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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CHAMADO DO CORAÇÃO / Barbara Cartland
O CHAMADO DO CORAÇÃO / Barbara Cartland

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CHAMADO DO CORAÇÃO

 

O tráfico de mulheres e crianças da Inglaterra para o continente europeu crescia dia a dia. Foi só depois da aprovação de uma emenda no Código Penal, que as jovens inglesas cessaram de ser enviadas a outros países para serem vendidas como animais.

William Thomas Stead, editor da Pall Mall Gazette começou, em 1880, uma campanha no sentido de instigar a indignação popular contra esse mercado, e ver se conseguia com isso transformar em lei uma emenda cuja aprovação vinha sendo adiada pelo Parlamento por anos a fio.

A fim de provar que esse tráfico realmente existia, ele mesmo comprou uma menina de treze anos, cuja mãe concordou em receber a quantia de uma libra. Ele exigiu um certificado por um médico de que a menina era virgem, e levou-a a França, colocando-a num albergue a cargo do Exército da Salvação.

Em seguida, publicou em seu jornal o que fizera, e logo despertou o interesse do público. Mas isso lhe custou uma condenação a três anos de cadeia.

Em 14 de abril de 1885, uma lei foi aprovada no Parlamento, por 179 votos contra 71, proibindo a escravidão de crianças e mulheres, e suprimindo gradativamente os bordéis.

O tráfico de mulheres ainda floresce em muitas regiões do mundo, especialmente no Oriente Médio.

 

  • Sophie, você não pode fazer isso! — disse Lalitha.

  • Faço o que quero! — replicou Sophie.

    Era difícil imaginar que alguém pudesse ser mais linda que Sophie. Os cabelos dourados, a pele branca e rosada, as feições perfeitas, faziam de Sophie Studley a jovem mais famosa da corte de St. James. Após a estadia de um mês em Londres, ela foi proclamada a "Incomparável" e, depois de dois meses, ficou noiva de Julius Verton que, com a morte do tio, se tornaria o duque de Yelverton.

    Anunciado o noivado na Gazette, os presentes começaram a chegar à casa de Mayfair, que lady Studley, a filha e a enteada ocupavam durante a temporada em Londres.

    Porém, duas semanas antes do casamento, Sophie declarava sua intenção de romper o noivado e fugir com lorde Rothwyn.

    — Vai haver um tremendo escândalo! — protestava Lalitha. — Afinal, por que agir assim, Sophie?

    Ao lado de Sophie, o ideal de beleza de todos os homens, Lalitha tinha um aspecto doentio, patético de dar pena. Uma enfermidade que a cometera durante o inverno, a deixara pele sobre ossos. E, por causa das longas horas que passava costurando para sua madastra, a mãe de Sophie, com luz inadequada, seus olhos estavam constantemente vermelhos e inchados. Ela possuía cabelos tão opacos que pareciam quase cinzentos; penteados para trás, davam-lhe um ar de austeridade.

    As duas moças tinham mais ou menos a mesma idade, mas, enquanto Sophie era a personificação de saúde e da alegria de viver, Lalitha assemelhava-se a uma sombra prestes a desfalecer.

  • Julius será um dia duque, mas quando? — prosseguiu Sophie. — O duque de Yelverton, seu tio, não tem mais que sessenta anos, e poderá viver ainda dez ou quinze anos. Até lá, estarei bastante velha para usufruir de minha posição de duquesa com prazer.

  • Você continuará sendo bonita, Sophie — insistia Lalitha.

    Sophie olhou-se no espelho. Sorriu com satisfação ao contemplar sua imagem ali refletida. Não havia dúvida de que seu vestido azul pálido de crepe lhe ia muito bem. O corpete justo, última moda em Paris, deixava sua cintura muito fina, acentuada também pelas saias rodadas guarnecidas de buquês de flores e ruches de tule.

  • É verdade — concordou Sophie calmamente. — Ainda serei bonita, mas queria me tornar uma duquesa já, para ocupar um lugar de honra na coroação do próximo rei. Nosso cansativo e decrépito monarca com certeza morrerá logo. E eu não pretendo esperar eternamente até que o duque de Yelverton resolva desaparecer do mundo dos vivos. Estou decidida a fugir com lorde Rothwyn esta noite mesmo! Tudo foi preparado para isso.

  • Acha de fato essa sua atitude prudente? — indagou Lalitha.

  • Sem dúvida. Lorde Rothwyn é muito rico, um dos homens mais ricos da Inglaterra, e amigo íntimo do príncipe regente, o que significa que ocupa lugar de destaque na corte da Inglaterra.

  • É mais velho que o Sr. Verton. Contudo, apesar de nunca tê-lo visto, imagino que seja atraente.

  • E é. Seus cabelos escuros e ar cético lhe dão muito charme.

  • Ele ama você, Sophie?

  • Ele me adora! Aliás, os dois me adoram! Não obstante, comparando-se um ao outro, lorde Rothwyn é o melhor partido.

  • Porém, Sophie, o mais importante é saber com qual dos dois você será mais feliz. É o que realmente conta num casamento.

  • Você anda lendo outra vez aqueles romances bobos, Lalitha. Se mamãe a pega com um desses livros na mão, vai ter de haver com ela.

    — Você pode admitir um casamento sem amor, Sophie?

  • Claro. Vou me casar com quem me oferecer melhores vantagens. E lorde Rothwyn é rico, muitíssimo rico!

    Recentemente Sophie recebera três pedidos de casamento: um de Julius Verton, futuro duque de Yelverton; o segundo, na última semana, de lorde Rothwyn; e o terceiro, que Sophie pusera de lado imediatamente, de sir Thomas Whernside, um velho e dissoluto jogador que se apaixonara à primeira vista pela bela Sophie.

    Quando Julius Verton propôs casamento a Sophie, ela se considerou a mulher mais feliz do mundo. Um dia seria duquesa. Todavia, existiam alguns senões a serem considerados e, o pior deles, era que Julius possuía pouco dinheiro. Vivia da mesada do tio, aliás bem pequena, o que obrigaria o casal a morar modestamente no campo, até que herdasse a fortuna dos Yelverton.

    O casamento teria lugar na igreja de St. George, em Hanover Square, antes que o príncipe regente partisse para Brighton.

    Sophie passava os dias experimentando vestidos, recebendo presentes que chegavam diariamente em sua casa em Hill Street, e agradecendo as congratulações.

    Ela e a mãe, por não terem residido em Londres muito tempo, não possuíam grandes amizades na cidade. A verdadeira casa delas era em Norfolk, onde os antepassados do falecido lorde Studley haviam morado desde os tempos de Cromwell. Studley era um nome respeitado naquele local, porém pouco conhecido no beau monde de Londres. O sucesso de Sophie deveu-se portanto, exclusivamente à sua beleza.

    Tudo ocorria normalmente até o dia em que lorde Rothwyn apareceu em cena. Sophie encontrou-o num dos muitos bailes a que ela e Julius eram convidados, noite após noite.

    Lord Kothwyn estivera afastado de Londres e ficou boquiaberto quando a contemplou com a luz das velas incidindo sobre seus cabelos dourados, e com aquela pele alva como a neve, Sophie era mesmo capaz de virar a cabeça de qualquer homem quando dirigia a ele seu cativante sorriso.

  • De onde veio essa criatura? — ela ouviu alguém dizer e, virando-se, deu de cara com um homem moreno e atraente, que a fitava extasiado.

    Não se surpreendeu, contudo, pois estava acostumada a tais reações da parte dos homens.

  • Quem é esse cavalheiro que acaba de entrar na sala? — indagou Sophie ao rapaz que a acompanhava.

  • É lorde Rothwyn — respondeu o jovem. — Não foi ainda apresentada a ele?

  • Nunca o vi antes.

  • É um homem um tanto estranho e de atitudes imprevisíveis, mas riquíssimo, e o regente o consulta sempre na execução de todos esses edifícios loucos espalhados pela cidade.

  • Bem, se foi ele quem aprovou o novo pavilhão em Brighton, deve ser louco mesmo! — exclamou Sophie. — Ouvi ontem alguém o descrever como um pesadelo indiano!

  • Ótima comparação! — concordou o rapaz. — Mas vejo que Rothwyn está ansioso por conhecê-la.

    Nesse instante, um amigo comum conduziu o lorde para perto de Sophie, dizendo:

  • Miss Studley, permita-me apresentar-lhe lorde Rothwyn. Acho que esses dois ornamentos de nossa sociedade precisam se conhecer.

    Lorde Rothwyn inclinou-se com uma elegância fora do comum, e Sophie saudou-o graciosamente, sabendo-se admirada.

  • Estive viajando — explicou-lhe lorde Rothwyn. — E, ao voltar, constato que Londres foi visitada por um meteoro tão saturado de divinos poderes, que tudo parece ter mudado aqui da noite para o dia.

    Foi o começo de uma corte ardente, impetuosa, violenta, que deixou Sophie encantada.

    Flores, cartas e presentes chegavam a cada instante. Lorde Rothwyn levara Sophie passear em seu faetonte, e a convidava, juntamente com a mãe, para seu camarote na ópera. Finalmente, organizou uma grande festa em homenagem à jovem, em Rothwyn House, que excedeu em grandiosidade, luxo e entretenimento a qualquer outra festa a que Sophie fora convidada.

  • Sua Alteza Real compareceu! — contou Sophie mais tarde a Lalitha. — E, enquanto ele me felicitava por meu noivado com Julius, podia notar que lorde Rothwyn estava a meus pés. Ele me adora! Se tivesse pedido minha mão antes de Julius, seria meu noivo hoje!

    E agora, repentinamente, Sophie decidia fugir com lorde Rothwyn, abandonando Julius.

  • Vou sacrificar toda a cerimônia de meu casamento — declarava Sophie. — Não terei damas de honra, recepção, nem vestido de noiva, mas Sua Senhoria me prometeu uma enorme festa assim que voltarmos de nossa lua-de-mel.

  • Todo o mundo vai ficar chocado por você romper o compromisso com o Sr. Verton dessa maneira cruel, Sophie — Lalitha insistia hesitante.

  • Isso não vai impedir que "todo o mundo" aceite o convite para comparecer a Rothwyn House — garantia Sophie. — As chances de Julius poder proporcionar festas, até se tornar duque, serão mínimas.

  • Ainda acho que você deveria se casar com o homem a quem deu sua palavra.

  • Graças a Deus não tenho esse tipo de consciência — replicou Sophie. — Ao mesmo tempo, vou fazer Sua Senhoria entender o sacrifício que estou fazendo em favor dele.

  • Lorde Rothwyn pensa que você o ama?

  • Claro que pensa. Eu lhe disse que fugia com ele por estar perdidamente apaixonada. — Sophie sorriu. — É fácil amar alguém rico como Rothwyn. Todavia, lamento não poder usar um dia a coroa de duquesa, que ficaria muito bem em meus cabelos dourados.

    Ela deu um suspiro, e depois acrescentou:

  • Bem, talvez lorde Rothwyn não viva muito. Nesse caso, viúva rica, poderei me casar com Julius.

  • Sophie! — Lalitha estava horrorizada. — Que coisa feia você está dizendo!

  • Por que feia? Afinal, Elisabeth Gunning não era mais bonita que eu e casou-se duas vezes com dois duques. Chamavam-na até de "a dupla duquesa".

    Lalitha não respondeu, sabendo que nada demoveria Sophie de seu intento.

    Sentada em frente à penteadeira, Sophie se contemplava no espelho. Ela observou:

  • Este meu vestido é perfeito para eu ir ao encontro de lorde Rothwyn. Como vai estar um pouco fresco à noite, usarei a capa de veludo azul enfeitada de arminho.

  • Lorde Rothwyn vem buscar você aqui?

  • Claro que não! — replicou Sophie. — Pensa que mamãe não sabe de nada acerca de nossos planos. — Sorriu. — Pode-se ver logo que ele não conhece bem mamãe.

  • Aonde você vai se encontrar com ele?

  • No adro da igreja de St. Alphage, ao norte de Grosvenor Square. É um templo pequeno, escuro e mais ou menos pobre, porém Sua Senhoria acredita perfeito para o tipo de casamento que vamos ter. O mais importante é que o vigário pode ser subornado para conservar a boca fechada sobre a cerimônia.

  • E para onde vocês pretendem ir após o casamento?

    Sophie sacudiu os ombros e respondeu:

  • Por acaso isso interessa, desde que seja um lugar confortável? Terei a aliança em meu dedo e serei lady Rothwyn.

  • E que vai fazer com o Sr. Verton? — perguntou Lalitha.

  • Escrevi algumas linhas para ele e mamãe mandará um lacaio entregá-las quando eu já estiver na igreja. E, como Julius encontra- se com a avó em Wimbledon, só vai recebê-las bem depois do casamento. Será tarde demais para ele desafiar Sua Senhoria em duelo.

  • Sinto pelo Sr. Verton. Ele a ama muito, Sophie.

  • Sei disso. Mas francamente, Lalitha, sempre o achei imaturo e cacete!

    Essa resposta não surpreendeu Lalitha. Sabia desde o início do noivado que Sophie não estava interessada no Sr. Verton como homem. As cartas cheias de paixão que ele lhe escrevia permaneciam fechadas sobre o aparador, e Sophie mal olhava para as flores e invariavelmente queixava-se dos presentes enviados pelo noivo.

  • Que horas são? — indagou ela.

  • Sete e meia. — informou Lalitha.

  • Por que você ainda não me trouxe alguma coisa para comer?

  • Vou buscar já seu jantar.

  • Providencie que seja bom. Preciso de algo nutritivo para que possa enfrentar o que tenho a fazer esta noite. Não é coisa fácil.

  • A que horas você vai se encontrar com Sua Senhoria?

  • Ele estará na igreja às nove e meia, mas tenciono deixá-lo esperando por mim. É bom que fique um pouco apreensivo. — Quando Lalitha ia saindo do quarto, Sophie gritou: — Mande o lacaio agora para Wimbledon, pois ele levará mais ou menos uma hora para chegar lá. A nota está na minha escrivaninha.

  • Vou procurá-la — respondeu Lalitha.

    Com o bilhete na mão, ela desceu para a cozinha. Havia lá poucas empregadas, de péssima qualidade. Eram mal pagas, e o pouco dinheiro que lady Studley possuía gastava-o no aluguel da casa em Londres e nas roupas de Sophie, isso tudo usado como isca a fim de atrair um bom partido para a filha.

    Quem sofria com a situação era Lalitha. Enquanto moravam no campo, mesmo depois da morte do pai dela, grande número de velhos serviçais continuou fiel â família, trabalhando mais por afeição que por dinheiro. Em Londres, contudo, Lalitha viu-se revezando hora com a cozinheira, ora com a arrumadeira ou até com

    O menino de recados, e ocupava-se das primeiras horas do dia às últimas da noite. A madrasta maltratava-a com indisfarçada crueldade, principalmente em Londres, onde não se encontravam os antigos empregados que conheciam a menina desde que nascera.

    Às vezes Lalitha se convencia de que a madrasta esperava que ela morresse de exaustão, o que consistiria num alívio para todos. Em conseqüência do excesso de trabalho ela adoecera e ficara muito fraca pois, durante o tempo em que estivera acamada, ninguém levou-lhe comida no quarto. Depois de dias e dias sem alimentação, resolveu levantar-se e ir à cozinha à procura de alimento.

  • Se você sente-se bem para comer, está boa também para o trabalho — a madrasta lhe dissera, e Lalitha voltara à lida, fazendo na casa um pouco de tudo, e corrigindo o mau serviço dos criados.

    Naquela hora, com o recado de Sophie, ela entrou na cozinha, cômodo escuro e necessitando de pintura, não muito limpo também. Um lacaio estava sentado à mesa bebendo um copo de cerveja, e uma mulher grisalha, em frente ao fogão, cozinhava alguma coisa com odor pouco apetitoso. Era a cozinheira da casa, uma imigrante irlandesa que fora contratada numa agência de empregados, sendo a única que aceitara o miserável salário que lady Studley podia pagar.

    Lalitha dirigiu-se ao lacaio:

  • Você quer, por favor, levar este recado à velha duquesa em Yelverton House? Fica, penso, na comunidade de Wimbledon.

  • Só vou quando terminar com minha cerveja — replicou o criado, de má vontade.

    Não se levantou ao falar com Lalitha. Todos os serviçais aprenderam bem depressa que ela não era pessoa importante na casa, e davam-lhe menos consideração do que recebiam de seus empregados.

  • Obrigada — agradeceu Lalitha e, fitando a cozinheira: — Miss Studley deseja alguma coisa para comer.

  • Não há muito. Preparo um ensopado para nós, mas ainda não está pronto.

  • Talvez haja ovos para uma omelete — sugeriu Lalitha.

  • Não posso interromper meu serviço agora — replicou a mulher de maneira bem atrevida.

  • Então eu mesma faço — disse Lalitha.

    Ela contava com aquilo, de qualquer modo. Apanhou uma frigideira, que por sinal teve de ser lavada, e preparou uma omelete de cogumelos. Colocou-a sobre fatias de pão e, juntamente com um bule de café, encaminhou-se para a porta. Ia saindo da cozinha quando o lacaio resmungou;

  • É muito tarde agora para eu ir até Wimbledon. Não pode essa incumbência esperar até amanhã?

  • Sabe que não pode! — replicou Lalitha.

    — Sim, eu sei, mas não acho justo eu ter de me arriscar fora de Londres à noite, quando as estradas estão infestadas de ladrões.

  • Eles não têm nada a roubar de você — refutou a cozinheira às gargalhadas. — Mexa-se, e, quando voltar, seu jantar estará pronto.

    Lalitha foi com a bandeja para o quarto de Sophie e pensava pelo caminho em como sua mãe se irritaria se ouvisse os empregados falando daquele jeito em sua presença. E, só em pensar na mãe, seus olhos se encheram de lágrimas.

    Sentia-se cansada, pois trabalhara muito naquele dia. Além de limpar a casa toda e fazer as camas, executara inúmeras ordens de Sophie. Seus pés doíam e ela ansiava pelo momento em que pudesse se sentar e descansar um pouco. Mas esse era um privilégio que teria apenas tarde da noite, quando se retirasse para dormir. » Abriu a porta do quarto de Sophie que foi logo dizendo, num tom de voz bem desagradável:

  • Como você demorou!

  • Desculpe, mas não havia nada pronto.

  • O que me trouxe?

  • Eu mesma preparei esta omelete.

  • Não entendo por que não providencia outras coisas para esta casa — Sophie censurou-a. — Você é uma incompetente!

  • O nosso açougueiro não quer mais fornecer carne enquanto não pagarmos as contas atrasadas — explicou-lhe Lalitha. — E quando o peixeiro passou por aqui hoje, sua mãe estava fora e ele não nos deu crédito nem para um pedaço de bacalhau.

  • Você sempre com suas desculpas bobas. Me dá essa omelete e sirva-me o café.

  • Acho que estão batendo na porta da frente — observou Lalitha. — Jim foi a Yerlverton House com seu recado e a cozinheira nunca atende à porta.

    Então, vá você ver quem é — ordenou Sophie de mau modo.

    Lalitha obedeceu. Do lado de fora estava um criado de libré que lhe entregou um bilhete.

  • É para miss Sophie Studley, madame — disse ele.

  • Obrigada!

    Lalitha julgou que se tratasse de outra carta de amor para Sophie. Essas cartas chegavam de todas as horas do dia.

    Quando ela começou a subir as escadas, ouviu um grito vindo do quarto dos fundos. Lady Studley dormia num pequeno cômodo no andar térreo, pois detestava escadas.

    Lalitha pôs o bilhete sobre um aparador e foi ao quarto da madrasta. Lady Studley preparava-se para uma recepção a que iria em meia hora. Ela era uma mulher um tanto pesada, que fora bonita na juventude, mas cujos traços fisionômicos haviam endurecido com o decorrer dos anos, e engordara muito. Era difícil acreditar que fosse a mãe da bela Sophie. E, apesar de se comportar de maneira agradável em sociedade, lady Studley, para os que conviviam com ela, podia ser crudelíssima.

    —Venha cá, Lalitha! A madrasta berrou.

    Tinha nas mãos um vestido de renda com a bainha descosturada.

    — Eu lhe disse ante ontem para arrumar este vestido!

  • Sei — replicou Latitha. — Porém, não tive tempo, e não posso fazer isso agora. Meus olhos ardem muito e é impossível costurar uma fazenda tão delicada à luz de velas.

  • Você sempre arranja desculpas para sua incompetência e preguiça. Sua vagabunda! Me fez perder a paciência! Quando lhe dou uma ordem, essa ordem deve ser executada imediatamente!

    Dito isso, lady Studley atirou o vestido no chão, aos pés de Lalitha, e gritou:

  • Apanhe isso! E, para que não se esqueça de me obedecer, vou lhe dar uma boa lição.

    Ela atravessou a sala e pegou uma bengala. Voltou com ela na mão e deu uma violenta bengalada nas costas de Lalitha, que ainda estava abaixada para apanhar o vestido. A jovem gemeu, e a madrasta golpeou-a novamente, e mais uma vez, até que o sangue jorrasse-lhe pelas costas.

  • Maldita! — berrava lady Studley. — Eu lhe ensino qual é seu lugar nesta casa!

    Lalitha não podia respirar tal a dor que sentia. Quase desfaleceu. De repente, a porta se abriu e Sophie entrou abruptamente.

  • Mamãe! Mamãe!

    Lady Studley parou com a bengala no ar.

  • Sabe o que aconteceu? — prosseguiu Sophie.

  • Que foi?

    Ignorando a figura de Lalitha jogada ali no chão, Sophie entregou a carta que acabara de chegar, e que se encontrava sobre o aparador ao pé da escada.

  • O duque de Yelverton está morrendo! — exclamou ela.

  • Morrendo? Como soube?

  • Alguém me escreveu, a pedido de Julius, explicando que ele teve de partir com urgência para Hampshire.

  • Deixe-me ver essa carta — pediu Lady Studley, arrancando o papel das mãos da filha. Leu em voz alta:

     

    "O Sr. Julius pediu-me que lhe comunicasse, madame, que ele lamenta muito não poder comparecer a sua casa esta noite, conforme prometido. Foi chamado para junto do leito de morte de seu tio, Sua Graça o duque de Yelverton. Acredita que Sua Graça não passe desta noite. O Sr. Julius partiu à pressas, por esse motivo não teve tempo de escrever-lhe pessoalmente.

    Com muito respeito, Christopher Dewar".

     

  • Viu o que aconteceu, mamãe? — Sophie exclamou com voz de triunfo.

  • Quem poderia acreditar numa coisa dessas? E lorde Rothwyn esperando por você!

  • Mas, mamãe, tenho chance de me transformar numa duquesa logo!

  • Claro que tem! E não há dúvida sobre qual dos dois cavalheiros você deve pôr de lado.

  • Vou me comunicar com lorde Rothwyn e dizer-lhe que não lenho condições de me casar com ele — observou Sophie. — Vai ficar furioso!

  • A culpa é dele mesmo! Não devia ter consentido em fugir com você.

  • Mas não posso deixá-lo esperando por mim na igreja! — De repente, ela gritou:.— Mamãe!

  • Que foi?

  • Minha carta para Julius! Pedi a Lalitha que mandasse a um Iacaio entregá-la na casa da avó.

    Ambas olharam para Lalitha que se levantava do chão, gemendo. Tinha o rosto branco como cera e os olhos congestionados.

  • Lalitha! Que você fez da nota destinada ao Sr. Verton? — perguntou-lhe lady Studley.

  • Eu a dei... ao lacaio. E ele já saiu.

    —Saiu? — gritou Sophie. — Alguém precisa ir atrás dele.

    —Tudo bem, minha filha — lady Studley acalmou-a. — Julius não vai estar na casa da avó. De acordo com essa carta do Sr. Dewar, ele já deve ter seguido para Hampshire.

    Sophie deu um suspiro de alívio.

    —Claro! Claro!

    —O que precisamos fazer é ir à casa da velha senhora amanhã cedo para recolhei a carta — continuou lady Studley. — Podemos um com uma desculpa qualquer, que você mudou de idéia, por exemplo, acerca de algo que escreveu.

—Você é muito inteligente, mamãe!

— Se não fosse, você não estaria onde se encontra hoje!

— E o que vamos fazer sobre lorde Rothwyn?

—Ele precisa entender que você desistiu de fugir. Não lhe conte a verdadeira razão, naturalmente. Explique-lhe que pensou melhor e concluiu não ser honesto quebrar seu compromisso com Julius.

— Ótimo! Excelente idéia! — concordou Sophie. — Devo escrever uma carta a ele?

— Não! Não! — protestou lady Studley. — Uma carta seria comprometera. Nunca escreva uma coisa dessas, pode um dia se transformar numa prova contra você.

— Mas eu não quero ir falar com ele! — protestou Sophie alarmada.

  • Por que não?

  • Porque, francamente, mamãe, lorde Rothwyn me assusta um pouco. Não quero entrar em discussões com ele. É pessoa muito hábil e pode extorquir a verdade de mim. Muitas vezes tive dificuldade em responder a perguntas dele.

  • Não me parece, nesse caso, que seja o marido ideal! Bem, mas se você não for alguém precisa ir. Talvez eu?

  • Não, você não, mamãe. Menti a ele dizendo o quanto você reprovaria nossa fuga, se soubesse dela. — Sophie sorriu. — Isso o fez ficar até mais audaz.

  • Não duvido — concordou lady Studley. — Não há nada melhor que a oposição para fazer um homem agressivo.

  • Então, como vamos nos comunicar com ele?

  • Lalitha fará isso, embora só Deus saiba a confusão que ela irá criar.

    Lalitha já estava de pé, e com passos trôpegos encaminhou-se para a porta com o vestido de renda nas mãos.

  • Onde vai? — indagou-lhe lady Studley.

    Lalitha não respondeu e, hesitante, fitou a madrasta com os olhos ainda cheios de lágrimas. Seu rosto tinha uma palidez impressionante.

  • É melhor você lhe dar alguma coisa para beber, mamãe — pediu Sophie. — Dá a impressão de que Lalitha vai morrer agora mesmo.

  • E seria uma sorte para nós.

  • Bem, mamãe, mas ao menos a conserve viva até que transmita a lorde Rothwyn a notícia.

  • Essa Lalitha não passa de um estorvo em nossa vida! — exclamou lady Studley, dirigindo-se para a cômoda onde havia uma garrafa de conhaque. Ela colocou dois dedos no copo e deu-o a Lalitha.

  • Beba! — ordenou. — Embora considere uma coisa boa demais para gastar com um espantalho!

  • Vou ficar... Bem logo — declarou Lalitha, rejeitando a bebida.

  • Faça o que estou mandando, sem discutir, a menos que queira outra surra.

    Com dificuldade, fazendo esforço para andar, Lalitha foi para junto da madrasta e pegou o copo. Ainda que detestasse conhaque, bebeu-o devagar.

  • Agora ouça Lalitha, o que vou lhe dizer. Se cometer algum engano, apanhará até desfalecer — ameaçou-a lady Studley com veemência.

  • Estou... Ouvindo... — murmurou Lalitha.

  • Você vai à igreja de St. Alphage, de carruagem, às nove e meia. Encontrará lá lorde Rothwyn e explicará a ele que Sophie é honesta demais para romper com a palavra dada ao Sr. Verton. Diga a ele que Sophie preferiu casar-se com Julius a magoá-lo, fugindo nas vésperas do casamento. Entendeu?

  • Sim — respondeu Lalitha. — Mas... Por favor... Não me force a fazer isso.

  • Já lhe disse o que acontecerá se não me obedecer! — E Lady Studley pegou a bengala.

  • Não mamãe — gritou Sophie. — Se bater mais em Lalitha ela poderá desmaiar e ficar completamente inutilizada. Deixe que eu me entendo com ela. Temos ainda uma hora.

  • Muito bem — concordou lady Studley a contragosto, como se lamentasse não ter a oportunidade de bater mais em Lalitha.

    Ouviu-se nesse instante uma pancada na porta.

    Deve ser a carruagem para mim — disse lady Studley. — Vou a casa de lady Corey, como planejado; ou será melhor eu ficar em i asa aguardando pela notícia da morte iminente do duque?

  • Acho, mamãe, que você deve ficar. Se Julius souber que foi a uma festa, vai se aborrecer.

  • Tem razão. Não pensei nisso, que idiota sou. Estava ainda refletindo sobre nossos problemas com lorde Rothwyn, e me esqueci completamente de Julius. — Lady Studley sorriu. — Bem, vou ficar em casa e passar uma noite bem pouco atraente. Mas, pelo menos, isso me dará chance de fazer planos para o futuro! Oh, querida, sempre desejei ver em você uma coroa de duquesa!

  • Graças a deus recebi a notícia a tempo! Não me perdoaria se tivesse fugido com lorde Rothwyn e depois recebido a notícia que Julius era um duque.

  • Tivemos sorte! — exclamou lady Studley. — Agora, tire esse vestido, Sophie, não quero que o estrague. É um de seus melhores. E leve esse fantasma daqui com você; só de olhar para ela fico irritada!

  • Ao menos Lalitha será útil para nós uma vez na vida. Não temos mais ninguém para mandar ao encontro de lorde Rothwyn.

  • Ele vai se chocar — caçoou lady Studley. — Jamais vi homem tão apaixonado como lorde Rothwyn.

  • Mas se recuperará logo — replicou Sophie.

    Ela saiu do quarto acompanhada de Lalitha que mal podia caminhar.

  • Venha depressa! — berrou Sophie. — Sabe muito bem que não consigo me despir sem seu auxílio.

  • Sophie, não me obrigue a ir ao encontro de lorde Rothwyn — suplicou-lhe Lalitha. — Ele vai ficar furioso comigo, mais do que sua mãe.

  • Por que não a chama de "mamãe"? Já lhe foi dito isso muitas vezes.

  • É... Mamãe...

  • Não me surpreende que mamãe a castigue com tanta freqüência. Você é uma tonta, Lalitha, e se lorde Rothwyn lhe der alguns tapas, é porque mereceu mesmo.

  • Não posso agüentar... Mais pancadas hoje.

  • Você já disse isso em muitas outras ocasiões. — Sophie fitou-a e prosseguiu de maneira mais amável: — Talvez mamãe tenha exagerado um pouco. Ela é muito forte e você frágil demais. Surpreende-me que a bengala não tenha quebrado em suas costas.

  • Não... Quebrou?

  • Não, porque, em tal caso, você não poderia andar.

  • É, tem razão. Porém, de qualquer maneira, não vou poder enfrentar... lorde Rothwyn.

  • Você nunca se encontrou com ele! Que sabe sobre a fúria de lorde Rothwyn?

    Lalitha não respondeu e Sophie insistiu:

  • Fale! Esconde alguma coisa?

  • E que... li um livro chamado História das famílias famosas da Inglaterra.

  • Interessante? Por que não o mostrou a mim?

  • Você não gosta de ler — replicou Lalitha. — Ademais, tive medo de aborrecê-la.

  • Aborrecer-me? Por que haveria eu de me aborrecer? Que diz o livro?

  • Relata as origens da família Rothwyn, e como seu fundador, sir Hengist Rothwyn, venceu na vida, tendo sido um aventureiro pirata.

  • Continue — pediu Sophie.

  • Ele teve muito sucesso e era também conhecido como um homem impetuoso. Por séculos, os Rothwyn vêm herdando esse temperamento incontrolável de seu antepassado. O próprio nome de lorde Rothwyn, "Inigo", significa "violento".

  • Dou graças a deus, então, por ter me livrado desse cavalheiro! — argumentou Sophie.

  • Havia no livro um verso sobre sir Hengist, escrito em 1540 — observou Lalitha.

  • Que diz o verso?

    Lalitha refletiu um pouco e depois, com voz fraca e trêmula, recitou:

    "Olhos negros, cabelos negros, Fúria negra. Portanto, cuidado, Se um Rothwyn lhe jurar vingança".

    Sophie riu e caçoou:

    Você não está pensando que eu vou ter medo dessa lengalenga, não?

     

    Na carruagem, a caminho da igreja, Lalitha desejou não se sentir tão doente. O conhaque lhe dera energia por algum tempo, mas depois sobreveio um cansaço difícil de controlar, e a dor nas costas era quase insuportável.

    De certo modo ela estava grata a Sophie por ter impedido que a madrasta lhe batesse mais, como acontecera outras vezes.

    Apenas uma semana antes lady Studley fora ao quarto de Lalitha com algumas queixas, e encontrara a jovem já de camisola. Bateu-lhe tanto que a deixou inconsciente no chão, e lá ela ficou por horas. Depois, vagarosamente, com o pouco de energia que lhe restava, arrastou-se até a cama, mas sentia tanto frio que não conseguiu dormir. Bateu os dentes a noite toda e, de manhã, na hora de se levantar, parecia mais fraca que nunca.

    Com freqüência pedia a Deus que a levasse. Mas logo, pensava na mãe que com certeza não aprovaria sua covardia. A mãe de Lalitha fora uma mulher pequena, frágil, mas muito valente. "Todos precisam demonstrar coragem nas vicissitudes da vida", ela dissera certa vez à filha. "E não se esqueça de que tudo requer mais força mental e espiritual do que física."

    Deixar que lady Studley a matasse seria um modo covarde de escapar do intolerável inferno no qual se encontrava desde a morte do pai. E, transcorridos já dois anos, Lalitha ainda tinha dificuldade em acreditar que os horrores pelos quais passava não fazia parte de um pesadelo.

    Pensando em sua infância, lembrou-se de como fora feliz naqueles dias sempre cheios de sol.

    A mãe não era uma mulher forte fisicamente e, com o passar dos anos, não houve dinheiro para que ela tivesse um tratamento de saúde adequado.

    O pai, homem forte, sempre de bom humor, caridoso, havia sido amado e respeitado por todos os que viviam em sua propriedade. Com certeza a generosidade excessiva dele impediu-o de enriquecer. Jamais forçara um arrendatário necessitado a lhe pagar o aluguel, ou despejara quem quer que fosse.

  • Tenho que lhe dar nova chance — dizia ele invariavelmente.

    Por isso nunca havia dinheiro para consertos, nem para comprar novos implementos agrícolas, nem para a esposa e a filha.

    A mãe de Lalitha não se importava, e dizia sempre: "Sou muito feliz com minha filha e meu marido. São as pessoas mais maravilhosas do mundo".

    Os três tinham os dias cheios, embora acontecessem poucas festas na grande casa que pertencera aos Studley por cinco gerações e que ficava numa parte isolada do condado. Do ponto de vista da agricultura, a região era excelente, mas eles possuíam só meia dúzia de vizinhos e que moravam bem distantes uns dos outros.

  • Quando você ficar mais velha, precisa ir a Londres para participar de bailes, recepções, coisas que eu adorei fazer quando jovem — a mãe de Lalitha costumava dizer-lhe.

  • Estou muito contente aqui com você e papai — a menina respondia com sinceridade.

    Mas todas as mães gostam que suas filhas sejam um sucesso. Não obstante, eu freqüentei a sociedade londrina e acabei me casando com o homem que conhecia desde criança. — Ela sorria e acrescentava: — Mas foi por ter contato com o mundo, por conhecer homens elegantes e famosos em Londres, que me convenci de que seu pai era o único homem que eu realmente amava, e com quem desejava passar o resto de minha vida.

    Você teve sorte, mamãe, pois as propriedades de meus avós, paternos e maternos, a confinavam. Por esse motivo, seu pretendente estava na verdade às portas de sua casa. Porém não há homem algum para mim aqui.

    Certo — concordava a mãe. — Daí economizarmos dinheiro para que, quando você tiver dezessete anos e meio, possa deslumbrar o beau monde com seu rostinho lindo.

    Jamais serei tão bonita como você, mamãe. Papai disse que nunca houve no mundo mulher mais linda que você, e sei que isso é verdade.

  • Esse comentário me lisonjeia. Vamos ver se vai repetir a mesma coisa quando voltar de Londres...

    Mas... Não houve temporada em Londres para Lalitha. A mãe morreu num frio inverno, de repente, sem que houvesse tempo para se tomar providência alguma. Para Lalitha, como para o pai, foi um desastre tremendo e inesperado. Num dia ela estava rindo, cuidando da caSa, encantando a todos com quem convivia. No dia seguinte só restava um túmulo no pequeno cemitério ao lado da igreja, e uma casa vazia e silenciosa.

  • Como pôde isso ter acontecido? — indagava Lalitha ao pai.

    E ele repetia, pela milésima vez:

  • Eu nem sabia que ela estava doente.

    Com a morte da mulher, o pai de Lalitha começou a morrer lentamente. Mudou da noite para o dia, transformando-se de um homem de constante bom humor, cheio de vida, num indivíduo taciturno, melancólico, bebendo até altas horas da noite. Não conseguia mais encontrar interesse em nada. Lalitha tentava tirá-lo daquela letargia, mas em vão.

    Uma noite, quando voltava de uma estalagem onde estivera bebendo, sofreu um acidente de trânsito. Foi encontrado só na manhã seguinte, e já em estado desesperador. Levaram-no para casa e, durante dois longos meses ele ficou entre a vida e a morte. Foi então que a Sra. Clements apareceu na casa, com o pretexto de ajudar. Lalitha lembrava-se de uma conversa que seus pais haviam tido no ano anterior, acerca da família dessa mulher.

  • Você se lembra de um homem chamado Clements, dono de uma farmácia em Norwich? — sir John Studley indagara.

  • Sim, claro que me lembro dele — a mãe de Lalitha respondera. — Nunca prestei muita atenção nesse homem, embora acredite que fosse bastante inteligente.

  • Nós nos servíamos da farmácia dele, como meu pai e meu avô o fizeram. E agora a filha está de volta à aldeia. Sinto-me na obrigação de ajudá-la a se restabelecer aqui.

  • A filha? Lembro-me de ter havido qualquer problema com ela.

  • E houve — replicara sir John. — Ela fugiu de casa quando tinha dezessete anos, na companhia de um oficial do exército. O velho Clements ficou furioso e não quis mais saber dela.

  • Recordo-me bem desse incidente. Na ocasião, estávamos noivos e minha mãe chocou-se muito com o ocorrido. Aliás, mamãe era bem rígida nesses assuntos.

  • Era mesmo — concordara sir John com um sorriso. — Acho que sua mãe nunca aprovou plenamente nosso casamento.

  • De início; com o tempo, no entanto, ficou gostando de você, principalmente por ver como eu era feliz.

  • O que aconteceu com a filha do Sr. Clements? — interrogara Lalitha, que ouvia a conversa com atenção.

  • É o que estou tentando contar — respondera sir John. — Voltou para cá. Eu a vi esta manhã e ela me pediu para alugar-lhe um chalé dentro de nossa propriedade.

  • Oh, não queremos ninguém dessa espécie tão perto de nós! — a mãe de Lalitha protestara.

  • Tive pena da pobre mulher. Nunca conseguiu se casar com o homem com quem fugira, e ele a deixou após alguns anos. Ela se mantém, e à filha, trabalhando como doméstica.

  • Se o Sr. Clements estivesse vivo, sofreria muito — lady Stutlley observara. — Era um homem orgulhoso e importante; uma ocasião se candidatara para prefeito; lembra-se?

  • Bem, a família Clements não tem culpa do que aconteceu com a filha, e eu não tive coragem de negar o que ela me pedia.

    — E alugou o chalé?! — Lady Studley não podia acreditar.

    Sim, aquele perto da igreja. É pequeno, mas suficiente para uma mulher e uma criança.

  • Você é bondoso demais, John, mas garanto que ela não será bem recebida em nossa comunidade.

  • Talvez. É ainda uma mulher bonita e tem uma filha da idade de Lalitha. Por sinal, disse que poderia trabalhar aqui, como empregada.

  • Não precisamos de ninguém no momento — lady Studley respondera prontamente.

    E Lalitha só foi conhecer a Sra. Clements depois da morte da mãe. Inesperadamente ela chegou na casa oferecendo-se para trabalhar como doméstica. Alguns antigos criados haviam se aposentado, por isso foi aceita.

    Para sir John não fazia nenhuma diferença ser ela contratada ou não. Estava sempre alheio a tudo e, depois de mais ou menos recuperado, continuou bebendo sem parar.

    A Sra. Clements provou ser boa enfermeira. Tratava de sir John com carinho, o que despertou logo a admiração de Lalitha. Era a Sra. Clements quem conseguia fazê-lo comer, quem mantinha o fogo da lareira do escritório aceso, quem o ajudava a se recolher à noite. E, na hora de tomar decisões sobre os negócios da propriedade, Lalitha pedia a opinião dela que, com voz suave, cheia de afeto, conseguiu enganar facilmente uma pessoa como Lalitha, jovem ingênua de dezesseis anos apenas. Instalou-se na casa com a filha Sophia, moça de rara beleza.

    Porém, após a morte de sir. John, a Sra. Clements revelou sua verdadeira personalidade.

    Uma tarde, Lalitha resolveu escrever para um tio que morava na Cornualha. A mãe sempre planejara visitar esse irmão algum dia: "Você vai gostar de Ambrose", dizia ela à filha. "É bem mais velho que eu e foi quem me ensinou a amar o campo. Por esse motivo nunca me senti tentada pelo torvelinho da vida social de Londres". Contudo, nunca houve tempo nem dinheiro para aquela visita.

    O tio não comparecera ao funeral da irmã mas mandara uma coroa acompanhada de longa carta revelando a sir John como lamentava a morte dela.

    "Vou escrever ao tio Ambrose agora", Lalitha disse a si mesma. "Talvez me convide para morar com ele."

    Sentou-se na escrivaninha do pai e começava a escrever quando a Sra. Clements entrou no escritório.

  • Preciso falar com você, Lalitha — declarou ela em tom autoritário, bem diferente do usual. Usara também o nome de batismo de Lalitha, o que esta considerou grande atrevimento.

  • Pois não, Sra. Clements. Que deseja?

  • Quero que saiba que me casei com seu pai!

  • Casou-se com papai? Impossível!

  • Sim, nos casamos — repetiu ela furiosa. — Sou lady Studley.

  • Mas quando se casaram e em que igreja?

  • Não faça perguntas desnecessárias! Aceite a situação e considere-se minha enteada.

  • Não posso... Acreditar nisso. Vou escrever ao tio Ambrose pedindo para ir morar com ele na Cornualha. Titio não soube da morte de papai, por essa razão não me escreveu.

  • Proíbo que você escreva essa carta!

  • Proíbe?! — Lalitha estava perplexa.

  • Sou sua tutora legal e você terá de me obedecer. Não se comunique com seu tio e nem com nenhum de seus parentes. Vai morar aqui comigo, e não se esqueça de que sou a dona desta casa.

  • Mas isso não é justo! — protestou Lalitha. — Papai sempre me disse que esta casa seria minha, como também a fazenda.

  • Você vai ter dificuldade em provar o que diz.

    Alguns dias mais tarde, apareceu na casa um advogado, um homem que Lalitha nunca vira antes. Apresentou um testamento escrito numa caligrafia trêmula, que poderia ou não ter sido a de lorde Studley após o acidente. Ele deixara tudo o que possuía "à minha querida esposa Gladys Clements", e nada à filha.

    Lalitha achou que havia algo de errado naquilo, mas o advogado insistiu que tudo estava perfeitamente de acordo com a lei.

    Porém, assim que ele saiu, Lalitha sentou-se para escrever uma carta ao tio.

    A Sra. Clements, que exigia ser chamada lady Studley, viu-a com   i carta na mão a caminho do correio. Foi quando lhe deu a primeira violenta surra. Bateu em Lalitha até que ela gritasse por piedade e prometesse, por não ter outra alternativa, nunca mais escrever para o tio.

    Mentalmente, contudo, Lalitha enfrentava a mulher que se dizia sua madrasta, rejeitando-a, e um ódio profundo crescia ente ambas.

    A nova lady Studley foi bastante esperta em não se associar com os vizinhos, e estes ficaram sabendo de maneira indireta que ela se casara com sir John dias antes de ele morrer, e que tomara posse da propriedade. Poucos lembravam-se do que ela fora no passado, e o nome "Clements" desapareceu depressa, como se nunca houvesse existido. Não obstante, Lalitha teve um choque ao perceber que Sophie se considerava uma Studley.

    Você não é minha irmã — protestou ela. — Meu pai não foi seu pai; como pode usar meu nome?

    A mãe de Sophie entrava na sala nesse instante e observou:

  • Quem disse a você que seu pai não foi o pai de Sophie também?

  • Sabe muito bem que não foi — replicou Lalitha. — A senhora chegou aqui somente há um ano.

    A madrasta não respondeu e, pelo espaço de um ano, nada mais foi dito sobre o assunto. Lalitha notava, porém, que a nova lady Studley guardava para si toda a renda da propriedade, não havendo tolerância com os fazendeiros que não podiam pagar. Mais ainda: as fazendas iam sendo vendidas uma a uma, juntamente com as pequenas casas, e os jardineiros dispensados aos poucos; as flores que haviam dado tanto prazer à mãe de Lalitha morriam abafadas pelas ervas daninhas.

    Os objetos valiosos da casa também sumiam. Primeiro foi um par de espelhos da época da rainha Anne, que decorava o dormitório principal. Depois, os retratos de família foram enviados a Londres para serem leiloados.

  • A senhora não tem direito de vender tudo isso — Lalitha discutia com a madrasta. — Pertence à minha família e, como papai não teve filho homem, gostaria que meu filho herdasse essas preciosidades.

  • E acha que vai ter um filho? — murmurava Gladys Studley. — Imagina que alguém vá se casar com você? Ou que eu a dispensaria de seus serviços de doméstica nesta casa?

    Falava com sarcasmo, pois Lalitha se transformara em nada mais nem nada menos que uma empregada sem salário.

    Sophie já estava com dezoito anos e Lalitha surpreendia-se pelo fato de a mãe não a levar a Londres a fim de ser apresentada à sociedade. Sophie se tornara uma mulher de rara beleza! Logo depois do Natal, contudo, Lalitha entendeu a razão dessa demora.

  • Sophie está com dezessete anos e meio — lady Studley declarou sem mais nem menos.

    Lalitha fitou-a atônita, pois sabia que Sophie tinha dezoito anos completos.

  • Ela nasceu no dia 3 de maio — acrescentou lady Studley.

  • Mas, esse é o dia de meu aniversário — interpôs Lalitha. — Vou fazer dezoito anos no dia 3 de maio.

  • Você está enganada — Gladys a corrigiu. — Fez dezoito anos no dia 10 de julho passado.

  • Não! Dez de julho é o dia do aniversário de Sophie! — Lalitha não podia acreditar em tudo aquilo.

  • Quer discutir comigo? É isso que você quer? — a madrasta ameaçou-a, furiosa.

  • Não... Não — respondeu Lalitha receosa, pois não ignorava que o castigo físico a suas argumentações era sempre violento.

  • Sophie é minha filha e de seu pai — explicou lady Studley.

    Nasceu dez meses após nosso casamento, e posso provar isso facilmente. Você também é minha filha e de seu pai mas, infelizmente, nascida antes de nos casarmos.

  • Que está dizendo? Não... entendo! — Lalitha gritou.

                           —E supõe que alguém vá discutir comigo acerca disso quando chegarmos em Londres? — indagou Gladys triunfante.

    Latitha não teve resposta. Ela não conhecia ninguém em Londres. E, quem acreditaria na palavra dela contra a da nova lady Studley? Considerava-se vencida, não havia nada que pudesse falei. Mas era intolerável admitir que aquela mulher vulgar, intrometida, quisesse passar por sua mãe. Tomara o lugar dela e se apropriara de todo o dinheiro.

    Latitha estava completamente derrotada. Não tinha mais nem mesmo o aspecto de uma lady, mas o de uma coitada mantida por caridade na casa que um dia fora sua. Ordenaram-na que chamasse aquela aventureira de "mamãe" e, quando se esquecia de fazê-lo era espancada brutalmente.

    A nova lady Studley planejara sua entrada na sociedade com uma habilidade que Lalitha não pôde deixar de considerar fabulosa! O dinheiro que ela acumulara não duraria muito, mas era suficiente pura Sophie encontrar um pretendente rico. E Lalitha tinha a impressão de que, quando isso acontecesse, ela seria jogada na sarjeta sem dinheiro algum. Nesse meio tempo, no entanto, trabalhava como escrava.

    Algumas vezes pensava em escrever para o tio, mas receava as conseqüências de seu ato. E eis que, três semanas depois da chegada  delas em Londres, lady Studley jogou um jornal na frente de Latitha, dizendo:

    —Seu tio morreu! Leia! Morreu?!

  • E não perca tempo chorando por ele! Vá cuidar de seus afazeres.

    Ela percebeu então que sua última esperança se esvaía! Cada vez que terminava de fazer suas inúmeras tarefas, estava tão exausta que só queria dormir. Aos poucos começava a ter a sensação de que seu cérebro se deteriorava! A falta de comida e os constantes espancamentos faziam-na alheia a tudo, tendo às vezes dificuldade até para entender o que lhe diziam.

    Todos esses fatos Lalitha rememorava na carruagem enquanto se dirigia ao encontro de lorde Rothwyn. Tentava se recordar do que devia dizer a ele. Sua mente parecia vazia e só tinha pensamento para as costas que doíam muito. O vestido grudara nos ferimentos causados pelas bengaladas, e ela antecipava a dor que iria sentir na hora de trocar de roupa.

    Desabotoou o vestido sob a capa o mais que pôde. Ninguém a veria sem o agasalho, pois tencionava voltar à casa assim que cumprisse sua tarefa, e banharia as partes mais afetadas.

  • "Se ao menos eu não tivesse de executar missão tão embaraçosa!" murmurava a si mesma.

    Por segundos, teve a idéia louca de fugir mas, para onde? Não possuía dinheiro nem amigos e, se retornasse à casa antes de se confrontar com lorde Rothwyn, sabia muito bem o que lhe iria acontecer.

    A carruagem estava bem perto da igreja de St. Alphage. Ela já podia divisar a torre e, logo depois, o portão de madeira do jardim. Mais além ficava o cemitério paroquial.

    A madastra encomendara a carruagem num lugar onde tinha crédito, e o cocheiro recebera ordem de esperar. Geralmente, em circunstâncias semelhantes, voltava a pé para casa.

    A carruagem parou. Ela cobriu o rosto com o capuz e tremia de frio e de medo.

    "Não tenho nada a temer", tentava se iludir. "O problema não é meu, sou apenas um... mensageiro."

    Contudo, ao descer do veículo e ao atravessar o jardim mal podia controlar seus nervos. Estava escuro ao redor apesar da lanterna pendurada no pórtico da igreja. As pedras tumulares erguiam-se como sentinelas acusadoras, parecendo chocadas com as mentiras que ela iria contar.

    Hesitante, Lalitha entrou na igreja, fúnebre e agourenta. De súbito, ouviu som de passos e, antes que pudesse ver quem se aproximava, braços fortes a agarraram.

    — Querida, você veio! Sabia que viria!

    Quando ela virou-se protestar, um homem a beijou. O choque foi tão grande que a deixou imóvel. E lábios possessivos, apaixonados, deixaram-na sem fala. Lalitha nunca imaginara que um beijo pudesse ser assim. Com enorme esforço, desvencilhou-se dos braços que a prendiam.

    — Por... favor — gaguejou. — Não sou... Sophie.

    — Acabo de perceber!

    Latitha fitou-o à luz das velas e viu que era um homem mais alto do que supusera. Moreno e insinuante. Uma capa preta caía-lhe dos ombros e lhe dava o aspecto de um grande e assustador morcego.

    — Quem é você, afinal? — indagou ele de mau modo.

    — Sou... Irmã de Sophie.

    Latitha sentia ainda a pressão dos lábios dele nos seus, mesmo mio estando mais sendo beijada.

    — Irmã de Sophie? Não sabia que Sophie tinha uma irmã. Por onde anda Sophie? — A voz era dura e ameaçadora.

    — Estou aqui justamente para lhe dizer, milorde, que ela não poda vir,

— Por que não?

Latitha procurava lembrar-se das palavras exatas que devia proferir.

— Ela sente muito, milorde... Mas não teve coragem de romper compromisso... Com o Sr. Verton.

— E você precisava inventar essa mentira? — berrou lorde Rothwyn. — O que aconteceu é que sua irmã soube que o duque de Yelverton estava morrendo. Essa é a verdade, não é?

— Não... Sei.

— Mentirosa! Você é mentirosa como sua irmã. Acreditei nela quando dizia que me amava. Poderia um homem ter sido mais idiota que eu?

Havia tanto ódio naquele tom de voz que Lalitha fez um esforço desesperado para salvar Sophie da condenação.

  • Não foi... Isso — gaguejou. — Ela apenas quer... Manter a promessa que fez... Antes de conhecer... O senhor.

  • Espera que eu acredite nessa bobagem? Não acrescente mais mentiras desnecessariamente. Sua irmã me fez de bobo. Mas, pensando bem, que mulher desistiria de ser uma duquesa? Volte para casa e diga a ela que me ensinou algo de que nunca me esquecerei. E mais ainda, eu a amaldiçôo, como me amaldiçôo também por ter confiado nela.

  • Não diga isso. Dá azar.

  • Azar? Sua irmã não somente me privou de uma noiva, mas também me custou uma aposta de dez mil libras!

  • Como? — Lalitha não resistiu à curiosidade de saber de que aposta se tratava.

  • Apostei essa quantia na crença de que Sophie era sincera, leal comigo, de que não era uma esnobe como a maioria das mulheres; que a categoria social não contava para ela mais que a afeição, mais que as juras de amor que me fizera.

  • Não obstante, o amor é mais importante que um título para muitas mulheres — Lalitha deixou escapar.

  • Se há mulheres que põem o amor em primeiro lugar, ainda não tive o prazer de encontrar uma delas.

  • Talvez encontre... Um dia!

  • Acha? — perguntou ele com ironia, e depois acrescentou: — Vá embora! Que está esperando? Descreva a sua irmã minha fúria, minha frustração e, claro, meu desaponto pelo que ela acaba de fazer!

    Era tal a ira de lorde Rothwyn que Lalitha teve dificuldade em se mover. Parecia hipnotizada, presa ao chão; não conseguia obedecê-lo, ainda que, ao mesmo tempo, tivesse ímpetos de fugir dali!

  • Dez mil libras! — repetia ele.

    Em seguida, como se falasse consigo próprio, e com imenso rancor, prosseguiu em voz alta:

  • Eu mereço isso! Como pude ser tão idiota? Tão infantil a ponto de pensar que Sophie era diferente das outras? — E depois, dirigindo-se a Lalitha: — Saia da minha frente! Diga a sua irmã que, se eu puser os olhos nela outra vez, a matarei! Está me ouvindo? Eu a matarei!

    Lorde Rothwyn parecia tão assustador que Lalitha decidiu voltar correndo para a carruagem que a aguardava. Ao se virar, porém, sentiu uma tontura que a obrigou a parar. Foi então que lorde Rothwyn lhe disse num tom um pouco menos ameaçador:

    — Espere um momento! Se você é irmã de Sophie, então seu nome é Studley!

    Lalitha encarou-o perplexa. Não podia imaginar por que estaria interessado em seu nome. Ele aguardava uma resposta e, após segundos, Lalitha deu-a: —S... Sim.

    — Tenho uma idéia que me permite salvar meu dinheiro e talvez, meu orgulho! Por que não? Por que diabos, não? Venha comigo — ordenou ele, pegando Lalitha pelo braço.

    — Mas... Para onde?

    — Vai ver...

    Dedos firmes seguraram-na, conduzindo-a na direção do altar.

    — O que está acontecendo? Para onde o senhor pretende... Me levar? — O pavor tomava conta de Lalitha.

    — Vai se casar comigo. Uma miss Studley é seguramente igual a outra, e seria uma pena deixar o padre esperando em vão.

    — O senhor não pode... Fazer isso! É loucura!

    — Vai aprender que faço o que quero. Você vai se casar comigo e isso será uma boa lição para sua irmã mentirosa e falsa, para ela saiba que não é a única mulher do mundo!

    — Não... Não! Não posso... Fazer isso!

    — Pode e vai!

    Bem perto do altar, onde havia mais luz, Lalitha enxergou melhor o rosto de lorde Rothwyn e comparou-o ao de Satanás. Nunca ela vira um homem tão atraente e ao mesmo tempo tão enfurecido, perdendo até o controle sobre si. Ele não a largava, quase arrastando-a.

    — Não... Não... O senhor não pode... Fazer isso! — protestava Lalitha, agora quase num sussurro, pois a atmosfera da igreja Inspirava-lhe respeito.

    Lorde Rothwyn nada dizia e Lalitha tentava libertar-se, mas era li ara demais contra aquele demônio enraivecido.

    — Por favor... Por favor... — ela continuava insistindo.

    No altar, um padre os aguardava. Era um homem idoso, de cabelos brancos, face enrugada e bondosa. Parecia ser quase cego, dando a impressão de que não os via bem.

  • Caros noivos!... — o velho sacerdote começou a falar com voz trêmula.

    O perfume dos lírios, as velas bruxuleantes, a paz e o silêncio do templo fizeram com que Lalitha tomasse uma decisão.

    "Não vou repetir as palavras que me tornarão esposa dele. Direi não, na hora exata."

  • Sr. Inigo Alexander, quer receber esta mulher como sua esposa? — Ela ouviu o padre dizer.

    Lorde Rothwyn respondeu com voz forte, que ressoou por toda a nave.

  • Sim!

    O padre dirigia-se a Lalitha quando lorde Rothwyn impediu-o, indagando:

  • Como é seu nome de batismo, miss Studley?

  • Lalitha... Mas não posso...

  • O nome dela é Lalitha — disse ele ao padre.

    Então este, com voz suave e cansada, fitou Lalitha e falou:

  • Repita o que vou dizer: "Eu, Lalitha..."

  • Não posso... Não posso! — ela sussurrava. Mas sentiu logo a pressão dos dedos de lorde Rothwyn em seu braço.

    Viu-se coagida a obedecer, como acontecia cada vez que a madrasta a forçava a fazer alguma coisa. O mesmo pavor tomou conta dela, o pavor de quando esperava que uma bengalada a atingisse.

    Daí, quase automaticamente, gaguejou:

  • Eu... Lalitha... Recebo I... Inigo... A... Alexander...

    Os recém-casados saíram da igreja e tomaram a carruagem. Não a de Lalitha, mas um veículo luxuoso, cujos cavalos tinham ar- reios de prata, e com uma manta de pele para ser colocada sobre os joelhos.

    Ela não falava, contudo percebia que lorde Rothwyn continuava furioso, parecendo que um ódio emanava do corpo dele, invadindo a carruagem como uma trovoada assustadora pela sua intensidade.

    Lalitha só pensava nas conseqüências de seu ato, pois tomara o lugar que deveria ter sido o de Sophie no altar. Acreditava ao mesmo tempo estar sonhando; tudo aquilo não podia ser verdade.

    "Que vai suceder comigo? Que posso fazer?", ela se questionava durante o trajeto todo. Estava exausta, mal podia respirar, linha a sensação de que, se caísse no chão da carruagem, ficaria lá, sem poder se levantar.

    Em pouco tempo, eles chegaram a uma casa magnífica, uma das mais lindas de Park Lane.

    Uma luz dourada se projetava no jardim, vinda da porta aberta, e criados de libré cor de vinho e passamanaria dourada se apressaram em estender um tapete vermelho até o carro.

    Lalitha foi a primeira a descer e entrar na casa. Ficou estática ante a magnificência do enorme hall de mármore cheio de estátuas de tamanho natural, colocadas em nichos dourados.

    Venha por aqui! — ordenou-lhe lorde Rothwyn, segurando- a pelo braço e conduzindo-a a uma sala também majestosa. Era a biblioteca, abarrotada de livros alinhados nas estantes. Havia uma enorme escrivaninha bem no centro da sala, e para lá lorde Rothwyn se encaminhou.

    Um lacaio acendeu dois candelabros, apesar de o recinto já estar iluminado pelas arandelas laterais.

    — Mais alguma coisa, milorde? — o mordomo indagou respeitosamente.

    — Não. Deixe-nos a sós agora. Mande um lacaio falar comigo, por, preciso enviar uma mensagem. Muito bem, milorde.

    Lalitha sentou-se à escrivaninha, tremendo de medo. Lorde Rothwyn apanhou uma folha de papel encimada por uma coroa dourada e disse:

    — Agora, você vai escrever uma carta para sua irmã.

    Automaticamente, ela tirou o capuz da cabeça. Tinha ainda dificuldade para mover o braço, e lorde Rothwyn insistia: — Escreva!

    Lalitha inclinou-se e começou a escrever o que ele lhe ditava:

     "Minha querida Sophie,

    Dei seu recado a lorde Rothwyn e, como ele considerasse uma pena dispensar o trabalho do padre e as festividades preparadas para você, tomei seu lugar e agora sou lady Rothwyn.

    Você vai ficar muito contente, tenho certeza, ao saber que osboatos sobre a saúde de Sua Graça o duque de Ylventon , eram infundados. Vamos esperar que Sua Graça continue a gozar de boa saúde por muitos e muitos anos.

    Lalitha parou de escrever. A expressão "boatos infundados" deixou-a intrigada.

  • Como o senhor sabe que eram boatos infundados? — indagou ela. — Sua graça... mora em Hampshire.

    De repente, como se uma luz se acendesse em seu cérebro, Lalitha encarou lorde Rothwyn, de pé ali peito dela, e exclamou:

  • Não era... Verdade! Foi o senhor quem enviou o recado a Sophie! O duque não está... Morrendo!

  • Não, não está. Apenas usei dessa artimanha para testar sua irmã, e ela caiu na rede.

  • Como pôde fazer coisa tão cruel? — perguntou Lalitha.

  • Cruel? Acha cruel pôr a prova o amor que ela jurava ter por mim? Um amor no qual acreditei piamente, mas que existia só na minha imaginação? Vamos! Acabe com essa carta logo! O lacaio está esperando! -

  • Não posso... Escrever mais — queixou-se Lalitha. — Elas vão me matar! Vão me matar por eu ter tomado parte nisso tudo!

    Havia terror na voz dela. Pousou a pena na escrivaninha e ficou olhando para as palavras que escrevera, e que dançavam diante de seus olhos.

    — Devo estar louca! Louca por haver permitido... Que o senhor... Me forçasse a esse casamento! Exclamou ela. — Não posso... Agüentar...

    Lalitha cobriu o rosto com as mãos e inclinou a cabeça. Com o movimento, a capa escorregou lhe dos ombros e caiu no chão.

  • Continue! — lorde Rothwyn grilava. Esse momento não é para fraquezas. Ninguém vai maltratar você por tomar parte nesta farsa, isso eu prometo!

  • Eu não devia... Ter consentido... — O desespero de Lalitha era enorme.

    Nesse instante, lorde Rothwyn viu o estado das costas dela. Apanhou um candelabro para examinar melhor as chagas que ainda sangravam. O vestido de Lalitha estava desabotoado até a cintura, e podiam-se ver as marcas das bengaladas cruzando-lhe as costas.

  • Meu Deus! — gritou lorde Rothwyn. Depois, num tom de voz diferente do que usara até então, interrogou-a: — Quem a tratou dessa maneira? Quem fez isso em você?

  • Minha madrasta! — Mas logo ela corrigiu: — Não... Não... Foi minha mãe. Não foi minha madrasta! Foi minha mãe!

    Lorde Rothwyn, ainda com o candelabro na mão, parecia perplexo, e Lalitha continuava a se contradizer:

  • Eu não falei madrasta... Juro que não falei madrasta! Porém, não posso mais ficar aqui. Não posso!

    Ela encarava-o suplicante, receando não ser ouvida. Fez com a mão um gesto de desespero, e depois desmaiou, caindo aos pés dele.

     

    Lorde Rothwyn olhou para o corpo inanimado de Lalitha e tocou a sineta.

    Quando um lacaio entrou na sala, ele já estava com Lalitha nos braços e a levava para as escadas que conduziam ao quarto.

    Era um cômodo espaçoso que dava para o jardim dos fundos da mansão. Todo enfeitado com lírios brancos, tinha sido preparado provavelmente para receber os noivos.

    Lorde Rothwyn colocou Lalitha na cama com muito cuidado, deitando-a de lado para que não ficasse com as costas feridas em contato com os lençóis, e ficou olhando para ela, incrédulo.

    À luz das velas do quarto ele pôde constatar que os braços de Lalitha também estavam machucados. Concluiu então que, quando ele a arrastara pela igreja, a fizera sofrer muito fisicamente, além de tê-la assustado.

    Lalitha não se movia. A porta abriu-se e uma senhora idosa entrou. Tinha um rosto bondoso, enrugado, cabelos grisalhos, e usava o convencional uniforme cinzento das governantas.

  • Mandou me chamar, milorde?

  • Venha cá Nattie — respondeu Lorde Rothwyn, com um suspiro de alívio.

    A governanta foi para perto da cama c viu as horríveis marcas nas costas de Lalitha.

  • Master Inigo! — exclamou. —  Quem fez isso?

  • Não fui eu, Nattie. Jamais trataria uma mulher assim, nem mesmo um animal.

  • Quem poderia ter sido tão infame?

  • Outra mulher!

  • Que devemos fazer agora?

  • É o que lhe pergunto Nattie.

    A governanta inclinou-se e afastou para os lados o vestido de

    Lalitha. Sangrando, inflamado, vermelho, não havia um centímetro no corpo dela, ao longo das costas do pescoço à cintura, que não tivesse sido atingido pelos golpes da bengala.

  • Ela desmaiou! Quando voltar a si, imagino que a dor será insuportável — acrescentou Lord Rothwyn.

  • E vai! — confirmou a governanta. — Precisamos de óleo de loureiro.

  • Mandarei alguém à farmácia imediatamente!

  • Farmácia nenhuma tem esse tipo de óleo — replicou ela.

  • Então, como poderemos obtê-lo, Nattie?

  • Na casa da mulher que vende ervas.

  • Que mulher é essa? — Lord Rothwyn começou a falar, depois exclamou: — Lembro-me agora! Mora perto de Roth. Minha mãe costumava conversar com ela.

  • Essa mesmo. — Nattie tocou a testa de Lalitha para se certificar de que estava viva, e indagou: — Quem é ela, milorde?

    Após curta pausa, Lord Rothwyn respondeu:

  • Minha mulher!

  • O senhor casou-se com essa moça? Mas eu pensei... Nos contaram esta tarde que...

  • Que eu iria trazer para casa uma mulher de rara beleza — Lorde Rothwyn terminou o pensamento de Nattie, com evidente irritação. — Em vez disso, trouxe para você, Nattie, alguém que necessita muito de seu cuidado e proteção.

  • Farei o melhor que puder, milorde — respondeu ela, acariciando a cabeça de Lalitha. — Mas temos também que confiar em Deus. Tudo está nas mãos dele!

    Lalitha mexeu-se na cama e sentia-se feliz. Parecia ter voltado ao passado e sonhara com a mãe.

    Aquele era um sonho que se repetia com freqüência. A mãe ficava a seu lado, carregava-a, e dava-lhe algo para beber.

  • Mamãe... — Lalitha murmurou.

    Abriu os olhos e acreditou estar ainda sonhando. Aquele quarto inundado de luz ela jamais vira. O leito onde repousava tinha colunas entalhadas e, acima do consolo de mármore da lareira havia um quadro de cores brilhantes.

    Ela fechou os olhos de novo. Provavelmente ainda sonhava. Depois, por estar curiosa, olhou outra vez ao redor e viu que a lareira e o quadro continuavam no mesmo lugar.

  • Se está acordada, beba isso. Uma voz suave se fez ouvir.

    Lalitha lembrou-se então de que ouvira aquela voz antes, e que fizera parte de seu sonho. Obedeceu instintivamente.

    Uma mulher amável ergueu lhe o corpo e colocou um copo em seus lábios. Um líquido doce como mel mitigou lhe a sede.

  • Onde... Estou? — gaguejou ela, filando a bondosa mulher que sorria.

  • Em Roth Park.

  • Onde?

  • Trouxeram a senhora para cá, milady.

  • Mas... Por quê? — De súbito, Lalitha recordou-se de alguma coisa. Ela entrara na igreja e um homem a beijara. Fora depois arrastada para o altar onde se casara.

    Estava casada! Uma onda de medo percorreu-lhe o corpo... O homem com quem se casara parecia furioso muito furioso... E ela tivera medo, muito medo... Depois, escrevera uma carta... Uma carta para Sophie... Chegara a terminar a carta? Que acontecera em seguida?

    Lembrava-se de ter dito algo horrível, algo comprometedor. Sentiu um medo incrível, mas não conseguia saber exatamente o que revelara. Os fatos voltavam devagar à sua mente, com intervalos de inconsciência, como se receasse recordar alguns pormenores.

  • Vou pedir que lhe tragam qualquer coisa para comer — a mulher que estava a seu lado declarou. — Se sentirá melhor depois que se alimentar.

    Lalitha quis protestar, dizer que não estava com fome. O líquido que bebera fora reconfortante, a revigorara a ponto de tornar sua mente bem mais clara. Ainda sentia aquele gosto na boca.

    A governanta tocou a sineta e alguém apareceu à porta do quarto. Ela deu algumas ordens e voltou para o lado da cama.

  • Ainda não sabe onde está? — perguntou ela a Lalitha.

  • Não estou... Em Londres?

  • Na verdade, não na cidade, mas muito perto. Estamos na propriedade de Sua Senhoria, em Hertfordshire.

  • Sua... Senhoria?

    Essas palavras fizeram Lalitha estremecer. Agora se lembrava bem de tudo. Casara-se com Lalitha, o nobre com quem Sophie rompera na última hora; o moreno, furioso e assustador homem que preparara uma armadilha para Sophie, e com quem se casara.

    "Por que tudo aquilo?" Lalitha se perguntava. "Que estaria pensando Sophie, sabendo que fora enganada?"

    Lembrou-se então de lady Studley e o pavor a invadiu por completo.

  • Minha madrasta sabe... Onde estou? — perguntou ela com uma voz que não era mais que um sussurro.

  • Não sei — respondeu a velha senhora. — Porém, não se preocupe com coisa alguma, Sua Senhoria está cuidando de tudo.

  • Mas ele... é tão bravo!

  • Não está bravo agora. Apenas deseja que Vossa Senhoria se recupere logo.

    Aquelas palavras foram animadoras. Era muito bom saber que Lorde Rothwyn não estava mais zangado.

    Lalitha cerrou os olhos e adormeceu. Quando despertou, a comida a esperava.

    Não sentia fome, mas agradava-lhe saber que alguém se preocupava com ela, alimentando-a às colheradas.

    Dormiu novamente, mergulhando num país encantado, onde sua mãe se achava, e onde não existia o medo.

    Numa certa manhã, Lalitha acordou e sentiu que as últimas nuvens haviam desaparecido de sua mente, e pôde enxergar então os acontecimentos com mais nitidez.

    O quarto parecia mais lindo que antes. As paredes brancas e douradas, as cortinas cor-de-rosa combinando com o tapete, os enormes espelhos de moldura dourada, os quadros e as flores, tudo enfim fazia parte do quarto ideal que algumas vezes Lalitha imaginara poder possuir, mas que nunca vira antes.

    Sabia agora que a velha governanta que tratava dela havia sido a babá de Lord Rothwyn.

  • Ele era um menino dócil, e "Nattie" foi a primeira palavra que pronunciou. Grudou-se a mim desde os primeiros meses de vida — contou-lhe a governanta.

    Ela levou o breakfast e o colocou ao lado da cama. Lalitha não pôde deixar de comparar a luxuosa porcelana de Worcester, a prata polida e a toalha bordada, com a imunda cozinha da casa em Hill Street, onde geralmente comia.

    Que estaria lady Studley imaginando ter acontecido com sua enteada? Que explicações dera a ela Lord Rothwyn? Que diriam as duas mulheres quando a vissem de novo.

    Por não desejar responder a essas perguntas, Lalitha jogou-as ao esquecimento, e tentava se concentrar no que Nattie dizia.

  • Sabe que já engordou um pouco, milady? Tem alguns quilos a mais, garanto!

  • Como é possível? Há quantos dias estou aqui?

  • Há quase três semanas.

  • Não! Três semanas? Mas como? Não percebi o tempo passar!

  • Esteve muito doente — replicou Nattie. — O médico descreveu sua doença como "exaustão cerebral", mas não prestei atenção ao que ele dizia. Foi Sua Senhoria quem insistiu em consultá-lo. A pessoa que a curou foi a mulher das ervas, milady. Não vai reconhecer suas costas quando se olhar no espelho.

  • A mulher das ervas? Quem é ela?

  • É famosa por aqui, e pessoas vêm de Londres para consultá-la. Ela não permite que se usem remédios receitados pelos médicos. Bobagem costuma dizer!

  • É chá de ervas o que tenho bebido? — perguntou Lalitha. — Mesmo inconsciente, percebi que era delicioso!

  • Ervas e frutas do pomar dessa mulher, e mel das abelhas dos favos que ela mantém. Acredita que só o mel de suas próprias colméias possuem poder curativo.

    Lalitha ficou silenciosa por algum tempo, depois disse:

  • Estou mesmo mais gorda?-

  • Um pouco — replicou Nattie. — E já é um progresso.

    Nattie foi até a penteadeira e pegou um pequeno espelho com moldura dourada. Levou-o a Lalitha para que pudesse constatar a diferença. Era de fato enorme, ela não parecia mais aquela menina de pele opaca, ossos salientes, olhos congestionados e cabelos sem vida.

    Ao contrário, agora seus olhos enormes tinham um brilho invulgar, a pele estava transparente e com um ligeiro tom rosado. Seus cabelos, ondulados e brilhantes, caíam até os ombros.

    —Estou diferente, sem dúvida! — exclamou ela.

  • E vai ficar muito melhor depois que eu terminar com seu tratamento — prometeu Nattie. — Mas precisa me obedecer:

    Lalitha sorriu. Ela notava um quê de carinho, zelo, em todas as ordens de Nattie. O modo autoritário de ela falar escondia uma ternura que Lalitha jamais recebera de pessoas, após a morte da mãe.

    Aquilo era amor, de um certo modo o mesmo amor que a mãe lhe dedicara, porém com suas características especiais, pois Nattie nunca tolerava "bobagens ou fraquezas".

  • Vou fazer tudo o que você mandar, Nattie, porque eu quero ficar boa logo.

    Ao falar, contudo, Lalitha se perguntava se realmente desejava recuperar sua saúde depressa. Quando sã, teria problemas a enfrentar! Problemas talvez insuperáveis!

    E não precisava refletir muito para saber de onde viriam os problemas: ele, lorde Rothwyn, estava sempre presente naquele quarto em seu pensamento; o homem assustador, bravo; e dessa imagem Lalitha não conseguia escapar.

    Nattie trouxe-lhe uma camisola limpa, um elegante modelo feito em tecido suave, enfeitado de renda. Penteou-lhe os cabelos também, tendo antes friccionado neles uma loção que a mulher das ervas fornecera.

  • Que é isso? — interrogou Lalitha.

  • Uma loção feita de cinco - folhas, uma gramínea — explicou Nattie. — É conhecida como a erva de Júpiter.

  • Faz de fato os cabelos crescerem?

  • Seus cabelos cresceram consideravelmente nestas últimas semanas. De qualquer maneira, sempre acontece quando se está inconsciente.

  • Nunca soube disso!

  • Mas é verdade!

  • Como pude ficar inconsciente por tanto tempo?

  • Acordava de vez em quando, mas com a mente confusa; por essa razão conversamos com Vossa Senhoria dormindo quase o tempo todo.

  • Sob o efeito das ervas, penso — observou Lalitha com um sorriso.

  • O sono é o remédio de Deus, embora a gente dê uma ajudazinha a Ele, claro.

  • O que foi que a mulher das ervas receitou para mim? — Lalitha estava curiosa.

  • Penso que um chá de folhas de alfena, de St. John Woet, e de papoula branca. Mas pergunte você mesma a ela, ainda que não garanta que revele seus segredos.

    Nattie escovou os cabelos de Lalitha mais uma vez; depois, cansada devido aos cuidados que recebera, Lalitha adormeceu. Quando acordou, a tarde já ia em meio. Serviram-lhe chá com canapés. Ao terminar de comer, Nattie comunicou-lhe:

  • Sua Senhoria deseja falar.

  • Sua... Senhoria? — Instintivamente Lalitha levou as mãos ao peito como para se proteger.

  • Ele veio vê-la aqui todos os dias, acompanhou seu progresso. — Nattie sorriu. — Foi como se estivesse interessado na recuperação de um edifício em ruína, trabalho esse a que dedica a maior parte de seu tempo.

    Lalitha não deu resposta. Tremia de medo. Como iria enfrentar lorde Rothwyn? Que diria a ele?

    Um repentino pensamento perturbou-a. Com certeza ele ia querer discutir sobre o futuro dela, e sobre como se livrar de um casamento sem nexo.

    Lalitha mal notara que Nattie havia tirado de uma gaveta um xale de chiffon barrado de renda verdadeira, colocando-o sobre seus ombros. A governanta ajeitou um pouco mais os cabelos de Lalitha e afofou os travesseiros. Ouviu-se logo uma pancada na porta.

  • Entre, milorde — Nattie disse, abrindo a porta.

    Lalitha quase não podia respirar. Sem saber por que, esperava ver lorde Rothwyn de preto, como ele se apresentara na igreja. Lembrava-se bem da capa que o fazia assemelhar-se a um morcego de asas abertas.

    Em vez disso, ele usava traje de montaria. Um paletó azul, bem talhado, plastrão alto, calças brancas e botas reluzentes davam- lhe um ar de extrema elegância e menos assustador.

    Lalitha levou uns segundos para ousar encará-lo, e constatou que ele não tinha mais a expressão de Satanás. Ao contrário, era o homem mais sedutor que já vira. Alto e dominador, contrastava com a estrutura frágil dela, que parecia mais etérea que terrena muito pequena naquele enorme leito de dossel e cortinas de veludo rosa-pálido.

    O sol da tarde inundava o quarto, emprestando-lhe uma tonalidade dourada.

    Lorde Rothwyn dizia a si mesmo que nunca vira mulher alguma com cabelos daquela estranha coloração. Eram quase cinzentos, e os olhos de Lalitha eram cinzentos também. O profundo cinzento do mar revolto, com uma tênue claridade vinda da linha do horizonte.

  • Fico muito contente por ver que está melhorando — declarou ele com voz grave.

    Observou que Lalitha segurava o xale contra o peito. Ela não respondia nada, por isso ele continuou:

  • Você causou a Nattie e a mim grande preocupação. Porém, agora podemos ver seu progresso a cada dia que passa. Muito breve terá condições de se levantar e passear pelo jardim. Lá há flores lindas nesta época do ano.

  • Eu gostaria... Muito... — Lalitha balbuciou.

  • Então, faça tudo que Nattie mandar. É o que venho fazendo por toda minha vida.

    Ele sorriu, e um sorriso suave surgiu nos lábios de Lalitha, como resposta. Aí, só para dizer alguma coisa, ela desculpou-se:

  • Sinto muito pelo trabalho que tenho dado.

  • Não há razão para se desculpar. Eu é que lhe devo desculpas.

  • Era minha obrigação ter impedido que o senhor fizesse o que fez. Pensei nisso a tarde toda... Errei muito em consentir... No nosso casamento.

  • Não havia nada que você pudesse fazer, Lalitha.

  • Fui... Covarde. Mamãe teria tido vergonha de mim. — Lalitha falava sem pensar. Só depois lembrou-se de que precisava mentir acerca de sua verdadeira mãe.

    Lorde Rothwyn viu medo nos olhos dela. Aproximou uma cadeira da cama e sentou-se.

  • Estamos casados, Lalitha — disse ele. — Não pode haver mentiras entre nós. Na noite que você desmaiou por eu havê-la forçado cruelmente a se casar comigo, me contou primeiro que sua madrasta, depois que sua mãe a linha espancado. Vamos tornar as coisas bem claras: ninguém mais vai maltratá-la enquanto estiver sob minha proteção. Você é minha esposa, e o passado deverá ser esquecido.

    Uma nova luz surgiu nos olhos de Lalitha. Depois ela sussurrou, ainda receosa:

  • Mas eu não posso... Ficar aqui... Para sempre.

  • Por que não?

  • Porque o senhor... Não me quer. Pode me mandar embora... Ninguém vai saber que somos casados.

  • Está tentando me convencer, Lalitha, de que pretende ocultar nosso casamento? Que sumirá de minha vida?

  • Não seria difícil — replicou ela. — É a solução mais viável que encontrei para resolver nosso problema.

  • Por que considera nossa situação um problema?

  • Porque eu não sou o tipo de esposa... Para o senhor. Vossa Senhoria não pretendia se casar... Comigo.

  • Forcei-a a esse casamento, e ambos sabemos que foi um ato de vingança. Contudo, tratou-se de um contrato legal e religioso. Casei-me, afinal, com uma miss Studley.

    Lalitha ficou calada por um momento, em seguida inquiriu:

  • Evitei que o senhor perdesse... a aposta de dez mil libras?

  • Evitou, mas recusei receber o dinheiro.

  • Por que motivo?

  • Vou dizer-lhe a verdade, como também espero sempre ouvir a verdade de sua boca. Quando sua irmã disse que fugiria comigo, revelei essa decisão a dois de meus amigos mais íntimos, e um deles considerou-me um verdadeiro idiota.

  • Por quê?

  • Ele comentou que a única coisa que Sophie Studley desejava era se casar com um homem de projeção social e, se ela desistisse de Julius em meu favor, seria unicamente por imaginar que o duque, tio de Julius, viveria por muito tempo. Assim sendo, eu representava para ela o melhor pretendente do ponto de vista financeiro.

    Lalitha lembrou-se que Sophie dissera exatamente a mesma coisa. E lorde Rothwyn continuou:

  • Por amar muito sua irmã, briguei com meu amigo. "Sophie me ama", gritei, como qualquer garoto apaixonado. Então meu amigo sugeriu: "Vamos pôr Sophie à prova. Aposto dez mil libras que, se ela pensar que o duque vai morrer esta noite, desistirá da fuga e continuará com Julius Verton". Aceitei o desafio por acreditar que Sophie me amava e, para provarmos isso, redigimos aquela carta que foi enviada a sua irmã um pouco antes da hora combinada para nossa fuga.

  • Que teste... Cruel — murmurou Lalitha.

  • Cruel ou não, provou que eu estava de fato "bancando o bobo" e meu amigo acertara.

  • E ele ganhou a aposta.

  • Na verdade, ganhou. Lembrei-me porém, de repente, ainda na igreja, que o contrato de casamento referia-se a "miss Studley", e não a "miss Sophie Studley".

  • Entendo! Mesmo assim, foi muito honesto o senhor não ter ficado com o dinheiro.

  • Alegro-me por ver que me aprova. — Lorde Rothwyn sorriu.

  • Mas o mal persiste — insistiu Lalitha.

  • O mal? Que mal?

  • Vossa senhoria continua casado... Comigo!

  • Não descreveria nossa união como um "mal", Lalitha.

  • O senhor disse para não fingirmos, então vamos falar francamente. O senhor amava Sophie porque ela é linda, a moça mais bonita da Inglaterra. Ninguém pode ser mais fascinante que ela! Eu não sou uma esposa amada ou admirada por meu marido. O mais simples, nessas circunstâncias, é o senhor se livrar de mim.

  • Pensa assim realmente, não? — lorde Rothwyn falou bem devagar.

  • Preocupo-me com o senhor.

  • E que vai acontecer com você, Lalitha?

  • Tudo sairá bem, se o senhor me ajudar um pouco.

  • De que maneira?

  • Poderia me dar um pouco de dinheiro... Só um pouco, o suficiente para que eu possa alugar uma casinha no campo... Irei para qualquer lugar... Onde ninguém me conheça... E o senhor não vai precisar me ver nunca mais. Minha antiga governanta cuidará de mim com prazer. Minha madr... mãe dispensou-a quando nos mudamos de Norfolk.

  • Quanto acha que tudo isso irá custar?

  • Não muito. Penso que me arrumarei com... Bem... Com cem libras por ano.

  • Em troca dessa "imensa" quantia você pretende sair de minha vida para sempre?

  • Nunca mencionarei seu nome... a pessoa alguma — prometeu Lalitha. — O senhor pode se casar com uma mulher a quem ame...

  • Sabe que sou um homem muito rico, não?

  • Sophie me disse.

  • E, sabendo, ainda admite que cem libras por ano seja uma recompensa justa pelo serviço que me prestou?

  • Não sou muito... Exigente... Em meus gastos.

  • Então, é diferente da maior parte das mulheres de sua idade.

  • Acho que a felicidade... Não depende do dinheiro.

    Ela pensou logo em como fora feliz em sua casa com o pai e a mãe, levando uma vida bastante modesta. Os três haviam conhecido uma felicidade que jamais poderia ser traduzida em ouro, não importando em quanto montasse a fortuna.

    A voz de lorde Rothwyn quebrou a trilha dos pensamentos de Lalitha.

  • Mais uma vez deixe-me dizer-lhe, Lalitha, que você é diferente da maioria das mulheres.

  • Não sei se devo considerar isso um elogio ou não — comentou ela.

  • Você tem planos para o futuro? — Lorde Rothwyn quis saber.

  • Talvez. Só espero que o senhor não revele a minha madrasta ou a Sophie... Meu paradeiro. Elas podem descobrir onde estou, e então...

    Num gesto de súplica Lalitha estendeu-lhe a mão. Lorde Rothwyn cobriu-a com a sua, e disse:

  • Realmente imagina que eu faria o que quer que fosse para provar um novo sofrimento em você?

  • Acho que minha madrasta... Deseja que eu morra. O senhor até pode lhe dizer que eu... Morri.

  • Você está muito viva! E, embora aprecie suas idéias, tenho meus planos também.

  • Quais são eles?

  • Alguma vez Sophie disse a você qual era minha ocupação?

  • Nunca.

  • Tenho dedicado anos de minha vida devolvendo o antigo esplendor a edifícios esquecidos e negligenciados.

  • Deve ser um trabalho muito interessante.

  • Acho que sim — concordou lorde Rothwyn.

  • Lembro-me agora de ter ouvido Sophie falar que o príncipe regente consultava o senhor sobre esse assunto.

  • Possuímos a mesma opinião, ele e eu, em muitas coisas. Dei sugestões a Sua Alteza Real acerca de edifícios em Regentes Park e em Brighton. Ele me honra aprovando freqüentemente minhas idéias renovadoras, e transformamos muitas vezes montões de entulho em obras de arte.

  • Gostaria muito de ver um desses prédios.

  • Vou lhe mostrar — prometeu ele. — Aqui perto mesmo há uma casa construída por um estadista da corte da rainha Elisabeth. Pois bem, encontrava-se em lamentável estado de ruína. O grande salão onde a rainha costumava jantar convertera-se em estrebaria. As vigas de madeira preciosa foram roubadas, utilizadas em construções rurais, ou queimadas como lenha. Neste momento, a casa já está quase completamente restaurada.

    Lorde Rothwyn falava com eloqüência, o que demonstrou a Lalitha o prazer que tinha naquele trabalho. E ele prosseguiu:

  • Descobri também, por acaso, perto da antiga aldeia de St. Albans, fundada pelos romanos, uma pequena villa esquecida e toda coberta de mato. Limpei a área e encontrei mosaicos de um valor inestimável, mármores e pilares de beleza incrível.

  • Como o senhor é hábil! — exclamou Lalitha. — Apreciaria muitíssimo ver essas coisas.

  • Tenho orgulho de meu instinto em descobrir preciosidades. O príncipe regente sente-se como eu quando vê uma obra antiga, um quadro, que necessita de restauração. Ele pode visualizar que, sob a ruína, existe uma obra de arte.

  • E o senhor nunca se engana?

  • Praticamente nunca! Isso me leva a crer que estou certo sobre você.

  • Sobre... Mim?

  • Você precisa de restauração! — observou ele sorrindo.

  • Tudo o que o senhor encontrou até agora tern sido excepcionalmente precioso. Não acredito que o mesmo se dê em minha pessoa.

  • É muito modesta! É parecida com seu pai ou sua mãe, Lalitha?

  • Com minha mãe, porém um pouco menos favorecida. Minha mãe era lindíssima!

    Lalitha embaraçou-se ao referir-se à mãe de novo. Recordou- se, então, de que em diálogos anteriores esquecera-se por completo da farsa que representava quanto à sua filiação. Tentou reparar seu erro, dizendo:

  • Claro. Minha mãe... No decorrer dos anos...

  • Achei que tínhamos concordado em não mentir um para o outro, Lalitha.

  • Dei minha palavra... Mas...

  • Qual é o problema? O que a apavora tanto?

  • Ela... Me matará... Se souber...

  • Tal coisa nunca vai acontecer — garantiu ele. — Contudo, como não quero que se preocupe com outros problemas enquanto se restabelece, não vou pressioná-la a deslindar esse mistério de mãe e madrasta. Concentre-se somente em seu restabelecimento. Logo poderá passear pelo jardim comigo e, quando se sentir mais forte, a levarei á aldeia perto de St. Albans a fim de visitar a casa a que me referi, antes que seja habitada. Promete que não vai se preocupar com seu futuro?

  • Tentarei...

  • Discutiremos nosso assunto de novo quando você estiver mais forte. Por ora, confesso apenas que ficarei muito desapontado se a restauração do edifício chamado "Lalitha" ficar além de minha expectativa.

  • Por favor, não espere demais de mim — insistiu Lalitha com um sorriso.

  • Sou um perfeccionista! — Ele tomou em seguida a mão dela e levou-a aos lábios: — Durma bem, Lalitha, virei vê-la amanhã.

    Ele já ia saindo do quarto quando Lalitha indagou:

  • Por que razão o senhor se encontra no campo? A temporada de Londres ainda não terminou!

    — Mas está quase no fira! E não confio em ninguém quando me proponho a recuperar meus "edifícios".

    Ele sorriu e retirou-se. Lalitha recostou-se nos travesseiros; seu coração batia mais forte, mas não era de medo.

    "Como lorde Rothwyn tem sido bondoso!", pensava. Mesmo assim, continuou achando que devia sair de seu caminho o mais breve possível.

    Imaginava a má impressão que provavelmente daria aos amigos do marido. Esperavam que a esposa dele fosse uma Sophie de cabelos de ouro, olhos azuis e pele perfeita.

    Lalitha não ignorava, embora ninguém lhe houvesse dito, que lorde Rothwyn tivera muitas mulheres em sua vida, tampouco que ele jamais propusera casamento a nenhuma delas, além de Sophie.

    Sophie dissera que lorde Rothwyn era um dos homens mais ricos da Inglaterra. Nesse caso, toda mãe de filhas casadouras o desejaria como genro. Qualquer moça adoraria viver em Rothwyn House, em Park Lane, ou ser a castelã de Roth Park. Usando as jóias da família, seria a anfitriã das grandes personalidades, a começar pelo príncipe regente. E Sophie possuía o essencial para essa posição: uma beleza deslumbrante.

    Além de Sophie, haveria outras mulheres de sangue azul, de grande dote e, quem sabe, de atraente personalidade à disposição de lorde Rothwyn.

    "E eu não tenho nada disso," pensava Lalitha.

    Ela encostou o rosto no travesseiro e fechou os olhos. Até que se recuperasse bem, poderia viver em meio a todo aquele luxo e conforto. Aliás, sempre odiara a feiúra, a sujeira, a crueldade, as mentiras, enfim tudo o que fizera parte de sua vida nos últimos tempos.

    Agora, escapara! Contudo, não podia esperar que essa existência durasse eternamente. Lorde Rothwyn fora bondoso, mas só porque ela estava doente, e porque devido á sua ira forçara-a a um casamento.

    "Ao mesmo tempo, com certeza ele me despreza por eu ter sido tão fraca", concluía ela. — "Se eu houvesse protestado com mais veemência, se houvesse recusado a me casar, ele não estaria agora na contingência em que se encontrava. Preciso salvá-lo, separando- me dele!"

    Lalitha deu um suspiro profundo e logo adormeceu.

    Dois dias mais tarde sentiu-se bem para descer; porém, antes teve de se encontrar com a mulher das ervas. Era uma senhora simpática, que parecia ter-se exposto ao sol até ficar da cor do bronze, e que tinha olhos azuis como miosótis. Ela encantou-se ao constatar o progresso da Lalitha.

  • Mas ainda tem muito chão a percorrer, minha cara — declarou ela logo. — Contudo, está no caminho certo, e a única coisa que precisa fazer agora é seguir minhas instruções. — Ela sacudiu o dedo em frente do rosto de Lalitha, ameaçando-a: — E não tente me tapear.

    Lalitha continuou com o uso do óleo de loureiro, que cicatrizara tão bem suas costas. A mulher receitou-lhe outros cremes suaves para passar no corpo após o banho, feitos à base da seiva de rímulas. Um chá de calaminta, e erva de Mercúrio, foi recomendado para a cura das afecções da pele e do cérebro.

  • A senhora me faz pensar que estou louca! — protestou Lalitha.

  • Vossa senhoria deixou o cérebro faminto como também o corpo. Ele precisa ser alimentado para recuperar energia. A calaminta vai ajudar. Deixo aqui um frasco e avise-me quando terminar.

    Temendo se esquecer das instruções, Lalitha tomou nota de tudo.

    Uma das recomendações da mulher foi que ela trocasse a loção do cabelo que vinha usando por uma feita de caroços de pêssego.

  • Ferva-os com vinagre — ordenou a mulher a Nattie. — Felizmente há muitos pêssegos nesta época do ano. Eles fazem o cabelo crescer e lhe dão um brilho lindo, como o do próprio pêssego.

    A mulher levou para Lalitha o mel produzido na casa dela, e aconselhou-a que comesse o favo também, tão nutritivo como o mel.

  • Onde a senhora aprendeu isso tudo? — indagou Lalitha.

  • Meu pai era botânico, e meu avô igualmente. Nicholas Culpeper foi um de meus antepassados.

  • Quem era ele?

  • Um famoso médico e astrólogo. O primeiro homem a comunicar ao mundo o poder das ervas no tratamento da saúde. Escreveu muitos livros sobre o assunto.

  • Ignorava que houvesse algo escrito, explicando o emprego medicinal das ervas.

  • Nicholas Culpeper dedicou sua vida ao estudo da astrologia e da medicina.

  • Que sorte ter ele posto o resultado de suas investigações em livros!

  • Durante a Guerra Civil, lutou pelo parlamentarismo, e foi ferido no peito— informou a mulher. — Restabeleceu-se felizmente pois, se tivesse morrido, teria levado consigo toda sua ciência.

  • E nossa perda seria imensa!

  • É verdade! Enquanto ele exercia a medicina, encontrava tempo para descrever as propriedades medicinais das ervas num livro que chamou de Compêndio Herbal.

  • Por favor, posso ver esse livro algum dia?

  • Claro, esse e outros que ele publicou. Venha visitar-me que eu lhe mostrarei os livros e, estando interessada, pode ver também minha horta, meu laboratório, e falar com minhas abelhas.

  • Falar com as abelhas! — exclamou Lalitha com espanto.

  • Elas gostam de conversar com as pessoas que curam. Eu lhes contei tudo acerca da senhora, expliquei o que esperava que o mágico mel produzido por elas fizesse. Minhas abelhas nunca falham!

    Assim que a mulher das ervas saiu, Nattie ajudou Lalitha a se vestir. Trouxe-lhe um vestido novo, com mangas bufantes, bem apertadas no pulso, estilo muito em moda na época. A saia era rodada, enfeitada com fitas em torno da bainha, evidenciando a origem da toalete: Paris.

  • É para mim? — perguntou Lalitha, incrédula.

  • Sua Senhoria comprou vários vestidos em Londres para a senhora. Joguei fora os trapos que Vossa Senhoria vestia quando aqui chegou.

    Lalitha corou murmurando:

  • Era só o que tinha!

  • Pois bem, agora tem muito mais. Por ora, não quero que se canse examinando todos os vestidos que a aguardam nos armários.

  • Posso dar uma olhadela?

    Nattie abriu então a porta de um dos guarda-roupas e ela notou que havia lá mais de uma dúzia de trajes de cores suaves, não iguais

    às que Sophie usava, fortes, que iam muito bem com a beleza dourada de sua irmã.

    "Como sabia ele que as cores suaves combinam melhor comigo?" Lalitha se perguntou.

    A roupa que ela vestiu naquele dia era de um azul pálido que acentuava o corado de suas faces. Apesar de se sentir muito elegante, preocupava-se com sua aparência enquanto descia as escadas para ir ao encontro de lorde Rothwyn. Li se ele, depois de todo seu esforço, se desapontasse ao vê-la?

    Um criado de libré abriu-lhe a porta de uma sala cheia de flores, com cortinas de brocado. Em pé, junto á janela, estava lorde Rothwyn; virou-se, encarou-a por um segundo, depois sorriu. Imediatamente Lalitha parou de ter medo, e foi confiante para perto dele.

     

    Lalitha desceu as escadas, saltitante, acompanhada de um cãozinho de pêlo branco e preto.

    Cada dia que ela passara em Roth Park havia sido cheio de novas descobertas e de alegria. Primeiro, visitou a casa toda, construída no reinado de Charles II. Muitas alas foram acrescidas ao edifício principal por várias gerações de Rothwyn.

    Custava-se crer que uma construção tão sólida, tão imponente, pudesse ser acolhedora, ter uma atmosfera íntima como a de uma casa comum.

    Havia tesouros por toda parte: quadros fabulosos e tapeçarias valiosíssimas nas paredes; móveis importados da França e Itália, obras de um artesanato ímpar.

    Na verdade, Lalitha extasiava-se com tudo que via, e ter o histórico desses tesouros narrado por lorde Rothwyn consistia num prazer que ela jamais sonhara experimentar.

    Gravadas em pedra acima da porta principal estavam as seguintes palavras:

    "Esta casa foi construída por Inigo, primeiro lorde Rothwyn, não apenas com tijolos e madeiras, mas com a mente, a imaginação e a alma. Foi erigida no ano de 1678 de Nosso Senhor Jesus Cristo".

  • Entendo bem o sentido dessas palavras — comentou Lalitha.

  • Eu também — concordou lorde Rothwyn.

  • É com esse espírito que o senhor constrói?

É.

Houve uma pausa, e Lalitha teve ímpetos de lhe perguntar se, ao restaurá-la, ele punha também a mente, a imaginação e a alma. Mas era tímida demais para fazer tal indagação.

Lorde Rothwyn levou-a depois à enorme biblioteca, linda, com o teto pintado de várias cores. Milhares de livros davam às paredes o aspecto de uma colcha de retalhos.

  • Posso... Posso... Ler alguns desses livros? — inquiriu Lalitha, fitando lorde Rothwyn.

  • São todos seus! — replicou ele.

  • Mal posso acreditar. Passei estes últimos anos sedenta de livros, pois não tinha permissão de ler.

  • Livros não foram a única coisa que faltou a você, Lalitha.

    Ela corou e apressou-se em dizer:

  • Não estou tão feia agora, não é mesmo?

  • Nunca foi feia, apenas completamente negligenciada.

  • Tento comer bastante, e bebo galões de leite! — Ela franziu o nariz e acrescentou: — É um grande esforço, por que detesto leite.

  • Eu também — confessou lorde Rothwyn. — Nattie sempre insistia que eu bebesse tudo, até o fim da caneca, e você deve fazer o mesmo.

  • Nattie é um amor, mas ao mesmo tempo enérgica.

  • Por isso fiquei bem-educado — disse ele com ar de caçoada.

  • Ela é muito orgulhosa do senhor, e crê que todas as suas boas qualidades são obra dela.

  • E são. O que me diz você de meus defeitos?

    Olhava para Lalitha sorrindo sarcasticamente, e ela percebeu que se referia à crise de fúria que tivera na noite do casamento.

  • Acho que o senhor se assemelha muito a um seu famoso antepassado.

  • Sir Hengist? Que sabe sobre ele?

  • Li alguma coisa acerca de sir Hengist e do poema que foi escrito sobre o temperamento impetuoso dele.

  • Por isso me disse que amaldiçoar Sophie traria má sorte? Para mim ou para ela?

  • Para ambos. O ódio maltrata também quem o sente.

  • Vejo que devo ser cuidadoso quando ficar bravo em sua presença.

    Lalitha fitou-o um pouco receosa, e ele deduziu que a menina faminta, judiada, que ele carregara para o quarto na primeira noite, não mudara como parecia superficialmente, pois ainda escondia muito medo. Era como um animalzinho tratado com crueldade uma vez, e que esperava pancada ao mínimo movimento das mãos de seu dono.

    Outras coisas contribuíram para a felicidade de Lalitha, e a principal foi um cachorrinho, um pequeno Cocker Spaniel que logo se afeiçoou a ela.

    Lorde Rothwyn possuía vários e alguns dálmatas que o seguiam por toda parte, e que balançavam a cauda assim que o viam, sempre prontos para passear. Mas o pequeno Cocker fora para o lado de Lalitha no primeiro dia em que ela desceu.

  • Royal está saudando você — observou lorde Rothwyn.

  • Como é o nome dele? — perguntou Lalitha.

  • Royalist, mas nós o apelidamos de Royal.

  • É um amor. Tive certa vez um cachorro que eu amava muito, mas...

    Lalitha não terminou a frase, e lorde Rothwyn concluiu pela expressão dos olhos dela que o animal lhe fora tirado; outro sofrimento, que a mulher à qual chamava de "mãe" lhe infligira.

    Freqüentemente Lalitha esquecia-se do papel que a madrasta a obrigara a representar, fazendo-a chamá-la de "mãe". E sentenças como: "Antes de mamãe morrer..." surgiam nos lábios dela sem refletir, e sem que percebesse que aos poucos revelava a veracidade de fatos de sua vida.

    Numa certa manhã, lorde Rothwyn levou-a para visitar a casa estilo rainha Elisabeth que ele restaurara. Mostrou antes a Lalitha o desenho da casa como era quando ele a descobrira: caindo aos pedaços, com o teto cheio de buracos. As janelas não tinham vidros e muitos dos lindos tijolos haviam sido arrancados e usados na construção de chiqueiros.

  • Assim era a casa antes — explicou ele. — E, observando os alicerces, visualizei como havia sido originalmente.

  • É grande! — exclamou Lalitha.

  • As casas destas redondezas são grandes. Não foram construídas apenas por membros da nobreza, mas por burgueses ricos de Londres que consideravam o local adequado para se ter uma casa de campo, bem perto da capital.

  • Mas esta casa aqui pertenceu a um nobre, não?

  • Sim, um aristocrata, lorde Hadley, que com certeza olharia com desprezo para meus antepassados.

  • Imagine se ele soubesse que um descendente de sir Hengist restaurou a casa dele!

  • Espero que, onde quer que esteja, aprove meu trabalho. Há uma coisa, contudo, que preciso decifrar. Você me ajudará?

     — Se eu puder, com muito prazer.

  • Aguardei até que você pudesse ver a casa — disse ele. — Agora vamos verificar se consegue realizar uma tarefa que considero difícil.

    Lorde Rothwyn retirou de uma gaveta uma caixa de prata. Abriu- a e Lalitha notou que estava cheia de papel picado.

  • Que é? — perguntou ela.

  • Encontrei isto num armário atrás de um painel. Os ratos roeram grande parte da papelada que julguei de início se tratar de algum documento.

  • Oh, que pena!

  • Quando olhei mais cuidadosamente vi que era parte de um poema. A história relata que lorde Hadley escrevia sonetos. Aliás, quase todos os cavalheiros da corte da rainha Elisabeth eram muito românticos e se expressavam em versos à Sua Majestade ou à mulher amada. — Lorde Rothwyn sorriu. — Isso não significa que eram bons poetas; contudo, davam prazer a quem lesse seus poemas.

  • Especialmente à pessoa para a qual os dedicavam.

  • O que quero que você faça, Lalitha, é que tente juntar estes fragmentos. Muitos pedaços foram destruídos, mas seria interessante procurar saber o que ele escreveu.

  • Acha que vou poder? De qualquer modo, estou muito honrada pelo fato de o senhor me confiar coisa tão preciosa.

  • Não se canse com esse trabalho. Quando sentir os olhos fatigados, pare imediatamente. Por sinal, seus olhos me parecem bem diferentes do que eram antes.

  • Costurava até tarde todas as noites, à luz de uma única vela — explicou-lhe Lalitha. — Sou boa em bordado. Quando Nattie o permitir, bordarei monogramas em seus lenços.

  • Agora é minha vez de me sentir honrado, Lalitha. Não obstante, não faça nada até se recuperar totalmente. Promete?

  • Prometo, ainda achando que o senhor e Nattie estão me mimando demais. Vou ficar gorda, preguiçosa e inútil para tudo, exceto para me recostar em almofadas de cetim.

  • É o que gostaria de ver você fazendo — declarou lorde Rothwyn com sinceridade.

    Lalitha encarou-o, os olhos de ambos se encontraram, e ela sentiu um inexplicável nó na garganta. Lorde Rothwyn virou o rosto para o outro lado, pôs a caixa de prata na mão dela e disse:

  • Vou ficar esperando com impaciência para ver o que lorde Hadley escreveu para alguma beldade da era elisabetana.

    Lalitha ardia em curiosidade para saber o que continha o soneto. Na manhã seguinte sentou-se para decifrá-lo. Porém Nattie forçou-a a ir passear pelo jardim.       v

  • O dia está lindo, milady. Vá tomar um pouco de sol e deixe esse trabalho para os dias de chuva. Além do mais, Sua Senhoria a aguarda.

    Foi o suficiente para apressa; Lalitha a descer. Ela pôs um vestido novo, lilás, cor que nunca usara antes. Estava ansiosa para ver o que lorde Rothwyn achava daquela tonalidade para sua cútis.

    "Eu sou como as casas que ele restaura" pensou. "Dá mesma maneira que escolhe os tapetes e as cortinas, escolhe meus vestidos."

    Havia algo de impessoal nessa idéia, mas não deixou de dar satisfação a Lalitha. Finalmente alguém se interessava por ela.

    Encaminhou-se por um corredor que levava ao escritório, lugar onde em geral lorde Rothwyn ficava de manhã. Chegava à porta da sala quando um jovem saía de lá, Ele cobria o rosto com as mãos e estava muito pálido. Lalitha aproximou-se para ajudá-lo. Então, para grande surpresa sua, constatou que o rapaz chorava.

  • Que posso fazer por você? — indagou ela.

  • Ninguém pode fazer nada por mim! — respondeu ele com o rosto banhado em lágrimas.

    Havia um que de patético e ao mesmo tempo embaraçoso na imagem de um homem chorando.

  • O que houve, afinal? — interrogou Lalitha.

  • A culpa foi minha. Eu sabia que estava errado, mas tive medo de confessar minha falta.

  • Venha cá — confiscou-o Lalitha, dirigindo-se a uma sala vazia. — Conte-me o que aconteceu.

  • Tenho vergonha de mim mesmo, madame. Por favor, esqueça-se de que me viu.

  • Não há razão para tal, quero auxiliá-lo!

  • Já lhe disse, madame, ninguém pode me ajudar. Sua Senhoria está furioso, e com razão.

  • Mas por quê?

  • Coloquei uma das colunas da fundação de uma casa em lugar errado. Não prestei atenção suficiente na planta, acho. Além disso, estava em dúvida, mas receei fazer perguntas a ele.

  • E Sua Senhoria descobriu sua falha, não foi?

  • Foi. E me dispensou. Eu sentia tanto orgulho em poder trabalhar para ele. Tentei acertar, só Deus sabe como tentei acertar. Porém, errei.

  • Entendo você muito bem. Isso às vezes sucede. Espere por mim aqui — pediu Lalitha. — Não vá embora antes que eu volte.

    Envergonhado de sua atitude, o jovem declarou:

  • Perdoe-me, madame, não devia perturbá-la com meu problema. Prefiro retirar-me já... e com dignidade.

  • Não — protestou Lalitha. — Aguarde minha volta!

  • Se for o que a senhora deseja... Mas não entendo a razão...

  • Espere! — insistiu Lalitha.

    Respirando fundo, ela entrou no escritório onde se encontrava lorde Rothwyn. Sentado numa escrivaninha de tampo de couro, examinava uma série de papéis: plantas de casa, com certeza. Tremendo um pouco, Lalitha percebeu que ele estava zangado, pois tinha a mesma expressão fisionômica da noite do casamento. Ao ver Lalitha, exclamou:

  • Oh, é você! — A ruga da testa dele desapareceu ao erguer-se para recebê-la. Notando o embaraço de Lalitha, acrescentou: — O que a aborrece?

  • Tenho algo a lhe dizer. Mas temo que seja atrevimento de minha parte.

  • Nada que você possa me dizer, Lalitha, eu consideraria atrevimento. Sente-se, por favor, e fale.

    Ela sentou-se na beirada de uma poltrona e permaneceu em silêncio.

  • Estou esperando! — observou ele com voz amável.

  • Como já deve ter percebido, sou covarde e tenho medo de tudo. E sei muito bem o que uma pessoa pode fazer, simplesmente porque se encontra dominada pelo receio de falhar.

  • Imagino que esteve falando com Jameson, o rapaz que acabei de despedir.

  • Entendo como ele deve estar se sentindo, pois Vossa Senhoria pode ser assustador... às vezes.

  • E você pretende me culpar pela incompetência daquele jovem?

  • Ele teve medo... De enfrentar o senhor... Como eu também tive.

  • Contudo, você está agindo agora com muita coragem, Lalitha, intercedendo por ele.

  • É que sinto pena do pobre moço. Lamento muito o que houve, mas sei bem que quando uma pessoa é forte e autoconfiante, não entende a fraqueza dos outros, de pessoas como eu, por exemplo.

  • Você realmente pensa que o medo e a timidez são desculpas para um trabalho mal feito?

  • Qualquer um pode errar de vez em quando.

  • Muito bem, Lalitha. Vou ver o que posso fazer em relação a esse caso.

    Lorde Rothwyn fitou-a. Ela estava com os olhos baixos, e os cílios escuros, bem crescidos agora, faziam contraste com sua pele alva.

  • Confesso que é atrevimento meu! — disse Lalitha num sussurro.

  • Não considero você tão tímida e medrosa como pensa. Mas, não desejando aborrecê-la, vou falar com Jameson. Onde se encontra ele?

  • Na sala ao lado.

  • Fique aqui!

    Lorde Rothwyn saiu do escritório e fechou a porta. Lalitha ficou rezando para que tudo saísse bem.

    Ninguém poderia entender, pensava ela, o horrível, insidioso medo que, tal qual uma serpente venenosa, podia percorrer o corpo de uma pessoa, a ponto de fazê-la agir erradamente; e só por não ter condições de pensar com clareza. Mesmo depois de vários dias na casa de lorde Rothwyn, ela mal podia acreditar que acordava de manhã sem o pavor de que iria muito breve ser espancada. Lembrou-se de que ficava sempre alerta, procurando ouvir a voz de sua madrasta, tremendo de medo ao pensar que talvez houvesse feito algo errado, e que fosse ser punida por isso. Não conseguia se libertar do medo, na casa da madrasta, do momento que se levantava à hora de dormir.

    Lorde Rothwyn voltou ao escritório e Lalitha fitou-o apreensiva.

  • Readmiti Jameson — informou ele. — Está contente agora?

  • Oh, muito, muito contente!

  • Contudo sempre lhe disse Lalitha, que espero perfeição.

  • Eu sei, mas aprecia o belo também, e o belo, como no caso do nariz de Cleópatra nem sempre é simetricamente perfeito.

  • Tem razão! — concordou lorde Rothwyn.

  • E a felicidade... é alguma coisa sobre a qual não se pode fazer um planejamento muito rígido — acrescentou Lalitha com certa hesitação.

    Lorde Rothwyn riu muito e comentou:

  • Já sei que você vai modificar todas as plantas das casas nas quais pus tanto tempo e trabalho. Não obstante, não posso refutar seus argumentos. Quem lhe ensinou tudo isso?

  • Talvez a vida, o sofrimento destes últimos anos. Aprendi que, o que todos procuram, é a felicidade; e pensam que ela está no sucesso, no dinheiro, na posição social! Pode ser verdade para alguns, mas para muito poucos. Pessoas normais vão à cata do amor, e só conseguem encontrá-lo onde houver segurança, e não onde existir o pavor; é impossível haver felicidade... junto do medo.

  • Deixe-me fazer-lhe uma pergunta, Lalitha. Tem sido feliz aqui?

  • Muitíssimo. Sinto uma felicidade impossível de descrever. É como se o senhor tivesse me arrancado de um calabouço escuro, úmido e sem esperança, para a luz do sol.

  • Obrigado — replicou lorde Rothwyn suavemente.

    Para desviar daquele assunto íntimo, Lalitha perguntou:

          • O senhor vai me levar esta tarde, conforme prometeu, para visitar outras casas?

          • Pretendia fazer isso, mas será impossível. Vamos deixar nosso programa para amanhã. Havia me esquecido de um compromisso inadiável, em Londres. Sinto não poder cumprir minha promessa, Lalitha. É que um amigo meu, Henry Grey Bennet, precisa falar comigo. Ele é membro do parlamento britânico, encarregado de assuntos referentes a crimes contra os direitos humanos. Trabalha agora no extermínio do tráfico de mulheres brancas, enviadas à força diariamente para outros países, algumas delas ainda adolescentes.

  • Enviadas para fazer o quê?

  • São negociadas como escravas. Há lugares como Amsterdam onde moças inglesas alcançam altos preços no mercado, e são vendidas como gado. Umas seguem direto para o Marrocos, Turquia e Egito.

  • E essas mulheres não têm meios de reagir?

  • Nenhum! Várias são seqüestradas na rua. Há um grupo de pessoas treinadas que encontram tais moças quando elas vêm do interior para Londres, e fazem-lhes promessas tentadoras.

  • Essas jovens falam com estranhos?

  • Nunca estiveram em Londres antes, e se alguém lhes oferece hospedagem e um emprego lucrativo, concordam facilmente. E nunca mais se ouve falar delas!

  • Que coisa horrível! — exclamou Lalitha.

  • Esse tráfico assumiu proporções alarmantes, e está mais do que na hora de se tomar alguma providência. Atualmente a lei é muito fraca, e as pessoas que operam no chamado "mercado branco de mulheres", raramente são levadas perante o tribunal.

  • E o senhor crê na possibilidade de que se aprove uma lei para evitar isso?

    —' O projeto de lei apresentado por meu amigo já foi aceito na Câmara dos Comuns, e esta tarde vai ser submetido à Câmara dos Lordes. Meu amigo não acredita muito na aceitação fácil do que sugerem por isso me pediu que eu fosse a Londres para lhe dar um pouco de força com meu apoio.

  • O senhor deve ir! É importante, muito importante! É incrível o que acontece com essas pobres moças. São... Maltratadas?

  • Se não fazem o que se requer delas, são espancadas ou drogadas até a submissão.

  • Então, vamos rezar para que a lei seja aprovada — declarou Lalitha.

  • Farei o possível para isso. Vou a Londres já.

  • Volta hoje mesmo?

  • Espero regressar esta tarde, talvez na hora do jantar; porém, hoje sem falta. Podemos jantar juntos!

  • Ótimo! — exclamou Lalitha. — Porei um de meus vestidos novos.

  • Faremos desse jantar uma celebração para comemorar seu restabelecimento.

  • O senhor está usando uma desculpa para me fazer comer. Estou ficando tão gorda que muito breve não conseguirei entrar em meus lindos vestidos.

  • Nesse caso, comprarei outros para você, Lalitha.

  • Não gostaria que Vossa Senhoria... Gastasse tanto... Comigo.

    Lorde Rothwyn sorriu ao replicar:

  • Juro a você que o que gastei não vai me levar à falência.

  • O senhor já me deu tanto... Não sei como lhe agradecer.

  • Falaremos sobre o assunto no jantar, está bem? Deixo Royal e os outros cachorros tomando conta de você.

  • Eles farão isso até que o senhor volte.

    Assim que lorde Rothwyn partiu, Lalitha achou que a casa ficara vazia. Com um ar de abandono. Foi com os cachorros ao jardim e admirou os gramados aveludados, os enormes canteiros de flores multicoloridas, o que a fez lembrar-se dos quadros da galeria da mansão. Foi apreciar também o aquário que ficava na outra extremidade do jardim, cercado por um muro de tijolos vermelhos.

    Tudo era lindíssimo, o sol aquecia o ambiente, porém ela contava os minutos para o retorno de lorde Rothwyn à casa.

    "É que preciso saber se a lei passou no parlamento", pensava ela.

    Todavia, não ignorava a verdade. Queria ter lorde Rothwyn ao seu lado, queria conversar com ele sobre temas que interessavam a ambos.

    Receando cansar-se demais, entrou e se ocupou da decifração das frases que lorde Hadley escrevera trezentos anos passados. Era surpreendente observar como ainda sobrara tanto daquilo, apesar da destruição causada pelos ratos, pelos insetos, e pelo tempo. Felizmente ele escrevera num pergaminho grosso e de boa qualidade, numa caligrafia firme e legível. Mas os efes e os erres eram quase iguais, e Lalitha necessitava de tempo e paciência para descobrir o que fora posto no papel.

    Trabalhava com afinco quando um lacaio abriu a porta da sala e anunciou:

  • Miss Studley deseja vê-la, milady.

    Lalitha deu um grito e, olhando para a porta, viu Sophie. Estava linda, vestindo um traje de viagem de seda azul, e tendo na cabeça um pequeno chapéu enfeitado com botões de rosa. Sorria para Lalitha, que começou a tremer de medo.

  • Está surpreendida com minha visita? — indagou Sophie.

  • S... sim.

  • Desejo falar com você, e tinha certeza de encontrá-la sozinha esta tarde. Por isso vim.

  • Como soube... Que eu estava só?

  • Os jornais desta manhã anunciaram que lorde Rothwyn falaria á tarde na Câmara dos Lordes. Tal fato me deu a oportunidade de vir aqui para conversa com você a sós.

    Lalitha não respondeu e Sophie continuou:

  • Que sala linda! Posso me sentar?

  • Claro! Desculpe, mas sua visita me surpreendeu.

  • Achei que você teria interesse em saber como nós estamos. Mas não se assuste, Lalitha, mamãe não está zangada com você.

  • Não?

  • Não. Ela entendeu que não poderia agir de outra forma. Sabemos que se casou com lorde Rothwyn, pois ele me comunicou através de uma carta.

  • Lorde Rothwyn escreveu para você?

  • Escreveu. Mas, por estranho que pareça, a notícia do casamento não foi publicada nos jornais, portanto, ninguém ficou sabendo do evento, exceto mamãe e eu. Isso me faz concluir que sua estada aqui é temporária. Estou certa?

  • Não... Sei.

  • Deixe-me confessar-lhe a verdade, Lalitha. Eu amo lorde Rothwyn, sempre o amei! Quando o perdi, acreditei ter perdido um pedaço de mim mesma!

    Lalitha encarou Sophie atônita, e protestou:

  • Mas você nunca... O amou. Disse muitas vezes que ia se casar com ele só porque era rico.

  • Suponho que, por acanhamento, não lhe revelei o quanto lorde Rothwyn significava para mim. E, na verdade, foi só depois que você saiu com o recado para ele que eu caí em mim, e constatei que o amava muito.

    Lalitha não podia crer que Sophie realmente mudara de idéia.

  • E que houve... Com o Sr. Verton? — inquiriu ela.

  • Julius nunca recebeu a nota que dirigi a ele. Continua a meus pés, suplicando para que nos casemos.

  • E por que razão não está ainda casada com ele? O casamento havia sido marcado para duas semanas atrás.

  • Não foi o duque que morreu, mas uma tia de Julius, mulher que ele respeitava muito. Por isso nosso casamento teve de ser adiado para daqui a dois meses.

  • Oh, entendo! E, nesse meio tempo, você chegou á conclusão de que ama... lorde Rothwyn.

  • Isso mesmo! — concordou Sophie. — E lhe peço, Lalitha, que me devolva o que sempre me pertenceu.

  • Não compreendo...

  • É muito simples. Lorde Rothwyn me ama, como você deve saber.

  • Ele ficou... Furioso com o que você fez. Por esse motivo, me forçou ao casamento.

  • Por vingança! — Sophie sorriu. — Ele tornou o fato claro na carta que me escreveu! Ele me adora! Me venera! Um amor assim não muda da noite para o dia.

  • Não... Suponho que não...

  • Arquitetei um plano muito sensato, com a aprovação de mamãe.

  • E qual é ele? — Lalitha estava apreensiva.

  • Você deve sair desta casa imediatamente. Vá morar com sua antiga governanta. Mamãe lhe mandou de presente vinte libras. Pense só nisso, Lalitha, vinte libras! É muito dinheiro, não acha?

  • Porém não posso sair... Desse jeito — protestou Lalitha. — Sua Senhorita tem sido muito bondoso... Tem feito tanto por mim...

  • Sei exatamente o que ele fez, não precisa enumerar. — Pela primeira vez a voz de Sophie tornou-se dura.

  • Sabe? Como sabe?

  • Essas notícias correm! Há pessoas sempre prontas a relatá-las.

  • Refere-se aos criados, Sophie?

  • Não importam os detalhes. O certo é que você não pode impor sua presença nesta casa para sempre. Acha isso justo?

  • Não... Não.

  • Portanto, em vez de embaraçar lorde Rothwyn pendurando- se nele eternamente, sugiro que desapareça daqui, e já.

  • Mas gostaria... De dizer adeus a ele... De agradecer-lhe.

  • Para quê? Lorde Rothwyn usou-a apenas para me magoar. Você foi um instrumento de vingança, nada mais. Se eu tivesse mandado á igreja uma criada em lugar de você, ele teria feito a mesma coisa. Suponho que não queira criar um caso para lorde Rotwyn, forçando-o a despedi-la como se fosse uma simples empregada. Imagino que prefira se portar como uma lady. Por isso, mamãe lhe mandou este dinheiro, para que você possa sair desta casa com dignidade.

  • O que quer... Então... Que eu faça?

  • Junte alguma roupa, apenas o que possa ser carregada numa trouxa escondida sob sua capa, para que não chame atenção de ninguém. Minha carruagem espera-nos lá fora.

  • E... depois?

  • Levo-a até a encruzilhada mais próxima onde passam todas as diligências que vão a Londres. Assim que você chegar a Charing Cross, tome outra diligência para Norfolk. Há duas por dia e, se se apressar, poderá seguir na da noite. Uma vez em Norfolk, acredito que ache sua antiga governanta com facilidade. Mamãe disse que você sabe onde ela mora.

  • Sim... sei.

  • Então, por que esse ar preocupado?

  • É que, não estou certa de estar agindo bem.

  • Quando lorde Rothwyn souber que eu vim para entregar a ele meu coração, disposta a ser sua esposa, não vai querer se incomodar com você.

  • Não... isso é verdade. Suponho que esteja com a razão, Sophie.

  • Vou ao quarto com você para ajudá-la a se preparar. Não deixe recado com os criados, nem escreva nada. Não faça as coisas mais difíceis para lorde Rothwyn do que já estão. Seria natural que ele se sentisse na obrigação de segurá-la aqui.

  • Mas nós estamos... Casados!

    Sophie deu uma gargalhada e comentou:

  • Um casamento que pode ser apagado da memória do ministro da igreja com algumas libras. É fácil destruir a evidência do livro de registro de casamentos.

    Lalitha fitou Sophie horrorizada, e gritou:

  • Garanto que você... já fez isso!

  • Sim, já fiz. E foi muito fácil, na verdade. Não havia ninguém na igreja quando entrei na sacristia, e o livro de registros achava-se aberto sobre uma mesa. Rasguei a página que me interessava. Além do mais, pessoa alguma acreditará que você se casou com um homem de coração partido por ter sido abandonado pela namorada.

    Lalitha fechou os olhos, desesperada. Mais uma vez Sophie agia segundo sua conveniência, e não havia nada que ela pudesse fazer.

    Ambas foram para o quarto. Àquela hora da tarde, os criados estavam todos recolhidos, incluindo Nattie. Sophie abriu as portas dos guarda-roupas e exclamou:

  • Sua Senhoria comprou muitos vestidos para você! E lindos! É uma sorte termos o mesmo corpo.

  • Não creio que você possa usar minhas roupas, sou muito mais magra.

  • Nesse caso, vamos jogá-las fora. Você não pode levar nada consigo, despertaria suspeitas.

  • Sim... Entendo.

    Lalitha apanhou uma camisola e algumas roupas. Colocou tudo sobre um xale estendido em cima da cama.

  • Isso é mais que suficiente — declarou Sophie.

    Lalitha amarrou as pontas do xale, fazendo uma pequena trouxa, e vestiu a capa de viagem.

    Sophie abriu o armário dos chapéus.

  • São maravilhosos! — observou ela.

  • Talvez eu possa usar um deles —  sugeriu Lalitha.

  • Para quê? Ponha o capuz na cabeça. Assim, os criados não vão achar nada estranho; pensarão que vai apenas dar um passeio comigo.

    Lalitha percebeu que Sophie falava isso por desejar ficar com todos os chapéus. Contudo, não protestou. Enfim, morando com sua velha governanta em Norfolk, não teria oportunidade de usar chapéus elegantes, comprados em Bond Street.

  • Aqui está seu dinheiro! — declarou Sophie rudemente, passando para as mãos dela uma pequena carteira que Lalitha pegou com relutância.

    Gostaria de poder dizer que não queria nada de Sophie ou da madrasta, mas não desejava depender exclusivamente de sua velha governanta, que não possuía muito.

    Ela pôs a carteira em sua bolsa de cetim, apanhou um lenço e um par de luvas de camurça. Sophie examinou-a.

  • Você tem muito melhor aparência agora, Lalitha. Encontrará emprego rápido.

  • Acho... que sim. Você me faz lembrar que seria interessante carregar comigo agulhas e linha de bordar.

    Dito isso, ela apanhou todo o material de costura numa gaveta, e colocou-o também na bolsa.

  • Venha! — gritou Sophie impaciente. — Se vai levar tudo de que precisa, ficaremos aqui até amanhã.

    Lalitha lançou um último olhar ao quarto onde fora tão feliz. Parecia-lhe um local de segurança e paz. De repente, sentiu-se desesperada. Voltava para o mundo ameaçador, deixando lorde Rothwyn para sempre!

  • Depressa! — Sophie insistia. — Se perder a diligência, terá de passar a noite em Londres.

    Lalitha apavorou-se. E se encontrasse lá uma daquelas pessoas encarregadas de arrebanhar moças para enviá-las como escravas a outros países? O pânico tomou conta dela, não queria mais sair. Talvez fosse prudente chamar Nattie e contar-lhe o que se passava. Mas, seria muita humilhação. Sophie estava certa, lorde Rothwyn não a amava.

    Sem uma palavra, acompanhou Sophie. No hall, o mordomo as viu e disse a Lalitha:

  • Vai dar um passeio, milady?

  • Sim, um pequeno passeio — replicou Sophie adiantando-se a Lalitha. — Voltaremos logo.

  • Muito bem, miss. — E depois, dirigindo-se a Lalitha: — Vai levar Royal?

    Só então Lalitha se deu conta de que o cãozinho estava a seus pés. Pegou-o nos braços. Ela amava aquele cachorro, e era mais uma coisa difícil de abandonar. Beijou com carinho a cabeça se: dosa do animal, e disse ao mordomo:

  • Leve-o a Nattie.

    Royal ganiu, protestando contra o fato de ser abandonado por sua dona.

    Na rua, o cavalariço abriu a porta da carruagem, pôs uma manta sobre os joelhos das duas mulheres, e os cavalos se puseram em movimento.

    "Vou-me embora", pensou Lalitha, sentindo uma mágoa profunda. "Nunca mais voltarei, nunca mais o verei!"

    Olhou para trás. O sol da tarde incidia em cheio sobre as paredes da mansão, a casa que fora seu porto seguro, que a abrigara com tanto carinho! Agora, partia.

  • Adeus... Meu amor! — sussurrou ela.

    Quando as palavras lhe saíram dos lábios, percebeu que não era à casa que ela dizia "adeus", mas a seu proprietário.

     

    Quando lorde Rothwyn retirou-se da Câmara dos Lordes, seu amigo Henry Gray Bennet o aguardava à porta.

  • Sinto muito, Henry.

  • Esperava que isso acontecesse — respondeu o Sr. Bennet. — Contudo, tentarei de novo, não tenha dúvida. Tentarei até conseguir que essa lei passe no congresso.

  • E eu lhe darei todo o apoio possível — prometeu lorde Rothwyn.

  • Você já fez muito. Seu discurso foi excelente.

  • Obrigado.

  • Onde podemos nos consolar de nossa decepção? Talvez no clube White?

    Lorde Rothwyn teve um momento de hesitação. Estava quase aceitando o convite quando teve um pressentimento de que deveria voltar a Roth Park. Não sabia explicar bem o que sentia, mas achou que precisava retornar com urgência.

  • Perdoe-me, Henry, fica para outra vez. Vim até Londres somente para atender seu pedido, mas agora tenho de voltar.

  • É estranho você permanecer no campo nesta época do ano. Perdeu até as corridas de Ascot.

    Lorde Rothwyn não respondeu. Foi imediatamente para o local onde se encontrava sua carruagem. Assim que entrou no veículo, pareceu-lhe rude, estando em Londres, não fazer uma visita ao príncipe regente.

    Este viajara de Brighton para a capital a fim de assistir ao batizado da filha do duque e da duquesa de Kent, Alexandrina Victoria.

    Lorde Rothwyn sabia que Sua Alteza Real consideraria grande grosseria se ele, estando em Londres, não fosse visitá-lo.

    O príncipe regente desejava discutir com lorde Rothwyn sobre as reformas do palácio real de Brighton, que ele transformara num pavilhão indiano.

    A própria rainha, entusiasmada com as idéias do filho, contribuíra com cinqüenta mil libras de seu próprio bolso para as alterações necessárias, amenizando em parte as críticas que tal empreendimento vinha causando. Mas, apesar do auxílio dado pela rainha, todo o trabalho de restauração havia custado uma fortuna aos cofres públicos.

    Os enormes candelabros no formato de flores, os biombos chineses da sala de música, laqueados de dourado e vermelho, e a decoração luxuosa da sala de banquetes aumentaram aquela já fabulosa despesa.

    Lorde Rothwyn sabia que trinta e três mil libras haviam sido gastas no ano anterior, e que mais ou menos quarenta mil seriam necessárias no ano corrente.

    Porém, ele gostava do regente como homem e admirava o que ele tentava criar, com seu espírito de fantasia e exuberante romantismo.

  • Todos me criticam e caçoam do pavilhão — Sua Alteza Real dissera a lorde Rothwyn por ocasião de uma visita deste a Brighton.

  • A posteridade julgará seus atos e admirará o progresso introduzido por Vossa Alteza Real neste país — respondera lorde Rothwyn. — Algum dia, o Pavilhão Real será considerado o maior empreendimento arquitetônico de Brighton.

    Contudo, apesar de admitir que uma visita ao regente seria recomendável naquele instante, lorde Rothwyn tomou o caminho de Roth Park. Ele mesmo conduzia os cavalos, e com habilidade ímpar. O cavalariço, sentado no banco traseiro, observava com satisfação que todas as cabeças se viravam para apreciar seu amo, por onde quer que passassem.

    Era de fato impossível não prestar atenção em lorde Rothwyn. Atraente, ele tinha uma presença marcante; e não se podia deixar de pôr em destaque, também, a qualidade dos cavalos que puxavam a carruagem aberta.

    Em pouco tempo as casas desapareceram e eles se encontraram em pleno campo. Os animais galopavam ao longo da estrada que

    seguia para o norte, através de Barnet e Potters Bar, chegando finalmente ao vale onde ficava Roth Park.

    A enorme mansão apresentava-se magnífica ao pôr-do-sol, e os tijolos à vista brilhavam como gemas preciosas. Uma bandeira tremulava no alto do telhado e, abaixo, no lago prateado, cisnes brancos moviam-se com graça.

    Como sempre, ao ver sua casa, lorde Rothwyn sentiu orgulho, não apenas por ser o proprietário, mas porque era descendente de uma longa estirpe de homens inteligentes e criativos.

    Ele parou à porta e virou-se para o cavalariço com um sorriso:

  • Cobrimos a distância de Londres até aqui melhor que nunca, não, Ned?

  • Três minutos mais rápido que da última vez, milorde.

  • Muito bom, Ned.

  • Bom mesmo, milorde.

    Lorde Rothwyn subiu o lance de escadas de pedra e entregou ao mordomo que o aguardava o chapéu e as luvas.

  • Há uma senhora à sua espera no salão prateado, milorde — informou-o o mordomo.

  • Uma senhora?

  • Uma miss Studley, milorde.

    Lorde Rothwyn de início ficou imóvel. Depois, com uma ruga na testa, dirigiu-se para o hall. Um lacaio abriu-lhe a porta do salão e ele viu logo Sophie, em pé perto da janela. Os raios do sol iluminavam-lhe os cabelos dourados e punham em destaque sua pele alva e rosada, os olhos azuis, e o clássico contorno de seus lábios. Ela deu um grito de alegria e foi ao encontro dele.

  • Inigo!

  • Que faz você aqui? — A indagação era rude e abrupta.

  • Há necessidade dessa pergunta? — Ela estendeu os braços para lorde Rothwyn e continuou: — Tive de vir, Inigo, tive de vir!

  • Posso saber o que quer dizer com "tive de vir"? — disse ele, afastando-se da moça. — Não a convidei.

  • Sei disso, mas não podia prosseguir vivendo sem você.

  • Não temos nada a nos dizer — declarou ele. — Nada na verdade!

  • Mas eu tenho muito! Eu te amo, Inigo! Só há pouco descobri o quanto te amo, e como me é impossível viver longe de você!

  • Que foi que provocou essa esfuziante paixão? A circunstância de Verton ter viajado para a França?

    Lorde Rothwyn notou uma mudança súbita de expressão nos olhos de Sophie, indicativa de que se surpreendia por ele saber que Julius saíra da Inglaterra. Todavia, o tom de voz dela permaneceu imutável.

  • Cometi um erro, Inigo, ao mandar Lalitha ao seu encontro naquela noite. Foi culpa de mamãe. Sabe como ela é!

  • Então, foi sua mãe que a forçou a abandonar-me na última hora, não?

  • Foi, foi, foi mamãe! Ela é muito ditatorial, e eu não pude desobedecê-la. Amo você, Inigo, e procurei convencê-la disso; sem sucesso, porém.

  • Você é boa atriz, Sophie, mas não tão boa como imagina. Sei muito bem por que veio aqui hoje. Verton contou a todos o que você fez, e sua reputação está perdida no meio social londrino, e para sempre.

  • Não creio! Não obstante, só o que é importante agora é que eu te amo!

  • Mesmo não sendo eu um duque? — indagou lorde Rothwyn sarcasticamente.

  • Nunca desejei me casar com Julius. Mamãe quis forçar aquele casamento e, enquanto ele estava em Londres, eu não podia me aproximar de você. Agora que ele partiu, as coisas são diferentes.

  • Não vê que é tarde demais para mudar de idéia? Estou casado. — Ele fez uma pausa e após acrescentou: — Já viu Lalitha? Que disse a ela?

  • Lalitha foi compreensiva e não vai pôr obstáculos a meus planos.

  • Planos? Que planos? Não quero que você aborreça Lalitha.

    Ato contínuo, lorde Rothwyn estendeu a mão para tocar a sineta. Adivinhando a intenção dele, Sophie falou depressa:

  • Não mande chamar Lalitha, ela partiu.

  • Partiu? Que quer dizer com isso?

  • Contei-lhe  que o amava — declarou Sophie. — Ela aceitou minha explicação e desapareceu de sua vida. De qualquer maneira, você se casou com Lalitha por vingança, para me punir, não foi?

  • Lalitha concordou em desaparecer de minha vida? Mas como? Para onde foi ela?

  • Não vai incomodá-lo nunca mais — respondeu Sophie. — Fiz todos os arranjos para o futuro, você não precisa vê-la de novo.

  • Para onde foi Lalitha? — insistia lorde Rothwyn,.

  • Não importa saber! Você não anunciou seu casamento nos jornais, portanto, ninguém em Londres sabe o que houve. Estou pronta a me casar a qualquer momento, amanhã ou depois. Assim, poderemos ficar juntos como sempre você desejou.

    O entusiasmo de Sophie decrescia ao perceber a expressão de ódio no olhar de lorde Rothwyn.

  • E você acredita, Sophie, que eu a tocaria e, pior ainda, que me casaria com você, depois do modo cruel como Lalitha foi tratada em sua casa?

  • Isso não tem nada a ver comigo e, se Lalitha lhe contou um monte de mentiras, não deve dar ouvidos a ela. Lalitha é uma mentirosa, e minha mãe cuidava dela por mera caridade.

  • Para onde foi Lalitha, Sophie?

  • Por que está tão interessado em saber? Ela não é ninguém, apenas uma garota feia e doentia! Estou pronta a me entregar a você, Inigo; pode querer mais?

  • Você me enoja, Sophie. E, se não me contar para onde foi Lalitha, arrancarei a verdade à força. Eu a espancarei da mesma maneira que sua mãe espancou aquela pobre menina.

    Ele falou tão ferozmente que Sophie deu alguns passos para trás e protestou:

  • Você deve estar louco para falar assim comigo!

  • Falarei ainda com mais violência, se não responder à minha pergunta! Onde está Lalitha? Será que vou precisar obter essa resposta à força?

    Ele avançou para Sophie que se assustou e disse:

  • Não me toque! Vou lhe contar!

  • Muito bem, então fale depressa!

  • Dei dinheiro para que ela fosse a Norfolk. Não sei exatamente onde se encontra agora, mas deixei-a na diligência.

  • Na encruzilhada da estrada?

  • Isso mesmo.

  • É tudo que preciso saber — declarou ele, encaminhando-se para a porta. Antes de sair, ordenou: — Saia de minha casa já! Se a encontrar aqui na volta, mandarei que os criados a ponham na rua!

    Ele retirou-se do salão, batendo a porta com violência, e foi direto à estrebaria.

  • Prepare meu coche imediatamente — disse ele ao cavalariço.

  • Pois não, milorde.

    Meia dúzia de empregados correu para atender lorde Rothwyn que esperava com impaciência. Menos de dez minutos mais tarde, o coche estava pronto, atrelado a dois animais velozes. Lorde Rothwyn pulou para o assento dianteiro, e os cavalos já se movimentavam quando Ned acomodou-se no banco de trás.

    Numa velocidade incrível, lorde Rothwyn alcançou a encruzilhada, pondo de encontro de várias estradas.

  • Por qual dessas vias passa a diligência que segue para Londres? — indagou ele ao cavalariço.

  • Pela da esquerda, milorde.

    Lorde Rothwyn tomou a direção indicada e, com tanta velocidade, que Ned muitas vezes teve de se segurar para não ser cuspido do veículo.

    Estavam já a alguns quilômetros de Londres, quando, à frente deles, divisaram uma diligência superlotada, não somente de passageiros, mas de bagagem. Havia todo tipo de baús no teto do carro, incluindo engradados de galinhas, e até um cabrito que berrava dentro de um saco.

    Sendo a estrada estreita naquele local, lorde Rothwyn teve alguma dificuldade para ultrapassar a diligência. Enfim, quando o fez, pôs o coche no meio da via obrigando-a a parar.

  • Que pretende fazer? — gritou o cocheiro, homem truculento e bastante irritado.

  • Sua Senhoria deve estar lá dentro — disse lorde Rothwyn ao cavalariço. — Vá chamá-la,

  • Pois não, milorde.

    Ned desceu e encaminhou-se para a diligência, abrindo a pesada porta, e não prestando atenção aos gritos do cocheiro e de seu ajudante.

    Apertada entre bem nutridos camponeses, crianças, um padre e dois caixeiros viajantes, ele viu Lalitha, sentada com a cabeça inclinada, o capuz até o nariz para que ninguém visse as lágrimas.

    Quando Lalitha e Sophie passaram pelos majestosos portões de Roth Park e entraram em plena estrada, Lalitha se convencera de que deixava para trás o homem que amava. Ela o amava, sim, e desde o instante em que ele a beijara na igreja acreditando ser ela Sophie. Ela amava, embora temendo-o, o homem que a carregara para o quarto no dia de sua chegada a Roth Park.

    Porém, não era apenas o aspecto físico de lorde Rothwyn que a atraía; havia algo mais, algo que ela não conseguia definir. Parecia existir dentro dela um instinto que lhe dizia ser aquele o homem de sua vida. E, quando sozinha no quarto da mansão, ela sempre sentia que tudo, os móveis, os quadros era como se fosse ele em pessoa. Da mesma forma que os antepassados de Roth Park haviam deixado na casa um pouco do coração, da mente, da alma, lorde Rothwyn imprimia em cada coisa sua personalidade.

    Conversando com ela, fora habitualmente gentil, de uma gentileza que Lalitha jamais esperara de um homem, muito menos de um homem importante como lorde Rothwyn. Reconhecia, naquela hora, que o perdera irremediavelmente.

    "Eu o amo! Eu o amo!", sussurrava. "Nunca mais o verei."

    Usara de grande esforço para não cair em pranto no momento em que Sophie a deixara na encruzilhada.

    — Adeus, Lalitha — dissera Sophie. — Não se esqueça de sua promessa. Considere seu casamento como uma pilhéria, pois lorde Rothwyn nunca mais se lembrará que você existe.

    Lalitha não respondera. Entrara na diligência carregando sua trouxa, e com dificuldade encontrara lugar no superlotado veículo.

    Sophie nem esperara que o carro partisse, tomando o caminho de volta para Roth Park.

    Fora impossível a Lalitha não chorar enquanto a diligência a levava cada vez mais longe de tudo o que significara para ela segurança e felicidade.

    Estava abafado no interior do veículo; o barulho de vozes e choro de crianças a incomodavam, adicionando-se a isso o cheiro de comida, de suor e a fumaça. Lalitha, porém, só pensava na beleza de Sofia e no prazer que lorde Rothwyn teria ao vê-la, quando voltasse à casa.

    Ela o enxergava entrando na mansão, os cachorros correndo para recebê-lo. Aí, ele encontraria esperando-o, a bela Sophie. Lalitha o visualizava abraçando e beijando sua antiga namorada.

    A dor que sentira, então, fora muito maior que a dor física causada pelas bengaladas, pior que qualquer sofrimento que tivera antes na vida. Fechara os olhos, refletindo:

    "Como posso agüentar isso pelo resto de minha existência?"

    A carruagem seguia seu caminho aos trambolhões, parando em cada pequena aldeia. Alguns passageiros saíam, outros entravam e, ocasionalmente, o cabrito balia.

    E Lalitha tinha também em mente a imagem de lorde Rothwyn quando ele a fitava com uma chama repentina no olhar, deixando-a paralisada, impossibilitando-a até de falar.

    "Haverá nele um pouco de amor por mim?" pensava. "Ou tratara-se apenas de uma obrigação moral de que terá prazer em se livrar?"

    Mais uma vez sua agonia fora insuportável! Mas tentava se conformar. Afinal de contas, conhecera lorde Rothwyn por acaso, só porque Sophie lhe preparara uma perfídia. Ele sentira pena da pobre moça maltratada pela madastra! Como poderia amar mulher, tão feia, tendo Sophie à sua disposição? Além disso, houvera outras mulheres lindas em seu caminho, com certeza. A tagarelice de Nattie não a deixara na ignorância a esse respeito.

    "Sua Senhoria recebeu demais da vida! É um rapaz mimado, e sempre o foi, desde que nasceu."

    "Era bonito quando criança?", indagara Lalitha.

    "Lindíssimo! Parecia um anjo. Quando adulto, começou a chamar a atenção de todos pela beleza. Não admira que as mulheres o perseguissem sem cessar."

    "Verdade?"

    "Mas claro", replicara Nattie. "Com a atração que ele possui, sua riqueza, o lugar que ocupa na sociedade, não há moça que não o deseje como marido, e nem mãe que não o queira como genro."

    "É estranho que não tenha se casado até hoje!"

    "É o que sempre digo a ele. Mas Sua Senhoria ri e me responde que ainda não encontrou mulher que corresponda aos seus ideais."

    E agora, pensava Lalitha, ele encontrara Sophie, mulher que se equiparava em beleza à atração dele como homem.

    O casal perfeito!

    Lalitha imaginava a excitação que aquele casamento despertaria no beau monde.

    Lorde Rothwyn levaria Sophie à Carlton House, às festas do Parlamento, e ela seria a mulher mais linda na cerimônia da coroação do próximo rei.

    Lalitha engoliu um soluço e refletiu:

  • "Por que, meu Deus, por que não me apaixonei por um homem comum? Um homem que não pertencesse à alta sociedade, e com quem eu pudesse acabar meus dias numa casinha modesta?"

    Mas não. Tivera de se apaixonar por uma criatura tão longe de seu alcance como as estrelas no céu.

    "Como pôde ser tão boba? Tão boba?", as rodas do carro pareciam repetir de encontro ao solo acidentado da estrada poeirenta e pedregosa.

    E a resposta vinha logo:

    "Não pude evitar! Não pude evitar!"

    As lágrimas rolavam-lhe pela face quando a diligência parou.

    Ela ouviu o cocheiro gritar e um dos passageiros, um velho sitiante, dizer:

  • Por que essa parada agora? Já estamos bem atrasados.

  • É uma desgraça essas diligências não chegarem ao destino na hora marcado — outro passageiro protestou.

    Nesse instante, um cavalariço de libré colocou a cabeça no interior da diligência. Viu Lalitha e disse:

  • Sua Senhoria a espera lá fora, milady.

    Lalitha, por momentos, não acreditou no que ouvia; depois repetiu:

  • Sua... Senhoria?

  • Ele a espera, milady.

    Os outros passageiros a encaravam sem saber o que pensar, e um dos caixeiros viajantes queixou-se:

  • Se a senhora pretende descer, madame, faça-o logo. Já estamos bastante atrasados.

  • Desculpe — balbuciou Lalitha.

    Ela teve dificuldade para sair de seu lugar, e mais ainda para pular por cima das pernas das pessoas que estavam entre a porta e ela. Ned ajudou-a a descer da diligência, e Lalitha logo viu o coche atravessado na estrada. Reconhecendo imediatamente a pessoa que o dirigia, seu coração pulsou com mais força. Ela sentou-se ao lado de lorde Rothwyn e o cavalariço cobriu-lhe os joelhos com uma manta. Ninguém falou nada e, assim que Ned tomou seu lugar, os três prosseguiram viagem.

    Lalitha arriscou um olhar para lorde Rothwyn. Observava-o de perfil, e notou a ruga na testa dele e o ricto de irritação nos lábios. Devia estar furioso! Não obstante, pensando bem, ela fizera o que julgara melhor, o que traria felicidade a ele.

    Chegaram numa encruzilhada onde tiveram de esperar que a diligência, que vinha logo atrás, passasse. O sol, que brilhara no céu até poucos instantes, como uma cascata dourada, desaparecia na linha do horizonte, e a escuridão aumentava gradualmente. Mal se via a estrada que conduzia a Roth Park.

  • Por que você fugiu? — perguntou-lhe de repente lorde Rothwyn.

  • Pensei... Pensei... Que o senhor não me quisesse mais em sua casa — gaguejou Lalitha.

    Era-lhe difícil falar com clareza, pois se perturbava com a irritação expressa no tom de voz de lorde Rothwyn.

  • Você partiu de livre e espontânea vontade? — indagou ele, ainda zangado.

    Aí, quando Lalitha fitou-o para responder, espantada com a pergunta, ele viu sinais de lágrimas no rosto dela, e notou que tinha os cílios ainda úmidos. Sorriu então e acrescentou, com suavidade:

  • Ainda não aprendeu que nunca deixo um trabalho inacabado?

    Lalitha não teve mais medo, não sentiu mais aquele aperto no coração. Uma onda de inacreditável alegria a invadiu.

    "Ele está me levando de volta a casa", disse a si mesma. "De volta... a casa."

    Os cavalos iam depressa, mas não com a velocidade anterior. Porém, para Lalitha, a viagem parecia rapidíssima, comparada com a da superlotada diligência. Não mais o cheiro desagradável de comida, a atmosfera abafada, e a proximidade dos passageiros. A brisa penetrando no carro aberto brincava com seus cabelos, e uma enorme excitação enchia-lhe o peito. Não havia necessidade de palavras, apenas tinha consciência de que lorde Rothwyn a tirara de novo de um calabouço escuro, para uma luz que quase a cegava.

  • Você está bem? — interrogou ele.

  • Sim... Bastante bem.

    Sentada ao lado do homem que amava, possuía tudo que queria da vida.

    A escuridão aumentava, e as nuvens do céu prenunciavam tempestade. Encontravam-se no meio de uma floresta, numa estrada tortuosa e estreita, com árvores altas e frondosas de ambos os lados. Numa curva, ouviram vozes e, quando lorde Rothwyn diminuiu um pouco a marcha, dois homens a cavalo apareceram diante do coche.

  • Pare! — um deles berrou.

    Dois cavaleiros mascarados aproximaram-se de lorde Rothwyn que tentou tirar do bolso uma pistola; mas um dos assaltantes o alvejou com sua arma, atingindo-o no ombro direito. Lorde Rothwyn largou as rédeas e tocou o ombro ferido com a mão esquerda.

  • Não se mexa se não quiser morrer! — um dos homens gritou.

  • Tirem esse carro da estrada! — outra voz ordenou, e Lalitha percebeu, com horror, que havia quatro assaltantes ao todo.

    "Quatro contra dois!", pensou ela desesperada. "E um dos nossos, ferido!"

  • Malditos! — exclamou lorde Rothwyn. — Que diabos querem de nós? Não temos quase nada de valor conosco.

    Um dos homens sorriu de maneira atrevida, e disse:

  • Precisamos urgentemente de bons cavalos!

  • Maldição!

    Durante essa troca de palavras, Lalitha notou que o assaltante erguia a pistola para dar uma coronhada na cabeça de lorde Rothwyn, que não teria condições de se defender por estar não somente ferido como em nível bem mais baixo. Ela levantou-se então e estendeu os braços para protegê-lo, gritando:

  • Não! Não! Não faça isso!

  • Por que não? — protestou o bandido.

  • Por que... Os senhores são conhecidos como "os cavalheiros das estradas", e um cavalheiro jamais ataca um homem desarmado... E ferido.

    O bandido sorriu e observou:

  • A menina é corajosa mesmo! Muito bem! Nesse caso, diga a seu companheiro que guarde para si as maldições.

    Lorde Rothwyn ia responder, porém Lalitha cobriu-lhe a boca com a mão. Sabia que ele estava furioso e se reagisse às conseqüências poderiam ser desastrosas.

    Sentindo a mão trêmula de Lalitha em seus lábios, lorde Rothwyn controlou-se, dizendo a ela:

  • Não vou provocá-lo, sossegue.

  • Por favor, acalme-se! — declarou Lalitha. — Estou com tanto medo!

    Agarrou-se a ele, à procura de proteção.

    Dois dos assaltantes desatrelaram os cavalos do coche e levaram- nos para o meio do mato, seguindo por um atalho que ia até uma clareira onde árvores haviam sido recentemente derrubadas. Os outros dois arrastaram Ned e o amarraram a um tronco de árvore.

  • Por que estão fazendo isso? — perguntou o cavalariço.

  • Não queremos que você nos persiga depressa demais, embora vá estar bem ocupado cuidando de um homem ferido e de uma mulher indefesa.

    Um dos marginais chegou perto do coche, ordenando a lorde Rothwyn:

  • Sua carteira e todos os valores que possui!

    Ato contínuo, retirou do bolso de lorde Rothwyn a pistola. Examinou-a, sorriu e disse:

  • A melhor arma que já tive! Seus cavalos também são bem superiores aos nossos!

  • Dê aos "cavalheiros das estradas" minha carteira, Lalitha! — falou lorde Rothwyn com voz calma, embora sarcástica.

    Lalitha obedeceu, e os olhos do bandido fixaram-se na pequena bolsa que ela carregava.

  • A sua também! — insistiu ele. — Será um lindo presente para minha namorada!

    Lalitha entregou-lhe a bolsa. O homem abriu-a e assobiou quando deu com as vinte libras que Sophie havia dado a ela.

  • Muito bem! — exclamou ele. — Agora, mocinha, quer acompanhar os cavalheiros das estradas?

  • Não, obrigada. Não desejo viver perseguida, caçada, com medo de ser presa a qualquer minuto.

    O assaltante riu muito.

  • Você é valente! Gosto de mulheres assim!

    Dito isso, encarou Lalitha com insolência e ela tremeu, encostando-se mais em lorde Rothwyn. O bandido pôs a mão no braço dela, e Lalitha previu o que iria acontecer.

    Nesse exato momento, um grito vindo do meio da floresta chamou atenção do bandido. Era de seus companheiros que, satisfeitos com os cavalos, preparavam-se para partir.

    O homem que segurava o braço de Lalitha lamentou:

  • Não há tempo! Que pena! Você seria um bom prato para mim!

    Ele montou e seguiu o grupo.

    A chuva começou a cair com intensidade. Lalitha pediu a lorde Rothwyn:

  • Deixe-me ver seu ombro. Antes, porém, precisamos encontrar um abrigo. Pode andar até aquela árvore?

  • Sim, claro.

    Lalitha notou com preocupação que o paletó dele, no lado do ombro ferido, estava encharcado de sangue. Ajudou-o a descer do coche e depois dirigiu-se a Ned:

  • Vou desembaraçar você dessas cordas. Mas deixe-me primeiro cuidar de Sua Senhoria.

  • Estou bem, milady, não se preocupe comigo.

    Enquanto caminhavam até a árvore, Lalitha divisou ao longe, no meio do mato, uma cabana. Provavelmente havia sido feita por lenhadores das redondezas. Correu para lá assim que acomodou lorde Rothwyn, abriu a porta da cabana e uma onda de ar aquecido chegou até seu rosto. Algumas achas acesas ainda restavam numa lareira improvisada. Ela deixou a porta aberta e foi ao encontro de lorde Rothwyn.

  • Encontrei uma cabana onde poderemos nos abrigar! — exclamou, quase sem fôlego.

  • Que bom! — replicou lorde Rothwyn, mas Lalitha percebeu que ele falava com esforço.

    Ela ajudou-o a ir até a cabana cuja porta era tão baixa que ele teve de se inclinar para entrar. Assim que o fez, deitou-se no chão áspero, exausto.

    Ao sair do coche, Lalitha carregara consigo a trouxa. Abriu-a e tirou de lá umas roupas e com elas improvisou ataduras.

  • Vou cortar a manga de seu paletó — explicou a lorde Rothwyn. — Penso ser mais lógico, pois o senhor sofreria muita dor se tentasse tirá-lo.

  • Obrigado — respondeu lorde Rothwyn.

    Lalitha possuía apenas uma pequena tesoura de bordar, mas conseguiu executar o que pretendia. O ferimento ficava na parte mais alta do braço, na altura do ombro. O sangue era tanto que não foi possível ver o local exato. Corria pelo braço todo, chegando até a mão, tingindo tudo de um vermelho vivo. Ela percebeu que não daria para saber se a bala atravessara apenas a carne ou se atingira algum osso. Enfim, exposta a parte afetada, Lalitha tomou as ataduras e colocou-as no lugar de onde parecia brotar o fluxo de sangue. Lorde Rothwyn estava pálido e sofria muita dor.

  • Agora vou soltar Ned — disse ela.

  • Há uma garrafa de conhaque no coche — informou lorde Rothwyn. — Quer, por favor, trazê-la para mim?

  • Claro. Por que não me pediu antes?

    Lalitha foi o mais rápido possível ao coche. Chovia torrencial- mente. Pegou a garrafa e a manta, e voltou à cabana. Depois, com a tesoura na mão, dirigiu-se ao encontro de Ned. tentou desfazer o nó, mas sem sucesso. Cortou então a grossa corda que o prendia à árvore, com bastante esforço.

    Logo que se viu livre, Ned declarou:

  • Vou buscar socorro, milady.

  • Vá, por favor. Receio estarmos bem distantes da última aldeia pela qual passamos.

  • Penso ter de ir mais longe que isso, milady. Essas pequenas aldeias não oferecem nenhum tipo de condução adequada para transportar Sua Senhoria.

  • Tem razão — concordou Lalitha com um suspiro de desânimo. — Nesse caso, Ned, é melhor irmos buscar as almofadas do coche, a fim de que lorde Rothwyn tenha um pouco mais de conforto. Há uma lareira rústica na cabana.

  • Ótimo, milady. Posso apanhar mais lenha. Assim, a senhora e Sua Senhoria ficarão bem aquecidos enquanto eu for providenciar condução para voltarmos à casa.

    Felizmente havia muita lenha na redondeza, e os lenhadores, acostumados que estavam a pernoitar na mata, tinham feito uma chaminé no teto da cabana, que permitia a saída da fumaça produzida pelo fogo.

    Ned acomodou lorde Rothwyn nas almofadas e ativou a chama. Declarou em seguida:

  • Agora, milorde, me vou. Voltarei o mais depressa que puder.

  • Obrigado, Ned — respondeu lorde Rothwyn.

    Lalitha achou que ele melhorara depois de ter tomado um pouco de conhaque, e ela agradecia a Deus pelos assaltantes não terem encontrado a garrafa no coche.

    Ned sumiu na escuridão da noite, e ela sentou-se numa das almofadas. Notando que lorde Rothwyn segurava o braço de maneira desconfortável, saiu da cabana, tirou a anágua, e com ela fez uma tipóia. Muito gentilmente, colocou-a no pescoço de lorde Rothwyn, para que ele apoiasse o cotovelo.

  • Está melhor assim? — perguntou.

  • Posso ver que é enfermeira competente, Lalitha.

  • Espero ter agido corretamente. Mamãe era muito boa para colocar bandagens. Sempre a chamavam quando alguém na aldeia se machucava, especialmente crianças. Mas eu mesma nunca fiz isso antes.

  • Estou muito grato a você, Lalitha.

  • Afinal, foi tudo culpa minha... Como posso lhe pagar... Pela perda dos cavalos?

  • Poderíamos ter perdido coisas mais preciosas! — replicou lorde Rothwyn.

    Lalitha achou que ele se referia ao fato de os bandidos poderem tê-lo assassinado. Depois, lembrou-se do homem que a segurara pelo braço.

  • Isso mesmo! — continuou lorde Rothwyn, como se lesse os pensamentos dela. — Mas agora, tudo está acabado, só temos de esperar por Ned. Sugiro que você sente-se bem perto de mim, para que a manta cubra a ambos.

  • Sim, tem razão — concordou Lalitha. — É o melhor que eu tenho a fazer.

    Ela aproximou sua almofada e não pôde deixar de sentir um frenesi percorrer-lhe o corpo. Contudo, há bem pouco tempo, pensara nunca mais vê-lo! Rendeu graças a Deus por tamanha ventura!

  • Acho que o jantar que tínhamos planejado para esta noite não vai se realizar, Lalitha. E teria sido uma grande comemoração para nós.

  • Estou muito contente aqui... de qualquer maneira — replicou ela.

  • Você é valente! Tome um pouco de conhaque, deve estar exausta física e emocionalmente.

    Lalitha quis protestar, mas resolveu obedecê-lo. Serviu-se e insistiu para que ele bebesse um pouco mais, pois devia estar sofrendo bastante dor.

  • Sente-se melhor agora? — perguntou ele.

  • Sinto-me... Muito... Bem. Mas o senhor é que nos preocupa, não há problema algum comigo.

    Ela pôs mais umas achas na lareira e, quando voltou para perto de lorde Rothwyn, percebeu que ele quase dormia.

  • O mais prudente agora, para nós, é tentarmos dormir — observou ele com voz cansada.

  • Vamos então tentar — assentiu Lalitha.

    Ele bocejou e fechou os olhos. Aquele cansaço era natural, uma reação normal após o que se havia passado, e conseqüência da perda de sangue.

    Lalitha contemplou-o à luz das chamas. Era incrivelmente bonito. E ela lá estava, sozinha com ele, sem necessidade de dizer-lhe adeus para sempre.

    Que acontecera depois que ela partira da casa? Que dissera Sophie a ele, e por que a seguira?

    Havia dúzias de perguntas sem respostas, mas aquele não era o momento oportuno para obtê-las. A única coisa que podia fazer seria alegrar-se com o que os deuses lhe haviam concedido. O homem que ela amava estava ali a seu lado e, não importava o que o futuro reservasse, ela ficaria com ele pelo menos um pouco mais de tempo.

    "Eu te amo!", teve vontade de dizer em voz alta.

    Em lugar disso, repetiu para si mesma muitas, muitas vezes:

    "Eu te amo! Eu te amo!".

     

    De início, quando lorde Rothwyn sugeriu que ambos dormissem, ele acomodou-se de lado, com a cabeça nas almofadas trazidas do coche. Não era uma posição muito confortável, mas ao menos o ombro ferido ficava livre de qualquer contato. Ele adormeceu, mas seu sono foi muito agitado. Lalitha, acordada, só pensava em quanto o amava.

    Lorde Rothwyn delirou, e murmurava palavras ininteligíveis, com certeza devido à febre. Lalitha não sabia o que fazer; sentada ali ao lado, cuidava para que ele não se movesse a fim de que o ferimento não recomeçasse a sangrar.

    Num dado momento, lorde Rothwyn agitou-se, e ela automaticamente segurou-o nos braços, e fez com que recostasse a cabeça em seu peito. Pareceu ser a posição que ele vinha procurando porque, depois disso, caiu em sono profundo e repousante.

    Lalitha tinha medo de se mexer, quase até de respirar, para não acordá-lo, e o sentido de tê-lo tão perto de si despertou nela uma estranha reação, jamais sentida antes.

    Amava-o desesperadamente, e o que experimentava, era não somente amor por um homem forte, másculo, atraente, mas um amor que tinha qualquer coisa de proteção, carinho maternal. Desejava salvá-lo de tudo que pudesse lhe ser desagradável, penoso e cruel na vida, como se ele fosse um menino que precisasse de alguém para defendê-lo da infelicidade, da miséria, da solidão.

    Abraçou-o com mais força, e encostou os lábios nos cabelos sedosos dele. Ao beijá-los, teve vergonha de si mesma, de sua ousadia. Contudo, lorde Rothwyn jamais saberia daquilo e, mais tarde, quando tudo estivesse acabado, ela teria algo de que se recordar: a cabeça dele recostada em seu peito, o movimento que ele fazia, mesmo dormindo, à procura de sua proteção.

    Lalitha não fechou os olhos a noite toda, e tinha o braço adormecido; mas o êxtase que tomou conta dela compensou todo seu sofrimento do passado. Era alguma coisa que ninguém, nem mesmo Sophie, poderia tirar dela e, pelo resto da vida, guardaria aquilo como seu precioso tesouro.

    O sol começava a surgir no céu quando Lalitha ouviu passos na floresta, vindo na direção da cabana. Lorde Rothwyn dormia, e ela, muito gentilmente para não assustá-lo, sussurrou:

  • Ned já está de volta.

    Lorde Rothwyn abriu os olhos e se deu conta de que Lalitha o segurava nos braços, e que sua cabeça repousava nos seios dela. Por segundos não se moveu, mas, quando Ned abriu a porta, ergueu um pouco o corpo.

    Lalitha afastou-se, o braço dolorido, e procurou falar com naturalidade:

  • Você trouxe uma carruagem, Ned?

  • Sim, uma bastante confortável, milady.

  • Ótimo.

  • Ajude-me a levantar, Ned — ordenou lorde Rothwyn.

    O cavalariço apressou-se em obedecer e auxiliou seu amo a subir na carruagem. Percorreram os poucos quilômetros até Londres quase em silêncio. Lá chegando, Lalitha ajudou lorde Rothwyn a ir para o quarto, e pediu a Ned que fosse chamar um cirurgião.

  • Sua Senhoria gosta muito do Dr. Henry Clive, milady — informou o mordomo. — É um dos especialistas a serviço de Sua Alteza Real.

  • Então, Ned, peça a ele que venha aqui o mais rápido possível — pediu ela. — E, qual é o médico clínico de Sua Senhoria? — indagou ao mordomo.

  • Esse é sir William Knighton — respondeu ele. — Outro médico que atende à família real.

    Ambos foram chamados e, só depois de ter ouvido a opinião dos médicos, Lalitha foi para a cama. Dormiu até bem tarde no dia seguinte. Quando acordou, viu que Nattie entrava em seu quarto, trazendo consigo Royal.

    Lalitha regozijou-se ao vê-los, e Nattie começou logo a dar ordens, e a providenciar o necessário para o bom andamento da casa.

    Apesar de seus protestos, Nattie obrigou Lalitha a permanecer na cama por três dias e, depois disso, só lhe permitiu que fizesse curtos passeios pelo jardim da mansão. Dias mais tarde, Lalitha ocupou-se da leitura e da decifração das linhas escritas por lorde Hadley.

  • Estou bem, estou muito bem, Nattie — insistia ela, quando a governanta ordenava que tivesse moderação em suas atividades.

  • A minha opinião diverge da sua, milady — Nattie respondia invariavelmente.

    Mas, embora relutasse em admitir, Lalitha sentia-se fraca e in- dolente.

    "Foi um choque ver lorde Rothwyn baleado", dizia a si mesma. "Mas foi um choque ainda maior ter sido posta fora da casa por Sophie, e ver-me lançada na obscuridade e no abandono."

    Estava de volta a Londres, em Rothwyn House. Porém, seu prazer não era completo por não poder estar junto de lorde Rothwyn.

    Esperava que ele mandasse chamá-la, mas os dias se sucediam e, embora Nattie a informasse de que ele melhorava progressivamente, não a convidava para que fosse visitá-lo.

    Enfim, ela pediu a Nattie:

  • Posso ver Sua Senhoria?

  • Os médicos proibiram visitas nos dois primeiros dias, e agora, apesar de ele ter permissão de recebê-las, não mandou chamar a senhora.

  • Adoraria vê-lo, Nattie. Por que não me manda chamar?

    Nattie sorriu e explicou:

  • Todos os homens, milady, e talvez master Inigo mais que qualquer outro, tem vergonha de serem vistos doentes, de cama. Master Inigo sempre foi assim, desde menino. Não admitia sentir dor, não admitia fraquezas. Certo dia, quando ainda criança e estando muito doente, surpreendi-o no quarto repetindo para si mesmo: "Estou bem! Estou bem!"

    Lalitha lembrou-se de como ele fora corajoso ao ser ferido, apesar de sentir muita dor.

    De certa maneira era animador saber que ele não queria recebê-la por questão de princípio, de orgulho, e não por não sentir necessidade de sua presença. Mesmo assim, ansiava por vê-lo.

    Uma bela manhã Lalitha acordou com a camareira abrindo as cortinas do quarto. Continuou imóvel por alguns minutos, observando os raios luminosos do sol refletindo no teto e aquecendo todo o quarto.

    A camareira vinha acompanhada de Nattie, que trazia Royal pela coleira, pronto para um passeio pelo jardim.

    Fazia já mais de uma semana que eles haviam voltado a Londres. Não conseguindo se conter, Lalitha sentou-se na cama e perguntou a Nattie:

  • Como está Sua Senhoria esta manhã?

  • Ainda não o vi, mas, a se julgar pela quantidade de comida que foi servida a ele no quarto, imagino que esteja em boa forma.

  • Você me disse ontem que a ferida estava quase cicatrizada.

  • O médico parece muito satisfeito com a recuperação de Sua Senhoria — replicou Nattie. — Disse que nunca viu ninguém se restabelecer tão depressa de um ferimento daquele tipo.

  • Que bom! — exclamou Lalitha. E, após uma pausa, prosseguiu: — O dia está lindo, vou me levantar e dar uma volta com Royal.

  • Mas cuidado com os canteiros de flores — preveniu-a Nattie. — Os jardineiros se queixaram do estrago que Royal fez no jardim ontem.

  • Sei disso, Nattie. Entrou na cabeça dele que havia um osso escondido entre os gerânios!

    Por achar que lorde Rothwyn pudesse se divertir com o procedimento de Royal, Lalitha fez para ele um esboço de um cachorrinho cavoucando um canteiro de flores, e jogando a terra por todo o lindo e verdejante gramado. Ela pôs o desenho num envelope e pediu a Nattie que o entregasse a Sua Senhoria.

    Quando soube que o desenho o fizera rir, fez mais um, de uma porta fechada e, atrás dela, um cachorrinho pacientemente esperando que alguém o levasse para um passeio.

    Lalitha nunca aprendera desenho, mas costumava esboçar caricaturas para seu pai, que o divertiam muito.

    Dava-lhe muita satisfação enviar aqueles desenhos para lorde Rothwyn, pois era um jeito de se comunicar com ele.

    Lalitha até ousava esperar que ele lhe mandasse um bilhete como resposta, mas isso não aconteceu. Talvez, pensou com certo medo, ele já lamentasse haver impedido que ela sumisse em Norfolk. Talvez achasse que errara em segui-la, e não se interessasse mais por ela. Logo em seguida, contudo, lembrou-se de que lorde Rothwyn dissera jamais ter deixado um trabalho inacabado.

    Ela não estava acabada ainda, mas... E quando estivesse?

    Algum dia isso iria acontecer e ela, com certeza, teria de se separar do homem que amava. Então, uma nuvem escura pareceu toldar o céu que até aquele instante estivera lindo!

    Lalitha levou Royal ao jardim e ficou brincando com ele o tempo todo, o que fez com que o cachorrinho se comportasse muito bem.

    Mais tarde almoçou sozinha e, quando subiu para repousar, Nattie a esperava no quarto.

  • Vai tentar dormir, não, milady? Não se canse demais lendo seus livros — recomendou a governanta ao ver o que Lalitha tinha nas mãos.

  • Vou ler só um pouquinho.

  • Tudo bem, então. Mas descanse, pois precisa estar bonita esta noite.

  • Por que está noite?

  • Sua Senhoria quer que a senhora jante com ele.

  • Oh, Nattie! Sua Senhoria... Já está completamente bom?

  • Acho que sim, pois vamos todos voltar para Roth Park amanhã. Sua Senhoria prefere ficar no campo.

  • Que bom! Estou muito contente.

    Lalitha tinha vontade de dançar, de voar até a lua. Ele estava melhor, e queria vê-la! Iriam jantar juntos!

    Por desejar ter o melhor aspecto possível, fez esforço para dormir. Depois, permaneceu acordada contando os minutos para a hora de se aprontar para o jantar.

    Nattie lhe trouxe uma roupa nova, dizendo:

  • Sua Senhoria deseja que a senhora use esta toalete hoje.

    Era um vestido bem diferente dos demais. Consistia em várias saias de gaze nos tons verde e azul, sobre um forro prateado. O vestido revelava as suaves curvas de seu corpo bem-feito, e fazia com que ela parecesse mais etérea que terrena. Nattie foi buscar um estojo de couro e o pôs sobre a penteadeira.

  • Sua Senhoria pede que a senhora use estas jóias.

    Lalitha abriu o estojo e lá encontrou um colar de pequenos brilhantes em forma de estrelas, tão delicado que parecia ter sido feito por mãos de fada. Havia também algumas pedras soltas, para ela colocar nos cabelos, e uma pulseira de brilhantes igual ao colar.

    Os cabelos de Lalitha não tinham mais aquela aparência desagradável, mas caíam sobre os ombros em suaves ondas, e possuíam um brilho diferente, denotando saúde. Isso devia-se, Lalitha achava, à loção à base de pêssegos que Nattie aplicava neles todas as noites, a conselho da mulher das ervas.

    Os olhos dela brilhavam como os diamantes dos cabelos. Seria difícil reconhecer naquela criatura a menina miserável, magra, assustada, com quem lorde Rothwyn se casara por vingança.

  • Está linda, milady — exclamou Nattie.

    Apesar do elogio, olhando-se no espelho, Lalitha enxergou, em vez de sua imagem, o rosto lindo de Sophie, com aqueles olhos azuis, cabelos dourados, e pele acetinada.

    Mas era inútil se preocupar com isso. Ela não esperava que lorde Rothwyn a admirasse como admirava Sophie, porém, quem sabe, ele seria bondoso com ela como fora antes. E Lalitha desejava vê-lo, com tanta intensidade, que foi com grande esforço que não desceu as escadas correndo até o salão.

    Pensara nele o tempo todo durante a semana; não obstante, ao vê-lo, constatou que quase havia se esquecido de como era lindo e elegante.

    Lorde Rothwyn a aguardava no salão, e estava irresistível com seu traje de noite: casaca muito bem talhada, plastrão branco e colarinho alto. Não tinha a pele bronzeada como de hábito, mas, apesar disso, parecia ainda mais sedutor.

    Enquanto Lalitha pensava no que dizer, ele exclamou:

  • Finalmente sei de que cor são seus cabelos! Nunca pude definir a exata tonalidade deles, mas agora sei que são da cor do luar refletido nas águas do lago.

    Lalitha não sabia o que responder, tal sua surpresa. E ele, beijando-lhe a mão, continuou:

  • Perdoe-me! Devia ter lhe dito antes como estou feliz em vê-la.

  • O senhor está bem agora? — indagou ela.

  • Os médicos me disseram que fui um paciente exemplar!

    Lalitha teve vontade de indagar por que não permitira que ela o visitasse, mas antes que tivesse tempo de formular essa pergunta, lorde Rothwyn prosseguiu:

  • O descanso fez bem a você, Lalitha, e é o que eu queria. Tem aspecto bem diferente agora, e acho que engordou um pouco.

  • Muito! — Ela deu uma risada. — Quase dois quilos!

  • Parabéns!

    Lalitha achava difícil encará-lo, mas sentia ondas de prazer percorrendo-lhe o corpo. Não podia falar, e quase nem respirar, e só tinha em mente a cabeça dele pousada em seu peito.

  • Temos muito a conversar — declarou lorde Rothwyn; mas, antes que ele o fizesse, o mordomo anunciou que o jantar estava servido.

    Lalitha não tinha idéia do que comia ou bebia, mas sua alegria era imensa por estar perto dele e por ouvir-lhe a voz.

    A mesa, decorada com orquídeas, foi servida por lacaios bem treinados, todos eles de libré.

    Lalitha acreditava estar sonhando. Era possível ser ela a mesma moça que comia na cozinha porque a madrasta não lhe permitia que fizesse as refeições na sala? A mesma moça que preparava suas próprias refeições, e isso quando havia tempo?

    Depois do jantar, já no salão, lorde Rothwyn declarou:

  • Sabia que essas jóias ficariam bem em você. Pertenceram a minha mãe, e eram suas preferidas.

  • São lindas! — exclamou Lalitha. — E o senhor foi muito amável em deixar que eu as usasse.

  • São suas agora, Lalitha! E tenho outro presente para lhe dar.

  • Mas o senhor... Não precisava...

  • Quero recompensá-la pelo cuidado que teve comigo, pois, se não tivesse me protegido do assaltante, levantando os braços, meu ferimento teria sido muito pior. E vendo a expressão de pavor de Lalitha ao se referir ao assalto, ele acrescentou: — Não há razão para falarmos sobre esse assunto. Temos outras coisas a discutir.

  • Não sei como lhe agradecer... Mas também tenho um presente para o senhor.

  • Para mim? — indagou lorde Rothwyn, surpreendido.

    Lalitha foi à escrivaninha e tirou da gaveta um pedaço de papel dobrado.

  • Decifrei as linhas escritas por lorde Hadley disse ela. — Tive de adivinhar algumas palavras, aliás, não muito importantes.

  • Quer ler para mim?

    Ela abriu o papel e, com sua voz suave, começou a ler:

     

    "O apelo do coração é o apelo do amor,

    E eu juro por tudo que é sagrado

    Que meu amor por você será eterno,

    Se seu coração chamar pelo meu".

     

    Ao terminar, ela fitou lorde Rothwyn esperando pela aprovação.

  • Você foi muito hábil ao reconstituir essas linhas. Acho que lorde Hadley expressou-se com muita eloqüência.

  • Imagino como a mulher em questão deve ter se sentido envaidecida ao receber essa mensagem.

  • Você acha que o coração dela chamou pelo dele?

    A pergunta foi feita com voz grave, e pareceu a Lalitha um tanto íntima, pessoal. Ela não sabia por que, mas teve dificuldade em responder, e ele prosseguiu:

  • Agora, deixe-me lhe dar um presente que é de certo modo uma resposta aos esboços que você me enviou.

  • Achei que poderiam diverti-lo.

  • E me divertiram muito — replicou lorde Rothwyn. — E, embora o que tenho para você não a faça rir, penso que lhe dará prazer.

    Ele pegou uma pasta que estava sobre a mesa e a pôs nas mãos de Lalitha. Ela abriu-a e encontrou lá dentro desenhos feitos a crayon. Examinou-os e arregalou os olhos, estupefata.

  • Este é de Michelangelo — explicou lorde Rothwyn, tomando um deles. — Chama-se The Running Youth.

  • É lindo, incrivelmente lindo! — exclamou Lalitha.

    O segundo era uma paisagem repleta de detalhes, um panorama que Lalitha poderia contemplar por horas a fio.

  • Foi desenhado por Pieter Brueghel — comentou lorde Rothwyn. — E o último é o que agradará mais a você, penso.

    Representava a cabeça de um anjo, e a expressão mística, espiritual da face dele fez Lalitha concluir que, enfim, tinha diante dos olhos a verdadeira beleza.

  • É de Leonardo da Vinci — continuou lorde Rothwyn. — Foi um dos primeiros ensaios para a tela The Virgin on the Rocks.

  • Tudo isso é para mim?      indagou Lalitha, mal podendo acreditar.

  • Sim, mas antes quero que me responda a uma pergunta. Olhe para a tela que está sobre a lareira.

    Lalitha fez o que ele mandou e viu um quadro de Rubens, valiosíssimo. As cores vivas e brilhantes eram magníficas.

  • Agora, diga-me — acrescentou ele —, qual dos dois trabalhos significa mais para você, o quadro de Rubens, aclamado como sua obra-prima, ou os croquis que tem nas mãos?

    Lalitha pensou por segundos e respondeu:

  • Cada um deles é lindo em sua categoria, mas... — ela fez uma pausa.

  • Continue — insistiu lorde Rothwyn.

  • Talvez seja por motivos pessoais, mas os esboços falam mais a meu coração.

    Lorde Rothwyn sorriu e observou:

  • William Blake, um amigo meu, artista e poeta, disse mais ou menos a mesma coisa: "Esses desenhos comunicam qualquer coisa à alma".

  • É o que acontece... Comigo. Tenho a impressão de que não estou vendo os esboços com meus olhos... Mas com minha alma. — E depois, achando que talvez estivesse sendo emotiva demais, declarou: — O senhor vai rir de mim... Por eu ser muito sentimental!

  • Não vou rir, não, e quero lhe dizer algo.

    Ele tomou-lhe a mão e cobriu-a com a sua. Lalitha não estava certa se fora o toque dos dedos dele, ou o tom de voz o que a imobilizara por completo: mas ela sentia que alguma coisa estranha e maravilhosa estava para acontecer. Levantou os olhos e ficou quase enfeitiçada: lorde Rothwyn a fitava de maneira diferente, como homem algum a fitara antes.

  • Lalitha! — exclamou ele.

    A porta abriu-se nesse instante e o mordomo anunciou:

  • Sir William Knighton, milorde.

    Então, a magia se rompeu, e lorde Rothwyn levantou-se, exclamando:

  • Sir William! Não o esperava hoje!

  • É verdade, milorde, mas é que vou viajar. Perdoe minha intromissão a estas horas da noite, porém o príncipe regente pediu- me que fosse a Brighton, e preciso partir amanhã bem cedo.

    Sir William Knighton era um homem de meia-idade, consciencioso e discreto que, além de ser o médico de Sua Alteza Real, se tornara a pessoa de confiança do regente.

  • Entendo a razão de sua visita, sir William — declarou lorde Rothwyn.

  • Em vez de lhe causar inconveniência vindo aqui antes do breakfast, preferi examinar seu ombro esta noite. Se tudo estiver bem, Vossa Senhoria poderá voltar sossegado park o campo.

  • É muita amabilidade sua — agradeceu lorde Rothwyn, e depois acrescentou: — Acho que ainda não conhece minha esposa.

  • Sua esposa? — exclamou sir William espantado, enquanto cumprimentava Lalitha.

  • Sim. Casamo-nos secretamente, e ficaria muito grato ao senhor se não mencionasse esse fato a Sua Alteza até que ele receba minha carta.

  • Vou honrar a confiança que o senhor deposita em mim. Como deve saber, sou a descrição em pessoa.

    Lorde Rothwyn sorriu e disse:

  • Nós dois não ignoramos como o regente fica furioso quando não sabe de qualquer coisa referente aos amigos íntimos, antes de outras pessoas.

  • Isso é verdade — concordou sir William.

  • Não queremos retê-lo aqui por muito tempo, pois sabemos como é ocupado. Vamos ao meu quarto?

  • Claro, milorde.

    Lorde Rothwyn hesitou um pouco antes de dizer:

  • Nesse caso, Lalitha, é melhor que eu lhe diga boa-noite agora. Não quero que fique acordada até tarde, considerando-se que teremos um dia cansativo amanhã. Partiremos ao meio-dia. Está bem para você?

  • Esperarei pronta — respondeu Lalitha.

    Lorde Rothwyn beijou-lhe a mão, demorando mais que habitualmente os lábios em sua pele suave. Depois, ele e o médico subiram para o quarto.

    Lalitha ficou desapontada! Sentia-se como uma criança a quem fora negado um divertimento na última hora. Enfim, haveria um amanhã em Roth Park. Eles estariam juntos, fariam passeios juntos, pensou, e retomariam a conversa do ponto onde fora interrompida.

    Ela abriu a pasta com as gravuras. Como lorde Rothwyn fora amável em lhe dar coisas tão lindas! Ela calculava que os desenhos haviam custado uma fortuna. Porém, isso era o de menos; o importante foi que ele encontrara algo que coincidia exatamente com seu gosto. Lalitha tinha a sensação de que lorde Rothwyn tentara lhe dizer alguma coisa por meio dos desenhos.

    Ela olhou outra vez para o anjo e experimentou um tipo de frenesi, o mesmo que sentira quando ele lhe beijara a mão.

    Como pôde lorde Rothwyn adivinhar que os croquis lhe agradariam mais que qualquer tela de valor? E havia tanto que ela queria lhe dizer, tanto que queria ouvir...

    Quase automaticamente arrumou as almofadas do sofá, como fizera muitas vezes na casa da madrasta. Em seguida, pegou a pasta e notou que o papel do poema de lorde Hadley não estava mais lá. Com certeza lorde Rothwyn o levara consigo. Estaria satisfeito com seu esforço? Como gostaria de ter podido conversar com ele sobre as dificuldades que tivera para decifrá-lo!

    Bem devagar, Lalitha encaminhou-se para o quarto. Aquela noite fora maravilhosa, e teria sido ainda melhor se sir William não os tivesse interrompido. Que quereria lorde Rothwyn dizer a ela? Não se atreveria a adivinhar!

    No quarto não encontrou Nattie nem miss Robinson, esta última a velha empregada que geralmente a ajudava a se despir; lá estava uma jovem que ela mal conhecia, apesar de saber-lhe o nome.

  • Boa noite, Elsie — disse Lalitha. — Onde está Nattie?

  • A governanta não se sente bem, milady, e miss Robinson igualmente.

  • O que há com elas? — indagou Lalitha.

  • Acho que foi alguma coisa que comeram no jantar, milady. Ambas estão doentes, por isso vim para servir Vossa Senhoria.

  • Espero que não seja nada grave. Acha que eu deveria ir vê-las?

  • Penso que elas preferem ficar sozinhas, milady. Ninguém gosta de receber visitas quando está doente.

  • Isso é verdade — concordou Lalitha. — Mas o médico está aqui, seria interessante que fosse ver o que há.

  • Oh, não, milady. Elas não estão mal assim. Penso que tenha sido o peixe do jantar, e tanto a governanta como miss Robinson têm estomago delicado. Eu estou bem e comi a mesma, coisa.

  • Então, o caso não pode ser grave. — Lalitha sorriu, foi para a penteadeira e tirou o colar do pescoço.

    Seria possível que lorde Rothwyn o dera a ela? Talvez o presente fora só pelo tempo em que ela estivesse em Roth Park.

    Lalitha não podia pensar claramente, nem se lembrar bem do que havia acontecido. A proximidade de lorde Rothwyn e o tom grave da voz dele a afetara o tempo todo durante o jantar e na conversa do salão.

    Nesse instante, ela ouviu uma pancada ria porta.

  • Espero que seja alguém trazendo Royal — disse ela a Elsie.

    Um lacaio costumava passear com o cãozinho à noite. Depois,

    Royal ficava com ela uns quinze minutos antes de ser levado para dormir.

    Elsie foi atender à porta, falou com o empregado, e voltou para < o lado de Lalitha, informando-a:

  • Sinto muito, senhora, mas Royal sofreu um acidente.

  • Um acidente? Onde? O que houve?

  • Não foi nada sério, milady. Vossa Senhoria deseja vê-lo?

  • Sim, sim, claro. Onde está Royal?

  • Venha comigo, milady — pediu Elsie.

    Lalitha seguiu-a, desceu as escadas e foi por um corredor que provavelmente ia dar no jardim. Estava muito aflita, pois amava Royal e sabia que o cachorrinho correspondia a seu afeto. Ela acostumara-se a vê-lo sempre a seu lado, dormindo muitas vezes na cama com ela, embora Nattie protestasse contra aquilo. A qualquer lugar que fosse, lá estava ele, como uma sombra, grudado a seus calcanhares.

    "Como poderia alguma coisa ter acontecido a ele?", ponderava Lalitha.

    Os lacaios sempre o mantinham preso à coleira quando o levavam passear, pela manhã e à noite. Apenas na companhia dela Royal tinha permissão de andar solto, pois a obedecia prontamente.

    Elsie a conduzia por uma ala da casa onde Lalitha nunca estive- ra antes. Todos os criados já tinham ido dormir, excetuando-se o lacaio de plantão, no hall.

    Enfim, as duas chegaram a um pequeno portão no jardim, que Elsie abriu. Havia uma carruagem na rua.

    "Royal deve ter sido atropelado", supôs logo Lalitha, com terror.

  • Royal está dentro do carro, milady — declarou Elsie.

    Lalitha olhou para o interior do veículo, escuro como breu. De súbito, um pano foi jogado em sua cabeça. Ela tentou reagir, mas foi forçada a entrar no carro e jogada no assento traseiro. Assim que a porta se fechou, os cavalos se puseram em movimento. Lalitha não podia entender o que se passava. Lutava em vão para se livrar do pano que a envolvia, mas este era resistente e a cobria da cabeça à cintura; mãos grosseiras amarraram uma corda em volta de seu corpo, imobilizando-lhe os braços.

  • Socorro! — ela gritava. — Socorro!

    Mas o som de sua voz saía abafado. Alguém ameaçou-a:

  • Continue com esse barulho que eu dou-lhe um soco que fará se calar.

    Era uma pessoa rude que falava; com certeza faria o que prometera. O medo de ser maltratada, medo esse que a afligira no passado, voltou com toda a intensidade. Era-lhe impossível emitir um som, impossível até se mover; podia apenas permanecer deitada num canto da carruagem, completamente indefesa.

    O homem amarrara também seus tornozelos juntos, e a corda cortava-lhe a pele, causando-lhe grande sofrimento.

  • Assim está melhor — disse ele. — Se falar, espancarei você até ficar inconsciente. Entendeu?

    Lalitha estava apavorada demais para responder. O homem deu uma gargalhada de satisfação, sentou-se no banco ao lado dela, e começou a fumar.

    Que iria acontecer? Para onde a levavam? Que tinha aquilo tudo a ver com Royal?

    Não, não, essa encenação nada tinha a ver com Royal, ele não fora atropelado, fora só usado como isca para atraí-la, para levá-la do quarto à rua, onde a carruagem a aguardava.

    Mas por quê? Que significava aquilo?

    De súbito, de modo traiçoeiro, vindo à sua mente como o deslizar de uma serpente revoltante, surgiu a possível resposta. Ela estava sendo raptada por um grupo de pessoas conhecidas como "traficantes de escravas brancas".

    Não, não, não podia ser verdade. Com certeza imaginava coisas. Ela não estava metida em nada tão horrível, tão degradante, tão assustador! Mas a idéia persistia.

    Para onde iria? Quem a desejava? Não são ladrões seus raptores, pois não possuía nada de valor consigo. Além disso, quem sabia que ela usara jóias no jantar?

    Lalitha pensou logo em Elsie. Era uma criada simpática, mas não exatamente o tipo de menina simples, vinda de cidade pequena, como geralmente o eram as empregadas que trabalhavam em mansões como a de lorde Rothwyn. Sua mãe dissera muitas vezes que os grandes proprietários de terras empregavam para seu serviço gerações e gerações de pessoas da mesma família. Os homens começavam como auxiliares na despensa, depois passavam a lacaio, e finalmente a mordomo. As mulheres iam da copa para a cozinha, como meras ajudantes, em seguida trabalhavam como camareiras, como assistentes de cozinheira, e enfim como cozinheiras.

    Em que categoria se encontraria Elsie? Teria mentido ao dizer que Nattie e miss Robinson estavam doentes? E a mentira fora inventada por ela ou teria sido induzida a isso por alguém?

    Havia muitas perguntas para as quais Lalitha não possuía resposta, mas cada uma delas lhe causava mais pânico, mais pavor acerca do que a aguardava. Se fosse algo referente ao mercado de escravas brancas, quem poderia estar atrás daquilo tudo? Havia apenas uma pessoa que a odiava a ponto de desejar vê-la morta, uma pessoa que queria se vingar porque Sophie não era a esposa de lorde Rothwyn.

    Uma mulher, sim, uma mulher que a apavorava mais que qualquer coisa no mundo: sua madrasta.

     

    Lorde Rothwyn mexeu-se na cama, tendo a impressão de que alguém o chamava. Logo depois, ouviu o ganido de um cachorro.

    De onde poderia estar vindo aquele ruído? Bem depressa concluiu se tratar de Royal. Ele dormia numa cesta, no quarto de Lalitha, que se comunicava com o seu por uma porta que permanecia sempre fechada.

    Lorde Rothwyn deduziu, então, que algo de errado se passava. Royal não estaria ganindo daquele jeito se Lalitha estivesse no quarto.

    Ele levantou-se, acendeu uma vela, e pôs o robe. Bateu gentilmente na porta de comunicação. A única resposta que obteve foi um latido de Royal e, após esperar mais um pouco, abriu a porta.

    O quarto estava em completa escuridão, ele foi buscar a vela e Royal seguiu-o, pulando. Voltou ao quarto de Lalitha. Uma suave fragrância enchia o ar, perfume que ele associava sempre a ela. Porém, quando ergueu a vela para iluminar a cama, notou que estava vazia. Não podia imaginar o que acontecera! Onde teria ido Lalitha? Por que razão não se encontrava lá? Era inconcebível, àquela hora da noite, que ainda estivesse no salão onde a deixara ao subir com sir William Knighton. Cheio de apreensão, lorde Rothwyn voltou a seu quarto e tocou a sineta chamando o camareiro.

    O andar térreo estava completamente às escuras, e só se ouvia o tique taque do relógio do hall.

    Que teria acontecido? Como pudera Lalitha sumir daquela maneira?

    O valete entrou no quarto, ainda abotoando o paletó, o cabelo despenteado, a expressão preocupada.

  • Que houve, milorde? — indagou. — Vossa Senhoria está doente?

  • Não, não há nada comigo, mas Sua Senhoria não se encontra no quarto.

  • Não, milorde?

  • Ela tem de estar em algum lugar da casa — continuou lorde Rothwyn, querendo convencer a si mesmo. — Vá ao quarto de Nattie e veja se Sua Senhoria esta lá. Se não estiver, acorde o mordomo e diga-lhe que venha aqui imediatamente.

  • Pois não, milorde.

    O valete saiu correndo do quarto e lorde Rothwyn começou a se vestir. Olhou para o relógio e constatou que eram duas horas da madrugada.

    Teria Lalitha fugido de novo? Mas ela parecia tão contente por estar de volta! Ele vira lágrimas nos olhos dela quando saíra da diligência para entrar no coche. Também, pela expressão dos olhos dela durante o jantar, percebera que estava mais feliz que nunca.

    "Se abandonou esta casa, não foi por sua própria decisão", refletiu lorde Rothwyn. "Todavia, quem a teria persuadido a me deixar mais uma vez?"

    Já estava quase pronto quando o valete voltou ao quarto na companhia do mordomo.

    Lorde Rothwyn dirigiu-se a este último:

  • Robson, corra a casa toda de cima a baixo e descubra se alguém viu Sua Senhoria sair.

  • Pois não, milorde.

  • Antes me diga; alguém esteve aqui depois que sir William Knighton saiu?

  • Ninguém, milorde, enquanto eu estive no hall, mas vou saber ao certo do lacaio de plantão.

  • Faça isso, e depressa — observou lorde Rothwyn. — Ao mesmo tempo providencie uma carruagem. Posso precisar de uma.

    O mordomo retirou-se e o valete ajudou seu amo a vestir o paletó.

    Lorde Rothwyn não falou mais nada. Conjecturava sobre aonde teria ido Lalitha, sobre onde devia procurá-la. Mesmo que ela tencionasse, por qualquer estranho motivo, voltar a Norfolk, não seria provável fazer isso no meio da noite. Diligências não partiam de Londres antes das seis ou sete da manhã e, o mais cedo que ela sairia de casa seria uma hora antes apenas.

  • Você sabe se Nattie notou qualquer coisa diferente quando ajudou Sua Senhoria a se deitar ontem à noite? — ele finalmente indagou ao valete.

  • A governanta não viu a Sua Senhoria na noite passada, milorde. Estava doente, como também três outras empregadas.

  • Então, quem serviu Sua Senhoria?

  • Acho que foi Elsie, milorde.

  • Vá buscar Elsie já.

    O valete apressou-se em obedecer.

    Lorde Rothwyn colocou algumas libras em sua carteira, onde já havia bastante dinheiro. Julgou que talvez necessitasse disso mais tarde. Tinha idéia de que precisava estar preparado.

    Royal, perto da lareira, observava tudo, e lorde Rothwyn se perguntou o que o cachorro sabia, o que poderia contar se falasse.

    No caso de haver partido, teria Lalitha levado alguma roupa? Ele foi ao quarto dela e abriu as portas do guarda-roupa. Estava cheio de vestidos, todos escolhidos por ele mesmo. Notou duas coisas, porém: o vestido que ela usara no jantar não se achava lá, e a capa de viagem, a única que Lalitha possuía, estava pendurada num canto do armário.

    Sobre a penteadeira, ele viu um estojo de jóias com o colar, a pulseira e os brilhantes que ela pusera nos cabelos.

    Enquanto lorde Rothwyn examinava tudo, o mordomo entrou no quarto com quatro criados.

  • Descobriu alguma coisa? — lorde Rothwyn perguntou.

  • Sim, milorde. Descobri algo muito estranho.

  • Que foi?

  • Henry levou Royal para passear no jardim, como de hábito, milorde...

  • Não fiz nada de mal, juro que não fiz nada de mal, milorde — interrompeu-o Henry, soluçando.

  • Fique quieto! — gritou o mordomo. — Deixe-me falar com Sua Senhoria.

  • Continue, Robson — ordenou lorde Rothwyn.

  • Henry não conduziu o cachorro de volta para milady, como de uso — prosseguiu o mordomo. — Bem tarde, à noite, George ouviu Royal ganindo e arranhando a porta da cozinha.

  • Tem certeza de que era Royal? — inquiriu lorde Rothwyn, dirigindo-se a George.

  • Absoluta, milorde, embora não pudesse vê-lo.

  • E você não abriu a porta?

  • Não, milorde, tentei, mas não consegui, pois estava trancada.

  • Então, como sabe que era Royal?

  • Eu passeei com o cachorro muitas vezes, milorde. Quando assobio ele fica quieto. Foi o que fiz para ter certeza.

  • E que providência você tomou até agora, Robson? — indagou lorde Rothwyn, falando com o mordomo.

  • Conversei bastante com Henry, milorde — replicou o mordomo, apontando para Henry que parecia apavorado.

  • Que disse ele?

  • Para eu ficar com a boca calada! — Após uma pausa, o mordomo acrescentou: — Também descobri que a governanta, e duas criadas ficaram doentes logo depois do jantar. Por esse motivo Elsie cuidou de milady ontem.

    Lorde Rothwyn lançou um olhar a Elsie. Ela usava um xale de flanela sobre a camisola, e tinha os cabelos em desordem. Muito pálida, parecia amedrontada.

  • Que aconteceu depois que Sua Senhoria se deitou, Elsie? — inquiriu lorde Rothwyn.

  • Nada, milorde.

  • Não é verdade, milorde — protestou Henry. — Mas não queríamos que acontecesse nada, juro, milorde! A culpa foi da mulher que vinha aqui quase todos os dias, querendo saber coisas sobre milady. Certa ocasião ela foi à porta lateral e me fez perguntas, dando-me depois uma libra. Não vi nada de mal nisso, milorde, nada de mal.

  • E o que houve em seguida?

  • Ela apareceu três vezes na semana passada.

  • E cada vez lhe deu gorjeta?

  • Sim, milorde, e pediu para falar com uma das empregadas. Pensei logo em Elsie, que aceitou a idéia.

  • E onde se encontraram, a mulher, e Elsie?

  • Numa casa em Hill Street, milorde.

    Lorde Rothwyn começava a entender tudo. E prosseguiu com sua investigação.

  • Por que você pensou logo em Elsie? Ela raramente serve Sua Senhoria.

  • Porque a governanta ou miss Robinson não iriam, milorde.

    Lorde Rothwyn tornou a olhar para Elsie. Ela estava visivelmente nervosa, torcendo os dedos, e explicou:

  • Como Henry, não quis fazer mal a milady.

  • Que houve então? — interrompeu lorde Rothwyn. — Quero saber palavra por palavra da conversa que você teve com aquela mulher.

    Elsie deu um profundo suspiro.

  • Era uma senhora simpática, milorde. Falou coisas tão agradáveis sobre milady! Disse que conhecia desde criança.

  • Que quis ela saber?

    Elsie corou e não respondeu.

  • Fiz-lhe uma pergunta — observou lorde Rothwyn, já impaciente. — E espero uma resposta.

  • Ela me perguntou se Vossa Senhoria e Sua Senhoria dormiam no mesmo quarto.

  • E o que você respondeu?

  • Disse que não.

  • Que falou a mulher?

  • Dirigiu-se a um homem e declarou: "É como eu informei a você".

  • Um homem? Que homem?

  • Havia um homem na sala com ela.

  • Como era esse homem?

  • Parecia ser estrangeiro, milorde.

  • Descreva-o.

  • Um pouco gordo, milorde, e usava muitas jóias.

  • Velho ou moço?

  • Não muito moço, milorde.

  • Que respondeu ele à mulher?

    Silêncio novamente. Pareceu desta vez que Elsie tentava se lembrar o que fora conversado. Em seguida, replicou:

  • Não sei se entendi bem, milorde, mas ela disse uma coisa que não fez muito sentido para mim: "Isso torna a mercadoria mais valiosa".

  • E depois? Quero a verdade, Elsie.

  • A mulher me prometeu cinco libras, milorde, se eu convencesse milady a ir conversar por um segundo apenas com aquele homem que a esperaria na porta da mansão, numa carruagem. Contudo, jamais pensei que ele a levaria embora! Juro que nunca sonhei.

  • Todavia, não é você a camareira de Sua Senhoria.

  • Sei disso, mas a mulher me deu um pó para pôr na comida das empregadas. Garantiu que não ia fazer mal à governanta nem às outras criadas.

  • E foi também idéia dessa mulher inventar que Royal sofrerá um acidente?

  • Foi.

  • E quanto Henry recebeu?

  • Cinco libras — murmurou Henry.

  • Eles falaram mais alguma coisa, a mulher c o homem, enquanto você estava lá? Pense um pouco, Elsie, pode ser importante.

  • No momento em que eu saía da sala, milorde, o homem falou qualquer coisa sobre "porto".

    Lorde Rothwyn deu uma exclamação e retirou-se correndo do quarto. Royal seguiu-o sem que ninguém percebesse. Um lacaio entregou a ele o chapéu e a capa, e abriu a porta da frente. A carruagem o aguardava.

  • Para o porto, a toda velocidade — ordenou ele ao co- cheiro.

    Só quando o lacaio fechou a porta do carro foi que ele viu Royal sentado a seu lado.

    Lalitha tinha a impressão de que estava sendo levada para muito longe. Era jogada de um lado para o outro, com os solavancos da carruagem. A corda a machucava cada vez mais, e ela quase não podia respirar. Procurava refletir, mas não conseguia, e teve um medo horrível.

    Para onde estaria ela sendo levada? Estava certa, agora, de que fora raptada. Seria talvez transportada para outro país e vendida como escrava! Era inocente demais para saber o que aconteceria depois que fosse posta à venda, mas não duvidava ser algo degradante e horroroso. E, mais ainda, ninguém a acharia, nunca mais veria lorde Rothwyn.

    Pensava no pouco que tinha a recordar: o beijo que ele lhe dera quando a confundira com Sophie, o peso da cabeça dele contra seu peito... e só. Seria isso suficiente para mantê-la mentalmente sã, durante os dias de terror que a aguardavam?

    Como poderia lorde Rothwyn encontrá-la num país estranho, num país que nem ela sabia qual era?

    Estaria lorde Rothwyn pensando que ela fugira? Não, não, impossível admitir essa fuga após a felicidade do último jantar, o modo como conversaram, e a alegria que ela demonstrara ao receber os desenhos.

    Lalitha revivia tudo o que se passara naquela noite:

    "Lalitha!", dissera ele num tom diferente de voz, que a fez vibrar de emoção.

    "O senhor vai rir de mim por eu ser muito sentimental!", ela falara e ele replicara: "Não estou rindo, e quero dizer-lhe algo".

    Que tencionava ele dizer? Lembrava-se do brilho no olhar de lorde Rothwyn quando pronunciara aquelas palavras.

    Quem sabe não era nada importante. A suposição de que lorde Rothwyn desejava lhe dizer coisas maravilhosas provinha do fato de ela estar cega de amor. Amava-o profundamente, e estar perto dele era como ouvir uma música divina, vinda do coração.

    Recordava-se de que ela lhe revelara que admirava uma pintura não com os olhos, mas com a alma. Depois que lera o poema, ele lhe perguntara se achava que a mulher a quem lorde Hadley dirigira aquelas linhas o amava de verdade!

    Lorde Rothwyn era tão bondoso, tão simpático. Agora, nunca mais saberia a resposta a todas as perguntas que desejava lhe fazer. Estava sendo levada para longe, para muito longe! Seu futuro seria mil vezes pior que tudo que sofrerá nas mãos da madrasta.

    Quis gritar, mas sabia o que sucederia se o fizesse. Temia ser espancada.

    "Escaparei eu desse destino maldito?", pensou. E pareceu-lhe ouvir uma voz que lhe respondia, sarcasticamente: "Só depois da morte"!

    Então Lalitha concluiu que, a ser verdade o que suspeitava, seria mesmo conduzida a um país estrangeiro, e humilhada. Nesse caso, preferia morrer. Perguntava-se se suicidar-se seria difícil. Não possuía pistola nem faca; sendo assim como morrer? Encontraria um meio, sim, encontraria um meio, mas só depois de ter absoluta certeza de que lorde Rothwyn não a resgataria. Imagine se ele, após procurá-la por toda parte e, encontrasse morta?

    Em seguida, zombando de si mesma, pensou que talvez lorde Rothwyn até sentisse um alívio por ter se livrado de uma incumbência desagradável!

    Lembrou-se de repente que não soubera o que ele havia dito a Sophie em Roth Park. Sophie insistira que tudo o que lorde Rothwyn desejava era o amor dela e, uma vez conseguido, não pensaria mais na mulher que desposara por vingança! Porém, ele deixara Sophie para procurá-la! E a achara! Se ela tivesse chegado a Norfolk, teria sido muito mais difícil encontrá-la. Nem ela mesma sabia onde sua velha governanta morava!

    De súbito, Lalitha teve a impressão de ver uma luz no fim do túnel, havia esperança! Sim, ela acreditava que lorde Rothwyn não a abandonaria, ele a encontraria, com certeza. Mas como?

    Tudo fora feito com tanta habilidade! Nattie e as empregadas doentes, Elsie servindo-a, e o "acidente" de Royal. Ela saíra correndo do quarto, sem que ninguém soubesse para onde ia. Lorde Rothwyn, provavelmente, ainda estava dormindo, acreditando que ela dormisse ali ao lado. Aí, pensou na porta de comunicação. Quantas vezes olhara para aquela porta! Quando lorde Rothwyn estava doente, ela se via abrindo-a e indo ao encontro dele, mesmo sem ser convidada. Ele teria ficado surpreendido com seu atrevimento, talvez até zangado! Contudo, ela o veria, ouviria a voz dele. Ouvir-lhe a voz, mesmo irritada, era melhor que nada.

    "Que vai suceder de manhã, quando ele acordar e souber que eu não passei a noite na mansão? Nattie, se estiver melhor, dará a notícia. Mas muito tempo se passará até que alguém venha à minha procura". Lalitha teve vontade de chorar, agora outra vez sem esperança.

    A carruagem parou. Ela ouviu o apito de um navio e deduziu que estavam na margem do rio.

    Pela primeira vez o homem que viajava a seu lado falou.

  • Fique quieta e não se mova! Se ouvir qualquer ruído, a espancarei!

    Ele abriu a porta da carruagem e saiu. Mãos rudes a pegaram e a levaram para fora. Eram dois os homens, isso ela pôde perceber. Eles a colocaram numa maca e um terceiro a cobriu da cabeça aos pés com um pano grosso. Lalitha mal podia respirar. Os homens a carregaram e ela percebeu que subiam por uma prancha de embarque.

  • Para o porão — outro homem gritou com um forte sotaque estrangeiro.

    Ela acertara em seu prognóstico. Estava num navio e iria atravessar o canal da Mancha. Começou então a rezar para que lorde Rothwyn a encontrasse.

    "Salve-me! Salve-me! Salve-me porque, do contrário, prefiro morrer."

    Os homens que a carregavam puseram a maca no convés e um deles pegou-a e a colocou sobre o ombro. Sua cabeça ficou pendurada nas costas do homem que, com o braço, lhe segurava as pernas. Ele desceu por uma escada que levava ao porão do navio. A passagem era tão estreita que os ombros do homem roçavam as paredes laterais. No fim da escada havia uma pequena porta que ele destrancou para logo em seguida jogar Lalitha no chão da minúscula cabine, e com tanta brutalidade que lhe machucou as costas. Ela deu um grito de dor. O homem desamarrou a corda que segurava o pano. Por segundos, ela não enxergava nada, e imaginou estar cega. Sem dizer uma palavra, o homem atou-lhe as mãos e, retirando um lenço de seu próprio bolso, o pôs na boca de Lalitha, amordaçando-a firmemente. E disse:

  • Isso é paca você aprender a ficar quieta. Eu a preveni antes sobre o que aconteceria se emitisse um som, qualquer que fosse. E a mesma coisa é válida para todas vocês.

    Lalitha percebeu que havia uma minúscula escotilha na cabine, e que a razão da dificuldade em ver residia no fato de estar escuro lá fora.

    O homem que a amordaçara retirou-se e bateu a porta com força, dando várias voltas à chave. Lalitha tentava adivinhar a quem ele se referira ao dizer "todas vocês". Pouco a pouco ela se acostumou ã escuridão e viu, no chão do cubículo de teto baixo, desprovido de móveis, outras mulheres deitadas, amordaçadas também, e com os braços amarrados nas costas, da mesma maneira que ela.

    Amanhecia, e os primeiros raios de sol, penetrando pela vigia, começaram a dispersar as trevas. Lalitha sentou-se com esforço, apoiando-se contra uma parede. Agora podia distinguir bem tudo. Havia oito mulheres, todas elas com olhos arregalados de pavor.

    "Nove mulheres ao todo", pensou Lalitha.

    E, enquanto refletia sobre o número de vítimas, ouviu passos pelo corredor. A porta foi destrancada e o mesmo homem apareceu carregando no ombro outra mulher. Jogou-a no chão, removeu o pano que a cobria, amarrou-lhe as mãos e amordaçou-a. Essa era muito jovem, loira e bonita.

    — Vamos partir em poucos minutos — comunicou ele. — Quando estivermos no oceano, vocês serão desamarradas, mas isso se se comportarem bem.

    Ele saiu e trancou a porta.

    "Vamos deixar a Inglaterra", concluiu Lalitha."Ninguém jamais saberá o que houve comigo."

    Ela pensou em tentar se desamarrar. Talvez conseguisse, mas, como sair daquele lugar? A porta estava trancada e a única vigia dava para o rio. E ela não ignorava o tipo de punição que a aguardava se fosse apanhada fugindo.

    Olhando ao redor viu duas moças de olhos fechados que pareciam dormir. Mas teve a impressão de que não era um sono normal. As outras tinham os olhos arregalados, as pupilas dilatadas. Todas aparentavam ser muito jovens, não tendo mais de quinze ou dezesseis anos, e estavam modestamente vestidas.

    "Qual será o destino dessas criaturas? E o meu?", raciocinava Lalitha.

    Ela ouvia o barulho do navio que zarpava, e o ruído do vento que enfunava as velas. Sentia muito frio com seu vestido leve.

    Encontravam-se já no meio do rio. O sol brilhava com mais intensidade e Lalitha se perguntava se o quarto de lorde Rothwyn também estava cheio de sol, e se ele já despertara.

    Seria mesmo possível se comunicar com alguém ausente? Ela acreditava no poder da mente, sempre se convencera de que a mente não tinha limites nem fronteiras. Tal crença funcionaria na prática?

    "Venha em meu socorro, milorde! Salve-me!", suplicava ela em pensamento. "Por favor, meu Deus, faça com que ele me ouça, faça-o saber que estou em perigo. Por favor, meu Deus!"

    Aí, ela chegou à conclusão de que seu caso era sem esperança, pois o navio movia-se rapidamente rio abaixo ajudado pela maré.

    Suas preces falharam. Não havia possibilidade de salvação para ela e para as outras companheiras de desventura.

    A moça sentada a seu lado conseguira se desvencilhar da mordaça, e perguntou a Lalitha, com voz cheia de medo:

  • Que está acontecendo? Para onde estamos indo?

    Era uma menina simples, bonita apesar de um pouco gorda, e com as faces coradas típicas de uma camponesa.

    Vendo que ela se livrara da mordaça, Lalitha procurou fazer o mesmo. Moveu os lábios repetidas vezes e o lenço caiu. A moça então disse:

  • Assim é melhor, ao menos podemos conversar.

  • É verdade — concordou Lalitha.

  • Eu não entendo por que estamos aqui.

  • De onde você veio? — indagou Lalitha.

  • De Somerset. Prometeram-me um emprego em Londres.

     — Que tipo de emprego?

  • De ajudante de cozinheira, na casa de um nobre. E eu dei à mulher meu endereço certo.

  • Que mulher? — inquiriu Lalitha.

  • A mulher que foi falar comigo na estação terminal da diligência. Ela me perguntou para onde eu queria ir, e eu disse. Então, me ofereceu sua carruagem. Achei mais interessante ir para meu emprego de carro que a pé.

  • O que houve depois?

  • Não sei bem. A única lembrança que tenho é de que a mulher me fez beber alguma coisa, alegando que eu devia estar muito cansada. Depois disso, vim parar neste navio, amarrada aqui no chão. Qual é o motivo de tudo isso? Que querem de nós?

    Lalitha ficou silenciosa. Não havia razão para assustar a pobre menina.

  • Mais cedo ou mais tarde vamos saber — Lalitha enfim falou. — Mas penso que fomos raptadas.

  • Raptadas?! — exclamou a garota. — Mas por quê? Não tenho quase dinheiro algum, só uma moeda de pouco valor.

    Lalitha passou o olhar pelas outras moças e viu que elas também tentavam remover a mordaça. Contudo, ou não eram tão habilidosas ou as mordaças tinham sido colocadas mais fortemente, pois nada conseguiram. A moça de Somerset começou a choramingar:

  • Quero minha mãe! Quero ir para casa! Pretendia encontrar um emprego em Londres para ajudar minha família, mas agora estou com medo, muito medo. Quero ir para casa!

    "Nós todas queremos", Lalitha ia responder.

    Todavia, apenas disse com muito sangue-frio:

  • Você precisa ser corajosa. Não adianta irritar as pessoas que nos raptaram. Vão nos castigar por isso.

  • Acha que baterão em nós? — indagou a moça.

    Lalitha não respondeu, mas lembrou-se de que lorde Rothwyn dissera que os traficantes de escravas brancas espancavam ou drogavam as moças que não obedeciam.

    "Meu Deus, ajude-nos!", rezava Lalitha.

    O navio movia-se em grande velocidade, impulsionado pelo vento forte. Se continuasse assim, chegariam em poucas horas à Holanda, ou em qualquer outro local do continente europeu.

    Lalitha olhou mais uma vez para as outras moças, e concluiu que ela era a mais velha de todas. Não havia motivo para estar incluída naquele carregamento humano. Aquilo fora idéia de sua madrasta, não restava dúvida. Com certeza Sophie contara à mãe que, em vez de lorde Rothwyn se alegrar com a visita dela, correra para alcançar a diligência. Lalitha podia imaginar a fúria de sua madrasta, ao constatar que Sophie, apesar de toda beleza, perdera tão vantajoso pretendente.

    Lalitha duvidava, apesar do que Sophie dissera, que Julius Verton ainda estava a seus pés. Se fosse verdade, ela se contentaria com o homem de quem estava noiva, e não correria atrás de lorde Rothwyn.

    Julius recebera, por certo, a carta de rompimento e, mesmo com o coração partido, seu orgulho não o permitiria aceitar Sophie de volta. Herdeiro que era de um ducado, poderia fazer casamento muito melhor, pois sua união com Sophie não passava de uma mésalliance. E a única esperança que restava a Sophie, não tendo conseguido nem Julius nem lorde Rothwyn, era se casar com o devasso, velho e desagradável sir Thomas Whernside, o terceiro na lista de seus pretendentes.

    "Não há a menor dúvida de que tanto Sophie como a mãe jamais me perdoarão", pensava Lalitha com humildade.

    Todavia, embora lorde Rothwyn a tivesse seguido, acreditava que ele ainda amava Sophie. Como poderia um homem resistir a tanta beleza, a tanta sedução? Qualquer mulher ficava insignificante perto dela.

    "Como ouso esperar que ele se interesse por mim?"

    Seus pensamentos a levaram para longe da situação em que se encontrava no momento, e ela só voltou à realidade quando a moça de Somerset lhe perguntou:

    —- Não podemos mesmo fazer nada? Não podemos escapar disto tudo?

  • Não saberia como — respondeu Lalitha. — Você não conseguiria, por exemplo, desamarrar a corda que prende suas mãos nas costas!

  • Não a de minhas mãos, mas talvez a das suas.

  • De que jeito? — interrogou Lalitha curiosa.

  • Se nos sentarmos costas contra costas.

  • Você é esperta mesmo! — exclamou Lalitha. — E eu que não havia pensado nisso antes!

    As duas se acomodaram, então, com as costas unidas. Lalitha sentiu logo os dedos ágeis da moça remexendo na corda que prendia suas mãos na cintura. Levou algum tempo, mas enfim ela conseguiu desamarrar as mãos de Lalitha que fez o mesmo com as dela.

  • Eles disseram que vão nos soltar assim que estivermos em alto mar — observou Lalitha. — Por isso, quando vierem aqui, é melhor fingirmos que ainda estamos presas.

  • Entendo — concordou a moça. — E quanto às outras?

  • Acho que posso livrá-las da mordaça. Porém, talvez seja mais prudente que nós a coloquemos de volta na hora que ouvirmos passos no corredor.

    Lalitha e a moça de Somerset agiram depressa. As moças todas, logo que puderam falar, repetiam a mesma coisa:

  • Para onde vamos? Que querem eles de nós? Estou com medo!

    Quando Lalitha chegou perto das duas moças de olhos fechados, constatou que dormiam um sono pesado. Deduziu, então, que estavam drogadas. Ambas eram bonitas, louras e bem-feitas de corpo.

    "Talvez sejam mais felizes dormindo que acordadas", pensou ela. "Ao menos não se preocupam com o futuro."

    O navio começou a jogar, e as ondas do rio pareciam turbulentas. De repente, ela notou que os homens de bordo berravam, e achou que havia uma nota de alarme na voz deles. Alguns falavam num idioma estrangeiro, outros em inglês.

    Aí, inesperadamente, ouviram-se sons de passos no corredor próximo à cabine onde elas se encontravam, bem depressa, as moças recolocaram a mordaça e puseram as mãos para irás, enrolando as na corda.

    Quatro homens entraram na cabine. Para espanto de Lalitha, eles abriram um painel corrediço, atrás do qual havia uma escura cavidade. Os homens começaram a carregar as meninas, uma a uma, e a jogá-las no buraco atrás do painel. Quando descobriram que todas haviam desamarrado a corda e tirado a mordaça, prenderam-nas novamente.

  • Vocês serão castigadas mais tarde pelo que fizeram. — Ameaçou um dos homens.

    Dois deles pegaram Lalitha e a atiraram na cavidade; ela bateu em cheio no suporte de madeira rústica do pequeno compartimento que ficava na popa do navio.

    O espaço era mínimo, havia pouco ar, e as moças estavam amontoadas.

  • Um só grito e eu arrebento todas vocês — berrou o homem que conduzira Lalitha a bordo.

    Ele voltou para a cabine e recolocou o painel no lugar. Nem uma réstia de luz penetrava no esconderijo.

    O navio diminuía a marcha, e Lalitha ouviu o som de outra embarcação que se aproximava. Ela tremia de frio e de medo, e todas as moças estavam apavoradas.

    Depois de muito tempo, quando já começava a acreditar que se enganara, e que não havia outro barco seguindo o delas, vozes e passos se fizeram ouvir, bem perto da cabine. A porta foi aberta e, com o coração aos pulos, Lalitha escutou a voz de lorde Rothwyn.

  • Que há aqui? — indagou ele.

  • Apenas uma cabine, sir.

    Lalitha lutava para se livrar da mordaça, mas em vão. Teria batido os pés no chão, porém estava em cima de outra moça.

    "Ele não vai ver... nem ouvir... nada!", pensou ela em desespero. "Salve-me... estou aqui! Salve-me!", ela quis gritar.

    Escutou então um ganido e arranhões no painel corrediço. Era Royal. Ela conhecia bem os sons que ele fazia quando excitado, ou quando queria ir para junto dela. Em seguida, ouviu lorde Rothwyn declarar:

  • Gostaria de saber o que está excitando meu cachorro assim! Parece-me que há algo atrás dessa parede.

  • São ratos, sir! — explicou um dos homens. — O navio está infestado deles! O senhor possui um bom cão de caça.

  • É estranho ele estar tão excitado! Chame imediatamente o comandante. Há alguma coisa a investigar.

  • Não há nada aqui, sir — insistia o homem. — Nada mesmo! Está perdendo seu tempo, sir!

  • Confio no instinto de meu cachorro! — replicou lorde Rothwyn friamente.

    Em poucos minutos dois oficiais da Marinha apareceram, um deles o comandante do barco.

  • O senhor deseja falar comigo, milorde? — indagou o comandante.

  • Sim. Acho que meu cachorro farejou qualquer coisa aqui. Foi então que Lalitha, com esforço sobre-humano, soltou as mãos. Tirando a mordaça da boca, ela gritou; não foi um grito estridente, mas pôde ser ouvido.

    Isso forçou os oficiais a empurrarem o painel. Royal pulou logo para a escura cavidade, latindo e lambendo o rosto de Lalitha.

    Ela foi conduzida à cabine e, com os tornozelos ainda atados, viu-se abraçada por lorde Rothwyn.

  • Você... Veio! — exclamou, escondendo o rosto no ombro dele. — Sabia... tinha certeza de que atenderia... Meu apelo, o apelo de meu coração.

     

    Lalitha, na semiconsciência, deu um grito de pavor, para depois constatar que estava em sua própria cama, em Rothwyn Park.

    Apesar das cortinas fechadas, ela podia distinguir os móveis, os cupidos do espelho da penteadeira, e os enormes vasos de lírios e rosas que perfumavam o ambiente.

    Estava salva! Estava em casa e não precisava mais ter medo.

    Era difícil recordar tudo o que acontecera desde o minuto em que lorde Rothwyn a abraçara na cabine do navio que a conduzia para fora da Inglaterra.

    Alguém lhe desamarrara a corda dos tornozelos, e lorde Rothwyn tirara a capa de seus próprios ombros e a cobrira com ela. Depois a auxiliara a ir até o convés da embarcação onde soldados da guarda aduaneira, bem armados, mantinham presa toda a tripulação. Mas lorde Rothwyn não se demorou no convés, e levou Lalitha a um pequeno escaler, através de uma escada de corda.

    Havia um grande barco da guarda - costeira ao lado do navio. Lalitha, contudo, só pensava em lorde Rothwyn, que estava bem perto dela, e no fato de que não precisava mais ter receio de nada.

    Foram num barco a remo até o cais onde ela havia embarcado. A distância que percorreram pelo rio foi bastante grande, e a carruagem de lorde Rothwyn os esperava no porto.

    Assim que Lalitha entrou no carro, Royal pulou para o lado dela, colocando a cabeça em seu colo. Talvez tenha sido essa demonstração de carinho o que quebrou o controle emocionante que Lalitha procurara manter desde o instante em que fora salva. E ela começou a chorar com o rosto escondido no ombro de lorde Rothwyn.

    — Tudo está bem agora, Lalitha! Tudo está acabado! — Ele tentava consolá-la.

  • Eu tinha certeza de que você me salvaria — sussurrou ela. — Chamei-o com toda força de meu coração, como no poema de lorde Hadley.

  • Eu ouvi seu apelo, Lalitha, e acordei. Mas deve mesmo sua salvação a Royal.

  • Você teria desistido... Se Royal não tivesse arranhado a parede?

  • Minha intenção, na verdade, era arrebentar com aquele navio, reduzi-lo a mil pedaços. Mas a insistência de Royal ajudou muito.

  • E como você pôde ter tanta certeza de que eu estava lá, ou até de que havia partido da Inglaterra?

  • Eu lhe contarei noutra ocasião por que soube que você partira. No momento, vou lhe falar sobre Royal. No porto, ao longo do cais, havia grande número de embarcações alinhadas, bem junto umas das outras. Andei por algum tempo procurando adivinhar em qual delas você se encontrava. Notei, de repente, que um único ancoradouro estava vazio. Royal, farejando o solo naquele lugar, tornou bem claro que você passara por ali. Um guarda da polícia marítima me acompanhava, pois expliquei a ele a razão de minha suspeita.

  • Ah, foi isso então... — murmurou Lalitha.

  • Nós perguntamos ao responsável pelo porto que navio havia partido, e ele nos disse se tratar de um barco holandês que, por sinal, ainda estava a vista. Quando o policial indagou acerca do tipo de carregamento que o navio levava, o homem respondeu, rindo muito: "Um dos fardos era de cadáveres." Tal comentário confirmou nossa suspeita e, por essa razão, saímos num barco da guarda - costeira em perseguição ao seu navio.

  • Achei que nunca mais o veria — declarou Lalitha com o rosto banhado em lágrimas.

    Ela julgou que lorde Rothwyn fosse lhe dizer alguma coisa, mas apenas abraçou-a até que ela parasse de chorar. Em seguida, deu- lhe um lenço.

    Quando chegaram a Rothwyn Park, ainda manhã bem cedo, metade da criadagem os esperava na porta, incluindo Nattie, ainda muito pálida mas contente com o feliz resultado da busca.

    Achando que Lalitha estava muito fraca para subir as escadas, lorde Rothwyn carregou-a e a pôs gentilmente sobre a cama.

  • Cuide dela, Nattie — falou com sua voz grave. — Sua Senhoria está exausta. E do que ela mais precisa agora é de umas boas horas de sono.

    Ele ia deixá-la, mas Lalitha segurou-lhe a mão, sussurrando:

  • Vai... Embora?

  • Preciso sair um pouco, mas prometo que ficará bem protegida. Ninguém entrará neste quarto a não ser com a permissão de Nattie, e dois de meus melhores guardas ficarão na porta. Isso, não porque ache que esteja insegura. — Vendo que Lalitha ainda parecia amedrontada, ele acrescentou: — Confie em mim! Juro que não a perderei nunca mais.

    Os olhos de Lalitha se iluminaram de felicidade. Logo que lorde Rothwyn saiu do quarto, Nattie preparou-a para dormir e serviu- lhe uma bebida, uma mistura de ervas e mel, o que fez Lalitha repousar por muitas horas.

  • Cinco... Seis... Sete... Impossível! — exclamou Lalitha, depois de contar as badaladas do relógio do hall. — Sete horas da noite?

    Ela olhou à volta e viu Nattie sentada na poltrona ao lado da lareira.

  • Está acordada, milady? — perguntou-lhe a governanta.

  • São mesmo sete horas, Nattie?

  • São. A senhora dormiu bastante, vai melhorar agora. Pedirei que lhe tragam alguma coisa para comer.

    Ato contínuo, Nattie tocou a sineta.

  • Não vou jantar com Sua... Senhoria? — indagou Lalitha.

  • Sua Senhoria ainda não voltou.

  • Não... Voltou? Por quê? Onde foi ele?

    Mas, antes mesmo que Nattie dissesse qualquer coisa, ela adivinhou a resposta. Ele fora com certeza ver o que podia fazer em favor das moças que haviam sido raptadas também. Lorde Rothwyn consideraria seu dever providenciar algo para elas, e levar o caso à justiça.

    Quando o jantar foi levado ao quarto, uma série de pratos deliciosos, Lalitha esforçou-se para comer um pouco de cada, a fim de agradar Nattie. Porém, não sentia fome; só o que queria era ver lorde Rothwyn, descobrir o que acontecera e, acima de tudo, saber se o futuro não traria a ela mais situações de terror.

    Lalitha lamentou não ter contado a ele que desconfiava ser a madrasta a mandante do seqüestro. Quis fazer perguntas a Nattie sobre Elsie, mas receou entrar no assunto na ausência de lorde Rothwyn. Tinha o pressentimento de que ele não gostaria.

    Ao terminar o jantar, constatou que não estava mais cansada e que a exaustão que sentira antes havia desaparecido por completo. O sono profundo, e talvez as ervas, varreu todo o cansaço físico proveniente da experiência desagradável que sofrerá, mas ela não ignorava que precisaria encarar outros problemas, aos quais apenas lorde Rothwyn poderia apresentar uma solução.

    As horas passavam e Nattie insistiu que ela voltasse à cama. Escovou-lhe os cabelos até brilharem, e trouxe-lhe uma outra camisola.

    Royal foi levado para seu passeio habitual.

  • Quem vai cuidar dele? — perguntou Lalitha, não escondendo sua apreensão.

  • O Sr. Robson!

    Lalitha sorriu. O mordomo estava sendo muito compreensivo em se sujeitar à tarefa geralmente executada por empregado do categoria inferior.

    Um pouco mais tarde, Nattie voltou ao quarto levando uma garrafa de champanhe dentro de um balde de gelo, e duas taças de cristal numa bandeja de prata.

  • Sua Senhoria chegou — anunciou ela.

  • Chegou?!

  • Ela foi tomar um banho e se trocar. Logo estará aqui.

    Lalitha ficou emocionada, não conseguia nem falar. Cada fibra de seu corpo voltava à vida. Aquele era na realidade o momento pelo qual ela esperara há muito.

  • Vou deixá-la agora, milady — declarou Nattie. — A senhora não precisa mais de mim?

  • Não, Nattie, e muito obrigada. Estou grata a você por ter passado o dia todo comigo. Deve ter sido cansativo.

  • Fiquei rezando para agradecer a Deus pelo retorno de Vossa Senhoria sã e salva.

    Nattie falava com voz embargada, e Lalitha acreditou ver lágrimas nos olhos da velha governanta.

    "Será que ela gosta tanto assim de mim?", Lalitha se perguntou com humildade, e sentiu-se muito agradecida por ter alguém que se importasse com sua sorte.

    Logo que Nattie saiu, Royal entrou no quarto e pulou para cima da cama. Estava tão agitado que Lalitha teve a impressão de que ele também aguardava por seu dono, e sabia que ele viria.

    Os dois esperaram por lorde Rothwyn um tempo que, para ambos, foi longo demais. Numa dada hora, Royal começou a abanar a cauda e imediatamente depois ouviu-se uma leve batida na porta de comunicação. Sem esperar pela resposta, lorde Rothwyn entrou; pareceu a Lalitha que o local acabava de ser iluminado por mais de uma centena de velas.

    Ele não se vestia como de hábito, mas usava um comprido robe de seda. Fechou a porta e acercou-se de Lalitha que estava no enorme leito de dossel entalhado, recostada em travesseiros de barra rendada, os cabelos caindo-lhe sobre os ombros. Tinha aspecto muito frágil, etéreo e, sob o fino tecido da camisola, ele podia distinguir a suave curva dos seios dela. Olhos enormes enchiam seu rosto delicado, e possuíam um brilho diferente naquela noite.

  • Você está bem? — perguntou ele.

  • Muito bem, mas você é que deve estar bem cansado — replicou Lalitha. — O ferimento não o incomoda? Não acha que se excedeu muito hoje?

  • Está realmente preocupada comigo, Lalitha?

  • É claro. Devia ter mais cuidado em seu primeiro dia de convalescença.

    Lorde Rothwyn sorriu e disse:

  • Acho que, em consideração às circunstâncias, nós dois merecemos uma taça de champanhe!

  • Está aí em cima — informou Lalitha, apontando para a garrafa e as taças.

    Lorde Rothwyn serviu o champanhe. Ofereceu uma taça a Lalitha e pegou a outra, dizendo:

  • Precisamos celebrar a ventura de estarmos juntos outra vez. Vamos beber à nossa felicidade?

  • Eu adoraria... Fazer... Isso — sussurrou Lalitha.

    Lorde Rothwyn ergueu a taça.

  • Que sejamos felizes para todo o sempre! — disse ele com voz compenetrada, e bebeu.

    Lalitha fez o mesmo e sentiu que uma onda de alegria tomava conta de si. Um pouco timidamente, sugeriu:

  • Você precisa sentar-se. Há muitas coisas que desejo lhe perguntar, mas não quero fatigá-lo.

    Lorde Rothwyn tornou a encher a taça antes de responder:

  • Não posso me considerar cansado. Não obstante, como temos muito a nos dizer, pretendo ficar o mais confortável possível. Vamos nos sentar-bem junto, como fizemos na cabana, na noite em que fomos assaltados?

    Lalitha arregalou os olhos. Sem esperar por sua permissão, lorde Rothwyn sentou-se na cama, ao lado dela, apoiando as costas nos travesseiros, e com as pernas esticadas por cima da linda colcha de cetim e renda. Lalitha excitou-se devido à proximidade do homem que amava. Lorde Rothwyn a abraçara no caminho de volta do navio, mas ela estava confusa e angustiada demais, para pensar em outra coisa que não fosse seu resgate.

    Naquele instante, contudo, em plena consciência, era difícil reprimir o impulso de esconder seu rosto no ombro dele, mais uma vez.

  • Por onde vamos começar? — indagou lorde Rothwyn.

  • Diga-me como conseguiu saber que eu estava em perigo, pediu Lalitha.

  • Acordei às duas horas da madrugada com a sensação de que você me chamava.

  • Então, quer dizer que me ouviu! — exclamou ela numa voz cheia de entusiasmo. — Tinha certeza de que escutaria o apelo de meu coração e me salvaria!

  • Logo que despertei, ouvi Royal ganindo — continuou lorde Rothwyn.

    Depois ele narrou a Lalitha como descobrira que Henry e Elsie haviam estado com a madrasta dela.

    A simples menção do nome da mulher que a fizera padecer tanto, Lalitha tremeu e observou:

  • Sabia que era ela! Sabia que jamais me perdoaria por você não ter ficado com Sophie em lugar de ir atrás de mim. Ela não vai descansar enquanto não me destruir!

  • Isso é coisa que ela nunca fará!

  • Mas tentou... E continuará tentando... — murmurou Lalitha, desanimada.

    E lorde Rothwyn foi adiante com sua narrativa.

  • Depois consegui que a guarda - costeira incriminasse não somente o comandante do navio como também o dono da embarcação. Este último, juntamente com dois outros sócios é, sem dúvida, o cabeça de uma grande organização que vem operando nesse tráfico há anos.

  • Você o apanhou, então! — gritou Lalitha. — Que bom!

  • Após fazer tudo isso e encaminhar as moças às respectivas famílias, fui fazer uma visita a Sra. Clements, em Hill Street.

  • A... Sra... Clements? — Gaguejou Lalitha.

  • Ela nunca se casou com seu pai, Lalitha — prosseguiu lorde Rothwyn. — Fiz uma investigação por algum tempo, baseando- me nas informações que você deixava escapar de vez em quando. Uni os fatos e formei uma idéia exata do que acontecera.

    —  Você adivinhou... Que ela tomara o lugar de mamãe, lançando mão de mentiras?

  • Certo. E descobri também o que ela fez para impingir Sophie como filha legítima de seu pai a fim de introduzi-la no mundo social londrino.

    Lalitha estremeceu de novo, e ele falou depressa:

  • Você não precisa mais ter medo. Ela está morta!

  • Morta?

  • Eu a ameacei com uma ordem de prisão — continuou lorde Rothwyn. — Fiz contra ela uma acusação de fraude, para a qual a penalidade é o banimento do país, e outra de rapto e exploração de menor para fins imorais, que requer pena de morte. Contudo, considerando-se que seu nome, Lalitha, seria envolvido inevitavelmente no processo, eu dei a Sra. Clements a chance de fugir antes que a polícia a prendesse. Um navio ia partir para Gales do Sul ao meio-dia de hoje, e eu informei-a de que a sentença iria ser posta em execução somente se ela regressasse ao país.

  • E ela... Concordou em sair? — Lalitha parecia incrédula.

  • Não teve outra escolha. Acompanhei-a até o cais. O navio lá estava pronto para levantar âncora. Os últimos passageiros, conduzidos num escaler, iam embarcar...

  • E ela seguia nesse escaler?

  • Sim. Fiquei observando, pois queria ter certeza de que entrava mesmo a bordo, e de que não usaria de trapaça no último instante. Então, quando o escaler encostou no navio e a escada de corda foi baixada, ela atirou-se no rio.

    Lalitha deu uma exclamação de horror.

  • A maré estava alta e a correnteza era grande. Percebi que ela não sabia nadar, tampouco os remadores do escaler — explicou lorde Rothwyn.

  • E ela... Afogou-se — sussurrou Lalitha.

  • Não houve possibilidade de salvá-la. Foi arrastada pelas águas e, antes que todos se dessem conta do que sucedia, ela sumiu na voracidade da correnteza.

    Lalitha teve dificuldade até de respirar. Lorde Rothwyn abraçou- a com muito carinho, dizendo:

  • Seu pesadelo acabou! Não haverá mais trevas obscurecendo sua vida. Você está livre, Lalitha! Livre de tudo que a atormentava e a fazia tão infeliz nestes últimos anos. Sei agora quem você é, sei que seu pai foi um homem respeitado por todos que o conheceram, e que sua mãe foi amada pelos que a rodeavam.

    Lalitha soluçou, e ele prosseguiu:

  • Ambos queriam sua felicidade, e é o que pretendo lhe proporcionar agora: uma felicidade para sempre.

  • E Sophie! Que houve com Sophie?

  • Eu pretendia de início, que ela partisse com a mãe. Depois, em consideração ao que significou um dia para mim, dei-lhe permissão para que se casasse com Thomas Whernside, conforme desejo dela.

  • Como... É possível... Que ela quisesse se casar com ele? É um homem horrível!

  • Mas ela quis. E Whernside, de acordo com o que ele mesmo me confessou com franqueza, não tem condições financeiras de continuar morando em Londres. Vai levar Sophie consigo para sua propriedade no norte do país, e talvez nunca mais volte para cá.

  • Porém você a amava! E ela é... Linda!

    Houve uma pausa que pareceu a Lalitha longa demais, antes de lorde Rothwyn responder:

  • Ontem à noite eu pedi sua opinião sobre o que era mais bonito, o quadro da lareira ou os desenhos que lhe dei. Lembra-se? . — Claro!

  • E você me disse que os croquis falavam ao seu coração muito mais que a tela de grande valor e beleza indiscutível.

  • É... Eu disse... Isso.

  • Comprei aqueles três desenhos porque cada um deles me falava de você.

  • De... Mim?

  • Há tanto a se considerar neles! Tanto, por baixo daquela superfície! The Running Youth, aquela jovem correndo, expressa a alegria de viver que existe em você agora que está bem de saúde. The landscape é uma paisagem que representa sua mente cativante, que fascina mesmo. — Ele fez uma pausa e continuou, bem devagar: — E o anjo de Leonardo da Vinci tem um aspecto espiritual, místico, do qual homem algum jamais se cansará. E é tal qual o seu.

  • Não... Entendo. — balbuciou Lalitha.

  • O que estou tentando lhe dizer é que você não é apenas a pessoa mais linda que já conheci, mas que sua beleza me encanta, me delicia, me inspira. Nunca me cansarei de olhar para você.

  • Isso não pode... Ser verdade. É mesmo possível que você esteja dizendo todas essas coisas para mim?

    Lorde Rothwyn fitou-a e disse com muito afeto:

  • E você não havia adivinhado até agora que eu a amava?

    Uma luz de satisfação iluminou o rosto de Lalitha. E lorde

    Rothwyn prosseguiu:

  • Quando vi como você tinha sido judiada, pensei que sentia apenas piedade. Ao mesmo tempo, fui tomado de um irresistível desejo de restaurá-la, de reconstruí-la, como faço com meus edifícios. — Ele abraçou-a com mais força. — Percebia, por instinto, que sob as cicatrizes e a ruína a que você fora reduzida, existia uma beleza e um tesouro sem preço! Você chamou por mim, Lalitha, e foi um apelo vindo do coração, de seu amor!

  • Como pode ter tanta certeza disso? Às vezes penso que estou sonhando!

    Ele sorriu ante o terror quase infantil da jovem, e respondeu:

  • Não está sonhando, não. Eu é que tenho tido medo de confessar meu amor, tesouro! Receei assustá-la mais do que já estava. Porém, eu te amo muito! E não arriscarei perdê-la pela terceira vez!

    Lalitha fitou-o bem dentro dos olhos e constatou que ele dizia a verdade.

  • O único jeito de garantir que não vou perdê-la, Lalitha, é conservá-la sempre junto de mim, dia e noite, e como minha mulher.

    Com muita suavidade, ele a fez levantar os olhos para encará-lo.

  • Eu te amo querida! — confessou com paixão. — E agora, diga-me, o que sente por mim?

  • Eu amo... Você! Sempre o amei! Acho que desde o dia de seu primeiro beijo, na igreja. Mas nunca imaginei, nunca sonhei que eu pudesse significar alguma coisa..., para você.

  • E eu nunca me esqueci do toque de seus lábios. Um toque suave, cheio de medo, diferente de qualquer outro que eu tenha experimentado antes. — Ele inclinou a cabeça na direção dela e pediu: — Posso ter uma prova agora de que esse loque é maravilhoso, como me lembro?

    Os lábios de Lalitha esperavam pelos dele, e quando se encontraram, ela sentiu todo o encanto e o êxtase de um amor que era tal como uma labareda se transformando em algo sublime, divino. Como aquilo com que sonhara muitas vezes, sem jamais acreditar que pudesse acontecer com ela.

    Os lábios de lorde Rothwyn foram suaves de início, mas depois, vendo que Lalitha correspondia à chama que queimava dentro dele, tornaram-se mais possessivos, mais ardentes. Ele levantou em seguida os olhos para fitá-la e viu que Lalitha estava transfigurada pelo amor!

  • Meu tesouro! Minha querida! Vou fazê-la muito feliz, vou protegê-la de tal modo que ninguém mais a fará sofrer no futuro.

  • Eu amo você — murmurou Lalitha. — Contudo, tenho medo de falhar.

    Lorde Rothwyn sorriu e disse:

    — Não tenha medo! Preciso de você como nunca precisei de mulher alguma! As mulheres todas de minha vida sempre exigiam uma coisa de mim e, apesar de eu lhes dar tudo o que pediam, sentia que faltava algo para eu ser feliz, sem conseguir definir exatamente o que era. Aquela noite na cabana dos lenhadores descobri do que se tratava.

  • E... Que foi? — perguntou Lalitha.

  • A proteção que a mulher proporciona ao homem quando o ama sem restrições, como acredito que seja seu amor por mim. — Sua voz tornou-se muito terna ao continuar: — Quando acordei e senti seus braços em volta de mim, e minha cabeça apoiada em seu peito, concluí que o que eu nunca tivera de uma mulher antes era esse sentido de ser protegido, de que ela desejava me salvar. Porém, não sei bem de que!

    Lalitha, então, explicou bem hesitante:

  • Eu queria salvar você de tudo que fosse... Desagradável... E mau. Eu também...

  • Continue — insistiu lorde Rothwyn.

  • Vi em você um filho — sussurrou ela. — Um filho que eu precisava defender contra a infelicidade... E a solidão.

  • Meu tesouro! Minha adorada! — exclamou ele. — É o que imaginei que você faria. E isso é o que sempre quis encontrar numa mulher, sem contudo poder traduzir em palavras!

    Eles se beijaram mais uma vez e Lalitha declarou:

  • Era o meu coração... Que chamava pelo seu!

  • Certo, querida, o apelo do amor que permanecerá conosco por toda vida.

    Lorde Rothwyn beijou-a com lábios ainda mais insistentes, mais apaixonados.

    Lalitha percebeu que ele lhe pedia algo e, embora não soubesse precisar do que se tratava, entregou-se por completo: sua alma, seu corpo, sua mente. E lorde Rothwyn também se entregou totalmente à mulher que amava. Eram duas pessoas numa só, completavam-se mutuamente. O apelo do coração estava sendo respondido com o amor.

 

                                                                                            Barbara Cartland  

 

                      

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