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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MÃOS MILAGROSAS / Heinz G. Konsalik
MÃOS MILAGROSAS / Heinz G. Konsalik

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MÃOS MILAGROSAS

 

Assim que o comboio parou diante da pequena estação, após um último chiar de travões, levantou‑se do banco estofado e forrado de tecido cinzento, tal como o compartimento em que viajara sozinha. Conforme Stefan, seu marido, exigira que fizesse naquele dia, dado ele não poder levá‑la de carro nem fazer‑lhe companhia na cidade, tinha comprado um bilhete de 1.a classe. De pé, debruçou‑se um pouco para examinar o rosto durante longos segundos no espelho rectangular que se encontrava fixo por cima do assento em frente.

Não, não se via nada. Os seus traços não haviam mudado, nem tão‑pouco os seus olhos, que eram de um castanho tão escuro que mais parecia preto e se rasgavam em duas fendas oblíquas ‑ olhos em forma de amêndoa, dizia Stefan. Também eles tinham conservado um brilho de juventude que parecia provir de uma fonte inesgotável de força vital e de saúde. No entanto, uma hora antes, ela julgara necessário esconder com um pouco de pó‑de‑arroz levemente ocre as duas manchas avermelhadas que, sob o efeito da excitação, lhe tinham aparecido nas maçãs do rosto, o que constituíra, aliás, uma precaução inútil visto terem desaparecido por si mesmas.

Calmamente, meneou a cabeça para a direita e depois para a esquerda, voltou a pôr no seu lugar alguns pequenos caracóis de cabelos negros, humedeceu a ponta dos dedos para melhor alisar as sobrancelhas e, antes de se afastar, dirigiu ao seu reflexo um leve sorriso de aprovação: "Não estás nada mal, hem, para os teus sessenta e um anos! Quase parece incrível que uma mulher da tua idade tenha um ar tão jovem!" Mas o mesmo sucedera com seu pai: quando já tinha cinquenta e muitos anos ainda o tomavam por um homem de trinta, em pleno vigor. E o seu avô, já com mais de oitenta anos, ainda montava um fogoso garanhão para ir caçar lobos nos retiros selvagens que rodeiam o lago de Tchalkinskoie. Ela tinha‑o ouvido dizer em diversas ocasiões: "Se um homem vier a viver mais de duzentos anos, há‑de ser aqui na Grusínia." Também tinha o hábito de proclamar: "As doenças só existem para que se lhes não preste atenção alguma! É à força de pensar nelas e de falar delas que se fica realmente doente." Da mesma maneira, ficara igualmente muito surpreendido quando o seu filho David Semionovitch tomou a decisão de estudar medicina em Tifis e de se instalar em Poti, no litoral do mar Negro. Com efeito, o avô não tinha morrido nem de velhice nem de doença. Os Alemães fuzilaram‑no em 1944, depois de o terem surpreendido a colocar uma carga explosiva na via‑férrea Tifis‑Batum.

"Façamos, pois, como o avô", pensou ela ainda sorrindo. Saiu do compartimento. Não tinha bagagem, trazia apenas a mala de mão habitual e um pacote da grande padaria Sclimoldes, de M'nster. A Sclimoldes tinha a reputação de vender o melhor pão e os melhores bolos da cidade e de cada vez que um membro da família Doerinck se deslocava a M'nster voltava obrigatoriamente de lá com várias qualidades de pão e de bolos.

Ao abrir a porta do vagão, descortinou Corina, que estava à espera dela na plataforma e que de imediato levantou a mão num grande gesto de acolhimento. Correspondeu também levantando a sua e mostrando, simultaneamente, o grande pacote com pão e bolos.


‑ Eis‑te finalmente de regresso, mamuchka!

Ao dizer isto, Corina encarregou‑se do pacote, desembaraçando dele a mãe, que desceu com vivacidade os dois altos degraus, saltando para terra com a agilidade de uma rapariga.

‑ Porquê "finalmente"?! Sabiam muito bem que eu devia voltar neste comboio. O teu pai ainda está lá para a sua conferência?

‑ Ainda, mãe. Mas, e tu, como é que estás?

Corina fixou na mãe um olhar interrogativo. Um casal que ia na sua direcção saudou‑as com a máxima cortesia. Quem é que não conhecia os Doerinck na pequena cidade de Hellenbrand? Primeiro o professor, recentemente promovido a vice‑reitor, premiado dois anos de seguida no concurso de atiradores, chefe do coro da igreja, vice‑presidente do clube de jogadores de malha e temível jogador de xadrez aquando das reuniões regulares do círculo no albergue As Armas de Vestefália! A seguir, a sua mulher, que tinha o estranho nome de Ludinila, uma russa, imaginem, o que toda a gente em Hellenbrand tinha dificuldade em perceber, apesar dos vinte e seis anos que já tinha passado desde a sua chegada. E havia também a filha deles, Corina, quase tão "exótica" como a mãe, apesar de ter nascido na Alemanha e ter criado em Hellenbrand uma empresa de fiação de tapetes artísticos bem sucedida.

‑ Como é que estou? Mas como é que queres que esteja? Estou lindamente!

Saiu da estação a passos largos e dirigiu‑se para o pequeno carro da filha. Tal como nas outras cidades importantes da província de M'nster, a estação de Hellenbrand tinha sido construída fora da localidade, num lugar quase isolado no meio dos campos e dos bosques, ligada às primeiras casas do burgo através de uma larga avenida ladeada por altas bétulas. Além disso, Hellenbrand possuía três táxis e o itinerário do serviço de autocarros estava organizado de maneira a fazer coincidir as suas três paragens diárias na estação com as passagens do comboio‑correio de M'nster.

De pé, perto do carro, Corina insistiu:

‑ O que é que disse o médico, mamuchka?

‑ Dir‑te‑ei mais tarde, minha querida.

‑ Porquê mais tarde? Se soubesses quanto nos preocupámos, o pai e eu...

Ludmila tinha parado à espera que a filha lhe abrisse a porta do carro.

‑ Deixa‑me respirar um pouco. Contar‑vos‑ei tudo em pormenor quando o teu pai voltar da sua conferência. Bem sabes que detesto repetir as mesmas coisas.

‑ Só uma palavra, mãe. Está tudo bem?

‑ Deixa isso para mais tarde, por favor.


Subindo rapidamente para o pequeno carro, sentou‑se e esperou que a filha se instalasse ao lado dela. Que deveria dizer? "Se ao menos", pensou de repente, "estas malditas manchas vermelhas não reaparecerem nas minhas faces. Talvez que a nuvem de pó que pusera já se tivesse dissipado... Estão inquietos, naturalmente. Não estão habituados a que eu esteja doente. Durante todos estes longos anos nunca tiveram razões para se inquietarem por minha causa. É evidente que de vez em quando também tinha tido uma bronquite, uma constipação séria, uma pequena crise de ciática, uma inflamação nervosa duma articulação qualquer e, desde há três anos para cá, dores reumáticas no ombro direito." Mas, pensando no seu avô Arkadievitch Assanurian ("As doenças são para desprezar!"), nunca tinha ficado na cama mais de três dias seguidos. Até à data tudo se tinha passado sempre bem. Até à data...

Percebeu que Corina a observava e que ainda não tinha posto o carro a trabalhar. Ludinila nada deixou transparecer e continuou a contemplar a paisagem através do vidro. Dir‑se‑ia que a via pela primeira vez. E nem sequer voltou a cabeça quando a filha, utilizando outro tom, retomou a conversa:

‑ Mãe, em toda a tua vida nunca soubeste mentir. O que é que se passa?

‑ Por favor, Corina, arranca... ‑ Cumprimentou Witkopp, o dono do talho, que tinha ido buscar a sua mulher à estação. ‑ Não vais começar a portar‑te como um bebé, agora que tens quase trinta anos.

‑ Ora, há qualquer coisa que não está bem, não é, mãe?

‑ Tudo está a correr como é normal que corra na minha idade.

‑ Isso não é resposta.

‑ O que é que queres que te diga?

‑ Quero saber se estás ou não doente.

‑ Visto que mo perguntas, respondo‑te que não estou doente... ‑ Pegou no pacote, inclinou‑se e respirou profundamente. ‑ Como cheira bem! Não há dúvida de que não há melhor padeiro em M'nster do que o Sclunoldes! Faz um pão como mais ninguém sabe fazer. E os seus bolos são deliciosos... A propósito, foram buscar o presunto?

‑ Fomos...

Finalmente, Corina arrancara com o carro. Da estação até Hellenbrand eram quase dez minutos, se se atravessasse o burgo sem parar, e levava‑se exactamente doze minutos até à casa delas. Durante metade do trajecto não trocaram palavra. Sentadas uma ao lado da outra, muito direitas, olhavam a estrada ladeada de bétulas. Witkopp, o dono do talho, ultrapassou‑as, fazendo acompanhar o seu toque de buzina com um alegre aceno. Um mal‑estar inexplicável pairava sobre elas.

De repente, Ludmila pôs‑se a falar e havia na sua voz qualquer coisa de infantil que Corina detectou imediatamente.

‑ Estas bétulas! No lugar onde vivia a minha tia Djuna eram exactamente iguais, brancas, altas, estilizadas e igualmente belas. A minha tia possuía uma casa de campo em Bosserov, na Ucrânia. Era mais do que uma quinta; era, na realidade, uma espécie de mansão. Pertence agora ao sovkhoze Construir, mas na altura a tia Djuna vivia lá sozinha. Passei lá frequentemente as minhas férias escolares. Ia guardar cabras. Para mim, eram as melhores férias possíveis, pois em Poti, em casa do meu pai, eu era a filha do médico, uma menina que tinha obrigação de se mostrar fina! Era extraordinário deixar‑me ficar sentada numa clareira de bétulas com o rebanho de cabras à minha volta...

Interrompeu‑a uma paragem brutal. Corina tinha saído da estrada para enveredar por um caminho arenoso que cortava um campo de tremoços. Parou quase imediatamente. Ludmila tinha apertado contra si o pacote do pão e dos bolos como se se agarrasse a uma bóia de salvação.

‑ Porque é que paraste? ‑ perguntou. ‑ E porquê aqui, neste desvio?


‑ Eis‑nos completamente sozinhas, mãe... ‑ Tinha‑se inclinado para trás no assento e fixara os olhos no tejadilho, num ponto por cima do pára‑brisas. ‑ Estamos sós, compreendes... Por isso podes dizer‑me a verdade.

‑ Ora bem, o doutor Willbreit examinou‑me a fundo, e quando digo a fundo quero dizer em todos os sentidos e de todas as maneiras... ‑ Estava a brincar, mas havia na sua voz qualquer coisa que soava falso e não conseguia enganar a filha. ‑ É verdade, ocuparam‑se de mim cinco médicos: radiografias, electrocardiograma, hemogramas, ultra‑sons, tudo! Até me injectaram uma solução com rádio e a seguir radiografaram‑me de novo. E tudo isso desde as oito da manhã até às três da tarde...

Também ela se inclinou para trás e fechou os olhos. "Será que as duas manchas vermelhas já voltaram?", pensou. "Tenho a impressão de ter as maçãs do rosto a arder. Se retiver a respiração, talvez as impeça de voltar... "

‑ Cora, Corinha, estou cansada, não compreendes? Não gostaria de ter de repetir duas vezes a mesma coisa.

‑ Mas que disse o doutor Willbreit no fim desses exames todos?

‑ Pouca coisa. No fundo, até nem disse nada. Estava apenas satisfeito com o diagnóstico que acabara de fazer! "Tudo fica claro daqui para a frente", declarou ele. "Não achas que é extremamente tranquilizador? E pelo menos já é alguma coisa... Agora leva‑me para casa, Cora!"

Sem uma palavra, Corina voltou a pôr o carro a trabalhar. Era inútil obstinar‑se. Recuou até à estrada ladeada de bétulas e atravessou o burgo sem parar. No momento em que alcançava a vivenda em que moravam, descortinou o pai, que voltava da conferência dos professores. Os dois carros imobilizaram‑se quase ao mesmo tempo, um ao lado do outro. Stefan Doerinck precipitou‑se imediatamente para abrir a porta a Ludmila.

‑ Então, Milachka? ‑ exclamou, ajudando‑a a sair do carro. ‑ Que dia! Não parei de pensar em ti. Creio que nem ouvi metade de tudo o que foi dito. "Agora estão a fazer‑lhe radiografias", pensava. "Agora fazem‑na engolir uma sonda, e eu não estou com ela, ela está sozinha!" Houve momentos, Milachka, em que fiquei completamente absorto...

‑ Tudo isso é consequência de vos ter habituado mal. Nunca estive doente! Nunca me queixei. Foi preciso que a Corina insistisse para eu ir fazer este exame completo à clínica de M'nster. E o nosso caro doutor Hambach deu‑lhe razão. De tal maneira que lá fui eu para M'nster esta manhã e eis‑me só agora de volta! Visto isto, porque estás tão agitado, Stefan?

‑ E o resultado?

Stefan Doerinck ainda aconchegava a mulher nos braços. Tinha depositado um beijo sobre cada um dos olhos enquanto esperavam que Corina lhes abrisse a porta da frente.


Eram o exemplo acabado de uma família feliz cuja vida decorria numa ordem e harmonia perfeitas. Os pais tinham suportado uma guerra terrível, durante a qual, no entanto, se haviam encontrado e amado. Agora possuíam a sua casa e, por trás desta, um jardim onde em cada Primavera floresciam duas macieiras, duas pereiras e uma ameixoeira. As latadas estavam nessa altura a cobrir‑se de groselhas vermelhas e brancas. Também havia maciços de alfaces diversas e de couves‑flores, de feijão de todas as qualidades, de tomate, de cebolas e de alhos. Uma pequena parte do jardim era consagrado às flores e sobretudo aos girassóis. Quando as suas grandes flores se balançavam ao vento sob o sol, Ludmila parava acocorada no meio delas e o seu olhar perdia‑se ao longe. Eram os momentos em que Stefan a deixava só. Voltava então a ser a criança que se escondia nos campos de girassóis da tia Djuna. A eterna alma russa despertava do seu torpor uma vez por ano; uma saudade lancinante do seu país apunhalava Ludmila onde quer que se encontrasse e por mais perfeita que fosse a sua felicidade. Nada lhes faltava, nada faltava a ambos. Depois de tudo o que tinham suportado, podiam folhear sem inveja as páginas das revistas ilustradas e olhar para as fotografias da alta sociedade: as jóias das mulheres, os fatos feitos por medida dos homens, as suas moradias, os seus iates e os seus automóveis de sonho. Sentados num banco de madeira nas traseiras da casa contemplavam o voo dos cisnes no céu vermelho do crepúsculo e o balançar cadenciado das flores de girassol sob o vento. Há trinta e cinco anos que sabiam que os paraísos desta terra não têm necessidade de brilhar nem de serem dourados e que as portas que se abrem para a felicidade não têm fechos incrustados de diamantes.

‑ Tenho uma destas fomes, tenho mesmo uma fome terrível! ‑ declarou Ludmila. ‑ Tive de ir completamente em jejum por causa das radiografias. Vou preparar imediatamente uma boa fatia de pão com manteiga, desse bom pão da padaria Schinoldes, e pôr por cima um bom pedaço de presunto. E tenho uma destas vontades de tomar um café. Podes fazê‑lo bem forte, Stefan? Fica sempre melhor quando és tu a fazê‑lo.

Stefan Doerinck desapareceu imediatamente na cozinha. Bem no fundo de si mesmo, só agora voltava a respirar. Então felizmente não era nada! Ela estava tão alegre. Não é possível estar‑se doente quando se está habitado por uma tal alegria. E, além disso, ela tem ar de estar de perfeita saúde. "E conservou‑se tão bonita! Se não a conhecesse, acho que me voltaria a apaixonar por ela e que me casaria com ela, apesar dos seus sessenta e um anos. Ninguém lhe dá esta idade e ninguém acredita que já a tenha. Ludmila Davidovria Assanurian... E pensar que tudo começou entre nós há trinta e seis anos, no Cáticaso, nas margens de um pequeno lago de Paleostomi." Um tenente alemão vislumbrou então uma rapariga maravilhosa que se banhava completamente nua...

Stefan Doerinck tinha aberto o pacote da padaria Sclimoldes. A parte interior do pão ainda estava quente e o seu cheiro era quase inebriante. Resistiu à vontade de morder o canto. Era o privilégio de Ludinila. Isso fazia parte das pequenas e grandes alegrias da sua existência.

Ainda estava a cheirar o pão quando Corina entrou na cozinha. O seu rosto parecia tenso.

‑ Não notas nada, pai?

‑ Sim, naturalmente... ‑ replicou ele rindo. (Designava o pão com o dedo.) ‑ Não comi o canto. Continua no sítio!

Tratava‑se de mais uma das brincadeiras habituais deles.

‑ Estou a falar da mãe. Há qualquer coisa que não está bem nela.

‑ Mas o que é que tens de há tempos para cá que só vês tudo negro?


já estava a tratar da cafeteira. Após ter colocado no interior o filtro de papel, tirou da prateleira a caixa do café moído e em seguida pôs‑se à procura da colher que servia para medir as porções. É claro que, como sempre, não estava no sítio! Um dia tinha acabado por a encontrar meia enterrada na fécula de batata. Nada conseguia irritá‑lo mais. Era um homem de ordem e de princípios! Por isso explicava sem cessar aos seus alunos: "Uma comunidade onde não reina a harmonia acaba por mergulhar na anarquia." Também lhe tinham proposto várias vezes que tomasse posição publicamente antes das eleições e se inscrevesse no partido que parecia corresponder às suas declarações, o partido da ordem, naturalmente. Stefan Doerinck recusara energicamente. "Quando era adolescente", explicava, "dei por mim inscrito num partido que desencadeou uma catástrofe mundial que quase destruiu a Alemanha. Pois bem, se nenhum de vocês quer que isso se repita, eu ainda menos." A sua resposta desencadeara risos e aplausos. Assim, o vice‑reitor era o único membro do colégio dos professores que não estava inscrito em nenhum partido.

De momento continuava a procurar ao acaso a pequena colher das porções nas gavetas e nas caixas, esquecendo os seus princípios de ordem e de método. Foi num tom cada vez mais furioso que retomou a conversa enquanto a filha assistia à sua agitação sem mexer um dedo.

‑ O que é que se passa outra vez contigo? Foste tu que meteste na cabeça da tua mãe que ela tinha alguma coisa e o doutor Hambach, que está certamente a ficar senil deu‑te razão. Consequentemente, a tua mãe deslocou‑se a M'nster. Examinaram‑na dos pés à cabeça. E qual foi o resultado? A sua saúde é tão perfeita como a tua ou a minha. De momento ela tem fome e quer uma fatia de pão barrado com manteiga e presunto. E café! Meu Deus, onde estará essa colher?

‑ porque não utilizas uma colher de chá qualquer?

‑ E evidente que o posso fazer! Mas quando se tem uma colher especial para medir as porções de café, uma pessoa deve servir‑se dela. Não, não é possível! Ei‑la no doce de laranja!

‑ Fui eu, pai.

‑ Naturalmente! Com trinta anos, do ponto de vista doméstico, ficaste sempre um bebé de mama! ‑ Finalmente satisfeito, Stefan Doerinck lavou a colher debaixo da torneira de água quente e limpou‑a. ‑ Então, o que é que se passa com a tua mãe?

‑ Não nos disse a verdade.

‑ Sabes perfeitamente que ela nunca mente.

‑ Geralmente, não. Mas hoje nota‑se que está a mentir. Eu noto, pelo menos. Está a representar. As coisas não devem ter‑se passado tão bem em M'nster. como ela nos quer fazer crer. Por isso deves telefonar ao doutor Willbreit, pai...

Tinha‑se apoiado contra a porta da cozinha e ele notou que cruzara nervosamente as suas longas mãos, muito belas, sobre o peito, como se fosse para o conter.

‑ Pai, eu sei que há qualquer coisa de errado com a mãe.

‑ Que é que queres dizer com isso de "eu sei"?

Contava cuidadosamente as colheradas de café: uma por

chávena e uma suplementar...

- Oito, nove, dez... "Vai ficar bom, este café, e bem forte. Aliás, a água de Hellenbrand é excelente, quimicamente pura, e nós temos o nosso próprio poço. Não há nenhuma mistura com águas industriais como nas cidades dos arredores."

‑ O que é que sabes disso? Não és médica. Recusaste‑te a

continuar os teus estudos de medicina.

‑ Por favor, pai, não estejas sempre a censurar‑me. já não dava...


‑ É natural! Desde o primeiro ano que quiseste saber mais do que os teus professores!

‑ E tinha sempre razão, o que nunca dizes! Descobri ao todo nove diagnósticos falsos e tiveram de o reconhecer posteriormente. E isso nenhum membro de uma faculdade de medicina consegue suportar da parte dum estudante. Fale‑me também da senhora Reinhardt. Após quatro anos de tratamento a uma gastrite crónica, depois de ter ingurgitado quilos de medicamentos, ela continuava sempre na mesma, não é verdade? Só com o dinheiro dela o farmacêutico pôde refazer

a fachada da sua farmácia! Em dez sessões comigo ficou curada. E sabe bem como... ‑ Projectou para a frente as duas mãos, com as palmas bem abertas na direcção dele, e fê‑lo tão bruscamente que ele pensou ter sentido o choque. ‑ Com as minhas mãos!

Stefan Doerinck deitava metodicamente a água no recipiente de vidro da cafeteira.

‑ E desde esse milagre, o nosso venerável doutor Hambach, o nosso distinto médico de clínica geral, passa a vida atrás de ti a agitar a cauda?

‑ Que grosseiro, pai.

‑ Reconheço‑o, minha filha. Queria dizer que ele se baba de admiração perante os teus dons de bruxa!

Assim que tapou a cafeteira, endireitou‑se com o espírito finalmente liberto. Cortar o presunto e o pão, assim como barrar este, era o trabalho de Ludmila. Corina, como sempre, encarregar‑se‑ia da louça e dos talheres e poria a mesa. Se se esquecesse de o fazer, Doerinck pregar‑lhe‑ia mais uma vez o seu grande sermão: "É coisa assente que possuis mãos especiais que emitem raios que ninguém vê. Fala‑se de magnetismo, de campo de forças, etc. Por tua causa tive de engolir alguns livros sobre o assunto. Depois da história da Sra. Reinhardt, quis perceber o que se passava. Mas apesar de toda a minha boa‑fé, tenho um espírito demasiado terra‑a‑terra, gosto das coisas claras e as vossas explicações não são suficientemente sólidas. Segundo elas, cada corpo humano e animal emitiria uma irradiação. Isso é pura loucura! Tu, minha filha, estás rodeada de irradiações invisíveis. E eu, então? E a tua mãe?" Nesta altura, Doerinck abandonava a ironia para adoptar um tom muito grave: "No que toca à tua mãe, eu compreendê‑lo‑ia. Se há ser humano que tenha algo de anjo, é sem dúvida ela. Mas tu, com o teu carácter, é difícil admiti‑lo!"

‑ Pai, já te deste conta de que idolatras a mãe?

‑ Não se fazem perguntas dessas ao próprio pai. Mas visto que já o fizeste, vou responder‑te: já.

‑ Pois bem, a mãe está doente, muito doente, pai...

‑ Cora, peço‑te que te cales! ‑ De repente, começou a respirar profundamente. Sim, sentia nos pulmões e à volta do coração a mesma pressão que sempre o tinha acompanhado durante a interminável guerra. Pensava que a tinha feito desaparecer e, no entanto, ela já voltara uma vez mais, quando Ludmila tinha tido uma perda de sangue na casa de banho. ‑ Põe a mesa! ‑ Apercebeu‑se de que a sua voz ficara rouca e esforçou‑se por se dominar designando com o dedo o aparador onde ela tinha arrumado a loiça. ‑ A tua mãe vai contar‑nos o dia que teve e não mentirá. Porque o faria? Basta um telefonema da tua parte ou da minha para ficarmos a saber toda a verdade. Meu Deus, olha para ela! Parece sair dum anúncio para um elixir da juventude! Toda a gente só lhe dá quarenta anos, no máximo.


Durante esta rápida discussão entre o marido e a filha, Ludinila tinha‑se retirado para o seu quarto a fim de tomar um duche. Antes de se voltar a vestir tinha‑se imobilizado com ar grave diante do espelho COM pés que lhe devolvia a sua imagem. Sessenta e um anos. "Este corpo, este corpo que ainda se conserva belo, vive desde há sessenta e um anos. É incrível que tenha conseguido manter‑se tão jovem! As pernas não engrossaram e a carne das coxas não tem uma única prega. Não tenho uma única variz e a minha barriga continua quase lisa e a sua pele, esticada, parece quase juvenil. Apesar

de já ter uma filha com trinta anos! É claro que os seios já foram em tempos mais altos e mais rijos, mas ainda posso fazer concorrência a milhares, que digo?, a milhões de raparigas. Qualquer pessoa que visse este corpo e pretendesse que se

tratava do corpo de uma mulher com mais de sessenta anos seria acusada por toda a gente de mentir e talvez mesmo espancada por aqueles que ficariam irritados por verem que mantinha a sua afirmação. E, no entanto... a verdade é que este corpo não passa de uma fachada. Um cenário como os que Potenikine erigiu por onde ia passar a czarina para lhe fazer crer que havia aldeias florescentes onde só se erigiam paliçadas pintadas, por trás das quais se estendia uma terra nua e em pousio. E assim o teu corpo, Ludmila Davidovna, uma

fachada ainda bela. E como é que lhes vou dizer o que se passa por trás dela sem me ir abaixo repentinamente?"

Uma vez mais, deu uma volta completa sobre si mesma, observando longamente o jogo dos músculos e da luz do Sol sobre a pele firme e brilhante. Pensou em Stefan, que a amava como há trinta e seis anos e que continuava a sentir‑se atraído por este corpo... Com um grande arrepio, agarrou o

ventre com as mãos crispadas e a seguir afastou‑se do espelho para ir buscar roupa limpa e se vestir.

Quanto tempo terão durado os cenários de Poternizine sem se deteriorarem nem caírem? Talvez mais tempo do que o corpo humano.

Penteou‑se ‑ não tinha nem um cabelo a ficar branco na cabeleira, que era dum negro luzidio ‑, espalhou no rosto uma camada discreta de base, sublinhou as pálpebras com um traço azul e passou sobre os lábios um pincel com bâton num tom vermelho‑alaranjado‑brilhante. "Mas porquê?", pensou. Porquê? Porque é preciso. Até um palhaço esconde as lágrimas sob o riso desenhado por uma pintura espessa, pois é assim que o público o quer ver. Se se pusesse a chorar todos partiriam... É preciso morrer bela... aguentar até ao dia em que deixar verdadeiramente de ser possível fazê‑lo.

Escovou de novo o cabelo. Usava um penteado jovem. Depois saiu do quarto para se dirigir à casa de jantar, onde Stefan e Corina se encontravam já à mesa, esperando‑a. O cheiro do café, só por si, agiu sobre ela como um estimulante. As fatias de pão que tinha pedido estavam dispostas num grande tabuleiro de madeira. Havia um segundo tabuleiro com a manteigueira, a melhor parte do presunto, com o osso, e uma faca com o gume comprido e afiado. O presunto da Vestefália vem sempre acompanhado com uma garrafa de aguardente vinícola. A marca preferida de Stefan era a M'nsterland‑Gold, o medicamento dos centenários, como desde sempre se dizia.


‑ Nem Vénus saindo dos mares conseguiria ser mais bela! ‑ exclamou Stefan Doerinck, completamente tranquilizado a propósito da saúde da mulher. E acrescentou: ‑ Matiouchka, dir‑se‑ia que queres seduzir um esquadrão de cossacos!

‑ Em geral, têm as pernas arqueadas. De qualquer maneira, no que se refere às pernas, já me chega o que tenho.

Rindo com vontade, sentou‑se no lugar habitual, deitando uma olhadela cúmplice à filha. O riso de Corina pareceu‑lhe um pouco forçado, mas prosseguiu:

‑ Foi verdadeiramente a única coisa que me desagradou no teu pai: tinha as pernas ligeiramente em arco. E ainda hoje me chocam da mesma maneira. Felizmente que tens as minhas pernas, Cora! ‑ Inclinou a cabeça na direcção de Stefan, com ar coquete. ‑ Não protestas, papuchka?

‑ E porquê hoje?

‑ Porque ao regressares de M'nster trouxeste de novo a vida a esta casa, que me parecia morta sem ti!

‑ Pois é, eis‑me de regresso de M'nster... ‑ A sua cara estremecera? Sentia‑se de repente dona de si mesma e do menor dos seus gestos. Pegou no canto do pão e, como Corina se inclinou para lhe estender a manteiga, pousou tudo sobre a mesa. A seguir, após um momento de imobilidade, cruzou as mãos por cima do prato e endireitou‑se inclinando a cabeça para trás. ‑ Tenho de vos dizer uma coisa... ‑ A sua voz estava muito calma e a sonoridade eslava de cada vogal imprimia‑lhe, como sempre algo de fascinante. ‑ O doutor Willbreit falou‑me muito francamente e eu quero fazer o mesmo. Vêem como estou calma... mantenham‑se, portanto, tão calmos como eu, suplico‑vos. A partir de agora, tal como estou, não me restam mais do que seis meses de vida.

- Minha... Matiucuka ‑ gaguejou Stefan Doerinck - não é verdade, pois não?

‑ E se comesses hoje o canto do pão ‑ escutou‑se a dizer, enquanto sorria. ‑ Toma, isso dar‑me‑á prazer.

os segundos que se seguiram passaram‑se num silêncio paralisante.

Corina endireitara‑se, baixando logo a seguir o rosto, de olhos fechados. Os seus lábios transformaram‑se num traço duro, quase invisível, e toda a sua face se imobilizou numa espécie de máscara de onde desaparecera qualquer expressão. Stefan Doerinck, incapaz de ficar no mesmo lugar, deu um salto da cadeira para atravessar a passos largos, e de um lado para o outro, sem dizer palavra, a cozinha. Depois de o ter seguido um instante com os olhos, Ludmila pegou na faca, partiu o canto do pão ao meio e pôs‑se a barrá‑lo.

‑ É absolutamente necessário que falemos de tudo isto sem nos excitarmos de mais. De que serviria agora perdermos a cabeça? ‑ Voltando a pousar a faca no prato, olhou para Stefan, que parara, sem se ter ainda recomposto e respirando pesadamente, para olhar para ela. ‑ Recorda‑te, Stefan, daquela horrível retirada no Cáucaso. Toda a população civil, esse povo que nunca tinha aceite a ocupação russa do tempo dos czares, fugia perante o regresso do Exército Vermelho. E nós os dois encontrávamo‑nos cercados com outras pessoas. Pus‑me então de joelhos e supliquei‑te que me matasses. Não queria cair nas mãos deles. Nenhum de nós acreditava que pudéssemos abrir uma brecha naquele círculo de morte. Que me disseste então? "Enquanto eu puder mexer, nem que seja apenas um dedo, nada está perdido." E conseguimos romper o cerco. E em seguida passámos por outros apertos e conseguimos sempre ultrapassá‑los, não é verdade?

‑ Mas... mas é completamente diferente... ‑ Gaguejava e tinha a voz embargada. ‑ Tínhamos sempre uma hipótese de escapar. Hoje, foi um médico que te disse, que ousou prevenir‑te, que tudo acabou...

Parou como que sufocado pelo soluço que lhe subia até à garganta e pelas lágrimas que tentava reprimir. Finalmente, voltou‑se, deu alguns passos e depois imobilizou‑se com as costas apoiadas contra a parede, enquanto os ombros eram agitados de vez em quando por movimentos convulsivos.

‑ Repeti o que ele me disse, mas não completamente: restam‑me seis meses se não me deixo operar. Se a operação for bem sucedida e não tiver nenhuma metástese no fígado, ainda posso durar três anos, talvez cinco. Até talvez possa curar‑me completamente. Isso não se pode saber antes da operação, e mesmo assim não é certo.

‑ Mãe, mas tu começaste por nos dizer que o doutor Willbreit estava satisfeito com os exames e com o diagnóstico...

A voz de Corina, ao contrário da do pai, continuava clara e firme. Ludmila lançou um olhar de soslaio à filha, que se inclinara, fixando nela os olhos negros, que ainda pareciam maiores do que habitualmente. O seu olhar encontrava‑se carregado de uma força insustentável. De tal maneira que Ludmila sentiu um verdadeiro choque, como que uma onda de calor, que a levou a esboçar um movimento de recuo.

‑ E é verdade: ele estava satisfeito porque o seu primeiro diagnóstico estava correcto: cancro do intestino grosso!

‑ Mas não disseste também: não estou doente?

‑ E é igualmente verdade: não estou doente, já estou é morta, Corina. O que em mim parece ainda estar vivo encontra‑se num estado de transição. ‑ Acabara de barrar o pão e empurrou o prato na direcção do lugar vazio do marido. ‑ Parecem extremamente excitados, vocês. Porquê? Afirma‑se sempre que se deve dizer a verdade e, no entanto, raros são os que conseguem suportá‑la. Vamos lá, papuchka, e tu Cora, sentem‑se!

‑ Já estou sentada, mãe.

Com efeito, não se tinha mexido e esperava que o pai voltasse para a mesa, mas ele afastou‑se dificilmente da parede em que estava apoiado. Olhava‑o como tinha olhado para a mãe alguns segundos antes e tinha a impressão de mergulhar nos seus olhos avermelhados e na sua cara de traços cavados. "O seu pai passaria a ser a partir de agora aquele estranho?", perguntou‑se, repentinamente desesperada. "Se a mãe morre, ele não lhe sobreviverá muito tempo. Deixar‑se‑á ir a pouco e pouco. Só de pensar que não a terá mais ao pé dele, começa já a desagregar‑se e a ficar ressequido."

‑ Se compreendi bem, não queres que te operem, não é, mãe?

‑ Ainda não sei nada. Temos de falar os três. O doutor Willbreit tem uma cama vaga no dia dez do próximo mês. Mas antes, devo fazer várias sessões de radioterapia. ‑ Tirou uma ficha do bolso do seu tailleur e pôs‑se a ler. ‑ Aplicação terapêutica de raios X durante duas semanas, de duas a três mil unidades roentgen, associada ao medicamento


Fluoro-Uracil‑5. Oh! O doutor Willbreit mostrou‑se muito cordial. Explicou‑me tudo. Até me mostrou as radiografias. "É então com isto que se parece uma condenada à morte", disse‑lhe. "Não exactamente", corrigiu ele, "pois existem recursos, apelos e também graças." Foi verdadeiramente amável...

Com uma voz ainda hesitante, Stefan Doerinck interveio:

‑ Naturalmente, vais fazer tudo o que o doutor Willbreit mandar. É um especialista. E falou de recursos, de apelos e de graças... Portanto, ainda há esperança, Milachka. Vais ver

que ainda vamos escapar mais uma vez.

‑ Mantenhamos a calma, portanto. ‑ Cortou uma fatia de pão branco e pegou na faca da manteiga. ‑ E agora comamos, pois já não somos só três à mesa. Passámos a ser quatro. O cancro também tem de se alimentar. ‑ Com a ponta da

faca, apontava para a barriga. ‑ Pois bem, temos de habituar‑nos à sua presença!

Foi o bocado de pão mais terrível que Stefan Doerinck engoliu na sua vida. Colava‑se‑lhe às gengivas, ao céu‑da‑boca e à garganta, provocando‑lhe náuseas. Entretanto, observava a mulher, que devorava com apetite a sua fatia de pão com manteiga coberta por uma espessa fatia de presunto.

Naquela noite, Corina ficou em casa dos pais. Tinha conservado o seu quarto, em forma de mansarda, de quando era pequena e depois adolescente, e nada nele tinha mudado desde há anos, nem sequer as bonecas arrumadas em cima da cama, todas terrivelmente usadas, algumas com bossas, sem cabelos e sem braços. As paredes ainda estavam decoradas com posters representando ídolos da sua juventude, Pierre Brice em papel de Winnetou, Stewart Granger como Old Shatterhand, Os Beatles e Freddy Quinn. Também o seu gira‑discos lá continuava, aberto como se tivesse acabado de ser utilizado, encontrando‑se ainda um disco de Bully Bulilan no prato.

Depois de se ter sentado na borda da cama, que era muito baixa por ela lhe ter em tempos retirado os pés, Corina tinha ficado muito tempo imóvel, com as pernas estendidas, contemplando na parede em frente uma carta que se encontrava numa simples moldura de madeira. Era a fotocópia de um documento privado do professor W. Homschuh, que ensinava uma cadeira sobre as afecções dos órgãos internos. Este tinha‑a enviado confidencialmente ao reitor da universidade. Conhecia de cor o seu conteúdo:

O comportamento da jovem Doerinck já não é suportável. Ultrapassou todos os limites durante a minha aula do dia 23 deste mês. Nesse dia apresentei um caso escolhido no meu serviço e que me parecia particularmente interessante: um efisema pulmonar crónico. Perguntei então à jovem Doerinck, presente junto da cama da paciente, que fizesse um diagnóstico segundo as normas usuais. Esta estudante fixou durante muito tempo a doente e estendeu as palmas das mãos na sua direcção até ficarem a cerca de dez centímetros do corpo da paciente. Depois de alguns movimentos de alto para baixo e de baixo para cima, para espanto meu e dos presentes, a jovem Doerinck declarou em voz alta: 'Dentro de duas semanas estará completamente curada. Tem simplesmente estado a seguir um tratamento errado!


De imediato, mandei embora secamente a jovem Doerinck, pedi desculpa à paciente e a todos os meus colegas e estudantes pelo que tinha acontecido e, depois da aula, quis pedir à jovem Doerinck explicações sobre a sua conduta. Encontrei‑a no corredor, fumando cigarro atrás de cigarro. Continuou a suster que a paciente tinha cura. Ora, uma semana mais tarde, depois de ter mandado para casa a tal doente incurável, fiquei a saber que a menina Doerinck a visitava e que a tratava por imposição das mãos. A doente pretendia sentir melhoras naturalmente subjectivas. De qualquer modo, peço ao conselho de disciplina que estude a possibilidade de uma eventual expulsão da aluna Doerinck. Na minha opinião, seria totalmente injustificado permitir‑lhe continuar na faculdade... "

Não, não a tinham expulso. Fora ela que saíra. Mas quando compareceu perante o reitor para se despedir dele, fizera‑se acompanhar por uma senhora ainda bastante pálida, mas que respirava sem nenhuma dificuldade e se encontrava de muito bom humor. Chamava‑se Emma Hennemann e era casada com um importante fabricante de molas de aço. Quatro meses antes tinham‑na mandado para casa, crendo que o desenlace da doença seria fatal, para que passasse os seus últimos dias em família, rodeada de todos os cuidados necessários para aliviar as crises de falta de ar. Tinha feito uma declaração um pouco teatral.

‑ Aconteceu‑me um milagre, senhor professor! Estou curada! E foi apenas com as mãos que a Corina me curou! Apenas com as mãos! Olhe, olhe!

Diante do reitor estupefacto, a sra Henneman tinha executado dez genuflexões consecutivas e em seguida tinha‑se postado diante dele sem ter ficado sem fôlego, sem que a sua cara ficasse azul do esforço que acabara de fazer, sem mergulhar ali mesmo numa crise de asfixia! Até tinha coroado a demonstração com alguns passos de dança.

‑ Pois é! E para o doutor Hortischull eu já estava morta. Tinha‑me mandado para casa para lá morrer e com a finalidade de não estragar as vossas estatísticas! ‑ Havia uma certa amargura na sua voz. E tinha concluído sem que ele conseguisse dizer palavra. ‑ Há qualquer coisa que não está bem na vossa medicina! Deveria investigar isso melhor, professor!

Depois da saída da Sra. Hennemann e de Corina, que se contentara com esboçar um breve adeus, o reitor telefonou ao seu colega Homschuh e pô‑lo ao corrente do que se passara no seu gabinete.

‑ Confesso‑lhe que fiquei terrivelmente impressionado. Abandonar o leito de morte para fazer diante de mim dez flexões consecutivas, sem nenhuma ajuda, a que se seguiu uma demonstração de não sei que dança de negros, é bastante espantoso...

No auscultador, a voz do Dr. Hornschuh tinha‑lhe parecido hesitante e pensativa.

‑ Há coisas que nos escapam com frequência. Como sabe caro colega, apresentam‑se, por vezes, relações psicossomáticas que não podemos discernir nos exames. Com uma boa encenação e o desempenho da comédia indicada, há pessoas do género dessa pequena Doerinck que conseguem obter certas curas. No fundo, de que é que se trata neste caso preciso? Trata‑se muito simplesmente do desaparecimento súbito de uma psicose com efeitos somáticos, o que não tem nada de miraculoso. Deixe‑me fazer‑lhe uma pergunta: existem milagres em medicina? É evidente que não. Diria mesmo que este caso vem abrir de novo o velho debate: pode‑se empreender uma acção jurídica contra as pessoas como Corina Doerinck?

‑ Só se ela fizer disso uma profissão ‑ tinha concluído o reitor bastante secamente e cortando a comunicação.

As explicações do seu colega, habituais em tal situação, ,


constituíam uma pobríssima justificação. Como é que Horns‑chuh se tinha podido enganar àquele ponto no seu diagnóstico se se tratava duma psicose ‑ visto eles se gastarem ‑ dissera Stefan num tom sarcástico. A única coisa que não me inspira muita confiança são os motivos modernos. Dir‑se‑ia que entornaram latas de tinta. Felizmente para ambos, tratava‑se de um daqueles casos "que ficam entre colegas". ao acaso por cima das superfícies de lã ou de algodão.

Não desconfiava de que Corina conseguiria obter as cópias da acta secreta deste telefonema, assim como a carta do professor Hornschuh. Uma secretária da clínica polivalente, à qual se propunha restituir um rosto aceitável desembaraçando‑a das borbulhas de uma acne recalcitrante, provara‑lhe assim o seu reconhecimento. Dessa vez, o pai protestara.

‑ O que é que podes ganhar com tudo isso? Meu Deus,

queres mesmo seguir o exemplo do teu avô? Só que David Semionovitch tinha o seu diploma de médico e exercia legalmente a sua profissão em Poti. É verdade que não tratava a sua clientela com os medicamentos clássicos. Contentava‑se

em pôr as mãos sobre a parte do corpo que o doente lhe indicava e em cantarolar em voz baixa durante alguns minutos.

A maior parte dos doentes declaravam‑se em seguida satisfeitos com o tratamento.

‑ Eu, meu querido pai, não costumo cantarolar ‑ respondera ela simplesmente.

Uma semana após o seu abandono da faculdade, tinha‑se inscrito num instituto privado onde se utilizavam métodos terapêuticos ditos "suaves" para tratar os doentes. Mas logo

após interrompera bruscamente os novos estudos, tal como fizera com os precedentes. Dir‑se‑ia que fugia de qualquer coisa ou de si mesma. Já tinham passado sete anos. Fechara‑se no quarto durante uma semana e só descia para as refeições, calada, mal respondendo às perguntas dos pais e com o olhar vazio. Depois de comer maquinalmente, empurrava a cadeira e subia para o quarto, onde voltava a barricar‑se.

Steffan Doerinck, perturbado, confiara finalmente à mulher:

‑ Passou‑se certamente algo de terrível, algo que alterou a sua vida de uma ponta à outra. E não nos diz nada! Milachka, sendo também mulher deves estar mais próxima dela do que eu.

Mas Corina opusera a mesma resistência, um verdadeiro muro de silêncio, a todas as perguntas da mãe. Esta situação continuou até ao momento em que uma noite, quando se en'contravam à mesa, lhes anunciou:

‑ Quero aprender a fazer tapetes. Mais tarde abrirei o meu próprio atelier. Que acham da ideia?

‑ Porque não? Há sempre um mercado para os tapetes. Estas recordações eram‑lhe necessárias para poder tomar uma decisão. Corina levantou‑se finalmente da cama, aproximou‑se da pequena secretária, colocada de viés num canto do quarto, e pegou no telefone. Sabe de cor o número da clínica Polivante e, depois de lhe passarem serviço após serviço, consegue obter o de cirurgia, que é dirigido pelo Dr. Willbreit, e fala com a secretária.

- É urgente? ‑ pergunta uma voz impessoal.

- Se não fosse porque estaria a telefonar a esta hora?

- É então um caso urgente. Necessita de...


- Não! Não é para chamar uma ambulância nem nada que se pareça. Desejava apenas falar com o professor Willbreit. Trata‑se de um assunto estritamente privado.

- Privado... ?

- É assim tão raro?

- Claro que não, mas o professor encontra‑se numa reunião com os colegas. Quem devo anunciar?

‑ Corina Doerinck...

‑ Vou ver, minha senhora...

Corina espera um bom bocado. Por fim, um estalido no outro extremo do fio assinala‑lhe a passagem da comunicação. A voz do professor Willbreit é seca como a de uma personalidade importante indignada por ser incomodada tão grosseiramente.

‑ Fala Willbreit. De que se trata?

‑ Da minha mãe. ‑ Corina respira profundamente. ‑Ludinila Doerinck. Assanurian é o seu nome de solteira.

‑ Ah, sim! A senhora Doerinck... A sua mãe foi examinada hoje. Sim... Ela contou‑lhe...

‑ Sim, que diagnosticou um carcinoma do cólon. É absolutamente certo?

‑ É um diagnóstico da responsabilidade de vários serviços, além do meu. O resultado de todos os exames é coincidente e incontestável. Após o toque rectal, procedemos a uma escopia do recto, seguida duma segunda escopia do próprio cólon, após a lavagem preparatória. Não chegámos a fazer uma biópsia dos tecidos. Era absolutamente inútil, dado termos as radiografias. Estas permitiram estabelecer um diagnóstico definitivo. Aconselhei a senhora sua mãe a deixar‑se operar imediatamente.

‑ A operação servirá para alguma coisa?

Willbreit calou‑se por um instante. Ela imagina‑o a franzir as sobrancelhas, perguntando‑se que idiota é aquela. Tal pergunta tem necessariamente de o espantar, perturbando‑o. Até então ninguém ousara perguntar‑lhe se o que se propunha fazer tinha alguma utilidade. Na verdade tratava‑se mesmo de uma pergunta que nunca lhe fora feita!

‑ Se a operação for feita a tempo, existem boas possibilidades de sobreviver. No caso da sua mãe será necessário anastomosar‑se o intestino delgado e o grosso, o que significa...

‑ Eu sei, senhor professor. Fui estudante de Medicina durante seis semestres.

‑ Ah! É quase uma colega... ‑ Fez um risinho muito seco. ‑ Então não há necessidade de explicações entre nós. O que continua a ser para mim um enigma é como é que a sua mãe chegou a um estádio tão avançado da doença sem se ter sentido gravemente incomodada já há muito tempo. É um caso extremamente raro.

‑ Então não pode fazer nenhum prognóstico em relação ao desenvolvimento e à evolução da doença depois da operação?

‑ Que pergunta a sua! Quem é capaz de fazer um prognóstico em relação a um caso de ablação do cólon?

‑ Disse à minha mãe que teria no máximo seis meses de vida...

‑ A sua mãe insistiu para que lhe dissesse a verdade sem quaisquer rodeios. Tendo em conta a natureza do seu caso, creio que é preferível...

‑ Acaba de dizer que ainda havia algumas possibilidades...

‑ Ainda ignoramos qual é o estado real do fígado. Se tem metásteses...


‑ E se não houver operação?

‑ Por favor, minha senhora. ‑ Não se pode enganar: o doutor Willbreit retoma o seu papel de professor e começa a dar uma reprimenda a uma aluna rebelde. ‑ Por favor... Ninguém tem o direito de pensar noutra coisa, e a senhora ainda menos, cara quase colega... Sem operação...

Corina mexeu‑se um pouco na cadeira para recuperar forças, olhando para a carta emoldurada e pendurada na parede. A decisão que vai tomar porá em questão a vida da mãe e igualmente a sua. Não voltará nunca a ser o que era anteriormente.

‑ Queria avisá‑lo, senhor professor, de que pode anular a consulta da minha mãe. Ela não vai ser operada.

‑ Não a compreendo. Sabe ao menos o que está a dizer? ‑ O seu tom de voz tornara‑se brusco. Ferido no seu orgulho, põe de lado a cortesia. ‑ É preciso descrever‑lhe o que vai acontecer à sua mãe nas próximas semanas?

‑ Eu sei.

Ao contrário da voz do médico, a sua estava cada vez mais calma e tinha uma clareza absoluta. Inclinando‑se para trás na cadeira, estende o braço esquerdo diante de si, levanta a mão à altura dos olhos e contempla‑a longamente. Os seus longos dedos muito finos tremem um pouco. Meu Deus, será possível?

‑ Ela curar‑se‑á ‑ ouve‑se a dizer.

‑ Ah, sim? Por acaso acredita em milagres, menina?

‑ Não. Acredito numa certa força. Agradeço‑lhe, senhor professor.

Desliga, põe os cotovelos em cima da pequena secretária e cruza as mãos para com elas suster o queixo, pois a sua cabeça tornou‑se demasiado pesada. Não é só pela angústia de falhar, mas sobretudo por ter de descer e dizer à mãe: "É preciso que creias em mim. Tens de ter confiança em mim. Vou tentar destruir directamente o mal que te corrói."

Parcelarmente, como num sonho, lembra‑se das curas que obteve nos últimos anos, ao princípio quase sempre no maior segredo, mas como que impelida por uma força invencível: o enfisema, da Sra. Henneman, a asma da Sra. Wille, a actie rebelde da secretária, a ferida ulcerosa e sangrenta de um estudante de Medicina e a obturação da uretra do Sr. Schules, farmacêutico de M'nster; além de algumas dores de ancas, reumatismos, gastrites, contracções dos vasos do coração, enxaquecas crónicas e paralisias de origem nervosa. Quantos haviam sido os que, de pé ou deitados diante dela, se tinham oferecido à acção benéfica e inexplicável das suas mãos? A alguns centímetros da pele, ela acariciava à distância, sem nunca lhe tocar, a parte doente. Tratar‑se‑ia duma irradiação invisível possuidora duma força inexplicada que emanara dela e tinha assim agido em tantos males?


"E de cada vez que essa corrente se libertara, sentira‑se exausta e vazia", pensou. Todos os seus ossos e músculos lhe doíam como se tivesse sido espancada. Tinha então de se sentar e de inalar profundamente, em silêncio e de olhos fechados, o fumo de alguns cigarros. Depois começava a sentir que o que tinha acabado de sair dela estava a regressar a pouco e pouco, voltava a encontrar o seu lugar dentro dela, e que o seu ser, momentaneamente enfraquecido pela dita emanação de energia, se encontrava a recuperar cada vez mais rapidamente toda a sua força. Como explicar aquele fenómeno? Como é que um dia, ao tocar levemente num ramo de flores quase completamente murchas, vira os caules endireitarem‑se diante dela e as flores voltarem à vida?

Ao princípio tinha ficado transtornada ao ponto de já não ousar apertar as mãos que lhe estendiam, aproximar‑se de uma planta ou tocar algo que fosse orgânico, com medo de ver essa parte de ser vivo mudar de aspecto diante dos seus olhos. Mais tarde, após um período de abatimento, tinha começado a desafiar aquele hóspede desconhecido que era o seu destino, já que era preciso arranjar‑lhe nome. Finalmente, há cinco anos, tinha ocorrido o caso do pai. Até àquela altura, o desportista perfeito e transbordante de saúde que o seu pai era adorava dar longos passeios de bicicleta através da região de M'nster. Costumavam passar as férias no mar do Norte, frequentemente na ilha de Norderney, onde ele corria na praia. Mas de repente tinha ficado de cama e chamado o Dr. Hambach, médico da família.

O velho Dr. Hambach, que acorrera imediatamente, tinha diagnosticado tratar‑se de zona. Aconselhara repouso, receitara aplicações duma pomada contendo óxido de zinco e de uma preparação com moroxidina contra as dores nervosas.

Não se tinham verificado melhoras. A febre aumentara e as dores tornaram‑se tais que Stefan Doerinck já não conseguia reprimir os gemidos. O Dr. Hambach recorria à velha sabedoria das nações: uma doença precisava dum certo tempo para se curar, era preciso ter paciência, e os piores doentes eram os que, tal como o amigo Doerinck, tinha gozado sempre de boa saúde... Então, uma noite, Corina sentou‑se perto da cama do pai. Mal estendera as mãos na sua direcção, sentiu na ponta dos dedos uma estranha coisa que já conhecia: ocombate tinha começado.

Continuando a falar com o pai para não atrair a sua atenção, continuara a passear as mãos a cerca de dez centímetros da caixa torácica do doente. Aquilo só tinha provavelmente durado três minutos, mas a ela pareceu‑lhe um tempo interminável. Tinha tido a sensação atroz de ter a medula espinal a ser aspirada por uma bomba. Por fim, as suas mãos sossegaram: o pai havia adormecido. A seguir, enterrada na cadeira, tinha sido obrigada a fumar quatro cigarros de seguida, inalando profundamente o fumo.

No dia seguinte de manhã, Ludmila encontrou o marido sentado na cama. Tinha reclamado o jornal, café e até uma bela fatia de pão com pasta de fígado! O Dr. Hambach, chamado imediatamente, verificara com estupefacção as "melhoras radicais" que se tinham operado durante a noite e concluíra orgulhosamente: "Não há nada de melhor do que esta antiga pomada de óxido de zinco."

Corina atacara por quatro vezes o mal do pai. Só parara quando os seus dedos tinham deixado de sentir a presença do "inimigo". Em seguida ficara a olhar as mãos com a garganta contraída por um resto de angústia por saber que possuía algo que a isolava definitivamente das pessoas "normais".


Quando voltou a descer, encontrou os pais sentados no sofá da sala de estar. Pela maneira como se encontravam, de mãos dadas, dir‑se‑ia que era ele que queria comunicar‑lhe a sua força, quando, na realidade, era ele que se sentia reconfortado por aquele contacto. Tinham, sem dúvida, acabado por aceitar a pouco e pouco a horrível realidade de uma doença mortal como algo de natural que forçosamente lhes devia acontecer mais cedo ou mais tarde. Stefan Doerinck levantou os olhos na direcção da filha.

‑ Decidimos que a tua mãe será operada o mais depressa possível. Telefonarei amanhã de manhã ao doutor Willbreit.

‑ Eu já lhe telefonei, pai. ‑ Sentou‑se lentamente num cadeirão, em frente do sofá, diante deles, e cruzou as mãos. ‑ Anulei a consulta da mãe.

‑ O quê? O que é que fizeste?

Olhava‑a, interdito, sem ousar compreender.

‑ Disse ao doutor Willbreit que a mãe não quer ser operada.

‑ Ficaste louca? ‑ perguntou Stefan Doerinck numa voz surda. ‑ Meu Deus, Milachka, esta rapariga é maluca!

‑ Sou eu quem curará a mãe. Com as minhas mãos.

‑ Mas é uma loucura...

Ludinila interrompeu‑o com uma voz muito doce.

‑ Parece que estou a ouvir o meu pai e não a minha filha. Os doentes que o visitavam reclamavam medicamentos, pílulas e tratamentos complicados. Esperavam que lhes perscrevesse um tratamento extraordinário. E o que é que ele fazia? Olhava‑os longamente e dizia‑lhes: "Deita‑te aqui, meu irmão", ou "minha irmã". E deixava as suas mãos irem e virem por cima deles, como se elas o guiassem. Os que não o conheciam julgavam que era louco...

‑ Eu sei ‑ murmurou Stefan. ‑ Eu sei, eu assisti.

‑ Pois bem, voltavam todos e a maior parte curava‑se. As pessoas simples diziam que era um grande curandeiro, um xamã.

‑ Mas trata‑se de um cancro, Ludmila. De um cancro, compreendes? ‑ A voz tremia‑lhe de novo. ‑ De um cancro e não de uma dor qualquer de origem histérica...

‑ Trata‑se mas é da mãe ‑ replicou simplesmente Corina. ‑ Trata‑se de fazer o necessário para que ela continue a viver, e não apenas seis meses. Nem um ano. Nem dois...

Stefan Doerinck agarrou na cabeça com as duas mãos, remexendo os cabelos e olhando para a mulher com um ar desesperado. Mas Ludinila não o socorria. Calava‑se e fixava a filha com uns olhos tão abertos que já quase não pareciam naturais. Ele compreendeu que nos minutos que se seguiriam iria passar‑se naquela sala algo de inconcebível, quase aterrador e contrário aos conceitos racionais normais em que a sua vida assentava. Tudo ia balançar fora dele e num plano diferente do seu. Não podia, nem queria ficar mais um instante naquela casa onde não passaria de uma testemunha impotente. Sem uma palavra, saiu precipitadamente. Do interior, as duas mulheres, continuando imóveis, ouviram‑no pôr o carro a trabalhar e a seguir um chiar de pneus: Stefan Doerinck, com os nervos em franja, partia ao acaso e subia a rua carregando a fundo no acelerador.

Uma escassa hora mais tarde reencontrou a mulher e a filha tal como as deixara: Ludinila sentada no sofá e Corina no seu cadeirão. Só o cinzeiro da filha se encontrava agora a abarrotar. Devia ter fumado sem interrupção aqueles malditos cigarros de tabaco oriental cujo cheiro adocicado, agora já frio, lhe era atrozmente insuportável.

‑ Peço‑vos desculpa ‑ disse com voz ainda rouca.

- Perdi a cabeça. Não podia fazer outra coisa. Tinha de tomar ar. Agora já estou melhor.


‑ Queres que te traga qualquer coisa para beber? ‑ perguntou Ludinila.

‑ Não, obrigado. Eu sirvo‑me.

Dirigiu‑se para a grande estante, que ocupava quase toda a parede, e que era uma amostra típica do gosto da média burguesia alemã. Era um móvel imenso, com quatro metros de livros encadernados e algumas cópias de esculturas egípcias, e onde se encontravam incorporados, como se estivessem em armários, o televisor, um bar e uma aparelhagem estéreo! Levantando o fecho do bar, iluminou automaticamente uma cavidade cujas faces internas eram de espelho e de onde tirou uma garrafa de conhaque. Encheu duas vezes seguidas com esta bebida cor de âmbar um copo que esvaziou sucessivamente, inclinando a cabeça para trás e sem o saborear sequer.

‑ E então? ‑ perguntou pousando o copo. ‑ Espero que me seja permitido dizer que não compreendo nada das vossas histórias. E digo‑vos francamente: comigo isso não funciona! Tenho confiança na ciência que progride todos os anos e também confio na arte dos nossos cirurgiões. Do meu ponto de vista, o professor Willbreit emitiu uma opinião que é infinitamente mais competente do que qualquer história de... campo magnético e de bioenergia, etc., ou lá qual é o nome que dão a essas perigosas imbecilidades. Agarram‑se a uma esperança insensata, quando uma simples radiografia lhes mostra a realidade... Vejamos, Milachka, diz alguma coisa! Não fiques para aí muda e queda como uma estátua! Fala a sério, recusas‑te mesmo a ser operada?

‑ Queremos esperar, Stefanka.

A sua voz estava cristalina, quase parecia a de uma criança, o que incitou Doerinck a dar um verdadeiro grito.

‑ Mas o cancro, esse, não espera!

Exasperado, atirou‑se à garrafa de conhaque. Beber não é solução, costumava ele dizer quando um dos colegas, de entre os que se reuniam regularmente no café da cidade, tentava afogar em álcool um desgosto ou uma dificuldade qualquer. Beber é escapar à solução de um problema, explicava ele então, e o regresso à realidade ainda é pior. Excelente conselho, sem dúvida, mas Stefan Doerinck não pensava nele naquele momento. Como tantas coisas neste mundo, beber é um problema social que apresenta várias facetas: com alguns goles de conhaque no estômago e um cérebro ligeiramente enevoado pelos vapores do álcool suporta‑se melhor, provisoriamente, o peso esmagador da vida. E de momento só isso interessava a Stefan Doerinck.

‑ Podem fazer o que quiserem! Ficam com uma responsabilidade que eu não quero partilhar. Amanhã de manhã vou telefonar ao professor Willbreit a explicar‑lhe que a partir de agora já não tenho nenhuma influência na evolução dos acontecimentos e que a minha mulher é maior...

‑ É com efeito o caso, aos sessenta e um anos ‑ disse Ludmila, sorrindo. ‑ Ouve, não tentes interferir na decisão que tomámos. Porque não te retiras para o teu gabinete, Stefanka, só o tempo de leres alguma coisa ou de ouvires uma emissão de rádio. ‑ Voltou‑se para Corina e fez um gesto de assentimento. ‑ É inútil esperar. Quanto tempo é que isso vai demorar?

‑ Não mais que cinco minutos, mãe.

‑ Estás a ouvir, Stefan? Menos do que levas a fumar um dos teus cigarros de tabaco negro.


Doerinck ainda tinha a garrafa na mão. Viu que esta tremia. Desembaraçou‑se da garrafa para esconder as mãos nos bolsos das calças. "São os nervos", pensou. Não era de admirar. Que nervos seriam suficientemente sólidos para suportar tantos choques? E um homem de sessenta e três anos encontra‑se necessariamente já um bocadinho gasto e um pouco amassado pelos milhares e milhares de golpes que teve de suportar na vida, já sem contar com os cinco anos de guerra e de feridas... E chega um momento em que notamos em nós mesmos e em que dizemos a nós próprios: "Eis a descida que não voltarei a subir. Ultrapassámos um certo limite..." E esse momento, indubitavelmente, acabara de chegar. Ainda incrédulo, gaguejou:

‑ O quê? Vão começar imediatamente e aqui mesmo? E tu, Milachka? Acreditas nisso?

Olhando fixamente para a mulher, teve de repente a impressão de que ela era uma aparição vinda de outro mundo e de que acabara de se materializar subitamente naquele sofá. O pequeno aceno de cabeça que lhe endereçou vinha acompanhado com um sorriso tão feliz, e parecia tão jovem, tão bonita, tão cheia de saúde, sim, quase imortal, que ele quase não conseguia reter um grito...

Corina voltou‑se para ele.

‑ Vai então para o escritório, pai, visto não quereres ficar connosco!

Furioso, incapaz de se dominar, abanou a cabeça.

‑ NãO! Ficarei aqui! Há trinta e seis anos que me encontro ao lado da tua mãe, desde ainda antes do teu nascimento, compreendes, e é o que farei também hoje...

Voltou‑se na direcção do pequeno bar do móvel para tornar a encher o copo e sentiu bruscamente como que uma faca a espetar‑se‑lhe no coração. "Isso é que não, agora não, pensou ele horrorizado. "Meu Deus, mas pára de bater assim depressa, coração imbecil. No entanto, bem te treinei com inúmeros passeios a pé ao ar livre, com passeios de bicicleta e jogging nas praias do mar do Norte! E é agora que me abandonas... "

Bebeu o copo dum trago como fizera com os precedentes. Pouco a pouco o seu coração acalmou‑se. Viu através do espelho que Ludmila se tinha levantado. De pé, ela começava a despir‑se.

Tinha‑se estendido com os olhos fechados e completamente nua, no sofá; um sorriso repentinamente misterioso distendia‑lhe os lábios.

Stefan Doerinck era um homem da média burguesia alemã, sensível, pudico e, consequentemente, um pouco recatado. A sua primeira reacção foi perguntar‑se se não existiria um toque de obscenidade no quadro que tinha perante os olhos. Seria normal que uma filha pudesse assim observar a mãe nos mínimos pormenores da sua total nudez e num tal abandono? Mas afastou de imediato aquele pensamento, mais desagradável do que o facto em si mesmo, de que se envergonhava. Aliás, alguns estranhos também tinham visto o corpo nu da mulher: os médicos, o massagista do estabelecimento termal, o vigilante e o massagista de Abano durante as massagens dentro de água. Que parvoíce deixar‑se invadir pelo formalismo só porque se tratava de Corina, a sua própria filha!


Sentou‑se, por fim, numa cadeira a dois metros do sofá, inclinado para a frente, com as mãos comprimidas entre os joelhos e fixando os olhos na mulher. Desde há trinta e seis anos que ela era para ele uma fonte constante de surpresa e de admiração. Conhecia cada centímetro daquele corpo, cada uma das suas saliências e das suas reentrâncias, cada um dos seus sinais; ela possuía exactamente sete e o maior dissimulava‑se na prega do seio esquerdo. Lembrava‑se do mínimo cambiante daquela pele lisa, da coloração azulada que lhe aparecia frequentemente quando embatia num móvel qualquer e do aparecimento súbito duma pequena borbulha que rapidamente desaparecia com aplicações de pomada. Poderia descrever de olhos fechados a forma exacta dos dedos grandes dos seus pés, a magreza dos seus artelhos, o arredondado das ancas, o alto do triângulo coberto por um velo de pêlos abundantes. E o seu ventre liso, os seus seios firmes, os seus ombros... Meu Deus, como era possível que tudo isto fosse destruído pelo inimigo impiedoso escondido por baixo daquelas resplandecentes formas carnais, profundamente dissimulado nos meandros secretos de toda aquela beleza, de todo aquele esplendor, e que, naquele mesmo instante, se encontrava a corroer aquele ser que emanava ainda felicidade e alegria.

Olhou para a filha com a garganta contraída como se não conseguisse engolir uma bola nela alojada e durante um momento esteve quase a acreditar em milagres e na força que emanaria dentro em pouco desta mulher. Aos seus olhos ela continuava a ser uma criança e, no entanto, preparava‑se para curar a mãe... Mas a força que ela dizia ter consigo não era explicável. Não havia para ela nenhum nome claro nem preciso nas centenas de livros que tratavam do assunto. Tudo aquilo se encontrava muito longe de si e era muito inquietante; era precisamente por se tratar da filha que a sua aversão por aquelas coisas se fazia sentir mais fortemente. Tudo o que tinha podido ler o tinha desorientado e levado a reforçar a sua posição instintiva a tudo o que se prendia com o oculto. à mesa dos habitués do café que costumava frequentar, tentara levantar prudentemente o problema junto dos colegas. A ideia só por si desencadeara uma explosão de risos. Na região de M'nster, os "apanhados", os videntes que pretendem conseguir ver o futuro nunca tinham tido boa fama. Ainda havia velhotas que curavam "com palavras mágicas" uma clientela feminina tão idosa como elas, apesar dos progressos da cultura e dos novos tempos. Sem falar das ervanárias, de que, curiosamente, o farmacêutico de Hellenbrand reconhecia os méritos, pois era graças a elas que se abastecia de diversas plantas para tisanas de melhor escolha e a melhores preços do que nos fabricantes especializados. Outrora na Vestefália, na época da caça às bruxas, a maior parte das mulheres condenadas por esse crime era torturada e queimada. Dessas mulheres ainda persistia alguma coisa. Essa abundância de bruxas era, no entanto, explicável naquele país de pântanos, de nevoeiros precoces e de florestas repletas de ruídos inquietantes. Tudo isso tinha certamente influenciado tanto o estilo das casas, onde a terra se encontrava com o céu, como a falta de leveza que caracteriza o espírito dos seres humanos. É indiscutível que um país assim favorece a crença em forças sobrenaturais.


Mas isso pertencia ao passado. Como era possível acreditar em curas de males reais por simples imposição das mãos, devido à bioenergia, à aura que rodeia cada um de nós ou ao "campo plasmático"? Quando Stefan Doerinck evocara todas estas fantasmagorias, desculpando‑se, aliás, por ter lido certos livros sobre o assunto, o juiz Schwerínicke tinha desatado a rir estrondosamente (já se encontrava bastante alegre depois duma cerveja forte acompanhada por um cálice de aguardente). O juiz tinha‑se posto a gritar muito alto: "Vejam bem o que ele lê! É típico de um professor! Fritz", dirigia‑se ao farmacêutico, "vê lá se lhe emprestas bons livros, como o mais sujo jamais posto a circular no mercado do livro; sabes bem de qual se trata, aquele que foi escrito pela tal mulher. Só trata de calças a serem baixadas e de vergas ao vento! Depois de o leres, Stefan, ficarás a saber finalmente o que é a bioenergia."

Nunca mais voltara a falar daqueles livros, que lera, no entanto, até ao fim, apesar da admiração e da desconfiança que, cada vez com mais intensidade, despertavam nele. Por exemplo, apesar de todas as belas palavras que continham, como podia não se sentir chocado ao ler que, com a ajuda de muita concentração e de energia psíquica, se podia chegar a conseguir movimentar de longe tanto objectos como até mesmo pessoas! Em tais livros este fenómeno chamava‑se "telecinesia". Que parvoíce! É de facto de se levar as mãos à cabeça!

Um primeiro movimento de Corina arrancou‑o àqueles pensamentos. Tinha‑se debruçado sobre Ludmila, posto as palmas das mãos abertas sobre o ventre da mãe e, de olhos fechados mantinha a cabeça profundamente enterrada entre os ombros. Doerinck viu distintamente o estremecimento que se apoderava dela e se propagava ao longo dos braços.

‑ Estou a vê‑lo ‑ disse de repente.

Doerinck arrepiou‑se e sentiu de novo uma picada no coração. A sua boca estava horrivelmente seca.

‑ Sim, vejo o tumor. Situa‑se no terço superior do recto.

- Está correcto. Foi o que disse o professor Willbreit ao mostrar‑me a radiografia.

A voz de Ludinila era tão longínqua como se tivesse percorrido uma longa distância antes de se fazer ouvir naquela sala. Corina suspirou ao endireitar‑se. As suas mãos já não tocavam o ventre da mãe. juntou‑as como se fosse rezar e, sem dizer palavra, fixou o olhar nas pontas dos dedos que se tocavam. A seguir Stefan Doerinck ouviu‑a dizer docemente:

‑ Fica perfeitamente calma, mãe. Descontrai‑te completamente... Vais dizer‑me o que sentes.

Debruçou‑se de novo, estendeu as palmas das mãos abertas e a seguir fê‑las deslizar lentamente por cima do baixo‑ventre da mãe, mas sem sequer lhe tocar. A uma dezena de centímetros da pele, os seus dedos pareciam flutuar enquanto iam e vinham. Tinha os olhos fechados e os ossos das faces, salientes, esticavam‑lhas como se fosse uma máscara. Na raiz dos cabelos começaram a surgir gotas de suor.

‑ Sinto calor, cada vez mais calor... um calor delicioso, como se proviesse de um sol primaveril.

A voz da mulher tinha‑se tornado mais longínqua, preguiçosa, desprovida de força, e Doerinck sentiu dificuldade em respirar... Com efeito, retinha o fôlego fixando toda a sua atenção nas mãos de Corina. Só conseguia vê‑la a ela e aos seus dedos sobrevoando lentamente o corpo de Ludmila. Após um profundo suspiro, inspirou tão brutalmente que teve a impressão de que os seus pulmões iam rebentar.


Acha‑se que cinco minutos não são nada, mas se se tratar de um round de boxe, que, no entanto, só dura três, este pode parecer infinitamente longo. O mesmo se verifica num afogamento, no momento que precede o tocar do solo com os pés ou a perda de conhecimento. Pode‑se assim compreender o que sente um homem na situação de Doerinck, torturado simultaneamente por ser marido e por ser pai. Para ele, os segundos sucediam‑se tão lentamente como quando derrapara um dia ao vislumbrar um tronco de árvore contra o qual iria embater e que conseguira evitar mesmo à justa. Cinco minutos podem, portanto, durar uma eternidade que nunca alcança o fim.

Mas o fim chegou, bruscamente.

Viu Corina inclinar‑se para trás e deixar cair as mãos ao longo do corpo. A cabeça, que não conseguia suster, caía sobre a nuca. Respirava com a boca totalmente aberta, como se de repente lhe tivesse faltado o ar. Este abatimento não durou mais do que alguns dramáticos segundos, durante os quais se diria que ia cair ou desagregar‑se num monte de cinzas ou de pó. A seguir recuperou forças e estendeu a mão para o maço de cigarros. Como não conseguia encontrar imediatamente os fósforos, Doerinck precipitou‑se na sua direcção com o isqueiro na mão. Avidamente, sem sequer lhe agradecer, inspirou algumas baforadas de fumo, só as exalando depois dum momento, lentamente, pela boca e pelas narinas.

Stefan Doerinck, ainda a engolir a saliva, arrancou do cadeirão as roupas de Ludinila para com elas cobrir o seu corpo nu. Percebeu então que ela dormia ainda mergulhada no calor de que tinha falado e que viera não se sabia de onde. Ludmila estava tão bela no seu abandono que, com um sorriso duma doçura indescritível nos lábios, acabou por se deitar a seu lado no sofá, gaguejando involuntariamente:

‑ Meu Deus, mas o que é que se passou? Que se passou, Corina?

‑ A mãe vai curar‑se...

Continuava a puxar o fumo do cigarro e nem sequer parara para pronunciar esta breve resposta. O corpo ainda lhe tremia, ou, melhor, ainda vibrava. Os olhos emitiam um brilho insustentável, mas à volta das comissuras dos lábios tinham‑se gravado subitamente duas rugas profundas. Sentia‑se tão vazia como uma jarra que acabasse de perder a última gota.

‑ Sim, tenho a certeza de que a mãe vai curar‑se.


 

O professor Willbreit ficara singularmente preocupado pelo facto de a filha da Sra. Doerinck ter anulado a operação desta pelo telefone.

Naturalmente, num serviço onde reine tanta ordem como no serviço de cirurgia duma grande clínica, é totalmente impossível levar em conta os problemas e as preocupações dum indivíduo. Trava‑se simplesmente conhecimento com ele, examinando‑o operando‑o e visitando‑o regularmente. Quando se fala dele, diz‑se: a vesícula biliar, o estômago, o pâncreas. De tempos a tempos, recebe‑se a visita da família, sobretudo quando já não é possível evitar a morte. Pronuncia‑se então algumas sentidas palavras de consolo: "É a sorte que nos espera a todos"; "Ninguém é imortal, só a hora fatal é que difere..."

A não ser que a doença tenha seguido um curso favorável. Aí, empertigamo‑nos para dizer: "Pois bem, pode vir buscar a sua mãezinha (ou o seu paizinho) amanhã de manhã. Está contente, não é verdade?" E começa‑se logo a pensar na atribuição da cama que ficou livre, por exemplo, para aquela anastomose tão aborrecida, a junção de dois canais orgânicos demasiado afastados um do outro, uma senhora de quarenta e nove anos, uma doente particular, que será tratada, evidentemente, como as outras, mas com um pouco mais de conversa e de sorrisos. E depois, num caso desses é o médico‑chefe ou o próprio chefe clínico quem opera...

Como seria possível ter em conta, junto com o paciente, o conjunto da sua vida' o seu destino particular? Há dias em que se fica oito, dez, doze e, às vezes, catorze horas de seguida, sem arredar pé, diante da mesa de operações. Esta performance extraordinária, não só psíquica mas sobretudo física, não é exigida em nenhuma outra profissão. Nenhum sindicato vigia estes terríveis excessos horários, e mesmo que se viesse a criar um, ele não serviria para nada, pois quem consegue calcular com antecedência o tempo que vai durar uma operação complicada? Três, quatro, seis horas? Quem é capaz de prever complicações imprevistas, tais como uma hemorragia fulminante ou uma fissura súbita? Nas outras profissões, tudo é diferente: sabe‑se quando a campainha anuncia o final do trabalho ou a mudança de equipa. E os sindicatos reclamam a semana de trinta e cinco horas porque o operário que trabalha chapas metálicas afirma estar demasiado cansado. E os funcionários públicos adormecem depois do almoço, tal como prova a sua baixa de eficácia. Mas quando se trata de um médico, é naturalíssimo que ele não tenha horários, que deva estar pronto a qualquer hora, de noite como de dia, e depois de catorze horas de trabalho diante duma mesa de operações, ainda é preciso que o cirurgião tenha forças para salvar a vida do doente com o qual as suas mãos se ocupam, seja qual for a fadiga que se tenha apossado delas: é que se pode rectificar uma chapa mal fundida, mas um vaso sanguíneo mal cosido pode ser fatal.


Não estava nada na natureza do professor Willbreit lembrar‑se durante muito tempo de cada um dos seus pacientes. Pois bem, não conseguia desta vez afastar do espírito o telefonema de Corina Doerinck. Tinha pensado nisso durante todo o resto do dia, com excepção da breve interrupção durante a hora das visitas ao fim da tarde. Quando voltou a ficar sozinho no seu gabinete, em vez de se meter no carro para ir para casa, uma moradia nos arredores de M'nster, onde a mulher, muito apreciada pela alta sociedade da localidade, devia estar certamente a receber uma dúzia de amigos, pôs‑se à procura na pilha dos dossiers do que dizia "Doerinck, Ludmila, Heilebrand, 61 anos, casada, um filho". Ele próprio tinha feito um traço vermelho na capa. Desta maneira ficava logo a saber à primeira olhadela de que se tratava: carcinoma, tumor canceroso.

Abriu, no entanto, o dossier, releu com mais atenção do que habitualmente os apontamentos do primeiro exame, o relatório do laboratório, o resumo das radioscopias e das radiografias e viu que ele próprio anotara: "Internamento a partir do dia 10."

Sim, lembrava‑se daquela russa. Uma mulher admirável que, aos sessenta e um anos, parecia ter quarenta. Tinha olhos amendoados e cabelos negros ondulados. E a pele como que cor de âmbar com reflexos cor de azeitona. Assim que acabara de examiná‑la tinha mesmo pensado: que porcaria de vida esta em que um corpo humano desta beleza tem de sofrer uma tal destruição! E sentira‑se uma vez mais repleto de ódio contra esta multiplicação de células diante da qual sentia uma repulsa impotente, mesmo apesar de todos os progressos realizados na medicina. É verdade que a técnica operatória, os tratamentos com raios radioactivos e por quimioterapia constituíam um progresso, mas tinha por vezes a impressão de se encontrar diante dum oceano que os outros lhe pediam que esvaziasse com um balde de criança...

Pousou o dossier sobre a pilha dos outros, renunciando a examinar as radiografias com o projector. Não se lembrava das palavras exactas que aquela bela russa pronunciara, mas, de qualquer maneira, tinha‑lhe pedido que lhe dissesse claramente e sem rodeios toda a verdade. E ele assim fizera, como sempre que se encontrava diante de um doente capaz de a suportar. Alguns iam‑se abaixo, mas a maior parte levantava‑se dignamente e declarava com voz firme: "Agradeço‑lhe, senhor professor. Vou agora poder tirar o melhor partido possível do tempo que ainda tenho para viver." Eram quase sempre esses que morriam mais serenamente, quase reconhecidos.

Que lhe dissera, afinal, a filha desta russa, a tal Corina, ao telefone? "A minha mãe não quer ser operada." Era claro. Era também uma frase que ele tinha ouvido frequentemente noutros casos e depois, quando voltavam à consulta no último momento, só podia dizer: "Demasiado tarde... já só posso tentar aliviar o seu fim..." Mas esta Corina tinha‑lhe dado um choque. Primeiro porque tinha estudado medicina até ao momento em que, depois duma primeira selecção, um estudante já só tem de se deixar arrastar pela corrente. Não era uma profana qualquer, mas alguém capaz de avaliar todos os riscos daquela recusa e de assumir as responsabilidades desta decorrentes.

O professor Willbreit, de sobrancelhas franzidas, voltou a pegar no dossier. Telefonou uma última vez para o serviço das urgências, que não tinha nenhum caso a assinalar, arrumou o dossier na pasta e dirigiu‑se para o carro.


Como tinha previsto, Lídia, sua mulher, tinha mais uma vez convidados. Ouvia‑os rir da garagem. As portas‑janelas que davam para o terraço estavam abertas, encontravam‑se todos agrupados no grande salão à volta do bar circular, e ninguém o vira chegar.

Saiu da garagem pelo pequeno corredor que conduzia directamente a casa e deu com uma empregada, a quem lançou o seguinte aviso:

‑ Ainda não cheguei, Renata! Não me viu.

Depois dirigiu‑se ao escritório. Ali estava mesmo em casa, em segurança. Lídia só lá ia raramente. Este escritório parecia‑se com o gabinete que possuía no hospital e onde passava as prescrições médicas. Lídia tinha declarado: "Cheira aqui demasiado a doutor." Isso não a impedia de se queixar: o marido não dirigia o hospital, o que é na Alemanha o papel dum Oberartz, dum médico‑chefe chegado ao topo da carreira, limitava‑se a ser "chefe de clínica"! Não compreendia que, aos sessenta e três anos, ele tinha uma brilhante carreira para trás. Protestava sempre: "Uma pessoa torna‑se director dum hospital porque está velha ou porque é melhor que os outros?" O seu raciocínio era duma lógica irrefutável. No que tocava a este assunto, ela encontrava, como sempre, o meio de ter razão. É exacto que o director raramente opera e que os doentes preferem o chefe de clínica. Em relação à clientela privada, o médico‑chefe tinha ditado a Willbreit um gendernan's agreement. Com uma apelação destas não se podia tratar de dicotomia. Para as operações os dois terços dos benefícios iam para o patrão e um terço ia para Willbreit, que era chefe de clínica. No caso dos pareceres médicos era Fifty‑Fifty. Para quê revoltar‑se? Por princípio, o patrão tem sempre razão, mesmo quando está senil ao ponto de, quando lhe apetece operar, o fazer como em outros tempos fazia Sauerbruck, sem luvas esterilizadas, declarando: "As mãos dum médico‑chefe são um meio absolutamente estéril... "

Tira da pasta o dossier Doerinck, procura na lista o número de telefone, hesita um instante e de seguida toma a sua decisão.

Não obteve resposta. Os Doerinck tinham saído. Estavam a jantar no restaurante As Armas de Vestefália para festejar o primeiro tratamento de Ludmila, que tinha declarado: "já me sinto muito melhor."

E não exageramos se dissermos que, no fim do jantar, Stefan Doerinck tinha bebido um pouco mais do que seria razoável e que a filha teve de o apoiar pegando‑lhe no braço para o guiar até ao carro...

Todas as noites as mãos de Corina voltavam a irradiar ‑ mas será esta a palavra exacta? ‑ o ventre da mãe.

Apenas cinco minutos ‑ mais do que isso seria impossível. Após este breve período, que lhe parecia durar uma eternidade, Corina sentia‑se exausta e, já por três vezes, Doerinck se apressara a acender um cigarro libertador e a introduzi‑lo nos lábios descoloridos da filha.

No fim de cada tratamento, Ludmila repetia que sentia um calor indescritivelmente delicioso: "Uma espécie de incandescência, mas que não magoa nada."

Ao quarto dia as perdas de sangue tinham desaparecido como que por encanto. E aconteceu o mesmo com o doloroso peso que Ludmila sentia no baixo‑ventre, ao ponto de ela confessar que, desde há mais de seis meses, era a primeira vez que se sentia inteiramente bem.

Stefan Doerinck tivera um sobressalto, como se alguém o tivesse pisado.


‑ O quê? Desde há mais de seis meses? Sofreste durante Pelo menos seis meses?

‑ Sofri.

‑ E porque é que não nos disseste nada?

‑ Porque tinha medo, Stefanka. ‑ Fazia o sorriso graças ao qual se era obrigado a perdoar‑lhe tudo. ‑ Pensei que conseguia repelir o mal. É idiota, eu sei, mas é‑se tão idiota quando se tem medo...

Stefan Doerinck tinha aproveitado a participação numa reunião do Conselho Pedagógico de M'nster para se informar sobre a parapsicologia, a bioenergia, o bioplasma e as experiências de visão cutânea na livraria da universidade.

Conseguira assim descobrir que ninguém sabia do que falava. O próprio chefe de serviço das compras se tinha lançado em hábeis circunlóquios para não dizer nada de preciso. Doerinck acabara por se sentar num canto da livraria para consultar uns enormes catálogos, dos quais retirou alguns títulos que a seguir encomendou.

Corina também não pudera satisfazer a sede de conhecimento do pai. A seguir ao segundo tratamento, ele pegara‑lhe nas mãos, voltara‑as em todas as direcções, apalpara a ponta dos dedos e fora depois buscar uma lupa para as examinar mais de perto. "O que é que te devo explicar, pai?", dissera‑lhe ela. Não lhe podia dizer nada que ele ainda não soubesse. Era assim, nada mais. E não descobrira nada de particular. Corina tinha as mãos e os dedos mais normais do mundo, com unhas tratadas e pintadas naquele dia com um verniz vermelho‑brilhante. A pele da ponta de três dedos estava áspera e como que inchada.

‑ É devido aos nós dos tapetes. É incrível como a lã mais fina consegue mesmo assim ser áspera.

Stefan Doerinck não se contentara com este tipo de explicação.

‑ Mas, enfim, o que é que as tuas mãos têm? O que é essa força misteriosa de que falas?

E a resposta que recebera não o tinha esclarecido por aí além.

‑ Repito que não sei, meu querido pai. Os meus olhos pousam em alguém e digo logo comigo mesma: está doente. Sei‑o. Fico a saber, por exemplo, que ele tem cálculos na vesícula biliar, uma inflamação nervosa ou um tumor no estômago. Então, abro bem as mãos e sinto nas palmas e nas pontas dos dedos como uma espécie de corrente eléctrica que não provém dele, mas de mim, e que penetra nele. E esta corrente destrói a causa do mal. E é tudo.

Era muito simples, mas continuava a ser inverosímil. Ao lado de Ludmila, que dormia profundamente depois de cada sessão, Doerinck tinha passado mais do que a metade duma noite completamente desperto, recapitulando nos mínimos pormenores a vida da filha como num filme que se pode fazer parar numa imagem que nos parece mais interessante, talvez até reveladora, e que se pode também estudar a fundo, mas, naquele caso preciso, sempre em vão.


Houve, em primeiro lugar, o seu nascimento, um nascimento que fora difícil. Ludinila, a mãe, tinha‑se debatido com dores atrozes durante quase vinte horas. Para acabar com tanto sofrimento, o médico hesitara durante muito tempo entre uma cesariana e a utilização do fórceps. Mas no momento em que o parteiro dizia a Stefan, que, banhado em suor, assistia impotente àquele martírio: "Numa hora, vai ser necessário tomar uma decisão e recorrer à cesariana", Ludinila tinha dado um grito tão forte que até o médico, apesar de estar habituado, se tinha arrepiado até aos ossos, e foi então que Corina veio ao mundo.

Teve uma infância absolutamente normal: no infantário, onde jogara e se zangara com as outras crianças de quem nada a distinguia. Tivera o seu triciclo, e um pouco mais tarde a sua pequena bicicleta, os seus patins e a seguir patins de neve. Doerinck instalara no jardim um pequeno pórtico com uma corda com nós, um balouço e uma barra fixa, e nada lhe tinha permitido pensar que a pequena Corina pudesse tornar‑se em alguém que era diferente dos outros.

E no entanto houvera algo! Lembrava‑se agora de um fenómeno ao qual não tinha na altura prestado nenhuma atenção. Durante os numerosos passeios que davam os três, a pé, na região de M'nster, acontecia‑lhes colherem flores. Ora enquanto os ramos que Ludmila trazia começavam a ficar murchos durante o trajecto de regresso, as flores de Corina mantinham‑se frescas e o seu perfume continuava sempre puro. Continuavam a viver na jarra durante vários dias porque Corina, que adorava plantas desde que começara a andar de gatas, ia todos os dias acariciá‑las como se se tratassem de pequenos animais.

E na "escola grande" também se tinham afirmado nela algumas particularidades, sem que se pudesse dizer exactamente que diferia das outras crianças da sua idade. Aliás, qual é o pai que não procura as características que lhe são próprias nos filhos? Era uma aluna calma que permanecia ajuizadamente no seu banco; olhando à sua volta com os seus grandes olhos negros, raramente levantava a mão para participar numa aula. Mas quando a professora a interrogava, respondia perfeitamente sem hesitar, e se lhe perguntassem "Porque não levantaste o dedo?", respondia com uma lógica desconcertante: "Para quê, se sei sempre tudo."

A professora declarara várias vezes a Stefan Doerinck, que fora seu colega das classes superiores: "Corina, é a minha melhor aluna, mas não parece seguir as aulas. Deveria falar com ela, senhor Doerinck. Ela fica sentada no seu banco, olhando fixamente para a frente com os seus grandes olhos negros, e ponho‑me frequentemente a pensar: Que se passará naquela cabecinha? Tenho por vezes a impressão de que ela me está a perguntar: 'Mas o que é que estou aqui a fazer?"

Ele bem tinha tentado ter uma conversa sobre o assunto com a filha. Como ele insistia para que Corina participasse mais activamente nas aulas, a filha declarara de repente:

‑ A senhora Dassel deve ir ao médico. Tem qualquer coisa na barriga.

‑ Quem te disse isso? ‑ perguntara Doerinck.

‑ Ninguém. Mas eu vejo‑o...

Ele quase se tinha zangado. "É uma escapatória típica de miúda", pensara. Como pudera esquecer este incidente? E, no entanto, a professora, um ano mais tarde, tivera de ser operada a um grande quisto no colo do útero. Mas Doerinck não tinha relacionado a súbita aparição do quisto com o aviso que a filha fizera seis meses antes.

Hoje, após vinte e dois anos, no decurso duma noite quase em branco, esta recordação voltara‑lhe com horror.


Aos dezasseis anos, Corina tinha entrado no liceu. Adolescente, estava sempre calma, mas a sua atitude nas aulas devia ter mudado, dadas as notas que obtinha nos trabalhos práticos. Indiscutivelmente, era a melhor aluna, confiara um dos seus professores ao colega Doerinck. Uma apreciação destas é das que enchem um pai de orgulho e o fazem ter confiança no futuro do filho. Apenas o professor de Matemática aproveitara uma reunião de pais de alunos para lhe fazer uma estranha confidência:

‑ É a terceira vez que se passa algo de insólito com Corina. Tenho o hábito de escrever no quadro os problemas que os alunos devem resolver imediatamente. Trata‑se duma composição do género duma revisão bastante simples e cuja duração não excede as duas horas. Ora, por três vezes sucessivas, ainda mal se tinha passado uma meia hora já Corina estava a entregar‑me a sua e com o resultado certo! Mas o que eu não consigo explicar é como é que os seus exercícios não comportam nenhum esclarecimento sobre os raciocínios que lhe permitiram chegar à solução exacta, mas simplesmente o enunciado e o resultado final. Da mesma maneira que dois vezes dois são quatro! Naturalmente, fiz‑lhe a pergunta: "Como é que chegaste a este resultado?" ‑ "Apareceu‑me assim... ", respondeu ela. Ora é absolutamente impossível! Para encontrar a solução deste género de problemas é preciso desenvolver matematicamente cada ponto do enunciado, e trata‑se de um processo complexo. Não se pode fazer de cabeça toda a série de operações que imbricam umas nas outras. O próprio Einstein não o conseguiria. Pergunto‑lhe confidencialmente, caro colega: não terá em casa, para as suas aulas de matemática, livros de exercícios resolvidos, daqueles que são reservados aos professores, e que lhe permitisse aprender de cor os resultados dos exercícios sem se preocupar com o resto?

‑ Não; de facto, não.

‑ Nem nada parecido?

‑ Absolutamente nada. Tenho a certeza.

‑ Então trata‑se verdadeiramente de um enigma, pois estudei a questão, imagine: tenho sempre em cima da minha secretária um livro de exercícios resolvidos destinados unicamente a serem utilizados pelo corpo docente, e descobri que as soluções de Corina apresentam exactamente a mesma disposição e as mesmas abreviaturas que no meu livro!

Era evidentemente incrível, mas nem o professor nem Doerinck tinham levado mais longe o inquérito. A direcção do liceu estava orgulhosa por Corina ser a sua melhor aluna desde há várias dezenas de anos, menos, deve‑se confessá‑lo, em ginástica e em religião. Tinha recusado categoricamente fazer exercícios com aparelhos: "Não quero ficar estropiada como a Angélica", respondera com uma insolência incrível, inabitual nela, pois Angélica, uma das suas condiscípulas, tinha um Corpo forte e respirava saúde. Mas quatro meses mais tarde, tinha caído tão mal depois de um salto na trave horizontal que contraíra uma fractura complicada na perna esquerda, a qual, depois de várias operações, ficara cerca de dez centímetros mais curta. Ninguém se tinha lembrado da afirmação de Corina. Mas como explicá‑la?

O ensino religioso faz parte do curso de Filosofia dos últimos anos. Corina declarara um dia que os milagres de Cristo eram explicáveis. A turma inteira ficara chocada. E também dessa vez algo de estranho se passou.

‑ Os milagres não existem! Olhem só!


E diante de todos os colegas estupefactos fixara, durante alguns instantes, com os seus olhos negros, o livro que o professor tinha aberto em cima da secretária. E subitamente a página em que o livro estava aberto tinha‑se elevado no ar para voltar a cair, uma página após outra... Todos os alunos tinham aplaudido este passe de prestidigitação e vários lhe tinham oferecido presentes para que ela lhes ensinasse o truque. De cada vez, tinha abanado a cabeça: não há truque nenhum.

Finalmente, Doerinck, perturbado, sentara‑se na cama. Olhara a mulher, que dormia ao seu lado. Então era isso! Tudo coincidia. Corina, ao examinar a mãe, tinha apenas empregue uma faculdade que possuía há muito no mais profundo de si mesma: via através dos corpos. Assim como o livro do professor de Matemática se encontrava em cima da secretária, Corina tinha muito simplesmente lido a solução do problema. Sim, através do livro fechado!

"Meu Deus, mas será possível?", voltava a perguntar‑se, respirando pesadamente. Trata‑se verdadeiramente da minha filha? Não consigo conceber o que ela faz nem o que ela é, mas tenho de aprender tanto quanto possível a aceitá‑la e a viver com a ideia de que ela não é como as outras, como nós...

As recordações precipitavam‑se agora no seu espírito, e eram numerosas. O caso do Dr. Ewald Hambach, o médico da família, por exemplo! Há três anos. Há mais de vinte anos que era um amigo íntimo. Uma noite, bebendo um copo de vinho, tinha‑se abandonado a uma confidência sob uma forma inicialmente imagética.

‑ Até os tigres têm presas que agitam e os vendedores de gelados nem sempre são os que os fabricam...

Doerinck olhara‑o espantado.

‑ Agora falas por provérbios e por enigmas, Ewald? O que é que se passa?

‑ Apenas uma prostatite aguda!

‑ Como médico, isso não devia assustar‑te por aí além.

‑ É o caso quase típico: a um paciente comum receita‑se‑lhe tetraciclina e3 ao fim de dois ou três dias, ele esquece‑se que tem uma próstata. No caso dum médico, há sempre complicações. Já experimentei toda a gama de antibióticos desde há dois meses!

Doerinck pusera‑se a rir.

‑ Sabes o que penso, Ewald? Devias ir a um bom médico!

o Dr. Hambach também tinha rido, mas com um riso amarelo.

‑ já fui, imagina! Fui a um urologista, o professor Schmelzer, em M'nster. E sabes o que me disse? Brincou como tu: "Pois caro confrade, tem uma bela próstata! Vigia a saída da sua urina: ou isso passa ou não passa, hem?... "E prescreveu‑me um antibiótico que eu abandonara duas semanas antes por falta de resultados. já não há razão para rir, meu amigo!

Nessa noite, Corina veio directamente do atelier de tecelagem para visitar os pais. O tio Ewald, como ela chamava ao Dr. Hambach desde a infância, para ela fazia parte da família. Ao beijá‑lo, tinha‑lhe apertado a mão e ele tivera a impressão de que a dela mergulhara no interior dum forno.

‑ Então, tio Ewald, continuas com a tua inflamação na próstata ‑ dissera suavemente.

A cara do médico tinha‑se imobilizado.


‑ Meu Deus, mas vocês possuem cá em casa um sistema fenomenal de informação! Deve haver aqui uma série de microfones escondidos em todos os lados!

‑ Se conseguires ficar dois minutos bem tranquilo e sem praguejar, vou experimentar uma coisa contigo, tio Ewald.

Tinha aproximado as pontas dos dedos quase como para rezar. Doerinck voltava do grande móvel‑biblioteca com a caixa dos charutos. Era uma tradição, uma espécie de ritual: cada vez que o Dr. Ewald os visitava, ofereciam‑lhe aquilo de que ele gostava mais: três copinhos de uma excelente aguardente branca e um charuto que ele fumava voluptuosamente enquanto bebia. É claro que também bebia vinho, mas não era o seu forte; engolia‑o sem o provar, como um bárbaro, ou, melhor, como um verdadeiro camponês da região de M'rister: fazia desaparecer um copo de vinho pela goela abaixo como se fosse uma caneca de cerveja. E mais, depois de dois copos de vinho, nunca deixava de reclamar um pouco de aguardente branca, "para digerir o vinho".

‑ O que é que queres experimentar, minha filha? ‑ perguntara o médico com ar inocente.

‑ Curar‑te.

Doerinck tinha‑se interposto num tom brusco:

‑ Já chega de asneiras, Cora! Não esqueças que tens vinte e sete anos e que, portanto, já não estás em idade de te conduzires como uma criança!

‑ Não te mexas, tio Ewald... como no fotógrafo, mas um pouco mais de tempo!

Corina tinha‑se inclinado um pouco para ele, levantando a mão esquerda e baixando a direita até ficar à altura do baixo‑ventre do médico. Depois, a mão direita, ajudada por vezes pela esquerda, tinha começado a ir e vir alguns centímetros acima da suposta região do mal, sem nunca lhe tocar.

Ao fim de apenas dois minutos a sessão tinha terminado. O Dr. Hambach não pronunciara palavra e fora ainda em silêncio que olhara para Corina quando ela se tinha endireitado para se deixar cair num cadeirão e fumar avidamente um primeiro cigarro.

‑ Podes voltar amanhã, tio Ewald? ‑ perguntara ela numa voz cansada e neutra. ‑ Isto resulta...

‑ O que é que resulta? ‑ perguntara o médico tolamente.

Doerinck tocara com o seu copo que esperava o Dr. Hambach em cima da mesa e bebera sem esperar. Estava furioso.

‑ Não estás a ver, Ewald, que ela se está a fazer interessante! ‑ Era a primeira vez que via efectivamente a filha comportar‑se assim. ‑ Há três dias entrou aqui um gato vadio, quase morto de fome e coberto de sarna. A sarna desapareceu e ela meteu na cabeça que foi porque o acariciou. E agora julga que contigo... Está a ficar louca, acredita.

O Dr. Hambach tinha continuado a seguir Corina com os olhos.

‑ Não, pelo contrário, é muito interessante ‑ disse ele com ar pensativo. Calmamente bebeu os seus dois cálices de aguardente, fumou completamente o charuto e depois disse a Corina: ‑ Naturalmente que volto amanhã. Quero ver isso melhor...


Voltara dez vezes de seguida. A ardência que sentia no baixo‑ventre e os fenómenos de retenção tinham desaparecido e a urina voltara a ficar clara! Ao fim da décima sessão, o Dr. Hambach analisara ele mesmo a sua urina e, para maior certeza, mandara a um laboratório de M'nster metade da mesma amostra. Ambos os resultados eram idênticos: a urina estava absolutamente limpa e límpida. A análise de sangue revelara que já não havia inflamação nem infecção em nenhuma parte do seu corpo.

O Dr. Hambach fora então visitar Corina no atelier de tecelagem que ela tinha instalado na periferia de Hellenbrand. Tinha‑se posto de cócoras perto do tapete que ela estava a terminar para melhor ver o trabalho das mãos dela. Depois, acenando com a cabeça pensativamente, dissera:

‑ Se o que penso de ti é verdade, minha pobre filha, vais ter de enfrentar uma vida bastante penosa. Oh, não te queimarão como na Idade Média, mas vão tentar criar‑te dificuldades e abater‑te. Sabes o que és para a medicina oficial? És o diabo em pessoa. Cora, o teu velho tio Ewald vai dar‑te um conselho: esquece esse dom que tens. Continua a tecer tapetes maravilhosos, mas quando te encontrares perante uma doença, domina o teu primeiro movimento, o de a combateres, e amarra as mãos atrás das costas. Senão, eles vão fazer‑te viver um inferno...

E Corina repetira aos pais as palavras do médico. Doerinck não prestara atenção. Em que é que estaria a pensar naquela noite? Agora lembrava‑se de tudo e o seu mal‑estar e o medo do futuro não cessavam de aumentar, a tal ponto que se sentiu incapaz de ficar mais tempo deitado. Levantou‑se devagarinho para não acordar Ludmila e, descalço, dirigiu‑se para a janela. Lá fora, a noite estava luarenta. Quase não havia vento e as folhas das árvores de fruto quase não mexiam. Os raios da Lua cheia formavam um manto de prata por cima das quatro filas da latada de que tanto se orgulhava. Trabalhava nela desde há sete anos e a cidade inteira tinha inveja das suas colheitas de espargos. Amanhã de manhã, antes de o Sol se levantar completamente, iria lá inspeccionar e, armado com uma faca comprida, remexeria profundamente a terra à volta dos sítios onde as pontas de espargos se preparavam para sair. Era preciso manter em mente a necessidade de o fazer e fazê‑lo requeria um certo saber.


Mas continuava a pensar na filha e não conseguia libertar‑se do peso que lhe esmagava o peito e que quase lhe provocava uma sensação de sufocamento. O que é que aquilo iria dar? "E trata‑se da minha filha. Como conceber, como compreender uma coisa assim? Durante a guerra, em Poti, no mar Negro, ri muito do médico David Semionovitch Assanurian, de quem se dizia que curava todas as doenças acariciando o corpo dos seus doentes. Histórias de russos!", pensara nessa altura. "Com eles uma pessoa não pode admirar‑se de nada. Esta gente do Cálcaso é inteligente, mas deixa de alimentar essa inteligência a partir do momento em que trocam o seio da mãe por um caldo com colher! São uns atrasados! Ainda acreditam em demiurgos, em curandeiros, em magos e xamãs, e sei lá que mais? Para eles, os epilépticos são "enviados de Deus". Só na Rússia era ainda possível existir um taumaturgo como Rasputine! E muitos deles pouco progrediram desde então! A Rússia é tão vasta que o espírito científico propaga‑se lá muito lentamente. No fundo, o que era este Dr. Assanurian? Um pequeno Rasputine, um actor que tinha inventado um número expressamente para este povo. Um saltimbanco que vivia de espantar as pessoas. Ainda o vejo levantar a mão pronunciando com voz cavernosa: "Agora vou retirar a doença do teu corpo, irmãozinho... ", e os olhos do paciente reviravam‑se, tinha uma crise de histerismo e toda a gente gritava que fora milagre. É evidente que alguns doentes se sentiam aliviados, pois sabe‑se agora muito bem que a maior parte destes males são psicossomáticos. Neste género de cura bem sucedida, que consistia, no fim de contas, em devolver um pouco de ordem ao espírito de um histérico, assentara o êxito do Dr. Assanurian, assim como a sua celebridade... "

Evidentemente, ele, um tenente alemão educado num dos países mais modernos do mundo, tinha amado Ludmila, a filha deste homem, ao ponto de a levar, contra ventos e marés, ao longo de uma longa e sangrenta retirada. Mas isso era outra história. O seu pai caucasiano nada pudera impedir. Com efeito, acontece raramente que dois seres humanos se amem como ele e Ludmila. Tinham conseguido enfrentar, ela, a filha do caucasiano, e ele, o jovem oficial alemão, os inimigos dos dois campos. Durante um ano, ela vivera escondida perto dele, em todos os lados onde acampara a sua companhia. E quando no fim da guerra lhe tinham dado o comando de um batalhão, apenas com o grau de capitão, dada a sua juventude, e, portanto, já não comandava directamente um grupo, Ludinila tinha vestido o uniforme alemão e transformara‑se num soldado de 1.a classe, impedido do comandante da companhia, que passava a seguir a chefe de batalhão: Doerinck. Na imensa confusão da retirada, cada um só pensava no termo dos seus sofrimentos inúteis e poucas perguntas fazia. Doerinck tinha informado com uma nota lacónica a secretaria do batalhão sobre a chegada do soldado de 1.a classe Hans plotz e sobre a sua nova afectação: "Escolhi‑o para meu impedido..." Naturalmente, tinha estado perto da catástrofe quando o sargento‑chefe Muller VI ‑ antes dele tinham morrido cinco Mullers na companhia ‑, um burocrata consciencioso, lhe assinalou que não tinha recebido para o novo soldado nenhum papel regulamentar, nem caderneta, nem guia de marcha, nem transferência, nem registo de soldo; recebera do capitão Doerinck uma reprimenda o mais militar possível, de tal maneira que nunca mais voltou à carga. Além disso, estavam em 1945. já se combatia em solo alemão. O fim da "grande merda", como diziam os últimos soldados, estava próximo, visto já não se poder recuar mais.

Tinham‑se casado em Dortmund, ela, Ludinila, uma russa sem papéis, e ele, Stefan Doerinck, que voltara a ser um estudante da Escola Superior de Pedagogia. E Corina tinha nascido...

"Corina... Ela é, pois, como o avó", pensou subitamente, e teve a sensação de que o seu hálito estava a aquecer como num ataque de febre. "É isso! Ela bem que podia ter nascido e sido educada na Alemanha e ser filha de um pai alemão; a hereditariedade caucasiana prevaleceria." Ouviu‑se dizer em voz alta: "Meu Deus, é terrível..."

E, com efeito, que ia acontecer a partir de agora? Conhecia os habitantes da sua pequena cidade: como iriam eles reagir?

Voltou a ir sentar‑se na borda da cama e ficou a olhar longamente a mulher. "Se de facto a Corina te cura, Ludmila, meu amor, então só me restará adorar a nossa filhinha. É, e defendê‑la‑ei contra todos os que a atacarem. E, se necessário, matarei para a defender. Sim, matarei... Meu Deus, também eu estou a ficar louco... tudo isto é incompreensível..."


Voltou a deitar‑se lentamente de costas, puxou o edredão para ele e ficou imóvel, com os olhos muito abertos, a olhar para o vazio. E de repente sentiu cada vez mais medo. Medo do futuro que iam ter. Medo por Corina, medo pela sua mulher e medo por ele mesmo.

 

O professor Willbreit deixou passar quinze dias antes de telefonar para casa dos Doerinck.

Efectivamente, não consta do código dos hábitos médicos que um clínico tente recuperar um doente. Qualquer doente é completamente livre para tomar as decisões que quiser: se a cara do médico não lhe agradar, não é obrigado a revê‑lo. A não ser, evidentemente, que sofra de uma doença contagiosa, epidémica, ou duma afecção que se deva declarar às autoridades, qualquer ser humano tem sobre o próprio corpo um direito absoluto de propriedade.

Porque é que então, ao fim de duas semanas, o professor Willbreit voltou a pegar no dossier Doerinck? Ele próprio não sabia responder. Tinha operado até à data numerosos intestinos grossos, e todos esses casos figuravam num estudo estatístico que trazia em dia e se intitulava "Prognósticos relativos a casos cirúrgicos". No seu espírito, esta colecção devia constituir a base duma obra que asseguraria a celebridade do nome Willbreit no domínio da investigação médica.

Da mesma maneira, era impossível dizer se o carcinoma do cólon de Ludmila Doerinck era particularmente interessante. Para um médico, seis meses de vida não têm nada de especialmente dramático. Qualquer cirurgião vive continuamente numa atmosfera em que a morte de um paciente constitui um risco e uma parte inevitável da sua profissão. Não havia, portanto, nenhuma razão para que o nome Doerinck lhe tivesse ficado gravado na memória. No entanto, este caso preocupava‑o, algo nele "não colava", para empregar as suas próprias palavras. Assim, tinha bruscamente pedido o número de telefone dos Doerinck, como se tivesse de transpor o Rubicão, para saber notícias da russa.

Foi ela mesma quem lhe respondeu anunciando o seu nome. O marido, segundo o horário escolar alemão, estava na escola, como os alunos, até às treze horas, e Corina trabalhava todo o dia no seu atelier de tecelagem! Ludinila encontrava‑se, portanto, sozinha em casa com a mulher‑a‑dias, que só fazia meios dias dedicados aos trabalhos mais pesados.

‑ Daqui fala o professor Willbreit. ‑ Tinha escolhido para se apresentar a voz mais segura deste mundo. ‑ Então é mesmo a senhora que está ao telefone. Ainda bem. Só queria saber como tem passado de saúde.

‑ Bem, obrigada.

Era verdade, mas ela apercebeu‑se imediatamente do efeito que estas duas palavras deviam ter num cirurgião que esperava ouvir uma resposta totalmente diferente.

- É uma óptima novidade... Então, já não tem dores?

- Nenhuma, senhor professor!

- Mas certamente continua a ter algumas perdas de sangue...

‑ Absolutamente nenhuma.

‑ E também não perdeu peso?

- Pelo contrário, e isso começa mesmo a inquietar‑me. Não gostava de começar a engordar..:

‑ Pelos vistos, então, tudo parece ir pelo melhor, objectivamente?


As duas palavras "parece" e "objectivamente" deviam exprimir o mais discretamente possível a sua desconfiança, mas era inútil utilizar tanta subtileza com Ludmila, que, não respondendo nada, o obrigou a fazer finalmente a pergunta que o embaraçava.

‑ Encontra‑se então a seguir um tratamento que dá resultados?

‑ Sim...

‑ Num caso como o seu, é sempre bom e útil que o cirurgião fique em contacto com o médico do doente. Poderia dar‑me o nome do meu confrade para que possamos seguir em conjunto a evolução da doença?

‑ Trata‑se da minha filha.

Estas palavras tão simples iriam, no entanto, modificar a vida do professor Doerinck e a dos que o rodeavam. Willbreit calou‑se um instante. Sentia‑se profundamente ferido. Sentia a impressão de ter recebido uma forte bofetada em pleno rosto. Dominou‑se. Tinha de se dar tempo para "digerir" aquela informação ultrajante. Por isso, encadeou a conversa no mesmo tom professoral.

‑ Lembra‑se que lhe reservámos uma cama, cara senhora. Até ao momento ainda continua livre. Podemos dispor dela? A lista de espera é longa...

Ludmila interrompeu‑o.

‑ Mas a minha filha preveniu‑o, não é verdade? Pode, portanto, dispor dessa cama, senhor professor, já não preciso de ser operada...

‑ Trata‑se verdadeiramente duma boa notícia, mas que é ao mesmo tempo surpreendente. ‑ A sua voz mudara: os sons abafados traíam a irritação que ele se esforçava por conter. ‑ É então a sua filha que a trata. Se bem me lembro, ela disse‑me que não tinha acabado os seus estudos de medicina. É, portanto, meu dever chamar a sua atenção para este facto, por mais delicado que seja, cara senhora. Mas poderia descrever‑me em algumas palavras apenas qual é o género de tratamento que ela a faz seguir? Certamente trata‑se de quimioterapia.

‑ Não, é uma imposição das mãos...

‑ Perdão...

‑ As suas mãos acariciam o meu corpo mas sem o tocar.

‑ Vejamos, minha senhora, isso nem é sério nem mesmo é possível.

‑ Sinto por dentro, no sítio do tumor, uma espécie de queimadura, mas agradável. E as minhas dores desapareceram, assim como as perdas de sangue e a diarreia contínua... A sério, senhor professor, sinto‑me muito bem.

‑ Felicito‑a! ‑ A sua voz voltara a ser normal. ‑ A conversa que acabo de ter consigo, cara senhora, foi extremamente interessante e instrutiva. Permite que volte a pedir notícias suas em breve?

‑ Mas certamente, senhor professor. ‑ Porque teria ela então acrescentado uma frase imprudente que, como uma pancada no centro do estômago, ia atingir Willbreit e deixá‑lo sem fôlego, interdito. ‑ Estou tão feliz por já não precisar de ser operada, senhor professor...


Ele pousou lentamente o auscultador no descanso. Durante alguns minutos, considerou, alheado, o dossier Doerinck completamente aberto sobre a mesa. E de repente sentiu apoderar‑se dele um verdadeiro pânico. "Ela trata a mãe por imposição das mãos. É com as mãos e só com as mãos que pensa poder curar a sua própria mãe de um cancro do cólon! Meu Deus, mas isto é um crime!"

Pronunciou a palavra em voz alta: um crime!

A sua secretária ainda não se tinha ido embora. Chamou‑a para lhe pedir um café bem forte. Depois, quando ficou sozinho, voltou a mergulhar nos seus pensamentos, esforçando‑se por pesar os prós e os contras e de fixar uma linha de conduta: o que é que se podia fazer num caso daqueles? Seria razoável comunicar o caso aos tribunais? Mas isso seria ir contra o direito inalienável que todo o ser humano possui sobre o seu corpo: não se pode punir uma pessoa por ela se recusar a ir consultar um médico ou a seguir os conselhos deste! E no Código Penal não existe nenhuma disposição que impeça uma filha de acariciar, sem sequer lhe tocar, o baixo‑ventre da mãe julgando poder assim prestar‑lhe assistência, socorrê‑la. É impossível considerar a tolice e a superstição como delitos enquanto não provocam escândalo público.

E, no entanto, era preciso reagir, fazer algo: era testemunha dum acto pseudomédico executado por uma pessoa irresponsável. Teria ele o direito de se calar e de se tornar assim o  cúmplice do horrível fim dum ser humano? Podia contentar‑se com dizer: pouco me importa o que se passa em Hellenbrand, que não é mais do que uma localidade periférica que nem sequer conheço? A mulher recusa a assistência médica? Pois seja, que posso fazer? Tenho na clínica duzentos e setenta e cinco operados ou futuros operados que precisam de mim, duzentas e setenta e cinco camas ocupadas por seres que sofrem e me esperam cheios de esperança na nossa ciência médica e cheios de confiança nas nossas possibilidades cirúrgicas. Esqueçamos, pois, esta tal Sra. Doerinck. Classifiquemos o caso!

Mas isso era exactamente o que Willbreit se tinha tornado incapaz de fazer. A partir de agora, o mesmo pensamento voltaria a assaltá‑lo, torturando‑o: curar através da imposição das mãos! Curar um cancro do cólon sem sequer tocar o doente, apenas agitando as mãos por cima dele! E eis que os outros sintomas desaparecem... Não, tinha de fazer algo, tinha de intervir...

Pegou na agenda, folheou as páginas que já se encontravam sobrecarregadas de consultas marcadas, à procura dum buraco de apenas algumas horas. Sexta‑feira? Sim, era possível. Podia pedir ao seu colega Dellinger, médico‑chefe substituto, para dar aula às estudantes de enfermagem. E Dellinger também poderia tomar a seu cargo a visita do fim da tarde. Quanto ao chefe, este encontrava‑se em Tóquio para um congresso de uma semana. Desde uma transplantação do fígado, que experimentara fazer sabendo de antemão que o doente de qualquer maneira deveria morrer, o chefe encontrava‑se mais frequentemente em viagem do que em M'nster: tratava‑se de uma técnica inteiramente nova e percorria agora o mundo como convidado para proceder à sua demonstração. Talvez viesse assim a alcançar uma certa imortalidade...

Assim, seria, portanto, sexta‑feira, às catorze horas.

Conscienciosamente, inscreveu na agenda, por cima das palavras "estudantes de enfermagem", que riscara: "Viagem. a Hellenbrand, Ludinila Doerinck." E acrescentou no último momento, entre parenteses: "Levar máquina fotográfica." Mais tarde, durante uma paragem que efectuara na sala de reanimação, onde se encontravam três casos críticos, cedeu a um impulso súbito e telefonou ao seu amigo Erasmus Roemer.

Erasmus Roemer era juiz do tribunal de 1.a instância de M'nster. Tinham sido estudantes juntos e eram agora membros da mesma associação de antigos estudantes. Encontravam‑se regularmente no café, que era o seu ponto de reunião. Simpatizavam e apreciavam‑se, ao contrário das respectivas mulheres, que se detestavam. Não há nada como o ódio entre duas mulheres para selar para sempre a amizade de dois homens.

Ao telefone, não perdeu tempo para fazer ao seu velho amigo a pergunta que o preocupava:

‑ Diz‑me cá, Erasmus. O que é que sabes a propósito dos curandeiros, dessas pessoas que tratam sem diplomas, à margem da medicina oficial?

Ouviu, no outro extremo do fio, o riso enorme, atroador, do juiz Roemer.

‑ Trata‑se quase de uma especialidade da nossa região de M'nster...

Não parava de rir. Roemer era um gigante. Pesava cento e vinte e cinco quilos e não ligava aos avisos do seu amigo Willbreit, que o ameaçava com diabetes, gota, arritmias cardíacas, arteriosclerose, flebite e toda uma gama de doenças terríveis de que a pior era a impotência sexual.

O seu riso era uma espécie de rugido que M'nster inteiro conhecia. Ao vê‑lo pela primeira vez, era natural que se duvidasse das suas qualidades de jurista. Este bon vivant apreciador de mulheres, de boa carne e de vinhos velhos, tinha ar de se interessar mais por gastronomia do que por artigos do Código Penal. Mas era um profundo engano. Dava‑se rapidamente conta do contrário. Roemer era considerado o mais coriáceo dos juizes do tribunal. Presidia ao tribunal correccional e os culpados que tinham de comparecer diante dele deploravam com antecedência a sorte que os esperava, pois nada escapava à sua perspicácia.

Ao telefone, a sua voz ressoava como um estrondo dum trovão.

‑ Então, que problemas é que tens? Terás por acaso um curandeiro deitado na mesa de operações e resolveste vir perguntar‑me se podes livrar dele impunemente a sociedade ou se deves, apesar de tudo, voltar a coser‑lhe a barriga?

Continuava a rir.

‑ É uma pergunta das mais teóricas que podem existir... Acabo de ler alguma coisa sobre os curandeiros que exercem ainda na nossa região. Tens alguma experiência jurídica ou penal em relação a eles?

‑ Não...

‑ Conheces algum? Por ouvires falar, talvez?...


‑ Não conheço nenhum. Teria demasiado medo que quisessem privar‑me de tudo, como tu. Sei que subsistem alguns, sobretudo no campo, mas só com base no que se ouve dizer. Em cantos isolados de tudo, os camponeses continuam a venerar certas curandeiras. São sobretudo os veterinários que se queixam da concorrência. Um dos males pelos quais são consultados é, imagina, o aparecimento de verrugas! A curandeira pronuncia por cima da verruga uma fórmula mágica qualquer e a verruga desaparece! É verdade, é como te digo! De facto, essas curandeiras têm imenso sucesso. Isso faz‑me lembrar uma história que aconteceu à minha avó. Ela vivia na região de Oclitrup, numa aldeia da comunidade camponesa local. Eu tinha na altura sete anos e fiquei completamente aparvalhado com o que vi, com a maneira como ela se desembaraçou, diante de mim, de duas enormes verrugas que tinha na mão esquerda. Levou‑me um dia com ela a casa de uma velha que começou por dar cuspidelas na mão da minha avó e que a seguir se pôs a murmurar uma prece ou um encanto qualquer. Pois bem, não consegues adivinhar: as verrugas da minha avó desapareceram e nunca mais voltaram. Mas já foi há muito tempo, Thomas, há quase trinta anos... Eis a minha única experiência com curandeiros. O que é que se passa contigo?

‑ Li algo acerca disso, como já te disse. Mas há um aspecto do problema que gostava de conhecer: esses curandeiros podem ser perseguidos pela lei?

‑ Não, desde que a assistência que prestam ao curarem um animal ou ao fazerem desaparecer uma verruga não tenha nada de profissional e se não aceitarem dinheiro pelos tratamentos. Mas mesmo no que respeita ao dinheiro, o fisco interessa‑se muito mais por essa gente do que a justiça. É que é sempre difícil provar que houve uma infracção à legislação relativa ao exercício ilegal da medicina. Quando não há uma queixa formal, não há perseguição possível. E quem vai uma vez ver um curandeiro não diz nada a ninguém, e ainda menos quando as coisas correm mal. Este género de clientes tem medo do ridículo e das zombarias. Só a administração fiscal vigia os curandeiros de perto. Chegou mesmo a calcular os rendimentos que têm de maneira bastante precisa e, em consequência, faz pagar os respectivos impostos aos curandeiros conhecidos. Pois é, eles até figuram na lista oficial de cálculos, uma espécie de guia dos agentes do fisco e que lhes serve para calcular o rendimento de cada corpo profissional. O mesmo acontece com as prostitutas!

‑ Então não se pode fazer nada legalmente contra um curandeiro quando ele exerce apenas de modo absolutamente privado e sem nenhuma remuneração?

‑ Não, não se pode fazer nada contra eles.

‑ Agradeço‑te esta informação, Erasmus. Até breve.

Mandou buscar as radiografias de Ludinila Doerinck, dispô‑las e examinou‑as longamente, mudo de surpresa. Era o caso típico: esta mulher tinha‑se feito examinar com um irrecuperável ano de atraso. A isotopia não fornecia informações sobre as metástases do fígado, mas elas existiam, tinha a certeza. A sua experiência, assente em centenas de operações, não o podia enganar.

E havia quem quisesse curar aquilo com uma imposição das mãos, e, melhor ainda, à distância, sem tocar sequer o corpo daquela pobre mulher!

Apagou o projector, desagrafou as radiografias e pô‑las num grande sobrescrito.

"Vou saber mais alguma coisa na sexta‑feira", pensou. "E aí, vou dar murros na mesa. Ninguém tem o direito de ficar indiferente quando se trata de uma vida humana. Há países onde se leva as pessoas ao tribunal por não assistência a pessoas em perigo."

Sexta‑feira à tarde.


Ludinila ia submeter‑se à décima nona sessão de tratamento sob as mãos de Corina quando o professor Willbreit surgiu inopinadamente diante da casa dos Doerinck. Em Hellenbrand toda a gente conhecia o vice‑reitor da escola e Willbreit tinha feito sensação: estava ao volante de um Maserati desportivo e era a primeira vez que um carro tão exótico atravessava o burgo. Quando o estranho perguntara pelo reitor Doerinck, a sensação tinha atingido o seu auge. Como é que o reitor podia conhecer o proprietário de um Maserati?

Doerinck, de regresso a casa, encontrava‑se no seu gabinete de trabalho a corrigir os exercícios dos alunos do sétimo unificado. Tratava‑se de um exercício de alemão feito na aula. Era uma redacção com o título "Diga o que uma árvore lhe pode contar".. "Era horrível", pensou, "o que vinte e três rapazes e raparigas eram capazes de escrever a esse propósito." De ano para ano, a falta de imaginação e de clareza de expressão acentuava‑se; começava a ser alarmante. A língua alemã metia água por todos os lados. Numa reunião de professores, Doerinck, sem que nenhum dos seus colegas ousasse protestar, dissera: "O nosso povo nunca voltará a produzir um Schiller, um Kleist ou um Holderlin. Até um Konsalik parecerá um fenómeno dentro de cinquenta anos, e bem vêem onde quero chegar ao dizer isto!..." Tal como muitos professores, ele não gostara de Konsalik, sem, aliás, fundamentar o seu julgamento em qualquer coisa de preciso. "... Felizmente", continuara, "os gostos deles ainda são diferentes: um prefere o Mickey, o outro o Pato Donald e o terceiro gosta mais de chewing‑gum."

E este tema, que tinha escolhido para tentar descobrir em algum aluno uma personalidade embrionária, deixava‑lhe na boca o gosto de uma atroz decadência.

Ao ouvir um carro parar diante do portão, levantou‑se e levantou a cortina. Não conhecia os Maserati, mas pensou imediatamente que o que acabara de travar à frente da sua casa com tanta segurança representava uma pequena fortuna. Também não conhecia o condutor, que, depois de ter empurrado o portão, parara um instante no jardinzinho que precedia os três degraus do patamar para olhar de alto para baixo e de baixo para cima a fachada da casa, antes de avançar resolutamente para a porta de entrada, com a pasta debaixo do braço.

"Mas é mesmo para nossa casa que ele vem", pensou Doerinck. "Então não se trata de engano! Com efeito, está agora a tocar à porta. Pois bem, vamos ficar a saber o que ele quer. Corina está cá hoje e vai certamente abrir."

Voltou até à secretária, fechou os cadernos já corrigidos à parte, e quase no mesmo instante Corina entrou no quarto com ar perturbado.

‑ Pai, temos visitas.

‑ Sim, vi um homem parar diante do portão. Que carro fantástico! E quem é que conduz então aquele autocarro?

‑ O professor Willbreit, o cirurgião da mãe.

‑ ó diabo! Eis‑nos perante um caso sério... ‑ Reajustou a gravata, Pegou no casaco que estava nas costas da cadeira e enfiou‑o. ‑ Não sabia que a mamuchka o tinha chamado.

‑ A mamã ficou tão surpresa quanto tu e eu. Veio por iniciativa própria. Beijou a mão da mãe, dizendo‑lhe: "Está esplendorosa, cara senhora." E voltou‑se para mim e disse‑me: "E a menina é certamente a filha?" Havia na sua voz algo que não me agradou.

‑ Ora, calma, minha filha!... ‑ Com um suspiro subiu o cinto das calças até ficar por cima dum principiozinho de barriga.

‑ Mas que carripana! Dás‑te conta do que devem ganhar os nossos médicos? Vem, esta visita interessa‑me muitíssimo.


Ludmila tinha feito sentar o professor Willbreit no melhor cadeirão da sala de estar e estava a servir‑lhe um conhaque. Quando Doerinck entrou, Willbreit levantou‑se dum salto e inclinou‑se, ao mesmo tempo que se apresentava cerimoniosamente.

‑ Willbreit, devo desculpar‑me por aparecer sem avisar e por vir assim maçá‑los...

‑ Mas tenho muito prazer em conhecê‑lo ‑ respondeu Doerinck, fazendo cessar assim longas trocas de delicadezas. "Que elegância", pensou no fundo de si mesmo, "e que jovem é este professor! Um ás da profissão, certamente, senão não seria uma das personalidades da policlínica." ‑ Por favor, queira sentar‑se. já conhece a minha filha?

‑ Pelo telefone, antes de vir, e agora pessoalmente.

Pronunciava a palavra "pessoalmente" com um "o" francês que Doerinck achou, enquanto purista, um pouco afectado, mas acabou por pensar que talvez fosse uso da alta sociedade. Quando se conduz um carro daqueles talvez se torne obrigatório falar francês ou inglês em alemão!

‑ A minha visita deve causar‑lhes estranheza.

‑ Mas somos todos ouvidos, professor.

Os dois homens tinham‑se sentado. Ao pousar o copo de conhaque na mesinha perto de Willbreit, a mão de Ludmila tremia um pouco. Depois dum instante de reflexão, Doerinck interpretou o olhar que ela fixara nele como uma espécie de prece: "Não te atires a ele antes de sabermos o que ele quer. Eu também não sei o que é. "

‑ Antes de mais ‑ declarou Willbreit ‑, sinto‑me feliz por ver a sua mulher tão cheia de energia.

‑ E, com efeito, uma grande alegria para nós todos, senhor professor. ‑ "Não estejamos com rodeios", pensou. "Sempre gostei das coisas claras." ‑ Depois do diagnóstico que a minha mulher trouxe de M'nster...

‑ É exactamente essa a razão da minha visita ‑ interrompeu‑o Willbreit. ‑ Bebeu dois goles e pousou o copo de novo, lentamente, no tabuleiro, a fim de ganhar tempo para pesar as primeiras palavras que ia pronunciar. ‑ Reflecti muito sobre o caso da senhora Doerinck, sobretudo quando soube que renunciava à operação. Mas ainda mais, quando a vossa filha me explicou a razão dessa recusa. Senti‑me, posso dizê‑lo, profundamente perturbado.

- Não há nenhuma razão para isso. ‑ Era a primeira frase que Corina pronunciava depois das fórmulas de saudação habituais e, contrariamente ao que esperava Willbreit, foi ela que atacou o assunto. ‑ Como pode ver, a mãe sente‑se muitíssimo bem.

‑ Permita‑me que duvide.

Era bastante forte como resposta, mas, pelo menos a partir de agora, a posição de cada adversário ficava bem definida. Doerinck, que tirara a garrafa de conhaque das mãos de Ludmila, pousou‑a na mesa e olhou Willbreit com ar interrogador.

‑ Antes de entrar em pormenores, professor, é necessário estabelecer que foi o senhor que tomou a iniciativa desta visita.

‑ Tinha de vir, doutor Doerinck. ‑ Aproximou a pasta da sua perna direita antes de prosseguir. ‑ Como poderia fazer outra coisa? A senhora Doerinck pediu‑me que lhe dissesse muito francamente o que se passava e eu fi‑lo...


‑ E nós agradecemos‑lhe imenso. Isso ajudou‑nos muito.

‑ Foi a sua franqueza que nos levou a agir ‑ disse Corina. E no silêncio que reinou logo após a sua declaração, levou ainda mais longe a vantagem que já tinha alcançado. ‑ E como ao telefone me disse, sem rodeios, ser‑lhe impossível curar a minha mãe.

‑ Permita‑me que exprima esse facto de maneira completamente diferente: declarei que não havia cura possível, mas que se podia, pelo menos, adiar um desfecho que se apresentava como fatal. Reconheça‑me ao menos a capacidade de saber interpretar o resultado de um exame e de ler uma radiografia. Disponho de centenas de possibilidades de comparação, cara menina: a evolução de uma doença como esta é perfeitamente previsível.

Corina acenou aprovadoramente com a cabeça.

‑ Do ponto de vista cirúrgico, tem absolutamente razão.

‑ Mas eu estou de facto muito bem! ‑ Incapaz de se conter, Ludinila tinha intervido bruscamente. Sentia que algo de sério se aproximava e fazia o impossível para evitar o pior. ‑ Nunca deveria ter‑lhe dito ao telefone o que Corina estava a fazer para me curar.

‑ Mas nunca me falaste dessa conversa, mãe.

Ludmila baixou a cabeça.

‑ Não. Foi só depois que me apercebi da minha tolice. E já era demasiado tarde. Achei que era preferível calar‑me, dado o professor estar lá longe, em M'nster, e nós estarmos aqui. Pensei que visto poder dispor da minha cama, nunca mais telefonaria. Não pensei que viesse a nossa casa.

‑ Senti que a conversa telefónica que tive com a sua filha era um desafio. Não posso aceitar o que acaba de dizer.

Tinha‑se voltado para Corina. Ela estava sentada num sofá com as pernas estendidas para a frente. "Fascinante", pensou Willbreit. "É a mãe em mais nova e até mais bela do que a mãe alguma vez foi." O seu olhar deslizou pelo seu corpo e parou nas mãos dela. "Era então com elas que esta mulher julgava..." Os dedos eram longos e finos; indiscutivelmente, demasiado longos para uma mulher. Dez antenas cobertas de carne e de pele. "Que parvoíce", disse para si mesmo imediatamente. Mas aquela ideia de antenas perseguia‑o: pensou, de repente, sem querer, num aparelho receptor, ou emissor, ou nos dois ao mesmo tempo?... "E tem um rosto perturbador. Onde terá nascido a mãe? No Cáucaso. Na Grusínia, como dizem os Russos e como nós dizíamos quando lá estivemos. Este tipo de cara reflecte os segredos dum outro mundo que se esconde por detrás destes olhos. Sim, fascinante, é o que ela é... "

Agitou‑se. Não há nada como uma pessoa refugiar‑se na grosseria quando se sente idiota diante dum ser do outro sexo: ora bem, e então? Tem maminhas, pernas, coxas e o resto, exactamente como todas as miúdas! De certeza que é boa na cama... Elevou um pouco a voz.

‑ Não posso aceitar o que acaba de dizer. Voltemos à questão: mais uma vez esperam de mim uma absoluta franqueza. Pois bem! Duvido das melhoras da senhora Doerinck. Digo que é impossível.

‑ já não tem nenhuma perda de sangue ‑ observou Doerinck que estava sentado muito direito na cadeira.

- É uma evolução que conhecemos muito bem: as pequenas hemorragias cessam e depois, bruscamente, há uma oclusão intestinal. E é o fim.


‑ Ninguém conhece o futuro com certeza ‑ disse Doerinck, sentenciosamente.

‑ Peço‑lhe, senhor Doerinck, não comecemos a falar com lugares‑comuns. - Abriu a pasta e tirou um grande sobrescrito. ‑ O estado da senhora Doerinck é muito mais grave do que pensam. Não viram estas radiografias nem esta isotopia, nem estes exames de laboratório. O que salta aos olhos quando os vemos é...

‑ Vi tudo isso. ‑ Uma vez mais, a voz de Corina cortava abruptamente o arrebatamento do professor. Tinha nos lábios um sorriso que ele achou extremamente impertinente. E acrescentou, sem abandonar uma calma quase insultuosa: ‑ Sei exactamente onde se localiza o carcinoma, sei onde é necessário agir e sei até onde ele se estende.

‑ Posso ver as radiografias?

‑ Não ‑ respondeu ela categoricamente.

Willbreit sentiu‑se invadir por uma raiva fria. O que se passava diante dos seus olhos era um crime, um crime cometido a sangue‑frio sobre uma mulher doente e incapaz de se defender.

‑ E porque não?

‑ Porque elas não existem, professor. Mas vi tudo isso com a ajuda das minhas mãos e posso provar‑lho.

Todos os que conheciam Willbreit teriam jurado que era impossível reduzi‑lo ao silêncio. No entanto, passaram vários segundos sem que ele conseguisse pronunciar palavra. E mais, tinha parado a meio dum gesto como paralisado. Finalmente, explodiu numa voz rouca:

‑ A quem... a quem é que quer fazer engolir uma coisa tão incrível? A mim? Meu Deus, mas ainda é mais perigosa do que eu pensava!

Corina inclinou‑se para trás no sofá. Nos seus jeans apertados e no pulóver que lhe modelava o peito, pareceu‑lhe de repente mais sexy do que nunca. Willbreit levantou os olhos para uma fotografia a cores que estava pendurada na parede mesmo por cima dela: os moinhos de vento do molhe de Rodes... Estremeceu. Corina estava a fazer‑lhe uma pergunta estranha:

‑ Já nos encontrámos, professor? ‑ perguntou‑lhe ela.

‑ Claro que não. A que propósito vem essa pergunta?

‑ Estaria pronto a confirmar diante de testemunhas que eu nunca o vi nu?

Ele estremeceu uma vez mais, indignado com o desaforo.

‑ Ora essa!

‑ E também que nunca vi nenhuma fotografia de si sem roupa?

‑ Mas o que é que isso quer dizer? Não compreendo de maneira nenhuma esta espécie de interrogatório...

‑ Pois bem, imagine, estou a vê‑lo nu... ‑ Tinha cruzado as mãos à altura do queixo e olhava fixamente para Willbreit, que, desarmado, esboçava uma espécie de sorriso simultaneamente superior e incomodado. ‑ No alto da coxa esquerda tem uma cicatriz com uma boa dezena de centímetros. Foi acidente? E por baixo do braço direito, tem outra cicatriz: não teria tido um abcesso no gânglio axilar?


Imóvel no seu cadeirão, Willbreit, estupefacto, sentiu de repente que as batidas do seu coração se aceleravam. Sim, há oito anos... em Itália. Na estrada de Sorrento, um carro viera embater de frente no dele. Tinham‑lhe cosido a parte de cima da coxa no hospital mais próximo. E com dezoito anos tivera de facto um abcesso no gânglio axilar de cuja cicatriz nem Lídia, a sua mulher, se tinha apercebido nunca.

‑ E se agora bebêssemos um conhaque ‑ propôs Doerinck com voz sumida. ‑ Antes de dizer seja o que for, professor, deixe‑me confessar que lhe dou razão: tudo isto é incompreensível! Eu mesmo não entendo o que se passa. Mas vivo com ela e ela está melhor. É assim... Agora, o que Corina lhe disse é exacto?

Para Willbreit, esta podia ser a grande viragem da sua vida. Ainda estava a tempo de aceitar os factos, mesmo se estes não concordavam com tudo o que aprendera, acreditara ou adorara! Porque será mais difícil renunciar a um falso deus do que a um verdadeiro? Talvez tenha sentido, por instantes, essa tentação. Mas, ao contrário, ao sair do torpor que o invadira, engoliu de uma vez o conhaque e os Doerinck tiveram a impressão de terem diante deles um animal que já não conseguia saber como é que se saía do canto em que se encontrava encurralado.

‑ Não está a pensar que me pode impressionar, a mim, com um truque destes! Um verdadeiro número de circo! Está a agir como uma irresponsável, minha senhora. Trata‑se da sua mãe, percebeu?

os grandes olhos negros de Corina não se afastavam dele e ele perdia cada vez mais o autocontrolo.

‑ Irresponsável, eu? Dentro de três semanas farei com que a minha mãe seja de novo radiografada e enviar‑lhe‑ei as radiografias. Já não verá nelas nenhum cancro.

‑ Como é que um homem como eu pode suportar calmamente tal insensatez! ‑ Tinha‑se levantado e, empurrando bruscamente o cadeirão, começara a espalhar sobre a mesa todas as radiografias, todos os exames médicos que trouxera, e pegava ao acaso em algumas radiografias que agitava por cima da cabeça sem se poder conter. ‑ Eis as provas! Vê aqui a doença com toda a clareza possível. E as suas provas, onde estão? Que pode pretender afirmar senão que se está aqui a

passar, por sua causa, algo que aos olhos de toda a gente não passa de um crime! ‑ Continuava a agitar no ar um molho de radiografias. Respirou profundamente para recuperar o fôlego, tirou de cima da mesa, com a mão esquerda, uma grande radiografia que elevou na direcção da luz do Sol que penetrava através da vidraça. ‑ Mas o que é que pode dizer contra isso? Meu Deus, assumo plenamente a responsabilidade do que vou dizer, mesmo que tenham de me pôr na rua depois de me escutarem: menina Doerinck, está a matar a sua mãe!

‑ É, com efeito, perfeitamente claro! ‑ disse Doerinck num tom glacial. Respirava pesadamente e continha a custo a cólera que sentia. Pusera o braço à volta da mulher, que, tremendo, procurava refúgio perto dele. ‑ O que acaba de fazer é indigno de um homem civilizado!

‑ Mas é a verdade ‑ bramia Willbreit, desenfreado. ‑ É a verdade nua e crua, tal como se apresenta. Nesta casa está‑se a matar uma mulher!

‑ E essa mulher, você pode salvá‑la? ‑ gritou por sua vez Doerinck.

‑ Não! já lhe disse!

‑ Então qual é a diferença?

Houve então um grande silêncio. Os dois homens olhavam‑se como dois pugilistas exaustos por baterem no ar sem nunca se atingirem, sem que jamais se pudesse chegar a um resultado.


‑ De qualquer maneira, sinto‑me bastante bem ‑ disse Ludmila.

Mas nem esta afirmação pôde perturbar o silêncio que se tinha estabelecido e no interior do qual ainda ressoavam as terríveis palavras de cada um deles. E, com efeito, onde estava a diferença? Morrer à mercê das mãos de Corina ou do escalpelo do cirurgião... Onde estava a diferença?

O professor Willbreit atirou as radiografias para cima da mesa e ajeitou a gravata, que a brusquidão dos seus movimentos pusera em desalinho. Pelo seu lado, Doerinck encheu quase completamente de conhaque o seu copo. Corina era a mais calma de todos. Continuando sentada, quase sem se mexer, tinha cruzado as pernas e acendido um cigarro.

‑ Porque não é mais tolerante, professor? ‑ perguntou ela.

‑ Tolerante? Como é que pode esperar de mim alguma tolerância quando a vejo substituir a medicina pela charlatanice? ‑ Os seus olhos fitaram Ludinila. Ela voltara a sentar‑se um pouco afastada, perto da mesa onde se encontravam os copos. "É horrível", pensou ele repentinamente. "Estamos a falar diante desta mulher. Que crueldade! Estamos a discutir a propósito da sua morte, zangamo‑nos por sua causa, trata‑se da sua própria vida e ela está aqui. Ninguém se preocupa com o que pode estar a sentir." ‑ Devo pedir‑lhe desculpa, minha senhora ‑ disse ele, procurando as palavras. ‑ Deixei‑me arrastar. Isto acontece‑me raras vezes, quase nunca até. Mas o que ouvi aqui é insuportável.

‑ Para que é que se deixa inchar de orgulho, professor? ‑ Corina tinha‑se levantado para se aproximar da mãe e beijá‑la. ‑ Porque é que o ensino clássico da medicina seria o único detentor da verdade? Crê verdadeiramente que a medicina, depois de Deus, é infalível?

‑ Só pretendo que é absurdo querer curar um cancro acariciando‑o.

‑ Eu não o acaricio. Seco‑o e ele enfraquece simplesmente porque o consigo secar.

‑ Por favor, pare com isso! Faz‑me arrepiar os cabelos ao lembrar‑me assim o mal que faz.

‑ Já curei três úlceras do estômago.

Willbreit sentiu quase dolorosamente o estremecimento que se apoderou dele.

‑ O que é que está a dizer? Tratou outros doentes além da sua mãe?

‑ Sim, clientes que vieram encomendar‑me tapetes.

‑ Não sabia em que é que trabalhava. Tudo isso é novo para mim. Mas como?

‑ Elas contaram‑me, cada uma por sua vez, que estavam a seguir um tratamento: pensos gástricos e medicamentos como o antacide, a dimetidina, o sucralfato, etc.

‑ Mas porque é que não acabou o curso de Medicina? ‑ interveio Willbreit ironicamente.


‑ Escondi o meu jogo a essas três mulheres. Não lhes disse o que fazia e elas não se aperceberam de nada. Enquanto folheavam os modelos de tapetes, pus as minhas mãos a alguma distância do seu estômago durante um minuto. De cada vez tiveram uma sensação de calor. Uma delas, por exemplo, até me perguntou se tinha ligado o aquecimento. Com o pretexto de lhes mostrar outros desenhos, fi‑las voltar várias vezes. E, uma após outra, todas me disseram, cheias de alegria, que a úlcera tinha desaparecido. Naturalmente, foi o médico respectivo que teve as honras da cura.

‑ O que era perfeitamente justo! ‑ explodiu Willbreit. ‑ A terapia clássica fez a sua obra e só você é que pôde acreditar que as suas momices tinham tido algum efeito sobre as úlceras! Tudo isso é absurdo, já lhe disse! ‑ Engoliu duma só vez o conhaque que Doerinck lhe tinha deitado e, a seguir, um pouco mais calmo, achou por bem fazer ironia. ‑ E consagrou‑se a outras tolices semelhantes)

‑ Sim, e veja só, professor, que obtive então o meu maior êxito: a cura de uma prostatite.

‑ É pura loucura!

Doerinck interveio. Tinha recuperado a calma e divertia‑se com os esforços quase desesperados que aquele homem estava a fazer, apesar de ser inteligente, a fim de negar em bloco tudo o que era contrário ao que ele pensava ser uma verdade absoluta.

‑ Trata‑se de um dos meus amigos, professor. E mais, de um colega seu! É o nosso médico de família, o doutor Hambach. O que acha disto?

‑ Nada.

O professor esfregou os olhos. "Nunca na minha vida me encontrei numa situação tão ridícula", dizia‑se ele. "Estão a dar‑me uma lição como a um rapazinho. Thomas Willbreit, já são horas de te levantares e de partires: tudo o que disseres aqui será em pura perda." Apesar de tudo, continuou sentado) olhando para os olhos negros de Corina.

‑ E naturalmente recusar‑se‑ia a fazer‑me uma demonstração do seu método de tratamento!

‑ E porque não? ‑ respondeu Corina tranquilamente. ‑ Como?

‑ Com a mãe, evidentemente. Vim cá hoje para prosseguir com o tratamento. ‑ Já tinha junto os seus longos dedos como se sentisse a necessidade de estabelecer um circuito que lhe permitisse carregar‑se com a energia necessária. ‑ Espero que não considere como indigno de si o facto de olhar simplesmente para mim. Não tenho nada a esconder, professor.

‑ O que se passa aqui é absolutamente incrível, repito! Mas, por favor, comece. Quero verificar até que ponto certas pessoas podem ser obstinadas! É a única razão pela qual ainda aqui estou.

‑ Então, acalme‑se!

A voz dela tornara‑se de repente tão firme que ele teve a impressão de receber uma pancada. Ela sentia‑se invadir por uma energia irresistível, por um fluxo de força que não sabia explicar. E pensava também: "Ele vai ver... Vou mostrar‑lhe. Vou mostrar‑lhe que há em nós e fora de nós esta força que eu possuo e que não tem nome... Vou... Vou... "

‑ Vem, matiuchka, e estende‑te aqui. ‑ Ternamente, pousou os lábios sobre a fronte da mãe. ‑ Hoje a sessão só durará três minutos.

‑ E porquê? ‑ perguntou o professor Willbreit, que lamentou imediatamente o facto de ter falado.

Ao conduzir a mãe para o sofá, Corina fixou os olhos dele.

‑ já nem são precisos três minutos, professor. A mãe está praticamente curada.


 

Quando o professor Willbreit partiu pela estrada de M'nster, Corina Doerinck tinha nele o seu mais irredutível inimigo.

Estava tão perturbado que, para se acalmar e deixar expandir a raiva que fervia nele, tomou em Nottuin a auto‑estrada, acendeu o pisca‑pisca e calcou a fundo o acelerador. O Maserati reagiu como um animal selvagem: com um salto para a frente e num rugido repentino do motor, projectou Willbreit a duzentos por hora na luz do crepúsculo. Foi a duzentos e quarenta por hora que ultrapassou conscientemente a saída de Senden. Willbreit abandonou‑se à embriaguez da velocidade e do domínio técnico. Tinha igualmente a impressão de ser dono de si e dos seus nervos, fosse em que circunstância fosse, e portanto, capaz de reagir tão rapidamente quanto fosse preciso em caso de necessidade, conduzindo a própria vida como conduzia agora o carro. Depois foi reduzindo a velocidade pouco a pouco até ao grande cruzamento de M'nster Sul. A partir daí, orgulhoso do domínio que tinha sobre si mesmo, conduziu de maneira razoável, prudentemente, seguindo a vaga dos carros que voltavam para a cidade ao tombar da noite. Não se conformava com aquele falhanço e repetia para si mesmo sem cessar, às vezes até em voz alta: "Que posso fazer agora? Ser‑me‑á possível deixar andar as coisas, deixar o destino seguir o seu curso, sem intervir, depois de tudo o que vi e ouvi? Tenho de me opor àquilo. Não posso contentar‑me com calar‑me quando uma rapariga qualquer pretende curar apenas com as mãos doenças dificilmente curáveis pelas melhores terapias existentes..." Na qualidade de médico, este caso incrível punha‑o diante dum caso de consciência que era, sem dúvida, o mais penoso da sua carreira.

Caso de consciência! A expressão agradava‑lhe! Tinha finalmente encontrado a expressão que procurava desde o princípio e que melhor exprimia os seus sentimentos. "Este caso apela para a minha consciência de médico, para as minhas obrigações éticas e convicção moral. Quando um médico vê o que eu vi deixa de poder continuar a viver sem tomar partido."

Um segundo choque tinha contribuído para que se sentisse ainda mais confuso. Ao sair da casa dos Doerinck, fizera um desvio à casa do Dr. Hambach, tendo ainda presentes no espírito os três intermináveis minutos durante os quais as mãos de Corina tinham ido e vindo por cima do corpo da mãe. Aquele espectáculo fora‑lhe insuportável. "Que falta de pudor!", pensara. No entanto, tinha‑se calado e mantido imóvel. Apenas se inclinara para a frente uma única vez, prestes a dar um salto, quando ouvira Ludinila suspirar profundamente, de olhos fechados, e murmurando numa voz cansada: "Hoje está particularmente quente... mas é tão bom, Cora, tão bom... faz‑me tanto bem..."


Tudo aquilo era uma fantochada! E o pai, aquele imbecil, afogara então a emoção num quinto copo de conhaque! Quanto a ele, não tinha ficado impressionado. Isso ninguém podia dizer! A verdade é que se sentira gelado de horror ao pensar em todo o mal que aquela bruxa poderia fazer com as suas mãos se, por acaso, o rumor daquelas "curas miraculosas" se espalhasse na região. Assistir‑se‑ia a uma epidemia de histerismo semelhante às de que havia tantos exemplos na história. Lembrava‑se do que se passara com certos fazedores de milagres: um queria curar todas as doenças com bolinhas de estanho! Outro suspendia um fuso de ferro no sítio onde o doente sentia uma dor qualquer. Existira no Sul da Alemanha uma mulher que fabricava uma bebida maravilhosa que vendia depois em garrafas e cuja utilização regular curava todas as espécies de males: esta bebida vinda do céu compunha‑se, segundo a análise química, de água, de extracto de turfa, de greda e de sumo de limão. Mas houve um camponês que inventou a mais agradável de todas as terapias: pretendia receber do outro mundo, cada noite, numa espécie de transe, ordens e prescrições médicas. A receita comportava um medicamento de base: fazer amor com ele. Para estas copulações tinha criado um nome novo: "Comunicação plasmática biológica", apelação desprovida de qualquer sentido real, mas que não tinha impedido as mulheres de se inscreverem numa longa lista de espera para receberem, depois de um prazo que ia até três semanas, a "irradiação biogenética" que as curava de todos os males. Ao fim de algum tempo estes foguetes molhados falhavam e deixava‑se de falar neles, a não ser nos tribunais, onde a acusação pública estabelecia a impostura destes taumaturgos.

Willbreit não tinha podido deixar de rir da terapia por copulação, que conseguia, com efeito, fazer desaparecer doenças de origem puramente histérica. Nada é mais espantoso, mais insólito ou mais misterioso do que o pensamento humano, a menos que se considerasse, como o seu amigo Erasmus Roemer, que o exprimia de maneira brutal, que os médicos teriam muito menos que fazer se entre os homens não houvesse tantos preguiçosos sexuais! "E mais são para um ser do sexo masculino levantar a camisa e baixar as calças do que engolir centenas de pílulas."

Tudo coincidia, tudo tinha uma explicação racional, até mesmo a cura das três úlceras de estômago que Corina Doerinck pretendia ter sarado com a irradiação das suas mãos. Mas a história do Dr. Hambach situava‑se para lá do horizonte da medicina. Willbreit também quisera esclarecer o seu caso.

O Dr. Hambach pensou primeiro que se encontrava diante dum novo paciente que se apresentava fora das horas de consulta, mas já estava habituado a esse inconveniente desde há trinta e seis anos. Tinha uma clientela muito espalhada e havia camponeses que vinham de longe para o ver, não por Hellenbrand ficar mais próxima do que Billerbeck ou Havixbeck, mas porque o Dr. Hambach lhes falava em baixo‑alemão da Vestefália e sabia lidar com eles. Nenhum se ofendia quando lhes dizia em dialecto: "Sabes de onde é que vem o teu mal, tiozinho? Tens apenas o papo enladeirado..." O camponês percebia imediatamente e abandonava durante uns tempos a garrafa de aguardente no fundo do aparador. Todos iam com facilidade a Havixbeck ou a Billerbeck para fazer uma radiografia, para tratamentos ortopédicos, etc., mas, de qualquer maneira, gostavam de fazer primeiro um desvio para verem o médico da sua localidade, o Dr. Hambach. Para ele não havia nem sábados nem domingos. Fazia parte da vida deles tal como as batatas cosidas com a pele ou o queijo com cebolinho. A tal ponto que tinha acrescentado à casa mais um grande quarto frio, que ficava cheio de vitualhas a cada nova estação, pois para aquela gente o médico da família é sempre um dos beneficiários dos produtos da sua exploração.


O Dr. Hambach acolheu aquele que julgava ser um novo paciente à porta de entrada. Uma olhadela ao Maserati e ao fato elegante de Willbreit chegou para perceber que não teria de utilizar o seu dialecto de baixo‑alemão. "Um cliente de passagem", pensou. Desde há algum tempo estava na moda Procurar uma residência secundária na região. Os mais ávidos de ar puro eram naturalmente os habitantes desprotegidos do Rur.

Assim que chegaram ao grande salão de recepção, não perdeu tempo para fazer a pergunta habitual:

‑ De que é que sofre, então?

Pelo seu lado, Willbreit tinha notado a mediocridade das instalações e imaginado a da clientela: velhos camponeses, de certeza! O único aparelho novo era um amplificador dos sons do coração: tal como outros tantos toques de címbalos, Hambach fazia ouvir ao paciente intimidado as próprias batidas do coração. Este aparelho inspirava um grande respeito e muito entusiasmo na sua clientela.

‑ De nada ‑ respondeu Willbreit com um toque de arrogância.

‑ Melhor! ‑ replicou Hambach, indo sentar‑se atrás da sua velha secretária. ‑ É a única doença de muitos dos meus pacientes!

‑ O meu nome é Willbreit. Professor Willbreit. Segundo‑cirurgião em M'nster.

‑ Vejam só como podemos enganar‑nos! ‑ disse alegremente o Dr. Hambach saindo de trás da secretária para indicar ao professor um conjunto de cadeiras que se encontravam num canto. ‑ Sentemo‑nos, então. Posso oferecer‑lhe um copo de aguardente cá da terra?

‑ Não, obrigado. Tenho de voltar para M'nster esta noite e já absorvi álcool suficiente. Não desejo acabar na prisão e ter de me deslocar a pé durante alguns anos.

Pacientemente sentado num dos cadeirões de couro tão usados como o resto, Willbreit esperou que Hambach acabasse de encher um copo alto e estreito com aguardente branca.

- à sua saúde, caro colega ‑ disse Willbreit.

- Obrigado.

- Francamente, não quer provar? Está bem. Sabe o que é que um velho cavaleiro das estepes do Cazaquistão, ao qual se dava cento e quarenta e três anos, declarou ao jornalista que o estava a entrevistar? "Devo a minha idade avançada às minhas nove mulheres e aos meus cem centilitros quotidianos de aguardente." Só tive uma mulher, que, infelizmente, morreu há cinco anos, de maneira que tenho de me limitar ao álcool. ‑ Levantou o copo. ‑ Mais uma vez.

‑ Não me pergunta porque venho vê‑lo?

‑ Além de ter visto a sua assinatura no fim de várias publicações científicas, ouvi naturalmente falar de si a Ludinila Doerinck. É, portanto, lógico pensar que vem de casa dos Doerinck.

‑ Com efeito. Tive hoje oportunidade de ver a filha deles, Corina.

‑ Formidável, não é?

O Dr. Hambach sentara‑se em frente de Willbreit. Tinha conservado na mão a garrafa de aguardente e apoiou‑a sobre o joelho esquerdo, com ar absorto. Willbreit, confuso, mediu o seu confrade. Como deveria interpretar aquela apreciação?

‑ Formidável! Com efeito, pode dizê‑lo.

‑ Sim, verdadeiramente fenomenal.


‑ Formidável e fenomenal, mas em todo o caso criminosa!

O Dr. Hambach baixou a cabeça durante dois escassos segundos.

‑ Estava mesmo quase à espera disso da sua parte. "O que não deve ser não pode ser." É a filosofia do orgulho.

o arrebatamento de Willbreit era tal que nem apanhou a deixa. Tinha engolido tantos sapos desde o princípio da tarde que aquele deslizou por ele abaixo sem que desse por isso. Só pensava em esmagar os Doerinck e entretanto aquele medicozito de aldeia ousava opor‑se a ele. Foi num tom insolente que declarou:

‑ O que me interessa não é esse género de considerações. Até aqui nunca tinha ouvido falar numa prostatite de origem histérica. É um caso formidavelmente interessante, caro confrade. Não existe nada de semelhante em toda a literatura médica!

‑ Quer se deixe arrastar pela grosseria, quer tente conservar as boas maneiras, não conseguirá insultar‑me. Anotei num diário todos os pormenores daquilo a que chama o meu "caso", mas, dada a sua maneira de começar o debate, não lho mostrarei! Porquê? Porque não teria outra resposta a dar‑me senão sorrir ou perguntar‑me a idade ‑ sessenta e seis anos ‑ e afirmar que as minhas faculdades mentais estão enfraquecidas: talvez... aos sessenta e seis anos, as artérias do cérebro já não são o que foram. Mas o senhor é suficientemente equilibrado para admitir uma coisa: quando um homem tem uma vontade frequente e imperativa de urinar só deitando dificilmente algumas gotas, é porque há algo escondido, qualquer coisa de físico. E quando estes fenómenos resistem aos antibióticos...

‑ Mas não se pode curar uma prostatite por imposição das mãos! ‑ Quase gritava de excitação. ‑ Os medicamentos que tomou agiram com um certo atraso. Caro confrade, não deixe aquela rapariga transformá‑lo num... perdoe‑me... num papalvo!

‑ Viu a Ludmila?

‑ Evidentemente. Ajudou a filha a desempenhar a sua fantochada diante dos meus olhos!

‑ Uma mulher com um cancro no cólon tem aquele ar esplendoroso?

‑ Isso não quer dizer nada. Já vi na minha vida uma data de folgazões sofrendo duma doença mortal.

‑ Na próxima semana irei com Ludmila Doerinck a Billerbeck para a fazer radiografar pelo meu colega Meersniann e enviar‑lhe‑ei as radiografias.

‑ Proponho‑lhe outra coisa: voltamos a fazer‑lhe um exame completo no meu serviço.

‑ Combinado, para confirmação!

‑ A sua prudência, ou, antes, a sua desconfiança, quase apresenta sinais de paranóia.

‑ Aceito temporariamente o seu diagnóstico. Também lhe concedo o direito de me chamar velho louco se as novas radiografias mostrarem um agravamento do mal. Mas que me chamará se Ludinila Doerinck estiver curada?

‑ Desse ponto de vista estou absolutamente tranquilo, meu caro confrade, e digo‑lhe francamente ‑ mostrava‑se cada vez mais impertinente ‑ porque isso viria contradizer os nossos mais elementares conhecimentos médicos.

‑ Tem razão! É pura loucura.

‑ Está a ver!


‑ Mas só é loucura pura para nós porque nós não compreendemos. Porque não somos capazes de penetrar na dimensão donde provém essa força, essa emanação, essa radiação que cura.

‑ Força? Emanação? Radiação? ‑ perguntou Willbreit, acentuando cada sílaba.

‑ Tem outra explicação?

‑ Nem quero ter. Proíbo‑me mesmo de procurar uma. Para mim trata‑se de charlatanismo, dum regresso ao xamanismo.

‑ Não sabe como fala bem. ‑ Surpreendido, Willbreit viu‑o tirar a rolha da garrafa e servir‑se dum segundo copo de aguardente. ‑ Xamanismo! A propósito, sabia que o avô de Corina era médico?

‑ Foi o que vi nos papéis de identidade da senhora Doerinck. Pai: médico. Em qualquer parte da Rússia.

‑ Na Grusínia, no Cáucaso. Falou‑me dele. Os doentes faziam bicha diante da sua porta, passavam a noite no seu jardim para serem recebidos com prioridade. Devia ser assim uma coisa como Lourdes ou Fátima! Ora o que é que fazia o doutor Assanurian? Xamanismo! Eliminava as doenças por imposição das mãos.

Willbreit bateu com os punhos um no outro com ar horrorizado.

‑ Meu Deus! Não faltava senão essa! Espertalhona, a rapariga! Está a utilizar o golpe do avô!

‑ Com muito má vontade, é assim que se pode ver as coisas.

‑ E esse doutor Assanurian pôde comportar‑se assim na Rússia? Os sovietes aguentaram essa fantochada?

‑ Os altos funcionários entravam na sua casa pela porta de trás e terá mesmo curado os males crónicos de dois ministros da Grusínia. Até obteve uma alta distinção: a condecoração dos cuidados médicos. E depois, em 1945, exilaram‑no na Sibéria...

‑ Ah! Ah!

‑ Não há razão nenhuma para fazer "á! ah!". Foi banido porque a sua filha Ludmila tinha desaparecido através do campo com um oficial alemão, Stefan Doerinck. O doutor Assanurian viveu até à morte em Tiumen, exilado mas com liberdade de trabalho e gestos. Voltou a haver uma multidão que vinha de todas as partes para se fazer tratar por ele.

‑ Por imposição das mãos na mesma...

‑ Pois é! E não morreu de doença. Foi morto por um marido ciumento. Tratava uma mulher que tinha uma inflamação da bexiga e esta cometeu o erro de confiar ao marido que sentia uma sensação maravilhosa quando o médico parava as mãos entre as suas coxas. Deve ter‑se explicado mal, pois o homem precipitou‑se para abater o médico com três balas no peito. ‑ O Dr. Hambach fez uma careta irónica. ‑ Acidente de trabalho. Aquele siberiano devia ser tão incrédulo como o senhor.

A partir dali a conversa foi encurtada. Willbreit mostrou mesmo assim as radiografias que trazia na pasta ‑ provas irrefutáveis, disse ele ‑ e a seguir achou que já era altura de partir. Este médico de aldeia, com a sua clientela de camponeses, era o representante‑tipo dos que negligenciam uma reciclagem profissional e também havia casos desses entre os médicos; felizmente, o seu número era reduzido.

Willbreit despedira‑se dele muito friamente e, ao afastar‑se, viu o Dr. Hambach pelo retrovisor. Estava de pé diante da entrada e seguia‑o com os olhos, pensativamente.


"Que velho imbecil! Faltava, de facto, uma disposição no Código Civil: devia tirar‑se a autorização para trabalhar aos médicos que ultrapassassem uma certa idade. Aos cinquenta e cinco anos, um piloto da aviação civil tem de abandonar o serviço. Trata‑se de uma precaução a favor dos passageiros. Ora ele conhecia em M'nster um cirurgião que continuava a Operar com mais de oitenta anos. Indiscutivelmente, isso representava um perigo, não para ele, mas para os doentes."

Willbreit tinha acabado de fazer um balanço quando chegou aos subúrbios de M'nster. Deixou a auto‑estrada, tomou a direcção de Hilltrup e, a seguir, a de Angelmodde. Penetrou em Enunerbach, região idílica, onde o seu amigo Erasmus Roemer tinha construído uma moradia. Era uma casa de sonho. Só o telhado de colmo inflamável devia ter custado mais do que uma fileira de casas correntes. Mas ele podia dar‑se a esse luxo: prevendo o futuro, casara‑se com a filha dum fabricante orgulhoso de ter um genro doutorado em Direito, apesar de a bulimia e a eterna sede de Erasmus poderem incomodar um homem normal.

Willbreit olhou para o relógio depois de ter arrumado o carro diante da moradia do juiz e hesitou um instante: não era falta de educação chegar assim, mesmo a casa dum amigo, à hora do jantar? Mas tinha de desabafar. Precisava de um alívio qualquer. E com quem o poderia fazer senão com Erasmus Roemer, que era capaz de ouvir tudo pacientemente?

‑ Não é possível! A tua mulher pôs‑te na rua!

Roemer tinha desatado a rir pesadamente. Estava contente de o ver, pois achava‑se sozinho em casa. A sua mulher, Elise ‑ "ela chama‑se Elise", explicava ele sarcasticamente a toda a gente, "porque a mãe, que tinha a pretensão de tocar piano, não conseguiu aprender mais do que uma única peça na sua vida: a Carta a Elise, de Beethoven. Por isso, deu o nome de Elise à filha!" ‑, encontrava‑se a passar alguns dias em Badgastein, onde a sua irmã estava a tratar uma crise de reumatismo. Já tinha reflectido sobre o lugar onde podia ir fazer uma comezaina e decidira‑se pelo Waldhotel Krautkramer, na margem do Hiltruper See. Entusiasmava‑se com tanta antecedência com o Borgonha que ia acompanhar uns costados de anho uniformemente mal passados, que beijou Willbreit à entrada da porta, quase o esmagando contra o seu dorso maciço.

‑ Thomas, é o céu que te envia. A melhor refeição do mundo parece não ter sabor quando se está sozinho para a saborear... Elise está na áustria e vamos, portanto, poder atacar juntos uns costados de anho, ou seja, quatro quilos duma carne deliciosa! A caminho! Vamos ao Krautkramer!

‑ Estou com problemas ‑ respondeu Willbreit com ar lúgubre ‑ e não tenho absolutamente fome nenhuma. Não sabes que só a gentalha é que tem fome? A ralé é que se empanzina. ‑ Declamava como se estivesse num palco de teatro. ‑ Nós só nos alimentamos por dever, para provar. Nunca temos fome, portanto. Provamos garfada atrás de garfada, golo atrás de golo, etc. ‑ Puxou Willbreit para o interior e fechou atrás de si a pesada porta de carvalho, fazendo‑a bater. ‑ Problemas? Com Lydia? Anda com alguém, como se diz?

‑ O que é que estás para aí a dizer?

‑ Não teria nada de extraordinário, meu caro. Nunca estás em casa! Estás sempre na clínica! E quando ficas em casa vais e vens com os olhos pesados de sono e declaras: estou cansado...

‑ Gostava de te ver no meu lugar: em pé durante horas diante duma mesa de operações!


‑ E Lydia parece não ter ainda passado dos trinta. É uma mulher jovem que deve ter frequentemente...

‑ Cala‑te, Erasmus! Trata‑se duma rapariga...

‑ Meu Deus, em casa a mulher pode pensar que ele traz eternamente um cinto de castidade debaixo das calças do pijama e, fora, passa duma cama para a outra gritando "iupi". Trata‑se de algo de sério, Thomas?

‑ sim.

‑ Uma separação? Sobretudo não faças esse disparate! A Lydia tem um certo poder...

‑ É um problema médico.

‑ Ah! Ah! Ainda é virgem e estás preocupado com a responsabilidade dum gentleman perante uma defloração? Mas trata‑se dum serviço que lhe prestas, meu caro.

‑ Idiota! ‑ Ao ver o bar imenso que ocupava um canto inteiro do hall de entrada, acrescentou: ‑ Dá‑me mas é uma vodca com laranja... Imagina que dei com uma curandeira...

O riso estrondoso de Roemer fez vibrar docemente o aplique de cristal que se encontrava atrás dele.

‑ Vejamos, o que se passa? ‑ Estavam agora sentados na biblioteca a beber a vodca. ‑ Uma curandeira acaba de te provar que não passas dum burro do ponto de vista médico. É isso? Estavas lá, viste‑a e não entendeste nada, Thomas! Eu também não percebi nada quando as verrugas da minha avó desapareceram. Mas as mulheres têm uma vantagem em relação a nós: têm em cada seio uma verruga, maior ou menor, que não se lhes consegue tirar. Pelo contrário, quando lhas acariciamos...

‑ Não estou nada com vontade de suportar as tuas ordinarices. Assim que acabar de beber vou‑me embora. ‑ Sentia‑se, de facto, à beira duma crise de nervos. ‑ Tinha pensado que se podia falar seriamente contigo.

‑ A razão necessita também duma base sólida, e essa base Krautkramer pode fornecer um prato. quando tenho fome, só penso em comer, como um animal. É depois da primeira garrafa de Borgonha que começo a reflectir. Mas é horrível o cheiro que tens a aguardente! Thomas, o teu dia foi assim tão terrível?

‑ Insuportável...

Willbreit suspirou profundamente. Roemer, depois daquela entrada, voltava a ser um homem normal.

‑ Só consigo interrogar‑me, Erasmus, e sempre sobre o mesmo assunto: do ponto de vista jurídico, o que é que se pode fazer contra uma mulher destas?

‑ Nada. A não ser que leve dinheiro pelos tratamentos que faz.

‑ Além da mãe, ela tratou outras mulheres. Três clientes do seu atelier de tecelagem de tapetes.

‑ Ela tece tapetes? Meu Deus, lembra‑te de que ter dedos ágeis é o melhor prelúdio para o amor!

‑ Erasmus, vou‑me embora!

‑ Essas três clientes pediram‑lhe que as tratasse?

‑ Não. Nem se aperceberam de nada.

Roemer olhou para Willbreit de soslaio.

‑ Quantos copos de schnaps é que bebeste, Thomas?

‑ Só de as ver, diagnosticou que tinham uma úlcera de estômago e, de cada vez, fez desaparecer a úlcera acariciando o corpo da cliente.


‑ Thomas, não estás bom, bebeste! Quando uma mão de mulher me acaricia, sinto‑o de tal maneira que aumento ainda mais de volume. Está bem dito, não está?

‑ Ela mantém as mãos à distância de dez centímetros do corpo, sem lhe tocar.

‑ Isso é pouco interessante do ponto de vista erótico.

‑ Diz que consegue sarar as úlceras e que estas se encolhem...

‑ Exactamente ao contrário do que me acontece a mim quando me acariciam...

‑ Será possível falarmos seriamente e ficarmo‑nos pelos factos?

Furioso, levantara‑se de um salto e encontrava‑se pronto a ir‑se embora.

‑ Sim, no Krautkramer, a seguir à minha sopa de trufas, vou captar‑te em todos os comprimentos de onda que desejares.

‑ E ela pretende estar a curar a mãe dum cancro no intestino grosso com este sistema. Eu vi tudo.

‑ E depois de teres visto tudo, o que é que fizeram em conjunto? Isso é que me interessa.

‑ Adeus, Erasmus! Come e enche a pança de vinho até rebentares!

Dirigia‑se para a porta, ao passo que Roemer continuava a perorar num tom sentencioso.

‑ A falta de humor do mundo moderno é terrível. Thomas, vem sentar‑te aqui. Vou ser paciente e escutar‑te. Um juiz deve frequentemente ter mais paciência do que um médico, que, como tu, persevera muitas vezes no erro. Um dia, um anarquista, que compareceu diante de mim, deu bruscamente um salto, tirou as calças num instante e depositou em cima da mesa um enorme cagalhão. Nunca te fizeram isso, hem?

Willbreit, contrariado, voltara a sentar‑se no grande cadeirão perto da chaminé, em frente ao amigo.

‑ Não existirá no meio das tuas leis um parágrafo que permita atacar e sancionar aquele que se opõe a um acto médico absolutamente indispensável?

‑ Suponho que a mãe recebe de bom grado as carícias aéreas da filha?

‑ sim.

‑ Nesse caso, não há nada a fazer, Thomas. Desde que uma pessoa não provoque nenhum escândalo público, pode fazer o que quiser dentro das suas quatro paredes. A única coisa que poderia dar o direito a alguém de intervir é o facto de eu me querer matar ou mutilar‑me, mas ainda assim teria de se assegurar primeiro de que eu o queria fazer.

‑ Mas é quase esse o caso, Erasmus.

‑ Não é, não!

‑ É, sim! Com as suas palhaçadas aquela rapariga está a matar a mãe, e eu sou testemunha.

‑ Mas a mãe crê estar a melhorar, aí é que está o busilis! Ela não tem minimamente a intenção de morrer, ela quer viver!

‑ Mas vai morrer!

‑ Prova‑o, então. Estabelece, sem falhas, que a rapariga está a cometer um acto criminoso com conhecimento de causa. Com premeditação, para empregar o nosso calão jurídico. Encontrei‑me uma vez diante dum caso de extrema violência.

Willbreit estava cada vez mais desesperado.

‑ Peço‑te, Erasmus, não mudes de conversa! Trata‑se dum caso que me perturba mais do que podes imaginar. Poderia dizer: "Porque é que me hei‑de interessar por um caso de cancro? já vi centenas deles... "


‑ E é o que te aconselho que faças, Thomas.

Suspirando, Roemer conseguiu arrancar‑se às profundezas do cadeirão. Levantar aqueles cento e vinte e cinco quilos de tão baixo constituía de cada vez um esforço considerável. Aquelas poltronas, que eram tão agradáveis quando se estava enfiado nelas, mereciam todos os nomes que lhes chamava de cada vez que tinha de se arrancar delas.

‑ Deixa então de lado essa doente; de todas as maneiras, não lhe podes mandar a conta, não é verdade?

‑ Tens uma moral de hipopótamo.

‑ Apanhaste‑me! Como acontece com um hipopótamo esfomeado, sobem‑me as lágrimas aos olhos. ‑ De pé, enorme, pendia na direcção de Willbreit, que, abatido, já não se mexia. ‑ Feitas as contas, se só isso te preocupa, levas uma vida paradisíaca.

‑ Queria que fosses comigo a Hellenbrand e visses a rapariga.

‑ Eu? Meu Deus! Também queres que me deixe acariciar? Isso poderia ter consequências vulcânicas.

- Devias vê‑la, Erasmus.

- É bonita?

- Se é!

- Loura?

- Tem os cabelos cor de corvo. É quase do tipo eurasiático. A mãe é originária do Cáucaso...

Roemer interrompeu‑o para entoar com a sua voz de baixo:

- No Cáucaso havia um macaco que comia nozes. No Cáucaso havia uma rapariga que gostava muito de nozes...

- Sabes como é que isto acaba, hem, Thomas?

- Acompanho‑te até ao Krautkramer ‑ disse Willbreit, resignado. ‑ Lamento verdadeiramente ter vindo ver‑te... E a tua mulher, quando é que volta?

‑ És um amigo da onça, Thomas! Eu aqui a sonhar com um jantar de seis serviços e tu vens‑me falar da minha mulher! Têm razão os que dizem que um cirurgião não tem alma. à força de mexerem em carnes podres corrompem para sempre o que têm de bom.

Durante o trajecto até Hilltrup, não voltaram a falar de curandeiras. Roemer tinha‑se lançado numa série de histórias picantes que o chefe da brigada de costumes lhe confiara há pouco, sem que Willbreit conseguisse rir francamente como era costume. No hall do Waldhotel, o Sr. Krautkramer pai acolheu com dignidade o cliente de marca que era o presidente do tribunal de 1.a instância da região e ele mesmo os conduziu até uma mesa particularmente bem colocada e abrigada. Roemer tinha decididamente direito a todas as atenções, não só como magistrado mas como rei dos comilões.

‑ Quais são as delícias do dia, caro senhor Krautkramer? ‑ perguntou com a sua voz tonante. ‑ E depressa, que o primeiro serviço venha até nós!

Krautkramer conhecia de longa data o lirismo com o qual Roemer abria as "hostilidades gastronómicas". Fazendo um largo sorriso, contentou‑se em responder:

‑ Peço‑lhe, por favor, senhor presidente, deixe‑se surpreender! Permitem que lhes componha eu mesmo o jantar?

‑ Faço minhas as suas palavras. ‑ Olhou para todos os lados à sua volta antes de exclamar: ‑ Mas onde é que está a Luisa?

‑ Está com parte de doente durante uma semana, senhor presidente; está à espera de bebé.


‑ Mais um milagre! E, no entanto, nunca fiz mais do que dar‑lhe uma palmada nas nádegas. ‑ Depois, desatando a rir estrondosamente, o que fazia agitar os seus cento e vinte e cinco quilos, olhou para Willbreit com ar piedoso. ‑ Thomas, mais uma contrariedade para ti! Um caso incompreensível: uma fecundação telegénica! Ah! Ah! Ah!

Estava a estourar de felicidade e de prazer, a tal ponto que se engasgou e se pôs a tossir ruidosamente. Willbreit teve vontade de voltar para casa.

Mas a sopa de trufas era verdadeiramente uma delícia.

Roemer começou a sorver e a cheirar, sempre da mesma maneira ruidosa e, a seguir, com a cara transfigurada, endireitou‑se um instante, com a colher na mão, a olhar para Willbreit com os olhos turvos de emoção e uma voz repentinamente muito calorosa.

‑ E agora, meu caro e velho amigo, falemos: fica combinado que te vou acompanhar a casa dessa rapariga sensacional. ‑ Levou à boca uma colher de sopa, saboreou‑a, engoliu‑a e levantou os olhos para o céu, acrescentando: ‑ E deixar‑me‑ei acariciar onde ela quiser.

 

Ludmila Doerinck deslocou‑se a Billerbeck para se fazer radiografar pelo Dr. Meersmann. Encontrava‑se no carro com o marido e a filha e o Dr. Hambach seguia‑os no seu velho Volkswagen.

Hambach tinha informado o Dr. Meersmann pelo telefone que lhe levava uma paciente, sem entrar em pormenores: era a mulher dum velho amigo. Queria verificar o estado do seu intestino grosso, assim como o dos órgãos mais próximos.

‑ Suspeita de alguma coisa? ‑ perguntara Meersmann.

‑ Não ‑ respondeu Hambach, dando‑se perfeitamente conta de quanto arriscava com aquele firme "não" no caso de as radiografias revelarem um cancro do cólon.

O seu colega Meersmann poderia admirar‑se e pensar que o pobre Hambach estava a ficar, de facto, um pouco velho e que devia evitar cansar‑se demasiado. Mas, por outro lado, a missão dum radiologista é confirmar ou desmentir um diagnóstico e eliminar todas as dúvidas possíveis.

‑ Trata‑se de tranquilizar a paciente ‑ acrescentou o Dr. Hambach (o que, no fundo, era verdade... ). ‑ Sabe como é: uma pequena perda de sangue é suficiente para que uma mulher fique logo a imaginar o pior. Só acredita no que vir escrito, ou numa radiografia, preto no branco.

‑ É preciso prever tudo: se a imagem for positiva, o que devo fazer?

‑ Mostrar‑lha‑emos. A senhora Doerinck é capaz de suportar a verdade.

A assistente do Dr. Meersmann conduziu‑os a uma sala de espera especial. Pouco tempo depois, Ludmila procurou a mão de Corina e enterrou‑lhe as pontas dos dedos na palma da mão.

‑ Tenho medo. Estão todos tão silenciosos.

O Dr. Hambach mudou de posição e mexeu os pés. Encontrava‑se pela primeira vez do mau lado da sala de espera e a impressão que sentia era muito diferente.

‑ Creio que sou o primeiro a ter medo ‑ disse numa voz rouca. ‑ E tu, Stefan?


Doerinck folheava nervosamente uma revista com três semanas. Isso também fazia parte dos mistérios da sala de espera dos médicos: só lá encontramos revistas dos meses anteriores ou então boletins de associações, clubes de golfe, etc. Os camponeses da região de M'nster não os liam, mas ficavam favoravelmente impressionados com eles: "Pois é, meu caro, é aqui que o nosso doutor joga golfe..."

Stefan Doerinck tinha a garganta seca, mas queria parecer impassível.

‑ Porque é que havemos de nos preocupar? Sabemos perfeitamente o que se passa.

O Dr. Hambach inclinou‑se para a frente.

‑ Stefan, é de Corina que se trata, é ela quem vai ser aqui julgada. Concordarás que vi muitas coisas na minha vida e que sempre mostrei uma certa coragem. Neste momento, tenho o coração tão apertado que até me magoa. Também é a mim que as radiografias vão julgar. Se não me opus a que Corina fizesse o que fez e se a defendi diante do professor Willbreit é porque acredito nesta força estranha... Hoje, já não se trata só de crer; hoje vamos ver!

Corina era a única que mantinha a calma.

‑ A mãe está curada. ‑ Lançou na direcção da mãe uma piscadela de olho cúmplice e cheia de confiança. ‑ já não sinto nada, nenhuma resistência na ponta dos dedos. Asseguro‑vos que o inimigo desapareceu.

O Dr. Hambach levantou‑se. O seu nervosismo fazia pena.

‑ Mas o que é que o Meersmann está a fazer? A consulta era para as dez e agora são precisamente dez horas.

Continuou no seu vaivém, leu o aviso "Distribuição de atestados médicos até às 10 horas" e parou diante de um quadro que representava uma vaca a pastar num prado alpino. "Que parvoíce", pensou. "É horrível. Onde é que o Meersmann encontrou este horror? Talvez seja o presente de um dos seus clientes."

Há coisas extraordinárias entre os presentes que os doentes oferecem ao médico. Um paciente reconhecido tinha levado um dia ao próprio Hambach uma pata de veado embalsamada, na ponta da qual vinha fixado um saca‑rolhas. Mas tinha pensado atingir o apogeu do horror quando um certo Hudding lhe entregara, obedecendo ao desejo expresso da avó, o bacio de que esta se tinha servido até morrer: era algo de horroroso, de porcelana pintalgada, decorada com pequenas rosas e com duas asas que pareciam colunas clássicas. Tinha confiado imediatamente o objecto a uma sala de vendas em leilão de Colónia, unicamente com o intuito de aborrecer o pregoeiro que era seu conhecido. Três meses depois recebera um cheque de quatro mil e quinhentos marcos. O objecto era um bacio precioso da época napoleónica, quando o irmão do imperador tinha sido rei da Vestefália. Um dos mais raros bacios existentes! Desde então, o Dr. Hambach tinha‑se tornado prudente e deixara de olhar com maus olhos para os presentes que lhe ofereciam. Diz‑se que nas velhas quintas da província de M'nster ainda há tesouros escondidos.

Finalmente, o Dr. Meersmann apareceu. Era um trintão cheio de vigor, desportivo, levemente bronzeado e jogador apaixonado de golfe com um handicap de dez. As suas instalações eram muito modernas e, cada vez mais, os clientes do campo convergiam para o seu consultório em vez de se deslocarem a M'nster.

‑ Estou ao vosso dispor! ‑ disse ele num tom desenvolto.


Depois dos apertos de mão, a sua assistente conduziu Ludmila à cabina para se despir e a seguir a pesada porta voltou a fechar‑se com um barulho seco de sucção. Doerinck e Corina ficaram sós.

O Dr. Hambach tinha seguido o seu colega.

‑ Se não se importasse, gostaria de assistir.

A porta de comunicação estava aberta e, do gabinete onde se encontrava, antevia na sala vizinha uma enorme instalação com todos os aparelhos e a grande mesa rotativa.

‑ Pelo contrário, vai poder ajudar‑me a dar o clister. Para o resto, ficará ao abrigo do chumbo. Há algum ponto que deseje analisar em particular?

‑ O terço superior direito do intestino grosso.

O Dr. Meersmann olhou para Hambach com ar interrogador.

‑ Porquê? Desconfia de alguma coisa?

Prudentemente, Hambach respondeu:

‑ Já não estou seguro de nada. De vez em quando a minha paciente sente dores indistintas nessa região.

‑ Nada mais fácil. A imagem aparecerá aqui e, se houver algo pouco nítido, poderemos observá‑lo em ponto maior. Dir‑me‑á o que lhe interessa especialmente quando chegar a altura.

Nua, muito bela, Ludmila saiu da cabina e Meersmann também não pôde deixar de pensar: será possível que esta mulher tenha sessenta e um anos? A seguir concentrou a atenção nos preparativos dos ângulos de visão, do clister, da posição de Ludmila e da mesa onde ela se deitara. Hambach ouviu‑o dizer num tom profissional:

‑ Por favor, estenda os braços para os lados. Esteja calma e não se mexa mais... Se ouvir alguns estalidos, trata‑se das mudanças de posição do comutador e não de um dos seus ossos a partir‑se...

Eram sempre as mesmas graças. Isso ajudava a pessoa examinada a esquecer as cãibras causadas pela imobilidade absoluta. Mas Ludmila já tinha feito várias radiografias em M'nster durante várias horas seguidas naquele dia fatal em que Willbreit lhe revelara a verdade. Nessa altura tinha passado de aparelho em aparelho enquanto se sucediam caldos, clisteres e injecções. No fim, Willbreit prevenira‑a: "Pode ser que não se sinta muito bem durante os próximos dois ou três dias, mas depois passa... "

A luz apagou‑se. No ecrã, o Dr. Hambach viu surgir nitidamente o segmento superior direito do intestino grosso.

‑ O campo de visão pode ser reduzido? ‑ perguntou o Dr. Hambach. Tinha a voz rouca, tensa, e o Dr. Meersmann, admirado, ouviu‑o murmurar: ‑ Meu Deus, será possível?

‑ Tanto quanto quiser! Posso aumentar cada centímetro quadrado.

‑ Obrigado. Faça‑o então, por favor.

Depois de dois ligeiros estalidos, surgiu na placa, aumentado, o sector crítico do intestino grosso. Lentamente, parando para cada centímetro, as imagens sucediam‑se. Ludmila quase não ousa respirar: no silêncio impressionante que se estabeleceu, ela sente subitamente muito frio.

‑ Pois bem, nada de especial, a não ser alguns pontos de cicatrização ‑ disse finalmente Meersmann.

Para Ludmila foi como se o silêncio tivesse explodido no seu cérebro. E Meersmann continuou sem se dar conta da tensão em que se encontravam os outros dois.

‑ Estas cicatrizes podem provir de uma antiga colite ulcerosa. Há algo do género na anamnese da senhora Doerinck?

‑ Não, absolutamente nada!


Ele mesmo se apercebeu de que a sua voz estava diferente: não tinha timbre. O sangue que se precipita nas suas artérias atordoa‑o. Tem a impressão de que um torno está a ser apertado à volta da sua cabeça. "É milagroso, é milagroso", pensa. Morde os lábios para reprimir o seu tremor, bloqueia os maxilares um contra o outro porque teme que os dentes comecem a bater. "Meu Deus, então os milagres são mesmo possíveis!"

‑ Podemos levar esta série?

‑ Com o meu aparelho posso fazer tudo. ‑ Depois de uma última manipulação, Meersmann dirige‑se de novo a Ludmila: ‑ Só mais alguns instantes de suplício. Continue completamente imóvel. Não respire... agora respire... E está terminado.

‑ Está... está satisfeito, doutor? ‑ gagueja Ludmila.

‑ Tal como está, vai certamente viver até aos cem anos...

- Deseja outra coisa, caro colega?

‑ Se for possível, uma segunda série de radiografias.

‑ De quais?

‑ De tudo o que vimos... desculpe.

Tudo volta ao princípio: a obrigação para Ludmila de ficar absolutamente imóvel, as palavras do Dr. Meersmann repetidas várias vezes: deixe de respirar... respire... e termina. A luz regressa. Os olhos do Dr. Hambach piscam, feridos pela súbita claridade. O seu rosto está vermelho como se fosse vítima de um ataque de febre e fica ainda um instante sentado na cadeira, olhando para o ecrã como se o aparelho lhe reservasse outras surpresas.

‑ Acabou o espectáculo, caro colega ‑ exclama alegremente Meersmann. ‑ Para ver o jogo de futebol é preciso mudar para o outro canal!

Ludmila volta à cabina. As suas pernas vacilam um pouco a cada passo. E se tudo não passasse de um sonho, perguntou‑se. Entretanto, o Dr. Hambach saíra da sua protecção de chumbo. E as radiografias saem pela fenda do aparelho, acumulando‑se. Examina‑as uma por uma, ainda incrédulo: é mesmo a curva do intestino grosso só com cicatrizes, mais nada. Sente a cabeça a andar à roda e tem de se sentar na primeira cadeira que encontra. Meersmann olha‑o com ar inquieto.

‑ Não se sente bem?

‑ Sinto‑me tão bem que até estou atordoado! ‑ Respira profundamente, várias vezes. Aquele momento de fraqueza passa depressa e o seu coração bate agora com mais força. ‑ Trouxe‑lhe uma coisa que gostaria de lhe mostrar: são radiografias.

‑ Passemos então ao meu gabinete.

É uma grande sala moderna em que uma parede inteira está ocupada por um ecrã luminoso diante do qual Meersmann prende as radiografias que o colega lhe estende. Assim que lhes deita a primeira olhadela, volta‑se para Hambach dizendo simplesmente:

‑ Ai, aiii!

‑ Então?

‑ É outro doente seu? Ele está ao corrente?

‑ Disseram‑lhe tudo.

‑ Horrível! E como é que encarou a coisa?

‑ De maneira admirável. Qual é a sua opinião?

‑ Aqui entre nós, não há nada a fazer. De onde vêm estas radiografias?

‑ Da clínica de M'nster.


‑ O doente ainda lá está?

‑ Não, preferiu tratar‑se em casa.

Meersmann levanta os ombros com ar impotente.

‑ E agora é você o responsável...

Hambach volta a pegar nas radiografias e põe‑nas no sobrescrito.

O Dr. Meersmann não voltaria a ver Ludmila Doerinck. Ela fora ao encontro do marido e da filha e, esquecendo tudo, tinham‑se precipitado para o carro, completamente embasbacados. Um pouco melindrado, Meersmann apertou a mão a Hambach.

‑ Cumprimentos à senhora Doerinck. Gostaria de lhe ter dito algumas palavras para a tranquilizar completamente.

Na rua, o velho médico vê os Doerinck. Sentados no carro, estão a chorar, como Hambach pode verificar através do vidro. Corina enlaça a mãe, cuja cabeça repousa no seu peito. Stefan Doerinck, ao volante, olha fixamente para a frente através do pára‑brisas, enquanto as lágrimas lhe sulcam silenciosamente as faces.

Hambach abre a porta do lado de Corina.

‑ Vocês são um bocado esquisitos! Enfiam‑se num cantinho para melhor poderem chorar em família! Mas hoje é dia de festa, por Deus!

Apesar de desejar que a sua voz saísse segura e zangada, ele está radiante. Doerinck esfrega os olhos e a cara com um lenço.

‑ Tens razão! Vamos então festejar a Weissenburg! Mas olha que um homem tem direito a ter uma pequena fraqueza ao menos uma vez na vida. ‑ Engolindo um último soluço, agarra no volante com as duas mãos. ‑ É verdade, reservei uma mesa em Weissenburg. De qualquer maneira tería ido lá... Pararemos no café que fica em frente da catedral. Tenho a garganta seca e preciso de beber uma caneca dupla de cerveja!

- Vão parar de chorar? É que, senão, eu também me ponho a chorar. Estas choradelas são insuportáveis!

Volta a fechar a porta do carro e dirige‑se ao seu carro.

Mas quando chega ao café, afasta‑se dos Doerinck sob pretexto de ir à casa de banho e dirige‑se à cabina telefónica para telefonar ao professor Willbreit. Era impossível apanhá‑lo. Desde as sete da manhã que se encontrava na sala de operações. Ora já são mais de dezassete horas. O Dr. Hambach sente‑se cheio de estima por aquele que o insultou. Pouco seria necessário para que lhe fosse simpático, pensa ele. Mas tem uma vingança à espera.

‑ Diga ao professor Willbreit que o doutor Hambach, de Hellenbrandt, telefonou. Sim, ele conhece o meu nome. E diga‑lhe que o convido a ir ver‑me. Isso bastará. O professor está à espera da minha comunicação.

Desliga e fica a olhar por um instante a parede da cabina sem a ver realmente, perguntando‑se se agiu correctamente. Podem trocar impressões. E não lhe prometeu ele que lhe mostraria as radiografias de Meersmann, quaisquer que fossem os resultados? Tem de manter a palavra dada. Qual vai ser a reacção de um homem tão cheio de si mesmo? Reconhecerá a sua falta de razão?

Volta à sala onde os Doerinck esperam, agarra na sua caneca de cerveja e esvazia‑a de um trago sem voltar a tomar fôlego: é um velho truque de cocheiro vestefaliano!


‑ Tinha de o fazer ‑ disse sem se explicar. ‑ Sem isso, teria explodido sob a pressão que sentia. Meus caros amigos, vivemos hoje um dia como jamais voltaremos a conhecer no futuro!

Foi no domingo seguinte que o professor Willbreit visitou o Dr. Hambach. Nunca mais deveria esquecer aquele dia.

Levava com ele Erasmus Roemer, doutorado em Direito, presidente do tribunal de 10 instância de M'nster. Tinham efectuado o trajecto no enorme carro do magistrado, que se recusara categoricamente a subir para o Maserati: em sua opinião, demasiado perto do chão e demasiado longe do sol.

‑ Não! ‑ tinha ele gritado. ‑ Nunca entrarei aí dentro. Não sou um homem‑serpente! E como é que faria para sair? Quem conseguiria apartar‑me os membros? E quem me garante que depois de uma compressão tão excessiva, os meus cordões espermáticos não ficarão definitivamente esmagados?

Discutir, para quê?, pensou Willbreit. Aceitou sentar‑se ao lado de Roemer e fechou imediatamente os olhos. Sabia que o mais alto magistrado da região conduzia como um criminoso, mas, mais uma vez, ia escapar milagrosamente a todos os acidentes. Assim que as rodas começaram a deslizar, Roemer deu início ao seu discurso característico.

- Dirijamo‑nos, pois, a casa desse médico cuja gaita estava fora de uso e que a princesa Corina desentupiu sem precisar de soprar nela, bastando apenas fazer‑lhe algumas das suas carícias aéreas! Estou com curiosidade de ver esse velho jarreta.

‑ Por favor, Erasmus, sê menos inconveniente ‑ disse Willbreit num tom verdadeiramente implorador.

‑ Sabes, por acaso, a quem admoestas dessa maneira? Sou um fidalgo da mais nobre extracção. A propósito, também vamos ver a miúda?

‑ A miúda tem trinta anos.

‑ É a idade das divindades femininas. A seguir já não envelhecem mais. E, segundo o que me disseste, ela trabalha. É tecelã? Ali, a propósito, conheces esta? Uma rapariga encontra uma amiga: "Conheci um tipo formidável. É tecelão." ‑ "O que é isso?", pergunta a outra. "Não sei, mas, pelo sim, pelo não, vou‑me lavar muito bem lavada em todos os lados. Nunca se sabe..."

Willbreit começava já a arrepender‑se do seu convite. Mas já era tarde de mais. Aliás, não será "tarde de mais" o motivo de todos os arrependimentos?

Ao ver Roemer e Willbreit sair do carro, o Dr. Hambach foi ao seu encontro. O facto de Willbreit vir acompanhado por uma espécie de monstro marinho não lhe agradou nada. Se se trata de um médico, deve assustar todos os doentes. Mas Willbreit apresentou‑o imediatamente.

‑ Apresento‑lhe o meu amigo Erasmus Roemer, doutorado em Direito e presidente do tribunal de U instância de M'nster. Espero que não fique incomodado por lhe ter pedido que me acompanhasse.

‑ De maneira nenhuma ‑ disse Hambach, estendendo a mão ao colosso, que, encontrando‑se com plácida disposição, teve o cuidado de lha não esmagar na sua.

‑ Sirvo‑lhes um schnaps cá da terra à laia de boas‑vindas? ‑ propôs Hambach. ‑ É o que eu chamo a bebida de despedida do cavaleiro.

‑ Mas ao contrário ‑ declarou Roemer ‑, e como diziam os nossos antepassados: "Bebe um copo depois de uma noite de amor ‑ e verás como amanhece o dia."


‑ Também se diz: "Bebe um copo se tens problemas ‑ e dormirás toda a noite", retorquiu Hambach a rir.

A cara de Roemer iluminou‑se. Achava decididamente que aquele velho médico era muito simpático.

‑ Bravo, doutor! Que quer? Não somos nós um povo de poetas e de pensadores?

Entrou à frente dos outros na sala de estar do médico, achou os móveis e a atmosfera a seu gosto, nada do falso luxo frio e monumental da sua moradia, e continuou a ignorar Willbreit, que tossia e lhe batia nas costas para o fazer calar.

‑ Invejo‑o, doutor Hambach.

‑ Porquê?

‑ Porque vejo que consegue viver de acordo com os seus gostos. Tenho a certeza que não possui nenhum desses pretensos amigos que exigem que lhes imitemos as manias. Que venha então esse copo! Acho o tempo particularmente seco hoje. "A secura, a secura, não há nada pior para uma mulher..." Podia ser de Goethe, não podia? à Bíblia e a Goethe pode‑se sempre atribuir tudo sem correr riscos, visto lá encontrarmos tudo.

Hambach dirigiu‑se imediatamente à cozinha para ir buscar ao frigorífico a garrafa de schnaps e os três copos gelados. Ainda não se tinham sentado quando beberam um primeiro copo, fazendo uma saúde à alemã. "Isto escorrega mesmo!", rugiu Roemer. Willbreit sentiu uma vergonha que, previu, não o abandonaria mais. Só que Roemer era um amigo tão sólido que se podia construir um arranha‑céus em cima dele. Finalmente sentaram‑se. Roemer fê‑lo com a maior prudência, já que a vetustez das poltronas de couro lhe não inspirava muita confiança.

‑ A minha secretária transmitiu‑me o seu convite. O estado da senhora Doerinck sofreu modificações?

‑ Com efeito ‑ disse Hambach.

Não tinha vontade alguma de enganar Willbreit, mas como este não lhe deu tempo para prosseguir, reagindo logo com um ar claramente triunfal, o velho médico decidiu deixá‑lo espalhar‑se à vontade.

‑ No entanto, eu exprimira‑me muito claramente. O desenlace seria fatal. E hoje já é tarde para operar!

‑ Pois, já nem se pensa nisso.

‑ É um caso verdadeiramente trágico. ‑ Mas apesar destas palavras, tinha cruzado as mãos sobre a barriga sem conseguir dissimular o contentamento que sentia em relação a si mesmo. ‑ E como é que a filha encara esta evolução?

‑ A bem dizer, não conseguimos evitar as lágrimas, inclusive eu ‑ disse perfidamente o velho médico.

Viu que Roemer se preparava para intervir com uma luz estranha nos olhos de velho paquiderme. Como a maior parte dos homens demasiado gordos, este jurista devia ser extremamente vivo e já pressentira a armadilha. Mas o olhar de Willbreit fê‑lo parar imediatamente, e contentou‑se com dizer:

‑ Devem ter ficado satisfeitos?

‑ No entanto, era mais que previsível! ‑ exclamou Willbreit, que se empertigava cada vez mais. ‑ Era previsível!


‑ Para nós, a evolução foi, apesar de tudo, inesperada. ‑ Vendo que Roemer batia no seu copo vazio, parou para o encher, recebendo como agradecimento uma rosnadela afectuosa. ‑ Não, não era previsível. Ninguém tinha imaginado tal golpe de teatro, nem Stefan Doerinck, nem eu, talvez nem mesmo Corina. Fomos incapazes de nos dominarmos.

Que curiosa maneira de se exprimir, pensou Willbreit. De qualquer modo, cada um deve ter reconhecido que se enganara, e agora é demasiado tarde. Cometeram um verdadeiro crime em relação à doente e agora é que se apercebem disso. Mesmo assim, fica bem a este velho médico reconhecer os seus erros desta maneira.

‑ Será possível visitar a senhora Doerinck?

‑ Mas é claro, poderemos dar um salto a casa dela assim que quiser.

‑ A gatinha das carícias também lá vai estar? ‑ perguntou Roemer, para indignação de Willbreit.

Mas Hambach desatou a rir francamente.

‑ A gatinha das carícias também lá estará. Afinal, trata‑se da personagem principal!

Willbreit esperou que o seu amigo parasse com os suspiros de satisfação com que acompanhava o esvaziar do copo, para declarar gravemente:

‑ O caso da senhora Doerinck preocupou‑me tanto, e segui‑o de tão perto, que o considero quase como um problema pessoal.

‑ Acredito plenamente, professor.

‑ Não foi por acaso que pedi ao presidente Roemer que me acompanhasse. Na minha opinião, deve‑se estudar do ponto de vista jurídico as consequências de um caso destes.

Erasmus quase cacarejava ao limpar a boca.

‑ Vamo‑nos exprimir claramente: o meu nobre amigo Willbreit quer proibir as pessoas de se deixarem acariciar com fins medicinais... É proibido tocar nos animais destinados às experiências científicas, nem que seja só com os dedos! Explique‑me, doutor, como é que o passarinho sai da máquina. Apesar do que Thomas me contou, não consigo imaginar bem a coisa: a sua jovem estende as mãos e mantém‑nas a uma certa distância de uma pessoa e manipula, como se fosse com um ferro de engomar, o ar que se encontra entre as suas mãos e a pessoa. É isso?

O Dr. Hambach abanou a cabeça.

‑ Não exactamente. ‑ Roemer, apesar da sua grosseria e da sua lascívia, agradava‑lhe. Era o género de homem com o qual se podia falar sem rodeios. Talvez levasse a vida pouco a sério porque a passagem pelos tribunais lhe mostrara frequentemente as faces de sombra do ser humano. ‑ Ela emite através das mãos uma energia que nós ainda não explorámos. Esta energia penetra no corpo do paciente e age sobre a sua estrutura biológica. Foi o que ficou estabelecido pela cibernética biológica: com os detectores de campos de forças, os especialistas conseguiram medir, e até tornar visível, a intensidade dum campo de radiações a que alguns chamam bioplasma e se concentra nas células. E esse campo provoca a esse nível, não se sabe como, os processos biológicos. O domínio de aplicação desta terapia estende‑se a certas doenças e sobretudo às inflamações e modificações celulares.

Roemer expirou ruidosamente através das narinas.

‑ Ufa! Como é que quer que um pobre cérebro de jurista como o meu consiga seguir a sua explicação? Diz‑se sempre que o vocabulário jurídico é uma algaraviada para os profalios, mas então o que é que se há‑de dizer do dos médicos! Ah, estes médicos! Percebeste alguma coisa, Thomas?


Willbreit, com um ar superior, cruzou as pernas antes de responder.

‑ Percebi. O que o meu colega Hambach acaba de explicar diz respeito a um dos campos‑fronteiras da ciência, a uma doutrina que se baseia mais em hipóteses do que em provas ou em factos. A bioenergia! Mas de que é que se trata no fim de contas? Do ponto de vista das nossas faculdades, é uma palavra inventada para agrupar certos fenómenos, mais nada. Partamos, portanto, da realidade. Voltemos ao caso que nos interessa. Estamos perante um cancro do cólon. Estava mais do que seguro de que a Sra. Doerinck tinha um cancro. Num caso destes, se o cancro não estiver ainda demasiado avançado, tem de se operar. Se a operação é impossível, resta‑nos o tratamento próprio do estado terminal, isto é, lançarmo‑nos num combate contra o sofrimento até que o doente venha a falecer o mais tranquilamente possível. No caso contrário, a uma operação bem sucedida segue‑se um tratamento radiactivo e às vezes também uma quimioterapia.

‑ E são essas as fronteiras da medicina oficial ‑ declarou tranquilamente Hambach.

Willbreit olhou‑o sem dissimular o seu descontentamento.

‑ Tudo tem limites. Senão, seríamos imortais...

‑ Acha inimaginável a existência duma emanação biológica, de um campo de forças de bioplasma que seca e aniquila as células doentes, impedindo a degenerescência dos tecidos e restabelecendo o seu equilíbrio celular?

Willbreit fez um sorriso de troça.

‑ Absolutamente impossível. O próprio Deus capitularia perante um caso destes.

‑ Também pode acontecer que o homem não tenha compreendido que Deus lhe deu mais poder do que ele pensa.

‑ Então, apesar da catástrofe de que a senhora Doerinck foi vítima, ainda conserva a sua simpatia para com tais fantasias?

‑ Justamente por causa do seu caso.

Tinha chegado o momento esperado por Hambach. Dirigiu‑se à secretária e pegou nas radiografias que lá deixara preparadas. Willbreit levantou fortemente as sobrancelhas, enquanto Roemer, conservando ainda o mesmo brilho singular nos olhos, coçava pensativamente a cana do nariz: que raça esta a dos médicos! No decurso dos processos, os especialistas defrontam‑se cada um servindo‑se de elementos contraditórios. Mas em medicina, como é possível que, para o mesmo mal, dois médicos dêem diagnósticos ou prognósticos absolutamente diferentes? E então com os psiquiatras, a tinta nunca mais parava de correr! Quando Roemer ouvia os argumentos deles perguntava‑se, por vezes, se ele próprio não estava a ficar completamente idiota, talvez por uma espécie de osmose! Pior ainda eram os processos em que tinha de julgar um erro cirúrgico. Com o seu temperamento excessivo, acontecia‑lhe jurar a si mesmo que jamais se deixaria operar. Até uma vez dissera ao seu amigo Willbreit: "Quando se imagina tudo o que pode acontecer durante uma intervenção cirúrgica, é de se ficar horrorizado! Talvez vocês sejam artistas à vossa maneira! Mas o doente que entra no hospital por causa de uma hérnia inguinal e acorda sem testículos, não consegue achar graça nenhuma a isso... "


Entretanto, Hambach tinha‑se aproximado da janela e examinava uma das radiografias ao sol, sem dizer palavra. Willbreit levantou‑se e a seguir foi a vez de Roemer, que conseguiu pôr‑se de pé, ofegando, após alguns estalidos queixosos da sua poltrona.

‑ Esta radiografia provém da sua clínica. Reconhece‑a, doutor?

‑ Claro! É o carcinoma do cólon da senhora Doerinck!

‑ Que emblema de mortalidade ‑ disse Roemer tossicando.

‑ E também conhece esta?

‑ Também.

Era um ângulo de visão ligeiramente diferente. A seguir apareceu uma terceira radiografia que Hambach levantou na direcção da luz, tal como fizera com as precedentes. Willbreit, surpreendido, esticou a cabeça. Depois voltou‑se para Hambach.

‑ Deve ter misturado as radiografias de doentes diferentes: este cólon está perfeitamente são...

‑ Era o que lhe queria ouvir dizer. ‑ Hambach passou a radiografia a Roemer e este limitou‑se a achá‑la diferente das precedentes. ‑ Com efeito ‑ disse Hambach ‑, trata‑se do cólon da senhora Doerinck após o tratamento bioenergético que a sua filha Corina lhe dispensou com as mãos...

Willbreit deu um salto para a frente. Arrancou violentamente a radiografia das mãos de Roemer e chegou‑se mais para a janela a fim de a estudar longamente ao sol, meneando a cabeça desde o primeiro instante.

‑ É uma brincadeira ou, então, trata‑se de prestidigitação!

‑ Não sou da sua opinião ‑ disse secamente o Dr. Hambach.

‑ Mas é impossível! Se se tratasse verdadeiramente do intestino da senhora Doerinck, então...

A sua voz tinha‑se levantado e estava a tornar‑se aguda e insuportável.

- Então, professor?...

‑ Não, a medicina tem bases sólidas.

‑ É verdade, mas há tantas coisas que são possíveis em medicina e de que nem sequer suspeitamos. A medicina está cheia de mistérios e de coisas ainda inconcebíveis. Tem aí a prova na extremidade dos seus dedos, em pleno sol.

‑ Não creia que desejo rebaixá‑lo, a si ou ao nosso colega que tirou estas radiografias, mas pretendo radiografar a senhora Doerinck de novo no meu serviço... Deve haver um engano qualquer!

‑ Se a senhora Doerinck consentir, por mim estou de acordo. Naturalmente só ela poderá decidir.

Willbreit baixou lentamente o braço.

‑ Quando é que podemos ir a casa dela?

‑ Imediatamente. Vou só telefonar a preveni‑la da nossa chegada.

Enquanto Hambach falava ao telefone com Stefan Doerinck, Willbreit voltou a pegar na radiografia e examinou‑a uma vez mais. Nada! A não ser marcas recentes de cicatrização. Incrível. Não, era impossível! Queriam divertir‑se à sua custa!

Roemer tinha‑se posto atrás do amigo para também poder contemplar a radiografia e Willbreit ouviu‑o murmurar na sua nuca:

‑ Conheces a história do homem que urinou para cima dos pés e que disse, admirado: "Mas está a chover..." Sentes‑te um bocado como ele, não é, Thomas? Tive medo por ti desde o princípio...


‑ É uma coisa impossível, uma farsa preparada, uma armadilha! Se fosse verdade, seria uma inversão total de tudo

que sabemos. Isto contradiria todas as leis da medicina!

‑ Mas, apesar de tudo, não pode mesmo ser possível? Nós não conhecemos tudo...

‑ Não! Tudo menos isso! E ainda menos assim, só com as mãos! Recuso‑me a aceitar seja o que for que vá nesse sentido...

Voltou‑se. Hambach estava de volta.

‑ Esperam‑nos. E a Ludinila está disposta a deixar‑se examinar por si...

Para Willbreit a boa vontade de Ludinila constituía uma afronta mais a engolir, o que acabou por fazer sem protestar, para grande surpresa de Roemer. Sem uma palavra, estendeu a Roemer a radiografia que lhe queimava a mão! Roemer levantou os ombros.

‑ Então, não percamos mais tempo a não ser o indispensável para beber o copo de despedida do cavaleiro! Para ti, Thomas, serão dois copos, um para cada estribo. Precisas deles para te recompores...

‑ Não quero nada!

Furioso, abriu bruscamente a porta, chegou ao vestíbulo antes dos outros e ficou à espera. Roemer reteve Hambach pelo braço para lhe confiar em voz baixa:

‑ Acaba de lhe tirar a fé na medicina e isso é grave... Não há mesmo nenhuma mistificação nisso tudo? Isto fica entre nós e falo‑lhe na qualidade de jurista: isso estaria muito perto da vigarice. Por outro lado, se se trata duma brincadeira, ela é bem boa!

Hambach olhou‑o gravemente.

‑ É a pura verdade... Mas eu também não consigo explicar...

Dez minutos mais tarde, pararam diante da vivenda dos Doerinck. Stefan, que se encontrava cá fora no pequeno jardim que dava para a rua, viu logo à primeira olhadela que Willbreit não vinha como amigo mas como inimigo. Em contrapartida, o colosso que vinha ao seu lado apresentou‑se sorrindo amavelmente. Corina recebeu‑os à entrada. Roemer não conseguiu deixar de murmurar um "Bom Deus!" que ela talvez não tenha ouvido e, depois de lhe fazer um beija‑mão como mandam as regras, fixou nela o olhar, com ar radiante, sem largar a mão que lhe estendera, e declarou:

‑ Devo ser um médio muito ordinário: é que não sinto as suas emanações da cabeça até às pontas dos pés.

Corina olhou‑o em silêncio durante alguns segundos. A matéria dos seus olhos parecia ter‑se transformado em vidro. Lentamente, ela retirou a mão da pata de Roemer. "Que mulher!", pensou ele. "Uma criatura assim até desperta os mortos! Felizmente que ela não pode ler os meus pensamentos..."

‑ É amigo do professor Willbreit? ‑ perguntou ela subitamente.

Roemer não era homem para dissimular o entusiasmo que ela lhe inspirava.

‑ Sou um velho amigo dele! E visto ele me ter permitido conhecê‑la, ficar‑lhe‑ei grato até ao fim dos meus dias!

‑ Não será por muito tempo...

No silêncio que se fez subitamente, teve a impressão de que os seus olhos não podiam afastar‑se dos de Corina e logo a seguir sentiu uma espécie de corrente de força indescritível a penetrá‑lo. Um calor benfazejo espalhava‑se‑lhe pelo corpo, por todos os membros.


‑ Porque é que o seu amigo Willbreit não o preveniu de que só lhe resta um ano de vida?...


 

Um filósofo, ou seja, um pensador que desenvolve em teoria uma vida diferente da que o destino lhe atribui, disse um dia: "Um homem é um homem se, no momento em que deixa esta vida, levantar o copo e fizer um último discurso." Eis uma frase que encerra uma atitude cheia de energia: heróica e radiosa como um gládio a brilhar ao sol.

Observando‑o deste ângulo, Erasmus Roemer não se mostrou nem herói nem mesmo homem. As palavras que Corina acabara de pronunciar sem a mínima excitação, tão calmamente, cortaram‑lhe primeiro a respiração durante dois ou três segundos. O seu olhar, como o duma criança indefesa, saltou do seu amigo Willbreit para o Dr. Hambach. Mas como não encontrasse neles nenhum socorro, pois estavam ambos tão estupefactos e mudos como ele, acabou por conseguir pronunciar com uma voz branda:

‑ Mas vejamos... isso não tem pés nem cabeça... Naturalmente, não tem pés nem cabeça. Minha senhora, eis‑me de joelhos perante si, reconheço‑o. Pôs‑me knock‑out logo à chegada!

Engoliu várias vezes a saliva, respirou ruidosamente para se recompor, e desejoso de confirmar que estava tudo bem com ele, pôs‑se à escuta dos órgãos vitais do seu corpo. Ora, estava tudo bem como sempre! Os pulmões funcionavam normalmente, o coração batia como um metrónomo e as suas células cerebrais trabalhavam como sempre, visto que, quando o seu olhar voltou a fixar‑se em Corina, os sinais que elas lhe enviaram tomaram a forma dum velho ditado: "Se deitares a cabeça no seu almofadão, no dia seguinte pedirás perdão."

Mas também lhe parecia ouvir ressoar na cabeça a condenação proferida pela rapariga: "... Só um ano de vida... "

E, subitamente, invadiu‑o um medo paralisador. De novo voltou‑se para Willbreit, que, com a cara a arder, apoiava a pasta contra a perna.

‑ Thomas... Thomas...

Nem sequer se esforçava por lutar contra o tremor da voz. Mas Willbreit não lhe estava a prestar a mínima atenção e explodiu abruptamente.

‑ Depois de saber tudo o que se passa aqui, já esperava várias coisas. Mas mesmo assim ainda me admiro com a sua impertinência...

‑ Creio que faríamos melhor se entrássemos ‑ interrompeu Doerinck tentando sorrir amavelmente. ‑ A minha mulher fez um bolo, uma espécie de tarte de pêras, mas com uvas secas e mel: uma receita caucasiana...

‑ Vá para o diabo mais a sua tarte de pêras! ‑ resmungou Roemer. ‑ Os seus olhos traíam o pavor que sentia, tinha os lábios sem cor e a respiração arquejante. ‑ Atiram‑me à cara que sou um homem morto e no momento seguinte já me estão a oferecer uma tarte de pêras!

‑ Ainda não morreu... Dentro dum ano, talvez sim...

Tinha a impressão de que os olhos negros da rapariga se apoderavam dele da cabeça aos pés. Mas Willbreit, incontrolável, interrompera Corina com extrema violência.

‑ Ah, não! Vai calar‑se ou não? Não vale a pena encenar a mesma comédia à minha frente. Já estou farto desses truques. Tenho é vontade de me ir embora imediatamente.


‑ Ninguém o impede de o fazer ‑ respondeu Hambach friamente. ‑ Mas a pergunta que ocupa o nosso espírito, mesmo o do seu amigo, segundo creio, é o que é que o impede a si de levar a sério Corina Doerinck e o seu dom.

‑ A razão!

‑ Só isso?

O tom em que o Dr. Hambach fizera esta pergunta deixava transparecer a ironia, mas Willbreit continuava sob o efeito do choque terrível que tinha sofrido e o comentário sarcástico do seu colega pouco veio acrescentar ao furor frio que já sentia. Mas o que é que se podia esperar daquele medicozito de aldeia, prisioneiro do passado que parara a um nível de estudos que já tinha quase meio século e continuava a receitar o mesmo bálsamo de óxido de zinco, conhecido pelo nome de "pomada verde", para todas as erupções cutâneas, fossem elas quais fossem? Um tipo amável, sem préstimo nenhum, adorado pela sua clientela camponesa porque brincava com eles em dialecto, dizendo aos homens: "Diz‑me cá, quando preparaste o teu último chouriço de sangue puseste de lado algum toucinho para a tua chouriça?", e às mulheres idosas, dando‑lhes uma palmadinha nas nádegas cheias de pregas da idade: "Ah, Alma, devíamo‑nos ter encontrado há cinquenta anos!" E à força de rirem a bandeiras despregadas, os doentes já se sentem quase curados... Em medicina são possíveis tantas coisas...

Saiu daquele instante de torpor para declarar numa voz extremamente afectada:

‑ Dou‑me conta de que hoje será impossível ter aqui uma conversa com alguma utilidade. Nunca aqui teria vindo, doutor Doerinck, se a radiografia que me apresentaram não fosse mais do que duvidosa: o cólon que nela se vê nunca esteve doente...

‑ Mas eu estou‑me nas tintas para as tuas radiografias ‑ interrompeu‑o Roemer com voz forte. ‑ Doutor Doerinck, a sua mulher está curada. Todos o podemos verificar. Se Willbreit se recusa a acreditar nos seus olhos por causa de uma lacuna da sua ciência médica, pior para ele. Sim, apesar da medicina oficial, admito que as mãos da sua filha tenham sarado um cancro. Além disso, temos aqui as radiografias e elas são claríssimas. E fiquemos por aqui. Basta de discussões. Mas eis‑me a mim aqui, a quem acabam de dizer: "Dentro de um ano estarás a comer ervas debaixo da terra." E é isso que é importante a partir de agora, visto que a senhora Doerinck está curada! Acho que tenho o direito de ser informado!

‑ Vamo‑nos embora! ‑ disse Willbreit em voz alta.

‑ Não. Ficarei aqui colado enquanto não souber o que tenho. Se queres, volta para M'nster a pé! Vieste no meu carro e ele só arranca com a chave que está aqui no meu bolso.

‑ E se entrássemos? ‑ voltou a convidar Doerinck num tom conciliador. ‑ Não vão deixar mesmo assim de fazer as honras à tarte caucasiana da Ludinila...

‑ Apesar de estar a morrer, vamos a isso! ‑ disse Roemer.


Começou a andar na direcção da primeira porta que tinha ao alcance e, com a sua sorte habitual, entrou na sala de estar. Ludinila esperava, sentada no sofá e com as mãos cruzadas sobre a barriga. Trazia um vestido caucasiano bordado e, abaixo do cabelo apanhado ao alto, tinha a cara pintada. Ele pensou num icone precioso, numa imagem vinda de um país distante, numa personagem de Coppélia. Parou à porta e gaguejou uma desculpa. "Então é ela", pensou. "Formidável! Tem sessenta e um anos; portanto, como só tenho quarenta, podia ser minha mãe. Que beleza!" Sentia‑se cada vez menos à vontade. Entrou na sala inclinando‑se segunda vez.

‑ Erasmus Roemer... Encantado, minha senhora.

‑ Tem sempre essa voz de trovão? ‑ perguntou ela.

O seu sorriso era desanimante.

‑ A verdade é que a sua filha teve a amabilidade de me dizer que morrerei dentro de um ano...

‑ Se a minha filha lhe disse isso é porque lá tem as suas razões, pode crer...

A calma dela era tão impressionante que sentiu as pernas a fugirem‑lhe.

‑ Mas ela também lhe deve ter dito: "Vou curá‑lo."

‑ Não. De maneira nenhuma!

Não podia estar a limpar a cada momento o suor frio que lhe brilhava na testa e lhe espalhara pelo corpo uma humidade atroz.

‑ Então, tem de lho pedir ‑ disse ela.

Ofegante, ele deixou‑se cair numa poltrona, que, gemendo sob o seu peso, resistiu valorosamente.

‑ A sua casa é agradável ‑ teve por fim forças para dizer antes de esticar as pernas e de se inclinar para trás fechando os olhos para melhor poder respirar.

"O que é que devo fazer?", perguntava‑se. "Dar ouvidos ao meu amigo Willbreit, desatar a rir na cara desta tal Corina e chamar‑lhe louca e embusteira? Do ponto de vista jurídico, acho que ela é perigosa visto poder provocar nas pessoas doenças de coração que dêem cabo delas. Mas não há nenhuma lei que a impeça de me dizer: "Tens uma doença mortal!" Se acredito nela é porque, no fundo, não passo de um idiota. Mas, e se tenho de facto alguma coisa de que ninguém desconfiou e ainda menos eu? Se ela está a dizer a verdade, que devo fazer? Ela não me deu um abanão destes só para aborrecer o Thomas. Não, não pode ser tão filha da mãe... "

já todos tinham entrado na sala, Corina atrás dos outros.

‑ Creio que já é altura de ir buscar a tarte de pêras, mamuchka...

‑ Penso que não precisamos de nos sentar...

Willbreit estava disposto a mostrar‑se cada vez mais desagradável. Tinha avançado a passos rígidos na direcção de Ludinila para lhe apertar a mão. Os seus olhos experientes observaram o rosto de Ludmila por baixo da maquilhagem e não conseguiu deixar de abanar a cabeça: segundo a sua experiência médica, aquela mulher deveria estar na cama, embrutecida pelos mais fortes analgésicos existentes, esperando sem esperança um rápido fim. A mão dela estava fresca ao tocar: não tinha febre. E aquele rosto liso irradiava saúde...

‑ Como tem passado? ‑ acabou finalmente por dizer.

‑ Perfeitamente. Até andei ontem de bicicleta.

‑ O quê? De bicicleta?

‑ Sim. Fui daqui até Hopingen, regressando por Darfeld. Foi maravilhoso com o sol que estava. Fizemos um piquenique na relva: sanduíches de presunto, cerveja e schnaps, como de costume...

Seria possível? Willbreit sentiu que o seu sorriso começava a crispar‑se. Endireitou‑se.

‑ E depois? Quero dizer: depois dessa imprudência? Não sentiu nenhum peso?


‑ O Stefan quis convencer‑me de que tinha ziguezagueado duas ou três vezes no regresso, mas era só para se meter comigo... Chegou até a afirmar que os ciclistas pagam pesadas multas quando bebem de mais. É verdade, senhor presidente?

Willbreit impediu o amigo de responder, prosseguindo o seu interrogatório.

‑ E depois?

‑ Mais nada, a não ser que me estendi e que Corina me pôs em forma com as mãos.

‑ Não era nada necessário...

Corina acabara de se sentar ao lado da mãe. Que belo quadro, pensou Roemer, sentindo‑se cada vez mais miserável. Porque é que os pintores já não se interessam por temas tão harmoniosos como este? Porquê? Talvez porque já não acreditam na beleza? É kitsch, é cromo, é pintura lambuzada, diriam eles... Assim, nunca mais fixaram na tela ocasos, prados floridos ou a bruma matinal à entrada de uma floresta. Pintar isso, expô‑los‑ia à risada geral! Como se sente vontade de rir quando alguém nos diz: "Daqui a um ano, morrerás!"

‑ Foi simples precaução ‑ prosseguiu Corina. ‑ Não senti nada nas pontas dos dedos: nenhuma resistência, nenhum formigueiro, nenhum esticão... A mãe está totalmente curada!

O tom de Willbreit tornou‑se ainda mais acerbo. Continuou, ignorando Corina.

‑ Deu o seu consentimento para fazer um exame profundo na clínica da universidade, não é verdade, senhora Ludmila?

‑ Certamente.

‑ Mas, no entanto, com uma restrição.

‑ Como? Quer agora indicar‑me como é que devo examinar a sua mãe?

- Exactamente.

- É incrível!

- Pode fazer todos os exames que quiser e quantas vezes quiser, professor. Só não poderá fazer nenhuma biopsia!

‑ E porquê? Tem medo que nos dêmos conta de que, apesar das suas afirmações, os tecidos continuam doentes?

‑ Sabe perfeitamente o que eu receio: uma biopsia poderia reactivar o cólon que já está curado. Quieta non movere. Não há nada mais perigoso do que essas excisões. Sabe‑se hoje que podem provocar um cancro ou reactivá‑lo.

‑ Bravo! ‑ Era o Dr. Hambach. ‑ Tive na minha clientela dois casos de prostatite em que o carcinoma só apareceu a seguir a uma punção...

‑ Evidentemente, visto que tratou a sua com carícias aéreas! ‑ replicou Willbreit com ódio. ‑ Mas não vou insistir nesse ponto. A opção de um médico é livre. Renuncio a qualquer exame, mas permita‑me ao menos duvidar do que se passa aqui e farei o possível para acabar com tudo. Fui claro?

Roemer endireitou‑se.

- Foste tão claro que até me fizeste lembrar aquela do tipo que vai ao médico porque não consegue urinar. "Que idade tem?", perguntou o teu colega. "Setenta e sete anos", responde o doente. "Então não é para admirar: já urinou toda a urina da sua vida... "

Ninguém riu. A atmosfera, pelo contrário, ficou ainda mais pesada. Willbreit já não tinha nenhuma razão para se demorar. Dirigiu‑se para a porta para levar consigo Roemer.


- É possível arranjar um táxi? ‑ perguntou a Doerinck. ‑ Talvez Roemer queira ficar? O que eu não farei de maneira nenhuma...

‑ Tu também vais ficar ‑ disse Roemer com voz surda.

‑ Não. Renuncio ao teu carro e à tua companhia.

‑ Mas eu não renuncio ao médico que me tem seguido desde há anos. ‑ Roemer tinha voltado a endireitar‑se. Como se vê por esta última brincadeira, tinha recuperado quase totalmente o seu equilíbrio. Pouco a pouco, nascia nele a vontade de não aceitar a sua sorte sem lutar. ‑ Antes de ir‑me embora, quero saber porque é que só me resta um ano de vida. E se não mo disser, cara menina, não a quero ameaçar como o meu amigo Willbreit, que crê ser necessário pôr fim ao perigo que os seus actos podem constituir. Não, mas voltarei aqui a casa até obter uma explicação e, se por acaso me puser na rua, voltarei a entrar pela janela como Romeu, apesar da minha gordura! Quero saber o que tenho. Quero saber porque é que só tenho um ano de vida. Será que não tenho esse direito, ó meu Deus?... Atira‑me à cara...

‑ Tudo o que disseres será inútil. Anda, vamos embora. Esqueçamos tudo isto.

‑ Isso é exactamente o que o seu amigo não deve fazer, professor. Ele está muito doente!

Era Corina quem falava. Tinha‑se levantado, estava a aproximar‑se de Roemer, estendendo para ele as palmas das mãos e, como petrificado, o colosso não se mexeu mais. Olhava Para aquelas mãos tão finas que, a uma distância de dez centímetros, desciam dos seus ombros até às ancas e voltavam a subir um pouco mais... até pararem. O próprio Willbreit, Com os olhos fixos em Corina, ficara como que paralisado. Só Doerinck se deslocou para ir buscar a caixa de cigarros da filha que estava em cima do aparador: sabia que ela teria em breve necessidade de inalar o fumo açucarado daquele tabaco oriental. Ludinila cruzara as mãos como se fosse rezar.

A seguir a voz de Corina elevou‑se e tinha uma tonalidade estranha.

‑ Cianose... os seus lábios ficam frequentemente azuis e o seu rosto vermelho, não é verdade?

‑ Sobretudo quando bebo à vontade...

‑ E, de vez em quando, sente dores no alto e à direita da barriga. Aqui, exactamente.

Com o seu longo indicador apontava para um ponto preciso da sua barriga. Roemer, apesar de não sentir nenhuma dor, teve um movimento de recuo.

‑ É verdade ‑ confirmou ‑, mas é coisa de família. Tinha um tio em Ochtrup que morreu com noventa e seis anos, ao que parece com as artérias entupidas. Doía‑lhe frequentemente a barriga neste sítio e dizia‑nos de cada vez: "Meus meninos, cá estou de novo com um peido ambulante encalhado em má posição..." É o que me digo também quando me dói no mesmo sítio... Mas de que é que se trata, na sua opinião?

‑ É preciso que o seu amigo, o professor Willbreit, lhe faça um exame. A sua urina contém certamente uma eliminação excessiva de urobilina.

‑ Mas porque é que os médicos utilizam com os doentes um grego e um latim de cozinha? ‑ exclamou Roemer.

Voltara‑se para Willbreit com ar interrogador, mas a expressão do seu amigo, com os olhos semicerrados, impressionou‑o. Como continuava calado, foi o Dr. Hambach quem explicou em voz suave:


‑ Vem do fígado...

Imediatamente, Willbreit despertou. Quando falou, a sua voz deixava transparecer uma raiva contida: o médico de aldeia ousava falar na sua presença!

‑ Veremos isso amanhã, Erasmus. Mas agora não consigo suportar nem mais um instante esta atmosfera de circo!

Corina tinha dado um passo para trás. Com a cara quase escondida entre as mãos, olhava através dos dedos o gigante que não se tinha mexido.

‑ Ainda não tenho a certeza, mas creio que tem o que se chama um fígado cardíaco. ‑ Hesitou um longo momento, ganhando confiança. ‑ Sim, o seu sangue não corre normalmente. De momento ainda só tem ligeiros sintomas, mas, dentro de algum tempo, o seu estado vai agravar‑se.

A última palavra sobressaltou Roemer, que se conservou silencioso. É verdade que Willbreit lhe tinha frequentemente aconselhado a evitar os excessos, e ele respondera a rir: "Mais vale ter uma protuberância na barriga à força de beber do que uma nas costas à força de trabalhar." Mas mais uma vez, Willbreit levou tempo a reagir e a vir em socorro do amigo. De tal maneira que Roemer perguntou a Corina numa voz verdadeiramente infantil:

‑ Então, do seu ponto de vista, que é que se pode fazer?

Era demasiado para Willbreit, que explodiu.

‑ Primeiro, sair daqui e esquecer os disparates que acabas de ouvir. ‑ já se encontrava junto à porta e gritava. A etiqueta que ele tanto prezava, tinha desaparecido. E acrescentou: ‑ O que aqui se passa é criminoso, criminoso!

Doerinck interveio com toda a firmeza.

‑ Faria melhor se saísse, professor. Pensei que a sua visita daria azo a uma discussão interessante e razoável, mas enganei‑me! Porque é que não aceita que a minha mulher esteja curada?

‑ Nada do que aqui se passa é claro. ‑ já se encontrava a atravessar a porta, seguido por Doerinck e pelo Dr. Hambach. ‑ Além disso, a sua mulher renunciou aos meus serviços. Declino qualquer responsabilidade por aquilo que vai aqui passar‑se!

‑ Mas o que é que pode acontecer agora, tendo em conta a radiografia que viu? ‑ perguntou Hambach. ‑ Como poderemos deixar de agradecer a Deus a cura da senhora Ludmila?

‑ Deus nunca curou um só cancro que fosse. ‑ já estava lá fora. Como Doerinck o seguiu, voltou‑se para dizer num tom mais conciliador: ‑ Apesar de tudo, fico à vossa disposição. Penso que um dia terão necessidade de mim. Não hesitem em chamar‑me.

Doerinck acompanhou‑o até ao carro do amigo. No entanto, Roemer não estava minimamente na disposição de se ir juntar a ele. Não se tinha mexido do meio da sala de estar, como se fosse uma estátua de pedra, mas tinha a impressão de poder desintegrar‑se em poeira de um momento para o outro.

‑ Também pode acontecer que esteja enganada... Corina, o erro é humano, não é? "O homem engana‑se durante todo o tempo, em que vive... ou que luta", ou qualquer coisa parecida. É uma citação de Goethe ou de Schiller... De qualquer maneira, é de um deles! Então, também é verdade que a Corina se possa enganar, não é.


‑ É evidente que me posso enganar, mas... ‑ Aproximou de novo a mão do ventre de Roemer, que, ao fim dum instante, viu com estupefacção que ela começava a tremer. ‑ Sinto qualquer coisa aqui, algo de muito forte, de mais forte do que eu talvez, e que me resiste...

Ela fechara os olhos e inclinara a cabeça para trás. O seu rosto, de repente, já não tinha nada de humano, pensou, e reteve o fôlego. Ora, ele começava a sentir‑se invadir por um calor estranho.

‑ Sim, está cá, é o inimigo. E é ele que me está a atacar! É um combate entre nós, um combate. ‑ Deixou de resistir, subitamente, e abriu os olhos. Num segundo, parecia que se tinha esvaziado da sua força, como um corredor que tivesse chegado ao fim de uma corrida de fundo. Aspirou duas grandes baforadas do cigarro que acendera à pressa, às apalpadelas, e disse, finalmente: ‑ Tem de se deixar examinar imediatamente pelo professor Willbreit. ‑ E como Roemer continuava a olhar para ela, estupefacto, esboçou um sorriso de desculpas. ‑ Lamento que a sua visita tenha tomado esta feição inesperada. Mas tinha de o prevenir, não acha?

‑ Fez muito bem.

Apesar da grosseria que afectava, Roemer sabia ser um homem encantador. Beijou a mão de Ludmila, inclinou‑se diante de Corina e precipitou‑se para fora da sala. Sabia agora quase com certeza o que o esperava. No entanto, ao cruzar‑se com o Dr. Hambach na entrada, parou bruscamente.

‑ Então também acredita no que aquela adorável pitonisa anuncia?

‑ Acredito ‑ respondeu o Dr. Hambach com gravidade.

‑ E se a partir de agora levar a vida de um eremita: nada de álcool, nada de mulheres, nem de cigarros...

‑ Não posso fazer nenhum prognóstico sem me fundamentar num exame específico. E conseguiria de facto viver de maneira diferente?

Roemer enxugou o suor frio que ainda se lhe colava ao rosto com um lenço proporcional ao seu tamanho.

‑ Quem sabe? Até aqui, vivi segundo a seguinte palavra de ordem: Coitus, ergo sim. Mas agora estou com a corda na garganta, não é?

‑ O professor Willbreit dir‑lhe‑á francamente o que se passa quando o tiver examinado.

‑ Será que... será que Willbreit é de facto o médico que me convém?

‑ Quem tem de julgar é o senhor. A confiança que o doente tem no seu médico é a base do sucesso. Sem confiança, nada funciona. Os meus pacientes vêm ver‑me porque sou o amigo, o compincha, o irmão, o pai, o confessor, etc. Quando aqui estão, sentem‑se protegidos, dizem para consigo mesmos: "O nosso doutor vai‑me ajudar... É evidente que temos de morrer um dia, mas o nosso doutor pode protelar a data... "

Roemer estendeu‑lhe bruscamente a mão.

‑ Deve ser maravilhoso poder sentir tanta confiança. Eu não posso, doutor. Permite que o venha visitar depois de Willbreit me ter examinado?

‑ A minha porta está sempre aberta para si...


Doerinck estava apoiado a uma pereira no pequeno jardim que dava para a rua. Do outro lado do portão, Willbreit esperava impacientemente de pé, junto do carro do amigo. O portão que os separava impedia que pudessem trocar uma palavra, graças a Deus, pensou Willbreit... já se sentia suficientemente vexado. Ao passar diante de Doerinck, Roemer lançou‑lhe um "até à vista" sonoro.

‑ A sério? ‑ perguntou Doerinck com ar duvidoso.

Roemer parou imediatamente.

‑ Evidentemente! Não pensa que vou conseguir esquecer esta tarde! Vim cá para ver a sua filha, de quem me diziam maravilhas, com os meus próprios olhos. E o que é que acontece? Ela faz soar aos meus ouvidos todas as trombetas do Juízo Final! Não se pode considerar que isto seja normal. É evidente que voltarei!

Abriu a porta do carro e deixou‑se cair no banco, cujas molas reforçadas gemeram. Willbreit sentou‑se ao seu lado.

‑ Vê lá se te despachas! ‑ disse com ar embirrento.

‑ E de que maneira! ‑ replicou Roemer.

Carregou imediatamente a fundo no acelerador, o pesado carro deu uma espécie de salto para a frente, como por acção de uma catapulta, e Willbreit, que estava ainda só meio sentado, foi projectado para trás.

‑ Mas tu és doido! Será que, de facto, tenho de passar o dia todo com malucos?

‑ Vamos direitinho à clínica e vais‑me examinar imediatamente, quer lá estejam os outros especialistas (radiologista, urologista, etc.) ou não! Arranja‑te de maneira a mandá‑los vir todos! Trata‑se de uma urgência!

‑ Evidentemente que não. Pergunto a mim mesmo como é que pude suportar durante tanto tempo a insolência daquela estúpida. De qualquer modo, o que se passa na casa daquela gente é criminoso!

O carro tomou a auto‑estrada e aumentou ainda mais de velocidade.

‑ Vou apresentar uma queixa contra ela. Olha só como te desmoralizou completamente...

‑ E esperas que eu seja testemunha? Vais ficar admirado, Thomas, mas, de repente, o mundo inteiro parece‑me diferente: estes campos, estes jardins, estes carreiros de areia, estes grupos de árvores...

O Dr. Hambach ainda estava à porta de entrada da casa quando Doerinck subiu os degraus do patamar. Ambos abanaram a cabeça. A nuvem de pó que o carro de Roemer levantara ao arrancar ainda se dissipava lentamente.

‑ Viste aquilo, Ewald?... Willbreit quase caiu do assento!

‑ O caminho de regresso não vai ser divertido. Que dia para ele. ‑ Quando chegou à entrada, reteve Doerinck, que queria penetrar directamente na sala de estar. ‑ Mas há outra coisa que me preocupa. Tenho receio por Corina.

‑ Então e eu? ‑ Baixou a voz, pois a porta da sala estava só encostada. ‑ Na tua opinião, o que é que Willbreit pode fazer contra ela.)

‑ Nada. É suficientemente inteligente para admitir que é melhor não mexer no que é inexplicável. Mas Roemer, sozinho, é capaz de fazer tanto barulho como as trombetas de Jericó! O seu círculo de relações é muito extenso e comporta numerosos neuróticos cujas doenças constituem o seu tema principal de conversa. Receia que Hellenbrand se torne num lugar de peregrinação. Já o estou a ouvir: "Ela olhou‑me nos olhos e viu o meu fígado! Disse‑me: "Tem aí algo de mau!" É melhor ir ver isso, meu caro." Vão vir de todos os lados! Vai ser um horror!


‑ A Corina não os receberá!

‑ Vão fazer o cerco à tua casa como outrora os Turcos cercaram Viena! Não arredarão pé! E isso bastará para vos tornar a vida impossível! Viveste um quarto de século em Hellenbrand, mas ainda não conheces a gente que cá vive!

"O quê? Uma curandeira, uma bruxa, cá na terra?" Num só instante voltaremos à Idade Média. Oh! Não queimarão a tua filha! Mas farão tudo para que vocês saiam daqui e vão pô‑los de quarentena como se tivessem peste. Até aqui tens sido um professor considerado, mas a Ludinila nunca fez verdadeiramente parte deles. "Eis o que dá casar com uma russa", dirão, "uma pessoa torna‑se pai duma bruxa! E é a ele que confiamos os nossos filhos! Mas em que mundo vivemos?" Ainda nunca to disse, mas quando foste nomeado para Hellenbrand e se soube que a tua mulher era russa, houve uma comissão de pais que foi a M'nster para se queixar da tua nomeação.

Doerinck olhou‑o estupefacto.

‑ Não é possível! Toda a gente foi sempre tão amável comigo. Repetiram‑me de todas as maneiras que eu era o professor preferido deles...

‑ Primeiro, o que se diz diante das pessoas e por trás delas é tão diferente como duas botas de um mesmo par! A direcção do ensino de M'nster pôs rapidamente fim a essas recriminações e, de há vinte e cinco anos para cá, tudo correu da melhor maneira, é verdade. Mas a filha que o professor Doerinck teve daquela russa é uma feiticeira... Sim, tenho medo, Stefan.

‑ E se fosse falar com Roemer?

‑ O que é que lhe queres dizer? Que esqueça que só tem um ano de vida e que não leve a sério o que Corina lhe disse? Tu próprio como é que reagirias?

‑ Iria de médico para médico para comparar os respectivos diagnósticos.

‑ E é o que ele vai fazer e todos vão concordar: o seu caso é desesperado... Então, o que fará Roemer? Virá ver Corina de novo para lhe suplicar: "É a minha única esperança. Tente pelo menos curar‑me."

‑ Mas a própria Corina não poderá fazer nada por ele. Ela disse‑lho quase abertamente.

‑ Admitamos que ela o possa ajudar. Como, não sei, visto isso parecer estar fora de questão do ponto de vista médico. Mas admitamos por um instante que ela o possa fazer. Que se passará? Será o início da avalancha. Talvez haja no rio Xingu. um canto de floresta virgem onde Corina se possa esconder? Os indígenas talvez façam dela a sua deusa, mas o que é certo é que ela nunca mais terá um instante de calma num país civilizado.

‑ Mas porque é que lhe parece tão importante que eu viva na maior calma?

Hambach e Doerinck voltaram‑se, surpreendidos e um pouco incomodados. Por trás deles, saindo da cozinha, Corina trazia nas mãos um grande prato de vidro com a tarte de peras, cortada em fatias e exalando um embriagante cheiro a canela.

‑ Ouviste tudo, Cora? ‑ perguntou Stefan Doerinck.

‑ Desde há cerca de cinco minutos. Lamento, mas não estou nada de acordo convosco. O que é que eu fiz? Curei o cancro da mãe e a tua prostatite, tio Ewald. Agi mal? Porque devo esconder‑me?


‑ Por causa das pessoas, minha filha.

‑ Porque as posso curar?

‑ Desde quando é que sabes que tens esse dom, essa emanação? Comprei livros sobre o assunto, li‑os e não fiquei a saber mais do que sabia dantes. Desde quando é que te apercebeste disso, Cora?

‑ Desde sempre, pai. Quando era criança já sabia, ao ver uma pessoa qualquer, se ela estava doente, se tinha alguma coisa em algum lado. Quanto ao poder das minhas mãos, dei por ele pela primeira vez quando tinha quinze anos, em casa duma colega da escola que fui visitar por se encontrar doente de cama: uma amigdalite. Pus‑lhe as mãos à volta do pescoço e, dois dias depois, ela estava curada.

‑ Talvez ela tivesse tomado antibióticos ‑ fez notar o Dr. Hambach.

Sentia cada vez mais medo porque tinha a impressão de não poder refreá‑la e por ver que ela estava pronta a meter‑se num impasse onde iria debater‑se em vão...

‑ Não, tio Ewald, ela era alérgica aos antibióticos. A seguir a coisa desenvolveu‑se em mim. Depois abandonei os estudos de medicina, sobretudo por causa dos trabalhos práticos. ‑ Interrompeu o que dizia abruptamente. Tinha o rosto contraído. Dir‑se‑ia que tropeçara em recordações desagradáveis. ‑ Temos de ir ter com a mãe. Está tão orgulhosa da tua tarte caucasiana...

‑ Não conseguirei engolir uma só garfada, e tu, Ewald?

‑ Tentarei. Não devemos castigar Ludmila recusando‑nos a provar a sua tarte lá por termos o estômago do avesso por causa de Willbreit... Cora?

‑ Sim, tio Ewald?

‑ Que farás quando os doentes começarem a afluir aqui e a pedir‑te que os socorras?

‑ Socorrê‑los‑ei, naturalmente. já o estou a fazer.

‑ O quê? ‑ O Dr. Hambach quase tinha gritado. ‑ O quê? E onde?

‑ No meu atelier de tecelagem. Até agora só curei nove doentes. Apontei tudo num diário...

Fazia um sorriso quase malicioso. "Meu Deus, ela não se apercebe do que está a provocar", pensou o Dr. Hambach.

‑ Mas ninguém deu conta de nada! Dizia a uma: "Então volte depois de amanhã, mostrar‑lhe‑ei outras cores"; e dizia a outra: "Dentro de três dias já terei desenhado um novo modelo..." E foi assim que consegui manter o contacto até ao momento em que deixei de sentir a resistência do mal. E elas confirmaram‑mo, aliás, falando das suas doenças e admirando‑se por estas terem desaparecido como por encanto. Liquidei assim três gastrites e uma úlcera de estômago que iam ser operadas. A última radiografia precedendo a operação já não apresentava tumor nenhum, apesar de os médicos terem procurado por toda a parte: simplesmente já lá não estava! Neste momento ocupo‑me duma tal senhora Habinghorst, de Rheine, que me encomendou um tapete; tem terríveis ataques de asma. Logo na segunda visita confiou‑me que estava muito melhor.

O Dr. Hambach pôs a cabeça entre as mãos.

‑ Rendo‑me! já esgotei todos os argumentos. Mas lembra‑te do que te disse, Corina. Sê prudente. Vamos então comer essa tarte de pêras. A tua mãe deve perguntar‑se o que é que estamos a fazer...

 


Um atestado passado pelo professor Willbreit permitiu a Erasmus Roemer meter baixa por período indeterminado. O seu adjunto, o magistrado Berner, sucedeu‑lhe provisoriamente e os arguidos que esperavam com ansiedade o dia em que compareceriam no tribunal respiraram fundo. Os respectivos advogados arvoraram sorrisos cheios de esperança. Berner não tinha nada de anjo, mas faltava‑lhe, no decurso dos processos, a retórica envenenada que fazia desesperar os adversários de Roemer! Era apenas um bom juiz alemão, sem mais, cuja ambição consistia, sobretudo, em expedir rapidamente os casos correntes. Nunca tinham ameaçado matá‑lo, o que acontecia a Roemer de vez em quando. Os jornalistas

eram os únicos a queixarem‑se dele; os seus processos eram mortalmente aborrecidos...

Não era o caso de Roemer. Quando um anarquista, conseguindo escapar à vigilância do guarda, tirara as calças num ápice para depositar em cima da secretária do magistrado um magnífico cagalhão, Roemer tinha‑se inclinado para a frente a fim de estender um monte de folhas de papel ao prisioneiro estupefacto: "Ora limpe‑se, meu caro!" Antes de se dirigir ao advogado deste: "Agora que o seu cliente se desembaraçou do seu cérebro em cima da minha secretária, você talvez esteja a pensar evocar a sua irresponsabilidade... "

Além disso, com Roemer, a sala do tribunal estava sempre cheia.

O primeiro exame, realizado sob a direcção de Willbreit, durou horas. Radioscopias, radiografias e repetidos exames com ultra‑sons. Finalmente, extenuado, Roemer encontrou‑se sentado numa cadeira diante de um Willbreit majestosamente sentado atrás da secretária.

‑ Então, anda, deita cá para fora o que tens aí dentro: a menina das carícias tinha razão, não é verdade?

Willbreit evitou responder directamente.

‑ Tens qualquer coisa no fígado. É uma espécie de bloqueio.

‑ Explica‑te!

‑ Vai ser necessário estabelecer um circuito artificial.

‑ Não sou canalizador, Thomas. Sou um jurista.

‑ Fico contente por ver que conservaste o teu sentido de humor...

Roemer inclinou a cabeça.

- É assim tão grave, Thomas?

- Não sei como explicar a situação a um profano como tu. Tens uma hiperemia venosa...

‑ Traduz!

‑ Uma congestão do fígado. O teu fígado transformou‑se, e mal, porque o sangue já lá não circula.

Enquanto falava mantinha os olhos baixos, fixando‑os nas radiografias e nos resultados dos exames. Isso apresentava uma vantagem: não tinha de olhar de frente para o amigo.

‑ Faz um esforço, Thomas. Explica ainda melhor.

‑ Estou a tentar. ‑ Inclinou‑se ainda mais sobre os papéis espalhados à sua frente. ‑ As células do fígado, quando são atacadas, são substituídas por um tecido conjuntivo, por um tecido fibroso.

‑ Está bem, mas o que é que isso quer finalmente dizer? Professor Willbreit, não és capaz de dizer mais nada? O que é que se passa com o meu fígado? E qual é a solução?

‑ Para começar, nem mais uma gota de álcool...


‑ E o tratamento?

‑ Uma terapia interna, ou seja, medicamentosa, já não tem qualquer possibilidade de resultar.

‑ O que quer dizer: acabou a peça, baixemos o pano!

‑ Não, pode‑se intervir cirurgicamente. Pode‑se regularizar, guiar a circulação sanguínea no interior do fígado. ‑Hesitou e a seguir, tendo cada vez mais a impressão de que o olhar de Roemer o trespassava, acrescentou finalmente: ‑ A operação não é desprovida de riscos... A mortalidade é de cerca de cinquenta por cento.

‑ Isso tranquiliza‑me imenso ‑ disse Roemer sarcasticamente. ‑ E sem operação?

‑ Dentro de alguns meses terás uma cirrose com ascite ou com um alastramento de serosidade no peritónio e aparecer‑te‑á um tumor no baço. A seguir virá a morte.

‑ Então a pequena das carícias tinha razão.

‑ Sob algumas reservas.... Os cirurgiões existem para alguma coisa. No teu caso, proponho que se ligue a veia esplénica à veia renal e a seguir se diminua a circulação do sangue na veia porta por meio de...

Roemer, que deixara de o ouvir, interrompeu‑o.

‑ Obrigado. já me chega...

Levantou‑se, enfiou a camisa, abotoou as calças e a seguir fez o nó da gravata, enquanto Willbreit tentava prosseguir com uma explicação impossível. Bruscamente, perdendo o sangue‑frio, bateu com o punho na mesa, gritando:

‑ Mas não compreendes que só este género de operação te poderá trazer algum alívio...

‑ Ah! Ah! Alívio, dizes tu? Alívio talvez, mas a cura não. Ou seja, uma morte temperamental! E como é que sobreviverei.

‑ Evidentemente, não poderás fazer a mesma vida que antes. Terás de seguir um regime rigoroso, sem uma gota de álcool, com uma vigilância constante do coração e muito repouso. E não poderás tocar mais em mulheres. Cada cópula equivalerá para ti a oito horas de rude trabalho no fundo duma mina.

‑ Ora aí está uma comparação que sai direitinha de um manual de medicina, não é?

‑ Nunca mais serás o homem que eras. Caso a operação seja bem sucedida...

‑ Caso a operação seja bem sucedida?

‑ Sim, Erasmus. Tenho de te dizer a verdade, não é?

‑ Resumindo, posso escolher entre uma morte quase imediata ou uma morte mais longínqua, reduzido a ser uma sombra de mim mesmo.

‑ Mas nesse último caso continuarás a viver. Verás o sol, as flores, os prados e as florestas, o mar, a montanha e os seus vales, ouvirás a música de que gostas e verás o luar. E tens bons amigos, Erasmus... O que é muitíssimo...

‑ E quando uma mulher bonita me piscar o olho, terei de lhe dizer: "Queira perdoar, cara senhora, mas segundo o manual de medicina, sou um mineiro que já não pode levantar o martelo!" Não será preferível continuar a viver sem rédeas enquanto aguentar, galopando assim com todo o garbo até à queda final?

‑ Só tu é que podes responder. Na qualidade de médico, disse‑te, o melhor possível, tudo o que tinha a dizer. Agora tens de ser tu a tomar uma decisão.


Roemer prolongou a baixa. Explicou a Elise, sua mulher, que se tinham registado novas admissões no tribunal e que lhe haviam confiado a tarefa de redigir um importante estudo jurídico‑científico sobre as remunerações dos peritos. Era uma explicação idiota, sabia‑o, mas suficiente para Elise: o golfe, a caça, o ténis, os desfiles da moda e as noites de gala ocupavam a tal ponto o seu tempo e o seu espírito que a actividade do marido só tinha aos seus olhos o valor do nível social de que ela tirava proveito. Acontecia‑lhe dizer frequentemente: "Sabe, desde que há um grande processo, todos os jornais e toda a gente falam dele. Uma mulher bem se pode sentir orgulhosa por ter um marido assim." O que não a impedia de chamar camponês a Roemer quando este começava a meter‑se com ela por causa de certas características femininas: "De novo os vossos cacarejos de galinhas! Sempre a queixarem‑se do seu galo..." A palavra "camponês" saída da boca de uma mulher como Elise era para Roemer uma marca honorável.

Durante três dias, manteve‑se fechado na sua gigantesca moradia, lendo toda a documentação que conseguira reunir sobre as doenças do fígado. Willbreit tinha‑lhe revelado toda a verdade. Ficara especialmente impressionado com uma frase: "Ainda não se conhecem completamente as causas que provocam a congestão hepática." E um pensamento louco tinha‑se então apoderado do seu espírito: "Não haverá a possibilidade dum milagre quando as causas são desconhecidas? Erasmus Roemer, meu caro, tens de acreditar num milagre!"

Ao quarto dia partiu para Hellenbrand. Não no seu carro, mas num que alugara. Iria lá incógnito, secretamente, e conseguiria introduzir‑se no atelier de Corina por uma porta escondida... Tinha uma reputação a defender, visto ser ainda presidente do tribunal de 1a instância de M'nster.

Existem duas maneiras de destruir a influência e a autoridade de uma pessoa: atacá‑la de frente ou considerá‑la morta e nunca mais pronunciar uma palavra sobre ela. A primeira táctica é espectacular, mas perigosa, pois expomo‑nos a um violento contra‑ataque por parte do interessado. Enterrar uma pessoa à força de silêncio é privá‑la de qualquer defesa, a menos que se trate de um ser capaz de quebrar as correntes com que se tenta destruí‑lo, mesmo quando elas se resumem a um silêncio de morte.

Como proceder contra Corina Doerinck?, perguntava‑se Willbreit. Sentia‑se ferido na sua honra de médico até ao mais profundo do seu coração. O que isto significa só o poderá, sem dúvida, saber o infeliz que tenha ousado confrontar‑se com um destes privilegiados. Isso nunca lhe será perdoado: porque tocar num médico corresponde a arranhar o céu imaculado da faculdade.

Willbreit pensara inicialmente em escrever um artigo intitulado "A propósito dos novos charlatães". Mas isso seria dar uma grande honra à rapariga. Calar‑se, enterrá‑la sob uma cortina de silêncio, era a solução. O desprezo absoluto!

Telefonara já por três vezes a Roemer.

‑ O que andas a fazer? ‑ perguntara.

‑ Leio...

‑ Os teus habituais livros pornográficos?

‑ As maneiras de tratar as doenças do fígado ‑ replicara o magistrado sem dizer nenhuma graça.

‑ Erasmus, deverias...

‑ E tu devias lamber‑me as botas e calar‑te duma vez por todas, Thomas! Boa noite!


Ao terceiro dia, Willbreit tentara contactar Elise, a mulher de Roemer, mas ela tinha ido caçar na Caríntia, em casa dum tal barão Loxenfeldt, e quando Willbreit telefonou para o castelo deste último, a voz educada dum mordomo respondera‑lhe que a "senhora" se encontrava a repousar na Hungria com o "senhor barão". Willbreit decidiu então ir forçar a porta do seu amigo no dia seguinte ou dois dias mais tarde. A ideia de que o gigante, como um elefante ferido, se tinha retirado para olhar de frente a aproximação da morte, era‑lhe penosa. Ninguém o podia obrigar a ser operado, mas era absolutamente insuportável deixá‑lo sofrer sozinho.

Apesar dos seus esforços para votar ao silêncio e ao desprezo o caso de Corina Doerinck, a rapariga e a sua actividade paramédica continuavam a constituir para ele um problema. Aquilo a que chamava "a farsa" que ela desempenhava perante gente ignorante, referindo‑se a forças "bioenergéticas", era uma provocação. Como é que se podia levar a sério aquela fé supersticiosa, vinda do fundo do tempo, e que não se conseguia suprimir nem mesmo na era dos homens que vão à Lua e das bombas nucleares? Era uma violação do território médico, ou seja, do seu território pessoal! Aquilo era brincar perigosamente com os doentes, que, evidentemente, estavam sempre prontos a votar uma confiança cega em quem lhes prometesse uma cura depois de todos os outros o não terem conseguido. Era este engano que encerrava o que havia de criminoso naquelas carícias que, de outro modo, seriam apenas ridículas. Era, portanto, necessário pôr fim àquilo tudo.

Desejava falar sobre isso com o seu amigo Roemer, que também não deveria deixar passar a oportunidade que representava uma operação. De que serviria correr para a morte "sem rédeas e com todo o garbo possível?...", para utilizar a sua própria expressão.

Mas Roemer não se encontrava em casa. Tinha partido de carro, declarara a empregada que viera abrir a Willbreit. "Para onde foi?", perguntara Willbreit. "Não me disse... "

Foi então que, ao voltar para o centro de M'nster, por um desvio inesperado provocado por obras, vislumbrou o carro de Roemer parado à beira do passeio de uma pequena rua de comércio. Não havia nenhuma dúvida, era mesmo o carro dele! Willbreit avançou lentamente até um lugar vazio no meio de dois carros e estacionou lá o seu. Olhou através do vidro e verificou que não se enganara: no banco de trás havia duas almofadas de vison azul, entre as quais Elise Roemer "fazia poses", como dizia o marido.

Espantado, Willbreit olhou à sua volta. Que faria Roemer naquela ruela? Só havia ali lojas, e lojas que não eram da classe daquelas que o presidente do tribunal de 1.a instância costumava frequentar: uma papelaria, uma charcutaria, uma florista, uma padaria, uma montra de móveis estofados e uma sapataria que fazia menos trinta por cento nos preços... Talvez Roemer tivesse num daqueles prédios uma amante secreta... Mas ele não era estúpido, e se fosse o caso teria estacionado o carro noutra rua...

Que fazer? Willbreit decidiu que esperaria meia hora. Mal acendera um cigarro, viu um homem de fato‑macaco, balançando na mão um pequeno molhe de chaves, com um cachimbo ao canto dos lábios, e que, sem se apressar, abria a porta do enorme carro e se deixava deslizar para o assento do condutor.


Com três passos, Willbreit ficou atrás dele. O desconhecido ainda não tinha fechado a porta. Dirigiu a Willbreit um olhar de admiração, o que não impediu que fizesse dar a volta à chave de contacto. O motor começou imediatamente a trabalhar.

‑ O que é que está a fazer nesse carro? ‑ gritou Willbreit.

‑ Tem alguma coisa a ver com isso? ‑ respondeu o homem.

‑ Este carro pertence ao juiz Roemer.

‑ Está bem, e depois?

‑ Chamo‑me Willbreit e sou um amigo do presidente.

‑ E eu chamo‑me Fritz Sinsemann e sou mecânico.

‑ Ele deixou‑lhe o carro para reparação?

‑ Não!

‑ Mas vejo‑o aí sentado de fato‑macaco...

‑ Tem alguma coisa contra os fatos‑macaco? Olhe que é bastante cómodo, senhor Willbreit. à noite põe‑se na máquina de lavar e no dia seguinte de manhã já não tem nenhuma nódoa!

‑ Quando é que o presidente Roemer virá buscar o carro?

‑ Não faço a mínima ideia. Alugou um Ford até amanhã ao meio‑dia.

‑ Alugou... ‑ Willbreit tinha‑se inclinado um pouco mais na direcção do homem e sentiu de repente as batidas do sangue, que corria mais depressa nas veias das suas têmporas. ‑ Então alugou um carro?

‑ Sim, um Ford. ‑ O homem tirou do bolso um cartão que estendeu a Willbreit. ‑ Se um dia precisar de um carro, tem aqui o meu cartão: "Sinsemann e Filho, carros de aluguer e garagem de reparações." Se vier ter comigo economizará alguns marcos em relação às grandes firmas...

Desconcertado, Willbreit, de cartão na mão, seguiu com os olhos o carro de Roemer, que se afastava e desapareceu quase imediatamente por um grande portão.

Roemer adorava o seu carro, que possuía uma carroçaria especial e estava equipado a seu gosto. Onde teria ido com um Ford de aluguer demasiado pequeno para ele? Como um relâmpago, um pensamento atravessou‑lhe a cabeça e teve a impressão de ter recebido uma descarga eléctrica que, alastrando por todo o corpo, lhe infligia uma inibição momentânea. Não, não era possível! Por mais desesperado que estivesse, Erasmus Roemer não iria cometer tal parvoíce! Sabia que ninguém o desembaraçaria duma congestão mortal do fígado com as macaquices das carícias aéreas duma Corina Doerinck! Erasmus, Erasmus, vejamos! Essa rapariga é perigosa...

Correu até ao carro e, ainda não estava bem sentado, já estava a pegar no telefone:

‑ Há algo de novo? Algo de particular? ‑ perguntou, procurando recuperar o fôlego e dominar as batidas do coração.

A voz calma e indiferente da assistente ressoou no auscultador.

‑ O cancro dos pulmões do dezanove morreu. O doutor Brandes fez o necessário. à parte isso, não há nada a assinalar, professor.

‑ Obrigado. Diga ao doutor Gabionz que lhe peço que me substitua na visita do fim da tarde. Fiquei retido fora de M'nster e não sei exactamente quando regressarei. Voltarei a ligar.

‑ Podemos telefonar‑lhe para algum sítio, professor?

‑ Não antes da noite. Está tudo bem, não é verdade?

‑ Como de costume, professor...


Willbreit desligou. Podia confiar em Ema Taube. Há vinte anos que dirigia os serviços anexos aos blocos operatórios. Para Willbreit e para os outros cirurgiões, aquela mulher não tinha preço.

Antes de arrancar, Willbreit fumou mais um cigarro e analisou febrilmente a situação. "Devo precipitar‑me para Hellenbrand e arrancar Roemer às garras daquela rapariga? Seria provocar uma discussão inútil. Se Roemer quer deixar acariciar o seu fígado à distância, o problema é dele. Recusa‑se a ser operado? Seja. já ninguém pode fazer nada por ele. Do ponto de vista moral, pode‑se permitir‑lhe que se refugie numa ilusão que, durante mais ou menos tempo, o encherá de esperança, de felicidade, e que o reconfortará espiritualmente... Isso, até uma quebra ainda mais atroz. Felizmente o seu sofrimento será breve. Se entrar rapidamente no coma final, terá tido mais uma vez muita sorte."

Mas então porque é que Willbreit se dirige para a auto‑estrada? Porque toma a direcção de Notuln? Sai da auto‑estrada durante um momento, chega a Havixbeck, muda de opinião e envereda por um atalho em Lasbeck. A seguir, quanto mais se aproxima de Hellenbrand, mais diminui a velocidade. Ei‑lo que pára sob um grupo de olmeiros, donde contempla silenciosamente as suaves ondulações daquela velha terra cultivada desde há séculos e brilhando hoje ao sol.

Que força é aquela que o impede de voltar a ser ele mesmo? Porque é que fica na borda de uma estrada de campo, incapaz de se libertar do ascendente mágico de uma mulher igual a tantas outras? Porque é que é em vão que considera o número de loucos e de loucas que existem neste baixo mundo? Não é uma Corina a mais ou a menos que mudará seja o que for. Um compra uma banheira com uma camada de gordura com um objectivo médico qualquer e outro contenta‑se com carícias aéreas. Cada imbecil tem direito a ter o seu pequeno prazer. Que importância tem tudo isso? Vá, volta para trás, espécie de louco, a pretender lutar contra a estupidez e a ignorância humanas!

Mas então porque dá consigo a dirigir‑se, contrariado é certo, para Hellenbrand e, portanto, para casa dos Doerinck?

Corina estava sentada a tecer diante de um largo tear e trabalhava numa tapeçaria que reproduzia a lenda do licorne, quando um Ford cinzento parou no pátio diante do local onde ela instalara o atelier. Depois de lhe dirigir uma olhadela, continuou a apertar na trama os nós que já tinha começado. A seguir a campainha da porta soou na sala da frente, que lhe servia de sala de exposições, e ouviu alguém a tossir, assim como barulho de passos.

‑ Um momento, se faz favor! ‑ gritou. ‑ Vou já.

Levou alguns segundos a arrumar a lã e o trabalho em curso e passou as mãos pelos cabelos. Mas, antes mesmo de ter terminado, já o cliente estava atrás dela.

‑ Vai ficar admirada ‑ disse uma voz levemente ofegante. Voltou‑se lentamente no banquinho em que estava sentada e pôs‑se de pé sem uma palavra. ‑ Até eu estou admirado. Como dizia a jovem esposa a seguir à noite de núpcias: "É só? Então vamos voltar ao princípio..." Ria, peço‑lhe!

‑ Senhor presidente!

Ele levantou a mão e mostrou‑se repentinamente com um ar muito cansado.


‑ A minha idade permite‑me propor‑lhe que deixe de lado os títulos e as formalidades, Corina. Precisava de a ver. Não pude deixar de o fazer.

‑ Com aquele carro?

‑ De um certo ponto de vista, sou um cobarde, Corina. Quis preservar uma espécie de anonimato para evitar que dissessem: "Olha só, o velho imbecil do Roemer que agora se entrega a uma feiticeira!"

‑ Não sou uma feiticeira. ‑ O seu olhar afastou‑se do homem, que se encontrava imóvel diante dela. ‑ Deseja encomendar um dos meus tapetes? Tem um modelo ou um desenho que lhe agrade?

‑ Sim, um homem que come uma pratada de fígado assado: do seu próprio fígado! ‑ Deu um suspiro, que era quase um gemido. ‑ Corina, acertou: o professor Willbreit disse‑me toda a verdade. Mas não falemos mais dele! Eis‑me aqui diante de si e já não sei que mais hei‑de fazer.


 

Na vida há certas coisas, certos sentimentos, que não conseguimos definir e aos quais não conseguimos dar nome. E, no entanto, bem sabemos que tudo tem um nome. Com efeito, em circunstâncias normais, tudo e todos parecem trazer uma etiqueta, até talvez demasiadamente. Mas quando nos encontramos diante dum homem que chegou ao extremo último da esperança, dizemos para nós mesmos: ele tem medo. Mas a palavra "medo" está bem longe de exprimir o que ele sente, o fundo do seu desespero, do seu pânico. Nenhum dos nossos conceitos abrange tal realidade.

Roemer deu alguns passos no atelier como se fosse um enorme urso desajeitado e, não vendo outro lugar para se sentar a não ser o banco de trabalho de Corina, deixou‑se cair sobre ele, cobrindo‑o completamente com a sua massa, de tal maneira que parecia estar a flutuar no ar.

‑ Sim, é assim mesmo... consigo já tinha recebido a descarga em pleno coração.

Ela não respondeu e refugiou‑se um instante na sala de exposições para ficar sozinha. Quando voltou, Roemer, que respirava com dificuldade, tinha desfeito o nó da gravata e aberto o colarinho da camisa.

‑ O que é que o professor Willbreit o aconselhou a fazer?

‑ Uma operação. Cinquenta por cento de hipóteses de êxito.

‑ É preciso que tente.

Roemer abanou a cabeça.

‑ E em caso de êxito aguarda‑me um fim de vida pior do que a morte... Corina, quando o meu amigo Thomas Willbreit me falou de si, brinquei estupidamente, como é meu costume. A seguir, o doutor Hambach mostrou‑nos a última radiografia da sua mãe e, mesmo nessa altura, pensei: "Por trás disto esconde‑se uma armadilha para palermas. A miúda ‑ era você ‑ encontrou uma maneira de deturpar esta imagem. Porque terá feito isso?, perguntei a mim mesmo. Certamente por razões psicológicas, sem dúvida para levantar o moral à mãe com tal mentira, tanto tempo quanto possível, até ao momento em que a mentira cair por si mesma."

‑ A minha mãe está quase curada... quase! ‑ disse secamente Corina.

‑ Agora sei‑o. Senão, estaria aqui? Os seus dedos emitem uma energia, uma irradiação que aniquila as células doentes. Até hoje nunca tinha ouvido falar disso e se alguém me tivesse assegurado que era possível, teria levado o dedo à cabeça: isso é uma loucura, não há nada que seja mais impossível do que isso. Mas agora acredito, Corina... Está a olhar para mim, mas não me diz nada... A sério que acredito no poder das suas mãos.

‑ Não posso ajudá‑lo.

‑ Não diga isso! Por favor, não diga isso! Há alguém que saiba o que existe em si e que possa explicar‑lho?

‑ Ninguém. Eu mesma o ignoro. Creia que isso também me inquieta a mim, por vezes. Por exemplo, toco numa flor murcha e logo ela retoma o viço. Uma vez olhei para um anel que estava em cima da mesa, em casa, e que nunca tinha visto, e o anel começou a vir ao meu encontro... Soube mais tarde que tinha pertencido ao meu avô. Deu‑o à minha mãe como uma espécie de talismã quando ela se casou com o meu pai...


‑ Uma flor murcha... e manda‑me embora! Consegue sarar um cancro com as irradiações das suas mãos. Curou o doutor Hambach da sua prostatite. E alcançou certamente outras vitórias que só você conhece, não é verdade? Porque é que então eu seria o único que você não conseguiria curar?

‑ Há limites para tudo, mesmo no meu caso. Nunca poderei curar o seu fígado.

‑ Tente... Meu Deus, pode ao menos tentar!

Ela meneou a cabeça com alguma tristeza.

‑ Não posso curar uma pessoa se não estou segura da sua cura. A força que possuo, seja qual for o nome que lhe der, desaparece num caso desses. Quando o olho sei que ela não me servirá de nada.

‑ E se tentasse ainda assim... peço‑lhe... ‑ A sua voz era quase inaudível. ‑ Corina, estou à beira do desespero, pronto a precipitar‑me no abismo... sabe isso, não é verdade?

Ela voltou‑se, foi até à janela e olhou longamente para o jardim. O armazém onde instalara o atelier tinha uma história. Erguia‑se no meio dum grupo de árvores que haviam rodeado outrora uma quinta como se se tratasse de uma muralha de verdura. O corpo principal daquela construção tinha ardido no fim da guerra. Fora incendiada voluntariamente como vingança dos prisioneiros, que eram quase todos russos, e se tinham espalhado pelas aldeias, armados com machados, cacetes, foices e facas de carniceiro, pilhando e saqueando, até os americanos os fecharem num campo esperando o momento de os mandar para o Leste em comboios especiais. O proprietário queimara a sua quinta, assim como a mulher e o filho mais novo. E tinha explorado duramente trinta prisioneiros de guerra. Tratara‑os a pontapés e a pauladas, quase não os alimentando com a desculpa de que o seu filho mais velho caíra em Koursk...

Só o armazém ficara de pé e vazio durante anos. Ninguém o queria por causa dos mortos. Além do mais, uma certa Lina Korthaus, andando um dia a apanhar cogumelos ao crepúsculo, tinha visto o velho camponês a fumar cachimbo no sítio onde outrora se erguia a sua casa. O pastor esforçou‑se em vão por a desenganar. "Vi‑o. Estava ali e fumava cachimbo... Conheci‑o bem, ao Philippe!"

Bem que podiam não acreditar na pobre Lina. O que é facto é que ninguém tinha querido ficar com a granja, até ao dia em que Corina disse ao pai: "Há um lugar maravilhoso para um atelier, um grande armazém. É a velha granja das Schulte‑Haffnung, que posso remodelar com muito pouco dinheiro. "


Há muito que conhecia aquele lugar maldito. Quando era criança, fazia sempre um grande desvio para evitar aquele terreno. Tinha quinze anos quando ousou ultrapassar pela primeira vez o renque de árvores e deixar a bicicleta encostada ao muro da granja. Hesitante, entrara no interior da construção onde a acolhera um cheiro a mofo e a podre que se lhe tinha alojado na garganta. As aranhas tinham tecido teias enormes entre as vigas bolorentas do tecto. "Se o Philippe aparece", pensara ela, "não conseguirei escapar..." Irei direito a ele e perguntar‑lhe‑ei: "Porque regressas aqui? Morreste. Mataste‑te e o teu corpo ardeu. Não podes modificar nada do que está feito, Philippe. Precisas de descansar..." Mas nenhum fantasma surgira. Tinha dado a volta à construção, repentinamente liberta da sua inquietude. Pelo contrário, sentira‑se protegida de todo o mal e, sentada sobre um monte de madeira cheia de bichos que tinha empurrado para o centro do espaço vazio, lá ficara a sonhar durante toda a tarde.

Em seguida, voltara frequentemente àquela construção vazia para reflectir sobre o que a preocupava, como, por exemplo, o gato. Este tinha aparecido um dia esquálido e com uma ferida infectada no lombo. Depois de ter andado com precaução à volta de Corina, instalara‑se aos pés dela a ronronar. Ela acariciou‑o. Por volta do quarto encontro, a ferida sarara e fora substituída por uma espécie de crosta seca que caíra por si mesma. Porquê? E também no sítio em que tinha tocado numa viga vira cair o bolor, todo seco. Estranho, tinha Pensado.

A pedido da filha, Doerinck comprou, por uma pechincha, a granja abandonada, o que forneceu aos habitantes de Hellenbrand um tema de conversa que se tinha prolongado por várias semanas. Vejam bem: o professor Doerinck casara‑se com uma russa, não é verdade, e não tinham sido os russos que tinham queimado a quinta e morto os seus ocupantes? Havia ali algo de esquisito, sem dúvida nenhuma!

Um dia, um desconhecido colara na porta da granja um papel grosseiramente pintado: "Isba russa". A polícia da aldeia tinha fotografado e retirado o objecto do delito. Naturalmente, o inquérito não revelou nada.

Mas Corina tinha aceite o desafio. Por cima da porta, tinha afixado outro letreiro, mais bem escrito, com uma única palavra em russo: "Datcha". Perante tal provocação, a indignação em Hellenbrand tinha sido enorme! O próprio reitor ficara impressionado. Chegou até a avisar o seu colega Doerinck.

‑ Devias falar à tua filha. Ela exagera. Não quero meter‑me nisso, mas és o meu adjunto e toda a gente gosta de ti aqui...

‑ A minha filha tem vinte e oito anos... Porque é que não lhe falas tu?

As coisas tinham ficado por ali. Como sempre acontece neste mundo, algumas semanas mais tarde cessou‑se de falar no assunto. Uma pequena empresa de Billerbeck transformou a granja. Ao cobrir o solo com uma nova camada de cimento, descobriu‑se um pequeno cofre em ferro aí enterrado. Continha todas as jóias da última proprietária, Elfriede Schulte‑Haffnung. O seu valor foi calculado em oitenta mil marcos. A municipalidade felicitara‑se por aquele dom inesperado: era a única herdeira legal da família desaparecida e as pessoas da aldeia tiraram a sua lição da história: "Nunca mais voltaremos a ver o Philippe. Ele só vinha para vigiar as jóias. A partir de agora, acabou‑se..." Pouco depois, deflagrou na Câmara um incêndio, que, aliás, se conseguiu apagar rapidamente, mas de que nunca se chegou a conhecer a causa.

Com a testa apoiada no vidro da janela, Corina tinha os olhos fechados... Roemer não pôde deixar de estremecer quando, de repente, a viu juntar as mãos esguias e longas na atitude da célebre gravura de D'rer.

‑ Levante‑se ‑ disse ela repentinamente.

A sua voz tinha mudado e rompera tão brutalmente com um silêncio angustiante que Roemer, sobressaltado, se pôs de pé num salto.


Ela dirigiu‑se lentamente na direcção dele mantendo sempre as mãos juntas. O brilho dos seus olhos negros parecia trespassar Roemer. Este sentiu‑se percorrer dos pés à cabeça por uma onda de calor que não se parecia nada com o calor sufocante que sentira em Bali, mas que fazia o suor escorrer de todos os seus poros como se fossem milhares de pequenas torneiras que se encontrassem dissimuladas debaixo da pele. Deste fogo interior nascia uma espécie de êxtase...

Ali estava ela, tão pequena, tão delicada, diante daquela montanha de carne. Ele viu‑a levantar a mão direita, e deixá‑la deslizar ao longo do seu corpo, com os dedos fechados e ligeiramente encurvados vibrando à distância. As suas mãos pareciam pequenos espelhos parabólicos a receber e a emitir ondas.

Ele continuava petrificado à espera de um milagre. Só os seus dentes rangiam imperceptível e involuntariamente.

‑ Sente alguma coisa? ‑ perguntou ela repentinamente.

Os olhos de Roemer tornaram‑se maiores, como que desesperados, sem se afastarem da cabeleira negra de Corina.

‑ Nada... ainda nada... ‑ gaguejou ele.

‑ Com efeito, não pode sentir nada. ‑ Ela deu três passos para trás e, com um gesto surpreendentemente selvático nela, cobriu com as mãos o rosto tenso, que se tornara anguloso pelo esforço que tinha acabado de fazer. ‑ Eu também não senti nada, doutor Roemer. Mesmo nada, infelizmente. Não funciona. Eu já sabia...

‑ Mas eu quero viver!... ‑ gritou Roemer.

A sua angústia explodia duma só vez.

‑ Quero viver, viver! Tente mais uma vez, Corina, só mais uma vez. Suplico‑lhe. Creio em si e na sua força. Tente uma vez mais.

Ele lançou‑se sobre ela com uma rapidez incrível para um homem com o peso dele e apertou‑a contra o peito. Com uma força de que ninguém a julgaria capaz, Corina afastou‑se empurrando‑o com os dois punhos e, fingindo deixar‑se cair, libertou‑se como um gato selvagem daquele abraço desesperado... Encontrou‑se à porta do atelier em dois saltos e disse com os olhos chispando:

‑ Não volte a fazer isso. Nunca mais, ouviu? Estraga tudo.

‑ Eu quero viver, Corina! ‑ Como um cego, tacteou a janela, acabou por conseguir abri‑la e gritou na direcção das árvores: ‑ Viver... Viver...

Foi o seu último grito de desespero, como se toda a sua energia tivesse acabado de o abandonar definitivamente, de tal maneira que Corina, com piedade, se aproximou dele.

Ela tinha de novo juntado as mãos e Roemer teve um sobressalto de esperança: "Ela está a reunir as suas forças e vai tentar de novo... "


‑ Ouça bem. Quando me forçam, tudo se apaga em mim. Tenho de ser livre, totalmente livre, no que toca aos meus pensamentos e aos meus gestos. Desde que sei que sou diferente dos outros que tentei encontrar uma explicação. A mais convincente vem da Rússia. ‑ Sorriu ligeiramente como para se desculpar de falar no país da mãe. ‑ Na Universidade de Alma‑Ata, capital do Cazaquistão, existe um pequeno grupo de investigadores (químicos, biofísicos, médicos, biólogos e psiquiatras) que estuda o segredo das irradiações emitidas pelos homens. Baptizaram este fenómeno com o nome de energia bioplasmática. Dois deles, Iniuchine e Grichenko, através de aparelhos ópticos parecidos com microscópios, tornaram visível o campo de irradiação que rodeia o corpo humano e que é uma espécie de aura. Um engenheiro, Kirlian, e a mulher, Valentina, tiraram fotografias desta aura graças a um dispositivo electrofotográfico criado por eles. Este dispositivo utiliza as altas frequências e é conhecido mais resumidamente como "a fotografia Kirlian". Ora esta bioenergia só pode desenvolver‑se livre e eficazmente num ser humano em certas condições, caso consiga concentrar‑se sem ser perturbado nem influenciado seja de que maneira for. Compreende?

‑ Não. Quem pode compreender uma coisa dessas?

Procurando sentar‑se, levantou o banco que caíra durante a breve luta, pô‑lo no lugar e deixou‑se cair sobre ele.

‑ Poderia passar horas em explicações, assim como eu poderia ler centenas de livros sobre o assunto. De qualquer maneira, tudo isso seria fantástico para mim, tão alheio à nossa formação ocidental que sou obrigado a abandonar qualquer racionalidade e a abordar o domínio da fé. Eu creio! Creio em si, Corina.

‑ No entanto, eu falho consigo, doutor Roemer.

‑ Mas porquê? Porquê? Que há em mim?

‑ Não sei. Não consigo explicar. As minhas mãos não reagem consigo.

‑ E é só comigo?

‑ Até agora, sim. Nunca antes senti este vazio...

Escondeu o rosto entre as mãos e, depois de um instante de silêncio, disse numa voz diferente:

‑ Meu Deus! Que fiz eu então para merecer esta maldição? Sim, bebi sem sede e forniquei sem amor, e só me casei com a Elise porque ela me traria milhões. Vivi como um paxá. Mas, por outro lado, sempre fui um juiz justo e nunca me deixei subornar. Se encurralei até às últimas consequências alguns dos acusados que compareceram diante de mim foi apenas para melhor os conhecer, até que, tal como uma estátua de cristal, ficassem nus diante de mim. Conseguia assim reconstituir o meio a que pertenciam e que os condicionara. Sempre que emiti sentenças foi em conhecimento total de causa e em boa consciência. A consciência não pesa nada na vossa balança? ‑ Deixou cair as mãos e Corina apercebeu‑se de que ele tinha os olhos vermelhos ‑ Então só me resta

a operação?

‑ Sim.

‑ Apelarei para os melhores especialistas do mundo. A Elise tem bastante dinheiro! ‑ Levantou‑se pesadamente do banco. ‑ Há quatro dias ter‑me‑ia embriagado, oh, não vulgarmente, com schnaps, mas elegantemente, com algumas garrafas de Château‑Lafite ou de Château‑Margaux, a acompanhar uma perna de cabrito‑montês... Tudo isso acabou...

A atenção de Corina fixara‑se desde há alguns segundos no roncar dum motor que se aproximava. A seguir apareceu um Maserati, que travou tão brutalmente que a traseira derrapou para a esquerda. E o condutor quase não esperou que ele parasse totalmente para dar um salto do assento e pôr‑se a correr na direcção da granja, como se quisesse fugir do seu próprio veículo. Da janela em que se encontrava, Corina disse:

‑ É o seu amigo. Vem arrancá‑lo das garras da bruxa e o

meu pai vem com ele. A conversa promete!

‑ Deixe‑o ficar à porta! E feche a porta por dentro!

‑ Demasiado tarde. A minha porta está sempre aberta.


‑ Mas como é que ele descobriu que eu estava aqui?

Pela cara de Stefan Doerinck, que se aproximava mais lentamente, Corina via que o pai acabara de passar uma hora difícil: nunca lhe vira os traços tão crispados nem a expressão tão grave. A pequena campainha, que soava quando alguém entrava, retiniu brutalmente e Willbreit precipitou‑se para o interior, sem abrandar o seu impulso.

Corina alisou os cabelos para trás com as mãos e lançou um olhar a Roemer, que, refugiado num canto, lhe fazia sinal para não deixar entrar ninguém. A seguir, dirigiu‑se para a

sala de exposição. Encontrou Willbreit quase espumando diante duma tapeçaria que ela terminara há uma semana.

‑ Ulisses e as Sereias ‑ disse ela, visto ele se abster de a cumprimentar.

Confundido, perguntou involuntariamente:

‑ O quê?

‑ Ulisses e as Sereias. É o motivo da tapeçaria. Gosto de reproduzir cenas da Odisseia. Se esta não lhe agradar, tenho, por exemplo, Ulisses e os Porcos, que faz parte da série de Circe.

‑ Onde é que ele está? ‑ berrou de repente Willbreit.

‑ Ulisses? Olhe, está aqui o caixote da Odisseia...

A raiva convulsionava o rosto de Willbreit. Gritou ainda mais alto:

‑ Estou a falar de Roemer! Está aqui! Sei que está aqui! Não minta! O carro que está lá fora foi alugado por ele em M'nster...

‑ Então menti‑lhe? ‑ perguntou Corina altivamente.

‑ Quero falar com o doutor Roemer.

‑ Quando ele desejar falar‑lhe, irá ter consigo.

‑ Não tem nenhuma consciência! O que está a fazer é um crime!

‑ Será que vou ter de usar os meus direitos e pô‑lo na rua? ‑ Parecia cada vez mais calma e cada palavra que pronunciava era transparente e clara. ‑ Quanto aos seus insultos, é certo que o meu pai não me pode servir de testemunha diante dum tribunal, mas tanto ele como o doutor Roemer estão a ouvi‑lo. Quem lhe dá o direito de dizer que o meu trabalho é criminoso? É criminoso fazer tapetes? O seu comportamento é ridículo!

Willbreit engoliu ruidosamente a saliva, sem fôlego.

‑ Sabe muito bem o que quero dizer.

‑ Os meus tapetes agradam ao doutor Roemer e ele veio aqui para encomendar um.

‑ É você quem está a representar uma comédia ridícula!

‑ Ele desejava oferecer um tapete à mulher para o Natal. Infelizmente, tive de recusar a encomenda. Tentei explicar‑lhe que o prazo era demasiado curto, dado que tenho outros clientes antes dele. ‑ Pegou num caixote que estava em cima da mesa e abriu‑o já no chão, diante dos pés de Willbreit. ‑ Quer ver Ulisses e os Porcos? Se se decidir por este motivo, o prazo de entrega será, no mínimo, na Páscoa do próximo ano. Nunca antes!

Willbreit tinha recuperado um pouco de sangue‑frio.

‑ Onde está o doutor Roemer? ‑ perguntou secamente.

‑ No meu atelier. Ele interessa‑se pela minha técnica de trabalho.

‑ Finalmente, uma resposta precisa! Posso vê‑lo?

‑ Oh! Não será necessário!


Roemer apareceu. Saiu da sala vizinha, enorme, forte, aparentemente irradiando saúde: um gigante de rosto rubicundo.

‑ Previno‑te duma coisa, Thomas: acaba‑se a nossa amizade se disseres uma só palavra a Elise sobre a tapeçaria que lhe quero oferecer.

Willbreit baixou a cabeça, enterrando o queixo no colarinho e sem poder dizer uma palavra. Roemer saiu vencedor do duelo de olhares que se seguiu. Finalmente, Willbreit mexeu‑se.

‑ Falemos seriamente, Erasmus...

‑ Com efeito! Porque me andas a espiar? ‑ Como Willbreit não lhe respondeu com suficiente rapidez, apontou para o caixote que estava aberto no chão. ‑ Visto estares aqui, aproveita a ocasião: folheia estes desenhos de tapeçarias. Alguns são maravilhosos, Thomas.

‑ já chega de disparates! É preciso...

‑ A tua situação, Thomas, faz‑me lembrar a do homem que mijou nas calças. Foi mais inteligente do que tu. Reconheceu os factos: "Não serve de nada mexer‑me", disse, "a última gota já saiu!" ‑ A voz de Roemer ressoava como nos melhores dias, ou seja, como uma semana antes. Voltou‑se para Doerinck: ‑ Tem uma filha formidável, doutor Doerinck. Nunca vi tapetes tão bonitos. Estou há uma hora a tentar dar a Corina uma ideia de quanto ela poderia ganhar se transformasse o seu negócio numa manufactura importante. Ela consagrar‑se‑ia a desenhar os motivos, os modelos, que seriam depois realizados por dezenas de operárias em numerosos teares. Mas ela não quer. Responde que uma obra de arte é única e, portanto, recusa o trabalho em série! É pena: os artistas são uns individualistas que não sabem nada de negócios!

Cada vez mais irritado, Willbreit não renunciava à luta.

‑ Durante quanto tempo é que esta comédia vai ainda durar?

‑ Qualquer comédia que se respeite tem três actos, Thomas. Ainda só vou no prólogo do primeiro.

‑ A tua comédia não presta, Erasmus, e sabes tão bem como eu qual será o seu fim...

Até então, Stefan Doerinck tinha‑se contido. De repente, explodiu com tal violência que todos se calaram.

‑ Mas então, o que é que se passa aqui? Primeiro, um professor que não merece tal título vem incomodar‑me a casa, dizendo que a minha filha está a cometer um crime e que é preciso chamar a polícia. Sigo‑o até aqui e o que é que vejo? Que ela está a receber um cliente. Espero que se explique, professor Willbreit, e depressa! Conduziu‑se em minha casa de maneira escandalosa, sem nenhum direito...

‑ Sem nenhum direito, com efeito ‑ lançou Roemer. ‑ Não sei o que é que ele lhe disse, doutor Doerinck, mas apresento‑lhe as minhas desculpas em nome dele, por causa da nossa velha amizade.

‑ Nem faltava mais nada ‑ tentou dizer Willbreit.

Nunca se tinha sentido tão ridículo. Ia e vinha na grande sala de exposição, vendo‑se sempre obrigado a desviar‑se para evitar o caixote que estava no chão. A sua situação não era nada invejável, e ele sabia‑o. Se todos mantivessem a tese de uma encomenda de tapetes, ele não teria nenhum argumento para a rebater. Apenas lhe restaria pedir desculpas e partir envergonhadamente. Tratava‑se para ele da mais terrível das humilhações.

‑ Acabemos com esta comédia ‑ gaguejou.


‑ Estou absolutamente de acordo ‑ rugiu Roemer. ‑ Se te retirares agora, nenhum de nós tentará reter‑te, Thomas!

‑ Tenho de te falar...

‑ Tomas‑me verdadeiramente por um pupilo da assistência pública cujos passos têm de ser vigiados? Vim aqui comprar uma tapeçaria, ou várias, e não és tu quem me vai aconselhar, visto eu não ter confiança no teu gosto. Telefona‑me e marcaremos um encontro.

‑ Verifico que a razão e a lógica não imperam por aqui. ‑ Willbreit tentava em vão encontrar uma saída digna. Parara diante de Corina, que continuava impassível. "Que mulher fascinante", pensou, "mas perigosa e de que maneira! Quantas desgraças irá ela provocar?" Fez um último esforço para ganhar vantagem. ‑ O doutor Roemer é meu amigo e está ao corrente do seu estado. Se, prometendo‑lhe falsamente a cura, o impede de seguir a única terapia capaz de lhe prolongar a vida, responsabilizá‑la‑ei, Corina Doerinck.

Era de mais. Stefan Doerinck avançou para ele, descontrolado.

- É preferível que parta agora, professor.

Corina tinha‑se voltado para Roemer.

‑ Desaconselhei‑o ou impedi‑o de fazer alguma coisa?

‑ O meu amigo Thomas é um fanático. Na Idade Média teria sido inquisidor e mandá‑la‑ia para a fogueira. Não lhe preste atenção! ‑ Como Willbreit queria replicar, ele cortou‑lhe a palavra com um gesto e dirigiu‑se para a porta do atelier: ‑ Ainda temos de nos pôr de acordo em relação ao desenho. Venha, Corina.

Desapareceu na sala vizinha e ouviu‑se o banco estalar quando ele se sentou mais uma vez nele. Corina inclinou‑se para fechar o caixote dos desenhos e voltou a pô‑lo em cima da grande mesa.

‑ Suponho que já não está interessado nos meus tapetes, professor.

Willbreit preferiu não responder. Deu bruscamente meia volta e abandonou a granja. Quando chegou lá fora, esperou por Stefan Doerinck, que o seguira.

‑ Levo‑o a casa...

Apercebeu‑se de que tinha a voz rouca, desfeita, como ele próprio. Secamente, Doerinck declinou a oferta.

‑ Não vai voltar a pé, apesar de tudo. É um trajecto bastante longo. E preciso de lhe falar.

‑ Não quero ouvi‑lo e não tenho nada para lhe dizer.

‑ Seja razoável, doutor Doerinck.

‑ O que é que entende por razoável, você que chamou criminosa à minha filha? Perguntei‑me seriamente se não lhe devia administrar uma boa bofetada. Antigamente, quando era oficial...

‑ Esses tempos já lá vão, doutor Doerinck. Agora é professor, reitor‑adjunto e uma personalidade respeitada nesta Pequena cidade. A sua vida deve continuar a ser exemplar. A mínima nódoa na sua reputação recairia sobre todos os seus concidadãos. Se a sua filha continuar, isso pode ser‑lhe prejudicial.

‑ Dir‑se‑ia que me está a ameaçar! Fiz mal em querer acompanhá‑lo até ao seu carro. Agora, queira partir.

‑ Está inquieto, doutor Doerinck, mas é Corina quem o

inquieta, não eu. E é natural. Se tivesse uma filha que pudesse curar como a sua, também estaria inquieto.

‑ Reconhece então que as mãos de Corina podem fazer milagres?


‑ Não! ‑ Willbreit refizera‑se depressa. ‑ O que queria dizer é que na qualidade de pai faria o possível para impedir que a minha filha se entregasse a comédias perigosas...

‑ Ela tem trinta anos. já não sou responsável por aquilo que faz.

‑ Mesmo que isso possa arruinar a sua vida?

‑ Não posso impedir‑me de pensar que ficará feliz por contribuir para isso.

Willbreit abriu a porta do Maserati. Tinha ganho um ponto e sabia‑o.

‑ Seria inútil. A vida que tem levado foi plena de experiências e, portanto, deve ter ficado a conhecer as pessoas. Assim que se espalhar o rumor de que uma mulher de Hellenbrand faz milagres, vão ser todos esmagados por uma avalancha de histeria. Organizar‑se‑ão peregrinações em autocarros e em comboios especiais. As hienas da imprensa, da rádio e da televisão cairão sobre vocês. Para não mencionar o interesse das autoridades... E esta bola de sabão rebentará, como tudo o que é sensacional, e o senhor encontrar‑se‑á sentado sobre as ruínas de uma felicidade que construiu com tanta dificuldade. ‑ Tinha agora recuperado a sua habitual segurança. ‑ Não tenho nada contra si, doutor Doerinck. Não quer subir?

‑ Não, regressarei a pé.

Voltou‑se para olhar para a granja. Roemer estava à janela e parecia esperar que Willbreit, que continuava de pé junto do carro, se fosse embora. Doerinck suspirou. "Ele tem razão"., não pôde deixar de pensar. "A partir do momento em que o rumor das curas se espalhar, vai ser um inferno." Lembrou‑se, de repente, da quantidade de gente que convergia para um curandeiro chamado Groening, que vendia bolas de estanho carregadas com o seu "fluido" até ao dia em que, como dizia Willbreit, a bola de sabão rebentou e aqueles fenómenos foram reconhecidos como sendo fruto da histeria colectiva. Iria acontecer o mesmo com Corina?

‑ Agradeço‑lhe as previsões apocalípticas, professor. Veremos o que se vai passar...

Esforçou‑se por ser sarcástico: era a única saída. Willbreit, resignado, levantou os ombros, escorregou sobre o assento do carro desportivo e fechou a porta. Roemer não se tinha afastado da janela do atelier. Willbreit notou que ele limpava o rosto largo e gordo, já encharcado em suor, com o seu grande lenço húmido e todo amarrotado. "Tem medo", pensou. "Sim, aquele pensamento horrível não o abandona. Com aquela doença só lhe resta fazer o testamento e regularizar os seus assuntos. Erasmus, é preciso ultrapassar esse desespero e compreender que não existem milagres em medicina. As paredes dos lugares de peregrinação podem cobrir‑se com muletas e ex‑votos e virem de Lourdes as notícias mais estranhas sem que isso signifique que os milagres existem! E ainda menos em Hellenbrand, na província de M'nster!"

Doerinck seguiu com os olhos o carro que descia lentamente a pequena álea que conduzia à estrada. Hesitou. "Deverei voltar ao atelier de Corina? Que poderia dizer‑lhe? Já sei o que ela me responderá: "Curei a mãe ou não?" É preciso que as coisas sigam o seu curso."


Começou a andar lentamente, um pouco inclinado para a frente, com as mãos atrás das costas, para tomar, por detrás do grupo de árvores, o estreito caminho que conduzia a Hellenbrand através dos campos. Demoraria meia hora, no mínimo, o suficiente para reflectir longamente.

Primeiro, no pai de Ludmila, David Semionovitch Assanurian. E, depois, no pai do médico, aquele ancião corajoso que

os Alemães tinham fuzilado por sabotar a via‑férrea Tillis‑Batum. Como Corina se parecia com ele! Não só pela sua coragem inabalável, mas também por aquele dom misterioso de curar para além dos limites reconhecidos pela medicina.

Um dia, tinha visto o doutor Assanurian manter a lâmina nua duma faca por cima dos rins duma mulher sem lhe tocar. No entanto, a mulher pusera‑se a gritar como se ele lhe estivesse a enterrar a ponta da arma nas costas e tinha desmaiado. Durante três dias urinou uma urina amarelada e turva, espessa e nauseabunda. A seguir tinha‑se levantado, com as pernas bamboleantes, para beber avidamente o leite azedo da sua cabra. Uma semana depois, curada e feliz, tinha ido ver o Dr. Assanurian e pusera‑se de joelhos para lhe beijar a ponta dos sapatos. Doerinck, o oficial que as autoridades alemãs tinham instalado na casa do médico, ficara mudo de assombro, sobretudo ao ouvir David Semionovitch dizer numa voz convicta: "Agora já pode trabalhar na quinta. O abcesso que tinha nos rins desapareceu."

O jovem tenente tinha então perguntado com um sorriso irónico:

‑ Com o gume desta faca e sem tocar na doente?

‑ Peguei e esfreguei esse gume nas minhas mãos durante três minutos. Se o não fizesse, tratar‑se‑ia duma faca vulgar.

Para o jovem tenente alemão, tudo aquilo não passava de balelas. "Ah, estes Russos", pensara. "Aquela mistura de superstição e de fé era típica. Aquela gente vivia à margem do mundo civilizado..."

Bastante tempo mais tarde, quando já tinha casado com Ludmila e regressara à Alemanha, chegou um pequeno pacote, depois de ter percorrido um longo percurso pelo Irão e pela Turquia. Um camarada do velho Assanurian, como ele deportado na Sibéria, tinha‑lhes assim feito chegar a última recordação do exilado morto na taiga. Era um medalhão contendo um ícone representando o rosto de uma Nossa Senhora negra. Junto vinha uma pequena carta: "Envio‑te este icone, Ludmilazinha, conforme o desejo de David Semionovitch, que o trazia sempre ao peito, para que ele te proteja. Repara nas mossas do véu da Virgem. São as marcas dos dentes de David Semionovitch. Antes de morrer, pôs o ícone na boca e apertou com muita força. Morreu logo a seguir, corajosamente. Retirei‑lhe o ícone da boca e aqui estou a enviar‑to tal como ele pediu. Que Deus abençoe e proteja a neta dum homem que estava tão próximo de Deus... "

Ludmila beijara o pequeno medalhão, que passou a trazer, tanto de noite como de dia, entre os seios, preso numa fita. A bem dizer, aquele objecto tinha sempre incomodado Stefan Doerinck durante o acto amoroso, pois sentia sempre medo de o quebrar. De qualquer modo, Ludmila não tivera a menor doença ao longo de todos aqueles anos. Quando havia epidemias de gripe, e o Dr. Hambach dizia que fazia o género de tempo que leva os médicos a esfregar as mãos, ela contentava‑se com pousar os lábios no sítio em que o avô tinha deixado a marca dos dentes...

E depois, um dia, o ícone partira‑se.


Nenhum dos dois esquecera aquele dia. Era Inverno e estava um dia de sol magnífico. O solo achava‑se coberto de neve, sob um céu azul que se estendia até ao infinito sem a mínima nuvem. Tinham ido com Corina, então estudante em M'nster, ao Risauer Berg, que era simultaneamente uma colina de cento e catorze metros de altitude, um resto de moreia do último período glaciário e um maravilhoso local para andar de trenó. Doerinck possuía um grande trenó que podia ser dirigido à frente. Era a vez de Corina se sentar naquele lugar preferido. Ao vislumbrar uma fonte que quase se não elevava acima da neve, tinha querido evitá‑la. O trenó voltara‑se e tinham‑se levantado os três a rir até ao momento em que Ludmila, levando a mão ao peito, declarou de repente com olhos esgazeados: "O ícone partiu‑se..."

Estava, com efeito, partido a todo o comprimento, exactamente de lado a lado das mais distintas marcas dos dentes de Assanurian. Stefan tinha colado cuidadosamente o ícone com uma cola especial que até colava o ferro. Mas por mais invisível que fosse, tratava‑se duma reparação. Talvez tivesse sido coincidência: na Primavera seguinte, Ludmila contraíra uma bronquite. Corina não interviera imediatamente: encontrava‑se em M'nster e em pleno conflito com os professores. No entanto, como a tosse persistia, Corina começara a abraçar longamente a mãe, à noite, acariciando‑lhe as costas secretamente e à distância. Ao fim de quatro dias a tosse tinha parado. E Corina nunca mais voltou a falar daquela primeira cura antes da grande explicação que tivera com o pai há já algum tempo.

Como explicar que a força misteriosa do ícone tivesse desaparecido por ocasião do acidente? Ludinila continuara a andar com ele e chegara mesmo a dizer ao marido: "Quando morrer, quero conservá‑lo comigo... "

Tinha sido com aquelas recordações que Stefan Doerinck regressara a casa através dos campos. Até fizera vários desvios e repousara na borda dum ribeiro, olhando para as trutas que desciam a corrente numa água estriada de libélulas verdes e azuis à superfície. Ao chegar, chamou Ludmila. Ela estava atrás da casa, no jardim, sentada no banco pintado de branco no centro de um semicírculo de altos girassóis. Cada ano semeava novos girassóis em recordação da sua infância, na Rússia que nunca esquecia.

‑ Foi‑se embora? ‑ perguntou ao ver chegar o marido, que se sentou perto dela.

Tinha vontade de acender uma cigarrilha e fê‑lo em silêncio.

‑ Sim, foi ‑ disse ele finalmente.

‑ E falou com a Cora?

‑ Naturalmente!

‑ E discutiram?

‑ Dentro dos limites aceitáveis. Foi‑se embora furioso, mas já era de prever. A Cora mandou‑o friamente embora. ‑ Aspirou longamente por duas vezes o fumo negro da cigarrilha. ‑ Numa discussão daquelas, nenhum argumento, nem a favor nem contra, é válido. Há os factos: ora ele não pode aceitá‑los. Confesso que os factos são quase impossíveis de admitir por um homem habituado a pensar racionalmente e a conseguir explicar tudo. à força de tudo analisar, persuadimo‑nos de que já não há mistérios no mundo que nos rodeia. E, bruscamente, eis qualquer coisa que não conseguimos explicar. Não é de espantar que o maravilhoso nos choque e nos transtorne.


‑ Enquanto te vestias para ires com ele ao atelier de Cora, falei‑lhe do meu pai, que era médico em Poti e das pessoas que ele curou.

‑ E ele riu‑se?

‑ Não. Escutou‑me em silêncio, delicada e gravemente.

‑ Deve ter‑se rido para dentro.

‑ Não sei. Perguntou‑me simplesmente: "Mas como é que os colegas dele encaravam esse género de tratamento pouco ortodoxo?" Respondi‑lhe que iam ver o meu pai para se inteirarem do que ele fazia: que chegavam a vir de Tillis no comboio e que a seguir o apertavam nos braços e o beijavam à russa. Alguns, disse‑lhe, até se faziam tratar por ele. Estavam cheios de respeito por aquele dom extraordinário que ele tinha recebido do céu.

‑ E Willbreit engoliu isso tudo sem protestar?

‑ Ia a dizer qualquer coisa quando voltaste e então mudou de ideias.

‑ Para ser ainda mais agressivo no momento seguinte.

Como o via fumar em silêncio e olhando para ela de vez em quando, ela pegou‑lhe no braço.

‑ Estás preocupado, meu amor?

‑ Estou, Ludmila. Creio que a vida feliz que levámos até agora se acabou.

‑ Talvez porque o icone do meu avô se quebrou?

‑ Não, não deves dizer isso. Antes de o ícone se partir, já Corina possuía aquele dom maravilhoso, não é verdade? Falemos antes de destino, de algo que está antecipadamente escrito e que aparece e se desenvolve ao longo da vida, como disse Goethe.

‑ Uma espécie de herança?

Inclinou‑se para trás e olhou para o céu cheio de nuvens ligeiras que vogavam por cima deles, empurradas pela brisa de Verão.

‑ Lembras‑te do que eu disse quando tiveste de bater em retirada com os teus homens? Estávamos deitados na borda do lago, como nos acontecia frequentemente. Sabia há vários dias que tinhas de partir. O meu pai recebia tantas informações secretas! Com efeito, toda a gente ignorava que um grande número dos seus doentes eram guerrilheiros ao corrente de todas as notícias, como, por exemplo, que o Exército Vermelho tinha iniciado uma ofensiva, que a frente alemã fora batida em vários sítios e que as vossas divisões, que estavam dispersas, deviam recuar, de maneira que também o teu batalhão teria de seguir aquele movimento. Disseste naquele dia: "Levo‑te comigo. Seja qual for o resultado da guerra, encontraremos maneira de entrar juntos na Alemanha." Pousei a minha cabeça molhada no teu peito nu (tínhamos acabado de nos banhar) e respondi‑te: "Liubimets, meu amor, parte sozinho! Conhecemos juntos o paraíso, mas já não existe nenhum paraíso na terra. Que farei na tua Alemanha? Lá só te poderei trazer infelicidade." Mesmo assim, insististe em trazer‑me e apesar do que eu tinha dito, tudo foi diferente, belo e cheio de felicidade. Mas agora, com o avançar da idade, começo a trazer‑te a infelicidade que tinha previsto.

‑ Meu Deus, como é que podes dizer isso, meu amor, Ludmilanka! ‑ Puxou‑a para ele, beijou‑lhe a testa, os olhos, os lábios, e apertou‑a nos braços como se não a quisesse largar mais. ‑ Trata‑se de aguentarmos juntos os golpes, como outrora.


‑ Vão tentar esmagar‑nos.

‑ E não conseguirão! ‑ Por cima da cabeça da mulher ele via os girassóis que o vento agitava como vagas. ‑ Não, não conseguirão.

 

‑ Foram‑se finalmente embora ‑ anunciou Roemer, retirando‑se da janela. ‑ Tinha visto o Maserati desaparecer com Willbreit, desamparado e furioso simultaneamente, ao passo que Doerinck se afastava a pé, lentamente, através da cintura das árvores e dos campos até Hellenbrand. ‑ Conseguimos afugentar o inimigo, hem? Foi óptima a sua ideia de me transformar em cliente. E ao mesmo tempo é absolutamente verdade: encomendo‑lhe uma tapeçaria ou um tapete. O que for mais caro. Diga apenas o seu preço. Aceito‑o antecipadamente.

‑ Senhor presidente, penso que também deveria ir‑se embora...

Tinha pegado no banquinho e voltara a pô‑lo no seu lugar para se sentar diante do grande tear. Roemer olhava‑a da janela, com ar desarmado, como uma criança a quem tivessem dito para sair da presença dos adultos.

‑ E para onde irei? ‑ acabou por murmurar.

- Tem uma bela casa.

‑ Desde que esta história começou, tenho a impressão de que o telhado me caiu em cima da cabeça.

‑ E tem certamente uma bonita mulher...

‑ Parece que anda a caçar ursos na Hungria em boa companhia. Estou sozinho.

‑ Mas também não pode ficar aqui, se é nisso que está a pensar.

‑ Evidentemente que não. Mas, peço‑lhe, não me ponha na rua. Tenho necessidade de falar com alguém, de falar de mim. E com quem mais o poderia fazer? Não diga: tem bastantes amigos. Sim, tenho: amigos da universidade, do café, do regimento, do clube de jogadores de malha e do clube de golfe. Neste sou apenas membro honorário: não me deixam andar no terreno com o pretexto de que lhe faço buracos! Mas serão mesmo amigos? Esperam todos que lhes conte a última história, a última anedota, e quando não tenho nenhuma, há que inventar. Se lhes dissesse: "Ouçam. bem, só me restam alguns meses de vida... ", desatariam a rir imediatamente e ficariam à espera do desfecho da anedota, da reviravolta final. Mas desta vez eu ficaria sem me mexer mais depois da reviravolta final. É terrível o facto duma vida tão repleta de coisas como a minha seja, afinal, tão vazia! Estou só. Só você me pode escutar... e ajudar.

‑ Não, não posso fazer nada por si... Porque não quer compreendê‑lo?

‑ Conhece a história do velho casal que dorme na mesma cama. O marido diz de repente: "Queres que te ajude?" A mulher responde: "Não, porquê?" E o marido diz, tristemente: "Pareceu‑me que a cama estava a mexer..." - Roemer deu uma risada descarada: ‑ Pode‑se sempre ter esperanças, não é? ‑ Deu alguns passos para a frente limpando uma vez mais a cara com o enorme lenço, que já não passava de um trapo molhado. ‑ Posso voltar?

‑ Já lhe disse: a minha porta está sempre aberta.

‑ Você é a minha única esperança, Corina. Parece uma fala de actor, exagerada e de mau gosto. E, no entanto, é verdade. Agarro‑me a si, Corina, como a uma bóia.


Ela pegou no fio de lã e começou a fazer o nó prendendo‑o sob a corrente, antes de dizer numa voz muito doce:

‑ Faz‑me muita pena, doutor Roemer, mas não posso fazer nada por si e o senhor sabe‑o. Volte para casa.

Era, portanto, o fim...

Ela viu‑o abandonar a granja num passo hesitante e entrar no Ford de aluguer. Ficou um instante sentado, preso entre o volante e as costas do assento, que ele empurrara para trás o mais possível, sem, no entanto, obter espaço suficiente para se sentir à vontade. Que poderia fazer a partir de agora? A única coisa que lhe vinha ao espírito era uma reacção desesperada: revoltar‑se contra o destino. Contra‑atacar mesmo se a derrota era certa.

Quando chegou à auto‑estrada, ultrapassou M'nster, quase a rodeando, para se dirigir a Hilltruper See e ao seu lago, onde parou, como de costume, diante do edifício onde se tinha quase a certeza de o encontrar quando ele não estava em mais nenhum sítio: o Waldhotel Krautkramer.

Rígido pela imobilidade forçada e prolongada da posição torturante em que tinha guiado, conseguiu arrancar‑se do Ford com um forte gemido e esperou alguns segundos até sentir que o sangue voltava a circular nas veias, prestando assim atenção ao que se passava no interior do corpo: nada, nem um único barulho suspeito. Tudo parecia normal como habitualmente. Não, nada indicava ainda que era um homem condenado à morte. Uma ideia louca atravessou‑lhe o espírito: a medicina moderna podia‑se enganar. Apesar das radiografias, dos exames com ultra‑sons, das angiografias, das análises mais minuciosas e complexas do sangue e da urina, devia haver, mesmo assim, uma possibilidade de erro.

Krautkramer, pai, acolheu‑o, como sempre o fazia, no hall do hotel para o conduzir pessoalmente à mesa em que costumava ficar, perto da janela. Mal acabou de se sentar, Roemer começou a dar as suas indicações.

‑ Hoje, meu caro, não vai haver restrições. Confio em si para encomendar os pratos e os combinar. Mas faça abrir imediatamente, para que o vinho tenha tempo de respirar, as seguintes garrafas: uma de Bâtard‑Montrachet do domínio Prieur‑Brunet para começar e, para acompanhar o assado, uma de Musigny do domínio Armand Rousseau.

‑ Vou ser indiscreto, senhor presidente: festeja algo de particular de que eu possa felicitá‑lo?

‑ E de que maneira! ‑ Inclinou‑se para trás na cadeira fazendo, como sempre, estalar a madeira. ‑ Conheço já a hora da Minha morte!

Krautkramer, pai, estupefacto, inclinou‑se por hábito profissional e deu três passos para trás como diante de um rei, antes de fazer de novo uma saudação e de se voltar. Esperou ficar fora do campo de visão de Roemer para abanar a cabeça.

 

Os acontecimentos demoliram a táctica de Willbreit, que pretendia enterrar sob um manto de silêncio a petulância e o poder mágico de Corina Doerinck. Não foi culpa nem de Roemer nem do Dr. Hambach e ainda menos de Willbreit. A notícia de que uma criadora de tapetes de Hellenbrand podia "fazer desaparecer" certas doenças como por encanto, apenas pela simples imposição das mãos, veio de outro lado.


A primeira pedra da avalancha começou a rolar durante um chá oferecido pela Sra Huiskens, esposa de Peterpaul. Huiskens, o bem conhecido fabricante de comutadores eléctricos "Hura'vest" (abreviatura genial de "Huiskens, Munster, Vestefália"). Na alta sociedade de M'nster ‑ existe lá uma ‑, os chás da Sra. Huiskens tinham tanta reputação como os comutadores do marido: em nenhum outro lado se cochichava tantas notícias confidenciais por minuto. Para todos, e sobretudo para todas, os que podiam neles participar, os chás da Sra. Huiskens constituíam um acontecimento apaixonante e quase erótico.

Naquele dia, Hilda Huiskens contou às amigas ‑ todas as convidadas eram suas amigas durante o tempo que duravam as reuniões ‑ que uma rapariga que fazia tapetes a tinha curado de uma acne rebelde... Isto, sob o selo do segredo, chiuu!, naturalmente.

Perceber‑se‑á a razão por que Hilda não conseguia deixar de tecer elogios à sua benfeitora se se souber que nem todo o dinheiro do marido lograra desembaraçá‑lo daquela maldita acne. Os melhores dermatologistas de Munique, Milão, Paris, Miami e Los Angeles tinham falhado e ela vira‑se obrigada a cobrir com uma espessa camada de maquilhagem, durante quase toda a sua vida, aquela maldita eflorescência. E, de repente, a sua pele voltara a ser lisa e limpa como uma verdadeira pele de bebé. O facto de ela ter aparecido sem uma sombra de base deixou todas as suas amigas admiradas. Felicitaram‑na, não sem lamentarem um pouco aquela cura milagrosa que as privava dum assunto agradável de conversa. Quase todas chegaram mesmo a invejar aquela pele nova cuja tez era duma infinita delicadeza.

Naquele dia, Hilda Huiskens triunfou.

‑ E sabem o que me fez a tal Corina Doerinck? ‑ O seu coração transbordava duma gratidão autêntica que necessitava de se expandir. ‑ Limitou‑se simplesmente a passar as mãos diante da minha cara, como para acariciar à distância, durante apenas seis sessões. E, repito, sem sequer me tocar! O que é que senti? Pois bem, um simples formigueiro nos sítios em que tinha acne, um calor delicioso por baixo da pele. E mais nada. Agora olhem para mim: desapareceu tudo!

A reacção das suas boas amigas não se fez esperar. Cada uma sofria dum mal cuja rebeldia provinha do facto de, tal como a sabedoria das nações no‑lo ensina, todos termos a partir dos cinquenta anos qualquer coisa que não anda muito bem. No caso das senhoras da alta sociedade de M'nster, tratava‑se, em primeiro lugar, dos nervos, evidentemente, e a seguir das articulações, que começavam a estar usadas. As ciáticas, as artrites e as nevralgias resistiam às curas anuais em estações termais de grande fama. O medicamento milagre que os médicos costumam utilizar contra tais enfermidades é a cortisona. Mas três das senhoras que se encontravam assim de chá em chá foram contempladas, depois de se submeterem a um tratamento de cortisona, com uma média de sete quilos suplementares que nem um regime atrozmente severo em Bad Wiesse conseguira eliminar. O pânico instalou‑se no pequeno grupo e o assunto principal da conversa passou a ser, a partir daquele momento, as doenças.


A novidade de que alguém de Hellenbrand, que não ficava Muito longe de M'nster, curava qualquer mal por irradiação das mãos, fez enorme sensação. A eventual obrigação de comprar um tapete, como tinha feito Hilda Huiskens, não tinha nenhuma importância. Além disso, a rapariga nunca aceitaria dinheiro. Por outro lado, um tapete ou uma tapeçaria artesanal, mesmo modernos e não sendo originários da Pérsia ou da Turquia, tinham sempre utilização, nem que fosse no quarto da criada ou até, porque não, no quarto de hóspedes...

Ainda não se tinham passado quarenta e oito horas desde a tarde triunfal de Hilda e já duas daquelas senhoras tinham tomado secretamente o caminho de Hellenbrand. Toda a gente em Hellenbrand conhecia a filha do vice‑reitor Doerinck e as suas tapeçarias modernas e artísticas, de modo que os primeiros nativos a quem se dirigiram puderam indicar‑lhes prazenteiramente o caminho.

‑ Está combinado, Louise ‑ disse a esposa do Dr. Benke, advogado especializado em questões fiscais. ‑ Oficialmente, vimos ver as suas obras. Para o resto, esperaremos por uma ocasião favorável...

‑ É claro ‑ respondeu Louise Herbrandt, esposa de um fabricante de produtos farmacêuticos, autor de uma preparação de nome misterioso, mas célebre em toda a Alemanha, sobretudo junto dos homens duma certa idade: 85 Y. O "Y" lembrava que o remédio era à base de yohimbina, extraído da casca do yohimbehe, que é uma árvore dos Camarões. O efeito verdadeiramente medicinal da yohimbina é o de dilatar os vasos sanguíneos, e, em consequência, os dos órgãos sexuais, o que provoca como resultado acessório um aumento da potência amorosa. O juiz Roemer até tinha composto um ditado que poderia ter servido para a publicidade deste medicamento milagroso: "Yohimbinanto‑te, conseguirás que ela fique sempre amando‑te!"

No que respeita ao número 85, que figurava na designação do produto, era uma maneira de fazer lembrar aos homens de uma certa idade que a yohimbina agia mesmo nos de oitenta e cinco anos, o que era confirmado pela embalagem, na qual se via um velho a saltar à corda. Naturalmente, tinham escolhido como modelo um valentão de trinta anos, com uma muscultura excepcionalmente desenvolvida, que tinha dado um enorme trabalho a maquilhar para o envelhecer convenientemente. De qualquer maneira, o 85 Y tinha feito Eduard Herbrandt multimilionário. Mas a mulher continuava a sofrer duma ciática aguda apesar das curas que fazia em Albano.

‑ Primeiro, tenho de ver o que essa Corina faz ‑ declarou ele a Hildegard Benke ao chegar diante da granja pintada de novo e transformada em atelier. E, após ter dado um último jeito ao cabelo com a mão, cedendo ao seu temperamento natural, achou necessário acrescentar: ‑ O que agrada a Hilda nem sempre é de muito bom gosto, não é verdade?

‑ Infelizmente! tinha respondido simplesmente a esposa do advogado.

ó amizades femininas, quantas delicadezas são cometidas em vosso nome!

No momento em que abriram a porta de entrada, soou a pequena campainha. Penetraram ambas na sala de exposições. E, como sempre, ouviu‑se a voz de Corina vinda do atelier em que se encontrava a trabalhar:

‑ Um momento, se faz favor. Vou já...

‑ Tem uma voz agradável ‑ cochichou Louise Herbrandt.

‑ Esperemos. Não nos devemos precipitar ‑ respondeu Hildegard Benke.


Esta sofria, desde há pouco mais de dois anos, de um tique que não conseguia reprimir e que, assim que sentia a mínima excitação, boa ou má, lhe retorcia os cantos da boca. E ainda era pior quando ficava irada: neste caso, todo o rosto se lhe crispava e estremecia de forma incontrolável. O marido, o especialista fiscal, atribuía estes espasmos convulsivos ao facto de ela não ter feito outra coisa desde há quarenta e oito anos, desde que tinha nascido, senão falar, e que por isso a sua boca se tinha habituado a funcionar sem ela querer. E até lhe tinha dito directamente numa noite em que bebera. E foi nessa noite que, pela primeira vez, uma horrível cãibra lhe desfigurara o rosto, enquanto gritava: "É a tua presença que me mata!"

A porta do atelier abriu‑se para dar passagem a Corina. Trazia um vestido muito simples, em tricô de lã, que ao mesmo tempo que lhe escondia o corpo lhe revelava igualmente as formas. Por isso, a primeira impressão das duas senhoras foi contraditória, como costuma acontecer a todas as mulheres que se encontram de repente em presença duma pessoa do mesmo sexo cuja elegância ou beleza ultrapassa a delas: têm logo de criticar. No que toca a Corina, sem sequer se consultarem, tinham a mesma opinião: o vestido estava demasiado apertado nas ancas, já para não falar do peito... e do resto.

Foi Louise Herbrandt quem se encarregou de começar a conversa.

‑ Vimos da parte da senhora Huiskens...

Interrompeu imediatamente o que estava a dizer, deixando deslizar o olhar sobre as tapeçarias e tapetes expostos. Muito bem, pensou. Modernos, evidentemente! Nada que se compare com o meu tapete de Hera, de seda, com dois milhões de nós por metro quadrado, e pelo qual paguei oitenta e cinco mil marcos. Se comprar uma destas coisas, irá parar à lavandaria. Mas estou aqui por causa da minha ciática!

‑ Admirámos as suas obras em casa da senhora Huiskens. Encantadoras! Disse logo à minha amiga: "Aqui está o que me faz falta!" E ela acompanhou‑me.

‑ Estes tapetes também me encantaram ‑ afirmou Hildegard Benke, e, sob o efeito da mentira, a boca começou imediatamente a contrair‑se‑lhe.

Corina lembrou‑se imediatamente da Sra. Huiskens e da compra desta, Folhagem de Outono, mas não da sua acne.

‑ Tenho de as prevenir: não posso fixar nenhum prazo de entrega. Trabalho sozinha e tenho três encomendas para executar antes de qualquer outra.

Louise Herbrandt sorriu de maneira comedida e distante.

‑ Temos tempo. Não há pressa nenhuma.

‑ Vou mostrar‑lhes alguns desenhos. ‑ Indicou com um gesto as cadeiras que se encontravam perto da mesa grande. ‑ Sentem‑se, por favor.

‑ Obrigada...

Louise Herbrandt dirigiu‑se lentamente para uma das cadeiras, coxeando de maneira dramática. Corina esperou que ela se sentasse perto dela para lhe perguntar:

‑ Teve algum acidente, minha senhora?

‑ Se ao menos tivesse sido isso! Mas, infelizmente, é o nervo ciático! Muitas vezes quase grito com dores. Há dias em que só consigo andar com muita dificuldade.

‑ E que diz o seu médico?


‑ Ah, tentei tudo: Albano e Montegrotto, injecções de todas as espécies, raios, medicamentos que custam uma fortuna e já não sei que mais. Sinto alívio durante algum tempo, mas a seguir as dores voltam ainda mais fortes do que antes.

Era a vez de Hildegard Benke intervir, sem tentar, naturalmente, reprimir o tique que lhe torcia a boca.

‑ Ah, estes médicos! Quando já não sabem o que hão‑de dizer, põem‑se a falar latim e grego e fazem‑nos andar de especialista em especialista. E cada um tem uma opinião diferente. Se soubesse o que já tivemos de suportar!

Corina tinha aberto o caixote e estava a espalhar os desenhos em cima da mesa grande. Ainda mal lhes tinha dado uma olhadela, já Louise Herbrandt exclamava:

‑ Mas são muito bonitos, estes motivos gregos!

‑ Sim, é a Odisseia.

‑ Vi isso logo ‑ disse Hildegard.

Ambas se tinham inclinado sobre os desenhos. Corina estava atrás delas e esticou imediatamente as mãos, com as palmas ligeiramente encurvadas, subindo e descendo ao longo da coluna vertebral de Louise Herbrandt, sem que nenhuma das novas clientes a visse. Estava inquieta: que se passaria depois do falhanço com Roemer? Tê‑la‑ia abandonado definitivamente a força desconhecida que tinha salvo a mãe e o Dr. Hambach? Mas sentiu logo de seguida na ponta dos dedos o formigueiro por que esperava, ou seja, o contacto com uma inflamação dos nervos que resistia imediatamente à emanação que se desprendia dela.

Sentiu então, igualmente, uma felicidade e uma serenidade maravilhosas. Depois da partida de Erasmus Roemer, fora para casa dos pais completamente exausta e queixara‑se ao pai como uma criança: "Acabou‑se, papuchka. As minhas mãos estão mortas! Não puderam fazer nada pelo doutor Roemer. já não têm nenhum poder." E Doerinck tinha exclamado logo a seguir: "Que Deus seja louvado! Finalmente! Isso vai evitar‑nos muitos aborrecimentos! "

E agora voltava a ser a Corina de antes, segura de si mesma: sentia a força que fervia nela invadir Louise Herbrandt. Uma vez mais, era o vector de algo de inexplicável que, vindo não sabia donde, a atravessava para irradiar das suas mãos.

De repente, Louise Herbrandt apercebeu‑se de que tinha calor. Tirou o casaco.

‑ Meu Deus, que temperatura agradável que faz hoje. Há muito tempo que não tínhamos um Verão assim!

Como ela se inclinou de novo sobre os desenhos, Corina retomou o tratamento. Durou só exactamente cinco minutos, como se tivesse um relógio dentro de si.

A boca de Hildegard Benke contraía‑se cada vez mais. Tal como a amiga, interrogava‑se sobre a maneira como devia encaminhar a conversa para o tratamento que desejava. A alusão à impotência dos médicos não tinha dado resultados. Como passar de Ulisses e das suas aventuras a uma ciática e a um tique facial? Reunindo toda a sua coragem, resolveu não utilizar nenhuma transição.

‑ Já deu pelo tique que me deforma a boca?

- Não ousei fazer‑lhe nenhuma pergunta sobre ele.

Examinou mais de perto e em silêncio o tremor que agitava desesperadamente as duas extremidades dos lábios, como se estes fossem percorridos por uma corrente eléctrica. Aquilo era de origem neurótica, naturalmente. Hildegard Benke continuou a explicar.


‑ São os meus nervos! Não imagina a quantidade de vitamina bê que já tomei sob diversas formas.

‑ Deixe ver ‑ disse Corina.

Pegou na cabeça de Hildegard Benke com as duas mãos. Lentamente, os seus dedos começaram a ir e a vir a alguma distância dos lábios, cujo tremor, depois de ter resistido um instante, começou a apaziguar‑se. De vez em quando, as suas mãos afastavam‑se para irradiar toda a cara. Hildegard não se mexia, tinha fechado os olhos e os seus traços, relaxados, tinham tomado uma expressão duma extraordinária serenidade.

‑ Sinto que isso me faz bem ‑ murmurou. ‑ É como sob os raios infravermelhos, mas muito mais suave. É muito bom...

Louise Herbrandt assistia àquele espectáculo quase sem ousar respirar. O coração batia‑lhe com força e as mãos, que tinha cruzado, estavam húmidas de suor. Como Corina tinha finalmente dado um passo para trás e voltava a puxar as mãos para si, disse numa voz cavernosa:

‑ Não consigo desembaraçar‑me desta ciática... Também me pode ajudar?

‑ Já o fiz.

Pegara num cigarro que estava numa mesa vizinha e aspirava avidamente o fumo. "Funciona, funciona!", dizia para si mesma. "A minha força voltou. Mas porque é que as minhas mãos ficaram mortas quando se tratou de Roemer?"

‑ já o fez... ‑ gaguejou Louise Herbrandt. ‑ Mas quando?

‑ Enquanto esteve a ver os desenhos de costas voltadas para mim.

‑ Mas não senti nada!

‑ Mas eu sim. E isso é que é importante.

As duas mulheres partiram para M'nster uma hora mais tarde. Tinham feito as suas encomendas, mas o que contava, sobretudo, para elas era a alegria que sentiam.

‑ Que sensação extraordinária ‑ dizia Hildegard Benke. ‑ Foi uma sensação extraordinária, melhor do que com um homem ‑ ousou dizer olhando de soslaio para a amiga. ‑ Disse‑nos para voltarmos mais quatro ou cinco vezes e que depois já não teríamos nada. Achas que é possível, Louise?

‑ Creio que sim. já me sinto muito melhor.

‑ De facto, ela é maravilhosa.

Durante os três dias seguintes, a história daquelas curas miraculosas circulou através de M'nster e arredores, como um gás que se espalhasse por toda a parte.

O destino de Corina Doerinck, para o bem ou para o mal, tinha começado a cumprir‑se.


 

A mesa dos habitués é uma instituição alemã.

Cada café possui uma destas mesas, em geral isolada e reservada a certos clientes fiéis, e ninguém, além destes, ousa lá sentar‑se. Estes habitués pertencem frequentemente à mesma profissão ou são colegas ou antigos alunos desta ou daquela instituição, que gostam de confraternizar.

Ao fazer um desvio pela "mesa dos médicos" de M'nster, Willbreit ia ter a confirmação do que temia em segredo que acontecesse desde há algum tempo.

Como todas as cidades com universidade, M'nster tinha uma série de cafés e cada um deles se orgulhava das mesas que possuía reservadas aos membros dos conselhos de direcção das diversas faculdades, reminiscência das corporações feudais, e onde, fora dos engates e das bebedeiras de estudantes, os antigos alunos se reuniam uma vez por semana ‑ ou, pelo menos, uma vez por mês ‑ para trocarem impressões e experiências. Uma das mais interessantes era a mesa dos médicos, não tanto por causa das personalidades conhecidas que as frequentavam, mas sobretudo por causa da diversidade e do confronto de temperamentos e de pontos de vista. Uma mesa de padeiros é bonacheirona e agradável; copos e canecas de cerveja fazem brindes sem cessar na dos homens do talho; na dos médicos, pelo contrário, consegue‑se discernir, apesar de larvar e invisível, um certo espírito invejoso. A sua rivalidade é subterrânea, mas real, e provoca choques amortecidos em que cada um se mede constantemente em relação aos outros‑ Até hoje não foi preciso nenhum psicólogo nem nenhum filósofo para explicar como é que os membros desta corporação conseguem apertar jovialmente as mãos uns aos outros e Parecer bons camaradas, quando é absolutamente certo que não se estimam muito entre eles.

Willbreit nunca deixava de aparecer nas reuniões regulares dos seus confrades no restaurante Zum Alten Speicher (O Velho Celeiro), a menos que fosse impedido de o fazer por uma operação difícil. Isso acontecia, aliás, raramente, pois estas reuniões só tinham lugar às sextas‑feiras, dia em que havia poucas operações, a não ser que se tratasse de uma urgência.


Ainda não tinha conseguido ter com Roemer a conversa razoável que se impunha. A empregada respondia sempre que o senhor presidente saía de manhã cedo e só voltava à noite, muito tarde, sem nunca dizer onde ia. Quanto à senhora, tinha telefonado da Hungria, onde ficaria mais oito dias na esperança de defrontar o urso prometido. "Tratava‑se dum animal inteligente", pensara Roemer, visto que fugia de Elise da mesma maneira que ele. Aquele atraso da mulher enchera‑o de alívio: dava‑lhe tempo para organizar a sua morte, o que faria muito melhor sem Elise, cujos gemidos ‑ sim, porque ela gemeria, evidentemente ‑ só o irritariam. E o que contava mais para ele eram justamente os seus nervos e a sua solidez. Durante dois dias, perguntara‑se se devia dar um tiro na cabeça para evitar as dores que acabariam por chegar. Tinha, pois, comido as suas refeições e bebido as melhores garrafas de vinho tinto diante da pistola, embebedando‑se o mais conscienciosamente possível, na esperança de ter coragem de pegar na arma, de a apontar à têmpora ‑ ou, ainda melhor, de introduzir o cano na boca ‑ e de fazer uma pausa antes de curvar o indicador. Até então Roemer nunca tinha podido compreender o suicídio. Do seu ponto de vista, não havia desespero suficientemente grande para que um ser razoável lhe sacrificasse as belezas da vida. Nada, julgava, era irremediável. Mas eis que o próprio corpo lhe provava o contrário: há situações em que mais vale capitular perante a dor mesmo antes de ela se anunciar. Ao fim de três dias de dúvida, tinha emergido do fundo do abismo. Relegou a pistola para o classificador do seu escritório e começou a percorrer de carro os campos próximos, sem direcção certa. Descobriu uma província de M'nster que lhe era desconhecida, comendo em albergues rústicos presunto da pá com pão branco grosseiro, petiscando salsichas fumadas, deliciosas mas duras como pedra depois de terem sido secas ao ar, engolindo por cima grandes goles de aguardente branca proveniente de alambiques privados. Acontecia‑lhe ficar horas sentado na borda de um regato ou à sombra de uma árvore enorme. Contemplava as manadas de vacas, meneava a cabeça quando uma delas se esforçava por saltar em vão para a garupa de outra e gritava: "Sua pega!" Admirava o ímpeto e a elegância dos cavalos que galopavam loucamente num prado. Uma vez tinha surpreendido na orla dum bosque um par de namorados que ocupavam o tempo da maneira mais agradável do mundo: saudou‑os cortesmente antes de dizer ao jovem estupefacto: "Dantes trazia sempre na mala do carro um cobertor para tais ocasiões: a erva pode causar estragos no traseiro da bela desejada... "

E a alma recuperara, com a calma, o equilíbrio. O inevitável, o irremediável, perdeu tudo o que comportava de aterrador. Ignorava o que se passaria quando o sofrimento começasse e os seus olhos lhe revelassem o seu declínio físico. Só havia uma questão que continuava a ter peso no seu espírito por não ter resposta: porque é que as mãos de Corina não tinham nenhum efeito nele e somente nele?

Na mesma noite em que Willbreit, sentado à mesa dos médicos, ouviu dizer que uma curandeira, numa aldeia até então praticamente desconhecida, chamada Hellenbrand, operava curas milagrosas, Roemer decidiu telefonar a Corina.

‑ Como tem passado? ‑ perguntou.

Era idiota, sabia‑o, mas por onde é que poderia começar?

‑ E o senhor, como tem passado?

Consolou‑o ver que a pergunta dela era tão idiota como a sua.

‑ Tenho andado a voltar‑me do avesso como se fosse um fato velho. E sinto‑me exactamente como o alfaiate que o faz. Pergunto‑me se o avesso é melhor do que o direito. Descubro constantemente coisas de que não tinha a mínima ideia. Sabe o que vou fazer? Vou dar a volta ao mundo. Os mares do Sul, a áfrica, a América do Sul e a Austrália. Ainda tenho tempo para isso. O que é que acha? E se o pano cair definitivamente em Hong Kong ou no Rio de janeiro, que interessa! Pouparei assim os momentos difíceis aos que me são próximos. E, verdadeiramente, tem alguma importância que a terra que me irá cobrir seja a do Brasil ou o solo do velho cemitério de M'nster onde está o nosso jazigo de família? Já cá não estarei, de maneira que já chega...

Corina ouviu no aparelho a sua típica respiração: ele necessitava mesmo de encher de ar todos os recantos dos pulmões.


‑ Que diz a tudo isto? Eis‑me mergulhado num optimismo quase oriental.

‑ Viu o professor Willbreit?

‑ Não. Mas esse malandro não me deixa um minuto descansado. Tenta seduzir a minha empregada. Coitada dela se lhe revelar onde estou! Violá‑la‑ei, simplesmente. E ela sabe‑o: ameacei‑a de o fazer. ‑ Deu uma enorme gargalhada, como antigamente. ‑ Respondeu‑me que nesse caso ia cortar a língua para ter a certeza de não falar. A propósito de língua, conhece esta anedota? Duas amigas encontram‑se. Uma delas, que acaba de ter a sua noite de núpcias, diz à outra...

Corina interrompeu‑o sem rodeios.

‑ Tem de ver Willbreit. Por favor, faça‑o.

‑ É exactamente como ele. Não tem sentido de humor.

‑ já não se trata de brincar nem de ter humor, doutor Roemer.

‑ Se você o diz... ‑ Parou para continuar numa voz mais insegura. ‑ Será que... Autoriza‑me a ir vê‑la, Corina? Só para fazer uma pequena tentativa.

‑ Telefonar‑lhe‑ei, doutor Roemer.

‑ Nunca me telefonará...

‑ Sim, prometo‑lhe.

‑ Quando?

‑ Quando sentir que lhe posso ser útil.

‑ E se não sentir isso? ‑ Era andar à volta da questão sem avançar um único passo. ‑ Esperarei, Corina. Se não estiver em casa deixe o recado à empregada. Mas, sobretudo, não o faça se for a minha mulher a atender. Obrigado, Corina.

Desligou logo a seguir, acendeu um cigarro e abriu uma garrafa dum Château qualquer de que bebeu um grande copo antes de telefonar a Willbreit.

Não foi Thomas, mas sim Lydia, quem respondeu.

‑ Fala Erasmus‑o‑Grande, rei da pândega! O teu serrador de ossos está em casa?

‑ O Thomas está no albergue, na mesa dos médicos. Tu costumas ir lá com ele. Pensava que lá estivesses.

"Muito bem, meu rapaz", pensou Roemer; "ainda não disseste nada sobre mim à tua mulher!"

‑ Um desgraçado dum magistrado não tem tanto tempo livre como um estripador. O teu marido abre uma barriga ao meio, secciona uma vesícula biliar, volta a coser, e já está. Mas um processo prolonga‑se às vezes por várias semanas e o dossier fica então com milhares de documentos que se tem de estudar a fundo, à noite, em casa.

‑ O que é que queres que diga ao Thomas?

‑ Nada de especial, visto ter ficado a saber que ele ainda está vivo... O que é essa música de fundo?

‑ Uma pequena reunião: tenho cá em casa as mulheres dos senhores médicos que preferem beber a sua cerveja e a sua aguardente na mesa que têm num albergue, enquanto evocam as touradas da juventude. Nós, as mulheres, encontramo‑nos aqui. É muito divertido. Só cá falta a Elise, que anda atrás de um idiota dum urso.


Até àquele momento, Roemer ignorava que as mulheres dos médicos também se encontravam. E o mais espantoso era que a Elise também ia: tal como ele, ela não conseguiria ser mais do que tolerada naquele meio puramente médico. Ele só o era por ter feito parte da mesma confraria de estudantes de Willbreit e devido à sua reserva de piadas picantes. Mas não era o caso de Elise. Devia, portanto, haver qualquer coisa nela que fazia com que os outros pudessem suportá‑la, ao contrário do que acontecia com ele. Ao pensar nela, lembrou‑se da história do casal que se encontra diante de uma pitão: o marido pensa ver‑se livre do bicho, que é perigoso, quando ouve a mulher dizer: "Ah! Que pele magnífica! Sonhei sempre em ter uma carteira assim."

Lydia Willbreit adivinhou‑lhe os pensamentos.

‑ Recebeste notícias da Hungria?

‑ Dois postais afectuosos da Elise.

‑ Parece que o barão é um homem o mais moderno possível...

Só as boas amigas são capazes de tanta perfidia. Roemer sentiu que os lábios se lhe contraíam como para cuspir de novo no aparelho. Lydia. Willbreit... uma galdéria igual às

outras. "Mas a mim já não me podes atingir, Lydia. Estou morto, percebes? E se a Elise não anda a caçar ursos na Hungria, mas a deixar‑se comer pelo barão, o que é que queres que isso me faça? Se tivesse de jurar que fui fiel durante um mês, mesmo durante o nosso primeiro mês de casamento, cometeria perjúrio...

‑ Eu conheço o barão, Lydia. É uma nulidade larvar. Quando a Elise quer sentir alguma coisa com ele, o desgraçado terá, certamente, de dobrar a gaita em duas.

‑ És ignóbil, Erasmus!

‑ Esse grito de alegria prova que tens prazer em escutar‑me‑ É a tua vez de me fazeres uma confidência: de vez em quando deve acontecer que o Thomas dispa as calças, não? Ora então, como é o seu regadorzinho?

‑ já chega? És um velho estupor!

Ela desliga. Roemer ri ainda, satisfeito com o rumo final da conversa. Enche a boca dum grande trago de Château não sei quê, saboreia‑o lentamente e aspira com voluptuosidade o fumo do seu havano. Lydia Willbreit, aquela destravada de aspecto frio e distinto, mas, afinal, quando se julga que só se lhe está a dar um beliscão nas nádegas, está‑se mas é a accionar um comutador duma linha de alta tensão... Willbreit acciona‑o com pouca frequência, é só isso...

Naquela noite, o telefone, colocado na mesa‑de‑cabeceira de Roemer, tocou várias vezes, sempre sem resposta. Roemer ficou calmamente à espera que o importuno se cansasse e abandonasse o seu objectivo. "Se for a Elise, é uma maneira de se economizar palavras. Seria Willbreit? É demasiado tarde, meu caro. O meu momento de fraqueza já passou. Além disso, estou bêbado. Completamente bêbado, como nos bons velhos tempos em que éramos estudantes, lembras‑te, quando tínhamos ambos o coração a transbordar de amor pelo mundo inteiro. Não me incomodes mais! Estou‑me totalmente nas tintas para tudo, absolutamente para tudo... "

‑ Quando é que ele telefonou?

Willbreit tinha acabado de chegar a casa. Parecia mais do que excitado. Parecia até transtornado.


As convidadas tinham‑se ido embora, mas ainda reinava por toda a casa um eflúvio de cigarros e de perfumes a que Roemer chamava "cheiro a caça". Lydia ouvira o regresso do marido. Isso raramente acontecia, mas as conversas sem complexos daquela reunião tinham‑lhe aquecido de tal maneira o sangue que lhe era impossível reprimir as suas batidas. Precisava de satisfazer o desejo que sentia. Porque não? Thomas ainda era algo de bastante especial na cama. Sobretudo imediatamente antes do orgasmo. Nessa altura todo o seu corpo se endurecia e os seus músculos pareciam subitamente de ferro. E quando ela começava a gritar, afundava‑se nela como impelido por um arco. Ela ficava a seguir com a impressão desagradável, e que não a abandonava, de ter sido violada...

‑ Há cerca de quatro horas. Hoje vieste mais tarde do que é costume.

Willbreit deu uma olhadela ao relógio dourado que estava em cima da chaminé. Era um autêntico relógio barroco, comprado num leilão da Foreman em Londres. Tinha‑lhe custado uma fortuna. Os ponteiros, igualmente dourados, indicavam que eram duas da manhã. De maneira que Roemer tinha telefonado por volta das vinte e duas horas. Devia ter necessidade de ajuda, de apoio...

‑ Como era a sua voz? ‑ perguntou prudentemente. Como querias que fosse, atroadora, como sempre!

Tinha‑se aproximado para se apoiar contra ele e acariciar‑lhe o peito e a seguir o ventre. Como a sua mão se aventurava mais para baixo, pegou‑lhe no pulso.

‑ Um instante, Lydia; o que é que ele disse?

‑ Porcarias, naturalmente! ‑ Com os lábios, aflorava‑lhe o nariz, a boca, fixando‑o com os olhos brilhantes e subitamente maiores. ‑ Anda... Larga‑me o pulso... Estou à tua espera há tanto tempo.

‑ Mas o que é que ele disse mais?

‑ Mais nada!

A contrariedade que sentia fazia‑a levantar a voz.

‑ Não vais ficar toda a noite a falar desse enorme porcino... Tom, meu querido...

Esfregava‑se contra ele e desprendeu a mão, que fez imediatamente deslizar para baixo, tacteando através do tecido das calças. Nos primeiros tempos de casamento, aquela carícia punha‑o louco. "Estás a conduzir‑te como uma pega... ", suspirava. "Como uma puta, compreendes?" Aquela ideia excitava‑o de tal maneira que começava a portar‑se com ela como um possesso, sobretudo quando ela lhe cochichava ao ouvido: "A partir de agora são cem marcos... duzentos marcos... e agora trezentos..." Era apenas um pequeno jogo anódino, afinal de contas aceitável no momento mas em tal circunstância... Os amantes que tinham precedido Willbreit tinham‑lhe ensinado perversões ainda mais ardentes com que sonhava cada vez mais, mas sem ousar consagrar‑se‑lhes...

Mas desta vez Willbreit deu um passo para trás. Os olhos de Lydia abriram‑se mais ainda, antes de se contraírem perigosamente como os dum gato. O seu vestido de cocktail, de tecido leve, abrira‑se e já não lhe dissimulava os seios. O seu rosto crispou‑se. Willbreit, sem sequer se aperceber disso, continuava com a sua ideia.

‑ Tenho de telefonar a Erasmus. Desculpa, Lydia,...

A explosão da mulher foi terrível.

‑ Desculpa! É tudo o que tens para dizer, é tudo O que podes fazer? Desculpa! A partir de agora, até podes suplicar‑me! Desculpa! Seu...


Faltavam‑lhe as palavras, nenhuma das que conhecia era suficientemente insultuosa nem convinha ao ultraje de que acabara de ser vítima. Num gesto brusco, ajeitou o vestido entreaberto por cima do peito, voltou‑se e abandonou a sala. Ao longe, bateram sucessivamente duas portas. Willbreit esperou que a calma voltasse, dirigiu‑se em seguida para a biblioteca e discou o número de Roemer.

Não respondia. Willbreit deixou tocar e tocar até a central lhe interromper a comunicação. Pousou o auscultador contrariado.

Então Roemer tinha‑lhe telefonado às dez horas da noite. Que quereria? Começava a ter dores? Seria um pedido de socorro? Era o momento de intervir, de tentar salvá‑lo, apesar das suas reticências? Para que Roemer, na situação que era a sua, lhe telefonasse tão tarde, devia haver uma razão válida. Sem dúvida precisava de ajuda.

Willbreit saiu da biblioteca apagando todas as luzes e tomou o corredor de comunicação para a garagem. Quando o Maserati, com os faróis acesos, irrompeu na alameda privada que ia dar à estrada, ela arremessou‑se contra a janela do quarto e pôs‑se a gritar como se o marido a pudesse ouvir, apesar do barulho do motor e da espessura do vidro em que ela batia com os dois punhos. Estava completamente nua e todo o seu corpo tremia. Tinha um corpo muito belo, as ancas um pouco arredondadas, mas as pernas e os seios continuavam a ser uma maravilha.

‑ Nunca mais, ouviste? ‑ Mordia o punho direito com a raiva. ‑ Nunca mais voltarás a tocar‑me! Porco! Impotente! Vou arranjar um amante! Sim, quero que o saibas! Um amante que não seja um impotente como tu e que nunca me repelirá. Um homem, um verdadeiro homem que me fará gozar durante horas... E trá‑lo‑ei aqui, à minha cama!

E tudo acabou numa crise de soluços naquela cama onde, apesar de tudo, fazia falta o homem que acabara de insultar. Por fim, abandonou‑se a uma verdadeira crise de nervos, batendo com os pés como uma criança.

Willbreit investiu a porta e as janelas da gigantesca moradia de Roemer, que era um bloco de silêncio mergulhado na obscuridade, durante meia hora. Era a noite de folga da empregada, que a fora passar a casa do namorado. Roemer estava sozinho, completamente abatido pelo álcool. Do seu quarto do primeiro andar não conseguia ouvir a campainha da porta. Willbreit, com as mãos à volta da boca como se fosse um altifalante, gritava de vez em quando o nome do amigo, mas a casa permanecia muda e morta.

Veio‑lhe então ao espírito a ideia de entrar partindo o vidro de uma janela ou deitando abaixo a porta das traseiras. A empregada estava de folga, com certeza. Elise na Hungria. Erasmus achava‑se portanto sozinho, abandonado por todos, e tinha‑o chamado. Devia estar num estado terrível. Isso justificava um procedimento daqueles.

Ainda deu várias vezes a volta à casa procurando uma janela entreaberta ou uma porta que alguém se tivesse esquecido de fechar. Em vão. O que aconteceria se partisse um vidro da janela da cozinha? Sabia que Roemer tinha equipado a casa com um sistema de alarme dos mais aperfeiçoados e que estava ligado directamente à Polícia, onde se acenderia imediatamente uma luz vermelha. Como explicar aos polícias que apareceriam que um médico tem o direito de se introduzir, seja por que meios for, junto dum doente em perigo? A lei não previa nada para um caso daqueles. Que situação absurda!


Decidiu arriscar tudo. Com um golpe de cotovelo partiu o vidro da janela da cozinha e, introduzindo o antebraço no espaço livre, deu a volta ao puxador da porta sem qualquer dificuldade. Parou com o coração a bater. Nada! Nem sirena, nem lâmpada vermelha a acender e a apagar, nem projectores que deveriam iluminar a casa inteira e o parque com uma luz ofuscante. Talvez se tratasse de um sistema de alarme silencioso? Talvez só a Polícia fosse alertada para que o ladrão, sentindo‑se em segurança, fosse apanhado em flagrante? A armadilha era perfeita e inaudível. Deu consigo na cozinha passando pela despensa e chegando depois ao hall, gigantesco como tudo o resto. Ali era o limite máximo para que a sirena se pusesse a uivar. Tudo continuou silencioso. Certamente Roemer tinha negligenciado ligar o sistema de alarme antes de se deitar. Quando Elise estava em casa, nunca se esquecia de o fazer, porque tinha um medo quase patológico dos ladrões. Uma vez, Roemer, enervado, perguntara‑lhe na sua voz mais atroadora:

‑ Porque é que tens medo dos ladrões? Tens verdadeiramente medo de seres violada? Olha que os ladrões não são masoquistas!

Coisa curiosa, Elise não protestara. Só o fez na manhã do dia seguinte, depois de ter procurado no dicionário a significação exacta de "masoquista", que não conhecia.

Por vingança, dois dias mais tarde enganara Roemer com o Dr. Vollrath, veterinário em Greven, e que até àquele momento se tinha limitado a tratar dos cães de Elise. Dizia‑se, sem dúvida erradamente, que Roemer o tinha sabido e que afirmara que aquele pobre veterinário nunca mais voltara a repetir o feito por achar que os cuidados dispensados a uma mulher como Elise eram mais estafantes e menos lucrativos dos que os que prodigalizava aos animais.

Willbreit conhecia bastante bem a imensa moradia, por lá ter ido muitas vezes com Roemer, mas desconhecia a localização exacta do seu quarto. Sabia apenas que ficava no primeiro andar, que dava para o parque pelas traseiras da casa e que tinha uma sala de vestir e uma casa de banho dum luxo orgíaco a separá‑lo do quarto de Elise. A casa de banho decompunha‑se, por sua vez, em três partes: um primeiro espaço com uma banheira‑piscina e um duche, um segundo espaço ocupado por uma mesa de toilette de proporções colossais e um conjunto de aparelhos de ginástica presos à parede de que Roemer nunca se servia evocando que a aquisição da barriga que tinha lhe custara uma fortuna e não desejava vê‑la desaparecer em gotas de suor; e finalmente um W. C. onde passava longas horas a estudar os dossiers e a ler. Até lá tinha mandado instalar uma pequena biblioteca de literatura erótica e de aventuras. "É uma das minhas mais grandiosas ideias", gostava de dizer, "pois combina simultaneamente todas as alegrias deste mundo."

Willbreit chamou mais uma vez "Erasmus!" em voz alta primeiro e a seguir gritando. à parte um fraco eco proveniente do lado esquerdo do hall, o silêncio continuava a ser impressionante. Não costumava Roemer dizer: "Quando durmo nem sequer ouviria um vulcão que fizesse irrupção entre as minhas nádegas!"?


Portanto, não havia nem alerta nem resposta. Willbreit subiu rapidamente a imponente escada com corrimão duplo e abriu a primeira porta que lhe apareceu ‑ era a da sala de Verão, julgou recordar‑se. Mas tratava‑se do quarto de Elise, decorado em rococó branco e dourado e com uma profusão de tules do mesmo cor‑de‑rosa dos lençóis de seda e da colcha. Neste monumental quarto de bonecas, que correspondia exactamente ao gosto de Elise, Roemer só entrava suspirando profundamente. Devia sentir‑se nele como um elefante numa loja de porcelana. Mas sentira essa impressão durante toda a sua vida: Jovem licenciado, doutor em Direito, futuro presidente do tribunal, tinha captado a atenção do pai de Elise, um comerciante que ficara rico e fizera as seguintes contas: dum lado, os títulos universitários, uma forte personalidade e as futuras honras; do outro, dinheiro e luxo sem limites. Que mais se pode desejar para constituir um casal harmonioso?

Willbreit não podia deixar de continuar a sua exploração. A porta seguinte dava para um toucador na acepção exacta da palavra, mas que era simultaneamente um salão de beleza com grandes espelhos forrando as paredes, uma mesa de maquilhagem, um painel de perucas de cores diferentes, acessórios de cabeleireiro com secador para permanentes e ainda uma instalação de radioterapia, com raios ultravioleta... Vejamos a porta seguinte, disse Willbreit para si mesmo.

E acertou. Era impossível alguém enganar‑se com aquele cheiro a álcool que lhe assaltou as narinas. Roemer, como se estivesse em exposição num catafalco, encontrava‑se prostrado numa cama especialmente construída para ele, mais larga e mais longa do que uma cama normal e com molas muito mais resistentes. O candeeiro da mesa‑de‑cabeceira ainda estava aceso e projectava uma luz difusa sobre o conjunto do quadro. Em cima do tapete de seda encontravam‑se duas garrafas de Borgonha de pé, e vazias, naturalmente. Roemer ressonava suavemente, com a boca semiaberta: primeiro, para inspirar, um assobio, e a seguir, para expirar, um ronco abafado; o conjunto evocava o barulho duma velha locomotiva ferrugenta que começasse a trabalhar com enorme dificuldade.

Willbreit sentou‑se na borda da cama e contemplou longamente o amigo. Como todos os que conheciam Roemer, não pôde deixar de pensar que era impossível que aquela montanha de músculos e de carne, aparentemente irradiando saúde, estivesse condenada a desaparecer dentro de apenas alguns meses. De qualquer maneira, Roemer não o tinha chamado para lhe gritar "socorro", pois se assim fosse o vinho tinto não teria conseguido acalmar‑lhe as dores.

‑ Erasmus ‑ chamou em voz alta, inclinando‑se para Roemer. ‑ Estás a ressonar! Acorda!

Tinha‑o agarrado pelo ombro e começou a abaná‑lo sem cuidado. Como o outro mal entreabria os olhos, sem conseguir abri‑los completamente, deu‑lhe, não sem um enorme prazer, uma bofetada formidável. Roemer, em sobressalto, sentou‑se na cama, estupefacto, antes de lançar um verdadeiro bramido.

‑ És tu? Meu Deus, será que já estou no Inferno?

‑ Ainda não, Erasmus. O que é que se passa?

Roemer já estava completamente desperto. Lançou à sua volta um olhar cada vez mais espantado.

‑ Mas como é que entraste? A Magda, a empregada, não está cá... A não ser que a Elise já tenha morto o seu urso...

‑ Fiz um buraco na janela da despensa. Naturalmente, reembolsar‑te‑ei do vidro.

Roemer consultou o pequeno despertador que estava em cima da mesa‑de‑cabeceira.


‑ Nesse caso, a polícia deve estar a chegar a qualquer momento. Naturalmente, vão prender‑te e eu não farei nada para os elucidar. Pelo contrário, dir‑lhes‑ei que nunca vi tal indivíduo. Mesmo que te libertem mais tarde, terás de ir com eles à esquadra. Que rica história para contar a toda a cidade!

- Mas tu telefonaste‑me, Erasmus! ‑ insistiu Willbreit sem se deixar impressionar.

‑ Telefonei e foi a tua Lydia quem me respondeu. Tinha reunido lá em casa as senhoras que se sentem insultadas pelos vossos ágapes de médicos na vossa mesa reservada. Deve lá ter havido um cacarejamento igual ao dum galinheiro.

‑ Mas o que é que me querias?

‑ Nada.

‑ Não se telefona para casa de ninguém às dez horas da noite sem ter uma razão!

‑ Há sim, eu!...

já há algum tempo que lambia os lábios tentando em vão humedecê‑los.

‑ Estou mesmo com uma ressaca e tenho uma destas sedes... Thomas, sê ao menos uma vez um verdadeiro amigo: vai buscar‑me qualquer coisa à cozinha antes de a Polícia te prender.

‑ água mineral?

‑ Ainda não cheguei a esse ponto de depravação. O frigorífico contém uma reserva da melhor cerveja.

‑ Já não tens direito a uma só gota de álcool.

‑ Vou fazer‑te uma pergunta! Introduziste‑te na minha casa na qualidade de amigo ou na de médico que só vem arranjar histórias? ‑ Deitou uma olhadela ao despertador. ‑ Mas o que é que a Polícia anda a fazer)

‑ Quando te esqueces de ligar o sinal de alarme, não há alerta!

Olhando espantado para a lâmpada vermelha de controlo, colocada num canto do quarto, Roemer verificou que ela estava apagada.

‑ Merda! ‑ disse. ‑ Temos uma destas sortes. Teria gostado tanto de te ver ser levado entre dois polícias. E assim ter‑me‑ias ouvido: "Se esse indivíduo pretender que é o professor Willbreit, não lhe dêem ouvidos! O professor Willbreit é um amigo meu, não precisa de se introduzir na minha casa às ocultas!" Infelizmente, correu tudo mal hoje!

‑ Ontem, queres tu dizer... Mas o que é que se passou? ‑ perguntou Willbreit com a curiosidade imediatamente desperta.

‑ Ora bem, falei com Corina Doerinck...

‑ Ah, ah!...

‑ Não... Não faças "ah, ah!"... Ela recusa‑se a tratar‑me, ou, melhor, não pode fazê‑lo!

‑ É para admirar. Por enquanto, o tumulto que provoca junto dos doentes ainda é limitado. Discutimos justamente sobre isso na nossa mesa.

‑ Então ela obteve novos triunfos...

Balançou‑se na cama para tirar de debaixo do edredão duas pernas maciças como pilares e sentou‑se soprando e gemendo. Naquele pijama de seda vermelha‑escura, parecia um ser colossal vindo de outro planeta, mas com formas ainda assim humanas.

‑ Digamos que ela é um factor de tumultos. Em Hellenbrand passam‑se coisas incríveis. Conheces o doutor Viebieg?

‑ Que raio de pergunta! ‑ Ia e vinha como um elefante dentro do quarto, abrindo armários e gavetas, à procura


de qualquer coisa para beber no sítio onde geralmente se encontrava uma garrafa de reserva, mas desta vez sem resultados. ‑ Sim, conheço esse "higienista" que se desinfecta todo antes de dormir com a mulher!

‑ Foste tu que inventaste essa história, Erasmus!

‑ Não gosto dele ‑ disse Roemer, como uma criança amuada.

‑ Uma das suas pacientes é Louise Herbrandt, a mulher de Eduard Herbrandt, o fabricante do 85 Y.. Sim, aquela coisa com yornhibina... Há três anos que ela sofria de uma ciática aguda. Tinham‑lhe aconselhado uma operação. Ela descobriu Corina Doerinck, foi vê‑la e deixou de ter dores desde há dois dias. Elogia de tal maneira a rapariga que creio que dentro em breve vão convergir para Hellenbrand autocarros cheios de peregrinos! Houve já pacientes que perguntaram a quatro dos meus colegas: "já ouviu falar da tal Corina?" Podes imaginar a atmosfera que reinava na mesa. A notícia vai alastrar como um incêndio no mato.

‑ E vocês vão formar uma falange para marchar sobre Hellenbrand.

‑ Ainda não. Estamos à espera, é preciso ver como é que as coisas vão evoluir. Para intervir, precisamos de provas. A questão que se levanta é de ordem jurídica, Erasmus: a partir de quando é que se pode invocar um parágrafo da lei respeitante à vigarice ou à usurpação dos direitos dos médicos?

‑ Estás realmente à espera de que eu te dê um conselho, Thomas? Pois bem, esquece‑me. Dirige‑te a outro jurista. E ouve‑me bem: somos e continuaremos a ser velhos amigos, mas deixemos o caso Corina Doerinck fora da nossa amizade. Aí as nossas posições são diametralmente opostas. ‑ Soprou ruidosamente. ‑ Meu Deus, que sede tenho! Vamos ao bar.

Deixando Willbreit sentado na borda da cama, saiu do quarto. Ao fim dum instante, Willbreit teve de se levantar para o seguir, contrariado, e de ir ao seu encontro lá em baixo. Instalado no bar entre o grande salão e a sala de estar, que mais parecia um salão de festas, Roemer bebia pelo gargalo uma cerveja tirada do frigorífico.

‑ Cerveja gelada! Mas tu és louco! Queres matar‑te!

A cerveja restituíra a Roemer toda a sua combatividade e foi numa voz atroadora que se dirigiu a Willbreit.

‑ Vocês querem dar cabo de Corina Doerinck? A cruzada dos médicos contra o que não compreendem. São um rico grupo de torcidos, são!

‑ Pensa um instante no mal que ela pode fazer. ‑ Pegou numa garrafa que estava na prateleira e foi buscar um copo onde a seguir serviu um uísque. ‑ Com as suas manigâncias mágicas, dá aos doentes esperanças que nunca poderão realizar‑se, o que os leva a deixar passar o prazo em que um tratamento a sério poderia ser eficaz. Esse tempo perdido é irrecuperável. A demora pode ser mortal. É um acto criminoso. Conseguem estabelecer que ela tenha dito a alguém: "Não vá ver um médico, venha ter comigo e curá‑lo‑ei... "?

Com efeito, é esse o problema ‑ disse pensativamente Willbreit bebendo o seu uísque.


Evitava prevenir Roemer da decisão tomada pelos médicos durante a última reunião na mesa reservada: o Dr. Richard Wewes, pneumologista, tinha‑se oferecido como voluntário para uma missão de grande importância. Iria ver Corina Doerinck como se fosse um doente e submeter‑se‑ia às suas "cariciazinhas", como diziam entre eles para troçarem dela. Esperavam recolher, assim suficientes acusações para poderem incriminá‑la. "É preciso atacar o mal pela raiz, desde o inicio", declarara o Dr. Viebieg, magoado pelo abandono de Louise Herbrandt. E prosseguira a sua diatribe, dizendo: "Não temos o direito de deixar desenvolver uma nova vaga de superstição na nossa cidade. Não há nada de mais catastrófico do que espalhar a inquietação nos doentes."

O Dr. Wewes tinha a intenção de ir a Hellenbrand no sábado e de encostar Corina à parede. Fingiria sofrer de um adenocarcinoma no pulmão, doença particularmente dissimulada visto tratar‑se da complicação de uma estrutura já cancerosa e que, no seu primeiro estádio, não altera o estado geral do doente. Se Corina tivesse a infelicidade de dizer: "Vou curá‑lo", nenhum outro testemunho seria necessário para a esmagar.

Roemer, depois de ter engolido a sua cerveja, arrotou voluptuosamente e sentou‑se numa das vastas poltronas de couro da sala.

‑ Já alguma vez, Thomas, te perguntaste se esta Corina tem realmente algo de extraordinário que consistiria numa emissão de forças efectivamente incompreensíveis mas que curam?

Tinha estendido os dois pilares que lhe serviam de pernas e olhava, interessado, o jogo dos dedos dos pés. Com a pressa de beber alguma coisa, tinha‑se esquecido de pôr os chinelos e descera descalço.

Willbreit, servindo‑se de um segundo uísque, reflectiu:

‑ Estudei a questão a fundo. Por mais tolerante que se seja, há coisas que não se podem admitir. Um verdadeiro homem de ciência (e um médico saído das nossas faculdades é um homem de ciência) só pode abanar a cabeça de incredulidade, diante de coisas como bioplasma, emanações misteriosas, telecinesia, visão cutânea, bioenergia, etc. Lembro‑me do que disse o grande Virchow durante uma discussão sobre a alma: "Autopsiei milhares de seres humanos e nunca vi uma única alma." E com a parapsicologia passa‑se o mesmo.

‑ Mas esse Virchow não é também o homem que bateu na cabeça a rir quando Robert Koch apresentou a sua teoria dos bacilos e dos vírus? "Animaizinhos no sangue!", exclamou no anfiteatro da Charite. "Ora, meus senhores... ", e voltou a bater na testa como se Koch fosse um idiota. E desataram todos a rir! E, no entanto, quem é que tinha razão, Virchow ou Koch?

‑ Isso é um falso exemplo! A medicina progrediu desde então e continua a progredir, mas não no sector das curas milagrosas. Os milagres não existem do ponto de vista científico. Tudo se explica por uma sucessão de causas e de efeitos.

‑ E as radiações das mãos de Corina?

‑ Esse género de raios não existe!

‑ No entanto, ela curou o cancro que a mãe tinha no cólon.

‑ Espera, Erasmus! A verdade aparece sempre, é só uma questão de tempo.

‑ Então ainda estás à espera de que Ludmila Doerinck venha a morrer do seu cancro?


‑ Meu Deus, que maneira de se exprimir! Nunca desejei ou esperei a morte de alguém. Receio a morte de Ludinila Doerinck, até porque terei de assistir, sem poder intervir, ao seu fim inelutável. É para mim uma situação terrível, compreendes? Uma operação podia salvá‑la da morte, mas, como a sua filha se lhe opôs, a mãe vai falecer miseravelmente. E tenho de suportar isto! Não terei então o direito de me indignar? Pôr fim à actuação dessa Corina não será até uma obrigação moral?

‑ E se a Ludmila Doerinck continuar a viver?

‑ Acho isso absolutamente impossível.

‑ Acho melhor repetir as tuas próprias palavras: esperemos! ‑ E tu? ‑ ousou perguntar finalmente Willbreit, pressentindo a resposta do amigo. ‑ Eu? Esperarei também.

‑ Mas o quê?

‑ Que Corina me diga: "Agora pode vir ver‑me!"

‑ Se ainda fores capaz de te deslocares!

Eram palavras muito duras, mas que Roemer varreu com um gesto da mão como se não tivessem qualquer importância. Willbreit insistiu.

‑ Recusas‑te então a ser operado?

‑ Recuso. Foi por isso que vieste ver‑me?

‑ Também foi por isso.

‑ Então, fica‑te pelo uísque. É o único meio que te resta de evitar que eu te ponha na rua.

Uma hora mais tarde, Willbreit deixou Roemer para voltar para M'nster. Lydia dormia profundamente quando ele penetrou no quarto nas pontas dos pés. Estava estendida, nua, muito bela, e parecia muito mais jovem com os cabelos soltos.

Depois de se despir, ficou nu, perto dela, interrogando‑se sobre se deveria acordá‑la tomando‑a nos braços. Tudo nela o incitava a fazê‑lo: as pernas estavam entreabertas e acordaria suspirando alto; os seus braços fechar‑se‑iam à volta dele e guiá‑lo‑ia logo para dentro dela. O seu sono nunca tinha sido demasiado profundo, ou realmente ou por jogo, para o fazer sentir‑se inoportuno.

Mas a recordação dos problemas do dia foi mais forte: deu a volta à cama para ir para o seu lado, enfiou‑se prudentemente sob a roupa a fim de não acordar Lydia. e, deitado de costas, cruzou as mãos atrás da nuca.

Pensou em Richard Wewes, que ia deslocar‑se a Hellenbrand. "Amanhã, à noite, já saberemos definitivamente o que se vai fazer", pensou. Wewes tinha prometido telefonar‑lhe assim que regressasse a M'nster.

Ficou muito tempo acordado na obscuridade. Ouvia Lydia respirar calmamente. Finalmente voltou‑se para ela e estendeu a mão na direcção do seu seio redondo e firme. O corpo de Lydia, ficou completamente tenso sem que ela acordasse. E foi assim que ele adormeceu, para mergulhar imediatamente num sonho totalmente absurdo: não era Lydia quem se encontrava ao seu lado, nem era dela o seio que apertava na mão, mas sim Corina Doerinck. E era de uma beleza sobrenatural. O seu corpo esplêndido encontrava‑se mergulhado numa aura dourada.

 


Guiando‑se pela descrição que Willbreit lhe fizera, o Dr. Richard Wewes encontrou facilmente o atelier de Corina. Quanto mais se aproximava do círculo de árvores que rodeava a velha granja restaurada, mais crescia a sua curiosidade e a tensão em que se encontrava o seu espírito. Willbreit prevenira‑o de que aquela "feiticeira" era de uma extraordinária beleza do tipo caucasiano, ou seja, que já possuía alguma coisa de asiático, como o indicava os seus olhos ligeiramente oblíquos e os cabelos, de um negro de azeviche, mas estranhamente salpicada de pontos dourados. O mais fascinante nela eram as mãos, longas e esguias, quase só dedos, dissera Willbreit, e quando ela as encurvava ligeiramente, os dedos e as palmas tomavam a forma de espelhos parabólicos.

‑ Mas o Thomas fala dela como se sonhasse em tê‑la nua na cama ‑ exclamara o Dr. Viebig. ‑ Tem cuidado, meu caro, não te deixes acariciar nalguma zona sensível!

E o ginecologista do grupo, o Dr. Marxheit, acrescentara:

‑ Se as mãos emitem irradiações, imagina o que se passará entre as coxas!

Uma mesa de médicos não difere, decididamente, em nada de uma sala de estudo de rapazes.

O Dr. Wewes já se encontra diante da granja. No pátio estão estacionados seis outros carros além do seu. Que interessa! Quanto maior for o número de testemunhas, mais fácil será desvendar a impostura. à priori, é de excluir a ideia de que seis compradores ou compradoras de tapetes se encontram por acaso num local tão isolado: é evidente que esta afluência deve ter outra razão.

Recapitula uma vez mais os sintomas de um adenocarcinoma: ataques virulentos de tosse, expectorações de muco e ausência de dores. Uma radioscopia permite diagnosticar no máximo uma banal pneumonia crónica, o que induz os médicos em erro. "Se esta Corina sabe o que diz, deve mandar‑me imediatamente para um especialista dos pulmões."

Na sala de exposições encontra quatro senhoras desconhecidas que vão e vêm como se estivessem em casa, conversando enquanto vasculham nos caixotes dos desenhos. Calam‑se quando ele entra e respondem com uma simples inclinação da cabeça à sua saudação: "Minhas senhoras..." Tem a impressão de estar a mais; a sua presença incomoda‑as indiscutivelmente: as mulheres preferem falar das suas doenças entre si.

Finge interessar‑se pelas amostras penduradas nas paredes. Admite, contrafeito, que algumas delas são pequenas obras‑primas: esta Corina Doerinck é certamente uma artista. Quebrando o silêncio que se prolongava, perguntou bruscamente:

‑ A jovem artista que faz estas obras está?

o silêncio parece tornar‑se ainda mais denso. As senhoras olham‑no fixamente, sem uma palavra, até uma delas declarar:

‑ Está aqui ao lado, no atelier de tecelagem, mas encontra‑se ocupada.

‑ E as senhoras também estão à espera dela?

‑ Sim, cada uma entrará na sua vez.

‑ Como se estivessem no médico, é?

A sua graça e o risinho que a acompanhou não encontraram eco Junto das quatro senhoras. Felizmente, a porta do atelier acaba de se abrir, o que põe fim ao seu embaraço. Dele sai uma quinta mulher com o rosto transfigurado. Começa logo a abrir a boca para falar, mas quando se apercebe da presença de Wewes cala‑se imediatamente. E como as outras a olham com ar interrogador, esta cliente, manifestamente feliz, inclina a cabeça com ar entendido. Depois, apoiando um lencinho contra as narinas, vai‑se embora. Dir‑se‑ia que um ligeiro suspiro colectivo de satisfação enche a sala...

Wewes retém involuntariamente a respiração quando Corina Doerinck aparece. Com um gesto, convida a cliente seguinte a segui‑la.

O olhar que lhe lança é um jacto de aço em fusão.


Ainda é mais fascinante e mais bela do que ele imaginava. E também tem imensa classe, pensa. Se Roemer, esse porco, a visse, rugiria: "Quando eu mandar, agarrem‑se às braguilhas para as impedir de saltar!"

- Bom dia ‑ diz ela, e a sua voz é uma carícia tão sensual como deve ser uma série de vibrações que ressoam no ar. É efectivamente a ele que ela se dirige. ‑ Não o ouvi entrar. Em geral, a campainha avisa‑me quando entra alguém.

‑ A porta estava aberta.

‑ Então foi por isso.

E de novo o fixa com aquele olhar ardente que desmente a amabilidade das palavras e que penetra nele como se fosse uma sonda.

‑ Atendo‑o já de seguida. Enquanto espera, veja estes desenhos, que já lhe darão uma ideia do que posso fazer.

. Uma das quatro clientes já desapareceu no atelier, mas Corina não se apressa a ir ao seu encontro. O seu olhar continua a fixar‑se nele, causando‑lhe uma impressão tão desagradável que se volta para a parede a fim de examinar as obras que nela estão penduradas. Mas o que continua a ver são os olhos dela e o seu rosto excepcional, único, enfeitiçador... o que a torna ainda mais perigosa, pensa. Sob o efeito daquele olhar, perde‑se o contacto com a realidade. A seguir, dá consigo a levantar os ombros como se quisesse proteger a nuca contra aquela espécie de queimadura que continua a sentir. Só quando ouve o barulho da porta do atelier a fechar‑se recomeça a respirar normalmente.

Corina volta quatro vezes à sala, e à quarta é a vez dele. Umas atrás das outras, sucederam‑se no atelier as quatro pretensas clientes e só lá ficaram cerca de cinco minutos, saindo precipitadamente a fim de se meterem muito depressa nos respectivos carros, quase não prestando atenção à saudação e ao sorriso com que ele as gratificava quando passavam.

Quando fica sozinho na sala de exposições, apercebe‑se de que o coração lhe bate mais rapidamente. Dá‑se um abanão, furioso consigo mesmo. Encontra‑se aqui com um objectivo bem preciso: confundir aquela intrigante, de quem nada há a recear.

‑ Finalmente, aqui estou.

Sai do seu torpor: Corina, à sua frente, acaba de se despedir da última cliente. Em vez de o levar para o atelier, ela senta‑se numa das cadeiras que se encontram à volta da mesa onde estão os caixotes com os desenhos. Fuma avidamente um cigarro. Essa avidez choca o especialista dos pulmões que ele é. Se não estivesse a representar um papel, não poderia deixar de lhe falar dos brônquios e dos pulmões que ela está a destruir. É claro que ele também fuma, só que nunca engole o fumo. "Deveria fazer uma radiografia aos pulmões", pensou ele.

‑ Encontrou algum desenho que lhe agrade?

Wewes, volta à terra. Decididamente, esta mulher é perigosa.

‑ Previno‑o de que se se decidiu por algum modelo, terá de esperar pelo próximo ano para a entrega. Antes, é completamente impossível.


Continua a fumar muito depressa. Porque é que o seu espírito se dispersa daquela maneira até lhe escapar quase completamente? Porque há‑de estar a pensar nas cuecas verde‑claras que traz hoje? A sua mulher, Irma, ofereceu‑lhas por ele ser um grande caçador: "Um Nenirod como tu deve vestir‑se todo de verde", dissera, "desde as meias até ao chapéu, passando pela camisa e pela camisola interior, etc. Tudo deve ser verde!"

‑ Nesse caso terei de esperar... Quanto custa, por exemplo, esta tapeçaria?

Indica com o dedo o motivo Árvores Floridas. Apercebe‑se de que o tom da sua voz foi inutilmente seco.

‑ Por que razão cá veio, exactamente?

Ele esperava por tudo menos por aquilo. Corina apagou o que restava do cigarro, de que inalara todo o fumo, no cinzeiro de mármore. Wewes, com a mão direita, verifica se a sua cabeleira, que começa a ficar branca, está em ordem.

‑ Não compreendo... ‑ gagueja.

‑ Quem foi que me recomendou?

Não perde tempo. As máscaras caem. Mesmo assim, tem a presença de espírito de mentir.

‑ A senhora Herbrandt. A sua ciática quase desapareceu, o que me incitou a...

‑ De que se queixa?

Ela apanha facilmente o isco, pensou, mas as suas perguntas são as de um verdadeiro médico. Ele também tinha de referir isso no relatório. Caíste na armadilha, menina bonita...

Deita cá para fora a sua história: as tosses violentas, os escarros, os diagnósticos errados de vários médicos. Ela ouve sem dizer uma palavra até ao fim. E como continua calada, é ele que pergunta:

- O que é que acha?

O silêncio torna‑se cada vez mais pesado. Isto faz certamente parte da sua maneira de impressionar o cliente. Deixa‑o ferver em lume brando até estar bem cozido! Que requintes!

‑ Porque é que não tosse agora ‑ perguntou ela bruscamente.

‑ Mas eu não tusso a toda a hora. É esse o problema: há momentos em que a tosse me dilacera a garganta e o peito e há outros em que poderia subir ao alto duma montanha sem tossir. Com efeito, deveria tossir agora depois de ter falado tanto.

‑ Ora vejamos...

Ela levanta‑se, aproxima‑se dele e abre as mãos. Willbreit observou bem; proporcionalmente, são os mais longos dedos e as palmas mais esguias que já viu. Cada vez mais interessado, vê‑a inclinar a cabeça para trás e fechar os olhos enquanto as suas mãos passam e repassam a alguns centímetros da sua caixa torácica. Depois deslizam mais para baixo, chegam à altura do estômago, das ancas e do abdómen, e depois voltam a subir. Nessa altura, ele sente um calor súbito.

‑ Porque é que mente? ‑ pergunta ela.

Não há hostilidade nem nenhuma censura na sua voz, Mas antes uma tristeza indizível. A surpresa do Dr. Wewes é tal que, durante um momento, perde o sangue‑frio. Como é que descobriu a sua mentira?

‑ Porque é que mentiria? ‑ perguntou, julgando esconder a sua perturbação através de uma agressividade intempestiva, pronto para tudo.

‑ Porque não tem nada nos pulmões, absolutamente nada.

‑ Como pode estar tão segura?

‑ Porque não sinto nada nas mãos. ‑ Inclina‑se e põe os cotovelos em cima da mesa. ‑ Quem é o senhor?

‑ Reinhard Wewes. Sou engenheiro civil, especializado na construção de pontes.


Faz um ligeiro aceno com a cabeça, mas ele tem a impressão de que ela sabe exactamente que se trata de uma nova mentira. Pousou o queixo em cima das pontas dos dedos, por cima das mãos que juntara numa posição tão típica que até Willbreit a ela fizera alusão.

‑ Não sofre do abdómen?

‑ Não. ‑ Mas tem a sensação repentina de que a pele da cabeça está a encolher e ouve‑se dizer, quase sem querer: ‑ Digamos, raramente: quando fico muito tempo de pé sinto um peso ou então umas picadas. já tive duas vezes uma espécie de cãibra...

‑ Ignoro porque é que mentiu acerca da doença dos pulmões. Mas fez bem em vir. Tem um princípio de enfisema na vesícula biliar.

Ele fica imóvel perante ela, como se lhe tivessem batido.

‑ O quê? O que é que disse? Quer repetir?

‑ Ouviu perfeitamente: um princípio de infecção purulenta da vesícula biliar. Dentro de três dias aperceber‑se‑ia disso, pois as dores tornar‑se‑ão intoleráveis.

Wewes levanta a voz. Apercebe‑se claramente de que a situação em que se encontra é incrível.

‑ Diz isso com a maior naturalidade! - Estende as mãos e afirma: "Não são os pulmões, mas a vesícula biliar", e eu deveria acreditar em si!

‑ Não sentiu um certo calor quando a minha mão parou no sítio onde às vezes lhe dói?

‑ Senti.

‑ Foi o que eu também senti nos dedos: é aí que o mal se encontra.

Ficou tão desorientado que se esqueceu completamente da razão que o levou a Hellenbrand. Mas o seu cérebro continua a trabalhar: enfisema da vesícula biliar... Pois é, aquelas dores difusas desde há vários dias, aquela pressão contínua e insólita no mesmo sítio... e as fezes estranhamente amareladas... Meu Deus! Mas ela tem razão! É a vesícula biliar!

- E agora, que vai fazer? ‑ pergunta, pois chegou o momento de lhe lançar uma cilada, quer o diagnóstico seja exacto, quer não. ‑ A sua voz ficou mesmo assim um pouco rouca, pois também está a pensar no que vai fazer: precipitar‑se para casa do professor Schwarthe e incomodá‑lo em pleno fim‑de‑semana. Não acredita plenamente na tese do enfisema, mas se se tratar disso, o caso é grave.

‑ Pode fazer alguma coisa por mim?

‑ Posso tentar suprimir a infecção, sarando‑a. ‑ Eis o que tinha exasperado Willbreit. Ela pretende secar um mal sobre o qual só podem agir potentes doses de antibióticos. Afirma destruir abcessos e tumores com a tal irradiação emitida pelas suas adoráveis mãos e dedos. Comete realmente um crime contra os que acreditam nela! Ousará continuar a farsa com ele? Mas ela responde já à pergunta formulada.

‑ A senhora Herbrandt explicou‑lhe como é que procedo?

‑ Sim, naturalmente. Acaricia a região doente...

‑ Não, não acaricio, destruo o mal! Para lutar contra o cancro, tenta‑se aniquilar as células contaminadas por meio de raios xis ou dum betatrão, com uma fraca percentagem de êxitos. Não posso explicar‑lhe nem como nem porquê, mas as minhas mãos emitem outros raios, e estes curam mesmo.

‑ Tem a certeza absoluta?


‑ Até agora não falhei uma única vez: tenho apenas de "sentir" a presença do inimigo na ponta dos dedos.

‑ Como um verdadeiro caçador, tem um segundo de exaltação: conseguiu vencer as suas defesas ou foi ela que o conduziu a isso? Não interessa!

‑ O quê? Nem um só falhanço? Mas quantos doentes é que já ajudou?

‑ Talvez quarenta ‑ responde ela sem hesitar.

Ele estremece. Quarenta! E sem nenhuma reclamação! Impossível! Willbreit tinha razão: aquela mulher era decididamente perigosa. Mas talvez não se dê conta do que há de socialmente repreensível no que faz! Age de boa‑fé: crê verdadeiramente, na sua ingenuidade, que está em posição de curar doenças complexas de evolução irreversível, e nunca pensou nas consequências dessa loucura. Põe a cara mais inocente.

‑ Também me pode ajudar?

‑ Não foi para isso que veio, conforme a recomendação da senhora Herbrandt?

‑ Sim, evidentemente. ‑ No fundo sente um pouco de vergonha de si mesmo. Tenta esboçar um sorriso. ‑ Confesso que pretendi que sofria dos pulmões para ver se descobria o meu mal real. Parabéns: conseguiu. Entrego‑me, pois, nas suas mãos.

Os cinco minutos seguintes serão uma verdadeira revelação para Wewes, e será obrigado a reconhecer que o que então se passou nele desafia todos os ensinamentos da medicina tradicional: o que era aquele calor que sentira no abdómen e que desaparecera assim que Corina baixara de novo as mãos? Como definir aquela sensação de vazio que sentira no sítio onde lhe doía há vários dias?

Vê‑a pegar noutro cigarro e inalar desesperadamente o fumo. Das narinas até às conissuras dos lábios estão gravadas duas rugas profundas: um sinal de fadiga física e moral que é impossível fingir. O que ele não sabe é que após as oito sessões daquele dia, Corina tem razões para se sentir vazia e exausta, como uma massa de carne sem ossos e sem músculos.

‑ Então é isso, o seu segredo? ‑ perguntou numa voz diferente.

‑ Sim.

‑ Pode dar‑me um cigarro?

‑ Sirva‑se...

Fumam em silêncio. O que ele sente ultrapassa tudo o que Willbreit contou. Como explicá‑lo racionalmente? Do ponto de vista da medicina clássica, aquilo é o cúmulo do delírio.

‑ E depois? ‑ perguntou ainda.

‑ Se desejar, poderá voltar, talvez cinco vezes.

‑ Porquê cinco vezes?

‑ Ou três vezes, ou dez vezes... enquanto eu sentir a inflamação na ponta dos dedos.

Como ela, esmaga o cigarro no grande cinzeiro de mármore e, de cabeça baixa, olha‑a longamente. Visivelmente, ela recompõe‑se pouco a pouco e, num gesto muito feminino, começa a alisar com ambas as mãos a parte superior do vestido. Na vida de um homem, pensa, não se encontra duas vezes uma mulher como ela. Viverá efectivamente sozinha, sem namorado e sem amor. Será que os seus sentimentos se escoam junto com o fluxo misterioso emitido pelas suas mãos?

‑ Quanto é que lhe devo?


E não pode deixar de pensar que se ela aceitar dinheiro cairá sob a alçada da lei, mas que deve cumprir o seu dever, apesar do que acaba de se passar.

‑ Nada. Nunca levo nada.

‑ Mas eu quereria...

‑ Não.

‑ Então é um donativo... Não pode impedir‑me de o fazer.

Tira da carteira uma nota de cem marcos e põe‑na em cima da mesa. Ela não se mexeu, mas levantou os olhos para ele. Sob o efeito de demasiados sentimentos contraditórios, ele dirige‑se para a porta.

‑ Quando é que quer ver‑me? Na próxima terça? ‑ pergunta ainda.

‑ Se lhe convier. ‑ Espera que esteja quase lá fora para lhe falar. ‑ Bom regresso, doutor Wewes. às quartas não tem consultas, pois não. ‑ Wewes não pode dissimular o sobressalto que a seguir o prega ao chão: que atitude poderá assumir a partir de agora? Nem sequer consegue voltar‑se para a olhar de frente.

‑ Então, conhece‑me... Sabia desde o princípio...

‑ Quando estudei medicina em M'nster, o senhor ainda era assistente do professor Lange no serviço de doenças pulmonares.

‑ Penso que lhe devo uma explicação ‑ disse Wewes, mas a voz estrangulou‑se‑lhe.

‑ Não.

A partir dali só pensa em fugir, em ir‑se embora. Mas ainda vai ter de ouvir aquela voz que o queima, que o marca com um ferro ao rubro:

‑ Confirme imediatamente que sofre dum princípio de enfisema da vesícula biliar... e dê cumprimentos meus ao professor Willbreit.

Foi o golpe de misericórdia. Quase a correr, chega ao carro e é inconscientemente que arranca como um furacão. Uma bruxa, repete. Esplêndida, formidável, mas bruxa ainda assim...

A seguir acalma‑se um pouco, feliz por ver aumentada a distância que o separa daqueles olhos, daquelas mãos e daquela voz que continuam a invadi‑lo. Precisará de tempo para compreender que o seu desvario é da mesma natureza que a ambivalência de sentimentos que causaram outrora a caça às bruxas. Ter‑se‑ia tornado, durante um instante, num homem da Idade Média?

Pouco comunicativo ao princípio, o professor Schwarthe, especialista de afecções da vesícula biliar, começa a mostrar uma certa cordialidade após um exame superficial. Wewes, mais uma vez, sente que a pele se lhe encolhe na cabeça: a bruxa tem razão.

‑ Fizeste bem em vir incomodar‑me. A tua vesícula reage para lá do bom senso. Não se pode perder tempo. Vai amanhã de manhã à clínica para te examinarmos a fundo. Dir‑se‑ia um princípio de inflamação, mas não te preocupes, dispomos de tudo o que é necessário para tratar disso.

Resta‑lhe cumprir a promessa que fez aos colegas da mesa reservada. Primeiro, Viebig, depois Willbreit e a seguir os outros. E é sempre a mesma história.

‑ Resultado nulo! A nossa feiticeirazinha não estava. Segundo os vizinhos, toda a família Doerinck fora a Burgstemfurt fazer compras. Vou lá para a semana...


Um dia cheio de mentiras, pensou, só que desta vez não lhe custou nada. Pelo contrário, até sente prazer em ter um segredo em comum com Corina.

 

‑ Existem duas espécies de hienas, as dos desertos de África e as hienas das nossas sociedades humanas, a que damos, por vezes, um nome anglo‑saxónico: repórter. - Foi pelo menos a opinião que Hildegard Benke exprimiu em voz alta quando, ao abrir o jornal regional, se lhe deparou um longo artigo que tinha por título "Curas milagrosas na província de M'nster". Alertou imediatamente as suas amigas, que, naturalmente, já tinham lido a prosa do jornalista. Apesar de os nomes delas não figurarem no artigo, a alusão às suas pessoas era evidente.

"A clientela faz parte da mais abastada sociedade de M'nster e passam a palavra às escondidas. É assim que transmitem, a morada de Corina. Mas dado a saúde pública ser um assunto que a todos diz respeito, achamo‑nos na obrigação de comunicar aqui o nome da curandeira "das mãos irradiantes", assim como o sítio onde vive: trata‑se de Corina Doerinck, que habita em Hellenbrand."

Hildegard Benke perdia a voz ao telefone.

‑ Que ataque nojento! Que bandido imundo é este indivíduo! E trata‑se de um amigo do meu próprio filho! Conhecemo‑lo todas, pertence ao nosso meio, e eis que ousa... No que me toca, é um abuso de confiança, pois esse parvinho faz praticamente parte da família. Consultei o nosso advogado, o doutor Wernecke. Não existe nenhuma hipótese de o atacarmos: apenas divulgou factos de interesse geral. Uma verdadeira hiena!

No seu entusiasmo, Hildegard Benke tinha confiado aos filhos que o tique nervoso da boca tinha desaparecido em apenas três sessões daquele tratamento extraordinário. É verdade que o tique voltara de vez em quando em momentos de grande excitação, por exemplo quando tinha ficado a saber que o marido de Emilia, a sua melhor amiga, tinha oferecido um colar de safiras à mulher como presente de aniversário. Mas o tique havia desaparecido depois de mais três novas sessões e Corina tinha‑lhe assegurado que, desta vez, desapareceria para sempre. Todas aquelas senhoras estavam entusiasmadíssimas com o desaparecimento dos seus males: a ciática de Louise Herbrandt, as nevralgias da Sra Westermeier, a artrite da Sra Seminler, a arritmia do Dr. Vonweg, etc. Sentiam‑se insultadas, mortificadas, por aquele artigo irónico e cheio de ódio que as ridicularizava, visto que em pleno século xx acreditavam em forças misteriosas...

Hildegard Benke não cedia.

‑ De qualquer maneira, esse malandro não voltará a pôr os pés em minha casa! Devo prevenir Corina! Não devemos permitir que seja surpreendida pela invasão dos abutres dos media. A Louise Herbrandt acha que devo fazê‑lo. Que época' Só de pensar que já nem sequer nos podemos fiar na própria família!

A primeira pessoa a receber o choque não foi Corina, mas sim o pai, Stefan Doerinck. Durante um dos recreios, Ferdinand Hupp, o reitor da escola, apareceu no pátio para lhe dizer:

‑ Tenho de falar contigo, Stefan. A menina Freind ficará a vigiar os alunos no teu lugar.


Que mosca tinha mordido o colega? Doerinck conhecia‑o há dezanove anos. O Ministério tinha‑o nomeado reitor quando deveria ter sido Doerinck ‑ mais velho e tendo obtido melhores resultados ‑ a beneficiar, logicamente, daquela promoção. Em conversa de corredor ‑ que é a melhor fonte de informação ‑ tinha ficado a saber que o facto de ter uma mulher de origem russa tivera muito peso. O inspector da região havia perdido o irmão, o tio e um primo na Rússia. Pior ainda, uma das suas tias, quando os soviéticos entraram na Prússia Oriental, fora violada por soldados que depois a mataram a golpes de baioneta. Stefan Doerinck julgara inútil perguntar ao inspector o que é que a nacionalidade da mulher tinha a ver com uma promoção académica.

Quando ficaram sozinhos na sala de reuniões dos professores, o reitor abriu um jornal e estendeu‑o a Doerinck com a gravidade necessária.

‑ Leste este jornal, Stefan?

Doerinck deu uma olhadela ao jornal.

‑ Não. Não sou assinante dessa porcaria. De que é que se trata? Dum novo ataque contra o corpo docente, como de costume?

‑ Pior do que isso. Contra a tua filha.

‑ Contra Corina!

Doerinck apoderou‑se do jornal e leu lentamente o artigo a fundo, ao mesmo tempo que reflectia. "Eis o que eu receava", dizia para si mesmo. "Tinha de acontecer. Quantas vezes preveni Corina... Que poderia fazer mais? Agora trata‑se de não perder a cabeça: um tiro de canhão isolado não significa que haja guerra."

‑ Eis aqui algo de prosaico ‑ disse uma voz calma, entregando o jornal ao reitor. ‑ O jornalista deste pasquim deve ter tido uma necessidade súbita de dinheiro!

‑ Mas há milhares de pessoas que lêem este género de coisas! ‑ Desesperado, o reitor atirou com o jornal para cima da mesa de conferências, onde aterrou entre propostas de notas e castigos da semana. ‑ Mas é ou não verdade o que vem aqui? ,

‑ É a verdade, mas deformada.

‑ O que quer isso dizer, Stefan? à força de viveres com a tua mulher falas como a Rádio Erivan, a única estação de rádio soviética que diz por vezes a verdade, com a condição de que esta não seja imediatamente perceptível! A Corina tentou realmente curar com carícias algumas matronas prontas a engolir seja o que for?

‑ Não. Ela não tentou. Ela curou‑as dos seus males. E já tratou cerca de quarenta doentes.

‑ Mas não é possível! ‑ exclamou o reitor. Dava‑se conta de repente da avalancha que aquele artigo iria provocar. Em Hellenbrand havia uma mulher que fazia milagres, simplesmente, e o seu pai era o vice‑reitor da escola oficial! Ferdinand Hupp deu alguns passos até à janela, contemplou durante um instante as crianças que brincavam calmamente no pátio e sentiu‑se ainda mais desarmado. Tinha acabado a serenidade habitual daquela pequena cidade e da sua escola...

‑ Vejamos, Stefan, como pudeste suportar uma coisa dessas?

‑ A Corina tem trinta anos, Ferdinand.

‑ Mas poderias tê‑la influenciado.

‑ Tu também não o terias conseguido.

‑ Ah! juro‑te que sim!

‑ Não conseguirias se a tivesses visto curar a tua própria mulher de um cancro com as mãos, só com as mãos.

O reitor ficou mudo enquanto respirava profundamente.


‑ O quê? O que é que disseste? A Ludinila teve um cancro? Mas nunca me disseste nada!

‑ Achas que deveria ter publicado a notícia na secção de anúncios desse jornal? "A senhora Doerinck, mulher do nosso distinto, etc., sofre dum cancro no cólon desde o dia dezasseis de Abril..." Pois é, a Corina curou‑a. As novas radiografias provam‑no: o cancro desapareceu.

‑ Mas isso não pode existir, Stefan.

‑ Vou trazer‑te as primeiras e as últimas radiografias. Poderás tu próprio comparar. Também podes interrogar o doutor Hambach, que fica desde já isento da obrigação do segredo profissional.

Hupp, atarantado, passeou as mãos pelos cabelos ralos.

‑ Meu Deus!... Mas isso não altera em nada o facto de um jornal ter falado do assunto e de que agora todos o conhecem. A filha do vice‑reitor, do nosso professor, opera curas milagrosas! Pensaste na reacção das pessoas e na dos pais dos alunos?

‑ Mas não são as minhas mãos que curam, são as da minha filha...

‑ Para as pessoas será exactamente o mesmo! Aposto que

o inspector vai telefonar ainda hoje. Enquanto essas curas se realizavam no maior segredo, ainda vá! Mas agora que a imprensa já sabe, os outros media vão aparecer também! Que sensação!

Estava tão nervoso que amarrotava nas mãos, sem dar por isso, o jornal que tirara de cima da mesa.

‑ Talvez ‑ respondeu Doerinck. ‑ Mas não posso fazer

nada E porque será que as pessoas ficam tão excitadas quando alguém possui forças benéficas que não podem compreender? Deveriam era ficar satisfeitas...

‑ Gostaria de aceitar esta história com a mesma calma que tu. Dentro de uma semana, se outros jornais se debruçarem sobre o assunto, Hellenbrand ter‑se‑á transformado num local de peregrinação. Meu Deus. ‑ O toque do telefone interrompeu‑o nas suas lamentações. ‑ Aposto que é a inspecção escolar!

Não era o inspector, mas o presidente da câmara, membro do conselho evangélico e da sociedade dos jogadores de malha e presidente do coro municipal.

‑ O Stefan está ao pé de ti? ‑ perguntou imediatamente.

A sua voz produzia no aparelho uma vibração de mau agouro.

‑ Passa‑mo!

Hulpp estendeu o telefone a Doerinck, sussurrando:

‑ É o Peter! Ao ouvi‑lo dir‑se‑ia que há fogo na câmara.

Stefan Doerinck pegou no auscultador. Só lhe restava um último recurso: passar à ofensiva.

‑ Fala Stefan ‑ disse com brusquidão. ‑ Se se trata do artigo sobre a Corina, já tentei explicar ao Ferdinand que não posso fazer nada.

A voz do presidente da câmara era tão brusca como a dele.

‑ Vem cá imediatamente! Também convoquei a Corina. Já não se trata de um assunto privado que só a vós diz respeito e a um pequeno número de pessoas. Agora é a cidade inteira que está a ser ameaçada. Telefonaram‑me há cinco minutos da televisão: vão enviar uma equipa para fazer uma reportagem. Stefan, é horrível o que está a acontecer e ninguém pode prever as consequências disto.


 

Stefan Doerinck chegou à câmara alguns minutos antes de Corina. O presidente, Peter Beiler, que era um gordo bonacheirão de cara vermelha, tinha perdido a jovialidade habitual. Recebeu o camarada e parceiro dos torneios locais de xadrez com uma censura.

‑ Por vossa causa estamos em bons lençóis! Ficaram completamente malucos?

‑ O que é que queres dizer com isso? ‑ perguntou Doerinck friamente.

Sem pressa, pegou numa cadeira e foi instalar‑se perto da janela. Ao pé da entrada reservada aos cortejos nupciais, encontrava‑se uma noiva toda de branco e o seu futuro marido. Este não parava de abanar a cabeça para todos os lados, certamente por o colarinho o magoar. Rodeados de alguns parentes e amigos, aguardavam o momento de penetrar na sala dos casamentos.

Winunerling, um colega de Doerinck, tinha substituído este com a maior das facilidades, ditando aos alunos o assunto de uma redacção: "Conte o que fez a sua mãe durante as férias."

‑ Estou a falar de ti e da tua filha, Stefan.

‑ Repito o que disse ao Ferdinand: no direito alemão moderno, já não existe a responsabilidade familiar.

‑ Não vamos discutir sobre as palavras, Stefan.

Peter Beiler estava consternado. Sem saber, Doerinck tinha acabado de tocar num ponto que era doloroso para ele. Em 1933, o seu pai tinha‑se tornado chefe do grupo nacional‑socialista local e, sob a sua autoridade, tinham sido deportados para campos de "reeducação" dois cidadãos sociais‑democratas e o único comunista da localidade; as respectivas famílias tinham sido obrigadas a deixar Hellenbrand em vinte e quatro horas. Cinquenta anos depois, Peter Beiler e todos os seus eram alérgicos às palavras "responsabilidade familiar". Voltou a falar com uma voz menos segura:

‑ Stefan, como é que pudeste aceitar em casa uma farsa destas?

‑ Essa farsa permitiu curar quarenta pessoas, segundo o que Corina me contou.

‑ Quarenta... ‑ Tal como o reitor Ferdinand Hupp, Beiler tinha aberto muito os olhos ao ouvir este número, mas dominou‑se logo a seguir. ‑ Esperemos que o público não o venha a saber!

‑ Não consigo compreender como é que esta história chegou aos ouvidos dum reporterzeco imundo.

‑ Ora, Stefan, achas que uma coisa destas pode ficar escondida durante muito tempo? Espera só que a Corina chegue. Essa vai ter de se haver comigo!

‑ Não vais ter de esperar muito, Peter... Ela está a estacionar o carro. ‑ Parou um instante para olhar pensativamente o amigo. ‑ Há quanto tempo nos conhecemos, Peter?

‑ Há cerca de vinte e cinco ou talvez vinte e seis anos. Estava a tirar o bacharelato em Direito em M'nster quando aqui chegaste.

‑ Tem cuidado, não vão vinte e seis anos de amizade volatilizarem‑se em fumo...

‑ Tenho de proteger a comunidade, Stefan!

‑ E eu a minha filha.


Quando Corina entrou, o olhar dos dois homens fixou‑se nela. Era Verão. No seu vestido leve de decote pronunciado, estava verdadeiramente encantadora, mas os seus olhos amendoados não deixavam dúvidas quanto às suas intenções. Beiler suspirou pensando: é uma flor exótica e, apesar de ser alemã, toda a cidade se vai erguer contra ela para a esmagar com os pés. Os vinte e seis anos que passou no meio deles não vão contar para nada. Estes vestefalianos acham que uma família deve ter, pelo menos, um século de enraizamento para deixar de ser considerada estranha à terra. "Esta filha de russa... esta russa... ", dirão. Querida Corina, não fazes ideia nenhuma do que te espera aqui...

Estes segundos de hesitação iam custar‑lhe caro. Corina passou logo ao ataque.

‑ O facto de terem ousado convocar‑te para aqui, pai, a ti que não tens nada a ver com esta história, é idiota e insultante!

Peter Beiler ficou sufocado de surpresa e de furor.

‑ Ah! Não comecemos às bofetadas, nem morais nem das outras! Sabes o que se passa, Corina?

‑ Por si. Não li o jornal esta manhã. Comprei um quando vinha para cá, mas ainda não o abri. O artigo em questão deve ser de uma grosseria e de uma estupidez totais, visto Fritz Broicimer, em cujo quiosque o comprei, e que não brilha pela inteligência, me ter perguntado a rir se eu não podia acariciar‑lhe igualmente certas partes do corpo que disso estavam a necessitar...

- Pois é, minha querida, já está a começar! ‑ disse Beiler.

‑ Mas eu, na minha qualidade de pai, tenho uma palavrinha a dizer a esse bandido do Broichner!

‑ Não vais fazer absolutamente nada, Stefan, porque senão daqui a uma semana vais ter de ir provocar toda a gente que tiver insultado a tua filha... É preciso agir de outra maneira e depressa, como vêem. De momento, trata‑se apenas dum jornal e dum artigo. Mas vamos ter a televisão à perna! Isso é que é de evitar, sobretudo.

‑ Como? ‑ perguntou friamente Corina.

A sua cara parecia esculpida em granito. Apenas os pontos dourados dos olhos amendoados pareciam dançar perigosamente. A fixidez do seu olhar irritou o presidente.

‑ Tens de desaparecer durante uns tempos, Corina!

‑ Porquê?

Beiler lançou um verdadeiro grito.

‑ E ela ainda pergunta porquê!

‑ Mas eu também! Porque é que a minha filha tem de fugir? Matou alguém?

Beiler levantou os olhos ao céu.

‑ Meu Deus, mas então tentem compreender‑me! Isto não tem nada a ver com as vossas pessoas. Não podemos permitir que se desencadeie uma avalancha de desordens e de ódio em Hellenbrand. É esse o único problema que temos de resolver. E a melhor solução é a Corina desaparecer daqui até que já ninguém fale dela.

‑ É impossível ‑ respondeu ela calmamente.

‑ Agora sou eu que te pergunto porquê.

‑ Antes de mais, porque não posso interromper o tratamento de certos doentes. Aí, sim, poderiam atacar‑me.

Peter Beiler levantou de novo os braços ao céu.

‑ O tratamento! O tratamento!


‑ Pois é, emprego a palavra "tratamento" visto poder curar os que vêm ter comigo.

‑ Estou a ficar maluco!

Corina esboçou pela primeira vez um ligeiro sorriso.

‑ Apesar do que dizem certos psiquiatras, a verdadeira loucura não se pode curar. Não poderei, portanto, ajudá‑lo, senhor presidente... Ouça bem: não fiz nada que me obrigue a fugir da cidade em que vivo. Curar doentes ter‑se‑á tornado nalgum crime?

‑ Não me interessa saber se as tuas mãos têm o poder real de curar ou se se trata duma fraude. A única coisa que me interessa é a cidade e a sua população. É necessário que possa dizer à equipa de televisão que está a chegar: "Corina Doerinck partiu para o estrangeiro por tempo indefinido." E isto tem de ser mesmo verdade, pois estes repórteres são verdadeiros cães de caça e descobrirão rapidamente onde é que estás escondida se cá ficares. Vejamos, um pouco de boa vontade...

‑ Há alguma coisa mais importante do que a tranquilidade dos seus concidadãos ou a cura de doentes, digamos mesmo de um só doente, senhor presidente?

‑ Corina!

"Torce as mãos com verdadeiro desespero", pensou ela. A seguir aproximou‑se da janela e olhou através do vidro: a praça do mercado estava inundada de sol. As flores de tília que a circundavam pareciam salpicadas por uma bruma de ouro. Havia sete lojas que estavam abertas todos os dias da semana: uma florista, um lugar de legumes e dois de fruta, uma leitaria e um pasteleiro. Era uma cidadezinha tranquila! E, de repente, a praça ia encher‑se de autocarros e de doentes reais ou imaginários, vindos pela estrada ou de comboio, movidos por uma histeria colectiva de que a história fornece frequentes exemplos...

‑ O que fazes é ilegal, Corina.

‑ De maneira nenhuma.

‑ Não é aceite do ponto de vista científico.

‑ A medicina tradicional também põe em ridículo a implantação de células frescas, e, no entanto, a sua mulher passou oito dias na Baviera numa clínica especializada, e achou que tinha ficado óptima, não foi?

A cura de células frescas que a Ellriede tinha querido fazer ficara quase secreta: só as amigas que a tinham encorajado a fazê‑la estavam ao corrente. Toda a gente falara duma cura em Bad para a asma. "Houve então fuga de informação", pensou.

‑ A cura de Ellriede não deu lugar a artigos de jornal nem à intervenção da televisão, nem a peregrinações ‑ acabou por dizer.

Soou a campainha do telefone. Beiler lançou ao aparelho um olhar de ódio. Tinha dado ordem à secretária para não lhe passar nenhuma comunicação, a não ser em caso de urgência. Quem seria? Mais um curioso! Ou uma autoridade qualquer que vinha ordenar‑lhe que fizesse cessar o escândalo?

Pegou no auscultador e disse "está?" numa voz hostil. Doerinck e a filha viram‑no mudar de cara e crispá‑la. A seguir, sufocando um grito, pousou brutalmente o auscultador no gancho.

‑ Quem era? ‑ perguntou Doerinck. ‑ O papa?

‑ já começam! já começam! E tudo isto por vossa causa!

‑ Mas o que foi?


‑ Nada, a não ser que o Hannes Vierholz, dono do talho‑charcutaria da nossa cidade, e que também é conselheiro municipal, quer simplesmente pedir uma autorização para abrir imediatamente, à entrada da tua granja, Corina, uma tenda de salsichas e costeletas de porco frias com salada de batata! E também quer levar um barril de cerveja para tirar a sede aos peregrinos! Está só à espera da minha autorização.

‑ O Hannes sempre foi um excelente comerciante! ‑ Doerinck não conseguia deixar de rir. ‑ Tal como receavas, a cidade vai entrar em ebulição, mas não no sentido em que previas, Peter.

‑ Não vou dar nenhuma autorização destas!

‑ Mas arriscas‑te a destruir a tua auréola de presidente progressista! O teu conselho municipal vai ficar dividido: por um lado, vais ter os que farejam um bom negócio tanto para eles como para as finanças da cidade, e, por outro, os que, não tendo dinheiro para ganhar, graças à Corina, se vão instituir em defensores da moral pública! Ah, Peter, o ser humano é um animal horrível, ou então somos uma rica cambada de parvos!

Corina tinha ficado impassível e muda, como se a discussão não lhe dissesse respeito. O presidente, depois de a ter olhado longamente, apelou de novo para ela.

- Estás a ver agora, Corina, por favor, que tens de sair da cidade o mais depressa possível? O teu pai também vai ter aborrecimentos graves.

‑ Não admito essa chantagem, Peter! Nunca falo da guerra, mas corri voluntariamente uma série de riscos na minha vida, nem que seja só o de ter trazido uma russa com o meu batalhão para uma Alemanha nazi e, excepto as minhas cicatrizes, tenho a pele mais espessa do que parece.

‑ Em resumo, recusam a minha sugestão! Vão deixar que a cidade inteira se precipite para a catástrofe?

Corina quebrou mais uma vez o silêncio para declarar numa voz tão firme como a do pai:

‑ Não deixarei de tratar os que vêm ter comigo para se curarem. Desde que me dei conta do que as minhas mãos podem fazer, e sobretudo desde que curei a minha mãe, sinto‑me cada vez mais obrigada a ajudar os que estão doentes com os meios que possuo.

Beiler, com os braços pendentes, dava pena.

‑ Era meu dever avisá‑los, mas visto que não me querem dar ouvidos... ‑ Deu a volta à secretária para se deixar cair numa grande poltrona de couro. ‑ Então, avante com a televisão, a rádio, os fotógrafos e os cineastas...

‑ Não. Prometo só receber os meus doentes. A minha porta ficará fechada para todos os outros. Não concederei nenhuma entrevista nem me deixarei fotografar...

‑ Minha filha, eles dispõem de muitos truques e também da cumplicidade do público para obterem o que querem. Vão fazer cenas e fingir que estão doentes...

‑ É‑lhes impossível enganarem‑me nesse ponto...

‑ Está bem! Na minha qualidade de presidente da câmara só lhes digo uma coisa: farei tudo o que puder para que a minha cidade recupere a calma, mesmo se a nossa velha amizade, Stefan, tiver de sofrer! A Corina não pode agir de outro modo, pois seja, mas eu também não.

Doerinck tinha‑se levantado para agarrar a filha pela cintura.


‑ Não terás nenhum aborrecimento connosco, Peter, é contra os outros que te deverias bater, a começar pelos teus concidadãos, como nós estamos dispostos a fazer, a Corina e eu... Podemos retirar‑nos?

‑ Podem.

Lá fora, sob o sol do Verão, pararam um instante perto do carro de Corina.

‑ Levo‑te a casa, papuchka?

‑ Não, vou a pé até à escola, é perto. Ainda tenho uma hora de aula para dar.

‑ O que é que o Ferdinand disse?

‑ Como é reitor da escola, gravita, consequentemente, à volta do eixo que lhe é próprio. Como cada um de nós! Só não sei como é que o conselho da escola vai reagir.

‑ Que vais responder‑lhes, papuchka?

‑ O que for necessário responder...

Ela abriu a porta do carro e deslizou para trás do volante. Quando ia a arrancar, ele completou o seu pensamento.

‑ Dir‑lhes‑ei: "Há algum de vocês cuja mulher, sofrendo de cancro, e estando condenada à morte, esteja hoje curada?"

As suas últimas palavras perderam‑se na nuvem de pó amarelo que o pequeno carro que começava a afastar‑se tinha levantado.

Durante todo o dia, o telefone continuou a tocar, a fazer cliques e a zumbir: em casa de Stefan Doerinck, no atelier de Corina, em casa dos vizinhos mais próximos, em casa do reitor Hupp, em casa do presidente da câmara e na dos conselheiros municipais. Os meios de comunicação serviam‑se das suas matilhas e, os seus cães, descontrolados, com a língua pendente, e cheios de sede de escândalo, à falta de sangue, galopavam para Hellenbrand. É espantoso, mas sobretudo angustiante, verificar as situações atrozes que pode desencadear um artigo sujo num jornal sujo. Vejam bem: uma mulher que cura com as mãos é um milagre, não é verdade? Pois bem, o certo é que na nossa época, tão fértil em milagres de toda a espécie, milagres como este não podem existir.

Corina desligou simplesmente o telefone. Doerinck limitava‑se a responder de cada vez: "Bem, podia economizar esta chamada", antes de desligar. Na câmara, Beiler recrutou uma secretária suplementar que, como uma gravação, repetia: "Não sabemos de nada." Depois do referido artigo, ninguém podia acreditar naquele género de desmentido, e imediatamente começou a correr o rumor: "O conselho municipal esconde se por trás duma muralha de silêncio. " E o que é que há de mais magnífico, para um certo tipo de jornalistas, do que poder descarregar contra uma administração qualquer invocando o direito que o público tem de ser informado? É assim que o cinismo da nossa civilização ocidental se pode esvaziar a grandes baldadas, fazendo mossas na consciência de cada um de nós.

Os vizinhos mais próximos de Doerinck iam ser os mais solicitados. Vendo bem, estes caros habitantes de Hellenbrand, que habitam a casa contígua à da dos suspeitos, devem estar, sem dúvida, bem informados. Ouvem e vêem uma quantidade de coisas que são os únicos a poderem ouvir e ver. Um repórter, com um pouco de imaginação, escreve um excelente artigo com base na mínima palavra. Evidentemente, apenas se limita a sugerir algo ou a fazer certas perguntas, nunca a afirmar seja o que for.

"As mãos de Corina podem influenciar os políticos?"


Era o género de perguntas que a televisão queria fazer a Corina, mas o dia passou sem que nenhum repórter conseguisse contactá‑la. Quanto ao pai, um professor, recusava‑se a falar dela. Os vizinhos, esses, tinham mil coisas para contar, mas infelizmente nada de verdadeiramente explosivo. A não ser um pormenor: a Sra. Doerinck, a mãe de Corina, era russa, e, o que era mais importante, originária da Grusínia, região do Cáticaso onde os médicos‑curandeiros ainda fazem milagres, onde existem imensos centenários e onde, aos cento e dez anos, os velhos andam todo o dia a galope atrás dos rebanhos!

Como todas as sondagens indicam, o público culto da nossa época exige pormenores absolutamente científicos.

A televisão só tinha mandado a Hellenbrand uma pequena equipa encarregada de explorar o terreno e de não sair de lá durante vários dias, se necessário, a fim de nada perder da evolução dos acontecimentos. No Hotel Westfalenwappen (As Armas da Vestefália), onde a equipa ocupava três quartos, o chefe, Jacob Sippenhorst, sentiu‑se muito orgulhoso por poder revelar que Stefan Doerinck era um habitué e um grande jogador de xadrez e de malha. Inversamente, Corina só entrava raramente no café que o pai costumava frequentar. Que espécie de rapariga é?, tinham perguntado os jornalistas. Pois bem, era muito bela, como a mãe, isto é, com um tipo estrangeiro... Curas milagrosas? A Corina? Nunca tinha ouvido falar disso! Os médicos de M'nster e da região devem rir‑se dessa invenção! Porque é que os repórteres não iam ver o Dr. Hambach para falarem do assunto?

A pequena casa do Dr. Hambach aparecia no meio das flores dum jardim maravilhoso. Ao contrário dos Doerinck, recebeu amavelmente a equipa de televisão e fê‑la imediatamente entrar para a sala de estar. Ofereceu cigarros, cerveja, aguardente alemã e conhaque francês aos três repórteres. Mas quando o fotógrafo quis pôr a câmara sobre o ombro e fazer preparativos para regular a luz da sala, o velho médico opôs‑se terminantemente, levantando as mãos:

‑ Não, nada de imagens!

‑ Então porque é que nos deixou entrar? ‑ perguntou um deles. ‑ Isso não se faz, caro doutor! Abre‑nos a porta e a seguir faz‑nos sair com pontapés no traseiro! Nós somos da televisão, que, como sabe, faz e desfaz políticos! A nós não nos tratam assim! Estamos aqui porque nos disseram que o senhor é o médico da família Doerinck.

‑ É verdade.

‑ Conhece‑os há muito tempo?

‑ Há um quarto de século!

‑ Fantástico! Doutor, isto vai dar uma emissão formidável...

‑ A minha intenção não é fazer uma emissão de televisão formidável, mas contribuir para o estabelecimento da verdade!

‑ Mas é precisamente o que nós queremos: a verdade sobre Corina...

O chefe da equipa voltou a respirar livremente. Nunca se deve atacar directamente estes velhos. Basta deixá‑los falar. à mínima pergunta perdem a cabeça. Anda, velhadas! Conta‑nos a história dos milagres da nova virgem Corina Doerinck! Estamos à escuta!


O Dr. Hambach, calmamente, vai cheirando e bebendo o seu conhaque e acaba por acender um charuto. Sente uma maliciosa volúpia ao fazer esperar aqueles jovens da televisão, tão impacientes e seguros de si, que chegam a ameaçar abrir à força as portas que se fecham para eles. E o que lhes diz então não lhes agrada mesmo nada.

‑ Não se trata de Corina Doerinck, mas das possibilidades que a medicina oficial quer ignorar.

O repórter estava a ficar cada vez mais irritado.

‑ Peço desculpa, mas nós não pertencemos nem ao serviço cultural nem ao científico, mas sim ao de actualidades. O que nos interessa é o que nos pode dizer sobre Corina. Visto que a conhece desde criança, deve ter certamente muitas coisas para nos contar sobre ela.

‑ Com efeito!

‑ Então, comece!

Voluptuosamente, o Dr. Hambach engoliu mais um gole de conhaque.

. ‑ Pois sim... Comecemos então pelo mais importante: ouviu certamente falar do segredo médico.

- Naturalmente!

‑ Então, nesse caso, a nossa entrevista está terminada no que toca a Corina Doerinck.

‑ Mas não pode fazer‑nos uma coisa destas! ‑ Furioso, o repórter dificilmente conseguia controlar‑se. ‑ Faz‑nos entrar em sua casa e depois...

‑ E depois o quê?

‑ Quer falar connosco...

‑ Queria falar dos limites actuais da medicina oficial...

O rapaz tinha‑se levantado e fez sinal aos companheiros,

‑ Não percamos mais tempo aqui... Doutor, não lhe fica bem ter estado a gozar‑nos desta maneira.

O Dr. Hambach também se tinha levantado.

‑ E agora só lhe resta fazer um relatório típico duma televisão estatal, ou seja, a televisão que pagamos do nosso bolso: uma série de fotografias que a voz do apresentador acompanha: "Esta pequena cidade tranquila da província de M'nster é Hellenbrand, que passou a ser a partir de hoje o centro da feitiçaria alemã..." E nenhum dos espectadores terá a possibilidade de vos atirar à água com os pés e as mãos atados com o vosso filme, seus imbecis!

Enquanto os repórteres da televisão fechavam as portas do carro, o Dr. Hambach pôde ouvir o chefe da equipa explicar a situação à sua maneira.

‑ Um velho reaccionário típico. É pena que não os tenhamos exterminado todos em mil novecentos e sessenta e oito! Mas vamos tratar dele: não imagina o poder que temos...

Ao voltarem para As Armas da Vestefália, que era o seu quartel‑general, os três funcionários não prestaram nenhuma atenção ao pequeno carro com que se cruzaram e que era conduzido por Corina. Se ao menos tivessem uma fotografia da feiticeira!

justamente, um vizinho de Doerinck, Julius Mandau, empregado numa mercearia, estava à espera deles no hotel. Ao folhear o seu álbum, tinha encontrado uma fotografia de Corina que tinha dois anos e que a mostrava de bicicleta a fazer um gesto de adeus.

‑ Depois de ver isto, apresento‑me como voluntário para me deixar acariciar! E vocês podem filmar‑me para provar a todos que ela me faz sentir imediatamente em forma!


Naquela noite, a campainha da porta acordou Corina em sobressalto. Alguém devia estar a carregar sem parar na campainha ou tinha bloqueado o botão com a ponta de um fósforo, como ela tinha feito em criança para aborrecer os vizinhos

de quem não gostava e para ter o prazer de os ver precipitarem‑se furiosos para a porta do seu esconderijo...

Os números luminosos do despertador permitiram‑lhe verificar as horas: pouco passava da meia‑noite. Levantou‑se, correu na ponta dos pés para verificar sem barulho, pelo visor, se não era, apesar de tudo, um visitante conhecido. Na obscuridade, distinguiu efectivamente uma silhueta de homem com o braço estendido para a campainha, que continuava a tocar.

‑ Que quer? Quem é? Se não se for imediatamente embora, chamo a Polícia'

A campainha parou de tocar imediatamente.

‑ Peço‑lhe, abra...

Apesar da espessura da porta, aquela voz de homem não lhe era desconhecida. Depois de um instante de hesitação, deu a volta à fechadura e as últimas dúvidas desapareceram.

‑ O senhor, doutor Wewes? A esta hora? Que deseja?

‑ Posso entrar?

‑ Naturalmente.

Ela apercebeu‑se então que só tinha vestida uma camisa de noite transparente. Pegou ao acaso na tapeçaria mais próxima para a pôr à frente como se fosse uma cortina protectora. Era um pouco ridículo, mais que não fosse por causa do motivo Ulisses e as Sereias. Mas o Dr. Wewes continuava a esboçar o mesmo sorriso embaraçado.

‑ Devo‑lhe uma explicação... Sim, eu sei, já é meia‑noite, mas é que não queria ser reconhecido...

‑ O código de honra médica não prevê que um especialista dos pulmões vá visitar uma curandeira, não é verdade? Isso poderia prejudicar a sua nomeada. Mas qual é a razão desta visita surpreendente? Tem um novo adenoma no pulmão?

‑ Agi de maneira idiota, reconheço. Depois de ouvir o professor Willbreit, o nosso pequeno grupo de médicos decidiu fazer um inquérito sobre si e eu apresentei‑me como voluntário com o objectivo de a desmascarar...

- Serei assim tão nociva ao corpo médico? ‑ comentou Corina amargamente.

‑ Diganos antes que é uma causa de perturbações. E o artigo do jornal deitou fogo à pólvora.

‑ E é por isso que vem a minha casa à meia‑noite. Vai, portanto, transmitir‑me um ultimato sob a forma dum conselho do corpo médico: "Fica quieta! Pára de curar com as mãos! Somos mais fortes e provaremos cientificamente que tudo o que fazes não passa duma impostura." Mas não me conhecem, doutor Wewes. Não tenho medo. Por causa deste poder que se exprime através das minhas mãos assumi uma grande tarefa e levá‑la‑ei a cabo. Diga tudo isto aos seus colegas.

‑ Não. Eles aperceber‑se‑ão disso por eles mesmos. ‑ Olhou à volta, pegou numa cadeira e sentou‑se. O seu rosto estava modificado e tinha envelhecido desde a última visita. ‑ Corina, permite que a trate assim, não é verdade?, vim antes de mais para lhe dizer que tinha razão. Quando a deixei, fui consultar o professor Schwarthe...

‑ O especialista das vesículas.


‑ Sim. Todos os exames confirmaram o seu diagnóstico: princípio de enfisema da vesícula biliar. Mas houve um pormenor que espantou Schwarthe: foi o facto de eu ter podido sentir alguma coisa quando o enfisema ainda se encontrava no seu primeiro estádio.

‑ Naturalmente, não lhe falou de mim.

O Dr. Wewes baixou a cabeça.

‑ Desculpe, é uma cobardia da minha parte, eu sei. Devia ter‑lhe dito... Sim, o ser humano é horrível... Em todo o caso, Schwarthe prescreveu‑me doses consideráveis de antibióticos e acha que seria preferível intervir, etc. O resto já deve adivinhar.

- É razoável.

- Indiscutivelmente. Mas devo confessar a verdade; tenho medo da anestesia. Os médicos constituem, de facto, um mundo à parte: nem sempre somos razoáveis nem estamos dispostos a seguir os conselhos judiciosos que damos aos nossos clientes. Por exemplo, eu digo aos meus: "Mas pare de fumar! Está a envenenar‑se!" Ora eu fumo os meus quarenta cigarros por dia. Aliás, você também fuma de mais!

- Eu sei, mas depois de tratar um doente, sinto absoluta necessidade de fumar um cigarro.

‑ Então, falemos francamente: aceita tratar‑me, Corina?

‑ A si, espião do corpo médico?

‑ Esqueça isso! Peço‑lhe.

‑ Não sei se o posso fazer.

‑ Porquê?

Sob o efeito da surpresa, levantou os olhos do chão, que fixava obstinadamente há já algum tempo.

‑ Não tenho a certeza de ter em relação a si a imparcialidade emotiva indispensável ao contacto que deve estabelecer‑se entre o doente e eu para o poder tratar. Não devo sentir nenhum sentimento de rancor ou de agressividade em relação ao doente. No que lhe diz respeito, só as minhas mãos poderão informar‑me.

‑ Quer tentar? ‑ Levantara‑se para procurar nervosamente uma coisa nos bolsos do casaco e teve um pequeno riso embaraçado. ‑ Deixei os cigarros no carro. Fumei quatro antes de ousar tocar à sua porta. Teria aí alguns à mão?

‑ Estão no meu quarto. Um momento.

Ela estava satisfeita por poder desembaraçar‑se da tapeçaria. Só demorou o tempo de correr até ao quarto, pegar num roupão e num maço de cigarros, e voltou logo a seguir. Avidamente, o Dr. Wewes inalou a primeira fumaça.

‑ Gostava que os seus doentes dos pulmões o pudessem ver ‑ disse Corina a sorrir.

‑ Eu sei... mas vim, sobretudo, para lhe fazer uma promessa: e se lha faço é porque acredito na força que existe em si.

‑ Aí está uma confissão difícil de fazer para um médico como o senhor!

‑ Não. Agora já não. Eis a minha promessa: vou pô‑la em contacto com uma pessoa que encontrei em vários congressos médicos e que será capaz de a ajudar. Porque dentro em breve, pode estar certa, precisará muito de ajuda. Não imagina o que estão a preparar contra si.

‑ Já me avisaram e estou disposta a lutar.


‑ A coragem não lhe chegará. Vai precisar de apoios sérios. Quero apresentar‑lhe o professor Pieter Van Meersel, um biofísico holandês grande especialista das radiações celulares e outras. Isso pode ser muito importante para si. Raros são os médicos que se debruçam sobre estas questões. A maior parte nem sequer sabe de que se trata e negam tudo o que for biofísico, indistintamente. Exactamente como dantes, quando os cientistas se recusaram a admitir que a Terra andava à volta do Sol com o pretexto de que o que tinham aprendido, e ainda estava em vigor, a isso se opunha... Quero que o professor Van Meersel se interesse pelo seu caso.

‑ E se eu não quiser?

‑ Corina, você curou a sua mãe dum cancro do cólon, não curou?

‑ Curei, e então?

‑ Quer que essa vitória se limite a ser o que é: um caso único em Hellenbrand? Não tem esse direito! O professor Van Meersel vai abrir‑lhe todas as portas: o seu poder será estudado e apreciado internacionalmente. Os nossos cientistas terão de reconhecer que a Corina é um caso excepcional e, simultaneamente, que existem maneiras de tratar e de curar os doentes que eles ainda não utilizam. Talvez o futuro nos reserve grandes surpresas! Não há muito tempo, os médicos estavam limitados aos sentidos do tacto e da vista para estabelecerem os seus diagnósticos. Ouviam uma pieira num pulmão e concluíam: alguma coisa não está bem! E quando o doente tinha a barriga dura como uma pedra, procuravam entre todas as causas possíveis aquela que correspondia melhor às particularidades do paciente. Quem acreditaria então que um dia se conseguiria ver o interior do corpo humano? Pois chegou Roentgen e deu‑se uma explosão de novas possibilidades de tratamentos e de curas.

Há muito tempo que o Dr. Wèwes tinha acabado o cigarro e lutava contra uma terrível vontade de fumar outro. Sem uma palavra, Corina estendeu‑lhe o maço.

‑ E você, Corina, possui nas suas mãos, com as suas mãos, algo de totalmente novo, desconhecido e até mesmo incompreensível. Compreende o que isso significa?

‑ Sim. Mas não posso explicar nada. Isso está nas minhas mãos e nos meus dedos. A única coisa que posso dizer, é: "Olhem, verifiquem!" Isso será suficiente?

‑ Para a nossa escolástica médica, nunca! ‑ Passou as mãos pela cara e apercebeu‑se de que tinha a testa húmida de transpiração. ‑ Corina, estou contente de a ter vindo ver. Tenho vergonha de entrar em sua casa às escondidas e de ter de a renegar no círculo dos meus colegas de M'nster. Oh! Pode desprezar‑me, nem toda a gente consegue ser heróica. Mas, peço‑lhe, trate‑me e trar‑lhe‑ei o professor Van Meersel.

Meia hora depois, o Dr. Wewes encontrava‑se de novo na estrada de M'nster. Sentia em todo o corpo um calor singular, benéfico. As mãos de Corina tinham delimitado os contornos da sua vesícula biliar: "Cá está. Sinto o mal. Estabeleci contacto com ele. É como uma espécie de picadas na ponta dos dedos... " A seguir tinha‑se calado com o rosto repentinamente grave e contraído. Os seus olhos amendoados tinham‑se retraído ao ponto de não serem mais do que uma fenda quase invisível, e duas rugas profundas sulcavam‑lhe as conussuras dos lábios. E, de repente, tinha sentido uma sensação estranha, uma torrente de calor que se espalhava nele ainda mesmo quando já ia na direcção de M'nster.


Um milagre! Um milagre que deveria ser comunicado aos gritos com os braços largamente abertos a todos aqueles que encontrasse, dizendo‑lhes: "Sou testemunha. Sou testemunha dum facto incompreensível!"

Tinha verdadeiramente vontade de abraçar toda a gente para comunicar a novidade: "Aleluia pelo milagre!"

E, no entanto, ia continuar a calar‑se e a brincar à mesa dos médicos, diante dos seus colegas: "Como é que se chama essa gatinha acariciadora? Ah, é verdade, Corina Doerinck. Esqueçamo‑la então, camaradas! Deixemo‑la perder o fôlego. Tudo o que está na moda passa depressa. O povo precisa de qualquer coisa que possa admirar e sabemos que todos os objectos de admiração popular não duram muito... Bebamos, pois, mais uma cerveja com o pequeno copo obrigatório de aguardente E Prosit, caros confrades"

No dia seguinte de manhã, às dez horas, a equipa de televisão ia gastar completamente o seu latim ‑ se é que algum dos seus membros dele possuía certos rudimentos ‑ perante uma reviravolta completa da situação. Em vez de darem com uma porta aferrolhada e com janelas de persianas hermeticamente fechadas, os três jovens também foram presenteados com um milagre: Corina Doerinck em pessoa apareceu à porta da granja e fazia‑lhes sinal para se aproximarem.

‑ Entrem. Vão ver e ouvir tudo o que desejarem.

Desconcertado, o repórter gaguejou com desconfiança por causa da sua aventura com o Dr. Hambach.

‑ Mas porquê assim, de repente?

‑ Porque se tornou necessário. ‑ Tinha os olhos fixos nele e observava‑o da cabeça aos pés e dos pés à cabeça com um olhar agudo. ‑ Na anca esquerda tem uma cicatriz demasiado proeminente. Se tiver outro acidente e for preciso cosê‑lo, previna que é do tipo que cicatriza mal...

O jovem repórter tinha estacado, incrédulo e gaguejando ainda mais.

‑ É formidável! Verdadeiramente formidável! É verdade... Foi no golfo da Gasconha: uma onda mais alta do que as outras empurrou‑me contra um rochedo. Como é que pode ver essa cicatriz? Através das minhas calças?

‑ Aproximadamente...

‑ Meu Deus!...

Instintivamente, tinha posto ambas as mãos à frente da braguilha. Mas Corina já se tinha voltado.

‑ Podemos filmar?

‑ Onde quiserem.

‑ Aqui, no sítio onde expõe as suas obras? Tem um lugar especial para receber os doentes?

‑ Aqui mesmo ao lado, no atelier.

‑ No atelier! Perfeito! Que título extraordinário: "O atelier das curas milagrosas!"


Foi precisa uma boa meia hora para a equipa de televisão acertar a iluminação e o som, sobretudo para arranjar o atelier de maneira a obter os melhores ângulos. O repórter pôs Corina diante do tear e fê‑la dar os primeiros nós duma nova tapeçaria. Grande‑plano sobre as mãos. já pensava na emissão: uma voz off acompanharia o grande‑plano: "Estas são as mãos que curam e até cancros chegam a sarar! Mãos que hoje emitem radiações para fora da pequena cidade de Hellenbrand... A não ser... a não ser que se trate de mãos totalmente normais que tiram partido da superstição dos doentes para lhes arrancar dinheiro?" Com palavras bem escolhidas e com a utilização do condicional, não seria uma ofensa, mas uma simples pergunta, não é verdade? Cabia a Corina Doerinck responder e dissipar as dúvidas...

Para o jovem repórter, tratava‑se do primeiro grande momento da sua vida. Hesitava ainda entre a canção, como toda a gente actualmente, e o jornalismo. Esta reportagem, com o picante que ele lhe ia imprimir, iria provocar ecos insuspeitados junto do grande público.

‑ Sustenta então poder curar com as suas mãos?

‑ Não.

Esta primeira resposta inesperada paralisou durante um instante toda a equipa e a testa do repórter cobriu‑se de suores frios.

‑ Não? ‑ conseguiu dizer.

‑ Não. Não sustento nada. Eu sei. Sei que posso curar e sou capaz de prová‑lo.

‑ Pode fazê‑lo realmente?

‑ Sim.

‑ Pode citar casos precisos?

‑ Sem pronunciar o nome das pessoas que curei, posso. Curei casos de bronquite, de asma, de arritmia cardíaca, de úlcera gástrica, de ciática, de gastrite, de prostatite, de inflamação da vesícula biliar, entre outras.

‑ Até o cancro?

‑ Isso só aconteceu uma vez com a minha mãe.

‑ Unicamente por imposição das mãos?

‑ Não. O que eu faço é pôr as mãos a uma certa distância da região doente. Nunca toco no doente propriamente dito. Entre as minhas mãos e a parte a tratar produz‑se um campo de forças e são as forças bioplasmáticas deste campo que suprimem a doença ao agirem directamente sobre as células atingidas. É o caso, por exemplo, das inflamações dos nervos, em que o processo de infiltração desaparece.

‑ Isso parece incrível e ao mesmo tempo bastante científico. Onde é que foi buscar esses conhecimentos? É uma autodidacta?

‑ Não, estudei medicina.

‑ Mas sem chegar a defender a tese. Porquê?

‑ Estava frequentemente em desacordo com os meus professores. Mais tarde, acabava por fazer‑lhes notar que se tinham enganado no diagnóstico. Era‑lhes impossível suportar a situação, o que compreendo até certo ponto.

‑ E os seus diagnósticos acabavam por se revelar exactos?

‑ Sim, todos.

‑ E isso só com as mãos? Não sente só com elas, também é capaz de ver, não é?

‑ Essa não é a maneira correcta de exprimir o que se passa: a irradiação que se transmite pelas minhas mãos localiza e delimita com precisão o mal de que sofre o doente. Este fenómeno é conhecido e também tem um nome que não lhe é adequado: visão cutânea. Sempre se verificaram casos de visão cutânea em povos que vivem próximos da Natureza, como acontecia na Antiguidade.

Era o que o repórter esperava: a partir de agora ia poder passar francamente ao ataque.

‑ As suas curas situam‑se, portanto, ao mesmo nível das dos homens‑medicina dos Bantos ou das tribos da Nova Guiné.

‑ Não. Estou apenas a dizer que o que faço não tem nada de milagroso nem de extraordinário. Há séculos que se conhece este fenómeno, só que nunca foi encarado com total seriedade.


‑ Porquê?

‑ Por ser dificilmente explicável do ponto de vista científico e, para a medicina oficial, o que não se pode explicar de maneira precisa não conta. Numerosos são os que defrontam este obstáculo, sobretudo nos nossos dias: pensem na implantação de células frescas do professor Niehans, à qual recorrem em segredo muitas das grandes personalidades do nosso tempo; pensem na concepção segundo a qual o cancro seria uma doença de todo o corpo e o tumor a manifestação local dum desequilíbrio geral. Tudo isso ainda é acolhido com um sorriso irónico por parte do corpo médico e continua‑se a inundar o pobre doente com raios mortais ou a injectar‑lhe produtos químicos que ele não suporta ou suporta mal.

‑ E você acaricia à distância o corpo do doente e o cancro mostra imediatamente a bandeira branca e desaparece sem tambor nem trombeta! Não acha que se tem o direito de rir disso, assim como de fazer troça de si? As suas mãos são capazes de fazer o que os dispositivos mais avançados em matéria de radiações não conseguem. Como é que se consegue acreditar numa coisa dessas?

‑ Não se trata de crer, mas de desejar, observar e sentir que finalmente se triunfou da doença que se tinha.

‑ A sua visão cutânea permite‑lhe descobrir as metásteses que os nossos melhores detectores de cintilações só tornam visíveis sob certas condições?

‑ Nunca experimentei.

Olhava para a câmara de frente e todos podiam ver o seu rosto no ecrã. A beleza especial das raparigas do Cáucaso já tinha fama junto dos gregos da Antiguidade pensou o repórter sem dar por isso. Ela continuou:

‑ Até agora só tratei de um único cancro, o da minha mãe, e fui bem sucedida. As radiografias provam incontestavelmente que esse cancro desapareceu...

A entrevista durou uma hora. O que se ia ver e ouvir pela televisão era verdadeiramente incrível. Se aquela rapariga sentada à frente da câmara estava a falar verdade, isso significava que ela era capaz de fazer aos olhos de todos aquilo a que Biffilia chama milagres divinos. Expunha‑se, assim, não só aos ataques dos médicos mas também aos do clero das religiões oficiais. Transpirando por todos os poros, o repórter exultava: finalmente conseguira algo de sensacional!

A equipa de televisão despediu‑se de Corina com tal amabilidade que uma pessoa mais bem informada dos hábitos dos órgãos de comunicação teria reagido com um sobressalto de desconfiança e teria visto nisso sinais para alarme.

Mas Corina sentiu‑se quase feliz. Imaginava ter esclarecido certos pontos indispensáveis: primeiro, que não era uma produtora de milagres, mas sim o instrumento duma força que, por mais rara que fosse, não deixava de ser absolutamente natural. Esperava ser compreendida por todos. Mas tinha cometido um erro imperdoável: não exigira que a entrevista fosse difundida integralmente, sem sofrer nenhuma das deturpações habituais efectuadas por jornalistas de última ordem de que os iniciados desconfiam com razão. Ela não tinha nenhuma ideia do filme que ia aparecer nos ecrãs dois dias mais tarde. Senão, ter‑se‑ia precipitado para tentar destruí‑lo.


E quando, no patamar da sua porta, levantava o braço para saudar mais uma vez o repórter e a sua equipa, não tinha podido ouvir este último exprimir pesadamente a sua satisfação.

‑ E agora, negócio fechado! Depois de amanhã, quando aparecerem alguns extractos bem escolhidos na emissão "Medicina para todos", isto vai fazer ondas! Felizmente, pois estávamos a ter o Verão mais calmo de sempre!

Durante a tarde, o Prof. Pieter Van Meersel telefonou a Corina. Falava muito bem alemão. Ao ouvir a voz dele, Corina teve a impressão de que o seu coração tinha parado de bater durante alguns instantes: o Dr. Wewes tinha cumprido a promessa.

‑ O que o doutor Wewes nos disse de si confirma uma grande parte dos resultados das nossas investigações. É absolutamente necessário que nos encontremos.

‑ Estou em Hellenbrand. Talvez seja preferível ver‑me no meu ambiente normal.

‑ Também acho. Pode receber‑me na próxima segunda‑feira?

‑ Regozijo‑me desde já, professor.

- Segundo o doutor Wewes, até aqui só fez uso das suas faculdades num círculo bastante restrito, não foi?

- Foi‑ Mas esta manhã a televisão veio entrevistar‑me...

- Hum... ‑ Van Meersel parecia surpreendido e pouco satisfeito com a novidade. Prosseguiu num tom diferente: ‑ Era necessário?

‑ Devo esconder‑me?

‑ Evidentemente que não. Mas começar assim o combate, mais do que ser corajoso, é temerário.

‑ O combate? Contra quem?

‑ Os vossos inimigos vão surgir do chão como se fossem cogumelos e sem esperarem pela primeira chuva, pode crer.

‑ Apresentarão todos os seus argumentos e eu os meus. Além disso, tenho as minhas mãos. Não as podem vencer com discursos!

Van Meersel quase a interrompeu para dizer, muito depressa:

‑ Não irei vê‑la na segunda‑feira, mas já no sábado. E vou dar‑lhe imediatamente um conselho importante. Se não dispõe de apoios científicos, vai ser alvo duma verdadeira tortura psíquica, e não vai conseguir suportá‑la. Vai ser horrivelmente ridicularizada e o ridículo mata. Aí os argumentos sérios deixam de contar. Quem pode ter confiança numa pessoa de que toda a gente faz troça? Temos de impedir isso, compreende? Além disso, não compreendo que tenha dado essa entrevista à televisão antes de construir à sua volta uma sólida muralha protectora. Não tem ninguém que a aconselhe? Um psicólogo ou um parapsicólogo? Um especialista?

‑ Não. Porquê? As minhas mãos curam. Não é suficiente?

‑ Isso é o que se pensa. Todos deviam aceitar essa realidade com um sentimento de felicidade, de reconhecimento e até de respeito. Mas o mundo em que vivemos é diferente, menina Doerinck. O maior prazer da maior parte dos seres humanos é, infelizmente, a destruição... De qualquer modo, estarei em sua casa no sábado bem cedo.


Lentamente, Corina pousou o auscultador. Que significavam aqueles avisos que lhe chegavam de todos os lados e agora, por último, do Prof. Van Meersel? Porque é que ela só ouvia falar de conflitos e de furores hostis? Porque é que a partir dali começava a inspirar uma espécie de medo? Porque é que toda aquela gente não era capaz de admitir simplesmente os factos? Sim, as suas mãos podem curar, verificámo‑lo, estamos convencidos disso, é assim e não de outra maneira. Porquê todas aquelas ameaças? Os doentes seriam menos importantes do que as doutrinas elaboradas sobre eles por especialistas que se recusavam a ir mais longe do que os limites impostos pelos seus mestres?

Corina dava‑se subitamente conta do erro que cometera ao revelar a sua vida e as suas curas àquela gente da televisão. Como pudera esquecer que eles não procuram a verdade, mas o que é sensacional, e que não se pode fazer jogo franco com eles? Tinha muito simplesmente fornecido munições a adversários desconhecidos, que iam tentar esmagá‑la logo ao primeiro tiro.

Fechou atrás de si a porta da granja e atravessou a cidade de carro para ir a casa dos pais. Encontrou o pai num estado de efervescência fora do normal, como se os ponteiros do tempo começassem a andar para trás. Apesar das rugas do rosto que ela bem conhecia, já não tinha à sua frente o professor e vice‑reitor que os anos tinham acalmado, mas o jovem oficial valentão de outrora, aquele que, com dez homens apenas, tinha mantido durante cinco dias a sua posição à entrada duma ponte a fim de permitir ao seu batalhão organizar‑se para recuar ordenadamente levando consigo os seus feridos, as armas e todas as munições. Recebera por isso a mais alta condecoração daquele conflito, a cruz de guerra alemã, que nunca ostentara, visto só ter havido dois sobreviventes, ele e um cabo ferido no ombro. Nunca tinha percebido como é que conseguira sair daquele inferno apenas com alguns arranhões.

‑ Queres tarte de maçã, Cora? ‑ perguntou à filha.

Mas Ludmila sentiu imediatamente que Corina estava preocupada.

‑ O que é que se passa, minha querida?

‑ Telefonou‑me um professor célebre da Holanda. Vem cá no sábado.

‑ Põe‑no na rua! ‑ resmungou Doerinck. ‑ Põe‑nos a todos na rua! E conta comigo para te ajudar! Estamos fartos dos cobardes que vemos à nossa volta! O presidente da câmara tem medo do caos. O reitor, ao imaginar uma intervenção académica, faz pelas calças abaixo! Os vizinhos cumprimentam‑me com ar embaraçado ou então evitam‑me. Conhecem‑me mal!

‑ Papuchka, depois de amanhã a televisão apresentará a reportagem sobre mim.

Doerinck deu um salto da poltrona.

‑ O quê! Deixaste entrar em casa esses chacais? Ficaste louca, Cora!

‑ Mas não tenho nenhuma razão para me esconder. Não fiz nada de mal. Só socorri alguns doentes. Foi o que lhes disse e é o que todos os espectadores poderão ouvir.

‑ E depois de amanhã haverá milhões de pessoas a saber que existe uma rapariga em Hellenbrand cujas mãos são capazes de curar, até o cancro. à tua saúde, Cora! Graças a ti, o caos que o Peter receava vai concretizar‑se. Dás‑te ao menos conta do que acabas de desencadear?


‑ Reconhece‑me ao menos um pouco de inteligência, pai. ‑ Tinha‑se sentado em cima da mesa e pegado numa fatia de tarte enquanto a mãe lhe servia uma chávena de café. ‑ Se Deus, ou a Providência, ou a Natureza, ou seja que nome for que se dê a essa entidade, me insufla a força de curar doentes, é preciso que os doentes o saibam... Mamuchka, a tua tarte está maravilhosa...

‑ Vais ver a avalancha que cairá sobre nós! ‑ resmungou Doerinck.

‑ Será que estás com medo papuchka? Lembra‑te: ensinaste‑me muito bem a sobreviver...


 

Passaram dois dias, dois dias de calma absoluta, naquela cidadezinha da Vestefália, mas Doerinck pensou que se tratava da calma que precede o furacão. A inspecção académica não se tinha mexido. Talvez o inspector não lesse aquele jornal local. O seu silêncio tranquilizara o reitor Ferdinand Hupp, que ignorava que Corina dera uma entrevista à televisão. O presidente da câmara, Peter Beiler, também não sabia de nada. Foi assim que à noite do segundo dia, à hora de maior audiência, quando a entrevista de Corina rebentou como uma bomba, se ouviu em uníssono o mesmo grito da parte deles e da cidade inteira.

Na tarde desse sábado, o professor Van Meersel chegou a Hellenbrand de carro, dado que a região de M'nster não fica longe da fronteira holandesa. Era um homem de grande estatura, seco, com ralos cabelos brancos e olhos de um azul‑claro constantemente húmidos, mas um movimento convulsivo do nariz, de que nenhum médico o conseguira desembaraçar até à data, desfigurava‑o bastante. Não há nada de mais banal que um piscar de olhos exagerado ou um tique da cara, mas uma convulsão do nariz é extremamente rara. Os mais reputados neurologistas dos Países Baixos tinham tentado fazê‑lo desaparecer, mas em vão.

Van Meersel chegou no momento em que Corina estava a acompanhar até à porta a sua última "convidada" ‑ ela evitava o mais possível a palavra "cliente" ou "paciente" para designar os que a visitavam. Era Hilda Huiskens, a esposa do fabricante de comutadores. Por gratidão, porque se sentia agora muitíssimo bem, pôs na mesa uma nota de quinhentos marcos. Corina protestou.

‑ Eu não levo dinheiro pelos tratamentos. Proibi‑mo.

‑ Mas é um presente, minha querida. Acho que tenho o direito de lhe oferecer um presente. ‑ E beijou Corina antes de partir. ‑ Nunca me senti tão bem desde há muitos anos. Corina, as suas mãos são milagrosas.

O professor Van Meersel, que acabara de chegar, assistiu ao último aperto de mão que as duas mulheres trocavam à porta da granja e esperou, para sair do carro, que a Sra Huiskens se afastasse, o que ela fez olhando curiosa para a matrícula holandesa daquele carro desconhecido. Só então é que o professor abriu a porta do carro, com o nariz a mexer, e saudou Corina com um largo gesto do braço.

‑ Seja bem‑vindo a casa da feiticeira, professor ‑ gritou ela alegremente, indo ao seu encontro.

Van Meersel queria protestar por causa da palavra "feiticeira", mas ficou tão impressionado com a beleza física de Corina que só respondeu depois de lhe ter beijado cerimoniosamente a ponta dos dedos.

‑ Há sempre novos palermas e novas palermices. Creio que é um provérbio alemão que diz que para cada palerma que morre, nascem logo dois a seguir! E, com efeito, quanto mais a nossa civilização se complica, menos estamos em contacto com a Natureza... Não a imaginava nada assim como é...

- Como?


- O doutor Wewes esqueceu‑se de fazer‑me a sua descrição. ‑ Quando se achou na sala de exposições, lançou à sua volta um olhar cheio de interesse. ‑ Conhece Marikje Kerselaar? ‑ perguntou bruscamente.

‑ Não. Acha que devia conhecê‑la?

‑ Marikie é, se se pode dizer, uma das suas colegas. A sua clientela é simultaneamente exclusiva e secreta. Murmura‑se que a família real holandesa a mandou já chamar frequentemente. E, com efeito, é uma mulher extraordinária. Trata os doentes com aquilo a que chama campos magnéticos, e muitas vezes isso traduz‑se por aplicações de algodão magnetizado e pelo uso de amuletos que ela carrega, segundo diz, com uma energia que se espalha a pouco e pouco, com um certo atraso, pelo corpo daquele que os traz. Conseguiu vitórias incontestáveis, mas tem naturalmente numerosos inimigos. Há muita controvérsia à sua volta. Estes amuletos cheiram indiscutivelmente a charlatanismo... ‑ Van Meersel levantou os ombros. ‑ Mas o que é que se pode fazer perante o sucesso?

‑ Não parece gostar muito dela...

‑ Diria antes que os meus aparelhos não registam nenhuma emanação saída dela. É por isso que me interrogo.

Inclinou‑se cortesmente quando Corina lhe fez sinal para se sentar numa das poltronas que rodeavam a mesa sobre a qual ainda se encontravam os quinhentos marcos. Meersel olhou‑a com ar pensativo.

‑ São os seus honorários? ‑ perguntou.

‑ Não. A senhora Huiskens (viu‑a ir‑se embora) ofereceu‑me quinhentos marcos como prova de gratidão, e não sei o que lhes hei‑de fazer. Até agora, já recebi da mesma maneira quase dois mil marcos.

Abriu um armário e pegou numa caixa rectangular de madeira esculpida. A nota de quinhentos marcos foi juntar‑se às que já lá se encontravam.

‑ Devo dar este dinheiro a uma escola infantil ou a um asilo de idosos? Receio que o meu poder desapareça se o utilizar. É como se se tratasse de algo sagrado de que uma pessoa não se pode servir para ganhar dinheiro. É uma força tal que teria a impressão, se a comercializasse, de cometer uma verdadeira agressão, e estou persuadida de que os sentimentos agressivos comprometem o desenvolvimento desta força psicocinética.

‑ Eis‑nos em plena parapsicologia ‑ disse Van Meersel a sorrir. Tinha fome e fez as honras ao bolo de mel que Ludinila preparara e que Corina tinha ido buscar à sua pequena mezinha, assim como algum café. ‑ Este bolo é delicioso!

exclamou ele.

- É uma receita caucasiana da minha mãe.

- Ah, pois! A sua mãe também é sua doente, conforme me disse o doutor Wewes. Curou‑a de um cancro do cólon. Confesso que, apesar da minha abertura de espírito, sou bastante céptico em relação a esse género de cura. Mas veremos isso mais tarde. Quando ouvi dizer que era de origem russa, arrebitei as orelhas. Imagine que é da Rússia que nos chegam informações espantosas sobre os progressos realizados em matéria de parapsicologia. A descoberta mais incrível feita pela Universidade de Alma‑Ata contempla a deslocação de objectos sem contacto físico, obedecendo a ordens puramente mentais, ou seja, à telecinesia. Os Russos inventaram um novo nome para designar este tipo de fenómenos: "Intervenção da energia dum campo bioplasmático". Esta energia, além de fazer deslocar os objectos, transforma‑os e reforma‑os.


‑ Como o Uri Geller, que vimos na televisão a entortar garfos só com o olhar. ‑ Estava sentada em frente de Van Meersel, mas não tocava nem na tarte nem no café. ‑ Eu vi‑o na televisão e quando a seguir ouvi as conversas dos colegas do meu pai e dos vizinhos, que defendiam que aquilo era impossível, tentei fazer algo de parecido. Sentei‑me nesse lugar em que está e olhei para um grande copo que tinha posto em cima desta mesa. Nenhum resultado! Mas quando estendi as mãos para ele afastando os dedos, o copo partiu‑se aos bocados. Nunca falei disto a ninguém, nem sequer aos meus pais.

‑ Nem à televisão?

‑ Não, é o único a sabê‑lo.

‑ Obrigado pela sua confiança. E isso levanta outro problema. Quando li o que se passa em Alma‑Ata, senti‑me de repente pouco à vontade. Quem pode imaginar hoje o que será o futuro quando se puder utilizar, com fins maléficos, um feixe de energias bioplasmáticas? Não é uma fantasia do espírito. Há cem anos, o cérebro era um terreno inexplorado e um assunto tabú para os cirurgiões. E hoje, é certo que em animais muito inferiores, dedicamo‑nos a experiências que vão até à troca de cérebros, como se se tratasse de trocar motores de carros! Para voltar ao que se faz na Rússia, ao passo que na Idade Média se queimavam os seres humanos dotados de poderes psíquicos inexplicáveis, fiquei a saber com espanto que o professor Venjamine Puchkine, da Academia das Ciências da União Soviética e director do laboratório de heurística de Moscovo, apresentou a uma assembleia de cientistas um estudante, Boris Yermolaiev. Yermolaiev faz flutuar no ar, sob as suas mãos, jornais, caixas de cigarros e objectos metálicos. Esta energia, à qual Puchkine deu o nome de "antigravitação", permite a Yermolaiev criar um campo de gravitação que lhe é próprio. Isto destrói todas as hipóteses adiantadas até à data sobre a psicocinesia. Campos de forças bioplasmáticas, campos de forças electromagnéticas são expressões que, tal como as respectivas explicações, parecem estar ultrapassadas. Que força é esta, Corina, que faz com que um copo se estilhace sob o efeito das suas mãos? ‑ Van Meersel respirou profundamente e fez o gesto de mexer o café que já não estava na chávena. ‑ Foi por isso que me precipitei para sua casa: quero poder proclamar e defender que o que Boris Yermolaiev realiza em Moscovo está você farta de fazer sozinha, já há muito tempo. Ora o trabalho que a minha equipa e eu realizamos, no maior silêncio científico, confirma todas essas experiências... E, infelizmente, a televisão aparece! E não há nada pior para a ciência. Esta noite, às dez horas, metade da Alemanha ficará a saber que você existe e, dentro de três dias, o mundo inteiro terá ouvido o seu nome e visto o seu rosto. Mas em que condições? Isso pode ser um golpe terrível para a verdadeira ciência! ‑ Limpou o suor que lhe escorria pela cara. ‑ Contudo, o que está feito está feito, mas vou tentar evitar os maiores excessos e afastar o despeito e a raiva dos detractores...

‑ E se tudo o que faço não passar de impostura? ‑ perguntou Corina em tom provocante.

Com um gesto que lhe era habitual, Van Meersel levantou os magros ombros.

‑ Não deixei de me interrogar sobre essa possibilidade. É por isso que estou aqui a observá‑la.


‑ Tem um tique do nariz. Porquê?

‑ Sim, porquê? ‑ Teve um sorriso melancólico. ‑ Só Deus o sabe... É certamente um nervo atingido pela loucura, que faz das suas. Tenho de viver com ele...

‑ E é o senhor que diz isso? Precisamente o senhor. A Marikje Kerselaar viu‑o?

‑ Naturalmente.

‑ E o que é que disse?

‑ Como trata toda a gente por tu, até a rainha, disse‑me: "Pieter, o que tens no nariz só cessará quando te esmagarem o cérebro." Fica já com uma ideia de como ela fala!

‑ A minha é diferente...

Corina tinha‑se inclinado para a frente a fim de olhar Van Meersel nos olhos. Surpreso, viu‑a levantar a mão direita, com os dedos um pouco encurvados, e dirigir para o seu nariz aquela espécie de reflector parabólico. De repente, ficou como paralisado, muito direito e rígido na sua poltrona.

‑ Que sente agora? ‑ perguntou Corina, numa voz sombria totalmente modificada.

‑ Calor... A sua energia bioplasmática, venha ela a ter o nome que tiver no futuro...

Isto durou um minuto, durante o qual a mão de Corina se deslocou lentamente no ar a alguns centímetros da cara de Van Meersel. A seguir, baixou a mão. Como sempre, Corina pegou num cigarro de que aspirou avidamente o fumo com os olhos fechados. O professor não se tinha mexido. Sentia aquele estranho calor descer‑lhe do rosto e invadir‑lhe a pouco e pouco todo o corpo.

‑ Eis uma boa demonstração ‑ disse suavemente. ‑ Era algo deste género que eu esperava encontrar em si.

‑ Dentro de dez dias esse tique já terá desaparecido, professor. E se não tiver desaparecido, pode aconselhar o mundo inteiro que esqueça para sempre o nome de Corina Doerinck.

‑ Está bem. Mas se o meu tique desaparecer, comprometo‑me a gritar muito alto: "Eis a prova de que o ser humano é mais do que um monte de células; que existe em nós uma

emanação e que esta emanação é imortal. Não há ressurreição, só a confirmação da vida sob outra forma!"

‑ Vão tomar‑nos a ambos por loucos!

‑ O que não é novo para mim ‑ retrucou Van Meersel. ‑ Talvez seja um bem que o homem não compreenda o que de facto é e de que maneira o é. Imagine só se os nossos políticos começassem a comunicar entre si pela psicocinesia. Ficariam libertos de toda a agressividade. Mas o que é que lhes restará? Não é verdade que é em período de crise que um político adquire uma personalidade? Minha cara Corina, não é assim tão simples utilizar os dons da natureza.

 

A emissão de televisão, a "grande entrevista" de Corina Doerinck, "a curandeira milagrosa de Hellenbrand", foi difundida naquela mesma noite.


Corina viu a emissão em casa dos pais. Tinha levado o professor Van Meersel, com quem Stefan Doerinck simpatizou desde o primeiro instante: como ele, Van Meersel gostava de alguns bons copos de vinho para acompanhar uma refeição excelente e eram mais ou menos da mesma idade. Comprazer, toda a família Doerinck viu o professor deglutir sozinho metade de um lauto jantar. Era caso para perguntar como é que aquele homem podia ser tão magro.

A entrevista, além de ser acompanhada por um comentário malévolo, fora montada tendenciosamente no sentido de se tornar na execução capital de Corina. Não tinha nada a ver com uma reportagem objectiva. O repórter, por exemplo, insistia no carácter "inoperável" do cancro de que Corina curara a mãe, o que era evidentemente falso, visto o professor Willbreit ter querido justamente operá‑lo. Mas um jornalista hábil pode levar em conta tais bagatelas? Tudo era, portanto, sacrificado à linha geral escolhida pelo repórter: "Olhem. e ouçam, boa gente, eis o que a Sra. Milagre pode fazer e apenas de mãos nuas! Eis o fenómeno capaz de repetir todos os milagres da Bíblia!"

‑ Que infâmia! ‑ exclamou Van Meersel, transtornado.

Ludinila, sentada no sofá, com as mãos cruzadas, tinha visto toda a emissão de lágrimas nos olhos e sem dizer palavra. Mas observara o marido, cujo rosto traía a cada momento as emoções que o agitavam.

Corina estava muito calma e dir‑se‑ia que a emissão passava por ela sem a atingir. Era a única responsável pelo que se estava a passar. Tinha sido ela que, apesar de todos os avisos, concedera a entrevista. É evidente que não podia imaginar que tudo o que dissesse fosse deturpado àquele ponto. Como a maior parte dos telespectadores, ignorava a maneira como os especialistas manipulam correntemente o espírito de um povo que não pode deixar de acreditar na realidade do que vê e ouve. Nunca há, ou quase, emissão nenhuma que seja autenticamente verdadeira, e os protestos de alguns jornais revelam‑se infrutíferos, visto que a informação escrita perdeu quase todo o poder face à falsa realidade que o público vê com os seus olhos em diversos ecrãs. Há milhares de anos, o ser humano viveu acreditando nos seus olhos e nos seus ouvidos. Os que dispõem da televisão podem esmagar quem quiserem sem temer nenhuma represália. A fortaleza dos media audiovisuais é inexpugnável porque nenhum de nós distingue entre as imagens e os sons que nos oferecem e a realidade da vida.

No fim da emissão, ao ver o pai, furioso, apagar o televisor, Corina julgou acalmar os espíritos dizendo numa voz inalterada:

- Agora já sabemos com o que contamos. Porque te zangas, pai? Só se vive uma vez, não é verdade?

‑ Mas a partir de amanhã vai ser necessário defendermo‑nos contra o mundo que nos rodeia, e que já não será o mesmo.

com o indicador, Doerinck apontou para o aparelho.

‑ Não sabes nada disto, minha filha. O que acabamos de ouvir é uma declaração de guerra. E a partir de agora é toda a família Doerinck, em Hellenbrand, que se encontra na primeira linha.

‑ E tudo isto porque posso e quero socorrer os doentes...

O professor Van Meersel tinha estado atento, apesar das honras que fizera ao jantar. Estendeu as longas pernas.

‑ É assim este mundo, minha cara. Pode citar‑me um só exemplo da história da ciência em que as descobertas duma pessoa que, não fazendo parte dum quadro tradicional de investigadores, tenham sido aprovadas imediatamente pelos membros desta confraria?


Stefan Doerinck tinha razão em estar pessimista. A campainha do telefone não pararia mais. A primeira chamada era dos Hillerbeck, os vizinhos que moravam três casas adiante. O Sr. Hillerbeck era um homem amável e culto que pedia de vez em quando emprestado um livro interessante, do género biográfico ou uma narrativa de viagens, a Stefati Doerinck. A estupidez das suas perguntas levou ao rubro a cólera de Doerinck.

‑ Viu aquilo, Doerinck?

‑ Evidentemente.

‑ A sua filha... Será possível que...

- É possível, é!

- A Corina seria então capaz de curar todas as doenças com as mãos? Mas nós nunca soubemos de nada até agora. Enfim, para ser franco...

Doerinck interrompeu‑o grosseiramente, reencontrando de repente a linguagem que tinha marcado cinco anos de guerra, cinco anos subtraídos à sua adolescência e juventude.

‑ Um bom conselho, Hillerbeck! Se apanhar um bom esquentamento ou se ficar com um traque atravessado, já sabe onde é que a Corina está: ela curá‑lo‑á...

A conversa parou imediatamente, pois ambos os interlocutores desligaram ao mesmo tempo. Ludinlla, muito emocionada, meneou lentamente a cabeça.

‑ Fizeste mal, Stefanka. Os Hillerbeck sempre se mostraram excelentes pessoas.

‑ Até esta noite ‑ retorquiu asperamente Doerinck. ‑O telefone tocou de novo e Doerinck deu um salto para pegar no auscultador. ‑ Daqui Doerinck... Ah, és tu, Ferdinand. Mas estás tão sem fôlego... como se tivesses recebido um murro no estômago, meu caro reitor!

‑ Isto não pode ser, Doerinck. Eu avisei‑te. Já nada posso fazer por ti. Como é que a Corina pôde dar aquela estúpida entrevista?

‑ Não deu.

‑ Mas foi o que viram e ouviram milhões de pessoas.

‑ As suas declarações foram deturpadas e falseadas.

‑ Eu estou pronto a acreditar que assim foi, mas isso não muda nada. Quem o saberá além de ti, da tua família e de mim? Várias pessoas crêem absolutamente naquilo que viram e ouviram. E é isso que conta. A tua Corina pôs‑vos em bons lençóis, Doerinck! Eu preveni‑te. Não tens defesa possível!

‑ Ouve‑me bem, duma vez por todas: estou disposto a não prestar nenhuma atenção àqueles que fazem nas calças com medo da opinião pública e da dos seus superiores. E agora, Ferdinand, para bom entendedor...

E desligou. Ludmila suspirou.

‑ E agora, acabou‑se a amizade do Ferdinand.

‑ Estou farto de o ver tremer diante da inspecção escolar, diante do conselho dos pais dos alunos ou diante do menor representante do Governo ou duma autoridade superior. Se se quisesse seguir o seu exemplo, seria necessário operar todo o corpo docente e retirar a coluna vertebral de cada um de nós para que nos ponham bem o pé em cima. Mais um telefonema: o presidente da câmara, evidentemente! Este também vai ouvi‑las!

Mas era um anónimo, com voz entaramelada.

‑ Mas então onde é que se esconde a gatinha de língua e mãos acariciadoras? Tenho justamente aqui à mão o meu irmão mais novo que se queixa de estar muito sozinho e que já está a chorar grossas gotas só de pensar nela...

Doerinck desligou sem uma palavra.


‑ Quem era? ‑ perguntou Ludmila.

‑ Um poeta do nosso século: só imagens incoerentes e nenhum ritmo. Não fixamos uma só palavra do que deitam cá para fora!

Ludinila queria protestar, mas a campainha do telefone tocou mais uma vez.

‑ Ah! Finalmente, tu! Estava à espera da tua chamada, caro presidente! Então, que me dizes?

A voz de Peter Beiler quase fazia tremer o auscultador de cólera e de emoção.

‑ Lembras‑te do que te disse? A tua carreira está arrumada, Stefan! O presidente do conselho regional acaba de me telefonar...

‑ E não é tudo ‑ interrompeu‑o Doerinck, alegremente. ‑ Amanhã de manhã, será o presidente do governo local e a seguir o do governo federal. O que é que decidiram esses senhores do conselho regional?

‑ Não brinques, Stefan: dizem, em unanimidade, que se trata de um escândalo que recai sobre ti e sobre todo o corpo docente! Mas diz‑me cá: a Corina ficou maluca? Tem ideia do mal que esta emissão te vai fazer? O efeito é desastroso. Todos sofremos por isso. Que contas fazer?

‑ Lutar, evidentemente! E ouve bem: da maneira como as coisas estão a evoluir, o curso que tomam está a ser muito instrutivo. Vão permitir‑nos, a mim e aos meus, julgar do verdadeiro valor dos nossos amigos, mesmo do daqueles que temos há dezenas de anos. Na minha qualidade de professor, sei que vou ter de lhes dar a nota mais baixa: Amizade insuficiente!" Tinha concebido uma outra ideia da amizade!

‑ Nós só queremos prevenir‑te, Stefan. ‑ Peter Beiler parecia verdadeiramente transtornado. ‑ Mas tu e a Corina são teimosos como mulas. Ouve, Stefan...

Doerinck tinha desligado. Começava a saber de cor o que se ia seguir.

Voltou a pegar no auscultador e pousou‑o ao pé do gancho para impedir a recepção de novas chamadas.

‑ Agora, as máscaras caíram ‑ disse amargamente. ‑ será divertido ver o que dissimulavam. De repente, o mundo inteiro vai transformar‑se diante dos nossos olhos. No fundo, o ser humano é cobarde e mentiroso. Basta que um de nós seja leal e corajoso para que todos os outros se atirem a ele e o oprimam. A vida é, portanto, uma cadeia de compromissos conflituosos, essa é que é a verdade, e é nesse magma intelectual e espiritual que temos de abrir o nosso caminho ou pela razão ou, se necessário, pela força. O mais frequente é termos de chafurdar na porcaria. É o que se chama em filosofia O mal necessário.

‑ Amanhã teremos as ideias mais claras ‑ declarou Van Meersel.

Vendo que Stefan Doerinck se preparava para abrir mais uma garrafa de vinho, fez um sorriso de aprovação. Mas a sua satisfação foi suspensa por um forte toque de campainha. Corina ultrapassou o pai a correr e abriu a porta, dando passagem ao Dr. Hambach. Parecia vir com o humor exigido pelas circunstâncias: após a emissão, tinha bebido dois copos de conhaque um atrás do outro. Beijou Corina e Ludmila na testa, enquanto declarava:


‑ já explodiu a bomba em Hellenbrand! Willbreit telefonou‑me há um quarto de hora. Estava feliz da vida: "Viu? Está completamente desacreditado! ", gritou. "Todos os meios são bons para denunciar as imposturas deste género de curandeiros..." Respondi‑lhe mandando‑o passear...

Notou finalmente a presença de Van Meersel e esboçou um cumprimento ao apresentar‑se. Van Meersel respondeu‑lhe da mesma maneira e o rosto do Dr. Hambach fechou‑se. Como o holandês achou por bem explicar que se ocupava de neurologia e de parapsicologia, o velho médico não dissimulou a sua perturbação. Mas Van Meersel começou:

‑ A sua desconfiança só lhe fica bem, caro colega. Mas chamaram‑me a atenção para o caso de Corina Doerinck. Telefonei‑lhe e ambos concordámos que as próximas horas poderiam ser bastante sombrias para ela. Esta emissão televisiva ultrapassa, infelizmente, todos os meus receios. Vim logo para cá, a fim de, na medida do possível, tentar estabelecer à volta dela uma muralha protectora perfeitamente científica.

‑ Sim, na medida do possível... Tenho, no entanto, uma pergunta a fazer‑lhe: as suas investigações são objecto de controvérsias?

‑ Felizmente ‑ respondeu Van Meersel sem hesitar. ‑ O silêncio mata e as críticas acerbas são a melhor publicidade que existe.

‑ Nesse caso, abre a garrafa que seguras na mão como se fosse uma vela, Stefan. Estamos a precisar. Quando penso na linha de força que constituímos, sinto a pele da cabeça a encolher‑se por baixo dos poucos cabelos que me restam. Recapitulemos: uma rapariga acusada de fazer milagres; um cientista cujas investigações provocam a raiva dos colegas; um professor com quem a partir de agora toda a gente vai querer ajustar contas; uma cancerosa curada possuindo o rosto e o coração de uma madona e um médico de aldeia jarreta que mais parece um personagem de Carnaval alemão! E vamos enfrentar a cidadela da escolástica médica nestas condições! Dom Quixote deu provas de maior prudência ao lutar contra moinhos de vento!

Separaram‑se por volta da uma da manhã. Van Meersel para ir dormir no divã do escritório de Stefan Doerinck e Corina no seu quarto de menina; o Dr. Hambach, a quem Doerinck tinha confiscado as chaves do carro, ficou no sofá da sala de estar. Todos dormiam profundamente quando a campainha do telefone acordou o Prof. Van Meersel. Alguém, impaciente, devia ter assinalado à companhia o corte da linha. Van Meersel pegou automaticamente no aparelho e logo ficou ensurdecido por uma voz atroadora.

‑ Finalmente. Que ideia essa de desligar o telefone!

O professor achou por bem apresentar‑se amavelmente.

‑ Daqui fala Van Meersel de Amesterdão...

‑ Mas eu não quero falar para Amesterdão, mas sim para os Doerinck em Hellenbrand. Quero falar com Stefan Doerinck.,

‑ É impossível. Sou o professor Van Meersel de Amesterdão...

Não teve tempo para continuar.

‑ Mas o que é que está a fazer na minha linha?

‑ Acho que é a mim que cabe fazer essa pergunta! É o senhor quem está a telefonar, não é?

‑ Ouça, sou o Roemer...

O professor Van Meersel fechou os olhos e respirou profundamente.

‑ Romano', está bem, mas de que século? Sob que imperador é que vive? Augusto, Calígula ou Nero?


Erasmus Roemer respirou tão profundamente que Van Meersel afastou mais alguns centímetros o auscultador, que já mantinha afastado do ouvido.

‑ Sou Erasmus Roemer, presidente do tribunal de 1.a instância de M'nster e não admito este tipo de brincadeiras dignas de miúdos! Posso falar com um dos Doerinck? Há horas que estou a pedir o número deles.

‑ Todos os Doerinck estão neste momento a dormir e eu não os vou acordar, seja o senhor quem for.

‑ É sobretudo com a Corina que desejo falar...

‑ Ela vai precisar de todas as suas forças durante os próximos dias.

‑ É justamente por isso que estou a telefonar.

‑ Seria arrancá‑la do sono de que tanto precisa.

‑ Quero oferecer‑lhe a minha ajuda, que pode vir a ser‑lhe indispensável, visto que toda a gente a vai atacar. Sou um dos seus doentes e estou pronto a dar‑lhe assistência fazendo valer tudo o que sou e tudo o que tenho: o meu nome e a minha situação pessoal e social; tenha eu de pagar seja que preço for!

‑ Então, venha cá amanhã muito cedo. Os doentes que ela curou constituirão efectivamente a sua melhor defesa.

Ouviu‑se um ruído esquisito no aparelho... Van Meersel, por precaução, afastou uma vez mais do ouvido o auscultador, mas Roemer tentava apenas desembaraçar‑se do nó que lhe apertava a garganta.

‑ Mas ela não me curou. Comigo não conseguiu.

De repente, Van Meersel despertou completamente.

‑ Diz que ela falhou? Mas então é porque não tem nenhuma doença!

‑ Infelizmente, tenho, e trata‑se de uma doença mortal.

‑ Mas é horrível ‑ gaguejou o holandês. ‑ Por favor, doutor Roemer, peço‑lhe, não conte isso a ninguém! Venha cá amanhã de manhã para discutirmos melhor a questão. Boa noite.

Quando desligou, apercebeu‑se de que as mãos lhe tremiam. Então Corina podia falhar. Confessá‑lo seria facultar ao adversário uma arma terrível contra ela. É certo que todos os dias milhares de médicos têm de admitir que a sua intervenção passou a ser inútil e que o doente está condenado à morte. Mas ai daquele que, sem fazer parte da profissão, se confronte com um falhanço ao tratar um doente.

O Prof. Van Meersel voltou para o divã, mas não conseguiu voltar a adormecer. Continuava a atormentar‑se com uma pergunta que era mais forte do que a sua necessidade de sono ou do que os vapores letárgicos do álcool: porquê aquele falhanço de Corina? A que era devido aquele obstáculo inesperado? O que é que o presidente do tribunal tinha que bloqueava qualquer comunicação entre a sua doença e Corina Doerinck?

Ainda se encontrava desperto quando surgiu a primeira claridade do dia e um galo da vizinhança cantou, recebendo imediatamente como resposta o latido distante dum cão.

às sete e meia da manhã, durante o pequeno‑almoço, receberam o primeiro golpe.


Estavam todos sentados à volta da mesa oval. O cheiro do café misturava‑se com o dos pãezinhos frescos que o padeiro deixara ficar num saco de plástico pendurado no portão. O mel que estava na mesa provinha de duas colmeias que Doerinck conservava no canto mais afastado do jardim. Estas colmeias tinham uma história. O Dr. Assanurian tinha dez colmeias no jardim da sua datcha, em Poti, no mar Negro. Isto devia‑se não só ao mel das abelhas que assim obtinha, e que consumia em grandes quantidades, mas também à geleia real, que é a substância natural com a qual as abelhas alimentam a rainha. A medicina oficial negava, evidentemente, os efeitos do mel, do pólen e da geleia real nos seres humanos, mas o Dr. Assamirian e os seus pacientes davam‑se muito bem com estes elementos, facto que ele costumava explicar com termos que a sua filha nunca tinha esquecido: "Cada abelha é uma amiga do homem, lembra‑te sempre disso. O que recolhem e guardam na colmeia é capaz de curar uma infinidade de doenças. As glândulas das obreiras produzem esta geleia real, de que ainda não se descobriu todos os segredos. Como é que uma larva qualquer, ao ser alimentada por esta geleia, se vê transformada em rainha em vez de continuar a ser simples obreira? A maior parte das pessoas passa por esta maravilha sem se interrogar, mas o teu pai não, minha Ludinilaclika... "

E Ludmila, em recordação do pai, tinha insistido para ter em casa, em Hellenbrand, duas colmeias onde as abelhas acumulavam os sucos que transformavam com as glândulas.

O telefone tocou no momento em que Van Meersel acabara de dizer:

‑ Este mel é um dom do céu.

Todos pararam de comer e fixaram os olhos no prato.

Era o reitor Hupp. A sua voz estava muito baixa, parecendo crispada.

‑ Ouve, Stefan... Venho pedir‑te que não dês aulas hoje. O Feisel encarrega‑se de as dar... Passarei por tua casa cerca das dez horas para te explicar... O pai da Corina e a mãe dela, Ludmila, foi apresentada pela televisão como sendo a testemunha principal dos poderes da vossa filha, visto que a própria Corina sustentou tê‑la curado dum cancro. Não é estranho que as pessoas ponham tudo no mesmo saco. Dizem: "Os Doerinck..." e chega! Estou muito aborrecido, Stefan, mas peço‑te que, no teu próprio interesse, não venhas dar aulas hoje.

‑ Mas isso seria uma cobardia. Pareceria reconhecer a minha culpabilidade. E sou culpado de quê? Sim, porque afinal não sou eu quem...

‑ Eu sei. ‑ A voz do reitor parecia estar a ficar cada vez mais estrangulada. ‑ Sei muito bem. Trata‑se apenas de não provocar inutilmente um grande problema. De qualquer maneira, vamos ver como é que as coisas evoluem durante o dia, Stefan...

Sem mais uma palavra, Doerinck desligou. De que serviria continuar a discutir? Mas não pôde deixar de dar livre curso ao desprezo que sentia.

‑ Mais um lambe‑botas! Imaginem, pois, que me devo abster de dar hoje aulas!

‑ E aceita isso? ‑ perguntou Van Meersel.

O Dr. Hambach tinha dado um salto da cadeira.

‑ Mete‑te imediatamente no carro e apresenta‑te lá!

Mesmo Corina, apesar do seu autodomínio, não conseguia esconder a emoção.

‑ Mas, pai, ninguém te pode tomar por responsável do

que a tua filha faz.


‑ É uma ordem vinda de cima? ‑ perguntou Doerinck num tom seco.

‑ Não. É um pedido pessoal, Stefan.

‑ Irei dar aula como todos os dias desde há vinte e seis anos.

‑ Stefan, ouve‑me sem reagires violentamente. Telefonaram‑me quatro pais de alunos: não querem que os filhos continuem a frequentar as tuas aulas enquanto a Corina se fizer passar por uma fazedora de milagres. E isto é só o começo! Vê se compreendes! Que devo fazer? Que farias no meu lugar?

‑ Faria notar que os pais têm uma obrigação legal de mandar os filhos à escola e explicar‑lhes‑ia que sou eu e não a Corina quem se ocupa dos alunos.

‑ Mas tu conheces a gente de Hellenbrand, Stefan!

Abatido, desiludido pelo abandono dum amigo de vinte anos, Doerinck encolheu os ombros. Olhou para Ludinila, à espera que por sua vez, ela tomasse posição, mas ela ficou silenciosa e ele teve de a interrogar.

‑ E tu, o que achas, matiuchka?

‑ Fica hoje em casa. Conheces esta gente tão bem como eu, Passámos um terço duma vida humana nesta cidade, mas para eles continuo a ser a estrangeira. A russa! Como se tivesse sido eu quem tivesse abatido aqueles pobres camponeses, os proprietários da granja que pertence hoje a Cora... Nunca me senti em casa aqui... Criei um lar antes de mais porque tu estavas dentro dele, primeiro tu e a seguir a Corinnachka, e porque, de qualquer maneira, tínhamos de viver em qualquer lado...

Doerinck limpou os olhos.

‑ Meu Deus! Mas durante todos estes anos nunca me disseste que eras infeliz...

‑ Não sou infeliz. Mas a terra que piso não é a terra do Cáucaso. As pessoas são simpáticas comigo, mas só isso... Na Rússia abraçamo‑nos, beijamo‑nos e dir‑me‑iam: "Que Deus te abençoe, irmãzinha." E seria sincero. Aqui há pessoas que me abraçam, mas sinto‑lhes os músculos a retesarem‑se... É como se estivéssemos separados por um vidro invisível e é nesse vidro que põem os lábios...

‑ Nunca me falaste disso, Ludinila...

‑ Com efeito. O que é que isso teria mudado? Devemos viver com o que o destino nos traz. Tens a tua situação em Hellenbrand, é aqui que ganhas a tua vida, estás satisfeito com a tua existência e tivemos uma filha que se tornou uma mulher bonita, inteligente e superior... Cá entre nós, não é uma bela vida? Mas eu serei sempre aqui a eterna estrangeira. Os Russos são assim. Sentimos uma dor no peito cada vez que pensamos que a Rússia está muito longe e que não voltaremos a vê‑la. Somos árvores que podem transplantar, mas os nossos ramos voltam‑se sempre para o vento que vem do leste.

O Dr. Hambach não mudava de ideias.

‑ Assim que acabar de tomar o pequeno‑almoço, irei falar com o Hupp e o Beiler. Conheço‑os. Tratei‑lhes a varicela e o sarampo quando ainda tinham ranho no nariz e vou dizer‑lhes o que penso. Uma das vantagens da velhice é podermos permitir‑nos dizer tudo, como os bobos de antigamente.

Mas estava escrito que o Dr. Hambach não faria nada.

A segunda chamada do dia veio da Polícia de Hellenbrand. O inspector Blinker declarou que tivera de vedar a via de acesso à granja de Corina.


‑ já há um engarrafamento de trinta e quatro carros. Aplicamos o plano número três, que consiste em desviar o trânsito para a Praça da Festa de Maio. A Corina está?

‑ Está, porquê? ‑ respondeu Doerinck secamente.

‑ Pergunte‑lhe o que é que devemos fazer de todos estes carros.

- Façam‑nos circular!

‑ Impossível! Não se trata duma manifestação, mas de visitas particulares. Corina é a única que pode mandá‑los embora. Entre nós, doutor Doerinck, tudo isto é de facto horrível. Só um momento, doutor Doerinck. Acabo de receber uma comunicação de Seppenhagen: formou‑se uma fila de trezentos carros na via de acesso à auto‑estrada em direcção a Hellenbrand. Segundo parece, toda aquela gente quer ver a curandeira que faz milagres. É de ficar maluco!

Doerinck desligou o aparelho, consternado.

‑ Está a começar a avalancha. Nunca teria imaginado que a reacção das pessoas seria tão violenta, tão brutal. Resta‑nos esperar calmamente a evolução dos acontecimentos.

Corina, Van Meersel, Stefan Doerinck e o Dr. Hambach decidiram ir à granja por caminhos secundários e através dos campos. Todas as ruas normais, assim como os parques de estacionamento, tinham engarrafamentos, onde se comprimiam uns contra os outros três vezes mais carros do que eles podiam conter. Estavam lá dois polícias, que, impotentes, se limitavam a contemplar o espectáculo e a responder laconicamente às perguntas que lhes faziam: "Não sabemos."

Apareceu uma ambulância a golpes de sirena, com uma luz azul a apagar e a acender no tejadilho, lutando desesperadamente para avançar metro a metro. Vinha de M'nster, alugada por um rico antiquário desta cidade; no interior, um ancião vigiava o rosto emaciado e os olhos vítreos da mulher, deitada na maca: uma moribunda. Hellenbrand era a sua última esperança. Só um milagre poderia ainda salvá‑la. Nos últimos meses, o velho casal tinha visitado Fátima e Lourdes, mas sem resultado. "Neste estádio, o cancro é incurável", tinham repetido os médicos. Agora estavam a chegar à granja milagrosa, rezando "Santa Maria, Santa Mãe de Deus, não nos abandoneis... Salvai‑me..." Corina e os companheiros seguiram por um caminho que conduzia a uma porta do antigo estábulo, cujos restos tinham sido incorporados na granja, e conseguiram entrar sem serem vistos. Van Meersel transpirava de excitação.

‑ Mas é uma verdadeira consagração, Corina! Dentro de alguns dias o mundo inteiro falará de si!

O Dr. Hambach colocara‑se perto da janela e olhava através das cortinas os carros e a multidão que tinham invadido o parque de estacionamento.

‑ Meu Deus, vêm de todos os lados, de Hamburgo, de Colónia e até da Holanda... Decididamente, no fim do século vinte, o ser humano continua exactamente com a mesma necessidade de maravilhoso de sempre...

‑ Que fazemos, Cora? ‑ perguntou Stefan Doerinck.

‑ Vou falar‑lhes.

‑ Isso não servirá de nada... Olha, uma ambulância. Estão a tirar uma mulher numa maca.

‑ É uma loucura, tio Ewald! Apesar de tudo, isto não é Lourdes.


‑ Mas para essa gente, esta granja é uma nova Lourdes. Quer queiras, quer não, tornaste‑te na última esperança destes casos desesperados.

‑ Mas sou incapaz de fazer milagres! O que faço é natural e, portanto, limitado. Vai ter com eles e explica‑lhes, suplico‑te!

Meersel, que ia e vinha nervosamente na sala, abanou a cabeça.

‑ O que é que o repórter dizia ontem no seu comentário: "Poderemos esquecer a Bíblia a partir de agora?" Eis o resultado de tal imbecilidade. Mas de todas as maneiras, há uma coisa que devemos fazer: deixemos entrar esta doente que vem de maca.

. ‑ E os outros? ‑ quase gritou Doerinck. ‑ Quem Irá dizer‑lhes para voltarem para casa? Vão tomar a granja de assalto e lapidar‑nos.

‑ Não os posso receber a todos I Nunca teria forças para o fazer.

Os homens que traziam a maca tinham‑se aproximado e batiam energicamente à porta.

É preciso tomar uma decisão: abrir ou fazer de estátuas.

O Dr. Hambach, que ficara à janela, por trás da cortina, lançou de repente um grito.

‑ Não é possível! É o Probst!

‑ Quem?

‑ O Probst, o padeiro, com uma carrinha cheia de pão, bolos, caixas de Coca‑Cola e limonada! Nunca se desnorteia, este! As pessoas comprimem‑se à sua volta.

Van Meersel interveio.

‑ Ficaram surdos? Estão a bater à porta cada vez com mais força. Esqueceram‑se da doente que está lá fora numa maca? É preciso fazer qualquer coisa, Corina.

‑ Mande‑a entrar... Mas só a ela e ao marido.

Durante alguns segundos, Van Meersel e Doerinck trocaram impressões antes de deixarem entrar a mulher que estava na maca, o marido e os dois enfermeiros. Doerinck fechou imediatamente a porta atrás deles. Da multidão que se comprimia lá fora, elevara‑se um imenso clamor de alegria e de esperança: tinham tido razão em vir, "Ela" estava lá. Só tinham que esperar!

O velho antiquário explicava com voz trémula:

‑ Sabemos que nenhum médico pode já fazer qualquer coisa. Consultámos os melhores médicos da Europa, dos Estados Unidos e do Japão e a seguir fomos a Fátima e a Lourdes. A minha mulher está condenada. Tem um cancro no fígado e metásteses em todo o lado. Ela sabe‑o, mas tem ainda assim esperanças. Ela crê. Então, vim ter consigo. Não tenho o direito de negligenciar a possibilidade de um milagre no qual não acredito. Mas ajude‑a pelo menos a morrer. Perdoa‑me, não é verdade...

Parou e pôs‑se a chorar silenciosamente sem um gesto. Só a sua mão se estendia na direcção da de Corina.

Na direcção da mão que curava.


 

As oito da manhã, Roemer telefonou para o serviço de cirurgia da Clínica Universitária de M'nster. Tinha a certeza de que Willbreit lá estava. A partir das sete e meia todos os chefes de serviço e os médicos da clínica tomavam conhecimento dos acontecimentos da noite e tinham uma reunião durante a qual preparavam o dia. Fora o próprio Willbreit quem, para grande irritação dos outros médicos, instituíra aquele briffing matinal que os obrigava a encontrarem‑se com as enfermeiras da noite e a informarem‑se junto destas.

o professor Hellbrecht, director oficial da clínica, ocupado com as suas obrigações internacionais, dera carta branca ao seu colaborador. Quando estava em M'nster, aparecia duas vezes por semana na clínica, recebia então a sua clientela privada, operava com as próprias mãos algumas altas personalidades e alguns casos críticos para os quais sempre pedia a assistência de Willbreit.

- Se não o tivesse a si, Willbreit ‑ dizia frequentemente. ‑ Mas, francamente, não tem de facto demasiado trabalho?

Willbreit respondia sempre:

‑ Está tudo muito bem. Temos excelentes colaboradores e a nossa organização é exemplar.

Hellbrecht cobria Willbreit de honras. Estava só no mundo desde a morte da mulher e do filho. A primeira contraíra seis anos antes uma doença tropical. Um diagnóstico errado tinha feito pensar numa bronquite crónica, o que permitira que a infecção alastrasse irremediavelmente. Quanto ao filho, fanático do esqui, tinha dado uma queda terrível e fatal. O que recebera do seguro, o seu salário de director e os honorários médicos faziam dilatar regularmente a sua conta no banco. Mas um dia confiara a Willbreit: "Ser‑me‑ia difícil gastar mais. Tenho uma casa e uma colecção de impressionistas. Chega‑me. Só consigo comer um escalope à vienense de cada vez. Ter um iate não me diz nada e estou demasiado velho para me entreter com uma amante. Assim, tudo o que possuo irá um dia para uma fundação e você, meu caro Willbreit, será o presidente... "

Willbreit encontrava‑se justamente a tomar conhecimento dos casos da noite ‑ duas mortes, uma de cancro, outra em consequência dum desastre de automóvel ‑ quando a secretária lhe anunciou que tinha Roemer ao telefone.

‑ Erasmus! Finalmente! Que se passa? Onde estás?

‑ Em casa. Mas com a chave do carro na mão. Viste a emissão televisiva de ontem?

‑ Naturalmente. O fim da bela Corina sem sequer ter havido combate! Uma espécie de suicídio pelo qual lhe podemos estar agradecidos.

‑ E de que maneira! Vou pegar no carro para ir ter con ela.

‑ Com quem? Com a tua mulher? Já voltou da Hungria e da sua caça ao urso?

‑ Mesmo com o modesto quociente intelectual de que dispões, deverias adivinhar pelo som da minha voz que não se trata dum acontecimento tão horrível. É a Corina que eu vou ver.

‑ E porquê?

‑ Não para dormir com ela. Para lutar a seu lado.

‑ Estás louco, Erasmus.

‑ Sou ou não um homem doente, Thomas?


Willbreit hesitou um instante antes de responder.

‑ Se não te deixares operar, é‑lo certamente.

‑ Esquece essa história da operação. Tenho confiança em Corina.

Durante um instante, Willbreit ficou mudo. Retomou dificilmente o fôlego. Não se dava conta Erasmus de que a sua única hipótese era justamente a operação a que recusava submeter‑se? Ia falar, gritar, mas Roemer não lhe deu tempo para isso.

‑ E se caíste de rabo, Thomas, levanta‑te! Aquela emissão de televisão era infame e a Corina não merece isso. Toda aquela corja dos media se limitou a explorar a ignorância que ela tem do seu meio e que eu conheço bem de mais. Agora, é preciso ajudá‑la, Thomas.

‑ Erasmus, ouve‑me um instante! Dás‑te conta do escândalo: o presidente do tribunal de 1a instância toma partido por uma curandeira ridicularizada pela televisão! É o fim da tua carreira.

‑ O que é que queres que isso me faça, visto que, de qualquer modo, estarei morto dentro de dois ou três meses se a Corina não conseguir socorrer‑me? Mas os meus últimos meses de vida pertencem‑lhe! E vou lutar por ela, com todas as minhas forças, cheio de raiva. E previno‑te que não te pouparei caso esboces um só gesto para te juntares a esses idiotas. Fui claro? Thomas, continua a ser para mim um enigma como é que tendo um crânio tão vazio conseguiste tornar‑te um cirurgião conhecido.

A boca de Willbreit crispou‑se.

‑ Obrigado... Pareces estar de excelente humor esta manhã.

‑ Não sabia que eras capaz de ceder a movimentos de histeria colectiva...

‑ No meu estado, posso permitir‑me seja o que for: é o único lado positivo da minha doença. Eis o que queria dizer‑te. Poderás contactar‑me em Hellenbrand, em casa de Corina.

Um segundo depois, Roemer atravessava o hall com uma grande mala na mão, chamando em voz alta a empregada para lhe dizer que estaria ausente durante alguns dias. Antes que ela pudesse perguntar‑lhe qual seria a sua morada, encontrava‑se já cá fora e punha‑se ao volante do seu enorme carro.

Willbreit precisou de uma boa hora para recuperar a calma e chegou até a abreviar a visita da manhã, limitando‑se a ver os casos verdadeiramente graves. De volta ao seu gabinete, procurou nos montes de papéis que ainda não tinha classificado o postal que Elise Roemer lhe enviara há três semanas da Hungria e onde lhe mandava a sua morada. Era preciso avisá‑la e fazê‑la regressar a todo o custo. Cada vez mais impaciente, teve a seguir de esperar longos minutos antes de obter o número do telefone do barão Janos Von Zõrhõney. Passou mais uma hora antes de obter a comunicação para a Hungria, como é de regra nos países socialistas.


Na Europa oriental, onde, como se sabe, se suprimiram os empregados domésticos, os privilegiados do regime têm jardineiros, motoristas, pessoal de cozinha, etc., todos funcionários do Estado. Foi o mordomo quem respondeu ao telefone. Ao dar‑se conta que se tratava de um estrangeiro, preveniu logo Willbreit, num inglês impecável, de que a "Senhora" - então ela era a dona da casa? ‑ estava a tomar o pequeno‑almoço no jardim de inverno. Acrescentou logo a seguir: "É importante?"

Willbreit ficou feliz por poder descarregar a sua raiva.

‑ Acha que eu teria desperdiçado duas horas para telefonar da Alemanha para um país socialista se não fosse importante? Diga‑lhe que é o médico dela e do marido.

‑ Oh, desculpe! Vou ver se a senhora quer receber a chamada.

Ainda teve de esperar, mexendo nervosamente nos papéis. A seguir Ouviu a voz alta de Elise, uma voz infantil que fazia Roemer dizer: "Quando atinge o orgasmo tenho de dizer para ele mesmo, a fim de tranquilizar a minha consciência, que estou a dormir com a minha mulher e não com uma menor de doze anos que estou a violar..."

‑ Bom dia, Thomas! Fico contente em ouvir‑te. Finalmente, vou ter notícias de M'nster. Não recebi uma só carta do Eras (tratava‑se de Erasmus) desde a minha partida. Estará zangado por eu ter prolongado a minha estada na Hungria? É que continuamos à espera do urso e este nunca mais chega! Além disso, aqui tudo é maravilhoso. Todas as manhãs damos longos passeios a cavalo. Como vão as coisas em M'nster? O Eras está ao pé de ti?

‑ Não... Mas trata‑se dele.

‑ Continua a ir jantar todas as noites ao Krautkramer?

‑ Sim, mas não se trata disso, Elise.

‑ Então o que é que se passa?

‑ Ficou completamente louco.

‑ Mas sempre foi, Thomas...

‑ Não, Elise. Agora trata‑se dum verdadeiro ataque de loucura. Está a arriscar a vida, o seu futuro, a carreira, enfim, tudo, por causa duma curandeira cujas mãos...

Calou‑se, dando‑se conta que ia perder‑se em explicações.

‑ O Eras sempre deu importância às mãos das mulheres, Thomas, bem sabes. Sempre gostou das minhas mãos, por exemplo. Diz que são infantis. É simpático, não achas?

‑ Ouve, Elise. Vou falar‑te brutalmente: o teu marido está doente, muito doente! Tem de ser operado imediatamente. Não posso dar‑te agora todos os pormenores, mas é grave. É mesmo muito grave. E sabes o que faz? Recusa‑se a fazer o tratamento que poderia salvá‑lo e, em vez disso, faz apelo a uma mulher que pretende curá‑lo acariciando‑o.

‑ Mas isso é típico no Erasmus! Como é que essa mulher é e onde é que o acaricia para o curar?

‑ Ele acredita nisso, Elise. Acredita que as suas carícias... Calou‑se de novo.

‑ O Erasmus adora que o acariciem. Descobri que é o meio mais seguro para o pôr de bom humor. Não há nada de novo nisso, Thomas, nada de extraordinário. E é para me dizeres isso que estás a telefonar?

‑ Tens de voltar imediatamente, Elise.

‑ Por causa dessa rapariga? Nunca!

‑ Por causa do Erasmus. Ele está mesmo doente.

‑ Se tu o dizes...


Havia de repente algo de inquietante no infantilismo daquela voz. Willbreit imaginava perfeitamente Elise Com os seus cabelos louros desfeitos sobre os ombros, o seu roupão encantador no meio das palmeiras e das flores dum magnífico jardim de inverno. Tinha ousado perturbá‑la quando se encontrava a chefiar as cerimónias a uma mesa bem servida. Na sua linguagem imagética, Roemer tinha dito que quando Elise se encontrava diante do pequeno‑almoço, os dez mais belos homens do mundo podiam dançar à sua volta nus e com o sexo erecto que ela não deixaria primeiro de comer o seu pãozinho com manteiga do campo ligeiramente salgada.

‑ Mas o que é que eu poderia fazer em M'nster? Conheces o Eras. Vai até ao fim do que decidiu. Abate‑se sobre o obstáculo como um carro de assalto. Além disso, alguma vez teve consideração por mim?

‑ E tu, mostraste consideração por ele?

‑ Mas Thomas...

‑ Estás há semanas na Hungria, segundo dizes, em perseguição dum urso. A quem queres fazer crer que um urso se possa esconder tão bem e durante tanto tempo? A menos que seja no fundo de uma cama e que ele se chame Janos...

‑ Que grosseiro, Thomas...

‑ Regressa, se queres voltar a ver o Erasmus vivo. ‑ Estava farto de ouvir coisas inconsequentes e acrescentou sem rodeios: ‑ Não se pode exigir menos da parte duma esposa.

Quando a conversa acabou, Willbreit abanou a cabeça: apesar da sua inteligência, da sua situação honorífica e da sua riqueza, como é que se podia deixar de lamentar Erasmus Roemer? Que solidão era a sua, qual era o vazio interior que aquele gigante tentava em vão compensar comendo, bebendo e representando, tanto para os outros como para si, a comédia de uma grosseria de camponês do Danúbio? Como é que uma pessoa podia estranhar que uma rapariga como Corina lhe aparecesse como sendo a promessa dum novo universo, resplandecente, como sendo o último refúgio dum desespero fundamental?

Cedendo a uma inspiração súbita, Willbreit telefonou ao Dr. Hambach, cuja mulher‑a‑dias lhe forneceu voluntariamente todas as informações que possuía.

‑ O doutor está em casa dos Doerinck. Não imagina o que aqui se passa! Há carros por todos os lados e estão a desviá‑los todos para a Praça da Festa de Maio. Tudo isto por causa dum programa de televisão! Todos estes imbecis se querem deixar acariciar por Corina! Está tudo de pernas para o ar em Hellenbrand!

"Perfeito", pensou Willbreit. Pouco faltou para que esfregasse as mãos. "É exactamente disto que precisamos. Corina sairá deste caos ridicularizada para sempre." Quem teria pensado que a situação ia evoluir desta maneira e tão rapidamente".> Roemer estava apenas a sacrificar‑se a uma ilusão nefasta. Também ele cairia no ridículo. E não era essa a sorte mais atroz para um homem na sua posição?

Mas como travá‑lo, como pará‑lo?


Com efeito, Roemer estava lançado como um bólide e quando deu consigo apanhado nos engarrafamentos de Hellenbrand abandonou muito simplesmente o carro para fazer o resto do caminho a pé. Na Praça da Festa de Maio já estavam a instalar as tendas necessárias: vendia‑se pão, salsichas e costeletas de porco frias a uma multidão esfomeada. O dono do albergue "As Armas da Vestefália" transformara um camião em bar móvel, onde as pessoas se vinham aprovisionar de água, cerveja, aguardente e sumos. O livreiro‑papeleiro de Hellenbrand também aproveitava o afluxo inesperado de clientes: todos queriam fotografias do burgo, santos benzidos, pequenas bandeiras com as armas da Vestefália, em resumo, recordações de todas as espécies. O presidente da câmara, depois de ter dado uma volta rápida através da multidão, regressara à câmara com a cara vermelha e crispada.

‑ A besta humana está lançada ‑ declarara a três dos seus conselheiros, cuja expressão sombria indicava claramente que não tinham a sorte de ser comerciantes. ‑ E é só o primeiro dia ‑ acrescentara. ‑ Pergunto‑me em que se terá transformado a nossa cidade daqui a uma semana...

Erasmus Roemer chegou à granja, diante da qual se comprimia uma multidão que esperava pacientemente que a porta se abrisse de novo. Dois homens da ambulância que estavam a guardar, simultaneamente, a ambulância e a porta, quiseram impedi‑lo de se aproximar, enquanto a voz aguda duma mulher gritava:

‑ Esse acaba de chegar! Ele que vá para a fila como toda a gente!

Roemer encheu o peito.

‑ Sou da família! ‑ A sua voz e o seu aspecto formidáveis fizeram calar os opositores. ‑ A maneira como alguns de vocês se conduzem aqui é lamentável! Um pouco de compostura, se fazem favor. ‑ A seguir, empurrando os dois enfermeiros sem esforço, bateu à porta com o punho, gritando: Abre, Corina! É o tio Erasmus!

Na sala de exposição, o Dr. Hambach pôs a cabeça entre as mãos olhando para Doerinck.

‑ Meu Deus, só cá faltava o juiz Roemer! Só pode ser ele, a rugir daquela maneira!

‑ Mandem‑no entrar. Ele está mesmo muito mal e não consigo perceber porque é que falho no caso dele.

Ajoelhada perto da maca, conservava entre as mãos as da moribunda que se crispavam à volta dum crucifixo. O marido continuava a chorar, silenciosamente. Sabia que tudo acabara. Um sorriso duma serenidade infinita começava a descontrair o rosto emaciado da mulher.

A massa de Erasmus Roemer irrompera pela porta aberta, com reticências, pelo Dr. Hambach. Mas ao vislumbrar a maca e Corina ajoelhada perto dela, o gigante parou, murmurou uma desculpa inclinando‑se e retirou‑se na ponta dos pés em direcção à parede, fazendo mesmo assim estalar o chão sob o seu peso.

‑ O que é que vem cá fazer? ‑ perguntou num murmúrio o Dr. Hambach.

Van Meersel aproximou‑se deles, estendeu a mão ao recém‑chegado e apresentou‑se.

‑ Venho ajudar a Corina ‑ quis Roemer responder no que pensava ser um murmúrio e que acabou por ressoar na granja inteira.

Corina endireitou‑se e recuou alguns passos para se dirigir ao antiquário.

‑ Vou ajudá‑la tanto quanto me for possível. Ela vai morrer, mas comigo morrerá tranquilamente, feliz, pensando que se deu um milagre. É tudo o que posso fazer por ela.

‑ Agradeço‑lhe do fundo do coração.

Ela voltou para junto da maca e ajoelhou‑se de novo diante da moribunda, cujos grandes olhos pareciam ter deixado de se abrir sobre este mundo, apesar de o olhar seguir todos os movimentos de Corina. Foi num silêncio absoluto que a voz de Corina se elevou e todos a ouviram distintamente:


‑ Vai sentir em si um grande calor. Vai sentir‑se bem, melhor do que nunca, e cansaço, um grande cansaço. Quando acordar, prometo que se sentirá melhor... Lentamente, muito lentamente, a doença abandoná‑la‑á. Temos apenas de ter paciência, muita paciência...

Ao mesmo tempo, as suas mãos moviam‑se por cima da moribunda, cujo sorriso respondia ao seu. Tinha a ponta dos dedos a arder. Sabia que tudo era em vão, mas continuava mesmo assim a irradiar aquele corpo para lhe subtrair a sensação de dor. O sorriso que iluminava aquele rosto cavado pelo sofrimento e pela doença ganhava uma aparência quase celeste e viu que os olhos da paciente, já muito abertos, se abriam ainda mais e resplandeciam com um brilho sobrenatural. Foi no meio deste êxtase que ela cessou de respirar.

Lentamente, Corina deixou tombar as mãos antes de se levantar vacilando e apoiou‑se logo em Van Meersel. Ao seu lado, Doerinck respirava dificilmente e o ranger dos dentes de Roemer ressoou repentinamente na grande sala.

‑ O que é que se passa? Porque é que não continua? Está a fazer‑lhe tão bem. Veja como está feliz.

‑ É a felicidade de estar perto de Deus ‑ disse gravemente Van Meersel.

Só então o antiquário compreendeu. Por sua vez, caiu de joelhos perto da maca e tomou nas mãos aquele rosto sorrindo com um sorriso maravilhoso.

‑ Hanna, meu Deus, meu Deus! ‑ Levantou‑se, lançou um olhar à volta e viu Corina, que fumava avidamente u cigarro que o pai lhe preparara e acendera. ‑ Obrigado. Morreu feliz, cheia de esperança... Teve a mais bela morte possível.

O Dr. Hambach abriu a porta para dizer aos enfermeiros:

‑ Podem levá‑la.

O enfermeiro que tinha entrado primeiro olhou a maca, a seguir o marido, que chorava, e, após um instante, arqueou as sobrancelhas de surpresa.

‑ O que é que se passa? Morreu, não foi?

‑ Morreu.

‑ Lamento, mas não estamos autorizados a transportar um cadáver. É o regulamento, doutor. Quando alguém morre numa ambulância, evidentemente, é diferente: não o podemos pôr fora da ambulância. Mas se assim não for, é necessário um caixão e o caminho só pode ser o trajecto funerário ‑

Voltou a olhar para a morta e, perturbado pelo seu sorriso encolheu os ombros e saiu. A ambulância partiu quase imediatamente. Para abrir caminho por entre o caos de gente que esperava lá fora, o motorista teve por várias vezes de pôr a sirena a soar e de aumentar a velocidade a fim de poder afastar‑se rapidamente.

Van Meersel suspirou.

‑ Mais uma complicação! Qual acha que vai ser a reacção da multidão quando vir chegar o carro funerário com o caixão? A televisão está lá fora?

‑ E em força! Duas equipas completas, uma para cada cadeia.

Roemer tinha‑se ocupado, à sua maneira, do marido, que conhecia de M'nster e em cuja loja já fizera várias compras. Tinha‑o feito sentar‑se à força numa cadeira e ingurgitar um grande copo de conhaque. O tratamento deu resultado: o homem parara de chorar.

O Dr. Hambach olhava, por sua vez, a multidão comprimida à volta das carrinhas de televisão e que trocava impressões.

‑ Para estes abutres, esta morte vai ser um verdadeiro regalo! Mas, de momento, é preciso pôr o corpo na outra sala.


Com a ajuda de Doerinck, depôs a morta na sua maca no atelier, exactamente diante do tear. Como não tinha mais nada à mão, tapou o cadáver com uma estreita e comprida tapeçaria cujos desenhos evocavam justamente as flores da Primavera.

Pouco depois de voltarem para a sala de exposições, bateram de novo à porta.

‑ Abram. É o Beiler.

‑ Beiler é o nosso presidente de câmara ‑ explicou Doerinck a Roemer, que se recusava a deixar entrar o importuno.

Beiler vinha acompanhado por um desconhecido que se apresentou como sendo da Polícia judiciária. Era um tal Fernich. Não sabendo que mais fazer, Beiler telefonara ao director da Polícia de M'nster. Depois de responder que um assunto daquele tipo não era da sua competência, o director acabara por consentir em enviar como observador um dos seus funcionários. Muito incomodado pela missão que lhe tinham atribuído, Fernich começara por afastar grosseiramente as equipas de televisão, que, naturalmente, tinham filmado a chegada do presidente da câmara.

Decidido a fazer reinar a ordem tanto no interior da granja como no exterior, o polícia mudou bruscamente de atitude ao encontrar‑se diante do presidente do tribunal de 1.a instância. Quem é que em M'nster não conhecia o presidente Roemer, que tinha as melhores relações com a chefia da Polícia?

‑ Não estava à espera de o ver aqui, senhor presidente ‑ balbuciou.

‑ E porque não? Estou aqui a título privado. Mas quem é

que o mandou para fora do seu território? A competência da polícia de M'nster passou a abarcar Hellenbrand?

Beiler quis intervir.

‑ Fui eu que telefonei para M'nster. Estou cheio de trabalho. Se esta desordem continuar, será preciso que uma autoridade qualquer intervenha. Também preveni a Direcção de Higiene Pública.

O Dr. Hambach teve um sorriso irónico.

‑ Que engraçado...

‑ Era o meu dever. Está‑se a exercer medicina ilegalmente nesta granja. Nós temos leis. Vivemos num Estado onde reina a ordem e onde se deve respeitar...

‑ E é a mim que ousa dizer isso, a mim que sou o presidente do tribunal de M'nster e responsável pelo que se passa em Hellenbrand! Além disso, também parece esquecer a presença do doutor Hambach. Mas você, o que é que faz aqui, sua espécie de anão? E você, que é polícia?

Cada vez mais furioso, com a voz cada vez mais forte, Roemer voltara‑se para o pobre Fernich.

‑ Vai mencionar no seu relatório que em Hellenbrand se passam factos repreensíveis e ilegais? Com a presença do doutor Hambach e com a minha vai ter dificuldade em prová‑lo. Antes de mais, repita ao seu director o que vou dizer e sem alterar uma palavra. Tome nota: "Caro Paul, mesmo que isso te faça cair o cachimbo da boca, devo dizer‑te que estou em casa da Corina Doerinck para ser tratado..." Escreveu? Perfeito, Fernich. Mas o que é que têm? É curioso ver como certos homens têm expressões que mais os fazem parecer carneiros.

‑ Senhor presidente... está a querer... tratar‑se... tratar‑se por uma curandeira?


‑ E então? Se calhar julga que os juízes nunca estão doentes? Com todos os criminosos e os polícias que têm de aturar não é de admirar.

‑ Mas há excelentes médicos em M'nster.

‑ Isso é problema meu, meus meninos... Mas porque é que se mete na minha vida? Por acaso eu meto‑me nas suas relações com a auxiliar de polícia que se chama Ilse Lange? à parte a sua mulher, toda a gente sabe na polícia que alugou um quarto para se encontrarem regularmente na margem do lago d'Ac. Isso é consigo, e terá de sair sozinho dessa quando já estiver farto!

Dado que Fernich ficara interdito, sem voz, Roemer continuou com um largo movimento do braço:

‑ olhe bem à sua volta, Fernich. Tem aqui o professor Van Meersel, de Amesterdão, que é uma autoridade internacional em biofísica e em parapsicologia. Vai também perguntar‑lhe o que é que ele está aqui a fazer? E eis o pai da Corina. Apoiado à porta, está o doutor Hambach, médico em Hellenbrand desde há não sei quantos anos. Acha que ele veio cometer ou assistir a algo de ilegal, como afirma este agitado presidente da câmara que o foi chamar por estar a tremer de medo? Não se chegue demasiado a ele, pois tenho a certeza de que ele fez nas calças de tanto medo.

‑ Não lhe admito ‑ gritou Beiler.

‑ Continuemos as apresentações: está ainda aqui o senhor Manfred Zynnis, antiquário de M'nster e bem conhecido dos cidadãos cultos. Do outro lado da porta está a mulher dele, falecida há cerca de vinte minutos.

O rosto de Fernich contraiu‑se repentinamente.

‑ Quer dizer que morreu aqui uma mulher? Que morreu em consequência do tratamento de Corina Doerinck?

‑ Não, meu menino: durante o tratamento, o que não é nada a mesma coisa.

Mas Fernich tinha recuperado toda a sua segurança policial.

‑ Uma morte tem causas que é necessário determinar. Tenho de registar a ocorrência, senhor presidente. Posso ver o cadáver?

‑ Naturalmente ‑ disse Hambach, precedendo‑o até ao atelier.

‑ Porque é que fala em registar a ocorrência? ‑ perguntou Corina.

‑ Porque se esquece da prudência com que um polícia deve agir. - Julga ter descoberto um grande caso e pensa ter o direito de agir fora do seu distrito, quando apenas pode testemunhar! O seu espiritozinho pára na fronteira do que lhe ensinaram. Se um doente morrer em casa do médico, isso parece‑lhe perfeitamente normal! De qualquer maneira, tem de se morrer um dia. Mas esta mulher expirou nas mãos de Corina Doerinck, contra a qual ele foi precavido pelo presidente da câmara, que aqui está. Se esta mulher tivesse morrido lá fora, o Fernich nem pensaria em intervir. Quer mostrar‑se muito zeloso.

‑ Mas ela já estava moribunda quando aqui chegou ‑ disse Doerinck.

‑ Morreu no momento em que Corina sustinha as mãos por cima dela. Aí está o busilis da questão. O nosso Polícia acha isso inadmissível. Nunca passará de um policiazinho! E esquece‑se de uma série de outras coisas: a presença do doutor Hambach...


Fernich voltava justamente do atelier com o Dr. Hambach. Apesar de estar habituado a ver mortos, não tinha podido deixar de empalidecer ao levantar a tapeçaria e ao ver aquele rosto em que a pele se colava aos ossos, mas que parecia encontrar‑se iluminado por um sorriso radioso. Tinha ouvido a última frase de Roemer, mas estava bem decidido a dar mostras de autoridade.

‑ Então? ‑ lançou‑lhe Roemer. ‑ O que faz agora a nossa brigada criminal? Vai suster, depois de ter visto o cadáver, que ninguém tem o direito de lhe tocar até à autópsia? Mesmo apesar da certidão de óbito do doutor Hambach?

‑ De qualquer maneira, oponho‑me a que façam uma autópsia ‑ declarou firmemente o antiquário. ‑ A minha mulher estava moribunda quando aqui chegou.

‑ Então, porque é que a trouxe a esta granja?

‑ Porque ela queria. Por ser o seu último desejo.

‑ Então ela estava plenamente consciente quando aqui chegou?

‑ Exacto.

‑ E Corina Doerinck começou o seu tratamento e ela morreu?

‑ É verdade.

Fernich pensava ter ganho um ponto. Endireitou‑se e declarou secamente:

‑ Ninguém volta a tocar neste cadáver antes da chegada da Polícia. E, aliás, porque é que o mudaram de sítio?

‑ Oponho‑me a essa medida e declaro‑o pessoalmente responsável ‑ gritou Zynnis. ‑ A minha mulher tem direito à paz.

A voz zangada de Roemer cobriu as suas últimas palavras assim como a réplica do polícia.

‑ Creio que já é tempo de fazer alguns telefonemas para resolver a questão da mudança do cadáver e lembrar a este homenzinho, que se encontra fora do seu distrito, quais os limites da sua competência. Vai aprender que da parvoíce à prepotência só vai um passo e que ele já o deu. Portanto é melhor que não vá mais longe.

o presidente da câmara foi o único que ousou falar, apesar de a voz lhe sair estrangulada pelo desespero.

‑ Mas lá fora estão, pelo menos, cento e cinquenta pessoas. Que lhes faço?

‑ Ordene‑lhes que voltem para casa. Vi lá fora dois agentes que pertenciam certamente à Polícia Municipal. Dê‑lhes ordens. Ou apresente a demissão. Mas resolvamos antes as nossas questões. Senhor Zynnis, primeiro,. a sua mulher. Doente como estava, o senhor já tinha certamente pensado no seu enterro...

‑ já. Contactei Ewig e Filho. Tenho aqui o número do telefone.

Em menos de um quarto de hora, Roemer tinha resolvido tudo. Telefonara a Ewig e Filho e a seguir ao director da Polícia e ao procurador. A estes últimos, explicou que o Dr. Hambach tinha assinado a certidão de óbito e atestava que a Sr. Zynnis morrera de morte natural em consequência de um cancro incurável. Na presença deste mesmo médico, na de várias pessoas e na dele próprio. Um policiazeco tinha pensado dever mostrar‑se zeloso, mas podia‑se esquecer tal incidente, que podia ser‑lhe prejudicial. Não havia nada de "Obscuro" no caso e era preferível não falar dele para não deitar mais lenha na fogueira e excitar ainda mais o público.

Fernich, com os maxilares contraídos, ouvira as três conversas. Mas não quis deixar de protestar contra a maneira como Roemer o tratara.

‑ Gostaria de ter podido falar com esses senhores...

Foi interrompido por um rugido.


‑ Insinua que estou a mentir? Passei em silêncio a sua presença aqui e nem sequer me agradece! Quer de facto que lhes comunique as suas acusações? Tem mesmo vontade de ter uma nota especial no seu dossier?

Era o fim. Beiler tentou intervir uma vez mais.

‑ Não posso deixar essa gente passar a noite aqui. É proibido acampar fora do parque de campismo.

Van Meersel aproveitou a deixa.

‑ Ora bem, eis, por fim, um bom argumento para os obrigar a sair daqui.

Beiler e Fernich deixaram a granja cabisbaixos. Alguns instantes depois tinham juntado à volta deles um grupo de pessoas a quem se esforçavam por explicar a situação. O Dr Hambach, pensativo, dirigiu‑se de repente a Roemer.

‑ Diga‑me cá, doutor Roemer, como é que se explica que o director da Polícia e o procurador tenham números de telefone apenas com três algarismos?

Roemer voltou‑se para olhar para ele e só respondeu com uma espécie de grunhido.

Mas Hambach não desistiu.

‑ Tenho a certeza de ter visto bem. Marcou seis algarismos para a agência funerária e somente três para os outros.

A cara do colosso alargou‑se pouco a pouco até não ser mais do que um enorme sorriso cheio de ironia.

‑ A sério? Ainda tem uma excelente vista, doutor Hambach!

‑ Isso quer dizer que não falou com o director da Polícia nem com o procurador. Mas porquê?

‑ Nunca se deve complicar as coisas. De qualquer maneira, já está. Podemos respirar até amanhã. E quem sabe o que o mundo será amanhã?

‑ Isso pode causar‑lhe graves aborrecimentos, doutor Roemer.

‑ Já não existem graves aborrecimentos para mim, doutor, e o senhor sabe‑o. Encontro‑me na situação dum homem fulminado, o que me liberta de qualquer obrigação e me permite dizer e fazer o que quero. Nada me pode atingir: estou pronto para a eternidade

Corina olhava‑o com ar pensativo.

‑ Tem a certeza? ‑ perguntou docemente.

‑ Evidentemente. Visto as suas mãos falharem quando se trata de mim, já nada me pode dar esperanças.

‑ Vamos tentar mais uma vez.

‑ Corina! ‑ Foi como se o gigante desabasse. Encontrou‑se sentado numa cadeira com a cabeça mergulhada nas suas enormes mãos. ‑ já fiz as minhas despedidas de tudo. Agora já não creio que uma cura seja possível...

‑ Levante‑se, doutor Roemer.

Tinha‑se aproximado dele a sorrir. Roemer levantou‑se com os lábios a tremer.

‑ Olhe para mim! Fixe os meus olhos. Fixe‑os bem como se fossem um espelho no qual se olhasse. Procure a sua imagem, procure‑se nos meus olhos... Isso! Acaba de se descobrir a si mesmo...

A sua voz ecoa, muito segura de si mesma, no silêncio absoluto. Imóvel, Roemer quase não ousa respirar.

Com uma solene lentidão, Corina levanta as mãos, dobra‑as em forma de taça, acariciando à distância o corpo do gigante...

Van Meersel, com as costas coladas à parede, não tira os olhos dela. De repente, sente as pernas a dobrarem‑se‑lhe.


"Será possível que os outros não vejam nada", interroga‑se com uma espécie de desespero! Por pouco, gritaria: "Mas olhem! Olhem bem para ela! Não vêem a luz que vibra à volta da sua cabeça?"

A pouco e pouco a multidão, compreendendo que a porta da granja não lhe seria aberta, começou a debandar. Só ficaram no parque de estacionamento alguns casmurros que viram o carro funerário da Ewig e Filho levar o cadáver de Hanna Zynnis num magnífico caixão de carvalho esculpido.

A Praça da Festa de Maio também se tinha esvaziado. Três carrinhas que queriam mesmo instalar‑se tiveram de se dirigir para o parque de campismo, onde encontraram sítio para ficarem. O presidente da câmara e a Polícia local respiraram então, apesar de não poderem deixar de pensar na segunda invasão que se preparava para a manhã do dia seguinte. O noticiário da televisão teve de se contentar com a chegada e a partida do carro funerário com uma imagem rápida do rosto Pálido do viúvo e a frase,, que está a tornar‑se clássica, de todos em relação aos quais os media se obstinavam a violar o desgosto: "Deixem‑me em paz... "

Fiéis à sua técnica, os jornalistas "interpretaram" da maneira que lhes era mais favorável a frase, que julgavam ter um sentido oculto: só podia ser o testemunho da dor dum homem cuja mulher morrera sob o efeito das mãos pretensamente milagrosas da curandeira. O que lhes permitiu acrescentar imediatamente, como uma gota de veneno bem destilada, que a Direcção de Saúde Pública estava prestes a abrir um rigoroso inquérito sobre as actividades de Corina Doerinck.

O grupo, cercado, aproveitou a obscuridade para sair da granja e voltar por caminhos secundários para a casa dos Doerinck, onde Van Meersel iria passar a noite. Roemer seria hóspede do Dr. Hambach

Roemer já não era o mesmo homem. Depois do tratamento Corina tinha ficado muda, sem lhe confiar o que pensava do resultado possível. Por seu lado, ele sentira um calor agradável, como uma sucessão de vagas a invadirem‑lhe o corpo. "Sim, ela pode curar‑me. A maldição inexplicável cessou" pensara. Um arrepio tinha‑lhe percorrido a massa dos músculos e da carne. Tinha vontade de fechar os olhos e de se abandonar àquele bem‑estar, ao sono, mas o olhar de Corina parecia tê‑lo hipnotizado, obrigando‑o a lutar e a manter os olhos bem abertos.

E depois tudo se dissipara. As mãos de Corina tinham voltado a cair ao longo do corpo. Ele vira‑a a atirar a cabeça para trás, dar alguns passos vacilantes, agarrar sem uma palavra o cigarro aceso que o pai lhe estendia e ir sentar‑se a seguir perto da mesa, onde pôs pesadamente os cotovelos, com a cabeça baixa. Lentamente, os seus traços tinham‑se descontraído e dir‑se‑ia que a beleza ressurgia no seu rosto como saindo de águas turvas. Suspirando, com um primeiro movimento da mão, afastara da testa os cabelos que a tinham coberto.

Roemer, em geral tão exuberante, não se mexera. Sentia a garganta repentinamente apertada por uma angústia que o impedia de interrogar a jovem que estava sentada diante dele. Iria ouvi‑la dizer uma vez mais: "Não senti nada nas minhas mãos. Não posso fazer nada por si"? Bem que olhava para ela, esperando um sinal... Notava somente que ela estava muito cansada, extenuada. E aquele rosto cavado pelo esforço inspirava‑lhe involuntariamente uma louca esperança. A força que a abandonava talvez tivesse penetrado nele e começado o seu trabalho de destruição da doença...


Foi só ao fim de dois minutos de imobilidade absoluta que ousou finalmente mexer‑se. Agarrando na garrafa de conhaque, levou‑a aos lábios para beber pelo gargalo. Van Meersel arrancou‑lha das mãos.

‑ Mas eu tenho sede ‑ protestou Roemer.

‑ Beba água...

‑ Eu, água?... ‑ O seu horror era real. ‑ Ter‑me‑ei transformado num bicho?

‑ Exactamente.

Surpreendido, Roemer encolheu os ombros.

‑ Vamos a isso! Onde está o balde? A não ser que haja aqui um bebedoiro!

Doerinck abriu o frigorífico que estava incorporado numa estante e de lá tirou uma garrafa de água mineral que abriu e estendeu a Roemer. Depois de beber dois golos com circunspecção, Roemer voltou a pô‑la no sítio donde saíra.

‑ Se os meus amigos me vissem ‑ suspirava após um soluço provocado pelo gás da água ‑, não acreditariam. Diriam que isto acontecia na sequência de uma convulsão geológica.

Mas Corina, a quem a brincadeira se destinava, não sorriu. Parecia, de facto, ausente, e, quando todos saíram da granja, Roemer ainda ignorava se aquela tentativa tinha sido a primeira de um tratamento completo.

Não havia nada de novo em casa dos Doerinck, onde Ludmila os esperava. Uma hora antes, pelo sim, pelo não, batera na grade do jardim uma equipa de televisão que depressa perdera a coragem. O inspector do ensino tinha telefonado para Doerinck.

‑ O que é que ele disse? ‑ indagou Stefan.

‑ Nada, a não ser que desejava falar contigo. Foi duma extrema delicadeza. Mas está uma pessoa à espera da Corina... ‑ Como o marido arqueava as sobrancelhas, apressou‑se a acrescentar: ‑ Um homem novo, um jovem pintor. Muito simpático...

‑ Que ideia essa de deixar entrar alguém aqui em tais circunstâncias! Agora vais ver a que velocidade o vou pôr lá fora!

‑ Mas ele quer mostrar uma coisa a Corina e eu acho‑o interessante...

Quando Doerinck fez a sua tumultuosa entrada na sala de estar, o jovem deu um salto da cadeira e esboçou um cumprimento. Trazia jeans, uma camisa aos quadrados, e os seus cabelos louros como o trigo tapavam‑lhe o colarinho. Tinha uma cara um pouco ossuda, mas que era imediatamente simpática. Os olhos, sobretudo, chamavam a atenção. Eram dum azul profundo, com um olhar jovem, despreocupado, leal.

Apresentou‑se imediatamente.

‑ Chamo‑me Herbert, Marius Herbert. Peço desculpa por vir incomodar.

Apesar de Doerinck se ter acalmado um pouco com a apreciação da mulher, a sua resposta só podia ser desconfiada e muito seca.

‑ Como vê nesta vivenda não falta nada. Não precisamos nem de papel de parede nem de mandar pintar as portas.

‑ Não sou construtor de construção civil. Sou um artista.

‑ Tambem não precisamos de quadros.


Marius Herbert lançou um olhar por cima do ombro de Doerinck, Roemer, Van Meersel e o Dr. Hambach entravam uns atrás dos outros. Atrás deles, Corina parara ao vê‑lo e sob o efeito do olhar grave que nele fixava, Marius Herbert apercebeu‑se de que o seu coração batia mais depressa. Chamando a si toda a sua coragem, dirigiu‑se a ela directamente,

‑ Eis o que se passa: sou um bom pintor, mas não tenho êxito nenhum. As minhas telas estão expostas em algumas galerias cujos marchands as apreciam, mas não aparece nenhum comprador. Para ganhar a vida, pinto anúncios, cartazes nas paredes e nas fachadas das lojas. O que fiz de melhor no género, quero dizer, o que me foi mais bem pago, foi a parede da cantina de Huschel e Co., conservas de carne e comida congelada. O serviço de publicidade deles teve uma ideia monstruosa: encher a parede com um exemplar de cada animal que entra vivo na fábrica e de lá sai em conserva ou congelado: do carneiro à lagosta, do faisão ao arenque, etc. Era repugnante e atroz, mas ganhei três mil marcos. Por esse preço até teria enchido a parede com sardinhas em conserva. Três mil marcos! Senti‑me como um Picasso ou um Dali!

O riso de Corina impediu Doerinck de pôr o jovem pintor na rua sem mais uma palavra.

Ela foi ter com ele e estendeu‑lhe a mão. De repente, parecia transfigurada: a fadiga e o rasto inegável de um longo dia de preocupações tinham desaparecido.

‑ E que pretende de mim? ‑ perguntou alegremente. ‑ Como vê, não tenho nenhuma parede para pintar!

‑ Foi um programa de televisão que me deu uma ideia... Não as histórias de curas milagrosas nem o que conseguiram fazê‑la dizer. Pensei nisso tudo e achei que eram parvoíces... Mas quando falou das suas tapeçarias e mostraram algumas que me agradaram, arrebitei a orelha. Tive bruscamente uma ideia. Pensei: aqui está uma rapariga que faz tapetes e tapeçarias modernas. Talvez eu possa fazer alguns desenhos que ela materializará em imagens. Seria um novo mercado. E aí é que eu entro: "Desenho, de Marius Herbert." Talvez que o que faço agrade mais em tapeçaria do que em tela! ‑ Fez um grande sorriso, como para pedir perdão. ‑ Pus‑me logo à boleia. Não fazia nenhuma ideia do caos que o programa tinha provocado. A sua mãe foi muito amável e deixou‑me entrar. E aqui estou. ‑ Voltou‑se para Doerinck. ‑ Se quiser pôr‑me na rua, não poderei impedi‑lo de o fazer.

‑ Mas em que outra coisa pensou ao vir aqui?

‑ Nada, ou, antes, pensei simplesmente que dentro de duas semanas já não terei um só tostão dos três mil marcos. Em vez de pintar à maneira dos impressionistas, vou ter de me pôr outra vez a ornamentar as paredes com canecas de cerveja e cachimbos de porcelana.

‑ Não deve pintar como os impressionistas ‑ disse gravemente Corina ‑, mas à maneira de Marius Herbert. ‑ Deu uma olhadela à sua volta. ‑ E se nos sentássemos todos? ‑ propôs.

‑ Este rapaz fica? ‑ perguntou Stefan Doerinck, surpreendido pela evolução dos acontecimentos.

‑ Sim, se não vês inconveniente nisso, papuchka. ‑ Voltou‑se para Marius, para lhe indicar uma cadeira, onde ele se sentou, hesitante. ‑ Fale‑me de si.

Não sabia porque o estava a reter. Via nos seus olhos algo que lhe inspirava o desejo de o conservar junto dela.


Depois de ter barafustado durante algum tempo na cozinha, onde Ludmila preparava bifes enrolados à ucraniana, Doerinck declarou finalmente que estava em sua casa e que ia pôr fim àquela comédia, acompanhando este jovem desconhecido até à rua donde ele viera.

Mas não iria poder passar das palavras aos actos. Corina, sentada em frente de Marius Herbert, interrompeu‑o quando este lhe contava a história da sua vida. Numa voz inalterável, fez‑lhe uma pergunta que pregou Doerinck ao chão.

‑ Porque é que não me diz "tenho um cancro no estômago"?


 

Ao contrário de Roemer a quem a revelação do seu mal tinha transtornado, Marius recebeuesta condenação à morte placidamente. Ao passo que todos os que estavam presentes retinham o fôlego, estupefactos, olhando para Corina, agarrou no copo de laranjada que tinha perto dele e bebeu um grande golo.

‑ Se é você quem o diz, talvez seja verdade. Até aqui nunca dei por isso.

‑ Nunca sente dor ou algum incómodo no estômago?

‑ Incómodo? De vez em quando. Quando estou deitado do lado direito. Ou quando faço uma boa refeição, o que é raro. Uma espécie de cãibra. Mas passa depressa.

‑ Foi a algum médico?

‑ Não. Faltam‑me os meios. Não sou funcionário público nem sequer assalariado. Por isso teria de ser eu a pagar o meu seguro de saúde. Só que é caro de mais para mim.

‑ E se ficar mesmo muito doente e o médico decidir mandá‑lo para o hospital? ‑ perguntou Doerinck, quase sem dar por isso.

Marius Herbert encolheu os ombros.

‑ Na minha idade não se pensa nisso. Talvez me deixem simplesmente morrer no meu canto. Talvez exista um fundo social para casos como o meu...

Roemer, interessado pela orientação jurídica que a questão estava a tomar, interveio.

‑ Não tem parentes?

‑ Sou filho de pai incógnito. A minha mãe era mulher‑a‑dias em casa de um empresário rico que na altura estava a construir bairros sociais e hoje constrói centros de férias no Báltico com hotéis, marinas, etc. A minha mãe afirmou sempre que era ele o meu pai, mas nunca o pôde provar, porque por altura da minha concepção ela tinha mais dois amigos. O nosso ás da construção mostrou‑se ainda assim generoso: deu dez mil marcos à minha mãe em troca duma declaração escrita em que ela reconhecia que não era ele o pai da futura criança. Os dois outros amantes da minha mãe não tinham um tostão. Resumindo, na minha certidão de nascimento vem a menção: pai incógnito. Quanto à minha mãe, continuou a ser mulher‑a‑dias até à sua morte, que ocorreu há seis anos. Eu estudei graças a bolsas. A última foi da Academia de Belas‑Artes de Dusseldórfia. A comida e necessidades gerais paguei‑as com o que ganhava fazendo pequenos trabalhos nos mercados... O meu último emprego foi o de ajudante de jardineiro num cemitério: decorava os novos túmulos com coroas e com flores frescas e artificiais. Quando os parentes mais próximos voltavam dois ou três dias depois do enterro para se despedirem pela última vez e verificar os trabalhos efectuados, apresentava‑me com um quadrito do túmulo tal como eles o viam. Vendia‑o logo. Imaginem: um quadro do túmulo do avô!

No momento de silêncio que se seguiu, ouviu‑se a voz forte de Roemer, cujo tom tinha algo de admirativo.

‑ Isso não é nada estúpido! O que me espanta é que ainda não tenha saído da sombra como pintor!


‑ Também a mim! ‑ disse Marius ironicamente. ‑ Pense bem, saí da Academia de Belas‑Artes de Dusseldórfia com as melhores notas do curso e o encorajamento de todos: "Vá, jovem! Mostre agora o que sabe fazer." E andei de galeria em galeria. Só que todas tinham as paredes cheias de nomes conhecidos. E o meu não o era. Cada galeria tinha os seus pintores e, às vezes, até mesmo o seu género próprio de pintura. "Porque é que não faz como os franceses em Paris, na Place du Tertre? Exponha na rua!" Mas na rua as minhas telas também não se venderam: cinquenta marcos era demasiado caro. Então pus‑me a pintar por vinte marcos ramos de flores e os edifícios célebres da cidade. Em três meses, economizei mil seiscentos e setenta marcos, instalando‑me num lar da missão católica. Esse dinheiro foi‑me roubado durante a noite, no dormitório' e nunca foi encontrado. Então saí de Dusseldórfia... ‑ Marius Herbert calou‑se, olhou longamente para os que o rodeavam e a seguir, encolhendo os ombros, esboçou um sorriso bastante triste. ‑ Não se pode dizer que tenha tido muita sorte até agora...

‑ E não pensou em fazer outra coisa? ‑ perguntou Doerinck.

‑ Não. Eu sei o que posso fazer e um dia os outros terão de reconhecê‑lo. Tive, aliás, uma data de ofícios para poder viver, isto é, alojar‑me, comer, vestir‑me, etc. De momento, pinto anúncios, faço pintura mural e vou‑me safando. Mas quando vi a televisão na outra noite, pensei que também poderia fazer desenhos para tapetes e tecidos. E agora, você dá‑me uma nova martelada na cabeça... Lá que queira pôr‑me fora, está bem! Vou‑me embora! Mas essa história de cancro no estômago é de mais!

Com a calma de que nunca se separava, Corina disse simplesmente:

‑ Curá‑lo‑ei... Sei que posso fazê‑lo.

Marius Herbert fez um enorme sorriso, verdadeiramente insultante.

‑ Com as suas mãos? Claro.

‑ Estamos entre nós e prometo que não a trairei, palavra de honra... mas isso é uma manobra para fazer montes de dinheiro, não é?

Van Meersel interveio com voz forte.

‑ Sou de opinião que devemos pôr este rapaz na rua! A grosseria tem limites.

‑ É o que eu acho há muito tempo ‑ aquiesceu Doerinck, levantando‑se, enquanto no murmúrio súbito que se instalara Roemer resmungava alguma coisa que ninguém conseguiu compreender, mas cujo som era claramente ameaçador.

Marius Herbert tinha‑se levantado também como se fosse responder a uma agressão. O Dr. Hambach quis dizer qualquer coisa, mas mudou de ideias, pois a voz de Corina estalou de repente como um chicote.

‑ Marius Herbert vai ficar aqui. Sente‑se.

‑ Mas... é impossível! O dono da casa quer que me vá embora.

‑ Mas eu digo‑lhe para ficar.

‑ Gostava de saber a quem devo dar ouvidos: se a si se aos outros. ‑ Voltou‑se para Ludmila. ‑ E a senhora, que me mandou entrar em sua casa e me deu de comer e de beber como se adivinhasse que eu tinha fome e sede, diga‑me o que devo fazer.

- Se a minha filha o quer curar, tem de ficar.


‑ Então, é verdade? Acredita, de facto, que tenho um cancro no estômago? ‑ Olhou para uns e para outros, incrédulos. ‑ Vejamos, estou aqui sentado tranquilamente. A menina olha para mim e logo sai o diagnóstico: "Tem um cancro!" E querem que eu leve isso a sério! Sou muito compreensivo, mas é pedir de mais...

‑ Se aceitar que eu o examine ‑ interveio o Dr. Hambach ‑, fá‑lo‑ei de boa vontade. E gratuitamente. Também pagarei uma radioscopia no radiologista de Billerbeck. Então, acredita‑me?

‑ É extraordinário! ‑ disse Marius Herbert ao fim de algum tempo.

Tinha agarrado o estômago com as mãos. A sua cara, já naturalmente pálida, transformara‑se numa máscara de cera. Ainda duvidava, mas a gravidade da sua situação começava a impor‑se‑lhe. "Um cancro no estômago", repetia. "Meu Deus, ainda mais esta! Mas nunca cometi excessos, até passo fome, e não bebo álcool. Os médicos põem os que sofrem do estômago a seguir a minha dieta habitual. Talvez tenha comido demasiada fruta quando me era possível colhê‑la por ser de graça..."

‑ Mas porque é que tenho um cancro? ‑ perguntou finalmente.

O Dr. Hambach só podia responder com outra pergunta:

‑ Porque é que há crianças com cancro? Se o soubéssenos, teríamos logo um meio para o combater, não é?

Então é verdade que a menina curou a mãe?

- É.

- Mas a televisão ridicularizou o caso.

- É uma das faces da liberdade de opinião e não é a mais feliz. O que é terrível é que um rapaz inteligente como você acredite na interpretação que os repórteres fazem dos factos que querem à partida deformar...

‑ Está a conseguir fazer‑me medo ‑ disse Marius em voz baixa. Com as mãos sempre crispadas sobre o estômago, olhava gravemente para o Dr. Hambach. ‑ O senhor é médico, não é? Peço‑lhe, examine‑me!

Quase simultaneamente tocou a campainha do telefone. Roemer, que era quem se encontrava mais perto do aparelho, foi o primeiro a levantar o auscultador para o levar ao ouvido. A seguir estendeu‑o a Doerinck, cujo rosto se contraíra.

‑ É a granja! A granja de Corina! Está a arder!

Ludinila voltara‑se para o canto da sala onde se encontrava o ícone e balbuciava com as mãos juntas:

- Protege‑nos, Santa Virgem... Não nos abandones!

Doerinck voltara a pousar o auscultador.

- É preferível que a Ludinila e a Corina fiquem aqui. Vamos ver o que se passa

‑ Vou convosco. É a minha granja, não é verdade?

Ao longe, viram reflectir‑se no céu os reflexos do incêndio.

Estavam lá três carros de bombeiros e um deles começava já a lançar água sobre as chamas, enquanto as equipas dos outros dois estavam a montar as mangueiras. Uma fumaça sufocante impedia que as pessoas se aproximassem do edifício. Pelas janelas, e através do tecto que ruíra, elevavam‑se as chamas pelo interior. A madeira seca das vigas seculares e o vento que se levantara com a noite avivava o fogo e projectava ao longe uma chuva de faúlhas acompanhada por um calor intolerável.

As outras duas bombas entraram rapidamente em acção, mas as chamas nem por isso deixaram de subir cada vez mais alto através do fumo, que engrossava. De súbito, ouviram‑se duas fortes explosões.


O chefe dos bombeiros, com o capacete descaído sobre a cara enegrecida, precipitou‑se para Corina e Ludmila, que se tinham aproximado o mais possível daquele braseiro apesar da sua impotência.

‑ O que é que tinha lá dentro? Reservas de pólvora de canhão?

‑ Não. Diluente para a tinta de lã. Só dois bidões.

‑ Só! Quer é dizer que eram duas verdadeiras bombas! Afastem‑se, depressa! E você também!

Dirigia‑se a Roemer, que avançara e cuja massa física lhe estava a barrar o caminho.

‑ Sou o magistrado Erasmus Roemer, presidente do tribunal de M'nster.

‑ Então chega mesmo a tempo de verificar: os tapetes, a lã e agora o diluente para a tinta, está tudo a arder como palha! Se as paredes ficarem de pé, teremos sorte. Como é presidente do tribunal, venha ali ver uma coisa! Venha! Espero que a polícia venha depressa...

O que tinha para mostrar era um bocado de cartão que encontrara pregado a uma árvore.

‑ Olhe... Leia isto: "Se não te puseres a andar, é a ti que vamos queimar da próxima vez..." Um incêndio criminoso...

‑ Se viver, trato disso ‑ declarou Roemer sombriamente.

‑ Mas quem é que pode ser suficientemente louco para cometer um crime destes? ‑ perguntou Van Meersel, impressionado.

O Dr. Hambach encolheu os ombros.

‑ Somos nós, é toda a sociedade que é responsável por isto. Alguma vez ensinamos às crianças a pensar como deve ser, a trocar impressões e a serem tolerantes? Quais são os exemplos que lhes damos, à parte o assassínio, as bombas, os atentados, os incêndios e a violência sob todas as formas! Os media transformam assassinos em heróis. Pobre do desgraçado do contribuinte que é vítima deles! O assassino beneficiará no nosso país duma cela de luxo, com rádio, televisão, máquina de escrever, os livros, os discos e as cassettes que ele deseja ler e ouvir e os guardas têm de ter mãozinhas de veludo para se dirigirem a ele sem lhe causar o mínimo incómodo, quer moral, quer físico! Hoje em dia, ser assassino é a solução para todos os problemas pessoais: uma vida segura, uma alimentação vigiada pelos nutricionistas, exercício físico vigiado pelos especialistas do Body building, visitas femininas, conjugais e não só, autorizadas; não há trabalho obrigatório, nem impostos a pagar... Pergunto‑me como é que as nossas crianças não se transformam todas em assassinas...

o inspector principal do primeiro Comissariado da Polícia de M'nster acabara de chegar ao mesmo tempo que os carros da Polícia. Ao ver o bocado de cartão que Roemer lhe estendia, o inspector principal abanou a cabeça.

‑ E, ainda por cima, ameaças de morte! já estava à espera disto depois da emissão do outro dia... Infelizmente, quando se trata de incêndios,,uma pessoa debate‑se a maior parte das vezes com nevoeiro. É quase sempre por acaso que se encontra o culpado. E o barulho que se gerou à volta de Corina Doerinck ainda vai complicar mais as pesquisas. Pode‑se dizer que é um caso para arrumar.

Durante quatro horas os bombeiros obstinaram‑se em vão. Só as quatro grandes paredes com as pedras enegrecidas e fumegantes ainda estavam de pé enquanto os bombeiros continuavam a apagar os poucos focos que ainda subsistiam.


Corina tinha‑se sentado no degrau dum dos carros de bombeiros. Em pé, perto dela, a mãe acariciava‑lhe docemente os cabelos sem ousar falar com ela. Afastados, Roemer e o chefe dos bombeiros trocavam impressões com o inspector. O incendiário conseguira; faltava agora a ameaça de morte que provava que o assassino vigiava Corina e estava perfeitamente ao corrente das suas idas e vindas. A única hipótese que a Polícia tinha era apanhar o culpado em flagrante delito... concluiu o polícia.

Doerinck sobressaltou‑se.

‑ Vai talvez propor‑nos que a minha filha se associe ao seu plano e lhe sirva de isca, como uma cabra na caça ao tigre! Deve estar a brincar!

Vindo da granja, onde ainda reinava um calor insuportável, Marius Herbert ia‑se aproximando lentamente. Tinha os olhos vermelhos por ter contemplado durante demasiado tempo o braseiro. Sentou‑se no degrau, ao lado de Corina. Ao fim dum instante, a sua mão foi pousar‑se no joelho da rapariga.

- Então, perdeu tudo?

- É verdade.

- Todos os desenhos, o atelier, as matérias‑primas, os tapetes e as tapeçarias? Vai recomeçar do nada.

- Exactamente.

‑ A partir de agora é como eu... E se recomeçássemos juntos?

‑ Você e eu?

‑ Porque não? Você tem ideias e eu também. Se se acreditar no que diz, tem umas mãos que curam e as minhas são fortes e sabem pintar, esculpir, etc. É natural que possamos realizar algo de novo a partir deste monte de ruínas.

‑ Vê as coisas de maneira muito simples, Marius. Eu não o conheço.

‑ Ora essa! Sabe o que mais interessa... ‑ Olhou‑a com os seus grandes olhos azuis, simultaneamente inteligentes e ingénuos. ‑ Sabe que tenho um cancro no estômago. Isso não é suficiente?

Começara a rir. Corina olhou‑o por sua vez, longamente. Ainda estava a agarrar na mão da mãe, que, por sua vez, continuava a fazer‑lhe festas no cabelo e que a ouviu dizer docemente,, com um sorriso, ao jovem estranho:

‑ É um rapaz estranho, Marius Herbert. Mas agrada‑me.

Como era natural, a imprensa noticiou o incêndio da granja de maneira espectacular.

As fotografias mostravam as ruínas ainda a fumegar. Além do breve comunicado da Polícia, todos os jornais citaram extractos duma entrevista do Prof. Van Meersel, autoridade reconhecida internacionalmente no campo da investigação parapsicológica. Este afirmava que Corina Doerinck era um fenómeno e confirmava que as suas mãos emitiam uma irradiação capaz de curar. Evidentemente, nenhum jornal publicava as explicações científicas que acompanhavam esta declaração: a maior parte dos leitores não as compreenderiam ‑ Essa gente seria, em contrapartida, atraída pelos títulos e subtítulos que anunciavam, em letras garrafais, que as mãos de Corina curavam tudo.

Os repórteres dos grandes semanários ilustrados apareceram então em massa em Hellenbrand, assim como as agências de imprensa, que pediam para tirar fotografias e fazerem entrevistas. O fenómeno Corina Doerinck tornou‑se objecto de debates apaixonados.


O inquérito da Polícia continuava, mas estava‑se ainda ao nível das hipóteses quanto à maneira como o incendiário tinha actuado. Na própria noite da catástrofe, o inspector ludwig exprimira a sua opinião.

‑ A coisa é simples: o incendiário tinha partido um vidro e atirado para o interior um grande pacote de palha previamente incendiada. A granja estava cheia de materiais inflamáveis: lãs, papéis, tapetes, pinturas a óleo, tinturas, diluente, etc., sem contar com a estrutura feita de secular madeira seca. E o tear. Quanto à ameaça, estava escrita em maiúsculas e com esferográfica azul. O bocado de cartão provinha da capa dum caderno escolar. A própria letra mais parecia infantil.

o procurador olhou então para Doerinck com ar pensativo.

‑ Um caderno escolar! Pode ser um primeiro indício importante...

‑ Stefan Doerinck é muito apreciado pelos alunos ‑ interrompeu o Dr. Hambach.

‑ Certamente, mas mesmo assim pode‑se pensar na vingança dum aluno...

‑ Acho isso completamente impossível ‑ afirmou Doerinck com voz rouca.

Roemer abanou a cabeça.

‑ Com os miúdos nunca se sabe. Lembram‑se certamente do caso Plunner. Foi um duplo assassínio: uma senhora de sessenta e cinco anos e um rapaz de doze. Avó e neto. O assassino tinha‑lhes dado grandes golpes na cabeça antes de lhes cortar a garganta para acabar com eles. Quase caí de pernas para o ar quando o resultado do inquérito revelou a identidade do culpado: uma miúda de quinze anos, irmã do rapaz e, portanto, neta da velha senhora. Parecia um anjo com os seus longos cabelos louros e os olhos azuis, cor da inocência! Depois de se desembaraçar da avó e do irmão, passaria a ser a única herdeira! Impossível de acreditar, não é?

O procurador abanou gravemente a cabeça.

‑ Vamos examinar a fundo esta primeira pista: qual foi o aluno que castigou mais recentemente? Houve alguma tensão particular entre si, doutor Doerinck, e algum deles? Até o estilo da ameaça é o dum jovem apreciador de filmes e de livros Policiais.

‑ As pessoas estão contra a minha filha e não contra mim ‑ resmungou Doerinck, cujo humor se estava a tornar cada vez mais aguerrido.

. Foi também no momento em que iam abandonar o local do incêndio que se voltou para Corina, inquirindo:

‑ E o que é que fazemos do pintor? Onde é que ele vai dormir?

Marius Herbert tinha ficado melancolicamente sentado no degrau do carro dos bombeiros.

‑ Não sei, pai.

‑ Tem dinheiro para alugar um quarto em qualquer lado? De qualquer maneira, não pode dormir lá em casa...

‑ E também não podemos deixá‑lo aqui no meio da rua. Sobretudo, porque já lhe disse para nos seguir.

‑ O quê? ‑ exclamou Doerinck. ‑ E por que razão?

‑ Está doente e quero tentar curá‑lo, papuchka. Sinto que tenho hipóteses de poder fazê‑lo. Ser‑lhe‑á proibido sobreviver só porque não tem dinheiro? Eu tenho. Posso alugar‑lhe um quarto. Por esta noite pode ficar no meu. Eu dormirei muito bem no divã da sala de estar...

‑ E o professor Van Meersel ficará no meu escritório! Estás a transformar a nossa casa num verdadeiro serralho!


Não conseguia esconder a sua antipatia pelos jovens que tinham o cabelo demasiado comprido, o que lhe lembrava 1968, a época da grande confusão. Olhou durante um instante para a filha: o que é que ela via naquele indivíduo de cabeleira mal tratada que com os dez dedos que tinha só sabia pintar? Para ele era apenas um marginal, o vestígio dum período destrutivo, desprezível e odiado...

‑ Primeiro é preciso enfiar o teu protegido numa banheira ‑ declarou num tom em que se manifestava todo o seu rancor. ‑ E se quiseres tratar dele, dá‑lhe cinco marcos para ir amanhã ao barbeiro.

‑ Ele vai ser um grande pintor, papuchka. ‑ Lançou um último olhar aos resquícios fumegantes do seu atelier. "Não é assim que conseguirão pôr‑me de joelhos", pensou. "Voltarei a construir aqui, no mesmo sítio, servindo‑me destas paredes que resistiram às chamas. E se voltarem a pegar‑lhe fogo, voltarei a construir. Ninguém me porá de joelhos e todos vão ter de compreender." ‑ Então, papuchka, o Marius pode ir connosco? Não haveria problemas se não fosse o incêndio da minha granja. Mas fica descansado que ele não te incomodará durante muito tempo...

Foi uma longa noite.

Durante o caminho, Roemer tentou convencer o Dr. Hambach de que não se podia pôr fim à sede que um incêndio daqueles provocava com água mineral. Tinha mesmo necessidade de qualquer coisa forte.

‑ Quer lhe agrade, quer não, doutor, mesmo se tiver de morrer dentro de duas semanas, tenho de beber. Senão, será esta mesma noite que vou bater a bota: em sua casa e de sede! O que é que tem de reserva?

‑ Aguardente alemã.

‑ Uma garrafa chegará para esta noite. já me sinto melhor! Além do mais, do ponto de vista médico, não é aconselhável privar subitamente um drogado da sua droga. Mas diga‑me, o que é que pensa deste incêndio?

‑ Esse que lhe queima o estômago? Vai matá‑lo... Se fala do da granja, não pensei que as pessoas daqui reagissem com tanta crueldade.

‑ Também pensa que foi alguém de Hellenbrand? Por causa do bocado de cartão?

‑ Também por causa disso.

‑ Mas porquê?


‑ É uma história muito longa e não se pode compreender um acto destes se não se conhecer os nossos hellenbrandeses. Stefan Doerinck é, sem dúvida, professor e vice‑reitor da escola deles, mas não é de cá. Instalou‑se aqui depois da guerra como tantos outros imigrantes da Alemanha Oriental e, ainda por cima, com uma russa. Isso, as pessoas daqui nunca o esqueceram nem compreenderam. E, depois, Corina comprou o terreno da quinta que os prisioneiros russos tinham incendiado na embriaguez da libertação, depois de terem massacrado toda a família que os tinha explorado... E há anos que certos rumores correm: Cora é uma bruxa, voltou as páginas de um livro que estava em cima da secretária do professor só com o olhar, etc. E agora a televisão revelou ao mundo que existe na sua cidade uma curandeira que foi ridicularizada pelos media. Ela mancha, pois, a imagem que eles têm da sua cidadezinha. Além disso, não é verdade ser ela filha daquela russa que ainda hoje parece uma habitante das estepes? Então, tal como os seus antepassados, pensaram no fogo que tudo purifica!

‑ O que quer dizer que o incendiário nem sequer terá remorsos. ‑ De repente, Roemer travou tão bruscamente que a testa do Dr. Hambach teria ido bater contra o tablier se não tivesse posto o cinto de segurança. ‑ E que, consequentemente, a ameaça que pesa sobre Corina pode ser levada à prática.

‑ Talvez ele não pense em matá‑la. Há muitos outros meios para deitar abaixo uma pessoa. Com milhares de picadas de alfinetes, consegue‑se chegar a perturbar‑lhe os nervos até dar cabo dela... No domínio do mal, a imaginação humana é inesgotável. Vimo‑lo durante esta última guerra. É por isso que acho que se deve estar à espera duma nova agressão, mas que não será possível prever de que género será...

Em casa dos Doerinck, a atmosfera era tempestuosa. O cheiro a queimado e a fumo que lhes tinha impregnado as roupas espalhara‑se na sala. Num silêncio pesado, Ludmila preparara um chá tão forte que era quase preto. Com limão para Van Meersel, com leite para Doerinck e com rum para Marius Herbert, que acabava de comer o bolo que não tivera tempo de terminar, e a cólera que este jovem de cabelos demasiado compridos inspirava a Doerinck tinha‑se tornado quase incontrolável quando o vira pôr mais rum do que chá na chávena. Explodiu de repente ao recapitular, numa voz cheia de amargura, os acontecimentos do dia.

‑ O começo da popularidade de Corina é verdadeiramente dramático: acabou‑se a granja, o atelier, as tapeçarias e as matérias‑primas, os desenhos e os esboços. Não esperava por esta, professor Van Meersel, não é verdade? Imaginava as trocas de ideias caracterizadas pela cortesia académica... Pois eu também! Ambos conservámos um pouco da cultura que os nossos pais, que nasceram noutro século, nos transmitiram. No século deles reinavam as boas maneiras e a paz. E pergunto‑me se estas não serão indissociáveis! Hoje em dia, não é assim que se resolvem os problemas. Prefere‑se dar cabo do opositor: é mais simples, mais rápido e muito mais eficaz. ‑ Sentou‑se no sofá ao lado de Ludmila, inclinado para a frente, com os cotovelos nos joelhos e os punhos cerrados. ‑ O que é que se vai passar agora?

A pergunta dirigia‑se a todos, mas foi Corina quem respondeu calmamente:

‑ Não me curvarei perante o terror.

‑ Bravo! ‑ exclamou Van Meersel.

O rosto de Doerinck crispou‑se.

‑ Tanto uma resposta dessas como os aplausos passam ao lado da questão. A Corina perdeu tudo!

‑ Mas vou reconstruir, pai.

‑ Isso leva tempo. E entretanto? Depois da publicidade gerada pelo incêndio, os doentes vão afluir de todos os lados. Vais recebê‑los num prado, ao ar livre?

O tom da sua voz era cada vez mais duro e agressivo. Marius Herbert, que acabara de comer o bolo, sacudiu com as costas da mão as migalhas que tinham ficado presas às calças antes de dizer numa voz tão calma como a de Corina:

‑ Tenho uma ideia...

‑ Que interessante! ‑ resmungou Doerinck.

‑ Podia alugar‑se uma sala, mas aqui não se encontrará nenhuma.


‑ Somos suficientemente inteligentes para chegarmos à mesma conclusão sem si!

‑ Foi por isso que tive uma ideia... Veio‑me por pensar no parque de campismo. Em M'nster há lojas que vendem ou alugam tendas para festas, quermesses e outras reuniões. Então porque é que não se alugaria uma que se montaria no local da granja?

Estupefacto, Doerinck viu e ouviu Corina aplaudir com ambas as mãos.

‑ É uma óptima ideia, Marius. Vamos alugar uma tenda amanhã mesmo.

‑ Ainda será mais fácil deitar fogo a uma tenda!

Marius abanou a cabeça.

‑ Contra esse risco há seguros. E uma tenda é fácil de substituir. Mas terá ainda outro seguro: dormirei lá com o meu cão.

‑ Tem um cão? ‑ perguntou Doerinck, admirado.

‑ Um bastardo fruto de misturas indefiníveis, grande como um cão‑polícia e com cabeça de boxer, maxilares de dobermann, pêlo de colley e rabo de caniche. Chama‑se Molly, porque é rapariga. Para ela, constituo metade do mundo. Foi em Dusseldórfia há quatro anos, cerca das seis da manhã. Voltava do mercado onde descarregara camiões durante toda a noite quando ouvi um gemido muito fraquinho a sair de um dos caixotes do lixo alinhados sobre o passeio, diante de um edifício. Os homens do lixo ainda não tinham passado. Levantei a tampa: no interior estava um cãozinho de cerca de seis semanas, dentro de um saco de plástico quase cheio de lixo! Era Molly. Mais meia hora e tinha ido para o triturador. Ela deu‑me logo um beijinho. Disse‑lhe: "És uma rejeitada pela sociedade, talvez como eu, por isso nunca mais nos vamos separar." O proprietário do caixote tinha pintado nele o seu nome, Alberts, e o número do seu apartamento. Antes de me afastar, subi ao segundo andar para lhe bater à porta. Era um tipo enorme e furibundo, que, naturalmente, reconheceu a Molly e começou a gritar. Pus a cadelinha no chão para ficar

com as mãos livres e quando voltei a descer as escadas com a Molly só faltava continuar a esmagar o tipo no triturador da fábrica.

‑ Mas onde é que ela está? ‑ perguntou Doerinck, já inquieto.

‑ No jardim. Não se preocupe. A Molly aprendeu a ter boas maneiras, como se diz. Sabe ficar horas à minha espera, sem se mexer e sem se fazer notada. Tenho sempre comigo a coberta dela. Podem ter a certeza que está sempre deitada em cima dela e ninguém ousou penetrar no jardim durante a vossa ausência.

E vai ser igual para a sua tenda...

‑ Tenho de ver essa Molly ‑ disse Corina levantando‑se. ‑ A sua ideia é excelente, Marius.

Ainda furioso, Doerinck bateu com o punho na coxa.

‑ E os media vão falar do "Circo da Curandeira"! Isso vai aumentar a tua nomeada, Cora. É a minha vez de aplaudir, bravo!

‑ Deixe‑os dizer e escrever o que quiserem, doutor Doerinck. Nunca caiu nenhuma árvore por um cão lhe ter feito chichi em cima, não é verdade?...

‑ Mas não é um cão, é uma caricatura ‑ exclamou alegremente Van Meersel.


Molly estava deitada sob a folhagem de um arbusto em cima de um velho cobertor cinzento, com a enorme cabeça pousada entre as patas da frente. Os seus grandes olhos não se afastavam daquela quantidade inesperada de humanos que paravam diante dela, mas como o dono estava no meio destes, reprimira o princípio de um rosnido e, pelo contrário, o seu rabo tufado tinha começado a bater no chão à laia de boas‑vindas, sem deixar de vigiar atentamente os outros.

‑ E é isto que vai pôr os malfeitores em fuga? ‑ insistiu Van Meersel.

Sem levantar a voz, Marius ordenou:

‑ De pé, Molly, e mostra os dentes ao professor holandês. Se não chegar, podes espetar‑lhos nas nádegas!

Molly levantou‑se. O seu tamanho era o de um grande cão‑polícia e quando arreganhou os beiços deixou a descoberto dois maxilares herdados de um animal selvagem qualquer, armados com formidáveis caninos. Van Meersel deu dois passos para trás ao ouvi‑lo rosnar com ar pouco satisfeito, mas Molly seguiu‑o logo sem deixar mais de um metro entre eles.

‑ Absolutamente convincente! Retiro tudo o que disse. Ao contrário, estou pronto a crer que Molly descende directamente de Cerbero, que estava de guarda à porta dos infernos. Só com a diferença de que Cerbero tinha três cabeças e, portanto, três pares de maxilares como estes!

Marius Herbert chamou Molly, que se sentou à sua direita.

‑ Quando acordarmos, trataremos da tenda. Para já, é quase uma hora da manhã. Posso estender‑me aqui, doutor Doerinck, na erva, ao lado da Molly?

Antes mesmo que Doerinck, aliviado, tivesse podido abrir a boca, Corina interveio.

‑ Que péssima ideia!

Inclinou‑se na direcção de Molly, fixou durante um instante os grandes olhos fiéis e distantes, apesar de tudo, da cadela, avançou lentamente com a mão e acariciou a grande cabeça redonda. O corpo do animal contraiu‑se enquanto os seus olhos continuavam a fixar o dono. Só os beiços estavam ligeiramente levantados. Alguém que não conhecesse os cães poderia pensar que estava a sorrir.

‑ Bravo! Ganhou! ‑ disse Marius Herbert. ‑ E isso é uma surpresa! Até agora, a Molly nunca se tinha deixado acariciar por outra pessoa. Ela gosta de si!

Como se fizesse parte da casa desde sempre, Molly precedeu‑os através do jardim, esperou que lhe abrissem a porta de trás, introduziu‑se na sala de estar, cheirou o sofá no sítio onde Ludmila se sentava e enrolou‑se em si mesma, logo ao lado. Doerinck hesitou, mas escolheu uma poltrona.

Marius Herbert foi o primeiro a retomar a conversa interrompida.

‑ Então o que é que diz à minha proposta? Arranjamos uma grande tenda imediatamente?

Corina abanou a cabeça.

‑ Tenho muitas formalidades a cumprir depois do incêndio: tenho de ficar em Hellenbrand.

‑ Se tiver um meio de transporte, posso deslocar‑me sozinho a M'nster...

Corina olhou‑o rapidamente.

- não? Pode ir no meu carro, Marius... tem carta de condução,

‑ Tenho. Por esse lado estou em ordem. O que não é o caso do meu estômago, não é verdade?


O seu breve riso pretendia ser irónico, mas dissimulava mal o medo e a amargura contra os quais lutava.

Corina conduziu Marius ao seu antigo quarto e, depois de lhe ter mostrado a casa de banho, estendeu um cobertor para Molly perto da cama. Marius começou a rir.

‑ Molly, agradece amavelmente a esta menina pelo cobertor, mas confessa‑lhe que dormes sempre ao meu lado, bem colada a mim. Ressona como um tubo de órgão!

"Quanto tempo é que isto vai durar?", pensou ele. "Primeiro, um bom banho, uma boa cama, um pequeno‑almoço amanhã de manhã... talvez chá, visto a mãe ser russa, mas um bom chá muito forte, também isto é raro na minha vida. Restam‑me exactamente cento e trinta e seis marcos e alguns pennings, que são o que sobra dos duzentos marcos que ganhei com a última encomenda, a da tabuleta da padaria... "

‑ Em que está a pensar ‑ perguntou bruscamente Corina.

‑ Sobretudo no que se passa aqui: acho que é bom viver em família, e penso no pequeno‑almoço de amanhã de manhã, com pãezinhos bem dourados e ainda quentes, com manteiga, e marmelada, com ovo e talvez até com salpicão!

‑ E mel proveniente das nossas próprias colmeias. Talvez tenha ainda fome? Quer uma fatia de pão com manteiga e mel?

‑ Agora, às duas da manhã?

‑ Porque não? Nunca se deve contrariar um desejo que se pode satisfazer imediatamente, se nele não houver nada de repreensível...

Na cozinha encontrou o pai que estava à procura de uma garrafa de água mineral e que olhou para ela com ar de reprovação ao vê‑la juntar ao pão barrado com manteiga e mel uma pequena garrafa de cerveja.

‑ Pão, mel e cerveja... que curiosa mistura.

‑ Que vem dos nossos antepassados, os antigos Germanos, pai ‑ respondeu Corina, imediatamente na defensiva.

‑ Enganas‑te, Cora: tratava‑se de pão, mel e hidromel.

‑ Obrigada, senhor professor!

‑ Não achas um pouco imprudente confiares o teu carro a um vagabundo como ele!

‑ Tenho de arranjar rapidamente uma tenda, pai. E o que é que achas que ele pode fazer ao carro? Desaparecer com ele? Para ir onde? Só deseja poder trabalhar para mim.

‑ Há casos em que demasiada confiança é prejudicial...

‑ E outros em que a confiança é recompensada.

Para quê discutir?, pensou Doerinck. Com um suspiro, viu a filha sair da cozinha levando um tabuleiro onde o pão com mel convivia com a garrafa de cerveja. Lançou um segundo suspiro ainda mais profundo do que o primeiro quando apagou a luz, antes de voltar para o quarto, onde encontraria Ludmila.

‑ Deveríamos ter cuidado com Corina ‑ disse assim que se deitou perto dela.

‑ Stefanka, olha que a Corina é adulta! já podíamos ter netos há muito tempo.

Após um longo silêncio, Stefan Doerinck suspirou uma terceira vez antes de dizer:

‑ Não gosto do tipo de cabelos compridos.

O tipo de cabelos compridos, instalado em cima da cama, devorava o seu pão com mel, sem no entanto se esquecer da parte de Molly, enquanto Corina, sentada numa cadeira, com as mãos cruzadas, o olhava fixamente. Quando acabou de comer, levantou‑se e aproximou‑se dele.


‑ Estenda‑se de costas.

Surpreendido, Marius obedeceu sem protestar.

‑ Porquê? Vai começar o tratamento? Comigo não precisa de representar. Lá que tenha descoberto que tenho qualquer coisa no estômago, ainda vá que não vá! Agora, quanto a curar um cancro! Ao ver a televisão, disse para comigo: ora aqui está uma que encontrou um bom truque! As pessoas vão sempre atrás do que é mistério, fé e esperança de cura. É sem dúvida um bom negócio e deve dar bom dinheiro.

‑ Não levo nem aceito dinheiro.

‑ Então, é uma loucura! Porque é que faz isso?

‑ Chame a isso o que quiser, não tem importância. ‑ Com as mãos cruzadas, continuava a concentrar‑se na estranha tensão que sentia a crescer em si. ‑ Estenda‑se. ‑ Como ele quisesse voltar ao tema da comédia que ela representava, interrompeu‑o bruscamente: ‑ Estende‑te e cala‑te! Nem mais uma palavra!

Ele deu consigo de costas, espantado por ter obedecido tão facilmente.

‑ Está bem, está bem, não me mexo mais... ‑ murmurou ainda.

Para Corina tudo se passou como tantas outras vezes. As suas mãos deslizaram por cima do corpo do doente, sem nunca lhe tocar. Por seu lado, ele sentiu um calor quase súbito e as suas pálpebras, repentinamente pesadas, fecharam‑se‑lhe.

Sem nenhuma preocupação, abandonava‑se a um cansaço salutar...

Antes de mergulhar no esquecimento, ainda viu o rosto de Corina endurecer e tornar‑se no de uma mulher sem idade, com duas pregas que acentuavam as comissuras dos lábios e um par de olhos que lhe parecia estarem a enterrar‑se literalmente nas órbitas.

Corina teve a impressão de ser invadida por uma felicidade indescritível. Tinha dado imediatamente com o sítio onde o adversário se escondia, apanhado de surpresa no seu incessante corroer. O inimigo, o mal, não lhe resistiria. Ela sabia que ele lutaria em vão... "A partir deste primeiro confronto sou eu a mais forte... "

Parou de lutar dez minutos depois, completamente exausta, e deixou‑se cair numa cadeira. Procurou, tacteando, o maço de cigarros para fumar, fumar: aquele cancro não lhe deixaria nem um segundo de repouso: vou queimá‑lo, secá‑lo, destruí‑lo. Marius Herbert saía pouco a pouco do ninho de calor e de lassidão que o tinham envolvido. Levantou a cabeça para olhar para Corina.

‑ É tudo? ‑ perguntou.

Gostaria de voltar a brincar e a conversar, mas um breve "Agora dorme!" pô‑lo no lugar. Notou com uma espécie de terror a fadiga misteriosa que ainda cavava o rosto da rapariga e que a sua voz, mudada, parecia ensurdecida. Ouviu a desconhecida tratá‑lo por tu.

‑ Amanhã pegas no meu carro e vais buscar uma tenda a M'nster. à noite, continuarei o tratamento...

Uma vez mais, ele esforçou‑se para se libertar daquele ascendente. Mas subitamente deu‑se conta de que Molly, estendida perto dele, não se tinha mexido nem rosnado. Também ela tinha os olhos fixos em Corina.

‑ Não é possível! ‑ disse. ‑ Mas o que é que se passou?...

‑ Dorme!


Como num sonho, ele viu Corina levantar‑se, sair do quarto, fechar a porta atrás de si e a seguir ouviu os seus passos ‑ o passo de outra mulher, maior e mais pesada ‑ diminuir enquanto ela descia a escada, degrau a degrau. Sentindo‑se liberto, teve vontade de apertar a cadela contra ele e de lhe falar.

‑ Estranha rapariga, hem, Molly? E linda... Demasiado bonita para nós. Mas se a servirmos, comerás todos os dias bem, Molly, e eu também! Vou poder pintar como sonho, além do trabalho que farei para ela e terei, talvez, a sorte de vender alguns quadros. A Corina tratará os doentes e eu vender‑lhes‑ei as minhas telas. Que rica combinação, hem, Molly? Vamos ambos sonhar, tu e eu, vamos sonhar que a nossa vida de vagabundos acabou. Boa noite, Molly, e não me dês demasiado cabo dos ouvidos a ressonar, sua... cadela!

No dia seguinte de manhã, Stefan Doerinck entregou‑lhe as chaves e os documentos do carro de Corina com um comentário muito breve:

‑ Da parte da minha filha!

O seu tom era exactamente o que teria utilizado para dizer: "E agora põe‑te a andar!"

A seguir subiu para o carro e tomou o caminho da escola, exactamente como fazia desde há vinte e sete anos.

Quando entrou na aula, apercebeu‑se que faltava um terço dos alunos.

Nos seus bancos, aqueles inesperados espaços vazios tinham algo de sinistro e de ameaçador. Apertando os lábios, apontou as faltas. Naquele dia devia dar uma aula de geografia regional.

‑ Quem é que já viu um incêndio a sério?

Todas as mãos se levantaram. Em Hellenbrand, que não passava dum burgo, todos se dirigiam ao local dum sinistro assim que soava o primeiro toque da sirena colocada no telhado da câmara.

‑ Peguem nos cadernos de redacção. Cada um irá descrever o incêndio a que assistiu, contando tudo o que viu e ouviu...

Os olhos dos alunos estavam fixos nele, e ele sentiu que este dia seria decisivo tanto para si como para eles.

‑ O autor da melhor redacção irá lê‑la na festa da escola.

Cerca das dez, entrou no pátio da escola um carro que vinha de M'nster. Dez minutos depois, Doerinck ouviu bater à porta da sua aula. Entrou um aluno do quarto ano.

‑ O senhor reitor pede‑lhe para fazer o favor de ir ao gabinete dele, senhor doutor...

‑ Continuem. Volto já ‑ disse Doerinck aos alunos.

Endireitou o nó da gravata, abotoou o casaco e saiu da aula num passo rápido e decidido. Repentinamente recuperara intacto o espírito do jovem chefe de batalhão que já tinha sido. Não precisava de trazer ao peito a mais nobre condecoração que ganhara em circunstâncias bem mais difíceis. Tinha de lá  saído com vantagem de situações muito mais perigosas. E, de

repente, quase teve vontade de rir.


 

Todos os professores alemães sabem que existem duas espécies de inspectores: aquele cuja jovialidade é tal que nos faz primeiro pensar que é com ele que se vão resolver todos aqueles problemas que surgem quando se esvazia em conjunto uma garrafa da melhor cerveja. Começa por nos comunicar as relações que connosco têm em comum; quando o professor começa a dizer para si mesmo que um homem assim só pode dar provas duma compreensão fraternal em relação às suas dificuldades pessoais e profissionais, acaba por se aperceber bruscamente de que aquela boa vontade não passa duma rasteira, duma astúcia para lhe arrancar mais do que queria dizer e para o manter apertado numa trela que o estrangula. A seguir, há o outro tipo de inspector, que é fechado, impenetrável, e que está sentado atrás da secretária como no alto dum estrado, pronto a brandir repentinamente o gládio com o 1 qual está decidido a decapitar todos os subordinados que tem para julgar. Tudo o que se pode dizer e evocar perder‑se‑á contra o primeiro num magma sufocante de que não se consegue mais sair e esmagar‑se‑á contra uma muralha de granito.

Franziskus Hollenbock era do tipo jovial. Era preciso ter nascido na região de M'nster e de lá não ter saído para não sofrer com um nome que era ridículo no resto da Alemanha. Por isso, tinha feito o possível e o impossível para nunca sair da sua região, nem como estudante nem como professor.

Algumas das férias passadas em regiões próximas, como a Renânia, a Baviera e a Suíça, tinham‑lhe mostrado que não podia pôr o nariz fora da sua província natal sem se arriscar a ser vítima de graças atrozes.

Na sua qualidade de inspector era apreciado, mas também temido. Tinha um prazer satânico em fazer perguntas de te11dência política aos jovens professores, obrigando‑os a refugiarem‑se em frases feitas e desprovidas dum sentido preciso.

Estava de pé perto da janela quando Doerinck entrou no gabinete do reitor, depois de ter batido à porta. Ferdinand upp chupava uma cigarrilha e, sem dizer uma palavra, lançou a Doerinck um olhar de aviso.

‑ Aqui estou! ‑ disse Doerinck com a sua mais bela voz de oficial.

Hollenbock deu meia volta. A sua cara redonda, sempre amigável, não tinha mudado nada apesar da gravidade da situação. Avançou na direcção de Doerinck e pegou‑lhe na mão, que conservou na sua da maneira mais amigável possível.

‑ Então, Doerinck, o que é que se passa consigo? ‑ O tom era paternal e perigosa a sua jovialidade. ‑ Primeiro, aquela entrevista imbecil e a seguir o incêndio de que todos os jornais falam... E agora o seu colega Hupp comunica‑me que os pais dos seus alunos refilam...

‑ Só alguns, senhor inspector. ‑ Tinha finalmente conseguido libertar a mão do aperto do outro. ‑ Não se deve sobrestimar o facto.

‑ Claro, mas deve ser analisado na sua justa medida. É a primeira vez que me encontro perante tal problema após trinta e dois anos ao serviço do ensino: pais a boicotarem um professor! Mesmo que só fossem dois ou três, seria um indício a não negligenciar. Isso deve fazer‑nos reflectir.


‑ Com efeito, tenho pensado em certas hipóteses a propósito do incêndio desta noite...

‑ Naturalmente. É um caso horrível.

‑ O facto de haver nesta cidade, onde vivi metade da minha vida de homem, alguém capaz de tal acto perturba‑me profundamente, senhor inspector... Confesso que isso abala um pouco a fé que tive até aqui na bondade profunda do ser humano.

‑ Compreendo. ‑ Interrompeu‑se para tossicar e continuou em voz mais firme: ‑ Por outro lado, a sua filha deixou‑se levar por um caminho que perturba o espírito das pessoas, assim como o dela própria, aliás... E o meu.

‑ Curar é perturbar a ordem pública? Eu próprio verifiquei o caso da minha mulher, que a minha filha curou.

‑ De um cancro.

‑ Sim, de um cancro.

‑ Aí é que está a questão. Aí já começa o misticismo e a superstição. Uns aceitam esses pretensos milagres porque buscam o maravilhoso e o inexplicável; outros, que constituem felizmente a maioria dos nossos concidadãos, sentem respeito pela medicina e pela ciência oficial, insurgindo‑se contra esses regressos ao passado, que eles acham ultrapassados.

Doerinck lançou uma olhadela a Hupp. Não havia nenhum auxílio a esperar do seu lado. O reitor era um homem que exercia correctamente a sua profissão, sem ir mais longe. O que Doerinck ainda ignorava era que o único amigo do seu colega Dechaut Wilm, o pastor de Hellenbrand, lhe tinha feito um sermão naquela manhã: "Se Corina se obstina desta maneira, não podes manter Doerinck na tua escola." Esta declaração por parte dum padre cuja influência era considerável na região de M'nster tinha abalado o reitor.

Quanto a Hollenbock, esse sentia‑se cada vez menos à vontade. O comportamento inflexível de Doerinck lembrava‑lhe que tinha à sua frente um homem a quem fora atribuída a cruz de guerra, que era a mais alta condecoração da última guerra para feitos de bravura. Ora, por diversas razões, ele próprio tinha passado em gabinetes a maior parte daqueles terríveis anos e essa lembrança, que não gostava de evocar, deixava no fundo de si uma ferida de amor‑próprio que vinha juntar‑se às dificuldades causadas pelo nome ridículo que possuía. Mais uma vez, o seu único objectivo era evitar o perigo a qualquer preço. Uma intervenção do governo podia ter consequências temíveis para ele. Ora, o que é que se passaria na escola de Hellenbrand se a presença de uma "bruxa" no burgo se tornasse uma novidade sensacional em toda a República Federal? A revolta dos pais não podia expandir‑se de maneira nenhuma.

‑ Doutor Doerinck, eu sei que os pais já não têm autoridade sobre os filhos como acontecia antigamente. A sua filha é adulta. Tudo isto é exacto, mas trata‑se duma argumentação que não nos serve para nada. Estamos a ser confrontados com uma crise de emoção popular que não podemos controlar. Temos de fazer qualquer coisa para preservar a paz nesta escola, que também é a sua. Senão, vai‑nos cair em cima uma verdadeira avalancha. Como é que vamos sair disto, doutor Doerinck?

O reitor interveio.

‑ Propus ao nosso amigo que a sua filha deixe provisoriamente Hellenbrand


‑ Excelente solução: poderemos dizer que o doutor Doerinck não é solidário com a filha e o assunto fica arrumado.

Doerinck respirou profundamente.

‑ O quê? Querem que atraiçoe a minha própria filha? Senhor inspector, para a defender estou pronto a comprometer‑me totalmente e a lutar por ela. A minha filha encontrar‑me‑á sempre a seu lado quando precisar de mim.

‑ Ora vejamos, não vai defender uma causa tão irracional. ‑ gritou Hollenbock, bastante indignado.

‑ Defendo uma causa que salvou a vida da minha mulher. Como é que reagiria se sua mulher, condenada pelos médicos por causa de um cancro no cólon, voltasse subitamente à vida?

Doerinck ignorava que estava a cometer uma falta imperdoável. Subitamente, a jovialidade fictícia de Hollenbock desapareceu‑lhe da cara. Dois anos antes, a sua mulher morrera de um cancro da mama que fora descoberto e tratado demasiado tarde. Pôs o tom mais oficial para comunicar qual era, do seu ponto de vista, a única solução ainda possível.

‑ Doutor Doerinck, concordaria se lhe concedêssemos uma licença ilimitada durante a qual, naturalmente, receberia o seu ordenado integralmente? Eu apoiaria pessoalmente o pedido por razões de cansaço ou de doença...

‑ Não! ‑ disse secamente Doerinck. ‑ A minha saúde está em perfeito estado.

‑ Stefan! ‑ gritou o reitor. ‑ Olha que é a solução mais elegante...

‑ A elegância, a meu ver, deve vir depois do dever. Ganhei sempre a minha vida com o trabalho que desenvolvi, correctamente, nesta escola durante vinte e seis anos. Não me podem afastar como se tivesse peste por causa da minha filha.

‑ Poderia transferi‑lo...

‑ Nem pensar. Apelarei para as autoridades regionais. Por que motivo seria transferido ao fim de vinte e seis anos de bons e leais serviços? Além disso, deixaria de ser o pai da minha filha no sítio para onde me mandassem?

‑ E se a greve dos pais se prolongar? Se se recusarem oficialmente a enviar os filhos às aulas enquanto o pai da Corina Doerinck, que a apoia, estiver ao serviço? Então qual é a sua solução? A lei obriga os pais a mandar os filhos à escola, é verdade. Mas como é que a faremos aplicar? Teremos todos os Media contra nós! Para eles seria um manjar do céu! É exactamente o que procuram! Abaixo os funcionários que pretendem saber melhor do que os próprios pais o que é bom para os filhos! Vão dar livre curso a todos os rancores acumulados desde há anos por culpa de certos pedagogos imprudentes. Está pronto a enfrentar tal desencadear de paixões? Doerinck, você defendeu magnificamente uma cabeça‑de‑ponte na Rússia, toda a gente o sabe, apesar de você nunca falar disso, e todos o admiram! Mas creia que não se resiste à infâmia dum certo jornalismo. Vai descobrir que os ataques dos Russos eram menos temíveis. já outros tentaram resistir e deram com eles de joelhos e de cabeça baixa.

‑ Nunca cederei a pressões tendenciosas. Nunca!

‑ Então, este escândalo vai continuar?

‑ Não é a mim que deve perguntar. É uma pergunta a fazer à minha filha, ou, melhor, aos que a atacam.

‑ Mas aqui é um professor e é o adjunto do reitor...

‑ É justamente isso: eu cá não curo ninguém. Ensino e faço‑o desde há vinte e seis anos, repito.


O inspector, com as mãos juntas atrás das costas, esperou um instante antes de recuperar o fôlego.

‑ É um círculo vicioso e é preciso sair dele. Vou, portanto, dirigir‑me às autoridades superiores e propor que entre de licença ilimitada...

‑ Apresentarei oficialmente queixa contra esse abuso de poder.

‑ O doutor Hupp lembrará aos pais dos alunos que têm a obrigação legal de enviar os filhos à escola e convocá‑los‑á para uma reunião especial. Eu próprio falarei com eles.

‑ à mínima observação desfavorável sobre mim ou a minha família, previno‑o, apresentarei queixa...

‑ Muito bem. Definimos as respectivas posições, doutor Doerinck... ‑ Verdadeiramente perturbado, Hollenbock balançava‑se da frente para trás na ponta dos pés. ‑ Nestas condições, sou obrigado a comprovar que é impossível colaborarmos calma e proveitosamente. Devemos esperar pelas consequências. Obrigado, doutor Doerinck.

Sem uma palavra, Doerinck voltou para a aula, sentou‑se à secretária e olhou longamente para os alunos, que tinham todos a cabeça curvada sobre a redacção. Vinte e seis anos, pensou. Hellenbrand: um novo lar depois duma guerra horrível. Vice‑presidência do clube do jogo das bolas, direcção do coro paroquial, amizade aparente com todos... nada disso contava já. "Meu Deus, a minha vida terá mesmo de acabar com este vómito?"

A campainha tocou: fim da aula. Recolha dos cadernos. Saída dos alunos.

Fica um instante só, sentado à secretária. A seguir, levanta‑se, sai. Desce lentamente as escadas. No primeiro patamar, Ferdinand Hupp parece esperá‑lo, com o rosto descomposto.

‑ És uma verdadeira mula, eis o que tu és, Stefan. Uma verdadeira mula!

‑ Talvez. Só que uma mula às vezes é necessária, no extremo dum abismo, por exemplo, exactamente no sítio onde alguns escorregam com a sua honra... ser como uma mula permite ter pés seguros...

 

Marius Herbert apareceu ao almoço. Vinha de M'nster. O carro de Corina não tinha um arranhão e Marius estava irreconhecível.

Tinha cortado o cabelo!

‑ Não vai acreditar ‑ disse ele a Stefan Doerinck. ‑ Foi por sua causa, porque não lhe agradava, que cortei o cabelo! Logicamente, para mim isso era mais uma razão para não lhe tocar.

‑ Obrigado ‑ disse Doerinck, empertigado.

‑ Pois bem, não foi nada disso. Foi só por causa da tenda... Na primeira loja olharam‑me de lado: pensaram que eu queria organizar aqui na parvónia um asilo de punks ou um local de reunião de fumadores de haxixe... Resolvi logo ir ao barbeiro: "Quero um corte que me dê um ar capitalista!" E resultou! Entregam a tenda amanhã de manhã. Haverá lugar para cem pessoas. O chão é de tábua e a estrutura de madeira da porta vem incorporada. ‑ Abanou a cabeça. ‑ Não é curiosa esta coisa do corte de cabelo? Ter‑me‑ei, de facto, tornado noutro homem por ter agora o cabelo curto? Vão ter mais confiança em mim por causa disso? Não é nada lógico, doutor Doerinck.


Erasmus Roemer também apareceu à hora do almoço. Anunciou que a sala de espera do Dr. Hambach ainda estava mais cheia do que era costume. Conhecendo a amizade que ligava o médico aos Doerinck, cada doente queria conhecer quais as consequências do incêndio. Todos faziam imediatamente as mesmas perguntas: "O que é verdade no caso de Corina? Que história é essa das mãos que curam? O que pensa disso, doutor?"

O Dr. Hambach protegia‑se atrás duma citação aproximativa que não o comprometia.

‑ Há mais coisas do que se julga entre o céu e a terra... ‑ Depois duma longa pausa significativa, o velho médico acrescentava: ‑ Sim, é assim, acredite...

Era uma resposta que satisfazia toda a gente e provocava em alguns um estranho arrepio nas costas.

Erasmus Roemer, assim que entrara, pusera‑se a cheirar o ar com as narinas dilatadas, para melhor aspirar o odor do liuliakebab que Ludmila preparava: almôndegas de carne com cebola. A sua voz estava mais forte do que nunca.

‑ O Willbreit telefonou‑me. Inquietou a minha mulher, que vai voltar, sem dúvida nenhuma, para me suplicar que me faça operar. Com os seus olhos de vaca e com lágrimas como os cristais do lustre que ilumina o meu salão, é capaz de ganhar a partida! Não consigo resistir quando ela chora, apesar das boas resoluções que tomo antes. Se não fosse isso, já me tinha divorciado há muito tempo... Tem um buraco onde possa esconder‑me? Corina, não pode falar com a Elise e fazê‑la dar ouvidos à razão?

‑ De boa vontade, só que ela deve estar sob a influência do professor Willbreit.

‑ Desse ocupo‑me eu. Estou muito mais à vontade com os homens do que com as mulheres.

Van Meersel tinha começado a rir.

‑ Penso que se quer de facto esconder‑se é melhor procurar uma caverna aberta por um obus de grande calibre do que um buraco de rato...

‑ Até quando poderei ainda fazer honras à boa cozinha, Corina? Acha, de facto, que pode curar‑me?

‑ Desde ontem que acho que sim.

‑ Aleluia! ‑ Tinha aberto os braços para acolher a confirmação da boa nova. ‑ Agora só me falta o pedaço de paraíso que Ludinila Davidovna, se não me engano, vai fazer descer do céu para a mesa.


à tarde, Corina deu uma primeira conferência de imprensa no próprio sítio da granja incendiada. O cheiro persistente a queimado não deixou ninguém indiferente. Tinha aproveitado a manhã para organizar tudo. Pedira bancos emprestados ao proprietário do albergue As Armas da Vestefália, que aproveitara para instalar um bar com carnes frias. A notícia espalhara‑se como um rastilho de pólvora no meio dos jornalistas. Tinham afluído de todos os lados, mesmo de avião, utilizando o aeroporto M'nster‑Osnabruck, próximo dos cimos de Hilltrup. O presidente da câmara e o reitor da escola também tinham sido convidados e o inspector acompanhara‑os, desejoso de assistir ao espectáculo e dele tirar todas as lições possíveis. As cadeias de televisão haviam enviado equipas de grandes especialistas, diferentes do reporterzinho que se dedica à pequena história mórbida e que está sempre ávido de sensacionalismo. O que é que iria sair daquela segunda intervenção de Corina?, perguntava‑se o presidente da câmara, arrepiando‑se. Provavelmente, uma imagem ainda mais negativa da sua cidade.

A conferência desenrolou‑se de maneira completamente diferente da que ele previra, tal como muitos outros. Depois de algumas palavras de apresentação de Corina, o Prof. Van Meersel, com a autoridade que títulos universitários despertam no público alemão, descreveu um interessante quadro dos últimos progressos realizados em matéria de parapsicologia, eliminando assim todas as perguntas idiotas que muitos se preparavam para fazer sobre as "mãos irradiantes" da jovem. Citou factos irrefutáveis, controlados por universidades cuja competência era mundialmente reconhecida, esforçando‑se por tornar compreensível a força misteriosa que existe em alguns de nós.

O pastor de Hellenbrand, Dechaut Wilin, não deixou de franzir as sobrancelhas. Aquele professor holandês estava a pôr em causa os milagres de Cristo. Jesus tinha‑se simplesmente servido duma bioenergia, que era um fenómeno puramente humano? Do ponto de vista da fé, isso era uma nova catástrofe.

‑ É absolutamente necessário que nos oponhamos à propagação de tais erros ‑ murmurou ao inspector Hollenbock, que estava a seu lado.

Este último escutara Van Meersel atentamente com as sobrancelhas franzidas, invadido pelo problema que se lhe levantava. Irritado, respondeu bastante secamente:

‑ As proibições por razões religiosas já não vingam na nossa época, caro pastor. É preciso opor a uma argumentação destas uma argumentação contrária. Se não me engano, não se trata apenas de negar factos irrefutáveis...

Depois da comunicação de Van Meersel, abateu‑se sobre Corina uma chuva de perguntas, quase todas respeitantes ao mesmo ponto: "Acredita que as suas mãos podem curar todas as doenças que se julgavam até hoje incuráveis?"; "Pretende poder curar a asma crónica, contra a qual a medicina actual ainda é impotente?"

Corina respondeu calmamente a todas as perguntas.

‑ Nunca tenho a certeza de poder curar antes de começar. Ao princípio, tal como o doente, limito‑me a ter esperança. Nunca prometo nada. Quando há cura é para mim quase um milagre. Aquilo de que tenho a certeza é que nunca falhei até agora.

‑ Nunca?

‑ Nunca.

‑ Como é que pode ter a certeza?

‑ Porque os doentes que me vêm ver vão a seguir ao médico e este verifica que estão curados. Se a medicina oficial atribui um valor absoluto aos seus diagnósticos quando eles são desfavoráveis, também deve estar segura daqueles que faz quando nota uma cura incompreensível, não é verdade?

Roemer, sentado ao lado de Doerinck, enterrou‑se no banco.

‑ Aqui está uma frase que é uma espécie de bofetada e que lhe vai valer um bom ataque por parte dos seus inimigos. É pena que a Corina seja alemã. Em França, Itália, Estados Unidos e também na Rússia estudar‑se‑ia apaixonadamente o fenómeno Corina Doerinck... Mas juro‑vos que Erasmus Roemer vai investir como um carneiro contra essas corporações que se recusam a abrir os olhos para olhar a verdade de frente.


A conferência de imprensa durou quase três horas. A seguir Corina meteu‑se no carro, rodeada de fotógrafos que a metralharam com os flashes até ela arrancar. O inspector aproximou‑se então de Doerinck e do círculo que formavam à sua volta: o presidente da câmara, o Dr. Hambach, Roemer e o Prof. Van Meersel.

‑ Tem um minuto para mim, doutor Doerinck?

‑ Tenho sempre tempo para si, senhor inspector.

Roemer interpôs‑se.

‑ Ah! Então o senhor é que é o inspector, o representante das autoridades pedagógicas que transformam as nossas crianças num bando de idiotas e de criminosos que me cabe a min, julgar a seguir!

‑ Como? Desculpe, quem é o senhor?

‑ Erasmus Roemer, presidente do tribunal de 10 instância de M'nster.

‑ Lamento, mas não frequento o meio do crime.

Roemer ficou um instante de boca aberta, mas como era o género de resposta que lhe agradava e que provava que o interlocutor tinha presença de espírito, limitou‑se a perguntar:

‑ Que pensa ganhar ao pôr o doutor Doerinck de licença ilimitada?

‑ Restabelecer a calma na escola. Receio que haja greve dos pais, sobretudo agora, depois desta formidável conferência de imprensa. A greve seria...

‑... a prova de que a sua política escolar anda sem rumo. O nosso nível escolar é inferior ao das boas escolas das missões africanas. As jovens gerações já nem sequer falam convenientemente a língua materna. A ortografia e a gramática são criadas a um arbitrário primitivismo. O vocabulário está reduzido a mais ou menos trezentas palavras, entre as quais se contam cinquenta onomatopeias! Não venham dizer‑me que é a mesma coisa na Europa toda. Isso não me consola: à força de guerras internas e de cobardia moral, os povos europeus são hoje constituídos por gente meio imbecil orgulhosa da sua idiotice. Disso é que o senhor inspector se devia ocupar e não do que ultrapassa, e muito bem, a nossa ciência actual do Universo, que ainda não conseguimos compreender.

Durante a diatribe de Roemer, os olhinhos de Hollenbock tinham‑se encolhido ainda mais.

‑ Vá mas é repetir esse discurso aos ministros de Dusseldórfia e de Bona ‑ disse finalmente. ‑ É desses ministérios que eu recebo ordens e deles não sou mais do que um órgão de execução. E o senhor, tem alguma influência sobre o novo código penal? Os políticos que mandam em mim preparam‑se sem si e mesmo contra si, tendo como principal preocupação a protecção dos criminosos. Se um dia tiver de julgar um terrorista célebre e receber cartas anónimas em que ameaçam a sua mulher e os seus filhos, e caso ouse punir esse assassino como ele merece, que fará?

‑ Nunca ninguém me ameaçou nem nunca ousará fazê‑lo. A minha reputação de severidade protege‑me: toda a gente sabe que bastaria exercerem sobre mim qualquer tentativa de Pressão para que eu aplique a lei com um rigor ainda mais implacável.

Hollenbock mediu o gigante dos pés à cabeça, impressionado.

‑ Está bem. Mas é com o doutor Doerinck que eu quero falar e não consigo. Permite que nos retiremos um instante?

Quando se afastou com Doerinck, o inspector começou a limpar a testa com o lenço. De súbito, voltou a pôr a cara jovial que tanto contribuíra para o seu êxito na carreira.


‑ O discurso do professor holandês foi uma obra‑prima, uma abordagem científica de que, devo confessar, só compreendi um quarto, senão menos... A conclusão a que chego com isto tudo é que Corina Doerinck está prestes a tornar‑se numa celebridade internacional ou como uma maravilhosa rapariga benfeitora da humanidade ou como uma bruxa! Sendo actualmente a mentalidade do nosso povo o que é, inclino‑me mais, infelizmente, para a acusação de bruxaria. Por isso, Doerinck, receba o conselho dum colega: faça qualquer coisa para evitar um drama que lhe seria prejudicial, assim como à sua família. Não lhe posso dizer mais. No que toca à sua licença, defenderei a sua causa junto do governo: não vai ser fácil por se tratar dum caso sem precedentes.

‑ Então, inclina‑se diante de alguns pais demasiado zelosos.

‑ Não! ‑ A cara do inspector voltara a ter uma expressão muito grave. ‑ Não. O reitor Hupp continua a receber telefonemas: são apenas alguns pais, como você diz, mas já são cerca de trinta e estão decididos a manterem os filhos em casa e, dos seus protestos, transparecem velhas histórias e velhos ódios: a sua mulher, a mulher do vice‑reitor é russa!

‑ Quem diria que vivi aqui vinte e seis anos! No fundo, talvez devesse ter escutado os Russos e ficado em Poti, lá no mar Negro. Pensei nisso, mas como era preciso desertar, isto é, abandonar os meus camaradas...

‑ Evidentemente, teria sido nojento. Era o oficial e os seus homens tinham confiança em si, não é? ‑ Estendeu a mão a Doerinck. ‑ Perdoe, mas também eu tenho de fazer o meu dever. Prometo defender a sua causa o melhor possível, pois, como lhe disse, trata‑se dum caso sem precedentes. Não serei eu a tomar a decisão, mas compreenda bem uma coisa: uma greve de pais não pode acontecer sem ter graves consequências...

Logo no dia seguinte, de manhã, após três horas de trabalho, erguia‑se a tenda no local da granja.

Era uma bela tenda rectangular com uma espessa porta de madeira, cuja ombreira era feita de sólidas pranchas. O Outono aproximava‑se e seria preciso passar também o Inverno. Com a ajuda do soalho levantado e de quatro radiadores eléctricos, a temperatura interior seria suportável.

Quando deu a assinar o contrato de aluguer dum mês, o director da empresa, que também se ocupava da montagem, tinha‑se desculpado por o montante do seguro ser elevado.

‑ Toda a gente sabe quem é e ainda está impressionada com o incêndio, não é? Não posso fazer nada...

A arrumação interior durou todo o dia. Tabiques amovíveis dividiriam o espaço num atelier, num quarto para Marius Herbert e Molly, numa sala de exposição e numa pequena sala de espera. Também se arranjou uma casa de banho. De tarde, durante uma pausa em que Corina estava sozinha com Marius Herbert, este perguntou‑lhe bruscamente:

- E ainda falta construir a casa. Mesmo começando imediatamente, só ficará pronta dentro dum ano. Tem dinheiro que chegue?

‑ Não. Só algumas economias que devem chegar para as obras mais importantes. A seguir terei de pedir um empréstimo ao banco. E hipotecarei o terreno, que é meu.


Com ar subitamente muito cansado, Marius, sentado numa cadeira, bebia uma pequena garrafa de cerveja. No interior da tenda, o odor a madeira fresca e a tela nova misturavam‑se com um vago cheiro a queimado. Abanou repentinamente a cabeça.

‑ Que porcaria de vida! Se ao menos a pudesse ajudar.

- Mas pode, Marius.

‑ Fazendo discursos absurdos?

‑ Pintando.

‑ O quê? O sino de Hellenbrand? O Sol por cima dum campo de trigo?

. ‑ Porque não? Chagall pintou a Torre Eiffel, flores numa jarra e artistas num circo. E não se esqueça dos campos de trigo de Van Gogh.

‑ Chagall, Van Gogh! Mas nem sequer sou digno de lhes lavar os pincéis!

‑ Pelo contrário, tem de dizer constantemente para consigo mesmo, aliás como sonha frequentemente fazer, que ao lado de Chagall, Van Gogh e Picasso haverá um dia um Marius Ilerbert. Um artista diferente, mas tão original e com a mesma estatura que eles!...

‑ E diz‑me isso assim numa tenda vazia, numa altura em que levo uma vida tal que me contento com a segurança de ter uma cama para partilhar com a Molly e em pensar que isso vai durar uma semana, eventualmente quinze dias, enquanto você me aturar. Isso enche‑me duma louca alegria!

‑ Pois então pinte essa louca alegria.

‑ Uma orgia de cores, é?

‑ Formidável!

‑ E quem comprará uma tal porcaria?

‑ Espere!

Aproximara‑se dele por trás e, como ele dava uma volta à cabeça para poder seguir os seus movimentos, viu‑a de repente numa perspectiva estranha: o rosto extremamente longínquo, com os olhos, o fino nariz, o desenho dos lábios quase sem cor e, muito perto, exactamente por cima dele, os seios, cujos bicos se espetavam sob um pulóver de lã fina. Um estremecimento percorreu‑lhe o corpo. Estenderia as mãos na direcção do peito daquela mulher? Mas como os olhos dela o fixavam, soube de súbito que lhe era impossível mexer‑se, levantar as mãos ou mexer os dedos... só lhe restava respirar calmamente e mergulhar naqueles olhos para neles se dissolver. E ouvia a voz dela.

‑ Tu és Marius Herbert. Podes pintar como Chagall, Van Gogh e todos os grandes mestres que te precederam. O mundo é uma embriaguez de cores e tu pintá‑lo‑ás, pintá‑lo‑ás como só Marius Herbert o vê. És um grande pintor... um grande pintor.

A fadiga que o invadia era tal que nem sequer sentia a cabeça a oscilar para trás e a entrar nela como num ninho. Tinha apenas a impressão de mergulhar cada vez mais profundamente no sono. Nem sequer sentiu as mãos que se lhe pousavam nas têmporas e que descarregavam nele uma onda repleta de energia, descendo a seguir até ao sítio onde deviam começar a batalha contra o mal que o corroía...

Aquilo durou só cinco minutos, mas ela ficou exausta e fumou avidamente, engolindo o fumo de dois cigarros de seguida, com o rosto alterado. Na cabeça ressoavam‑lhe confusamente tudo o que pudera ler durante aqueles últimos anos sobre a força que nela existia.


"Consegui?", interrogava‑se. "Será que tenho em mim o género de força de que falam os professores soviéticos Leonid L. Vassiliev, na Investigação Experimental sobre a Sugestão Mental, e VIadimir Raikov, que conseguiu utilizar a sugestão mental para influenciar os espíritos e neles libertar talentos adormecidos ou em potência, mobilizando a sua criatividade. Alguns estudantes do seu Instituto de Moscovo puseram‑se a pintar como Rafael e Van Gogh depois de terem voluntariamente recebido as sugestões mentais adequadas. No Conservatório de Moscovo houve alunos que, sem terem a experiência necessária à abordagem da técnica avançada do piano, se tornaram imediatamente virtuosos do teclado. Para isso bastara que Raikov lhes sugerisse que fossem outros Chopin, Ritcher ou Rubinstein..."

O mais estranho nestes progressos fulminantes é a sua persistência: os alunos, posteriormente às sessões de sugestão do professor Raikov, não voltavam nunca ao nível da experiência anterior. As faculdades e os talentos revelados pela sugestão continuavam a evoluir dentro do quadro das capacidades naturais de cada um, mas sempre ao nível superior a que a sugestão lhes permitia elevar‑se. Assim, aqueles jovens tornavam‑se bons pintores e pianistas conhecidos. O Prof. Raikov, para explicar o fenómeno, deu‑lhe um nome: a "identificação". Este processo permite a qualquer estudante elevar‑se tão alto quanto puder em direcção ao nível do modelo que escolheu livremente. Só terá de se expandir na sua própria direcção, mas ao mais alto nível de que for capaz.

E, portanto, no país onde durante mais de meio século se defendeu o materialismo absoluto que hoje se reconhece, com o maior rigor científico, a primazia do espírito. Os cientistas soviéticos, depois de terem atingido o impasse materialista, estão a redescobrir a quarta dimensão da consciência humana, que é a mesma que verificaram outrora os grandes cientistas da velha China, do Japão, do Tibete, da índia, os filósofos da Grécia antiga, 'os alquimistas da Idade Média e os xamãs dos Povos primitivos. Foi a esta realidade, que ultrapassa o tempo e O espaço, que o psicanalista suíço Cari Gustav Jung chamou O "inconsciente colectivo". Contém todo o tesouro da experiência humana ou, tal como Platão a exprimiu, a Ideia imortal sempre presente. É a força invisível à qual ainda só têm acesso, sob nomes diversos, alguns privilegiados.

Outro cientista soviético, desconhecido dos cientistas pretensiosos do nosso ocidente, é o Prof. Venjamine Puchkine, membro da Academia das Ciências da URSS de Moscovo. Na sua obra Experiências de Heurística defende a teoria segundo a qual é possível juntar toda a ciência humana numa espécie de enciclopédia geral, que seria como que uma memória universal de que o homem se serviria como de um computador...

Corina acabou o seu segundo cigarro. Pouco a pouco despertou do seu estranho torpor. Marius Herbert, com a cabeça inclinada para trás, rígido naquela postura pouco natural, com os olhos ainda fechados, respirava lenta e calmamente. Iria levantar‑se e começar a pintar, como acontecia nas experiências russas em que a criatividade jorrava com a potência e a brusquidão duma explosão vulcânica? Corina olhava‑o' duvidando do que lera e ainda mais de si mesma. Precisava de uma certeza. Fazendo um esforço, conseguiu levantar‑se e ir para junto dele para voltar a pôr entre as palmas das mãos as têmporas cavadas do jovem pintor, dizendo‑lhe docemente:


‑ Viste um mundo cheio de cores em que mergulhaste. Agarra nesse mundo e trá‑lo contigo! Olha, lança um olhar à tua volta: esse mundo é também teu a partir de agora. E sê‑lo‑á sempre!

Lentamente, Marius Herbert abre os olhos e recupera a consciência: por cima dele, estão os seios que o perturbaram e, por cima destes, os seus olhos extraordinários, estrelados com pontos de ouro.

Sorri fracamente, endireita‑se e volta a cair. Os braços pendem‑lhe para trás, as mãos tocam as ancas da mulher, agarram‑se a elas, e a sua cabeça volta a encontrar aquele corpo, o lugar que tinha quando o sono se apoderou dele e que esqueceu. Corina não o afasta, pelo contrário, põe‑se a acariciar docemente, com a mão esquerda, a cabeça inclinada na sua direcção.

‑ É horrível estar tão cansado! Pus‑me mesmo na sorna, hem?

‑ Se é que é a expressão acertada... ‑ respondeu ela a sorrir.

‑ Até sonhei. Um sonho absurdo! Encontrava‑me em qualquer parte do Sul da França, mas noutro século. As mulheres tinham vestidos compridos e os homens uns casacos esquisitos. Encontrava‑me numa vinha a pintar um cacho de uvas e, no interior do cacho, um rosto de mulher, um sol dourado e uma paisagem que se perdia ao longe. Uma visão da beleza do mundo num cacho de uvas... Era extraordinário e magnífico!

‑ É o que vais pintar! ‑ Deu um passo para trás para se libertar e ele teve repentinamente a impressão de ter frio e de estar abandonado. ‑ Onde está o teu material de pintor?

‑ Em M'nster, em casa dum amigo. Um velho cavalete, uma velhíssima caixa toda amassada com tintas de óleo e dois ou três pincéis bem usados... Há muito tempo que não pinto na tela. É demasiado caro para mim. Ultimamente utilizei sempre madeira e papel de esboços.

‑ Vais meter‑te no meu carro e ir imediatamente a M'nster. ‑ Tirou duas notas do bolso do casaco e pô‑las à força na mão de Marius. ‑ Compra tudo o que precisares para pintares o que viste no teu sonho.

‑ Mas são duzentos marcos...

‑ Vai depressa!

O som, o tom da voz dela agem sobre ele como se fosse um golpe de chicote. Fica de pé, apanha a chave que ela lhe atira em pleno voo e sai da tenda. Molly, deitada no chão, assistiu dormitando a tudo o que se passou entre eles. Vendo o dono partir precipitadamente, soergueu‑se para o seguir com um olhar interrogativo. A seguir, dando um profundo suspiro, volta a deitar‑se de barriga para baixo com a cabeça entre as duas patas da frente, já com os olhos semifechados fixos melancolicamente em Corina.

Era a primeira vez que não seguia o dono.

 

No dia seguinte, foi o princípio da avalancha. Tudo o que o grupo que se concentrava à volta de Corina Doerinck tinha esperado e receado simultaneamente, caiu de repente sobre eles.


Os diários estavam cheios de resumos e de artigos contraditórios, conforme o temperamento do repórter ou a tendência do jornal, e o mesmo acontecia com os comentários das numerosas fotografias. Na televisão, cada cadeia apresentou o seu programa particular sobre a jovem curandeira das "mãos irradiantes". Em que é que se devia acreditar? Na rádio houve uma sondagem a partir da pergunta "Que pensa das curas milagrosas?" que deu origem a respostas completamente inesperadas: para trinta e dois por cento, tratava‑se de histórias idiotas, dezasseis por cento não tinham opinião e mais de cinquenta e dois por cento achavam que as curas ditas "milagrosas" eram possíveis. O quê? Numa Alemanha evoluída do ponto de vista técnico e médico, mais de metade da população ainda acreditava em curas impossíveis por outros meios, isto é, milagrosas! Era incrível!

 

Erasmus Roemer continuava como hóspede do Dr. Hambach. Recebia todos os dias, durante três minutos, tratamento de Corina, entrando e saindo pela porta das traseiras e passando o resto do dia a preservar de Elise, a mulher, aquilo a que chamava o seu "espaço vital". Obedecendo à sugestão do Prof. Willbreit, ela voltara da Hungria e fazia um cerco à casa do Dr. Hambach sem obter sucesso. Com ar contrito, Hambach tinha tido de a dissuadir de entrar em casa dele.

‑ Peço‑lhe desculpa, minha senhora, mas o seu marido prometeu fazer em bocados a minha mobília se a autorizasse a entrar. Não passo dum velho médico de aldeia e gostaria de passar o resto do pouco tempo de vida que me resta no meio dos móveis a que estou habituado... Conhece o seu marido: é capaz de executar a ameaça.

‑ Mas ainda tem forças para isso? Como é que ainda pode, com tão terrível doença? ‑ gaguejava Elise Roemer.

O Dr. Hambach não conseguira deixar de sorrir.

‑ O seu marido tem uma força de mamute. Quanto à doença, é preciso esperar. Ainda não se pode dizer nada: mas objectivamente parece estar melhor.

‑ Melhor? Com o tratamento dessa curandeira? Meu Deus!

Desmanchou‑se em lágrimas. Tinha um ar tão infeliz e tão frágil que o Dr. Hambach, apesar das repetidas advertências de Roemer sobre o poder que ela exercia sobre ele quando chorava, sentiu‑se comovido.

‑ Agora já conheces a razão da minha fraqueza, Ewald ‑ disse‑lhe Roemer, que o esperava. ‑ Sabes, antigamente ela era uma rapariga deliciosa e impressionou‑me. Era um pouco parva, mas bonita. E chorava tão bem! E o papá fabricante pusera milhões aos seus pés. Resumindo, disse para comigo: aqui está uma bela rapariga, rica, dócil e estúpida. Vou ter uma bela vida! Ora, quando se vive com uma mulher, perde‑se de vista os milhões que ela possui quando ela julga que Alexandre, o Grande, é a marca de um produto que faz crescer (Alexandre, o Grande, não é?), e que Xerxes é a marca verdadeiramente difícil de pronunciar, dum verniz para as unhas. Com o tempo, torna‑se insuportável. E depois tem a mania snob de falar inglês em alemão, os five o'clock teas, Os golf‑parties, os cocktails‑parties, os tenis‑parties, uma gala aqui, uma gala acolá, um evening em casa de uns, um lunch em casa de outros, uma season na Côte d'Azur, outra season nas Antilhas... É incrível o número de seasons que ela arranja: não ficava nem uma para mim! E tem uma conversa que se adapta a todas as paisagens: o azul é sempre de safira, o vermelho de rubi e o verde de esmeralda! Ai, Ewald, meu caro doutor, como se está bem em tua casa! Que calma! Aviso‑te, Ewald, se a deixares entrar dou cabo de tudo aqui em casa, palavra de honra!


A reconstrução da nova casa no mesmo sítio da granja só começaria na Primavera: não se podia ir mais longe para fazer o projecto e obter a seguir as autorizações necessárias. As firmas nunca têm pressa. Sob a tenda, no espaço arranjado para o quarto de Marius e de Molly, o sonho de Marius tinha logo renascido no cavalete: era um universo de beleza num cacho de uvas.

Foi um quadro estranho e maravilhoso. Tão maravilhoso e estranho como a embriaguez que se apoderou de Marius Herbert durante as longas horas que passou a pintar. A Corina acontecia‑lhe sentar‑se atrás dele, com as mãos cruzadas, para assistir à organização daquela desordem aparente numa ordem suprema. Uma vez, no ímpeto do seu entusiasmo, Marius, voltando‑se, quisera tomá‑la nos braços. Ela tinha‑se libertado imediatamente e, estupefacto, vira‑a fugir como um animal que estivesse a ser perseguido. Tivera a impressão de que uma erupção de lava ardente explodira nos olhos negros da rapariga.

Entretanto, os doentes afluíam de todos os lados. De toda a Alemanha Federal tinham sido organizadas, por astuciosos empresários de transportes, verdadeiras peregrinações a Hellenbrand. Em Coesféld, a primeira cidade da região, fora aberto um centro de peregrinos e em M'nster uma oficina onde se tentava reparar os carros dos que vinham em busca da cura junto da jovem das mãos irradiantes. Se bem que Corina não lhes cobrasse dinheiro, os doentes gastavam fortunas em meios de transporte e na estada.

O presidente da câmara, impotente, abandonara a luta. A Polícia local tivera, no entanto, de destacar dois agentes para dirigirem o acesso dos carros à "Tenda Milagrosa". às aulas de Doerinck continuavam a faltar cerca de trinta alunos. O Dr. Fritz Kroluneyer, director dos Serviços de Higiene do bairro não se apressava a intervir, apesar da insistência da Ordem' dos Médicos. Desde o primeiro encontro com o procurador que se apercebera de que não seria nada fácil resolver um problema daqueles. Até à data não parecia que Corina Doerinck tivesse dado azo a acusações justificadas. Os doentes iam ter com ela voluntariamente, ela não fazia nenhuma forma de publicidade e não aceitava qualquer remuneração em troca dos tratamentos que dispensava.

Das nove ao meio‑dia, recebia os doentes, que se comprimiam na parte da tenda que fora transformada em sala de espera. Contava três minutos para cada doente, mais o tempo de fumar um ou dois cigarros e de recuperar forças. Ao meio‑dia em ponto, Marius Herbert fechava a pesada porta de madeira atrás do último doente e deparava‑se‑lhe então o espectáculo de uma Corina exausta, de olhos encovados e envoltos numa mancha azulada.

‑ Não vais aguentar! É uma loucura! ‑ dizia ele levantando os ombros enquanto lhe preparava uma mistura de aguardente branca de cana‑de‑açúcar, xarope de groselha, licor de laranja amarga e gelo picado.

A tarde, Corina não aparecia.

Três semanas após a montagem da tenda, num domingo de Outono, apareceu em Hellenbrand uma mulher cujo ódio em relação a Corina Doerinck se ia mostrar duma violência irracional, simultaneamente terrível e eficaz: era Marikje Kerselaar, a curandeira holandesa de que tinha falado o Prof. Van Meersel. Apesar das semelhanças do destino de ambos, e talvez por causa destas, ele sempre receara aquele choque.


O Prof. Pieter Van Meersel voltara há cinco dias para a Holanda, de maneira que ninguém conseguiu pôr Corina de sobreaviso contra as consequências da chegada de Marikje Kerselaar. O professor tinha passado as suas últimas semanas em Hellenbrand a fotografar, a filmar e a entrevistar os doentes. Estava convencido de que o caso de Corina Doerinck era excepcional. A bioenergia que irradiava das suas mãos continuava a ser inexplicável no quadro da medicina oficial. A cura de uma prostatite, de uma obstrução da uretra e de uma gastrite aguda, por exemplo, conseguida por simples gestos executados à distância do corpo do doente, tinha algo de anticientífico e de milagre. Evidentemente, a medicina continuava a falar de fenómenos histéricos, mas a paragem da proliferação das células de um cancro, a sua secagem progressiva e o seu desaparecimento final levantavam questões tão perturbantes que era preferível negar os factos, pura e simplesmente. Estas curas, confirmadas por radiografias cuja autenticidade era inegável, iam fazer da próxima publicação de Van Meersel um monumento à glória de Corina, aquela "Eleita de Deus", como lhe chamara ao despedir‑se dela. Perante a onda crescente de doentes, um diário de importância nacional dera ao seu artigo de 1.a página um título espectacular:

HELLENBRAND, A NOVA LOURDES ALEMÃ?

Marikje Kerselaar desceu em Havixbeck, arranjou quarto no albergue Wasserburg, sentou‑se alguns minutos na cama para acalmar uma enxaqueca persistente com três copos de genebra e a seguir pôs‑se a caminho de Hellenbrand. Era um domingo e cerca das onze horas da manhã. Diante da tenda, no parque de estacionamento recentemente organizado, pairava uma atmosfera de quermesse; o odor das salsichas e da carne assada misturava‑se ao da cerveja. Vários conselheiros municipais tinham sido os primeiros a prever o bom negócio e, consequentemente, não tinham podido recusar a seguir aos outros comerciantes a autorização para aproveitar, cada um à sua maneira, do maná que era o afluxo de peregrinos.

Diante da grande tenda com espessa porta de madeira estavam três ambulâncias estacionadas com prioridade, cada uma trazendo um doente deitado na maca. Desde o princípio que Marius Herbert tivera de atribuir a cada doente um número de ordem para evitar discussões e conflitos. Os doentes acatavam sem problemas esta disciplina e esperavam pacientemente a sua vez, mesmo quando só deviam ser recebidos no dia seguinte.

Marikie Kerselaar observou durante alguns minutos aquele extraordinário espectáculo. Era uma mulher de estatura média, nos cinquenta, de cabelo pintado e encaracolado à africana. O nariz abatatado, os olhos cinzentos com olhar astuto, o duplo queixo, as pernas grossas e um pouco tortas não faziam dela nenhuma rainha de beleza e, desse ponto de vista, não tinha absolutamente nada em comum com Corina Doerinck. Mas era conhecida como curandeira na Holanda. Não se contentava com uma simples imposição das mãos, vendendo também aos doentes uma mistura misteriosa, magnetizada por ela e que cheirava a mentol e a alcaçuz. Podia ser utilizada em poção contra a tosse persistente, as perturbações da menstruação e da menopausa, a celulite, a impotência nervosa e tanto para a frigidez como para a ninfomania. A sua grande especialidade era o tratamento das verrugas que secavam, caíam e nunca mais voltavam.


Começou a misturar‑se com os doentes, ouvindo‑os discorrer e comparar os seus males e assim recolhendo uma massa de informações sobre Corina por doentes já encantados com os seus tratamentos. Observou também a diferença que existia entre estes e os seus próprios pacientes, que muitas vezes diziam em voz alta que nunca mais voltariam.

Viu de repente um grupo de holandeses que conhecia afastar‑se dela. Ferida no seu orgulho, ultrapassou o embaraço e decidiu ir direita a eles. Notando até que ponto a sua aparição os incomodava, sentiu uma alegria sádica que dificilmente conseguiu dissimular.

‑ Lindo dia! ‑ disse.

O seu tom era amigável, mas mesmo assim cada um dos seus pacientes teve a impressão de receber uma bofetada. Estava ali uma asmática crónica, uma mulher que sofria duma inflamação dos ovários, dois casos de artrite e até Mijnherr Van Beveren, o banqueiro que só tinha ido a casa dela já de noite, escondendo‑se, e que aqui se mostrava a todos, sentado a uma mesa de campismo a comer uma fatia de pão com queijo e a beber cerveja Anistel.

‑ Que encontro inesperado ‑ disse ela o mais amavelmente que conseguiu.

‑ Também está aqui!?

Era um certo Ludwig Linzer que fora a casa dela durante um ano sem que ela conseguisse fazê‑lo melhorar da ciática de que sofria. Ela nunca o suportara, pois ele lembrava‑lhe sem cessar o número de florins que ele já lhe tinha dado sem que as suas dores diminuíssem.

Corina continuava a tratar gratuitamente os que apareciam, mas não podia recusar as notas que os doentes, reconhecidos, deixavam em cima da mesa quando partiam. Marius Herbert anunciava diariamente os resultados: "Hoje, quinhentos e dezassete marcos... hoje, mil cento e cinquenta e seis marcos... Se isto continuar, vais poder em breve financiar tu mesma a construção da nova casa... "

Mas, de cada vez, Corina interrompia‑o secamente.

‑ Faz bem as contas e guarda o dinheiro! Ai de ti se tocares num só desses marcos.

No grupo dos holandeses, Ludwig Linzer, grande fabricante de tapetes, fora o primeiro a fazer frente a Marikie Kerselaar, ao passo que os outros orientavam o olhar para os carros estacionados, como se ela os tivesse surpreendido em plena conspiração. De facto, só se tinham reunido por serem todos holandeses.

‑ Sabia que os ia encontrar aqui. Só queria verificar que cá estavam...

Seria que pretendia convencê‑los da sua clarividência com aquela observação? Ludwig Leinzer, interrompeu‑a logo.

‑ Não será antes porque veio ver se aprendia com a concorrência? Aliás, não podemos deixar de a aconselhar a fazê‑lo!

Mijnherr Van Beveren, o banqueiro, sucedeu‑lhe depois de ter aclarado a garganta, tossindo.

‑ Você foi incapaz de me ajudar, Marikje. Fui vê‑la dez vezes de seguida depois do meu ataque cerebral... e melhoras, nada. Depois de três sessões, com três dias de intervalo, noto uma diminuição da pressão na cabeça e sinto‑me muito melhor.


‑ E o mesmo se passa com a minha ciática. Veja só: consigo aguentar‑me numa perna só, na perna que tanto me fazia sofrer. Ela é mesmo fantástica, não acham? E tudo gratuito, sem ter de gastar um só florim!

Só restava a Marikje Kerselaar afastar‑se. Acabava de nascer nela uma ideia monstruosa. "É ela ou eu", pensou, impelida por uma verdadeira loucura.

Deu consigo diante da tenda, no meio dos que acabavam de chegar. Ao receber de Marius o seu número, apertou os maxilares.

‑ Quanto tempo é que vou ter de esperar?

‑ Será certamente vista amanhã. Não é um caso urgente, Pois não? ‑ acrescentou ele, depois de ter medido a silhueta robusta que tinha perante si.

‑ Então você também distingue as doenças só com um lance de olhos? Se eu fosse um esqueleto ambulante, talvez não necessitasse da sua Corina...

Perante o olhar fixo da desconhecida, protegido atrás dos óculos, Marius sentiu‑se incomodado. Ainda hesitou um instante antes de dizer:

‑ Espere aqui. Vou ver o que posso fazer...

Marijke Kerselaar, de pé diante da espessa porta de madeira, olhou para a multidão com um sorriso satisfeito. O polícia que se encontrava perto dela desviou o olhar. Estava farto de estar de serviço para vigiar todos aqueles semiloucos que acreditavam conseguir curar‑se das suas doenças deixando‑se "irradiar", como diziam os jornalistas! Porque é que as autoridades não punham fim àquela farsa? De que apoios secretos é que beneficiava aquela bruxa?

Marius Herbert apareceu e fez sinal à holandesa para entrar. Como os enfermeiros da primeira ambulância já estavam a levantar o doente, dirigiu‑se a eles.

‑ Só cinco minutos...

Marikje Kerselaar atravessou primeiro a sala de espera onde só havia algumas cadeiras e uma mesa com alguns jornais. Estava aberta uma porta numa das divisórias e ela ouviu Marius dizer:

‑ Então então... Não tenha medo.

‑ Eu, medo?

Aquilo ressoou como um grito de guerra e, com a cabeça enterrada nos ombros, Marikje precipitou‑se literalmente para a frente.

Corina, sentada numa poltrona de madeira e fumando um cigarro, apareceu‑lhe exactamente como no ecrã da televisão ou nas fotografias das reportagens: trazia um vestido muito simples, cinzento‑claro, com um bordado em cada ombro, e era duma beleza impressionante, como um ser vindo do outro mundo, o que fez aumentar ao máximo o ódio da holandesa. Ora aí está o segredo desta rapariga: atrai os homens, fascina as mulheres e todos estes imbecis acreditam que, quando ela estende as mãos, lhe passa pela ponta dos dedos uma força desconhecida...

‑ O Marius disse‑me que estava muito doente. Onde é que lhe dói?

‑ No corpo todo.

A cara da holandesa tinha‑se tornado insondável. "Vou dar‑lhe uma resposta que a desconcerte", pensou. "Podes deitar‑te a adivinhar e tentar safar‑te com algumas frases que dão para tudo. Mas a mim não consegues enganar... "


Os seus olhares cruzaram‑se como se fossem espadas. Mas Corina já estava junto dela. As suas mãos deslizavam lentamente a dez centímetros do corpo da holandesa, paravam e a seguir continuavam logo. Os seus olhos fecharam‑se de repente, toda a sua cara se crispou, as maçãs do rosto pareceram esticar‑lhe a pele e apareceram‑lhe gotas de suor na testa e nas abas do nariz. Sem querer, Marikje ficou estupefacta. Que actriz!, pensou com algum respeito. Naturalmente, agarra as pessoas pelo coração. De novo, todo o seu ser foi inundado pelo ciúme e pelo ódio.

As mãos de Corina voltaram a tombar lentamente, mas ainda ficou muito tempo de pé com os olhos fechados e a cara repleta de suor. Que momento inesquecível, pensou Marikje. Como é que consegue?

‑ Dói‑lhe certamente o esterno e as costelas...

Por trás dos óculos de armação dourada, os olhos da holandesa tornaram‑se maiores.

‑... e também lhe dói a cabeça como se lhe estivessem a apertar...

Marikje Kerselaar quis sorrir.

‑ Tenho enxaquecas como quase todas as mulheres.

‑ Não. ‑ Corina, com a cabeça baixa, limpava a testa e a cara. As suas mãos tremiam de tal maneira que dificilmente conseguia tirar um cigarro do pacote e acendê‑lo. Depois de ter aspirado o fumo avidamente, por várias vezes, sentiu‑se incapaz de continuar a falar. ‑ Não posso fazer nada por si. Mas vá imediatamente a um hospital ou a uma clínica de nomeada internacional. Aconselho‑lhe Erlangen, Friburgo ou Munique.

‑ O que é que isso significa?

A voz da holandesa traía o seu furor, mas também um grande medo.

‑ Que está doente, muito doente...

‑ E consegue ver isso com as mãos, de olhos fechados? ‑ A holandesa desatara a rir com um riso de demente. ‑ Um diagnóstico à vista desarmada feito com os olhos fechados! Quando para cá vinha já sabia que podia esperar tudo, mas nunca uma coisa destas!

Corina tinha‑se servido duma chávena de chá frio e, sem responder, com os olhos fixos naquela visitante cujo comportamento cada vez lhe parecia mais estranho, bebia lentamente, a pequenos goles...

‑ Eu não estou doente! ‑ gritou Marikje de repente. ‑ Só queria observar pessoalmente o que aqui faz e o que é realmente! Anuncia às pessoas que têm doenças e quando os xamãs mostram que não têm nada, gaba‑se de as ter curado! Parabéns por esta comédia, mas comigo não pega...

‑ Ainda não sente nada ou quase nada. Mas traz em si a morte. Sou clara? Todas as dores que sente não são enxaquecas nem os efeitos duma artrose. É exactamente o contrário. A substância celular dos seus ossos está atingida. Não perca tempo! Faça‑se hospitalizar. Previna os médicos de que tem um mieloma múltiplo. Fixe bem este nome: mieloma.

‑ Mieloma... Vão chamar‑me louca!

‑ Talvez se riam ao princípio, mas depressa assumirão um ar de gravidade.


‑ Ah, porque você nunca se engana, não é? É a mulher mais desavergonhada que eu já vi. Toda a gente acredita em si, mas eu cá, não! ‑ Com a cabeça inclinada para trás como uma víbora pronta a lançar o seu veneno e com os olhos brilhantes de ódio, não podia já deixar de maldizer nem de insultar. ‑ Sabe bem a que ponto é perigosa: provoca o desespero das pessoas quando não as pode embalar com falsas esperanças. Não é uma santa, você. O que é, é um demónio fêmea! Sei‑o agora.

Ao sair lançou desdenhosamente uma moeda dum marco para cima da mesa onde se encontravam notas.

‑ Não vale mais ‑ lançou a Marius, quando passou diante dele.

Ele foi imediatamente ao encontro de Corina, que continuava a fumar de pé, diante da mesa.

‑ O que é que se passou? Saiu a correr como se tivesse fogo no rabo...

‑ Como é que ela se chama?

‑ Não sei. Disseste‑me para não insistir quando as pessoas se recusassem a dizer o nome.

‑ Nesse caso, é pena. Vai morrer num sofrimento atroz. O mieloma múltiplo que ataca os ossos é incurável. Quase não se consegue atenuar as dores que provoca... Vai atrás dela, Marius! Insiste para que se faça hospitalizar e examinar.

Mas Marikje Kerselaar tinha desaparecido no meio da multidão de doentes. Quando Marius Herbert voltou, já Corina estava ajoelhada perto duma rapariguinha, deitada numa maca, cujos grandes olhos imploradores esperavam um milagre. Também naquele caso, Corina ficou impotente: a leucemia estava demasiado avançada. O que é que podia dizer, Visto não poder fazer nada? De cada vez, vivia minutos intoleráveis em que sentia amargamente a sua total impotência.

Sem ruído, Marius Herbert voltou a sair. Quando Corina falava docemente a um doente em vez de o tratar, ele sabia o que se passava. Raros são os grandes doentes aos quais se pode dizer a verdade e Corina não o ignorava.

A confiança que alguns tinham nela raiava a superstição. Na semana precedente, uma família da Baviera tinha erguido um altar diante da tenda e celebrado três serviços religiosos por dia em intenção do pai moribundo. A televisão, evidentemente, filmara os encontros daquela pobre gente com o prelado que viera especialmente de M'nster e acabara finalmente por convencê‑los de que aquilo era superstição, paganismo, e não religião...

Ao meio‑dia, Marius fechou a porta, esperou um pouco que os doentes partissem para ir buscar o carro em que Corina entrou a correr para ir almoçar, como fazia todos os dias, a casa dos pais.

Nem ela nem Marius repararam no carro de matrícula holandesa que parou atrás deles numa rua adjacente. Tremendo de raiva e de ódio, Marikje Kerselaar viu‑os entrar no jardim onde os esperava Stefan Doerinck. Com os punhos cerrados, seguiu‑os com o olhar enquanto eles desapareciam no interior.

‑ Criatura ignóbil! Queres destruir‑me fazendo‑me crer que sofro duma doença mortal... Seu demónio fêmea, serei eu quem te destruirá!

A tarde daquele dia trouxe ao pequeno grupo de defensores de Corina toda a espécie de contrariedades.

Primeiro, Elise Roemer conseguiu apanhar o marido quando este se esquivava da casa do Dr. Hambach pela porta das traseiras. Atirou‑se‑lhe literalmente ao pescoço e nele se suspendeu como uma gata, chorando com grandes soluços.

‑ Porque é que me tratas assim, meu amor? Sê razoável! Volta! Só quero que te cures. Essa Corina vai matar‑te! Porque é que não confias no teu amigo Willbreit?


à noite, em casa de Stefan Doerinck, Erasmus Roemer contaria a cena da maneira que lhe era peculiar.

‑ E salta‑me logo ao pescoço como se eu fosse um negro a sair da floresta virgem, completamente nu, e com um sexo gigantesco pronto a funcionar: mas eu cá pus o meu ar mais digno: "Engana‑se no objecto, minha senhora. Não sou o seu barão húngaro nem o urso que procura em vão há tanto tempo..." Respondeu‑me: "ó meu amor, morro de desgosto por tua causa! Ninguém consegue compreender‑te", etc. Então, respondi‑lhe: "Minha senhora, as pessoas podem dizer o que quiserem. Nada já me interessa. Tenho a intenção de me reformar antecipadamente. Vai ser uma catástrofe para si, visto já não poder dizer: sou a esposa do presidente do tribunal de 1.a instância!" Foi então que fugiu como se eu já fosse um cadáver em putrefacção.

O Dr. Hambach também tinha uma grande novidade a comunicar. O Prof. Willbreit tinha telefonado.

‑ É só para lhe dar uma informação, caro confrade: o sindicato profissional dos médicos apresentou queixa contra Corina Doerinck com base no exercício ilegal da medicina. Propus‑me como especialista... A propósito, o Erasmus Roemer continua a viver em sua casa?

‑ Continua ‑ respondeu brevemente Hambach.

‑ Como é que ele está?

‑ Bem. O tratamento da Corina Doerinck parece ser muito eficaz. Dentro de três semanas, procederemos a um controlo radiológico do estado em que se encontra. Enviar‑lhe‑ei as radiografias, que lhe servirão para fazer o seu relatório de especialista.

‑ E se os resultados forem absolutamente negativos?

‑ Nesse caso, também receberá as radiografias. Não somos daqueles que perseveram no erro, como é o caso de tantos confrades nossos que se agarram à medicina oficial.

Furioso, Willbreit tinha desligado sem dizer uma só palavra mais.

Por seu lado, Stefan Doerinck, convocado para o gabinete do reitor Hupp, tomara conhecimento duma comunicação oficial da Inspecção‑Geral e que vinha assinada por Hollenbock. O Ministério de Dusseldórfia concedia a Stefan Doerinck, por razões de saúde, o benefício duma licença ilimitada. Hollenbock terminava a carta desejando ao "doente" um pronto restabelecimento e o regresso, igualmente breve, às suas actividades na escola de Hellenbrand...

Perante os seus protestos indignados, Hupp respondera:

‑ Sobretudo, Stefan, não apeles! Não te esqueças que vão continuar a pagar‑te.

‑ Não faço parte desses novos professores do sindicato que só pensam no ordenado e muito pouco nos progressos dos alunos a quem não param de dizer que todo o mal vem do ocidente e todo o bem dos países de Leste! Continuarei a trabalhar, visto que sou pago, e quando o meu substituto vier poderá sentar‑se num canto, escutar‑me e aprender com o

que digo!

‑ Sobretudo, não faças escândalo, Stefan! Beneficias de condições excepcionais! Vai fazer campismo com a tua filha...

‑ A vida da minha filha pertence‑lhe inteiramente. Porque será que nenhum de vocês quer admiti‑lo?


Era mais uma vez uma conversa de surdos. Furioso, Doerinck fora de aula em aula para comunicar aos colegas, espantados, a decisão da inspecção.

‑ Encostam‑me à parede. Não sei o que pensam disto. Tudo se modificou tão brutalmente nos últimos tempos, até as minhas relações com amigos de há vinte e cinco anos que eu julgava conhecer bem... Paciência! A vida é feita de decepções! Venho só dizer‑lhes que não espero nada de vocês. A coragem e a camaradagem ficaram nos campos de batalha com os mortos da minha geração. Sejam bons egoístas, tal como exige a sociedade moderna. Não ficarei zangado convosco.

Isto era tocar num ponto que era sensível para muitos dos colegas. às perguntas deles, o reitor Hupp só respondia: "Ele não é bom da cabeça. Foi demasiado marcado pela guerra e nunca conseguiu adaptar‑se ao mundo de hoje. Não nos dávamos conta disso antes porque, então, ele era um dos nossos. Mas bastou uma situação difícil como a desta idiotice das curas milagrosas para que os nervos se lhe fossem abaixo... Espero que volte rapidamente para nós."

No mesmo dia, Doerinck enviara à inspecção um protesto formal e apresentou igualmente queixa por abuso de poder no tribunal de M'nster.

‑ Para um caso desses, conheço o melhor advogado do mundo ‑ rugira Erasmus Roemer. ‑ É o doutor Willy Fernhorst. Quando defende uma causa todos os seus adversários fazem nas calças e imploram ao céu que Deus o leve para Junto dele. Mas o malandro tem uma saúde de ferro e o seu motorista conduz impecavelmente, de maneira que Deus não os ouve.

Antes do jantar, Corina acompanhou Marius Herbert à tenda para lá deixarem Molly. Nenhum deles prestou atenção aos rosnidos da cadela, que estava sentada no banco de trás, nem ao carro verde com matrícula holandesa que seguia o deles. Molly rosnia frequentemente quando passava um gato ou um pássaro e Marikje Kersellar seguia a uma tal distância deles que teriam de ter sido prevenidos para a notarem. Parou aliás, longe da tenda e, protegida pela obscuridade, fez o' resto do caminho a pé. Instalou‑se atrás duma árvore que ficava bastante perto da porta e tirou dum xaile uma série de objectos estranhos que pareciam ser bocados de bambu, mas que tomaram forma quando ela se pôs a juntá‑los para fazer um tubo de cerca de um metro de comprido, que levou à boca para experimentar... A seguir, prudentemente, pegou num dardo de ponta afiada munido duma fina pena na outra extremidade que servia para estabilizar o seu trajecto aéreo.

"Há quanto tempo não mato com esta arma", perguntou‑se, manejando com precaução a ponta envenenada. Pensou primeiro na sua adolescência nas florestas virgens de Bornéu, em casa do seu tio Johan Van Middelhuis, que era fazendeiro e a recolhera após a morte dos pais. Vivia no meio de indígenas e acompanhava‑os nas expedições de caça. O tio até a felicitara no dia em que com a sua zarabatana abatera com uma flecha envenenada o seu primeiro javali. Fora há trinta e oito anos. De vez em quando, ainda treinava atirando contra alvos improvisados e um dia até tinha trespassado um coelho selvagem que se encontrava perdido no jardim... O demónio fêmea ia morrer logo. Uma mulher é um alvo maior do que um coelho e basta tocar‑lhe, levantar‑lhe a pele em qualquer sítio...


Esperou pacientemente alguns minutos, escondida atrás de uma árvore. No interior da tenda, apagaram‑se as luzes e ela franziu as sobrancelhas. Iriam passar a noite ali? Mas não, a porta começava a abrir‑se. Levou a zarabatana à boca e respirou fundo lentamente, para estar pronta a lançá‑la dum só golpe, com toda a sua força, como se fosse uma explosão.

Marius Herbert saiu primeiro, sendo seguido por Molly, que se pôs a andar à sua volta, agitando a cauda e ladrando alegremente levantada nas patas traseiras. Mas logo parou abruptamente para a seguir se pôr diante do dono como se quisesse protegê‑lo, com os beiços arreganhados deixando à mostra as temíveis presas, ladrando furiosamente. os seus grandes olhos avermelhados sondavam a obscuridade e o nariz húmido captava um cheiro que a inquietava e que era o dum ser humano que não se mostrava...

‑ Mais um gato! Deixa os pobres bichos em paz! ‑ disse Marius.

A seguir apareceu Corina. Deu um passo para a frente e imobilizou‑se ao lado de Marius. Era um alvo perfeito, assim iluminada pelo luar.

o ódio que encheu de repente o coração de Marikje Kerselaar fê‑la visar um ponto preciso: o rosto demasiado belo de Corina. Era o momento! A flecha envenenada voou para o seu objectivo projectada pelo ar que a holandesa acumulava há longos segundos nos pulmões.

No mesmo instante, Molly endireitou‑se uma vez mais, desta vez na direcção daquela que aceitara como dona, cobrindo‑a totalmente. Tratava‑se dum ímpeto supremo de alegria ou uma misteriosa premonição? Quem sabe o que se pode passar naquilo a que se é obrigado a chamar o instinto de um animal? Sem ruído, o dardo enterrou‑se‑lhe na nuca e lá ficou implantado.

O cão fez um gemido agudo e a seguir voltou a cair para rolar no chão, partindo o cabo da flecha e enterrando ainda mais na carne a ponta envenenada.

‑ Ficaste louca, Molly? É uma pulga? já vou ver isso.

Marikje afastara‑se, indo ao encontro do carro com o coração cheio de raiva. Um cão, um sujo bastardo, desempenhando o papel do destino, acabava de fazer falhar o seu plano! Mas porque é que só trouxera um dardo? Para não multiplicar o risco por dois? Com os punhos crispados sobre o volante, batendo com a cabeça contra o pára‑brisas, quase gritava de furor e decepção. Todo o seu corpo lhe tremia ainda quando voltou a pôr o carro a funcionar... Quando é que se lhe apresentaria outra vez uma ocasião daquelas?

Molly tinha rolado por terra durante alguns segundos, cada vez mais lentamente, até acabar por se imobilizar, com as patas repentinamente rígidas, numa posição tão estranha que Marius, que dera alguns passos para a frente com Corina, voltou para trás.

‑ Então, Molly, de pé! Que brincadeira é essa?

Mas a cadela continuava como que petrificada, com a língua pendente, a cabeça apoiada de lado contra o chão e os olhos muito abertos reflectindo o luar como dois berlindes.

De repente, Marius compreendeu.

- Molly... Molly! ‑ Primeiro pôs‑se de joelhos tentando levantar nos braços o animal que era a sua única companhia. Acabou por se estender junto dela, desesperado. Ainda estava quente, mas insensível, sem respirar, sem vida. ‑ Molly...


. O seu gemido prolongado gelou Corina. Nunca tinha ouvido um ser humano lançar um grito assim. Correu para ele e foi então que viu a cabeça da cadela. Marius, de joelhos agarrou‑se então a ela com a cabeça enterrada no meio dos seus seios, e chorando. Ela só lhe fazia festas no cabelo louro que ele cortara ‑ tinha‑o adivinhado ‑ só por causa dela. Para tentar ficar perto dela. O olhar de Corina fixou‑se no corpo de Molly, apoiado nas patas desesperadamente rígidas. A sua cara de animal tinha uma expressão torturada, e quase humana. Incapaz de compreender o que se passava, sentiu os olhos encherem‑se‑lhe de lágrimas e apertou contra si, com mais força, a cabeça de Marius, que soluçava como uma criança abandonada.

Ficaram muito tempo junto do corpo de Molly, até que ele conseguiu dizer:

‑ Mas o que é que aconteceu? Porque é que ela morreu? - Como Corina não dizia nada, acrescentou: ‑ Agora já não tenho mais nada, não tenho mais nada no mundo.

‑ Não deves falar assim, Marius. Tens toda a tua vida para construir.

‑ Com Molly a minha vida tinha um sentido. De manhã ela olhava para mim e isso queria dizer: "Levanta‑te. Faz alguma coisa. Também tenho de comer. Temos de continuar a viver... "

‑ Tens o teu talento, a tua arte... Além disso, não estou eu aqui?

‑ Tu?... ‑ Fixou nela os seus olhos infinitamente tristes e abanou a cabeça. ‑ Tu? Tu caíste do céu. És inacessível.

‑ Não te estou a apertar nos braços? Não me sentes perto de ti? Não podes estender a mão e tocar‑me? Sou verdadeiramente inacessível?

‑ Com a Molly dormi em granjas, em caves de construção inacabada, em casas em ruínas... Mas só estou a dizer loucuras! Se te dissesse: "Corina, amo‑te", punhas‑me na rua e com razão. Rir‑te‑ias de mim.

- Estou a rir‑me? Não, ouço‑te e choro contigo porque choras um cão que também me pertencia.

Levantou‑se. De repente, também ele tinha muito frio, apesar de ainda estar calor.

‑ Vamos levar a Molly para dentro da tenda. Enterro-a amanhã. - Como é que se pode morrer tão bruscamente. Um cão também pode ter um enfarte e morrer em segundos? Saltou para mim e a seguir deixou‑se cair...

Transportaram Molly e estenderam sobre ela o cobertor que sempre fora seu. Depois, Marius aproximara‑lhe do focinho o prato de plástico em que ela gostava de comer. Mesmo em plena luz, nenhum deles dera pelo bocado de bambu partido que se encontrava dissimulado no meio dos espessos pêlos da nuca.

‑ E agora? ‑ disse ele levantando‑se.

‑ Agora vamos jantar a casa dos meus pais, como previsto. A seguir chamaremos o doutor Mayer, veterinário.

‑ Para quê? Não vai poder ressuscitá‑la!

‑ Não. Mas ficaremos a saber como morreu. É importante. Primeiro deitam fogo à granja e a seguir matam a Molly...

Marius sobressaltou‑se.

‑ O que é que estás a dizer?

‑ Olha bem para ela, Marius... Devem tê‑la envenenado; o doutor Mayer confirmá‑lo‑á amanhã de manhã.

Ele inclinou‑se sobre Molly para lhe ver o focinho e a língua. A seguir arranjou o cobertor.

‑ Malandros! ‑ Voltou‑se para Corina. ‑ Vamos deixá‑los fazer o que querem sem reagirmos?

‑ Não. Vamos retribuir cada golpe.


‑ juntos?

‑ Sim, juntos.

‑ Corina, amo‑te.

Foi ter com ele. Não resistiu quando ele a tomou nos braços. O beijo que trocaram ainda era fraterno, puro. Os lábios de ambos não se entreabriram quando se tocaram.

Marius conseguiu dizer:

‑ Se a Molly nos visse... Ela também gostava de ti, Corina...

Stefan Doerinck esperava impacientemente pela filha. Marius e ela, surpreendidos, viram‑no correr ao seu encontro. Ludmila também apareceu, gritando de longe antes de Stefan poder dizer alguma coisa.

- Temos uma surpresa, Corina! Uma surpresa formidável!

Mas onde é que estavam. ‑ Sem sequer conceder um olhar a Marius, levou a filha para dentro. ‑ Agarra‑te bem para não caíres de espanto. O conselheiro cultural da Embaixada soviética telefonou‑te: convidam‑te a ires a Moscovo a um congresso. O professor Maxime Victorovitch Nerochenko, grande investigador em telecinesia, quer ver‑te... A carta com o convite oficial chega amanhã! ‑ Apertou a filha nos braços. ‑ Quero ver a cara destes médicos daqui, tão cheios dos seus privilégios! Vem depressa! A tua mãe fez‑nos um jantar de festa com uma tarte Alexandre.

Corina voltou‑se para Marius, que Doerinck continuava a ignorar apesar dos cabelos curtos, para ir com ele até à sala. Ele ainda tinha a garganta apertada, mas foi suficientemente forte para não desatar a soluçar. "Sim, amo‑a", pensou. "Oh, meu Deus, faz com que isto não seja apenas um sonho..."


 

Foi durante aquela noite que Marius e Corina voltaram juntos para a tenda.

Marius queria ir para lá a pé, mas Corina estava preocupada com ele. Pressentia confusamente que, desequilibrado como estava com a morte do "único ser que gostava de mim", segundo a sua expressão, podia levar consigo o cadáver da cadela e desaparecer para sempre noite dentro.

O quadro que começara, a tal orgia de cores, ainda não estava acabado. A sugestão de Corina tinha feito dele um outro homem, libertando, como numa explosão, todas as possibilidades do seu ser. Mesmo Stefan Doerinck, depois de o ter visto pintar, confiara à filha: "Nunca o julguei capaz... este rapaz tem mesmo qualquer coisa nas tripas... "

Mas nada é mais frágil do que um artista. De repente, a sua vida interior desmoronara‑se como um castelo de cartas e tinha voltado a ser o que era à chegada a Hellenbrand: um "vagabundo", segundo a terminologia oficial. Era um ser de que não se podia conhecer o valor, visto ele próprio o desconhecer.

Deixá‑lo ir‑se embora sozinho naquele estado era correr um risco no momento em que o convite do conselheiro cultural da Embaixada soviética vinha abrir a Corina, e em consequência também a ele, novas possibilidades.

Só Erasmus Roemer mostrara algum cepticismo a esse respeito.

‑ Esperem pela carta oficial. Porque é que a Embaixada telefonou se a carta já fora enviada? Este telefonema supérfluo parece‑me suspeito. E se for obra dum engraçadinho? Não me disseram que a cidade nunca se habituou à presença de Ludinila, a "Russa"?

Doerinck abanou a cabeça.

‑ O homem com quem falei tinha um sotaque típico dos Russos quando falam alemão...

‑ E eu falei com ele em russo ‑ confirmou Ludmila. ‑ Até lhe cheguei a dizer: "Tudo isso me parece incrível, camarada. Como é que em Moscovo conhecem a minha filha?" Respondeu: "E como é que pode fazer uma pergunta dessas, Ludinila Davidovna? julga que não vemos televisão nem lemos os jornais? Tudo o que é científico nos interessa." Não, não pode ser uma brincadeira.

O Dr. Hambach encolheu os ombros.

‑ Esperemos... Eu acreditarei em tudo isso quando a Cora tiver o seu bilhete de avião na mão.

‑ A única dificuldade ‑ disse Doerinck ‑ pode provir das condições que estabeleci para a viagem: a Ludinila e eu acompanharemos a nossa filha. Aí ele foi muito evasivo: "Vou transmitir o seu pedido..." O que nos impressionou a seguir foi que ele chamou "Ludmila Davidovila" a Ludinila. Sabem, portanto, que Corina é neta do doutor David Assanurian, que morreu deportado na Sibéria...

‑ Isso poderá ter consequências aborrecidas ‑ admitiu Roemer.

‑ Não creio. Nesse caso, eles também sabem que o avô de Ludinila era um cirurgião célebre pela ousadia das suas operações e um médico que fazia curas espectaculares. Este "Ludmila Davidovna" faz‑me pensar que também sabem que raptei a filha dele há trinta e seis anos e que a trouxe para a Alemanha disfarçada de soldado da Wehrmacht!


‑ Não somos nós que lhes interessamos, mas sim Corina ‑ disse Ludinila com a sua calma habitual. ‑ Agradeçamos ao Senhor por nos ter dado tal filha.

A morte de Molly, que Marius contou numa voz baixa e por vezes sufocada pelas lágrimas, fez‑lhes esquecer momentaneamente a viagem a Moscovo. Por fim, Roemer exprimiu a sua estranheza.

‑ O veterinário tem de vir examinar o cão amanhã de manhã. Há aí qualquer coisa que me choca: a Molly começou a saltar de alegria e a seguir torceu‑se com dores no chão e morreu em alguns segundos. já tratei de dois casos de assassínio por envenenamento com um exército de especialistas que não concordavam em nada uns com os outros, a não ser em relação a dois pontos precisos: primeiro, um veneno mortal não deve ter gosto nem cheiro e a seguir é necessário um certo tempo para que ele aja passando do estômago para o sangue! O que não parece ser o caso. Uma coisa é certa: todos os venenos deixam rasto no organismo. Um envenenamento nunca é, portanto, um crime perfeito. Mas tratando‑se duma morte tão repentina, penso que é de excluir a hipótese do veneno.

‑ No entanto ‑ disse o Dr. Hambach ‑ os serviços secretos dos países de Leste liquidam os refugiados com uma simples injecção: a vítima morre em alguns segundos. Até nos mostraram como podia funcionar a arma do crime, que era uma espécie de esferográfica.

O riso de Roemer quase deitou a sala abaixo.

‑ Marius Herbert, diz‑me a verdade: Molly era um agente anti‑soviético, não era? Viram o indivíduo suspeito que se aproximou dela com uma esferográfica?

‑ A Molly era só um cão, um pobre cão bastardo, tão horrível que ninguém o queria. Para mim, ela era outra coisa. Um ser como ela tinha mais valor do que o resto do mundo, à parte certas pessoas que aprecio.

‑ Obrigado ‑ disse Doerinck secamente.

Um olhar da filha fê‑lo deitar‑se para trás na cadeira em que se tinha endireitado. Não. Mesmo com a Corina a abrir‑lhe os olhos, ele não gostava daquele género de rapazes, quer tivesse o cabelo curto ou não, quer fosse ou não um pintor genial. Há muito tempo que o teria posto na rua se não fosse o cancro do estômago que a Corina quer absolutamente curar, pensou.

‑ Compreendo perfeitamente o seu desgosto, mas a questão que a morte de Molly levanta parece‑me ser muito mais importante: foi um acidente, ou seja, envenenou‑se a ela própria, comendo qualquer coisa ao acaso, ou trata‑se dum atentado no género do incêndio?

‑ Isso é o que o doutor Mayer nos vai dizer amanhã‑Vendo que Marius se dirigia para a porta, Corina levantou‑se.

‑ Aonde vais?

‑ Tenho de voltar para a tenda. Quem matou Molly pode estar interessado em fazer desaparecer o seu corpo. Acabo de pensar nisso...

Os seus receios não tinham fundamento. A Molly estava deitada tal como ele a deixara, debaixo do cobertor. Depois de ter levantado uma ponta deste e contemplado por um instante o focinho agora relaxado da cadela, voltou‑se para Corina.

‑ Obrigado por me teres acompanhado. Vou tirar daqui a minha cama e passar a noite ao lado dela. Amanhã vais ver trinta ou quarenta doentes diante da porta. Tens de descansar. Volta depressa para casa.

‑ Não podes ficar sozinho.


‑ Quantas vezes é que já fiquei sozinho e tive de me aguentar?

‑ Sim, mas como, em que estado? Tens de acabar o teu quadro, a tua primeira obra‑prima.

Ele desatou num riso desesperado.

‑ Vou acabá‑lo a golpes de faca reduzindo a tela a pedaços.

Para a obrigar a ir‑se embora, tirara os sapatos enquanto falava e estava agora a desabotoar ostensivamente as calças, deixando‑as cair até aos tornozelos. Como ele ficou diante dela, de pé e em cuecas, Corina pôde ver pela primeira vez a miséria daquele corpo descarnado por vários anos de fome e pela doença. Ao ver que ela o olhava, pôs‑se de novo a rir.

‑ Pois é. É esta a figura que tem o teu pintor sem camisola nem calças! Para que uma mulher o tome um dia nos braços terá de ser cega ou terão de lhe pagar caro! No asilo de Colónia consegui dormir uma vez com uma mulher. Só tinha a pele e o osso, como eu. Ao esfregar‑nos um contra o outro, os nossos ossos fizeram um tal barulho de castanholas que acabámos por acordar toda a gente...

‑ Cala‑te. Porque é que mentes?

‑ Pois é. Minto. No entanto, parece bem verdade... Olha bem para mim: o que é que vês? Um esqueleto, mais nada...

‑ Dentro de um ano estarás diferente: ter‑te‑ás curado, terás comido bem e os teus quadros ter‑te‑ão tornado célebre.

Sem responder, saiu um instante e reapareceu puxando e empurrando a cama de campanha que dispôs entre Molly e a divisória. Sentou‑se nela com as pernas pendentes.

‑ Boa noite ‑ voltou a dizer.

‑ É assim que dormes, sem lençóis e quase nu?

‑ Primeiro, tenho dois cobertores e não está frio. Depois, não tenho dinheiro para me dar ao luxo de comprar um lençol e um pijama.

‑ Porque não me disseste?

‑ Para quê? Não vim ter contigo para mendigar, mas sim porque tive a louca ideia de poder ser‑te útil. Queria ganhar dinheiro, imagina. Em vez disso, a tua granja incendeia‑se e matam a minha cadela. Não é o que tinha imaginado.

Foi então que ela se sentou na cama, ao lado dele, também com as pernas pendentes, olhando a direito sem compreender o que fazia. Pela primeira vez, desde há muitos anos ‑ parecia‑lhe que era há séculos ‑, um corpo masculino despertava nela um sentimento estranho sem que ela tivesse nenhum reflexo de defesa. Com as narinas dilatadas, respira sem medo aquele cheiro particular meio a animal de caça, meio a feno recentemente cortado, que é o do corpo dum homem. Surgiu‑lhe de repente a ideia que estava a sentir a mesma irresistível atracção sexual que aqueles insectos que percorrem quilómetros para se unirem e apercebe‑se com estupefacção que não faz nenhum movimento de recuo apesar de ele lhe ter passado o braço à volta da cintura e de estar a sentir a mão dele a agarrar‑lhe a anca. Ouve‑o gaguejar.

‑ Não sei o que é que se passa comigo... Vai‑te embora! Vai‑te embora depressa!

Aquela voz rouca ecoa dentro dela como numa espécie de sonho.


‑ Não quero que chores toda a noite junto a Molly ‑ ouve‑se a dizer. Após um momento, acrescenta: - Vou ficar. Deita‑te. Vou contar‑te a minha vida, a dos Doerinck. É uma longa história que começa como um conto de fadas em Poti, no mar Negro, entre um jovem tenente alemão e uma rapariga maravilhosa que se chamava Ludinila. Amaram‑se como se tivessem deixado de estar rodeados pela guerra e por povos que se exterminavam reciprocamente, como se tivesse deixado de existir um ódio inspirado por ideologias loucas, imperfeitas e, consequentemente, falsas, pois eram obra dos homens. Vem, deita‑te...

Ele hesita um instante e a seguir estende‑se debaixo dos cobertores. Com os braços cruzados debaixo da nuca fica imóvel durante um momento a olhar para o movimento ondulatório que tem a tela da tenda por cima da cabeça, sob o efeito do vento nocturno. Estremece quando Corina apaga a luz principal, só deixando aceso o pequeno candeeiro que está em cima da mesa.

"Qual é o sentido da minha vida? Aqui estou eu deitado numa tenda onde repousa o cadáver da minha cadela, ao lado da mais linda mulher que eu já vi, que está para aqui a falar, certamente sem se dar conta, dum país longínquo e dum médico que curava os doentes por imposição das mãos... E de dois jovens que se amaram... E eu só tenho de estender as mãos se quiser tocar‑lhe, atraí‑la a mim, despir‑lhe a blusa e fazer‑lhe deslizar a saia. Mas não devo fazê‑lo... Deitar‑me‑ei então sobre ela e serei, pelo menos uma vez, totalmente feliz." Apercebe‑se então de que a sua mão está já a tocar a anca da mulher e a subir ao encontro dos seus seios.

- Não... isso não... ‑ disse numa voz estranha que já não era a sua.

‑ Então fala, continua a contar a tua história, a do velho médico morto, deportado na Sibéria e dos dois jovens que se amaram...

Mas ela não diz nem mais uma palavra, pois ele, deitando‑se de lado, libertou a outra mão, que veio pousar‑se no seu corpo mais abaixo, sempre mais abaixo... Ele sente que ela está a ficar cada vez mais rígida.

É que começa a apoderar‑se repentinamente dela um medo e uma recordação atrozes.

‑ Não, não ‑ repete ela ‑, é impossível...

‑ Corina, não podes agir assim. Não podes ficar perto de mim, falar‑me do amor dos outros e recusares‑te a mim...

Tinha‑lhe pegado na mão e guiava‑a quase à força ao encontro do seu sexo em erecção. Estupefacto com a felicidade que o invadia, apercebeu‑se de que os longos dedos dela, que admirava desde o primeiro dia, se abriam e fechavam à volta do seu membro. Ele ousou beijá‑la: tinha a cabeça inclinada para trás', os olhos fechados e a sua boca era um simples traço vermelho.

‑ Amo‑te ‑ murmurou ‑ Amo‑te perdidamente.

Agora as suas mãos estavam a levantar‑lhe a blusa, descobrindo‑lhe os seios duros, nus, com os bicos espetados, tal como os sonhara. A sua cara procurava todas as reentrâncias daquele corpo, aspirando simultaneamente o odor da pele quente e lisa e dos lábios que se entreabriam, não, que se abriam completamente, transfigurando aquele rosto que se apresentava ainda mais maravilhoso. Não sentiu os punhos que lhe batiam nas costas quando a sua boca tocou os bordos dum abismo húmido nem as unhas que se lhe enterravam nos ombros. Nem sequer se apercebeu de que ela resistiu de novo, desesperadamente, quando ele a guiou para debaixo dele.

Mesmo assim, teve a impressão de que de repente ela se abandonava completamente.


Sim, durante alguns minutos, ela fizera tudo o que podia, lutando, não contra ele, mas contra uma recordação horrível. Deus queira que aquilo não se reproduza, pensara para consigo mesma, tentando afastá‑lo, batendo‑lhe, arranhando‑o, mordendo‑o. Não, aquela coisa horrível, não! Não podia acontecer com Marius o que se passara na primeira e última vez em que amara.

Chamava‑se Holger Bemau. Estava no quinto ano de Medicina. Iam à mesma aula de Anatomia, que se passava à volta duma mesa de dissecação, junto a bacias onde estavam partes de cadáveres mergulhados em formol. Tinham‑se olhado e tinham voltado a ver‑se naquela mesma noite. Ele beijara‑a longamente quando a levara a casa. Era um rapaz grande, bonito e de ombros largos. Era do tipo desportivo, feliz por estar vivo, sorria francamente e tinha um corpo esplendidamente musculado. Corina teve a impressão de que aquele amor a encheria de felicidade até ao momento em que algo de incompreensível os separara.

Foi na noite em que, por fim, ela aceitara acompanhá‑lo até ao seu quarto de estudante. Beberam champanhe e dançaram, abraçando‑se cada vez mais, à luz das velas. Tudo aquilo era poesia e romantismo... Mas no próprio momento em que, depois de terem caído sobre a cama de casal, ela ia conhecer a felicidade suprema e se sentia cheia de ternura e de reconhecimento por aquele que lhe estava a revelar o amor, ouviu‑o lançar um grito horrível. Ele caiu no chão ao afastar‑se dela. Levantou‑se a correr em direcção ao grande espelho do guarda‑fatos e pôs‑se a examinar as costas.

‑ As tuas mãos queimaram‑me, Corina. Tive a impressão de que estavam a espetar‑me um ferro rubro nas costas.

A seguir, sentara‑se numa cadeira, longe dela, e olhara‑a horrorizado, abanando a cabeça e gelado de terror.

‑ Meu Deus, o que é que tens nas mãos?... Isto nunca me aconteceu... Isso não é normal...

Ela tinha ficado deitada, nua, envergonhada, mas olhava‑o com olhos secos, detestando de repente as mãos e todo o seu corpo, e, sobretudo, aquela força que conseguia curar doentes mas que a impediria, sem dúvida para sempre, de ser uma mulher como as outras. Esforçara‑se por representar.

‑ Que disparate! As tuas costas não têm nada! Como é que queres que eu te tenha queimado com as mãos?

‑ Queimaste‑me ‑ repetiu ele.

Como ela encolhia os ombros, ele correu para o lavabo, onde molhou uma grande toalha em água fria que pôs a seguir sobre os ombros e as costas. Depois foi sentar‑se perto dela e pôs‑se a olhá‑la com olhos de espanto.

- Mas ainda sinto uma espécie de queimadura nos sítios onde puseste as mãos. O que é que se passou?

Continuar a mentir, para quê? Com a cabeça baixa, respondeu:

‑ Não sei...


Depois daquela noite, tudo se modificou entre eles. Ela evitava Holger ao ponto de se esconder cada vez que o via à espera dela à porta da faculdade. Quando, apesar das precauções tomadas, se deixava surpreender, encurtava as conversas. Quando ele lhe telefonava, cada vez com mais desespero, respondia por monossílabos. à noite passava longas horas encolhida na cama. Mordia até ao sangue aquelas mãos que odiava. Mergulhava‑as longamente em água fria e a seguir em água quase a ferver, como se desejasse puni‑las. Mas já estava convencida da inutilidade de tudo o que fazia: nunca poderia ter uma vida normal de mulher.

Como ele continuava a persegui‑la, um dia esbofeteou‑o paulatinamente, por duas vezes, sem razão, sem uma palavra, diante de todos os colegas. Nunca conseguiu esquecer o seu olhar de espanto, a sua expressão perturbada, a interrogação muda daquele homem que ferira cruelmente. Depois, voltara lentamente as costas e desaparecera para sempre.

Naquela mesma noite, sentada na banheira com um escalpelo na mão, tinha pensado em matar‑se. Bastaria cortar‑se as veias dentro de água quente. Sabia que era a morte mais misericordiosa que existia: bastava um único golpe profundo em cada pulso para sentir uma fadiga cada vez maior que acabaria por se transformar em desmaio insensível à medida que o seu corpo se dissolveria num espaço infinito.

O pai salvara‑a ao bater à porta.

‑ Corina, o doutor Hambach está cá. Desces?

Ela respondera, controlando a voz.

‑ Não sei, papuchka. Acabo de entrar no banho... ainda vou demorar um bocado.

‑ Acho que ele não se sente muito bem: imagina que nem sequer aceita o seu habitual copinho de aguardente.

Ela encontrou forças para rir.

‑ Então deve ser, efectivamente, muito grave ‑ respondera.

Pela primeira vez na vida, ia sentir um estremecimento nos dedos ao olhar para o velho médico da família, o tio Ewald, como ela lhe chamava. Ele trazia consigo, tinha de repente a certeza disso, um mal sub‑reptício qualquer que ela não conseguia distinguir: era uma espécie de irradiação negra inimiga da sua. Só mais tarde, quando já conseguira ultrapassar aquela crise e resolvera abandonar os estudos de medicina para criar um atelier de tecelagem, começou a lutar contra a prostatite do velho.

A partir daquela altura, Corina passou a afastar todos os homens que lhe faziam a corte. Ao primeiro beijo, ficava como que petrificada, pensando nas mãos e no fogo devorador que se escaparia dela caso se deixasse arrastar pelo fervilhar do seu sangue e perdesse o controlo do seu corpo. Ela via os homens afastarem‑se, estupefactos, vexados, perguntando‑se como é que uma mulher de aspecto tão sensual podia tornar‑se num bloco de gelo assim que lhe tocavam.

Por isso, vivera com medo de si mesma até àquele dia. Agora estava deitada numa cama demasiado estreita, com os olhos fixos na tenda que oscilava por cima dela sob o vento. Marius ainda conservava as pernas entrelaçadas nas dela. Pusera‑se de lado, respirando descompassadamente. Com a cabeça quase vazia, balbuciava palavras de amor que ela julgava nunca mais voltar a ouvir. Não, não tinha gritado: "Estás a queimar‑me... As tuas mãos queimam. " Não a afastara para a seguir se pôr a correr como um louco em todas as direcções à procura dum pouco de água para apagar o fogo que ela sentia nela e que o tinha devorado no sítio em que as suas mãos se tinham agarrado a ele. Aquelas costas tão magras que tinha parcialmente sob os olhos, e que ainda estava a acariciar, apresentavam, no entanto, traços de sangue: os que as suas unhas lhe tinham deixado na carne.

‑ Rasguei‑te a carne ‑ disse ela docemente.

‑ Não senti nada.


‑ Nada?

‑ Nada, a não ser a maior felicidade do mundo.

Ela insistiu ainda incrédula.

‑ Mas bati‑te, arranhei‑te e mordi‑te. Tens os ombros em

sangue.

‑ Não senti nada, nada a não ser a ti, a ti... E um grande medo, medo que já tudo tivesse acabado e que amanhã, quando amanhecer, acorde a dizer: "Evidentemente, era um sonho... "

Agarrou‑se a ela com tal força que quase a fez perder o fôlego. Como, por sua vez, também ela o apertou nos braços, sentiu que aquele corpo frágil e ossudo se distendia lentamente.

Foi assim que adormeceram: com os ombros misturados inexplicavelmente, tão colados um ao outro que nada os poderia separar.

No dia seguinte, o Dr. Mayer recebeu‑os e examinou o cadáver de Molly.

‑ O cão foi envenenado, é claro. ‑ Com as mãos enluvadas abriu o focinho do animal e ficou a olhar longamente para o interior como para adivinhar o seu segredo. ‑ Mas para determinar qual é o veneno, se isso lhes interessa, é preciso uma autópsia. Para isso, existe em M'nster o Instituto de Medicina Veterinária... Vale verdadeiramente a pena?

‑ Quero saber como é que ela morreu. Aos olhos de todos, ela não passava duma rafeira, mas era a minha cadela.

‑ Muito bem, vou convosco a M'nster. Este assunto interessa‑me.

Ao levantar‑se, acariciou as costas do animal. Mas, bruscamente, interrompeu o gesto. Inclinando‑se de novo sobre o cadáver com ar intrigado, pôs‑se a afastar os pêlos da nuca. Estava um bocado de madeira enterrado na carne. Com a ajuda duma tesoura e da pinça, abriu e cavou a ferida para conseguir extrair um bocado de madeira em bico que mostrou a Marius e a Corina, mudos de surpresa.

‑ Sobretudo, não lhe toquem! Foi, sem dúvida, isto que matou o vosso cão: uma ponta de flecha, de flecha envenenada, ficou‑lhe enterrada na nuca...

‑ Mas é impossível ‑ gaguejou Marius.

‑ Não viram nem ouviram nada?

‑ Não. A Molly estava a brincar e a saltar à nossa volta e de repente caiu.

‑ Porque a flecha envenenada a atingiu. Trata‑se de um Veneno que age incrivelmente depressa.

Marius, com as lágrimas nos olhos, estava mais abatido do que nunca.

‑ Mas não é possível, Cora. Numa pequena cidade como Hellenbrand, quem é que pode pôr‑se a atirar flechas envenenadas? E, ainda por cima, para assassinar a Molly! Mas porquê?...

O rosto de Corina tornou‑se impenetrável, rígido como mármore.

‑ Tem de ser a Polícia a encarregar‑se do sucedido e a proceder à busca do veneno. Vamos levar o corpo de Molly. Os nossos caros hellenbrandeses vão ter mais uma vez motivo para se espantarem!


Ao ir chamar Corina para o pequeno‑almoço, Stefan Doerinck verificou que ela não passara a noite no quarto. Evidentemente, não tinha de maneira nenhuma nem o direito nem a intenção de se meter na vida privada da filha: com trinta anos, era ela a única responsável pelos seus próprios actos. Quando desceu, não pôde deixar de dizer à mulher:

‑ Não sei o que é que achas, mas pensar que um indivíduo daqueles anda a dormir com a minha filha dá‑me ideias de assassínio!

‑ Quando nos conhecemos, pensaste em como é que o meu pai podia reagir à ideia de eu estar apaixonada por ti, Stefan?

‑ Não é a mesma coisa. Eu era oficial...

‑ Eras um inimigo. Os Alemães tinham atacado o nosso país e morto milhares de compatriotas nossos. Tinham destruído cidades e aldeias e praticado a política da terra queimada de cada vez que eram obrigados a recuar... O que é que achas que a minha família e os vizinhos pensaram de mim, que tinha o dever de te enterrar uma faca nas costas? Chamaram‑me todos os nomes. E o que é que eu respondi na altura? Dizia‑lhes: "Enforquem‑me, então, camaradas. Não posso comandar o meu coração: amo‑o..." A Corina também tem o direito de amar quem quiser.

‑ Não passa de um falhado a morrer de fome. E está doente: tem um cancro!

‑ Eu também já tive um cancro. A Corina vai, provavelmente, conseguir curá‑lo. E não interessa que ele venha ou não a ser um grande pintor: amam‑se. Isso é que é importante. Ou achas que eu sabia o que me esperava aqui na Alemanha, neste país horrível que nos tinha querido destruir? Mas eu amava‑te e isso chegava‑me como futuro. Anda, toma este pãozinho: está dourado e torrado como gostas.

Duas horas depois, a vivenda dos Doerinck foi palco dum acontecimento decisivo.

o cadáver de Molly estava estendido no banco de pedra do jardim. Roemer tinha telefonado à Polícia judiciária de M'nster e reclamado a presença imediata do inspector Hellwig. Na sala de estar estava o presidente da câmara, que olhava aterrado para a ponta envenenada.

‑ Deve evitar‑se a todo o custo que os media se apoderem desta história! já estão a imaginar os títulos: "Em Hellenbrand há índios que matam com flechas envenenadas... "

Mas a voz atroadora de Roemer sobrepôs‑se às suas queixas.

‑ Isso é que é preciso, abafar o caso! Faça como o Hellwig, que se recusava a cá vir por se tratar de um cão. Vá lá que mudou de ideias ao ouvir o resto... ‑ Parou ao ver a expressão de Corina. Foi sentar‑se no mesmo sofá que ela e disse‑lhe numa voz tão suave quanto possível: ‑ Pois é, trata‑se duma tentativa de assassínio! Era a ti que queriam matar, Corina. O cão, ao saltar para ti, é que recebeu a flecha no teu lugar. Foi um atentado criminoso. É disso que se trata...

Duas horas depois, chegava o inspector Hellwig acompanhado por um toxicólogo da Faculdade de Medicina. Hellwig, muito rígido, inclinou‑se diante de Roemer e foi imediatamente examinar o cão. O toxicólogo examinou com a lupa a ponta partida e a seguir pousou‑a de novo com precaução, abanando a cabeça.

‑ Não há engano possível ‑ declarou em voz firme. ‑ Trata‑se da ponta de um dardo igual aos que utilizam várias tribos primitivas. E está envolta num veneno fulminante. Para ser mais preciso, trata‑se da ponta de um projéctil de zarabatana.

O presidente da câmara tinha ficado muito pálido.

‑ Se isto se souber, vai ser horrível.


‑ Mas o meu dever é telefonar para o Comissariado de Munster ‑ disse Hellwig.

‑ O caso deve seguir o seu curso...

‑ Tanta coisa por causa de um cão!

‑ Não, senhor presidente. Por causa de uma tentativa de assassínio de um ser humano! Ao saltar, o cão apanhou com a flecha que se destinava à vítima que se pretendia assassinar. Proponho‑lhe que nos desloquemos ao local do crime para procedermos a uma reconstituição dos factos. Quer seguir‑me?

A reconstituição que ia ser feita diante das autoridades competentes eliminou todas as dúvidas, mesmo as do presidente da câmara. às onze horas da manhã, a polícia local mandara evacuar o parque de estacionamento. O comissário Blinker, que viera de M'nster, tomara conta do caso. Aceitara, a pedido do presidente da câmara, erigir um muro de silêncio à volta da tenda. Os doentes e os jornalistas, estes últimos misteriosamente avisados, tinham protestado. Finalmente, o inspector Hellwig, enervado, acabara por gritar: "De que é que andamos aqui à procura? Mas vê‑se logo: dum trevo de quatro folhas. à noite já corria o rumor de que tinham identificado "irradiações telúricas" no terreno, o que explicava a cura espontânea de vários doentes com a qual Corina Doerinck nada tinha a ver!

‑ O público não tem o direito de ser informado? ‑ exclamou um jornalista quando lhe estavam a fazer notar a idiotice da notícia.

Antes de se afastar, o inspector Hellwig, como que apanhado pelos remorsos, aproximou‑se de Roemer.

‑ Senhor presidente, posso comunicar‑lhe confidencialmente uma informação que lhe pode ser útil, visto ter a ver consigo? Abriram uma dezena de queixas contra Corina Doerinck, por exercício ilegal da medicina e por ataque físico... Uma das queixas provém da sua mulher.

‑ Da minha mulher! ‑ exclamou Roemer. ‑ Digamos antes que é Willbreit quem se esconde por trás dela. Que pena já não se infligirem castigos corporais nos nossos dias! Só no Oriente, senhor presidente...

‑ Pois é, Hellwig. Lá, o Sol levanta‑se sempre mais cedo do que aqui!

‑ E agora, o que é que vamos fazer? ‑ perguntou o presidente da câmara, abanando a cabeça com ar desolado, a seguir à partida de todas as entidades para M'nster.

Stefan Doerinck parou de distribuir os cálices que estava a encher de aguardente.

‑ Têm de se identificar os nossos concidadãos que viveram em países onde se utilizam zarabatanas.

‑ Não há nenhum, Stefan. Posso garanti‑lo. Se houvesse algum que tivesse trazido uma zarabatana para Hellenbrand, tinha‑a levado logo ao albergue para a mostrar triunfalmente!

Sabes como é que somos!

‑ Em todo o caso, alguém quis matar a minha filha comuma flecha envenenada...

O atentado falhado contra Corina constituiria para sempre um mistério. Marikje Kerselaar, cada vez mais desequilibrada, morreria alguns meses depois no meio dum sofrimento atroz pensando incessantemente na advertência daquela que considerara sua rival. Muitos outros acontecimentos iam produzir‑se... E, em primeiro lugar, a viagem a Moscovo.


Apesar das dúvidas de Roemer e do Dr. Hambach, a carta oficial anunciada pelo conselheiro cultural da Embaixada chegara. Vinha redigida num alemão correctíssimo. O convite

era formulado pela Academia das Ciências de Moscovo e pelo grupo de investigação sobre a telecinesia e a energia bioplasmática. O Prof. Máxime Victorovitch Nerochenko, presidente do grupo, congratulava‑se antecipadamente com o facto de ir conhecer a Sra. Corina Doerinck e por com ela ir iniciar uma colaboração regular.

‑ São estes os factos ‑ comentou Stefan Doerinck depois de ter lido a carta em voz alta. ‑ Que dizes, Cora?

‑ Aceito, evidentemente! ‑ Puxou para si Ludmila e Stefan inclinando a cabeça para trás como sempre fazia quando se sentia verdadeiramente feliz. ‑ Escreve hoje mesmo à Embaixada, papuchka. Vou... vamos... a Moscovo!


 

O Tupolev soviético vindo de Fraricoforte preparava‑se para aterrar no aeroporto de Cherernetievo, que servia Moscovo.

Estava um lindo dia de Outono: o céu tinha reflexos de aço azul e um sol esbranquiçado, sinais certos dum rude Inverno. O ar já estava como que gelado e os Moscovitas começavam a preparar as suas roupas almofadadas, as botas forradas e a proteger as frestas das janelas com fitas adesivas.

O avião, que estava adiantado, descreveu um largo círculo por cima da cidade, esperando que a pista ficasse livre. Via‑se

a fita prateada do Moscova e as cúpulas douradas das igrejas do Kremlin. A universidade parecia um bolo da primeira comunhão. Também se via a cintura verde da floresta... Da sua janela, Corina contemplava aquela grande cidade moderna que sempre se apresenta envolta num certo mistério. Pouco a pouco, a Rússia soviética abrira‑se aos turistas mas com precauções, como arrependida, só oferecendo aos visitantes itinerários escolhidos que transformavam, por exemplo, a Sibéria, terra de lágrimas, num paraíso do futuro. É um país imenso, infinito, mais rico do que qualquer outro do mundo, e persegue, no entanto, um nível de vida que parece escapar‑lhe... Rússia eterna e impenetrável. E são tão raros os ocidentais que desejam compreendê‑la.

Ludmila e Stefan nunca tinham tentado lá voltar. "Não se deve tentar o destino", dizia Ludmila cada vez que amigos deles, depois de passarem três semanas de férias no mar Negro, evocavam o luxo e o conforto do hotel, a brancura das praias, as excursões, os concertos, e, sobretudo, a cordialidade extraordinária do povo. Ela acrescentava então: "Não lhe mostraram o edifício do KGB em Poti. Creio que seria lá que me instalariam se eu quisesse rever a cidade em que nasci... "

Ludmila, um pouco rígida, pensava no que se ia passar a seguir à aterragem. O controlo dos passaportes era, diziam, particularmente rigoroso. Ela imaginava um polícia a folhear atentamente o seu, com as sobrancelhas franzidas e a levantar em seguida os olhos para ela, dizendo numa voz neutra de funcionário: "Ludmila Davidovna? Faça o favor de me seguir... "

Também ela estava sentada junto duma janela, exactamente atrás de Corina, e apertava nervosamente a mão de Stefan. Atrás dela, o Dr. Hambach, com um mapa de Moscovo aberto sobre os joelhos, tentava reconhecer o desenho das grandes artérias. Marius Herbert reagia doutra maneira. Com os olhos fechados e a nuca assente no encosto da cabeça, tentava dissimular a Corina a que ponto se sentia enjoado. Que ideia, beber sete copos de vodca desde a partida de Francoforte! Não conseguia digerir a perna de frango que comera e o resto de jantar também não estava a descer lá muito bem...

Finalmente, o aparelho, inclinando‑se sobre uma das asas, começou uma descida mais rápida. A mão de Ludinila crispou‑se pela última vez na de Stefan. A aterragem teria lugar dentro de alguns minutos. Para a tranquilizar, Stefan bateu‑lhe suavemente no braço a sorrir.


Durante três semanas, a Embaixada soviética em Bona tinha mostrado duas faces. às vezes uma face reservada e, mais frequentemente, a duma compreensão extrema. Corina tinha imposto desde o princípio as suas condições: "Durante a minha estada na URSS serei acompanhada pelo meu pai, Stefan Doerinck, pela minha mãe, Ludmila Davidovna Doerinck, pelo meu noivo, Marius Herbert, e pelo meu médico pessoal, o Dr. Ewald Hambach, de Hellenbrand. Naturalmente, as pessoas que me acompanharem pagarão as suas despesas e não custarão, portanto, nada às autoridades soviéticas... "

A resposta de Moscovo chegara por teletipo: naturalmente, a Sra. Doerinck e a sua comitiva eram bem‑vindos à URSS, onde todos seriam considerados como convidados da Academia das Ciências.

‑ Isto deve tranquilizar‑te, Ludmila ‑ disse Doerinck. ‑ Sou de opinião que devemos tentar a nossa sorte.

‑ E eu tenho uma proposta a fazer ‑ exclamara Roemer. Longe de sentir dores atrozes, como previra Willbreit, estava a ficar cada vez melhor. Tinha perdido cinco quilos, coisa de que ninguém se apercebia ao vê‑lo, dada a massa de que era constituído, mas sentia‑se muito menos oprimido. Conformava‑se corajosamente com os menus que Ludinila lhe confeccionava segundo as indicações da filha. Nem sempre o fazia sem protestar e prometia em voz alta que assim que estivesse curado a sua primeira visita iria para o seu amigo Krautkramer, o restaurador do lago de Hilitrup, para saborear um assado de veado bem entremeado com toucinho que faria acompanhar por uma garrafa do melhor Borgonha. Curado, e tendo realizado tal sonho, seria o mais feliz dos mortais.

‑ Proponho que se faça o maior barulho possível nos media a propósito da viagem de Corina a Moscovo. Primeiro, Porque assim será ainda mais difícil para os Russos fazerem desaparecer um de vocês? Por outro lado, para barrar a ofensiva dos Willbreit e companhia...

A primeira carta de Corina para a Embaixada dera lugar a uma discussão severa entre ela e o pai. Ao ler o nome de Marius Herbert, Stefan teve um sobressalto.

‑ Porquê, ele? Porque é que esse indivíduo iria a Moscovo?

‑ Primeiro, não é um indivíduo no sentido que atribuis à palavra. A seguir, vais ter de te habituar à sua presença. Tenho trinta anos, pai. Não te esqueças disso. - Não elevara a voz, mas o facto de lhe chamar "pai" em vez de papuchka fê‑lo compreender que era inútil insistir. Já por duas vezes se tinha visto confrontado com aquele "pai" categórico. A primeira vez fora quando ela abandonara os seus estudos de medicina, pois ele nunca tinha suspeitado qual era a causa da perturbação evidente de que a filha sofrera durante a época que se seguira ao drama da sua primeira noite de amor com Holger Bernau. Mais tarde, uma nova confrontação tinha‑os separado quando ela renunciara aos seus estudos paramédicos para abrir um atelier de tecelagem, o qual, apesar das profecias pessimistas do pai, tinha conhecido um grande sucesso.

Acabara simplesmente por renunciar a compreender a filha, mas cada vez que via Marius o coração apertava‑se‑lhe. Era‑lhe impossível queixar‑se a alguém. Roemer via o problema numa óptica puramente quantitativa. Batendo com as mãos uma na outra, o gigante exclamara:

‑ Só vês o exterior das calças do rapaz e não o que há lá dentro! Isso, Stefan, só a Corina é que pode avaliar! Por isso, deixa‑os em paz.

O Dr. Hambach respondera‑lhe docemente:


‑ Stefan, mostraste‑me fotografias tuas de quando ainda eras muito novo. Antes de usares uniforme. Parecias um esqueleto. O uniforme deu‑te melhor aspecto, é certo, mas mesmo assim ainda me espanta que um anjo como a Ludmila tenha podido abandonar tudo para te seguir e nunca mais te tenha deixado...

Foi também antes da viagem a Moscovo que Willbreit conseguiu, por fim, contactar com Roemer. Foi o Dr. Hambach quem atendeu, como sempre. Para chamar a atenção de Roemer, sentado um pouco mais longe a beber água mineral morna, exclamara:

‑ Ah! Bom dia, professor Willbreit, ia telefonar‑lhe, gine: qual é a evolução da sua queixa ao procurador?

‑ Normal ‑ respondeu secamente o cirurgião, vexado com o tom de troça do médico de aldeia. ‑ Posso falar com o Erasmus?

Willbreit conseguiu ouvir o rugido do amigo: "Diga a Willbreit que se vá lixar para outro sítio!"

Como Willbreit estava habituado ao vocabulário do gigante, não se zangou.

‑ Pergunte‑lhe simplesmente se é demasiado cobarde para me responder.

Roemer só precisou de tempo para se levantar dum salto e arrancar o aparelho das mãos do médico, antes de gritar:

‑ Ouve cá, meu dissecador, meu fornecedor de cadáveres...

‑ Não! Tu é que me vais ouvir: a Elise quer o divórcio! Vai ser um escândalo terrível...

‑ Quer o divórcio? Cantem, passarinhos! Celebrem o Senhor! Põe‑te a pau, não vá a Lydia seguir‑lhe o exemplo!

‑ É de ti que se trata, Erasmus... Como é que estás do ponto de vista da saúde?

‑ Formidável! O resultado das últimas radiografias é excelente!

‑ Como?

‑ O doutor Meersmann, de Billerbeck, caiu de rabo: "Confesso", disse ele, "que nunca vi uma coisa assim. Nunca teria acreditado."

No extremo do fio, Willbreit ficou mudo, como que abatido pela notícia que já receava, aliás. Desde há dias que a imprensa se tinha apoderado dum escândalo que, sem lhe dizer pessoalmente respeito, o perturbara profundamente: dois operados tinham acabado de apresentar queixa contra um conhecido professor de Medicina. Um colega deste último ousara escrever: "De dois em dois anos, um motorista de táxi tem de se fazer examinar do ponto de vista físico e psíquico por ser responsável pela vida dos que transporta. Mas um cirurgião, até mesmo um simples médico, pode operar até aos noventa anos sem ninguém exigir que controle os reflexos... "Willbreit sentiu o sangue afluir‑lhe às têmporas: imaginava Roemer diante do tribunal, agitando vitoriosamente as radiografias. E já havia o cancro de Ludinila Doerinck...

‑ Preciso de te ver, Erasmus.

‑ Deixa‑me em paz!

‑ Convido‑te a ir ao Krautkramer...

‑ Ainda não. Eu é que te convidarei, Thomas, quando a Corina me disser: "Agora estás completamente curado."

A voz de Willbreit de repente ficou quase queixosa.

‑ Volta ao menos para casa, Erasmus. Tens uma bela moradia, um magnífico parque, um lago cheio de peixes, móveis antigos, uma colecção de porcelana de Saxe...


‑ Tudo comprado com o dinheiro do meu sogro. Mas também sei que ele também comprou a situação social que a minha posição dava à filha. Agora que ela andou a dormir com um barão húngaro, tudo é diferente: pode vir a ser baronesa! Por isso, toca a avançar com o divórcio! É essa a verdade, Thomas. Mas eu não lhe criarei dificuldades. Começo já a dar grandes passeios: meu Deus, como a nossa terra é bonita! E penso em todos os albergues que me esperam na berma das estradas, cada um com as suas especialidades, a sua cerveja, os seus vinhos e os seus digestivos. Se soubessem o que perdem ao ficarem nos vossos salões! Sei agora o que é uma pessoa endireitar‑se no cimo duma colina e olhar para as quintas dispersas à sua volta, para os campos, para as florestas. A vida é bela, Thomas, tranquila...

‑ Pois, fora o incêndio da vossa granja e as flechas de zarabatana...

‑ E vais manter a tua queixa contra Corina?

‑ O caso segue o seu curso...

‑ Então tem cuidado contigo, querido Thomas. Estarei lá no tribunal e vou esmagar‑te. E não venhas mais dizer que és meu amigo: consideraria isso um insulto!

Desligou tão violentamente que o Dr. Hambach chegou a pensar que a mesinha em cima da qual estava o aparelho ia quebrar‑se.

‑ Pergunto‑me se essa ruptura é sensata ‑ disse Hambach suavemente. ‑ Eis‑te com mais um inimigo!

‑ Nunca! O Willbreit é mais sensível do que uma actínia! Imagino‑o sentado à secretária, desesperado. E a vida dele com a mulher é um drama, pois ele põe sempre a cirurgia à frente... Na realidade, é um pobre tipo cheio de vaidade profissional à qual chama ética!

Sem que Willbreit soubesse, um dos seus amigos médicos também se sentia reviver, tal como Roemer, depois de ter visitado sete vezes Corina no maior segredo. O Dr. Wewes, o grande especialista de doenças pulmonares, tinha ido consultar um dos seus colegas a Hamburgo. Passara uma semana na clínica de Eppendorf para ser examinado a fundo, com o pretexto de que um especialista de M'nster o prevenira de que sofria dum princípio de enfisema do fígado. Quando os exames terminaram, Wewes suspirou aliviado: Corina tinha‑o curado. Só então mostrou ao médico de Hamburgo o dossier que trouxera de M'nster e onde se preconizava a ablação imediata da vesícula biliar, insistindo sobre a provável explicação que lhe podia advir do facto de o pâncreas ser atingido.

o professor hamburguês sobressaltara‑se. Visivelmente nervoso, começara a analisar todas as radiografias e os resultados das análises. A seguir, abanara a cabeça.

‑ Não observámos nada disto em si. Não compreendo. Nenhuma medicação pode eliminar um enfisema do fígado em tão pouco tempo. Caro colega, na altura tinha mesmo de ser operado, mas agora já não. Isso deixa‑me absorto...

No dia seguinte, à noite, o Dr. Wewes entrou em casa dos Doerinck pela porta das traseiras, como sempre fizera. Stefan Doerinck viu‑o do primeiro andar e desceu imediatamente, resmungando para prevenir a filha.

‑ Ali está um que eu não suporto. Faz‑se tratar por Corina, mas é demasiado cobarde para a defender.


‑ A cobardia é humana ‑ disse Roemer, que acabava de ouvir Ludinila explicar‑lhe a receita do chachlik caucasiano que se encontrava a preparar. Não estava muito disposto a pensar noutra coisa e tinha tomado a decisão de interromper a dieta. ‑ Mesmo que tenha de atrasar a cura por um mês, esta noite só pararei de comer quando estiver prestes a rebentar.

Corina recebeu o Dr. Wewes no escritório do pai.

‑ Afirmar‑lhe o meu reconhecimento, Corina, é demasiado pouco. Que posso fazer por si? Como queimaram a sua casa, precisa talvez de ajuda financeira? Se assim for, disponha de mim à vontade.

‑ Não preciso de dinheiro. Toda a gente mo quer dar, mas, eu não aceito.

‑ Faz mal. Mande construir uma clínica, eu ajudá‑la‑ei. Não quer? Mas o que é que faz dos donativos que as pessoas lhe deixam em cima da mesa quando se vão embora?

‑ Não lhes toco. Marius, o meu noivo, faz as contas. É dinheiro que não me pertence. Verdadeiramente, não sei que fazer dele...

O Fisco não podia deixar de se meter na questão. As denúncias anónimas não tinham faltado.

 Dez dias antes da partida de Corina para Moscovo, logo de manhã muito cedo, apareceram dois senhores muito bem educados da parte do inspector das Finanças de M'nster.

Explicaram que a sua intervenção se devia a certas queixas, e nomeadamente a uma do sindicato dos médicos, que acusavam Corina Doerinck de exercer medicina ilegalmente. Quem exerce uma profissão, seja ela qual for, tem de declarar os seus ganhos e de pagar impostos.

Corina e Marius estavam sozinhos na tenda. Se bem que impressionados com o aspecto de Corina, os dois homens não perderam um instante.

‑ Há mais de quatro meses que não faz nenhuma declaração de volume de vendas...

‑ Não tenho volume de vendas: o meu atelier, que era a minha casa, ardeu, como devem saber. Agora vivo com os meus pais e com as minhas economias.

‑ E da sua actual profissão de... curandeira.

Tinha utilizado um tom tão irónico que Marius Herbert teve vontade de levantar o inspector da cadeira e de o pôr fora a pontapés.

‑ Não levo dinheiro pelos meus tratamentos.

‑ Mas nós sabemos de fonte segura que os seus clientes lho dão.

‑ Deixam‑no em cima dessa mesa, mas eu não o aceito.

Os dois homens trocaram um olhar satisfeito: aquela má contribuinte acabava de confessar o delito.

‑ Senhora Doerinck, segundo o direito alemão, se os doentes lhe deixam dinheiro, tem de o declarar mensalmente e de pagar impostos sobre ele.

‑ Não. ‑ Antes que ela pudesse continuar, Marius interveio. ‑ Os doentes deixam o dinheiro em cima da mesa. A senhora Doerinck não lhe toca e nem sequer o vê. Todas as noites sou eu que o conto. Depois, inscrevo a soma num caderno e fecho o dinheiro neste armário que aqui está.

‑ O que faz com o dinheiro não nos interessa. Tem de pagar impostos em relação ao que recebe.


‑ Não ‑ disse Corina acenando com a cabeça. ‑ os presentes não podem constituir um volume de negócios. E também não podem considerar que fazem parte dos meus rendimentos, visto que os não aceito. Este dinheiro não me pertence. Nunca lhe toquei e nunca lhe tocarei.

Uma vez mais, Marius parecia divertir‑se muito.

‑ No fundo, trata‑se de objectos perdidos, cujo montante é esta manhã, de... ‑ tirou um caderno do bolso ‑ sessenta e dois mil e quatrocentos marcos. É incrível, não é? Esta noite o montante será de cerca de sessenta e cinco mil marcos...

‑ Sessenta e cinco mil marcos! ‑ repetiu aflito um dos inspectores. ‑ Era mais do que ele ganhava por ano. E aquela soma provinha dos truques de prestidigitação daquela mulher que se queria subtrair aos impostos! Pagaria caro aquela injustiça revoltante. ‑ Tem de pagar impostos sobre o montante global dessa soma.

- Não tenho, visto ela não me pertencer. Pertence aos doentes, que podem vir reclamar o que é deles a qualquer momento. Nós não o queremos. Recusamos estes donativos.

os dois homens começavam a enervar‑se visivelmente.

‑ Toma‑nos claramente por dois imbecis ‑ interveio o mais velho. ‑ Faz mal. Como recebeu dinheiro, está sujeita ao imposto.

. ‑ Não recebemos nenhum dinheiro, repito. É contra a nossa vontade que as pessoas que aqui vêm depositam esse dinheiro em cima dessa mesa. Guardamo‑lo até que venham reclamá‑lo.

Mas nunca o farão!

É exactamente o que receio ‑ disse Marius a rir. ‑ Então, o que é que fazemos? Digam‑nos os senhores, que são especialistas.

‑ Podemos confiscá‑lo.

‑ Estamos perfeitamente de acordo, mas, naturalmente, só em presença da imprensa e da televisão, para que todos os doentes saibam que o Estado vai confiscar‑nos o dinheiro.

‑ Isso é uma ameaça?

‑ Uma ameaça? Mas nós vivemos num país democrático onde qualquer acto oficial deve ser levado ao conhecimento do público. Se estão assim tão seguros da vossa posição jurídica, porque é que reagem dessa maneira à eventual presença dos representantes dos media?

Era a primeira vez que os dois funcionários se encontravam perante um caso daqueles: a presença duma soma importante que ninguém queria. Evidentemente, os "objectos perdidos" pertencem ao Estado, mas só ao fim dum certo prazo e caso ninguém os reclame. Aquele caso podia originar muito baru lho, o que a administração das finanças deseja quase sempre evitar.

‑ Posso ver o dinheiro? ‑ perguntou o mais teimoso, que se tinha apresentado ao princípio como "inspector principal Vackrnulier".

Sob a sua vigilância, o acompanhante contou e voltou a contar o dinheiro.

‑ A soma corresponde exactamente ao montante inscrito no caderno: sessenta e dois mil e quatrocentos marcos ‑ admitiu, contrafeito. Depois de ter tomado nota, achou por bem fazer uma observação incendiária. ‑ Mas nada nos prova que uma parte do dinheiro deixado em cima desta mesa não tenha servido para gastos pessoais, púnhamos duzentos marcos por dia, e que só tenha inscrito no caderno o que ficava.

Marius Herbert dirigiu‑se para a porta e abriu‑a completamente. Não se podiam enganar quanto ao significado do seu gesto.


‑ Aí está uma frase que não esqueceremos, pode crer. Acuse‑nos, pois, de roubo, de fraude fiscal e de tudo o que quiser...

‑ Trata‑se apenas de uma ideia que nos pode surgir - disse o inspector principal, já arrependido da sua última frase.

De cara fechada, os dois homens saíram da tenda e voltaram para o carro, bem decididos a tudo fazer para dar uma lição àqueles dois loucos que julgavam poder opor‑se à omnipotência da administração fiscal alemã. Tudo está arranjado para que, no fim, seja ela a ter o braço mais longo. O Fisco nunca se esquece de quem tiver ousado resistir‑lhe nem que tenha sido só por uma vez e com razão manifesta.

à tarde, Roemer apareceu como habitualmente em casa dos Doerinck. Depois de ouvir Corina contar o que acontecera, cedeu uma vez mais ao seu mau temperamento e, resfolegando como um paquiderme furioso, precipitou‑se para o telefone e pediu a administração das finanças de M'nster. Como o director se encontrava ausente, o subdirector afirmou que não estava ao corrente de nada e que, aliás, os dois funcionários em questão não tinham ainda feito o seu relatório.

‑ Isto vai ter implicações judiciais, garanto‑lhe! ‑ exclamou Roemer. Quando se acalmou, teve de reconhecer que a sua intervenção só poderia ter um efeito negativo. ‑ No nosso mundo ocidental existem duas divindades todo‑poderosas ‑ declarou solenemente ‑: o corpo médico, a "cidadela", como lhe chamou um romancista célebre, e, ainda mais poderosa, a administração fiscal.

O professor Van Meersel telefonou da Holanda para felicitar Corina por causa do convite para ir a Moscovo. Estava entusiasmado. Em primeiro lugar, porque, na sua opinião, Corina ia ser recebida pelos melhores investigadores do mundo em matéria de parapsicologia, e também porque queria confirmar o desaparecimento total do seu tique nasal, subsequente ao tratamento dispensado pela rapariga. A seguir acrescentou algo que dissipou as últimas dúvidas de Corina. Marikje Kerselaar, a curandeira que mantinha relações estreitas com a família real da Holanda, havia sido vítima, há quatro dias, de uma crise de nervos tal que fora hospitalizada de urgência. Tinha perdido completamente a razão. Um exame geral permitira descobrir que sofria duma doença incurável: um mieloma múltiplo...

Corina ficou muda por um instante, com a cabeça inclinada para a frente.

‑ Então foi ela quem cá veio ‑ acabou por dizer. ‑ Não me disse o nome. Mas preveni‑a de que sofria de um mieloma múltiplo...

‑ É fenomenal. ‑ exclamou Van Meersel.

Não podia ver que Corina, com os lábios fechados e de repente muito pálida, respirava dificilmente pelo nariz.

‑ Acontece‑me cada vez com mais frequência ter medo de mim mesma ‑ acabou por explicar. ‑ Quase poderia pensar que lhe roguei uma praga...


Inconscientemente, estava a relacionar este facto com a análise realizada no laboratório da Polícia judiciária de Wiesbaden: já se conhecia qual era a natureza do veneno muito raro que matara Molly. O tubérculo quase desconhecido de que provinha só crescia em Bornéti e em Sulawesi, nas antigas Celebes: os indígenas ainda há poucos anos se serviam dele para ervar as flechas de zarabatana. No seu relatório, o inspector Hellwig confessava a sua incapacidade para chegar a uma conclusão. Nenhum habitante de Hellenbrand tinha algum dia possuído uma zarabatana ou viajado até à Indonésia. Ele Pensara naturalmente numa das numerosas pessoas vindas de fora, por exemplo da Holanda, antiga metrópole de Bornéu e das Celebes. Mas a maior parte dos doentes de Corina preferiam manter o anonimato. Esta pista, à partida incerta, conduzia portanto a um impasse.

No entanto, as colunas de carros e de autocarros cheios de doentes continuavam a convergir para Hellenbrand, que se transformara numa verdadeira Meca. As pessoas vinham de todos os cantos do país, da Bélgica, da Holanda e até de França, onde, com grande alarde de publicidade na imprensa, os homens de negócios organizavam viagens com tudo incluido: a viagem, a estada e a visita gratuita à curandeira das "mãos irradiantes"! Estes "turistas" voltavam para casa com uma bebedeira de cerveja forte, aguardente e vinhos de Mosela e do Reno, vomitando e cantando como loucos no autocarro. Entretanto, tinham chegado de Moscovo as confirmações oficiais. Todas vinham ao encontro dos desejos de Corina. Os passaportes, decorados com magníficos carimbos soviéticos ‑ os Russos adoram todas as espécies de carimbos, sentindo por eles uma espécie de veneração ‑, tinham‑lhes sido devolvidos pelo correio quase ao mesmo tempo que os bilhetes de avião. Stefan Doerinck tinha‑os agitado alegremente na mão...

‑ Partida de Francoforte dentro de seis dias, num avião da Aeroflot! Finalmente, vou voltar a Moscovo. Em mil novecentos e quarenta e dois fiz parte da tropa que lá ficou bloqueada pela neve, sem comida de nenhuma espécie e sem roupa de Inverno apropriada. Na altura só vi de longe as grandes avenidas de Moscovo. Foi preciso esperar até agora...

Roemer deu uma gargalhada sarcástica.

‑ Os Russos são muito susceptíveis em relação a isso, meu caro. Se estivesse no teu lugar, não me arriscaria com esse tipo de brincadeiras.

‑ Sabem perfeitamente que, sendo um simples tenente, acabei por fazer as vezes de chefe de batalhão durante a nossa longa retirada e que me conduzi corajosamente. Também sabem que a Ludinila é filha do doutor Assanurian, que era conhecido pelas suas curas milagrosas, dom que, Deus lá sabe como, foi transmitido a Corina. Contam estabelecer, graças a ela, que a energia bioplasmática é um fenómeno hereditário de ordem genética e, consequentemente, que é natural e imortal enquanto houver seres humanos, visto fazer parte deles, bastando apenas defini‑lo e cultivá‑lo...

Não tinha de se preocupar com licenças, visto já lhe terem concedido uma por razões de saúde. Ao princípio julgara poder lutar contra aquela decisão que lhe continuava a parecer inédita: durante três dias seguidos, o reitor Ferdinand HUPP ‑ "tremendo nas calças", dizia Doerinck ‑ vira‑o chegar de manhã e dar aulas como se nada se tivesse passado.

‑ A tua teimosia vai deitar‑te a perder ‑ gemera. ‑ já te deste conta de que és pago para não fazeres nada? Isso é o sonho de tantos...

- Não sou nem um oportunista nem um mendigo. Ganho honestamente o meu dinheiro ‑ respondera.


Ao quarto dia, no entanto, renunciara a lutar. Despediu‑se dos alunos como se nunca mais voltasse. Estes, sabendo pelos media, tal como os seus pais, que ele partia em breve para a URSS, tinham‑se levantado de repente e entoado o velho hino alemão: "Aquele a quem Deus concede os seus justos favores, é enviado por Ele através do vasto mundo!... "

Ao deixar a escola quase chorara... Vinte e seis anos de leais serviços recompensados desta maneira, pensara, indignado. Quando entrou em casa, instalou‑se na cadeira habitual e estendeu as pernas.

‑ Os velhos cães deixam‑se morrer diante do lume ‑ declarou melancolicamente.

Apesar de lhe oferecerem os bolos mais tentadores, não tinha comido nada em todo o dia, deixando a Roemer e ao Dr. Hambach o cuidado de limpar os pratos.

Agora, tudo estava longe: o avião sobrevoava as florestas sombrias de Cheremetievo, por trás das quais fica o aeroporto de Moscovo. No momento em que as rodas do aparelho tocaram o solo russo, Ludimilla, como teria feito a sua mãe, fez um grande sinal‑da‑cruz: "Senhor Deus e tu, Virgem Maria, protejam‑nos!"

A travagem dos reactores fez vibrar o enorme avião que continuou a andar durante algum tempo diante dos importantes e majestosos edifícios nos quais se destacava em enormes caracteres cirílicos o nome da cidade: MOSKVA.

Estava em Moscovo.

Se tinham pensado serem os únicos a terem de se debater contra a burocracia soviética, depressa se desenganaram. Em nenhum país do mundo há talvez tantos "estatutos especiais".

Enquanto os outros passageiros se dirigiam para o balcão de controlo dos passaportes, viram dirigirem‑se‑lhes dois indivíduos sorridentes, de fato claro, acompanhados por um Oficial da milícia encarregado, evidentemente, de eliminar o mínimo contratempo imprevisto.

‑ Doutor Latichev... Doutor Boganorov. ‑ Apertaram a mão de Ludmila e inclinaram‑se simplesmente diante de cada um dos membros da sua "comitiva". ‑ Sejam bem‑vindos a Moscovo. Trazem convosco um tempo esplêndido. Ainda ontem chovia. É bom sinal.

Tudo isto foi dito num alemão quase sem sotaque. A seguir, o Dr. Latichev acrescentou algumas palavras que confirmaram a boa impressão que Stefan Doerinck já tinha.

‑ Não têm de se preocupar com os passaportes, com a alfândega ou com as bagagens. Vamos esperá‑los numa sala à parte onde estas senhoras poderão tomar refrescos e estes senhores provar a nossa vodca...

‑ Aí está uma boa ideia ‑ exclamou o Dr. Hambach, enquanto Marius, que sentiu um novo enjoo, pensou: "Se a Rússia é isto, é aqui que vão ter de me enterrar." Convidado por uma piscadela de olhos discreta dum dos cientistas, o oficial de milícia, que abandonara subitamente o seu ar de indiferença, esboçou um largo sorriso só à ideia de participar nas libações.


A pequena sala para onde os tinham feito entrar estava mobilada com poltronas estofadas e com mesas. Só tinha porta, pensou Doerinck, e tinha de se carregar num botão que accionava uma campainha para ser aberta do exterior: reconhecia a desconfiança tradicional tipicamente russa a manifestar‑se aqui mesmo em relação a hóspedes de honra. Enquanto o Dr. Latichev tratava das bebidas trazidas de fora por uma hospedeira da Aeroflot, o Dr. Boganorov, sentado entre Corina e Ludmila, conversava amavelmente.

‑ O professor Nerochenko espera‑a com impaciência, Corina Stefanovna. Tudo o que lemos sobre si nos espantou verdadeiramente. Ouviram falar na nossa Djuna Davitaclivili?

‑ Na Alemanha escreveram‑se numerosos artigos sobre ela.

‑ Ela também é de origem caucasiana, como você, Ludmila Davidovna. Nasceu em Kuban, que é uma pequena aldeia cujos habitantes a iam visitar para serem tratados quando ela era ainda uma criança. Agia por instinto, tal como você, por imposição das mãos, Corina...

Interrompeu‑se um instante para beber um golo enquanto Marius se sentia de novo bastante mal.

‑ Aos catorze anos partiu com toda a família para Tíflis, essa grande cidade. Queria ser uma jovem como as outras, de maneira que trabalhou primeiro como operadora de filmes e a seguir como criada de café. Mas o seu dom não a deixou descansada. Teve de se ocupar de ginástica médica num hospital. Um camarada importante fê‑la vir até Moscovo, onde se tornou célebre perante o mundo inteiro.

- Na Alemanha diz‑se que esse camarada importante era o próprio Brejnev.

‑ isso é aquilo a que chamamos a pura propaganda capitalista. Djuna recebe actualmente os doentes em casa e trabalha igualmente nos hospitais...

‑ No nosso país ‑ interveio amargamente o Dr. Hambach ‑ organizaram uma verdadeira caça às bruxas contra Corina. Os médicos são seus inimigos fidagais.

- É curioso... quando o renome de Djuna se espalhou em todo o país, foram justamente as maiores autoridades do campo médico que acolheram e estudaram com entusiasmo aquele conjunto de fenómenos. Toda a gente participou! O Instituto de Fisiologia, o grupo de investigação do professor Alexandre Gurvitch, o instituto do célebre professor Venjamine Puchkine, os investigadores Iviuchine e Grichenko, de AIma‑Ata, e a equipa do professor Navinov, director do Congresso para a Investigação Parapsicológica de Moscovo. Todos se interessaram pelo caso de Djuna e puseram os seus dons à prova. Nós vamos agir da mesma maneira consigo, Corina Stefanovna. Os melhores cientistas do professor Nerochenko já estão reunidos. Não fique muito orgulhosa, mas, segundo o que sabemos de si, eles contam obter resultados ainda superiores aos que obtiveram com Djuna...

‑ Não sinto nenhum orgulho. Eu própria não compreendo o que se passa em mim. Os meus dedos "vêem" o mal e a irradiação que de mim escapa destrói as células doentes, restabelecendo equilíbrio geral do organismo.


‑ É exactamente isso. ‑ O Dr. Boganorov encheu outra vez os copos. ‑ Vão ajudar‑nos a convencer os que negam os poderes misteriosos do ser humano. Até agora só descobrimos partes isoladas do edifício. A realidade deve ultrapassar tudo o que imaginamos. O tempo, por exemplo, que já era considerado relativo por Einstein, tem de nos comunicar os seus segredos. Sabemos que o tempo pára à velocidade da luz e que os relógios ficam imóveis. Mas a uma velocidade superior à da luz, o tempo deveria, consequentemente, recuar. O homem nunca poderá penetrar nesse universo de seis dimensões, mas o seu espírito, o seu campo de forças, sim! É por isso que precisamos de si! Você é um dos elementos do imenso mosaico duma nova visão do universo.

‑ Peço desculpa ‑ disse Stefan Doerinck ‑, mas acho isso tão fantástico que não consigo acreditar.

O Dr. Boganorov fez um grande sorriso.

‑ Ninguém o censurará por duvidar. Essa é uma visão normal, humana, da realidade. É preciso ter um cérebro como o do professor Nerochenko para conceber dimensões diferentes daquelas em que vivemos.

Vinte minutos depois, todas as formalidades estavam cumpridas. Um miliciano trouxera todos os passaportes e anunciara que as bagagens se encontravam já na mala de um carro que se encontrava sob a vigilância de um empregado da Aeroflot, visto que na Rússia também podem desaparecer malas e ainda mais quando têm a qualidade das que chegam do ocidente...

‑ O Hotel Metropol, onde ficarão hospedados, fica na Praça Marksa, no coração de Moscovo, mesmo em frente do Teatro Bolchoi. Vão ficar voltados para o Kremlin. ‑ o Dr. Latichev lançou um olhar cúmplice a Stefan Doerinck e ao Dr. Hambach. ‑ E o hotel tem um óptimo restaurante. Ficarão satisfeitos.

o trajecto foi feito numa grande limusina Volga, com matrícula especial, através de florestas e de campos semeados de datchas, atravessando largas estradas. Em cada canto estavam polícias a orientar o trânsito.

Pararam um instante diante do monumento comemorativo da agressão alemã. Doerinck teve vontade de dizer que, um pouco a sul daquele sítio, tinha vivido alguns dias enterrado numa cratera de obus, pensando não sobreviver à crueldade do Inverno. Tinha visto os membros gelados de vários dos seus camaradas quebrarem‑se como se fossem vidro. Enterrado no seu buraco de homem e envolto em dois cobertores, tinha pensado pela primeira vez que a Rússia, protegida pela sua vastidão e pelo seu clima, nunca seria vencida...

A seguir surgiram ao longe as torres de Moscovo, brilhando ao sol ‑ Ludmila agarrou uma vez mais na mão do marido: sim, era Moscovo, o coração da sua pátria de antigamente.

No hall do Hotel Metropol, luxuoso palácio construído entre 1899 e 1903, aproximou‑se deles a sorrir uma bela rapariga discretamente maquilhada. Tinha cabelos de um louro veneziano e estava vestida com um tafficur azul‑claro duma elegância ocidental. O Dr. Boganorov pôs‑lhe a mão no ombro.

‑ Aqui está Soya Igorovna Glebova, que será a vossa intérprete durante toda a vossa estada. Será o vosso anjo bom.

‑ E, naturalmente, o nosso anjo‑da‑guarda ‑ murmurou o Dr. Hambach a Doerinck.

Com a voz peculiar das mulheres eslavas, capaz, teria dito Roemer, de agarrar pelas tripas qualquer homem normal e de fazer esquecer por um momento que era uma encarnação do KGB, a rapariga, sorridente, estava já a ocupar‑se deles.

‑ Bem‑vindos a Moscovo. Podem dar‑me os passaportes, por favor? Não vão precisar deles durante a estada...

‑ Aqui temos o país da liberdade! ‑ resmungou o Dr. Hambach procurando o seu no bolso do casaco.

Apesar de tudo, aquele primeiro contacto com Moscovo era fascinante.

 


o Prof. Maxime Victorovitch Nerochenko não tinha nada o aspecto de ser um grande cientista de reputação internacional. Pequeno, tinha uma enorme barriga e passava sem parar a mão por cima da calva como se quisesse alisar uma cabeleira ausente. Tinha as bochechas avermelhadas dos diabéticos. Os seus colaboradores citavam a sua filha Tatiana, assistente do Instituto Biológico de Odessa. Dois anos antes tinha acompanhado o pai numa viagem de estudo à Papuásia. Como lhes faziam notar que a tribo onde se encontravam tinha praticado o canibalismo até há poucos anos, Tatiana declarara: "O pai nunca se arriscaria a acabar a sua vida como assado, já que eles o teriam antes conservado como fábrica de açúcar... "

O primeiro encontro de Nerochenko com Corina deu‑se no bar do Hotel Metropol. Ela viu‑o dirigir‑se‑lhe com os braços estendidos e gritando num alemão com horrível sotaque:

‑ AH! Cá estás! Natural ainda mais bonito que fotografia! Dá mão direita. ‑ Com efeito, pegou‑lhe na mão direita, que pôs entre as suas e que não mais largou, como se quisesse sentir a irradiação que dela se escapava. Também podia ser que estivesse simplesmente à procura das palavras para construir mais uma frase. Por fim, disse: ‑ Tu melhor que Djuna!

‑ Vê‑la‑ei? ‑ perguntou Corina, interessada.

O Dr. Latichev libertou o chefe da obrigação de falar alemão por cortesia.

‑ Djuna está de férias em Ialta, na Crimeia.

‑ Partimos amanhã para Tcheliabinsk ‑ anunciou alegremente Nerochenko. ‑ Lá, Urales, muita neve... Muito frio.

O Dr. Latichev explicou imediatamente.

‑ O Instituto do professor Nerochenko foi recentemente transferido para Tcheliabinsk, onde teremos bem melhores as possibilidades de trabalho. O Instituto possui o seu próprio

avião e Moscovo só fica a mil e oitocentos quilómetros.

‑ Não compreendo o que dizem ‑ interveio Corina

creio tratar‑se das experiências que me esperam.

O Prof. Nerochenko dirigiu‑se subitamente a Ludmila,

desta vez em russo.

‑ A senhora também me interessa!

‑ Sou apenas a mãe de Corina, jospodína, professor.

‑ A mãe de Corina é a filha do doutor David Assanurian.

Que homem! Poderia ter ajudado a transformar o mundo. Infelizmente, as autoridades, imbecis, mandaram‑no para a Sibéria, onde acabou por ser morto por um marido ciumento

cuja mulher andava a tratar! Que desperdício! Mas ele continua a viver em si e na neta. Encontra‑se à nossa volta, noutras dimensões.

A um canto do bar, Marius, que não tocara no seu

copo de aguardente do Cáticaso, lutava contra o sono e as pálpebras fechavam‑se‑lhe sem ele querer.

‑ Porque é que este rapaz também veio? ‑ perguntou

Nerochenko a Ludmila.

‑ Sofre dum cancro do estômago e a minha filha está a

tratá‑lo. E ama‑o. Ele pinta. Tem muito talento.

‑ Nunca sentiu em si uma força secreta, Ludinila Davidovna?

‑ Nunca. Mas sempre tive a curiosa impressão de viver

com o meu pai, como se ele fosse entrar por aquela porta.

Nunca pensei que ele estava realmente morto. Penso muitas

vezes que a porta se vai abrir e que ele vai aparecer com o seu grande sobretudo de Inverno, que lhe tapava as pernas até

aos tornozelos, e dizer‑me na sua voz profundamente baixa:

"Quem é que vai trazer‑me imediatamente uma boa chávena


de chá? Tenho uma destas sedes... "

‑ E é o que se passa, na realidade. Neste momento ele está sentado perto de si a olhar para a neta. Vamos viver dias extraordinários em Tcheliabinsk!

‑ O que é que ele diz? ‑ murmurou o Dr. Hambach a Stefan Doerinck.

‑ Digo‑te depois...

Seguira apaixonadamente a conversa da mulher com o professor e, num russo que devia ser tão execrável como o ale' mão de Nerochenko, perguntou:

‑ Que espécie de experiências é que fez, professor?

‑ Científicas. às vezes perigosas. Mas interrompemos sempre a experiência antes de a situação se tornar crítica.

‑ Com efeito, trata‑se das experiências que vamos fazer consigo ‑ explicou o Dr. Latichev.

‑ Bem me parecia. ‑ Endireitou‑se e, a sorrir, estendeu a mão a Nerochenko. ‑ O que quer que exijam de mim, fá‑lo‑ei! Quero descobrir quem sou.

Durante a noite telefonaram para Hellenbrand. Para sua grande surpresa, Roemer, que na ausência deles vigiava três casas ‑ a dos Doerinck, a do Dr. Hambach e a tenda

respondeu instantaneamente:

‑ O Willbreit está ao meu lado. A sua consciência profissional incitou‑o a acorrer assim que soube que já cá não estavam. Estamos a embebedar‑nos com água mineral para festejar uma feliz novidade: o Thomas trouxe‑me a cópia do pedido de divórcio da Elise: descrevem‑me, utilizando termos jurídicos que apreciei imenso, como um objecto de terror! Naturalmente, não vou protestar. Outra coisa: falei com o procurador. Disse‑lhe que se queria cobrir‑se de ridículo só tinha de instruir com o maior cuidado e a maior objectividade as queixas apresentadas contra Corina. Quanto a este pobre Willbreit, ficou completamente abatido ao comprovar que estou curado. Para o convencer, fiz‑lhe uma demonstração de rock durante a qual, infelizmente, parti uma das tuas cadeiras que me estava a servir de par, Stefan.

‑ E que mais? ‑ perguntou Corina a rir.

‑ Ora bem, a vaga de doentes diminuiu, mas continuam a vir. Perguntam se a Corina Doerinck não deixou um lenço, Um bocado de tecido ou de papel em que tenha tocado! Então, pus‑me a distribuir bocados de papel! Diante de mim, houve uma mulher que pôs cuidadosamente um entre os seios, que muito admirei.

‑ Isso não lhe vai fazer mal e, por vezes, até se obtêm milagres ‑ disse Corina.

‑ Felizmente que Willbreit não nos ouve, Corina. Cairia da cadeira. Que acham de Moscovo?

‑ Ainda quase não vimos nada.

‑ Estive aí há três anos. A propósito, esqueci‑me de dar uma boa morada ao amigo Hambach: o número nove da Uliza Babiegoirodski... é uma coisa grandiosa, só com raparigas tártaras!

Corina desligou.

Manifestamente, tudo estava a seguir o curso habitual em Hellenbrand.

A bela Soya Igorovna já estava à espera deles na sala do pequeno‑almoço. O Dr. Hambach mostrou‑se imediatamente bastante caloroso. Parecia ter rejuvenescido vários anos.


‑ Se as manhãs de Moscovo começam assim, como é que será o resto do dia! ‑ declarou.

- Apanhamos o avião cerca do meio‑dia para Tcheliabinsk ‑ anunciou Soya Igorovna. ‑ Mandei vir um autocarro para vos proporcionar uma primeira impressão da cidade e a seguir vamos procurar o professor Nerochenko à Academia das Ciências.

Depois de uma rápida volta pelas grandes avenidas de Moscovo, tiveram de ir ter com Nerochenko, antes mesmo de terem podido visitar o Kremlin.

Nerochenko transbordava de energia. Beijou Corina e Ludmila nas duas faces, apertou Doerinck, Marius e o Dr. Hambach nos braços e bateu com a ponta dos dedos na face de Soya Igorovna.

‑ Está tudo pronto. Vamos depressa ao Instituto Fisiológico. Vamos proceder às primeiras medições. Vão conhecer um membro do Conselho Supremo, o camarada Katoviev. Vai cumprimentá‑los em nome do partido.

‑ E o passeio que estava previsto em Moscovo?

‑ Moscovo está aqui há muito tempo e ainda cá estará dentro de dois mil anos. Reencontrá‑lo‑emos, pois. Mas o tempo voa e nós ainda não sabemos retê‑lo. Moscovo pertencer‑vos‑á assim que terminarmos o nosso programa.

Os dois grandes Volgas rodaram a par até um edifício moderno que se estendia à sombra da Universidade de Lornonosov, que é a mais alta do mundo. A sua torre central tem duzentos e quarenta metros. Também é a maior do mundo: tem vinte e oito andares de anfiteatros, de salas, de laboratórios e de bibliotecas.

à entrada do instituto, esperavam‑nos vários investigadores de bata branca que cumprimentaram Corina como se ela fosse uma amiga de longa data. Nerochenko, infatigável, quase corria diante de toda a gente em cima das suas pequenas pernas ao longo de imensos corredores impecavelmente limpos. Foi o primeiro a entrar numa grande sala onde se encontravam vários instrumentos. Corina só reconheceu logo dois: um cardiógrafo e um encefalógrafo.

‑ Não percamos tempo com discursos preparatórios - disse ele. ‑ Vou proceder consigo às mesmas medições que fiz a Djuna... Minha querida Corina Stefanovna, desapareça por trás deste biombo. Vai lá encontrar um fato de banho. Pensámos em tudo: deve estar‑lhe bom.

Soya traduziu em voz baixa, o que fez dizer ao Dr. Hambach:

‑ Os nossos camaradas soviéticos associam decididamente a ciência ao prazer dos olhos.

Com efeito, fez‑se silêncio quando Corina reapareceu ao fim de alguns minutos num encantador biquini que realçava o seu físico verdadeiramente espantoso. Marius teve até um sobressalto de ciúme, que não ousou exprimir. É como se estivesse nua, pensou. Naquele momento uma câmara de televisão começava já a filmar; um aparelho com três microfones orientáveis estava a ser colocado por cima da cabeça de Corina, pronto a registar os comentários de Nerochenko e qualquer outro ruído eventual. Soya Igorovna continuava a traduzir em voz baixa as palavras do Prof. Nerochenko. Stefan congratulava‑se por ter alimentado o seu conhecimento do russo com a ajuda de Ludmila.

‑ O tecido do biquini de Corina é de pura lã neutra e, portanto, não apresenta nenhuma reacção electromagnética. Agora, Corina, lave as mãos.


Um dos assistentes guiou Corina, que era seguida pela câmara e pelos microfones, até uma grande bacia repleta com uma solução leitosa com um forte cheiro a tomilho, na qual ela mergulhou os braços até aos cotovelos. Imóvel, deixou‑os mergulhados até Nerochenko fazer sinal. O pequeno russo tinha ficado repentinamente muito grave. Sem se secar, Corina sentou‑se a seguir diante duma longa mesa onde estavam dispostos vários copos, uma caixa de fósforos, uma bússola, alianças de ouro, três bolas metálicas de diferente grossura, algumas folhas de papel e duas tigelas de porcelana. Corina abanou mais uma vez as mãos para lhes tirar o excesso de humidade.

‑ As mãos de Corina estão a partir de agora completamente isoladas ‑ disse de repente Nerochenko. ‑ É impossível que contenham uma só partícula magnética ou de utilizar um subterfúgio qualquer. Corina Stefanovna pode agora utilizar a irradiação da sua energia psíquica para criar um campo de forças que vai pôr em movimento os objectos que vêem sobre a mesa e que estão aparentemente mortos. Digo "aparentemente", porque, na realidade, tudo vive, tudo se compõe de átomos e de moléculas que se recompõem constantemente. Tudo é movimento em nós e à nossa volta, só que os nossos olhos imperfeitos são incapazes de distinguir. A psicocinesia (chamem‑lhe biocomunicação ou campo bioplasmático, se quiserem) permite concentrar subitamente a energia psíquica...

Interrompeu‑se bruscamente para se dirigir a Corina em alemão:

‑ Está bem?

Corina aquiesceu com um aceno de cabeça. Há já um momento que tinha fechado os olhos. A seguir, dum só lance, sentiu‑se como se se tivesse expandido às dimensões múltiplas dum infinito indescritível. No momento em que abriu de novo os olhos, o copo mais próximo dela e que ela viu primeiro rebentou com um barulho seco. Na sala houve uma espécie de estremecimento. O Dr. Hambach engoliu a saliva, Doerinck sentiu a cara a arder. Soya Igorovna, crispada, olhava fixamente para a mesa e todos ouviram Marius Herbert murmurar algumas palavras indistintas.

Continuou‑se. Como Corina se tinha inclinado para a frente com os braços estendidos, as alianças de ouro começaram a deslizar sobre a madeira lisa da mesa. Depois chegou a vez das tigelas de porcelana, das folhas de papel, que se voltaram, e da agulha da bússola, que, descontrolada, se pôs a girar nove vezes de seguida. E as bolas de metal elevaram‑se no ar, a dois centímetros da mesa. Era claro que nenhum dos que aí se encontravam tinha já assistido a um espectáculo daqueles. Nerochenko pegou na caixa de fósforos e esvaziou‑a em cima da mesa. Os bocados de madeira começaram a mexer‑se, a deslizar, a elevarem‑se e a formarem um monte, obedecendo à força invisível que os comandava. Para terminar, Corina estendeu mais uma vez as suas mãos e um grande copo, o maior de todos, desintegrou‑se em mil bocados como se estivesse carregado com pólvora.

Bruscamente, as mãos de Corina tombaram‑lhe pesadamente ao longo das ancas e todos a viram vacilar, prestes a cair. O pai precipitou‑se para a suster.

‑ Cigarros, depressa! ‑ gritou em russo.

Um dos assistentes saiu do seu pasmo para gaguejar:

‑ Mas é proibido fumar.

‑ Então é o fim das experiências! ‑ gritou Doerinck.

‑ Dêem‑lhe um cigarro, depressa! ‑ ordenou Nerochenko. ‑ Esta necessidade de nicotina é em si mesma interessante...


Marius dera também um salto na direcção de Corina, mas os seus joelhos tremiam de tal maneira que teve de se sentar.

‑ É um assassínio ‑ gaguejou.

Apesar de não esconder a emoção, Nerochenko voltara a ser o cientista que só pensa na sua tarefa.

‑ Devemos agora proceder, sem perca de tempo, a controlos e a gravações diversos; vários encefalogramas e cardiogramas e, por exemplo, à medição da taxa de açúcar no sangue...

Estava a falar calma e friamente ao microfone, anotando cada resultado com palavras simples destinadas ao grande público de amanhã.

- O coração e o cérebro estão profundamente perturbados. O coração sofre de arritmia e o traçado dos encefalogramas testemunha uma extraordinária excitação emotiva. É como se a energia misteriosa que existe em Corina Stefanovna tivesse necessidade de todas as forças físicas dela para se concretizar. O campo de forças do cérebro posterior e do cérebro anterior diferem geralmente numa proporção de três para um. No caso da Corina Stefanovna Doerinck, o campo de forças do cérebro posterior é cinquenta e três vezes mais potente do que o do cérebro anterior! É absolutamente inacreditável! É um exemplo sem precedentes de energia psicocinética.

O resultado destas primeiras experiências era, portanto, sensacional: provavam que a irradiação das mãos de Corina não tinham nada de fantástico e que se podia medi‑la e torná‑la visível com instrumentos de física apropriados.

Nerochenko, sem já conseguir esconder a emoção que sentia, aproximou‑se de Corina, que, enrolada em si mesma, estava já a inalar o seu terceiro cigarro.

‑ És excepcional, minha filha. Graças a ti vamos penetrar em dimensões que até agora pareciam interditas ao homem. - A seguir, dirigiu‑se aos operadores. ‑ Naturalmente, suprimam estas últimas palavras: temos de ficar dentro do campo científico!

às 15 horas partiram do aeroporto de Vmikovo rumo a Tcheliabinsk. A organização continuava a ser impecável. Tinham encontrado as bagagens já no avião. Soya recuperara os passaportes e o embarque processou‑se sem controlo. Apenas viram dois polícias que estavam de guarda ao avião e que os saudaram amavelmente.

O piloto trazia um uniforme que não indicava a sua categoria. Durante o trajecto, Soya Igorovna ia desempenhar com perfeição o seu papel de hospedeira.

A três mil metros de altitude conseguiam ver desfilar lentamente florestas imensas, campos sem limites, uma paisagem tão depressa plana como ondulada, pradarias e estepes, aldeias e pequenos burgos, estradas e caminhos que se perdiam ao longe. O conjunto dava uma impressão de vazio, de silêncio e de solidão. Só as vias‑férreas, onde longas serpentes negras pareciam arrastar‑se, quebraram aquela imobilidade aparente. A seguir a Cazã, o avião subiu até quatro mil metros e o chão cobriu‑se de branco: eram as primeiras neves do Inverno.

Corina pousou a mão em cima do joelho de Marius, que estava sentado perto dela.

‑ Tenho de te anunciar uma coisa: não tive o período.

Ele olhou‑a estupefacto, gaguejando involuntariamente.


‑ Não é possível. Talvez seja da excitação da viagem ou da mudança de clima...

‑ Não...

Do outro lado do estreito corredor, Doerinck inclinou‑se para eles.

‑ O que é que se passa? Estão a ver qualquer coisa de particular?

‑ Não, papuchka. ‑ Ela encostou‑se para trás na cadeira com um sorriso feliz. ‑ Estou a alegrar‑me só de pensar no que se vai seguir... Talvez vá, finalmente, descobrir quem sou...

Não se perde nada em não conhecer Tcheliabinsk.

Em contrapartida, numerosos são os que se lembram de Sverdlovsk, mais a norte e mais importante, onde ficava outrora uma das centrais dos campos de deportação da Sibéria. Ainda hoje é em Sverdlovsk que está estabelecida a administração principal dos Gulags que controla e gere os campos penitenciários e os campos de trabalho.

Tcheliabinsk, situada na vertente leste dos Urales, interessa‑se muito pouco pela sua grande vizinha. Como todas as cidades siberianas, compõe‑se duma cidade nova com unidade de habitação de estilo oficial soviético, com ruas largas, um oásis de árvores com bancos para as pessoas se sentarem, um parque do povo, um teatro, um grande número de estabelecimentos escolares, uma luxuosa casa do povo e um estádio: tudo o que é necessário para satisfazer os habitantes. Também há a velha cidade moribunda com as suas belas casas de madeira; os frisos esculpidos das portas e das janelas, com as cornijas pintadas, cada uma rodeada por um jardim separado dos outros por uma paliçada de toros. Tudo isso vai sendo, infelizmente, substituído pouco a pouco pelo moderno.

Na periferia da cidade, as ruas, por altura do degelo das neves da Primavera e sob as grandes chuvas do Outono, perdem‑se em oceanos de lama e, no Verão, transformam‑se em pistas sufocantes de pó. Só no Inverno se pisa um solo gelado, mas, no entanto, mais ou menos firme. Foi aí que se construiu o instituto do professor Nerochenko, reforçado com aço, betão armado e vidro isolante, rodeado por muralhas como uma fortaleza, e onde cento e vinte e três jovens cientistas trabalham na tarefa mais extraordinária do mundo: transformar totalmente a nossa concepção das dimensões do Universo pela psicocinesia e pela biocomunicação.


O avião aterrou numa pista salpicada de neve. Sob a brisa glacial, Nerochenko esfregou alegremente as mãos: não gostava muito de Moscovo, ao passo que aqui se sentia em casa. Poucas pessoas, mesmo as da Academia das Ciências, compreendiam alguma coisa da sua investigação. Certos funcionários batiam na testa com o indicador ao falarem do Instituto de Tcheliabinsk: "Aquela gente evoca os espíritos e quer falar com o de Lenine... ", dizia‑se às vezes, e criticava‑se o facto de o Estado continuar a gastar rublos naquele género de fantasias... Mas os que estavam mais bem informados falavam de eventuais aplicações no domínio militar. Nerochenko não tinha nada a ver com os burocratas de Sverdiovsk e de Tcheliabinsk: consideravam‑no uma personalidade de grande estatura que tratava directamente com Moscovo e que contribuía para o prestígio da cidade. Pelo contrário, deviam era prestar‑lhe honras. Durante uma conferência na casa do povo sobre a hipnose e a telepatia, ele tinha hipnotizado um dos membros do Soviete Municipal, o camarada Marat Leonidovitch Roikov, que, tendo subido ao palco diante de mais de mil espectadores, deixara cair as calças até aos tornozelos. Resumindo, em Tcheliabinsk, Nerochenko era um reizinho, presidindo a um número cada vez maior de associações.

No avião tinha prevenido os seus hóspedes.

‑ Vimos do Verão e vamos enfrentar o Inverno e nada é mais desagradável do que ter um membro gelado. As minhas assistentes vão trazer‑lhes casacos de pele confeccionados segundo as indicações do doutor Boganorov, que deve ter tirado as medidas a cada um de vós. Raposa! Eu prefiro a pele de cão, mas no Ocidente tem‑se repugnância em utilizar a pele dos nossos fiéis companheiros...

Com efeito, as duas assistentes, uma russa loura do Norte e uma tungunza de salientes malares, olhos rasgados e cabelos de ébano, tinham‑se precipitado para dentro do aparelho chamando em voz alta:

‑ Doutor Hambach... Gospodine Doerinck... Gospocha Corina... Ludmila Davidovna... Gospodine Herbert... ‑ ajudando cada um a enfiar o seu casaco.

Entretanto, todos os soviéticos vestiam as suas peles de cão, menos Soya Igorovna, que tinha tido direito a uma maravilha de um casaco de raposa‑azul.

O trajecto no pequeno autocarro teve rasgos de aventura. O veículo derrapava, dançava aqui e ali batendo fortemente nos carreiros cujas profundas faces internas, feitas da lama do Outono, já estavam geladas. Seria necessário muito mais do que isso para perturbar o motorista siberiano, habituado desde sempre a fazer frente àqueles obstáculos naturais e periódicos.

No interior do instituto tudo era diferente: as salas eram claras e quentes e duma limpeza clínica. à entrada, os sapatos foram desembaraçados do mínimo grão de poeira e da neve por escovas rotativas com comandos eléctricos. Os seus pés tinham sido então invadidos por uma impressão de calor enquanto lhes subia às narinas um forte cheiro a fenol. Nerochenko explicara, a rir:

‑ Já estamos desinfectados, mas não esterilizados. Não receiem nada!

Os quartos destinados a Corina e aos outros alemães ficavam num edifício anexo ao qual tiveram acesso por uma passagem exterior envidraçada. Nerochenko e o seu assistente, o Dr. Boganorov, também lá moravam. Todos os seus colaboradores viviam na cidade com a família. Só cinco deles tinham um carro particular à sua disposição, já que o pequeno autocarro assegurava os serviços regulares para todos os outros. No Verão, a maior parte utilizava bicicletas.


Durante uma viagem à China, Nerochenko tinha assistido espantado à ginástica matinal do pessoal de todas as administrações. Tinha voltado convencido de que era necessário assegurar uma forma perfeita ao corpo, esse habitáculo dum espírito que ele tentava definir. Por isso, instituíra sessões obrigatórias de shadow boxing chinês, em que todos os movimentos são feitos ao ralenti. Primeiro cochichou‑se que ele estava a sofrer de senilidade precoce e a seguir todos se tinham habituado e reconhecido que ao fim de vinte minutos daquele tipo de exercício se sentiam mais despertos, tanto física como mentalmente: entrava‑se no dia de trabalho num estado de espírito diferente.

Os alemães iam descobrir que tudo tinha sido preparado para lhes mostrar a Sibéria sob o seu aspecto mais hospitaleiro. Havia largas camas de madeira com cobertores de lã e de pele de marmota, edredões de penas, cadeiras estofadas, um divã com uma mesa baixa, flores mudadas todos os dias e um rádio. O chão estava coberto por tapetes feitos à mão por nómadas. Os armários rústicos eram de madeira esculpida. Os pormenores eram abundantes e as atenções chegavam a ser tocantes.

Assim que Corina e Marius se tinham fechado no quarto, este precipitou‑se para ela.

‑ Se é certo que vais, que vamos... tem de se interromper esta viagem.

‑ Esperemos pelo próximo mês para termos a certeza absoluta. ‑ Tinha‑se sentado na beira da cama à espera de ir à casa de banho que ficava no primeiro andar e fora logo ocupada pelo Dr. Hambach. ‑ Não estás feliz por eu ir ter um filho?

‑ Estou como se me tivessem batido. E ainda ficarei pior quando o teu pai ficar a saber. E a tua maneira de o dizeres! Tinhas utilizado o mesmo tom indiferente alguns minutos antes quando querias que eu olhasse pela janela: "Olha! Vês aquele cabrito‑montês que corre pela taiga... "

‑ Mas um filho não é uma catástrofe, Marius.

‑ É‑o, quando o pai tem um cancro...

‑ Primeiro, o cancro não é hereditário. E depois o teu cancro está quase seco: os meus dedos encontram cada vez menos resistência. As próximas radiografias vão confirmá‑lo.

‑ Falas como se fôssemos de facto casar‑nos.

‑ Evidentemente. Amo‑te... Amo aquele em que te vais tornar muito rapidamente, o grande pintor Marius Herbert. E a nossa vida vai mudar. Retirar‑nos‑emos para um sítio tranquilo, onde ninguém nos conheça e onde viveremos para nós, num pequeno mundo bem nosso: uma casa, um jardim, um atelier onde só receberemos os meus pais e alguns amigos como o tio Ewald e Erasmus Roemer. Terás um agente para vender os teus quadros e irás de vez em quando encontrar‑te com ele na cidade.

‑ E as tuas mãos irradiantes?

‑ Esquecê‑las‑emos. Quando uma mulher tem um filho, é para ele que ela deve viver antes de mais.

‑ Como conseguirás resistir à visão dum doente que sofre? E depois das experiências de Nerochenko, nunca mais terás repouso. Por isso, tens de lhe falar: tens de lhe dizer que não podes continuar.

‑ É demasiado tarde, Marius. Estamos aqui a expensas do Estado soviético a fim de efectuar determinado trabalho. Tem de se ser honesto. ‑ Olhava para a frente, com as maçãs do rosto repentinamente mais salientes, como se fossem iluminadas do interior. ‑ E quero ir até ao fim. É a primeira vez que vou poder manifestar tudo o que existe em mim. Quero conhecer os meus limites, percebes?

‑ E se o teu poder não tiver limites?

‑ É impossível. Sou apenas um ser humano, Marius.


‑ Como diz Nerochenko, és uma das raras pessoas a poder abrir uma porta para as outras dimensões do nosso Universo. Soya traduziu‑me quase palavra por palavra o que ele tinha dito sobre o assunto, e parecia estar tão impressionada como eu. Ele quer demonstrar, servindo‑se de ti, que o espírito do homem é imortal. E esta revelação científica virá do país que prega o materialismo histórico! Haveria em nós um campo de forças, uma irradiação, que continua a viver, a agir, e ao qual se pode fazer apelo em certas condições. E tenho medo, Cora. Talvez haja uma barreira que não deva ser ultra passada neste tipo de experiências.

‑ Eu não tenho medo, visto ser exactamente o que vou ficar a saber: até onde posso ir...

‑ Tenho medo, Corina. Durante milhares de anos, os homens viveram num Universo cuja realidade nunca puseram em dúvida, dado a conceberem com mais ou menos facilidade. É verdade que sempre existiu em nós uma certa ansiedade perante o espectáculo do Universo e, portanto, um espírito religioso que se exprimiu através de cultos diferentes e também de sobreposições. Mas tu, Corina, tu vais servir para revelar ao mundo não somente que o tempo e o espaço se confundem, como afirmou Einstein, mas também que esse espaço‑tempo não existe! Como é que podes falar da nossa casa, do nosso jardim e do nosso filho que brincará nele quando vais contribuir para a destruição da nossa concepção do mundo e da segurança que nos permite expandirmo‑nos no interior do que nos parece ser a realidade?

‑ Nunca te ouvi falar assim.

Olhava‑o, repentinamente inquieta. A seguir levantou‑se e foi ter com ele para o beijar longamente, mas ele não conseguiu reprimir a angústia que sentia.

‑ Se soubesses as noites que passei a ler, a estudar e a reflectir antes de te conhecer. E desde que te conheço não houve nada que não tivesse lido dizendo‑te respeito. É por isso que tenho cada vez mais medo, Cora. Se houver uma fronteira que não deva ser transposta... Vamo‑nos embora depressa daqui para podermos levar os dois, nós os três, uma vida normal.

Bateram à porta. A voz do Dr. Hambach fez‑se ouvir.

‑ A casa de banho está livre. Cuidado com a água quente. Não regules a mistura acima dos sessenta graus: é o máximo. Quase queimei o rabo...

‑ Eis a realidade que é para mim compreensível! ‑ disse Marius numa lamúria. ‑ As outras dimensões não conseguirão mudar nada...

A partir da manhã do dia seguinte, Corina teria duras experiências à sua espera.

Primeiro, uma série de análises fundamentais executadas por dois médicos, um homem e uma mulher: análises ao sangue e à urina, novas radiografias ao coração e aos pulmões, novos electrocardiogramas, fotografias Kirlian de alta frequência, etc. Todos estes exames complicados foram executados rapidamente, quase sem barulho, pelos dois Médicos, perfeitamente treinados. Seguiu‑se um exame ginecológico.

‑ Temos de eliminar qualquer possibilidade de controvérsia, Corinnachka ‑ disse Nerochenko. ‑ Não imagina o que as mulheres podem dissimular nas profundezas do sexo: desde a heroína até aos diamantes!

Logo a seguir subiram para o pequeno autocarro, que tomou a estrada das montanhas até ao momento em que a pista se interrompeu diante duma ravina onde a neve acumulada impedia o avanço.

‑ Kanietchnaía stantsiyia! (Término!) ‑ gritou o condutor.


‑ Cá estamos! ‑ anunciou jovialmente Nerochenko. ‑ Lá fora estão vinte e oito graus abaixo de zero! Na Sibéria isto é quase Primavera. ‑ E rindo da sua própria graça, acrescentou: ‑ O doutor Boganorov vai explicar‑vos...

Atrás do deles, tinha parado outro carro. Dele desceram quatro técnicos que traziam uma série de câmaras de filmar e de aparelhos de medida. Puseram‑se imediatamente a tirar a neve às pazadas para formar uma espécie de plataforma onde instalaram todo o equipamento. Só então o Dr. Boganorov tomou a palavra.

‑ Em todas as lendas, baladas e outras tradições populares dos nómadas siberianos se fala de xamãs que possuem faculdades extraordinárias: curas milagrosas, telepatia e dons de prever o futuro e de falar com os animais. E melhor, graças ao que hoje chamamos a sua irradiação bioplasmática, conseguiam abalar algumas leis físicas. Ora, nos nossos dias a maior parte dos cientistas prefere ignorar tudo o que lhe parece incompatível com as doutrinas que lhe ensinaram. E, no entanto, como é que se pode explicar, por exemplo, que todas as religiões representem os seus santos com uma auréola, se não for por uma irradiação tornada visível de repente? Que vemos nos lugares de peregrinação? Muletas de paralíticos que, de repente, voltaram a andar e ex‑votos de doentes inexplicavelmente curados. Do nosso ponto de vista, que é o da investigação psicológica, todos estes factos fazem parte de uma realidade, quer se trate de xamãs, de curandeiros ou de santos que compreendem a linguagem dos animais e falam com estes ou curam doentes com uma simples imposição das mãos. Negar tudo isso globalmente é anticientífico. Nós estudamos esses factos científica e logicamente.

O Dr. Boganorov retomou o fôlego, enquanto Doerinck e o Dr. Hambach trocavam um olhar mudo.

‑ Esses pretensos milagres nunca cessaram e ainda hoje se produzem. Mas até os que neles acreditam só os admitem sob um aspecto religioso, no quadro dum culto, como em Lourdes e em Fátima,. e noutros lugares consagrados a uma entidade, quase sempre feminina, como a Virgem Maria. Mas estes factos são negados e combatidos por todas as autoridades médicas que só aceitam para eles a explicação religiosa e "milagrosa". E, no entanto, Ludmila Davidovna, quando a sua filha a curou dum cancro que estava tão avançado que já quase não era operável, se esse "milagre" se tivesse verificado em Lourdes a imprensa do mundo inteiro ter‑se‑ia apoderado dele e o Vaticano tê‑lo‑ia certamente reconhecido como sendo autêntico. Mas quando se trata somente dum ser humano que realiza um acto destes, em Hellenbrand, uma cidade como as outras, desencadeia‑se imediatamente uma vaga de perseguições, de calúnias e de pressões de toda a espécie: é preciso que aquilo não seja verdade!

‑ Não vai fazer da minha filha uma santa de altar ‑ interveio Doerinck.

‑ Não, não é o que ela é! Ela é a mediadora de uma energia psicocinética latente. Recebe e emite forças de um campo eternamente existente e um dos elementos de ligação que vão permitir‑nos provar que existe, em nós e fora de nós, algo de imortal! - O Dr. Boganorov fez mais uma pausa antes de concluir: - Queremos compreender e fazer compreender o que foi incompreensível até agora.


‑ Aqui, na neve dos montes Urales, com vinte e oito graus abaixo de zero? ‑ exclamou o Dr. Hambach.

Havia uma ironia vincada no tom usado pelo velho céptico.

‑ O que hoje vamos fazer é apenas uma parte do nosso programa. No seu livro O Xamanismo e a Técnica Arcaica do Êxtase, o investigador Mircea Eliade, a quem devemos um estudo exaustivo do xamanismo, escreveu que se tratava "de um fenómeno siberiano e da Ásia central, por excelência". Ora Corina interessa‑nos especialmente por causa do que descobrimos sobre o passado da sua família. O seu pai, Ludmila, o doutor David Semionovitch Assanurian, não foi só um grande médico, mas também um xamã...

‑ Não! ‑ gritou Ludmila. ‑ Engana‑se completamente a respeito do meu pai...

‑ Você era demasiado nova para se aperceber disso.

Mas Ludmila continuou a negar, incomodada, sem dúvida, pela palavra "xamã".

‑ Ajudei‑o frequentemente quando estava a receber os doentes: fervia as seringas e as agulhas, encarregava‑me dos ultravioletas e preparava as inalações...

‑ Mas não estava presente quando ele visitava certos pacientes e quando altos funcionários do partido se introduziam lá em casa, à noite, para serem tratados em segredo por processos inabituais. Apesar de a maior parte já ter morrido, conseguimos mesmo assim encontrar os seus nomes... E o que é que lhes fazia? O que a Corina faz actualmente. Mas sabemos que a muitos doentes só prescrevia placebos, simples comprimidos de cálcio absolutamente anódinos. O que os curava era, ao fim de quatro ou cinco sessões, a emanação das suas mãos. Para lhes desviar a atenção, falava‑lhes enquanto aproximava as mãos da parte do corpo que os fazia sofrer. Segundo a lógica bioplasmática, David Semionovitch está hoje presente na sua filha...

Sem uma palavra, Ludmila olhava para Corina, quase horrorizada.

‑... Mircea Eliade e Evans‑Wentz, o grande especialista do Tibete, descreveram como os xamãs utilizavam em certos casos esta energia que Corina herdou de David Semionovitch. Trata‑se do "calor mágico" ou "calor psíquico", segundo Evans‑Wentz. Aceita prestar‑se a esta experiência, Corina? É uma experiência perigosa, mas nós controlaremos tudo, naturalmente.

‑ já lhe disse: estou pronta a fazer tudo o que quiser.

‑ Primeiro temos de saber o que é exigido dela.

Era Marius Herbert: desde a véspera que parecia transformado. Corina, depois de o ter tratado do cancro que sofria, segurara durante muito tempo a cabeça de Marius entre as mãos. Quando este acordou, sentiu‑se com uma renovada energia psíquica. Assim que viu Soya, pediu‑lhe que procurasse folhas de papel de desenho ou placas de contraplacado. "Quero pintar a cidade velha de Tcheliabinsk debaixo de neve e algumas perspectivas dos Urales. Não preciso de mais nada, já tenho a minha caixa de tintas."

‑ Tenho curiosidade em ver o que vai pintar ‑ respondera ela. ‑ Antes de ser intérprete frequentei durante quatro semestres as aulas da Academia de Belas‑Artes de Moscovo.

E agora ali estava, para surpresa de Doerinck, para proteger Corina.

‑ Oponho‑me a tudo o que possa ser perigoso para ela.


O Dr. Boganorov, igualmente admirado, preferiu não lhe responder e dirigiu‑se directamente a Corina.

‑ Fica incomodada, Corina Stefanovna, se lhe pedirmos que se ponha completamente nua? Deve considerar‑nos, ao professor e a nós todos, objectos totalmente neutros.

Foi a vez de Doerinck intervir.

‑ Para mim e para a mãe, assim como para o doutor Hambach, isso não tem nenhuma importância, mas talvez fosse melhor pôr uma venda a Marius Herbert.

Marius tinha baixado a cabeça e fechado os punhos para conseguir conter‑se. Corina olhou‑o por um instante e disse em voz alta e clara:

‑ Não. É inútil tapar os olhos a Marius. Ele conhece perfeitamente o meu corpo! ‑ E como viu que Doerinck, perante tal confissão, se voltava para Marius com ar revoltado, acrescentou no mesmo tom calmo: ‑ Marius e eu amamo‑nos, pai... Não percamos tempo: que devo fazer, doutor Boganorov?

- Dispa‑se e saia do autocarro.

Desta vez foi o Dr. Hambach quem protestou.

‑ A minha viagem até aqui não teria sentido se não interviesse na minha qualidade de médico. Com vinte e oito graus negativos, é uma perfeita loucura.

‑ Não vai acontecer‑me nada, tio Ewald.

Já tinha começado a despir‑se, ajudada pela mãe, cujos dedos tremiam. Quando ficou nua, Soya estendeu‑lhe o espesso casaco de peles.

‑ Repito que me oponho a tal experiência ‑ disse o Dr. Hambach com a voz estrangulada pela emoção.

Nerochenko e os seus colaboradores já tinham deixado o autocarro e ido direito aos instrumentos de medida colocados sobre a plataforma de neve. Pareciam saídos da Pré‑História, com os seus longos casacos de pêlos eriçados, os gorros de pele, os passa‑montanhas e as lãs que lhes escondiam as caras quase por completo. Doerinck reprimiu um grito ao ver Corina descer do autocarro e andar descalça na neve. Estes russos são loucos, pensou. O Dr. Hambach voltou‑se para ele para lhe implorar:

‑ Stefan, faz qualquer coisa. Esta gente vai matar a tua filha!

Mas ainda antes de ele ter tempo para reagir, já Marius Herbert tinha saltado para fora do autocarro e então precipitaram‑se todos atrás dele.

Stefan doerinck parou quase imediatamente, com a respiração cortada pelo frio, e a impressão de ter recebido uma facada que lhe penetrara até aos pulmões. Como antigamente, pensou, quando só conseguíamos respirar através dum cachecol que se transformava num bocado de gelo em alguns minutos, exactamente por causa da nossa respiração... E a Corina, descalça, decidiu enfrentar este frio assassino. Será possível?

O professor Nerochenko tinha voltado a ser um cientista possuído por uma ideia fixa e cuja autoridade se impunha a todos. Corina tinha sido ligada a uma cardiógrafo portátil e a sua temperatura interna estava também a ser observada electronicamente. O seu rosto parecia petrificado pelo frio e os seus olhos pareciam bruscamente enormes. Apesar de estar descalça, não parecia sofrer com o frio.


‑ Ao que se vai passar damos o nome de "experiência tibetana". A Corina vai tirar o casaco de peles e deitar‑se nua na neve. Tenho aqui cobertores de lã que acabam de ser mergulhados em água e que gelaram imediatamente. Vamos cobrir Corina com eles. A sua energia psíquica vai descongelá‑los. Esta descongelação bastar‑nos‑á. É inútil secá‑los completamente, pois isso exigiria várias horas, o que é supérfluo tendo em conta o que queremos saber. Corina, está pronta?

Ela estava de tal maneira concentrada que se limitou a responder com um sinal da cabeça. O Dr. Hambach estava cada vez mais desesperado. Stefan Doerinck achava‑se petrificado. Ludinila abençoou mais uma vez a filha com um sinal‑da‑Cruz. Só Marius Herbert continuava a resmungar.

‑ Se lhe acontecer alguma coisa, mato‑os, mato‑os a todos.

Soya Igorovna, com o rosto lívido, pegou no casaco de COrina. Guiada por Nerochenko, Corina avançou até à plataforma de neve, onde, depois dum sinal do professor, se estendeu

completamente ao comprido sem um estremecimento sequer.

A seguir, fechou os olhos. Pouco a pouco, a sua respiração tornou‑se visivelmente mais lenta e cada vez menos profunda.

‑ Basta! Basta! ‑ gritou Marius.

Queria precipitar‑se para ela, mas dois dos técnicos, dois colossos siberianos, retiveram‑no sem esforço. Imobilizado, não acreditando ainda nos seus olhos, viu duas assistentes cobrirem o corpo de Corina com os cobertores gelados.

Nerochenko olhou à volta antes de pôr a funcionar a agulha do seu cronómetro. Ludmila tinha‑se ajoelhado na neve perto da filha e rezava. Num silêncio absoluto, impressionante, apenas se escutava o queixume das antigas litanias da Igreja ortodoxa. Ludinila tinha aprendido aquele salmo com a mãe e Deus não poderia deixar de a ouvir.

O silêncio prosseguiu, cada vez mais sufocante, só tendo sido quebrado pelo afastamento de Soya Igorovna, cujos nervos, incapazes de suportar aquele espectáculo, tinham cedido

subitamente.

Os minutos sucediam aos minutos. Nerochenko ia e vinha nervosamente à volta do estranho cadafalso onde Corina repousava. Também ele, apesar da preocupação, sentia o frio glacial que conseguia insinuar‑se sob as roupas grossas. Os dois siberianos, ao fim de vinte minutos, tinham sido obrigados a levar Marius Herbert à força para o autocarro, onde continuava prostrado com a cara entre as mãos. Tinha recusado o copo de vodca que um dos guardas lhe tinha estendido.

‑ Assassinos ‑ limitara‑se a lamuriar. ‑ Assassinos, se lhe acontecer alguma coisa, matá‑los‑ei a todos.

De vez em quando, Boganorov e Latichev ajoelhavam‑se cada um por sua vez para verificar o estado dos cobertores.

De repente, Boganorov levantou a cabeça na direcção de Nerochenko e anunciou com uma voz rouca de emoção:

‑ Os cobertores estão agora a amolecer muito rapidamente... mexem‑se debaixo da minha mão...


Sob o corpo nu de Corina, a neve também tinha mudado de aspecto e a sua transformação estava a acelerar‑se a olhos vistos: primeiro, tornava‑se numa pasta esbranquiçada e a seguir em água clara que enchia a espécie de molde em que o corpo de Corina se enterrava cada vez mais. "Eu sabia, eu sabia", repetia Nerochenko para si mesmo. "Soube‑o a partir do momento em que o detector estabeleceu que o campo de forças do cerebelo posterior era cinquenta e três vezes mais potente do que o do anterior. Assistimos agora à concentração duma energia que existe desde sempre e que é eterna. Corina transpôs a fronteira das nossas três dimensões e do espaço‑tempo. O seu espírito deve agora fazer parte duma esfera em que o universo que conhecemos já não é nada, onde deixa de haver frio para haver apenas uma energia brilhante..."

Já tinha passado uma hora horrivelmente longa para todos, mas mesmo assim bem menos do que previra Nerochenko e os seus assistentes principais. Os cobertores tinham ficado completamente moles; à volta de Corina a água escorria e espalhava‑se por regos cavados à pressa. A um sinal de Nerochenko, Boganorov e Latichev começaram a tirar os cobertores que cobriam Corina e estavam a perder rapidamente a humidade. Mal os levantaram do corpo nu, começaram a fumegar ao reencontrarem a horrível temperatura do exterior. Os dois homens retiraram imediatamente Corina da fossa de neve fundida que se cavara à sua volta. A sua pele estava branca, imaculada e flexível. O Dr. Hambach apercebeu‑se de que estava a morder os punhos através das luvas: o que acabara de ver ultrapassava todas as leis da medicina, da física e da biologia. Corina, segundo a nossa ciência actual, não devia passar dum cadáver gelado, rígido para sempre, repetia consigo mesmo.

E todos viram Corina abrir lentamente os olhos e emitir uma espécie de gemido. O seu olhar ainda estava como que voltado para o infinito donde emergia a pouco e pouco. Nerochenko bateu‑lhe suavemente nas faces, por duas ou três vezes, para acelerar o seu regresso a este mundo. Quando lhe entregaram o casaco, aconchegou‑o à volta do corpo, com súbitos arrepios. Reconhecendo finalmente os que a rodeavam, teve um fraco sorriso e murmurou:

‑ Um cigarro, um cigarro, depressa... Agora tenho frio...

Todos se comprimiam à volta dela, enquanto os assistentes a cobriam completamente com cobertores de pele para a levarem para mais perto dos aparelhos de medida. Impiedoso, Nerochenko não podia omitir nenhum dos exames cujo plano tinha ele próprio elaborado: o pulso, a electrocardiografia e os campos de força do cérebro. Dir‑se‑ia que a natureza estava a vingar‑se: o frio penetrava através dos cobertores e Corina batia os dentes enquanto fumava o primeiro e a seguir o segundo cigarro que o Dr. Latichev lhe mantinha entre os dentes. Incrédulo, Nerochenko fez com que todos verificassem que a agulha tinha ficado bloqueada no máximo do controlador de energia, demasiado fraco para medir a que se desprendia do corpo de Corina.

‑ Incrível! ‑ murmurou suavemente, passando a mão pelas sobrancelhas cobertas por pequenos pedaços de gelo.

Sim, era incrível. Aproximou‑se de Corina para pôr os lábios, docemente, sobre as suas pálpebras.

‑ O que é que sentiste, Corinnachka, minha filha? Como era?


‑ Estava envolvida em calor. ‑ Olhava para a fossa que se tinha cavado por baixo dela e que, de novo gelada, conservava as marcas do seu corpo. ‑ Sim, tinha a impressão de flutuar no seio do calor que me envolvia e, apesar de ter os olhos fechados, apercebi‑me de algo de leve, como uma nuvem ou como um nevoeiro atravessado por milhares de raios de luz dum Sol muito próximo. E ouvi distintamente uma voz que me dizia: "Está tudo bem. Agora estás perto de mim. Sou David Assanurian, o pai da tua mãe... "

Todos se agitavam à volta deles. Ludinila, que, ao ouvir a filha, sentira os joelhos dobrarem‑se‑lhe sob o efeito da súbita emoção que sentia, era amparada pelos assistentes. Marius acorreu, gritando numa voz abafada pelo ar gelado:

‑ Cora, Cora!

Nerochenko acariciava a testa de Corina.

‑ Acabamos de entreabrir a porta que nos dissimulava uma realidade desconhecida. O nosso olhar, graças a ti, mergulhou pela primeira vez no domínio da imortalidade...

Ainda iam ficar uma semana em Tcheliabinsk.

A lista de experiências de Nerochenko era longa e fatigante, mas nenhuma delas era comparável ao "calor psíquico".

Tratava‑se, sobretudo, de gravar e verificar de novo as manifestações da força, simultaneamente benéfica e temerosa, que enchia as dimensões dum universo que o homem começava apenas a delimitar ou, no máximo a antever. Nerochenko assistia a cada uma das experiências. Iria revelar‑se muito útil durante uma delas. Ao tocar, por acaso, o peito dum dos técnicos, um tal Nikita Mikhailovitch Mazurov, Corina tinha sentido um grande sobressalto: não era a faca que tinham escondido debaixo da bata do homem e que Corina tinha quase imediatamente descoberto, mas algo de muito mais profundo que acabava de se lhe revelar inopinadamente imobilizando‑lhe de repente as mãos. A câmara e o microfone convergiram imediatamente para aquele ponto preciso. O microfone só gravou um único som que de outra maneira não teria sido tomado em consideração.

‑ Tem uma úlcera no estômago ‑ disse lentamente Corina num tom estranho, como se algo dela própria se encontrasse ainda preso ao interior do corpo do técnico.

Este último começou a rir com ar embaraçado assim que Soya Igorovna lhe traduziu as palavras de Corina. Mas, depois de olhar longamente para ele, a jovem alemã voltou‑se para Nerochenko.

‑ Tem, sim. Sinto‑a e vejo‑a muito bem. Está na pars descendens (na parte descendente) do órgão. O estado deste técnico é grave: se não for tratado imediatamente, sofrerá uma perfuração da parede do estômago...

As suas mãos voltaram a cair e o Dr. Boganorov acendeu‑lhe imediatamente um cigarro. Depois de ter aspirado rapidamente três baforadas, voltou‑se para Mazurov, olhou‑o mais uma vez, e disse calmamente:

‑ Sim, este homem está doente.

Era um rapaz muito alto, mas de constituição hercúlea e apreciador de carnes gordas ‑ as gorduras eram indispensáveis para resistir àqueles frios ‑, assim como de mulheres, como toda a gente sabia em Tcheliabinsk, onde se ia embebedar regularmente duas vezes por semana. Era uma espécie de touro transbordante de vitalidade e de saúde. Tendo recuperado um pouco de confiança, ria a bandeiras despregadas batendo no estômago, à maneira dum gorila, com os seus punhos maciços.

‑ Eu, doente! Deve estar enganada, Gospocha Doerinck! Se a parede do meu estômago tivesse de se perfurar, isso teria acontecido agora sob esta avalancha de pancadas. E não aconteceu nada! Desta vez, Corina Stefanovna, enganou‑se!


‑ É o que ficaremos a saber amanhã de manhã. Vamos fazer‑te uma radiografia, camarada ‑ disse Nerochenko, que tinha ficado impressionado com aquele incidente.

Durante a noite, Corina acordou sobressaltada e só teve tempo de calçar os sapatos e de pôr o casaco para ir abrir a porta a Nerochenko, que estava acompanhado por Boganorov. Marius, que fora ter com ela ao quarto, tentava em vão esconder‑se sob os cobertores.

‑ Tinha razão, Corina Stefanovna. Mazurov passou a noite a dar espectáculo dando pancadas no estômago como fez diante de si. E a parede do estômago rebentou. Está a cuspir e a vomitar todo o seu sangue e sofre como um danado...

Era uma coisa que só podia acontecer na Sibéria: aquela hemorragia era fatal, Nerochenko sabia‑o, e mesmo assim decidira recorrer a Corina, anulando assim a transferência para o hospital, que se impunha... Tinha mandado acordar todos os seus colaboradores, enquanto Mazurov era transportado numa maca para a sala de experiências. As câmaras começaram logo a filmar a cena: Mazurov deitado, agarrado ao estômago com as duas mãos, tossindo e vomitando sangue, naturalmente angustiado ao máximo.

‑ Não me deixem morrer, camaradas. Façam o que lhes for possível.

‑ Temos a sorte de ter cá a Corina ‑ disse Nerochenko quase alegremente. ‑ Depois da experiência do "calor psíquico", vamos poder gravar um novo exemplo da potência da energia psicocinética. O quê, Boganorov, está com ar de quem duvida. Decepciona‑me...

Todos os aparelhos estavam prontos e zumbiam suavemente quando Corina entrou na sala e se aproximou da maca onde Mazurov jazia. O olhar angustiado que ele lhe lançou tocou‑lhe o coração como se fosse um golpe de punhal. Ele gaguejou algumas palavras que ela não compreendeu, apesar de saber exactamente o que ele queria dizer. O homem sabia em que estado se encontrava. Sabia que se o transferissem para o hospital iriam passar‑se três horas antes de o poderem operar e que não tinha três horas de vida à sua frente... Pode fazer alguma coisa por mim, Corina Stefanovna?

Diante desta muda interrogação, ela voltou‑se para Nerochenko.

- É demasiado tarde ‑ disse ela em alemão.

- É o que todos pensamos ‑ disse Boganorov. ‑ Mas o professor Nerochenko quer que tente o impossível...

A boca contraída e a cara fechada do assistente traíam involuntariamente o que estava a pensar: no fundo condenava aquela experiência inumana. Quando chegou, Corina teve a mesma reacção, um verdadeiro sobressalto de ódio contra o homenzinho que, em pé, do outro lado da maca, passava nervosamente a mão pela calva. Mas tudo o que aquela situação comportava de aparentemente inútil e inumano encheu‑a de repente de uma vontade monstruosa de desafiar o destino. Pela primeira vez na sua vida, chamou o que nela existia como se rezasse: "Socorre‑me agora! Não me abandones." Pensou de repente no nevoeiro trespassado por mil raios de luz que, parecera‑lhe, acabara por tomar uma forma quase humana para proferir palavras em que ela, ao acordar, se tinha recusado a acreditar: "Sou David Assanurian, o pai da tua mãe..." Lembrou‑se da neve fundida debaixo dela e dos cobertores gelados que tinha aquecido e quase chegado a secar. E ouviu‑se a dizer:


‑ Acalma‑te! Não receies nada! Vou socorrer‑te, mas é preciso que acreditemos ambos que posso fazê‑lo, está bem?

Ele não deve ter compreendido, mas ‑ ou por causa do som da voz dela ou dos seus olhos negros fixos nele e cujo olhar parecia embrenhar‑se numa noite constelada por estrelas de ouro ‑ esqueceu, por um instante, o medo e a dor e todos o viram sorrir fracamente. Nerochenko afastou com a mão Boganorov, que queria traduzir.

Exteriormente, tudo se passou como sempre: aproximação das mãos em forma de taça e a seguir um lento vaivém a dez centímetros da pele e a sua paragem súbita por cima da ferida, por onde o sangue continuava a escapar‑se em fluxos. Todos viram mais uma vez aquele rosto transformar‑se e tornar‑se numa máscara de taumaturgo com faces cavadas, os ossos das faces parecendo atravessar a pele e aqueles grandes olhos negros mergulhados na sua própria noite constelada de astros... A seguir as mãos tombaram‑lhe por si mesmas. Era o fim. A busca febril dum primeiro cigarro a que se seguiu um segundo, que Boganorov lhe estendeu.

No entanto, tudo era diferente, pois Nikita Mikhailovitch Mazurov, apesar do sorriso que descontraía ainda o mármore lívido dos seus traços, não dava nenhum sinal de vida. Os seus braços tinham caído de cada lado da maca e parecia já não respirar.

Nerochenko, no silêncio que se prolongava, mexia na calva como um possesso.

‑ Morto? ‑ disse finalmente em alemão. ‑ Morto?

Corina, sentada numa cadeira, continuava a fumar.

‑ Não ‑ disse ela finalmente. ‑ Estamos a lutar...

Depois de ouvir a tradução do assistente, Nerochenko deixou‑se cair pesadamente numa cadeira perto de Corina. A câmara e os microfones continuavam a trabalhar. Nada se perderia do que se tinha passado durante os minutos que durara aquele "milagre", como costumamos dizer quando nos encontramos perante o que não somos capazes de explicar.

Sete minutos e nove segundos ‑ tudo tinha de ser medido ‑ foi o que durou exactamente a perda de consciência de Mazurov, cujo olhar parecia transfigurar‑se repentinamente. Quando as suas pálpebras se abriram, um dos assistentes fez parar a agulha do cronómetro e anotou a hora. Nerochenko quis falar‑lhe, acolhê‑lo... mas mordeu os lábios e calou‑se. Corina inclinou‑se e pousou a mão sobre a testa de Mazurov, cujo olhar pareceu de repente transfigurar‑se.

‑ Ainda terá dores durante algumas horas. Mas depois ficará muito melhor. já parou a hemorragia. Amanhã continuaremos a combater o seu mal, Nikita Mikhailovitch.

O Dr. Boganorov traduziu desta vez, mas tropeçando de emoção em algumas palavras. Mazurov aquiesceu lentamente com a cabeça, cruzou as mãos sobre o peito, fechou os olhos e adormeceu. A sua respiração era calma e regular.

Nerochenko levantou‑se e, sem uma palavra, beijou docemente a testa de Corina. Enquanto Mazurov era transportado para outra dependência e o zumbido dos aparelhos cessava, o Dr. Latichev foi o primeiro e o único a ousar perguntar:

‑ Está salvo?

‑ Está.

‑ E a úlcera gástrica?


‑ Começa a secar. ‑ Levantou‑se a seguir, ainda vacilante. ‑ Posso ir‑me embora, professor? Estou morta de cansaço... Foi um dia difícil para mim...

O Dr. Boganorov acompanhou‑a até à porta do quarto e esperou no patamar que ela desse a volta ao fecho do interior.

‑ O que é que se passou? ‑ perguntou Marius. ‑ Não tive tempo de me vestir e não sabia onde é que podia ir ter contigo...

Estava sentado na borda da cama apenas com uma toalha sobre os ombros magros. Apresentava um ar frágil na sua nudez.

‑ Havia um homem que estava a morrer, Marius. Era o técnico Mazurov...

Deixou cair no chão o casaco de pele que era a única roupa que trazia e estendeu‑se, também nua, ao pé dele.

‑ Mazurov? Aquele que não queria acreditar que tinha uma úlcera?

Ia acomodando os cobertores sobre ela, aproveitando para lhe acariciar os seios.

‑ Não, agora não ‑ disse ela.

‑ E esse Mazurov sobreviveu?

‑ De vez em quando fazes cada pergunta mais idiota, Marius...

Tinha fechado os olhos e voltara‑se, pondo as mãos debaixo duma das faces, para adormecer. Parecia muito jovem, quase uma rapariguinha, com os seus longos cabelos espalhados, o jeito infantil dos lábios e as narinas palpitando a cada movimento respiratório.

Ele olhou‑a longamente antes de se estender ao seu lado, sem lhe tocar.

"Que fiz eu para te merecer? Sou tão feliz que isso chega a magoar‑me. Deixar‑me‑ia cortar aos pedaços por ti. Amo‑te. Ofereço‑te toda a minha vida, que já tens entre as mãos... nessas tuas mãos irradiantes... Sem ti, estaria perdido. Meu Deus, é possível que haja na Terra uma criatura como ela?"

Deu‑se conta que tinha começado a chorar, que precisava de chorar...

"Só posso viver através de ti. Sem ti, já não haveria mais nada para mim. Sem ti, eu não seria mais nada... "

Durante aquela semana, Marius Herbert pintou três telas.

Soya Igorovria tinha‑lhe trazido de Tcheliabinsk telas, molduras, um cavalete, uma paleta, essência de terebintina e tudo o mais que era necessário. Como ele ficasse admirado, ela tinha posto o seu ar mais irónico para lhe responder:

‑ Os capitalistas julgam que a Sibéria é um deserto de gelo e que os Russos ainda jogam ao dominó com caganitas de lebre. Tcheliabinsk é uma grande cidade moderna, camarada Marius. Tem três escolas de belas‑artes, há exposições no Palácio da Cultura, uma orquestra sinfónica, uma escola de ballet, uma academia técnica, quatro teatros e um grande centro desportivo. O que é que pensam no Ocidente da nossa Sibéria? Ninguém sabe, ou não quer saber, que é na Sibéria que está a nascer o futuro do novo milénio...

Três quadros de génio. Era o termo que se impunha, e nenhum outro, para descrever aquela dissolução das formas que ressuscitavam no jogo e no delírio das cores. Bastava dar três passos para trás para que aquele caos aparente se ordenasse numa realidade superior de inspiração original.

Nunca se tinha visto uma coisa daquelas. Cada quadro exercia no observador uma espécie de fascínio extático. O primeiro era uma evocação de Tcheliabinsk mergulhada numa bruma ensolarada. Ao vê‑lo, Doerinck estendeu espontaneamente a mão a Marius.

‑ É formidável, meu caro...


Marius contou orgulhosamente a cena a Corina. A sua metamorfose tomava‑se evidente aos olhos de todos: agora já acreditava em si mesmo e na sua arte; por isso pintava como um possesso da manhã à noite, trocando impressões com Soya Igorovna, a quem expunha os projectos que fervilhavam nele...

Após uma semana de trabalhos e de exames intensivos, o professor Nerochenko declarou que já não havia mais nada para filmar ou gravar. Depois, bruscamente, propôs a Corina e à família uma oferta que fez com que o resto da sua estada tomasse um rumo inesperado...

Foi durante uma festa em que apareceu Mazurov, completamente ressuscitado: tinha abandonado a cama e embora tivesse ainda, evidentemente, as pernas vacilantes, já não sentia nenhuma dor. Avançou para Corina com um largo sorriso. Ao fim da terceira sessão, ela dera o tratamento por terminado. "já não é necessário", dissera‑lhe.

Nerochenko tinha autorizado Mazurov a ir até ao hospital de Tcheliabinsk. O director do serviço de radiologia desconhecia totalmente o que tinha acontecido ao jovem técnico, que apenas se queixava de dores indefinidas na região do estômago. Uma endoscopia confirmou os primeiros exames radiológicos. Na pars descendens do seu estômago inteiramente são só se observavam cicatrizações provenientes duma úlcera que, segundo parecia, se tinha curado por si mesma. As dores que o camarada Mazurov sentia deviam ser atribuídas a um estado puramente nervoso.

No dia seguinte, durante um jantar, Nerochenko mostrou‑se cada vez mais encantado e todos os russos multiplicaram os avisos.

‑ Corina Stefanovna, dentro dum mês o seu nome será célebre no mundo inteiro!

O espumante da Crimeia acompanhou primeiro blinís com caviar e a seguir um prato do Cáucaso que Ludmila acolheu com expressões de alegria: bocados de esturjão e de espadarte grelhados no espeto e que se chamam tartí tchamporzch chamtsuari. A seguir veio uma grande saladeira cheia de sabsi pies ‑ uma mistura de cenouras estufadas e de cebolas douradas. Nerochenko, a cada brinde, repetia a Corina:

‑ Vai tornar‑se numa das mulheres mais ilustres do mundo.

Foi então que o Dr. Hambach ensombrou a atmosfera. Abanando a cabeça, não pôde deixar de dizer:

‑ Sim, mas também uma das mais odiadas, professor Nerochenko. Que poderemos esperar encontrar no regresso? Uma aprovação entusiasta? Um reconhecimento espontâneo dos méritos de Corina? Não, será exactamente o contrário, infelizmente. Uma matilha de cães enraivecidos vai atirar‑se a ela para a magoar física e moralmente. Vão deitar sobre tudo o que ela disser e fizer baldadas de injúrias e de zombarias. As autoridades utilizarão contra ela a omnipotência do Estado e dos media para a acusar de charlatanismo e de exercício ilegal da medicina. Não vivemos numa ditadura, mas existem no nosso país numerosos meios "legais" para levar alguém àexaustão até a pessoa tropeçar e cair: começam por trapalhices fiscais, processos por escamoteação de rendimentos, por fraudes ou vigarice. à maldade nunca falta imaginação. A Corina já foi vítima de um incêndio e de uma tentativa de assassínio.


Nerochenko só estava à espera daquilo. Bruscamente, mudou de cara para pronunciar solenemente as palavras sobre as quais meditara longamente e que iam talvez mudar o curso da existência deles. Para impor o silêncio à mesa inteira, começou por bater várias vezes as pequenas mãos e foi num silêncio absoluto que se dirigiu aos hóspedes.

‑ Reflictam bem na minha proposta. Fiquem aqui connosco. Não haverá dificuldades, apenas algumas formalidades. Na União Soviética os investigadores beneficiam de todas as vantagens e até mesmo de privilégios! Há muito tempo que se compreendeu perfeitamente em Moscovo que o país que possui a mais avançada actividade de investigação ocupa automaticamente o primeiro lugar entre todas as nações do Mundo. Não existe nenhum domínio respeitante ao homem e ao Universo, no microcosmo e no macrocosmo, que a ciência soviética negligencie. Fora do país isto é ignorado, pois só comunicamos ao Ocidente uma fracção das nossas descobertas, apenas o suficiente para inspirar aos nossos colegas e aos governos dos outros países o respeito indispensável pelo nosso trabalho. ‑ Parou e pôs‑se a rir. A seguir continuou: ‑ A Rússia sabe coisas que o resto do mundo ignora. O Ocidente crê que ainda estamos no estádio do urso‑da‑sibéria. Lembram‑se que Bismarck dizia: "Deixem dormir o urso russo..." Mas não dormiimos. Criámos um mundo novo na mais absoluta serenidade. Você, Corina, e eu, não passamos de pequenas peças dum vasto mosaico. ‑ Voltou‑se para Ludmila. ‑ Fique aqui, Ludinila Davidovna! A sua velha pátria espera por si. Abre‑lhe os braços!

Ludinila fixou longamente o olhar em Stefan Doerinck e ninguém teve dificuldade em interpretar este. Aquele olhar dizia: "Reflecte bem, Stefanka. Na Alemanha vão obrigar‑te a pedir uma reforma antecipada. Actualmente, já nem te deixam ensinar, o que era a tua razão de viver. Até ao último suspiro, serás um proscrito entre os teus, não porque mataste, roubaste, maltrataste ou perverteste as crianças que te confiaram, mas porque temos uma filha cujas mãos conseguem curar. A tua Alemanha ainda é o nosso país? Oferece‑nos um lar? Ainda podemos viver e repousar em paz, quando morrermos, numa terra que não nos aceitou? Vê bem o que te fizeram, a ti, que não cometeste nenhum crime. E o que irá acontecer‑nos quando as experiências de Tcheliabinsk forem publicadas no mundo inteiro? Que devemos fazer, meu amor?"

Com o rosto impassível, Doerinck esperou bastante tempo antes de responder bruscamente a Nerochenko:

‑ Para quando está prevista a nossa partida?

‑ Para daqui a três dias. O aparelho descolará de Moscovo para aterrar em Francoforte.

‑ Os nossos lugares foram reservados?

‑ Só reservados ‑ disse Soya Igorovna ‑, mas posso perfeitamente anulá‑los...

Perante o olhar de Stefan Doerinck, parou imediatamente.

Depois de ter abanado a cabeça, endireitou‑se para dizer com orgulho:

‑ Outrora, no Cáticaso, não desertei e nessa altura bem tinha razões para o fazer... Visto que teremos uma luta para sustentar na Alemanha, não é agora que vou desertar...

Após um longo silêncio, Nerochenko declarou numa voz cuja emoção deixara de controlar:

‑ Ainda têm três dias para decidirem. Posso anunciar‑vos oficialmente, da parte do secretariado do Ministério do Interior, que Ludmila Davidovna está autorizada a voltar com vós todos para Poti, nas margens do mar Negro, onde vos esperam duas datchas...


‑ Stefanka ‑ balbuciou Ludmila ‑, Stefanka.

Ele apercebeu‑se de que ela chorava, mas repetiu numa voz ainda mais dura:

‑ Partiremos... Peço‑lhe que não falemos mais desta possibilidade. Sei que se trata duma oferta excepcional, meço a grande generosidade que lha inspirou, professor, mas quero morrer no país que é o meu.

‑ Posso perguntar‑lhe se a sua resposta seria a mesma se esta oferta proviesse de Washington? Se duas vivendas americanas estivessem à vossa espera em Miami ou na Califórnia? ‑ perguntou de repente o Dr. Latichev.

Não escondia a sua decepção e o seu tom de voz era duma tal impertinência que Stefan Doerinck ficou a olhar longamente para ele, antes de responder.

‑ A minha resposta seria a mesma, palavra por palavra, senhor doutor. Mas, naturalmente, só falo por mim. No entanto, algo me diz que a decisão da minha filha não diferirá da minha.

‑ Tens razão, papuchka. Também eu me baterei até ao fim, tal como tu. ‑ Tinha levantado o copo e convidava todos a beber com ela. ‑ Do coração vos agradeço a oferta, mas partiremos.

Depois de um gesto que exprimia o seu pesar, Nerochenko bebeu o copo até à última gota e, imitado por todos os russos, atirou‑o contra a parede.

Após um momento de hesitação, Marius projectou igualmente o seu no monte de cacos que se erguia contra a parede. Havia tristeza no seu olhar e nas palavras que pronunciou.

‑ É verdade, temos de partir, mas os dias que passei aqui foram muito bons e muito belos. É um período que conservarei sempre dentro de mim. E mesmo que nunca mais nos voltemos a ver, manter‑nos‑emos sempre juntos...

Dois dias mais tarde partiram para Moscovo, acompanhados apenas por Soya Igorovna, a intérprete.

No momento em que sobrevoavam os cumes nevosos dos Urales, Marius pousou a mão na coxa de Corina. O Dr. Hambach dormia. Stefan Doerinck e Ludmila olhavam através da janela, como se pretendessem gravar nos respectivos corações os últimos quilómetros da taiga, os rios gelados e a estepe branca que se sucediam lentamente por baixo deles.

‑ Como te sentes? ‑ perguntou Marius docemente.

‑ Cansada... E tu?

‑ Eu? Seria capaz de pintar cem telas ao mesmo tempo!

Começou a rir e ele teve a impressão de que os pontos dourados das suas pupilas se tinham posto a dançar.

‑ Veremos isso quando estivermos em casa...

Em casa, o que é que isso queria dizer, o que é que aquilo ia ser? Teriam por habitação uma tenda assaltada por uma matilha de repórteres de toda a espécie. Os habitantes de Hellenbrand estariam divididos em dois campos. Esperava‑os também a hostilidade da medicina oficial, que não desarmaria nunca e cuja vaidade ferida se recusaria a qualquer troca de ideias, já para não falar das autoridades prontas a atacá‑la nem das queixas na justiça... "Em casa teriam, ao menos, tempo para respirar? Seria isso o seu lar, a "sua" casa?

‑ Quando é que vais dar a grande notícia aos teus pais? ‑cochichou Marius.

‑ Quando as coisas estiverem mais calmas.


Olhou para os pais. Doerinck apertava a mulher contra si, ternamente, mas com bastante força, como se se tivesse arriscado a perdê‑la... E Corina leu‑lhe nos lábios as palavras que estava a pronunciar:

‑ Agora despedimo‑nos de um sonho que ambos tínhamos há dezenas de anos: voltar a ver a Rússia, não é?

Há meses que podem passar, arrastar‑se, numa angústia torturante e que parece não ter fim. Os segundos caem‑nos sobre a cabeça como se fossem gotas de água. A insignificância do quotidiano gasta lentamente a coragem que possuímos. Quando à noite nos voltamos a encontrar na cama e voltamos a ser o que somos, a angústia do futuro aperta‑nos a garganta e o coração e compreendemos que os meses se vão transformar numa prisão obscura e esmagadora de que nunca sairemos. Mas o tempo também pode fugir de nós como um turbilhão de folhas mortas em plena tempestade. É em vão que corremos atrás delas. As horas e os dias não chegam para conter a plenitude duma vida que se deseja reter ou apertar contra nós para dela desfrutar para sempre.

O que era então a vida em Hellenbrand para os "siberianos", como eram chamados desde o seu regresso, cuja notícia se tinha propagado como um fogo na estepe? De todo o lado tinham chovido telefonemas. Menos por parte dos seus adversários. Os comerciantes esperavam que os seus negócios conhecessem novo impulso. As barracas continuavam no sítio, e visto que os doentes tinham regressado em maior número do que anteriormente, o padeiro, o homem do talho, o estalajadeiro, o vendedor de recordações tinham voltado, adaptando os seus artigos do Outono à chegada do Inverno que se aproximava: salsichas e pratos cozinhados, castanhas e amêndoas assadas, vinho quente, etc. Como deixar escapar tal fonte de lucro, mesmo quando se era um dos piores inimigos da mulher de mãos irradiantes? Negócios são negócios e o dinheiro não tem cheiro, como dissera um imperador romano. Quanto à moral, foi coisa que nunca deu lucro, a não ser às seitas ditas religiosas e à Cruz Vermelha! Nada nos é oferecido gratuitamente na vida e se se tem mãos e cérebro é para trabalhar...

No dia do regresso, os "siberianos" tinham encontrado em casa Erasmus Roemer, que os esperava com uma mesa cheia de comida e de bebidas.

‑ Bem‑vindos a casa! ‑ gritara ao apertá‑los, um após outro, contra o seu peito de mamute.

Seguiu‑se uma cascata de perguntas, todas do mais puro género Roemer.

‑ Então, Ewald, como é que achaste as russas? Sempre éverdade que na cama são elas que comandam as operações gritando como os oficiais soviéticos na hora agá: "Fperiot! Fperiot! (Para a frente! Para a frente!)" ‑ Levantando Corina do chão, pôs‑se a dançar à volta da mesa, gritando: ‑ Vitória! Vitória, minha querida menina! Fui ver Willbreit na sua serração de ossos e ele radiografou‑me. Estou curado! Estou curado! Começa uma nova vida para mim e que bela vida! Graças a ti!

Tinham‑se passado muitas coisas em M'nster e em Hellenbrand durante a dezena de dias que durara a ausência deles.


Elise Roemer pedira formalmente o divórcio e para evitar as perguntas e as censuras do pai tinha‑se refugiado numa espécie de clínica‑sanatório cujo médico‑chefe lhe passara um atestado afirmando que ela precisava de repouso completo e que não devia ter nenhum contacto com o mundo exterior. O pai dela conseguira localizar Roemer e tinha censurado amarguradamente a conduta deste, que, na sua opinião, era a causa daquele escândalo social. No entanto, acalmara‑se rapidamente quando Roemer lhe deu uma versão mais exacta dos factos: a sua filha abandonava um presidente de tribunal para se casar com um barão!

‑ Que mais queres? ‑ dissera ao sogro, estupefacto. ‑Vais trocar um magistrado de toga que tira os macacos do nariz para não morrer de tédio durante as sessões do tribunal por um membro da alta aristocracia húngara! É o que se chama subir socialmente! E quando a Elise abrir as pernas, receberá...

O sogro pôs fim à comunicação com um grunhido de indignação.

Ao professor Willbreit acontecera o que Roemer sempre prevera: a bela Lydia, a ardente esposa que ele descurava nos momentos em que vibrava de desejo até à ponta dos cabelos, tinha‑lhe dado uma possibilidade de escolha: ou começava a passar mais tempo com ela ou então, se pusesse a profissão em primeiro lugar, ela arranjaria um amante.

‑ Não o poderei suportar ‑ gemera Willbreit. ‑ Que devo fazer, Erasmus?

- Faz como eu! Isto é, metemo‑nos no carro e vamos ao Krautkramer, onde nos ofereceremos um extraordinário jantar acompanhado por um extraordinário Bordéus e comeremos e beberemos alegremente para celebrar a nossa libertação! Vou reservar mesa imediatamente.

‑ Pensava que estavas a seguir uma dieta rigorosa!

‑ Isso já lá vai! Estou curado, professor, mesmo que isso te desagrade! Fui ontem consultar o doutor Meersmann para fazer a última radiografia. já deixei de ser um cadáver cheio de pus e em processo de decomposição. E devo isto às mãos irradiantes e maravilhosas de Corina!

‑ Nunca acreditarei nisso! Todas essas histórias de raios, de bioenergia, de bioplasma, de campos de forças psicocinéticos são pura loucura.

‑ Queres ver as radiografias do doutor Meersinann?

‑ Prefiro radiografar‑te eu próprio.

Foi assim que Willbreit levou Roemer à clínica da universidade. Depois de radiografias e de exames sem conta, o Prof. Kranzwiller confessou ao seu colega Willbreit que não percebia nada do que via.

‑ Caro Thomas, desapareceu tudo, menos algumas cicatrizes que não apresentam nada de suspeito. já não há estrangulamento nem endurecimento do fígado. ‑ Tinha tirado de um grande sobrescrito as primeiras radiografias de Roemer e estava a confrontá‑las, incrédulo, com as que acabara de tirar. ‑ É incrível! Nas primeiras via‑se claramente o fibroma e as excrescências do fígado. E agora este fígado está empastado e gordo, o que se explica por tudo o que Roemer come e bebe, mas mais nada. O que é que se passou, Thomas?

‑ Então revê os últimos pormenores do tratamento e publica depressa os resultados. É um êxito formidável!

No Krautkramer, o regresso de Roemer foi espectacular. Abraçou o dono num entusiasmo delirante de amizade.


‑ Abram depressa uma garrafa do meu Bordéus preferido. Espero que ninguém tenha tocado nas minhas garrafas durante a minha ausência, pois aqui estou eu de volta! E agora, depressa, apresentem‑me as vossas sugestões para um festim digno dum rei. Meu caro Krautkramer, estamos aqui a festejar uma ressurreição!

Willbreit teve de acompanhar Roemer a Hellenbrand já muito depois da meia‑noite e ficou lá até de manhã. Mas não conseguiu dormir. As radiografias do fígado de Roemer não o deixavam descansar e desfilavam, sob as suas pálpebras fechadas. Roemer estava então curado graças às irradiações de duas mãos de mulher... Era obrigado a reconhecê‑lo, mesmo se lhe parecia inacreditável. Só lhe restava agora encontrar uma explicação médica válida para tal fenómeno.

Durante estes dez dias, Roemer conseguira finalmente contactar com o procurador, que devia instruir dez queixas individuais de médicos, e a décima provinha do sindicato dos clínicos. A isto vinha juntar‑se uma carta da administração das finanças exigindo a abertura dum processo por fraude fiscal.

‑ Têm todos merda no lugar do cérebro! ‑ resmungou Roemer. ‑ Não pode levar isso a sério, senhor procurador.

Sou obrigado a fazê‑lo... Há manifestamente infracção à lei...

‑ Quer dizer que a lei proíbe as pessoas de curarem outras?

O procurador fazia todo o possível por manter o sangue‑frio.

‑ Não nos percamos em polémicas sem saída, caro presidente. Os médicos existem para tratar e curar os doentes...

‑ E quando os médicos reconhecem a sua impotência e nos dizem "já não posso fazer nada por si". Então?

‑ Verdadeiramente, não sei...

‑ Mas eu sei: segundo os exames e as radiografias dos médicos, já há muito que devia estar morto e enterrado. Após seis semanas de tratamento com Corina Doerinck, eis‑me aqui fresco como uma alface e provam‑no os novos exames e as novas radiografias que fiz. Pois é, senhor procurador, aquela que quer levar a julgamento salvou a vida do presidente do tribunal de 1.a instância desta jurisdição! O que é que acha que farei? Instrua os processos e eu'irei testemunhar a favor de Corina Doerinck. Garanto‑lhe que o meu testemunho fará barulho suficiente para partir todos os vidros do nosso tribunal.

‑ Não posso impedi‑lo de o fazer, caro presidente. ‑Mas, manifestamente, o procurador não estava à vontade. Não previra o rumo que a conversa iria tomar. ‑ Pode citar‑me outros casos de... curas milagrosas?

‑ Uma série deles! Ficará surpreendido quando receber os vários testemunhos: toda a nata da sociedade de M'nster vai desfilar ao meu lado diante da barra do tribunal! Previno‑o: depois dos pontapés que terei dado no rabo de todos os que atacarem Corina Doerinck, ninguém poderá sentar‑se durante uma semana.

‑ E a propósito do conflito da senhora Doerinck com as finanças, também sabe alguma coisa?

‑ Essa gente não está boa da cabeça.

‑ Mas a senhora Doerinck recebeu somas avultadas. Dois funcionários fiscais são disso testemunhas.

‑ Trata‑se de presentes que não aceitou nem aceita. Esse dinheiro pertence, portanto, aos que lho deram. Eles que o vão buscar de volta!

Roemer exultava verdadeiramente de alegria e o procurador bem se dava conta disso.

‑ Mas, como sabe, toda a gente está sujeita ao imposto sobre o rendimento.


‑ Não se trata dum rendimento, e o facto de o Fisco não compreender isto estabelece com rigor qual o quociente intelectual dos seus agentes!

A conversa terminou após estas palavras, deixando o procurador bastante abatido: aquele caso era tão perigoso para ele como uma bomba pronta a explodir.

No que dizia respeito à tentativa de assassínio de'que Corina fora vítima por meio de uma flecha envenenada, o inquérito, como era de esperar, não avançava e o caso seria em breVe encerrado.

O inspector declarou que, em M'nster, nunca constou que alguem tivesse usado uma zarabatana para disparar uma flecha envenenada.

Korina contou ao Dr. Hambas que estava grávida.

- E os teus pais já sabem?

- Não.

- E Marius?

- Dedicou-se de corpo e alma à pintura.

‑ E nesse caso, que papel te está reservado? ‑ PerguntOU Hambach, levado por um Pressentimento indefinido.

‑ Comecei a tratar um dos repórteres com asma crónica, tio EWald.

‑ Que seria do Marius sem ti, minha filha?

‑ Que seria cada um de nós sem outro ser capaz de o apoiar, tio EWald? ‑ Levantou‑se e estendeu‑lhe a mão. - Encarrego‑me dos Pais‑ Queria só que fosses O Primeiro a sabê‑lO como médico.

Não se Pode dizer que Stefan tenha lançado um grito de alegria quando Corina lhe declarou com brevidade:

‑ Eu e o Marlus vaMO‑nos casar no Natal. Estou grávida de três meses, pai.

‑ Que maravilha, Corina. Simplesmente, eu sempre tinha imaginado o Pai do meu neto muito diferente.

‑ Sou eu que vou viver com ele e não tu. Quanto a nós, ambos sabemos que temos à nossa frente uma vida completa, conseguida e maravilhosa. Tenho trinta anos e ele trinta e um. Não dizes nada, mamuchka?

Ludmila sorriu.

‑ Em russo diz‑se que não se deve contar as batatas quando se trata de amor. Sei que serás feliz.

 

As grandes revistas ilustradas dos Estados Unidos, da Itália, da França, da Espanha, da Holanda, do Japão, da áfrica do Sul e da Austrália provocaram uma tempestade de comentários e de discussões apaixonadas. Por parte das cidadelas médicas, as reacções foram mais marcadamente negativas como era de esperar. Um ilustre francês publicou a primeira caricatura: Corina aparecia a cortar a barba de Deus com uma tesoura e a dizer‑lhe: "Anda, deixa‑me cortar‑te a barba e sai desse trono ridículo! A partir de agora passarás a sentar‑te na nuvem n.o 32. Sabes bem que não és mais de que uma irradiação bioplasmática!"

E visto que o mundo inteiro conhecia agora o nome de Corina Doerinck, os doentes voltaram a afluir a Hellenbrand.


As agências de viagens organizaram de novo excursões de autocarro com tudo incluído. à volta da pequena cidade, os hotéis, estalagens e pensões arriscaram‑se a provar que se podia resistir às condições deploráveis do fim do Outono da região de M'nster. A "feiticeira siberiana", como a baptizara ousadamente um repórter, alcunha adoptada por todos com um frenesim quase lúbrico e de que ela nunca mais se livraria, voltou a tornar‑se num objectivo turístico e a ser pretexto de numerosas noitadas de copos. Os negócios dos comes‑e‑bebes e das barracas atingiram o apogeu. Cada dia era praticamente uma festa popular e ao domingo, depois da missa, a fanfarra municipal tocava na praça marchas militares e aberturas de operetas. Meu Deus, como a vida era bela em Hellenbrand onde já não se protestava contra a presença da "feiticeira siberiana", antes pelo contrário ‑ à parte os médicos, naturalmente... Mas os fogos contrários que tentavam acender não dissuadiam ninguém de acorrer a Hellenbrand onde se elevavam vozes cada vez mais vigorosas contra as férias forçadas de Stefan Doerinck. Ir‑se‑ia ficar privado durante muito tempo do "melhor professor" que as crianças já alguma vez tinham tido?

Corina, que recebia os doentes durante três horas de manhã e três horas à tarde, estava tão exausta no fim do dia que o Dr. Hambach não pôde deixar de intervir energicamente.

‑ Isto assim não está nada bem, Corina. Pensa na tua criança. Ainda não adquiriste nenhum sentido das tuas responsabilidades maternais.

Mas, apesar da fadiga que a pregava numa cadeira à noite, de olhos quase ariscos e com as faces encovadas, respondeu:

‑ Estão lá fora doentes que posso socorrer. Tenho de o fazer...

Na semana que precedeu o Natal, ou seja, oito dias antes do seu casamento, saiu uma das duas grandes revistas onde se reproduziam os quadros de Marius em seis páginas duplas a cores. No texto figurava, naturalmente, a informação de que Corina Doerinck se ia casar com aquele genial pintor ainda desconhecido. Corina não se tinha enganado: a reacção foi extraordinária. Várias galerias de Colónia, Berlim, Munique, Hamburgo, Hanôver, Estugarda e Francoforte enviaram cartas a Marius propondo‑lhe datas para exposições. Dois especialistas de Paris disputaram a honra de ter a exclusividade mundial de todas as obras de Marius Herbert, enquanto uma galeria de Londres lhe abria as suas portas. Mas um telegrama de Nova Iorque anunciou a visita dum representante da firma Morrison e Sons, o que relegou tudo o resto para segundo plano.

Marius apertou longamente Corina nos seus braços.

‑ O meu coração bate tanto que tenho a impressão de sufocar. Um artista de que Morrison se ocupe deixa de ter preocupações: o seu futuro está assegurado. Tenho a impressão de estar a sonhar, Corina.

Mas não era um sonho. O agente da Morrison e Sons, um tal James Harris, chegou mesmo a tempo de ser convidado para o casamento. Olhou longamente para as telas de Marius e declarou num alemão hesitante:

‑ Melhor ainda do que nas reproduções da revista! Ficamos com tudo, com toda a colecção em troca dum contrato de exclusividade, certo? Primeiro, faremos uma grande campanha de publicidade e a seguir uma exposição itinerante em Nova Iorque, Washington, Chicago, São Francisco, Los Angeles, Dallas e Bóston. Amanhã você será o expoente do "novo impressionismo", de acordo?

Corina, que se mantinha ao lado de Marius, interveio.


‑ Dê‑lhe ao menos tempo para ele primeiro se casar! As telas não vão desaparecer...

‑ Não, mas talvez apareçam outros concorrentes. Negociemos imediatamente: não terá razões para lamentar ter escolhido Morrison e Sons, pode crer. Pinte que nós venderemos!

O casamento provocou vários rangidos de dentes em Hellenbrand. Primeiro, a hora escolhida para o casamento civil, nove da manhã, não era muito propícia à presença de basbaques. Mesmo assim lá estavam cerca de quarenta curiosos que aplaudiram e lançaram flores aos pés de Corina quando esta saiu do carro diante da câmara. Mas o grande acontecimento, a cerimónia religiosa, não se realizou em Hellenbrand, mas em Coesféld. Uma indiscrição do florista Werremann revelou o facto com vinte e quatro horas de antecedência. Tratava‑se duma afronta deliberada e o rancor fez soltar as línguas: "Fizeram muito bem em impedir esse tal Doerinck de ensinar. Vai casar a filha em Coesféld!"

Os padrinhos eram Erasmus Roemer e uma personagem inesperada, o Dr. Wewes. Numa das últimas visitas que fizera a Corina, de cabeça levantada e sem se esconder, este tinha declarado:

‑ Perdoe‑me a cobardia dos primeiros dias. Já a deixei ficar para trás. Na nossa última reunião semanal abandonei para sempre a mesa reservada dos médicos, após uma longa e penosa discussão, que me deu a satisfação de ter posto os pontos nos iis. Willbreit acabou por me chamar traidor e respondi‑lhe que ele era tão ignorante como os frades ignorantinos que recusavam qualquer acesso ao conhecimento!

Espontaneamente, Corina tinha‑lhe pedido para ser padrinho de casamento.

O copo‑d'água realizou‑se no Castelo de Sunderfeld, um Wasserburg em modelo reduzido, onde o proprietário, que Corina tinha curado duma ciática rebelde, tinha insistido para organizar a festa. Só havia alguns convidados à volta da grande mesa redonda e foi Erasmus Roemer quem se levantou por altura da sobremesa para felicitar os noivos no seu estilo particular.

‑ Se olhar à minha volta, só vejo sentados a esta mesa antigos doentes que as mãos de Corina libertaram dos seus males. Consideremo‑nos, durante um instante, como uma amostragem do género humano, tal como os que permitem aos computadores prever, antes duma eleição, as percentagens dos diferentes partidos. Com efeito, na minha opinião, a humanidade inteira está no mínimo tão doente como nós já estivemos e seria necessário, para se curar, que existissem centenas de milhares de Corinas! Mas só há uma e é a nossa! Assim, esperemos que o tempo pare para ela. Sim, esperemos que ela viva para sempre! E como o tempo foge sem nós querermos, celebremos, pois, este dia de festa, visto esta não ser igual a nenhuma outra no mundo!

à noite, um pequeno fogo‑de‑artifício iluminou o Castelo de Sunderfeld. A seguir, o dono da casa, segurando alto um candelabro de doze velas, precedeu os recém‑casados até ao quarto nupcial, decorado com tule branco e com rosas.


No rés‑do‑chão, Doerinck, o Dr. Hambach e Roemer, sentados diante da chaminé, onde crepitava um bom lume, conversaram longamente, fumando cada um o seu havano e bebendo um Borgonha tinto que preferiam ao champanhe que estava a ser servido um pouco mais longe, na mesa onde se encontrava Ludinila, o Dr. Wèwes e os donos da casa.

‑ No dia dezassete de Janeiro ‑ anunciou Roemer de repente ‑ serão pronunciados dois divórcios. O dos casais Roemer e Willbreit. É o cúmulo da amizade obter o divórcio na mesma data. ‑ O seu riso ressoou na sala como um trovão. ‑ Mas o pobre Willbreit está completamente desmoralizado. Fez com que lhe arranjassem um quarto na clínica, para grande dano e cólera do pessoal médico, dado que ele se levanta às sete horas da manhã e quer logo começar a operar. O professor HeIbrecht, o chefe, decidiu ignorar o conflito. Pensa reformar‑se e propôs ao conselho de administração a nomeação de Willbreit para o substituir. Pois bem, também eu penso reformar‑me, comprar uma casinha para estes lados e mandar construir, de acordo com todos os princípios da arte, uma cave que encherei de bons vinhos. Passarei os anos de vida que me restam a viver sentado ao sol e a dizer para com os meus botões: "Mas, meu caro, vais viver mais este dia! Que felicidade! Dêmos graças a Deus!" ‑ Olhou para Doerinck e curvou‑se para lhe dar uma forte palmada na coxa. ‑ Então, Stefan, quando é que vocês mandam construir uma casa para a Corina?

Doerinck encolheu os ombros, desencorajado.

‑ Ela não quer. Quando a criança nascer, partirá para um sítio onde ninguém a conheça. Comunicou‑no‑lo ontem.

‑ E dizes‑me isso calmamente, como se se tratasse de me fazer beber um copo de vinho. Para onde é que ela quer ir?

‑ Não faço ideia. O Marius vai confiar a sua produção a um agente americano e seremos os únicos, além deste último, a conhecer a morada deles. Mas não te preocupes, Erasmus, vais vê‑la quantas vezes quiseres.

O gigante tinha recuperado a disposição que lhe era habitual.

‑ Era só o que faltava. Que ideia a dela de se casar tão precipitadamente. Nem esperou que eu me curasse. Podíamos ter falado do assunto! Ela tem trinta e um anos e eu quarenta e nove. Dezoito anos é a diferença ideal para um casal! ‑ A gargalhada deles chamou a atenção dos que estavam perto e Roemer dirigiu‑se de longe a Ludinilla: ‑ Ludinila Davidovna, "mãezinha", como se diz no teu país, é pena: achamos todos que não tens o genro de que precisas!

 

Numa manhã de Janeiro, às 11 e 22 exactamente, quando se encontrava a tratar dum doente vindo do Sul da Holanda que sofria duma gastrite crónica, Corina sentiu bruscamente no ventre a criança, que, pela primeira vez, se mexia. Foi uma sensação extraordinária: a da irrupção duma vida. Durante um breve momento, Corina fechou os olhos para melhor se dar conta do que nela se passava, enquanto as suas mãos continuavam a ir e a vir por cima do doente, no sítio onde localizara o mal. De repente apercebeu‑se de que com o despertar da criança dentro de si o contacto com a paciente cessara subitamente. Foi exactamente como quando se apaga um candeeiro accionando um interruptor.

Estupefacta, olhou para as suas mãos durante um instante. Depois aproximou‑as lentamente da doente, até a tocar. Nada. Com uma voz diferente, Corina dirigiu‑se àquela que seria a sua última doente:

‑ Está bem... Pode ir‑se embora.

‑ Devo voltar depois de amanhã ou noutro dia?


‑ Não sei...

Dirigiu‑se de imediato para a porta, como um autómato, para se retirar na divisão que transformara em quarto de dormir desde o seu casamento. Aí deixou‑se cair sobre a cama, olhando fixamente para a frente, com os olhos perdidos no vazio.

Um minuto depois, Marius foi ter com ela. Pedira desculpa à holandesa pela indisposição da mulher e prevenira os doentes de que teriam de esperar alguns minutos.

‑ O que é que se passa, Corina?

‑ O nosso filho mexeu‑se pela primeira vez ‑ disse ela docemente.

‑ É maravilhoso, Cora. É verdadeiramente um grande momento, tanto para ti como para mim ‑ e beijava‑a na testa e acariciava‑a com uma ternura infinita.

Mas ela olhava para ele com um olhar indecifrável, respirando profundamente e mais rapidamente do que de costume.

Sem ter ainda compreendido, viu‑a dar um salto da cama, ir buscar um copo extremamente estreito e pousá‑lo em cima da mesa. Fechando as pálpebras, concentrava toda a sua energia com tal intensidade que o seu rosto tornara‑se numa máscara de lábios contraídos de proeminentes malares, que pareciam querer romper a pele que os cobria. Fazia as mãos irem e virem por cima do copo, cada vez com mais nervosismo, de dedos afastados, procurando no fundo de si própria a força que irradiava dela desde sempre, mas de que ‑ sabia‑o agora ‑ não tinha sido mais do que fiel depositária. Nada! Aquele copo de cristal fino não explodia. Estariam os seus dedos mortos? Não, faziam simplesmente parte duma mão que voltara ao normal. à força de se crispar, iam simplesmente esmagar o copo.

Estupefacto, irritado, Marius só recuperou a fala ao ver os bocados manchados com algumas gotas de sangue que tinham voltado a cair sobre a mesa.

‑ Mas tu cortaste‑te, Corina! Espera, vou buscar um penso rápido. Mas porque é que esmagaste o copo daquela maneira?

Ela tinha inclinado a cabeça para trás. Estava de olhos fechados, estupefacta, transtornada, mas sorridente. Pouco a pouco, o seu rosto voltava a ter o aspecto normal.

‑ Manda todos os doentes embora, Marius ‑ disse numa voz cava. ‑ Todos!

‑ Ainda estão nove à espera. O que é que lhes devo dizer?

‑ Que se vão embora! E que nunca mais voltem! ‑ A sua voz, inicialmente irreconhecível, começava a tornar‑se outra vez normal, cada vez mais calma e clara, mas as palavras saíam tão rapidamente da sua boca que eram quase incompreensíveis. ‑ já não posso... já não consigo... já não tenho a força... Desapareceu... As minhas mãos estão vazias...

‑ Cora!

Tinha corrido para ela, apoiava‑a e apertava‑a contra ele. Apercebeu‑se de que ela chorava com a cabeça encostada ao seu ombro. Não se mexeram durante algum tempo, como se não conseguissem conceber o que lhes estava a acontecer. Foi Marius quem reagiu primeiro.

‑ Como... como é que te deste conta? ‑ gaguejou.

‑ No exacto momento em que o bebé se mexeu. A partir desse momento, tudo acabou... A força que as minhas mãos possuíam abandonou‑me...

‑ Queres dizer que a criança... ‑ apertou‑a mais contra si ‑ captou a tua força...


‑ Sim, essa força tornou‑se na sua vida. ‑ Ainda chorava, mas sorrindo ao mesmo tempo. ‑ Marius, no fundo estou feliz... Eis‑me de novo um ser humano, uma mulher como as outras. já não sou a "feiticeira siberiana"... As minhas mãos já não produzem irradiações... Sou a Corina Herbert e vou ter um bebé... É maravilhoso...

Foi preciso uma semana para convencer toda a gente de que as mãos de Corina já não podiam curar. Chegavam carros e autocarros, as pessoas desciam, juntavam‑se e discutiam longamente diante do letreiro pregado à porta.

LAMENTAMOS CONFIRMAR QUE CORINA DEIXOU, INFELIZMENTE, DE PODER SOCORRÊ‑LOS. PEDE‑LHES QUE VOLTEM PARA CASA E AGRADECE A TODOS.

Durante alguns dias, os comes‑e‑bebes e as barracas ainda fizeram bom negócio: era simultaneamente necessário alimentar e acalmar o sentimento de decepção e de excitação que todos sentiam. Começaram a circular os boatos mais estranhos: Corina fora proibida pelo tribunal de se ocupar dos doentes. Os médicos tinham triunfado. Sim, fora da cidadela deles, era proibido curar! A Polícia tinha selado a tenda. (Pouco importava que os selos fossem invisíveis!) A justiça ameaçava prender Corina.

Um grande e gordo espertalhão barbudo subiu para uma cadeira diante da porta fechada e dirigiu‑se à multidão.

‑ Se é assim, se as carcaças velhas que nos dirigem nos impedem de nos tratarmos, então resta‑nos organizar através das ruas de M'nster um grande desfile de protesto até ao palácio do governo local. juntemo‑nos todos! Não podemos deixá‑los fazer o que querem!

A imprensa e a televisão acorreram de novo e comprimiram‑se diante das grades do pequeno jardim dos Doerinck, que, entrincheirados, não deixaram entrar ninguém. De nada valeram os desmentidos oficiais das autoridades governamentais e judiciárias afirmando que nenhuma medida proibia Corina Herbert de continuar a receber os doentes. Doerinck, interrogado cada vez que saía ou entrava, limitava‑se a responder: "A Corina já não pode ministrar tratamentos! Sem comentários!" A massa dos jornalistas aprendeu a temer os rugidos de Erasmus Roemer: "A representação acabou! Agora têm de habituar‑se a mijar nas próprias botas! A Corina não está presa, nem sofreu nenhum acidente ou ficou maluca. Vou dizer‑lhes a verdade: quis tratar um jornalista e desde então tem constantemente vontade de vomitar! E agora, tropo é tropo, como dizem os Italianos!"

A situação piorava a cada passo. Que esconderia o súbito desaparecimento de Corina? A partir do quarto dia, os doentes organizaram através da cidade um desfile com tochas que se imobilizou diante da grade do jardim dos Doerinck. Só Ludmila apareceu durante um instante, afastando os braços num gesto de desolação. Houve um jornal diário que publicou a toda a largura da primeira página: "A tragédia abate‑se sobre os Doerinck." O professor Van Meersel telefonou da Holanda para propor os seus serviços. Dois dias depois, Nerochenko mandou um telegrama: "Que se passa? Quer vir à Rússia?" O correio de Hellenbrand estava submerso em cartas e telegramas vindos do mundo inteiro: de Tóquio, Sydney, Los Angeles, Ontário, Quebeque, Miami, Honolulu, Seul, Pequim, Nova Deli, etc.


Corina refugiara‑se com Marius no seu antigo quarto de criança, folheando os catálogos dos construtores sem encontrar a casa dos seus sonhos.

‑ No fundo, que é que queremos? ‑ resumia Marius. ‑ Um sítio onde ninguém nos conheça. Não há muitos, à parte a Gronelândia, a floresta virgem do curso superior do Xingu, no Brasil, uma das mil ilhas Fidji, no mar de Suva, ou, então, no alto dos Andes, resta‑nos as ruínas duma cidade inca. Há ainda os planaltos da Birmânia, reino da droga... Fora isto, não vejo mais nada.

- A Suíça agradar‑me‑ia ‑ disse finalmente Corina. ‑ Uma casa num sítio qualquer das montanhas onde ninguém se preocupe connosco. Serás um pintor que cultiva o seu jardim, corta madeira para a lareira e bebe de vez em quando um copo com os camponeses da aldeia e passarás quase sempre despercebido. Esse pintor terá uma mulher, como é natural, uma tal Corina, e um filho. O que nos interessa, de facto, é estarmos rodeados de calma e, para mim, é importante ser uma mulher como as outras.

‑ E se, depois de o bebé nascer, isso volta?

‑ Isso não volta nunca mais. Sinto‑o. É por isso que fico ainda mais feliz por te ter curado

Doerinck também se congratulava com a "normalização" da filha. Tinha declarado sem rodeios ao genro:

‑ Visto teres conseguido a proeza de fazer de Corina uma verdadeira mulher, tenho de fazer com que me perdoes por muitas coisas... Mas porque é que querem ir para tão longe?

‑ Aqui nunca mais teremos um segundo de repouso...

E Corina interviera, abraçando com um gesto largo o planeta inteiro.

‑ Hoje já não há distâncias, papuchka, bastarão algumas horas para que voltemos a estar todos juntos.

"Decididamente, ela tem sempre a última palavra", pensou Doerinck.

A casa elevava‑se num prado inclinado, por baixo de uma montanha fendida cujo ímpeto quase vertical na direcção do céu era impressionante. Chamavam‑lhe o Hammerhornli, porque, quando se olhava de baixo para a sua crista inclinando a cabeça, tinha a forma de um martelo (hammer) de cabo curto. No vale corria um ribeiro. Havia uma ponte de madeira que permitia ir à aldeia que fora construída na outra vertente. Depois de uma semana de idas e vindas nas montanhas suíças, já quando estavam prestes a desistir de procurar, visto só encontrarem casas que não lhes convinham e que ficavam sempre demasiado perto da civilização, vislumbraram o chalé dos seus sonhos. Apresentava, mesmo à entrada da ponte, um letreiro deteriorado pelas intempéries: VENDE‑SE. Saíram logo do carro e, depois dum instante de silêncio, sem sequer terem trocado uma palavra, tinham‑se abraçado.

A casa pertencia a um habitante da aldeia que negociava em madeira. O preço nem se prestava a discussões. Como bom suíço consciencioso e respeitador das leis, o proprietário convocou imediatamente as autoridades competentes relativas a vendas a estrangeiros, desde o presidente da câmara até ao notário. A seguir, tirando dum armário uma garrafa de aguardente, tinha declarado: "E agora, tudo está arranjado!"


Um adiantamento da Morrison e Sons permitira a Marius concluir o negócio. Na Páscoa, a primeira exposição de Marius Herbert, o "Van Gogli do século xx", como era dito num descontrolo publicitário, devia realizar‑se em Nova Iorque e tudo deixava prever um enorme êxito.

Depois da assinatura da escritura, tinham ido para o chalé e ficado muito tempo de pé, mão na mão, na grande sala vazia e fria com paredes de pinho e com a grande salamandra central circundada pelo tradicional banco circular. As persianas das janelas batiam com o vento e as lâmpadas eléctricas balançavam, suspensas no tecto por simples fios.

Com as mãos cruzadas sobre o ventre, que se lhe arredondava visivelmente, Corina declarou com solenidade:

‑ Vamos instalar‑nos logo a seguir às formalidades de registo. Gostaria que o nosso filho nascesse aqui, na paz e na beleza deste mundo.

Mudaram‑se em Abril com móveis novos comprados num grande armazém.

O chalé ainda cheirava a madeira fresca e a pintura. A nova cozinha estava instalada e o electricista tinha efectuado as últimas ligações. Marius experimentou o telefone: funcionava. O vasto mundo estava ao alcance deles.

A primeira pessoa a quem telefonaram foi ao médico da localidade, um tal Ruedi Zinimerli.

‑ Estou grávida ‑ disse Corina. ‑ No oitavo mês. Onde vou dar à luz?

‑ Irei vê‑la amanhã depois do almoço ‑ respondeu o médico. ‑ Falaremos então.

O Dr. Zimmerli era alto e seco, tinha a cara curtida pelo duro clima das alturas e era tão avaro de palavras como os camponeses que compunham a sua clientela. Chegou num carro preparado para todos os tipos de piso, com o qual conseguia chegar aos sítios de mais difícil acesso. Deteve em Corina um longo olhar pensativo, como se aquela cara o fizesse pensar em qualquer coisa de que não conseguia lembrar‑se exactamente. Ficou cerca de meia hora, bebeu um copo de vinho enquanto comia algumas fatias de carne e declarou: , ‑ O hospital é bom. Não os chame demasiado tarde. É preferível fazê‑lo demasiado cedo. Aqui já nasceram quatro bebés durante o trajecto da mãe para o hospital. Para três, isso significou a morte. Telefone assim que sentir os primeiros puxões nas costas. O que é que calculou como data?

‑ O meio do mês de Maio, senhor doutor.

‑ Está bem. As crianças de Maio, dizem, são aquelas de quem se gosta mais facilmente. E sempre tive menos complicações com elas. Lá porquê não sei.

Quando o Dr. Zinimerli começava a afastar‑se no seu carro, atalhando através dum campo em pousio, Marius levantou os ombros.

‑ Que médico esquisito! Olhou‑te com um ar estranho.

‑ Estás a imaginar coisas, Marius.

‑ Talvez...

Do outro lado do curso de água, o carro do médico já se encontrava a atravessar a rua principal da aldeia.

‑ Antes, terias sentido isso imediatamente, Cora...,

‑ Sinto‑me feliz por esse "antes" ter desaparecido. É como se me tivessem libertado dum peso. Marius, olha como este país é bonito. Quando todas as montanhas estiverem floridas, chegará o nosso filho...


Todos os dias telefonava para Hellenbrand, ou então era Doerinck quem lhes ligava à noite. A conversa versava sobre coisas simples: novos cortinados, a compra de louça, um calmo passeio a pé até ao cimo da montanha "deles", o Hammerhornli, o encontro da Morrison e Sons no hotel, que passaria a ser a partir daí o seu lugar habitual de contacto. Também falavam do Dr. Zimmerli, que, na antevéspera, piscando os olhos, tinha declarado: "É uma rapariga. Engano‑me raramente. Tem ar de quem está à espera duma rapariga. Procure um bonito nome para ela."

‑ E se for uma, como é que vão chamar‑lhe? ‑ perguntou Doerinck.

‑ Svedana. ‑ respondeu Corina sem hesitar. ‑ É o nome da mãe da mamuchka.

‑ E se for rapaz?

‑ David, como o meu avô Assanurian. Concordas, pai?

‑ A tua mãe, que está a ouvir, já chora de alegria!

O Dr. Zimmerli não se tinha enganado. No dia 25 de Maio Svetlana Herbert nasceu no hospital. Era uma delicada menina com uma já densa cabeleira e de olhos azuis. Corina teve um parto fácil, ao contrário de Ludmila, quando ela nascera. Tudo se passou numa hora e a parteira declarou:

‑ Que linda menina! Ainda será mais bela do que a mãe.

Nada se podia comparar com a felicidade dos avós, que, acompanhados pelos recados de Erasmus Roemer e do Dr. Ewald, tinham partido imediatamente para a Suíça. Ao ver a expressão de orgulho de Stefan Doerinck com a neta ao colo, dir‑se‑ia que era ele o protagonista do acontecimento. Ludinila olhava para ele, aterrorizada.

‑ Não a deixes cair! E não a apertes demasiado. Vê se tens cuidado!...

Sensação em Nova Iorque! Morrison e Sons anunciava triunfalmente por telegrama: "O nome de Marius Herbert entrou na história da arte. Exposições previstas imediatamente: São Francisco e Nova Orleães. A sua viagem a Nova Iorque, indispensável este mesmo ano, de preferência antes do Natal, para a nova grande exposição."

‑ Em Dezembro! ‑ exclamou Corina. ‑ A Svetlana terá então sete meses. Poderemos ir contigo. Tens de aceitar, Marius...

‑ Se vierem as duas, faço a viagem.

Mais uma vez, Marius releu lentamente o telegrama. Parecia‑lhe que as palavras lhe ressoavam nos ouvidos como o repique de um sino celebrando uma vitória: "Marius Herbert... entrou na história da arte..."

Com as lágrimas nos olhos, voltou‑se para Corina.

‑ Sem vocês as duas, recusar‑me‑ia a ir lá. Que teria sido de mim sem ti, Cora?

‑ O que és agora, meu querido. Isso dormia em ti, só foi preciso despertá‑lo.


Numa manhã de domingo do mês de Agosto, Corina levantou‑se para preparar o pequeno‑almoço, como costumava fazer aos domingos. Aos dias de semana Marius encarregava‑se disso, sem que nunca tivessem combinado nada. Marius gostava de se levantar cedo. Pintava encantado as paisagens matinais envoltas numa bruma que os primeiros raios do Sol começavam a atravessar pouco a pouco. Quando Corina aparecia com o bebé, era acolhida pela casa, que parecia um ninho cheio de cheiros: o do café moído de fresco, o do pão mantido quente no forno e o do ramo de flores colhido no jardim ou na vizinhança. Mas ao domingo era tudo diferente: Marius ficava na cama a brincar com a Svetlana e só descia quando Corina gritava lá de baixo:

‑ A pé, seus preguiçosos! O café está pronto!

Naquele domingo estava a chover. O ramo de flores, com dois dias, começava a murchar. Corina tirou‑o do vaso, que encheu de água fresca. Depois foi até à janela para olhar para a chuva que caía do céu invisível e batia docemente nos vidros. "Com um tempo destes a ausência de flores frescas é natural", pensou. Mas quando ia buscar as flores murchas para as deitar fora, parou repentinamente, estupefacta, tremendo sob o choque duma emoção terrível e imprevista: as flores erguiam‑se erectas, resplandecentes de frescura e beleza, nas suas mãos.

Ouviu‑se dar um grito terrível. Tinha aberto as mãos e recuado dois passos e olhava para as flores, que tinham voltado à vida e que tocavam o solo. A seguir precipitou‑se para a cozinha, tirou um copo do armário, pousou‑o no lava‑louças, estendeu as mãos por cima dele e abriu os dedos. De imediato, o copo estilhaçou‑se em mil bocados.

Escapou‑se‑lhe um novo grito de horror, tão terrível que nem parecia provir duma garganta humana. Ia e vinha na cozinha, mordendo os punhos e enterrando profundamente os dentes na própria carne. Quando Marius, transtornado, chegou a correr, olhou para ele com olhos de louca.

‑ Ajuda‑me, Marius, ajuda‑me! Pega no machado e corta‑me estas mãos. Fá‑lo por nós todos. A infelicidade volta a bater‑nos à porta, sinto‑o, sei‑o! Não quero ter outra vez esta maldição! Ajuda‑me!

Antes de ter tempo para a agarrar, ela inclinara‑se para trás e caíra ao comprido no chão de tijoleira. Estava inconsciente, debatendo‑se com a boca a espumar e o corpo agitado por bruscos sobressaltos que pareciam uma sucessão de choques eléctricos.

Repentinamente, a crise de nervos cessou. Ficou então durante algum tempo deitada de lado, dir‑se‑ia que adormecida, imóvel, mas ainda sem recuperar a consciência, mesmo quando Marius a tomou nos braços para a transportar para o quarto. Após alguns minutos, acabou por abrir os olhos e olhou à sua volta.

‑ Tens o copo? ‑ perguntou finalmente. ‑ Viste as flores? - Voltou... Mas porquê? A infelicidade vai voltar, tenho a certeza...

‑ Mas não compreendo... O que é que se passou?

‑ As minhas mãos... A força está de novo em mim e as minhas mãos irradiam. Tudo voltou a ser como dantes.

Chorava agora em silêncio.

‑ Meu Deus! ‑ gaguejou ele, e deitou um olhar à sua volta como se a infelicidade que ela anunciava estivesse no chalé, perto deles.


Ajudou‑a a levantar‑se da cama e conduziu‑a, ainda vacilante, até uma cadeira, em que ela se deixou cair. Pouco a pouco, recuperava o fôlego. Ao seu rosto regressava um pouco de cor. "Que podia dizer‑lhe", pensou ele. "O que é que iria passar‑se? Tudo ia começar outra vez. Vai fixar o olhar nas pessoas e dizer involuntariamente: "Está doente. Venha comigo e curá‑la‑ei." Voltarei a vê‑la estender as mãos em forma de taça na direcção dos que sofrem e a seguir fazê‑las ir e vir por cima dum corpo para lhe adormecer a dor e secar‑lhe o mal? Não! Isso, nunca mais! Este vale solitário irá encher‑se de caravanas de camionetas e de colunas de carros? O seu belo chalé iria transformar‑se numa fortaleza cercada? Sim, o dom que ela recebeu ao nascer não passa de uma maldição!"

Apercebeu‑se de que ela respirava, por fim, livremente, fixando nele os olhos, nos quais dançava uma chama sombria.

‑ Ninguém deve ficar a saber, Marius... Nem o meu pai... Nem a mamuchka... Compreendes?

‑ Não direi uma só palavra. Esperemos que não te traias a ti mesma...

Ela abanou a cabeça, deixou os braços penderem de cada lado do cadeirão e passou a língua pelos lábios ressequidos.

‑ Queres chá, querida?

Ela acenou com a cabeça, ainda exausta. Marius correu para a cozinha. No seu berço de madeira talhado grosseiramente pelo marceneiro da aldeia, Svetlana começava a mexer‑se e a gemer docemente. Há muito que a hora do pequeno‑almoço dominical tinha passado e o relógio interior da criança chamava‑os à realidade quotidiana.

Corina levantou‑se suspirando para pegar no bebé ao colo, cujo vagido se transformou num ronronar de bem‑estar. Na cozinha, Marius juntava os bocados de vidro partido e as flores, que atirou para o caixote do lixo num gesto de furor. No fundo de si mesmo a angústia subsistia. A partir dali, sabia‑o, nada voltaria a ser como dantes.

Doerinck telefonou à noite.

‑ Como está toda a família?

‑ Bem, papá...

Era uma primeira mentira proferida numa voz que não tremia.

‑ E o meu tesourinho?

‑ O tesourinho já está a dormir, papuchka.

‑ O que é que fizeram hoje?

‑ Passeámos até à cascata.

Tinha chovido todo o dia e ainda estava a chover. Era impossível pôr os pés fora de casa. Era, portanto, uma segunda mentira. Porquê?, perguntou‑se ela.

‑ Então está bom tempo aí? Aqui chove imenso. Bom, a tua mãe já aqui está. Dá beijinhos meus à miúda.

Uma conversa telefónica pode às vezes tornar‑se um suplício. Quando desligou, Corina sentou‑se de novo exausta. Numa voz cansada, sem timbre, acabou por dizer:

‑ Eis o que será a partir de agora a actividade principal da nossa vida, Marius. Mentir. Mentir a toda a gente e a propósito de tudo. É a única maneira de assegurarmos a nossa tranquilidade.

No princípio de Setembro, Svetlana acordou um dia com febre. Tinha seis meses. Era um bebé sólido e de extraordinária beleza, com os seus cabelos negros e os olhos de um azul brilhante. Quando Corina lhe pegava ao colo e o seu olhar mergulhava no da criança, tinha a impressão que eram ambas envolvidas por uma nuvem de calor.

O Dr. Zimmerli veio imediatamente. Marius tinha‑o prevenido pelo telefone, escondendo‑o de Corina, que se opusera ao telefonema. Quando esta foi abrir, ao ouvir a campainha tocar, recebeu‑o bastante friamente.,

‑ Ah, é o doutor! O que é que vem fazer cá a casa?

‑ A Svetlana está doente. Tem febre.

Ele entrou, precedendo Corina, que o viu desembaraçar‑se do sobretudo e pegar na maleta.

‑ Foi o Marius que o chamou?


‑ Feliz da criança cujo pai se ocupa dela. Não é o que se passa noutras famílias. Para algumas, uma vaca doente é muito mais importante do que um bebé. Posso ver a Svetlana?

Ela aquiesceu com um sinal de cabeça e guiou‑o até ao quarto, onde o deixou sozinho. Quase furiosa, sobretudo pouco à vontade, voltou a sair para se precipitar no atelier que Marius tinha arranjado e onde mandara abrir uma larga janela pela qual penetrava em cascata a claridade vinda do norte ‑ para um pintor era a melhor exposição, visto a luz do norte ser neutra.

‑ Telefonaste a Zimmerli? ‑ disse ela numa voz forte.

‑ Telefonei. A Svetlana está doente.

‑ Ela não precisa de médico e tu sabe‑lo bem...

‑ Mas jurámos esquecer as tuas mãos, Cora...

‑ Não, quando se trata de nós!

Dando bruscamente meia volta, voltou a correr para o quarto, onde o Dr. Zimmerli tinha tirado Svetlana do berço para a deitar na cama. já estava a guardar o estetoscópio. O bebé batia com os pés e queixava‑se docemente.

‑ É preciso levá‑la ao hospital. Trata‑se de uma simples precaução. É preciso pô‑la em observação. Pode ser uma indigestão, mas o que me preocupa é ela ter sinais de hepatite. Uma hepatite num bebé não me agrada nada... Vou ligar imediatamente para o hospital.

‑ Não ‑ disse Corina numa voz tão firme que o Dr. Zimmerli olhou para ela surpreendido.

‑ Como?

‑ A Svetlana vai ficar aqui.

‑ Isso é o que a Corina diz. Eu cá digo o contrário. A minha responsabilidade está em jogo!

‑ Eu sou a mãe e assumo a inteira responsabilidade do que faço.

‑ Bom! já que é preciso ser desagradável, vamos a isso. ‑ Abriu a maleta, tirou de lá um frasco cromado que continha

uma seringa e uma ampola. ‑ Chamam‑me na minha qualidade de médico, diagnostico uma doença grave num bebé, acho que o internamento é indispensável e chamo a atenção para o facto de uma recusa pôr em perigo a vida da sua filha. Se acontecer qualquer coisa, fica sob a alçada da lei. ‑ Tinha pegado na ampola e estava a encher a seringa. ‑ Enquanto esperamos a transferência para o hospital, vou dar uma primeira injecção à Svetlana. É preciso ganhar tempo.

‑ Também me oponho completamente a isso. Proíbo‑o de o fazer.

Debruçou‑se sobre a cama e pegou na criança ao colo para a apertar contra si. Sentiu uma vez mais uma impressão de calor envolvendo‑as a ambas como se fossem uma só. O Dr. Zimmerli, com a seringa na mão, zangou‑se seriamente.

‑ Repito: talvez seja um caso bem mais grave do que pensa. Quer proibir‑me de salvar esta criança?

‑ Aquilo a que chama a hepatite de Svetlana é uma icterícia parenquimatosa proveniente de uma hepatite aguda.

‑ Nunca! Como pode sabê‑lo?

‑ Senti‑o! Vi‑o! Sei‑o desde há duas horas.

O Dr. Zimmerli pousou com precaução a seringa na caixa cromada.

‑ O que é que quer dizer com "senti‑o", "vi‑o"?

‑ Senti‑o com as minhas mãos.


‑ Então é isso! ‑ Com um golpe seco, o Dr. Zinimerli voltou a fechar a tampa da caixa. ‑ Então é você! Quando a vi pela primeira vez, interroguei‑me sobre onde é que tinha visto a sua cara. Agora já me lembro: vi‑a na televisão, nos jornais e semanários ilustrados. A curandeira alemã! Como é que lhe chamavam? "A mulher das mãos irradiantes", não era? É você que cura o cancro com as mãos?

‑ Sou. já concorda comigo?

‑ De maneira nenhuma!

Tinha‑se endireitado todo e o seu olhar hostil preveniu Corina de que o combate em que se encontrava há anos se reiniciara: era o da força que existia nela, daquela irradiação que diziam ser milagrosa, contra toda a rigidez da medicina oficial.

‑ A Svetlana deve ser internada imediatamente.

‑ Não. Eu própria a curarei aqui.

‑ Mas se se trata justamente de uma icterícia parenquimatosa, como diz, tem de ser tratada no hospital.

‑ Comigo, ela estará curada dentro duma semana, no máximo.

‑ É pura loucura! Minha senhora, está a cometer um crime contra a sua filha!

A sua excitação era tal que continuou a gritar em dialecto suíço, que era absolutamente incompreensível para Corina. Esta aproveitou um momento em que ele retomava fôlego para dizer calmamente:

‑ É melhor ir‑se embora, doutor. Tem certamente outros doentes para ver.

Corina ouviu o carro arrancar raivosamente. Marius saiu a correr do atelier.

‑ O que é que se passou, Corina?

‑ Pu‑lo na rua.

‑ Meu Deus! E a Svetlana?

‑ Queria interná‑la.

‑ Mas, e se for necessário, Cora! ‑ gritou transtornado.

‑ Quero tratar eu mesma a Svetlana. Foi o que lhe disse!

Marius, desesperado, limpou o rosto com as mãos, pois subitamente começara a suar.

‑ O que é que acabas de fazer, Cora? O contrário do que juráramos fazer. Agora vai recomeçar tudo. Vai ser outra vez o inferno.

O que se ia abater sobre eles não era o inferno, mas uma cadeia de acontecimentos talvez ainda mais graves. Quatro horas depois, ouviu‑se de novo o som da campainha. Foi Marius quem abriu. Viu imediatamente a ambulância do hospital distrital com dois enfermeiros vestidos de branco. Na primeira fila, o Dr. Zimmerli cumprimentou‑o em silêncio, tendo a seu lado um polícia que levou protocolarmente a mão ao boné.

Marius deu meia volta e chamou Corina.

‑ Estão aí... Querem levar a Svetlana...

Ela endireitou‑se de um salto e apareceu. Ao vê‑la, Marius ficou paralisado pelo estupor: já não reconhecia a mulher. O rosto maravilhoso que ele amava transformara‑se numa máscara de traços deformados, na qual brilhavam dois olhos. Estava ali, de pé, com os dedos crispados como as presas duma louca ou dum animal pronto a saltar sobre quem quer que quisesse levar‑lhe a criança.


O Dr. Zimmerli e o polícia tinham parado na entrada. Trocaram um olhar cúmplice. A atitude daquela mulher era clara. Não era preciso ir mais longe. A cara do Dr. Zimmerli traduzia a sua perturbação: encontrava‑se numa situação não só desagradável mas igualmente aborrecida. A sua voz quase tremia quando começou a falar.

‑ Dado ser um caso urgente e visto recusar‑se a aceitar as medidas que se impõem, fui obrigado a pedir a ajuda da Polícia no interesse da criança. O chefe da Polícia local recebeu ordem de levar a criança para o hospital distrital. ‑ Mostrava um ar manifestamente transtornado, mas conseguiu continuar. ‑ Não crie dificuldades. Ignoro como é que as coisas se passam na Alemanha, mas aqui é a Suíça. A sua decisão de querer curar esta criança, que está ameaçada de morte, apenas com as próprias mãos é uma loucura. Por isso, somos obrigados a tirar‑lha. Qualquer tribunal suíço me dará razão. Se a criança morrer, teremos, pelo menos, feito tudo o que podíamos para a salvar.

‑ Mas eu posso curá‑la, posso mesmo! ‑ gritou Corina.

Numa voz sem timbre, Marius interveio.

‑ Pois pode! Sou testemunha disso. Curou‑me de um cancro no estômago e curou a mãe de um cancro no cólon. E curou centenas de doentes. Leu ao menos os relatórios das experiências a que a submeteram? O professor Nerochenko...

A cara do médico do campo contorceu‑se de repugnância.

‑ Agora vem falar‑me dos russos! Do charlatanismo desses pseudocientistas!

‑ Espere! ‑ Corina tinha avançado, juntando as mãos num gesto de oração. ‑ Há uma hora tratei a Svetlana e continuarei amanhã e depois de amanhã. Ela estará curada dentro duma semana. Espere só...

Vermelho de cólera, o Dr. Zimmerli já não conseguia conter‑se.

‑ Esta mulher é insuportável com as suas momices! Chama a isso tratar! Vai matar a filha com tanta cegueira. Não passa de uma anormal. ‑ Voltou‑se para o polícia. ‑ E agora, executem as ordens!

O polícia deu um passo em frente e ficou rígido. Ainda compôs o uniforme verde‑acinzentado antes de declarar no tom mais neutro possível:

‑ Minha senhora, tenho ordem de a prender para proteger a vida da sua filha, Svetlana Herbert. Peço‑lhe que me siga.

‑ Não vai prender a minha mulher ‑ disse secamente Marius. ‑ Pode levar a criança para o hospital...

Corina lançou um grito desesperado.

‑ Estás a matar a nossa filha, Marius! Estás a matá‑la!

Para quê resistir mais? O polícia e um dos enfermeiros fizeram Corina sair do quarto. O Dr. Zimmerli e o outro enfermeiro puderam então entrar. Alguns segundos depois, saíram levando a criança embrulhada num cobertor. Tiveram de se juntar os três para resistir a Corina, que gritava como um animal. Os seus gemidos atrozes redobraram quando a ambulância, depois de ter atravessado a ponte, desapareceu na rua principal da aldeia.

‑ Estão a matar a minha filha! A matá‑la! Svetlana!

Com a ajuda de Marius e do polícia, o Dr. Zimmerli deu a Corina uma injecção tranquilizante. Parando de gritar, ela pôs‑se a chorar de maneira estranha, numa espécie de queixa monótona, ininterrupta, num tom quase agudo. Lentamente, caiu num sono profundo, mas agitado por bruscos sobressaltos. Marius, sentado perto da cama, pegava‑lhe na mão. Ainda não se mexera, quando tocou o telefone. Era o médico que dirigia o serviço de pediatria no hospital.

‑ Como está a Svetlana, doutor? ‑ perguntou logo Marius, cujo coração já começava a entrar em pânico. ‑ Examinou‑a?


‑ Telefono‑lhe justamente por isso, para o tranquilizar. ‑ A voz era calma, tão tranquilizante quanto possível. ‑ Não se preocupe, senhor Herbert. Trata‑se duma simples perturbação alimentar acompanhada por acidez. Vamos simplesmente modificar‑lhe a alimentação e tudo correrá bem. Onde está a sua mulher?

‑ Dorme.

‑ Então é a si que devo dizer‑lhe: seria preferível, dado o seu estado e os seus antecedentes, que ela se abstivesse de vir ao hospital durante os próximos dias, pelo menos até conseguirmos controlar a situação. É necessário conseguirmos levar a nossa terapia até ao fim. Compreende, não é verdade?

Marius esforçou‑se por engolir a saliva, mas tinha a garganta completamente seca.

‑ Sim, compreendo... Vou tentar convencê‑la. Quanto tempo ficará a Svetlana hospitalizada?

‑ Cerca de dez dias. Sobretudo, não se preocupe, senhor Herbert.

Apesar de tudo, subsistia nele uma dúvida: "E se o diagnóstico da minha mulher for exacto?..." Estas palavras queimavam‑lhe os lábios, mas conteve‑se para não indispor aqueles homens, que, longe dele, reinavam como mestres absolutos sobre a vida e a morte da sua filha. Ao pousar o auscultador, Marius ouviu atrás de si um ligeiro ruído, uma espécie de raspagem. Corina, em pé na ombreira da porta, olhava‑o fixamente. Tinha uma palidez mortal e o seu rosto parecia ter ficado flácido.

‑ Que dizem eles?

‑ Que é apenas um problema digestivo. Hiperacidez. E que não nos devemos inquietar.

‑ Estão a matar a nossa filha, Marius. Vão matá‑la.

‑ São médicos experimentados.

‑ Sempre houve médicos experimentados e, no entanto, quando estes ficavam impotentes vinham ter comigo para que os curasse. Marius, é preciso recuperarmos a Svetlana. Ela não pode ficar no hospital. Temos de encontrar alguém que nos ajude: a polícia, um advogado, um magistrado, sei lá... Meu Deus, em que mundo vivemos sem haver nem direito nem justiça?

‑ Tudo o que fizermos agora prolongar‑se‑á no tempo e tornará mais longa a permanência de Svetlana no hospital. Que julgas que dirão quando afirmares que todos aqueles médicos estão errados e que vais curar a tua filha com as mãos? Vamos deparar com um muro firme, como nos asilos para alienados! Acabas de dizer uma verdade: para nós não há direito nem justiça, visto eles não admitirem que curaste doentes condenados à morte pela medicina oficial e porque eles perturbam a ordem estabelecida e as bruxas são objecto de reprovação! Sempre foi assim e continuará a sê‑lo até que a espécie humana, por causa da sua parvoíce, se destrua a si mesma...

Beijaram‑se longamente, chorando.

Desde há quatro dias e quatro noites que Corina não se afasta da janela, de onde o seu olhar mergulha no vale. Quase não dorme e quando isso acontece é apenas por duas horas e sem abandonar a poltrona, inclina‑se apenas para a frente para apoiar a cabeça no rebordo da janela. Marius aproxima‑se logo dela e toma‑a nos braços.

Então, numa voz sem timbre, ela repete sempre as mesmas palavras desesperadas:


‑ A nossa filha sofre. Sinto que a Svetlana está pior. Chora na sua pequena cama. Na noite passada, gemeu e vomitou tudo o que lhe deram. Chama‑me, Marius. Ouço‑a... "Acalma‑te", disse‑lhe, "a tua mãe está contigo e vai trazer‑te em breve para a bela casa da montanha... Estarás curada. A tua mamã quer que te cures, não te abandona e não te abandonará..." Então, Marius, peguei‑lhe ao colo e acariciei o seu corpinho tão magro... Os médicos enganam‑se, mas eu sou mais forte do que eles, consigo estar com ela.

Na noite do quinto dia, Corina começou a agitar‑se estranhamente. Andava dum lado para o outro no quarto, corria para a porta da casa, olhava para longe para voltar a sentar‑se à janela respirando com dificuldade e comprimindo o coração com ambas as mãos. Exclamava:

‑ O que é que se passa, Marius? Não consigo respirar. Svetlana,... Passa‑se qualquer coisa com a Svetlana.

Ele viu‑a de repente levantar‑se dum salto, correr até à porta, que abriu como se ouvisse a filha a chamar. Pôs‑se a gritar na noite:

‑ SVETLANA! A tua mãe está aqui! Svetlana...

Com os dedos a tremer, Marius discou o número do hospital.

A enfermeira da noite acabava de entrar ao serviço e a sua resposta foi a que se podia esperar de uma peça mecânica bem oleada: "Não, é impossível contactar com o doutor neste momento... Não, não posso fazer nada. Só o médico pode responder‑lhe... Assim que conseguir contactar com ele, ligará para si... "

Contudo, no quarto n.o 9 do serviço de pediatria, dois médicos, com os olhos finalmente abertos, tentavam em vão opor‑se ao avanço inexorável do destino. No corpo já esquelético da criança, cuja pele ficara repentinamente de um amarelo‑escuro, tentavam injectar gota a gota, por meio de uma minúscula agulha e de um fino tubo, uma mistura de ácido aminado e de argimina. No berço, o bebé já não se mexia, pois o coma hepático já começava a paralisar‑lhe todas as funções. Uma última análise mostrava um afluxo súbito de amoníaco no sangue e tratava‑se agora de uma corrida desesperada contra a morte. Aterrados, os dois médicos calavam‑se para não terem de confessar que a "curandeira das mãos irradiantes" tinha tido razão e que eles tinham ignorado o seu diagnóstico apenas por ele provir dela. Admitiam‑no, finalmente, mas três dias era demasiado tarde. Agora, médicos e enfermeiras admiravam‑se da rapidez vertiginosa, inexplicável numa criança daquela idade, daquela evolução fatal. Todos pensavam já que nisso encontravam uma desculpa que poderia não implicar, eventualmente, a sua responsabilidade...

Em casa, Corina, cada vez mais agitada, tremia com o corpo todo, o sangue batia‑lhe nas têmporas fazendo com que ela tivesse a impressão de que o seu cérebro não passava dum aglomerado de substância incandescente. Marius preparara‑lhe um café bem forte, mas ainda quase não tinha respirado o seu odor e já se tinha precipitado para fora para gritar numa voz inumana: "Svetlana! Svetlana!"


Arrepiado de medo, ele tentara fazê‑la parar duas ou três vezes, mas ela usara então duma força incrível e tinha‑o empurrado sem dificuldade contra a parede, a alguns metros dela, para voltar a lançar na noite de Novembro um apelo que as montanhas vizinhas repercutiam e que gelava o sangue do pai impotente.

Cerca da meia‑noite, ela ficou subitamente muito calma, sentou‑se na poltrona perto da janela e cruzou as mãos sobre a barriga como se estivesse à escuta de algo que se passava dentro de si. Depois os olhos vacilaram, perderam o brilho e, meio cobertos pelas pálpebras, pareceram enterrar‑se nas órbitas, no interior da sua cabeça...

Ainda respirava? Precipitou‑se de joelhos, fixando aquele rosto estreito e parado numa expressão apesar de tudo descontraída.

‑ Vou telefonar imediatamente ao médico ‑ teria ele querido dizer.

Inclinando‑se para ela, ele viu ainda, distintamente, nos últimos suspiros que ela emitiu, as palavras que repetia desde há vários dias:

‑ Minha querida Svetlazinha... Estou aqui, perto de ti. Sou eu, a tua mamã... Ela nunca te deixará sozinha... Dá‑me a tua mãozinha... Assim, está bem... É tão bom estarmos as duas juntas... Vês, tudo vai correr bem a partir de agora... A mamã fica ao pé de ti, meu amor. Estamos tão bem aqui. Tudo é tão maravilhoso... Minha Svetlazinha...

Ainda exalou um suspiro e ele viu o seu rosto descontrair‑se num sorriso feliz.

‑ Cora... Cora... ‑ Quase não ousava pronunciar o seu nome, pois as suas mãos tocavam um corpo que já não reagia às suas carícias. ‑ Mas o que é que se passa, Cora?

No mesmo instante, no hospital, os dois médicos levantaram‑se com o rosto alagado em suor. A enfermeira desligou automaticamente o conta‑gotas inútil e deixou cair o lençol sobre o corpo, de um amarelo‑ocre, do bebé supliciado.

Nos lábios de Corina continuava a ver‑se o mesmo sorriso e a mesma expressão de felicidade. O seu corpo tinha‑se apenas abandonado sobre si mesmo, como se quisesse sentar‑se mais comodamente. A cabeça simplesmente caíra para o lado ao passo que as mãos cruzadas tinham voltado a cair lentamente sobre as coxas.

Marius, ainda de joelhos, levantou a mão na direcção do seu rosto para lhe fechar completamente as pálpebras. E ouviu‑se repentinamente a implorar àquela que deixara de existir:

‑ Leva‑me, leva‑me, Cora... Não me deixes sozinho, sozinho...

Mas ainda vivia e encontrou‑se de repente a percorrer a casa e depois a abrir a porta e saindo na noite como ela fizera para gritar: "Svetlana, Cora! Levem‑me! Não me deixem sozinho! Sozinho!" Tudo em vão. O destino seguia o seu curso. Finalmente, foi sentar‑se na cadeira que ficava em frente à de Corina, tentando encontrar consolo no sorriso enigmático da morta, sem conseguir compreender o que se passara.

Na manhã seguinte, o Dr. Zinimerli chegou. Perturbado, ficou muito tempo de pé diante da morta, que continuava sentada. Não lhe tocou, mas telefonou à Polícia e a uma agência funerária. A seguir tentou dirigir algumas palavras a Marius, sem obter resposta da parte do homem prostrado, cuja mulher e filha talvez ainda estivessem vivas se...


Quando chegou o carro funerário e puseram o corpo de Corina no caixão, Marius não se mexeu. Nem sequer levantou os ombros quando Zinimerli quis fazer‑lhe compreender que era necessário proceder à autópsia da mulher. Isso era absolutamente indispensável para obter a autorização para a inumar. Quando o carro começou a fazer marcha atrás para partir, Marius voltou para o seu quarto e lá se fechou.

O enterro pôde realizar‑se cinco dias depois. O resultado da autópsia criava um enigma. Não havia quaisquer sinais de ataque cerebral ou de enfarte. Aquela morte permanecia um mistério. O coração tinha simplesmente parado, sem causa aparente, como certificou o médico legista. Na autorização de inumação, teve de resignar‑se a indicar: paragem cardíaca, causa desconhecida.

No cemitério da pequena aldeia, depositou‑se na mesma cova um caixão de carvalho e um pequeno caixão lacado de branco. Marius assim decidira. Queria continuar a viver naquela casa que era a de Corina e de Svetlana: acreditava no que Nerochenko tinha afirmado: estava certo de que elas estariam sempre à sua volta e viveriam com ele naquele mundo de múltiplas dimensões de que Corina se tinha aproximado. Quando estivesse sozinho continuaria a falar com elas, mostraria a Corina as suas novas telas e perguntar‑lhe‑ia como antigamente: "São boas?" Mesmo que nunca ouvisse a resposta, teria a impressão de não estar sozinho, visto que aprendera que a solidão só é um espaço vazio para aqueles que não compreenderam o que é a eternidade.

O Prof. Van Meersel, que viera ao enterro de Corina com os Doerinck e alguns raros amigos íntimos, tomou Marius pelo ombro no momento da despedida.

‑ Não paras de te perguntar como e porque é que Corina morreu, não é verdade?

‑ Ninguém o poderá explicar...

‑ No entanto, existe uma explicação. A medicina já assinalou casos da morte simultânea de gémeos a distâncias consideráveis. É um fenómeno a que se deu vários nomes, mas que se pode conceber do ponto de vista parapsicológico pela existência duma irradiação, dum campo de forças que liga estreitamente dois seres de tal maneira que, quando um morre, o segundo desaparece automaticamente. ‑ Van Meersel deitou uma olhadela ao vasto vale que a primeira neve transformava numa paisagem de conto de fadas. ‑ É assim que imagino o elo que uma Corina e Svetlana. Estavam ligadas de maneira indissolúvel. Como eram dois pólos da mesma irradiação, nada as podia separar. Lembra‑te que quando a criança começou a viver nela, Corina perdeu a força interior que curava. Essa força desapareceu no momento da fusão, que era uma fusão eterna. Vivemos num mundo de milagres, Marius...

Apertando Marius contra si, Van Meersel avançou alguns passos no jardim que estava coberto de neve. Ludinila e Stefan Doerinck, o Dr. Hambach e Erasnus Roemer olhavam‑nos pela janela no interior do chalé.

Com uma voz estranhamente baixa e doce, Roemer disse:

‑ Tenho medo por este rapaz. Ir‑se‑á abaixo...

No mesmo instante, Van Meersel perguntava‑lhe:

‑ E agora, que vais fazer?

‑ Dentro de uma semana tomo o avião para Nova Iorque... Foi Corina quem o quis... Estava tão feliz por ir fazer esta viagem comigo. Teria ficado tão orgulhosa do pintor Marius Herbert... Não é, Corina?


Voltou‑se bruscamente e enfiou a cabeça no ombro do holandês: ainda era demasiado cedo para que a Eternidade pudesse substituir no seu coração a lembrança da felicidade desta pobre vida.

No dia 1 de Dezembro realizou‑se em Nova Iorque a inauguração da exposição de Marius Herbert. De pé, mais de quinhentas pessoas aplaudiram longamente o jovem pintor quando este entrou no hall da exposição no meio do zumbido das câmaras de televisão e dos clarões dos flashes fotográficos. O mundo acolhia a revelação dum novo expoente da pintura.

Um pouco embaraçado, Marius inclínou‑se para um lado e para o outro, agradecendo a todos o que o aclamavam. A seguir deu consigo com uma taça de champanhe na mão, que um desconhecido lhe dera quase à força, e fez o gesto de beber à saúde de todos. E como um movimento da multidão o tinha isolado por um momento a um canto da sala, levantou a taça, uma segunda vez, dizendo docemente:

‑ à tua obra, Corina!

E sem que ninguém compreendesse porquê, depois de a ter esvaziado dum trago, atirou a taça contra a parede para a partir, à maneira dos Russos.

Era uma mania de artista, sem dúvida, e todos se puseram a aplaudir.

 

                                                                                            Heinz G. Konsalik

 

 

                      

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