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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA TORTA / Agatha Christie
A CASA TORTA / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CASA TORTA

   

— Quando digo que Brenda provavelmente o matou, estou consciente de que isso não passa de um desejo.

 Tenho que saber a verdade. Preciso saber. Preciso saber em benefício de minha própria paz de espírito. Mas o fato é que tenho medo... medo... muito medo!

 

                                    

 

EU CONHECI Sophia Leonides no Egito, lá para o fim da guerra. Ela ocupava um cargo de muita responsabilidade num dos departamentos do Ministério do Exterior ali sedia­dos. Eu a vi pela primeira vez em missão oficial e reparei logo na eficiência que a elevara à posição que ocupava, apesar de sua juventude (ela estava, naquela época, com apenas vinte e dois anos).

Além de ser uma mulher muito bonita, tinha um espírito muito vivo e um senso de humor perfeito que eu achei delicio­sos. Tornamo-nos amigos. Eu gostava de conversar com ela e nos divertíamos muito quando saíamos juntos para jantar e dançar.

Disso tudo eu sabia — mas somente ao ser transferido para o Oriente, no final da guerra na Europa, foi que me ocor­reu outra coisa: que eu amava Sophia e queria casar-me com ela.

Jantávamos no Shepheard’s quando fiz essa descoberta. Não foi bem uma surpresa, e sim, o reconhecimento de um fato com que já me familiarizara. Olhei-a com novos olhos — mas percebi que já sabia disso há muito tempo. Gostei do que vi. Os cabelos escuros anelados que brotavam orgulhosamente do alto da testa, os olhos azuis muito vivos, o queixinho qua­drado e agressivo, o nariz reto. Gostei do costume cinza-claro, bem talhado, e da blusa branca, pregueada. Ela parecia ingle­sa da cabeça aos pés e isto ainda mais me atraiu, depois de três anos longe da terra natal. Ninguém, pensei, poderia ser mais britânico do que Sophia — e ao mesmo tempo em que pensava nisso, indaguei comigo mesmo se, de fato, ela era, ou melhor, poderia ser tão inglesa quanto aparentava. As coisas reais teriam acaso a mesma perfeição de um desempenho no palco?

Fiquei pensando nisso enquanto conversávamos, deba­tendo idéias, nossas preferências e desagrados, o futuro, os amigos próximos e os conhecidos. Sophia jamais mencionara seu lar ou sua família. Sabia tudo a meu respeito (era, como eu já disse, uma boa ouvinte), mas sobre ela eu nada Sabia Acreditava que ela tivesse uma família de classe, mas até en­tão eu jamais percebera a omissão.

Sophia perguntou em que eu estava pensando.

Em você — respondi com franqueza.

Eu percebo — disse ela. E deu-me a impressão de haver percebido mesmo.

Talvez não voltemos a nos ver por uns dois anos — falei. — Não sei quando voltarei à Inglaterra, mas assim que voltar, a primeira coisa que farei será telefonar-lhe, vê-la e pedi-la em casamento.

Ela aceitou isso sem um piscar de olhos. Sentada ao meu lado, continuou fumando, sem me olhar.

Por um ou dois minutos temi que não me houvesse com­preendido.

—Ouça — falei, — só há uma coisa que eu estou determinado a fazer: é não pedir a você que se case comigo agora. Seria um gesto precipitado. Primeiro porque você poderia re­cusar e eu, me sentindo infeliz, provavelmente seria vítima de alguma mulher horrorosa só para curar a minha vaidade ferida. E se você não disser não, que poderíamos fazer? Casar e nos separarmos logo depois? Noivar e, longe um do outro, esperar tanto tempo? Não desejaria amarrá-la a um compro­misso desses. Você talvez encontrasse outro e se sentisse obri­gada a ser “fiel”. Estamos envolvidos numa atmosfera febril, do tipo “resolva logo hoje porque amanhã pode ser tarde de­mais”. Casamentos e amores surgem e se desfazem à nossa volta. Preferia sentir que você há de voltar para casa, livre e independente, e que, adaptada ao novo mundo de após-guerra, decidiria então o que fazer de sua vida. O que existe entre nós, Sophia, tem de ser permanente. Assim é que eu encaro o casamento.

E eu também — disse Sophia.

Por outro lado — continuei — acho-me no direito de comunicar a você como eu... bem... quais são os meus sen­timentos.

Mas sem uma declaração romântica?  — murmurou Sophia.

Querida... não está entendendo? Esforcei-me para não dizer que a amo...

Ela me interrompeu.

—Entendo sim, Charles. E eu gosto da sua maneira engraçada de fazer as coisas. Você pode procurar-me quando voltar — se ainda quiser me ver...

Foi a minha vez de interromper:

Quanto a isto não há dúvida.

Existe sempre uma dúvida acerca de tudo neste mundo, Charles. Pode sempre surgir um fator imprevisível que transtorne nossos planos. A propósito, você não sabe muita coisa a meu respeito, não é?

Nem mesmo sei onde você vive na Inglaterra.

Vivo em Swinly Dean.

Acenei a cabeça à menção do bem conhecido subúrbio de Londres, que se orgulha dos três excelentes campos de golfe para os financistas da cidade.

Sophia acrescentou suavemente, em voz divertida: “Nu­ma casinha torta...”

Devo ter demonstrado alguma surpresa, pois ela riu e ex­plicou-se com a citação: “E viveram todos juntos numa casi­nha torta.” Somos nós. Não que a casa seja pequena, mas é definitivamente torta... o telhado descendo para os oitões e as vigas visíveis entre os tijolos!

Você faz parte de uma família grande? Tem irmãos e irmãs?

Um irmão, uma irmã, mãe, pai, um tio, uma tia por casamento, um avô, uma tia-avó e uma madrasta-avó!

—Deus do Céu! — exclamei um tanto surpreso. Ela riu.

Claro que normalmente não vivemos todos juntos. A guerra e os bombardeios em massa nos reuniram... mas não sei bem... — ela franziu a testa, pensativa — talvez espiritual­ mente a família sempre tenha morado junta... sob a vigilância e a proteção de meu avô. É uma personalidade, o meu avô. Tem mais de oitenta anos, cerca de um metro e meio, mas todo mundo parece apagar-se a seu lado.

Ele parece interessante — eu disse.

E é mesmo. É um grego de Smyrna. Aristide Leoni­des — e ela acrescentou com um piscar de olhos: — Extrema­mente rico.

Alguém ainda conseguirá ser rico, depois que esta guerra acabar?

Meu avô, sim — disse Sophia com segurança; — essas táticas do gênero “vamos explorar os ricaços” não têm efeito algum sobre ele. Acaba explorando os exploradores.

E acrescentou:

Eu me pergunto se você gostará dele.

Você gosta? — eu perguntei.

Mais do que qualquer outra pessoa no mundo — dis­se Sophia.

 

ISTO SE PASSOU uns dois anos antes de eu retornar à Inglaterra. Não foram anos fáceis. Escrevi a Sophia e tive no­tícias dela com muita freqüência. Suas cartas, tal como as mi­nhas, não eram cartas de amor. Eram cartas escritas por ami­gos íntimos, expunham idéias e pensamentos e traziam co­mentários sobre o curso diário da vida. Entretanto, eu sabia que, no que me tocava, e acreditava também que em relação a Sophia — nosso sentimento mútuo crescia e se estreitava.

Voltei à Inglaterra num suave dia cinzento de setembro. As folhas das árvores estavam douradas à luz do crepúsculo. O vento soprava em remoinhos brincalhões. Ao descer no aero­porto enviei um telegrama para Sophia.

“Acabo de chegar. Espero-a para jantar Mario’s às no­ve. Charles.”

Umas duas horas depois eu estava sentado lendo o Ti­mes. E percorrendo a coluna de Nascimentos, Casamentos e Óbitos, dei com o nome Leonides:

A 19 de setembro, em Três Oitões, Swinly Dean, Aristide Leonides, idolatrado esposo de Brenda Leonides, aos oitenta e cinco anos. Profundos pêsames.

Havia outro anúncio imediatamente depois:

Leonides. De repente, em sua residência os Três Oitões, Swinly Dean, Aristide Leonides. Seus filhos e netos estão pro­fundamente consternados. Flores para a igreja de St. Eldred, Swinly Dean.

Achei os dois anúncios curiosos. Parecia que a falta de providências em comum resultara numa dualidade. Mas mi­nha principal preocupação era Sophia. Apressei-me em envi­ar-lhe um segundo telegrama:

“Acabo ver notícias morte seu avô. Lamento muito. In­forme quando poderei vê-la. Charles”

Um telegrama de Sophia chegou às seis em ponto à casa de meu pai. Dizia:

“Estarei Mario’s às nove. Sophia.”

O pensamento de reencontrar Sophia deixou-me nervoso e excitado. Nos ponteiros do relógio o tempo passava com uma lentidão de enlouquecer. Cheguei ao Mario’s vinte minutos adiantado. Sophia só chegou cinco minutos depois do combi­nado.

É sempre um choque encontrar de novo uma pessoa a quem não se vê há muito tempo, mas que permaneceu viva em nossa lembrança durante esse período. Quando finalmente So­phia apareceu na porta giratória, nosso encontro parecia com­pletamente irreal. Ela vestia-se de preto, o que, de uma maneira curiosa, me surpreendeu: grande número de mulheres estava também de preto, mas eu pusera na cabeça que o preto era de­finitivamente um sinal de luto — e surpreendeu-me que So­phia fosse o tipo de pessoa que usasse luto — mesmo por um parente próximo.

Bebemos uns coquetéis e fomos, em seguida, para uma mesa. Falávamos depressa e febrilmente — pedindo notícias dos velhos amigos dos dias no Cairo. Era uma conversa arti­ficial, mas nos fazia vencer o embaraço inicial. Expressei meu pesar pela morte de seu avô e Sophia disse baixinho que a morte fora “muito súbita”. Depois retornamos às reminiscências. Comecei a sentir, inquieto, que algo não se ajustava bem            algo quero dizer, além do primeiro embaraço natural do reencontro. Havia alguma coisa errada, definitivamente errada, com a própria Sophia. Iria ela dizer-me, por acaso, que encon­trara outro homem de quem gostara mais? Que o seu senti­mento por mim fora “um erro”?

Não sei por que, mas não acreditei nessa possibilidade, embora eu ainda não soubesse o que havia. Continuamos com a nossa conversa artificial.

Então, de repente, enquanto o garçom punha o café na mesa e se retirava com uma reverência, tudo começou a entrar em foco. Ali estavam Sophia e eu, sentados juntos, como acon­tecera tantas vezes diante de uma mesinha num restaurante qualquer. Os anos de nossa separação não haviam transcorrido jamais.

—Sophia — eu disse.

E imediatamente ela respondeu:

—Charles.

Soltei um profundo suspiro de alívio.

Graças a Deus acabou tudo — falei. — O que houve conosco?

Provavelmente culpa minha. Fui uma tola.

Mas agora está tudo bem?

—Sim, está tudo bem agora.

Sorrimos um para o outro.

—Querida! — disse. E depois: — Quando você se ca­sará comigo?

O sorriso dela morreu. Aquilo, fosse o que fosse, voltara.

Não sei — disse. — Não estou certa, Charles, de que eu possa casar-me com você.

Mas Sophia!  Por que não? Você acha que não me conhece direito? Precisa de tempo para se habituar outra vez à minha presença? Ou existe algo mais? Não... — suspendi a frase. — Sou um tolo. Não é nenhuma dessas coisas.

Não, não é — sacudiu a cabeça. Aguardei. Ela disse em voz baixa:

É a morte de meu avô.

A morte de seu avô? Mas por quê? Meu Deus, que diferença isto pode fazer? Você não quer dizer... certamente não imagina... que haja uma questão de dinheiro? Ele não lhe deixou nada? Olhe aqui, querida...

Não é dinheiro — mostrou um sorriso fugaz. — Creio que você me aceitaria “com a roupa do corpo” como diz o ve­lho ditado. E meu avô nunca perdeu dinheiro na vida.

Então de que se trata?

É apenas a sua morte... sabe, Charles? eu creio que ele não tenha apenas... morrido. Creio que talvez tenha sido assassinado...

Olhei-a fixamente.

Mas... que idéia fantástica!  O que a levou a pensar assim?

Não fui eu quem pensou. Foi o médico que começou. Não quis assinar a certidão de óbito. Vão fazer uma autóp­sia. Ficou claro que suspeitam de alguma coisa errada.

Não argumentei com Sophia. Ela tinha boa organização mental e podia-se confiar em quaisquer conclusões a que hou­vesse chegado.

Ao invés de contradizê-la, apressei-me a dizer:

—As suspeitas podem ser injustificadas. Mas pondo isto de lado, supondo que sejam válidas, como isto afetaria a nós dois?

Pode afetar sob certas circunstâncias. Você está no serviço diplomático. Eles são muito rigorosos a respeito das esposas. Não... por favor, não vá dizer as coisas que está pres­tes a dizer. Seu impulso é dizê-las e eu acredito realmente na sua sinceridade. Teoricamente, concordo com elas. Mas sou um bocado orgulhosa... sabe? Muito orgulhosa. Quero que o nosso casamento seja uma boa coisa para todos dois... não quero representar a metade de um sacrifício a bem do amor! E, como eu falei, talvez não haja motivos para preocupações...

Quer dizer que o médico... talvez tenha cometido um engano?

Mesmo se não houver, pouco importa... se foi a pes­soa certa que matou meu avô.

Que pretende dizer, Sophia?

Sei que isto é rude mas, acima de tudo, devemos ser francos.

Ela antecipou-se às minhas palavras.

—Não, Charles, não direi mais nada. Provavelmente já falei demais. Mas eu estava determinada a vir encontrar-me com você esta noite... a vê-lo pessoalmente e fazê-lo compreender. Não podemos combinar coisa alguma até que esse assunto se esclareça.

Pelo menos conte-me alguma coisa.

Ela abanou a cabeça.

Não quero.

Mas Sophia...

Não, Charles. Não quero que você nos veja segundo o meu ângulo. Quero que nos conheça imparcialmente, de um ponto de vista externo.

E como poderei fazer tal coisa?

Ela olhou-me, um brilho estranho nos claros olhos azuis.

—Você o conseguirá através de seu pai.

Eu contara a Sophia, no Cairo, que meu pai era Comis­sário-Assistente da Scotland Yard. Ainda desempenhava o cargo. Ao ouvir isto senti um arrepio.

É tão grave assim?

Eu acho. Está vendo aquele homem sentado à mesa, sozinho, perto da porta... aquele de tipo simpático e pacato de ex-soldado?

Sim.

Ele estava na plataforma de Swinly Dean, esta tarde, quando entrei no trem.

Quer dizer que ele a seguiu até aqui?

Sim. Acho que estamos todos...  como é que se diz mesmo?... Sob suspeita. Insinuaram que seria melhor não sair­ mos de casa. Mas eu estava decidida a ver você — o queixinho quadrado de Sophia avançou, agressivo. — Saí pela janela do banheiro e escorreguei pelo cano d’água.

Querida!

Mas a polícia é muito eficiente. E, naturalmente, ha­via o telegrama que eu enviei a você. Bem... não importa... estamos aqui juntos... Mas doravante, temos de agir separados.

Fez uma pausa e em seguida acrescentou:

Infelizmente... não há dúvida... acerca do amor que sentimos um pelo outro.

Dúvida alguma — disse eu; — e não diga “infeliz­mente”. Você e eu sobrevivemos a uma guerra mundial, esca­pamos muitas vezes da morte iminente... e não vejo por que a morte repentina de um ancião... que idade ele tinha, a pro­pósito?

Oitenta e cinco.

Claro. Saiu no Times. Se quer saber a minha opinião, ele morreu apenas de velhice e qualquer clínico geral que se preze aceitaria o fato.

Se você conhecesse meu avô — disse Sophia, — ficaria surpreso de que ele morresse de alguma coisa!

 

EU SEMPRE demonstrara um certo interesse pelas ati­vidades policiais de meu pai, mas não estava preparado para a possibilidade de um interesse direto e pessoal nelas.

Ainda não vira o Velho. Não estava em casa quando che­guei, e depois de um banho, de fazer a barba e trocar de roupa, eu saíra para me encontrar com Sophia. Quando voltei, Glo­ver me disse que ele estava em seu gabinete.

Estava sentado à escrivaninha, a testa franzida sobre um monte de papéis. Pôs-se imediatamente de pé quando entrei.

—Charles! Sim senhor! Sim senhor! Faz tanto tempo!

Nosso encontro, após cinco anos de guerra, teria desapon­tado a um francês. Mas na verdade, toda a emoção do reencon­tro fora acentuada. O Velho e eu nos queríamos bem e nos com­preendíamos perfeitamente.

—Tenho uísque — disse ele. — Peça quando quiser. Desculpe eu estar ausente quando você chegou aqui. Encontro-me enterrado até as orelhas em trabalho. O diabo de um caso que mal começou ainda.

Recostei-me na cadeira e acendi um cigarro.

—Aristide Leonides? — perguntei.

As sobrancelhas dele baixaram sobre os olhos. Atirou-me um olhar rápido, avaliador. Sua voz era polida e dura co­mo o aço.

O que o faz pensar assim, Charles?

Estou certo, então?

Como veio a saber?

Informações recebidas.

O Velho esperou.

Minhas informações — eu disse — vieram da pró­priacasa.

Vamos, Charles, desembuche.

Você pode não gostar. Conheci Sophia Leonides no Cairo.  Apaixonei-me por ela. Vou casar-me com ela. En­contrei-a esta noite e jantamos juntos.

Jantou com ela? Em Londres? Eu só queria saber co­mo conseguiu. A família teve ordens... polidamente, é claro, de não sair.

Isso mesmo. Ela escorregou pelo cano da janela do banheiro.

Os lábios do Velho contraíram-se por um instante num sorriso.

Ela parece ser uma jovem de certos recursos.

Mas a sua força policial é bem eficiente — eu disse. — Um tipo simpático, com ar de recruta, seguiu-a ao Mario’s. Devo constar dos relatórios que você recebeu. Um metro e se­tenta e oito, cabelos castanhos, olhos castanhos, terno azul es­curo de listrinhas etc...

O Velho olhou-me com dureza.

Isto é... sério?

Sim. É sério, papai.

Houve um momento de silêncio.

Você se importa? — perguntei.

Não me teria importado... uma semana atrás. A fa­mília é bem estabelecida... a moça terá dinheiro... e eu conheço você. Sei que não perde a cabeça facilmente. De qualquer modo...

Sim, papai?

Pode dar tudo certo, se...

—Se o quê?

             Se a pessoa certa o matou.

Era a segunda vez naquela noite que eu ouvia aquela frase. Comecei a me interessar.

—Mas quem é a pessoa certa?

Ele me dirigiu um olhar penetrante.

O que é que você sabe do caso?

Nada.

Nada?  — pareceu surpreso.  — A moça não contou?

Não. Ela disse que era melhor eu ver tudo... de um ponto de vista próprio.

Eu gostaria de saber a razão disto.

Não é óbvio?

Não, Charles. Não creio que seja.

Andou pela sala, a testa franzida. Acendera um charuto e o charuto se apagara. Isso mostrava como ele estava inquieto.

O que sabe você da família? — perguntou de supetão.

Bolas! Sei que havia o velho e uma porção de filhos e netos e cunhados. As ramificações não ficaram claras na mi­nha cabeça — fiz uma pausa e depois disse: — Seria melhor você me dar uma idéia, papai.

Sim — disse e sentou-se. — Muito bem, então... co­meçarei do princípio... com Aristide Leonides. Ele chegou à Inglaterra quando tinha vinte e quatro anos.

Um grego de Smyrna.

Também sabia disto?

Sim, mas é tudo quanto sei.

A porta abriu-se e Glover entrou para dizer que o Ins­petor-Chefe Taverner estava ali.

—Ele está encarregado do caso — disse meu pai. — Convém mandá-lo entrar. Andou investigando a família. Sabe mais a respeito do que eu.

Perguntei se a polícia local convocara a Scotland Yard.

—A jurisdição é nossa. Swinly Dean está na Grande Londres.

Fiz um aceno quando o Inspetor-Chefe Taverner entrou na sala. Conhecia Taverner de muitos anos atrás. Ele me cum­primentou com cordialidade e congratulou-se com a minha volta.

Estou pondo Charles dentro do quadro — disse o Velho. — Corrija-me se eu errar, Taverner. Leonides chegou a Londres em 1884. Instalou um pequeno restaurante no Soho. Deu certo. Ele partiu para outro. Em breve possuía sete ou oito. Todos rendiam dinheiro imediatamente.

Jamais cometeu um erro em tudo quanto se meteu — disse o Inspetor Taverner.

Tinha um instinto natural — disse meu pai. — Por fim, estava por trás de quase todos os famosos restaurantes de Londres. Entrou então no negócio de fornecimento para clu­bes e hotéis, em grande escala.

Também andou metido em muitos outros negócios — disse Taverner. — Comércio de roupas usadas, lojas de jóias baratas, um monte de coisas. Naturalmente — acrescen­tou, pensativo — ele sempre foi um espertalhão.

—Quer dizer que era desonesto?

Taverner sacudiu negativamente a cabeça.

Não, não chego a tanto. Esperto, sim... mas não tra­paceiro. Nunca fez nada fora da lei. Mas era o tipo de sujeito que pensava em todas as formas de tangenciar a lei. Embol­sou uma fortuna dessa maneira na última guerra, embora fos­se um velho. Nada do que fez era ilegal, mas sempre que se envolvia numa coisa, precisava-se regularizar uma lei a res­peito, se entende o que eu quero dizer. E quando a lei chegava, ele já havia passado a outra atividade.

Não parece um caráter dos mais atraentes — comentei.

É engraçado, mas ele era simpático. Tinha persona­lidade. Sentia-se a personalidade do homem. Afora isso, nada mais possuía digno de nota. Um gnomo... um Sujeitinho hor­roroso mas magnético. As mulheres sempre caíram por ele.

—Fez um casamento surpreendente — disse meu pai. — Desposou a filha de um nobre rural, um M.F.H.1

1 Master of Foxhounds — Mestre de Caça à Raposa (N. do T.).

Ergui as sobrancelhas.

—Dinheiro?

O Velho abanou a cabeça.

Não, foi um caso de amor. Ela o conheceu durante as compras para o banquete do casamento de uma amiga e se apaixonou. Seus pais deram o contra mas ela estava determi­nada a tê-lo. Já disse, o homem tinha mesmo charme... algo exótico e dinâmico que a atraiu. E ela andava entediada com os cavalheiros de sua própria classe.

E o casamento foi feliz?

Muito feliz, por estranho que pareça. Naturalmente seus respectivos amigos não se misturaram (naquela época o dinheiro não sobrepujava ainda as distinções de classes), mas isto não impediu de serem felizes nem pareceu aborrecê-los. Viviam sem amigos. Ele construiu uma casa suntuosa em Swinly Dean, moraram ali e tiveram oito filhos.

Na verdade, uma autêntica crônica familiar.

O velho Leonides foi muito esperto ao escolher Swinly Dean. O lugar mal começava a entrar na moda. O segundo e o terceiro campos de golfe ainda não tinham sido construídos. Havia por lá uma mistura de Velhos Habitantes Tradicionais, apaixonados pelos seus jardins, de que muito se orgulhavam e que simpatizaram com a Sra. Leonides, e os ricaços da cidade que desejavam entrar em contato com Leonides; assim, o casal pôde escolher seus amigos. Foram perfeitamente felizes, acre­dito, até que ela morreu de pneumonia em 1905.

Deixando-o com oito filhos?

Um morreu na infância. Dois foram mortos na Pri­meira Guerra. Uma filha casou-se e foi viver na Austrália, onde faleceu. Uma filha solteira morreu num acidente de au­tomóvel. Outra, faleceu há um ou dois anos. Ainda há dois vivos — o filho mais velho, Roger, que é casado mas não tem descendência, e Philip, que desposou uma atriz famosa e tem três filhos — sua Sophia, Eustace e Josephine.

E vivem todos nessa... como é mesmo?... Três Oitões?

Sim. A casa de Roger Leonides foi bombardeada no começo da guerra. Philip e sua família passaram a morar lá em 1938. E há uma tia mais idosa, Miss de Haviland, irmã da primeira Sra. Leonides. Ela aparentemente sempre detes­tou o cunhado, mas quando a irmã morreu julgou do seu dever aceitar o convite para morar com ele e cuidar das crianças.

É uma pessoa que cumpre à risca seus deveres — dis­se o Inspetor Taverner. — Mas não costuma mudar de opi­nião acerca dos outros. Sempre desaprovou Leonides e seus métodos...

Bem — disse eu, — a casa parece bem movimentada. Na sua opinião, quem o assassinou?

Taverner sacudiu a cabeça.

É cedo — disse, — muito cedo para se saber.

Vamos Taverner — animei-o. — Aposto como você já sabe quem foi. Não estamos no tribunal, homem!

Não — disse Taverner, abatido. — E talvez lá não cheguemos.

Quer dizer que talvez ele não tenha sido assassinado?

Não é isto. Ele foi assassinado, sim. Envenenado. Mas você sabe como são esses casos de envenenamento. Muito difícil recolher a prova. Coisa muito complicada. Todas as pos­sibilidades parecem apontar numa direção...

É isto que eu tentava dizer. Você já tem tudo arru­mado na cabeça, não tem?

—Trata-se de uma probabilidade muito forte. Uma des­sas coisas óbvias. O palco perfeito. Mas eu não sei ainda, creia. É complicado.

Olhei esperançoso para o Velho.

Ele disse devagar:

Em casos de homicídio, como você sabe, Charles, o óbvio é geralmente a solução correta. O velho Leonides casou-se outra vez, há dez anos.

Aos setenta e cinco?

Sim, com uma moça de vinte e quatro anos.

Assobiei.

Que espécie de moça?

Uma moça empregada numa casa de chá. Respeitá­vel, em todos os sentidos... de boa aparência, com um jeitinho anêmico, apático.

E ela é a possibilidade forte?

É o que eu digo — falou Taverner. — Ela tem ape­nas trinta e quatro anos, agora... uma idade perigosa. Gosta de vida fácil. E há um rapaz na casa. Professor dos netos. Não esteve na guerra. Caso de coração fraco, ou coisa que o valha. São íntimos, unha-e-carne.

Olhei-o pensativamente. Tratava-se sem dúvida de um velho quadro familiar. A mistura de sempre. E a segunda Sra. Leonides era, conforme meu pai acentuara, muito respeitável. Em nome da respeitabilidade muitos crimes tinham sido come­tidos.

Com que foi? — perguntei. — Arsênico?

Não. Ainda não recebemos o laudo do perito mas o médico acha que é eserina.

Um pouco incomum, não é? Deve ser fácil descobrir o comprador.

Não neste caso. Pertencia à vítima. Um colírio.

Leonides sofria de diabete — disse meu pai. — To­mava injeções regulares de insulina. A insulina vem em frasquinhos com tampa de borracha. Uma agulha hipodérmica é enfiada no tampão de borracha e a injeção preparada.

Adivinhei o que se seguiria.

E não havia insulina no frasco, e sim eserina?

Exato.

E quem lhe aplicou a injeção? — perguntei.

A esposa.

Compreendi então o que Sophia quisera dizer ao men­cionar a “pessoa certa”.

Perguntei:

A família dá-se bem com a segunda Sra. Leonides?

Não. Ao contrário, acho que mal se falam.

Tudo parecia mais claro, cada vez mais claro. Todavia o Inspetor Taverner também dava mostras claras de insatis­fação.

Por que não está satisfeito? — perguntei-lhe.

Se ela cometeu o crime, Sr. Charles, teria sido muito fácil pôr no lugar depois um frasco autêntico de insulina. De fato, se é a culpada, não posso imaginar por que cargas d’água não agiu assim.

Sim, parece lógico. Havia muita insulina ao alcance?

Ah, uma porção de frascos cheios e vazios. E se ela houvesse recorrido à insulina, haveria uma possibilidade em dez de o médico identificar o veneno. Sabe-se muito pouco das aparências post-mortem de um envenenamento por ese­rina. Mas como veio a se examinar a insulina (para o caso de ter sido administrada uma dose errada, ou algo no gênero), não se tardou a constatar que não era insulina.

Neste caso, parece — disse eu, pensativamente, — que a Sra. Leonides ou foi muito estúpida... ou talvez muito esperta.         

Quer dizer... 

Que ela pode ter contado com a sua conclusão de que ninguém poderia ser tão estúpido a este ponto... como ela parece ter sido. Quais são as alternativas? Há outros... suspeitos?                   

O Velho respondeu calmamente:

Praticamente qualquer pessoa da casa poderia ter co­metido o crime. Havia sempre um bom estoque de insulina... pelo menos, para uns quinze dias. Um dos vidros podia ter sido falsificado e devolvido ao lugar, na certeza de que viria a ser usado no devido tempo.

E alguém tinha, mais ou menos, acesso aos frascos?

Não estavam trancados. Eram guardados numa pra­teleira especial do armário de remédios, no banheiro do Sr. Leonides. Todos da casa entravam e saíam dali livremente.

—Qualquer motivo em especial?

Meu pai suspirou.

Meu caro Charles, Aristide Leonides era fabulosa­mente rico! Gastava muito dinheiro com a família, é verdade, mas talvez alguém tenha querido mais.

Mas quem deveria querer mais seria a atual viúva. O admirador dela tem dinheiro?

Não. É pobre como um rato de igreja.

Alguma coisa estalou na minha cabeça. Lembrei-me da citação de Sophia. De repente recordei o verso inteiro da can­ção de ninar:

Era uma vez um homem torto que andou por uma estrada torta

E achou uma moeda torta junto a uma porteira torta

Ele tinha um gato torto que caçou um rato torto

E viveram todos juntos numa casinha torta.

Eu disse para Taverner:

—Qual a impressão que ela causa... a Sra. Leonides? Que pensa dela?

Ele respondeu vagarosamente:

—Difícil dizer... muito difícil mesmo. Ela não é fácil. Muito quieta... de modo que não se sabe em que pensa. Mas gosta de vida mansa, isso eu chegaria a jurar. Faz-me lem­brar um gato, um grande gato preguiçoso, ronronando... Não que eu tenha alguma coisa contra os gatos. Gatos são gatos...

Suspirou.

— O que queremos — disse — são provas.

Sim, pensei, todos nós queremos provas de que a Sra. Leo­nides envenenou o marido. Sophia quer, eu quero, e o Inspe­tor-Chefe Taverner também quer.

Então, tudo seria formidável!

Mas Sophia não tinha certeza, eu não tinha certeza e creio que o Inspetor-Chefe Taverner tampouco tinha certeza...

 

NO DIA SEGUINTE fui a Três Oitões com Taverner.

Minha posição era das mais curiosas. Melhor dizendo, muito pouco ortodoxa. Mas o Velho nunca primou em ser ortodoxo.

De certo modo eu tinha uma qualificação. Trabalhara com a Divisão de Espionagem da Yard, durante os primeiros dias da guerra.

Naturalmente isto agora era bastante diferente — mas minhas atuações anteriores conferiam-me, de certa forma, uma posição oficial.

Meu pai dissera:

—Se quisermos mesmo resolver este caso, temos de introduzir um amador. Precisamos saber tudo a respeito do pes­soal da casa. Temos de conhecê-los por dentro... não por fora. Você é o homem capaz de encarregar-se disto.

Não gostei. Atirei a ponta de cigarro na lareira enquanto dizia:

—Sou um espião da polícia? É isso? Tenho de extrair informações confidenciais de Sophia, a quem amo e que tam­bém me ama e confia em mim, segundo creio?

O Velho tornou-se irritado. Respondeu com voz cor­tante:

Pelo amor de Deus, não veja as coisas por este pris­ma! Para começar, você não acredita que sua moça assassinou o avô, acredita?

Claro que não. A idéia é inteiramente absurda!

Muito bem... também não pensamos nisto. Ela esteve ausente alguns anos, sempre manteve boas relações com ele. Recebe uma pensão generosa e ele ficaria encantado, eu diria, se chegasse a saber do compromisso de vocês. Sem dúvida da­ ria uma linda festa de casamento. Não suspeitamos dela. Por que iríamos suspeitar? Mas fique certo de uma coisa: se o cri­me não se esclarecer, a moça não vai querer casar-se com você. A julgar pelo que me disse, eu tenho certeza disto. E veja bem, que este é o tipo de crime que talvez não se esclareça nunca. Estamos propensos a crer que a esposa e o jovem admirador agiram de parceria — mas provar isto são outros quinhentos. Nem sequer existe um caso para se levar avante uma investi­gação. E a menos que obtenhamos provas evidentes contra ela, sempre perdurará uma dúvida vexatória. Você percebe, não é?

Sim, eu percebia.

O Velho prosseguiu calmamente:

Por que não dizer-lhe, então?

Quer dizer... perguntar a Sophia se eu... — parei.

Sim, sim... — o Velho acenava vigorosamente a ca­beça. — Não lhe estou pedindo para entrar sub-repticiamente, sem contar à moça o que pretende. Veja o que ela tem a dizer a respeito.

E assim, lá fui eu no dia seguinte, com o Inspetor Taver­ner e o detetive Sargento Lamb para Swinly Dean.

Um pouco depois dos campos de golfe, viramos em uma entrada onde eu imaginei que antes da guerra deveria ter ha­vido um imponente portão duplo. Patriotismo ou uma requisi­ção forçada haviam levado as grades dos portões. Subimos uma longa alameda em curva, cercada de rododendros e che­gamos a um pátio encascalhado, em frente da casa.

Era incrível! Imaginei por que teriam chamado a casa de Três Oitões. Onze Oitões seria mais apropriado! E coisa curiosa, a casa dava a impressão estranha de ser mesmo tor­ta e eu imaginei o porquê. Tinha o tipo mesmo de um cha­lé, mas era um chalé de proporções desmedidas. Como se olhás­semos para uma casa de campo através de uma lente de au­mento. As vigas oblíquas, os oitões, os frontões... tratava-se de uma casinha torta que crescera como cogumelo em uma noite!

Entretanto eu percebi a intenção. Era a idéia que um gre­go — gerente de restaurante — fazia da Inglaterra. Destina­va-se a ser uma residência típica inglesa, mas fora construída com as proporções de um castelo. Fiquei pensando o que a pri­meira Sra. Leonides achara da casa. Sem dúvida ela não fora consultada nem vira a planta. Provavelmente a casa fora uma pequena surpresa de seu exótico marido. Imaginei se ela dera de ombros ou sorrira.

Aparentemente ela vivera ali muito feliz.

—Um tanto apavorante, não é? — disse o Inspetor Taverner. — Naturalmente o velho empenhou-se a fundo. Transformou-a em três casas distintas a bem dizer, com cozi­nhas e tudo o mais. Dentro, tudo é da melhor categoria, mo­biliada como um hotel de luxo.

Sophia apareceu à porta da frente. Estava sem chapéu e usava uma blusa verde e uma saia de tweed.

Quase caiu para trás quando me viu.

Você! — exclamou.

Sophia — disse eu, — preciso falar com você. Onde podemos ir?

Por um instante ela hesitou mas depois voltou-se e disse:

—Venha.

Passamos pelo gramado. Tinha-se uma bela vista do pri­meiro campo de golfe de Swinly Dean, que se distanciava até um bosque de pinheiros numa colina, e além dele, até perder-se no campo enevoado.

Sophia conduziu-me a um jardim com canteiros de pe­dras, um pouco abandonado, onde havia um banco de ma­deira rústico, bastante desconfortável, e ali nos sentamos.

—E então? — perguntou.

A voz não era encorajadora.

Falei da missão que me fora atribuída — contei tudo.

Ela ouviu muito atenta. Seu rosto não deixou transpare­cer o que estava pensando, mas quando parei afinal, suspirou. Foi um suspiro profundo.

Seu pai — disse — é um homem esperto.

O Velho tem suas opiniões. Eu acho que é uma idéia detestável, mas...

Ela me interrompeu.

— Não, nada disso. A idéia está longe de ser detestável. É a única coisa que pode dar certo. Seu pai, Charles, sabe exa­tamente o que se passa na minha cabeça. Muito melhor do que você.

Com uma veemência súbita e quase desesperadora, en­trelaçou uma mão na outra.

Tenho de saber a verdade. Preciso saber.

Por nossa causa? Mas, querida...

Não apenas por nossa causa, Charles. Preciso saber em benefício de minha própria paz de espírito. Olhe, Charles, não lhe disse ontem à noite... mas a verdade é que... eu estou com medo.

Medo?

Sim. Medo... medo... medo. A polícia pensa, seu pai pensa, todo mundo pensa que foi Brenda.

As probabilidades...

Sim, é claro que as probabilidades são inúmeras. É possível. Mas quando eu digo “Brenda provavelmente o ma­tou” torno-me consciente de que isso não passa de um desejo. Porque eu realmente não acredito.

Não acredita? — perguntei devagar.

Não sei. Você tomou conhecimento do caso lá fora, como eu queria. Agora, eu o mostrarei de dentro para fora. Eu simplesmente não creio que Brenda seja a espécie de pes­soa... o tipo de pessoa capaz de fazer algo que lhe traga qual­quer perigo. Ela é muito cuidadosa consigo mesma.

E que me diz do rapaz? Laurence Brown.

Laurence é um coelho assustado. Não tem tutano.

Nunca se sabe.

Sim, realmente nunca se sabe ao certo, não é mesmo? As pessoas são capazes de surpresas terríveis. Forma-se uma impressão acerca de alguém e ela às vezes resulta totalmente errada. Nem sempre... mas às vezes, acontece. De qualquer modo, Brenda — ela sacudiu a cabeça — sempre agiu com tanta uniformidade! E o que chamaria o tipo indicado para um harém. Gosta de ficar sentada, comer balas, usar roupas e jóias bonitas, ler novelas baratas e ir ao cinema. Sei que é esquisito o que vou dizer, levando-se em conta que ele tinha oitenta e cinco anos, mas creio que realmente o Avô a impressionava. Ele tinha força, sabe? Acho que podia fazer com que uma mulher se sentisse... bem, como uma rainha... a favorita do sultão! Penso... aliás sempre pensei... que ele fez Brenda sentir-se uma pessoa muito romântica. Sempre foi um sábio com as mulheres. Trata-se de uma espécie de arte... e não se perde o jeito para isto, apesar da idade.

Deixei o problema de Brenda por um instante e aferrei-me a uma frase de Sophia que me preocupara.

—Por que você disse que tinha medo?

Sophia estremeceu ligeiramente e apertou as mãos.

—Porque é a verdade — respondeu em voz baixa. — E muito importante, Charles, que eu o faça compreender isto. Olhe, somos uma família muito estranha... Há muita crueldade em nós... várias formas de crueldade. Isso é o que mais me afli­ge. As diversas formas de crueldade.

Ela deve ter percebido a incompreensão em meu rosto. Prosseguiu falando com empenho:

—Vou tentar ser clara. O Avô, por exemplo. Uma vez, quando nos falava de sua meninice em Smyrna, mencionou, de modo casual, que apunhalara dois homens. Houve alguma rixa, motivada sem dúvida por um insulto imperdoável... não sei bem... mas a coisa aconteceu com tanta naturalidade. Ele esquecera praticamente o incidente. Mas era uma coisa tão es­tranha para ser contada mesmo casualmente na Inglaterra!

Concordei com um aceno de cabeça.

Este é um dos tipos de crueldade a que me referi — continuou Sophia. — Agora, minha avó. Mal me lembro dela, mas ouvi muita coisa a seu respeito. Creio que ela possuía a impiedade que deriva da total falta de imaginação. Todos es­ses ancestrais caçadores de raposas... e os velhos generais do tipo “só matando!”. Cheios de retidão e arrogância, sem um pingo de medo em assumir responsabilidades em questões de vida e de morte.

Isso não parece um tanto forçado?

Sim, acho que sim...  mas senti um pouco de medo dessas coisas. Das pessoas cheias de retidão, porém cruéis ao mesmo tempo. Depois, temos a minha mãe... uma atriz. Uma pessoa adorável, mas despida de qualquer senso de proporções. Uma dessas egoístas inconscientes que só conseguem enxergar os problemas na medida em que estes as afetam. Às vezes é de assustar, sabe? Temos Clemency, a mulher do tio Roger. Ela é cientista... vive empenhada em qualquer descoberta muito importante. Também é uma pessoa impiedosa, de uma forma impessoal, a sangue-frio. O oposto do tio Roger. Este é a pes­soa mais bondosa e amável do mundo mas possui um temperamento terrível. Quando o sangue lhe ferve, não sabe o que faz. E há ainda meu pai...

Ela fez uma longa pausa.

Meu pai — disse lentamente — é quase excessivamente bem controlado. Nunca se sabe em que pensa. Jamais demonstra uma emoção. Provavelmente trata-se de uma auto­ defesa inconsciente contra as orgias emotivas de minha mãe, mas às vezes isto também me preocupa um pouco.

Minha querida — disse eu, — você está-se preocupando sem necessidade. Acabará por concluir que todos, talvez, sejam capazes de cometer um assassinato.

Creio que isto é exato. Até eu.

Você não!

Sim, Charles, não me transforme em exceção. Acho que eu poderia matar alguém... — ficou calada um momento e depois acrescentou: — Mas se o fizesse, teria de ser por um motivo que realmente valesse a pena!

Ri. Não pude evitá-lo. E Sophia também riu.

—Talvez eu seja uma tola — confessou — mas temos de descobrir a verdade sobre a morte do Avô. É absolutamente necessário. Se ao menos fosse Brenda...

Senti, de súbito, uma certa pena de Brenda Leonides.

 

NA ALAMEDA surgiu em nossa direção uma figura alta, caminhando com vivacidade. Trazia um gasto chapéu de feltro, uma saia informe e um suéter pesadão.

—A tia Edith — disse Sophia.

A figura parou uma ou duas vezes, inclinando-se para as flores, depois avançou para nós. Levantei-me.

—Este é Charles Hayward, tia Edith. Minha tia, Srta. de Haviland.

Edith de Haviland era uma mulher de cerca de setenta anos. Tinha uma cabeleira grisalha e revolta, o rosto enrugado e um olhar agudo e penetrante.

— Como vai? Já ouvi falar a seu respeito. Voltou do Oriente. E seu pai, como vai?

Um tanto surpreso, eu respondi que ele ia bem.

Eu o conheci quando era ainda garoto — disse Edith de Haviland. — Conheci também sua mãe. Você se parece muito com ela. Veio para nos ajudar... ou tem outro motivo?

Eu espero ser de alguma ajuda — disse meio encabulado.

Ela fez que sim com a cabeça.

— Nós estamos mesmo precisando de ajuda. A casa está enxameando de policiais. Aparecem quando menos se espera. Não fui com a cara de alguns. Um rapaz que freqüentou uma escola decente não devia entrar para a polícia. Outro dia vi o filho de Moyra Kinoul dirigindo o trânsito lá em Marble Arch. A gente fica sem saber onde está.

Virou-se para Sophia:

Nannie está chamando você, Sophia. Peixe.

Ora! — disse Sophia. — Eu vou telefonar para re­solver.

Dirigiu-se rapidamente para a casa. Edith de Haviland voltou-se e seguiu-a lentamente. Eu a acompanhei.

—Não sei o que nós faríamos sem as Nannies — disse ela. — Quase todos têm uma velha Nannie em casa. Elas sempre voltam, lavam, passam, cozinham e arrumam a casa. São fiéis. Esta nossa fui eu mesma quem escolheu... há muitos anos.

Ela se abaixou e arrancou com raiva um matinho no meio de um canteiro.

—É detestável esta jitirana! A pior das pragas. Abafa e se enrola nas plantas e não se pode arrancá-la direito. Espa­lha-se por todos os lados!

Com o calcanhar ela esmoeu violentamente no chão o raminho verde.

—Este negócio está cheirando mal, Charles Hayward — disse e olhou na direção da casa. — O que a polícia está pensando do caso? Acho que eu não devia perguntar isto. Parece tão estranho pensar que Aristide foi envenenado. Pa­rece estranho até pensar que ele morreu. Eu não gostava dele... — nem um pingo! Mas não consigo acostumar-me com a sua morte... Faz a casa parecer tão... vazia.

Eu não disse nada. Durante a sua breve fala, Edith de Haviland parecia recordar o passado.

— Estive pensando hoje de manhã...  eu moro aqui há tanto tempo. Mais de quarenta anos. Vim para cá quando mi­nha irmã morreu. Ele pediu. Sete crianças... e a mais nova apenas com um ano de idade... Não podia deixar que elas fos­sem educadas por um gringo ordinário, podia? Foi um casamento inadmissível, é claro. Eu sempre imaginei que Márcia tivesse sido enfeitiçada. Um Sujeitinho vulgar e horroroso! Ele me deu carta branca... isto eu tenho de reconhecer. Enfermei­ras, governantas, escolas. E uma alimentação sadia e simples para as crianças... não aqueles pratos apimentados de arroz que ele costumava comer.

E desde então a senhora está aqui?

Sim. É estranho de certa forma... Eu creio que podia ter ido embora depois que as crianças cresceram e se casaram... Acho que na verdade eu me deixei interessar pelo jardim. E depois foi Philip. Se um homem se casa com uma atriz não deve esperar uma vida caseira. Não sei por que as atrizes têm filhos. Assim que os bebês nascem elas saem correndo para representar em Edimburgo ou em outro lugar ainda mais distante. Philip fez a coisa mais sensata que pôde: mudou-se para cá com seus livros.

O que é que Philip Leonides faz?

Escreve livros. Nunca soube por quê. Ninguém quer saber de lê-los. São todos sobre obscuros detalhes históricos. Você nunca ouviu falar sobre eles, ouviu?

Eu tive que admitir que não.

Dinheiro demais, é isto o que ele tem — continuou ela. — A maior parte das pessoas devia deixar de ser excên­trica e trabalhar para ganhar a vida.

Ele recebe dinheiro pelos livros?

É claro que não. Parece que é uma grande autori­dade em certos períodos históricos e tudo o mais. Mas não tem necessidade de vender seus livros. Aristide garantiu-lhe uma renda de cem mil libras... algo assim louco! Para evitar os im­postos de herança Aristide tornou-os todos independentes financeiramente. Roger dirige a Associação dos Fornecedo­res. Sophia tem uma belíssima renda. O dinheiro das crianças está depositado em nome delas.

Então nenhum deles tinha um interesse direto em sua morte?

Ela me lançou um olhar estranho.

E lógico que todos tinham. Todos ganharão mais di­nheiro.  Mas teriam conseguido mais dinheiro se quisessem. Bastava pedir.

A senhora tem idéia de quem o teria envenenado, Srta. de Haviland?

Ela respondeu categórica:

Não, eu não tenho idéia. E isto me aborrece muito! É desagradável pensar que temos um Borgia solto pela casa. Eu suponho que a polícia vai jogar a culpa em cima da pobre Brenda.

A senhora acha que eles estarão certos se fizerem isto?

Também não posso dizer nada. Ela sempre me pa­receu uma moça tola e vulgar... muito convencional. Não seria a minha idéia de uma envenenadora. Entretanto, é uma mu­lher jovem, de vinte e quatro anos que se casa com um velho de quase oitenta — está na cara que ela fez isto por dinheiro. Se as coisas corressem normalmente ela esperava tornar-se uma viúva rica muito em breve. Mas Aristide era um velho excep­cionalmente forte. A diabete dele não estava piorando. Pelo jeito, ele ia viver cem anos. Vai ver que ela cansou de esperar.

Neste caso... — eu comecei mas calei-me.

Neste caso — disse ela vivamente, — tudo está mais ou menos certo. Uma publicidade desagradável, é claro. Mas afinal de contas ela não faz parte da família.

A senhora não tem outras idéias?

Que outras idéias eu poderia ter?

Eu fiquei pensando. Calculava que por baixo daquele chapéu de feltro surrado havia mais do que eu imaginava.

Por trás daquele discurso feito aos arrancos, havia — calculei eu — um cérebro muito vivo trabalhando. Por um breve instante eu cheguei mesmo a imaginar se não fora a pró­pria Edith de Haviland quem envenenara Aristide Leonides...

Não me pareceu uma idéia assim tão absurda; No fundo de meus pensamentos eu ainda via a maneira vingativa como ela esmagara o raminho de jitirana no chão com o calcanhar.

Lembrei-me da palavra que Sophia empregara. Cruel­dade.

Dei uma olhada de esguelha para Edith de Haviland.

Se houvesse uma razão que valesse a pena!... Mas no pa­recer de Edith de Haviland qual seria a razão que valeria a pena?

Para saber disso eu precisava conhecê-la melhor.

 

A PORTA DA FRENTE estava aberta. Entramos em um vestíbulo surpreendentemente espaçoso, mobiliado de for­ma discreta — móveis bem cuidados de carvalho escuro e me­tais reluzentes. Na parte dos fundos, onde normalmente de­veria haver uma escadaria, havia uma parede branca com uma porta.

—É a parte da casa que meu cunhado ocupava — dis­se Edith de Haviland. — O andar térreo é de Philip e Magda.

Passamos por uma porta à esquerda que dava para uma ampla sala de estar. As paredes tinham lambris azul claro, os móveis eram estofados com brocados pesados e em cada me­sa e em todas as paredes estavam pendurados retratos e foto­grafias de atores, bailarinas, peças de teatro e cenários. Um quadro de Degas mostrando dançarinas de balé estava pendu­rado sobre a lareira. Uma profusão de flores, crisântemos dourados e enormes vasos de cravos.

—Calculo — disse a Srta. de Haviland, — que queira conhecer Philip.

Será que eu queria mesmo conhecer Philip? Não tinha idéia. A única coisa que eu queria fazer era ver Sophia, e isto eu já conseguira. Ela dera o seu enfático apoio ao plano do Velho — mas depois saíra de cena e provavelmente, agora, es­taria em outro lugar qualquer telefonando a respeito de um peixe — sem ter dado nenhuma indicação de como eu deveria agir. Será que eu devia apresentar-me a Philip Leonides co­mo um rapaz para casar com sua filha, como um amigo casual que viera fazer uma visita (decerto não era o momento indicado!) ou como um auxiliar da polícia?

Edith de Haviland não me deu tempo de pensar. De fato, ela não estava formulando uma pergunta e sim fazendo uma afirmação.

—Vamos à biblioteca — disse ela.

Conduziu-me por um corredor até uma outra porta.

Era uma sala grande, cheia de livros. Os livros não es­tavam apenas nas prateleiras que subiam até o teto. Estavam em cadeiras e mesas e mesmo pelo chão. E, mesmo assim, não havia um ar de desordem muito grande.

A sala era fria. E havia no ar a falta de um cheiro que eu esperava sentir — cheirava a mofo de livros velhos e a um ligeiro perfume de cera de abelha. Em poucos segundos per­cebi o que estava faltando: era o cheiro de fumo. Philip Leo­nides não era um fumante.

Ele se ergueu da mesa onde estava quando nós entra­mos — era um homem alto, de cerca de uns cinqüenta anos, estranhamente bonito. Todos tinham enfatizado tanto a feiúra de Aristide Leonides, que eu não sei por qual razão esperava que seu filho também fosse feio. O que eu não estava prepa­rado para encontrar era esta tal perfeição de traços — o nariz reto, a linha perfeita do queixo, os cabelos louros já um pou­co grisalhos, jogados para trás, e a testa bem proporcionada.

Este é Charles Hayward, Philip — disse Edith de Haviland.

Ah, como tem passado?

Eu não tinha idéia se ele já ouvira falar de mim. A mão que me estendeu era fria. A expressão indiferente. Isto me fez ficar mais nervoso. Ele continuou de pé, paciente e desinteres­sado.

Onde andam todos esses policiais horrorosos? — per­guntou Miss de Haviland. — Já estiveram aqui?

Eu creio que o Inspetor-Chefe... (ele deu uma olhada num cartão em sua mesa) ahn... Taverner, virá falar comigo daqui a pouco.

Onde ele está agora?

— Não tenho idéia, tia Edith. Lá em cima, eu acho.

Com Brenda?

Não sei mesmo.

Olhando-se para Philip Leonides parecia impossível se imaginar que um crime acabasse de ser cometido em suas pro­ximidades.

Magda já está de pé?

Não sei. Geralmente ela não se levanta antes das onze.

—É, isto é muito dela — resmungou Edith de Haviland. O que era mesmo de Magda Leonides, foi a voz aguda, falando muito depressa e que se aproximava rapidamente. A porta às minhas costas abriu-se num arranco e uma mulher entrou. Eu não sei como ela conseguia dar a impressão de se­rem três mulheres entrando na sala ao invés de uma só.

Estava fumando um cigarro numa piteira comprida e usava um robe de cetim cor-de-pêssego que segurava com uma das mãos. Uma massa enorme de cabelos louro-Titiano caía em cachos sobre os seus ombros. O rosto impressionava pela nu­dez que as mulheres de hoje em dia têm quando não estão pin­tadas. Os olhos eram azuis e imensos e ela falava depressa, com voz rouca e atraente, e uma dicção muito clara.

—Querido, eu não agüento mais... eu não agüento mais isto... imagine só o noticiário... ainda não está nos jornais, mas é claro que breve estará... e eu ainda não pensei como vou apre­sentar-me no inquérito: devo parecer muito abatida? Mas eu acho que de preto não, talvez roxo escuro... e não me sobrou nenhum talão de racionamento... e eu perdi o endereço da­quele homem horroroso que me vendia talões... você se lembra? Aquela garagem perto da Avenida Shaftesbury... e se eu for lá de automóvel a polícia vai-me seguir... e podem fazer perguntas desagradáveis, não podem? Sei lá... o que é que eu vou dizer? Puxa, como você está calmo, Philip! Como é que você pode ser assim tão calmo? Não sabe que a gente já pode sair desta casa horrível agora? Liberdade!... Liberdade!... Oh! que indelicadeza... o pobre velho queridinho! É claro que nós não poderíamos deixar de morar aqui enquanto ele fosse vivo. Ele nos adorava, não é? Apesar das intrigas que aquela mu­lher lá de cima procurava fazer entre nós. Eu tenho certeza de que se nós nos tivéssemos mudado e os deixado sozinhos, ele nos teria deserdado. Criatura horrível! Imagine que o pobre coitadinho já estava perto dos noventa... nem todos os senti­mentos da família podiam lutar contra aquela mulher pavo­rosa. Sabe, Philip? Eu acho que é uma oportunidade maravi­lhosa para representarmos a peça de Edith Thompson. Este crime vai-nos dar um bocado de publicidade gratuita. Bildenstein disse que ele podia arranjar a dramaticidade... e é uma peça tremenda em verso sobre aqueles mineiros e está quase pronta... é um papel maravilhoso!... maravilhoso! Eu sei que dizem que eu devo fazer apenas comédia, por causa do meu nariz, mas você sabe que se pode arranjar um toque de comédia no papel de Edith Thompson... eu acho que nem o autor teve esta idéia... mas a comédia aumenta o suspense. Eu sei exatamente como interpretar o papel... bem lugar-comum, bem tola, uma aparência fingida até o último momento e então...

Ela estendeu o braço num gesto violento — o cigarro voou da piteira para cima da mesa de mogno encerado de Phi­lip e começou a queimar a madeira. Impassível ele o apanhou e colocou dentro da cesta de papéis usados.

—E então... — suspirou Magda Leonides, os olhos de re­pente arregalados, o rosto contraído — ... apenas o terror...

A rígida expressão de terror ficou em seu rosto por uns vinte segundos, depois descontraiu-se, tornou a se crispar — desta vez como uma criança espantada prestes a chorar e des­manchar-se em lágrimas.

De repente todas as emoções desapareceram como apa­gadas por uma esponja e, voltando-se para mim, ela pergun­tou em um tom muito profissional:

—Não acha que é assim que se deve desempenhar o papel de Edith Thompson?

Eu disse que achava que era exatamente assim que se de­via representar o papel de Edith Thompson. No momento eu mal me lembrava quem era Edith Thompson mas estava an­sioso em causar boa impressão na mãe de Sophia.

—Quase igual a Brenda, realmente, não acha? — dis­se Magda. — Sabe? Eu ainda não tinha pensado nisto. É muito interessante. Será que eu devo lembrar ao Inspetor?

O homem por trás da mesa franziu ligeiramente a testa.

—Não há nenhuma necessidade, Magda — disse ele, — de você falar com ele. Eu direi tudo o que for necessário.

Não falar com ele? — ela levantou a voz. — Mas é claro que eu preciso falar com ele! Querido, querido, você não tem imaginação nenhuma! Não imagina a importância dos de­ talhes. Ele precisa saber exatamente como foi e quando foi que tudo aconteceu e as coisinhas pequenas que a gente nota na hora e não dá a importância devida...

Mamãe — disse Sophia, entrando pela porta aberta, — a senhora não vai contar uma porção de mentiras para o Inspetor.

Sophia... querida...

Eu sei, mamãe querida, que a senhora já tem tudo decorado na cabeça e está pronta para desempenhar um papel maravilhoso. Mas acontece que decorou tudo errado. Completamente errado.

Tolice. Você não sabe...

Sei, sim. Precisa representar de uma maneira dife­rente, querida. Humilde...  falando pouco... escondendo alguma coisa... para sua proteção... para a proteção da família.

O rosto de Magda Leonides espelhou a ingênua perple­xidade de uma criança.

Meu amor... — começou ela — você pensa mesmo...

Claro que sim. Esqueça o resto. O papel é este.

Sophia continuou a falar e um sorriso satisfeito foi apa­recendo aos poucos no rosto de sua mãe.

Eu preparei um chocolate para a senhora. Está na sala de estar.

Oh, que ótimo! Estou morrendo de fome...

Ela parou ao chegar à porta:

—Você não faz idéia — disse ela, e as palavras parece que foram dirigidas para mim ou para a estante que estava às minhas costas — como é adorável ter-se uma filha!

Com esta deixa de saída, ela foi-se embora.

Só Deus sabe — disse Edith de Haviland — o que é que ela vai contar para a polícia!

Ela vai falar tudo certo — garantiu Sophia.

Ela pode dizer qualquer coisa.

Não se preocupe — disse Sophia. — Ela vai repre­sentar da maneira que o diretor de cena mandar. E o diretor sou eu!

Ela saiu atrás de sua mãe, mas logo deu meia volta e anun­ciou:

—O Inspetor Taverner está aqui para vê-lo, papai. O senhor não se importa que Charles assista à entrevista, não é?

Pensei ver um ligeiro ar de espanto passar pelo rosto de Philip Leonides. É bem possível. Mas o seu hábito de desatenção desta vez me foi útil. Ele murmurou:

—Oh, claro que não... claro que não... — numa voz um tanto vaga.

O Inspetor Taverner entrou, seguro de si, digno de con­fiança, com um ar de desembaraço profissional que era de certa forma tranqüilizante.

Mais um ligeiro aborrecimento — era o que ele deu a im­pressão de dizer — e então nós sairemos desta casa de uma vez. Ninguém vai ficar mais satisfeito do que eu. Nós não gos­tamos de forçar nossa presença, eu lhe garanto...

Eu não sei como ele conseguia dar esta impressão sem dizer uma só palavra, apenas no gesto de arrastar uma cadeira para perto da mesa — eu só sei que funcionava. Sentei-me discretamente num canto da sala.

—Sim, Inspetor? — disse Philip.

Edith de Haviland interrompeu bruscamente:

O senhor não vai precisar de mim, não é, Inspetor?

Por enquanto, não, Srta. de Haviland. Mais tarde, se eu pudesse, gostaria de trocar umas palavras com a senhora...

É claro. Eu estarei lá em cima.

Ela saiu, fechando a porta ao passar.

Muito bem, Inspetor? — repetiu Philip.

—Eu sei que o senhor é um homem muito ocupado e não tomarei o seu tempo. Mas precisava comunicar-lhe que as nossas suspeitas se confirmaram. Seu pai não morreu de morte natural. A morte foi em resultado de uma dose muito elevada de fisostigmina... mais conhecida como eserina.

Philip fez que sim com a cabeça. Não demonstrou ne­nhuma emoção em especial.

Eu não sei se isto lhe sugere algo — continuou Ta­verner.

O que poderia sugerir?  Meu ponto de vista pessoal é que meu pai deve ter tomado o veneno por acidente.

O senhor pensa realmente assim, Sr. Leonides?

Sim, isso me parece perfeitamente cabível. Lembre-se de que ele estava perto dos noventa anos e via muito pouco.

Então ele esvaziou o conteúdo de seu vidro de colírio dentro de um frasco de insulina. Será que isto lhe parece uma sugestão viável, Sr. Leonides?

Philip não respondeu. Sua expressão tornou-se ainda mais inexpressiva.

Taverner continuou:

—Nós encontramos o vidro de colírio... vazio... na lata de lixo e sem nenhuma impressão digital. Por si só isto já é um fato curioso. Normalmente deveria haver impressões. Com certeza seu pai, sua madrasta ou possivelmente o criado...

Philip Leonides levantou a cabeça.

O que é que há com o criado? — perguntou. — O que há com Johnson?

O senhor sugere que seja Johnson o provável crimi­noso? Com certeza ele teve oportunidade... Mas quando leva­ mos em consideração o motivo é muito diferente Era costu­me de seu pai pagar-lhe todos os anos uma gratificação... e a cada ano a gratificação aumentava. Seu pai lhe dissera que isto era uma recompensa em lugar de lhe deixar alguma coisa no testamento. Esta gratificação, depois de sete anos de servi­ço, alcançara uma soma considerável e continuava aumentando. É óbvio que, para o interesse de Johnson, seu pai deveria vi­ver o máximo possível. Além disto, eles estavam em excelentes termos e o levantamento da vida passada de Johnson foi irre­preensível. Ele é muito fiel e competente como criado de quar­to — fez uma pausa. — Nós não suspeitamos de Johnson.

Philip respondeu vagamente:

Compreendo.

Agora, Sr. Leonides, talvez o senhor pudesse fazer-nos um relato detalhado de seus próprios atos durante o dia da morte de seu pai?

Certamente, Inspetor.  Eu estive nesta sala o dia inteiro... com exceção das refeições, é claro.

Não viu seu pai durante o dia?   

Eu lhe dei bom-dia depois do café como era meu hábito.

Esteve sozinho com ele neste momento?

Minha... ahn... madrasta estava no quarto.

Ele lhe pareceu normal?

Com um leve toque de ironia, Philip replicou:

Ele não demonstrou nenhum conhecimento prévio de que iria ser assassinado naquele dia.

A parte da casa que seu pai ocupava é completamente separada desta?

Sim, a única comunicação é através da porta que fica na sala da entrada.

A porta é trancada?

Não.

Nunca?

Que eu saiba não.

Qualquer pessoa podia circular livremente entre esta ou aquela parte da casa?

Claro. Eram apenas separadas por motivos de con­veniências domésticas.

Como foi que tomou conhecimento da morte de seu pai?

Meu irmão Roger, que ocupa a ala esquerda do an­dar de cima, desceu correndo para me dizer que meu pai ti­vera um ataque repentino. Tinha dificuldade em respirar e parecia muito mal.

O que foi que o senhor fez?

Telefonei para o médico, coisa que ninguém ainda pensara em fazer. O médico tinha saído... e eu deixei um re­cado para que ele viesse para cá o mais depressa possível. Então eu subi.

E então?

Meu pai estava obviamente muito mal. Morreu antes de o médico chegar.

Não havia nenhuma emoção na voz de Philip. Estava apenas enunciando um fato consumado.

—Onde estava o resto da família?

Minha mulher estava em Londres. Ela chegou logo depois. Sophia também não estava, eu creio. Os dois mais novos, Eustace e Josephine, estavam em casa.

Eu peço que o senhor não me compreenda mal, Sr., Leonides, se eu lhe perguntar exatamente em como a morte de seu pai lhe afetará sua posição financeira.

Eu aprecio muito os seus esforços em saber todos os fatos. Meu pai tornou-nos financeiramente independentes há muitos anos. Meu irmão é presidente e o principal acionista da Associação de Fornecedores, a maior companhia de meu pai, e é o único responsável por ela. Ele me deu uma soma em dinheiro equivalente... posso dizer-lhe que foi cerca de cento e cinqüenta mil libras em letras e ações... para que eu usasse meu capital como bem entendesse. Deu também somas con­sideráveis para minhas duas irmãs que já faleceram.

Mas apesar disto ele ainda guardou uma fortuna con­siderável para si, não?

Não, na verdade ele ficou apenas com uma pequena parcela de sua fortuna. Disse que isto lhe daria mais interesse na vida. Desde então — pela primeira vez um leve sorriso de­lineou-se no rosto de Philip, — ele se tornou, devido a diver­sos empreendimentos, um homem ainda mais rico do que era.

Seu irmão e o senhor vieram morar aqui. Isto foi devido a dificuldades... financeiras?

É lógico que não. Foi apenas uma questão de conveniência. Meu pai sempre nos dizia que seríamos bem-vindos aqui. Por diversas razões domésticas isto se tornou conveniente para mim. E também — acrescentou Philip deliberadamente — eu gostava imensamente de meu pai. Vim para cá com mi­nha família em 1937. Não pago aluguel e sim uma porcenta­gem das despesas.

E seu irmão?

Meu irmão veio para cá depois que a casa dele em Londres foi bombardeada em 1943 na blitz.

Agora, Sr. Leonides, o senhor tem alguma idéia so­bre as disposições testamentárias de seu pai?

Eu creio que sim. Ele refez seu testamento logo de­pois que a paz foi assinada em 1945. Meu pai não era homem de guardar segredos. Fez uma reunião familiar na qual o seu advogado também estava presente e, a seu pedido, nos tornou cientes dos termos de seu testamento. Eu imagino que o senhor já conheça esses termos. O Sr. Gaitskill sem dúvida já deve ter-lhe informado. Aproximadamente uma soma de cem mil libras livres de impostos para minha madrasta, além de sua já generosa pensão fixada na ocasião do casamento. O total lí­quido de sua herança foi dividido em três partes, uma para mim, uma para meu irmão e a terceira depositada em nome de seus três netos. A herança é muito grande, mas os impostos mortuários, é claro, serão bem pesados.

Alguma doação para empregados ou para caridade?

Nenhuma doação de espécie alguma. Os salários pagos aos empregados eram aumentados anualmente se eles permanecessem em serviço.

O senhor não está... perdoe a pergunta... precisando de dinheiro no momento, Sr. Leonides?

O imposto de renda é bastante pesado, Inspetor... mas minhas rendas me bastam amplamente... e também para minha esposa. Além disto, meu pai sempre nos fazia presen­tes generosos, e se surgisse alguma emergência, imediatamente ele vinha em nosso auxílio.

Philip acrescentou de maneira fria e insofismável:

Eu lhe garanto, Inspetor, que não possuía nenhuma razão financeira para desejar a morte de meu pai.

Eu sinto muito, Sr. Leonides, se pensou que eu estava sugerindo isto. Mas nós precisamos reunir todos os fatos. Eu peço que me desculpe mas preciso ainda fazer-lhe algu­mas perguntas muito delicadas. A respeito das relações entre seu pai e sua madrasta. Eles eram felizes juntos?

Que eu saiba, perfeitamente felizes.

Nenhuma briga?

Creio que não.

Havia... uma grande diferença de idade?

Havia.

O senhor... perdoe... aprovou o segundo casamento de seu pai?

Não me pediram a aprovação.

Isto não é resposta, Sr. Leonides.

Já que o senhor me pediu a opinião, eu diria que con­siderei este casamento como... insensato.

O senhor censurou seu pai pelo fato?

Quando eu soube, já era um fato consumado.

Foi um grande choque para o senhor, não?

Philip não respondeu.

Houve algum mal-entendido sobre o assunto?

Meu pai era livre para fazer o que bem entendesse.

Suas relações com a segunda Sra. Leonides eram ami­gáveis?

Perfeitamente.

O senhor mantinha laços de amizade com ela?

Nós nos víamos raramente.

O Inspetor Taverner mexeu-se na cadeira.

O senhor pode dizer-me algo a respeito do Sr. Lau­rence Brown?

Sinto muito, mas não posso. Ele foi contratado por meu pai.

Mas foi contratado para ensinar seus filhos, Sr. Leonides.

É verdade. Meu filho sofreu de paralisia infantil... felizmente um caso leve... mas consideramos que não seria prudente mandá-lo para uma escola pública. Meu pai sugeriu que ele e minha filha mais nova, Josephine, tivessem um pro­fessor particular... naquela época a escolha era muito reduzida... uma vez que o professor em questão teria de ser inapto para o serviço militar. As credenciais deste rapaz eram satis­fatórias e meu pai e minha tia (que sempre zelou pelo bem-es­tar das crianças) se deram por satisfeitos e eu concordei. Pos­so acrescentar que nunca encontrei nenhum defeito em seus métodos de ensino, que sempre foram conscientes e adequados.

Os aposentos dele são na parte da casa ocupada por seu pai ou aqui?

Lá há mais espaço.

O senhor notou alguma vez... peço que me desculpe a pergunta... algum sinal de intimidade entre Laurence Brown e sua madrasta?

Eu nunca tive oportunidade de observar nada neste sentido.

O senhor ouviu alguma vez algum boato ou mexe­ rico a este respeito?

Eu não ouço boatos ou mexericos, Inspetor.

Muito louvável de sua parte — disse o Inspetor Ta­verner. — Então o senhor não viu nada de mau, não ouviu nada de mau e também não falará nada de mau, não é?

O senhor interpretará como quiser, Inspetor.

O Inspetor Taverner levantou-se.

Bem — disse ele, — muito obrigado, Sr. Leonides. Eu o segui discretamente quando saiu da sala.

Ufa!  — disse Taverner, — que sujeito duro de roer!

 

—E AGORA — DISSE Taverner — vamos ter uma palavrinha com a Sra. Philip. O nome dela no palco é Magda West.

Ela tem talento? — eu perguntei. — Eu a conheço de nome e me recordo de tê-la visto em várias peças mas não consigo me lembrar onde, nem quando.

Ela é dessas que são “quase um sucesso” — disse Taverner. — Fez sucesso uma ou duas vezes no West End e um certo nome no Teatro do Repertório; geralmente trabalha nestes teatros esnobes e nos clubes mais fechados. Eu acredito que, no duro mesmo, ela nunca teve foi motivação e isto a pre­judicou. Ela sempre pôde escolher, sempre foi aonde quis e de vez em quando entra com dinheiro para financiar uma peça onde tem vontade de representar um determinado papel... ge­ralmente o último que deveria representar... O resultado é que ela é considerada mais como amadora que como uma verda­deira profissional. Trabalha muito bem, apesar de tudo, espe­cialmente em comédias, mas os diretores não gostam muito dela... dizem que é muito independente e cria muita confusão, arranja brigas e depois se diverte com as travessuras. Eu não sei se é verdade mas ela também não goza de muita popula­ridade entre os companheiros de trabalho.

Sophia veio da sala de estar e disse:

—Mamãe está lá, Inspetor.

Eu segui Taverner até a grande sala de estar. No primeiro momento quase não reconheci a mulher que estava sentada no sofá de brocado.

Os cabelos louros estavam presos no alto da cabeça num penteado de estilo e ela vestia um bem talhado costume cinza-escuro e uma blusa lilás muito clara, delicadamente preguea­da, com um decote alto fechado por um pequeno camafeu. Pela primeira vez eu reparei na delicadeza de seu nariz arrebi­tado. Lembrei-me vagamente de Athene Seyler — e me pare­ceu impossível imaginar que fosse a mesma criatura tempes­tuosa do robe cor-de-pêssego.

—Inspetor Taverner? — disse ela. — Entre, por favor, e sente-se. Quer fumar? Este assunto é muito desagradável. Ainda não posso acreditar no que aconteceu.

Sua voz era baixa e inexpressiva, a voz de uma pessoa determinada a demonstrar a todo o custo o seu autodomínio. Ela continuou:

Por favor, diga-me em que lhe posso ser útil.

Obrigado, Sra. Leonides. Onde a senhora estava no momento da tragédia?

Eu creio que estava voltando de Londres. Almocei lá naquele dia no Ivy, com uma amiga. Depois nós fomos a um desfile de modas. Estivemos no Berkeley tomando um drin­que com outros amigos. De lá vim para casa. Quando cheguei aqui tudo estava em tumulto. Parece que meu sogro tivera um ataque repentino. Ele estava...  morto — a voz dela estreme­ceu ligeiramente.

A senhora gostava de seu sogro?

Eu adorava...

A voz subiu de tom. Sophia endireitou, imperceptivelmente, a posição do quadro de Degas. A voz de Magda voltou ao tom anterior.

Eu gostava muito dele — disse com muita calma. — Todos nós. Ele era... muito bom para nós.

A senhora se dava bem com a Sra. Leonides?

Nós quase não víamos Brenda.

Por quê?

Bem, nós não tínhamos muita coisa em comum. Pobre Brenda. A vida deve ter sido dura para ela algumas vezes.

Novamente Sophia ajeitou o Degas.

É mesmo? Em que sentido?

Oh, eu não sei — Magda balançou a cabeça, com um pequeno sorriso triste.

A Sra. Leonides era feliz com o marido?

Oh, eu creio que sim.

Não brigavam?

Outra vez o leve aceno negativo de cabeça e o mesmo sor­riso.

Na verdade, eu não sei dizer, Inspetor. A parte da casa onde eles moravam é separada desta.

Ela e o Sr. Laurence Brown eram muito amigos, não eram?

Magda Leonides endireitou-se. Seus olhos muito abertos olharam recriminadoramente para o Inspetor.

Eu não creio — disse ela com dignidade — que o senhor deva fazer-me perguntas como esta. Brenda é muito amável com todas as pessoas. Ela sempre foi uma criatura muito gentil.

A senhora gosta do Sr. Laurence Brown?

Ele é muito tranqüilo. Bastante simpático, quase não se nota sua presença. Eu quase não o vejo.

O seu ensino é satisfatório?

Eu creio que sim. Na verdade, eu não lhe sei dizer. Philip parece estar satisfeito.

Taverner tentou uma tática de choque.

—Eu sinto ter de fazer-lhe esta pergunta, mas em sua opinião havia alguma coisa... assim no gênero de um caso de amor... entre o Sr. Brown e a Sra. Brenda Leonides?

Magda levantou-se. Ela tinha o ar de uma grande dama.

—Eu nunca vi nada que evidenciasse algo deste gênero — disse ela. — E eu não creio, Inspetor, que esta seja uma per­gunta a me fazer. Ela era a esposa de meu sogro

Eu quase bati palmas.

O Inspetor também se levantou.

—Seria mais uma pergunta para fazer aos criados? — sugeriu ele.

Magda não respondeu.

Muito obrigado, Sra. Leonides — disse o Inspe­tor e saiu.

A senhora esteve maravilhosa, mamãe — disse So­phia calorosamente para sua mãe.

Magda enrolou um cacho de cabelo atrás da orelha di­reita, olhando-se meditativamente no espelho.

—S-sim — disse ela — eu creio que foi a maneira cor­reta de interpretar esse papel.

Sophia olhou para mim.

Você não devia — perguntou ela — ir junto com o Inspetor?

Olhe aqui, Sophia, o que é que eu devo fazer?...

Parei. Eu não podia perguntar ali em frente à mãe de Sophia qual era exatamente o papel que eu deveria assumir. Magda Leonides já demonstrara suficientemente não ter o mínimo interesse na minha presença, exceto como um espec­tador útil para apreciar as suas deixas finais sobre filhas. Eu podia ser um repórter, o noivo de sua filha, um obscuro fun­cionário da polícia ou mesmo um papa-defuntos — para Mag­da Leonides todos seriam apenas rotulados de audiência co­mum.

Olhando para os pés, a Sra. Leonides disse aborrecida:

—Estes sapatos não estavam bem. São frívolos.

Obedecendo ao imperativo aceno de cabeça de Sophia, eu saí correndo atrás de Taverner. Alcancei-o na sala da en­trada, no momento em que ia entrar pela porta que dava para a escadaria.

—Ia subir para ver o irmão mais velho — explicou ele.

—Com ele eu posso falar com menos cerimônia.

Olhe aqui, Taverner, quem é que eu devo ser?

Ele pareceu surpreso.

Quem é que você deve ser?

Sim, o que é que eu estou fazendo nesta casa? Se al­guém me perguntar, o que é que eu digo?

Ahn... sei... — pensou um momento. Depois sorriu. —Alguém já perguntou?

Bem... não.

Então, por que não deixa como está? Não explique nada. É um bom lema. Especialmente numa casa transtornada como esta. Cada qual está tão assoberbado com seus próprios problemas e temores que ninguém está em estado de fazer per­guntas. Eles confiarão em você enquanto parecer seguro de si. É um grande erro falar quando não há necessidade. Hum... vamos subir as escadas. A porta não está trancada. E claro que você já percebeu, eu calculo, que estas perguntas que eu estou fazendo não servem para nada. Não tem o menor sen­tido saber quem estava ou não em casa, ou onde estavam to­dos naquele dia particular...

—Então por quê...?

Ele continuou:

—Porque pelo menos me dá uma oportunidade de dar uma olhada neles todos, estudá-los e escutar o que têm a dizer... e esperar que... Deus sabe por que sorte!... alguém pudesse me dar uma colher de chá — calou-se durante um instante e murmurou: — Eu aposto que a Sra. Magda Leonides poderia contar um bocado de coisas se quisesse!

Mas você teria confiança no que ela dissesse? — per­guntei.

Oh, é claro que não — disse Taverner; — eu não po­deria ter confiança. Mas poderia servir para o início de uma linha de investigações. Cada qual nesta maldita casa teve os meios e a oportunidade. Eu só estou procurando um motivo.

No alto da escadaria, uma porta fechava o lado direito do corredor. Na porta, uma argola de bronze que o Inspetor Taverner fez soar.

A porta abriu-se tão depressa, que parece que o homem estava por detrás à espera. Era um homenzarrão desajeitado, de ombros muito largos, cabelos escuros desgrenhados e o rosto horrivelmente feio mas ao mesmo tempo muito simpático. Seus olhos se fixaram em nós e logo se desviaram daquela ma­neira encabulada que tantas vezes têm as pessoas tímidas mas honestas.

—Oh, é o senhor — disse ele. — Entrem. Por favor. Eu ia sair...  mas não tem importância. Venham para a sala de visita. Eu vou chamar Clemency. Oh... você está aí, que­ rida. É o Inspetor Taverner. Ele... o senhor tem cigarros? Es­pere um instante. O senhor me dá licença... — foi de encontro a um biombo, disse “desculpe” para a parede, muito atarantado e saiu da sala.

Parecia a saída de uma abelha barulhenta e deixou um grande silêncio atrás de si.

A Sra. Roger Leonides estava de pé perto da janela. Eu fiquei imediatamente fascinado pela sua personalidade e pela atmosfera da peça onde me encontrava.

Via-se claramente que era o seu quarto. Disto eu não tinha a menor dúvida.

As paredes eram pintadas de branco — branco mesmo, e não marfim ou creme que é geralmente o que se usa, quando se diz “branco” em decoração. Não havia quadros nas pare­des — exceto um sobre a lareira — representando uma fantasia geométrica em triângulos cinza-escuro e azul-marinho. Quase não havia móveis — apenas o necessário, três ou qua­tro cadeiras, uma mesa com tampo de vidro, uma pequena es­tante. Não havia enfeites. Havia luz, ar e espaço. Era tão di­ferente da sala cheia de brocados e flores do andar de baixo como a água do vinho. E também a Sra. Roger Leonides era tão diferente da Sra. Philip Leonides como uma mulher pode ser diferente de outra. Sentia-se que Magda Leonides podia ser, e com freqüência era, pelo menos uma meia dúzia de mu­lheres diferentes, ao passo que Clemency Leonides nunca po­deria ser mais ninguém a não ser ela mesma. Era uma mulher de personalidade marcante e bem definida.

Teria cerca de cinqüenta anos, eu calculei, o cabelo era grisalho, cortado muito curto, quase como um rapaz, mas as­sentava tão bem em sua cabeça pequena e bem feita que não tinha nada daquela feiúra que eu sempre associara às mulhe­res de cabelo curto. A expressão do rosto era inteligente e sen­sível, com olhos cinza-claro de uma intensidade penetrante e característica. Usava um vestido simples de lã vermelho-escuro que acentuava perfeitamente o seu corpo esguio.

Ela era, eu percebi logo, uma mulher extremamente pe­rigosa... Talvez porque imaginei que ela não se guiava pelos preceitos de uma mulher comum. Compreendi logo por que Sophia usara a palavra “crueldade” em relação a ela. Seu quarto era frio e eu estremeci ligeiramente.

Clemency Leonides falou numa voz calma e bem modu­lada:

Por favor, sente-se, Inspetor. Há algo de novo?

A morte foi provocada por eserina, Sra. Leonides.

Ela disse pensativa:

Então veio mesmo a ser um crime. Não poderia ser um acidente ocasional, poderia?

Não, Sra. Leonides.

Por favor, dê a notícia com muito jeito a meu marido, Inspetor. Isso vai fazê-lo sofrer muito. Ele adorava o pai e é muito sensível. É uma pessoa muito emotiva.

A senhora mantinha boas relações com seu sogro, Sra. Leonides?

Sim, muito boas relações — ela acrescentou com muita calma: — Eu não gostava muito dele.

Por quê?

Eu discordava de seus objetivos na vida... e dos mé­todos para atingi-los.

E da Sra. Brenda Leonides?

Brenda? Eu sempre a vi muito pouco.

A senhora acha que seria possível existir alguma coisa entre ela e o Sr. Laurence Brown?

O senhor quer dizer...  um caso de amor? Eu creio que não. Mas se houvesse eu não saberia mesmo.

Sua voz era completamente indiferente.

Roger Leonides voltou, aos arrancos, sempre dando a mesma impressão de uma abelha barulhenta.

Chamaram-me — disse ele.  — Telefone. Bem, Ins­petor? Então? Já tem alguma notícia? O que foi que causou a morte de meu pai?

A morte foi provocada por um envenenamento por eserina.

Foi? Meu Deus!  Então foi aquela mulher! Ela não pôde esperar! Ele a tirou da sarjeta e este foi o seu prêmio. Ela o matou a sangue-frio! Deus, o meu sangue ferve só em pensar nisto!

O senhor tem alguma razão particular para pensar assim? — perguntou Taverner.

Razão? Quem poderia ser então? Eu nunca confiei nela — jamais gostei dela! Nenhum de nós gostava dela. Phi­lip e eu ficamos estarrecidos quando papai chegou em casa um dia e nos disse o que havia feito! Na idade dele! Era loucura... loucura! Meu pai era um homem estranho, Inspetor. Intelectualmente, era jovem e ativo como um homem de uns quarenta anos. Tudo o que eu tenho no mundo devo a ele. Fez tudo por mim... nunca me falhou. Se alguém falhou al­guma vez fui eu... quando eu penso nisso...

Deixou-se cair pesadamente numa cadeira. Sua mulher veio imediatamente colocar-se a seu lado.

Vamos, Roger, já chega. Não se mortifique mais.

Eu sei, minha querida... eu sei — ele lhe tomou as mãos. — Mas como eu posso ficar calmo... como posso man­ter a calma...

Mas todos nós precisamos manter a calma, Roger. O Inspetor Taverner precisa da nossa ajuda.

—A senhora está certa, Sra. Leonides.

Roger gritou:

—Sabe o que eu gostaria de fazer? Estrangular aquela mulher com minhas próprias mãos. Roubando àquele pobre velho alguns poucos anos a mais de vida. Se eu pusesse as mãos nela... — deu um pulo. Estava trêmulo de ódio. Esten­deu as mãos convulsas. — Sim, eu lhe torceria o pescoço... eu lhe torceria o pescoço...

—Roger! — disse Clemency com voz cortante.

Ele olhou para ela, confuso.

—Desculpe, minha querida — virou-se para nós: — Eu peço desculpas. Meus sentimentos transbordaram. Eu... me perdoem...

Ele saiu da sala outra vez. Clemency Leonides disse com um sorriso vago:

—Na verdade, o senhor sabe que ele não faria mal a uma mosca.

Taverner aceitou esta observação polidamente.

E recomeçou com as suas pretensas perguntas de rotina.

Clemency Leonides respondia consciente e acuradamente.


Roger Leonides estivera em Londres no dia da morte do pai, na Box House, a sede da Associação de Fornecedores. Voltara cedo e passara bastante tempo com o pai como de cos­tume. Ela estivera como sempre no Instituto Lambert, na Rua Gower, onde trabalhava. Voltara para casa um pouco antes das seis horas.

Viu o seu sogro?

Não. A última vez que o vi foi no dia anterior. To­mamos café juntos depois do jantar.

Não o viu no dia de sua morte?

Não. Eu estive na parte da casa que ele ocupava porque Roger pensou que tivesse deixado o cachimbo lá... um cachimbo de que ele gosta muito... mas estava mesmo era na mesa da sala da entrada e então eu não tive necessidade de in­comodar meu sogro. Geralmente ele cochilava lá pelas seis horas.

Quando foi informada de sua doença?

Brenda veio correndo. Foi um ou dois minutos de­ pois das seis e meia.

Estas perguntas, como eu já sabia, não tinham importân­cia, mas eu estava cônscio da maneira que o Inspetor Taver­ner observava com perspicácia a mulher que as respondia. Ele fez algumas perguntas sobre a natureza de seu trabalho em Londres. Ela respondeu que ele era relacionado com os efeitos das radiações da desintegração atômica.

A senhora trabalha então para a bomba atômica?

Meu trabalho não tem nada de destrutivo. O Instituto está realizando experiências apenas nos efeitos terapêuticos.

Quando Taverner levantou-se, demonstrou o desejo de conhecer aquela parte da casa. Ela pareceu um pouco surpresa mas mostrou-nos imediatamente todo o resto. O quarto de dor­mir com camas separadas e colchas brancas e a simplicidade da decoração lembrou-me outra vez um hospital ou uma cela de mosteiro. O banheiro também era severamente simples, sem nenhum luxo, nem mesmo os tão comuns potinhos de cre­me e pintura. A cozinha era nua, impecavelmente limpa e muito bem equipada com inúmeros aparelhos de utilidade doméstica. Clemency abriu outra porta, dizendo:

Este é o quarto particular de meu marido.

Entrem — disse Roger, — entrem.

Eu dei um suspiro de alívio. Não sei por que mas aquela atmosfera imaculada lá de fora estava-me dando nos nervos. Este quarto era intensamente pessoal. Havia uma escrivani­nha grande literalmente coberta de cachimbos velhos, papéis e cinza. Duas enormes poltronas surradas. Tapetes persas for­ravam o chão todo. Nas paredes, fotos já um tanto esmaeci­das de grupos de pessoas: grupos de colégio, grupos de críquete, grupos de soldados. Aquarelas de desertos e minaretes, barcos a vela, cenas de mar e de sol poente. Era, de fato, um quarto agradável, de um homem cativante e sociável.

Roger, desajeitado, começou a servir as bebidas, afas­tando livros e papéis de uma das cadeiras.

Isto aqui está uma bagunça, eu estava pondo tudo para fora, vendo a papelada que não presta. Quanto quer? — o Inspetor recusou a bebida; eu aceitei. — Eu quero pedir-lhe desculpas — continuou Roger. Trouxe o meu drinque e, virando a cabeça, falou com Taverner:

Eu me descontrolei.

Ele olhou em torno com um ar de culpa mas Clemency Leonides não nos acompanhara.

—Ela é maravilhosa — disse ele. — Minha mulher, eu quero dizer. Em meio a tudo isto, ela tem sido esplêndida... esplêndida! Eu não saberia dizer quanto eu admiro aquela mulher! E ela já sofreu tanto... já passou tão mal! Eu vou-lhes contar. Foi antes de nos casarmos, eu quero dizer. O seu pri­meiro marido era um bom sujeito... um tipo inteligente... mas muito franzino, tuberculoso para falar com franqueza. Esta­va trabalhando numa pesquisa muito importante sobre cristalografia, eu acho. Serviço mal pago e muito exaustivo, mas ele não desistia. Ela trabalhava como uma escrava para sus­tentá-lo, sabendo o tempo todo que ele estava à morte. E nun­ca se queixou... nunca deixou perceber uma fraqueza. Sempre dizendo que era feliz. Quando ele morreu, ela ficou profun­damente magoada. Muito tempo depois concordou em casar-se comigo. Eu fiquei muito feliz em poder dar-lhe um pouco de descanso, um pouco de felicidade. Fiz tudo para que ela parasse de trabalhar mas, como era no tempo da guerra, ela considerava o trabalho como um dever e mesmo agora ainda acha que deve continuar. Tem sido uma esposa maravilhosa... a melhor esposa que um homem pode desejar. Deus, como eu tive sorte! Faria qualquer coisa por ela.

Taverner fez o comentário adequado. Depois recome­çou uma vez mais com as suas perguntas rotineiras. Quando foi que soube da doença de seu pai?

Brenda veio correndo chamar-me. Meu pai estava mal... ela disse que ele tivera uma espécie de ataque.

Eu estivera sentado com meu velhinho querido há uma meia hora apenas. Ele estava otimamente bem. Eu corri para lá. Ele estava com o rosto azulado, sufocando. Desci cor­rendo para chamar Philip. Ele telefonou para o médico. Eu... nós não pudemos fazer nada. É claro que eu não sonhei nem por um instante que houvesse algo engraçado. Engraçado? Eu disse engraçado? Meu Deus, que palavra que eu fui empre­gar!

Com uma certa dificuldade, Taverner e eu conseguimos escapar da atmosfera emocional do quarto de Roger Leonides e finalmente nos encontramos uma vez mais no alto da esca­daria.

— Puxa! — disse Taverner — que contraste de um ir­mão para outro.

E acrescentou, um tanto sem propósito:

— Quartos são peças curiosas. Contam muita coisa so­bre as pessoas que vivem nelas.

Eu concordei e nós fomos em frente.

_ É estranho como as pessoas se casam umas com as outras, não é?

Eu não tinha certeza se ele estava-se referindo a Clemency e Roger, ou a Philip e Magda. Suas palavras se aplicavam igual­mente a ambos. Entretanto eu pensava que os dois casamen­tos podiam ser considerados como uniões felizes. O de Roger e Clemency certamente era.

— Eu não creio que ele seja um envenenador, e você? — perguntou Taverner e continuou: — Assim de cara eu diria que não. É lógico, a gente nunca sabe. Ela sim, tem mais tipo... Parece uma mulher impiedosa. É capaz até que seja meio doida.

Novamente eu concordei.

Mas não acredito — disse eu — que ela matasse al­guém apenas porque não aprovava os seus objetivos e a sua maneira de viver. Talvez, se ela odiasse realmente o velho... mas existem crimes cometidos apenas por ódio puro?

Pouquíssimos — disse Taverner. — Eu mesmo nunca vi nenhum. Não, eu acho melhor ficarmos com a Sra. Brenda. Mas só Deus sabe se nós vamos conseguir alguma prova.

 

Uma COPEIRA abriu a porta da ala oposta do corredor. Parecia amedrontada mas olhou com certo desdém para Ta­verner.

O senhor quer ver a patroa?

Sim, por favor.

Ela nos levou até uma grande sala de visitas e saiu.

Esta sala era do mesmo tamanho da sala do andar de baixo. Os estofados eram de cretones estampados, de cores muito alegres, e as cortinas de seda listrada. Sobre a lareira havia um retrato que imediatamente chamou minha atenção — não apenas por admirar a mão do mestre que o pintara mas também pela notável expressão do modelo.

Era o retrato de um homem pequeno, já velho, de agu­dos olhos escuros. Usava um gorro de veludo negro e tinha a cabeça enterrada nos ombros — mas a vitalidade e o poder daquele homem emanavam da tela. Aqueles olhos faiscantes pareciam prender os meus.

—E ele — disse Taverner simplesmente. — Pintado por Augustus John. Era uma figura, não era?

Sim — disse eu, mas senti que o monossílabo era ina­dequado.

Eu entendia agora o que Edith de Haviland quis dizer ao afirmar que a casa parecia vazia sem ele. Era o Original Homenzinho Torto que construíra a Casinha Torta — e sem ele, a Casa Torta havia perdido o significado...

—Aquela ali era a primeira mulher dele, pintada por Sargent — disse Taverner.

Eu examinei o quadro entre as duas janelas. Tinha aquela certa crueldade de muitos dos retratos de Sargent. O compri­mento do rosto era exagerado, eu pensei — e também a ligeira sugestão de um ar cavalar — a incontestável seriedade. Era o retrato de uma típica Senhora Inglesa da Alta Sociedade Rural (e não do Café-Society). Uma estranha esposa para o pequeno déspota careteiro de cima da lareira.

A porta abriu-se e o Sargento Lamb entrou.

—Eu fiz o que pude com os empregados, senhor — dis­se ele. — Não adiantou nada.

Taverner suspirou.

O Sargento Lamb tirou o seu caderninho do bolso e retirou-se para o canto mais afastado da sala, onde se sentou discretamente.

A porta abriu-se outra vez e a segunda esposa de Aristide Leonides entrou na sala.

Ela estava de luto — um vestido preto muito caro — mas um luto meio exagerado. Estava coberta de preto do pescoço até os pulsos. Ela andava de maneira despreocupada e indo­lente, e a cor preta lhe ia muito bem. O rosto era razoavel­mente bonito, assim como os cabelos castanhos penteados de forma um pouco sofisticada. Apesar do pó-de-arroz, do ba­tom e do rouge via-se claramente que estivera chorando. Usa­va um colar de pérolas muito graúdas e tinha em uma das mãos um anel com uma enorme esmeralda e na outra um imenso rubi.

Outra coisa eu ainda notei: ela tinha o ar assustado.

—Bom dia, Sra. Leonides — disse Taverner tran­qüilamente. — Eu sinto muito tornar a incomodá-la.

Ela falou com voz abatida:

Eu creio que isto não pode ser evitado.

A senhora sabe, Sra. Leonides, que, se por acaso qui­ser que o seu advogado esteja presente, será perfeitamente normal.

Eu imaginei se ela compreendeu o significado destas pa­lavras. Aparentemente não. Disse apenas um tanto mal-humo­rada:

Eu não gosto do Sr. Gaitskill. Não quero saber dele.

A senhora pode ter o seu próprio advogado, Sra. Leo­nides.

Será que eu preciso? Não gosto de advogados. Eles me atrapalham.

Cabe exclusivamente à senhora decidir — disse Ta­verner, mostrando um sorriso automático. — Podemos pros­seguir, então?

O Sargento Lamb lambeu a ponta do lápis. Brenda Leo­nides sentou-se no sofá em frente a Taverner.

— O senhor descobriu alguma coisa?

Eu reparei que seus dedos torciam e retorciam uma pre­ga da fazenda de seu vestido.

Nós podemos afirmar categoricamente que seu ma­rido morreu em conseqüência de um envenenamento por ese­rina.

O senhor quer dizer que foi aquele colírio que o ma­tou?

Está praticamente fora de dúvida que, quando a se­nhora aplicou aquela última injeção no Sr. Leonides, foi ese­rina que injetou e não insulina.

Mas eu não sabia disto. Eu não tenho nada a ver com isto. Realmente, Inspetor, eu não sabia de nada.

Então alguém deve ter substituído deliberadamente a insulina pelo colírio.

Que coisa perversa!

Sim, Sra. Leonides.

—O senhor acha...  que alguém fez isto de propósito? Ou foi acidental? Não poderia ter sido... uma brincadeira?

Taverner disse com muita calma:

—Nós não cremos que tenha sido uma brincadeira, Sra. Leonides.

Deve ter sido um dos empregados.

Taverner não respondeu.

Só pode ser. Eu não vejo quem pudesse fazer isto.

—A senhora tem certeza? Pense, Sra. Leonides... Não tem nenhuma idéia? Não havia nenhum sentimento de mal­dade? Nenhuma briga? Nenhum rancor?

Ela continuava a encará-lo com olhos arrogantes.

Não tenho a mínima idéia — disse.

A senhora tinha ido ao cinema naquela tarde, não tinha?

Sim, eu cheguei às seis e meia... era a hora da insu­lina... eu... eu... apliquei a injeção como de costume e então ele...  ele ficou logo indisposto. Eu fiquei apavorada...  corri para chamar Roger... eu já contei isso tudo ao senhor. Preciso recomeçar outra vez? — a voz dela estava num tom quase histérico.

Eu sinto muitíssimo, Sra. Leonides. Eu posso falar agora com o Sr. Brown?

Com Laurence? Para quê? Ele não sabe de nada.

—Eu gostaria de falar com ele de qualquer forma.

Ela olhou para ele desconfiada.

Eustace está estudando latim com ele na sala de aula. O senhor quer que ele venha aqui?

Não, nós iremos até lá.

Taverner saiu rapidamente da sala. Eu e o Sargento o seguimos.

—O senhor deixou-a com a pulga atrás da orelha — disse o Sargento Lamb.

Taverner deu um resmungo e nos conduziu a uma pequena escadaria e através de um corredor até uma sala grande que dava para o jardim. Um homem ainda moço, louro, de uns trinta anos, e um belo rapaz de uns dezesseis anos estavam sentados a uma mesa.

À nossa entrada eles levantaram os olhos. Eustace, o ir­mão de Sophia, olhou para mim. Laurence Brown olhou para o Inspetor Taverner com ar agoniado.

Oh... ahn... bom dia, Inspetor.

Bom dia — Taverner foi lacônico. — Posso ter uma conversa com o senhor?

Claro, claro. Com o maior prazer. Pelo menos...

Eustace levantou-se.

O senhor quer que eu saia, Inspetor?

Sua voz era satisfeita e tinha uma leve entonação de ar­rogância.

— Nós... nós podemos continuar os estudos depois — disse o professor.

Eustace encaminhou-se negligentemente para a porta. Ele tinha um andar desajeitado, duro. Ao sair, me deu uma olhada e, fazendo uma careta, passou o dedo indicador pela garganta. Saiu, fechando a porta.

Muito bem, Sr. Brown — disse Taverner. — A aná­lise foi positiva. Foi eserina o que causou a morte do Sr. Leo­nides.

Eu... o senhor quer dizer... que o Sr. Leonides foi as­sassinado mesmo? Eu estava esperando...

Ele foi envenenado — disse Taverner secamente. — Alguém substituiu a insulina pelo colírio de eserina.

Eu não posso acreditar... É inacreditável.

A questão é... quem tinha um motivo?

Ninguém. Absolutamente ninguém! — a voz do rapaz elevou-se excitada.

O senhor não quer a presença de seu advogado, quer? — perguntou Taverner.

Eu não tenho advogado. Eu não quero advogado. Eu não tenho nada a esconder... nada!

E o senhor está sabendo que tudo o que disser será  anotado.

Eu sou inocente... eu lhe garanto, eu sou inocente.

Eu não sugeri nada — Taverner fez uma pausa. — A Sra. Leonides era muito mais moça que seu marido, não era?

Eu... eu creio que sim... eu quero dizer, era sim.

—Ela se sentia muito solitária de vez em quando?

Laurence Brown não respondeu. Passou a língua sobre os lábios muito secos.

Ter um companheiro mais ou menos da idade dela morando aqui deve ter sido bastante agradável para ela, não?

Eu... não, absolutamente... eu quero dizer... eu não sei.

Parece-me bastante natural que uma certa afeição deva ter surgido entre vocês dois.

O rapaz protestou violentamente.

—Não era não! De forma nenhuma! Nada do que o senhor está pensando! Eu sei o que o senhor está pensando mas não era não! A Sra. Leonides sempre foi muito gentil comigo e eu tenho um grande... o maior respeito por ela! Não havia nada, nada mais do que isto! Eu lhe garanto. É monstruoso sugerir uma coisa destas! Monstruoso! Eu não seria capaz de matar ninguém! Nem de substituir os vidros ou de fazer algo errado. Eu sou muito sensível, tenho os nervos à flor da pele. Eu... só a idéia de um homicídio já é um pesadelo para mim... eles vão compreender isto no tribunal... eu tenho objeções re­ligiosas contra o crime. Eu já trabalhei num hospital... pu­nha carvão nas caldeiras... era um trabalho terrivelmente pe­sado... eu não pude continuar... então me deixaram trabalhar como educador. Eu tenho feito o melhor que posso com Eus­tace e com Josephine, uma criança muito inteligente mas muito difícil. E todos têm sido muito gentis comigo... o Sr. Leonides e a Sra. Leonides e a Srta. de Haviland. E agora acontece esta coisa horrível... E o senhor pensa que... eu... seja um cri­minoso!

O Inspetor Taverner olhou para ele como se o avaliasse com interesse.

Eu não disse nada disto — disse ele.

Mas o senhor está pensando! Eu sei que o senhor está pensando! Todos eles pensam assim! Eles olham para mim. Eu... eu não posso continuar. Não me estou sentindo bem.

Ele saiu correndo da sala. Taverner voltou a cabeça len­tamente para mim.

Muito bem, o que você acha dele?

Ele está apavorado.

Sim, eu sei, mas será que ele é um assassino?

Se o senhor me perguntasse — disse o Sargento Lamb, — eu diria que ele não tem peito para isto.

Ele nunca quebraria a cabeça de ninguém, nem daria um tiro de revólver — concordou o Inspetor. — Mas neste crime particular o que era preciso fazer? Apenas mexer com duas garrafinhas... Só ajudar um velho a sair deste mundo de uma maneira praticamente indolor...

Praticamente eutanásia — disse o Sargento.

E então, talvez, depois de um intervalo decente, o casamento com uma mulher que herdou cem mil libras livres de imposto, que já possui mais ou menos outro tanto pelo ca­samento, e que além disso ainda tem pérolas e rubis e esme­raldas do tamanho de... ovos!

Muito bem... — Taverner suspirou. — Mas tudo são teorias e conjeturas. Eu fiz o que pude para assustá-lo mas isto não prova nada. Ele é do tipo que se apavoraria mesmo se fos­se inocente. E de qualquer jeito, eu duvido que tenha sido mesmo ele quem praticou o crime. É mais provável que tenha sido a mulher... mas por que cargas d’água ela não jogou fora o vi­dro de insulina ou pelo menos lavou-o?

Ele virou-se para o Sargento Lamb.

Os empregados nunca viram nada entre eles?

A copeira diz que eles gostavam um do outro.

Até que ponto?

A maneira como eles se olhavam quando ela lhes ser­via o café.

Que beleza para contar na sala do tribunal! Nunca houve nenhum avanço?

Não que alguém visse.

Eu aposto que se houvesse algo para ver, eles teriam visto. Sabe? Eu estou começando a acreditar que não havia mesmo nada entre eles — olhou para mim: — Volte e vá fa­lar com ela. Eu gostaria de ter a sua impressão sobre ela.

Eu fui, relutando um pouco, mas não nego que estivesse interessado.

 

ENCONTREI BRENDA Leonides sentada exatamente onde a deixáramos. Olhou rapidamente para mim quando entrei.

Onde está o Inspetor Taverner? Ele vai voltar?

Agora não.

Quem é você?

Finalmente alguém me fez a pergunta que eu estivera esperando durante toda a manhã.

Respondi de forma razoavelmente verdadeira.

Eu sou ligado à polícia mas sou também um amigo da família.

A família! Animais! Eu os odeio todos.

Ela olhou para mim, os lábios trêmulos. Parecia emburrada, assustada e enraivecida.

—Eles têm sido abomináveis comigo... sempre. Desde o início. Por que é que eu não me podia casar com o seu pre­cioso pai? O que importava para eles? Todos tinham montes de dinheiro. Ele o deu para eles. Nenhum tinha miolo para ganhar dinheiro por conta própria!

Ela continuou:

—Por que é que um homem não se pode casar outra vez — mesmo se já está um pouco velho? E ele não era nada velho... no seu íntimo. Eu gostava dele. Eu gostava muito dele.

Ela olhou para mim arrogantemente.

Eu estou vendo — disse eu. — Eu estou vendo.

Eu garanto que você não acredita... mas é a verdade. Eu estava cansada dos homens. Queria ter uma casa... queria alguém que me fizesse festas e me dissesse coisas agradáveis. Aristide me dizia sempre coisas adoráveis e ele era capaz de fazer a gente rir sempre... e era muito esperto. Pensava em todas as espertezas para passar para trás estas regulamenta­ções tolas. Ele era muito vivo. Eu não fiquei contente por ele ter morrido. Eu fiquei triste.

Ela recostou-se no sofá. Sua boca era um pouco grande, mas curvava-se para cima numa espécie de sorriso preguiçoso.

— Eu fui feliz aqui. Eu me sentia segura. Fui a todos esses costureiros famosos... aqueles sobre os quais eu lia nos jornais. Eu valia tanto quanto qualquer pessoa. E Aristide me dava presentes maravilhosos.

Ela estendeu a mão olhando para o rubi.

Por um segundo eu vi aquele braço e aquela mão como a pata espichada de um gato e ouvi a sua voz como um ron-rom. Ela estava sorrindo consigo mesma.

—O que havia de errado nisto? — perguntou ela. — Eu era boazinha para ele. Eu o fiz feliz — inclinou-se para a frente. — Sabe como foi que o conheci?

Ela prosseguiu sem esperar a resposta.

—Foi no Trevo Alegre. Ele pedira ovos mexidos e tor­radas e quando eu trouxe a comida estava chorando. “Sente-se aqui” disse ele e “me conte qual é o seu problema”. “Oh, eu não posso” falei “eles me põem na rua se eu fizer uma coisa destas”. “Não põem, não” disse ele, “o dono do restaurante sou eu”. Foi então que eu olhei para ele. Era um velhinho tão estranho, eu pensei no princípio... mas tinha uma espécie de poder. Eu disse isto para ele... Você já deve ter ouvido o que todos eles dizem de mim, eu calculo... Dizem que eu era uma mulher à-toa... mas não é verdade. Eu fui educada muito bem. Nós tínhamos uma loja... uma loja muito distinta... de trabalhos de costura e bordados. Eu nunca fui deste tipo de moças que têm um bando de namorados e se torna fácil. Mas Terry era diferente. Ele era irlandês... e ia emigrar para o outro lado do mundo... Ele nunca escreveu uma linha, nada... eu acho que era uma tola... E aconteceu o pior. Eu estava grá­vida... como uma empregadinha qualquer...

A voz dela era desdenhosa em seu esnobismo.

Aristide foi maravilhoso. Ele disse que tudo ia aca­bar bem. Disse que se sentia muito solitário. Nós nos casaría­mos imediatamente, ele disse. Foi como num sonho... E só depois foi que eu descobri que ele era o grande Sr. Leonides. Tinha montes de restaurantes e bares e boates. Foi quase como um conto de fadas, não foi?

Um verdadeiro conto de fadas — disse eu secamente.

Nós nos casamos numa igrejinha no centro da cidade e fomos para o estrangeiro.

E a criança?

Ela me olhou com olhos que pareciam vir de muito longe.

—Não havia criança afinal de contas. Eu me enganara.

Ela sorriu, o mesmo sorriso meio de lado.

— Eu prometi a mim mesma que seria uma boa espo­sa para ele, e eu fui. Só servia as comidas de que ele gostava, usava as cores que ele queria e fazia tudo o que podia para agradá-lo. E ele era feliz. Mas nunca conseguimos nos livrar da família dele.  Sempre vindo para cá como parasitas, vi­vendo às custas dele. A velha Srta. de Haviland... eu achava que ela devia ter ido embora quando nós nos casamos. Eu dis­se isso. Mas Aristide disse que “ela já estava aqui há muito tempo, que aqui já era a casa dela”. A verdade é que ele gos­tava de tê-los todos debaixo dos calcanhares. Eles eram de­ testáveis para mim, mas ele nunca pareceu ter notado ou se preocupado com isto. Roger me odeia... você já viu Roger? Ele sempre me odiou. Ele tinha ciúmes. E Philip é tão emproado que nunca fala comigo. E agora eles estão pretendendo que fui eu que o assassinei... e não fui eu! Não fui eu! — inclinou-se para mim. — Por favor, você acredita em mim, não é?

Eu a achei patética. A maneira desdenhosa como a fa­mília Leonides se referia a ela, a ansiedade que tinham em acreditar que ela cometera o crime — para mim, neste exato momento, isto parecia uma conduta positivamente desumana. Ela estava sozinha, sem defesa, acuada.

E se não fui eu, eles pensam que foi Laurence — ela continuou.

E sobre Laurence? — perguntei.

Eu sinto muitíssimo por Laurence. Ele é fraco e não é capaz de lutar. Não que seja um covarde. Ele é muito ner­voso. Eu sempre tentei animá-lo e fazê-lo um pouco feliz. Ele tem de ensinar àquelas crianças horríveis. Eustace está sempre fazendo pouco dele, e Josephine, bem... você já deve ter visto Josephine. Sabe como ela é.

Eu disse que ainda não conhecera Josephine.

—Às vezes eu penso que aquela menina não é muito certa da cabeça. Ela faz as coisas às escondidas e tem um jeito esquisito... Às vezes ela me dá arrepios...

Eu não queria falar sobre Josephine. Voltei novamente a Laurence Brown.

— Quem é ele? — perguntei. — De onde veio?

Eu fizera uma pergunta meio sem jeito. Ela corou.

Ele não é ninguém. É assim como eu... Que chance nós podemos ter contra todos eles?

Não acha que está sendo um pouco histérica?

Não acho, não. Eles querem provar que foi Laurence... ou então que fui eu. Estão com a polícia do lado deles. Que chance eu tenho?

Não se preocupe demais — disse eu.

Por que não pode ter sido um deles quem o matou? Ou alguém de fora? Ou um dos empregados?

Há uma certa falta de motivo.

Oh, motivo. Que motivo eu tinha? Ou Laurence?

Eu me senti meio encabulado ao dizer:

—Eles podem sugerir, eu presumo, que a senhora e... ahn... e Laurence... estão apaixonados um pelo outro... e que queriam casar-se.

Ela pôs-se de pé, empertigada.

—Isto é uma sugestão maldosa! E não é verdade! Nós nunca trocamos uma palavra neste sentido. Eu só sentia pena dele e tentava alegrá-lo. Nós éramos amigos, nada mais. Você acredita em mim, não acredita?

Eu acreditava nela. Isto é, eu acreditava que ela e Lau­rence eram apenas, como ela dizia, amigos. Mas eu também acreditava que, possivelmente sem que ela mesma soubesse, estivesse apaixonada pelo rapaz.

Foi com esta idéia na cabeça que eu desci à procura de Sophia.

Quando eu estava entrando na sala de estar, Sophia en­fiou a cabeça por uma outra porta perto do corredor.

—Alô! — disse ela. — Estou ajudando Nannie com o almoço.

Eu ia entrar, mas ela saiu e, puxando-me pelo braço, le­vou-me para a sala de estar, que estava vazia.

—Bem — disse ela. — Você viu Brenda? O que achou dela?

—Francamente — disse eu, — eu fiquei com pena dela.

Sophia pareceu divertida.

—Estou vendo — disse. — Então ela já conquistou você.

Eu me irritei.

A verdade é que eu posso ver o ponto de vista dela. Aparentemente você não pode.

Qual é o ponto de vista dela?

Honestamente, Sophia, algum de vocês da família tentou ser amável com ela, ou mesmo razoavelmente tolerante, desde que ela veio para cá?

Não, nenhum de nós tentou ser amável com ela. Por que deveríamos ser?

Apenas um pouco de caridade cristã, nada mais.

Que ar emproado de moralista você está tomando, Charles. Brenda deve ter representado muito bem para você.

Realmente Sophia, você parece... eu não sei o que há com você.

Eu estou sendo apenas honesta e não estou fingindo. Você diz que viu o lado de Brenda, não foi? Agora, dê uma olhada no meu lado. Eu não gosto deste tipo de mulher mo­ça que inventa uma história triste e se casa com um velho muito rico em decorrência desta história. Eu tenho todo o di­reito de não gostar deste tipo de mulher, e não há nenhuma razão válida que me faça fingir o contrário. E se os fatos fos­sem escritos friamente num papel, você também não gostaria daquela mulher.

Era uma história forjada? — perguntei.

Sobre a criança? Eu não sei. Pessoalmente acho que sim.

E você se ressente pelo fato de seu avô ter sido en­ganado?

Oh, não, meu avô não foi enganado — Sophia riu-se. — Meu avô nunca foi enganado por ninguém. Ele que­ ria Brenda. Queria bancar o santo para sua pobre Cinderela. Ele sabia exatamente o que estava fazendo e tudo correu lin­damente como ele esperava. Do ponto de vista de meu avô, este casamento foi um sucesso completo. Como todos os seus outros negócios.

Contratar Laurence Brown como professor foi outro dos sucessos de seu avô? — perguntei ironicamente.

Sophia franziu a testa.

Sabe? Eu não estou tão certa que não tenha sido... Ele queria manter Brenda contente e satisfeita. Talvez tenha pensado que jóias e roupas não fossem o suficiente. Ele deve ter pensado que um ligeiro romance em sua vida fosse bom... deve ter calculado que alguém como Laurence Brown, alguém realmente muito dócil, se você entende o que quero dizer, fun­cionaria bem. Uma linda amizade espiritual, mesclada com melancolia, impediria Brenda de ter um caso verdadeiro com qualquer outro de fora. Eu não me espantaria se meu avô ti­vesse arquitetado um plano assim. Ele era um velho diabó­lico, você sabe...

Deve ter sido mesmo — disse eu.

Ele pode não ter, é claro, visualizado que isto resul­taria num crime... E é por isto — disse Sophia, falando de repente com veemência — que por mais que eu queira, não consigo acreditar realmente que foi ela quem o matou. Se ela planejasse assassiná-lo... ou se ela e Laurence tivessem plane­jado juntos... meu avô teria descoberto tudo. Eu diria que foi assim, mas isto deve parecer-lhe um tanto forçado...

Eu confesso que parece.

Mas você não conhecia o meu avô. Ele certamente não seria conivente de seu próprio assassinato! Então onde estamos? Novamente na estaca zero!

Ela está apavorada, Sophia — disse eu. — Ela está completamente apavorada.

O Inspetor-Chefe Taverner e seus alegres rapazes? Sim, eu diria que eles são um tanto ou quanto alarmantes. Eu ima­gino que Laurence esteja histérico?

— Praticamente. A meu ver, ele deu uma exibição re­pelente dele próprio. Eu não entendo como uma mulher pode cair por um homem daqueles.

Não sabe, Charles? Realmente Laurence é um bocado atraente.

Um fracote daqueles? — disse eu incrédulo.

Por que os homens pensam que somente o tipo homem-das-cavernas seja necessariamente o único tipo atrativo para o sexo oposto? Laurence tem atrativos sim... mas eu não esperaria mesmo que você os percebesse — olhou para mim. — Brenda também fisgou-o.

Não seja absurda. Ela não é nem mesmo bonita. E certamente não tem...

Não demonstra seus encantos? Não, ela fez você fi­car com pena dela. Ela não é mesmo bonita, não é muito inte­ligente... mas possui uma característica notável. Ela sempre gera problemas. Já criou um agora, entre você e eu.

Sophia! — disse eu agastado.

Sophia saiu pela porta.

Esqueça, Charles, eu preciso ir ajudar com o almoço.

Eu irei ajudá-la.

Não, fique aqui. Vai embatucar Nannie ter “um ca­valheiro na cozinha”.

Sophia! — eu chamei quando ela ia saindo.

O que é?

Apenas um problema de empregados. Por que vocês não têm empregadas de uniforme aqui e lá em cima para abrir as portas?

Meu avô tinha cozinheira, copeira, arrumadeira e um criado de quarto. Ele gostava de ter empregados. Pagava-lhes uma fortuna, é claro, e tinha o que queria. Clemency e Roger têm somente uma mulher que vem trabalhar por hora e que faz a limpeza. Eles não gostam de criadas... ou pelo me­ nos, Clemency não gosta. Se Roger não fizesse uma refeição decente na cidade todos os dias, ele morreria de fome. A idéia que Clemency faz de uma refeição é alface, tomates e cenou­ra crua. Às vezes nós temos empregadas, mas então mamãe tem uma crise temperamental e elas vão embora, e nós fica­mos com alguém por dia até recomeçar outra vez. Agora estamos no período das diaristas. Nannie é que é permanente e sempre ajuda nas emergências. Agora você já sabe.

Sophia saiu. Eu me afundei numa das enormes poltronas de brocado e desisti de minhas especulações.

No andar de cima eu vira o lado de Brenda. Aqui eu acabara de ver o lado de Sophia. Calculei a justeza do ponto de vista de Sophia — que poderia ser chamado de ponto de vista da família Leonides. Eles se indignavam com aquela estrangeira que transpusera os portões da família e entrara usando meios que eles consideravam ignóbeis. Eles estavam inteiramente em seus direitos. Como Sophia dissera: no papel a história não parecia bem contada...

Mas havia o lado humano — o lado que eu via e eles não. Eles eram, e sempre tinham sido, ricos e bem estabelecidos. Não tinham idéia das tentações de um pobre-diabo. Brenda Leonides quisera ter riqueza, coisas bonitas e segurança — um lar. Ela clamava que em troca fizera de seu velho marido um homem feliz. Eu simpatizara com ela. Certamente, enquanto eu falava com ela, simpatizara com o seu problema... Simpatizaria ainda agora?

Dois lados de um problema — ângulos diferentes de vi­são — qual seria o ângulo verdadeiro... o ângulo verdadeiro...

Eu dormira muito pouco na noite anterior. Acordara muito cedo para acompanhar Taverner. Agora, na atmosfera tépida e perfumada da sala de estar de Magda Leonides, meu corpo relaxou entre os amplos braços acolchoados da enorme poltrona e meus olhos se fecharam...

Pensando em Brenda, em Sophia, no retrato de um velho, meus pensamentos misturaram-se num cochilo agradável.

Eu adormeci.

 

VOLTEI À CONSCIÊNCIA tão lentamente que não per­cebi logo que estivera dormindo. O perfume das flores me envolvia. À minha frente, uma mancha branca parecia flutuar no espaço. Foram precisos alguns segundos para que eu perce­besse que era um rosto humano aquilo que eu estava olhando — um rosto suspenso no ar a meio metro de mim. Quando meus sentidos foram voltando, minha visão tornou-se mais precisa. O rosto ainda tinha uma certa sugestão de duende — era re­dondo, com as sobrancelhas salientes, cabelos penteados para trás e olhos pequenos, pretos e redondos como contas. Mas estava definitivamente preso a um corpo — um corpo magro e pequeno. E me olhava com muita atenção.

Alô — disse.

Alô — respondi, piscando os olhos.

Eu sou Josephine.

Eu já deduzira isto. Josephine, a irmã de Sophia, devia ter — calculei — uns onze ou doze anos. Era uma criança fantasticamente feia e se parecia muito com seu avô. Pareceu-me que ela tivesse herdado igualmente a sua inteligência.

—Você é o rapaz de Sophia — disse Josephine.

Eu confirmei a verdade desta afirmação.

Mas você veio para cá com o Inspetor-Chefe Taver­ner. Por que foi que você veio para cá com o Inspetor-Chefe Taverner?

Porque ele é meu amigo.

É mesmo? Não gosto dele. Eu não contaria coisas para ele.

Que tipo de coisas?

As coisas que eu sei. Sei uma porção de coisas. Eu gosto de saber de coisas.

Ela se sentou no braço de minha cadeira e continuou me examinando com atenção. Comecei a me sentir inconfortável.

Vovô foi assassinado. Você sabia?

Sim — disse eu. — Eu sabia.

Ele foi envenenado. Com e-se-ri-na — pronunciou a palavra cuidadosamente. — É interessante, não é?

Eu creio que sim.

Eustace e eu estamos muito interessados. Nós gos­tamos de histórias de detetives. Sempre quis ser um detetive. Agora estou sendo um. Estou recolhendo indícios.

Eu percebi que ela era uma criança um tanto vampiresca.

Voltou à carga.

O homem que veio com o Inspetor Taverner é um detetive também, não é? Nos livros dizem que a gente sempre reconhece um detetive à paisana pelas botas. Mas este detetive estava usando sapatos de camurça.

Os tempos mudaram — disse eu.

Josephine interpretou este comentário de acordo com suas próprias idéias.

—Sim — disse ela. — Haverá muitas mudanças por aqui, eu espero. Nós vamos mudar-nos e morar em uma casa em Londres, perto do rio. Há muito tempo que mamãe que­ria. Ela vai ficar muito alegre. Eu acho que papai não se vai importar se os livros dele também forem. Antes ele não podia ir. Perdeu um bocado de dinheiro em Jezebel.

Jezebel? — perguntei.

Você não foi ver, foi?

Oh, era uma peça. Não, eu não vi.  Eu cheguei de fora.

Não ficou em cartaz muito tempo. De fato, foi o maior fiasco. Eu não acho que mamãe seja realmente o tipo para interpretar Jezebel, você acha?

Eu examinei minhas impressões sobre Magda. Nem a mulher do robe cor de pêssego, nem a do costume elegante me davam a mínima sugestão de Jezebel, mas eu acreditava que devia haver ainda muitas Magdas que eu não conhecia.

Talvez não — disse eu cauteloso.

Vovô sempre disse que ia ser um fracasso. Ele disse que não poria um tostão nestas peças históricas sobre religião. Dizia que elas nunca deram sucesso de bilheteria. Mas ma­mãe estava tremendamente entusiástica. Eu mesmo não gos­tei. E não estava nem um pingo parecida com a história da Bíblia. Eu quero dizer, Jezebel não era tão malvada como ela é na Bíblia. Ela era muito patriótica e mesmo muito simpáti­ca. Assim ficou chato. Afinal, o fim foi bom. Eles a jogaram pela janela. Mas os cachorros não vieram comê-la. Eu achei que foi uma pena, não acha? A parte que eu mais gosto é onde os cachorros vêm comê-la. Mamãe disse que não era possível ter cachorros no palco, mas eu não vejo por quê. Podiam arranjar cachorros ensinados — recitou a passagem com ale­gria: — “E eles comeram-na toda, só deixando as palmas de suas mãos.” Por que é que eles não comeram as palmas das mãos?

Realmente eu não tenho idéia — disse eu.

Você acha que esses cachorros eram assim tão espe­ciais? Os nossos não são. Eles comem de tudo.

Josephine ficou meditando sobre este mistério bíblico por alguns segundos.

Eu sinto muito que a peça tenha sido um fracasso — disse eu.

Sim. Mamãe ficou horrivelmente aborrecida. As crí­ticas eram simplesmente horrorosas. Quando ela as leu, des­manchou-se em lágrimas e chorou o dia inteiro. Jogou a bande­ja do café em cima de Gladys e Gladys pediu demissão. Foi muito engraçado.

Eu já vi que você gosta de dramas, Josephine.

Eles fizeram uma autópsia em vovô — disse Jose­phine. — Para saber de que foi que ele morreu. Um P. M. ... post mortem... eles chamam isso, mas eu acho que faz muita confusão, não acha? Porque P.  M. serve também para Primeiro-Ministro. E para as horas da tarde1. — Ela acrescentou pensativa.

1 PM.— Past Meridian: depois do meio-dia.


Você ficou triste porque seu avô morreu? — pergun­tei.

Não muito. Eu não gostava muito dele. Não me dei­xou ser uma bailarina.

Você queria estudar balé?

Queria, e mamãe também queria que eu aprendesse, e papai não se importava, mas vovô disse que eu não ia pres­tar para o balé.

Ela escorregou do braço da poltrona, chutou para o ar os sapatos e esforçou-se para ficar no que tecnicamente cha­mam, creio eu, de pontas.

—Você precisa os sapatos adequados — explicou. — E mesmo assim a gente fica às vezes com abscessos horríveis na ponta dos dedos.

Ela recuperou os sapatos e perguntou com casualidade:

Você gosta desta casa?

Eu ainda não tenho certeza — respondi.

Eu acho que vai ser vendida agora A menos que Brenda continue a morar aqui. E eu acho que o tio Roger e tia Clemency não vão mais viajar para o exterior.

Eles iam viajar? — perguntei com um ligeiro movi­mento de interesse.

Sim. Eles iam embora terça-feira. Para o estran­geiro, um lugar qualquer. Eles iam de avião. Tia Clemency comprou uma destas valises novas, superleves.

Eu não tinha ouvido dizer que eles iam viajar — disse eu.

Não — disse Josephine. — Ninguém sabia. Era um segredo. Eles não iam contar para ninguém até terem ido embora. Iam deixar um bilhete para o vovô. Mas não ia ficar na almofadinha de alfinetes. Somente em livros velhos e quando as mulheres deixam os maridos. Agora ia parecer besteira, porque ninguém mais usa almofadinhas de alfinetes.

É claro que não. Josephine, você sabe por que o seu tio Roger estava... indo embora?

Josephine me deu uma olhada de esguelha muito ladina.

Eu acho que sei. Tinha alguma coisa que ver com o escritório de tio Roger em Londres. Eu até acho... mas não tenho certeza... que ele desviou um dinheiro.

O que a faz pensar assim?

Josephine se aproximou respirando pesadamente sobre meu rosto.

—O dia em que vovô foi assassinado, tio Roger ficou trancado com ele no quarto mais tempo do que de costume. Eles falavam e falavam. E tio Roger estava dizendo que ele nunca prestara mesmo, e que ele deixara o vovô na mão... e que não era tanto o dinheiro que importava... era o sentimento de não ter correspondido à confiança. Ele estava péssimo.

Eu olhei para Josephine com sentimentos confusos.

—Josephine — disse, — ninguém nunca lhe disse que não é bonito ficar ouvindo o que os outros falam por detrás das portas?

Josephine fez que sim vigorosamente com a cabeça.

—É claro que disseram. Mas se você quiser descobrir al­guma coisa, tem que ficar escutando atrás das portas. Eu aposto que o Inspetor Taverner faz isso, não faz?

Eu considerei a questão. Josephine continuou com ve­emência:

—E de todo jeito, se ele não fizer isto, o outro deve fa­zer, aquele de sapatos de camurça. E eles espionam nas escri­vaninhas das pessoas e lêem todas as cartas e descobrem todos os segredos. A única coisa é que são burros! Não sabem onde olhar!

Josephine falou com fria superioridade. Eu tinha sido por demais estúpido ao fazer este comentário. A desagradável criança continuou:

Eustace e eu sabemos uma porção de coisas... mas eu ainda sei mais que Eustace. E não vou contar pra ele. Ele diz que as mulheres não podem nunca ser bons detetives. Mas eu digo que podem. Vou escrever tudo o que eu sei num ca­derno e então, quando a polícia estiver completamente des­concertada, eu vou dar um passo à frente e dizer: “Eu posso dizer-lhes quem foi”.

Você lê muitas histórias de detetives, Josephine?

Montes!

Eu calculo que você pensa que sabe quem foi que ma­tou seu avô?

Bem, eu penso que sim... mas ainda tenho de desco­brir mais algumas pistas — fez uma pausa e acrescentou: — O Inspetor Taverner pensa que foi Brenda, não é? Ou Brenda e Laurence juntos porque eles estão apaixonados um pelo outro.

Você não devia dizer isto, Josephine.

Por que não? Eles estão apaixonados um pelo outro.

Você não pode julgar isto.

É claro que eu posso. Eles se escrevem. Cartas de amor.

Josephine! Como é que você sabe disto?

Porque eu li as cartas. Cartas horrivelmente senti­mentais. Mas Laurence é um sentimental. Ele teve tanto medo que não foi lutar na guerra. Ficou pelos porões e punha car­vão nas caldeiras. Quando as bombas voadoras caíam por aqui, ele ia ficando verde... verde mesmo! Eustace e eu ríamos um bocado.

O que eu deveria dizer agora eu não sei, pois neste ins­tante um carro parou do lado de fora. Num relâmpago Jose­phine estava na janela, o nariz arrebitado espremido contra o vidro.

Quem é? — eu perguntei.

É o Sr. Gaitskill, o advogado de vovô. Eu acho que ele veio por causa do testamento.

Respirando excitadamente, saiu correndo da sala, certa­mente para continuar seu trabalho de investigação.

Magda Leonides entrou na sala e para minha surpresa veio até onde eu estava e tomou as minhas mãos entre as suas.

— Meu caro — disse ela, —  graças a Deus que você ainda está aqui. É tão bom ter um homem perto!

Ela deixou cair minhas mãos, dirigiu-se a uma cadeira de encosto alto, mudou-a ligeiramente de posição, olhou-se no espelho, e pegando uma pequena caixa esmaltada de cima de uma mesa, pôs-se pensativamente a abri-la e fechá-la.

Era uma pose muito atraente.

Sophia enfiou a cabeça pela porta e disse num sussurro repreensivo:

Gaitskill!

Eu sei — disse Magda.

Alguns momentos depois, Sophia entrou na sala acom­panhada por um homenzinho pequeno, já idoso, e Magda deixou de lado a sua caixa esmaltada e levantou-se para cum­primentá-lo.

Bom dia, Sra. Philip. Eu estou indo lá para cima. Parece que há um mal-entendido sobre o testamento. Seu ma­ rido me escreveu dando a impressão de que o testamento es­tava em meu poder. Eu ouvi do próprio Sr. Leonides que o tes­tamento estava em seu cofre. A senhora sabe de alguma coisa?

Sobre o testamento do pobrezinho? — Magda arre­galou os olhos. — Não, é claro que não. Não me diga que aque­la malvada daquela mulher lá de cima destruiu-o?

Vamos, Sra. Philip — ele balançou um dedo admoestador para ela. — Não faça conjeturas irrefletidas. É apenas uma questão de saber onde o seu sogro guardava o testamento.

Mas ele o mandou para o senhor... foi o que ele fez... depois de assiná-lo. Ele mesmo nos disse que fez isto.

Eu ouvi dizer que a polícia já examinou os papéis particulares do Sr. Leonides — disse o Sr. Gaitskill. — Irei falar com o Inspetor Taverner.

Ele saiu da sala.

Querida! — gritou Magda. — Ela o destruiu. Eu sei que estou certa.

Tolice, mamãe, ela não faria uma estupidez dessas.

Não seria estupidez nenhuma. Se não houver testa­mento ela fica com tudo.

Pssiuu... Gaitskill está voltando.

O advogado entrou de novo na sala. O Inspetor Taverner estava com ele, e atrás de Taverner vinha Philip.

—Eu ouvi do Sr. Leonides — Gaitskill estava dizendo — que ele deixaria o testamento no Banco para ficar bem guar­dado.

Taverner balançou negativamente a cabeça.

—Eu já me comuniquei com o Banco. Eles não tinham nenhum papel privado do Sr. Leonides a não ser algumas ações de que cuidavam para ele.

Philip disse:

—Eu imagino se Roger... ou tia Edith... Sophia, talvez se você pudesse chamá-los aqui um instante?

Mas Roger Leonides, convocado assim como os outros para o conclave, também não pôde dar nenhuma ajuda.

Mas é bobagem... bobagem absoluta — declarou ele. — Papai assinou o testamento e disse claramente que ia pô-lo no correio para o Sr. Gaitskill no dia seguinte.

Se não me falha a memória — disse o Sr. Gaitskill, inclinando-se para trás e semicerrando os olhos, — foi no dia 24 de novembro do ano passado que eu remeti um rascunho feito de acordo com as instruções do Sr. Leonides. Ele apro­vou o rascunho, devolveu-o para mim e no tempo devido, eu lhe enviei o testamento para a sua assinatura. Depois do espa­ço de uma semana, eu tomei a liberdade de lembrá-lo que ainda não recebera o testamento devidamente assinado com teste­munhas e perguntei-lhe se havia alguma cláusula que quises­se alterar. Ele respondeu que estava perfeitamente satisfeito e acrescentou que depois de assinado tinha enviado o testa­mento para o Banco.

Foi assim mesmo — disse Roger ansioso. — Foi mais ou menos no fim de novembro do ano passado... você se lem­bra, Philip? Papai nos chamou a todos lá em cima uma noite e leu o testamento para nós.

Taverner voltou-se para Philip Leonides.

Isto está de acordo com o que o senhor se lembra, Sr. Leonides?

Sim — disse Philip.

É quase como a Herança de Voysey — disse Magda e suspirou deliciada. — Eu sempre achei que havia algo dra­mático sobre os testamentos.

Srta. Sophia?

Sim — disse Sophia, — eu me lembro perfeitamente.

E quais eram os termos deste testamento? — pergun­tou Taverner.

Gaitskill ia responder em sua maneira precisa mas Ro­ger Leonides adiantou-se:

Era um testamento muito simples. Electra e Joyce já tinham morrido e a parte que lhes coubera nos outros ter­mos retornara a meu pai. William, o filho de Joyce, foi morto em ação na Birmânia e o dinheiro dele ficou para seu pai. Philip, eu e as crianças éramos os únicos parentes que lhe res­tavam. Papai nos explicou isso. Ele deixava cinqüenta mil li­bras livres de impostos para tia Edith, cem mil libras livres de impostos para Brenda, esta casa ou uma outra a ser comprada em Londres para Brenda... o que ela preferisse. O restante seria dividido em três porções, uma para mim, uma para Philip e a terceira a ser dividida entre Sophia, Eustace e Josephine, sendo que a parte destes dois ficaria depositada em juízo até que eles atingissem a maioridade. Eu creio que foi assim, não foi, Sr. Gaitskill?

Eram estes, aproximadamente, os termos do docu­mento que eu preparei — concordou o Sr. Gaitskill, demons­trando um certo azedume por não lhe terem permitido falar por si próprio.

Papai leu-o para nós — disse Roger. — Ele pergun­tou se havia algum comentário que nós gostaríamos de fazer. É lógico que não havia nenhum.

Brenda fez um comentário — disse Edith de Havi­land.

Sim — confirmou Magda com picardia. — Ela falou que não agüentava ouvir o seu querido Aristide falar sobre a morte. “Me dá arrepios” ela disse. E que depois que ele mor­resse ela não queria saber daquele horrível dinheiro!

—Este — disse Edith de Haviland — era o protesto convencional, típico da classe dela.

Era um comentário cruel e maldoso. Eu percebi de re­pente o quanto Edith de Haviland detestava Brenda.

Uma maneira muito justa e razoável de dispor de seus bens — disse Gaitskill.

E depois de ler o testamento, o que aconteceu? — perguntou o Inspetor Taverner.

Depois de lê-lo — disse Roger, — ele o assinou.

Taverner inclinou-se para a frente.

Como e quando ele o assinou?

Roger olhou para o lado de sua esposa como pedindo au­xílio. Clemency falou em resposta ao olhar. O resto da família parece que ficou satisfeito ao vê-la tomar a palavra.

O senhor quer saber exatamente como foi que isto se passou?

Por favor, Sra. Roger.

Meu sogro pôs o testamento em sua mesa e pediu a um de nós... creio que foi a Roger... que tocasse a campainha. Roger fez o que ele pediu. Quando Johnson veio em resposta, meu sogro pediu que ele fosse buscar Janet Woolmer, a copeira. Quando ambos estavam na sala, ele assinou o testamento e pediu-lhes que assinassem abaixo de seu nome.

O procedimento correto — disse o Sr. Gaitskill.  — Um testamento deve ser assinado pelo interessado na presen­ça de duas testemunhas que devem assinar ao mesmo tempo e no mesmo local.

E depois? — perguntou Taverner.

Meu sogro agradeceu-lhes e eles saíram. Meu sogro pegou o testamento, colocou-o num envelope e mencionou que iria enviá-lo para o Sr. Gaitskill no dia seguinte.

Vocês todos estão de acordo — disse o Inspetor Ta­verner, olhando em torno — que este relato é aproximadamente o que se passou?

Houve uma série de murmúrios de assentimento.

O testamento estava sobre a mesa, dizem vocês. A que distância da mesa vocês estavam?

Não muito perto. Cinco ou seis metros, no mínimo.

Quando o Sr. Leonides leu o testamento, ele próprio estava sentado à mesa?

Sim.

Ele se levantou ou deixou a mesa, depois de ler o tes­tamento e antes de assiná-lo?

Não.

Os empregados puderam ler o testamento enquanto assinavam seus nomes?

Não. Meu sogro colocou uma folha de papel dobrada sobre a parte de cima do documento — disse Clemency.

Muito acertado — disse Philip. — Os termos do tes­tamento não eram da conta dos empregados.

Eu estou vendo... — disse Taverner. — Pelo menos... mas eu não compreendo.

Com um movimento rápido ele tirou do bolso um envelope comprido e inclinou-se para entregá-lo ao advogado.

—Dê uma espiada nisto — disse ele. — E diga-me do que se trata.

Gaitskill tirou um documento dobrado de dentro do en­velope. Olhou para ele com acentuado espanto, virando-o diversas vezes entre as mãos.

Isto — disse ele — é extremamente surpreendente. Eu não compreendo. Onde foi que o senhor o encontrou?

No cofre. Entre os outros papéis do Sr. Leonides.

Mas o que é isto? — perguntou Roger. — Por que todo este espanto?

Este é o testamento que eu preparei para o seu pai as­sinar, Roger... mas... eu não entendo que depois de tudo o que vocês disseram... ele não está assinado.

O quê? Bem, eu calculo que seja apenas um rascunho.

Não — disse o advogado. — O Sr. Leonides me man­dou de volta o rascunho original. Foi então que eu preparei o testamento... este testamento — bateu no papel com os de­dos — e enviei-o para que ele o assinasse. De acordo com o testemunho de todos vocês ele assinou este testamento em frente de todos e também das duas testemunhas que assinaram; entretanto, este papel não está assinado.

Mas isto é impossível! — exclamou Philip Leoni­des, falando no tom mais animado que eu já escutara dele.

Taverner perguntou:

Como era a vista de seu pai?

Ele sofria de glaucoma. Usava lentes muito fortes, é claro, para ler.

Ele estava de óculos naquela noite?

Claro. Ele não tirou os óculos até a hora de assinar. Vocês concordam?

Com toda a certeza — disse Clemency.

E ninguém... vocês estão certos disso?... chegou perto da mesa dele antes que ele assinasse o testamento?

Eu estou tentando imaginar — disse Magda, aper­tando os olhos — se nós podemos visualizar tudo outra vez.

Ninguém esteve perto da mesa — disse Sophia. — E vovô ficou sentado o tempo inteiro.

A mesa estava na mesma posição em que está agora? Não estava perto de uma porta, de uma janela ou de alguma cortina?

Estava no mesmo lugar em que se encontra agora.

Eu estou tentando ver se alguma substituição pode ter sido efetuada — disse Taverner. — Deve ter havido uma substituição. O Sr. Leonides teve a impressão de que estava assinando este documento, que ele acabara de ler em voz alta.

As assinaturas não poderiam ter sido apagadas? — perguntou Roger.


—Não, Sr. Leonides. Elas teriam deixado traços no pa­pel. Há uma outra possibilidade. Que este aqui não seja o do­cumento enviado pelo Sr. Gaitskill para o Sr. Leonides e que ele assinou na presença de vocês.

— Pelo contrário — disse Gaitskill. — Eu posso jurar que este é o documento original. Havia uma pequena mancha no papel... no alto à esquerda... que lembrava, por um acaso estranho, um avião. Eu reparei nisto.

A família se entreolhava perplexa.

Uma circunstância deveras curiosa — disse Gaitskill. — Absolutamente sem precedentes na minha profissão.

Tudo isto é impossível — disse Roger. — Nós está­vamos todos lá. Simplesmente não pode ter acontecido nada.

Edith de Haviland pigarreou.

— Não adianta vocês ficarem gastando o fôlego a dizer que uma coisa que aconteceu não podia ter acontecido — dis­se ela. — Em que ficamos agora? Isto é o que eu gostaria de saber.

Imediatamente Gaitskill tornou-se o advogado cauteloso.

—A posição precisará ser examinada muito cuidadosa­mente. O documento, é lógico, revoga todos os testamentos e documentos anteriores — disse ele. — Há um grande número de testemunhas que viram o Sr. Leonides assinar o que ele em sua boa-fé pensava ser este testamento. Hum... Muito in­teressante... Um probleminha jurídico.

Taverner deu uma espiada no relógio.

Eu sinto muito — disse ele — mas acho que estou atrasando o almoço de vocês.

Não quer ficar e almoçar conosco, Inspetor? — per­guntou Philip.

Obrigado, Sr. Leonides, mas eu preciso encontrar-me com o Dr. Gray em Swinly Dean.

Philip virou-se para o advogado.

—Você almoça conosco, Gaitskill?        

—Muito obrigado, Philip.

Todos ficaram de pé. Eu me aproximei discretamente de Sophia.

Devo ir ou ficar? — murmurei. Parecia ridículo como o título de uma canção vitoriana.

Ir, eu creio — disse Sophia.

Eu saí de manso da sala para alcançar Taverner. Josephine estava-se balançando de um lado para outro pendurada na porta que dava para os fundos da casa. Ela parecia estar achando alguma coisa muito engraçada.

A polícia é estúpida — observou ela.

Sophia saiu da sala de visitas.

O que é que você estava fazendo, Josephine?

Ajudando Nannie.

—Eu garanto que você estava atrás da porta escondida e ouvindo a conversa.

Josephine fez uma careta para ela e foi-se embora.

—Esta criança — disse Sophia — é um problema.

 

QUANDO EU ENTREI na sala do Comissário Assisten­te da Yard, Taverner estava acabando de desfiar o resumo de um rosário de lágrimas.

E aqui estamos — estava dizendo ele. — Eu virei uma porção deles pelo avesso... e que foi que eu consegui?... abso­lutamente nada! Nenhum motivo. Nenhum deles precisando de dinheiro. E a única coisa que conseguimos contra a mulher e seu rapazinho foi que ele lhe dava olhares melosos quando ela servia o café!

Vamos, vamos, Taverner — disse eu — eu acho que consegui um pouquinho mais do que você.

Conseguiu mesmo? Muito bem, Sr. Charles, o que foi que descobriu?

Eu me sentei, acendi um cigarro, recostei-me na cadeira e observei a audiência.

—Roger Leonides e a mulher estavam planejando uma fuga para o exterior na próxima terça-feira. Roger e o pai ti­veram uma entrevista tempestuosa no dia da morte do velho. O velho Leonides descobrira algo errado e Roger estava admi­tindo a culpabilidade.

Taverner ficou roxo.

—Em que diabos você conseguiu isto? — perguntou ele. — Se foi pelos empregados...

Não foi pelos empregados. Consegui — disse eu — de um agente particular.

O que é que você quer dizer?

Devo admitir que de acordo com as regras das me­lhores histórias de detetives, ele, ou talvez ela... ou seria me­lhor dizer, aquilo... passou a polícia para trás! E eu penso tam­bém — continuei — que o meu detetive particular ainda tem uma porção de coisas escondidas na manga dele, dela ou daqui­lo...

Taverner abriu a boca e fechou-a novamente. Ele queria fazer tantas perguntas de uma vez que achou difícil saber por onde começar.

—Roger! — disse ele. — Então Roger... não vale nada, hein?

Eu senti uma certa relutância enquanto contava tudo. Eu gostara de Roger Leonides. Lembrava-me de seu quarto confortável e simpático, de seu ar amigável e me desgostava soltar os cães da polícia atrás dele. Era possível também, é cla­ro, que as informações de Josephine não fossem dignas de cré­dito mas eu não pensava assim.

—Então foi a menina que lhe contou? — perguntou Taverner. — Ela parece saber de tudo o que se passa na casa.

Esta informação, é verdade, alterava toda a situação. Se Roger tivesse, como Josephine atrevidamente sugerira, “des­viado” os fundos da Associação de Fornecedores e se o velho houvesse descoberto, teria sido vital silenciar o velho Leoni­des e deixar a Inglaterra antes que a verdade viesse à tona. Possivelmente Roger tornara-se passível de um processo cri­minal.

Concordamos que um inquérito deveria ser feito sem de­mora nos negócios da Associação de Fornecedores.

—Vai ser um colapso financeiro monumental, se isto acontecer mesmo — disse meu pai. — É uma empresa imensa. Há milhões envolvidos.

—Se ele estiver mesmo em apuros, isto nos dará o que queremos — disse Taverner. — O papai chama Roger. Roger perde o controle e confessa. Brenda Leonides estava no cine­ma. Roger só tem de sair do quarto do pai, ir até o banheiro, esvaziar um vidro de insulina e substituí-lo por uma solução forte de eserina e cá estamos! Ou talvez sua esposa é quem te­nha feito a troca. Ela foi até a outra ala da casa depois que chegou naquele dia... alega que foi procurar um cachimbo que Roger deixara lá. Mas ela pode ter ido até lá dentro para tro­car as drogas antes que Brenda chegasse em casa e lhe desse a injeção. Ela me parece bastante fria e calculista para fazê-lo.

Eu concordei com a cabeça.

Sim, eu sou capaz de vê-la como o autor da façanha. Ela me parece fria o bastante para fazer qualquer coisa! Não imagino Roger Leonides pensando em veneno como um meio... este truque da insulina tem algo de feminino!

Há uma porção de envenenadores homens — disse meu pai secamente.

Oh, eu sei, sim senhor — disse Taverner. — Imagine se eu não soubesse! — acrescentou meio sentido.

De qualquer forma, eu não acho que Roger seja deste tipo.

Pritchard — lembrou-lhe o Velho — enganava muito...

Digamos que os dois agiram juntos.

Com um toque de Lady Macbeth — disse meu pai, quando Taverner saiu. — É isto o que o intriga, Charles?

Eu visualizei a figura graciosa parada em frente à janela naquele quarto austero.

Não é bem isso — eu disse. — Lady Macbeth era essencialmente uma mulher gananciosa. Eu não creio que Cle­mency Leonides o seja. Não acredito que ela deseja ou mesmo faça caso de riquezas.

Mas ela desejaria, desesperadamente, a segurança de seu marido?

—Isto sim. E ela poderia ser certamente... bem...  im­piedosa.

“Diferentes tipos de crueldade...”: fora isto o que Sophia dissera.

Eu levantei os olhos e vi que o Velho estava-me obser­vando.

—Em que é que você está pensando, Charles?

Mas eu não lhe contei nada.

Fui chamado no dia seguinte e encontrei Taverner e meu pai juntos.

Taverner parecia satisfeito consigo mesmo e ligeiramente excitado.

A Associação de Fornecedores está à beira da falência — disse meu pai.

Vai por água abaixo a qualquer momento — disse Taverner.

Eu soube que houve uma queda violenta das ações a noite passada — disse eu. — Mas parece que eles consegui­ram recuperar-se hoje de manhã.

Nós investigamos com muita cautela — disse Taver­ner. — Nenhum inquérito direto. Nada que pudesse causar pânico... ou que deixasse o nosso cavalheiro fujão com a pulga atrás da orelha. Mas temos fontes particulares de informações e as informações foram muito definidas. A Associação de For­necedores está à beira da falência. Não pode manter de ma­neira alguma os seus compromissos. A verdade é que parece que está sendo mal administrada há anos.

Por Roger Leonides?

Sim. Ele tem o poder supremo, você sabe.

E ele passou a mão no dinheiro...

Não — disse Taverner. — Nós não pensamos assim. Para falar com franqueza, ele pode ser um assassino mas não cremos que seja um vigarista. No duro mesmo, ele foi apenas... um tolo. Não tem nenhuma capacidade para negócios. Ele sol­tava o que devia prender... hesitava na hora que devia jogar tudo. Delegava poderes às últimas pessoas às quais devia fazê-lo. É o tipo do sujeito confiante e confiava nas pessoas erradas. Cada vez e em cada ocasião ele fazia a coisa errada.

Há pessoas assim — disse meu pai. — E eles não são realmente estúpidos. São apenas maus juizes da natureza humana. E se entusiasmam na ocasião errada.

Um homem assim não devia nunca se meter em negó­cios — disse Taverner.

Provavelmente ele não se meteria nunca — disse meu pai, — exceto pelo acidente de ser o filho de Aristide Leo­nides.

O negócio estava em franca alta no mercado quando o velho passou-o às mãos dele. Devia ser uma mina de ouro! A gente pensa que bastava ele ficar sentado e deixar o barco correr sozinho.

Não — meu pai balançou a cabeça. — Nenhum barco pode correr sozinho.  Há sempre decisões a tomar... demitir um homem aqui... contratar um outro lá... pequenas questões de política interna. E com Roger Leonides as respostas pare­cem ter sido sempre as erradas...

O senhor tem razão — disse Taverner. — Ele é um sujeito muito leal. Conserva os piores elementos... só porque gosta deles... ou porque já estão lá há muito tempo. E, às ve­zes, ele tinha as piores idéias ou as mais absurdas e insis­tia em executá-las apesar das enormes despesas que envol­viam.

Mas nada criminoso? — insistiu meu pai.

Não, nada criminoso.

Então, por que um assassinato? — perguntei.

Ele pode ter sido um tolo e não um patife — disse Taverner. — Mas o resultado era o mesmo... ou quase o mes­mo. A única coisa que poderá salvar a Associação de Fornecedores de uma falência seria uma colossal soma de dinheiro, o mais tardar (ele consultou um livrinho de notas)... o mais tardar até quarta-feira próxima no máximo.

Uma tal soma que ele herdaria... ou pensava que herdaria... pelo testamento de seu pai?

Exatamente.

Mas ele não conseguiria arranjar esta tal soma em dinheiro.

—Não. Mas conseguiria o crédito. É a mesma coisa.

O Velho balançou a cabeça.

Não teria sido mais simples ir até o velho Leonides e pedir auxílio? — sugeriu ele.

Eu acho que ele fez isto — disse Taverner. — Eu creio que deve ser isto que a menina escutou. O velho recusou categoricamente, eu imagino, a jogar dinheiro fora. Era o que ele faria, vocês sabem.

Eu calculei que neste ponto Taverner estava certo. Aris­tide Leonides recusara-se a financiar a peça de Magda — dis­sera que não seria um êxito de bilheteria. Os fatos provaram que ele tinha razão. Era um homem generoso com a família mas não era um homem que pusesse dinheiro fora em empre­endimentos improfícuos. E a Associação de Fornecedores pre­cisava de milhares ou de centenas de milhares, provavelmente. Ele se recusara categoricamente e a única maneira de Roger evitar a ruína financeira seria com a morte do pai.

Sim, aí havia certamente um bom motivo.

Meu pai olhou para o relógio.

Eu pedi a ele que viesse aqui — disse. — Deve estar chegando a qualquer minuto.

Roger?

Sim.

Você quer vir à minha casa, perguntou a aranha à mosca? — murmurei eu.

Taverner olhou para mim com ar chocado.

—Nós devemos dar a ele todas as advertências neces­sárias — disse ele com severidade.

O palco estava arrumado, a estenodatilógrafa preparada. Neste instante a campainha soou e alguns minutos depois Ro­ger Leonides entrou na sala.

Ele chegou ansioso — e um tanto sem jeito — tropeçou numa cadeira. Eu me lembrei, como da primeira vez, de um cachorrão simpático. Foi neste momento que eu decidi que não podia ter sido ele quem levara a cabo o processo de troca da eserina no frasco de insulina. Ele teria quebrado o vidro, derramado tudo, ou falhado a operação de uma ou outra ma­neira. Não, Clemency — decidi eu — deve ter feito a troca, se bem que Roger fosse conivente no delito.

Ele começou a falar aos arrancos:

—O senhor queria ver-me? Descobriu alguma coisa? Alô, Charles, eu não o tinha visto. Que bom você ter vindo. Mas, por favor, diga-me Sir Arthur...

Um camarada tão simpático — realmente um camarada muito simpático. Mas um monte de assassinos também tinham sido sujeitos simpáticos — pelo menos é o que diziam seus amigos espantados depois. Sentindo-me como Judas, eu lhe dei um sorriso de boas-vindas.

Meu pai foi deliberado, frio, oficial. Frases fluentes fo­ram ditas. Declarações... seriam anotadas... não era obrigado... advogado...

Roger Leonides pôs tudo isto de lado com a mesma im­paciência e ansiedade características.

Eu percebi um leve sorriso sardônico no rosto do Inspe­tor Taverner e, por ele, li os seus pensamentos.

“Sempre certos de si, esses caras... Não podem cometer um erro. São mais do que espertos!”

Eu me sentei discretamente em um canto e escutei.

—Eu lhe pedi para vir aqui, Sr. Leonides — começou meu pai, — mas não foi para lhe dar novas informações e sim para lhe pedir uma informação... informação esta que o se­nhor anteriormente escondeu.

Roger Leonides pareceu confuso.

Escondi? Mas eu lhe contei tudo... absolutamente tudo!

Eu penso que não. O senhor teve uma conversa com o falecido na tarde de sua morte?

Sim, sim, eu tomei chá com ele. Eu lhes contei isto.

O senhor nos contou isto, mas não falou sobre o assunto da conversa.

Nós... apenas... conversamos.

Sobre o quê?

Acontecimentos do dia, a casa, Sophia...

E a respeito da Associação de Fornecedores? Men­cionaram isto?

Creio que eu testava torcendo para que Josephine tives­se inventado a história toda mas se foi assim a esperança foi por água abaixo.

O rosto de Roger transfigurou-se. Mudou de uma expres­são de ansiedade para algo facilmente reconhecível como perto do desespero.

—Oh, meu Deus! — disse ele e deixou-se cair numa cadeira, afundando o rosto nas mãos.

Taverner sorriu como um gato satisfeito.

O senhor admite, Sr. Leonides, que não foi franco conosco?

Como foi que vocês souberam disto? Eu pensei que ninguém soubesse... eu não sei como alguém pôde saber.

Nós temos meios de saber de coisas como estas, Sr. Leonides — houve uma pausa majestosa. — Eu acho que o senhor está vendo agora que é melhor nos contar toda a ver­dade.

Sim, sim, é claro. Eu vou contar. O que é que os se­nhores querem saber?

É verdade que a Associação de Fornecedores está à beira do colapso?

Sim. Agora não pode mais ser salva do desastre. A falência está às portas. Se ao menos meu pai tivesse morrido sem saber de nada. Eu me sinto tão envergonhado... tão des­graçado...

—Há possibilidade de instauração de processo?

Roger sentou-se muito espigado.

—Não, de jeito nenhum. Será a falência... mas uma fa­lência honrosa. Os credores serão pagos integralmente se eu lançar mão de meus bens pessoais, o que farei. Não, a des­graça que eu sinto é a de ter falhado a meu pai. Ele confiou em mim. Passou tudo para mim, o seu maior negócio... e a menina de seus olhos. Nunca interferiu, nunca perguntou o que eu estava fazendo. Apenas... confiou em mim... E eu o deixei na mão...

Meu pai disse secamente:

O senhor diz que não haverá uma instauração de pro­cesso? Então por que o senhor e sua esposa planejavam ir para o exterior sem contar a ninguém a sua intenção?

O senhor também sabe disto?

Sim, Sr. Leonides.

Mas não compreendeu? — inclinou-se para a frente, ansioso. — Eu não poderia enfrentá-lo com a verdade. Iria parecer, o senhor pode ver, que eu lhe estava pedindo dinhei­ro. Como se eu lhe estivesse pedindo para me pôr em pé no­vamente. Ele... ele gostava muito de mim. Iria querer ajudar-me. Mas eu não podia... eu não podia mesmo... ia ser outra vez a mesma confusão... eu não presto para nada. Não tenho nenhuma habilidade. Não sou o homem que meu pai era. Eu sempre soube disto. Eu tentei mas não adiantou. Tenho-me sentido tão miserável... Deus! O senhor não pode imaginar como eu me tenho sentido miserável. Tentando sair da embru­lhada, esperando conseguir safar-me, esperando que o meu velhinho querido não chegasse nunca a saber disto. Mas acon­teceu... não havia mais esperança de evitar a queda. Clemency, minha mulher, ela compreendeu, estava de acordo comigo. Nós planejamos tudo. Não dissemos nada a ninguém. Íamos embora. E depois que a tempestade estourasse, deixaria uma carta para meu pai, contando-lhe tudo. Contando como eu estava envergonhado e pedindo-lhe que me perdoasse. Ele sem­pre fora tão bom para mim... o senhor não pode imaginar! Mas teria sido tarde demais para fazer qualquer coisa. Era o que eu queria. Não pedir nada a ele... nem mesmo sonhar em pedir auxílio. Começar outra vez sozinho em qualquer lugar. Viver simples e humildemente. Plantar nossa comida. Café... frutas... Apenas as necessidades essenciais à vida... seria duro para Clemency mas ela jurou que não se incomodava. Ela foi maravilhosa... simplesmente maravilhosa...

Eu vejo — a voz de meu pai era seca. — E o que o fez mudar de idéia?

Mudar de idéia?

Sim. O que o fez decidir-se a falar com seu pai e pe­dir-lhe para ajudá-lo financeiramente?

Roger olhou para ele.

Mas eu não fiz isto!

Vamos, vamos, Sr. Leonides!

O senhor entendeu mal. Eu não fui falar com ele. Foi ele quem me chamou. Ele ouviu falar, não sei como, lá na ci­dade. Um boato, eu suponho. Mas ele sabia das coisas. Al­guém falou com ele. Ele me apertou. Então, é lógico, eu me abri... Contei-lhe tudo. Disse que eu não me importava com o dinheiro... era o sentimento de ter falhado quando ele confiou em mim.

Roger engoliu convulsivamente.

—O meu velhinho querido — disse ele. — O senhor não pode imaginar como ele era bom para mim. Nenhuma cen­sura. Apenas bondade. Eu disse que não queria ajuda, que eu preferia não ter ajuda... que eu preferia mesmo ir embora como havia planejado. Mas ele não me ouviu. Insistiu em me sal­var... em levantar outra vez a Associação de Fornecedores.

Taverner disse bruscamente:

O senhor está querendo fazer-nos crer que o seu pai pretendia auxiliá-lo financeiramente?

E claro que sim. Ele escreveu para os seus corretores diversos, dando-lhes instruções.

Eu calculei que ele via a incredulidade no rosto dos dois homens. Ficou vermelho.

—Olhem aqui — disse ele. — Eu ainda tenho a carta. Era para botar no correio. Mas é claro que depois... com... com o choque e a confusão, eu esqueci. É provável que ela es­teja ainda no meu bolso.

Tirou a carteira do bolso e começou a remexê-la. Final­mente encontrou o que queria. Era um envelope dobrado já selado. Estava endereçado, como eu pude ver ao me espichar, aos Srs. Greatorex e Hanbury.

—Leiam os senhores mesmos — disse ele, — se não acreditam em mim.

Meu pai rasgou o envelope. Taverner deu a volta e fi­cou por detrás. Eu não li a carta nesta ocasião mas um pouco depois. Instruía os Srs. Greatorex e Hanbury para realizarem certos investimentos e pedia a um membro da firma que vies­se no dia seguinte receber certas instruções a respeito da As­sociação de Fornecedores. Algumas delas eram ininteligíveis para mim, mas a sua finalidade era bastante clara. Aristide Leonides estava-se preparando para levantar novamente a As­sociação de Fornecedores.

Taverner disse:

—Nós lhe daremos um recibo por esta carta, Sr. Leonides.

Roger aceitou o recibo. Levantou-se e disse:

—É tudo? Os senhores vão examinar tudo, não vão?

Taverner disse:

O Sr. Leonides deu-lhe esta carta e o senhor foi-se embora? O que fez então?

Eu voltei depressa para a minha parte da casa. Mi­nha mulher acabara de chegar. Eu lhe contei o que meu pai pretendia fazer. Como ele fora maravilhoso! Eu... realmente, eu nem sei o que estava fazendo.

E seu pai adoeceu... quanto tempo depois disto?

Deixe-me ver... meia hora, talvez, ou uma hora... Brenda veio correndo. Ela estava assustada. Disse que ele es­tava esquisito. Eu... eu corri de volta. Mas eu já lhes contei isso tudo.

Durante a sua visita anterior, o senhor esteve no ba­nheiro ao lado do quarto de seu pai?

Creio que não. Não...  eu tenho certeza de que não estive. Mas, o senhor não está pensando que eu...

Meu pai reprimiu-lhe a indignação repentina. Levantou-se e abanou as mãos.

—Muito obrigado, Sr. Leonides — disse ele. — O se­nhor nos prestou um grande favor. Mas devia ter-nos falado sobre isto antes.

A porta fechou-se atrás de Roger. Eu me levantei e vim olhar a carta que estava sobre a mesa de meu pai.

Pode ser falsa — disse Taverner esperançoso.

Pode ser — disse meu pai. — Mas eu não creio que seja. Acho que nós devemos aceitá-la como prova. O velho Leonides estava pronto a tirar seu filho da enrascada. Teria sido mais fácil fazê-lo com ele vivo do que por Roger, depois de sua morte... especialmente agora que se descobriu que ne­nhum testamento apareceu e, em conseqüência, a parte da he­rança de Roger está sujeita a questões. Isto significa demoras... e dificuldades. Não, Taverner, Roger Leonides e sua esposa não tinham motivo para querer tirar o velho do caminho. Pelo contrário...

Ele parou e repetiu pensativamente como se uma idéia súbita houvesse lhe ocorrido.

Pelo contrário...

O que o senhor está pensando? — perguntou Taverner.

O Velho falou lentamente:

Se ao menos Aristide Leonides tivesse vivido mais vinte e quatro horas, Roger estaria são e salvo. Mas ele não viveu vinte e quatro horas. Morreu de repente e de forma dra­mática, um pouco mais de uma hora apenas...

Hum... — disse Taverner. — O senhor acha que al­guém em casa gostaria de ver Roger falido? Alguém que tives­se um interesse financeiro contrário a ele? Não me parece muito provável.

Em que pé ficamos em relação ao testamento? —perguntou meu pai. — Quem é que vai ficar com dinheiro de Leonides?

O senhor sabe como são esses advogados. Não se pode obter uma resposta direta deles. Há um testamento anterior, feito quando ele se casou pela segunda vez. Este deixa a mes­ma soma para ela, um pouco menos para Edith de Haviland e o restante entre Philip e Roger. Eu achava que se este novo testamento não foi assinado, então o primeiro seria válido, mas parece que não é tão fácil assim. A feitura de um novo testa­mento revoga o anterior e há testemunhas quanto à sua assi­natura e à “intenção do testamentário”. Parece que vai haver uma confusão se aconteceu mesmo que ele morreu sem tes­tamento. Então a viúva aparentemente fica com tudo... ou pelo menos com uma renda pelo resto da vida.

Então se o testamento desapareceu Brenda Leonides é a pessoa que mais lucrou?

— Sim. Se houve fraude, provavelmente ela está por baixo de tudo. E obviamente houve fraude mas eu não posso imaginar como foi cometida...

Eu também não podia ver. Supus que nós éramos de fato incrivelmente estúpidos. Mas estávamos olhando, é claro, pelo ângulo errado.

 

HOUVE UM SILÊNCIO breve depois que Taverner saiu.

Então eu falei:

— Papai, como são os assassinos?

O Velho olhou-me pensativo. Nós nos entendíamos tão bem, que ele compreendeu exatamente o que eu tinha na ca­beça quando lhe fiz esta pergunta. E respondeu-a com serie­dade:

—Sim... — disse ele. — Isto é muito importante agora... muito importante para você... O crime chegou perto de vo­cê. Não pode mais olhá-lo pelo lado de fora.

Eu sempre me interessara, de maneira amadorística, em alguns dos “casos” mais espetaculares que o Departamento de Investigações Criminais lidara, mas, como meu pai dissera, sempre me interessara pelo lado de fora — olhando-os como se estivessem por detrás de uma vitrina. Mas agora, como So­phia percebera bem antes de mim mesmo, o crime tornara-se o fator dominante em minha vida.

O Velho continuou:

—Eu não sei se sou a pessoa certa para você fazer esta pergunta. Eu poderia pô-lo em contato com um par de bons psiquiatras que trabalham para nós. Eles têm tudo dissecado e certinho. Ou Taverner pode dar-lhe as informações de den­tro. Mas eu penso que você quer ouvir o que eu, pessoalmente, em resultado de minhas experiências com assassinos, acho so­bre eles?

—É isto o que eu quero — disse eu agradecido.

Meu pai traçou um amplo círculo com o dedo sobre a mesa.

—Como são os assassinos? Alguns deles — um leve sorriso melancólico apareceu em seu rosto — foram sujeitos muito simpáticos.

Eu acho que demonstrei uma certa surpresa.

—Oh, sim, foram mesmo — disse ele. — Camaradas simples e simpáticos assim como você ou eu... ou como o ho­mem que acabou de sair daqui... Roger Leonides. O assassinato é um crime de amador. Eu estou falando, é lógico, do tipo de crime em que você está pensando... não em quadrilhas orga­nizadas. A gente muitas vezes sente que esses sujeitos simpá­ticos foram surpreendidos pelo crime quase acidentalmente. Ou eles estavam na miséria, ou queriam algo com todas as forças, dinheiro ou uma mulher, e mataram para conseguir isto... O freio que age conosco não age com eles. Uma crian­ça, você sabe, transfere o desejo em ação sem nenhum remorso. Uma criança zangada com seu gatinho diz: “Eu mato você” e bate-lhe na cabeça com um martelo... e depois morre de cho­rar porque o gatinho não fica vivo outra vez! Uma porção de crianças tenta tirar o bebê do berço para “afogá-lo”, por­ que ele usurpa atenção... ou interfere em seus prazeres. Elas chegam, muito cedo felizmente, a um estágio em que sabem que isso é “errado”, isto é, que se fizerem isso serão castiga­das. Depois, começam a perceber que isso ê errado. Mas al­gumas pessoas, eu penso, permanecem moralmente imaturas. Continuam a considerar que o crime é errado mas não sentem isso. Eu não penso, com minha experiência, que qualquer assassino tenha realmente sentido remorsos... E isto talvez seja a marca de Caim... Assassinos são classificados à parte, eles são “diferentes”... o crime é errado mas não para eles, nem quando é “necessário”... a vítima “pediu isto”, era a “única maneira”.

O senhor acha — eu perguntei — que se alguém odiasse o velho Leonides, mas odiasse mesmo, digamos, há muito tempo, isto seria uma razão?

Ódio puro? Pouco provável, eu diria — meu pai olhou-me curiosamente. — Quando você diz ódio, eu imagino que queira dizer uma antipatia extrema. Um ódio ciumento é diferente... ele se forma pela afeição e a frustração. Constance Kent, diziam todos, gostava muito do irmãozinho me­nor que matou. Mas ela queria, a gente supõe, a atenção e o amor que ele dividira. Eu acho que as pessoas matam com mais facilidade aqueles a quem amam, que aqueles a quem odeiam. Possivelmente porque apenas as pessoas que amamos são realmente capazes de nos infernizar a vida.

Mas isto não o ajuda muito, não é? — continuou ele. — O que você quer, se eu o interpreto corretamente, é um sinal, algum sinal universal que o ajude a achar o seu as­sassino entre uma família aparentemente de pessoas normais e agradáveis?

Sim, é isto mesmo.

Se há um denominador comum? Eu imagino... Você sabe — ele fez uma pausa para pensar — se há mesmo, eu es­tou inclinado a acreditar que seja a vaidade.

Vaidade?

Sim, eu nunca conheci um assassino que não fosse vaidoso... É a vaidade que os conduz à ruína, nove entre dez vezes. Mesmo tendo medo de serem capturados não conseguem evitar de se vangloriarem e de se orgulharem e geralmente acham-se espertos demais para serem descobertos — e acres­centou: — E há uma coisa ainda, um assassino gosta de falar.

De falar?

Sim, você sabe que tendo cometido um crime isso o deixa numa posição de muita solidão. Tem vontade de contar tudo a alguém... mas não pode. E isso o faz querer ainda mais. E assim, se você não puder contar a ninguém o que fez, pode ao menos falar sobre o crime... discuti-lo, apresentar teorias... dissecá-lo.

—Se eu fosse você, Charles, tentaria olhar por este lado. Ir novamente para lá, misturar-se com eles, fazê-los falar. É claro que não vai ser sopa. Culpados ou inocentes, eles vão ficar contentes de poder conversar com alguém de fora, por­ que poderão dizer coisas que não poderiam dizer entre si. Mas é possível, creio eu, que você note uma diferença. Uma pessoa que tem realmente algo a esconder não pode se dar ao luxo de falar nada. Os sujeitos da Seção de Inteligência aprendiam isso durante a guerra. Se você fosse capturado, só dizia o no­me, o posto, a unidade e nada mais. Pessoas que tentam dar informações falsas terminam quase sempre escorregando. Fa­ça aquele povo falar, Charles, e fique atento a um escorregão ou a algum lampejo de culpa.

Eu contei a ele o que Sophia dissera a respeito da cruel­dade na família — as diferentes formas de crueldade. Ele fi­cou muito interessado.

—Sim... — disse ele. — Sua jovem descobriu alguma coisa aí. Quase todas as famílias têm um defeito, um ponto fraco. Muitas pessoas podem ter uma fraqueza, mas a maio­ria não resiste a duas fraquezas diferentes. É uma coisa engra­çada, a hereditariedade. Veja, por exemplo, a crueldade dos De Haviland, e o que poderíamos chamar de falta de escrú­pulos dos Leonides... os De Haviland são muito boa gente por­ que não são inescrupulosos, e os Leonides também, se bem que sem escrúpulos, mas são gentis. Mas vejamos um descendente de ambos que herdasse ambos os defeitos... percebeu aonde eu quero chegar?

Eu não tinha pensado nisto nestes termos. Meu pai falou:

—Mas eu não preocuparia minha cabeça com heredita­riedade se fosse você. É um assunto muito complicado e cheio de problemas. Não, menino, vá para lá e faça-os conversar com você. Sua Sophia está certa sobre uma certa coisa. Nada, a não ser a verdade, servirá para ela ou para você. Você precisa saber de tudo.

Ele acrescentou quando eu estava saindo:

E tome cuidado com a criança.

Josephine? Não deixar que ela saiba o que eu estou fazendo?

Não, eu não quis dizer isto. Eu quis dizer... tomar conta dela. Nós não queremos que lhe aconteça nada.

Eu olhei para ele.

Vamos, vamos, Charles. Há um assassino de sangue frio naquela casa. A menina Josephine parece saber de muita coisa ali dentro.

Ela sabia mesmo de tudo sobre Roger... até mesmo ter chegado à conclusão de que ele era um vigarista. O que contou sobre a conversa que ouviu parece ter sido bastante acurado.

Sim, sim. As evidências de crianças são sempre as melhores que existem. Eu sempre confio nelas. Não servem para nada no tribunal, é claro. Crianças não servem para res­ponder a perguntas diretas. Elas gaguejam ou ficam com cara de bestas e dizem que não sabem de nada. Estão no auge quando querem mostrar-se para alguém. Era isso o que ela estava fa­zendo. Se mostrando... Você conseguirá saber mais coisas des­se jeito. Não fique fazendo perguntas. Finja que você acha que ela não sabe de nada. Isso vai encantá-la.

Acrescentou:

—Mas tome conta dela. Talvez saiba mais do que deva para a segurança de alguém.

 

EU FUI PARA a Casa Torta (como a chamava em meus pensamentos) com um leve sentimento de culpa. Apesar de eu ter contado a Taverner as confidências de Josephine so­bre Roger, eu não dissera nada sobre a declaração que ela me fizera de que Brenda e Laurence Brown escreviam cartas de amor um para o outro.

Eu me desculpei comigo mesmo, pretendendo que ela es­tava apenas romanceando e que não havia nenhuma razão para acreditar que fosse verdade. Mas na realidade eu sentia uma estranha relutância em acrescentar mais evidências con­tra Brenda Leonides. Eu ficara impressionado pelo lado pa­tético de sua posição na casa — rodeada por uma família hos­til solidamente unida contra ela. Se tais cartas existissem mes­mo, sem dúvida Taverner e seus sabujos iriam encontrá-las. Eu não gostaria de ser o portador de novas suspeitas sobre uma mulher já em posição tão difícil. Além disto, ela me assegu­rara solenemente que não havia nada dessa natureza entre ela e Laurence Brown e eu me sentia mais inclinado a acredi­tar nela que naquele gnomo pequeno e malicioso que era Jo­sephine. A própria Brenda não dissera que Josephine “não era muito certa da cabeça”?

Eu sufocara uma certeza constrangida ao imaginar que Josephine não era muito certa. Eu me lembrava da inteligên­cia que havia naqueles olhinhos pretos e redondos.

Telefonei para Sophia pedindo-lhe para voltar novamente à sua casa.

Venha por favor, Charles.

Como vão as coisas?

Eu não sei. Acho que está tudo bem. Eles continuam dando buscas na casa. O que é que estão procurando?

Não tenho idéia.

Estamos ficando todos muito nervosos. Venha logo que puder. Eu vou ficar louca se não tiver com quem falar.

Eu disse que iria imediatamente.

Não havia ninguém à vista quando cheguei à porta da frente. Paguei o táxi e ele foi embora. Eu não sabia ao certo se devia tocar a campainha ou ir entrando. A porta da frente estava aberta.

Enquanto estava de pé, hesitante, ouvi um leve ruído atrás de mim. Voltei a cabeça vivamente. Josephine, com o rosto parcialmente escondido atrás de uma maçã enorme, es­tava de pé aparecendo por uma sebe de teixos e olhando para mim.

Quando eu virei a cabeça, ela também virou a dela.

—Alô, Josephine.

Ela não respondeu e se escondeu atrás da cerca. Atraves­sei o caminho e fui atrás dela. Sentara-se num banco rústico e inconfortável perto do laguinho de peixes vermelhos, balan­çando as pernas para cima e para baixo e dando mordidas na maçã. Por cima da circunferência vermelha seus olhos me olhavam sombrios e com um ar de hostilidade.

—Eu voltei novamente, Josephine.

Era um começo bem pobre mas eu estava achando aque­le silêncio de Josephine e o seu olhar fixo bastante enervantes.

Com um excelente sentido estratégico ela ainda não res­pondeu.

—A maçã está gostosa? — perguntei.

Desta vez Josephine condescendeu em responder. Mas a sua resposta consistiu numa só palavra.

Farinhenta.

Que pena — disse eu. — Eu não gosto de maçãs farinhentas.

Josephine acrescentou zombeteira:

Ninguém gosta.

Por que você não falou comigo quando eu disse “Alô”?

Eu não queria falar.

Por que não?

Josephine tirou a maçã da boca para fazer a sua acusa­ção com clareza.

Você foi lá e avisou a polícia — disse ela.

Oh! — fiquei perplexo. — Você quer dizer...  sobre...

Sobre tio Roger.

Mas foi tudo bem, Josephine — eu lhe garanti. — Está tudo bem. Eles sabem que ele não fez nada errado, isto é, ele não desviou dinheiro ou nada no gênero.

Josephine lançou-me um olhar desesperado.

Como você é burro!

Eu sinto muito.

Eu não estava preocupada com tio Roger. E sim por­ que você não fez direito o seu trabalho de detetive. Não sabe que não se deve nunca falar com a polícia até chegar ao fim?

Oh, eu compreendo — eu disse. — E sinto muito, Josephine. Sinto muitíssimo.

Devia sentir mesmo — acrescentou com reprovação:

—Eu confiei em você.

Eu disse que sentia muito pela terceira vez. Josephine pareceu um tanto mais apaziguada. Deu mais duas dentadas na maçã.

—Mas a polícia iria mesmo saber de tudo sobre isso — disse eu. — Você... eu... nós não poderíamos guardar este segredo.

Você quer dizer porque ele vai à falência?

Como sempre Josephine estava bem informada.

Eu acho que vai terminar assim.

—Vão falar sobre isso hoje à noite — disse Josephine. — Papai e mamãe e tio Roger e tia Edith. Tia Edith daria o dinheiro dela mas ela não recebeu ainda, acho porém que pa­pai não daria não. Ele diz que se Roger se meteu numa en­crenca a culpa é somente dele e que não adianta pôr dinheiro bom atrás de dinheiro perdido, e mamãe nem quer ouvir falar em dar dinheiro porque ela quer que ele use o dinheiro para financiar Edith Thompson. Você conhece Edith Thompson? Ela era casada mas não gostava do marido. Estava apaixonada por um moço chamado Bywaters que saiu de um navio e foi para uma rua diferente depois do teatro e ela o apunhalou pelas costas.

Eu maravilhei-me outra vez pela competência dos co­nhecimentos de Josephine, e também pelo senso dramático, apenas ligeiramente obscurecido por uns pronomes confusos, com que ela apresentara todos os fatos principais em tão pou­cas palavras.

—Parece muito bom — continuou Josephine — mas eu não acho que a peça vá ser assim. Vai ser como Jezebel no­vamente.

Ela suspirou.

Eu gostaria de saber por que os cachorros não come­ram as palmas das mãos dela.

Josephine — disse eu, — você me contou que estava quase certa de quem era o assassino?

Então?

Quem é?

Ela me deu uma olhada desdenhosa.

—Eu entendo — disse eu. — Somente no último ca­pítulo? Mesmo se eu prometer não contar nada ao Inspetor Taverner?

Eu ainda preciso de mais algumas pistas — disse Jose­phine.

E além disso — acrescentou ela, jogando o miolo da maçã no laguinho dos peixes vermelhos — eu não contaria para você. Se você for alguém, você é o Watson.

Eu engoli este insulto.

Muito bem — disse eu. — Eu sou Watson. Mas mes­mo a Watson eram fornecidos os dados.

O quê?

Os fatos. E então ele fazia deduções erradas sobre os fatos. Não seria uma farra para você me ver fazer as dedu­ções erradas?

Por um momento ela quase caiu em tentação. Mas depois balançou a cabeça.

Não — disse ela e acrescentou: — De qualquer jeito, eu não gosto muito de Sherlock Holmes. Ele está horrivelmente fora de moda. Ainda anda em carruagens.

E sobre as cartas? — perguntei.

Que cartas?

As cartas que você disse que Laurence Brown e Bren­da escreviam um para o outro.

Eu inventei — disse Josephine.

Eu não acredito em você.

Eu inventei, sim. Eu sempre invento coisas. Me di­verte.

Eu olhei para ela. Ela me olhou de volta.

—Olhe aqui, Josephine. Eu conheço um homem, no Museu Britânico, que sabe um bocado de coisas sobre a Bíblia. Se eu descobrir por que os cachorros não comeram as palmas das mãos de Jezebel você me fala sobre as cartas?

Desta vez Josephine realmente hesitou.

Em algum lugar um raminho estalou fazendo um baru­lho seco. Josephine falou numa voz sem expressão:

—Não, eu não falo.

Eu aceitei a derrota. Um pouco tarde, lembrei-me do aviso de meu pai.

—Muito bem, é mesmo uma brincadeira. É claro que na realidade você não sabe mesmo de nada.

Os olhos de Josephine se acenderam, mas ela não engo­liu a isca.

Eu me levantei.

Agora eu vou — disse eu — procurar Sophia. Venha.

Eu vou ficar aqui — disse Josephine.

Não vai, não — disse eu. — Você vem comigo.

Sem cerimônias eu a ergui de pé. Ela pareceu surpresa e pronta a reclamar mas rendeu-se de muito boa vontade, par­cialmente, sem dúvida, porque gostaria de observar a reação da família à minha presença.

Porque eu estava tão ansioso para que ela me acompa­nhasse eu não teria sido capaz de dizer naquele momento. Só me veio à cabeça quando nós passamos pela porta da frente.

Foi porque o raminho estalara.

 

UM MURMÚRIO vinha da grande sala de visitas. Eu hesitei mas não entrei. Fiquei andando pelo corredor e en­tão, guiado por um impulso, empurrei uma porta. O corredor do outro lado era escuro mas de repente outra porta abriu-se mostrando uma cozinha grande e muito clara. No umbral da porta apareceu uma mulher idosa, cheia de corpo. Usava um avental branco muito limpo amarrado em volta de sua cin­tura ampla e, desde o instante em que a vi, senti que tudo es­tava bem. É este sentimento que uma boa babá sempre nos traz. Eu tinha trinta e cinco anos mas me senti como um garotinho de quatro.

Que eu soubesse, Nannie nunca me tinha visto, mas dis­se logo:

—É o Sr. Charles, não é? Venha para a cozinha que eu lhe darei uma xícara de chá.

Era uma cozinha alegre e feliz. Eu me sentei na mesa do centro e Nannie trouxe-me uma xícara de chá e dois bolinhos num prato. Eu me senti novamente como se tivesse voltado aos tempos de criança. Tudo ia bem — e os terrores da sala escura e do desconhecido não estavam mais comigo.

—D. Sophia vai ficar contente porque o senhor veio — disse Nannie. — Ela estava ficando nervosa.

Acrescentou em tom de censura:

Todos estão muito nervosos.

Eu olhei por cima do ombro.

Onde está Josephine? Ela entrou em casa comigo.

Nannie deu um estalo de censura com a língua.

Escutando atrás das portas ou escrevendo coisas na­quele livrinho bobo que ela carrega pra todo lado — disse ela. — Ela devia ter ido para a escola e ter crianças da idade dela para brincar. Eu disse a D. Edith e ela está de acordo mas o patrão dizia que ela estaria melhor em casa.

Eu acho que ele gosta muito dela.

Ele gostava, sim, senhor. Ele gostava muito deles todos.

Olhei-a um tanto surpreso, imaginando por que a afei­ção de Philip por seus filhos fosse assim tão definitivamente colocada no passado. Nannie viu minha expressão e, corando ligeiramente, disse:

—Quando eu disse o patrão foi ao velho Sr. Leonides que eu me referi.

Antes que eu pudesse dar-lhe uma resposta a isso, a por­ta abriu-se num arranco e Sophia entrou:

Oh, Charles! — disse ela e acrescentou muito depres­sa: — Oh, Nannie, eu estou tão contente que ele tenha chegado.

Eu sei que você está, querida.

Nannie apanhou uma porção de panelas e caldeirões e foi para a copa, fechando a porta ao passar.

Eu me levantei e fui até onde Sophia estava. Pus meus braços em volta dela e apertei-a contra mim.

Minha querida — disse eu, — você está tremendo. O que foi?

Eu estou com medo, Charles, eu estou com medo.

—Eu a amo — disse eu. — Se eu pudesse levá-la daqui...

Ela afastou-se de mim e balançou a cabeça.

—Não, isto é impossível. Nós temos de ir até o fim. Mas você sabe, Charles, eu não estou gostando. Eu não gosto desta impressão de que alguém... alguém aqui desta casa... al­guém que eu estou vendo e com quem falo todos os dias é um envenenador frio e calculista...

Eu não soube o que responder a isto. Para alguém como Sophia a gente não consegue dar uma falsa resposta para acal­má-la.

Ela falou:

Se ao menos alguém soubesse...

Isto seria o pior — disse eu.

Você sabe o que me assusta realmente? — murmurou ela. — É que talvez nós não saibamos nunca...

Eu pude imaginar com facilidade o pesadelo que isto seria... E me parecia altamente provável que talvez nunca sou­béssemos a verdade de quem matara o velho Leonides.

Mas isto também me fez lembrar de uma pergunta que eu queria fazer a Sophia, num ponto que me interessava.

Diga-me, Sophia — disse eu — quantas pessoas nesta casa sabiam sobre as gotas de eserina, eu quero dizer, primeiro: quem sabia que seu avô as tinha em seu poder e, segundo: quem sabia que elas eram venenosas e qual seria a dose fatal?

Eu sei aonde você está querendo chegar, Charles. Mas não vai adiantar. Calcule que todos nós sabíamos.

Bem, sim, vagamente eu suponho, mas especifica­mente...

Todos nós sabíamos especificamente. Estávamos to­dos reunidos com vovô um dia depois do almoço tomando café. Ele gostava de ter a família a sua volta, você sabe. E seus olhos vinham-lhe dando uma série de problemas. E Bren­da trouxe o colírio para pingar uma gota em cada olho e Jose­phine, que vive sempre fazendo perguntas sobre tudo, disse: O que é que quer dizer: Colírio — para uso externo — aí no vidrinho?” E vovô sorriu e disse: “Se Brenda se enganasse e me desse uma injeção de colírio um dia em vez da insulina... eu acho que ia dar um suspiro fundo, ficar com o rosto azul e morrer, sabe, porque o meu coração não é muito forte.” E Josephine disse: “Oh!” e vovô continuou: “É por isto que nós precisamos ter muito cuidado com Brenda para que ela não me dê uma injeção de eserina em vez de insulina, não acha?” — Sophia fez uma pausa e continuou: — Nós estávamos to­dos ali escutando. Viu agora? Todos nós ouvimos!

Eu compreendi. Tivera uma vaga idéia que apenas um primário conhecimento especializado fosse necessário. Mas agora estava provado que fora o velho Leonides quem havia feito o próprio plano de seu assassinato. O assassino não tivera de pensar em um esquema, nem de planejar ou imaginar coisa alguma. Um método simples para causar a morte fora indicado pela própria vítima.

Eu respirei fundo. Sophia, adivinhando meus pensamen­tos, disse:

Sim, foi horrível, não foi?

Sabe, Sophia? — falei lentamente. — Só há uma coi­sa que me intriga.

O quê?

Que você tem razão e que não pode ter sido Brenda. Ela não podia fazer isto assim da mesma maneira... quando todos vocês tinham ouvido... quando vocês todos se lembra­vam.

Eu não posso dizer nada sobre isso. Para certas coi­sas ela é muito boba, você sabe.

Mas tão boba assim não — disse eu. — Não, não pode ter sido Brenda.

Sophia afastou-se de mim.

—Você não quer que tenha sido Brenda, não é? — per­guntou ela.

O que é que eu podia dizer? Eu não podia — não, eu não podia mesmo — dizer calmamente?: “Sim, eu espero que tenha sido Brenda”.

Por que é que eu não podia? Apenas a impressão de que Brenda estava sozinha de um lado do campo, e que a animo­sidade concentrada da poderosa família Leonides estava for­mada do outro lado do campo contra ela? Cavalheirismo? Uma certa queda pelos mais fracos? Pelos indefesos? Eu me lem­brava dela sentada no sofá, em seu luto luxuoso, e a falta de esperança em sua voz — e do medo em seus olhos.

Nannie voltou oportunamente da copa. Eu não sei como, mas ela percebeu que havia algo entre nós dois.

Disse com censura:

Falando sobre crimes e coisas assim. Esqueçam isso, é o que eu digo. Deixem para a polícia. O problema é deles, e não de vocês.

Oh, Nannie, você não está vendo que alguém nesta casa é um assassino?

Tolice, D. Sophia, eu não tenho mais paciência com a senhora. A porta da frente não vive aberta o tempo todo? Todas as portas vivem abertas, nada é trancado... pedindo la­drões e assaltantes.

Mas não pode ter sido um ladrão, não roubaram nada. E além disto, por que é que um ladrão entraria para envene­nar alguém?

Eu não disse que foi um ladrão, D. Sophia. Eu disse apenas que todas as portas vivem abertas. Qualquer um podia entrar. Se me perguntarem quem foi eu garanto que foram os comunistas.

Nannie abanou a cabeça de maneira satisfeita.

—E por que os comunistas iriam assassinar o meu pobre avô?

—Bem, todos dizem que eles estão sempre por dentro de tudo o que acontece. Mas se não foram os comunistas, preste atenção ao que eu digo, então foram os católicos. A Mulher Escarlate da Babilônia, isso é que é.

Com um ar de quem tinha dito a última palavra, Nannie desapareceu novamente na copa.

Sophia e eu rimos.

Uma protestante convicta... — disse eu.

É sim, não acha? Venha, Charles, venha para a sala de visitas. Há uma espécie de conclave familiar lá. Estava mar­cado para hoje à noite mas começou mais cedo.

É melhor eu não me meter, Sophia.

Se por acaso você for mesmo casar-se na família, é melhor que nos veja com as unhas de fora.

E é sobre o quê?

Os negócios de Roger. Pelo jeito você também já se meteu neles. Mas está louco se imagina que Roger mataria meu avô. Roger o adorava.

Eu nunca pensei que tivesse sido Roger. Pensei que fosse talvez Clemency.

Só porque eu lhe pus isso na cabeça. Mas você tam­bém está errado aí. Eu acho que Clemency não se importa de jeito nenhum se Roger perder todo o dinheiro. Eu acho até que ela ia ficar satisfeita. Ela tem uma paixão esquisita em não possuir coisas. Venha.

Quando Sophia e eu entramos na sala de visitas, as vo­zes que estavam falando calaram-se bruscamente. Todos nos olharam.

Estavam todos ali. Philip sentado numa enorme poltrona vermelha de brocado, entre as janelas, seu rosto bonito trans­formado numa máscara severa. Parecia um juiz pronto a dar a sentença. Roger estava a cavalo sobre um tamborete estofado perto da lareira. Tinha passado tanto os dedos pelos cabelos que estava todo descabelado. A perna esquerda de sua calça estava arregaçada e a gravata de lado. Ele estava vermelho com a discussão. Clemency estava sentada atrás dele e seu cor­po esguio parecia pequeno demais para a enorme cadeira es­tofada. Ela não olhava para ninguém e parecia estudar os lambris das paredes com um olhar desinteressado. Edith estava sentada num tipo de cadeira do papai, muito espigada. Tri­cotava com energia incrível, os lábios apertados. A coisa mais linda da sala eram Magda e Eustace. Eles pareciam um retrato de Gainsborough. Estavam sentados juntos no sofá — o ra­paz moreno e bonito com uma expressão sombria no rosto, e a seu lado, um braço sobre o encosto, Magda, a Duquesa dos Três Oitões, num vestido de tafetá e um pezinho pequeno apa­recendo num sapato de brocado.

Philip franziu as sobrancelhas.

—Sophia — disse ele. — Eu sinto muito, mas nós es­tamos discutindo problemas familiares de natureza privada.

As agulhas de Edith de Haviland estalaram. Eu me pre­parei para pedir desculpas e sair. Sophia antecipou-se a mim. A voz dela era clara e determinada.

Charles e eu — disse ela — pretendemos casar-nos. Eu quero que ele esteja presente.

E por que não haveria de ficar? — gritou Roger, dan­do um pulo do tamborete com uma energia explosiva. — Eu não me canso de dizer a Philip, não há nada de particular nis­to! O mundo inteiro vai ficar sabendo amanhã ou depois. E de qualquer jeito, meu caro — ele veio até onde eu estava e pôs uma mão amigável em meu ombro, — você já sabe de tudo. Estava lá hoje de manhã.

Conte-me por favor — falou Magda, inclinando-se para a frente. — Como são as coisas lá na Scotland Yard? A gente fica imaginando. Uma mesa? Uma escrivaninha? Ca­deiras? Que tipo de cortinas? Não deve haver flores, eu cal­culo. Um ditafone?

Ora, cale a boca, mamãe — disse Sophia. — E de qualquer jeito a senhora já falou com Vavasour Jones para cor­tar aquela cena na Scotland Yard. A senhora mesma disse que era um anticlímax.

É que faz a peça parecer muito com uma história po­licial — disse Magda. — Edith Thompson é definidamente um drama psicológico... ou um mistério psicológico... o que é que você acha que soa melhor?

Você estava lá hoje de manhã? — Philip perguntou-me secamente. — Por quê? Oh, é claro... seu pai...

Ele franziu as sobrancelhas. Percebi ainda mais clara­mente que a minha presença ali não era desejada mas a mão de Sophia apertou-me o braço.

Clemency empurrou uma cadeira para a frente.

— Sente-se — disse ela.

Eu dei-lhe um olhar agradecido e aceitei.

—Vocês podem dizer o que bem quiserem — disse Edith de Haviland, aparentemente recomeçando de onde a haviam interrompido — mas eu creio que nós devemos respeitar os desejos de Aristide. Quando este negócio do testamento se ar­ranjar, na parte que me diz respeito, o meu legado está intei­ramente à sua disposição, Roger.

Roger puxou os cabelos com desespero.

Não, tia Edith, não! — gritou ele.

Eu gostaria de poder dizer o mesmo — disse Philip — mas cada um tem de levar cada fator em consideração...

Mas, meu caro Phil, você não entende? Eu não vou aceitar um tostão de ninguém.

É claro que não! — retrucou Clemency.

E de qualquer jeito, Edith — disse Magda, — se este testamento aparecer, ele terá o seu próprio dinheiro.

Mas será que vai aparecer em tempo? — perguntou Eustace.

Você não entende nada disso, Eustace — disse Philip.

O menino tem toda a razão — gritou Roger. — Ele acertou em cheio. Nada pode impedir a queda. Nada!

Ele falou com uma espécie de contentamento.

Na verdade não há nada mesmo a discutir — disse Clemency.

E de qualquer forma — disse Roger, — o que im­porta?

Eu pensava que isso importava em muitas coisas — disse Philip, os lábios apertados.

Não — disse Roger. — Não!  Alguma coisa mais im­porta agora que papai está morto? Papai está morto! E nós fi­camos aqui discutindo problemas de dinheiro!

Um ligeiro rubor apareceu no rosto pálido de Philip.

Nós estávamos apenas tentando ajudar — falou com secura.

Eu sei, Phil, meu velho, eu sei. Mas ninguém pode fazer nada. Então vamos deixar pra lá.

Eu creio — disse Philip — que talvez eu possa le­vantar uma certa quantia de dinheiro. As minhas ações bai­xaram um bocado e uma parte do meu capital está empatado de tal forma que eu não posso contar com ele: a peça de Mag­da e mais outras coisas... mas...

Magda disse rapidamente:

—E claro que você não pode levantar esse dinheiro, querido. Seria um absurdo tentar... e não seria justo para com as crianças.

Eu estou dizendo que não estou pedindo nada a ninguém! — berrou Roger. — Estou rouco de tanto dizer isto. Estou satisfeito com o rumo que as coisas estão tomando.

É uma questão de prestígio — disse Philip. — De papai. Nosso.

Não é um negócio de família. Estava inteiramente em minhas mãos.

Sim — disse Philip, olhando para ele. — Estava in­teiramente em suas mãos.

Edith de Haviland levantou-se e disse:

—Eu acho que nós já discutimos isso bastante.

Havia na voz dela aquela nota autêntica de autoridade que nunca deixa de produzir efeito.

Philip e Magda levantaram-se. Eustace saiu da sala e eu notei a rigidez de seu andar. Ele não era exatamente um alei­jado, mas seu andar era defeituoso.

Roger enfiou seu braço no de Philip e disse:

—Você foi um camaradão, Phil, mesmo só de pensar em tal coisa!

Os dois irmãos saíram juntos.

Magda murmurou:

—Que confusão! — enquanto os seguia e Sophia disse que ia arrumar a sala.

Edith de Haviland ficou de pé enrolando o seu tricô. Ela olhou para mim e eu pensei que me fosse falar alguma coisa. Havia quase um apelo em seu olhar. Entretanto ela mudou de idéia, suspirou e saiu atrás dos outros.

Clemency foi até a janela e pôs-se a olhar para o jardim. Eu fui até perto dela. Voltou a cabeça ligeiramente para mim.

Graças a Deus que tudo acabou — disse e acrescentou com repugnância: — Que sala horrorosa esta!

Não gosta dela?

Não consigo respirar aqui dentro. Há sempre um chei­ro de flores meio murchas e de poeira.

Achei que ela estava sendo injusta com a sala. Mas eu sabia o que ela queria dizer. Era definitivamente uma sala muito fechada.

Era uma sala feminina, exótica, macia, fechada às intem­péries lá de fora. Não era uma peça onde um homem pudesse ser feliz por muito tempo. Não era uma sala onde se pudesse descansar e ler o jornal e fumar um cachimbo com os pés para cima. No entanto, eu a preferia à expressão abstrata de Cle­mency lá em cima. No duro mesmo, eu preferia uma sala de estar a um palco.

Ela falou, olhando em torno:

—É somente um palco. Um cenário para Magda repre­sentar suas cenas — olhou para mim. — Você reparou, não foi? Reparou no que nós estávamos fazendo? Ato II: o con­clave da família. Magda arranjou tudo. Não significava nada. Não havia nada a falar, nada a discutir. Tudo está decidido, terminado.

Não havia tristeza em sua voz. Quase satisfação. Ela per­cebeu meu olhar.

Oh, você não compreende? — falou com impaciên­cia. — Nós estamos livres... finalmente! Não entende que Ro­ger foi um infeliz... absolutamente infeliz... durante anos? Ele nunca teve jeito para os negócios. Gosta de coisas como ca­valos e vacas e de perambular pelos campos. Mas ele adorava o pai... todos o adoravam. É isto o que é errado nesta casa... é familiar demais. Eu não quero dizer que o velho fosse um tirano, ou que os oprimisse ou maltratasse. De jeito nenhum. Ele lhes dava dinheiro e liberdade. Era-lhes completamente devotado. E todos se devotavam por ele.

E há algo errado nisto?

Eu acho que há. Eu creio que, quando as crianças crescem, nós devemos afastar-nos delas, devemos apagar-nos, sumir, forçá-los a se esquecerem de nós.

Forçá-los? É um tanto drástico, não acha? A coação de uma ou de outra forma não é igualmente prejudicial?

Se ele não tivesse construído a sua personalidade...

Ninguém pode construir a sua personalidade — disse eu. — Ele tinha a sua personalidade.

Pois ele tinha personalidade demais para Roger. Ro­ger adorava-o. Queria fazer tudo que seu pai queria que ele fizesse, queria ser o tipo de filho que seu pai queria que ele fosse. E ele não podia ser isto. O pai deu-lhe a Associação de Fornecedores... era o brinquedo predileto e o orgulho do velho e Roger tentou com todas as forças seguir as pegadas do pai. Mas ele não tinha aquele tipo de habilidade. Em matéria de negócios Roger é... sim, eu digo francamente... é um tolo. E isso cortou-lhe o coração. Ele foi infeliz durante anos, lu­tando, vendo tudo ir por água abaixo, tendo repentinas “idéias” maravilhosas e “esquemas” extraordinários que sempre davam errado e pioravam as coisas cada vez mais. É horrível sentir-se um fracasso ano após ano. Você não pode calcular como ele tem sido infeliz. Eu posso.

Novamente ela se voltou e me encarou:

Você pensou, e chegou mesmo a sugerir para a polí­cia que Roger teria morto o pai... por dinheiro! Você não sabe como... como isto é absolutamente ridículo!

Agora eu sei — falei com humildade.

Quando Roger viu que não podia mais safar-se, que a falência era iminente, ficou quase que aliviado. Sim, ele fi­cou mesmo. Só ficou preocupado porque seu pai ia saber... mas não sobre as outras conseqüências. Ele estava olhando em frente, para a nova vida que nós íamos levar.

Seu rosto estremeceu levemente e sua voz tornou-se mais suave.

Para onde vocês iam? — perguntei.

Para os Barbados. Um primo meu distante morreu há algum tempo e deixou-me um pequeno sítio lá... oh, não é quase nada. Mas pelo menos era um lugar para irmos. Nós seríamos muito pobres mas daríamos um jeitinho de viver... custa tão pouco viver simplesmente. Nós estaríamos juntos... despreocupados, longe deles todos.

Ela suspirou.

—Roger é ridículo às vezes. Ele se preocupa muito co­migo... porque eu sou pobre. Eu creio que ele adotou demais a atitude da família Leonides sobre o dinheiro. Quando meu primeiro marido era vivo, nós éramos horrivelmente pobres. E Roger pensa que eu era muito corajosa e maravilhosa! Ele não consegue imaginar que eu era feliz... realmente feliz! Eu nunca mais fui feliz como eu era! E, no entanto, eu nunca amei Richard como eu amo Roger.

Seus olhos estavam semicerrados. Senti a intensidade de suas emoções.

Ela os abriu, olhou-me e disse:

—Você vê, eu nunca mataria alguém por dinheiro. Eu não gosto de dinheiro.

Eu tive a certeza de que era aquilo mesmo que ela queria dizer. Clemency Leonides era uma dessas raras pessoas que não se sentem atraídas por dinheiro. Elas não gostam do luxo, preferem a austeridade e suspeitam das riquezas.

Entretanto, há alguns para os quais o dinheiro não tem nenhum apelo pessoal, mas que podem ser tentados pelo poder que ele confere.

Eu falei:

—Talvez você não quisesse dinheiro para si mesma... mas sabiamente dirigido, o dinheiro pode fazer uma série de coisas interessantes. Pode patrocinar pesquisas, por exemplo.

Eu suspeitava talvez de que Clemency fosse uma faná­tica pelo seu trabalho mas ela disse apenas:

Duvido que esses patrocínios sirvam para alguma coisa. Eles são em geral usados erradamente. As coisas que valem mesmo a pena são usualmente conseguidas por alguém que tenha entusiasmo e iniciativa... e uma visão natural. Equi­pamentos dispendiosos, treinamentos e experiências nunca fazem o que se pensa. O seu uso quase sempre cai em mãos erradas.

Você não se importa em largar o seu trabalho e ir para os Barbados? — perguntei. — Vocês vão mesmo, não é?

Oh, sim, assim que a polícia deixar. Não, eu não me importo absolutamente de largar o meu trabalho. Por que ha­veria de me importar? Não gostaria de ficar à toa, mas sei que não ficarei à toa em Barbados.

Ela acrescentou impaciente:

Oh, se ao menos tudo isso pudesse ser logo esclare­cido e nós pudéssemos ir logo embora.

Clemency — perguntei — você tem alguma idéia de quem fez isso? Considerando que nem você nem Roger têm nada a ver com a coisa (e realmente eu não vejo razão para pensar que vocês têm), certamente, com a sua inteligência, você deve ter alguma idéia de quem possa ter feito?

Ela me deu um olhar estranho, um olhar de lado. Quando falou, sua voz perdera a espontaneidade. Meio sem jeito, quase encabulada.

—A gente não pode fazer conjeturas, não é científico — disse ela. — Só se pode dizer que Brenda e Laurence são os suspeitos óbvios.

—Então você pensa que foram eles?

Clemency deu de ombros.

Ficou quieta por um instante como se estivesse escutando algo e depois saiu da sala, cruzando com Edith de Haviland ao passar pela porta.

Edith veio direta para o meu lado.

—Eu quero falar com você — disse ela.

As palavras de meu pai vieram à tona. Será que isto...

Mas Edith de Haviland prosseguiu:

—Eu espero que você não tenha tomado uma impres­são errada — disse ela. — Sobre Philip, eu quero dizer. Phi­lip é muito difícil de entender. Ele pode parecer frio e reser­vado mas não é tanto assim. É somente uma maneira de ser. Não consegue evitar.

—Eu realmente não pensei... — comecei eu.

Mas ela continuou:

—Agora mesmo... sobre Roger. Ele não está realmente com má vontade. Ele nunca foi sovina com dinheiro. E ele é realmente um amor... sempre foi um amor... mas é preciso que o compreendam.

Eu olhei para ela com um ar, espero, de quem está mes­mo querendo entender. Ela prosseguiu:

—Parcialmente, creio eu, é por ter sido o segundo da família. Diversas vezes existe alguma coisa sobre um segundo filho... eles já começam com desvantagem. Ele adorava o pai, sabe? É claro, todas as crianças adoravam Aristide e ele as adorava. Mas Roger era o seu orgulho e a sua alegria princi­pais. Talvez por ter sido o primeiro. E eu acho que Philip sen­tia isto. Ele se fechou em si mesmo. Começou a gostar de li­vros e do passado e de coisas que eram completamente divor­ciadas da vida quotidiana. Eu acho que ele sofreu... crianças sofrem muito...

Ela fez uma pausa e continuou:

O que eu queria mesmo dizer, suponho, é que ele sempre teve ciúmes de Roger. Talvez nem ele próprio perceba isto. Mas eu penso que o fato de Roger ter-se transformado num fracasso... oh, parece tão odioso dizer isto e realmente, eu tenho certeza que nem ele próprio sabe disso... mas eu penso que talvez Philip não esteja tão sentido quanto deveria estar.

A senhora quer dizer que ele está quase satisfeito por Roger ter bancado o tolo.

Sim — disse Edith de Haviland. — E exatamente o que eu queria dizer.

Ela acrescentou, franzindo as sobrancelhas:

Eu fiquei muito sentida, sabe, de ele não ter ofere­cido ajuda imediata a seu irmão.

Por que ele deveria ter ajudado? — disse eu. — Ape­sar de tudo, Roger fez uma série de confusões. Mas é um ho­mem adulto. Não tem filhos a considerar. Se ele estivesse doente ou mesmo com uma necessidade real, é claro que sua famí­lia ajudaria. Mas eu não tenho a menor dúvida de que Roger na verdade prefere recomeçar inteiramente sozinho.

Oh, é claro que sim! Ele só se importa com Clemency. E Clemency é uma criatura extraordinária. Ela gosta realmente de se sentir inconfortável e de ter apenas uma xícara barata para tomar chá. É moderna, eu acho. Não tem nenhum sen­tido do passado, nenhum senso de beleza.

Eu senti seus olhos agudos olhando para mim de cima abaixo.

—Isto é uma prova horrível para Sophia — disse ela. — Eu tenho tanta pena de que a sua juventude possa ser atin­gida por isto. Eu gosto deles todos, sabe? Roger e Philip, e agora Sophia e Eustace e Josephine. Todas essas crianças que­ ridas... As crianças de Márcia. Sim, eu os quero muito.

Fez uma pausa e acrescentou bruscamente:

—Fique sabendo, que é quase uma idolatria...

Ela se voltou rapidamente e saiu. Eu tive a impressão de que ela quisera dizer algo com aquela última frase mas eu não entendi o quê.

 

SEU QUARTO ESTÁ pronto — disse Sophia.

Ela estava ao meu lado, olhando para o jardim. Este pa­recia desolado e cinzento, com as árvores quase desnudas ba­lançando-se ao vento.

Sophia pareceu ler meus pensamentos ao dizer:

—Parece tão desolado...

Enquanto olhávamos, uma figura, e logo depois, uma ou­tra, apareceram através da sebe de teixos indo para o jardim de pedras. Ambas pareciam irreais na luz que se apagava.

Brenda Leonides era a primeira. Ela estava envolta num casaco cinzento de chinchila e havia um certo ar felino e fur­tivo em seus movimentos. No crepúsculo ela flutuava com uma graça sobrenatural.

Vi seu rosto ao passar pela janela. Havia um meio sor­riso nele, aquele mesmo meio sorriso que eu já notara lá em cima. Alguns minutos depois, Laurence Brown, parecendo ainda mais magro e encolhido, também desapareceu no cre­púsculo. Só posso descrever assim a cena. Eles não pareciam duas pessoas andando normalmente, duas pessoas que tives­sem saído para dar uma volta. Havia algo irreal sobre eles, como se fossem dois fantasmas.

Fiquei pensando no estalido que ouvira, se fora o pé de Brenda ou o de Laurence.

Por uma associação natural de idéias, eu perguntei:

Onde está Josephine?

Provavelmente com Eustace na sala de aulas — franziu o rosto. — Eu estou preocupada com Eustace, Charles.

Por quê?

Ele anda tão amuado e estranho. Ficou tão diferente depois que teve a paralisia. Não consigo imaginar o que anda pela cabeça dele. Às vezes parece que nos odeia a todos.

Provavelmente ele ultrapassará isto tudo. É apenas uma fase.

Sim, eu creio que seja. Mas eu me preocupo muito, Charles.

Por que, meu coração?

Na verdade, eu acho que papai e mamãe nunca se preocupam. Eles não se comportam como um pai e uma mãe.

Talvez isso seja melhor para vocês todos. Mais crianças sofrem com o zelo excessivo do que o contrário.

É verdade. Sabe, eu nunca pensei nisso até voltar do exterior mas eles são um casal esquisito. Papai vivendo pro­positadamente num mundo obscuro de trilhas históricas e ma­mãe sempre se divertindo e vivendo suas cenas. Aquela bo­bagem de hoje à tarde foi idéia de mamãe. Ela queria representar uma cena de uma reunião familiar. Ela se aborrece aqui e fica tentando criar um drama.

Por um momento eu tive a fantástica visão da mãe de Sophia envenenando o velho sogro de maneira suave, apenas para observar um drama em primeira mão e com ela representando o papel principal.

Um pensamento engraçado! Eu o deixei de lado — mas fiquei um tanto encabulado.

Mamãe — continuou Sophia — precisa de que se tome conta dela o tempo inteiro. A gente nunca imagina o que ela pretende fazer.

Esqueça sua família, Sophia — disse eu com firmeza.

—Eu adoraria isso mas no momento é muito difícil. Eu estava feliz no Cairo porque os esquecera a todos.

Eu me lembrava de que Sophia nunca mencionara seu lar ou seus parentes.         

É por isso que você nunca falava deles? — perguntei. — Porque você tinha vontade de esquecê-los?

Eu creio que sim. Nós vivemos sempre, todos nós, sempre agarrados uns com os outros. Nós... nós gostamos de­mais uns dos outros. Não somos como essas famílias que se odeiam até a morte. Deve ser horrível mas quase que é pior vivermos sempre presos por sentimentos de afeição.

Ela acrescentou:

—Eu acho que é por isso que eu lhe disse que nós vi­víamos todos juntos numa Casa Torta. Eu não quis dizer torta num sentido de desonestidade. Eu creio que quis dizer é que todos nós não conseguimos crescer e nos tornarmos independentes, responsáveis, íntegros. Nós somos um pouquinho tortos e enrolados.

Eu vi Edith de Haviland esmagando uma erva daninha no caminho enquanto Sophia acrescentava:

—Como a jitirana...

E de repente, Magda estava conosco — escancarando a porta, dando gritinhos:

—Meus queridos, por que vocês não acendem as luzes? Está quase escuro.

E ela apertou os comutadores e as luzes se acenderam nas paredes e nas mesas, e ela, Sophia e eu puxamos as pesadas cortinas cor-de-rosa e ficamos naquele interior perfumado de flores, e Magda, espichando-se num sofá, falou:

—Que cena incrível, não foi? Como Eustace estava con­trariado! Ele me disse que achou aquilo positivamente inde­cente! Como esses meninos são engraçados!  

Ela suspirou.

Roger é um amor. Eu adoro quando ele passa a mão pelos cabelos e começa a chutar as coisas. Não foi um encanto a Edith ter-lhe oferecido a sua parte da herança? Ela estava mesmo disposta a fazer isso, sabem? Não foi apenas um ges­to. Mas foi terrivelmente estúpido. Imagine se Philip quises­se fazer a mesma coisa! É claro que Edith faria qualquer coisa pela família! Há algo quase patético no amor de uma soltei­rona pelos filhos de sua irmã. Qualquer dia desses eu vou que­rer representar um papel de uma dessas devotadas tias soltei­ronas. Indiscreta, obstinada e devotada.

Deve ter sido muito duro paria ela quando sua irmã morreu — disse eu, recusando-me a permitir que a conversa fosse desviada para outro dos papéis das peças de Magda. — Isto é, se ela detestava tanto o velho Leonides.

Magda interrompeu-me.

Detestava-o? Quem lhe disse isso? Tolice. Ela estava apaixonada por ele.

Mamãe! — disse Sophia.

Nem tente contradizer-me, Sophia. Naturalmente que na sua idade vocês pensam que o amor é somente o de dois jovens bonitões ao luar.

Ela me disse — disse eu — que sempre o detestara.

Provavelmente sim, quando veio para cá. Ela estava zangada com sua irmã por ter-se casado com ele. Eu diria que havia uma espécie de antagonismo... mas ela estava apaixonada mesmo por ele!  Queridos, eu sei do que estou falando!  É claro que, como irmã da falecida esposa e tudo o mais, ele não podia casar-se com ela, e eu diria também que ele nunca pen­sou nisso... e provavelmente ela também não. Ela era bastante feliz tomando conta das crianças e brigando com ele. Mas ela não gostou quando ele se casou com Brenda. Não gostou nem um pouquinho!

Você e papai também não gostaram — disse Sophia.

Não, é lógico que não gostamos!  Naturalmente!  Mas Edith foi quem mais detestou. Querida, o jeito que eu a vi olhar para Brenda!

Vamos, mamãe — disse Sophia.

Magda dirigiu-lhe um olhar afetuoso e meio de culpa, um olhar de criança mimada e maliciosa.

Ela continuou a falar, sem perceber que mudara comple­tamente de assunto:

Eu resolvi que Josephine precisa ir para uma escola.

Josephine? Para uma escola?

Sim. Para a Suíça. Vou cuidar disso amanhã. Acho que realmente nós devemos tratar do assunto imediatamente. E péssimo para ela estar presenciando estes momentos horrí­veis. Está-se tornando muito mórbida. O de que ela precisa são outras crianças de sua idade. Vida escolar. Eu sempre pensei assim.

Vovô não queria que ela fosse para a escola — disse Sophia lentamente. — Ele era muito contra isto.

O nosso velhinho querido queria que todos ficassem sob suas vistas. Muitas pessoas idosas são assim egoístas. Uma criança deve viver entre outras crianças. E a Suíça é tão sau­dável, com os esportes de inverno, o ar puro, e tantas coisas mais, comida muito melhor do que a daqui!

Não será difícil ir para a Suíça agora com as restri­ções cambiais? — perguntei.

Tolice, Charles. Há uma espécie de acordo educacio­nal... uma troca com uma criança suíça... há várias formas. Rudolf Alstir está em Lausanne. Eu vou telegrafar para ele amanhã para arranjar tudo. Nós poderemos enviá-la já no pró­ximo fim da semana!

Magda desamassou uma almofada, sorriu para nós, foi até a porta, ficou parada um instante olhando para trás de uma maneira encantadora e disse:

—São somente os jovens que importam.

E dito por ela, isto foi uma deixa adorável.

Eles sempre vêm em primeiro lugar. E, queridos, lembrem-se das flores, das gencianas azuis, dos narcisos...

Em novembro? — perguntou Sophia, mas Magda já saíra.

Sophia deu um suspiro exasperado.

Realmente! — disse ela. — Mamãe deixa a gente desesperada! Ela tem essas manias repentinas, envia cen­tenas de telegramas e tudo tem de ser arranjado na última hora. Por que é que Josephine tem de ser mandada para a Suíça assim a toque de caixa?

Ela tem uma certa razão nesta idéia de escola. Eu acho que crianças da idade dela farão muito bem a Josephine.

—Vovô não pensava assim — disse Sophia obstinada.

Eu fiquei ligeiramente irritado.

Minha cara Sophia, você acha que um velho de mais de oitenta anos seja o melhor juiz para o bem-estar de uma criança?

Ele era o melhor juiz para cada um daqui desta casa.

Melhor que sua tia Edith?

Não, talvez não. Ela era a favor da idéia da escola. Eu admito que Josephine se tornou uma criança difícil... ela tem o hábito horrível de viver espionando. Mas eu acho que é porque ela gosta de bancar o detetive.

Teria sido apenas pelo bem-estar de Josephine que Magda tomara aquela decisão repentina? Eu fiquei imaginando. Josephine era surpreendentemente bem informada a respeito dos fatos acontecidos antes do assassinato e que não eram da sua conta. Uma saudável vida escolar, com uma boa quanti­dade de jogos, certamente lhe faria muito bem. Mas eu me pus a imaginar por que a decisão urgente e repentina de Mag­da — a Suíça ficava tão longe...

 

O VELHO DISSERA:

—Deixe-os falar.

Enquanto eu fazia a barba na manhã seguinte, fiquei considerando até onde isso me ajudara.

Edith de Haviland falara comigo — ela me procurara especialmente para isso. Clemency falara comigo (ou fora eu que falara com ela?). Magda num certo sentido falara comigo, isto é, eu fizera parte da audiência para uma de suas represen­tações. Sophia naturalmente falara comigo. Até mesmo Nan­nie falara comigo. Teria eu ficado mais sabido depois de ter falado com todos eles? Teria havido alguma frase ou palavra significantes? Mais, teria havido alguma evidência de uma vaidade anormal em que meu pai tanto confiara? Eu não po­dia ver nada ainda.

A única pessoa que não mostrara absolutamente nenhum desejo de falar comigo, sobre coisa nenhuma, fora Philip. Isso não seria de certa maneira anormal? Ele já devia saber agora que eu queria casar-me com a filha dele. E, no entanto, con­tinuava a proceder como se eu não estivesse na casa. Prova­velmente ele se ressentia com a minha presença ali. Edith de Haviland desculpara-se por ele. Ela dissera que era apenas “uma maneira de ser”. Demonstrara estar preocupada com Philip. Por quê?

Considerei o pai de Sophia. Ele era em todos os sentidos um indivíduo reprimido. Fora uma criança infeliz e invejosa. Fora forçado a se retrair. Refugiara-se no mundo dos livros — num passado histórico. Aquela frieza e reserva estudadas podiam esconder um bom bocado de seus sentimentos apaixo­nados. A falta de motivos financeiros com a morte de seu pai era inconvincente — eu não teria pensado nem por um mi­nuto que Philip Leonides pudesse ter matado o pai porque quisesse ter mais dinheiro do que já tinha. Mas poderia ter havido uma outra razão psicológica profunda que o fizesse desejar a morte do pai. Philip voltara a morar em casa do pai, e mais tarde, devido aos bombardeios, Roger também vol­tara — e Philip fora obrigado a ver, dia após dia, que Roger ainda era o favorito do pai... As coisas podem ter corrido de tal maneira na sua mente torturada que o único alívio possí­vel seria a morte do pai? E, supondo que esta morte incrimi­nasse o seu irmão mais velho? Roger estava precisando de di­nheiro — à beira da falência. Não sabendo nada sobre a úl­tima entrevista entre Roger e o pai e a oferta deste último para ajudá-lo, Philip não poderia ter pensado que os motivos se­riam bastante poderosos e que Roger seria imediatamente o suspeito? Estariam as faculdades mentais de Philip tão con­turbadas que o levassem ao homicídio?

Cortei o queixo com a gilete e soltei um palavrão.

Que diabos eu estava tentando fazer? Tentando culpar o pai de Sophia pelo crime? Não era das coisas mais simpá­ticas de minha parte. Pelo menos não era o que Sophia espe­rava que eu fizesse...

Ou... talvez fosse? Havia algo, sempre houvera algo o tempo todo, por trás do apelo de Sophia. Se houvesse a mais remota suspeita de que seu pai fosse o assassino, então ela ja­mais concordaria em se casar comigo — no caso da suspeita ser verdadeira. E, uma vez que ela era Sophia, arguta e cora­josa, ela queria a verdade, já que a incerteza seria uma barreira eterna e perpétua entre nós. Não tinha ela mesmo dito a mim: “Prove-me que esta coisa pavorosa que eu estou ima­ginando não é verdadeira — mas se for mesmo a verdade, en­tão me prove que é verdade — para que eu possa saber o pior e encará-lo!”?

Será que Edith de Haviland sabia, ou suspeitava, que Philip era o culpado? O que é que ela tinha querido dizer com aquela “quase idolatria”?

E o que é que Clemency tinha querido dizer com aquele olhar estranho que me lançara quando lhe perguntei se ela sus­peitava de alguém e ela me respondera: “Laurence e Brenda são os mais prováveis suspeitos, não são?”

A família inteira queria que fossem Brenda e Laurence, tinha a esperança que fossem Brenda e Laurence, mas na rea­lidade não acreditava que fossem Brenda e Laurence...

E, é lógico, a família inteira podia estar errada, e talvez os criminosos fossem mesmo Laurence e Brenda.

Ou talvez fosse Laurence, e não Brenda...

Esta seria uma solução muito melhor.

Eu acabei de dar umas palmadinhas no queixo cortado e desci para o café, determinado a ter uma entrevista com Lau­rence Brown, o mais cedo possível.

Foi somente depois de beber a minha segunda xícara de café que me ocorreu que a Casa Torta estava também me atin­gindo. Eu, também, queria encontrar não a solução certa mas a solução que melhor me convinha.

Depois do café fui até o vestíbulo e subi as escadas. So­phia me dissera que eu encontraria Laurence dando aulas a Eustace e Josephine na sala de aulas.

Lá em cima eu hesitei um instante em frente à porta de Brenda. Deveria tocar ou bater, ou entrar diretamente? Decidi tratar a casa como um todo integral e não como a parte pri­vada de Brenda.

Abri a porta e entrei. Tudo estava silencioso, parecia não haver ninguém. A minha esquerda, a porta que dava para a grande sala de estar estava fechada. À direita, duas portas aber­tas mostravam um quarto de dormir e um banheiro. O ba­nheiro eu sabia que era o que ficava ao lado do quarto de Aris­tide Leonides, onde a eserina e a insulina eram guardadas. A polícia já terminara de examiná-lo. Empurrei a porta entrea­berta e entrei. Percebi como teria sido fácil para qualquer pes­soa da casa (ou para falar com franqueza também para alguém de fora), chegar até o banheiro sem ser visto.

Fiquei um pouco no banheiro examinando-o. Era suntuosamente decorado com azulejos brilhantes e uma banheira embutida no chão. De um lado havia vários aparelhos elétri­cos: uma caçarola elétrica e uma grelha por baixo de uma cha­leira também elétrica, uma pequena frigideira, uma torradeira tudo o que o criado de quarto de um senhor de idade pu­desse precisar. Na parede, um pequeno armário esmaltado. Eu o abri. Dentro estavam objetos médicos, dois vidros de re­médios, um copinho para lavar os olhos, um conta-gotas e alguns vidrinhos rotulados. Aspirinas, bórax em pó, iodo, esparadrapo etc... Numa prateleira separada estava o estoque de insulina, duas agulhas hipodérmicas e um vidro de éter. Numa terceira prateleira estava um frasco marcado: “Pílulas uma ou duas à noite conforme a receita”. Nesta prateleira sem dúvida estivera o vidro de colírio. Tudo era simples, bem arranjado, fácil para qualquer pessoa pegar o que desejasse. Igualmente fácil para o crime.

Eu podia ter feito o que quisesse com os vidros e depois sair de mansinho outra vez e ninguém nunca saberia que eu estivera ali. Tudo isso, é claro, não era novo para mim, mas me deixou ver o quanto era difícil a tarefa da polícia.

Somente do culpado, ou dos culpados, a gente poderia conseguir algo.

“Sacuda-os — Taverner me dissera. — Faça com que tenham medo. Faça-os crer que nós sabemos de alguma coisa. Mantenha-os sempre em primeiro plano. Mais cedo ou mais tarde, se continuarmos assim, nosso criminoso vai cansar de ficar calado e vai tentar ser ainda mais esperto... e então... nós o pegaremos...”

Bem, até agora o criminoso ainda não reagira a esse tra­tamento.

Saí do banheiro. Ainda não havia ninguém à vista. Fui até o corredor. Passei pela sala de jantar que ficava à esquerda e pelo quarto e o banheiro de Brenda, à direita. Neste últi­mo, uma das empregadas ia e vinha de um lado para outro. A porta da sala de jantar estava fechada. De uma outra peça mais de trás, eu ouvi a voz de Edith de Haviland falando ao telefone com o inevitável peixeiro. Um lanço de escada em es­piral levava ao andar de cima. Subi. Ali estavam o quarto de dormir e a salinha de estar de Edith, eu sabia, mais dois ba­nheiros e o quarto de Laurence Brown. Mais além ainda, um outro lanço curto de escadas descia para uma sala muito grande construída sobre a área de serviço e que era usada como sala de aula.

Parei do lado de fora da porta. Podia-se ouvir a voz de Laurence Brown, um pouco alterada, vinda lá de dentro.

Acho que o hábito de escutar atrás das portas de Jose­phine era contagioso. Sem sentir nenhuma vergonha eu me abaixei até a altura da fechadura e escutei.

Era uma aula de história que estava em curso, e o perío­do em questão era o Diretório francês.

Enquanto ouvia, o espanto fez-me arregalar os olhos. Foi uma surpresa considerável para mim descobrir que Lau­rence Brown era um magnífico professor.

Não sei por que isso me surpreendeu tanto. Apesar de tudo, Aristide Leonides sempre fora um excelente juiz de ho­mens. Apesar de toda a aparência desprezível, Laurence tinha o dom supremo de despertar o entusiasmo e a imaginação de seus alunos. O drama de Thermidor, o decreto que consi­derou Robespierre fora da lei, a magnificência de Barras, a lábia de Fouché e Napoleão, um tenentezinho da artilharia que morria de fome — todos estavam ali, vivos e reais.

De repente Laurence parou, fez uma pergunta a Eustace e a Josephine, fez com que eles se pusessem no lugar de uma e de outras figuras do drama. Se bem que ele não obtivesse muito resultado com Josephine, cuja voz soava como se ela estivesse resfriada, Eustace parecia muito diferente de seu jeito normal Ele mostrava muita cabeça e inteligência e aquele arguto sentido histórico que sem dúvida herdara de seu pai.

Ouvi então as cadeiras sendo empurradas para trás e arranhando o assoalho. Recuei alguns degraus e estava apenas chegando quando a porta se abriu.

Eustace e Josephine saíram.

—Alô — disse eu.

Eustace pareceu surpreso ao me ver.

—Você está procurando alguém? — perguntou poli­damente.

Josephine, sem ligar para mim, foi-se embora.

Eu só queria ver a sala de aula — disse meio sem jeito.

Você já a viu outro dia, não viu? É mesmo uma sala para criancinhas. Antigamente servia de quarto de brinque­dos. Ainda tem uma porção de brinquedos espalhados pelos cantos.

Ele segurou a porta aberta para mim e eu entrei.

Laurence Brown estava de pé ao lado da mesa. Olhou-me, corou, murmurou algo em resposta ao meu bom-dia e saiu apressado.

Você o deixou amedrontado — disse Eustace. — Ele se amedronta com facilidade.

Você gosta dele, Eustace?

Oh! Ele é legal. Mas é meio burro, é claro.

Mas não é um mau professor?

Não, para falar com franqueza, ele é mesmo muito interessante. E sabe um bocado de coisas. Faz a gente ver as coisas por um ângulo diferente. Eu nunca soube que Henri­que VIII tinha escrito poesias... para Anne Boleyn, é lógico... poesia muito bacana.

Nós conversamos mais um pouco sobre outros assuntos como o Velho Marinheiro, de Chaucer, as questões políticas por detrás das Cruzadas, a maneira de encarar a vida na época medieval e, para Eustace, a surpresa de saber que Oliver Cromwell proibira a celebração do Natal. Por trás do ar des­denhoso e quase desagradável de Eustace, eu percebi que ha­via uma mente curiosa e inteligente.

Logo eu também comecei a perceber a razão de seu mau humor. Sua doença não fora apenas uma dura prova, fora igual­mente uma frustração e um passo atrás em sua vida, logo no momento em que ele começava a gozá-la.

Eu estaria no 11°, no ano que vem — e então eu iria para a universidade. É muito chato ter de estudar em casa e estudar com uma criança horrorosa como Josephine. Ima­gine, ela só tem doze anos.

Eu sei, mas vocês não estudam a mesma coisa, não é?

Não, é claro que ela não estuda matemática avançada... ou latim. Mas você não gostaria de dividir um professor com uma menina, não é?

Tentei aplacar seu orgulho masculino ferido, fazendo-o ver que Josephine era uma menina bastante inteligente para a sua idade.

—Você acha? Eu a acho muito errada. É louca por his­tórias de detetives e vive enfiando o nariz em todo canto e es­crevendo coisas num livrinho preto e pretendendo que está descobrindo tudo. É uma menina boba, é isto que ela é — dis­se Eustace muito altivo.

E de qualquer jeito — acrescentou ele — meninas não podem ser detetives. Eu já disse a ela. Acho que mamãe está muito certa e quanto mais cedo mandarem Josephine para a Suíça melhor será.

Você não vai sentir falta dela?

Sentir falta de uma menina daquela idade? — disse Eustace desdenhoso. — É claro que não. Meu Deus, esta casa é o máximo! Mamãe sempre andando para cima e para baixo lá por Londres e chateando uns autores bobocas a reescreverem as peças para ela, e fazendo confusões incríveis absoluta­mente por nada. E papai fechado com os livros dele, às vezes nem escutando o que a gente fala com ele. Eu não sei por que é que eu tenho de carregar este fardo de ter todos estes paren­tes... E tio Roger... tão sincero que faz até a gente estremecer... Tia Clemency é legal, não aborrece ninguém, mas às vezes eu penso que ela é um pouquinho maluca. Tia Edith também não é das piores mas é muito velha. As coisas melhoraram um pouco depois que Sophia voltou... se bem que ela saiba ser muito severa às vezes. Mas é uma família estranha, você não acha? Ter uma madrasta-avó tão moça que podia ser sua tia ou mesmo sua irmã mais velha? Eu quero dizer, isto faz a gente se sentir meio besta!

Eu compreendi os seus sentimentos. Lembrava-me (mui­to vagamente) de minha própria supersensitividade na idade de Eustace. O horror que eu tinha de parecer diferente ou de que meus parentes fossem diferentes do normal.

—E sobre seu avô? — eu perguntei. — Você gostava dele?

Uma expressão curiosa passou pelo rosto de Eustace.

Vovô — disse ele — era definitivamente anti-social!

Em que sentido?

Ele não pensava em nada a não ser em ganhar dinhei­ro. Laurence diz que isto é completamente errado. E ele era também um grande individualista. Tudo isso tende a acabar, você não acha?

—Bem — eu disse bruscamente, — ele acabou.

Uma boa coisa, na verdade — disse Eustace. — Eu não  quero parecer desumano, mas você não pode mais gozar a vida naquela idade!

E ele não gozava?

Não poderia. E de qualquer forma, já era mesmo tem­po de ele ir embora. Ele... — Eustace interrompeu-se quando Laurence voltou à sala de aula.

Laurence pôs-se a remexer nalguns livros, mas eu cal­culei que ele nos estivesse observando pelo rabo do olho.

Olhou para seu relógio de pulso e disse:

Por favor, esteja de volta às onze horas em ponto, Eustace. Nós perdemos muito tempo ultimamente.

Sim, senhor.

Eustace dirigiu-se para a porta e saiu assobiando.

Laurence Brown deu outra olhada furtiva para o meu lado. Passou a língua nos lábios uma ou duas vezes. Eu es­tava convencido de que ele voltara à sala de aula exclusiva­mente para falar comigo.

Com efeito, depois de um arrumar e desarrumar de li­vros absolutamente inútil e um pretenso pretexto de achar um livro que estava faltando, ele falou:

Ahn... Como é que eles estão indo?

Eles?

A polícia.

Torceu o nariz. Um rato numa ratoeira, eu pensei, um rato na ratoeira.

Eles não me fazem muitas confidências — disse eu.

Oh, eu pensei que seu pai fosse o Comissário Assis­tente.

—Ele é, mas naturalmente não revela os segredos oficiais.

Fiz uma voz propositadamente pomposa.

Então você não sabe como... o quê... se... — sua voz sumiu. — Eles não vão deter ninguém, vão?

Que eu saiba não.  Mas, é como eu digo, talvez eu não saiba.

Faça-os ficar com medo, o Inspetor Taverner dissera. Fa­ça-os ficar apavorados. Bem, Laurence Brown estava apavorado mesmo.

Começou a falar depressa e com nervosismo.

—Você não sabe como é... a tensão... sem saber como, isto é, eles entram e saem... Fazendo perguntas... perguntas que aparentemente não têm nada a ver com o caso...

Parou. Esperei. Ele queria falar, muito bem, eu devia deixá-lo falar.

—Você estava aqui outro dia quando o Inspetor-Chefe fez aquela sugestão monstruosa? Sobre a Sra. Leonides e eu? Foi monstruoso. Faz a gente se sentir tão indefeso. Não po­demos impedir que as pessoas pensem coisas assim de nós! E tudo era maldosamente falso! Apenas porque ela é... era... tantos anos mais nova que seu marido. Há pessoas que têm a mente suja... a mente muito suja... Eu sinto... eu não posso deixar de sentir... que tudo isto é uma conspiração.

—Uma conspiração? Que coisa interessante!

Interessante era, mas não no sentido que ele interpretou.

—A família, você sabe, a família do Sr. Leonides nunca teve simpatia por mim. Eles sempre se mantiveram afastados. Eu sempre senti que me desprezavam.

As mãos dele começaram a tremer.

—Só porque eles sempre foram ricos...  e poderosos — olhou para mim. — O que eu era para eles? Apenas um pro­fessor. Apenas um objetar de consciência fracassado. E mi­nhas objeções eram de consciência. Eram mesmo!

Eu não disse nada.

—Muito bem! — ele explodiu. — O que é que tem se eu era... um covarde? Eu tive medo de fazer confusão. Tive medo de que, quando fosse obrigado a puxar o gatilho... eu não fosse capaz de fazê-lo. Como eu podia ter certeza de que era um nazista que eu ia matar? Podia ser algum rapaz de­cente... algum rapaz do campo... que não tivesse pendores po­líticos, apenas chamado para servir à sua pátria? Eu acho que a guerra é um erro, você compreende? Eu penso que é um erro!

Eu continuei em silêncio. Achei que meu silêncio era mais útil que se eu argumentasse ou concordasse com ele. Lau­rence Brown estava discutindo consigo mesmo, e revelava uma boa parte de si próprio.

Todos sempre riram de mim — sua voz estremeceu. — Parece que eu tenho um quê para me fazer ridículo. Não é realmente uma falta de coragem... mas eu sempre faço as coi­sas erradas. Entrei numa casa que estava pegando fogo para salvar uma mulher que estava presa lá dentro. Mas eu me perdi logo na entrada e a fumaça me fez perder os sentidos, e eu dei um trabalhão aos bombeiros para me acharem. Eu os ouvi di­zer: “Por que esse cabeça oca não deixa o trabalho para nós?” Não adianta eu tentar, todos são contra mim. Quem quer que tenha morto o Sr. Leonides arranjou para que eu fosse o sus­peito. Alguém o matou só para me desgraçar.

E sobre a Sra. Leonides? — perguntei.

Ele corou. Tornou-se um pouco menos rato e um pouco mais homem.

—A Sra. Leonides é um anjo — disse ele — um anjo. Sua doçura, sua bondade para o idoso marido eram maravi­lhosas. Pensar nela em conexão com o veneno é ridículo... ri­dículo! E aquele cabeça dura daquele inspetor não é capaz de ver isto!

—Ele tem uma opinião preconcebida — disse eu — pelo número de casos em seus arquivos onde maridos idosos foram envenenados por doces e jovens esposas.

—Um insuportável imbecil! — disse raivoso Laurence Brown.

Ele foi até a estante do canto e começou a remexer nos livros. Eu calculei que não conseguiria mais nada dele. Saí len­tamente da sala.

Ao passar pelo corredor, uma porta à minha esquerda abriu-se e Josephine quase caiu em cima de mim. Sua entrada fora tão precipitada quanto a entrada de um demônio numa pantomima arcaica.

O rosto e as mãos estavam imundos e uma enorme teia de aranha flutuava presa à sua orelha esquerda.

—Onde você estava, Josephine?

Olhei através da porta entreaberta. Uns dois degraus con­duziam a um pátio retangular onde se viam vários tanques grandes.

—Na sala das cisternas.

Por que você estava na sala das cisternas?

Josephine respondeu de maneira muito concisa:

Descobrindo coisas.

—E que diabo de coisas existem na sala das cisternas para serem descobertas?

A isto, Josephine apenas replicou:

Eu preciso lavar-me.

Eu diria que está precisando muito.

Josephine sumiu pela porta do banheiro mais próximo. De lá de dentro olhou para mim e disse:

Eu acho que está na hora do próximo assassinato, você não acha?

O que é que você quer dizer... o próximo assassinato?

Bem, nos livros há sempre um segundo assassinato mais ou menos nessa hora. Alguém que sabe de alguma coisa é eliminado antes que possa contar o que sabe.

—Você lê histórias de detetives demais, Josephine. Na vida real não é assim. E, se alguém nesta casa sabe de algu­ma coisa, a última coisa que fará será falar sobre isto.

A resposta que Josephine deu foi meio confusa devido ao jato d’água da torneira.

— Às vezes é algo que eles não sabem que sabem.

Eu pisquei os olhos ao tentar compreender o significado do que ela dissera. E então, deixando Josephine entregue às suas abluções, eu desci para o andar de baixo.

No instante em que eu estava saindo da porta da escada­ria, Brenda apareceu num suave rumor pela porta da sala de visitas.

Ela chegou perto de mim e pousou a mão em meu bra­ço, me olhando no rosto.

—E então? — perguntou.

Era a mesma procura de informações que Laurence de­monstrara, apenas a pergunta fora formulada de outra forma. E sua única palavra fora mais efetiva.

Eu balancei a cabeça.

—Nada.

Ela deu um suspiro profundo.

—Eu estou com tanto medo, Charles — disse ela. — Eu estou com tanto medo...

O seu medo era mesmo real. Ela me contagiou naquele espaço apertado. Eu queria tranqüilizá-la, ajudá-la. Uma vez mais eu sentia aquele sentimento pungente de sabê-la terrivel­mente sozinha naquele ambiente hostil.

Ela poderia igualmente ter gritado: “Quem está a meu lado?”

E qual teria sido a resposta? Laurence Brown? E quem era, afinal de contas, Laurence Brown? Não era um ponto de apoio num momento de tormenta. O lado mais fraco da corda. Eu me lembrava dos dois passeando no jardim na noite an­terior.

Queria ajudá-la. Queria ajudá-la com todas as minhas forças. Mas não havia muita coisa que eu pudesse fazer ou dizer. E eu tinha no fundo de minha consciência um senti--mento de culpa, como se os olhos desdenhosos de Sophia me estivessem espreitando. Eu me lembrava da voz de Sophia di­zendo: “Então ela conquistou você”.

E Sophia não via, nem queria ver o lado de Brenda na história. Sozinha, suspeita do crime, sem ninguém para ficar a seu lado.

—O inquérito é amanhã. O que... o que vai acontecer?

Neste ponto eu podia ajudá-la.

—Nada — eu garanti. — Você não precisa preocupar-se com isto. Será adiado para a polícia continuar com as inves­tigações. Mas isto vai certamente deixar a imprensa alerta. Que eu saiba, até agora não saiu nada nos jornais que deixas­se entrever que a morte não foi natural. Os Leonides ainda têm um bocado de influência. Mas um inquérito adiado... bem, aí a farra vai começar.

(Que coisas esquisitas que a gente diz! A farra! Por que é que eu tinha de escolher esta palavra?)

Será que... será que vai ser muito ruim?

Eu não daria nenhuma entrevista se fosse você. Sa­be, Brenda, você devia arranjar um advogado...

Ela recuou num gesto de horror.

—Não... não é o que você está pensando. Mas alguém que zele pelos seus interesses e a aconselhe como deve proce­der, o que deve dizer e fazer e o que não deve dizer ou fazer. — Você sabe — eu acrescentei — você está sempre muito só.

Sua mão apertou meu braço com mais força.

—Sim — disse ela. — Você compreendeu isto. Você me tem ajudado, Charles, você me tem ajudado muito...

Eu desci as escadas com um sentimento de calor, de ale­gria... Foi então que vi Sophia parada em frente à porta prin­cipal. Sua voz era fria e bastante seca.

Há quanto tempo você sumiu — disse ela. — Liga­ram para você de Londres. Seu pai quer falar-lhe.

Lá na Yard?

Sim.

Não imagino o que eles queiram comigo. Não dis­seram nada?

Sophia balançou a cabeça negativamente. Seus olhos es­tavam ansiosos. Puxei-a para mim.

—Não se preocupe, querida. Eu voltarei logo.

 

HAVIA UMA FORTE tensão na atmosfera do es­critório de meu pai. O Velho estava sentado à sua escrivaninha. O Inspetor Taverner encostado ao batente da janela. Na cadei­ra destinada aos visitantes estava sentado o Sr. Gaitskill, que parecia contrariado.

—... uma extraordinária falta de confiança — ele estava dizendo acidamente.

É claro, é claro — meu pai falou apaziguador. — Ah, alô, Charles, você veio depressa. Aconteceu um fato bas­tante surpreendente.

Imprecedente — disse Gaitskill.

Alguma coisa havia visivelmente contrariado o pequeno advogado em seu íntimo. Por trás dele, o Inspetor Taverner fez uma careta para mim.

Se eu recapitulasse? — perguntou meu pai. — O Sr. Gaitskill recebeu uma comunicação assaz surpreendente esta manhã, Charles. De um Sr. Agrodopolous, proprietário do restaurante Delphos. É um senhor muito idoso, grego de nascimento, e quando era moço foi ajudado e prestigiado por Aristide Leonides. Ele permaneceu sempre muito agradecido a seu amigo e benfeitor e, ao que parece, Leonides depositava muita confiança nele.

Eu nunca pude imaginar que Leonides fosse assim tão desconfiado e de natureza tão secretiva — disse Gaitskill.

—É claro, ele já estava muito avançado nos anos... praticamente caduco, pode-se dizer.

—A nacionalidade conta — disse meu pai gentilmente.

—Sabe, Gaitskill, quando se fica muito idoso o seu pensamento se volta para os dias de sua juventude e para os amigos de sua juventude.

—Mas os negócios de Leonides estão em minhas mãos há mais de quarenta anos — disse Gaitskill. — Quarenta e três anos e seis meses, para ser exato.

Taverner fez outra careta.

—O que foi que aconteceu? — perguntei.

Gaitskill ia abrindo a boca mas meu pai adiantou-se.

O Sr. Agrodopolous declarou nesta comunicação que estava obedecendo a certas instruções que lhe haviam sido dadas por seu amigo Aristide Leonides. Resumindo, há cerca de um ano, o Sr. Leonides confiou-lhe um envelope selado que ele, Sr. Agrodopolous, deveria entregar ao Sr. Gaitskill imediatamente após a morte do Sr. Leonides. No caso de o Sr. Agrodopolous morrer primeiro, seu filho, um afilhado do Sr. Leonides, deveria executar as mesmas instruções. O Sr. Agrodopolous desculpou-se  pela  demora  mas explicou  que ele estivera doente com pneumonia e só soube da morte de seu velho amigo ontem à tarde.

Tudo isto é muito antiprofissional — disse Gaitskill.

Quando o Sr. Gaitskill abriu o envelope selado e to­mou conhecimento de seu conteúdo, ele decidiu que era seu dever...

Devido às circunstâncias — explicou Gaitskill.

Trazer ao nosso conhecimento os documentos. Eles consistem em um testamento, devidamente assinado com tes­temunhas, e uma carta explicativa.

—Então afinal o testamento apareceu? — perguntei.

O Sr. Gaitskill ficou rubro.

—Não é o mesmo testamento — berrou ele. — Não foi este o documento que eu preparei a pedido do Sr. Leoni­des. Este foi escrito com suas próprias mãos, uma coisa muito perigosa para qualquer leigo fazer. Ao que parece, a intenção do Sr. Leonides era fazer-me de bobo.

O Inspetor Taverner tentou acalmar um pouquinho a amar­gura reinante.

—Ele era um senhor muito idoso, Sr. Gaitskill — dis­se. — Eles ficam meio gagás quando ficam velhos, o senhor sabe... não chegam a caducar de todo, mas ficam um pouqui­nho excêntricos.

Gaitskill fungou.

—O Sr. Gaitskill nos telefonou — disse meu pai — e nos fez tomar conhecimento dos termos principais do testa­mento e eu lhe pedi que viesse até aqui e trouxesse os docu­mentos com ele. Eu também telefonei a você, Charles.

Não imaginei por que era que me tinham telefonado. Parecia-me bastante estranho este procedimento de meu pai e de Taverner. Eu ficaria sabendo mais tarde do testamento, e não era mesmo da minha conta saber o que o velho Leonides tinha feito de seu dinheiro.

É um testamento diferente? — perguntei. — Eu quero dizer, ele dispôs de sua fortuna de outra forma?

Muito diferente — disse Gaitskill.

Meu pai estava olhando para mim. O Inspetor Taverner estava tendo muito cuidado para não olhar para mim. Não sei por que, mas eu comecei a me sentir ligeiramente encabu­lado...

Algo estava-se passando no pensamento deles — e era algo que eu não tinha a mínima idéia do que podia ser.

Olhei inquisitivamente para Gaitskill.

—Não é da minha conta — disse eu — mas...

Ele me respondeu:

As disposições testamentárias do Sr. Leonides não são, é lógico, secretas — disse ele. — Eu achei que era meu dever apresentar os fatos às autoridades policiais primeiro e deixar que me guiassem para o meu procedimento seguinte. Eu creio — fez uma pausa — que há um... certo entendimento eu diria... entre o senhor e a Srta. Sophia Leonides?

Eu espero casar-me com ela — disse eu — porém ela não deseja um noivado neste momento.

Muito adequado — disse Gaitskill.

Eu não concordava com ele. Mas não era este o momento para discutirmos isto.

—Por este testamento — continuou Gaitskill, — da­tado de 29 de novembro do ano passado, o Sr. Leonides, após um dote para sua esposa de cento e cinqüenta mil libras, deixa a sua fortuna inteira, real e pessoal, para sua neta Sophia Katherine Leonides, exclusivamente.

Eu quase me engasguei. Fosse o que fosse que eu estava esperando, não era absolutamente isto.

Ele deixou tudo para Sophia! — exclamei. — Que coisa extraordinária! Alguma razão?

Ele explicou suas razões com muita clareza na carta anexa — disse meu pai e pegou uma folha de papel que es­tava à sua frente na escrivaninha. — O senhor não tem ne­nhuma objeção que Charles leia isto, Sr. Gaitskill?

Eu me pus em suas mãos — disse Gaitskill com frie­za. — A carta pelo menos oferece uma explicação... e pos­sivelmente (se bem que eu tenha minhas dúvidas quanto a isto) uma desculpa para a extraordinária conduta do Sr. Leo­nides.

O Velho me entregou a carta. Estava escrita numa letrinha intricada com uma tinta muito preta. O talhe da letra de­monstrava caráter e individualidade, não era absolutamente a letra de um velho — exceto talvez pelo desenho caprichoso das letras, característico dos tempos antigos, quando a escrita era algo dificilmente adquirido e devidamente valorizado. Dizia:

Caro Gaitskill:

Você vai ficar surpreso ao receber esta carta, e prova­velmente ofendido. Mas eu tenho minhas próprias razões em proceder de uma forma que para você talvez pareça desne­cessariamente secreta. Eu sempre fui uma pessoa que acredita na individualidade. Numa família (isto eu observei durante a minha infância e nunca esqueci), há sempre um caráter mais forte e geralmente cabe a esta pessoa zelar e ter a responsabi­lidade de tomar conta da família. Na minha família eu fui esta pessoa. Vim para Londres, ali me estabeleci, sustentei minha mãe e meus avós idosos em Smyrna, livrei um de meus irmãos das garras da lei, assegurei a liberdade de minha irmã salvan­do-a de um casamento infeliz e muitas coisas assim. Deus foi generoso comigo concedendo-me uma vida longa e eu pude zelar e cuidar de meus filhos e dos filhos de meus filhos. Mui­tos me foram levados pela morte, os outros, e eu sou feliz ao dizê-lo, estão sob o meu teto. Quando eu morrer, a responsa­bilidade que eu tenho deverá recair em outra pessoa. Refleti muito pensando em dividir minha fortuna igualmente entre todos os meus entes queridos — mas fazendo isso eu não es­taria sendo justo com todos. Os homens nascem diferentes uns dos outros. Para compensar a desigualdade natural da Na­tureza, nós precisamos endireitar a balança. Em outras pala­vras, alguém deveria ser o meu sucessor, deveria tomar sobre os ombros o cargo de responsabilidade pelo resto da famí­lia. Depois de uma observação cuidadosa, eu cheguei à con­clusão de que nenhum de meus filhos poderia arcar com esta responsabilidade. Meu muito querido filho Roger não tem nenhum sentido de negócios, e se bem que seja de uma natu­reza muito amável é impulsivo demais para poder julgar os outros. Meu filho Philip é muito inseguro de si mesmo e não é capaz de fazer nada a não ser se encolher perante a vida. Eustace, meu neto, ainda é muito jovem e eu não creio que tenha as qualidades de percepção e julgamento necessárias. Ele é indolente e facilmente influenciável pelas idéias da pri­meira pessoa que encontra. Apenas minha neta Sophia me pa­rece ter as qualidades positivas requeridas. Ela tem cabeça, julgamento, coragem, a mente livre de preconceitos e, penso eu, generosidade de espírito. A ela, eu confio o bem-estar da família — e o bem-estar de minha querida cunhada Edith de Haviland, pela devoção de toda a vida à minha família e a qual eu agradeço de todo o coração. Isto explica o documento anexo. O que será difícil de explicar — ou seja, difícil de ex­plicar a você — é o ardil que eu empreguei. Achei que não devia levantar nenhuma especulação sobre a disposição de minha fortuna, e não tenho a intenção de deixar que minha família saiba que Sophia será a minha herdeira. Uma vez que meus dois filhos já têm consideráveis fortunas pessoais à sua disposição, eu não creio que as minhas, disposições testamen­tárias os coloque numa posição humilhante.

Para abafar a curiosidade e a suspeita, eu lhe pedi que me preparasse um testamento. Este testamento eu leria para toda a família reunida. Poria este testamento sobre a minha mesa, colocaria uma folha de papel sobre ele, e pediria que fossem chamados dois empregados. Quando eles chegassem, eu escorregaria a folha de papel sobre o documento, assinaria meu nome e pediria a eles que assinassem também. Não tenho necessidade de acrescentar que o testamento que eu e eles havíamos assinado seria o testamento que eu agora anexo a esta carta e não o que você preparara e que eu lera em voz alta.

Eu sei que não espero que você vá compreender o que me levou a executar tal coisa. Eu lhe pedirei apenas que me perdoe por deixá-lo às escuras. Um velho homem gosta de guar­dar seus pequenos segredos.

Obrigado, meu velho amigo, pela assiduidade que você sempre dedicou aos meus negócios. Transmita a Sophia o meu amor. Peça-lhe que vele pelo bem da família e proteja-a de todos os males.

Seu amigo sincero,

Aristide Leonides

Li este estranho documento com imenso interesse.

Extraordinário! — exclamei.

Extremamente extraordinário — disse Gaitskill, le­vantando-se. — Eu repito, penso que meu velho amigo Leo­nides devia ter confiado em mim.

Não, Gaitskill — disse meu pai. — Ele era um enro­lado nato. Gostava, eu diria, de fazer as coisas sempre meio fora da lei.

Isto mesmo, senhor — disse o Inspetor Taverner. — Se havia alguém enrolado neste mundo, era ele — acres­centou com convicção.

Gaitskill saiu altivamente sem se acalmar. Ele fora ferido no mais profundo âmago de seus sentimentos profissionais.

Ele foi ferido fundo — disse Taverner. — É uma firma muito respeitável, a Gaitskill, Callum & Gaitskill. Com eles não se fazem trapaças. Quando o velho Leonides fazia uma transação duvidosa, ele nunca a fazia através da Gaitskill, Callum & Gaitskill. Ele tinha uma meia dúzia de firmas de ad­vocacia diferentes que atuavam para ele. Oh, como ele era en­rolado!

E nunca o provou tanto como quando fez este testa­mento — disse meu pai.

Nós fomos uns tolos — disse Taverner. — Pensando melhor, a única pessoa que podia ter feito algum truque com o testamento era o próprio velho. Apenas a idéia não nos ocor­reu nunca!

Eu me lembrei do sorriso superior de Josephine ao dizer:

—A polícia não é burra?

Mas Josephine não estivera presente no momento da as­sinatura do testamento. E mesmo que ela estivesse do lado de fora da porta escutando (o que eu estava certo a acreditar) ela dificilmente poderia adivinhar o que seu avô estava fazendo. O que é que ela sabia que a fizera dizer que a polícia era es­túpida? Ou novamente talvez ela se estivesse mostrando?

Surpreso pelo silêncio que havia na sala, levantei os olhos rapidamente — ambos, meu pai e Taverner, me observavam. Não sei o que havia neles que me obrigou a deixar escapar um desafio:

Sophia não sabia de nada sobre isto! Absolutamente de nada!

Não? — disse meu pai.

Eu não soube se ele estava concordando ou se pergun­tara algo.

Ela ficará absolutamente estarrecida!

Será?

Estarrecida!

Houve uma pausa. Então, numa dissonância repentina o telefone da mesa de meu pai soou.

—Sim? — Ele ergueu o receptor, escutou e disse: — Pode ligar.

Olhou para mim.

—É a sua jovem — disse ele. — Ela quer falar conos­co. É urgente.

Eu peguei o aparelho de suas mãos.

—Sophia?

—Charles? É você? É... Josephine! — a voz dela es­tremeceu  ligeiramente.

O que houve com Josephine?

Ela foi ferida na cabeça. Concussão. Ela... ela está muito mal... Eles dizem que talvez ela não recobre a cons­ciência...

Eu me virei para os dois.

—Josephine foi posta a nocaute — eu disse.

Meu pai pegou o aparelho de minha mão. Disse seca­mente para mim:

—Eu lhe disse para ficar de olho naquela criança...

 

SEM PERDA DE TEMPO, Taverner e eu estávamos cor­rendo num veloz carro da polícia em direção a Swinly Dean. Eu me lembrei de Josephine, saindo do pátio das cisternas e seu comentário frívolo de que “estava na hora do segundo cri­me”. A pobre criança não tinha idéia de que seria ela a vítima do “segundo crime”.

Eu aceitei plenamente a reprimenda que meu pai tacitamente me deu. É claro que eu devia ter ficado de olho em Josephine. Apesar de nem eu nem Taverner termos a mínima pista quanto ao envenenador do Sr. Leonides, era bastante possível que Josephine tivesse. O que eu tomara por uma tolice infantil e “exibição” poderia muito bem ser algo diferente. Jo­sephine, praticando o seu esporte favorito de espionar e bisbilhotar, poderia ter ficado de posse de alguma informação a que talvez nem ela própria houvesse atribuído o valor devido.

Eu me lembrei do raminho que estalara no jardim.

Eu tivera o pressentimento que o perigo estava por perto. Agi assim naquele instante, mas depois, minhas suspeitas me pareceram melodramáticas e irreais. Pelo contrário, eu deveria ter imaginado que houvera um crime, e quem o tivesse cometido pusera o seu pescoço em perigo, e conseqüentemente esta mesma pessoa não hesitaria em repetir o crime se assim a sua segurança fosse garantida.

Talvez Magda, por algum obscuro instinto materno, per­cebesse que Josephine estava em perigo, e talvez tenha sido este o motivo de sua febril e súbita impetuosidade de enviar a criança para a Suíça.

Sophia veio à porta para nos receber. Josephine, disse ela, fora levada de ambulância para o Hospital Geral de Mar­ket Basing. O Dr. Gray lhes poria ao corrente o mais rápido possível sobre o resultado das radiografias.

—Como foi que aconteceu? — perguntou Taverner.

Sophia guiou-nos até os fundos da casa e por uma porta entramos num pequeno pátio abandonado. Em um canto havia uma outra porta entreaberta.

—Era uma espécie de lavandaria — explicou Sophia. — Há um buraco para o gato passar na parte de baixo da porta e Josephine costumava pendurar-se nela e balançar para frente e para trás.

Eu me lembrei que também gostava de balançar nas por­tas na minha própria infância.

A lavandaria era pequena e bastante escura. Havia alguns caixotes de madeira, uma mangueira velha, alguns instrumentos de jardinagem abandonados e uns móveis quebrados. Ao lado da porta havia um leão de mármore que servia de calço para portas.

—E o calço da porta da frente — explicou Sophia. — Deve ter sido posto em equilíbrio no alto da porta.

Taverner passou a mão por cima da porta. Era uma por­ta baixa, a parte de cima ficava apenas a uns trinta centíme­tros acima de sua cabeça.

—Uma armadilha — disse ele.

Balançou a porta, experimentando-a para um lado e para outro. Depois, inclinou-se sobre o bloco de mármore mas não o tocou.

—Alguém mexeu nele?

Não — disse Sophia. — Eu não deixaria que nin­guém o tocasse.

Muito bem. Quem foi que a encontrou?

Fui eu. Ela não apareceu para almoçar à uma hora da tarde. Nannie estava chamando. Ela passara pela cozinha e fora para o pátio das estrebarias mais ou menos uns quinze minutos antes. Nannie me dissera: “Ela deve estar-se balan­çando novamente naquela porta” e eu vim aqui buscá-la.

Sophia fez uma pausa.

—Ela tinha o hábito de brincar assim, você disse? Quem sabia disto?

Sophia balançou os ombros.

Eu acho que todos aqui em casa, creio eu.

Quem mais usa esta lavandaria? Jardineiros?

Quase ninguém põe os pés aqui.

E este pequeno pátio não é visto da casa — resumiu Taverner. — Qualquer um poderia ter saído de casa ou dado a volta pela frente e preparado a armadilha. Mas seria arris­cado...

Ele parou, olhando para a porta e balançou-a levemente de um lado para outro.

—Não se podia ter certeza. Acertar ou errar. E era mais provável errar do que acertar. Mas ela não teve sorte. Com ela foi acertar.

Sophia estremeceu.

Ele olhou para o chão. Havia várias marcas no solo.

Parece que alguém andou experimentando antes... para ver como iria cair... O barulho não chegaria até a casa.

Não, nós não ouvimos nada. Não tínhamos idéia de que havia algo errado até que eu vim até aqui e a encontrei deitada de bruços... estatelada — a voz de Sophia tremeu um pouco. — Havia sangue em seus cabelos.

Este lenço é dela? — Taverner apontou para um ca­checol de lã xadrez no chão.

—Sim.

Usando o cachecol ele pegou o bloco de mármore cuida­dosamente.

—Pode ser que tenha impressões digitais — disse ele, falando com pouca esperança. — Mas eu creio que quem quer que tenha feito isso foi... cuidadoso.

Virou-se para mim:

—O que é que você está olhando?

Eu estava olhando para uma cadeira de cozinha com o encosto quebrado que estava entre as coisas abandonadas. No assento havia algumas marcas de terra...

—Curioso — disse Taverner. — Alguém ficou de pé nesta cadeira com pés enlameados. Por que razão?

Ele balançou a cabeça.

Que horas eram quando a encontrou, Srta. Leonides?

Deve ter sido à uma e cinco.

E a sua Nannie viu-a saindo vinte minutos antes. Qual foi a última pessoa que esteve antes disso na lavandaria?

Não tenho idéia. Provavelmente a própria Josephine. Ela estava-se balançando na porta esta manhã depois do café, eu sei.

Taverner aquiesceu com a cabeça.

—Então desta hora até um quarto para a uma alguém preparou a armadilha. A senhorita disse que este pedaço de mármore serve de calço para a porta da entrada? Tem idéia de quando deu falta dele?

Sophia balançou negativamente a cabeça.

A porta não foi aberta totalmente durante o dia in­teiro. Fez muito frio.

Tem alguma idéia de onde estavam as pessoas da casa hoje de manhã?

Eu saí para dar um passeio. Eustace e Josephine ti­veram aulas até as doze e meia, com uma pausa às dez e meia. Papai, eu penso, esteve na biblioteca a manhã inteira.

Sua mãe?

Ela estava saindo do quarto de dormir quando eu voltei do passeio... devia ser meio dia e quinze. Ela não se le­vanta muito cedo.

Nós entramos na casa outra vez. Segui Sophia até a bi­blioteca. Philip, muito pálido e ansioso, estava sentado na ca­deira de costume.

Magda, encolhida sobre seus joelhos, chorava baixinho. Sophia perguntou:

—Eles já telefonaram do hospital?

Philip abanou a cabeça.

Magda soluçou:

Por que não me deixaram ir com ela? Meu bebezi­nho... meu bebezinho feio e engraçado. E eu gostava de brin­car com ela dizendo que tinha sido trocada pelas fadas e ela ficava furiosa. Como eu pude ser tão cruel? E agora ela vai morrer... Eu sei que ela vai morrer!

Vamos, meu bem — disse Philip.  — Tenha calma.

Eu senti que não havia lugar para mim nesta cena fa­miliar de ansiedade e desespero. Saí mansamente e fui procu­rar Nannie. Ela estava sentada na cozinha chorando baixinho.

—É um castigo para mim, Sr. Charles, pelas coisas hor­ríveis que eu estava pensando. Um castigo, é isto que é.

Não tentei decifrar o seu significado.

Há maldade nesta casa. É isto que há. Eu não queria ver nem acreditar. Mas só vendo para crer. Alguém matou o patrão e este mesmo alguém tentou matar Josephine.

Por que será que tentaram matar Josephine?

Nannie puxou um canto do lenço de um olho e me deu uma olhada perspicaz.

—O senhor sabe muito bem como ela é, Sr. Charles. Ela gosta de saber de tudo. Ela sempre foi assim, mesmo quando era um tiquinho de gente. Costumava esconder-se embaixo da mesa de jantar e ouvir o que as criadas falavam e depois fazia chantagem com elas. Fazia com que ela se sen­tisse importante. Sabe? Ela foi muito abandonada pela pa­troa. Não era uma criança bonita como as outras duas. Sem­pre foi uma menininha feia. Uma bruxinha, a patroa costu­mava chamá-la. Eu sempre achei ruim com a patroa por isto, pois eu acho que deixa as crianças amargas. Mas de uma for­ma engraçada, ela se vingava descobrindo coisas sobre as pes­soas e deixando que elas soubessem que ela sabia. Mas isto não é uma coisa a se fazer quando há um envenenador por aí!

Não, não era uma coisa a se fazer! E isto me trouxe ou­tra coisa à cabeça. Perguntei a Nannie:

Você sabe onde ela guarda um livrinho preto... um livrinho de notas onde ela costuma escrever as coisas que des­cobre?

Eu sei o que o senhor quer dizer, Sr. Charles. Muito manhosa é que ela é, sabe? Eu a via chupando a ponta do lá­pis e escrevendo no livrinho e chupando outra vez o lápis. E “não faça isso”  eu dizia, “você vai-se envenenar com o chumbo” e “não, eu não vou não” ela dizia, “porque não é mesmo chumbo no lápis, é grafita” apesar de eu não saber por que é que é assim, pois se chamamos um lápis de ponta de chumbo é porque deve haver chumbo nele.

Você pensa que é assim — concordei eu — mas na verdade ela tinha razão (Josephine sempre tinha razão!) — E sobre o livrinho? Você sabe onde ela costuma guardá-lo?

Não tenho idéia, senhor. É outra das coisas em que ela é ardilosa.

Não estava com ela quando foi encontrada?

Oh, não, Sr. Charles, não havia nenhum livro.

Será que alguém pegara o livrinho? Ou talvez ela o es­condera em seu quarto? Tive a idéia de ir procurá-lo lá. Eu não tinha certeza de qual era o quarto de Josephine mas he­sitei ao ouvir a voz de Taverner me chamando do corredor.

—Venha cá — disse ele. — Eu estou no quarto da me­nina. Você já viu coisa igual?

Eu cheguei à porta e parei estarrecido.

O pequeno quarto parecia que recebera a visita de um furacão. As gavetas da cômoda estavam puxadas e seu con­teúdo esparramado pelo chão. O colchão e as cobertas tinham sido arrancados da caminha. Os tapetes estavam empilhados. As cadeiras estavam de pernas para cima, os quadros arran­cados das paredes, as fotografias arrancadas das molduras.

— Deus do Céu! — exclamei — Que foi isto?

O que é que você acha?

Alguém estava procurando alguma coisa.

—Exatamente.

Eu dei uma olhada em torno e assobiei.

—Mas quem poderia ter... Certamente ninguém poderia entrar aqui e fazer esta bagunça sem que fosse ouvido... ou visto?

—Por que não? A Sra. Leonides passa a manhã inteira no quarto, fazendo as unhas e telefonando para as amigas e brincando de experimentar suas roupas. Philip senta-se na biblioteca enfiado nos livros. A empregada está na cozinha descascando batatas e cortando vagens. Numa família em que cada um conhece os hábitos dos outros isso seria muito fácil. E eu lhe digo uma coisa. Qualquer um desta casa podia ter feito este trabalhinho... ter preparado a armadilha para a me­nina e revistado seu quarto. Mas era alguém que estava com pressa, alguém que não teve tempo de dar uma busca minu­ciosa.

—Qualquer um da casa, você acha?

—Sim, eu já chequei todos. Cada um tem um tempi­nho que não pode provar onde estava. Philip, Magda, a em­pregada, sua moça. Lá em cima a mesma coisa. Brenda pas­sou a maior parte da manhã sozinha. Laurence e Eustace ti­veram meia hora de recreio — das dez e meia às onze... você esteve com eles parte deste tempo... mas não o tempo todo. A Srta. de Haviland estava no jardim sozinha. Roger estava em seu estúdio.

Então somente Clemency estava em Londres no tra­balho.

Não, nem ela saiu hoje.  Ficou em casa o dia todo com dor de cabeça; estava sozinha no quarto com a sua dor de cabeça! Qualquer um deles... qualquer um desses desgra­çados! E eu não sei qual deles! Não tenho idéia. Se eu soubes­se o que é que eles estavam procurando aqui...

Seus olhos deram a volta do quarto desarrumado.

—E se eu soubesse se eles encontraram o que queriam...

Algo estalou em minha cabeça — um pensamento...

Taverner interrompeu-o ao me perguntar:

O que é que esta menina estava fazendo quando você a viu pela última vez?

Espere — disse eu.

Saí do quarto às pressas e subi as escadas. Passei pela porta da esquerda e fui até o andar de cima. Empurrei a porta da sala das cisternas, subi os dois degraus e, baixando a ca­beça porque o teto era muito baixo e sujo, dei uma olhada em torno.

Josephine dissera quando eu lhe perguntara o que ela estava fazendo ali que ela estava “procurando pistas”.

Eu não sabia o que ela podia estar procurando naquela sala cheia de teias de aranha e tanques cheios d’água. Mas uma tal peça daria um bom esconderijo. Considerei provável que Josephine tivesse escondido alguma coisa por ali, alguma coisa que ela sabia muito bem que não era da sua conta. Se assim fosse, eu não deveria levar muito tempo para encontrar.

Só levei três minutos. Enfiado por detrás do tanque maior, de onde saía um assobio sibilante que acrescentava uma nota fantasmagórica à atmosfera, eu encontrei um maço de cartas enroladas num pedaço de papel pardo.

Li a primeira carta:

Oh, Laurence — meu querido, meu único e verdadeiro amor... Foi maravilhoso a noite passada quando você citou aquele verso de poesia. Eu sabia que era dirigido para mim, apesar de você nem me ter olhado. Aristide disse: “Você lê versos muito bem”. Ele não adivinhou o que ambos estáva­mos sentindo. Meu querido, eu tenho certeza de que breve­mente tudo vai dar certo. Nós poderemos alegrar-nos que ele não tenha sabido nunca e que morreu feliz. Ele foi bom para mim. Eu não quereria que ele sofresse. Mas eu não penso mes­mo que se possa retirar algum prazer da vida depois dos oi­tenta anos. Eu não quereria! Breve nós estaremos juntos para sempre. Como vai ser maravilhoso quando eu puder dizer a você: meu marido adorado... Meu amor, nós fomos feitos um para o outro, eu te amo, eu te amo, eu te amo — eu sei que nosso amor não tem fim, eu...

Havia muito mais, mas eu não quis continuar.

Fazendo uma careta, desci as escadas e joguei o pacote nas mãos de Taverner.

—É possível — disse eu — que fosse isto o que o nosso amigo desconhecido estivesse procurando.

Taverner leu alguns trechos, assobiou e remexeu entre as várias cartas.

Então foi que olhou para mim com a expressão de um gato que acabava de ser alimentado com o melhor dos cremes.

—Bem — disse ele mansamente, — isto liquida as es­peranças da Sra. Brenda Leonides. E também as do Sr. Lau­rence Brown. Então eram eles, o tempo todo...

 

PARECEU-ME ESTRANHO, ao olhar para trás, como a minha piedade e simpatia por Brenda Leonides desapare­ceram repentinamente com a descoberta de suas cartas, das cartas que ela escrevera para Laurence Brown. Teria sido a minha vaidade ferida que não agüentara a revelação de que ela amava Laurence com uma paixão boba e piegas e que me mentira deliberadamente? Eu não sei. Não sou um psicólogo. Prefiro acreditar que foi o pensamento em Josephine, ferida de maneira cruel por alguém que queria silenciá-la, que apa­gara os últimos vestígios de minha simpatia.

Se me perguntarem, eu diria que Brown preparou a armadilha — disse Taverner — e isto explica o que foi que me intrigou.

O que foi que o intrigou?

Bem, era uma coisa tão boba. Olhe só, se a garota passou a mão naquelas cartas — cartas que eram absolutamente infernais! — a primeira coisa a fazer era tentar reavê-las — (afinal de contas a menina pode falar sobre as cartas, mas se não tem nada a mostrar, vão dizer que ela estava romancean­do), porém você não pode reavê-las porque não sabe onde estão. Então a única coisa a fazer é desembaraçar-se de vez da menina. Você já cometeu um crime e não vai ter muitos escrúpulos para cometer um outro. Você sabe que ela gosta de se balançar na porta de um pátio onde ninguém vai. A coisa ideal é ficar escondido atrás da porta e abatê-la quando vier com um pedaço de pau ou uma barra de ferro, ou ainda um pedaço de mangueira no pescoço. Estava tudo ali à mão. Por que mexer com um leão de mármore pendurado numa por­ta e que pode muito bem falhar completamente ou, se chegar a acertá-la, poderia fazer o serviço incompleto (que foi o que acabou acontecendo)? Eu lhe pergunto: por quê?

Bem — disse eu, — qual é a resposta?

A única idéia que eu tive foi que alguém tentou ajei­tar isto com o álibi de outra pessoa. Alguém teria um álibi formidável no momento em que Josephine estava sendo posta fora de combate. Mas isto não adiantou nada porque, para co­meçar, ninguém tem álibi de espécie alguma, e segundo, al­guém havia de procurar a menina na hora do almoço e encon­traria a armadilha e o bloco de mármore, e todo o modus operandi iria por água abaixo. É claro, se o assassino tivesse ti­rado o bloco antes de a menina ser encontrada, então talvez nós tivéssemos ficado na mão. Mas da maneira que foi, a coisa toda não faz sentido.

Ele estendeu as mãos.

E qual é a sua explicação?

O elemento pessoal. Idiossincrasia pessoal. Laurence Brown é excêntrico. Não gosta de violência... não consegue se forçar a praticar uma violência. Literalmente, ele não po­deria ficar atrás da porta e dar uma pancada na cabeça da me­nina. Poderia ter preparado a armadilha e ido embora para não ver o resultado.

Sim, eu entendo — eu disse devagar. — É a eserina na garrafa de insulina outra vez?

Exatamente.

Você acha que ele fez isso sem que Brenda soubesse?

Isso explicaria por que ela não jogou fora a garrafi­nha de insulina depois. É claro, é possível que eles tenham combinado tudo entre si... ou talvez ela mesma tenha pensado no veneno... uma morte fácil e suave para o seu marido velho e cansado e a melhor das melhores como solução! Mas eu aposto que não foi ela que arrumou a armadilha. Mulheres nunca confiam em coisas mecânicas que funcionem bem. E elas têm razão. Eu mesmo acho que a eserina foi idéia dela mas que obrigou o seu escravo abobalhado a fazer a troca. Ela é do tipo que consegue geralmente evitar qualquer coisa que as com­prometa. E assim, elas se conservam sempre com a consciên­cia tranqüila.

Fez uma pausa e continuou:

—Com aquelas cartas eu acho que o Promotor Público dirá que nós já temos um caso. Eles vão ter um trabalhinho para se explicarem! Então, se a garota se recuperar, tudo vai ficar azul outra vez! — ele me deu uma olhada meio de lado. — Que tal é ficar noivo de um milhão de libras?

Eu pisquei. Na excitação das últimas horas, eu esquecera completamente os problemas do testamento.

Sophia ainda não sabe — eu disse. — Você quer que eu lhe dê a notícia?

Ouvi dizer que Gaitskill vai dar a triste (ou alegre?) notícia amanhã depois do inquérito.

Taverner fez uma pausa e olhou-me pensativo.

— Eu estou imaginando — disse ele — quais serão as reações da família?

 


Capítulo 20

O INQUÉRITO passou-se mais ou menos como eu previra. Foi adiado a pedido da polícia.

Estávamos todos alegres porque as notícias que vieram do hospital diziam que os ferimentos de Josephine eram bem menos sérios do que se imaginara e que sua convalescença seria rápida. No momento, o Dr. Gray dissera, ela não po­dia receber visitas — nem mesmo de sua mãe.

—Principalmente de sua mãe — murmurara Sophia para mim. — Eu chamei a atenção do Dr. Gray para isso. De qualquer maneira, ele conhece mamãe.

Acho que a olhei meio em dúvida, porque Sophia disse bruscamente:

Por que este olhar de censura?

Bem... certamente a mãe...

Eu fico muito satisfeita de você ter certas idéias simpáticas e antiquadas, Charles. Mas você ainda não sabe do que mamãe é capaz. A queridinha não pode evitar mas haveria infalivelmente uma grande cena dramática. E cenas dramáticas não são o que há de melhor para alguém que está convalescendo de um ferimento na cabeça.

Você pensa em tudo, não é, meu amor?

Bem, alguém tem de pensar agora que vovô morreu.

Olhei para ela pensativo. Vi que a argúcia do velho Leo­nides não o abandonara. O fardo de responsabilidade já es­tava sobre os ombros de Sophia.

Depois do inquérito, Gaitskill acompanhou-nos de volta aos Três Oitões. Pigarreou e disse:

—Há uma participação que é meu dever fazer a vocês todos.

Para isto, toda a família reuniu-se na sala de visitas de Magda. Eu senti neste instante as sensações bastante agradá­veis do homem que está por detrás dos bastidores. Eu já sabia o que Gaitskill ia dizer.

Preparei-me para observar as reações de cada um.

Gaitskill foi lacônico e seco. Qualquer sinal pessoal de aborrecimento foi muito bem escondido. Ele leu primeiro a carta de Aristide Leonides e depois o próprio testamento.

Foi muito interessante observá-los. Só desejei que meus olhos vissem todos ao mesmo tempo.

Não prestei muita atenção a Brenda e Laurence. O di­nheiro para Brenda neste testamento era igual ao outro. Olhei primeiro para Roger e Philip, e depois para Magda e Clemency.

Minha primeira impressão foi de que todos se compor­taram muito bem.

Os lábios de Philip estavam apertados, sua bela cabeça recostada contra a cadeira alta em que estava sentado. Ele não falou nada.

Magda, pelo contrário, prorrompeu num discurso assim que Gaitskill acabou de falar, sua voz cheia emergindo sobre todos os tons como uma maré de enchente sobre um riachinho.

—Sophia querida... Que coisa extraordinária!... Que romântico... Imagine, o nosso velhinho como foi manhoso e trapaceiro... como um menininho esperto. Será que ele não confiava em nós? Será que ele achava que nós iríamos passá-lo pra trás? Ele nunca pareceu gostar mais de Sophia do que de qualquer um de nós. Mas, realmente, como isso é dramático!

De repente, Magda ficou de pé de um salto, dançou em volta de Sophia e fez-lhe uma grande reverência.

—Madame Sophia, a sua mãe pobre e sem tostão pede-lhe uma esmolinha.

Passou a falar em gíria:

—Me dá uma grana, queridinha. Sua mãezinha quer ir ao cinema...

Sua mão, em forma de garra, estalava para Sophia com ânsia.

Philip, sem se mexer, falou através dos lábios semicer­rados:

Por favor, Magda, não há necessidade de bancar a palhaça.

Oh, mas Roger! — disse Magda, virando-se de re­pente para Roger. — Pobre Roger querido! O velhinho ia so­corrê-lo e agora, antes que ele pudesse fazer alguma coisa, morreu. E agora Roger não tem nada, Sophia.

Virou-se impetuosamente para Sophia:

Você precisa fazer alguma coisa por Roger!

Não! — disse Clemency. Ela dera um passo à frente. Seu rosto era um desafio. — Nada. Absolutamente nada.

Roger veio para perto de Sophia bamboleando como um ursão simpático.

Tomou-lhe as mãos afetuosamente.

—Eu não quero um níquel, minha menina. Assim que este negócio terminar... ou se apagar, que é o que parece que vai acontecer... então Clemency e eu vamos para as Índias Ocidentais e para uma vida simples. Se eu me vir mesmo em apuros sérios, pedirei ajuda à cabeça da família — ele lhe fez uma careta de simpatia — mas até lá, eu não quero um tos­tão. Eu sou realmente uma pessoa muito simples, minha que­ rida, pergunte só a Clemency.

Uma voz inesperada interrompeu-os. Era Edith de Havi­land.

Tudo isto está muito bom — disse ela. — Mas vocês precisam prestar atenção a uma coisa. Se você for à falência, Roger, e depois escapulir para o outro lado do mundo sem que Sophia lhe dê uma ajuda, haverá um falatório tão grande que não vai ser agradável para ela.

E o que importa a opinião alheia? — perguntou Cle­mency desdenhosa.

Nós sabemos que para você não importa, Clemency — disse Edith de Haviland secamente, — mas Sophia vive neste mundo. Ela é uma moça que tem cabeça e bom coração e eu não tenho dúvidas de que Aristide estava certo quando escolheu-a para cuidar da fortuna da família... se bem que pas­sar por cima de seus dois filhos ainda vivos nos pareça estra­nho para nossas idéias inglesas... mas eu acho que seria muito triste se ela demonstrasse avareza quanto a esta questão... e deixar Roger arrebentar-se sem tentar ajudá-lo,

Roger aproximou-se da tia. Pôs as mãos sobre seus ombros e apertou-a contra si.      

—Tia Edith — disse ele, — a senhora é uma lutadora teimosa e é um amor, mas ainda não começou a compreender. Clemency e eu sabemos o que queremos... ou o que não que­remos!

Clemency, um toque colorido aparecendo de repente em seu rosto, ficou de pé num desafio em frente de todos.

—Nenhum de vocês — disse ela — compreende Ro­ger. Nunca compreenderam! E eu acho que não compreen­derão nunca! Venha, Roger.

Eles deixaram a sala enquanto Gaitskill pigarreava e re­mexia em seus papéis. Sua atitude era a da mais profunda censura. Ele não gostara muito da cena anterior. Isto estava claro.

Meus olhos foram então para Sophia. Ela estava de pé muito bonita e espigada, perto da lareira, o queixo erguido, os olhos firmes. Acabara de herdar uma imensa fortuna mas o meu pensamento principal era como ela se tornara de re­pente tão sozinha. Entre ela e sua família fora criada uma bar­reira. De hoje em diante, ela se dividira deles e eu calculei que ela já sabia disso e encarava o fato como consumado. O velho Leonides colocara o fardo sobre seus ombros — ele sa­bia disto e ela também. Ele acreditava que seus ombros eram fortes o bastante para agüentá-lo mas neste exato momento eu sentia uma pena indescritível dela.

Até então ela não dissera nada — na verdade, ninguém lhe dera uma oportunidade, mas brevemente ela seria obri­gada a falar. Já, agora, por baixo da afeição familiar, eu podia sentir uma hostilidade latente. Mesmo no ato gracioso repre­sentado por Magda, eu percebi uma malícia sutil. E havia muitas outras coisas obscuras que ainda não tinham vindo à tona.

Os pigarros do Sr. Gaitskill deram lugar a um discurso preciso e comedido.

—Permita-me dar-lhe os parabéns, Sophia — disse ele. — Você é agora uma mulher muito rica. Eu a aconselho a não tomar nenhuma... ahn... decisão precipitada. Posso adian­tar-lhe o dinheiro de que você necessitar no momento para as primeiras despesas. Se você quiser discutir arranjos futu­ros, eu ficarei muito feliz de dar-lhe os melhores conselhos que estiverem ao meu alcance. Marque uma hora comigo no Hotel Lincoln quando você tiver um tempo livre para pormos tudo em dia.

 —Roger... — começou obstinadamente Edith de Ha­viland.

Gaitskill interrompeu-a rapidamente.

—Roger — disse ele — precisa arranjar-se sozinho. Ele é um homem adulto... ahn... tem cinqüenta e quatro anos, eu creio. E Aristide Leonides estava certo, vocês sabem dis­to. Ele não é um homem de negócios e nunca o será.

Olhou para Sophia:

 —Se você puser a Associação de Fornecedores outra vez de pé, não tenha ilusões de que Roger poderá dirigi-la sa­tisfatoriamente.

—Eu nem sonharia de levantar outra vez a Associa­ção de Fornecedores — disse Sophia.

Era a primeira vez que ela falava. Sua voz era viva e co­mercial.

—Seria uma coisa estúpida a fazer — acrescentou.

Gaitskill deu-lhe uma olhada por baixo das sobrance­lhas e sorriu consigo mesmo. Então ele deu até logo para todos e saiu.

Houve alguns minutos de silêncio, a certeza de que a fa­mília estava sozinha.

Foi quando Philip ergueu-se muito empertigado.

Preciso voltar à biblioteca — disse ele. — Já perdi muito tempo.

Papai... — Sophia falou incerta, quase suplicante.

Eu senti que ela estremeceu e recuou ao Philip dirigir-lhe um olhar hostil e frio.

—Você deve desculpar-me por não lhe dar os parabéns — disse ele. — Mas isso foi um grande choque para mim. Não acreditaria nunca que meu pai pudesse humilhar-me tan­to... que ele não tivesse levado em conta a minha devoção de toda a vida... sim... devoção.

Pela primeira vez, o homem verdadeiro quebrou aquela crosta de gelo que o cercava.

Meu Deus! — gritou ele. — Como ele pôde fazer isso comigo? Sempre foi injusto comigo... sempre!

Oh, não,  Philip,  não, você não deve pensar assim! — gritou Edith de Haviland. — Não olhe isso como um menos­prezo. Não foi. Quando as pessoas envelhecem, voltam-se na­turalmente para a geração mais nova... Eu lhe garanto que foi apenas isso... E além disso, Aristide tinha um senso para negócios muito grande. Eu sempre o ouvi dizer que pagar dois direitos sobre a herança...

—Ele nunca ligou para mim — disse Philip. Sua voz era baixa e rouca. — Foi sempre Roger... Roger. Bem, pelo menos...

Uma expressão extraordinária de rancor desfigurou-lhe o rosto bonito.

Papai percebeu que Roger era um tolo e um fracas­sado. Ele também deserdou Roger.

E eu então? — disse Eustace.

Eu mal reparara em Eustace até agora, mas percebi que ele estava tremendo com alguma emoção violenta. Seu rosto estava rubro e, havia, creio eu, lágrimas em seus olhos. Sua voz tremia quando ele falou histérico:

—É uma vergonha! — disse Eustace. — É uma ver­gonha maldita! Como foi que vovô ousou fazer isso comigo? Como foi que ele ousou preferir Sophia a mim. Eu era o seu único neto. Não é justo. Eu o odeio. Eu o odeio. Nunca o per­doarei enquanto viver. Velho tirânico e imbecil! Eu queria que ele morresse. Eu queria sair desta casa. Eu queria ser dono de mim mesmo. E agora eu vou ter de obedecer e de bajular Sophia e bancar o tolo. Eu preferia estar morto...

Sua voz sumiu e ele saiu correndo da sala.

Edith de Haviland deu um estalo rápido com a língua.

Não sabe controlar-se — murmurou ela.

Eu sei como ele se sente — gritou Magda.

Eu tenho certeza de que sabe — disse Edith acida­mente.

Meu pobrezinho! Eu vou atrás dele.

Ora, Magda... — Edith apressou-se a correr atrás dela.

Suas vozes morreram a distância. Sophia permaneceu olhando para Philip. Eu acho que havia uma certa súplica em seu olhar. Ele olhou-a friamente, muito controlado outra vez.

—Você fez um trabalhinho muito bem feito, Sophia — disse ele e saiu da sala.

—Isto foi uma coisa cruel que o senhor disse — gritei.

—Sophia...   

Ela estendeu as mãos para mim. Tomei-a nos braços.

Isto foi demais para você, meu amor.

Eu sei como eles se sentem — disse Sophia.

Aquele velho diabólico, o seu avô, não devia ter feito isso com você.

Ela endireitou os ombros.

Ele achava que eu agüentaria. E eu também acho. Eu gostaria... eu gostaria que Eustace não se tivesse importado tanto.

Ele esquecerá.

Será? Eu não sei. Ele é do tipo que fica meditando o tempo todo. E eu não gostei que papai ficasse assim tão ferido.

Sua mãe não ligou.

Ela se importa, sim. Somente a contragosto ela virá à sua filha pedir dinheiro para financiar suas peças. Ela vai ficar atrás de mim para pôr dinheiro em Edith Thompson bem antes do que você imagina.

—E o que é que você vai dizer? Se isto a faz feliz...

Sophia soltou-se de meus braços, a cabeça jogada para trás.

—Eu vou dizer “Não!” É uma peça idiota e mamãe não pode representar aquele papel. Seria como se eu jogasse di­nheiro fora!

Eu ri baixinho. Não pude evitar.

Por que é que você está rindo? — perguntou Sophia desconfiada.

Estou começando a entender por que foi que seu avô lhe deixou o dinheiro. Filho de peixe nasce nadando, Sophia...

 

MINHA ÚNICA tristeza nesta hora foi que Josephine não estivesse presente. Ela ter-se-ia divertido muito.

Sua convalescença foi rápida e ela estava sendo esperada a qualquer hora, mas ainda assim perdeu outro acontecimento de muita importância.

Eu estava no jardim de manhã com Sophia e Brenda quando um carro parou à porta da frente. Taverner e o Sar­gento Lamb desceram e entraram na casa.

Brenda ficou imóvel, olhando para o carro.

—São aqueles homens — disse ela. — Voltaram e eu que pensava que eles já tinham desistido... eu pensei que já estivesse tudo acabado.

Eu vi quando ela estremeceu.

Ela se juntara a nós uns dez minutos antes. Enrolada em seu abrigo de chinchila, ela dissera:

—Se eu não tomar ar e fizer um pouco de exercício, vou ficar louca. Se eu ponho os pés lá fora há sempre um re­pórter esperando para me abordar. É como se sentir sitiada. Vai ser assim sempre?

Sophia disse que acreditava que breve os repórteres se cansariam.

—Você pode dar uma volta de automóvel — acres­centou.

Eu lhe digo que preferia fazer um pouco de exercício.

Depois ela disse bruscamente:

Você despediu Laurence, Sophia. Por quê?

Sophia respondeu devagar:

Estamos arranjando outra coisa para Eustace. E Josephine vai para a Suíça.

Bem, você deixou Laurence aborrecido. Ele achou que você não confia nele.

Sophia não respondeu e foi neste instante que o carro de Taverner chegou.

Parada ali, trêmula no ar úmido do outono, Brenda mur­murou:

—O que é que eles querem? Por que foi que vieram?

Eu calculei que sabia por que eles tinham voltado. Não dissera nada a Sophia sobre as cartas que eu encontrara perto da cisterna mas eu sabia que elas tinham sido encaminhadas ao Promotor Público.

Taverner saiu outra vez da casa. Atravessou a alameda e o gramado em nossa direção. Brenda tremeu ainda com mais força.

—O que é que ele quer? — ela repetia nervosa. — O que é que ele quer?

Taverner chegou perto de nós. Falou pouco, com sua voz oficial, usando frases oficiais.

—Eu tenho um mandado de prisão para a senhora... a senhora está sendo acusada de ter administrado eserina a Aristide Leonides no dia 19 de setembro último. Eu devo avi­sá-la de que qualquer coisa que a senhora disser poderá ser usado como evidência em seu julgamento.

E foi então que Brenda se descontrolou. Gritou. Agar­rou-se a mim. Gritou alto:

—Não, não, não, não é verdade! Charles, diga-lhes que não é verdade! Eu não fiz isso! Eu não sei de nada. É uma conspiração. Não os deixe me levar. Não é verdade, eu lhes digo... Não é verdade... Eu não fiz nada...

Foi horrível — inacreditavelmente horrível. Eu tentei acalmá-la, soltei seus dedos de meu braço. Disse-lhe que ar­ranjaria um advogado para ela — que mantivesse a calma — que um advogado arranjaria tudo...

Taverner levou-a gentilmente pelo cotovelo.

—Venha, Sra. Leonides — disse ele. — A senhora não quer um chapéu, quer? Não? Então precisamos ir logo.

Ela o empurrou, olhando para ele com seus enormes olhos de gata.

Laurence — disse ela. — O que foi que vocês fizeram com Laurence?

O Sr. Laurence Brown também está preso sob a mesma acusação — disse Taverner.

Ela afrouxou então. Seu corpo pareceu entrar em colap­so e encolher-se. As lágrimas rolaram sobre seu rosto. Cami­nhou mansamente atrás de Taverner pelo gramado. Eu vi Laurence Brown e o Sargento Lamb saírem da casa. Todos entraram no carro... O carro foi embora.

Dei um suspiro fundo e virei-me para Sophia. Ela es­tava muito pálida e havia um ar de angústia em seu rosto.

É horrível, Charles — disse ela. — Oh, como é hor­rível!

Eu sei.

Você precisa conseguir para ela um advogado de pri­meira classe... o melhor de todos. Ela... ela precisa de toda a ajuda possível.

A gente nunca imagina — disse eu — como são es­sas coisas. Eu nunca havia visto antes ninguém ser preso.

Eu sei. A gente não tem idéia.

Ficamos ambos em silêncio. Eu estava pensando no terror desesperado no rosto de Brenda. Parecera-me familiar e de repente eu entendi por quê. Fora a mesma expressão que eu vira no rosto de Magda Leonides, quando viera pela pri­meira vez na Casa Torta e que ela estava falando sobre a pe­ça de Edith Thompson.

—E então — ela dissera, — o terror puro, você não acha?

Terror puro — era isto que eu vira no rosto de Brenda. Brenda não era uma lutadora. Fiquei imaginando se ela teria tido algum dia a coragem para praticar um crime. Possivel­mente não. É provável que tenha sido Laurence Brown, com sua mania de perseguição, sua personalidade instável, que pu­sera o conteúdo de um vidrinho no outro — um ato tão sim­ples — para libertar a mulher que amava.

—Então está acabado — disse Sophia.

Ela suspirou profundamente e perguntou:         .

Mas por que prendê-los agora? Eu pensei que não havia provas suficientes.     

Uma certa evidência veio à luz. Cartas.

Você quer dizer cartas de amor entre eles?     

Sim.  

Como as pessoas são tolas em guardar essas coisas!

Sim, era a verdade. Tolos. O tipo de tolice que se repete apesar da experiência dos outros. Não se podia abrir um jor­nal qualquer sem se ver alguma tolice deste tipo — a paixão de se guardar a palavra escrita, a certeza escrita do amor.

É cruel, Sophia — disse eu. — Mas não adianta você se preocupar mais sobre isto. Depois de tudo, era isto que to­dos nós estávamos esperando o tempo todo, não era? Foi isso que você me disse naquela primeira noite no Mario’s. Disse que tudo ficaria bem se tivesse sido a pessoa certa que matara seu avô. Brenda era a pessoa certa, não era? Brenda ou Lau­rence?

Por favor, Charles, não me faça sentir assim tão horrorosa. 

—Mas nós precisamos ser sensatos. Podemos casar-nos agora, Sophia. Você não pode mais me recusar. A famí­lia Leonides está fora do crime.

Ela olhou para mim. Eu nunca percebera antes como era forte o azul de seus olhos.

Sim — disse ela, — eu suponho que agora estamos fora. Será que estamos mesmo? Você tem certeza?

Minha menina querida, nenhum de vocês tinha a menor sombra de motivo.

Seu rosto empalideceu de repente.

Exceto eu, Charles. Eu tinha um motivo.

Sim, é claro... — fiquei surpreso. — Mas não na verdade. Você não sabia, não é? Não sabia sobre o testamento.

Mas eu sabia, Charles — murmurou ela.

O quê? — eu olhei para ela. Esfriei de repente.

Eu sabia o tempo todo que vovô deixara o dinheiro para mim.

Mas como?

Ele me contou. Uns quinze dias antes de sua morte. Ele me disse assim de repente “Eu deixei todo o meu dinheiro para você, Sophia. Você precisa tomar conta da família quan­do eu for embora”.

Eu a encarei.

Você nunca me disse nada.

Não. Sabe? Quando todos eles explicaram sobre o testamento e sobre a assinatura dele, eu pensei que talvez houvesse um erro... que ele estava apenas imaginando que dei­xara o dinheiro para mim. Ou que talvez tivesse mesmo feito um testamento deixando-o para mim, e que depois o testa­mento se perdera e que não apareceria nunca. Eu não queria que ele aparecesse... eu estava com medo.

Com medo? Por quê?

Eu acho que... por causa do crime.

Eu me lembrei do olhar de terror no rosto de Brenda — o terror pânico e irracional. Eu me lembrei do pânico puro que Magda evocara como que por encanto enquanto estava in­terpretando o papel de uma assassina. Não havia pânico no pensamento de Sophia mas ela era realista e via claramente que o testamento de Leonides fazia dela uma suspeita. Com­preendi melhor agora (ou pensei que compreendi) a sua re­cusa de se tornar minha noiva e a sua insistência de que eu devia procurar saber a verdade. Nada, a não ser a verdade, ela dissera, serviria para ela. Eu me lembrei da paixão, da ansie­dade com que ela dissera isto.

Nós nos voltáramos e caminhávamos na direção da casa, e de repente, num certo lugar, eu me lembrei de outra coisa que ela dissera.

Dissera que achava que era capaz de assassinar alguém, mas que se fosse assim, acrescentara, teria de ser por algo que verdadeiramente valesse a pena.

 

NUMA CURVA DO JARDIM, Roger e Clemency cami­nhavam vivamente em nossa direção. O paletó largão de Roger caía-lhe melhor que as suas roupas de cidade. Ele parecia an­sioso e excitado. Clemency tinha a testa franzida.

—Alô, vocês dois! — disse Roger. — Enfim!  Eu pensei que não iam prender nunca aquela mulher pérfida! O que eles estavam esperando é que eu não sei. Bem, eles a pegaram agora, e aquele miserável do seu namorado... e eu espero que os enforquem a ambos.

As rugas de Clemency se acentuaram. Ela disse:

Não seja tão bárbaro, Roger.

Bárbaro? Tolice! Envenenamento frio e deliberado de um pobre velho inocente e indefeso... e quando eu digo que me alegro que eles paguem por sua culpa, você diz que eu sou bárbaro! Eu lhe digo que queria enforcar aquela mulher com minhas próprias mãos!

Acrescentou:

Ela estava com vocês, não estava, quando a polícia veio procurá-la? Como foi que ela agiu?

Foi horrível — disse Sophia em voz baixa. — Ela estava apavorada.

Bem feito.

Não seja vingativo — disse Clemency.

Oh, eu sei, minha querida, mas você não pode compreender. Não era o seu pai. Eu amava meu pai. Você não compreende? Eu o adorava!

Eu acho que já era tempo de que eu compreendesse — disse Clemency.

Roger falou para ela, em tom de brincadeira:

—Você não tem imaginação, Clemency. Suponhamos que tivesse sido eu que fosse envenenado?...

Eu vi seus olhos se abaixarem rapidamente, as mãos semicerradas. Ela disse secamente:

—Não diga estas coisas nem por brincadeira.

—Não ligue, querida, breve nós estaremos longe daqui.

Dirigimo-nos para a casa. Roger e Sophia iam na frente e Clemency e eu mais atrás. Ela falou:

Será que eles agora... vão-nos deixar ir embora?

Você está assim tão ansiosa para ir-se? — perguntei.

Isto está-me acabando.

Olhei para ela surpreso. Ela enfrentou meu olhar com um leve sorriso de desespero e um aceno de cabeça.

—Você ainda não viu, Charles, que eu estou lutando o tempo todo? Lutando pela minha felicidade. Pela felicidade de Roger. Eu fiquei com tanto medo de que a família o con­vencesse a ficar na Inglaterra. Que nós ficássemos outra vez presos no meio deles, presos por laços familiares. Eu estava com medo que Sophia lhe oferecesse uma renda e que ele ficas­se na Inglaterra porque isto significasse um maior conforto e facilidades para mim. O problema com Roger é que ele não escuta ninguém. Ele põe idéias na cabeça... elas nunca são as idéias certas. Ele não sabe de coisa nenhuma. E é demais en­raizado na família para pensar que a felicidade de uma mu­lher está ligada ao conforto e ao dinheiro. Mas eu lutarei pela minha felicidade... eu lutarei... Eu lutarei até arrancar Roger daqui e dar-lhe a vida que lhe convém e onde ele não se sinta um fracasso. Eu o quero para mim... longe deles todos... bem longe...

Ela falara numa voz baixa e apressada, com um tom de desespero que me espantara. Eu não percebera como ela es­tava abalada. Não percebera também o quanto era desespe­rado e possessivo o seu amor por Roger.

Voltou-me em mente uma citação passada de Edith de Haviland. Ela falara desta “quase adoração” com uma entoação particular. Imaginei se ela não estava falando de Cle­mency.

Roger, eu pensei, amava o pai mais do que a qualquer outra pessoa, mais do que à sua esposa, apesar de lhe ser muito devotado. Eu percebi pela primeira vez como era urgente o desejo de Clemency de ter o marido para si própria. O amor por Roger, eu vi, significava toda a sua existência. Ele era o seu filho, o seu marido e o seu amante.

Um automóvel parou na porta da frente.

— Alô! — disse eu. — Josephine está de volta.

Josephine e Magda saíram do carro. Josephine tinha uma atadura em volta da cabeça, mas apesar disso parecia extre­mamente bem.

Ela disse logo:

Eu quero ver meu peixinho dourado — e foi para perto do laguinho.

Querida — gritou Magda, — é melhor você subir primeiro e  deitar-se um pouco e, talvez tomar uma sopinha fortificante.

Não exagere, mamãe — disse Josephine. — Eu es­tou muito bem e detesto sopinhas fortificantes.

Magda pareceu indecisa. Eu sabia que Josephine estava para vir embora do hospital já há alguns dias, e que foi apenas por sugestão de Taverner que ela ficara lá. Ele não estava que­rendo correr riscos quanto à segurança de Josephine até que seus suspeitos estivessem  bem  guardados  debaixo  de  sete chaves.

Eu disse a Magda: 

—Eu diria que um pouco de ar fresco fará bem a ela. Eu fico aqui e tomarei conta.

Alcancei Josephine antes que ela chegasse perto do la­guinho.

—Um monte de coisas aconteceu enquanto você estava fora.

Josephine não respondeu. Ela olhava com seus olhos míopes para o laguinho.

Não estou vendo Ferdinando — disse ela.       

Qual é o Ferdinando?

O que tem quatro rabos.

É um tipo de peixe engraçado. Eu gosto mais daquele douradinho ali.

É muito comum.

Eu não gosto muito daquele que tem cara de ser roído pelas traças, o branquinho.

Josephine me deu um olhar de desdém.

É uma fêmea de beijador. Elas custam muito caro, muito mais do que os vermelhinhos.

Você não quer saber do que está acontecendo, Jose­phine?

Eu acho que eu sei de tudo.

Você sabia que acharam outro testamento e que seu avô deixou tudo para Sophia?   

Josephine fez que sim com a cabeça com um ar enfas­tiado.

Mamãe me disse. E de qualquer jeito, eu já sabia mesmo.

Quer dizer que você soube quando estava no hos­pital?

Não, eu quis dizer que eu sabia que vovô deixou todo o dinheiro para Sophia. Eu escutei quando ele contou a ela.

Você estava escutando outra vez?

Sim. Eu gosto de escutar as coisas.

É uma coisa muito feia de se fazer, e lembre-se, gente que escuta as coisas nunca ouve coisas boas de si mesma.

Josephine olhou-me estranhamente.

—Eu ouvi o que ele falou de mim para ela, se é isso que você quis dizer.

Ela acrescentou:

—Nannie fica danada quando me pega escutando atrás das portas. Ela diz que não é uma coisa para uma mocinha educada fazer.

Ela tem razão.

Pô! — disse Josephine. — Ninguém tem mais edu­cação hoje em dia. Eles dizem isso, os peritos no assunto. Di­zem que é ob-so-le-to. — Ela pronunciou a palavra cuidado­samente.

Eu mudei de assunto.

—Você chegou um pouquinho atrasada para o último acontecimento: o Inspetor Taverner prendeu Brenda e Lau­rence.

Pensei que Josephine, em seu papel de jovem detetive, fosse ficar emocionada com esta informação, mas ela apenas repetiu da mesma forma enfastiada:

Sim, eu sei.

Você não pode saber. Acabou de acontecer.

O automóvel passou pela gente na estrada. O Inspe­tor Taverner e o detetive de sapatos de camurça estavam den­tro com Brenda e Laurence, então eu deduzi que eles deviam ter sido presos. Eu espero que ele tenha feito as coisas em re­gra. Tem de ser feito com muita prudência, você sabe.

Eu lhe assegurei que Taverner agira estritamente de acor­do com a etiqueta.

—Eu tive de contar a ele sobre as cartas — disse, me desculpando. — Eu as encontrei atrás da cisterna. Eu devia ter deixado você contar a ele mas você estava machucada.

A mão de Josephine passou desajeitada pela cabeça.

Eu podia ter morrido — disse com complacência. — Eu lhe disse que estava na hora do segundo crime. A cis­terna era um lugar muito ruim para esconder aquelas cartas. Eu adivinhei logo quando vi Laurence saindo de lá um dia. Eu sabia que ele não é do tipo de homem que mexe com bóias, encanamentos ou fusíveis, logo deduzi que ele devia estar es­condendo alguma coisa.

Mas eu pensei... — me interrompi ao ouvir a voz de Edith de Haviland chamando com autoridade.

—Josephine, Josephine, venha aqui imediatamente!

Josephine suspirou.

—Mais confusão — disse ela. — Mas é melhor eu ir. Vo­cê também, é tia Edith.

Ela correu pelo gramado. Eu a segui mais devagar.

Depois de urna breve troca de palavras, Josephine en­trou em casa. Eu me juntei a Edith de Haviland no terraço.

Nesta manhã, ela aparentava mesmo a idade que tinha. Fiquei surpreso pelas rugas de cansaço e sofrimento em seu ros­to. Parecia exausta e derrotada. Viu que eu estava reparando nela e tentou sorrir.

—Esta criança não parece ter sofrido nada com a aven­tura — disse ela. — Precisamos cuidar melhor dela no futuro. Entretanto... eu suponho que agora não é mais necessário.

Suspirou e acrescentou:

—Eu estou contente que tudo tenha terminado. Mas que exibição! Se você for detido por um crime de morte, deve ter ao menos dignidade. Eu não tenho paciência com gente como Brenda que começa a berrar e fica histérica. Não tem tutano, essa gente. Laurence Brown parecia um coelho assus­tado.

Um obscuro instinto de piedade tomou conta de mim.

Pobres coitados... — disse eu.

Sim... pobres coitados. Será que ela vai ter juízo para saber cuidar de si? Eu quero dizer, contratar os advogados certos... essas coisas todas?

Era estranho, eu pensei, a ojeriza que todos tinham por Brenda, e entretanto, o cuidado escrupuloso para que ela ti­vesse todas as vantagens de defesa.

Edith de Haviland continuou:

—Quanto tempo vai durar? Quanto tempo leva todo o processo?

Eu disse que não sabia exatamente. Eles iriam acusá-la na própria corte de polícia, e com certeza ela seria enviada a julgamento. Três ou quatro meses, eu calculei — e se for con­denada haveria apelo.

Você acha que eles serão condenados? — perguntou ela.

Não sei. Não sei exatamente quantas provas tem a polícia. Há as cartas.

Cartas de amor? Eles eram amantes?

—Eles estavam apaixonados um pelo outro.

Seu rosto pareceu mais sombrio.

Eu não estou satisfeita com isto tudo, Charles, Eu não gosto de Brenda. No passado, eu a detestava mesmo. Dis­se muitas coisas desagradáveis sobre ela. Mas agora... sinto que é necessário que ela tenha todas as chances... todas as chan­ces possíveis. Aristide havia de querer que fosse assim. Eu creio que cabe a mim agora cuidar disso... Cuidar que Brenda tenha um julgamento honesto.

E Laurence?

Oh, Laurence! — ela deu de ombros, impaciente. — Os homens devem cuidar de si mesmos. Mas Aristide nunca nos perdoaria se nós... — deixou a frase inacabada.

Depois disse:

—Deve ser quase hora de almoço. É melhor entrarmos.

Eu lhe expliquei que ia para Londres.

No seu carro?

Sim.

Hum... Talvez você possa levar-me até lá. Eu calculo que nós já estamos liberados agora.

É claro que eu a levarei mas acredito que Magda e Sophia também vão para lá depois do almoço. A senhora es­tará mais confortável com elas do que no meu carrinho de dois lugares.

Eu não quero ir com elas. Leve-me com você e não diga nada a ninguém.

Fiquei surpreso mas fiz o que ela pediu. Não falamos quase enquanto nos dirigíamos para a cidade. Perguntei-lhe onde queria que eu a deixasse.

—Na Rua Harley.

Eu senti uma leve apreensão mas não queria falar nada. Ela continuou:

Não, ainda é muito cedo. Pode deixar-me no Debenhams. Eu almoço qualquer coisa e depois vou para a Rua Harley.

Eu espero... — comecei a falar mas parei.

É por isso que eu não queria vir com Magda. Ela dramatiza as coisas. Faz muita confusão.

Eu sinto muito — disse eu.

Não diga isso. Eu tive uma vida boa. Uma vida muito boa — fez uma careta repentina. — E ela ainda não terminou.

 

EU NÃO VIA MEU pai já há alguns dias. Encontrei-o ocupado com outros problemas diferentes do caso Leonides, e saí à procura de Taverner.

Taverner estava aproveitando um tempinho livre e acei­tou meu convite para sairmos e tomarmos uma bebida. Eu dei-lhe os parabéns por ter desvendado o caso e ele aceitou-os, mas sua maneira estava longe de ser triunfante.

Bem, tudo acabou — disse ele. — Nós conseguimos um processo. Ninguém pode negar que nós conseguimos um processo.

Você acha que eles vão ser condenados?

Impossível dizer. A evidência é circunstancial... é quase sempre nos crimes de morte... não pode deixar de ser. Tudo depende muito da impressão que eles causem ao júri.

Até onde vão as cartas?

A primeira vista, Charles, elas são terríveis. Há re­ferências à vida futura, juntos, quando o marido dela estiver morto. Frases como — “não será por muito tempo agora”. Veja bem, que o advogado de defesa vai tentar virar isso ao contrário — que o marido era tão idoso que é claro que real­mente eles esperavam que ele morresse. Não há nenhuma men­ção ao envenenamento... assim por escrito... mas há algumas passagens  que  poderiam  ter  este sentido.  Depende do juiz que conseguirmos. Se for o velho Carberry eles estão fritos. Ele é sempre muito cheio de história contra os amores ilícitos. Suponho que eles vão pegar Eagles ou Humphrey Kerr para a defesa. Humphrey é magnífico para esses casos mas ele gosta de um galante passado de guerras ou algo no gênero para aju­dá-lo. Um objetor de consciência vai aleijar o seu estilo. A questão é: será que o júri vai gostar deles? A gente nunca sabe o que eles têm na cabeça. Sabe, Charles, aqueles dois não são dois tipos simpáticos. Ela é uma mulher bonita, que se casou com um homem muito velho por seu dinheiro e Brown é um objetor de consciência neurótico. O crime é tão familiar... tão de acordo com o padrão, que a gente não pode mesmo acre­ditar que eles não o tenham cometido. É claro, eles podem re­solver que foi ele quem fez tudo e que ela não sabia de nada... ou por outro lado, que foi ela quem fez tudo e que ele é que não sabia de nada... ou que talvez os dois tenham agido juntos.

—E o que é que você acha? — perguntei.

Ele me olhou com uma cara sem expressão.

—Eu não acho nada. Eu entreguei os fatos para o Pro­motor Público e foi decidido que havia lugar para um pro­cesso. Foi tudo. Eu cumpri meu dever e estou por fora. Agora você já sabe, Charles.

Mas eu não sabia. Via não sei por que razão que Taver­ner não estava satisfeito.

Foi somente uns três dias depois que eu me abri com meu pai. Ele próprio nunca comentara o caso comigo. Havia uma certa barreira entre nós — e eu pensava que sabia a razão. Mas eu precisava quebrar a barreira.

—Nós precisamos rever esse caso — disse eu. — Ta­verner não está convencido de que foram aqueles dois que fizeram isso... e o senhor também não está satisfeito.

Meu pai balançou a cabeça. Disse o mesmo que Taver­ner já me dissera:

Não está mais em nossas mãos. Há um processo a responder. Quanto a isto não há mais dúvida.

Mas o senhor não acha, nem Taverner, que eles sejam os culpados, não é?

Isto cabe ao júri decidir.

Pelo amor de Deus — disse eu, — não me enrole com essa terminologia técnica. O que o senhor pensa... am­bos... pessoalmente?

A minha opinião pessoal não é melhor do que a sua, Charles.

É, sim. O senhor tem mais experiência.

Então eu serei honesto com você. Eu simplesmente... não sei!

Eles podem ser os culpados?

Oh, sim.

Mas o senhor não tem certeza de que sejam?

Meu pai deu de ombros.

Como se pode ter certeza?

Não se esquive às minhas perguntas, papai. O se­nhor teve certeza em outras vezes, não teve? Certeza absolu­ta? Nenhuma dúvida em sua mente?

Algumas vezes, sim. Nem sempre.

Eu pediria a Deus que tivesse certeza desta vez.

Eu também.

Ficamos em silêncio. Eu estava pensando naquelas duas figuras flutuando pelo jardim na hora do crepúsculo. Sozinhos, perseguidos e amedrontados. Eles tiveram medo desde o iní­cio. Isso não mostraria uma consciência culpada?

Mas eu mesmo me respondi: Não necessariamente. Am­bos, Brenda e Laurence, tinham medo da vida — não tinham confiança em si próprios, em suas habilidades para evitar o perigo e a derrota, e só viam — claramente demais — o exem­plo de seus amores ilícitos que possivelmente os envolveria a qualquer momento.

Meu pai falou e sua voz era grave e gentil:

Vamos, Charles — disse ele, — encaremos os fatos. Você ainda tem na cabeça que é um dos membros da família Leonides o verdadeiro culpado, não é?

Não de verdade. Eu apenas imagino...

Você pensa assim. Pode estar errado, mas você pensa assim.

Sim — eu disse.

Porquê?

Porque... — fiquei pensando sobre isto, tentando ver as coisas com clareza, pondo minhas idéias em dia... — Porque... (sim, era isto!) porque eles mesmos pensam assim!

Eles mesmos pensam? Isso é interessante. Isso é muito interessante. Você quer dizer que eles suspeitam uns dos ou­tros, ou que talvez mesmo saibam quem foi que fez aquilo?

Eu não tenho certeza — disse eu. — Tudo está muito enevoado e confuso. Eu penso... assim por alto... que eles es­tão tentando esconder a verdade de si próprios.

Meu pai fez que sim com a cabeça.

Roger não — disse eu. — Roger acredita piamente que foi Brenda e de todo o coração ele quer que ela seja en­forcada. É... é um alívio estar-se perto de Roger porque ele é sincero e positivo, e não tem nada por detrás de seus pen­samentos.

Mas os outros são cheios de justificativas, cheios de dedos... pedem-me demais que eu garanta a Brenda a melhor defesa... que todas as vantagens possíveis lhe sejam dadas... por quê?

Meu pai respondeu:

—Porque eles não acreditam realmente, no fundo de seus corações, que ela seja a culpada... Sim, parece lógico.

Então ele falou calmamente:

—Quem poderia ter sido? Você falou com todos eles? Qual é o melhor palpite?

Eu não sei — disse eu. — E isso está-me deixando maluco. Nenhum deles preenche as “características de um as­sassino”; entretanto, eu sinto... eu sinto mesmo... que um de­les é um assassino.

Sophia?

Não! Por Deus do Céu! Não!

A possibilidade está em sua mente, Charles... sim, está, não queira negar. E potencialmente mais ainda porque você não quer dar o braço a torcer. E sobre os outros? Philip?

Somente pelo mais fantástico dos motivos.

Motivos podem ser fantásticos... ou absurdamente insignificantes. Qual é o motivo dele?

Ele tem um ciúme terrível de Roger... sempre teve, a vida inteira. A preferência de seu pai por Roger deixou Phi­lip fora de si. Roger estava próximo à falência, e então o ve­lho soube de tudo. Ele prometeu reerguer Roger novamente. Suponhamos que Philip tenha ouvido isso. Se o velho mor­resse naquela noite não havia ajuda para Roger. Roger seria derrotado de vez. Oh! Eu sei que é um absurdo...

Oh, não, não é. É fora do normal mas acontece. É humano. E Magda?

Ela é muito infantil. Ela... ela não percebe a dimen­são de nada. Mas eu não pensaria duas vezes que ela estivesse envolvida se ela não tivesse querido enviar Josephine a toda pressa para a Suíça. Eu não pude deixar de sentir que esteja com medo de alguma coisa que Josephine possa saber ou dizer...

E foi então que Josephine levou a pancada na cabeça?

Bem, mas não podia ter sido sua mãe!

Por que não?

Mas papai, uma mãe não poderia...

Charles, Charles, você nunca lê os noticiários poli­ciais? Sempre e sempre a mãe toma uma antipatia por um de seus filhos. Somente um... ela pode ser dedicada aos outros. Há sempre uma associação, alguma razão, mas geralmente é difícil de se saber. Mas quando existe, é uma aversão irracio­nal e é muito forte.

Ela chamava Josephine de bruxinha — eu admiti a contragosto.

E a menina se importava?

Que eu saiba, não.

Então quem mais podia ser? Roger?

Roger não matou o pai. Eu tenho certeza disso.

Então afastemos Roger. Sua mulher... como é mes­mo o nome dela?... Clemency?

Sim — disse eu. — Se ela matou o velho Leonides foi por uma razão muito estranha.

Contei a ele as minhas conversas com Clemency. Disse que podia ser possível que em sua paixão por afastar Roger da Inglaterra ela poderia ter deliberadamente envenenado o velho.

Ela persuadiu Roger a ir-se embora sem falar a seu pai.  Depois o velho descobriu tudo. Ele ia reconstituir a Associação de Fornecedores. Todas as esperanças e os planos de Clemency frustraram-se. E ela gosta desesperadamente de Roger... é quase uma idolatria.

Você está repetindo o que Edith de Haviland disse!

Sim. E Edith é em outra que eu penso. Ela pode ter feito isso. Mas eu não sei por quê. Eu só posso acreditar que, se ela tiver uma razão boa e suficiente, pode querer fazer jus­tiça com suas próprias mãos. Ela é desse tipo de pessoa.

E ela também estava ansiosa que Brenda tivesse uma defesa adequada?

Sim. Eu creio que isto pode ser a sua consciência. Mas eu não penso, nem por um instante, que se ela fosse a culpada pretendesse que eles sejam acusados de seu crime.

Provavelmente não. Mas ela teria atingido Josephine?

Não — disse eu devagar. — Não creio. E isto me faz lembrar uma coisa que Josephine me disse e que não me sai da cabeça, mas que eu não consigo lembrar o que é. É um lapso em minha memória. Mas é alguma coisa que não se encaixa bem na história. Se ao menos eu pudesse me lem­brar...

Deixe pra lá. Vai lembrar-se depois. Mais alguma coisa ou mais alguém em sua cabeça?

Sim — disse eu. — Mais uma coisa. O senhor sabe algo sobre paralisia infantil? Sobre seus efeitos sobre o cará­ter, eu quero dizer?

Eustace?

Sim. Quanto mais eu penso nele, mais me parece provável que ele se encaixe no papel. Ele não gostava e tinha ressentimentos contra o avô. É esquisito e rabugento. Não é normal.

É o único da família que eu veria liquidando Jose­phine sem piedade se ela soubesse de alguma coisa sobre ele... e é bem possível que ela saiba. Aquela menina sabe de tudo. Ela escreve as coisas num livrinho...

Parei.

Deus do Céu! — exclamei. — Como eu fui bobo!

O que foi que houve?

Eu sei agora o que é que estava errado. Nós calcula­mos, Taverner e eu, que a destruição no quarto de Josephine, a busca frenética, fosse por aquelas cartas. Pensei que ela ti­vesse passado a mão nelas e as tivesse escondido no pátio das cisternas. Mas quando ela estava falando comigo outro dia, ela me disse claramente que foi Laurence quem as escondera lá. Ela o viu saindo e foi bisbilhotar e achou as cartas. Então, é claro que as leu. Imagine se não ia ler! Mas ela as deixou onde estavam.

Então?

Não está vendo? Não poderiam ter sido as cartas que alguém estava procurando no quarto de Josephine. Só pode ter sido outra coisa.

E essa outra coisa...

Era o livrinho preto onde ela escreve suas “desco­bertas de detetive”. Era isto que alguém estava procurando! Eu penso também que quem fez aquilo não o encontrou. Acho que Josephine ainda o tem. Mas se for assim...

Eu comecei a me levantar.

Se for assim — disse meu pai — ela ainda não está a salvo. Era isto o que você ia dizer?

Sim. Ela não estará livre de perigo enquanto não for mesmo mandada para a Suíça. Estão planejando enviá-la para lá, o senhor sabe.

Ela quer ir?

Considerei isto.

Eu creio que não.

—Então provavelmente ela ainda não foi — disse meu pai secamente. — Mas eu acho que você tem razão quanto ao perigo. É melhor ir para lá.

—Eustace? — perguntei em desespero. — Clemency?

Meu pai disse gentilmente:

—Para mim os fatos apontam claramente numa única direção... Eu não sei como é que você ainda não percebeu.

Eu...

Glover abriu a porta.

—Desculpe, Sr. Charles, é o telefone. A Srta. Leonides está chamando de Swinly. É urgente.

Parecia uma repetição horrível. Josephine se teria trans­formado em vítima outra vez? E será que desta vez o crimi­noso não se enganara?...

Corri para o telefone.

—Sophia? É Charles falando.

A voz de Sophia chegou com uma entonação de deses­pero.

—Charles, ainda não está tudo acabado. O criminoso ainda está aqui.

O que é que você quer dizer? O que foi que aconte­ceu? Foi... Josephine?

Não é Josephine. É Nannie.

Nannie?

Sim, foi uma xícara de chocolate... o chocolate de Josephine, que ela não bebeu. Ela deixou em cima da mesa. Nannie achou que era uma pena desperdiçá-lo. Então, tomou-o.

Pobre Nannie. Ela está muito mal?

A voz de Sophia sumiu.

Oh, Charles, ela está morta.

 

ESTÁVAMOS DE volta ao pesadelo.

Foi nisto que eu pensei enquanto Taverner e eu saíamos de Londres. Era a repetição de nossa viagem anterior.

De vez em quando, Taverner dizia um palavrão.

Eu repetia de tempos em tempos, estupidamente, sem ne­nhum proveito:

—Então não eram Brenda e Laurence. Não eram Brenda e Laurence.

Será que alguma vez eu pensara que eram eles? Fiquei con­tente com esta lembrança. Contente para escapar para uma ou­tra, mais sinistra, possibilidade.

Eles tinham-se apaixonado um pelo outro. Tinham troca­do tolas cartas românticas. Tinham esperanças de que o marido velho de Brenda em breve morresse, calma e tranqüilamente — mas eu imaginava se eles haviam mesmo desejado a sua morte. Eu tinha uma intuição de que os desesperos e desejos de um caso de amor infeliz lhes fosse tão bem, ou talvez melhor ainda, que uma vida trivial quando estivessem casados e jun­tos. Eu não pensava que Brenda estivesse mesmo apaixonada. Ela era anêmica demais, apática demais. Era romance o que ela queria. E eu pensava que Laurence, também, era do tipo que aproveitaria melhor a sua frustração e uns vagos sonhos futu­ros de bem-aventurança do que as satisfações concretas da carne.

Eles tinham sido apanhados numa armadilha e, aterrori­zados, não tiveram capacidade de encontrar uma saída. Lau­rence, por uma burrice incrível, não destruíra as cartas de Brenda. Brenda provavelmente destruíra as dele, uma vez que elas não tinham sido encontradas. E não tinha sido Laurence quem pendurara o calço de mármore na porta da lavandaria. Era alguém cujo rosto estava escondido atrás de uma máscara.

Chegamos à porta da frente. Taverner desceu e eu o se­gui. Havia um policial à paisana que eu não conhecia no ves­tíbulo. Ele cumprimentou Taverner e este chamou-o para um lado.

Minha atenção foi atraída por uma pilha de bagagens na entrada. Estava já com as etiquetas e pronta para a saída. En­quanto olhava para elas, Clemency desceu as escadas e passou pela porta que estava aberta. Ela estava vestida com o mesmo vestido vermelho, um casaco cinzento e usava um chapéu de feltro vermelho.

Você chegou a tempo de nos dar adeus, Charles — disse ela.

Vocês estão indo embora?

Vamos para Londres hoje à noite. Nosso avião sai amanhã de manhã.

Ela estava calma e sorridente mas eu percebi que seus olhos estavam vigilantes.

Mas é claro que agora vocês não vão mais.

Por que não? — sua voz era dura.

Com esta morte...

A morte de Nannie não tem nada a ver conosco.

Talvez não. Mas apesar de tudo...

Por que é que você diz “talvez não”? Não tem nada a ver conosco. Roger e eu estávamos lá em cima, terminando de arrumar a bagagem. Não descemos nem uma vez enquanto o chocolate estava em cima da mesa da copa.

Você pode provar isto?

Eu posso responder por Roger. E Roger pode respon­der por mim.

Nada mais que isso... Vocês são marido e mulher, lem­bre-se.

Ela encolerizou-se.

Você é impossível, Charles! Roger e eu vamos embora viver a nossa própria vida. Por que diabos nós quereríamos en­venenar uma pobre velha simpática e boba que não nos podia causar nenhum mal?

Talvez não tenha sido ela que vocês quisessem enve­nenar.

Menos ainda seria provável que quiséssemos envenenar uma criança.

Depende muito da criança, não é?

O que é que você quer dizer?

Josephine não é uma criança comum. Ela sabe de mui­tas coisas sobre as pessoas. Ela...

Eu me interrompi. Josephine surgira na porta que dava para a sala de visitas. Ela estava comendo a inevitável maçã e por cima deste círculo rosado seus olhos brilhavam com uma alegria macabra.

Nannie foi envenenada — disse ela. — Igualzinho ao vovô. É formidável, não é?

E você não está triste por isto? — perguntei com se­veridade. — Você gostava dela, não gostava?

Não muito.  Ela estava sempre ralhando comigo por um ou outro motivo. Criava casos.

Você gosta de alguém, Josephine? — perguntou Cle­mency.

Josephine lançou seu olhar macabro para Clemency.

—Eu gosto de tia Edith — disse ela. — Eu gosto muito de tia Edith. E eu poderia gostar de Eustace, se ele não fosse sempre tão malvado comigo e estivesse interessado em desco­brir quem foi que fez isso.

É melhor você parar de descobrir coisas, Josephine. Não é muito seguro.

Eu não preciso descobrir mais nada — disse Josephi­ne. — Eu sei.

Houve um momento de silêncio. Os olhos de Josephine, solenes e sem piscar, estavam fixos em Clemency. Um som fei­to um suspiro fundo chegou até os meus ouvidos. Eu me virei rapidamente. Edith de Haviland estava no meio da escadaria, mas eu não pensei que fosse ela quem havia suspirado. O ruí­do viera da porta por onde Josephine acabara de passar.

Eu corri até lá e empurrei-a. Não havia ninguém.

No entanto, eu estava seriamente preocupado. Alguém estivera de pé atrás daquela porta e ouvira as palavras de Jo­sephine. Voltei e segurei Josephine pelo braço. Ela continuava comendo a maçã e olhando fixamente para Clemency. Por de­trás do ar solene, havia, eu pensei, uma certa satisfação maligna.

—Venha, Josephine — eu disse. — Nós vamos ter uma conversinha.

Pensei que Josephine fosse protestar mas eu não iria per­mitir mais nenhuma tolice. Levei-a à força para a outra parte da casa. Havia uma pequena sala de almoço, que não era usa­da, onde nós podíamos estar razoavelmente seguros de não ser­mos perturbados. Levei-a para lá, tranquei a porta e a fiz sen­tar-se numa cadeira. Peguei outra cadeira e puxei-a para perto, ficando frente a frente com ela.

Agora, Josephine — disse eu, — nós vamos pôr as cartas na mesa. O que é que você sabe exatamente?

Um monte de coisas.

Disto eu não tenho a menor dúvida. Esta sua cabe­cinha deve estar cheia até transbordar de informações verda­deiras e de informações despropositadas. Você sabe muito bem o que eu quero dizer. Não sabe?

E claro que eu sei. Não sou burra.

Eu não sei dizer se isto foi para mim ou para a polícia, mas não dei atenção e continuei:

— Você sabe quem foi que pôs alguma coisa em seu cho­colate?

Josephine fez que sim com a cabeça.

Você sabe quem foi que envenenou seu avô?

Josephine fez que sim outra vez.

E quem foi que lhe deu uma pancada na cabeça?

Mais uma vez Josephine fez que sim.

Então você vai dizer-me o que sabe. Vai contar-me tudo... agora!

Não posso.

Você precisa contar. Cada informação que você tem ou que você descobriu precisa ser dada à polícia.

Eu não vou dizer nada à polícia. Eles são burros. Pen­savam que era Brenda... ou Laurence. Eu não fui assim tão burra. Eu sabia muito bem que não tinha sido eles e então fiz uma espécie de teste... e agora eu sei que estava certa.

Ela terminou com uma nota triunfante.

Eu pedi aos céus para ter paciência e recomecei:

—Olhe, Josephine, eu diria que você é extremamente es­perta... — Josephine pareceu satisfeita. — Mas não lhe adian­tará nada se não estiver viva para gozar esse fato. Não está vendo, sua bobinha, que enquanto você guardar seus segredos desta maneira idiota você estará em perigo iminente?

Josephine fez que sim, em aprovação.

E claro que eu estou.

Você já escapou de fininho duas vezes. Um dos aten­tados quase foi bem sucedido. O outro custou a vida de outra pessoa. Não está vendo que se você continuar a se pavonear pela casa, proclamando em altos brados que sabe quem é o as­sassino, haverá outros atentados... e que, ou você vai morrer ou alguém mais morrerá?

Em alguns livros vai morrendo um atrás do outro — Josephine informou com deleite. — Você termina descobrindo quem é o assassino porque ele ou ela é praticamente a única pessoa que resta.

Esta não é uma história de detetives. Isto aqui é Três Oitões, Swinly Dean, e você é uma menininha muito boba que lê mais do que deve. Eu a farei falar nem que tenha de sacudila até seus dentes chocalharem.

Eu posso contar-lhe uma coisa que não seja a ver­dade.

Você pode mas não vai fazer isto. O que é que você está esperando, afinal de contas?

Você não entende — disse Josephine. — Talvez eu não conte nunca. Sabe, talvez eu... goste da pessoa.

Fez uma pausa para me deixar digerir isto.

E se eu contar — continuou ela, — eu o farei da ma­neira correta. Deixarei todos sentados à minha volta, e então, recapitularei tudo... com as pistas, e então eu direi, assim de repente:

E foi você!...

Ela esticou um dramático dedo acusador no instante em que Edith de Haviland entrava na sala.

—Ponha esse miolo de maçã na cesta de papéis, Jose­phine — disse Edith. — Você tem um lenço? Seus dedos es­tão melados. Vamos passear de carro.

Seus olhos encontraram os meus e com ênfase ela disse:

—Ela estará melhor fora daqui durante as próximas ho­ras.

Como Josephine queria rebelar-se, Edith acrescentou:

Vamos a Longbridge e tomaremos um refresco.

Os olhos de Josephine brilharam e ela disse:

Dois!

—Vamos ver — disse Edith. — Ande, vá pegar seu cha­péu, o casaco e aquele lenço azul escuro. Está frio lá fora. Char­les, vá com ela buscar as coisas. Não a deixe sozinha. Eu tenho apenas de escrever umas duas notinhas.

Ela sentou-se à mesa e eu segui Josephine para fora da sala. Mesmo sem o aviso de Edith, eu teria ficado colado a Jo­sephine como uma sanguessuga.

Eu estava certo de que havia perigo para aquela criança ali por perto.

Quando eu acabei de vigiar Josephine se vestir, Sophia entrou no quarto. Ela pareceu surpresa ao me ver.

Ora, ora, Charles, você agora virou babá? Eu não sabia que estava aqui.

Eu vou a Longbridge com tia Edith — disse Josephine muito importante. — Nós vamos tomar sorvetes.

Brrrr... num dia como este?

Sorvetes são sempre gostosos — disse Josephine. — Quando a gente fica fria por dentro sente calor por fora.

Sophia franziu a testa. Parecia preocupada. Fiquei assus­tado pela palidez e pelas olheiras em seu rosto.

Voltamos à sala de almoço. Edith estava acabando de pas­sar o mata-borrão em dois envelopes. Levantou-se depressa.

—Vamos embora agora — disse ela. — Eu disse a Evans para trazer o Ford.

Ela foi para o vestíbulo. Nós a seguimos.

Meu olhar foi novamente atraído para as valises e suas etiquetas azuis. Por alguma razão elas me trouxeram uma vaga inquietude.

—O dia está agradável — disse Edith de Haviland, cal­çando as luvas e dando uma espiada para o céu. O Ford 10 estava à espera em frente da casa. — Frio mas revigorante. Um verdadeiro dia de outono inglês. Como estão lindas as ár­vores com seus galhos nus contra o céu... apenas uma ou duas folhas douradas ainda penduradas...

Ela ficou em silêncio um ou dois minutos, depois vol­tou-se e beijou Sophia.

—Adeus, querida — disse ela. — Não se preocupe tan­to. Precisamos enfrentar e encarar certas coisas.

Depois ela disse:

—Venha, Josephine — e entrou no carro.

Josephine subiu a seu lado.

Ambas deram adeus com a mão enquanto o carro se afas­tava.

Eu acho que ela tem razão, é melhor manter Josephi­ne afastada um certo tempo. Mas nós precisamos fazer esta me­nina contar o que sabe, Sophia.

Provavelmente ela não sabe de nada. Josephine gosta de bancar a importante, você sabe.

É mais do que isto. Eles já sabem qual é o veneno que havia no chocolate?

— Acham que é digitalina. Tia Edith toma digitalina para o coração. Ela tem um vidro cheio de pílulas no seu quar­to. Agora, o vidro está vazio.

Ela devia guardar essas coisas trancadas.

Ela guardava. Mas acho que não deve ser difícil para alguém descobrir onde estava a chave.

Alguém? Quem? Eu olhei outra vez para a pilha de malas.

De repente eu falei alto:

Eles não podem ir embora. Não se pode permitir que eles saiam.

Sophia olhou-me surpresa.

—Roger e Clemency? Charles, você não está pensando...

—Bem, o que é que você está pensando?

Sophia estendeu as mãos num gesto de desalento.

Eu não sei, Charles — sussurrou. — Eu só sei que eu estou de volta... de volta ao pesadelo...

Eu sei. Foram estas as palavras que eu disse para mim mesmo quando vinha para cá com Taverner.

Porque é um pesadelo o que isto é. Andando no meio de pessoas que você conhece, olhando em seus rostos... e de re­pente os rostos se transfiguram... e não é mais alguém que você conhece há muito tempo... é um estranho... um estranho cruel...

Ela gritou:

Vamos lá para fora, Charles... vamos lá para fora. É mais seguro lá fora... Eu estou com medo de ficar nesta casa...

 

FICAMOS NO jardim muito tempo. Por uma espécie de acordo mútuo, não discutimos o terror que se apossara de nós. Ao invés disto, Sophia falava amorosamente da mulher que morrera, das coisas que ela fizera, das brincadeiras que brincavam com Nannie quando eram crianças, das histórias que ela costumava contar sobre Roger e o pai e sobre os ou­tros irmãos e irmãs.

—Eles eram todos seus filhos, sabe? Ela só nos veio aju­dar durante a guerra quando Josephine era um bebê e Eustace um menininho engraçado.

Havia um certo consolo para Sophia nessas lembranças e eu encorajei-a a falar.

Fiquei imaginando o que Taverner estaria fazendo. Per­guntas às pessoas da casa, calculei. Um carro foi-se embora com o fotógrafo da polícia e dois outros homens, e depois, uma ambulância chegou.

Sophia estremeceu ligeiramente. Nesse instante a ambu­lância saiu e nós soubemos que o corpo de Nannie fora levado para ser preparado para a autópsia.

E ficamos sentados quietos, andamos pelo jardim e con­versamos — nossas palavras tornando-se de mais a mais um disfarce para nossos próprios pensamentos.

Finalmente, com um arrepio, Sophia disse:

—Deve ser muito tarde... já está quase escuro. Temos de entrar. Tia Edith e Josephine ainda não voltaram... Não acha que elas já deviam estar de volta?

Eu senti um pressentimento vago. O que teria acontecido? Edith estaria mantendo a menina deliberadamente longe da Casa Torta?

Entramos. Sophia puxou as cortinas. O fogo estava ace­so e a grande sala de estar tinha um ar harmonioso e irreal do luxo dos tempos passados. Grandes vasos de crisântemos cor de bronze estavam sobre as mesas.

Sophia chamou uma empregada e eu reconheci a que me levara o chá lá em cima uma vez. Ela estava com os olhos ver­melhos e fungava continuamente. Notei também que parecia amedrontada e olhava assustada por cima do ombro.

Magda juntou-se a nós mas o chá de Philip foi levado para a biblioteca. O papel que Magda desempenhava era a mais rígida imagem da tristeza. Ela quase não falava. Disse apenas uma vez:

—Onde estão Edith e Josephine? Elas estão fora há mui­to tempo.

Mas ela dissera isto de maneira preocupada.

Eu próprio estava começando a ficar preocupado. Per­guntei se Taverner ainda estava na casa e Magda respondeu que ela pensava que sim. Fui à sua procura. Disse-lhe que eu estava preocupado sobre Edith e a menina.

Ele foi imediatamente ao telefone e deu certas instruções.

—Eu lhe aviso quando souber de alguma coisa — disse ele.

Agradeci e voltei para a sala de visitas. Sophia estava lá com Eustace. Magda fora embora.

—Ele nos avisará se souber de alguma coisa — disse para Sophia.

Ela respondeu em voz baixa:

Alguma coisa aconteceu, Charles, alguma coisa deve ter acontecido.

Sophia, querida, ainda não é muito tarde.

Por que é que vocês estão preocupados? — disse Eus­tace. — Provavelmente elas foram ao cinema.

Ele saiu da sala. Eu disse para Sophia:

—Talvez ela tenha levado Josephine para um hotel... ou para Londres. Acho que ela percebeu que a menina corre pe­rigo... talvez ela tenha percebido isto melhor do que nós todos.

Sophia respondeu com um ar sombrio que eu não pude compreender.

—Ela me deu um beijo e disse adeus...

Não percebi o que ela quisera dizer com esta reflexão sem nexo, ou o que pretendia dizer. Perguntei se Magda estava preocupada.

—Mamãe? Não, ela não está ligando. Ela não tem ne­nhum senso de tempo. Ela está lendo uma nova peça de Va­vasour Jones chamada A Mulher Dispõe. Ê uma peça engra­çada sobre um crime... uma Barbazul de saias... um plágio de Arsênico e Alfazema se você me perguntar, mas tem um bom papel feminino, uma mulher que tem mania de ficar viúva.

Eu não falei mais nada. Ficamos sentados, fingindo que líamos.

Eram seis e meia quando Taverner abriu a porta. Seu ros­to preparou-nos para o que ele ia dizer.

Sophia levantou-se.

Sim? — disse ela.

Eu sinto muito. Mas tenho más notícias para a senho­ra. Eu dei um alarme geral para procurar o carro. Um moto­rista informou que viu um carro Ford com um número pare­cido com o dele, saindo da estrada principal no campo de Flackspur — através do bosque.

Não... é a estrada que vai para a pedreira de Flackspur?

Sim, Srta. Leonides — fez uma pausa e continuou: — O carro foi encontrado no fundo da pedreira. As duas ocu­pantes estavam mortas. A senhora talvez goste de saber que elas tiveram morte instantânea.

Josephine! — era Magda que estava de pé na entrada. Sua voz subiu num uivo. — Josephine!... Meu bebezinho!...

Sophia foi para junto dela e apertou-a entre os braços. Eu disse:

—Esperem um minuto.

Eu me lembrara de algo! Edith de Haviland escrevera duas cartas na escrivaninha e fora para o vestíbulo com elas na mão.

Mas elas não estavam em suas mãos quando ela saíra no carro!

Corri para o vestíbulo e fui até a grande arca de carva­lho. Encontrei as cartas — estavam discretamente colocadas debaixo de um samovar de bronze.

A de cima estava endereçada ao Inspetor-Chefe Taverner.

Taverner me seguira. Eu entreguei-lhe a carta e ele a abriu. De pé a seu lado, eu li o seu breve conteúdo:

Eu espero que esta carta seja aberta depois de minha mor­te. Não quero entrar em detalhes mas aceito plena responsabi­lidade pelas mortes de meu cunhado Aristide Leonides e de Janet Rowe (Nannie). Eu declaro aqui, solenemente, que Bren­da Leonides e Laurence Brown são inocentes do crime contra Aristide Leonides. Se pedirem informações ao Dr. Michael Chavasse, na Rua Harley, 783, ele confirmará que minha vida só poderá ser prolongada por uns poucos meses. Eu prefiro es­colher esta saída e poupar a duas pessoas inocentes a provação de serem acusadas por um crime que não cometeram. Eu estou em pleno gozo de minhas faculdades mentais e inteiramente consciente do que estou escrevendo.

Edith Elfrida de Haviland

Quando terminei de ler a carta, percebi que Sophia tam­bém a lera — não sei se com o consentimento de Taverner, ou não.

—Tia Edith... — murmurou Sophia.

Eu me lembrei da crueldade de Edith de Haviland esma­gando a jitirana com o pé. Lembrei de minhas primeiras suspei­tas, quase imaginárias, sobre ela. Mas por que...

Sophia adivinhou meu pensamento.

Por que Josephine? Por que foi que ela levou Jose­phine?

Por que foi que ela fez isto? — eu perguntei. — Qual foi o motivo?

Mas mesmo ao dizer isto, eu percebi a verdade. Vi tudo claramente. Vi que ainda estava com a segunda carta na mão. Olhei-a: era meu próprio nome no envelope.

Era mais grossa e pesada que a outra. Acho que adivi­nhei o que havia dentro antes de abri-la. Rasguei o envelope e o pequeno caderninho preto de Josephine caiu. Peguei-o do chão — ele abriu-se em minhas mãos e eu vi o que estava es­crito na primeira página...

Parecendo vir de muito longe, ouvi a voz de Sophia, clara e controlada.

Nós entendemos tudo errado — disse ela. — Não foi Edith.

Não — disse eu.

Sophia aproximou-se mais de mim e murmurou:

— Foi... Josephine... não foi? Era isso, Josephine.

Juntos nós olhamos para o primeiro assentamento do li­vrinho preto, escrito numa caligrafia mal feita e infantil.

Hoje eu matei vovô.

 

FIQUEI IMAGINANDO depois como é que eu pude ser tão cego. A verdade era tão clara o tempo todo... Josephine, e somente Josephine, se encaixava com todos os requisitos ne­cessários. Sua vaidade, sua importância persistente, seu pra­zer em falar, sua reafirmação de como ela era esperta e de co­mo a polícia era burra.

Eu nunca pensara nela porque era uma criança. Mas cri­anças também cometem crimes, e este crime particular estivera sempre ao alcance de uma criança. Seu avô mesmo indicara o método preciso — ele praticamente dera a receita. Tudo o que ela tinha a fazer era evitar deixar impressões digitais e um leve conhecimento de aventuras de detetives que a ensinariam como agir. E tudo o mais fora uma simples miscelânea, esco­lhidas ao acaso entre uma porção de histórias de mistérios. O livrinho de notas... as investigações... suas pretensas suspei­tas... sua insistência em dizer que ela não ia contar a ninguém até ter certeza...

E, finalmente, o ataque a si mesma. Um papel quase in­crível, considerando-se que ela podia facilmente ter-se matado. Mas aí, muito infantil, ela nunca considerara uma tal possibi­lidade. Ela era a heroína. A heroína nunca morre. No entanto, ali nós tivéramos uma pista — as manchas de terra no assen­to da cadeira velha na lavandaria. Josephine era a única pessoa que precisaria subir numa cadeira para equilibrar o bloco de mármore em cima da porta. Obviamente ela não se acerta­ra da primeira vez (as marcas no chão) e pacientemente ela subira outra vez e o recolocara no lugar, segurando-o com o cachecol para não deixar impressões digitais. E quando ele caí­ra — ela escapara da morte por um fio.

Fora uma cena perfeita — a impressão que ela estava an­siosa por causar! Ela estava em perigo, ela sabia “alguma coi­sa”, ela fora atacada!

Eu via agora como ela chamara deliberadamente a minha atenção para a sua presença no pátio das cisternas. E ela com­pletara a artística desordem em seu quarto antes de ir para a lavandaria.

Mas, quando voltara do hospital, quando descobrira que Brenda e Laurence tinham sido presos, ela deve ter ficado abor­recida. O caso estava terminado — e ela, Josephine — estava fora das luzes da ribalta.

Então ela roubou a digitalina do quarto de Edith e a pôs na sua própria xícara de chocolate e deixou a xícara intacta em cima da mesa.

Será que ela sabia que Nannie iria beber? Possivelmente. Pelas suas palavras naquela manhã, ela se ressentira das crí­ticas de Nannie a seu respeito. Será que Nannie, talvez devido a uma vida inteira com crianças, suspeitara dela? Eu creio que Nannie sabia, e soubera sempre, que Josephine não era nor­mal. Com seu precoce desenvolvimento mental aparecera um retardamento de seu senso moral. Talvez, também, os fatores de hereditariedade diversos — que Sophia chamara de “cruel­dade da família” — se tivessem reunido.

Ela herdara a crueldade autoritária da família de sua avó, o cruel egoísmo de Magda, que só via o seu próprio ponto de vista. Provavelmente ela também sofrera, sensível como Philip, com o estigma de ser a feia — a bruxinha — da família. Fi­nalmente, em sua própria medula, corria a deformação essencial do velho Leonides. Ela fora uma neta de Leonides, pare­cia-se com ele na sua inteligência e sua argúcia — mas, quan­to ao amor, ele o dera para sua família e seus amigos, e ela o conservara para si mesma.

Eu pensei que o velho Leonides percebera o que ninguém da família havia visto: que Josephine poderia ser uma fonte de perigo para os outros e para si própria. Ele a resguardara da vida escolar porque tinha medo do que ela pudesse fazer. Ele a protegera, guardara-a em casa, e eu compreendi a urgên­cia com que pedira a Sophia que olhasse por Josephine. A sú­bita decisão de Magda em mandá-la para o exterior — teria sido também por medo da criança? Não por um medo consci­ente mas por algum vago instinto materno?

E Edith de Haviland? Será que ela suspeitara no início, receara depois... e finalmente descobrira?

Olhei para a carta em minhas mãos.

Caro Charles. Isto é em confidência para você — e para Sophia se você assim o decidir. É imperativo que alguém saiba da verdade. Eu encontrei o caderno anexo no canil abandonado atrás da porta de serviço. Ela o guardava lá. Veio a confirmar o que eu já suspeitava. O ato que eu vou empreender pode ser errado ou certo. Eu não sei. Mas minha vida, de qualquer for­ma, já está perto de seu fim, e eu não quero que esta criança sofra, como eu acredito que sofrerá se for chamada a prestar contas pelo que fez.

Há sempre alguém da ninhada que não é “muito certo”.

Se eu estiver errada, que Deus me perdoe — mas eu o faço por amor. Deus abençoe vocês dois.

Edith de Haviland

Hesitei por um segundo, depois entreguei a carta a Sophia. Juntos, nós abrimos novamente o pequeno livro preto de Jo­sephine.

Hoje eu matei vovô.

Viramos as páginas. Era uma composição espantosa. In­teressante, eu imaginei, para um psicólogo. Exibia, com terrí­vel lucidez, a fúria de um egoísmo frustrado. O motivo do cri­me estava escrito ali, lamentavelmente infantil e inadequado.

Vovô não me quer deixar estudar balé então eu resolvi que eu vou matar ele. Então nós iremos para Londres e ma­mãe não vai importar-se que eu faça balé.

Eu só li algumas passagens. Todas eram significantes.

Eu não quero ir para a Suíça — eu não vou. Se mamãe me obrigar a ir, eu mato ela também — só que agora eu não vou mais conseguir veneno. Talvez eu possa fazer isto com frutinhas do jardim. Elas são venenosas, o livro diz.

Eustace me chateou muito outro dia. Ele disse que eu sou só uma menina e que é uma tolice o meu trabalho de detetive. Ele não acharia que eu sou boba se soubesse que fui eu que cometi o crime.

Eu gosto de Charles — mas ele é meio burro. Eu ainda não resolvi quem é que eu vou fazer ser o culpado do crime. Talvez Brenda e Laurence — Brenda às vezes é malvada co­migo — ela diz que eu não regulo bem mas eu gosto de Lau­rence — ele me contou a história de Charlot Korday — ela matou alguém dentro da banheira. Ela não foi muito esperta.

O último assentamento era revelador:

Eu odeio Nannie... Eu odeio ela... Eu odeio ela... Ela diz que eu sou apenas uma menininha. Ela diz que eu gosto de me mostrar. É ela que está fazendo mamãe me mandar lá para lon­ge... Eu vou matar ela também — eu acho que o remédio de tia Edith serve. Se houver um outro assassinato, então a polícia vai voltar e tudo vai ficar bacana de novo.

Nannie morreu. Eu estou contente. Eu ainda não resolvi onde vou esconder o vidro com as pilulinhas. Talvez no quarto de tia Clemency — ou então no de Eustace. Quando eu mor­rer, muito velha, vou deixar este caderno endereçado para o Chefe de Polícia e eles vão ver como eu fui realmente uma gran­de criminosa.

Fechei o livro. As lágrimas de Sophia corriam copiosas.

—Oh, Charles... Oh, Charles... é tão pavoroso. Ela é um tal monstrinho... e, no entanto... no entanto, ela é tão horrivel­mente comovente...

Eu sentia o mesmo.

Eu gostava de Josephine... Eu ainda agora sentia carinho por ela... Você não deixa de gostar de alguém só porque ele está tuberculoso ou com alguma outra doença fatal. Josephine, como dissera Sophia, era um pequeno monstro, mas era um pequeno monstro comovente. Ela nascera com um estigma — era a criança torta da pequena casa torta.

Sophia perguntou:

Se... ela estivesse viva... o que teria acontecido?

Eu suponho que teria sido enviada para um reformatório ou para uma escola especial. Mais tarde seria libertada... ou provavelmente receberia um certificado, eu não sei.

Sophia estremeceu.

Foi melhor assim. Mas tia Edith... eu não queria que tia Edith levasse a culpa.

Foi ela que escolheu assim. Eu não creio que isto se torne público. Imagino que quando Brenda e Laurence forem responder ao processo, não haverá acusação contra eles e então serão absolvidos. — E você, Sophia — eu disse, desta vez num tom dife­rente e tomando as suas mãos entre as minhas — vai casar-se comigo. Eu acabei de saber que fui designado para servir na Pérsia. Iremos juntos para lá, e você vai esquecer da pequena Casa Torta. Sua mãe vai continuar a representar suas peças e seu pai vai comprar mais livros e Eustace estará indo para a universidade. Não se preocupe mais com eles. Pense em mim. Sophia olhou-me firmemente nos olhos.

Você não tem medo, Charles, de se casar comigo?

E por que teria? Todos os males da família estavam concentrados na pobre Josephine. Em você, Sophia, eu acre­dito piamente que está o que de mais valente e corajoso existia na família Leonides. Seu avô tinha-a na mais alta consideração e parece que ele era um homem que sempre tinha razão. Levante a cabeça, querida. O futuro é nosso.

Eu me casarei com você, Charles. Eu o amo e eu me casarei com você e o farei feliz.

Baixou os olhos para o livrinho de notas.

Pobre Josephine...

Pobre Josephine... — eu repeti.

—Qual é a verdade, Charles? — perguntou meu pai. Eu nunca mentira para o Velho.

—Não foi Edith de Haviland — eu disse. — Foi Jose­phine.

Meu pai acenou gentilmente com a cabeça.

—Sim — disse ele. — Eu já pensava assim há algum tempo. Pobre criança...

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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