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A FOTO INDECOROSA / Heinz G. Konsalik
A FOTO INDECOROSA / Heinz G. Konsalik

 

 

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A FOTO INDECOROSA

 

TODO MUNDO EM NOVO KORSAKI tirou o chapéu diante de Nikita Romanovitch Babajev.

Kasutin, o secretário do Partido ficou parado na rua quando encontrou Babajev e deu-me umas batidinhas afáveis no ombro; Zvetkov, o gordo comissário de construção, rico e indecoroso, fez-lhe sinais de seu automóvel; o farmacêutico Dudorov não deixou que ele passasse por sua loja sem um pequeno bate-papo; e até mesmo Akif Victorovitch Mamedov, o pope, recostou-se na cerca do jardim da igreja, apoiou-se no cabo de sua enxada e disse:

— Como é que estão as coisas para nós hoje, seu pagão? Já é um verdadeiro milagre que o sol de Deus ainda o esteja iluminando.

Em seguida, Babajev deu um sorriso presunçoso, replicou algumas palavras gozadoras e continuou seu caminho.

A amabilidade geral que o cercava não se devia aseus cabelos estranhamente vermelhos, apesar de que estes fossem, ali na Sibéria, uma coisa digna de ser vista; antes, ele devia agradecer à sua profissão.

Babajev era fotógrafo.

Mas as pessoas vão replicar e com razão: Muito bem, qual o problema? Se todos os popes lançassem uma bênção quando vissem um fotógrafo, onde é que se chegaria com isso? Claro que isso é impossível, mas é preciso se levar em consideração que se está ali, em Novo Korsaki.

Ao sul do Ural sulino, no curso inferior do rio Tobol, nas proximidades dos seis lagos que, enigmaticamente, são chamados de ”Seis Virgens”, está situada essa pequena cidade, em uma baixada cercada de bosques, para a qual só há uma estrada de ligação. No inverno essa estrada é intransitável por causa do acúmulo de neve, na primavera e no outono os veículos chafurdam em lama, e só no verão é possível chegar-se, de alguma maneira, até Kustanai, uma cidade um pouquinho maior, de onde se pode alcançar Magnitogorsk de trem, depois de repetidas baldeações.

Afirma-se que os primeiros habitantes da região de Novo Korsaki foram descobertos no ano de 1789, quando um destacamento de cossacos a caminho do Ural parou para dar de beber aos cavalos no Tobol; de repente, viram fumaça elevando-se dos bosques. Os selvagens sujeitos cavalgaram com uma grande gritaria em direção à colónia solitária, souberam que os habitantes eram desterrados e postos em liberdade, estupraram as mulheres e moças e, principalmente por isso, deleitaram-se tanto nas choupanas que por lá ficaram e ampliaram a colónia. A pequena cidade surgida dessa maneira foi balizada, segundo os costumes de seu dirigente cossaco, de Korsaki. Finalmente, raptaram um pope do lugarejo Orsk, junto ao Ural. construíram uma igreja e a partir de então viveram tão livres como as nuvens no céu e as ondas do Tobol.

As transformações políticas da Rússia eles só assistiram da margem. Mesmo quando, em 1922, um homem vestido com uma jaqueta preta de couro apareceu pela primeira vez em Magnitogorsk, apresentando-se como comissário dos bolcheviques, fazendo discursos tonitruantes e proclamando que agora seria tudo diferente, que a Rússia pertencia aos russos — coisa que ninguém nunca havia duvidado em Novo Korsaki — mesmo então não mudou muita coisa por lá. Foi construída uma sede do Partido na pequena cidade, de repente teve-se que pagar impostos e um monumento de gesso de tamanho sobrenatural, que mostrava um homem chamado Lenin, foi erguido. Ele apontava com os braços esticados e olhos fixos para as Seis Virgens, como se quisesse exclamar em voz alta: ”Lá embaixo tem uns esturjões bem gordos!”

Os habitantes de Novo Korsaki suportaram tudo isso com a serenidade de verdadeiros homens de floresta. Só quando o funcionário do Partido quis mandar demolir a igreja e, de modo provocador, puxou a longa e negra barba do pope daquele tempo, Bulak, foi que borbulhou o velho sangue cossaco de novo. O homem do Partido sucumbiu a uma misteriosa doença, a qual faz com que a abóbada craniana das pessoas estale. Foi enterrado rapidamente e, em seguida, Novo Korsaki esperou com serenidade pelo novo comissário que deveria vir de Magnitogorsk.

Com o passar dos anos, a pequena cidade cresceu consideravelmente, mesmo não havendo mudado nada em termos de possibilidades de acesso. Surgiu uma serraria, foi construído um armazém, o companheiro Zvetkov foi nomeado comissário de construção e fundou um grande estabelecimento de ensino, no qual eram formados engenheiros agrónomos. Veio um médico para Novo Korsaki, a este seguiu-se um farmacêutico, e como a nova colónia evidenciava-se como a realização da ideia de um louco (pois como é que se pode habitar casas que não têm nenhuma estrada de acesso?), Zvetkov recebeu a incumbência de cuidar também da construção de um pequeno aeroporto. Dessa maneira, Novo Korsaki foi ligada ao grande e vasto mundo, mesmo que só os helicópteros e aviões de transporte da escola de agronomia aterrissassem e levantassem voo por lá.

Por fim, não faltou também que, um dia, Babajev, que havia ido quando jovem para formar-se em Smolensk, retornasse à terra e inaugurasse uma loja de fotografias na casa dos pais. Retirou as cortinas de uma janela, martelou um caixote de madeira por trás do marco, colocou aí dentro duas máquinas fotográficas e dois cartazes, estirados sobre papelão, com fotos coloridas de Moscou e Leningrado, pintou um letreiro: ”N. R. Babajev — Fotógrafo” e preparou um retrato da avó de Kasutin, o secretário do Partido. A velhíssima Schanna Bespulova arregalhou os olhos para sua fotografia, bateu palmas, virou os olhos e perdeu os sentidos. Era a primeira foto que ela via de sua pessoa.

Claro que esse tipo de coisa era divulgado. Com isso, Babajev conseguiu rapidamente muito que fazer, fotografou quase todos os cidadãos de Novo Korsaki, construiu mais um ateliê junto à casa, mandou vir da cidade os mais modernos equipamentos de laboratório, que ele apresentava como um diretor de museu apresenta seus tesouros raros, e elevou-se à categoria de pessoa respeitada. Sua especialidade eram as fotografias de mortos. Metidos no caixão; em câmara ardente, emoldurados por flores, os amados falecidos viravam modelos dignos de serem admirados. Logo essas fotos com molduras pretas, iluminadas de modo impressionante, não faltavam em nenhuma casa decente de Novo Korsaki.

Mas também as demais produções de Babajev demonstravam um grande talento. Suas fotos da igreja, suas tomadas da paisagem campestre, suas reportagens sobre casamentos ou festas do Partido locupletavam a vida cultural de Novo Korsaki. Claro que, além disso, ele vendia máquinas fotográficas, organizava cursos de fotografia, revelava e ampliava as tomadas dos amadores e dava conferências com acompanhamento de fotografias. Poder-se-ia dizer, com toda razão: Nikita Romanovitch Babajev contribuía em larga escala para cunhar a história de Novo Korsaki.

É extremamente importante saber-se de tudo isso. Pois afinal quem é que já conhece a vida ali, na parte inferior do Tobol, nos bosques junto às Seis Virgens, onde só se podem encontrar linces e martas vivendo ainda de modo selvagem, onde os castores constróem seus diques nas regiões pantanosas e onde, no inverno, o uivo das alcateias de lobos faz estremecer todo o país solidificado em gelo?

Esse tipo de coisas molda o ser humano, torna-o mais duro e faz com que ele permaneça honesto. Obriga-o a tornar-se uma grande comunidade estreitamente unida, na qual a alegria e a tristeza são partilhadas. Claro que pequenas fraquezas humanas existem e estão em marcha. Mas, para isso, Akif Victorovitch era a pessoa competente em Novo Korsaki, a pessoa que levava para a igreja todos os pecadores, mandava que rezassem diante da iconoteca e, a cada um, de acordo com o pecado, arrastava-o para um insípido cómodo contíguo — no qual só havia uma fotografia de Babajev pendurada na parede, representando um ícone do inferno da Catedral de São Isaak, em Leningrado e, ou o esbofeteava e desferia repetidos pontapés em seu traseiro, ou convidava-o à caixa com intenção de ampliar a construção da igreja. Por conseguinte, havia poucos pecadores em Novo Korsaki e também só por causa disso é que o secretário do Partido, Piotr Dementievitch Kasutin, suportava a existência da igreja em seu distrito. Ele encarava-a, de modo económico, como uma espécie de filtro.

Em um belo dia de verão prematuro, perante o qual qualquer ser humano que possuísse um mínimo de sentimento estaria disposto a agradecer a Deus, começou o drama que sacudiu Novo Korsaki mais que um terremoto de fòrça mediana.

O drama começou de maneira bem inocente: Victor Semionovitch Jankovski entregou um rolo de filmes ao fotógrafo Babajev, 12 tomadas de 6x6.

— Companheiro, eu preferiria se as fotografias pudessem ser ampliadas para 18 x 18. Claro que isso deve ser possível, não é mesmo?

— Se você quiser, faço disso aqui um póster tão grande quanto uma parede de casa — respondeu Babajev de modo ingénuo. — Para quando você precisa das fotos, companheiro?

— O mais rápido possível.

— Digamos... depois de amanhã?

— Está bem.

— Fosco ou brilhante?

— Bem brilhante.

Babajev anotou o nome, colocou o filme em uma bolsa castanha, anotando o pedido do freguês sobre ela. Jankovski ainda comprou mais um filme, seisflashes e depois saiu da loja fazendo com que soassem os sininhos situados na padieira da porta.

Havia nove semanas que Victor Semionovitch Jankovski aparecera em Novo Korsaki e, imediatamente, causara celeuma. Era jovem, cabelos louros claros, alto, músculos de esportista, tinha olhos de um azul brilhante, sempre com um sorriso nos lábios, e vinha de Leningrado. Havia chegado à cidadezinha em um desses carros para todos os terrenos, bem alto, abarrotado de instrumentos. Anunciara-se a Kasutin e apresentara um documento muito interessante. De acordo com esse documento, ele tinha a missão de realizar pesquisas geológicas, testes de perfuração e medições nos arredores de Novo Korsaki e o Ministério pedia que lhe fosse concedido todo apoio.

Kasutin prometeu-lhe tudo, alojou Jankovski em uma velha casa que pertencia ao deficiente auditivo e telhador Fessenko, um ancião de 82 anos de idade, que na maioria das vezes ficava sentado em uma cadeira de braços e que há 11 anos estava lendo um livro ilustrado que descrevia a conquista de Odessa pelo Exército Vermelho. Jankovski saía muito, na maior parte ia para as. Seis Virgens e para os bosques; também muitas vezes permanecia nas selvas alguns dias e noites, dormindo em um saco de dormir forrado e caçando seus assados, escolhidos entre os abundantes animais selvagens. Ninguém se dava conta do que ele realmente fazia, nem mesmo Kasutin.

— Ele é geólogo — dizia Kasutin para os curiosos que o importunavam. — Ele tem consigo um ofício do Ministério. Isso basta, não é mesmo, companheiros? Estamos autorizados, ou mesmo na posição de fazer uma vistoria em um ofício do Ministério? Por favor, meus queridos! O documento tem três assinaturas e quatro carimbos!

Esse tipo de coisa impressionava qualquer russo. Uma carta com três assinaturas provocava respeito. E, ainda por cima, mais quatro carimbos... companheiros, calem a boca! Victor Semionovitch chegou aqui com uma missão importante. Ainda que ele mesmo não fale sobre ela... mantenham a calma, ele deve ter lá suas razões. Ouvem-se tantas coisas estranhas sobre tudo que deve estar escondido sob o solo da Sibéria. Nós, estúpidos homens comuns e correntes, claro que só vemos a superfície.

Em pouco tempo, Jankovski tornou-se um hóspede querido em Novo Korsaki. Ele sabia contar histórias de uma maneira que prendia a atenção, tinha modos educados, não olhava imediatamente para os seios das mulheres dos anfitriões, não contava nenhuma piada picante, jogava xadrez muito bem e, acima de tudo, era um homem que pautava em ser amável e contido. De início, sua beleza masculina provocou alarme em muitos maridos e pais de filhas crescidas, mas quando evidenciou-se que o sedutor Victor Semionovitch não se dedicava a nenhuma escapada noturna, foi encarado como um tremendo achado de hóspede. Até mesmo o pope convidava-o muitas vezes para comer; aliás, pelo contrário, em cada uma dessas oportunidades, Akif Victorovitch Mamedov relatou a situação de um sacerdote na solitária Sibéria de um modo tão comovedor, que a Jankovski não restou senão evitar ser convidado, passando ele próprio a oferecer ao pope uma opulenta comida. Mamedov apareceu com uma Bíblia na mão, abençoou Jankovski, leu algo da Sagrada Escritura antes da comida e depois devorou todas as travessas.

Um dos mais entusiasmados com Jankovski era o velho Fessenko, o proprietário da casa onde o jovem senhor vivia: Victor Semionovitch trouxe-lhe de uma viagem a Sverdlovsk um novo livro ilustrado: A Defesa de Leningrado contra as Tropas Nazistas. Isso preencheu a velhice de Fessenko. O ancião fez 82 anos nesse ano.

Portanto, o fotógrafo Babajev fechou sua loja nesse dia pontualmente às 19:00, tirou o filme de amador da caixa de madeira e desapareceu em seu laboratório.

Apesar de que isso fosse sua profissão e, portanto, seu trabalho, Babajev sempre experimentava alegria pelas fotos inocentes que seus clientes tiravam e que ele revelava e ampliava: mamuschka pendurando a roupa; o avozinho partindo a lenha; uma roda de chá com mulheres de sorrisos largos e idiotas; um cachorro vira-latas que justo nesse momento caga na bolsa do titio; um jovem andando de bicicleta; uma adolescente em um balanço entre duas bétulas; em resumo, o pequeno e importante mundo de seus próximos, que foi preservado em fotos.

Por volta das 22:00, Babajev havia revelado e lavado todos os filmes. Estavam pendurados na linha para secagem e pouco depois deveriam passar pela ampliadora. Nisto também Babajev estava equipado com as mais modernas aquisições... As cópias normais ele confiava a uma máquina. Procedeu de um modo diferente com as fotografias de Jankovski. Como era um cliente-problema, isto exigia algumas sutilezas, sendo necessário que se procedesse ao trabalho manual. Neste caso, era preciso que se conseguissem alguns tons intermediários, que se suprimissem grandes sombras na ampliação... existem alguns truques só conhecidos por profissionais como Babajev.

Pouco depois das 22:00, só havia o filme de Jankovski pendurado na linha. Babajev cravou os olhos nos negativos, depois, com os dedos trémulos, preparou a ampliação, engatou o primeiro negativo, projetou-o no tamanho 24x24 (ao invés.de 18x18 como havia sido desejado) sobre a mesa e em seguida colocou o papel por baixo. Com grandes gotas de suor escorrendo-lhe pela testa, ele iluminou, em seguida levou com uma pinça o papel para o banho de revelação e colocou-o lá. Pouco a pouco, a foto foi despertando sob seus olhos que estavam cravados no papel, tomava forma, tornava-se clara, alcançava os pontos corretos. Babajev retirou a folha do caldo, mexeu-a no banho fixador e depois pendurou-a com um gancho no fio. Deixou-a gotejando pouco tempo, agarrou a ampliação e foi correndo para fora. Colocou-a sob uma lâmpada forte, jogou-se em uma velha poltrona de vime em frente e a outra coisa que fez foi enxugar o suor do rosto. Um leve tremor percorria-lhe o corpo, assim como se alguém o tivesse ligado a uma fraca corrente elétrica que agora, através da circulação sangüínea, estivesse percorrendo todas as veias.

— Mas isso é magnífico! — disse Babajev com a garganta seca. — Pelo amor de Deus, isso aí é mais que magnífico! Fique bem tranqüilo, Nikita Romanovitch... não se deixe derrubar por um ataque do coração. Mantenha a frieza de nervos. Respire bem fundo, volte à câmara escura e amplie também todas as outras fotos. Bem tranqüilo...

Uma hora depois, as 12 ampliações estavam penduradas diante de Babajev, bem focadas e brilhantes. Ele sentou-se então com as mãos cruzadas, deliciando-se com a contemplação e tendo perfeita consciência que não poderia dormir nessa noite. Também os fotógrafos têm uma alma vulnerável.

Completamente extenuado, Nikita Romanovitch desempenhou sua tarefa: ampliou as 12 fotos para o tamanho desejado de 18x18, colocou-as em um grande envelope, escreveu com caneta vermelha ”para o companheiro Jankovski” e fechou à chave as fotografias na gaveta.

Em seguida, retornou às suas ampliações particulares 24x24, recostou-se bem comodamente em sua poltrona e deixou o olhar vaguear pelas 12 fotografias. De vez em quando bebia um gole de vodca, apanhava uma grande cebola, descascava-a e comia acompanhada com um pedacinho de pão.

— Monstruoso — dizia de vez em quando — uma grandiosa, magnífica sacanagem. E isso em Novo Korsaki! O anonimato é uma baixeza. Mas eu descobrirei. Descobrirei! Victor Semionovitch Jankovski, você é um sacana de meter inveja em qualquer um. Ah, meu Deus do céu, você é realmente um finório. Aposto como não vai ficar nem embaraçado nem ruborizado quando vier buscar as fotografias comigo. Ah, como você deve ser espertalhão!

Realmente, Babajev teve uma péssima noite

Qualquer um podia falar com o camarada secretário do Partido Piotr Dementievitch Kasutin, quando ele aparecia na sede entre 11 e 12 horas e quando se tinha alguma coisa realmente importante para se dizer. Mas se fosse o caso de só um bate-papo, e sobre isso quem decidia era o próprio Kasutin, em virtude de sua função, então o caso era de punição por causa de roubo do precioso e nacionalizado tempo de trabalho. Aqueles que não pudessem pagar com rublos deviam entregar o correspondente em géneros — um pouco de toucinho ou ovos, carne-seca ou geléia — ou tinham de dedicar-se uma hora ou mais para a limpeza da cidade, sem receber pagamento. Através de tais métodos progressistas, Kasutin tornou-se uma das pessoas menos importunadas de Novo Korsaki. Podia ir com freqüência para as caçadas, contudo dedicava-se também ao estudo dos documentos do Partido e brilhava nos discursos das festas do Partido, com citações de Lenin, Marx, Brejnev e com palavras comoventes de grandes poetas russos. O pope Akif tinha dificuldades em impor-se contra esse estado de coisas; tarefa mais difícil de executar com as devotas sentenças da Bíblia; soavam muito envelhecidas contra as vigorosas palavras de Kasutin, até que Akif recordou-se de que, no longínquo Ocidente, houvera um sacerdote chamado Abraham Santa Clara, que havia conseguido encher as igrejas com pragas e imprecações. Portanto, Akif tentou-o também, depois de haver pedido perdão a Deus antecipadamente e de haver acendido uma grande vela.

Um domingo, os fiéis ouviram, admirados, Akif Victorovitch gritando sobre suas cabeças com uma voz trovejante:

— Que é que sou obrigado a ouvir? Que vocês ficam aí dedicando-se à pularia, comem até rebentar a pança e bebem como vacas em épocas de seca! Não me venham com essa de levantar a cabeça! Essa mirada pecaminosa de vocês poderia arrombar o paraíso!

Depois do sermão, entrando pela porta dos fundos, Kasutin apareceu na residência de Akif e examinou-o com o olhar sombrio.

— Isso aí é algum estilo novo? — perguntou, apreensivo.

— Sim — replicou Akif.

— Onde é que você quer chegar com isso?

— À verdade. Vou repreender a cada um por seus pecados, e isso de público.

— Eles vão tomar a igreja de assalto.

— É, mas de joelhos.

— Desmentirão tudo.

— Essa é a especialidade de vocês. Estou sabendo. Piotr Dementievitch, você tem suas citações de Lenin, eu entro em cheio na vida humana.

— Que é que você está sabendo de mim? — perguntou Kasutin, com a voz cheia de cuidado. — Paizinho Akif, a gente pode conversar sobre isso na maior calma do mundo.

Mamedov era inteligente o bastante para não dizer que não sabia absolutamente nada. Ele só piscou o olho Para Kasutin, como se fosse um conspirador, voltou a piscar o olho, deu um amplo sorriso, passou a mão por sua longa barba e deu umas tossidinhas impertinentes. Kasutin empalideceu um pouco, deu a entender que não precisava dizer nada e virou-se para ir embora.

— Você pode voltar quando quiser — gritou-lhe Akif.

E, desde essa conversa, ficou matutando sobre qual vilania desconhecida Kasutin era passível de ser incriminado.

Mas hoje, a secretária de Kasutin, a sinistra Dunia Sergeievna, anunciou que o companheiro Babajev deveria conversar, fora da hora de turno, com o camarada secretário do Partido. Kasutin olhou confuso para o relógio, viu que passava das nove e mandou que Babajev entrasse de imediato. Como sempre pelas manhãs, Kasutin estava tomando seu café, ao mesmo tempo em que lia o jornal, sendo servido por Dunia Sergeievna. Ela passava manteiga e mel de abelha em um pão para ele, enchia uma xícara de chá, adoçava-o, acrescentava um pouco de creme e entregava-lhe o suntuoso desjejum por trás e, assim fazendo, pousava os seios em seu ombro. O prazer do café da manhã era reforçado pelo fato de Vera, a mulher de Kasutin, e as duas crianças terem partido numa viagem de férias para Rostov, quer dizer, estavam longe o bastante para deixar que o chefe da família ficasse a salvo de surpresas.

— Meu bom Nikita Romanovitch, desse jeito você me assusta — disse Kasutin, quando Babajev entrou na sala. — Pelo amor de Deus, você está com uma cara... Você tem algum fantasma em casa?

Babajev sentou-se com um gemido, colocou o grande envelope em cima da mesa e deu algumas respiradas profundas. Seus olhos estavam emoldurados por sombras escuras, os lábios estavam pálidos, tremiam, e os músculos das faces tiritavam. Babajev lançou um olhar para o lado de Dunia Sergeievna, que estava postada junto à porta, esperando. Ele levantou a mão, enfiou o polegar no nariz e, desesperado, acenou com o dedo mindinho. Finalmente, Kasutin compreendeu.

— Mando chamá-la de novo se for preciso, camarada — disse ele, com uma entonação de voz formal.

Dunia deixou o cómodo. Com um suspiro, Babajev encolheu-se todo. Abriu a presilha do envelope, mas não tirou o conteúdo.

— Você conhece Victor Semionovitch Jankovski? — perguntou, de modo áspero.

Kasutin levantou a sobrancelha:

— Claro que conheço! — disse ele. — Quem é que não conhece? Que é que você está querendo?

— Que acha você dele?

— Ele não é um homem vulgar.

— Pode-se dizer — Babajev emitiu um ofego pelo nariz — e você também me conhece...

Kasutin tornou-se cauteloso. Examinou Babajev com mais acuidade e balançou a cabeça.

— Você não está com aparência de quem está bêbedo.

— Sempre fui uma pessoa honesta, sempre fui digno de confiança, sempre reservado, discreto como um muro caiado de branco, um amigo de verdade, um cidadão diligente, um comunista fiel, um cristão decente...

— Você está querendo algum certificado de conduta oficial? — perguntou Kasutin, impaciente. — Aqueles que vêm a mim às 9 horas da manhã...

Babajev levantou os braços, como se precisasse exorcizar algum espírito; depois, retirou as ampliações do envelope e colocou-as sobre a mesa, com a parte da frente para baixo. Kasutin sentiu um formigar debaixo de seus cabelos. Foi atacado também pelo grande medo de todos os russos, o medo de que algum espião ou então algum elemento nocivo ao Estado andasse metido no círculo de suas amizades. Até aquele momento, Novo Korsaki havia sido dispensada desse tipo de problemas, com exceção da briga que Kasutin fora obrigado a empreender com a direção do Partido em Magnitogorsk, que o havia recriminado porque ele ainda suportava uma igreja e um pope em sua cidade. Isso era uma vergonha. Depois disso, Kasutin convidara o primeiro e o segundo secretários da direção do Partido para uma caçada em Novo Korsaki, a fim de que eles pudessem ter uma visão pessoal da população. Também o pope, o paizinho Akif, meteu-se com eles dentro dos bosques. Foram formados dois grupos e, de uma maneira que não se sabe bem, aconteceu que o grupo com os dois convidados perdeu-se e vagou de um lado para o outro, desamparado. O cidadão cossaco Ivan Filippovitch, também acometido dessa inquietação, revelou-se como um perfeito imbecil e covarde naquela situação: sentou-se num cepo, chorou lágrimas amargas enquanto chamava desesperado pelo pope, a fim de que pudesse confessá-lo ainda uma última vez antes que os lobos o espedaçassem.

Os convidados da capital conheceram o grande tremor. Na noite seguinte, sentados juntos a uma fogueira que fumegava miseravelmente por causa da madeira úmida, eles ouviram os uivos da matilha assassina, às vezes próxima, às vezes mais afastada, mas sempre em volta deles, e esses uivos penetraram-lhes tanto nos ossos, que o primeiro-secretário teve de desaparecer e agachar-se atrás de uma árvore cinco vezes nessa noite, para comprimir para fora das tripas todo o medo que sentia.

E os lobos seguiam uivando. Finalmente tão próximos, que o semi-idiota Ivan Filippovitch caiu de joelhos, cantou uma música de igreja e rezou.

— Agora chega — Kasutin cochichou então para o Pope Akif, que sabia imitar tão bem o uivo de um lobo.

— Agora vamos partir para salvá-los.

Por conseguinte, o paizinho Akif agarrou sua espingarda e deu uns tiros, gritando e ofegando e, saindo da espessura da mata, irrompeu no lugar de acampamento. Sua aparência era impressionante, com seu casaco de pele incrustado de gelo e a barba congelada.

— Eles já foram embora — gritou, agitando sua espingarda. — Dei cabo de dois e os outros... pernas pra que te quero... saíram em disparada! Não passavam de covardes. Só o que se tem a fazer é contrapor-se a eles de maneira valente, assim como vocês fizeram, companheiros de Magnitogorsk. Muito bem, vocês são uns homens durões!

Três dias depois, os funcionários do Partido viajaram de volta. Nunca mais se falou de um fechamento da igreja.

Portanto, essa havia sido a única dificuldade que Kasutin tivera até aquele momento. Mas agora o fotógrafo Babajev estava sentado diante dele, às nove horas da manhã, trémulo e empalidecido, e ainda por cima apresentando fotografias desconhecidas, nas quais, na certa, deveria haver algo monstruoso.

— Que... que foi que você fotografou aí? — perguntou Kasutin com a voz cautelosa.

— Eu, nada. O companheiro Jankovski. Eu só fiz revelar e ampliar o filme.

Jankovski! Minha suspeita, pensou Kasutin. A sensação que tive! Minha voz interior. Já quando ele entrou aqui pela primeira vez, alto, louro, livre e desimpedido, já então eu sabia: vou acabar tendo dificuldades com esse sujeito. Tão vigoroso, tão certo da vitória, aí está o tipo de pessoa que é capaz de cuspir na cara da gente e ainda por cima gritar saúde.

Aí está, Jankovski. Apesar de três assinaturas e quatro carimbos. Que camuflagem mais completa! Geólogo!

Assim pode-se chegar a qualquer lugar com seus instrumentos, sem dar na vista do que se está realmente fazendo. Então, pode-se ficar olhando por aí. E o sujeito espionando.

— Que é que tem nessas fotografias para ser visto? — perguntou Kasutin, aflito.

— Peço-lhe a mais rigorosa discrição — Babajev levantou a primeira foto e manteve-a diante dos olhos de Kasutin — e, por favor, fique bem calmo.

Curvando-se para a frente, Kasutin mirou a ampliação e seus globos oculares começaram a tremer. Babajev balançou a cabeça.

— Isso é que é fotografia, não é mesmo? — disse ele, arrastando as palavras.

Kasutin recolheu a cabeça, esfregou os olhos descuidadamente e depois apontou para a pilha.

— Tudo assim? — perguntou, enrouquecido.

— Sim.

— Todas com a mulher nua?

— Todas. Às vezes de frente, às vezes de lado, às vezes por trás, depois enviesado de cima, enviesado por baixo...

— Pare com isso, Nikita Romanovitch! — gritou Kasutin. — Isso é inacreditável.

— Convença-se você mesmo. Cada fotografia pior que a outra. São realmente pontos culminantes em termos de indecência.

— Fotos do nosso companheiro Jankovski?

— É isso aí, Piotr Dementievitch.

Então, Babajev dispôs as fotos umas ao lado das outras. Os olhos de Kasutin quase saltaram para fora da órbita. Ali estavam as coxas esticando-se, os quadris arredondando-se, os seios empinando-se, a barriga brilhando, os ombros cintilando, os músculos das costas enrijecendo-se, as nádegas chamando a atenção. Jankovski era um mestre da fotografia.

— É evidente que essa aqui é uma mulher maravilhosamente linda e deve morar em Novo Korsaki — explicou Babajev. — Essas fotografias foram tiradas há pouco tempo. Contudo, Jankovski nunca foi visto junto com uma mulher. Isso quer dizer que são tomadas clandestinas, são fotos de uma mulher sobre a qual ninguém sabe que ela se deixa fotografar nua por Jankovski. E é isso que me deixa assim tão intranqúilo. Qual a mulher que vive por aqui e é tão linda? Que mulher tem um corpo tão esplêndido como esse? Que mulher teria essa relação clandestina com Jankovski? Essas perguntas me deixam doente.

Kasutin calou-se. Cravou os olhos nas fotografias e compreendeu a agitação de Babajev. Os retratos eram tão perfeitos, mas em todos faltava a cabeça. Aquela beleza começava na parte inferior do pescoço e terminava abaixo do joelho. Não importava de que parte e de que perspectiva aquelas fotos indecorosas haviam sido tiradas, a cabeça faltava sempre. Aquele superlativo de beleza era anónimo... mas era um superlativo que vivia no meio deles.

Kasutin pigarreou, segurou cada uma das fotos, levou-as para bem perto dos olhos e apalpou cada milímetro.

— É inútil — Babajev fez-se ouvir. — Já revistei todas elas com uma lupa.

— Você é um indecente, camarada Babajev!

— Para mim só se tratava de tentar esclarecer.

Quero desmascarar essa imoralidade, estou querendo minar-lhe o terreno.

Kasutin deixou que as fotografias caíssem. Contemplá-las mais de perto alvoroçava-o mais do que ele queria reconhecer. Além do que, a forma dos seios recordava-lhe demais as formas de Dunia Sergeievna. Com esses pensamentos, entorpeceu-se internamente e seu rosto tornou-se avermelhado. Explodiu nele um pedaço de recordação. Como é mesmo que Jankovski dizia sempre que se encontrava com Dunia lá fora, na antecâmara? ”Ah, aí está meu pequeno esquilo! Dunia, você está se transformando em um perigo permanente: a cada dia que passa você se torna mais bela!” E que é que Dunia fazia então? Ela dava uns risinhos meio bobos, revirava os olhos e balançava a bunda.

Kasutin apoderou-se de uma fotografia que mostrava a desconhecida por trás. A semelhança era evidente. Piotr Dementievitch gemeu consigo mesmo, dando uma mordida no lábio inferior. Podia ser Dunia. Essa racha característica entre as polpas. O débil ponto do cóccix que se salientava na pele. Kasutin conhecia tão bem o corpo de Dunia que, quanto mais tempo contemplava as fotografias, mais ruidosa se tornava sua respiração. É possível isso?, pensou amargurado. Ela me engana com esse sujeito. Enquanto eu fico aqui estudando Lenin, ela se deixa fotografar por baixo e por cima, da direita e da esquerda, por trás e pela frente. Mas que coisa mais abjeta! Que imoralidade! Mas é claro que ele a persuadiu com seus cabelos louros e seus olhos azuis, com suas histórias de fanfarrão, com aquele maldito talento que tem para agradar às mulheres. Dunia Sergeienka! Porra, como dói no coração!

Kasutin jogou as fotos para um lado e escondeu suas mãos debaixo da mesa. Babajev não deveria ver como elas estavam tremendo.

— A maneira mais simples de se proceder seria perguntar ao próprio Jankovski — adiantou-se ele.

— Pelo amor de Deus, isso é impossível. Um fotógrafo tem a mesma obrigação de calar-se que um confessor.

Um fotógrafo é o confidente mais íntimo de seu cliente. É completamente impossível fazer-se a pergunta: Victor Semionovitch, quem é essa bela mulher nua? Ele poderia esbofetear-me e eu nem ao menos poderia denunciá-lo. Você não está nem autorizado a saber nada sobre os retratos.

— E então por que é que veio mostrá-los a mim? — Kasutin agitou-se. — Por que é que veio me roubar a tranqüilidade?

Com olhos infelizes, Babajev fitou Kasutin.

— Nós somos amigos — disse ele — e somos pessoas com princípios rígidos. Em nosso meio, uma mulher divinamente bela encontra-se num mau caminho. Não dá nem para imaginar o que pode resultar disso. Tragédias matrimoniais, assassinato, suicídio, choros de crianças e mães, um pai enforca-se por causa de sua filha imoral... Nós podemos impedir tudo isso, Piotr Dementievitch, se conseguirmos descobrir quem é essa mulher que aparece nua nas fotos. Só é preciso que se busque a cabeça desse corpo, então nós a teremos. É preciso que se faça comparações, dando uma olhada em volta. Quem é que poderia ter um corpo tão belo assim? A escolha é infimamente pequena. Afinal, quem é que tem esse corpo tão perfeito, esses seios tão rígidos, essas coxas tão lisas, essa protuberância traseira?

— Isso mesmo, quem é que tem esse tipo de coisa? — novamente Kasutin pensou em Dunia Sergeievna e na possibilidade de que ela se deliciasse secretamente com prazeres proibidos. Isso era possível na casa do velho Fessenko. O velho era deficiente auditivo e se Dunia estivesse arquejando e gemendo lá em cima, no quarto de Jankovski, nunquinha que Fessenko iria ouvir, principalmente se estivesse folheando seu livro de guerra. Agora Kasutin compreendeu também por que Jankovski havia trazido de Leningrado o livro ilustrado para o velho.

Ele rangeu os dentes; por baixo da mesa, cerrou os punhos, irado, e começou a suar de raiva.

— Como é que você imagina que a coisa pode ser? — perguntou a Babajev, com a voz áspera. — Claro que não posso estar chamando todas as criaturas femininas para que compareçam à sede do Partido e ordenar: camarada, dispa-se, por favor, tenho de dar uma examinada em você em caráter oficial. Existiriam homens que, antes de mais nada, iriam querer dar uma olhada nesse decreto.

— Poder-se-ia fazer de uma outra maneira — disse Babajev, pensativo. — A legislação da Saúde contém o regulamento do exame de precaução. Se amanhã você der a conhecer que surgiram alguns casos de cólera na região do Tobol inferior e que por isso todas as mulheres teriam de ser examinadas como medida de cautela, você teria todas elas aqui. Essa seria a maneira mais discreta.

— Isso só daria certo se o Dr. Lallikov participasse

— Kasutin olhou melancólico para Babajev. Estava sendo devorado pela falta de confiança em Dunia Sergeievna. Mais uma vez,, agarrou as fotografias, folheouas e ficou preso à foto das coxas. E então a coisa caiu-lhe como um relâmpago: ele conhecia essa postura. Era assim que muitas vezes Vera ficava sentada quando saía do banho e penteava-se diante do espelho. Exatamente dessa maneira. A posição de suas costas. Sua mulher, Vera. Coxas magníficas, lisas e bem delineadas, brilhando depois do banho e com o perfume de sabonete de rosas.

Vera! A mãe de seus dois filhos. Com que freqüência Jankovski havia comparecido a sua casa como convidado? Quase não dava para contar. E todas as vezes Vera comportara-se como se fosse uma mocinha, cozinhara de uma maneira especialmente boa e saltitara de um lado para o outro como uma potranca. Sim, exatamente assim. Caiu como caspa diante dos olhos de Kasutin. E as fotos estavam de acordo com isso. Não eram retratos das coxas de uma jovem e sim de uma mulher saudável e vigorosa de 39 anos. Vera Konstantinovna Kasutina. Ah, meu Deus, segure-me para que eu não arranque minha espingarda do armário e saia correndo em direção a Jankovski! Afinal de contas, não estou sabendo de nada, não tenho permissão para ver as fotos. Tudo tem de ser feito na maior tranqüilidade possível. Até agora Novo Korsaki foi uma cidade sem nenhum escândalo...

— Claro que nós temos de meter o Dr. Lallikov nesse segredo — disse Babajev, de modo penetrante — só ele pode proceder ao rastreio. Nesse caso será muito simples. Eu ficarei atrás de uma parede, olhando através de um buraco e com as fotos na mão. Meu olho fotográfico verá imediatamente quando o modelo de Jankovski virar-se diante do Dr. Lallikov. Então, farei um sinal para você.

— Vai ser impossível — Kasutin balançou a cabeça. — O Dr. Lallikov jamais permitirá que você fique olhando todas as mulheres peladas de Novo Korsaki. Porra, mas que ideia!

— Mas o Dr. Lallikov vai poder?

— Foi para isso que ele estudou medicina. Quando os médicos estão cumprindo sua missão, são criaturas assexuadas. Realmente, trata-se de uma profissão bem difícil — Kasutin olhou pela janela. Lá fora, o gordo comissário de construção estava passando; ele era a única pessoa que possuía uma grande limusine Volga. Sua mulher, Antonina Pavlovna, estava sentada a seu lado. Ela era conhecida por sua beleza, só que se maquiava muito. Havia dançado a noite inteira com o geólogo Jankovski na festa da Associação da Juventude. O bondoso Zvetkov alegrara-se com o fato, ele estava gordo demais para dançar.

Kasutin entorpeceu-se, voltou a dar uma mirada nas fotografias indecentes e foi dilacerado pela dúvida. Dunia, Vera ou talvez, quem sabe?... Antonina Zvetkova? Babajev tinha razão: o caso ali era de se fazer um esclarecimento. Viver com essa incerteza era fatal, suicídio. Essa bela pelada tinha de receber uma cabeça e com isso uma identidade.

Kasutin agarrou o telefone e chamou o Dr. Lallikov.

— Estou precisando de você com urgência, Simon Mikhailovitch — disse ele, enrouquecido— senão minha cabeça vai explodir.

O Dr. Lallikov foi imediatamente. Era um homem baixo e gordo e usava óculos cujas lentes eram tão grossas e polidas, que aqueles que só olhassem para seus óculos começavam a lacrimejar imediatamente. Era asmático, coisa que ele, no entanto, não atribuía a sua obesidade e sim a um padecimento puramente psíquico, provocado por seus malditos pacientes que, como ele mesmo afirmava, estreitavam seus pulmões e comprimiam seu coração.

Na verdade, Lallikov tivera uma formação como cirurgião e, durante muitos anos, sonhara em ser o médico-chefe de uma grande clínica. Mas então a ruptura dos testículos do presidente do complexo industrial de ferro ”Honra do Ural”, em Sverdlovsk, meteu-se em seu caminho. Boris Nikolaievitch Werschokin, era assim que se chamava o influente homem, entregara-se aos cuidados do Dr. Lallikov com sua enfadonha ruptura, com a legítima esperança de, após alguns dias, poder voltar a saltitar de um lado para o outro como um cabritinho. Lallikov fez uma fantástica operação, extirpou, arrumou as coisas, costurou de uma maneira bem artística. Mas quando o camarada Werschokin, contente e confiante, retornou a sua cidade natal e, como esperava Praskuja, sua mulher sedenta de amor, proporcionou-lhe uma demonstração palpável, da boca da mulher escapou um grito de espanto, enquanto Boris Nikolaievitch sucumbia em um choque entorpecedor.

A coisa tornara-se irreparável: o Dr. Lallikov havia castrado o presidente Werschokin com a perfeição mais artística possível. Naturalmente que o escândalo foi abafado e com isso se impediu que Werschokin estoporasse com o crânio de Lallikov, mas, em relação à grande carreira do cirurgião Lallikov, o sonho estava acabado de uma vez para sempre. Na clínica, o Dr. Lallikov teve de assumir a autópsia dos mortos cujas causas de morte estavam sendo estudadas. Depois disso, por desgosto, ele carcomeu sua monstruosa barriga em três anos até que, finalmente, renunciou, com os nervos à flor da pele. Mudou-se para Novo Korsaki, onde haviam instituído um consultório médico. Ali, em seu consultório, ele vivia perdendo a calma com seus pacientes e tornando-se, grama após grama, sempre mais gordo e asmático.

— Se se considera — dizia ele muitas vezes — que eu estava fadado a transplantar órgãos inteiros e a revolucionar a cirurgia, mas que no entanto encontro-me largado aqui nesses bosques, sendo obrigado a desalojar peidos renitentes, então sabe-se que a miséria da humanidade inteira caiu sobre meus ombros.

Que tenha podido atender de imediato à chamada de Kasutin, ele devia agradecer à sua péssima maneira de tratar os pacientes. Ele era ligado ao secretário do Partido pelo amor ao xadrez, que era a única distração que o Dr. Lallikov se permitia; aliás, diga-se de passagem, que contava-se também entre suas predileções a lavagem intestinal que ministrava semanalmente no pope, o paizinho Akif.

— A misericórdia de Deus não é tanta assim para fazer com que Ele se ocupe do intestino paralítico de seu pope — gritava cada semana o Dr. Lallikov com a voz de disfarçada alegria, quando o paizinho Akif, com o rosto contido e deitado de barriga para baixo, estendia-lhe seu traseiro pelado. — Paizinho, respire bem fundo. Agora nós vamos dar um gargarejo mais forte.

Portanto, nessa manhã, depois da chamada de emergência de Kasutin, o Dr. Lallikov escancarou a porta que dava para a sala de espera, lançou um olhar para a multidão dos pacientes que estavam à espera e grunhiu:

— Alguém aí vai ser levado pela corrente? Não! Alguém aí vai morrer? Não! Todos vocês podem muito bem esperar, seus fingidos de olhos arregalados. Preciso sair para atender um caso que pode ser fatal.

Como ninguém ousasse aborrecer o Dr. Lallikov — afinal de contas, ele era o único médico em Novo Korsaki e nunca se sabia se realmente se iria precisar dele com urgência algum dia — todos eles inclinaram a cabeça, fazendo rostos entristecidos e permanecendo pacientemente sentados. Isso também tinha seu sentido, pois quando Lallikov não estava no consultório, sempre havia a ajuda de consulta de Marfa Felixovna...

Na verdade, Marfa havia estudado corte e costura, coisa que Lallikov via como a combinação mais perfeita para se estar enrolando ataduras e ligando suturas. E, no fundo, Marfa familiarizara-se perfeitamente com o trabalho. Era ela quem levava 80 por cento do consultório sozinha, especializou-se mais com as leituras de revistas especializadas e, com isso, foi auferida com o título de ”assistente médica”. E como ela assumiu o trabalho relativo a tal ”assistência”, exigiu, e com toda razão, que a partir daquele momento fosse intitulada ”senhora assistente”. Os pacientes mudaram de atitude voluntariamente e, com todo o respeito, saudavam-na com a nova designação, pois nenhum ser humano se sente mais miserável e desprotegido que um paciente que esteja exposto por completo à misericórdia de um tratamento médico. Pois foi assim que aconteceu que se respirou fundo quando o Dr. Lallikov teve de abandonar rapidamente o consultório e entregar a loja a Marfa Felixovna. Primeiro, porque agora tudo iria caminhar mais rápido; segundo, porque as pessoas não iriam ser xingadas; terceiro, porque Marfa tinha mãos sensíveis e delicadas, mãos que faziam com que as pessoas se deixassem apalpar com gosto e, em quarto lugar, porque quase sempre seus diagnósticos estavam corretos. Eram bem diferentes daqueles do Dr. Lallikov. Quando Lallikov grunhia:

— Você está dizendo que está com dores nas costas? Aí está, mais uma vez! Você comeu ontem, domingo, mais uma vez como um touro e agora está tudo congestionado no intestino! Volte de novo quando você tiver enchido a cuba!

Num caso como este, podia-se ouvir de Marfa Felixovna:

— O maldito reumatismo. Aqui tem você um bom bálsamo. Faça massagens vigorosas nas costas pela noite.

Pode-se compreender que se visse Marfa como uma verdadeira bênção que, infelizmente, não era possível sem o Dr. Lallikov.

Kasutin e Babajev estremeceram quando o Dr. Lallikov irrompeu no escritório do Partido e interrompeu a secretária Dunia Sergeievna com a seguinte observação:

— Cale o bico. Sempre se pode tapar com pó as manchas de carimbo.

Kasutin estremeceu, como se tivesse recebido um potente golpe e fitou o médico com irritação.

— Que é que o senhor tem a dizer, camarada Lallikov? — perguntou ele, com a voz engrolada.

— Você não escutou nada — vociferou Lallikov, sentando-se ao lado de Babajev — estou subordinado à obrigação do silêncio profissional.

— Como é que Dunia Sergeievna tem manchas de carimbo? — Mesmo assim, Kasutin perguntou, com um tremor na voz: — E, por favor, onde é que ela tem essas manchas de carimbo?

— Por que é que eu deveria vir imediatamente? — Lallikov tratou de esquivar-se.

— Por causa da obrigação profissional de manter o segredo — interrompeu Babajev.

— Ela é de ferro.

— Graças aos céus — Babajev esfregou as mãos. — O senhor poderia ser-nos de uma ajuda valiosa, doutor.

Kasutin acenou com ambas as mãos.

— Qual é o problema com Dunia? — seguiu ele, sondando. — Camarada Lallikov, como secretário do Partido e como empregador, sou responsável pela integridade e bem-estar de meus queridos cidadãos. Como é que estão aparecendo manchas de carimbo em Dunia Sergeievna? Desde quando? Essas manchas são de origem animal ou mecânica? Em que lugares elas se encontram?

— Trata-se — disse Babajev começando a suar novamente — de encontrar uma mulher sem cabeça.

— Ah! — Lallikov estremeceu no espaldar da cadeira. — Um assassinato? — Seu coração deu um salto.

Ele sempre havia desejado poder participar de um caso de crime como perito, para provar como seus pensamentos ainda estavam aguçados. Mas em Novo Korsaki não acontecia nada, as pessoas ali fediam a honestidade. Quando, um dia, quatro anos atrás, o motorista interurbano Sergeij engravidou com violência a filha do marceneiro Njemlenko, o caso foi resolvido de imediato, com Sergeij casando-se com a moça. Nenhum sinal do drama. Na Sibéria as pessoas estouravam de tanta honestidade. Mas agora isso aí! Uma mulher sem cabeça! Em Novo Korsaki!. O Dr. Lallikov teve um de seus ataques de asma e precisou amparar-se no canto da mesa.

— Um assassinato com estupro? — arquejou ele, com os olhos quase saltando para fora das órbitas. — Abusada e depois com a cabeça arrancada? Nossa Senhora! Começou a soprar aqui nesse lugarejo um certo vento de grande cidade. Onde é que se pode inspecionar a senhora?

— Aqui — Babajev pousou suas mãos sobre as fotografias. — Eu já ampliei-as.

— Que foi que você fez? — perguntou Lallikov, sem respiração.

— Tenho 12 fotografias dela. De cima e por baixo, de todos os lados.

— Magnífico.

— Mas está faltando a cabeça.

— Claro — o Dr. Lallikov esticou a mão e agitou os dedos. — Passe para cá. Não fique aí falando, Nikita Romanovitch. Foi uma decapitação limpa? Quero dizer: um corte elegante? As fotos para cá! Por favor, não impeça o esclarecimento da verdade.

— Trata-se de nossas pessoas, doutor — disse Kasutin, apoderando-se das fotografias antes que Lallikov pudesse agarrá-las — se o senhor puder identificar a desconhecida. Será que dá para reconhecê-la mesmo sem cabeça, só com a ajuda do corpo? Os seios, a barriga, as coxas...

— Ela está nua? — perguntou Lallikov, arquejando pesadamente.

— Sim, completamente.

— É incontestável que se trata de um delito sexual.

— Pode-se chamá-lo dessa maneira — disse Babajev — em todo caso, trata-se de um gigantesco escândalo para nossa cidade. Como uma mulher se deixou fotografar nua...

— Sempre é perdoável se não se dispõe de mais nenhuma cabeça — Lallikov voltou a sentar-se. Havia passado seu ataque de asma. — Onde é que está a mulher? O corpo, ao vivo, dá mais explicações que as fotografias.

— Nós só temos os retratos — Kasutin suspirou. — O negócio é esse, companheiro, nós só temos as fotografias sem a cabeça e estamos querendo saber quem é. Claro que já apareceram todas as mulheres de Novo Korsaki em seu consultório; por isso mesmo, seria possível que você, com a ajuda de sinais físicos particulares, estivesse capacitado a dizer: esta é a companheira fulana de tal.

— Quem foi que fotografou a morta?

— O geólogo Jankovski.

— Meu Deus! — o Dr. Lallikov respirou com dificuldade. — Mas isso é impossível. Victor Semionovitch não é nenhum assassino.

— As fotografias mostram também uma viva — disse Babajev em voz alta.

— Sem cabeça? — vociferou Lallikov. — Será que vocês todos já estão bêbedos pela manhã?

— Ele deixou que as cabeças ficassem de fora. Todas as fotografias começam do pescoço. Uma imper tinência.

Com que então ele fotografa um corpo nu de mulher e deixa a cabeça de fora! Uma infâmia! Uma carga espiritual para qualquer um! — Kasutin engoliu em seco de tanta agitação, tossiu como se estivesse latindo e, com muito esforço, recuperou-se. — A gente acaba tendo uns pensamentos, doutor, mas uns pensamentos... são capazes de despedaçar qualquer um. E não se pode ir perguntar a Jankovski. Como fotógrafo, Babajev é uma pessoa de confiança, como o senhor também é como médico. Mas não se pode deixar de dar atenção à mulher nua, ela está aí, vive entre nós e posou nua diante da câmara de Jankovski — Kasutin estava quase estertorando. — Dê uma examinada o senhor mesmo.

O Dr. Lallikov folheou as fotografias, olhando-as detalhadamente com desconfiança e, de vez em quando, como as lentes embaçassem, limpava os grossos óculos.

— Excelente — disse a certa altura. — Muito bonito. Convincente. Ora, ora, ora, isso sim é que é perspectiva! Ah, que excitante! Isso aqui foi realizado com o olhar de amante. Não, essas formas! Nenhuma ruguinha. Nenhuma celulite. Não tem nada pendurado.

Kasutin afundou a cabeça entre as mãos e, desesperado, cravou os olhos no médico.

— Qual a mulher nessa nossa pequena cidade que tem um corpo como esse? — perguntou ele, abafado. — Quem poderia ser? Simon Mikhailovitch, agora estoulhe perguntando, não como médico e sim como companheiro do nosso glorioso Partido Comunista. Dê uma olhada no retrato de Lenin, olhe bem em seus olhos, reconheça nossa missão no olhar dele: a verdade em benefício do socialismo. Você tem de falar, Dr. Lallikov. É a sua obrigação como membro do Partido. Com isso, estará servindo à tranqüilidade de Novo Korsaki.

O Dr. Lallikov voltou a colocar as 12 fotos dispostas em fila, e, mais uma vez, examinou-as detalhadamente.

Babajev fumava umpapyrossa com dedos trémulos, Kasutin sorvia o chá frio do café da manhã. Se ele falar Vera, dou um tiro em Jankovski, pensava o secretário do Partido, enquanto isso. Se ele disser Dunia Sergeievna, meto bala nos dois. Mas se for a aristocrática e orgulhosa Zvetkova, encho a cara de alegria. Vejo com bons olhos que o nojento Zvetkov, que enriqueceu no Departamento de Construções, tenha merecido tal coisa.

— É difícil — disse o Dr. Lallikov, devagar e cauteloso. — Quase nunca vi um corpo de mulher tão perfeito como esse em meu consultório. No entanto, existem alguns. Poucos! Raridades!

— Nomes! — disse Kasutin, com a voz rouca. — Por favor, nomes, querido camarada...

— É perigoso.

— Poderia ser também minha mulher Vera?

— Não. Completamente fora de propósito. Os seios dela já estão um pouco caídos.

— Tem razão — disse Kasutin, com a voz mais rouca ainda. — Dois filhos, camarada...

— Justamente — Lallikov golpeou com a dobra dos dedos sobre as fotografias. — Esses aqui são seios virginais. Rígidos como um melão. Pode-se vê-lo também no corpo. Esse corpo nunca pariu. É de uma natureza ainda não arada.

— Nomes — voltou a dizer Kasutin. — Por favor...

— Só hipóteses.

— Naturalmente. Elas só serão pontos de partida.

— Poderia tratar-se também de Galina Ivanovna.

— Não! — Babajev deu um salto. — A pequena que trabalha no supermercado? Aquela criatura amigável que sempre me dá um pedacinho a mais de queijo porque eu forneço papel de escrever para ela?

— Ou também Alia Filippovna.

— Seria possível — Kasutin alisou o nariz. — A viúva Sitkina é um verdadeiro diabinho. Desde que ela se viu liberada do velho Sitkin, os rapazes passeiam por sua casa como gatos. A viúva Sitkina... talvez fosse a solução.

— Mas ela tem um sinal embaixo do seio esquerdo... onde está ele? — O Dr. Lallikov examinou mais profundamente uma fotografia. — Não dá para ver nada. Sem a sarda não posso identificar Alia Filippovna. Ah, como é difícil. Se fixo bem a vista, chego à conclusão de que também poderia ser Rimma Ifanovna.

— A cesteira? — Babajev balançou a cabeça. — Sabemos que ela é um pouco débil mental. Caiu da janela quando criança e desde então não presta para nada. Ainda conseguiu aprender a fazer cestos. Acho impossível que Jankovski, um esteta como se pode ver, tenha-se aproximado de Rimma Ifanovna.

— O corpo dela é encantador e imaculado — disse o Dr. Lallikov. — Ela é a moça mais bonita de Novo Korsaki. Por que é que Victor Semionovitch iria se deter com valores espirituais, quando pode obter valores físicos incomparáveis? Portanto, por que não Rimma Ifanovna?

— E como é que é a coisa com Dunia Sergeievna? — perguntou Kasutin como quem não quer nada.

O Dr. Lallikov voltou a fixar a vista nas fotografias.

— Por que não? — disse ele, depois de uma torturosa observação. — As coxinhas podem ser as dela. A bunda também.

Eu já sabia disso, pensou Kasutin. Era o que eu suspeitava. Sentia isso. Dunia e Jankovski. É a bunda de Dunia. Conheço essa bunda bem demais. Em todo caso, melhor que o Dr. Lallikov, que voltou a enrugar a testa. Pode parar por aí, companheiro, trata-se de Dunia Sergeievna. Só ela tem essa racha tão doce nas nádegas. Pobre de mim. Eu, o derrotado.

— Mas poderia ser também Antonina Pavlovna disse Lallikov.

Babajev expeliu o ar, soltando um ruído.

— A mulher do camarada Zvetkov?

— Muito atraente. Ela também ainda não teve filhos. Mas o problema é de Zvetkov. Rassul Alekseievitch está gordo demais. Poupem-me de entrar em detalhes, companheiros. Mas poderia ser também o corpo de Antonina Pavlovna. Um corpo como que de mármore — o Dr. Lallikov assoou-se e esfregou seus óculos de novo. — Realmente, trata-se de uma tarefa difícil, meus queridos. Um corpo de deusa... e depois, nenhuma cabeça! É exigir demais de um médico. Geralmente nós olhamos as pacientes em uma situação melhor.

— Mas em princípio! — arquejou Kasutin. — Em princípio, camarada.

— Bom, em princípio poderia ser também Stella Gavrilovna.

— Desisto — disse Babajev, comovido. — Como é que a jardineira do nosso cemitério vai ter uma silhueta tão magnífica como essa?

— Isso aí a gente tem de perguntar ao bom Deus — o Dr. Lallikov golpeou sobre duas fotografias. — Isso aqui parece muito com Stella Gavrilovna. Essas cadeiras! Eu gostaria de dizer: quase inconfundíveis. E a curva do corpo... ainda me lembro perfeitamente quando um tubinho de comprimidos rolou acidentalmente desde seu umbigo até o meio de suas coxas. E o que ela fez foi rir-se, rir-se.

— Também acredito nessa possibilidade — Kasutin mordeu o lábio inferior. — Quantas nós temos até agora?

— O bastante para desesperar — disse Babajev. — É impossível que Jankovski fosse tão íntimo assim de todas, que...

— Por que não? — O Dr. Lallikov pigarreou, o que fez aumentar o suspense. — Jankovski é um rapagão robusto. Trinta e dois anos de idade. Um tronco da melhor árvore. E há quanto tempo ele já se encontra em Novo Korsaki? Bem... certamente já há uns nove meses. Queridos companheiros, quanta coisa um homem como Jankovski pode ter aprontado em nove meses? Precisamos levar tudo isso em consideração. Tudo e todos. Essas fotografias provam: Jankovski é um excelente conhecedor da beleza. E essa mulher que ele eternizou... ela vale a pena. Como médico que sou, tenho suficientes possibilidades de comparação para sentenciar: Este aqui é um corpo único, sem igual.

— E isso em nossa cidade!

— Sim! Deveríamos ficar orgulhosos disso!

— Uma Vénus sem cabeça!

— Vamos colocar-lhe uma! — Agora, o Dr. Lallikov foi acometido também por uma espécie de febre de caçada. Ele via o problema todo de um modo bem esportista: uma caçada com objetivo ainda desconhecido, a descoberta de terras virgens; o término de um quebracabeça. A tarefa tinha de ser resolvida. — Vamos resumir o que temos em mãos. Camarada Kasutin, vá anotando. São as seguintes as que estão em dúvida: Antonina Pavlovna Zvetkova, Alia Filippovna Sitkina, Galina Ivanovna, Rimma Ifanovna, Stella Gavrilovna.

— E Dunia Sergeievna? — perguntou Kasutin, de modo abafado.

— Também. Entra na lista do mesmo modo que as outras.

— Na lista também — a mão de Kasutin tremeu quando ele anotou o nome. O suor escorria de sua nuca, encharcando a camisa e as costas. — E como vai ser a coisa daqui por diante?

— Começaremos por onde na maioria das vezes as coisas terminam: pelo cemitério. — O Dr. Lallikov esfregou as mãos. — Stella Gavrilovna colabora estreitamente com o pope. Pode ser que Mamedov tenha visto, casualmente e mais do que era preciso, Jankovski conversando com Stella. Talvez ele a tenha visitado na casa do jardineiro, não é mesmo? Vamos interrogar o paizinho Akif.

— Isso significa que temos de meter o pope no segredo — disse Kasutin, amargo.

— Ele vai ficar feliz por descobrir pecadores em sua comunidade. Além disso, tudo ficará entre nós: um médico, um sacerdote, um fotógrafo e um secretário do Partido são os confidentes dos cidadãos. Nós somos o muro das lamentações. Somos nós que engolimos tudo. Seria descortês manter o pope fora desse assunto.

— Ele vai ser a pessoa que dará menos informações sobre quem é a mulher nua que aparece nas fotografias — disse Kasutin, de modo brusco.

— Nisso aí também as pessoas se enganam — o Dr. Lalikov deu um sorriso amplo e malicioso. — Não se deve subestimar nenhuma pessoa.

As pessoas que entravam na igreja, não importando que posição social tinham na vida, nem que nome possuíam, sentiam veneração no mesmo momento em que reparavam em Akif Victorovitch Mamedov. Quando o pope dobrava a iconoteca, com o hábito ondeante, com a barba branca bem espalhada, de sobrancelhas carregadas, olhos ardentes e com uma voz que dava uma ideia do toque de fanfarra da ressurreição, então elas faziam o sinal-da-cruz e sucumbiam naquele estado que Lenin comparava com a embriaguez do ópio.

Akif Victorovitch, que nessa manhã estava sentado em um banquinho atrás da iconoteca, polindo duas cruzes douradas de missa, ouviu admirado a porta da igreja ranger. Refletiu sobre quem poderia ser aquele que pudesse estar tão atormentado pelos pecados naquele momento que tivesse necessidade da assistência sacerdotal. E então pôs o trapo de limpeza a um lado. A igreja de Novo Korsaki era pobre, não podia dar-se ao luxo de ter um sacristão. Tudo tinha de ser feito pelo próprio Mamedov. E quando algumas mulheres velhas, voluntariamente e com a promessa de que iriam para o paraíso, não esfregavam o chão, não espanavam a poeira, nem limpavam as janelas, então também essas atividades dependiam do paizinho Akif. Ele já tivera muitas dificuldades em encontrar um chantre para o culto religioso, pois os velhos já não tinham a voz forte e o Partido fazia propaganda contra o pope entre os jovens, dizendo-lhes que aqueles que fossem à igreja, ou mesmo que se apresentassem como chantres, estariam traindo o grande pai Lenin e não seriam dignos de serem aceitos na nação.

Por isso, o paizinho Akif teve de contentar-se com algo que era único no culto ortodoxo: deixou que a virgem Stella Gavrilovna fosse a chantre. Exatamente... a jardineira do cemitério de Novo Korsaki. Kasutin denominou esse arranjo de um péssimo jeitinho, mas com Stella era impossível se falar.

— Gosto de cantar — declarara para o protocolo em cinco citações da comissão do Partido. — Onde é que Lenin escreveu que um russo não pode cantar?

— Mas na igreja? — vociferou Kasutin.

— Canto também na Associação da Juventude, na festa do Primeiro de Maio e na comemoração da Revolução de Outubro, se me pedirem — respondeu Stella Gavrilovna. — Minha voz está à disposição de todo mundo.

Claro que Kasutin nunca lhe pediu. Por isso mesmo, mais forte borbulhava nele o triunfo de poder esclarecer ao pope que, provavelmente, Stella também estava à disposição de todo mundo de outra maneira, se lhe pedissem. Para Kasutin, esse momento significava uma batalha ganha contra os reacionários.

Akif pôs de lado o trapo de limpeza, ajeitou seu hábito de sacerdote, penteou a barba com os dedos escarranchados, colocou debaixo do braço a maior das duas cruzes polidas e entrou na igreja com grande dignidade. Contudo, ainda assustou-se quando viu de pé, um ao lado do outro, em fila, como se estivessem querendo cantar um cânone: Kasutin, Babajev e o Dr. Lallikov.

— A Trindade do Diabo — disse o paizinho Akif, com sua voz de trovão. Levantou a cruz, fez o sinal da bênção e ficou parado diante da iconoteca. — Qual a praga que vocês estão trazendo, meus filhos?

— Viemos em particular — disse Kasutin, com um largo sorriso que deveria servir para prevenir Akif. Quando Kasutin sorria na igreja, era sinal de que as portas do paraíso viriam abaixo.

— Trata-se de algo muito importante — fez-se constar Babajev. Com Babajev, o paizinho Akif tinha menos problemas... ele fotografava com virtuosismo as festas da igreja na Páscoa e no Natal. Uma grande fotografia dele, que mostrava Mamedov na celebração da Páscoa, em paramentos completos, estava pendurada na residência do pope, bem ao lado do altar com o fogo eterno.

— Estamos necessitando de seus valiosos conselhos — o Dr. Lallikov concluiu o misterioso cortejo.

Akif Victorovitch sucumbiu em um estado similar ao de vácuo. Não estava ligado ao Dr. Lallikov com nenhuma amizade direta; em compensação, o médico era um bom comunista e militante do Partido, mas o pope sempre teve Lallikov na maior conta, quando este dizia junto a cama de algum pobre enfermo:

— Aqui nenhum pozinho ajuda mais, só Deus.

Naturalmente que a parentada aflita saía imediatamente atrás do pope e Akif sempre conseguia fazer com que os pacientes de Lallikov morressem com dignidade e com a alma pacificada. Esse trabalho de mãos dadas provocou uma consideração mútua. Portanto, se o Dr. Lallikov aparecia na igreja pedindo conselhos, é porque devia tratar-se de um delito gigantesco.

O paizinho Akif colocou a cruz com cuidado sobre uma mesa, acenou e disse:

— Cheguem-se. Podemos beber um vinho de morangos enquanto conversamos.

Isso chegava quase a ser uma ameaça. Todos sabiam que o próprio sacerdote fazia um vinho de morango, vinho esse que tinha um efeito retumbante e que em nada ficava atrás de uma lavagem com óleo de rícino. Só com Akif mesmo é que o vinho se recusava a fazer o que a lavagem semanal fazia, lavagem essa que o Dr. Lallikov sempre acompanhava com citações da Bíblia. Akif sentia-se impotente contra tamanho conhecimento da Bíblia.

Sentaram-se em volta de uma mesa redonda na sala de estar. Akif foi buscar copos e uma garrafa de um litro, verde-escura, com seu vinho infernal. Esperaram gentilmente até que ele servisse, depois Babajev colocou suas ampliações sobre a mesa, primeiro com a parte da frente para baixo. O pope apertou o queixo, sua barba branca eriçou-se violentamente, os olhos miraram com uma agudeza desafiante.

— Estou ouvindo — disse ele em voz alta, já que ninguém falava.

— Vamos encurtar o assunto — explicou Kasutin, com a voz límpida. Vibrava por seu triunfo. — Claro que ele tem de calar-se.

— Vai ser uma confissão em comum? — Akif respirou fundo. — Será que as relações políticas mudaram de repente?

— Aqui! — Kasutin agarrou as fotografias, virou-as e jogou-as de novo sobre a mesa, em frente do pope. Ombros, seios, quadris, coxas, nádegas.

O Dr. Lallikov mandou um olhar de reprimenda para Kasutin.

— Seu bruto — disse ele, em tom de acusação — o paizinho podia ter tido um choque.

Akif Victorovitch deu um longo olhar nas fotografias e depois disse, tranqüilo:

— Uma mulher.

— Ele está reconhecendo — Kasutin deu um largo sorriso. — Isso nos poupa de mais explicações. Qual a sua opinião, camarada Mamedov?

O paizinho Akif, a quem sempre esse ”camarada Mamedov” caía como uma pedra no estômago, juntou as fotografias como se elas fossem uma coisa acabada para ele.

— Uma bela mulher — completou ele, agarrando seu copo de vinho de morango. — Seus indivíduos de baixos pensamentos: toda beleza é uma obra de Deus. Se uma rosa floresce, se um vidoeiro balança elegante ao vento, ou se um raio de sol cai sobre um seio de moça... Deus está sempre sorrindo.

— Com isso nós podemos ir — disse o Dr. Lallikov, de maneira sóbria. — Não se pode esperar mais nada aqui nesses cómodos sagrados.

— Nós pensamos que o senhor conhecesse essa mulher — Babajev fez-se ouvir.

O paizinho Akif estremeceu, colocou seu copo sobre a mesa sem haver bebido e vociferou, irritado:

— Euuu?

— Nós queremos dizer... — grasnou Babajev, afundando-se na cadeira.

— Eu? Com que então vocês vêm a mim, mostram-me uma mulher pelada e ficam aí esperando de mim as informações correspondentes? Ah, Deus que está aí em cima, o quanto eu tenho de padecer entre esses homens! Como essas criaturas afundaram! Fora daqui, todos vocês!

— Eu só queria dizer um nome...

— Para fora!

— Essa mulher nua não podia ser Stella Gavrílovna?

— Não! — vociferou o paizinho Akif.

— O senhor está tão seguro disso assim?

— Sim!

O Dr. Lallikov coçou o nariz, mas não havia mais volta atrás. Estavam entre eles, haviam formado a comunidade dos silentes.

— Como é que o senhor está tão seguro assim? — perguntou ele. — Akif Victorovitch, eu, como médico, não poderia estar tão seguro assim num caso como esse.

— Mas eu posso! — Akif pousou o poderoso punho sobre as fotografias. Olhou-as novamente e em seguida balançou a cabeça. — Não é Stella Gavrilovna! Onde estão os cabelos?

— Mas claro que está faltando a cabeça — disse Kasutin, em tom de desaprovação.

— Mas quem é que está falando de cabeça?

Babajev suspirou e fechou os olhos, comovido. Kasutin enrubesceu como uma papoula. O Dr. Lallikov cruzou as mãos sobre sua barriga em forma de bola como se fosse começar uma ladainha. Só Akif, o austero paizinho, é que ficou indignado, não consciente da revelação que acabara de fazer.

— Tem razão — disse Kasutin, compungido — ela não tem cabelos. Companheiro Lallikov, por que é que o senhor, como médico, não viu isso imediatamente? Será que precisamos de um sacerdote para esse tipo de coisas?

— Prestei atenção nas formas e não nos pentelhos — gritou Lallikov, ofendido.

— Moderem-se! — berrou Kasutin, agitado. Desmoronara-se seu triunfo sobre Akif. — Estamos diante de uma situação completamente nova: a mulher pelada raspou os pêlos de seu corpo.

— Nossa Senhora! — opinou Babajev, cheio de assombro.

— Uma mulher raspa os pêlos do corpo em nossa cidade e ainda por cima deixa-se fotografar dessa maneira. Isso golpeia no rosto toda a moral. Sem sombra de dúvida, trata-se da decadência ocidental. Com isso as fotografias se tornam políticas e passam a dizer respeito à direção do Partido. Trata-se de um ataque político e sexual à nossa ideologia. É uma sabotagem com a ajuda do baixo-ventre. Ah, isso não pode ser apresentado a Magnitogorsk de maneira nenhuma. Temos de extinguir esse vício, sozinhos e no maior silêncio possível. — Kasutin respirou fundo. — Essa fêmea raspa os pêlos do corpo... aí, nesse lugar! Companheiros, temos de impedir que Novo Korsaki seja infestado dessa maneira repugnante pelo Ocidente. Temos de encontrar essa mulher, custe o que custar. Esse corpo sem pêlos é uma declaração de guerra.

O paizinho Akif soltou um grunhido fundo, bebeu de um só gole seu copo de vinho de morango e voltou a cravar os olhos nas fotografias indecorosas.

— Portanto, Stella Gavrilovna está fora de suspeita — disse o Dr. Lallikov com pose de perito. — Akif Victorovitch está se responsabilizando por isso.

— Fiquem tranqüilos — disse o pope, rangendo os dentes.

— Qual foi a última vez que o senhor teve oportunidade de se convencer da existência de pentelhos?

— Seu diabo! — o paizinho Akif tremeu os olhos selvagemente. — Só Deus pode ver no coração de uma pessoa!

— Pelo menos Stella conhece o geólogo Jankovski? A cabeça de Akif pendeu para trás.

— Que é que Victor Semionovitch tem a ver com isso?

— As fotografias são originárias dele — explicou Kasutin, cheio de alegria. — Ele conhece Stella?

— Sim — Akif balançou a cabeça, em sinal de afirmação. — Ele vem buscar flores com ela, para embelezar sua moradia.

— Ah, ah! — Babajev gargalhou, gozando. — Que tipo de florezinhas são as que ele vem buscar? Esporeiras e botões de rosa negra?

— Em todo caso não a ”fidelidade masculina” — Kasutin meteu-se a fundo na discussão. — As fotografias são de data recente, já sabemos disso. Não seria possível que Stella Gavrilovna se tenha raspado de um dia para o outro? Principalmente por causa das fotografias? E o senhor não pudesse saber de nada, paizinho?

— Raspara-se havia pouco tempo, não dá para ver a mínima penugem nesses retratos — disse Babajev. — Procurei com a lupa.

— Todos nós sabemos: Stella Gavrilovna não só possui uma bela voz, mas tem também um corpo magnífico, cheio de personalidade. — O Dr. Lallikov puxou as fotografias para si. — Quando se acrescenta em pensamento... que tinha, não, que tem cabelos longos e negros... Akif Victorovitch, para quando podemos contar com informações mais precisas de sua parte?

O paizinho Mamedov estava recostado em sua poltrona, olhando para o teto de madeira de seu quarto. Dava a impressão de estar bem abatido. Sua orgulhosa barba pendia triste no peito, seus dedos enrolavam-se no canto da mesa. Gostara muito do simpático geólogo Jankovski. Jankovski sabia conversar, era inteligente e com experiência do mundo... aliás, experiente demais, como podia-se comprovar agora. Um fetichista de compleições físicas lisas. Quem poderia supor que ele fosse capaz disso? Um homem que podia discutir filosofia grega e que também tinha conhecimento do culto de Zoroastro? Ele não somente comprava flores com Stella Gavrilovna... ele preocupava-se também com as raízes...

O paizinho Akif convenceu-se internamente. Citou mentalmente a sentença de sua prédica: ”... e perdoem seus verdugos, pois o perdão abre as portas do paraíso.” Percebeu que nunca havia dito algo mais disparatado.

— Só colaborarei para que possam atingir o objetivo de descobrir a verdade — disse ele, abafado. — Só para fazer frente ao diabo e para aniquilá-lo. Só por isso! É minha obrigação fazer frente à imoralidade.

— Muito bem! — disse o Dr. Lallikov. — Vamos dar uma olhada em nossa lista. Quem mais está nela?

— Podemos riscar também Dunia Sergeievna — disse Kasutin, hesitante. — Camaradas, por favor, não façam perguntas, nada de olhares enviesados, nenhum sorriso irónico e impertinente, porque senão também vou dar o troco. Constato simplesmente: depois da descoberta da raspagem, Dunia Sergeievna e.stá fora de cogitação, com certeza.

— Com certeza? — perguntou o Dr. Lallikov, riscando o nome da relação.

— Claro que é com certeza! — berrou Kasutin. — Vocês estão satisfeitos agora, seus sacanas?

— A descoberta da verdade, companheiro — Lallikov deu um sorriso ordinário. As lentes de seus óculos cintilaram. — Mas ainda restam mulheres suficientes. Aqui está a bela viúva Sitkina.

— Ela a gente pode imaginar que fosse capaz disso — opinou Babajev. — Comenta-se por aí que ela teria nove amantes. Por que é que Jankovski não poderia ser o número dez? Alia Filippovna é capaz de tudo.

— A quem poderíamos perguntar? — meditou Kasutin. — Afinal, essa falta de cabelos também vai dar na vista para os outros.

— Eu assumo essa — disse o Dr. Lallikov.

— O senhor? — o paizinho Akif grunhiu, satisfeito.

— Que é que o senhor tem a ver com isso?

— Sou o médico dela! — contrapôs Lallikov. — Alia Filippovna sofre de uma bronquite renitente. Está sempre tossindo. Está querendo ir até o meu consultório amanhã de novo. Então, poderei informar-me.

— O senhor diagnostica a bronquite entre as coxas? — perguntou Akif, deliciado. — Ai de quem aparecer por lá com alguma coisa no esôfago...

— Só ficou na lista Rimma Ifanovna — berrou o Dr. Lallikov, com o rosto completamente ruborizado. — Ela tem os cabelos mais belos e avermelhados que já se viu.

— Não é qualquer um que vai estar raspando esses cabelos — disse o paizinho Akif, retumbante. — Seria uma vergonha!

— Rimma seria estúpida o bastante para estar concordando com isso — explicou Babajev.

— Mas Jankovski não é tão estúpido assim — Kasutin deu de ombros. — No entanto, como é que se pode saber? Como reagiria um fetichista de corpos lisos diante de um tufo de cabelos vermelhos? Talvez como um animal selvagem, como um touro, justamente porque eles são vermelhos. Esses perversos são imprevisíveis. Dr. Lallikov, que tem a medicina a dizer a esse respeito?

— Minha especialidade é a cirurgia — vociferou Lallikov. — Sempre fui muito cauteloso com a psiquiatria. Os psiquiatras sabem demais e, no fundo, no fundo, não sabem de nada. Portanto, como fica a coisa com Rimma?

— Eu poderia perguntar a ela — o paizinho Akif acariciou sua barba branca. — Ela é uma pessoa de fé. Daria informações voluntárias para seu sacerdote.

— Rimma poderia explicar-lhe muitas coisas — disse Kasutin.

— Essa criança tranqüila de espírito não iria mentir para mim.

— Eu procuraria me convencer disso — propôs Babajev.

— Quem é que pode afastar esse porcalhão do Nikita Romanovitch de minha casa? — berrou Mamedov.

— A proposta do camarada Babajev não é tão despropositada assim — Kasutin aprumou-se na cadeira. — Pensem nas palavras de Lenin: ”a confiança é boa, a fiscalização é melhor!” Akif Victorovitch, considero-o como sondagem da consciência um pouco mais aprofundada. Claro que basta com uma olhada, bem rápida e casta.

O paizinho Akif calou-se, bebeu um segundo copo de vinho de morango e olhou de soslaio para as fotografias. Propôs-se a conversar ele mesmo com Jankovski sobre seu interesse na jardineira do cemitério.

— A próxima — disse o Dr. Lallikov. — Galina Ivanovna. Ela está noiva.

— Isso é simples — Kasutin fez um sinal interrompendo-o.

— Como assim? O senhor está querendo conversar com o noivo?

— Por que não?

— O noivo é Maxim Ferapontovitch Lagatin, campeão regional de boxe meio-pesado. Vamos, pergunte-lhe, Piotr Dementievitch, acabo recebendo de volta seu rosto. Você já está parecendo com um macaco.

— Vocês sempre têm de complicar tudo — Kasutin recostou-se de novo, atrevendo-se a tomar um gole do vinho de morango de Akif. O vinho tinha um ótimo sabor, doce e de bom paladar, mas era isso mesmo o mais diabólico nele. Bebia-se inocentemente e depois ficava-se agachado durante três dias inteiros na privada — como é que se pode verificar se Jankovski e Calina Ivanovna...?

— Estou sabendo que Jankovski compra tudo no supermercado e que já esteve com Galina no cinema — interrompeu Babajev. — O filme intitulava-se: Quando o Grou Canta, Uma dessas histórias cem por cento de amor.

— Ora, então existe maior clareza? — Kasutin deu um sorriso de satisfação. — Pode ser que seja nossa bela Galina.

— E o campeão de peso meio-pesado Lagatin ia suportar essa raspagem de pêlos assim, sem mais nem menos? — indagou paizinho Akif. — Como é que Galina não tem nenhuma cabeça atada ao corpo? Por que nenhum olho azul? E principalmente: como é que Jankovski continua à solta por aí com um rosto?

— Lagatin e Jankovski são amigos — disse o Dr. Lallikov.

— Um rapazinho bem malandro, esse tal de Victor Semionovitch — sorriu Babajev. — Bebe vodca com o noivo e depois vai raspar os pêlos da noiva.

— Um precipício — disse o paizinho Akif, berrando de modo surdo — um precipício de imoralidade! É preciso que se tenha um coração forte num caso como esse.

Ele pensava em Stella Gavrilovna, nas compras de flores por Jankovski e nas possíveis conseqüências. Era humano desejar que Jankovski fosse para o inferno.

— Portanto, só resta minha insignificância — constatou o Dr. Lallikov. — Vou examinar Galina Ivanovna. Tenho direitos a isso. A legislação sobre víveres. Toda vendedora que entre em contato com mercadorias abertas tem de apresentar um certificado de saúde; portanto, tem de deixar que examinem sua saúde. Faz parte disso também um exame dos pés até a cabeça. Por causa de fungo de pé...

— Jamais esquecerei seu sacrifício, camarada Lallikov — disse Kasutin, de modo solene. — Isso quer dizer que podemos cortar Galina da lista. Quem fica sobrando?

— Um caso difícil: Antonina Pavlovna Zvetkova. Nossa fêmea de parada.

— Ela tinge os cabelos — disse Babajev.

— Na cabeça. Mas a cabeça está cortada e não é importante.

— Claro que tampouco se pode ir perguntar a Zvetkov.

— E como! — O Dr. Lallikov deu a entender que não. — Ele teria primeiro de ir verificar, de cor é que ele não sabe mesmo. E Antonina Pavlovna iria admirar-se muito e acreditaria em alguma enfermidade psíquica de Rassul Alekseievitch se este, de repente, mostrasse algum interesse mais profundo. Vou logo dizendo de antemão: eu não posso examinar Antonina.

— Por que não? — perguntou interessado o paizinho Akif. — Será que os óculos vão cair de seu nariz?

— A Zvetkova viaja para Magnitogorsk. Lá ela tem um especialista para doenças internas, um ginecologista, um urologista e ainda alguns legistas mais. A reação típica dos ricos. O médico da aldeia é uma espécie de imbecil... quanto maior a cidade, mais avançada e inteligente é a medicina. Até hoje, ela só esteve duas vezes em meu consultório.

— Mas você a viu nua?

— Com a maior acentuação possível da discrição: sim. Ela estava com uma erupção cutânea com comichões em volta do umbigo. Ainda hoje não sei por que ela foi até meu consultório.

— E?

— Que significa esse ”e”? Eu pude curá-la. Zvetkov agradeceu oferecendo-me um fiambre todo cozido. Mas, desde então, fiquei sabendo que Antonina Pavlovna possui um dos corpos femininos mais belos que já vi em toda minha vida.

— E uma coisinha como essa está em poder do gordo e impotente Zvetkov! É um verdadeiro escândalo! — Mais uma vez, Kasutin folheou as fotografias. Seu coração comprimiu-se com tanta beleza feminina aglomerada em um só corpo. — Como é que se pode verificar se se trata mesmo da Zvetkova, se foi ela mesma o modelo que Jankovski fotografou? Todos nós sabemos que Jankovski vive entrando e saindo da casa dos Zvetkovs.

— E de que nos adianta sabê-lo? — o Dr. Lallikov foi suficientemente grosseiro para continuar falando. — Afinal de contas, estamos sabendo que Jankovski é conhecido de todas as mulheres de nossa lista.

— Com exceção de Dunia Sergeievna — disse Kasutin, orgulhoso. — Com toda a certeza, ela pode ser eliminada da lista. O tempo está totalmente a favor dela.

— Não devemos perder tempo em divagações — disse o paizinho Akif e suspirou fundo com alguns pensamentos secretos que tivera. -*- Como é que se pode obter certeza no caso da Zvetkova?

— Precisaria sentar-me à mesa com Rassul Alekseievitch para bebermos alguma coisa e depois perguntar-lhe. Talvez tenhamos a sorte de ele ter visto sua mulherzinha tomando banho.

— E, na verdade, será que ele repara nesse tipo de insignificância? — o Dr. Lallikov acrescentou.

— Eu disse: se tivermos sorte, mas uma sorte bem descarada. É preciso que se estimule a capacidade de recordação de Zvetkov. Esse tipo de fenómeno acontece algumas vezes. Primeiro, está tudo vazio... e em seguida, bumba, a pessoa é percorrida por um lampejo de clareza. Temos que tentar.

— Nesse caso, a ofensiva deve ser clara — disse o Dr. Lallikov. — Cada um de nós sai com sua tarefa. Meus caros amigos, vamos liquidar esse Jankovski. Não vai lhe servir de nada que ele tenha suprimido a cabeça nas fotografias indecorosas. Nós vamos cercá-lo e abatê-lo como se abate uma lebre.

— E depois? — perguntou o paizinho Akif. — Quando soubermos quem é a mulher pelada, que acontecerá?

— O Partido irá ocupar-se com ela — disse Kasutin, com um rosto severo. — Claro que discretamente. Com sondagens de consciência. Com uma certa sensibilidade. Esse tipo de caso deve ser tratado com um certo sentimento de equilíbrio espiritual. Ao contrário do que acontece com as fêmeas no Ocidente em decadência, nossas mulheres ainda podem sentir vergonha. Companheiros, mãos à obra.

À tarde, Kasutin teve uma experiência que o derrubou e transformou muitas coisas.

Ele estava ao lado do farmacêutico Akbar Nikolaievitch, na loja, conversando com este sobre os progressos obtidos no mercado farmacêutico, quando Dudorov recebeu novas mercadorias. Foram levadas por um carro de entregas de Magnitogorsk. Interessado, Kasutin viu Dudorov separar rapidamente um pacotinho e escrever um nome sobre ele.

A. P. Zvetkova.

Demorou algum tempo até que Kasutin fez a pergunta que o estava afligindo:

— De que se trata? — informou-se ele cautelosamente. — A camarada Zvetkova está doente?

— Não. Por quê? — Desconcertado, Dudorov cravou os olhos em Kasutin. — Ela está cheia de saúde.

— Esse medicamento aí — Kasutin apontou para o pacotinho com as legendas. — Estou sabendo que um farmacêutico tem a obrigação de manter o silêncio. Mas, afinal de contas, eu já vi.

— Trata-se de um creme — disse Dudorov com ares misteriosos. — Mas, por favor, não diga nenhuma palavra a ninguém.

— A boca do Partido é fechada como uma caixaforte — Kasutin apontou com a cabeça para o pacotinho. — É para borbulhas em volta do umbigo, não é verdade?

— Não — o farmacêutico Dudorov olhou irritado para Kasutin, o secretário do Partido. — Um creme depilatório recentemente descoberto.

Kasutin engoliu em seco, deu uma batidinha no ombro de Dudorov e saiu da farmácia como um corredor de cem metros, após dada a partida.

 

NÃO SE DEVE ACREDITAR que um estabelecimento de flores e jardinagem de um cemitério seja um tranqüilo lugar de recordação, onde as pessoas vão procurar flores, potes, vasos, velas e luzes eternas, assim como coroas de flores e pequenas grinaldas para seus queridos enterrados e onde as pessoas admiram-se profundamente — mas no maior silêncio — de que as flores ali custem mais que no mercado.

Não é nada disso!

Se pudermos acreditar no que Stella Gavrilovna conta, o estabelecimento de flores de um cemitério é um local de comunicação e encontro, em comparação com o qual todas as outras formas de reunião das pessoas perdem cor, tornam-se inadequadas. É quase incompreensível que existam vivências por lá! Foi lá que aconteceu o enterro de um virtuoso homem que foi atropelado pelo próprio automóvel quando consertava este, porque senão ele ainda seguiria vivendo muitos anos, com toda certeza. E que foi que aconteceu no cemitério, no posto de venda de flores? Apareceram mais duas mulheres no séquito da chorosa viúva, ambas acompanhadas de quatro crianças, lamentando-se e soltando gritos de lamúria e apresentando seus pimpolhos como recordação dos momentos felizes que tiveram com o querido falecido. Que surpresa! A bem-aventurada viúva agarrou um vaso de flores e arremessou-o na cabeça de uma das jovens mães, mas esta, lépida, apoderou-se de uma coroa de flores da parede e virou-a contra os ombros da enlutada. Nesse momento, a terceira também entrou em ação, atirando vasos a sua volta e, até que o querido homem fosse finalmente enterrado, as três damas já estavam a caminho do Dr. Lallikov, que as teve de costurar muitas e muitas vezes.

Este foi só um dos acontecimentos que Stella Gavrilovna podia contar. Bem característico também foi o enterro do bêbedo Tchechov, uma personalidade conhecida na cidade inteira, que, no fundo, deveria ser imortal, pois já em vida ele estava sendo conservado em álcool. Mas ele faleceu de repente, em um momento em que não tinha nenhum copo na mão, sentado da maneira mais comportada possível em um bar. E assim despachou sua alma.

Até hoje não se sabe como foi que aquilo aconteceu, mas quando baixaram Tchechov à sepultura, houve uma explosão surda no interior do caixão, a tampa voou pelos ares e Tchechov, impulsionado pela pressão do ar, levantou-se. Diante dessa visão, nove mulheres perderam os sentidos e foram levadas para a floricultura do cemitério. Só o paizinho Akif manteve o controle dos nervos e, com sua voz de trovão, pronunciou junto à sepultura:

— Agora ele pode dormir em paz. O álcool foi expelido.

Falou-se sobre isso durante muito tempo.

Não era raro o pope aparecer no cemitério, mesmo quando se tratava de fazer um discurso junto à cova. Ele inspecionava os túmulos daqueles cristãos de quem gostava, conversava com Stella sobre isso e aquilo, elogiava ou desaprovava seu trabalho, exortava-a para que continuasse levando uma vida como Deus prescrevia e depois ia descansar em um cómodo dos fundos da floricultura.

Nesse cómodo havia uma cama larga, um armário com vinho e vodca num depósito de madeira, onde sempre havia bolinhos frescos; e neste quarto só havia uma janela que dava para um pátio interno, no qual ninguém podia entrar. Um quarto notável.

De vez em quando, Stella fechava a floricultura, quando o paizinho Akif vinha de visita, pendurava então um cartaz na janela, no qual estava escrito ”Fechado para o fornecimento de novas flores” e submetia-se a um exorcismo especial do diabo.

Por isso ela não ficou espantada quando, naquele dia, Akif Victorovitch assomou na floricultura do cemitério com a barba esvoaçante, fechou a porta a chave, pendurou o conhecido cartaz na porta e, com os braços esticados, com um ar severo e cheio de autoridade, apontou para o quarto dos fundos.

— Réproba! — disse, ao mesmo tempo em que examinava Stella com olhos tão perspicazes que se poderia dizer que aqueles olhos eram capazes de olhar através da roupa. — Que foi que você fez? Não minta! Estou sabendo! Que foi que Victor Semionovitch Jankovski andou fazendo com você?

— Ele veio buscar seu estigma.

— Ah-ah! — O paizinho Akif respirou com dificuldades, desabou no canto da cama, enrolou a barba com as mãos e ficou assombrado com a esperteza imoral de Stella Gavrilovna. — Então você reconhece!

— Sim — disse Stella Gavrilovna, ingenuamente.

— Isso causou nele uma grande alegria.

— Meu coração está partido — os olhos de Akif viraram selvagemente. — E você pronuncia isso assim, tão descaradamente. Causou nele... ah! Que precipício! Que cratera cheia de pecadores renitentes! Quando foi que isso aconteceu?

— Exatamente há quatro dias, paizinho.

— Quer dizer que você mantém a data tão viva assim na memória?

— Foi um dia especial.

— Claro! Claro! — Akif sentia seu coração como se fosse uma almôndega fervente. — Esse tipo de coisa não se esquece!

— É isso mesmo, paizinho. Tive um trabalho tremendo com aquelas raízes.

Akif estremeceu cheio de dores, esticando os braços para cima.

— Satanás, afaste-se dela! — berrou ele. — Estou percebendo sua fala. Saia dessa moça!

— Uma raiz como aquela é rara — prosseguiu Stella Gavrilovna, inocentemente. — Mas Victor Semionovitch queria tê-la de qualquer maneira. Uma cerejeira-anã japonesa. Telefonei para Sverdlovsk. Eles tinham ali três exemplares no instituto de pesquisa. Rezei durante três semanas, até que me enviassem uma muda

Incrédulo, Mamedov fitou Stella Gavrilovna. Os cabelos dela, longos e negros, cintilavam como seda, mesmo debaixo da roupa e do avental de jardineira, seu corpinho tinha curvas provocantes e as pernas, desnudas até acima dos joelhos, eram retas e delgadas, mas mesmo assim vigorosas.

— Uma cerejeira-anã japonesa? — perguntou ele, em voz baixa.

— Sim, paizinho.

— E além disso, mais nada?

— Nada de especial.

— Que significa isso?

— As flores habituais. O companheiro Jankovski é um grande amante das flores. Tem sempre umas novas em sua residência. A corbelha mais bonita está sempre diante do rétrato de sua mãe.

— Como é que você está sabendo disso?

— De vez em quando vou à casa dele para entregar flores.

— Você já esteve na casa dele? — berrou Akif, desesperado.

— Sim. Muitas vezes.

— Com que freqüência?

— Nunca contei, paizinho.

— E vocês ficaram conversando só sobre flores?

— Duas vezes eu jantei na casa dele. O camarada Jankovski cozinha muito bem.

— E vocês beberam?

— Sim.

— Também dos lupanares do longínguo Oriente?

— Sim — disse Stella, um pouco hesitante.

— Que abismo moral! — trovejou Akif, abalado. — Venha até aqui e tire a roupa.

— Não — disse ela, recalcitrante.

— Stellanka...

— Hoje não. O senhor está tão esquisito, paizinho.

— Tenho minhas razões para estar esquisito — Akif Victorovitch juntou as mãos. — Só quero dar uma olhada em você. Uma olhadinha inofensiva. Assim como quem olha um quadro. Um casto deleite estético. Uma elevação tranqüila.

— Não estou querendo — disse Stella Gavrilovna, com um ar obstinado.

Internamente, Akif Victorovitch estava em chamas. Para ele, essa renitência era novidade. Essa recusa, que ele nunca experimentara de parte de Stella, devia ser prova de alguma culpa. Quem não tem nada para esconder, podia mostrar-se descansadamente, sobretudo quando não há nenhuma novidade para ser observada. Mas não, ela recusava-se com persistência. Chegara até mesmo a recuar para a porta, pronta para sair fugindo para a loja. O quão suspeita era essa atitude!

— Bastam dois segundos — disse o paizinho Akif, com a voz abafada, rápido como umflash fotográfico.

— O senhor está sinistro hoje, paizinho — respondeu Stella Gavrilovna. Estava sentindo um verdadeiro medo do pope. Ele estava falando tanto. Nas outras visitas que ele lhe fazia, libertava-a das roupas sem dizer nenhuma palavra, bebia uma dose grande de vodca e, se fosse preciso, dizia satisfeito: ”Um belo dia não deve ser nunca desperdiçado”.

— Você entende muito de fotografia? — trovejou Akif de repente. Stella assustou-se profundamente e inclinou a cabeça, cheia de pudor. Mamedov interpretou essa inclinação de cabeça como se Stella fosse responsável por um homicídio. — Jankovski também fotografa?

— Sim.

— A terra vai tremer, o paraíso vai ser arrombado, o dia do Juízo Final está se aproximando — queixou-se Akif, gemendo de espanto. — Isso basta, réproba, pecadora sem salvação! Quando foi?

— Quando o companheiro Jankovski veio buscar suas mudas.

— Claro. Que outro dia poderia ser? — Os olhos de Akif saíram das órbitas. — A cerejeira japonesa. Coincide exatamente em termos de tempo — ele levantou-se, passou de cabeça erguida pela acuada Stella e, na loja, arrancou o cartaz da janela. — Rezarei por você — disse ele, formal. — Não se pode fazer mais nada. O maldito satanás já cuidou do seu ingresso no inferno. Você entende? Você já foi tosquiada pelo diabo. Tosquiada! — ele hesitou algum tempo, depois colocou a mão sobre a cabeça de Stella e disse, com a voz trémula: — Pobre menina. Só eu sei o quanto você se perdeu. O lobo arrebanhou você astutamente do tropel... mas eu ainda estou aqui. Vou arrancá-la das patas do lobo. Não tenha medo, seu pastor está ao seu lado.

Com uma admiração de quem não estava entendendo nada, Stella Gavrilovna seguiu o pope com a vista. Só quando ele já tinha feito a curva na esquina, foi que ela despertou de seu entorpecimento e, desorientada, começou a ajeitar algumas flores nos vasos. Para ela era um mistério o que o paizinho estava querendo dela. Só percebera que ele se agitara porque o camarada Jankovski encomendara uma cerejeira japonesa. Mas o motivo por que devia levantar a saia, era um mistério total para ela e por isso mesmo continuava sendo sinistro.

Nós já não constatamos que, de vez em quando, acontecem coisas esquisitas na floricultura de um cemitério? Agora era o próprio pope quem armava um mistério em plena luz do dia.

Galina Ivanovna, a gentil vendedora de cabelos castanhos do supermercado estatal, estava sentada na sala de espera do consultório do Dr. Lallikov, folheando a revista ilustrada A União Soviética Hoje e, para a visita de hoje, enfeitara-se bastante. Trajava um vestido de algodão, com desenhos de flores, uma blusa azul-claro, meinhas soquetes nas pernas delgadas e um moderno sapato esportivo, coisa que não era tão estranhável assim quando se estava situado na fonte e se podia aproveitar das partilhas como uma das primeiras pessoas.

A chamada para o exame de controle, de acordo com a Legislação para Víveres, ela interpretou como algo bem natural, mesmo com o exame sendo instituído assim tão de repente e com o Dr. Lallikov, por telefone, tirando-a de trás do balcão da loja. Ela mudara de roupa rapidamente no supermercado, depois de haver tomado um banho, e ficou com uma aparência tão limpa e inocente, tão agradável e excitante, que qualquer um teria se dirigido a ela se seu noivo não fosse Lagatin, o campeão de boxe meio-pesado.

Através de Marfa Felixovna, sua indispensável assistente, o Dr. Lallikov ficou sabendo que Galina havia chegado, mas que ainda havia 19 pacientes na fila.

— Daremos preferência a ela — decidiu Lallikov. — Galina está na hora de trabalho e tem de voltar rapidamente para o supermercado. Visto dessa maneira, é um caso de urgência. Leve a companheira para a cabine ao lado, ela já deve se despir.

O Dr. Lallikov ainda auscultou o débil coração da mãezinha Jevgenija, uma mulher de 83 anos que havia jurado viver 150 anos, porque odiava sua nora e, vivendo 150 anos, sobreviveria a esta. Depois disso, ele dirigiu-se para sua cabine ginecológica. Lá, Galina estava sentada em um banquinho, despida, batendo um papo alegre com Marfa Felixovna. A forte lâmpada iluminava seu corpo realmente belo e o Dr. Lallikov disse para si mesmo que os ombros, os seios e o ventre, cadeiras e coxas eram bem análogos àqueles das fotografias. Só havia alguma coisa estorvando essa comparação. O Dr. Lallikov contraiu as sobrancelhas em sinal de desaprovação.

— Eu disse para despir-se, Galina Ivanovna, a calcinha também. A Legislação sobre Víveres prescreve que...

Marfa Felixovna saiu da cabine. Coisa incomum, Justamente em tais exames uma testemunha devia ficar por perto, pois muitas magníficas mulheres já haviam afirmado e até jurado coisas e assim colocado muitos médicos em dificuldades. Até aquele momento, o Dr. Lallikov havia sido deixado em paz e também era inimaginável que alguma mulherzinha pudesse acusá-lo de algum agarrão ilícito. Sua grosseria era tão grande que quaisquer pensamentos em tais delitos murchavam de imediato.

Galina Ivanovna permaneceu sentada, bastante embaraçada.

— Isso não basta? — perguntou ela, com um charme de derrubar qualquer um.

— Não. — O Dr. Lallikov tirou os óculos. — Em um exame existem coisas que são sem importância, outras que são importantes e as muito importantes. Só o médico é capaz de julgá-lo. Claro que ele é médico por isso mesmo. Você está justamente subtraindo algo muito importante para a apreciação médica. Esse comportamento é quase por associação. Você está na vida pública. A saúde é um dos fundamentos de nosso progresso. Portanto...

— Peço-lhe perdão, camarada doutor — disse Galina Ivanovna, em voz baixa. — Mas é que eu tenho vergonha.

— Vergonha de seu médico? Desde quando?

— Desde há 19 dias.

Espantado, o Dr. Lallikov fitou a tímida beleza, puxou uma cadeira e sentou-se em frente a ela.

— Isso você tem de me contar — disse ele, com um tom paternal. — Mudou alguma coisa em você nesses 19 dias?

— Sim.

— Fisicamente?

Galina Ivanovna balançou a cabeça, acanhada.

— Sim. — Esse ”sim” saiu como um sopro.

— Também espiritualmente?

— Talvez.

— Abra seu coração — disse o Dr. Lallikov, benévolo. Ele nem sequer percebeu que, assim procedendo, entrava no terreno do pope.

— Meu noivo retornou de uma luta de boxe em Sverdlovsk...

— O campeão Lagatin?

— Sim — Galina engoliu em seco, de maneira forçada. — E trouxe consigo uma revista. Do Ocidente em decadência. De Paris. Completamente decadente, camarada doutor. Impossíveis, essas fotografias. Mas, de alguma maneira, interessantes.

— Ah! — o Dr. Lallikov sentiu o círculo fechando-se. Seus óculos embaçaram-se de novo; ele tirou-o do nariz e limpou-o com a ponta do jaleco. — E que foi que aconteceu depois?

— Tenho tanta vergonha...

— De seu-médico, Galina Ivanovna?

— Lagatin disse: ”você devia fazer isso também, pelo menos uma vez”. — Galina cobriu o rosto com as mãos. Envergonhava-se profundamente. — Então, eu o fiz.

— Ah! — disse o Dr. Lallikov.

— Lagatin achava muito bonito. Eu não. Não sou nenhuma pessoa do decadente Ocidente. Mas Lagatin disse: ”fique tranqüila, ninguém está sabendo disso. Esse é o nosso segredo. Isto acontece...”

— Ora, ora — o Dr. Lallikov pigarreou. — Tenho compreensão para com isso... e antecipadamente! A juventude curiosa. O encanto dos novos horizontes. Tranqüilize-se Galina Ivanovna, isso vai ficar entre nós, é claro,

— Agora eu me dispo — disse ela, levantando-se do banquinho.

O Dr. Lallikov deu a entender que não, delicadamente.

— Não é mais necessário. A anamnésia foi convincente.

— É assim que se chama isso?

O Dr. Lallikov voltou a pigarrear, levantou-se também e escancarou a porta da cabine. Marfa Felixovna estava sentada à escrivaninha, preenchendo uma ficha.

— A camarada Galina está gozando plena saúde — esclareceu o Dr. Lallikov, autoritário como sempre. — Ela vai receber seu certificado de saúde. Nenhuma objeção. Não é necessário nenhuma reapresentação nos próximos tempos. — Hesitou um pouco, virou-se para Galina Ivanovna e observou-a acuradamente, enquanto ela voltava a vestir-se. Esse maldito Jankovski, pensou. O noivo faz e ele fotografa. Que divisão mais simples do prazer!

— Vocês se encontram muito com o companheiro Jankovski? — perguntou como quem não quer nada.

Galina fez que sim com a cabeça. Nesse momento, ela colocava as meias soquetes.

— Ele é nosso amigo.

— Victor Semionovitch sabe fotografar muito bem, não é mesmo?

— Ah, claro. Ele tem uma ótima máquina.

— E quem ousaria negá-lo? — O Dr. Lallikov endireitou os óculos, sentou-se em sua escrivaninha e deliciou-se com a satisfação de haver resolvido de modo tão elegante esse caso delicado. Agora ele já podia informar a Kasutin que Novo Korsaki não havia sucumbido na esteira perniciosa das tendências ocidentais.

Mas era preciso que se falasse com o camarada Jankovski. Urgentemente!

Esse tipo de fotografias não deviam ser entregues para serem ampliadas na própria cidade!

Uma burrice imperdoável, indigna de uma pessoa inteligente como é Victor Semionovitch.

No fundo, preocupar-se ainda com a bela viúva Sitkina e com a estúpida magnificência de Rimma Ifanovna não passava de tempo perdido, depois que o Dr. Lallikov verificou que Galina era a desconhecida que aparecia pelada nas fotografias indecorosas. Mas Lallikov era um fanático pela profundidade. Para completar, tinha-se de cortar todas as pessoas da lista e agora quem a encabeçava era a ruiva Rimma.

Melhor teria sido se o Dr. Lallikov tivesse desistido! Sua solidez acabara vitimando o presidente, o honesto porém castrado Boris Nikolaievitch Werschokin e custara a Lallikov sua futura ascensão na cirurgia. Mas, afinal de contas, quem é que consegue pular a própria sombra, sobretudo quando ele está desempenhando sua missão francamente reformatória?

Como não se podia convocar Rimma, como cesteira, para a entrega de um certificado de saúde, o Dr. Lallikov pôs-se a caminho, depois de um lauto almoço, para a continuação da pesquisa da verdade.

Rimma Ifanovna habitava uma pequena casa na periferia de Novo Korsaki, ali, onde 40 anos atrás tudo era mata virgem e os pais de Rimma desbravavam os campos. Eles eram gente pobre mas honesta, que trabalharam duramente para conseguir o pão de cada dia e cuja única preocupação havia sido sua filhinha. Depois que Rimma sofreu a queda da janela, a partir de então passando a estar em constante contenda com o pensamento lógico, os pais disseram para si mesmos que existiam dissabores maiores que uma moça que mais vivia de dentes arreganhados do que falando. E, de fato, os dissabores vieram, pois Rimma acabou desenvolvendo-se numa beleza de tal raridade, que os rapazes viviam espreitando em torno, travando uma verdadeira caçada a esse tesouro ruivo. O paizinho atirou algumas vezes com uma espingarda de chumbo em cima de alguns lascivos cabritos bípedes. Mas logo foi arrebatado por uma inflamação pulmonar e a mãe também só sobreviveu uns seis meses a essa catástrofe.

Agora Rimma Ifanovna vivia sozinha, fazendo de sua ocupação uma profissão. Tecia cestos e os vendia no mercado. Os negócios iam tão bem que ela acabou empregando mais duas velhas e pôde dar-se ao luxo de andar de motocicleta. Não era tão estúpida assim que não pudesse dominar esse veículo. Mas o que as pessoas mais viam, com perplexidade, era o fato de que ela era totalmente consciente de sua beleza e sabia defender sua virtude de modo tão valente que, até aquele momento, ninguém podia-se vangloriar de conhecer toda a extensão da lisa pele de Rimma Ifanovna. É bem verdade que se comentava que ela ia para Magnitogorsk não somente por causa do grande centro comercial e para trazer novas encomendas, mas ninguém podia provar coisa alguma. Rimma sempre era amigável, sorria com aquela sua maneira estúpida para qualquer um, de ano para ano ficava mais linda e agora, com 26 anos, havia chegado a uma maturidade que dava motivos para superlativos de exaltação. No verão, de vez em quando podia-se admirá-la de longe: então, ela saltitava de um lado para o outro no jardim, com um maiô bem apertado, colocava-se debaixo de um chuveiro e seu sorriso claro dourava o sol mais ainda. Além disso, seus cabelos vermelhos como o fogo cintilavam. Era uma visão que fazia com que qualquer um suspirasse em seu íntimo.

Naturalmente que também o companheiro Jankovski travara relações de amizade com Rimma Ifanovna. Seguindo o desenho dele, ela traçou um cesto especial, no qual ele reunia e selecionava amostras de minerais. Este foi um motivo, refinado e nada capcioso, para estar conversando com Rimma freqüentemente e até mesmo para ir em sua casa.

Foi mais ou menos dessa maneira que o Dr. Lallikov reconstituiu o ataque de Jankovski à virtude de Rimma; e Kasutin e Babajev concordaram com ele. Só podia ter acontecido dessa maneira: que Rimma — até aqui, só em teoria — dos desenhos para cestos especiais, tenha descido para modelo de fotografias imorais. Era para lá de conhecida a maneira de Jankovski convencer as mulheres de coisas degeneradas, mesmo aquelas que, como caracóis, viviam enfurnadas em suas casas.

Rimma Ifanovna estava sentada ao sol, protegida por uma sombrinha, trabalhando em um grande cesto redondo, e fitou o Dr. Lallikov com seu conhecido arreganhar de dentes. Sua beleza era tão deslumbrante que até mesmo Lallikov sentiu uma leve insegurança. Rimma estava vestida com uma blusa bem decotada que, de certa maneira, podia ser encarada como uma janelinha que dava para a perfeição corporal inatingível.

— Que coisa mais rara — disse Rimma Ifanovna de imediato. — O senhor fazendo visita? Que significa tal coisa? Não tem ninguém aqui que esteja morrendo.

Ela podia-se permitir esse tipo de linguajar, pois ninguém a levaria a mal por isso. Desde sempre, desde séculos atrás que, na Rússia, os idiotas assumem uma posição social privilegiada. Houve até mesmo tempos em que os gagos e epiléticos eram considerados santos e as pessoas sentavam-se respeitosamente em volta deles quando tinham ataques. Esse tipo de procedimento deixara profundas raízes e explicava muitas coisas que parecem incompreensíveis na Rússia.

O Dr. Lallikov deu um sorriso paternal, sentou-se no banquinho ao lado de Rimma, deu uma olhada no fundo decote da blusa e constatou que os cabelos vermelhos de Rimma pareciam com a mais fina seda. O suave vento que soprava mantinha-os em constante movimento.

— Victor Semionovitch já esteve aqui? — perguntou ele, sem maiores delongas. Com Rimma Ifanovna não eram necessários os rodeios diplomáticos. Sua mente só entendia as coisas diretas.

— Quem é Victor Semionovitch? — perguntou de volta Rimma Ifanovna.

— Jankovski.

— Não.

— Que significa esse ”não”?

— Que ele não esteve aqui.

— Não esteve com sua máquina?

— Que máquina?

— Com uma máquina fotográfica. Claro que ele estava querendo fotografar.

— A mim? De novo?

O Dr. Lallikov sentiu seu corpo efervescer em calor. As coisas começavam a complicar-se, era o que parecia. Também ali ele estava esperando uma negativa de Rimma; só que agora ficara evidente que o superpotente Jankovski também colocara Rimma diante da objetiva. Portanto, não havia somente uma vítima, Galina Ivanovna, e sim duas. Com isso, a pergunta ficava de novo no ar: quem era a desconhecida nua que aparecia sem cabeça nas fotografias? Não havia a menor dúvida que todas as tomadas mostravam a mesma pessoa... dois corpos femininos não podiam ser tão parecidos assim.

— De novo — repetiu o Dr. Lallikov, com uma ressonância mais rouca. — Afinal, quando foi que ele...?

— Não sei não. Não tenho o menor interesse em calendários.

— Mas ele só esteve aqui há pouco tempo?

— Sim, foi isso.

Rimma arreganhou os dentes de um modo agradável e estúpido. O Dr. Lallikov já não entendia a Criação, que havia introduzido tão pouca matéria encefálica nesse cérebro.

— Onde foi que ele fotografou você? — perguntou Lallikov, sem maiores rodeios.

— No prado. Eu tive de ficar segurando uma corbelha de margaridas brancas, com meus cabelos em volta. ”Assim está magnífico”, foi o que ele disse. ”As flores brancas e os seus cabelos vermelhos. Vou vender essa fotografia para uma revista ilustrada.” Ele quer me enviar a revista.

O Dr. Lallikov tirou e limpou os óculos de lentes grossas. Tem alguma coisa aqui que não está batendo, pensou. Não havia nas fotografias nenhuma corbelha. Além disso, eram em preto e branco. Bem brilhantes. Tem algum erro aí nesse negócio. Em todo caso, já se está sabendo que Rimma foi um modelo voluntário. O malandro do Jankovski bateu um filme com as florezinhas, o outro ele queimou em outras superfícies. Sem dúvida, foi assim que aconteceu.

— Era um filme colorido? — perguntou o Dr. Lallikov, como quem não quer nada.

— Sim, claro.

— O segundo filme também? : Esse tipo de coisa se chama ”jogar verde para colher maduro”. As pessoas que não prestarem uma atenção infernal, acabam caindo na armadilha. Em sua simplicidade, Rimma Ifanovna não percebeu a cova. Ela disse, bem despreocupada:

— É o que suponho.

O Dr. Lallikov suspirou, fazendo um ruído. Convencido! A vitória da lógica! Agora já se podia até mesmo reconstruir a maneira como Jankovski avançou para conseguir que a ingénua Rimma posasse para tais fotografias. Com o desvio de uma corbelha de margaridas. Simplesmente genial, é bom que se reconheça.

— Minha criança seduzida — disse o Dr. Lallikov, com uma comoção sincera. Ele não se atrevia a entrar em detalhes e a perguntar como foi que Jankovski convenceu Rímma de que uma raspagem de pêlos só iria fortalecer a aparência artística da fotografia. A imaginação dele bastava para colorir a cena... uma cena tão decadente a ponto de fazer com que se perdesse a respiração. Você não se deu conta. Você não precisa se envergonhar.

por que deveria eu envergonhar-me? Só porque apareci em uma revista?

Claro! A florista de cabelos vermelhos! Ah! — O Dr. Lallikov levantou-se e passou a mão nos magníficos cabelos de Rimma, como se a estivesse consolando. — Quem mais está sabendo dessas fotografias?

— Ninguém. Quero fazer uma surpresa para todo mundo.

Você vai conseguir. - O Dr. Lallikov voltou a olhar o decote da blusa da moça e depois seus olhos verde-azulados. O eternamente estúpido sorriso era comovente para um confidente. Porra, que cara mais libertino esse Jankovski, pensou Lallikov. Ele não se detém diante de nada. — Não fale nunca sobre isso — disse para Rimma, acariciando-lhe as faces. — E esqueça-se rapidamente de tudo isso. E quando Jankovski vier aqui, não deixe que ele entre em sua casa.

Então, o que é que devo dizer para ele?

— Mande-o para mim.

Está bem — Rimma Ifanovna virou-se de novo para seu grande cesto. — Vou dizer para ele que deve fotografar o senhor também.

O Dr. Lallikov quis dizer mais alguma coisa, mas, com um movimento de mão afugentou as palavras, plenamente consciente de que Rimma não tinha a menor intimidade com a lógica.

A bela viúva Alia Filippovna agiu como se já estivesse esperando o Dr. Lallikov. Trouxe um chá aromático, um pequeno bolo amanteigado e uma garrafa de licor de frutas; depois, sentou-se diante dele e não se incomodou por seu robe ter-se aberto até acima dos joelhos, deixando à mostra suas belas e delgadas pernas, até a altura dos quadris. Lallikov atreveu-se a dar uma rápida olhada... a viúva Sitkina estava vestida com uma calcinha lilás. Portanto, o corpus delicti estava oculto. O Dr. Lallikov quase não se surpreendeu com o fato de que Alia Filippovna ainda estivesse por ali de robe em plena tarde e, ainda por cima, bem desnuda por baixo. Depois da trágica morte de seu marido, a fama de Sitkina deteriorou-se rapidamente. Segundo se dizia, seus amantes estavam distribuídos até para os lados de Sverdlovsk.

— Nosso amigo Jankovski — disse o Dr. Lallikov. comodamente. — Ele tem tantos e incansáveis talentos. As fotografias que ele tirou da senhora, minha cara Alia Filippovna, são verdadeiras obras de arte.

— O senhor as viu? — pronunciou a Sitkina, sem a menor inibição. — Isso me alegra, doutor. Eu acho que elas são maravilhosas.

O Dr. Lallikov arreganhou um pouco o nariz e depois precisou limpar os óculos, acusando internamente Jankovski de ter uma masculinidade simplesmente fenomenal. Galina Ivanovna, Rimma Ifanovna e agora também Alia Filippovna e tudo isso numa semana... Tiro o chapéu para você, Victor Semionovitch. A profissão de geólogo deve ser incrivelmente fortalecedora.

Muito ar puro e com isso o sangue cheio de ozônio, sempre em contato com a natureza, acaba fazendo efeito.

— As fotografias são assombrosas — disse o Dr. Lallikov, dando estalos com a língua.

— E principalmente tão naturais.

— Era o que eu estava querendo dizer.

— Há uma plasticidade que dá vontade de se meter a mão.

— Não se pode negá-lo.

— Que foi que o senhor pensou, doutor, quando viu as fotografias? — perguntou a Sitkina, visivelmente entusiasmada. — Diga-me, que foi que o senhor pensou na hora?

— Na hora?

— Sim.

— Puxa vida!

— Mesmo.

— Sim, puxa vida! —O DR. Lallikov fitou a viúva Sitkina visivelmente assombrado. — Que mais se pode dizer a esse respeito?

— Foi Jankovski quem fez a composição inteira.

— Foi o que pensei. Esse tipo de coisas só poderia ter passado pela cabeça dele.

— Eu falei a mesmíssima coisa para ele.

— E qual foi a reação do bom Victor Semionovitch?

— Ele riu. Ele sabe rir de uma maneira tão encantadora. Tão jovial. Tão dominante.

— É essa a expressão correta: esse querido jovem. — O Dr. Lallikov deu um salto da cadeira. Sitkina olhou-o, espantada.

— O senhor já está querendo ir embora, doutor? Não quer mais um licorzinho?

— Hoje foi um dia cansativo.

— Pelo menos, mais um golinho de chá. E um pedacinho de bolo. Com manteiga da melhor qualidade. Simon Mikhailovitch, o senhor pode descansar na minha casa. Aqui não virá ninguém para perturbá-lo.

— Não estou tão seguro assim disso.

— Mas claro. Quando recebo visitas, baixo a persiana da janela em cima da porta. Então, todo mundo sabe: ocupado. — A bela viúva verteu mais chá nas xícaras e cortou o bolo amanteigado. — Não importa o tempo que o senhor fique por aqui, Dr. Lallikov, a casa será para o senhor como uma ilha solitária.

Ela abaixa a persiana, pensou Lallikov. É esse o seu sinal vermelho. Ocupado. Quanto mais se vive mais se aprende. Nesse mesmo momento, recordou-se de que poderia estar sendo observado, que poderiam vê-lo deixando a casa da Sitkina mais tarde e vê-la subindo novamente a persiana. Sinal verde. O próximo. Os malévolos poderiam ter tais pensamentos inoportunos, mesmo em se tratando de um médico.

Lallikov ruborizou-se, bebeu de pé seu licor de frutas e depois caminhou para a porta.

— Um médico nunca tem tempo — disse, desculpando-se. — Se a senhora soubesse, Alia Filippovna, tudo que está à minha espera para essa noite...

— Acredito no senhor. — Sitkina levantou-se, ajeitou seu robe e levou Lallikov até a saída. Ali, ela levantou a persiana, coisa que Lallikov sentiu como que uma provocação. — Só mais uma pergunta. Afinal de contas, por que foi que o senhor veio aqui, Simon Mikhailovitch?

— Tratava-se de um esclarecimento de uma clareza.

— Como foi que o senhor disse? Explique-me isso direitinho, meu querido.

— Seria muito complicado, Alia Filippovna.

Pense que eu só queria informar-me como a senhora ia passando. Convenci-me de que não há nada a criticar.

Na rua, ele parou ostensivamente, a fim de que todos pudessem ver que estava vindo da casa da Sitkina e que não tinha nada a esconder. Depois, seguiu adiante com um ar solene, desviou-se para a farmácia e, no salão de receituário, desabou sobre uma cadeira. Dudorov, o farmacêutico, fitou-o, preocupado.

— Que é que você tem? — perguntou, precipitadamente.

— Estou precisando de uma grande dose de vodca — disse o Dr. Lallikov, extenuado. — Se possível, uns cem mililitros. Ah, meu Deus do céu, não me pergunte nada, Akbar Nikolaievitch! Existem coisas de consistência física que não são compreendidas pela medicina.

Em seguida, bebeu a vodca como se fosse água e afundou em uma meditação apática.

À noite, encontraram-se de novo na casa do paizinho Mamedov.

Como encontraram-se na rua, entraram no quarto juntos, primeiro Kasutin, depois Babajev e por último o Dr. Lallikov.

O pope estava sentado inerte na cadeira e olhou para eles sem dizer nada. Parecia que ele havia arrancado os cabelos, pois seu esplendor, normalmente tão bem cuidado, parecia desordenado e, de uma certa maneira, estropiado. Ele percebeu com um olhar turvo que os três se haviam sentado. O Dr. Lallikov colocara uma folha em cima da mesa: a maldita lista das mulheres bonitas de Novo Korsaki.

— Vamos direto ao assunto — disse o Dr. Lallikov — o problema está resolvido, porque nós não podemos resolvê-lo. Os resultados das indagações são deprimentes. Arrasam com toda a capacidade de imaginação, superam mesmo o conhecimento médico da psicologia masculina. Estou redondamente abalado.

— Não fale mais nada — balbuciou o paizinho Akif, atormentado. — Há horas que estou padecendo o fogo do purgatório. Estou expiando minhas penas honestamente. Mas uma coisa eu tenho para dizer: sim. É ela.

— Quem? — gritou Kasutin, curvando-se para a frente.

— Ela confessou — disse Mamedov. — Tudo começou com uma muda de uma cerejeira japonesa. Trata-se de Stella Gavrilovna.

— Qual é o problema com ela? — perguntou o Dr. Lallikov, empalidecendo.

— A modelo indecorosa — esbravejou o paizinho Akif.

— Quem mais poderia suportar tal coisa? — balbuciou Lallikov. — Pelo menos, eu não.

— Estou espedaçando-me — sussurrou Akif Victorovitch.

— Mas isso é inacreditável — Lalikov segurou os óculos com ambas as mãos. — Agora são quatro. Quatro em uma semana. Será que o que provoca isso é realmente o ar cheio de ozônio?

Kasutin levantou as mãos e agitou-as no ar.

— Não sei sobre o que vocês estão falando — disse ele, admirado. — O caso é bem simples. Solucionei-o casualmente, assim de passagem. Uma coisa bem simples: trata-se de Antonina Pavlovna Zvetkova.

— Não — balbuciou o Dr. Lallikov. — Não! Mate-me, Piotr Dementievitch. Repita o que disse.

— É a pura verdade: o corpo sem cabeça pertence à bela Antonina.

— Esse negócio vai acabar me matando – gaguejou Lallikov. — Isso é pior que uma antiga tragédia grega.

— O corpo pertence a Stella Gavrilovna disse o paizinho Akif, abafado e como se estivesse falando do outro mundo. — Estou sabendo e muito bem.

— Bom, se um pope está sabendo tão bem assim... — fez-se presente o intimidado Babajev.

— Então, por que foi que a Zvetkova mandou que lhe enviassem um pacotinho com creme depilatório? - agitou-se Kasutin. — Será que isso não é nenhuma prova?

— Ela mandou... — sussurrou Lallikov. — Ah, não!

— Por intermédio de Dudorov. Eu estava lá quando o creme chegou. Quem é que ainda pode dizer alguma coisa? E Jankovski é convidado pelo menos três vezes por semana à casa de Zvetkov. Vocês todos estão querendo virar a lógica de cabeça para baixo?

— Sim — o Dr. Lallikov passou as mãos sobre a lista como se esta fosse um valioso pergaminho dos tempos mais remotos e encanecidos. — Eu posso prová-lo.

— Eu também — intrometeu-se Akif Victorovitch.

— Vamos proceder metodicamente. Eu vou chamando os nomes — Lallikov respirou fundo e com suspiros. — Dunia Sergeievna.

— Mas essa aí já foi riscada da lista de suspeitas — gritou Kasutin.

— Você é que é feliz — resmungou Akif.

— Galina Ivanovna... declarou a própria culpa — disse o Dr. Lallikov, em voz alta.

— Como a gente se engana — opinou Babajev.

— Stella Gavrilovna...

— Confessou — balbuciou o paizinho Mamedov.

— Rimma Ifanovna... confessou.

— Vou acabar desmaiando — sussurrou Babajev que, de repente, deu-se conta da dimensão da tragédia.

— Alia Filippovna Sitkina... declarou a própria culpa. Antonina Pavlovna Zvetkova...

— Declarou a própria culpa com a encomenda do creme depilatório — lembrou Kasutin.

— São cinco. Todas as cinco da lista! — O Dr. Lallikov recostou-se. — Todas as cinco são convictas de serem os modelos desavergonhados do camarada Jankovski. Mas, de fato, só pode ser uma delas. Só uma nesse filme. Contudo, quem? Quem? — A voz de Lallikov tornou-se quase chorosa. — Caros camaradas, constato que acabamos caindo no mesmo ponto em que estávamos no início. Não sabemos nada. A quem pertence o corpo sem cabeça?

— Só sabemos uma coisa — disse o infausto Babajev, rouco. — Foi Jankovski quem fotografou todas elas... e dessa maneira! Elas... todas elas acabaram confessando.

— Ele tem de ser morto — disse Akif, com uma voz quase imperceptível. — Esse Victor Semionovitch é um tarado sexual. É preciso que se livre o mundo dele.

— Afinal, foi ele quem nos colocou nessa situação de emergência. — Com os olhos quase saltando fora das órbitas, o Dr. Lallikov fitou Kasutin e Babajev. Coisa que pareceu mais espantosa ainda através das grossas lentes dos óculos. — O que os senhores têm a propor, camaradas?

— Deveríamos advertir Zvetkov — disse Babajev. — Talvez assim ele envenene Jankovski no próximo jantar.

— Nesse caso Rassul Alexeievitch seria preso como assassino. Isso seria justo? Eu digo:-não! — Kasutin deu um golpe com o punho na mesa. O que se deveria fazer era atacar Jankovski quando ele estivesse lá fora nos bosques, procurando suas pedrinhas, e castrá-lo.

— Nisso aí também corre-se o perigo de que ele tenha uma hemorragia — disse o Dr. Lallikov.

— E se o senhor o operasse depois desse ataque de surpresa a ele, camarada? — perguntou Kasutin.

— Desse jeito não dá certo, não. — Paizinho Akif levantou a cabeça. Estava agindo como um animal ferido de morte que ainda pudesse soltar um último rugido. — Tenham confiança na igreja, amigos. Tenham confiança na palavra que domina. Na capacidade de ir na alma. Amanhã irei falar de uma maneira franca e aberta com Victor Semionovitch.

Acharam que essa solução temporária era boa e assim separaram-se.

Mas entre eles devia haver algum cético, pois, uma hora depois, um anónimo telefonou para o comissário de construção Zvetkov e disse:

— Meu querido Rassul Alexeievitch, dê uma examinada bem acurada na mulherzinha Antonina e depois pergunte-lhe pelo creme depilatório. Por favor, encarregue-se dessa interessante obrigação.

O gordo Zvetkov balançou o fone e gritou:

— Quem é que está falando? — e depois desligou, pasmado.

 

O SENHOR AMA os que tem coração puro

O que se ouviu e leu até o momento sobre Victor Semionovitch Jankovski dá a impressão que ele pertence ao círculo de eleitos e superdotados. Ele era um homem de boa aparência, esportivo que, por causa de sua profissão de geólogo, havia corrido o mundo. Portanto, ele podia contar, de uma maneira que prendia a atenção dos outros, sobre regiões que as pessoas só conheciam de olhar no mapa. Ele gostava de rir, era generoso em se tratando de julgar seus próximos e possuía um acurado sentido para a arte. Entendia alguma coisa de pintura, arquitetura, escultura, teatro e música, lia romances, sabia discutir sobre filosofia moderna e não se via em apuros quando se começava a falar em parapsicologia. Quer dizer: no fundo, um cara porreta.

Além disso, como era dotado de uma suave e cálida voz de barítono, gostava de cantar árias, acompanhando-se ele mesmo no alaúde ou, quando era possível, ao piano. Chegava a cantar em dueto com Antonina Pavlovna coisas como: ”Dá-me a mão, vida minha...”, ou ”Papageno está querendo uma moça ou mulher...” Isso soava primoroso. Então, o gordo Zvetkov sentava-se feliz e sorridente, regozijando-se do charme de sua mulher e chamava Victor Semionovitch de amigo generoso e verdadeiro ganho para Novo Korsaki.

E alguém ainda deveria acrescentar que o camarada Jankovski não era nenhum felizardo!

Babajev esperava com suspense o momento em que Jankovski fosse buscar as ampliações de suas fotografias. E de fato, Victor Semionovitch apareceu, como haviam combinado, na tarde do segundo dia. Entrou na loja, cumprimentou, como sempre com uma amabilidade impertinente, e perguntou, descarado:

— Você aprontou as fotografias, Nikita Romanovitch?

— Pontualmente, como prometi — Babajev meteu a mão debaixo do balcão, tirou o envelope com as ampliações 18x18 e colocou-as em cima da mesa. Despreocupado, Jankovski abriu o envelope, sacou as fotografias e, visivelmente encantado, observou-as uma a uma, chegando até mesmo a colocá-las contra o sol e a balançar a cabeça várias vezes. Babajev estava tão excitado que a saliva rolava de um lado para o outro dentro de sua boca.

— Está satisfeito, camarada?

— Inteiramente. Nikita Romanovitch, você é um virtuose em sua especialidade. Você conseguiu extrair dessas tomadas tudo o que era possível ser extraído.

— Não foi muito difícil, nesses enquadramentos.

— Mesmo assim. Pode-se ver aqui nessas ampliações que você trabalhou com amor.

Babajev esforçou-se em dissimular um súbito rubor, e por isso prendeu a respiração, coisa que, naturalmente, foi errada. Assim foi que ele mergulhou atrás do balcão, ficou procurando em uma pilha de prospectos, achou um reclame para uma nova objetiva e, nesse meio tempo, já se havia acalmado tanto, que pôde passar o prospecto para Jankovski.

— A gente faz o que pode — disse ele, enquanto entregava o prospecto.

— E você pode muito — Jankovski voltou a meter os retratos no envelope e fitou Babajev com olhos amigáveis. — O que mais me agrada em você, Nikita Romanovitch, é a sua alegria no trabalho, sua compreensão, sua discrição.

— Os fotógrafos estão aí para isso mesmo — respondeu embaraçado o pobre Babajev. — Nosso trabalho se baseia na confiança mútua.

— Era o que eu estava querendo dizer — Jankovski meteu o envelope debaixo do braço. — Essas ampliações são obras-primas. Nos próximos dias virei trazer-lhe mais alguns filmes.

— Ainda... mais...? — balbuciou Babajev, já perto de cair no chão desmaiado.

— Sim. Sete, no total.

— Sete? Que alegria! Pa... parecidos em motivos?

— Misturados. No meio tem muita fotografia de natureza.

— Muita... natureza?

— Gosto da beleza em qualquer forma — disse Jankovski com olhos cintilantes. — Por exemplo, existe alguma coisa mais esplêndida que um prado crescendo e soprando ao sol?

Babajev fez que sim com a cabeça, enlevado.

— Prados crescendo... — ele repetiu como um sonâmbulo.

— Um botão de flor se abrindo? Mas para quem eu o estou dizendo! Como fotógrafo seus olhos já estão adestrados nessas delícias, não é mesmo, Nikita Romanovitch?

Babajev balançou a cabeça, sem dizer nada, e sentiu-se possuído da maior alegria quando Jankovski saiu da loja, entrou numa pequena camioneta estacionada do lado de fora e saiu rugindo em direção aos bosques para seu trabalho de pesquisa. Ele correu para o telefone, ligou para o secretário do Partido, Kasutin, que, nesse exato momento estava sendo massageado nos ombros por Dunia Sergeievna. Isso também fazia parte de sua atividade como secretário. Ela entendia muito bem de massagens. Amassava Kasutin como uma massagista formada e, nesse meio tempo, ainda atendia os telefonemas.

— É o camarada Babajev — disse ela, olhando para Kasutin. — Deus do céu, como ele está agitado!

Kasutin agarrou o aparelho e deu uma tossida nele, porque Dunia voltara a golpear-lhe os músculos das costas com suas mãos delicadas.

— Eu pensava que fosse algo ruim, Nikita Romanovitch — disse Kasutin.

— Ele esteve aqui agorinha. Apanhou as fotografias e foi embora para os bosques. Desembrulhou-as e examinou-as diante dos meus olhos. Bem indecente. Francamente extasiado. Cheguei a temer que ele devorasse as fotografias.

— É isso aí! — disse Kasutin, solene. — Nós já fizemos a análise: ele é um depravado. De uma maneira bem perigosa. Nele a depravação está transbordando e começa a ameaçar o mundo. Que mais ele disse?

— Ele vai trazer novos filmes. Sete, ao todo.

— Não! — Kasutin estremeceu. — Porra, mas que impertinência.

— Com prados crescendo.

— Modere-se, Babajev.

— Foi Jankovski quem o disse. Acho, Piotr Dementievitch, que vai haver um escândalo que nos sepultará a todos como uma avalancha de neve.

— Vamos esperar para ver o que Akif Victorovitch vai conseguir. Fique bem tranquilo, Nikita Romanovitch, bem controlado. Temos de manter a cabeça fria. Não devemos nos esquecer do diagnóstico do Dr. Lallikov: ”o companheiro Jankovski é uma pobre pessoa”, disse ele. ”Sofre de uma espécie de priapismo.” É bem verdade que nem sei o que isso significa, mas da forma como o Dr. Lallikov o disse, deve ser um martírio terrível. Ele falou com a voz tão abafada. Devemos empregar todos os meios de nossa imaginação para ajudar Victor Semionovitch.

Uma hora mais tarde, Kasutin foi visitar o gordo Zvetkov, para colocar uma bomba-relógio contra Jankovski. Zvetkov estava sentado na varanda de sua casa, fumando um charuto de Groznyi, lendo o Nova Manhã e satisfeito consigo mesmo.. Sua bela mulher, Antonina Pavlovna, estava estirada em uma cadeira de descanso no jardim, vestida com um biquini bem apertado, daqueles que só a bonita viúva Sitkina possuía em Novo Korsaki, com a perna esquerda esticada para cima. Nessa posição não muito cómoda, mas bem atraente, ela pintava as unhas do pé. Kasutin deu uma longa olhada nesse belo quadro que, no fundo, correspondia à corrompida maneira de viver do Ocidente, e depois sentou-se em uma macia cadeira de vime, ao lado de Zvetkov.

— Que bom que você veio, Piotr Dementievitch — disse Zvetkov, esticando a caixa de charutos para Kasutin. — Estão me importunando.

— Um momentinho — Kasutin mordeu a ponta de um charuto, cuspiu-a, acendeu o charuto e começou a fumá-lo, extasiado. De olhos fechados, deixou que o gosto fluísse em sua língua. Assim é a vida, pensou enquanto fumava. Para se poder viver dessa maneira, a gente tem de cagar e andar para o Estado. Um secretário do Partido honesto jamais pode se dar ao luxo de fumar um ”Groznyi número 1”. Deve-se aniquilar os parasitas... mas onde é que nossa economia estaria nesse momento, se nós não os tivéssemos? — Quem ousaria importunálo, camarada Zvetkov?

— Um anónimo. Um desses bandidos de telefone. Um desses salteadores de longa distância. Ontem, tarde da noite.

— Será que ele não estava querendo falar com alguma outra pessoa?

— Por acaso sou algum idiota?

Kasutin soltou a fumaça do charuto, formando pequenas nuvens sobre os lábios.

— Afinal, que foi que ele disse?

— Que eu deveria dar-me ao interessante trabalho de botar os olhos na minha mulher.

Kasutin engasgou-se com a fumaça, tossiu selvagemente, buscou ar com olhos saltados para fora, agarrando-se no canto da mesa. Só depois de bastante tempo de recuperação, foi-lhe possível dizer, com uma voz meio arranhada:

— Parece impossível!

— E que eu deveria preocupar-me com o creme depilatório.

Kasutin agradeceu ao seu normalmente negado Deus que estivesse sentado em uma cadeira com apoio lateral. Teve a sensação de que escorregaria para fora... era como se, de repente, a força de gravidade da terra tivesse se multiplicado por dez.

— Que se... se deve pensar disso? — tartamudeou ele. — Que pensamento mais absurdo! Rassul Alexeievitch, que é que o senhor tem a ver com cremes depilatórios? Ah, se a coisa não fosse tão estúpida assim...a gente podia dar gargalhadas. — De repente, Kasutin cravou os olhos no gordo Zvetkov, como a serpente olharia o coelho. — Claro que o senhor nunca viu um creme depilatório, não é mesmo?

— Por que não? — zangado, Zvetkov deu uma chupada no charuto. O telefonema tarde da noite ainda o afligia mais do que era preciso. — Por acaso eu vivo numa caverna? Claro que conheço essa especialidade de cosmético.

— Conhece de nome. Através dos reclames. Como todos nós os conhecemos, claro! — Kasutin respirou fundo. — Mas já teve um desses na mão?

— Também — disse Zvetkov, com um ar de repugnância.

Kasutin sentiu os olhos turvarem.

— Ah — balbuciou, fez um bico com a boca e soltou um assobio sem querer. Seu olhar desviou-se para a direção de Antonina Pavlovna. Lá estava ela, deitada no jardim como uma pintura de algum mestre antigo. Kasutin imaginou-a sem biquini e sentiu a garganta arder.

— Por que o senhor assoviou assim tão parvo, Piotr Dementievitch? — perguntou Zvetkov grosseiramente. — É melhor que o senhor me diga o que está pensando em fazer. Como é que o senhor protege os cidadãos honestos desses telefonemas anónimos? Fui insultado. Assim como também minha mulher, Antonina Pavlovna. O senhor deveria ter escutado a conversa, aquela voz impertinente no telefone.

— Que acha o senhor de Jankovski? — Kasutin perguntou como um prófulo que lança ao seu perseguidor alguma migalha para distraí-lo.

— Um verdadeiro amigo. Por quê?

— Um bom fotógrafo.

— Um artista em todos os ramos.

— Devemos aplaudi-lo — Kasutin esforçou-se para reequilibrar-se de novo. — Afinal, que foi que ele fotografou?

— Tudo. Especialmente minha mulher.

— Ah... — Embaraçado, Kasutin engoliu em seco. — Interessante.

— Claro que é interessante. — Meio sem jeito, Zvetkov passou a mão pela gigantesca barriga. — Minha mulher não é uma beleza rara? E fotogênica? Victor Semionovitch fez algumas tomadas que mais parecem quadros. Tem um tremendo olho para iluminação.

— De fato, isso ele tem mesmo. O grande artista é aquele que suprime. E Jankovski suprime muitas coisas... cabeça, pele e cabelos...

Zvetkov olhou para Kasutin, admirado; depois, abanou com aquela mão gorda na direção de Kasutin e balançou a cabeça.

— Nenhum cheiro de álcool. Perdoe-me, Piotr Dementievitch, mas por um momento pensei que você tivesse rastejado num barril de vodca. Você está falando coisas esquisitas como nunca falou.

— Você conhece todas as fotografias que Jankovski tirou de Antonina Pavlovna? — perguntou Kasutin, nem um pouco insultado.

— Não sei. As piores ele não mostrará para mim.

— E as melhores? — Kasutin levantou-se para preparar a desabalada carreira. A bomba-relógio fora colocada; nesse momento, o tique-taque estaria soando na alma do balofo Zvetkov..

— As melhores estão coladas em um álbum — grunhiu Rassul Alexeievitch. — Afinal de contas, por que é mesmo que você veio até aqui, camarada Kasutin?

— Estava querendo dizer-lhe que recebemos dinheiro para a creche da comarca.

— Muito simpático que você tenha me trazido rapidamente essa novidade — respondeu Zvetkov, com a maior amabilidade. — As plantas já estão há meses em Magnitogorsk e já foram aprovadas. Começo com as escavações dentro de uma semana. O projeto está todo ele financiado.

Que um raio fulmine essa pança de merda, pensou Kasutin. Claro que esse sujeito já sabia de tudo de antemão e já estava com o lucro metido nos bolsos quando nós ainda não sabíamos de nada. Que seria de nós sem a economia planificada?

— Se nós não tivéssemos você, companheiro Zvetkov... — disse Kasutin, amargurado.

— O acabamento artístico também já foi aprovado — Zvetkov esfregou as mãos. — Vai ser armada uma gigantesca fotografia de Jankovski na parede ao longo do hall...

Kasutin amparou-se com ambas as mãos no espaldar da cadeira. Sentiu os músculos das costas esfrangalhando-se, mas não deu nenhum grito.

— Uma fotografia maravilhosa — prosseguiu Zvetkov. — Um motivo do reino das crianças. Uma alegoria: terreno acidentado e baixada...

Kasutin balançou a cabeça pesadamente. Saiu da casa de Zvetkov, sentou-se ao volante em seu carro de serviço e jogou a cabeça para trás, no encosto. Ficou sentado assim durante um longo tempo, como alguém que tivesse recebido um corte no pescoço.

Como é que se pode salvar Novo Korsaki?, pensou. Ah, meu Deus do céu, que atropelo mais completo! E ninguém teria percebido, se aquelas fotografias imorais não tivessem caído diante de nossos olhos. As futuras gerações venerarão Babajev e Kasutin como libertadores.

Precisamos fazer algo! O vírus Jankovski já contaminou a metade da cidade!

Moisés foi às montanhas para dar novas leis a seu povo. O paizinho Akif partiu de bicicleta a motor em direção a uma garganta pedregosa do bosque, para apelar à consciência de Jankovski.

Os que conhecem a Bíblia sabem que Moisés, quando retornou da montanha, viu seu povo esforçando-se por enriquecer. O pope Mamedov entorpeceu-se numa fúria sagrada ao encontrar Jankovski acompanhado na garganta. Rimma Ifanovna, a beleza ruiva com o cérebro diminuto, estava com ele.

— O negócio — disse Akif com sua voz trovejante que até mesmo ali, na garganta, ecoava — é que eu não estava querendo importunar. Eu achava que você estaria efetuando seus estudos sozinho, meu filho.

Olhou a sua volta e descobriu que Jankovski havia construído uma cabana de madeira; é bem verdade que uma construção bem rudimentar, composta de um teto com estacas laterais. Portanto, tratava-se mais de uma proteção contra uma mudança de tempo rápida do que uma hospedagem. Ainda assim, havia uma cama dobrável sob o teto e um caixote servia como mesa. Sempre se pode fazer considerações morais sobre uma cama quando ela está sozinha, ficando à vista de moças especialmente belas.

— Venha até aqui embaixo, paizinho — gritou Jankovski, apontando para uma escada encostada nas escarpas. — Mas se o senhor tem vertigens, eu posso subir aí.

— O constante contato com o céu faz com que eu não tenha vertigens — replicou Akif orgulhosamente. — Vou até você, meu filho, mesmo que você viva nas profundas do inferno. Eu preciso ir até você... nada poderá impedir-me.

Desceu a escada e, chegando embaixo, acariciou a barba, endireitando-a, e olhou com um ar de censura para Rimma Ifanovna. É bem verdade que ela estava vestida corretamente e não deu nenhuma impressão de repúdio surpreso, mas a pergunta continuava no ar: que estava querendo uma cesteira na cova pedregosa de um geólogo? Em todo caso, pode-se descartar a possibilidade de interesses profissionais em comum.

— Ela precisa estar presente? — perguntou com um ar severo, apontando para Rimma como se esta fosse alguma cabra curiosa. — É ela tão necessária assim em seu trabalho? Não cabe a mim julgá-lo, meu filho.

— Rimma Ifanovna estava me dando uma indicação — disse Jankovski.

— Mesmo?

— Estava mostrando-me alguns lugares até agora não observados.

— Ah... — a barba de Akif arrepiou-se. O pope ensaiou colocar Rimma de joelhos e fazer com que ela falasse de seu arrependimento em voz alta, mas em consideração aos outros importantes esclarecimentos, renunciou a uma sondagem de consciência mais severa. — Boa moça!

— Estou muito satisfeito com ela.

Akif Victorovitch dominou-se e engoliu tranqüilo essa monstruosidade. Por si já era um enorme êxito do autocontrole ter de ficar olhando para Rimma com olhos disfarçados, imaginando a maneira como essa criatura magnífica se comportaria levianamente ali, no bosque, numa garganta pedregosa, debaixo de um teto de madeira. A fúria sagrada o estava quase impelindo a começar uma briga com Jankovski. Ele meteu a mão no peito, sentiu o longo e duro objeto debaixo da batina e ficou satisfeito. Em caso de necessidade, uma pistola sempre é o melhor amigo. Já passou-se o tempo dos mártires... ou, melhor dito: deve-se evitar esse tipo de beatificação, se as circunstâncias o permitem.

Akif esperou até que Rimma Ifanovna tivesse subido a escada, com o que mostrou muita perna e coxa; depois, ouviu-se o crepitar de uma motocicleta. Jankovski caminhou para a cama dobrável sob o teto.

— Agora nós estamos sozinhos — disse ele.

— Sim, agora nós estamos sozinhos. — O pope também chegou-se para debaixo do teto. Hesitou, evitou a cama e sentou-se sobre o caixote. — Um grande momento.

Victor Semionovitch fitou Akif Victorovitch com um ar de interrogação. O pope cruzou as mãos.

— Nós devemos falar um com o outro francamente — começou ele, com um tom benévolo. — Meu filho, ambos temos o mesmo nome... isso deveria obrigarnos a que nos compreendêssemos. Devemos abdicar de qualquer mentira, a pureza de uma pomba deve ser a mesma da dos nossos corações, a fraternidade deveria abrir nossa mente. — Curvou-se para a frente e cravou os olhos em Jankovski como um estrangulado. — Que foi que você fez com Stella Gavrilovna, meu filho?

— Ela me abastece de flores frescas — respondeu Jankovski, com um ar de sinceridade.

— E além disso?

— De vez em quando com vasos.

— Algo mais além disso?

— Ela gosta tanto de comer blinis com cogumelos no vinagre. Então, eu a convidei para comer. Sei fazer blinis de um modo bem especial...

— Não foi somente isso! — interrompeu o paizinho Akif, nervoso. — Que negócio foi aquele com a cerejeira japonesa?

— Com a cerejeira? Stella Gavrilovna conseguiume uma. Já se andou falando disso por aí?

— E como se falou disso por aí! — explicou Mamedov, acentuando as palavras.

— Um exemplar magnífico — o rosto de Jankovski irradiou-se. — Quando se trata corretamente dela, aparece uma flor.

O paizinho Akif apalpou a pistola debaixo da batina, suspirando desesperado. Ele conhecia o magnífico exemplar que era Stella Gavrilovna, para isso não precisava do reconhecimento de um Jankovski. Mas era interessante ficar sabendo que tipo de tratamento especial esse exemplar precisava para fazê-lo florescer mais ainda. Mamedov confrangeu-se todo, quando lançou a pergunta:

— Tirar fotografias faz parte disso?

— Claro que eu também a fotografei — replicou Jankovski, inocentemente. — Esse tipo de coisas a gente tem de perpetuar em fotografias. Eu fotografo tudo que tem a ver com a beleza. Nós não passamos de uma sociedade de cegos, já não vemos mais quanta coisa magnífica existe à nossa volta. As menores coisas, principalmente se estiverem nuas, escondem um certo ritmo em suas formas.

Mamedov estremeceu, sentindo dores em todo o corpo. Sua cabeça fervilhava. Que falta de vergonha! Que infâmia!

— Quero publicar um livro sobre a beleza — prosseguiu Jankovski — sobre a beleza que passa despercebida à nossa volta. A perfeição da nulidade. Por acaso o senhor já examinou bem de perto e em detalhes uma pedra de calçada? Ou um caroço de ameixa? Esse milagre da natureza? Ou um pedaço de casca de vidoeiro? Ou um escaravelho serrando uma folha? São milagres pelos quais a gente passa sem prestar atenção.

— Mas ninguém passa por Stella Gavrilovna sem prestar atenção — disse Akif, áspero. — Ela também vai aparecer em seu livro, meu filho?

— Talvez. Só vou ocupar-me da escolha das fotografias no inverno. Por enquanto ainda estou procurando e fotografando.

— Ah! Quer dizer que a coisa segue adiante?

— Vai ser um livro especial, paizinho.

— Claro que vai ser.

Akif penteou a barba com as mãos.

— Você não tem medo de estar golpeando alguma coisa no exercício de sua profissão?

— A gente sempre tem de contar com isso.

— Você está trilhando um caminho muito perigoso, meu filho.

— No momento não. Rimma Ifanovna referiu-se a uma coisa que soube por intermédio de seu pai e que não está assinalada em nenhum mapa: aqui nessa região deve ter havido uma pequena mina. Uma diminuta mina, explorada por alguns aventureiros, até que o último faleceu. Eles buscavam pedras preciosas. Diamantes! Rimma não sabe o lugar exato, mas a mina deve estar localizada por aqui, nessa garganta estreita. Tenho muito que fazer.

Akif estava pouco interessado em descoberta de pedras preciosas; ele só pôde ouvir que Jankovski, contra toda a expectativa, não iria partir tão cedo.

— Quer dizer que você vai ficar um bom tempo por aqui? — perguntou.

— Novo Korsaki é o lugar ideal. Geologicamente interessante... além disso, tenho tempo bastante para poder publicar meu livro. Mais tarde, escreverei um informe sobre minhas experiências.

— Ainda por cima isso! Você é realmente uma pessoa diligente! — O paizinho Akif respirou fundo. — Todas as experiências?

— Sim. As pessoas ficarão assombradas.

— É de se esperar. Victor Semionovitch, terei de rezar por você. Está trilhando atalhos perigosos. Por que é que você não se restringe a procurar diamantes?

Jankovski olhou para o pope com respeito e com uma admiração muda. Para ele era totalmente incompreensível o que Akif queria exprimir com seu palavreado. Compreendia menos ainda por que sua profissão deveria ser tão perigosa assim. Podia-se supor que acontecesse o desabamento de uma galeria velha e se ficasse soterrado, mas contra isso se podia tomar precauções, podia-se escorar as galerias, tornando-as seguras contra desabamento antes de se avançar para a profundeza. Bom, pelo menos era enternecedor que o pope se preocupasse com seu bem-estar e o fosse procurar na garganta. No entanto, ao que tudo indicava, o pope não entendia nada de fotografia, apesar de Jankovski tê-lo presenteado com alguns bons retratos da igreja, retratos estes que estavam pendurados nas paredes da casa dele, junto com as tomadas de Babajev. O projeto do livro de fotografias não parecia tê-lo entusiasmado muito.

— Talvez mais tarde eu só me dedique a publicar livros — disse Jankovski, ingenuamente. — A fotografia artística tem um grande futuro pela frente.

Akif Victorovitch não foi capaz de matar Jankovski a tiros, ali e naquele momento, e depois sair fazendo o alarido de que o bom homem havia sido assassinado por uma quadrilha de caçadores clandestinos. Sim, se tivesse havido briga, ele teria agido na mais pura fúria, o sangue nas veias teria transformado-se em torrente; Jankovski poderia, por exemplo, ter admitido em detalhes seus excessos com Stella Gavrilovna, então Mamedov teria sacado a pistola e atirado sem arrependimento. Mas não aconteceu nada parecido com isso. Jankovski era um jovem amigável, contou sobre seus projetos, contou francamente que ali poderia haver diamantes, contou sobre experiências vividas... O paizinho Akif viu-se incapaz de matar alguém tão amável. O rapaz possuía uma tal fraternidade que a mão de Akif paralisou-se.

O pope levantou-se, fez o sinal-da-cruz sobre a cabeça de Jankovski e caminhou em direção à escada.

— Foram momentos instrutivos — disse, enquanto caminhava. — Nunca se junta conhecimentos suficientes. Quando é mesmo que você disse que está querendo organizar o livro de fotografias sobre a beleza?

— No inverno. Quando for impossível continuar com as escavações.

— Certamente, até então você já terá fotografado muitas coisas, não é mesmo?

— Estou contando com ter de escolher entre duas mil fotos, mais ou menos.

O paizinho Mamedov perdeu a respiração. Quantas vezes então ele terá tido Stella Gavrilovna diante da objetiva, pensou ele com o coração palpitando. Quantos tormentos se abaterão sobre nossas cabeças? Será que o poderemos suportar?

Claro que não se poderá evitar neutralizá-lo em uma oportunidade adequada. Isso será possível quando ele achar a velha e esquecida mina.

Mamedov guiou de volta a Novo Korsaki, tão rápido quanto lhe permitiu sua bicicleta a motor e invadiu o consultório do Dr. Lallikov. O médico acabara de receber a notícia de que um anónimo havia falado para o balofo Zvetkov algo sobre um creme depilatório e que, depois disso, Rassul Alexeievitch andava completamente fora dos eixos. Ele escorraçara Kasutin e depois apresentara-se ao farmacêutico Dudorov, gritando-lhe que para ele o juramento do farmacêutico não passava de um queijo de buracos. Dudorov esteve a ponto de chorar e naquele momento acabara de telefonar para o Dr. Lallikov.

— Ele está escrevendo um livro — gritou também o paizinho Akif na maior agitação, desabando em uma das cadeiras — um informe sobre as experiências vividas em Novo Korsaki. E está publicando um livro de fotografias. Belezas despercebidas. Com esse objetivo, está querendo continuar com as fotos. Dois mil retratos!

— É o que eu dizia — constatou o Dr. Lallikov

uma supersexualidade. Esse sujeito é governado pelas genitálias.

— Tem de acontecer alguma coisa — balbuciou Mamedov — não podemos assistir a isso tranqüilamente ou só com um interesse científico. A infestação não pode seguir adiante. Nós não podemos nos contentar em desterrar as pobres vítimas; temos de cortar o mal pela raiz.

— Pela raiz! Foi você quem o disse, Akif Victorovitch! — o Dr. Lallikov foi buscar vodca e dois copos e sentou-se em frente ao pope. — Informe-me sobre sua conversa com esse superfauno. Como foi que o senhor o encontrou?

— Rimma Ifanovna estava com ele.

— O quê? — Lallikov estremeceu. — A deusa ruiva?

— Ela mostrou-lhe alguma cois...

— Por favor, não me torture com o suspense — disse Lallikov, de modo veemente, servindo a vodca. — Informe-me de tudo de acordo com a seqüência dos acontecimentos. Dê importância à descrição dos detalhes , paizinho ...

 

À noite, Zvetkov recebeu seu convidado com o cenho carregado. Jankovski fora convidado para o jantar. Presenteou a dama da casa, a bela Antonina Pavlovna, com uma corbelha de flores coloridas, escolhida e preparada Por Stella Gavrilovna (coisa que Akif Mamedov ficou sabendo 15 minutos depois; a propósito: só que Jankovski estivera com Stella) e levou partituras de piano de três óperas. Nessa noite, Antonina e Jankovski queriam cantar alguns duetos e conversar sobre a possibilidade de darem um concerto na festa da Revolução de Outubro na sede do Partido em Novo Korsaki. Já perguntado sobre isso, o professor da 3.a Classe, um certo camarada Plunikov, aceitara entusiasmado a proposta de acompanhar ao piano a Zvetkova e Jankovski. Caso tivesse tempo, a Orquestra da Juventude poderia assumir o acompanhamento. Nesse caso seria realmente como em uma ópera. Como sempre, Zvetkov cumprimentou Jankovski com efusivos beijos no rosto, Antonina também recebeu beijinhos de Jankovski, mas depois, durante a sopa, uma orkoschka com pedaços de galinha, a coisa tornou-se séria. Zvetkov disse, com uma voz de mofo:

— Um conselho, por favor, querido Victor Semionovitch: que se pode fazer contra indiscrição?

Jankovski, como sempre completamente afastado dos acontecimentos à sua volta e, por isso mesmo, envolto em uma aura de ingenuidade, respondeu:

— O malfeitor tem de ser chamado à conversa.

— Foi o que fiz. Ele mentiu.

— Um covarde.

— Um cachorro trapalhão.

— Você tem provas?

— Não.

Jankovski tornou-se um pouco intranqüilo.

— Isso é mau, Rassul Alexeievitch. Sem provas, nenhuma possibilidade de avanço.

— Só podia mesmo ter vindo de um malfeitor — Zvetkov respirou assoviando. Coisa compreensível... o coração, os pulmões, as traquéias, a garganta, tudo cheio de gordura. — Trata-se de uma indiscrição médica.

— Dr. Lallikov? Impossível. Ele jamais teria...

— Dudorov — disse Zvetkov com uma voz que parecia saída de uma sepultura.

— Nosso farmacêutico? — Jankovski olhou para o lado de Antonina Zvetkova Pavlovna. Ela inclinou a cabeça com os olhos cobertos com uma nuvem de preocupação — Akbar Nikolaievitch é uma pessoa impecável.

— Era o que eu também pensava. Um anónimo telefonou pela noite semeando a dúvida e, depois, apareceu Kasutin, insinuando coisas. Estou em um estado de espírito que nem posso descrever-lhe. Sinto-me principalmente surpreso. Você ainda não ouviu nada por aí, caro amigo?

— Absolutamente nada. E olha que conheço muitos cidadãos...

— É terrível — Zvetkov enxugou a cara balofa com um guardanapo, esperou que os pasteizinhos com carne de coelho fossem levados à mesa depois da sopa e ficou esgaravatando de mau humor a magnífica comida. — Victor Semionovitch, você, como nosso melhor amigo, deve saber. Você será a única pessoa a saber, com exceção de minha mulher, e deve ficar enterrado em seu coração: eu uso um creme depilatório.

Zvetkov esperou por uma reação, olhando fixamente para Jankovski, mas Jankovski dividiu seu pastel de coelho e comeu um garfo cheio. Só depois foi que ele disse, sem preocupar-se:

— A gente sempre deve ter cuidado com essas químicas. Elas podem prejudicar a pele.

— Isso é tudo? — respondeu Zvetkov, olhando fixamente para a mesa.

— Já basta se aparecem nódoas em toda parte.

— Eu quis dizer: isso é tudo que você tem a dizer a respeito? Você não se espanta?

— Não. Por quê?

— O normal é a pessoa fazer a barba com gilete.

Mas com um creme?

— Você deve ter suas razões, Rassul Alexeievitch.

— E as tenho. Há quatro anos que sofro de um crescimento anormal dos cabelos do sovaco. O Dr. Lalikov deu muitas explicações latinas para o caso, mas estou pouco me importando com elas. Só sei que, se não me depilo, posso fazer tranças debaixo do braço duas vezes por ano. Já estive em tudo que é especialista. Que foi que eles disseram? Uma disfunção hormonal. Mas de que me adianta saber como o problema se chama? Os cabelos crescem e não podem ser domados. Mesmo com o creme, trata-se sempre de uma batalha ganha e não uma guerra. Na embalagem está escrito: "elimina em profundidade, até a raiz dos cabelos". Que afirmação mais falsa! Pelo menos comigo. O que acontece comigo é que as raízes dos cabelos se riem do creme. É bem verdade que a penugem desaparece, no entanto volta a crescer de novo.

Zvetkov recostou-se. Seu abalo era visível e qualquer um podia compreendê-lo. Afinal, quem é que gosta de ter trancinhas nas axilas?

— Imagine a minha situação — prosseguiu ele, com a voz asmática — meu caro Victor Semionovitch. Padeço de um crescimento de cabelos diabólico e vem um anônimo telefonar para mim e jogar-me na cara o meu segredo. E ainda por cima Kasutin, que arreganhou os dentes para mim como um fauno. Julgue você, meu amigo; eu não fui desonrado?

— A coisa agora é completamente diferente — disse

 Jankovski, acrescentando, cauteloso: — mas a gente deve conservar a cabeça fria.

— A pessoa que telefonou ainda acrescentou uma outra coisa, Rassulenka — objetou Antonina Pavlovna — não se esqueça disso.

— Ah, não! — Zvetkov fechou o punho. — O sujeito ainda disse: "Encarregue-se da interessante obrigação de colocar os olhos em sua mulher". Isso me tirou a respiração por completo. Foi a prova de que ele estava sabendo bem do meu padecimento. Ele estava desafiando-me para uma comparação. Basta que você veja os longos e belos cabelos de Antonina... e esse patife o estava comparando com meu sofrimento.

— É assustadora a perversidade do ser humano — disse Antonina Pavlovna — eu jamais poderia pensar que tais elementos estúpidos vivessem em nossa pequena e bela cidade. Victor Semionovitch, agora você está sabendo de tudo... como é que deveríamos reagir?

 

Jankovski terminou de comer seu pastel, sorveu um gole de vinho do Krim e tocou de leve as migalhas do canto da boca.

— Meu conselho seria: ignorar, mostrar orgulho, elevação espiritual contra um mundo que está ruindo. Você é Zvetkov, Rassul, Alexeievitch. Você é inatingível. Claro que o anônimo queria atingir você... não lhe dê este prazer. Parta para a ofensiva. Elogie o creme depilatório de público, na farmácia de Dudorov.

— Ah! Isso é que é idéia! Victor Semionovitch, você é um amigo do peito. Eu gostaria de beijar-lhe como um irmão — Zvetkov estendeu os braços. Nesse momento, um inimigo cruzaria os dedos e esperaria que Zvetkov sucumbisse de um ataque do coração. — Sim, é assim que vou proceder. Que teria eu a perder? Por acaso sou algum outro homem com ou sem cabelos? Vou mostrar-lhes. Jankovski, irmãozinho, você me restituiu a autoconfiança.

E, para atestar sua metamorfose, virou-se para o telefone e chamou o farmacêutico Dudorov. O pobre Akbar Nikolaievitch assustou-se até a medula quando percebeu que era de novo a voz de Zvetkov e, com os joelhos trémulos, apoiou-se na parede.

— Você sabe o que é uma disfunção hormonal? berrou Zvetkov.

Dudorov revirou os olhos, amaldiçoando o indiscreto Kasutin. Respondeu, com uma voz cautelosa:

— Camarada Zvetkov, deveríamos conversar sobre o assunto com a maior calma possível...

— Eu tenho uma! Em mim os cabelos crescem em lugares onde eu não os posso usar. Dá para você imaginar?

— Sim — grasnou o farmacêutico Dudorov, só que errando em pensamento sobre o tal lugar.

— E eu combato a floresta com o creme.

— Por que é que o senhor está me dizendo isso? — gaguejou Dudorov.

— Para que você possa recomendar o creme para outros, Akbar Nikolaievitch — respondeu Zvetkov, de bom humor. — Sempre pode haver alguém que vá até você e que também tenha problemas com esse tipo de crescimento de cabelos. Pode dar meu nome como referência, não tenho nada contra.

Jogou o telefone no gancho, virou-se para Jankovisk e Antonina Pavlovna e envaideceu-se.

— Como é que foi? — perguntou. Foi direito? Atingi o objetivo?

— Você esteve fantástico — gritou Antonina, aplaudindo — grandioso. Você é digno de admiração.

— E agora a sobremesa! — exigiu Zvetkov. — Sorvete de baunilha com murtas cristalizadas. E um licorzinho de moça! Ah, como me sinto liberto!

Uma hora depois, Jankovski e Antonina Pavlovna cantaram seu dueto. Jankovski acompanhou ao piano. Soou muito bem, as cenas de amor eles cantaram com a discrição necessária... realmente, era só a arte que os unia.

Zvetkov afundou em uma poltrona funda, fechou os olhos e dormiu. Saciado, satisfeito, liberto.

Em contrapartida, Kasutin foi punido. Como era ele quem estava de posse da lista de suspeitas, foi arrancado da cama pelo Dr. Lallikov.

— Risque imediatamente Antonina Pavlovna — grunhiu o médico. — Não temos nada a procurar ali. Sua honra está fora de toda suspeita. Como médico, responsabilizo-me por isso.

— Você a examinou hoje, companheiro? — Kasutin coçou os cabelos da cabeça.

— Eu o sei! — gritou Lallikov — só que minha memória diminuiu um pouco.

Confuso, Kasutin deixou o fone cair.

 

ATÉ HOJE, PODEM SER ASSINALADOS na crónica de Novo Korsaki seis assaltos que representaram distúrbios da tranqüilidade nesse lugar paradisíaco. Primeiro, aconteceu a histórica invasão dos cossacos que, depois de algum tempo, graças à atividade e às qualidades das mulheres cossacas, terminou de maneira ridícula em deserção e colonização que proporcionou ao pequeno lugarejo um crescimento inesperado. Os assaltos do número 2 ao 4, devem ser colocados na conta de hordas errantes de prisioneiros fugitivos e aventureiros que viam a Sibéria como a grande terra da liberdade, onde qualquer um podia matar quem lhe desse na veneta, quando se pudesse tirar algum proveito. Também esses ataques terminaram de modo ridículo. Os descendentes dos cossacos perseguiram os bandidos, aprisionaram-nos, enterraram-nos no pântano até a altura do pescoço, espalharam açúcar em suas cabeças e depois desejaram tudo de bom Para os delinquentes.

Duas semanas depois, as cabeças haviam sido roídas por gigantescos enxames de mosquitos e exércitos de formigas; também os lobos e fuinhas gostaram muito da mudança do cardápio.

O assalto número 5 foi um engano: tropas do Exército Vermelho atravessaram a região de Novo Korsaki, acharam que era bastante destrutivo que em nenhum lugar se encontrasse uma bandeira vermelha içada; em contrapartida, havia uma igreja insultando seus olhos e, como contribuição à ação ”Liberdade do jugo czarista”, saquearam o lugarejo e depois presentearam-no com uma bandeira vermelha. Ainda hoje ela se encontra na sede do Partido. De vez em quando, Kasutin olhava-a meditabundo e tomava todo cuidado para levá-la às festas oficiais.

O sexto assalto referiu-se a um transporte. Anunciaram de Magnitogorsk uma remessa de meias, pulôveres, calças quentes e outras coisas bonitas. Novo Korsaki alegrou-se de expectativa por essa bênção da economia planificada que, finalmente, deveria ser agregada também a essa parte da Sibéria... mas o caminhão jamais chegou. Tropas de busca que reviraram a região desesperadamente descobriram por fim o veículo totalmente roubado em uma garganta; no entanto, os dois motoristas continuaram desaparecidos, coisa bastante estranha. Em geral, nesse tipo de assalto deixa-se os mortos no local. Afinal, não se tem tempo para se ocupar de uma remoção. Assim foi que surgiu a suspeita de que os dois motoristas haviam feito o negócio todo e que agora deviam viver satisfeitos no sul. Mas como a próxima remessa especial era em uma distância longínqua, o sexto assalto foi considerado o pior, pois doeu a todo mundo a renúncia às calcinhas quentes.

E depois aconteceu então o sétimo assalto em Novo Korsaki. Uma coisa pequena, mais íntima e particular,mas mesmo assim... Um número desconhecido de invasores jogou-se em plena madrugada sobre o geólogo Jankovski, que se encontrava dormindo em sua cama, meteram um saco em sua cabeça, amarraram-no e empurraram-no de volta à cama. Tudo isso aconteceu muito rapidamente, quase sem que emitissem qualquer ruído e Jankovski também foi apanhado de surpresa e não pôde pensar em uma defesa imediata. Até que ele quisesse aproveitar-se da superioridade esportiva de seus músculos, já havia sido colocado fora de ação. Era contrário a gritar por socorro... em primeiro lugar porque ninguém o teria escutado e, em segundo lugar, porque não adequava com seu caráter.

Ele esperou, deitado tranqüilamente e espreitando em busca de barulhos reveladores, ouviu homens arquejando e tossindo, ofegando e murmurando, alguém sentara-se gemendo e esfregando as mãos nas pernas da calça.

— Se vocês estão acreditando, companheiros, que tenho um montão de rublos à disposição, é porque não conhecem o status social de um pequeno geólogo — disse Jankovski, ao ver que ninguém pronunciava palavra alguma. — Já por si é ridículo que alguém queira roubar-me.

— Onde é que estão os retratos? - perguntou uma voz abafada, visivelmente disfarçada. Era a voz do paizinho Akif, que havia colocado uma noz entre os dentes, para impedir qualquer semelhança com sua voz normal. O Dr. Lallikov propusera-se a falar com uma voz em falsete. Kasutin queria grunhir. Babajev, que estava tremendo de medo, decidira-se por uma voz mais fraca de mulher.

— Que retratos? — perguntou Jankovski, honestamente surpreso.

— Suas fotos.

— Minhas tomadas artísticas?

— Justamente essas — falseteou o Dr. Lallikov. Jankovski refletiu profundamente. Era para lá de idiota que alguém o atacasse para roubar suas fotografias. De que serviria um seixo fotografado, ou uma perna de mosca ampliada para alguém que não tivesse, como ele, planos de publicar um livro? Portanto, só poderia tratar-se de um engano... o sentido do assalto tinha uma outra direção, mas qual? Ou será que supunham que ele tivesse fotografias políticas? Será que alguém estava acreditando que ele fazia tomadas clandestinas?

Jankovski tornou-se completamente desperto debaixo do saco colocado em sua cabeça. Não conhecia os métodos da K GB, mas sabia que esse tipo de medidas, como aquela que estava sendo aplicada nele, não faziam parte das normas de interrogatório. Em se tratando das fotografias, em se tratando dessa suspeita especial, então só podiam ser adversários do regime que suspeitavam que ele tivesse segredos que pudessem ser utilizados.

— Vocês podem olhar o que quiserem, camaradas — disse Jankovski. — Elas estão nas duas gavetas da cómoda. Mas, por favor, deixem-nas separadas. Eu já as separei por temas.

O paizinho Akif e Kasutin fizeram-se sinais de cabeça. Enquanto o Dr. Lallikov e Babajev vigiavam o amarrado, Akif e Kasutin separaram as cópias, levaram os negativos contra uma lâmpada e, com isso, começaram a suar.

Não estava ali no meio o que eles procuravam. É bem verdade que havia fotografias de Rimma Ifanovna, Stella Gavrilovna, Galina Ivanovna, da bela viúva Sitkina, da Zvetkova e até mesmo de Dunia Sergeievna e também de muitas outras moças do lugarejo, mas todas as tomadas eram tão inocentes quanto as fotografias de olhos de vaca ou do estame de uma açucena. Todas as damas estavam vestidas com decoro, sempre cercadas de flores, sorriam mais ou menos de maneira estúpida, de pé, sentadas, agachadas, ajoelhadas nas mais diversas posições, esforçando-se por poder entrar no livro de fotografias de Jankovski.

Akif Victorovitch virou-se para a cama, rolando a noz entre os dentes.

— Onde estão as outras fotografias? — perguntou, com a voz abafada.

— Quais? — replicou Jankovski — não estou sabendo mesmo o que foi que vocês olharam, caros camaradas.

— Podemos dizer que tudo — arquejou Kasutin — com exceção das pastas 23 e 24.

— Ali só estão tomadas marinhas.

— E as outras? — falseteou o Dr. Lallikov.

— Não tenho a menor ideia do que vocês estão procurando.

— As tomadas de nudismo — chiou Babajev.

— Que tomadas de nudismo? — perguntou Jankovski, agora sinceramente mais perplexo que surpreso.

— Você já está sabendo quais — resmungou o paizinho Akif.

— Vocês me confundem completamente, camaradas. Eu não sei mesmo nada sobre fotografias de nudismo.

— Você não sabe nada sobre uma tomada de uma mulher nua, depilada, com os pêlos raspados? — De tão agitado que estava, Kasutin suava como um cavalo acossado.

— De Stella Gavrilovna? — contrapôs Mamedov, metendo as mãos uma na outra.

— Por que deveria ela estar depilada? Fotografei-a justamente porque ela tem esses cabelos negros e belos, assim como também fotografei Rimma Ifanovna e muitas moças e mulheres. Estou querendo fazer uma confrontação: a beleza da natureza... a beleza do ser humano. Vocês nem Podem acreditar quanta beleza existe em Novo Korsake!

— Nós o sabemos - grunhiu Kasutin — onde é que estão as fotografias de nudismo?

— Não tenho nenhuma tomada de nudismo — reiterou Jankovski pela enésima vez. — Afinal de contas, o que é que voces estão querendo?

— Existem uns retratos de uma mulher sem cabeça.

— Não! Não feitas por mim!

— Como ele mente! — falseteou o Dr. Lallikov.

Infame! Só corpos! Lisos, sem cabelos! Como ele mente!

Jankovski foi percorrido por um raio de cognição. Hesitou, disse para si mesmo que não era possível que fosse esse tipo de coisas, mas que ele estivesse ali, amarrado, provava que não havia nada tão louco que não pudesse ser levado a cena pelo homem.

Provava que não havia nada tão louco que não pudesse ser levado a cena pelo homem.

 

— Não... — disse, hesitante. — Camaradas... se é isso que vocês estão dizendo... ah, meu Deus do céu, será possível? Meus queridos irmãos, se eu molhar a cama agora, vai ser porque minha bexiga explodiu de tanto que eu ri. Não, claro que não pode ser isso!

De repente, Jankovski riu, seu corpo amarrado tremeu, sua cabeça envolta no saco bateu contra o travesseiro. Kasutin e o Dr. Lallikov entreolharam-se, o paizinho Akif estava na janela olhando calado para a noite, Babajev estava sentado em uma cadeira, estalando a dobra dos dedos.

— Comporte-se de maneira razoável — falseteou o Dr. Lallikov, agitado depois de um longo tempo, cutucando Jankovski nas costelas. — Qual é o problema com a pele da sem cabeça?

 

— A cabeça não era importante. Só me interessei pelas formas do corpo.

— Claro. Ninguém deveria reconhecer a viúva Sitkina.

— Não se trata de Alia Filippovna — riu Jankovski.

— Neste caso, trata-se de Stella Gavrilovna, não? — gemeu o paizinho Akif.

— Não. Trata-se da boneca Leila.

— uma boneca? — A voz do Dr. Lallikov soou com repugnância e nojo ao mesmo tempo. — Ele está escorregando para o linguajar dos bordéis... boneca!

— De fazer chorar! — gemeu o pope. — Só posso dizer: isso é de fazer chorar!

— Leila faz parte de um livro todo novo, à parte — explicou Jankovski, balançando-se de rir. — Comecei a reunir justamente agora. Estava querendo chamar o livro de A Arte da Boneca. Vou mostrar fotografias de bonecas... Bonecas de porcelana, de plástico, de gesso, de poliéster, de barro, de celulóide, justamente de tudo que é usado na confecção das bonecas hoje em dia. Existem tantas formas artísticas nelas, são tão fiéis aos detalhes, tão assombrosamente humanas...

O Dr. Lallikov fitou o pobre Babajev com um olhar capaz de amolecer os ossos deste.

— E quem é Leila? — falseteou ele.

— Ela foi fornecida a Sverdlovsk.,Para o supermercado. Para o departamento de modas. Um desses manequins de vitrine de poliéster. Incrivelmente natural. Tentei entrar na intimidade dessa perfeição com detalhes fotográficos.

— Você é um grande artista, Jankovski — falseteou o Dr. Lallikov, levantando-se do canto da cama. — Seus livros de fotografias deverão ter o sucesso que você merece. Perdoe-nos nossa visita noturna e considere-a como um engano, engano que lamentamos. Victor Semionovitch, você trilhará seu caminho.

Virou-se para a porta. Os outros seguiram-no, calados, deixando Jankovski para trás em uma situação bem difícil. Mas ele não teve dificuldades em libertar-se das cordas e do saco. No entanto, quando saiu ao relento, já não dava para ver mais nada. O mistério dessa noite permaneceria.

Meia hora depois, aconteceu uma conferência no quarto do pope. Kasutin lá estava como um verdugo, esforçando-se por esconder um tremor nervoso em seu rosto.

— Uma boneca! — gritou ele. — Que situação mais ridícula! Nós caímos em cima de uma boneca! Estou perdendo a respiração. Companheiro Lallikov, como foi possível que o senhor, como médico, não visse que se tratava de uma boneca?

— Não me pergunte — vociferou Lallikov. — Por acaso isso aqui é um debate da Inquisição?

— Deixe de palavras estrangeiras! — berrou Kasutin. — Todos nós estivemos ali como idiotas completos! Uma boneca! Claro que não podia ter cabelos. E um médico é incapaz de reconhecê-lo!

— Não admito que falem isso de mim — gritou Lallikov. — Se Babajev não tivesse feito um estardalhaço com essas fotos, não nos teria cegado com suas suspeitas... viramos uns grandes imbecis.

— Sim! Babajev! — A barba de Akif eriçou-se toda. — Que pensamento mais abjeto! Que enchente de insultos! Ele manchou o nome dessas honestas moças e mulheres! Nikita Romanovitch, isso que você fez abre-lhe a garganta do inferno.

— Afinal, que foi que fiz? — defendeu-se o pobre Babajev. Saltava de um lado para o outro no quarto como um canguru, quase a ponto de ter um ataque do coração. — Sim, que foi que fiz? A única coisa que fiz foi mostrar as ampliações ao companheiro secretário do Partido e Piotr Dementievitch explicou: ”isso aqui é uma grande sacanagem!” Foi ele quem deu o pontapé inicial. Foi ele o primeiro a ter os pensamentos lascivos!

— Babajev, mais uma palavra e mando encarcerálo! — vociferou Kasutin. — A ideia básica foi sua. Foi você quem disseminou o veneno que está estragando nossos estômagos. Somos tão vítimas quanto o pobre Jankovski. O que para mim continua sendo um mistério é como é que se pode dizer: ”poderia ser Rimma Ifanovna. Esses seios duros...” E, apesar disso, não passa de uma boneca.

— Por que é que você me está olhando como um bode? — despertou o Dr. Lallikov. — Volto a frisar: essa boneca de poliéster era tão natural, tão primorosamente fotografada em detalhes que, acrescentando-se nossa indignação, sempre se podia ter caído num erro. Além disso, houve o aparecimento do creme depilatório em Novo Korsaki.

— Meus queridos filhos — o paizinho Akif levantou ambas as mãos. Os outros calaram-se, respirando pesadamente e a ponto de terem um colapso nervoso. — Não vamos nós mesmos nos dilacerarmos. Já foi apresentado o arrependimento efetivo. Devemos ficar felizes porque um problema tão duvidoso foi resolvido com essa elegância. Deve-se vê-lo como um sucesso, não é mesmo? Afinal, isso tudo não é uma comprovação dos rígidos princípios morais de todas as mulheres daqui, sem nenhuma exceção? Deveríamos sentir-nos orgulhosos! O quão limpa está Novo Korsaki de novo! Deveríamos estar agradecidos... e não ficar aqui desejando mutuamente que cada um vá para o inferno. Ficou demonstrada a inocência geral... só isso já vale gritos de hosana.

— É, também pode-se vê-lo dessa maneira — disse o Dr. Lallikov, tranqüilizado. — Paizinho Akif, o senhor é uma pessoa insólita. Posso convidá-lo para um assado magnífico para depois de amanhã?

— Você deve recompensar a Deus — Akif Victorovitch fitou Babajev, que seguia tremendo. — Você só cumpriu com sua pretensa obrigação, meu filho. O empenho ético sempre desperto, é digno de elogios — disse de repente para ele.

— Prescindo de uma crítica manobrista da igreja — fez-se presente Kasutin, acenando com as mãos. — Só constatei que todos nós não passamos de burros... mas isso deve ficar entre nós. Afinal, nós não somos apenas camaradas, mas também amigos. E agora já sabemos demais uns dos outros.

Fitou Babajev, de quem partira todo o mal, desistiu de pelo menos cuspir na frente de seu sapato e saiu da casa do pope.

A caminho de casa, deparou com Jankovski, que acenava-lhe, todo excitado.

— Que bom que encontrei você, Piotr Dementievitch — disse Jankovski, sem poder respirar direito. — Estou indo para a milícia. Quero fazer uma denúncia.

Fui atacado na cama meia hora atrás.

Kasutin sentiu as axilas começarem a arder.

— Você tem certeza? — perguntou, rouco. — Será que você não andou sonhando, companheiro?

— Será que se pode sonhar que se está amarrado e que colocam um saco na cabeça?

— Sempre se pode sonhar de uma maneira terrivelmente plástica.

— Nesse caso, as cordas e o saco ficam retidos com o sonhador?

— Quase nunca — Kasutin suspirou, rendido. — Vamos juntos até a milícia. Vamos investigar esse monstruoso ataque com toda a severidade possível. Vamos usar todos os meios... Afinal, o que é que queriam de você?

— Nada. Só isso, absolutamente nada. Um mistério.

— Acontece com freqüência — disse Kasutin com um ar de sábio, lembrando-se das palavras do pope Mamedov. — Nós, os homens, temos o dom explicável de confundir mundos com nulidades. Medite mais uma vez, meu querido Victor Semionovitch, sobre se devemos ou não ir apresentar uma queixa.

Era o que Jankovski perguntava-se também. Voltou atrás em sua decisão, mas, mais tarde, tornou a meditar por que estavam querendo agarrá-lo tão perfidamente. Ele vivia bem em Novo Korsaki. Todas as pessoas eram amigas dele, o pope Mamedov, o médico Dr. Lallikov, o fotógrafo Babajev, o secretário do Partido Kasutin, o farmacêutico Dudorov, o gordo Zvetkov. Todos enfim, convidavam-no para comer, bebiam vinho e vodca com ele, deixavam-no caçar à vontade e levavam para sua casa cestos com presentes. Contudo, não se sentiu mais à vontade na cidade, terminou suas pesquisas geológicas e mudou-se para Sverdlovsk.

Não se deve levar a mal que Victor Semionovitch tenha tomado essa atitude, pois — pergunto — afinal de contas, que tipo de mundo é esse em que não se pode fotografar impunemente um manequim de vitrine pelado?

 

                                                                                            Heinz G. Konsalik

 

 

                      

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