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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


JOSÉ BALSAMO Vol. III / Alexandre Dumas
JOSÉ BALSAMO Vol. III / Alexandre Dumas

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

JOSÉ BALSAMO

Volume III

 

O REGRESSO DE SAINT-DENIS

       Gilberto, afastando-se de Filipe da maneira que contamos, tinha-se outra vez envolvido na multidão.

       Desta vez, porém, não era com o coração palpitando-lhe de impaciência e alegria que ele se precipitava naquela multidão ruidosa, mas sim com a alma ulcerada por uma dor que a recepção afável de Filipe e a oferta obsequiosa dos seus serviços não tinham podido mitigar.

       Andreia nem pela idéia lhe passava que tivesse sido cruel para com Gilberto. A bela e plácida donzela ignorava inteiramente que pudesse haver, entre ela e o filho da sua ama de leite, algum ponto de contacto quer na dor quer na alegria. Passava superior às esferas inferiores, lançando sobre elas a sua sombra ou a sua luz, segundo ela mesma estava risonha ou triste. Desta vez a sombra do seu desdém tinha gelado Gilberto; e como ela só tinha seguido o impulso da sua própria natureza, ignorava absolutamente que havia sido desdenhosa.

       Gilberto, porém, como um atleta desarmado, tinham-no ferido no coração, tanto o olhar de desprezo como as palavras soberbas de Andreia, e Gilberto não possuía ainda filosofia suficiente para achar consolação ao desespero que dele se apoderara.

       Por isso, logo que se meteu por entre a multidão, não se importou mais nem com os cavalos, nem com os homens a pé. Reunindo todas as suas forças, e com risco de se perder ou de ser esmagado por alguma carruagem, precipitou-se, como o javali que vai ferido, por entre a multidão e abriu caminho.

       Depois que atravessou as massas mais compactas de povo, o mancebo respirou então mais livremente, e lançando os olhos em roda de si, viu a verdura, a solidão e a água.

       Sem saber aonde se dirigia, tinha corrido até ao Sena, e achava-se quase em frente da ilha de Saint-Denis. Extenuado então, não pela fadiga do corpo, mas pelas agonias do espírito, deixou-se cair sobre a erva, e apertando a cabeça entre as mãos, começou a soltar rugidos frenéticos, como se a linguagem do leão exprimisse melhor a sua dor do que os gritos e palavras do homem. Não haviam porventura perecido de um só golpe, não só aquele espírito vago e indeciso, que até ali tinha deixado cair alguns raios furtivos sobre os seus desejos, desejos que ele mesmo se não atrevia a confessar a si próprio, mas também todas as suas esperanças? A qualquer grau da escala social, que à força de génio, de ciência ou de estudo chegasse, Gilberto, aos olhos de Andreia, ficaria sempre sendo Gilberto, isto é, uma coisa, ou um homem, segundo ela mesma o dissera, coisa de que seu pai tinha feito mal em se ocupar, e que nem valia a pena de se olhar para ela.

       Por alguns momentos acreditou que vendo-o ela em Paris, sabendo que tinha vindo a pé, conhecendo a resolução que havia tomado de lutar com a sua obscuridade até a suplantar, Andreia aplaudiria aquele seu esforço. E por fim, faltou ao generoso mancebo não só o macte animo, mas ainda de tanta fadiga e tão grande resolução; só tinha tirado em resultado a desdenhosa indiferença que Andreia sempre havia sentido por Gilberto.

       E ainda mais do que essa indiferença, não ficara ela quase irritada quando soube que Gilberto tivera a audácia de olhar para o seu solfejo? Se Gilberto lhe tivesse tocado, só lhe ficaria servindo para o mandar queimar.

       Nos corações francos e sensíveis, um engano, uma ilusão, não são mais do que um golpe, sob o qual verga o amor para de novo se erguer mais forte e perseverante. Manifestam a sua dor por queixas e lágrimas; têm a resignação do cordeiro quando é imolado. Mas há mais: o amor destes mártires medra com a própria dor, que parece deveria pôr-lhe termo; dizem a si mesmos que aquela sua resignação há-de ter um prémio, e essa recompensa é o fim a que se dirigem, quer o caminho seja fácil, quer escabroso; se o caminho é áspero, chegam mais tarde, é a única diferença, mas chegam sempre lá.

       Outro tanto não acontece com os corações secos, com os temperamentos voluntários, com as organizações fortes. Estes corações irritam-se com o verem correr o seu sangue, e cresce-lhes então por tal forma a energia, que mais parecem rancorosos que amantes. Nem por isso merecem censura; estão neles tão próximos o amor e o ódio que é insensível a passagem de um para o outro sentimento.

       Portanto, saberia Gilberto, quando assim se torcia, aniquilado pela dor, saberia porventura se amava ou odiava Andreia? Não, sofria, era só o que sentia. Contudo, como não era dotado de uma grande paciência, saiu do abatimento em que se achava, decidido a tomar alguma solução enérgica.

       - Não me ama - pensou ele - é verdade; mas eu também não podia, nem devia pensar que ela me pudesse amar. Só o que tinha direito a exigir da sua parte era aquele interesse que inspiram os desgraçados que têm a energia de lutar com a sorte. Não compreendeu ela o que por seu irmão foi compreendido. Ele, disse-me: “Quem sabe se algum dia virás a ser um Colbert, um Vauban!” Se eu me tornasse como algum deles, far-me-ia justiça, dar-me-ia sua irmã em recompensa da glória adquirida, como ma teria dado em troca da minha aristocracia nativa, se eu houvesse nascido seu igual. Ela, porém, oh! Estou bem certo disso... Colbert, Vauban, aos seus olhos ficariam sempre sendo Gilberto, porque o que ela despreza em mim, é aquilo que nada pode dourar, nada pode apagar, nada pode encobrir... É o meu baixo nascimento. Como se, no caso de eu alcançar o meu fim, não houvesse subido mais para chegar junto dela, do que se tivesse nascido seu igual. Oh! Criatura louca e insensata! Oh! Mulher, mulher! Isto é, imperfeição.

       “Fiem-se naquele meigo olhar, naquele rosto majestoso, naquele sorriso inteligente, naquele modo de rainha: eis aí a senhora de Taverney, isto é, uma mulher digna pela sua beleza de governar o mundo... Enganam-se, é uma provinciana presumida, vaidosa, cheia de seus prejuízos aristocráticos. Todos esses rapazes de cabeça oca, de espírito vão, que tiveram todos os recursos para poderem aprender tudo e que nada sabem, considera-os ela seus iguais; esses sim, são coisas, são homens, que merecem a atenção... Gilberto, esse é um cão, ainda menos do que um cão: se bem me lembro, perguntou notícias de Mahon, por Gilberto nem sequer teria perguntado! Ah! Ignora ela portanto que eu sou tão forte como eles; que, quando trajar vestes iguais às suas, parecerei tão formoso como eles parecem; ignora que tenho ainda mais do que eles, uma vontade inflexível, e que se eu quiser...”

       Um sorriso terrível contraiu os lábios de Gilberto, que deixou a frase por concluir.

       Depois pouco a pouco, e à medida que se lhe franziam as sobrancelhas, deixou cair a cabeça sobre o peito.

       Que se passaria então naquela alma obscura? Sob que terrível idéia se curvaria aquela fronte, já pálida pelas vigílias, contraída pelos pensamentos? Quem poderá dizê-lo?

       Pensaria, porventura, no barqueiro que ia descendo o rio na sua barca, e cantarolando a canção de Henrique IV? Pensaria na lavadeira buliçosa, que voltava de Saint-Denis depois de ter visto a festa, e que, afastando-se do caminho para passar longe dele, tomaria por um ladrão aquele mancebo ocioso deitado na relva no meio das cordas carregadas de roupa? Quem sabe?

       Depois de meia hora de profunda meditação, Gilberto levantou-se frio e resoluto; desceu até ao rio, bebeu um longo trago de água, olhou em roda de si, e viu à sua esquerda as ondas do povo, que voltava de Saint-Denis.

       Por entre aquela multidão sobressaíam as primeiras carruagens, que caminhavam a passo impelidas pelas fileiras que seguiam pela estrada de Saint-Ouen.

       A delfina quis que a sua entrada fosse uma festa de família. A família, portanto, aproveitou o privilégio: concorreu por tal forma ao espectáculo real que se viu bom número de parisienses subir às almofadas dos lacaios, ou pendurar-se às correias dos coches sem que ninguém os incomodasse por isso.

       Gilberto logo reconheceu a carruagem de Andreia. Filipe galopava, ou para melhor dizer, sopeava o cavalo à portinhola da carruagem.

       - Bom - disse Gilberto; - é necessário que eu saiba para onde ela vai, e para isso, é necessário que a siga.

       E seguiu-a.

       A delfina devia ir jantar à Muette, familiarmente, com o rei, o delfim, o conde de Provença, o conde de Artois; e, força é dizê-lo, Luís XV esquecera as conveniências sociais ao ponto que vamos contar: em Saint-Denis, ao convidar a delfina, havia-lhe dado a lista dos convidados, apresentando-lhe ao mesmo tempo um lápis e pedindo-lhe que riscasse os nomes daqueles que lhe não agradassem.

       Chegando ao nome da senhora du Barry, que era o último na lista, a delfina sentiu os lábios desmaiarem e tremerem-lhe; mas, contida pelas instruções que recebera da imperatriz sua mãe, chamou em seu auxílio todas as suas forças, e, com um engraçado sorriso, entregou a lista e o lápis a el-rei, dizendo-lhe: “Que bem feliz se julgava por ser tão prontamente admitida na intimidade de toda a sua família”.

       Gilberto ignorava tudo isso, e foi só na Muette que ele conheceu as carruagens da senhora du Barry, e que viu Zamora, montado no seu grande cavalo branco. Felizmente, já havia pouca claridade, Gilberto atirou consigo para onde o bosque era mais fechado, deitou-se no chão e esperou.

       El-rei fez cear sua nora com a sua amante, e mostrou-se de uma jovialidade encantadora, sobretudo quando viu a senhora delfina receber a senhora du Barry melhor ainda do que o tinha feito em Compienha.

       O delfim, porém, carrancudo e preocupado, pretextou uma grande dor de cabeça e retirou-se antes de se sentarem à mesa.

       O banquete durou até às onze horas.

       Contudo a gente do seu séquito, e forçoso foi à orgulhosa Andreia confessar ser desse número, ceou nos pavilhões, ao som da música que el-rei lhe enviou. E, além destes, como os pavilhões eram muito pequenos, cinqüenta senhoras comeram em mesas colocadas sobre a relva, servidas por cinqüenta criados com a libré de el-rei.

       Gilberto, conservando-se escondido entre os arbustos, aonde como vimos ele se ocultara, não perdeu nada desta vista. Tirou da algibeira um pedaço de pão, que tinha comprado em Clichy-la-Garenne, ceou como os outros, sem perder de vista todas as pessoas que se retiravam.

       Acabada a ceia, apareceu a delfina à janela para se despedir dos seus convidados. El-rei estava ao seu lado; a senhora du Barry, com aquele tacto fino que os seus próprios inimigos admiravam, conservou-se no fundo do quarto de modo a não ser vista de fora.

       Então foram passando cada um por sua vez junto da janela, para cortejarem el-rei e Sua Alteza Real.

       A senhora delfina conhecia já muitas pessoas das que a tinham acompanhado. El-rei nomeava-lhe aqueles que ainda não conhecia. De vez em quando os seus lábios soltavam uma palavra graciosa, ou um dito a tempo, que faziam a felicidade daqueles a quem eram dirigidos.

       Gilberto via de longe toda aquela baixeza, e dizia consigo:

       - Eu sou mais que toda essa gente, pois não faria o que eles fazem, nem a troco de todo o ouro que há no mundo.

       Chegou a vez do barão de Taverney e de sua filha.

       Gilberto, que estivera até ali deitado, levantou-se sobre um joelho.

       - Sr. Filipe - disse a delfina - dispenso-o a fim de poder acompanhar seu pai e sua irmã a Paris.

       Gilberto ouviu aquelas palavras, que, no silêncio da noite e pela imobilidade dos que escutavam e olhavam, lhe chegaram aos ouvidos.

       A senhora delfina prosseguiu:

       - Sr. Barão de Taverney, não posso agora tê-lo por meu hóspede, parta portanto para Paris com sua filha até que eu tenha estabelecido a minha casa em Versalhes; e a menina não se esqueça de mim.

       O barão passou para diante com seu filho e sua filha.

       Depois dele seguiram-se muitos outros, a quem a senhora delfina dirigia frases idênticas; mas com esses pouco se importava Gilberto.

       Saiu de onde estava metido, e seguiu o barão no meio dos gritos confusos de centenares de lacaios que corriam atrás de seus amos, de outros tantos cocheiros respondendo a essas vozes, e outras tantas carruagens soando no terreno como se fossem trovões.

       Como o senhor de Taverney tinha uma carruagem do paço, esperava-o esta separada das outras. Meteu-se nela com Andreia e Filipe, e fechou-se depois sobre eles a portinhola.

       - Ó rapaz - bradou Filipe ao lacaio que fechara a portinhola - vai na almofada com o cocheiro.

       - Para quê? - perguntou o barão.

       - Porque este pobre diabo tem andado a pé desde pela manhã e deve estar cansado - disse Filipe.

       O barão disse algumas palavras, que Gilberto não pôde ouvir. O lacaio sentou-se na almofada do cocheiro.

       Gilberto chegou-se então.

       Quando a carruagem ia partir, viram que tinha um dos tirantes solto.

       O cocheiro desceu da almofada, e ficou a carruagem ainda parada.

       - É já tarde bastante - disse o barão.

       - Estou horrivelmente cansada - disse Andreia; - acharemos ao menos onde passar a noite?

       - Assim o espero - disse Filipe. - Mandei La Brie e Nicola directamente de Suessião a Paris. Dei-lhes uma carta para um dos meus amigos, encarregando-o de me reservar uma pequena casa aonde moravam o ano passado a irmã e a mãe dele. Não é uma habitação de luxo, mas cómoda. Não deseja aparecer, quer apenas esperar.

       - Ora adeus! - disse o barão - isso sempre há-de valer bem Taverney.

       - Infelizmente, sim, meu pai - disse Filipe sorrindo melancolicamente.

       - Terei lá árvores? - perguntou Andreia.

       - Sim, e bem frondosas. Mas, provavelmente, pouco as poderás gozar, porque apenas se tiver verificado o casamento, serás apresentada.

       - Vamos, estamos gozando de um belo sonho; Deus permita que não acordemos cedo. Filipe, disseste ao cocheiro onde nos devia levar?

       Gilberto escutou com ansiedade.

       - Sim, meu pai - disse Filipe.

       Gilberto, que tudo tinha ouvido, nutriu por alguns instantes a esperança de ouvir a morada.

       - Não importa - disse ele - segui-los-ei. Daqui a Paris é apenas uma légua.

       O tirante estava já preso, o cocheiro tornou a subir para a almofada e a carruagem continuou no seu caminho.

       Mas, quando não há tumulto que os obrigue a irem devagar, os cavalos da casa do rei vão sempre muito depressa, tão depressa que trouxeram à memória do pobre Gilberto a estrada de Chaussée, o desmaio, e a fraqueza que teve.

       Gilberto fez um esforço, agarrou-se ao estribo da tábua, abandonado pelo lacaio fatigado, e saltando para essa tábua sentou-se.

       Mas quase ao mesmo tempo lembrou-se de que ia na traseira da carruagem de Andreia, isto é, no lugar de um lacaio.

       - Pois bem! Não! - murmurou o inflexível mancebo - não se dirá que não lutei até ao último momento; as minhas pernas estão cansadas, mas não o estão os meus braços.

       E agarrando com as mãos ambas o estribo, em que pouco antes descansava os pés, segurou-se suspenso em tão difícil posição, por meio do vigor dos seus pulsos, e apesar dos abalos deixou-se levar, preferindo tão grande incómodo a capitular com a sua consciência.

       - Hei-de saber a sua morada - murmurou ele - hei-de sabê-la. É mais uma noite que hei-de passar mal, mas amanhã descansarei sobre a minha cadeira, copiando música. Tenho ainda dinheiro, e portanto posso dormir duas horas, se quiser.

       Depois lembrava-se que Paris era grande, e que talvez se perdesse, ele que não conhecia a cidade, quando deixasse o barão e seus filhos na casa que Filipe lhes escolhera.

       Felizmente era perto da meia-noite e o dia começava a despontar às três horas e meia.

       Ia reflectindo nestas coisas todas quando atravessaram uma praça, no meio da qual Gilberto viu uma estátua eqüestre.

       - Dir-se-ía que é a Praça das Vitórias - pensou ele alegrando-se e admirando-se ao mesmo tempo.

       A carruagem voltou. Andreia deitou a cabeça fora do postigo.

       Filipe disse:

       - É a estátua do defunto rei. Estamos quase chegados.

       Caminharam por uma descida muito íngreme; Gilberto esteve a ponto de ser esmagado pelas rodas.

       - Estamos chegados - disse Filipe.

       Gilberto correu para o outro lado da rua, e escondeu-se por detrás de um marco de pedra.

       Filipe foi o primeiro que se apeou, puxou pela campainha, e voltando-se recebeu Andreia nos braços.

       O barão foi o último a apear-se.

       - Então! - disse ele - estes marotos vão-nos deixar passar a noite aqui?

       Neste momento ouviram-se as vozes de La Brie e de Nicola, e abriu-se uma porta.

       Os três viajantes entraram para um pátio escuro cuja porta se fechou após eles.

       A carruagem e os lacaios partiram; voltavam às cavalariças de el-rei.

       A casa, para a qual os três viajantes acabavam de entrar, não oferecia coisa alguma de notável; mas quando a carruagem passou, a luz das lanternas alumiou a frente, e Gilberto pôde ler: Palácio de Armenonville.

       Faltava-lhe saber o nome da rua.

       Dirigiu-se para a extremidade mais próxima, para o mesmo lado por onde havia desaparecido a carruagem, e com grande admiração, ao chegar a esse ponto, viu a fonte onde já tinha ido beber.

       Andou dez passos numa rua paralela à que deixava, e conheceu a loja do padeiro que lhe vendia o pão.

       Duvidava ainda, e voltou até à esquina. Ao clarão de um candeeiro pôde ler, sobre um fundo de pedra branca, as duas palavras que três dias antes havia lido, quando vinha de herborizar com Rousseau nos bosques de Meudon:

       - Rua Platrière!

       Assim ficava Andreia distante dele apenas cem passos menos afastada do que em Taverney.

       Então dirigiu-se para a sua porta, esperando que o cordel por meio do qual levantava a aldraba interior não estivesse recolhido para dentro.

       Gilberto estava nos seus dias de felicidade. Havia de fora alguns fios de cordel, por meio dos quais ele puxou o resto; a porta abriu-se.

       O mancebo achou às apalpadelas a escada, subiu mansamente, sem fazer rumor, e acabou por tocar com a ponta dos dedos no cadeado da sua porta, no qual Rousseau, por bondade, havia deixado a chave.

       Ao cabo de dez minutos, havia a fadiga vencido a preocupação, e Gilberto adormecia impaciente por que chegasse o dia seguinte.

 

O PAVILHÃO

       Gilberto, tendo-se recolhido tarde, deitou-se apressadamente e adormeceu logo, esquecendo-se por isso de tapar a fresta com o pedaço de pano que lhe servia para interceptar os raios do sol.

       Às cinco horas da manhã vieram esses raios acordá-lo, e ele ergueu-se inquieto por haver dormido tanto.

       Gilberto, homem dos campos, sabia perfeitamente conhecer as horas pela altura do sol, e pelo calor mais ou menos ardente dos seus raios. Foi ver as horas que eram.

       A palidez da luz, que apenas alumiava o cume das árvores, sossegou-o; em vez de se haver levantado tarde, havia-se erguido muito cedo.

       Gilberto lavou-se e vestiu-se ao pé da fresta, pensando nos acontecimentos da véspera, e expondo com delícia a sua fronte ardente e pesada à fresca brisa da manhã, lembrou-se que Andreia morava numa rua próxima, junto do palácio de Armenonville, e procurou adivinhar em qual de todas essas casas ela morava.

       A vista das árvores que Gilberto dominava fez-lhe lembrar uma das palavras que na véspera ouvira à menina de Taverney.

       “Haverá árvores?” tinha perguntado Andreia a Filipe.

       - Por que não teria escolhido a casa com jardim que estava desabitada? - pensava Gilberto consigo.

       Esta reflexão levou-o naturalmente a olhar para a casa que via diante de si.

       Por uma estranha coincidência com o seu pensamento, um rumor e um movimento desusado lhe atraíram a atenção para aquele lado. Uma das janelas dessa casa, que parecia desde muito tempo abandonada, tremia sob os esforços de mão fraca ou mal jeitosa; o caixilho cedia em parte, mas, empenado pela umidade ou pela chuva, dificultava muito o poder abrir-se.

       Enfim, um abalo mais violento fez ranger a madeira, e as duas vidraças, fortemente impelidas, deixaram ver uma menina ainda vermelha pelo esforço que acabava de fazer, e sacudindo o pó que nas mãos lhe ficara.

       Gilberto soltou um grito de admiração e voltou-se para trás. Essa menina, que ainda mal acordada vinha tomar o fresco da manhã, era Nicola.

       Não havia a menor dúvida. Na véspera havia Filipe anunciado a seu pai e a sua irmã que La Brie e Nicola lhes preparavam a habitação. Era portanto essa a casa preparada. Essa casa da Rua Coq-Héron, para a qual haviam entrado os viajantes, tinha os jardins contíguos à parte de trás da Rua Platrière.

       O movimento de Gilberto foi tão acentuado que se Nicola, apesar de afastada como estava, não estivesse tão entretida nessa ociosa contemplação, que é uma felicidade no momento de acordar, teria visto o nosso filósofo na ocasião em que ele se retirava da fresta.

       Mas Gilberto havia-se retirado com muita rapidez, porque decerto não lhe convinha ser descoberto por Nicola na fresta de um telhado; talvez que se estivesse habitando um primeiro andar e que por detrás dele, pela janela aberta, se pudessem ver ricas tapeçarias e móveis sumptuosos, não teria Gilberto receado tanto mostrar-se; mas a mansarda do quinto andar classificava-o muito desvantajosamente nas inferioridades sociais, para que ele não tivesse grande empenho em se ocultar. Demais, neste mundo há sempre uma grande vantagem em ver sem ser visto.

       E depois, se Andreia sabia que ele estava ali, não seria isso bastante para fazer com que ela mudasse de casa, ou pelo menos com que nunca passeasse no jardim?

       Ah! O orgulho de Gilberto ainda aos seus próprios olhos o engrandecia. Que importava Gilberto a Andreia, e em que poderia Andreia dar um passo para se afastar ou aproximar de Gilberto? Não era ela dessa raça de mulheres que saem de um banho diante de um lacaio ou de um aldeão, porque um aldeão ou um lacaio não são homens!

       Mas Nicola não era dessa raça, e era mister evitar ser visto por Nicola.

       Era principalmente este o motivo por que Gilberto se havia retirado tão precipitadamente.

       Mas Gilberto não se podia ter retirado para ficar afastado da janela; aproximou-se portanto vagarosamente, e espreitou pelo canto da fresta.

       Uma segunda janela, no andar térreo, exactamente por baixo da primeira, acabava de abrir-se, e apareceu nela uma pessoa vestida de branco: era Andreia com o seu roupão da manhã e que procurava os seus pantufos, que acabavam de lhe fugir dos pés ainda adormecidos e que se haviam sumido debaixo de uma cadeira.

       Em vão jurava Gilberto, cada vez que via Andreia, fortificar-se por meio de ódio contra ela em vez de se deixar levar pelo amor, o mesmo efeito era reproduzido pela mesma causa; viu-se obrigado a encostar-se à parede; palpitava-lhe o coração como se lhe quisesse despedaçar o peito, e essas palpitações faziam-lhe ferver o sangue em todo o corpo.

       Entretanto, a pouco e pouco, as artérias do mancebo sossegaram, e ele pôde reflectir. Tratava-se, como nós dissemos, de ver sem ser visto. Pegou num dos vestidos de Teresa, pregou-o com um alfinete numa corda que atravessava a janela em toda a sua largura, e, ocultando-se com essa cortina improvisada, pôde ver Andreia, sem recear que ela o visse.

       Andreia imitou Nicola; estendeu os seus formosos braços brancos, que por essa acção abriram um pouco o penteador; depois inclinou-se sobre o parapeito da janela para mais à vontade ver os jardins contíguos.

       Então o seu rosto exprimiu uma visível satisfação; ela que tão raras vezes sorria aos homens, sorria lhananente às coisas. De todos os lados estava cercada por frondosas árvores, de todos os lados a cercava o matiz dos jardins.

       A casa de Gilberto atraiu as vistas de Andreia como todas as outras casas que formavam cinta ao jardim. Do lugar onde estava Andreia, só se podiam ver mansardas, assim como só das mansardas também, se podia ver a casa de Andreia. Não olhou portanto para lá. Que podia importar à soberba donzela a raça que morava lá em cima?

       Por conseqüência, depois do seu exame, ficou Andreia convencida que estava invisível, e que sobre os limites desse tranqüilo retiro não aparecia rosto algum, curioso ou jovial, desses parisienses escarnecedores, que as mulheres da província tanto temem.

       Este resultado foi imediato. Andreia, deixando a sua janela aberta de par em par, para que o ar matinal pudesse banhar até aos últimos recantos o seu quarto, caminhou para o lado da chaminé, puxou pelo cordão de uma campainha e começou a vestir-se, ou melhor diremos, a despir-se na penumbra do quarto.

       Nicola chegou, abriu uma caixa de toucador do tempo da rainha Ana, pegou num pente de tartaruga e soltou os cabelos de Andreia.

       Em pouco tempo, desdobraram-se como um manto, sobre os ombros de Andreia, as compridas tranças do seu cabelo.

       Gilberto soltou um suspiro. Custava-lhe a conhecer esses formosos cabelos de Andreia, que a moda e a etiqueta acabavam de cobrir de pós; mas reconhecia Andreia, Andreia meio despida, cem vezes mais formosa assim do que vestida e enfeitada com os objectos mais ricos. Os olhos do mancebo afrouxavam pela fixidade, os seus dedos ardiam em febre, e a boca franzida estava seca!

       Quis o acaso que fazendo-se pentear, Andreia erguesse a cabeça, e que os seus olhos se fixassem na mansarda de Gilberto.

       - Sim, sim, olha bem - murmurou Gilberto; - podes olhar quando quiseres, nada poderás ver e eu vejo tudo.

       Gilberto enganava-se, Andreia via alguma coisa, era esse vestido flutuando, enrolado na cabeça do mancebo, e que lhe servia de turbante.

       Ela mostrava a Nicola, apontando com o dedo, esse singular objecto.

       Nicola interrompeu o trabalho complicado que tinha entre as mãos, e, apontando a fresta com o pente, pareceu perguntar a sua ama se era esse efectivamente o objecto que ela designava.

       Essa telegrafia, que Gilberto devorava e de que gozava loucamente, tinha, sem que ele soubesse, um terceiro espectador.

       Gilberto sentiu de repente uma pesada mão arrancar-lhe da fronte o vestido de Teresa, e caiu fulminado vendo junto de si João Jacques Rousseau.

       - Que está aí fazendo, senhor? - exclamou o filósofo com as sobrancelhas franzidas, fazendo uma visagem pouco agradável e examinando escrupulosamente o vestido tomado de empréstimo a sua mulher.

       Gilberto esforçou-se por desviar da fresta a atenção de Rousseau.

       - Nada, Sr. Jacques Rousseau - respondeu ele – nada absolutamente.

       - Nada! Então por que razão se ocultava debaixo desse vestido?

       - O sol incomodava-me.

       - Esta janela está situada ao poente, e incomoda-o o sol no momento em que desponta? Tem os olhos muito delicados, mancebo!

       Gilberto balbuciou algumas palavras, mas conhecendo que se comprometia ainda mais, ocultou o rosto entre as mãos.

       - Mente e tem medo - disse Rousseau; - portanto estava fazendo alguma coisa má.

       E em seguida a essa terrível lógica, que acabava de transtornar Gilberto, Rousseau foi para a janela.

       Por um sentimento em demasia natural, Gilberto, que havia instantes tremia e receava ser surpreendido naquela janela, correu para lá apenas Rousseau se chegou a ela.

       - Ah! Ah! - disse este num tom que gelou o sangue nas veias de Gilberto - a casa agora está habitada.

       Gilberto não disse palavra.

       - E por pessoas - prosseguiu o carrancudo filósofo - por pessoas que conhecem a minha casa, porque estão apontando para cá.

       Gilberto, que conheceu haver-se aproximado demais, deu um passo para trás.

       Nem o movimento, nem a causa que o haviam produzido escaparam a Rousseau; conheceu que Gilberto receava ser visto.

       - Não - disse ele agarrando o mancebo pelo braço; - não, meu amigo, há nisto tudo algum enredo; fique aí, faça-me esse favor.

       E conduziu-o em frente da janela, descoberto, visível de bem longe.

       - Oh! Não, senhor, não, por piedade! - exclamou Gilberto torcendo-se para lhe escapar.

       Mas para escapar, o que fora fácil a um mancebo forte e ágil como Gilberto, era preciso travar uma luta com Rousseau, uma luta com o seu deus; o respeito deteve-o.

       - Conhece aquelas mulheres - disse Rousseau - e elas conhecem-no?

       - Não, não, senhor.

       - Então se não as conhece e se lhes é desconhecido, que motivo tem para não aparecer?

       - Sr. Rousseau, durante a sua vida deve ter tido segredos, não é verdade? Pois então, piedade por um segredo.

       - Ah! Traidor! - bradou Rousseau - sim, eu conheço os segredos dessa natureza; és criatura dos Grimm, dos Holbach. Ensinaram-te um papel para captares a minha benevolência, introduzistes-te em minha casa para me entregares; oh! Que louco eu sou! Oh! Que estúpido amante da natureza, julgo socorrer um dos meus semelhantes, e trago comigo um espião.

       - Um espião! - exclamou Gilberto revoltado.

       - Vamos a saber: em que dia me queres vender, Judas? - perguntou Rousseau fazendo um manto com o vestido de Teresa que maquinalmente guardara nas mãos, e julgando-se numa atitude sublime, quando desgraçadamente só estava ridículo.

       - Senhor - disse Gilberto - calunia-me.

       - Caluniar-te, vil serpente - bradou Rousseau – quando te surpreendo correspondendo por gestos e sinais com os meus inimigos, e a contar-lhes talvez, quem sabe, o assunto da minha última obra?

       - Senhor, se eu tivesse vindo para sua casa com o intento de o atraiçoar, contando o assunto do seu trabalho, ser-me-ia mais fácil copiar os manuscritos que tem no gabinete, do que contar, por meio de sinais, o assunto de que tratam.

       Era verdade, e Rousseau conheceu tanto que havia dito um desses contra-sensos que lhe escapavam nas suas monomanias de terror, que se enfadou.

       - Senhor - disse ele - sinto muito, mas a experiência tornou-me severo; a minha vida tem-se esgotado no meio das decepções; fui atraiçoado por todos, renegado por todos, entregado, vendido, martirizado por todos. Sou, e bem o sabe, um dos ilustres desgraçados que os governos põem fora da lei e da sociedade. Em tal situação, é permitido ser desconfiado. Ora, o senhor é-me suspeito, e vai já sair da minha casa.

       Gilberto não esperava semelhante peroração.

       Ele, Gilberto, expulso!

       Fechou os punhos, e um raio que fez estremecer Rousseau lhe brilhou nos olhos.

       Mas esse raio pouco durou, e apagou-se sem estrondo.

       Gilberto havia reflectido, que partindo ia perder o doce prazer de ver Andreia a cada instante do dia, e perdia também a amizade de Rousseau: era ao mesmo tempo a desgraça e a vergonha.

       Caiu do alto do seu selvagem orgulho e de mãos postas, disse:

       - Senhor, ouça uma palavra, uma só.

       - Não tenho piedade, nada me comove – exclamou Rousseau; - os homens tornaram-me, por suas injustiças, mais feroz que um tigre. Tem correspondência com os meus inimigos, vá para eles que o não proíbo, mas saia de minha casa.

       - Senhor, aquelas duas raparigas não são suas inimigas: são a menina Andreia e sua aia Nicola.

       - Quem é a menina Andreia? - perguntou Rousseau, a quem não era estranho esse nome, que Gilberto havia já pronunciado duas ou três vezes na sua presença – quem é a menina Andreia? Diga!

       - A menina Andreia, senhor, é a filha do barão de Taverney; é, oh! Perdoe-me por lhe dizer semelhantes coisas, mas o senhor obriga-me a isso, é aquela que eu amo mais do que o senhor amou a menina Galley, a Srª. Warrens, ou qualquer outra; é aquela que eu segui a pé, sem dinheiro e sem pão, até cair no meio da estrada despedaçado pela fadiga e pela dor; é aquela que eu fui ontem ver a Saint-Denis, atrás de quem corri até Muette, que de novo acompanhei, sem que me vissem, de Muette à rua paralela a esta sua; é aquela que casualmente descobri naquela casa, esta manhã, ao abrir a minha janela; finalmente, é aquela por quem queria ser Turenne, Richelieu ou Rousseau.

       Rousseau conhecia o coração humano e sabia-lhe o diapasão dos gritos; sabia que o melhor actor não podia ter a inflexão com que Gilberto falava, e esse gesto febril com que acompanhava as suas palavras, entrecortadas pelas lágrimas.

       - Então - disse ele - aquela menina é a menina Andreia?

       - Sim, Sr. Rousseau.

       - Então conhece-a?

       - Sou filho da sua ama de leite.

       - Nesse caso mentiu ainda agora, quando disse que não a conhecia, e se não é um traidor, é um mentiroso.

       - Senhor - disse Gilberto - despedaça-me o coração, e realmente menos mal me faria, matando-me aqui mesmo neste lugar.

       - Ora adeus! Isso é fraseologia, estilo de Diderot e Marmontel; é um mentiroso, senhor.

       - Pois bem! Sim, sim - disse Gilberto - sou um mentiroso, senhor, e mal de si, senhor, se não compreende uma tal mentira. Um mentiroso! Um mentiroso!... Ah! Eu parto... Adeus! Eu parto desesperado, e há-de pesar-lhe na consciência o meu desespero.

       Rousseau passava a mão pela barba, olhando para esse mancebo que tanta analogia tinha consigo.

       - Isto há-de ser um grande homem ou um grande velhaco - pensou ele; - mas também, se conspiram contra mim, por que hei-de deixar escapar de entre as mãos o fio da conspiração?

       Gilberto havia dado quatro passos para o lado da porta, e com a mão sobre a fechadura, esperava uma última palavra que o expulsasse de todo ou que o chamasse.

       - Basta sobre este assunto, meu filho - disse Rousseau. - Se está namorado ao ponto que diz, ah! mal de si! Mas já é tarde, perdeu o dia de ontem, e hoje temos que copiar entre ambos trinta páginas de música. Vamos ao trabalho, Gilberto, vamos!

       Gilberto pegou na mão do filósofo e beijou-a; tanto não teria ele decerto feito à mão de um rei.

       Mas antes de sair e enquanto Gilberto, comovido, estava encostado à porta, Rousseau aproximou-se pela última vez da janela, e olhou para as duas raparigas.

       Neste momento, Andreia acabava de deixar cair o seu penteador, e recebia o roupão da manhã que lhe dava Nicola.

       Ela via essa cabeça pálida, esse corpo imóvel, fez um movimento rápido para se esconder, e deu ordem a Nicola para fechar a janela.

       Nicola obedeceu.

       - Vamos - disse Rousseau - a minha cabeça de velho assustou-a, este rosto novo não a assustava tanto ainda agora. Oh! Formosa mocidade! - acrescentou ele suspirando:

      

        O quiventu primavera del eta!

        O primavere quiventu del anno!

      

       E pendurando no prego o vestido de Teresa, desceu melancolicamente a escada, seguindo os passos de Gilberto, por cuja mocidade ele teria trocado, naquele momento, essa reputação, que estava a par da de Voltaire, e com ela partilhava a admiração do mundo inteiro.

 

A CASA DA RUA DE SAINT-CLAUDE

       A Rua de Saint-Claude, na qual o conde de Fénix ajustara a sua entrevista com o cardeal de Rohan, não era tão diferente naquela época do que é actualmente, que se lhe não possam ainda hoje achar os vestígios das localidades que vamos tentar descrever.

       Confinava, como ainda confina, com a Rua de Saint-Louis, e passava por essa mesma rua entre o convento das filhas do Santíssimo Sacramento e o palácio de Voysins, separado hoje no fim por uma igreja e por uma loja de mercearia.

       Como hoje também, ia-se dali para o bulevar por uma ladeira muito íngreme.

       Compunha-se ao todo de quinze casas e sete lanternas. Havia mais nesta rua dois becos.

       Um do lado esquerdo, que ficava encravado no palácio de Voysins; o outro do lado direito, encravava na cerca das filhas do Santíssimo Sacramento.

       Este último beco, assombreado do lado direito pelas árvores da cerca, tinha do esquerdo a grande parede cinzenta de uma casa que se elevava na Rua de Saint-Claude.

       Essa parede, semelhante ao rosto de um ciclope, tinha apenas um olho, ou, se assim quiserem, uma janela, e ainda assim era uma janela com grades, barras e trancas de ferro, que a tornavam horrivelmente negra.

       Mesmo por baixo dessa janela, que nunca se abria, o que era fácil de conhecer pela quantidade de teias de aranha que da parte de fora a ornavam; mesmo por baixo dessa janela, dizemos, havia uma porta com grandes pregos, que indicava, não que se entrasse, mas que se podia entrar desse lado para a casa.

       Não havia habitações nesse beco, em que se viam dois únicos habitantes: um sapateiro, sentado numa tripeça e metido numa caixa de madeira, e uma palmilhadeira metida num tonel, ambos abrigados com a sombra das acácias do convento, que, desde as nove horas da manhã, refrescavam a terra seca.

       À noite, a palmilhadeira ia para o seu domicílio, o sapateiro remendão fechava a sua caixa e então ninguém mais vigiava o beco a não ser a janela negra e triste de que já falámos.

       Além da porta que já mencionámos, a casa que tentamos descrever o mais exactamente possível tinha uma entrada principal na Rua Saint-Claude. Essa entrada, que era um portão, tinha esculturas de um relevo que faziam lembrar a arquitectura do tempo de Luís XIII, e era ornada com essa argola de cabeça de grifo que o conde de Fénix havia indicado como sinal positivo ao cardeal de Rohan.

       Quanto às janelas, deitavam para o passeio que ficava do outro lado, e desde pela manhã estavam abertas.

       Paris, nessa época, e principalmente nesse bairro, não era muito seguro. Não admirava portanto ver as janelas com grades de ferro e os muros defendidos com pedaços de vidro e de ferro.

       Dizemos isto porque o primeiro andar da casa de que se trata parecia-se com uma fortaleza. Contra os inimigos, os ladrões e os amantes, opunha varandas de ferro com mil pontas de lança aguçadas; do lado do passeio era o edifício defendido por um fosso profundo, e para escalar essa fortaleza do lado da rua, teria sido preciso trazer escadas de trinta pés de altura. A muralha de que já falamos tinha trinta e dois pés de altura, e escondia ou para melhor dizer enterrava o pátio da entrada.

       Esta casa, diante da qual todo o caminhante, admirado, inquieto e curioso pararia hoje, não tinha contudo, em 1770, um aspecto muito estranho. Pelo contrário, estava em harmonia com o bairro, e se os bons habitantes da Rua de Saint-Louis e os habitantes não inferiores da Rua de Saint-Claude fugiam dos contornos do palácio, não era pelo edifício em si mesmo, porque a sua reputação ainda estava intacta, mas sim por causa da pouca freqüência da porta de Saint-Louis, que tinha má fama, e da ponte das Couves, cujos dois arcos levantados sobre um escuro ribeiro, assemelhavam-se, para todo o parisiense um pouco ao facto das tradições, com as colunas invencíveis de Cadés.

       Efectivamente, o bulevar, por esse lado, conduzia em direitura à Bastilha. Não se lhe viam dez casas no espaço de um quarto de légua; também, não julgando a polícia necessário mandar pôr lampiões nesse nada, nesse vácuo, apenas transitado oito horas nos dias de Verão e quatro nos de Inverno; quando a noite chegava, era o caos, com ladrões no centro.

       Foi contudo por esse caminho, pelas nove horas da noite, que chegou uma carruagem, puxada com grande velocidade, três quartos de hora, pouco mais ou menos, depois da visita de Saint-Denis.

       O brasão do conde de Fénix vinha pintado nas portinholas da carruagem.

       O conde, montado em Djérid, precedia a carruagem numa distância de vinte passos.

       Na carruagem, que trazia as cortinas fechadas, vinha Lorenza adormecida e deitada sobre almofadas.

       A porta abriu-se como por encanto, ao som do trote dos cavalos, e a carruagem, depois de se haver embrenhado nas profundidades da Rua de Saint-Claude, desapareceu no pátio da casa que acabámos de descrever.

       A porta tornou a fechar-se.

       Não era decerto preciso tanto mistério, ninguém estava aí presente para ver entrar o conde de Fénix, ou para o incomodar em qualquer coisa que fosse, ainda que ele trouxesse consigo na carruagem os tesouros todos do convento de Saint-Denis.

       Agora, mais algumas palavras sobre o interior desta casa, que é de importância fazermos conhecer aos nossos leitores, porque é nossa intenção conduzi-los mais vezes a ela.

       No pátio de que já falámos e cuja erva, por uma vegetação contínua, tentava desunir as pedras que o calçavam, viam-se à direita cavalariças, à esquerda cocheiras, e no fundo um patim conduzindo para uma porta, para a qual se subia indiferentemente, de um lado ou de outro, por uma dupla escada de doze degraus.

       Em baixo, o palácio, pelo menos o que era acessível, compunha-se de uma imensa antecâmara, de uma casa de jantar notável por um grande luxo de baixela de prata, e enfim de uma sala que parecia ter sido recentemente mobilada, talvez de propósito para receber os seus novos inquilinos.

       Ao sair da sala e voltando para a antecâmara, encontrava-se uma grande escada que ia ter ao primeiro andar, que se compunha de três grandes casas.

       Mas um hábil geómetra, medindo com a vista a circunferência do palácio e calculando o seu diâmetro, poderia admirar-se de achar tão poucas casas em tão grande extensão.

       É porque nesta primeira casa visível existia uma outra oculta, cujo segredo só era conhecido da pessoa que a habitava.

       Efectivamente, na antecâmara, ao lado de uma estátua do deus Harpócrates que, com um dedo na boca, parecia recomendar silêncio, de que ele é o emblema, abria-se, quando se carregava sobre uma pequena mola, uma porta estreita e baixa, disfarçada pelos ornamentos da arquitectura. Essa porta dava acesso a uma escada colocada num corredor e da largura desse mesmo corredor, que, na altura do outro primeiro andar, pouco mais ou menos, conduzia a um pequeno quarto, no qual entrava a claridade por duas janelas de grades, as quais davam para um pátio interior.

       Este pátio era, por assim dizer, a caixa que encerrava e ocultava a todas as vistas a segunda casa.

       O quarto a que ia dar aquela escada era evidentemente um quarto de homem. Os tapetes, que se viam junto às camas, e em frente das cadeiras e canapés, eram dos mais ricos de África e da índia. Eram peles de leões, de tigres e de panteras, com olhos brilhantes e com dentes ameaçadores. As paredes forradas de marroquim de Córdova, com os lavores mais esquisitos e simétricos, estavam cobertas de armas de toda a espécie, desde a espada de punho em cruz dos antigos cavaleiros até o cangiar do árabe, desde o arcabuz com embutidos de marfim do século décimo sexto, até à espingarda adamascada de ouro do décimo oitavo século.

       Debalde se buscaria naquele quarto alguma outra entrada que não fosse a da escada; talvez aí houvesse muitas outras, eram porém desconhecidas, invisíveis.

       Um criado alemão, de vinte e cinco a trinta anos, o único ente que se via durante aqueles dias andar naquela casa espaçosa, tornou a fechar à chave a porta da rua, e abrindo depois a portinhola da carruagem, enquanto o impassível cocheiro desatrelava os cavalos, tirou de dentro dela Lorenza adormecida e levou-a nos braços até à antecâmara; aí deitou-a sobre uma mesa coberta com um pano vermelho, e depois, discretamente, cobriu-a até aos pés com o grande véu branco que a envolvia.

       Feito isto, saiu para ir acender na lanterna da carruagem uma serpentina de sete velas, que trouxe depois para a antecâmara.

       Mas, neste intervalo, pequeno como foi, Lorenza tinha desaparecido.

       Verdade é que o conde de Fénix tinha entrado atrás do criado, por seu turno havia pegado em Lorenza nos braços e levara-a pela porta falsa para a sala de armas, depois de ter com cuidado fechado a porta atrás de si.

       Chegado ali, carregou com a ponta do pé numa pequena mola que estava no canto da chaminé de um fogão. No mesmo instante girou nos gonzos, sem fazer ruído algum, uma porta que não era outra coisa senão a frente da mesma chaminé, e o conde, passando por ela, desapareceu tornando a fechar com o pé, do mesmo modo que a havia aberto, a porta misteriosa.

       Tendo transposto aquela porta, encontrou uma outra escada, e, depois de haver subido uns quinze degraus cobertos de veludo de Utreque, chegou a um segundo pavimento, forrado igualmente de cetim bordado de flores com as cores tão vivas e tão bem delineadas que se poderiam tomar por flores naturais.

       Os trastes que o mobiliavam eram de madeira dourada; dois grandes armários lavrados e com embutidos de cobre, um cravo e um toucador feitos de jacarandá, uma cama com armação, e algumas porcelanas de Sèvres, tais eram os objectos que compunham a parte indispensável da mobília; algumas cadeiras, poltronas e sofás, dispostos com simetria, num espaço de trinta pés quadrados, ornavam o resto daquele pavimento, que só se compunha de mais um quarto de toucador, e de outro quarto contíguo ao da cama.

       Duas janelas, com cortinas pouco transparentes, davam claridade àquele quarto; mas como àquela hora já era noite, as cortinas nada tinham que esconder, porque nada se via.

       Nem no quarto de toucador, nem no outro gabinete pequeno havia abertura alguma. Lâmpadas em que ardia um óleo odorífero, davam-lhes claridade tanto de dia como de noite, e sendo içadas pelo tecto, não se via de quem eram as mãos que as preparavam.

       Naqueles quartos não se ouvia o mais pequeno ruído, dir-se-ia que estavam situados a cem léguas do mundo.

       Brilhava contudo aí o ouro por todos os cantos, ricas pinturas ornavam as paredes, e compridos cristais de Boémia, com as facetas resplandecentes, brilhavam como raios ardentes quando o conde, pouco satisfeito com a luz vacilante que havia no quarto, fez sair lume daquela caixa de prata que tanto tinha preocupado Gilberto, e acendeu as velas cor-de-rosa de duas serpentinas que estavam sobre o fogão.

       Feito isto voltou para junto de Lorenza, e dobrando um joelho sobre umas almofadas que estavam defronte dela, disse:

       - Lorenza!

       A donzela, ouvindo essa voz, levantou-se firmando-se num cotovelo; conservava porém os olhos fechados e nada respondeu.

       - Lorenza - prosseguiu o conde - dorme o seu sono natural, ou o sono magnético?

       - Durmo o sono magnético - respondeu Lorenza.

       - E se eu a interrogar, pode responder-me?

       - Creio que sim.

       - Muito bem!

       Houve então um instante de silêncio, findo o qual o conde de Fénix continuou:

       - Olhe para o quarto da senhora Luísa, que acabamos de deixar há três quartos de hora, pouco mais ou menos.

       - Estou olhando.

       - Vê o que lá se passa?

       - Vejo.

       - Ainda lá está o cardeal de Rohan?

       - Não o vejo.

       - O que faz a princesa?

       - Está rezando para se ir deitar.

       - Repare, não vê Sua Eminência nos claustros ou nos pátios do convento?

       - Não o vejo.

       - Olhe para a porta do convento e veja se ainda ali está a sua carruagem.

       - Já não está.

       - Siga com a vista o caminho por onde viemos.

       - Estou-o seguindo.

       - Vê algumas carruagens nesse caminho?

       - Sim, muitas.

       - Conhece entre elas a do cardeal?

       - Não.

       - Aproxime-se mais de Paris.

       - Já me aproximei.

       - Mais ainda.

       - Sim.

       - Mais.

       - Ah! Já o vejo.

       - Aonde?

       - Na barreira.

       - Está parado?

       - Parou agora mesmo. Lá se apeia o criado da tábua.

       - Fala com ele?

       - Vai falar-lhe.

       - Oiça, Lorenza; é do maior interesse que eu saiba o que o cardeal disse a esse homem.

       - Não me ordenou a tempo que o escutasse. Mas, espere, espere! Lá vai o criado falar ao cocheiro.

       - O que lhe disse ele?

       - Rua de Saint-Claude, no Marais.

       - Muito bem, Lorenza, obrigado.

       O conde escreveu algumas palavras num pedaço de papel, dobrou-o em torno de uma chapa de cobre, destinada certamente a dar-lhe peso, puxou o cordão de uma campainha e carregou num botão, acima do qual se viu uma abertura, que tornou a desaparecer logo que essa carta por ela se sumiu.

       Era o modo pelo qual o conde se correspondia com Fritz, quando estava encerrado nos quartos interiores.

       Voltando depois a Lorenza, disse-lhe:

       - Obrigado.

       - Está contente? - perguntou Lorenza.

       - Sim, querida Lorenza.

       - Pois então dê-me a minha recompensa.

       Bálsamo sorriu-se e chegou os seus lábios aos de Lorenza, cujo corpo estremeceu todo com aquele voluptuoso contacto.

       - Oh! José! José! - murmurou ela de envolta com um suspiro quase doloroso - José, quanto te amo!

       E a donzela estendia os braços para apertar Bálsamo contra o seu coração.

 

A DUPLA EXISTÊNCIA - O SONO

       Bálsamo recuou precipitadamente, os braços de Lorenza só encontraram o espaço e caíram-lhe cruzados sobre o peito.

       - Lorenza - disse então Bálsamo - queres conversar com o teu amigo?

       - Oh! Quero, sim - respondeu ela - mas fala-me mais vezes; gosto tanto de ouvir a tua voz!

       - Lorenza, não me tens tu dito que serias bem feliz se pudesses viver comigo só, separada do mundo inteiro?

       - Oh! Por certo, isso seria a suprema felicidade.

       - Pois bem, satisfiz os teus desejos, Lorenza. Neste quarto ninguém pode perseguir-nos, ninguém pode alcançar-nos, estamos sós, absolutamente sós.

       - Oh! Ainda bem!

       - Diz-me se este quarto está a teu gosto?

       - Então manda-me ver.

       - Vê!

       - Oh! Que lindo quarto! - disse ela.

       - Então agrada-te? - perguntou o conde com doçura.

       - Oh! Por certo; lá estão as minhas flores favoritas, a minha baunilha, as rosas escarlates, os jasmins da China. Eu to agradeço, meu querido José, mas que bondade é a tua!

       - Faço o que posso para te agradar, Lorenza.

       - É cem vezes mais do que eu mereço, o que por mim fazes.

       - Parece-te isso?

       - Sim.

       - Confessas portanto que foste muito má, não é verdade?

       - Muito má! Ah! Sim, mas tu perdoas-me, não é assim?

       - Perdoar-te-ei quando me tiveres explicado o mistério estranho, contra o qual eu luto desde que te conheço.

       - Ouve-me, Bálsamo. Há em mim duas Lorenzas distintas, uma ama-te, a outra odeia-te, assim como há em mim duas existências opostas: uma, durante a qual gozo todas as alegrias do Paraíso; outra, durante a qual padeço os tormentos todos do Inferno.

       - E dessas duas existências, uma delas é o sono, a outra a vigília, não é verdade?

       - É.

       - E amas-me enquanto dormes, e aborreces-me quando estás acordada?

       - Sim.

       - E por quê?

       - Não sei.

       - Deves sabê-lo.

       - Não.

       - Procura bem, consulta-te a ti mesma, sonda o teu coração.

       - Ah! Sim... Já percebo agora.

       - Fala.

       - Quando Lorenza está acordada, então é a romana, é a filha supersticiosa da Itália: julga que a ciência é um crime, e o amor um pecado. Então o sábio Bálsamo mete-lhe medo, assusta-a o formoso José. Disse-lhe o seu confessor que perderia a sua alma se te amasse, e portanto fugirá de ti sempre sem descansar, até ao fim do mundo.

       - E quando Lorenza dorme?

       - Oh! Então é diferente; já não é romana, não é supersticiosa, é mulher. Então lê no coração e no espírito de Bálsamo; vê que esse coração a ama, que esse génio está imaginando coisas sublimes. Então vê que ela é uma coisa bem insignificante comparada com ele. E desejaria viver e morrer junto dele, para que a posteridade pronunciasse em voz baixa o nome de Lorenza, ao passo que em voz alta proclamasse o de... Cagliostro!

       - Será portanto com esse nome que eu me tornarei célebre?

       - Sim, sim, é com esse nome.

       - Minha querida Lorenza! Gostarás portanto deste teu novo quarto?

       - É mais rico do que todos os que já me tens dado, mas não é por isso que eu gosto dele.

       - Então por que é?

       - Porque me prometeste vir habitá-lo comigo.

       - Ah! Então quando dormes sabes que te amo com ardor, com paixão?...

        A donzela encolheu os joelhos, que apertou entre os braços, e disse, com um triste sorriso nos lábios:

       - Sim, bem o vejo. Bem o vejo, e todavia – acrescentou ela com um suspiro - há alguma coisa que tu amas mais do que Lorenza.

       - O que é? - perguntou Bálsamo estremecendo.

       - Os teus projectos.

       - Diz antes a minha obra.

       - A tua ambição.

       - Diz antes a minha glória.

       - Oh! Meu Deus! Meu Deus!

       O coração da italiana estava oprimido, e lágrimas silenciosas lhe corriam pelas pálpebras cerradas.

       - O que vês tu? - perguntou Bálsamo admirado daqueles espantosos momentos de lucidez, que a ele próprio assombravam.

       - Ah! Vejo trevas, por entre as quais passam fantasmas; alguns têm nas mãos cabeças coroadas, e tu, tu estás no meio de tudo aquilo, como um general no centro de um exército. Parece que tens o poder de um Deus, mandas e tudo te obedece.

       - Pois bem - disse Bálsamo com prazer - e não te torna isso orgulhosa por me possuíres?

       - Oh! Tu és demasiadamente bom para seres grande. E demais, procuro por mim, entre toda essa gente que te cerca e não me vejo. Oh! Eu já não estarei... Eu já não estarei... - murmurou ela tristemente.

       - E onde estarás então?

       - Terei morrido.

       Bálsamo estremeceu.

       - Tu, morta, minha Lorenza! - bradou ele - Não, não, havemos de viver juntos para nos amarmos.

       - Tu não me amas.

       - Oh! Sim, amo-te.

       - Não me amas bastante, pelo menos, tanto quanto desejo - bradou ela agarrando com as mãos ambas a cabeça de José Bálsamo, e aplicando-lhe ao mesmo tempo sobre a fronte a sua boca ardente, deu-lhe com delírio inúmeros beijos.

       - Que motivo de queixa tens contra mim?

       - A tua frieza. Vê, lá te afastas. Queima-te a minha boca, para assim fugires aos meus beijos? Oh! restitui-me a minha tranqüilidade de rapariga, o meu convento de Subíaco, as noites solitárias da minha cela. Restitui-me os beijos que me mandavas nas asas da brisa misteriosa, e que no meu sono eu via caminharem para mim, como silfos de asas de ouro e púrpura, e que mergulhavam a minha alma em delícias.

       - Lorenza! Lorenza!

       - Oh! Não fujas de mim, Bálsamo, não fujas de mim, suplico-to; dá-me a tua mão para a apertar nas minhas, os teus olhos para eu beijar; sou tua esposa, não me negues o que te peço.

       - Sim, sim, minha querida Lorenza, sim, és a minha querida esposa.

       - E consentes que eu viva assim junto de ti, inútil, desprezada, abandonada? Possuis uma flor casta e solitária, cujo perfume te atrai, e tu repeles esse perfume! Ah! Bem o sinto, sou para ti indiferente!

       - Pelo contrário, minha Lorenza, és tudo para mim, pois que és tu quem faz a minha força, o meu poder, o meu génio, porque sem ti eu de nada seria capaz. Deixa portanto de me amar com essa febre insensata que perturba as noites das mulheres do teu país. Ama-me como eu te amo.

       - Oh! Não é amor, não é amor o que por mim sentes!

       - Também é tudo quanto peço de ti; porque me dás tudo quanto desejo; porque essa posse da alma basta-me para ser feliz.

       - Feliz! - disse Lorenza com um modo de desprezo; - chamas a isso felicidade?

       - Sim, porque para mim, ser feliz, é ser grande.

       Lorenza suspirou.

       - Oh! Se soubesses o que é, minha Lorenza, poder ler no coração dos homens para os dominar com as suas próprias paixões!

       - Sim, para isso te sirvo, bem o sei.

       - Não é tudo ainda. Os teus olhos lêem para mim no livro fechado do futuro. O que não pude aprender em vinte anos de trabalhos e misérias, tu, minha terna pomba, inocente e pura, quando queres, ensinas-mo. Os meus passos, no meio dos quais os meus inimigos põem tantas barreiras, tu os esclareces; o meu espírito, de que dependem a minha vida, fortuna e liberdade, tu mo dilatas como o olho de lince que vê nas trevas da noite. Os teus belos olhos, fechando-se à luz do mundo, abrem-se de um modo sobrenatural, e vigiam por mim.  És tu que me fazes livre, que me fazes rico, poderoso.

       - E tu, em troca, fazes-me desgraçada! - bradou Lorenza louca de amor.

       E mais ávida que nunca, agarrou Bálsamo com os braços, que impregnado pela chama eléctrica, apenas resistiu suavemente.

       Fez contudo um esforço, e livrou-se do nó vivo que o envolvia.

       - Lorenza! Lorenza! - disse ele - por piedade!

       - Sou tua esposa - bradou ela - e não tua filha! Ama-me como o marido ama sua mulher, e não como meu pai me amava!

       - Lorenza - disse Bálsamo todo trémulo de desejos - não me peças, suplico-te, outro amor senão aquele que eu te posso dar.

       - Mas - bradou a rapariga erguendo com desespero os braços para o céu - não é amor, isso não é amor!

       - Oh! Sim, é amor... Mas amor santo e puro como se deve a uma virgem.

       Lorenza fez um movimento tão rápido que lhe fez soltar as compridas tranças de cabelos pretos. O seu braço, ao mesmo tempo branco e nervoso, ergueu-se quase ameaçador para o conde.

       - Oh! O que significa isso? - disse ela com uma voz forte e desesperada. - E por que me fizeste abandonar o meu país, o meu nome, a minha família, tudo, até o meu Deus? Porque o Deus que adoras não se assemelha ao meu. Por que me atraíste para ti? Por que tomaste sobre mim esse império absoluto, que faz de mim tua escrava, que faz da minha vida tua vida, de meu sangue, teu sangue? Ouves-me? Por que fizeste isso, se no fim de tanto padecimento só me queres chamar a virgem Lorenza?

       Bálsamo suspirou também, oprimido pela dor imensa dessa mulher, cujo coração sangrava.

       - Ah! - disse ele - é a tua culpa, ou antes a culpa de Deus; por que fez Deus de ti esse anjo de olhar infalível, com o auxílio do qual eu subjugarei o universo? Por que lês tu em todos os corações apesar da capa material que os envolve, como se pode ler uma página coberta por um vidro? É porque és um anjo de pureza, Lorenza! É porque és o diamante sem mancha, é porque nada faz sombra em teu espírito; é porque Deus, vendo essa forma imaculada, pura e radiosa, como a da sua santa Mãe, digna-se deixar descer nela, quando o invoco, em nome dos elementos que criou, o seu Santo Espírito, que geralmente paira acima das criaturas vulgares e sórdidas, por não achar nelas um lugar sem mancha em que possa descansar. Virgem, és vidente, minha Lorenza; mulher, não serias mais que matéria.

       - E não preferes o meu amor? - exclamou Lorenza batendo com raiva em suas formosas mãos, que se tornaram vermelhas; - e não preferes o meu amor a todos os sonhos que persegues, e todas as quimeras que crias? E condenas-me à castidade da religiosa, com as tentações do inevitável ardor da tua presença? Ah! José, José, cometes um crime, sou eu quem to digo.

       - Não blasfemes, minha Lorenza - bradou Bálsamo; - porque, como tu, também eu sofro muito. Olha, Lorenza, olha bem, lê em meu coração, eu o quero, e diz ainda que te não amo.

       - Mas então, por que resistes a ti mesmo?

       - Porque te quero levar comigo ao trono do mundo.

       - Oh! A tua ambição, Bálsamo - murmurou a rapariga - a tua ambição poderá nunca dar-te o que o meu amor te daria?

       Louco por sua vez, Bálsamo deixou a sua cabeça encostar-se ao peito de Lorenza.

       - Oh! Sim, sim - exclamou ela - sim, vejo enfim que me amas mais que a tua ambição, mais que o teu poder, mais que a tua esperança. Oh! Enfim, amas-me como te amo!

       Bálsamo tentou dissipar a nuvem de embriaguez que lhe sufocava a razão. Mas foi inútil o seu esforço.

       - Oh! Já que tanto me amas - disse ele - compadece-te de mim.

       Lorenza já não ouvia, acabava de fazer com os braços uma dessas invencíveis cadeias, mais tenazes que os elos de aço, mais sólidas que o diamante.

       - Amo-te como quiseres - disse ela - irmã ou mulher, virgem ou esposa, mas dá-me um beijo, um só.

       Bálsamo estava subjugado, vencido, despedaçado por tanto amor, sem força para resistir mais tempo, e com os olhos ardentes, o peito arquejante, a cabeça inclinada, aproximou-se de Lorenza, tão invencivelmente atraído como o ferro pelo íman.

       A sua boca ia unir-se à de Lorenza!

       De repente voltou-lhe a razão.

       As suas mãos sacudiram o ar carregado de embriagantes vapores.

       - Lorenza! - bradou ele - acorda, eu o ordeno!

       Imediatamente essa cadeia que ele não havia podido quebrar abriu-se, os braços que o apertavam estenderam-se, o sorriso ardente que entreabria os lábios secos de Lorenza apagou-se, lânguido como um resto de vida num derradeiro suspiro; os seus olhos fechados abriram-se, as suas pupilas dilatadas cerraram-se; sacudiu os braços com esforço, fez um movimento de fadiga e tornou a cair estendida, mas acordada, sobre o sofá.

       Bálsamo, sentado a três passos de distância dela, soltou um profundo suspiro.

       - Adeus, sonho - murmurou ele - adeus, felicidade.

 

A DUPLA EXISTÊNCIA - A VIGÍLIA

       Assim que o olhar de Lorenza adquiriu o seu poder, lançou em torno de si um golpe de vista.

       Depois de haver examinado cada coisa sem que nenhuma dessas mil bagatelas, que fazem a alegria das mulheres, houvesse desenrugado a gravidade da sua fisionomia, a italiana fixou em Bálsamo o seu olhar com um doloroso estremecimento.

       Bálsamo estava sentado e atento distante dela alguns passos.

       - Ainda o senhor? - disse ela afastando-se.

       E em sua fisionomia pintaram-se todos os sinais do terror; os seus lábios empalideceram, o suor orvalhou-lhe a raiz dos cabelos.

       Bálsamo nada respondeu.

       - Onde estou eu? - perguntou ela.

       - Sabe de onde vem, minha senhora, deve isso naturalmente conduzi-la a saber onde está.

       - Sim, tem razão para me dizer isso; efectivamente recordo-me agora. Sei que fui perseguida por si, e arrancada dos braços da real intermediária que eu havia escolhido entre Deus e mim.

       - Então sabe igualmente que essa princesa, poderosa como é, não pôde defendê-la?

       - Sim, o senhor venceu-a por meio de alguma violência mágica! - bradou Lorenza de mãos postas - oh! Meu Deus, meu Deus! Livrai-me deste demónio!

       - Em que vê que eu sou um demónio, minha senhora? - disse Bálsamo encolhendo os ombros; - uma vez por todas, eu lho peço, deixe de parte essa bagagem de pueris crenças trazidas de Roma, e toda essa quantidade de absurdas superstições que atrás de si arrastou ao sair do convento.

       - Oh! O meu convento! Quem me restituirá o meu convento?

       - Efectivamente - disse Bálsamo - é uma coisa bem recomendável um convento!

       Lorenza correu para uma das janelas, abriu as cortinas, depois levantou a aldraba, e sua mão estendida parou sobre umas grossas barras de ferro, disfarçadas e escondidas com flores, que muito lhe faziam perder da sua significação sem lhe tirarem a eficácia.

       - Prisão por prisão - disse ela - gosto mais da que leva ao Céu que da outra que conduz ao Inferno.

       E carregou furiosamente os seus punhos delicados sobre as grades.

       - Se fosse mais razoável, Lorenza, só acharia na sua janela flores sem grades de ferro.

       - Não era eu razoável quando me fechava naquela outra prisão ambulante com esse vampiro a quem chamava Althotas? Não, e contudo não me perdia de vista, todavia eu era sua prisioneira, todavia, quando me deixava, infiltrava em mim esse espírito de que estou possessa e não posso combater! Onde está ele, esse horrível ancião que me faz morrer de medo? Por aí nalgum canto, não é verdade? Caluda... Não façamos bulha, e ouviremos sair do centro da terra a sua voz de fantasma!

       - Tem uma imaginação de criança, minha senhora – disse Bálsamo - Althotas, meu preceptor, meu amigo, meu segundo pai, é um ancião inofensivo, que nunca a viu, que nunca se aproximou de si, ou que, se se aproximou e a viu, nem mesmo terá reparado em si, entretido como está na procura da sua obra.

       - Sua obra! - murmurou Lorenza - que obra é a dele, diga?

       - Procura o elixir da vida, o que há seis mil anos procuraram descobrir todos os espíritos superiores.

       - E o senhor o que procura?

       - Eu? A perfeição humana.

       - Oh! Os demónios! Os demónios! - disse Lorenza erguendo as mãos para o céu.

       - Bom - disse Bálsamo levantando-se - lá a torna a acometer o seu ataque.

       - O meu ataque?

       - Sim; há uma coisa que ignora, Lorenza, é que a sua vida está separada em dois períodos iguais: durante um a senhora é meiga, bondosa e razoável; durante o outro é louca.

       - E é com o vão pretexto dessa loucura que aqui me encarcera?

       - Ah! Assim é preciso.

       - Oh! Seja cruel, bárbaro, sem piedade; feche-me, mate-me, mas não se faça hipócrita, e não queira fingir que se compadece de mim, quando me está despedaçando!

       - Vamos - disse Bálsamo sem se enfadar e mesmo com um sorriso agradável - é algum tormento muito horroroso, habitar uma casa elegante e cómoda?

       - Grades, grades de todos os lados; muitas barras de ferro; ar, nenhum!

       - Essas grades estão aí no interesse da sua própria vida, Lorenza.

       - Oh! - exclamou ela - este demónio mata-me a fogo lento, e diz que pensa na minha vida, que se interessa muito por ela!

       Bálsamo aproximou-se de Lorenza, e com um gesto amigável quis pegar-lhe na mão; mas ela, recuando, como se uma serpente houvesse passado junto de si, bradou:

       - Oh! Não me toque!

       - Odeia-me então muito, Lorenza?

       - Pergunte ao padecente se odeia o seu carrasco.

       - Lorenza, Lorenza, não quero ser o seu carrasco, por isso lhe tiro uma pouca da sua liberdade. Se eu a deixasse andar à sua vontade, sabe Deus o que faria nalguns dos seus momentos de loucura!

       - O que eu faria? Oh! Veja-me eu um dia livre, e então verá!

       - Lorenza, trata bem mal o esposo que diante de Deus escolheu.

       - Eu escolhi-o? Nunca!

       - Contudo, é a minha esposa.

       - Oh! Nisso é que está a obra do Demónio.

       - Pobre insensata! - disse Bálsamo olhando para ela com ternura.

       - Mas sou romana - murmurou Lorenza - e um dia, oh! um dia eu me vingarei!

       Bálsamo abanou a cabeça.

       - Diz isso para me assustar, não é verdade, Lorenza? - perguntou ele sorrindo.

       - Não, não, hei-de fazer o que digo.

       - Mulher cristã, o que diz? - bradou Bálsamo num tom de autoridade admirável. - A sua religião, que a ensina a dar o bem pelo mal, não é portanto senão hipocrisia, pois que diz seguir essa religião, e dá em troca o mal pelo bem que recebe!

       Lorenza pareceu um instante dominada por essas palavras.

       - Oh! - disse ela - não é uma vingança denunciar à sociedade os seus inimigos, é um dever.

       - Se me denuncia como um nigromante, como um feiticeiro, não é a sociedade que nisto ofendo, é Deus. Por que, então, se ofensa é a Deus, a Deus que pode, com um sinal da sua cólera, fulminar-me, se não dá Ele ao trabalho de me castigar, e deixa esses cuidados aos homens, fracos como eu, e como eu susceptíveis de erro?

       - Porque esquece, tolera - murmurou a romana – espera que se emende.

       Bálsamo sorriu.

       - E entretanto - disse ele - aconselha-a para atraiçoar o seu amigo, o seu benfeitor, o seu esposo!

       - Meu esposo! Ah! Graças a Deus, nunca senti a sua mão tocar na minha, sem que me subisse a cor ao rosto, ou sem que me sentisse estremecer.

       - E, bem o sabe, procurei sempre generosamente livrá-la desse contacto.

       - É verdade, é casto, e é essa a única compensação concedida às minhas desgraças. Oh! Se me tivesse sido preciso submeter-me ao seu amor!

       - Oh! Mistério! Mistério impenetrável! – murmurou Bálsamo, que parecia seguir o seu pensamento em lugar de responder ao de Lorenza.

       - Terminemos - disse Lorenza; - por que me rouba a minha liberdade?

       - Por que, depois de voluntariamente ma haver dado, quer tornar a tirar-ma? Por que foge daquele que a protege? Por que vai pedir apoio a uma estranha contra aquele que a ama? Por que ameaça a cada instante aquele que nunca a ameaça de revelar segredos, que não são seus, e cujas conseqüências ignora?

       - Oh! - disse Lorenza sem responder à interrogação - o prisioneiro que firmemente deseja a liberdade acaba sempre por alcançá-la, e as suas barras de ferro não me farão demorar aqui mais tempo do que o havia feito a sua gaiola ambulante.

       - Felizmente para si, Lorenza, são sólidas - disse Bálsamo com uma tranqüilidade ameaçadora.

       - Deus mandará em meu auxílio alguma tempestade como a da Lorraine, algum raio que as quebrará.

       - Acredite no que lhe digo, rogue a Deus para que tal não aconteça; acredite-me, não se fie nessas exaltações românticas, Lorenza, falo-lhe como amigo, escute-me.

       Havia tanta raiva concentrada na voz de Bálsamo, tanto fogo sombrio lhe brilhava nos olhos, sua mão branca e musculosa enrugava-se por uma forma tão estranha a cada uma dessas palavras que ele pronunciava lentamente e quase solenemente, que Lorenza, atordoada no ponto mais forte da sua rebelião, escutou a despeito de si mesma.

       - Veja, minha filha - prosseguiu Bálsamo sem que a sua voz houvesse perdido coisa alguma da sua ameaçadora doçura - procurei fazer com que esta prisão fosse habitável até mesmo para uma rainha; e se a senhora fosse rainha, nada lhe havia de faltar aqui. Sossegue portanto essa louca exaltação. Viva aqui como teria vivido no convento. Acostume-se a ver-me; ame-me como a um amigo, um irmão. Tenho grandes desgostos, horríveis decepções, eu lhe confiarei tudo; muitas vezes um sorriso seu me consolará. Quanto mais bondosa, atenta, cheia de paciência a encontrar mais adelgaçarei as barras de ferro da sua cela; quem sabe? Dentro de um ano, ou de seis meses, estará talvez tão livre como eu, e já não me quererá privar da sua presença.

       - Não, não - bradou Lorenza, que não podia compreender de que modo uma resolução tão terrível se ligava com uma voz tão doce - nada de promessas, nada de mentiras; o senhor levou-me por violência; pertenço a mim e só a mim; restitua-me portanto pelo menos a Deus, se me não quer restituir a mim mesma. Tolerei até aqui o seu despotismo, porque me lembrei que me havia arrebatado a uns salteadores que me iam desonrar, mas já essa obrigação que eu tinha para consigo vai enfraquecendo. Ainda mais alguns dias nesta prisão que me revolta, e já lhe não serei obrigada, e depois, depois tome cuidado, talvez chegue a crer que tinha contratos misteriosos com esses salteadores.

       - Far-me-á a honra de ver em mim um chefe de bandidos? - perguntou Bálsamo ironicamente.

       - Não sei, mas pelo menos, vi alguns sinais, ouvi palavras...

       - Viu sinais, ouviu palavras? - bradou Bálsamo empalidecendo.

       - Sim, sim - disse Lorenza - surpreendi esses sinais, ouvi essas palavras.

       - Mas nunca as dirá a pessoa alguma, não as repetirá a quem quer que seja, e guardá-las-á no mais íntimo do seu peito, para que lá possam morrer.

       - Oh! Não, pelo contrário! - exclamou Lorenza, com aquela felicidade que num momento de raiva se sente por achar finalmente o lado vulnerável do seu antagonista. Hei-de trazê-las sempre na memória, hei-de repeti-las em voz baixa sempre que estiver só, e em voz alta em todas as ocasiões que tiver; e até já as disse.

       - A quem? - perguntou Bálsamo.

       - À princesa.

       - Pois bem, Lorenza, ouça bem isto que vou dizer-lhe - disse Bálsamo cravando as unhas no corpo para apagar a efervescência do seu sangue - se as disse, não as tornará a dizer; não as tornará a dizer porque eu hei-de ter as portas bem fechadas, porque hei-de aguçar os bicos destas grades, porque, se preciso for, hei-de levantar os muros deste pátio tão altos como levantaram os da torre de Babel.

       - Eu já lho disse, Bálsamo, toda a prisão tem saída - bradou Lorenza - principalmente quando o amor da liberdade é reforçado pelo ódio ao tirano.

       - Muito bem, saia quando lhe aprouver, Lorenza, mas lembre-se sempre disto: já não tem mais que duas vezes para poder sair; da primeira, hei-de castigá-la tão cruelmente que lhe farei verter as lágrimas todas do seu corpo; da segunda, hei-de bater-lhe tão desapiedadamente que lhe farei verter o sangue todo das suas veias.

       - Meu Deus! Meu Deus! há-de assassinar-me! –bradou a jovem mulher chegada ao paroxismo da raiva, arrancando os cabelos e torcendo-se sobre o tapete.

       Bálsamo contemplou um instante Lorenza com um misto de cólera e piedade. Por fim a piedade pareceu vencer, e disse:

       - Vamos, Lorenza, torne a si; um dia há-de chegar em que será largamente recompensada de tudo quanto houver padecido ou houver julgado padecer.

       - Encarcerada! Encarcerada! - bradou Lorenza sem ouvir Bálsamo.

       - Paciência.

       - Bater-me!

       - Pode evitá-lo.

       - Doida! Doida!

       - Tornará a si.

       - Oh! Mande-me já para um hospital de doidos; feche-me realmente numa prisão verdadeira!

       - Não! Porque me preveniu a tempo do que faria contra mim.

       - Pois bem! - gritou Lorenza - antes a morte! Antes a morte imediatamente!

       E levantando-se com a ligeireza de um animal bravo correu desvairada para ir despedaçar a cabeça contra a parede.

       Mas bastou a Bálsamo estender para ela a mão e pronunciar do fundo da sua vontade, muito mais ainda que dos lábios, uma única palavra para que ela se detivesse; Lorenza, que já ia em caminho, cambaleou e caiu adormecida nos braços de Bálsamo.

       O estranho homem que parecia ter submetido todo o lado material desta mulher, mas que em vão lutava contra o lado moral, ergueu Lorenza nos braços, dirigiu-se para o quarto de dormir, e depô-la sobre a cama; deu-lhe então um beijo ardente, fechou as cortinas do leito, depois as das janelas, e saiu.

       Quanto a Lorenza, um sono doce e benéfico envolveu-a como o manto de uma boa mãe cobre a criança fraca que padeceu muito, que chorou muito.

 

A VISITA

       Lorenza não se havia enganado. Uma carruagem, entrando pela barreira de Saint-Denis, havia atravessado em toda a sua extensão o bairro do mesmo nome.

       Esta carruagem conduzia, como a vidente o havia dito, o Sr. Luís de Rohan, Bispo de Estrasburgo, cuja impaciência o obrigava a vir procurar, antes do tempo determinado, o feiticeiro na sua caverna.

       O cocheiro, a quem o grande número de aventuras galantes do bom prelado acostumara a andar durante a escuridão, e a não temer os perigos de certas ruas misteriosas, não hesitou um só momento, quando, depois de ter seguido pelo bairro de Saint-Denis e atravessado o de Saint-Martin, ainda povoados e alumiados, se viu obrigado a entrar no caminho deserto e sombrio da Bastilha.

       A carruagem parou na esquina da Rua de Saint-Claude, e segundo a ordem do amo, foi esconder-se no beco, debaixo das árvores, numa distância de vinte passos.

       Então o senhor de Rohan, em traje de passeio, apeou-se e veio bater três argoladas na porta do palácio que facilmente havia conhecido pelos sinais que tinha recebido do conde de Fénix.

       Fritz atravessou o pátio; a porta abriu-se.

       - Não é aqui que mora o Sr. Conde de Fénix? – perguntou o príncipe.

       - Sim, senhor - respondeu Fritz.

       - Está em casa?

       - Sim, senhor.

       - Então queira dizer-lhe que desejo falar-lhe.

       - Sua Eminência o Sr. Cardeal de Rohan, não é verdade, senhor?

       O príncipe ficou admirado. Olhou para si, em torno de si, para ver se no seu fato ou no seu modo alguma coisa podia ter traído a sua qualidade. Estava só, e vestido de secular.

       - Como sabe o meu nome? - perguntou ele.

       - O meu amo acaba de me dizer, neste momento, que esperava por Sua Eminência.

       - Sim, mas que me esperava amanhã ou depois de amanhã?

       - Não, senhor, disse que o esperava esta tarde.

       - Seu amo acaba de lhe dizer que me esperava esta tarde?

       - Sim, senhor.

       - Bem, vá então preveni-lo - disse o cardeal metendo uma peça de dois luíses na mão de Fritz.

       - Então - disse Fritz - dê-se Vossa Eminência ao incómodo de me seguir.

       O cardeal fez um sinal de assentimento com a cabeça.

       Fritz caminhou num passo apressado para a porta da antecâmara, que era alumiada por doze velas de um candelabro de bronze dourado.

       O cardeal seguiu admirado e pensativo.

       - Meu amigo - disse ele, parando na porta da sala - aqui há por força engano, e nesse caso não quereria incomodar o conde; é impossível que ele espere por mim, pois que ignora que eu havia de vir.

       - É Sua Eminência o Cardeal Príncipe de Rohan, Bispo de Estrasburgo? - perguntou Fritz.

       - Sim, meu amigo.

       - Então é Vossa Eminência por quem meu amo espera.

       E acendendo sucessivamente as velas dos outros dois candelabros, Fritz inclinou-se e saiu.

       Cinco minutos se passaram durante os quais o cardeal, entregue a uma singular comoção, olhou para a mobília cheia de elegância dessa sala e para os oito quadros de grande autor, pendurados nas paredes.

       A porta abriu-se e apareceu o conde de Fénix no limiar.

       - Boa noite, senhor - disse ele simplesmente.

       - Disseram-me que me aguardava! - exclamou o cardeal sem responder a esse cumprimento - que esperava por mim hoje mesmo? É impossível.

       - Peço perdão, mas já o esperava - respondeu o conde.

       - Talvez duvide da verdade das minhas palavras vendo o frio acolhimento que lhe faço, mas, apenas chegado há alguns dias, ainda agora estou instalado. Desculpe-me, portanto, Vossa Eminência.

       - Esperava-me! Mas quem o preveniu da minha visita?

       - O senhor mesmo.

       - Como?

       - A sua carruagem não parou nas barreiras de Saint-Denis?

       - Sim.

       - Não chamou pelo criado da tábua, que veio falar com Vossa Eminência ao postigo da carruagem?

       - Sim.

       - Não lhe disse estas palavras: “Rua de Saint-Claude, no Marais, pelo bairro de Saint-Denis”, palavras estas que o lacaio foi repetir ao cocheiro?

       - Sim. Mas então viu-me, ouviu-me?

       - Vi-o, senhor, ouvi-o.

       - Então estava lá?

       - Não, senhor, não estava lá.

       - E onde estava?

       - Estava aqui.

       - Viu-me e ouviu-me daqui?

       - Sim, senhor.

       - Ora adeus!

       - Esquece que sou feiticeiro?

       - Ah! É verdade, esquecia, senhor... Como deverei chamar-lhe? Sr. Barão Bálsamo ou Sr. Conde de Fénix?

       - Em minha casa, senhor, não tenho nome, chamo-me o MESTRE.

       - Sim, é o título hermético. Então, mestre, esperava por mim?

       - Sim, senhor.

       - E havia aquecido os fornos do seu laboratório?

       - O meu laboratório está sempre pronto, senhor.

       - E permitir-me-á lá entrar?

       - Terei a honra de lá conduzir Vossa Eminência.

       - Segui-lo-ei, mas com uma condição.

       - Qual é?

       - É que há-de prometer-me de me não pôr pessoalmente em contacto com o Diabo.  Tenho muito medo de Lúcifer.

       - Oh! Senhor!

       - Sim, ordinariamente para fazer de diabo pega-se, num grande maroto qualquer, soldado das guardas francesas, ou algum mestre de esgrima, que, para desempenhar ao natural o papel de Satanás, vai batendo na gente, dando piparotes e apagando previamente as luzes.

       - Senhor - disse Bálsamo sorrindo - nunca os meus diabos esquecem que estão tratando com príncipes, e trazem sempre na memória o dito do senhor de Condé, que prometeu a um deles que se não estivesse quieto, tanto lhe havia de bater no forro que se veria obrigado a sair dele, ou a portar-se com mais decência.

       - Bem - disse o cardeal - isso encanta-me; vamos ao laboratório.

       - Vossa Eminência quer dar-se ao incómodo de me seguir?

       - Vamos.

 

O OURO

       O cardeal e Bálsamo meteram-se por uma pequena escada, que conduzia paralelamente da sala grande para as do primeiro andar: ali, debaixo de uma abóbada, abriu Bálsamo uma porta, e o cardeal viu um corredor escuro pelo qual entrou resolutamente.

       Bálsamo tornou a fechar a porta.

       Ao rumor que essa porta fez para se fechar, olhou o cardeal para trás com certa comoção.

       - Senhor, estamos chegados - disse Bálsamo - só nos falta abrir aquela porta que está diante de nós; mas previno-o para que se não assuste, que ao abrir-se há-de produzir um som estranho, por ser de ferro.

       O cardeal, que havia estremecido com a bulha da primeira porta, estimou ser prevenido a tempo, porque o ranger metálico dos gonzos da fechadura, haveria feito vibrar desagradavelmente nervos menos susceptíveis que os seus.

       Desceu três degraus e entrou. Um grande gabinete, com o vigamento descoberto no tecto, uma lâmpada com um transparente, muitos livros, muitos instrumentos de química e física, tal era o primeiro aspecto desta nova casa.

       Ao cabo de alguns segundos sentiu o cardeal que já não respirava senão a custo.

       - O que é isto? - perguntou ele; - morre-se aqui abafado, mestre; corre-me o suor pela fronte. Que bulha é esta?

       - Eis aqui a causa, senhor, como diz Shakespeare – respondeu Bálsamo puxando uma grande cortina de amianto e descobrindo assim um grande fornilho de tijolo no centro do qual cintilavam dois orifícios, como os olhos do leão nas trevas.

       Este fornilho estava no centro de uma segunda casa, do duplo tamanho da primeira, e que o príncipe não tinha visto, porque ficava escondida com a cortina de amianto.

       - Oh! Oh! - disse o príncipe recuando - isto não deixa de ser assustador.

       - É um fornilho, senhor.

       - Sim, não há dúvida, mas citou Shakespeare, e eu citarei Molière: há fornos de muitas qualidades, e este tem uma aparência perfeitamente diabólica, e o cheiro não me agrada. O que está cozendo?

       - O que Vossa Eminência me pediu.

       - Como?

       - Sem dúvida, parece-me que Vossa Eminência me fez a mercê de aceitar uma amostra do meu trabalho. Eu só devia trabalhar amanhã à noite, porque só depois de amanhã esperava por Vossa Eminência; mas tendo Vossa Eminência mudado de tenção, assim que o vi em caminho para a Rua de Saint-Claude, vim acender o fornilho e fiz a mistão, de que resulta estar já fervendo, e antes de dez minutos terá o ouro de que carece. Permita-me que abra os ventiladores das janelas para estabelecer uma corrente de ar.

       - Como! Esses cadinhos que estão sobre o forno...

       - Daqui a dez minutos hão-de fornecer-lhe ouro tão puro como o dos cequins de Veneza e dos florins de Toscana.

       - Vejamos, se contudo é possível ver.

       - Certamente; só o que devemos fazer é tomar algumas precauções indispensáveis.

       - Quais?

       - Ponha sobre o rosto esta máscara de amianto com olhos de vidro, sem o que, o fogo é tão ardente, que lhe poderia queimar a vista.

       - Sim! Cuidado, que não é graça; tenho muito amor aos meus olhos, e não os daria pelos cem mil escudos que me promete.

       - É o que eu pensava, senhor; os olhos de Vossa Eminência são belos e bons.

       O cumprimento não desagradou de modo algum ao príncipe, que era muito cioso da sua formosura.

       - Ah! Ah! - disse ele pondo a máscara. - Vamos então ver ouro?

       - Assim o espero, senhor.

       - No valor de cem mil escudos?

       - Sim, senhor; talvez exceda um pouco, porque fiz a mistão abundante.

       - O senhor é realmente um feiticeiro generoso – disse o príncipe alegre, sentindo palpitar-lhe o coração.

       - Menos que Vossa Alteza, que se digna dizer-mo. Agora, senhor, tenha a bondade de se afastar um pouco, para eu abrir a chapa do cadinho.

       Bálsamo vestiu uma pequena túnica de amianto, agarrou com o seu braço vigoroso numa tenaz de ferro, e levantou uma tampa vermelha pelo ardor do fogo, o que deixou ver quatro cadinhos de forma semelhante, contendo uns uma mistura da cor do vermelhão, e os outros uma matéria já embranquecida, mas que conservava ainda um resto de transparência purpurina.

       - É isso o ouro! - disse o prelado a meia voz, como se receasse perturbar por uma palavra pronunciada em voz demasiado alta o mistério que diante dele se ia verificar.

       - Sim, senhor, estes quatro cadinhos estão por escala: uns que cozem em doze horas, outros em onze. A mistão, é isso um segredo que eu revelo a um amigo da ciência, não se vasa naquela matéria senão no momento da ebulição. Mas, como Vossa Eminência o pode ver, aí se vai tornando branco o primeiro cadinho; é tempo de transvazar a matéria chegada ao ponto necessário. Queira afastar-se um pouco, senhor.

       O príncipe obedeceu com a mesma pontualidade de um soldado à ordem do seu chefe. E Bálsamo, largando a tenaz de ferro, já quente pelo contacto com os cadinhos, aproximou do fornilho uma espécie de bigorna com rodas, sobre a qual estavam presas entre barras de ferro oito formas cilíndricas.

       - O que é isto, querido feiticeiro? - perguntou o príncipe.

       - Isto, senhor, é a forma comum na qual vou vazar as suas barras de ouro.

       - Ah! Ah! - disse o príncipe, e dobrou de atenção.

       Bálsamo estendeu no chão uma camada de estopa. Colocou-se entre a bigorna e o fornilho, abriu um grande livro, recitou, de varinha na mão, uma encantação, depois pegando numa tenaz gigantesca, destinada a agarrar o cadinho entre os braços tortos, disse:

       - O ouro há-de ser óptimo, senhor, e da primeira qualidade.

       - Como! - perguntou o príncipe - vai pegar nesse vaso de fogo?

       - Que pesa cinqüenta arráteis, sim, senhor, oh! Poucos químicos, declaro-lhe, têm a minha destreza e os meus músculos, não receie coisa alguma.

       - Mas se o cadinho rebentasse...

       - Já me aconteceu isso uma vez, senhor; era em 1399, estava eu fazendo uma experiência com Nicolau Flamel, na sua casa da Rua dos Escrivões, ao pé da capela de Saint-Jacques-la-Boucherie. O pobre Flamel esteve a ponto de perder a vida, e eu perdi vinte e sete marcos de uma substância ainda mais preciosa que o ouro.

       - Que diacho me está dizendo, mestre?

       - A verdade.

       - Em 1399, já andava trabalhando na grande obra?

       - Sim, senhor.

       - Com Nicolau Flamel?

       - Com Nicolau Flamel; achamos juntos o segredo, cinqüenta ou sessenta anos antes, quando trabalhávamos com Pedro o Bom, na cidade de Pola. Ele não tapou o cadinho com a necessária ligeireza, e eu perdi o olho direito por dez ou doze anos, que se me queimou pela evaporação.

       - Pedro o Bom?

       - O que compôs a famosa obra de Margarita Pretiosa, obra que certamente conhece.

       - Sim, e que tem a data de 1330.

       - É isso exactamente, senhor.

       - E conheceu Pedro o Bom e Flamel?

       - Fui discípulo de um e mestre do outro.

       E enquanto o cardeal, aterrado, perguntava a si mesmo se não era o diabo em pessoa e não um dos seus delegados que estava ao pé de si, Bálsamo meteu no forno os compridos braços da sua tenaz.

       O aperto foi seguro e rápido. O alquimista agarrou bem o cadinho, levantou-o um pouco para certificar-se de que estava bem seguro; depois, com um esforço vigoroso, tirou uma formidável marmita do centro do seu forno ardente: os braços da tenaz fizeram-se logo vermelhos; depois sobre a argila incandescente, viram-se correr sulcos brancos como relâmpagos numa nuvem sulfúrea; depois as bordas do cadinho mudaram para uma cor de vermelho-escuro, enquanto o fundo cónico aparecia ainda cor-de-rosa e prateado na penumbra do fornilho; depois, finalmente, o metal líquido sobre cuja superfície se formava uma capa roxa com pregas douradas, sibilou pelo bico do cadinho, e correu em jorros chamejantes na forma negra, a cujo orifício apareceu, furiosa e espumante, a toalha de ouro, insultando com seus estremecimentos o metal vil que a continha.

       - Vamos ao segundo - disse Bálsamo com a maior impassibilidade.

       E a segunda forma encheu-se com a mesma força e destreza.

       O suor corria pela fronte do operador; o espectador benzia-se na sombra.

       Com efeito era um quadro selvagem de horrorosa majestade. Bálsamo, em cujo rosto se projectavam os reflexos vermelhos da chama metálica, parecia-se com os condenados que Miguel Ângelo e o Dante torcem no fundo das suas caldeiras.

       Bálsamo nem respirou entre as duas operações, o tempo urgia.

       - Há-de haver alguma quebra - disse ele depois de ter enchido a segunda forma; - deixei ferver a mistura um centésimo de minuto de mais.

       - Um centésimo de minuto! - bradou o cardeal não procurando mais ocultar a sua estupefacção.

       - Em hermética, é um tempo enorme, senhor – redargüiu Bálsamo lhanamente; - mas entretanto, Eminência, eis aqui dois cadinhos vazios e duas formas cheias, o que equivale a cem libras de ouro fino.

       E agarrando, com auxílio das suas poderosas tenazes, a primeira forma, deitou-a dentro de água, que ferveu e produziu vapores durante muito tempo; depois abriu-a, e tirou de dentro um pedaço de ouro.

       - Temos que esperar perto de uma hora por causa dos outros dois cadinhos - disse Bálsamo; - se entretanto Vossa Eminência quiser, pode sentar-se ou então respirar um pouco de ar fresco.

       - Então isto é ouro? - perguntou o cardeal sem responder às perguntas do operador.

       Bálsamo sorriu. O cardeal olhava para o ouro.

       - E duvidaria, senhor?

       - A ciência tem-se enganado tantas vezes...

       - Não me diz tudo quanto pensa, meu príncipe – disse Bálsamo. - Julga que o engano e que o engano conscientemente. Senhor, eu seria um ente bem insignificante a meus próprios olhos, se assim procedesse, porque as minhas ambições não iriam além das paredes do meu gabinete, que o veriam sair maravilhado para ir perder a sua admiração na loja do primeiro batedor de ouro que encontrasse. Vamos, vamos, meu príncipe, faça-me mais honra, e acredite que se o quisesse enganar, seria mais habilmente e com um fim mais elevado. Demais, Vossa Eminência sabe como se experimenta o ouro?

       - Sem dúvida, com a pedra.

       - Vossa Eminência não pode deixar de ter feito essa experiência, ainda que não fosse senão com as onças espanholas, que aparecem muito no jogo, e que são de ouro mais fino que se possa achar, mas entre as quais há muitas que são falsas.

       - Na realidade já me tem acontecido isso.

       - Pois então, senhor, aqui está uma pedra e ácido.

       - Não é preciso, estou convencido.

       - Senhor, faça-me o favor de se certificar de que não só estas barras são de ouro, mas também que são de ouro sem liga.

       Ao cardeal parecia repugnar essa prova de incredulidade e todavia conhecia-se visivelmente que não estava convencido.

       O próprio Bálsamo fez a prova das barras e submeteu o resultado ao exame do cardeal.

       - Vinte e oito quilates - disse ele; - agora vou vazar os outros dois cadinhos.

       Dez minutos depois estavam as duzentas libras de ouro divididas em quatro barras colocadas sobre a cama de estopa.

       - Vossa Eminência veio de carruagem, não é verdade? Pelo menos, quando o vi caminhar nesta direcção, vinha de carruagem.

       - Sim.

       - Vossa Eminência mandará chegar a carruagem à porta, e o meu lacaio lhe levará as barras de ouro.

       - Cem mil escudos! - murmurou o cardeal tirando a máscara como para ver com os seus próprios olhos o ouro que estava no chão a seus pés.

       - E este, senhor, poderá dizer de onde vem, não é verdade? Porque o viu fazer.

       - Oh! Sim, posso jurar.

       - Nada, nada - disse Bálsamo - em França não gostam dos sábios: não jure coisa alguma, senhor. Oh! Se em vez de fazer ouro eu fizesse teorias, não digo...

       - Então que posso eu fazer para o servir? - disse o príncipe pegando a custo com as suas mãos delicadas numa das barras do peso de cinqüenta libras.

       Bálsamo olhou atentamente para ele, e sem respeito algum soltou uma gargalhada.

       - Em que pode, o que acabo de lhe dizer, provocar o riso? - perguntou o cardeal.

       - Parece-me que Vossa Eminência me ofereceu os seus serviços!

       - Certamente.

       - Realmente não achava mais próprio que eu lhe oferecesse os meus?

       O rosto do cardeal tornou-se carregado.

       - Faz-me um grande obséquio, senhor, sou o primeiro em o conhecer; mas se a obrigação em que lhe fico deve ser mais pesada que eu pensava, não aceitarei os seus serviços: há ainda em Paris, graças a Deus, bastantes usurários para que, metade sobre penhor e metade sobre a minha assinatura, eu ache cem mil escudos até depois de amanhã e só o meu anel episcopal tem mais de quarenta mil libras de valor.

       E o prelado estendeu a mão branca como a de uma mulher, em cujo dedo anular brilhava um diamante do tamanho de uma avelã.

       - Meu príncipe - disse Bálsamo inclinando-se - é impossível que tenha um só instante julgado que eu queria ofendê-lo.

       Depois, como se consigo mesmo falasse:

       - É singular - prosseguiu ele - que a verdade faça semelhante efeito a todos aqueles que têm o título de príncipe.

       - Como?

       - Sem dúvida! Vossa Eminência oferece-me os seus serviços; mas tenha a bondade de me responder, senhor, de que natureza podem ser esses serviços?

       - O meu crédito na corte, por exemplo.

       - Senhor, senhor, bem sabe que esse crédito está muito abalado, e eu preferiria talvez o do senhor de Choiseul que não tem mais de quinze dias talvez para ser ministro. Olhe, meu príncipe, quanto a crédito, o meu é sempre o melhor, produz belo e óptimo ouro. Cada vez que Vossa Eminência precisar algum, não terá mais que mandar-mo dizer na véspera ou no mesmo dia pela manhã, e fornecer-lhe-ei a porção que quiser; e a troco de ouro tudo se alcança, não é verdade, senhor?

       - Nem tudo, senhor - murmurou o cardeal, tomando a posição de protegido e não procurando mais representar de protector.

       - Ah! É verdade. Esquecia-me - disse Bálsamo – que Vossa Eminência deseja outra coisa que não é ouro, um objecto mais precioso que as riquezas todas do mundo; mas isso já não pertence à ciência, pertence à magia. Senhor, diga uma palavra e o alquimista está pronto a ceder o lugar ao feiticeiro.

       - Obrigado, senhor, nada mais necessito, nada mais desejo - disse tristemente o cardeal.

       Bálsamo aproximou-se dele.

       - Senhor - disse ele - um príncipe jovem, ardente, belo, rico, e que se chama Rohan, não pode dar semelhante resposta a um feiticeiro.

       - E por quê?

       - Porque o feiticeiro lê no fundo do coração, e sabe o contrário.

       - Nada desejo, nada quero, senhor - atalhou o cardeal quase aterrado.

       - Eu pensava, pelo contrário, que os desejos de Vossa Eminência eram tais que nem a si mesmo os queria confessar, porque conhece que são desejos de rei.

       - Senhor - disse o cardeal estremecendo - creio que alude a algumas palavras que já pronunciou na presença da princesa?

       - Sim, senhor, é verdade.

       - Senhor, então enganou-se e agora mesmo se engana.

       - Esquece, senhor, que vejo tão claramente o que neste momento se passa no seu coração, como vi a sua carruagem sair do convento das Carmelitas de Saint-Denis, passar a barreira, dirigir-se para aqui e parar a cinqüenta passos de distância da minha casa, debaixo das árvores.

       - Então explique-se e diga alguma coisa que me seja peculiar.

       - Senhor, os príncipes da sua casa precisaram sempre um amor grande e atrevido; Vossa Eminência não há-de querer degenerar, é a lei natural.

       - Não sei o que quer dizer, conde... - murmurou o príncipe.

       - Pelo contrário, sabe-o perfeitamente. Eu poderia ter tocado algumas das cordas que vibram em si, mas para quê? Fui direito à que devia atacar, oh! essa vibra profundamente, asseguro-lho.

       O cardeal ergueu a cabeça, e, com um último esforço de desconfiança, interrogou o olhar tão claro e seguro de Bálsamo.

       Bálsamo sorria com uma tal expressão de superioridade que o cardeal baixou os olhos.

       - Oh! Tem razão, senhor, tem razão, não olhe para mim assim; porque então vejo demasiadamente claro o que se passa em seu coração; porque o seu coração é como um espelho que conservaria a forma dos objectos que reflectiu.

       - Silêncio, conde de Fénix; silêncio - disse o cardeal subjugado.

       - Sim, tem razão; silêncio, porque ainda não é chegado o momento de deixar ver um semelhante amor.

       - Ainda não, disse o senhor?

       - Ainda não.

       - Este amor tem portanto um futuro?

       - Por que não?

       - E poderia dizer-me, o senhor, se não é insensato este amor, como eu mesmo o julguei, como ainda o creio, como hei-de crer até ao momento em que me seja dada uma prova do contrário?

       - Pede muito, senhor; nada posso dizer-lhe sem ser posto em contacto com a pessoa que lhe inspira esse amor, ou com algum objecto que lhe pertença.

       - E que objecto lhe seria preciso para isso?

       - Uma trança dos seus lindos cabelos dourados, por mais pequena que seja.

       - Oh! Sim, é um homem profundo! Sim, bem o disse, sabe ler nos corações com a mesma facilidade que eu teria para ler um livro.

       - Ah! É o que me dizia o seu infeliz tio, irmão do seu bisavô, o cavalheiro Luís de Rohan, quando dele me despedi na plataforma da Bastilha, aos pés do cadafalso para o qual com tanto ânimo subiu.

       - Ele disse-lhe isto?... Disse que o senhor era um homem profundo?

       - E que lia nos corações. Sim, porque eu havia-o prevenido que o cavalheiro de Préault o atraiçoaria. Ele não me quis dar crédito e o cavalheiro de Préault atraiçoou-o.

       - Que singular comparação faz entre mim e o meu antepassado! - disse o cardeal empalidecendo mau grado seu.

       - É unicamente para lhe lembrar, que é preciso ser prudente, senhor, quando for procurar os cabelos que deve cortar debaixo de uma coroa.

       - Não importa o lugar de onde tenho de os ir cortar, senhor, há-de tê-los.

       - Muito bem, agora aqui tem o seu ouro, senhor; espero que não duvidará já de que é realmente ouro bom e verdadeiro.

       - Dê-me papel e pena.

       - Para quê, senhor?

       - Para lhe passar um recibo de cem mil escudos que de tão bom grado me empresta.

       - Ora essa! E para quê, senhor, para que preciso eu de um recibo?

       - Peço muitas vezes dinheiro emprestado, meu querido conde - disse o cardeal; - mas previno-o de que nunca o aceito dado.

       - Como lhe aprouver, meu príncipe.

       O cardeal pegou numa pena, e escreveu com uma enorme e ilegível letra um recibo, cuja ortografia horrorizaria a criada de um sacristão dos nossos dias.

       - É isto? - perguntou ele a Bálsamo apresentando-lhe o recibo.

       - Perfeitamente - redargüiu o conde metendo-o na algibeira, sem mesmo lhe passar os olhos por cima.

       - Não o lê, senhor?

       - Eu tinha a palavra de Vossa Eminência, e a palavra dos Rohan tem mais valor, vale mais que um penhor.

       - Sr. Conde de Fénix - disse o cardeal com uma cortesia muito significativa da parte de um homem de semelhante qualidade - é um perfeito cavalheiro, e se não posso fazer-lhe serviço algum, permita que eu me confesse seu obrigado.

       Bálsamo inclinou-se e puxou pelo cordão de uma campainha a cujo som acudiu Fritz.

       O conde disse-lhe algumas palavras em alemão.

       Fritz abaixou-se, e como uma criança que levasse meia dúzia de laranjas, pegou nas barras de ouro embrulhadas em estopa, com alguma dificuldade, mas sem se curvar nem vergar sob o peso.

       - Mas é um Hércules, este moço? - disse o cardeal.

       - Tem bastante força, sim, senhor - respondeu Bálsamo; - é porém verdade que, desde que está ao meu serviço, deixo-lhe beber todos os dias três gotas de um elixir composto por meu sábio amigo o doutor Althotas; também, ei-lo aí que começa a aproveitar; daqui a um ano será capaz de levar os cem marcos com uma só mão.

       - Maravilhoso! Incompreensível! - murmurou o cardeal.

        - Oh! Não poderei resistir ao desejo de falar disto tudo.

       - Fale, senhor, fale - respondeu Bálsamo, rindo-se mas lembre-se que falar disto, é o mesmo que se obrigasse a vir apagar a chama da minha fogueira se por acaso o Parlamento se lembrasse de me fazer queimar na Praça de Grève.

       E tendo acompanhado o seu ilustre visitante até à porta, despediu-se dele com uma cortesia respeitosa.

       - Mas o seu criado, não o vejo? - disse o cardeal.

       - Foi levar o ouro para a carruagem, senhor.

       - Então sabe ele onde está?

       - Debaixo da quarta árvore do beco, é o que eu lhe estava dizendo em alemão, senhor.

       O cardeal ergueu as mãos para o céu e sumiu-se entre as trevas da noite.

       Bálsamo esperou que Fritz voltasse e subiu para os seus quartos fechando as portas todas atrás de si.

 

O ELIXIR DA VIDA

       Bálsamo, apenas se achou só, veio escutar à porta de Lorenza.

       Dormia um sono igual e sossegado.

       Entreabriu então um postigo, e contemplou-a algum tempo num doce e terno êxtase. Depois, fechando o postigo e atravessando a casa que descrevemos e que separava o quarto de Lorenza do gabinete de física, deu-se pressa em ir apagar os fornilhos, abrindo um imenso tubo que soltou o calor todo pela chaminé, e deu entrada à água de um reservatório colocado no terraço.

       Depois, guardando preciosamente numa carteira de marroquim negro o recibo do cardeal, murmurou:

       - A palavra dos Rohan é boa, mas só para mim, e sempre é bom que lá saibam em que emprego o dinheiro dos irmãos.

       Estas palavras apagavam-se em seus lábios quando três pancadas batidas no tecto lhe fizeram erguer a forte cabeça.

       - Oh! Oh! - disse ele - é Althotas que me chama.

       Depois, enquanto dava ar no laboratório, punha em ordem tudo e colocava as chapas sobre os tijolos, as pancadas renovaram-se.

       - Ah! Ele impacienta-se, é bom sinal.

       Bálsamo pegou numa grande tranca de ferro e bateu também para cima; depois foi à parede e soltou um anel de ferro; então, desprendendo-se uma mola, viu-se descer do tecto até ao chão do laboratório um dispositivo de madeira, espécie de caixa aberta na parte superior, dentro da qual Bálsamo se meteu e que, por meio de outra mola, subiu lentamente, levando o seu fardo com a mesma facilidade que as glórias do teatro levam os deuses e as divindades; e em poucos minutos o discípulo achou-se na presença do mestre.

       Esta nova habitação do velho sábio podia ter de oito até nove pés de altura sobre dezesseis de diâmetro; vinha-lhe a luz de cima à semelhança dos poços e era hermeticamente fechada pelas quatro paredes.

       Este quarto, como se vê, relativamente à sua habitação da carruagem, era um palácio.

       O ancião estava sentado na sua poltrona de rodas, no centro de uma mesa de mármore do feitio de uma ferradura e cheia de um mundo, ou melhor direi de um caos de plantas, frascos, utensílios, livros, aparelhos e papéis carregados de caracteres cabalísticos.

       Estava tão preocupado que não se incomodou em olhar para Bálsamo, quando este entrou.

       A luz de uma lâmpada astral, presa no ponto culminante da vidraça, reflectia sobre o seu crânio nu e luzente.

       Sacudia entre os dedos uma garrafa de vidro branco cuja transparência interrogava, pouco mais ou menos como uma dona de casa que faz as suas compras, e que examina a luz os ovos que adquiriu.

       Bálsamo ao princípio olhou para ele em silêncio, depois, ao cabo de um instante, disse:

       - Então! Há alguma novidade?

       - Sim, sim. Vem, Acharat, vês-me encantado, maravilhado; achei, achei...

       - O quê?

       - O que procurava!

       - O ouro?

       - Ora adeus, o ouro! ora! deixa-te disso!

       - O diamante?

       - Ora, lá diz ele extravagâncias. O ouro, o diamante, que belas descobertas; eu mesmo me havia de alegrar se tivesse descoberto semelhantes coisas!

       - Então - perguntou Bálsamo - o que achou foi o seu elixir?

       - Sim, meu amigo, é o meu elixir; isto é, a vida, que digo eu, a vida! A eternidade da vida.

       - Oh! Oh! - disse Bálsamo tristemente, porque olhava para esse trabalho como se fosse uma obra louca – pensa em semelhante coisa!

       Mas Althotas, sem escutar, olhava amorosamente para o seu frasquinho.

       - Enfim - disse ele - a comparação está achada: elixir de Aristeu, vinte gramas; bálsamo de mercúrio, quinze gramas; essência de ouro, quinze gramas; essência dos cedros do Líbano, vinte e cinco gramas.

       - Mas parece-me, que exceptuando o elixir de Aristeu, é pouco mais ou menos a sua última combinação, mestre?

       - Sim, mas faltava-lhe o ingrediente principal, aquele que liga todos os outros, e sem o qual os outros nada são.

       - E achou esse?

       - Achei.

       - Pôde alcançá-lo?

       - Pudera!

       - Qual é?

       - É preciso juntar às matérias já combinadas neste frasco as últimas três gotas do sangue arterial de uma criança.

       - Bem! Mas essa criança - disse Bálsamo assustado - onde a poderá haver?

       - Hás-de tu trazer-ma.

       - Eu?

       - Sim, tu.

       - Está doido, mestre.

       - Então, o que é? - perguntou o impassível ancião lambendo com delícia o exterior do frasco, no lugar em que a rolha mal justa deixava filtrar uma gota da composição que continha; - então, o que é?...

       - E quer ter uma criança para lhe tirar as últimas três gotas do seu sangue arterial?

       - Sim.

       - Mas para isso é preciso matar a criança?

       - Certamente é preciso matá-la; quanto mais formosa for, melhor será.

       - Isso é absolutamente impossível - disse Bálsamo encolhendo os ombros; - aqui não se roubam as crianças para as matar.

       - Ora! - bradou o ancião com uma simplicidade atroz - o que fazem delas então?

       - Criam-nas.

       - Vamos a saber: o mundo já não é o mesmo? Há três anos vinham oferecer-nos quantas quiséssemos, a troco de quatro cargas de pólvora ou meia garrafa de aguardente.

       - Era no reino do Congo, mestre!

       - Sim, sim, era no Congo. Não me importa que a criança seja negra. As que nos vieram oferecer, lembro-me perfeitamente, eram bem lindas, alegres e tinham o cabelo anelado.

       - Muito bem! - disse Bálsamo - mas infelizmente, querido mestre, já não estamos no Congo.

       - Ah! Já não estamos no Congo? - disse Althotas então onde estamos?

       - Em Paris.

       - Em Paris. Bem! Se embarcarmos em Marselha, podemos estar no Congo dentro de seis semanas.

       - Sim, não há dúvida que isso poderia ser; mas eu preciso ficar em França.

       - Precisas ficar em França; e para quê?

       - Porque tenho negócios que me obrigam a isso.

       - Tens negócios em França?

       - Sim, e muito sérios.

       O ancião soltou uma gargalhada grande e lúgubre.

       - Negócios - disse ele - negócios em França. Ah! Sim, é verdade, já me tinha esquecido; tens de organizar uns clubes?

       - Sim, mestre.

       - Urdir conspirações?

       - Sim, mestre.

       - Tens negócios, enfim, como lhe chamas.

       E o ancião começou a rir com o seu modo falso e escarnecedor.

       Bálsamo conservou-se silencioso, enquanto reunia todas as suas forças contra a trovoada que se preparava e que ele sentia vir.

       - E em que ponto vão esses negócios, vejamos? – disse o ancião voltando-se custosamente na sua poltrona e fixando no seu discípulo os seus grandes olhos pardos.

       Bálsamo sentiu esse olhar penetrá-lo como se fosse um raio luminoso, e disse:

       - Pergunta em que ponto vão?

       - Sim.

       - Atirei a primeira pedra, a água está turva.

       - E que limo revolveste? Fala, vamos.

       - O bom, o limo filosófico.

       - Ah! Sim, vais jogar com utopias, com os teus sonhos ocos, cheios de nuvens: homens que discutem sobre a existência ou não existência de Deus, em vez de tentarem, como eu, fazerem-se deuses a si mesmos. Vamos a saber: quem são esses famosos filósofos com quem te achas ligado?

       - Já tenho o maior poeta e o maior ateu da época deve brevemente voltar à França, de onde pouco mais ou menos está desterrado, para ser recebido pedreiro, na loja que estou organizando na Rua do Pote de Ferro, na antiga casa dos jesuítas.

       - E chama-se?

       - Voltaire.

       - Não o conheço; depois, quem tens tu mais?

       - Devo ser apresentado um dia destes ao maior revolucionário de idéias do século, a um homem que escreveu o Contrato Social.

       - E chama-se?

       - Rousseau.

       - Não conheço.

       - Está claro, porque só conhece Afonso X, Raimundo Lule, Pedro de Toledo e o grande Alberto.

       - É porque são os únicos que durante toda a vida agitaram essa grande questão de ser ou de não ser.

       - Há dois modos de viver, mestre.

       - Eu só conheço um, é existir; mas tratemos desses dois filósofos. Chamam-se, dizes tu?...

       - Voltaire e Rousseau.

       - Bom, eu me lembrarei desses dois nomes; e pretendes, graças a esses dois homens...

       - Apoderar-me do presente e minar o futuro.

       - Oh! Oh! Então são eles muito estúpidos neste país, para se deixarem levar por idéias?

       - Pelo contrário, é prova que têm muito espírito e que as idéias têm neles mais influência que os factos. E daí, tenho um auxiliar mais poderoso que todos os filósofos do mundo.

       - Qual é?

       - O aborrecimento. Há alguns mil e seiscentos anos que a monarquia dura em França, e os Franceses estão cansados da monarquia.

       - De modo que a vão derrubar?

       - Sim.

       - Julgas isso?

       - Sem dúvida.

       - E tu empurras?

       - Com todas as minhas forças.

       - Imbecil!

       - Como?

       - Que lucro tirarás da queda da monarquia?

       - Para mim, nenhum, mas para todos, a felicidade.

       - Ora vamos, hoje estou contente, e quero portanto perder um pouco de tempo em te ouvir. Explica-me primeiramente de que modo chegarás à felicidade, e depois diz-me o que é a felicidade.

       - Como chegarei?

       - Sim, à felicidade de todos ou à queda da monarquia, que para ti é o equivalente da felicidade geral. Eu escuto.

       - Pois bem! Existe actualmente um ministério, que é o último baluarte que defende a monarquia; é um ministério inteligente, industrioso e esclarecido que poderia sustentar, talvez ainda vinte anos, essa monarquia cansada e gasta; eles me auxiliarão a derrubá-la.

       - Quem? Os teus filósofos?

       - Não; os filósofos, pelo contrário, sustentam-no.

       - Como! Pois os teus filósofos sustentam um ministério que sustenta a monarquia, eles que são inimigos da monarquia? Oh! Que estúpidos que são os filósofos!

       - É porque o próprio ministro é um filósofo.

       - Ah! Agora percebo, e eles governam na pessoa desse ministro. Enganei-me ainda agora, não são estúpidos, são egoístas.

       - Não quero discutir sobre o que eles são - disse Bálsamo que começava a estar impaciente; - eu nada sei; mas o que há decerto, é que, o ministério uma vez caído, infalivelmente todos gritarão contra o ministério seguinte. Esse ministério terá em primeiro lugar contra si os filósofos, depois o Parlamento; os filósofos hão-de gritar, o Parlamento também, o ministério há-de perseguir os filósofos e dissolverá o Parlamento. Então, na inteligência e na matéria há-de organizar-se uma liga, uma oposição acintosa, tenaz, incessante, que há-de atacar tudo, há-de escavar a toda a hora, há-de minar, sacudir, abalar. Em lugar dos Parlamentos, serão nomeados juízes; esses juízes, nomeados pela realeza, farão tudo por ela. Hão-de ser acusados e com razão, de venalidade, de concussão e de injustiça. O povo há-de levantar-se, e enfim a realeza terá contra si a filosofia que é a inteligência, os Parlamentos que são os homens influentes, e o povo que é povo, isto é o ponto de apoio que Arquimedes procurava para a sua alavanca, e por meio do qual se pode levantar o mundo.

       - Muito bem, e quando tiveres levantado o mundo, que remédio terás senão deixá-lo tornar a cair.

       - Sim, mas na queda há-de esmagar a realeza.

       - E quando estiver esmagada, vamos, estou pronto a seguir as tuas imagens falsas, fala a tua linguagem enfática, quando for despedaçada, esmagada, essa realeza carunchosa, o que sairá das suas ruínas?

       - A liberdade.

       - Ah! Os Franceses hão-de ser livres?

       - Não pode falhar isso mais ou menos dia.

       - Todos livres?

       - Todos.

       - Há-de então haver em França trinta milhões de homens livres?

       - Sim.

       - E entre esses trinta milhões de homens livres, julgas que não se encontrará um homem com um pouco mais de juízo que os outros, o qual algum dia há-de confiscar a liberdade desses vinte e nove milhões novecentos noventa e nove mil novecentos noventa e nove concidadãos para ter para si só mais uma pouca de liberdade? Lembras-te daquele cão que tínhamos em Medina, e que só ele comia a parte de todos os outros?

       - Sim, mas um dia uniram-se todos contra ele e mataram-no.

       - Porque eram cães; se fossem homens nada teriam feito.

       - Parece-me que está classificando a inteligência do homem abaixo da inteligência do cão, mestre?

       - Os exemplos assim o mostram!

       - E que exemplos?

       - Parece-me que houve entre os antigos um César Augusto, e entre os modernos um certo Oliveiro Cromwell que morderam com força no bolo romano e no bolo inglês, sem que aqueles a quem o arrebatavam houvessem dito ou feito grande coisa contra eles.

       - Pois bem! Supondo que esse homem surja, há-de morrer, e antes de morrer, terá feito bem àqueles mesmos que houver oprimido, porque terá mudado a natureza da aristocracia; obrigado a apoiar-se em alguma coisa, terá escolhido a mais forte, isto é, o povo. A igualdade que abaixa, terá substituído a igualdade que levanta. A igualdade não tem barreira fixa, é um nível que procura a altura daquele que a fez. Ora, fazendo subir o povo, terá consagrado um princípio até então desconhecido. A revolução terá feito os Franceses livres; o protectorado de um outro César Augusto ou Oliveiro Cromwell, há-de fazê-los iguais.

       Althotas fez um movimento rápido sobre a sua poltrona.

       - Oh! Como este homem é estúpido! - exclamou ele.

       - Empreguem-se assim vinte anos de vida a criar uma criança, a tentar ensinar-lhe o que se sabe para que aos trinta anos venha dizer-nos: Os homens hão-de ser todos iguais!...

       - Sem dúvida, os homens hão-de ser iguais... iguais perante a lei.

       - E perante a morte, imbecil, perante a morte, essa lei das leis, serão eles iguais, quando um morrer aos três dias e o outro aos cem anos? Iguais, os homens iguais, enquanto eles não tiverem vencido a morte! Oh! Que estúpido, que grande estúpido!

       E Althotas encostou-se na poltrona para rir mais à vontade, enquanto Bálsamo, sério e triste, se sentava, baixando a cabeça.

       Althotas olhou para ele com dó.

       - Sou portanto igual - disse ele - ao trabalhador que come o seu pão de rala, à criança que mama no peito da ama, ao ancião apatetado que bebe o seu copo de soro de leite e chora porque lhe falta o fogo e o brilho dos olhos?... Oh! Desgraçado sofista que és, reflecte e lembra-te de uma coisa, é que os homens não serão iguais senão quando forem imortais, porque, quando forem imortais, hão-de ser deuses, e só os deuses é que são iguais.

       - Imortais! - murmurou Bálsamo - imortais! É uma quimera.

       - Quimera! - exclamou Althotas - Quimera! Sim, quimera como o vapor, quimera como o fluido, quimera como tudo quanto se procura, que se não descobriu ainda mas que se há-de por fim descobrir. Mas revolve comigo o pó dos mundos, põe a descoberto, uma depois das outras, essas camadas sobrepostas, cada uma das quais representa uma civilização, e nessas camadas humanas, nesse detrito de reinos, nesses veios de séculos, que o ferro da civilização moderna corta em talhadas, o que lês tu? É que em todos os tempos os homens procuraram o que eu procuro com as diferentes denominações do bem, do melhor e da perfeição. E quando procuravam eles isto? No tempo de Homero, em que os homens viviam duzentos anos, e no tempo dos patriarcas, quando viviam oito séculos. Não acharam esse bem, esse melhor, essa perfeição, porque se o houvessem achado, este mundo decrépito estaria viçoso, virgem e fresco como a aurora matutina. Em vez disto tudo, temos o padecimento, o cadáver, a corrupção. Achas doçura no padecimento? Formosura no cadáver? Bondade na corrupção?

       - Pois bem - disse Bálsamo respondendo ao ancião, a quem uma tosse seca acabava de interromper – pois bem, diz que ainda ninguém descobriu esse elixir da vida? Pois eu digo-lhe que ninguém o descobrirá.

       - Néscio que tu és! Por que ninguém achou ainda tal ou tal segredo, segue-se por isso que ninguém o há-de encontrar? Em vista desse arrazoado, decerto nunca se teriam feito descobertas. Ora, julgas que as descobertas sejam coisas novas que se inventam? Não, são coisas esquecidas que se tornam a achar. E por que acontece esquecerem as coisas depois de achadas? Porque a vida é muito curta para que o inventor possa tirar da sua invenção todas as deduções que ela contém. Vinte vezes tem estado a ponto de ser achado este elixir da vida. Julgas que o Estige seja uma imaginação de Homero? Julgas que esse Aquiles quase imortal, por que só era vulnerável pelos calcanhares, seja uma fábula? Não, Aquiles era discípulo de Chiron como tu és meu. Chiron quer dizer superior ou pior. Chiron era um sábio que representam sob a aparência de um centauro, porque a sua ciência havia dotado o homem com a força e ligeireza do cavalo. Pois bem! Ele tinha também quase achado o elixir da imortalidade. Só lhe faltavam a ele, talvez como a mim, essas três gotas de sangue que me negas. Essas três gotas de sangue ausente tornaram Aquiles vulnerável pelo calcanhar; a morte achou passagem, entrou. Sim, eu repito-o, Chiron, o homem universal, o homem superior, o homem pior, não é senão um outro Althotas, a quem um outro Acharat impede de completar a obra que teria salvado a humanidade inteira, arrancando-a ao efeito da maldição divina. Então! Que tens a responder-me?

       - Digo - respondeu Bálsamo visivelmente perturbado - digo que tenho a minha obra e que o mestre tem a sua. Tratamos cada um de cumprir a nossa missão, a nosso risco e a nosso perigo. Não o auxiliarei com um crime.

       - Com um crime?

       - Sim, e que crime! Um desses que fariam levantar atrás de si uma população inteira indignada; um crime que o faria pendurar a essas forcas infames, de que a sua ciência não conseguiu ainda livrar os homens superiores nem os inferiores.

       Althotas bateu com as mãos descarnadas sobre a mesa de pedra.

       - Vamos, vamos - disse ele - não sejas um idiota humanitário, a pior raça de idiotas que no mundo existe. Vamos, anda cá, conversemos um pouco a respeito dessa lei, dessa lei brutal e absurda escrita por animais da tua espécie, que se revolta por uma gota de sangue derramada inteligentemente, mas que folga com as torrentes de licor vital espalhado nas praças públicas, aos pés dos baluartes das cidades, nessas, planícies que chamam campos de batalha; dessa tua lei sempre inepta e egoísta que ao homem presente sacrifica o homem do futuro, e que tomou por divisa: “Viva hoje, morra amanhã!” Conversemos a respeito dessa lei, queres?

       - Diga o que tem para dizer - respondeu Bálsamo.

       - Tens contigo um lápis, uma pena, para fazermos um pequeno cálculo?

       - Eu calculo sem pena e sem lápis; diga o que tem para dizer.

       - Vamos a ver o teu projecto. Oh! Lembro-me perfeitamente... Derrubas um ministério, dissolves os Parlamentos, estabeleces juízes iníquos, provocas uma bancarrota, fomentas revoltas, acendes uma revolução, deitas por terra uma monarquia, deixas erguer-se um protectorado, e precipitas o protector. A revolução há-de trazer-te a liberdade. O protectorado, a igualdade. Ora, estando os Franceses livres e iguais, está cumprida a tua obra; não é isso?

       - Sim, e julga isto impossível?

       - Não creio na impossibilidade. Vês que levas partido no jogo.

       - Então?

       - Espera. Em primeiro lugar a França não é como a Inglaterra, onde se fez tudo que tu queres fazer, plagiário que tu és; a França não é uma terra isolada onde se possam derrubar os ministérios, dissolver os Parlamentos, estabelecer juízes iníquos, provocar uma bancarrota, fomentar revoltas, acender revoluções, deitar por terra monarquias, elevar protectorados e precipitar os protectores, sem que as outras nações se intrometam um pouco nesse movimento; a França está soldada à Europa, como o fígado às entranhas do homem. Tem raízes em todas as nações, fibras em todos os povos; tenta arrancar o fígado a essa grande máquina chamada o continente europeu, e durante vinte anos, trinta e talvez quarenta, todo o corpo há-de estremecer; mas conto pelo menor, e não tomo senão vinte anos; achas muito, responde, sábio filósofo?

       - Não, não é de mais - disse Bálsamo - nem mesmo é bastante.

       - Pois eu contento-me com isso. Vinte anos de guerra, de luta encarniçada, mortal, incessante; vamos, conto para isto duzentos mil mortos cada ano, não é muito quando o povo se bate ao mesmo tempo na Alemanha, Itália, Espanha, o que sei eu? Duzentos mil homens cada ano, durante vinte anos, são quatro milhões de homens; concedendo a cada homem dezessete libras de sangue, que é pouco mais ou menos a conta da natureza, produz isso, 17 multiplicado por 4, vejamos... Dá sessenta e oito milhões de libras de sangue derramado para chegar a um fim. Eu só te pedia três gotas. Diz agora qual de nós era o doido, o selvagem, o canibal? Então! Não me respondes?

       - Respondo, sim, mestre, digo-lhe que três gotas de sangue nada seriam, se tivésseis a certeza de tirar bom resultado.

       - E tu, tu que derramas sessenta e oito milhões de libras, tens a certeza do teu bom êxito? Fala! Então ergue-te e com a mão sobre o coração, responde: “Mestre, a troco desses quatro milhões de cadáveres, eu asseguro a felicidade do género humano”.

       - Mestre - disse Bálsamo iludindo a resposta - mestre, em nome do Céu, procure outra coisa.

       - Ah! Tu não respondes, tu não respondes? – exclamou Althotas triunfante.

       - Engana-se, mestre, sobre a eficácia do meio; é impossível.

       - Parece que me dás conselhos, que me renegas, que me desmentes - disse Althotas movendo apressadamente os olhos pardos debaixo das suas sobrancelhas brancas.

       - Não, mestre, mas estou reflectindo; eu que vivo cada um dos meus dias em contacto com todas as coisas deste mundo, em contradição com os homens, lutando com os príncipes, e não como o mestre seqüestrado num canto, indiferente a tudo o que se passa, a tudo o que se proíbe ou a tudo o que se autoriza, pura abstracção do sábio e do citador; eu, enfim, que sei as dificuldades, aponto-as, nada mais.

       - Essas dificuldades, depressa as podias vencer, se quisesses.

       - Diga antes, se eu cresse.

       - Então não crês?

       - Não - disse Bálsamo.

       - Estás-me tentando, realmente, estás-me tentando - bradou Althotas.

       - Não duvido.

       - Pois então, vejamos; crês na morte?

       - Creio no que é. Ora, a morte é... Verifica-se.

       Althotas encolheu os ombros.

       - Portanto, a morte é um facto - disse ele; - é um ponto que tu não contestas.

       - É uma coisa incontestável.

       - É uma coisa infinita, invencível, não é verdade? – acrescentou o velho sábio com um sorriso que fez estremecer o seu adepto.

       - Oh! Sim, mestre, é invencível e infinita.

       - E quando vês um cadáver, o suor corre-te pela fronte, a saudade aparece-te no coração?

       - O suor não me corre pela fronte, porque estou familiarizado com todas as misérias humanas, não me aparece a saudade no coração, porque tenho a vida em pouca conta; mas na presença do cadáver a mim mesmo digo: “Morte! Morte! És poderosa como Deus! Reinas soberanamente, e ninguém tem poder contra ti!”

       Althotas ouviu silenciosamente Bálsamo, e sem dar outros sinais de impaciência senão de voltar entre os dedos um escalpelo que segurava, quando o seu discípulo acabou a frase dolorosa e solene, o ancião, sorrindo, olhou em torno de si, e os seus olhos tão ardentes que parecia não haver segredos para eles na natureza, fixaram-se num recanto da sala onde estava um pequeno cão preto deitado sobre uma pouca de palha, o único que ainda restava de três animais da mesma espécie que Althotas havia pedido para as suas experiências, e que Bálsamo lhe havia mandado trazer.

       - Pega naquele cão - disse Althotas a Bálsamo – e coloca-o sobre esta mesa.

       Bálsamo obedeceu; foi buscar o cão preto e trouxe-o para a mesa de mármore.

       O animal, que parecia pressentir o seu destino e que certamente já se havia encontrado sob a mão do alquimista, começou a estremecer, a uivar e a querer fugir apenas sentiu o contacto da pedra.

       - Ah! Ah! - disse Althotas - crês na morte, deves certamente crer na vida, não é verdade?

       - Certamente.

       - Aqui está um cão, que me parece estar bem vivo, não te parece?

       - Certamente, porque grita, move-se e mostra que tem medo.

       - São muito feios os cães pretos; para outra vez trata de me alcançares cães brancos.

       - Sim, mestre.

       - Ah! Dizemos nós que este está vivo! Ladra, gozo - acrescentou o ancião com o seu riso lúgubre - ladra, para convencer o senhor Acharat que estás vivo.

       E tocou o cão com um dedo em certo músculo, e o cão ladrou, ou antes gemeu logo.

       - Bom, aproxima de mim o recipiente: é isso. Mete-lhe o cão debaixo; bem. É verdade, esquecia-me perguntar-te: em que morte crês tu mais?

       - Não sei o que quer dizer, mestre, a morte é a morte.

       - É verdade, é muito justo o que acabas de dizer, é também essa a minha opinião. Pois bem! Já que a morte é a morte, faz o vácuo, Acharat.

       Bálsamo fez girar uma roda por meio da qual se fazia sair, por um tubo, o ar fechado, com o cão, debaixo do recipiente. O cãozinho pareceu ao princípio desassossegado, depois procurou, cheirou, levantou a cabeça, respirou apressadamente fazendo bulha, e enfim caiu sufocado, inchado, inanimado.

       - Eis aí o cão morto com uma apoplexia, não é verdade? - disse Althotas; - uma bela morte que não faz padecer muito tempo!

       - Sim.

       - Está bem morto?

       - Sem dúvida.

       - Não me pareces estar muito convencido, Acharat?

       - Pelo contrário, estou certíssimo.

       - Oh! É porque conheces os meus recursos, não é verdade? Supões que descobri a insuflação, não é assim? Esse outro problema que consiste em fazer circular a vida com o ar, num corpo intacto, como se pode fazer num odre que não esteja roto?

       - Não, eu nada suponho; creio que o cão está morto, nada mais.

       - Não importa, e para maior certeza vamos matá-lo duas vezes. Levanta o recipiente, Acharat.

       Acharat levantou o globo de cristal, o cão não fez movimento algum, tinha as pálpebras cerradas e o coração já não batia.

       - Pega neste escalpelo, e deixando sempre a laringe intacta, corta-lhe a coluna vertebral.

       - Isso é unicamente para lhe obedecer.

       - E para acabar também de matar o pobre animal no caso em que não esteja inteiramente morto – respondeu Althotas com esse sorriso de obstinação que é particular nos velhos.

       Bálsamo deu um único golpe com a folha afiada do instrumento. A incisão separou a coluna vertebral, na distância de duas polegadas pouco mais ou menos do cerebelo, e produziu uma grande ferida sanguinolenta.

       O animal, ou antes o cadáver do animal, continuou a ficar imóvel.

       - Sim, por minha alma, estava bem morto – disse Althotas - nem uma fibra lhe estremeceu, nem um músculo se torceu, nem um átomo de carne se insurgiu contra este novo atentado. Não é verdade, que está bem morto?

       - Afirmo-o quantas vezes quiser - disse Bálsamo desassossegado.

       - E aí está um animal inerte, gelado, imóvel para sempre. Nada tem poder contra a morte, disseste tu. Ninguém tem o poder de dar vida, nem mesmo a aparência da vida ao infeliz animal?

       - Ninguém, só Deus!

       - Sim, mas Deus não será inconseqüente bastante para isso. Quando Deus mata, como é a sabedoria suprema, é porque tem uma razão ou um benefício para assim proceder. Um assassino, já não me lembra como se chamava, um assassino, dizia isto, e era muito bem dito. A natureza tem sempre um interesse qualquer na morte.

       - Assim aí está um cão tão bem morto quanto é possível, e a natureza tomou sobre ele o seu interesse.

       Althotas fixou em Bálsamo o seu olhar penetrante.

       Este, cansado de ter por tanto tempo suportado os disparates do ancião, inclinou a cabeça como única resposta.

       - Pois bem! Que dirias tu - prosseguiu Althotas – se o cão abrisse agora um olho e olhasse para ti?

       - Admirar-me-ia muito, mestre - respondeu Bálsamo sorrindo.

       - Admirar-te-ias? Ah! Estimo muito!

       Acabando de proferir estas palavras com o seu riso falso e lúgubre, o ancião colocou junto do cão um aparelho composto de pedaços de metal, separados por pedaços de pano; o centro deste aparelho estava mergulhado num líquido acidulo; as duas extremidades ou os dois pólos, como lhes chamam, estavam fora da selha.

       - Que olho queres tu que ele abra, Acharat? – perguntou o ancião.

       - O direito.

       As duas extremidades aproximadas, mas desunidas por um pedaço de seda, vieram colocar-se sobre um músculo do pescoço.

       Logo depois abriu-se o olho direito do cão, e olhou para Bálsamo, que recuou horrorizado.

       - Agora a boca, queres ver?

       Bálsamo não respondeu, estava sob o império de uma profunda admiração.

       Althotas tocou noutro músculo, e em lugar do olho, que se havia fechado, foi a boca que se abriu, deixando ver os dentes brancos e agudos em cuja raiz se viam ainda estremecer as gengivas vermelhas, como em tempo de vida.

       Bálsamo assustou-se e não pôde ocultar a sua comoção.

       - Oh! Isto é extraordinário! - disse ele.

       - Vê como é insignificante coisa a morte – disse Althotas triunfando da estupefacção do seu discípulo - pois que um pobre ancião como eu, que em breve lhe vai pertencer, a faz desviar do seu inexorável caminho.

       E de repente, com um riso estridente e nervoso, disse:

       - Toma cuidado, Acharat, aqui está um cão morto, que ainda há pouco te queria morder e que vai agora correr atrás de ti; toma cuidado!

       E com efeito, o cão, com o pescoço cortado, a boca aberta e os olhos fixos, ergueu-se de repente nas quatro patas, e com a cabeça hediondamente pendurada, vacilou sobre as pernas.

       Bálsamo sentiu eriçarem-se os cabelos; o suor caiu-lhe da fronte, e foi recuando até se aproximar do alçapão de entrada, incerto se devia fugir ou ficar.

       - Vamos, vamos, não quero que morras de medo, tentando instruir-te - disse Althotas repelindo o cadáver e o aparelho; - basta de experiências.

       Logo depois o cadáver, cessando de estar em contacto com a pilha, caiu imóvel como dantes.

       - Terias tu julgado isto da morte, Acharat, e pensavas que era de tão boa composição? Fala.

       - É pasmoso, é realmente pasmoso! - disse Bálsamo aproximando-se.

       - Vês que se pode chegar ao que eu dizia, meu filho, e que está dado o primeiro passo. O que é prolongar a vida quando já se conseguiu anular a morte?

       - Mas isso é o que ainda se não sabe - observou Bálsamo - porque essa vida que lhe deu, mestre, é uma vida fictícia.

       - Com o tempo acharemos a vida real. Não tens tu lido nos poetas romanos que Cassídeo restituía a vida aos cadáveres?

       - Nos poetas, sim.

       - Os Romanos chamavam aos poetas vates, meu amigo, não esqueças isto.

       - Vamos, diga-me entretanto...

       - Ainda alguma observação?

       - Sim. Se efectivamente descobrisse esse elixir da vida e que desse dele a beber a este cão, ele viveria eternamente?

       - Sem dúvida.

       - E se caísse nas mãos de um experimentador como o mestre, que o degolasse?

       - Bom! Bom! - exclamou o ancião batendo palmas - essa pergunta já eu esperava.

       - Então, se a esperava, responda-me.

       - É o que eu desejo.

       - O elixir impedirá que uma chaminé caia sobre uma cabeça, que uma bala atravesse um homem de lado a lado, que um cavalo rasgue as tripas do seu cavaleiro, dando-lhe um coice na barriga?

       Althotas olhava para Bálsamo com um modo de espadachim que olha para o seu adversário, ao despedir um golpe que o vai tocar.

       - Não, não - disse ele - e és um verdadeiro lógico, meu querido Acharat. Não, a chaminé, a bala, o coice, não se poderão evitar enquanto houverem casas, espingardas e cavalos.

       - Verdade é que ressuscitará os mortos?

       - Momentaneamente, sim, indefinidamente, não. Seria preciso para isso que eu achasse primeiramente o lugar do corpo em que está a alma, e isso poderia levar tempo de mais; mas impedirei essa alma de sair do corpo pela ferida que tiver sido feita.

       - Como?

       - Fechando essa ferida.

       - Mesmo se tivesse cortado uma artéria?

       - Certamente.

       - Ah! Eu queria ver isso.

       - Pois bem, olha - disse o ancião.

       E antes que Bálsamo o pudesse impedir, picou a veia do braço esquerdo com uma lanceta.

       Havia tão pouco sangue no corpo do ancião, e esse sangue corria tão lentamente que levou algum tempo antes de aparecer nos lábios da ferida: mas enfim veio, e uma vez aberta a passagem, correu com abundância.

       - Santo Deus! - exclamou Bálsamo.

       - Então, o que é? - disse Althotas.

       - Feriu-se e gravemente.

       - Já que és como S. Tomé, e que só como ele queres crer e ver, faço-te ver para que creias.

       Pegou então num frasquinho, que tinha próximo de si, e vazando sobre a ferida algumas gotas do que continha, disse:

       - Olha!

       Então, por meio dessa água quase mágica, o sangue fugiu, a carne cerrou-se, fechando a veia, e a ferida tornou-se numa arranhadura muito pequena para que o sangue pudesse correr.

       Desta vez Bálsamo olhava para o sábio com a maior estupefacção.

       - Também descobri isto; o que te parece, meu querido Acharat?

       - Oh! parece-me, mestre, que é o mais sábio de todos os homens.

       - E que, se não venci a morte de todo, pelo menos dei-lhe um golpe que lhe há-de custar a repelir, não é verdade? Vês tu, meu filho, o corpo humano tem ossos frágeis que são fáceis de quebrar; eu tornarei esses ossos tão rijos como aço; o corpo humano tem sangue, que quando foge, leva consigo a vida; eu farei com que o sangue não saia do corpo: a carne é mole e fácil de cortar, hei-de torná-la invulnerável como a dos paladinos da Idade Média, sobre a qual se embotavam os fios das espadas e os cortes dos machados; para isso não se precisa mais que de um Althotas que viva trezentos anos. Dá-me o que te peço e então viverei mil. Oh! Meu querido Acharat, isso depende de ti. Restitui-me a minha juventude, restitui-me o vigor do corpo, restitui-me a frescura das idéias, e verás se temo a espada, a bala, a muralha que abate, ou o animal bruto que morde ou que escoiceia. Na minha quarta juventude, Acharat, isto é, antes que eu tenha vivido a idade de quatro homens, terei renovado a face da terra, e, torno a dizer-to, terei feito para ti e para a humanidade regenerada um mundo ao meu gosto, um mundo sem chaminés, sem espadas, sem balas de espingarda, sem cavalos que dêem coices; porque os homens então hão-de compreender que mais vale viver, auxiliar-se, amar-se, do que despedaçar-se e destruir-se.

       - É verdade, ou pelo menos, é possível, mestre.

       - Bem, então traz-me a criança.

       - Deixe-me pensar ainda, e o mestre pense também melhor.

       Althotas lançou ao seu adepto um olhar de profundo desprezo.

       - Deixa estar! - disse ele - eu depois te convencerei; e daí, o sangue do homem não é um ingrediente tão precioso que se não possa substituir por uma outra matéria. Deixa estar! Eu procurarei e hei-de achar. Não preciso já de ti; vai-te!

       Bálsamo bateu com o pé sobre o alçapão e desceu para a casa inferior, mudo, imóvel, e curvado sob o génio daquele homem que obrigava a crer em coisas impossíveis praticando-as ele mesmo.

 

AS INFORMAÇÕES

       Essa noite tão grande, tão fértil em acontecimentos e durante a qual passeámos, como a nuvem dos deuses mitológicos, de Saint-Denis à Muette, da Muette à Rua Coq-Héron, da Rua Coq-Héron à Rua Platrière e desta à Rua de Saint-Claude, essa noite havia-a a senhora du Barry empregado em tentar amoldar o espírito de el-rei, conforme as suas vistas de uma política nova.

       Tinha principalmente insistido muito no perigo que haveria em deixar os Choiseul adquirir poder sobre a delfina.

       El-rei tinha respondido, encolhendo os ombros, que a delfina era uma criança e o senhor de Choiseul um ministro velho; que por conseqüência não havia perigo, porque a senhora não saberia trabalhar e o velho não a saberia divertir.

       Depois, encantado com a graça que acabava de dizer, pôs termo às explicações.

       Não havia acontecido o mesmo à senhora du Barry, que julgava ter notado certas distracções em el-rei.

       Luís XV era namorador. O seu grande prazer consistia em provocar o ciúme das suas amantes, contanto que esse ciúme não redundasse em ralhos e arrufos muito prolongados.

       A senhora du Barry era zelosa, em primeiro lugar por amor-próprio, depois por temor. A sua posição havia-lhe custado muito a conquistar, e estava muito afastada do seu ponto de partida, para que se atrevesse, como a senhora de Pompadour, a tolerar a el-rei outras amantes, e mesmo fornecer-lhas quando Sua Majestade parecia estar aborrecido, o que já sabemos lhe acontecia muitas vezes.

       Portanto a senhora du Barry sendo zelosa, como dissemos, quis conhecer a fundo as causas das distracções de el-rei.

       El-rei respondeu estas memoráveis palavras, mas de que nem uma sílaba pensava:

       - Ocupo-me da felicidade da minha nora, porque realmente não sei se o senhor delfim lhe dará essa felicidade.

       - E por que não, senhor?

       - Porque o senhor Luís, em Compienha, Saint-Denis e Muette, pareceu-me olhar muito para as outras mulheres e bem pouco para a sua.

       - Realmente, senhor, se Vossa Majestade mesmo não me dissesse semelhante coisa, eu não o acreditaria; todavia, a senhora delfina é formosa.

       - É alguma coisa magra.

       - É tão nova!

       - Ora! Olhe para a menina de Taverney, é da idade da arquiduquesa.

       - Então?

       - É muito formosa.

       Um raio brilhou nos olhos da condessa e avisou el-rei da sua irreflexão.

       - A condessa mesmo, que assim fala - prosseguiu rapidamente el-rei - aos dezesseis anos estou certo de que era redonda como as pastoras do nosso amigo Boucher.

       Esta pequena adulação sossegou um pouco o estado de coisas, contudo o golpe havia ferido.

       Também a senhora du Barry tomou a ofensiva num certo tom afectado.

       - Ora pois! - disse ela - é então muito formosa essa menina de Taverney?

       - Eu sei? - disse Luís XV.

       - Como! Gaba-a e não sabe se é formosa?

       - Sei que não é magra, e nada mais.

       - Portanto viu-a e examinou-a?

       - Ah! Querida condessa, está-me cercando e armando laços. Bem sabe que tenho a vista curta; apresenta-se aos meus olhos um todo, vejo-o, mas as particularidades o diabo as leve. Na senhora delfina, não vi senão ossos, nada mais.

       - E na menina de Taverney, viu um todo, como diz; porque a senhora delfina é uma formosura distinta, e a menina de Taverney é uma formosura vulgar.

       - Ora adeus! - disse el-rei - se assim fosse, Joana, também a sua formosura não seria distinta. Está zombando, creio eu.

       - Bom, agora um cumprimento - disse a condessa em voz baixa; - infelizmente, esse cumprimento serve de capa a outro que não é para mim.

       Depois disse em voz alta:

       - Por minha alma, estimaria bem que a senhora delfina escolhesse damas que sejam belas, porque é horroroso ver uma corte de velhas.

       - A quem o vem dizer, querida amiga? Ainda ontem repetia eu isto ao delfim; mas a esse marido tudo é indiferente.

       - E para começar, se nomeasse essa menina de Taverney?

       - Ah! Sim, mas creio que há-de ser nomeada – respondeu Luís XV.

       - Ah! Sabe isso, senhor?

       - Parece-me, pelo menos, havê-lo ouvido dizer.

       - É uma menina sem fortuna.

       - Sim, mas de boa família. Os Taverney Casa Vermelha são de boa casa e antigos servidores.

       - Quem os protege?

       - Não sei; mas julgo que são pobres, como disse.

       - Então não são protegidos do senhor de Choiseul, porque estariam cheios de pensões.

       - Condessa, condessa, não falemos de política, suplico-lho.

       - Então é falar de política, dizer que os Choiseul o arruínam?

       - Certamente - disse el-rei.

       E levantou-se.

       Uma hora depois, Sua Majestade estava de volta no grande Trianon, alegre por haver inspirado ciúme; mas repetindo a meia voz, como o teria feito Richelieu aos trinta anos:

       - Realmente, é coisa bem enfadonha uma mulher zelosa!

       Logo depois que el-rei saiu, a senhora du Barry ergueu-se também e foi para o seu toucador, onde a esperava Chon, impaciente por saber notícias.

       - Então! - disse ela - tens sido completamente feliz estes dias: apresentada anteontem à delfina, e admitida ontem à sua mesa.

       - É verdade. Então! Forte felicidade!

       - Como, forte felicidade? Pois não sabes que estão a estas horas mais de cem carruagens na estrada de Luciennes para colherem o teu sorriso da manhã?

       - Sinto-o muito.

       - Por quê?

       - Porque é tempo perdido; nem carruagens, nem gente terão o meu sorriso esta manhã.

       - Oh! Oh! Condessa, o tempo está de trovoada?

       - Sim, por minha alma! O meu chocolate, venha o meu chocolate, depressa!

       Chon tocou uma campainha.

       Zamora apareceu.

       - O meu chocolate - disse a condessa.

       Zamora partiu lentamente, contando os passos e arqueando as costas.

       - Aquele velhaco quer-me fazer morrer de fome! - bradou a condessa; - um cento de chicotadas se não corre já.

       - Mim não correr, mim ser governador - disse majestosamente Zamora.

       - Ah! Tu ser governador! - bradou a condessa pegando numa chibata de castão dourado, destinada a manter a paz entre os cães e os macacos que lhe pertenciam; - ah! tu ser governador! Espera, espera, eu já to digo, governador!

       Zamora, vendo isso, deitou a correr, fazendo tremer todas as paredes e soltando agudos gritos.

       - Mas está hoje muito feroz, Joana - disse Chon.

       - Parece-me que tenho direito para isso, não achas?

       - Oh! Perfeitamente. Mas eu deixo-te, minha querida.

       - Por que motivo?

       - Tenho medo de ser devorada.

       Três pancadas soaram na porta do toucador.

       - Bom, quem bate agora? - disse a condessa com impaciência.

       - Seja quem for, vai ser bem recebido – murmurou Chon.

       - Se te parece recebe-me mal, a mim - disse João empurrando a porta com um modo perfeitamente real.

       - E depois! O que aconteceria se fosses mal recebido, por que enfim seria possível?

       - Aconteceria - disse João - que eu não voltaria mais.

       - E depois?

       - E que terias perdido mais do que eu se me recebesses mal.

       - Impertinente!

       - Bom, agora sou impertinente porque não sou lisonjeiro... O que tem ela hoje, minha grande Chon?

       - Não me fales nisso, João, está inacessível. Ah! Aí vem o chocolate.

       - Pois bem! Não nos cheguemos a ela.

       Trouxeram o chocolate.

       - Ah! Bons dias, meu chocolate - disse João pegando na bandeja - como estás tu de saúde, meu chocolate?

       E foi pôr a bandeja num canto, sobre uma pequena mesa diante da qual se sentou.

       - Vem, Chon - disse ele - vem; os que são muito soberbos não terão nenhum.

       - Ah! Gosto disso, gosto muito - disse a condessa vendo Chon fazer sinal com a cabeça a João para que almoçasse só; - fazem de susceptíveis e não vêem que sofro.

       - Então o que tens? - perguntou Chon aproximando-se.

       - Nada - bradou a condessa; - mas é que não há um único que se lembre do que me aflige.

       - E o que é que te aflige? Diz.

       João não se mexeu; cortava fatias de pão.

       - Faltar-te-ia dinheiro? - perguntou Chon.

       - Oh! Quanto a isso - disse a condessa - há-de faltar ao rei primeiro do que a mim.

       - Então empresta-me mil luíses - disse João - são-me muito precisos.

       - Mil piparotes no teu grande nariz vermelho.

       - El-rei então está decidido a conservar esse abominável Choiseul? - perguntou Chon.

       - Isso não é novo, bem sabes que é inamovível.

       - Estará namorado da delfina?

       - Ah! Vais-te aproximando da verdade, ainda bem; mas vê aquele animal que vai rebentar cheio de chocolate e que não dá um passo para ir em meu auxílio. Oh! Hão-de-me fazer morrer de pena.

       João, sem se ocupar de forma alguma da tempestade que ao longe se formava, fez outro pão em fatias, encheu-o de manteiga, e vazou segunda chávena de chocolate.

       - Como! El-rei está namorado? - bradou Chon.

       A senhora du Barry fez um sinal com a cabeça, que queria dizer:

       - Acertaste.

       - E da delfina! - prosseguiu Chon de mãos postas. - Pois bem! Antes isso; não quererá decerto ser incestuoso, e podes portanto sossegar, melhor é que esteja namorado dessa que de outra.

       - E se não está namorado dessa, mas sim de outra?

       - Ora! - disse Chon empalidecendo. - Oh! Meu Deus, meu Deus, o que disseste?

       - Bem! Agora vê se desmaias, não faltava mais nada.

       - Ah! Mas se isso é certo, estamos perdidos – murmurou Chon. - E consentes isso, Joana? Mas de quem está ele namorado?

       - Pergunta-o ao senhor teu irmão, que está roxo de chocolate e que vai rebentar aqui; ele to dirá, porque o sabe, ou pelo menos desconfia.

       João ergueu a cabeça.

       - Falaram-me? - perguntou ele.

       - Sim, senhor solícito, sim, senhor útil - disse Joana - pergunta-se o nome da pessoa que ocupa o pensamento de el-rei.

       João encheu a boca hermeticamente, e, com um esforço que custosamente lhe deu passagem, pronunciou estas palavras:

       - A menina de Taverney.

       - A menina de Taverney! - exclamou Chon. - Ah! Misericórdia!

       - Ele sabe-o, aquele carrasco - bradou a condessa, encostando-se para trás na poltrona e erguendo os braços ao céu; - ele sabe-o e não lhe tira isso a vontade de comer?

       - Oh! - disse Chon largando visivelmente o partido que tomara pelo irmão a fim de passar para o campo da irmã.

       - Realmente - exclamou a condessa - não sei o que me detém que não lhe arranque os seus dois grandes e feios olhos, que ainda vêm inchados pelo sono, preguiçoso! Levantou-se agora mesmo, minha querida, levantou-se agora mesmo!

       - Estás enganada - disse João - não me deitei.

       - E então o que fizeste? Andaste com os teus amigos, no meio da devassidão?

       - Para te dizer a verdade - replicou João - andei de pé toda esta noite e toda esta manhã.

       - Não dizia eu... Oh! Quem melhor me servirá do que me servem? Quem dirá o que é feito daquela rapariga, onde está?

       - Onde está? - perguntou João.

       - Sim.

       - Em Paris.

       - Em Paris!... Mas em que ponto de Paris?

       - Na Rua Coq-Héron.

       - Quem to disse?

       - O cocheiro da carruagem em que veio, que eu esperava ao pé das cavalariças, e que interroguei.

       - E ele disse-te?

       - Que acabava de levar todos os Taverney para um palacete da Rua Coq-Héron, situado num jardim contíguo ao palácio de Armenonville.

       - Ah! João, João - bradou a condessa - o que acabas de dizer-me faz-me perdoar-te, meu amigo; mas há certas circunstâncias que nos seria preciso saber. Como vive ela, quem recebe, o que faz? Recebe ela cartas? Tudo isto importa muito sabermos.

       - Pois bem! Havemos de sabê-lo.

       - Como?

       - Ah! Esse é o caso. Eu tenho estado a imaginar, pensem também um pouco.

       - Rua Coq-Héron? - perguntou Chon vivamente.

       - Rua Coq-Héron - repetiu João fleumaticamente.

       - Pois bem! Na Rua Coq-Héron deve haver quartos para alugar.

       - Oh! Excelente idéia! - bradou a condessa. - É preciso ir depressa à Rua Coq-Héron, João, alugar uma casa e escondermos lá alguém; esse alguém verá entrar, sair e manobrar. Depressa, depressa, venha a carruagem, e vamos à Rua Coq-Héron!

       - É inútil, não há quartos para alugar na Rua Coq-Héron.

       - E como sabes isso?

       - Porque fui ver, com os diachos! Mas há...

       - Onde, vejamos?

       - Na Rua Platrière.

       - Na Rua Platrière?

       - Sim.

       - Que rua é essa?

       - É uma rua cujo fundo dos prédios dá para os jardins da Rua Coq-Héron.

       - Pois então, depressa, depressa - disse a condessa - vamos alugar umas casas na Rua Platrière.

       - Estão alugadas - disse João.

       - Homem admirável! - bradou a condessa. - Olha, deixa-me abraçar-te.

       João limpou primeiramente a boca, deu dois beijos nas faces da senhora du Barry, e fez-lhe uma cortesia de cerimônia em sinal de agradecimento pela honra que acabava de receber.

       - Ora ainda bem! - disse João.

       - Ninguém te conheceu?

       - Quem diabo me havia de conhecer na Rua Platrière?

       - E alugaste?

       - Uns pequenos quartos numa casa de triste aparência.

       - Perguntaram-te certamente para quem era?

       - Sim.

       - E o que respondeste?

       - Que era para uma jovem viúva. És viúva, Chon?

       - Pudera! - disse Chon.

       - Muito bem - disse a condessa; - é Chon quem se irá instalar nesses quartos; é Chon quem há-de espreitar e vigiar; mas não temos tempo a perder.

       - Também eu vou partir imediatamente - disse Chon.

       - Os cavalos! Os cavalos!

       - Venha a carruagem; - bradou a senhora du Barry tocando uma campainha de modo tal que acordaria o palácio todo da formosa encantada.

       João e a condessa sabiam o que deviam fazer a respeito de Andreia.

       Só em aparecer, havia Andreia atraído a atenção de el-rei, portanto Andreia era perigosa.

       - Essa rapariga - disse a condessa enquanto aprontavam a carruagem - não seria uma verdadeira provinciana, se, do seu pombal, não tivesse trazido consigo a Paris algum amante tímido; tratemos de descobrir esse namorado e fazê-lo casar quanto antes. Nada esfriará mais a fantasia de el-rei do que um casamento entre namorados da província.

       - Diacho! Pelo contrário - disse João - é preciso muito cuidado. Para Sua Majestade Cristianíssima, tu o sabes melhor do que ninguém, condessa, uma noiva é um objecto muito apetitoso; mas uma rapariga com um amante havia de contrariar muito mais Sua Majestade. A carruagem está pronta - disse ele.

       Chon saiu, depois de apertar a mão a João e dar um beijo na irmã.

       - E por que não levas o João contigo? – perguntou a condessa.

       - Não; eu irei por outro lado - respondeu João. Espera-me na Rua Platrière, Chon. Eu serei a primeira visita que receberás na tua nova morada.

       Chon partiu, João tornou a sentar-se à mesa e engoliu uma terceira chávena de chocolate.

       Chon foi primeiro à sua casa, mudou de fato e ensaiou-se em mostrar modos simples. Depois, quando se achou contente de si mesma, embuçou num mesquinho mantelete de seda preta os seus ombros aristocráticos, mandou vir uma cadeirinha, e meia hora depois na companhia de Sílvia, subia uma escada íngreme que levava a um quarto andar.

       Era nesse quarto andar que estavam as casas alugadas pelo visconde.

       Chegando ao patamar do segundo andar, percebeu Chon que alguém a seguia.

       Era a velha senhoria, que morava no primeiro andar, que tendo ouvido bulha saíra para espreitar e que estava muito intrigada por ver duas mulheres tão novas e tão formosas, entrarem assim em sua casa.

       Ergueu a cabeça e rosto carrancudo e viu dois rostos alegres e risonhos.

       - Olá! Minhas senhoras! - disse ela - olá! O que querem daqui?

       - Quero entrar na casa que meu irmão alugou aqui para nós, minha senhora - disse Chon afectando um modo de viúva; - estaremos enganadas, não será esta a casa?

       - Nada, nada, é aqui, no quarto andar - disse a velha - ah! Infeliz senhora, viúva em tão tenra idade!

       - Ah! - suspirou Chon erguendo os olhos para o céu.

       - Há-de estar aqui perfeitamente. A Rua Platrière é encantadora, não ouvirá bulha alguma, porque os seus quartos ficam para o lado dos quintais.

       - É o que eu desejava, minha senhora.

       - Todavia, pela janela do corredor, poderá ver para a rua quando passarem as procissões e os cães ensinados vierem fazer habilidades.

       - Ah! - suspirou outra vez Chon - isso há-de ser para mim uma grande distracção.

       E continuou a subir.

       A senhoria seguiu-a com os olhos até ao quarto andar, e quando Chon fechou a porta, disse consigo:

       - Parece-me ser pessoa honrada.

       Assim que fechou a porta, Chon correu para as janelas que davam sobre o jardim. João não se enganara, quase por baixo das janelas do quarto que alugara estava o pavilhão designado pelo cocheiro.

       Dentro de pouco tempo veio uma jovem menina sentar-se junto da janela do pavilhão, trazendo na mão um bordado; não havia já que duvidar, era Andreia.

 

O QUARTO DA RUA PLATRIÈRE

       Havia apenas alguns instantes que Chon examinava Andreia, quando o visconde João, subindo a escada a quatro e quatro como um escrevente de procurador, apareceu no limiar do quarto da suposta viúva.

       - Então? - perguntou ele.

       - És tu, João? Realmente assustaste-me.

       - Que tal é a casa?

       - É óptima para ver tudo; infelizmente nem tudo poderei ouvir.

       - Ah! Por minha alma, pedes muita coisa. A propósito, tenho outra notícia.

       - Qual é?

       - Maravilhosa.

       - Ora!

       - Incomparável.

       - Que homem tão maçador que tu és com as tuas exclamações!

       - O filósofo...

       - Que filósofo?...

       - Não é em vão que se diz:

      

       Para todo o acontecimento

       Está o sábio preparado.

      

       Eu sou sábio, mas não estava preparado para isto.

       - Tomara saber quando concluirás. Incomoda-te a presença desta rapariga? Nesse caso, Sílvia, retire-se para o outro quarto.

       - Oh! Não, não vale a pena, esta boa rapariguinha pode ficar. Fica, Sílvia, fica.

       E o visconde passava a mão pelo rosto da linda rapariga, cujas sobrancelhas se franziam já, com a idéia de que iam dizer alguma coisa que ela não poderia ouvir.

       - Pois que fique; mas fala.

       - Não tenho feito outra coisa desde que estou aqui.

       - Para afinal não dizer coisa alguma, então é melhor calares-te para eu poder observar.

       - Sosseguemos, é melhor. Como ia dizendo, passava eu diante da fonte...

       - Justamente, não tinhas dito nem palavra nesse sentido.

       - Então ainda queres interromper-me?

       - Não.

       - Passava eu portanto diante da fonte, e comprava alguma mobília velha para esta horrorosa morada, quando de repente sinto que um repuxo de água me molhava as meias.

       - Como tudo isso é interessante!

       - Mas espera, tens muita pressa, minha querida; olho... E vejo... Adivinha o quê... Cisma um pouco.

       - Vamos, vamos.

       - Vejo um rapaz, obstruindo com um pedaço de pão a torneira da fonte, produzindo, graças ao obstáculo que opunha à água, essa extravasão e esse esguicho.

       - É admiravelmente interessante, tudo isso que me contas - disse Chon encolhendo os ombros.

       - Espera um pouco; eu tinha soltado uma praga ao sentir-me molhado; o homem do pão ensopado volta-se e vejo...

       - Viste?...

       - O meu filósofo, ou antes, o nosso filósofo.

       - Quem, Gilberto?

       - Em pessoa: cabeça descoberta, véstia desabotoada, meias caídas, sapatos sem fivelas; enfim, num abandono galante.

       - Gilberto... E o que disse ele?

       - Eu conheci-o logo, ele também me conheceu, avanço, ele abre as pernas, e deita a correr como um galgo por entre as carruagens e os aguadeiros.

       - Perdeste-o de vista?

       - Pudera não! E decerto não supões que deitei também a correr atrás dele, não é verdade?

       - É verdade, meu Deus, era impossível, compreendo; mas assim temo-lo perdido de novo!

       - Ah! Que infelicidade - disse Sílvia.

       - Sim, decerto - disse João - sou-lhe devedor de uma boa dose de pancadas, e se eu lhe tivesse posto a mão sobre a gola safada da véstia, juro-te que nada teria perdido por esperar; mas adivinhava as minhas boas intenções a seu respeito, e deu às pernas. Não importa, ele está em Paris, é o essencial; e em Paris, quando se não está indiferente com o chefe da polícia, sempre se acha o que se procura.

       - É-nos preciso.

       - E quando o apanharmos, havemos de o fazer almoçar.

       - Há-de ser preciso tê-lo fechado, mas desta vez que seja em lugar seguro.

       - E Sílvia lhe levará o pão e água para esse lugar seguro, não é verdade, Sílvia? - disse o visconde.

       - Meu irmão, não riamos - disse Chon - esse rapaz viu a história dos cavalos de posta. Se tivesse motivo para nos querer mal, poderia ser para recear.

       - Também - redargüiu João - quando vinha subindo a tua escada, combinei comigo mesmo ir ter com o senhor de Sartines e contar-lhe o meu achado. O senhor de Sartines há-de responder-me que um homem de cabeça descoberta, meias caídas, sapatos sem fivelas, e molhando o seu pão numa fonte, deve habitar bem perto do lugar onde o encontraram assim vestido, e então há-de obrigar-se a dar-nos conta dele.

       - O que pode ele aqui fazer sem dinheiro?

       - Naturalmente faz recados.

       - Ele! Um filósofo de tão selvagem espécie! Ora adeus!

       - Terá achado - disse Sílvia - alguma velha devota, sua parenta, que lhe cede as côdeas que acha duras de mais para o seu cão.

       - Está bom, está bom, guarda a roupa naquele velho armário, Sílvia, e nós, João, vamos para o observatório.

       Aproximaram-se com efeito da janela, com grandes precauções.

       Andreia largou o bordado, estendeu as pernas sobre uma poltrona, depois estendeu a mão para um livro colocado sobre uma cadeira ao seu alcance, abriu-o e começou uma leitura que os espectadores julgaram ser das mais interessantes, porque assim que principiou ficou imóvel e como que inteiramente entregue ao que lia.

       - Oh! Que estudiosa pessoa! - disse Chon. - O que estará ela lendo?

       - Primeiro traste indispensável - respondeu o visconde tirando da algibeira um óculo, que abriu e dirigiu para Andreia, encostando-o ao ângulo da janela como para o fixar.

       Chon olhava para ele com impaciência.

       - Ora vamos! É realmente formosa, a tal criatura? – perguntou ela ao visconde.

       - Admirável! É uma rapariga perfeita; que braços! Que mãos! Que olhos! E a boca... É capaz de fazer perder o juízo a Santo António; os pés, oh! que divinos pés! E o tornozelo... Que pé tão formoso que oculta essa meia de seda.

       - Ora bom! Agora namora-te dela, não faltava mais nada - disse Chon enfadada.

       - Pois bem! Depois... Isso não seria já tão mau, principalmente se ela também me quisesse amar; isso sossegaria um pouco a nossa infeliz condessa.

       - Vamos, dá-me o óculo, e nada de tolices, se é possível... Oh! Sim, é realmente formosa aquela rapariga, é impossível que não tenha um amante... Ela não lê, vê... O livro vai cair-lhe das mãos... Escorrega... Ele aí cai, olha... Não to dizia eu, João? Ela não lê, está pensando.

       - Ou dormindo.

       - Com os olhos abertos! Lindos olhos, por minha alma!

       - Em todo o caso - disse João - se ela tem um amante, havemos de vê-lo daqui.

       - Sim, se vier de dia, mas se vier de noite?...

       - Diacho! Não me lembrava disso, e todavia é a primeira coisa em que eu deveria ter pensado... Isto prova até que ponto eu sou inocente.

       - Sim, inocente como um procurador.

       - Está bom, está bom! Estou prevenido, eu inventarei alguma coisa.

       - Mas que belo óculo que é este - disse Chon – quase que podia ler no livro.

       - Olha para o título e diz-mo. Eu talvez adivinhe alguma coisa por aí.

       Chon avançou com curiosidade, mas recuou ainda mais depressa do que tinha avançado.

       - Então o que é? - perguntou o visconde.

       Chon agarrou-lhe no braço.

       - Olha com precaução, João - disse ela - vê se conheces a pessoa que se debruça para fora daquela fresta, do lado esquerdo. Cuidado não nos veja!

       - Oh! Oh! - exclamou du Barry - é o meu filósofo, que molha o pão, Deus me perdoe!

       - Vai-se deitar dali abaixo.

       - Nada, não, está agarrado à goteira.

       - Mas para o que está ele olhando com esse modo selvagem, com esses olhos ardentes?

       - Está espreitando.

       O visconde bateu na fronte.

       - Agora adivinho - bradou ele.

       - O quê?

       - Espreita a pequena!

       - A menina de Taverney?

       - Sim, sim, é o namorado lá do seu ninho da província, ela vem para Paris, ele segue-lhe a pista. Ela vai morar para a Rua Coq-Héron, ele foge da nossa casa para se ir alojar na Rua Platrière; e ele contempla-a e ela medita.

       - Por minha vida, essa é a verdade - disse Chon; - repara naquele olhar, naquela fixidade, no fogo lívido dos olhos! Está namorado a ponto de perder a cabeça.

       - Minha irmã - disse João - escusamos ter mais trabalho em espreitar a namorada, o filósofo fará quanto nos é bastante.

       - Por sua conta, sim.

       - Nada, por nossa. Agora deixa-me passar, vou visitar o meu caro Sartines. À fé, que temos fortuna! Mas toma cautela, Chon, olha não te veja o filósofo, bem sabes que é ágil em desaparecer!

 

PLANO DE CAMPANHA

       O senhor de Sartines havia recolhido a casa às três horas da madrugada, e estava muito cansado, mas ao mesmo tempo satisfeito pelo serão que havia improvisado a el-rei e à senhora du Barry.

       Aquecido com a chegada da senhora delfina, o entusiasmo popular havia saudado Sua Majestade com vários gritos de “Viva el-rei!” muito diminuídos do volume desde essa famosa doença de Metz, durante a qual se havia visto a França toda, nas igrejas ou em romarias, para alcançar do Céu a saúde do jovem Luís XV, chamado naquela época Luís, o Amado.

       De outro lado, a senhora du Barry, que era quase sempre insultada em público por algumas aclamações de género particular, tinha sido pelo contrário, e contra o que se esperava, graciosamente acolhida por várias alas de espectadores habilmente colocados na frente, de modo que el-rei, satisfeito, havia saudado Sartines com um pequeno sorriso, e o chefe da polícia contava portanto assim com um bom agradecimento.

       Também lhe parecera que poderia levantar-se ao meio-dia, o que desde muito tempo não fazia, e erguendo-se, aproveitara essa espécie de sueto que a si mesmo se dava, para experimentar uma ou duas dúzias de cabeleiras novas, ouvindo o relatório que lhe vinham ler de tudo quanto de noite havia sucedido, quando à sexta experiência das cabeleiras e no terço da leitura anunciaram o visconde João du Barry.

       - Bom - pensou o senhor de Sartines - eis que me chegam os agradecimentos. Quem sabe? As mulheres são tão caprichosas. Mande entrar o senhor visconde para a sala.

       João, cansado já da sua madrugada, sentou-se numa poltrona, e o chefe da polícia, que não tardou em o vir receber, pôde convencer-se de que nada haveria de desagradável na conversa.

       Com efeito, João parecia estar muito alegre.

       Os dois homens apertaram-se a mão.

       - Ora bem, visconde - perguntou o senhor de Sartines - o que o trouxe cá tão cedo?

       - Em primeiro lugar - redargüiu João, que estava acostumado a lisonjear antes de tudo o amor-próprio das pessoas de quem ele precisava - em primeiro lugar sinto a necessidade de fazer-lhe os meus cumprimentos pela óptima função que ontem nos preparou.

       - Ah! Obrigado. Isso é oficial?

       - Oficial quanto a Luciennes.

       - É quanto me basta. Não é ali que nasce o Sol?

       - E que se põe algumas vezes.

       E du Barry soltou uma dessas gargalhadas muito vulgares, mas que davam à sua pessoa toda a expressão de franqueza de que ele carecia.

       - Mas além dos cumprimentos que tenho para dirigir-lhe, venho ainda pedir-lhe um serviço.

       - Dois, se for possível.

       - Queira então dizer-me: quando em Paris se perde qualquer coisa, há alguma esperança de se tornar a achar?

       - Se não tem valor ou se vale muito, sim.

       - O que eu procuro pouco vale - disse João abanando a cabeça.

       - O que procura?

       - Procuro um rapazito de dezoito anos, pouco mais ou menos.

       O senhor de Sartines pegou num pedaço de papel e num lápis, e escreveu:

       - Dezoito anos. Como se chama o rapazito?

       - Gilberto.

       - O que faz ele?

       - Suponho que o menos que pode.

       - De onde veio?

       - Da Lorraine.

       - Onde estava ele?

       - Ao serviço dos Taverney.

       - Trouxeram-no consigo?

       - Não, minha irmã Chon apanhou-o na estrada, quase morto de fome; meteu-o na sua carruagem, trouxe-o para Luciennes, e ali...

       - Então?

       - Receio que o velhaco tenha abusado da hospitalidade.

       - Roubou?

       - Não digo isso.

       - Mas enfim...

       - Digo que fugiu de um modo bem estranho.

       - Agora quer tornar a agarrá-lo?

       - Sim, senhor.

       - Tem alguma idéia do lugar onde ele possa ser encontrado?

       - Vi-o hoje junto da fonte que faz esquina para a Rua Platrière, e tenho todos os dados para julgar que mora naquela rua. E mesmo, sendo preciso, parece-me que poderia designar a casa.

       - Ora! Se conhece a casa, nada é mais fácil que mandá-lo prender nessa mesma casa. O que quer fazer dele em o apanhando? Quer mandá-lo para Charenton ou Bicêtre?

       - Não, não.

       - Oh! Não faça cerimónia, não tem mais senão pedir.

       - Não, pelo contrário, minha irmã achava bem divertido esse rapaz, teria gostado de o ter consigo; é inteligente. Pois bem! Se por meios doces e persuasivos lho pudessem tornar a levar, seria para mim muito agradável.

       - Experimentar-se-á. Não fez pergunta nenhuma na Rua Platrière para saber em casa de quem estava?

       - Oh! Não, bem deve compreender, não quis que reparassem muito em mim, era comprometer a posição; apenas ele me viu deitou a fugir como se o demónio o levasse; se ele soubesse que lhe conhecia a morada, era capaz de mudar-se.

       - Tem razão. Disse que era na Rua Platrière; é no fim, no meio ou no princípio?

       - No terço, pouco mais ou menos.

       - Descanse, vou mandar um homem hábil.

       - Ah! Meu caro senhor Sartines, um homem hábil, por mais hábil que seja, sempre há-de falar um pouco.

       - Não; os meus empregados não falam.

       - O rapaz é fino como um alambre.

       - Ah! Entendo: perdoe-me por não ter logo percebido; quer que eu mesmo?... Afinal, tem razão... Será melhor... Porque nisso tudo há talvez dificuldades que o senhor não imagina.

       João, ainda que persuadido que o magistrado queria fazer valer um pouco o seu serviço, nada lhe tirou da importância do papel cujo desempenho lhe pedia.

       Acrescentou mesmo:

       - É mesmo por causa dessas dificuldades que pressente, que desejo vê-lo nisto pessoalmente.

       O senhor de Sartines tocou uma campainha para chamar o seu criado de quarto.

       - Que me ponham já a carruagem - disse ele.

       - Tenho uma carruagem à sua porta - disse João.

       - Agradecido, prefiro a minha; a minha não tem brasões, é um meio termo como me convém. É uma carruagem que todos os meses mando pintar e que por isso dificilmente conhecem. Agora, enquanto me aprontam a carruagem, dê-me licença de ver se as minhas novas cabeleiras me servem na cabeça.

       - Não se incomode por eu estar aqui - disse João.

       O senhor de Sartines chamou pelo seu cabeleireiro: era um artista, e trazia ao seu cliente uma verdadeira colecção de cabeleiras! Havia-as de todos os feitios, de todas as cores e de todas as dimensões, cabeleiras de magistrado, de advogado, de contratador, de cavalheiro.

       O senhor de Sartines, para as suas explorações, mudava muitas vezes de trajo três ou quatro vezes por dia, e empenhava-se essencialmente em que fosse exacto o adoptado.

       Quando o magistrado experimentava a sua vigésima terceira cabeleira, vieram dizer-lhe que estava pronta a carruagem. Saíram e meteram-se nela.

       - Conhece bem a casa? - perguntou o senhor de Sartines a João.

       - Pudera! Parece que a estou vendo daqui.

       - Examinou-lhe a entrada?

       - Foi a primeira coisa em que cuidei.

       - E como é essa entrada?

       - Um corredor.

       - Ah! Um corredor, na altura de um terço da rua, disse o senhor?

       - Sim, com uma porta de postigo.

       - Diacho! Sabe em que andar mora o seu fugitivo?

       - Nas águas-furtadas. Mas, espere, já vai ver tudo, daqui vejo eu já a fonte.

       - Devagar, cocheiro, a passo - disse o senhor de Sartines.

       O cocheiro moderou o passo; o senhor de Sartines fechou os postigos.

       - Olhe - disse João - é aquela casa suja.

       - Ah! Exactamente - exclamou o senhor de Sartines esfregando as mãos - é o que eu receava.

       - Como! Receia alguma coisa?

       - Ah! Sim.

       - E o que receia?

       - Nisto, infelizmente, parece-me...

       - Explique-se, senhor.

       - Pois bem, essa casa suja em que mora o seu fugitivo é justamente a casa do Sr. Rousseau, de Genebra.

       - Rousseau, o escritor?

       - Sim.

       - Então o que tem?

       - Como! O que tem? Ah! Bem se deixa ver que não é chefe da polícia, e que não tem negócios com filósofos.

       - Ora adeus! Gilberto com o Sr. Rousseau! Que probabilidade pode haver nisso?

       - Não me disse que esse rapazito era um filósofo?

       - Sim.

       - Pois bem! Deus os faz, Deus os junta.

       - Enfim, suponhamos que está em casa de Rousseau.

       - Sim, suponhamos isso.

       - O que resultará?

       - Que não o poderá ter, nada mais.

       - Por quê?

       - Porque o Sr. Rousseau é um homem muito para se temer.

       - Por que não o mete na Bastilha?

       - Propus isso o outro dia a Sua Majestade, mas não se atreveu a consenti-lo.

       - Como! Não se atreveu?

       - Não, quis deixar-me a responsabilidade dessa prisão, e por minha alma! Não tive mais ânimo que el-rei.

       - Realmente?

       - É como lhe digo: é preciso pensar duas vezes, juro-lho, antes de se decidir alguém a fazer-se morder por todos esses queixos filosóficos; diacho! Prender alguém em casa do Sr. Rousseau! Nada, nada, meu caro amigo, não é possível.

       - Realmente, meu caro magistrado, acho-o de uma timidez estranha; el-rei não é el-rei, e o senhor o seu tenente de polícia?

       - Os senhores particulares são realmente encantadores; quando dizem: “el-rei não é el-rei”, julgam ter dito tudo. Pois bem, ouça isto, meu caro visconde. Eu preferiria prender o senhor em casa da senhora du Barry, do que o seu Gilberto em casa do Sr. Rousseau.

       - Deveras?! Agradecido pela preferência.

       - Ah! Enfim, gritariam menos; não pode imaginar como estes homens de letras têm a cútis sensível; gritam pela mais pequena arranhadura, como se os esfolassem.

       - Mas não estejamos criando fantasmas, vejamos. É certo haver o Sr. Rousseau recolhido o nosso fugitivo? Essa casa de quatro andares pertence-lhe, e mora ele só em toda ela?

       - O Sr. Rousseau não possui um real, e por conseqüência não tem casa em Paris; talvez que além dele haja naquela barraca mais quinze ou vinte inquilinos. Mas tome isto como regra; toda a vez que uma infelicidade se apresentar com alguma probabilidade, conte que é certa; se é uma fortuna em cujo favor essa probabilidade aparece, não conte com ela. Há sempre noventa e nove a favor do mal e uma a favor do bem. Mas, também, espere, como eu desconfiava do que nos acontece, trouxe comigo umas notas.

       - Que notas?

       - Notas relativas ao Sr. Rousseau. Julga que ele dá um passo sem que se saiba onde vai?

       - Ah! Realmente! Então é ele deveras perigoso?

       - Não, mas dá sempre algum cuidado; um doido semelhante pode a cada instante quebrar um braço ou uma perna, e diriam que era mandado quebrar por nós.

       - Ora! O melhor seria que se lhe torcesse o pescoço uma vez por todas.

       - Deus nos livre!

       - Permita-me que lhe diga, que é isso o que não posso compreender.

       - O povo apedreja de vez em quando esse bom genebrês, mas reserva-o para si, e se da nossa parte lhe atirassem com a mais pequena pedra, seríamos nós os apedrejados depois.

       - Oh! Declaro que nada entendo disso, desculpe-me.

       - Usaremos das mais minuciosas precauções. Agora, verifiquemos a única probabilidade que nos resta, a de não estar com ele em casa do Sr. Rousseau. Esconda-se no fundo da carruagem.

       João obedeceu, e o senhor de Sartines deu ordem ao cocheiro para seguir mais adiante.

       Depois abriu a carteira e tirou de dentro alguns papéis.

       - Vejamos - disse ele - se o tal rapaz está com o Sr. Rousseau, desde que dia deve isso ser?

       - Desde o dia dezesseis.

       - “Dezessete. - O senhor Rousseau foi visto às seis horas da manhã, ervorizando no bosque de Meudon; estava só”.

       - Estava só?

       - Continuemos. “Às duas horas da tarde do mesmo dia ainda hervorizava, mas tinha um rapaz consigo”.

       - Ah! Ah! - disse João.

       - Com um rapaz - repetiu o senhor de Sartines – note bem isto, senhor visconde.

       - É isso, com os diabos! É isso.

       - Hem? Que diz a isto? “O rapaz é pálido”.

       - É verdade.

       - “Devora”.

       - É isso.

       - “Os dois botânicos arrancam plantas e metem-nas numa caixa de folha-de-flandres”.

       - Diacho! Diacho! - murmurou du Barry.

       - Não é tudo ainda. Ouça: “À tarde, levou o mancebo consigo; até à meia-noite não saiu de casa dele”.

       - Bom.

       - “Dezoito. - O rapaz não saiu, e parece estar de todo instalado em casa do Sr. Rousseau”.

       - Tenho ainda alguma esperança.

       - Decididamente, é optimista! Não importa, diga-me qual é essa esperança.

       - É que terá algum parente na casa.

       - Ora vamos! É preciso satisfazê-lo, ou antes desesperá-lo de todo. Pare, cocheiro!

       O senhor de Sartines apeou-se. Não tinha andado dez passos, quando encontrou um homem vestido de cinzento, e de fisionomia bastante equívoca.

       O homem, vendo o ilustre magistrado, tirou o chapéu da cabeça e tornou a pô-lo sem parecer dar mais importância, ainda que o respeito e a dedicação se lhe pintavam no olhar.

       O senhor de Sartines fez um sinal, o homem aproximou-se e com o ouvido à escuta recebeu algumas ordens, e desapareceu pelo corredor da casa de Rousseau.

       O chefe da polícia tornou a meter-se na carruagem.

       Cinco minutos depois o homem vestido de cinzento tornou a aparecer e aproximou-se do postigo.

       - Volto a cara para o lado direito, para que me não vejam - disse du Barry.

       O senhor de Sartines sorriu, recebeu a confidência do seu agente, e despediu-o.

       - Então? - perguntou du Barry.

       - Então! É o que eu dizia, não tem fortuna nisto, como eu já desconfiava; é em casa de Rousseau que habita o seu Gilberto. Renuncie ao seu desejo, que é o melhor.

       - Que renuncie?!

       - Sim. Para satisfazer uma fantasia, suponho que não quererá amotinar contra mim todos os filósofos de Paris, não é verdade?

       - Oh! Meu Deus! O que dirá minha irmã Joana?

       - Tem então grande empenho em possuir o tal Gilberto? - perguntou Sartines.

       - Oh! Sim.

       - Pois bem! Tem então os meios da doçura; mostre-se amável, trate com o Sr. Rousseau, que em vez de deixar levar Gilberto contra a sua vontade, ele de bom grado lho entregará.

       - Ora adeus! Mais valeria querer domar um urso.

       - É talvez menos difícil do que pensa. Vamos, não desesperemos; ele gosta dos bonitos rostos, o da senhora condessa é dos mais formosos, e o da Srª. Chon não é desagradável; vejamos, a condessa fará um sacrifício por uma fantasia?

       - Um cento.

       - Consentiria em namorar Rousseau?

       - Se fosse absolutamente preciso...

       - Será talvez útil, mas para aproximar estas duas personagens, seria necessário um agente intermediário. Sabe de alguém que conheça Rousseau?

       - O senhor de Conti.

       - É mau, ele não gosta dos príncipes. Seria preciso um homem de pouco valor, um sábio, um poeta.

       - Não lidamos com gente dessa.

       - Parece-me ter já encontrado o senhor de Jussieu em casa da condessa.

       - O botânico?

       - Sim.

       - Por minha alma, creio que sim; vem ao Trianon e a condessa deixa-o estragar o seu jardim.

       - Pois desse é que precisa; exactamente, Jussieu é um dos meus amigos.

       - Então com esse irá o negócio às mil maravilhas?

       - Quase.

       - Terei portanto o meu Gilberto?

       O senhor de Sartines reflectiu um instante.

       - Começo a crer que sim - disse ele - e sem violência e sem gritos; Rousseau entregar-lho-á de pés e mãos atadas.

       - Julga isso?

       - Tenho essa certeza.

       - O que será preciso fazer para isso?

       - Uma coisa das mais insignificantes. Não têm para as bandas de Meudon ou de Marly um terreno vazio?

       - Oh! Isso não falta; temos alguns dez entre Luciennes e Bougival.

       - Pois bem! Mande lá construir-lhe, como chamarei eu a isso? Uma ratoeira para filósofos.

       - Como? O que disse?

       - Disse uma ratoeira para apanhar filósofos.

       - Ah! Meu Deus! E como são elas construídas?

       - Eu lhe darei o plano, sossegue. E agora partamos depressa, estão olhando para nós. Cocheiro, para casa.

 

O QUE SUCEDEU AO SENHOR DE LAVAUGUYON NA NOITE DO CASAMENTO DO SENHOR DELFIM

       Os grandes acontecimentos da história são para o romancista como montanhas gigantescas para o viajante. Olha para elas, anda-lhes em redor, saúda-as, mas não as sobe.

       Assim vamos nós olhar, girar em torno e saudar essa grande cerimónia do casamento do delfim em Versalhes. O cerimonial francês é a única das crónicas que em semelhante caso se deve consultar.

       Efectivamente, não é nos esplendores do Versalhes de Luís XV, na descrição dos trajos da corte, das librés, dos ornamentos pontifícios, que esta nossa história, modesta aia que por um caminho um pouco afastado segue a estrada real da história de França, acharia coisa que lhe desse ganho.

       Deixemos concluir a cerimónia sob os raios ardentes de um formoso dia de Maio; deixemos que os ilustres convidados se retirem em silêncio e contem ou comentem as maravilhas do espectáculo ao qual acabavam de assistir, e voltemos aos nossos acontecimentos e às nossas personagens, as quais, historicamente, têm um certo valor.

       El-rei, cansado da representação e principalmente do jantar, que havia sido longo e amoldado ao cerimonial das bodas do senhor grande delfim, filho de Luís XIV, el-rei, dizemos, retirou-se às nove horas e despediu toda a gente, ficando só com o senhor de Lavauguyon, preceptor dos filhos de França.

       Este duque, grande amigo dos jesuítas, os quais esperava novamente fazer estabelecer em França, graças à influência da senhora du Barry, via uma parte da sua tarefa concluída pelo casamento do Sr. Duque de Berry.

       Não era isto o mais dificultoso, porque ainda faltava ao senhor preceptor dos filhos de França concluir a educação do Sr. Conde de Provença e do Sr. Conde de Artois, que nessa época tinham, um quinze anos, outro treze.

       O Sr. Conde de Provença era sonso e indomável; e o delfim, porém, além das suas boas qualidades, que faziam dele um bom discípulo, era delfim, isto é, a primeira personagem de França depois de el-rei. O senhor de Lavauguyon podia portanto perder muito se em tal espírito perdesse a influência, que talvez ia ser conquistada por uma mulher.

       El-rei, detendo-o junto de si, julgou o senhor de Lavauguyon que Sua Majestade conhecia essa perda e queria indemnizá-lo com qualquer recompensa. Acabada uma educação, geralmente gratifica-se o preceptor.

       Esta idéia fez com que o Sr. Duque de Lavauguyon, homem minimamente sensível, dobrasse de sensibilidade; durante o tempo todo do jantar havia falado com o lenço quase sempre nos olhos. Acabada a sobremesa soluçou; mas apenas se viu só, ausentou-se mais sossegado.

       O chamamento de el-rei fez-lhe outra vez tirar o lenço da algibeira e as lágrimas dos olhos.

       - Venha, meu infeliz Lavauguyon - disse el-rei deitando-se à vontade num meio sofá - venha e conversemos!

       - Estou às ordens de Vossa Majestade – respondeu o duque.

       - Sente-se aí, meu caro; deve estar muito cansado.

       - Sentar-me, senhor?

       - Sim, aí, vamos, sem-cerimónia.

       E Luís XV indicou ao duque um pequeno banco colocado de tal modo que a claridade das luzes caísse de chapa sobre o rosto do preceptor, deixando o de el-rei na sombra.

       - Pois bem! Caro duque - disse Luís XV - eis uma educação acabada.

       - Sim, senhor.

       E Lavauguyon suspirou.

       - Bela educação, por vida minha - continuou Luís XV.

       - Isso é bondade de Vossa Majestade.

       - E que lhe dá muita honra, duque.

       - Tanto favor!...

       - O senhor delfim, segundo creio, é um dos príncipes sábios da Europa?

       - Creio que sim, senhor.

       - Bom historiador?

       - Muito bom.

       - Geógrafo perfeito?

       - Senhor, Sua Alteza o delfim levanta, sem auxílio, uma carta ou uma planta, como não o faria um engenheiro.

       - Chegou quase à perfeição?

       - Ah! Senhor, o cumprimento não me pertence, não fui eu que lhe ensinei isso.

       - Não importa, ele sabe-o?

       - Optimamente.

       - Em relojoaria... É muito hábil... Não é verdade?

       - É prodigioso, senhor.

       - Desde seis meses todos os meus relógios correm uns atrás dos outros, como as quatro rodas de uma carruagem, sem se poderem alcançar. Pois ninguém cuida disso senão ele.

       - Isso pertence já à mecânica, senhor, e devo confessar que me é inteiramente alheio.

       - Sim, mas as matemáticas, a navegação?

       - Oh! Por exemplo, senhor, eis aí as ciências para as quais sempre dirigi o senhor delfim.

       - E é muito notável nelas. Uma noite destas ouvi-o conversar com o senhor de Laperouse de cabos, ovens e bergantins.

       - Termos de marinha... Sim, senhor.

       - Fala de marinha como João Bart.

       - O facto é que sabe muito de marinha.

       - E entretanto é ao senhor que ele deve isso tudo...

       - Vossa Majestade, atribuindo-me uma parte, por mais pequena que seja, nas preciosas vantagens que o senhor delfim tirou dos seus estudos, recompensa-me muito além dos meus méritos.

       - A verdade, duque, é que me parece que o senhor delfim há-de ser deveras um bom rei, um bom administrador, um bom pai de família... A propósito, senhor duque - repetiu el-rei acentuando estas palavras - será ele um bom pai de família?

       - Ah! Senhor - respondeu lhanamente o senhor de Lavauguyon - presumo que estando em gérmen todas as virtudes no coração do senhor delfim, deve essa lá estar como todas as mais.

       - Não me compreende, duque - disse Luís XV. - Pergunto-lhe se será um bom pai de família?

       - Senhor, confesso que não entendo Vossa Majestade. Em que sentido me faz essa pergunta?

       - Mas... No sentido... Decerto que já leu a Bíblia, senhor duque?

       - Certamente, senhor, li-a.

       - Pois então, conhece os patriarcas, não é verdade?

       - Certamente.

       - Será ele um bom patriarca?

       O senhor de Lavauguyon olhou para el-rei como se este lhe falara hebraico, e voltando o chapéu entre as mãos, respondeu:

       - Senhor, um grande rei é tudo quanto quer ser.

       - Perdão, senhor duque - insistiu el-rei - vejo que nos não entendemos bem.

       - Senhor, eu faço a diligência.

       - Enfim - disse el-rei - vou falar mais claramente. Vejamos, conhece o delfim como ao seu filho, não é verdade?

       - Oh! Por certo, senhor.

       - Os seus gostos?

       - Sim, senhor.

       - As suas paixões?

       - Oh! Quanto às suas paixões, senhor, isso é diferente; se Sua Alteza as tivesse, eu lhas teria cortado radicalmente. Mas não tive esse trabalho, felizmente; Sua Alteza não tem paixões.

       - Disse felizmente?

       - Senhor, porventura não é isso uma felicidade?

       - Portanto não as tem?

       - Paixões? Não, senhor.

       - Nem uma?

       - Nem uma, respondo por isso.

       - Pois bem! É isso exactamente o que eu receava. O delfim há-de ser um óptimo rei, um óptimo administrador, mas nunca será um bom patriarca.

       - Ah! Senhor, Vossa Majestade não me recomendou que eu impelisse o senhor delfim para o patriarcado.

       - E fiz mal. Eu deveria ter pensado que ele um dia devia de casar. Mas, conquanto não tenha paixões, o senhor não o condena inteiramente?

       - Como?

       - Quero dizer que não o julga incapaz de as vir a ter?

       - Senhor, receio muito que nunca as terá.

       - Como! Receia isso?

       - Na verdade - disse tristemente o pobre duque - estou num suplício.

       - Senhor de Lavauguyon - bradou el-rei que começava a perder a paciência - pergunto-lhe claramente se, com paixões ou sem elas, o Sr. Duque de Berry será um bom esposo. Deixo de parte a qualificação de pai de família e abandono o patriarcado.

       - Pois bem, senhor, é isso exactamente o que eu não saberei dizer a Vossa Majestade.

       - Como! Não mo sabe dizer?

       - Não, por certo, que nem eu mesmo o sei.

       - Não o sabe! - exclamou Luís XV com uma estupefacção que fez oscilar a cabeleira sobre a cabeça do senhor de Lavauguyon.

       - O Sr. Duque de Berry vivia no palácio de Vossa Majestade, na inocência da criança que estuda.

       - Mas, senhor, essa criança já não estuda, casa-se!

       - Senhor, eu era o preceptor de Sua Alteza.

       - Por isso mesmo, senhor, lhe devia ter ensinado tudo quanto ele deve saber.

       E Luís XV encostou-se na poltrona e encolheu os ombros.

       - Eu já desconfiava disso - acrescentou ele soltando um suspiro.

       - Meu Deus, senhor...

       - Sabe a história de França, não é verdade, senhor de Lavauguyon?

       - Senhor, sempre tenho estado persuadido disso, e continuarei a estar, salvo se Vossa Majestade me disser o contrário.

       - Pois bem, nesse caso deve saber o que me aconteceu na véspera do meu casamento?

       - Não, senhor, não sei.

       - Ah! Meu Deus, então o senhor não sabe nada!

       - Se Vossa Majestade se dignasse dizer-me esse ponto que me foi sempre desconhecido?

       - Ouça-me, e sirva-lhe isto de lição para os meus dois outros filhos, duque.

       - Queira dizer, senhor.

       - Eu fui também educado em casa do meu avô do mesmo modo que o senhor educou o delfim. O meu preceptor era o senhor de Villeroy, homem de suma bondade, exactamente como o senhor, duque. Oh! se ele me tivesse deixado mais vezes na companhia de meu tio o regente! Mas não, a inocência do estudo, como o duque disse há pouco, havia-me feito abandonar o estudo da inocência. Entretanto, casei, e quando um rei casa, senhor duque, é uma coisa muito séria para o mundo.

       - Oh! Sim, senhor, começo a perceber.

       - Ora, ainda bem. Eu continuo: O senhor cardeal fez-me examinar sobre as minhas disposições ao patriarcado. As minhas disposições eram absolutamente nulas, e nesse ponto era tal a minha inocência que fazia recear que o reino de França ficasse sem sucessor. Felizmente, o senhor cardeal consultou o senhor de Richelieu a semelhante respeito, a coisa era delicada, mas nesse ramo era o senhor de Richelieu um grande professor. O senhor de Richelieu teve uma idéia luminosa. Havia uma senhora Lemaure ou Lemoure, não me lembra já bem, que fazia quadros admiráveis, encomendaram-lhe uma série de cenas, percebe?

       - Não, senhor.

       - Como poderei eu dizer? Cenas campestres.

       - No género dos quadros de Teniers?

       - Melhor do que isso; primitivas.

       - Primitivas?

       - Naturais. Creio ter agora achado a verdadeira palavra; agora percebe?

       - Como - exclamou o senhor de Lavauguyon corando de pejo - atreveram-se a apresentar a Vossa Majestade...

       - Ora, quem fala em me apresentar coisa alguma, duque!

       - Mas para Vossa Majestade poder ver...

       - Era preciso que a minha majestade olhasse; nada mais.

       - Então?

       - Então! Olhei.

       - E como o homem é essencialmente imitador... Imitei.

       - O meio é certamente engenhoso, senhor, certamente excelente, ainda que perigoso para um mancebo.

       El-rei olhou para o duque de Lavauguyon com esse sorriso que teriam chamado cínico se não fosse manifestado na boca mais espirituosa do mundo.

       - Deixemos por hoje o perigo - disse ele - e voltemos ao que nos resta para fazer.

       - Ah!

       - Sabe o que é?

       - Não, senhor, e Vossa Majestade me tornará verdadeiramente feliz dizendo-mo.

       - Pois bem, ouça: vá ter com o senhor delfim, que recebe os últimos cumprimentos dos homens, enquanto a senhora delfina recebe os das senhoras.

       - Sim, senhor.

       - Pegará num castiçal e chamará de parte o senhor delfim.

       - Sim, senhor.

       - Indicará ao seu discípulo - el-rei carregou nestas duas palavras - indicará ao seu discípulo que o seu quarto fica no fim do corredor novo.

       - De que ninguém tem a chave, senhor.

       - Tenho-a eu, senhor; já previa o que hoje acontece, eis aqui a chave.

       O senhor de Lavauguyon recebeu-a todo trémulo.

       - Acho conveniente dizer-lhe, senhor duque – prosseguiu el-rei - que essa galeria contém uns vinte quadros que lá mandei colocar.

       - Ah! Senhor, sim, sim.

       - Sim, senhor duque, abraçará o seu discípulo, abrir-lhe-á a porta do corredor, e entregando-lhe o castiçal, dar-lhe-á as boas noites dizendo-lhe que deve gastar vinte minutos em atravessar a galeria, vem a ser um minuto por cada quadro.

       - Ah! Senhor, compreendo.

       - Ainda bem. Boa noite, senhor de Lavauguyon.

       - Vossa Majestade tem a bondade de me desculpar?

       - Ah! Realmente não sei, porque enfim, se não fosse eu, teria feito lindas coisas na minha família.

       O preceptor saiu, e a porta fechou-se.

       El-rei tocou a sua campainha particular.

       Lebel apareceu.

       - O meu café - disse el-rei. - A propósito, Lebel.

       - Senhor.

       - Quando me tiveres dado o meu café, seguirás o senhor de Lavauguyon, que foi fazer os seus cumprimentos ao senhor delfim.

       - Eu vou, senhor.

       - Mas espera, preciso dizer-te para quê.

       - É verdade, senhor, mas era tal a minha pressa em obedecer a Vossa Majestade...

       - Bem, bem. Seguirás o senhor de Lavauguyon.

       - Sim, senhor.

       - Está tão perturbado, tão triste, que receio da sua ternura pelo senhor delfim.

       - E o que deverei fazer, senhor, se ele se enternecer?

       - Nada, mas virás participar-me o que vires.

       Lebel deu o café a el-rei que começou a saboreá-lo.

       Depois o escudeiro histórico saiu.

       Um quarto de hora depois tornou a aparecer.

       - Então, Lebel? - perguntou el-rei.

       - O Sr. Duque de Lavauguyon foi até à porta do corredor novo, levando Sua Alteza pelo braço.

       - Bem, e depois?

       - Não parecia estar muito enternecido, pelo contrario, brilhavam-lhe os olhos com uma vivacidade fora do usual.

       - Bom, e depois?

       - Tirou uma chave do bolso, deu-a ao senhor delfim, que abriu a porta e entrou para o corredor.

       - Depois?

       - Depois o senhor duque entregou o castiçal a Sua Alteza e disse-lhe em voz baixa, mas não tão baixa que eu não pudesse ouvir:

       “- Senhor, a câmara nupcial fica no fim desta galeria, cuja chave acabo de lhe entregar. El-rei deseja que empregue vinte minutos em atravessar este corredor.

       - Como! - disse o príncipe - vinte minutos; são apenas precisos vinte segundos.

       - Senhor - respondeu o senhor de Lavauguyon – aqui morre a minha autoridade, já não tenho lições que dar-lhe, mas ainda lhe darei um último conselho: olhe bem para as paredes da direita e da esquerda dessa galeria, observando a Vossa Alteza que achará em que empregar bem os vinte minutos.”

       - Está feito, não andou mal.

       - Então o Sr. Duque de Lavauguyon cortejou Sua Alteza sempre com o mesmo olhar vivo e extraordinário, que parecia querer penetrar no corredor, depois deixou o senhor delfim só.

       - E Sua Alteza entrou, suponho eu?

       - Olhe, senhor, vê-se luz na galeria. Há pelo menos um quarto de hora que por lá anda.

       - Ora bem! Bem! Lá desaparece - disse el-rei, depois de olhar alguns instantes para a claridade que se via pelos vidros. - A mim, também me haviam dado vinte minutos, mas lembra-me que ao cabo de cinco, estava já no quarto de minha mulher.

 

A NOITE DO NOIVADO DO SENHOR DELFIM

       O delfim abriu a porta da câmara nupcial ou antes da antecâmara que a precedia.

       A arquiduquesa, de penteador branco, esperava no leito dourado, apenas calcado pelo pequeno peso do seu corpo fraco e delicado: e, coisa estranha, se na sua fronte se houvesse podido ler, através da nuvem de tristeza que a encobria, ter-se-ia conhecido, em lugar da doce esperança da noiva, o terror da rapariga ameaçada de um desses perigos, que as pessoas nervosas algumas vezes pressentem e que suportam com mais ânimo do que aquele com que os pressentiram.

       Junto da cama estava sentada a senhora de Noailles.

       As senhoras estavam no fundo da câmara, esperando que a dama de honor as mandasse retirar. Esta, fiel às leis da etiqueta, aguardava impassivelmente a chegada do senhor delfim.

       Mas como se desta vez todas as leis da etiqueta e do cerimonial devessem ter cedido à malignidade das circunstâncias, aconteceu que as pessoas, que deviam introduzir o senhor delfim na câmara nupcial, ignorando que Sua Alteza, segundo as disposições do rei Luís XV, devia vir pelo corredor novo, esperavam noutra antecâmara.

       Aquela, pois, onde o senhor delfim acabava de entrar achava-se deserta, e a porta que dava para o quarto da cama, estando um pouco entreaberta, proporcionou ao senhor delfim poder ver e ouvir o que nessa câmara se passava.

       Esperou, olhando e escutando.

       A voz da senhora delfina soou pura, harmoniosa, mas um pouco trémula:

       - Por onde deverá entrar o senhor delfim? – perguntou ela.

       - Por esta porta, minha senhora - disse a duquesa de Noailles.

       E apontava para a porta oposta àquela onde estava o senhor delfim.

       - E que rumor é o que vem por essa janela? – acrescentou a delfina; - parece o sussurro das ondas do mar.

       - É o rumor que produzem os inumeráveis espectadores que passeiam à claridade da iluminação, e que esperam pelo fogo de vistas.

       - A iluminação? - disse a delfina sorrindo tristemente.

       - Hoje não foi em vão, o céu está tão carregado; não reparou, minha senhora?

       Neste momento, o delfim, cansado de esperar, abriu vagarosamente a porta, passou a cabeça pela abertura e perguntou se podia entrar.

       A senhora de Noailles soltou um grito, porque logo de repente não havia conhecido o príncipe.

       A senhora delfina, que pelas sucessivas comoções que havia experimentado se achava nesse estado nervoso em que tudo assusta, sobressaltada, agarrou-se ao braço da senhora de Noailles.

       - Sou eu, minha senhora - disse o delfim - não se assuste.

       - Mas por que veio por essa porta? - perguntou a senhora de Noailles.

       - Porque - disse el-rei Luís XV, passando também por sua vez a sua cabeça cínica pela abertura da porta – porque o senhor de Lavauguyon, como um verdadeiro jesuíta que é, sabe muito bem o latim, a matemática e a geografia, mas não sabe outras coisas.

       Na presença de el-rei, chegando tão inopinadamente, a senhora delfina havia-se deixado escorregar do leito e estava de pé, envolta no seu grande penteador, que a cobria do bico dos pés até ao pescoço, tão hermeticamente como a estola de uma dama romana.

       - Bem se vê que é magra - murmurou Luís XV. - Os diabos levem o senhor de Choiseul, que entre todas as arquiduquesas foi logo escolher-me esta!

       - Vossa Majestade - disse a senhora de Noailles - pode notar que, quanto ao que me diz respeito, foi estritamente observada a etiqueta; faltou-se a ela só da parte do senhor delfim.

       - Fica a infracção por minha conta - disse Luís XV - e é muito justo, pois que eu sou o culpado de a haver feito cometer. Mas como a circunstância era grave, minha querida senhora de Noailles, espero que me perdoará.

       - Não percebo o que Vossa Majestade quer dizer.

       - Nós sairemos juntos, duquesa, e eu lhe contarei tudo. Agora, que estas crianças se deitem.

       A senhora delfina afastou-se um passo do leito, e agarrou no braço da senhora de Noailles com mais terror ainda que da primeira vez.

       - Oh! Por piedade, minha senhora - disse ela; - eu morreria de vergonha.

       - Senhor - disse a duquesa de Noailles para el-rei - a senhora delfina suplica-lhe que a deixe deitar-se como se fosse uma simples particular.

       - Diacho! Diacho! E vem a senhora pedir isso, a senhora que é a etiqueta personalizada?

       - Senhor, bem sei que é contrário às leis da cerimônia de França; mas olhe para a arquiduquesa...

       Efectivamente, Maria Antonieta, de pé, pálida, sustendo-se com o braço inteiriçado ao espaldar de uma poltrona, teria parecido uma estátua do Susto, se não se ouvisse um leve bater de dentes, acompanhando o suor frio que do rosto lhe corria.

       - Oh! Não quero contrariar a delfina a esse ponto – disse Luís XV, príncipe tão inimigo do cerimonial quanto Luís XIV era ardente sectário. - Retiremo-nos daqui, duquesa. E demais, as portas têm fechaduras, há-de ser ainda mais bonito...

       O delfim ouviu estas últimas palavras e corou.

       A delfina também as ouviu perfeitamente, mas não as compreendeu.

       O rei Luís XV abraçou a nora, e saiu levando consigo a duquesa de Noailles e rindo com esse riso motejador, tão triste para aqueles que não partilham o prazer dos que riem.

       Os outros assistentes saíram pela outra porta.

       Os dois jovens esposos ficaram sós.

       Houve um momento de silêncio.

       Enfim o jovem príncipe aproximou-se de Maria Antonieta: o coração palpitava-lhe com violência, sentia afluir-lhe ao peito, às fontes, às artérias, esse sangue revoltado da mocidade e do amor.

       Mas sentia também Luís XV por detrás da porta, e esse olhar cínico, mergulhando até ao fundo da alcova nupcial, gelava ainda mais o delfim, que era muito tímido e por natureza muito acanhado.

       - Minha senhora - disse ele olhando para a arquiduquesa - sofre! Está muito pálida, e dir-se-ia que treme.

       - Senhor - disse ela - não lhe ocultarei que experimento uma singular agitação; vamos naturalmente ter alguma terrível tempestade; as tempestades têm uma grande influência sobre mim.

       - Ah! Julga que estamos ameaçados de ter alguma tempestade? - disse o delfim.

       - Oh! Tenho a certeza disso; o meu corpo treme todo, olhe!

       Efectivamente, o corpo todo da infeliz princesa parecia estremecer com choques eléctricos.

       Neste momento, como para justificar essas previsões, uma furiosa rajada de vento, um desses poderosos sopros que impelem a metade dos mares sobre a outra metade, e que derrubam as montanhas, semelhante ao primeiro grito da tempestade que avançava, encheu o palácio de tumulto, de angústias e de confusão.

       As folhas arrancadas dos ramos, os ramos arrancados das árvores, as estátuas dos seus pedestais, um clamor imenso e prolongado de cem mil espectadores espalhados pelos jardins, um murmúrio lúgubre e infinito correndo nas galerias e nos corredores do palácio, compuseram nesse momento a mais triste e selvagem harmonia que nunca tinha vibrado em ouvidos humanos. Depois, um tinir sinistro sucedeu ao murmúrio; eram os vidros que quebrados em mil pedaços caíam sobre os mármores das escadas e das cornijas fazendo soar essas notas vibrantes e nervosas que rangem voando no espaço.

       A mesma rajada de vento havia dado numa das cortinas mal unidas, e tinha ido bater contra a parede como a asa gigantesca de uma ave nocturna.

       Em todas as casas do palácio em que as janelas estavam abertas, o vento apagou as luzes.

       O delfim aproximou-se da janela certamente para ir fechar de novo a cortina, mas a delfina deteve-o.

       - Oh! Senhor, senhor, por piedade - disse ela – não abra a janela, as nossas luzes apagar-se-iam e eu morreria de medo.

       O delfim parou.

       Viam-se, através das cortinas que ele acabava de fechar, os cumes sombrios das árvores do parque, agitados e torcidos, como se o abraço de algum gigante invisível tivesse sacudido os seus troncos no meio das trevas.

       As iluminações todas apagaram-se.

       Então viram-se no céu legiões de grossas nuvens negras que corriam em turbilhão, semelhantes a esquadrões dando uma carga.

       O delfim, pálido, ficou de pé com a mão apoiada na aldraba da janela. A delfina deixou-se cair numa cadeira, soltando um suspiro.

       - Tem muito medo, minha senhora? - perguntou o delfim.

       - Oh! Sim; entretanto a sua presença sossega-me mais. Oh! Que tempestade! Que tempestade, senhor! Todas as luminárias se apagaram.

       - Sim - disse Luís - o vento está sul-sueste, e é o que traz quase sempre as mais fortes tempestades. Se continuar assim, não sei como farão para o fogo de vistas.

       - Oh! Senhor, quem gozaria de semelhante fogo? Com um tempo como esse que está ninguém ficará nos jardins.

       - Ah! Minha senhora, não conhece os Franceses, é-lhes preciso o fogo de vistas, e há-de ser belo; o plano foi-me comunicado pelo engenheiro. Ah! Vê, não me enganei, aí principia; são já os primeiros foguetes.

       Com efeito, brilhantes como serpentes de fogo, os foguetes de aviso voaram para o céu, mas ao mesmo tempo, como se a procela tomasse por desafio esses jactos de fogo, um único raio, mas que parecia cortar o céu, serpenteou entre os foguetes e misturou o seu clarão azul ao clarão vermelho da pólvora e limalha de ferro.

       - Realmente - disse a arquiduquesa - é uma impiedade dos homens lutar assim com Deus.

       Esses foguetes de aviso haviam apenas precedido de alguns segundos o fogo geral; o engenheiro conhecia que era mister apressar-se, e deitou fogo às primeiras peças, que foram saudadas com um imenso clamor de alegria da multidão.

       Mas, como se efectivamente houvesse luta entre o céu e a terra; como se, assim como a arquiduquesa o havia dito, o homem tivesse cometido uma impiedade para com o seu Deus, a procela, irritada, cobriu com o seu clamor o imenso clamor popular, e abrindo-se a um tempo todas as cataratas do céu, torrentes de chuva caíram do alto das nuvens.

       O vento apagara as luminárias, a chuva apagou o fogo.

       - Ah! Que grande infelicidade! - disse o delfim – falhou o fogo!

       - Ah! Senhor - respondeu tristemente Maria Antonieta - não falha tudo desde a minha chegada a França?

       - Como, minha senhora?

       - Viu Versalhes?

       - Sem dúvida, minha senhora. Então Versalhes não lhe agrada?

       - Oh! Sim, Versalhes agradar-me-ia se fosse hoje tal qual a deixou o seu ilustre avô Luís XIV. Mas em que estado viemos nós achar Versalhes? O luto e a ruína em toda a parte. Oh! Sim, sim, a tempestade harmoniza bem com as festas que me fizeram. Não acha conveniente esta procela para ocultar ao pobre povo as misérias do nosso palácio? Não é favorável e bem-vinda a noite, que encobre essas ruas cheias de ervas, esses grupos de tritões enxovalhados, esses lagos sem água e essas estátuas mutiladas? Oh! Sim, sim; sopra, vento do sul; ruge, tempestade; amontoem-se, nuvens; ocultem bem a todas as vistas a estranha recepção que a França faz a uma filha dos Césares, no dia em que ela dá a sua mão ao seu rei futuro!

       O delfim, visivelmente perturbado, porque não sabia que responder a essas admoestações, e principalmente a essa melancolia exaltada, tão afastada do seu carácter, soltou também um suspiro.

       - Aflijo-o - disse Maria Antonieta; - contudo não julgue que é a minha soberba que fala, oh! Não, não! Isso não! Por que me não mostraram antes esse Trianon tão risonho, tão cheio de sombra, de flores, cujos bosques a procela despedaça, turvando a água dos lagos? Ter-me-ia contentado com esse ninho encantador. Mas as ruínas aterram-me, repugnam à minha mocidade, e contudo quantas ruínas mais vai agora produzir esta tempestade!

       Uma nova borrasca ainda mais terrível que a primeira, fez tremer o palácio. A princesa ergueu-se espantada.

       - Oh! Meu Deus! Diga-me que não há perigo! Diga-mo, ainda que o haja... Morro de terror!

       - Não há perigo nenhum, minha senhora. Versalhes, construída toda em terraços, não pode atrair os raios. Se caíssem aqui, seria provavelmente sobre o telhado da capela que é agudo, ou sobre o pequeno torreão que oferece asperidades. Sabe que os objectos agudos atraem o fluido eléctrico, e que os corpos chatos, pelo contrário, repelem-no?

       - Não! - bradou Maria Antonieta - nada sei! Nada sei!

       Luís pegou na mão da arquiduquesa, mão palpitante e gelada.

       Neste momento, um relâmpago baço inundou o quarto com a sua claridade lívida e arroxeada. Maria Antonieta soltou um grito e repeliu o delfim.

       - Mas, minha senhora - perguntou ele - o que tem?

       - Oh! - disse ela - ao clarão desse relâmpago vi-o pálido, abatido, ensangüentado. Julguei ver um fantasma.

       - É o reflexo do fogo de enxofre - disse o príncipe - e eu poderia explicar-lhe...

       Um formidável trovão, cujos ecos gemendo se prolongaram até que, chegados ao ponto culminante, começaram a perder-se ao longe, um trovão imenso, terrível, espantoso, interrompeu a explicação científica que o mancebo ia dar fleumaticamente à sua real esposa.

       - Vamos, minha senhora - disse ele depois de um momento de silêncio - ânimo, suplico-lho; deixemos esses sustos para o vulgo! A agitação física é uma das condições da natureza. Não nos deve causar mais admiração que o estado sossegado; o sossego e a agitação sucedem-se; o sossego é perturbado pela agitação, a agitação é resfriada pelo sossego. E demais, minha senhora, isto não é mais que uma procela, e uma procela é um dos fenómenos mais naturais e mais freqüentes da criação. Não sei, portanto, o que pode haver nisso que cause terror.

       - Oh! Isolada, talvez me não aterrasse deste modo; mas esta tempestade, mesmo no dia das nossas bodas, não lhe parece um terrível presságio, junto àqueles que desde a minha entrada em França me perseguem?

       - O que diz, minha senhora? - bradou o delfim, comovido, mau grado seu, por um terror supersticioso; - presságios, disse a senhora?

       - Sim, sim, horríveis, sanguinolentos!

       - Esses presságios, diga-os, minha senhora; afirmam, geralmente, que tenho um espírito claro e frio; talvez eu tenha a fortuna de combater e despedaçar esses presságios que a atemorizam.

       - Senhor, a primeira noite que passei em França, foi em Estrasburgo; instalaram-me numa grande câmara, em que se acenderam luzes, porque era noite; ora, à claridade dessa luz vi umas paredes tintas de sangue. Tive contudo a coragem de me aproximar e examinar com mais exactidão essa cor vermelha. As paredes estavam revestidas por uma tapeçaria que representava a degolação dos Inocentes. Por toda a parte se via o desespero com o olhar aflito, o assassino com os olhos chamejantes, por toda a parte o raio da espada ou do machado, por todos os lados, gritos de mãe, suspiros de agonia pareciam sair em confusão dessa muralha profética, que, à força de olhar para ela, me parecia um quadro vivo. Oh! Gelada pelo terror, não pude dormir... E queira dizer, senhor, não era tão triste presságio?

       - Para uma mulher da antiguidade talvez, minha senhora, mas não para uma princesa do nosso século.

       - Senhor, este século é fértil em desgraças, disse-me minha mãe, tão fértil quanto o é de enxofre, de fogo e desolação o céu que acima das nossas cabeças se inflama. Oh! É por esse motivo que tenho medo, é por esse motivo que todo o presságio me parece um aviso.

       - Minha senhora, não há perigos que possam ameaçar o trono a que vamos subir; nós, os reis, vivemos em regiões sobranceiras às procelas. O raio está aos nossos pés, e quando fulmina a terra, parte do nosso mandato.

       - Ah! Senhor, não foi essa a profecia que me fizeram.

       - Que profecia foi?

       - Foi horrível, espantosa!

       - Profetizaram-lhe?...

       - Ou antes mostraram-me.

       - Mostraram...

       - Sim, eu vi, eu vi, repito-o, e ficou tão profundamente gravada em meu espírito essa imagem, que não há dia em que eu não estremeça pensando nela; não há noite em que eu deixe de a ver em sonhos.

       - E não pode dizer o que viu? Exigiram-lhe que guardasse silêncio?

       - Nada, nada exigiram.

       - Então, diga, minha senhora.

       - Oh! É impossível descrever-se! Era uma máquina, construída em elevação sobre a terra, como um cadafalso, mas sobre o qual estavam fixos dois braços muito semelhantes aos dois lados de uma escada de mão, e entre esses dois braços andava uma faca, um cutelo, um machado. Eu via isso, e caso estranho, também via a minha cabeça por baixo do cutelo! O cutelo correu entre os dois braços, e separou-me o corpo da cabeça, que caiu e rolou no chão. Eis o que eu vi, senhor.

       - Foi uma pura alucinação, minha senhora - disse o delfim; - conheço quase todos os instrumentos, por meio dos quais se dá a morte, e esse não existe; sossegue.

       - Ah! - exclamou Maria Antonieta - por mais que eu faça, não posso riscar da memória tão odioso pensamento.

       - Consegui-lo-á contudo, minha senhora - disse o delfim aproximando-se de sua esposa; - de hoje em diante terá sempre junto de si um amigo afeiçoado e assíduo protector.

       - Ah! - repetiu Maria Antonieta fechando os olhos e deixando cair-se sobre a poltrona.

       O delfim tornou a aproximar-se da princesa, e ela sentiu a respiração de seu marido bafejar-lhe as faces.

       Neste momento, entreabriu-se vagarosamente a porta por onde havia entrado o delfim, e um olhar curioso, ávido, o olhar de Luís XV, atravessou a penumbra dessa grande câmara, que duas velas, únicas que haviam deixado acesas, alumiavam apenas.

       El-rei abria a boca, sem dúvida para formular em voz baixa uma palavra de animação ao delfim, quando um tumulto que se não pode explicar soou em todo o palácio, acompanhado desta vez do relâmpago que havia precedido sempre os outros trovões; ao mesmo tempo, uma coluna de fogo branco com reflexos verdes, precipitou-se diante da janela, quebrando todos os vidros e despedaçando uma estátua colocada mesmo por baixo da varanda; e daí, depois de um fracasso espantoso, subiu novamente para o céu e desvaneceu-se como um meteoro.

       As duas velas apagaram-se envolvidas pelo tufão que penetrou na câmara. O delfim, aterrado, cambaleante, deslumbrado, recuou até à parede, contra a qual ficou encostado.

       A delfina, quase desmaiada, foi cair sobre os degraus do seu genuflexório e ali permaneceu num entorpecimento mortal. Luís XV, todo trémulo, julgou que a terra ia abrir-se debaixo dos seus pés, e seguido de Lebel, voltou para os seus quartos desertos.

       Durante esse tempo, fugia ao longe, como um bando de aves espantadas, o povo de Versalhes e de Paris, que andava espalhado pelos jardins, estradas e bosques, perseguido em todas as direcções por uma grossa chuva de pedra, que quebrava as flores do jardim, as folhas do bosque, o centeio e o trigo dos campos. As ardósias e as delicadas esculturas nos edifícios juntavam o estrago à desolação.

       A delfina, com o rosto entre as mãos, orava e soluçava ao mesmo tempo.

       O delfim olhava com um modo triste e insensível para o regato de água que no quarto lhe entrava pelos vidros quebrados e que reflectia no chão, com uma cor azulada, proveniente dos relâmpagos que sem interrupção continuaram ainda por algumas horas.

       Entretanto, todo esse caos patenteou-se ao amanhecer; os primeiros raios do dia, atravessando nuvens cor de cobre, descobriram à vista de todos os estragos da procela nocturna.

       Versalhes estava toda transtornada.

       A terra havia bebido esse dilúvio de água; as árvores haviam absorvido esse dilúvio de fogo; de todos os lados se via lama e árvores quebradas, torcidas, calcinadas por essa devastadora serpente de escamas de fogo, chamada corisco.

       Luís XV, que não havia podido dormir, tão grande era o seu terror, ao despontar da aurora fez-se vestir por Lebel, que não o tinha deixado, e dirigiu-se para a mesma galeria, onde se viam mesquinhamente alumiadas pela lívida claridade do dia, as pinturas que já conhecemos, e que eram feitas para brilharem no meio das flores, cristais e candelabros das orgias.

       Luís XV, pela terceira vez desde a véspera, empurrou a porta da câmara nupcial, e estremeceu ao ver sobre o genuflexório, prostrada, pálida, com os olhos roxos como os da sublime Madalena de Rubens, a futura rainha de França a quem o sono havia finalmente vindo abrandar o padecimento, enquanto a aurora lhe azulava com seu reflexo e com um respeito religioso o vestido branco que desde a véspera não despira.

       No fundo do quarto, numa poltrona encostada à parede, repousava o delfim de França, ainda calçado de sapatos e meias de seda, e tendo os pés metidos num grande charco de água; estava tão pálido como a sua jovem esposa, e igualmente como nela, o suor do susto corria-lhe da fronte.

       O leito nupcial estava como el-rei na véspera o havia visto.

       Luís XV franziu as sobrancelhas; uma dor viva, e para ele tão desconhecida, atravessou-lhe como um ferro em brasa a fronte gelada pelo egoísmo, ainda mesmo quando a devassidão procurava aquecer-lha.

       Abanou a cabeça, suspirou e voltou para o seu quarto, mais triste e aterrado talvez nessa hora do que o havia estado durante a noite.

 

ANDREIA DE TAVERNEY

       No dia trinta de Maio seguinte, isto é, no dia que se seguiu a tão horrível noite, noite, como Maria Antonieta havia dito, cheia de presságios e avisos, a cidade inteira de Paris celebrava por sua vez as festas do casamento do seu futuro rei. Por conseqüência a população toda dirigiu-se para a Praça de Luís XV, onde devia queimar-se o fogo de vistas, esse complemento de toda a grande solenidade pública, que o parisiense recebe com zombarias e motejos, mas sem o que não pode passar.

       O lugar era bem escolhido. Seiscentos mil espectadores podiam circular à vontade. Em torno da estátua eqüestre de Luís XV os andaimes haviam sido dispostos circularmente, de modo que todos os espectadores pudessem ver o fogo, que estava elevado dez ou doze pés acima do solo.

       Os parisienses foram chegando aos grupos, segundo o costume, e por espaço de muito tempo andaram à procura dos melhores lugares, privilégio inatacável dos que chegam primeiro.

       As crianças procuraram árvores, os homens sérios marcos de pedra, as mulheres os parapeitos dos fossos e os andaimes móveis, construídos no centro da praça, pelos especuladores ciganos, como aparecem em todas as festas de Paris, e a quem uma imaginação fértil permite que todos os dias mudem de especulação.

       Pelas sete horas, quando vinham chegando os primeiros curiosos, viram-se também chegar algumas esquadras de archeiros.

       O serviço de polícia não foi feito pelos soldados da guarda francesa, aos quais o município não queria conceder a gratificação de mil escudos pedida pelo coronel-marechal duque de Biron.

       Este regimento era ao mesmo tempo temido e amado do povo, junto do qual cada membro deste corpo passava por um César ou por um Mandrin. Os soldados da guarda francesa, terríveis no campo de batalha, inexoráveis no desempenho das suas funções, tinham em tempo de paz e fora do serviço, uma horrível reputação de bandidos: na forma, eram belos, valentes, intratáveis, e as suas evoluções agradavam às mulheres e impunham respeito aos maridos. Mas fora da forma, disseminados como simples particulares na multidão, eram o terror daqueles cuja admiração haviam atraído na véspera, e perseguiam muito aqueles que no dia seguinte iam proteger.

       Ora, o município, achando nos seus antigos ressentimentos contra esses vagabundos nocturnos e esses freqüentadores de tabernas uma razão para não dar os mil escudos pedidos, o município, dizemos, mandou unicamente os seus archeiros, com o pretexto especioso, que, numa festa de família, como a que se preparava, devia ser bastante o guardião ordinário da família.

       Viam-se então os soldados da guarda francesa, com licença, unirem-se aos grupos de que já falamos, e tão licenciosos quanto teriam sido severos, se estivessem de serviço, causavam na multidão, na sua qualidade de particulares da guarita, todas essas pequenas desordens que haveriam reprimido com coronhadas, com os pés e com os cotovelos, e até com prisão, se o seu chefe, César Biron, tivesse direito nessa noite de lhes chamar soldados.

       Os gritos das mulheres, as rezingas dos burgueses, as queixas dos homens de venda a quem comiam os bolos e as bolachinhas doces sem lhes pagarem, tudo isto era um tumulto apenas precursor do que necessariamente havia de verificar-se quando se achassem reunidos naquela praça seiscentos mil curiosos, e era tal a animação da cena que pelas oito horas da noite a Praça de Luís XV apresentava um imenso quadro de Teniers com grandes caretas francesas.

       Logo depois de colocados ou empoleirados os gaiatos parisienses, que são os entes mais apressados e mais preguiçosos do mundo conhecido, tomaram posição os burgueses e o povo, e em seguida foram chegando as carruagens dos fidalgos e dos financeiros.

       Nenhum itinerário tinha sido marcado, por isso vieram entrando desordenadamente pelas Ruas da Madalena e de Saint-Honoré, conduzindo para os edifícios novos as pessoas que tinham recebido convites para as janelas e varandas do governador, de onde se devia ver o fogo perfeitamente.

       As pessoas que vinham de carruagem, mas que não tinham convites, deixaram os trens à esquina da praça, e vieram a pé, precedidas pelos respectivos criados, colocar-se entre a multidão já muito apertada, mas onde sempre encontra um lugar quem sabe conquistá-lo.

       Era digna de ver-se a sagacidade com que estes curiosos, apesar da escuridão, sabiam tirar partido das desigualdades de terreno em favor do seu progresso ambicioso. A rua larguíssima, que devia um dia chamar-se Rua Royal, mas que ainda não tinha sido acabada então, estava cortada em diferentes pontos por fossos profundos nas bordas dos quais se tinham amontoado entulhos e terra tirada das escavações. Cada um destes montinhos era ocupado por um grupo, semelhando assim ondas num mar de entes humanos.

       De quando em quando a onda, impelida por outras, quebrava-se no meio das gargalhadas da multidão, a qual não estava ainda compacta a ponto de oferecerem perigo estas quedas, ou de não poderem levantar-se os que tinham caído.

       Pela volta das oito horas e meia, as vistas até ali distraídas começaram todas a tomar a mesma direcção e a fixarem-se no madeiramento do fogo do ar. Foi então que os cotovelos começaram a trabalhar sem descanso, para manter seriamente os espectadores na inteira posse do terreno que a cada momento lhes era disputado por novos invasores.

       O fogo do ar, da combinação de Ruggiéri, era destinado a rivalizar com o que tinha sido executado em Versalhes pelo engenheiro Torre, rivalidade esta que o temporal da antevéspera tinha tornado muito fácil. Em Paris sabia-se que pouco proveito tinham tirado em Versalhes da munificência régia, que havia dado cinqüenta mil libras para o fogo, porquanto logo ao incendiarem-se os primeiros foguetes a chuva apagara tudo, e como o tempo estava sereno na tarde do dia trinta de Maio, os parisienses já antecipadamente gozavam do seu triunfo certo sobre os seus vizinhos de Versalhes.

       E além disso, Paris confiava muito mais na antiga popularidade de Ruggiéri do que na reputação ainda nascente de Torre.

       O plano de Ruggiéri, menos fantástico e menos indefinido do que o do seu colega, indicava idéias pirotécnicas de natureza mui elegante: a alegoria, soberana daquela época, achava-se ligada ao mais engraçado estilo arquitectónico; o madeiramento figurava o antigo templo de Himeneu, o qual é em França coevo do templo da Glória; sustentava-o uma colunata gigantesca, e rodeava-o um parapeito em cujos ângulos uns golfinhos, de bocas abertas, só esperavam pelo sinal para vomitarem torrentes de chamas. Em frente dos golfinhos apresentavam-se majestosamente recostados sobre as suas urnas o Loire, o Rhone, o Sena e o Reno, rio este que nós teimamos em naturalizar como francês a despeito de todo o mundo, e mesmo, se devemos dar crédito às cantigas modernas dos nossos amigos alemães, até em despeito dele próprio; estavam, pois, os quatro rios prontos para espargirem em lugar de água, fogos azuis, brancos, verdes e cor-de-rosa no momento em que se incendiasse a colunata.

       Outras peças de artifício, destinadas a acenderem-se no mesmo instante, deviam formar vasos de flores gigantescas sobre o eirado do palácio de Himeneu.

       E, finalmente, sobre aquele mesmo palácio destinado a sustentar tantas e tão diferentes coisas, tinham erigido uma pirâmide luminosa que terminava com o globo do mundo; o globo, depois de ter fulgurado em silêncio, devia rebentar como uma trovoada e desfazer-se numa nuvem de girândolas de cores.

       A girândola final, acompanhamento obrigado, e tão importante para os parisienses que por ele avaliam o merecimento de um fogo do ar, tinha-a Ruggiéri separado do corpo da máquina; estava colocada na proximidade do rio, ao pé da estátua, num baluarte recheado de peças de sobresselente, de modo que o golpe de vista muito devia ganhar com esta elevação de três ou quatro braças, que fazia com que o pé da girândola assentasse sobre um pedestal.

       Eram estas as particularidades que preocupavam os habitantes de Paris; havia quinze dias que os parisienses vinham contemplar com admiração Ruggiéri e seus ajudantes, que apareciam como sombras por meio dos clarões fúnebres do andaime, e paravam de vez em quando com gestos singulares para firmarem os rastilhos e segurarem as escorvas.

       Eis o motivo porque, no momento em que apareceram sobre o socalco do madeiramento as lanternas que indicavam achar-se próximo o instante do incêndio, toda a multidão experimentou uma forte sensação, e mesmo alguns dos mais intrépidos recuaram, produzindo assim uma extensa oscilação até à extremidade do ajuntamento.

       As carruagens continuavam a chegar, e iam invadindo a praça. Os cavalos encostavam as cabeças aos ombros dos espectadores que já não iam gostando de vizinhos tão perigosos. Por detrás das carruagens foi-se juntando a multidão que aumentava continuamente, de modo que as carruagens se quisessem retirar-se já o não podiam fazer por se acharem entaladas no meio desta inundação compacta e tumultuosa.

       Começaram então a trepar sobre os tejadilhos, como náufragos sobre rochedos, os guardas franceses, os operários e os lacaios, desenvolvendo toda a audácia de um parisiense invasor, a qual só pode ser comparada à longanimidade com que os mesmos parisienses sofrem a invasão.

       A iluminação dos bulevares projectava de longe o seu clarão vermelho sobre as cabeças de milhares de curiosos, entre os quais a baioneta de algum archeiro burguês, cintilando como um raio, aparecia de longe em longe como a espiga do trigo que em campo ceifado escapou ao golpe da foice.

       Pelos lados dos edifícios novos, hoje palácio de Crillon e guarda-reposte da coroa, as carruagens dos convidados, entre as quais não tinha havido cuidado de conservar um espaço livre, formavam três fileiras que se estendiam, de um lado, do bulevar até às Tulherias, e, do outro, do bulevar até à Rua dos Campos Elísios, figurando assim as tríplices roscas de uma serpente.

       Às ilhargas destas três fileiras de carruagens giravam, como espectros sobre as margens do Estige, os convidados que não podiam chegar ao portão por estar o caminho obstruído pelos trens que vinham na frente, e atordoados pela bulha e receosos da poeira da rua (as mulheres especialmente vestidas e calçadas de cetim) iam de encontro às ondas do povo que as chasqueava por tanto melindre, procurando passar entre as rodas das carruagens e as patas dos cavalos para alcançarem, conforme podiam, o ponto a que se dirigiam, sítio por elas tão desejado como o pode ser o porto durante uma tempestade.

       Uma das carruagens chegou pelas nove horas, isto é, apenas alguns minutos antes da hora marcada para começar o fogo, e procurou abrir caminho até à porta do governador; porém, esta empresa, já bastante difícil havia algum tempo, tinha-se tornado naquele momento se não impossível pelo menos arriscada. Tinham começado a formar uma quarta fileira por fora das três primeiras, e os cavalos de que se compunha, de fogosos que eram, haviam-se tornado furiosos, e lançavam para a direita e para a esquerda, à menor irritação, coices que já tinham magoado alguns indivíduos no meio da bulha e da confusão.

       Atrás desta carruagem, de que acima falamos, e que tinha aberto caminho pelo centro da multidão, vinha um mancebo agarrado às molas, o qual afastava de si os indivíduos que procuravam também utilizar-se do benefício daquela locomotiva que ele parecia ter confiscado em seu proveito.

       Quando a carruagem parou, o mancebo saltou para o lado, porém, sem largar as molas protectoras, às quais continuou a segurar-se com uma das mãos. Pôde portanto ouvir pela portinhola, que estava aberta, a conversa animada das pessoas que estavam na carruagem.

       Uma cabeça de mulher, vestida de branco e penteada com algumas flores naturais, apareceu fora da portinhola. Logo uma voz gritou:

       - Vamos, Andreia, bem se vê que és provinciana, não te debruces assim, olha que te estás expondo a ser abraçada pelo primeiro mariola que passar. Não vês que a nossa carruagem está no meio deste povo como se estivesse no meio do rio? Estamos dentro de água, minha rica, e água suja, de mais a mais, cuidado não nos molhemos.

       A cabeça da jovem senhora desapareceu para dentro da carruagem.

       - É porque daqui, senhor, não se vê nada - disse ela; - ainda se os nossos cavalos pudessem dar meia volta, ver-se-ia pela portinhola, e ficaríamos quase tão bem como se estivéssemos à janela do governador.

       - Volta, cocheiro - bradou o barão.

       - É impossível, senhor barão - respondeu aquele; - teria de esmagar algumas dez pessoas.

       - Pois esmaga-as, com os diabos!

       - Oh! Senhor! - disse Andreia.

       - Oh! Meu pai! - exclamou Filipe.

       - Quem é este barão que quer esmagar os pobres? – perguntaram algumas vozes ameaçadoras.

       - Sou eu, com os demónios - disse Taverney debruçando-se à portinhola e deixando patente a fita vermelha da grã-cruz que trazia a tiracolo.

       Naquele tempo ainda se olhava com respeito para uma grã-cruz, mesmo quando a fita dessa grã-cruz era vermelha; continuaram ainda a resmungar, porém numa escala descendente.

       - Espere, meu pai, vou apear-me - disse Filipe – e ver se é possível passar.

       - Cuidado, meu irmão, olha que te arriscas a ser morto. Não ouves os relinchos dos cavalos, que parece estarem a brigar?

       - Melhor seria dizer os rugidos - replicou o barão. - Vamos, o melhor é apear-nos, diz-lhes que se afastem, Filipe, para podermos passar.

       - Ah! Meu pai, já não conhece o que é Paris – respondeu Filipe. - Esses modos soberanos eram bons noutro tempo; mas hoje talvez não fossem admissíveis, e decerto que não quererá agora comprometer a sua dignidade, não é assim?

       - Contudo, quando estes marotos souberem quem eu sou...

       - Meu pai - disse Filipe sorrindo-se - ainda que fosse o próprio delfim, ninguém se afastaria para o deixar passar, e especialmente neste momento, pois aí vai principiar a arder o fogo do ar.

       - Então nada veremos daqui - disse Andreia bastante enfadada.

       - E quem tem a culpa senão tu? - respondeu o barão - estiveste mais de duas horas no toucador!

       - Meu irmão - disse Andreia - se me desses o braço, e nos fôssemos colocar no meio de toda essa gente?

       - Venha, venha, menina - responderam algumas vozes de homens, a quem encantara a formosura de Andreia; - sim, venha, não é muito gorda e facilmente se lhe arranjará aqui um lugar.

       - Sempre te resolves a ir para ali, Andreia? – perguntou Filipe.

       - Resolvo, sim - disse Andreia.

       E sem tocar com o pé no estribo da carruagem, saltou para a rua.

       - Vai, pois - disse o barão; - eu, porém, que não faço caso de fogos do ar, fico aqui.

       - Pois sim, fique, meu pai - disse Filipe - que nós não nos afastamos muito daqui.

       Efectivamente, a multidão que sempre é respeitosa quando não a irritam, e mais respeitosa ainda em presença da rainha omnipotente a que chamamos formosura, a multidão, pois, abria caminho para Andreia e seu irmão, e um bom burguês, que se tinha acomodado com a sua família sobre um banco de pedra, mandou à mulher e filha que dessem entre si um lugar a Andreia.

       Filipe colocou-se em frente da irmã, que lhe encostou a mão ao ombro.

       Gilberto tinha-os seguido, e, parado em distância de quatro passos, devorava Andreia com os olhos.

       - Estás aí bem acomodada, Andreia? – perguntou Filipe.

       - Perfeitamente - respondeu a jovem senhora.

       - Vê quanto é útil ser formosa - disse ele sorrindo-se.

       - Sim, sim, formosa, sim, e bem formosa! – murmurou Gilberto.

       Andreia ouviu estas palavras; porém, como tinham sido proferidas provavelmente pela boca de algum homem do povo, fez tanto caso delas como faz um deus indiano da adoração de um pobre pária prostrado a seus pés.

 

O FOGO DE ARTIFÍCIO

       Apenas Andreia e seu irmão tinham conseguido instalar-se sobre o banco, logo começaram a subir ao ar os primeiros foguetes, e ressoou um imenso grito da multidão, toda ela atenta ao bom efeito que ia apresentar o centro da praça.

       O princípio da função foi magnífico e em tudo digno da distinta reputação de Ruggiéri.

       Os ornatos do templo iluminaram-se progressivamente e em breve apresentaram uma fachada de fogo. Logo ressoaram os aplausos, e as aclamações degeneraram em frenéticos bravos apenas começaram as goelas dos golfinhos e as urnas dos rios a derramar torrentes de chamas, cruzando-se as cascatas de fogo de diferentes cores.

       Andreia, arrebatada de admiração com a vista de um espectáculo que não tem no mundo seu equivalente, como o de uma população de setecentas mil almas bramindo de alegria em frente de um palácio de labaredas, Andreia, dizemos, nem procurava ocultar a impressão que sentia.

       Três passos distante dela, e escondido pelos largos ombros de um moço de fretes, que levantava um filho ao ar, Gilberto olhava alternadamente, ora para Andreia, ora para o fogo.

       Gilberto via Andreia de perfil; cada foguete que subia ao ar alumiava aquele lindo rosto, e causava um estremecimento ao mancebo; parecia-lhe que a admiração geral tinha origem na contemplação da criatura divina que ele idolatrava.

       Andreia nunca tinha visto Paris, nem tamanha afluência de gente, nem tão-pouco o esplendor de uma função destas; estava atordoada com esta multiplicidade de objectos novos para ela, que lhe vinham assaltar o espírito.

       De repente um clarão mui vivo rebentou, correndo numa diagonal para o lado do rio. Era uma bomba estourando com grande estrépito, e apresentando fogos diversos que Andreia admirava.

       - Vê, Filipe, que bonito que é! - disse ela.

       - Valha-me Deus! - exclamou o mancebo com inquietação, e sem lhe responder; - este último foguete foi bem mal dirigido, desviou-se por certo, do caminho que devia levar, pois em vez de descrever uma parábola correu quase horizontalmente.

       Apenas Filipe acabara de manifestar uma inquietação de que também já dava provas a agitação dos espectadores, rebentou um turbilhão de chamas do baluarte em que estavam colocadas a girândola final e os sobresselentes das peças de fogo. Um estrondo semelhante ao de um cento de trovões que se cruzassem em todos os sentidos ribombou pela praça, e este fogo, que parecia acarretar uma metralha devoradora, desbaratou completamente os curiosos que estavam mais próximos, e que sentiam as caras açoitadas por uma labareda tão inesperada.

       - É já a girândola final? É a girândola já? – perguntavam os que estavam mais afastados. - Ainda não. É cedo de mais ainda!

       - Já! - repetiu Andreia. - Oh! Não pode ser, é muito cedo.

       - Não - disse Filipe - não é a girândola; é um desastre que daqui a um instante há-de fazer revolver como as ondas do mar toda esta multidão que ainda se conserva sossegada. Vem, Andreia, recolhamo-nos para a carruagem; vem.

       - Oh! Deixa-me ver ainda, Filipe; é tão bonito!

       - Andreia, digo-te que não há um momento a perder, segue-me. Sucedeu a desgraça que eu receava. Um foguete perdido incendiou o baluarte. Já há gente pisada além no apertão. Não ouves os gritos? Olha que não são gritos de alegria, mas sim de angústia. Vamos depressa para a carruagem. Senhores, senhores, deixem-nos passar!

       E em seguida Filipe, lançando o braço em volta da cintura da irmã, arrastou-a para o sítio onde estava o pai, o qual, também desassossegado, e adivinhando pela gritaria que ouvia, algum perigo que ele não podia definir, mas que evidentemente existia, deitava a cabeça pela portinhola e com a vista procurava os filhos.

       Já era tarde, com efeito, e ia-se realizando a profecia de Filipe. A girândola, composta de quinze mil foguetes, rebentara, e estes, seguindo em todas as direcções, perseguiam os curiosos como outras tantas garrochas de fogo lançadas a touros para os tornar mais bravos.

       Os espectadores, a princípio admirados, e depois assustados, tinham recuado irreflectidamente, cedendo à força invencível da retrocessão de cem mil pessoas; outras cem mil, já sufocadas, tinham comunicado o mesmo movimento aos que lhes ficavam na retaguarda; o madeiramento ia ardendo, as crianças gritavam, as mulheres, abafadas, erguiam os braços; os archeiros espancavam tudo para a direita e para a esquerda, procurando por meio da violência fazer calar os que gritavam para restabelecerem a ordem. A combinação de todas estas coisas fez com que a onda de que falara Filipe caísse com ímpeto de uma manga de água sobre o canto da praça em que se achava; em vez de alcançar a carruagem do barão, como esperava, foi pois o mancebo arrebatado pela corrente, corrente irresistível e impossível de descrever, porque as forças individuais, já décuplas pelo medo e pela dor, achavam-se centuplicadas pela junção das forças gerais.

       No momento em que Filipe arrastara consigo Andreia, Gilberto tinha-se entregado à onda que os arrebatara; porém ao cabo de uns vinte passos, um bando de fugitivos que voltava da esquerda para a Rua da Madalena, arrastou consigo Gilberto, que bramia de raiva por se ver separado de Andreia.

       Andreia, fortemente agarrada pelo braço de Filipe, achou-se envolvida num grupo que procurava evitar o choque de uma carruagem puxada por dois cavalos furiosos.

       Filipe viu-os aproximar rápidos e ameaçadores, e pareciam deitar fogo pelos olhos e espuma pelas ventas. Fez esforços sobrenaturais para se desviar do encontro, porém foi debalde, viu que o apertão na sua retaguarda abria para os lados, e logo avistou as cabeças raivosas dos dois animais desenfreados, que se empinavam como os cavalos de mármore que estão à entrada das Tulherias. Filipe, imitando a estátua do escravo que tenta domá-los, largou o braço de Andreia, e empurrando-a quanto pôde para fora do lugar de perigo, lançou a mão ao freio do cavalo que ficava do seu lado, o qual se levantou; e Andreia, vendo o irmão levantar-se também, depois cair e desaparecer, deu um grito, estendeu os braços, sentiu-se repelida, fez uma reviravolta, e no mesmo instante achou-se sozinha, quase desmaiada, e levada como uma pena pelo vento, sem poder resistir à força que a impelia.

       Os gritos espantosos, muito mais terríveis do que gritos de guerra, os relinchos dos cavalos, um ruído horrível de rodas que calcavam indistintamente a calçada e os cadáveres, o lívido clarão do madeiramento a arder, o relampejar sinistro das espadas que alguns soldados enfurecidos haviam desembainhado, e acima de todo este caos sanguinolento, a estátua de bronze iluminada de reflexos amarelos e parecendo presidir à carnagem, tudo isto era de sobejo para desvairar o juízo a Andreia e tirar-lhe toda a força. E demais a mais nem as forças de um titã seriam suficientes para uma tal luta, que vinha a ser a de um só contra todos, e contra a morte.

       Um soldado, que procurava sair do apertão ferindo a todos com a espada, fez que Andreia soltasse um grito.

       Vira brilhar a espada acima da cabeça. Juntou as mãos como faz o náufrago quando a última vaga lhe cobre a cabeça, exclamou: “Oh! meu Deus!” e caiu.

       Porém, aquele terrível grito de angústia tinha sido ouvido e conhecido por alguém; Gilberto, a princípio arrastado para longe de Andreia, tinha conseguido, a poder de esforços, aproximar-se novamente dela; curvou-se ao impulso da onda que havia engolido Andreia, mas levantando-se logo, deitou mão à espada que maquinalmente a ameaçara, agarrou pelo pescoço o soldado que ia feri-la e derrubou-o; ao pé do soldado estava estendida no chão uma jovem senhora vestida de branco, apoderou-se dela e levantou-a com a facilidade com que o faria um gigante.

       Quando Gilberto sentiu junto ao coração aquele corpo tão formoso, que era talvez já cadáver, um clarão de orgulho brilhou no seu rosto; a ele coubera por sorte o sublime da situação, a ele o sublime da força e do valor! Atirou-se com a carga que levava para o centro de uma torrente de homens, cuja impetuosidade teria por certo arrombado um muro. Este grupo sustentou-o, amparando-o, e foi-o levando a ele e à senhora; andou, ou para melhor dizer, resvalou assim por alguns minutos. De repente parou a torrente como se tivesse encontrado algum obstáculo. Gilberto firmou os pés no chão; foi então somente que sentiu o peso de Andreia, e levantando a cabeça para ver qual seria o obstáculo que tinha na frente, avistou o palácio do Guarda-reposte em distância de três passos. Aquela mole de cantaria havia triturado a mole de carne que lhe fora de encontro.

       Durante este momento de pausa e ansiedade, pôde contemplar Andreia entregue a um sono pesado como o da morte: o coração já não palpitava, os olhos estavam cerrados e o rosto maculado de nódoas roxas como uma rosa que vai murchando.

       Gilberto pensou que ela tinha morrido. Por sua vez também soltou um grito, chegou os beiços ao vestido primeiramente, em seguida à mão, e depois, mais afoito por ver a insensibilidade em que se conservava, começou a cobrir de beijos aquele rosto frio, e aqueles olhos entumecidos que as pálpebras lhe ocultavam. Corou, chorou, e bramiu, esforçando-se por fazer passar a sua vida para o peito de Andreia, e admirado por ver que os seus beijos, capazes de animar um mármore, ficavam sem efeito sobre aquele cadáver.

       Repentinamente, sentiu Gilberto que o coração palpitava.

       - Está salva! - exclamou ele ao ver fugir todo aquele tropel negro e ensangüentado, ao som de imprecações, gritos dilacerantes e suspiros, que as vítimas soltavam na sua agonia. - Está salva! E fui eu quem a salvei!

       O desgraçado, com as costas arrumadas ao muro e os olhos fitos na ponte, não tinha olhado para a direita; à direita, pois, e na frente das carruagens, até ali paradas por se acharem envolvidas pelas massas de povo, mas que, agora, já menos apertadas, começavam a abalar num galope tão furibundo que parecia que uma vertigem geral tinha dado nos cocheiros e nos cavalos, à direita, dissemos, e na frente das carruagens, fugiam vinte mil infelizes que iam sendo atropelados, aleijados, e despedaçados uns pelos outros.

       Iam instintivamente encostando-se às paredes, de encontro às quais eram esmagados os que mais próximos se achavam.

       Esta multidão arrastava ou abafava todos os indivíduos que tendo-se retirado para o pé do palácio do Guarda-reposte, pensavam haver escapado ao naufrágio. Gilberto viu-se assaltado por outra aluvião de pancadas, de corpos, e de cadáveres; encontrou um dos vãos em que estão as grades e meteu-se nele.

       O peso dos fugitivos fez estalar o muro.

       Gilberto, já sufocado, estava próximo a ceder, porém reunindo todas as suas forças para uma derradeira tentativa, rodeou com os braços o corpo de Andreia, e arrumou a cabeça ao peito da jovem senhora. Parecia querer abafar a sua protegida.

       - Adeus! Adeus! - murmurou ele, beijando-lhe o vestido, ou antes mordendo-o; - adeus!

       E em seguida levantou os olhos para o céu para o implorar uma última vez.

       Então ofereceu-se-lhe à vista uma visão singular.

       Era um homem de pé sobre um colunelo de pedra, segurando-se com a mão direita a uma argola de ferro chumbada na parede, e que parecia fazer sinal de reunir com a esquerda a um exército em fuga; o tal homem, ao passarem a seus pés todas aquelas ondas furiosas, ou proferia uma palavra, ou fazia um gesto. Ao ouvir a palavra, ao ver o gesto, percebia-se então que um ou outro indivíduo isolado, entre a multidão, parava e fazia um esforço, lutando e bracejando para chegar até ele. Outros, que já o cercavam, pareciam reconhecer os recém-chegados como irmãos, e ajudavam estes irmãos a sair do tropel, levantando-os, amparando-os, e puxando-os para si. E desta sorte, já aquele novelo de homens, lutando com união, e semelhantes ao pilar de uma ponte dividindo a água, tinha conseguido dividir a coluna e opor-se ao choque das massas dos fugitivos.

       A cada momento, novos campeões, que pareciam brotar do chão ao som das palavras estranhas proferidas, ou à vista dos gestos singulares repetidos, vinham aumentar o cortejo daquele homem. Gilberto, empregando um último esforço, levantou-se; parecia-lhe que ali é que estava a salvação, porque ali existia a tranqüilidade e o poderio. Um derradeiro raio das labaredas do madeiramento, que se animavam antes de se extinguirem, deu no rosto do homem. Gilberto soltou um grito de admiração.

       - Oh! Não me importa morrer - murmurou Gilberto, - contanto que ela viva! Aquele homem pode salvá-la.

       E logo com um rasgo sublime de abnegação, levantando a donzela nos braços, gritou:

       - Sr. Barão de Bálsamo, salve a menina Andreia de Taverney!

       Bálsamo ouviu aquela voz, que, semelhante à da Bíblia, gritava das profundidades da multidão; viu aparecer acima da onda devoradora um vulto branco, e logo saltando do colunelo para o chão, bradou: “A mim!” Os indivíduos que o cercavam derrubaram todos os obstáculos, e ele, agarrando em Andreia, que Gilberto ainda amparava em seus braços desfalecidos, levou-a sem ter tempo de voltar a cabeça, impelido pelo movimento da multidão que ele deixara de reprimir.

       Gilberto quis pronunciar uma última palavra; queria talvez solicitar para si a protecção daquele homem extraordinário, depois de a haver solicitado para Andreia; porém só teve força para imprimir os lábios no braço que a menina levava pendente, e para arrancar com a mão trémula um bocado do vestido daquela nova Eurídice que o Inferno lhe arrebatava.

       Depois daquele último beijo, e daquele último adeus, ao mancebo só restava morrer; nem intentou lutar por mais tempo, fechou os olhos, e caiu, semimorto, sobre um montão de mortos.

 

O CAMPO DOS MORTOS

       Sempre, após as grandes tormentas vem uma calmaria, medonha sim, mas restauradora.

       Seriam duas horas da madrugada, pouco mais ou menos, quando imensas nuvens esbranquiçadas, estendendo-se sobre Paris, faziam destacar distintamente, à luz baça do luar, as desigualdades daquele terreno funesto, em cujos fossos a multidão dos que fugiam tinha caído e morrido.

       O clarão da Lua, oculta de vez em quando pelas nuvens, mostrava em diversos pontos, sobre as elevações do terreno, e dentro dos barrancos, cadáveres com os vestidos despedaçados, as pernas inteiriçadas, os semblantes lívidos, e as mãos postas em atitude de súplica ou de terror.

       No centro da praça, o fumo amarelado e infecto que saía dos restos do madeiramento, contribuía para dar à Praça de Luís XV a aparência de um campo de batalha.

       Pelo meio daquele largo ensangüentado e cheio de desolação, vagueavam misteriosamente e com passos rápidos, vultos que de tempos a tempos paravam, olhavam em volta de si, e depois abaixavam-se e fugiam; estes vultos que a morte atraía como se fossem corvos, eram os ladrões que vinham roubar os mortos; não tinham podido despojar os vivos, vinham agora despir os cadáveres.

       Admirados por verem que a obra já estava feita por companheiros que se lhes haviam adiantado, fugiam agora descontentes e espavoridos à vista das baionetas tardias que os ameaçavam; porém não eram somente os ladrões e as patrulhas preguiçosas que se moviam por entre as compridas enfiadas de mortos.

       Viam-se, de lanterna na mão, indivíduos que pareciam curiosos.

       Tristes curiosos, na verdade! Pois eram os parentes e os amigos assustados por não terem visto voltar os irmãos, ou os amigos, ou as amantes. Vinham alguns deles dos bairros mais distantes porque a terrível notícia já se havia espalhado por toda Paris com a rapidez de um furacão, e a ansiedade em que todos se achavam havia motivado estas pesquisas.

       Este espectáculo era talvez mais horroroso ainda do que o da própria catástrofe.

       Todas as expressões se divisavam nos rostos pálidos dos que se entregavam a estas buscas, via-se a desesperação dos que encontravam o cadáver de alguma pessoa estimada, e a tristeza sombria daquele que, não tendo encontrado quem procurava, lançava os olhos com avidez para o rio, cujas águas corriam com monótono sussurro.

       Dizia-se que o preboste de Paris mandara lançar muitos cadáveres ao rio, para assim ocultar o número espantoso de mortes que por sua imprudência ocasionara.

       E depois de terem saciado a vista com este espectáculo estéril, depois de terem ido encharcar os pés da água do Sena, ficando com a alma tão triste como o curso nocturno do rio, partiam, sempre de lanterna na mão, para explorarem as ruas próximas da praça, para onde, segundo se dizia, muitos dos feridos se haviam arrastado para obterem socorros, ou pelo menos fugirem da cena dos seus sofrimentos.

       Quando por desgraça encontravam entre os cadáveres a pessoa que procuravam, ou fosse de parente ou de amigo, então sucediam os gritos à cruel surpresa, e os soluços, que ressoavam num novo ponto deste tremendo teatro ensangüentado, respondiam aos que noutros sítios ecoavam.

       De vez em quando ouvia-se uma explosão de choro, em seguida via-se cair ao chão uma lanterna e despedaçar-se: era alguém que se deixava cair sobre um morto para o abraçar pela última vez.

       Além destes, ainda outros rumores se ouviam em tão vasto cemitério.

       Quando os feridos, que haviam ficado aleijados pela queda, mutilados pelas espadas, ou sufocados pelo apertão, soltavam a custo um grito ou gemido para implorar socorro, logo os que procuravam algum amigo se precipitavam para eles, mas fugiam apenas viam que não era quem buscavam.

       Entretanto, na extremidade da praça, próximo ao jardim, tinham organizado um hospital ambulante pela solicitude da caridade popular. Um cirurgião moço ainda, e que bem mostrava a sua profissão pela profusa quantidade de instrumentos de que estava cercado, mandava levantar os homens e as mulheres que tinham sido maltratados, e curava-lhes as feridas, dizendo-lhes, durante o curativo, palavras mais expressivas de ódio contra a causa do desastre, do que de dó pelos efeitos dele.

       Gritava sem cessar a dois moços robustos que lhe serviam de ajudantes nesta revista sanguinolenta:

       - As mulheres e os homens do povo em primeiro lugar. Facilmente os conhecerão, são quase sempre os mais feridos, e decerto os menos bem trajados.

       A estas palavras, repetidas com estridente monotonia depois de cada curativo, um mancebo de semblante pálido, que andava pesquisando entre os cadáveres com uma lanterna na mão, já pela segunda vez levantara a cabeça.

       Uma grande ferida que lhe atravessava a testa vertia algumas pingas de sangue, e via-se que um dos braços estava entalado entre dois botões da casaca para se conservar amparado; no rosto coberto de suor divisava-se-lhe a inquietação da alma.

       Quando ouviu, como já dissemos, pela segunda vez, a recomendação do facultativo, levantou a cabeça, e olhando com tristeza para aqueles corpos mutilados, que o operador parecia admirar deliciosamente, disse:

       - Oh! Senhor, por que razão escolhe entre estas vítimas uns de preferência a outros?

       O cirurgião, levantando a cabeça ao ouvir esta interpelação, respondeu:

       - É porque ninguém tratará dos pobres, se eu não cuidar deles, e aos ricos não falta quem os procure! Abaixe a lanterna e examine o chão, achará cem pobres por cada um dos ricos ou dos nobres. Os nobres e os ricos, com uma felicidade que há-de um dia chegar a enfastiar mesmo a Deus, ainda nesta catástrofe pagaram o seu usual tributo apenas de um por cada mil.

       O mancebo levantou a lanterna à altura da testa ensangüentada.

       - Visto isso, sou eu o único fidalgo aqui presente, eu que me achei confundido com muitos outros no apertão, no meio do qual levei um coice de cavalo que me abriu a testa, e que estou com um braço fraturado por ter caído num fosso. Diz que os ricos e os nobres são muito procurados, e todavia bem vê que não tive ainda quem me curasse.

       - O senhor tem um palácio... Tem um médico, e como pode andar, volte para casa.

       - Nem eu peço que se ocupe de mim; ando em procura de minha irmã, uma formosa menina de dezesseis anos, que decerto também foi morta, conquanto não pertencesse à classe do povo. Trazia um vestido branco, e um colar com uma cruz ao pescoço; e apesar de que tinha também palácio e médico, Peço-lhe, senhor, por piedade, que me diga se a viu?

       - Senhor - respondeu o jovem cirurgião com uma veemência febril, que bem mostrava que as idéias agora expendidas lhe borbulhavam de há muito na mente; senhor, a humanidade é quem me guia, por ela é que me dedico e quando deixo a aristocracia sobre o leito da morte para acudir ao povo que sofre, não faço mais do que obedecer à verdadeira lei dessa humanidade que é o meu ídolo. Todas as desgraças que hoje sucederam foram ocasionadas pela sua classe; têm origem nos seus abusos e invasões; cumpre-lhe, pois, sofrer-lhes as conseqüências. Não, senhor, não vi a sua irmã.

       E depois de proferir esta censura fulminante, continuou o operador na sua tarefa. Neste momento acabavam de lhe trazer uma infeliz mulher a quem uma carruagem partira as pernas.

       - Vê - continuou ele gritando para Filipe que se afastava - vê! Diga-me se são os pobres que atravessam as reuniões públicas de carruagem e que partem as pernas aos ricos?

       Filipe pertencia àquela classe de nobreza de onde saíram os La Fayette e os Lameth; mais de uma vez tinha ele feito profissão das mesmas máximas que agora o horrorizavam por saírem da boca daquele mancebo; esta aplicação das suas próprias idéias recaiu sobre ele como um castigo.

       Afastou-se pois das proximidades da ambulância, com o coração dilacerado, para continuar na triste exploração que empreendera; e ao cabo de alguns momentos, levado do pesar que sentia, exclamou com voz lamentosa:

       - Andreia! Andreia!

       Neste instante passava apressadamente junto dele um homem já idoso, trajando uma casaca de pano cinzento, e meias de cor alvadia; encostava-se com a mão direita a uma bengala, e na esquerda levava uma lanterna improvisada, formada de uma vela de sebo resguardada por uma folha de papel azeitado.

       Este homem, ouvindo gemer Filipe, compreendeu o seu sofrimento, e murmurou:

       - Pobre mancebo!

       Porém passou adiante, continuando ao que parecia numa busca igual à de Filipe.

       Mas de repente, como se a si próprio se repreendera por haver presenciado tamanha dor sem haver proferido algumas palavras de consolação, voltou atrás e disse:

       - Senhor, queira perdoar o meu atrevimento em querer ajuntar ao meu o seu pesar; mas aqueles que foram feridos do mesmo golpe devem amparar-se mutuamente para não caírem. E demais... poderá talvez prestar-me algum serviço. Vejo que há já muito tempo que anda procurando, porque a vela que traz está quase consumida, deve portanto saber com certeza quais foram os pontos mais fatais da praça.

       - Não há dúvida, senhor, sei quais foram!

       - Pois bem! Também eu ando em busca de alguém.

       - Vá então ver na proximidade do fosso grande, ali encontrará mais de cinqüenta cadáveres.

       - Cinqüenta, justo céu! Tanta vítima no meio de uma função!

       - Tanta vítima, diz o senhor! Já cheguei a luz talvez a mil caras, e ainda não encontrei minha irmã!

       - Sua irmã?

       - Era acolá, para aquele lado, que ela estava. Perdi-me dela ao pé de um banco. Já dei com o sítio onde nos separamos, mas não achei vestígio algum dela. Vou novamente procurá-la começando junto ao baluarte.

       - Para que lado corria a multidão?

       - Na direcção dos edifícios novos, para a Rua da Madalena.

       - Então deve ser para este lado?

       - Sem dúvida, e também foi para aí que primeiro procurei, mas havia redemoinhos terríveis. É verdade que as ondas caminhavam para ali, porém uma pobre mulher, com a cabeça perdida, nem sabe para onde vai e procura fugir em qualquer direcção.

       - Não é muito provável que ela lutasse com a corrente; eu vou fazer as minhas buscas para a parte das ruas; venha comigo, e talvez estando nós juntos, encontraremos...

       - De quem anda em busca? Será de algum filho? – perguntou Filipe com timidez.

       - Não, senhor, é de um rapaz que eu havia quase adoptado.

       - E deixou que ele viesse só?

       - Oh! Era já quase um homem: tinha dezoito para dezenove anos. Era senhor das suas acções, quis vir, não pude opor-me. E demais, bem longe estavam todos de prever tão horrível catástrofe!...  Repare que a sua vela vai-se apagando...

       - É verdade.

       - Venha comigo, emprestar-lhe-ei a minha.

       - Muito obrigado por tanta bondade, mas receio incomodá-lo.

       - Oh! Não receie tal, também eu preciso procurar por minha conta. O pobre rapaz geralmente recolhia-se cedo - continuou a dizer o velho, encaminhando-se para as ruas - porém esta noite tive como um pressentimento do que sucedeu. Quis esperar por ele; eram onze horas, quando minha mulher soube por uma vizinha as desgraças ocorridas nesta função. Ainda me demorei mais duas horas à espera para ver se ele voltava; até que por fim vendo que não vinha, assentei que seria uma acção indigna de mim ir-me deitar sem diligenciar saber notícias dele.

       - Então, pelo que vejo, vamos para ao pé das casas? - perguntou o mancebo.

       - Sim, é provável; como o senhor disse, a multidão encaminhava-se para este lado, e decerto para aqui se precipitou. Foi para aqui, sem dúvida, que o infeliz rapaz correu! Era um provinciano ignorante não somente dos usos, mas também das ruas da capital. Era talvez a primeira vez que punha o pé na Praça de Luís XV.

       - E minha irmã, coitada, também era da província.

       - Que horrível espectáculo! - disse o velho desviando a vista de um grupo de cadáveres enlaçados.

       - Todavia, é por aqui que devemos procurar – disse o mancebo, aproximando afoitamente a lanterna do montão de mortos.

       - Oh! Não me é possível olhar sem me arrepiar; porque sou um homem fraco nestes casos, a vista da destruição causa-me um horror que não posso vencer.

       - Também eu sentia igual horror, mas esta noite bastou para me curar. Olhe! Aqui está um mancebo de dezesseis para dezoito anos; morreu abafado, porque não lhe vejo feridas. Será este o que procura?

       O velho fez um esforço para superar a sua repugnância e chegou a lanterna.

       - Nada, não senhor - disse ele; - o meu é mais novo; tem cabelo preto e rosto pálido.

       - Bem pálidos estão eles todos esta noite – replicou Filipe.

       - Oh! Repare - disse o velho - eis que chegamos junto ao Guarda-reposte. Aí estão os vestígios da luta. Sangue sobre as paredes, fragmentos humanos que ficaram agarrados às barras de ferro, farrapos de vestuário pendentes das lanças das grades, e demais a mais, digo-lhe realmente que já não sei onde hei-de pôr os pés.

       - Era aqui, era aqui com toda a certeza – murmurou Filipe.

       - Tanto padecimento!

       - Ah! Meu Deus!

       - O que é?

       - Um trapo branco que aqui está debaixo destes cadáveres! Minha irmã tinha um vestido branco. Peço-lhe, senhor, que me empreste a sua lanterna.

       Efectivamente, Filipe tinha descoberto e agarrado um bocado de fazenda branca. Largou-o porque só tinha uma das mãos desembaraçadas para pegar na luz.

       - É um bocado de vestido de mulher que um mancebo tem agarrado na mão - exclamou ele - e é de um vestido igual ao de Andreia. Oh! Andreia! Andreia!

       E o mancebo entrou a soluçar desesperadamente.

       O ancião, ao aproximar-se, bradou:

       - É ele!

       Esta exclamação chamou a atenção do mancebo.

       - Gilberto!... - gritou agora também Filipe.

       - Conhece Gilberto, senhor?

       - Pois era Gilberto que procurava?

       Estas duas perguntas cruzaram-se simultaneamente.

       O velho pegou na mão de Gilberto, a qual estava gelada.

       Filipe abriu o colete do mancebo, afastou a camisa, e apalpou-lhe o coração.

       - Pobre Gilberto - disse ele.

       - Meu querido filho! - suspirou o ancião.

       - Respira ainda! Vive... Afirmo-lhe que vive! – gritou Filipe.

       - Oh!... Afirma isso?

       - Certamente, porque o coração ainda palpita.

       - É verdade! - respondeu o velho. - Socorro! Socorro! Para aquele lado está um cirurgião.

       - Será melhor acudirmos-lhe nós, senhor, porque ainda há pouco pedi-lhe socorro e negou-mo.

       - Pois quer queira, quer não, há-de curar o meu filho! - exclamou o velho com desespero. - Hei-de obrigá-lo. Ajude-me, senhor, ajude-me a levar Gilberto até ao pé dele.

       - Só me resta um braço - disse Filipe - porém está às suas ordens.

       - E eu, apesar de velho, farei da fraqueza força! Vamos!

       O ancião pegou em Gilberto pelos ombros, o mancebo agarrou-lhe pelos pés com o braço direito, e assim caminharam até ao grupo onde o operador continuava a presidir.

       - Socorro! Socorro! - gritou o velho.

       - A gente do povo primeiro! A gente do povo! – respondeu o cirurgião fiel às suas máximas, e certo de que todas as vezes que assim respondia excitava um murmúrio de admiração no grupo que o rodeava.

       - É um homem do povo que eu trago aqui - disse o velho com vivacidade, e começando já a partilhar da admiração geral que aquele absolutismo do jovem cirurgião causava a todos que o ouviam.

       - Pois bem, então depois das mulheres - disse o cirurgião; - os homens podem melhor suportar a dor porque têm mais força do que as mulheres.

       - Uma simples sangria, senhor - disse o velho – uma simples sangria bastará.

       - Ah! É o senhor outra vez, meu fidalgo? - disse o cirurgião, avistando Filipe primeiro do que o velho.

       Filipe nada respondeu. O velho pensou que aquelas palavras lhe eram dirigidas.

       - Não sou fidalgo - disse ele - sou um homem do povo; chamo-me João Jacques Rousseau.

       O médico deu um grito de admiração, e logo fazendo um gesto imperioso, disse:

       - Afastem-se, deixem passar o homem da natureza! Aquele que emancipou a humanidade! Dêem lugar ao cidadão de Genebra!

       - Obrigado, senhor - disse Rousseau - muito obrigado.

       - Sucedeu-lhe alguma desgraça, senhor? – perguntou o jovem médico.

       - Não a mim, mas sim a este pobre rapaz; veja!

       - Ah! O senhor também - exclamou o médico – o senhor também representa, assim como eu, a causa da humanidade?!

       Rousseau, assaz comovido por tão inesperado triunfo, apenas pôde balbuciar algumas palavras quase ininteligíveis.

       Filipe, cheio de assombro por se achar cara a cara com o filósofo que tanto admirava, conservou-se afastado dele.

       Ajudaram Rousseau a depositar Gilberto, ainda desmaiado, sobre a mesa.

       Foi então que Rousseau examinou o indivíduo a quem pedira socorro. Era um mancebo da idade de Gilberto com pouca diferença, porém não tinha feição alguma que indicasse a mocidade. O seu rosto macilento era enrugado como o de um velho, as pálpebras descaídas encobriam olhos de serpente, e tinha a boca torta como a de um epiléptico durante os acessos.

       Tinha as mangas arregaçadas até ao cotovelo, os braços sujos de sangue; e assim, cercado de fragmentos de corpos humanos, mais parecia um carrasco cheio de entusiasmo no exercício do seu emprego, do que um médico desempenhando a sua triste e santa missão.

       Contudo o nome de Rousseau teve sobre ele tal influência que por alguns instantes esqueceu a costumada brutalidade; levantou com cuidado a manga da camisa de Gilberto, comprimiu o braço com uma atadura, e picou a veia.

       O sangue, a princípio, correu às pingas; mas passados alguns segundos começou a esguichar com força.

       - Vamos, vamos, sempre escapará - disse o operador; - mas há-de ser preciso muito cuidado, o peito ficou muito maltratado.

       - Só me resta agradecer-lhe, senhor - disse Rousseau - e devo louvá-lo, não pela exclusão que faz em favor dos pobres, mas sim pela dedicação que mostra em favor deles. Todos os homens são irmãos.

       - Mesmo os nobres, mesmo os aristocratas, mesmo os ricos? - perguntou o cirurgião, brilhando-lhe os olhos penetrantes por entre as pesadas pálpebras.

       - Mesmo os nobres, mesmo os aristocratas, mesmo os ricos desde o momento que eles sofrem – respondeu Rousseau.

       - Perdoe-me, senhor - disse o operador; - porém eu nasci em Baudry, ao pé de Neuchâtel; sou suíço como o senhor, e por conseqüência algum tanto democrata.

       - É meu patrício! - exclamou Rousseau; - é da Suíça! Faça favor de dizer-me o seu nome, senhor, o seu nome?

       - É um nome obscuro, senhor, é o nome de um homem modesto, que vai dedicando a vida ao estudo, até que possa dedicá-la um dia como o senhor à felicidade do género humano: chamo-me João Paulo Marat.

       - Obrigado, Sr. Marat - disse Rousseau – porém peço-lhe que ao passo que ensina ao povo quais são os seus direitos, não o excite à vingança, porque se ele um dia quiser vingar-se, pode ser que o senhor mesmo estremeça à vista das represálias.

       Marat sorriu-se com um gesto horrível.

       - Ah! - disse ele - se esse dia chegasse em vida minha, se me fosse dada a felicidade de ver esse dia...

       Rousseau ouvindo estas palavras, e atemorizado pelo acento com que haviam sido proferidas, como um viajante se assusta ao ouvir os bramidos de longínqua trovoada, tomou Gilberto nos braços e procurou levá-lo consigo.

       - São precisos dois homens aqui para ajudar o Sr. Rousseau, dois homens do povo - disse o cirurgião.

       - Nós! Nós! - gritaram logo umas dez vozes.

       A Rousseau só lhe restava escolher; entregou o rapaz a dois robustos moços de fretes, que lhe pegaram levando-o em braços.

       Quando ia retirar-se, passou próximo a Filipe.

       - Aqui está, senhor - disse ele - eu já não careço da lanterna; tome-a.

       - Obrigado, senhor, obrigado - disse Filipe.

       Pegou na lanterna, e enquanto Rousseau tornava para a Rua Platrière, prosseguiu ele na sua busca.

       - Pobre mancebo! - murmurou Rousseau quando ao voltar a cabeça o viu desaparecer pelas ruas entulhadas.

       E continuou o seu caminho, estremecendo, porque acima daquele campo entulhado ouvia-se vibrar continuamente a voz estridente do cirurgião que gritava:

       - A gente do povo! Só a gente do povo! Mal hajam os nobres, os ricos e os aristocratas!

 

A VOLTA

       Enquanto todas aquelas catástrofes iam sucedendo, umas após outras, o senhor de Taverney escapara, como por milagre, a todos os perigos.

       Era ele incapaz de desenvolver qualquer resistência física em oposição àquela força devoradora que destruía quanto encontrava, porém tinha conseguido com tranqüilidade e destreza conservar-se no centro de um grupo que fugia para a parte da Rua da Madalena.

       Este grupo ia deixando sobre os lados uma comprida enfiada de mortos e feridos, que ficavam pisados de encontro aos parapeitos da praça, ou despedaçados pelos ângulos do palácio do Guarda-reposte, porém o centro tinha conseguido, apesar de dizimado, sair do sítio do perigo.

       Este montão de homens e de mulheres espalhou-se logo pelo bulevar, respirando sofregamente e dando gritos de alegria.

       O senhor de Taverney achou-se então, assim como todos os que o cercavam, inteiramente salvo.

       O que nós vamos dizer seria custoso de acreditar, se não tivéssemos já há muito desenhado tão francamente o carácter do barão. O senhor de Taverney, Deus lhe perdoe! durante tão espantosa carreira, não cuidara senão de si próprio unicamente.

       O barão, além de não ser muito dado à ternura, era homem de acção, e nas grandes crises da vida, os homens desta compleição põem sempre em prática o adágio de César: Age quod agis.

       Não diremos pois que o senhor de Taverney se mostrara egoísta; mas admitiremos que fora distraído.

       Porém, logo que se viu sobre o terreno dos bulevares, com todos os movimentos bem desembaraçados, e tendo escapado da morte para tornar à vida, o barão, descansado agora relativamente a si mesmo, deu um imenso grito de contentamento, que foi logo seguido de outro.

       Esse outro, mais fraco do que o primeiro, era todavia um grito de dor.

       - Minha filha! - disse ele - minha filha!

       E permaneceu imóvel, com os braços caídos e os olhos desvairados, procurando na lembrança as causas daquela separação.

       - Pobre homem! - murmuraram algumas mulheres mostrando-se condoídas.

       Logo se formou um círculo à roda do barão, de gente pronta a lastimá-lo, e ainda mais a interrogá-lo.

       O senhor de Taverney não tinha instinto nenhum popular. Achou-se incomodado no meio daquele círculo de gente compassiva; procurou romper para fora, saiu efectivamente, e devemos dizer em seu louvor que deu alguns passos para o lado da praça.

       Mas os passos que deu eram causados pelo impulso irreflectido do amor paternal, que nunca chega a apagar-se completamente no coração do homem. O raciocínio veio imediatamente em auxílio do barão, e fez com que ele parasse logo.

       Seguiremos, se quiserem, o progresso da sua dialéctica.

       Em primeiro lugar, a impossibilidade de tornar a pôr pé na Praça de Luís XV. Além da enchente e da matança, as ondas do povo afluíam da praça; e tão absurdo seria procurar rompê-las como intentar subir a nado a queda do Reno em Schaffouse.

       E demais a mais, ainda mesmo que um poder sobrenatural o tivesse colocado novamente entre a multidão, como encontraria ele entre cem mil mulheres a mulher que procurava? Não seria expor-se novamente, e sem proveito, à morte a que milagrosamente escapara?

       Havia também a esperança, esse benéfico clarão cujos raios brilham nas trevas da noite mais tenebrosa.

       Não estava Andreia junto de Filipe, agarrada ao braço dele, e assim colocada debaixo da protecção de um homem e de um irmão?

       Que ele, barão, velho, fraco e trémulo, tivesse sido arrastado, nada havia mais natural; porém Filipe, de gênio ardente, cheio de vida e vigor; Filipe, que tinha braços de ferro, era responsável por sua irmã; Filipe decerto tinha lutado e devia ter ficado vencedor.

       O barão, como todos os egoístas, dava a Filipe todas as qualidades que o egoísmo rejeita para si próprio, mas que procura encontrar nos outros. Para o egoísta, quem não é forte, generoso e valente, é egoísta, isto é, um rival, um adversário e um inimigo; rouba-lhe os benefícios que ele se julga com direito a tirar da sociedade.

       O senhor de Taverney, depois de sossegado desta forma o seu espírito pela força do próprio raciocínio, concluiu em definitivo que Filipe naturalmente salvara a irmã; que talvez gastasse mais algum tempo em busca do pai para o salvar também, mas que provavelmente, ou com certeza mesmo, se encaminhara já para a Rua de Coq-Héron, para conduzir Andreia, a quem todo aquele tumulto devia ter atordoado algum tanto.

       Deu pois meia volta, e descendo pela Rua do Convento das Freiras Capuchas, atravessou a Praça das Conquistas, ou de Luís, o Grande, actualmente denominada Praça das Vitórias.

       Mas apenas o barão teria chegado a distância de vinte passos do seu palácio, Nicola, que estava de sentinela à porta da rua e divertindo-se a tagarelar com algumas senhoras vizinhas, bradou:

       - E o Sr. Filipe, e a Srª. Andreia, onde ficaram?

       Pois já toda a cidade de Paris sabia da catástrofe, que os primeiros fugitivos haviam contado com todas as exagerações que o terror inspira.

       - Oh! Meu Deus! - exclamou o barão algum tanto comovido - pois não voltaram ainda, Nicola?

       - Nada, não senhor, ainda não os vimos.

       - Pode ser que fossem obrigados a procurar algum rodeio - replicou o barão, cujo receio ia aumentando na proporção em que via destruídos os cálculos da sua lógica.

       O barão ficou pois na rua à espera também em companhia de Nicola que gemia, e de La Brie que erguia os braços ao céu.

       - Ah! Acolá vem o Sr. Filipe! - gritou Nicola com um gesto de terror impossível de descrever, porque Filipe vinha só.

       E com efeito, apesar da escuridão da noite, divisava-se que vinha correndo esbaforido e desesperado.

       - Minha irmã já cá está? - perguntou ele de longe, assim que avistou o grupo que tomava o portão do palácio.

       - Oh! Meu Deus! - disse o barão empalidecendo, e prestes a cair.

       - Andreia! Andreia! - gritou o mancebo ao aproximar-se; - onde está Andreia?

       - Nós ainda não a vimos; não está aqui, Sr. Filipe. Oh! Meu Deus! A minha querida menina! - gritou Nicola soluçando.

       - E tu voltaste aqui sem ela? - disse o barão, mostrando um furor que bem injusto era em vista dos segredos da sua lógica, que o leitor já sabe.

       Filipe, sem responder, chegou-se a ele, e mostrou-lhe o rosto ensangüentado e o braço partido, que lhe pendia ao lado como um ramo seco dependurado da árvore.

       - Ai de mim! Ai de mim! - suspirou o velho - Andreia, minha pobre Andreia!

       Em seguida deixou-se cair sobre um banco de pedra que havia junto do portão.

       - Hei-de achá-la morta ou viva! - gritou Filipe com gesto sombrio.

       E logo partiu correndo com actividade febril; e assim mesmo a correr, ia com o braço direito entalando o esquerdo na abertura da véstia. Aquele braço inútil incomodá-lo-ia no meio do apertão para onde voltava, e se naquele momento dispusesse de um machado, era capaz de o ter decepado.

       Foi então que ele encontrou no fatal campo dos mortos, que já visitámos, Rousseau, Gilberto, e o operador ominoso e tinto de sangue, que mais semelhava o demônio infernal que havia presidido à matança do que o gênio benfazejo que vinha socorrer desgraçados.

       Filipe vagueou durante uma parte da noite na Praça de Luís XV, sem poder afastar-se dos muros do Guarda-reposte, em cuja proximidade Gilberto fora encontrado, e lançando continuadamente a vista sobre o pedaço de cassa branca que o mancebo havia conservado amarrotada na mão.

       Finalmente, quando já para o lado do oriente começava a raiar o dia, Filipe, exausto de forças, sustentando-se a custo para não cair também no meio de todos aqueles cadáveres menos pálidos ainda do que ele; Filipe, pois, foi tomado de uma estranha vertigem, e esperando, como havia esperado seu pai, que Andreia tivesse voltado, ou tivesse sido levada a casa, encaminhou-se novamente para a Rua de Coq-Héron.

       Ainda de longe avistou ao portão o mesmo grupo que lá deixara.

       Logo ficou entendendo que Andreia não tinha aparecido, e parou.

       O barão já o havia conhecido.

       - Então que notícias há? - gritou ele com a maior inquietação.

       - Pois quê! Minha irmã ainda não voltou? – perguntou Filipe.

       - Ai de nós! - exclamaram ao mesmo tempo o barão, Nicola e La Brie.

       - Nada? Nem notícias? Nem informações? Nem sequer esperanças?

       - Nada!

       Filipe atirou consigo ao banco de pedra do portão; o barão soltou um grito de desespero.

       Neste mesmo instante uma carruagem de aluguel apontou ao cimo da rua, foi-se aproximando vagarosamente, e parou em frente do palácio.

       Via-se pelo postigo uma cabeça de mulher, descaída sobre o ombro, e parecendo desmaiada. Filipe, que esta vista sobressaltara, ergueu-se e correu à carruagem.

       A portinhola abriu-se, e apeou-se um homem trazendo nos braços Andreia sem sentidos.

       - Morta! Morta! É assim que no-la trazem? – exclamou Filipe pondo-se de joelhos.

       - Morta! - exclamou o barão. - Oh! Senhor, estará realmente morta?...

       - Penso que não, meus senhores - respondeu pausadamente o homem que acompanhava Andreia - e segundo espero o incómodo da senhora de Taverney não passará de um desmaio.

       - Oh! O feiticeiro! O feiticeiro! - gritou o barão.

       - O Sr. Barão de Bálsamo! - disse Filipe.

       - Eu mesmo, senhor barão, e que por muito feliz me dou em ter divisado a senhora de Taverney no meio de tão horrível refrega.

       - Em que sítio foi, senhor? - perguntou Filipe.

       - Próximo ao Guarda-reposte.

       - É verdade - disse Filipe.

       Mas de repente, passando da expressão de alegria à desconfiança, acrescentou:

       - Trouxe-a tão tarde, barão!

       - Senhor, - respondeu Bálsamo sem se admirar - facilmente avaliará os embaraços em que me vi. Não sabia a morada de sua irmã, e tinha dado ordens aos meus criados que a levassem para a casa da Srª. Marquesa de Savigny, pessoa da minha amizade e que assiste na proximidade das reais cavalariças. Foi então que este honrado moço, que aqui vê, e que vinha ajudando-me a amparar a senhora... Venha, Comtois.

       Bálsamo a estas palavras fez um sinal, e logo um homem vestido com a libré da casa real saiu da carruagem.

       - Então - prosseguiu Bálsamo - este honrado moço, que serve nas reais cavalariças, conheceu a menina, lembrando-se havê-la conduzido de carruagem uma noite de volta da Muette para o seu palácio. A maravilhosa formosura desta senhora deu causa a ele se lembrar dela. Pedi-lhe que me acompanhasse na carruagem, e tenho pois a honra de restituir, com todo o respeito que lhe é devido, a Srª. Andreia de Taverney, a qual se acha muito menos incomodada do que julga.

       E concluiu estas palavras entregando, com a mais atenciosa delicadeza, a jovem senhora entre os braços do pai e de Nicola.

       O barão, pela primeira vez na sua vida, sentiu uma lágrima umedecer-lhe as pálpebras e admirando-se provavelmente ele próprio de tanta ternura, deixou-a correr pela enrugada face.

       Filipe estendeu a Bálsamo a mão que lhe restava disponível.

       - Senhor - lhe disse ele - sabe a minha morada, conhece o meu nome. Peço-lhe que me proporcione ocasião de mostrar-me grato pelo serviço que acaba de nos prestar.

       - Não foi mais do que o cumprimento de um dever, senhor - replicou Bálsamo; - esquece de que lhe era devedor da hospitalidade que me deu?

       E cumprimentando-os em seguida, deu alguns passos para se afastar, sem querer aceitar o oferecimento do barão que lhe pedia quisesse entrar em sua casa.

       Mas voltando logo, disse:

       - Perdão, ia-me esquecendo ensinar-lhe com exactidão a morada da Srª. Marquesa de Savigny; o seu palácio é na Rua de Saint-Honoré, próximo ao convento dos frades Bernardos. Digo-lhe isso porque pode ser que a menina de Taverney julgue dever fazer-lhe uma visita.

       Havia nestas explicações, nesta narração tão circunstanciada, nesta acumulação de provas, uma delicadeza que muito penhorou Filipe e o próprio barão.

       - Senhor - disse o barão - minha filha é-lhe devedora da vida.

       - Bem o sei, senhor, e com orgulho e prazer confesso que assim é - respondeu Bálsamo.

       E desta vez, acompanhado de Comtois, que rejeitou a bolsa que Filipe lhe oferecia, subiu para a carruagem e desapareceu.

       Quase no mesmo instante, e como se a partida de Bálsamo tivesse feito cessar o desmaio da jovem senhora, Andreia abriu os olhos.

       Todavia, permaneceu ainda por alguns instantes muda, atordoada, e com os olhos espantados.

       - Meu Deus! - murmurou Filipe. - Ficaria acaso incompleto o favor que nos dispensou Deus restituindo-no-la? Terá endoidecido?

       Andreia pareceu entender estas palavras, e abanou a cabeça. Contudo, conservava-se ainda calada, e parecia entregue a uma espécie de êxtase.

       Estava de pé, e com um dos braços estendidos na direcção da rua por onde Bálsamo desaparecera.

       - Vamos, vamos - disse o barão - é preciso pôr termo a tudo isto. Filipe, ajuda tua irmã a recolher-se imediatamente em casa.

       O mancebo amparou Andreia com o braço que tinha livre. A donzela encostou-se a Nicola; e caminhando como uma pessoa que estivesse adormecida, entrou para o palácio e assim chegou ao seu pavilhão.

       Foi lá somente que lhe tornou a fala.

       - Filipe! Meu pai! - disse ela.

       - Conhece-nos! Conhece-nos! - gritou Filipe.

       - Conheço-os, não há dúvida. Mas, digam-me, o que foi que sucedeu?

       E Andreia tornou a fechar os olhos; desta vez não era com um desmaio, mas para se entregar a um sono tranqüilo e sereno.

       Nicola ficou sozinha com Andreia, a quem despiu e meteu na cama.

       Filipe, ao entrar no seu quarto, encontrou um médico que o previdente La Brie chamara à pressa, apenas cessara a inquietação em que todos estavam por causa de Andreia.

       O doutor examinou o braço de Filipe. Não estava partido, mas somente deslocado. Por meio de uma compressão, habilmente combinada, tornou a colocar o osso da espádua na articulação de onde havia saído; depois pensou-lhe o ferimento da testa, que não era grave.

       Feito isto, Filipe, que ainda não estava descansado a respeito da irmã, levou o médico à cama de Andreia.

       O doutor tomou o pulso à menina, escutou-lhe a respiração e riu-se.

       - Sua irmã está com um sono sossegado e puro como o de uma criança - disse ele. - Deixe-a dormir, cavalheiro, não precisa de outro remédio.

       Quanto ao barão, como se lhe tinham acabado os receios pelo filho e pela filha, havia já muito que dormia.

 

O SENHOR DE JUSSIEU

       Se nos transportarmos outra vez àquela casa da Rua Platrière, onde o senhor de Sartines mandara o seu agente, lá encontraremos, na manhã de 31 de Maio, Gilberto estendido sobre um colchão no próprio quarto de Teresa, e Rousseau, acompanhado de vários vizinhos, contemplando esta amostra lúgubre do grande acontecimento que ainda fazia arrepiar a todos em Paris.

       Gilberto, pálido e ensangüentado, abrira os olhos, e apenas tornara a si, tinha procurado erguer-se para ver o que se passava, como se ainda estivesse na Praça de Luís XV.

       As suas feições indicaram primeiro inquietação profunda, depois grande alegria, e finalmente uma nuvem de tristeza veio novamente escurecer o contentamento.

       - Sente muitas dores, meu amigo? - perguntou Rousseau pegando-lhe na mão com cuidado.

       - Oh! Quem foi que me salvou? - perguntou Gilberto; - quem se lembrou de mim, pobre ente abandonado neste mundo?

       - O que o salvou, meu filho, foi não ter morrido ainda; quem pensou em si foi Aquele que se lembra sempre de todos.

       - Todavia - resmungou Teresa - foi grande imprudência ir meter-se em semelhante apertão.

       - É verdade, é verdade, foi muito imprudente – repetiram os vizinhos em coro.

       - Senhores! - interrompeu Rousseau - toda a vez que o perigo não seja patente, não pode haver imprudência, e não sei que haja perigo algum patente em ir ver um fogo de artifício.   Quando num caso destes sucede uma desgraça, deve considerar-se como uma infelicidade, não como imprudência. A nós, que estamos aqui falando, podia-nos ter acontecido o mesmo.

       Gilberto olhou em volta de si, e vendo-se no quarto de Rousseau, quis falar.

       Porém, com os esforços que fez, afluiu-lhe o sangue à boca e ao nariz, e perdeu os sentidos.

       Rousseau, que já tinha sido avisado pelo médico da Praça de Luís XV, não se assustou; esperava este acontecimento, e por isso fizera estender o doente sobre um simples colchão sem lençóis.

       - Agora - disse ele para Teresa - podemos meter este pobre rapaz na cama.

       - Onde?

       - Aqui, na minha cama.

       Gilberto tinha ouvido estas palavras; não pôde responder logo por se achar muito debilitado, mas fez um esforço violento e abrindo novamente os olhos, disse com muito custo:

       - Não, não; lá em cima!

       - Quer voltar para o seu quarto?

       - Sim, sim! Peço-lhe esse favor.

       E foi com os olhos mais do que com a língua que ele formulou este desejo que lhe era ditado por uma lembrança que podia mais nele do que o sofrimento e que parecia, em seu espírito, sobreviver ainda à razão.

       Rousseau, dotado de uma sensibilidade exagerada, logo a entendeu, e acrescentou:

       - Muito bem, meu filho, levá-lo-emos lá para cima. Receia incomodar-nos - disse ele voltando-se para Teresa, que logo aprovou esta deliberação.

       Resolveu-se por conseqüência que Gilberto fosse imediatamente conduzido para a água-furtada, conforme solicitava.

       Pelo meio-dia, foi Rousseau para ao pé do colchão do seu discípulo passar o tempo que habitualmente gastava em formar colecções de plantas favoritas; o mancebo, que já se achava menos incomodado, relatou-lhe, em voz mui fraca, os pormenores da catástrofe.

       Não contou por que motivo fora ver o fogo de artifício; era a simples curiosidade, dizia ele, que o tinha levado à Praça de Luís XV.

       Era preciso que Rousseau fosse feiticeiro para desconfiar que houvesse algum outro motivo.

       Não mostrou pois a Gilberto admiração alguma, deu-se por satisfeito com as perguntas que já lhe dirigira, e unicamente lhe recomendou que tivesse muita paciência. Não lhe falou tão-pouco no bocado de fazenda do vestido que lhe fora encontrado na mão, e de que Filipe tivera o cuidado de se apossar.

       Estavam entregues a esta conversa que para ambos eles tinha tanto atractivo, quando sentiram os passos de Teresa no patamar da escada.

       - Jacques! - disse ela - Jacques!

       - O que é? Que temos de novo?

       - É algum príncipe que vem também visitar-me a mim - disse Gilberto sorrindo-se.

       - Jacques! - gritou Teresa, continuando a subir e a chamar.

       - Então que é, diz? Que me querem?

       Teresa entrou.

       - É o senhor de Jussieu que está lá em baixo - disse ela - e que tendo sabido por alguém que também estiveste no lugar do desastre, vem saber se tinhas ficado ferido.

       - Que bom homem que é este Jussieu! -disse Rousseau; - tem as excelentes qualidades que possuem todos aqueles que por gosto ou necessidade estão em contacto com a natureza, fonte de onde dimana todo o bem! Fique sossegado, não se mexa daí, Gilberto, que eu já volto.

       - Vá descansado - disse o mancebo.

       Rousseau saiu.

       Porém, apenas ele tinha virado costas, Gilberto, levantando-se conforme pôde, foi-se arrastando até à trapeira, de onde se avistava a janela de Andreia.

       Não era fácil empresa para um mancebo sem forças, e ainda quase sem idéias, trepar-se a um mocho, levantar o caixilho da trapeira, e escorar-se de encontro à aresta do telhado. Gilberto contudo conseguiu efectuar a sua tentativa, porém mal havia chegado onde desejava, turvou-se-lhe a vista, tremeram-lhe as mãos, veio-lhe o sangue à boca, e caiu desamparado.

       Neste momento abria-se novamente a porta da água-furtada, e entrou João Jacques, acompanhando o senhor de Jussieu, a quem vinha fazendo imensos cumprimentos.

       - Tome sentido, meu douto amigo, baixe a cabeça aqui... A porta não é alta - dizia Rousseau - e também não admira, porque não é num palácio que vamos entrar.

       - Agradeço a recomendação, não tem dúvida, tenho bons olhos e valentes pernas - respondeu o sábio botânico.

       - Eis aqui uma visita, meu Gilbertozinho - disse Rousseau virando-se para o lado onde estava a cama. - Ah! Meu Deus! Onde está ele? Querem ver que se levantou, o desgraçado!?

       E Rousseau, vendo o caixilho aberto, ia encetar uma repreensão paternal.

       Gilberto ergueu-se a custo e com a voz quase extinta, disse:

       - Precisava tomar ar!

       Não era possível ralhar com ele, que no rosto desfigurado bem se lhe divisava o padecimento.

       - Efectivamente - interrompeu o senhor de Jussieu - está aqui um calor insuportável; vamos, mancebo, dê-me o pulso, que eu também sou médico.

       - E melhor médico que muitos que eu conheço - disse Rousseau - porque sabe curar as doenças da alma tão bem como as do corpo.

       - Tanta honra... - disse Gilberto com voz sumida, procurando esconder-se na miserável cama.

       - O senhor de Jussieu insistiu em querer vê-lo – disse Rousseau - e aceitei o oferecimento. Vamos a saber, meu caro doutor, que diz deste peito?

       O hábil anatomista apalpou os ossos, e examinou a cavidade escutando atentamente.

       - O essencial não sofreu lesão alguma - disse ele. - Mas, diga-me, quem foi que o abraçou com tanta força?

       - Oh! Senhor, foi a morte! - respondeu Gilberto.

       Rousseau olhou para o mancebo com admiração.

       - Oh! Está pisado, meu rapaz; mas com alguns tónicos, ar e muito descanso, em breve melhorará.

       - Nada de descanso... Não posso perder tempo – disse Gilberto olhando para Rousseau.

       - Que quer ele dizer? - perguntou o senhor de Jussieu.

       - Gilberto é um trabalhador incansável, meu caro senhor - respondeu Rousseau.

       - Sim, mas estes dias não são de trabalho.

       - Para viver - disse Gilberto - todos os dias são dias de trabalho, porque todos os dias se vive.

       - Oh! Não é provável que dê muito consumo à comida, e a despesa com tisanas não há-de ser avultada, e portanto pode por este lado estar descansado.

       - Por pouco que custem, senhor - disse Gilberto – eu não aceito esmolas.

       - Está doido - disse Rousseau - e exagera tudo. Digo-lhe que em tudo seguirá as determinações deste senhor, e que ele há-de tratá-lo ou queira ou não. Acreditar-me-á - continuou ele dirigindo-se para o senhor de Jussieu - se lhe disser que me tinha pedido que não mandasse chamar médico?

       - Por quê?

       - Porque é soberbo, e não queria que eu despendesse dinheiro.

       - Ninguém, por mais soberbo que seja, pode fazer impossíveis - replicou o senhor de Jussieu, contemplando com o maior interesse a fisionomia fina e expressiva de Gilberto. - Diga-me se acaso se acha com força para trabalhar, o senhor que não pôde chegar àquela trapeira, sem cair no caminho?

       - É verdade - murmurou Gilberto - ainda estou fraco, bem o sinto.

       - Pois bem! Então descanse, e moralmente mais ainda do que fisicamente...  É hóspede de um homem a quem todos, além dos seus hóspedes, muito devem.

       Rousseau, em extremo penhorado pela delicadeza e civilidade do fidalgo, pegou-lhe na mão e apertou-a afectuosamente.

       - E demais - continuou o senhor de Jussieu – vai ocupar-se de si a solicitude paternal do rei e dos príncipes.

       - De mim?! - exclamou Gilberto.

       - Sim, de si, pobre vítima da noite de ontem. O senhor delfim, apenas lhe levaram a notícia, deu gritos assustadores. A senhora delfina, que estava a partir para Marly, fica no Trianon, para poder mais facilmente fazer prestar socorros aos desgraçados.

       - Ah! Deveras? - disse Rousseau.

       - Sim, meu caro filósofo, e o assunto de todas as conversas é a carta que o delfim escreveu ao senhor de Sartines.

       - Não soube de tal.

       - É de uma ingenuidade que a todos arrebata. O delfim tem uma mesada de dois mil escudos. Esta manhã, vendo que lhe não traziam a mesada, o príncipe passeava pelo quarto como fora de si; perguntou umas poucas de vezes pelo tesoureiro, e quando este lhe trouxe por fim o dinheiro, o príncipe enviou-o imediatamente para Paris, acompanhado de um bilhete encantador, dirigido ao senhor de Sartines, que foi quem há pouco mo mostrou.

       - Ah! Esteve hoje com o senhor de Sartines? – disse Rousseau mostrando algum receio, ou antes desconfiança.

       - É verdade, deixei-o há pouco - replicou o senhor de Jussieu com algum embaraço; - precisava pedir-lhe umas sementes; de forma que - prosseguiu ele rapidamente - a senhora delfina fica em Versalhes para tratar dos seus doentes e dos seus feridos.

       - Dos seus doentes e dos seus feridos? - disse Rousseau.

       - Sim, porque o Sr. Gilberto não foi o único que padeceu, o povo desta vez pagou apenas um tributo parcial à catástrofe; dizem-me que entre os feridos há muitas pessoas da nobreza.

       Gilberto escutava-o com uma ansiedade e avidez inexprimíveis; parecia-lhe a cada instante que da boca do ilustre naturalista ia sair o nome de Andreia.

       O senhor de Jussieu levantou-se.

       - Pelo que vejo está concluída a conferência? – perguntou Rousseau.

       - E digo-lhe mais, a nossa ciência já nada tem que fazer com este doente; ar, exercício moderado... Campo... É verdade... Lá me ia esquecendo...

       - O quê?

       - Tenciono fazer, no próximo domingo, um reconhecimento botânico na direcção dos bosques de Marly; desejava saber se o meu ilustre colega estaria disposto a acompanhar-me nesse dia?

       - Oh! - replicou Rousseau - chame-me unicamente seu indigno admirador.

       - Será também óptima ocasião para o nosso ferido dar um passeio... Levá-lo-á consigo.

       - Tão longe?

       - É a dois passos daqui; demais, vou na minha carruagem até Bougival, e levo-os comigo... Subiremos a Luciennes pelo caminho da Princesa, e de lá andaremos até Marly. Os botânicos, como sabe, param a cada instante, e o nosso ferido levará os banquinhos... Nós dois ocupar-nos-emos em herborizar, e ele em gozar.

       - Que homem tão amável que é, meu douto amigo! - disse Rousseau.

       - Nada de agradecimentos, isto tudo é interesse meu; sei que tem pronta uma grande obra a respeito dos musgos; eu ainda estou muito atrasado neste ramo, será meu guia.

       - Oh! - exclamou Rousseau, mostrando sem querer o contentamento que sentia.

       - Quando chegarmos ao nosso destino – continuou o botânico - teremos um almoço simples, à sombra, e rodeados de flores magníficas; então ficamos justos?

       - Está ajustado...

       - Domingo pois terá lugar a nossa linda digressão!

       - Que deliciosa há-de ser! Está-me parecendo que tenho quinze anos; já de antemão estou gozando da satisfação que hei-de sentir - respondeu Rousseau com infantil alegria.

       - E o meu amiguinho, trate de ir enrijando as pernas daqui até lá.

       Gilberto balbuciou uma espécie de agradecimento que o senhor de Jussieu não ouviu; os dois botânicos saíram, deixando Gilberto entregue aos seus pensamentos, e mais que tudo aos seus receios.

 

TORNA À VIDA

       Entretanto, enquanto Rousseau julgava ter completamente tranqüilizado o seu enfermo, e que Teresa contava a todas as suas vizinhas que, graças às receitas do sábio médico, o senhor de Jussieu, Gilberto estava livre de todo o perigo; durante este período de confiança geral, o mancebo ia correndo para perigo maior que aquele a que estivera exposto, pela sua obstinação e perpétuas meditações.

       Rousseau não podia deixar de nutrir no fundo da alma uma desconfiança solidamente baseada em alguns raciocínios filosóficos.

       Sabendo que Gilberto estava namorado, e tendo-o surpreendido em flagrante delito de rebelião às ordens do médico, concluíra que Gilberto tornaria a cair nos mesmos erros se tivesse demasiada liberdade.

       Rousseau, portanto, como bom pai de família, havia fechado com mais cuidado que nunca o cadeado da água-furtada de Gilberto, permitindo-lhe in petto de ir à janela, mas impedindo-lhe na realidade de sair pela porta.

       Não se pode exprimir a raiva e os projectos que a Gilberto inspirou esta solicitude que mudava a sua água-furtada em prisão.

       Para certos espíritos, o constrangimento é fecundo.

       Gilberto não pensou mais senão em Andreia, na felicidade de a ver e de vigiar, ainda que fosse só de longe, os progressos da sua convalescença.

       Mas Andreia não aparecia nas janelas do palácio. Só Nicola, levando tisanas sobre um prato de porcelana, o senhor de Taverney passeando no pequeno jardim e tomando pitadas com furor, como se lhe despertasse o espírito, era tudo quanto via Gilberto, quando interrogava ardentemente a profundura dos quartos ou a espessura das paredes.

       Entretanto, todas estas circunstâncias o tranqüilizavam um pouco, porque lhe revelavam uma doença, mas não uma morte.

       - Ali - dizia ele consigo - por detrás daquela porta, ou daquela parede, respira, suspira e padece aquela que amo com idolatria; aquela que, mostrando-se, faria correr o suor da minha fronte e tremer os meus membros; a que tem ligada à sua a minha existência, que ela respira por nós ambos.

       E dizendo isto, Gilberto, inclinado para fora da fresta, de modo a fazer crer à curiosa Chon que se precipitaria dali abaixo vinte vezes numa hora, Gilberto, com o seu olhar hábil, media as paredes, os sobrados, o comprimento da casa, e construía um plano exacto na sua imaginação: ali devia dormir o senhor de Taverney, além devia ser a cozinha, acolá o quarto destinado a Filipe, daquele lado o quarto onde dormia Nicola, e finalmente, deste lado, a alcova de Andreia, santuário à porta do qual teria dado parte da sua vida para o deixarem passar um dia de joelhos.

       O santuário, segundo as idéias de Gilberto, era um grande quarto no pavimento térreo, precedido por uma antecâmara, na qual havia uma porta de vidraças, que era do suposto quarto onde dormia Nicola, segundo as combinações de Gilberto.

       - Oh! - dizia consigo o doido, nos seus acessos de invejoso furor - felizes aqueles que andam nos jardins para os quais dão a minha janela e as da escada! Felizes aqueles indiferentes que pisam a areia do chão! Ali, de noite, quando tudo está sossegado, deve-se ouvir gemer e suspirar a menina Andreia.

       Do desejo à execução vai uma grande distância; mas as imaginações ricas fazem desaparecer as distâncias, têm para isso um meio. No impossível acham o real, sabem deitar pontes sobre os rios e aplicar escadas às montanhas.

       Gilberto, nos primeiros dias, não fez mais que desejar.

       Depois reflectiu que esses felizes tão invejados eram simples mortais como ele, dotados de pernas para pisar o chão do jardim, e de braços para abrir as portas. Começou a representar-se-lhe a felicidade que sentiria ao deixar-se escorregar furtivamente nessa casa proibida, e chegar o ouvido a essas cortinas, pelas quais se filtrava o ruído do interior.

       Em Gilberto, desejar era pouco, a execução tornava-se imediata.

       Demais, as forças voltavam-lhe com rapidez. A necessidade é fecunda e rica. Ao fim de três dias, Gilberto, com o auxílio da febre, sentia-se tão forte como nunca.

       Calculou que, tendo-o Rousseau fechado, uma das maiores dificuldades achava-se vencida, e era a de entrar em casa da menina de Taverney pela porta.

       Com efeito, a porta dava para a Rua Coq-Héron; Gilberto, fechado na Rua Platrière, não podia chegar àquela rua, não tinha por isso grande necessidade de abrir a porta do seu quarto.

       Ficavam as janelas.

       A da água-furtada dava a prumo sobre quarenta e oito pés de muro.

       A não estar bêbado ou inteiramente doido, ninguém se atreveria a descer por ali.

       - Oh! Estas portas contudo são grandes invenções – repetia ele consigo atormentando os pulsos - e o Sr. Rousseau, um filósofo, fecha-mas!

       Arrancar o cadeado, era coisa fácil, por certo, mas depois não havia mais esperanças de voltar para a casa hospitaleira.

       Fugir de Luciennes, fugir da Rua Platrière, fugir de Taverney, sempre fugir, era tomar o caminho de não se atrever mais a olhar de cara a cara para uma única criatura, sem recear ouvir uma admoestação de ingratidão ou de leviandade.

       - Não, o Sr. Rousseau nada saberá.

       E agarrado à fresta, Gilberto continuava:

       - Com as minhas pernas e com as minhas mãos, instrumentos naturais do homem livre, poderei agarrar-me às telhas, e seguindo pela goteira, muito estreita é verdade, mas que é direita, e por conseqüência, o caminho mais curto de um ponto ao outro, chegarei, se chegar, à fresta paralela à minha. Ora, essa fresta é a da escada. Se eu não chegar, caio no jardim, isso não faz bulha, saem do palácio, levantam-me, reconhecem-me, morro belo, nobre, poético, compadecem-se de mim; é soberbo! Se chego, como tenho toda a razão de crer, meto-me pela fresta da escada, desço, descalço, todos os andares até ao primeiro, que tem uma janela que dá para o jardim, isto é, a quinze pés do chão. Ali, salto. Ah! Já não tenho força, nem elasticidade! Verdade seja que há um caramanchão para me ajudar... Sim, mas esse caramanchão feito de madeira já carunchosa há-de quebrar-se, cairei, não morto, nobre e poético, mas sujo de cal, esfarrapado, envergonhado e com a aparência de um ladrão de fruta; isto é odioso de pensar. O senhor de Taverney mandará dar-me com um chicote pelo guarda-portão ou puxar as orelhas por La Brie. Não! Tenho aqui vinte barbantes, os quais unidos fazem uma corda; tomo de empréstimo à Srª. Teresa todos os seus cordéis por uma noite, faço-lhes nós, e uma vez chegado à minha bem-aventurada janela do primeiro andar, prendo a corda na pequena varanda e deixo-me escorregar para o jardim.

       Depois de inspeccionada a goteira, desatados os cordéis para serem medidos, tomada a altura com a vista, Gilberto sentiu-se forte e resoluto.

       Torceu todos os barbantes de modo a fazer uma corda sólida de todos eles; experimentou as suas forças suspendendo-se a uma das vigas do tecto, e feliz por ver que no meio dos seus esforços só uma vez lhe viera o sangue à boca, decidiu-se para a expedição nocturna.

       A fim de mais facilmente enganar o Sr. Jacques e Teresa, fingiu-se mais doente e ficou na cama até às duas horas, momento em que, depois do seu jantar, Rousseau saía para passear e só voltava de tarde.

       Gilberto disse que tinha tal sono, que ia dormir na persuasão que só no dia seguinte acordaria.

       Rousseau respondeu que estimava muito isso porque tendo de cear fora, ficava assim mais descansado.

       Separaram-se com estas afirmações respectivas.

       Assim que Rousseau desapareceu, Gilberto foi buscar os seus cordéis e começou de novo a tecê-los, mas desta vez era para valer.

       Examinou ainda a goteira e as telhas; depois conservou-se a espreitar para o jardim até à tarde.

 

VIAGEM AÉREA

       Gilberto estava assim preparado para a sua descensão ao jardim inimigo, era assim que ele tacitamente qualificava a casa de Taverney, e da sua fresta explorava o terreno com a profunda atenção de um hábil estratégico que vai dar uma batalha, quando naquela casa tão silenciosa, tão impassível, se passou uma cena que atraiu a atenção do filósofo.

       Uma pedra saltou por cima do muro do jardim e veio bater em ângulo na parede da casa.

       Gilberto sabia que já não havia efeito sem causa, e portanto como tinha visto o efeito, começou logo a procurar a causa.

       Mas Gilberto, apesar de se debruçar muito, não pôde ver a pessoa que da rua havia atirado a pedra.

       Somente - e logo compreendeu que essa manobra tinha ligação com o acontecimento que acabava de suceder - viu abrir-se com precaução as portas de uma janela do pavimento térreo, e, pela fenda que deixou, aparecer a cabeça de Nicola.

       Gilberto, pressuroso, refugiou-se para dentro do seu quarto, mas sem perder um instante de vista a rapariga.

       - Esta, depois de ter explorado com o olhar todas as janelas, e particularmente as da casa, saiu do seu esconderijo e correu para o jardim como para se aproximar do caramanchão, onde algumas rendas secavam ao sol.

       Era no caminho deste caramanchão que tinha caído a pedra que Nicola e Gilberto não perdiam de vista. Gilberto viu-a empurrar com o pé essa pedra, que naquele momento adquiria tão grande importância, e continuar esse exercício até a levar para junto do caramanchão.

       Ali, Nicola levantou as mãos para desprender as rendas, deixou cair uma que apanhou vagarosamente, e, no acto de a apanhar, apoderou-se da pedra.

       Gilberto não adivinhava coisa alguma ainda; mas vendo Nicola desembrulhar essa pedra como um guloso descasca uma noz, e tirar-lhe uma capa de papel que trazia, compreendeu qual era o grau de importância real que merecia o aerólito.

       Era com efeito nem mais nem menos que um bilhete, que Nicola acabava de achar em torno da pedra.

       A esperta rapariga depressa o abriu, devorou, meteu na algibeira, e então não teve nada mais que examinar nas suas rendas porque estavam enxutas.

       Entretanto, Gilberto abanava a cabeça, dizendo para si, com esse egoísmo cego dos homens que depreciam as mulheres, que Nicola era na realidade uma natureza viciosa, e que ele, Gilberto, tinha dado prova de moral e sã política rompendo de uma vez, e com tanta coragem, todas as suas relações com uma rapariga que recebia bilhetes por cima dos muros.

       E raciocinando assim, Gilberto, que acabava de fazer um tão belo arrazoado sobre as causas e os efeitos, condenava um efeito de que talvez ele era causa.

       Nicola entrou para casa, depois tornou a sair, e desta vez trazia a mão na algibeira.

       Tirou dela uma chave, Gilberto viu-a um instante brilhar entre os seus dedos como um raio; depois a rapariga fez passar essa chave por debaixo da pequena porta do jardim, situada na outra extremidade do muro paralelamente à grande porta da serventia geral.

       - Bom! - disse Gilberto - percebo: um bilhete e uma entrevista. Nicola não perde o seu tempo, Nicola tem já um novo amante!

       E Gilberto franziu as sobrancelhas com o despeito de um homem que julgou que a sua perda causaria um vácuo irreparável no coração da mulher que abandonou, e que, com grande admiração, vê esse vácuo perfeitamente preenchido.

       - Isso poderia muito bem contrariar os meus projectos - prosseguiu Gilberto procurando uma causa factícia ao seu mau humor. - Não importa - continuou ele depois de outro momento de silêncio - não desgosto de conhecer o feliz mortal que me sucede nas boas graças da Srª. Nicola.

       Mas em certos casos, Gilberto tinha um espírito perfeitamente justo; logo calculou que a descoberta que acabava de fazer, e que ignoravam que ele tivesse feito, lhe dava sobre Nicola uma superioridade que lhe poderia aproveitar em alguma ocasião, pois que sabia o segredo de Nicola com todas as circunstâncias que ela não poderia negar, enquanto que ela apenas poderia desconfiar do seu, sem que nenhuma circunstância pudesse dar fundamento às suas suspeitas.

       Gilberto, portanto, resolveu aproveitar-se disso em ocasião oportuna.

       Durante todas estas idas e vindas, chegou enfim a noite com tanta impaciência esperada.

       Gilberto já não receava senão uma coisa, era a volta inesperada de Rousseau, que o poderia surpreender no telhado ou na escada, ou mesmo que poderia achar o quarto vazio. Neste último caso, a raiva do genebrês devia ser terrível; Gilberto, porém, julgou que a abrandaria por meio de um bilhete que escreveu e deixou sobre a sua mesa, endereçado ao filósofo.

       O bilhete era concebido nestes termos:

       “Meu caro e ilustre protector.

      

       Não forme má opinião de mim, se a despeito das suas recomendações, e mesmo das suas ordens, tomei a liberdade de sair. Pouco poderei tardar em voltar a não ser que me aconteça algum desastre como aquele que já me aconteceu; mas mesmo ao risco de um desastre semelhante ou ainda pior, preciso deixar o meu quarto por algumas horas.”

      

       - Não sei o que direi quando voltar - pensava Gilberto - mas pelo menos o Sr. Rousseau não estará com cuidado em mim, nem se há-de encolerizar.

       A tarde foi triste. Estava um calor abafadiço, como é costume durante os primeiros calores da Primavera; o céu estava nublado, e às oito e meia o olhar mais apurado nada teria distinguido no meio do abismo negro que os olhos de Gilberto interrogavam.

       Foi só então que o mancebo conheceu que respirava dificilmente, que suores súbitos lhe invadiam a fronte e o peito, sinais certos de fraqueza e atonia. A prudência aconselhava-o a não se aventurar em tal estado a uma expedição em que eram necessárias toda a força e toda a segurança dos órgãos, não só para o bom êxito da empresa, mas ainda para a segurança do indivíduo; mas Gilberto nada ouviu do que lhe aconselhava o instinto físico.

       A vontade moral tivera mais poder; foi ela, como sempre, que o mancebo seguiu.

       Era chegado o momento; Gilberto envolveu a sua pequena corda em doze voltas em torno do pescoço, começou, com o coração palpitante, a escalar a sua fresta, e agarrando-se com força à ombreira dessa mesma fresta, deu o primeiro passo na goteira, em direcção à fresta da direita, que, como dissemos, era a da escada, e estava separada da outra por um intervalo de duas toezas pouco mais ou menos.

       Assim, com os pés num cano de chumbo de oito polegadas de largura quando muito, o qual, ainda que seguro de longe em longe por umas escápulas de ferro, cedia sob seus passos por causa da sua mesma brandura, e com as mãos seguras às telhas, às quais só podia pedir um ponto de apoio para equilíbrio, mas nunca um amparo em caso de queda, porque os dedos não tinham em que se firmarem; eis a posição de Gilberto durante a viagem aérea, que durou dois minutos, isto é, duas eternidades.

       Mas Gilberto não queria ter medo, e era tal o poder da vontade do mancebo, que não se intimidou. Lembrava-se ter ouvido dizer a um equilibrista que para andar bem direito nos caminhos estreitos era preciso não olhar para os pés, mas sim a dez passos adiante de si, e nunca pensar no abismo senão como a águia, isto é, com a convicção de que se pode pairar por cima. E demais, Gilberto já tinha posto em prática estes preceitos em várias visitas que havia feito a Nicola, a essa mesma Nicola, tão ousada agora, que se servia de chaves e de portas em lugar de telhados e de chaminés.

       Assim tinha passado sobre as represas das azenhas de Taverney e sobre as vigas dos tectos arruinados de um velho telheiro.

       Mas, chegado ao patamar, parou. Ouviam-se umas vozes nos pavimentos inferiores: eram as de Teresa e de certas vizinhas, que conversavam a respeito do génio do Sr. Rousseau, do mérito dos seus livros e da harmonia da sua música.

       Essas vizinhas tinham lido a Nova Heloísa e achavam que era um livro licencioso, confessavam-no francamente. Em resposta a esta crítica, a Srª. Teresa fazia-lhes observar que não compreendiam a parte filosófica de tão bela obra.

       A isto nada podiam responder as vizinhas, a não ser confessar a sua incompetência em semelhante matéria.

       Esta conversa transcendente tinha lugar de um patamar para outro, e o fogo da discussão era menos ardente que o das fornalhas em que se cozia a ceia cheirosa destas senhoras.

       Gilberto, portanto, ouviu ressoar os argumentos e tostar os guisados.

       O seu nome, pronunciado no meio do tumulto, causou-lhe um estremecimento desagradável.

       - Depois da minha ceia - dizia Teresa - irei ver se de nada precisa aquela infeliz criança, na sua água-furtada.

       Esta infeliz criança causou-lhe menos prazer do que medo lhe despertou a promessa da visita. Felizmente, lembrou-se que Teresa, quando ceava só, conversava muito tempo com a sua querida garrafa; que o assado deitava um cheiro apetitoso, que depois da ceia significava... às dez horas. Ainda não eram oito e três quartos. Demais, depois da ceia, segundo todas as probabilidades, o curso das idéias de Teresa teria mudado e pensaria em tudo menos na infeliz criança.

       Todavia, com grande desgosto de Gilberto, perdia-se o tempo; de repente um dos assados queimou-se e ouviu-se um grito da cozinheira assustada, brado de terror que rompeu todas as conversas.

       Precipitaram-se para o teatro do acontecimento.

       Gilberto aproveitou a preocupação culinária destas senhoras para se deixar escorregar como um silfo pela escada.

       No primeiro andar achou lugar pronto para atar a sua corda, fixou-a bem, subiu para a janela e começou a descer com a maior agilidade.

       Estava suspenso entre a janela e a terra, quando uns passos rápidos soaram mesmo por baixo dele no jardim.

       Teve tempo de olhar para baixo, agarrando-se bem aos nós da corda para ver quem era o mal-avisado e importuno.

       Era um homem.

       Como vinha do lado da porta pequena, Gilberto não duvidou um só instante que fosse o feliz mortal esperado por Nicola.

       Concentrou portanto toda a sua atenção sobre esse novo intruso que vinha fazê-lo parar no meio da sua perigosa descida. Pelo seu andar, por uma idéia do perfil que se desenhava por baixo do seu chapéu de três bicos, ao modo particular pelo qual esse chapéu era posto, inclinado sobre uma orelha que parecia estar bem alerta, julgou Gilberto conhecer o famoso Beausire, esse oficial da casa do rei com que Nicola travara conhecimento em Taverney.

       Quase ao mesmo tempo, viu Nicola abrir a porta e deixando-a aberta, correr para o jardim, e, tão rápida como a alvéloa que corre, ligeira como ela, dirigir-se para o caramanchão, isto é, para o lado a que se encaminhava já o Sr. Beausire.

       Não era esta, com toda a certeza, a primeira entrevista neste género que se realizava, pois que nem um nem outro manifestavam a mais leve hesitação sobre o lugar em que se deviam encontrar.

       - Agora posso concluir a minha descensão – pensou Gilberto - e se Nicola recebeu o seu amante a esta hora, é porque está certa que é boa ocasião. Andreia, portanto, está só, meu Deus! só...

       Com efeito não se ouvia bulha alguma, e apenas se via uma luz fraca no andar térreo.

       Gilberto, chegado ao chão sem desastre algum, não quis atravessar diagonalmente o jardim; caminhou encostado à parede, meteu-se numa rua de arbustos, atravessou-a curvando-se e chegou sem ser visto à porta que Nicola deixara aberta.

       Dali, abrigado por uma imensa aristolóquia que trepava até por cima da porta e a enfeitava abundantemente, observou que o primeiro quarto, antecâmara muito espaçosa, como o havia adivinhado, estava perfeitamente vazio.

       Essa antecâmara comunicava com o interior por meio de duas portas, uma aberta, outra fechada; Gilberto adivinhou que a porta aberta era a da câmara de Nicola e nela entrou vagarosamente, estendendo as mãos adiante de si com receio de algum desastre, porque estava mergulhada em profunda escuridão.

       Contudo, no fim de uma espécie de corredor, via-se uma porta de vidraças desenhar os caixilhos na luz que projectava no quarto fronteiro; da parte de dentro das vidraças flutuava uma cortina de cassa.

       Adiantando-se no corredor, ouviu Gilberto uma voz fraca no quarto que tinha luz.

       Era a voz de Andreia; todo o sangue de Gilberto lhe afluiu ao coração.

       Uma outra voz respondia a essa; era a de Filipe de Taverney.

       O mancebo informava-se com solicitude da saúde de sua irmã.

       Gilberto, sempre alerta, deu alguns passos e colocou-se por detrás de uma dessas meias colunas com um busto qualquer, que naquela época formavam as decorações das portas dobradas em profundura.

       Assim em segurança, escutou e olhou, tão feliz, que o seu coração palpitava de prazer; tão assustado, que esse mesmo coração se lhe apertava de modo que não era mais que um ponto no seu peito.

       Escutava e via.

 

O IRMÃO E A IRMÃ

       Gilberto ouvia e via, dissemos nós.

       Via Andreia deitada sobre o seu canapé, com o rosto voltado para a porta de vidraças, isto é, mesmo em frente dele. Essa porta estava um pouco entreaberta.

       Uma pequena lâmpada com um grande transparente, colocada sobre uma mesa fronteira carregada de livros, indicando a única distracção a que se podia entregar a formosa doente, alumiava unicamente a parte inferior do rosto da menina de Taverney.

       Algumas vezes, contudo, quando se recostava no travesseiro do canapé, a claridade invadia a sua fronte tão branca e tão pura debaixo das rendas.

       Filipe, sentado junto do canapé, voltava as costas para Gilberto; estava ainda com o braço ao peito, e era-lhe absolutamente proibido fazer com ele qualquer movimento.

       Era a primeira vez que Andreia se levantara; era a primeira vez que Filipe saía.

       Portanto desde a terrível noite não se haviam tornado a ver; apenas, cada um deles, tinha sabido que o outro ia cada vez melhor e caminhava para a sua convalescença.

       Ambos reunidos desde alguns minutos apenas, conversavam livremente, porque sabiam que estavam sós, e que se viesse alguém seriam prevenidos da chegada desse alguém pelo som da campainha colocada na porta, que Nicola tinha deixado aberta.

       Mas, como era muito natural, ignoravam essa circunstância da porta deixada aberta, e contavam com a campainha.

       Gilberto via portanto e ouvia, como dissemos, porque por essa porta aberta, podia perceber todas as palavras da conversação.

       - De modo - dizia Filipe no momento em que Gilberto se colocava por trás de uma cortina presa na porta de um gabinete de toucador - de modo que respiras mais livremente, pobre irmã?

       - Sim, mais livremente, mas sempre com uma pequena dor.

       - E as forças?

       - Ainda não voltaram; entretanto, por duas ou três vezes hoje pude ir à janela. Que deliciosa coisa que é o ar! Que bela coisa que são as flores! Parece-me que com ar e flores não se pode morrer.

       - Mas com isso tudo, ainda te sentes fraca, não é verdade, Andreia?

       - Ah! Sim, porque o abalo foi terrível! Também, repito-te - continuou Andreia sorrindo e abanando a cabeça - custa-me ainda muito a andar mesmo apoiando-me às cadeiras; sem encosto, vergam-me as pernas, e parece-me sempre que vou cair.

       - Vamos, vamos, ânimo, Andreia! Este ar puro e estas flores, de que há pouco falavas, hão-de restabelecer-te, e dentro de oito dias estarás em estado de ir visitar a senhora delfina, que tem perguntado muito por ti, segundo me afirmam.

       - Sim, eu espero-o, Filipe; porque a senhora delfina, com efeito, parece ter muita bondade comigo.

       E Andreia, encostando-se para trás, levou a mão ao peito e fechou os seus lindos olhos.

       Gilberto deu um passo para diante, com os braços estendidos.

       - Padeces, minha irmã? - perguntou Filipe pegando-lhe na mão.

       - Sim, são espasmos, e algumas vezes sobe-me o sangue à cabeça e turva-se-me a vista; tenho outras vezes deslumbramentos, e o coração some-se.

       - Oh! - disse Filipe pensativo - isso não é de admirar; passaste por uma prova tão terrível, foste salva tão milagrosamente!

       - Milagrosamente, é esta a expressão verdadeira, meu irmão.

       - Mas, a propósito desse salvamento milagroso, Andreia – prosseguiu Filipe aproximando-se de sua irmã para dar mais importância à questão - sabes que ainda não pude conversar contigo a respeito dessa catástrofe?

       Andreia corou e pareceu experimentar algum desassossego.

       Filipe não reparou ou pareceu não reparar nessa cor que lhe subiu ao rosto.

       - Eu julgava entretanto - disse Andreia - que a minha vinda tinha sido acompanhada de todos os esclarecimentos que podias desejar; meu pai disse-me ter ficado perfeitamente satisfeito.

       - Sem dúvida, querida Andreia; e aquele homem empregou uma extrema delicadeza em todo esse negócio, pelo menos assim me pareceu; entretanto, vários pontos da história que ele nos contou pareceram-me, não suspeitos, mas obscuros.

       - Como? O que queres dizer, meu irmão? – perguntou Andreia com uma candura inteiramente virginal.

       - Sim, sem dúvida.

       - Explica-te.

       - Assim, por exemplo - prosseguiu Filipe - há um ponto que eu a princípio ainda não tinha examinado, e que, depois, apresentou-se-me bem estranho.

       - Qual é? - perguntou Andreia.

       - É - disse Filipe - o modo pelo qual foste salva. Conta-me isso, Andreia.

       Andreia de Taverney pareceu fazer um esforço violento sobre si mesma.

       - Oh! Filipe - disse ela - quase que me esqueci, tal foi o meu medo.

       - Não importa, minha boa Andreia, diz-me tudo de quanto te lembrares.

       - Meu Deus! Bem sabes que fomos separados na distância de uns vinte passos do Guarda-reposte. Vi-te arremessado para o lado do jardim das Tulherias, enquanto eu era impelida da direcção da Rua Real. Ainda te pude distinguir um instante, fazendo inúteis esforços para chegar a mim. Estendi para ti os braços, e bradei: “Filipe! Filipe!” quando de repente me vi envolvida como num turbilhão; levantada, levada do lado das grades, eu sentia a onda que me impelia para a muralha contra a qual se ia despedaçar; ouvia os gritos daqueles que se esmagavam contra as grades; conhecia que ia em breve chegar a minha vez de ser esmagada, despedaçada; podia quase calcular o número de segundos que tinha ainda para viver, quando, meio morta, meio doida, erguendo os braços e os olhos para o céu, numa última oração, vi brilhar o olhar de um homem que dominava toda essa multidão, como se a multidão lhe obedecesse.

       - E esse homem era o conde José Bálsamo, não é verdade?

       - Sim, o mesmo que eu já tinha visto em Taverney; o mesmo que já lá me havia causado uma impressão de terror tão estranha; esse homem, enfim, que parece ocultar em si alguma coisa de sobrenatural; esse homem que fascinou os meus com os seus olhos, os meus ouvidos com a sua voz; esse homem, que fez estremecer todo o meu corpo com o simples contacto de um dedo seu sobre o meu ombro.

       - Continua, continua, Andreia - disse Filipe, tornando-se-lhe triste o rosto e a voz.

       - Pois bem! Esse homem apareceu-me pairando sobre essa catástrofe, como se as dores humanas o não pudessem alcançar. Li nos seus olhos que queria e podia salvar-me. Então, passou-se em mim e em torno de mim alguma coisa muito extraordinária; despedaçada, sem forças, quase morta já, senti-me levada ao encontro desse homem, como se alguma força desconhecida, misteriosa, invencível, me arrebatasse para ele; sentia como uns braços que se levantavam para me impelirem fora desse abismo de carne humana esmagada, onde agonizavam tantos desgraçados, e restituir-me ao ar, à vida. Oh! Vês tu, Filipe - prosseguiu Andreia com uma espécie de exaltação - tenho a certeza que o olhar desse homem é que me atraía assim. Cheguei a dar-lhe a mão, estava salva.

       - Ah! - murmurou Gilberto - só o viu a ele; e a mim, que morria a seus pés, não me viu!

       Limpou a fronte de que lhe corria o suor.

       - É então assim que se passou o caso? – perguntou Filipe.

       - Sim, até ao momento em que me senti fora de perigo; então, ou porque toda a minha vida se concentrasse no último esforço que eu tinha feito, ou fosse porque efectivamente o terror que eu tinha sentido ultrapassasse a medida das minhas forças, perdi os sentidos.

       - E a que horas julgas que esse desmaio teve lugar?

       - Dez minutos depois de te haver deixado, meu irmão.

       - É isso - prosseguiu Filipe - era meia-noite, pouco mais ou menos. Como aconteceu então que só aqui chegasses às três horas? Perdoa-me um interrogatório que pode parecer-te ridículo, querida Andreia, mas que para mim tem razões ponderosas.

       - Obrigada, Filipe - disse Andreia apertando a mão de seu irmão - obrigada. Há três dias talvez que não teria podido responder-te, mas hoje, - há-de parecer-te estranho o que vou dizer-te - a minha vista interior é mais forte, e parece-me que uma vontade que domina a minha, me ordena de me lembrar, e eu lembro-me.

       - Diz então, querida Andreia, fala, porque espero com impaciência. Esse homem levou-te então em seus braços?

       - Em seus braços! - disse Andreia corando – disso não me recordo eu bem. Tudo quanto sei, é que me tirou do centro da multidão, mas o contacto da sua mão causou-me o mesmo efeito que em Taverney, e apenas me tocou, perdi de novo os sentidos, ou melhor direi, tornei a adormecer, porque o desmaio tem prelúdios dolorosos, e desta vez apenas senti as doces impressões do sono.

       - Realmente, Andreia, tudo quanto me estás dizendo parece-me tão estranho, que se fosse outra pessoa que mo dissesse, eu não lhe daria crédito. Não importa, acaba - prosseguiu ele com uma voz mais alterada do que desejava mostrar.

       Quanto a Gilberto, devorava cada uma das palavras de Andreia, porque sabia que até ali pelo menos, eram verdadeiras.

       - Tornei a mim - continuou Andreia - e acordei numa sala ricamente mobiliada. Uma criada e uma senhora estavam a meu lado, mas não pareciam preocupar-se comigo, porque quando acordei vi-lhes no rosto uma expressão de sorriso agradável.

       - Sabes que horas eram, Andreia?

       - Era meia hora depois da meia-noite.

       - Oh! - exclamou Filipe respirando livremente – está bom; continua, Andreia, continua.

       - Agradeci às duas os cuidados que me haviam dispensado; lembrando-me, porém, do desassossego em que estariam tanto o pai como tu, roguei-lhes por isso que me mandassem aqui conduzir imediatamente; disseram-me então que o conde tinha voltado ao lugar da catástrofe para socorrer os feridos, mas que ia voltar com uma carruagem, e que me conduziria ele mesmo a minha casa. Efectivamente, seriam duas horas, ouvi rodar uma carruagem na rua, depois de um estremecimento semelhante àqueles que eu já havia sentido ao aproximar-se aquele homem, apoderou-se de mim; caí vacilante, atordoada, sobre um sofá; abriu-se a porta; no meio do meu deslumbramento pude conhecer aquele que me tinha salvado, depois perdi novamente os sentidos. Seria então que me trouxeram para baixo, que me meteram na carruagem e que me conduziram para aqui. É tudo quanto me lembra, meu irmão.

       Filipe calculou o tempo, e viu que sua irmã devia ter sido conduzida directamente da Rua das Cavalariças do Louvre à Rua Coq-Héron, como tinha sido conduzida da Praça de Luís XV à Rua das Cavalariças do Louvre; e apertando-lhe a mão, disse-lhe num tom alegre:

       - Obrigado, querida irmã, obrigado; todos esses cálculos correspondem ao meu. Irei eu mesmo a casa da marquesa de Savigny agradecer-lhe. Agora, uma última palavra de interesse secundário.

       - Diz.

       - Lembras-te de ter visto, no meio da catástrofe, alguma cara conhecida?

       - Eu? Não.

       - A do pequeno Gilberto, por exemplo?

       - Efectivamente - disse Andreia esforçando-se por se lembrar; - sim, no momento em que fomos separados, estava dez passos distante de mim.

       - Ela tinha-me visto - murmurou Gilberto.

       - É porque, quando eu andava em tua procura, Andreia, achei o pobre rapaz.

       - Entre os mortos? - perguntou Andreia com esse tom bem pronunciado do interesse, que os grandes têm pelos seus subalternos.

       - Não, estava ferido unicamente; salvaram-no, e espero que há-de escapar.

       - Oh! Ainda bem - disse Andreia; - e o que tinha ele?

       - O peito esmagado.

       - Sim, sim, esmagado contra o teu peito, Andreia – murmurou Gilberto.

       - Mas - continuou Filipe - o que há de singular, e o que me fez falar-te dele, é ter encontrado na sua mão gelada um pedaço do teu vestido.

       - Sim? Com efeito é singular!

       - Não o viste ultimamente?

       - Ultimamente, Filipe, vi tantos rostos medonhos de terror e de sofrimento, de egoísmo, de amor, de piedade, de avareza, de cinismo, que me parece ter vivido um ano no Inferno; entre todos esses rostos que pareciam uma revista que eu passava a todos os condenados, pode ser que visse o do rapaz, mas não me lembra.

       - Entretanto, esse pedaço de fazenda era arrancado do teu vestido, querida Andreia, porque verifiquei isso com a tua criada Nicola.

       - E disseste-lhe o motivo por que a interrogavas? - perguntou Andreia, pois se lembrava da singular explicação que havia tido, em Taverney, com a sua aia a propósito desse mesmo Gilberto.

       - Oh! Não. Enfim, o pedaço de vestido estava efectivamente na mão dele; como explicas isso?

       - Meu Deus, é a coisa mais fácil do mundo – disse Andreia com uma tranqüilidade que formava um indizível contraste com o terrível bater do coração de Gilberto; - se ele estava junto de mim no momento em que eu me senti por assim dizer arrebatada pelo olhar daquele homem, ter-se-ia agarrado a mim para aproveitar ao mesmo tempo que eu do socorro que me mandavam, semelhante ao afogado que se agarra à cintura do nadador.

       - Oh! - disse Gilberto com um sentido de desprezo por semelhante pensamento da menina de Taverney; - oh! que ignóbil interpretação do meu sacrifício! Como esta gente de nobreza nos julga, a nós, gente do povo! Oh! O Sr. Rousseau tem muita razão, valemos muito mais do que eles; o nosso coração é mais puro e o nosso braço mais forte.

       E, como fizesse um movimento para não perder a continuação da conversa de Andreia e de seu irmão, que abandonara momentaneamente por causa da sua observação, ouviu bulha atrás de si.

       - Meu Deus! - murmurou ele - está alguém na antecâmara.

       E Gilberto, ouvindo os passos aproximarem-se do corredor, refugiou-se no gabinete do toucador, deixando cair o reposteiro diante de si.

       - Então! Esta estouvada da Nicola não está cá? – disse a voz do barão de Taverney, que, roçando por Gilberto as abas do seu vestuário, entrou no quarto da filha.

       - Está certamente no jardim - disse Andreia com uma tranqüilidade que provava que ela não suspeitava de modo algum a presença de um terceiro; - boa noite, meu pai!

       Filipe levantou-se respeitosamente; o barão fez-lhe sinal que ficasse onde estava, e puxando uma poltrona sentou-se junto dos filhos.

       - Ah! Meus filhos - disse o barão - é bem longe da Rua Coq-Héron a Versalhes, quando em vez de ir para lá numa boa carruagem do paço, apenas se tem um mau carro puxado por um péssimo cavalo; enfim, sempre estive com a senhora delfina.

       - Ah! - disse Andreia - vem de Versalhes, meu pai?

       - Sim, a princesa apenas soube do desastre que aconteceu a minha filha, teve a bondade de me mandar chamar.

       - Andreia está muito melhor, meu pai - disse Filipe.

       - Bem sei, e até o disse a Sua Alteza Real, que se dignou prometer-me que, logo depois do completo restabelecimento de tua irmã, havia de chamá-la para junto de si no pequeno Trianon, que decididamente escolheu para sua residência, e que está tratando de fazer dispor ao seu gosto.

       - Eu! Eu na corte! - disse Andreia timidamente.

       - Não há-de ser na corte, minha filha: a senhora delfina tem gostos sedentários; o senhor delfim também odeia o ruído e o luxo; no Trianon há-de viver-se em família; só pelo génio que vejo em Sua Alteza a Srª. Delfina, essas assembléias de família poderiam muito bem acabar por ser mais que reuniões de justiça ou estados gerais. A princesa tem génio, e segundo dizem, o senhor delfim é um sábio.

       - Oh! Sempre há-de ser a corte, não te iludas, minha irmã - disse Filipe tristemente.

       - A corte! - disse Gilberto com uma raiva e desespero concentrados; - a corte, isto é, um lugar tão alto onde não posso chegar, um abismo em que não me posso precipitar; acabou-se! Andreia está perdida para mim!

       - Nós não temos - redargüiu Andreia dirigindo-se a seu pai - nem a fortuna que permite habitar esse lugar, nem a educação necessária aos que o habitam. Eu, pobre rapariga, o que poderei fazer no meio dessas senhoras tão brilhantes, cujo esplendor que deslumbra apenas entrevi uma vez, cujo espírito fútil mas cintilante pude já avaliar? Ah! Meu irmão, quanto somos obscuros para querer figurar no meio de todas essas luzes!...

       O barão franziu as sobrancelhas.

       - Ainda essas loucuras? - disse ele; - realmente é incompreensível o cuidado que sempre têm as pessoas que de perto me tocam, em abater tudo quanto me pertence ou procede de mim. Obscuros! Estás realmente louca, Andreia? Obscura! Uma Taverney Casa Vermelha, obscura! E quem poderá brilhar senão tu?... A fortuna... Ora adeus! As fortunas da corte todos sabem o que são; o sol da coroa enxuga-as, o sol da natureza as faz reverdecer; é o grande vaivém da natureza. Arruinei-me, é certo, mas tornarei a ser rico, acabou-se. El-rei porventura não tem já dinheiro para oferecer aos seus servidores? Pensas que rejeitarei um regimento que me dêem para o filho mais velho da minha raça, um dote que me dêem para ti, Andreia, um apanágio que me dêem a mim, ou alguns títulos de renda que ache debaixo do meu guardanapo, num pequeno jantar de família a que me convidarem?... Não, não, os tolos é que têm esses pontos de escrúpulo. Eu não os tenho... E demais, é o meu bem, torno a recebê-lo; não tenhas portanto escrúpulos. Falta combater um último ponto, é sobre a tua educação, de que há pouco falaste. Lembra-te, menina, que nenhuma senhora da corte é educada como tu; ainda mais, tens, a par da educação das meninas nobres, a instrução sólida das filhas dos magistrados ou dos banqueiros; sabes música, desenhas paisagens com vacas e carneiros, que Berghem não desenharia; ora a senhora delfina é doida por carneiros, vacas e por Berghem. És formosa, e el-rei não deixará de o notar. Sabes conversar, o Sr. Conde de Artois ou o Sr. Conde de Provença hão-de apreciar muito isso; serás portanto não só bem vista... Mas adorada. Sim, sim - disse o barão esfregando as mãos e rindo de um modo tão singular que Filipe olhou para seu pai, espantado de ver semelhante riso numa boca humana. - Adorada! É a palavra exacta.

       Andreia baixou os olhos, e Filipe pegando-lhe na mão, disse-lhe:

       - O senhor barão falou a verdade, és realmente o que ele diz, Andreia; ninguém será mais digna do que tu de entrar em Versalhes.

       - Mas então ficarei separada dos meus – redargüiu Andreia com tristeza.

       - Nada, nada - interrompeu o barão; - Versalhes é muito grande, minha querida.

       - Sim, mas o Trianon é pequeno - respondeu Andreia, soberba e intratável, quando com ela se obstinavam.

       - O Trianon há-de sempre ser grande bastante para fornecer um quarto ao senhor de Taverney; um homem como eu acomoda-se sempre - acrescentou ele com uma modéstia que significava: “Sabe sempre acomodar-se”.

       Andreia, pouco tranqüilizada com esta proximidade de seu pai, voltou-se para Filipe.

       - Minha irmã - lhe disse este - decerto não farás parte daquilo a que se chama corte. Em lugar de te mandar para um convento em que pagaria o teu dote, a senhora delfina, que se dignou distinguir-te, há-de conservar-te junto de si com um emprego qualquer. Hoje a etiqueta não é austera como no tempo de Luís XIV, há fusão e divisibilidade nos encargos; podes servir a delfina como dama de companhia; desenhará contigo, conservar-te-á sempre ao pé de si; nunca te verão, é possível, mas não deixarás por isso de estar sob a sua imediata protecção, e como tal inspirarás muita inveja. É isso o que receias, não é verdade?

       - Sim, meu irmão.

       - Pois bem - disse o velho barão - não nos afligiremos por coisa tão pouca, um ou dois invejosos... desprezam-se. Trata de melhorar quanto antes, Andreia, e terei eu mesmo o prazer de te levar ao Trianon: é ordem da senhora delfina.

       - Muito bem, eu irei, meu pai.

       - A propósito - continuou o barão - tens dinheiro, Filipe?

       - Se precisa de algum, senhor - redargüiu o mancebo - não tenho bastante para lhe oferecer; mas, se, pelo contrário, me oferece algum, posso responder-lhe que tenho bastante para mim.

       - É verdade, és filósofo - disse o barão motejando.

       - E tu Andreia, que és também filósofa, não pedes nem necessitas coisa alguma?

       - Receio incomodá-lo, meu pai.

       - Oh! Aqui não estamos em Taverney. El-rei mandou-me entregar cinqüenta luíses... por conta, disse Sua Majestade. Trata do teu vestuário, Andreia.

       - Agradecida, meu pai - redargüiu Andreia com alegria.

       - Bom, bom - disse o barão - aí estão os extremos... Ainda há pouco, nada queria; agora seria capaz de arruinar um imperador da China. Oh! Mas não importa, pede, pede o que quiseres; vestidos ricos hão-de ficar-te bem.

       E depois, dando-lhe um beijo muito terno, o barão abriu a porta de um quarto que separava o dele do de sua filha, e desapareceu dizendo:

       - Esta estouvada de Nicola, que não está aqui para me alumiar!

       - Quer que a chame, meu pai?

       - Não, há-de estar por aí La Brie dormindo em alguma poltrona; boa noite, meus filhos!

       Filipe tinha-se levantado.

       - Boa noite, meu irmão - disse Andreia - estou muito cansada. É a primeira vez que falo tanto depois do meu desastre. Boa noite, Filipe.

       E deu a mão ao mancebo, que a beijou fraternalmente, juntando a essa fraternidade uma espécie de respeito que sempre tivera por sua irmã; depois saiu do quarto roçando o fato pelo reposteiro por detrás do qual estava Gilberto escondido.

       - Queres que chame Nicola? - disse ele por sua vez afastando-se.

       - Não, não - bradou Andreia - eu me despirei só; adeus, Filipe!

 

O QUE GILBERTO HAVIA PREVISTO

       Andreia, que ficara só, levantou-se do canapé em que estava deitada, e um estremecimento percorreu o corpo de Gilberto.

       A menina estava de pé; com as suas mãos brancas como o alabastro despregava um por um os ganchos que lhe seguravam o penteado, enquanto o ligeiro penteador que a cobria, escorregando-lhe dos ombros, lhe descobria o pescoço tão puro e formoso, o peito ainda palpitante, e os braços que, arredondados sobre a cabeça, contrafaziam o arqueamento das suas costas em proveito de uma garganta pura e branca fremente sob a cambraia.

       Gilberto, de joelhos, arquejante, embriagado, sentia o sangue bater-lhe fortemente nas fontes e no coração. Ondas de fogo lhe circulavam nas artérias, uma nuvem de fogo turvava-lhe a vista, um murmúrio desconhecido e febril sussurrava em seus ouvidos; estava próximo daquele instante de feroz desvario que precipita os homens no abismo da loucura. Ia transpor o limiar do quarto de Andreia, bradando:

       - Oh! Sim, és formosa! Mas não te ensoberbeças pela tua formosura, porque ma deves, porque te salvei a vida!

       De repente um nó da fita da saia estorvou Andreia; irritou-se, bateu com o pé no chão, sentou-se sobre um canapé, como se um ligeiro obstáculo que acabava de encontrar lhe bastasse para quebrar as suas forças, e inclinando-se meio nua para o cordão de uma campainha, puxou-o com um movimento de impaciência.

       Esta bulha fez Gilberto entrar em si. Nicola havia deixado a porta aberta para ouvir, e portanto não tardaria a entrar.

       Adeus, sonho! Adeus, felicidade! Nada mais senão uma imagem! Nada mais senão uma recordação eternamente abrasadora na sua imaginação, eternamente presente no fundo do coração.

       Gilberto quis fugir para fora da casa, mas o barão, quando se retirou, tinha fechado atrás de si todas as portas do corredor. Gilberto, que ignorava este obstáculo, empregou alguns segundos em as abrir.

       No momento em que entrava no quarto de Nicola, chegava esta. O mancebo ouviu a areia do jardim estalar debaixo dos seus passos. Teve apenas tempo de se esconder na sombra para deixar passar a rapariga, que atravessou a antecâmara depois de lhe fechar a porta, e ligeira como se fosse uma ave dirigiu-se para o corredor.

       Gilberto entrou na antecâmara e tentou sair.

       Mas Nicola, acudindo ao chamamento e bradando: “Aqui estou! Vou já, minha senhora! Estou fechando primeiramente a porta”, fechava-a efectivamente, e não só a fechou com duas voltas, mas ainda, na sua perturbação, metia a chave na algibeira.

       Gilberto tentou portanto inutilmente abrir a porta: recorreu às janelas. Tinham grades de ferro; ao cabo de cinco minutos de investigação, compreendeu que lhe era impossível sair.

       O mancebo escondeu-se num canto, com a resolução bem firme de obrigar Nicola a abrir-lhe a porta.

       Quanto a esta, depois de haver dado à sua ausência o plausível pretexto de ter ido fechar as vidraças do caramanchão, receando que o ar da noite prejudicasse as flores da senhora, acabou de despir Andreia e de a meter na cama.

       Bem se conhecia na voz de Nicola um certo frémito, bem se via uma certa agitação nas suas mãos, no seu serviço notava-se uma certa assiduidade, circunstâncias estas que não eram ordinárias e que denunciavam um resto de comoção; mas Andreia, do céu plácido em que pairavam as suas idéias, pouco olhava para a terra, e quando olhava, os entes inferiores apareciam como átomos a seus olhos.

       Portanto, não deu por coisa alguma.

       Gilberto fervia de impaciência desde que lhe estavam cortados os meios de retirada. Já não aspirava senão à liberdade.

       Andreia despediu Nicola depois de uma pequena conversa em que a aia desenvolveu toda a finura de uma criada que tem remorsos.

       Preparou a cama da sua senhora, apagou a lâmpada, deitou açúcar no copo de prata em que vazou a bebida morna preparada sobre a lamparina de alabastro, deu as boas noites a sua ama com a voz mais meiga e saiu do quarto no bico dos pés.

       Saindo, fechou a porta das vidraças.

       Depois, cantarolando, para fazer acreditar no sossego do seu espírito, atravessou o quarto e avançou para a porta do jardim.

       Gilberto compreendeu a intenção de Nicola, e pensou se em vez de se dar a conhecer não seria melhor sair por surpresa e fugir aproveitando para isso o momento em que a porta estivesse aberta; mas nesse caso seria visto sem que o conhecessem; seria preso como ladrão, Nicola clamaria por socorro, não teria tempo de chegar à sua corda, e ainda que lá chegasse, seria visto na fuga aérea, o que denunciaria o seu refúgio e produziria escândalo, escândalo que não poderia deixar de ser grande entre gente tão mal intencionada como eram os Taverney para com Gilberto.

       Verdade seja que também ele denunciaria Nicola, que a faria pôr fora de casa; mas de que serviria isto tudo?

       Gilberto faria assim mal sem proveito algum para si, por simples vingança. Gilberto não era tão fraco de espírito como isso, para se sentir satisfeito quando se achasse vingado; a vingança sem utilidade seria para ele mais que uma acção má: era uma tolice.

       Quando Nicola chegou ao pé da porta de saída onde Gilberto a esperava, este saiu repentinamente da sombra, em que estava escondido, e apareceu à rapariga num raio de luz produzido pela claridade da Lua que passava pelos vidros.

       Nicola ia bradar, mas tomou Gilberto por outrem, e, depois de um primeiro movimento de susto, disse:

       - Oh! É o senhor? Que imprudência!

       - Sim, sou eu - redargüiu Gilberto em voz baixa mas só lhe peço que não grite mais por ser eu do que teria gritado se fosse qualquer outro.

       Desta vez Nicola reconheceu o seu interlocutor.

       - Gilberto! - bradou ela - Santo Deus!

       - Já lhe pedi que não gritasse - disse friamente o mancebo.

       - Mas que faz aqui, senhor? - perguntou Nicola com mau modo.

       - Ora vamos - disse Gilberto - ainda há pouco me chamava imprudente, e agora é mais imprudente do que eu fui.

       - Sim, efectivamente - disse Nicola - sou bem tola em lhe perguntar o que faz aqui.

       - Então diga o que faço, já que mostra sabê-lo?

       - Veio ver a menina Andreia.

       - A menina Andreia! - repetiu Gilberto com a maior tranqüilidade.

       - Sim, de quem está namorado, mas que, felizmente, não o ama.

       - Realmente?

       - Só o previno, Sr. Gilberto, que se acautele – continuou Nicola num tom ameaçador.

       - Que me acautele?

       - Sim.

       - Por quê?

       - Porque o posso denunciar.

       - Você, Nicola!

       - Sim, eu, e faço-o pôr fora.

       - Pois experimente - disse Gilberto sorrindo.

       - Desafia-me?

       - Positivamente.

       - O que julga que acontecerá se eu disser à senhora, ao Sr. Filipe, e ao senhor barão, que o encontrei aqui?

       - Há-de acontecer como disse, que não me expulsem, - graças a Deus, já estou expulso da casa - mas que me farão montaria como a um animal selvagem. Mas, quem hão-de pôr fora de casa, é Nicola.

       - Como, Nicola?

       - Certamente, Nicola; Nicola a quem atiram pedras por cima dos muros.

       - Tome cuidado, Sr. Gilberto - disse Nicola num tom de ameaça - acharam nas suas mãos, na Praça de Luís XV, um fragmento do vestido da senhora.

       - Sim?

       - O Sr. Filipe assim o disse ao pai, que de nada desconfia ainda; mas, ajudando-o um pouco, talvez acabe por descobrir alguma coisa.

       - E quem o ajudará?

       - Eu.

       - Cuidado, Nicola! Poderiam também desconfiar que, enquanto vai estender no jardim umas rendas, apanha as pedras que lhe lançam por cima dos muros!

       - É falso! - bradou Nicola.

       Depois atalhando a sua negativa, prosseguiu:

       - E demais, receber cartas não é nenhum crime, não é um crime como introduzir-se aqui, enquanto a senhora se está despindo. Ah! O que responderá agora a isto, Sr. Gilberto?

       - Direi, Srª. Nicola, que é também crime, que uma rapariguinha honrada como você faça passar as chaves por baixo das portas pequenas dos jardins.

       Nicola estremeceu.

       - Direi - prosseguiu Gilberto - que se eu, conhecido do senhor de Taverney, do Sr. Filipe, da menina Andreia, cometi um crime em me introduzir em sua casa, não podendo resistir à inquietação que me inspirava a saúde de meus antigos amos, e principalmente a da menina Andreia, que tentei salvar no lugar do sinistro, e que tanto fiz por salvá-la que me ficou, como você mesmo o confessa, um fragmento do vestido na mão; direi que se cometi o crime muito perdoável de me introduzir aqui, você cometeu o crime imperdoável de introduzir um estranho em casa de seus amos, e de ir ter com esse estranho ao caramanchão, onde passou uma hora com ele.

       - Gilberto! Gilberto!

       - Ah! Eis aí o que é a virtude, a da Srª. Nicola, entende-se. Ah! Acha mau que eu esteja no seu quarto, Srª. Nicola, enquanto...

       - Sr. Gilberto!

       - Vá agora dizer à senhora que estou namorado dela; eu direi que estava namorado de você, e há-de acreditar-me, porque você mesmo teve a loucura de lho dizer, quando estávamos em Taverney.

       - Gilberto, meu amigo!

       - E será posta fora, Nicola; e em lugar de ir ao Trianon, junto da delfina, com a senhora, em lugar de poder galantear com os fidalgos e os homens ricos, como decerto o faria se ficasse em casa, em lugar de tudo isso fugirá para o seu amante, o Sr. Beausire, um soldado. Ah! Que linda queda, realmente! E como a ambição da Srª. Nicola a terá levado longe! Nicola, amante de um soldado das guardas francesas!

       E soltando uma gargalhada, começou Gilberto a cantarolar:

       

        Eu tinha um amante

        Nas guardas francesas.

      

       - Por piedade, Sr. Gilberto - disse Nicola - não olhe assim para mim! O seu olhar é mau, brilha nas trevas. Por piedade, não quero ouvi-lo rir, as suas gargalhadas assustam-me!

       - Então - disse Gilberto num tom de voz imperativa - abra-me a porta, Nicola, e nem mais uma palavra sobre tudo isto.

       Nicola abriu a porta com um estremecimento nervoso tão pronunciado que se viu muito visivelmente agitarem-se-lhe os ombros e abanar a cabeça como se fosse a de uma velha.

       Gilberto saiu sossegadamente, e vendo que a rapariga o guiava para a porta da saída, disse-lhe:

       - Não, não; você tem lá os seus meios para introduzir aqui as pessoas que quer, e eu tenho os meus para sair. Vá ter com o Sr. Beausire, que a há-de esperar com impaciência no caramanchão, e fique lá com ele dez minutos mais do que tencionava. Concedo essa recompensa à sua discrição.

       - Dez minutos!  E por que hão-de ser dez minutos? - perguntou Nicola toda trémula.

       - Porque é justamente o tempo que preciso para desaparecer; vá, Nicola, vá; e lembre-se da história da mulher de Loth, que já lhe contei em Taverney, quando me convidava para entrevistas nas medas de feno; não olhe para trás, porque poderia acontecer-lhe coisa pior do que ser transformada em estátua de sal. Vá agora, nada mais tenho que dizer-lhe.

       Nicola, subjugada, assustada, aterrada por essa firmeza de Gilberto, que em suas mãos tinha todo o seu porvir, dirigiu-se, de cabeça baixa, para o caramanchão, onde efectivamente com grande ansiedade a esperava o Sr. Beausire.

       Da sua parte, Gilberto, tomando as mesmas precauções para não ser visto, dirigiu-se para a sua corda, trepou pela parreira, chegou ao patamar da escada do primeiro andar e subiu para a sua água-furtada.

       Quis a fortuna que não encontrasse pessoa alguma na sua ascensão; as vizinhas estavam já deitadas e Teresa ainda estava à mesa.

       Gilberto estava muito exaltado com a vitória que acabava de ganhar sobre Nicola para que pensasse no perigo de escorregar na goteira. Pelo contrário, sentia-se com o poder de andar como a Fortuna sobre uma navalha de barba, afiada, ainda que essa navalha tivesse de comprimento uma légua.

       Andreia figurava-se-lhe estar no fim do caminho.

       Gilberto chegou portanto à sua fresta, entrou, fechou-a e rasgou o bilhete no qual ninguém havia tocado.

       Depois estendeu-se deliciosamente sobre a cama.

       Meia hora depois, Teresa cumpriu a sua palavra, e veio perguntar-lhe, pelo buraco da fechadura, se estava melhor.

       Gilberto respondeu com um agradecimento misturado de abrimentos de boca como de um homem que está morto de sono. Tinha pressa de se achar só, bem só, na escuridão e no silêncio, para se entregar todo aos seus pensamentos, para analisar com o coração, com o espírito e com toda a sua alma os pensamentos inefáveis desse dia de embriaguez.

       Com efeito, em breve tudo desapareceu aos seus olhos, o barão, Filipe, Nicola, Beausire, não viu mais no fundo das suas recordações senão Andreia meio nua com os braços à cabeça, e despregando as tranças do cabelo.

 

OS HERBORIZADORES

       Os acontecimentos que acabámos de relatar haviam-se passado na sexta-feira de tarde; era portanto no dia depois do seguinte, que devia ter lugar nos bosques de Luciennes esse passeio, que tão grande prazer causava antecipadamente a Rousseau.

       Gilberto, indiferente a tudo desde que soube da próxima partida de Andreia para o Trianon, passara o dia todo encostado ao parapeito da fresta. Durante esse dia, a janela de Andreia ficara aberta, e uma ou duas vezes se aproximara dela a menina de Taverney fraca e pálida para respirar o ar fresco, e havia parecido a Gilberto, vendo-a, que não teria pedido a Deus outra coisa senão a certeza de que Andreia seria destinada a viver eternamente naquela casa, que ele teria toda a vida um lugar naquela água-furtada e que duas vezes por dia poderia ver a formosa menina como a tinha já visto.

       Esse domingo tão desejado chegou finalmente. Desde a véspera andava Rousseau a fazer os seus preparativos; os sapatos foram cuidadosamente engraxados, o sobretudo foi tirado do armário, com grande desespero de Teresa, que afirmava ser suficiente para semelhante fim uma túnica ou uma camisola de pano ordinário; mas Rousseau, sem dar resposta, fazia o que entendia: não só o seu trajo, mas também o de Gilberto foram examinados com o maior cuidado, e o deste havia sido aumentado com um excelente par de meias e um par de sapatos novos, surpresa que Rousseau lhe queria fazer.

       O trajo do herborizador assim era fresco; Rousseau não havia esquecido a sua colecção de musgos destinada a representar um magnífico papel.

       Rousseau, impaciente como uma criança, chegou mais de vinte vezes à janela para saber se tal ou tal carruagem que passava seria a do senhor de Jussieu. Por fim viu debaixo das suas janelas uma carruagem bem pintada, com cavalos ricamente ajaezados e um cocheiro todo pimpão e empoado. Correu logo para dizer a Teresa:

       - Ele aí está! Ele aí está!

       E a Gilberto:

       - Depressa, Gilberto, depressa! A carruagem está à nossa espera.

       - Então - disse Teresa amargamente - já que tanto gostas de andar de carruagem, por que não trabalhaste para ter uma como o senhor de Voltaire?

       - Ora adeus! - resmungou Rousseau.

       - Pois se sempre dizes que tens tanto talento como ele!

       - Eu não digo isso, ouviste? - bradou Rousseau com azedume; - digo... Não digo coisa alguma!

       E fugiu-lhe a alegria como sempre acontecia quando esse nome inimigo lhe soava aos ouvidos.

       Felizmente, entrou o senhor de Jussieu.

       Vinha cheio de pomada, pós, fresco como a Primavera; um admirável fato de belo cetim da índia, da cor de semente de linho, uma véstia de seda cor de lilás claro, meias de seda branca de extrema finura e fivelas de ouro polidas compunham o seu vestuário.

       Ao entrar em casa de Rousseau, enfrascou o quarto com um perfume variado que Teresa respirou sem disfarçar a sua admiração.

       - Como está belo! - disse Rousseau olhando obliquamente para Teresa e comparando com os olhos o seu modesto vestuário e o seu volumoso trem de botânica, com o trajo tão elegante do senhor de Jussieu.

       - Mas não tenho medo do calor - disse o elegante botânico.

       - E a umidade dos bosques! As suas meias de seda, se formos herborizar nas lagoas...

       - Oh! Não, escolheremos o terreno.

       - E os musgos aquáticos, deveremos abandoná-los por hoje?

       - Não tratemos disso, querido colega.

       - Dir-se-ia que vai para algum baile, onde deve encontrar senhoras.

       - E por que não farei a honra de um par de meias de seda à senhora natureza? - redargüiu Jussieu um pouco perturbado; - não é uma amante que valha a pena de se fazer por ela algum sacrifício?

       Rousseau não insistiu; uma vez que Jussieu invocava a natureza, era ele de opinião que nunca se lhe fazia demasiada honra.

       Quanto a Gilberto, apesar do seu estoicismo, olhava para o senhor de Jussieu com um olhar de inveja. Desde que tinha visto tantos jovens elegantes realçarem ainda com o trajo as vantagens naturais de que eram dotados, havia compreendido a frívola utilidade da elegância, e dizia consigo em voz baixa que esse cetim, essa cambraia, essas rendas dariam muito realce à sua mocidade, e que sem dúvida alguma, se em lugar de estar vestido como se achava, estivesse com o fato do senhor de Jussieu, e que encontrasse Andreia, Andreia olharia para ele.

       Partiram ao trote largo de dois bons cavalos dinamarqueses. Uma hora depois da partida, os botânicos apeavam-se em Bougival e atravessavam para a esquerda pelo caminho dos Castanheiros.

       Este passeio, hoje maravilhosamente belo, era naquela época de uma beleza pouco mais ou menos igual, porque a parte do terreno que os nossos exploradores se preparavam a percorrer, que já era coberto de mato no tempo de Luís XV, tinha sido objecto de cuidados constantes, depois do gosto decidido do soberano por Marly.

       Os castanheiros de casca rugosa, de ramos gigantescos, de formas fantásticas, que ora imitam em suas circunvoluções as roscas da serpente em torno do tronco, ora o touro derrubado sobre o balcão do açougue e vomitando um sangue negro, a macieira carregada de musgo, as nogueiras, colossos cuja folhagem passa, no mês de Junho, de verde amarelo para verde azul; essa pitoresca aspereza do terreno que sobe debaixo da sombra das árvores antigas até desenhar uma viva aresta no azul opaco do céu; toda essa natureza poderosa, graciosa e melancólica pôs Rousseau num arrebatamento inexplicável.

       Quanto a Gilberto, sossegado mas carrancudo, resumia-se toda a sua vida neste único pensamento:

       - Andreia deixa a casa do jardim e parte para o Trianon.

       No ponto culminante da colina, que os três botânicos subiam a pé, via-se erguer o palácio quadrado de Luciennes.

       A vista desse palácio, de onde tinha fugido, mudou o curso das idéias de Gilberto para outras recordações pouco agradáveis, mas nas quais se não misturava temor algum.

       Com efeito, caminhava atrás, via diante de si dois protectores, e sentia-se bem protegido; olhou portanto para Luciennes, mas do mesmo modo que um náufrago olha para o banco de areia contra o qual o navio se despedaçou.

       Rousseau, com a sua enxada na mão, começava a olhar para o chão; o senhor de Jussieu também; com a diferença que o primeiro procurava plantas, e o segundo procurava evitar que se lhe enxovalhassem as meias.

       - Que admirável lepopodium! - disse Rousseau.

       - É belo - redargüiu o senhor de Jussieu; - mas vamos mais adiante, apraz-lhe?

       - Ah! A lyrimachia fenella! Está boa para se apanhar, olhe!

       - Apanhe-a se lhe agrada.

       - Ora diga-me, não viemos para herborizar?

       - Decerto, decerto... Mas parece-me que além acharemos coisa melhor.

       - Como lhe aprouver... Vamos então.

       - Que horas são? - perguntou o senhor de Jussieu; com a pressa de me vestir, deixei ficar o relógio em casa.

       Rousseau tirou do bolso um grande relógio de prata.

       - Nove horas - disse ele.

       - Não lhe agradaria descansar um pouco? – perguntou o senhor de Jussieu.

       - Oh! Que fraco homem que é! Pois já está cansado? Isso é o resultado de vir herborizar de sapatinho fino e meias de seda.

       - Para lhe dizer a verdade, parece-me que estou com fome.

       - Pois bem! Então vamos almoçar; a aldeia dista apenas um quarto de légua daqui.

       - Nada, não.

       - Como, não? Traz farnel na carruagem?

       - Vê além no centro daquele belo ramalhete de árvores frondosas? - disse o senhor de Jussieu estendendo a mão para o ponto do horizonte que queria designar.

       Rousseau ergueu-se no bico dos pés, e pôs a mão diante dos olhos em guisa de viseira.

       - Nada vejo - disse ele.

       - Como? Pois não vê além aquele pequeno telhado rústico?

       - Não.

       - Com um cata-vento e muros de palha branca e vermelha, uma espécie de barraca de aldeões?

       - Sim, parece-me que vejo, sim, uma casinha inteiramente nova.

       - Um quiosque, é isso.

       - Então?

       - Então, encontraremos lá o modesto almoço que lhe prometi.

       - Bem - disse Rousseau. - Tem vontade de comer, Sr. Gilberto?

       Gilberto, que tinha sido indiferente a tudo isto, e cortava maquinalmente flores do mato, respondeu:

       - Como lhe agradar, senhor.

       - Vamos lá, se quer - disse o senhor de Jussieu; - e demais, ninguém nos impede de herborizarmos entretanto pelo caminho.

       - Oh! Seu sobrinho - disse Rousseau - é naturalista mais ardente do que o senhor. Já herborizei com ele nos bosques de Montmorency. Éramos poucos. Acha com facilidade, apanha com jeito e explica com perfeição.

       - Ora! É porque é rapaz e precisa criar fama.

       - Tem o mesmo nome que o senhor, um nome cheio de fama. Ah! Colega, colega, herboriza como curioso.

       - Vamos, não nos enfademos, meu filósofo; olhe, veja que famoso plantago monanthos! Tem disto em Montmorency?

       - Não, por certo - disse Rousseau encantado; - procurei-o em vão, apesar do que diz Tournefort; este é realmente magnífico.

       - Ah! Que formosa casa! - disse Gilberto, que tinha passado da retaguarda para a vanguarda.

       - Gilberto está com fome - disse o senhor de Jussieu.

       - Oh! Senhor, desculpe-me; esperarei sem impaciência até que esteja pronto.

       - Sim, e demais, herborizar depois de comer é mau para a digestão; e daí o olhar está pesado, custa a dobrar-se a gente; herborizemos ainda alguns instantes - disse Rousseau.

       - Mas, como se chama esta pequena casa?

       - A ratoeira - disse o senhor de Jussieu, lembrando-se do nome inventado pelo senhor de Sartines.

       - Que nome tão singular!

       - Oh! Bem sabe, no campo, tudo são fantasias.

       - A quem pertencem estas terras, este bosque, estas belas sombras?

       - Não sei.

       - Entretanto, conhece alguém aqui, visto querer almoçar nesta casa - disse Rousseau com uma certa desconfiança.

       - Não... Ou para melhor dizer, conheço aqui toda a gente, os monteiros que me têm visto cem vezes andar por este mato, e que sabem que em me cortejar, em me oferecer um guisado de lebre ou galinholas, agradam aos seus amos; a gente de todas as propriedades vizinhas deixam-me aqui andar como se estivesse na minha casa. Não sei se este pavilhão pertence à senhora de Mirepoix, à senhora de Egmont, ou... Enfim, não sei... Mas o principal, meu caro filósofo, presumo que será da minha opinião, é que achemos naquela pequena casa, pão, frutas e alguma empada.

       O tom de bondade com que o senhor de Jussieu pronunciou estas palavras dissipou as nuvens que já se aglomeravam na fronte de Rousseau. O filósofo sacudiu os sapatos, esfregou as mãos, e o senhor de Jussieu foi o primeiro que entrou na senda musgosa que serpenteava à sombra dos castanheiros e conduzia ao pequeno eremitério.

       Atrás dele vinha Rousseau, sempre apanhando ervas.

       Gilberto, que de novo voltava para o seu posto, fechava a marcha, pensando em Andreia e nos meios de a ver quando estivesse no Trianon.

 

A RATOEIRA DE FILÓSOFOS

       No cume da colina, com bastante custo subida pelos três botânicos, via-se uma dessas pequenas casas rústicas, feitas de madeira, com colunas cheias de nós, de arestas agudas, de janelas cobertas de hera e clematites, verdadeiras importações de arquitectura inglesa ou antes dos jardineiros ingleses, que imitam a natureza que lhes é própria, o que dá certa originalidade às suas criações mobiliárias e às suas invenções vegetais.

       Os Ingleses inventaram as rosas azuis, e a sua maior ambição tem sido sempre a antítese de todas as idéias adoptadas. Algum dia, hão-de inventar as flores-de-lis pretas.

       Essa pequena casa, espaçosa bastante para conter uma mesa e seis cadeiras, tinha o pavimento de tijolo. Por cima do tijolo estava uma esteira. Quanto às paredes, eram feitas de mosaicos de pedras escolhidas nas ribanceiras do rio e de conchas de várias qualidades; porque nas praias de Bougival e Port-Marly não se encontra o ouriço nem as conchas de madrepérola e cor-de-rosa, que só se acham em Harfleur, em Diepa ou nos recifes de Sainte-Adresse.

       O tecto era em relevo. Figurava pinhas, rostos de fisionomia estranha imitando os mais hediondos perfis de faunos ou de animais selvagens, que pareciam suspensos sobre a cabeça dos visitantes; além disto, via-se por vidros de cores, conforme se olhava por um vidro roxo, vermelho ou azul, a planície ou o bosque de Vesinet, aqui com o céu carregado de um dia proceloso, ali resplandecente com a ardente atmosfera de um sol de Agosto, mais adiante sombrio como num dia gélido de Dezembro. Era só escolher o vidro, isto é, o gosto e olhar.

       Este espectáculo divertiu muito Gilberto, e observou por todos os lados o rico vale que do alto da colina de Luciennes se desdobra aos seus olhos, e no meio do qual corre o Sena.

       Entretanto, um espectáculo também muito interessante, pelo menos assim o julgava o senhor de Jussieu, era o belo almoço que estava servido sobre a mesa de mosaico de várias madeiras, colocada no meio da casa.

       A deliciosa nata de Marly, os belos damascos e as ameixas de Luciennes, os pastéis de salsichas de Nanterre, bem quentes, num prato de porcelana, sem que se visse um único criado trazê-los; os morangos bem frescos num encantador cesto forrado de parras, e ao lado de uma bela manteiga da maior frescura, o pão de rala do aldeão e o pão de aveia, tão estimado do habitante das cidades. Foi isto que fez com que Rousseau o filósofo soltasse um pequeno grito de admiração, porque era guloso lhano, e tinha o apetite tão vivo quanto era modesto o seu gosto.

       - Que loucura! - disse ele ao senhor de Jussieu – pão e frutas, é quanto nos bastava, e ainda assim deveríamos, como verdadeiros botânicos e laboriosos exploradores, comer o pão e trincar as ameixas, sem cessar de procurar e apanhar ervas. Lembra-se, Gilberto, do meu almoço de Plessis-Piquet, e do seu?

       - Sim, senhor, aquele pão e cerejas que tão deliciosas me pareceram.

       - Exactamente.

       - Isso sim, é o verdadeiro modo de almoçarem dois amantes da natureza!

       - Meu caro mestre - interrompeu o senhor de Jussieu - se me quer admoestar pela prodigalidade, não tem razão; nunca serviço mais modesto...

       - Oh! - exclamou o filósofo - deprecia a sua mesa, Sr. Lúculo.

       - A minha?... Não, por certo! - disse Jussieu.

       - Então em casa de quem estamos nós? – atalhou Rousseau com um sorriso que bem mostrava ao mesmo tempo o seu constrangimento e o seu bom humor; - estamos em casa de alguns duendes?

       - Ou fadas - disse o senhor de Jussieu levantando-se e deitando disfarçadamente um olhar para o lado da porta.

       - Fadas! - exclamou Rousseau com alegria. – Então abençoadas sejam elas pela hospitalidade! Tenho fome, vamos comer, Gilberto.

       E cortou uma formidável fatia de pão de centeio, passando o pão e a faca ao seu discípulo.

       Depois, mordendo no centro do miolo compacto, escolheu duas ameixas do prato.

       Gilberto hesitava.

       - Vamos! Vamos! - disse Rousseau - as fadas poderiam ofender-se da sua hesitação e julgariam que acha o festim incompleto.

       - Ou indigno dos senhores - disse uma voz argentina que vinha do lado da porta, à qual apareceram, de braço dado, duas mulheres moças e bonitas, que, com o sorriso nos lábios, faziam sinal ao senhor de Jussieu para que moderasse as suas cortesias.

       Rousseau voltou-se, segurando na mão direita o pão encetado, e na esquerda uma ameixa com uma dentada; viu estas duas divindades, ou pelo menos assim lhe pareceram pela juventude e formosura; viu-as e ficou estupefacto, cortejando e cambaleando.

       - Oh! Senhora condessa - disse o senhor de Jussieu - a senhora aqui! Que agradável surpresa!

       - Bom dia, caro botânico - disse uma das senhoras com uma familiaridade e um encanto perfeitamente reais.

       - Permita-me que lhe apresente o Sr. Rousseau – disse Jussieu levando o filósofo pela mão que segurava o pão de centeio.

       Gilberto também tinha visto e conhecido as duas mulheres; abria portanto uns olhos enormes, e, pálido como um defunto, olhava para a janela da casa com a idéia de se precipitar dela abaixo.

       - Bons dias, meu filósofozinho - disse a outra senhora a Gilberto aterrado, afagando-lhe o rosto com uma pequena bofetada aplicada com três dedos da sua linda mão.

       Rousseau viu e ouviu; esteve a ponto de sufocar-se de raiva. O seu discípulo conhecia as duas divindades e era conhecido delas.

       Gilberto esteve a ponto de perder os sentidos.

       - Não conhece a senhora condessa? - perguntou Jussieu a Rousseau.

       - Não - disse este; - parece-me que é a primeira vez...

       - A senhora du Barry - prosseguiu Jussieu.

       Rousseau deu um salto como se tivesse pisado ferro em brasa.

       - A senhora du Barry - exclamou ele.

       - Eu mesma, senhor - disse a condessa com toda a sua amabilidade; - eu, que muito feliz me considero por ter recebido em minha casa e visto de perto um dos mais ilustres pensadores destes tempos.

       - A senhora du Barry! - repetiu Rousseau sem reparar que a sua admiração prolongada se tornava numa grave ofensa... - Ela! E sem dúvida lhe pertence esta casa, é decerto ela quem me dá este almoço?

       - Adivinhou, querido filósofo, é ela e a senhora sua irmã - continuou Jussieu, que se não sentia bem à vontade na presença desses elementos de tempestade.

       - Sua irmã, que conheceu Gilberto!

       - Intimamente, senhor - respondeu Chon com essa audácia que não respeitava nem humores reais, nem repentes de filósofos.

       Gilberto procurou com a vista algum buraco grande bastante pelo qual se pudesse sumir, tanto brilhava de um modo terrível o olhar do Sr. Rousseau.

       - Intimamente ... - repetiu este último – Gilberto conhecia intimamente esta senhora, e eu não o sabia; mas então atraiçoavam-me, mas então zombavam de mim!

       Chon e sua irmã olharam uma para a outra, em ar de motejo.

       O senhor de Jussieu rasgou uma renda de Malines que valia bem quarenta luíses.

       Gilberto de mãos postas, quer para suplicar a Chon que se calasse, quer para rogar a Rousseau que lhe falasse com melhor modo, voltava-se ora para um, ora para outro.

       Mas, pelo contrário, foi Rousseau quem se calou e Chon quem falou.

       - Sim - disse ela - Gilberto e eu somos amigos velhos, já foi meu hóspede. Não é verdade, pequeno?... Dar-se-á o caso de que já te mostres ingrato para com os doces de Luciennes e de Versalhes?

       Este dito foi como um verdadeiro golpe; os braços de Rousseau alongaram-se como duas molas e caíram-lhe pendentes aos lados.

       - Ah! Ah! - disse ele olhando de revés para Gilberto - assim é que procedes, desgraçado!?

       - Sr. Rousseau! - murmurou Gilberto.

       - Então! Não se diria que choras por teres sido afagado pelas minhas mãos - continuou Chon. - Ora, eu já desconfiava que eras um ingrato.

       - Minha senhora!... - bradou Gilberto.

       - Meu pequeno - disse a senhora du Barry – volta para Luciennes; os doces de Zamora esperam-te lá... E apesar de teres saído de um modo singular, serás bem recebido.

       - Agradecido, minha senhora - disse Gilberto secamente; - quando deixo um lugar, é porque me não agrada.

       - E por que recusará o bem que lhe oferecem? – interrompeu Rousseau com azedume. - Já tomou o gosto à riqueza, meu caro Sr. Gilberto, volte para ela.

       - Mas, senhor, se lhe juro...

       - Vá, vá, não gosto dos que jogam pau de dois bicos.

       - Mas, não me ouviu, Sr. Rousseau.

       - Ouvi, sim.

       - É que eu fugi de Luciennes, onde me queriam ter fechado num quarto.

       - Ora adeus! Conheço a malícia dos homens.

       - Mas se lhe digo que o preferi; por isso fui ser seu hóspede, aceitei-o por protector e por mestre.

       - Hipocrisia!

       - Sr. Rousseau, se porventura eu ambicionasse riquezas, aceitaria o oferecimento destas senhoras.

       - Sr. Gilberto, podem enganar-me uma vez, mas nunca duas; está livre, vá para onde lhe aprouver.

       - Mas para onde, meu Deus?! - exclamou Gilberto abismado na sua dor, porque via perdida para sempre a sua janela e a vizinhança de Andreia, e todo o seu amor... Porque em seu orgulho padecia por ser suspeito de traição; porque via desconhecida a sua abnegação, a sua longa luta contra a preguiça e os apetites da sua idade, que tão corajosamente havia vencido.

       - Para onde? - repetiu Rousseau. - Em primeiro lugar para casa desta senhora, que é uma bela e excelente pessoa.

       - Oh! Meu Deus! Meu Deus! - bradou Gilberto ocultando a cabeça entre as mãos.

       - Não tenha medo - disse-lhe o senhor de Jussieu profundamente ofendido, como um homem de sociedade, do estranho arrebatamento de Rousseau contra as senhoras; - não tenha medo, ter-se-á cuidado em si, e o que perder há-de recuperá-lo.

       - Bem vê - disse Rousseau com acrimónia - eis aí o senhor de Jussieu, um sábio, um amigo da natureza, um dos seus cúmplices - acrescentou ele fazendo um esforço para sorrir, que produziu uma visagem horrível; - ele promete-lhe auxílio e fortuna, conte com ele; o senhor de Jussieu é muito poderoso!

       Dito isto, Rousseau, não podendo por mais tempo conter-se, cortejou as senhoras com certas reminiscências de Orosmane, praticou o mesmo para com o senhor de Jussieu, que se mostrava consternado, depois, sem mesmo olhar para Gilberto, saiu tragicamente da casa.

       - Oh! Que horrendo animal que é um filósofo! – disse Chon olhando para o genebrês que descia, ou melhor direi que corria pela pequena azinhaga.

       - Peça o que quiser - disse o senhor de Jussieu a Gilberto, que estava ainda com a cabeça escondida entre as mãos.

       - Sim, peça, Sr. Gilberto - acrescentou a condessa com um sorriso dirigido ao discípulo abandonado.

       Este, pálido, ergueu a cabeça, afastou os cabelos que o suor e as lágrimas lhe haviam pegado à fronte, e, com uma voz segura, disse:

       - Já que me oferecem um emprego, quero entrar como ajudante de jardineiro no Trianon.

       Chon e a condessa olharam uma para a outra, e Chon com o pé foi tocar no da sua irmã com um modo triunfante; a condessa fez sinal com a cabeça, que queria dizer: compreendi perfeitamente.

       - Isso é possível, senhor de Jussieu? - perguntou a condessa; - se é, desejo-o.

       - Como o deseja, minha senhora - respondeu ele – está feito.

       Gilberto inclinou-se e pôs as mãos sobre o coração, que trasbordava de prazer, depois de haver sido oprimido de tristeza.

 

O APÓLOGO

       Nesse mesmo gabinete de Luciennes, em que, com grande desprazer da condessa, vimos João du Barry consumir tão grande quantidade de chocolate, estava o Sr. Marechal de Richelieu conversando com a senhora du Barry, que divertindo-se em puxar as orelhas a Zamora, estendia-se cada vez mais sobre um sofá de cetim lavrado, enquanto o velho cortesão soltava suspiros de admiração a cada nova posição da sedutora criatura.

       - Oh! condessa - dizia ele, fazendo-se piegas como se fosse uma mulher velha - desmancha o seu penteado, eis uma beleza que se solta. Ah! Condessa, o seu pantufo cai.

       - Ora! Meu caro duque, não faça caso - disse ela arrancando por distracção um punhado de cabelos a Zamora e deitando-se de todo, mais voluptuosa e mais bela no seu sofá do que Vénus na sua concha marinha.

       Zamora, pouco sensível a todas essas atitudes, rugiu de raiva. A condessa sossegou-o tirando de cima da mesa um punhado de confeitos, que lhe meteu nas algibeiras.

       Mas Zamora, mostrando-se amuado, virou as algibeiras de dentro para fora e vazou os confeitos no chão.

       - Ah! Maroto! - prosseguiu a condessa alongando uma perna fina e delicada, cuja extremidade foi pôr-se em contacto com as calças fantásticas do negrilhão.

       - Oh! Por piedade! - bradou o velho marechal - à fé de fidalgo! Parece que o quer matar?

       - Tomara eu poder matar hoje tudo quanto me desagrada - disse a condessa - não tenho piedade.

       - Ora diga-me - perguntou o duque - e eu desagrado-lhe?

       - Oh! Senhor, não, pelo contrário, é meu velho amigo, e eu adoro-o; mas é que realmente, veja, eu estou doida.

       - Então é uma doença que se lhe pegou daqueles que por si endoidecem?

       - Tome cuidado! Está-me irritando horrivelmente com esse seu galanteio, de que não pensa uma única palavra.

       - Condessa, condessa! Começo a crer, não que está doida, mas que é ingrata.

       - Não, não estou doida, nem sou ingrata; estou...

       - Então, vejamos, o que tem?

       - Estou enraivecida, senhor duque.

       - Ah! Realmente?

       - Admira-lhe isso?

       - De modo nenhum, condessa; e palavra de honra, tem de quê.

       - Olhe, é isso o que me desespera em si, marechal.

       - Pois há alguma coisa em mim que a desespera, condessa?

       - Sim.

       - E qual é essa coisa, faz a mercê de ma dizer? Estou bem velho para me emendar, e contudo não há esforço que eu não seja capaz de fazer para lhe agradar.

       - Essa coisa, é que nem sequer sabe do que se trata, marechal.

       - Oh! Sei...

       - Sabe o que me enche de frenesi?

       - Certamente; Zamora quebrou a fonte chinesa.

       Um sorriso imperceptível assomou aos lábios da condessa; mas Zamora, que se sentia culpado, baixou a cabeça com toda a humildade, como se a atmosfera estivesse carregada com uma nuvem de bofetadas e piparotes próxima a desencadear-se.

       - Sim - disse a condessa soltando um suspiro - sim, duque, tem razão; é isso, e é realmente um homem político muito esperto.

       - Sempre assim mo disseram, minha senhora – respondeu o senhor de Richelieu com um modo cheio de modéstia.

       - Oh! Não preciso que mo digam para o ver, duque, e achou logo o motivo do meu aborrecimento, assim, num instante, sem ser preciso estar a cismar; é deveras maravilhoso!

       - Muito bem; mas isso não é tudo.

       - Ah! Realmente.

       - Não. Ainda adivinho outra coisa.

       - Realmente?

       - Sim.

       - E o que adivinha?

       - Adivinho que esperava ontem de tarde por Sua Majestade.

       - Onde?

       - Aqui.

       - Bem! E depois?

       - E que Sua Majestade não veio.

       A condessa corou ligeiramente e ergueu-se um pouco sobre o cotovelo.

       - Ah! Ah! - disse ela.

       - E contudo - disse o duque - chego de Paris.

       - O que prova isso?

       - Que seria possível não saber coisa alguma do que se passava em Versalhes! E contudo...

       - Duque, meu caro duque, está hoje cheio de reticências. Diacho! Quando se começa, acaba-se; ou então não se começa.

       - Diz muito bem, condessa. Deixe-me pelo menos tomar o fôlego. Em que ponto estava eu?

       - E contudo...

       - Ah! Sim, e contudo, não só sei que Sua Majestade não veio, mas também adivinho por que não veio.

       - Duque, eu sempre pensei cá para mim, que era feiticeiro, mas faltava-me uma prova.

       - Pois bem! Essa prova, vou dar-lha.

       A condessa que ligava à conversa muito maior interesse do que aparentemente manifestava, abandonou a cabeça de Zamora, com cuja carapinha brincava, passando por entre ela os seus dedos brancos e delicados.

       - Então dê-a, duque, eu ouço.

       - Diante do senhor governador? - disse o duque.

       - Retira-te, Zamora - disse a condessa ao preto, que saltando de prazer desapareceu num instante.

       - Ainda bem - murmurou Richelieu; - mas é mister dizer-lhe tudo, condessa?

       - Como, esse macaco de Zamora incomoda-o, duque?

       - Para dizer a verdade, condessa, alguém sempre me incomoda.

       - Sim, alguém, isso entendo eu; mas Zamora não é alguém.

       - Zamora não é cego, Zamora não é surdo, Zamora não é mudo; portanto é alguém. Ora, concedo este nome a qualquer que seja meu igual nos olhos, ouvidos e língua, isto é, a qualquer que pode ver o que faço, ouvir ou repetir o que digo; enfim, a qualquer que pode atraiçoar-me. Posta esta teoria, eu continuo.

       - Sim, continue, duque, faz-me favor.

       - Favor, não julgo que o seja, condessa; entretanto, devo continuar. Dizia, portanto, que el-rei ontem estava no Trianon.

       - No pequeno ou no grande?

       - No pequeno. Dava o braço à senhora delfina.

       - Ah!

       - E a senhora delfina, que é encantadora como sabe...

       - Ah!

       - Fazia-lhe tanta meiguice, tanta festa! Sua Majestade que tem um coração de ouro não pôde resistir, de modo que a ceia seguiu-se ao passeio, os divertimentos inocentes seguiram-se à ceia. Enfim...

       - Enfim - disse a senhora du Barry pálida de impaciência - enfim, el-rei não veio a Luciennes, não é verdade, é isso que quer dizer?

       - Oh! Meu Deus, sim.

       - Pois isso é claro, Sua Majestade encontrava ali tudo quanto ama.

       - Ah! Não, e mesmo está longe de crer no que acaba de dizer; tudo quanto lhe agrada, quando muito.

       - Ainda é pior, duque, tome cuidado: cear, conversar, jogar, é tudo quanto se precisa. E com quem jogou?

       - Com o senhor de Choiseul.

       A condessa fez um movimento de cólera.

       - Quer que falemos noutra coisa, condessa? – atalhou Richelieu.

       - Pelo contrário, senhor, falemos disto.

       - Tem tanta coragem como espírito, minha senhora! Agarremos o boi à unha, como dizem os espanhóis.

       - Eis aí um dito que o senhor de Choiseul lhe não perdoaria, duque.

       - Contudo, não lhe é aplicável. Dizia eu, minha senhora, que o senhor de Choiseul, já que é necessário chamá-lo pelo seu nome, jogou com tanta fortuna, tanta habilidade...

       - Que ganhou?

       - Nada, que perdeu, e que Sua Majestade ganhou mil luíses no jogo dos centos, jogo em que Sua Majestade tem muito amor-próprio, porque o joga muito mal.

       - Oh! Choiseul! Choiseul! - murmurou a senhora du Barry. - E a senhora de Grammont, era da partida, não é verdade?

       - Isto é, condessa, foi fazer as suas despedidas.

       - A duquesa?

       - Sim, e parece-me que faz uma tolice.

       - Qual é?

       - Vendo que não a perseguem, amuou-se; vendo que não a desterram, desterra-se ela mesma.

       - Para onde?

       - Para a província.

       - Vai intrigar?

       - Pudera! O que havia ela de fazer? Portanto, estando em véspera de partida, quis, como é muito natural, cumprimentar a delfina, a qual também gosta muito dela. Eis aí o motivo por que estava no Trianon.

       - No grande?

       - Certamente, o pequeno ainda não está mobiliado.

       - Ah! A senhora delfina, com tanto Choiseul em torno de si, mostra bem qual é o partido que pretende tomar.

       - Não, condessa, não exageremos; porque enfim, amanhã a duquesa terá partido.

       - E el-rei divertiu-se num lugar em que eu não estava! - exclamou a condessa com uma indignação que não era isenta de terror.

       - Santo Deus! Sim; é incrível, mas entretanto é assim, condessa. Vejamos, o que conclui disto?

       - Que está bem informado, duque.

       - E nada mais?

       - Espere.

       - Diga.

       - Concluo ainda que por força ou por vontade é mister arrancar el-rei das garras desse Choiseul, ou senão estamos perdidos.

       - Ah!

       - Perdão - atalhou a condessa. - Eu disse nós, mas sossegue, duque, isto é só aplicável à família.

       - E aos amigos, condessa; e a este título permita que eu tome a minha parte. Assim, portanto...

       - Então é dos meus amigos?

       - Eu julgava que já lho havia dito, minha senhora.

       - Isso não basta.

       - Julgava tê-lo provado.

       - Isso é melhor, e auxiliar-me-á.

       - Com todo o meu poder, condessa; mas...

       - Mas o quê?

       - A obra é difícil, não lho ocultarei.

       - São inarrancáveis, esses Choiseul?

       - Pelo menos estão muito bem plantados.

       - Julga isso?

       - Creio-o.

       - Então, apesar do que diz o bom La Fontaine, contra essa poderosa árvore não há vento nem tempestade.

       - É um grande génio, esse ministro.

       - Bom! Aí fala como enciclopedistas!

       - Bem sabe que sou da Academia.

       - Oh! Quase que o não é, duque.

       - É verdade, tem razão; é o meu secretário que pertence à Academia, não sou eu. Mas por isso não persisto menos na minha opinião.

       - Que o senhor de Choiseul é um génio?

       - Sim.

       - Mas em que se manifesta esse grande génio?

       - Nisto, minha senhora: fez um tal negócio dos parlamentos e dos ingleses, que el-rei já não pode passar sem ele.

       - Os parlamentos! Mas ele excita-os contra a Sua Majestade.

       - Certamente, e nisso consiste a habilidade.

       - Os Ingleses, desafia-os para a guerra.

       - É isso mesmo, a paz poderia perdê-lo.

       - Isso não se chama génio, duque.

       - Então o que é, condessa?

       - É alta traição.

       - Quando a alta traição tem bom resultado, condessa, parece-me que é génio, e do melhor.

       - Mas desse modo, duque, conheço alguém que é tão hábil como o senhor de Choiseul.

       - Ora!

       - Pelo menos no que diz respeito a parlamentos.

       - É o principal.

       - Porque esse alguém é a causa da revolta dos parlamentos.

       - Olhe que está desafiando a minha curiosidade, condessa.

       - Não o conhece, duque?

       - Não.

       - Contudo é da sua família.

       - Pois terei um homem de génio na minha família? Quer, minha senhora, falar do cardeal duque, meu tio?

       - Não; quero falar do duque de Aiguillon, seu sobrinho.

       - Ah! O senhor de Aiguillon, é verdade, foi ele quem deu impulso à questão La Chalotais. Com efeito, é um guapo rapaz; sim, sim, realmente. Foi um trabalho custoso. Olhe, condessa, dou-lhe a minha palavra de honra que uma mulher de espírito deveria atraí-lo a si.

       - Não acha incompreensível - disse a condessa – que eu não conheça o seu sobrinho?

       - Realmente, minha senhora, não o conhece?

       - Não, nunca o vi.

       - Pobre rapaz! Com efeito, desde a sua elevação, sempre viveu no fundo da Bretanha. Cuidado com ele, quando o vir, que já não está habituado ao sol.

       - Como vive ele no meio de todos aqueles becas pretos, um homem de espírito e de boa raça?

       - Revoluciona-os, já que melhor não pode fazer. Compreende, condessa, cada um vai buscar o prazer onde o acha, e na Bretanha não há grandes divertimentos. Ah! É um homem activo; pudera! Que servidor não teria el-rei, se quisesse. Não é com ele que os parlamentos conservariam a intolerância que ostentam; desse modo permita...

       - O quê?

       - Que lho apresente na primeira ocasião.

       - Ele deve em breve vir a Paris?

       - Ora! Minha senhora, quem sabe? Talvez tenha ainda que ficar um lustro na sua Bretanha, como diz aquele velhaco de Voltaire; talvez esteja a caminho; talvez esteja a duzentas léguas; talvez esteja às portas da cidade!

       E o marechal estudou no rosto da condessa o efeito das últimas palavras que tinha pronunciado.

       Mas depois de pensar um momento:

       - Voltemos ao ponto em que estávamos - disse a condessa.

       - Onde quiser.

       - Em que estávamos nós?

       - No momento em que Sua Majestade tanto se diverte no Trianon, na companhia do senhor de Choiseul.

       - E quando tratávamos de pôr fora esse Choiseul, duque.

       - Isto é, em que falava de o pôr fora, condessa.

       - Como! - disse a favorita - tenho tão grande vontade que parta, que me arrisco a morrer se ficar; não me ajudará um pouco, querido duque?

       - Oh! Oh! - disse Richelieu apavonando-se - eis aí o que em política chamamos uma proposta.

       - Receba-a como quiser, chame-lhe como lhe aprouver, mas responda-me categoricamente.

       - Oh! Que feio e grande advérbio, numa boca tão pequena e tão formosa.

       - Chama a isso responder, duque?

       - Não, exactamente; é o que eu chamo preparar a minha resposta.

       - Está preparada?

       - Espere.

       - Hesita, duque?

       - Não.

       - Pois bem! Escuto.

       - O que diz dos apólogos, condessa?

       - Que são coisas velhas.

       - Ora! Também o Sol é velho, e ainda não inventamos coisa melhor para ver.

       - Pois venha o apólogo, mas que seja transparente.

       - Como cristal.

       - Vamos.

       - Dá atenção, formosa senhora?

       - Estou escutando.

       - Imagine, condessa; bem sabe que nos apólogos sempre se imagina.

       - Jesus! Quanto é aborrecido, duque.

       - Não acredito numa única palavra do que está dizendo, condessa, porque nunca me escutou com mais atenção.

       - Seja assim.

       - Imagine portanto que está passeando no seu lindo jardim de Luciennes, e que vê uma ameixa magnífica, uma dessas rainhas-cláudias de que tanto gosta, porque têm cores vermelhas e purpúreas, que se assemelham às suas.

       - Continue, lisonjeiro.

       - Vê, dizia eu, uma dessas ameixas na extremidade de um ramo, no mais alto da árvore, o que faz a condessa?

       - Sacudo a árvore, pudera!

       - Sim, mas inutilmente, porque a árvore é grande, inarrancável, como disse há pouco; e em pouco tempo conhece que, sem conseguir fazê-la abanar, arranha na casca as suas lindas mãozinhas. Então dizia, movendo a cabeça com esse modo encantador que só lhe é próprio a si e às flores: “Meu Deus! Meu Deus! Tomara eu ver cair aquela ameixa!” e fica desesperada.

       - É muito natural, duque.

       - Não lhe direi o contrário, certamente.

       - Continue, duque, interessa-me infinitamente o seu apólogo.

       - De repente, volta-se para trás e vê o seu amigo, o duque de Richelieu, que anda passeando e pensando.

       - Pensando em quê?

       - Boa pergunta, pensando em si. E diz-lhe com a sua adorável voz fina: “Ah! Duque! duque!”

       - Muito bem!

       - “É um homem, tem força, tomou Mahon, sacuda-me um pouco este diabo desta ameixoeira para eu apanhar aquele demónio de ameixa!” Não é assim, condessa?

       - Exactamente, duque; eu dizia isso mesmo em voz baixa, enquanto o senhor dizia em voz alta; mas o que me respondia?

       - Eu respondia...

       - Sim.

       - Respondia... “Devagar, condessa! Eu estimarei bem servi-la; mas olhe, note que é sólida esta árvore e como os ramos estão cheios de nós. Demais, eu desejo também conservar as minhas mãos, com os diabos! Ainda que tenham mais cinqüenta anos do que as suas.”

       - Ah! - exclamou a condessa - bem, bem, agora percebo.

       - Então, continue o apólogo; o que me diz?

       - Digo-lhe...

       - Com a sua linda voz fina?

       - Sempre.

       - Diga, diga.

       - Digo-lhe: “Meu marechalzinho, deixe de olhar indiferentemente para aquela ameixa, para a qual, ainda assim, só olha com indiferença porque lhe não é destinada; deseje-a comigo, caro marechal; cobice-a comigo, e se sacudir a árvore com jeito, se a ameixa cair, então!...”

       - Então?

       - “Havemos de a comer ambos.”

       - Bravo! - exclamou o duque batendo as palmas.

       - É isso?

       - Condessa! Não conheço ninguém com mais habilidade para acabar um apólogo. Por Satanás! Como dizia meu defunto pai, foi perfeitamente acabado!

       - Neste caso vai sacudir a árvore, duque?

       - Com toda a minha força, condessa.

       - E a ameixa será verdadeiramente uma rainha-cláudia?

       - Disso não há certeza, condessa.

       - O que será então?

       - Parece-me antes que será uma pasta que está no alto da árvore.

       - Então é para nós ambos.

       - Oh! Não, é só para mim. Não me inveje esse pedaço de marroquim, condessa; junto com ele, hão-de cair da árvore coisas tão boas, que terá muito por onde escolher.

       - Pois bem, marechal, é um negócio tratado.

       - Terei o lugar do senhor de Choiseul?

       - Se el-rei quiser.

       - El-rei não quer tudo quanto a condessa quer?

       - Bem vê que não, pois não quer mandar embora o seu Choiseul.

       - Oh! Espero que el-rei se dignará lembrar-se do seu antigo companheiro.

       - De armas?

       - Sim, de armas; os maiores perigos nem sempre são os da guerra, condessa.

       - E não me pede nada para o duque de Aiguillon?

       - Não; ele mesmo terá o cuidado de pedir.

       - Sim, que se dirija a si. Agora eu.

       - A condessa? O quê?

       - Fazer os meus pedidos.

       - É justo.

       - O que me dará?

       - O que quiser.

       - Quero tudo.

       - É razoável.

       - E terei tudo?

       - Boa pergunta! Mas diga-me, ficará assim satisfeita e nada mais pedirá?

       - Quero tudo, e alguma coisa mais.

       - O que é?

       - Conhece o senhor de Taverney?

       - Há quarenta anos.

       - Tem um filho.

       - E uma filha.

       - Exactamente.

       - Depois?

       - É tudo.

       - Como é tudo?

       - Sim, essa alguma coisa mais que falta pedir-lhe, eu lha pedirei em tempo e em lugar próprio.

       - Muito bem.

       - Então estamos entendidos, duque?

       - Sim, condessa.

       - Está assinado?

       - Melhor ainda, jurado.

       - Então sacuda a árvore.

       - Tenho meios para isso.

       - Quais são?

       - O meu sobrinho.

       - Que mais?

       - Os jesuítas.

       - Ah! Ah!

       - É um plano muito agradável, que eu já tinha formado para o que desse e viesse.

       - Pode saber-se?

       - Ah! Condessa...

       - Sim, sim, tem razão.

       - Bem sabe, o segredo...

       - É metade do bom resultado, concluo o seu pensamento.

       - A condessa é encantadora!

       - Mas eu quero também da minha parte sacudir a árvore.

       - Muito bem, sacuda, condessa; isso não pode fazer mal.

       - Tenho para isso os meus meios.

       - E julga que são bons?

       - Pagam-me para isso.

       - Quais são?

       - Ah! Vê-los-á, duque; ou antes...

       - O que é?

       - Não, não os verá.

       E com estas palavras, pronunciadas com uma delicadeza que só aquela boca encantadora podia ter, a louca da condessa, como se tornasse a si, baixou rapidamente as ondas de cetim da sua saia, que no grande acesso diplomático, haviam operado um movimento de fluxo equivalente ao do mar.

       O duque, que entendia um pouco de marinha, e que, por conseqüência, estava familiarizado com os caprichos do Oceano, riu às gargalhadas, beijou as mãos da condessa, e adivinhou, ele que tão bem adivinhava, que a sua audiência estava acabada.

       - Quando começará a manobrar, duque? – perguntou a condessa.

       - Amanhã.  E a condessa quando começará a sacudir?

       Ouviu-se no pátio uma grande bulha de carruagens, e quase acto contínuo brados de “Viva el-rei!”

       - Eu - disse a condessa olhando pela janela fora – eu vou começar.

       - Bravo!

       - Saia pela escada pequena, duque, e espere por mim em baixo. Dentro de meia hora terá a minha resposta.

 

O QUE TINHA LUÍS XV NA FALTA DE MELHOR

       El-Rei Luís XV não era tão afável, que todos os dias se pudesse conversar com ele de política.

       Efectivamente a política enfadava-o muito, e nos seus dias aziagos vinha com este argumento, a que se não podia responder:

       - Ora adeus! A máquina sempre há-de durar tanto como eu!

       Quando a circunstância era favorável, aproveitavam-na; mas raras vezes o monarca deixava de tomar de novo a sua superioridade que um momento de mau humor lhe fizera perder.

       A senhora du Barry conhecia tão bem o seu rei, como os pescadores conhecem o mar, e que por isso nunca embarcam em ocasião de tempestade.

       Ora aquele momento, em que el-rei vinha vê-la a Luciennes, era um dos instantes mais favoráveis possível. El-rei estava culpado pela falta da véspera, sabia já que ia receber uma repreensão. Portanto era dia muito favorável.

       Todavia, por mais fácil que seja a caça que se espera, há sempre nela um certo instinto, o qual é mister saber conhecer. Mas esse instinto é aniquilado quando o caçador é hábil.

       Eis como começou a condessa para atrair essa caça real, que queria fazer cair nas suas redes.

       Estava, como nos parece havê-lo já dito, num trajo caseiro muito elegante, tal como Boucher pinta as suas pastoras.

       Mas não tinha carmim no rosto; Luís XV antipatizava com o carmim.

       Assim que lhe deram parte da chegada de Sua Majestade, a condessa correu para o vaso de carmim e começou a esfregar o rosto com força.

       Da antecâmara viu el-rei o que a condessa du Barry estava fazendo.

       - Oh! - disse ele entrando; - que má! Está-se pintando!

       - Ah! Bom dia, senhor - disse a condessa sem se retirar de diante do espelho, e sem interromper a sua operação, nem mesmo quando el-rei lhe deu um beijo no pescoço.

       - Não me esperava agora, condessa? – perguntou el-rei.

       - Por que motivo pergunta isso, senhor?

       - Porque está enxovalhando o rosto.

       - Pelo contrário, senhor, eu tinha a certeza de que o dia se não havia de passar todo sem que tivesse a honra de ver Vossa Majestade.

       - Ah! Condessa, com que modo diz isso?

       - Sim?

       - Sim. Está com tanta seriedade como o Sr. Rousseau quando escuta a sua música.

       - É porque, efectivamente, senhor, tenho uma coisa muito séria que dizer a Vossa Majestade.

       - Ah! Bem, já adivinho, condessa.

       - Realmente?

       - Sim, vai ralhar...

       - Eu! Ora adeus, senhor! E por que motivo ralharia eu?

       - Por eu não ter vindo ontem.

       - Oh! Senhor, espero que me fará a justiça de crer, que não tenho a pretensão de confiscar a Vossa Majestade.

       - Joaninha, enfada-se?

       - Oh! Não, senhor; já estava enfadada.

       - Olhe, condessa, asseguro-lhe que não deixei de pensar em si um minuto sequer.

       - Ora!

       - E que a noite pareceu-me eterna.

       - Mas, ainda insiste, senhor, eu não falo disso. Vossa Majestade passa as noites onde mais lhe agrada, não é isso da conta de ninguém.

       - Em família, senhora, em família.

       - Senhor, nem mesmo tratei de indagar.

       - Por que não?

       - Porque, senhor, bem há-de conhecer que me não estaria bem.

       - Mas então - bradou el-rei - se não é por este motivo que me quer mal, por qual é? Porque enfim, neste mundo é preciso ser justo, ou dar pretexto à injustiça.

       - Eu não lhe quero mal, senhor.

       - Mas, se está enfadada?

       - Ah! Isso é verdade: sim, senhor, estou enfadada.

       - Mas por quê?

       - Por servir a Vossa Majestade na falta de melhor.

       - A condessa? Santo Deus!

       - Eu! Sim, eu! A condessa du Barry! A formosa Joana, a encantadora Joaninha, a sedutora Juanita, como diz Vossa Majestade; sim, eu sirvo para as faltas.

       - Mas por que diz isso?

       - Porque tenho o meu rei, o meu amante, quando a senhora de Choiseul e a senhora de Grammont o não querem já.

       - Oh! Oh! Condessa...

       - Adeus! Aconteça o que acontecer, eu digo as coisas francamente, como as sinto. Dir-lhe-ei mais, senhor, asseguram que a senhora de Grammont muitas vezes o tem espreitado ao entrar no seu quarto de dormir. Eu, farei o contrário da nobre duquesa; irei espreitar à saída, e o primeiro Choiseul ou a primeira Grammont que me cair debaixo das mãos... Que tenham paciência! Eu sei o que hei-de fazer!

       - Condessa! Condessa!

       - Que lhe hei-de fazer? Sou uma mulher malcriada. Sou amante de Blaise, a formosa borbonesa, bem sabe!

       - Condessa, os Choiseul hão-de vingar-se.

       - Que me importa, uma vez que se vinguem da minha vingança?

       - Não de nos vilipendiar.

       - Tem razão.

       - Ah!

       - Tenho um meio maravilhoso, e vou pô-lo em execução.

       - Qual é? - perguntou el-rei desassossegado.

       - É de me retirar pura e simplesmente.

       El-rei encolheu os ombros.

       - Ah! Não acredita, senhor?

       - Não.

       - É porque não quer dar-se ao incómodo de raciocinar. Confunde-me com outras.

       - Como?

       - Certamente. A senhora de Chateauroux queria ser uma deusa; a senhora de Pompadour queria ser rainha; as outras queriam ser ricas, poderosas, humilhar as mulheres da corte. Eu, não tenho nenhum desses defeitos.

       - É verdade.

       - E tenho muitas qualidades boas.

       - Também é verdade.

       - Não diz uma palavra do que pensa.

       - Oh! Condessa, ninguém está mais convencido do que eu, de quanto vale.

       - Pois sim, mas ouça, o que vou dizer-lhe não pode prejudicar a sua convicção.

       - Diga.

       - Em primeiro lugar, sou rica e de ninguém preciso.

       - Quer fazer-me arrepender disso, condessa?

       - Depois, não tenho soberba alguma por tudo isso que lisonjeava aquelas senhoras, não tenho desejo algum por tudo isso que elas ambicionavam; sempre quis amar o meu amante primeiro que tudo, quer esse amante fosse um mosqueteiro ou um rei. No dia em que eu deixar de amar, tudo me será indiferente.

       - Parece-me que lhe não sou de todo indiferente, condessa.

       - Ainda não acabei, senhor.

       - Então continue.

       - Tenho ainda que dizer a Vossa Majestade que sou formosa, que sou moça, que tenho ainda dez anos de formosura diante de mim; no dia em que eu deixar de ser amante de Vossa Majestade, hei-de ser, não só a mulher mais feliz do mundo, mas ainda a mais venerada. Está sorrindo, senhor. Nesse caso sinto muito dizer-lhe que é porque não pensa um pouco. As outras favoritas, meu querido rei, quando estava cansado delas e o seu povo cansadíssimo de as aturar, costumava expulsá-las, e fazia-se abençoar pelo seu povo, que odiava como dantes aquela que acabava de cair da sua graça. Mas eu não esperarei que me ponham fora; hei-de deixar o lugar e hei-de fazer com que todos saibam que o deixei. Darei cem mil libras aos pobres, irei passar oito dias num convento para fazer penitência, e antes de um mês o meu retrato há-de estar em todas as igrejas para fazer simetria ao da Madalena arrependida.

       - Oh! A condessa, não está falando sério - disse el-rei.

       - Olhe para mim, senhor, e veja se estou séria ou não: pelo contrário, juro-lhe que nunca em minha vida falei com mais seriedade.

       - Faria semelhante mesquinhez, Joana? Mas sabe que me coloca numa alternativa em extremo terrível, senhora condessa?

       - Por forma alguma, senhor, isso era se eu lhe dissesse: escolha entre isto ou aquilo.

       - Mas...

       - Mas digo muito simplesmente: “Adeus, senhor!”; e nada mais.

       El-rei empalideceu, mas desta vez foi com raiva.

       - Se se excede assim, minha senhora, acautele-se!

       - Por quê, senhor?

       - Porque a mandarei para a Bastilha.

       - A mim?

       - Sim, à senhora; na Bastilha aborrece-se a gente mais ainda do que no convento.

       - Oh! Senhor - disse a condessa de mãos postas faça-me essa mercê...

       - Que mercê?

       - De me mandar para a Bastilha.

       - Como?

       - Seria tão grande favor!

       - Por quê?

       - Sim, porque a minha maior ambição é ser popular como o senhor de La Chalotais ou como o senhor de Voltaire. Falta-me para isso a Bastilha; algum tempo de Bastilha, e serei a mulher mais feliz do mundo todo. Será uma bela ocasião para escrever as minhas memórias, em que hei-de falar dos seus ministros, de suas filhas, de si mesmo, transmitindo assim à posteridade mais afastada a relação de todas as virtudes de Luís o amado. Assine a ordem de prisão, senhor, aqui tem tinta e pena.

       E empurrou para o lado de el-rei uma pena e um tinteiro que estavam sobre a mesa.

       Assim arrostada a sua cólera, el-rei reflectiu um instante, e levantando-se, disse:

       - Está bom, adeus, minha senhora.

       - Aprontem os meus cavalos! - bradou a condessa; - adeus, senhor.

       El-rei deu um passo para o lado da porta.

       - Chon? - bradou a condessa.

       Chon apareceu.

       - As minhas malas, o meu trem de jornada e a posta; vamos, vamos - disse ela.

       - A posta! - disse Chon aterrada; - o que aconteceu, Santo Deus?

       - Aconteceu, minha querida, que se não partimos imediatamente Sua Majestade vai mandar-nos para a Bastilha. Portanto não há tempo a perder. Avia-te, Chon, avia-te.

       Este dito feriu Luís XV no coração; veio para a condessa e pegou-lhe na mão.

       - Perdão, condessa, perdão pela minha vivacidade.

       - Realmente, senhor, não sei por que motivo me não ameaça também com a forca?

       - Oh! Condessa!

       - Sem dúvida. Pois não é costume enforcar os ladrões?

       - Então?

       - Pois eu não roubo o lugar da senhora de Grammont?

       - Condessa...

       - Pois esse é o meu crime, senhor.

       - Ouça, condessa, seja justa: exasperou-me.

       - E agora?

       El-rei estendeu-lhe as mãos.

       - Ambos nós fizemos mal. Agora, perdoemo-nos mutuamente.

       - É seriamente que pede uma reconciliação, senhor?

       - Por minha alma.

       - Retira-te, Chon.

       - Sem ordenar coisa alguma? - perguntou a linda Chon a sua irmã.

       - Pelo contrário, ordena tudo quanto eu te disse.

       - Condessa...

       - Mas que esperem novas ordens.

       - Ah!

       Chon saiu.

       - Então ainda me quer? - disse a condessa a el-rei.

       - Mais que a tudo.

       - Reflicta no que diz, senhor.

       El-rei com efeito reflectiu, mas não podia recuar; e daí queria ver até que ponto chegariam as exigências do vencedor.

       - Fale - disse ele.

       - Ainda há pouco, senhor, note-o bem, eu partia sem pedir coisa alguma.

       - Bem o vi.

       - Mas se ficar, alguma coisa hei-de pedir.

       - O que é? Trata-se de saber qual é essa coisa, nada mais.

       - Ah! Bem o sabe.

       - Não.

       - Sabe-o, e a prova é que está com a fronte franzida.

       - A demissão do senhor de Choiseul?

       - Exactamente.

       - É impossível, condessa.

       - Então, a posta...

       - Mas, que estouvada...

       - Assine a ordem da minha prisão para a Bastilha, ou a carta demitindo o ministro.

       - Pode haver um meio termo - disse el-rei.

       - Agradeço a sua clemência, senhor; pelo que posso partir sem ser perseguida.

       - A condessa é mulher.

       - Felizmente.

       - E fala de política como verdadeira mulher bulhenta e raivosa. Não tenho motivos para despedir o senhor de Choiseul.

       - Sim, compreendo, o ídolo dos seus parlamentos, que os sustenta na sua revolta.

       - Mas enfim, é preciso um pretexto.

       - O pretexto é a razão do fraco.

       - Condessa, o senhor de Choiseul é um homem honrado, e hoje são raros.

       - É um homem honrado que o vende à gente de toga, que lhe come todo o ouro do seu reino.

       - Que exageração, condessa!

       - Então será metade.

       - Santo Deus! -bradou Luís XV despeitado.

       - Mas afinal - exclamou a condessa - que me importa a mim com os parlamentos, os Choiseul, o governo? Que me importa mesmo com el-rei, eu que só lhe sirvo na falta de melhor?

       - Outra vez!

       - Sempre, senhor.

       - Vamos, minha querida condessa, dê-me duas horas para reflectir.

       - Dez minutos, senhor. Retiro-me ao meu quarto, e passe-me depois a sua resposta por baixo da porta. Aí tem papel, pena e tinta. Se dentro de dez minutos não tiver respondido ou se a sua resposta não for à minha vontade, adeus, senhor! Não pense mais em mim, terei partido. Senão...

       - Senão?

       - Abra a porta... e entre.

       Luís XV, para dar-se certa firmeza, beijou a mão da condessa, que retirando-se, lhe dirigiu um dos seus mais provocadores sorrisos.

       El-rei não se opôs por forma alguma a que se retirasse, e a condessa du Barry entrou no quarto próximo e fechou a porta.

       Cinco minutos depois, um papel dobrado em quatro, roçando entre o rolete de seda da porta e a lã do tapete, foi introduzido no quarto.

       A condessa apanhando o bilhete, leu com avidez o seu conteúdo, escreveu à pressa algumas palavras com um lápis, e atirou essas palavras ao senhor de Richelieu que passeava no pátio pequeno, debaixo de um alpendre, com grande receio de ser visto, e que assim tinha esperado muito tempo de pé.

       O marechal desdobrou o papel, leu, e deitando a correr apesar dos seus setenta e cinco anos, chegou à sua carruagem que o esperava no pátio grande.

       - Cocheiro - disse ele - bate para Versalhes já, já, a toda a brida!

       Eis aqui o conteúdo do papel que a condessa atirara pela janela ao senhor de Richelieu:

       “Sacudi a árvore, caiu a pasta.”

 

DE QUE MODO LUÍS XV TRABALHAVA COM O SEU MINISTRO

       No dia seguinte era grande o rumor em Versalhes. As pessoas que se encontravam não se falavam senão com sinais misteriosos, com apertos de mão significativos, ou então encruzando os braços e olhando para o céu, em testemunho de dor e de surpresa.

       O senhor de Richelieu, com grande número de partidistas, estava na antecâmara de el-rei, no Trianon, pelas dez horas da manhã.

       O conde João, todo enfeitado, deslumbrante, conversava com o velho marechal, conversava alegremente, a julgar-se pelo seu rosto desvanecido.

       Pelas onze horas, passou el-rei; dirigiu-se ao seu gabinete de trabalho e não falou a ninguém. Sua Majestade andava muito depressa.

       Às onze horas e cinco minutos, o senhor de Choiseul apeou-se da sua carruagem e com a pasta debaixo do braço atravessou a galeria.

       Quando passou notou-se um grande movimento de pessoas, que se voltavam para fingirem que conversavam entre si e não cumprimentaram o ministro.

       O duque não prestou atenção a essa manobra; entrou no gabinete, onde el-rei estava folheando uns papéis enquanto tomava o seu chocolate.

       - Bons dias, duque - lhe disse el-rei amigavelmente; - como vamos hoje de saúde?

       - Senhor, Choiseul está de perfeita saúde, mas o ministro está muito doente, e vem rogar a Vossa Majestade, visto que de nada ainda lhe falou, que se digne aceitar a sua demissão. Agradeço a el-rei o haver-me permitido esta iniciativa; é uma última mercê pela qual lhe sou muito grato.

       - Como, duque, a sua demissão? O que quer isso dizer?

       - Senhor, Vossa Majestade assinou ontem, nas mãos da senhora du Barry, uma ordem que me demite; é uma notícia que já todos sabem em Paris e em Versalhes. O mal está feito. Entretanto, eu não quis largar o serviço de Vossa Majestade sem haver previamente recebido a ordem e a licença. Porque, nomeado oficialmente, só um acto oficial me pode demitir.

       - Como, duque! - exclamou el-rei rindo-se, porque a atitude severa e digna do senhor de Choiseul impunha-lhe até mesmo terror - como, o senhor, um homem de bom senso, um formalista, deu crédito a semelhante coisa?

       - Mas, senhor - disse o ministro admirado - assinou...

       - O quê?

       - Uma carta, que está em poder da senhora du Barry.

       - Ah! Duque, nunca lhe foi precisa a paz? É bem feliz!... O facto é que a senhora de Choiseul é um modelo.

       O duque, ofendido pela comparação, franziu as sobrancelhas.

       - Vossa Majestade - disse ele - é de um carácter muito firme e de um carácter muito feliz para envolver com os negócios do Estado o que se digna chamar negócios caseiros.

       - Choiseul, hei-de contar-lhe isso, é uma ratice; bem sabe que o temem muito.

       - Quer dizer que me odeiam, senhor.

       - Pois sim, como quiser; ora aquela estouvada condessa não veio pôr-me na alternativa de a mandar para a Bastilha ou de lhe agradecer os seus serviços!

       - Então, senhor?

       - Então, duque, confessará que seria pena perder o golpe de vista que Versalhes oferecia esta manhã. Desde ontem que me divirto em ver correr expressos por todas as estradas, em ver os rostos que se alongam ou se encurtam... Desde ontem está Cotillon III feita rainha de França. É divertidíssimo!

       - Mas o final, senhor?

       - O final, meu caro duque - disse Luís XV que tornara a mostrar a sua fisionomia séria - o final será sempre o mesmo. Bem me conhece, finjo que cedo, mas na realidade nunca cedo. Deixo as mulheres devorar o bolo de mel com que de vez em quando lhes atiro, como se fazia a Cérbero; mas nós, vivamos sossegadamente, imperturbavelmente, eternamente juntos. E já que estamos no capítulo dos esclarecimentos, guarde bem na memória isto que vou dizer-lhe. Qualquer boato que corra, qualquer carta minha que receba... Não deixe de vir a Versalhes... Enquanto eu lhe disser isto, duque, seremos sempre amigos.

       El-rei estendeu a mão ao ministro, que se inclinou sobre ela sem sinal nenhum de agradecimento nem de rancor.

       - Agora, caro duque, se bem lhe parece, trabalhemos.

       - Às ordens de Vossa Majestade - redargüiu Choiseul abrindo a pasta.

       - Vamos; para começar, diga-me algumas palavras a respeito do fogo de vistas.

       - Foi um grande desastre, senhor.

       - De quem foi a culpa?

       - Do Sr. Bignon, preboste dos mercadores.

       - O povo gritou muito?

       - Oh! Muito.

       - Então teria sido prudente, talvez, demitir esse Sr. Bignon.

       - O parlamento, como um dos seus membros esteve em perigo de morrer sufocado no tumulto, tomou o negócio a peito; mas o Sr. Procurador-Geral Séguier fez um discurso muito eloqüente para provar que essa desgraça foi obra da fatalidade. Foi apoiado, e agora é negócio de pouca importância.

       - Melhor! Falemos dos parlamentos... Ah! É disso que o culpam.

       - Culpam-me, senhor, por não defender o senhor de Aiguillon contra o senhor de La Chalotais; mas quem me culpa por tal? As mesmas pessoas que têm espalhado com alegria o boato da carta de Vossa Majestade. Lembre-se, senhor, que de Aiguillon exorbitou dos seus poderes na Bretanha, que os Jesuítas estavam realmente exilados, que o senhor de La Chalotais tinha razão; que Vossa Majestade mesmo, por um acto público, reconheceu a inocência desse Procurador-geral. Não é possível fazer desdizer assim el-rei! Em particular, com o seu ministro, é uma coisa, mas em público, com o seu povo, muda muito de figura!

       - E entretanto os parlamentos sentem-se fortes.

       - E com efeito estão. Como! Repreendem-nos, metem-nos nas prisões, vexam-nos e declaram-nos inocentes: e não haviam de ser fortes! Não acusei o senhor de Aiguillon por ter começado a questão de La Chalotais, mas nunca lhe perdoarei o ter andado nela sem razão.

       - Duque! Duque! O mal está feito, procuremos agora o remédio. De que modo se poderá pôr um freio àqueles insolentes?...

       - Cessem as intrigas do senhor Chanceler, perca o senhor de Aiguillon o apoio, e a raiva do parlamento cairá por si.

       - Mas, duque, assim terei eu cedido!

       - Então Vossa Majestade está representado pelo senhor de Aiguillon... ou por mim?

       O argumento era duro, el-rei sentiu-o.

       - Sabe - disse ele - que não quero desgostar os meus servidores, ainda mesmo quando se enganam em qualquer coisa... Mas deixemos de parte este negócio que me aflige, e ao qual o tempo fará justiça... Falemos um pouco do exterior... Dizem-me que vou ter guerra?

       - Senhor, se Vossa Majestade tiver guerra, há-de ser uma guerra leal e necessária.

       - Com os Ingleses... Diacho!

       - Vossa Majestade teme porventura os Ingleses?

       - Oh! No mar...

       - Descanse Vossa Majestade, o Sr. Duque de Praslin, meu primo e vosso ministro da marinha, vos dirá que tem sessenta e quatro naus, fora as que estão nos estaleiros, e os materiais precisos para construir mais doze num ano. Finalmente, cinqüenta fragatas de força, o que é uma posição respeitável para a guerra marítima. Quanto à guerra continental temos melhor que isso tudo, temos Fontenoy.

       - Muito bem; mas por que razão me hei-de bater contra os Ingleses, meu caro duque? Um governo muito menos hábil do que o seu, o do abade Dubois, evitou sempre a guerra com a Inglaterra.

       - Por certo, senhor, o abade Dubois recebia cada mês seiscentas mil libras dos Ingleses.

       - Oh! Duque.

       - Tenho provas disso, senhor.

       - Pois sim; mas em que vê agora motivos para termos guerra?

       - A Inglaterra quer todas as índias; tive que dar aos vossos oficiais as ordens mais severas e mais hostis. A primeira colisão que houver, dará lugar a reclamações da Inglaterra; a minha opinião formal é que não lhe devemos ceder. O governo de Vossa Majestade deve ser respeitado pela força como o era pela corrupção.

       - Ora tenhamos paciência; na índia, quem o há-de saber? É tão longe!

       O duque mordeu os lábios.

       - Há um casus belli mais perto de nós, senhor – disse ele.

       - Ainda! O que é?

       - Os Espanhóis pretendem a posse das ilhas Malouines e de Falclanda... O porto de Egmont estava arbitrariamente ocupado pelos Ingleses, os Espanhóis expulsaram-nos à viva força; dali provém o furor da Inglaterra: ameaça os Espanhóis com as últimas extremidades, se lhe não derem satisfação.

       - Pois bem! Mas se os Espanhóis não têm direito, eles que se entendam.

       - Senhor, e o pacto de família? Por que se empenhou em fazer assinar esse pacto que liga estreitamente todos os Borbons da Europa, e lhes faz um baluarte contra todas as empresas da Inglaterra?

       El-rei baixou a cabeça.

       - Não tenha cuidado, senhor - disse Choiseul; - Vossa Majestade tem um exército formidável, uma marinha respeitável e dinheiro bastante. Eu sei achá-lo sem fazer gemer os povos. Se tivermos a guerra, será um motivo de glória para o reinado de Vossa Majestade, e eu tenho em projecto alguns aumentos para os quais os próprios povos nos fornecerão o pretexto e a desculpa.

       - Então, duque, então haja paz no interior; não tenhamos guerra por toda a parte.

       - O interior está sossegado, senhor - replicou o duque afectando não perceber.

       - Não, não, bem se vê que não. O duque ama-me e serve-me. Há outra gente que diz também amar-me, mas cujos modos se não parecem com os seus; vamos, caro duque, eu quero viver feliz, quero ver harmonia em todos estes sistemas.

       - Não há-de depender só de mim que seja completa a vossa felicidade, senhor.

       - Isso é o que se chama falar. Pois bem! Venha hoje jantar comigo.

       - Em Versalhes, senhor?

       - Não, em Luciennes.

       - Oh! Muita pena tenho, senhor, mas a minha família ainda está toda aterrada pela notícia espalhada ontem. Julgam que estou caído da graça de Vossa Majestade. Não posso deixá-los em tanta aflição!

       - E aqueles de quem eu lhe falo, não padecem, duque? Lembre-se do modo por que todos três vivíamos no tempo daquela pobre marquesa!

       O duque baixou a cabeça, fechou os olhos, e um suspiro quase abafado se lhe escapou do coração.

       - A senhora de Pompadour era uma mulher muito zelosa da glória de Vossa Majestade - disse ele - e tinha elevadas idéias políticas. Confesso que o seu génio simpatizava com o seu carácter. Muitas vezes, senhor, associei-me com ela às grandes empresas que formava; sim, andávamos sempre de acordo.

       - Mas ela metia-se em política, duque, e toda a gente lhe levava isso a mal.

       - É verdade.

       - Esta, pelo contrário, é doce como uma ovelha; ainda não fez assinar uma única ordem de prisão, nem mesmo contra os autores dos panfletos e das canções. Pois bem! Acusam-na de defeitos que diziam ter a outra. Ah! Duque, tudo isto me faz desgostar do progresso... Vamos, venha a Luciennes fazer as pazes.

       - Senhor, Peço-lhe que assegure à Srª. Condessa du Barry que acho que é uma mulher encantadora e digna de todo o amor de el-rei, mas...

       - Ah! Aí vem um mas, duque...

       - Mas - prosseguiu o senhor de Choiseul - a minha convicção é que se Vossa Majestade é necessário à França, hoje um bom ministro é mais necessário a Vossa Majestade do que uma boa amante.

       - Não falemos mais nisto, duque, e fiquemos amigos. Veja se fala com a senhora de Grammont, para que não trame mais contra a condessa, as mulheres poderiam fazer nascer desinteligências entre nós.

       - A senhora de Grammont, senhor, tem demasiada vontade de agradar a Vossa Majestade; é essa a sua culpa maior.

       - E desagrada-me, fazendo mal à condessa, duque.

       - Também a senhora de Grammont vai partir, senhor; não a tornarão a ver: será um inimigo de menos.

       - Não digo que se faça tanto, duque. Mas, tenho a cabeça a escaldar; hoje trabalhamos como Luís XIV e Colbert; fomos hoje grandes, como dizem os filósofos. A propósito, duque, é filósofo?

       - Sou um servidor de Vossa Majestade - redargüiu o senhor de Choiseul.

       - Encanta-me porque é um homem impagável! Dê-me o braço, pois estou perturbado.

       O duque deu-se pressa em oferecer o braço a Sua Majestade.

       Adivinhava que as portas se iam abrir de par em par, que toda a corte estava na galeria, que iam vê-lo em tão esplêndida posição; depois de haver padecido tanto, não desgostava de fazer sofrer os seus inimigos.

       - Efectivamente, o porteiro abriu as portas e anunciou o rei na galeria.

       Luís XV, conversando sempre com o senhor de Choiseul, rindo-se para ele e encostando-se ao seu braço, atravessou por entre a multidão sem reparar, ou sem querer reparar, como João du Barry estava pálido e como o senhor de Richelieu estava vermelho.

       Mas o senhor de Choiseul viu bem essa diferença de cores. Passou de perna estendida, cabeça erguida, olhos brilhantes, diante dos cortesãos, que se aproximavam tanto dele como de manhã se haviam afastado.

       - Bem - disse el-rei no fim da galeria; - espere por mim, duque, há-de acompanhar-me ao Trianon. Lembre-se de tudo quanto eu lhe disse.

       - Guardei essas expressões no meu coração – redargüiu o ministro, sabendo perfeitamente que com essa frase abemolada feria a alma de todos os seus inimigos.

       El-rei saiu da galeria.

       O senhor de Richelieu saiu do meio da multidão e veio apertar entre as suas magras mãos a mão do ministro, dizendo-lhe:

       - Há muito tempo que sei que os Choiseul têm a alma bem pregada ao corpo.

       - Obrigado - disse o duque que sabia bem o que devia pensar.

       - Mas esse boato absurdo... - prosseguiu o marechal.

       - Esse boato fez rir muito Sua Majestade – disse Choiseul.

       - Falava-se de uma carta...

       - Foi mistificação da parte de el-rei - respondeu o ministro dirigindo esta frase a João du Barry, que se fazia de mil cores.

       - Maravilhoso! Maravilhoso! - repetiu o marechal, voltando-se para o conde, assim que o duque de Choiseul desapareceu e não o podia já ver.

       El-rei descia a escada chamando pelo duque, o qual se apressava em o seguir.

       - Ah! Ah! Fomos enganados - disse o marechal para João.

       - Onde vão eles?

       - Ao pequeno Trianon, rir à nossa custa.

       - Com mil diabos! - murmurou João. - Ah! Perdão, senhor marechal.

       - Agora eu - disse ele - vamos ver se o meio que tenho para empregar é melhor que o da condessa.

 

O PEQUENO TRIANON

       Quando Luís XIV mandou edificar Versalhes, e que, depois de concluído, conheceu os inconvenientes da sua grandeza; quando viu aquelas antecâmaras cheias de cortesãos, aqueles corredores e quartos cheios de lacaios, de pajens e de comensais, diz-se que Versalhes era verdadeiramente o que Luís XIV tinha querido mandar fazer e o que Mansard, Le Brun e Le Nôtre haviam feito, isto é, a residência de um deus, mas não a habitação de um homem.

       Então o grande rei, nos seus momentos de ócio, mandou construir o Trianon para respirar e ocultar um pouco a sua vida. Mas a espada de Aquiles, que havia fatigado o próprio Aquiles, devia ser de um peso insuportável para um sucessor de marca mais pequena.

       Trianon, essa diminuição de Versalhes, ainda pareceu muito pomposo a Luís XV, que mandou construir pelo arquitecto Gabriel o pequeno Trianon, edifício de sessenta pés quadrados.

       Ao lado esquerdo deste edifício, construiu-se outro, sem grandeza nem ornamentos: era o asilo da família e dos comensais. Havia, neste último, uns dez quartos para cinqüenta criados. Este edifício ainda se pode ver na sua integridade. Consta de um pavimento térreo, um primeiro andar e águas-furtadas. O pavimento térreo é defendido por um fosso que o separa dos bosques; todas as suas janelas têm grades assim como as do primeiro andar. Vistas do lado do Trianon, essas janelas dão luz a um extenso corredor muito semelhante ao de um convento.

       Oito ou nove portas, praticadas no corredor, conduzem aos quartos, todos eles compostos de uma antecâmara com dois gabinetes, um da direita outro da esquerda, e de uma casa de despejos, ou mesmo duas, com janela para o pátio interior do edifício.

       Por baixo deste pavimento estão as cozinhas. Nas águas-furtadas, os quartos dos criados.

       Acrescentemos a isto uma capela distante umas vinte toezas do palácio, cuja descrição não faremos, porque não nos é precisa, e porque o palácio não pode alojar mais família, como hoje diríamos.

       Portanto à topografia é esta: um palácio, o qual com seus grandes olhos contempla a quinta e os bosques; que tem por vizinho da esquerda o edifício dos criados, que só lhes oferece umas janelas com grades, janelas de corredores ou de cozinhas, quase tapadas por uma forte gradaria.

       Do grande Trianon, morada solene de Luís XV, passava-se para o pequeno por uma horta que unia as duas residências reais por meio de uma ponte de madeira.

       Foi por este jardim, que tinha sido desenhado e plantado por La Quintinie, que Luís XV conduziu o senhor de Choiseul ao pequeno Trianon, depois da trabalhosa audiência que acabámos de referir. Queria mostrar-lhe os aperfeiçoamentos que ele havia introduzido na nova residência do delfim e da delfina.

       O senhor de Choiseul admirava tudo, comentava tudo com a sagacidade de um cortesão, deixava el-rei dizer-lhe que o pequeno Trianon se tornava cada dia mais belo, mais encantador para ser habitado, e o ministro acrescentava que para Sua Majestade era essa a casa de família.

       - A delfina - disse ele - está ainda um pouco selvagem, como todas as alemãs moças; fala bem o francês, mas a pronúncia denuncia-a como austríaca aos ouvidos dos franceses. No Trianon só ouvirá amigos, só falará quando quiser, do que resulta que há-de falar bem.

       - Já notei - disse o senhor de Choiseul - que Sua Alteza Real é perfeita e nada deixa a desejar.

       No caminho os dois viajantes encontraram o senhor delfim, parado no meio de um quadrado de relva, tomando a altura do sol.

       O senhor de Choiseul inclinou-se profundamente, e como o delfim não lhe falou, também ele não disse palavra.

       El-rei disse em voz bastante alta para que o delfim o ouvisse:

       - Luís é um sábio, mas faz mal em quebrar a cabeça com as ciências, a sua esposa não lho há-de levar a bem.

       - Por forma alguma - respondeu uma voz doce que saía do centro de uns arbustos.

       E el-rei viu correr para ele a delfina, que conversava com um homem recheado de papéis, de compassos e de lápis.

       - Senhor - disse a princesa - é o Sr. Mique, meu arquitecto.

       - Ah! - disse el-rei - também tem essa moléstia, minha senhora?

       - Senhor, é doença da família.

       - Vai mandar edificar?

       - Vou mandar arranjar esta quinta em que toda a gente se aborrece.

       - Oh! Oh! Minha filha, diz isso em voz tão alta; o delfim poderia ouvi-la.

       - É coisa tratada entre mim e ele, meu pai – redargüiu a princesa.

       - De se aborrecer?

       - Não, mas de procurar divertimentos.

       - E Vossa Alteza quer mandar fazer obras? – disse o senhor de Choiseul.

       - Sim, senhor duque, quero mandar fazer um jardim deste pomar.

       - Ah! Pobre Le Nôtre! - disse el-rei.

       - Le Nôtre era um grande homem, senhor, para o gosto daquela época, mas para o meu gosto...

       - De que gosta, minha senhora?

       - De tudo que é natural.

       - Ah! Como os filósofos.

       - Ou como os Ingleses.

       - Bom! Diz isso na presença de Choiseul, ele vai fazer-lhe uma declaração de guerra. Vai soltar sobre si as sessenta e quatro naus e quarenta fragatas do senhor de Praslin, seu primo.

       - Senhor - disse a delfina - hei-de mandar aqui riscar um jardim natural pelo Sr. Roberto, o homem mais hábil do mundo para este género de planos.

       - A que chama jardins naturais? - perguntou el-rei. Eu julgava que árvores e flores, ou mesmo frutas como agora apanhei no caminho, eram coisas naturais.

       - Senhor, poderia passear cem anos nos jardins do seu país, que nunca veria outra coisa senão ruas muito direitas ou tabuleiros de arbustos formando ângulos de quarenta e cinco graus, como diz o senhor delfim, ou lagos guarnecidos de relva, aos quais aliam muitas e diversas outras plantações.

       - Então isso é feio?

       - Não é natural.

       - Eis aí uma rapariguinha bem amante da natureza - disse el-rei, com um modo mais jovial do que alegre - Vejamos o que vai fazer do meu Trianon.

       - Rios, cascatas, pontes, grutas, rochedos, bosques, ribanceiras, casas, montanhas, prados.

       - Para bonecos? - disse el-rei.

       - Ah! Senhor, para reis como nós havemos de ser – respondeu a princesa sem reparar na cor que assomou às faces de Luís XV, e sem notar que pressagiava a si mesma uma lúgubre verdade.

       - Então desmancha tudo? E o que edifica?

       - Conservarei.

       - Ah! Ainda assim é uma fortuna que nestes bosques e rios não mande alojar os seus criados como selvagens, esquimós e gronelandeses. Teriam assim uma vida natural, e o Sr. Rousseau havia de chamar-lhes os filhos da natureza... Faça isso, minha filha, e será adorada pelos enciclopedistas.

       - Senhor, os meus servidores teriam muito frio nessas habitações.

       - Onde os aloja então, se destrói tudo? Não há-de ser no palácio, onde apenas há lugar para os dois.

       - Senhor, a casa dos criados fica tal qual.

       E a delfina indicou as janelas daquele corredor que descrevemos.

       - Quem é aquela pessoa que vejo ali na janela? – perguntou el-rei pondo uma das mãos diante dos olhos em guisa de viseira.

       - É uma mulher, senhor - disse o duque de Choiseul.

       - É uma menina que tomei para minha casa – disse a delfina.

       - A menina de Taverney - disse Choiseul, cuja vista era apurada.

       - Ah! - disse el-rei - tem aqui os Taverney?

       - A menina de Taverney unicamente, senhor.

       - Encantadora criatura. E que fará dela?...

       - A minha leitora.

       - Muito bem - disse el-rei sem desviar um instante os olhos da janela de grades onde estava a menina de Taverney, ainda pálida por causa da sua doença, e que olhava em torno de si com a maior inocência, sem mesmo desconfiar que a observavam.

       - Como está pálida! - disse o senhor de Choiseul.

       - Escapou por pouco de ser morta na noite de 31 de Maio, senhor duque.

       - Realmente? Pobre rapariga! - disse el-rei. – Aquele Sr. Bignon merecia castigo.

       - Mas a menina está já restabelecida? - acudiu logo o senhor de Choiseul.

       - Graças a Deus, senhor duque.

       - Ah! - disse el-rei - lá foge.

       - Terá conhecido Vossa Majestade; ela é tímida.

       - Há muito tempo que está com Vossa Alteza?

       - Desde ontem, senhor; quando aqui me instalei, mandei-a apresentar.

       - Que triste habitação para uma menina formosa! - disse Luís XV; - aquele demónio de Gabriel era bem mal jeitoso! Não se lembrou que as árvores, crescendo, cobriam as janelas daquele edifício e que lhe haviam de tirar toda a vista.

       - Não, não, senhor, juro-lhe que a habitação é suportável.

       - Não é possível - disse Luís XV.

       - Quer Vossa Majestade certificar-se do que lhe digo? - disse a delfina, morrendo por fazer as honras da sua casa.

       - Pois sim. Vem, Choiseul?

       - Senhor, são duas horas, às duas e meia tenho um conselho de parlamento. Apenas tenho tempo de voltar a Versalhes.

       - Pois bem! Vá, duque, vá, e sacuda-me bem esses samarras negros. Delfina, mostre-me as suas casas, se lhe apraz. Eu sou doido por ver essas coisas.

       - Venha, Sr. Mique - disse a delfina ao seu arquitecto - terá ocasião de ouvir Sua Majestade, que tão entendido é nestes assuntos.

       El-rei caminhou adiante, a delfina seguiu-o.

       Subiram o pequeno patim que conduz à capela, deixando de parte a passagem dos pátios.

       A porta da capela é do lado esquerdo, à direita da escada que conduz ao corredor dos quartos.

       - Quem está aqui alojado? - perguntou Luís XV.

       - Por ora, ninguém, senhor.

       - Vejo uma chave na porta do primeiro quarto.

       - Ah! É verdade, a menina de Taverney está hoje mobilando os seus quartos.

       - São estes? - perguntou-lhe el-rei designando a porta.

       - Sim, senhor.

       - E está em casa? Se está, não entremos.

       - Senhor, ela desceu há pouco; vi-a debaixo do telheiro do pátio das cozinhas.

       - Então mostre-me os quartos.

       - Como quiser, senhor - redargüiu a delfina.

       E introduziu el-rei no único quarto precedido por uma antecâmara e dois gabinetes.

       Alguma mobília já posta em ordem, livros e um cravo, atraíram a atenção de el-rei, assim como um enorme ramalhete das mais belas flores, que a menina de Taverney havia já posto num vaso do Japão.

       - Ah! - disse el-rei - que lindas flores! E quer desmanchar o jardim!... Quem fornece aos seus servidores tão belas flores para que possam dar ramalhetes assim?

       - Efectivamente, é um lindo ramo.

       - O jardineiro é atencioso com a menina... de Taverney... Quem é o jardineiro?

       - Não sei, senhor; isto é da atribuição do Sr. Jussieu, e é ele portanto que os admite.

       El-rei relanceou os olhos em torno da habitação toda, chegou à janela, olhou para o pátio e retirou-se.

       Sua Majestade atravessou a quinta, e voltou ao grande Trianon; as carruagens esperavam-no para uma caçada, que devia verificar-se depois do jantar, isto é, das três para as seis horas da tarde.

       O delfim continuava a tomar a altura do sol.

 

RENOVA-SE A CONSPIRAÇÃO

       Enquanto el-rei, para sossegar bem o senhor de Choiseul e não perder ele mesmo o seu tempo, passeava assim no Trianon, esperando pela caça, Luciennes era o centro de uma reunião de conspiradores espantados, que chegavam a toda a pressa para junto da senhora du Barry, como aves que sentiram o cheiro da pólvora do caçador.

       João e o marechal de Richelieu, depois de terem por muito tempo olhado um para o outro com expressão de despeitados, tinham sido os primeiros a voar para junto da condessa.

       Os outros eram favoritos ordinários, que uma queda certa de Choiseul havia atraído, que a sua confirmação no poder havia espantado, e que, não achando já ao seu alcance o ministro para se agarrarem a ele, voltavam maquinalmente a Luciennes para ver se ainda era sólida bastante a árvore para se agarrarem a ela como dantes.

       A senhora du Barry, depois das fadigas da sua diplomacia e do triunfo enganador que a tinha coroado, dormia a sesta quando chegou à sua porta a carruagem de Richelieu, que vinha com o estrondo e a celeridade de um furacão.

       - Ama du Barry dorme - disse Zamora sem se incomodar.

       João fez dar umas poucas de cambalhotas a Zamora, por meio de um tremendo pontapé aplicado sobre os bordados mais largos e ricos da sua farda de governador.

       Zamora soltou uns gritos agudíssimos.

       Chon acudiu.

       - Ainda bates neste pequeno, grande desastrado? – disse ela.

       - Eu sou capaz até de te exterminar a ti – prosseguiu João com os olhos chamejantes - se não fores imediatamente acordar a condessa.

       Mas não era necessário ir acordar a condessa, que, ouvindo os gritos de Zamora, ouvindo os ralhos de João, havia pressentido alguma desgraça e acudia envolta num penteador.

       - O que sucedeu? - perguntou ela toda assustada por ver que João se tinha estendido ao comprido sobre um canapé para acalmar a agitação da sua cólera, e que o marechal nem sequer lhe havia beijado a mão.

       - Sucedeu, sucedeu... - disse João - com os diabos! Sucedeu que temos ainda o Choiseul.

       - Como?

       - Sim, mais sólido que nunca, com mil diabos!

       - O que queres dizer?

       - O Sr. Conde du Barry tem razão – prosseguiu Richelieu; - temos o duque de Choiseul mais sólido que nunca.

       A condessa tirou do seio o bilhetinho de el-rei.

       - E isto? - perguntou ela sorrindo.

       - Leu bem, condessa? - perguntou o marechal. - Não duvido, minha senhora; permite que eu leia também?

       - Certamente; leia.

       O duque pegou no bilhete, abriu-o vagarosamente e leu:

       “Amanhã hei-de agradecer ao senhor de Choiseul os seus serviços. Obrigo-me positivamente. - Luís.”

       - É claro ou não? - perguntou a condessa.

       - Perfeitamente claro - redargüiu o marechal fazendo uma visagem.

       - Então, o que é? - disse João.

       - Então, amanhã é que teremos a vitória, ainda se não perdeu tudo.

       - Como, amanhã? Mas el-rei assinou isso ontem; portanto, amanhã há-de sempre ser o dia seguinte àquele em que quiser ver o senhor de Choiseul em terra. Na Rua da Grange-Batelière, a cem passos de distância da minha casa, há uma taberna em cuja tabuleta se lê em letras vermelhas o seguinte: “Aqui, só se fia amanhã”. Amanhã, é nunca.

       - El-rei zombou connosco - disse João enfurecido.

       - É impossível - murmurou a condessa aterrada. - Um semelhante logro é indigno.

       - Ah! Minha senhora, Sua Majestade é muito jovial - disse Richelieu.

       - Há-de pagar-mo, duque - continuou a condessa com um acento de cólera.

       - E daí, condessa, não tem que repreender el-rei por isto; não deve acusar Sua Majestade de dolo nem de logro; não, el-rei cumpriu a sua promessa.

       - Ora adeus! - disse João fazendo com os ombros um movimento pouco delicado.

       - O que prometeu ele? - bradou a condessa – prometeu agradecer a Choiseul.

       - E eis aí a verdade, minha senhora. Eu ouvi Sua Majestade agradecer positivamente ao duque os seus serviços. A palavra tem dois sentidos: em diplomacia, toma cada um o que mais lhe convém. Escolheu o sentido que lhe convinha. Deste modo já nem está em litígio a palavra amanhã. Havia de ser hoje, segundo diz, que el-rei devia cumprir a sua promessa; pois cumpriu-a. Eu ouvi o agradecimento.

       - Duque, parece-me que não é ocasião favorável para motejar.

       - Julga que estou brincando, condessa? Pergunte-o ao conde João.

       - Não, por Deus! Não estamos brincando; esta manhã o duque de Choiseul foi abraçado e festejado por el-rei, e a estas horas, estão ambos passeando, de braço dado, nos Trianons.

       - De braço dado! - repetiu Chon, que havia entrado para o gabinete, e ergueu os seus alvos braços como um novo modelo de Níobe desesperada.

       - Sim, zombaram de mim - disse a condessa; - mas veremos... Chon, primeiro que tudo é preciso dar contra-ordem para que não tratem do meu trem de caça; não irei!

       - Bom! - disse João.

       - Espere! - exclamou Richelieu - nada de precipitações, de amuos... Ah! Perdão, condessa, perdão, se me atrevo a dar-lhe conselhos.

       - Continue, duque, faz favor. Parece-me que perco a cabeça. Assim é que são as coisas: não se quer a gente meter em política, e mal do dia em que se dá um passo no caminho dela; o amor-próprio lança a gente nesses negócios em corpo e alma... Dizia, senhor duque...

       - Que amuar-se hoje não é prudente. Olhe, condessa, a posição é difícil. Se el-rei decididamente se empenha pelos Choiseul, se se deixa influenciar pela sua delfina, se assim lhe faz desfeitas, nesse caso...

       - Fale!

       - Deve tornar-se ainda mais amável do que é, condessa. Bem sei que é impossível, mas enfim o impossível torna-se uma necessidade da nossa situação; faça portanto o impossível.

       A condessa reflectiu.

       - Porque enfim - prosseguiu o duque - se el-rei se lembrasse de adoptar os costumes alemães...

       - Ah! Se se lembrasse de ser virtuoso! – exclamou João aterrado.

       - Quem sabe, condessa? - disse Richelieu. - A novidade é coisa tão sedutora.

       - Oh! Quanto a isso - redargüiu a condessa com certo sinal de incredulidade - não o creio.

       - Têm-se visto coisas mais extraordinárias, minha senhora, e o provérbio do diabo, que se fez eremita... Portanto seria conveniente não mostrar amuos; seria muito conveniente.

       - Mas eu sufoco de raiva.

       - Creio bem. Sufoque, condessa, mas que el-rei não perceba, isto é, o senhor de Choiseul; sufoque em particular, mas diante deles, respire.

       - E deverei ir à caça?

       - Seria muito bom.

       - E o duque?

       - Oh! Eu, ainda que me fosse preciso lá ir a quatro pés, hei-de ir.

       - Venha então na minha carruagem - bradou a condessa, para ver a fisionomia que apresentaria o seu aliado.

       - Condessa - redargüiu o duque com uns requebros que ocultavam o seu despeito - é uma felicidade tão grande...

       - Que a rejeita, não é assim?

       - Eu? Deus me livre. Mas note, condessa, vai comprometer-se.

       - Ele confessa-o tem cara de o confessar! – exclamou a senhora du Barry.

       - Condessa! Condessa! O senhor de Choiseul nunca me perdoará!

       - Então já está de bem com o senhor de Choiseul?

       - Condessa! Condessa! Vou ficar mal com a senhora delfina.

       - Prefere que façamos a guerra cada um do seu lado, mas sem partilhar o resultado? Ainda é tempo. Não está comprometido, e pode retirar-se da associação.

       - Não me conhece, condessa - disse o duque beijando-lhe a mão. - Viu-me hesitar no dia da sua apresentação, quando se tratava de lhe alcançar um vestido, um cabeleireiro e uma carruagem? Saiba que não hesitarei hoje mais do que então. Oh! Sou mais valente do que pensa, condessa.

       - Então, está tratado. Iremos ambos à caça, e será isso um pretexto para eu não ver, não ouvir e não falar a pessoa alguma.

       - Nem mesmo a el-rei?

       - Pelo contrário, quero dizer-lhe finezas que hão-de desesperá-lo.

       - Bravo, essa guerra é boa.

       - E tu, João, o que fazes, vejamos? Levanta-te um pouco dessas almofadas; estás enterrado em vida, meu amigo.

       - O que faço, queres sabê-lo?

       - Sim, talvez possa isso servir-nos para alguma coisa.

       - Pois bem, estou pensando.

       - Em quê?

       - Penso que a estas horas todos os cançonetistas da cidade e dos parlamentos estão-nos guisando em todos os tons possíveis; que o jornal Novidades Prontas nos retalha como carne para empadas; que o Jornal dos Observadores nos observa até à medula dos ossos; e que enfim, amanhã havemos de acordar em tal estado que seremos dignos de dó, mesmo dos Choiseul.

       - Conclui, portanto?... - perguntou o duque.

       - Concluo que vou a Paris comprar fios e ungüento para curar as nossas feridas. Dá-me dinheiro, querida mana.

       - Quanto? - perguntou a condessa.

       - Uma bagatela qualquer... Uns duzentos ou trezentos luíses.

       - Vê, duque - disse a condessa voltando-se para Richelieu - começo já a pagar as despesas da guerra!

       - É a entrada em campanha, condessa; semeie hoje, colherá amanhã.

       A condessa encolheu os ombros com um movimento indescritível. Ergueu-se, foi a uma gaveta, tirou um punhado de bilhetes de caixa, que entregou a João sem os contar, o qual, sem também os contar, os meteu na algibeira soltando um profundo suspiro.

       Depois, levantando-se, espreguiçando-se, torcendo os braços, como um homem muito cansado, João deu alguns passos pela casa.

       - Eis aí - disse ele apontando para o duque e para a condessa - estes vão divertir-se na caça enquanto eu vou galopar até Paris; vão ver guapos cavalheiros e formosas mulheres, eu vou contemplar os rostos hediondos dos borradores de papéis. Decididamente, sou o cão da casa.

       - Note, duque - disse a condessa - que ele não vai tratar da nossa causa; vai talvez dar metade dos meus bilhetes a alguma marafona e jogar o resto em alguma taberna. É o que ele vai fazer, e para isso solta aquele miserável tantas exclamações! Vai, João, retira-te, que me estás causando tédio.

       João despejou nas algibeiras o conteúdo de três caixas de pastilhas, roubou de cima da mesa uma chinesa com olhos de brilhantes, e saiu empanturrando-se, perseguido pelos gritos nervosos da condessa.

       - Que encantador moço! - disse Richelieu, com o tom que um parasita adopta para louvar uma dessas crianças terríveis, sobre cuja cabeça roga em voz baixa que caiam todas as pragas do demónio; - é-lhe muito caro, não é verdade, condessa?

       - É como diz, duque; fixou a sua bondade sobre mim, e rende-lhe isto trezentas ou quatrocentas mil libras cada ano.

       O relógio deu horas.

       - Meia hora depois do meio-dia, condessa - disse o duque - e felizmente está quase vestida; mostre-se um pouco aos seus cortesãos, que poderiam julgar que há eclipse, e vamos quanto antes para a carruagem. Sabe que caminho segue a caça?

       - Estava tratado ontem entre Sua Majestade e eu que ia à floresta de Marly, e vinham buscar-me na passagem.

       - Oh! Tenho a certeza que el-rei nada terá mudado ao programa.

       - Agora o seu plano, duque, porque lhe toca dá-lo.

       - Minha senhora, escrevi ontem a meu sobrinho, o qual, contudo, se der crédito aos meus pressentimentos, deve já estar a caminho.

       - O senhor de Aiguillon?

       - Muito me admirarei que a minha carta não o vá encontrar amanhã no caminho, e que ele não chegue aqui amanhã, ou quando muito, depois de amanhã.

       - E conta com ele?

       - Ah! Minha senhora, ele tem uma imaginação fértil.

       - É preciso que nos ajudem, seja quem for, porque estamos bem doentes; el-rei mesmo cederia, mas tem um medo horrível dos negócios.

       - De modo que...

       - De modo que receio muito que não consinta nunca em sacrificar o senhor de Choiseul.

       - Quer que lhe fale francamente, condessa?

       - Certamente.

       - Pois saiba que sou da sua opinião. El-rei há-de sempre iludir-nos com meios semelhantes aos que ontem pôs em prática. Sua Majestade tem tanto espírito! Pela sua parte, condessa, não irá decerto arriscar-se a perder o seu amor por uma teima louca.

       E dizendo estas palavras, o marechal olhava fixamente para a senhora du Barry.

       - Diacho! É preciso pensar bem.

       - Bem vê, condessa, que o senhor de Choiseul há-de estar aí eternamente; e para o desalojar precisamos de nada menos que de um milagre.

       - Sim, um milagre - repetiu Joana.

       - E desgraçadamente os homens já não os fazem - respondeu o duque.

       - Oh! - redargüiu a senhora du Barry - eu conheço um que ainda os sabe fazer.

       - Conhece um homem que faz milagres, condessa?

       - É verdade.

       - E não me contou isso?

       - Só agora me lembrou, duque.

       - Julga que é algum velhaco capaz de nos tirar deste embaraço?

       - Julgo-o capaz de tudo.

       - Oh! Oh! E que milagre operou ele? Conte-me isso, condessa, quero julgá-lo pela amostra.

       - Duque - disse a senhora du Barry aproximando-se de Richelieu e baixando a voz involuntariamente - é um homem que há-de haver dez anos me encontrou na Praça de Luís XV e disse que eu seria a rainha de França.

       - Com efeito, é milagroso! E esse homem seria capaz de me profetizar que hei-de morrer primeiro-ministro?

       - É possível.

       - Oh! Não o duvido. Como se chama ele?

       - O nome nada inculca.

       - Onde está ele?

       - Ah! Isso ignoro eu.

       - Não lhe deu a morada?

       - Não. Tinha prometido vir pessoalmente receber a sua recompensa.

       - O que lhe tinha prometido?

       - Tudo quanto me pedisse.

       - E não apareceu?

       - Não.

       - Condessa, isso ainda é mais maravilhoso do que a sua profecia. Decididamente é o homem que precisamos.

       - Mas como o veremos?

       - Como se chama ele, condessa, como se chama ele?

       - De dois modos.

       - Procedamos em boa ordem: o primeiro modo?

       - O conde de Fénix.

       - Como? Aquele homem que me mostrou no dia da sua apresentação?

       - Exactamente.

       - Um prussiano?

       - Um prussiano.

       - Oh! Já não tenho tanta confiança nele. Todos os feiticeiros que eu tenho conhecido usavam de nomes que acabavam em i ou em o.

       - Exactamente, duque, o segundo nome acaba ao seu gosto.

       - Como se chama ele?

       - José Bálsamo.

       - Enfim, não teria meio algum de o tornar a encontrar?

       - Vou pensar nisso, duque. Parece-me que sei de alguém que o conhece bem.

       - Bom. Mas apresse-se, condessa. Já lá vão três quartos de hora depois do meio-dia.

       - Estou pronta. A minha carruagem!

       Dez minutos depois a senhora du Barry e o senhor de Richelieu iam ao lado um do outro na carruagem, para a caça.

 

A CAÇA AO FEITICEIRO

       A comprida fileira de carruagens enchia as avenidas da floresta de Marly, onde el-rei andava caçando.

       Era o que se chamava uma caçada da tarde.

       Com efeito, Luís XV, nos últimos tempos da sua vida, não caçava já de modo nenhum; contentava-se em ver caçar.

       Aqueles dos nossos leitores que leram Plutarco hão-de lembrar-se talvez daquele cozinheiro de Marco António, que de hora em hora punha um porco montês no espeto, a fim de que, entre cinco ou seis que estavam assando, houvesse um sempre pronto para o momento em que Marco António quisesse ir para a mesa.

       É porque Marco António, no seu governo da Ásia Menor, tinha negócios em abundância: administrava a justiça, e como os Cilicianos são uns grandes ladrões, facto que é provado por Juvenal, Marco António andava sempre muito preocupado. Tinha, portanto, uma escala de cinco ou seis assados no espeto para o momento em que por acaso as suas funções de juiz lhe deixassem tempo de comer um bocado.

       Ora, com Luís XV acontecia coisa semelhante. Para as caçadas da tarde havia sempre dois ou três gamos lançados sempre a duas ou três horas diferentes, e conforme a disposição em que estava, escolhia a montaria perto ou distante.

       Nesse dia Sua Majestade tinha declarado que se demoraria na caça até às quatro horas da tarde. Havia-se portanto escolhido um gamo lançado ao meio-dia e que prometia durar até então.

       Por sua parte, a senhora du Barry prometia seguir el-rei, tão fielmente como el-rei havia prometido seguir o gamo.

       Mas os monteiros propõem e o acaso dispõe. Uma combinação do acaso mudou tão belo projecto da senhora du Barry.

       A condessa havia achado no acaso um adversário quase tão caprichoso como ela.

       Enquanto, conversando em política com o senhor de Richelieu, a condessa corria atrás de Sua Majestade, que pela sua parte corria atrás do gamo, e que o duque e ela correspondiam a uma parte dos cumprimentos que no caminho lhes eram dirigidos, distinguiram de repente, afastado uns cinqüenta passos da estrada, debaixo de um belíssimo dossel feito de árvores enormes e copadas, uma carruagem virada no meio do chão, cujas duas rodas estavam cada uma para seu lado, enquanto os dois cavalos pretos, que até ali a haviam puxado, pastavam com todo o sossego, um na casca de uma faia, outro no musgo que tinha aos pés.

       Os cavalos da carruagem da senhora du Barry, parelha magnífica dada por el-rei, haviam passado adiante de todas as outras carruagens, e tinham sido os primeiros em chegar ao pé dessa carruagem quebrada.

       - Ah! Uma desgraça! - disse tranquilamente a condessa.

       - É verdade - respondeu o duque de Richelieu com o mesmo tom fleumático, porque na corte pouco uso se faz da sensibilidade; - é verdade, e a carruagem está feita em pedaços.

       - Será um cadáver que vejo acolá estendido sobre a relva? - perguntou a condessa. - Olhe, duque!

       - Parece-me que não; é coisa que mexe.

       - É homem ou mulher?

       - Não sei. Vejo pouco.

       - Olhe, é coisa que corteja.

       - Então não é coisa morta.

       E Richelieu, em todo o caso, tirou da cabeça o seu chapéu de três bicos e cortejou.

       - Ah! Condessa - disse ele - parece-me...

       - Também a mim.

       - Que é Sua Eminência o Príncipe Luís.

       - O cardeal de Rohan em pessoa.

       - Que diacho está ele ali fazendo? - perguntou o duque admirado.

       - Vamos ver - respondeu a condessa. - Champanha! - bradou ela para o cocheiro - dirige-nos ao lugar onde está aquela carruagem quebrada.

       O cocheiro tomou imediatamente a direcção que lhe indicavam.

       - É verdade, sim, é o senhor cardeal - disse Richelieu.

       Era com efeito Sua Eminência que se havia deitado sobre a relva, esperando que passasse alguém conhecido.

       Vendo a senhora du Barry vir para ele, levantou-se.

       - Tenho a honra de cumprimentar a senhora condessa - disse ele com galanteria.

       - Como, cardeal, é o senhor?

       - Eu mesmo.

       - A pé?

       - Não, sentado.

       - Está ferido?

       - Não, senhora.

       - E que acaso o colocou em semelhante estado?

       - Não falemos nisso, minha senhora; foi aquele bruto do cocheiro, um maroto que me veio de Inglaterra, a quem mandei atravessar a floresta, por ser um atalho, e encontrar mais depressa a caçada, que deu uma volta tão curta que me tomba a carruagem e fez-ma em pedaços... E era a melhor que eu tinha.

       - Não se queixe disso, cardeal, se fosse um cocheiro francês, além de lhe despedaçar a carruagem ter-lhe-ia quebrado a cabeça ou pelo menos as costelas.

       - Talvez assim fosse.

       - Então console-se.

       - Oh! Sou um pouco filósofo, condessa; mas o que me enfada é ter de esperar muito.

       - Como, príncipe, esperar? Um Rohan havia de esperar!

       - Que remédio tenho.

       - De modo nenhum, seria mais fácil apear-me eu da minha carruagem do que deixá-lo aí.

       - Realmente, minha senhora, estou confuso.

       - Suba, príncipe, suba.

       - Não, minha senhora, muito obrigado, espero por Soubisse que também anda na caça e não pode deixar de aparecer dentro de alguns momentos.

       - Mas se levou outro caminho?

       - Não importa.

       - Senhor, rogo-lhe...

       - Não, muito obrigado.

       - Mas por quê?

       - Não quero incomodá-la.

       - Cardeal, se recusa, mando pegar na minha cauda por um lacaio, e vou eu a correr pelos bosques como se fosse uma dríada.

       O cardeal sorriu, e pensando que uma resistência mais prolongada poderia ser mal interpretada pela condessa, decidiu-se a aceitar o oferecimento.

       O duque havia já cedido o seu lugar no coxim de trás, mudando-se para o de diante.

       O cardeal fez uma cerimónia para se sentar no lugar principal, mas o duque foi inflexível.

       Em breve os cavalos da carruagem da condessa recuperaram o tempo perdido.

       - Perdão, senhor - disse a condessa ao cardeal pelo que vejo também gosta de caçar?

       - Por quê?

       - É porque o vejo agora pela primeira vez tomar parte em semelhante divertimento.

       - Não, condessa. Eu tinha vindo a Versalhes para ter a honra de cumprimentar Sua Majestade, e deram-me a notícia de que havia partido para a caça; tinha que lhe falar de um negócio urgente; vim procurá-lo, mas, graças àquele maldito cocheiro, nem só não encontrei el-rei, mas ainda faltarei a uma entrevista que devo ter em Paris.

       - Vê, minha senhora - disse o duque rindo – o senhor cardeal confessa francamente as coisas... Tem uma entrevista.

       - À qual hei-de faltar, torno a repetir – redargüiu Sua Eminência.

       - Pois um Rohan, um príncipe, um cardeal, falta a alguma coisa? - disse a condessa.

       - Ah! - respondeu o cardeal - salvo o caso de milagre.

       O duque e a condessa olharam um para o outro, recordava-lhes essa palavra uma recente conversa.

       - Ora pois, príncipe, já que fala de milagres – disse a condessa - confessarei francamente uma coisa: é que estimo muito ver-me na companhia de um príncipe da igreja para lhe perguntar se crê em semelhante coisa?

       - Em quê, minha senhora?

       - Em milagres - disse o duque.

       - A Escritura faz-nos disso um artigo de fé, minha senhora - disse o cardeal tentando mostrar um modo de crente.

       - Oh! Não falo dos milagres antigos - atalhou a condessa.

       - Então de que milagres fala, minha senhora?

       - Dos modernos.

       - Esses, confesso, são mais raros - disse o cardeal - Entretanto...

       - Entretanto, o quê?

       - Enfim, tenho visto coisas que, se não eram milagrosas, eram pelo menos muito incríveis.

       - Viu dessas coisas, príncipe?

       - Vi, sim.

       - Mas bem sabe, condessa - disse Richelieu sorrindo - que segundo afirmam, Sua Eminência tem relações com os espíritos, o que não é talvez muito ortodoxo.

       - Não, mas o que deve ser muito cómodo - disse a condessa.

       - E o que viu, príncipe?

       - Jurei guardar segredo.

       - Oh! Oh! Isso agora é mais grave.

       - E contudo, assim é, minha senhora.

       - Mas se prometeu segredo no que respeita a bruxarias, talvez o não prometesse pelo que diz respeito ao feiticeiro?

       - Não.

       - Pois então, príncipe, é preciso dizer-lhe que o duque e eu saímos para procurar um mágico qualquer.

       - Sim?

       - Palavra de honra.

       - Nesse caso procure o meu.

       - De boa vontade.

       - Está às suas ordens, condessa.

       - E também às minhas, príncipe?

       - E também às suas, duque.

       - Como se chama ele?

       - O conde de Fénix.

       A senhora du Barry e o duque olharam um para o outro, admirados.

       - Eis aí um caso estranho - disseram eles ao mesmo tempo.

       - Conhece-o? - perguntou o príncipe.

       - Não. E julga que é um feiticeiro?

       - Com toda a certeza.

       - Falou-lhe?

       - Certamente.

       - E achou-o...?

       - Perfeito.

       - Em que ocasião?

       - Mas...

       O cardeal hesitou.

       - Por ocasião da buena-dicha, que fiz ler por ele.

       - E adivinhou com exactidão?

       - Isto é, não só com exactidão, mas contou-me coisas do arco-da-velha.

       - Não tem outro nome senão o de conde de Fénix?

       - Tem, sim: ouvi chamar-lhe...

       - Diga depressa, senhor - interrompeu a condessa com impaciência.

       - José Bálsamo, minha senhora.

       A condessa e Richelieu olharam-se reciprocamente de um modo significativo.

       - E o Diabo é muito negro? - perguntou repentinamente a senhora du Barry.

       - O Diabo?! Eu não o vi, condessa.

       - Que está aí dizendo, condessa? - exclamou Richelieu. - É essa efectivamente uma excelente sociedade para um cardeal.

       - Então leram-lhe a buena-dicha sem lhe mostrarem o Diabo? - perguntou a condessa.

       - Oh! Certamente - disse o cardeal; - só mostram o Diabo às pessoas insignificantes; a nós dispensam-nos disso.

       - Enfim, diga o que quiser, príncipe - prosseguiu a senhora du Barry - nisto anda sempre obra do Demónio.

       - Assim o creio, minha senhora.

       - Fogo verde, não é verdade? Espectros, caçarolas infernais que cheiram a queimado horrivelmente?

       - Nada, nada, pelo contrário; o meu feiticeiro tem excelentes maneiras; é um cavalheiro perfeito e recebe todos o melhor possível.

       - Não faz tirar o seu horóscopo por um semelhante feiticeiro, condessa? - perguntou Richelieu.

       - Morro por tal, confesso.

       - Pois trate disso, minha senhora.

       - Mas onde é? - perguntou a senhora du Barry, esperando que o cardeal lhe dissesse a morada que ela desejava saber.

       - Numa linda casa mobiliada com muita elegância.

       A condessa ocultava a custo a sua impaciência.

       - Bom - disse ela; - mas a casa?

       - É muito decente, mas de uma arquitectura singular.

       A condessa mordia-se de raiva por não a perceberem.

       Richelieu veio em seu auxílio.

       - Mas não vê, senhor - disse ele - que a senhora condessa está impaciente por saber onde mora o seu feiticeiro?

       - Onde mora, perguntam?

       - Sim.

       - Ah! Muito bem - redargüiu o cardeal. - Mas... Espere... Não... Sim... Não. É no Bairro do Marais, numa esquina, Rua de S. Francisco, Santo Anastácio... Não. Enfim, é um nome de santo.

       - Mas que santo, saibamos? O senhor quase que tem obrigação de os conhecer todos.

       - Não, por minha alma! Pelo contrário, bem pouco os conheço - disse o cardeal; - mas, agora me lembra, o meu lacaio deve saber isso.

       - Ainda bem - disse o duque - porque vem na traseira. Pára, Champanha, pára!

       E o duque puxou pelo cordão preso ao braço do cocheiro.

       O cocheiro fez parar de repente, sobre as suas pernas musculosas, os fogosos cavalos.

       - Oliva - bradou o cardeal - estás aí, velhaco?

       - Sim, senhor.

       - Onde é que eu fui uma noite, muito longe, no Bairro do Marais?

       O lacaio tinha ouvido perfeitamente a conversa, mas fingiu que nada sabia.

       - No Marais? - disse ele, fingindo querer recordar-se.

       - Sim, ao pé do bulevar.

       - Em que dia, senhor?

       - No dia em que eu voltei de Saint-Denis.

       - De Saint-Denis? - atalhou Oliva, para se fazer valer e dar-se um modo mais natural.

       - Sim, de Saint-Denis; a carruagem esperou-me ao virar a esquina, creio eu.

       - Muito bem, senhor, muito bem - disse Oliva – veio um homem trazer e meter na carruagem um volume muito pesado; agora me lembra.

       - É possível - respondeu o cardeal; - mas quem te pergunta por isso, animal?

       - O que deseja então Vossa Eminência?

       - Saber o nome da rua.

       - Rua de Saint-Claude, senhor.

       - Claude, é isso! - bradou o cardeal. - Eu teria apostado que era nome de santo.

       - Rua de Saint-Claude! - repetiu a condessa lançando a Richelieu um olhar tão expressivo que o marechal, receando sempre deixar profundar os seus segredos, principalmente quando se tratava de conspiração, interrompeu a senhora du Barry com estas palavras:

       - Ah! Condessa, el-rei!

       - Onde?

       - Acolá.

       - El-rei! El-rei! - bradou a condessa; - vai para a esquerda, Champanha, para que el-rei não nos veja.

       - E por quê, condessa? - perguntou o cardeal assustado.

       - Eu pensava, pelo contrário, que me levava junto de Sua Majestade.

       - Ah! É verdade, deseja falar com el-rei?

       - Só vim para isso, minha senhora.

       - Pois bem! Vai ser conduzido a el-rei.

       - Mas a senhora e o marechal?...

       - Nós? Ficamos aqui.

       - Entretanto, condessa...

       - Nada de incómodos, príncipe, cada um trata dos seus negócios. El-rei está acolá nos bosques dos castanheiros, tem que lhe falar, muito bem... Champanha!

       Champanha parou.

       - Deixa-nos apear e conduz Sua Eminência até junto de el-rei.

       - Como? Só, condessa?

       - Não pede a atenção de el-rei, senhor cardeal?

       - É verdade.

       - Pois tê-la-á toda inteira.

       - Ah! Tanta bondade...

       E o prelado beijou a mão da senhora du Barry.

       - Mas a senhora onde fica? - perguntou ele.

       - Aqui, ao pé destas belas árvores.

       - El-rei há-de procurá-la.

       - Ainda bem.

       - E estará com cuidado se não a vir.

       - E isso o atormentará; é o que eu desejo.

       - É encantadora, condessa.

       - É exactamente o que el-rei me diz, depois de o ter atormentado. Champanha, depois de conduzires Sua Eminência, volta a galope.

       - Sim, senhora condessa.

       - Adeus, duque - disse o cardeal.

       - Até outra vez, príncipe - respondeu o duque.

       E depois do criado abrir o estribo, apeou-se o duque de Richelieu com a condessa, ligeira como uma noviça que foge do convento, e a carruagem levou rapidamente Sua Eminência para o lugar onde Sua Majestade Cristianíssima procurava com os seus maus olhos essa má condessa, que todos tinham visto menos ele.

       A senhora du Barry não perdeu o tempo. Travou do braço do duque, e levou-o consigo para o centro do bosque.

       - Quer que lhe diga uma coisa, duque? Foi Deus quem nos mandou este bom cardeal.

       - Sim - respondeu o duque - não duvido, foi para se ver livre dele um instante.

       - Não; foi para nos indicar a morada do homem que procuramos.

       - Então vamos a casa dele?

       - Pudera não! Mas...

       - O que é, condessa?

       - Tenho medo, confesso.

       - De quem?

       - Do feiticeiro. Oh! Eu sou muito crédula.

       - Diacho!

       - E o marechal acredita em bruxarias?

       - Ora essa! Não digo que não, condessa.

       - A minha história da profecia...

       - É um facto - disse o marechal. - E até eu mesmo...

       - O senhor! O quê?

       - Eu mesmo, conheci certo feiticeiro.

       - Ora!

       - Que me prestou uma vez um grande serviço.

       - Que serviço, duque?

       - Ressuscitou-me.

       - Ressuscitou-o?!

       - Certamente. Eu estava morto, nada menos.

       - Conte-me isso, duque.

       - Então é preciso que nos ocultemos.

       - O duque é muito medroso.

       - Não. Sou muito prudente, nada mais.

       - Estamos aqui bem?

       - Creio que sim.

       - Então, venha a história, a história.

       - Ei-la. Eu estava em Viena. Era no tempo da minha embaixada. Uma noite ao passar por uma rua, atravessaram-me o corpo com uma espada. Era uma espada de marido cioso, bem vê que não é graça! Caí. Vieram levantar-me: estava morto.

       - Como, estava morto?

       - Por minha alma, é verdade, sim, ou pelo menos pouco faltava. Passava um feiticeiro e perguntou quem era o indivíduo que iam enterrar. Disseram-lhe que era eu. Fez parar a padiola em que me levavam, deitou-me sobre a ferida três gotas não sei de quê, e outras três gotas na boca. O sangue pára, volta-me a respiração, abro os olhos, e acho-me curado.

       - Foi um milagre de Deus, duque.

       - Eis aí exactamente o que me assusta, e é que estou persuadido de que foi um milagre do Diabo.

       - Essa observação é justa, marechal. Deus decerto não teria salvado uma tão boa peça como é: as honras a quem pertencem! E ainda vive, o tal feiticeiro?

       - Duvido muito, a não ser que achasse o grande segredo que buscava.

       - Segredo como o seu, marechal? Então acredita nestas histórias?

       - Acredito tudo.

       - Era velho?

       - Um verdadeiro Matusalém.

       - E chamava-se?

       - Ah! Tinha um nome grego, magnífico; chamava-se Althotas.

       - Oh! Que terrível nome, marechal!

       - Não é verdade, minha senhora?

       - Duque, aí volta a carruagem.

       - Muito bem.

       - Estamos decididos?

       - Sim.

       - Vamos a Paris?

       - A Paris.

       - Rua de Saint-Claude?

       - Se lhe aprouver... Mas se el-rei a espera!...

       - É o que me decidiria, duque, se eu não estivesse já decidida. Atormentou-me; pois agora é a tua vez de estar enfrenesiado, meu França!

       - Mas vai julgar que a furtaram, ou que está perdida?

       - Com tanta mais razão, marechal, que há quem me visse consigo.

       - Olhe, condessa, também eu vou falar francamente: tenho medo.

       - De quê?

       - Tenho medo que conte isto a alguém e que escarneçam de mim.

       - Nesse caso escarnecerão de nós ambos, porque eu vou consigo.

       - Enfim, condessa, estou decidido. E demais, se me atraiçoar, eu direi...

       - O que dirá?

       - Que veio só comigo.

       - Não lhe darão crédito, duque.

       - Ah! Ah! Condessa, senão fosse Sua Majestade...

       - Champanha! Champanha! Aqui por detrás destas árvores, para que não nos vejam. Germano, abre. Bem. Agora para Paris, para a Rua de Saint-Claude, no Marais, a toda a brida!

 

O CORREIO

       Eram seis horas da tarde.

       Naquele quarto da Rua de Saint-Claude, que o leitor já conhece, estava Bálsamo sentado junto de Lorenza, acordada, e tentava por meio de persuasão, adoçar aquele espírito rebelde a todos os rogos.

       Mas a jovem mulher olhava para ele de revés como Dido olhava para Eneias próximo a partir, e só falava para repreender, só estendia a mão para repelir.

       Queixava-se de ser prisioneira, de ser escrava, de não respirar, de já não ver o sol. Invejava a sorte das mais desgraçadas criaturas, das aves, das flores. Chamava a Bálsamo seu tirano.

       Depois, passando das repreensões à raiva, despedaçava os ricos estofos que seu marido lhe havia dado de presente, para iludir, por uma fingida elegância, a solidão que lhe impunha.

       Da sua parte, Bálsamo falava-lhe com doçura e olhava para ela com amor. Via-se que aquela criatura fraca e irritável ocupava, quando não fosse na sua vida pelo menos no seu coração, um lugar enorme.

       - Lorenza - lhe dizia ele - minha querida filha, por que persiste em mostrar esse espírito de hostilidade e resistência? Por que não quer viver comigo, que a amo além de toda a expressão, como uma querida e doce companheira? Então nada mais teria a desejar; então poderia desabrochar ao sol, como essas flores de que ainda há pouco falava; poderia abrir as suas asas como essas aves, cuja sorte ainda há pouco invejava; então iríamos ambos juntos a toda a parte; então veria outra vez, não só esse sol que tanto a encanta, mas também os sóis factícios dos homens, essas assembléias onde vão as mulheres deste país; seria feliz segundo o seu gosto, e tornar-me-ia feliz a mim segundo o meu desejo. Por que rejeita essa felicidade, Lorenza, se com a sua formosura, com a sua riqueza, inspiraria inveja a tantas mulheres?

       - Porque me causa horror - respondeu a soberba romana.

       Bálsamo olhou para Lorenza com o seu olhar de raiva e piedade.

       - Viva então assim como se condena a viver – disse ele - e já que é tão soberba, não se queixe.

       - Talvez me não queixaria se me deixasse só; não me queixaria, se me não obrigasse a falar-lhe. Não se apresente nunca ante mim, ou quando se apresentar na minha prisão, não me fale, e eu farei como aquelas tristes aves do sul, que se prendem em gaiolas; morrem, mas não cantam.

       Bálsamo conteve-se a custo.

       - Vamos, Lorenza - disse ele - doçura, resignação; leia uma vez no meu coração, num coração que a ama primeiro que tudo. Quer livros?

       - Não.

       - Por que não? Os livros hão-de distraí-la.

       - Quero morrer de aborrecimento.

       Bálsamo sorriu, ou pelo menos tentou sorrir.

       - Está doida - disse ele - bem sabe que não há-de morrer enquanto eu estiver junto de si para a tratar e curar se adoecer.

       - Oh! - bradou Lorenza - não me há-de curar, se um dia me tiver enforcado com esta manta nas grades da minha janela.

       Bálsamo estremeceu.

       - No dia - prosseguiu ela exasperada - em que eu tiver aberto esta faca, e a tiver cravado no meu coração.

       Bálsamo, pálido e coberto de suor frio, olhou para Lorenza, e com uma voz ameaçadora disse:

       - Não, Lorenza, tem razão, nesse dia não a hei-de curar, hei-de ressuscitá-la.

       Lorenza soltou um grito de terror: não conhecia limites ao poder de Bálsamo; acreditou na sua ameaça.

       Bálsamo estava salvo.

       Enquanto ela se abismava nesta nova causa do seu desespero, que não tinha previsto, e que a sua razão vacilante se achava fechada num círculo invencível de torturas, a campainha de aviso, puxada por Fritz, soou aos seus ouvidos.

       Soou três vezes rapidamente, e com pancadas iguais.

       - Um correio - disse ele.

       Depois de um pequeno intervalo, soou outra vez a campainha.

       - É urgente - disse ele.

       - Ah! - disse Lorenza - ainda bem, vai deixar-me!

       Pegou na mão fria da italiana.

       - Ainda outra vez - disse ele - a última, vivamos fraternalmente, Lorenza: pois que o destino ligou as nossas existências, façamos desse destino um amigo e não um verdugo.

       Lorenza não respondeu. O seu olhar fixo e triste parecia procurar no infinito um pensamento que lhe fugia, e que ela não achava talvez já pelo haver perseguido demasiado, como acontece àqueles cuja vista se fitou demoradamente na luz do dia depois de haver vivido no meio das trevas, e a quem o sol cegou.

       Bálsamo pegou-lhe na mão e beijou-lha sem que ela desse sinal de existência.

       Depois deu um passo para o fogão.

       No mesmo instante acordou Lorenza do seu entorpecimento, e olhou avidamente para ele.

       - Sim - murmurou ele - quer saber por onde saio para um dia sair atrás de mim, para fugir, como já me ameaçou de o fazer; é esse o motivo porque acorda, e porque me segue com a vista.

       E passando a mão sobre a fronte, como se a si próprio impusesse um custoso constrangimento, estendeu essa mesma mão para o lado de Lorenza, e num tom imperativo, lançando sobre ela o olhar e gesto para o peito e olhos, disse:

       - Dorme!

       Apenas pronunciou esta palavra, viu Lorenza dobrar-se como uma flor sobre a sua haste; a cabeça vacilou um instante e foi depois encostar-se à almofada de seda.

       As mãos, de uma alvura pálida, escorregaram-lhe e penderam-lhe aos lados.

       Bálsamo, vendo-a tão formosa, aproximou-se e uniu a boca à fronte pura da donzela.

       Então uma expressão de felicidade se pintou na fisionomia de Lorenza, como se um sopro saído da boca do próprio amor houvesse vindo impelir-lhe da fronte a nuvem que a encobria. A boca fremente entreabriu-se, marejaram-se-lhe os olhos de lágrimas voluptuosas, e suspirou como devem ter suspirado aqueles anjos que, nos primeiros dias da criação, se enamoraram dos filhos dos homens.

       Bálsamo olhou para ela um instante, como um homem que não pode arrancar-se da sua contemplação; depois, como a campainha tocasse de novo, dirigiu-se para a chaminé, carregou sobre uma mola e desapareceu por detrás das flores.

       Fritz esperava-o na sala com um homem vestido de correio, com botas de montar e compridas esporas.

       A fisionomia indicava ser um homem do povo, mas o olhar continha uma parcela de fogo sagrado, que parecia ter-lhe sido comunicado por uma inteligência superior à sua.

       Tinha na mão esquerda um chicote curto e cheio de nós a que estava encostado, enquanto que a direita fazia certos sinais, que depois de um curto exame Bálsamo reconheceu, e aos quais ele respondeu levando à fronte o dedo índex.

       A mão do postilhão foi logo colocar-se sobre o peito, onde formou outro sinal que um indiferente não teria reconhecido, tanto semelhava o gesto natural que se faz para abotoar um botão.

       A este último sinal, respondeu o mestre mostrando um anel que trazia no dedo.

       Na presença desse terrível símbolo, o enviado dobrou um joelho.

       - De onde vens? - perguntou Bálsamo.

       - De Ruão, amo.

       - O que fazes?

       - Sou criado da senhora de Grammont.

       - Quem te fez entrar ao seu serviço?

       - A vontade do grão-copta.

       - Que ordem recebeste ao entrar para o seu serviço?

       - De não guardar segredo para o amo.

       - Onde vais?

       - A Versalhes.

       - O que levas?

       - Uma carta.

       - Para quem?

       - Para o ministro.

       - Dá-ma.

       O correio deu a Bálsamo uma carta que acabava de tirar de um saco de couro, que trazia preso às costas.

       - Devo esperar? - perguntou ele.

       - Sim.

       - Esperarei.

       - Fritz!

       O alemão apareceu.

       - Leva Sebastião à casa de espera.

       - Sim, senhor.

       - Ele sabe o meu nome - murmurou o adepto com um terror supersticioso.

       - Sabe tudo - redargüiu Fritz levando-o consigo.

       Bálsamo ficou só. Olhou para o selo bem puro e bem profundo da carta, que o olhar suplicante do correio parecia ter-lhe recomendado de respeitar o mais possível.

       Depois, lentamente e pensativo, subiu ao quarto de Lorenza e abriu a porta de comunicação.

       Lorenza continuava a dormir, mas fatigada e debilitada pela inacção. Pegou-lhe na mão, que ela apertou convulsivamente, e aplicou-lhe sobre o coração a carta do correio, fechada como a tinha recebido.

       - Vês? - perguntou ele.

       - Sim, vejo - respondeu Lorenza.

       - Que objecto tenho eu nas mãos?

       - Uma carta.

       - Podes lê-la?

       - Posso.

       - Então lê!

       Lorenza, com os olhos fechados e o peito arquejante, recitou palavra por palavra as seguintes linhas, que Bálsamo escrevia à medida que ela as ditava:

      

       “Caro irmão:

       Como eu tinha previsto, para alguma coisa poderá servir-nos o meu exílio. Estive esta manhã com o presidente de Ruão; está por nós, mas é tímido. Instei-o em teu nome. Afinal decide-se, e as representações dos seus deverão chegar a Versalhes antes de oito dias.

       Vou imediatamente partir para Rennes, a fim de activar um pouco Keradeuc e La Chalotais, que parece estarem a dormir.

       O nosso agente de Caudebec estava em Ruão. Estive também com ele. A Inglaterra não há-de parar no caminho: prepara uma forte notificação para o gabinete de Versalhes.

       X... perguntou-me se a devia apresentar. Dei a autorização. Receberás os últimos panfletos de Thévenot, de Morande e de Delille contra a du Barry. São bombas capazes de fazer saltar uma cidade pelos ares.

       Chegaram-me aos ouvidos uns boatos desagradáveis, falava-se num desagrado real. Mas como nada me mandaste dizer, são coisas de que me rio. Entretanto não me deixes na dúvida, e responde-me na volta do correio. A tua carta achar-me-á em Caen, onde tenho de conferenciar com alguns dos nossos homens.

       Adeus.  Recebe um abraço.

        Duquesa de Grammont.”

      

       Lorenza parou logo que terminou a leitura.

       - Nada mais vês? - perguntou Bálsamo.

       - Nada mais.

       - Não há pós-escrito.

       - Não.

       Bálsamo, cuja fronte se desenrugava à medida que lia, recebeu novamente das mãos de Lorenza a carta da duquesa.

       - Curioso e inapreciável documento - disse ele – que me pagariam por bom dinheiro. Oh! Como há quem se atreve a escrever semelhantes coisas! Sim, são as mulheres que quase sempre causam a perda dos homens superiores. Este Choiseul não pode ser derrubado por um exército de inimigos, por um mundo todo de intrigas, e eis aqui o sopro de uma mulher que o esmaga afagando-o. Sim, todos nós perecemos pela traição ou fraqueza das mulheres... Se temos um coração, e nesse coração uma fibra sensível, estamos perdidos.

       E dizendo isto, Bálsamo olhava com uma inexplicável ternura para Lorenza, palpitante sob o seu olhar.

       - É verdade o que eu digo? - lhe perguntou ele.

       - Não, não é verdade! - redargüiu ela ardentemente.

       - Bem vês que te amo muito para te fazer mal como todas essas mulheres sem juízo nem coração.

       Bálsamo deixou-se enlear nos braços da sua feiticeira.

       De repente ouviu-se um toque repetido da campainha de Fritz.

       - Duas visitas - disse Bálsamo.

       Um novo e violento toque da campainha concluiu a telegrafia de Fritz.

       - Importantes! - continuou o amo.

       E desenvencilhando-se dos braços de Lorenza, saiu do quarto, deixando-a sempre adormecida.

       Bálsamo encontrou o correio no caminho; esperava as ordens do amo.

       - Aqui está a carta - disse ele.

       - O que devo fazer?

       - Entregá-la aonde é dirigida.

       - Nada mais?

       - Nada mais.

       O adepto olhou para o sobrescrito e para o selo, e vendo tudo tão intacto como tinha vindo, manifestou o seu prazer e desapareceu nas trevas.

       - Que pena não guardar um semelhante autógrafo! - disse Bálsamo - e que pena, principalmente, de o não poder fazer chegar às mãos de el-rei, por pessoa segura.

       Fritz apareceu.

       - Quem está lá? - perguntou Bálsamo.

       - Uma mulher e um homem.

       - Vieram já aqui?

       - Não.

       - Não os conheces?

       - Não, senhor.

       - A mulher é moça?

       - Moça e formosa.

       - O homem?

       - De sessenta a sessenta e cinco anos.

       - Onde estão?

       - Na sala.

       Bálsamo retirou-se.

      

EVOCAÇÃO

       A condessa havia ocultado completamente o rosto com um mantéu, e como teve tempo de entrar um instante na sua casa de Paris, havia mudado de trajo, e vinha vestida como uma rapariga da aldeia.

       Tinha vindo com o marechal numa carruagem de aluguel, o qual, mais tímido, havia-se vestido de cinzento, como um criado grave de família abastada.

       - Sr. Conde de Fénix - disse a condessa du Barry - conhece-me?

       - Perfeitamente, minha senhora.

       Richelieu deixava-se ficar para trás.

       - Tem a bondade de se sentar, minha senhora, e o senhor também.

       - Este senhor é meu mordomo - disse a condessa.

       - Engana-se, minha senhora - redargüiu Bálsamo inclinando-se - aquele senhor é o marechal duque de Richelieu, que reconheço perfeitamente, e que seria bem ingrato se me não reconhecesse também.

       - Como?! - perguntou o duque perturbado.

       - Senhor duque, deve-se ser grato para com aqueles que nos salvam a vida, parece-me.

       - Ah! Ah! Duque - disse a condessa rindo-se; - ouve, duque?

       - E salvou-me a vida a mim, senhor conde? – disse Richelieu admirado.

       - Sim, senhor, em Viena, no ano de 1725, no tempo da sua embaixada.

       - Em 1725! Mas ainda não era nascido nesse tempo, meu caro senhor.

       Bálsamo sorriu.

       - Parece-me que sim, senhor duque - disse ele – pois que o encontrei moribundo, ou melhor direi, morto, deitado numa liteira; acabava de receber um profundo golpe de espada no peito, por sinal que lhe vazei sobre a ferida três gotas do meu elixir... Olhe! Aí, no mesmo lugar em que está amarrotando essa renda de Alençon, rica de mais para um mordomo.

       - Mas - interrompeu o marechal - tem apenas trinta ou trinta e cinco anos, senhor conde?

       - Ora pois, duque - exclamou a condessa soltando uma gargalhada; - aí tem o feiticeiro diante de si, acredita?

       - Estou estupefacto, condessa. Mas então – continuou ele dirigindo-se novamente a Bálsamo - mas então chama-se...

       - Oh! Nós os feiticeiros, senhor duque, bem o sabe, mudamos de nome a cada nova geração... Em 1725 eram moda os nomes em us, os e as, e não seria para admirar que mesmo naquela época eu tivesse a fantasia de trocar o meu nome por algum nome grego ou latino. Estou às suas ordens, senhora condessa, e também às suas, senhor duque...

       - Conde, viemos para o consultar.

       - É demasiada honra que me faz, minha senhora, principalmente se essa idéia lhe ocorreu naturalmente.

       - O mais naturalmente possível, conde; a sua profecia anda-me sempre na cabeça, mas duvido que se realize.

       - Nunca duvide do que a ciência diz, minha senhora.

       - Oh! Oh! - disse Richelieu - é que a tal coroa está muito duvidosa, conde... Não se trata aqui de uma ferida que se cura com três gotas de elixir.

       - Não, mas de um ministro que se deita por terra com três palavras... - redargüiu Bálsamo. - Então, adivinhei?

       - Perfeitamente - disse a condessa toda trémula. - Realmente, duque, o que diz de tudo isto?

       - Oh! Não se admire por tão pouco, minha senhora – disse Bálsamo; - quem vê a senhora du Barry e Richelieu desassossegados, deve adivinhar porquê, mesmo sem bruxaria.

       - Também - prosseguiu o marechal - hei-de adorá-lo se nos dá algum remédio a isto.

       - Remédio para a doença de que padecem?

       - Sim, padecemos um forte ataque de Choiseul.

       - E desejam poder curar essa doença?

       - Sim, grande mágico, é exactamente isso.

       - Senhor conde, não nos deixará em embaraços – disse a condessa; - a sua honra deve empenhar-se nisso.

       - Estou pronto a servi-la do melhor modo que puder, minha senhora; entretanto, desejava bem saber se o senhor duque, quando para aqui se dirigiu, não tinha já tomado alguma resolução?

       - Confesso-o, senhor conde. Na verdade é uma bela coisa ter um feiticeiro a que se pode chamar: senhor conde; assim parece que se está tratando com alguma pessoa que habitualmente se vê na sociedade.

       Bálsamo sorriu.

       - Vamos - disse ele - fale com franqueza.

       - Palavra de honra - disse o duque - é o que eu desejo.

       - Queriam consultar-me?

       - É verdade.

       - Ah! Que sonso! - disse a condessa - não me falou nisso.

       - Eu só o podia dizer ao senhor conde, e no recanto mais oculto do ouvido - respondeu o marechal.

       - Por quê, duque?

       - Porque teria corado de pejo, condessa.

       - Ah! Fale, marechal sou muito curiosa, e como tenho carmim no rosto, ainda que eu core não se há-de conhecer.

       - Pois bem - disse Richelieu - eis aqui no que pensei. Tome cuidado, condessa, eu vou falar sem rebuço.

       - Fale, duque, fale.

       - Oh! Mas é que depois há-de censurar-me se eu disser o que quero dizer.

       - O senhor duque não está acostumado a ser censurado - disse Bálsamo ao velho marechal, que ficou encantado do cumprimento.

       - Pois bem, então - redargüiu ele - eis o caso: com licença da senhora, de Sua Majestade, como diacho direi?...

       - Como é enfadonho com as demoras! - disse a condessa.

       - Sempre quer?

       - Sim.

       - Absolutamente?

       - Sim, sim, mil vezes sim.

       - Então, digo. É coisa triste de dizer, senhor conde, mas Sua Majestade não é susceptível de ser divertido. Este dito não é meu, condessa, é da senhora de Maintenon.

       - Nada há nisso que me ofenda, duque - disse a senhora du Barry.

       - Ainda bem, então estarei à vontade. Pois bem! Seria preciso que o senhor conde, que acha tão preciosos elixires...

       - Achasse um - disse Bálsamo - que restituísse a el-rei a faculdade de ser divertido.

       - Justamente.

       - Ora, senhor duque, isso é uma criancice, é o a b c do ofício. Qualquer charlatão achará para isso um bom elixir.

       - Cuja virtude - continuou o duque - será levada em conta ao merecimento da senhora condessa.

       - Duque! - exclamou a senhora du Barry.

       - Oh! Eu bem sabia que se enfadava, mas assim o quis.

       - Senhor duque - redargüiu Bálsamo - teve razão: eis aí a senhora condessa que está corando. Mas, como ainda agora dissemos, não se trata aqui de ofensas, nem de amor. Não é com um elixir que livrará a França do senhor de Choiseul. Com efeito, se amasse el-rei dez vezes mais do que ama, e julgo-o impossível, o senhor de Choiseul conservaria no seu espírito o prestígio e influência que a senhora condessa exerce sobre o seu coração.

       - É verdade - disse o marechal - mas era o nosso único recurso.

       - Julga isso?

       - Ah! Não sei de outro.

       - Oh! Parece-me que é coisa fácil.

       - Fácil! Ouviu, condessa? Estes feiticeiros não duvidam de coisa nenhuma.

       - Por que se há-de duvidar, quando simplesmente se trata de provar a el-rei que o senhor de Choiseul o atraiçoa? Ao ponto de vista de el-rei, já se sabe, porque o senhor de Choiseul não julga atraiçoá-lo fazendo o que faz.

       - E o que faz ele?

       - Sabe-o tão bem como eu, condessa; sustenta a revolta do parlamento contra a autoridade real.

       - Certamente, mas seria preciso saber porque meio.

       - Pelo meio de agentes que os animam prometendo-lhes a impunidade.

       - E quem são os agentes? Eis o que era preciso saber.

       - Por exemplo, julga que a partida da senhora de Grammont tenha outro fim senão exaltar os acalorados e animar os tímidos?

       - Decerto que não partiu para outra coisa! – exclamou a condessa.

       - Sim; mas nessa partida não vê el-rei mais que um simples exílio.

       - É verdade.

       - Como se lhe há-de provar que nessa partida há outra coisa mais do que se pretende mostrar?

       - Ah! Conde - disse o marechal - se não fosse preciso mais do que acusar!

       - Infelizmente é preciso provar a acusação - disse a condessa.

       - E se essa acusação se provasse com provas irrecusáveis, julga que o senhor de Choiseul continuaria no ministério?

       - Seguramente, não! - bradou a condessa.

       - Portanto não se trata senão de descobrir uma traição do senhor de Choiseul - prosseguiu Bálsamo com firmeza - e de a fazer surgir clara, precisa e palpável aos olhos de Sua Majestade.

       O marechal encostou-se na poltrona, rindo às gargalhadas.

       - Esta é boa! - exclamou ele - de nada duvida! Apanhar o senhor de Choiseul em flagrante delito de traição... Nada mais... Nada mais!

       Bálsamo permaneceu impassível e esperou que passasse um pouco mais o acesso de hilaridade do marechal.

       - Vamos - disse então Bálsamo - falemos sério e recapitulemos.

       - Pois sim.

       - El-rei não suspeita que o senhor de Choiseul sustenta a rebelião do parlamento?

       - Sim, mas a prova?

       - Não acusam o senhor de Choiseul - continuou Bálsamo - de preparar uma guerra com a Inglaterra, a fim de se conservar um papel de homem indispensável?

       - Sim, mas a prova?

       - Enfim, não é o senhor de Choiseul um inimigo declarado da senhora condessa aqui presente, e não procura ele por todos os meios possíveis derrubá-la do trono que lhe prometi?

       - Ah! Quanto a isso é uma verdade - disse a condessa; mas também carece prova... Oh! Se eu pudesse!

       - O que precisa para isso? Uma bagatela.

       O marechal começou a roer as unhas.

       - Sim, uma bagatela - disse ele com ironia.

       - Por exemplo, uma carta confidencial - disse Bálsamo.

       - Nada mais... E não é pouco.

       - Uma carta da senhora de Grammont, não é verdade, senhor marechal? - continuou o conde.

       - Ó feiticeiro, meu bom feiticeiro, alcance-me alguma! - exclamou a senhora du Barry. - Há cinco anos que ando atrás disso, tenho gasto nesta diligência cem mil libras cada ano, e ainda o não consegui.

       - Por que não me procurou, minha senhora? – disse ele.

       - Como? - perguntou a condessa.

       - Certamente, se se houvesse dirigido a mim...

       - Então?

       - Eu a teria tirado de cuidados.

       - O senhor?

       - Sim, eu.

       - Conde, já é tarde, ou venho ainda a tempo?

       O conde sorriu.

       - Ainda é tempo.

       - Oh! Meu caro conde... - disse a senhora du Barry.

       - Então quer uma carta?

       - Sim.

       - Da senhora de Grammont?

       - Se for possível.

       - Que comprometa o senhor de Choiseul nos três pontos que eu disse?

       - Para a ter, daria... daria... um dos meus olhos.

       - Oh! Condessa, seria pagar muito caro; principalmente quando essa carta...

       - Essa carta?

       - Eu lha darei de graça.

       E Bálsamo tirou da algibeira um papel dobrado.

       - O que é isso? - perguntou a condessa, devorando o papel com os olhos.

       - Sim, o que é isso? - perguntou também o duque.

       - A carta que desejam.

       E o conde no meio do mais profundo silêncio, leu aos dois auditores maravilhados a carta que os nossos leitores conhecem já.

       À medida que lia, a condessa abria muito os olhos e começava a perturbar-se.

       - Diacho! Cuidado, isso é uma calúnia – murmurou Richelieu assim que Bálsamo acabou de ler a carta.

       - Senhor duque, isto é uma cópia simples, pura e literal de uma carta da Srª. Duquesa de Grammont, que um correio expedido de Ruão esta manhã leva neste momento ao Sr. Duque de Choiseul, a Versalhes.

       - Oh! Santo Deus! - exclamou o marechal - diz a verdade, Sr. Bálsamo?

       - Sempre digo a verdade, senhor marechal.

       - Pois a duquesa teve a loucura de escrever semelhante carta?

       - Sim, senhor marechal.

       - Teve essa imprudência?

       - É incrível, confesso, mas é verdade.

       O velho duque olhou para a condessa, que nem forças tinha já para articular uma só palavra.

       - Pois bem - disse ela afinal - estou como o duque, custa-me a crer, perdoe-me, senhor conde, que a senhora de Grammont, uma mulher de espírito, comprometesse com semelhante carta a sua posição e a de seu irmão... E demais... Para conhecer essa carta é mister havê-la lido.

       - E daí - apressou-se em dizer o marechal - se o senhor conde tivesse lido essa carta, tê-la-ia guardado; é um tesouro precioso.

       Bálsamo abanou levemente a cabeça.

       - Oh! Senhor - disse ele - esse meio é bom para os que abrem as cartas a fim de conhecer os segredos que elas contêm... E não para aqueles que, como eu, as lêem sem as abrir... E demais, que interesse tenho eu em perder o senhor de Choiseul e a senhora de Grammont? Vêm consultar-me... Como amigos, suponho eu; respondo-lhes do mesmo modo. Imagino que não vêm propor-me o preço da minha consulta, como aos adivinhos do cais de La Ferraille?

       - Oh! Conde! - disse a senhora du Barry.

       - Pois bem! Dou-lhes um conselho e parece-me que não o querem aceitar. Manifestaram-me o desejo de derrubar o senhor de Choiseul, e procuram os meios para isso; cito-lhes um, aprovam-no, entrego-lho, e não lhe dão crédito!

       - É porque... Porque... Conde, ouça...

       - Digo-lhes que a carta existe, e que isto é uma cópia.

       - Mas enfim, quem lho disse, senhor conde? – bradou Richelieu.

       - Ah! Quem mo disse?... É esse o meu segredo. Num minuto querem saber tanto como eu, o trabalhador, o sábio, o adepto, que tem vivido três mil e setecentos anos!

       - Oh! Oh! - disse Richelieu com desânimo - vai perder a boa opinião que de si formava, conde.

       - Não peço para que me acredite, senhor duque, e não sou eu que fui buscá-lo, quando andava na caçada real.

       - Ele tem razão, duque - disse a condessa; - Sr. Bálsamo, peço-lhe que não se enfade.

       - Quem tem tempo nunca se enfada, minha senhora.

       - Tem essa bondade... Junte este favor a todos os que já lhe devo, e diga-me como lhe foram revelados semelhantes segredos?

       - Eu não hesitarei, minha senhora - respondeu Bálsamo falando pausadamente, como se estivesse imaginando uma resposta - essa revelação é-me transmitida por uma voz.

       - Por uma voz! - bradaram ao mesmo tempo o duque e a condessa; - é uma voz que tudo lhe diz?

       - Tudo quanto desejo saber, sim.

       - Foi uma voz que lhe disse que a senhora de Grammont tinha escrito ao seu irmão?

       - Assim é, minha senhora, foi uma voz que mo disse.

       - Isso é milagroso!

       - Mas não o acreditam?

       - Não, conde - disse o duque; - eu sou franco, como quer que se lhe dê crédito a semelhantes coisas?

       - Mas, dar-lhe-ia crédito, se lhe dissesse o que faz neste momento o correio que leva a carta ao senhor de Choiseul?

       - Diacho! - respondeu a condessa.

       - Eu - exclamou o duque - acreditarei se ouvir a voz... Mas só os senhores nigromantes e feiticeiros têm o privilégio de ouvirem e verem o que é sobrenatural.

       Bálsamo fitou os olhos no duque de Richelieu com uma expressão, que fez estremecer a condessa e provocou no céptico egoísta, chamado o duque de Richelieu, um ligeiro frio na nuca e no coração.

       - Sim - disse ele depois de um prolongado silêncio - sou eu só que ouço e vejo os objectos e entes sobrenaturais; mas quando estou com pessoas da sua ordem, do seu espírito, duque, da sua formosura, condessa, abro os meus tesouros e reparto... Desejariam muito ouvir a misteriosa voz que tudo me revela?

       - Sim - disse o duque, apertando os pulsos para não tremer.

       - Sim - balbuciou a condessa estremecendo.

       - Pois bem, senhor duque, pois bem, senhora condessa, vão ouvir. Em que língua querem que fale?

       - Em francês - disse a condessa. - Não entendo outra, e poderia causar-me algum medo.

       - E o senhor duque?

       - Como a senhora condessa... Em francês. Quero poder repetir o que o Diabo tiver dito, e ver se é bem criado e se fala correctamente a língua do meu amigo o senhor de Voltaire.

       Bálsamo, com a cabeça inclinada sobre o peito, dirigiu-se para a porta que comunicava com a sala, a qual, como sabemos, dava para a escada.

       - Permitem - disse ele - que os feche, a fim de não ficarem muito expostos a algum perigo?

       A condessa empalideceu e aproximou-se do marechal, a cujo braço se agarrou.

       Bálsamo, quase ao pé da porta da escada, estendeu os braços para o ponto da casa em que Lorenza se achava, e em linguagem árabe, pronunciou com uma voz sonora estas palavras, que traduzimos em língua vulgar:

       - Minha amiga!... Ouves-me?... Se me ouves, puxa duas vezes o cordão da campainha.

       Bálsamo esperou o efeito destas palavras olhando para o duque e para a condessa, que abriam muito os olhos e os ouvidos, porque não entendiam o que o conde dizia.

       Ouviram-se dois toques de campainha.

       A condessa deu um salto sobre o sofá, o duque limpou com um lenço o suor da fronte.

       - Pois se me ouves - prosseguiu Bálsamo no mesmo idioma - carrega sobre o botão de mármore que figura ser o olho direito do leão que há na escultura da chaminé, e a chapa há-de abrir-se; passa por ela, atravessa o meu quarto, desce a escada, e vem até à casa contígua a esta em que estou.

       Momentos depois, um leve rumor, semelhante ao sussurro da brisa ou aos passos de um fantasma, deu a conhecer a Bálsamo que as suas ordens haviam sido executadas.

       - Que linguagem é essa? - perguntou Richelieu fingindo-se forte; - é a linguagem cabalística?...

       - Sim, senhor duque, é o dialecto que se usa para a evocação.

       - Mas disse que havíamos de entender?

       - O que a voz disser, sim, mas não o que eu disser.

       - E o Diabo veio?

       - Quem lhe falou do Diabo, senhor duque?

       - Mas parece-me que só se evoca o Diabo?

       - Tudo quanto é espírito superior, ente sobrenatural, pode-se evocar.

       - E o espírito superior, o ente sobrenatural...

       Bálsamo estendeu a mão para o lado da tapeçaria que fechava a porta do quarto contíguo.

       - Está em comunicação directa comigo, senhor.

       - Estou com medo - disse a condessa - e o duque?

       - Por minha alma, condessa, não posso deixar de lhe confessar que preferiria estar em Mahon ou Filipeburgo.

       - Senhora condessa e senhor duque, peço-lhes que escutem, se querem ouvir - disse Bálsamo soberanamente.

 

A VOZ

       Houve um momento de silêncio solene. Depois Bálsamo perguntou em francês:

       - Estás aí?

       - Estou - respondeu uma voz pura e argentina, que atravessando parede e reposteiro, soou aos ouvidos dos assistentes, antes como um som metálico do que semelhante aos acentos da voz humana.

       - Diacho! O caso torna-se interessante - disse o duque; - e tudo isso sem archotes, sem mágica, sem fogo azul, nem vermelho.

       - É assustador - murmurou a condessa.

       - Prestas toda a tua atenção às minhas perguntas? - continuou Bálsamo.

       - Presto a minha atenção toda.

       - Diz-me primeiramente quantas pessoas estão neste momento comigo?

       - Duas.

       - De que sexo?

       - Um homem e uma mulher.

       - Lê no meu pensamento o nome do homem.

       - O Sr. Duque de Richelieu.

       - E o da mulher?

       - A Srª. Condessa du Barry.

       - Ah! Ah! - murmurou o duque - isto é pasmoso.

       - Isto é - murmurou a condessa trémula de susto - isto é... Nunca vi coisa semelhante.

       - Bem - disse Bálsamo - lê agora a primeira frase da carta que tenho na mão.

       A voz obedeceu.

       A condessa e o duque olharam um para o outro com uma expressão singular de admiração e espanto.

       - O que é feito dessa carta que escrevi quando ma ditaste?

       - Segue o seu caminho.

       - Para onde se dirige?

       - Para o ocidente.

       - Está longe?

       - Oh! Sim, muito longe, muito longe.

       - Quem a leva?

       - Um homem vestido com uma véstia verde, que tem na cabeça um boné de pele, e está calçado com botas altas.

       - Está a pé ou a cavalo?

       - A cavalo.

       - De que cor é o cavalo?

       - Malhado.

       - Onde o vês?

       Houve um momento de silêncio.

       - Olha! - disse Bálsamo imperiosamente.

       - Numa grande estrada em que há muitas árvores.

       - Mas que estrada é?

       - Não sei, as estradas todas se parecem umas com as outras.

       - Como? Nada te pode indicar que estrada seja, nem um sinal, nem um letreiro?

       - Espera, espera: uma carruagem passa por pé do homem a cavalo; cruza-se com ele, vem para cá.

       - Que qualidade de carruagem é?

       - Uma carruagem pesada, cheia de abades e militares.

       - É uma carruagem pública - murmurou Richelieu.

       - Essa carruagem não tem letreiro nenhum? – perguntou Bálsamo.

       - Tem - respondeu a voz.

       - Lê-o.

       - Na carruagem lê-se Versalhes em letras amarelas quase apagadas.

       - Deixa a carruagem e segue o correio.

       - Já o não vejo.

       - Por que o não vês?

       - Porque a estrada tem uma curva.

       - Pois, apesar disso, segue-o.

       - Oh! O cavalo leva-o a toda a brida: lá olha para o relógio.

       - O que vês adiante do cavalo?

       - Uma grande avenida, edifícios soberbos, uma grande cidade.

       - Segue-o sempre.

       - Estou seguindo.

       - Então?

       - O correio mete esporas ao cavalo cada vez mais; o animal está coberto de suor; as ferraduras fazem tal bulha na calçada que todos se voltam para ver. Ah! Lá entra o correio numa rua muito comprida e íngreme, volta para o lado direito, atrasa o passo do cavalo e pára à porta de um belo palácio.

       - Agora é preciso segui-lo com a maior atenção, ouves?

       A voz soltou um suspiro.

       - Estás cansada, não admira.

       - Oh! Estou despedaçada.

       - Ordeno que essa fadiga desapareça.

       - Ah!

       - Então?

       - Agradecida.

       - Ainda estás fatigada?

       - Não.

       - Continuas a ver o correio?

       - Espera... Sim, sim; lá sobe uma grande escadaria de pedra. Está precedido por um criado de libré azul e ouro. Atravessa umas salas todas douradas. Chega a um gabinete onde está luz. O lacaio abre a porta e retira-se.

       - O que vês?

       - O correio corteja.

       - A quem?

       - Espera... Corteja um homem que está sentado diante de uma secretária, o qual tem as costas voltadas para a porta.

       - Como está esse homem vestido?

       - Oh! Está muito bem vestido, como para algum baile.

       - Tem alguma condecoração?

       - Tem uma grande fita azul a tiracolo.

       - E o rosto?

       - Não o vejo... Ah!

       - O que é?

       - Lá se voltou.

       - Que fisionomia tem ele?

       - Olhar vivo, feições irregulares, belos dentes.

       - Que idade?

       - Cinqüenta e cinco a cinqüenta e oito anos.

       - É o duque! - disse du Barry ao ouvido do marechal.

       O marechal fez um sinal com a cabeça que significava: “Sim, é ele, mas escute”.

       - Depois? - prosseguiu Bálsamo.

       - O correio entrega ao homem da fita azul...

       - Podes dizer ao duque; é um duque.

       - O correio - continuou a voz obediente - entrega ao duque uma carta que tirou de um saco de couro que trazia às costas. O duque abre-a e lê-a com atenção.

       - Depois?

       - Pega numa pena, numa folha de papel e escreve.

       - Escreve! - murmurou Richelieu. - Diacho! Se pudéssemos saber o que ele escreve, era bom.

       - Diz-me o que escreve? - perguntou Bálsamo.

       - Não posso.

       - Porque estás muito longe. Entra no gabinete. Estás lá?

       - Sim.

       - Inclina-te sobre um ombro.

       - Estou inclinada.

       - Agora, podes ler?

       - A letra é má, pequena e torta.

       - Lê, ordeno-to!

       A condessa e Richelieu suspenderam a respiração.

       - Lê! - prosseguiu Bálsamo num tom ainda mais imperativo.

       - “Minha irmã” - disse a voz trémula e hesitando.

       - É a resposta - murmuraram ao mesmo tempo o duque de Richelieu e a condessa.

       - “Minha irmã - continuou a voz - sossega: a crise teve com efeito lugar; foi perigosa, é verdade, mas já passou. Espero com impaciência o dia de amanhã, porque tenciono também por minha vez tomar a ofensiva, e tudo me induz a crer que terei um sucesso decisivo. Quanto ao parlamento de Ruão, a milorde X... e ao panfleto, andaste bem.

       Amanhã, depois de trabalhar com el-rei, acrescentarei um pós-escrito a esta carta, e remetê-la-ei pelo mesmo correio.”

       Bálsamo, com a mão esquerda estendida, parecia arrancar custosamente cada uma destas palavras à voz; enquanto com a mão direita, escrevia à pressa com lápis essas linhas que o senhor de Choiseul escrevia no seu gabinete em Versalhes.

       - É tudo? - perguntou Bálsamo.

       - Tudo.

       - O que faz agora o duque?

       - Dobra em dois o papel em que acaba de escrever, depois dobra-o ainda e mete-o numa pequena carteira vermelha que tira da algibeira do lado esquerdo.

       - Ouve? - perguntou Bálsamo à condessa que estava abismada. - E depois?

       - Depois, despede o correio falando-lhe.

       - O que diz ele?

       - Apenas ouvi o fim da frase.

       - E era...

       - “Em sendo uma hora, junto às grades do Trianon”.

       O correio corteja e sai.

       - É isso - disse Richelieu - ordena ao correio que o vá esperar à saída do gabinete de el-rei, como dizia na sua carta.

       Bálsamo fez um sinal com a mão para pedir silêncio.

       - E agora o que faz o duque? - perguntou ele.

       - Levanta-se. Tem na mão a carta que lhe entregaram. Vai direito à cama, entra no corredor que fica entre esta e a parede, carrega sobre uma mola, que abre um cofre de ferro, deita-lhe a carta dentro e torna-o a fechar.

       - Oh! - exclamaram ao mesmo tempo, tornando-se pálidos, o duque e a condessa. - Isto é realmente obra de mágica!

       - Sabe tudo quanto desejava saber, minha senhora? - perguntou Bálsamo.

       - Senhor conde - disse a senhora du Barry aproximando-se dele com terror - acaba de prestar-me um serviço pelo qual eu daria dez anos da minha vida, ou melhor direi, que nunca poderei pagar. Peça o que quiser.

       - Oh! Condessa, bem sabe que temos contas em aberto.

       - Fale, peça o que desejar.

       - Ainda não é tempo.

       - Pois bem! Quando for tempo, ainda que seja um milhão...

       Bálsamo sorriu.

       - Ah! Condessa - exclamou o marechal - seria antes da sua parte que poderia pedir um milhão ao conde. O homem que sabe o que ele sabe, e principalmente que vê o que ele vê, não pode descobrir o ouro e os brilhantes nas entranhas da terra, como descobre o pensamento no coração dos homens?

       - Vamos, conde, prostro-me ante a minha insuficiência - disse a condessa.

       - Não, condessa, virá um dia em que desempenhará a promessa que me fez. Eu lhe darei ocasião para isso.

       - Conde - disse o duque a Bálsamo - estou subjugado, vencido, despedaçado! Creio.

       - Como S. Tomé creu, não é verdade, senhor duque? Isso não se chama crer, chama-se ver.

       - Chame-lhe o que quiser; mas eu peço perdão, e de ora em diante, quando se falar de feiticeiros, sei o que devo dizer.

       Bálsamo sorriu.

       - Agora, minha senhora - disse ele à condessa - permite-me uma coisa?

       - Diga.

       - O meu espírito está cansado. Deixe-me restituir-lhe a sua liberdade por uma fórmula mágica.

       - De boa vontade, senhor.

       - Lorenza - disse Bálsamo em árabe - obrigado; eu amo-te; volta para o teu quarto pelo mesmo caminho por onde vieste e espera-me. Vai, minha adorada.

       - Estou bem cansada - respondeu em italiano a voz, mais doce ainda do que durante a evocação; - avia-te, Acharat.

       - Eu vou.

       E ouviu-se o mesmo sussurro que se havia sentido quando veio.

       Depois Bálsamo, passados alguns instantes de silêncio, durante os quais se convenceu da partida de Lorenza, cortejou profundamente, mas com majestosa dignidade, os dois visitantes, que ambos espantados, ambos absortos pelas ondas tumultuosas dos pensamentos que os invadiam, voltaram para a carruagem, mais como pessoas embriagadas do que como antes dotadas de todo o siso.

 

DESAGRADO

       No dia seguinte, davam onze horas no grande relógio de Versalhes, quando o rei Luís XV, saindo dos seus aposentos, atravessou a galeria que lhe era contígua, e chamou com voz alta e breve:

       - Senhor de La Vrillière!

       El-rei estava pálido e parecia agitado; quanto mais cuidado tomava para ocultar essa preocupação, mais ela se manifestava na perturbação do seu olhar e na tensão dos músculos ordinariamente impassíveis do seu rosto.

       Logo se notou um silêncio profundo nas fileiras dos cortesãos, em cujo número se contava o senhor duque de Richelieu e o conde João du Barry, ambos sossegados e afectando indiferença e ignorância.

       O duque de La Vrillière chegou-se e recebeu uma carta régia das mãos de el-rei, que perguntou:

       - O Sr. Duque de Choiseul está em Versalhes?

       - Sim, senhor, desde ontem; chegou de Paris às duas horas depois do meio-dia.

       - Está em casa ou está no palácio?

       - Está no palácio, senhor.

       - Bem - disse el-rei; - leve-lhe esta ordem, duque.

       Um estremecimento prolongado percorreu as fileiras dos espectadores, que se curvavam uns para os outros, falando em voz baixa, e parecendo um campo de trigo açoitado pelo vento da tempestade.

       El-rei, franzindo as sobrancelhas, como querendo aumentar pelo terror o efeito dessas palavras, voltou orgulhosamente para o seu gabinete, seguido pelo capitão das suas guardas e pelo comandante da cavalaria ligeira.

       Todos os olhos se dirigiram para o senhor de La Vrillière, que, também desassossegado pelo passo que se via obrigado a dar, atravessava lentamente o pátio do palácio e dirigia-se ao quarto do senhor de Choiseul.

       Durante este tempo, todas as conversas, tímidas ou ameaçadoras, se encetavam em torno do velho marechal, que se mostrava mais admirado que os outros, mas que, graças a certo sorriso precioso, não enganava ninguém.

       O senhor de La Vrillière voltou e foi logo cercado.

       - Então? - perguntaram-lhe.

       - Então! Era ordem de desterro.

       - De desterro?

       - Sim, em bons termos.

       - Leu-a, duque?

       - Li.

       - É positivo?

       - Julguem por isto.

       E o duque de La Vrillière pronunciou as palavras seguintes, que lhe haviam ficado na lembrança, por meio dessa implacável memória que constitui os cortesãos:

       “Meu primo, o descontentamento que o seu serviço me causa obriga-me a desterrá-lo para Chanteloup, para onde partirá dentro de vinte e quatro horas. Para mais longe o teria eu mandado se não fosse a particular estima em que tenho a senhora de Choiseul, cuja saúde muito me interessa. Tenha cuidado, não me obrigue o seu procedimento a tomar outro expediente.”

       Um murmúrio prolongado percorreu o grupo que cercava o Sr. Duque de La Vrillière.

       - E o que lhe respondeu ele, senhor de Saint-Florentin? - perguntou Richelieu, afectando não dar ao duque nem o seu novo título nem o seu novo nome.

       - Ele respondeu-me:

       “Senhor duque, estou intimamente convencido da grande alegria que deveria ter experimentado em trazer-me esta carta.”

       - Era duro, meu pobre duque - disse João.

       - Então que quer, senhor conde! Não se deixa assim cair um pedaço de telha sobre a cabeça sem gritar um pouco.

       - E sabe o que ele vai fazer? - perguntou o marechal.

       - Segundo toda a probabilidade, vai obedecer.

       O duque de Richelieu tossiu.

       - Aí vem o duque! - bradou João que estava de sentinela junto da janela.

       - Vem para cá? - perguntou o duque de La Vrillière.

       - Não lho dizia eu, senhor de Saint-Florentin!

       - Lá atravessa o pátio - prosseguiu João.

       - Só?

       - Absolutamente só, com a pasta debaixo do braço.

       - Oh! Meu Deus! - murmurou Richelieu – veremos renovar-se a cena de ontem?

       - Oh! Não falemos nisso, ainda me faz estremecer – respondeu João.

       Ainda não tinha acabado quando na entrada da galeria apareceu o duque de Choiseul, com a fronte erguida, o olhar firme, fulminando com ele todos os seus inimigos ou aqueles que se iam declarar como tais, depois de se certificarem que ele havia incorrido no real desagrado.

       Ninguém esperava este passo, depois do que tinha acontecido, e portanto ninguém se lhe opôs.

       - Tem a certeza de haver lido bem, duque? – perguntou João.

       - Pudera!

       - E depois de existir uma carta como nos contou, atreve-se ele a aparecer?

       - Tudo isto é incompreensível, palavra de honra.

       - Mas el-rei vai mandá-lo para a Bastilha.

       - Isso daria muito que falar!

       - Chegaria eu quase a ter dó dele.

       - Ah! Lá entra no gabinete de el-rei. Isto é inaudito.

       Com efeito, o duque, sem fazer caso da espécie de resistência que, com cara de espantado, lhe opunha o porteiro, penetrou no gabinete de el-rei, que vendo-o soltou uma exclamação de surpresa.

       O duque trazia na mão a carta régia, e mostrou-a ao rei com um rosto quase risonho.

       - Senhor - disse ele - assim como Vossa Majestade se dignou ontem prevenir-me, recebi há pouco uma nova carta.

       - Sim, senhor - redargüiu el-rei.

       - E como Vossa Majestade teve a bondade de me dizer ontem que nunca considerasse, como verdadeira, qualquer carta que não fosse ratificada pela palavra expressa de el-rei, venho pedir a explicação.

       - Há-de ser lacónica, senhor duque - respondeu el-rei. - Hoje a carta é válida.

       - Válida! - disse o duque - uma carta tão injuriosa para um servidor tão leal?

       - Um servidor leal, senhor, não faz com que seu amo represente um papel ridículo.

       - Senhor - disse o ministro com altivez - eu julgava ter nascido próximo bastante do trono para lhe conhecer a majestade.

       - Senhor - redargüiu el-rei com uma voz seca – não quero fazê-lo cismar. Ontem à noite no gabinete do seu palácio, em Versalhes, recebeu um correio da senhora de Grammont.

       - É verdade, senhor.

       - E entregou-lhe uma carta.

       - Será proibido, senhor, que um irmão e uma irmã tenham correspondência?

       - Espere um pouco. Eu sei o conteúdo dessa carta.

       - Oh! Senhor...

       - Ei-lo aqui... Dei-me ao trabalho de o transcrever com meu próprio punho.

       E el-rei apresentou ao duque uma cópia exacta da carta que ele tinha recebido.

       - Senhor!

       - Não o negue, senhor duque; guardou essa carta num pequeno cofre de ferro colocado no corredor que fica entre a sua cama e a parede.

       O duque tornou-se pálido como um espectro.

       - Ainda não é tudo - prosseguiu el-rei desapiedadamente - respondeu à senhora de Grammont, e sei também o conteúdo da resposta. É uma carta, que traz aí na carteira, a qual vai ser expedida com um pós-escrito, que ao sair daqui lhe deve acrescentar... Estou bem instruído, não é verdade?

       O duque limpou a fronte que estava inundada por um suor frio, inclinou-se sem responder uma única palavra, e saiu do gabinete cambaleante como se lhe tivesse dado um ataque de apoplexia fulminante.

       A não ser o ar livre, que lhe refrescou a cabeça, teria caído no chão.

       Mas era um homem de vontade forte. Apenas se achou na galeria, readquiriu as suas forças, e atravessando, com a fronte erguida, pelas alas dos cortesãos, entrou no seu quarto, para guardar alguns papéis e queimar outros. Um quarto de hora depois, saiu do palácio na sua carruagem.

       A queda do senhor de Choiseul foi um raio que incendiou a França.

       Com efeito, os parlamentos, sustentados pela tolerância do ministro, proclamaram que o Estado acabava de perder a sua coluna mais forte. A nobreza era por ele como se fosse dos seus. O clero havia-se sentido quase protegido por esse homem, cuja dignidade pessoal, muitas vezes exagerada até ao orgulho, dava um ar de sacerdócio às suas funções ministeriais.

       O partido enciclopedista ou filósofo, já muito numeroso e principalmente muito forte, porque se compunha de pessoas instruídas, ilustradas e faladoras, soltou gritos agudos vendo o governo fugir das mãos do ministro que incensava Voltaire, protegia a Enciclopédia e conservava, desenvolvendo-as no sentido de utilidade, as tradições da senhora de Pompadour, Mecenas fêmea da gente do Mercúrio e da filosofia.

       O povo tinha muito mais razão do que todos os descontentes. Também se queixava, e sem profundar o caso, achava como sempre a grande verdade, a chaga em carne viva.

       O senhor de Choiseul, no ponto de vista geral, era um mau ministro e um mau cidadão, mas, relativamente, era um protótipo de virtude, de moral e de patriotismo. Quando o povo, morrendo de fome nos campos, ouviu falar das prodigalidades de Sua Majestade, dos caprichos ruinosos da senhora du Barry, quando lhe mandavam directamente avisos como o Homem dos Quarenta Escudos, ou conselhos como o Contrato Social, ocultamente revelações como as Novidades prontas e as Ideias Singulares de um Bom Cidadão, então aterrava-se o povo com a idéia de vir a cair nas mãos impuras da favorita, “menos respeitável que a mulher de um carvoeiro” como dizia Bauveau, ou nas mãos dos favoritos da favorita, e, cansado de tanto sofrimento, admirava-se de ver o porvir mais carregado que tinha sido o passado.

       Não era isto porque o povo, que tinha antipatias, tivesse simpatias bem pronunciadas. Não gostava dos parlamentos, porque sendo estes seus protectores naturais, sempre o tinham abandonado por questões frívolas de precedência ou de interesse egoísta; porque, mal alumiados pelo falso reflexo da real omnipotência, haviam esses parlamentos imaginado que eram alguma coisa semelhante a uma aristocracia entre a nobreza e o povo.

       Não gostava da nobreza por instinto e por lembrança. Temia tanto a espada como odiava a Igreja. Nada o podia ferir na queda do senhor de Choiseul, mas ouvia as queixas da nobreza, do clero, do parlamento, e essa bulha, junta aos murmúrios, fazia um tumulto horrível que o embriagava.

       O desvio desse sentimento foi saudade e uma como que popularidade adquirida pelo nome do senhor de Choiseul.

       Toda a população de Paris, e aqui pode-se justificar o dito com uma prova, acompanhou até às portas da cidade o exilado que partia para Chanteloup.

       O povo fazia alas na passagem das carruagens; os parlamentários e a gente da corte, que não tinham conseguido ser recebidos pelo duque, fizeram colocar as suas carruagens diante das alas do povo para o saudarem na passagem e assim receberem as suas despedidas.

       O maior tumulto verificou-se na barreira de Enfer, que é a estrada de Touraine. Houve aí tal afluência de gente a pé, a cavalo e de carruagem, que durante umas poucas de horas foi interrompida a circulação.

       Quando o duque conseguiu sair da barreira, achou-se acompanhado por mais de cem carruagens que faziam como que uma escolta à sua.

       Ainda o seguiam as aclamações e os suspiros. Teve porém o bom senso e conhecimento suficiente da situação para compreender que toda essa bulha não era saudade pela sua pessoa, mas simplesmente o receio pelos desconhecidos que das suas ruínas surgiriam.

       Uma carruagem de posta chegava a galope pela estrada cheia de povo, e a não ser um esforço violento do postilhão, os cavalos, brancos de pó e de espuma, iriam sem dúvida precipitar-se sobre os cavalos da carruagem do senhor de Choiseul.

       Ao postigo dessa carruagem assomou uma cabeça; o senhor de Choiseul também se inclinou ao postigo da sua.

       O senhor de Aiguillon cortejou profundamente o ministro caído, cuja pasta vinha disputar. O senhor de Choiseul desviou a cabeça: um único segundo acabava de envenenar os louros da sua queda.

       Mas no mesmo momento, sem dúvida como compensação, uma outra carruagem com as armas reais da França passava, tirada por oito cavalos, no ponto de união da estrada de Sevres a Saint-Cloud; e, fosse acaso ou efeito do atravancamento, não atravessava a estrada real, cruzando-se também com a do Sr. Choiseul.

       A delfina estava no assento do fundo com a sua dama de honor, a senhora de Noailles.

       No assento de diante vinha a menina Andreia de Taverney.

       O senhor de Choiseul, corando de prazer e de alegria, inclinou-se para fora do postigo e cortejou profundamente.

       - Adeus, minha senhora - disse ele com tristeza.

       - Até à vista, senhor de Choiseul - respondeu a delfina com um sorriso imperial e majestoso desprezo de toda a etiqueta.

       - Viva o senhor de Choiseul! - bradou uma voz entusiasta depois destas palavras da delfina.

       Ao som desta voz a menina Andreia voltou-se repentinamente.

       - Fora! Fora! Deixem passar! - bradaram os criados da princesa, obrigando Gilberto, pálido e com a avidez de ver, a fugir para a margem da estrada.

       Era com efeito o nosso herói que num entusiasmo filosófico, tinha bradado: “Viva o senhor de Choiseul!”

 

O SENHOR DUQUE DE AIGUILLON

       Tão tristes e chorosas eram as fisionomias em Paris e Chanteloup, como alegres e risonhas em Luciennes.

       É porque em Luciennes, desta vez, reinava não só uma mortal, a mais formosa e adorável das mortais, como diziam os cortesãos e os poetas, mas uma verdadeira divindade que governava a França.

       E demais, na noite da queda do senhor de Choiseul, encheu-se a estrada com as mesmas carruagens que pela manhã haviam corrido atrás da carruagem do ministro exilado, e viram-se igualmente todos os partidários do chanceler e da corrupção, o que fazia um cortejo respeitável.

       Mas a senhora du Barry tinha a sua polícia. João sabia, barão de mais ou barão de menos, o nome de todos os que tinham ido lançar a última flor sobre os Choiseul caídos; ele repetia-os à condessa, e eram excluídos sem piedade, enquanto o ânimo dos outros contra a opinião pública era recompensado pelo sorriso protector e a vista completa da divindade do dia.

       Depois da grande fileira das carruagens e da recepção geral, tiveram lugar as recepções particulares. Richelieu, o herói do dia, herói oculto, é verdade, e principalmente modesto, viu passar o turbilhão de visitantes e suplicantes, e foi o último a sentar-se no gabinete da condessa.

       Só Deus sabe o que houve de alegria e parabéns! Os apertos de mão, os risos reprimidos, os sinais entusiastas pareciam ser a linguagem habitual dos moradores de Luciennes.

       - É preciso confessar - disse a condessa - que o conde de Bálsamo ou de Fénix, como lhe quiser chamar, marechal, é o primeiro homem destes tempos. Seria muito para lastimar se ainda fosse costume queimar os feiticeiros.

       - Sim, condessa, sim, é um grande homem!

       - E um belo homem. Tenho uma fantasia por ele...

       - Vai-me despertar ciúmes - disse Richelieu rindo e com pressa de trazer a conversa para um sério mais pronunciado; - seria um terrível ministro da polícia o tal senhor conde!

       - Nisso pensava eu - redargüiu a condessa; - mas, é um homem impossível.

       - Por quê, condessa?

       - Porque tornaria impossíveis os seus colegas.

       - Como?

       - Sabendo tudo, vendo todos os seus planos...

       Richelieu corou apesar do carmim com que pintava o rosto.

       - Condessa - redargüiu ele - eu queria, se fosse seu colega, que ele fosse perpetuamente o meu, e que lhe comunicasse as cartas; sempre veria o valete de copas aos joelhos da dama e aos pés do rei.

       - Ninguém tem mais espírito do que o senhor – redargüiu a condessa. - Mas falemos um pouco do seu ministério... Eu pensava que tinha mandado avisar seu sobrinho.

       - De Aiguillon? Chegou, minha senhora, e em conjunturas que um romano teria julgado serem do melhor agoiro possível. A sua carruagem, chegando, encontrou-se com a do senhor de Choiseul que partia.

       - É com efeito de bom agoiro - disse a condessa – Então há-de cá vir?

       - Minha senhora, lembrou-me que, se o senhor de Aiguillon fosse visto em Luciennes, em circunstâncias como estas, daria isso lugar a toda a casta de comentários; pedi-lhe que se conservasse afastado, até que eu o mandasse chamar.

       - Mande-o então chamar, marechal, e já, porque estamos sós, ou quase sós.

       - De muito boa vontade, e muito mais porque estamos perfeitamente de acordo, não é verdade, condessa?

       - Absolutamente, sim, duque. Prefere... A guerra à fazenda, não é verdade? Ou deseja antes a marinha?

       - Prefiro a guerra, minha senhora, é ali que eu poderia prestar maiores serviços.

       - É justo. É então esse o sentido em que deverei falar a el-rei. Não tem antipatias?

       - Por quem?

       - Por alguns dos colegas que el-rei lhe apresentar.

       - Sou o homem do mundo mais fácil de viver, condessa; mas, permita que mande chamar o meu sobrinho, visto que lhe quer conceder a honra de o receber.

       Richelieu chegou-se à janela; os últimos raios do crepúsculo alumiavam ainda o pátio. Fez sinal a um dos seus criados, que olhava para essa janela, e que depois do sinal partiu a correr.

       Entretanto em casa da condessa acenderam as luzes.

       Dez minutos depois da partida do criado, entrava uma carruagem no primeiro pátio. A condessa voltou-se repentinamente para a janela.

       Richelieu percebeu o movimento, que lhe pareceu ser um excelente prognóstico para os negócios do senhor de Aiguillon, e por conseqüência para os seus.

       - Serve o tio - disse ele consigo - está disposta a favor do sobrinho; seremos os senhores aqui.

       Enquanto se nutria com estes fumos quiméricos, ouviu-se um leve rumor na porta, e a voz do criado grave anunciou o duque de Aiguillon.

       Era um fidalgo guapo e esbelto, vestido com elegância, gosto e riqueza. O senhor de Aiguillon não estava já na idade fresca da mocidade, mas era desses homens que, pelo olhar e pela vontade, são moços até à decrepitude.

       Os cuidados do governo não lhe haviam produzido nem sequer uma ruga na fronte; apenas lhe tinham dilatado o que é natural nos estadistas e nos poetas e que parece ser o asilo dos pensamentos elevados. Conservava erguida e direita a sua bela cabeça cheia de finura e melancolia, como se soubesse que o ódio de dez milhões de homens pesava sobre essa cabeça, mas como se, ao mesmo tempo, quisesse provar que o peso não era superior às suas forças.

       O senhor de Aiguillon tinha as mãos extremamente formosas, que realçavam ainda mais no centro das rendas brancas. Estimava-se muito naquele tempo uma perna bem feita, e as do duque eram um modelo de elegância e forma aristocrática. Havia nele a suavidade do poeta, a nobreza do fidalgo e a flexibilidade e brandura de um mosqueteiro. Para a condessa era um triplo ideal: achava num só modelo três tipos, que por instinto essa formosa sensual devia amar.

       Por uma notável singularidade, ou para melhor dizer, por um encadeamento de circunstâncias combinadas pela sábia táctica do senhor de Aiguillon, esses dois heróis da censura pública, a cortesã e o cortesão, ainda se não tinham encontrado na corte, cara a cara, com todas as suas vantagens pessoais.

       Efectivamente, havia três anos que o senhor de Aiguillon estava muito ocupado na Bretanha ou no seu gabinete; havia aparecido pouco na corte, sabendo que estava próxima uma crise favorável ou desfavorável; que, no primeiro caso, melhor era oferecer aos seus administrados os benefícios do incógnito; no segundo, desaparecer sem deixar atrás de si muitos vestígios, para poder facilmente sair depois do abismo com um rosto novo.

       Havia ainda outra razão forte que dominava todos estes cálculos, e esta pertence toda ao romance.

       Antes que a senhora du Barry fosse condessa e beijasse todas as noites com a sua boca ardente a coroa de França, tinha sido uma formosa criatura alegre e adorada, tinha sido amada, felicidade esta com que não devia mais contar depois que a temiam.

       Entre todos os homens moços, ricos, poderosos, e belos, que se haviam dedicado a fazer a corte a Joana Vaubernier; entre todos os fazedores de versos que haviam combinado com mais ou menos felicidade em rima estas duas palavras: Longe e ange, o Sr. Duque de Aiguillon figurara outrora em primeiro lugar; mas, ou fosse porque o duque não se havia apressado, ou porque a Srª. Lange não era tão fácil de conquistar como os seus detractores o afirmavam, ou fosse enfim (o que não prejudica o mérito de um nem de outro) porque o súbito amor de el-rei desviasse os dois corações próximos a entenderem-se, o senhor de Aiguillon suspendeu versos, sonetos, ramalhetes e perfumes; a Srª. Lange fechou a sua portinhola da Rua de Petis-Champs; o duque refugiou-se na Bretanha, onde foi abafar os seus suspiros, e a Srª. Lange enviou todos os seus na direcção de Versalhes, ao Sr. Barão de Gonesse, isto é, ao rei de França.

       Resultou que a súbita desaparição do senhor de Aiguillon, a princípio, havia preocupado um pouco a senhora du Barry, porque tinha medo do passado, mas depois, vendo a atitude silenciosa do seu antigo adorador, ficou bastante admirada e maravilhada, e colocada em posição para avaliar os homens, convenceu-se que aquele era um de juízo.

       Esta distinção era já muito para a condessa, mas não era tudo, e talvez não estivesse longe o momento em que ela se convenceria que o senhor de Aiguillon era um homem de brio.

       É preciso dizer que a pobre Srª. Lange tinha os seus motivos para temer o passado. Um mosqueteiro, outrora amante feliz, como ele dizia, atrevera-se um dia a entrar no palácio de Versalhes para reclamar da Srª. Lange uma pequena parte dos seus favores passados, e essas palavras, logo abafadas por uma altivez real, não tinham por isso deixado de fazer soar o pudico eco no palácio da senhora de Maintenon.

       Já vimos que em toda a sua conversa com a senhora du Barry, o marechal não havia por forma alguma tocado no capítulo de qualquer relação entre seu sobrinho e a Srª. Lange. Um tal silêncio da parte de um homem acostumado a dizer as coisas mais difíceis do mundo, havia profundamente surpreendido, e força é confessá-lo, desassossegado a condessa.

       Esperava portanto com impaciência o senhor de Aiguillon para saber afinal o que havia de pensar, e se o marechal havia sido discreto ou se estava ignorante.

       O duque entrou.

       Respeitoso mas desembaraçado, e seguro bastante de si para cortejar entre a rainha e a mulher da corte, subjugou de repente, por esse tom delicado, uma protecção que estava disposta a achar o bem perfeito, e perfeito maravilhoso.

       O senhor de Aiguillon pegou depois na mão de seu tio, que, avançando para a condessa, lhe disse com uma voz cheia de brandura:

       - Eis aqui o Sr. Duque de Aiguillon, minha senhora; não é meu sobrinho, é um dos seus mais apaixonados servidores que tenho a honra de lhe apresentar.

       A condessa ouvindo estas palavras, olhou para o duque, e olhou para ele como as mulheres sabem olhar, isto é, com uns olhos a que nada escapa; só viu duas frontes respeitosamente inclinadas e dois rostos, que depois do cumprimento, se ergueram sossegados e serenos.

       - Eu sei - respondeu a condessa du Barry - que tem amizade ao senhor duque, marechal, e que é meu amigo. Eu pedirei ao senhor duque, em nome de seu tio, que o imite em tudo quanto ele fizer que me possa ser agradável.

       - É esse o procedimento que já delineei, minha senhora - respondeu o duque de Aiguillon fazendo uma nova cortesia.

       - Sofreu muito na Bretanha? - perguntou a condessa.

       - Sim, minha senhora, e não acabaram ainda os meus sofrimentos - respondeu de Aiguillon.

       - Espero que terminem; e demais, aqui está o senhor de Richelieu que vai auxiliá-lo poderosamente.

       De Aiguillon olhou para Richelieu como admirado.

       - Ah! - disse a condessa - vejo que o marechal não teve ainda tempo de conversar consigo, é natural, chega apenas da jornada. Pois bem, devem ter mil coisas que dizer, eu deixo-os sós; marechal, senhor duque, estão em sua casa.

       E dizendo estas palavras, a condessa retirou-se.

       Mas tinha um projecto. A condessa não se afastou muito. Por detrás do toucador havia um grande gabinete onde el-rei muitas vezes, quando vinha a Luciennes, gostava de ir sentar-se no meio das curiosidades de todo o género que ali existiam. Preferia esse gabinete ao toucador, porque se ouvia tudo quanto se dizia no quarto contíguo.

       A senhora du Barry tinha a certeza de ouvir dali toda a conversa do duque com o sobrinho; era a respeito deste que ia formar uma derradeira e irrevogável opinião.

       Mas o duque não se deixou enganar, conhecia uma grande parte dos segredos de cada localidade real ou ministerial.

       Escutar enquanto falavam era um dos seus meios, falar enquanto escutavam era uma das suas astúcias.

       Resolveu portanto, enquanto durava a impressão da boa recepção que a senhora du Barry acabava de fazer a de Aiguillon, levar mais adiante a sua esperteza e indicar à favorita, com a protecção da sua suposta ausência, um plano de felicidade secreta e de grande poder, complicado com intrigas amorosas, isca sedutora, à qual uma mulher bonita e principalmente uma mulher da corte, quase nunca resiste.

       Mandou sentar o duque e disse-lhe:

       - Vês, duque, estou instalado aqui.

       - Sim, senhor, bem vejo.

       - Tive a fortuna de alcançar a protecção dessa mulher encantadora, que todos aqui respeitam como se fosse uma rainha, e que o é de facto.

       De Aiguillon inclinou-se.

       - Digo-te, duque - prosseguiu Richelieu - o que não pude dizer-te diante de todos, quando nos vimos, e é que a senhora du Barry me prometeu uma pasta.

       - Ah! - disse o duque de Aiguillon - por certo que o merece, meu tio.

       - Não sei se o mereço, mas o caso é que a coisa vem um pouco tarde, é verdade; enfim, arranjado como eu ficarei, vou tratar de ti, de Aiguillon.

       - Agradecido, senhor duque, é um bom parente, tenho provas disso.

       - Nada tens em vista, de Aiguillon?

       - Nada, absolutamente, só o que desejo é não ser exautorado do meu título de duque e par, como exigem os senhores do parlamento.

       - Tens protectores em alguma parte?

       - Eu? Nem um.

       - Então, se não fosse este concurso de circunstâncias, terias infalivelmente caído?

       - Redondamente, senhor duque.

       - Ah! Falas como um filósofo. Com os diabos! Mas também, a culpa é minha, meu pobre de Aiguillon, falo-te mais como ministro do que como tio...

       - Meu tio, a sua bondade encanta-me.

       - Se te mandei chamar à Bretanha, a toda a pressa, bem deves compreender que foi para fazer-te desempenhar aqui um belo papel... Ora, diz-me, tens pensado às vezes no papel que durante dez anos desempenhou o senhor de Choiseul?

       - Certamente, e era esse um belo papel.

       - Belo! Entendamo-nos, belo, quando, juntamente com a senhora de Pompadour, governava o rei e fazia desterrar os jesuítas; triste, muito triste, quando, tendo-se inimizado como um parvo com a senhora du Barry, que vale cem vezes a senhora Pompadour, deu lugar a que o pusessem no meio da rua em vinte e quatro horas... Não respondes?

       - Estou a ouvir, senhor duque, e procuro atinar onde quer chegar.

       - Agrada-te, não é verdade, o primeiro papel de Choiseul?

       - Certamente.

       - Pois bem, meu caro amigo, esse papel resolvi representá-lo eu.

       De Aiguillon voltou-se subitamente para seu tio, dizendo:

       - Está a falar a sério?

       - Estou, e por que não?

       - Quer ser amante da senhora du Barry?

       - Vais depressa de mais, que diabo! E contudo vejo que me compreendes. Sim, Choiseul era muito feliz, governava o rei e governava a amante do rei; amava, ao que se diz, a senhora de Pompadour... E afinal, por que não?... Pois bem, não posso eu ser o amante amado, bem mo está dizendo o teu frio sorriso: com os teus olhos de homem novo observas a minha fronte enrugada, os meus joelhos cambaios e as minhas mãos descarnadas, que tão bonitas foram. Em vez de dizer, falando de Choiseul: “Representarei o seu papel”, devia ter dito, portanto: “Havemos de representá-lo”.

       - Meu tio!

       - Não, sei bem que não posso ser amado por ela; digo-te, contudo... E sem receio, porque ela não pode saber, amaria essa mulher acima de tudo... Mas...

       De Aiguillon carregou o sobrolho.

       - Mas - continuou o marechal - concebi um plano soberbo; o papel, que a minha idade me impede de desempenhar, vou desdobrá-lo.

       - Ah! Ah! - disse de Aiguillon.

       - Alguém da minha família - disse Richelieu – amará a senhora du Barry. E que bela situação!... Uma mulher perfeita!

       E Richelieu alteou a voz.

       - Não é Fronsac, compreendes: um pobre degenerado, um parvo, um cobarde, um patife, um vilão... Serás tu, duque!

       - Eu? - exclamou de Aiguillon - Está louco, meu tio?

       - Louco! Pois quê! Não estás já aos pés de quem te dá este conselho? Pois quê! Não exultas de alegria, não és todo gratidão? Pois quê! Em vista da maneira como ela te recebeu, não estás já namorado... Louco de amor?... Ora vamos, vamos - exclamou o velho marechal – desde Alcibíades para cá, ainda não houve no mundo senão um Richelieu... E estou a ver que não torna a haver outro!

       - Meu tio - replicou o duque com uma agitação, ou fingida, e nesse caso era admiravelmente simulada, ou real, porque a proposta era bem clara - meu tio, compreendo o partido que em seu proveito poderia tirar da posição em que me fala; meu tio governaria com a autoridade do Sr. Choiseul e eu seria o amante que lhe constituiria essa autoridade. Sim, o plano é digno do homem de mais fino espírito de toda a França, mas, ao conceber esse plano, meu tio esqueceu-se apenas de uma coisa.

       - De quê? - exclamou Richelieu, inquieto - não gostas da senhora du Barry? Será isso?... Louco, três vezes louco! Desgraçado! Pois será isso?

       - Não! Não é isso, meu tio - exclamou de Aiguillon, como se tivesse a certeza de que nenhuma das suas palavras se estava perdendo; - a senhora du Barry, a quem apenas conheço, pareceu-me a mais formosa e a mais encantadora das mulheres. Pelo contrário, amaria loucamente a senhora du Barry, amá-la-ia até de mais: não é essa a questão.

       - Em que está então a questão?

       - Nisto, senhor duque; a senhora du Barry nunca me terá amor e a primeira condição de semelhante aliança é o amor. Como quer que no meio desta corte brilhante, no seio das homenagens de uma sociedade fértil em belezas de todo o género, como quer que a formosa condessa vá distinguir precisamente aquele que não tem merecimentos nenhuns, aquele que já não é novo e a quem os desgostos acabrunham, aquele que se oculta a todos os olhos, por compreender que não há-de tardar muito tempo que desapareça? Meu tio, se eu tivesse conhecido a senhora du Barry no tempo da minha mocidade e da minha formosura, quando as mulheres amavam em mim o que se ama num mancebo, então ainda eu poderia ser para ela uma recordação. É muito; mas nada, nem passado, nem presente, nem futuro. Meu tio, é forçoso renunciar a essa quimera; o que fez, foi pungir-me o coração, apresentando-me essa quimera tão suave e tão fagueira.

       Durante esta tirada, dita com um entusiasmo que faria inveja a um actor tão distinto como Mole e que Lekain julgaria digna de estudo, Richelieu mordia os beiços, dizendo de si para si:

       - Adivinharia o maganão que a condessa está a escutar-nos? É muito esperto! É um mestre! Nesse caso, é preciso termos cautela.

       Richelieu tinha razão; a condessa estava escutando e todas as palavras de de Aiguillon lhe tinham ido direitas ao coração; sorvia a largos tragos o encanto daquela confissão, saboreava a delicadeza extrema daquele homem que nem mesmo com um confidente íntimo traíra o segredo das relações passadas, com receio de lançar uma sombra sobre o retrato talvez ainda amado.

       - Assim, recusas o que te proponho? - disse Richelieu.

       - Quanto a isso, sim, recuso, meu tio, porque, infelizmente, vejo que é uma coisa impossível.

       - Ao menos, experimenta, desgraçado!

       - Mas como?

       - Agora és dos nossos... Hás-de ver a condessa todos os dias: trata de agradar-lhe, coa breca!

       - Com um fim interesseiro?... Não, não!... Se tivesse a desgraça de agradar-lhe, com este amargo pensamento, fugiria para o fim do mundo, porque teria vergonha de mim mesmo.

       Richelieu tornou a coçar o queixo, dizendo consigo:

       - Está tudo arranjado ou de Aiguillon é um parvo.

       De repente ouviu-se estrondo nos pátios e algumas vozes bradaram: “O rei!”

       - Diabo! - exclamou Richelieu - o rei não deve ver-me aqui, vou-me embora.

       - E eu? - disse o duque.

       - Tu, é diferente, é preciso que ele te veja. Fica... Fica... E, por Deus, não percas a ocasião.

       Dito isto, Richelieu saiu rapidamente pela escada particular, dizendo ao duque:

       - Até amanhã!

 

                                                                                            Alexandre Dumas

 

 

                      

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