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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMOR COSSACO / Heinz G. Konsalik
AMOR COSSACO / Heinz G. Konsalik

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AMOR COSSACO

 

Ouviam‑se tocar os sinos quando as carruagens entraram em Moscovo.

 Já estavam habituados: os sinos repicavam em Moscovo porque o czar implorava o perdão de Deus ou, então, porque mandara executar diante do Kremlin espiões, inimigos, nobres insubmissos, traidores ou simples suspeitos. Em Moscovo ouviam‑se constantemente os sinos, como se a vida quotidiana fosse uma sucessão de festas.

 E, enquanto deslizavam pelas ruas da cidade, surgia diante dos seus olhares a mesma visão familiar: dos dois lados, à sua passagem, os citadinos olhavam‑nos, boquiabertos, como perante um espectáculo inacreditável.

 Desbarretavam‑se, curvavam‑se e, depois, as cabeças aproximavam‑se: "Viste, meu caro? Trenós forrados de zibelina! Cavalos com arreios de prata! Os sinos das tróicas são de ouro puro e os seus gorros cintilam, cravejados de pedras preciosas. Que opulência! Que altivez!

 Quanto tempo ainda durará tudo isto? Será permitido ser mais rico do que o czar? E mostrá‑lo, ainda por cima?"

 ‑ Deus os defenda, aos ricos senhores do país de Perm...

 Os guardas do Kremlin não se opuseram à entrada dos trenós. Quem se apresentasse envolvido em peles de raposa azul tinha a passagem livre.

 

 Transposta a muralha do Kremlin, foram recebidos pelo coro dos monges, vindo da igreja da Ressurreição. Mas o caminho entre a igreja e o palácio encontrava‑se ladeado por soldados. O príncipe Chouisky acabava justamente de transpor a entrada, quando os trenós se detiveram. Vieram serviçais pegar nas rédeas dos cavalos fumegantes e retirar as pesadas mantas de pele de raposa do interior dos trenós. Três homens, envergando longos cafetões de zibelina, apearam‑se e desentorpeceram as pernas, confrontados com o ar glacial.

 - Os irmãos Stroganov acabam de chegar.

 ‑ Príncipe Chouisky! ‑ exclamou Jacob, o primogénito. ‑ É de bom augúrio vermos‑te a ti em primeiro lugar! Como vai o czar!

 ‑ Sempre a rezar.

 O príncipe Chouisky apontou para a igreja:

 ‑ Assistimos ontem a noventa e quatro execuções. O czar reza por ter sido obrigado a tomar tal decisão.

 O coro dos monges elevou‑se, encheu a atmosfera. Os irmãos Stroganov calaram‑se, de olhos fixos nos campanários dourados em forma de bolbos. Mas o seu silêncio não traduzia respeito... Enquanto os cânticos religiosos louvavam o Senhor, os três irmãos, em silêncio, faziam contas às dívidas que o czar contraíra junto deles. Quanto ouro, prata, cobre, quantas peles, sedas, brocados e até rublos lhe deram a fim de que ninguém pudesse dizer: "Vejam só estes Stroganov! A sua riqueza cresce dia a dia como massa de fermento no forno! Acabarão por estoirar com tanto poder e abundância! Chegámos ao ponto de não ser possível distinguir o que pertence ao czar do que é propriedade dos Stroganov!"

 ‑ Quer entrar na igreja? ‑ perguntou o príncipe Chouisky, descendo a escada e desdobrando a gola de pele.

 Os irmãos Stroganov hesitaram. Em seguida aquiesceram, abanando a cabeça. O coro dos monges e dos padres desceu de tom; os sinos repicaram. O czar Ivan IV, de alcunha o Terrível, recebia a bênção do metropolita de Moscovo, que se encarregava pessoalmente deste dever, pois como primeiro príncipe da Igreja que era, tinha os pés bem assentes na terra. O seu antecessor fora torturado, castrado e privado da vista, exemplo que nenhum versículo da Bíblia obriga a seguir.

 ‑ Os vossos emissários chegaram anteontem ‑ transmitiu o príncipe Chouisky a Jacob, Gregor e Simeão Stroganov. ‑ Trocaram beijos fraternos e o czar parecia feliz ‑ acrescentou.

 ‑ Precisa de dinheiro! ‑ replicou Gregor Stroganov, dando uma gargalhada. ‑ Trazemo‑lhe cem mil rublos em ouro!

 ‑ Agradecer‑vos‑á do fundo do coração!

 O príncipe encaminhou os três irmãos para a porta que, por um curto atalho, conduzia do palácio à igreja, e cujo batente o czar entreabria pelo menos três vezes por dia, a fim de ouvir os cânticos religiosos. Até aí, todos os czares, ao envelhecerem, procuravam protecção no seio da igreja... O que parecia estranho, porém, é que, com a idade, também se tornavam mais cruéis.

 Os czares isolavam‑se, assim, do mundo, e aniquilavam‑no...

 ‑ Entrem depressa! ‑ sugeriu Chouisky. ‑ As orações já terminaram e, se o czar os vir no átrio e não no interior da igreja, pode irritar‑se!

 Atravessaram rapidamente algumas vastas antecâmaras, longos corredores abobadados, salas ornadas de colunas torcidas e cobertas de tapeçarias e, depois, aguardaram à porta da sala de audiências, tendo deparado com um grupo de boiardos que já se encontravam lá. Estes cumprimentaram os Stroganov com uma cortesia distante, já que, desde o primeiro grande Stroganov, Anika, o Salineiro, se tornara tão poderosamente rico que conseguira mandar construir um palácio e ter junto de si um médico alemão, desde que esse mesmo Anika Stroganov fora nomeado fornecedor particular do czar e abastecia o imperador da Alemanha em peles preciosas, a rainha Isabel de Inglaterra em capas de zibelina, e os leitos das czarinas em mantas de uma leveza impalpável, ninguém sabia ao certo qual o poder concedido por Ivan IV aos filhos de Anika.

 De resto, os Stroganov obtinham tudo o que se lhes pedia: salmão, trutas, solhas, caviar, peles de rena da tundra, castores, zibelinas, peles de esquilo, arminhos e raposas. Chegaram mesmo a encontrar pérolas no rio Iksa, o que pareceu misterioso, embora as tivessem exibido! Importavam vinhos de Itália e, na feira de Kola, trocavam peles por pipas de vinho. Na rude Rússia, no reino moscovita, o vinho era uma raridade e a venda de vinho ao czar e aos boiardos revelava‑se bastante rendosa.

 Não se mostrarem invejosos! Era um dos princípios dos Stroganov. Prudência, e atenção ao futuro. Esta a principal preocupação de todos, príncipes e boiardos. E assim corriam os negócios, melhor ou pior, com a ajuda de pequenos presentes e de serviços prestados. Construir amizades, e boas defesas!

 O czar envelhecera, tornara‑se uma sombra do que fora, decrépito, curvado, nunca tendo recuperado depois de ter morto o filho mais velho num furioso ataque de raiva. O actual herdeiro era um débil meio‑idiota. Quem sucederia a Ivan se este morresse subitamente? Quem se encarregaria do destino da imensa santa Rússia? Esse bruto do Boris Godounov? O sensato Chouisky? Dimitri, o Lactente?

 Que recomendava aos filhos Anika Stroganov? "Calcular os lucros, esquecer as despesas." O que significava conquistar o poder fosse qual fosse o potentado reinante no Kremlin. Eles precisam de dinheiro, os czares! E, sem os Stroganov, o cofre do czar encontrar‑se‑ia meio‑vazio. O brilho de Moscovita tinha origem no longínquo país de Perm, berço de uma dinastia de comerciantes como o mundo nunca conhecera, e em relação aos quais os comerciantes alemães de Augsburgo não passavam de pequenos lojistas!

 Um sentimento de inquietação propagava‑se entre todos os que se encontravam à espera. A guarda do palácio, composta por gigantescos russos brancos, usando enormes gorros de peles que os faziam parecer ainda mais altos, defendia as entradas. O czar regressara da igreja.

 Uma teoria de mulheres de rosto velado, como freiras penitentes, percorria os corredores: aves nocturnas de reflexos azuis, a czarina e as damas de companhia.

 Os boiardos aproximaram‑se uns dos outros, os irmãos Stroganov olharam‑se, a porta da sala de audiências abriu‑se bruscamente e Boris Godounov apareceu, envergando um longo manto bordado a ouro, cujas pregas ainda exalavam o perfume do incenso. Dirigiu‑se aos Stroganov e estendeu‑lhes a mão, pois beijá‑los seria despropositado. Não eram nobres e, aos olhos de todos, apresentavam‑se como comerciantes vindos da massa anónima do povo, bem cotados, mas não tratados como iguais.

 Só mais tarde, nos seus aposentos privados, Godounov os honraria com um abraço, como fizera o príncipe Chouisky. Os Stroganov importavam‑se pouco com estes pormenores, tinham mais consciência do seu valor do que Boris Godounov do dele.

 ‑ O czar dignar‑se‑á recebê‑los ‑ disse Godounov num tom de voz tão forte que todos os presentes ouviram.

 ‑ Deus abençoe o czar!

 ‑ Deus o abençoe! ‑ murmuraram em coro os irmãos Stroganov. "Basta de salamaleques", pensaram eles, passando diante de Godounov, para penetrarem na sala de audiências. Baixaram a cabeça e, atrás deles, fecharam‑se os pesados batentes da porta. Encontravam‑se sozinhos em frente de Ivan, o Terrível, tal como este ordenara. Godounov e Chouisky aguardavam na antecâmara. Mais uma prova da importância que estes comerciantes assumiam aos olhos do czar! Encontrarem‑se a sós com o czar equivalia a uma bênção...

 O que ouviam contar na longínqua região de Perm, em Oriol, nas margens do rio Kama, residência dos Stroganov, podiam vê‑lo agora, à sua frente: um czar sentado no trono, curvado, de rosto macilento, do qual sobressaía um nariz aquilino. Sobre o cabelo grisalho, um gorro de zibelina. Quanto à pelica, de brocado francês e guarnecida de peles, vinha da casa Stroganov... A barba do czar era rala. Ivan, mesmo sentado, apoiava‑se no seu bastão de ponta ferrada, no seu possoch todo ornamentado a ouro e prata trabalhada, o maldito bastão com o qual zurzira, matara, traspassara, empalara o próximo, símbolo do seu poder ilimitado, só suplantado por Deus. A pior característica de Ivan: assassinava enquanto orava...

 Os irmãos Stroganov, sempre de cabeça baixa, espreitavam o czar. Assustados com o seu aspecto de moribundo, pensaram todos o mesmo: teremos de conseguir hoje mesmo aquilo de que necessitamos, nós, os Stroganov, mas também a Rússia: o domínio do mundo inteiro! Nascerá hoje o povo mais rico, mais feliz do Universo, a grande Rússia!

 ‑ Então, vis traficantes? ‑ lançou‑lhes Ivan, em voz alta.

 Os Stroganov ergueram a cabeça. Este acolhimento traduzia boas intenções: se Ivan lhes chamava traficantes, estava bem‑disposto. De contrário, qualificá‑los‑ia de lobos uivando à sua porta, lobos que ele alimentava e pretendiam pagar‑lhe em excrementos... Era difícil falar com o czar, o que o velho pai Anika sabia perfeitamente. Só o sucesso contava. "Calcular os lucros, esquecer as dádivas..."

 ‑ Sois a essência de Moscovo, senhor ‑ disse Jacob, o mais velho. ‑ Oxalá Deus não se lembre de que uma essência pode volatilizar‑se...

 ‑ Que querem de mim?

 O czar apontou para um banco estofado, no qual se sentaram os três irmãos, constrangidos como colegiais, até que Gregor, o mais diplomata, tomou a palavra:

 ‑ Grande Czar, trazemos cem mil rublos em moedas de ouro, duas mil peles de esquilo, novecentas raposas azuis...

 Ivan observava atentamente os três irmãos, com o seu olhar penetrante que se tornara ainda mais insuportável nos últimos anos. A vítima desse olhar emudecia ao imaginar a crueldade em todo o seu horror.

 ‑ Trazem tudo isso da vossa região de Perm?

 ‑ Não.

 Simeão Stroganov, o estratega da família, tentou suportar o olhar do czar. Conseguiu‑o, mas o seu coração batia tanto que o sentia na garganta.

 ‑ Como sabeis, senhor, caçadores estrangeiros fornecem‑nos peles que vêm do outro lado dos rochedos, dos vales, das montanhas dos Urales, é um país a que chamam Mangaseja...

 ‑ Mangaseja! ‑ Ivan debruçou‑se para a frente e apoiou‑se ainda mais no bastão dourado. ‑ Sempre Mangaseja! Já o vosso pai me falava de Mangaseja!

 ‑ Não o ignoramos, grande czar ‑ Jacob, o frio calculista, lançou esta observação e acrescentou: ‑ E sabemos que projectavas penetrar nesse país pela força das armas, a fim de o conquistar para a Rússia. Mas é impossível. Um exército deve dispor de uma via de penetração, precisa de receber víveres e munições. Não é possível enviar homens e guarnições para regiões selvagens que ninguém conhece, exceptuando alguns caçadores de peles. A cadeia montanhosa inacessível dos Urales impede o acesso. Não existe nenhum caminho para além de alguns carreiros que orlam precipícios e se elevam a altitudes vertiginosas...

 ‑ Mangaseja ‑ prosseguiu Simeão ‑ é um país indescritível, de inimaginável riqueza.

 O czar bateu com o possoch nas lajes do chão.

 ‑ Palavras! Só palavras! ‑ exclamou. ‑ Onde estão os actos?

 Gregor Stroganov, o diplomata, debruçou‑se para a frente:

 ‑ Recolhemos as últimas informações respeitantes a Mangaseja, czar! Vivem lá muitas tribos, diz‑se que as populações, possuem olhos amendoados, como os dos Chineses ou dos Tártaros. No Verão, está tanto calor que os habitantes dessas regiões vivem nos rios, para que o sol não lhes queime a pele. Mas no Inverno o frio é tanto que mal encontram mantimentos e, quando não conseguem abater uma rena ou pescar um peixe através das espessas camadas de gelo, devoram‑se uns aos outros... Samoiedos, é assim que se chamam, o que significa que se alimentam da sua própria carne... Outros povos desse país têm a boca colocada no cimo da cabeça e não conseguem falar...

 ‑ São histórias das nossas avós ‑ replicou Ivan, num tom que traduzia alguma reserva. ‑ Vejamos, essas coisas não existem, vis traficantes!

 Mas os irmãos Stroganov sentiram que a flecha disparada atingira o coração do czar.

 ‑ Ainda há outra coisa em Mangaseja, czar! Há povos que criam gigantescos rebanhos de zibelinas negras a fim de se alimentarem da sua carne! Zibelinas preciosas! As raposas azuis são utilizadas como vacas, mungem‑nas! Ensinaram ursos polares a pescar nos rios peixes que eles depois comem. Todo o país transborda de animais com peles apreciadíssimas, de peixes dos mais nobres, de ouro, de prata, de sal, de cobre, de chumbo e de pedras preciosas!

 ‑ E por que razão ninguém conquista esse país situado mesmo à minha porta? ‑ rugiu o czar. Levantou‑se de um pulo e arremessou o possoch em direcção a Jacob Stroganov. Mas este encontrava‑se demasiado longe para poder ser atingido:

 ‑ Vil traficante! Não me digas que vieste a Moscovo com os teus irmãos para me falares do país onde ordenham as raposas azuis!

 ‑ Para lá dos Urales reina um czar... ‑ retomou Simeão, o estratego impassível.

 Era uma frase de tal modo temerária que os irmãos estremeceram, já na defensiva. Mesmo admitindo que exprimia a verdade, tencionavam apresentar o facto a Ivan com mais rodeios. Mas Simeão devia estar a encarar a situação de um ponto de vista diferente.

 Ivan, o Terrível, considerou fixamente os três interlocutores. O rosto de ave de rapina estremeceu imperceptivelmente debaixo do gorro de peles.

 ‑ Um czar! ‑ exclamou por fim, numa voz rouca.

 ‑ Existe mais algum czar para além de mim? E chamam‑lhe mesmo czar?

 ‑ Intitula‑se "Senhor do Mundo" ‑ respondeu Gregor, o diplomata. ‑ É um sucessor de Gengisção e o seu verdadeiro nome é Koutchoum. Mandou proclamar por toda a parte: "Sou o primeiro czar de toda a Sibéria!"

 Nos últimos meses, os seus soldados, chefiados por Mametkoul, seu sobrinho, têm efectuado incursões ao país de Perm, assaltando as nossas aldeias, destruindo as nossas salinas, afundando os nossos barcos ancorados no Kama e, quando as nossas tropas de vigilância avançam, desaparecem nas regiões selvagens, para nós ainda impenetráveis, dos Urales. Raptam mulheres, crianças, queimam cidades até aos alicerces e sublevam as tribos que negoceiam connosco, organizam justas equestres em que os prisioneiros são amarrados a postes: o jogo consiste em lhes cortar o pescoço a galope!

 Já começámos a construir muralhas e recintos em que os aldeões possam encontrar segurança.

 Ivan, o Terrível, observava os Stroganov em silêncio. Segundos que pareciam uma eternidade... Mas nesses segundos decidiu‑se o futuro da Rússia, isto é, a conquista da Sibéria, ou Mangaseja, imenso país inexplorado. "São poderosos, estes mercadores", pensava Ivan IV, "e o seu poder aumenta todos os anos... um dia, estes senhores desconhecidos da Rússia serão maiores do que o czar. Poderemos admitir tal situação? Deveremos, como já aconteceu, conceder aos Stroganov autorizações excepcionais, abrir‑lhes, por especial favor do príncipe de Moscovo, o caminho do Oriente, permitir que descubram a Sibéria, para a Rússia, é certo, mas cujos tesouros irão para os seus bolsos? Essas lendárias terras de Mangaseja merecerão verdadeiramente que um comerciante ‑ mesmo com o desconhecimento do resto da corte ‑ possa desprezar e desafiar o czar? Estas informações vindas do outro lado dos Urales não serão exageradas?"

 ‑ Querem ter o direito de pilhar esse país conquistado em meu nome! ‑ exclamou Ivan com dureza.

 ‑ Só pedimos autorização para unir a Sibéria à Rússia! ‑ respondeu Jacob Stroganov. ‑ Nada mais. Sublime czar.

 ‑ É quanto basta para quem conheça os Stroganov!

 Ivan esboçou um gesto que obrigou os Stroganov a levantarem‑se do banco todos ao mesmo tempo.

‑ Chamar‑vos‑ei se a minha decisão coincidir com a vontade de Deus!

 ‑ É urgente, czar! ‑ arriscou Simeão Stroganov, inclinando‑se muito. ‑ Todos os dias arde uma aldeia nas nossas terras de Perm.

 ‑ Na Rússia, todos os dias arde qualquer coisa... - replicou o czar impassível. ‑ Prometo pensar em Mangaseja.

 Terminara a audiência. Os Stroganov abandonaram a sala pouco satisfeitos, mas não totalmente decepcionados.

Sabiam, pelo pai Anika, que Ivan hesitava sempre antes de conceder uma autorização.

 Acontecera o mesmo quanto à obtenção dos direitos de exploração das salinas, por ocasião do encerramento das fronteiras do país de Perm, e quanto à interdição de navegar nas águas do Kama, por ocasião da fundação das cidades que fizeram da casa Stroganov um estado dentro do Estado... Ivan acabara sempre por ceder. A Rússia era eterna, os Stroganov não: era este o ponto mais importante. E, além disso, a Rússia só poderia crescer sob a protecção dos Stroganov.

 ‑ Aguardaremos em Moscovo ‑ disseram os irmãos ao príncipe Chouisky quando, na ala do Kremlin reservada aos visitantes, se encontravam sentados à volta de uma travessa de frangos assados, acompanhados de vinho italiano. ‑ O czar que suceder a Ivan poderá gabar‑se de reinar sobre metade do mundo!

 O príncipe Chouisky guardou esta frase na memória.

 Como Boris Godounov, acreditava que chegaria a hora em que seria coroado czar. Os herdeiros da raça de Ivan não viveriam muito tempo no trono. Era certo que depois da morte de Ivan...

 Os irmãos Stroganov mantiveram‑se em Moscovo até à Primavera. Enquanto estabeleciam novas relações comerciais, cumularam de presentes os boiardos e os príncipes que lhes eram favoráveis, e compraram aqueles que ainda não eram seus parceiros. Souberam, assim, por intermédio de Boris Godounov, que Ivan enviara um embaixador ao czar siberiano Koutchoum, a fim de exigir que este lhe pagasse um tributo, considerando‑se Ivan o único verdadeiro czar do mundo. Tomaram também conhecimento da resposta de Koutchoum, que replicou, insolente: "Eu, czar siberiano, potentado livre de Koutchoum, faço saber ao grande duque branco de Moscovo: quem quiser a paz poderá concluí‑la comigo, mas quem quiser a guerra tê‑la‑á!" O embaixador que regressou com a mensagem confessou ter atravessado a fronteira russa sob uma chuva de bastonadas, ordenada pelo sobrinho de Koutchoum, Mametkoul.

 ‑ Conseguiremos! ‑ concluiu Jacob Stroganov, satisfeito. ‑ Ivan não cederá perante um bárbaro...

 

 A 30 de Maio do ano de 1574, Ivan IV recebeu mais uma vez os irmãos Stroganov. Em traje de cerimónia, Jacob e Gregor atravessaram o Kremlin. Simeão regressara de trenó a Oriol, a fim de zelar pelos negócios, há tanto tempo abandonados. Agora, no início da Prima vera, chegariam os caçadores de peles com todo o espólio do Inverno...

 ‑ Reflecti muito ‑ disse‑lhes Ivan, num tom de voz muito cortado (só o brilho do olhar traía a violência dos sentimentos que tentava refrear). ‑ Concedo‑vos autorização para conquistarem esse país, até ao rio Tobol, e para construírem fortalezas e praças fortes a fim de libertarem os povos submetidos a esse pretenso czar!

 Como recompensa pelos vossos grandes serviços, outorgo‑vos, por escrito, o direito de explorarem indefinidamente as minas de ferro, de chumbo, de cobre e o de negociarem livremente com os Quirguizes e os Buchares, se fortificarem as colónias que vierem a fundar.

 Os Stroganov fizeram uma profunda vénia, quase até ao chão. "Esqueceu‑se do mais importante", pensavam eles, "pois não disse uma palavra quanto ao apoio do seu exército aos nossos empreendimentos. Teremos de ser nós, os Stroganov, a conquistar sozinhos a Sibéria?"

 A um gesto do czar, Boris Godounov acompanhou os dois irmãos até à porta, e esperou que esta se fechasse sobre os três, para murmurar:

 ‑ Não se esqueçam do papel que desempenhei nesta hora decisiva...

 O mesmo era dizer aos Stroganov quem seria, um dia, o novo czar.

 

Passaram‑se cinco anos. Os Stroganov, não obstante o direito extraordinário que lhes fora concedido, não empreenderam nenhuma acção. Não recebendo apoio das tropas do czar, teria sido uma loucura atacar isoladamente os exércitos de Koutchoum. De resto, Mametkoul, o sobrinho pouco conformista, cessara de investir para além das suas fronteiras e o negócio corria melhor. Por que razão conquistar aquele país se tudo se passava sem sobressaltos?

 Nestes cinco anos, morreram Jacob e Gregor Stroganov. O irmão Simeão, auxiliado pelos filhos de seus irmãos, Nikita e Máximo, retomou o projecto de conquistar o fabuloso país de Mangaseja. Ivan, o Terrível, ainda era vivo, mais sanguinário do que nunca. Os Stroganov pagavam escrupulosamente os seus tributos a Moscovo, mas nenhuma das partes voltou a referir‑se à Sibéria. O czar encontrava‑se mais preocupado com os problemas da Lituânia e da Polónia, decerto mais tangíveis! Mangaseja parecia... pura fantasia!

 O mesmo não acontecia com a jovem geração dos Stroganov, os sobrinhos Nikita e Máximo, que prestavam atenção a todos os rumores e souberam, assim ‑ e quem o não soube, na Rússia? ‑ o que se passava com um estranho e pequeno povo que vivia nas margens do Don, e a quem chamavam Cossacos. Ninguém conseguia compreender o seu comportamento. Por vezes, combatiam ao lado do czar, como os mais valorosos guerreiros; em outras ocasiões, atravessavam os campos como assaltantes, incendiando, pilhando, violando, batendo‑se contra os seus antigos camaradas, os czaristas. O povo admirava‑os por serem homens livres. Nos arquivos do Kremlin, estavam qualificados como ladrões, salteadores, assassinos, bandidos e desertores. Batiam‑se contra os Turcos nas margens do mar Azov. Este aspecto agradava ao czar, embora eles também pilhassem os navios do Volga, fugindo em seguida nos seus cavalos, velozes como um relâmpago, para os confins da estepe...

 "Os Cossacos são os únicos capazes de medir forças com os cavaleiros de Koutchoum", pensava Nicolas Stroganov, depois de recolher informações suficientes a respeito destes habitantes do Don e das estepes próximas do mar Cáspio. "Abater o adversário, ser enforcado ou perseguido, é essa a vida deles! Se queremos conquistar Mangaseja, terá de ser como esses povos! Seria conveniente discutir com eles..."

 Simeão, o único sobrevivente dos três irmãos, admirava a intuição dos sobrinhos e sentia‑se orgulhoso. A autorização assinada por Ivan, e que confirmava os Stroganov como mercadores mais ricos do Universo, permanecia inútil dentro do cofre. Esta triste situação trazia Simeão verdadeiramente doente. Mas, até agora, não descobrira nenhuma maneira de penetrar na Sibéria sem o auxílio das tropas do czar.

 ‑ Vou escrever aos Cossacos! ‑ anunciou a Nikita e Máximo. ‑ Quem é o seu chefe?

 ‑ O mais conhecido é Jermak Timofeiévitch, condenado à morte pelo governador da província, mas nunca aprisionado... ‑ Máximo Stroganov consultava os documentos: ‑ os povos das margens do Volga temem‑no como à peste, mas os habitantes das regiões do Don chamam‑lhe destemido irmão. Que lhe vais dizer tio?

 ‑ Que Deus necessita deles! ‑ respondeu Simeão Stroganov suavemente.

 ‑ O que não pode deixar de lhes agradar. ‑ Nikita recostou‑se na cadeira estofada de pele e deu uma gargalhada. Era naturalmente alegre. ‑ Nunca pilharam nem roubaram em nome de Deus!

 ‑ Mas terão de ser pagos! ‑ Simeão tocou uma sineta. O escriba apresentou‑se, trazendo um tinteiro de prata cinzelada e algumas penas. ‑ Se o vosso avô Anika fosse vivo... ‑ retomou Simeão a meia‑voz, emocionado. ‑ A Sibéria foi o grande sonho da sua vida. Nós realizá‑lo‑emos.

 

 A aldeia de Blagodornié situa‑se algures no Don, rodeada de estepes e de matas de bétulas, de cerejais e de roseiras bravas. Possui algumas casas toscas de madeira, um caminho de terra batida, jardinzinhos rodeados de sebes e até mesmo uma minúscula capela.

 à frente das casas, as águas preguiçosas do Don, por detrás, a estepe infinda e, por cima de tudo, o vasto céu azul... Deviam viver aqui os homens capazes de compreender o significado da palavra eternidade.

 Mas acontecera o contrário. Blagodornié vivera a experiência das coisas perecíveis; por três vezes incendiada pelas tropas do czar e reconstruída pela quarta vez, a aldeia conseguira sobreviver às expedições punitivas do czar, vira executar os seus homens, os que haviam sido apanhados, e ouvira os juramentos de vingança daqueles que regressavam, uma vez afastado o perigo.

 Por agora, reinava a paz; os homens que orgulhosamente se intitulavam "Cossacos", deslocaram as suas campanhas para sul e pilhavam os nómadas vindos do mar de Azov em busca de pastagens. Esta situação não desagradava ao czar de Moscovo, mas pouco rendia. Recomeçar as querelas com Moscovo afigurava‑se demasiado perigoso a Jermak. A nova geração ainda não crescera o suficiente para preencher as vagas criadas nas hordas de cavaleiros. Os sobreviventes das guerras travadas aspiravam à paz e a um pouco de repouso. Uma pequena ajuda de vez em quando.., era uma espécie de exercício necessário a fim de não degenerarem em camponeses imobilizados. Era, de facto, o que de pior poderia acontecer a um cossaco.

 

 Foi num dia de Abril do ano de 1579 que três cavaleiros cobertos de pó irromperam em Blagodornié e perguntaram onde se situava a casa de Timofeiévitch. Como perguntas semelhantes feitas por outros forasteiros sempre tinham suscitado alguma desgraça, os três cavaleiros foram, em primeiro lugar, apeados das cavalgaduras e desprovidos dos seus haveres, tarefa que um bom cossaco nunca se esquece de realizar, e interrogados na praça grande, entre o Don e a igreja. As explicações, segundo as quais eram enviados dos comerciantes Stroganov e portadores de uma mensagem dirigida a Jermak, não produziram nenhum efeito imediato nos cossacos. No Don, o poder da casa Stroganov era ignorado.

 Mas, nesse mesmo dia de Abril, a situação alterou‑se. Os três forasteiros foram conduzidos a casa de Jermak, onde os atiraram para um canto. Em seguida, partiram emissários em busca de Jermak. Este encontrava‑se tranquilamente sentado à beira do Don, ocupado a pescar e a conversar com o amigo Ivan Matveiévitch Mouchkov, o qual, deitado de costas, esculpia, com a ajuda de uma faca, um pedaço de madeira, sonhando com os heróicos tempos passados.

 ‑ Uma carta? ‑ surpreendeu‑se Jermak quando os cavaleiros o encontraram. ‑ Uma carta de um Stroganov para mim? Existe, então, alguém que me escreva uma carta? Na verdade, os tempos estão a mudar, Ivan Matveiévitch! Antigamente, ia o carrasco buscar‑me a casa!

 ‑ O mundo está a tornar‑se deserto, Jermak Timofeiévitch ‑ respondeu melancolicamente Mouchkov, lançando a obra inacabada às águas do Don. ‑ Agora querem relacionar‑se connosco como se fôssemos citadinos imbecis!

 Entretanto, na cabana de Jermak, o pope debruçava‑se sobre a carta. Era o único habitante da aldeia que sabia ler. Antes de se alistar no exército de Jermak, dispusera de tempo para aprender esta ciência, cerca de dezassete anos antes, no mosteiro ao qual fora entregue ainda adolescente. E, apesar das pilhagens e das incursões, continuava a ser, para grande surpresa de Jermak, um bom pope. A ele se devia a pequena capela de Blagodornié.

 Como é evidente, participava, de vez em quando, em expedições de pilhagem, mas unicamente com o objectivo de obter ícones para ornamentar a capela da aldeia, cruzes para as bênçãos, e cálices para a missa.

 Assim, Blagodornié possuía uma das mais belas iconostases que imaginar se pode, e um verdadeiro tesouro constituído por cálices incrustados de pedras preciosas e por vestes sacerdotais.

 ‑ Trata‑se verdadeiramente de uma carta! ‑ exclamou Jermak quando o pope lhe mostrou a mensagem, fazendo‑lhe sinais por cima das cabeças dos paroquianos presentes.

 Todos os homens da aldeia se reuniram em casa de Jermak a fim de viverem o acontecimento: alguém de longe, do norte, escrevera para Blagodornié! foi o "dia do século" e assim ficou conhecido na história da Rússia e do mundo.

 ‑ A paz! ‑ gritou o pope Oleg com todo o poder da sua voz tonitruante. ‑ Eu vou ler! Jermak Timofeiévitch, esta carta foi escrita por um certo Simeão Stroganov, da cidade de Oriol, nas margens do Kama...

 ‑ Se viesse da Lua, ser‑me‑ia igualmente desconhecida! ‑ exclamou Jermak, sentando‑se. Examinava os três emissários, ainda estendidos no canto do compartimento, inquietos, com o medo estampado no rosto, brancos como a cal.

‑ E que pretende esse Simeão, das margens do Kama?

 ‑ Diz o seguinte: "Ao comandante dos Cossacos, Jermak Timofeiévitch, escrito a 6 de Abril de 1579, em Oriol. Caro irmão em Cristo Jermak..."

 ‑ Idiota! ‑ exclamou Jermak em voz alta.

 ‑ No entanto, o início é animador! ‑ replicou o pope com um olhar de desaprovação. ‑ Eu continuo: "A tua reputação chegou até nós acompanhada pelo brilho do teu heroísmo e pelo relato das perseguições de que foste alvo. A confiança que temos em Deus incita‑nos a convencer‑te de que seria preferível renunciares a essas actividades indignas de um combatente cristão, tornares‑te guerreiro do czar branco, desprezando os perigos inglórios e reconciliando‑te com Deus e com a Rússia.

 ‑ Continua a ser idiota! ‑ concluiu Jermak, ainda mais brutalmente. Em seguida olhou para os três emissários e debruçou‑se sobre eles.

 ‑ Quem é esse Simeão Stroganov, hem?

 ‑ É o homem mais rico da Rússia ‑ replicou um dos interpelados numa voz hesitante.

 ‑ É encorajador! ‑ observou Jermak. ‑ Continua, pope!

 "Possuímos fortalezas e domínios, mas muito poucos soldados. Venham ajudar‑nos a proteger a região do grande Perm, assim como os limites orientais da cristandade..."

 ‑ Praças fortes e domínios... ‑ repetiu Jermak, pensativo. ‑ E, para além das fronteiras, estendem‑se terras desconhecidas... Conviria examinar esta proposta... Façamos o que fizermos lá de longe, no Norte, será pelo czar e pela cristandade!

 Estendeu as pernas um pouco arqueadas, de cavaleiro, e lançou um olhar ao seu amigo Mouchkov, cujos olhos brilhavam de felicidade. Quer a actividade se desenvolvesse no Kama ou nas margens do mar Negro, nos Urales ou perto do Volga, a "calma" chegara ao fim, desta inacção constante, esta edificante sabedoria, este tédio que corrói como um verme. Calcorrear de novo as imensas terras, penetrar nas aldeias e fazendas com gritos de fazer gelar o sangue... Um país rico e desconhecido... na verdade, teria de ser rico, já que nenhum cossaco lá entrara.

 ‑ Submeteremos a decisão a votação! ‑ exclamou Jermak, que compreendera o olhar radioso do amigo Mouchkov.‑ Ninguém será forçado a abandonar Blagodornié, mas quem quiser partir comigo deverá procurar‑me hoje à noite na praça grande! ‑ Ergueu ‑se de um pulo, passou entre alas de mãos que o aplaudiam com entusiasmo e voltou‑se uma última vez.

 ‑ Enviem recrutadores para as margens do Don. Reunam por meio de tambores os habitantes do Volga. Levarei comigo todos os que tiverem coragem!

 Era uma frase pérfida. Algum cossaco carecia de coragem? Ao ouvir tais palavras, quem ousaria ficar na aldeia a plantar couves?

 ‑ Irmãos, todos para Kama! ‑ gritou Mouchkov, na retaguarda.

 ‑ E quais são as garantias? ‑ perguntou o pope,, meneando a cabeça.

 ‑ Garantias?

 ‑ Sim, precisamos de ter a certeza de que exigem os nossos préstimos para a defesa da cristandade!

 "Desde que tenhamos oportunidade de encher os bolsos!", pensavam eles todos. "Mas quem nos garante que assim será?" Era um sábio, o pope! Poderia esta carta imbecil servir de garantia?

 ‑ Partiremos, a cavalo, ao encontro de Simeão Stroganov e os três emissários servir‑nos‑ão de guias! ‑ Jermak sorriu ao apontar para as três silhuetas amedrontadas coladas à parede. ‑ Se nos tiver enganado, arrancar‑lhe‑emos a pele e faremos o mesmo aos três emissários! Não é impunemente que se incomoda Jermak Timofeiévitch!

 ‑ Viva a liberdade! ‑ gritou Mouchkov, erguendo os braços, entusiasmado. ‑ Irmãos, a caminho! Aqui vão os cossacos!

 

 Em meados de Maio, as forças combatentes de Jermak estavam prontas para o combate. Os cossacos acorreram de todos os lugares, deixando atrás de si casas, mulheres, filhos e parentes idosos, respondendo ao apelo de Jermak que os convidava a lançarem‑se em novas aventuras, ao assalto de um país desconhecido, de reputação carregada de fantasia.

 Na praça grande de Blagodornié reuniram‑se quinhentos e quarenta cavaleiros. Formavam filas cerradas até às margens do Don, lá muito ao fundo, pois a praça da igreja não bastava para os conter a todos. O pope, Oleg Vassiliévitch Koulakov, que vestira a sotaina negra de sacerdote sobre as calças e as botas de cossaco, passava a cavalo por um caminho deixado livre, entre as filas de cavaleiros, e benzia homens e animais, salpicando‑os com água benta e cantando o Kyrie Eleison. O momento era solene. Muitos cavaleiros tinham lágrimas nos olhos e rezavam com um fervor sincero. Só depois desta cerimónia Jermak montou a cavalo e ergueu os braços.

 ‑ Cossacos! ‑ gritou. ‑ Rumo ao Norte!

 Em seguida, partiu a galope, passando à frente dos três mensageiros dos Stroganov e de Mouchkov, que comandava o primeiro grupo de cavaleiros.

 ‑ Para norte! ‑ rugiram em coro quinhentos e quarenta vozes. E, assim, Blagodornié desapareceu sob uma gigantesca nuvem de pó.

 O pope, montado no seu cavalo, foi o último a abandonar a aldeia. Fechara a igreja, mas não se esquecera de pendurar na porta uma tabuleta de madeira: "Encerrado por vontade de Deus". Porém, ninguém na aldeia a poderia ler.

 Uma coluna de cossacos em deslocação durante várias semanas não se assemelha em nada a uma coluna normal de homens e cavalos de outras regiões. A distância do Don ao Kama era grande, e nenhum verdadeiro cossaco consentiria em percorrer tamanha extensão de terras sem roubar ou pilhar pelo caminho... aquilo a que Jermak chamava "viver da terra".

 As aldeias que atravessavam lamentavam‑se, pois, ao vê‑los chegar, desesperadas, espoliadas até à última migalha de víveres e a braços com mulheres e raparigas grávidas. Era inútil defenderem‑se, mortalmente perigoso esconder o que quer que fosse, impossível fugir. Quinhentos e quarenta cossacos de uma assaltada, uma calamidade comparável a uma invasão de gafanhotos ou a um tornado. Era preciso suportar, de cabeça baixa.

 Quando muito, poderiam prevenir os outros aldeões. Assim, alguns camponeses cavalgavam sempre a alguma distância do pequeno exército de Jermak, descrevendo grandes círculos em volta dos cavaleiros, semeando o alarme pelas aldeias por que passavam.

 Foi o que aconteceu em Novo Orpotchkov, aldeia situada a montante do Volga, e que era chefiada por um "antigo", Alexandre Grigoriévitch Loupin.

 Loupin, o estiraste, não era um homem forte, mas também não carecia de coragem. Quando os cavaleiros que vinham à frente o preveniram, tocou a reunir, ocupou a rua principal com os seus homens, chegou mesmo a armar as mulheres com mocas, barras de ferro, ancinhos, enfim, tudo o que pudesse servir para repelir e atacar. E, sobretudo, preparou uma armadilha: escondeu a metade da população, a fim de que, chegado o momento, pudessem atacar pela retaguarda os cavaleiros cossacos, uma vez iniciados os combates na frente. Nem um cossaco consegue facilmente lutar em duas frentes.

 Novo Orpotchkov.

 Segundo Ivan Matveiévitch Mouchkov, era o nome de um aglomerado rústico que o diabo construíra mas que Deus cobrira com um manto protector...

 ‑ Devíamos ter feito um desvio para o evitar ‑ repetia ele constantemente. ‑ Logo que vi aquela multidão de camponeses na rua, não agoirei nada de bom.

 Passou‑se tudo como estava previsto. Jermak e Mouchkov, que cavalgavam à frente das tropas, avistaram, mais divertidos do que surpreendidos, todos aqueles homens que lhes barravam o caminho.

 ‑ Também acontecem destas coisas! ‑ exclamou Mouchkov alegremente, detendo a marcha. Os cossacos estacaram, rindo. Quinhentas e quarenta vozes produziram um clamor retumbante que se repercutiu pelos campos tranquilos antes de ir cair sobre os corajosos camponeses.

 ‑ Não se afoitem! ‑ rosnou Loupin. ‑ Agora ainda riem, meus caros cossacos, mas dentro de momentos chorarão!

 ‑ Devíamos ser poupados a tanta estupidez ‑ observou Mouchkov, limpando as lágrimas de tanto rir. ‑ Que te parece, Jermak?

 ‑ Nada!

 Jermak aprumou‑se, desembainhou o sabre preso à sela e brandiu‑o.

 ‑ Avancem! ‑ gritou, por seu lado, o estiraste Loupin num tom surdo, dirigido aos seus camponeses. ‑ Irmãos, não seremos esmagados sem nos defendermos!

 Os cossacos atacaram. Um imenso clamor encheu a atmosfera, produzindo um efeito que nem os quinhentos e quarenta cavalos e cavaleiros armados de sabres tinham esperado conseguir. Os homens de Novo Orpotchkov desfizeram‑se das armas e dispersaram por todos os lados.

 Só Loupin se manteve no seu posto, imóvel no meio da rua, e Jermak, ao passar por ele, limitou‑se a empurrá‑lo. O estiraste rebolou pelo chão, caiu num fosso e só por isso sobreviveu aos dois mil cascos que lhe passaram por cima.

 Meia hora mais tarde, a aldeia estava a arder. Os cossacos traziam para a rua peles, sacos de farinha, jóias de pechisbeque, carne fumada, frascos de pepino de conserva e pipas de couve salgada, antes de incendiarem as casas com mechas feitas de ervas secas. Alguns perseguiam as mulheres. Deitavam‑nas no chão, à porta das casas em chamas, ou nos jardins, e violavam‑nas.

 Mouchkov também errava pelas ruas, em busca de uma jovem que lhe agradasse. Acabou por encontrá‑la numa casa de porta de madeira esculpida... uma criança ainda magrizela, de cabelo louro, que veio ao seu encontro munida de um grande pau e, sem proferir uma palavra, lhe aplicou uma violenta pancada no crânio. Mouchkov ficou de tal modo alarmado que nem tentou evitar a segunda paulada. Mas não chegou a receber a terceira.

 Pegando na pequena gata brava pelo cachaço, arrastou‑a para um quintal e manietou‑a. A rapariga arranhava e mordia, dava‑lhe pontapés no baixo‑ventre e cabeçadas no peito. Conseguiu fugir mas, em três passadas, Mouchkov alcançou‑a e atirou‑se a ela da mesma maneira que, na sua aldeia, se agarrava uma galinha fugida.

 Rolaram pelo chão agarrados um ao outro até esbarrarem contra uma moita. Mouchkov, deitado sobre a jovem, palpava‑lhe os seios ainda adolescentes. Os grandes olhos azuis da rapariga fixavam‑no. Não demonstravam medo, apenas uma selvagem determinação.

 ‑ Mata‑me! ‑ pediu ela em voz baixa. ‑ Mata‑me! Se não me matares antes, matar‑me‑ei eu depois! Diabos! São todos uns ignóbeis diabos!

 ‑ Chamo‑me Ivan Matveiévitch Mouchkov... disse‑lhe ele.

 Até ao fim dos seus dias, nunca foi capaz de explicar por que dissera o nome naquela ocasião... Mas foi certamente forçado a fazê‑lo devido ao olhar da rapariga.

 Ela, então, respondeu:

 ‑ E eu sou Marina Alexandrovna Loupin...

 ‑ Marina...

 Mouchkov libertou‑a um pouco. Em toda a volta, lavravam incêndios entre gritos de mulheres e risos de vitória dos cossacos, enquanto os cavalos relinchavam, excitados.

 ‑ Levo‑te comigo! ‑ decidiu ele subitamente.

 ‑ Nunca conseguirás fazê‑lo! ‑ gritou ela.

 ‑ És a minha prisioneira de guerra!

 ‑ Então agarra‑a bem, Satanás!

 Lutaram de novo, rebolando pelo chão. Marina mordeu Ivan no ombro e só cedeu quando os cabelos se lhe prenderam num arbusto. Foi‑lhe impossível libertar‑se.

 Assim imobilizada, estendida à frente dele, fechou os olhos.

 ‑ Porque esperas? ‑ perguntou numa voz sumida.

‑ Serve‑te do que quiseres...

 E Mouchkov respondeu num tom de voz que lhe pareceu desconhecido:

 ‑ Não tenhas medo, Marina.

 Desprendeu‑lhe os cabelos do arbusto, quase com ternura.

 ‑ Que idade tens? ‑ perguntou‑lhe.

 ‑ Catorze anos.

 ‑ A tua aldeia está a arder ‑ observou ele ‑, vou levar‑te comigo, Marina.

 ‑ Não! ‑ gritou a rapariga.

 Mas permaneceu estendida e não se mexeu.

 

Novo Orpotchkov ardeu completamente. Depois de terem chicoteado mulheres, crianças, velhos e doentes, os cossacos de Jermak acamparam como puderam dentro dos limites da aldeia. Cantavam, praguejavam e aqueciam‑se nas labaredas das casas incendiadas, as suas fogueiras preferidas. Tinham prendido os cavalos uns aos outros. Porcos e vitelos assavam em espetos, canecas de vinho de bétula passavam de mão em mão. Era a vida pela qual um cossaco não se importava de morrer: a liberdade tal como a entendia! "O mundo pertencer‑nos‑á logo que o conquistemos!" E, à sua frente, estendia‑se um país que os esperava. Tinham‑lhes prometido a fabulosa riqueza dos Stroganov, o país de Mangaseja de que os três emissários tanto falaram... os três emissários que fizeram a travessia para norte, para o Kama, imbuídos de um indescritível pavor...

 ‑ Uma cadeia de montanhas... ‑ comentava Jermak, enquanto imaginavam o que talvez vissem dentro de algumas semanas... ‑ e povos de olhos em amêndoa, o que é isso, afinal? Amarelos, já vimos alguns: até já lhes despedaçámos o crânio! E um pedregulho é um pedregulho, mesmo medindo mil vertas de altura! Alguém tem medo dos pedregulhos, irmãos?

 O aniquilamento de Novo Orpotchkov não teve consequências.

Os camponeses das aldeias em redor trataram os homens do estiraste Loupin como idiotas. Quem poderia defrontar quinhentos e quarenta cossacos? Deixavam‑nos passar pela aldeia, davam de beber aos cavalos, ofereciam‑lhes provisões, aceitavam com mal contida raiva que as mulheres engravidassem... poderiam sobreviver a tudo isso e o mais importante era sobreviver. Lutar contra os cossacos? Por Santo Estefánio, que mau‑olhado teriam lançado sobre Alexandre Grigoriévitch Loupin para que lhe tivessem subido à cabeça tão loucas ideias?

 Os homens de Novo Orpotchkov, sentados na encosta da colina perto da aldeia, viam arder as suas casas. As mulheres regressavam uma a uma, auxiliando um velho ou um doente, transportando crianças em lágrimas.

 A maior parte das mulheres tinha sido espancada até fazer sangue, trazia as roupas em farrapos. Como nos jogos equestres, em que saltavam de cavalo em cavalo, os cossacos tinham passado de umas mulheres para as outras ‑ orgia infernal acompanhada dos reflexos das chamas, dos estalidos das choupanas desmoronadas.

 Só a pequena igreja de Novo Orpotchkov permanecia intacta. Foi aí que o pope de Blagodornié, Oleg, se apresentou ao seu confrade:

 ‑ Deus criou o homem e, portanto, também os Cossacos ‑ disse ele na sua estranha lógica, enquanto se benzia. A sotaina cheirava a fumo, as botas de cossaco traziam lama até aos joelhos, a barba confundia‑se com a fuligem. ‑ Irmão pelo Senhor ‑ retomou ele ‑, oremos a fim de que as almas pecadoras possam beneficiar no Céu de um olhar benevolente...

 E os dois popes, ajoelhados diante da iconostase, rezavam as suas orações, enquanto lá fora a aldeia se consumia e as mulheres perseguidas tagarelavam.

 ‑ Estás a ver, irmão ‑ observou mais tarde o pope dos cossacos, enquanto os homens de Jermak cantavam, sentados em redor da aldeia destruída que a pouco e pouco se apaziguava ‑, conservámos‑te a tua igreja. Dá graças ao Senhor! E, como apoio para a longa caminhada rumo ao desconhecido, dá‑me a tua cruz pascal...

 O pope de Novo Orpotchkov lamentou‑se, mas foi buscar a cruz incrustada de pérolas barrocas, bela obra rústica que lançou aos pés do colega.

 ‑ Que Deus esteja contigo em cada uma das tuas bênçãos! ‑ exclamou.

 ‑ Amem! ‑ respondeu Oleg Vassiliévitch Koulakov com fervor e humildade. Entretanto, Loupin, o esterroaste, milagrosamente poupado pela cavalaria cossaca, percorria todas as mulheres, torcendo as mãos:

 ‑ Viram a minha Marina? ‑ gritava ele, debatendo‑se com uma enorme angústia. ‑ Onde estará a minha menina? O meu raio de sol, a minha nuvem dourada...

 Viram‑na? Porque não aparece? Porque não ma trazem? Estará morta? Digam‑me, não me escondam a verdade, sou um homem forte, suportarei o golpe! Quem viu Marina? Quem?...

 Entre as mulheres que regressavam, nenhuma vira Marina. Sabiam apenas que a casa do esterroaste estava a arder. De resto, parecia‑lhes justo, pois fora Loupin quem tivera a peregrina ideia de resignar! Os homens não lhe falavam e, na verdade, Loupin podia felicitar‑se por não ter sido afogado no Volga pelos companheiros. Ninguém sentia pena dele: um perdera Marina, o outro Olga ou Jelisaveta. E previa‑se que, dentro de nove meses, muitos bastardos viriam ao mundo ‑ facto que teriam de suportar. Na Rússia, viver era sempre duro, mas eles estavam calejados. Assim, deixavam Loupin gritar e correr em todas as direcções, como um varrão com uma faca enterrada nas entranhas, à espera que alguém surgisse e dissesse: "É verdade, a tua Marinouchka morreu! Os cossacos aproveitaram‑se da tua lourinha até à morte..."

 Mas ninguém apareceu. Ninguém vira Marina... além disso, quem visse Novo Orpotchkov arder ao longe, entre um mar de chamas do qual só sobressaía a igreja, deduziria que Loupin não voltaria a ver a filha...

 ‑ Vou procurar a minha filha ‑ declarou ele subitamente, quando anoiteceu ‑, não me retenham!

 Ninguém tentara fazê‑lo. Dois estados psicológicos podem conduzir um homem à loucura: o heroísmo e o amor paternal. A primeira destas aberrações já ficara para trás... por que razão o impediriam de experimentar a segunda? Os homens olharam‑no de olhos bem abertos e indiferentes, felizes por estarem vivos e terem recuperado as mulheres. Construiriam um novo Orpotchkov e chamar‑lhe‑iam "Novo" pela nona vez, como rezava a crónica conservada na pequena igreja. Afinal, os cossacos apenas tinham introduzido uma variante na monotonia da existência nas margens do Volga. Furacão que passara, tonitruante. E a igreja mantivera‑se de pé: não teria sido o dedo de Deus?

 Ao cair da noite, quando a aldeia já não era mais do que um enorme monte de cinzas incandescentes e traves de madeira fantasmagóricas, Alexandre Grigoriévitch Loupin regressou ao meio das ruínas, em busca da querida filha Marina.

 Os cossacos dormiam. Só os homens de sentinela, perto dos cavalos, formavam um círculo, distraindo‑se com algumas mulheres que ainda detinham. Loupin aproximara‑se, rastejando para as poder reconhecer à claridade das chamas... Mas Marina não se encontrava no grupo, a sua cabeleira dourada teria brilhado ao longe.

 Deitado no chão, escondido entre grandes tufos de ervas, Loupin permaneceu algum tempo junto dos cavalos e apercebeu‑se do estado em que se encontrava a sua aldeia. Sentia o coração apertado. "Marina deve estar além, coberta pelas brasas incandescentes", pensava ele. "Lutou, defendeu a sua honra até à morte. Uma verdadeira filha da minha raça... Nunca ceder, nem que rachem o crânio! Orgulho‑me dela, mesmo com o coração a sangrar". Pousou a cabeça no chão coberto de ervas, aspirou o odor da terra e abandonou‑se ao sentimento de ter perdido a filha.

 ‑ Já não podes escapar ‑ disse Mouchkov, ajoelhando‑se diante de Marina ‑, as outras mulheres já abandonaram a aldeia e se tu agora corresses atrás delas... Não conheces os meus camaradas! Se virem uma rapariga como tu, matam‑me também a mim! Só estás em segurança ao pé de mim.

 Estavam deitados numa vala, ao longo da sebe do jardim. Tudo, à sua volta, se apaziguara, mas o calor libertado pelas brasas quase os assava. Os cossacos reuniam‑se, carregando nos braços o produto do saque.

 Formavam grupos, mostravam uns aos outros pequenos objectos preciosos, depois deitavam‑se à roda das fogueiras.

Jermak corria de um para outro, interrogava‑os sobre o amigo Mouchkov, mas apenas obtinha um encolher de ombros como resposta.

 ‑ Quantos mortos temos? ‑ perguntou.

 ‑ Nenhum! ‑ respondeu o pope, que saíra da igreja.

 ‑ E feridos?

 ‑ Poucos. Quase todos foram arranhados, mordidos, espancados pelas mulheres. Um deles recebeu uma paulada na cabeça, mas estou a vê‑lo além, comendo carne fumada e recobrando forças.

 ‑ Nesse caso, só nos falta Ivan Matveiévitch.

 Jermak apoiou as mãos no largo cinturão que suportava vários punhais, um deles curvo.

 ‑ Procurem‑no nos escombros! Se tiver acontecido alguma coisa a Mouchkov, enforco cinco camponeses!

 ‑ Só disponho de uma maneira de te salvar ‑ dizia nesse mesmo instante Mouchkov a Marina. - Considero‑te prisioneira de guerra e meto‑te num saco, que uma besta de carga carregará. É a única solução. Se não matam‑te, Marina, desfazem‑te como lobos esfaimados...

 ‑ E para que me queres salvar? ‑ perguntou ela.

 ‑ Não sei.

 Mouchkov tinha os olhos fixos no incêndio. Na verdade, ignorava porque alimentava o desejo de a salvar.

 Estava indeciso e pensativo. "Nem sequer lhe toquei", pensava. "Não lhe despi a roupa esfarrapada, não caí sobre ela como me aconteceu fazer com outras mulheres. Que se passará comigo? Porque estarei deitado a seu lado, aqui junto da sebe, em vez de me servir dela, recambiando‑a em seguida? Estou aqui deitado, converso com ela e preocupo‑me com a possibilidade de os meus amigos a poderem ver... Provavelmente, tenho o cérebro avariado."

 ‑ Quem faz três perguntas já perdeu a cabeça duas vezes, diz‑se na minha terra ‑ retomou ele. ‑ Está decidido: levo‑te comigo e sobreviverás. Aceita as coisas como elas são!

 ‑ Mas nem por isso deixas de ser um assassino e um malfeitor!

 ‑ Sou cossaco!

 ‑ Qual é a diferença?

 Mouchkov espreguiçou‑se. O calor que os envolvia tornara‑se insuportável. Mas, simultaneamente, constituía a sua protecção. Ninguém os procuraria naquele recanto tão próximo do incêndio. O fosso no qual se entrincheiraram assemelhava‑se a uma espécie de caverna, rodeada por uma muralha em chamas.

 ‑ Só por essa pergunta, qualquer cossaco te enforcaria na primeira árvore que encontrasse! ‑ respondeu ele brutalmente.

 ‑ Então porque esperas, Ivan Matveiévitch?

 ‑ Olha! Lembras‑te do meu nome?

 ‑ Quem poderia esquecer o nome de um diabo?

 Não muito longe, elevavam‑se vozes e Mouchkov julgou ouvir pronunciar o seu nome. Mas o crepitar das chamas e o estilhaçar das traves de madeira, por efeito do calor, sobrepunham‑se aos outros ruídos. "Se me chamam, é porque me procuram", pensava Mouchkov "e, se me encontrarem, não poderei continuar a proteger Marina. Porque será que ela não compreende?"

 Pousou a mão no ombro da jovem e reteve‑a no fundo do fosso. Subitamente, sentia o que nunca experimentara ao longo de todos esses anos em que cavalgara em todos os sentidos, com os companheiros, às ordens de Jermak, participando em confrontos sangrentos: medo!

 Medo por uma jovem que era quase uma criança.

 As vozes tornavam‑se mais insistentes: agora ouvia com clareza o seu nome e distinguia silhuetas que corriam de um lado para o outro, procurando não sabia o quê entre os escombros carbonizados.

 Mouchkov coseu‑se o mais possível com o chão, ao lado de Marina, e pousou‑lhe um dedo nos lábios:

 ‑ Não te mexas!

 Marina compreendeu e olhou‑o com tanta incredulidade como gratidão, antes de ocultar o rosto entre os braços dobrados.

 Os cossacos afastaram‑se, gritando:

 ‑ Ivan Matveiévitch! Ivan Matveiévitch!

 ‑ Obrigada ‑ murmurou Marina alguns momentos depois, erguendo a cabeça. Mouchkov mordia o lábio inferior, considerando ter‑se comportado como um louco.

 ‑ O pior ainda está para vir! ‑ exclamou. ‑ prisioneira de guerra ou não, Jermak não permite que nenhuma mulher cavalgue nas nossas fileiras!

 ‑ Então, deixa‑me neste fosso. ‑ Marina deitou‑se de costas e Mouchkov viu novamente os seios pequenos, as coxas, os lábios bem delineados, o cabelo louro e comprido do qual pendiam pedaços de fuligem. "Tem catorze anos... dentro de um ano será uma rosa desabrochada e um ano passa depressa! Que diabo, Ivan, leva‑a contigo!"

 ‑ Nenhum cossaco restitui o espólio de que se apropriou! ‑ exclamou ele, grosseiro ‑, ou ver‑se‑ia obrigado a cuspir em si mesmo!

 ‑ Então cospe, Ivan Matveiévitch!

 ‑ Vais comigo... vestida de rapaz. Direi a Jermak: olha para este tipo! Retire‑o do lume antes que asse! Rachamo‑lhe o crânio? Estive quase a fazê‑lo! Mas o que é que ele me pediu? "Leva‑me contigo, cossaco sempre quis ser dos vossos, não nasci para ser camponês! A vida em Novo Orpotchkov é uma pasmaceira! Leva‑me contigo!" E eu embainhei o punhal dizendo para comigo: "Sabe falar, poderemos fazer alguma coisa dele!" Falarei a Jermak exactamente nestes termos. Ele observar‑te‑á e dirá com certeza que és muito jovem, mas se montares um cavalo à sua frente... ‑ Mouchkov calou‑se subitamente, embaraçado. ‑ Sabes, ao menos, montar a cavalo? ‑ acrescentou, desanimado.

 ‑ Como um cossaco! ‑ respondeu Marina, em voz baixa. ‑ Possuía‑mos quatro cavalos antes da vossa chegada a Novo Orpotchkov!

 ‑ Quando te vir a cavalo, Jermak gritará: chamas a isso montar a cavalo? pareces um galo agarrado a uma galinha! Ivan Matveiévitch, ensina‑o a montar como um homem! E assim ganharemos, pois ninguém perguntará como serás tu em roupa interior!

 ‑ E se eu recusar a participar? ‑ perguntou Marina, muito duramente.

 ‑ Então, estarás perdida... ‑ E Mouchkov olhou‑a, assustado.

Os seus grandes olhos, num belo rosto, estavam cheios de determinação. ‑ Queres morrer?

 ‑ Não há nenhum rapaz que use o cabelo tão comprido!

 ‑ Cortamo‑lo.

 ‑ O meu cabelo?

 ‑ É mais precioso que a tua vida?

 ‑ Seria mais simples se partisses sozinho...

 ‑ Precisamos de falar assim tanto? ‑ Mouchkov segurou a cabeça de Marina entre as mãos, desembainhou o punhal que trazia à cintura e, num gesto brusco, cortou metade da cabeleira loura. O cabelo curto bailava em volta do rosto de Marina, enquanto ele se preparava para cortar o resto, exclamando:

 ‑ É uma vergonha! Mas voltará a crescer. ‑ E continuou a cortar o cabelo da jovem até parecer um rapaz. Marina, estranhamente, manteve‑se imóvel. Encontrava‑se sentada no fosso, rodeada das últimas fogueiras que consumiam a aldeia. Só os olhos falavam a Mouchkov, perguntando‑lhe: "Porque me deixas viver? Acreditas verdadeiramente que posso cavalgar a vosso lado rumo ao norte? Terei de me transformar num cossaco assassino e destruidor? Queres que mostre ao teu amigo Jermak os meus talentos de estribeiro? Queres que me faça passar por rapaz? Julgas que só os cossacos têm amor‑próprio?

 ‑ Vamos! ‑ ordenou Mouchkov, ‑ uma vez terminado o trabalho, evitando olhar para Marina, cujo aspecto não conseguia suportar. "Está estropiada, desfigurada", pensava ele, "mas que lhe aconteceria se caísse nas mãos dos meus camaradas?" Respirou profunda mente, como que suspirando, e, em seguida, sacudiu as madeixas louras que se lhe tinham colado aos dedos. Que belo rapaz! Agora, deves esfregar a cara com fuligem ‑ acrescentou numa voz embargada e reticente.

 ‑ Sempre quis ser um rapaz ‑ respondeu Marina, passando as mãos pelo cabelo curto. ‑ Os rapazes podem fazer tantas coisas!

 ‑ Não abuses! Limita‑te a adquirir o aspecto de um verdadeiro rapaz! ‑ disse Ivan. ‑ Talvez tudo se passe de um modo diferente daquele que imaginámos, quando nos encontrarmos diante desse tal Simeão Stroganov!

 Ainda esperaram um pouco, rastejando em volta a fim de achar, entre os objectos que os cossacos tinham retirado dos armários e baús e que agora se apinhavam no chão, um fato masculino, botas, um gorro de Kulak suficientemente sebento.

 ‑ Despe‑te! ‑ ordenou Mouchkov depois de reunirem tudo aquilo de que necessitavam.

 Marina não se mexeu. Com a roupa debaixo do braço, mantinha‑se encostada à parede de uma cavalariça que resistira ao incêndio, por ser feita de pedras retiradas do rio.

 ‑ Aqui? à tua frente?

 ‑ Se me prometeres que não foges, viro‑me de costas!

 "Perdi o juízo", pensava Mouchkov, assustado com a sua própria metamorfose. "Ainda está para nascer o cossaco que desvie o olhar quando uma rapariga se despe! Ah, não! E, de repente, aqui está um cretino nessas condições, chamado Ivan Matveiévitch Mouchkov! Satanás do Inferno, que se passa comigo?"

 Na verdade, virou‑se de costas, meteu a mão esquerda na boca e, desesperado, roeu as unhas. "Isto não pode continuar assim", pensou. "Preciso de a zurzir conscienciosamente pelo menos uma vez para fortalecer o meu amor‑próprio! Está a transformar‑me num rato, mas ficará a saber que sou um urso!"

 ‑ Acabaste? ‑ perguntou ele, arrogante.

 ‑ Ainda não! As botas são muito grandes, nado dentro delas e não poderei montar a cavalo...

 ‑ Não há tempo para encomendar botas por medida! ‑ resmungou Mouchkov. ‑ E o resto, está tudo bem?

 ‑ Vê com os teus olhos!

 Voltou‑se de repente e deu consigo em frente de um jovem Kulak emporcalhado. O boné era a única peça que lhe assentava bem, o casaco ficava‑lhe demasiado largo e comprido, e as calças entalavam‑se em botas que deviam ter pertencido a um gigante. Estava ridícula mas, mesmo assim, Mouchkov sentia bater fortemente o coração. "Levo‑a comigo" ‑ este pensamento dilacerou‑o ‑ "e ninguém adivinhará o que se esconde debaixo deste fantoche. Cavalgará como todos nós: um futuro cossaco! Jermak, ao vê‑lo, não deixará de se rir e o seu riso significa pena de morte ou uma vida salva: tudo depende da tonalidade do riso!

 ‑ Vais tal como estás e se, no futuro, te dou um pontapé no traseiro, não com muita força, mas o suficiente para não passar despercebido, não te admires! Estão habituados a ver‑me comandar prisioneiros à chicotada e, como é evidente, não poderei apresentar‑me de braço dado contigo!

 ‑ É assim que te comportas? ‑ perguntou ela, puxando o boné para a testa. ‑ Atreves‑te a dar chicotadas aos prisioneiros? Não terás muito prazer em me conhecer, Ivan Matveiévitch!

 ‑ Vamos! ‑ ordenou Ivan em voz alta.

 ‑ E quando me libertarás?

 ‑ Quando tiver oportunidade.

 Marina olhou‑o novamente, de olhos muito abertos, enquanto Ivan, de olhos baixos, se acusava interiormente de fraco por se deixar dominar por uma rapariga, em vez de a repelir depois de se servir dela, como tantas vezes fizera entre o Volga e o mar Cáspio.

 ‑ Não me olhes assim! ‑ vociferou ele, deixando transparecer a excitação.

. ‑ Como queiras ‑ Marina encolheu os ombros estreitos debaixo do casaco demasiado largo. ‑ Se quiseres, abstenho‑me pura e simplesmente de olhar para ti.

 Marina avançou à frente de Ivan e a claridade provocada pelo incêndio envolveu a sua silhueta, plantada nas enormes botas, como uma flor num solitário.

 "Meti‑me em grandes trabalhos", pensava Mouchkov, seguindo‑a a passos largos. "Teria sido necessário? para terminar, violo‑a e depois abandono‑a! Sou um cossaco livre, que diabo!"

 ‑ Aqui tens o primeiro pontapé, Marina ‑ disse ele, aproximando‑se muito. ‑ Desculpa‑me, mas tem que ser, os meus camaradas já estão a olhar para nós.

 Manteve‑se um passo atrás e aplicou‑lhe um pontapé, moderando o seu furor. Mas Marina caiu e conservou‑se estendida no chão durante alguns momentos. O coração de Mouchkov quase parou de pulsar, enquanto pensava: "Quebrei‑lhe a espinha dorsal!" Marina, porém, ergueu‑se e equilibrou‑se nas gigantescas botas:

 ‑ Ajustaremos contas mais tarde! ‑ sussurrou ela por cima do ombro.

 Mouchkov respondeu‑lhe meneando a cabeça. "Pois, bem", pensava ele, "ajustaremos contas! Mas, louvado seja Deus, ela está viva! Avança, Marinouchka, os próximos pontapés serão carícias!"

 

 Passou‑se tudo exactamente como Mouchkov previra, Jermak riu‑se ao avistar o rapazelho que pretendia ser cossaco e os cossacos riram‑se com ele. Rodearam Mouchkov e a sua descoberta, clamaram perante as botas disformes em tão pequenos pés, e só por ainda ser quase uma criança, as opiniões dividiram‑se quando se tratou de escolher entre lançá‑lo à água ou à fogueira da aldeia.

 ‑ É preciso nascer‑se cossaco! ‑ gritou Jermak de bom humor, dando uma palmada nas costas do rapaz.

‑ Ninguém se faz cossaco!

 ‑ Monto a cavalo tão bem como qualquer de vós! ‑ declarou Marina. A voz fina e um pouco roufenha podia passar pela voz de um adolescente. ‑ O meu pai foi cavaleiro do czar!

 ‑ E onde está o teu pai agora? ‑ gritou‑lhe Kolka, um dos subchefes da horda.

 ‑ Não sei.

 ‑ Está sentado à beira do rio, borrado de medo! ‑ afirmou Mouchkov a fim de intervir, o que lhe parecia natural. ‑ Tragam‑lhe um cavalo! Ele vai mostrar‑nos o que aprendeu com o pai! Cavaleiro do czar! Veremos, irmãos, como um bode monta um burro!

 Jermak assobiou e esboçou um gesto. Da massa de cavalos em repouso destacou‑se um que foi trazido a Marina. Os cossacos continuavam a rir, dando cotoveladas uns aos outros: trouxeram‑lhe Liouba, o cavalo de Jermak! quando a égua sentir algo diferente das coxas de ferro do dono, tornar‑se‑á tão pérfida como o gelo da Primavera! Ouviremos, então, todos os seus ossos rangerem. ..

 ‑ Monta! ‑ resmungou Mouchkov com uma brutalidade estudada, aplicando um pontapé em Marina, suficientemente forte para a projectar contra o flanco do animal. Os cossacos gritaram, entusiasmados. "Que desgraça! ", pensou Mouchkov. "Foi um pontapé suave como uma brisa! E ela quase saltou por cima da sela! Não se lhe pode tocar sem a magoar! Que avezinha tão delicada!" Nunca vira nada semelhante... Em geral, quando as suas mãos actuavam, levavam tudo de vencida...

 Marina saltou para a sela. Não era difícil; no entanto, teve dificuldade em conservar as botas calçadas. Crispou os pés tanto quanto pôde, a fim de não perder as monstruosas botas.

 Jermak aprumou‑se. A égua ia desenfrear‑se. Começou por se empinar, escoiceou e quem resistisse a estes exercícios sentia‑a imediatamente pular nos quatro cascos. Nunca ninguém a conseguira dominar, nem mesmo Mouchkov, a quem nenhum cavalo resistia ‑ excepto Liouba!

 Marina mantinha‑se firme e olhou de relance para trás.

 Os cossacos fixavam‑na sem pestanejar e, de súbito, instalou‑se o silêncio no imenso círculo de espectadores.

 Mouchkov era o único que respirava ruidosamente, como após uma longa corrida.

 ‑ Que devo fazer agora? ‑ perguntou Marina, debruçando‑se para Jermak, que já não reconhecia a sua égua. Liouba nem se mexia, limitava‑se a agitar as orelhas. ‑ Quem me dá uma lança e ergue bem alto um pedaço de carne? Sou capaz de o apanhar, obrigando o cavalo a galopar!

 ‑ Ataca! Vamos, ataca! ‑ gritou Jermak que, não se contendo, ergueu a perna e aplicou um pontapé no ventre do seu animal preferido. Liouba estremeceu, olhou para trás, mas não se mexeu.

 ‑ Vem, meu cavalinho! ‑ disse Marina com ternura, pousando a mão entre as orelhas da égua. Em seguida, afastou‑se, a galope, do círculo de espectadores. Liouba deu uma grande volta antes de largar pela estepe, como se se tratasse de atingir Moscovo num dia.

 "Perdi‑a para sempre", pensou Mouchkov, assustado ao ver que Marina desaparecera na noite. "Ivan Matveiévitch, grande parvo, reconhece que era o que ela queria! Fugiu‑te e, montada em Liouba, não corre o risco de ser alcançada! Está tudo perdido! Levou‑me à certa, aquele diabrete louro!"

 Mas, subitamente, recortaram‑se na claridade do braseiro as sombras do cavalo e do cavaleiro, lançados num galope infernal, que se fechava em volta dos cossacos.

 Jermak esperava que Liouba se detivesse, escorrendo sangue. Mas, após uma nova fase de galope, rasando, desta vez, o grupo de cossacos, Marina estancou sob o olhar taciturno de Jermak.

 ‑ Ele sabe, ou não, andar a cavalo? ‑ perguntou Mouchkov, entusiasmado. ‑ Não vos trouxe um bom prisioneiro? Jermak Timofeiévitch, com a mesma idade, eu não era capaz de me equilibrar assim num cavalo!

 "Marina regressou!", rejubilava ele interiormente. "Graças a Deus, ou ao Diabo! Vejo‑a rir montada na égua do chefe, com o nariz chamuscado de fuligem! Se eles soubessem que o rapazinho é uma rapariga! ... Mas, Marina, porque voltaste?..."

 ‑ Desmonta! ‑ ordenou Jermak com rispidez. Pegou na pistola, puxou o cão e preparou a pólvora. Ao mesmo tempo examinava Liouba que, suportando o seu pequeno cavaleiro, dava mostras de grande nervosismo. ‑ Desmonta, é uma ordem!

 Entre a massa de cossacos, reinava um terrível silêncio. "Não terá coragem de o fazer!", pensavam os homens. "Não, não fará aquilo que um cossaco só decide fazer em última instância! Não abaterá o seu próprio cavalo!"

 Marina também adivinhara a decisão tomada por Jermak. Sempre a cavalo, avançou para ele, de olhos postos nos seus:

 ‑ Mata‑me também a mim! ‑ pediu ela em voz alta.

 ‑ O meu cavalo traiu‑me! ‑ vociferou Jermak. ‑ Aprende, em primeiro lugar, que trair é morrer! - Apontou a pistola e lançou um olhar à sua volta. Os cossacos fixavam‑no em silêncio. Mouchkov, muito perto dele, ergueu as mãos.

 ‑ Alguém ousa impedir‑me? ‑ gritou Jermak. ‑ Este cavalo não vale nada!

 ‑ Não é o único que não vale nada ‑ replicou Marina, muito calma. ‑ Outros como ele continuam vivos! Dispara, se isso te alivia!

 Passaram‑se alguns terríveis segundos de silêncio e expectativa. Em seguida, Jermak assoprou a pólvora da caçoleta e largou o cão.

 ‑ Desmonta, meu rapaz. Como te chamas?

 "Senhor! Como se chamará ela?", gritou dentro de si o coração de Mouchkov, atravessado por uma indescritível angústia. "Não pensámos em nenhum nome masculino!"

 ‑ Boris Stepanovitch ‑ respondeu Marina, impassível, deixando‑se escorregar para o chão. ‑ Posso acompanhá‑los?

 ‑ Pede um cavalo para ti ‑ respondeu Jermak de cabeça baixa, observando a égua Liouba. ‑ É como todas as fêmeas ‑ acrescentou simplesmente ‑, perdem a cabeça quando são montadas por um adolescente. E, voltando‑se para Marina: ‑ Ivan Matveiévitch ensinar‑te‑á a montar! Foi ele que te descobriu, pertences‑lhe e sou eu quem decidirá quando poderás ser considerado um cossaco!

 Voltou‑se e desapareceu. Num segundo, Liouba hesitou, mas depois, a trote, juntou‑se‑lhe e manteve‑se a seu lado. Jermak lançou‑lhe um olhar furtivo, esboçou um esgar que lhe descontraiu o rosto e, abraçando‑a pelo pescoço, prosseguiu o seu caminho.

 ‑ Pertences‑me ‑ repetiu Mouchkov a Marina, muito baixinho. ‑ Ouviste? És propriedade minha...

 ‑ Ainda tenho três pontapés para te devolver, Ivan Matveiévitch ‑ respondeu ela no mesmo tom. ‑ E agora dá‑me um cavalo!

 ‑ Amanhã, quando partirmos.

 Ela encolheu os ombros dentro do fato disforme, aproximou‑se de uma das fogueiras e deitou‑se na erva. Mouchkov deitou‑se mesmo a seu lado. Subitamente, com a rapidez de um raio, Marina apoderou‑se do punhal que o companheiro trazia à cinta e encostou‑o ao seu próprio peito.

 ‑ A partir de agora, será o meu namorado! Dormirá sempre comigo! ‑ afirmou Marina num tom firme mas tão baixo que só Mouchkov conseguiu ouvir. ‑ É um amante ciumento, Ivan Matveiévitch!

 Mouchkov suspirou e afastou‑se. Obter um novo punhal não constituía um problema, quarenta animais de carga seguiam os cossacos, transportando armas e víveres. Nada lhes faltava. Mas o facto de Marina pretender defender‑se, e dominá‑lo incrivelmente, atormentava‑o e não lhe dava um momento de descanso. Conhecera‑a há algumas horas apenas e, desde então, em que se tornara ele? Esta aldeia, Novo Oportchkov, fora certamente construída pelo Diabo!

 Entretanto, ao ouvir a respiração ritmada de Marina, nada mais sentiu senão a alegria de se encontrar perto dela.

 

 Alexandre Grigoriévitch Loupin reconheceu imediatamente a filha quando, disfarçada dentro de uma farpela masculina, a viu sair da aldeia fumarenta, arrastada por um cossaco. Qual o pai que não reconhece a filha, mesmo mascarada?

 "Está viva", pensou ele, "mas as preocupações continuam. Vão enforcá‑la e terei de assistir ao seu suplício sem o poder impedir. Mas ela saberá morrer! Deus te abençoe, minha filha. Que o céu se abra aos teus pés..."

 E Loupin continuou estendido na erva, invisível na escuridão, de olhar fixo no exército dos cossacos, sempre na expectativa de ver Marina enforcada numa das cerejeiras. E foi assim, deitado no chão de barriga para baixo, que Loupin viu, com extrema surpresa, que a filha partiu a galope num cavalo cossaco, regressando quase de imediato para discutir com o chefe do bando. "Enlouqueceu!", pensou Loupin. "Deus misericordioso, o incêndio da aldeia secou‑lhe o cérebro! Na posse de um cavalo, dádiva inesperada, foge a galope e regressa para junto dos cossacos! Pobre pai, pobre de mim!" Loupin continuou estendido na erva, na impossibilidade de se aproximar da filha. Em seguida, viu‑a deitada junto de uma fogueira, entre os cossacos, enquanto ele próprio se atormentava pela calada da noite.

 Só de madrugada, enquanto todos os homens dormiam, Loupin se aventurou, descrevendo um semicírculo, até às ruínas de Novo Orpotchkov, tendo conseguido penetrar na igreja.

 "Um pope ressonava junto da iconostase, vestindo calças e botas cossacas, cheirando terrivelmente a aguardente neste recinto sagrado. Quanto ao pope da aldeia, encontrava‑se sentado, alquebrado, nos degraus do altar, olhando fixamente em frente. Quando viu que Loupin transpusera o limiar da porta, rastejando, ergueu a mão direita e abençoou‑o.

 ‑ Padre, não sei que partido tomar! ‑ murmurou Loupin, olhando de relance, apavorado, para o pope cossaco.

 ‑ Nem eu! ‑ replicou o pope da aldeia. ‑ O firmamento agita‑se. A harmonia dos céus foi destruída.

 Esboçou um gesto, apontando para o colega que ressonava e meneou a cabeça, em silêncio.

 ‑ O céu está longe ‑ observou Loupin ‑, mas a minha filha Marina está muito perto: parece‑me que os cossacos pretendem levá‑la.

 ‑ Deus a proteja! ‑ respondeu simplesmente o pope.

 ‑ Melhor seria se eu me encarregasse disso! ‑ replicou Loupin.‑ Assim, seguirei os cossacos, também a cavalo, e sabe Deus onde, quando e como, acabarei por recuperar Marina: surgirá certamente alguma ocasião propícia! Não sei de quanto tempo necessitarei para conseguir! Neste caso, Novo Orpotchkov será reconstruído sem mim!

 ‑ Vai, Alexandre Grigoriévitch, prometo‑te que me "encarregarei dessa tarefa ‑ afirmou o pope solenemente. ‑ Então, padre, abençoa‑me...‑ Loupin ajoelhou‑se e, enquanto o pope cossaco ressonava como um porco, peidando‑se ruidosamente de vez em quando, o pope da aldeia proferia a oração das grandes despedidas e traçava três sinais da cruz sobre a cabeça inclinada do seu paroquiano.

 Pela madrugada enevoada, os cossacos meteram‑se a caminho. Totalizavam, agora, quinhentos e quarenta e um cavaleiros.

 Os camponeses, as mulheres, as crianças, os velhos e os doentes assistiram à partida, das margens do Volga, donde não tinham chegado a sair. Nenhum cossaco se abeirava do local, embora distasse da aldeia apenas umas centenas de passos. Os habitantes de Novo Orpotchkov, de mãos postas, deram graças ao Senhor por tudo se ter passado tão misericordiosamente.

 Quando os cossacos desapareceram entre uma nuvem de pó surgiu da sombra da igreja, único edifício de pé, um cavaleiro solitário que se lançou em sua perseguição. O pope, imóvel à entrada do pórtico, ergueu a mão, mas uma mão vazia, pois a cruz que deveria empunhar fora‑lhe confiscada pelo colega.

 "A minha filha é tudo o que me resta no mundo", pensava Loupin, de olhos postos na nuvem de pó que se elevava no horizonte. "A minha mulher Larissa morreu de febres há dois anos, a minha casa e a minha aldeia arderam... O mundo, para mim, reduz‑se a Marina. Seguí‑la‑ei até aos confins da terra..."

 Era bom de dizer, mas a cavalgada afigurava‑se difícil! Os cossacos avançavam a uma velocidade que Alexandre Grigoriévitch tinha dificuldade em atingir.

 E a infeliz cavalgadura que o pope conseguira descobrir para lhe dar apresentava sinais alarmantes de velhice. Todos os cavalos válidos da aldeia tinham fugido do incêndio, dispersando‑se pela estepe como um bando de animais selvagens. Os aldeões necessitariam certamente de vários dias para reunir de novo cavalos, éguas e potros.

 O garrano que Loupin montava não seguira o bando de fugitivos, com certeza por ter compreendido que não resistiria a tão louca corrida através da estepe. Assim, escondera‑se atrás da igreja e foi aí que o pope ‑ à procura de um cavalo para Loupin ‑ o descobriu.

 ‑ Andava em busca da protecção dos locais sagrados ‑ explicou o pope, colocando a mão entre as orelhas do cavalo, embora o pobre animal ignorasse o santo baptismo. ‑ Deus é Todo‑Poderoso.

 

 Mas Loupin não beneficiou em nada das piedosas disposições da cavalgadura. Por diversas vezes, o bando de cossacos fugiu ao seu olhar, mas não havia dúvidas quanto ao itinerário escolhido, pois as marcas dos cascos, ou os gemidos que os aldeões soltavam à sua passagem, guiavam Loupin tão seguramente quanto o teriam feito postes indicativos.

 ‑ Porque se queixam e gritam? ‑ perguntava Loupin sempre que as mulheres choravam, enquanto os homens erguiam os punhos sujos de vencidos. ‑ Foram apenas roubados ou sovados. Na nossa terra, incendiaram a aldeia e raptaram a minha filha Marina! Irmãos, preciso de um cavalo descansado! Olhem para este! Vacila a cada passo e, se o pico, começa a tremer! Como poderei perseguir os cossacos nestas condições? Dêem‑me um cavalo, irmãos!

 Assim, no segundo dia, Loupin conseguiu obter um novo cavalo. É verdade que não era bonito, mas a sua estatura, o seu pescoço forte sugeriam vigor e resistência. Loupin desfizera‑se de alguns rublos para o adquirir.

 O que é certo é que, a partir daí, as coisas se compuseram. Loupin ganhou terreno e encontrou‑se novamente a uma distância razoável da terrível nuvem de pó que pesava sobre a paisagem como uma maldição divina; por vezes, encontrava‑se com alguns soldados que os cossacos de Jermak deixavam para trás percorrendo os campos, roubando o que lhes pudesse ser útil, ou seja, tudo, pois não há nada que um cossaco não possa utilizar!

 Ao anoitecer do quarto dia, Loupin ousou aproximar‑se tanto daqueles que perseguia que viu claramente as suas fogueiras. Deixou o cavalo num bosque, preso a uma bétula, esperou pela noite escura e acercou‑se, então, do bivaque.

 Os cossacos entregavam‑se ao seu habitual comportamento durante as expedições de pilhagens. Homens e cavalos dormiam lado a lado, cada cavaleiro encostado à sua montada. Todos igualmente preparados para o combate.

 Há três semanas que tinham deixado Blagodornié e todas as guarnições do czar tinham sido alertadas para a sua passagem. Por toda a parte os camponeses reuniam‑se, queixosos, apontando ao comandante as mulheres violadas. O general comandante da região de Saratov dispôs‑se a enviar de imediato uma expedição punitiva contra os cossacos, mas soube pelos rumores que corriam que Jermak e o seu bando selvagem caminhava ao encontro dos Stroganov, a fim de se colocarem ao seu serviço.

 ‑ Deixemos andar... sejamos prudentes ‑ disse, então, aos oficiais. ‑ Este povo não passa de um inculto monte de merda, mas nós sabemos quem são os Stroganov! Os Stroganov podem estar a agir secretamente por vontade do czar, é preferível tapar os olhos e os ouvidos...

 Quem poderá conhecer o verdadeiro móbil do empreendimento? O próprio Jermak nem sequer sabia quem era Stroganov. Para ele, a cavalgada em direcção ao Norte não passava de mais uma expedição no decurso da qual se defrontariam, mais tarde ou mais cedo, com as tropas do czar. Jermak conhecia os riscos, cadáveres atravessados nas selas, o que era considerado uma honra, ou enforcados, o que constituía um dos "ossos do ofício", como se costuma dizer. De qualquer modo, eram vidas perdidas.

 Jermak aplicava as leis da guerra e os cossacos comportavam‑se como em todas as incursões: homem e cavalo bem unidos, sentinelas alerta no centro de cada círculo, postos avançados, patrulhas a cavalo nos arredores! Jermak nunca fora assaltado de surpresa.

 Foi o que Loupin pôde verificar. Por vezes, era obrigado a transformar‑se num verme rastejante. Os cossacos percorriam toda a região e, por diversas vezes, um deles passou tão perto do local em que se encontrava que quase apanhou um coice do cavalo.

 "Marina ainda deve estar viva", pensava Loupin. Não fora abandonada em nenhuma das aldeias por onde passara e também não a encontrara estendida à beira do caminho. "Portanto, ainda se encontra com os cossacos, vestida de homem! Ideia simultaneamente boa e perigosa... Que fará ela se os cossacos tiverem de atravessar um curso de água a nado, obrigados a despirem‑se?

 E porque não fugirá? Poderia ter ficado numa das aldeias por que passaram: só se teriam apercebido da sua ausência à hora do recolher!

 Quantos enigmas! Loupin continuava deitado no chão.

 Abrigado por uma ligeira prega do terreno, pôs‑se a observar a fogueira do acampamento. Em vão: não conseguiu distinguir Marina entre o emaranhado de cavaleiros e cavalos. "E, contudo, encontro‑me bem perto dela", pensava para consigo, muito feliz, "mesmo num mundo de cossacos, recuperá‑la‑ei!"

 

Não surpreende que Ivan Matveiévitch tenha amaldiçoado cem vezes o dia em que encontrou Marina. A situação entre os dois não mudara, o que só por si deveria constituir motivo de regozijo.

 Mas a verdade é que o coração de Mouchkov parecia cada vez mais pesado só de ver Marina. E ele era obrigado a observá‑la constantemente, pois devia cavalgar sempre a seu lado. Jermak dera‑lha, era o seu espólio de guerra. Mas pela primeira vez, tratava‑se de um espólio que não podia utilizar.

 Só Mouchkov descobria os contornos dos seus belos seios quando o vento colava a camisa disforme ao seu jovem peito; só ele conhecia o verdadeiro aspecto do seu cabelo louro, quando o galope do cavalo lhe empurrava para a testa as madeixas curtas e sedosas. Só ele conhecia as esbeltas pernas, cuja elegância ninguém poderia suspeitar ao ver as pesadas botas que usava. Quando Mouchkov pensava em tudo aquilo que ainda lhe era inacessível, suspirava profundamente e fixava um ponto longínquo, com um ar irritado.

 à noite, pousava o punhal atravessado sobre o peito até que Mouchkov dissesse:

 ‑ Que queres mais? Sei como comportar‑me!

 ‑ às vezes, esquecemo‑nos daquilo que sabemos, Ivan Matveiévitch!

 ‑ Prometo, por tudo o que há de mais sagrado...

‑ O que significa sagrado para um cossaco? ‑ perguntou ela.

‑ O vosso pope reza, e pilha as igrejas ao mesmo tempo. Durmo melhor com este punhal, irmão.

 Mouchkov voltava a suspirar e permanecia acordado durante muito tempo, ao lado de Marina, debaixo de um cobertor que fedia a suor de cavalo. Lutava contra o seu coração, que Marina ocupava tão solidamente como um cossaco ocupava a sela.

 E combatia igualmente o seu orgulho cossaco que, seja como for ‑ Deus seja louvado! ‑, se vira lesado pelo comportamento de Marina. Nesses momentos, Mouchkov amaldiçoava Novo Orpotchkov, a aldeia do Volga que ele abordara como homem livre e cujas ruínas fumarentas abandonara transformado em fantoche, devido aos encantos de uma jovem. Deplorável aventura e, além do mais, mesmo nas barbas de Jermak, que não desconfiava de nada!

 Jermak chegava mesmo a reconhecer grandes méritos no campónio Boris Stepanovitch:

 ‑ Ivan Matveiévitch ‑ dizia ele ao deprimido Mouchkov ‑, este rapaz monta como um diabo! E ainda por cima é resistente:

 ‑ Resistente, lá isso é verdade! ‑ respondia Mouchkov, pensando em outra coisa.

 ‑ É inteligente! ‑ exclamava Jermak.

 ‑ Corajoso e ousado!

 ‑ É obediente!

 "É isso", pensava Mouchkov, com um aceno de cabeça. Na verdade, um punhal colocado, todas as noites, entre um homem e uma mulher não é propriamente uma prova de obediência...

 ‑ Quando estivermos na terra dos Stroganov, se ele continuar como até agora ‑ prosseguiu Jermak ‑, e se tivermos de organizar um exército para conquistar essa tal Mangaseja, poderíamos nomeá‑lo chefe‑adjunto. Que te parece, Ivan Matveiévitch?

 ‑ Devemos esperar que se desenvolva um pouco mais, Jermak ‑ respondeu Mouchkov, prudente. ‑ Já se tem visto uma montanha parir um rato!

 ‑ Por vezes, este Boris Stepanovitch tem trejeitos femininos... ‑ observou Jermak pensativo.

 Mouchkov julgou que o seu coração ia parar de bater. Subitamente, sentira‑se petrificado de medo.

 ‑ Trejeitos femininos... ele? Ah! Ah! ‑ riu‑se Mouchkov, exagerando.

 ‑ Eu disse "por vezes"! ‑ justificou‑se Jermak, meneando a cabeça. ‑ Quando galopa... rapazelho que ainda não acabou de crescer, ainda se lhe adivinha a harmonia do peito materno... Mas dentro de um ou dois anos será um homem capaz de desempenhar as actividades que lhe destinarmos...

 ‑ Com a ajuda do diabo, tudo pode acontecer! ‑ retorquiu Mouchkov que, nesse dia, estava muito filósofo. ‑ Deixemos andar...

 Dentro de dois anos Marina teria dezasseis anos! E o que são dois anos para um russo? Quando se dispõe de tempo, pode‑se gastá‑lo generosamente, como os boiardos fazem com as suas fortunas. Deste ponto de vista, cada cossaco é um homem rico!

 Felizmente, estas conversas com Jermak eram pouco frequentes. Davam conta dos nervos de Mouchkov, sempre inquieto perante a ideia de que poderiam descobrir qual o verdadeiro sexo de Marina.

 ‑ Não há nada a fazer ‑ disse ele a Marina no nono dia de cavalgada comum, em direcção ao Norte. ‑ De vez em quando, terei de te zurzir diante dos meus camaradas, sem esquecer uns pontapés bem aplicados. Faz parte da tua formação!

 ‑ Não hesites, Ivan ‑ respondeu Marina tranquilamente. ‑ Se é uma questão de segurança...

 ‑ Mas não posso! ‑ gemeu Mouchkov. ‑ Se te bato, despedaço‑te o crânio! ...

 ‑ E não consegues ser um pouco mais meigo?

 ‑ Nunca experimentei. Mas, em todo o caso, um pontapé meu provocar‑te‑á sempre nódoas negras.

 Mouchkov afastou‑se devagar, resmungando. "Como ela pronuncia o meu nome! Dir‑se‑ia uma carícia e uma bofetada ao mesmo tempo... e o olhar, sinto‑me perdido...

Como poderei suportar esta situação durante dois anos?"

 Mouchkov dirigiu‑se ao pope e travou‑se de razões com ele, o que lhe permitiu proferir tantas injúrias que se sentiu aliviado da angústia.‑ Obrigado! ‑ resmungou por fim.‑ Era disso que eu precisava...

 O pope dos cossacos, ‑ Oleg Vassiliévitch Koulakov, - agarrou energicamente Mouchkov pelo braço e bateu com o indicador na testa:

 ‑ O que é que se passa, Ivan Matveiévitch? ‑ perguntou.

 ‑ Não é nada! ‑ respondeu Mouchkov entredentes. ‑ É uma coisa cá dentro de mim... mas tu, pope, tu não podes compreender...

 

 As fogueiras crepitavam, um doce calor pairava sobre a noite de Junho, ainda fria. ‑ os cavalos espelham o ar pelas narinas dilatadas, escoicinhando no chão. ‑ os cossacos, com excepção de alguns jogadores apaixonados, debruçados sobre um tabuleiro de damas, ressonavam enrolados nos cobertores.

 ‑ Porque não foges? ‑ perguntou subitamente Mouchkov a Marina.

 Há dias que este pensamento o perseguia. Não faltavam "ocasiões". Ainda ontem, por exemplo, enquanto atravessavam a passo a pequena cidade de Ougounovsk, onde uns tantos idiotas dispararam sobre eles, ‑ o que os obrigou a carregar a galope através das ruas, porque, dessa vez, não tiveram tempo para incendiar o pequeno burgo até às caves! Nesse momento, ela poderia ter fugido, pois, quando os tiros se fizeram ouvir e a mão de Jermak se ergueu para ordenar o ataque, ninguém teria prestado atenção a esse rapazote do Boris Stepanovitch.

 Mas não! O seu grande cavalo mazela continuava de focinho colado à cauda do cavalo de Mouchkov, e este chegou mesmo a pensar que Marina lançara o grito de guerra dos cossacos, cujo significado cruel coagula o sangue.

 ‑ Prometi a mim mesma desempenhar uma determinada tarefa ‑ respondeu Marina, tapando a cabeça com o cobertor.

 ‑ Uma tarefa? Que tarefa?

 ‑ Transformar um certo Ivan Matveiévitch num homem respeitável.

 ‑ Que queres tu? ‑ perguntou ele, pasmado. ‑ Queres matar‑me, Marina? ‑ Mouchkov rangia os dentes de forma horrível. Que diabo, como poderia um homem suportar uma coisa destas?

 ‑ No fundo, és um bom rapaz, Mouchkov.

 ‑ Quando o diabo abana a cauda, parece pacífico!

 ‑ Não espero concessões da tua parte, Mouchkov ‑ retomou Marina, espreguiçando‑se no aconchego do cobertor, enquanto Mouchkov imaginava os seus pequenos seios distendidos. ‑ Tu és feito de duas metades muito diferentes que não se ajustam muito bem uma à outra.

 ‑ O que é que não se ajusta? ‑ perguntou Mouchkov numa voz roufenha.

 ‑ Não podes compreender...

 ‑ Mas tu, tu sabes do que se trata, hem?

 ‑ Sei!

 Mouchkov encarou‑a e distinguiu, debaixo do cobertor, a forma do punhal pousado no peito, pronto a servir. Afastou‑se com brusquidão.

 "Terei de correr com ela!", pensou ele, taciturno. "Ou então, desanco‑a violentamente segundo os velhos princípios: baixa os olhos, fêmea! Bem, limitar‑me‑ei a zurzi‑la até que lhe apeteça fugir!"

 Fácil de imaginar, embora soubesse que nunca se decidiria a passar aos actos.

 De noite, como não conseguia adormecer, Mouchkov dirigiu‑se mais uma vez ao pope. O sacerdote bebera novamente e estava a polir os diversos objectos de culto, "oferecidos" pelos colegas encontrados pelo caminho. No dia seguinte era domingo... e celebraria missa ao ar livre, antes que o grupo prosseguisse a caminhada.

 ‑ Vai‑te embora, Ivan Matveiévitch! ‑ sugeriu o pope, brandindo uma cruz pascal. ‑ Conheço bem os teus grosseiros palavrões! Mas ainda sou capaz de te ensinar alguns!

 ‑ Venho apenas pedir um conselho, padre...

 Mouchkov demonstrara uma atitude tão humilde que o pope encolheu os ombros, resignado a ouvi‑lo.

 ‑ Estou a ouvir‑te.

 ‑ Padre, é verdade que sou feito de duas metades diferentes que não se ajustam bem?

 O pope cossaco olhou primeiro para o seu paroquiano muito surpreendido, mas depois lembrou‑se de que Ivan Matveiévitch mudara muito depois de partirem de Blagodornié, a ponto de parecer desarranjado da cabeça.

 ‑ O que interessa é que a cola seja boa! ‑ respondeu o pope num tom paternal.

 ‑ Então o que é que não se ajusta?

 ‑ Como não és uma cadeira, da qual poderíamos cair, tudo se resolverá!

 ‑ Eu não sou uma cadeira, padre.

 ‑ Então, que Deus te abençoe!

 O pope aplicou uma canelada numa das tíbias do interlocutor e Ivan Matveiévitch regressou ao acampamento meio consolado.

 Marina dormia a sono solto. Mouchkov debruçou‑se com muito cuidado sobre ela e contemplou‑a com ternura. Tinha os lábios entreabertos e respirava suavemente, deixando ver os dentes limpos e brilhantes.

 "Como é bonita e frágil!" pensou ele. "Meu Deus, amanhã terei de a açoitar para poder pensar em outra coisa!"

 

 Perto de Tchiélny, onde o rio Kama descreve uma grande curva, Loupin conseguiu finalmente ver a filha e, sobretudo, falar‑lhe.

 Foi a 14 de Junho de 1579 e, se Loupin possuísse um calendário, teria decerto sublinhado esta data a vermelho ‑ nem que fosse com o próprio sangue. Assim, limitou‑se a chorar de alegria, o que, dado o louco empreendimento em que se empenhara, era um verdadeiro prodígio.

 Os cossacos encontravam‑se acampados nas margens do Kama. Jermak e os colaboradores discutiam há horas, no intuito de prever o futuro. Pela primeira vez, podiam formar uma ideia exacta da importância dos Stroganov. O que os três emissários tinham contado era demasiado fantástico para ser verdade. Mas, agora, os cossacos escutavam os camponeses que conheciam bem os Stroganov. Quem, nas margens do Kama, e mais longe, no país de Perm, ignorava os Stroganov?

 O czar está longe, mas um Stroganov está em toda a parte. Era uma verificação com a qual convinha saber viver, e bem. Os Udmurtes e os Bachkirios que colonizavam estas regiões começaram por pegar em armas quando o czar ofereceu estes territórios ao avô Anika Stroganov. Foi um presente fácil de oferecer, pois a região não pertencia a Ivan IV. Apenas passou a pertencer‑lhe quando Anika Stroganov surgiu nas margens do Kama, para contar a todos os habitantes que o grande czar branco, da longínqua cidade de Moscovo, o encarregara de os proteger a todos. E foi então que Anika começou a explorar o país, as florestas. Estabeleceu tratados com os habitantes, que não sabiam ler nem escrever. Estava estipulado nestes contratos que o país de Perm, e tudo o que se encontrava tanto na margem esquerda como na margem direita do Kama, pertenceria de futuro a Moscovo, e que Stroganov aí exerceria todos os seus direitos. De início sonhou‑se um pouco, depois pegou‑se em armas. Mas Anika não era homem para conquistar um país à paulada. Preferiu reunir os chefes das tribos e mostrar‑lhes o novo e magnífico palácio construído segundo a tradição de Moscovo. Impressionados pelo esplendor e pelas palavras de Stroganov. "Um dia também hão‑de viver assim!", aceitaram toda a espécie de presentes, confiando aos seus homens:

 ‑ Este Stroganov é um mago que nos enriquecerá a todos!

 E foi, de resto, o que aconteceu. O país beneficiava da actividade dos cérebros Stroganov. Os pequenos senhores construíram pequenos Kremlins nos quais se pudessem refugiar, em caso de ataque por parte dos bandidos ou de outras tribos. Dispunham de uma força defensiva reduzida mas bem armada, que apenas tinha o defeito de chegar demasiado tarde, mas pagavam generosamente as peles, a caça e o peixe que pretendiam. Instituírem feitorias e elaborarem um plano de compras estável para os negociantes. Podia‑se confiar nos comissionados dos Stroganov. Anika chamava‑lhes verdadeiros profissionais, que chegavam sempre nas datas previstas. E todos sabiam o que isso significava nessa imensa Rússia, privada de estradas, onde as armadilhas tecidas pela natureza eram constantes.

 Assim, ainda hoje, com Simeão Stroganov e os dois sobrinhos Nikita e Máximo, toda a gente vivia contente. Deus abençoe ainda por muito tempo os benfeitores Stroganov.

 ‑ Dir‑se‑ia um conto de fadas ‑ comentava Jermak para os seus ajudantes de campo, quando todas as informações lhe foram fornecidas. Os relatos dos três mensageiros eram verdadeiramente incaracterísticos. Os factos ultrapassavam tudo o que se contava sobre a Rússia, a qual era tão rica em prodígios como em terrores. Irmãos, vamos penetrar num país onde correm o leite e o mel! Leite de zibelinas, mel de ouro puro!

 ‑ Aleluia, louvemos o Senhor! ‑ exclamou piedosamente o pope.

 Jermak olhou para ele, preocupado:

 ‑ Não! Trata‑se de uma situação nova, irmãos!

 Acabaram‑se os ataques de surpresa, as pilhagens, as mulheres violadas! Fomos chamados a este país para o defender, em nome do czar, das hordas de homens de raça amarela vindos do Leste. Cabe‑nos cumprir uma missão sagrada! Conduzam‑se, não como demónios, mas como homens dotados de sabedoria!

 ‑ Seria terrível, Jermak, se nos comportássemos como homens sensatos! ‑ respondeu o pope, compenetrado. ‑ Na verdade, comparado com um cossaco, o Diabo não passa de um menino educado num mosteiro!

 ‑ Então, comportem‑se como eleitos do céu, o que somos, de resto. A partir de agora, as nossas vitórias serão para o czar!

 ‑ Por quanto tempo? ‑ perguntou um dos auditores.

 Jermak coçou a cabeça.

 ‑ Os camponeses dizem que, dentro de dez dias, estaremos em Oriol, junto dos Stroganov.

 ‑ Não tocarão em nada! É uma ordem!

 Os tenentes cossacos estavam mudos, consternados. Jermak ordena, eles compreendem. Mas vai ser preciso explicar tudo aos outros. E que se passa quando um cossaco desobedece? Sobre isso nem é bom falar! Há punições que deixam marcas para sempre!

 ‑ E mais tarde? ‑ perguntou outro.

 ‑ Depois se vê. Discutirei com os Stroganov o que poderemos fazer ou não. Mas prometo que nunca farão de nós cães raivosos! ‑ Jermak aprumou‑se, de olhos cintilantes. Já era uma personalidade, reconheçamo‑lo.

‑ Seremos os cossacos mais famosos da Rússia! ‑ concluiu, arrebatado pelos seus próprios pensamentos. ‑ Nunca mais um czar poderá afirmar que os cossacos são bandidos e assassinos!

 Foi um momento histórico. Um sonho que iria tornar‑se realidade...

 

 Enquanto os chefes dos cossacos se reuniam e recebiam ordens de Jermak, enquanto os outros instalavam o acampamento, três grupos de dez homens iam buscar água ao rio em odres de couro. Outros destacamentos conduziam os cavalos para um local do rio em que estes pudessem beber e entre os soldados que executavam esta tarefa encontrava‑se Marina.

 Loupin, desta vez, deparou com menos dificuldades para realizar os seus intentos. Graças a uma ordem de Jermak, os camponeses não eram obrigados a submeter‑se aos maus tratos do bando, como acontecia outrora.

 Já não se roubava descaradamente e só as mulheres muito bonitas eram molestadas na erva, o que Loupin considerava razoável, já que se aproximavam dos domínios dos Stroganov, esse estado dentro do estado do czar.

 Loupin não era parvo e dizia para consigo que se o próprio Jermak se emendasse, não viria longe o dia em que reencontraria a filha.

 Misturou‑se com a multidão de colonos udmurtes, enterrou o boné até aos olhos e pôs‑se a observar os soldados que conduziam os cavalos ao bebedouro. Imagem de respeito: seiscentos cavalos selados, carregados de sacos bem repletos de riquezas, cavalos para os quais nada era demasiado longe, que devoravam o colmo apodrecido dos telhados das casas dos aldeões como se fosse erva luxuriante da Primavera. Cavalos que nunca se cansavam, ignoravam a doença e rivalizavam em coragem com os cavaleiros.

 Loupin avistou Marina no meio de uma fila de cossacos que se dirigiam para o rio. Montando um cavalo de pêlo mesclado, já não envergava um fato demasiado grande nem calçava botas gigantescas. Vestia um verdadeiro uniforme cossaco, um pouco largo no peito, cinto alto de couro, boné vermelho‑vivo sobre o cabelo louro e curto. Como todo o cossaco que se preza, trazia um punhal curvo à cintura e, quando brandia o chicote, gritava "HoÍ! HoÍ! HoÍ!", não se distinguindo em nada dos outros soldados.

 ‑ Um bom disfarce ‑ pensou Loupin, satisfeito e mesmo orgulhoso. ‑ Ela sobreviveu a tudo! É uma rapariga atilada! Mas em breve terminará esta brincadeira e voltaremos a cavalo para um Novo Orpotchkov reconstruído!

 Permaneceu entre a multidão de indígenas até atingir os cavalos, e esforçou‑se por não cuspir de repulsa em contacto com os cossacos. Depois aguardou, um pouco à distância, que os cavalos matassem a sede nas profundas águas das margens do Kama. Marina encontrava‑se entre os relinchos, os coices, os roncos dos cavalos que soltavam tais bufados que dificilmente se ouviria um tiro de canhão. Na verdade, seiscentos cavalos à solta fazem um barulho dos diabos!

 Mesmo assim, Loupin tentou lançar o assobio agudo que toda a gente conhecia, em Novo Orpotchkov, e ninguém deixaria de ouvir. Introduziu, pois, dois dedos na boca, e o assobio partiu! Muitos dos seus vizinhos insistiam em treinar o mesmo assobio, mas o efeito obtido era sempre um lamentável guincho. Só o pope conseguiu um dia acertar com a nota, quando exercitava em segredo atrás da iconostase. O assobio foi tão penetrante que uma velha que se encontrava a orar, diante da imagem de São José, caiu sem sentidos, julgando que o santo assobiara. A partir daí, o pope interrompeu os treinos.

 Loupin assobiou, pois, e por milagre, ou porque a direcção do vento era favorável, ou ainda porque duas almas que se procuram têm mais possibilidades de se encontrar, o facto é que Marina se voltou e viu um homem imóvel na margem do rio.

 Loupin esboçou um gesto e tirou o boné, pondo a descoberto o cabelo grisalho e muito curto.

 Apercebeu‑se de que Marina foi percorrida por um arrepio, levando a mão ao coração. Em seguida, voltou‑se por diversas vezes, a fim de não ser notada, e começou a avançar com o cavalo, lentamente, aproximando‑se do pai através da massa formada pelos cavalos.

 Loupin arquejava ruidosamente. "Meu Deus ", implorava ele, "não permitais que o meu coração deixe de bater perante tão grande alegria! Concede‑me mais esta hora em que encontrarei a minha filhinha!" Mas sentia‑se como que paralisado e via o rosto infantil de Marina, que entretanto adquirira uma expressão de mulher, através de uma névoa. "Cavalguei tanto, durante tanto tempo", rezava Loupin, "para agora morrer... pois sinto‑me desfalecer como um boi que recebeu o golpe de misericórdia. Marina..."

 ‑ Paizinho ‑ disse ela quando se encontrou à sua frente. Mas não pôde abraçá‑lo nem beijá‑lo... Teria sido indigno de um cossaco!

 ‑ Minha querida ‑ balbuciou Loupin. Proferidas estas palavras, a névoa dissipou‑se e ele viu claramente Marina mesmo à sua frente.‑ Minha filhinha! Como estás bonita, mesmo com esse uniforme!

 ‑ Meu Deus, papá, como chegaste até aqui?

 ‑ Tenho vindo sempre a segui‑los ‑ murmurou Loupin. ‑Estive sempre perto de ti, Marinouchka. Nunca estiveste sozinha, pois o teu pai esteve sempre contigo!

 Loupin não se mexia e, de longe, quem observasse o colóquio pensaria que o jovem soldado interrogava severamente um velho, suspeito de hostilidade. Mouchkov ainda se encontrava junto de Jermak; quanto aos outros homens, ‑ os cavalos prendiam‑lhes toda a atenção.

 ‑ Toda esta caminhada! Oh, paizinho! ‑ os olhos de Marina encheram‑se de lágrimas. Inclinou a cabeça e mordeu o lábio inferior.‑ Disseram‑me que tinhas morrido!

 ‑ Quem te disse?

 ‑ Os cossacos. Perguntei o que acontecera ao chefe da aldeia e eles gritaram, rindo: "Ah, esse? Assámo‑lo dentro de casa!" Não pude deixar de acreditar. A nossa aldeia ardeu e convenci‑me de que pereceras nas chamas.

 Também eu teria morrido queimada se ele não tivesse tido a ideia de me vestir de homem!

 ‑ Ele, quem?

 ‑ Ivan Matveiévitch Mouchkov.

 ‑ Um cossaco?

 ‑ O amigo e braço direito de Jermak.

 ‑ Foi um desses sugadores de sangue quem te salvou?

 ‑ Loupin passou as mãos pelo cabelo.‑ Que te fez ele, minha pobre filha? Deus do céu, que sofreste tu?

 ‑ Não me fez absolutamente nada, salvou‑me a vida.

 ‑ Sem...‑ articulou Loupin, angustiado.

. ‑ Sim, pai, sem.

 ‑ Devem ter‑lho cortado por ocasião de alguma expedição punitiva.

 ‑ Não sei, paizinho, mas não me parece...

 ‑ Seja como for... ‑ Loupin voltou‑se, ninguém os observava. ‑ Se nos deitássemos na erva, num ápice, e nos deixássemos rebolar até ao fundo da encosta, até àquelas moitas, ninguém nos veria... Esperaríamos pelo cair da noite. ‑ Ergueu o olhar acima do Kama; o dia declinava no reflexo rosado do poente; os campos tornavam‑se pouco nítidos e sem contrastes, cobertos por uma claridade semelhante à que devia ter existido no primeiro dia da criação, quando Deus experimentou a luz solar. ‑ Agora já não falta muito!

 ‑ O quê, papá?

 ‑ A nossa fuga! Galoparemos durante toda a noite. Jermak é obrigado a prosseguir o seu caminho, não enviará ninguém atrás de nós. A nossa fuga pode desde já considerar‑se bem sucedida!

 Marina, procurando evitar o olhar do pai, observava o ajuntamento formado pelos cavalos e, mais adiante, as fogueiras que se acendiam no acampamento. Como era difícil dizer ao pai que gastara em vão forças e dores! Como era penoso explicar‑lhe que há outro mundo para além do Novo Orpotchkov e que a vida pode ser dominada pelo desejo do desconhecido!

 ‑ Pai, não somos plantas enraizadas na terra, somos jovens e o mundo é muito vasto. Além disso, há Ivan Matveiévitch... Não o conheces, mas salvou‑me a vida e devia ser um filho para ti... Não quero fugir, papá ‑ disse ela baixinho. ‑ E agora preciso de ir dar de beber aos cavalos.

 Loupin ergueu a cabeça como se tivesse compreendido mal.

 ‑ Não queres... ‑ repetiu ele, num tom meigo.

 ‑ Não, papá.

 ‑ Então, estás com eles de livre vontade...

 Era de tal modo inacreditável que Loupin mal conseguia respirar.

 ‑ Sim, papá.

 ‑ E não queres voltar para a nossa aldeia?

 ‑ Por agora, não. Mais tarde, certamente que sim.

 ‑ Marinouchka...

 A expressão de Loupin crispou‑se. Escorriam‑lhe lágrimas pelas faces; não sabia que fazer nem que dizer.

 Desesperado, arrancava os cabelos com as duas mãos:

 "Fica com os cossacos! A minha querida filha! O único bem da minha vida!"

 ‑ Que será de mim? ‑ perguntou por fim.

 ‑ Voltaremos a ver‑nos, papá.

 ‑ É tudo? Tudo o que me resta de ti? Esperar! Esperar que a minha filha regresse verdadeiramente... será isso viver?

 ‑ E vegetar em Novo Orpotchkov é viver?

 ‑ É.

 ‑ Eu penso que não, papá. ‑ Marina encostara‑se ao cavalo cossaco que, permanecia imóvel habituado como estava, como um monumento. Só as orelhas mexiam, enquanto a respiração lhe dilatava as narinas.

 ‑ Que faria eu na aldeia? Jardinaria, casaria com um camponês, daria à luz os meus filhos sem me afastar de casa e, por fim, morreria. É para nos submetermos a este destino que estamos vivos?

 ‑ Não foi assim que a tua mãe viveu? ‑ balbuciou Loupin. "Será mesmo a minha filha?", pensava ele.

 "Os olhos, a boca, o mesmo rosto de anjo, mas que espírito maligno habitará aquela linda cabecinha? Marinouchka, estou a chorar..."

 Loupin soluçava, de rosto oculto entre as mãos, aguardando mais explicações.

 ‑ A minha mãe? ‑ retomou Marina. ‑ Não era mais do que um animal de duas patas! Na rua labutavam os cavalos e os bois, em casa labutava ela tanto como eles. Qual a diferença? Recusava‑se mesmo a pensar, isso era, para ti, papá. Não quero ser como a minha mãe.

 ‑ Então queres cavalgar pelos campos, assassinando e incendiando tudo à tua passagem? ‑ perguntou Loupin, sentindo a língua pesada como chumbo. "A minha filha quer...". Baixou os olhos e encarou‑a. ‑ Se tivesse forças para te matar e, em seguida, acabar comigo... Como poderei viver depois disto...

 ‑ Não incendiarei nem pilharei o que quer que seja!

 ‑ E eles? ‑ perguntou Loupin estendendo o braço.

 ‑ Eles?!

 ‑ Que importam os outros? Trata‑se de mim e de Ivan...

 ‑ Esse cossaco! ‑ Loupin arquejava, como se lutasse contra uma carroça totalmente enterrada na lama. ‑ Estás apaixonada por ele? Por esse cossaco?

 ‑ Não sei o que é amar. ‑ Marina puxou o boné vermelho mais para a testa. ‑ Mas se é amor, a maneira como me comporto... então tens razão.

 ‑ E que fazes tu?

 ‑ Faço de Ivan um homem!

 ‑ De um cossaco?

 ‑ Sim.

 ‑ Deus me perdoe, já não é a minha filha, é uma cabecinha oca! Um cossaco! Um homem, dizes tu? Mais depressa transformarias um lobo em cãozinho de estimação.

 ‑ Com certeza! ‑ Marina sorria eternamente. ‑ Mouchkov já está mais moderado. ‑ Se as árvores necessitam de tempo para crescer, porque é que um homem não há‑de levar tempo a modificar‑se? Não podes compreender, papá!

 ‑ Não, não posso, Marinouchka.

 Loupin voltou‑se para o rio. A noite descia lentamente sobre a terra, mal se adivinhara o Sol. "Talvez eu já esteja muito velho?" Enterrou a cabeça nos ombros, como se sentisse frio naquela bela noite de Junho. "Que irá passar‑se?"

 ‑ Volta para casa, papá. Um dia também regressarei.

 ‑ Quando, minha filha?

 ‑ Dentro de dois ou três anos. Não sei de quanto tempo precisarei para modificar Mouchkov. Mas só voltarei com ele.

 Loupin meneou a cabeça várias vezes seguidas. "Quem devo acusar?", pensava. "O destino? O czar? por não ter enforcado todos os cossacos? Eu próprio, por ter querido resistir aos cossacos, provocando assim o encontro de Mouchkov com Marina? Que fazer? Valerá a pena lançar‑me ao rio?"

 ‑ Está bem, minha filha ‑ articulou penosamente Loupin. Para proferir estas palavras despendeu mais energia do que teria necessitado para dominar dois touros.‑ Não te compreendo, mas que Deus te acompanhe!

 ‑ Obrigada, papá.‑ e, subitamente, numa voz hesitante: ‑ Não posso dar‑te um beijo... é impossível, neste momento...

 ‑ Evidentemente, já que és um cossaco.

 Marina esboçou um gesto de despedida, voltou‑se para pegar nas rédeas do cavalo e abeirou‑se do rio. Loupin, por sua vez, virou‑se lentamente para acompanhar a filha, com o olhar. Esta afastava‑se entre os últimos raios de sol ainda reflectidos nas águas do rio, jovem cossaco de ombros estreitos, escondendo o cabelo louro num gracioso boné vermelho.

 ‑ Fico contigo! ‑ gritou Loupin. Ninguém o ouviu.

 Os seiscentos cavalos continuavam a dessedentar‑se no rio.‑ Que farei eu em Novo Orpotchkov? Foges de mim, minha filha, mas eu seguir‑te‑ei. O teu velho pai vai perseguir‑te. Que faria ele sem ti, neste mundo? De resto, terás necessidade de mim, sei‑o bem.

 Viu‑a regressar ao acampamento, cavalgando, com o primeiro grupo de cavalos. Mantinha‑se bem firme na montada. Loupin sentiu‑se orgulhoso e disse para consigo: "Fui eu que lhe ensinei a montar assim!"

 Seguiu‑a com o olhar até a sua silhueta se apagar na escuridão glauca das garupas dos cavalos. Só então voltou para trás, juntando‑se aos camponeses udmurtes, reunidos nas margens do Kama, para prestar atenção aos seus comentários.

 Jermak e os seus homens iam ao encontro de um certo Stroganov, que os chamara em nome do czar.

 ‑ Cossacos chamados em nome do czar?

 Loupin já não compreendia nada do mundo. "Parece que o tempo passou por mim, deixando‑me para trás. Só a minha filha o percebeu. Já não há pessoas sensatas." Era duro habituar‑se.

 Agachou‑se à beira do rio e só então se congratulou por a filha ter sobrevivido, a despeito de todos os perigos.

 Do acampamento vinha o coro dos cossacos, enquanto a atmosfera se carregava de fumo da carne de vaca grelhada.

 

 Mouchkov, sentado à fogueira junto de Marina, saboreava antecipadamente o gosto da comida.

 ‑ Que idade tens? ‑ perguntou ela de repente.

 ‑ Vinte e oito anos, penso eu.

 ‑ O dobro da minha idade!

 Mouchkov olhou‑a de esguelha. "Que mais teremos?", pensou. "Quando ela começa a fazer perguntas, temos perigo à vista!"

 ‑ Porquê? ‑ replicou com rudeza.

 Ela deu uma gargalhada e deitou‑se para trás, na erva aquecida pela proximidade da fogueira.

 ‑ De facto, já estás velho! ‑ exclamou ela. ‑ Mas não te preocupes a esse respeito.

 Durante a noite, Mouchkov não conseguiu dormir, sempre a pensar no que Marina lhe dissera, com toda a sua maldita alegria. Um velho... estas palavras continuavam cravadas na sua carne como uma seta. E, depois, todas estas noites sem dormir... tão numerosas que Mouchkov emagrecera, andava pálido e vagueava como um homem acossado.

 Até mesmo Jermak se apercebera. Mouchkov cavalgava muitas vezes a seu lado durante a longa caminhada rumo ao Norte e vira‑o fixar o horizonte com um olhar demasiado ausente, prostrado no cavalo como um saco de centeio.

 ‑ Pareces doente ‑ disse‑lhe Jermak no dia seguinte. ‑ É do estômago, irmão? Talvez tenhas comido de mais? Ou precisas de uma rapariga vigorosa, meu grande mariola?

 Jermak soltou uma gargalhada sonora, saudável, provocante.

 Mouchkov sorriu, por entre um esgar:

 ‑ Uma fêmea! ‑ esclareceu ele, desgostoso. ‑ Jermak, não me venhas recordar um certo corpo muito branco, tépido, delicioso! Só me falta chorar!

 ‑ Ah! então é isso... Escolhe uma... Ainda atravessaremos muitas aldeias antes de chegarmos à terra dos Stroganov. Acabaram‑se as pilhagens! Foi ordem que vos dei! Quem se entregar às pilhagens será enforcado! Mas deitar uma rapariga na erva é um gesto perfeitamente natural... De resto, elas gostam, as frágeis pombas...

 Pouco importa que seja musique ou cossaco, desde que se trate de um homem robusto! Ivan Matveiévitch, tu eras assim, antigamente!

 ‑ Antigamente! Quando penso nesses tempos, vêm‑me as lágrimas aos olhos!

 Aprumou‑se na sela, olhou de esguelha por cima do ombro e viu Marina, que avançava na terceira fila de cavaleiros. O seu boné vermelho brilhava ao sol. O vento que lhe colava ao corpo o uniforme demasiado largo deixava adivinhar os seios firmes através da camisa. Mouchkov sentiu um choque: "Se um destes bandidos a observar com atenção neste momento, estará perdida!

 Felizmente, ninguém olha para um jovem demasiado magro que a generosidade de Jermak admitiu entre os cossacos. Porque haveriam de olhar?"

 ‑ Boris Stepanovitch está‑me atravessado na garganta! ‑ confessou Mouchkov. ‑ Foi um erro trazê‑lo connosco.

 ‑ A ideia foi tua, Ivan Matveiévitch! ‑ Jermak encolheu os ombros largos: ‑ Vejamos, trata‑lhe da saúde com uma boa surra, linguagem que os camponeses não ignoram! De qualquer modo, penso que se fará um bom cossaco!

 ‑ Se lhe bastasse uma surra...

 Mouchkov deixou‑se ficar para trás, insinuou‑se pela fila em que seguia Marina e pôs‑se a mirá‑la fixamente.

Era uma jovem muito alegre, de olhos sempre brilhantes e que ocupava a sela como se aí tivesse nascido.

 ‑ Porque me dizes tantas maldades?

 ‑ O quê, meu ursinho?

 O coração de Mouchkov saltou‑lhe dentro do peito. Pela primeira vez, ela chamara‑o assim e ele não sabia ao certo se seria por verdadeira ternura ou por zombaria. Vá lá o Diabo entender as mulheres! Nascem com a língua carregada de raiva e veneno!

 ‑ Pretender que sou velho! Merecias ser mergulhada à força no rio, durante uma hora, para amansares!

 Marina deu uma gargalhada e, cravando as esporas nos flancos do animal, juntou‑se a Jermak, à frente da cavalgada. Mouchkov seguiu‑a, de ar carrancudo e coração apertado. "Como poderei surrá‑la ou expulsá‑la se só penso em a acariciar? É impossível sová‑la como a qualquer camponesa, pois ela pagaria na mesma moeda! Ou apunhalar‑me‑ia..."

 Jermak mostrava‑se de muito bom humor. Aproximavam‑se dos domínios Stroganov. A sua influência era bem visível por toda a parte: aldeias limpas, dotadas de pequenas fortalezas contra os ataques imprevistos, contra os Ostíacos pouco seguros, campos e jardins bem cultivados, algumas minas de prata vigiadas por homens de Stroganov e rodeadas por cercas aguçadas.

Paliçadas cujo ataque, mesmo para um cossaco, apresentaria numerosas dificuldades!

 Pescava‑se à beira do rio. Os caminhos estavam cuidados. Grandes barcaças de madeira, largas e achatadas, transportavam mercadorias. Subindo o rio, rebocadores em longas colunas avançavam junto às margens, guiando filas de barcos através da corrente indolente enquanto se cantavam surdas melopeias escondidas a cada passo ‑ uma nota por passo ‑ pelos homens debruçados para a frente, nos seus trajes de couro.

 ‑ Porque é que Ivan Matveiévitch está tão preocupado contigo? ‑ perguntou Jermak quando viu Marina a seu lado. ‑ Queixa‑se tanto que até parece que a Lua está para cair do céu!

 ‑ Não sei de nada, Jermak Timofeiévitch ‑ respondeu Marina, mantendo‑se ao seu lado, numa posição só autorizada ao braço direito do chefe. O facto de Jermak tolerar esta impertinência provou, a todos os que testemunharam a cena, que o rapazelho louro tinha um belo futuro em perspectiva entre os cossacos.

 ‑ Ele tem exigências estranhas... ‑ confessou Marina, por fim.

 ‑ Mouchkov? A que te referes?

 ‑ Quer obrigar‑me a dormir com ele...

 Mouchkov, que os seguia de muito perto, rangeu os dentes ruidosamente, surpreendido por não ter tombado da sela ao ouvir tão ousado impropério. "É um demónio, esta rapariga" pensou ele. Jermak virou‑se para trás e lançou‑lhe um olhar reprovador.

 ‑ Devias ser borrifado com água fria! ‑ disse ele com dureza. ‑ Na próxima aldeia, escolherás uma rapariga para ti, quero ver isso! E Boris Stepanovitch também assistirá ao espectáculo!

 Mouchkov arregalou os olhos, apavorado, deixando‑se ficar para trás, na esperança de que Marina regressasse ao seu lugar.

 ‑ Fá‑lo‑ei! ‑ resmungou ele quando se encontraram novamente lado a lado. ‑ à tua frente, arrastarei uma bonita mulher e hei‑de montá‑la como um garanhão, enquanto tu aplaudirás com as tuas próprias mãos. Ousas dizer a Jermak que pretendo dormir com um rapaz! É mais humilhante do que borrar‑me de medo durante um ataque! Ah! Prometo‑te que na próxima aldeia...

 ‑ Não jures, ursinho ‑ avisou suavemente Marina Alexandrovna ‑, se não terás de renegar por perjúrio. Se tocares numa mulher, regressarei a galope para Novo Orpotchkov.

 ‑ Jermak deu‑me uma ordem! ‑ gritou Mouchkov fora de si. Ela chamara‑lhe novamente "ursinho", era de endoidecer. ‑ Não sabes que sou obrigado a obedecer a Jermak?

 ‑ Então arranja uma desculpa, Ivan Matveiévitch, uma velha raposa como tu deve ter experiência!

 Marina ria perdidamente. Inclinando o belo rosto para trás, partiu de novo a galope. Mouchkov fechou os punhos, segurando bem as rédeas, cuspiu nas crinas do inocente cavalo e gemeu baixinho. "Ela dá cabo de mim", pensou ele. Mas o sentimento que experimentava era simultaneamente estranho e maravilhoso. "Se continuar assim, endoideço! Eu, o grande Mouchkov, o suplente do herói Jermak! Que todos os santos do céu me protejam desta mulher!"

 

 A 24 de Junho de 1579, os cavaleiros de Jermak atingiram a cidade de Oriol, construída pelos Stroganov, burgo do longínquo país de Perm, quase lendário, em que se encontravam acumuladas as maiores riquezas da Rússia.

 A chegada dos cossacos fora previamente anunciada por cavaleiros emissários; Simeão Stroganov despachara ao seu encontro quatro "enviados" envergando sumptuosos mantos bordados, a fim de, como eles próprios disseram, saudar os futuros libertadores do país da dominação dos Anticristos! A região com que depararam era totalmente diferente das paisagens conhecidas dos rudes companheiros de Jermak. Tratavam‑se de campos cultivados segundo planos preestabelecidos. O Kremlin dos Stroganov era uma imponente fortaleza de pedra situada numa língua de terra que avançava pelo rio, muito fundo nesse local. Apresentava um aspecto sinistro e fechado por todos os lados, embora a capela privada fosse encimada por quatro cruzes que, dizia‑se, eram feitas de ouro puro e não apenas douradas.

 Quanto à cidade de Oriol, era edificada ora em madeira ora em pedra, cortada por largas avenidas, dotada de grandes praças e de duas igrejas; e todas as casas particulares se orgulhavam de possuir um pequeno jardim. Os habitantes encontravam‑se todos à porta, curiosos e um pouco apreensivos, pois a reputação do "temperamento cossaco" chegara ao país de Perm.

 Assim, só os homens se encontravam na rua, enquanto as mulheres espreitavam pelas persianas entreabertas das janelas. De vez em quando, adivinhava‑se na penumbra das casas um lenço de cabeça, uma madeixa de cabelo.

 Contudo, algumas mulheres mais intrépidas ousavam encarar esses mal afamados, que despiam as calças tão depressa como saltavam do cavalo... Era, pelo menos, o que constava...

 ‑ Esconderam as mulheres! ‑ Jermak ria a bom rir e, voltando‑se para os enviados dos senhores da terra, vestidos de brocado, perguntou, numa voz tonitruante:

 ‑ Pensarão que somos um exército de santos? - Observava a cidade, que se estendia a seus pés, pois encontravam‑se numa colina donde a abrangiam na sua totalidade. ‑ Estão aqui quinhentos homens vigorosos que não são castrados! Queremos uma mulher para cada um de nós! De contrário, arrancamos os telhados das casas!

 ‑ O senhor pensou em tudo. Não vos faltará nada em Oriol! ‑ respondeu um dos enviados designado por "Senhor" Simeão Stroganov, soberano absoluto do país.

 Jermak ergueu‑se nos estribos para contemplar o kremlin e o rio, a cidade e a multidão de homens que os aguardava nas ruas. A cavalo do seu lado encontravam‑se Mouchkov e Marina; seguia‑se a horda densa, movediça, relinchante e inquieta de homens e cavalos, lado a lado, garupa contra garupa, o exército dos cossacos. E, muito mais atrás, simples ponto recortado no céu azul claro, um cavaleiro solitário, de camisa em farrapos, cuja cabeleira branca ondulava ao vento do Verão: Alexandre Grigoriévitch Loupin, o pai que cavalgava no rasto da filha...

 ‑ Mulheres, alimentação abundante, boas instalações para homens e cavalos, os bolsos bem recheados de copeques... quero ter a certeza de que tudo isto nos será proporcionado. Se assim não for, não nos limitaremos a atravessar a cidade, assaltá‑la‑emos! ‑ gritou Jermak.

 Os cossacos sublinharam as suas palavras com o clamor característico, tanto entusiasta como ameaçador, que se propagou pela cidade como um trovão. Os citadinos que passavam nas ruas abanavam a cabeça, horrorizados. Este grito diria muito sobre o que poderiam esperar.

 ‑ O Senhor confirmará o que vos digo!

 O enviado dos Stroganov que tomara a palavra obrigou o cavalo a voltar‑se para apontar o caminho aos recém‑chegados, mas Jermak não os seguiu logo. Olhou de esguelha para Mouchkov, que tentara passar despercebido nos últimos quinze dias. Como é evidente, não deitara na erva, nem violara na presença de Marina nenhuma sólida camponesa, como lhe ordenara Jermak, pois no dia seguinte Mouchkov foi visto a coxear, com a cabeça entrapada. O cavalo aplicara‑lhe um corte no crânio, inadvertidamente, quando o cavaleiro se encontrava encostado à sua ilharga, segundo os hábitos cossacos.

 ‑ Animal estuporado! Deu‑me um coice que me fez ir pelos ares! ‑ resmungava Mouchkov. Assim, Jermak não teve oportunidade de recompensar o seu maltratado cossaco com o conforto de uma meretriz.

 E foi também assim que Mouchkov evitou submeter‑se às ordens de Jermak, o que lhe valeu um cumprimento da parte de Marina:

 ‑ Basta ser velho para ter boas ideias, ursinho!

 A palavra "velho" perturbou mais uma vez Mouchkov, que só se libertou das ligaduras à vista da cidade de Oriol.

 ‑ Tens mais alguma exigência a fazer, Ivan Matveiévitch? Ter‑me‑ei esquecido de alguma coisa? Ainda estamos a tempo! Pensa bem, irmão. Neste momento, ainda podemos falar... ‑ Jermak voltou‑se para trás, na sua sela.‑ Não precisamos do grande Stroganov, mas ele precisa de nós!

 ‑ Observemos em primeiro lugar o que se passa com esse maravilhoso país conhecido pelo nome de Manga seja ‑ respondeu Mouchkov, desanimado.‑ Se for verdade que se encontram pepitas de ouro penduradas nos ramos das árvores, terá valido a pena a deslocação!

 Enquanto falava, não ousava olhar para Marina. Com efeito, sentia‑se verdadeiramente digno de piedade. ‑ os seus camaradas tinham enchido os alforges de dinheiro sonante e jóias roubadas. Vendo bem, obtém‑se uma boa maquia ao cabo de dois meses de rapina! Jermak, por seu lado, levava à retaguarda duas bestas de carga bem fornecidas. Quanto ao pope, esse representante do céu, merecia respeito, pois muito se poderia aprender com ele ao ver como procedia no enriquecimento da sua paróquia. Levava consigo dois ícones, cruzes de ouro, vestes sacerdotais bordadas a ouro, taças de prata cinzelada, objectos todos eles "oferecidos " pelos caros colegas visitados pelo caminho durante a viagem em direcção a Perm.

 Só Mouchkov tinha os alforges completamente vazios: uma vergonha para um cossaco. Mas, assim que avistavam uma aldeia, Marina advertia‑o:

 ‑ Não voltarás a pilhar.‑ E ainda acrescentava: ‑ Ou volto para casa!

 ‑ Então volta! ‑ gritara‑lhe uma vez Mouchkov. ‑ Vai para o Diabo! De que serve viver se não pudermos roubar?

 Mas, de noite, quando ela se foi deitar encostada ao cavalo, Mouchkov correra atrás dela, sussurrando baixinho:

 ‑ Manouchka, Marina, minha pomba, não me partas o coração! ‑ Marina concordara em não fugir e Mouchkov comprometera‑se a não roubar. Limitava‑se a ver os outros roubar, rangendo os dentes, agarrado ao seu amor como um cão de guarda à sua casa, o qual tem licença de ladrar mas sabe que não lhe perdoarão nenhuma mordedura.

 Finalmente, atravessavam a cavalo a cidade de Oriol, com direito a sorrisos sardónicos dirigidos aos homens que erguiam os olhos, e procuravam descortinar por detrás das janelas as pobres mulheres assustadas. Os cossacos começaram, então, a cantar em voz muito alta, para mostrarem quão livres se sentiam.

 Do kremlin dos Stroganov, os dois sobrinhos de Simeão, Nikita e Máximo, saíram ao seu encontro, em pequenos cavalos tártaros bem almofadados e fogosos. Sem desmontarem, Jermak e os dois Stroganov beijaram‑se três vezes nas faces, cientes de que se enganariam reciprocamente ao longo dos anos com inimaginável astúcia.

 ‑ Que país rico e aprazível! ‑ exclama Jermak, felicíssimo.

‑ É uma atmosfera quase desconhecida no reino moscovita!

 ‑ Mantemos a ordem, é tudo!

 Máximo Stroganov observou com olhar crítico a avalanche de cavalos suados e de cabeças de cossacos hirsutas:

 ‑ O czar delegou em nós o direito de fazer justiça em todas as regiões que conquistarmos.

 Jermak Timofeiévitch compreendeu: era a primeira ameaça velada, o primeiro pontapé no traseiro. Sorriu abertamente, mas os olhos negros brilhavam de dureza, como os olhos de um urso que ignora a piedade.

 ‑ Respondemos ao apelo que nos impele a defender a cristandade ‑ afirmou. ‑ O rei dos céus recompensar‑nos‑á... e Simeão Stroganov também!

 

 O grande senhor esperava Jermak e Mouchkov na enorme sala de audiência, que, pela sua imensidade apresentava um aspecto pelo menos tão sumptuoso e tão deprimente como a sala do trono de Ivan IV, no Kremlin de Moscovo. Encostados às paredes forradas de seda, viam‑se bancos cobertos de peles de raposas azuis e de esquilos cinzentos. Tapetes da Mongólia revestiam as lajes do chão. Os candeeiros a petróleo, obras de artistas tártaros, eram de ouro cinzelado com incrustações de pedras preciosas.

 Simeão Stroganov envergava, a despeito do calor do Verão, um gibão talhado na mais delicada pele de zibelina. Tinha calor, visivelmente, mas importava mostrar a esse bárbaro Jermak que não era o czar moscovita mas Stroganov, o soberano de Oriol, nas margens do Kama, o homem forte da Rússia.

 E, mais uma vez, Jermak compreendeu perfeitamente o que pretendiam dizer‑lhe. Então, pela primeira vez na vida, esboçou uma espécie de cumprimento, inclinando um pouco a cabeça num breve movimento, gesto este que causou uma extraordinária impressão em Mouchkov.

 ‑ Bem‑vindo, irmão Jermak ‑ saudou Simeão Stroganov, abraçando o maior bandido que a Rússia jamais produziu. Mas estas palavras saíram‑lhe dos lábios sem dificuldade, pois quem quer conquistar um país como Mangaseja não deve deter‑se em ninharias como são as considerações de ordem moral. ‑ Pensámos em ti e nos teus irmãos, mandámos construir uma cidade que vos está reservada, assim como uma bela zona nas margens do Kama, pois ainda teremos que trabalhar muito, antes que o apelo de Deus nos conduza a transpor os Urales!

 Uma cidade cossaca reservada... Jermak estava contente. Nos nossos dias diríamos que Stroganov tinha construído uma gigantesca caserna, afastada de Oriol e dos seus arredores, um gueto, que representava simultaneamente uma protecção para as mulheres que vivessem fora da caserna.

 ‑ E onde estão as mulheres que nos prometeste, Simeão Stroganov? ‑ perguntou Mouchkov. Marina não se encontrava presente e ele sentia que era seu dever formular tal pergunta a fim de aumentar o seu prestígio.

Jermak dirigiu‑lhe um sinal de aprovação.

 ‑ Mulheres não faltam ‑ respondeu Simeão, com um sorriso de compreensão. ‑ Não ignoro aquilo de que um soldado necessita, pois cresci entre soldados.

 Entretanto, o pope dos cossacos, Oleg Vassiliévitch Koulakov, visitava os seus piedosos colegas, comungando da mesma fé, reunidos na capela privada dos Stroganov. Os cossacos, apeados, mantinham‑se de pé, cada um junto do seu cavalo, no grande pátio do kremlin, deixando‑se admirar pela criadagem como ursos capturados. Algumas criadas mantinham‑se a uma distância prudentemente respeitosa, rindo à socapa. Os primeiros convites lascivos pairavam sobre o vasto pátio.

 ‑ Kyrie Eleison ‑ dizia o pope dos cossacos na sumptuosa capela, admirando, boquiaberto, o esplendor da iconostase, o maravilhoso altar‑mor dourado, os preciosos cálices, as cabeleiras dos sacerdotes, bordadas a pérolas e pedras preciosas, que se encontravam alinhadas em cima de uma mesa, semelhantes a bolos monumentais. Oleg Vassiliévitch Koulakov lamentava com amargura não poder exigir nenhum "presente", tão tentador era tudo o que via.

 ‑ Deus esteja connosco! ‑ respondeu o pope dos Stroganov piedosamente, fazendo um grande sinal da cruz sobre a sua própria pessoa.‑ Na verdade, precisaremos da sua ajuda!

 ‑ Irmãos perante o Senhor, viemos a fim de expandir os limites da cristandade e de entoar louvores ao Senhor.

 ‑ Amem ‑ respondeu o irmão numa voz surda. ‑ Construímos uma igreja para ti na "cidade cossaca"!

 ‑ Tão bonita como esta?

 ‑ Nem por isso, meus irmãos.

 ‑ Deus lamentá‑lo‑á! Todos os homens são irmãos, tu próprio o dizes! ‑ O pope dos cossacos aproximou‑se mais um passo, agarrou o colega pela longa barba e invectivou:

 ‑ No mundo da fé não pode reinar a desigualdade.

 Promete‑me alguns ícones, irmão! Um cossaco também se deleita a admirar imagens sagradas!

 Passada meia hora, tinham chegado a um acordo para que a igreja dos cossacos também possuísse algum brilho, não se reduzindo apenas a uma granja deserta.

 Finalmente, Alexandre Grigoriévitch Loupin entrava no kremlin dos Stroganov, guiado pelo passo cansado do seu esgalgado cavalo, e procurou do imediato um moço de estrebaria. Marina viu o pai apear‑se e, determinado, dirigir‑se para os edifícios alinhados que se destinavam aos estábulos dos cavalos. o coração da jovem batia dolorosamente.

Encostou a cabeça ao cavalo de Jermak e sentiu os olhos marejados de lágrimas.

 ‑ Meu querido pai! Como é bom sentir‑te aqui!

 Loupin viu que teria de se impor quando chegou à presença do cavalariço‑mor: não necessitavam de nenhum palafreneiro como ele, tanto mais que, em Oriol, não havia falta de homens e não se descortinava razão alguma para aceitar os serviços de um desconhecido vindo do longínquo Sul.

 ‑ Também sou médico de cavalos! ‑ sugeriu Loupin, corajoso.‑ É um dom que passa de pais para filhos! Alguma vez tiveram um médico para as vossas cavalgaduras? Como é que sabem quando um cavalo tem uma febre biliosa?

 ‑ Quando caga verde! ‑ gritou o cavalariço‑mor.

 ‑ Isso pode ser da luzerna, senhor. Não, a doença vê‑se nos olhos! E eu, eu sei ver!

 ‑ Vem comigo, tagarela ‑ respondeu o cavalariço‑mor ‑, e diz‑me por que razão este cavalo não quer sair da cavalariça e conserva a cabeça baixa, sem arredar os cascos!

 Loupin deu uma volta em redor do animal, bateu‑lhe amigavelmente no pescoço e declarou:

 ‑ Tem uma espécie de vertigem convulsiva! É por isso que está cada vez mais magro.

 O cavalariço ficou de boca aberta.

 Foi um momento memorável, aquele em que Loupin se viu assumir o cargo de médico veterinário, perante Nicolas Stroganov em pessoa, depois do cavalariço‑mor o ter apresentado ao seu jovem amo. E foi assim que Loupin se apropriou também de um quarto de habitação ao fundo da estrebaria, onde lhe serviam alimentação abundante e lhe pagaram mais dinheiro ao fim de uma semana do que em seis meses na sua aldeia. E, ao mesmo tempo, era médico de cavalos! Quando se dirigiu à igreja para agradecer ao senhor, Loupin atravessou a grande praça que se estendia diante da casa senhorial. A praça encontrava‑se deserta, pois os cossacos já se tinham apoderado da cidade construída expressamente para eles. Viam‑se apenas alguns criados, que varriam os excrementos em volta dos estábulos. No ar quente do Verão, pairava um penetrante odor a suor de cavalo e a homens imundos.

 Um adolescente aproximou‑se dele num passo hesitante. Olhou Loupin com um ar interrogador e perguntou:

 ‑ Não serás, por acaso, Alexandre Grigoriévitch?

 ‑ Sim, sou ‑ respondeu Loupin surpreendido. ‑ Donde me conheces?

 ‑ Tenho uma coisa para te entregar, da parte de um dos cossacos. Diabos levem todos esses bandidos!

 O adolescente abriu a mão e mostrou uma madeixa de cabelos louros, brilhando ao sol na palma da mão suja.

 Loupin sentiu um nó na garganta.

 ‑ Obrigado ‑ agradeceu com voz enrouquecida. Pegou no caracol e regressou a passos largos para a cavalariça, onde ninguém o viu refugiar‑se num canto obscuro para poder levar aos lábios a madeixa loura.

 ‑ Marinouchka ‑ balbuciou. ‑ Meu anjo!

 E não pôde deixar de chorar, cobrindo de beijos o pequeno anel feito de cabelo.

 

 A "cidade" ou, mais exactamente, o acampamento dos cossacos revelou‑se um aglomerado de cabanas de madeira rodeado por uma alta paliçada. Tinha ruas, uma praça principal, estábulos, entrepostos, uma capela que se resumia a um armazém meio deteriorado, o que amargurava o coração do pope Koulakov, um matadouro, cozinhas e, por fim, uma "loja" onde três escribas de rosto pálido, nomeados por Stroganov, se encontravam instalados. Tinham por missão dedicar‑se ao comércio com os cossacos. Era uma das ideias típicas dos Stroganov os, rublos entregues como garantia deviam voltar aos bolsos dos Stroganov.

 Era assim. E depois, havia também aquilo a que se chamava a "casa das mulheres", imponente construção feita de toros de madeira, assentes numa base de pedra. As "pensionistas" encontravam‑se na rua quando os cossacos desfilaram a cavalo, exemplarmente ordenados, dirigindo‑lhes gestos de bom acolhimento. Eram mulheres de todas as raças, predominando as asiáticas de membros muito delgados. Vestiam saias e blusas brancas e, nos cabelos cor de ébano, brilhavam chapelinhos escarlates.

 ‑ Sinto o coração dilatar‑se como uma bexiga de porco! ‑ exclamou Mouchkov, procurando humilhar Marina. ‑ Vês aquela linda jovem de chapéu azul? Está reservada a Ivan Matveiévitch!

 ‑ São poucas! ‑ observou Jermak, irritado. ‑ Que te parece? Quarenta e cinco, no total, não mais! Como poderão satisfazer quinhentos e quarenta cossacos? Vão matar‑se uns aos outros, os desgraçados, para se aproximarem delas! ‑ Afastou o cavalo para o lado e os outros passaram por ele, como numa parada. ‑ Quem se aproximar das raparigas será enforcado! ‑ Gritou Jermak, por cima da cabeça dos homens.

 O bando de brutamontes fixou‑o, de olhar vazio e surpreendido: ao verem as mulheres, o contacto com as selas tornara‑se insuportável.

 ‑ Enforcarei todos aqueles que desobedecerem! ‑ insistiu Jermak. ‑ Amanhã, ou nos dão o triplo destas pegas, ou vamos procurá‑las à cidade!

 ‑ HoÍ! HoÍ! ‑ gritaram em coro os cossacos, de braço levantado.

 O grito ressoou pela cidade, ouvindo‑se no kremlin dos Stroganov. As mulheres que se encontravam à porta da casa grande agruparam‑se numa massa compacta, como galinhas assustadas. Os funcionários de serviço à "loja" persignaram‑se.

 ‑ Isto é que é boa vida! Que te parece? ‑ gritou Mouchkov, batendo no ombro de Marina. Esta sobressaltou‑se e mordeu os lábios; logo a seguir, debruçou‑se sobre Mouchkov e sussurrou‑lhe, mordaz:

 ‑ Fica com a pegazinha de chapéu azul. Quanto a mim, vi lá em baixo, no pátio do kremlin, um belo rapaz que me agradou. É forte e sobretudo... jovem! Vou procurá‑lo amanhã!

 ‑ Darei cabo dele! ‑ resmungou Mouchkov, crispando as mãos nas rédeas. ‑ Estrangulo‑o... como a uma pomba! E a ti, encosto‑te à parede, vestida com o uniforme. Não me escaparás!

 Aplicou um pontapé no cavalo, que deu um salto em frente e partiu a galope para a primeira fila. Jermak cavalgava na retaguarda, observador e guardião impiedoso. Era impossível deslizar sorrateiramente em direcção ao grupo formado pelas mulheres.

 O único que ficou para trás foi o pope Oleg Vassiliévitch Koulakov. Podia permitir‑se tal atitude, pois devia tomar posse da sua igreja. Mas, vendo bem, fez um desvio, contornou a capela e, subitamente, viu‑se diante de um grupo de jovens envergando trajes coloridos. Os cossacos tinham desaparecido atrás dos estábulos, onde se apearam e esperaram que Jermak e Mouchkov distribuíssem os homens pelos alojamentos.

 ‑ Aproxime‑se de mim a que tenha cometido mais pecados e eu a reconfortarei! ‑ ordenou o pope Koulakov, mirando, benevolente, o bando de alegres raparigas.

 Uma imponente filha das margens do Volga, chamada Leila, apresentou‑se‑lhe. O seu corpo e o seu rosto era tão claramente a imagem do pecado, que o barbudo sacerdote perdeu o fôlego. Para quem queira compreender, ou seja, perdoar, recordemos que a igreja ainda não fora consagrada...

 

 à noite, nenhum cossaco de Jermak conseguiu adormecer.

 Aquartelados, tinham arrastado as selas para o interior, desfeito as trouxas e estendido os cobertores sobre as camas de tábuas. Quatro açougueiros encontraram dois bois no matadouro e abateram‑nos imediatamente. Os cozinheiros cossacos ocupavam‑se já das fogueiras acesas, onde ferviam caldeirões de água. A cozinha estava bem organizada e providas de pipas de couve‑azeda, feijão‑seco, pepino de conserva. Havia um estrado coberto de pão fresco, e muitos cereais, na sua maioria, desconhecidos de resto, para os novos hóspedes. A tudo isto juntavam‑se ainda enormes recipientes de barro, da altura de um homem, cheios de cerveja caseira... Os Stroganov tratavam bem dos seus mercenários.

 Mas quando, mais tarde, depois de saciados, se dei taram pelo chão, arrotando, a fim de repousarem da longa cavalgada, ao mesmo tempo que a fadiga se lhes apoderava dos ossos, a proximidade das raparigas instilava nas suas veias uma irreprimível agitação.

 Alguns temerários arriscaram‑se a rastejar até à casa grande mas, ao passarem pelos estábulos, foram interceptados pelas sentinelas de Jermak, que os zurziram convenientemente e os recambiaram para as respectivas camaratas.

 A missão era dura para os guardas. Na verdade, eram homens semelhantes àqueles que chamavam à ordem. Quando inspiravam a leve brisa estival, parecia‑lhes captar o odor das raparigas, como cães farejando uma cadela. Maldita noite, convenhamos.

 Jermak dirigira‑se aos Stroganov, queixando‑se do número restrito de raparigas. Mouchkov, o seu braço direito, encarregara‑se de apoiar as suas reivindicações. O único cossaco que dormia de facto, desprovido de qualquer desejo escaldante, era Boris Stepanovitch. Marina encontrava‑se estendida na cama, na casa que ocupava com Jermak e Mouchkov. Era a única casa de pedra. Simeão Stroganov mandara construí‑la a pensar em Jermak: primeiro berço de uma nova Sibéria, se os planos de Stroganov se concretizassem.

 Noite maldita, repetimos. Quente, sufocante, silenciosa, a ponto de cada um ouvir correr o seu próprio sangue, sangue este que murmurava como as águas de um rio depois do degelo, enquanto sonhava com as raparigas! Só este clima particular explica que Mouchkov tivesse rompido o juramento que lhe apertava o coração: depois de ter contemplado Marina, que adormecera de joelhos junto à boca, lançou‑se sobre ela, soltando um profundo suspiro.

 Há segundos de terror que, na verdade, duram apenas segundos. E, quem conhecesse Marina Alexandrovna, sabia que as suas reacções eram rápidas, mesmo quando arrancada a um sono profundo. Mas, naquele momento, tudo dentro dela pareceu renunciar à luta: manteve‑se imóvel, não se defendeu e conservou os olhos fechados. Mouchkov nem chegou a saber se ela estava acordada. O seu delicado rosto, meio oculto pelo cabelo em desalinho, parecia perfeitamente descansado.

 Mouchkov suspirou de novo, respirando ruidosamente, tão nervoso se sentia. Com as mãos trémulas, desabotoou a jaqueta da jovem e, pegando‑lhe nos seios, ajoelhou a seus pés, amaldiçoando as calças e as botas de cossaco, obstáculos que só poderia superar por vontade de Marina, a não ser que a estrangulasse ou aniquilasse...

 ‑ Marinouchka... ‑ balbuciou Mouchkov ‑ amo‑te... juro‑te que farei tudo o que quiseres! Não fiz já o suficiente para que acredites em mim? Não sou o cossaco mais miserável, mesmo reconhecido como representante de Jermak? Não vês o que fizeste de mim?

 Mouchkov beijava os seios rijos de Marina, enquanto se debatia com um par de botas, louco de desejo.

 Como dissemos, Marina permanecera até então imóvel, de olhos fechados e calada. Mas se dentro de todas as mulheres habita um diabo, como se costuma dizer, Mouchkov pôde nesse momento comprová‑lo. Inesperada, viva como um raio, invisível ao homem cego pela sua paixão, a mão direita de Marina ergueu‑se, o punhal descreveu uma curva... e Mouchkov soltou um grito abafado, largou as botas e os lindos seios e deu um salto, de mãos apoiadas nas nádegas. Uma mancha quente e viscosa alastrava sob os seus dedos pelo tecido das calças.

 ‑ Feriste‑me ‑ balbuciou ele ‑, feriste‑me profundamente, Marinouchka... Tu...

 Surpreendido por este ataque fulgurante, Mouchkov tentava conter a dor que lhe invadia os rins. Um cossaco apunhalado nas nádegas! Era o cúmulo do ridículo!

 Exactamente no local mais precioso para um cavaleiro. Que justificação poderia fornecer?

 ‑ Mato‑te! ‑ ameaçou Mouchkov num gemido, rangendo os dentes. ‑ Deus perdoar‑me‑á: sou obrigado a matar‑te!

 ‑ Então mata‑me! ‑ Marina sentou‑se, tapou o peito com a camisa, apertou o cinto que Mouchkov desafivelara e limpou a lâmina do punhal curvo ao cobertor. A bem‑dizer, via‑se apenas um pouco de sangue na ponta... Marina atacara de mansinho, de certo modo para recordar que não era uma prostituta como as outras raparigas colocadas à disposição dos cossacos.

 ‑ Mata‑me! ‑ insistiu ela. ‑ Não hesites! Nunca serás um homem, Ivan Matveiévitch! Eu não me mexo, deixa‑te de rodeios, prefiro morrer!

 Há paixões que não podem ser dominadas. Certos amores loucos constituem um bom exemplo, amores que se apoderam dos seres apaixonados e não lhes dão descanso; amores que transformam o mais sensato num idiota; amores que, no entanto, são saboreados como um filtro...

 Ivan Matveiévitch era uma dessas vítimas. Milhares de homens como ele, sucumbindo ao poder de uma mulher‑demónio, tinham apresentado o mesmo comportamento. Não matou Marina, como é natural: limitou‑se a correr, protegendo as nádegas com as duas mãos, até ao pátio, onde lavou no bebedouro o sangue que lhe escorria pelas pernas. Por sorte, Jermak ainda se encontrava em negócios com os Stroganov, pelo que ninguém se apercebeu do sucedido. Mouchkov conseguiu envolver as nádegas com um pano, sempre entre insultos dirigidos a Marina, que ele entrecortava com pedidos de perdão, proferidos em voz baixa, por ousar invectivá‑la assim.

 Na verdade Ivan Matveiévitch era um cossaco totalmente desamparado. Tenhamos piedade deste homem tão cruelmente apaixonado.

 

 Conter o entusiasmo de quinhentos e quarenta cossacos, quando têm à sua frente toda a imensidão de um país desconhecido e anseiam pela embriaguez de novas aventuras, não é tarefa fácil. Podemos qualificar Jermak de bandido e assumido tratante, mas não podemos negar‑lhe o mérito de saber manter uma disciplina de ferro entre os seus homens, exigindo que se submetessem a uma vida regrada na sua "cidade cossaca", pelo menos na medida do possível.

 Passados quinze dias, os Stroganov já lhes tinham fornecido noventa mulheres da vida. Como? Era esse o mistério. Libertou‑se uma ampla cavalariça, que foi dividida em compartimentos, e onde os cossacos puderam entregar‑se àquilo que, para além das cavalgadas e da pilhagem, continuava a ser a sua actividade favorita, sobretudo quando o tédio os invadia.

 ‑ E, durante esse Verão, o tédio foi insuportável. Os Stroganov não autorizavam Jermak e o seu bando a lançar‑se às cegas pela cadeia dos Urales; não arriscavam nada que lhes pudesse custar um simples copeque. O czar de Moscovo não se comprometia com despesas, limitava‑se a esperar riquezas que deveriam vir do lendário país de Mangaseja, esse país do ouro do czar siberiano Koutchoum, no reino moscovita.

 Com a consciência dos grandes guerreiros, os Stroganov preparavam a expedição tendo em vista a conquista dessa desconhecida Sibéria. Tratava‑se de organizar a marcha do exército de mercenários comandado por Jermak, de prever itinerários de abastecimento, depósitos de víveres que não distassem uns dos outros mais do que um dia de cavalgada, a fim de que o exército, avançando através do país, nunca se afastasse da sua retaguarda e pudesse eventualmente refugiar‑se nas praças fortes que, antes de tudo, seria preciso criar. Fortalezas estas que, um dia, seriam novas cidades.

 ‑ O solo será nosso quando os indígenas armazenarem a primeira colheita dos territórios conquistados! ‑ dizia Simeão Stroganov, o sábio. ‑ Não pretendemos percorrer a Sibéria, queremos incorporá‑la na grande Rússia.

 Assim, os recrutadores percorriam o país em todos os sentidos, a fim de alistar combatentes. Quirguizes, lituanos, alemães ‑ prisioneiros de guerra arrastados até ao país de Perm ‑ afluíam. Para eles, o apelo: "Unam‑se ao exército dos Stroganov!" não significava apenas o fim da escravatura mas também, talvez, a realização dos seus mais caros desejos. Algures para lá dos Urales, recomeçar uma nova existência, ser um homem livre na sua própria parcela de terra! Esquecer, sob a protecção dos poderosos Stroganov, as fúrias do grande czar Ivan!... Uma paz, uma vida com que se sonhava...

 E, no entanto, eclodiram conflitos. Por causa dos alemães e dos lituanos. Não por serem hostis aos cossacos ‑ tinham estabelecido com eles relações de boa camaradagem ‑ ou refractários à equitação ‑, possuíam outros tantos talentos guerreiros que completavam maravilhosamente os dos cossacos em matéria de cavalaria. Não, os atritos com os cossacos surgiram devido às mulheres. Poderia deixar de ser assim? Surge um cossaco, aponta uma rapariga, esboça um esgar e apodera‑se do objecto da sua cobiça. Os alemães e os lituanos, por outro lado, tratavam as prostitutas como senhoras, rodeavam‑nas de belas palavras, acariciavam os seus corpos depravados, dando assim às raparigas o sentimento de não serem simples presas, mas também apreciadas. Não tardou muito a saber‑se: correram rumores de que os alemães viviam com as mulheres, enquanto os cossacos eram obrigados a contentar‑se com migalhas.

 As querelas multiplicaram‑se até ao dia em que foi encontrado um alemão morto na margem do Kama, com um punhal enterrado no baixo‑ventre.

 O que aconteceu em seguida deixou sem voz o mais turbulento dos cossacos.

 Há já vários dias que se viam jangadas amarradas à riba, balançando nas águas do Kama. Tratava‑se de jangadas rústicas, feitas de toros de madeira, grosseiramente cortados e reunidos. Bastaria uma grande vaga para as desconjuntar. Jermak, que presidira à sua construção, disse aos seus carpinteiros:

 ‑ Não pretendo navegar nestas jangadas! Destinam‑se a outros fins.

 

 Compreenderam o que ele pretendera dizer quando, nas jangadas, foram erguidos cadafalsos munidos de grandes cordas. Mouchkov parecia preocupado e, quando Marina o interpelou, respondeu numa voz surda:

 ‑ Há anos que conheço Jermak, deve ter as suas razões! Nunca age sem reflectir.

 Entretanto, Jermak mandara procurar o autor do crime. Descobriram‑se dois culpados, que foram conduzidos à presença de um tribunal de cossacos, solidamente amarrados. Na manhã que seguiu ao veredicto, Jermak mandou reunir todos os seus homens na margem do Kama. Camponeses, artífices e empregados de Stroganov acorreram em grupos e, quando Simeão Stroganov surgiu em pessoa, acompanhado dos sobrinhos Nikita e Máximo, todos compreenderam que iria ter lugar um acontecimento importante.

 Os dois assassinos foram transportados numa carroça.

 De cabeças rapadas e corpos nus, apenas cobertos com serapilheira grosseira, pareciam atados como embrulhos, sem se poderem mexer. Lançaram olhares assustados sobre os colegas e jangadas, que continuavam a balançar à tona da água.

 Máximo Stroganov, que cavalgava ao lado de Jermak, debruçou‑se sobre ele. Os seus lábios tremiam. Na Rússia de então, não se perdia tempo. Se alguém devia perder a vida, logo havia quem lha tirasse. E ninguém experimentava grandes emoções, quando se enforcava, esquartejava, cegava, capava, arrancava a língua ou se cortavam as orelhas a um condenado, ou quando este era amarrado a um cavalo de corrida... Simplesmente, louva‑se Deus por não estar no lugar do delinquente! Mas perante o que se iria passar nesse dia, até um Stroganov estremeceria.

 ‑ Pelo que vejo, a tua mão é singularmente dura - comentou Máximo Stroganov, aproximando‑se de Jermak Timofeiévitch. - Não bastava enforcar os dois homens?

 ‑ Nunca mato um amigo! ‑ replicou Jermak, lançando um olhar crispado aos condenados. ‑ Nós, cossacos, somos todos irmãos e amigos, mas sabes tão bem como eu qual o preço a pagar para impor o mesmo pensamento a quinhentas cabeças diferentes! Não, eu nunca mato um amigo.

 Quando a carroça se abeirou do rio, Mouchkov e quatro cossacos avançaram para ela. Ajudaram os dois condenados a descer e depois, para grande surpresa de toda a assistência, desataram os sacos de serapilheira em que se enrolavam e encheram‑nos de areia seca retirada da margem do rio. Em seguida, os sacos bem cheios foram atados ao pescoço dos homens. Os quatro cossacos transportaram penosamente os fardos até às jangadas e prenderam‑nas às cordas das forcas.

 ‑ Larguem as amarras! ‑ gritou Jermak.

 O pope Oleg começou a cantar com a sua voz tonitruante. Voz de baixo que ressoava em toda a volta, pois um silêncio paralisador oprimia os milhares de espectadores reunidos à beira do rio. Ouvia‑se apenas um leve assobio do vento. Mas não era vento, era a respiração laboriosa dos homens.

 Soltaram‑se as amarras e, lentamente, à deriva, as jangadas afastaram‑se para o meio do rio, onde se detiveram, uma vez que entre as duas margens pesadas pedras mantinham esticadas várias cordas. Mouchkov, que embarcara na primeira jangada, agarrava‑se ao cadafalso com um sentimento de mal‑estar evidente ao aperceber‑se da água que emergia entre as tábuas mal ajustadas da jangada, e lançou novamente um olhar fugaz na direcção de Jermak.

 ‑ Vamos! Mergulhem‑nos! ‑ rugia Jermak, erguendo‑se firme nos estribos e olhando por cima da cabeça dos cossacos. ‑ São os primeiros criminosos! Que o seu castigo sirva de exemplo! Juro‑vos que afundarei todo o homem que, de futuro, não respeite a disciplina instituída! Vamos!

 Lentamente, os sacos cheios de areia contendo os condenados deslizaram para o Kama, imergindo até ao pescoço. Depois de verificada a solidez das cordas, os homens que se encontravam nas jangadas instalaram‑se numa barca. Mouchkov foi o último a afastar‑se, sentou‑se na barca e, empalidecendo, olhou fixamente para as águas do rio. os dois condenados estavam calados. Pareciam surpreendidos, ninguém os enforcava, ninguém os decapitava, ninguém lhes fazia nada... A areia impregnava‑se de água e transbordava dos sacos como sopa a ferver ou leite derramado. O peso começou a sufocar os homens, que sentiam uma angustiante pressão entre o pescoço e os calcanhares, comprimindo‑lhes a caixa torácica, impedindo‑os de respirar, esmagando‑lhes as costas. Uma hora mais tarde, os dois homens começaram a gritar. Silenciosos, imóveis, os cossacos continuavam amontoados na margem do rio. Jermak avançou a cavalo entre as filas de cavaleiros e, sempre que algum se mexia, perguntava‑lhe:

‑ Queres ser o seguinte?

Uns atrás dos outros, os habitantes de Oriol regressavam em silêncio a suas casas. os gritos selvagens, desesperados dos dois homens mergulhados no Kama perseguiam‑nos, e ficaram para sempre gravados nas suas memórias.

Depois de Simeão e Nikita Stroganov terem partido, apenas Máximo permaneceu na margem do rio perguntando a si mesmo se, com a ajuda das suas gentes, não deveriam pôr termo a semelhante horror.

‑ Esqueça isto, meu bom Senhor! ‑ sugeriu Jermak ao passar perto de Máximo Stroganov e duvidando do que o outro projectava fazer.‑ assim, eles não morrem...

‑ Mas enlouquecem ‑ respondeu Máximo, num murmúrio.

 Jermak não fez comentários e afastou‑se, a cavalo. Até ao meio‑dia, os condenados gritaram em uníssono. Depois, os seus queixumes foram enfraquecendo, até se tornarem simples gemidos, quase inaudíveis, pois o sussurro das águas do rio sobrepunha‑se às suas vozes. Continuavam vivos. A areia não os esmagara, mas a água fria roía‑lhes os ossos e o sol crestava‑lhes sem piedade os crânios rapados.

 A pouca distância, afastado dos cossacos em silêncio, de pé à beira do rio, estava sentado Alexandre Grigoriévitch Loupin, o novo veterinário dos estábulos dos Stroganov. Observava a sua querida filha Marina que se encontrava na primeira fila dos cavaleiros reunidos à beira do rio. Firme nas pernas ligeiramente afastadas, de boné vermelho enterrado no cabelo louro, como um rapazote selvagem para quem não soubesse o que a sua camisa cossaca encobria. A seu lado encontrava‑se Mouchkov, acabrunhado, de rosto pálido. Loupin disse para consigo: "Deve ser ele! Por causa daquele bandido, a minha Marinouchka fugiu‑me! Grande animal! Não foi ele que transportou os condenados para as jangadas e que comandou a acção dos carrascos? E ela ama‑o? Que se passará naquele coraçãozinho?"

 O papá Loupin suspirou. Mas continuava à espera. Não sabia se Marina o teria visto; de qualquer modo, o terrível Jermak acabaria por ordenar o regresso à cidade cossaca e, então, talvez Marina passasse junto dele.

 à beira do rio, ainda ninguém se mexera. Só Jermak estava a cavalo. Aguardava que alguém pedisse clemência para os dois camaradas flutuando à tona do rio, mas todos os cossacos se mantinham calados. Um silêncio opressivo. Contudo, alguém falava, em voz baixa, de lábios quase cerrados. Era Marina. E Mouchkov, a seu lado, não podia ignorar o seu discurso.

 ‑ Irei habitar algures! ‑ dizia ela. ‑ Não posso continuar ao pé de um carrasco! Não olhes para mim, que me conspurcas!

 ‑ Marinouchka! ‑ gemeu Mouchkov. ‑ Foi uma ordem! Tive de obedecer! Não podia ser de outra maneira!

 ‑ Podia, sim!

 ‑ Mas não com Jermak!

 ‑ Também com ele!

 ‑ E então eu seria o terceiro a ser enfiado no saco!

 ‑ Se assim fosse, rebolar‑me‑ia com Jermak na primeira cama que aparecesse!

 ‑ Marinouchka! ‑ Mouchkov revirou os olhos, como se estivesse prestes a desfalecer. ‑ Que podia eu fazer? Tratava‑se de dois assassinos!

 ‑ Não tens um punhal?

 ‑ E que querias que fizesse?

 ‑ Eu, no teu lugar, quando me encontrasse a sós com eles na jangada, tê‑los‑ia apunhalado através da serapilheira, a fim de lhes poupar tamanho suplício.

 ‑ É assim que pensas, tu? ‑ balbuciou Mouchkov.

 ‑ Ouviste‑me perfeitamente.

 Mouchkov sobressaltou‑se:

 ‑ Chego a ter medo de ti! ‑ murmurou ele num tom baço.

‑ E Marina respondeu, entre dentes:

 ‑ Ainda bem que compreendeste, urso velho!

 Pelo calor do meio‑dia, Jermak autorizou os seus homens a regressar à cidade. E eles partiram apressados, como cães acossados, em grupo ou isoladamente, tremendo Como varas verdes. Jermak, o pope e Mouchkov permaneceram junto ao rio, assim como alguns observadores enviados pelos Stroganov e que não se sentiam nada à vontade entre os cossacos.

 ‑ Quando os retiramos da água? ‑ perguntou o pope.

 ‑ Não os retiraremos! ‑ Jermak aplicou uma cotovelada em Mouchkov. ‑ Vai a remar até junto deles e corta as cordas amarradas às pedras. Assim, poderão descer o rio com a corrente e, se Deus se lembrar deles, sobreviverão.

 Mouchkov remou até à jangadas, subiu para os esquifes de madeira flutuante e olhou, horrorizado, para os crânios rapados dos supliciados. Tinham os olhos abertos e desvairados, mas das suas bocas não se ouvia nenhum som. Estavam vivos, mas muito próximo da demência.

 Mouchkov soltou as cordas e as jangadas derivaram lentamente, transportadas pela corrente do rio. Os sacos e os condenados neles encerrados flutuavam, desapareciam sob as ondas, emergiam ao sabor do ritmo das águas.

 De repente Mouchkov sobressaltou‑se e agarrou‑se à borda da canoa. Um dos condenados, o cossaco Andréi Petrovitch, começara a rir ruidosamente, um riso dilacerante, demente. Riu até que uma vaga penetrou na sua boca aberta.

 ‑ Tinha de ser! ‑ declarou mais tarde Jermak, quando Mouchkov acostou, de rosto pálido e tremendo dos pés à cabeça. ‑ Ivan Matveiévitch, como dominar meio milhar de homens? E, no próximo ano, serão mil, estou certo disso. Portanto, quero que todos se lembrem do que se passou esta manhã!

 Entre os últimos cossacos a afastar‑se do rio, encontrava‑se Marina. Passou por um homem sentado à beira do caminho sem sequer lhe dirigir o olhar. Mas quando ele assobiou baixinho ‑ o famoso assobio de Loupin outrora conhecido em todo o Novo Orpotchkov ‑ voltou imediatamente a cabeça. Parou, puxou o boné para trás com um gesto desenvolto e fingiu troçar do velho, à maneira de um insolente jovem cossaco em busca de conflitos. Contudo, dizia em voz sumida, estrangulada pela emoção:

 ‑ Assististe a tudo, paizinho?

 ‑ A tudo, minha filha, até ao mais ínfimo pormenor! Segundo me pareceu, escolheste um companheiro diabólico!

 ‑ Foram ordens de Jermak!

 Nesse momento, Marina cuspiu aos pés do pai. Viu‑se obrigada a realizar este gesto insultuoso porque três cossacos, ao passarem por eles, dirigiram‑se a Marina:

 ‑ O velho tem uma filha e quer vender‑ta? Boris Stepanovitch, não te deixes enganar! Mete‑lhe uma vela por debaixo das saias, para te certificares de que possui tudo aquilo de que necessitas!

 Os cossacos afastaram‑se, rindo.

 ‑ Ivan Matveiévitch não obedeceu de boa vontade, papá ‑ justificou‑se Marina, alvoroçada ‑, e nunca mais fará nada de semelhante! Estarei atenta!

 ‑ Tu? ‑ Loupin fixou demoradamente a filha. - Nunca farás de um cossaco um homem sensível!

 ‑ Preciso de tempo!

 Tirou o boné e serviu‑se dele para esbofetear o rosto enrugado do pai, sem violência, mas com um gesto suficientemente teatral para dar a entender, a um eventual observador, que batera realmente no velho. Representação necessária, pois Jermak estava justamente a observá‑los. De quanto tempo precisa um urso para aprender a dançar? Ora, Mouchkov era mais obtuso do que um urso! Marina voltou a enfiar o boné vermelho na cabeça.

 ‑ Como vão os teus cavalos, papá?

 ‑ Bem, bem! Não está nenhum doente. ‑ Loupin suspirou. O seu coração de pai estava tão pesado como a mó de um moinho. ‑ Como é possível amar um indivíduo como Mouchkov?

 ‑ Não sei explicar, papá. De repente, aconteceu.

 Marina encolheu os ombros e, como, ao realizar este gesto, a camisa se lhe colou ao peito, o pai Loupin apercebeu‑se de que a filha estava a tornar‑se verdadeiramente uma mulher. Os seus seios desenvolviam‑se magníficos.

 ‑ Quem sabe donde vêm as estrelas? ‑ perguntou Marina.

 ‑ Foi Deus que as criou, Marinouchka.

 ‑ E também se lembrou de criar o amor! Poderemos opor‑nos à sua vontade?

 Marina prosseguiu o seu caminho, depois de simular um pontapé no traseiro do velho. Loupin caiu para trás ‑ era um refinado comediante! ‑ e deixou‑se ficar a estrebuchar.

 "Tenho uma filha bastante desembaraçada ", pensou ele, muito orgulhoso. "Tem resposta para tudo. Mas como conseguirá ela, de futuro, ocultar a sua identidade?"

 E Loupin sentiu um suor frio percorrê‑lo da cabeça aos pés.

 

 Podemos pensar de Mouchkov o que entendermos. Mas, de homem para homem, convenhamos que era digno de piedade.

 A mais ampla das cavalariças fora aumentada, compreendendo agora numerosos compartimentos. As prostitutas que os habitavam ganhavam bem a vida, tal como os Stroganov, de resto, que recebiam uma parte da receita.

 Os cossacos tinham adquirido melhores modos. Alguns deles, poetas nas horas livres, celebravam o olhar ardente de Olga Maximovna, ou as alvas coxas de Irina Grigoriévna. Daí resultavam estribilhos variados, dos quais, porém, nem todas as palavras podem ser divulgadas. Em suma, reinava a satisfação entre os homens de Jermak: todos eles dispunham de carne fresca a seu belo‑prazer... todos, menos um.

 De facto, Mouchkov vivia como um monge. Cobria Marina de olhares apaixonados, pensava na punhalada sofrida e evitava novos assaltos de surpresa.

 Quando Jermak e os outros se dirigiam para o bordel, quando até mesmo o pope, preocupado com a sorte das suas almas, se consagrava às recém‑chegadas ‑ os Stroganov zelavam pela renovação dos efectivos ‑, Mouchkov deambulava, inactivo, maldizendo o dia em que passara por Novo Orpotchkov. Por vezes, sentia necessidade de exteriorizar e gritava, grosseiro:

 ‑ Sou um homem!

 Numa noite em que Jermak e o pope, de braço dado e bastante avinhados, saíram ao encontro das prostitutas, Mouchkov não se conteve e perguntou a Marina:

 ‑ E tu, minha flor, sabes o que é um homem?

 ‑ Já que dizes que és um homem, deve ser alguém parecido contigo! ‑ replicou Marina. Estas respostas desarmavam Mouchkov, que necessitava sempre de um certo tempo de reflexão antes de ser capaz de admirar a presença de espírito de Marina.

 Desta vez também reflectiu mas, sujeito às suas próprias sensações, rugiu:

 ‑ Vou rebentar!

 ‑ Gostaria de ver, Ivan Matveiévitch!

 ‑ Nem acreditarias no que visses, se eu despisse as calças!

 Marina sorriu suavemente, pegou no punhal curvo pendurado à cinta e pousou‑o sobre as coxas bem apertadas:

 ‑ Tem cuidado, Ivan Matveiévitch, os ramos mais fortes também se podam!

 ‑ Serias capaz? ‑ gaguejou ele, recuando.

 ‑ Sem hesitar.

 ‑ Desgraçado de mim! ‑ gritou Mouchkov, rangendo os dentes.

‑ Quanto tempo durará ainda mais esta brincadeira? Amo‑te, ouviste? Amo‑te, Marinouchka, a ponto de ter vontade de te despedaçar! Se soubesses o que é um homem, não me atormentarias assim. ‑ Deu um passo em frente, mas manteve‑se a uma distância prudente de Marina. ‑ Sabes perfeitamente que também me amas!

 ‑ É verdade! ‑ concordou ela.

 Era a primeira vez que o confessava tão abertamente.

 Mouchkov sobressaltou‑se, passou a mão pela cabeleira hirsuta e suspirou:

 ‑ Tu... tu concordaste ‑ balbuciou ele. ‑ É mesmo verdade que me amas?

 ‑ E por que razão teria continuado junto de ti?

 ‑ E como será o nosso futuro? Mesmo amando‑nos iremos passar a vida a olhar um para o outro, como num sonho? Marinouchka, uma mulher consegue resistir assim tanto? As mulheres não são diferentes de nós?

 ‑ Não há nenhuma diferença, Ivan Matveiévitch!

 ‑ Então vem! ‑ exclamou ele, abrindo os braços.

 Mas o punhal já familiar para Mouchkov brilhou imediatamente nas mãos de Marina, impedindo‑o de avançar um passo que fosse.

 ‑ Tu ainda és um cossaco! ‑ declarou ela, marcando as palavras.

 ‑ E nunca serei outra coisa! ‑ gritou ele.

 ‑ Nesse caso, não haverá nada entre nós, ursinho ‑ concluiu Marina tranquilamente.

 Mouchkov afastou‑se, jurando que levaria para o quarto cinco mulheres ao mesmo tempo. Mas, quando se viu ao relento, sentou‑se num cepo de madeira, estendeu as pernas e bateu com os calcanhares no chão. Não servia de muito, mas sempre transmitia parte do seu desespero à terra lavrada.

 

Os anos passam com uma rapidez incrível. Mal chega o Verão e nos deitamos nos verdes prados, logo um vento gelado soprando do norte varre todo o bem‑estar estival.

Choveu durante uma semana, os campos estavam saturados de humidade, os caminhos tornaram‑se impraticáveis e o céu parecia tão baixo que quase se podia tocar com a mão... E depois veio a neve, e o gelo. O Kama solidificou‑se. Os habitantes de Oriol fendiam o gelo com o auxílio de um machado, para poderem pescar. Um pro fundo silêncio desceu sobre os campos. Os caçadores entrelaçados, ou em trenós puxados por renas pPerseguiam linces, arminhos, zibelinas, visões e raposas brancas. A riqueza da floresta transportava‑se para casa dos Stroganov.

 Os cossacos entediavam‑se. Teriam vindo para o país de Perm para cochilar e galhofar com mulheres, de vez em quando? Os Stroganov não tinham prometido um rico espólio, do qual se apoderariam num país chamado Mangaseja? Tinham sonhado com conquistas ou, ainda, como declararam ao czar, com cruzadas contra o pagão Koutchoum para lá da barreira rochosa dos Urales.

 Tinham sonhado com ouro e pedras preciosas e, afinal, que lhes restava? Tarefas de morrer de tédio, alguns jogos equestres para evitar a "ferrugem", rixas com os homens de Oriol, sempre por pequenos nadas entre os quais figuravam as mulheres e, além disso, os "exercícios" instituídos por Jermak, uma novidade a que os cossacos se submetiam com ilimitado espanto.

 Começaram pela reorganização das tropas. O exército particular dos Stroganov contava presentemente com oitocentos e quarenta homens que Jermak dividiu em pelotões de cavalaria, todos eles comandados por capitães. Seguiam‑se os grupos de cinquenta e cem homens. A velha ordem cossaca de tempos heróicos, durante muito tempo esquecida, renascia. O chefe de todos os comandantes era Jermak e o seu adjunto, Ivan Mouchkov. Neste aspecto, nada mudara.

 O que era novo, era a nomeação de um adjunto encarregado de transmitir as ordens de Jermak aos chefes das formações de cavalaria. Gratificado com o melhor e mais rápido cavalo do exército, o adjunto, em pleno combate, devia assegurar a ligação entre o comandante supremo e os pelotões de cavaleiros, e vice‑versa. Para este cargo importante Jermak escolheu o jovem Boris Stepanovitch. E, quando Jermak abraçou o companheiro Boris para o felicitar pela promoção que lhe concedera, Mouchkov teve de fazer um esforço para não gritar.

 Marina já completara dezasseis anos e não podia ser mais feminina. De seios redondos e firmes, de coxas bem torneadas, as elegantes pernas calçando as grandes botas cossacas como hastes de roseiras mergulhadas numa jarra... era o que Mouchkov pensava, tornando‑se poeta ao contemplar Marina.

 O seu rosto perdera a harmonia da infância, mas assumia agora uma beleza singular. Os olhos de Marina continuavam alegres e azuis, mas o contorno da boca afirmara‑se, realçando as maçãs do rosto quando sorria. Nestes momentos os dentes brilhavam‑lhe, a língua passava pelos lábios com uma rapidez serpentina e Mouchkov recomeçava a sonhar. "Ah! Santo André", pensava ele, "o meu coração deixará de bater quando um dia a tiver finalmente nos meus braços!"

 E, entretanto, Jermak abraçava Marina e Mouchkov assistia a este espectáculo com uma sensação de terror que lhe gelava as entranhas. "Se for um tudo‑nada perspicaz, aperceber‑se‑á de que Boris é uma rapariga! Não poderá deixar de sentir a pressão dos seios! Qual o homem que não reage a estes contactos? E Jermak é um macho famoso!"

 Mas nada aconteceu. Jermak afastou‑se de Boris Stepanovitch e, em seguida, os chefes de pelotões e de formações de cavalaria avançaram em grupo para cumprimentar o jovem eleito. Que sucesso! Passara‑se apenas um ano depois da captura de Marina e já fora nomeada para o posto de agente de ligação, graças aos seus dons sequestres.

 ‑ Reparaste que estiveste próximo da morte? ‑ perguntou Mouchkov, com a voz embargada pelo susto quando, por fim, se encontrou a sós com Marina. ‑ Se Jermak descobrisse que és uma rapariga...

 ‑ Que terias feito então, Ivan Matveiévitch? ‑ perguntou ela, de mãos na anca e boné às três pancadas sobre o cabelo louro, agora um pouco mais comprido, o que lhe conferia ao rosto a suavidade que tanto assustava Mouchkov.

 ‑ Nada! Que poderia eu fazer?

 ‑ Matar Jermak, por exemplo! ‑ respondeu ela, esboçando um sorriso suave. ‑ Terei de ser eu a ensinar‑te tudo?

 ‑ Estás louca! ‑ gaguejou Mouchkov. ‑ Marinouchka, estás louca! Seria absolutamente impossível.

 ‑ Quando se ama, a palavra impossível não existe.

 ‑ Morrerias, então, por mim se me acontecesse alguma coisa? ‑ perguntou Mouchkov, respirando ruidosamente.

 ‑ Sempre, fosse qual fosse o caso, Ivan Matveiévitch! Sempre! Quem te matar, será morto por mim.

 ‑ Amas‑me assim tanto?

 ‑ Sabe‑lo bem.

 ‑ Não, não sei! ‑ gritou Mouchkov, arrepelando os cabelos. ‑ Nem sequer te posso abraçar!

 ‑ Quem sabe... ‑ murmurou Marina, voltando‑se.

 Lançou a cabeça para trás num movimento provocante e afastou‑se, requebrando‑se, o que fez subir o sangue à cabeça de Mouchkov... e a outra parte do corpo também.

 ‑ Aos poucos, estás a tornar‑te um ser humano! ‑ declarou Marina por cima do ombro. ‑ Pensa bem e descobre uma maneira de ocultarmos o nosso amor! Não podes dormir na mesma cama que o adjunto de Jermak, que te poria imediatamente a flutuar no rio, enfiado num saco de areia!

 Emudecido, e boca aberta como uma rã gigante, Mouchkov viu‑a afastar‑se.

 

 Veio a Primavera, a do ano de 1581. As árvores floriram mas, nos campos, a água proveniente do degelo ainda estagnava, pois sob a camada superficial de terra amolecida, o gelo continuava a resistir nas profundezas do solo. Os habitantes de Oriol voltavam a pescar no Kama e os Stroganov faziam o balanço de um frutuoso Inverno...

 Mas era tudo no que se refere a actividades.

 Nada de novo quanto ao país das maravilhas, Mangaseja. Nem o mais leve rumor quanto a uma expedição militar em preparação, nada que dissesse respeito às riquezas prometidas aos cossacos. Presentemente, o exército contava com mil homens, e encontrava‑se preparado para combater; mantinha uma disciplina de ferro, um bom treino depois de Jermak ter sido obrigado, por quatro vezes, a suspender criminosos à tona das águas ou, num caso particular ‑ tratava‑se de um cossaco que assassinara um camarada ‑, a enterrar vivo o culpado. O mais terrível é que Marina, como adjunto e porta‑voz de Jermak, era obrigada a ler a sentença de morte em nome dele. Uma vez cumprido este dever, Marina gratificava sempre o inocente Mouchkov com algumas bofetadas mestras, fungando ruidosamente. Mouchkov sofria estes maus tratos em silêncio, sabendo que ela se aliviava assim do seu desgosto, do seu horror. Além dele, quem poderia Marina espancar? Ele era dela e partilhava a sua desolação.

 Em seguida, Marina correu ao Kremlin dos Stroganov, em busca do pai. Contudo, o sensato Loupin, esse pai único no género, pegou‑lhe pelo braço e arrastou‑o até à capela dos Stroganov, onde acendeu uma vela benta, rezando ao pope para que perdoasse os pecados a este jovem cossaco e o abençoasse.

 ‑ Isto não pode continuar assim ‑ anunciou Jermak, num dia do mês de Maio, a Máximo e Nikita Stroganov.

 O tio Simeão, o último da sua geração que ainda podia olhar de frente para o czar Ivan, o Terrível, enquanto os mais jovens se prostravam diante dele de rosto no chão, retirara‑se para um mosteiro, onde definhava. Era, de resto, uma tradição dos Stroganov. No fim dos seus dias ‑ e eles sabiam exactamente quando chegava a sua hora ‑ abandonavam as suas imensas riquezas e iam viver para uma cela de um convento, a fim de se encontrarem, nesta humilde condição, mais próximos de Deus quando este os chamasse. Assim se comportara também Anika Stroganov, o grande sagre que, de uma simples família de mercadores, fizera uma grande potência russa: sentindo aproximar‑se a morte, instalou‑se no mosteiro de Sohtchegodsk e optou pelo nome de irmão José.

 ‑ E não continuará, Jermak Timofeiévitch ‑ respondeu Nikita Stroganov, que era o chefe militar da família. Máximo ocupava‑se essencialmente dos assuntos comerciais e da gestão do património. ‑ Tu tens razão, mas pensa no seguinte: conquistar a Sibéria e aniquilar o exército de Koutchoum é uma empresa perante a qual o próprio czar recua.

 ‑ O czar é um velho palrador! ‑ exclamou Jermak com altivez. ‑ Ele que se ocupe do bordel e nos confie os destinos da Sibéria!

 ‑ Mas será a força do nosso exército...

Jermak interrompeu Nikita:

 ‑ Um homem destemido vale mais do que cem indecisos! Somos um milhar de combatentes: Koutchoum dispõe de cem mil guerreiros?

 ‑ Vamos examinar a situação.

 Nikita Stroganov dirigiu‑se para uma grande mesa sobre a qual se encontrava desdobrado um gigantesco pergaminho representando um mapa geográfico do país de Perm, com rios, colinas, montanhas, lagos, cidades e aldeias, praças fortes, caminhos e pântanos.

 ‑ Temos algumas preocupações, Jermak ‑ disse Máximo Stroganov, que até então se mantivera calado.

 ‑ Preocupações? Com mil cossacos dispostos a combater?

 ‑ Aqui ‑ Nikita apontou com o indicador para uma das regiões do enorme mapa ‑, aqui encontram‑se os rios Sylva e Tchousovaia. Nas margens situam‑se boas aldeias, um solo fértil que outrora desbravámos, belas peles de animais. Há quatro dias que nove aglomerados se encontram em chamas! Moursa Begouly atacou‑os com setecentos Vogulos e Ostíacos, e pilhou‑os antes de os incendiar.

 ‑ Quem é esse Moursa Begouly? ‑ perguntou tranquilamente Jermak contemplando o mapa.

 ‑ É um príncipe que até agora pagava tributo e permanecia calmo. De repente, revoltou‑se, já não reconhece o czar e invadiu o país.

 ‑ Seja bem‑vindo! ‑ exclamou Jermak, sorrindo. Nikita Stroganov, os cossacos provarão o que entendem por vitória!

 ‑ Conto com essa predição ‑ respondeu Nikita Stroganov, cruzando as mãos sobre o mapa de tal maneira que a ponta dos dedos assentou nos Urales. ‑ Se venceres, Jermak, o caminho para a Sibéria ficará livre!

 

 O dia 22 de Julho nasceu claro e luminoso. O país brilhava, como que polido, mas o solo encontrava‑se seco e o pó elevava‑se do chão quando os cavalos percorriam os campos. Que dizer, então, da nuvem de poeira provocada por mil cossacos galopando nos seus pequenos e velozes cavalos no rasto dos lanceiros, de estandarte ao vento, e dos tocadores de trombeta! Dir‑se‑ia que a terra estava prestes a explodir. Qualquer coração pararia de pulsar à vista de tanto poderio selvagem.

 Numa estepe perto do Sylva, encontraram‑se pela primeira vez os pequenos ostíacos e os Vogulos de olhos amendoados, contra os cossacos de Jermak, que não cabiam em si de alegria perante a iminência do combate!

 Encontravam‑se frente a frente. Dois pequenos exércitos. Nenhum deles tinha outra solução senão o aniquilamento do adversário.

 

 Moursa Begouly, que, como Jermak, se encontrava à frente das suas tropas, protegeu os olhos com a mão a fim de ver melhor contra a reverberação do sol. Ignorava o que seria um cossaco. Pensava defrontar nova mente camponeses, angustiados e ansiosos por se defender, servos de Stroganov como aqueles, muito numerosos, a quem já tinham esfacelado o crânio.

 ‑ Derrotá‑los‑emos! ‑ gritou Moursa Begouly. ‑ Em frente!

 Nesse mesmo instante, Jermak gritava também, de sobrolho carregado:

 ‑ Ao ataque! Carregar! Corneteiros, dêem o sinal!

 ‑ Endireitou‑se nos estribos e ergueu o punho para o céu escaldante.‑ Boris Stepanovitch, a terceira e a quarta centúrias! Formação em leque! Para a frente, cossacos!

 Um ruído ensurdecedor veio encobrir o dia luminoso, tendo‑lhe respondido um clamor ostíaco e vogulo impressionante. Marina obrigou o cavalo a dar meia volta e, nesse instante, apercebeu‑se de que Mouchkov perdia o controlo dos seus nervos. O medo que sentia por Marina parecia privá‑lo de tudo o que a vida de cossaco lhe ensinara. Em vez de permanecer ao lado de Jermak, que galopava na dianteira, manteve‑se no flanco da carga de cavalaria a fim de proteger Marina.

 à sua volta gritava‑se ao ataque, esvoaçavam crinas, acometiam cossacos de lanças espetadas, galopavam de pé nos estribos os portadores de armas de fogo, carregando contra os asiáticos de Begouly.

 Ainda antes das ordens transmitidas por Marina, desdobrou‑se o famoso leque cossaco. As formações dispersaram a galope e escalonaram‑se, demónios furiosos ao ataque do adversário. Os cascos dos cavalos ressoavam no solo poeirento como um clamor de tempestade, as trombetas soltavam apelos estridentes, as lâminas dos sabres e as pontas das lanças brilhavam ao sol.

 ‑ Marina! ‑ rugiu Mouchkov, do fundo do coração, pondo de lado toda a prudência. ‑ Pára!

 ‑ Ivan! ‑ gritou ela como resposta ‑, fica comigo!

 Mas, em seguida, foram arrastados, arrebatados pelo galope dos seus cavalos, ultrapassando os outros cavaleiros. Subitamente, contra a sua vontade, encontraram‑se de novo à frente dos cossacos. De facto, além de Jermak, eram eles que montavam os melhores cavalos.

 Lançados contra eles, envolvidos numa nuvem de pó amarelo, guinchavam, como um bando de macacos, ostíacos e vogulo.

 ‑ Não podes morrer! ‑ gritou Marina. ‑ Ivan, amo‑te!

 Depois aconteceu algo que, na confusão geral, não foi visto por ninguém, tanto mais que a poeira encobria tudo e que todos olhavam em frente, ávidos de ver o homem que pretendiam matar... Mouchkov desequilibrou‑se devido a um choque violento, rebolou pelo chão e ficou estendido, imóvel, tapando a cabeça com os braços, à espera de que cem pares de cascos o pisassem até à morte. Mas sobreviveu e, apesar de rudemente massacrado, cedo viu‑se simplesmente envolto numa camada de pó. Ouviu com nitidez os dois exércitos que se defrontavam a pouca distância e os primeiros gritos de morte que trespassavam a nuvem de pó.

 Sentou‑se no chão, viu que o seu cavalo se encontrava perto e, mesmo ao lado, o cavalo de Marina, enquanto esta, de pé, assente nas pernas afastadas com firmeza e de pistola em punho, com o boné vermelho descaído para trás, fixava insistentemente os combatentes.

 Mouchkov ergueu‑se com dificuldade e aproximou‑se de Marina, coxeando:

 ‑ Caí do cavalo ‑ disse ele, cuspindo para o chão. ‑ Pela primeira vez na minha vida, caí do cavalo durante um ataque do inimigo! Não compreendo...

 ‑ Talvez te tenham empurrado! ‑ sugeriu Marina, tranquilamente.

 Um vogulo isolado, que conseguira transpor a formação em leque dos cossacos, avançava para eles, gritando.

 Marina ergueu a pistola, visou e disparou sobre o homenzinho de raça amarela. Mouchkov arrancou‑lhe a arma e fixou Marina, desconcertado.

 ‑ Falaste em empurrar? ‑ perguntou ele.

 ‑ Sim, fui eu que te deitei abaixo do cavalo! Preciso de ti vivo, e estás vivo! Amo um homem e não uma cruz espetada num monte de terra. Ivan Matveiévitch, sinto‑me tão feliz por ter conseguido...

 Marina pôs‑se em bicos de pés e deu‑lhe um beijo.

 ‑ Sinto‑me tão confuso! ‑ declarou Mouchkov em voz surda. ‑ Por todos os santos, já não sou um cossaco.

 O pequeno exército de Moursa Begouly, os velozes ostíacos e vogulos de olhos amendoados, foram batidos até à derrota total. Os cossacos de Jermak limparam o terreno como se se tratasse de destruir um viveiro de ratos. A galope, abriam fogo sobre a massa dos cavaleiros inimigos e depois baixavam as lanças ou brandiam os iatagãs, gritando vitoriosamente perante o prazer demoníaco de matar.

 Durante mais de um ano, os cossacos tinham esfriado, pois como única distracção apenas tinham exercícios militares tão fastidiosos que acabaram por abominar os ataques simulados contra recipientes de madeira enterrados no chão ou fantoches feitos de palha. Agora, munidos de sabres curvos, investiam contra homens de raça amarela projectando‑os para longe das selas como camponeses que revolvem o feno. Abriam‑lhes as cabeças, esmagavam‑lhes os ombros, empalavam‑nos entre gritos: HoÍ! HoÍ! Os homens de Moursa Begouly nunca tinham enfrentado semelhantes assaltos. A resistência dos colonos que atacavam parecia‑lhes natural. As violentas lutas contra as tropas dos Stroganov que os defendiam nas suas praças fortes eram combates leais. Mas o que agora se passava, quem atacava a galope, gritando e rindo, inebriados de uma raiva inextinguível, não pareciam seres humanos, e deviam vir de outro mundo! Neste caso, restava apenas uma solução: a retirada, a fuga!

 O exército dos cavaleiros de Moursa Begouly foi aniquilado. Para todos os lados fugiam homens montados em pequenos cavalos, fazendo‑se ainda mais pequenos nas suas selas, embora se tornasse perfeitamente inútil qualquer artimanha. Os cossacos perseguiam os fugitivos um a um, como galinholas, enchendo os gnomos cavaleiros de estocadas, até caírem por terra.

 Mouchkov e Marina também se encontravam nos respectivos cavalos e deviam abrir fogo ou atacar com os sabres os cavaleiros que fugiam em debandada para a estepe, acometidos de verdadeiro pânico. Mouchkov protegia Marina com o corpo e esta aproveitava para recarregar a arma, disparando em seguida por cima do ombro do companheiro.

 Não se perdia nenhum tiro. Mas os disparos dos mosquetes dos cavaleiros, passando pelos ouvidos, provocam detonações às quais nenhum tímpano resiste. Após quatro tiros, Mouchkov já não ouvia o barulho provocado pelos combates. O aniquilamento desenrolava‑se à sua frente como um sonho silencioso e mesmo quando Marina lhe gritou aos ouvidos, aproveitando uma pausa: "Amo‑te, meu velho!", reteve apenas a palavra "velho", perguntando a si mesmo em que é que teria errado mais uma vez.

 Jermak abeirou‑se deles quando se encontravam rodeados de feridos gemebundos e de alguns mortos. Contornou o massacre e interpelou o adjunto e o ajudante.

 ‑ As tropas estão sem comandante! ‑ gritou ele. ‑ Que fazem aqui?

 Mouchkov, mais uma vez, não ouviu nada. Olhava o chefe, sorrindo, julgando que Jermak o felicitava.

 Marina, pelo contrário, replicou tão alto quanto possível:

‑ Não nos escondemos borrados de medo, batemo‑nos tal como tu! ‑ Apontou para os mortos e feridos.

 ‑ Pensas que se estenderam no chão de livre vontade?

 ‑ O meu adjunto deve permanecer ao pé de mim! Quê?

 ‑ Os cavaleiros não formaram em leque ‑ perguntou Marina.

 ‑ Dei outras ordens. Quem é que não estava presente para as transmitir? Boris Stepanovitch! ‑ Jermak avançou para ela, perguntando com os seus olhos frios e impiedosos: ‑ Também queres ser suspenso no rio, rapaz?

 ‑ Empurraram Ivan, que se desequilibrou ‑ esclareceu ela, calmamente. ‑ Ajudei‑o a levantar‑se e, quando montámos de novo, apercebi‑me de que os outros já iam longe. Devia ter permitido que ele fosse pisado? É assim que demonstras a tua amizade, Jermak Timofeiévitch? .

 Este fitava‑a, desconcertado. Desde que comandava os cossacos, nunca ninguém ousara falar‑lhe neste tom. Só a sua palavra contava, não admitia ser contrariado.

 Os cossacos nunca tinham tido nenhum rei, mas Jermak reinava como um déspota.

 ‑ Manda tocar a reunir! ‑ ordenou Jermak com dureza. ‑ Os homens de Moursa Begouly ainda vivos que desapareçam, e propaguem a notícia de que se iniciou uma nova época, que nós mesmos introduziremos. Não é verdade, Boris Stepanovitch?

 ‑ Talvez ‑ respondeu Marina, cuja desenvoltura impertinente surpreendeu Jermak ainda mais. ‑ Mas essa época nova precisa não só de homens fortes como também de bom senso!

 Dito isto, Marina deu meia volta e partiu a galope. Jermak seguiu‑a com o olhar e, depois, assentou uma palmada no ombro do sorridente Mouchkov.

 ‑ Este tipo está a tornar‑se insolente ‑ observou Jermak. ‑ É preciso vigiá‑lo, Ivan Matveiévitch!

 ‑ Não ouço nada, irmão ‑ respondeu Mouchkov, desculpando‑se com um sorriso.

 Aos seus ouvidos chegava apenas um zumbido confuso, como se tivesse a cabeça mergulhada no mar Negro. Jermak endereçava‑lhe certamente palavras amigas, pois a palmada no ombro exprimia uma franca amizade ‑ conhecia o gesto.

 ‑ Não te rias de maneira tão estúpida! ‑ gritou Jermak. ‑ Como é que pudeste cair do cavalo?

 ‑ Sim, sim ‑ respondeu Mouchkov que, continuando sem ouvir nada, não parava de sorrir.

 ‑ Endoideceste? ‑ gritou Jermak.

 ‑ Não ouço absolutamente nada ‑ respondeu Mouchkov, gritando também. Jermak vacilou ao ouvir a sua voz tonitruante, mas poderão os surdos controlar a voz? ‑ Boris disparava mesmo junto do meu ouvido! Como poderia resistir?

 Recusando‑se a tratar Mouchkov como deficiente, Jermak deu meia volta, sempre montado no seu cavalo, e partiu em busca de Marina, que transmitia aos corneteiros as ordens dadas pelo seu superior.

 Acercou‑se dela no auge de um combate entre cinquenta cossacos a cavalo, atacando em todas as direcções, e um grupo de vogulo em fuga. Marina apoderava‑se, nesse preciso momento, do estandarte de um porta‑bandeiras que, ferido por uma flecha, vacilava na sela.

 ‑ Não tens medo, rapaz? ‑ gritou‑lhe Jermak. ‑ E sentes prazer em matar, sem dúvida?

 ‑ Matar é um acto terrível, Jermak Timofeiévitch! ‑ respondeu Marina, espetando o pau da auriflama no estribo. Parecia Joana d'Arc, mas quem conhecia a virgem de Domrémy na longínqua e ignorante Rússia? ‑ Procedo deste modo para me proteger, tal como Mouchkov. Mas detesto os combates!

 ‑ Lutamos pela cristandade! ‑ observou Jermak taciturno.

 ‑ Bem sei.

 Marina riu‑lhe na cara e, de repente, Jermak pensou:

 "Bem podia tratar‑se de uma rapariga! Este Boris Stepanovitch é demasiado bonito para ser rapaz... não me surpreende que, ao vê‑lo, haja quem tenha pensamentos estranhos..." Nas faces de Boris desenhavam‑se duas covinhas: não há cossaco que não minta descaradamente... E, então, Jermak também se riu, exclamando: "HoÍ HoÍ", e partiu a galope em direcção a um grupo de cavaleiros que por sua vez perseguiam alguns ostíacos. A vitória foi esmagadora, os Stroganov mostraram‑se muito contentes. Como recompensa, pagaram a Jermak cinco mil rublos em ouro, uma fortuna fabulosa no ano da graça de 1581.

 

 Nikita e Máximo puderam aperceber‑se de que a prova tinha sido positiva. O poder combativo do seu pequeno exército era evidente. Bem treinado, poderia arriscar‑se a transpor os Urales, penetrando no lendário país de Mangaseja. A Sibéria estava amadurecida para a conquista.

 Tudo o que se sabia desse país imenso ‑ segundo os relatos dos caçadores de peles e dos monges peregrinos, que conservavam as memórias de Santo Estefánio, o primeiro religioso a ter percorrido sozinho essas paragens desconhecidas ‑ foi novamente compilado. Desenharam‑se mapas de acordo com essas escassas informações, conhecia‑se a existência dos grandes rios Tobol e Irtych, do calmo Toura e do pedregoso Toungouska. Não se ignoravam as florestas incomensuráveis, os pântanos, as riquezas ilimitadas em castores, zibelinas e raposas. Ali, a riqueza rasava simplesmente o solo e ninguém se preocupava!

 Conquistar o país para a cristandade... era esse o pretexto oficial. Na realidade, tratava‑se de obter uma riqueza imensa, destinada ao czar de Moscovo, aos Stroganov, a Jermak e ao seu bando de selvagens... tarefa que jamais se apresentara a um homem.

 Até mesmo o velho e sábio Simeão Stroganov abandonou o retiro no mosteiro Solvytchegodsk partindo rumo às margens do Kama, tanta importância atribuía ao momento histórico: a realização do grande projecto!

Aquilo que o czar Ivan concedera aos Stroganov pelo decreto de 1574: autorização para agir livremente, dava enfim frutos. Os Stroganov seriam os homens mais ricos do mundo se a expedição de Jermak à Sibéria fosse um sucesso.

 Numa bela noite, saiu do Kremlin dos Stroganov um mensageiro a fim de ir convidar Jermak, da parte dos senhores do país.

 ‑ Venham comigo! ‑ ordenou Jermak a Mouchkov e Marina. ‑ E coloquem‑me cem homens de sentinela à frente do Kremlin: que ninguém apanhe Jermak distraído!

 Na sala de audiências da residência dos Stroganov estava posta a mesa gigantesca. Havia vinho de França, um porco assado inteiro, aves, pratos de legumes e fruta. Lindas raparigas, elegantes e louras, da Livónia, serviam à mesa, substituindo os pagens, e um pequeno grupo de músicos, tocadores de flauta e címbalo, e de viola, encontrava‑se por detrás de um grande reposteiro de seda da China, acompanhando a refeição com as suas melodias.

 Jermak estava alerta como um pássaro preso numa gaiola dourada. Sempre atento, pesava bem todas as palavras e preparava‑se para uma grande revelação, pois o convite só assim teria sentido. Conhecia suficientemente os Stroganov. E a presença do velho Simeão provava, claramente, só por si, que nesse mesmo dia iria ser tomada uma grande decisão.

 Máximo, o comerciante, encarregou‑se de entrar no assunto depois de, por várias vezes, ter sido servido vinho em taças de prata vindas de França. Nikita, por seu lado, desdobrara alguns mapas em cima de uma mesa, cobrindo‑os em seguida com uma tapeçaria dos Gobelins. Simeão, a velha raposa, vestia hábito de monge e sentava‑se à mesa dos ágapes, parecendo ausente deste mundo, embora fosse ele, na realidade, o espírito superior que tudo decidia e dirigia. Elaborara a lista das diversas missões a realizar, estava tudo escrito, faltavam apenas as assinaturas dos "encarregados de missão". Todas as acções dos Stroganov eram regidas por contratos em regra.

 ‑ Jermak Timofeiévitch ‑ começou Máximo Stroganov ‑, hoje é um grande dia!

 ‑ Já comi carne de porco muitas vezes! ‑ replicou

 Jermak prontamente.

 ‑ Um dia, poderás comer como um boiardo!

 ‑ Um boiardo não é nada! ‑ observou Jermak, orgulhoso. ‑ Se se tratasse de proclamar que alguém iria viver como Jermak, então sim, teria o céu a seus pés!

 ‑ Exactamente! ‑ apoiou Mouchkov numa voz sonora, atirando um osso para trás das costas.

 Marina, por debaixo da mesa, aplicou‑lhe um pontapé nas canelas. Ele esboçou um esgar, olhou‑a de relance e compreendeu de imediato que a sua atitude à mesa de um senhor poderoso deixava muito a desejar.

 ‑ Quando partimos para a Sibéria? ‑ perguntou Marina na sua voz clara de adolescente.

 Máximo Stroganov dirigiu‑lhe um sorriso, meneando discretamente a cabeça:

 ‑ Logo que os armamentos sejam distribuídos.

 ‑ Está tudo pronto, Jermak Timofeiévitch! As últimas semanas foram consagradas à compra das melhores armas provenientes da província da Livónia.

 ‑ Os alemães, os livónios, os suecos sabem combater ‑ reconheceu Jermak. ‑ Eu próprio, na juventude, fui carregador de navios atracados no cais, vivendo com os marinheiros nos rios das províncias do Norte. Nesse tempo, não reinava a segurança nas margens do Volga.

 "Nesse tempo, eras perseguido pelos soldados do czar", pensou Simeão Stroganov, sorrindo abertamente.

 "Não foi na época das campanhas cossacas contra os Nogais? A capital do Cãnogai chamava‑se Saraitchik e foi pilhada por vós: saquearam as mesquitas, assaltaram lojas e violaram raparigas, chegaram mesmo a desenterrar os mortos para lhes arrancar as jóias... nesse tempo, as pessoas beijavam‑se quando matavam um cossaco... um demónio a menos neste mundo ‑ dizia‑se ‑ e vens tu falar‑nos de descarregamentos na Livónia, Jermak Timofeiévitch! Conhecemos muito bem a tua história!"

 ‑ Nikita encarregar‑se‑á de vos explicar o nosso plano! ‑ declarou o velho Simeão numa voz matraqueada. ‑ Agora vamos discutir a remuneração que receberá cada um dos homens que parta para a Sibéria.

 ‑ Uma parte justa retirada do espólio no seu conjunto! ‑ declarou imediatamente Jermak, pousando os dois punhos na mesa. E Mouchkov acrescentou, num tom de voz claro:

 ‑ As promessas não contam! Queremos um contrato em regra, não é verdade, Boris Stepanovitch?

 Marina não dizia nada. Preferia calar‑se, já que era o conviva mais jovem. Jermak observava‑a pelo canto do olho.

 ‑ Os contratos já estão feitos... ‑ Simeão, no seu hábito de monge, apontava para uma sacola de couro bem recheada, de fechos dourados, ostentando as armas dos Stroganov. ‑ Em primeiro lugar, os equipamentos. Vou enumerá‑los...

 Pegou num rolo de pergaminho que Máximo lhe estendeu, aproximou‑o muito dos olhos e começou a ler:

 ‑ Para todo o exército, três canhões do modelo mais recente, fabricados por fundidores alemães. As melhores espingardas. Para cada homem, três libras de pólvora e chumbo em quantidade suficiente. E ainda cem libras de farinha de centeio, trinta libras de biscoitos, sal, sessenta libras de fermento, cem libras de tolokono...

 Simeão calou‑se e olhou Jermak por cima do pergaminho. O tolokono, para qualquer soldado dos Urales e do Adriático, era um alimento tão precioso quanto exótico ‑ aveia‑torrada ou moída com a qual confeccionavam bolos e as mais saborosas iguarias. Com tolokono no alforge, os Russos tinham conquistado o seu gigantesco império. A Sibéria não constituiria uma excepção à regra.

 ‑ É pouco ‑ declarou Jermak após uns momentos de reflexão.

 ‑ Muito pouco! ‑ reforçou Mouchkov.

 ‑ Um cossaco devora como três bois ‑ concluiu Marina.

 A observação não foi particularmente lisonjeira, e Jermak perguntou a si mesmo se não seria preferível expulsar aquele malandro da roda dos convivas por meio de uma valente surra. Mouchkov empalideceu e pôs‑se a observar fixamente o tecto de vigas pintadas. "Minha Nossa Senhora, Santo Estefánio, a vida de Marina está em perigo!", pensava ele, aterrorizado.

 ‑ Ainda não acabei ‑ retomou Simeão Stroganov, debruçando‑se novamente sobre a lista. ‑ Cada homem terá ainda direito a uma porção de manteiga e a metade de um porco.

 ‑ JohaÍ! ‑ exclamou Mouchkov. ‑ Assim está berxi!

 ‑ E quanto aos cavalos? ‑ perguntou Jermak.

 Os Stroganov olharam uns para os outros. Nikita, o estratego, levantou‑se e soergueu a tapeçaria dos Gobelins, mostrando, assim, o estendal de mapas:

 ‑ Construímos os melhores barcos fluviais que imaginar se possa ‑ respondeu.‑ Recolhemos todas as informações, o que nos permitiu criar novos navios, grandes mas leves, capazes de transportar muitos homens e material, mas que são eles próprios transportáveis sem grandes dificuldades.

 ‑ Barcos? ‑ Jermak ergueu‑se lentamente, apoiando‑se nos pulsos. ‑ Barcos? Teremos de transportar barcos?

 ‑ É a única maneira de atravessar os Urales, subindo o Tchousovaia até á linha de divisão das águas no Ural. Aí, os homens terão de carregar os barcos às costas até à outra vertente do maciço montanhoso, depois do qual atingirão o Toura. Aí, voltam a embarcar, descem o Toura e atingem o Tobol. Encontrar‑se‑ão, então, no coração das terras do czar siberiano Koutchoum. ‑ Nikita calou‑se e, logo a seguir, acrescentou precipitadamente: ‑ Esse pagão!

 ‑ Para sempre, amem! ‑ respondeu Jermak, sarcástico.

 Fixava intensamente os Stroganov, como se visse fantasmas.

 ‑ E os nossos cavalos? ‑ perguntou, por fim.

 ‑ Só poderão penetrar na Sibéria pelos rios, os cavalos terão de ficar aqui!

 Pode dizer‑se a um cossaco que o Sol e a Lua acabarão por se encontrar, que o Volga corre para o Norte e não para o mar Negro, que se semeia fermento para colher couves... ele aceitará ou limitar‑se‑á a encolher os ombros. Mas adverti‑lo de que não poderá montar um cavalo, é anunciar‑lhe o fim do mundo!

 ‑ Sem cavalos? ‑ repetiu Jermak numa voz embargada.

 ‑ Então não irei a cavalo para a Sibéria? ‑ gaguejou Mouchkov.

 E Marina ousou acrescentar um murmúrio:

 ‑ Sem cavalos? É impossível!

 ‑ Vamos embora! ‑ ordenou, por fim, Jermak, numa voz tonitruante. ‑ Os Senhores Stroganov precisam de homens que mijem para o vento! Mas nós, é contra o vento que mijamos e sabemos vencê‑lo! Os senhores terão de contratar outros homens para essa empresa...

 ‑ Olha bem para os mapas, Jermak Timofeiévitch! ‑ replicou Nikita Stroganov. ‑ Se conheces outra via de penetração, diz! Estamos prontos para alterar tudo!

 Jermak aproximou‑se da mesa em que se encontravam os mapas e estudou‑os atentamente. Debruçou‑se sobre os itinerários indicados, reflectiu, roeu as unhas, fechou os olhos. Ninguém interrompeu as suas meditações.

 Máximo Stroganov percorreu as listas de equipamentos. Nikita mantinha‑se afastado, perto da tapeçaria dos Gobelins, que escorregara da mesa; Simeão, o velho, saboreava o vinho francês; Mouchkov mordia o lábio inferior e bem teria gostado de, pelo menos, tocar muito ao de leve em Marina, o que o tranquilizava sempre, estranhamente. De noite, permitia‑se fazê‑lo, enquanto ela dormia. Então, pousava a mão com muito cuidado nos seus seios jovens e desapareciam todas as preocupações... Era um sentimento maravilhoso, incomparável.

 ‑ Subir o Tchousovaia, transpor o Ural de barco, descer o Toura até ao Tobol é o caminho mais fácil ‑ insistiu Nikita, enquanto Jermak mantinha o silêncio. ‑ Mais a sul, as cadeias de montanhas são mais elevadas, os vales mais profundos, os carreiros impraticáveis, tanto de barco como a cavalo. Enquanto não se descobrir um bom caminho, a Sibéria só poderá ser conquistada a pé ou através dos rios. Os homens de Koutchoum têm a tarefa facilitada: é o seu país, conhecem‑no. Como é que os seus cavaleiros transpõem as montanhas, vindo até aos nossos domínios, ninguém sabe... Santo Estefánio também o fez, mas a pé...

 ‑ Não sou santo! ‑ exclamou Jermak, grosseiro. - Preciso de cavalos para carregarem o meu espólio! Os homens terão, então, de transportar tudo às costas? Um cossaco sem cavalo...

 ‑ Em Mangaseja encontrarão de novo cavalos! - Simeão Stroganov, o velho, procurou aprumar‑se, gemendo. Há um ano que a gota o torturava. ‑ Mas deves mostrar‑te razoável e aceitar a travessia do rio, Jermak: um cavalo pode morrer, mas um rio corre lentamente.

 ‑ Preciso de reflectir... ‑ Jermak afastou‑se da mesa em que se encontravam os mapas. ‑ Não tenho coragem para avisar os meus homens de que não podem penetrar na Sibéria a cavalo!

 ‑ Nesse caso, encarregar‑me‑ei de lhes explicar - replicou Nikita Stroganov.

 ‑ Experimenta, meu donzel! ‑ Jermak esboçou um sorriso maldoso. ‑ Despedaçar‑te‑ão! Um cossaco sem cavalo não é um homem!

 O rosto de Mouchkov resplandecia:

 ‑ Ouviste? ‑ murmurou ele, dirigindo‑se a Marina, de pé à sua frente. ‑ Afinal, sempre somos seres humanos !

 ‑ Poderemos falar sobre isso ‑ respondeu ela, baixinho. ‑ E é o que faremos depois... meu urso!

 Mouchkov suspirou, dirigiu‑se a Jermak e disse, em voz bem alta:

 ‑ Jermak Timofeiévitch, a minha opinião é que deveríamos regressar ao Don, depois de destruirmos Oriol! Fomos enganados!

 Os Stroganov sustiveram a respiração. Agora, ia ser tomada a decisão final... sabiam que, entregue a mil cossacos bem treinados, a sua fortaleza, feita de negócios e de dinheiro, estava perdida.

 ‑ Nikita Stroganov tem razão ‑ disse, por fim, Jermak em voz pausada, embaraçada, pois sentia relutância em reconhecer a verdade. ‑ Só através dos rios poderemos atingir a Sibéria! Os nossos cavalos não chegarão ao cimo dos montes Urales: aí domina Satanás!

 ‑ Que Deus vos ajude! ‑ murmurou o velho Simeão, piedoso. ‑ Partirão para o desconhecido erguendo estandartes bordados com a efígie da nossa santa Mãe, de todos os santos...

 ‑ E o nosso espólio? ‑ insistiu Mouchkov, teimoso.

 ‑ Será tudo o que possam transportar! ‑ respondeu Simeão Stroganov, cruzando as mãos sobre o hábito de monge. ‑ O vosso equipamento custou‑nos vinte mil rublos em ouro! Nem o czar dispõe desta quantia para as suas tropas! O vosso exército é o mais bem equipado do mundo!

 

 Foram precisas três semanas para que os homens de Jermak se resignassem perante a perspectiva de não associarem os seus cavalos à conquista da Sibéria. Prostravam‑se nas margens do Kama a examinar as embarcações leves, largas e achatadas, de concepção estranha, obra dos construtores de barcos alemães. Mas insultavam e maldiziam os Stroganov. Depois, Jermak instituiu os exercícios de transporte dos barcos. Estes eram colocados sobre estacas de madeira que assentavam nos ombros dos carregadores, tendo‑se chegado à conclusão de que convinha escolher carregadores todos da mesma estatura, capazes de caminhar pelo mesmo passo. Só nestas condições se conseguia que as barcaças não oscilassem muito. Surgiram veementes protestos quando Jermak pretendeu inculcar nas tropas a marcha "à alemã" .

 Alexandre Grigoriévitch Loupin, o veterinário dos cavalos dos Stroganov, também faria parte da expedição. Coube‑lhe a delicada missão de explicar aos cossacos que deveria acompanhar as tropas, pois a sua presença era necessária. Um veterinário, quando não permitem a presença de cavalos! Contudo, conseguiu o que queria, apresentando a razão de que tanto sabia tratar de cavalos como de homens. Qual a expedição militar que dispensa um cirurgião?

 O homem mais ocupado, e que definhava a olhos vistos, como que roído interiormente, era Oleg Vassiliévitch Koulakov, o pope dos cossacos. Com efeito, era a ele que as infatigáveis costureiras dos Stroganov entregavam os estandartes cobertos de imagens da Virgem e de cabeças de Cristo. Verdadeiras obras‑primas do bordado, em que cada ponto custava uma lágrima... Contudo, ninguém chorava por causa deste penoso trabalho, pensando apenas nos cossacos que se introduziam secretamente nas granjas e nas residências das bordadeiras para lhes ensinarem toda a espécie de talentos. Ao longo de um ano e meio, as tropas de Jermak tinham tido tempo de descobrir mil caminhos secretos, para, através deles, atingir o objectivo. No domingo teria lugar a bênção antes da partida...

 O pope recebia os estandartes já prontos, examinava‑os com olhar crítico, assim como às bordadeiras, autoras da obra, e se um estandarte lhe agradava em particular ‑ ou a respectiva bordadeira ‑ decidia abençoá‑los imediatamente. Nem mesmo um pope conseguia resistir a esta actividade e Koulakov queixou‑se a Jermak de que os Stroganov encomendavam mais bandeiras bordadas do que o número de homens destinados a empunhá‑las.

 ‑ Cada grupo de cinquenta homens tem direito a um estandarte! ‑ ordenou Jermak. ‑ Combatemos em nome da cristandade, padre!

 ‑ Deus misericordioso! ‑ exclamou o pope, esfregando as mãos. Em seguida, cofiando a barba, abandonou a casa de Jermak.

 Durante um dia inteiro, recusou‑se a abençoar estandartes e permaneceu sentado à beira do Kama, a fim de recobrar forças. Quando, no dia seguinte, abriu a porta da igreja e viu sete bandeiras empunhadas por sete jovens e bonitas raparigas, que penetraram nos locais sagrados com o ar mais respeitável do mundo, ergueu os olhos ao céu:

 ‑ Senhor, bem sei que necessitas de mártires. Fortalece, pois, o meu coração e... o resto!

 Mouchkov e Marina tiveram de superar algumas dificuldades, Mouchkov, receando que Marina não resistisse à campanha da Sibéria, ordenou‑lhe, pondo de lado a prudência:

 ‑ Tu ficas aqui! Espera pelo meu regresso, pois não vais para a Sibéria! Não permitirei.

 Mas Marina respondeu com igual determinação:

 ‑ Sou adjunto de Jermak, de resto, tu também não vais?

 ‑ Eu sou um homem! ‑ gritou Mouchkov,

 Teria sido sensato falar de outro modo, pois Marina respondeu‑lhe com um riso aberto que lhe cavava duas covinhas nas faces e realçava os olhos azuis. Mouchkov sabia perfeitamente porque se ria ela e, contrariado, rangeu os dentes.

 ‑ Não queres que se mate! ‑ vociferou. ‑ Mas nós, é para matar que lá vamos!

 ‑ Eu sei, Ivan Matveiévitch, também é para isso que eu parto. Impedir‑te‑ei de matares!

 ‑ Julgas que me desarmas sempre que queiras?

 ‑ Se não houver outro processo serei forçada a recomeçar!

 ‑ E não queres que tome parte nas pilhagens?

 ‑ Não permitirei sequer que te apoderes de um sapato velho que não te pertença!

‑ Maldito seja Novo Orpotchkov! ‑ resmungou Mouchkov, gesticulando sem se conter.

 ‑ Demasiado tarde! Incendiaram a minha terra e, ainda para mais, raptaste‑me! Fizeste de mim um espólio! ‑ Marina soltou uma gargalhada e deu meia volta sobre si mesma com tanta graciosidade que o coração de Ivan se crispou.‑ Agora, terás de arrastar contigo a tua presa, meu tesouro! Há doenças incuráveis, o amor é uma delas!

‑ Um dia, na cama, despedaço‑te ‑ declarou ele, numa voz surda ‑, e esmago‑te como couve‑azeda! É mesmo disso que estás a precisar!

‑ Beijar‑me‑ás tão derretido como manteiga ao sol ‑ respondeu ela, aprumando‑se e deixando adivinhar o peito por debaixo da camisa cossaca. Ivan viu‑lhe os mamilos salientes e engoliu em seco, penosamente.

 ‑ Quando? ‑ balbuciou ele. ‑ Quando, minha rosa de ouro? Quando, diabinho maravilhoso?

 ‑ Talvez... ‑ Marina olhava de soslaio, e de cabeça baixa. ‑ Quando regressares de mãos a abanar de mais uma cidade conquistada.

 Depois, Marina afastou‑se.

 

 A 25 de Agosto de 1581, os navios de carga encontravam‑se atracados nas margens do Tchousovaia.

 O exército dos Stroganov parecia de muito bom humor, apesar da perspectiva de subir a remos o maldito rio, de fundo rochoso e irregular, com muitas correntes, e de abandonarem os seus fogosos cavalos. Se, no local em que se encontravam, a estepe ainda reinava, já se avistava no horizonte o ameaçador maciço montanhoso dos Urales, barreira rochosa que atingia o céu.

 A presença de Alexandre Grigoriévitch Loupin não se fez notar no meio do exército dos futuros invasores, já que, além dos homens de Jermak, aquele comportava ainda um pequeno grupo de combatentes já reunidos nas margens do Tchousovaia: aventureiros, caçadores, empregados dos Stroganov encarregados de estabelecer pontos de resistência e de penetração. Havia ainda intérpretes, conhecedores dos estranhos idiomas ostíacos, dos vogulos, dos tártaros, dos tagil e de outros povos asiáticos, e também barqueiros especializados na navegação fluvial e, por fim, religiosos!

 Vinham sobretudo do mosteiro de Ouspensk para se juntarem ao exército de Jermak e o pope dos cossacos observava‑os pensativo e de sobrolho carregado. Os seus colegas avançavam para ele empunhando estandartes dourados, acompanhados de cantores e de serviçais, como se não se tratasse de conquistar um país selvagem, mas sim de organizar uma procissão pascal. Até o bispo de Ouspensk fazia parte do grupo ‑ não por desejar partir para a Sibéria, mas para benzer os barcos, os corajosos combatentes, as mulheres e as filhas em pranto, e para lhes dedicar um sermão segundo o qual o objectivo desta expedição guerreira consistia em expulsar o czar pagão siberiano, levando a cruz aos descrentes. Ninguém proferiu uma palavra que fosse sobre zibelinas, raposas prateadas, visões, castores, esquilos e outros animais de preço. Toda a conquista tem o seu lado sórdido...

Já é um grande feito embarcar um milhar de homens armados, três canhões, equipamentos e víveres e, ainda para mais, quinhentos porcos inteiros ‑ as mil metades atribuídas pelos Stroganov e... que seria impossível transportar. Os Stroganov assim pensavam e a sua generosa oferta fora, inicialmente, uma prenda envenenada.

 Mouchkov lastimou‑se até mais não poder, arrepelou os cabelos e acabou por calcular que seriam precisos dez barcos de carga para incluir os porcos nas bagagens.

 ‑ Mesmo salgando‑os e cortando‑os aos pedaços ‑ explicou Marina ‑ não serviria de nada. Já temos muitas coisas para levar! Não é verdade que teremos de transportar as embarcações através dos Urales?

 ‑ Bandidos! Verdadeiros safados! ‑ praguejava Mouchkov, observando a vara de porcos, grunhindo à beira do rio.

 Sentia o coração despedaçado. Alguns cossacos já tinham começado a amanhar uns tantos animais, mas daí só lhes viria alimento para dois dias de caminho.

 ‑ Marinouchka, tu és uma rapariga sensata. Não tens nenhuma ideia?

 ‑ Não. ‑ Marina enterrou o boné na cabeça. ‑ Para além de podermos fugir esta noite e cavalgarmos rumo ao sul...

 à beira do rio, Jermak fazia‑lhe sinal. Precisava certamente do seu adjunto.

 ‑ Abandonar Jermak? Enganar os camaradas? nunca! ‑ gritou Mouchkov.

 ‑ Então, um dia terás de roer troncos de árvore como os castores! ‑ concluiu Marina, afastando‑se.

 No dia 1 de Setembro, os barcos fizeram‑se finalmente ao Kama, entre cânticos entoados e repetidos por um milhar de vozes masculinas. O bispo de Ouspensk benzeu os servidores movimentando o turíbulo, as bandeiras agitaram‑se ao vento, as mulheres choravam ruidosamente e os homens viram desaparecer ao longe, satisfeitos o bando apaixonado. "Se Deus fosse um pai generoso, como dizem, fá‑los‑ia desaparecer para sempre! Que sejam tragados pela Sibéria!", eram estes, em geral, os fervorosos votos que acompanhavam as barcaças e os respectivos ocupantes.

 ‑ Vai em paz! ‑ dissera Nicolas Stroganov a Jermak, no momento da despedida, abraçando‑o como a um irmão e dando‑lhe três beijos nas faces. Avaliava a situação com mais objectividade do que o comandante dos cossacos. Para os Stroganov, tratava‑se de uma incrível aventura, cujo desfecho era essencialmente uma questão de sorte. Se, por um lado, Jermak estava certo de vencer, os Stroganov, por outro, mostravam‑se pouco seguros de si. Davam tudo por tudo. Ao longo da história, alguns Stroganov já tinham arriscado tudo, mas saíram sempre vitoriosos.

 Desta vez, debatiam‑se com muitas incógnitas. E dispunham apenas de um trunfo: Jermak, que não temia nada.

 Seria suficiente para conquistar a Sibéria?

 A maneira como os cossacos se despediram dos cavalos foi comovedora. Todos os animais se encontravam alinhados ao longo do rio, em grupos de dez, como numa parada, e os cossacos avançaram para os respectivos cavalos, abraçando‑os entre lágrimas. Nunca se vira um milhar de cavaleiros chorando ruidosamente, enquanto acariciavam os focinhos dos animais, murmurando‑lhes ao ouvido palavras mais ternas do que as que dirigiam às mulheres.

 Em seguida, Jermak ordenou que o corneteiro desse o sinal de partida. Mas, quando os cossacos se encontraram todos a bordo, e enquanto os religiosos entoavam cânticos, a sua natureza brutal veio ao de cima e abafaram os cânticos de acção de graças, gritando canções que nada tinham de seráfico. Os grandes remos mergulharam nas águas sussurrantes do Tchousovaia. O barco de Jermak comandava, seguindo‑se‑lhe Mouchkov e Marina... Cada um dos outros transportava vinte homens e material. Tratava‑se, sem dúvida, de uma frota enorme que se dirigia para os Urales, a primeira invasão de envergadura a esse país desconhecido.

 Embora o sol brilhasse, como um disco incandescente no céu, e o Outono ainda mal se adivinhasse, enfrentavam um vento glacial. Eram as primeiras saudações dos Urales.

 No primeiro barco seguiam, juntamente com Jermak, os marinheiros e o pope Oleg Vassiliévitch Koulakov. O coro ritmado de um milhar de vozes era acompanhado pelo bater dos remos, enchendo a atmosfera. A exaltação geral encontrava‑se ainda no auge.

 ‑ Por quanto tempo navegaremos neste miserável rio? ‑ perguntou Jermak a um dos timoneiros.

 ‑ Dentro de quatro dias devemos atingir os primeiros contrafortes das montanhas. ‑ O timoneiro, um velho navegador e pescador de longas barbas, observou a enorme frota que os seguia. ‑ Trouxemos mais carga do que a necessária, Jermak Timofeiévitch!

 ‑ Eu sei, velho ‑ respondeu Jermak, de olhos postos nas águas revoltas. ‑ Mas só assim consegui que os meus homens embarcassem! Mais tarde, nos Urales acordarão. É preferível que lhes seja impossível voltar atrás!

 

 Livres da zona de vigilância dos Stroganov, os guerreiros, até então aquartelados, voltaram a ser os cossacos intratáveis que sempre foram. Nem precisavam de cavalos: para pilhar e assaltar mulheres, possuíam pernas suficientemente rápidas.

 Contudo, nos três primeiros dias não tiveram ocasião de as pôr à prova. O Tchousovaia revelou‑se um curso de água muito perigoso, repleto de bancos e recifes.

Afundaram‑se várias barcaças. Foi necessário mergulhar na água fria e, a ombros, libertar os barcos das pedras ou da areia que os retinham presos. Ao crepúsculo, acampavam na margem, acendiam fogueiras, o odor da carne e das couves pairava como uma nuvem sobre as tropas saídas do rio. Pequenos grupos de batedores sondavam a região em todas as direcções, descobrindo amáveis indígenas que acolhiam os estrangeiros sem preconceitos, recebendo maus tratos como paga.

 No quarto dia ‑ o rio estreitava cada vez mais e o leito era formado apenas por pedras ‑ atingiram os Urales. O cimo dos montes pareceu‑lhes menos imponente do que imaginaram, o poderoso maciço montanhoso começava mais adiante, a sul. Ali, onde se encontravam, a montante do Tchousovaia, erguiam‑se escarpas pedregosas formando extractos despidos, de silhuetas bizarras, sem quaisquer caminhos. Deserto de pedras que teriam de atravessar transportando os barcos. Terminara a viagem fluvial. Começava a longa marcha. Acontecimento sem precedentes, esta conquista efectuada a pé, por cossacos!

 Jermak, Mouchkov, Marina, as centúrias e os religiosos reflectiam sobre cada pormenor dos mapas que Stroganov lhes entregara. Tinham sido elaborados pelos melhores cartógrafos, embora fossem tão incompletos como os ensinamentos recolhidos sobre estas regiões. Sabia‑se apenas uma coisa: começava aqui o velho caminho que conduzia à Sibéria, aquele que monges e caçadores já tinham percorrido: o "Serebrianka". Este carreiro contornava picos, atravessava estreitos vales encimados por rochedos a pique, passando ao longo de muitos precipícios... e algures, a norte, abrir‑se‑ia um pórtico de rochedos sobre o infinito siberiano.

 E teriam de superar todos estes obstáculos carregando os barcos às costas!

 Nessa noite, quando as tropas de Jermak montaram um novo acampamento, servindo‑se de uma técnica tão precisa que o acampamento mais parecia uma pequena fortaleza. Ivan Matveiévitch Mouchkov e Alexandre Grigoriévitch Loupin encontraram‑se. Ambos se entregavam à remoção de rochedos.

 ‑ Ouve lá, velhote ‑ gaguejou Mouchkov, olhando de soslaio para Loupin ‑, não és tu o pai do nosso adjunto Boris Stepanovitch?

 ‑ Sim, sou ‑ reconheceu Loupin.

 ‑ Então, não me enganei! Vi‑os algumas vezes juntos e, um dia, disposto a espiar‑vos, rastejei até vós, roído de ciúmes e... que ouvi eu? Paizinho, dizia ela! Talvez não signifique nada, pois ela também me chama "meu velho", a mim, um jovem de trinta anos, mas tranquilizou‑me saber que és pai dela.

 ‑ E tu és o amante ‑ concluiu Loupin, muito desgostoso, como se pode imaginar.

 ‑ Se ao menos o fosse! ‑ suspirou Mouchkov, nostálgico e deixando cair um pedaço de rocha, o que o obrigou a fugir para o lado. ‑ Se quiseres, podemos conversar. A tua filha parece protegida por uma couraça! Sinto‑me desesperado! .

 Dirigiram‑se para uma colina de pedras, limpando a testa e arquejando ruidosamente.

 ‑ Devíamos entender‑nos, velhote ‑ retomou Mouchkov, passado um momento. ‑ Amo Marinouchka e, por isso, alguma coisa terá de acontecer antes de deixarmos os Urales para trás. Receio que lhe aconteça alguma coisa na Sibéria!

 Este diálogo travava‑se numa noite sinistra. O céu, carregado de nuvens, descia sobre os Urales. A paisagem mineral parecia mergulhada numa densa escuridão. Lá em baixo, junto do acampamento de cossacos, bruxuleavam grandes labaredas e os seus reflexos iluminavam os rochedos em volta, mas ali, onde se encontravam Mouchkov e Loupin, reinava o silêncio. Os dois homens, escondidos atrás de um rochedo, escapavam aos olhares indiscretos. Era um local propício para conversar e tomar decisões.

 Contudo, Marina andava à procura de Mouchkov. Formavam‑se grupos em volta das fogueiras e ela circulava entre os camaradas, interrogando em vão os carregadores de rochedos e os construtores que, por ordem de Jermak, erguiam uma muralha de pedras, uma praça forte, como fora previsto durante a reunião com os Stroganov. Estas torres delimitavam, à laia de albergues, o caminho para a Sibéria. Mais tarde, seriam os pontos fortes de novas colónias: simultaneamente centros de trocas comerciais, fortalezas defensivas e eventuais refúgios. Plano genial que iria permitir a passagem dos Urales e a expansão comercial para lá desta barreira.

 ‑ Amo Marinouchka ‑ repetiu Mouchkov. ‑ Mantém‑te atento, velhote, e retém‑na com todas as tuas forças! É preciso salvá‑la!

 ‑ Retê‑la? ‑ Loupin encolheu os ombros. ‑ Dizes isso como se não houvesse nada mais fácil. És capaz de o fazer, tu?

 ‑ Mas tu és o pai!

 ‑ E tu? Ela não te ama?

 Permaneceram em silêncio durante alguns momentos, após os quais Mouchkov retomou:

 ‑ Teríamos de a tornar inconsciente durante alguns instantes. Permanecerias junto dela e, quando Marina voltasse a si, já nós estaríamos longe...

 ‑ Marina perseguir‑vos‑á, como um lobo atrás de um coelho... É verdade, ela ama‑te, mas mais do que se ama habitualmente! Porquê? É isso que me parece estranho...

 ‑ Apesar de tudo, trata‑me como um cão tinhoso. ‑ Mouchkov encostou‑se a uma muralha de pedra, de olhar perdido no céu escuro. ‑ Velhote, que pensas de mim?

 ‑ Preciso de responder? ‑ replicou Loupin, prudente.

 ‑ Salvei a vida de Marina.

 ‑ Deveria apreciar‑te por essa razão, mas quantas mulheres mataste e violaste?

 ‑ Nenhuma, na verdade!

 ‑ Estás a mentir, Ivan Matveiévitch!

‑ Nunca matei uma mulher! A não ser que o amor possa matar uma mulher...?

‑ Aquilo a que os cossacos chamam amor, é um assassínio ‑ declarou Loupin tranquilamente.

 ‑ Juro‑te, velhote que quando encontrava uma mulher, a tratava sempre como a uma pomba! Quando tenho uma mulher nos braços, chego a ter vergonha da meiguice, da ternura que lhe testemunho! Mas nada se pode comparar ao que sinto por Marinouchka, só de olhar para ela... Temos de a afastar de combates mortíferos! É uma loucura levá‑la para a Sibéria!

A conversa prosseguiu e nenhum deles se apercebeu que, por detrás deles, na encosta coberta de cascalho, Marina, deitada no chão, os escutava. Não se mexeu quando os dois homens se levantaram e pegaram nos fardos, dirigindo‑se à muralha circular em construção. Só quando se encontraram fora da sua vista, como que engolidos pela escuridão, Marina se ergueu também, fazendo um grande desvio antes de alcançar o acampamento.

Juntando‑se aos outros, Marina sentou‑se ao lado de Jermak, que saboreava um pedaço de carne assada. Sobre as brasas, via‑se um bom naco de porco salgado.

‑ Parece‑me que Mouchkov tem inveja! ‑ declarou Marina bruscamente.

 Jermak sobressaltou‑se. Ninguém gosta de ouvir falar assim do seu melhor amigo.

 ‑ O que dizes? ‑ perguntou ele, enquanto o suco da carne assada lhe escorria pelas comissuras dos lábios.

‑ Desde que sou adjunto, vejo‑o a olhar para mim como se me quisesse apunhalar!

‑ Nunca conseguiu suportar a tua presença! ‑ afirmou Jermak, soltando uma gargalhada.

‑ É verdade?

 Marina fitava Jermak. Subitamente, o seu coração começara a bater e o sangue subira‑lhe às têmporas, enquanto a invadia uma infinita melancolia.

 ‑ Então ele não disse: devia ter lançado este diabo às chamas em Novo Orpotchkov?. E eu respondi: "O tipo tem tanta cabeça, como tu, o que te irrita!" E o meu amigo Mouchkov acrescentou: "Ah! Se fosse uma rapariga, matava‑a!" ‑ Jermak observava Marina, rindo novamente com os lábios sujos de gordura. ‑ Não, ele não tem inveja, Boris Stepanovitch, mas toma cuidado, pois és tão bonito que ele pode esquecer‑se de que és um homem! Na verdade, Mouchkov está cada vez mais estranho. Aguardemos até atingirmos o Toura ou o Tobol; aí, haveremos de encontrar uma jovem tártara e obrigá‑lo‑emos a violá‑la à nossa frente! E, assim, curar‑se‑á...

 ‑ Com certeza, Jermak Timofeiévitch!

 Marina, sonhadora, esforçava‑se por comer. A sua astúcia feminina, que consistia em depreciar Mouchkov aos olhos de Jermak, a fim de impedir que, juntamente com o pai Loupin, descobrisse uma maneira de a deixar para trás, parecia voltar‑se contra ela. Se Jermak tentasse procurar uma jovem tártara para Mouchkov, encontraria com certeza! Doía muito... e teria de assistir a tudo! Como escapar a esse espectáculo? Teria de o suportar!

 Pela primeira vez, confessou a si mesma que não permitiria que nenhuma outra mulher pertencesse a Mouchkov. Por que é que o amo? Porquê? Um brutamontes assim! Um femeeiro, um grosseirão, porquê?

 Perguntar porquê em questões de amor, é não querer obter resposta.

 

 Três dias depois de terem abandonado o rio Tchousovaia, embrenhando‑se no caminho ancestral que conduzia à Sibéria, caminho este que, segundo a lenda, só devia ser pisado por religiosos, visto que estes se encontraram protegidos contra os ataques do Diabo, avistaram o pequeno curso de água Charavlia. à sua volta estendia‑se um deserto pedregoso e os raros indígenas com que se cruzaram, inofensivos vogulos, foram saudados pelos cossacos segundo os processos habituais: pilhagem e destruição de habitações, disputa e partilha das poucas mulheres presentes. Em seguida, prosseguiam a terrível marcha forçada.

 Cada tripulação devia transportar a sua embarcação às costas, ao longo dos precipícios... gemendo, mas avançando de passo acertado, pois qualquer oscilação poderia ser perigosa. Assim, transportaram as grandes barcaças através dos Urales durante horas, dias, formando grupos suados e emudecidos. Jermak também participava no transporte, pois o seu exemplo encorajava os homens.

 Não gozava de nenhum privilégio. Até mesmo os religiosos se esfalfavam sob o peso dos barcos. Quem quisesse chegar à Sibéria, teria de se submeter ao transporte dos barcos. As orações realizavam‑se ao cair da noite ou durante as raras pausas para descansar.

 Apesar de tantas dificuldades, corria tudo bem. Não havia mortos, pois os indígenas encontrados pelo caminho não opunham nenhuma resistência. Assinalavam‑se apenas alguns ferimentos, na maior parte das vezes pés esmagados ou ensanguentados, que os cirurgiões tratavam, à noite, com o auxilio de diversos unguentos. Nestes casos, o velho Loupin fazia notar a sua presença.

 Conhecia bons remédios para os cavalos e todos os cossacos estavam convencidos de que o que era benéfico para um cavalo não poderia deixar de curar um homem.

 Loupin confeccionava, pois, mistelas complicadas, pomadas que cheiravam horrivelmente mal, mas que actuavam! Para este trabalho, utilizava toda a espécie de verduras, desde musgo até às bagas mais desconhecidas. O facto de não ter morrido envenenado nenhum dos pacientes testemunha bem a resistente natureza dos cossacos, esses brutamontes selvagens.

 

  Avançavam lentamente, escavando cavernas, erguendo novas fortificações e quando, por fim, atingiram o rio Tagil, todos pensaram que o prodígio concedido a Moisés se repetia através de Jermak e dos seus homens: à sua frente estendia‑se o país ardentemente desejado, objecto dos seus sonhos, terra desconhecida, ilimitada, recheada de riquezas!

 Mil homens transpuseram a barreira rochosa dos Urales. Nas margens do Tagil, caíram de joelhos e os popes passaram entre filas de guerreiros benzendo‑os e aspergindo‑os com água benta. Em seguida, reunidos em volta dos estandartes da Virgem e dos santos que flutuavam ao vento, cantaram, de olhar perdido na gigantesca paisagem que se lhes oferecia: desertos de rochedos, estepes, pântanos, florestas, por cima das quais pairava um céu incomensurável, como só se vê na Sibéria: um céu em que o olhar penetra nos olhos de Deus. Mouchkov ajoelhou‑se ao lado de Marina, quando o ofício divino teve início, nas margens do Tagil. Ela empunhava firmemente a haste de uma bandeira e o vento dançava no seu cabelo louro, que crescera durante a peregrinação e formava pequenos caracóis. à noite, teria de os cortar, a fim de manter a aparência de um adolescente chamado Boris Stepanovitch.

 ‑ Então, meu urso velho? ‑ perguntou ela a meia voz. Encontravam‑se lado a lado, de cabeça baixa. ‑ Não querias reservar‑me este dia?

 ‑ Marinouchka ‑ balbuciou Mouchkov, tacteando à procura da sua mão esquerda.

 ‑ Baixa as patas, bruto! Se Jermak te visse...

 ‑ O exército de Koutchoum vai atacar‑nos algures, lá em baixo...

 ‑ Tens medo, meu velho?

 ‑ Pensa bem no que se conta: Mangaseja é habitada por criaturas que têm a boca no meio do crânio. Devoram‑se uns aos outros e, por essa razão, são chamados Samoiedos, o que significa que se "comem a si mesmos"! Marinouchka, não quero ver‑te devorada por tais monstros!

 ‑ Louvado seja Jesus Cristo! ‑ exclamava o pope dos cossacos, Oleg Vassiliévitch Koulakov. ‑ Em seu nome, conduziremos os pagãos deste país ao caminho da fé, ou aniquilá‑los‑emos! Oremos...

 ‑ Os Samoiedos devoram os seres humanos crus ‑ murmurava Mouchkov. ‑ Marinouchka, volta para trás! Segue o teu pai!

 ‑ Se se trata de ser devorado, estou descansada quanto à tua sorte ‑ respondeu ela com meiguice. ‑ Não te tocarão, cheiras demasiado mal!

 

 Permaneceram três dias à beira do Tagil, consertando os barcos que se estragaram durante a viagem. Entre tanto, construíram um campo entrincheirado e uma casa de pedra; com duzentos homens a trabalhar, não sobrou tempo. Armazenaram uma parte da carga e das provisões e deixaram por lá um pope e seis caçadores, além de três cossacos doentes, cujo estado era tão deplorável que teria sido criminoso obrigá‑los a prosseguir a expedição.

 Assim, com um pope e alguns soldados, nasceu a primeira colónia.

 ‑ A partir de agora, manter‑nos‑emos sempre junto aos rios ‑ declarou Jermak às centúrias e respectivos comandantes. No seu barco, reuniu um verdadeiro conselho de guerra; sobre os bancos, desdobrara os mapas geográficos dos Stroganov. Os cossacos desconfiavam de que não teriam muitas mais oportunidades de discutir o assunto. Pela frente encontrariam não só riqueza e glória mas também as tropas do czar siberiano Koutchoum, que ousara escarnecer do czar Ivan, o Terrível.

 Koutchoum julgava‑se tão poderoso, tão fora do alcance dos outros, defendido como se encontrava por exércitos compreendendo milhares de cavaleiros! Perante isto, que importância poderia ter um milhar de soldados cossacos.

 ‑ Quem quiser pode voltar para trás! ‑ desafiou‑os Jermak, com dureza. ‑ Não obrigo ninguém!

 Os homens de Jermak calavam‑se. Voltar, pensavam eles... Alguns ousaram fazê‑lo ao escalarem os Urales.

 Afastaram‑se à sorrelfa, em grupos de dois ou três, vinte homens, no total. Jermak ordenou que os trouxessem de volta a fim de os lançar vivos ao primeiro rio que aparecesse ‑ foi o Charavlia. ‑ Um cossaco luta contra a morte enfrentando o perigo, mas não pode ter medo de um país desconhecido!

 Os barcos regressaram à água mas, desta vez, o momento não foi de festa como quando partiram do Kama. Os víveres começavam a escassear. O que os Stroganov lhes destinara teria sido suficiente se tivessem podido transportar tudo, mas muitos pacotes tinham sido abandonados pelo caminho e, agora, pouco havia a esperar das pobres aldeias indígenas por que passavam: encontravam‑se abandonadas, os celeiros vazios, o gado disperso e escondido nos campos.

 ‑ Precisamos de descer o rio tão rapidamente quanto possível até ao Tobol! ‑ declarou o pope cossaco. ‑ Lá em baixo, encontraremos aldeias abastadas pertencentes a Koutchoum... O Senhor castiga os pagãos! Precisamos simplesmente de uma boa pilhagem, de um espólio carregado de riquezas!

 A descida do rio Tagil processou‑se tranquilamente. De vez em quando, os cossacos avistavam nas margens alguns tártaros a cavalo que seguiam os barcos durante algum tempo, olhando boquiabertos para o seu elevado número, desaparecendo em seguida na estepe. Ao vê‑los, os cossacos suspiravam profundamente, remando com firmeza e invejando com o olhar os velozes cavaleiros de raça amarela.

 ‑ Cavalos! Santo Estefánio, eles possuem cavalos! Têm o direito de galopar até ao infinito! Acostemos, Jermak, para os podermos desarmar! Um Cossaco a remar é como o Sol sem luz!

 Um belo dia ‑ tinham acostado nas margens do Tagil, mesmo junto à foz do Toura ‑, Jermak proferiu um discurso.

 ‑ Não chorem, irmãos! ‑ exclamou ele, com gravidade. ‑ Também nós voltaremos a montar a cavalo! Quando atingirmos o rio Tobol, quando conquistarmos Sibir, a capital de Koutchoum, teremos os cavalos mais rápidos e mais belos do mundo! De que nos serviriam cem cavalos para mil homens? A bordo dos nossos belos barcos, penetraremos no coração do reino Koutchoum e ninguém nos poderá deter! É uma artimanha de guerra à qual devemos a vida! Vamos, cossacos, deixem‑se de lamentações...

 ‑ Amem! ‑ rugiu Oleg Vassiliévitch Koulakov, o pope.

 Em seguida, ainda entoaram um piedoso cântico, sonhando com a pilhagem da Sibéria e da cidade de ouro do czar Koutchoum.

 

 No início de Outubro, penetraram nas águas do Toura, grande rio que desagua no Tobol. Entretanto, em todo o reino do czar siberiano, cavaleiros velozes aliciavam os homens para os combates. As cidades e aldeias foram fortificadas com triplas muralhas de pedra solta, interiormente reforçadas por estacas aguçadas e mortíferas.

 Dez mil cavaleiros às ordens do príncipe herdeiro Mametkoul estavam preparados para deter os cossacos de Jermak no Tobol. O exército principal era comandado pelo próprio Koutchoum, que o concentrava no Irtych, a fim de proteger Sibir, a capital. O comandante da região do Toura, Iepoutcha, recebeu ordens de impedir o avanço das embarcações.

 E, subitamente, encontraram‑se frente a frente...

 A margem do Toura regurgitava de guerreiros, assemelhando‑se a um formigueiro. Sobre os cossacos caiu uma chuva de flechas, enquanto gritos estridentes acompanhavam os silvos que atravessavam os ares.

 ‑ O comandante é um idiota ‑ declarou Jermak, gracejando.

 Os navios vogavam ao centro do largo rio e as flechas só raramente atingiam o alvo; mesmo neste caso o seu impacto era tão fraco que os cossacos as agarravam com as mãos, rindo.

 ‑ Quero os atiradores de elite a postos! ‑ gritou Jermak.

 A ordem foi transmitida de barco em barco e, onde quer que se encontrassem mercenários alemães ou livónios, de arma de fogo em punho, tudo se animava; os atiradores chegavam‑se ao rebordo do casco, agitavam a pólvora nas caçoletas e puxavam o cão da espingarda.

 ‑ Fogo! ‑ comandou Jermak.

 Três salvas rasgaram o silêncio desse belo e claro dia de Outono. àquela distância, poucas balas atingiram o alvo, mas o efeito foi surpreendente. Os homens que se amontoavam numa das margens do Toura caíram para trás como que soprados por um furacão. Em seguida, rebolaram sobre si mesmos, enterraram o rosto na erva da estepe e não voltaram a mexer‑se.

 Não compreendiam o que se passava. O céu estava límpido, o sol brilhava e, mesmo assim, eram atingidos por raios e trovões. Trovões como nunca se ouviram e pedras de granizo caídas do céu sereno atingiram com tanta força alguns homens que estes sangravam, gritavam, torciam‑se na erva e morriam.

 Até mesmo Jermak se surpreendeu com o efeito produzido. Até então, ignorava que os homens de Koutchoum desconheciam a pólvora e o chumbo. Tal como no passado, lutavam com flechas, lanças, sabres de lâminas curvas.

 ‑ Já conquistámos a Sibéria, irmãos ‑ declarou Jermak perante os comandantes e as tropas. Entretanto, tinham desembarcado para tomar posição numa das margens do Toura. Ao longe, avistava‑se um aglomerado importante. Era Tchinga Toura, actualmente Tjoumen. Os guerreiros tártaros aguardavam, refugiados nesta cidade, à frente os arqueiros, atrás a cavalaria.

 Os artilheiros alemães empurravam os três pequenos canhões, colocando‑os em posição. "Antes que se habituem às explosões de pólvora, penetraremos em Sibir! O país é nosso!"

 Mouchkov, por seu lado, partira em busca de Loupin, que se encontrava no último barco, junto dos feridos e doentes. Quanto a Marina, transmitia as ordens de combate tal como Jermak as concebia.

 ‑ Cá estamos, velhote! ‑ declarou Mouchkov. ‑ Chegou o momento de impedires Marina de correr pelos campos! Os tártaros são mestres no tiro com arco, conheço‑os porque já assisti a mais do que uma invasão. Unimo‑nos para imobilizar Marina?

 ‑ Jermak ordenaria a sua captura

 ‑ Então, teremos de lhe torcer um pé para que não possa caminhar!

 ‑ Bárbaro! ‑ exclamou Loupin. ‑ Pretendes, então, estropiar a minha filha?

 ‑ E queres que fique viúvo antes de ser seu marido? Além disso, estou farto. Alexandre Grigoriévitch ‑ prosseguiu Mouchkov. ‑ Preciso de disponibilidade para me entregar à pilhagem, à obtenção de um espólio! Pensa bem no que havemos de fazer a Marina, a fim de que não possa opor‑se aos meus projectos, ou, de contrário, trago‑te a tua filha atada como um embrulho!

 Perto de Jermak, sentado no casco de um barco voltado para baixo, à espera de que os seus homens formassem em filas, encontravam‑se três tártaros deitados na erva. Tinham o vestuário rasgado, e marcas de sangue na pele. Tinham sido descobertos por acaso, numa pequena cavidade da riba, da qual foram retirados como texugos. Interrogados por um intérprete respondiam em voz hesitante:

 ‑ O chefe dos tártaros, o idiota que se encontra à nossa frente, chama‑se Iepoutcha ‑ anunciou Jermak quando Mouchkov se sentou junto dele.

 Marina regressava do cumprimento da sua missão; vinha corada e suada por ter corrido. Os artilheiros alemães tinham armazenado cuidadosamente as balas, enchendo as bocas de fogo, preparando as escorvas. Perto dos canhões ardiam pequenas fogueiras nas quais se acenderiam as mechas.

 ‑ Devemos ter cerca de três mil homens à nossa frente.

 ‑ Desfazemo‑los num ápice, Jermak! ‑ vangloriou‑se Mouchkov. ‑ Ainda não conhecem a nossa artilharia!

 ‑ Vai ser um combate decisivo! ‑ Jermak protegeu os olhos com a mão e olhou na direcção dos tártaros.

 ‑ Decidi libertar todos os prisioneiros que fizermos, a fim de que propaguem por todo o país que somos invencíveis!

‑ Bruscamente, estendeu o braço, como se estivesse a enviar uma lança. ‑ De resto, hibernaremos nesta cidade! Dentro de quinze dias nevará e o Toura gelará. Boris Stepanovitch!

 ‑ Jermak!

 Marina perfilou‑se à sua frente.

 ‑ Agita a bandeira, vamos pôr‑nos a caminho!

 Mouchkov sentiu um arrepio gelado percorrer‑lhe o corpo.

 ‑ Deixa‑me levar a bandeira! ‑ implorou. ‑ Jermak Timofeiévitch, sou o teu ajudante!

 Empurrou Marina para o lado, que estremeceu e caiu, batendo com a testa no casco do barco voltado para baixo. A jovem ficou um tanto atordoada, deitada na erva, de olhos postos em Mouchkov. Subitamente, surgiu Loupin, ajoelhou‑se junto da filha, fingiu erguê‑la mas, em vez disso, manteve‑a firmemente apoiada no chão. Era a única maneira de a deter sem que Jermak suspeitasse.

 ‑ Ao combate! ‑ gritou Mouchkov, erguendo a bandeira contendo a imagem da Virgem. Em seguida, correu para a frente.

Numa ampla frente, desdobravam‑se agora as bandeiras das centúrias, enquanto os popes cantavam a plenos pulmões. Depois soaram os canhões e os atiradores fizeram ouvir as primeiras salvas. Através da bruma de fumo provocada pela pólvora, os cossacos puseram‑se a caminho. Visão impressionante que gelou o coração dos tártaros. Antes de poderem atirar, centenas de arqueiros jaziam na erva.

 Ajoelhado no meio das tropas, Iepoutcha orava:

 ‑ Alá! Estende a tua mão sobre as nossas cabeças. Maomé, vencedor de todas as batalhas, vem em nosso auxílio...

 Contudo, mulheres e crianças fugiam de Tchinga Toura. Em carroças ou trenós em forma de cuba, fáceis de arrastar pela erva da estepe, transportavam os seus bens para locais mais seguros. Desceram o Tobol, no qual Mametkoul aguardava, rodeado por dez mil cavaleiros. Mesmo que os estrangeiros tomassem Tchinga Toura, nunca atingiriam Sibir! Koutchoum era invencível!

 Não sabiam que Jermak falava nestes termos da sua própria invencibilidade.

 

 Durante o ataque, ninguém se preocupou com Marina nem com o velho Loupin. Passados alguns minutos, encontravam‑se sozinhos, junto do barco voltado para baixo. As tropas de reserva aguardavam ao longo do rio, os padres, reunidos, observavam os combatentes surpreendendo‑se por o seu irmão, o pope cossaco, que trocara o chapéu negro de religioso por um boné de cavaleiro, empunhar uma espada curva em vez da cruz, carregando sobre o inimigo nas primeiras filas das tropas em movimento. Koulakov gritava bem alto ao lado de Mouchkov, de olhar fixo na cúpula da pequena mesquita e no modesto minarete que apontava para o céu azul.

 Mouchkov conhecia demasiado bem o pope para não compreender o significado deste olhar.

 ‑ O que é que há lá adiante? ‑ perguntou ele, ofegando em plena corrida. ‑ Serão candelabros de ouro e prata?

‑ E tapetes, e peças de seda bordadas a pedras preciosas e vasos com incrustações de esmalte... ‑ murmurou o pope. Não muito longe, a segunda salva de tiros ressoou pela atmosfera, acompanhada do estrondo provocado pelos canhões.

 ‑ Pensa igualmente em mim, padre! gritou Mouchkov, entusiasmado.

 ‑ Fica a meu lado, meu querido filho! ‑ Oleg Koulakov esforçava‑se por avançar. ‑ Os crentes não têm fome nem sede!

 Em seguida, abateu‑se sobre ele uma chuva de flechas.

 Os feridos caíram de joelhos e os primeiros mortos ficaram para trás, enrolados na erva da estepe.

 O combate durou apenas duas horas; no fim, houve escaramuças corpo a corpo e, mais uma vez, os cossacos revelaram‑se superiores aos tártaros. As tropas de Jermak invadiam como uma torrente a velha cidade, assaltando casas e começando por se entregar à ocupação que o cossaco considera a sua razão de viver: a pilhagem.

 Entretanto, Loupin e Marina continuavam sentados no casco do barco. Os prisioneiros estavam a ser concentrados na margem do rio e as tropas de reserva abatiam os últimos tártaros que corriam, perdidos, em todos os sentidos. Como habitualmente, os prisioneiros eram amarrados aos pares, costas contra costas, e depois lançados ao chão.

 ‑ Se Ivan Matveiévitch for morto, nunca mais me verás, papá ‑ declarou Marina num tom duro.

 Loupin atara‑lhe os pés por meio de um trapo e, quem olhasse de relance, acreditaria que o adjunto Boris Stepanovitch se ferira no pé. De resto, o velho Loupin mantinha‑se junto dele, prova de que necessitava de cuidados médicos.

 ‑ Ivan voltará, Marinouchka, tem calma! ‑ respondia Loupin, que observava, de testa franzida, as primeiras colunas de fumo que se erguiam sobre a cidade.

 ‑ O Inverno está a chegar e, em vez de procurarem abrigos seguros, aquelas cabeças vazias incendeiam as casas em que poderiam defender‑se tranquilamente do gelo. Se assim continuarem, terão de se proteger debaixo dos cascos dos barcos, a fim de terem, pelo menos, um tecto por cima da cabeça. Mas, os cossacos são incorrigíveis. A destruição entusiasma‑os e depois surpreendem‑se porque, apesar da vitória, se reconhecem num estado lastimável!

 ‑ Deus do céu, como pude eu merecer tal genro?

 ‑ Prendeste‑me ‑ retomou Marina, irritada. ‑ Que pai és tu, capaz de manter uma filha prostrada no chão à força?

 ‑ Foi uma emergência, minha filha, mas assim estás viva! Quem sabe o que te teria acontecido debaixo do ataque das flechas inimigas!

 Loupin passou a mão pela cabeça loura de cabelo curto, que Mouchkov aparara com a ajuda de uma navalha. Conservara, em segredo, um caracol louro que trazia numa bolsa de couro pendurada ao pescoço. Não se tratava de um gesto supersticioso mas, no fundo, esperara que esse pedacinho de cabelo o protegesse de todos os perigos.

 ‑ Um pai tem o direito de salvar a vida da filha! ‑ justificou‑se Loupin, de lágrimas nos olhos.

 ‑ Sabes perfeitamente que é inútil protegeres‑me e que eu só farei o que me apetecer! ‑ replicou Marina, erguendo‑se para ver melhor os destacamentos em retirada, arrastando atrás de si mortos e feridos. Um grupo compacto de trezentos tártaros foi empurrado para o rio; esgotados pelo combate, renunciavam à vida. Esperavam ser decapitados antes do pôr‑do‑sol, segundo costumes mongóis.

 ‑ Ajuda‑me a levantar‑me ‑ pediu Marina.

 ‑ Minha filhinha ‑ suplicou Loupin ‑, estás ferida...

 ‑ Ajuda‑me! ‑ gritou ela, determinada. ‑ Ou então anunciarei bem alto: este cão do Loupin aprisionou‑me!

 Loupin libertou finalmente a filha, que se ergueu. Lutava ainda contra o seu coração de pai, hesitando entre o castigo e o perdão.

 ‑ Onde está Ivan Matveiévitch? ‑ perguntou Marina aos homens que se aproximavam. ‑ Viste‑o? Está vivo? Sabem onde está?

 Os feridos encolhiam os ombros; apenas um deles, um cossaco, cujo ombro fora atravessado por uma flecha que não conseguira retirar porque a extremidade lhe causaria certamente um grande ferimento e só um cirurgião se poderia encarregar de o fazer, parou e apontou para a cidade como resposta à pergunta do jovem soldado adjunto:

 ‑ Mouchkov e o pope forçaram as portas da mesquita. Vi‑os lançar pelos ares, como uma pedra, um moullah que se dirigia para eles!

 Olhou tristemente para Loupin, mostrou‑lhe a flecha cravada no ombro e aproximou‑se dele, titubeando:

 ‑ Serias capaz de ma retirar, velhote? Privando‑te da tua consciência ou não?

 ‑ Julgas‑me uma mulher?

 ‑ Senta‑te.

 Loupin pegou no punhal que trazia à cinta, afiou‑o numa pedra e experimentou a lâmina, passando‑a pela ponta dos dedos. Em seguida, introduziu um pedaço de madeira na boca do cossaco e disse‑lhe:

 ‑ Morde, e aguenta‑te!

 Despiu a camisa ao cossaco, tacteou a flecha e verificou que não penetrara muito profundamente e que não seria necessário praticar uma incisão muito grande.

 Loupin esquecera‑se da filha por instantes e, ao voltar‑se, viu que ela se afastava, correndo, em direcção à cidade em chamas!

 ‑ Boris Stepanovitch! ‑ gritou ele, desesperado. ‑ O teu pé! Estás ferido!

 ‑ Jermak procura‑o! ‑ observou o cossaco que tinha a flecha enterrada no ombro. ‑ É a segunda vez que o seu adjunto não se encontra a seu lado no decorrer de um combate!

 Loupin não respondeu. Tinha consciência do perigo que Marina corria... Quantos dias e semanas passariam ainda a combater! Não podia reter constantemente o adjunto de Jermak!

 Em seguida, Loupin retalhou a carne do soldado e conseguiu extrair a ponta da flecha, enquanto o cossaco mordia o pedaço de madeira, rangendo os dentes.

 

 Ivan Matveiévitch encontrava‑se satisfeito. Na mesquita, os tesouros acumulavam‑se à discrição. Lustres dourados, óleos perfumados contidos em ânforas incrustadas de pedras preciosas, cofres de prata trabalhada, tapetes de seda; bastava unir os quatro cantos de um tapete, maneira muito prática de transportar tesouros.

 Mouchkov optou por um lustre de ouro, um cofre de prata lavrada, um punhal cujo cabo reluzia de pedras preciosas. Infelizmente, tal objecto originou um diferendo com o pope cossaco Koulakov, obrigando‑o a aplicar um par de pontapés no ventre do piedoso sacerdote.

 ‑ Muito bem! ‑ concordou Oleg Vassiliévitch, depois de ter retomado o fôlego. ‑ Guarda o punhal!

 Mas prevejo que em breve o oferecerás como homenagem à Santa Igreja!

 ‑ Utilizá‑lo‑ei para te esquartejar o traseiro! ‑ declarou Mouchkov alegremente, antes de sair, correndo, da mesquita.

 ‑ Nunca se deve dar pontapés a um pope! Não está certo. Um homem consagrado tem direito a melhor tratamento e, além disso, esses métodos profanos desagradam a Deus.

 Mouchkov concordou, pois considerou que o Céu o punira, ao enviar‑lhe Marina antes de poder ocultar o seu roubo. Com efeito, esbarraram um contra o outro na esquina de uma casa. Precisaram de gritar para se explicarem, tal era o ruído provocado pela pilhagem de todas as casas que se fazia ouvir o estrondo da destruição.

 ‑ Que levas aí? ‑ perguntou Marina, apontando para o grande fardo enrolado num tapete, que Mouchkov carregava aos ombros.

 O coração de Marina transbordava de secreta alegria por o ver vivo, embora os seus olhos azuis lançassem chispas.

 ‑ Tenho de levar isto! ‑ respondeu Mouchkov.

 ‑ Desenrola o tapete, Ivan Matveiévitch!

 ‑ Marinouchka, a minha única intenção é subtraí‑lo à destruição!

 ‑ É a guerra! ‑ rugiu Mouchkov, desesperado, agarrando‑se bem às pontas do tapete.

 ‑ Volta para a mesquita! ‑ ordenou friamente Marina.

 ‑ Que dizes?

 ‑ Volta para a mesquita!

 ‑ Não estive na mesquita, minha pomba, minha rosa, ouve o que te digo...

 ‑ Está tudo acabado entre nós, Ivan Matveiévitch! ‑ interrompeu‑o Marina. ‑ Vou imediatamente à procura de Jermak e desaperto a blusa à sua frente para lhe mostrar que sou uma rapariga! ‑ Afastou‑se quando ele pretendeu retê‑la e passou por ele, afastando‑se. ‑ Fica onde estás! ‑ ordenou‑lhe. ‑ Não quero nada contigo!

 ‑ Vou à mesquita ‑ gritou Mouchkov, extenuado. ‑ Olha... vou a caminho! Marinouchka, vem cá! Meu anjo...

 Na mesquita, encontraram o pope cossaco que, entretanto, libertara os colegas muçulmanos e os esbofeteava, alinhados à sua frente, roído de prazer, a fim de lhes arrancar a revelação de outros esconderijos dos tesouros religiosos. Ao mesmo tempo, vociferava com a sua voz potente de baixo, talvez ainda mais eficaz do que a sua mão pesada.

 ‑ Meu querido filho... ‑ disse ele a Mouchkov, numa voz muito suave, enquanto este desdobrava o tapete à sua frente, descobrindo os tesouros escondidos.

 ‑ Um verdadeiro cristão oferece à igreja o que tem de melhor!

 Abraçou Mouchkov para lhe agradecer e, simultaneamente, mordeu‑lhe o lóbulo da orelha. Ivan Matveiévitch rangeu os dentes de raiva e empurrou Koulakov.

 Em seguida, o pope apercebeu‑se da presença de Marina e abençoou‑a com o sinal da cruz:

 ‑ Boris Stepanovitch ‑ declarou num tom inspirado ‑, tens um grande futuro à tua frente se continuares a pensar em mim como até agora!

 à noite, todos os cossacos se mostravam satisfeitos. O espólio era rico, a cidade de Tchinga Toura representava um bom refúgio para a invernia. Nos arredores segundo informações extorquidas aos prisioneiros havia uma série de entrepostos de víveres e peles. Mametkoul e os seus dez mil cavaleiros não atacariam, com certeza, antes da Primavera. Poderiam, portanto, repousar do cansaço sofrido ao atravessar os Urales e, quando a neve derretesse, atacariam o czar siberiano Koutchoum com força renovadas, a fim de o aniquilar para se apoderarem da cidade do ouro, Sibir.

 Em todo o caso, o caminho de Sibir, de Mangaseja, continuava livre...

 ‑ Tenho feito tudo o que queres ‑ anunciou, nessa noite, Mouchkov a Marina.

 Juntamente com Jermak, ocupavam a casa do príncipe Iepoutcha, que fugira, e encontravam‑se sentados lado a lado num divã coberto de sedas chinesas. Do quarto ao lado chegavam risos abafados, sussurros, grandes suspiros e guinchos de ratos. Jermak distraía‑se com uma jovem prisioneira tártara. Mouchkov invejava‑o profundamente.

 ‑ Quando me concederás, enfim, o que desejo? ‑ perguntou ele numa voz embargada.

 ‑ E o que desejas tu, urso velho?

 ‑ Ouve bem o que se passa ali ao lado ‑ suspirou Mouchkov.

 ‑ Ouço piar um passarinho ‑ observou Marina, alegremente. ‑ E então?

 ‑ Porque não há‑de ser também um passarinho? ‑ balbuciou ele. ‑ Um passarinho que fizesse o ninho nos meus braços...

 Marina inclinou‑se para a frente, pegou subitamente no rosto do companheiro com as duas mãos, e deu‑lhe um beijo na boca. Mouchkov, deleitado, fechou os olhos, não se mexeu e, quando Marina o abraçou e esmagou os seios contra o seu peito, Ivan, no auge da felicidade, quase se esqueceu de respirar.

 Um minuto de indescritível prazer pode contrabalançar um ano de rudes provações. Para Mouchkov, o primeiro verdadeiro beijo de Marina valia bem cem bênçãos do pope. Mas, quando julgou que se quebrara o gelo que envolvia o coração da jovem e arriscou meter a mão por dentro da blusa... ela repeliu‑o, meneando a cabeça, precisamente no momento em que lhe pegava nos seios.

 ‑ Isso não, Ivanouchka ‑ advertiu ela, em voz baixa, com ternura e firmeza.

 Do quarto ao lado, continuavam a chegar os risinhos da jovem tártara, acompanhada da voz ofegante de Jermak e de outros sons confusos, que despertavam nos auditores as mais engenhosas e fantasistas visões.

 ‑ Martirizas‑me até à morte! ‑ gemia Mouchkov.

‑ Todos eles celebram a vitória sentados em montanhas de objectos saqueados. E eu, que tenho eu? O pope, aquele malandro, apoderou‑se de tudo!

 ‑ Também queres ser um malandro, Ivan Matveiévitch?

 Mouchkov calava‑se. Marina enfiou a camisa para dentro das calças cossacas e enterrou o boné vermelho na cabeça. Ao lado, a jovem tártara continuava a pipilar, enquanto Jermak rugia sem parar, como se cavalgasse na estepe atrás de uma raposa. Mouchkov revirava os olhos de forma impressionante, torcia as mãos e olhava fixamente para o tecto de argila seca. "Quem conseguiria suportar semelhante destino?", pensava ele. "Se não a amasse, arrancava‑lhe o uniforme e seria fácil vencê‑la, mas seria também o fim de todos os meus sonhos para o futuro."

 Pelas ruas de Tchinga Toura, passeavam os cossacos, hilariantes, cantarolando. A retaguarda acabara de chegar, esse bando composto de aventureiros, monges, empregados dos Stroganov que, durante os combates, se mantinha afastado mas que, passado o perigo, retomava a actividade. A passagem dos Urales atrasara muito a retaguarda, obrigada a transportar as embarcações através de carreiros perigosos, ao longo de precipícios, descendo ao fundo dos vales, passando por cima de impetuosas correntes. Construíra igualmente pequenas fortalezas, utilizando pedaços de rochedo, a fim de assegurarem a retirada, se esta viesse a ter lugar. Em particular para os sacerdotes, que não estavam habituados senão a elevar o turíbulo ou a cruz, por ocasião das bênçãos, esta obrigação de viver em estreita colaboração com a montanha representava uma provação quase insuperável.

 Sendo assim, quem os criticará por terem sido os primeiros, uma vez conquistada a cidade, a convocar toda a gente para uma cerimónia de acção de graças? Mais uma vez, desfraldaram‑se os piedosos estandartes, reuniram‑se os cossacos com as melhores vozes para entoarem cânticos. Na mesquita ocupada por Oleg Vassiliévitch Koulakov, os monges declararam que não acalentavam pretensões quanto aos preciosos bens contidos na casa de Alá. E foi melhor assim, pois o fogoso padre Oleg não teria hesitado em fazer justiça por suas mãos.

 ‑ É daqui que Cristo partirá à descoberta da Sibéria... ‑ proclamou o enviado do bispo de Ouspensk.‑ Deus tenha piedade dos pagãos e os conduza para o seio da verdadeira fé!

 Os cossacos de Jermak compreendiam de maneira diferente esta sagrada missão. Encarregavam‑se do destino dos móveis e objectos que tinham pertencido aos tártaros e aos vogulos. Percorriam os arredores, arrastavam para fora dos esconderijos pacotes de peles e de víveres e, quando deparavam com mulheres, tomavam à letra a seguinte expressão do bispo: "trazer nos braços as almas perdidas" e ofereciam, a estas delicadas fêmeas de olhos em forma de amêndoa, uma nova concepção da mais fogosa virilidade. Esta revelação era transmitida de boca em boca até à capital, Sibir, e mesmo entre os próximos de Koutchoum.

 ‑ Aniquilá‑los‑emos! ‑ afirmava o czar siberiano.

‑ Deixemos passar o Inverno e serão expulsos como lebres das margens do Tobol!

 O Inverno, na cidade conquistada, custava a passar. Os nevões sucediam‑se e, depois, o gelo petrificava tudo. O Toura gelou, tornando‑se necessário abrir brechas, com a ajuda de um machado, na crosta de gelo para alcançar os bancos de peixes. Mas estes eram de tal modo densos que bastava mergulhar uma rede para retirar peixes às centenas, como se estivessem dentro de um caldeirão. Os caçadores desceram o rio até à confluência com o Tobol; neste ponto, esbarraram com as tropas de Mametkoul, encarregados de impedir o avanço em direcção ao país de Mangaseja. Verificaram‑se pequenas escaramuças e nem do lado dos Urales reinou a calma. Nesta região, grupos de ostíacos e de vogulos assaltavam todos aqueles que se aventuravam despreocupadamente pelos contrafortes montanhosos.

 Jermak ordenou que as caçadas se processassem sob a protecção de um destacamento de cossacos. Os prisioneiros não seriam decapitados, circulariam livremente, a fim de propagarem certas notícias.

 ‑ Não os odiamos! ‑ declarara Jermak depois de os interrogar. Os prisioneiros, resignados perante a perspectiva de morrerem, esperavam apenas pelo carrasco.

‑ Consideramo‑los irmãos infelizes! Mas queremos derrotar Koutchoum, esse tirano pagão que vive em quartos dourados, enquanto o povo vive como os ratos!

 Como súbitos do nosso czar Ivan, serão camponeses livres! Adoptem a fé cristã e partirão em paz...

 Raramente se terá ouvido mentira mais descarada. Os súbitos de Koutchoum estavam vivos, é certo, e aceitaram o baptismo, de pé, em longas filas, de boca aberta perante o pope, e de olhos postos nas deslumbrantes vestes sacerdotais, enquanto se ouvia o coro dos monges.

 Desamparados, observavam os crucifixos ostentando um homem nu que parecia pregado em duas vigas cruzadas.

 Os intérpretes falavam‑lhes de Jesus, que se deixara matar por amor aos homens, o que eles consideravam perfeitamente estúpido porque, antes de nos deixarmos matar, devemos despedaçar tudo à nossa volta... Contudo, esforçavam‑se por admirar e acreditar neste acontecimento, como convinha, e recebiam o baptismo e a bênção do pope.

 Mas por este preço tinham a vida salva e, portanto, mostraram aos cossacos onde caçar sem restrições e construíram‑lhes trenós muito leves, de fibra entrançada, que deslocavam pela neve e pelo gelo tão rapidamente como uma raposa preta.

 A cidade de Tchinga Toura, semidestruída, foi refeita.

 Os cossacos preferiam esperar pela Primavera bem agasalhados e, quando as tempestades de neve sopraram de leste, uivando, quando veio da taiga e da tundra um frio cruel que penetrava até aos ossos, quando a região se tornou impraticável e até mesmo os ostíacos deixaram de caçar, refugiando‑se nas cabanas como marmotas... começou uma dura estação para os homens de Jermak.

 Alexandre Grigoriévitch Loupin conseguiu colocar‑se ao serviço do pope cossaco. Era o único meio de permanecer perto de Marina, pois a grande residência do príncipe Iepoutcha encontrava‑se junto da mesquita e Jermak, Mouchkov e o pope formavam um grupo, uma trilogia de camaradas ou, para sermos sérios, o quartel‑general dos cossacos! Discutiam a três a melhor maneira de resistir ao cruel Inverno e, como o adjunto Boris se encontrava sempre presente, em todas as discussões, Loupin tinha muitas ocasiões de contemplar a filha e, por vezes de lhe falar.

 Loupin assobiava a canção do melro que, pousado no ramo de uma cerejeira, consola com o seu canto uma jovem apaixonada, quando se aproximou do pope. Este, ao ouvi‑lo, comoveu‑se e as lágrimas vieram‑lhe aos olhos, pois a desgraça do país habitava o seu coração. O Don! A igreja de Baglodornié pintada de cores vivas, as alegres mulheres que vinham confessar‑se na salinha do fundo... como tudo isto ia longe! Voltaria a viver semelhante felicidade?

 O melro pousado na cerejeira...

 ‑ Que queres, Alexandre Grigoriévitch? ‑ perguntou o pope, num tom dorido. ‑ Desejas uma bênção especial?

 ‑ Gostaria de ser sacristão, respeitável padre ‑ respondeu Loupin, baixando humildemente a cabeça ‑, sim, gostava de organizar o coro e ser vosso servidor. Sei tanto sobre a arte de cantar como sobre a de curar cavalos: o Inverno anuncia‑se longo.

 ‑ És crente, não é verdade, Loupin? ‑ perguntou prudentemente Oleg Vassiliévitch.

 Loupin apercebeu‑se da inquietação que a voz do pope traía e sorriu quase amigavelmente:

 ‑ Importa distinguir a oração da fraqueza humana, respeitável padre...

 ‑ Falas muito sensatamente, Alexandre Grigoriévitch... ‑ E o pope gratificou Loupin com uma palmada no ombro tão vigorosa que ele caiu de joelhos e dificilmente retomou o fôlego. ‑ Na verdade, um homem avisado é sempre útil à igreja.

 Assim, Loupin tornou‑se acólito do pope cossaco, o que não era uma sinecura, como se pode imaginar, visto que, se um cossaco já não tem por hábito gastar as solas nos locais sagrados, ainda é menos frequente vê‑lo arear cibórios e cruzes douradas e zelar pelo bom estado das vestes sacerdotais. No entanto, a sua principal ocupação consistia em recrutar para os momentos de lazer do pope uma espécie particular de mulheres: esbeltas, bem torneadas, de pele branca, de cintura fina e seios fartos, cheirando a essência de rosas e sem vestígios de odor a ranço, como acontecia a tantas camponesas vogulos, enfim, as requintadas bonecas tártaras.

 Quanto aos cossacos, os odores não os preocupavam porque, diziam, não se ama com o nariz. Mas o pope Oleg era um aristocrata e a sua necessidade de beleza feminina revelava‑se imenso. Talvez esta gula resultasse do facto de as suas ovelhas o terem sempre acarinhado e provido dos melhores alimentos.

 O pope organizara sem demoras a cobrança da décima sobre os bens de cada um, em proveito da Igreja. E, com este intuito, todas as semanas partiam trenós em todas as direcções. Mas circulava ainda outro trenó, abundantemente provido de peles. Era conduzido por Loupin, caçador de belas tártaras. Quando avistava uma que lhe parecia ao gosto do pope Oleg, enrolava‑a nas peles e assim, bem quentinha, transportava‑a em condições de ser entregue à Igreja.

 ‑ És um bom companheiro! ‑ observou o padre Oleg, dirigindo‑se a Loupin, ao qual ofereceu, como testemunho do seu reconhecimento, uma rica pulseira mongol, de prata cinzelada e incrustada de pedras coloridas, cujo nome todos ignoravam. ‑ Se continuares assim, nomeio‑te diácono, pois tenho bom coração, irmão.

 Loupin podia, pois, ver a filha Marina e falar‑lhe... na igreja, no jardim e em casa do príncipe Iepoutcha.

 O amor que Marina experimentava por Mouchkov era, para ela, um paraíso secreto, mas sentia uma alegria indescritível durante os momentos passados com o pai junto ao aquecedor escaldante, sabendo que não era a única a confiar num homem selvagem que ela pretendia aperfeiçoar...

 O Inverno revelava‑se, na verdade, feroz, coberto de neve e gelo inquebrável. A superfície dos rios formava uma carapaça gelada e as florestas mantinham‑se impenetráveis, com as árvores petrificadas. Estas, por vezes, estalavam ruidosamente, fendidas pelo gelo acumulado no seu interior... Para os cossacos um Inverno assim era aterrorizador, mesmo bem aquecidos, sempre junto aos fogões. O tédio originava rixas. Insultavam‑se, batiam‑se pelas poucas mulheres que se lhes ofereciam... Mil malandrins numa cidade morta, condenados a conservarem‑se fechados num espaço restrito... Jermak não encontrava solução para este problema.

 Em Oriol, passara‑se tudo de maneira diferente, havia a "cidade cossaca", a casa grande habitada por cerca de duzentas mulheres e, além disso, havia festas, caçadas no país de Perm...

 E outrora, no Don? Oh! Irmãos, tentemos esquecer o Don, o Volga, o Donetz ou o mar Cáspio! Esqueçamos as estepes do Sul e as radiosas raparigas dos nogais! É de chorar de dor, tão cruéis são as saudades da terra. Jermak, Mouchkov e Marina faziam muitas viagens de reconhecimento pelos arredores de Tchinga Toura.

 Num grande trenó puxado por renas machos e conduzido por um prisioneiro ostíaco, partiam nos dias sem vento, deslizando pela imensidão branca desta região coberta de neve e desciam ao longo do Toura até ao Tobol, objectivo da expedição que prosseguiria no ano seguinte. Pensavam embarcar no Tobol para atingir Irtych e destruir Sibir, a cidade de ouro, a cidade de Koutchoum.

 Loupin sentia uma enorme angústia sempre que tinha conhecimento da partida de Marina. Essas expedições eram perigosas porque cavaleiros de Mametkoul, batedores, percorriam a cavalo toda a zona e abatiam como lebres, com as suas flechas silenciosas, os cossacos que se aventurassem pelo seu território. Já se tinham verificado incidentes deste tipo por três vezes. Jermak acabara mesmo por proibir as saídas a grupos de menos de 50 homens e cinco atiradores. E, como o exército de Jermak não dispunha dos cinquenta cavalos necessários, os cossacos estavam condenados a permanecer na cidade, bebendo e lutando, o que lhes valia uma estada na prisão ou a prova do gelo: depois de regados com alguns baldes de água, eram expostos ao ar... A maior parte dos cossacos dificilmente resistia a esta prova refrescante... E Loupin, obrigado a amputar‑lhes os dedos e as orelhas gelados, não tinha mãos a medir.

 O próprio Jermak enfrentou problemas com os autóctones por ocasião das suas excursões de reconhecimento.

 Foi num dia claro, soalheiro, em que o gelo resplandecia. Sob o céu muito azul, a neve brilhava de tal maneira que Jermak e Mouchkov tiveram de proteger os olhos com uma faixa de pano destinada a filtrar a luz. Marina enrolara‑se nas mantas e enterrara o gorro de pele na cabeça. Viajavam em dois trenós, o deles e um outro, transportando uma escolta de atiradores livónios. As renas trotavam na neve endurecida, fazendo ouvir cada um dos seus passos e os trenós chiavam de tal modo ao deslizar sobre o gelo que o solo parecia gritar como uma criatura ferida. Embalados pelos solavancos da viatura, nem Jermak nem Mouchkov se aperceberam de que o condutor ostíaco saltara subitamente do assento, rolando várias vezes sobre si mesmo e imobilizando‑se na neve inerte. As renas, não se sentindo pressionadas pelas rédeas de couro entrançado, ergueram surpreendidas os focinhos monumentais e, após alguns momentos de hesitação, largaram a galope pela extensa planície gelada que se estendia até ao infinito. O trenó em que se encontravam os atiradores de elite ficou para trás, ouviram‑se gritos, mas Jermak, Mouchkov e Marina, enrolados nas mantas, nem os ouviram. Apenas se admiraram ao verem as renas embaladas, enquanto o trenó parecia voar através da paisagem.

 ‑ Que belo dia! ‑ gritou Jermak ao ouvido de Mouchkov. ‑ Um sol maravilhoso!

 ‑ As renas vão a grande velocidade, o nosso condutor deve sentir‑se feliz com a viatura!

 Enganavam‑se totalmente. O ostíaco erguera‑se depois da passagem precipitada do segundo trenó. De pé, na neve, com a mão em pala sobre os olhos, fixava o horizonte, onde acabava de surgir uma mancha negra que se destacava do fundo imaculado da paisagem.

 Agora, a mancha dividia‑se numa quantidade de pequenos pontos que começavam a adquirir forma: eram cavaleiros, vestidos de peles bem grossas e usando gorros terminados em bico, também de pele. à frente, assentes no pescoço dos cavalos, traziam arcos e flechas, e lanças, galopando cobertos de pedaços de gelo tilitantes, mas ardendo interiormente de ódio e desejo de exterminar o inimigo. E o trenó de Jermak, sem condutor, deslizava precisamente naquela direcção. Era este o tipo de aventuras que Loupin sempre receara enormemente ao pensar nas excursões da filha!...

 Perseguindo o trenó de Jermak, os atiradores livónios e alemães abriam fogo sobre os assaltantes. Mas era inútil, pois o trenó vacilava e saltava e os homens tinham de se agarrar aos assentos com toda a força enquanto a viatura, que até então seguira sensatamente o trenó à sua frente, ganhava, por sua vez, velocidade.

 ‑ Aqueles idiotas começaram a disparar! ‑ gritou Mouchkov ao ouvido de Jermak. ‑ Nesta região, porém, não me parece que haja raposas!

 Conseguiram desfazer‑se das mantas, arrancaram as faixas que lhes protegiam os olhos e sentiram‑se ofuscados pelo brilho da neve. à sua frente, as renas estendiam o pescoço sob as pesadas armaduras e as suas pernas esguias e nervosas arranhavam com os cascos o solo gelado.

 ‑ O condutor! ‑ gritou subitamente Mouchkov, abanando Jermak pelos ombros. ‑ O nosso tártaro desapareceu! Deve ter caído do assento e as renas assustaram‑se!

 ‑ Os tártaros! ‑ gritou Marina, por detrás deles, com sua voz aguda. Ainda se encontrava deitada entre montes de peles e olhava intensamente para a fila de cavaleiros que galopavam ao seu encontro.‑ Tártaros por todos os lados! Trata‑se de uma armadilha, Jermak!

 Na retaguarda, os atiradores abriram novamente fogo, mais para reanimar a coragem, ou para assustar os tártaros com o estrondo produzido, do que na esperança de atingir o que quer que fosse a tamanha distância. Presentemente, Jermak e Mouchkov distinguiam com clareza a linha dos cavaleiros, que formava um semicírculo, armadilha na qual os trenós se precipitariam inevitavelmente.

‑ Detém as renas! ‑ vociferou Jermak. Libertou‑se das mantas que ainda o envolviam, tentou pegar nas rédeas, mas estas escaparam‑se‑lhe, escorregando para fora do trenó e começando a arrastar‑se pelo chão, atrás do veículo.

‑ É preciso parar os trenós ‑ gritou Jermak. ‑ Ivan Matveiévitch, temos de montar as renas!

‑ Não consigo detê‑las! ‑ resmungou Mouchkov, olhando para todos os lados. Atrás dele, Marina continuava sentada sobre um monte de peles, agarrada às paredes laterais do trenó.‑ Temos de saltar! Jermak, saltemos!

‑ Vamos ser esmagados pelos tártaros! ‑ rugiu Jermak como resposta.

Rastejou para a frente, debruçou‑se sobre os enormes patins do trenó, mas não conseguiu apoderar‑se das rédeas que continuavam a arrastar‑se pela neve. Já se ouviam os gritos de contentamento dos tártaros.

‑ Vou saltar para uma das renas! ‑ avisou então Mouchkov.

O medo de que acontecesse alguma coisa a Marina levava‑o a encarar as soluções mais loucas. Rastejou, por sua vez, para a frente, até ao assento anteriormente ocupado pelo ostíaco e, depois, preparou o salto, avaliando a distância que o separava da rena colocada a meio do veículo. Porém, não chegou a saltar. Subitamente, Marina colocou‑se à sua frente. Sem capote nem gorros, protegida do frio apenas pelas calças e pela camisa, Jermak gritou:

 ‑ Mouchkov! Agarra‑me esse idiota! Não tem força suficiente!

 Mas era demasiado tarde! Mouchkov fechou a mão no vazio... Viu Marina saltar, de braços estendidos para a frente, de pernas abertas sob um sol resplandecente.

 ‑ Meu Deus! ‑ exclamou Mouchkov. Pelo seu rosto escorriam lágrimas que gelavam imediatamente.

 Marina aterrou exactamente no dorso da rena colocada ao centro. Enterrou as unhas na crina do animal, ajustou as pernas aos seus flancos e sentiu‑se tão confortavelmente entre os arreios de couro como na sua sela cossaca.

 A rena virou o focinho para trás, soltou um bramido surdo e arqueou o dorso, partindo a galope. Mas esta tentativa de revolta foi inútil, pois Marina enterrou nos flancos do animal os tacões das botas, debruçando‑se para a frente para se lhe agarrar à armadura e, esforçando‑se desesperadamente, tentou puxar o focinho do animal para trás.

 Era uma luta sem esperança: o animal esticava os músculos da nuca, bramiu de novo e a sua boca exalou um vapor denso e quente que, contra o ar glacial, se transformou imediatamente numa pesada nuvem.

 ‑ Ivan! ‑ gritou Marina numa voz estridente. ‑ Ivan, ajuda‑me!

 Continuava agarrada à armadura da rena, esperando quebrar a sua resistência. Mas os animais continuavam a avançar pela neve ao encontro dos tártaros que, de pé nas selas, já apontavam os arcos e baixavam as lanças.

 ‑ Ivan! Estou esgotada! ‑ gritou novamente Marina.

 O perigo que ameaçava Marina deu asas a Mouchkov, foi, pelo menos, o que este depois afirmou. Saltou quase ao mesmo tempo que Jermak, que também envidou os mesmos esforços. Os dois corpos partiram pelos ares mas, enquanto Mouchkov caiu ao lado de Marina, no dorso da rena da esquerda, Jermak falhou o salto e abateu‑se violentamente no chão duro e gelado. Meio inconsciente, ficou estendido, imóvel, coberto de flocos de neve e de estilhaços de gelo provocados pelo trenó dos atiradores que prosseguia a sua corrida infernal e quase lhe esmagou o crânio.

 Mouchkov batia com os punhos no pescoço da rena, gritando: HoÍ! HoÍ! A rena defendia‑se. Nuvens de vapor envolviam Mouchkov, o animal empinava‑se, mas Mouchkov acabou por o obrigar a vergar‑se, torcendo‑lhe o pescoço com mãos de ferro.

 ‑ Pára, carcaça! ‑ rugia ele.

 Após um bramido surdo, a rena abrandou a corrida, imitada pelas companheiras, antes de se deter completamente, o que as outras também fizeram. Marina pôde, por fim, dominar a montada. O trenó dos atiradores de armas de fogo parou ao lado do primeiro. Em toda a volta, formou‑se uma auréola de bruma constituída pelo hálito das renas atreladas e dos homens ofegantes.

 Jermak continuava estendido na neve. Tentou por diversas vezes erguer‑se, mas em vão.

 Os cavaleiros soltaram um grito frenético, o semicírculo fechou‑se e depois, em formação compacta, de lança em riste, avançaram para os dois trenós, precedidos de uma chuva de flechas.

 ‑ Marinouchka... ‑ balbuciou Mouchkov. Continuava a cavalgar a rena, suado, de músculos ainda trémulos devido ao esforço a que tinham sido submetidos.

 ‑ Deixa de choramingar! ‑ lançou‑lhe Marina.

 ‑ Marinouchka, esconde‑te! ‑ implorava ele.

 ‑ Desaparece! ‑ respondeu‑lhe ela severamente.

 A seu lado, os atiradores alemães e livónios tinham finalmente recomeçado a disparar. Agora, sentados mais confortáveis e protegidos por grossas mantas que impediam a penetração das flechas, podiam visar com precisão. Os primeiros tártaros caíram e, sob eles, a neve tingiu‑se de vermelho.

 As renas pareciam novamente irritadas. Marina saltou da sua montada improvisada, colocou‑se entre os animais e obrigou‑os a baixar o focinho para o chão, puxando pelo freio que lhes envolvia as ventas. Mouchkov deixou‑se escorregar para o chão e tentou agarrar Marina por uma das botas, a fim de a derrubar. Mas Marina esperneou e atingiu‑o com um pontapé na testa.

Mouchkov resmungou e largou‑a.

 ‑ Deixa‑me em paz! ‑ gritou‑lhe ela, na sua voz aguda. ‑ Preocupa‑te com Jermak.

 ‑ Vais ser empalada pelos tártaros! ‑ vociferou ele.

‑ Ah! Bandido, que te arranco a cabeça! Stoj! Stoj!

 Correu para o trenó, puxou por uma montanha de mantas, voltou para junto de Marina e cobriu‑lhe o corpo, trémulo de frio.

 Em seguida, sempre a correr, pegou na pistola, no punhal curvo e aproximou‑se de Jermak, que se ajoelhara na neve e olhava em frente, esgazeado. Mouchkov protegeu o amigo com o seu próprio corpo, ergueu a pistola e abriu fogo sobre um tártaro que galopava ao encontro deles, soltando gritos ferozes.

 Tranquilamente, tal como tinham aprendido, os atiradores alemães e livónios visavam os tártaros e, indiferentes às flechas, nenhum lanceiro de Mametkoul se aproximou suficientemente deles para os atingir.

 Marina continuava de pé entre as renas, protegida pelos seus corpos imponentes e pelas mantas retiradas do trenó; conservava‑se energicamente agarrada às enormes cabeças dos corcéis da neve. Estes, agora, pareciam de uma sensatez exemplar. Os seus enormes olhos fixavam cavalos e cavaleiros, abanavam as orelhas espantados com todo o ruído produzido, enquanto nuvens de vapor esbranquiçado se lhes escapava das ventas.

 O ataque falhara, os tártaros foram obrigados a reconhecê‑lo quando viram metade dos seus guerreiros estendidos na neve e ensanguentados. Lançaram um último grito de guerra que rasgou a atmosfera, deram meia volta e os seus cavalos desapareceram na neve, no sol, na reverberação do céu que os engoliu. Levavam com eles os cavalos dos irmãos abatidos, mas abandonaram mortos e feridos.

 Os dois livónios desceram do trenó, aproximaram‑se de alguns inimigos ainda vivos e apontaram as armas.

 Solução mais humana do que deixá‑los morrer na neve ou transportá‑los para Tchinga Toura, onde, depois de curados, seriam enforcados... Conheciam Jermak, esta emboscada não mais seria esquecida!

 Enquanto os atiradores revistavam os mortos, despojando‑os de anéis e de tudo o que lhes pudesse servir, Jermak coxeava em direcção ao trenó, apoiado em Mouchkov.

 Titubeava. O seu sentido de equilíbrio parecia alterado, algo no seu cérebro devia ter‑se quebrado. Sofrera certamente um choque ao cair no solo gelado. Talvez fosse essa a explicação para certos actos de que Jermak foi acusado, mais tarde, pois embora sempre tivesse sido malvado, nunca fora um monstro.

 ‑ Têm anéis de ouro! ‑ gritou um dos livónios, que se encontrava precisamente a despir um tártaro. ‑ Grandes anéis de ouro!

 Mouchkov suspirava, pensando em Marina, de pé entre as renas, e invejava os outros, que não tinham ninguém que os impedisse de pilhar.

. Foi uma hora quase histórica quando Jermak, emocionado, abraçou Marina, beijando‑a três vezes:

 ‑ A partir de agora, és meu irmão, Boris Stepanovitch! ‑ disse ele.

 Mouchkov tossiu, como se tivesse alguma coisa atravessada na garganta, pois estava a pensar nos seios redondos e firmes de Marina, apertados contra o peito de Jermak. Mas este possuía um humor demasiado solene para se aperceber do facto, e prosseguiu:

 ‑ Devemos a vida à tua coragem. Ivan Matveiévitch, foi a melhor inspiração que jamais tiveste: trazeres Boris daquela aldeia em chamas...

 ‑ É o que estou sempre a pensar! ‑ exclamou Mouchkov, fazendo menção de também beijar Marina mas, desta vez, com a permissão de Jermak. Mas ela empurrou‑o com brutalidade, enquanto um brilho de fúria lhe passava pelos olhos azuis. "Que dia de festa! Quando penso nisso, tenho a impressão de que o meu apetite aumenta!" Fez nova tentativa no sentido de se apoderar da cabeça de Marina, mas esta repeliu‑o, aplicando‑lhe uma palmada na mão.

‑ Ele não me suporta, Jermak... ‑ declarou. ‑ Talvez não o tenha surrado como merecia, um tipo como este só se torna razoável à custa de coleccionar equimoses!

 ‑ Regressemos a casa! ‑ Jermak inspeccionava com o olhar os campos cintilantes. ‑ E aquele que me trouxer a cabeça do condutor do meu trenó receberá dez rublos! ‑ Subiu para o trenó e empunhou as rédeas de couro. ‑ Qual dos dois é capaz de conduzir renas?

 ‑ Eu monto a rena da frente ‑ sugeriu Marina. ‑ Julgo que serei capaz de me desembaraçar!

 ‑ Eu encarrego‑me disso! ‑ replicou Mouchkov. ‑ Jermak Timofeiévitch, o rapaz está meio gelado, não suportará o esforço! Enrola‑te nas mantas e aquece‑te!

 ‑ Sou eu que monto a rena! ‑ insistiu Marina, saltando para o animal. ‑ Ivan é demasiado estúpido! Ele que se cale, ou gelam‑lhe as tripas!

 Jermak soltou uma gargalhada, dirigiu‑se para o trenó, pegou nas mantas mais grossas e tapou Marina. Mouchkov andava em volta das renas, resmungando e endereçando a Marina olhares suplicantes de cão abandonado.

Ao mesmo tempo, perguntava a si mesmo que tolice teria feito para que ela se mostrasse tão furiosa. Sentou‑se, porém, resignado, ao lado de Jermak, de olhos postos em Marina que, numa voz cristalina, deu o sinal de partida. As renas avançavam a trote e os trenós deslizavam, rangendo na neve endurecida.

 O segundo trenó, com os atiradores alemães e livónios, seguia‑os de perto. Os homens riam‑se, mostravam uns aos outros os seus espólios e gritavam a Marina:

 ‑ Receberás a tua parte! Tens o direito de escolher o que mais te agradar!

 ‑ Está bem! ‑ replicou Mouchkov, sentindo um vivo prazer ao pensar que Marina seria forçada a aceitar uma parte do espólio recolhido, e esfregando as mãos. "Se ela recusar", pensou ele, "não só passará por idiota como magoará os camaradas! Pois bem, meu lindo cisne, como te safarás desta?"

 ‑ E não se esqueçam de Ivan Matveiévitch! ‑ advertiu alegremente Mouchkov, começando a cantar a canção do rouxinol dourado subtraído por um cossaco da corte do imperador da China.

 Marina voltou‑se para trás e olhou de relance para Mouchkov, que se sentiu atingido por um raio. Calou‑se e preparou‑se para passar mal a noite, encostado ao grande fogão de barro.

 Mas não se diga que Mouchkov era um cobarde pois, quando avistaram ao longe Tchinga Toura, emergindo do pôr‑do‑sol e as primeiras patrulhas vieram ao seu encontro, estava decidido a evitar qualquer contacto com Marina.

 Logo que chegaram à residência do príncipe Iepoutcha, retirou‑se para a mesquita, presentemente transformada em igreja, onde Loupin se lançou sobre ele, insultando‑o e arrepelando os cabelos ao pensar nos perigos a que estivera exposta Marina, a sua pequenina, a sua pomba! Como habitualmente, o pope fora o primeiro a ser informado sobre a escaramuça e Oleg já se encaminhara para os bairros dos alemães e dos livónios, para se apoderar, em nome de Cristo, de parte dos despojos de guerra.

 ‑ Porque abandonaste Marinouchka? ‑ vociferava Loupin. ‑ Onde se encontra? Porque não vem?

 ‑ Está a escolher a sua parte do espólio ‑ respondeu Mouchkov, torcendo o nariz.

 ‑ O quê ‑ perguntou Loupin, intrigado.

 ‑ Marina tem direito à sua parte, despojámos os mortos, velhote, que queres tu que um morto faça de uma quantidade enorme de anéis e pulseiras? ‑ Apurou o ouvido, de cabeça voltada para a porta, para se assegurar de que ninguém se aproximava; em seguida, apoiando‑se firmemente nas pernas, concluiu:

 ‑ Fico aqui porque necessito da protecção da Igreja!

 Oleg Vassiliévitch, o pope cossaco, surgiu uma hora mais tarde, de barba hirsuta, pois vira‑se obrigado a lutar para convencer os atiradores alemães de que a verdadeira fé se manifesta essencialmente através do sacrifício.

 ‑ Olha! ‑ exclamou o pope ao avistar Mouchkov. ‑ Que tens tu para oferecer?

 ‑ Nada! Cortaram‑me a erva debaixo dos pés.

 ‑ Não mintas! ‑ vociferou o pope. ‑ Um Mouchkov surripia sempre alguma coisa!

 ‑ Um Mouchkov! Oh! padre, que Mouchkov? ‑ Ivan olhou para todos os lados e sobressaltou‑se quando ouviu a voz de Marina em frente da iconostase.

 ‑ Venerável padre! ‑ gritava ela.

 ‑ Aquele malandro! ‑ exclamou o pope alegremente. ‑ É um belo rapaz, oferece à Igreja o que sabe ser do seu agrado!

 Enquanto Oleg e Loupin contornavam a iconostase, Mouchkov espreitou por uma brecha aberta na parede coberta de ícones. Na verdade, Marina recebera a sua parte dos despojos e acabava de a depor nos degraus do altar: duas pulseiras com incrustações de pérolas, um punhal com cabo de ouro puro sumptuosamente lavrado...

 ‑ Meu filho ‑ declarou o pope emocionado, eu te abençoo!

 ‑ É a minha parte ‑ disse Marina, apontando para o maravilhoso punhal ‑ e mais isto... ‑ e mostrava as pulseiras cobertas de pérolas ‑, é a dádiva de Mouchkov, pela sua salvação!

 ‑ Aleluia! ‑ rejubilou o pope Oleg.

 Ivan recuou e fechou os olhos, abatido: "Se casar com ela", disse mais uma vez para si mesmo, "terei de viver como um campónio, coisa que um cossaco não suportará!"

 ‑ Onde está Mouchkov? ‑ perguntava Marina, na sua voz cristalina. ‑ Atrás da iconostase? Vamos, padre, mostra‑mo, preciso dele para lhe transmitir uma ordem!

 Sorrindo, Mouchkov contornou a iconostase e viu o pope, que examinava as pulseiras, dando estalos com a língua.

 ‑ Vem comigo! ‑ gritou‑lhe Marina, pegando‑lhe numa mão e arrastando‑o até à porta. Lá fora, na noite glacial, uma vez fechado o batente, Marina plantou‑se à frente de Mouchkov, bem encostada a ele, de olhos brilhantes:

 ‑ Amo‑te, grande urso! ‑ murmurou ela, muito baixinho. ‑ Amo‑te e, presentemente, sei que serei tua mulher.

 Depois desapareceu na escuridão, deixando atrás de si um infeliz Mouchkov, interiormente consumido...

 Durante toda a noite, Mouchkov aguardou o regresso de Marina, mas esta permaneceu inacessível. Tão martirizado pelo amor quanto pelo medo, Mouchkov errava pela vasta mansão do príncipe Iepoutcha e saltava para a porta ao mínimo som vindo do exterior. Mas tratava‑se apenas de alguns cossacos que passeavam pela cidade, perturbando a paz nocturna.

 Era impossível falar com Jermak. A doce tártara encontrava‑se de novo com ele, e justamente, conversavam deliciados, embora Jermak ainda desse mostras de ter o cérebro um tanto toldado, depois da queda do trenó. Também sentia dores nos membros e o mais leve esforço, mesmo amoroso, prostrava‑o como se lhe tivessem batido com um peso de chumbo. Perguntar‑lhe, nesse momento, onde se poderia encontrar Boris Stepanovitch, teria sido perigoso, mesmo para Mouchkov.

 "Ela tem de estar escondida em algum lugar", pensava ele, "talvez entre os cavaleiros, ou enrolada numa manta de peles, recolhida numa cabana abandonada, como um cão escorraçado. Mas porque teria fugido? Por que me deixou, precisamente agora?"

 Já a noite ia avançada quando Mouchkov se dirigiu para a mesquita, transformada em igreja, a fim de confiar o seu desgosto ao padre Oleg. O pope encontrava‑se deitado no divã em que outrora repousara o moullah maometano e ressonava a ponto de meter medo.

 Muito encostada a ele, uma jovem de peito farto acordou, olhou de relance para Mouchkov, virou‑se para o outro lado, e adormeceu novamente.

 ‑ Como estou só! ‑ observou Mouchkov, abatido. ‑ Ninguém vem em meu auxílio! ‑ Vagueou pela antiga mesquita, penetrou nos compartimentos desocupados e acabou por encontrar Grigoriévitch Loupin, que se acomodara no "quarto dos tesouros" e que, facto estranho, ainda estava acordado. Mouchkov percorreu com o olhar todo o tesouro acumulado no quarto; objectos de ouro e de prata, peles e tecidos cujo valor avaliou em algumas centenas de rublos. Depois, sentou‑se, suspirando, junto de Loupin, na colcha de pele de lobo que cobria a cama e descia até ao chão.

 ‑ Marina fugiu! ‑ declarou ele. ‑ Agora, que tinha prometido ser minha mulher! Diz‑me, onde está ela?

 ‑ Nunca a encontrarás.

 ‑ Foi a primeira vez que disse que me amava e, logo a seguir, fugiu! Com certeza, estava muito emocionada... Que filha tens, velhote! Se Jermak descobre que Boris Stepanovitch é uma rapariga... terei de escolher, sem dúvida: ou mato Jermak ou abandono Marinouchka...

 ‑ E tu preferes...

 ‑ Creio que matarei Jermak! ‑ respondeu Mouchkov em voz surda. ‑ Agora, tenho a certeza!

 ‑ Repito‑te aquilo que já te aconselhei: fujam! Regressem à vossa terra! ‑ insistiu Loupin, após um momento de silêncio, durante o qual lamentou a sua própria sorte de pai abandonado. ‑ O caminho que atravessa os Urales tornou‑se mais fácil, poderiam ir de guarnição em guarnição, uma vez que deixámos algumas à nossa passagem...

 ‑ Um cossaco não deserta!

 ‑ Esquece que és um cossaco!

 ‑ Que queres então que seja?

 ‑ O homem de Marina... acabarás por a encontrar!

 ‑ Na próxima Primavera, haverá uma grande batalha...

 ‑ E, então, será bom que há muito tenhamos atravessado os Urales, Ivan Matveiévitch! ‑ E acrescentou, em tom confidencial: ‑ Consta que Koutchoum tem dez mil cavaleiros estacionados nas margens do Tobol! Estás a ver Marina, obrigada a cavalgar ao lado de Jermak, à frente das tropas? Nem consigo respirar, só de pensar nisso! Seja como for, ela não regressará à Rússia sem ti. Se acompanhares Jermak, tê‑la‑ás a teu lado!

 A conversa era sempre a mesma.

 ‑ Não posso esperar nenhum conselho! ‑ concluiu tristemente Mouchkov. ‑ Vou voltar para casa, para ver se Marina já regressou...

 Mal saiu do quarto, Marina soergueu a pele de lobo, abandonando o esconderijo, debaixo da cama. Descalçara as botas e vestia apenas uma camisa leve, pois o quarto encontrava‑se aquecido por um fogão que libertava um calor penetrante. As pedras de que era feito estalavam lentamente, tal era o calor produzido pela lenha em combustão.

 ‑ Quando derreter o gelo do Toura, Ivan Matveiévitch será um homem diferente! Ouviste‑o, pai? Por mim até seria capaz de matar Jermak! ‑ Sentou‑se na cama, com as mãos em redor dos joelhos e lançou um olhar cintilante de felicidade aos candeeiros de petróleo que iluminavam o quarto. ‑ Eu sabia: é um homem de bom coração! Tudo se arranjará e tu também acabarás por te habituar a Ivan, papá!

 ‑ Nunca, filha, nunca! ‑ Loupin encostou‑se à porta, pois Mouchkov podia voltar, depois de verificar que Marina não regressara. Sendo assim, Marina teria de ter tempo de se enfiar debaixo da cama! ‑ Nunca esquecerei que ele incendiou a nossa aldeia! ‑ acrescentou.

‑ Não lançou um único archote! ‑ exclamou Marina. ‑ Nesse momento, estava ocupado a proteger‑me!

 ‑ Queria desonrar‑te, à boa maneira dos cossacos!

 ‑ E fê‑lo?

 Loupin não respondeu: nada ganharia a discutir as virtudes de Mouchkov com Marina, que era teimosa como uma burra!

 ‑ Porque te escondes dele? ‑ perguntou o pai, passado um momento.

 Marina olhou vagamente em redor e depois, lentamente, respondeu:

 ‑ É de mim mesma que fujo...

 ‑ Não compreendo.

 ‑ Amo‑o e, se não tivesse fugido, a tua filha já não seria virgem... ‑ Marina estirou‑se sobre a pele de lobo e dobrou as pernas bem torneadas. ‑ Tu não o viste lançar‑se sobre a rena, torcendo‑lhe o pescoço para trás!

 ‑ Mas, Marinouchka, pensei que tu própria tinhas saltado para a rena?

 ‑ Sim, saltei, mas não tive força suficiente para lutar contra um animal tão possante. Quando Ivan lhe pegou na armadura, senti‑a quebrar‑se. Puxou pela cabeça da rena e, então, vi que Ivan chorava a cavalo no animal. Chorava por amor e medo de que me acontecesse alguma coisa e as lágrimas gelavam‑lhe no rosto como pérolas de gelo. Um Mouchkov a chorar por amor! Papá, quase morri ao vê‑lo assim... tão feliz me senti!

 ‑ E, no entanto, trataste‑o mal e insultaste‑o, segundo me disse! Tens uma estranha maneira de reconhecer o amor que recebes!

 ‑ Não podia proceder de outra maneira. ‑ Marina estendeu‑se ao comprido e cruzou as mãos no peito. Loupin, sentado a seu lado, passou‑lhe a mão pelo cabelo, desajeitadamente cortado por Mouchkov. ‑ Se lhe bati, foi por querer bater em mim mesma! Poderia beijá‑lo sob o olhar de Jermak? Nesse momento, teria sido capaz de tudo! Compreendes, papá?

 ‑ Não! ‑ reconheceu honestamente Loupin. ‑ E pergunto a mim mesmo onde nos levará ainda esse teu comportamento.

 

 De madrugada, Marina penetrou furtivamente na residência do príncipe Iepoutcha. Jermak dormia, exausto, ao lado da tártara. Numa outra sala, Mouchkov cochilava junto ao fogão, deitado no chão e enrolado numa pele, da qual estreitava uma ponta, como se se tratasse de um objecto dos seus sonhos... Sorria e, de vez em quando, resmungava. O sonho devia ser extravagante!

 Marina debruçou‑se sobre ele, beijou‑o na testa e, depois, foi deitar‑se no divã coberto de seda oriental.

 Antes de fechar os olhos, teve o cuidado de pendurar o punhal curvo à cintura. Permanente defesa contra Mouchkov, que tinha tudo a ganhar se continuasse a ser sensato.

 

Alguns dias mais tarde, Mouchkov entrou na igreja, esgazeado, cabelo empapado em suor, e implorou, numa voz quase inumana:

 ‑ Santo padre Oleg Vassiliévitch, vem em nosso auxílio! Boris tem muita febre, está a delirar e não me reconhece! Está tão quente como uma fogueira incandescente! Tem piedade!

 O pope cossaco apareceu então, de tronco nu, envergando apenas as calças. Sentindo‑se apanhado em falta, aplicou imediatamente um par de bofetadas tão enérgicas na mulher que ousara segui‑lo, que ela bateu em retirada para trás da iconostase. Do outro lado, surgiu Loupin, que procurou conter o pope. Trazia ainda o cabelo emaranhado, por se ter levantado da cama.

 ‑ Boris vai morrer nos meus braços! ‑ lamentava‑se Mouchkov. ‑ O seu espírito já vagueia pelos campos!

 ‑ Reza! ‑ ordenou‑lhe o pope, peremptório. ‑ Permaneceu exposto ao frio durante muito tempo! Nem sequer trazia uma pele sobre os ombros. Cavalgava uma rena, gelaram‑lhe os pulmões! Entoemos juntos o cântico fúnebre, meus irmãos!

 ‑ Ele não pode morrer! ‑ gemeu Mouchkov. ‑ Jermak já mandou vir os nossos melhores cirurgiões, mas não sabem que conselho dar: são capazes de suturar ferimentos, mas não conhecem nada que cure a febre! Alexander Grigoriévitch, o que é que se dá aos cavalos em casos como este?

 ‑ Vou procurar um remédio! ‑ respondeu Loupin, retirando‑se a correr. "Febre", pensava ele, sentindo as pernas trémulas. "Por muito infecto que seja, o pope tem razão, se o gelo lhe roeu os pulmões e estes se inflamaram, assistiremos impotentes à morte de Marina, nos nossos braços... Marinouchka, seremos enterrados juntos... que farei eu sem ti neste mundo?"

 Na residência do príncipe Iepoutcha, Jermak encontrava‑se sentado, de ar taciturno, olhar distante.

 Encostados à parede, dois cirurgiões ostentavam duas nódoas negras na testa, prova da sua incapacidade para. "combaterem a febre". Jermak aplicara‑lhes uma valente surra quando ousaram declarar: "Não podemos fazer nada."

 ‑ Alguém lhe tocou? ‑ gritou Mouchkov correndo para Jermak. Era a sua segunda grande preocupação quando pediu ajuda a Loupin: se os cirurgiões desapertassem a camisa do doente, ficariam a saber que se tratava de uma rapariga. Mas, ao ver Jermak sentado à cabeceira da cama e dois cirurgiões cobertos de nódoas negras e encostados à parede, verificou que o segredo continuava por desvendar.

 Mouchkov debruçou‑se ternamente sobre Marina, que, de olhos arregalados, debatendo‑se contra a febre, murmurava palavras incoerentes. Ao respirar, assobiava como se tivesse engolido uma tempestade de neve.

 ‑ São os pulmões... ‑ sussurrou Loupin, numa voz monocórdica. ‑ Deus tenha piedade de nós!

 Pousou no chão a sacola de couro contendo os remédios destinados aos cavalos, debruçou‑se sobre a filha e contemplou‑a. Ela não o reconheceu... Os seus olhos vidrados fixavam outro mundo.

 ‑ Saiam! Saiam todos! ‑ ordenou Loupin,

 ‑ Porquê ‑ gaguejou Mouchkov.

 ‑ Saiam! ‑ gritou Loupin. ‑ Quero estar só!

 Jermak levantou‑se, em silêncio, puxou Mouchkov pela manga e arrastou‑o para a porta. Os dois cirurgiões seguiram‑no, aproveitando para se escaparem. Os hematomas inchavam a olhos vistos. "Pulmões..." pensavam eles. "Boris Stepanovitch não verá o dia de amanhã...A febre rebenta com o coração e os pulmões... Jermak, escolhe outro adjunto!"

 Bateram com a porta, ao fechá‑la. Loupin encostou um baú ao batente e começou a despir a filha, verificando, emocionado, quão dotado de graça era este ser, nascido do seu sangue. Pousou o ouvido sobre o coração de Marina e ouviu um martelar patológico. A sua pele branca estava quente como cozida no forno e a respiração assobiava como vento outonal.

 ‑ Que lhe estás a fazer? ‑ perguntou Mouchkov, gritando atrás da porta. ‑ Se ele morrer, mato‑te!

 ‑ Eu próprio me encarregarei de o fazer! ‑ replicou Loupin, desesperado.

 Esta sinistra troca de palavras deve ter arrancado Marina ao estado de inconsciência, pois virou a cabeça de lado e a fixidez do seu olhar deu lugar a uma expressão sonhadora:

 ‑ Mais uma vez a discutir ‑ murmurou ela, muito fraca.

 Loupin sobressaltou‑se, caiu de joelhos ao lado da filha e abraçou‑a, desejando absorver a febre do seu corpo.

 ‑ Papá, tenho tanto frio... ‑ disse Marina de súbito. O seu corpo escaldava mas tremia ao mesmo tempo. Loupin tapou‑a com um cobertor e pôs‑se a pensar nos cavalos...

 ‑ Preciso de água fria e de água quente! ‑ exclamou ele apressadamente, voltando‑se para a porta. ‑ E de grandes peças de pano! Despachem‑se!

 Loupin ouviu Mouchkov agitar‑se como um diabo, dar pontapés nos cirurgiões, o que imaginou pelo ruído produzido, seguindo‑se passos precipitados...

 ‑ Vou entrar! ‑ advertiu Mouchkov, do outro lado da porta.

 ‑ Se ousares fazê‑lo, apunhalo‑te! ‑ replicou Loupin, no seu papel de pai angustiado e enérgico. ‑ Então despacha‑te!

 Nunca ninguém respondeu com tanta prontidão a um pedido.

 ‑ Aqui está a água! ‑ gritou Mouchkov, batendo com os punhos na porta fechada. ‑ Deixa‑nos ver o rapaz!

 ‑ Não se aproximem! ‑ respondeu Loupin que, tendo empurrado o baú, entreabriu a porta e se apoderou dos dois baldes de couro, um cheio de água quente e fumegante, outro repleto de água fria. Jermak dera‑lhe ainda uma pilha de peças de pano grosso com o qual os tártaros confeccionam roupa interior.

 Para o comandante cossaco Jermak Timofeiévitch, o destino escapava totalmente ao ser humano. Pode levar‑se uma existência tão livre como as águias... Mas, um dia, ela deixa de obedecer à nossa vontade... ninguém consegue evitar o inelutável fim.

 Durante todo o dia e toda a noite, Loupin permaneceu à cabeceira de Marina, envolvendo‑a sucessivamente em panos quentes no peito e na cintura e em panos mergulhados em água gelada nas coxas e nos pés, a fim de baixar a febre.

‑ Então, como vão as coisas? ‑ perguntou Jermak, muito calmo. Ao contrário de Mouchkov, que se comportava como um louco, ele mostrava‑se reflectido e imbuído de uma forte determinação.

‑ É impossível saber ‑ respondeu Loupin, voltando a fechar a porta.‑ Trata‑se de um combate em que ninguém me pode ajudar! Mouchkov e Jermak renovavam a água regularmente.

 à noite, certamente para acalmar a angústia, Jermak decidiu condenar à morte o condutor do trenó, responsável por todos os males, que os conduzira à emboscada armada pelos tártaros e que uma patrulha acabava de descobrir, escondido numa caverna à beira do Toura.

 Infatigáveis, portanto, transportavam baldes de couro num vaivém incessante, enquanto em grandes fogueiras, os caldeirões que habitualmente continham sopa, se encontravam cheios de água a ferver. A meio da noite apareceu o pope Oleg.

 ‑ Já terá morrido? ‑ perguntou ele a Mouchkov, sentado num escabelo, diante da porta fechada, aguardando ordens de Loupin. ‑ Já se pode benzer o corpo? ‑ acrescentou o pope.

 ‑ Arrasto‑te pela barba até te arrancar a cabeça! ‑ vociferou Mouchkov. ‑ Vai para a cama... e sozinho, por uma vez!

 O pope ergueu a mão em sinal de lamento por ouvir tais propósitos, esboçou o sinal da cruz sobre a cabeça de Mouchkov e, em seguida, aplicou‑lhe um murro no nariz.

 ‑ Aprende o que é o respeito, meu filho! ‑ declarou‑lhe, logo que o atingido se conseguiu levantar. ‑ Preciso de ver Alexandre Grigoriévitch! ‑ acrescentou.

 ‑ É ele que está a tratar de Boris Stepanovitch.

 ‑ Mesmo assim, preciso de o ver! ‑ Oleg Vassiliévitch cerrou os punhos. ‑ Ele é, ou não, o sacristão? É a ti que deve obedecer? Se Boris tem os pulmões atacados, seria preferível liquidá‑lo imediatamente, em vez de o fazer sofrer!

 O que Mouchkov ousou então fazer ‑ se considerarmos a questão do ponto de vista eclesiástico ‑ nunca poderá ser perdoado, nem por mil padre‑nossos e dez mil anos de geena: esmurrou o nariz ao pope e expulsou‑o da sala sob uma chuva de insultos. Chegou mesmo a persegui‑lo através da noite glacial até à porta da igreja... para terminar, quando o pope penetrava pela porta que conduzia à iconostase, ainda lhe aplicou um formidável pontapé.

 Na madrugada do dia seguinte, Loupin saiu titubeante do quarto em que se encontrava Marina. Parecia um velho espectro e teve de se apoiar em Mouchkov. Tinha os olhos vermelhos e pisados, tão grande era o seu cansaço.

 ‑ A febre baixou... ‑ balbuciou ele, encostando a cabeça ao peito forte do companheiro. ‑ E já não assobia ao respirar... Agora, oremos.

 ‑ Vai lá tu, velhote! ‑ respondeu Mouchkov, embargado pela angústia. ‑ Pois o pope não consentirá em me ouvir.

 ‑ Não! Tu é que lá vais! Eu fico junto de Marinouchka ‑ Loupin afastou‑se de Mouchkov. ‑ E traz‑nos a sua bênção...

 Mouchkov penetrou na igreja humildemente. Oleg, o pope, acabava de contornar a iconostase quando ouviu passos e se imobilizou, olhando fixamente para Mouchkov.

 Este caiu de joelhos e baixou a cabeça:

 ‑ Poderemos vencer a doença, venerável padre! ‑ balbuciou ele, embaraçado. ‑ Loupin conseguiu que a febre baixasse. Agora, precisamos do auxílio do Senhor: fui encarregado de pedir a tua bênção...

 ‑ O senhor também está contigo, Ivan Matveiévitch! ‑ declarou o pope cossaco na sua voz profunda.

 Aproximou‑se e colocou‑se, de pernas abertas, diante de Mouchkov, que se ajoelhara e lançava ao pope um olhar inquieto.

 Em seguida, Mouchkov foi atingido por uma saraivada de murros, não se tendo defendido, pois necessitava da bênção do pope Oleg. Desfaleceu, desceu três degraus da igreja rolando sobre si mesmo e, de cada vez, a cada pontapé recebido, pensava com fervor: "Marinouchka, sofro por ti! Vamos! Agora nas costelas! Marina, cura‑te! Ai! agora na nuca! Marina, amo‑te..."

 Quando Oleg se cansou até mais não poder de sovar o paroquiano, deu‑lhe a bênção e chegou mesmo a erguer Mouchkov, a fim de que este pudesse sair da igreja bem direito. Com um olho negro, os lábios inchados e nódoas negras por todo o corpo, Mouchkov reapareceu na residência do príncipe Iepoutcha.

 ‑ Trago a bênção, velhote ‑ declarou ele a Loupin, com alguma dificuldade.

 Titubeante, penetrou no quarto em que Marina dormia, envolvida em panos até ao pescoço. Já não parecia condenada a morrer. Pelo menos, foi essa a sua impressão.

 Loupin olhava‑o, admirado, prometendo castigar o pope Oleg...

 ‑ Posso... posso... beijá‑la? ‑ balbuciou Mouchkov, caindo de joelhos ao lado de Marina.

 ‑ Podes.

 ‑ Obrigado, velhote. ‑ Mouchkov debruçou‑se e deu um beijo nas pálpebras descidas de Marina. Ao erguer‑se, pareceu‑lhe que Marina sorria, adormecida.

 

 Ainda há milagres neste mundo, como prova o facto de Marina ter sobrevivido a uma congestão pulmonar e ter podido abandonar o leito ao cabo de seis semanas.

 Mais transportada que apoiada em Mouchkov, Marina deu os primeiros passos e Jermak mandou preparar uma refeição festiva. Loupin mantivera‑se permanentemente à cabeceira da filha e só graças à sua presença se não descobriu quem era, na realidade, o jovem adjunto Boris Stepanovitch.

 Antes de Marina se sentir suficientemente forte para se levantar, Mouchkov cortou‑lhe outra vez o cabelo e, assim, nada mudou no aspecto exterior de Marina, exceptuando o

facto de ter perdido dez libras de peso, o que a tornava de aspecto ainda mais frágil.

 Mas, surgira um acontecimento novo: Oleg Vassiliévitch Koulakov, o pope cossaco, também se encontrava de cama, e há três semanas. Sobre a sua doença, relatava os mais terríveis sintomas. De facto, fora atacado impiedosamente por alguém quando se encontrava deitado. Fora marcado nas nádegas por um ferro em brasa, como as vacas. O pope não vira ninguém, porque estava bêbedo e, quando sentiu a dor provocada pela queimadura já era demasiado tarde e o brincalhão, autor da malvadez, desaparecera.

 

 O pope estava certo da inocência de Mouchkov, pois ele nessa noite encontrava‑se em companhia de Jermak, a discutir a necessidade de constituir novas patrulhas e de reforçar as já existentes. Cada vez mais numerosos e ousados, os velozes cavaleiros de Mametkoul assaltavam, com efeito, os transportes de abastecimento que os Stroganov enviavam através dos Urales em direcção aos postos dos cossacos.

 Loupin tratou a marca feita a ferro no corpo do pope como se este fosse um cavalo. Mas, como o pope não era um cavalo, a ferida infectou e Oleg teve de se deitar de ventre para baixo sem desconfiar de que o bom samaritano Loupin, que agora o besuntava com unguentos, era justamente o responsável pela sua desgraça... abrasadora!

 ‑ Se não estivesses aqui... ‑ chegava ele a dizer a Alexandre Grigoriévitch ‑, mesmo assim, faria de ti um diácono...

 

 Chegou a Primavera. O gelo estilhaçava‑se à superfície do Toura e dissolvia‑se em massas glaucas; a neve derretia, as terras impregnavam‑se de água, transformavam‑se em vastos pântanos. Os caçadores, novamente activos, anunciaram que um exército acampara perto do rio Tobol. E os Stroganov fizeram constar que, nesse mesmo ano, contavam com a conquista definitiva de Mangaseja. Corria o ano de 1582.

 Os cossacos aperfeiçoaram os seus barcos e construíram novas jangadas. Também salgaram alimentos e armazenaram os sacos de aveia torrada enviada pelos Stroganov. Simultaneamente, conservaram milhares de peixes, que secaram ao sol, o que provocava um indescritível fedor.

 Depois, no mês de Maio, apareceu um enviado do bispo de Ouspensk, que celebrou ao ar livre uma missa solene, nomeou Loupin diácono e aspergiu com água benta todos os barcos e jangadas.

 Iniciava‑se, assim, uma nova expedição. Em primeiro lugar, teriam de descer o Toura até ao Tobol, depois até ao Irtych e, por fim, até ao rio Ob, onde se situava o coração de Mangaseja, o paraíso desconhecido em que se podia capturar à mão uma raposa prateada e estrangulá‑la. Nessa região, abundavam os animais.

 Mas, nas margens do Tobol, esperava‑os Mametkoul, com os seus dez mil cavaleiros.

 Na elevação do Irtych encontrava‑se estacionado o exército de Koutchoum, composto pelos melhores guerreiros tártaros. à volta de Sibir, a capital do czar siberiano, tinham‑se cavado grandes fossos e erguido enormes muralhas. Dos confins do país chegavam constantemente novos reforços de combatentes, alertados pelos emissários de Koutchoum. Nenhum chefe regional deixou de responder ao apelo de Koutchoum; os tártaros da estepe de Baraba, o cã Goulei Moursa, os príncipes Janbych, Bardok, Nemtch, Binei e Obak. Por fim, apareceu na margem do Irtych o príncipe Oumak e os seus cavaleiros lanceiros.

 Goulei Moursa viera do Sul, de muito longe, a fim de ajustar contas antigas com Jermak. O príncipe Janbych comandava os seus famosos archeiros e as tropas de Oumak lançavam dardos incendiados. Um exército inteiro reunia‑se para aniquilar alguns cossacos a pé. Nas margens do Toura surgiam de vez em quando batedores que acompanhavam, durante parte do itinerário, o estranho séquito de barcaças e jangadas cossacas, desaparecendo em seguida. Por diversas vezes, Jermak enviou o barco de atiradores alemães para junto da margem, ordenando‑lhes que disparassem algumas salvas... os cavaleiros de raça amarela, em pânico, regressavam velozmente para o Tobol.

 O czar Koutchoum, rodeado pelo seu exército e príncipes fiéis, escutava os relatos dos cavaleiros enviados como observadores, considerando que estes relatos continham uma estranha ressonância.

 ‑ Um incomensurável exército russo vem a descer o rio de barco! ‑ anunciavam os cavaleiros. ‑ Os barcos e as jangadas são tantos que nem se vê a superfície da água! à frente, vem um barco cujas velas são de um vermelho sangrento... Um grande arauto, instalado na proa toca uma corneta dourada!... Guerreiros de arcos de prata lançam flechas de fogo e sempre que uma flecha é disparada eleva‑se uma nuvem de fumo, enquanto pelo céu ressoa um trovão que abala homens e árvores... Que devemos fazer, Sublime Czar?

 Koutchoum reflectia. Acreditava nestas informações, pois os homens que tinham escapado às escaramuças do Inverno contavam as mesmas coisas. Os Russos possuíam a faculdade de desencadear trovões, era uma característica a que teriam de se habituar! Que sabia Koutchoum sobre canhões? Quem suscitava os trovões e parecia comandar os céus eram os artilheiros alemães, instruídos nas províncias da Livónia do czar Ivan IV.

 Em meados de Maio, quando os dias já estavam mais quentes e as matas nas margens davam lugar às estepes verdejantes, os cossacos avançaram pelo rio Tobol. Contemplavam com nostalgia as grandes extensões de erva que lhes recordavam as estepes de Don e do Volga.

 Atingiram o Tobol de estandartes desfraldados, batidos pelo vento. O navio da frente ostentava a bandeira de Cristo, imagem piedosa resultante dos milhares de pontos das bordadeiras da família Stroganov.

 Na margem, formando uma longa fila, as tropas de cavaleiros tártaros seguiam‑nos. Visão que se tornara familiar e já não preocupava ninguém, para além de Mouchkov e Loupin, sempre inquietos com qualquer suspeita que pudesse recair sobre Marina.

 De vez em quando, alguns barcos, acostavam em geral de noite. Bandos de cossacos saltavam tumultuosamente para terra e faziam alguns prisioneiros. Estes eram interrogados por intérpretes e foi assim que Jermak soube sempre as últimas novidades. Em seguida, os prisioneiros eram libertados.

 ‑ Depois de nós, virá um exército quarenta vezes superior ‑ disse ele aos prisioneiros. ‑ Informem Koutchoum de que nós, os Russos, somos invencíveis!

 Contudo, uma vez chegados ao Tobol, tiveram de interromper a digressão. Vinda da margem do rio, uma chuva de lanças e flechas obrigou‑os a parar e, além disso, os rápidos impediam a navegação. Foi necessário puxar os barcos e as jangadas para terra e transportá‑los para lá das cataratas, para então os voltar a mergulhar em águas mais clementes. Mas, assim, renunciaram ao combate com o exército tártaro que, na arriba, espreitava os cossacos...

 Tratava‑se apenas de uma parte do exército de Mametkoul, sob as ordens do príncipe Tausan.

 ‑ Acostemos! ‑ ordenou Jermak, depois da frota russa ter estado um dia inteiro ancorada no Tobol. No grande barco de Jermak encontrava‑se uma centena de combatentes, ouvindo as suas instruções. O desembarque deveria realizar‑se por vagas sucessivas. O primeiro grupo incumbir‑se‑ia da mais rude tarefa e sofreria mais perdas.

 ‑ É obra de um homem digno desse nome! ‑ declarou Jermak quando discutiram o plano do desembarque.

‑ Ivan Matveiévitch, encarrega‑te do primeiro grupo!

 ‑ Quando pisarmos terra firme, os outros poderão ir passear! ‑ completou orgulhosamente Mouchkov, olhando de soslaio para Marina, que continuava atrás de Jermak e o fixava com os grandes olhos azuis, mordendo os lábios. No barco ao lado ‑ o navio‑capela que compreendia um altar ‑ Oleg Vassiliévitch, o pope, repetia com o novo diácono um salmo particularmente exaltante. Era evidente que o pope se juntaria ao primeiro grupo no desembarque. Poder‑se‑ia pensar dele o que se quisesse, mas cobarde não era!

 ‑ Esta noite, quatro barcos atravessarão o rio e serão arrastados, em silêncio, para a margem oposta ‑ ordenou Jermak ‑ Com esses barcos, formem um bastião e, enquanto os tártaros atacarem, deslizaremos para jusante.

 Tratava‑se, pois, de um comando‑suicida, de uma testa de ponte que deveria atrair o inimigo a fim de desviar a sua atenção.

 ‑ Aguentaremos! ‑ disse Oleg a Mouchkov quando, no início da noite, remavam tão silenciosamente quanto possível em direcção à margem. ‑ Deus marcou‑me... até agora, só tu o sabes...

 ‑ Onde? ‑ perguntou Mouchkov, incrédulo.

 ‑ Na nádega esquerda! ‑ Oleg Vassiliévitch meneou a cabeça, num gesto solene. ‑ Loupin ajudou‑me a ver, por meio de um pedaço de espelho: a cicatriz reproduz a palavra paz! Venceremos, irmão!

‑ Sempre em silêncio, avançaram para terra firme: quatro barcos carregados de oitenta cossacos e um pope.

 Mouchkov pensou em Marina, que ficara com Jermak e benzeu‑se. Puxaram os barcos para terra e não depararam com nenhuma resistência, não viram nenhum tártaro. Com os barcos, construíram uma muralha circular. Depois, puseram sentinelas de guarda, enviaram sinais de luzes a Jermak por meio de um archote e, por fim, estenderam‑se no chão, dispostos a dormir. Mouchkov enrolou‑se numa manta e sentiu‑se muito feliz por Marina não ter vindo.

 Encontrava‑se no estado que precede o sono quando se apercebeu de que alguém lhe puxava pelo cobertor e deslizava para junto da tepidez do seu corpo. Mouchkov sentiu‑se tão surpreendido que se esqueceu de gritar.

Limitou‑se a avançar a mão para apertar o pescoço do demente que assim se introduzia a seu lado: apalpou uma pele suave, aveludada, dois seios, uma perna nua que pousou sobre o seu corpo.

 ‑ Marinouchka... ‑ balbuciou ele.

 ‑ Sou tua mulher... ‑ murmurou ela; e Ivan teve a impressão de que Marina chorava. ‑ Amanhã, talvez já não me seja possível sê‑lo. Haverá um amanhã para nós? Importa lançar um véu de pudor sobre um acto de amor que, a partir daí, ligou Mouchkov e Marina por toda a vida.

 A sua felicidade era total, embora pesasse sobre o seu deslumbramento uma profunda tristeza. à sua volta aguardavam os cavaleiros velozes, cruéis, do czar siberiano Koutchoum, exército de dez mil homens, perante o qual mil cossacos de Jermak faziam uma triste figura.

A manhã do dia seguinte seria decisiva: saber‑se‑ia se aqui, no Tobol, terminaria a conquista da Sibéria, assim como o amor de Marina e Ivan.

 Amavam‑se com uma ternura da qual nunca ninguém julgaria capaz o selvagem Mouchkov. Sonhara com aquele momento quase durante dois anos e o sonho tornara‑se realidade! Abraçavam‑se um ao outro com o desejo de serem trespassados pela mesma lança durante este acto apaixonado, já que teriam de morrer...

 A ideia constantemente acalentada por Loupin, essa evasão que os faria voltar para trás através dos Urales, desaparecendo em seguida na imensa Rússia, tornara‑se impraticável. Os quatro barcos sobre os quais se abrigavam não passariam de uma fraca protecção quando a vaga furiosa dos cavaleiros de raça amarela desabasse sobre eles! Oitenta cossacos e um pope contra quatro mil tártaros, talvez... O melhor seria nem pensar.

 Continuavam, pois, abraçados, marido e mulher, para a eternidade.

 Exceptuando as sentinelas cossacas que se encontravam de guarda, prestes a dar o alarme quando os tártaros atacassem, todos dormiam de momento, mesmo Marina e Mouchkov. Oleg, o pope, deitara a cabeça sobre a bandeira da igreja, com o grande rosto de barba hirsuta sobre o rosto de Cristo e, nessa noite, Deus aceitou a promiscuidade por se tratar do famoso Koulakov.

 Quanto a Jermak, velava pelo barco ancorado no Tobol, perscrutava cuidadosamente a estepe, assim como as longínquas fogueiras dos tártaros e, quanto mais reflectia sobre o seu plano de combate, mais lhe doía o coração, em particular quando pensava no seu amigo Mouchkov.

 ‑ Que se deve fazer? ‑ perguntava constantemente a si mesmo. ‑ Sacrificar oitenta homens para poupar a vida de centenas de outros? Ou formar em linha e atacar as margens do rio correndo o risco de enormes perdas?

 Loupin, que se encontrava no barco‑capela ancorado ao lado do grande barco de Jermak, trepou até ao rebordo e veio sentar‑se junto do chefe. à sua volta, estendidos nas tábuas das jangadas e dos barcos, os cossacos dormiam ou, ansiosos como Jermak, vigiavam o inimigo à distância. Um cossaco não é um cobarde, mas também ninguém o pode impedir de pensar e, quem soubesse contar, não podia deixar de sentir um aperto no peito: dez mil cavaleiros contra mil cossacos a pé! A bênção dos popes não resolveria nada: possuirá Deus uma espada destinada a decepar crânios tártaros?

 Em geral, os pais pensam agir sempre no interesse dos filhos. Loupin também, ao perguntar sem segundas intenções:

 ‑ Onde está Boris Stepanovitch?

 ‑ Não sei ‑ respondeu Jermak, taciturno. - Quando falei com a tripulação vi‑o ao pé da vela, mas já lá não está!

 ‑ Deve ter partido para terra, na companhia de Mouchkov... ‑ balbuciou Loupin, desalentado. ‑ Jermak Timofeiévitch, podes estar certo de que está com eles...

 ‑ Impossível, vi‑os partir, pois encontrava‑me no cimo de um dos barcos! Boris não estava lá!

 ‑ Então, seguiu‑os depois...

 ‑ Não falta nenhuma barcaça...

 Loupin pousou as mãos sobre o coração, que parecia saltar‑lhe do peito:

 ‑ Atravessou o Tobol a nado, Jermak Timofeiévitch, Boris é um bom nadador... disse‑me uma vez... Muitas vezes, em Novo Orpotchkov, nadava até aos bancos de areia, para apanhar salmões à mão!

 ‑ Mandá‑lo‑ei chicotear! ‑ respondeu Jermak, ofegante. ‑ Recebeu ordens de ficar junto de mim! Não tolero desobediências!

 ‑ Bem podes mandar chicotear o seu corpo mutilado ‑ replicou Loupin, soluçando. ‑ Amanhã, que restará deles? Saberás dizer‑me?

 Jermak não respondeu. Os seus lábios crisparam‑se: "Mouchkov e Boris... vou perder os dois..." pensava ele, e cerrou os punhos com tanta força que as falanges estalaram. "Loupin tem razão: o malandro atravessou o Tobol a nado para se juntar ao amigo Mouchkov. Trata‑se simultaneamente de insubordinação e coragem. Que dizer?"

 ‑ Vai para a tua barcaça, velhote ‑ aconselhou Jermak, pensativo. ‑ Amanhã, terás muitas orações a rezar... Talvez altere os meus planos. Diz aos artilheiros alemães que estejam prontos: talvez ainda esta noite tenham de ir a terra. Se ganharmos, só poderá ser com o trovão dos céus, como os tártaros chamam aos canhões!

 Aliviado, Loupin sentiu subitamente vontade de beijar Jermak, tão grato se sentia o seu coração de pai. Mas conteve‑se, trepou até ao rebordo do barco e desceu para a barcaça que funcionava como local sagrado, apressando‑se a transmitir a mensagem aos artilheiros alemães e livónios.

 Quanto a Jermak, num barquinho muito pequeno, remou sozinho até à margem e acostou no local em que se encontravam reunidos e aguardando os oitenta candidatos ao suicídio. Queria conferenciar mais uma vez, antes do amanhecer, com Mouchkov.

 Para começar, foi assaltado por duas sentinelas cossacas, que o derrubaram. Quando se aperceberam do erro cometido, arrepelaram os cabelos, mas Jermak felicitou‑os e partiu sozinho para o pequeno forte constituído pelos barcos justapostos.

 Não lhe foi difícil encontrar Mouchkov, bastou‑lhe dirigir‑se para o ponto donde vinha o poderoso ressonar do pope Oleg Vassiliévitch. Tendo avistado, com um esgar trocista, o rosto do pope contra a santa imagem do Salvador, descobriu Mouchkov alguns passos adiante, enrolado no seu cobertor.

 Jermak deteve‑se, então, considerando e encarou o amigo, na mais penosa confusão. Junto de Ivan, debaixo da mesma manta, encontrava‑se Boris Stepanovitch, ambos nus. E estreitamente enlaçados. Jermak não distinguia pormenores, apenas o tronco nu de Mouchkov e, abraçado a ele, como um cachorro adormecido, o louro Boris, cuja cabeça repousava no seu ombro. De resto, deste último, Jermak apenas via as costas nuas, brancas, através da penumbra.

 Mudo, literalmente possuído por tal visão, Jermak devorava com os olhos os dois rapazes. Não se pronunciou, não os destapou, não pegou no chicote que trazia sempre à cintura, e cujas tiras de couro terminavam em garras de aço, sentiu‑se simplesmente acossado, como perante um sentimento de luto indescritível em relação ao amigo, capaz de tais desvios: um cossaco fazendo amor com um rapaz... parecia‑lhe de tal modo absurdo que Jermak se esqueceu de reagir com toda a sua crueldade pessoal.

 "Deixá‑los‑ei morrer em combate", limitou‑se a pensar, "morrer honradamente. Custar‑me‑ia enforcar Mouchkov e Boris, mas também não irei em seu auxílio quando os tártaros os atacarem. Ivan Matveiévitch, como podes proceder assim?"

 Voltou atrás, passou perto de Oleg e apertou‑lhe o nariz. O pope, incapaz de respirar, sobressaltou‑se e, recordando‑se do incidente nocturno que lhe valera uma marca de ferro em brasa, tentou debater‑se, mas Jermak pegou‑lhe a tempo nos pulsos e estendeu‑o no chão.

 ‑ Sou eu, Oleg Vassiliévitch ‑ murmurou ele, muito baixinho.

 ‑ Jermak! ‑ O pope acalmara‑se. ‑ Que se passa? Mudaste de ideias?

 ‑ Aconselho‑te a regressares ao rio ‑ sussurrou Jermak ‑, porque aqui morrerás.

 ‑ E os outros?

 Jermak calou‑se, o que constituía resposta suficiente.

 O pope meneou a cabeça.

 ‑ Sou sacerdote ‑ disse ‑, como poderia abandoná‑los? Combatem sob a bandeira do Senhor. Jermak Timofeiévitch, por quem me tomas?

 ‑ Perderei, então, três amigos ‑ respondeu Jermak, angustiado. ‑ Não sei que fazer.

 ‑ Três amigos? ‑ repetiu pope, erguendo‑se.

 Ao longe, a oriente, surgiram os primeiros alvores. Era de madrugada.

 ‑ Serei um lobo solitário, Oleg Vassiliévitch, mortífero e cruel. Deus te guarde! ‑ Jermak aprumou‑se, lançou mais um olhar a Mouchkov e Boris e mordeu o lábio inferior. A pele nua dos dois rapazes brilhava na escuridão. "Que desfaçatez!" pensava ele, amargurado. "Têm de morrer..."

 Dirigiu‑se para a margem do rio, sentou‑se no bote e remou em direcção ao grande barco do chefe. Loupin aguardava‑o.

 ‑ Viste Boris?

 ‑ Está com Mouchkov! ‑ respondeu Jermak, num tom duro. ‑ E com Mouchkov ficará! ‑ acrescentou.

 ‑ Sempre é verdade que atravessou o rio a nado?

 ‑ É, tal era a pressa de se juntar ao amigo Ivan!

 Agora, o coração de Jermak batia descompassado: apoderara‑se dele uma raiva surda. Lamentava não ter abatido de imediato os dois cúmplices.

 ‑ E... vais deixá‑los morrer? ‑ balbuciou Loupin.

 ‑ Vai‑te embora para a tua barcaça de imagens sagradas! ‑ gritou Jermak, atingindo o paroxismo do sofrimento. ‑ És diácono e médico de cavalos, mas não és cossaco! Deixa‑me em paz, velho!

 Pouco depois, os artilheiros alemães desembarcavam com as três peças de artilharia, que montaram em terra, reunindo balas e barris de pólvora e carregando os canhões pela boca. Em seguida, acenderam fogueiras para os bota‑fogo, sentaram‑se junto dos barris e comeram peixe grelhado mas frio, para ganhar forças.

 No horizonte, a noite desvanecia‑se aos poucos, surgiram zonas claras no céu, o dia deslizou pela estepe verdejante e os primeiros alvores permitiram avistar o acampamento dos tártaros.

Tendas contra tendas, feitas de peles curtidas e esticadas ao alto, um mar tumultuoso de cavalos, nuvens de fumo elevando‑se de centenas de fogueiras, uma floresta de lanças... O príncipe Tausan, o comandante‑chefe deste exército, reunia os cavaleiros, enquanto Mametkoul aguar dava mais ao longe, à beira do Tobol. Foi então que os cossacos descobriram outra coisa: os tártaros não só se encontravam estacionados à sua frente, como também lateralmente se avistavam aglomerados de tendas, que começavam a desenhar‑se nas brumas matinais.

 O plano de Jermak, que consistia em desviar os tártaros e, em seguida, desembarcar mais adiante, tornara‑se impraticável. Tão longe quanto se podia ver, os cavaleiros de Koutchoum aguardavam, ao longo do rio Tobol.

‑ Devemos retirar? ‑ perguntou um dos adjuntos de Jermak.

 Nos barcos, encontravam‑se os outros popes, entoavam‑se coros de igreja. Loupin, o novo diácono, mantinha‑se em frente do altar e rezava uma oração com tanto fervor que as lágrimas lhe deslizavam pelas faces enrugadas. ‑ Retirar? ‑ repetiu Jermak perante os homens da sua centúria.‑ Essa palavra existe, irmãos? Vamos, em frente! Cantando ‑ e mil vozes se elevaram ao mesmo tempo, criando uma espécie de furacão ‑ os cossacos desembarcaram na margem do Tobol. Em longas filas de várias linhas, os cavaleiros do príncipe Tausan lançaram‑se ao seu encontro.

 

Mouchkov foi o primeiro a acordar porque, perto dele, o pope Oleg cravava no chão, tossindo muito alto, o estandarte de Cristo. Mouchkov puxou energicamente pelo cobertor e tapou as costas nuas de Marina.

 ‑ Bom dia, respeitável padre ‑ cumprimentou ele ‑, logo de manhã tão ruidoso?

 ‑ A aveia torrada mata‑me! ‑ vociferou o pope. ‑ Trago os intestinos inchados como odres! Vamos, cossacos, de pé, chegou o dia da vitória! Aleluia!

 Na desordem do despertar geral, ninguém viu Marina, que se vestiu rapidamente debaixo do cobertor de Mouchkov. Quando se levantou, voltara a ser o esbelto adjunto Boris Stepanovitch. Mouchkov ainda vagueava à sua volta, de tronco nu, rosto brilhante da felicidade que vivera durante a noite, da realização dos seus sonhos, e esta alegria era mais forte do que a iminência da morte.

 ‑ Lá estão eles, os tártaros! ‑ gritou ele. ‑ Mantenham o sangue‑frio, irmãos, deixem‑nos aproximar o suficiente e desencadearemos um ataque tão cerrado que julgarão que a terra está a explodir! Calma, meus amigos, calma!

 Mas, subitamente, deixaram de estar sozinhos. Os camaradas surgiam de todos os lados, arrastando armas pelas margens do rio, trazendo as barcaças para terra firme e barricando‑se atrás dessas grandes embarcações de tábuas que, erguidas umas contra as outras, formavam uma barreira que nenhum cavaleiro conseguiria transpor. A táctica dos Stroganov, que consistia em conquistar a Sibéria, não a cavalo, mas de barco, revelava‑se extremamente astuciosa.

 Assim, um milhar de homens arrastaram através da Sibéria as suas fortalezas de madeira ‑ supremo esforço, único no género!

 De todos os lados surgiam ordens. Os atiradores experimentavam as armas de fogo, os popes, um por cem homens, erguiam as cruzes espetadas no cimo dos piques, os porta‑estandartes desfraldavam auriflamas e imagens sagradas. Entre duas barcaças erguidas ao alto, mantinham‑se perfeitamente calmos os artilheiros alemães e livónios, prontos para utilizarem as suas peças de artilharia.

 Arvorando uma expressão sinistra, Jermak penetrou no pequeno bastião formado por barcos em que Mouchkov e Marina tinham passado a noite. Oleg Vassiliévitch, o pope, trocara a cruz contra uma pistola de cavaleiro e um punhal de lâmina curva. Mouchkov e Marina, ajoelhados atrás de um barco, vigiavam os tártaros.

 ‑ Agradeço‑te por teres vindo em meu auxílio, Jermak Timofeiévitch! ‑ disse Mouchkov, quando Jermak lhe acenou para conversarem longe dos outros.

 ‑ Como é que Boris Stepanovitch veio aqui parar? ‑ perguntou Jermak, sem dar mostras de ter ouvido os agradecimentos.

 ‑ Apareceu de repente.

 ‑ Quando?

 ‑ De manhã, quando o pope nos acordou, já se encontrava de pé no acampamento... ‑ mentiu Mouchkov, aparentando um ar inocente. ‑ Perguntei a mim mesmo o que estarias tu a preparar, enviando‑me assim o teu adjunto? Mas agora já sei: mudaste de ideias, não queres condenar à morte um velho amigo.

 Jermak conservava‑se em silêncio. "Que se passa com Ivan Matveiévitch?..." pensava ele, contristado. "Mente‑me, trai o melhor amigo, partilha o mesmo cobertor com um rapazola! Se não se tratasse de Mouchkov, cortava‑lhe o pescoço com um golpe de sabre! Esfalfámo‑nos durante doze anos através da Rússia, do Volga ao mar Negro, das estepes do povo Negai às pastagens dos moscovitas. O czar condenou‑nos à morte, fomos perseguidos como feras e conseguimos sempre escapar."

 "Ivan Matveiévitch, dá graças ao Senhor se morreres nesta batalha, poupa‑me o dever de matar o meu melhor amigo..."

 Era um dia claro de Maio, sem nuvens, uma cintilante manhã de Primavera. A erva da estepe brilhava, muito verde mas, para lá dessa extensão que estreitava cada vez mais, só havia cavalos e cabeças gritando impropérios.

 Os tártaros avançavam.

 Os artilheiros abandonaram a sua impassibilidade e prepararam‑se para lançar fogo às peças. Os atiradores apontaram para o inimigo e, a seu lado, os soldados de infantaria espetaram as lanças de través no solo, formando assim uma barreira acerada na qual se viriam empalar os cavaleiros asiáticos.

 O príncipe Tausan cavalgava na fila da frente.

 ‑ Por Alá e pelo seu profeta! ‑ gritara ele, dando o sinal do ataque. Como Koutchoum, era muçulmano, mas os seus cavaleiros ‑ a quem pedia que morressem pelo profeta ‑ pensavam de modo diferente. Vindos dos confins da Ásia, sucessores do grande Gengiscã, filhos dos longos rios de vagas prateadas e do deserto, das estepes infindas e das florestas silenciosas, em que lhes poderia interessar Alá? Aniquilar os Russos, cortar‑lhes o pescoço, apoderarem‑se das suas armas... só isso contava. O que é, então, um profeta?

 Jermak permitiu que os cavaleiros asiáticos avançassem até se encontrarem ao alcance das armas. Ergueu então o seu sabre bem alto e os artilheiros lançaram fogo às peças. Imaginem o espectáculo de um céu puro, de um sol radioso, de um azul infinito no qual, subitamente, explodem raios e trovões... Foi o que aconteceu. Estrondos fantásticos, enormes explosões encheram a atmosfera, ergueram‑se fumos e nevoeiros e, depois, a mão celeste abateu‑se sobre as filas de cavaleiros inimigos e abriu três brechas terríveis... seguidas de uma saraivada crepitante que matava redondamente homens e cavalos.

 Os atiradores de armas de fogo encontravam‑se distribuídos por quatro grupos e, depois do último homem ter disparado, os bacamartes do primeiro grupo já estavam novamente prontos para atirar, semeando a morte nas fileiras tártaras.

 Hoje em dia, falar‑se‑ia de uma linha de tiro... mas, em 1582, os tártaros pensaram apenas na intervenção de uma força supraterrestre!

 A trovoada, a chuva de aço, era de mais para os peque nos cavaleiros asiáticos. Deram meia volta nas suas montadas e fugiram a galope pela estepe adiante. Só um pequeno grupo de cerca de duzentos cavaleiros se manteve ao lado do príncipe Tausan. Era a guarda montada pessoal de Koutchoum, que viera reforçar o confronto.

 Quanto aos artilheiros alemães, continuavam a carregar as peças com os seus gestos rápidos e o seu domínio absoluto, apontando de novo os canhões.

 Jermak, que continuava perto de Mouchkov e Marina, aplicou uma palmada nas costas de Marina:

 ‑ Metade de cada formação ao assalto! ‑ gritou ele.

 ‑ à frente, os besteiros Vá, corre, filho da mãe.

 Marina preparava‑se para transmitir as ordens de Jermak, quando Mouchkov a reteve:

 ‑ Eu encarrego‑me disso! ‑ declarou ele.

 ‑ Foi a Boris Stepanovitch que dei ordens! ‑ vociferou Jermak. ‑ Ele sabe correr!

 ‑ Eu sou mais veloz, Jermak!

 ‑ Deixa‑o! ‑ Jermak deu uma palmada no braço de Mouchkov com tanta violência que este sentiu os dedos paralisados. Largou Marina, que se afastou, correndo, acompanhada por uma chuva de flechas lançadas pelos cavaleiros de Tausan.

 ‑ Tens medo de que lhe aconteça alguma coisa, não é? ‑ rugiu Jermak, apertando o pescoço de Mouchkov com as duas mãos. ‑ Podia ser atingido por uma flecha, o querido! Quanto a ti, corre em direcção oposta! Corre para os tártaros e trata de ser atingido mortalmente!

 Com os olhos a sair das órbitas, sufocado e horrorizado com o aspecto do rosto de Jermak, desfeito pelo ódio, Mouchkov encarou o amigo, mas depois afastou‑se no sentido da muralha constituída pelos barcos. Instintivamente, pegou no punhal curvo, enquanto Jermak também retirava o seu da cintura ‑ e mais depressa do que Mouchkov.

 ‑ Qual de nós dois sobreviverá, Ivan Matveiévitch?

 Os olhos de Jermak lançavam chispas e Mouchkov pensou, horrorizado: "A queda no solo gelado desarranjou‑lhe o juízo, já não é Jermak, o meu amigo, é um animal que se assemelha a Jermak! Deus nos ajude! Como poderemos conquistar Mangaseja com ele neste estado?"

 ‑ Estás louco, Jermak! ‑ balbuciou Mouchkov.

Uma nova salva de artilharia interrompeu‑o. Jermak apenas viu que Mouchkov mexera os lábios. Nesse momento, Ivan Matveiévitch, empunhando o sabre, avançou para ele, prestes a atacar.

 ‑ Depois não digam que um pope só serve para rezar e distribuir bênçãos!

 Oleg, habituado à violência dos seus cossacos, não procurou saber o que se passava entre os dois contendores. Usando de toda a sua força, assentou o pau da bandeira na cabeça de Jermak e aplicou um formidável pontapé no ventre de Mouchkov. Quando os dois homens caíram por terra, desfalecidos, soltou um grunhido de satisfação e regressou para junto dos artilheiros, gritando na sua voz de baixo:

 ‑ Pela vitória do Salvador... em frente!

 Era o que Jermak teria ordenado...

 Foi assim que o príncipe Tausan e sessenta e nove dos seus cavaleiros se constituíram prisioneiros dos cossacos. Extenuados, deixaram‑se escorregar das selas e aguardaram o golpe mortal. Mas ninguém lhes tocou, o que era uma novidade para os tártaros.

 ‑ Os prisioneiros são nossos aliados ‑ decretava Jermak antes do combate. ‑ Propagarão a nossa glória por todo o país!

 Guerra psicológica ‑ chamar‑se‑ia nos nossos dias.

 Nessa manhã, os cossacos apoderaram‑se, pois, de todo o séquito do príncipe, apenas dezanove cavalos, embora secretamente esperassem mais; mas, por outro lado, entraram na posse de muitas armas, tendas, todo um rebanho de carneiros, pipas de mel, chá e até um harém de campanha contendo dezassete encantadoras jovens da Mongólia, de olhos fogosos.

 ‑ Confiscado! ‑ declarou o pope Oleg, o primeiro a chegar ao local, farejando a presença deste sedutor tesouro como o camelo fareja água no deserto. ‑ Que o fogo do céu aniquile quem lhes tocar! Alexandre Grigoriévitch, abre os olhos!

 Loupin, pai feliz que vira regressar do combate a sua Marina bem viva, encarregou‑se de colocar duas sentinelas diante da tenda das mulheres e colocou‑se a si mesmo no centro desta assembleia de jovens criaturas, intimidadas mas ruidosas, que lançavam olhares intrigados. E Loupin perguntava a si mesmo se o pope resistiria a tanto trabalho...

 Jermak e Mouchkov, estendidos no fundo de um barco, recobraram os sentidos depois de ganha a batalha. As tropas cossacas já se tinham lançado ao assalto dos acampamentos tártaros e entregavam‑se à pilhagem.

 Os dois adversários olharam‑se em silêncio. Tiveram ambos o mesmo pensamento: obteve‑se uma grande vitória sem a nossa presença! Nós, os condutores dos cossacos! Quando os outros souberem, matam‑se a rir!

 ‑ Jermak Timofeiévitch... ‑ articulou Mouchkov, hesitante. ‑ Vou matar o pope!

 ‑ Vamos ficar calados, Ivan Matveiévitch ‑ respondeu Jermak, com a voz embargada. ‑ Já soubemos calar‑nos por outras razões...

 Uma hora mais tarde, Jermak concedia uma audiência ao príncipe Tausan, seu prisioneiro. Espetados em lanças, assavam‑se os primeiros cabritos; os religiosos celebravam missas de acção de graças; só o pope dos cossacos não comparecera à festa. Encontrava‑se deitado num divã, na tenda das mulheres, rodeado por dezassete exóticas, .esbeltas e ruidosas mongóis.

 Por que se dirá que só se alcança o paraíso depois da morte?

 

 à noite ‑ Mouchkov fora enviado com um destacamento para escolher o novo local de embarque ‑ Jermak levantou‑se para ir à procura do seu adjunto Boris Stepanovitch. Tomara uma decisão... sentia‑se mais preso ao seu velho amigo, que conhecia desde sempre, do que a este rapazelho louro e atraente das margens do Volga.

 Encontrou Marina no campo de batalha, onde ainda havia feridos. Ninguém se preocupava com eles. Começaram por gritar, depois passaram a gemer e, agora, silenciosos, resignados, aguardavam o destino. Marina sentara‑se no meio deles, na sela de um cavalo, e aplicava um penso num tártaro, cuja perna se encontrava dilacerada. Reconhecido e ao mesmo tempo surpreendido, o asiático observava o caritativo cossaco.

 ‑ Andas à procura de outros homens? ‑ inquiriu Jermak, grosseiro, dirigindo‑se a Boris. ‑ Já não te basta um cossaco? Agora precisas de um tártaro?

 Deu um pontapé no ferido, que rebolou pelo chão, detendo‑se junto de um cavalo morto que se encontrava mais atrás. Ali ficou, todo dobrado. Marina não disse uma palavra; calmamente, pôs no chão o pano de algodão com que tencionava envolver a perna do ferido, retirou da cintura o punhal curvo e, também com muita calma, pousou‑o nos joelhos, atravessado. Os olhos de Jermak pestanejavam.

 ‑ Pretendes lutar comigo? ‑ perguntou ele, numa voz perigosamente suave. ‑ Tu, filho da mãe, ousas provocar‑me?

 ‑ Uma vez, chamaste‑me irmão. ‑ Marina encarou Jermak de frente. ‑ Ignoro como fala Jermak aos seus irmãos, mas espero o pior!

 ‑ Ainda bem que assim é, grande safado! ‑ gritou Jermak. ‑ O tribunal dos cossacos está reunido e o tribunal

sou eu! Estás condenado à morte!

 ‑ Compreendo. E posso saber por que razão? ‑ perguntou Marina, perfeitamente tranquila.

 "Não tem medo", pensou Jermak, aflito. "Sabe que vai morrer já de seguida e continua sentado como se estivesse à espera de um pedaço de cabrito assado! Que sangue‑frio! Oh, sacripanta, porque manténs relações imorais com Mouchkov?"

 ‑ Amas Mouchkov? ‑ articulou Jermak, com extrema dificuldade. Só o facto de falar do assunto sem rodeios equivalia a uma condenação à morte...

 E Marina respondeu numa voz límpida:

 ‑ Sim, amo Ivan Matveiévitch...

 ‑ Ousas dizer‑mo? ‑ vociferou Jermak. Remexeu no punhal, mas Marina também ergueu uma lâmina afiada.

 ‑ Vi‑os aos dois! Esta noite! Estavam deitados, nus, debaixo do mesmo cobertor!

 ‑ É verdade ‑ respondeu Marina, sem hesitações. ‑ Foi a primeira vez mas, de futuro, será sempre assim...

 ‑ Pois eu diria que foi a última vez! ‑ gritou Jermak, que já não se dominava. ‑ Não permitirei que desvies o meu amigo Mouchkov!

 Ergueu o punhal, ou antes, tentou fazê‑lo, pois, nesse mesmo momento, uma flecha veio penetrar subitamente no músculo do antebraço. Jermak largou o punhal e deu uma volta sobre si mesmo com a rapidez de um raio, mas não avistou nenhum arqueiro...

 Em toda a volta, só havia feridos que apenas pensavam em sobreviver e não tinham veleidades de atirador.

 ‑ Nem isto te salvará! ‑ ameaçou Jermak, tentando retirar a flecha do braço. A dor tornava‑se intolerável, só um cirurgião seria capaz de o salvar. E se a ponta estivesse envenenada? ‑ Mandar‑te‑ei afogar no Tobol, sob o olhar de Mouchkov!

 ‑ Pela simples razão de o amar?

 ‑ Filho da puta! ‑ Jermak tremia de raiva. ‑ Não há homossexuais entre os meus cossacos!

 Marina ergueu‑se lentamente do assento improvisado.

Olhava para a flecha espetada no braço de Jermak; sabia que algures, ali perto, se encontrava escondido o pai e que, portanto, nada lhe poderia acontecer. Nem agora, nem nunca, se Jermak tivesse coração...

 "Chegou a hora, pai", pensava ela, olhando para trás.

"Já esperava, mas não hoje, é certo... pois tencionava confessar tudo a Jermak depois de conquistarmos Sibir e Mangaseja se abrir à nossa frente..."

 ‑ Que queres tu dizer ao falar de amor entre homens, Jermak Timofeiévitch? ‑ perguntou ela, em voz alta.

‑ De que acusas Mouchkov?

 ‑ Estavas deitado com ele, todo nu! Debaixo do mesmo cobertor! ‑ gritou Jermak.

 Tentou debruçar‑se para pegar no punhal com a mão esquerda mas, com um pontapé, Marina afastou a arma para longe.

 ‑ Não! Não como homem! ‑ proferiu ela, tranquilamente. ‑ Olha para mim, Jermak. Sou um homem?

 E Marina desapertou bruscamente a camisa cossaca.

 Loupin encontrava‑se deitado atrás de um cavalo morto. Abafou um grito e gemeu interiormente: "Que estás a fazer, minha filha? Isto vai acabar mal..." Inspirou profundamente e apontou o arco ao coração de Jermak.

 Este, de olhos esgazeados, fixava o adjunto Boris Stepanovitch. à luz do entardecer, entre o reflexo vermelho do sol que transformava a estepe num tapete de púrpura, como nas margens do Don antes do crepúsculo, e tão admiravelmente que o coração se lhe apertava, dois seios perfeitos brilhavam à sua frente, cintilando na sua pele acetinada.

 ‑ Quem és tu? ‑ perguntou Jermak, numa voz abafada. A flecha queimava‑lhe a carne, mas a visão da rapariga acalmava todos os sofrimentos.

 ‑ Marina Alexandrovna ‑ respondeu ela, tapando o peito. ‑ Depois de conquistarmos Sibir, passarei a chamar‑me Mouchkov. ‑ Em seguida, voltou‑se, pegou no punhal curvo e estendeu‑o a Jermak. ‑ E agora, se quiseres, mata‑me!

 Como matar tanta beleza? Quem levantaria a mão para enterrar um punhal entre seios tão inocentes? Mesmo para Jermak, célebre pela crueldade, tornava‑se impossível punir Marina por ser uma rapariga.

 ‑ Regressa ao acampamento ‑ ordenou ele, com a voz embargada, tentando acalmar com a mão válida os tremores do braço ferido; os nervos começavam a reagir à presença da flecha.

 ‑ E que acontecerá a Mouchkov? ‑ perguntou Marina.

 Embainhou novamente o punhal na cintura, recuperou o famoso boné vermelho que se encontrava em cima do cavalo morto e enterrou‑o nos cabelos louros.

 Não muito longe, agachado entre cadáveres de cavalos, Loupin confundia‑se com a erva da estepe. Os gemidos dos feridos tornavam‑se cada vez mais fracos. Morriam e ninguém se ocupava deles.

 Jermak não respondeu à pergunta de Marina, mas encostou‑se a ela, pois as dores já se faziam sentir nos músculos das pernas.

 ‑ Vamos à procura de Loupin! ‑ disse ele, dando

alguns passos, hesitantes. ‑ Só ele será capaz de me

libertar desta flecha!

 ‑ Que acontecerá a Mouchkov? ‑ insistiu Marina.

 ‑ Pensarei no caso...

 ‑ Não é resposta, Jermak.

 ‑ Que queres que te diga?

 ‑ Que é teu amigo e continuará a sê‑lo.

 ‑ Traiu uma velha lei cossaca, trazendo uma mulher para uma expedição guerreira!

 ‑ Tornei‑me "seu espólio" quando incendiaram Novo Orpotchkov!

 ‑ Nunca mo disse, mentiu‑me durante dois anos! ‑ Jermak respirava com dificuldade. Caminhava cada vez mais lentamente, arrastando os pés pela erva da estepe. "Se a ponta da flecha estiver envenenada", pensava ele, "não atingirei o acampamento! E Loupin nada poderá fazer contra o veneno. Que farão os meus cossacos? Mouchkov será capaz de os conduzir a Mangaseja? É duro e corajoso, mas saberá mostrar‑se um chefe, um verdadeiro guerreiro? Não se conquista a Sibéria só pela força, o cérebro também é preciso..."

 ‑ Mentiu para me proteger! ‑ insistiu Marina. Afastou o braço de Jermak apoiado no seu ombro e recuou dois passos. Sem apoio, Jermak vacilou e mal conseguiu evitar dobrar os joelhos. ‑ Será um crime?

 ‑ Um cossaco...

 ‑ Um cossaco! Um cossaco! Não haverá nada de válido neste mundo para além de Deus e dos Cossacos, enquanto o resto só existe para ser destruído? Não serás um ser humano, Jermak Timofeiévitch?

 ‑ Vem ajudar‑me! ‑ ordenou‑lhe Jermak, rangendo os dentes.

 ‑ Não!

 Ele olhou‑a fixamente, como se não conseguisse compreender que alguém pudesse dizer‑lhe "não". Marina continuava à sua frente, de pernas afastadas, mãos nas ancas, como um verdadeiro cossaco, tal como sempre fora Boris Stepanovitch.

 ‑ Passarei sem ti, que diabo! ‑ gritou de súbito Jermak. E, cerrando os dentes, afastou‑se, titubeando. Mas sabia perfeitamente que, alguns passos adiante, as suas forças chegariam ao fim. As fogueiras do acampamento pareciam‑lhe inacessíveis. As vozes sonoras dos cossacos chegavam até ele como ecos de uma tempestade longínqua, e a brisa muito leve do entardecer, que espalhava o fumo dos cabritos assados, causava o efeito de um furacão ameaçador. "Se estas sensações se devem ao veneno, estou perdido", pensava Jermak. "E os meus mil cossacos perdi dos estão... perdidos para sempre: popes, caçadores, intérpretes, representantes dos Stroganov. E, sobretudo, o czar terá perdido para sempre a Sibéria... pois, quem mais será capaz de a conquistar?"

 Imobilizou‑se.

 ‑ Deixa‑me sozinho, Boris ‑ pediu ele, com a voz embargada. ‑ Vai! Deixa morrer o teu chefe...

 ‑ Já uma vez te salvei a vida ‑ respondeu Marina, impávida. ‑ Mas desta vez faço um preço!

 ‑ Desaparece! ‑ vociferou Jermak.

 Vindo do rio, um pequeno grupo de cossacos avançava em direcção a eles. Montavam os cavalos apreendidos aos tártaros e pareciam muito satisfeitos por se encontrarem finalmente, instalados nos seus companheiros de sempre! Assim, cantavam em altos gritos e as suas vozes estridentes ressoavam através da estepe. à frente do grupo galopava Mouchkov que, como era evidente, preferia uma cavalgada fraterna às delícias do Céu e à felicidade eterna, tão louvadas pelos popes.

 ‑ Ali vem Mouchkov! ‑ declarou Marina tranquilamente.

 Loupin encolheu‑se ainda mais no seu esconderijo; dir‑se‑ia um morto entre mortos.

 Jermak reuniu todas as suas forças para se manter de pé e fazer boa figura. Voltou‑se lentamente para observar os cossacos. Mouchkov não podia ser confundido com nenhum outro... A sua voz sonora repercutia e o seu corpo vigoroso dominava os companheiros.

 ‑ Continuo a ser Boris Stepanovitch... ‑ disse Marina, peremptória. ‑ Quanto a Ivan Matveiévitch, continua a ser teu amigo e teu representante. Nada mudará enquanto não tivermos conquistado a Sibéria e não formos casados pelo pope

 ‑ Não aceito ordens de mulheres! ‑ gritou Jermak, com rudeza.

 ‑ É uma súplica, Jermak Timofeiévitch, suplico‑te que me ouças... e ajoelharia à tua frente se não fosse o meu uniforme de cossaco! Pensa na Sibéria... Recebeste a mais elevada missão jamais confiada a um ser humano!

 Terão estas palavras atingido o coração de Jermak? A verdade é que se voltou para Marina, estendendo para ela o seu braço válido e murmurando:

 ‑ Ajuda‑me!

 ‑ E continuo a ser Boris Stepanovitch?

 ‑ Continuas.

 ‑ E Mouchkov?

 ‑ Tentarei esquecer.

 Ela avançou para ele, agarrou‑o pelo tronco e, suavemente, empreendeu uma longa marcha através da estepe, arrastando‑o, por vezes mesmo, transportando‑o. Acreditava na lealdade de Jermak e não notara o tom introduzido na última frase tentarei esquecer. Tentar... uma porta aberta a todas as traições.

 Mouchkov e os seus cavaleiros cavalgavam na escuridão e passaram a pouca distância sem os ver. Cantavam a plenos pulmões, permitindo que os cavalos galopassem, e pareciam tão felizes que não prestavam atenção ao que se passava à sua volta.

 Loupin perseguia a pouca distância, com mil precauções, a filha e Jermak. Quando se aproximaram do acampamento e os cossacos, gesticulando entusiasticamente, rodearam o chefe e Marina, acabando por levar Jermak aos ombros, Loupin começou a correr por sua vez mas, por prudência, fez um grande desvio e penetrou no acampamento pelo lado oposto. Surgiu, então, na sumptuosa tenda do harém e expulsou o pope do divã de seda.

 ‑ Parece‑me que Jermak está ferido! ‑ gritava Loupin, arrepelando os cabelos com o talento de um actor consumado. ‑ Está a ser transportado para o acampamento! Acabo de os ver. Padre, levanta‑te, paramenta‑te abençoa‑o!

 O pope, esgotado, e que, deitado de costas, rosnava como um javali, insultando as ruidosas dançarinas mongóis, proferiu um brutal impropério, saltou do divã e começou a paramentar‑se. Acabava de vestir o pluvial, capa bordada que lhe envolvia os ombros, quando entraram seis cossacos, transportando o chefe. As belas mongóis fugiram para um canto da tenda, sempre a palrar.

 ‑ Eu não disse? ‑ gritava Loupin, desesperado, mas na realidade, cada vez mais velhaco. ‑ Jermak está ferido!

 A fechar o cortejo, Mouchkov e Marina entraram por sua vez na tenda.

 ‑ Foi certamente uma flecha perdida ‑ explicou Ivan Matveiévitch. ‑ Loupin, procura retirá‑la!

 Os cossacos estenderam Jermak no divã, espreitando com concupiscência as belas mongóis seminuas.

 O braço de Jermak tremia sem parar. A flecha devia ter atravessado um nervo. Loupin debruçou‑se sobre ele, examinou o músculo do antebraço e remexeu ligeiramente a flecha de trás para a frente. Jermak rangeu os dentes.

 ‑ Consegues retirá‑la? ‑ perguntou ele, articulando as palavras com dificuldade.

 ‑ A ponta tem barbela, é preciso praticar uma incisão!

 ‑ E o veneno?

 ‑ Se a ponta estivesse envenenada não estarias agora aqui deitado! O veneno dos tártaros começa por paralisar os pulmões e, depois, passa‑se tudo muito rapidamente.

 Jermak sossegou. Viveria. Um ferimento cura‑se depressa, como bem testemunhavam todas as cicatrizes visíveis no seu corpo; a expedição através da Sibéria prosseguiria até Sibir, capital de Koutchoum.

 Jermak inclinou a cabeça para o lado e viu Marina, de pé junto de Mouchkov, envergando o uniforme cossaco, muito sujo, e não pôde deixar de pensar na pele branca que o tecido grosseiro cobria, nos seios firmes que tão fugazmente entrevira... imaginava‑a liberta das calças de cavaleiro, demasiado largas, e das botas... Nua, totalmente nua!

 ‑ Queres que te adormeça? ‑ perguntou Mouchkov, preparando o punho.

 ‑ Sou alguma menina? ‑ resmungou Jermak.

 ‑ Loupin terá de penetrar profundamente no músculo do teu braço, Jermak!

 ‑ Já suportei muitas dores ‑ replicou Jermak, taciturno, mas só Marina compreendeu o sentido exacto das suas palavras. ‑ Que significa um golpe em comparação com o resto?

 Loupin manejou cuidadosamente uma pequena faca bem afiada, conseguiu extrair a ponta da flecha e deixou que a ferida sangrasse.

 ‑ Assim, todo o veneno escorrerá, pois o corpo purifica‑se sozinho.

 O pope Oleg que, para reconfortar Jermak, lhe apontara uma cruz, sentiu‑se gratificado com um fortíssimo pontapé. Do exterior, chegava um rumor confuso de vozes. Correra a notícia de que Jermak fora ferido por um tártaro moribundo e os cossacos preparavam‑se para percorrer o campo de batalha, já deserto, para acabar com qualquer ferido que encontrassem.

 Mudo de horror, Loupin continuava sentado junto de Jermak no divã de seda oriental. "A culpa foi toda minha", pensava ele. "Foi por minha causa que Jermak veio para terra, em busca de Marina... e que encontrou nos braços do amigo Mouchkov... Ao pretender afastá‑la do perigo, aticei o fogo do Inferno..."

 Depois de deixar sangrar abundantemente a ferida, Loupin aplicou um garrote no antebraço. Meia hora mais tarde, retirou‑o e preparou um penso para a chaga.

 ‑ És um cirurgião competente, Loupin. ‑ disse‑lhe Jermak, enfraquecido pela perda de sangue. ‑ Já és diácono mas com certeza serás um dia bispo da Sibéria!

 ‑ Aleluia! ‑ resmungou o pope Oleg. ‑ Cá por mim, fundarei um mosteiro!

 ‑ Para senhoras da Mongólia?

 ‑ Está escrito: Ama o próximo! Jermak Timofeiévitch, cumpro estritamente estas palavras.

 ‑ Tragam aguardente! ‑ gritou Jermak, erguendo‑se e fazendo sinal a Marina para que se aproximasse. Deliberadamente, roçou os seios da jovem... Mouchkov, que surpreendeu o gesto, sentiu‑se coberto de suores.

 Jermak olhou para ele e sorriu... Foi o mais cruel dos sorrisos que Mouchkov jamais vira nos lábios do amigo.

 

 A vida prosseguiu assim durante mais alguns dias, uma vida de patuscadas, de alegria e de trabalho fácil.

 Aperfeiçoaram as instalações do acampamento; patrulhas de cavaleiros, montados em animais apreendidos aos tártaros, desciam o Tobol, indo ao encontro dos postos avançados do poderoso exército de Mametkoul. Mas, estes não desarmavam. Esperavam os assaltantes nos seus acampamentos entrincheirados.

 Enterraram‑se solenemente os mortos do lado cossaco, entre os quais um intérprete, perda que não foi comentada. Depois, as tripulações transportaram os barcos e as jangadas para as margens do Tobol, lançando‑as à água para lá das quedas semeadas de recifes contra os quais a frota se despedaçaria. Mouchkov descobrira o local ideal, uma encosta arenosa pela qual as embarcações deslizavam facilmente até atingirem a água.

 Logo no dia seguinte ao da batalha, Jermak recebeu o seu prisioneiro, o príncipe Tausan e os seus cavaleiros. Juntos, saborearam os borregos e beberam aguardente russa, com excepção do príncipe que, sendo muçulmano, não bebia álcool. Em substituição serviram‑lhe um koumisst bem forte e Jermak convidou‑o a escolher uma das dezassete beldades do seu harém. Tausan escolheu a alegre Monja, agradecendo efusivamente a Jermak o facto deste ter acrescentado a este gesto a dádiva de uma grande tenda de couro.

‑ Somos homens, eu e tu, Tausan ‑ declarou Jermak com um sorriso trocista ‑, e a vida sem mulheres é um castigo! De resto, não és meu inimigo, portanto, não te posso tratar como se o fosses! Luto contra Koutchoum, só contra ele! E ele maltratava‑os a todos para continuar a viver a sua maldita existência! paga o reinado com o vosso sangue!

 Era uma velha táctica, que já dera provas junto de Iepoutcha e dos seus homens:

 ‑ Venham ao coração dos vossos amigos russos! Nós libertar‑vos‑emos! Mas, se não querem a liberdade, cortar‑vos‑emos as cabeças! ‑ Será assim tão difícil decidir?

 Jermak também se entregou a uma demonstração convincente. Mandou alinhar trinta dos seus atiradores de elite livónios que, depois de carregarem as armas, fuzilaram trinta borregos a uma distância nunca atingida por uma flecha.

 ‑ É este nosso poder que nunca ninguém poderá vencer! ‑ explicou Jermak a Tausan, assustado. ‑ Temos a pólvora nas mãos!

 O príncipe Tausan escondeu o rosto entre as mãos. "Perderemos as nossas terras", pensou ele, com um aperto no coração. "Os Russos apropriar‑se‑ão da Sibéria. Tornar‑nos‑emos escravos nas nossas cidades e aldeias. Estão a começar novos tempos, tempos de raios e trovões e de fogo escaldante, mortal."

 ‑ Se quiseres, podes voltar a cavalo para junto de Koutchoum, ou de Mametkoul ‑ retomou Jermak, depois de feita a exposição. ‑ Somos apenas uma vanguarda! Depois de nós virão tantos russos do lado dos Urales, que os vossos rios não poderão conter todos os nossos barcos! E trarão com eles o poder dos trovões! Procura Koutchoum e diz‑lhe que se renda! Não quero derramar sangue se não for obrigado...

 O príncipe Tausan sentia‑se acabrunhado com o que via e ouvia.

 Passados três dias, partiu a cavalo com os sobreviventes do seu exército, desceu o Tobol, fixou o ponto exacto

da margem em que os barcos e as jangadas esperavam para largar e, depois, cavalgou para junto de Mametkoul.

‑ És um sábio! ‑ disse, nesse dia, Mouchkov a Jermak. ‑ Vão borrar‑se de medo!

‑ Também outros terão medo, Ivan Matveiévitch - replicou Jermak, fixando Mouchkov com um olhar penetrante. ‑ Não te aconselhei que morresses naquela batalha?

‑ Não me foi possível, apesar da boa vontade... ‑ Mouchkov sorriu, incomodado.‑ De qualquer modo, deixemos de falar no assunto, Jermak Timofeiévitch!

‑ Não se trata de Boris Stepanovitch... falemos, agora, de Marina Alexandrovna!

Dissera‑o sem pensar! Mas, se Jermak esperava que Mouchkov empalidecesse de medo, enganou‑se. Mouchkov encarou o amigo tranquilamente.

‑ Marina contou‑me tudo ‑ disse por fim Mouchkov, quando o silêncio entre os dois se tornou insuportável. ‑ Mas soube‑o a partir do momento em que, depois de Loupin te ter extraído a flecha do braço, roçaste os seios de Marina... Lembras‑te?

 Respirava ruidosamente e procurava surpreender um leve sinal de sentimento no rosto de Jermak. Porém o seu olhar permanecia frio e toldado por um brilho mortífero.

 O olhar de uma serpente, pensou Mouchkov.

‑ Temos de falar sobre este assunto.

‑ E o que há para dizer? ‑ perguntou Jermak num tom ameaçador.

 ‑ Ela não pode continuar a ser o teu adjunto!

‑ Porque não? O que é que mudou? O meu valente adjunto chama‑se Boris Stepanovitch!

‑ Agora trata‑se de uma mulher, também para ti, Jermak. Não podemos mentir.

 ‑ És tu que o dizes? Quem foi que mentiu durante dois anos?

‑ Tentei mais de cem vezes que Marina regressasse à sua aldeia, mas ela não foi ...

‑ Talvez já estivesse muito habituada à minha companhia, hem? ‑ perguntou Jermak, trocista.‑ Sabe‑se lá o que uma mulher tem dentro da cabeça! Acariciam um, enquanto pensam noutro!

 ‑ Não é o caso de Marinouchka!

 ‑ Tens a certeza?

 Jermak deu uma gargalhada brutal. Mouchkov enfurecera‑se.

 ‑ Também te contou como se me apresentou? Levantou a cabeça e disse‑me: "Olha!, apalpa‑me e vê que eu não sou um homem!" E, quando a agarrei, suspirou e revirou os olhos, sorrindo. Não estava com certeza a pensar em ti!

 ‑ Agarraste‑a? ‑ perguntou Mouchkov, furioso.

 ‑ Com as duas mãos! ‑ Jermak ergueu as mãos, formando uma convexidade com as palmas. ‑ Eram feitos por medida para estas mãos... e, ainda para mais, rijos e aveludados...

 ‑ Devia espancar‑te, Jermak ‑ declarou Mouchkov, ofegante. ‑ E é o que vou fazer!

 ‑ Não estou a mentir! ‑ gritou Jermak. ‑ Tinha Marinouchka nos braços quando a maldita flecha me atingiu! Pensa bem, imbecil, se tivesse o peito livre, a flecha atingir‑me‑ia no braço? Era impossível, pois eu e Marinouchka encontrávamo‑nos peito contra peito!

 ‑ Não lhe chames Marinouchka! ‑ resmungou Mouchkov.

 Sentia a cabeça a escaldar e o corpo percorrido por ondas de calor.

 ‑ É minha mulher!

 ‑ Debaixo de um cobertor fedorento! Sobre a erva da estepe! à maneira dos ratos silvestres! Ela merecia um palácio... e no palácio de Koutchoum, em Sibir, hei‑de levá‑la nos braços e deito‑a num divã dourado! E Oleg Vassiliévitch casar‑nos‑á...

 ‑ Ela preferirá morrer! ‑ replicou Mouchkov, espantado por ainda se encontrar em estado de poder falar.

 ‑ Ela era o "teu espólio", como tu próprio disseste, já que a retiraste do incêndio de Novo Orpotchkov! ‑ Jermak voltou‑se. Encontravam‑se na margem do Tobol e, lá mais abaixo, viam os barcos e as jangadas presos com amarras e guardados por cossacos. A pouca distância, encontrava‑se uma pequena canoa, ainda em terra, de quilha para o ar. ‑ Há quanto tempo nos conhecemos, Ivan Matveiévitch? ‑ perguntou Jermak.

 ‑ Há doze ou quinze anos, não sei bem ‑ respondeu Mouchkov.

 Seguiu Jermak, que se dirigia para a canoa. Este, pelo caminho, meteu a mão no bolso e retirou três dados de osso cinzelado, Mouchkov encolheu os ombros, escandalizado.

 ‑ Sempre nos comportámos como amigos e, quando o espólio era suficientemente abundante e satisfatório para os dois, que fazíamos? Diz‑me, Ivan Matveiévitch? ‑ Jermak lançou os dados sobre o fundo do barco. ‑ Alguma vez discutimos por causa de um espólio?

 ‑ Marina não é um vaso de ouro nem uma peça de seda!

 Mouchkov arrebatou os dados com a mão, entusiasmado.

 ‑ Jogámos por três vezes a posse daquela princesa dos Negai, lembras‑te, Ivan Matveiévitch? Foi junto ao mar Cáspio... e tu, cão, ganhaste sempre! Insurgi‑me contra a sorte? Espólio honestamente apreendido ‑ lucro honestamente obtido! Mouchkov, que é feito da tua honra de cossaco?

 ‑ Marina não é um objecto, nem uma mulher que se joga aos dados! ‑ gritou Ivan. ‑ Amo‑a, é a minha vida!

 ‑ Foi por isso que te aconselhei que morresses naquela batalha!

 Calaram‑se e encostaram‑se à canoa, de olhar fixo para além do Tobol, sobre o qual cintilava o sol de Maio.

Alguns barcos carregados de cossacos rompiam, aqui e além, o esplendor das vagas; os soldados de Jermak pescavam à rede. Havia tantos peixes que se poderiam pescar à mão.

 ‑ Mouchkov, parece‑te que devemos renunciar à conquista da Sibéria, só porque nos queremos matar um ao outro? ‑ perguntou, por fim, Jermak. ‑ Parece‑te que, por causa de uma mulher, a Rússia deva perder a Sibéria para sempre?

 ‑ Porque me fazes essas perguntas? Quem é que quer apropriar‑se de Marina?

 ‑ Quem é que pretende possuí‑la sem partilha, quando, segundo a nossa lei, é ao comandante que deve caber a melhor fatia do espólio?

 ‑ Há muito tempo que Marina deixou de ser um espólio! ‑ vociferou Mouchkov.

 ‑ Mas foi‑o e, nessa altura, enganaste‑me!

 Era evidente que a discussão estava a aquecer. A melhor solução consistia em desembainhar os sabres e em se lançarem um ao outro. O mais forte tem sempre razão... é um princípio fatal, mas indestrutível.

 Contudo, Jermak e Mouchkov recuaram perante essa saída. Ambos conheciam perfeitamente a maneira de combater do outro...

 ‑ Dez mil rublos! ‑ sugeriu Jermak, passado um momento.

 Mouchkov sobressaltou‑se:

 ‑ Estás louco, Jermak Timofeiévitch!

 ‑ Dez mil rublos! ‑ repetiu Jermak alguns instantes depois.

‑ Ser‑te‑ão contados, segundo promessas escritas por mim, perante os Stroganov, em Perm!

 ‑ Não há riqueza no mundo que possa comprar Marina! ‑ respondeu Mouchkov, com firmeza.

 ‑ Acrescentaremos ainda mil peles de zibelina e duas mil peles de raposa preta!

 ‑ Podes oferecer‑me Mangaseja, o céu e as estrelas, Marina não está à venda!

 ‑ E mais mil raposas brancas e mais mil castores!

 ‑ Se Deus me prometesse a felicidade do paraíso, não a trocaria por um instante passado na companhia de Marina, mesmo no mais desconfortável dos tugúrios.

 ‑ Um instante e um tugúrio! ‑ Jermak observava Mouchkov, de cabeça inclinada. "Tem os olhos frios de uma víbora ", pensou de novo Mouchkov. ‑ Podes ter ambas as coisas, Ivan Matveiévitch: pensa bem...

 Jermak agachou‑se, apanhou os dados e introduziu‑os no bolso. Em seguida, fazendo‑os tilintar dentro da algibeira, desceu em direcção ao rio.

 Foi o pope Oleg que indicou a Mouchkov o caminho que este devia tomar. O pope podia ter os seus defeitos, ser um porco entre os porcos e um constante insulto ao Senhor, mas respeitava deveras a amizade. Ora, Mouchkov era seu amigo, embora se tivessem sovado conscienciosamente muitas vezes. Uma coisa não impede a outra!

 As confissões que os cossacos lhe faziam eram, sem excepção, ignóbeis relatos, mas acontece que, na véspera da grande partida dos cossacos para enfrentarem as tropas de Mametkoul, dois cossacos lhe perguntaram se poderiam ser antecipadamente absolvidos, pois iam ser obrigados a matar um homem.

 Oleg apurou o ouvido e disse, solene:

 ‑ Falem, meus filhos, libertem‑se do fardo que oprime o vosso coração e o Senhor purificar‑vos‑á!

 ‑ Pois bem ‑ declarou um dos homens. ‑ Jermak ordenou‑nos que matássemos um homem.

 ‑ De que maneira? ‑ perguntou o pope.

 ‑ Podemos escolher. O que importa é que o matemos!

 ‑ Simplesmente, é um cossaco como nós ‑ gaguejou o segundo penitente.

 ‑ Vejam só! ‑ Oleg Vassiliévitch debruçou‑se sobre o homem que se encontrava ajoelhado. ‑ Jermak ordenou que matassem um camarada?

 ‑ Sim.

 ‑ E quem é ele?

 Ao ouvirem estas palavras, os dois acólitos permaneceram mudos. O pope ameaçou‑os com todas as penas do Inferno, esmurrou‑lhes o nariz até sangrar, mas eles limitavam‑se a repetir:

 ‑ Padre, dá‑nos a absolvição prévia?

 ‑ Nunca! ‑ vociferou Oleg. ‑ Saiam daqui!

 ‑ Jermak prometeu‑nos dois mil rublos...

 O pope reflectiu, renunciou ao correctivo que se preparava para lhes administrar e apontou para o chão com o indicador. Os dois penitentes caíram logo de joelhos.

 ‑ É verdade? ‑ perguntou ele suavemente.

 ‑ Como poderíamos mentir‑te, padre? Estamos dispostos a pagar quinhentos rublos pela absolvição...

 ‑ Estamos no mercado? Pensam que estão a comprar banha de borrego? ‑ Oleg cruzou as enormes mãos. ‑ Seiscentos rublos...

 ‑ És um padre generoso...

 ‑ E quando terá lugar o acto?

 ‑ Esta noite.

 ‑ E Jermak está mesmo disposto a pagar?

 A pergunta justificava‑se. Oleg conhecia Jermak há muito tempo. Meditou mais um pouco. Não era muito frequente Jermak servir‑se de cúmplices ‑ um assassino ainda passa... mas que faça o trabalho sozinho! Um cúmplice é sempre um inimigo para o futuro.

 ‑ Voltem quando estiverem na posse dos seiscentos rublos ‑ disse calmamente o pope. ‑ Até lá, tenho mais que fazer do que pensar em vós, filhos da mãe!

 Mais tarde, falou no caso a Loupin, pois a história intrigava‑o:

 ‑ Jermak quer matar um homem ‑ disse ele ‑, e paga dois mil rublos pelo trabalho. Compreendes isto, Alexandre Grigoriévitch? Dois mil rublos por um cossaco! Com esta quantia, manda‑se assassinar um príncipe!

 ‑ Jermak deve ter as suas razões ‑ respondeu Loupin. Subitamente doeu‑lhe o coração, uma dor que era medo, uma angústia atroz.

 A pretexto de que o aguardava uma tarefa urgente, pois no dia seguinte iniciar‑se‑ia a grande expedição pelo rio, apoderou‑se de um cavalo e galopou a toda a brida em direcção ao Tobol. Loupin encontrou Mouchkov perto do rio; Marina estava junto dele e descalçara as botas, chapinhando na água da corrente.

 ‑ Tinha de ser! ‑ gritou Loupin, saltando do cavalo ainda antes de o imobilizar. ‑ Não olhem para mim com esses olhos de rã espantada. Escolham os melhores cavalos

que encontrarem e fujam para os Urales!

 ‑ É assim que grita sempre que pensa nos tártaros - disse Mouchkov, com bonomia. ‑ Velhote, derrotaremos Mametkoul para lá do horizonte...

 ‑ Mametkoul! És estúpido a esse ponto, Ivan Matveiévitch? Não se trata disso! ‑ Loupin apertou violentamente Marina contra o peito. ‑ Ele quer matar‑te, Mouchkov!

 Mouchkov não respondeu, mas olhou fixamente para Loupin e, quando compreendeu o que ele queria dizer, ouviu Marina exclamar:

 ‑ Jermak!

 ‑ Ofereceu dois mil rublos pela tua morte, Ivan, e vai ser esta noite!

 ‑ O meu amigo Jermak Timofeiévitch? ‑ balbuciou Mouchkov. ‑ Cavalgámos doze anos lado a lado...

 ‑ Os assassinos confessaram‑se a Oleg Vassiliévitch! ‑ gritou Loupin, desesperado. ‑ despachem‑se! Precisam de bons cavalos!

 ‑ Acreditei nele ‑ murmurou Mouchkov ‑, era todo o meu universo, pai e irmão ao mesmo tempo... ‑ e, subitamente, Mouchkov começou a chorar como uma criança. ‑ Só o tinha a ele; os meus pais abandonaram‑me ainda menino e fui criado por um camponês que me acolheu... depois conheci Jermak, que me recrutou para o exército cossaco... ele não pode, agora...

 Os soluços sufocavam‑no.

 ‑ Terão de cavalgar durante toda a noite! ‑ insistiu Loupin, impassível, beijando os olhos fechados de Marina. ‑ Quanto a mim, seguí‑los‑ei para cobrir a vossa fuga! Não se preocupem comigo! E, acima de tudo, não regressem ao acampamento.

 Com o auxílio das primeiras sombras do crepúsculo, a jusante do ancoradouro dos barcos, atravessaram o Tobol com os cavalos a nado. Atingiram uma enseada isolada, onde a água baixara e onde Mouchkov lançou um último olhar aos barcos e jangadas, às fogueiras e às tendas, aos cavalos e auriflamas...

 Ouviam‑se tocar os sinos de uma capela, os da capela flutuante, apelando para a oração da noite. Mouchkov fechou os olhos e benzeu‑se, depois deu meia volta no cavalo e, juntamente com Marina, penetrou a galope na escuridão da estepe.

 Até ao fim do Angelus, Jermak não se preocupou com a ausência do seu adjunto. O facto de Mouchkov não se encontrar presente durante as orações nada tinha de surpreendente, visto que devia ocupar‑se da frota que aguardava no ancoradouro a hora da partida. Os navios continham já grandes quantidades de víveres. Os rebanhos do príncipe Tausan foram sacrificados até ao último borrego e esquartejados para poderem ser distribuídos pelos cossacos, como provisões.

 A fim de não levantar suspeitas, Alexandre Grigoriévitch, Loupin permaneceu no acampamento, ajudou os cossacos a reunir o equipamento e, em seguida, juntou‑se ao pope Oleg, na capela ancorada no Tobol. O pope passeava de um lado para o outro, de expressão carregada, pensando no melhor meio de ocultar ao príncipe Tausan algumas das beldades Mongóis. Talvez nos caixotes que continham os objectos necessários à celebração da missa? Mas elas sufocariam irremediavelmente, e não era esse o objectivo da operação.

 ‑ O crente deve saber renunciar! ‑ proclamou, por fim, o contristado pope. ‑ Não há outra solução...

 ‑ Em Sibir, Koutchoum possui um harém cem vezes mais numeroso, padre! ‑ observou Loupin. ‑ Deve ter escolhido as mais belas raparigas das diversas regiões do seu reino, esperemos!

 Para já, todos presumiam que os prisioneiros libertados e Tausan, o seu chefe, teriam espalhado por toda a parte que só a fuga resultaria perante atiradores de armas de fogo e artilheiros.

 Na primeira fila dos homens ajoelhados encontrava‑se, orando, Jermak Timofeiévitch. Parecia absorvido pela palavra divina e mantinha a cabeça baixa, mas as suas orações não apelavam para a intercessão dos santos. Já terão assassinado Mouchkov? Não será fácil surpreendê‑lo! Desde que os meus dois homens sejam bem sucedidos... e sem testemunhas! Sabia que os assassinos se calariam, não por causa dos dois mil rublos, pois Jermak jamais tivera a intenção de os recompensar, mas porque não sobreviveriam ao acto mais do que o tempo necessário para lhe darem conta do seu cumprimento. Enquanto o coro dos cossacos se elevava aos céus, Jermak pensava em Marina. Durante algum tempo, lamentar‑se‑á, mas dar‑lhe‑ei mais presentes do que a czarina recebe de Ivan. Por conta dos Stroganov, naturalmente. E, se resistir aos presentes, será violada. Aquela que for amada por Jermak, não o esquecerá! É um tipo que sabe acariciar e, ao mesmo tempo, apoderar‑se com mão de ferro daquilo que deseja. As mulheres são animais que gostam de ser dominados! Como Jermak conhecia mal Marina!

 Por diversas vezes, o pope Oleg, fixando a nuca inclinada de Jermak, sentiu vontade de lhe gritar: "Corre, maldito, vai salvar o teu amigo!" Mas, na sua alma, trava‑se um obscuro combate: também desejava obter seiscentos rublos. Calou‑se e consolou‑se ao pensar que Jermak, quando se descobrisse o seu segredo, não poderia recuar e mandá‑lo matar a ele, Oleg Vassiliévitch... Claro que, neste caso, a sua opa preta não seria uma armadura de ferro.

‑ Levaram‑me o meu diácono! ‑ declarou Oleg na sua potente voz de baixo.‑ Como Cossaco que sou, já vi muitas coisas neste mundo, mas nada que se pareça com isto! Quem pode querer mal a um velho como Loupin? Tal infâmia é inadmissível! Merece todos os tormentos do Inferno!

‑ Ando à procura de Boris Stepanovitch ‑ disse Jermak, com a voz embargada pela emoção.‑ A esse, também ninguém o viu!

 O pope olhou de soslaio para Jermak e acariciou a longa barba.

 ‑ Estás preocupado, Jermak? ‑ perguntou ele, subitamente atento.

 ‑ Preciso desse rapaz! ‑ vociferou Jermak.

 ‑ Aqueles que esperam são muitas vezes atormentados pelo Diabo ‑ suspirou o pope, sentencioso. ‑ Onde está Loupin? Talvez com Mouchkov, que também desapareceu...

 ‑ O quê? também não sabem onde se encontra Ivan Matveiévitch? ‑ perguntou Jermak fingindo‑se descontraído, embora o coração lhe saltasse no peito. "Deve querer dizer que já está", pensou. "E Marina estaria com ele?"

 ‑ De qualquer modo, trata‑se de uma noite infernal, Jermak Timofeiévitch! ‑ Observou o pope. ‑ Criaturas de Deus que se evaporam como gotas de orvalho ‑ acrescentou, insidioso. ‑ Aguardemos... talvez que...?

 De madrugada, tornou‑se evidente que Mouchkov, Marina e Loupin tinham desaparecido. Não se descobriram rastos de nenhum deles nas margens do rio, nem no acampamento, nem na estepe circundante. Os dois cossacos encarregados por Jermak do assassínio de Mouchkov vieram, muito contristados, informar o chefe de que não o encontraram. Tudo indicava que teria fugido.

 ‑ Qual dos dois não teve tento na língua? ‑ gritou Jermak. As veias das têmporas incharam‑lhe, assumiu um aspecto terrível, os seus olhos lançavam chispas demenciais. ‑ Quem o terá advertido, hem?

 Os dois cossacos lembraram‑se da confissão, mas o pope não podia saber de nada, pois não tinham dito o nome. Encolheram os ombros e responderam:

 ‑ Ninguém sabe de nada, Jermak!

 ‑ E Boris Stepanovitch? ‑ rugiu Jermak, fora de si.

 Esta pergunta também ficou sem resposta. Como poderiam eles saber onde se teria metido o rapazelho?

 Jermak expulsou os dois homens da tenda e partiu em busca de Oleg. Encontrou o pope em galante companhia, instalado no divã de seda do harém, acariciando duas palradoras aves mongóis.

 ‑ Alexandre Grigoriévitch Loupin encontra‑se aqui? ‑ perguntou Jermak, com dureza.

 O pope abanou a cabeça:

 ‑ Deve ter sido morto e imediatamente enterrado! Ou talvez tenha tido um mau encontro? Com tártaros nómadas, nunca se sabe!... estava tão habituado a ele, Jermak! Uma alma tão boa... ‑ Afastou as duas mongóis demasiado despidas e limpou os olhos. Parecia verdadeiramente acabrunhado. ‑ E onde está Mouchkov?

 ‑ Desapareceu!

 ‑ E Boris Stepanovitch?

 ‑ Também!

 ‑ Devem ter sido surpreendidos por uma horda de cavaleiros de Mametkoul, por Santo Estefánio! O pope cossaco ergueu‑se de um pulo e a sua voz tonitruante proclamou:

 ‑ Esmurrarei todo o tártaro que surja no meu caminho! Atravessarei a Sibéria para vingar os meus amigos, nem que, para isso, tenha de renunciar às minhas vestes sacerdotais!

 ‑ Mais devagar, padre! ‑ Jermak olhava em frente, mas suas mãos, crispadas, abriam‑se e fechavam‑se ao ritmo dos espasmos. ‑ Não terão muito simplesmente fugido juntos?

 ‑ Fugido? ‑ Oleg arregalou os olhos. ‑ E por que fugiria o meu diácono? Para escapar a quem? E Mouchkov...

 ‑ Condenei‑o à morte... ‑ articulou Jermak, lentamente.

 ‑ O quê? Para sempre... ámen! ‑ O pope deixou‑se cair no divã de seda. ‑ O mundo andará de pernas para o ar, Jermak?

 ‑ Mouchkov traiu‑me!

 ‑ Quem poderá acreditar?

 ‑ Toda a gente, pois sou eu que o digo! ‑ gritou Jermak. ‑ Não te basta, a ti? Serás tu mais clarividente do que eu, filho da puta?

 Oleg Vassiliévitch considerou prudente engolir o insulto, em vez de lhe recordar que não se trata um pope de forma tão irreverente. Limitou‑se a olhar atentamente para o comandante dos cossacos, que entrava e saía da grande tenda, mais parecendo uma fera.

 ‑ Admitamos que Mouchkov é um traidor ‑ retomou o pope, instantes depois. ‑ Mas o que é que Boris Stepanovitch tem a ver com o caso?

 ‑ És cego, hem? ‑ Jermak deteve‑se bruscamente. ‑ Esse garoto é o namorado de Mouchkov!

 Oleg riu, trocista:

 ‑ Não me venhas com histórias dessas sobre Mouchkov!

 ‑ Vi‑os com os meus olhos! ‑ Jermak encolheu os ombros. "Não posso dizer a verdade", pensou. "Resta‑me acusar Ivan Matveiévitch de práticas anormais!" ‑ Tens dúvidas? ‑ acrescentou.

 ‑ Se tu o dizes, com certeza que não! ‑ O pope ergueu os olhos para o tecto da tenda. ‑ Resigno‑me a aceitar que o meu querido amigo Alexandre Grigoriévitch serviu de intermediário!

 ‑ É isso mesmo! ‑ gritou Jermak.

 Os destinos humanos encontram‑se inexplicavelmente enredados... O pope cruzou as enormes mãos:

 ‑ E então, partiram! Para onde?

 ‑ Voltaram para a Rússia, evidentemente! Não estás a pensar que nos levam a dianteira em direcção a Koutchoum?

 ‑ Que posso eu pensar depois de tantas desilusões? ‑ respondeu Oleg, prudente. ‑ Apanhá‑los‑ás, Jermak Timofeiévitch.

 ‑ Organizarei uma caçada apertada como se fossem raposas maléficas! A Rússia não será demasiado vasta para os ocultar!

 ‑ Queres voltar para trás? ‑ gaguejou o pope. ‑ Queres renunciar à Sibéria por causa de Mouchkov?

 à nossa frente, estende‑se Sibir e, mais para lá, Mangaseja... e depois... sabes quantas maravilhas contém ainda este mundo por descobrir?

 ‑ Não! Prosseguiremos o nosso caminho, mas enviarei os melhores cavaleiros à sua procura!

 ‑ E se os fugitivos forem mais rápidos do que eles?

 ‑ Um dia, virei de novo à Sibéria! ‑ Jermak ofegava. ‑ E encontrá‑los‑ei! A vida de um homem pode ser longa se perseguir um sonho ou uma vingança! O sonho... Sibir, realizá‑lo‑ei para mim! O resto da minha vida bastará para cumprir a vingança!

 O pope, contristado, encolheu os ombros:

 ‑ Para matares três indivíduos, queres renunciar a seres Senhor da Sibéria?

 "Trata‑se de um juramento", pensou o pope, "um juramento mortal e, quem conhecer Jermak, sabe que ele o cumprirá."

 Jermak fixava agora o pope:

 ‑ Sim, matar! ‑ O seu olhar atravessava Oleg como se fosse gelo: ‑ Serão enterrados até ao pescoço num formigueiro e ficarei sentado ao pé deles, para os ver devorados migalha após migalha. E quando chorarem, gritarem, implorarem, pegarei na minha flauta para tocar as árias pastoris do Don, e sentir‑me‑ei feliz!

 Olhava intensamente o pope, aguardando uma resposta, mas Oleg parecia paralisado pela visão que Jermak lhe fornecera da sua vingança.

 ‑ De madrugada, prosseguiremos! ‑ retomou Jermak, beijando a orla da opa do pope, antes de sair da tenda.

 Quanto a Oleg Vassiliévitch, pensava que acabara de ter uma conversa com o Diabo, a qual poderia pôr a sua alma em perigo.

 Pouco tempo depois, seis cossacos e dez cavalos de carga subiam o Tobol, em busca de um vau para se poderem lançar em perseguição de Mouchkov, Loupin e Marina.

 

 De ouvido atento, os dois fugitivos cavalgaram durante toda a noite e mudaram de cavalos de madrugada ‑ o que consistiu em selar os cavalos de carga, confiando aos seus animais cansados bagagens leves. Parecia‑lhes constantemente ouvir ao longe o galope do cavalo de Loupin...

 ‑ Já está velho ‑ recordou Marina quando Mouchkov propôs que retomassem a caminhada ‑, cavalgar durante toda a noite é de mais para ele!

 ‑ Talvez nem sequer tenha partido ‑ respondeu Mouchkov, saltitando de impaciência. ‑ Ele disse‑me que cavalgássemos o mais que pudéssemos, através do mundo... e que, um dia, nos encontraria! Um dia... não é necessariamente hoje, Marinouchka...

 ‑ Ele não nos abandonará...

 ‑ Oleg Vassiliévitch deve tê‑lo impedido de partir... ‑ Mouchkov debruçou‑se sobre Marina e pegou‑lhe no rosto, para o beijar. ‑ Começaste por fugir do teu pai e, agora, não podes passar sem ele!

 ‑ Porque te tenho a ti, Ivanouchka ‑ respondeu ela, ternamente, pegando‑lhe na mão e beijando‑a na palma antes de a passar pelo seu próprio rosto. ‑ Agora, tu és, verdadeiramente aquele que eu queria que fosses! Mas a presença do meu pai continua a parecer‑me necessária. ‑ Marina sorriu com tristeza. ‑ Sabes quantas vezes veio em meu auxílio nestes dois últimos anos? Que teria acontecido se ele não me tivesse acompanhado nas nossas peregrinações? Precisaremos de cavalgar tão depressa que ele não nos possa encontrar?

 ‑ Há muito que Jermak lançou os seus homens em nossa perseguição.

 ‑ Tens medo deles?

 ‑ Só tenho medo de ti. Por favor, monta! ‑ insistiu Mouchkov quando Marina lhe largou a mão, afastando‑se. Em redor, estava tudo calmo, nem sequer se ouviam chiar os ratos da estepe. ‑ Temos pela frente a travessia do inferno. Teremos de chegar ao país de Perm antes do Inverno.

 A aurora começava a despontar. Retomaram a cavalgada e atingiram um troço do rio que lhes permitia seguir ao longo da margem. Atravessaram uma pequena colónia ostíaca.

Ao vê‑los mulheres e crianças fugiam em todas as direcções, procurando abrigo em tendas miseráveis, enquanto os homens os observavam, pensativos, interrogando‑se sobre a presença destes dois cossacos no seu território. Que viriam fazer? Exigir um tributo? Parecia‑lhes pouco provável. Nestes casos, os cossacos surgiam em tão elevado número que se tornava impossível opor‑lhes qualquer resistência.

 ‑ Desembainhemos os sabres e atravessemos o acampamento com segurança. Devemos fazer barulho ‑ disse Mouchkov, pegando no sabre cossaco que trazia pendurado na sela. ‑ Só se manterão tranquilos se virem que somos nós os mais ousados!

 Nenhuma lança os atingiu pelas costas, nem a mais pequena flecha; os homens de raça amarela não se mexeram, felizes por verificar que os dois cavaleiros se limitavam a gritar. Aguardaram mesmo o seu eventual regresso mas, como tal não aconteceu, retomaram as suas ocupações.

 Quatro horas mais tarde, um terceiro cavaleiro estrangeiro, seguido de dois cavalos de carga, atravessou o mesmo acampamento. O homem, um velhote de cabelos brancos, parou e debruçou‑se sobre a sela, num gesto que traduzia o seu cansaço. Parecia manter‑se de pé com dificuldade.

 ‑ Dois homens? ‑ perguntou ele no idioma iacuto, do qual aprendera algumas palavras pelo caminho que conduzia ao Tobol.

 ‑ Sim! ‑ Os ostíacos apontavam para oeste. Dois... e mais dois cavalos sem sela!

 O velho esboçou um gesto de agradecimento e prosseguiu a cavalgada.

 "Vou no seu rasto", dizia ele para consigo, feliz.

 "O velho lobo ainda está em forma..."

 Cinco horas mais tarde, as coisas passaram‑se com menos moderação.

 Seis cossacos, seguidos de dez cavalos de carga, apareceram na mesma colónia de ostíacos, espancaram os habitantes, pilharam as miseráveis tendas, incendiaram‑nas e só então perguntaram:

 ‑ Passaram três homens pelo vosso acampamento?

 Os ostíacos responderam afirmativamente, apontando com zelo a direcção tomada pelos viajantes:

 ‑ Por ali! ‑ repetiam, de braço estendido para a estepe, exactamente no sentido inverso ao que os três homens tomaram.

 Os seis cossacos agradeceram, zurzindo mais uma vez os ostíacos, e depois, reuniram‑se, concluindo que era muito estranho Mouchkov não se dirigir em linha recta para os Urales. Mas fora certamente assim: um homem zurzido por um cossaco diz sempre a verdade.

 Quando compreenderam que tinham sido enganados, tinham‑se passado quatro horas. Praguejando, regressaram ao rio e juraram espancar os ostíacos até ficarem com os olhos redondos.

 Mouchkov e Marina levavam uma jornada de avanço aos seis cossacos. Doze horas... mas o que são doze horas na imensa Rússia e entre os perigos dos Urales?

 

 Entretanto, no Tobol, a grande frota de Jermak navegava ao encontro dos exércitos de Mametkoul. Nas proximidades de Sibir aguardava Koutchoum, o czar Siberiano, com a sua guarda. Catorze príncipes e seus guerreiros tinham vindo em seu auxílio. Por detrás deles, o vazio, o inexplorado, a terra desconhecida, gigantesca, feita de florestas e pântanos, tundras, cursos de água tão amplos que não se via a margem oposta. Por este mundo ignorado estendiam‑se lagos nos quais se podia remar durante dias e dias sem nunca encontrar terra, e o solo era tão vasto que aí se poderia instalar metade da humanidade.

 Será possível conquistar um país assim apenas com algumas espingardas e três canhões? E ainda, é verdade, com estandartes e popes que, em cada local conquistado, enterravam uma cruz? Ou ainda com mercadores que começavam imediatamente a negociar? Alguma vez se vira um mundo novo onde se tenham dado os primeiros passos com tanta determinação?

 Jermak Timofeiévitch não tinha por onde escolher.

 Com o abastecimento fornecido pelos Stroganov, que percorrera o Touro e o Tobol, chegaram até eles as últimas decisões do czar: "Ordeno que Jermak e os seus homens regressem imediatamente ao país de Perm, a fim de serem punidos pelos crimes cometidos nas margens do Don e do Volga. Serão enforcados sem apelo."

 Oleg lera o veredicto em voz alta logo que a notícia da condenação geral atingira a frota, no Tobol.

 ‑ Fomos, portanto, condenados! ‑ concluiu ele, passando a mensagem a Jermak. ‑ Nem poderia ser de outro modo, o czar nunca perdoa!

 ‑ Perdoará! ‑ respondeu Jermak rudemente. ‑ Coloco‑lhe a Sibéria aos pés. Nunca um bandido ofereceu tão belo presente ao seu amo. Em frente, Oleg Vassiliévitch! Penetremos no novo mundo!

 Abrigado pela grande vela inchada, de olhos semicerrados, Jermak observou as margens. Dos dois lados do rio, os velozes cavaleiros de Mametkoul acompanhavam os navios e enviavam‑lhes uma chuva de flechas sempre que uma jangada ou uma embarcação se aproximava:

 ‑ Terei de regressar à Rússia antes de envelhecer... Ainda me falta matar Mouchkov!

 

No terceiro dia de fuga, Loupin juntou‑se à sua querida filha. Chegara a pensar nunca mais a ver. Durante as últimas cem vertas, limitara‑se a agarrar‑se à sela, de mãos crispadas nas rédeas ou na crina do cavalo. Doíam‑lhe todos os ossos do corpo. O corpo ardia‑lhe por dentro, a paisagem vacilava ou diminuía à sua volta, mas ele mantinha‑se na sela, sabendo que não conseguiria voltar a montar se se apeasse.

 Porém, a distância que o separava dos seis cossacos enviados em sua perseguição também ia diminuindo, pois estes ousaram o que nem Mouchkov nem Loupin se permitiram: apropriavam‑se, em cada aldeia que atravessavam, de cavalos descansados, espancavam os seus proprietários e alimentavam‑se de tudo o que podiam, o que lhes valeu avançar mais rapidamente do que os três infelizes fugitivos, montados em cavalos exaustos, magros e cambaleantes.

 Entretanto, Mouchkov e Marina tinham atingido um dos pequenos acampamentos fortificados, erigidos no Inverno anterior numa das margens do Toura. Os cavalos hesitavam como cegos antes de avançarem. Eram três cabanas construídas com toros de madeira, rodeadas por grandes paliçadas de madeira: apeadeiro, recinto de compra e venda, estalagem para caçadores e ‑ como não podia deixar de ser ‑ paróquia rural, dirigida por um jovem pope que muito se esforçava por pregar aos ostíacos e tártaros e por ensinar a história de Jesus Cristo, cujas imagens de cores vivas mostrava, enquanto prometia a vida eterna ‑ problema ao qual os indígenas conferiam um sentido muito diferente do da Igreja. Mas o santo homem baptizava com zelo, muito surpreendido com a boa vontade das novas ovelhas.

 O pope nunca desconfiou de que os ostíacos viam na aspersão com água benta um meio de se imortalizarem, comprimindo‑se em massa compacta à sua volta, tendo em mira esse objectivo inconfessado. E quando, por acaso, entre os que não tinham sido baptizados, nove homens e mulheres morreram por ocasião do degelo, enquanto os baptizados sobreviveram, a nova crença foi unanimemente considerada como um poder mágico.

 Mouchkov foi o primeiro a transpor, sozinho, a porta aberta na paliçada, a fim de saber quem se encontraria agora no pequeno forte. Os caçadores tinham saído, os homens dos Stroganov não os conheciam e encararam‑no distraidamente: não se fazem negócios com um cossaco, a não ser que se queira perder.

 O pope, pelo contrário, recebeu cordialmente o prudente Mouchkov.

 ‑ Não serás, por acaso, Ivan Matveiévitch? ‑ perguntou o pope, abrindo os braços. ‑ Tu, o melhor amigo de Jermak, que fazes aqui, irmão? Não me digas que foste o único sobrevivente?

 ‑ Há ainda mais alguém à porta do acampamento: Boris Stepanovitch ‑ respondeu Mouchkov.

 ‑ O adjunto? Aquele jovem alegre e prazenteiro? Como é possível?

 ‑ Fomos encarregados de uma missão secreta junto dos Stroganov ‑ respondeu Mouchkov que, por vezes, tinha boas ideias. ‑ Jermak está bem. Obtivemos uma grande vitória e o exército navega agora pelo Tobol em direcção ao rio Irtych e, daí, partirá para Sibir! Não é uma boa notícia, venerável padre?

 ‑ Vem aos meus braços! ‑ O pope estava comovido.

‑ Aqui as coisas também progridem, o cristianismo é um bálsamo para os pagãos.

 Mouchkov saiu do recinto e acenou a Marina, que se apeara e conduzia pelas rédeas os cavalos cansados.

 ‑ É um bom apeadeiro! ‑ declarou Mouchkov. ‑ Vi por aqui belos cavalos, pertencentes à Igreja e, como a Igreja deve ajudar os homens, os cavalos pertencem‑nos, evidentemente! Mudemos, pois, de montada, e prossigamos o nosso caminho!

 ‑ Preciso absolutamente de dormir, Ivanouchka ‑ disse Marina, encostando‑se a um dos cavalos, cujas patas tremiam. Os olhos de Marina teimavam em fechar‑se, tinha o rosto sujo da poeira da estepe, encovado e como que sumido: um rosto de criança doente. ‑ Duas a três horas de sono... é possível?

 ‑ Temos andado bem! ‑ respondeu Mouchkov.

Depois, abraçando Marina pela cintura, arrastou‑a para o acampamento entrincheirado. O pope correu ao seu encontro, beijou três vezes as faces poeirentas de Marina, declarou mais uma vez que se sentia feliz por ter como hóspedes os melhores amigos de Jermak, e nem sequer se lembrou de que lhe poderiam roubar os cavalos...

 Na choupana que servia de local de reunião, de quarto de cama e de capela, encontrava‑se uma mulher ostíaca em frente da lareira de pedra solta, apurando um guisado de couves. Era a primeira baptizada da região. Uma viúva, cujo marido fora atacado pelos cossacos quando estes construíram o acampamento.

 ‑ Contem então... ‑ sugeriu o pope depois de Mouchkov e Marina terem comido papas de cereais e bebido cerveja obtida a partir da fermentação de grão de trigo. ‑ Como tem passado Oleg Vassiliévitch?

 ‑ Dentro de vinte anos, haverá na Sibéria um exército inteiramente constituído por rebentos do Koulakov! ‑ exclamou Mouchkov com alegria, ao qual a cerveja bebida em jejum restituíra a inconsciência do seu passado cossaco. Por instantes ignorou Marina, e permitiu uma reflexão que se referia às incríveis dimensões do membro viril de Oleg, que fazia chorar as mulheres só de o verem! Foi preciso um pontapé de Marina, por debaixo da mesa, para que ele prosseguisse, envergonhado, olhando‑a de soslaio:

 ‑ Respeitável padre, temos connosco um adolescente que ainda ignora estas coisas... Que boa que está a sopa!

 Depois da oração da noite, na qual tomaram parte alguns ostíacos famélicos, que traziam víveres ao pope e vinham pedir a bênção ‑ por causa da vida eterna ‑, fecharam a porta da paliçada e toda a gente foi dormir.

 Marina adormeceu imediatamente. Mouchkov deitou‑se ao lado dela e procurou pegar‑lhe na mão por debaixo do cobertor. Marina espreguiçou‑se mas não abriu os olhos, nem mesmo quando o pope começou a ressonar. Mouchkov apalpou‑lhe então os seios, experimentou um sentimento de felicidade sem par e adormeceu, por sua vez.

 Durante a noite, foram acordados pelo ruído de pancadas na porta de entrada, enquanto uma voz rouca repetia incansavelmente:

 ‑ Abram! Dormem com os ouvidos tapados? Abram!

 O jovem pope foi o primeiro a despertar; saiu, espreitou por uma fenda da paliçada e reconheceu o homem velho e exausto que se encontrava no exterior: Alexandre Grigoriévitch Loupin.

 ‑ Sucedem‑se os prodígios! ‑ exclamou o pope, abrindo o pesado batente. Abraçou Loupin e arrastou‑o para dentro do acampamento entrincheirado. ‑ Ah! A sombra de Oleg Vassiliévitch! Também foste encarregado de uma missão secreta na Rússia? Talvez junto do bispo Ouspensk?

 ‑ Então os outros encontram‑se em tua casa, padre?

 Loupin cambaleava ao dirigir‑se para a tenda do pope. "Mais dez passos...", pensava, "e desmaio! Já não sinto os ossos..."

 ‑ Estão a dormir. ‑ O pope apontava para os dois corpos adormecidos no chão. ‑ Queres que os acorde?

 ‑ Não, não, deixa‑os descansar. ‑ Loupin cambaleou mais um pouco ao aproximar‑se dos dois adormecidos e deixou‑se cair junto deles. Depois, aceitou o copo de cerveja que o pope lhe oferecia e bebeu‑o, olhando para a filha adormecida. Marina parecia uma criança em busca de refúgio junto do enorme Mouchkov. Contudo, quanta energia encerrava este frágil ser!

 "Encontrei‑a", pensava Loupin, no auge da alegria, limpando a boca com as costas da mão. "É minha de novo..."

 Nenhuma vida se vive em vão, mas são muitos os que ignoram este facto.

 Em seguida, estirou‑se ao comprido, suspirou e adormeceu imediatamente.

 Dos seis cossacos enviados em sua perseguição separavam‑nos ainda quatro horas de cavalgada.

 

 O carrilhão do pequeno campanário acordou‑os, pela manhã. O pope puxava pela correia de couro presa ao sino. Este balançava no cimo da tenda feita de madeira, uma espécie de cubículo construído de um dos lados.

 Loupin foi o primeiro a levantar‑se, suspirando baixinho, pois o sono não eliminara o cansaço armazenado nos seus ossos. Coxeou em direcção à lareira de pedras cimentadas e serviu‑se de chá quente, numa tigela de barro. A mulher ostíaca, novamente presente, confeccionava uma papa de aveia e, tal como na véspera, observava os cossacos com um ar hostil.

 Então Mouchkov acordou, sentou‑se e gritou:

 ‑ Não será possível dar uma sova naquele tocador de sinos? ‑ Esta pergunta acordou Marina, cujo primeiro olhar se dirigiu a Loupin, sentado à lareira, sorvendo o chá em pequenos goles.

 ‑ Papá... ‑ gaguejou ela. Mas, logo de seguida, numa voz mais segura e abrindo os braços, exclamou:

‑ Velhote, encontraste‑nos! Ivan, ele juntou‑se‑nos!

 ‑ Quem? ‑ perguntou Mouchkov, ainda mal acordado. ‑ Quem é que se nos juntou? ‑ Esta palavra reanimou imediatamente toda a sua agressividade. ‑ Marinouchka, esconde‑te! Eu defender‑te‑ei!

 Acabava de desembainhar a arma quando reconheceu Loupin, que continuava a beber chá serenamente.

 A mulher ostíaca distribuía a papa fumegante pelas gamelas.

 ‑ Alexandre Grigoriévitch! ‑ exclamou Mouchkov, boquiaberto. Marina sentiu, então, vontade de abraçar o pai, mas conteve‑se e baixou os braços. "Sou Boris Stepanovitch", disse para consigo mesma, bruscamente.

 "Sou um rapaz! Não posso lançar‑me nos braços de outro homem!"

 ‑ Como te sentes, velhote? ‑ murmurou ela, apoiando a mão no seu coração palpitante.

 ‑ Já não sinto os ossos ‑ respondeu ele, enquanto a mulher ostíaca pousava uma gamela à sua frente, fixando‑o com um olhar feroz, que significava claramente: "Gostaria de cuspir nesta papa, de cuspir um veneno mortal!"

 O pequeno sino continuava a tocar, os religiosos são dotados de muita paciência, mas quem teria respondido ao apelo? Os caçadores percorriam as florestas. As lojas dos Stroganov ainda se encontravam desertas. Quem viria, então, comerciar tão cedo?

 Mouchkov e Marina sentaram‑se à mesa, mas não comeram. O encontro com Loupin fizera‑os esquecer a fome. O pope, no canto mais afastado da sala, largara a corda do sino, de couro entrançado, e, depois de cuspir no chão, olhava através de uma seteira para a grande porta da cerca, na esperança de que alguém viesse iniciar solenemente o dia de trabalho com uma oração. Mas ninguém apareceu.

 ‑ Quando parti a cavalo, ainda reinava o silêncio - esclareceu Loupin, numa voz contida. ‑ Se não me engano, devemos levar sete horas de avanço. Galopei como poucos cavaleiros ousam fazer, mas agora precisamos de cavalos descansados, pois os cavalos de que dispomos não chegarão aos Urales!

 ‑ Mas já temos cavalos à nossa disposição! ‑ murmurou Mouchkov. O pope, de pé diante do pequeno altar que consistia em quatro ícones de estilo ingénuo e comovente, rezava com fervor. ‑ Cavalos que pertencem à Igreja...

 ‑ Ivan Matveiévitch! ‑ exclamou Loupin, num tom de censura.

 ‑ Que prefere, velhote, roubar ou morrer?

 ‑ Mais uma dessas perguntas diabólicas à maneira dos cossacos!

 ‑ Pensa na nossa situação, Loupin!

 ‑ Poderíamos tentar chegar a um acordo com o pope.

 ‑ A Igreja alguma vez deu o que quer que seja de boa vontade? Alguma vez troca bom contra mau?

 Loupin suspirou e olhou para Marina com ternura:

 ‑ Encarreguem‑se de tudo ‑ aconselhou, em voz baixa ‑, eu não verei nada. Vendo bem, agora sou um diácono. Quando partiremos?

 ‑ Mas não um verdadeiro diácono, velhote! ‑ corrigiu Mouchkov, com um sorriso aberto.

 ‑ Sou, sim! Ordenado e ungido pelo bispo em pessoa! ‑ replicou Loupin em voz alta. Sentia‑se ferido quando alguém aludia às circunstâncias particulares da sua ordenação. ‑ Quando partimos?

 ‑ Imediatamente ‑ respondeu Marina. ‑ será possível?

 Loupin fez um gesto de assentimento. Por todo o corpo, sentia dores, caimbras musculares, ardor nos ossos inflamados. "Terão de me transportar para o meu cavalo", pensava ele, "mas, uma vez a cavalo, suportarei a viagem! Que significam algumas dores quando se trata de ver chegar a minha filha, sã e salva, ao outro lado dos Urales? No país de Perm, poderei enfim deixar‑me cair do cavalo e, quando estiver estendido no chão, beijá‑lo‑ei! Santa Rússia!" "Em que é que os cossacos ainda nos poderão interessar?" O governador clarista de Perm enforcará todos os que lhe caiam nas mãos! É um ucasse de Moscovo: "Perseguir todos os Cossacos como se fossem lobos!" E raras vezes o czar terá sido tão prontamente obedecido.

 ‑ É preciso mudar de roupa! ‑ declarou Loupin de repente.

 ‑ O quê? ‑ Mouchkov compôs a camisa e entalou os polegares no cinturão. ‑ Não mudei de identidade, continuo a ser Mouchkov, o cossaco!

 ‑ Como cossaco, serás imediatamente atacado no país de Perm! ‑ retorquiu Loupin em voz alta. ‑ Já te esqueceste?

 ‑ Maldito mundo! ‑ Mouchkov suspirou e pousou a colher. ‑ Conquistamos a Sibéria em nome do czar, fazemos dele o príncipe mais rico do mundo... graças a nós a Rússia será invencível... mas ele condena‑nos à morte!

 O pope terminara a oração matinal. Aproximou‑se da mesa, sentou‑se, fixou os três hóspedes com um ar um tanto vexado e mergulhou a colher na papa.

 ‑ Comer sem ter rezado! ‑ observou ele, num tom reprovador. ‑ Irmão Loupin, esperava que me ajudasses a evitar tal pecado!

 ‑ Tive uma conversa muito séria com estes dois cossacos... ‑ Loupin tossiu, enquanto Mouchkov esboçava um sorriso. ‑ Eles irão a Ouspensk, mas eu não... e encarreguei‑os de transmitir uma mensagem ao bispo.

 ‑ In dulci jubilo! ‑ declarou o pope, comovido.

 Não desconfiava que, alguns minutos mais tarde, não lhe restariam motivos de satisfação.

 ‑ Assim seja ‑ respondeu Loupin, lançando um olhar à filha e a Mouchkov, para se certificar de que estavam prontos. Então, ergueu‑se e encaminhou‑se, a coxear, para a porta:

 ‑ Como está o tempo?

 ‑ Vai estar um dia de sol e quente, irmão...

 ‑ Deus é misericordioso...

 Loupin fez menção de abandonar a choupana rapidamente. Fechou a porta atrás de si e dirigiu‑se, coxeando, para a loja que acabava de abrir. Pelo caminho, retirou do bolso um anel de ouro que o pope Koulakov lhe oferecera.

 ‑ Em troca deste anel, dê‑me umas calças e uma camisa de camponês! ‑ pediu ele, pousando o anel em cima do balcão. ‑ É para um homem esbelto... um pouco mais alto do que eu, mas muito mais estreito de ombros.

 ‑ Em troca deste anel, velho? ‑ perguntou o representante dos Stroganov. Examinou o anel, ergueu‑o contra a luz do dia e piscou os olhos. ‑ Não vale muito...

 ‑ Vale o suficiente para vos abrir o crânio, se me enganarem ‑ respondeu Loupin tranquilamente. ‑ Para que precisam os Stroganov de enganar um velho? Vamos, umas calças, uma camisa e, para completar, umas botas resistentes e fortes, ou vão para o Diabo!

 Nunca se deve falar durante muito tempo com gente grosseira, sobretudo num deserto onde ninguém vem em nosso auxílio, no caso de sermos atacados. O anel era valioso... o velho sabia‑o... o homem de serviço dos Stroganov pôs‑se a pensar mais honestamente e procurou nos armários e no material de reserva o que Loupin lhe pedira.

 Entretanto, as coisas passavam‑se menos pacificamente na tenda do pope. Mouchkov despira o fato cossaco e conservava apenas uma camisa de linho muito curta, que lhe cobria o ventre; assim, a mulher ostíaca observava‑o intensamente e o pope esquecera‑se de comer a papa de aveia, que arrefecia na gamela de barro.

 ‑ Estás louco, Mouchkov? ‑ gaguejou ele. ‑ Queres violar uma serva, na igreja? à minha vista?

 ‑ Que queres tu que eu faça da tua ovelha e dos seus olhares de través? ‑ inquiriu grosseiramente Mouchkov.

‑ Tu é que me podes ajudar, padre!

 ‑ Ivan Matveiévitch! ‑ balbuciou o pope, horrorizado.

 Ergueu‑se de um pulo, recuou até à parede e apontou a cruz que trazia ao peito, como para esconjurar o Diabo.

 Mouchkov olhava‑o, pensativo, enquanto media mentalmente a opa do padre, pensando que talvez lhe ficasse apertada no peito e nas ancas, mas lhe assentaria bem em comprimento. Só os ombros, os ombros largos de Ivan constituiriam um problema...

 ‑ Despe‑te! ‑ ordenou Mouchkov.

 O jovem pope ergueu a cruz, na mão trémula:

 ‑ Arreda, Satanás! ‑ gritou ele, furioso. ‑ Não me toques, porco! Boris Stepanovitch, tu estás armado, chama‑o à razão!

 ‑ Padre, acontece que Mouchkov precisa da sua opa ‑ respondeu tranquilamente Marina. ‑ Só que ele não se exprime com clareza.

 ‑ Mas ele não pode usar a indumentária de um sacerdote! Só um homem ordenado...

 ‑ Despe‑te, e depressa! ‑ vociferou Mouchkov, arrancando a cruz das mãos do pope. Este tremia como varas verdes mas, quando Mouchkov lhe aplicou uma bofetada, desapertou a batina, despiu‑a, de lágrimas nos olhos e disse, dirigindo‑se a Mouchkov:

 ‑ Que se passa contigo, Ivan Matveiévitch? Ah! Como a Sibéria vos modificou. Então não partiram à conquista de Mangaseja empunhando os estandartes sagrados?

 ‑ E regressaremos à Rússia envergando uma batina sagrada! ‑ gracejou Mouchkov. ‑ Não é um presságio?

 Entretanto, sempre a vociferar, tentava em vão abotoar a batina no pescoço, mas esta ficava‑lhe terrivelmente apertada, não dando sinais de esperança.

 ‑ Ora! ‑ exclamou Marina. ‑ Teremos de explicar que não é a primeira vez que um religioso engorda num país conquistado!

 A porta abriu‑se bruscamente... Loupin precipitou‑se para a filha, trazendo debaixo do braço o fato de camponês. Estancou ao ver Mouchkov vestido de pope. Na verdade, acabava de perguntar a si mesmo: "Que fazer dele, como encontrar uma fatiota que sirva a Mouchkov?" E ele ali estava, disfarçado dentro da inesperada indumentária, sorrindo para Loupin. Quanto ao pope, reduzidamente vestido, encolhera‑se ao canto da lareira.

 A mulher ostíaca, de pé junto ao forno de pedras, ofegava. Dois russos, de sexo à mostra e nenhuma violação, constituía uma experiência extraordinária!

 ‑ Impossível! ‑ declarou Loupin, uma vez passado o primeiro choque. ‑ Mouchkov, despe‑te imediatamente, feres o meu coração de homem piedoso consagrado ao serviço do Senhor!

 ‑ Se não fosses pai de quem nós sabemos... apanhavas uma sova! ‑ gritou Mouchkov, ofegante. ‑ Cavalgarei até ao país de Perm com esta batina e quem se rir de mim verá o seu próprio crânio aberto ao meio! Aleluia!

 Mouchkov olhou de soslaio para Marina e viu que esta se ria, o que o tranquilizou.

 "Talvez tenha feito de mim um cossaco diferente dos outros", pensou, "a verdade, no entanto, é que se tornou uma mulher cossaca! Ah! Que vida iremos viver, Marinouchka! Não precisaremos de mendigar, como artífices famélicos, quando chegarmos ao país de Perm!"

 ‑ Eu ocupo‑me dos cavalos! ‑ disse ele. ‑ Alexandre Grigoriévitch, consola o teu irmão em Cristo...

 Como a choupana se compunha de uma única divisão, o pope e a mulher ostíaca tiveram direito a uma surpresa ainda maior.

Marina despiu‑se para envergar o traje de camponês e, quando deixou cair as vestes cossacas, mostrando que era uma rapariga dotada de todas as belezas que uma natureza benevolente pode dispensar, o jovem pope desviou o olhar e desfaleceu:

 ‑ Boris Stepanovitch ‑ balbuciou ‑ estou inconsolável ‑ A mulher ostíaca soltou um guincho e saiu a correr.

 ‑ A Sibéria está cheia de prodígios! ‑ declarou Loupin num tom convincente. ‑ Irmão, não ouviste dizer que em Mangaseja se vêem homens com a boca no cimo da cabeça? repara agora no que aconteceu a Boris Stepanovitch! Teremos de partir o mais depressa possível ao encontro do bispo de Ouspensk!

 Ajudou Marina a vestir‑se, pegou‑lhe na mão e saiu com ela da cabana. Lá fora encontraram Mouchkov, que selara os bem alimentados cavalos pertencentes ao clero, e dois empregados dos Stroganov, que ele se apressara a sovar e se afadigavam agora a carregar os cavalos de mercadorias. Agiam em silêncio, de olhos esbugalhados, pois nunca tinham visto um sacerdote tão grosseiro: até mesmo Oleg Vassiliévitch recitava alguns versículos das Sagradas Escrituras antes de atacar. às nove horas da manhã estava tudo pronto. Loupin, Marina e Mouchkov, montados em vigorosos cavalos, abandonaram o acampamento fortificado e construído por ordem dos Stroganov. O jovem pope, de pé à entrada da cabana, amaldiçoava‑os ruidosamente, enquanto os homens dos Stroganov se comprometiam a enviar uma mensagem para Oriol.

 Mas não conseguiram fazê‑lo tão depressa quanto supunham.

 Quatro horas mais tarde, os seis cossacos que perseguiam os fugitivos entravam pela porta, aberta de par em par. Não hesitaram em esmagar quem se lhes apresentava pela frente e, depois de apeados, invadiram aos pares o interior das cabanas.

 ‑ Louvado seja o Senhor! ‑ rugiram os dois intrusos no interior da tenda do pope. Este, ajoelhado em frente do altar, vira‑se obrigado, não possuindo nada de melhor, a vestir as calças de Mouchkov.

 ‑ Viram passar por aqui Mouchkov, Loupin e Boris Stepanovitch?

 ‑ Com certeza ‑ respondeu o pope num tom sinistro ‑, e que o Diabo lhes siga os passos.

 ‑ Ah! As calças de Ivan Matveiévitch! ‑ exclamou um dos cossacos estendendo a mão. ‑ Estou a reconhecê‑las!

 ‑ E em cima da mesa, o boné vermelho de Boris!

 Arrancaram o pope às suas orações e arrastaram‑no para fora da cabana. O pope gritava, suplicava e acabou por chorar.

 Entretanto, os restantes cossacos interrogavam os empregados dos Stroganov, aproveitando para surripiar da cabana dos caçadores algumas preciosas peles de zibelina e para saborear uma pipa de aguardente de reserva.

 ‑ Patifes! Gritava o chefe da expedição punitiva. ‑ Que lhes fizeste? Porque estão aqui as suas roupas?

 ‑ Roubaram‑me ‑ gemeu o padre. ‑ Sim, roubaram‑me a batina, os cavalos, uma cruz... que Deus os castigue!

 ‑ Afinal, Mouchkov continua a ser um verdadeiro cossaco! ‑ concluiu o cossaco encarregado da missão por Jermak, cheio de um secreto orgulho. ‑ Há quanto tempo partiram?

 ‑ Há quatro horas.

 ‑ Nesse caso, alcançá‑los‑emos! ‑ correram para os cavalos ainda fumegantes e saltaram para as selas de um pulo, habilidade em que os Cossacos são exímios. ‑ Precisamos de os capturar antes dos Urales. HoÍ! HoÍ!

 Manejavam os chicotes soltando gritos estridentes e partiram a galope através do grande portão, como um pelotão infernal que tivesse vindo perturbar esta pequena e pacífica colónia...

 "Antes dos Urales!" Sabiam que não deviam aventurar‑se pelo país de Perm ‑ eram ordens de Jermak ‑ mas cada um deles receberia mil rublos se levassem a Jermak Timofeiévitch as cabeças de Mouchkov, Loupin e Boris.

 E, desta vez, Jermak estava decidido a pagar.

 

 Os fugitivos faziam em sentido inverso o caminho percorrido no Inverno precedente ao longo do Toura. Encontravam por toda a parte marcas deixadas por Jermak e pelos seus homens: barcos danificados, jangadas apodrecidas, acampamentos provisórios construídos quando passavam a noite nas margens do rio e dos quais apenas restavam as muralhas de pedra solta. Chegaram mesmo a encontrar vestígios de fogueiras, das quais restavam troncos de árvores meio consumidos. Nostálgico, Mouchkov detinha‑se, por vezes, olhando fixamente os testemunhos da marcha em direcção à Sibéria, aventura insigne de um milhar de cossacos, de sacerdotes, de mercadores, de caçadores, que ficariam conhecidos na história mundial como exemplo único.

 Quando se afastaram do Toura, para seguirem ao longo do rochoso Tagil, quando atingiram o Charavlia, para cujas margens haviam rebocado as pesadas embarcações durante dias e dias, Loupin e os seus filhos refugiaram‑se novamente nas grutas para passar a noite, grutas que tinham descoberto por essa época nos maciços rochosos e cujas entradas alongaram. Também aí, encontraram utensílios esquecidos, resto de cordame.

 Por três vezes, dormiram em acampamentos fortificados; cruzaram‑se com colunas de reabastecimento, presentemente enviados pelos Stroganov através dos Urales, enquanto Mouchkov se familiarizava cada vez mais com o seu papel de pope, embora a batina não lhe assentasse muito bem.

 Perante o descontentamento de Loupin, que falava de conduta blasfema em relação ao Senhor, Mouchkov abençoava os palafreneiros dos Stroganov que, com sentimentos mitigados e, muitas vezes amedrontados, se viam obrigados a penetrar na Sibéria desconhecida.

O comércio com as regiões já conquistadas implantara‑se rapidamente: as actividades de um Stroganov nunca paravam. Antes dos habitantes das zonas ocupadas retomarem fôlego e se aperceberem de que tinham sido derrotados, já os empregados dos Stroganov se estabeleciam em feitorias, nas quais se dedicavam à troca e compra de mercadorias. Não havia tempo para criticar os novos patrões... Estes traziam dinheiro e novas mercadorias e, feitas as contas, quando se pode viver, comer, ter um tecto sob o qual se acolher e conceber filhos tranquilamente, pouco importa que o senhor de todas as coisas se chame Koutchoum ou Ivan.

 Um dia, ao cair da noite, Mouchkov, Marina e Loupin detiveram‑se no fundo de uma fenda, cujas elevadas paredes rochosas deixavam passar um carreiro.

Alguns tempos atrás, Jermak e o seu bando tinham acampado ali e Mouchkov recordava o esconderijo onde abandonara um barril de carne salgada.

 O barril ainda lá estava, mas alguém o arrombara para consumir o conteúdo.

 ‑ E agora, que faremos? ‑ perguntou Loupin um pouco mais tarde. A noite estava clara, quente e calma, uma noite para amantes e Mouchkov perguntava a si mesmo como fazer compreender a um pai que poderia dormir mais adiante, em outra cavidade da rocha, pois, com tal tempo, os apaixonados... Mas Loupin tinha o sono leve e acordava sempre que Mouchkov, debaixo do cobertor, se atrevia a acariciar Marina. Então, Loupin soerguia‑se e clamava: "Ivan Matveiévitch, não te esqueças de que agora usas uma batina sacerdotal!"

 ‑ Que queres dizer com esse "que faremos", velhote? ‑ perguntou por sua vez Mouchkov. ‑ Tens calor? Há uma gruta mais adiante que me parece mais fresca.

 Loupin olhou‑o de alto a baixo e Mouchkov baixou a cabeça.

 ‑ Quis dizer o seguinte: que faremos quando tivermos atingido o Tchousovaia? Construiremos uma jangada para descer a corrente? Iríamos mais depressa e pouparíamos esforços.

 Mouchkov pensou em todas as misérias sofridas quando subiram o rio a remos e meneou a cabeça:

 ‑ Agora tenho um cavalo! Nunca mais na vida quero ouvir falar de jangadas ou de barcos! Iremos a cavalo.

 ‑ Não! ‑ Mouchkov teve a coragem de contrariar Marina e surpreendeu‑se por ela aceitar sem refilar. ‑ Deixa‑me, pelo menos, uma recordação da minha vida de cossaco, o meu cavalo!

 Em breve puderam verificar quão alegre pode ser a vida de um cossaco. Subitamente, junto ao seu refúgio, ouviu‑se um grande tropel de cavalos. Mouchkov e Loupin pegaram imediatamente nas armas. Um dos condutores da coluna de abastecimento com que se tinham cruzado na véspera, e que Mouchkov deixara partir rumo à Sibéria com a sua bênção, penetrou na gruta; trazia um profundo ferimento na testa.

 ‑ Os cossacos! ‑ gritou ele. - e aproximam‑se! Fugi, depois de ter sido atacado por eles. Perguntaram, se vos tinha encontrado. Falaram de um pope chamado Mouchkov. Sois vós, padre?

 ‑ Sou! ‑ exclamou Mouchkov. ‑ Abençoado sejas por teres vindo até nós! Prossegue o teu caminho e diz aos Stroganov que enviem três grandes sírios a Ouspensk!

 O piedoso mensageiro benzeu‑se e apressou‑se a desaparecer antes de ser visto pelos cossacos.

 ‑ Eu sabia que Jermak nos perseguiria ‑ confessou Loupin. ‑ É tão capaz de odiar como uma mulher enganada!

 ‑ Nunca pensei que nos alcançassem.

 Mouchkov preparou pólvora e chumbo que retirou dos alforges e deu uma parte a Loupin, o que obrigou Marina a perguntar‑lhe:

 ‑ E eu?

 ‑ Tu ficas aqui na gruta! ‑ respondeu Mouchkov.

 ‑ Porque dizes tolices! ‑ gritou ela.

 ‑ É uma ordem! ‑ reforçou Loupin.

 Marina voltou‑se para o pai e este sentiu fugir a autoridade ao enfrentar os seus olhos azuis. Subitamente, compreendeu Mouchkov, que se queixava de se enternecer perante o olhar de Marina.

 Marina desembainhou o punhal que usava à cinta e estendeu a mão a Loupin:

 ‑ Será o nosso último combate ‑ disse ela, convicta.

‑ Mais adiante encontra‑se o país de Perm, onde nos espera uma nova existência! Então, não hei‑de fazer nada para que possamos viver? Mouchkov! ‑ prosseguiu, solene. ‑ Trouxeste‑me para a Sibéria como espólio, hoje sou eu que te levo como espólio para a Rússia! Que tens a dizer?

 ‑ Nada, Marinouchka ‑ respondeu Mouchkov, entregando‑lhe pólvora e chumbo e avançando para a entrada da gruta, enquanto Marina apagava as brasas da fogueira.

 ‑ És um verdadeiro fantoche nas suas mãos! ‑ resmungou Loupin na escuridão da noite.

 Mouchkov calou‑se. "Que responder?", pensou. Todos os homens apaixonados se comportam como burros, é o que torna este estado tão delicioso.

 

 O combate foi breve e a vitória rapidamente obtida. Quando se trata de salvar a pele, ninguém pensa em respeitar as regras de um combate leal.

 Em todo o caso, os seis cossacos, penetraram a cavalo na emboscada armada por Mouchkov e Loupin. Foram abatidos no fundo do caminho, entre as muralhas dos rochedos, sem sequer terem visto os adversários, sem poderem defender‑se, sem terem tido tempo de compreender o que se passava.

 Ouviram‑se tiros. Os três cavaleiros que vinham à frente caíram das selas. O céu estava limpo, a visibilidade era boa. Como Mouchkov e Loupin possuíam cada um deles duas pistolas, os dois cossacos que se seguiam abateram‑se igualmente no solo rochoso, sem um grito, de tal modo as balas partiram certeiras.

 O último cossaco teve menos sorte: o cavalo, assustado com os tiros, empinou‑se e o cavaleiro perdeu as estribeiras. Ainda tentou desembainhar o sabre, ao erguer‑se de um pulo, mas Mouchkov já se encontrava à sua frente e a sua aparição, vestido de pope, paralisou o cossaco por alguns segundos. Ivan Matveiévitch disfarçado de pope! Muito se riria Jermak!

 Estes segundos foram decisivos:

 ‑ És tu, Pavel Ivanovitch Khromov. Ousas, então, perseguir um velho amigo do Don?

 Em seguida, Mouchkov esfacelou o crânio do cossaco. Por detrás dos rochedos, surgiu Loupin; vindo do outro lado, aproximou‑se Marina, de punhal curvo na mão.

 ‑ Acabou‑se! ‑ declarou Mouchkov, encostando‑se à escarpa rochosa. ‑ Era Khromov! Brinquei com ele na areia das margens do Don. Deus me perdoe, mas que poderia eu fazer?

 Deixou cair o sabre, ocultou o rosto entre as mãos e chorou.

 Mais tarde, enterraram os seis cossacos dentro de uma das grutas, cuja entrada taparam com pedras, tarefa que lhes custou uma noite de trabalho. Como ficavam com os cavalos, Loupin acabou por dizer para os seus botões: "Seria uma tolice servirmo‑nos de uma jangada. Afinal, já não temos de quem fugir. Acabou‑se, meus filhos, somos livres!"

 

A liberdade é uma coisa estranha. Todos nos esforçamos por a alcançar, por a conservar, por a defender... Mas, quando a possuímos, ela mostra‑se tão reticente como uma freira. Loupin, Marina e Mouchkov viveram de imediato esta experiência.

 Enquanto atravessavam os Urales, a cavalo, transpondo com dificuldade os vales e ladeando precipícios, imaginavam a vida em liberdade de uma maneira muito diferente da que se lhes afigurou logo que entraram no país de Perm.

 Deixando atrás de si o Tchousovaia, esse rio de nome sinistro que fora para eles a porta da Sibéria, apresentara‑se‑lhes, a oeste, a nova colónia fundada pelos Stroganov, florescente feitoria comercial que Jermak mandara rodear, um ano antes, por uma muralha circular de pedra. Receberam então desagradáveis notícias transmitidas por um mensageiro que já tinham encontrado nos Urales e que retomava o caminho da Sibéria.

 ‑ Em pleno Verão, tem soprado um vento muito frio! ‑ informou o viajante, ao contemplar a sotaina de pope, singularmente rota e gasta, que Mouchkov envergava.

‑ Não sei donde vens, padre, pois só nos vimos nos Urales, mas o que já então me surpreendeu foi o facto de não usares barba como os outros popes.

 ‑ Estava cheia de piolhos. ‑ Respondeu Mouchkov, antes que Loupin tivesse tempo de falar. - Piolhos mongóis! Parece‑te que os devia transportar para a Rússia?

 ‑ Vai contar essa história aos oficiais do czar! ‑ O palafreneiro beijou a cruz que Mouchkov trazia ao peito e observou‑o de alto a baixo, um tanto incrédulo. ‑ Dizem que o país está cheio de falsos sacerdotes, que andam de terra em terra a pregar e a roubar! Os soldados prendem‑nos e os que não forem verdadeiramente conhecedores da religião ‑ um pope verdadeiro assiste aos interrogatórios ‑ são enviados para as masmorras! Os mais vis são torturados e arrancam‑lhes os olhos! Padre, toma bem conta de ti!

 "Estamos em maus lençóis!", pensou Mouchkov quando o mercador se afastou.

 ‑ Que aprendeste com Oleg Vassiliévitch? ‑ perguntou em seguida, dirigindo‑se a Loupin.

 ‑ Aprendi a proferir impropérios, a beber e a conviver com prostitutas! ‑ respondeu Loupin. ‑ É quanto basta para quem não quiser saber muito!

 Mouchkov olhou para a sua indumentária. A sotaina estava suja, rota e puída pelo contacto com a sela. Quando o sol incidia no seu traseiro, via‑se‑lhe a pele através dos fios do tecido.

 ‑ Preciso de roupa nova ‑ concluiu.

 ‑ Mas como obtê‑la? A mais pequena compra, a mais simples tentativa de troca e alertaremos os soldados! ‑ exclamou Marina. ‑ Ouviram bem? A população colabora na descoberta dos falsos popes!

 ‑ Que solução nos resta, então? ‑ perguntou Mouchkov, abrindo os braços. ‑ Teremos de roubar a roupa de que necessitamos! Não tenho sempre dito que "mais vale tirar do que pedir?"

 ‑ Ivan Matveiévitch! ‑ criticou Marina, num tom severo. ‑ Estás a falar como um homem decidido a ganhar a vida trabalhando, como me prometeste?

 ‑ Loupin! Ela está novamente a tentar enternecer‑me! ‑ declarou Mouchkov, desolado. ‑ Conhece alguma maneira de nos desembaraçarmos?

 ‑ Partirei à frente para estudar as possibilidades ‑ respondeu Loupin. ‑ Assim, sozinho, não me farei notar. Tentarei obter algumas peças de roupa na próxima aldeia. ‑ Fitou preocupado Mouchkov e, em seguida, desviou o olhar para Marina. ‑ Grande liberdade! ‑ Exclamou. ‑ Na Sibéria, Jermak quer matar‑te, na Rússia, o czar quer matar‑te por seres cossaco e, no país de Perm prender‑te‑ão por seres um falso pope! Faças o que fizeres, Ivan Matveiévitch, serás sempre acusado! Dificilmente encontraremos um local tranquilo!

 ‑ Em Moscovo... ‑ começou Marina, hesitante, pois sabia que Mouchkov era um homem mais livre do que um pássaro... ‑ Qualquer um podia abatê‑lo e ser recompensado pelo assassínio! Em Moscovo ‑ repetiu ‑, ninguém nos perguntará quem somos...

 Dissera‑o olhando de frente para Mouchkov.

 Moscovo! Loupin fixava um ponto longínquo. Florestas, planícies pedregosas, a travessia do Kama onde, para qualquer homem, começava a liberdade... excepto para Mouchkov.

 ‑ Sabes onde fica Moscovo, minha filha, e quantas verstás nos separa dessa cidade? Milhares de verstás!

 ‑ Tens medo, papá? ‑ Marina abraçou Mouchkov pela cintura e encostou‑se a ele, enquanto lhe acariciava o cabelo. Também ele, de ar ausente, fixava o horizonte, enquanto lhe tremiam os lábios:

 ‑ Fomos à Sibéria ‑ disse ele ‑, e voltámos da Sibéria para a Rússia... Alcançaremos Moscovo... e tudo o que quisermos neste mundo porque nos amamos.

 

 Alexandre Grigoriévitch partiu, pois, a cavalo, sozinho como combinado, do Tchousovaia para o país de Perm e informou‑se sobre o estado de espírito da população. Esta vivia tranquila, governada pelos Stroganov; não era livre, pois o país fora conquistado e ocupado pelos Russos, mas tinham que comer e a agricultura prosperava. Os Stroganov traçavam estradas que não ficavam submersas pela lama, duas vezes por ano, no Outono e na Primavera. Nas feitorias, pagavam razoavelmente as peles, os salineiros davam trabalho mesmo àqueles que, devido à sua estupidez, não poderiam senão errar pelos caminhos. Aldeias fortificadas protegiam os habitantes das incursões dos vogulos e dos antigos senhores nacionalistas. Em suma, no país de Perm a vida era suportável.

 Até ao dia em que surgiram os soldados do czar...

 Os Stroganov adiaram tanto quanto possível esta invasão militar. O avô Anika, raposa astuta, prometera a Ivan IV assegurar a manutenção da ordem pública. Do mesmo modo, os irmãos Jacob, Gregor e Simeão conseguiram persuadir o czar de que a presença dos militares só aumentaria o clima de inquietação. Mas presentemente eram os jovens Stroganov, Nikita e Máximo, que governavam o país, sobre o Kama. Ora, Ivan, na longínqua cidade de Moscovo, mostrava‑se hesitante quanto a estes senhores, que reinavam nas suas próprias terras. A notícia da chegada de Jermak à Sibéria e o facto deste ter derrotado por duas vezes as tropas de Koutchoum, foi para o czar uma espécie de sinal.

 ‑ Estão a tornar‑se demasiado poderosos, esses Stroganov ‑ confessou ele, taciturno, ao seu confidente Boris Godounov.

 Ivan, quanto mais envelhecia, mais cruel se tornava. Já não tinha amigos nem, de resto, ninguém ambicionava o título. Ser amigo de Ivan IV significava viver sob a ameaça da forca... tendo como perspectivas a cegueira, a língua arrancada, a castração... acções estas que se podiam considerar, contudo, testemunhos de apreço por parte do soberano.

 Apenas dois boiardos viviam ainda na esfera do czar: o gordo Boris Godounov, que aguardava a hora da morte do czar, e o príncipe Chouisky, o espírito aberto, o elegante intriguista, em quem Godounov alimentava a ideia de que poderia ser o futuro czar, enquanto preparava em segredo as bases do seu poder pessoal.

 Em Moscovo, reinava o medo. Todos os dias havia uma execução. Nas igrejas, os crentes rezavam e entoavam cânticos pela preservação das suas vidas, na verdadeira acepção do termo, e quando o czar enviou para o exílio, e depois mandou assassinar o metropolita de Moscovo, a Igreja compreendeu por sua vez que, se Deus parecia estar longe, Ivan era omnipresente e parecia preferível honrar o czar em vez de Cristo que, sem dúvida, amava os mártires, mas não os protegia.

 ‑ Enviaremos tropas para o país de Perm ‑ declarou Ivan que há muito era conhecido por o Terrível. ‑ Boris Godounov, que razão apresentaremos para esta ocupação?

 ‑ Ouvi dizer ‑ respondeu Godounov, pensativo ‑ que precisamente no país de Perm vagueiam muitos falsos popes por cidades e aldeias, pedindo esmolas para igrejas e conventos que não existem. E, deste modo, enriquecem. Os Stroganov são comerciantes astutos, bons cristãos, patrões severos, mas não podem ocupar‑se de tudo. Presentemente, a sua atenção está voltada para a Sibéria... Não nos deve surpreender que o país se ressinta. O gossoudar enviará tropas para proteger os Stroganov nas margens do Kama. Aceitarão com certeza este presente do czar.

 Ivan aprovou, meneando a cabeça. Encontrava‑se sentado numa poltrona forrada a pele de zibelina. Uma capa envolvia‑lhe a silhueta descarnada, o barrete bordado a pérolas e ouro encobria‑lhe o cabelo branco e ralo.

A barba grisalha mal chegava para cobrir o peito magro. Tinha sempre frio, mesmo em pleno Verão, e as jovens que o príncipe Chouisky metia na sua cama eram incapazes de o aquecer. Ivan expulsava‑as e, no dia seguinte, mostrava‑se ainda mais rabugento.

 Homem envelhecido e azedo, cruel, que se sentia perto do fim mas que não se resignava a morrer, pois temia o julgamento de Deus. Contudo, nos últimos anos, rezava mais do que reinava e mandava construir igrejas umas após outras. "Raposa matreira, este Godounov", pensava, nesse momento, o czar. "Que fará ele quando eu morrer?

Assassinará o pretendente ao trono, esse indolente, para ocupar o seu lugar? ou Chouisky, essa personagem gelatinosa, mandará matar todos os outros? tantos ratos à minha volta! Deus, deixa‑me viver para engrandecer a Rússia, tornando‑a invencível! Exige sangue e vidas humanas, mas o que é grande, na Rússia, não foi construído com sangue?"

 E, então, as tropas do czar cavalgaram para leste durante semanas a fio, a fim de prestar auxílio, chamemo‑lhe assim, aos Stroganov. Nikita e Máximo seriam incapazes de se defender e o velho Simeão, no seu mosteiro, regressara à infância, pronto a enveredar pelo caminho do céu.

 Enquanto Jermak e o seu milhar de homens se batiam no Tobol contra os cavaleiros de Mametkoul, os soldados russos ocuparam o país de Perm, construíram pequenas fortalezas e iniciaram a perseguição aos falsos popes, aos bandidos, ladrões e vagabundos. Executaram também alguns chefes vogulos e udmurtes e a notícia, ao propagar‑se, trouxe de novo a paz.

 Nas igrejas, começou‑se a rezar secretamente pelos Stroganov, e não pelo czar. Os senhores regionais vinham disfarçados até Kama para implorar aos Stroganov e obter ajuda contra os demónios do czar.

 ‑ A Sibéria! ‑ suspirava Máximo Stroganov, o comerciante que deixava Nikita, o estratego, explicar a situação aos visitantes, apoiado em muitas cartas geográficas:

 ‑ O nosso futuro está para lá dos Urales e o vosso também, irmãos! O poder do czar só parará nas montanhas: mas a Sibéria será nossa, confiem em nós!

 

 Mouchkov e Marina, que encontraram abrigo numa caverna à beira do Tchousovaia, não beneficiavam destas palavras encorajadouras. O pai Loupin metera‑se a caminho há dois dias e eles não sabiam se ainda se encontraria vivo, ou se teria sido raptado, atacado ou ainda quem sabe, assassinado. Ao terceiro dia, apoderou‑se deles a inquietação. Permaneceram durante horas e horas ocultos por um rochedo, aguardando o velho, de olhar atento ao vale e perscrutando o caminho pelo qual ele deveria regressar. A angústia tornara‑se mais forte do que o amor. Nos dois primeiros dias e nas duas primeiras noites que passaram sozinhos, o desejo apoderara‑se deles. Abandonaram‑se totalmente à felicidade, e Mouchkov, que até então amaldiçoava Novo Orpotchkov, por ter começado nessa aldeia em chamas toda a sua desgraça, considerava‑a agora um local abençoado.

 Todavia, urgia ter em conta as contingências materiais. Assim, de vez em quando, Mouchkov arrastava‑se para fora da caverna e tratava de alimentar os cavalos, o que não era fácil, pois a erva era rija e a água do Tchousovaia não bastava para lhes matar a sede. Ao quarto dia, Mouchkov teve de se entregar a uma verdadeira expedição para conseguir obter forragem. Levou consigo quatro cavalos, assaltou à maneira dos cossacos um camponês do vale e carregou os cavalos de forragem, depois de ter amarrado o camponês, a mulher e um criado a uma viga da sua choupana. Em seguida, regressou ao seu refúgio no pedregoso Tchousovaia, assobiando alegremente.

 Depois deste incidente, deve ter reinado uma grande agitação por todo o vale. Um pope atacara um camponês e roubara forragem, carne e aveia, gritando: "Malditos sejam se ousarem proferir uma palavra!" Um facto novo que recordava estranhamente a passagem de Jermak por esta região...

 Ao entardecer do quinto dia, apareceu Loupin, cansado, cambaleando em cima do cavalo, coberto de pó. Mouchkov pegou‑lhe ao colo como se fosse uma criança e transportou o velho para dentro da caverna. Marina ofereceu‑lhe uma infusão simples, que ele bebeu, esfregou‑lhe a testa e massajou‑lhe o peito. Só alguns momentos depois Loupin conseguiu articular algumas palavras.

 ‑ Trouxe‑te um fato de camponês, Ivan Matveiévitch ‑ murmurou ele, ofegante, de olhar exausto. ‑ Graças a Deus, consegui obtê‑lo! As tropas do czar estão a passar a região a pente fino para encontrarem um falso pope que atacou um camponês e o espancou, depois de ter violado a mulher e a filha!

 ‑ Estrangulá‑los‑ei a todos! ‑ rugiu Mouchkov, erguendo‑se de um salto. ‑ Ah! Como são mentirosos! Abençoei o camponês e nem olhei para a mulher e, quanto à filha, não havia nenhuma! Marinouchka, sou algum bruto?

 ‑ Agora, já não ‑ respondeu ela, muito calma. ‑ Acredito em ti, Ivanouchka...

 ‑ Ela acredita em mim! ‑ exclamou Mouchkov radiante. ‑ Ouviste, velhote? E tu?

 ‑ Então sempre foste tu! ‑ concluiu Loupin, fechando os olhos de exaustão. ‑ Marina, porque deixaste este idiota sair sozinho?

 ‑ Os cavalos tinham fome, pai, precisávamos de os alimentar.

 ‑ Por esses meios?.

 ‑ Devia ter mendigado até encher a camisa de feno? ‑ gritou Mouchkov. ‑ O mundo é malvado, velhote, não será pior por minha causa.

 ‑ É verdade que podemos pensar assim ‑ reconheceu Loupin, que extenuado, adormeceu quase imediatamente. ‑ Veste o fato de camponês, meu filho ‑ ainda teve tempo de sussurrar.

 Durante a noite, queimaram a batina de pope e tudo o que pudesse recordar os cossacos. As botas foram as últimas sacrificadas, fediam horrivelmente ao consumirem‑se em chamas.

 ‑ Quantos anos cavalguei com elas... quanto suor de cavalo ainda escorre por aquelas botas... ‑ comentou Mouchkov, muito triste, observando o lume. ‑ As botas contorciam‑se por efeito do calor, como se quisessem fugir. ‑ Viram o mar Negro, as estepes dos Nogais, as florestas da Sibéria... E agora ardem... Mouchkov já não existe.

 ‑ Existe um novo Mouchkov Ivanovitch ‑ retomou Marina com ternura, dando‑lhe um beijo na nuca. ‑ Um Mouchkov muito melhor.

 ‑ Sim, um Mouchkov que será artífice, que terá de se curvar para conseguir emprego! Marinouchka, serei capaz de suportar?

 ‑ Estou contigo, Ivan Matveiévitch!

 ‑ E que contarei eu, um dia, aos nossos filhos? Nunca verão as estepes do Don? Nem as manadas de cavalos do Volga? Nem os cerejais das nossas aldeias? Nunca ouvirão chiar os ratos da estepe na Primavera? Meus filhos!

 Mouchkov apoiou a cabeça nas mãos, de olhar fixo nas chamas. Marina compreendia‑o mas mantinha‑se em silêncio, deixando‑o entregue ao seu desgosto, às despedidas do passado. "Terei de o amar como nunca uma mulher amou um homem", pensou ela sentando‑se junto de Mouchkov. "Serei, para ele, um país novo, farei com que esqueça a última das recordações."

 No dia seguinte de manhã, transportara, o pai Loupin, esgotado, para cima do cavalo, prenderam os cavalos uns aos outros por meio de grandes correias e desceram lentamente até ao fundo do vale. No seu traje de camponês, Mouchkov parecia singularmente estranho.

 Este brilhante cavaleiro cossaco, envergando uma ampla camisa, apertada na cintura por uma simples corda, apresentava‑se agora como um Kulak igual a qualquer outro.

 ‑ Apetece‑me cuspir no meu próprio rosto! ‑ exclamou ele ao mirar‑se nas águas límpidas do Tchousovaia.

 ‑ Amo‑te ‑ respondeu‑lhe Marina, sorrindo. Os grandes olhos azuis transbordavam de ternura, enquanto o acariciava com o olhar. Ele sentia‑o na pele... ‑ O resto pouco importa...

 

 Na aldeia de Lassinevka encontraram‑se com os primeiros soldados do czar.

 Os soldados observavam Mouchkov, o velho e o bonito adolescente louro, contaram os cavalos que traziam em fila e confiscaram tudo em nome do czar.

 No dia seguinte libertaram‑nos, mas atribuíram‑lhes cavalos cambaios e cansados e, quando Mouchkov se queixou ao oficial, obteve como resposta uma bofetada. Pela primeira vez na vida, não retribuiu a afronta, pela primeira vez na vida, deixou‑se arrastar sob uma chuva de chicotadas, sem lançar imediatamente uma operação de represálias.

 Montou o cavalo manco, suspirou, olhou para Marina e Loupin, que baixaram a cabeça, e perguntou‑lhes, em voz baixa:

 ‑ O que é uma vida livre? É isto, velhote? Ah! Quando sonho com a liberdade das margens do Don...

 ‑ Estarmos vivos, foi o que ganhámos, meu filho ‑ respondeu Loupin. ‑ Agora podem tentar viver a vida o melhor possível.

 ‑ Eu e Marina, sozinhos?

 ‑ Nunca estarão sozinhos, há milhares de pessoas como vós. Mouchkov, ainda tens muito que fazer antes de seres velho como eu.

 Lentamente, saíram da aldeia. Que vergonha para um cossaco, montar um cavalo como aquele! Mouchkov mordia o lábio inferior:

 ‑ Teremos de encontrar novamente uma igreja, provida de cavalos bem alimentados... ‑ murmurou em voz surda.

 ‑ Acabou‑se, Ivan Matveiévitch! ‑ respondeu Marina. ‑ Isso foi no passado!

 ‑ Nunca mais chegaremos a Moscovo com estes animais!

 ‑ Nesse caso, trabalharemos pelo caminho para podermos comprar bons cavalos! ‑ propôs Loupin. ‑ O Outono já paira na atmosfera e, dentro de quinze dias, sentiremos o odor do Inverno. Todas as novas aldeias construídas pelos Stroganov necessitarão de lareiras: pensem nisso! Agora, temos tempo.

 Penetraram a cavalo no país de Perm, apearam‑se em aldeias, trabalharam para assegurar o pão de cada dia. Caçaram raposas e esquilos, cujas peles vendiam nas feitorias dos Stroganov, onde as mais variadas peles se acumulavam.

 Chegou o Outono, acompanhado, como sempre, por fortes chuvadas, que deixam os campos saturados de humidade. Mouchkov partia à caça de castores, em pequenos cursos de água distantes. Quando uivou o vento dos primeiros gelos e a terra endureceu, quando caíram os primeiros nevões e por toda a parte constou que, na longínqua Sibéria, Jermak Timofeiévitch conquistara a capital, Sibir, quando Mouchkov chorou de alegria e nostalgia ao pensar nos seus cossacos e Marina o consolou com toda a sedução do seu corpo tépido, macio e branco, o pai Loupin negociou com os empregados dos Stroganov, após muitas discussões encarniçadas, injúrias e imprecações de ambas as partes, um pacote de peles de castores e raposas contra três cavalos e um trenó. Rodeado por sinos e campainhas, o velho aproximou‑se dos filhos, muito ufano na sua tróica. Abraçou Marina e, batendo com os punhos no peito do genro, sempre tristonho, disse:

 ‑ Aqui tens, Ivan Matveiévitch, esta preciosa tróica! Com cavalo. São gordos como um bispo e um sólido trenó de patins ferrados! Ganhaste tudo isto!

 ‑ Eu? ‑ perguntou Mouchkov, surpreendido.

 ‑ Quem foi, então, que caçou belos castores, que caçou raposas? Quem percorreu as florestas, de dia e de noite e espiou os animais à beira do rio? Quem trabalhou como uma besta de carga?

 ‑ A minha primeira tróica! ‑ Mouchkov dava voltas ao trenó, beijava os focinhos dos cavalos, abraçava‑os pelo pescoço. ‑ E tudo isto por ter trabalhado! ‑ gritava ele, sentando‑se na tróica. ‑ Nada disto foi roubado, é inacreditável!

 Pegou nas rédeas, deu um estalido com a língua e partiu na sua tróica para dar uma volta pela aldeia. As campainhas tocavam, em arco de círculo sobre a sua cabeça, os cavalos ostentavam pequenos tufos de plumas vermelhas e levantavam os cascos do chão como numa parada. O coração de Mouchkov estoirava de felicidade. Começou a cantar em voz alta, de rosto ruborescido pela emoção e, por fim, parou diante de Marina e Loupin.

 O pai e a filha estavam de mãos dadas à beira do caminho e, ao saltar do trenó, Mouchkov pensou: "Fiz bem em me submeter a esta femeazinha!"

 

 A 18 de Março de 1584, num dia morno precursor da Primavera, demasiado quente para Moscovo, o czar Ivan IV sentou‑se diante do tabuleiro de xadrez, em companhia de um dos seus familiares, o boiardo Bogdan Bielski.

 A pouca distância, Boris Godounov recebia embaixadores. Quanto ao príncipe Chouisky, vivia dias tranquilos nos seus domínios para lá de Moscovo, estabelecendo contactos com duvidosos boiardos que aliciava e reunia à sua volta, contra Godounov.

 Após um Inverno clemente, a vida em Moscovo desabrochava como uma flor sob o efeito do orvalho matinal. Esse dia de Primavera encaminhava os citadinos para as margens do rio Moscova, para as florestas e jardins dos mosteiros, onde se podia passear e, ao mesmo tempo, ser abençoado.

 O czar olhava fixamente o tabuleiro de xadrez, no qual Bielski acabava naquele momento de arriscar uma jogada audaciosa. Contudo, a partida ainda não estava perdida, nem o poderia estar, pois Bielski sabia exactamente quando podia derrotar o czar ao jogo, ou quando se revelava mais sensato deixá‑lo ganhar. Hoje, por exemplo...

 Ivan IV estava pálido, o rosto encovado, os olhos incandescentes brilhando nas órbitas profundas; os seus lábios pareciam ainda mais finos do que habitualmente.

 

 Pousou as mãos agitadas por um leve tremor no rebordo do tabuleiro e meditou um pouco:

 ‑ Não me provoques, Bogdan ‑ advertiu numa voz surda. ‑ Este vento quente fatiga‑me...

 ‑ Nada está perdido, gossoudar ‑ respondeu Bielski, inclinando‑se. ‑ Foi apenas um pião. O que é um pião?

 Ivan ergueu os olhos; o seu olhar agudo penetrou no boiardo como uma lança.

 ‑ Perdi muitos piões, não é verdade? ‑ perguntou ele, acabrunhado. ‑ E também muitos boiardos, soldados, oficiais, amigos. Limpei a Rússia! Purifiquei‑a! Mas os ratos multiplicam‑se de novo e as almas são imortais, tanto as boas como as más! Já viste almas, Bogdan?

 ‑ Não, Gossoudar ‑ respondeu Bielski numa voz rouca, olhando atentamente para o czar. Ivan mudara.

 O seu rosto desagregava‑se como se a carne se desprendesse dos ossos.

 ‑ Pois eu vi! ‑ declarou ele, sinistro. ‑ Todas as noites me procuram, aproximam‑se do meu leito e gritam:

"Ivan! Ivan! Porque nos mataste? Olha para nós, não éramos teus amigos? Rejeitaste os melhores e conservaste os lobos que espreitam a tua morte!" Em seguida, vêm sentar‑se à minha cabeceira e choram. E eu acordo sobressaltado, levanto‑me, e rezo, rezo, suplico a Deus que me perdoe. Por que não conheces nada disto tu, cão?

 Com um safanão, varreu as peças do tabuleiro de xadrez. Pelo rosto pálido espalhou‑se um suor frio; o seu peito arquejava a um ritmo acelerado.

 ‑ Bogdan! Tu também me traíste! à minha volta, só há hienas, abutres que querem alimentar‑se da minha carne! Godounov, Chouisky, Romanov... Porque será que Deus não vem em meu auxílio? Não serei eu um humilde servidor?

 O czar quis levantar‑se, mas as pernas não lhe obedeceram. Caiu para a frente, apoiando o peito na mesa. Um horrível estertor escapava‑se‑lhe da boca aberta, tinha os olhos esgazeados...

 ‑ Um médico! ‑ ofegava o czar. ‑ Bogdan, vai buscar o médico! Sufoco! Deus está a estrangular‑me!

 Caiu ao chão, arrancou a roupa que lhe cobria o peito e pousou em Bielski um olhar fixo repleto de ódio. Mesmo agora, nos últimos instantes, prevalecia a crueldade:

 ‑ Malditos sejam todos! ‑ murmurou, ofegante. ‑ Deus, meu Deus, afasta de mim estas almas, que estão de novo à minha volta... Reza por mim...

 O príncipe Bielski não se mexeu. Permanecia de pé diante de Ivan IV, moribundo, e aguardava o seu fim, de mãos crispadas.

 Só quando o corpo do czar se relaxou e os olhos de águia se extinguiram, Bielski correu para a porta e chamou pelo médico em altos gritos.

 Um sentimento de horror e de libertação propagou‑se como um incêndio por todo o Kremlin. Boris Godounov, ajoelhado ao lado do defunto czar, orava com fervor. A caminho das terras do príncipe Chouisky, partiram emissários a cavalo, a toda a brida, a fim de lhe transmitirem a notícia.

 A última czarina, Maria, filha de Teodoro Nagoi, detestada por Ivan, por não ser efectivamente capaz de a amar, cobriu‑se com um véu preto há muito preparado e dirigiu‑se para a ala oposta do palácio, a Igreja da Ressurreição. Os sinos do Kremlin começaram a repicar, alertando os campanários de todo o país.

 ‑ Morreu o czar! Que Deus seja clemente! De joelhos, povo, reza pela sua alma!

 Sobre Moscovo, pairava o ressoar de centenas de sinos. Os habitantes saíram para a rua, encheram as praças e dirigiram‑se depois para a grande praça do Kremlin, onde caíram de joelhos.

 ‑ Morreu o czar! Era cruel entre os mais cruéis, mas que sabemos nós da crueldade do seu sucessor? Foi um pai terrível. Mas era o pai da Rússia... Rezem, rezem, rezem...

 Entre os milhares de indivíduos ajoelhados no chão diante do Kremlin, rodeados pelo repicar dos sinos e por cânticos religiosos, encontravam‑se também Alexandre Grigoriévitch Loupin, Mouchkov e Marina. Estavam lado a lado, no chão de terra batida, precisamente no local onde Ivan IV mandara, um dia, torturar três mil membros do exército permanente. Persignaram‑se, de olhar erguido para as cúpulas de ouro das igrejas, que brilhavam sob a muralha do Kremlin, iluminadas pelo sol primaveril.

 ‑ Morreu o czar ‑ murmurou Mouchkov, em voz baixa. ‑ Os cossacos serão finalmente agraciados?

 ‑ Que tens tu com isso, Ivan Matveiévitch? ‑ perguntou Loupin. ‑ Não és, há vários anos, o melhor artífice construtor de fogões em toda a cidade de Moscovo?

 ‑ Apesar de tudo, seria um prazer para mim, velhote. ‑ Mouchkov voltou a cabeça para Marina, ajoelhada a seu lado, posição difícil, pois encontrava‑se grávida. Porém, mantinha o seu rosto infantil, enquadrado por longos cabelos louros que, neste momento, trazia enrolados na nuca. O seu olhar cruzou‑se com o de Ivan e sorriu, com aquela ternura a que Mouchkov não sabia resistir.

 ‑ Agora, somos realmente livres! ‑ disse Loupin.

 ‑ Gostaria de ver o Don mais uma vez! ‑ Mouchkov baixou os olhos. ‑ Sim, sou um artesão hábil, mas também fui um cossaco; e agora, sou o mais pobre de todos eles...

 ‑ E lamenta‑lo? ‑ perguntou Marina, pousando as mãos no ventre dilatado.

 ‑ Podes regressar ao Don, Ivan Matveiévitch! ‑ Loupin empurrou‑o com um dedo. ‑ A criança crescerá bem sem ti!

 ‑ Regressar ao Don sem Marinouchka? Velhote, sinto‑me bem entre os meus fogões.

 Mouchkov olhou mais uma vez para as cúpulas da igreja. Os sinos continuavam a tocar, ouviam‑se coros por todos os lados; pelas portas do Kremlin, abertas de par em par, saía uma procissão de sacerdotes, empunhando estandartes e balançando incensórios.

 

                                                                                            Heinz G. Konsalik

 

 

                      

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