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Planeta Criança



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ANÉIS DE SATURNO / Isaac Asimov
ANÉIS DE SATURNO / Isaac Asimov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ANÉIS DE SATURNO

 

     Os anéis geminados de Saturno de repente ficaram tomados por um enxame de naves espaciais - eram os Sirianos, inimigos jurados dos Terrestres. Os tradicionais antagonistas da Terra tinham atravessado cinqüenta trilhões de milhas no espaço para provocar uma guerra que eles tinham certeza não poderiam perder... porque as poderosas forças da Terra não ousariam se reunir para resistir aos invasores.

     Somente Lucky Starr, membro do Conselho de Ciências da Terra, tinha uma probabilidade de evitar o iminente holocausto galáctico. Seu plano era audacioso, mas um único passo em falso significaria a morte certa... e ainda, seria lembrado para sempre como o mais infame dos traidores!

 

OS INVASORES

        O Sol era um diamante reluzente no céu. A olho nu era possível perceber que seu tamanho era um pouco maior do que o de uma estrela: era um pequeno globo, do tamanho de uma ervilha, alvo e brilhante.

        Naquela imensidão do espaço, em proximidade ao planeta que era o segundo em tamanho dentro do Sistema Solar, o Sol só irradiava um por cento da luz que irradiava sobre o planeta que era a pátria dos homens. Assim mesmo, continuava sendo o objeto mais reluzente no céu: reluzente quanto quatro mil Luas-Cheias.

        Lucky Starr observou pensativo a tela do visor em cujo centro se destacava a imagem distante do Sol. John Bigman Johnes estava olhando também e apresentava um estranho contraste com a pessoa magra e alta de Lucky. Quando John Bigman Johnes se empertigava todo, media exatamente um metro e cinqüenta e cinco. O baixinho porém nunca pensava em sua própria pessoa em termos de centímetros e só permitia aos outros chamá-lo pelo seu segundo nome: Bigman [Grandalhão]. Bigman disse:

        - Sabe, Lucky, está a quase novecentos milhões de milhas. Estou me referindo ao Sol, é claro. Nunca me afastei tanto dele.

        O terceiro homem que estava na cabine, o Conselheiro Ben Wessilewsky, sorriu atrás de seu painel de controles. Ele também era um homenzarrão, apesar de não atingir a altura de Lucky. Seus fartos cabelos amarelos emolduravam um rosto queimado no espaço, a serviço do Conselho de Ciências. Disse:

        - O que é que há, Bigman? Está assustado pela distância?

        Bigman grasnou:

        - Areias de Marte, Wess! Saia de trás dos controles e repita isso.

        Passou por Lucky indo na direção do Conselheiro quando a mão de Lucky agarrou seu ombro, suspendendo-o no ar. As pernas de Bigman continuaram se mexendo em ritmo acelerado quando Lucky depositou seu amigo Marciano no lugar de onde tinha saído.

        - Fique quieto, Bigman...

        - Ora, Lucky, você ouviu o que ele disse. Esse cara pensa que um homem é mais homem quando seu volume é maior. O fato do Wess ter um metro e oitenta só significa que ele tem mais trinta centímetros de...

        - Chega Bigman - disse Lucky. - E Wess, faça-me o favor: guarde seu humorismo para os Sirianos.

        As palavras foram pronunciadas com muita calma, mas assim mesmo havia nelas uma autoridade que ninguém poderia desconhecer.

        Bigman pigarreou e falou:

        - Onde está Marte?

        - De onde estamos, fica do outro lado do Sol.

        - Que maravilha - disse o baixinho mal-humorado. Mas logo acrescentou em tom mais alegre: - Espere aí, Lucky. Estamos a cem milhões de milhas abaixo do nível do Eclíptico. Assim acho que poderíamos ver Marte um pouco abaixo do Sol, como se estivesse piscando ao lado.

        - Quer dizer que devíamos, não é? Acontece que está a um grau de distância, mas isso é muito pouco, e assim está ofuscado pela luminosidade. Acredito porém que dá para ver a Terra.

        Por um instante o rosto de Bigman expressou um desdém altivo:

        - Quem, dentro de todo o espaço, está querendo ver a Terra? Lá só há gente; em sua maioria, são pessoas agarradas à superfície, que nunca voaram a mais de cem milhas de altura. Não desperdiçaria meu tempo olhando para ela, nem que fosse a única coisa visível no céu. Mande o Wess olhar para a Terra. Para ele serve.

        Afastou-se do visor fazendo uma careta. Wess disse:

        - Escute, Lucky, que tal focalizar Saturno e darmos uma boa espiada deste ângulo? Vamos, eu estava mesmo querendo me regalar.

        - Não sei - respondeu Lucky - se com a situação como ela está, a gente possa se regalar com a vista de Saturno.

        O tom era de brincadeira, mas mesmo assim houve um momento de silêncio apreensivo dentro da estreita cabine de pilotagem da Shooting Starr.

        Os três amigos perceberam a mudança de atmosfera. Saturno significava perigo. Para os povos da Federação Terrestre, Saturno estava começando a se tornar uma ameaça. Saturno, de repente, tinha assumido características novas e inesperadamente fatais para os seis bilhões de habitantes da Terra, para alguns milhões de moradores em Marte, na Lua e em Vênus, e para as estações científicas em Mercúrio, Ceres e nas luas externas de Júpiter.

        Lucky foi o primeiro a se recuperar daquele instante de depressão e ao toque de seus dedos, os sensíveis exploradores eletrônicos engastados no nariz da Shooting Starr rodaram facilmente sobre seus balanceiros universais. Enquanto isso estava acontecendo, o campo visual começou a mudar na superfície da tela.

        As estrelas desfilaram numa procissão constante, e Bigman disse com lábios encrespados de ódio:

        - Alguma dessas pertence a Sírio, Lucky?

        - Não - respondeu Lucky - estamos focalizando o Hemisfério Celeste meridional, e Sírio está no Hemisfério Setentrional. Você não quer ver Canopus?

        - Não - disse Bigman. - Por que haveria de querer?

        - Pensei que você estivesse interessado. É a segunda estrela pela importância do brilho, e você poderia fazer de conta que era Sírio. - Lucky teve um sorrisinho disfarçado. Ele achava bastante divertido que o patriótico Bigman achasse insuportável que Sírio, estrela principal dos grandes inimigos do Sistema Solar (e que, afinal, também descendiam de Terrestres), fosse a estrela mais brilhante nos céus da Terra.

        Bigman falou:

        - Muito engraçado. Vamos, Lucky, mostre-nos Saturno. Quando voltarmos para a Terra você poderá se produzir num show qualquer e assustar todo mundo.

        As estrelas continuaram passando no mesmo ritmo suave, até que o movimento diminuiu sensivelmente e parou. Lucky disse:

        - Pronto. Aí está, e sem nenhum aumento.

        Wess travou os controles e girou em sua poltrona de piloto para poder observar mais comodamente.

        A aparência era a de uma meia-lua, talvez um pouco mais densa, grande o suficiente para poder ser vista sem dificuldade, brilhando com sua luz macia e amarela, mais apagada ao centro do que nas margens.

        - A que distância estamos? - perguntou Bigman estupefato.

        Lucky disse:

        - Calculo que estamos a mais ou menos cem milhões de milhas.

        - Deve haver algo errado - falou Bigman. - Onde estão os anéis? Pensei que teríamos a possibilidade de vê-los bem.

        Lucky respondeu:

        - Os anéis estão se confundindo com a superfície do planeta por causa da distância, Bigman. Vamos aumentar um pouco a imagem, para vermos mais detalhes.

        O ponto luminoso que representava Saturno começou a aumentar, parecendo chegar mais perto. O que antes parecia uma meia-lua acabou se fragmentando em três segmentos.

        Ainda havia um globo central em forma de meia-lua. Em volta apareceu uma faixa luminosa circular, envolvendo o globo sem tocá-lo em ponto nenhum. A faixa estava dividida de maneira irregular por uma fina linha escura. A faixa seguia os contornos de Saturno e desaparecia no ponto em que o planeta entrava na sombra.

        - Pois é isso mesmo, sim senhor, Bigman - disse Wess em tom de conferência. - Saturno só tem um diâmetro de setenta e oito mil milhas. A uma distância de cem milhões de milhas não passaria de um pontinho luminoso, mas precisamos levar em conta os anéis, e com eles temos uma superfície coruscante de quase duzentas mil milhas de um ponto ao outro.

        - Eu já sei tudo isso - exclamou Bigman indignado.

        - Além disso - continuou Wess sem prestar atenção -, a uma distância de cem milhões de milhas a interrupção entre a superfície de Saturno e a beirada interna dos dois anéis, que tem uma largura de sete mil milhas, também não poderia ser percebida. A interrupção entre um anel e o outro, que por sinal mede apenas duas mil e quinhentas milhas, também não seria visível. Aquela linha preta chama-se a divisão de Cassini, viu Bigman?

        - Já falei uma vez que eu sei - berrou Bigman. - Lucky, esse caipira está agindo como se eu nunca tivesse freqüentado uma escola. É possível que eu não seja muito instruído, mas ele não precisa me ensinar nada a respeito do espaço. Diga-lhe, Lucky. Diga-lhe que você não vai mais deixar que ele se esconda atrás de você, e eu vou amassá-lo como a uma barata.

        Lucky disse:

        - Dá para ver Titã.

        Bigman e Wess perguntaram em coro:

        - Onde?

        - Ali mesmo. - Com o forte aumento, Titã parecia uma minúscula meia-lua, do tamanho de Saturno quando ainda estavam focalizando-o sem o aumento. Estava quase encostando numa das beiradas da tela do visor.

        Titã era a única lua de tamanho considerável no Sistema Saturniano. Mas não era pelo seu tamanho que Wess estava observando Titã com curiosidade e Bigman fazia o mesmo com ódio manifesto. Era porque os três tinham quase certeza de que Titã era o único mundo dentro do Sistema Solar povoado por homens que não reconheciam a supremacia da Terra. Revelara-se de repente um mundo povoado por inimigos.

        O perigo subitamente pareceu mais próximo.

        - Quando é que vamos entrar no Sistema Saturniano, Lucky?

        - Não temos uma definição exata do que seja realmente o Sistema Saturniano, Bigman. A maioria das pessoas julga que o sistema de um mundo inclui todo o espaço dentro da influência gravitacional daquele mundo, até onde está girando o corpo mais distante. Se aceitarmos essa definição, ainda estamos fora do Sistema de Saturno.

        - Os Sirianos, porém, dizem que... - começou Wess.

        - Aqueles cafajestes dos Sirianos podem ir para o centro do Sol! - berrou Bigman, acompanhando as palavras com pancadas em suas altas botas. - O que interessa o que eles dizem? - Bateu mais uma vez nos canos das botas, como se quisesse achatar todo Siriano do Sistema. Suas botas eram indiscutivelmente sua característica mais Marciana. O colorido berrante, a linha espiralada do desenho arlequim laranja e preto, proclamavam alto que o proprietário tinha nascido e se criado nas fazendas e nas cidades cheias de cúpulas de Marte.

        Lucky desligou o painel do visor. Os exploradores eletrônicos na parte externa do casco se retraíram, deixando a superfície externa da espaçonave acetinada, brilhante e completamente lisa, a não ser pela protuberância que circundava a popa da Shooting Starr, e que protegia o adaptador Agrav.

        - Não podemos nos dar ao luxo de assumir uma atitude displicente, tipo "ao diabo o que os outros estão dizendo", ouviu, Bigman? Neste momento os Sirianos estão na dianteira. É possível que dentro de algum tempo consigamos expulsá-los do Sistema Solar. Por enquanto, porém, nada mais podemos fazer do que respeitar as regras que eles estão impondo ao jogo, pelo menos durante algum tempo.

        Bigman resmungou com ar revoltado:

        - Estamos dentro de nosso próprio Sistema.

        - Sem dúvida, mas Sírio está no momento ocupando esse cantinho e antes da reunião de uma conferência interestelar, a Terra não pode fazer nada a respeito, a não ser que queira deflagrar uma guerra.

        A declaração dispensava qualquer comentário. Wess voltou a mexer nos controles e a Shooting Starr, usando o mínimo de empuxo e aproveitando ao máximo a atração da gravidade de Saturno, continuou a descer rapidamente em direção às regiões polares do planeta.

        Estavam descendo sempre mais, puxados pelas forças de um mundo que agora era Siriano, cujo espaço estava formigando de naves Sirianas aos magotes, a cinqüenta trilhões de milhas de seu planeta nativo e a somente setecentos milhões de milhas da Terra. Num único gigantesco passo Sírio tinha superado o 99 999 por cento da distância entre ele mesmo e a Terra, estabelecendo uma base militar no limiar da porta da Terra.

        Enquanto Sírio conseguisse se manter ali, a Terra ficaria ameaçada de se transformar, de um minuto para o outro, numa potência de segunda classe, às dependências de Sírio. E por enquanto a situação política interestelar era de tal forma instável que todo o poderoso aparelhamento militar da Terra, suas naves e armas, estavam totalmente incapacitados de enfrentar a situação.

        Só três homens numa pequena nave, por sua própria iniciativa e sem autorização da Terra, estavam tentando provocar uma reviravolta da situação, usando sua própria habilidade e astúcia, apesar de saberem que se fossem presos, seriam executados incontinenti como espiões - dentro de seu próprio Sistema Solar e por invasores deste Sistema. Sabiam também que a Terra não poderia fazer nada para salvá-los.

 

A PERSEGUIÇÃO

        Um mês antes ninguém estava pensando em perigo, ninguém tinha a menor dúvida, até que os acontecimentos explodiram sob os olhares do governo da Terra. O Conselho de Ciências dedicou-se, então, com calma e persistência à tarefa de descobrir e destruir os ninhos de robôs-espiões que estavam esparsos pela Terra e suas colônias: o golpe mais rude, nesse sentido, foi infligido por Lucky Starr em sua ação sobre as neves de Io.

        Fora um trabalho feroz e, num certo sentido, até assustador, porque a rede de espionagem estava sólida e eficientemente implantada, e por um mero triz não conseguira prejudicar a Terra de maneira definitiva.

        Quando a situação parecia já completamente remediada, apareceu um indício que levou Hector Conway, Conselheiro Chefe, a acordar Lucky nas primeiras horas de uma madrugada. Estava sumariamente vestido e seus fartos cabelos brancos estavam despenteados.

        Enquanto Lucky preparava rapidamente um café, piscando os olhos embotados de sono, disse:

        - Pela Grande Galáxia, tio Hector (Lucky o chamava de tio desde que ficara órfão ainda menino, quando Hector Conway e Augustus Henree tinham sido nomeados seus tutores) -, eu digo, o que foi que aconteceu com os circuitos do visifone? Não estão funcionando?

        - Não tive coragem de falar nesse assunto pelo visifone, meu rapaz. Estamos numa encrenca terrível.

        - Que espécie de encrenca? - Lucky perguntou com calma, mas desabotoou a parte superior do pijama e começou a se lavar.

        Bigman entrou bocejando e se esticando em todas as direções.

        - Por Marte, o que significa todo esse barulho? - Viu que o Conselheiro Chefe estava presente e despertou de uma vez. - Alguma coisa errada, senhor?

        - Deixamos que o Agente X escapasse de entre nossos dedos.

        - O agente X? O misterioso Siriano? - Lucky apertou levemente os cantos dos olhos. - Quando ouvi falar nele pela última vez, o Conselho estava convencido de que ele não existia.

        - Isso foi antes de descobrirmos toda a rede de espionagem robótica. Ele foi esperto,, Lucky. Muito esperto. Um espião deve ser realmente esperto para conseguir convencer o Conselho de sua não-existência. Eu devia ter mandado você procurar o rastro dele, mas você estava sempre ocupado com coisas importantes. De qualquer forma...

        - Sim?

        - Você sabe como toda a organização dos robôs-espiões indicava claramente que devia existir uma agência central que recolhia e processava as informações, e que tudo indicava que essa agência se encontrava na própria Terra. Foi por isso que voltamos a procurar uma pista do misterioso Agente X. Existia uma forte possibilidade de que ele fosse um certo Jack Dorrance, na Produtos Aéreos Acme, aqui na Cidade Internacional.

        - Não estava sabendo.

        - Tínhamos mais alguns candidatos para o cargo. Acontece que Dorrance embarcou numa espaçonave particular e saiu da Terra, forçando a passagem por uma barreira de emergência. Por muita sorte um Conselheiro se encontrava em Port Center; na mesma hora ele tomou a decisão certa e saiu em perseguição. Logo que recebemos a notícia da passagem forçada pela barreira de emergência, foi fácil saber, numa questão de minutos, que de todos os suspeitos vigiados, somente Dorrance conseguira burlar a vigilância. Ele nos enganou direitinho. Existem mais alguns detalhes que confirmam nossas suspeitas e - acho mesmo que ele é o Agente X. Aliás, agora todos nós temos certeza que é ele.

        - Está bem, tio Hector. Agora tanto faz. Ele já se foi.

        - Sabemos mais uma coisa. Ele levou uma cápsula pessoal, e não temos a menor dúvida de que aquela cápsula contém informações que ele recebeu de toda a rede de espionagem espalhada pela Federação e que ele não teve ainda ocasião de entregar aos seus patrões Sirianos. O pessoal do Espaço sabe exatamente o que ele levou, e acreditamos que seja o suficiente para aniquilar todas as nossas medidas de segurança, caso aquelas informações cheguem nas mãos dos Sirianos.

        - Você disse que ele foi perseguido. Já o trouxeram de volta?

        - Não. - O tom do Chefe do Conselho tornou-se impaciente. - Você acredita que eu estaria aqui, se ele já tivesse sido feito prisioneiro?

        Lucky perguntou de repente:

        - A nave que ele levou está equipada para fazer o Salto?

        - Não - gritou o Conselheiro Chefe com o rosto corado, e começou a alisar com as mãos sua cabeleira alva, como se estivesse com medo de que ela começasse a ficar de pé pelo horror daquele pensamento.

        Lucky respirou fundo, sensivelmente aliviado. O Salto era, naturalmente, o arremesso para o hiper-espaço, ou seja, uma manobra que levava a nave para fora do espaço comum, depositando-a em seguida e no mesmo instante, num ponto do espaço a muitos anos-luz do ponto de partida.

        Se o Agente X estivesse numa nave assim equipada, teria todas as possibilidades de escapar. Conway disse:

        - Ele estava sozinho; fugiu sozinho. Em parte, foi este o motivo dele conseguir burlar a vigilância. Apanhou um cruzador interplanetário que pode ser manobrado por um só homem.

        - As naves equipadas para o hiperespaço não podem ser manobradas por um único homem, é verdade. Pelo menos, ainda não podem. Porém se ele se apoderou de um cruzador interplanetário, tio Hector, eu suponho que ele não precise nada mais do que isso.

        Lucky tinha acabado de se refrescar e estava se vestindo rapidamente. Virou-se de repente para Bigman:

        - O que é que você está fazendo aí? Vista suas roupas, Bigman.

        Bigman estava sentado na beirada do sofá e levantou-se num salto. Lucky disse:

        - Deve haver, provavelmente, alguma nave Siriana esperando por ele no espaço, e aquela nave estará equipada para o hiperespaço.

        - Também acho. Aliás, a nave que ele tomou é muito rápida, e com a vantagem que ele tem, mais a velocidade, é possível que não consigamos alcançá-lo e nem chegar a uma distância suficiente para usar as armas. Daí, só nos resta...

        — A Shooting Starr. Já compreendi, tio Hector. Vou estar na nave dentro de uma hora, junto a Bigman, se ele conseguir se vestir com a pressa necessária, Providencie a situação presente e a rota das naves que estão perseguindo-o, e os dados de identificação da nave tomada pelo Agente X, e poderemos começar a caçada.

        - Ótimo. - O rosto preocupado de Conway começou a parecer menos tenso. - E ouça, Davis - e usou o verdadeiro nome de Lucky, como sempre fazia em momentos de emoção - você realmente tomará cuidado, não é?

        - Você fez esta mesma recomendação às outras dez naves, tio Hector? - perguntou Lucky, mas sua voz deixava transparecer o carinho.

        Bigman já tinha calçado uma de suas botas que chegavam a lhe cobrir as coxas e estava segurando a outra. Acariciou o pequeno coldre que se encontrava sobre a aveludada superfície interna da bota que estava em sua mão:

        - Vamos mesmo sair, Lucky? - Seus olhos brilhavam, antecipando a luta, e seu rosto que parecia o de um elfo, estava todo estirado num sorriso feroz.

        - Vamos sair, sim - disse Lucky, esticando o braço e despenteando os cabelos de Bigman. - Quanto tempo faz que estamos enferrujando aqui na Terra? Seis semanas? Isso é tempo demais.

        - Concordo - exclamou Bigman com alegria e enfiou a segunda bota.

        Tiveram que ultrapassar a órbita de Marte antes de conseguirem um contato subetérico satisfatório com o grupo de perseguição, usando para isso, um fragmentador na freqüência especial.

        A resposta veio pelo Conselheiro Ben Wessilewsky que estava a bordo da espaçonave terrestre Harpoon. Gritou:

        - Lucky! Você vai nos ajudar? Legal!

        Seu rosto estava sorrindo largamente no vídeo do monitor. Piscou.

        - Você tem bastante espaço aí para me mostrar a careta do Bigman? Ou ele não está com você?

        - Aqui estou - uivou Bigman, enfiando-se à força entre Lucky e o transmissor. - Você não imagina que o Conselheiro Conway deixaria esse bobalhão ir para qualquer lugar, sem saber que eu estou aqui para vigiá-lo e impedir que ele tropece em seus próprios pés!?

        Lucky ergueu Bigman e colocou-o debaixo do braço, apesar dos protestos. Disse:

        - Essa comunicação parece cheia de interferências, Wess. Qual é a posição da nave que estamos perseguindo?

        Wess voltou a ficar sério. Falou:

        - A nave é a Rede Espacial. É uma nave de propriedade particular, e tem documentos perfeitamente legítimos de fabricação e de venda. O Agente X deve tê-la comprado usando um nome fictício, deixando-a pronta para uma emergência qualquer, já faz muito tempo. É uma boa nave e está acelerando desde o momento em que partiu. Estamos perdendo espaço.

        - Qual é a capacidade da nave?

        - Já pensamos nisso, e conferimos com o fabricante. Do jeito que está procedendo, queimando energia, não poderá continuar por muito tempo a menos que não desligue os motores ou então arrisque sua capacidade de manobra quando chegar ao destino. Estamos tentando obrigá-lo a se colocar numa situação desesperada.

        - É possível, mas por outro lado ele pode ter previsto a situação e ter aumentado a capacidade de energia da nave.

        - Talvez - concordou Wess. - De qualquer forma ele não pode continuar desse jeito por um tempo indefinido. Estou preocupado com a possibilidade que ele consiga se evadir à ação de nossos detectores de massa pulando entre os asteróides. Se ele conseguir uma vantagem dentro do cinturão de asteróides poderemos até perdê-lo completamente.

        Lucky conhecia o truque. Bastava colocar-se de forma a ter um asteróide entre a nave e a dos perseguidores, e os detectores inimigos acabavam por acusar a presença do asteróide, sem descobrir a nave. Quando um segundo asteróide chegava perto, bastava deslocar a nave atrás do segundo, deixando o perseguidor com seus instrumentos ainda a examinar o primeiro, Lucky disse:

        - Ele está se movimentando com velocidade excessiva e não poderia fazer esta manobra. Precisaria desacelerar durante um meio dia.

        - Ele precisaria de um milagre, de fato - concordou Wess. - Por outro lado, já foi um milagre termos encontrado o rastro dele e estou quase esperando um segundo milagre que poderá anular o primeiro.

        - Como aconteceu o primeiro milagre? O Chefe falou algo a respeito de um bloqueio de emergência.

        - Foi mesmo - respondeu Wess e relatou brevemente os acontecimentos. Dorrance, ou o Agente X (Wess chamava-o pelos dois nomes) subtraíra-se à vigilância usando um instrumento que distorcia o feixe da onda-espiã, inutilizando-a. (Tinham encontrado o instrumento, mas seu mecanismo estava fundido e não era nem possível dizer com certeza se era ou não um produto Siriano). Entrara na nave pronta para a fuga, a Rede Espacial, sem maiores dificuldades. Quando já estava pronto para sair, com seu microreator protônico ativado, o motor e os controles testados e o espaço livre, apareceu uma espaçonave de carga avariada, incapaz de tomar contato pelo rádio porque os controles estavam prejudicados por uma trombada com um meteoro, e desde a estratosfera começou a dar sinais de emergência para ter pista livre.

        Na mesma hora entrou em ação o bloqueio de emergência. Todas as naves em terra receberam a ordem para parar. Toda nave que estava a ponto de sair, a menos que não estivesse já levantando vôo, recebeu ordens de interromper as manobras.

        À Rede Espacial teria que interromper as manobras, mas não se deu por entendida. Lucky Starr podia muito bem imaginar os sentimentos do Agente X naquela hora. O item mais importante do Sistema Solar inteiro estava em seu poder, e cada instante ganho era importante. Considerando a situação em que estava, não podia esperar demais, pois o Conselho começaria logo a perseguição. Interromper a manobra significava esperar durante um tempo imprevisível enquanto uma nave avariada aterrissava e as ambulâncias se multiplicavam em sua volta até retirar todos os feridos. Somente após ver a pista completamente esvaziada poderia ele reativar o microreator, e ainda precisaria checar mais uma vez os controles. Simplesmente não poderia se dar ao luxo de um adiamento.

 

        Ligou os jatos e subiu.

        O Agente X poderia ter escapado, apesar de tudo. As sirenes começaram a dar o alerta, a polícia lançou mensagens peremptórias à Rede Espacial, mas foi o Conselheiro Wessilewski, que estava fazendo um estágio de rotina no espaçoporto, quem tomou uma atitude positiva. Tinha tomado parte nas inúteis buscas à procura do Agente X: uma nave que saía apesar do bloqueio de emergência era muito suspeita e dava a idéia de alguém bastante desesperado, e que poderia ser o Agente X. Era uma intuição totalmente maluca, mas Wess entrou em ação.

        Escorado na autoridade do Conselho (que prevalecia sobre qualquer outra autoridade, a não ser uma ordem direta do Presidente da Federação Terrestre), ele mandou que as naves da Guarda do Espaço levantassem vôo, entrou em contato com o Quartel Geral do Conselho e subiu a bordo da Harpoon para comandar a perseguição. Só algumas horas mais tarde o Conselho inteiro tomou conhecimento do assunto, mas ao mesmo tempo mandaram-lhe uma mensagem confirmando que realmente estava perseguindo o Agente X e que mais espaçonaves estavam a caminho para se juntar ao seu grupo. Lucky ficou ouvindo com atenção e disse:

        - Você se arriscou e deu certo, Wess. Você agiu corretamente. Foi um bom trabalho.

        Wess sorriu. Os Conselheiros geralmente evitavam qualquer publicidade e promoção, mas ficavam muito satisfeitos quando um colega do Conselho expressava sua aprovação. Lucky disse:

        - Então vou em frente. Mande uma de suas naves manter o contato de massa comigo.

        Interrompeu o contato visual e suas mãos fortes e alongadas manusearam delicadamente os controles de sua nave, a Shooting Starr, que por muitos e muitos motivos era sem dúvida o mais formidável veículo espacial existente.

        A Shooting Starr tinha os mais poderosos micro-reatores protônicos que pudessem ser instalados numa nave do seu tamanho, com uma potência de aceleração quase suficiente para um cruzador de combate, dentro dos regulamentos da frota; reatores tão poderosos que quase permitiam o Salto pelo hiperespaço. Estava equipada de transmissão iônica, que conseguia eliminar quase todos os efeitos aparentes da aceleração agindo simultaneamente sobre todos os átomos existentes a bordo, inclusive os átomos que constituíam os corpos dos tripulantes. Tinha ainda um Agrav, dispositivo desenvolvido recentemente e ainda em fase experimental, que conferia a possibilidade de manobrar livremente nos campos intensamente gravitacionais dos maiores planetas.

        Os motores possantes da Shooting Starr zuniam, e o zunido começou a mudar levemente de timbre. Lucky percebeu um leve repuxo devido à falta de perfeita compensação da transmissão iônica. A nave se lançou adiante, em direção aos limites mais longínquos do Sistema Solar, aumentando a velocidade, aumentando mais ainda, aumentando sempre...

        Apesar disso, o Agente X continuava mantendo a dianteira e a Shooting Starr conseguiu diminuir a distância que as separava somente a muita custa. Após deixarem para trás o núcleo central do cinturão de asteróides, Lucky disse:

        - Bigman, as coisas estão pretas...

        Bigman pareceu surpreso:

        - Vamos alcançá-lo, Lucky.

        - Estou me referindo ao rumo que ele está tomando. Eu tinha quase certeza de que haveria uma nave Siriana esperando por ele, para poder fazer o Salto em direção ao seu planeta. Mas uma nave à espera só poderia se encontrar fora do nível Eclíptico ou então oculta no cinturão de asteróides. Em qualquer caso, poderia passar despercebida. Mas o nosso Agente X continua dentro do nível Eclíptico e está prosseguindo além do cinturão de asteróides.

        - É possível que ele esteja querendo se afastar de nós antes de fazer contato com a nave-base Siriana.

        - Talvez - disse Lucky. - Mas que tal se os Sirianos tivessem uma base num planeta externo?

        - Ora, veja, Lucky! - cacarejou o diminuto Marciano. - Você não está querendo insinuar que isso pode acontecer bem em nossas fuças, não é?

        - Às vezes fica muito difícil enxergar o que está bem debaixo de nosso nariz. A rota dele leva direto a Saturno.

        Bigman controlou os computadores que registravam qualquer mudança de rota do inimigo. Disse:

        - Veja só, Lucky. O cara ainda continua numa rota balística. Ele não mexeu nos motores durante os últimos vinte milhões de milhas. Quem sabe, pode estar com falta de energia.

        - Ou está poupando sua energia para as manobras dentro do Sistema Saturniano. Ali terá que enfrentar uma violenta atração gravitacional. Pelo menos, eu espero que ele esteja economizando energia. Pela Grande Galáxia, espero mesmo! - O rosto atraente de Lucky mostrava sua preocupação. Os lábios estavam firmemente apertados.

        Bigman pareceu surpreso.

        - Pelas areias de Marte, por que, Lucky?

        - Porque se realmente em Saturno existe uma base de Sirianos, vamos precisar de nosso Agente X para que ele nos leve até lá. Saturno tem um satélite enorme, mais oito de um bom tamanho e mais ou menos uma dúzia de mundinhos rachados circulando em sua volta. Seria definitivamente útil sabermos onde ao certo se encontra essa base.

        Bigman cerrou o cenho:

        - O cara não vai ser tão estúpido de levar-nos diretamente para lá.

        - Ou talvez deixar que o apanhemos... Bigman, calcule a rota dele para adiante, até o ponto de interseção com a órbita de Saturno.

        Bigman obedeceu. O computador forneceu a resposta numa questão de segundos. Lucky disse:

        - Qual a posição de Saturno no momento em que o Agente X chegará a cruzar a órbita? A que distância da nave de X estará Saturno?

        Seguiu-se um breve intervalo, necessário para obter os dados sobre a órbita de Saturno das Efemérides. Bigman forneceu os dados ao computador. Poucos segundos de cálculos... e Bigman alarmado colocou-se de pé num salto:

        - Lucky! Pelas areias de Marte!

        Lucky não achou necessário pedir explicações. Disse:

        - Estou pensando que o Agente X deve estar pensando na única maneira que ele tem de evitar levar-nos à base Siriana. Se ele continuar em sua rota balística, mantendo-a do jeito que ela está agora, ele acabará em Saturno - e isso significa morte certa.

 

A MORTE NOS ANÉIS

        Com o passar das horas as dúvidas se tornaram certeza. Até as naves de patrulha que continuavam na perseguição muito atrás da Shooting Starr e que estavam a uma distância muito grande e não podiam por isso receber indicações exatas em seus detectores de massa, começaram a ficar preocupadas.

        O Conselheiro Wessilewski entrou em contato com Lucky:

        - Pelo espaço, Lucky - ele disse. - Para onde é que ele está se dirigindo?

        - Pelo jeito, está indo direto para Saturno - respondeu Lucky.

        - Você acredita que pode haver uma nave esperando por ele em Saturno? Sei que tem uma atmosfera de alguns milhares de milhas, com pressões de milhões de toneladas, e sem motores Agrav eles não poderiam... Lucky! Você acha que eles poderiam ter motores Agrav e bolhas de campo de força?

        - Eu penso que ele prefere se espatifar, para evitar ser apanhado.

        Wess retrucou seco:

        - Se ele está tão ansioso para morrer, por que então não pára, para lutar, obrigando-nos a destruí-lo e tentando levar um ou dois de nós junto?

        - Compreendo o que você quer dizer - falou Lucky. - Também poderia induzir um curto-circuito em seus motores, deixando Saturno a uma distância de milhões de milhas, não é mesmo? Quer saber o que eu penso? Estou preocupado com o fato de ele estar querendo atrair nossa atenção para Saturno de maneira tão óbvia. - Calou-se, preocupado.

        Wess interrompeu o silêncio:

        - Como é Lucky, você não seria capaz de desviá-lo? O Espaço sabe que nós não podemos. Estamos muito distantes.

        Bigman, que estava no painel dos controles, berrou:

        - Pelas areias de Marte, Wess, se aumentarmos nossa radiação iônica para alcançá-lo, vamos estar com velocidade em excesso e não poderemos manobrar para afastá-lo de Saturno.

        - Pois façam alguma coisa.

        - Que maravilha! Essa sim, que é uma sugestão inteligente - resmungou Bigman. - Obrigado pela ajuda. "Faça alguma coisa", ele disse.

        Lucky falou:

        - Continue do mesmo jeito, Wess. Vou ver se consigo fazer alguma coisa.

        Desligou e perguntou a Bigman:

        - Ele respondeu a algum sinal nosso?

        - De jeito nenhum.

        - Pois não insista mais e concentre-se em interceptar a freqüência que ele está usando para se comunicar.

        - Acho que ele não está se comunicando com ninguém, Lucky.

        - Pode ser que ele esteja esperando pelo último minuto. Ele precisará se arriscar, se ele tem alguma coisa a dizer. De qualquer forma, vamos atacá-lo já.

        - Como?

        - Com um míssil. Um dos pequenos.

        Começou a fazer cálculos com o computador. A Rede Espacial estava se movimentando em órbita sem energia e não era necessário computar muito para lançar um míssil no momento apropriado e numa velocidade certa para alvejar a nave fugitiva.

        Lucky aprontou o míssil. Era um tipo que não explodia, pois não havia necessidade para tanto. Seu diâmetro era de um quarto de polegada, mas a energia do microreator protônico ia lhe conferir um empuxo de quinhentas milhas por segundo. Não havia nada no espaço que pudesse diminuir-lhe a velocidade, e o míssil poderia atravessar o casco da Rede Espacial como se fosse feito de manteiga.

        Lucky porém não estava pensando em conseguir isso. O mini-míssil era de um tamanho suficiente para ser percebido pelos detectores de massa da nave inimiga. A Rede Espacial sem dúvida iria corrigir automaticamente a rota para evitar o míssil, e assim sairia da trajetória que a estava levando diretamente para Saturno. O tempo que o Agente X ia perder para computar mais uma vez uma rota nova para voltar à antiga poderia ser suficiente para permitir à Shooting Starr de se aproximar ao ponto de lançar um arpão magnético.

        Era uma possibilidade, apesar de muito vaga, pois por outro lado não havia outras.

        Lucky comprimiu o contato. O míssil foi ejetado com um clarão silencioso. Os ponteiros dos detectores de massa se agitaram, mas logo voltaram a parar, enquanto o míssil se afastava da nave.

        Lucky se recostou. Precisava esperar duas horas para que o míssil fizesse contato (ou fizesse um quase-contato). Ocorreu-lhe que o Agente X realmente poderia estar totalmente sem energia; que por conseqüência os controles automáticos poderiam indicar uma mudança de rota que porém não seria possível efetuar; que o míssil penetraria o casco e talvez provocasse a explosão da nave, mas que em qualquer caso deixaria seu curso para Saturno totalmente inalterado.

        Rejeitou a idéia. Era impossível de se supor que o Agente X tivesse consumido até o último tico de energia, quando sua nave estava numa rota direta de colisão. Havia um porcentual muito maior de probabilidade de que ele ainda estivesse com uma reserva de energia.

        As horas de espera eram letais. Hector Conway, na Terra, também começou a ficar impaciente vendo os boletins periódicos e estabeleceu um contato direto subetérico.

        - Afinal, onde é que você acha que poderia se encontrar esta base dentro do Sistema Saturniano? - perguntou preocupado.

        - Se essa base existe - respondeu Lucky cauteloso - e se o que o Agente X está fazendo não é simplesmente uma manobra muito esforçada para nos enganar, acho que o lugar mais indicado é em Titã. É o único satélite de Saturno realmente grande, com um volume igual a três vezes nossa Lua, e mais ou menos duas vezes sua área de superfície. Se os Sirianos estabeleceram ali uma base subterrânea, vai levar um bocado de tempo para esburacar o satélite à procura da toca deles.

        - Acho difícil acreditar que eles tenham tamanha ousadia. Afinal, isso corresponderia a uma ação de guerra.

        - É possível, tio. Afinal, não faz muito tempo que eles tentaram estabelecer uma base em Ganimedes.

        Bigman gritou de repente:

        - Lucky, ela está se mexendo.

        - Quem está se mexendo? - perguntou Lucky, surpreso.

        - A Rede Espacial. O careta Siriano.

        Lucky falou apressadamente:

        - Vou voltar a entrar em contato com você, tio Hector - e desligou. Disse: - Ele não pode estar se mexendo, Bigman. É cedo demais para ter descoberto o míssil.

        - Pois controle você mesmo, Lucky. Estou lhe dizendo que está mudando de rota.

        Com um só passo Lucky se aproximou dos detectores de massa da Shooting Starr. Já fazia muito tempo que eles estavam focalizando a nave fugitiva. Os controles estavam ajustados para a queda livre da nave pelo espaço, e o ponto por ela representado como massa era assinalado no monitor por uma pequena estrela brilhante.

        A pequena estrela brilhante estava se desviando. Estava produzindo uma breve estria. A voz de Lucky saiu baixa e intensa:

        - Grande Galáxia, agora estou compreendendo! Agora tudo está começando a ter um sentido. Como foi que eu pensei que a preocupação principal dele seria evitar a captura? Bigman...

        - Sim, Lucky. O que é que há? - O pequeno Marciano estava pronto para qualquer coisa.

        - Ele nos passou uma rasteira. Agora precisamos mesmo destruí-lo, nem que isso signifique espatifarmos nossa própria nave sobre Saturno. - Pela primeira vez desde a montagem dos jatos ionizados a bordo da Shooting Starr no ano passado, Lucky acrescentou o empuxo adicional de emergência à energia regular. A nave oscilou enquanto até o último átomo de força se transformava numa aceleração fantástica. Bigman respirou com muito esforço:

        - Explique, Lucky.

        - Ele não está se dirigindo para Saturno, Bigman. Ele estava simplesmente aproveitando toda a força do campo gravitacional do planeta para se manter na dianteira. Agora ele está enviesando a rota para entrar em órbita. Ele está se dirigindo para os anéis. Os anéis de Saturno. - O jovem Conselheiro tinha o rosto tenso. - Cuide da freqüência de comunicação dele, agora, Bigman. Ele vai ter que falar. Vai ser agora ou nunca.

        Bigman se concentrou no analisador de freqüências com o coração aos pulos. Não conseguia porém entender porque a idéia dos anéis de Saturno deixava Lucky tão perturbado.

        O mini-míssil da Shooting Starr não alcançou o alvo, passando a mais ou menos cinqüenta mil milhas do próprio; agora, porém, a própria Shooting Starr tinha se transformado num míssil à cata do alvo: e ela também não conseguiria alcançá-lo. Lucky gemeu:

        - Não vamos conseguir. Não temos espaço suficiente para conseguir.

        Saturno agora era um gigante no céu e seus anéis marcavam um corte fino sobre sua superfície. O globo amarelo de Saturno estava quase cheio enquanto a Shooting Starr se aproximava a uma velocidade fantástica vindo na direção do Sol. Bigman gritou de repente:

        - Que malandro sujo! Ele está se enfiando entre os anéis! Agora estou entendendo o que foi que você quis me dizer.

        Trabalhou furiosamente tentando ajustar os controles do detector de massa, mas era uma tarefa impossível. Enquanto focalizava uma porção dos anéis, cada uma das inúmeras massas sólidas que compunham os anéis provocava uma estrela no vídeo. A seguir a tela ficou completamente branca e a Rede Espacial desapareceu. Lucky sacudiu a cabeça.

        - Isso não é um problema insolúvel. Estamos bastante perto para conseguirmos um contato visual. Estou me preocupando com uma outra coisa que, tenho certeza, vai acontecer a qualquer momento.

        Lucky estava pálido pela expectativa, observando a tela do visor que já estava ajustada para o máximo do aumento telescópico. A Rede Espacial era um minúsculo cilindro metálico parcialmente encoberto, mas não completamente oculto pelo material que compunha os anéis. As partículas que se aglomeravam para formar os anéis tinham a aparência de cascalho grosso, e cintilavam apanhando e refletindo a luz do Sol distante.

        Bigman falou:

        - Lucky! Consegui a faixa de freqüência dele... Não, espere... Sim, pronto, agora estou com ela.

        Uma voz trêmula, distorcida e rouca estava crepitando na cabine de controle. Os dedos habilidosos de Bigman estavam ajustando o defragmentador, tentando afiná-lo sempre mais para se adaptar às características desconhecidas do sistema de fragmentação Siriano.

        As palavras se esvaíam e voltavam. Só permanecia o zunido quase imperceptível do gravador que estava registrando de maneira permanente tudo o que saía da caixa acústica.

        - ... não... preoc... além... - (Um intervalo: Bigman, febril, ajustou os controles.)... no rastro... ível me livr... estou acabado e preciso transm... eis de Sat... órb... mal, já lanç... ísticas da ór... seguem... coordenadas são as...

        A essa altura a transmissão ficou interrompida: não se ouviu mais nada, nem a voz, nem a estática, nada.

        Bigman berrou:

        - Areias de Marte, alguma coisa foi para o beleléu!

        - Mas não foi aqui - retorquiu Lucky. - Foi a Rede Espacial.

        Percebeu o que estava acontecendo exatamente dois segundos após o fim da transmissão. As transmissões subetéricas na prática se processavam a uma velocidade virtualmente infinita. Porém a luz que ele percebia através do monitor viajava a uma velocidade de somente 186000 milhas por segundo.

        A cena levou dois segundos para alcançar Lucky. Foi então que ele viu a parte traseira da Rede Espacial se tornar incandescente e finalmente se abrir e explodir numa corola de metal em fusão.

        Bigman só viu o fim e junto a Lucky ficou a observar em silêncio até que a radiação acabou por esfriar todo aquele espetáculo. Lucky sacudiu a cabeça:

        - Quando a gente chega muito perto dos anéis, mesmo mantendo-se fora da aglomeração principal, o espaço está repleto de uma quantidade muito maior de materiais passando em alta velocidade. Talvez ele não tivesse mais energia suficiente para desviar a nave de um desses pedaços. Ou talvez dois pedaços convergiram para ele, vindo de direções diferentes. De qualquer forma, ele era um homem corajoso e um inimigo muito esperto.

        - Não estou entendendo, Lucky. O que foi mesmo que ele quis fazer?

        - Você não está percebendo? Era muito importante para ele não ser capturado por nós, mas de qualquer forma ele não pretendia morrer. Eu devia ter compreendido antes. A tarefa mais importante era entregar as informações surrupiadas nas mãos dos Sirianos. Ele não podia se arriscar a transmitir pelo subetérico o equivalente de talvez milhares de palavras das informações - afinal, sabia que estava sendo perseguido e possivelmente a transmissão seria interceptada. Mandou por isso uma mensagem reduzidíssima e cuidou para que a cápsula se encontrasse fisicamente ao alcance dos Sirianos.

        - Está certo, mas como foi que ele conseguiu?

        - Os trechos de mensagem que captamos contém a sílaba "órb", que sem dúvida quer dizer órbita, e mais "já lanç..." que deve significar já lancei.

        Bigman agarrou os braços de Lucky e seus dedos minúsculos apertaram fortemente seus braços:

        - Ele lançou a cápsula para dentro dos anéis, é isso, Lucky? Vai ser simplesmente mais um pedacinho de cascalho entre outros trilhões de pedacinhos de cascalho, como se fosse... sei lá, uma pedrinha na Lua... ou uma gotinha no oceano.

        - Ou um pedaço de cascalho nos anéis de Saturno, que sem dúvida, é a pior das coisas. É verdade que explodiu antes de poder dar as coordenadas da órbita escolhida para a cápsula, e dessa forma os Sirianos e nós vamos iniciar a busca em paridade de condições, mas assim mesmo será melhor não perdermos tempo.

        - Você quer começar a busca agora?

        - Agora mesmo. Se ele achou que devia transmitir as coordenadas apesar de saber que estávamos tão perto dele, quer dizer que ele sabia também que os Sirianos estavam próximos... Ligue para as naves da patrulha, Bigman, e transmita as últimas notícias.

        Bigman virou-se para o transmissor mas não tocou nos controles. O botão da recepção estava brilhando pela interceptação de ondas de rádio. Rádio! Comunicação simples através do éterea! Era óbvio que havia alguém muito por perto (evidentemente dentro do sistema de Saturno), e esse alguém não tinha nenhuma preocupação em manter segredo de suas comunicações. As ondas de rádio, ao contrário das comunicações sub-etéricas, eram muito fáceis de interceptar.

        Lucky apertou os olhos:

        - Vamos receber, Bigman.

        A voz tinha um leve sotaque, com as vogais muito abertas e as consoantes excessivamente duras. Uma voz Siriana. Estava dizendo:

        - ... fiquem antes de obrigar-nos a lançar um arpão e fazê-los prisioneiros. Vocês têm quatorze minutos para responder. - Seguiu-se um intervalo de um minuto. A voz repetiu: - Em nome da Autoridade Central exigimos que se identifiquem, antes de obrigar-nos a lançar um arpão e fazê-los prisioneiros. Vocês têm treze minutos para responder.

        Lucky respondeu friamente:

        - Ouvimos sua emissão. Esta nave é a Shooting Starr da Federação Terrestre, pacificamente em órbita dentro do volume espacial da Federação Terrestre. Neste espaço não existe nenhuma outra autoridade a não ser aquela da Federação.

        Seguiram-se alguns segundos de silêncio (as ondas de rádio são transmitidas com a velocidade da luz) e a voz se manifestou mais uma vez:

        - A autoridade da Federação Terrestre não é reconhecida num mundo colonizado pelo povo Siriano.

        - Que mundo é esse? - perguntou Lucky.

        - Entramos na posse do despovoado Sistema Saturniano em nome de nosso governo, pela lei interestelar que estabelece que qualquer mundo desabitado pertence aos seus colonizadores.

        - A lei não se refere a qualquer mundo desabitado. A lei se refere aos sistemas estelares desabitados.

        A voz não tomou conhecimento e continuou:

        - Você agora está dentro do Sistema Saturniano e está convidado a se afastar imediatamente. Qualquer atraso em acelerar para sair da órbita resultará no apresamento de sua nave. Qualquer outra nave da Federação Terrestre que entrar em nosso território será apresada sem ulteriores avisos. Sua aceleração para sair do Sistema Saturniano terá que começar dentro de oito minutos, para evitar que entremos em ação.

        Bigman, com o rosto torcido numa careta de alegre expectativa, sussurrou:

        - Vamos em frente, Lucky. Vamos apanhá-los. Vamos mostrar-lhes que a Shooting Starr sabe lutar!

        Lucky não lhe deu ouvidos. Falou em direção ao transmissor:

        - Recebemos e gravamos suas palavras. Não reconhecemos a autoridade Siriana, mas escolhemos por nossa própria vontade sair daqui. Nossa manobra está sendo iniciada nesse momento. - Desligou o contato.

        Bigman estava furioso:

        - Pelas areias de Marte, Lucky! O que é isso? Vamos correr por causa de uma cambada de Sirianos? Vamos deixar aquela cápsula entre os anéis de Saturno, para eles poderem encontrá-la?

        Lucky disse:

        - Do jeito que as coisas estão. Bigman, não temos outra escolha. - Abaixou o rosto pálido e tenso, mas em seus olhos havia uma expressão muito diferente da de um homem que foge. Aliás, absolutamente diferente.

 

ENTRE JÚPITER E SATURNO

        O capitão Mayron Bernold era, com a lógica exceção do Conselheiro Wesselowsky, o oficial de mais alta patente no esquadrão de perseguição. Ainda não tinha alcançado os cinqüenta e já ostentava quatro listras; tinha o físico atlético de um homem dez anos mais moço. Os cabelos já estavam se tornando grisalhos e contrastavam com as sobrancelhas ainda muito negras; a barba, apesar de feita, deixava sombras azuladas em volta de seu queixo.

        Observou Lucky Starr, que era muito mais moço, sem disfarçar seu desprezo:

        - E você se retirou?

        A Shooting Starr mudara de rota, virando mais uma vez em direção ao Sol, e encontrara as naves do esquadrão a meio caminho, entre as órbitas de Júpiter e de Saturno. Lucky passou para a capitania. Respondeu com muita calma:

        - Fiz o que achei necessário fazer.

        - Frente a uma invasão inimiga de nosso sistema, nunca poderíamos achar que uma retirada é necessária. É verdade que eles poderiam mandar explodir sua nave, mas você teria todo o tempo necessário para mandar-nos um aviso, para podermos também entrar na luta.

        - Quanta energia está sobrando em seus micro-reatores, Capitão?

        O capitão enrubesceu:

        - Também não teria importância nenhuma se eles nos destruíssem. Eles não poderiam fazê-lo sem que déssemos antes o alerta em nossas bases terrestres.

        - Para iniciar uma guerra?

        - Eles já iniciaram a guerra... Sim, foram os Sirianos. É minha intenção ir para Saturno e atacar.

        Lucky endireitou-se e ficou rígido. Era mais alto que o capitão. Seus olhos frios não piscaram.

        - Sou membro efetivo do Conselho de Ciências, Capitão. Minha autoridade sobrepuja a sua, e o senhor sabe disso perfeitamente. Não pretendo dar nenhuma ordem de ataque. Estou lhe dando ordens para voltar à Terra.

        - Quero ser mico se eu... - O capitão fez um esforço visível para controlar sua revolta. Cerrou os punhos e disse com a voz embargada: - Posso perguntar os motivos dessa ordem, senhor? - A última palavra saiu-lhe da boca carregada de sarcasmo. - Se o senhor tivesse a bondade de explicar... Tenho certeza que o senhor deve ter excelentes razões, senhor. Meu raciocínio pessoal se baseia numa insignificante tradição da frota, senhor. Segundo essa tradição, senhor, a frota nunca recua. Senhor!

        Lucky disse:

        - Capitão, se quiser conhecer minhas razões, sente-se aí, e vou lhe explicar tudo direitinho. Cá entre nós, faça-me o favor de não me dizer que a frota jamais recua. Uma retirada é simplesmente uma manobra de guerra, e um comandante que prefere ver sua nave destruída por não querer recuar não devia estar comandando uma nave. Acredito que suas palavras foram motivadas unicamente pela sua raiva. Diga-me francamente, Capitão: estamos preparados para começar uma guerra?

        - Mas eu estou dizendo que eles já começaram a guerra. Eles invadiram a Federação Terrestre.

        - Não é bem assim. Eles ocuparam um mundo desabitado. O erro, Capitão, está no fato de que o Salto facilitou enormemente a viagem para as estrelas. Por conseqüência, os Terrestres acabaram colonizando outros planetas antes mesmo de colonizar as regiões mais distantes de nosso próprio Sistema.

        - Os Terrestres desembarcaram em Titã. No ano de...

        - Sei tudo a respeito do vôo de James Francis Hogg. Ele também desembarcou em Oberon, no Sistema Uraniano. Mas era um simples caso de exploração, não era colonização. O Sistema Saturniano ficou desabitado, e qualquer mundo despovoado pertence ao grupo que primeiro estabeleça uma colônia.

        - Somente no caso - disse o capitão com ênfase - em que o planeta desabitado ou o sistema planetário sejam parte integrante de um sistema estelar desabitado. Este não é bem o caso de Saturno, e você não pode negá-lo. Saturno é parte de nosso Sistema Solar, e por todos os demônios ululantes do espaço, nosso Sistema é habitado.

        - Certo. Acontece que acredito que não existe um acordo oficial a esse respeito. É bastante possível que se chegue à conclusão de que Sírio tem todos os direitos de ocupar Saturno.

        O capitão bateu o punho cerrado sobre o joelho:

        - Não estou interessado nas conversas dos advogados espaciais. Saturno é nosso, e qualquer Terrestre com sangue nas veias vai concordar que é assim mesmo. Vamos chutar os Sirianos para fora do Sistema e os aspectos jurídicos do caso serão decididos pelas armas.

        - Pois Sírio gostaria que fizéssemos isso mesmo.

        - Então vamos dar a Sírio o que Sírio quer!

        - E vamos ser acusados de agressão... Capitão, lá fora entre as estrelas existem pelos menos cinqüenta mundos que não conseguem esquecer que em tempos idos foram colônias nossas. Nós acabamos dando-lhes liberdade e autodeterminação, mas esse detalhe já foi esquecido. Eles só se lembram de que ainda somos o mundo mais povoado e mais avançado de todos. Se Sírio gritar que somos culpados por uma agressão não provocada, todos eles se unirão contra nós. Sírio está nos provocando por isso mesmo, e é esta a razão por eu ter me recusado a lutar. Foi por isso que voltei. - O capitão mordeu o lábio e abriu a boca para falar, mas Lucky continuou: - Por outro lado, se ficarmos calmos, poderemos acusar Sírio de agressão, e a opinião pública nos mundos externos ficará completamente dividida. Será a ocasião certa para convencê-los a vir para o nosso lado.

        - Os mundos externos, do nosso lado?

        - Por que não? Afinal não existe nenhum sistema estelar que não tenha centenas de mundos desabitados de todos os tamanhos. Eles não irão querer estabelecer um precedente que poderia encorajar qualquer sistema a agredir um outro sistema, com a justificativa de estabelecer bases. Só há um perigo: eles poderiam se colocar na oposição, se por acaso eles interpretarem nossos motivos de forma errada, e nesse caso diriam que nós, a poderosa Terra, está tentando oprimir suas antigas colônias.

        O capitão levantou-se, caminhou até a parede e voltou. Disse:

        - Repita suas ordens, por favor.

        Lucky perguntou:

        - Afinal, você compreendeu por que voltei?

        - Sim. Quer me dar as ordens, por favor?

        - Claro que sim. Entregue a cápsula que estou lhe dando ao Conselheiro Chefe Conway. Não discuta os acontecimentos com mais ninguém, nem por via subetérica e nem de outra maneira. Por motivo nenhum você poderá se engajar em combate - repito: por motivo nenhum você poderá se engajar em combates com as forças Sirianas, a não ser que eles ataquem primeiro. Uma advertência: se você fizer qualquer coisa para se defrontar com os Sirianos ou se você provocar um ataque de maneira proposital, vou cuidar pessoalmente para que você seja levado a uma corte marcial e seja condenado. Entendeu?

        O capitão não mexeu um músculo. Suas feições eram rígidas. Seus lábios se movimentaram como se fossem feitos de madeira, com dobradiças defeituosas:

        - Com o devido respeito, senhor... o Conselheiro não poderia considerar a possibilidade de assumir pessoalmente o comando das naves, e entregar a mensagem em pessoa?

        Lucky Starr encolheu os ombros e disse:

        - Capitão, você é um homem muito teimoso, e o que é mais, não posso deixar de admirá-lo por isso. Em certas ocasiões, essa teimosia pode ser muito útil durante uma batalha... Infelizmente, Capitão, não posso entregar a mensagem. Tenho a intenção de voltar para a Shooting Starr e voltar a toda força para Saturno.

        Toda a rigidez militar do capitão se evaporou de repente.

        - O que? Espaços ululantes, o que foi que você disse?

        - Tenho a impressão de que minhas palavras foram bastante claras, Capitão. Quando saí de lá, deixei uma tarefa inacabada. Minha obrigação mais urgente era avisar a Terra do terrível perigo político que estamos para enfrentar. Se você se incumbir de levar minha mensagem, poderei cuidar de minhas outras tarefas - lá, no Sistema Saturniano.

        O capitão estirou os lábios num largo sorriso:

        - Ora, é diferente. Gostaria muito de acompanhá-lo.

        - Eu sei, Capitão. Sei que para você é muito mais difícil se afastar de uma luta do que entrar nela, e estou lhe pedindo para levar a mensagem porque sei que você está acostumado a cumprir missões difíceis. Quero que cada uma de suas naves transfira uma parte de sua energia para o micro-reator da Shooting Starr. E vou precisar de mais algumas coisinhas.

        - Você manda.

        - Ótimo. Vou voltar para minha nave e vou pedir ao Conselheiro Wessilewsky para me acompanhar em minha missão.

        Apertou energicamente a mão do capitão que a essa altura dos acontecimentos já estava completamente apaziguado. Junto ao Conselheiro Wessilewsky, Lucky entrou no tubo de comunicação que estava ligando a capitania com a Shooting Starr.

        O tubo internaves estava quase completamente esticado, e levaram alguns minutos para percorrê-lo. O tubo era desprovido de ar, mas os dois Conselheiros conseguiram facilmente manter o contato pelos rádios de seus escafandros. As ondas sonoras ecoavam no tubo metálico, mas as palavras eram bastante inteligíveis. Não existe um meio de comunicação mais privativo do que ondas sonoras à breve distância. Foi por isso que Lucky escolheu o tubo para falar abertamente com seu companheiro.

        Wess ouviu e finalmente mudou levemente de assunto:

        - Escute, Lucky, não entendo como foi que os Sirianos deixaram que você se retirasse, se eles realmente têm intenções de armar uma confusão. Como foi que eles não insistiram com provocações até forçar você a lutar?

        - Quero que você ouça a gravação da comunicação da nave Siriana, Wess. As palavras tinham um som metálico, eles não ameaçaram nada mais grave do que um arpão magnético. Tive a impressão de que era uma nave dirigida por um robô.

        - Robôs? - Wess arregalou os olhos.

        - Isso mesmo. Pela sua própria reação, você pode avaliar qual seria a reação na Terra se alguém espalhasse isso. Os Terrestres têm um medo irracional de robôs. Acontece porém que aquela nave pilotada por um robô não poderia ter provocado prejuízos sérios a uma nave pilotada por criaturas humanas. Afinal, a Primeira Lei Robótica - ou seja, a de que nenhum robô pode prejudicar uma criatura humana - teria nos protegido. Obviamente, o perigo era muito grande. Você pode ver que se eu tivesse atacado, como aliás acredito que os Sirianos pensavam que eu ia fazer, eles poderiam dizer com justa causa que eu tinha agredido uma nave desprotegida sem nenhuma provocação. Os mundos externos apreciam os robôs, ao contrário dos Terrestres. A única maneira de desnorteá-los era ir embora, e foi por isso que saí de lá.

        Chegaram à câmara pressurizada da Shooting Starr.

        Bigman estava esperando-os. Ficou evidentemente aliviado ao ver Lucky de volta, como sempre acontecia até após as mais breves separações.

        - Oi - disse. - Que sorte! Você conseguiu não cair do tubo internaves e... O que é que o Wess está fazendo aqui?

        - Wess vai conosco, Bigman.

        O Marciano baixinho deu a entender que estava amolado.

        - Para que? Nossa nave é para uma tripulação de dois.

        - Durante algum tempo vamos dar um jeito para acomodar nosso hóspede. Agora vamos nos preparar para a sifonagem de energia das outras naves e para receber alguns suprimentos pelo tubo. Logo a seguir, vamos sair a toda velocidade.

        A voz de Lucky era firme, e a mudança de assunto não deixava dúvidas. Bigman viu que não era o caso de discutir. Resmungou:

        - Está bem - e após lançar um olhar ressentido em direção a Wess, se enfiou na casa de máquinas.

        Wess perguntou:

        - Posso saber o que foi que eu fiz? Eu não disse uma palavra sequer a respeito do tamanho dele.

        Lucky disse:

        - É necessário compreender o baixinho. Ele oficialmente não é um Conselheiro, apesar de agir em todos os sentidos como se já estivesse efetivado. Ele é o único a não perceber essa diferença. De qualquer maneira, ele está receando que pelo fato de você ser outro Conselheiro, você e eu vamos nos dar muito bem e deixá-lo de lado. Em suma, que vamos ter segredinhos.

        Wess balançou a cabeça:

        - Estou vendo. Você não prefere dizer a ele...

        - Não. - A palavra foi pronunciada em voz baixa, mas o tom era enérgico. - Eu vou dizer a ele o que for preciso. Você, não diga nada.

        Bigman voltou para a cabine de controle:

        - A nave está absorvendo energia - disse. Olhou de um para o outro e rosnou: - Desculpem por eu ter interrompido suas conversinhas. Vocês não acham melhor eu abandonar essa nave, cavalheiros?

        - Você pode, se você quiser - disse Lucky. - Mas para sair daqui você terá que me colocar k.o., Bigman.

        Imediatamente Bigman começou a dar socos para o ar, como um boxeador:

        - Droga, isso vai ser difícil. Você acha que só porque você tem trinta centímetros de banha a mais, eu não conseguiria?

        Com um movimento fulminante piruetou fora do alcance do braço estendido de Lucky e colocou dois socos no abdômen dele. Lucky perguntou.

        - Agora você está se sentido melhor?

        Bigman se afastou, pulando na ponta dos pés:

        - Tomei cuidado porque não quero que o Conselheiro Conway comece a chiar por eu ter machucado você.

        Lucky soltou uma gargalhada:

        - Muito obrigado. Agora, porém, escute. Você precisa calcular uma órbita e mandar o resultado ao Comandante Bernold.

        - Está bem. - Bigman já parecia bem à vontade. Não havia mais sinais de ressentimento.

        Wess falou:

        - Escute, Lucky, detesto bancar o chato, mas afinal não estamos longe de Saturno. Tenho a impressão de que os Sirianos devem estar sabendo perfeitamente onde estamos, e saberão quando sairmos daqui, e também a direção que tomarmos.

        - Concordo, Wess.

        - Então quer me explicar de que forma vamos nos desligar do esquadrão e voltar para Saturno, sem que eles saibam exatamente onde estamos e sem que consigam nos desviar do rumo para não alcançarmos o Sistema?

        - É uma boa pergunta. Eu estava curioso para saber se você já tinha pensado nisso. Porque se você não pensou, acredito que os Sirianos também não podem ter adivinhado. Afinal eles não conhecem todos os detalhes de nosso Sistema da mesma forma que nós.

        Wess se recostou em sua poltrona:

        - Pare de bancar o misterioso, Lucky.

        - Mas tudo está perfeitamente claro. Todas as naves, inclusive a nossa, sairão ao mesmo tempo em formação cerrada. Considerando à distância que existe entre nós e os Sirianos, os detectores de massa deles só poderão registrar uma única mancha. Vamos manter a mesma formação, voando para a Terra numa órbita quase mínima, mas saindo levemente da rota para passarmos perto do asteróide Hidalgo, que nesse momento está saindo em direção do afélio.

        - Hidalgo?

        - Ora, Wess, você conhece Hidalgo. É um asteróide absolutamente genuíno, conhecido desde os tempos mais remotos, antes das viagens espaciais. Sua característica mais interessante é que ele não fica dentro do cinturão de asteróides. Quando ele se aproxima do Sol, chega tão perto como a órbita de Marte, mas quando se afasta do Sol alcança a órbita de Saturno. Quando chegarmos perto de Hidalgo, o asteróide também aparecerá na tela dos detectores de massa Sirianos, e pela força do sinal, os Sirianos logo ficarão sabendo tratar-se de um asteróide. Poderão ver a massa de nossas naves passar por Hidalgo em direção à Terra, e não poderão perceber uma diminuição de menos de dez por cento na massa das naves quando a Shooting Starr mudar de rumo, saindo do Sol para se esconder na sombra de Hidalgo. O percurso de Hidalgo não vai nos levar até a presente posição de Saturno, mas ficando dois dias em sua sombra poderemos em seguida sair tranqüilamente do Eclíptico em direção a Saturno, com uma razoável possibilidade de não sermos descobertos.

        Wess arqueou as sobrancelhas:

        - Espero que tudo dê certo, Lucky.

        Viu perfeitamente o plano estratégico. Todos os planetas e todas as rotas das espaçonaves comerciais ficavam no nível Eclíptico. Ninguém jamais se preocupava em procurar coisa alguma abaixo ou acima daquela zona. Era bastante razoável esperar que uma nave que se movimentava na órbita projetada por Lucky pudesse passar despercebida dos instrumentos Sirianos. Assim mesmo, Wess não parecia convencido.

        Lucky perguntou:

        - Você não acha que vamos conseguir?

        Wess respondeu:

        - É possível. É possível que consigamos voltar; estou aqui e vou fazer o que for preciso. Quero dizer algo, e nunca mais vou repeti-lo. Estou convencido de que já estamos praticamente mortos!

 

DESLIZANDO ACIMA DA SUPERFÍCIE DE SATURNO

        Foi assim que a Shooting Starr se aproximou de Hidalgo, prosseguindo em seguida além do Eclíptico, para subir depois mais uma vez em direção às regiões polares do segundo maior planeta do Sistema Solar.

        Lucky e Bigman nunca tinham ficado no espaço por um período de tempo tão longo, sem um descanso. Já fazia quase um mês desde a saída deles da Terra. De qualquer forma, a minúscula bolha de ar e de calor que era a Shooting Starr era um pedacinho da Terra, e poderia se manter da mesma maneira durante um período de tempo indefinido.

        As reservas de energia da nave, acrescidas pelas transfusões obtidas das outras naves, estavam no ponto máximo e poderiam durar quase um ano, exceto em caso de batalha. O ar e a água, reciclados através de um tanque cheio de algas, podiam durar por uma vida inteira. As algas poderiam até se constituir numa reserva de mantimentos no caso em que todos os concentrados de bordo chegassem a acabar.

        A única falta de conforto era provocada pela presença a bordo de um terceiro homem. Bigman tinha observado que a Shooting Starr era uma nave para dois tripulantes. Sua extraordinária concentração de energia, velocidade e armamentos era possível somente porque o espaço, a disposição dos tripulantes, estava drasticamente reduzido. Por isso estavam dormindo em turnos sobre um acolchoado na cabine de pilotagem.

        Lucky tentou amenizar a situação, explicando que agora os quartos de guarda podiam ser reduzidos a somente quatro horas, em vez das seis horas costumeiras. Bigman retrucou furioso:

        - Pois sim! Quando tento dormir sobre essa esteirinha de nada e Wess, o Balofo, está nos controles, ele continua ligando todas as luzes de sinalização bem debaixo de meu nariz.

        - Duas vezes em cada quarto - respondeu Wess com muita paciência - eu vou checando todos os sinais de emergência, para ver se estão funcionando. Afinal, é o regulamento.

        - Mas isso não basta - continuou Bigman. - Ele não pára de assobiar "Minha doce Afrodite venusiana" entredentes. Se eu ouvir mais uma única vez aquele maldito refrão, só mais uma vez! Vou arrancar o braço dele acima do cotovelo, e usá-lo para lhe quebrar a cabeça.

        Lucky disse, muito sério:

        - Wess, por favor, não fique assobiando aquele refrão. Se Bigman for obrigado a mutilar você, a cabine de pilotagem vai ficar cheia de sangue.

        Bigman ficou quieto mas quando chegou sua vez de ficar nos controles e Wess estava roncando melodiosamente, deitado sobre o acolchoado, Bigman conseguiu pisar nos dedos da mão dele enquanto ia para a poltrona do piloto.

        - Areias de Marte - falou rolando os olhos de um lado para o outro e levantando as palmas das mãos, ao ouvir o rugido de Wess. - Sabe que realmente tive a impressão de sentir algo debaixo das grossas solas de minhas botas marcianas? Puxa, Wess, eram mesmo seus dedinhos?

        - De agora em diante é melhor você não dormir mais - berrou Wess furioso pela dor que estava sentindo. - Se você dormir enquanto eu estiver nos controles, seu rato de areia marciana, vou amassá-lo como um mosquito, ouviu?

        - Você não pode imaginar o susto que me pregou - disse Bigman, fingindo um ataque de soluços. Lucky acordou.

        - Escutem bem - disse. - Estou avisando: se um de vocês me acordar mais uma vez, poderá fazer o resto da viagem puxado por um cabo amarrado na traseira da Shooting Starr.

        Quando Saturno e seus anéis entraram em seu campo visual, os três estavam na cabine, olhando. Visto do ângulo mais comum, ou seja, durante uma aproximação na altura do Equador, Saturno apresentava, junto aos seus anéis, uma das mais lindas vistas do Sistema Solar. Do ângulo polar então, a vista era algo realmente...

        - Se eu não me engano - disse Lucky - até durante a viagem exploratória de Hogg o sistema foi visitado somente em Japetus e Titã, e por isso Hogg só viu o panorama equatorial de Saturno. A menos que os Sirianos já o tenham feito, nós somos os primeiros humanos a ver Saturno tão de perto, vindos dessa direção.

        Como acontecia em Júpiter, o suave brilho amarelado da superfície de Saturno era simplesmente o reflexo dos raios solares na camada superior de uma atmosfera turbulenta que tinha uma profundidade de mil ou mais milhas. E da mesma forma de que em Júpiter, as turbulências atmosféricas apareciam como zonas de coloração diferente. Essas zonas porém não eram as estrias visíveis no panorama equatorial. Ao contrário, formavam círculos concêntricos em graduações suaves de marrom, amarelo e verde-claro, tendo o pólo saturniano como centro.

        Tudo isso, porém, perdia importância quando comparado aos anéis. Da distância em que se encontravam, os anéis pareciam cobrir um arco de vinte e cinco graus, com uma largura de cinqüenta vezes a Lua da Terra, quando estava cheia. A margem interna dos anéis era separada do planeta por um espaço de quarenta e cinco minutos de arco, no qual um objeto do tamanho de uma Lua-cheia poderia caber folgadamente, ao ponto de chacoalhar um pouco.

        Os anéis circundavam Saturno e do ponto em que a Shooting Starr se encontrava, não se podia perceber se em algum ponto chegavam a tocar no planeta. Três quintos do círculo eram bem visíveis, enquanto o restante desaparecia na sombra de Saturno.

        A três quartos da distância em direção da margem externa do anel havia uma separação, uma linha negra, conhecida como a "divisão de Cassini". Tinha uma largura de aproximadamente quinze minutos: Uma larga linha negra que dividia os anéis em duas brilhantes faixas de largura desigual. Na margem interna dos anéis havia um brilho esparso e esbranquiçado, que porém não formava uma linha contínua. Era o chamado "anel de crepe".

        A área total e visível dos anéis era mais ou menos oito vezes maior do que o globo de Saturno. Além disso, comparando as áreas, os anéis eram muito mais luminosos do que o planeta, de forma que aproximadamente noventa por cento da luz que chegava ao planeta provinham dos anéis. A intensidade da luz era comparável talvez a cem vezes a claridade da Lua-cheia.

        Mesmo Júpiter, visto de muito perto, da superfície de Io, não se podia comparar com Saturno. Quando Bigman conseguiu falar, sua voz saiu num sussurro. Disse:

        - Lucky, por que os anéis são tão reluzentes? Saturno em comparação parece apagado. O que é, uma ilusão ótica?

        - Não - disse Lucky -, não é. Saturno e os anéis recebem a mesma quantidade de luz do Sol, mas não a refletem da mesma maneira. O que estamos vendo em Saturno é a luminosidade refletida por uma atmosfera composta em sua maioria de hidrogênio e hélio, que refletem na medida de sessenta e três por cento, e mais um pouco de metano. Os anéis, por outro lado, são compostos de blocos quase compactos de gelo, e seu reflexo é da ordem de oitenta por cento. É por isso que parecem muito mais claros. Quando olhamos para os anéis, temos a mesma impressão de quando olhamos para um campo coberto de neve.

        - E precisamos descobrir um único floco de neve no meio daquele campo - murmurou Wess.

        - Mas estamos procurando um floco escuro - gritou Bigman excitado. - Escute, Lucky, se todas as partículas que compõem os anéis são feitas de gelo, e nós estamos procurando uma cápsula de metal...

        - Uma cápsula de alumínio polido - disse Lucky - pode refletir muito mais luz do que o gelo. Ela é bastante brilhante.

        - Nesse caso - suspirou Bigman, olhando assustado para os anéis a quinhentas milhas de distância, e que apesar da distância apresentavam uma superfície de tamanho impressionante -, estamos numa enrascada sem saída.

        - Vamos ver - disse Lucky, quase indiferente. Bigman estava nos controles, ajustando a órbita e aumentado de vez em quando a aceleração de energia iônica. Os controles Agrav estavam ligados e a Shooting Starr era muito mais manejável nesse volume de espaço, perto de Saturno, do que qualquer outra espaçonave, inclusive as Sirianas.

        Lucky estava vigiando o detector de massa que, com seus delicados sensores, exploravam o espaço em busca de qualquer matéria, acusando sua posição, medindo sua reação à força gravitacional da nave quando se tratava de um objeto pequeno, ou então o efeito de sua própria força gravitacional sobre a nave, em se tratando de algo maior.

        Wess acabava de acordar e observava tudo, silencioso e tenso, enquanto a nave descia em direção a Saturno. Bigman observava Lucky do canto dos olhos. Com a aproximação de Saturno, Lucky tornara-se mais e mais retraído e calado. Bigman já vira isso antes. Lucky estava inseguro: estava se arriscando, apesar das poucas probabilidades, e não estava com vontade de discutir o assunto. Wess disse:

        - Não acho que você precisaria ficar vigiando os detectores de massa com toda aquela intensidade, Lucky. Aqui não pode haver nave alguma. Vamos encontrar naves quando chegarmos perto dos anéis, e possivelmente serão muitas. Os Sirianos também devem estar procurando a cápsula.

        - Concordo - disse Lucky.

        - Aqueles miseráveis talvez já acharam a cápsula - murmurou Bigman mal-humorado.

        - Isso também é possível - disse Lucky.

        Estavam começando a virar, começando a contornar o globo de Saturno, a uma distância de oitenta mil milhas de sua superfície. A metade mais afastada dos anéis (nesse caso a parte iluminada pelo Sol) se confundia com o planeta e sua parte interna estava oculta atrás de sua curvatura.

        O "anel de crepe" interno, na metade mais próxima dos anéis, agora era muito mais visível. Wess disse:

        - Isso parece não ter fim. A margem mais interna dos anéis principais está a somente seis mil milhas acima da superfície aparente de Saturno, e é possível que a atmosfera de Saturno chegue até este ponto.

        - Seis mil milhas!

        - Somente de forma parcial, o que é suficiente para provocar atrito com aquele pedregulho mais próximo, fazendo-o girar um pouco mais perto de Saturno. Os outros que estão se movimentando mais perto ainda formam o anel de crepe. Acontece que os mais próximos provocam um atrito maior, e isso os aproxima mais ainda. Possivelmente existem partículas até nos estratos mais baixos perto da superfície, e algumas se incendeiam quando alcançam as camadas mais espessas.

        - Isso quer dizer que os anéis não podem ter uma duração eterna - observou Bigman.

        - É possível que não, mas de qualquer forma durarão milhões de anos. Para nós é demais - concluiu com expressão sombria.

        Lucky exclamou:

        - Vou sair, cavalheiros.

        - Areias de Marte! Por que, Lucky? - gritou Bigman.

        - Estou querendo ver como são as coisas lá fora - retrucou Lucky. Começou a vestir o escafandro espacial.

        Bigman lançou um rápido olhar ao registro automático dos detectores de massa. Não havia naves. Só objetos pequenos, sem importância. Meteoritos flutuantes que podiam ser encontrados em qualquer ponto do Sistema Solar. Lucky disse:

        - Wess, fique controlando os detectores de massa. Mande-os percorrer um circuito completo. - Lucky vestiu o capacete, comprimindo-o até as bordas se fecharem. Inspecionou os ponteiros dos medidores colocados sobre o peito, a pressão do oxigênio e colocou-se em frente à câmara de compressão. Sua voz saiu do alto-falante do painel de controles: - Vou usar um cabo magnético. Procure não dar aceleradas muito bruscas.

        - Enquanto você estiver lá fora? Você pensa que eu sou maluco? - perguntou Bigman indignado.

        Lucky apareceu do lado externo de uma escotilha. Atrás dele o cabo magnético flutuava todo emaranhado, e pela ausência de gravidade, não estava formando laços bem arredondados.

        Um pequeno reator manual seguro pela manopla do escafandro emitiu um fino jato de vapor que se tornou visível brevemente na fraca luminosidade do sol, formando uma pequena nuvem de partículas de gelo que logo desapareceram. Lucky, pela lei da ação e reação, movimentou-se na direção oposta. Bigman perguntou:

        - Você acha que pode haver algo errado com a nave?

        - Se houver algo errado - respondeu Wess - eu não consigo vê-lo no painel de controle.

        - Nesse caso, o que é que o grandalhão foi fazer?

        - Não sei.

        Apesar da resposta, Bigman lançou ao Conselheiro um olhar carregado de suspeita. A seguir voltou a observar Lucky.

        - Se você pensa - murmurou - que só porque eu não sou membro do Conselho...

        Wess disse:

        - É possível que Lucky simplesmente quisesse sair um pouco para ficar fora do alcance de sua voz, Bigman.

        O detector de massa, regulado para um controle circular automático, estava examinando sistematicamente grau quadrado por grau quadrado do volume em volta deles, e a tela do monitor se esvaía numa cor branca pura todas as vezes que os sensores se aventuravam longe demais em direção a Saturno.

        Bigman, carrancudo, não teve ânimo para responder à alfinetada de Wess.

        - Gostaria que alguma coisa acontecesse - suspirou.

        Alguma coisa aconteceu.

        Wess voltou a encarar o detector de massa com olhar suspeitoso e viu um pontinho esquisito. Focalizou os instrumentos, ligou os detectores de energia auxiliar e segui aquele ponto durante alguns minutos.

        Bigman disse, excitado:

        - É uma nave, Wess.

        - Parece que sim - concordou Wess a contragosto. Sendo simplesmente massa, poderia ser um meteorito de bom tamanho, mas havia sinais de energia emitidos naquela direção, e eles poderiam originar-se somente no micro-reator de uma nave: sobretudo, porque o tipo de energia e a quantidade indicada eram exatas. Era tão fácil como identificar uma impressão digital. Era até possível distinguir a diferença entre a energia emitida por naves terrestres e a das naves Sirianas, como aquela.

        Bigman observou:

        - Está vindo para cá.

        - Mas não diretamente. Acredito que não esteja querendo se arriscar muito, considerando o campo gravitacional de Saturno. De qualquer maneira, está se aproximando e dentro de uma hora estará numa posição certa para arriscar alguns tiros contra nós. De qualquer forma, gostaria de saber porque um caipira Marciano como você pode ficar tão feliz por isso.

        - Mas é óbvio, seu balofo. Agora estou compreendendo porque Lucky está lá fora. Ele sabia que a nave estava para chegar e está preparando uma armadilha...

        - Como é que Lucky poderia saber que a nave estava para chegar? - perguntou Wess estupefato. - Os detectores de massa não estavam mostrando nada dez minutos atrás. Aliás, não estavam nem virados na direção certa.

        - Não fique se preocupando com Lucky. Ele sempre consegue saber tudo - proclamou Bigman sorrindo.

        Wess encolheu os ombros, aproximou-se do painel de controle e falou no microfone:

        - Lucky! Está me ouvindo?

        - Claro que estou ouvindo-o, Wess, O que é que há?

        - Tem uma nave Siriana na tela do detector.

        - A que distância?

        - Menos de duzentos mil, e está se aproximando.

        Espiando pela escotilha Bigman percebeu o lampejo do reator manual, e cristais de gelo passaram ao lado da janela. Lucky estava voltando.

        - Estou a ponto de entrar - disse a voz dele.

        Logo que Lucky tirou o capacete da cabeça, libertando seus cabelos e olhos castanhos, Bigman disse:

        - Você sabia que aquela nave estava para chegar, não é mesmo?

        - Não, Bigman, eu não sabia. Para lhe ser muito franco, não compreendo como foi que eles nos descobriram tão depressa. Acho que é muita coincidência supor que eles simplesmente olharam por acaso para o nosso lado.

        Bigman procurou disfarçar seu desapontamento:

        - O que é que vamos fazer agora? Vamos explodi-la?

        - Não podemos nos arriscar em atacá-los, Bigman, isso é muito perigoso de um ponto de vista político. Ainda mais porque temos uma missão a cumprir, que é muito mais importante do que uma troca de tiros com uma outra nave.

        - Está bem - disse Bigman impaciente. - Precisamos encontrar aquela cápsula, mas...

        Sacudiu a cabeça. Uma cápsula era uma cápsula, e sem dúvida era uma coisa muito importante. Mas uma boa briga era uma boa briga, e todo aquele raciocínio de Lucky a respeito dos perigos políticos representados por uma agressão era sem dúvida tedioso: significava apenas que iam evitar uma briga. Murmurou:

        - Então, o que é que eu vou fazer? Vou continuar na mesma rota?

        - Aumente a velocidade. Dirija-se para os anéis.

        - Se fizermos isso - disse Bigman - eles vão correr atrás de nós.

        - Está bem. Vamos ver quem corre mais.

        Bigman puxou vagarosamente a alavanca de controle e as desintegrações dos prótons no micro-reator chegaram ao máximo. A nave começou a deslizar em alta velocidade ao longo da curvatura de Saturno.

        O receptor, de repente, começou a piscar suas luzes indicando a presença de ondas de rádio.

        - Você acha que devemos receber, Lucky? - perguntou Wess.

        - Não. Já sabemos o que eles querem nos dizer. Ou vamos nos render ou eles vão lançar um arpão magnético.

        - Então?

        - Só temos uma saída: correr.

 

A FENDA

        - Vamos fugir de uma única navezinha podre? - gemeu Bigman.

        - Vamos ter tempo suficiente para lutar mais tarde, Bigman. Vamos cuidar primeiro das coisas mais importantes.

        - Isso significa que vamos ter que fugir mais uma vez de Saturno.

        Lucky sorriu, mas sem alegria.

        - Dessa vez não vamos, Bigman. Dessa vez vamos estabelecer uma base no sistema desse planeta... e o mais rápido possível.

        A nave estava se aproximando dos anéis com uma velocidade fulminante. Lucky empurrou Bigman e colocou-se em frente aos controles. Wess falou:

        - Mais naves aparecendo.

        - Onde? Perto de qual dos satélites?

        Wess calculou rapidamente:

        - Estão todas perto dos anéis.

        - Muito bem - murmurou Lucky. - Isso quer dizer que ainda estão procurando a cápsula. Quantas naves são?

        - Por enquanto, cinco.

        - Há alguma entre nós e os anéis?

        - Agora apareceu uma sexta nave. Ainda estão todas muito distantes para atirar contra nós com uma razoável certeza de alvejar-nos. Mas eles acabarão nos perseguindo, a menos que não saiamos do Sistema Saturniano.

        - Ou a menos que nossa nave não seja destruída de uma outra forma, não é mesmo? - observou Lucky, entredentes.

        Os anéis agora eram enormes, enchendo a tela do visor com uma alvura estonteante, mas a nave continuava sua louca corrida. Lucky não dava sinais de querer diminuir a velocidade. Durante um instante terrível, Bigman pensou que Lucky estava querendo espatifar a nave contra os anéis. Sem querer, gritou:

        - Lucky!

        Foi então que os anéis desapareceram.

        Bigman ficou mudo pela surpresa. Suas mãos mexeram nos controles do visor. Gritou:

        - Onde estão? O que foi que aconteceu?

        Wess, que estava perto dos detectores de massa puxando seus cabelos amarelos, respondeu:

        - Divisão de Cassini.

        - O que?

        - A divisão entre os anéis.

        - Oh. - O susto estava passando. Bigman rodou o visor para ver o casco da nave, e logo a alvura dos anéis voltou a aparecer. Começou a manobrar os controles com muito cuidado.

        Primeiro, apareceu um anel. A seguir, viu o espaço que era bem negro. Depois, mais um anel, um pouco mais apagado. O anel externo não tinha uma aglomeração muito compacta de pedregulho de gelo. Então voltou ao espaço negro entre os anéis. A divisão de Cassini. Não havia nenhum pedregulho. Era só uma grande fenda negra.

        - É muito grande - comentou Bigman.

        Wess enxugou o suor da testa e olhou para Lucky:

        - Como é, Lucky, vamos atravessar?

        Lucky não tirou os olhos dos controles:

        - Vamos atravessar dentro de alguns minutos, Wess. Segure o fôlego e fique torcendo.

        Wess virou-se para Bigman e disse:

        - A divisão é mesmo muito grande. Eu já lhe disse que ela tem uma largura de duas mil e quinhentas milhas. Tem espaço suficiente para essa nave, se é isso que preocupa você...

        - Na verdade - respondeu Bigman - parece que você também está um pouco assustado, apesar de seu metro e oitenta de altura. Que é que há, Lucky está indo rápido demais para o seu gosto?

        Wess falou:

        - Ouça, Bigman, se me desse vontade de sentar em cima de você...

        - Você teria mais cérebro debaixo de seu assento do que você tem em sua cabeça - respondeu Bigman, cacarejando de alegria.

        Lucky avisou:

        - Dentro de cinco minutos estaremos na fenda.

        Bigman calou-se e voltou a observar o visor. Depois falou:

        - No interior da divisão posso ver uma espécie de irisação de vez em quando.

        - São pedrinhas de gelo, Bigman - explicou Lucky. - A divisão de Cassini praticamente não tem pedregulho, comparada com os dois anéis, mas não está cem por cento limpa. Se por acaso nos chocarmos contra uma daquelas pedrinhas enquanto atravessamos...

        - Unia possibilidade em mil - interrompeu Wess, encolhendo os ombros.

        - Uma possibilidade num milhão - corrigiu Lucky secamente - mas foi aquela possibilidade num milhão que acabou com o Agente X em sua Rede Espacial... Já estamos entrando na fenda. - Suas mãos continuaram firmes nos controles.

        Bigman respirou fundo, como preparando-se para o choque que poderia furar o casco e talvez provocar um curto no micro-reator, provocando uma explosão vermelha e definitiva. De qualquer forma, terminaria antes dele...

        Lucky disse:

        - Pronto.

        Wess expirou ruidosamente.

        Bigman perguntou:

        - Como é, já atravessamos?

        - É claro que atravessamos, seu Marciano tolo - respondeu Wess. - A espessura dos anéis é de apenas dez milhas, e quantos segundos você acha que precisamos para percorrer dez milhas?

        - Quer dizer que estamos do outro lado?

        - Isso mesmo. Procure localizar os anéis no visor.

        Bigman manobrou para um lado e depois para o outro, e finalmente voltou à posição original. Repetiu a manobra mais devagar.

        - Pelas areias de Marte... estou vendo uma espécie de sombra.

        - Isso é tudo que você poderá ver, meu amiguinho. Você está do lado da sombra agora. O Sol está iluminando o lado oposto, e a luz não consegue atravessar uma cortina de pedregulho que tem uma espessura de dez milhas. Diga-me uma coisa, Bigman, que espécie de astronomia eles ensinam nas escolas Marcianas? É do tipo: "estrelinha que brilha no céu", com acompanhamento de musica?

        Bigman avançou o lábio inferior:

        - Quer saber de uma coisa, gordo? - perguntou, arrastando as palavras. - Gostaria de ver você durante um mês em nossas fazendas marcianas. Aposto que conseguiria perder um pouco dessa banha, e ia aparecer aquela pouca carne que você tem... uns cinco quilos, mais ou menos, que estão todos nesses seu pezões.

        Lucky disse:

        - Wess e Bigman, eu ficaria muito grato a vocês se suspendessem essa troca de amabilidades até mais tarde. Que tal ver o detector de massa, sim?

        - Sim, Lucky. Ehi, está muito desequilibrado. Você está mudando de rumo num arco muito fechado?

        - O mais fechado possível. Vamos ficar atrás dos anéis até quando for possível.

        Wess assentiu:

        - Certo, Lucky. Dessa maneira eles não poderão usar seus detectores de massa.

        Bigman sorriu. Tudo estava indo da melhor maneira. Nenhum detector de massa poderia perceber a Shooting Starr, por causa da interferência da massa dos anéis de Saturno. Qualquer contato visual também era excluído.

        Lucky esticou suas longas pernas e mexeu vagarosamente os números das costas, esticando os ombros para aliviar a tensão.

        - Não acredito que qualquer nave Siriana teria coragem suficiente para perseguir-nos através da fenda - disse Lucky. - Eles não têm o Agrav.

        - Perfeito - comentou Bigman - até agora tudo deu certo. Mas para onde vamos? Alguém poderia me contar?

        - Não há segredo - disse Lucky. - Estamos indo para Mimas. Vamos continuar bem perto dos anéis até chegarmos o mais perto possível de Mimas e aí então vamos nos lançar através daquela porção do espaço. Mimas só está a trinta mil milhas mais para fora do que os anéis.

        - Mimas, hein? Não é uma das luas de Saturno?

        - Isso mesmo - se intrometeu Wess. - É a lua mais próxima do planeta.

        A rota da nave começou a se endireitar, porque a Shooting Starr, que continuava a revolver em volta de Saturno, estava indo num rumo oeste-leste, mantendo-se paralela aos anéis.

        Wess sentou sobre a colcha que estava no chão, cruzou as pernas e disse:

        - Que tal você aprender mais um pouquinho de astronomia? Se você encontrar um cantinho vazio naquela noz que anda chacoalhando dentro de seu crânio, posso lhe explicar porque existe uma divisão entre os anéis.

        O Marciano baixinho estava relutando, sem saber se cedia à curiosidade ou ao desprezo. Disse:

        - Vamos, seu caipira ignorante, não tente inventar alguma mentira. Pode falar. Vou ver logo se você está blefando.

        - Por que estaria blefando? - retorquiu Wess, altivo. — Escute e aprenda. As porções internas dos dois anéis revolvem em volta de Saturno em cinco horas. As porções mais externas concluem a rotação em mais ou menos quinze horas. No ponto em que se encontra a divisão de Cassini, que é um ponto intermediário, o material que compõe os anéis, se estivesse ali, completaria o circuito em mais ou menos doze horas.

        - E daí?

        - E daí, o satélite Mimas, para onde estamos nos dirigindo agora, gira em volta de Saturno em vinte e quatro horas.

        - Vou repetir a pergunta: e daí?

        - Todas as partículas que compõem os anéis são atraídas para um lado ou para o outro pelos satélites, enquanto elas e os satélites giram em volta de Saturno. Mimas, que está mais perto do que os outros, puxa muito mais. Na maioria dos casos, as puxadas acontecem numa direção, para mudar para uma direção oposta uma hora mais tarde, de forma que se anulam. Se houvesse pedregulho na divisão de Cassini, a cada segunda rotação terminada, o pedregulho encontraria Mimas no mesmo lugar, e puxando na mesma direção. Uma parte do pedregulho é constantemente puxado para frente, e por isso extravasa em espiral para o anel exterior; uma parte porém é puxada para trás, e acaba espiralando para o anel interno. Eles não se encontram: simplesmente uma seção do anel fica se esvaziando e pronto! assim se produz a divisão de Cassini.

        - Ah, é assim? - perguntou Bigman em voz baixa (tinha quase certeza de que Wess estava lhe dando uma explicação correta). - Mas então por que há pedregulho na fenda? Como é que ela não se esvazia totalmente?

        - Porque - explicou Wess com superioridade - algumas porções são continuamente puxadas ou empurradas para dentro, por causa dos efeitos gravitacionais dos satélites, mas nenhum deles fica por perto durante muito tempo... Espero que você esteja tomando notas, Bigman, porque mais tarde talvez eu lhe faça perguntas a respeito.

        - Vá fritar seus miolos numa explosão mesônica - resmungou Bigman.

        Wess voltou a prestar atenção aos detectores, mas estava sorrindo. Mexeu nos controles durante alguns instantes. Seu sorriso desapareceu e quando falou sua voz era muito séria:

        - Lucky!

        - Sim, Wess?

        - Os anéis não servem como proteção.

        - Como assim?

        - Venha ver. Os Sirianos estão chegando mais perto. Parece que os anéis não são um grande obstáculo.

        Lucky murmurou pensativo:

        - Como é que isso é possível?

        - Não acredito que oito naves estejam convergindo para nossa órbita por uma questão de pura sorte. Nós demos uma guinada em ângulo reto, e eles parecem ter ajustado suas órbitas com a nossa. Eles devem estar nos detectando.

        Lucky passou a mão sobre o queixo.

        - Pois bem, se eles estão fazendo isso, pela grande Galáxia! Deve ser assim. Não adianta ficar dizendo que eles não podem fazê-lo. Acho que isso significa que eles têm algum instrumento aperfeiçoado que nós não temos.

        - Ninguém jamais falou que os Sirianos eram bobos - disse Wess.

        - De fato. De vez em quando, porém, temos a tendência a agir como se eles fossem bobos; como se qualquer progresso científico somente pudesse brotar no seio do Conselho de Ciências, e como se os Sirianos estivessem na necessidade de roubar nossos segredos para conseguir uma coisinha qualquer. Até eu chego a me convencer dessa besteira. Aí vamos nós.

        - Para onde é que vamos? - perguntou Bigman.

        - Já expliquei, Bigman - disse Lucky. - Para Mimas.

        - Mas eles estão nos perseguindo.

        - Eu sei. Isso significa que teremos que chegar um pouco antes do que eles... Wess, você acredita que eles poderiam cortar nossa rota?

        Wess trabalhou rapidamente:

        - Acredito que não, a não ser que eles sejam capazes de acelerar três vezes mais do que nós.

        - Perfeito. Reconheço aos Sirianos uma porção de qualidades, mas não acredito que eles consigam ser mais rápidos do que a Shooting Starr. Vamos chegar antes que eles.

        Bigman disse:

        - Lucky, você está maluco. Vamos lutar, ou então dar o fora desse sistema. Não podemos aterrissar em Mimas.

        Lucky respondeu:

        - Sinto muito, Bigman, mas não temos escolha. Precisamos aterrissar em Mimas.

        - Mas eles já nos viram. Só precisam seguir nosso rastro, e vão aterrissar em Mimas também, onde então vamos brigar. Por que não aproveitar de nosso Agrav e lutarmos aqui mesmo?

        - É possível que eles não queiram descer em Mimas.

        - Por que não?

        - Escute, Bigman: quando entramos entre os anéis, nós não tentamos recuperar o que sobrou da Rede Espacial, não é mesmo?

        - Aquela nave explodiu.

        - Pois é.

        Ninguém falou mais. A Shooting Starr deslizou pelo espaço, começando a encurvar sua rota, afastando-se de Saturno, e depois acelerou saindo debaixo do anel mais externo e entrando no espaço livre. Lá em frente estava Mimas, um mundo brilhante e minúsculo, que se apresentava como uma diminuta meia-lua. Seu diâmetro era de apenas 320 milhas.

        As naves Sirianas que continuavam sua perseguição ainda estavam bastante longe.

        Mimas começou a aumentar de tamanho e finalmente os jatos da Shooting Starr entraram em ação e a nave começou a diminuir sua velocidade.

        Bigman porém achava impossível que Lucky, tão esperto, tivesse caído num erro tão grosseiro. Quando falou era evidente que estava se controlando com muito esforço:

        - É tarde demais, Lucky. Nunca poderemos desacelerar o suficiente para uma aterrissagem direta. Vamos ter que entrar numa órbita em espiral para conseguirmos perder o resto da velocidade.

        - Não temos tempo para espirais em volta de Mimas, Bigman. Vamos fazer uma aterrissagem direta.

        - Pelas areias de Marte, não podemos fazer isso! Estamos com excesso de velocidade.

        - Espero que os Sirianos estejam pensando a mesma coisa.

        - Mas, Lucky! Eles estariam certos.

        Wess se intrometeu:

        - Sinto muito, Lucky, mas concordo com Bigman.

        - Agora não tenho tempo para discutir, e nem para explicar - falou Lucky. Inclinou-se sobre os controles.

        Mimas começou a se expandir de maneira assustadora na tela do visor. Bigman passou a língua sobre os lábios.

        - Lucky, se você acha que é melhor acabarmos assim do que aceitar que os Sirianos nos apanhem, está bem, concordo. Mas Lucky, se precisamos morrer, não poderíamos pelo menos morrer lutando? Não poderíamos pelo menos tentar levar alguns conosco?

        Wess disse:

        - Mais uma vez, concordo com Bigman.

        Lucky sacudiu a cabeça mas não disse nada. Seus braços estavam se movimentando rápidos, mas Bigman não conseguiu ver o que ele estava realmente fazendo. A desaceleração continuava procedendo muito devagar.

        Durante um instante Wess esticou os braços como querendo remover Lucky dos controles, mas Bigman, sem dizer uma palavra, segurou seu pulso. Bigman estava convencido de que talvez iriam morrer dentro de instantes, mas a fé cega que depositava em Lucky ainda estava de pé.

        A velocidade estava diminuindo, diminuindo, diminuindo, a um ritmo que poderia ter esmagado os tripulantes em qualquer outra nave. Assim mesmo, Mimas agora estava preenchendo todo o espaço do visor e a desaceleração da Shooting Starr ainda não era suficiente.

        Com a velocidade de um raio, a Shooting Starr desceu, batendo na superfície de Mimas.

 

MIMAS

        Mas não aconteceu bem assim.

        Ouviu-se um chiado agudo que pareceu muito familiar aos ouvidos de Bigman. Era o chiado de uma nave entrando na atmosfera.

        Atmosfera?

        Era impossível. Um mundinho do tamanho de Mimas não podia ter uma atmosfera. Olhou para Wess, que estava sentado sobre a colcha, um pouco pálido, mas também bastante satisfeito.

        Bigman se aproximou de Lucky:

        - Lucky...

        - Agora não, Bigman.

        De repente, Bigman compreendeu o que Lucky estava fazendo nos controles. Estava manipulando o raio de fusão. Bigman voltou correndo para perto do visor e dirigiu a lente para frente.

        Não podia haver dúvida nenhuma, era isso mesmo. O raio de fusão era o mais extraordinário "raio quente" inventado pelos cientistas. Era especialmente útil como arma em combates a pouca distância, mas era um fato que ainda ninguém pensara em usá-lo da maneira em que Lucky o estava usando.

        O jato de deutério que saía da parte dianteira da nave se afunilava graças a um poderoso campo magnético, tornando-se uma ponta afiada a algumas milhas na frente, e se aquecia até a combustão atômica por meio do micro-reator da nave. Se a combustão tivesse que ser mantida por muito tempo, acabaria sem dúvida com o total da energia, mas uma fração de um milionésimo de segundo foi o que bastou. Logo em seguida a reação de fusão do deutério tornou-se auto-suficiente, e a incrível chama começou a queimar com uma caloria de trezentos milhões de graus.

        A ponta do raio de fusão se acendeu antes que a nave tocasse na superfície de Mimas, penetrando na massa do satélite como se ele não existisse, perfurando um túnel em suas entranhas. A Shooting Starr entrou no túnel a toda velocidade. A substância vaporizada de Mimas era a atmosfera que estava envolvendo a nave, ajudando-a a desacelerar, mas provocando em compensação um aumento perigoso da temperatura externa de seu casco.

        Lucky ficou a observar os ponteiros da temperatura externa e disse:

        - Wess, aumente a pressão das serpentinas de vaporização.

        - Vamos acabar com toda a nossa reserva de água.

        - Não faz mal. Neste mundo a água é que não falta.

        A água começou a ser bombeada mais rapidamente nas serpentinas externas de cerâmica porosa, onde se transformava em vapor, diminuindo um pouco o calor provocado pela fricção. A água porém pareceu não ajudar muito. A temperatura externa continuou subindo.

        Mas subia muito mais devagar. A desaceleração da nave estava completa e Lucky desligou o deutério, fazendo ajustes no campo magnético. A ponta de fusão foi diminuindo e o chiado também tornou-se menos agudo.

        O jato finalmente apagou-se por completo e a nave deslizou para frente, penetrando na massa sólida e abrindo caminho por causa de sua própria temperatura. Enfim, parou.

        Lucky recostou-se com alívio.

        - Cavalheiros - disse - sinto muito mas não tive tempo de explicar. Foi uma decisão de última hora, e tive que concentrar toda minha atenção no painel de controle. De qualquer forma, bem-vindos ao interior de Mimas.

        Bigman respirou fundo e disse:

        - Nunca imaginei que fosse possível usar um jato de deutério em fusão para derreter o caminho em frente a uma nave em plena velocidade.

        - Normalmente isso é impossível, Bigman - disse Lucky. - Acontece que Mimas é um caso realmente especial, assim como Enceladus, que é o satélite mais próximo.

        - E por quê?

        - Porque ambos são simplesmente enormes bolas de neve. Os astrônomos sabiam disso há muito tempo, mesmo antes do início das viagens espaciais. A densidade destes satélites é menor do que a da água, e eles refletem mais ou menos oitenta por cento da luz que recebem: vai daí que é bastante óbvio que só poderiam ser feitos de neve, com a adição de um pouco de amônia congelada, e ainda por cima a nave não é muito densa.

        - Isso mesmo - contribuiu Wess. - Os anéis são formados de gelo e estes dois primeiros satélites também são aglomerações de gelo que estavam muito distantes para poder ser incorporados nos anéis. Foi por isso que Mimas derreteu com tanta facilidade.

        Lucky disse:

        - Agora temos um bocado de trabalho a fazer. Vamos começar.

        Estavam numa caverna natural, formada pelo calor do raio de fusão, e fechada por todos os lados. O túnel formado pela passagem da nave já estava selado pela condensação do vapor em gelo. O detector de massa indicava que se encontravam a quase cem milhas debaixo da superfície do satélite. A massa de gelo acima deles estava começando a contrair vagarosamente a caverna, apesar da baixa gravidade de Mimas.

        A Shooting Starr começou a deslizar cuidadosamente em direção à superfície, como se fosse um espeto em brasa passando através da manteiga. Quando chegaram a apenas cinco milhas da superfície pararam e produziram uma bolha de oxigênio. Após constituir uma reserva de energia, instalar tanques com algas e arrumar um estoque de mantimentos, Wess ergueu os ombros com ar resignado e disse:

        - Paciência. Afinal, isso aqui vai ser minha casa por algum tempo. Vamos fazer o possível para que seja confortável.

        Bigman tinha acabado de acordar, após seu período de descanso. Fez uma careta cheia de desaprovação. Wess perguntou:

        - O que é que há, Bigman? Está querendo chorar, porque sabe que vai ficar com saudades de mim?

        Bigman rosnou:

        - Tenho certeza que vou poder me agüentar. Daqui a dois ou três anos vou fazer questão de passar perto de Mimas para trazer-lhe uma cartinha. - De repente, explodiu: - Escutem aqui! Ouvi vocês dois conversando enquanto pensavam que eu estava dormindo. O que é que há? Segredinhos do Conselho?

        Lucky sacudiu a cabeça, meio sem jeito.

        - Vai ficar sabendo logo, logo.

        Um pouco mais tarde Bigman e Lucky ficaram sozinhos e Lucky disse:

        - Estou pensando, Bigman, que não há motivo nenhum para você não ficar aqui junto a Wess.

        Bigman protestou, mal-humorado:

        - Como não! Bastariam duas horas em companhia daquele sujeito para eu ficar com vontade de cortá-lo aos pedaços e congelá-lo. - Perguntou muito sério: - Você não está brincando, Lucky?

        - Absolutamente. O futuro pode reservar situações que seriam mais perigosas para você do que para mim.

        - Ora! Você não está pensando que eu me importo com isso?

        - Se você ficar com Wess, você terá a certeza de sair daqui dentro de dois meses, independentemente do que poderia acontecer comigo.

        Bigman deu um passo para trás. Torceu a boca e falou:

        - Lucky, se você quer me dar uma ordem para eu ficar aqui, porque há coisas que precisam ser feitas aqui, e por mim, então está certo, vou ficar. Mas quando eu terminar, irei atrás de você. Mas se você quer que eu fique aqui somente porque acha que aqui eu estarei a salvo, enquanto você vai enfrentar algum perigo, então nossa amizade está terminada. Não quero mais compartilhar nada com você. Por outro lado, seu caipira desengonçado, você sabe que sem a minha companhia você não será capaz de fazer coisa alguma.

        Os olhos do Marciano piscaram repetidamente.

        Lucky disse:

        - Escute, Bigman...

        - Está bem, sei que vou correr algum perigo. O que é que você quer, que eu assine um papel dizendo que vou enfrentá-lo sob minha própria responsabilidade? Está certo, está certo. Vou fazer isso mesmo. Você está satisfeito, Conselheiro?

        Lucky agarrou Bigman pelos cabelos e sacudiu sua cabeça com muito carinho:

        - Grande Galáxia, quando a gente quer lhe fazer um favor, é a mesma coisa que cavocar na água.

        Wess entrou na nave e anunciou:

        - O destilador já está pronto e funcionando.

        As caixas de água da Shooting Starr estavam se enchendo de líquido destilado da matéria congelada de Mimas, para substituir a água gasta em esfriar o casco incandescente da nave enquanto ela abria caminho no interior do satélite. Uma parte da amônia separada estava sendo neutralizada com muito cuidado e guardada em compartimentos, de onde poderia ser bombeada para os tanques de algas, para servir como fertilizante nitrogenado.

        Finalmente a bolha de oxigênio ficou completamente pronta, e os três ficaram a admirar a curva perfeita do gelo e o alojamento quase confortável contido nela.

        - Pois bem, Wess - disse Lucky quando chegou a hora de se despedir -, acho que você está com todo o necessário.

        - Acredito que sim, Lucky.

        - Aconteça o que acontecer, alguém virá buscá-lo dentro de dois meses. Se tudo correr direitinho, vai ser bem antes.

        - Você me entregou esta tarefa - respondeu Wess sem nenhuma emoção - e eu vou cumpri-la. Concentre-se na sua própria tarefa, e entre outras coisas, tome conta do Bigman. Não deixe que ele caia da cama ou que se machuque de qualquer outra maneira.

        Bigman berrou:

        - Não pense que eu não estou entendendo todas essas conversinhas em código, ouviu? Você dois fizeram um trato e não querem me dizer nada a respeito...

        - Vamos embarcar, Bigman - disse Lucky e ergueu o pequeno Marciano, levando-o consigo, enquanto Bigman se agitava, tentando gritar mais alguma coisa.

        - Pelas areias de Marte, Lucky - disse Bigman quando entraram na nave. - Veja só o que você fez. Não basta que vocês conversem a respeito de seus segredinhos do Conselho, mas você deixou que aquele chato tivesse a última palavra.

        - Wess ficou com a missão mais difícil, Bigman. Ele terá que ficar parado e quieto enquanto nós dois iremos por aí, provocando confusões. Por isso, deixe que fique com a última palavra.

        Afloraram na superfície de Mimas e saíram num ponto no qual o Sol e Saturno não eram visíveis. O céu escuro não estava povoado por objetos maiores do que Titã, que estava muito baixo sobre o horizonte, com o tamanho de um quarto do diâmetro aparente da Lua da Terra.

        Seu globo estava só parcialmente iluminado pelo Sol e Bigman observou sua imagem no visor, com expressão sombria. Ainda estava desanimado.

        - Suponho que os Sirianos estejam ali - disse ele.

        - Eu também penso a mesma coisa.

        - O que é que vamos fazer? Vamos voltar aos anéis?

        - Certo.

        - E se eles nos acharem de novo?

        As palavras pareceram um sinal. O botão da recepção começou a brilhar. Lucky teve uma expressão preocupada:

        - Eles nos acharam muito facilmente.

        Ligou a chave. A voz que saiu do alto-falante não era uma voz de robô, contando os minutos. Era uma voz forte, vibrante, cheia de vida. Não havia possibilidade de dúvidas: era uma voz Siriana.

        - ...rr, responda por favor. Estou querendo entrar em contato com o Conselheiro David Starr, da Terra. David Starr, responda por favor. Estou querendo...

        Lucky disse:

        - Aqui é o Conselheiro Starr. Quem está querendo falar comigo?

        - Sou Sten Devoure, de Sírio. Você não respeitou o convite de nossas naves automatizadas e voltou ao nosso sistema planetário. Considere-se nosso prisioneiro.

        Lucky perguntou:

        - Naves automatizadas?

        - Sim, naves dirigidas por robôs. Você está me entendendo? Nossos robôs são capazes de dirigir naves de maneira muito satisfatória.

        - Percebi - disse Lucky.

        - Sem dúvida. Você foi seguido por eles até além de nosso sistema, e depois quando voltou para Hidalgo. Estavam atrás de você quando saiu do Eclíptico para sobrevoar o Pólo Norte de Saturno e passar pela divisão de Cassini debaixo dos anéis, e quando finalmente você se enfiou em Mimas. Você nunca esteve fora de nossas vistas.

        - E como foi que sua vigilância conseguiu ser tão eficiente? - perguntou Lucky, mantendo um tom displicente.

        - Os Terrestres parecem não entender que os Sirianos têm seus próprios métodos. Mas deixe para lá. Esperamos durante dias que você voltasse a sair do buraco que cavou em Mimas, com aquele muito interessante sistema de fusão de hidrogênio. Achamos muita graça por você ter arrumado um esconderijo. Alguns entre nós até fizeram apostas a respeito do tempo que você levaria para aparecer de novo. Ao mesmo tempo, porém, tomamos todas as medidas para cercar Mimas de maneira eficiente com nossas naves tripuladas por robôs. Você não poderia percorrer nem mil milhas sem ser atingido e destruído, se assim quiséssemos.

        - Mas não pelos robôs. Os robôs não podem prejudicar criaturas humanas.

        - Meu caro Conselheiro Starr - disse a voz Siriana em tom sarcástico - é claro que robôs jamais prejudicariam criaturas humanas, quando eles compreendem que estão enfrentando criaturas humanas que poderiam ficar prejudicadas. Acontece que os robôs que estão manejando nossas armas receberam instruções a esse respeito, e agora pensam que em sua nave somente há robôs. Eles não têm escrúpulos em destruir robôs. Você não prefere se render?

        Bigman aproximou-se de repente do transmissor e berrou:

        - Seu cafajeste, escute: que tal se nós atacássemos primeiro e acabássemos com alguns de seus homens de lata? Você gostaria?

        Era público e notório em toda a Galáxia que os Sirianos achavam que a destruição de um robô era equivalente a um assassinato.

        Sten Devoure, porém, não se impressionou. Disse:

        - Este era o indivíduo com quem, dizem, você mantém uma grande amizade? Um tal de Bigman? Se a voz era dele, devo dizer que não pretendo conversar com ele. Explique-lhe isso, e diga-lhe também que eu duvido que vocês possam destruir qualquer nave antes de serem prontamente destruídos. Acho que agora vou lhe conceder cinco minutos para decidir se você prefere se render ou ser destruído, Conselheiro. Devo dizer que durante muito tempo alimentei o desejo de me encontrar com você. Acredite portanto que eu sinceramente espero que se renda. Que tal?

        Lucky ficou silencioso durante um átimo, com os músculos das maxilas remexendo. Bigman ficou a observá-lo, muito calmo e com os braços cruzados sobre o peito. Passaram-se três minutos. Finalmente Lucky disse:

        - Vou entregar a nave e tudo que se encontra nela em suas mãos, senhor.

        Bigman ficou quieto.

        Lucky desligou o transmissor e virou-se em direção ao diminuto Marciano. O Conselheiro estava mordiscando os lábios e estava muito sem jeito:

        - Bigman, você precisa entender...

        Bigman encolheu os ombros:

        - Não estou compreendendo muito bem o que você pretende fazer, Lucky, mas depois de aterrissarmos em Mimas, descobri que você... que você estava planejando se render aos Sirianos. Você já estava com esta intenção quando voltamos para Saturno pela segunda vez.

 

A CAMINHO DE TITÃ

        Lucky ergueu as sobrancelhas:

        - Como foi que você descobriu isso?

        - Lucky, eu não sou nenhum tolo. - O Marciano baixinho falou em tom grave e solene. - Está lembrado de que, quando estávamos indo para o Pólo Sul de Saturno, você saiu da nave? Foi um pouco antes dos Sirianos entrarem em contato conosco, quando tivemos que nos enfiar na divisão de Cassini.

        - Sim.

        - Você saiu porque tinha boas razões para fazê-lo. Você não explicou nada, mas isso acontece muitas vezes quando você está planejando algo e não diz nada até a hora em que a pressão dos acontecimentos termine. Mas naquela ocasião a pressão não desapareceu porque estávamos correndo para fugir dos Sirianos. Então, enquanto estávamos construindo o alojamento de Wess em Mimas, examinei o casco da Shooting Starr e percebi que você tinha mexido na unidade Agrav. Você arrumou as coisas de tal forma que bastaria o toque de um botão no painel de controle para destruir a unidade num instante.

        Lucky disse em voz baixa:

        - A unidade Agrav é o único acessório da Shooting Starr realmente secreto.

        - Eu sei. Imaginei então que se você quisesse lutar, você estaria decidido a não parar até que a nave e nós estivéssemos destruídos. Junto com a unidade Agrav e todo o resto. Mas se você estava querendo simplesmente destruir a unidade Agrav, deixando intacta a nave, era porque você não tinha intenção de lutar. Você estava querendo se render.

        - É por isso que você esteve tão mal-humorado desde a hora em que chegamos a Mimas?

        - Lucky, sempre vou ficar do seu lado, faça você o que fizer - disse Bigman e desviou o olhar. - Uma rendição não é nenhuma brincadeira.

        - Eu sei - disse Lucky. - Mas nem você poderia imaginar uma maneira mais eficaz para entrarmos na base deles. Infelizmente, Bigman, nossas missões nem sempre são divertidas. - Lucky apertou o botão no painel. A nave estremeceu levemente enquanto as partes externas da unidade Agrav se fundiam e se desprendiam do casco em segmentos de metal em brasa.

        - Você quer dizer que pretende trabalhar dentro da base deles? Foi por isso que você aceitou se render?

        - Mais ou menos.

        - E se eles nos destruírem tão logo cheguem perto?

        - Acho que não pretendem fazer isso. Se eles quisessem nos matar, poderiam tê-lo feito no instante em que voltamos à superfície de Mimas. Acho que eles querem mesmo pegar-nos vivos... Por outro lado, se eles querem manter-nos vivos, temos Wess em Mimas, e ele representa uma espécie de trunfo. Precisei esperar que tudo ficasse pronto antes de poder me render. Foi por isso que eu arrisquei tudo para chegar até Mimas.

        - Talvez eles saibam a respeito de Wess. Parece que eles sabem uma porção de coisas.

        - É possível que eles saibam - disse Lucky pensativo. - Mas aquele Siriano sabe que somos parceiros, e talvez ele pense que somos apenas uma dupla e não um trio, e não irá procurar uma terceira pessoa. Acho que até foi bom eu não insistir muito para você ficar junto ao Wess. Se eu estivesse sozinho, os Sirianos começariam a procurar por você, organizando uma busca em Mimas. Por outro lado, se eles encontrassem Wess e você, e eu tivesse certeza que eles não matariam você... Não, eu estando nas mãos deles, e antes de conseguir arrumar as coisas ao ponto de... - A voz de Lucky a esse ponto tinha se tornado um murmúrio, e ele estava evidentemente falando só para si mesmo.

        Bigman ficou calado. O silêncio foi interrompido por uma violenta batida que fez vibrar as chapas de aço do casco. Um cabo magnético estava agora seguro na Shooting Starr, amarrando a nave a uma outra.

        - Alguém está chegando - sussurrou Bigman. Uma parte do cabo era visível por uma das escotilhas. Viram um vulto que se movimentava rapidamente, agarrado no cabo. O vulto desapareceu. Perceberam e ouviram seu contato com o casco. A luz acima da abertura da câmara de compressão estava acesa.

        Bigman tocou os controles que abriam a porta externa, esperou pelo segundo sinal: em seguida fechou a porta externa e abriu a porta interna.

        O invasor entrou.

        Não estava usando escafandro, porque não era uma criatura humana. Era um robô.

        Na Federação Terrestre existia um certo número de robôs, inclusive alguns realmente muito sofisticados. A maioria porém, era usado para trabalhos muito especializados e por isso não entrava em contato com as criaturas humanas, a não ser aqueles que supervisionavam seu trabalho. Por isso Bigman já tinha visto robôs, mas não muitos.

        Observou o robô Siriano com insistência. Como todos os homens mecânicos Sirianos, era alto e reluzente. Suas linhas externas eram de uma extrema e harmoniosa simplicidade, e as juntas dos membros e do torso tão bem feitas que eram quase que invisíveis.

        Quando o robô falou Bigman estremeceu. É necessário um bocado de tempo para aceitar com naturalidade uma voz quase completamente humana que sai de uma imitação metálica de um homem. O robô disse:

        - Bom dia. Minha missão é de cuidar que vocês e a nave cheguem sãos e salvos ao destino. Preciso saber em primeiro lugar se a pequena explosão que observamos no casco da nave prejudicou ou não sua capacidade de locomoção.

        A voz era profunda e harmoniosa, totalmente calma, e tinha um forte sotaque Siriano. Lucky disse:

        - A explosão não afetou a capacidade de manobra da nave.

        - Qual foi a origem da explosão?

        - Foi provocada por mim.

        - Qual foi o motivo?

        - Não posso responder a esta pergunta.

        - Está bem. - O robô pareceu se desinteressar. Um homem provavelmente teria insistido. Um robô não podia insistir. Continuou: - Estou programado para dirigir naves espaciais construídas em Sírio. Poderei manobrar esta nave se você me explicar para que servem os controles do painel.

        - Pelas areias de Marte, Lucky - interrompeu Bigman. - Não precisamos dar informações àquela coisa, não é mesmo?

        - O robô não pode nos obrigar a dizer o que não queremos, Bigman. Mas já nos rendemos, e não vejo nenhuma desvantagem em deixar que ele nos leve ao nosso destino.

        - Então vamos descobrir para onde vamos - disse Bigman e começou a gritar em direção ao robô: - Você aí! Para onde vamos?

        O robô fitou Bigman com seus olhos vermelhos desprovidos de qualquer expressão. Disse:

        - Pelas instruções que recebi, não posso responder a qualquer pergunta que não seja relacionada com minha tarefa.

        - Escute aqui. - Bigman empurrou Lucky que estava esticando o braço num gesto de cautela. - A qualquer lugar que você pretenda levar-nos, os Sirianos poderão até matar-nos... Se você não quer que eles nos prejudiquem e nos destruam, ajude-nos... venha conosco... Puxa, Lucky, deixe-me falar, sim?

        Lucky sacudiu a cabeça, e o robô disse:

        - Recebi garantias que nada acontecerá a vocês. Agora, se alguém quer me instruir a respeito dos controles, vou cuidar de cumprir minha missão.

        Lucky explicou claramente as funções de todos os controles do painel. O robô mostrou que conhecia perfeitamente o funcionamento de tudo que era mecânico, testou todos os controles com muita delicadeza, para certificar-se de que as informações eram corretas, e quando Lucky terminou as explanações, já estava completamente capaz de manobrar a Shooting Starr.

        Lucky sorriu. Era evidente que estava admirando o robô. Bigman puxou-o até a cabine:

        - Posso saber por que você está sorrindo?

        - Pela Grande Galáxia, Bigman, o robô é uma máquina maravilhosa. Precisamos reconhecer que os Sirianos são realmente habilidosos. Os robôs fabricados por eles são verdadeiras obras de arte.

        - Está bem, mas vamos falar baixo. Não quero que ele escute o que vou dizer, Lucky. Escute, você se rendeu somente para poder chegar até Titã e conseguir informações. Mas é possível que não consigamos mais sair de lá, e então o que vamos fazer com nossas informações? Agora temos este robô. Se conseguirmos convencê-lo a nos ajudar poderíamos fugir agora mesmo, e já teríamos o que precisamos. O robô deve ter carradas de informações a respeito dos Sirianos. Já temos o bastante e não precisamos mais ir até Titã.

        Lucky balançou a cabeça:

        - A idéia é boa, Bigman, sem dúvida. Mas como você pretende convencer o robô a vir conosco?

        - Por causa da Primeira Lei. Podemos explicar ao robô que em Sírio existem somente mais ou menos dois milhões de pessoas enquanto que na Federação Terrestre existem seis bilhões. Podemos explicar ao robô que é mais importante impedir que muita gente fique prejudicada, do que simplesmente proteger alguns poucos. A Primeira Lei agirá em nosso favor. Que tal, Lucky?

        Lucky disse:

        - Infelizmente, os Sirianos são muito habilidosos em manejar seus robôs. Aposto que este robô foi condicionado a acreditar que tudo o que ele está fazendo agora não prejudicará qualquer criatura humana. Ele não sabe nada a respeito de seis bilhões de pessoas na Terra, a não ser o que ouvirá de você, e qualquer coisa que você diga não terá nenhum efeito por causa do condicionamento dele. Para desobedecer às instruções recebidas, ele teria que ver uma criatura humana em perigo de vida.

        - Assim mesmo, vou tentar.

        - Pois tente. Sem dúvida, a experiência vai ser bastante interessante para você. E instrutiva.

        Bigman se aproximou decidido do robô que estava manobrando a Shooting Starr. A nave estava avançando no espaço dentro de sua nova órbita.

        Bigman perguntou:

        - O que é que você sabe a respeito da Terra e da Federação Terrestre?

        - Recebi instruções para não responder a perguntas não diretamente relacionadas com a tarefa atual - respondeu o robô.

        - Pois estou mandando que você ignore estas instruções.

        O robô pareceu hesitar, mas logo disse:

        - Recebi instruções para não aceitar outras instruções dadas por pessoa não autorizada.

        - Estou lhe dando ordens para evitar que você prejudique criaturas humanas. Por conseqüência, você é obrigado a obedecê-las - falou Bigman.

        - Disseram-me que nenhuma criatura humana seria prejudicada, e não estou percebendo que alguém está correndo perigo. As instruções que recebi me obrigam a resistir a estímulos alheios e proibidos, caso eles sejam repetidos.

        - Pois é preferível que você ouça. Existe um perigo muito sério. - Bigman falou durante alguns minutos com bastante ênfase, mas o robô deixou de responder.

        Lucky disse:

        - Você está perdendo tempo.

        Bigman deu um pontapé na perna reluzente do robô, mas sem nenhum efeito. Era como se tivesse dado um pontapé no casco da nave. Voltou para perto de Lucky com o rosto corado pela fúria. Disse:

        - Que situação mais estúpida! Criaturas humanas num beco sem saída porque um pedaço de ferro tem idéias próprias.

        - Isso é algo que costumava acontecer até antigamente com maquinarias comuns, antes mesmo que fossem inventados os robôs.

        - Ainda nem sabemos para onde estamos indo.

        - Não precisamos do robô para saber isso. Estive controlando a rota, e não há mais nenhuma dúvida: estamos indo para Titã.

        Durante a última hora da viagem, enquanto estavam se aproximando de Titã, ambos ficaram observando o vídeo. Em grandeza, era o terceiro satélite do Sistema Solar (só Ganimedes de Júpiter e Tritão de Netuno eram maiores, mas de pouco) e era, entre todos, o que tinha atmosfera mais densa.

        O efeito da atmosfera era evidente até à distância. Na maioria dos satélites (inclusive a Lua da Terra) o terminador - ou seja, a linha que marca o limite entre a parte diurna e a parte noturna - era muito evidente, com sua porção branca de um lado e negra do outro. Mas em Titã era diferente.

        Em Titã, a demarcação não era uma linha definida, mas uma estria, e as pontas da meia-lua continuavam adiante, mais fracas, até quase se encontrarem.

        - A atmosfera aqui é quase tão densa quanto a da Terra, viu, Bigman - disse Lucky.

        - Mas é irrespirável? - perguntou Bigman.

        - Isso mesmo. Irrespirável. É composta em sua maioria de metano puro.

        Um grande número de outras naves estava chegando, e já podiam ser vistas até a olho nu. Havia pelo menos uma dúzia, seguindo a Shooting Starr em sua órbita para o pouso em Titã.

        Lucky sacudiu a cabeça:

        - Olhe só. Doze naves espaciais só para essa tarefa. Grande Galáxia, essa gente deve ter ficado aqui durante anos, construindo e preparando. Como é que vamos fazer para convencê-los a ir embora, a não ser com uma guerra?

        Bigman achou que qualquer palavra era supérflua.

        Ouviram mais uma vez o chiado característico provocado pela penetração na atmosfera, o som agudo provocado pela acumulação de gases passando em grande velocidade pela superfície lisa do casco aerodinâmico.

        Bigman observou preocupado os ponteiros que registravam a temperatura externa do casco, mas não havia perigo algum. O robô estava manejando os controles com perfeição. A nave girou em volta de Titã descrevendo uma espiral apertada, perdendo ao mesmo tempo altitude e velocidade, e por isso a atmosfera, sempre mais densa enquanto desciam, não chegou a produzir um excesso de calorias. Lucky, mais uma vez, não escondeu sua admiração:

        - Ele vai manobrá-la sem gastar combustível. Acredito piamente que o robô seria capaz de pousar dentro de um alvo, usando a atmosfera como único freio.

        Bigman retrucou:

        - O que é que há de tão bom nisso? Se aquela coisa é capaz de dirigir uma nave com tanta habilidade, como é que vamos poder lutar contra os Sirianos?

        - Pois vamos ter que aprender a construir nossos próprios robôs, Bigman. Afinal, eles representam uma conquista da engenharia humana. Os homens que conseguiram isso são Sirianos, e os Sirianos são criaturas humanas: por isso, todos os homens podem se orgulhar do resultado. Mas se começamos a temer os resultados da capacidade deles, então só nos resta fazer o mesmo ou superá-los.

        A superfície de Titã estava perdendo aquele aspecto borrado devido à atmosfera. Agora já dava para perceber uma cordilheira. Os cimos não eram afiados e fragmentados, como geralmente se apresentam num mundo desprovido de ar, mas tinham os contornos suavizados pela ação do vento e do tempo. As saliências já eram livres de neve, mas as rachaduras e os vales ainda estavam cobertos por uma fofa colcha branca.

        - Isso aí não é propriamente neve - explicou Lucky. - É somente amônia congelada.

        A paisagem tinha um aspecto desolado. As planícies onduladas entre as cordilheiras eram em parte cobertas de neve, e em parte mostravam-se semeadas de rochas nuas. Não havia nenhum sinal de vida. Não havia lagos ou rios. Mas de repente...

        - Grande Galáxia! - exclamou Lucky.

        Lá estava uma cúpula. Era uma cúpula mais ou menos achatada, bastante conhecida em todos os planetas internos. Havia cúpulas desse mesmo gênero em Marte, e também sobre as plataformas oceânicas nas águas rasas de Vênus, e agora havia uma na longínqua e devastada paisagem de Titã. Uma cúpula Siriana de proporções amplas, que seria considerada uma cidade de bom tamanho em Marte, o planeta há muito colonizado.

        - Ficamos dormindo enquanto eles estavam construindo - observou Lucky.

        - Quando a imprensa descobrir isso - disse Bigman -, o Conselho de Ciência vai ler coisas bastante desagradáveis.

        - Mas se conseguirmos acabar com essa situação, não será necessário. É verdade que o Conselho merece uma boa puxada de orelhas. Pelo Espaço, Bigman! Afinal, qualquer rocha de bom tamanho e que se encontre dentro do Sistema Solar deveria ser vistoriada periodicamente, por não falar nos mundos do tamanho de Titã!

        - Mas quem poderia imaginar...

        - Pois o Conselho de Ciência tinha a obrigação de imaginar. Eles deviam usar a cabeça. Os povos do Sistema sustentam e confiam no Conselho justamente para que ele resolva certos problemas. Eu também devia ter usado minha cabeça.

        A voz do robô interrompeu a conversa:

        - Esta nave vai efetuar o pouso após descrever mais uma volta sobre a superfície deste planeta. Por causa do motor iônico da nave, nenhuma precaução especial será necessária durante a operação de pouso. Não posso porém arriscar qualquer descuido que poderia resultar em acidentes. Estou, pois, pedindo que deitem e afivelem seus cintos.

        Bigman observou:

        - Escute só aquele acúmulo de canos de lata explicando a nós o que é necessário fazer durante um pouso!

        - Não faz mal - disse Lucky. - É melhor deitarmos. Caso contrário, ele é capaz de obrigar-nos. Ele recebeu a tarefa de cuidar por nossa incolumidade.

        Bigman gritou de repente:

        - Ehi, robô, diga uma coisa: quantos homens vivem lá embaixo, em Titã?

        O robô continuou calado.

        A superfície pareceu subir, engulindo-os dentro de um túnel que se aprofundava no interior do planeta. A Shooting Starr parou, pousada sobre a cauda, com uma aceleração mínima dos jatos para completar a manobra final. O robô se afastou dos controles.

        - Vocês chegaram em Titã sãos e salvos. Minha missão principal foi cumprida e vou agora escoltá-los à presença de meus amos.

        - Vai levar-nos até Sten Devoure?

        - Ele é um dos amos. Vocês podem sair da nave, porque a temperatura e a pressão são normais no exterior, e a gravidade é parecida com aquela que para vocês é a normal.

        - Podemos sair agora? - perguntou Lucky.

        - Sim. Meus amos estão esperando.

        Lucky assentiu. Não conseguia controlar um começo de excitação, e isso era meio esquisito. Mas afinal, apesar de ter sempre considerado os Sirianos inimigos, durante sua breve e aventurosa carreira com o Conselho de Ciência, até aquele dia nunca vira um Siriano em carne e osso.

        Saiu da nave, pisando no degrau embutido, com Bigman seguindo a um passo de distância, mas ambos pararam, de repente, estupefatos.

 

O INIMIGO

        O pé de Lucky estava apoiado sobre o primeiro degrau da escada que levava ao chão. Bigman olhou por cima do ombro do amigo. Ambos ficaram de queixo caído.

        A impressão era a mesma de que desembarcar na superfície da Terra. A abóbada que estava cobrindo a caverna - uma superfície arredondada de vidro e metal - era completamente invisível pelo fulgor de um céu totalmente azul, com nuvens verdadeiras ou ilusórias, que davam a impressão de um céu de verão.

        Em frente a eles havia vastos gramados com fileiras de prédios e intervalos regulares e amplos, e aqui e ali canteiros com flores de cores brilhantes. A certa distância corria um riacho de águas claras, sobre o qual se erguia uma ponte de pedra. Dúzias de robôs estavam se apressando em todas as direções ocupados em suas tarefas, com movimentos que lembravam o ritmo de máquinas perfeitas. A algumas centenas de metros cinco criaturas - Sirianos! - estavam agrupadas, observando o desembarque com manifesta curiosidade.

        Uma voz autoritária falou alto, interrompendo a contemplação estupefata de Lucky e Bigman:

        - Vocês, aí em cima. Desçam. Estou dizendo, desçam. Rápido, sem demorar.

        Lucky olhou para baixo. Um homem alto estava parado ao pé da escada, plantado sobre os pés afastados e com as mãos na cintura. O rosto estreito, cor de azeitona, estava inclinado para o alto, e tinha uma expressão arrogante. Seus cabelos eram muito curtos, à Siriana. Estava usando bigodes finos e uma curta barba, bem aparada. Suas roupas eram soltas, em cores vivas. A camisa tinha o colarinho aberto e as mangas eram curtas, chegando apenas até os cotovelos.

        Lucky disse:

        - Já estamos indo, senhor, já que o senhor está com pressa.

        Virou-se e desceu rapidamente, usando somente as mãos, com o corpo ágil movimentando-se sem nenhum esforço aparente. Afastando-se do casco, deixou-se cair pela altura dos últimos doze degraus, fazendo uma pirueta no ar que permitiu que chegasse ao chão encarando o homem que estava à sua espera. Seus joelhos se dobraram levemente para absorver o choque e quando se endireitou deu um passo para o lado para permitir que Bigman aterrissasse da mesma maneira.

        O homem era alto, mas assim mesmo não chegava à altura de Lucky, e visto de perto, via-se que sua pele estava levemente flácida e seu corpo era mole.

        O homem franziu a testa e os lábios numa careta de desprezo:

        - Acrobatas: Macacos!

        - Nada disso, senhor - respondeu Lucky, achando graça. - Somos simplesmente Terrestres.

        O outro falou:

        - Você é David Starr, mas seu apelido é Lucky. Essa palavra, na língua terrestre, tem o mesmo significado do que na nossa?

        - Lucky significa afortunado, feliz,

        - Ao que parece, sua sorte acabou. Sou Sten Devoure.

        - Imaginei que era.

        - Você parece surpreso com tudo isso, não é mesmo? - O braço de Devoure descreveu um gesto amplo, mostrando a paisagem ajardinada. - É uma verdadeira maravilha.

        - Sim, é tudo maravilhoso. Mas não é um desnecessário dispêndio de energia?

        - Podemos fazer tudo isso porque dispomos de robôs que trabalham vinte e quatro horas por dia, e Sírio tem energia para dar e vender. Acho porém que a situação de energia é muito diferente na Terra.

        - Vai ver que temos tudo o que precisamos - disse Lucky.

        - É mesmo? Vamos, quero conversar com você em seus alojamentos. - Abanou a mão num gesto peremptório em direção aos outros cinco Sirianos que tinham se aproximado para poder observar os Terrestres mais de perto: afinal eram aqueles mesmos Terrestres que tinham desafiado com sucesso os Sirianos durante os últimos anos e que agora estavam finalmente vencidos.

        Os Sirianos fizeram continência e sem demora obedeceram ao gesto de Devoure, virando as costas e afastando-se.

        Devoure entrou num carro pequeno que estava parado ao lado, movimentando-se silenciosamente por uma faixa de força diagravítica. Sua superfície inferior era completamente lisa, sem rodas ou outros acessórios, e mantinha-se a quinze centímetros acima do chão. Um outro carrinho se aproximou, parando ao lado de Lucky. Ambos eram dirigidos por robôs.

        Lucky entrou no segundo carro. Bigman deu um passo para segui-lo, mas o robô motorista estendeu o braço para lhe barrar o acesso.

        - Ei... - disse Bigman.

        Lucky interferiu:

        - Meu amigo irá junto comigo, senhor.

        Pela primeira vez Devoure pousou os olhos sobre Bigman, com uma expressão de ódio indescritível. Falou:

        - Não quero me preocupar com essa coisa. Se você pretende ficar em sua companhia, poderá fazê-lo por algum tempo, mas eu não quero me amolar por sua causa.

        Bigman ficou pálido e arregalou os olhos, virando-se para o Siriano:

        - Você vai ter que se amolar comigo a começar desse...

        Lucky agarrou seu braço e sussurrou ao pé do ouvido:

        - Agora não podemos fazer nada, Bigman. Pela Grande Galáxia, rapaz, pare com isso e deixe que as coisas aconteçam do jeito em que devem acontecer.

        Lucky deu-lhe um empurrão para que entrasse no carro, enquanto Devoure, pela sua atitude, mostrava claramente que não estava interessado.

        Os carrinhos procederam rápidos e diretos como o vôo de uma andorinha e dois minutos mais tarde pararam em frente a um prédio baixo, de um só andar, feito de tijolos lisos e brancos de silicone, muito parecido com os outros, a não ser pelo friso encarnado em volta das portas e janelas e de um lado da aléia de acesso. Durante o percurso não viram nenhum homem, somente robôs.

        Devoure mostrou o caminho, passando debaixo de uma porta em arco. Entraram numa pequena sala de reuniões onde havia uma mesa comprida e, de um lado, uma alcova com um grande sofá. O forro estava iluminado com uma forte luz azulada, parecida com o céu brilhante que havia do lado de fora. Lucky observou mentalmente que a luz era um pouco azul demais mas acabou por se lembrar que Sírio era uma estrela maior, mais quente e por conseguinte mais azulada do que a Terra.

        Um robô entrou trazendo duas bandejas de comida com altos copos cheios de um líquido gelado e espumoso parecido com leite. Um aroma apetitoso começou a encher o ambiente, e depois de duas semanas de rações de bordo Lucky percebeu que estava sorrindo com água na boca. Uma bandeja foi colocada em frente a Devoure e a outra em frente a Lucky.

        Lucky disse ao robô:

        - Meu amigo vai comer a mesma coisa.

        O robô virou-se por um instante para Devoure, que fingiu não ter ouvido, e logo saiu para trazer mais uma bandeja. Ninguém falou durante a refeição. O Terrestre e o Marciano comeram com evidente apetite.

        Quando as bandejas foram levadas embora, Devoure disse:

        - Preciso começar minha conversa declarando que vocês são espiões. Vocês penetraram no espaço Siriano e foram avisados para se afastarem. Vocês saíram mas voltaram logo, fazendo muitos esforços para manter sua rota despercebida. Pelas leis da jurisprudência interestelar estamos com pleno direito de executá-los agora mesmo, e vamos proceder nesse sentido, a menos que suas ações de agora em diante demonstrem que vocês merecem clemência.

        - Que tipo de ações? - perguntou Lucky. - Gostaria que o senhor citasse um exemplo.

        - Será um prazer, Conselheiro. - Os olhos escuros do Siriano estavam brilhando, interessados. - Por exemplo, poderíamos falar a respeito da cápsula que nosso homem lançou entre os anéis pouco antes do infeliz acidente que provocou sua morte.

        - O senhor acredita que está em meu poder?

        O Siriano deu uma gargalhada.

        - Pudera, que idéia! Cuidamos para que você não se movimentasse perto dos anéis a menos da metade da velocidade da luz. Vamos, Conselheiro o senhor é um homem muito esperto. Até em Sírio ouvimos falar muito no senhor e em seus feitos. Houve até ocasiões em que o senhor se tornou, vamos dizer assim, um pouco inconveniente.

        Bigman interrompeu indignado, com sua voz estridente:

        - Um pouco inconveniente, hein? Como aquela vez em que inutilizou seus espiões em Júpiter, ou tornou sem efeito seu trato com os piratas dos asteróides, ou rechaçou suas forças em Ganimedes...

        Sten Devoure teve um ímpeto de fúria:

        - Conselheiro, quer mandar parar aquela coisa? O som agudo da coisa me irrita bastante.

        - Nesse caso - falou Lucky em tom autoritário - o senhor diga o que quer dizer, sem insultar meu amigo.

        - Quero que o senhor ajude na busca. Queremos encontrar aquela cápsula. Quero que o senhor, que é famoso pela sua esperteza, me diga como deve ser organizada essa busca. - Devoure apoiou os cotovelos na mesa e observou Lucky cheio de curiosidade.

        - Nesse caso, diga-me em primeiro lugar que informações o senhor tem a respeito.

        - As mesmas que o senhor também tem, eu imagino. Só captamos as últimas sentenças.

        - Sim, ouvimos a mensagem. Não ouvimos tudo, mas o suficiente para ver que faltavam as coordenadas da órbita de lançamento, e o bastante para saber que ele tinha já efetuado o lançamento.

        - E então?

        - O homem conseguiu enganar nossos próprios agentes durante muito tempo, e quase conseguiu cumprir uma missão muito difícil. Imagino que era um homem inteligente.

        - Ele era um Siriano.

        Lucky retorquiu com muita cortesia:

        - Isso não é necessariamente a mesma coisa. Entretanto, podemos supor que nesse caso ele não teria lançado a cápsula entre os anéis de tal maneira que depois fosse impossível para vocês recuperá-la.

        - Muito bem. Continue, Terrestre.

        - Mas se ele tivesse lançado a cápsula nos próprios anéis, seria absolutamente impossível encontrá-la.

        - O senhor acha?

        - Acho, sim. A única alternativa é que ele a lançou numa órbita dentro da divisão de Cassini.

        Sten Devoure inclinou a cabeça para trás soltando uma gargalhada vibrante. Disse:

        - Que coisa mais extraordinária ouvir Lucky Starr, o grande Conselheiro, usar seu raciocínio para resolver um problema. Estava esperando que o senhor produzisse uma teoria diferente, surpreendente. Mas só isso? Que tal, Conselheiro, se eu lhe dissesse que sem sua preciosa ajuda, nós já tínhamos chegado à mesma conclusão? De fato, nossas naves estão vasculhando a divisão de Cassini praticamente a partir do instante em que recebemos os fragmentos de mensagem.

        Lucky balançou a cabeça. (Se a maioria dos homens da base de Titã estavam entre os anéis, isso explicava porque a base aparentava ser tão escassamente povoada por homens). Disse:

        - Nesse caso, aceite meus parabéns e permita-me acrescentar que a divisão de Cassini é vasta, e há bastante pedregulho nela. Ainda mais, a cápsula deve estar numa órbita bastante instável por causa da atração de Mimas. Dependendo de sua posição, a cápsula deve estar penetrando alternadamente no anel externo e no anel interno, e se vocês não a acharem dentro de pouco tempo, ela estará perdida.

        - Essa tentativa do senhor de me assustar é bastante tola e desnecessária. Mesmo que a cápsula penetrasse nos anéis, ela continuaria sendo um objeto de alumínio entre pedras de gelo.

        - Os detectores de massa não podem fazer uma distinção entre alumínio e gelo.

        - Claro que não, em se tratando de detectores de massa de seu planeta, Conselheiro. O senhor não está curioso para saber como foi possível para nós seguir sua nave, apesar daquele truque ineficiente com Hidalgo, e o outro muito mais arriscado em Mimas?

        Lucky comentou, seco:

        - De fato, estou.

        Devoure riu:

        - E não é para menos. Parece-me bastante óbvio que na Terra ainda não existem os detectores de massa seletivos.

        - Trata-se de um acessório secreto? - perguntou Lucky com excessiva polidez.

        - Não, em princípio não é. Nosso feixe detector usa raios X moles os quais, na volta, se portam de maneiras diferentes, dependendo dos materiais e da massa de seus átomos. Analisando a diferente repercussão do feixe, conseguimos distinguir entre uma nave e um asteróide composto de rochas. Quando uma espaçonave passa perto de um asteróide, o asteróide evidentemente reflete uma massa considerável de metal que antes não possuía. Daí não é muito difícil deduzir que atrás do asteróide está se escondendo uma nave que, inclusive, imagina estar fora do alcance dos detectores. Que tal, Conselheiro?

        - Estou vendo, senhor.

        - Pois o senhor está mesmo vendo que apesar de qualquer tentativa de se mimetizar entre os anéis, ou em proximidade de Saturno, a sua massa metálica era sempre perfeitamente reconhecida. Não existe metal nenhum nos anéis, e também não há metal por uma profundidade de pelo menos dez mil milhas na crosta de Saturno. Mesmo quando a nave estava no interior de Mimas, ela não estava oculta. Durante algumas horas pensamos que vocês tivessem morrido. Conseguíamos detectar o metal debaixo da crosta de gelo em Mimas, e pensamos que eram simplesmente os restos de sua nave estraçalhada. Finalmente o metal começou a se mexer, e então compreendemos que o senhor ainda estava entre os vivos. Adivinhamos seu truque por meio da fusão, e vimos que só era necessário esperar.

        Lucky assentiu:

        - Por enquanto, o senhor está com a vantagem.

        - E o senhor acredita que não seremos capazes de encontrar a cápsula, porque ela será atraída para o interior dos anéis ou então porque foi lançada neles?

        - O senhor explique porque ainda não foi encontrada.

        Por um instante Devoure franziu o rosto, como se estivesse duvidando que as palavras de Lucky escondiam algum sarcasmo, mas vendo a expressão polida e calma de Lucky, respondeu quase rosnando:

        - Vamos achá-la. É só uma questão de tempo. Considerando que o senhor não pode nos ajudar nessa tarefa, não vejo razões para adiar sua execução.

        Lucky disse:

        - Não acredito no que o senhor disse. De fato, mortos, nós poderíamos nos transformar num sério perigo para o senhor.

        - Se posso julgar pelo perigo que o senhor representa estando vivo, não vejo a necessidade de levar em consideração suas ameaças.

        - Somos membros do Conselho de Ciências da Terra. Se formos mortos, o Conselho não vai se esquecer disso, e não vai perdoá-los. A retaliação não seria dirigida contra Sírio, mas contra o senhor pessoalmente. Jamais se esqueça disso.

        Devoure disse:

        - Acho que eu sou melhor informado do que o senhor imagina. Aquela criatura que está com o senhor não é um membro de seu Conselho.

        - Realmente, não tem uma posição oficial, mas...

        - E o senhor pessoalmente – permita-me concluir meu raciocínio - não é simplesmente um membro do Conselho. O senhor é filho adotivo de Hector Conway, o Chefe do Conselho, e também o orgulho do Conselho inteiro. Por isso, talvez o senhor esteja certo. - Os lábios de Devoure, emoldurados pelos bigodes, se estiraram numa careta que não chegava a ser um sorriso: - Pensando melhor, existem condições que poderiam se avantajar pelo fato do senhor estar vivo.

        - Que condições?

        - Durante estas últimas semanas a Terra pediu uma conferência interestelar de todas as nações para examinar o que na Terra estão apelidando de nossa invasão do território deles. Talvez o senhor não saiba a respeito.

        - Fui eu quem sugeriu essa conferência quando tomei conhecimento dessa base pela primeira vez.

        - Muito bem. Sírio já anunciou que vai assistir à conferência, e a reunião está marcada para daqui a algumas semanas no asteróide terrestre Vesta. Ao que parece - continuou Devoure sorrindo maldoso, - a Terra está com muita pressa. É nossa intenção concordar com suas exigências, porque não temos nenhuma dúvida a respeito do resultado. Em geral, os mundos externos não têm muito carinho pela Terra, e com boas razões. Nossa defesa, por outro lado, é perfeita. Mas poderíamos apresentar um espetáculo muito mais dramático se pudéssemos mostrar toda hipocrisia dos Terrestres. Eles pedem uma conferência; explicam que pretendem resolver o assunto de maneira pacífica, e ao mesmo tempo mandam uma belonave espacial para Titã, com ordens de destruir nossa base.

        - Nunca recebi instruções desse teor. De fato, agi sem instruções, e nunca tive intenções de cometer qualquer ato de guerra.

        - Seja como for, se o senhor fizer uma declaração como eu sugeri, isso poderia provocar uma sensação.

        - Não pretendo fazer declarações que não correspondem à verdade.

        Devoure fingiu não ter ouvido. Disse, áspero:

        - O senhor terá que mostrar que não está drogado e nem hipnotizado. Terá que mostrar que está testemunhando por sua própria espontânea vontade. Vai mostrar a toda a conferência que o brilhante membro do Conselho, o rapazinho do próprio Conway, estava metido numa ação hostil ilegal enquanto a Terra estava piamente convidando para uma conferência e proclamando seu apego à paz. Isso poderia resolver o assunto de uma vez por todas.

        Lucky respirou profundamente e observou o sorriso frio no rosto de seu inimigo. Disse:

        - É isso que o senhor deseja? Um testemunho falso em troca da vida?

        - Não importa a sua maneira de definir o fato. Faça sua escolha.

        - Não preciso escolher. Jamais eu ia cometer um perjúrio num caso de tanta importância.

        Os olhos de Devoure se apertaram até ficarem reduzidos a fendas.

        - Acho que vai, sim. Nossos agentes estudaram de maneira exaustiva sua personalidade, Conselheiro, e conhecemos muito bem seus pontos fracos. É possível que o senhor prefira sua própria morte a colaborar conosco, mas o senhor tem uma fraqueza sentimental, peculiar de todos os Terrestres, frente aos subdesenvolvidos, aos deformados, aos monstrinhos. O senhor fará o que queremos - continuou o Siriano esticando seu braço gorducho e flácido e apontando para Bigman com o dedo - para evitar a morte daquela coisa.

 

ROBÔS E HOMENS DO SERVIÇO

        - Tenha calma, Bigman - murmurou Lucky.

      O Marciano baixinho se encolheu ainda mais em sua cadeira fitando Devoure com olhos que ardiam. Lucky disse:

      - Vamos parar com essas tentativas infantis de intimidação. Uma execução não é fácil num mundo cheio de robôs. Os robôs não podem nos matar, e francamente não acredito que o senhor ou então um de seus colegas estaria disposto a matar um homem a sangue frio.

        - Claro que não, se o senhor fala em matar em termos de decapitação, ou de destruição de um ser humano por meio de um desintegrador. Por outro lado, uma morte rápida não chega a aterrorizar ninguém. Mas vamos supor uma outra variante: nossos robôs poderiam preparar uma nave desprovida de comandos. O - hum - companheiro do senhor poderia ser algemado a um acessório qualquer pelos robôs, que naturalmente tomariam todos os cuidados para não machucá-lo. A nave poderia ter simplesmente um piloto automático que a levaria para uma órbita fora do Eclíptico e na direção oposta de seu Sol. Não existe uma probabilidade em um quadrilhão que a nave possa ser jamais encontrada. Ela continuará sua viagem pela eternidade.

        Bigman falou:

        - Lucky, não tem importância nenhuma o que ele vai fazer comigo. Não deixe que ele o force a aceitar qualquer termo.

        Devoure continuou tranqüilo:

        - O companheiro do senhor terá naturalmente bastante ar e haverá um tubo com água ao seu alcance. Mas estará só, e não terá alimentos. A morte por fome é uma morte lenta, e morrer de fome em solidão total é uma coisa realmente horrível.

        Lucky disse:

        - Seria uma maneira infame e ignominiosa de tratar um prisioneiro de guerra.

        - Não estamos em guerra. Vocês não passam de espiões. De qualquer maneira, não é necessário que isso aconteça, não é mesmo, Conselheiro? Basta que o senhor assine a confissão requerida, explicando que o senhor pretendia atacar-nos, e concorde em confirmar isso durante a conferência. Tenho certeza que o senhor se deixará emocionar pelas súplicas daquela coisa que o senhor honra com a sua amizade.

        - Súplicas! - Bigman, vermelho como um tomate, pulou de pé.

        Devoure levantou a voz:

        - Aquela coisa precisa ser trancafiada. Procedam!

        Dois robôs apareceram silenciosos ao lado de Bigman. Cada um segurou um de seus braços. Durante um instante Bigman se agitou, e seu corpo ficou suspenso no ar pela violência de seus movimentos, mas os robôs não largaram a presa. Um dos robôs disse:

        - Peço ao meu amo para não resistir, porque o meu amo poderia se machucar apesar de todos os nossos esforços.

        Devoure disse:

        - O senhor terá vinte e quatro horas para tomar suas decisões. Isso é um bocado de tempo, não é mesmo, Conselheiro? - Olhou para os dígitos iluminados que apareciam na pulseira metálica e decorativa em seu pulso esquerdo. - Entretanto, vamos preparar nossa nave sem comandos. Se ela resultar desnecessária, não faz mal, não é mesmo, Conselheiro? Afinal, o trabalho dos robôs não custa. Fique onde está: não adianta querer ajudar seu companheiro. Ninguém vai machucá-lo durante estas vinte e quatro horas.

        Bigman foi arrastado para fora pelos robôs enquanto Lucky, de pé, ficava a olhar sem poder fazer nada.

        Uma luzinha começou a piscar numa pequena caixa em cima da mesa. Devoure esticou o braço para apertá-lo, e um quadro luminoso materializou-se logo acima da caixa. Um rosto apareceu na tela. Uma voz disse:

        - Yonge e eu fomos avisados de que você detém o Conselheiro, Devoure. Por que fomos avisados somente após o pouso?

        - Que diferença faz, Zayon? Agora você já sabe. Vocês estão voltando?

        - Claro que sim. Queremos conhecer o Conselheiro.

        - Nesse caso cheguem até meu escritório.

        Ambos os Sirianos chegaram dentro de quinze minutos. Tinham a mesma altura de Devoure; a pele de ambos era cor de oliva (Lucky compreendeu que a radiação ultravioleta de Sírio era muito mais forte e produzia uma tonalidade mais escura de pele), mas eram mais idosos. Um deles tinha os cabelos aparados bastante grisalhos. Tinha os lábios finos e falava correta e rapidamente. Apresentou-se como sendo Harrig Zayon, e pelas suas roupas ficou logo evidente que era membro do Serviço Espacial Siriano.

        Seu companheiro era meio careca. Tinha uma comprida cicatriz no antebraço e o olhar agudo de quem tinha envelhecido no espaço. Seu nome era Barrett Yonge e também era membro do Serviço Espacial Siriano.

        Lucky disse:

        - Acredito que seu Serviço Espacial equivale mais ou menos ao nosso Conselho de Ciências.

        - De fato - concordou gravemente Zayon. - De uma certa forma somos colegas, apesar de estarmos em posições opostas.

        - Nesse caso, Conselheiro do Serviço Zayon, e Conselheiro do Serviço Yonge. O senhor Devoure também é...

        Devoure interrompeu:

        - Não sou membro do Serviço Espacial, mas isso não é necessário. Posso servir a Sírio também fora do Serviço.

        - Especialmente - disse Yonge cobrindo a cicatriz com a mão, como querendo escondê-la - sendo como é, sobrinho do diretor do Corpo Central.

        Devoure levantou-se:

        - Essa observação era sarcástica, Conselheiro do Serviço?

        - De jeito nenhum. Minhas palavras devem ser interpretadas ao pé da letra. Você pode ser útil a Sírio especialmente por causa de seu parentesco.

        A declaração foi feita num tom bastante seco, e Lucky não teve dificuldade em perceber a hostilidade que existia entre os dois Sirianos mais idosos e o jovem, e com certeza muito poderoso, parente do chefão Siriano.

        Zayon tentou se desviar do rumo que a conversa estava tomando e virando-se em direção de Lucky perguntou com calma:

        - Você já ouviu nossa proposta?

        - Você quer dizer se eu já ouvi a sugestão de contar uma porção de mentiras durante a conferência interestelar?

        Zayon teve uma expressão de contrariedade e ao mesmo tempo de surpresa. Disse:

        - O que eu quero dizer é se você já ouviu nossa proposta de se juntar a nós, de se tornar um Siriano.

        - Acredito que ainda não tínhamos chegado à essa fase da conversa, Conselheiro do Serviço.

        - Pois então ouça. Nosso Serviço sabe tudo a seu respeito e respeitamos suas capacidades e seus feitos. Suas qualidades seriam desperdiçadas a serviço da Confederação Terrestre, pois ela terá que fracassar qualquer dia por motivos biológicos.

        - Motivos biológicos? - Lucky franziu a testa. - Membro do Serviço Zayon, os Sirianos descendem de Terrestres.

        - Certo, mas eles não descendem de todos os Terrestres; seus ancestrais foram os melhores entre os Terrestres, os que tiveram o espírito de iniciativa e a força de se implantar nas estrelas e colonizá-las. Mantivemos nossa linhagem absolutamente pura; não permitimos qualquer mistura com espécimes fracos, ou de ascendência defeituosa. Eliminamos todos os ineptos de nosso meio, e agora somos uma raça pura de gente forte, capaz e saudável, enquanto a Terra continua uma aglomeração de gente doente e deformada.

        Devoure interrompeu:

        - Tivemos um destes espécimes aqui mesmo, faz pouco: o companheiro do Conselheiro. Fiquei furioso e enojado por ter que estar no mesmo quarto com aquela coisa. É um macaco, uma caricatura de homem, que só tem um metro e meio de altura, um nanico disforme...

        Lucky falou lentamente:

        - Ele é muito mais homem do que você, Siriano.

        Devoure levantou-se com os punhos erguidos e tremendo. Zayon aproximou-se rapidamente dele e colocou uma mão em seu ombro.

        - Devoure, sente-se por favor e deixe que eu continue. Este não é o momento apropriado para brigas que nada têm com o assunto. - Devoure afastou bruscamente a mão do outro, mas finalmente decidiu sentar-se mais uma vez. Zayon continuou com ar muito sério: - Conselheiro Starr, a Terra representa uma ameaça muito séria para os mundos externos; ela é uma bomba cheia de sub-humanos que está prestes a explodir, contaminando a pura Galáxia. Não queremos que isso aconteça: não podemos permitir que isso aconteça. Estamos lutando por isso, por uma raça humana limpa, composta de elementos capazes.

        Lucky disse:

        - Composta de elementos que vocês julgam capazes. Acontece que a capacidade pode assumir muitas formas e aparências. Os maiores homens da Terra foram altos e baixos, tiveram todas as espécies de forma de crânio, cor da pele e idiomas. Nossa salvação reside na variedade, e nela também reside a salvação da humanidade inteira.

        - Conselheiro, você está papagueando algo que lhe foi ensinado. Não está vendo que você é dos nossos? Você é alto, forte e tem o corpo de um Siriano. Por que está querendo se aliar com a corja da Terra contra normais iguais a você, só porque por um acaso você nasceu na Terra?

        Lucky disse:

        - Em resumo, Membro do Serviço você deseja que eu apareça na conferência interestelar em Vesta e que eu faça declarações que possam ajudar Sírio.

        - Sim, que possam ajudar Sírio, e de qualquer forma, declarações honestas. Você chegou aqui para espionar. Sua nave com certeza está levando armas.

        - Você está desperdiçando seu tempo. O senhor Devoure já discutiu esse assunto comigo.

        - E você concordou em se tornar o Siriano que você de fato já é? - perguntou Zayon entusiasmado pela perspectiva.

        Lucky lançou um olhar a Devoure que estava vistoriando seus próprios dedos com ar indiferente.

        Lucky disse então:

        - Não foi bem assim. De fato o senhor Devoure colocou a proposta em termos levemente diferentes. Acho que ele não lhe disse nada a respeito de minha chegada, porque queria ter tempo à disposição para falar comigo a sós, usando seus métodos muito peculiares. Em breve, ele simplesmente disse que eu teria que assistir à conferência em conformidade aos termos ditados pelos Sirianos, porque em caso contrário ele mandaria Bigman para o espaço numa nave sem controles, para que morresse de fome.

        Ambos os membros do Serviço Siriano se viraram lentamente para observar Devoure, que continuava muito interessado em seus próprios dedos.

        Yonge falou com Devoure diretamente, pronunciando as palavras com cuidado:

        - Senhor, isso não está na tradição do Serviço...

        Devoure explodiu num surto de fúria:

        - Eu não pertenço ao Serviço, e não ligo a mínima para suas tradições. Eu sou o encarregado dessa base, e qualquer matéria de segurança está dentro de minhas atribuições. Vocês dois foram escolhidos para me acompanhar à conferência de Vesta como delegados, para representar o Serviço, mas eu sou o chefe da delegação, e o sucesso da conferência é responsabilidade minha. Se este Terrestre não gosta da forma de morte que reservei àquele macaco do seu amigo, basta que ele consinta em fazer o que mandamos. Ele concordará muito mais rápidamente tendo este estímulo, do que pelas promessas de vocês de fazer dele um Siriano. E vou lhes dizer mais uma coisa. - Devoure levantou-se, caminhou energicamente até o outro lado do escritório, onde parou, lançando um olhar de desafio aos Membros do Serviço, que estavam ouvindo com rosto impassível pelo rígido autocontrole: - Estou cansado de ter vocês eternamente interferindo. O Serviço teve tempo bastante à disposição para agir contra a Terra, e o que fez? Muito pouco, na verdade. Quero que esse Terrestre ouça minhas palavras. Ele sabe que eu estou dizendo a verdade. Os resultados do Serviço são negligíveis, e fui eu quem apanhou este Starr em minha armadilha. Vocês, cavalheiros, estão precisando de um pouco mais de coragem, e eu pretendo mostrar...

        A este ponto um robô abriu a porta com violência e disse:

        - Meus amos, perdoem se entrei sem ter recebido ordens, mas as instruções que me foram dadas me impõem dizer-lhes o seguinte, a respeito do pequeno amo que foi levado para ficar preso...

        - Bigman! - gritou Lucky colocando-se de pé num salto. - O que foi que aconteceu com ele?

       

        Quando os dois robôs levaram Bigman para fora do escritório, ele começou a pensar furiosamente. Não estava examinando possíveis maneiras de fugir. Era suficientemente realista para compreender que não poderia atravessar sozinho um exército de robôs, ou escapar de uma base tão bem organizada como aquela, mesmo que tivesse à disposição a Shooting Starr - que ele não tinha.

        O assunto era muito mais grave.

        Lucky estava sendo induzido, quase que obrigado, a trair e ser desonrado, em troca da vida de Bigman. Lucky não devia ser submetido a isso. Lucky não devia ter que enfrentar o dilema de salvar a vida de Bigman e se tornar um traidor, e não era possível deixar que ele fosse obrigado a sacrificar Bigman, tendo que se sentir culpado pelo resto da vida.

        Havia somente uma maneira de evitar tudo isso. Bigman examinou friamente a situação. Se ele tivesse que morrer de uma maneira completamente alheia à vontade de Lucky, seu amigo não poderia se sentir culpado em seguida, nem em sua própria consciência. E Bigman estando morto, o Siriano não teria mais meios de obrigar Lucky a fazer uma coisa vergonhosa.

        Os robôs forçaram Bigman a se sentar num carrinho diagravítico que saiu logo e parou dois minutos mais tarde.

        Aqueles dois minutos foram suficientes para que a idéia se cristalizasse na mente de Bigman. Tinha passado anos felizes e cheios de aventura ao lado de Lucky. Fora uma vida breve, mas repleta de satisfações, e ambos tinham enfrentado a morte sem medo nenhum. Agora, sozinho, também se achava capaz de enfrentar a morte sem medo.

        Mas mesmo uma morte rápida não precisava ser tão rápida e impedi-lo de acertar as contas com Devoure. Homem nenhum jamais conseguira insultá-lo sem receber de volta o troco. Não poderia morrer agora sem ficar quites com Devoure. A lembrança daquele Siriano arrogante deixou Bigman tão furioso que naquele instante ele não poderia dizer se o motivo de seus atos era a amizade por Lucky ou o ódio por Devoure.

        Os robôs o suspenderam para tirá-lo do carro diagravítico e um deles passou uma das imensas manoplas metálicas pelo corpo de Bigman, com a maior delicadeza numa rotineira revista para ver se estava armado. Por um instante, Bigman se sentiu tomado pelo pânico e tentou inutilmente afastar o braço metálico:

        - Já fui revistado na nave, antes que me deixassem desembarcar - urrou; mas o robô terminou de revistá-lo sem dar-lhe a menor atenção.

        Os dois homens mecânicos o agarraram de novo para levá-lo para o interior de um prédio. Era agora ou nunca. Trancado numa cela, mantido preso entre campos de força, qualquer plano seria mais difícil de executar.

        Bigman chutou ambos os pés para frente, num esforço desesperado de fazer um salto mortal entre os robôs. Mas as manoplas metálicas que seguravam seus braços o impediram de completar a volta. Um dos robôs falou:

        - Meu amo, sinto profundamente que o senhor tenha se colocado numa posição que sem dúvida deve ser muito dolorosa. Se meu amo ficar imóvel e não interferir com nossa tarefa, vamos segurá-lo o mais levemente possível.

        Bigman porém tentou mais um chute e depois soltou um grito lancinante:

        - Meu braço!

        Os robôs se ajoelharam imediatamente, deitando Bigman sobre o gramado.

        - Nosso amo está sentindo alguma dor?

        - Seus caipiras estúpidos, vocês quebraram meu braço. Não me toquem! Chame uma criatura humana que saiba como cuidar de um braço fraturado, ou então chamem um robô que entenda dessas coisas - disse, terminando com um gemido e o rosto contorcido numa careta de dor.

        Os robôs deram alguns passos para trás continuando a fitá-lo. Eles não tinham sentimentos, obviamente, porque não podiam tê-los. Mas em seus crânios existia um cérebro positrônico cujos impulsos eram orientados pelos potenciais e contra-potenciais estipulados nas Três Leis Robóticas. Por estar cumprindo uma dessas Leis, a Segunda - de obedecer à ordem de levar uma criatura humana para um lugar específico - eles tinham infringido uma Lei mais importante: a Primeira, a que impunha aos robôs de jamais machucar ou prejudicar uma criatura humana.. O resultado desse choque provocara em seus cérebros uma situação muito parecida com um caos positrônico.

        Bigman gritou mais uma vez:

        - Procurem ajuda... areias de Marte... andem!

        Era uma ordem direta, em dependência da Primeira Lei. Uma criatura humana estava ferida. Os robôs viraram as costas e começaram a andar - e o braço direito de Bigman desceu até às botas que lhe chegavam ao alto da coxa. A mão se insinuou na bota. Levantou-se com um pulo, segurando uma pistola tubular na palma da mão.

        Ouvindo o movimento, os robôs se viraram, e suas vozes indistintas e roucas indicavam que seus cérebros positrônicos estavam com os controles enfraquecidos.

        - Então o amo... não sente mais dores? - O segundo robô começou a se aproximar.

        - Leve-me de volta à presença de seu amo Siriano - ordenou Bigman, autoritário.

        Era uma ordem, mas essa já não dependia da Primeira Lei. Afinal, a criatura humana parecia não estar mais ferida. Os robôs não ficaram surpresos e nem chocados. O robô que estava mais próximo falou com uma voz mais clara e mais firme:

        - O braço do amo não está mais quebrado, portanto precisamos cumprir nossa tarefa. Por favor, venha conosco.

        Bigman não parou para pensar. A pistola tubular emitiu um lampejo silencioso, e a cabeça do robô transformou-se numa massa de metal fundido. O resto da máquina caiu ao solo. O segundo robô disse:

        - Não vai adiantar nada se o amo procurar destruir-nos - e começou a andar em direção a Bigman.

        A Terceira Lei dizia respeito à defesa própria. Mas um robô não podia se recusar a executar uma ordem (Segunda Lei) somente em base à Terceira Lei. Estava por conseqüência obrigado a continuar andando apesar de estar sob a ameaça de uma pistola tubular. Mais robôs estavam convergindo naquela direção, sem dúvida alertados por algum chamado de rádio no instante em que Bigman fingira ter fraturado o braço.

        Todos eles iriam enfrentar tranqüilamente a pistola tubular, mas sempre sobraria um número suficiente para dominá-lo e levá-lo à sua cela. Aí então não mais poderia infligir-se a morte rápida que almejava, e Lucky continuaria enfrentando seu cruel dilema.

        Só restava uma maneira. Bigman apontou a pistola tubular contra sua própria cabeça.

 

BIGMAN CONTRA TODOS

        O grito de Bigman foi estridente:

        - Não dê mais nem um passo, porque vou apertar o gatilho. Então você terá me matado.

        Preparou-se para atirar. Se todos os rumos estavam fechados, essa seria sua saída.

        Os robôs pararam. Ninguém se mexeu mais. Os olhos de Bigman viraram vagarosamente para a direita e para a esquerda. Um robô estava caído sobre a grama, um monte de ferro inutilizado. Um outro estava de pé, com os braços esticados em direção a ele. Um terceiro robô estava a uma centena de metros, imobilizado enquanto dava um passo, com uma perna levantada.

        Bigman virou-se com cuidado. Um robô estava saindo de um prédio e parara na soleira da porta. Outros estavam rígidos a distâncias muito maiores. Todos davam a impressão de serem vítimas de um súbito congelamento, de uma paralisia instantânea.

        Percebeu que não estava muito surpreso. Afinal, era a Primeira Lei. Qualquer outra coisa passava para o segundo plano: ordens recebidas, a defesa própria, tudo em suma. Eles não podiam se mexer, porque o movimento significava um prejuízo para uma criatura humana. Bigman disse:

        - Todos os robôs, exceto este - e apontou para a máquina que estava mais próxima, para o companheiro do robô destruído - podem ir embora. Voltem às suas tarefas e se esqueçam de mim e de quanto aconteceu. Se não obedecerem, poderão provocar minha morte.

        Todos os robôs menos um sentiram-se compelidos a sair de lá. Bigman compreendeu que estava tratando-o duramente e ficou especulando se o potencial que estava impulsionando os positrons não seria intenso demais, ao ponto de prejudicar a esponja de platina-irídio que era a base do cérebro robótico.

        Como todos os Terrestres, desconfiava dos robôs e esperava que sua suposição fosse certa.

        Os robôs desapareceram um a um, e somente sobrou seu acompanhante. Bigman continuava comprimindo o cano da pistola tubular contra sua própria cabeça.

        Falou com o robô supérstite:

        - Leve-me de volta à presença de seu amo. - (Ficou tentado a usar um termo mais áspero, mas compreendeu que um robô jamais entenderia um insulto. Controlou-se a muita custa). - Vamos - disse -, e depressa. Não permita a nenhum amo e a nenhum robô interferir. Eu estou segurando essa pistola tubular, e se for preciso vou usá-la contra qualquer um de seus amos ou contra mim mesmo.

        O robô falou com a voz rouca (e uma vez Lucky explicara que o primeiro sinal de mau funcionamento positrônico se manifestava no timbre da voz):

        - Vou executar as ordens. Meu amo pode ficar tranqüilo. Não vou fazer nada que possa colocar o amo ou os outros amos em qualquer perigo.

        Virou-se e caminhou até o carro diagravítico. Bigman foi atrás. Estava preparado a enfrentar qualquer truque durante o percurso, mas nada aconteceu. Um robô era uma máquina que agia seguindo normas de funcionamento inflexíveis. Bigman precisava não se esquecer disso. Somente as criaturas humanas eram capazes de mentir e de enganar.

        Quando o carro parou em frente ao escritório de Devoure, Bigman disse:

        - Vou esperar no carro. Não vou sair daqui. Entre e diga ao seu amo Devoure que seu amo Bigman está livre, e está esperando-o aqui. - Bigman realmente procurou se controlar, mas acabou cedendo à tentação. Estava muito perto de Devoure e não poderia realmente resistir. Acrescentou: - Diga-lhe para arrastar aquela sua barriga balofa até aqui. Diga-lhe que pode lutar comigo com uma pistola ou simplesmente com os punhos, porque para mim tanto faz. E finalmente, diga a Devoure que se ele se sentir covarde demais para sair, eu vou entrar e mandá-lo daqui até Marte, dando-lhe chutes no traseiro.

        Sten Devoure, estupefato, continuava encarando o robô sem acreditar em suas palavras. Suas sobrancelhas estavam franzidas e debaixo delas os olhos soltavam lampejos.

        - Você está querendo dizer que ele está lá fora, e que está armado?

        Olhou para os dois membros do Serviço que também pareciam estarrecidos. (Lucky murmurou "Grande Galáxia". Bigman, o irrepressível Bigman, era capaz de pôr tudo a perder - inclusive sua própria vida).

        Zayon, o membro do Serviço, levantou-se com esforço:

        - O que é que há, Devoure? Você não está pensando que o robô está mentindo, não é mesmo? - Aproximou-se do telefone encaixado na parede e apertou o botão de emergência. - Se um Terrestre está em nossa base, armado e decidido, é melhor tomarmos providências.

        - Não compreendo como pode estar armado - disse Devoure que não conseguia se refazer da confusão. Deu um passo em direção da porta. Lucky fez menção de segui-lo, mas o Siriano virou-se com a rapidez de uma cobra: - Para trás, Starr.

        Falou com o robô:

        - Fique com esse Terrestre. Ele não pode sair do prédio por motivo nenhum.

        Desse momento em diante Devoure deu a impressão de ter tomado uma decisão. Saiu correndo, levando na mão um pesado desintegrador. Zayon e Yonge hesitaram durante um instante, olharam para Lucky e para o robô, e tomaram finalmente uma decisão: correram atrás de Devoure.

        Em frente ao escritório de Devoure se estendia um gramado vasto, iluminado por aquela luz artificial que reproduzia o ambiente azulado de Sírio. Bigman estava sozinho, no centro do gramado, enquanto cinco robôs estavam parados a uma centena de metros. Outros estavam se aproximando de várias direções.

        - Venham apanhar essa coisa - rugiu Devoure fazendo um gesto na direção de Bigman, para indicá-lo aos robôs que estavam mais próximos.

        - Eles ficarão onde se encontram - Bigman rugiu por sua vez. - Se eles derem um passo para frente, vou queimar seu coração em seu peito, e eles sabem que vou fazê-lo. De qualquer forma, eles não podem se arriscar. - Ficou parado, em atitude de displicente zombaria.

        Devoure corou e ergueu seu desintegrador. Bigman disse:

        - Procure não se machucar com aquele desintegrador, ouviu? Você está segurando-o muito perto do corpo.

        A mão esquerda de Bigman estava sustentando seu cotovelo direito. Enquanto falava, a mão direita se fechou levemente, e do cano da pistola tubular, que estava emergindo entre seu dedo indicador e o médio, um jato de deutério saiu pulsando, dirigido por um campo magnético instantâneo. Para ajustar corretamente a posição do polegar e apertá-lo era necessário ter uma habilidade extrema, mas Bigman era qualificado. Ninguém, no Sistema inteiro, era mais capacitado do que ele.

        A ponta do desintegrador de Devoure reduziu-se a uma minúscula centelha brilhante. Devoure deu um grito de surpresa e deixou cair a arma.

        Bigman falou:

        - Não sei quem são vocês dois ali, mas se fizerem o menor gesto para apanhar um desintegrador, vocês nunca conseguirão completar o movimento.

        Todos se imobilizaram. Finalmente Yonge perguntou com muito cuidado:

        - Como é possível que você esteja armado?

        - Qualquer robô - explicou Bigman - não pode ser mais esperto do que o careta que lhe dá as ordens. Os robôs que me revistaram na nave e aqui receberam as ordens de alguma pessoa que ignorava que os Marcianos não usam as botas simplesmente para proteger as pernas e os pés.

        - Como foi que você conseguiu se livrar dos robôs?

        Bigman explicou friamente:

        - Tive que destruir um deles.

        - Você destruiu um robô? - Os três Sirianos pareciam paralisados pelo horror.

        Bigman sentia que a tensão estava aumentando. Não estava preocupado com os robôs parados por todos os lados, mas a qualquer instante um outro Siriano humano poderia aparecer, e alvejá-lo nas costas com um desintegrador, mantendo-se a uma boa distância.

        Sentiu certo formigamento entre as espáduas enquanto esperava por um tiro. Paciência, só duraria uma fração de um instante. Não chegaria a sentir coisa nenhuma. De qualquer forma, os Sirianos já não teriam a possibilidade de fazer chantagens com Lucky e, morto ou não morto, Bigman ia sair ganhando.

        Só queria uma pequena confrontação com Devoure, com aquele Siriano flácido que ficara sentado do outro lado da mesa, dizendo coisas que homem nenhum no universo todo poderia ter dito sem morrer. Bigman disse:

        - Poderia matar todos vocês. Vamos fazer um trato?

        - Você não vai atirar em nós – disse Yonge tranqüilo. - Se você o fizer, isso só poderá significar que um Terrestre começou as hostilidades num planeta Siriano. Poderia ser o início de uma guerra.

        - E se você nos atacar - rugiu Devoure - os robôs se mexerão. Terão que defender três criaturas humanas, e não mais uma só. Jogue fora sua pistola tubular e entregue-se.

        - Está bem. Mande embora os robôs e vou me entregar.

        - Os robôs cuidarão de você - falou Devoure. Esboçou uma virada displicente para o lado dos outros Sirianos. - Minha pele está toda arrepiada por ser obrigado a falar com esse humanóide disforme.

        A pistola tubular de Bigman brilhou imediatamente, e a diminuta bola de fogo explodiu a três palmos dos olhos de Devoure.

        - Diga mais alguma coisa desse mesmo teor, e então realmente vou cegá-lo. Se os robôs fizerem um movimento, vocês todos serão atingidos antes dos robôs me alcançarem. É possível que isso provoque uma guerra, mas nenhum de vocês três estará aqui para vê-la. Mandem os robôs embora e vou me entregar a Devoure, se ele for capaz de me apanhar. Vou jogar minha pistola tubular a um de vocês dois, e vou me entregar.

        Zayon falou secamente:

        - Devoure, a proposta me parece razoável.

        Devoure ainda estava esfregando seus olhos:

        - Nesse caso, tome a arma dele. Vá lá e tome-lhe a arma.

        - Um minuto - disse Bigman -, fique parado. Quero sua palavra de honra que ninguém vai atirar em mim, e que vocês não me entregarão aos robôs. Devoure terá que me vencer.

        - Você quer que eu dê minha palavra de honra a você? - explodiu Devoure.

        - A mim, certo. Mas não quero sua palavra. Quero a palavra de qualquer um dos outros dois. Eles estão usando a farda do Serviço Espacial Siriano, e a palavra deles, para mim, vale. Se eu entregar minha pistola tubular, vocês ficarão parados, e você, Devoure, virá me buscar só com suas mãos?

        - Minha palavra está empenhada - disse Zayon.

        - A minha também - acrescentou Yonge.

        Devoure perguntou:

        - O que é isso? Eu não tenho a intenção de tocar naquela criatura.

        - Como é, está assustado? - perguntou Bigman arrastando as palavras. - Talvez eu sou grande demais para você, Devoure? Você me insultou e me xingou. Não está com vontade de mexer os músculos em vez daquela sua boca covarde, hein? Aqui está minha pistola, cavalheiros.

        Jogou a pistola em direção a Zayon que esticou o braço apanhando-a no ar.

        Bigman ficou esperando. Seria pela morte?

        Zayon porém guardou a pistola no bolso.

        Devoure gritou:

        - Robôs!

      Zayon berrou ainda mais alto:

        - Podem ir embora, robôs!

        Virando-se para Devoure, Zayon falou:

        - Empenhamos nossa palavra. Você agora terá que ir buscá-lo pessoalmente.

        - Ou você prefere que eu vá buscá-lo? - estrilou Bigman, em tom de chacota.

        Devoure rosnou e começou a caminhar rapidamente em direção a Bigman. O Marciano baixinho esperou, meio encolhido, deu um passo para o lado para escapar ao braço que se estendia para agarrá-lo e de repente deu um bote violento. Seu punho cerrado colidiu com o rosto do outro, com o barulho de um porrete batendo num repolho. Devoure cambaleou para trás, tropeçou e caiu sentado. Ficou olhando para Bigman, estupefato. O lado direito de seu rosto estava muito avermelhado e um filete de sangue começou a escorrer lentamente do canto de sua boca. Devoure colocou os dedos no canto da boca, retirou-os e esbugalhou os olhos quando viu o sangue, com uma expressão de susto quase grotesca.

        Yonge disse:

        - O Terrestre é mais alto do que parece.

        Bigman respondeu:

        - Não sou um Terrestre, sou um Marciano... Ponha-se de pé, Devoure. Ou será que você é mole demais? Será que você não é capaz de fazer uma coisa qualquer sem ter o auxílio de um robô? Será que eles limpam a sua boquinha quando você acaba de comer?

        Devoure emitiu um grito rouco e se levantou, mas sem se aproximar de Bigman. Começou a rondá-lo, respirando ruidosamente e observando-o com os olhos injetados de sangue.

        Bigman começou a girar, sem perder de vista aquele corpo ofegante, amolecido pelo excesso de comida e a falta de exercício: os braços e as pernas se movimentavam sem graça e sem agilidade. Bigman chegou à conclusão de que o Siriano nunca antes tinha lutado usando seus punhos. Bigman se aproximou mais uma vez, agarrou o braço do outro com um movimento súbito e seguro e o torceu. Devoure uivou, tropeçou e caiu de bruços. Bigman deu um passo para trás. Perguntou:

        - O que é que há? Eu não sou um homem, eu sou uma coisa, está lembrado? O que é que está lhe acontecendo?

        Devoure observou os dois Sirianos com ódio mortal. Colocou-se de joelhos e passou a mão sobre o lado que tinha batido contra o chão.

        Os dois Sirianos não esboçaram o menor movimento para ajudá-lo. Continuaram a observar impassíveis enquanto Bigman voltava a castigá-lo mais e mais.

        Finalmente Zayon deu um passo para frente.

        - Marciano, se você continuar, poderá machucá-lo seriamente. Fizemos um trato: Devoure deveria vencer você somente com as mãos, e acredito que você já conseguiu o que queria quando fez o trato. Agora chega. Agora entregue-se a mim tranqüilamente, ou então terei de usar a pistola tubular.

        Devoure porém, respirando ruidosamente e com dificuldade, arfou:

        - Vá embora. Vá-se embora, Zayon. É tarde demais para isso. Afaste-se, eu já disse.

        Com um esforço enorme, berrou:

        - Robôs! Venham cá!

        Zayon disse:

        - Ele vai se entregar a mim.

        - Não - disse Devoure. - Seu rosto inchado se contraía pela dor física e pela fúria. - Nenhuma rendição. É tarde demais para isso... Você, robô, você aí perto... não me interessa seu número de série... isso mesmo, você. Apanhe-a... apanhe essa coisa. - Sua voz foi aumentando até se tornar um urro, enquanto apontava para Bigman: - Destrua essa coisa! Quebre-a! Quebre cada pedaço dela!

        Yonge gritou:

        - Devoure! Você está ficando louco? Um robô não pode fazer isso!

        O robô ficou parado, imóvel.

        Devoure falou:

        - Ele não poderia prejudicar uma criatura humana. Robô, não é isso que eu estou mandando. Aquela coisa não é uma criatura humana.

        O robô voltou-se para Bigman.

        Bigman berrou:

        - Ele não vai acreditar. Para você, eu posso não ser humano, mas o robô sabe que eu sou.

        Devoure disse:

        - Robô, olhe para a coisa. Ela fala, e tem uma forma humana, mas você também tem uma forma humana, apesar de não ser um homem. Eu vou provar que isso não é um homem. Você alguma vez já viu um homem desse tamanho? Aqui está a prova. É um animal... um animal que está me ameaçando. Você deve destruí-lo.

        - Vá correndo se esconder atrás de mamãe robô - gritou Bigman, sarcástico.

        Mas o robô tomou um primeiro passo em direção a Bigman.

        Yonge avançou e se colocou entre Bigman e o robô:

        - Não posso admitir uma coisa dessas, Devoure. Um robô não pode fazer isso. A tensão do potencial envolvido poderia arruiná-lo.

        Devoure respondeu num sussurro rouco:

        - Sou seu superior. Se você fizer um gesto para me impedir, vou demiti-lo do Serviço amanhã mesmo.

        O hábito de obedecer foi mais forte. Yonge se retirou, mas seu rosto expressava claramente seu horror e seu profundo desgosto. O robô começou a se movimentar mais rapidamente e Bigman prudentemente deu um passo para trás.

        - Eu sou uma criatura humana - disse.

        - Ele não é humano - esganiçou Devoure, completamente desvairado. - Não é humano. Quebre-o aos pedaços. Devagar.

        Bigman estremeceu e sentiu a boca seca. Nunca poderia ter imaginado isso. Uma morte rápida sim, mas isso...

        Não havia mais espaço para recuar, e agora também estava desprovido de sua pistola tubular, e da saída rápida que ela poderia lhe garantir. Havia mais robôs chegando de todos os lados, e todos estavam ouvindo a explicação de que ele não era humano.

 

RENDIÇÃO

        No rosto machucado e inchado de Devoure havia um leve sorriso. O movimento dos lábios devia ser doloroso, porque um lábio estava rachado e ele continuava a limpá-lo distraidamente com um lenço, mas seus olhos seguiam os movimentos do robô que estava avançando para Bigman, e nada mais parecia interessá-lo.

        O Marciano baixinho só tinha mais dois metros disponíveis para recuar e Devoure não fez nenhum gesto para apressar a aproximação do robô ou para encorajar os que estavam mais afastados.

        Yonge disse:

        - Devoure, em nome de Sírio, homem! Não há necessidade de fazer isso!

        - Chega de comentários, Yonge - respondeu Devoure, tenso. - Aquele humanóide destruiu um robô e possivelmente prejudicou outros. Vamos ter que examinar a fundo todos os robôs que estiveram presentes e podem ter sido afetados pela violência usada por ele. Ele merece morrer.

        Zayon esticou a mão em direção a Yonge, em advertência, mas o outro afastou-a bruscamente. Yonge falou:

        - Morte? Pois está certo. Nesse caso mande-o para Sírio, onde será processado e executado como mandam nossas leis. Ou então constitua um júri aqui na base, e então mande que seja executado de uma forma decente. Mas isso não é nenhuma execução. Só porque ele conseguiu surrá-lo...

        Devoure berrou num surto de louca raiva:

        - Chega! Você já passou da medida. Considere-se preso. Zayon, apanhe o desintegrador dele e jogue-o para mim.

        Virou-se por um instante, desgostoso por ter que tirar os olhos do espetáculo proporcionado por Bigman:

        - Ande, Zayon, proceda ou, por todos os demônios do espaço, vou acabar com você também.

        Zayon, sem dizer nada e com uma expressão amargurada, esticou a mão para Yonge. Yonge hesitou, com os dedos crispados sobre a coronha do desintegrador, num gesto de despeito. Zayon sussurrou:

        - Não, Yonge, não. Procure não lhe dar uma justificativa. Ele acabará relaxando a prisão tão logo passe este momento de loucura. Ele não poderá deixar de fazê-lo.

        Devoure gritou:

        - Quero aquele desintegrador.

        Yonge arrancou-o do coldre com a mão trêmula, oferecendo-o a Zayon pelo lado da coronha. Zayon jogou a arma aos pés de Devoure que a levantou do chão.

        Bigman, silencioso, estava esperando angustiado uma possibilidade mínima de sair daquela situação. Vendo que não havia mais nenhuma, gritou:

        - Não me toque, eu sou um dos seus amos - enquanto a manopla monstruosa do robô se fechava, agarrando-lhe o pulso.

        O robô teve um instante de hesitação, mas logo apertou a presa. Sua outra mão se fechou sobre o cotovelo de Bigman. Devoure começou a gargalhar como um louco.

        Yonge virou as costas e disse com a voz embargada:

        - Pelo menos, ninguém pode me obrigar a assistir um crime covarde. - Por isso ele não conseguiu ver o que realmente aconteceu.

       

        Quando os três Sirianos saíram do escritório, Lucky esforçou-se para se manter calmo. Sabia que não poderia dominar o robô usando unicamente a força física. Com certeza, em algum lugar do prédio havia armas que poderiam ser usadas para destruir o robô: achando-as, poderia sair e até matar os três Sirianos.

        Mas não poderia mais sair de Titã, porque seria impossível dominar a totalidade da base.

        Seria pior ainda se tivesse que morrer durante os acontecimentos - e sem dúvida seria morto durante o combate - porque não poderia alcançar a verdadeira finalidade da missão. Este era um risco que ele não podia correr.

        Falou com o robô:

        - O que foi que aconteceu com o amo Bigman? Resuma rapidamente os pontos essenciais.

        O robô obedeceu e Lucky ouviu, atento e tenso. Percebeu que o robô de vez em quando pronunciava as palavras de maneira esquisita, arrastando os sons com a voz enrouquecida, enquanto descrevia o duplo estratagema usado por Bigman, forçando os robôs a lhe obedecer e fingindo querer prejudicar criaturas humanas.

        Lucky sentiu-se angustiado. Um robô estava destruído. Bigman teria que enfrentar o rigor máximo das leis Sirianas. Lucky estava suficientemente a par da cultura Siriana, e conhecia bem a consideração que eles tinham pelos seus robôs para saber que em caso de roboticídio eles não iriam considerar qualquer circunstância atenuante.

        O que poderia então fazer para salvar o impulsivo Bigman?

        Lucky lembrou-se da fraca tentativa feita para deixar Bigman em Mimas. Não tinha previsto nada do que estava acontecendo, mas tinha receado o temperamento de Bigman que, agora, estava complicando a situação delicada em que se encontravam. Devia ter insistido mais energicamente para Bigman ficar com Wess, mas o que adiantava pensar nisso agora? Ao mesmo tempo lembrou-se de quanto ele mesmo precisava da companhia de Bigman.

        Precisava salvá-lo. Precisava encontrar um meio qualquer para salvá-lo.

        Dirigiu-se rapidamente para a porta, mas o robô plantou-se solidamente em sua frente. Disse:

        - Pelas in... inch... ichtruções rechebidas, o amo não pode sair do prédio por motivo nenhum.

        - Não estou saindo do prédio - respondeu Lucky, seco. - Estou simplesmente próximo à porta. Você não tem instruções para impedir isso.

        O robô ficou um instante em silêncio e finalmente disse:

        - Pelas inch... truçhões rechebidas, meu amo não pode chair por qua... qualquer chir-cunch...tânchia.

        Lucky fez um esforço desesperado para empurrá-lo para um lado, mas o robô agarrou-o, empurrando-o para trás.

        Lucky começou a mordiscar os lábios, nervoso. Refletiu que um robô em perfeito estado teria interpretado suas instruções de uma forma mais liberal. Esse robô, porém, estava danificado. Estava funcionando em base ao mínimo essencial da compreensão robótica.

        Precisava ver Bigman a qualquer custa. Virou-se para a mesa de conferências. Em seu centro havia um reprodutor de imagens tridimensional. Lembrava-se que Devoure tinha-o usado quando do chamado dos dois Membros do Serviço.

        - Você, robô! - chamou Lucky. O robô se aproximou da mesa. Lucky disse:

        - Como funciona o reprodutor de imagens?

        O robô estava se movimentando vagarosamente. Sua fala estava piorando. Disse:

        - Och controles echtão naquela reentrânchia.

        - Que reentrância?

        O robô indicou-a, afastando o painel com movimentos desajeitados.

        - Echtá feito, amo.

        - Deixe-me ver. - A área externa apareceu dentro de uma pequena imagem acima da mesa. As figuras dos homens eram minúsculas. O robô tinha-se afastado da mesa, ficando imóvel de um lado.

        Lucky resolveu não chamá-lo de volta. Não havia som nenhum, mas enquanto tentava os controles para conseguir o som, sua atenção ficou presa na imagem da luta. Devoure estava lutando com Bigman. Com Bigman!

        Com que meios aquele danado tampinha tinha conseguido convencer os dois membros do Serviço a permitir a luta e assisti-la impassíveis? Como era de se esperar, Bigman estava reduzindo seu adversário em frangalhos, mas Lucky não conseguiu se alegrar com isso.

        A luta só poderia resultar na morte de Bigman, e Lucky sabia que Bigman estava a par disso, e não estava se importando. O Marciano enfrentaria a morte tranqüilo, arriscaria qualquer coisa para se vingar de um insulto... Mas um dos dois membros do Serviço estava apartando os dois.

        Foi naquele instante que Lucky achou o botão que controlava o som. As palavras começaram a sair da caixa do reprodutor de imagens: os gritos histéricos de Devoure, chamando pelos robôs, e seus berros enquanto instruía os robôs para quebrarem Bigman em pedaços.

        Por uma fração de segundo Lucky duvidou ter ouvido direito, mas logo bateu ambos os punhos sobre a mesa e virou-se, olhando ao redor cheio de desespero.

        Ele precisava sair de lá, mas como?

        Estava sozinho com um robô defeituoso, em cujo cérebro positrônico os percursos danificados somente conseguiam repetir uma instrução básica: Lucky tinha que ficar no prédio a qualquer custa.

        Pela grande Galáxia, que outro conceito poderia ser super-imposto, e ser tão importante que chegaria a ter a precedência? Não tinha sequer uma arma, para ameaçar o robô ou então fingir que queria se suicidar.

        Seus olhos caíram sobre o telefone de parede. Lembrou-se que Zayon tinha usado o fone, falando em emergência no momento em que ouvira as notícias a respeito de Bigman. Lucky falou:

        - Robô! Depressa. O que foi que aconteceu aqui?

        O robô se aproximou, observou os botões que reluziam vermelhos e disse com lentidão exasperante:

        - Pareche que echiste uma ordem para todos os robôeh. Preparar-che para pochichões de combate.

        - Qual é a maneira de indicar que os robôs devem tomar já suas posições de combate? Sobrepujando qualquer outra ordem?

        O robô ficou a observá-lo e Lucky, tomado pelo desespero, agarrou-se no braço do robô, sacudindo-o:

        - Fale. Vamos, fale logo!

        Seria possível que aquela coisa estava realmente entendendo? Ou então os percursos prejudicados em seu cérebro positrônico continuavam a impedi-lo a dar informações, seguindo uma ordem anterior?

        - Vamos, fale. Ou então, faça-o você mesmo. Ande.

        Sem falar, o robô aproximou um de seus dedos ao aparelho, com um movimento trêmulo e hesitante, e apertou dois botões. Em seguida, ergueu o dedo dos botões e ficou na mesma posição, a dois centímetros do aparelho.

        - É só isso? Você fez tudo o que devia? - perguntou Lucky, angustiado.

        O robô não respondeu. Virou-lhe as costas e a passos irregulares (com um perna que se arrastava visivelmente) aproximou-se da porta e saiu.

        Lucky seguiu-o aos pulos. Saiu do prédio e atravessou correndo os cem metros que o separavam de Bigman e dos três Sirianos.

        Yonge, horrorizado, tinha virado as costas para não assistir ao que ele imaginava seria uma destruição sangrenta e brutal de uma criatura humana, mas não ouviu o grito de agonia que estava esperando. Ouviu somente um exclamação sufocada de Zayon e um agudo grito de protesto de Devoure.

        Virou-se mais uma vez. O robô que tinha agarrado Bigman já não o estava segurando. Estava afastando-se, correndo pesadamente. Todos os robôs presentes estavam se afastando da mesma maneira.

        Inexplicavelmente, o Terrestre Lucky Starr agora estava ao lado de Bigman.

        Lucky estava encurvando-se acima de Bigman e o pequeno Marciano estava esfregando vigorosamente o braço enquanto sacudia a cabeça. Yonge ouviu o que ele dizia:

        - Só mais um minuto, Lucky; um minuto a mais e eu...

        Devoure estava gritando com a voz rouca e sem nenhum efeito sobre os robôs. De repente os alto-falantes entraram em ação, enchendo o ar de palavras:

        COMANDANTE DEVOURE, INSTRUÇÕES POR FAVOR, NOSSOS INSTRUMENTOS INDICAM QUE NÃO HÁ SINAL DE INIMIGOS. EXPLIQUE ORDEM DE TOMADA DE POSIÇÕES DE COMBATE. COMANDANTE DEVOURE...

        - Posições de combate! - murmurou Devoure, estupefato. - Agora vejo porque os robôs... - Percebeu a presença de Lucky: - Foi você quem arrumou isso.

        Lucky balançou a cabeça:

        - Sim, senhor.

        Devoure apertou os lábios inchados e disse, rouco:

        - Nosso esperto Conselheiro, cheio de truques! Conseguiu mesmo salvar a vida de seu mico, por enquanto. - Apontou o desintegrador para o estômago de Lucky: - Entre no meu escritório. Vamos todos. Você também, Zayon. Todos, eu disse.

        O reprodutor de imagens acima da mesa estava emitindo vários sons. Era claro que os comandados de Devoure, vendo que não podiam comunicar-se com ele no escritório, tinham ligado os alto-falantes. Devoure aumentou o som, mas desligou a imagem. Berrou:

        - Cancele a ordem das posições de combate. Foi um engano.

        O homem do outro lado disse alguma coisa e Devoure respondeu áspero:

        - A imagem está funcionando perfeitamente. Não há nada de errado. Vamos, mexa-se. Voltem todos às ocupações de rotina. - De qualquer forma, talvez num gesto inconsciente, sua mão ficou levantada entre seu rosto e o reprodutor de imagens, como se estivesse receando que o outro conseguisse vê-lo de qualquer jeito, e perceber em que estado estava. E talvez começasse a ficar curioso...

        Yonge observou a cena dilatando as narinas. Em seguida começou a massagear lentamente a cicatriz que aparecia em seu antebraço.

        Devoure sentou-se.

        - Todos vocês podem ficar em pé - disse, lançando um olhar cheio de ódio para todos. - Esse Marciano vai morrer. Talvez não morrerá despedaçado por um robô, ou viajando sem fim numa nave sem controles. Vou pensar numa solução diferente. Se você pensa que conseguiu salvá-lo, Terrestre, está enganado. Vou pensar numa solução ainda mais divertida. Tenho uma imaginação deveras brilhante.

        Lucky disse:

        - Exijo que seja tratado como um prisioneiro de guerra.

        Devoure respondeu:

        - Não estamos em guerra. Ele não passa de um espião. Merece a morte. Ele também é um roboticida. Por conseqüência, merece a morte duas vezes. - A voz de Devoure tremeu: - Ele usou suas mãos contra mim. Merece uma dúzia de mortes.

        - Vou comprar a vida do meu amigo - murmurou Lucky.

        - A vida dele não está à venda.

        - Posso pagar um preço bastante alto.

        - Como? - Devoure teve um sorriso feroz: - Testemunhando na conferência, da forma que lhe foi pedido? É tarde demais para isso. E não basta.

        - Eu não ia testemunhar em qualquer caso - respondeu Lucky. - Não pretendo mentir em prejuízo da Terra, mas existe uma verdade que eu poderia lhe contar. É uma verdade que o senhor desconhece.

        Bigman disse, autoritário:

        - Não fique barganhando com ele, Lucky.

        - O macaco está certo, - disse Devoure. - Nada de barganhas. Não existe nada que você possa me dizer e que compraria a vida dele. Eu não abriria mão do macaco nem pela Terra inteira.

        Yonge intrometeu-se, irritado:

        - Pois eu aceitaria por muito menos. Ouça o que o Conselheiro tem a dizer. As vidas de ambos podem valer a informação que ele tem para dar.

        Devoure retrucou:

        - Não fique me provocando. Você está preso.

        Yonge porém ergueu uma cadeira e deixou-a cair com um estrondo.

        - Experimente me prender. Sou um membro do Serviço. Você não pode mandar me executar sem mais nem menos. Você jamais ousará fazer isso, apesar de todas as minhas provocações. Você terá que me processar. E quando eu enfrentar um tribunal, vou poder contar muitas coisas.

        - Por exemplo? - perguntou Devoure, com desprezo.

        O Siriano idoso, membro do Serviço, mostrou de repente todo o asco que sentia pelo jovem aristocrata.

        - Por exemplo, o que aconteceu hoje: como um Terrestre de um metro e meio reduziu você em frangalhos, até que você começou a gritar e Zayon teve que intervir para salvar sua vida. Zayon é uma testemunha. Qualquer homem dessa base se lembrará de que você ficou se escondendo durante muitos dias, para que ninguém visse seu rosto - ou você quer me dizer que terá coragem de se mostrar em público antes que essas marcas desapareçam?

        - Cale a boca!

        - Posso ficar calado. Não preciso dizer nada - se você parar de subordinar os interesses de Sírio aos seus ressentimentos pessoais. Ouça o que o Conselheiro quer dizer. - Virando-se para Lucky, acrescentou: - Eu garanto que este acordo será correto.

        Bigman levantou a voz:

        - Acordo correto, hein? Você e Zayon podem acordar qualquer dia desses e descobrir que morreram por um acidente, e Devoure ficará abaladíssimo, e mandará uma porção de flores, e assim não sobrará mais ninguém para contar que ele precisa se esconder atrás de seus robôs quando um Marciano decide bater naquela pele suja dele. E aí ele poderá fazer de nós o que bem entender. Para que fazer acordos?

        - Nada disso poderá acontecer - disse Yonge, categórico, - porque vou contar toda a história a um robô uma hora antes de sair daqui. Devoure não poderá saber qual é o robô e não terá meios para descobri-lo. Se qualquer coisa acontecer comigo e com Zayon, que não possa ser atribuído a causas naturais, toda a história será transmitida pelo sistema subetérico público. Se nada acontecer, o robô ficará quieto. Acho que Devoure vai se preocupar bastante para que nada nos aconteça.

        Zayon sacudiu a cabeça:

        - Yonge, não gosto disso.

        - Você não tem escolha, Zayon. Você assistiu à surra que ele levou. Você realmente acredita que ele não cuidaria para que você desaparecesse, se não tomarmos todas as precauções? Vamos, venha: estou cansado de ver a honra do Serviço pisoteada pelo sobrinho do Diretor.

        Zayon estava abatido. Perguntou:

        - Que informação era essa, Conselheiro Starr?

        Lucky falou em voz baixa:

        - É muito mais do que uma simples informação. É a nossa rendição total. Temos mais um Conselheiro em território que vocês dizem ser Siriano. Concorde em tratar meu amigo como um prisioneiro de guerra, e proteja sua vida esquecendo o roboticídio: então vou levá-los para onde o outro Conselheiro está.

 

PRELÚDIO A VESTA

        Bigman que estava esperando que Lucky usasse qualquer estratagema, ficou horrorizado. Soltou um gemido que bem mostrava seu desespero e gritou:

        - Não, Lucky, você não pode fazer isso! Não quero que você salve minha vida a este preço.

        Devoure estava boquiaberto.

        - Como assim? Onde? Nenhuma nave poderia ter entrado despercebida atrás de nossa defesa. Você está mentindo.

        - Vou levar o senhor até onde ele está - respondeu Lucky desanimado. - Quer dizer, se podemos entrar em acordo.

        - Pelo espaço - grunhiu Yonge. - O trato está feito.

        - Espere um instante - interrompeu Devoure, furioso. - Reconheço que essa informação poderia ser bastante útil, mas quero saber se Starr está dizendo também que admitirá abertamente durante a conferência em Vesta que esse outro Conselheiro invadiu nosso território e que Starr voluntariamente traiu seu esconderijo?

        - Sim, é verdade - disse Lucky. - Vou admitir tudo isso.

        - Palavra de honra de Conselheiro? - perguntou Devoure com um sorriso de escárnio.

        - Já disse que vou admiti-lo.

        - Pois bem - falou Devoure -, considerando que os membros de nosso Serviço querem que assim aconteça, vou conceder-lhes suas vidas em troca da informação. - Seus olhos de repente brilharam pela fúria. - Está em Mimas. Não é mesmo, Conselheiro? Mimas?

        - Certo.

        - Por Sírio! - Devoure levantou-se pela agitação. - Como foi que não percebemos o truque? Nossos membros do Serviço também não tiveram a menor intuição.

        Zayon perguntou lentamente:

        - Mimas?

        - O Serviço parece que ainda não está entendendo - sentenciou Devoure com um olhar maldoso. - É óbvio: a Shooting Starr tinha três homens a bordo. Três entraram em Mimas; dois saíram de lá e um ficou. Se não me engano, Yonge, foi você que afirmou repetidamente que Starr sempre entrava em ação junto com seu companheiro e que, de fato, eles constituíam um time de dois.

        - Sempre foi assim - disse Yonge.

        - E você não tinha flexibilidade suficiente para imaginar que existia uma possibilidade de ele mudar sua tática? Então, teremos que ir para Mimas. - Devoure parecia ter esquecido sua loucura e seu desejo de vingança, frente a essa nova revelação. Sua atitude estava mais uma vez lembrando a fria ironia usada com os Terrestres durante o primeiro encontro. - Será que teremos o prazer de tê-lo em nossa companhia, Conselheiro?

        - Perfeitamente, senhor Devoure - disse Lucky.

        Bigman se afastou, virando o rosto. Refletiu que estava se sentindo muito pior agora, do que naquele último instante em que o robô, agarrando seu braço com suas manoplas metálicas, começava a aplicar a pressão que deveria quebrá-lo.

        A Shooting Starr estava mais uma vez atravessando o espaço, mas sua navegação não era independente. Estava presa por fortes cabos magnéticos e se movimentava devido ao impulso dos motores da nave Siriana que a estava rebocando.

        A viagem entre Titã e Mimas durou quase dois dias, e para Lucky foi um período muito difícil, muito duro.

        Sentia falta de Bigman que fora obrigado a embarcar na nave Siriana. (A idéia era de Devoure que achava que, ficando ambos em naves separadas, seriam reféns e assim garantiriam o bom comportamento recíproco).

        Harrig Zayon, o membro do Serviço Siriano, era o segundo tripulante a bordo da Shooting Starr. Estava mantendo uma atitude altiva. Não fez esforço nenhum para repetir sua tentativa de converter Lucky à filosofia Siriana, e Lucky não resistiu à tentação de provocá-lo sobre o mesmo assunto. Perguntou se Devoure, na opinião de Zayon, podia ser considerado um exemplo de criatura humana superior, modelo da raça que povoava o Sistema Siriano.

        Zayon respondeu com certa relutância:

        - Devoure não se beneficiou do treinamento e da disciplina do Serviço. É um homem muito emotivo.

        - Tive a impressão de que seu colega Yonge tem uma opinião diferente. Ele não faz segredo da péssima opinião que ele tem de Devoure.

        - Yonge é... ele representa uma ala extremista entre os membros do Serviço. A cicatriz que ele tem no braço é a lembrança de lutas internas por ocasião da tomada de poder do atual Diretor do Corpo Central.

        - Quer dizer, o tio de Devoure?

        - Sim. O Serviço estava apoiando o Diretor anterior, e Yonge estava cumprindo seu dever, com a honradez peculiar de um membro do Serviço. Como era de se esperar, no atual regime ele foi esquecido quando chegou a época das promoções. Claro, foi mandado para cá, e foi nomeado delegado da comissão que representará Sírio durante a conferência em Vesta, mas na realidade ele está sob as ordens de Devoure.

        - O sobrinho do Diretor.

        - Certo. Yonge está ressentido. Yonge não consegue compreender que o Serviço é um organismo do Estado, que não pode criticar a atuação do Estado, e que também não pode interferir com os indivíduos ou os grupos que estão no poder. A não ser por isso, ele é um membro excelente do Serviço.

        - Mas você não respondeu à minha pergunta. Eu queria saber se você julga que Devoure é um representante satisfatório da elite Siriana.

        Zayon retorquiu irritado:

        - E que tal, vocês lá na Terra? Não me diga que vocês nunca tiveram governantes repreensíveis? Ou até malvados?

        - Já tivemos bastante - admitiu Lucky. - Mas na Terra o povo é muito misturado. Somos muito diferentes. Nenhum governante pode se manter no poder por muito tempo se ele não encontra um compromisso entre todas as nossas aspirações. Governantes que se valem de soluções de compromisso podem ser considerados pouco dinâmicos, mas eles nunca se tornarão tiranos. Em Sírio vocês conseguiram chegar a um ponto em que todos vocês se parecem, e dentro desse espírito um governante pode realmente chegar ao extremismo. É por isso que entre vocês a autocracia e a política de força não representam uma exceção, como acontece na Terra, mas são praticamente uma regra aceita.

        Zayon suspirou e ficou em silêncio. Passaram-se várias horas antes que voltasse a falar com Lucky. Mimas já estava aparecendo distintamente no visor, e as naves estavam desacelerando para poder pousar. Zayon disse:

        - Conselheiro, responda. Quero uma resposta franca. Você está planejando alguma armadilha?

        Lucky sentiu uma contração no estômago mas perguntou muito calmo:

        - Uma armadilha em que sentido?

        - Realmente há um Conselheiro aqui em Mimas?

        - Claro que sim. O que é que você está pensando? Você acredita que ocultei em Mimas alguma concentração de forças que poderia mandar todos nós para os ares?

        - Eu estava pensando em algo parecido.

        - Qual seria a vantagem? A destruição de uma nave Siriana e uma dúzia de tripulantes?

        - Você poderia manter sua honra.

        Lucky encolheu os ombros:

        - Fizemos um trato. Realmente deixamos um Conselheiro aqui. Vou buscá-lo e vou trazê-lo sem nenhuma resistência.

        Zayon assentiu.

        - Muito bem. Acho que você realmente não poderia tornar-se um Siriano. É melhor que você continue sendo um Terrestre.

        Lucky teve um sorriso amargo. Agora já compreendia os motivos do evidente mau humor de Zayon. Os rígidos conceitos de honra do membro do Serviço Siriano só podiam levá-lo a desaprovar o comportamento de Lucky, mesmo sabendo que a vantagem seria toda de Sírio.

       

        Na Terra, o Chefe dos Conselheiros, Hector Conway, estava no Porto Central da Cidade Internacional, esperando pelo embarque para Vesta. Estava sem notícias diretas de Lucky desde o instante em que a Shooting Starr tinha se refugiado na sombra de Hidalgo.

        A cápsula trazida pelo Comandante Bernold continha informações específicas suficientes, apesar de resumidas, e todas elas caracterizadas pelo frio bom senso de Lucky. Definitivamente, a única saída possível era uma conferência. O Presidente concordara logo, apesar da opinião contrária de alguns membros de seu Gabinete.

        Como Lucky previa, Sírio apressara-se em aceitar o convite. Uma conferência parecia exatamente o que o Governo Siriano desejava - especialmente uma conferência que eles acreditavam seria um fracasso e que seria seguida por uma guerra nos termos por eles desejados. Pelas aparências, eles estavam com todos os trunfos.

        Era sobretudo por este motivo que era necessário manter segredo a respeito da maioria dos detalhes. Se todos os fatos fossem divulgados e chegassem a público pelas comunicações subetéricas, sem que houvesse anteriormente preparativos cuidadosos, a opinião pública indignada conseguiria levantar tamanha celeuma que o Governo da Terra não teria outra escolha do que entrar em guerra contra toda a Galáxia. A notícia de uma conferência só poderia piorar a situação, porque ela poderia ser interpretada como um gesto de covardia frente aos Sirianos.

        De qualquer forma, era impossível manter um segredo total e a imprensa estava reagindo de forma rude porque não estava gostando de receber relatórios vagos diluídos a respeito das atividades governamentais. A situação estava piorando dia a dia. O Presidente teria que resistir na mesma posição a qualquer custo até o início da conferência. E se a conferência redundasse num fracasso, a situação atual poderia ser considerada um verdadeiro paraíso, comparada àquela que se seguiria.

        A indignação geral provocada por um eventual fracasso não somente significaria a guerra imediata, mas também o descrédito e conseqüente desaparecimento do Conselho de Ciência, e a Federação Terrestre perderia dessa maneira sua arma mais poderosa no momento em que mais estaria precisando dela.

        Já fazia muitas semanas que Hector Conway não conseguia dormir sem tomar soporíficos, e pela primeira vez em sua carreira começou a pensar seriamente na possibilidade de se aposentar.

        Levantou-se com certo esforço e começou a caminhar em direção da nave que estava sendo preparada para o lançamento. Dali a uma semana estaria em Vesta, para as discussões preliminares com Doremo. O velho estadista de olhos rosados representava o ponto de equilíbrio entre os poderes. Ninguém podia duvidar disso. Sua força residia justamente na fraqueza do pequeno mundo que ele representava. Era, sem dúvida, o mais honesto e o mais desinteressado mundo neutro dentro da Galáxia, e até os Sirianos aceitariam suas opiniões.

        Se Conway conseguisse convencê-lo...

        Não percebeu o homem que estava se aproximando até que quase colidiram.

        - Sim? O que é isso? - perguntou Conway irritado.

        O homem tocou a aba do chapéu com um dedo.

        - Sou Jan Dieppe, da Trans-subetérica, Chefe. O senhor poderia responder a algumas perguntas?

        - Não, não vou responder a nada. Estou embarcando.

        - Eu sei, senhor. É por isso que quis falar com o senhor. Não vou ter mais outra oportunidade. Sem dúvida o senhor está embarcando rumo a Vesta.

        - Sem dúvida.

        - Por causa daquele escândalo em Saturno.

        - Como?

        - Quais os resultados que o senhor pretende obter durante a conferência, Chefe? O senhor acha que Sírio poderá se conformar com resoluções e votações?

        - Acredito que sim.

        - O senhor acredita que os votos serão contra Sírio?

        - Tenho certeza que sim. Quer me deixar passar agora?

        - Sinto muito senhor, mas existe um assunto muito importante que deve ser levado ao conhecimento dos povos da Terra.

        - Por favor, não me conte o que o senhor acha que o povo da Terra deve saber. Posso lhe assegurar que o bem-estar do povo da Terra é minha principal preocupação.

        - E é por isso que o Conselho de Ciências quer permitir que governos estrangeiros decidam por votação se o território da Federação Terrestre foi invadido ou não? Afinal, essa questão não precisaria ser decidida exclusivamente por nós?

        Conway percebeu que as palavras do outro ocultavam uma ameaça apesar da polidez da pergunta. Olhou por cima do ombro do repórter e viu que o Secretário de Estado estava falando a um grupo de jornalistas bem perto da nave espacial. Perguntou:

        - O que é que você pretende dizer?

        - O público está duvidando da boa fé do Conselho, Chefe. Aliás, a Trans-subetérica interceptou uma transmissão Siriana que ainda não chegou a público e que se relaciona com a situação. Queríamos que o senhor comentasse a notícia.

        - Sem comentário. Uma transmissão Siriana dirigida aos povos do Sistema deles não merece comentário.

        - Essa notícia realmente é muito interessante. O senhor poderia revelar onde se encontra o Conselheiro David Starr, o lendário Lucky? Onde é que ele está?

        - Como?

        - Por favor, Chefe. Eu sei que os agentes do Conselho não gostam de publicidade, mas queremos saber se o Conselheiro Starr foi enviado para Saturno em missão secreta.

        - Meu rapaz, se as coisas estivessem assim, você não poderia esperar que eu as confirmasse, não é mesmo?

        - Acho que poderia, sim, senhor; especialmente se Sírio estivesse falando abertamente no assunto. Eles estão dizendo que Lucky Starr invadiu o Sistema Saturniano e que em seguida foi capturado. Isso é verdade?

        Conway respondeu rispidamente:

        - Não conheço o lugar em que se encontra atualmente o Conselheiro David Starr.

        - Isso poderia significar que ele se encontra no Sistema Saturniano?

        - Isso significa simplesmente que não sei onde ele está.

        O repórter torceu o nariz.

        - Está bem. Se o senhor acha que é melhor que o público tenha a impressão de que o Chefe do Conselho nega conhecer o lugar em que se encontra um de seus mais importantes agentes, para mim tanto faz. Quero só lembrar ao senhor que a opinião pública está ficando dia a dia mais hostil ao Conselho. Está sendo muito comentada a ineficiência do Conselho que permitiu a invasão de Saturno pelos Sirianos, além das tentativas que estão sendo feitas para passar o assunto sob silêncio, para salvar a carreira política dos Conselheiros.

        - O senhor está me insultando. Passar bem.

        - Os Sirianos afirmam de maneira categoria que Lucky Starr foi capturado no Sistema Saturniano. O senhor não pretende comentar?

        - Não. Deixe-me passar.

        - Os Sirianos afirmam que Lucky Starr estará na conferência.

        - É mesmo? - Por um instante Conway não conseguiu ocultar seu interesse.

        - Parece que o senhor está finalmente interessado, Chefe. Infelizmente, os Sirianos também afirmam que ele vai fazer declarações a favor deles.

        Conway disse com uma certa dificuldade:

        - Vamos ver se isso corresponde à verdade.

        - O senhor está admitindo que Lucky Starr estará presente à conferência?

        - Não sei nada a respeito.

        O repórter deu um passo para o lado.

        - Está bem, Chefe. Acontece que os Sirianos dizem que Starr já lhes deu informações muito importantes, e que eles, os Sirianos, poderão demonstrar que foram agredidos por nós baseados nas informações de Starr. Então eu pergunto: o que é que o Conselho está fazendo? Esta lutando por nós ou contra nós?

        Conway, acuado e agitadíssimo, murmurou:

        - Sem comentário. - Tentou dar um passo para frente.

        O repórter gritou:

        - Starr é seu filho adotivo, não é mesmo, Chefe?

        Conway parou e observou o repórter por um instante. Em seguida continuou apressadamente em direção à nave.

        O que poderia dizer? O que havia a dizer, a não ser que estava para enfrentar uma conferência inter-estelar cuja importância superava de longe qualquer conferência do passado? Ainda mais, a balança pendia fortemente para o lado de Sírio. Existiam probabilidades muito fortes, ao ponto de serem quase intoleráveis, de que a paz, o Conselho de Ciências e a Federação Terrestre desapareceriam ao mesmo tempo com o desfecho da conferência,

        Tudo dependeria da eficácia dos esforços de Lucky Starr.

        Mais do que qualquer outra coisa, até mais do que pela perspectiva de uma guerra perdida, Conway ficava deprimido ao pensar que possivelmente as notícias transmitidas pelos Sirianos podiam corresponder à verdade. Se então a conferência terminasse em fracasso apesar das intenções originais de Lucky, ele passaria à história como o maior traidor da Terra. E, só poucas pessoas saberiam que isso não era a verdade.

 

VESTA

        O Secretário de Estado Lamont Finney era um político de carreira, com quinze anos de serviço ativo no Legislativo, e cujas relações com o Conselho nunca estiveram excessivamente cordiais. Era um homem já idoso, meio doentio, com uma tendência a ser lamuriento. Oficialmente, era ele o chefe da delegação terrestre em Vesta. Na realidade, porém, Hector Conway sabia perfeitamente que sendo o Chefe do Conselho, devia estar pronto a assumir a total responsabilidade de um fracasso - caso houvesse um fracasso.

        Antes mesmo que a nave espacial, uma das maiores da Terra, saísse da plataforma de lançamento, Finney colocou as cartas na mesa. Disse:

        - A imprensa está quase que incontrolável. Sua situação é muito grave, Conway.

        - A Terra inteira está numa situação muito séria.

        - Estou falando a seu respeito, Conway.

        Conway comentou soturno:

        - Não pense que eu esteja me iludindo. Se as coisas se saírem mal, sei perfeitamente que o Conselho não poderá contar com o apoio do Governo.

        - É isso mesmo. Não poderá. - O Secretário de Estado começou a apertar cuidadosamente os cintos que garantiriam sua incolumidade na hora do lançamento, e verificou se o frasquinho das pílulas contra o enjôo espacial estava à mão. - Se o Governo apoiasse você, isso só redundaria na dissolução do próprio Governo, e em caso de guerra teremos muitas outras preocupações mais importantes. Não podemos nos dar ao luxo de provocar uma instabilidade política.

        Conway pensou: ele não acredita num possível sucesso da conferência. Ele está convencido de que haverá uma guerra.

        Disse:

        - Escute, Finney, se as coisas realmente chegarem a ficar pretas, vou precisar de alguém ao meu lado para me ajudar, para evitar que a reputação do Conselheiro Starr seja...

        Finney levantou sua cabeça grisalha da almofada hidráulica e observou Conway com seus olhos turvos e fracos.

        - Isso é impossível. O seu Conselheiro foi para Saturno por sua própria iniciativa, sem ter pedido licença e sem ter recebido ordens. Isso significa que estava pronto a aceitar os riscos. Se as coisas ficarem pretas, ele estará acabado. O que mais você acha que é possível fazer?

        - Você sabe que ele...

        - Eu não sei de nada - retrucou o político com violência. - Oficialmente, eu não sei de nada. Você tem uma longa carreira pública e deve estar cansado de saber que em certas circunstâncias o povo precisa de um bode expiatório, e insiste para ter um. Starr vai ser nosso bode expiatório.

        Voltou a apoiar a cabeça na almofada e fechou os olhos. Conway também se recostou ao seu lado. Em toda a nave o pessoal estava esperando pela saída. O trovejar dos jatos foi aumentando até o extremo enquanto a nave começava a se erguer vagarosamente acima da plataforma de lançamento, subindo para o céu.

       

        A Shooting Starr estava a mil milhas acima de Vesta, girando em volta dela atraída pela sua fraca gravidade, e mantendo seus motores parados. Um pequeno disco salva-vidas que pertencia à nave Siriana estava amarrado a ela com cabos magnéticos.

        Zayon já não se encontrava a bordo. Estava em Vesta, junto à delegação Siriana, e seu lugar era ocupado por um robô. No disco salva-vidas estavam Bigman e Yonge. Lucky ficou surpreso quando viu o rosto de Yonge no receptor. Disse:

        - O que é que você está fazendo no espaço? Bigman está com você?

        - Sim, está comigo. Fui encarregado de vigiá-lo. Aposto que você pensou que o guarda dele seria um robô.

        - De fato. O que é que há, eles não querem mais deixar Bigman perto de um robô, por causa da outra vez?

        - Não. Devoure simplesmente achou que essa era a melhor maneira de me impedir de tomar parte na conferência. Praticamente, é a maneira dele se vingar do Serviço.

        Lucky disse:

        - Mas Zayon foi para lá. Ele é do Serviço.

        - Zayon - chiou Yonge. - Ele é um ótimo sujeito, mas é do tipo maria-vai-com-as-outras. Ele não consegue entender que o Serviço significa algo mais do que obedecer cegamente às ordens que chegam de cima. Afinal temos responsabilidade com Sírio, e precisamos zelar para que o Sistema Siriano seja governado de acordo com os inflexíveis princípios de honra que inspiram o próprio Serviço.

        Lucky perguntou:

        - Como vai Bigman?

        - Ele está bem, mas parece preocupado. Estou achando bastante esquisito que uma criatura com uma aparência tão fora do comum tenha princípios mais rígidos de honra e do dever, do que você.

        Lucky apertou os lábios. Tinha somente pouco tempo à disposição, e ficava preocupado toda vez que um dos membros do Serviço começava a especular a respeito de sua falta de honradez. Afinal, a qualquer hora eles poderiam também começar a imaginar que Lucky poderia ser mais honrado do que aparentava ser, e neste caso, poderiam começar a especular quais fossem realmente as intenções dele, e depois...

        Yonge encolheu os ombros:

        - Só chamei porque queria ter certeza de que tudo estava bem. Sou responsável por você também, até que você seja chamado a descer, um pouco antes do início da conferência.

        - Espere um minuto, Yonge. Você me prestou um serviço quando ainda estávamos em Titã...

        - Eu não fiz nada por você. Simplesmente agi conforme era meu dever agir.

        - Tanto faz. Você salvou a vida de Bigman e, possivelmente, a minha também. Estou pensando que quando a conferência acabar, é possível que a sua própria vida esteja em perigo.

        - A minha vida?

        Lucky disse, escolhendo as palavras com muito cuidado:

        - Quando eu tiver terminado de depor, é possível que Devoure decida, por um motivo qualquer, se livrar de você apesar do risco de que os Sirianos fiquem sabendo a respeito da luta que ele teve com Bigman.

        Yonge teve um riso amargo.

        - Ninguém conseguiu vê-lo durante a viagem até aqui. Ele ficou o tempo todo em sua cabine, esperando que as marcas desaparecessem do rosto dele. Acho que não preciso me preocupar.

        - De qualquer maneira, quero que você saiba de uma coisa. Se você achar que está em perigo, fale com Hector Conway, Chefe do Conselho de Ciências. Posso lhe assegurar que ele lhe dará asilo político.

        - Suponho que você está falando com a melhor das intenções - disse Yonge -, mas acredito que quando a conferência terminar, será Hector Conway que precisará procurar asilo político. - Yonge desligou.

        Lucky continuou observando a superfície brilhante de Vesta enquanto meditava a respeito das palavras de Yonge. Chegou tristemente à conclusão de que talvez Yonge poderia estar certo.

        Vesta era um dos maiores asteróides. Não chegava a ter o tamanho de Ceres, cujo diâmetro era de mais de quinhentas milhas, mas suas duzentas e quinze milhas a colocavam na segunda classe, junto a Pallas e Juno.

        Vista da Terra, Vesta era o mais brilhante entre os asteróides porque, por um acaso, sua crosta externa era na maior parte composta de carbonato de cálcio, ao contrário da crosta externa dos outros asteróides que resultava de silicatos e óxidos metálicos mais escuros.

        Os cientistas continuavam estudando sua estranha composição química (que ninguém poderia imaginar, até que uma expedição acabou desembarcando em Vesta; antes disso os antigos astrônomos acreditavam que Vesta estava coberta por uma camada de gelo ou de dióxido de carbono gelado), mas ninguém tinha conseguido chegar a uma qualquer conclusão. Os repórteres começaram a falar em Vesta chamando-a de "um mundo de mármore".

        O "mundo de mármore" foi transformado numa base naval no começo das operações contra os piratas espaciais do cinturão de asteróides. As cavernas naturais debaixo da superfície foram ampliadas e munidas de ingressos com câmaras pressurizadas, e o espaço obtido foi suficiente para guardar ali uma frota inteira, com mantimentos para dois anos.

        Agora a base naval já se tornara mais ou menos obsoleta, mas com apenas pequenas modificações, as cavernas foram transformadas num ambiente perfeitamente confortável para uma reunião de delegados de toda a Galáxia.

        Havia agora amplas reservas de água e alimentos e, além disso, um grande número de artigos de luxo que as tripulações navais não tinham conhecido. Vindo da superfície marmórea e entrando para o interior da caverna, Vesta parecia em tudo um grande hotel de luxo terrestre.

        A delegação Terrestre, que tinha mandado os convites (afinal Vesta era parte do sistema Terrestre e nem os Sirianos poderiam discutir a esse respeito) estava distribuindo os alojamentos e se preocupando com o conforto dos delegados. Isso significava entre outras coisas que os diferentes alojamentos precisavam ser ajustados à gravidade e condições atmosféricas às quais os delegados estavam normalmente acostumados. Os delegados de Warren, por exemplo, tinham o condicionamento de ar regulado para uma temperatura bastante baixa, que lembrava o clima gelado do planeta deles.

        Não foi por acaso que a delegação de Elam recebeu cuidados muito especiais. Elam era um mundo pequeno que gravitava em volta de uma estrela vermelha anã. As condições ambientais pareciam sugerir que nenhuma criatura humana poderia se acostumar com elas. Mas foram exatamente aquelas deficiências que estimularam a imaginação e a capacidade de invenção da espécie humana.

        Não existia luz suficiente para que as plantas de tipo terrestre pudessem crescer de maneira satisfatória. Foram então usadas luzes artificiais e cultivaram-se tipos especiais, até que os cereais Elamitas e produtos agrícolas em geral chegaram a ser não somente iguais, mas definitivamente superiores a qualquer outro tipo cultivado na Galáxia inteira. A prosperidade Elamita dependia de suas exportações de produtos agrícolas numa escala tão vasta que nenhum outro mundo mais favorecido pela natureza seria capaz de superá-la.

        A pouca luz irradiada pelo Sol de Elam era possivelmente responsável pela escassa pigmentação das peles de seus habitantes. Todos eram extremamente claros.

        O chefe da delegação Elamita, por exemplo, era quase um albino. Chamava-se Agás Doremo e fazia mais de trinta anos que era reconhecido como o líder máximo das forças neutralistas da Galáxia. Em todas as questões que surgiam entre a Terra e Sírio (que naturalmente representava as forças extremistas antiterrestres) ele era chamado para arbitrar e conseguia sempre manter o justo equilíbrio.

        Conway estava confiando na habilidade de Doremo também neste caso. Entrou nos alojamentos do Elamita com uma expressão amistosa. Tomou o maior cuidado para evitar parecer excessivamente expansivo e trocou um cordial aperto de mãos. Piscou repetidamente por causa da luz baixa e avermelhada e aceitou um copo de bebida Elamita.

        Doremo observou:

        - Seus cabelos ficaram brancos desde a última vez que o vi, Conway. Tão brancos quanto os meus.

        - Faz muitos anos desde que nos vimos pela última vez, Doremo.

        - Então seus cabelos não ficaram brancos nestes últimos meses?

        Conway sorriu, mas com uma certa tristeza:

        - Acredito que teriam ficado brancos, se ainda estivessem escuros.

        Doremo balançou a cabeça e tomou um gole. Disse:

        - A Terra permitiu que a colocassem numa situação extremamente desagradável.

        - É mesmo. Apesar disso, pelas regras da lógica, a Terra é que está com a razão.

        - Sim? - Doremo perguntou, diplomático.

        - Não sei até que ponto você examinou a situação...

        - O bastante.

        - E não sei até que ponto você está disposto a discutir o assunto previamente...

        - Por que não? Os Sirianos já vieram falar comigo.

        - Não diga. Já falaram?

        - Parei em Titã durante a viagem. - Doremo balançou a cabeça. - Eles realmente construíram uma base maravilhosa, e consegui constatá-lo pessoalmente, tão logo me deram um par de óculos escuros - aquela luz azulada de Sírio é realmente horrível, e estraga qualquer paisagem. Mas temos que reconhecer uma coisa, Conway: tudo o que eles fazem é sempre muito vistoso.

        - Você já decidiu se eles têm ou não o direito de colonizar Saturno?

        Doremo disse:

        - Meu caro Conway, eu só decidi que quero a paz. Uma guerra não pode trazer vantagens para ninguém. A situação, porém, é a seguinte: Os Sirianos já se encontram no Sistema Saturniano. De que forma poderia forçá-los a sair, sem uma guerra?

        - Existe uma maneira - disse Conway. - Se os outros mundos externos deixassem bem claro que eles consideram Sírio um invasor, Sírio não poderia se arriscar em provocar a inimizade de toda a Galáxia.

        - Aí que está. Como é que vamos fazer para convencer os mundos externos a votar contra Sírio? - perguntou Doremo. - A maioria deles tem uma desconfiança que poderíamos chamar de tradicional frente à Terra - você deve perdoar minha franqueza - e todos dirão que afinal o Sistema Saturniano estava desabitado.

        - Você deve estar lembrado que desde que a Terra concedeu a independência aos mundos externos, com base na doutrina Hegeliana, ficou estabelecido que nenhuma unidade menor do que um sistema estelar poderá ser considerado elegível para a independência. Um sistema planetário desabitado não tem nenhuma importância, a menos que o sistema estelar, do qual é parte integrante, também seja desabitado.

        - Concordo. Admito que sempre presumimos que assim fosse. Acontece que nossas suposições nunca tiveram que passar por um teste. Agora chegamos ao ponto.

        - Você acha que seria sábio renegar o que sempre presumimos? - perguntou Conway em voz baixa - e de aceitar um novo princípio que poderia permitir a qualquer estranho entrar num sistema e colonizar os planetas e planetóides despovoados que por acaso encontrar?

        - Não - respondeu Doremo com energia. - Eu não acredito que isso seria sábio. Acredito que seria muito mais interessante para todos nós continuar considerando os sistemas estelares indivisíveis, mas...

        - Mas?

        - Durante esta conferência sem dúvida serão suscitadas paixões que poderão dificultar um enfoque lógico do assunto por parte dos delegados. Se você me permitir um conselho...

        - Pode falar. Esta não é uma conversa oficial.

        - Acho que você não poderá contar com apoio nenhum durante a conferência. Deixe que Sírio fique em Saturno por enquanto. A qualquer hora os Sirianos começarão a exagerar, e então você poderá reunir uma outra conferência, e terá maiores probabilidades de sucesso.

        Conway sacudiu a cabeça.

        - Isso é impossível. Se nossa delegação fracassar, as conseqüências poderão ser imprevisíveis do nosso lado. Na Terra as paixões já estão em plena turbulência.

        Doremo encolheu os ombros.

        - Paixões por todos os lados. Estou muito pessimista em relação ao problema.

        Conway disse, tentando convencê-lo:

        - Afinal, se você mesmo está acreditando que Sírio não deveria estar em Saturno, será que não poderia tentar convencer os outros? Você tem muita influência em toda a Galáxia. Não estou pedindo que você faça nada de especial, simplesmente continue acreditando em suas próprias convicções. Isso poderia significar a diferença entre a paz e a guerra.

        Doremo afastou seu corpo e enxugou os lábios com um guardanapo:

        - Eu gostaria muito de poder fazer isso, Conway, mas para lhe dizer a verdade, durante essa conferência não vou nem tentar. Sírio está com tantos trunfos que poderia até ser perigoso para Elam fazer qualquer declaração contra eles. Somos um mundo muito pequeno... Afinal, Conway, se você reuniu esta conferência para chegar a uma solução pacífica, por que ao mesmo tempo você mandou belonaves espaciais para o sistema Saturniano?

        - Foi isso que os Sirianos lhe disseram?

        - Sim. Eles me mostraram também algumas provas. Vi uma nave terrestre capturada que estava voando para Vesta, presa por cabos magnéticos a uma nave Siriana. Disseram-me que Lucky Starr, que é conhecido até por nós, em Elam, estava a bordo da nave terrestre. Soube que Starr está em órbita, girando em volta de Vesta, esperando ser chamado para testemunhar.

        Conway assentiu.

        Doremo continuou:

        - Se Starr admitir uma ação de guerra contra os Sirianos - e evidentemente é isso que ele vai fazer, porque de outra forma os Sirianos dificilmente deixariam que ele falasse, então não poderá haver dúvidas sobre o resultado da conferência. Não haverá mais possibilidade de argumentação. Acredito que Starr é seu filho adotivo.

        - Sim, de uma certa forma - confirmou Conway.

        - Pois assim as coisas ficam ainda piores. Se você disser que ele agiu sem autorização da Terra, como acredito que você terá que dizer...

        - É verdade que aconteceu assim mesmo - disse Conway - mas ainda não posso revelar o que vamos dizer a respeito.

        - Se você disser que ele agiu ilegalmente, ninguém vai acreditar. Afinal, trata-se de seu próprio filho, não é mesmo? Os delegados dos mundos externos começarão a grita de "perfídia terrestre", e acreditarão numa suposta hipocrisia da Terra. Sírio aproveitará da situação, e eu não vou poder fazer absolutamente nada. Não vou conseguir nem votar a favor da Terra... Acho que a Terra, por uma vez, devia ceder.

        Conway sacudiu a cabeça:

        - A Terra não pode ceder.

        - Nesse caso - disse Doremo com infinita tristeza - teremos uma guerra, Conway. Todos nós, contra a Terra.

 

A CONFERÊNCIA

        Conway esvaziara seu copo. Levantou-se e apertou a mão do outro, despedindo-se com uma expressão de leve melancolia. Falou, como se estivesse se lembrando de algo no último momento:

        - Tem mais uma coisa: ainda não ouvimos o que Lucky vai dizer. Se o efeito do testemunho dele não for tão ruim como você receia, se aliás fosse absolutamente inócuo, você não acha que poderia fazer um esforço em prol da paz?

        Doremo encolheu os ombros:

        - Você está se agarrando a ilusões. Sim, claro, se acontecer o imprevisível e a conferência não ficar tumultuada pelas palavras de seu filho adotivo, vou fazer todo o possível. Como já lhe disse, pessoalmente estou ao seu lado.

        - Muitíssimo obrigado. - Voltaram a apertar as mãos.

        Quando o Conselheiro Chefe Conway saiu, Doremo ficou olhando para a porta, sacudindo a cabeça com ar triste. Conway, porém, quando chegou a fechar a porta, parou um instante para respirar fundo. As coisas estavam exatamente como tinha previsto. Agora só precisava esperar até que os Sirianos apresentassem Lucky.

       

        Como era de se esperar, a conferência começou num ambiente um pouco rígido e cerimonioso. Todos exageravam pela correção, e quando a delegação da Terra entrou para tomar seus lugares bem na frente, e à extrema direita do salão, todos os outros delegados que já estavam sentados, inclusive os Sirianos à extrema esquerda, se levantaram e ficaram de pé.

        Quando o Secretário de Estado, que representava a nação que tinha feito o convite, se levantou para fazer seu discurso de boas-vindas, mencionou em termos vagos a paz, como uma porta aberta à maior expansão da humanidade por toda a Galáxia. Relembrou os ancestrais comuns e a irmandade de todos os homens, para os quais a guerra seria uma catástrofe. Evitou com o maior cuidado qualquer alusão aos assuntos específicos em pauta, não mencionou os Sirianos pelo nome, e sobretudo não proferiu nenhuma ameaça.

        Recebeu as palmas de cortesia. Em seguida os delegados votaram a eleger Agás Doremo presidente (ele era o único homem presente que poderia ser persona grata para os dois lados), e a conferência começou.

        As sessões não estavam abertas ao público, mas havia frisas para os jornalistas dos diferentes mundos presentes. A imprensa não tinha o direito de entrevistar os delegados, mas podia assistir às sessões e enviar seus relatos sem necessidade de censura.

        Como era costume nas reuniões interestelares, o idioma usado na conferência foi o Interlíngua, ou seja o idioma composto que servia em toda a Galáxia.

        Doremo fez um breve discurso louvando as vantagens das soluções de compromisso, e pedindo a todos em geral para esquecer qualquer teimosia para não arriscar uma guerra, quando uma pequena concessão poderia assegurar a paz. Em seguida, cedeu a palavra mais uma vez ao Secretário de Estado.

        Na sua segunda alocução, o Secretário apresentou seu lado da questão, com muita habilidade e energia.

        A atitude hostil dos outros delegados não podia, porém, passar despercebida. Pairava no ar como uma neblina.

        Conway estava sentado ao lado do Secretário enquanto este falava, e manteve o queixo baixo. Em condições normais, poderia ser um erro grave para a Terra apresentar sua argumentação mais importante logo no começo. Era como disparar imediatamente a melhor munição antes mesmo que fosse conhecida a verdadeira natureza do alvo. Poderia dar a Sírio uma oportunidade de responder de maneira contundente e definitiva. Mas considerando a ocasião, era isso mesmo que Conway estava querendo.

        Apanhou um lenço no bolso para enxugar a testa e logo guardou-o mais uma vez, esperando que ninguém tivesse reparado em seu gesto. Não queria dar a impressão de estar preocupado.

        Sírio preferiu adiar a resposta e, possivelmente porque tratava-se de uma manobra previamente arranjada, representantes de três mundos externos, notoriamente influenciados por Sírio, pediram a palavra e falaram brevemente. Todos evitaram enfrentar diretamente o problema, limitando-se a comentar energicamente as intenções agressivas da Terra e suas ambições de reinstalar um governo galático, sob o seu comando. Dessa forma, prepararam o ambiente para a entrada em cena dos Sirianos, e quando o último terminou de falar, houve um intervalo para o almoço.

        Finalmente, seis horas após o início da conferência, Sten Devoure, de Sírio, recebeu a palavra e levantou-se vagarosamente. Avançou para a tribuna com passos tranqüilos e ficou olhando para os delegados com uma expressão altiva e confiante em seu rosto amorenado. (Não havia mais sinal nenhum de sua infeliz luta com Bigman).

        Um burburinho surgiu entre os delegados, que durou alguns minutos e Devoure não deu sinal de querer começar a falar enquanto não voltasse o silêncio.

        Conway tinha certeza de que todos os delegados sabiam que em breve Lucky Starr seria chamado para depor. Estavam todos esperando com grande excitação para ver a Terra definitivamente humilhada.

        Finalmente Devoure começou a falar, muito calmo. Sua introdução foi histórica. Voltou a lembrar todas as queixas dos dias em que Sírio era somente uma colônia da Terra. Declarou que a doutrina Hegeliana, que tinha estabelecido a independência de Sírio e de todas as outras colônias, faltava completamente de sinceridade, e citou uma por uma todas as circunstâncias de supostos esforços da Terra para restabelecer sua hegemonia.

        Chegando finalmente ao assunto em pauta, disse:

        - Somos agora acusados de ter colonizado um mundo desabitado. Reconhecemos que somos acusados de ter nos apropriado de um mundo vazio e tê-lo transformado num ambiente maravilhoso para criaturas humanas. Reconhecemos que somos culpados. Somos acusados de ter aberto novos horizontes para a raça humana num mundo em que ela pode se aclimatar, e que foi esquecido por outrem. Reconhecemos que somos culpados. Não fomos acusados, de usar de violência em nosso procedimento. Não fomos acusados de provocar uma guerra, de matar ou de ferir quem quer que seja, durante a ocupação desse mundo. De fato, não somos acusados de nenhum crime. Estamos nos defrontando simplesmente com a declaração de que, a apenas um bilhão de milhas do mundo que ocupamos de maneira tão pacífica, existe um outro mundo povoado que se chama Terra. Não acreditamos que isso tenha algo a ver com nosso mundo, Saturno. Não estamos ameaçando a Terra com a violência, ela não pode nos acusar nesse sentido.

        - Só pedimos o privilégio de sermos deixados em paz, e em troca vamos oferecer à Terra o privilégio de também deixá-la em paz. Os Terrestres dizem que Saturno é deles. Por quê? Por acaso eles alguma vez ocuparam seus satélites? Não. Por acaso eles alguma vez mostraram o menor interesse nesse sentido? Não. Por acaso durante os milhares de anos que Saturno esteve à disposição deles, eles mostraram que o queriam? Não. Foi só depois de nosso desembarque naquele mundo que eles descobriram de repente que o estavam querendo também. Eles dizem que Saturno revolve em torno do mesmo Sol da Terra. Não negamos isso, simplesmente dizemos que isso não tem nenhuma importância. Um mundo desabitado é um mundo desabitado, e não importa qual é seu percurso dentro do espaço. Fomos os primeiros a colonizá-lo, e ele é nosso.

        - Como já disse, Sírio ocupou o Sistema Saturniano sem emprego de violência e sem ameaçar ninguém: de fato, todos os nossos atos são inspirados pelo desejo da paz. Não costumamos falar muito em paz, como acontece na Terra, mas nós praticamos a paz. Quando a Terra convocou essa conferência, aceitamos logo o convite pelo amor à paz, apesar de não existir a menor sombra de dúvida sobre os direitos que adquirimos no Sistema Saturniano. Mas qual foi o comportamento da Terra? Como foi que ela provou a sinceridade de suas intenções? Os discursos dos Terrestres a respeito de paz são muito fluentes, mas as ações deles não correspondem às palavras. Pediram uma conferência em prol da paz, e praticaram um ato de guerra. Pediram uma conferência para a paz, e ao mesmo tempo armaram uma expedição bélica. Em poucas palavras, enquanto Sírio colocava em risco seus próprios interesses por amor à paz, a Terra ao contrário praticou um ato de agressão sem ter sido provocada. Posso provar o que estou dizendo através das palavras de um membro do Conselho de Ciências da Terra.

        Enquanto falava estas últimas palavras, Devoure levantou a mão (era o primeiro gesto que fazia), apontando dramaticamente para uma porta iluminada por um pequeno holofote. Lucky Starr estava parado em frente à porta, bem ereto e com ar de desafio. Tinha um robô de cada lado.

        Quando Lucky foi levado para Vesta conseguiu finalmente rever Bigman. O pequeno Marciano correu ao seu encontro enquanto Yonge ficava a observar de longe, meio divertido.

        - Lucky - pediu Bigman - pelas areias de Marte, Lucky, não faça isso. Eles não podem obrigá-lo a dizer o que você não quer dizer, e realmente não tem nenhuma importância o que pode acontecer comigo.

        Lucky sacudiu a cabeça com ênfase.

        - Espere, Bigman. Espere mais um dia.

        Yonge se aproximou e pegou Bigman pelo cotovelo.

        - Sinto muito, Starr, mas vamos precisar de seu amigo até você terminar. Devoure está levando muito sério sobre essa coisa de reféns e tal, e no ponto em que estamos estou quase disposto a acreditar que ele esteja certo. Você terá que enfrentar seu próprio povo, afinal, e a desonra será ainda mais pesada.

        Parado na porta, sentindo todos aqueles olhares, percebendo o silêncio e as respirações presas, Lucky estava criando coragem para enfrentar a situação. Pela luz do holofote que batia em seus olhos, os delegados para ele não passavam de uma enorme mancha negra. Foi só quando os robôs o levaram ao recinto das testemunhas que ele conseguiu distinguir alguns rostos na multidão, e viu que Hector Conway estava na primeira fila.

        Conway lançou-lhe um sorriso breve e cheio de carinho, mas Lucky não ousou responder. Este era o ponto alto da crise e ele não queria fazer nada que, mesmo agora, no último instante, pudesse levantar dúvidas nos Sirianos.

        Devoure lançou ao Terrestre um olhar de intensa expectativa, saboreando antecipadamente o triunfo. Disse:

        - Cavalheiro, desejo transformar temporariamente essa conferência em algo parecido com um júri. Aqui está uma testemunha, e desejo que todos os delegados ouçam o que ela tem a dizer. Vou assentar meu caso nas palavras da testemunha, que é um Terrestre, e também um agente importante do Conselho de Ciências. - Virando-se para Lucky, falou com voz subitamente áspera: - Seu nome, sua cidadania e sua função, por favor.

        Lucky disse:

        - Sou David Starr, nativo da Terra, e membro do Conselho de Ciências.

        - O senhor foi tratado com drogas, ou submetido a violência psíquica ou mental para obrigá-lo a vir até aqui e depor?

        - Não, senhor.

        - O senhor então falará espontaneamente e vai dizer toda a verdade?

        - Vou falar espontaneamente e vou dizer a verdade.

        Devoure virou-se para os delegados:

        - É possível que alguém entre vocês imagine que o Conselheiro Starr pode ter sido submetido a algum tratamento mental sem que ele o percebesse, ou então que ele esteja negando qualquer intervenção mental em conseqüência de tal intervenção. Se assim for o caso, ele poderá ser examinado por qualquer participante dessa conferência que tenha as necessárias qualificações médicas - sei que existem médicos entre os presentes - caso alguém requeira um exame.

        Ninguém requereu o exame e Devoure continuou, falando com Lucky:

        - Quando foi que o senhor tomou conhecimento pela primeira vez que havia uma base Siriana dentro do Sistema Saturniano?

        Lucky relatou com o rosto impassível e os olhos fixos para frente, sem mostrar a menor emoção, sua primeira entrada no Sistema Saturniano e o aviso recebido.

        Conway fez um leve gesto de assentimento quando percebeu que Lucky estava omitindo qualquer referência à cápsula e as atividades espionísticas do Agente X. Era possível que o Agente X fosse simplesmente um criminoso terrestre. Era óbvio que Sírio não desejava que suas próprias atividades de espionagem fossem mencionadas e também era óbvio que Lucky concordara em não mencioná-las.

        - O senhor saiu do sistema depois de ouvir o aviso?

        - Sim, senhor.

        - De maneira definitiva?

        - Não, senhor.

        - O que foi que o senhor fez?

        Lucky descreveu a manobra com Hidalgo, a maneira em que se aproximara do pólo sul de Saturno e a passagem pela divisão entre dois anéis, em direção a Mimas. Devoure interrompeu o relato:

        - Em qualquer momento dessa viagem o senhor recebeu ameaças de violências?

        - Não, senhor.

        Mais uma vez Devoure falou aos delegados:

        - Não é necessário confiar unicamente nas palavras do Conselheiro. Tenho as telefotografias da perseguição à nave do Conselheiro, até ela chegar em Mimas.

        Lucky continuou iluminado pelo holofote, mas o resto do salão escureceu para que os delegados pudessem ver as imagens tridimensionais das cenas em que a Shooting Starr se lançava em direção aos anéis, desaparecendo na fenda que não era visível devido ao ângulo da tomada.

        A seguir a Shooting Starr foi vista se precipitando loucamente contra Mimas, e desaparecendo entre lampejos avermelhados e bafos de vapor.

        Devoure a esse ponto percebeu o surto de uma admiração furtiva pela audácia do Terrestre, porque logo falou precipitadamente e com uma ponta de despeito:

        - Fomos incapazes de alcançar o Conselheiro porque a nave dele estava equipada com os acessórios Agrav. As manobras em proximidade de Saturno eram muito mais difíceis para nós do que para ele. Foi por isso que nunca antes nos aproximamos de Mimas, e não estávamos psicologicamente preparados para fazê-lo.

        Se Conway pudesse fazê-lo impunemente, teria lançado um grito de triunfo. Que tolo! Devoure ia pagar caro por aquele ímpeto de ciúmes. Era claro que tinha mencionado os motores Agrav para atiçar os temores dos mundos externos frente aos progressos científicos da Terra, e talvez este fosse mais um erro. Os temores poderiam se tornar excessivos.

        Devoure perguntou a Lucky:

        - O que foi que aconteceu quando o senhor se afastou de Mimas?

        Lucky descreveu as circunstâncias de sua captura e Devoure, após mencionar os detectores de massa aperfeiçoados de Sírio, disse:

        - E quando o senhor chegou em Titã deu-nos ulteriores informações a respeito de suas atividades em Titã?

        - Sim, senhor. Expliquei ao senhor que ainda havia mais um Conselheiro em Mimas, e depois acompanhei o senhor de volta a Mimas.

        Tratava-se de um detalhe evidentemente desconhecido dos delegados. Houve um início de algazarra que Devoure dominou com a voz. Berrou:

        - Tenho telefotografias completas da remoção do Conselheiro de Mimas, onde ele estava com o intuito de estabelecer uma base secreta contra nós no mesmo instante em que a Terra estava nos convidando para essa conferência com o aparente intuito de manter a paz.

        O salão escureceu mais uma vez para deixar aparecer as imagens tridimensionais. Os delegados viram todos os detalhes do pouso em Mimas, o sistema usado para derreter a superfície, o desaparecimento de Lucky dentro do túnel e sua reaparição acompanhado pelo Conselheiro Ben Wessilewsky. Em seguida ambos foram levados para a nave.

        - Como podem ver, trata-se de uma base perfeitamente aparelhada - disse Devoure. Virando-se mais uma vez em direção a Lucky, perguntou: - Todas essas ações perpetradas pelo senhor aconteceram com o beneplácito oficial da Terra?

        Era a pergunta mais importante, e não havia dúvida nenhuma qual era a resposta que Devoure esperava e desejava. Lucky porém hesitou enquanto a assistência esperava, segurando o fôlego e a expressão de Devoure tornava-se mais e mais ameaçadora.

        Finalmente Lucky disse:

        - Vou dizer toda a verdade. Não recebi permissão expressa para voltar mais uma vez para o Sistema de Saturno, mas sei perfeitamente que tudo o que eu fiz só poderia merecer a mais incondicionada aprovação do Conselho de Ciências.

        Essa palavras provocaram uma movimentação imediata entre os repórteres e uma enorme balbúrdia entre a assistência. Os delegados começaram a se levantar de suas cadeiras e muitas vozes começaram a gritar: "Votação! Votação!"

        Parecia mais do que evidente que a conferência estava encerrada e que a Terra tinha perdido a parada.

 

QUEM COM FERRO FERE...

        Agás Doremo estava de pé, batendo inutilmente seu tradicional martelo. Conway foi para frente, abrindo caminho entre a multidão que lançava gritos e fazia gestos ameaçadores e puxou a chave do interruptor de circuitos que acionava a antiga alerta contra os piratas. Uma onda de sons estridentes e ásperos que aumentavam e decresciam sobrepujou a algazarra geral e obrigou os delegados a um silêncio estupefato.

        Conway desligou a chave e no súbito silêncio Doremo disse rapidamente:

        - Concordei em dar a palavra ao Conselheiro Chefe da Federação Terrestre, Hector Conway, para que possa reinquirir o Conselheiro Starr.

        Algumas vozes gritaram, "Não! Não", mas Doremo continuou firme:

        - Estou pedindo aos delegados que se portem corretamente. O Conselheiro Chefe afirmou que sua reinquirição será muito breve.

        Conway aproximou-se de Lucky entre os murmúrios e sussurros da assistência. Sorriu, mas perguntou em tom muito formal:

        - Conselheiro Starr, o senhor Devoure não lhe perguntou nem uma vez quais eram as intenções do senhor nessa façanha. Diga-me por favor: por que o senhor entrou no Sistema de Saturno?

        - Eu queria colonizar Mimas, Chefe.

        - O senhor estava achando que tinha esse direito?

        - Era um mundo desabitado, Chefe.

        Conway mudou de posição para poder encarar os delegados que agora estavam mudos e estarrecidos. Disse:

        - Quer repetir mais uma vez, Conselheiro Starr?

        - Eu queria estabelecer criaturas humanas em Mimas, um mundo desabitado que pertence à Federação Terrestre, Chefe.

        Devoure pulou de pé, berrando furiosamente:

        - Mimas pertence ao Sistema Saturniano.

        - Pois não - disse Lucky - e Saturno pertence ao Sistema Solar da Terra. Mas pela interpretação do senhor, Mimas é um mero mundo despovoado. Ainda há pouco o senhor admitiu que jamais naves Sirianas tinham se aproximado de Mimas antes que minha nave pousasse ali.

        Conway sorriu. Lucky também tinha percebido o erro fatal cometido por Devoure. Conway falou:

        - O Conselheiro Starr não estava presente quando o senhor fez seu discurso inicial, senhor Devoure. Permita que eu cite uma passagem, palavra por palavra: - Um mundo desabitado é um mundo desabitado, e não importa qual seja seu percurso dentro do espaço; nós o colonizamos primeiro, e agora é nosso. - O Conselheiro Chefe virou-se em direção aos delegados e falou em tom decidido: - Se o ponto de vista da Federação Terrestre é o certo, então Mimas é da Terra, porque orbita em torno de um planeta que por sua vez gira em volta do Sol. Se o ponto de vista de Sírio é correto, então Mimas continua sendo da Terra, porque era vazio e despovoado, e nós o colonizamos primeiro. Pelo raciocínio apresentado por Sírio, o fato de que um outro satélite de Saturno foi colonizado pelos Sirianos nada tem a ver com o caso em questão. De qualquer maneira, invadindo um mundo que pertence à Federação Terrestre e removendo dali nosso colono, Sírio cometeu um ato de guerra e mostrou toda sua hipocrisia, porque não está querendo admitir que outros tenham o mesmo direito que ele arroga para si.

        Mais uma vez a maior confusão voltou a reinar entre os delegados, e finalmente Doremo falou:

        - Cavalheiros, tenho alguma coisa a dizer. Os fatos relatados pelos Conselheiros Starr e Conway são irrefutáveis. Tudo isso está a demonstrar a total anarquia que poderia tomar conta da Galáxia se permitíssemos que prevalecesse o ponto de vista Siriano. Qualquer rocha estéril poderia se transformar num motivo de conflito, qualquer asteróide acabaria sendo uma ameaça à paz geral. Pelas suas próprias ações os Sirianos acabam de mostrar sua falta de sinceridade...

        A situação estava radicalmente mudada.

        Se houvesse tempo para isso, talvez Sírio ainda conseguisse reorganizar suas forças, mas Doremo era um parlamentar experiente e habilidoso e conseguiu manobrar a assistência, requerendo uma votação imediata, enquanto os partidários dos Sirianos, ainda desmoralizados, não encontravam uma oportunidade para decidir se era o caso ou não de impugnar as recentes revelações.

        Três mundos votaram a favor de Sírio. Foram Pentesiléia, Duvarn e Mullen, mundos muito pequenos e reconhecidamente dependentes da influência política de Sírio. Os outros delegados, perfazendo mais de cinqüenta votos, se declararam a favor da Terra. Sírio foi intimado a libertar os Terrestres mantidos prisioneiros, e a desmantelar a base em Titã. Receberam o prazo de um mês para sair do Sistema Solar. Essa intimação não poderia ser imposta com a força, a não ser por uma guerra, mas a Terra estava pronta para isso, e Sírio teria que enfrentá-la sem o auxílio dos mundos externos. Ninguém em Vesta acreditava que Sírio lutaria nessas condições.

        Quando Devoure viu Lucky mais uma vez, estava ofegante, o rosto torcido pela raiva:

        - Foi um truque vil - chiou. - Foi uma armadilha para obrigar-nos a...

        - Você me obrigou - retorquiu Lucky calmo, - fazendo uma chantagem e ameaçando a vida de Bigman. Está se lembrando? Ou o senhor prefere que eu leve a público todos os pormenores?

        - Seu amigo macaco ainda está conosco - começou Devoure com uma expressão maldosa -, e apesar da votação...

        O Conselheiro Chefe Conway, que estava presente, sorriu:

        - Se o senhor está se referindo a Bigman, senhor Devoure, quero dizer que ele não está mais com vocês. Está conosco, junto a um membro do Serviço Siriano chamado Yonge, que me disse que o Conselheiro Starr tinha lhe prometido um salvo-conduto em caso de necessidade. Parece-me que o senhor Yonge acha que, considerando o atual estado emocional do senhor, seria imprudente que ele o acompanhasse na volta a Titã. Aliás, permita-me sugerir que caso o senhor considere pouco prudente voltar para Sírio... o senhor poderia eventualmente pedir asilo político...

        Devoure, mudo e boquiaberto, virou-lhe as costas e foi embora. Doremo estava sorrindo largamente enquanto se despedia de Conway e Lucky.

        - Aposto que você se sentirá muito feliz em voltar à Terra, não é, meu rapaz?

        Lucky assentiu.

        - Vou voltar para casa dentro de uma hora numa nave espacial da linha regular, senhor, e a coitada da Shooting Starr será rebocada junto. Francamente, estou muito feliz pela perspectiva.

        - Sem dúvida. Meus parabéns por um ótimo trabalho. Quando o Chefe Conway pediu-me tempo para reinquirir, antes do início da sessão, pode acreditar: pensei que ele estivesse ficando maluco. Quando você terminou de responder a Devoure e ele me deu um sinal, pedindo a palavra, eu me convenci de que ele estava mesmo louco. Agora porém parece-me óbvio que tudo isso foi planejado com antecedência.

        Conway disse:

        - Eu tinha recebido uma mensagem de Lucky com o esboço de seu plano. Mas somente duas horas atrás fiquei sabendo que ele tinha conseguido o que esperava fazer.

        - Eu penso que você tinha confiança no Conselheiro - disse Doremo. - Quando você conversou comigo pela primeira vez, você perguntou se eu me pronunciaria em favor da Terra se o testemunho de Lucky não produzisse o efeito que todos esperavam. Naquela hora não consegui entender o que você queria dizer, mas quando tudo se tornou claro, então compreendi.

        - Obrigado por ter nos ajudado.

        - Ajudei o lado que mostrou estar em seu direito. Foi uma questão de justiça... Você é um adversário ardiloso, meu rapaz - disse Doremo a Lucky.

        Lucky sorriu:

        - Eu estava simplesmente confiando na ausência de sinceridade de Sírio. Se eles realmente acreditassem no que eles proclamavam ser seu ponto de vista, o Conselheiro meu colega teria ficado em Mimas, e tudo o que teríamos agora, como resultado de nosso trabalho, seria um pequeno satélite composto de gelo e uma guerra bastante difícil.

        - Sem dúvida. Bem, acredito que quando os delegados chegarem em suas pátrias, refletirão sobre os acontecimentos e alguns com certeza ficarão furiosos com a Terra e também comigo por eu ter forçado uma votação rápida. Quando eles se acalmarem, compreenderão ter estabelecido um princípio, ou seja a indivisibilidade de um sistema estelar, e espero que compreenderão também que os benefícios deste princípio são muito maiores do que os ferimentos em seus brios, ou seus preconceitos. Acredito sinceramente que os historiadores considerarão essa conferência muito importante, porque ela contribuirá bastante para estabelecer a paz e fomentar o progresso dentro da Galáxia. Estou muito satisfeito.

        Apertou as mãos de ambos com bastante entusiasmo.

        Lucky e Bigman estavam mais uma vez juntos. A nave era espaçosa e havia muitos passageiros, mas eles preferiram ficar apartados dos outros. Já tinha passado por Marte (e Bigman tinha passado quase uma hora observando-o satisfeito pela escotilha) e a Terra já estava próxima. Finalmente Bigman conseguiu encontrar palavras para expressar sua confusão.

        - Pelo espaço, Lucky, eu não percebi nem de longe o que você estava querendo fazer. Pensei que... Escute, nem quero dizer o que foi que eu pensei. Porém, pelas areias de Marte, você poderia ter me avisado.

        - Bigman, eu não podia. Era justamente a coisa que eu não podia fazer. Você não está vendo? Precisei manobrar os Sirianos para que eles seqüestrassem o Wess em Mimas, sem deixá-los perceber em que confusão estavam se metendo. Eu não podia deixá-los suspeitar que eu estava querendo que eles o fizessem, porque nesse caso eles teriam percebido a armadilha. Precisei dar a impressão de que eles estavam me forçando a fazer tudo contra minha vontade; bem, no começo eu nem sabia como eu poderia chegar a conseguir, mas eu sabia uma coisa - se você, Bigman, estivesse a par do plano, tudo iria água abaixo.

        Bigman ficou indignado:

        - Você quer dizer que eu ia comprometer o resultado, que eu ia traí-lo? Escute, seu tolo Terrestre, ninguém poderia extrair uma palavra sequer de mim, nem com um desintegrador!

        - Eu sei, Bigman. Você não falaria nem se fosse torturado. Você ia simplesmente contar tudo, à toa. Bastava que você ficasse furioso por uma razão qualquer, e você iria contar tudinho. Foi por isso que eu tentei convencê-lo a ficar em Mimas, está lembrado? Eu sabia que não poderia lhe contar minhas intenções e sabia também que você não poderia compreender meu comportamento, e ficaria sentido. Mas, afinal, sua presença foi uma verdadeira dádiva dos deuses.

        - E não foi mesmo? Pela surra que dei naquele sujeito?

        - Indiretamente. Foi isso que me deu uma oportunidade de dar a impressão de que eu estava trocando a liberdade de Wess pela sua vida. Foi mais fácil assim, do que qualquer outra circunstância que eu teria que inventar se você não estivesse à mão. De fato, não tive que representar. Foi uma troca perfeitamente legítima.

        - Puxa, Lucky!

        - Puxa, você. Ainda por cima, você ficou tão abatido, que eles não chegaram a suspeitar que houvesse algum truque. Qualquer pessoa que ficasse observando você, ia se convencer logo de que eu estava realmente traindo a Terra.

        - Pelas areias de Marte, Lucky - disse Bigman terrivelmente confuso -, eu devia ter imaginado que você jamais ia fazer uma coisa dessas. Eu sou uma besta.

        - Foi sorte você ser uma besta - falou Lucky rindo e despenteou carinhosamente os cabelos do amigo.

        Quando Conway e Wess se juntaram a eles para o jantar, Wess disse:

        - As boas-vindas que nosso amiguinho Devoure vai receber não vão ser as mesmas que ele estava sonhando. O subetérico da nave está transmitindo tudo o que está sendo publicado na Terra a nosso respeito, e especialmente a respeito de você.

        Lucky franziu as sobrancelhas:

        - A idéia não me entusiasma. Isso vai dificultar muito nossas futuras tarefas. Publicidade! Pois sim! Experimente pensar no que estariam dizendo se os Sirianos fossem um pouquinho menos basbaques, e não tivessem engolido a isca, ou então se tivessem decidido no último instante de não me apresentar durante a conferência.

        Conway teve um estremecimento:

        - Prefiro não pensar nisso. Mas acho que diriam o que estão dizendo de Devoure nesse mesmo instante.

        Lucky observou:

        - Acho que ele poderá sobreviver. O tio dele vai cuidar de tudo.

        - De qualquer forma - disse Bigman - nós já cuidamos dele de maneira definitiva.

        - Será? - perguntou Lucky. - Quem sabe.

        Durante algum tempo continuaram a comer em silêncio. Conway finalmente tentou aliviar o ambiente bastante tenso e disse:

        - Pensando bem, os Sirianos não podiam de qualquer forma deixar que Wess continuasse em Mimas, e nunca tiveram uma possibilidade de se sair do assunto. Eles ainda estavam procurando a cápsula entre os anéis, e poderiam imaginar que Wess, a uma distância de apenas trinta mil milhas, poderia eventualmente...

        Bigman deixou cair o garfo e arregalou os olhos:

        - Puxa vida!

        - O que foi, Bigman? - perguntou Wess amavelmente. - Não diga que você de repente teve uma idéia e seu cérebro entortou.

        - Cale a boca, seu chato - respondeu Bigman.

        - Escute, Lucky: nessa confusão toda acabamos nos esquecendo completamente da cápsula do Agente X. Ainda deve estar entre os anéis, a menos que os Sirianos já a tenham achado. Mas se não a acharam, eles ainda têm duas semanas de tempo para tentar.

        Conway interferiu:

        - Já pensei nisso, Bigman. Acredito porém que a cápsula não poderá ser recuperada. É impossível encontrar qualquer coisa entre os anéis.

        - Mas Chefe, Lucky deve ter-lhe falado a respeito dos detectores de massa especiais que eles têm e...

        A esse ponto todos ficaram olhando para Lucky e sua expressão esquisita: dava a impressão que ele não sabia se dava gargalhadas ou se começava a falar palavrões.

        - Grande Galáxia - disse ele finalmente. - Eu me esqueci por completo.

        - A cápsula? - perguntou Bigman. - Você quer dizer que você não estava se lembrando dela?

        - Sim. Esqueci-me de que ela estava comigo. Pronto, está aqui. - Lucky tirou do bolso um objeto metálico com mais ou menos três centímetros de diâmetro, e colocou-o na mesa.

        Bigman apanhou-o num instante e começou a observá-lo, em seguida cedeu-o aos outros, e todos ficaram a manusear o objeto com muita curiosidade.

        - Você tem certeza de que essa é a cápsula? - perguntou Bigman.

        - Tenho quase que certeza absoluta. Mas vamos abri-la, é claro, para termos uma confirmação.

        - Mas como, de que jeito, quando? - perguntaram todos juntos.

        Lucky fez um gesto para se desculpar:

        - Sinto muito, realmente. Vocês estão lembrados das poucas palavras que captamos antes que a nave do Agente X explodisse? Estão lembrados das sílabas que acreditamos serem parte de "órbita normal"? Pois os Sirianos acreditaram piamente que normal estava querendo dizer "comum" e que a cápsula devia estar dentro da órbita das partículas geladas dos anéis. Mas "normal" significa perpendicular, estão lembrados? Os anéis de Saturno se movimentam diretamente de oeste para leste, o que significa que a cápsula numa órbita "normal" tinha que estar girando de norte para sul, ou vice-versa. Achei que a coisa fazia sentido, porque afinal, dentro dos anéis, a cápsula estaria realmente perdida.

        - Qualquer órbita em volta de Saturno que se movimente de norte a sul, ou vice-versa, precisa passar acima do pólo norte e do pólo sul, apesar de qualquer variante. Fiquei observando o detector de massa por algum objeto que estivesse dentro de tal órbita. No espaço polar não havia quase pedregulho e imaginei que não seria difícil encontrar a cápsula. Não quis dizer nada porque minhas probabilidades eram pequenas, e detesto decepcionar as pessoas. Finalmente percebi algo no detector de massa e me arrisquei. Comparei as velocidades e saí, depois de ajustá-las. Bigman estava certo: aproveitei da oportunidade para dar um jeito no equipamento Ágrav, preparando-o para ser inutilizado em caso de rendição, mas apanhei a cápsula.

        - Quando desembarcamos em Mimas deixei-a entre as serpentinas do condicionador de ar no alojamento de Wess. Quando voltei para lá, simplesmente enfiei-a no bolso. Quando embarquei, fui revistado mais uma vez em busca de armas, mas o robô que estava me revistando não achou que uma bolinha metálica tão pequena poderia ser uma arma... O uso de robôs realmente não assegura um serviço muito eficiente. De qualquer forma, a novela da bolinha termina aqui.

        - Por que você não falou nada? - berrou Bigman.

        Lucky teve uma expressão de espanto:

        - Olha, eu queria. Juro que eu queria. Mas quando voltei para a nave pela primeira vez já estávamos com os Sirianos nos perseguindo, está lembrado? E tive que fazer o possível para escaparmos. A seguir, se você está lembrado, nunca mais tivemos um minuto de sossego - as coisas continuavam acontecendo, sem o menor intervalo. Não sei como foi, mas simplesmente me esqueci da cápsula - e não me lembrei de contar que ela estava comigo, obviamente.

        - Pelas areias de Marte, que cabeça oca - exclamou Bigman, indignado. - É claro que você não pode ir a lugar nenhum sem minha companhia.

        Conway riu e bateu nas costas do diminuto Marciano:

        - Você está certo, Bigman. Cuide dele e procure lembrar-lhe qual é a direção certa de todas as coisas.

        - Naturalmente - disse Wess - depois que alguém lembre a você qual é a direção certa das coisas.

        A nave começou a descer pela atmosfera em direção à Terra.

 

                                                                                            Isaac Asimov

 

 

                      

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