a menor dúvida de que Napoleão perdeu a batalha de Waterloo), abre-se um espaço infinito, o espaço do aproximado, do inventado, do deformado, do simplificado, do exagerado, do mal compreendido, um espaço infinito de não-verdades que acasalam entre si, que se multiplicam como ratos e que acabam por se imortalizar.

 

O romance como utopia de um mundo que não conhece o esquecimento

A perpétua actividade do esquecimento transmite a cada um dos nossos actos um carácter fantasmagórico, irreal, vaporoso. O que é que almoçámos anteontem? O que é que o meu amigo me contou ontem? E até: em que é que eu estava a pensar há três segundos atrás? Tudo isso é esquecido e (o que é mil vezes pior!) não merecia mais do que isso. Contra o nosso mundo real que, por essência, é fugaz e digno de ser esquecido, as obras de arte erguem-se como se fossem um outro mundo, um mundo ideal, sólido, em que cada pormenor tem a sua importância, o seu sentido, onde tudo o que lá se encontra, cada palavra, cada frase, merece ser inesquecível e foi concebido como tal.

No entanto, a percepção da arte também não escapa ao poder do esquecimento. Com aquela precisão em que as artes se encontram, cada uma delas, numa posição diferente, face ao esquecimento. Deste ponto de vista, a poesia é uma privilegiada. Quem lê um poema de Baudelaire não pode deixar saltar uma única palavra. Se gostar dele, irá lê-lo inúmeras vezes, talvez até em voz alta. Se gostar dele loucamente, irá aprendê-lo de cor. A poesia lírica é uma fortaleza da memória.

O romance, pelo contrário, é, face ao esquecimento, um castelo miseravelmente fortificado. Se eu calcular uma hora de leitura para cada vinte páginas, um romance de quatrocentas páginas demorar-me-á vinte horas a ler, portanto, digamos, uma semana. Mas raramente encontramos uma semana completa livre. É mais provável que, entre as diversas sessões de leitura, se intrometam pausas de vários dias, durante as quais o esquecimento rapidamente instalará o seu estaleiro. Mas não é somente durante as pausas que o esquecimento trabalha - ele participa igualmente na leitura de uma maneira contínua, sem o menor descanso; ao virar uma página, esqueço de imediato aquilo que acabo de ler; reterei apenas uma espécie de resumo indispensável à compreensão daquilo que virá a seguir, ao passo que todos os detalhes, as pequenas observações, as fórmulas admiráveis já se apagaram. Um dia, alguns anos depois, apo-derar-se-á de mim o desejo de falar desse romance a um amigo; constataremos então o facto de que as nossas memórias, não tendo retido da leitura senão breves fragmentos, reconstruíram para cada um de nós dois livros totalmente diferentes.

E, no entanto, o romancista escreveu o seu romance como se escrevesse um soneto. Olhem para ele! Está maravilhado com a composição que vê desenhar-se à sua frente: o mais pequeno detalhe é para ele importante, ele transformá-lo-á num tema e fá-lo-á aparecer em múltiplas ocasiões, variações e alusões, como numa fuga. É por essa razão que ele tem a certeza de que a segunda metade do seu romance será mais bela ainda, mais forte que a primeira; porque quanto mais se avançar nas salas desse castelo, mais os ecos das frases já pronunciadas, dos temas já expostos se multiplicarão e, associados em acordes, soarão de todos os lados.

Recordo as últimas páginas de A Educação Sentimental: depois de ter interrompido desde há muito os seus namoricos com a História e de ter visto pela última vez a senhora Arnoux, Frédéric encontra-se com Des-lauriers, seu amigo desde a juventude. Melancólicos, falam da sua primeira ida a um bordel: Frédéric tinha quinze anos e Deslauriers dezoito; chegam lá como se estivessem apaixonados, cada um deles com um grande ramo de flores; as meninas riem-se, Frédéric foge, em pânico, devido à sua timidez, e Deslauriers segue-o. A recordação é boa, porque lhes faz recordar a velha amizade que eles mais tarde tantas vezes iriam trair, mas que, com aquele recuo de trinta anos, continua a manter-se sempre como um valor, talvez o mais valioso, mesmo que já tenha deixado de lhes pertencer. -Foi isso o que tivemos de melhor", disse Frédéric, e Deslauriers repete a mesma frase com a qual se conclui a sua educação sentimental e o romance.

Esse final não teve uma grande adesão. Acharam-no vulgar. Vulgar? A sério? Eu seria capaz de imaginar uma outra objecção, esta mais convincente: terminar um romance através de um tema novo é um defeito de composição; como se, num dos últimos compassos de uma sinfonia, em lugar de regressar ao tema principal, o compositor resvalasse de repente para uma nova melodia.

Sim, esta outra objecção é mais convincente, só que o tema da ida ao bordel não era novo; ele não aparece "de repente"; foi exposto no início do romance, no final do segundo capítulo da primeira parte: os ainda muito novos Frédéric e Deslauriers passaram um belo dia juntos (todo esse capítulo é consagrado à sua amizade) e, ao despedirem-se um do outro, olham para "a margem esquerda [onde] uma luz brilhava na lucar-na de uma casa baixa". Naquele momento, Deslauriers tira teatralmente o chapéu e pronuncia com ênfase algumas frases enigmáticas. "Aquela alusão a uma aventura comum enche-os de alegria. Eles vão a rir-se muito alto, pelas ruas fora." Todavia. Flaubert não diz em que é que consistiu essa "aventura comum"; ele reserva-se para a contar no final do romance para que o eco de um riso alegre (precisamente aquele que soava "muito alto, pelas ruas fora") se unisse à melancolia das frases finais num único e subtil acorde.

Mas se ao longo de toda a escrita do romance Flaubert estava a ouvir esse belo riso de amizade, o seu leitor, esse, esqueceu-o logo de imediato e, quando chega ao final, a evocação da ida ao bordel não desperta nele qualquer lembrança; não consegue ouvir qualquer música de um subtil acorde.

O que é que um romancista deve fazer face a esse devastador esquecimento? Terá que o desprezar e construir o seu romance como se se tratasse de um indestrutível castelo do inolvidável, mesmo sabendo que o seu leitor não o percorrerá senão de uma forma distraída, rápida e esquecida, sem nunca o habitar.

 

A composição

Ana Karenina é composto por duas linhas de narração: a de Ana (o drama do adultério e do suicídio) e a de Levine (a vida de um casal mais ou menos feliz). No final da sétima parte, Ana suicida-se. Segue-se-lhe a última parte, a oitava, consagrada exclusivamente à linha de Levine. Eis uma mais que nítida transgressão da convenção; porque, para qualquer leitor, a morte da heroína é o único final possível de um romance. Ora, na oitava parte, a heroína já não se encontra em cena; não restam da sua história senão um eco errante e os leves passos de uma recordação que se afasta; e isso é belo; e isso é verdade; apenas Vronski está desesperado e vai para a Sérvia para aí encontrar a morte na guerra contra os turcos; e mesmo a grandeza do seu acto é relativizado: a oitava parte desenrola-se quase inteiramente na quinta de Levine, o qual, no decorrer dos diálogos, troça da histeria pan-eslava dos voluntários que vão guerrear a favor dos sérvios; de resto, aquela guerra preocupa Levine muito menos do que as suas meditações sobre o homem e sobre Deus; elas surgem fragmentadas durante a sua actividade de agricultor e confundidas com a prosa da sua vida quotidiana que se volta a fechar, como um esquecimento final por cima de um drama de amor.

Ao colocar a história de Ana no vasto espaço do mundo onde acabaria por se fundir na imensidade do tempo governado pelo esquecimento, Tolstoi não fez mais do que obedecer à propensão fundamental da arte do romance. Porque a narrativa, que existe desde a noite dos tempos, transformou-se em romance no preciso momento em que o autor deixou de se contentar com uma simples -story" para passar a abrir enormes janelas sobre o mundo que se estendia à sua volta. Assim se juntaram à "story" outras "stories", episódios, descrições, observações, reflexões, e o autor encontrou-se face a uma matéria muito complexa, muito heterogénea, à qual passou a ficar obrigado, como se de um arquitecto se tratasse, a imprimir uma forma; assim, para a arte do romance, desde o início da sua existência, a composição (a arquitectura) adquiriu uma importância primordial.

Essa importância excepcional da composição é um dos sinais genéticos da arte do romance; é ela que a distingue das outras artes literárias, tanto das peças de teatro (a sua liberdade arquitectural está estritamente limitada pela duração de uma representação e pela necessidade de fazer captar continuamente a atenção do espectador) como da poesia. A este respeito, não chegará quase a ser chocante que Baudelaire, o incomparável Baudelaire, tenha podido utilizar os mesmos versos alexandrinos e a mesma forma de soneto que infindáveis multidões de poetas, antes e depois dele? Mas é essa a arte do poeta: a sua originalidade manifesta-se pela força da imaginação, não pela arquitectura do conjunto; pelo contrário, a beleza de um romance é inseparável da sua arquitectura; digo a beleza, porque a composição não é uma simples habilidade técnica; ela transporta consigo a originalidade do estilo de um autor (todos os romances de Dostoievski são fundados sobre o mesmo princípio de composição); e ela é o sinal de identidade de cada romance particular (no íntimo deste princípio comum, cada um dos romances de Dostoievski possui a sua arquitectura inimitável). A importância da composição é talvez ainda mais surpreendente nos grandes romances do século XX: Ulisses, com o seu leque de estilos diferentes; Ferdydurke, cuja história "picaresca" está dividida em três partes por dois entreactos cómicos que não têm qualquer relação com a acção do romance; o terceiro volume de Os Sonâmbulos, que integra num só conjunto cinco "géneros" diferentes (romance, novela, reportagem, poesia, ensaio); Palmeiras Bravas, de Faulkner, composto por duas histórias completamente autónomas que nunca se encontram, etc, etc.

Quando, um dia, a história do romance estiver terminada, que sorte estará reservada aos grandes romances que lhe sobrevivam? Alguns deles serão inenarráveis e, portanto, inadaptáveis (como Pantagruel, como Trístram Shandy, como Tiago o Fatalista, como Ulisses). Eles sobreviverão ou desaparecerão tal como são. Outros, graças à "story" que contêm, parecem ser narráveis (como Ana Karenina, como O Idiota, como O Processo) e, assim, adaptáveis ao cinema, à televisão, ao teatro, às bandas desenhadas. Mas essa "imortalidade" é uma quimera! Porque, para fazer de um romance uma peça de teatro ou um filme, é necessário primeiro conseguir decompor a sua composição; reduzi-lo à sua simples "story"; renunciar à sua forma. Mas, o que é que resta de uma obra de arte se for privada da sua forma? Julga-se poder prolongar a vida de um grande romance através de uma adaptação, quando, afinal, não se está a fazer mais senão construir um mausoléu onde apenas uma pequena inscrição sobre o mármore ficará a recordar o nome daquele que não se encontra ali.

 

Um nascimento esquecido

Quem é que hoje ainda se lembra da invasão da Checoslováquia pelo exército russo em Agosto de 1968? No meu tempo, isso foi uma calamidade. No entanto, se eu hoje me pusesse a escrever as memórias daquela época, o resultado seria pobre, seguramente cheio de erros e de mentiras involuntárias. Mas, ao lado da memória factual, existe uma outra: o meu pequeno país tinha-se-me deparado como que desprovido do último resto da sua independência, engolido para sempre por um imenso mundo estranho. Acreditei estar a assistir ao início da sua agonia. É claro que a minha avaliação da situação estava errada; mas, apesar desse meu erro (ou, antes, graças a ele) ficara gravada na minha memória existencial uma grande experiência: a partir daí fiquei a saber aquilo que nenhum francês, ou nenhum americano, pode saber; eu posso dizer que sei o que é para um homem assistir à morte da sua nação.

Tendo ficado hipnotizado pela imagem da sua morte, pensei no seu nascimento, ou, mais exactamente, no seu segundo nascimento, o seu renascimento após os séculos XVII e XVIII durante os quais, tendo desaparecido dos livros, das escolas, das administrações, a língua checa (outrora a grande língua de Jan Hus e de Comenius) lá ia vivendo penosamente ao lado do alemão como mero idioma doméstico. Pensei então nos escritores e artistas checos daquele século XIX, os quais, num espaço de tempo miraculosamente curto, tinham conseguido despertar uma nação adormecida; pensei então em Bedrich Smetana que nem sequer sabia escrever correctamente em checo, que escrevia os seus diários em alemão e que, no entanto, era a personalidade mais emblemática da nação. Situação única: os checos, todos bilingues, tinham então a oportunidade de escolher: nascer ou não nascer; existir ou não existir. Um deles, Hubert Gordon Schauer, teve a coragem de, sem grandes complicações, formular a essência daquilo que estava em jogo: "Não seríamos nós mais úteis à humanidade se uníssemos toda a nossa energia espiritual à cultura de uma grande nação que se encontra a um nível bastante mais elevado do que a cultura checa nascente?". Mas, no entanto, eles acabaram por preferir uma "cultura nascente" à cultura já amadurecida dos alemães.

Tentei compreendê-los. Em que é que consistia a magia da sedução patriótica? Seria a sedução por uma viagem ao desconhecido? A nostalgia de um grande passado já findo? Ou uma nobre generosidade, ao preferirem o fraco ao poderoso? Ou, então, seria o prazer de pertencerem a um grupo de amigos ávidos de criarem um mundo novo ex nihilo? De criarem não apenas um poema, um teatro, um partido político, mas sim toda uma nação, mesmo com a sua língua já semidesaparecida? Não estando eu separado dessa época senão por umas três ou quatro gerações, fiquei espantado com a minha incapacidade para me imaginar na pele dos meus antepassados e para conseguir recriar na minha imaginação a situação concreta que eles próprios tinham vivido.

Pelas ruas deambulavam os soldados russos, eu sentia-me aterrorizado só de imaginar que uma força opressora iria impedir-nos de continuar a ser o que éramos e, ao mesmo tempo, pude constatar, confuso, que eu não era capaz de compreender como e por que é que nos tínhamos tornado no que éramos; e cheguei ao ponto de nem sequer ter a certeza se, um século antes, eu teria optado por escolher ser checo. Não era o conhecimento dos acontecimentos históricos que me faltava. Eu tinha era necessidade de um outro conhecimento, aquele que, como teria dito Flaubert, vai até à "alma" de uma dada situação histórica, que consegue captar o seu conteúdo humano. Talvez um romance, um grande romance, tivesse podido fazer-me compreender como é que os checos dessa época teriam vivido a sua decisão. Ora, acontece que um tal romance nunca foi escrito. Esse é um dos tais casos em que a falta de um grande romance é irremediável.

 

O esquecimento inesquecível

Alguns meses depois de ter abandonado para sempre o meu pequeno país raptado, encontrava-me eu na Martinica. É que, talvez, durante alguns tempos, eu tivesse tido necessidade de esquecer a minha condição de exilado. Mas isso foi-me impossível: hipersensível como eu era ao destino dos países pequenos, ali tudo me fazia lembrar a minha Boémia, ainda mais porque o meu encontro com a Martinica teve lugar na altura em que a sua cultura andava apaixonadamente em busca da sua própria personalidade.

O que é que eu nessa época conhecia dessa ilha? Nada. Com a excepção do nome de Aimé Cesaire cuja obra poética eu lera aos dezassete anos em tradução, logo a seguir à guerra, numa revista checa de vanguarda. Para mim, a Martinica era a ilha de Aimé Cesaire. E, com efeito, foi assim que ela se me deparou quando lá cheguei. Cesaire era então o presidente da câmara de Fort-de-France. Pude observar todos os dias, junto da câmara municipal, multidões que o aguardavam, para lhe falarem, para se abrirem com ele, para lhe pedirem conselhos. De certeza que nunca mais voltarei a ver um tal contacto íntimo, carnal, entre o povo e o seu representante.

O poeta como fundador de uma cultura, de uma nação, isso, tinha eu conhecido muito bem na minha Europa Central; tais tinham sido os casos de Adam Mickiewicz na Polónia, Sándor Petöfi na Hungria, Karel Hynek Macha na Boémia. Mas Macha foi um poeta maldito, Mickiewicz um exilado e Petófi um jovem revolucionário morto em 1849 numa batalha. Nenhum deles teve a oportunidade de conhecer aquilo que Cesaire conheceu: o amor abertamente declarado dos seus. E, além disso, Cesaire não foi um romântico do século XIX, foi um poeta moderno, herdeiro de Rimbaud e amigo dos surrealistas. Se a literatura dos pequenos países centro-europeus está enraizada na cultura do romantismo, a da Martinica  (e de todas as Antilhas) nasceu (e isso maravilhava-me!) da estética da arte moderna!

Foi um poema do jovem Césaire que tudo desencadeou: Cahier dun retour au pays natal (1939); o regresso de um preto a uma ilha de pretos nas Antilhas; sem qualquer romantismo, sem nenhuma idealização (Césaire não fala dos Negros; ele fala, de propósito, dos pretos), o poema questiona-se, de uma forma brutal: quem somos nós? Meu deus, de facto, quem são eles, esses Negros das Antilhas? Sabemos que foram para lá deportados no século XVII, idos de África; mas, de onde, exactamente? de que tribo faziam eles parte? qual tinha sido a sua língua? O passado foi esquecido. Guilhotinado. Guilhotinado por uma longa viagem dentro de porões, entre cadáveres, gritos, choros, sangue, suicídios, assassinatos; nada ficou dessa passagem pelo inferno; nada, para além do esquecimento; o esquecimento fundamental e fundador.

O inesquecível choque do esquecimento tinha transformado a ilha dos escravos em teatro de sonhos; porque não foi senão através dos sonhos que os martiniquenhos puderam imaginar a sua própria existência, criar a sua memória existencial; o inesquecível choque do esquecimento tinha elevado os contadores populares ao rol dos poetas da identidade (foi para lhes prestar homenagem que Patrick Chamoiseau escreveu o seu Solibo Magnifique) e haveria de legar mais tarde a sua sublime herança oral, com todas aquelas suas fantasias e extravagâncias, aos romancistas. Eu adorava esses romancistas - eles eram-me tão estranhamente próximos (não somente os martiniquenhos, mas também os haitianos, René Depestre, exilado como eu, Jacques Stephen Alexis, executado em 1961, tal como, vinte anos antes, em Praga, Vladislav Vancura, o meu primeiro amor literário); os seus romances eram muito originais (o sonho, a magia e a fantasia desempenhavam neles um excepcional papel) e de enorme importância não somente para as suas ilhas, mas, também (coisa rara que não posso deixar de sublinhar), para a arte moderna do romance, para a Weltliteratur.

 

Uma Europa esquecida

E nós, na Europa, quem somos?

Penso na frase que Friedrich Schlegel escreveu nos últimos anos do século XVIII: "A Revolução Francesa, Wilhelm Meister de Goethe e Wissenschaftslehre de Fichte são as maiores tendências da nossa época (die grösten Tendenzen des Zeitalters)." Colocar um romance e um livro de filosofia ao mesmo nível de um enorme acontecimento político, era isso a Europa; essa Europa nascida com Descartes e Cervantes: a Europa dos Tempos Modernos.

Seria difícil imaginar que, há trinta anos atrás, alguém pudesse escrever (por exemplo): a descolonização, a crítica da técnica de Heidegger e os filmes de Fellini encarnam as maiores tendências do nosso tempo. Esta maneira de pensar já não corresponderia ao espírito da época.

E hoje? Quem é que ousaria conceder a mesma importância a uma obra de cultura (da arte, do pensamento) e (por exemplo) ao desaparecimento do comunismo na Europa?

Já não existe uma obra de uma tal importância?

Ou será que perdemos a capacidade de a reconhecer?

Essas questões não fazem sentido. É que a Europa dos Tempos Modernos já não existe. Essa Europa onde vivemos já não se esforça por encontrar a sua identidade no espelho da sua filosofia e das suas artes.

Mas, então, onde é que está o espelho? Onde é que podemos ir procurar o nosso rosto?

 

O romance como viagem através dos séculos e dos continentes

El Arpa y La Sombra (1979), romance de Alejo Carpentier, é composto por três partes. A primeira situa-se no início do século XIX, no Chile, onde passa algum tempo o futuro papa Pio IX; convencido de que a descoberta do novo continente tinha sido o acontecimento mais glorioso da cristandade moderna, ele decide consagrar a sua vida à beatificação de Cristóvão Colombo. A segunda parte reenvia-nos para três séculos antes: o próprio Cristóvão Colombo narra a sua incrível aventura da descoberta da América. Na terceira parte, uns quatro séculos após a sua morte, Cristóvão Colombo assiste, invisível, a uma sessão do tribunal eclesiástico durante a qual, após uma discussão tão erudita como fantasista (estamos na época pós-Kafka em que a fronteira do inverosímil já deixara de ser vigiada), lhe é recusada a sua beatificação.

Integrar desta maneira diferentes épocas históricas numa única composição - eis uma das novas possibilidades, outrora impensáveis, que se abriram perante a arte do romance do século XX a partir do momento em que ela foi capaz de transpor os limites do seu fascínio pelas psicologias individuais e passar a debruçar-se sobre a problemática existencial no sentido lato, geral, supra-individual dessa palavra. Mais uma vez me vou reportar a Os Sonâmbulos, onde Hermann Broch, para demonstrar a existência europeia varrida pela "degradação dos valores", se fixa sobre três épocas históricas separadas, três degraus através dos quais a Europa se encontrava a descer para o desmoronamento final da sua cultura e da sua razão de existir.

Broch inaugurou uma nova via para a forma romanesca. Será nessa via que se encontra a obra de Carpentier? É claro que é. Nenhum grande romancista pode colocar-se fora da história do romance. Mas, por detrás de uma forma semelhante, escondem-se diferentes intenções. Não é através da confrontação de diversas épocas históricas que Carpentier procura resolver o mistério de uma Grande Agonia; ele não é europeu; no seu relógio (o relógio das Antilhas e de toda a América Latina) os ponteiros ainda estão longe da meia-noite; ele não coloca a si mesmo a pergunta "por que é que nós temos que desaparecer?", mas "por que é que haveríamos nós de ter nascido?".

Por que é que haveríamos nós de ter nascido? E quem somos nós? E qual é a nossa terra, a terra nostra? Nunca conseguiremos compreender lá grande coisa se nos contentarmos em sondar o enigma da identidade apenas com a ajuda de uma memória puramente introspectiva; para conseguir compreender é necessário comparar, afirmava Broch; é necessário submeter a identidade à experiência das confrontações; é necessário confrontar (como Carpentier em O Século das Luzes, 1958) a Revolução Francesa com as suas réplicas das Antilhas (a guilhotina parisiense com a da Guadalupe); é necessário que um colono mexicano do século XVIII (em Concerto Barroco de Carpentier, 1974) fraternize em Itália com Haendel, Vivaldi, Scarlatti (e mesmo com Stravinski e Armstrong, nas horas tardias de uma pândega!) e que, dessa forma, nos seja possível assistir a uma fantástica confrontação entre a América Latina e a Europa; é necessário que o amor de um operário por uma prostituta, em L’Espace d'un Cillement (1959) de Jacques Stephen Alexis, aconteça num bordel haitiano tendo como pano de fundo um mundo totalmente estranho representado por uma clientela de marinheiros norte-americanos; porque a confrontação das conquistas inglesa e espanhola da América paira constantemente no ar: "Abre os olhos, Miss Harriet, e lembra-te que massacrámos os Peles-Vermelhas, mas que nunca tivemos a coragem de fornicar com as mulheres índias para que daí resultasse, ao menos, um país mestiço", afirma o protagonista do romance de Carlos Fuentes (O Velho Gringo, 1983), um velho norte-americano perdido na revolução mexicana; com essas palavras, ele consegue abarcar a diferença entre as duas Américas e, ao mesmo tempo, dois arquétipos opostos da crueldade: o que é ancorado no desprezo (que prefere matar à distância, sem estar em contacto com o inimigo e não tendo sequer necessidade de o ver) e o que se alimenta de um perpétuo contacto íntimo (que tem desejo de matar, mas que, ao mesmo tempo, vê, olhos-nos-olhos, o inimigo)...

A paixão pela confrontação em todos esses romancistas, é, ao mesmo tempo, o desejo de um ar, de um espaço, de uma respiração: o desejo de formas novas; estou a pensar em Terra Nostra (1975), de Fuentes, essa imensa viagem através dos séculos e dos continentes; encontram-se nele sempre os mesmos personagens que, graças à arrebatadora fantasia do autor, se reencarnam sob o mesmo nome em diferentes épocas; a sua presença assegura a unidade de uma composição que, na história das formas romanescas, se ergue, incrível, na última fronteira do possível.

 

O teatro da memória

Existe em Terra Nostra um personagem, um sábio louco, que possui um curioso laboratório, um "teatro da memória", no qual um fantástico mecanismo medieval lhe permite projectar sobre um ecrã não apenas todos os factos que aconteceram, mas, também, todos aqueles que poderiam ter acontecido; segundo ele, a par da "memória científica", existe a "memória de poeta" que, adicionando a história real a todos os factos que seriam possíveis, abarca o "conhecimento total de um passado total".

Como se tivesse sido inspirado pelo seu sábio louco, Fuentes põe em cena em Terra Nostra personagens históricas de Espanha, reis e rainhas, mas cujas aventuras em nada se assemelham àquelas que realmente aconteceram; o que Fuentes projecta sobre o ecrã do seu próprio "teatro da memória" não é a História de Espanha, é uma variação fantástica acerca do tema da História de Espanha.

O que me leva a pensar numa passagem bem divertida de Troisième Henri (1974) de Kazimierz Brandys: numa universidade americana, um emigrante polaco ensina História da Literatura do seu país; sabendo que ninguém conhece nada acerca dela, ele resolve inventar, para se divertir, uma literatura fictícia, composta por escritores e por obras que nunca viram a luz do dia. No final do ano universitário, ele acaba por constatar que essa história imaginária não se distingue da verdadeira em nada de essencial - que ele não inventou nada que não se pudesse ter passado e que as suas mistificações reflectem fielmente o sentido e a essência da literatura polaca.

Também Robert Musil possuía o seu "teatro da memória"; nele, Musil analisava a actividade de uma poderosa instituição vienense, "A Acção Paralela", a qual preparava para o ano de 1914 a celebração do aniversário do seu imperador com a intenção de fazer dela uma enorme festa pan-europeia da paz (sim, aqui está mais uma enorme piada-negra!); toda a acção de O Homem sem Qualidades, que se estende ao longo de duas mil páginas, forma-se à volta dessa importante instituição intelectual, política, diplomática e mundana que nunca existiu.

Fascinado pelos segredos da existência do homem moderno, Musil considerava os acontecimentos históricos como (estou a citar) vertauschbar (intermutáveis, permutáveis); porque as datas das guerras, os nomes dos vencedores e dos vencidos e as diversas iniciativas políticas resultam de um jogo de variações e permutações cujos limites são determinados por forças profundas e escondidas. Frequentemente, essas mesmas forças manifestam-se de uma maneira muito mais reveladora numa outra variação da História do que aquela que, por acaso, aconteceu.

 

Consciência da continuidade

Então tu dizes-me que eles te detestam? Mas o que é que isso quer dizer, "eles"? Cada um detesta-te de uma maneira diferente e podes ter a certeza de que, entre eles, até haverá alguns que gostam de ti. Através da sua prestidigitação, a gramática consegue transformar uma multidão de indivíduos numa única entidade, num único sujeito, num único "subjec-tum" a que chamamos "nós" ou "eles", mas que, enquanto realidade concreta, não existe. A velha Addie morre rodeada pela sua numerosa família. No romance Na Minha Morte (1930), Faulkner narra-nos a sua longa viagem dentro do caixão a caminho do cemitério num canto perdido da América. O protagonista do romance é um colectivo, uma família; é o seu cadáver, a sua viagem. Mas, através da forma do romance, Faulkner frustra a mistificação do plural: porque não é um só narrador mas os próprios personagens (existem quinze) que (em sessenta curtos capítulos) narram, cada um à sua maneira, essa anábase.

A tendência para demolir a ilusão gramatical do plural e, com ela, o poder do narrador único, tendência tão surpreendente nesse romance de Faulkner, está presente na arte do romance, em embrião, enquanto possibilidade, logo desde o começo e, de uma maneira quase programática, na forma do "romance epistolar", muito difundido ao longo do século XVIII. Essa forma inverteu logo à partida a relação de forças entre a "story" e os personagens; já não era a lógica de uma "story" que decidia sozinha qual dos personagens iria entrar em cena e em que momento do romance - desta vez os personagens emancipavam-se, apropriavam-se da total liberdade da palavra, tornavam-se eles próprios donos do jogo; porque uma carta, por definição, é uma confissão de um correspondente que fala do que quer, que é livre de divagar, passar de um assunto para outro.

Fico deslumbrado quando penso na forma do "romance epistolar" e nas suas inúmeras possibilidades; e, quanto mais penso nisso, mais me parece que essas possibilidades permaneceram inexploradas, senão mesmo despercebidas - ah, a naturalidade com que o autor teria podido colocar num surpreendente conjunto todo o tipo de divagações, de episódios, de reflexões, de recordações, confrontar diferentes versões e interpretações de um mesmo acontecimento! Infelizmente, o "romance epistolar" teve o seu Richardson e o seu Rousseau, mas não teve nenhum Laurence Sterne; ele renunciou às suas liberdades, hipnotizado como estava pela despótica autoridade da "story". E volto a lembrar-me do sábio louco de Fuentes e digo a mim próprio que a história de uma arte (o "passado total" de uma arte) é feita não apenas daquilo que essa mesma arte criou mas também de tudo aquilo que ela teria podido criar, de todas as suas obras realizadas, bem como de todas as suas obras possíveis e não realizadas; mas, deixemos isso; ficou-nos de todos os "romances epistolares" um enormíssimo livro que conseguiu resistir ao tempo: As Ligações Perigosas (1782) de Choderlos de Laclos; é nesse romance que eu penso quando leio Na Minha Morte.

Ressalta da afinidade dessas duas obras não que uma foi influenciada pela outra, mas que ambas pertencem à mesma história da mesma arte e se debruçam sobre um grande problema que essa mesma história lhes oferece: sobre o poder abusivo do narrador único; separadas por um tão longo espaço de tempo, essas duas obras estão unidas por um mesmo desejo de quebrar esse poder, de destronar o narrador; (e a sua revolta não visa somente o narrador no sentido da teoria literária, ela atira-se também ao atroz poder desse Narrador que, desde tempos imemoriais, sempre foi contando à humanidade uma única versão aprovada e imposta de tudo o que foi existindo). Vista sobre a tela de fundo de As Ligações Perigosas, a forma insólita do romance de Faulkner revela todo o seu profundo sentido, ao mesmo tempo que, de uma maneira inversa, Na Minha Morte torna perceptível a enorme audácia artística de Laclos, que foi capaz de iluminar uma única "story" a partir de múltiplos ângulos e fazer do seu romance um carnaval de verdades individuais e da sua irredutível relatividade.

Poder-se-á afirmar de todos os romances: a sua história comum coloca-os dentro de numerosas relações mútuas, as quais fazem com que se esclareça o seu sentido, se prolongue o seu esplendor e que sejam protegidos contra o esquecimento. O que é que teria restado de François Rabelais se Sterne, Diderot, Gombrowicz, Vancura, Grass, Gadda, Fuentes, Garcia Marquez, Kis, Goytisolo, Chamoiseau, Rushdie não tivessem feito soar o eco das suas loucuras nos seus romances? É à luz de Terra Nostra (1975) que Os Sonâmbulos (1929-1932) permitem ver todo o alcance da sua novidade estética, a qual, à época do seu aparecimento, quase não era perceptível, e é nas imediações desses dois romances que Os Versículos Satânicos (1991) de Salman Rushdie deixam de ser uma efémera actualidade política para se tornarem numa grande obra, a qual, com os seus confrontos oníricos entre as épocas e os continentes, desenvolve as mais audaciosas possibilidades do romance moderno. E Ulisses! Só será capaz de o compreender aquele que se sentir familiarizado com a velha paixão da arte do romance para com o mistério do momento presente, para com a riqueza contida num único segundo de vida, para com o escândalo existencial da insignificância. Colocado fora do contexto da história do romance, Ulisses acabaria por não passar de um mero capricho, de uma incompreensível extravagância de um louco.

Se fossem arrancadas da história das suas respectivas artes, muito pouco sobraria das obras de arte.

 

Eternidade

Houve largos períodos durante os quais a arte não buscava o novo e já se sentia orgulhosa por conseguir tornar bela a repetição, por reforçar a tradição e por assegurar a estabilidade de uma vida colectiva; a música e a dança não existiam então senão no quadro de ritos sociais, missas e festas. Depois, um dia, no século XII, um músico de uma igreja em Paris teve a ideia de juntar à melodia do canto gregoriano, idêntico desde há séculos, uma voz em contraponto. A melodia principal continuava sempre a ser a mesma, imemorial, mas aquela voz em contraponto era uma novidade que dava acesso a outras novidades, ao contraponto a três, a quatro, a seis vozes, a formas polifónicas cada vez mais complexas e inesperadas. Uma vez que tinham deixado de se limitar a copiar o que já tinha sido feito antes, os compositores perderam o anonimato e os seus nomes iluminaram-se, quais lâmpadas balizando um percurso até aos confins. Tendo iniciado o seu voo, a música tornou-se, durante muitos séculos, história da música.

Todas as artes europeias, cada uma na sua época, iniciaram assim os seus voos, transformadas dentro da sua própria história. Foi nisso que residiu o grande milagre da Europa: não a sua arte, mas a sua arte transformada em história.

Infelizmente, os milagres são de curta duração. E quem levanta voo, mais cedo ou mais tarde há-de ter que aterrar. Preso de angústia, já estou a imaginar o dia em que a arte deixará de buscar o nunca-dito e se recolocará, dócil, ao serviço da vida colectiva, a qual, por sua vez, exigirá dela que torne bela a repetição e que ajude o indivíduo a confundir-se, em paz e alegria, com a uniformidade do ser.

Porque a História da Arte é efémera. A tagarelice da arte é eterna.

 

                                                                                            Milan Kundera

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades