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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GELO NEGRO / Anne Stuart
GELO NEGRO / Anne Stuart

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

GELO NEGRO

 

A sua vida monótona em breve incluiria muito perigo!

A tradutora americana Chloe Underwood levava uma vida modesta em Paris, por isso daria tudo por um pouco de emoção e de paixão… até por um pouco de perigo.

Por isso pareceu-lhe um presente caído do céu que lhe oferecessem um emprego como intérprete numa conferência que ia ser realizada num castelo isolado. Contudo descobriu acidentalmente que aqueles homens não eram os empresários que fingiam ser, e sim traficantes de armas. De repente, sabia muito e alguém queria matá-la. Felizmente, Bastien Toussaint tirou-a dali e, quando percebeu, Chloe estava fugindo com o homem mais aterrador e sedutor que conhecera na sua vida. Não sabia quais eram os seus motivos para ajudá-la… ou se teria tempo para descobri-los.

 

 

As pessoas falavam sempre da Primavera em Paris, pensou Chloe Underwood enquanto caminhava pela rua vestida com o seu jaquetão, mas não havia nada como o Inverno na Cidade das Luzes. No princípio de Dezembro, as folhas já tinham caído, o ar era fresco e revigorante e já se tinham ido embora turistas suficientes para que a vida fosse suportável. Em Agosto, perguntava-se sempre por que demônios decidira ir viver a cinco mil quilômetros da sua família. Mas, então, chegava o Inverno e lembrava-se.

Teria sido mais fácil se tivesse podido deixar a cidade aos turistas que chegavam em Agosto, como os franceses faziam, mas ainda não encontrara um emprego que incluísse luxos como férias, seguro de saúde e um salário digno para viver. Tinha sorte por ter encontrado emprego. Tal como as coisas estavam a sua estadia na França não era completamente legal e a maior parte dos dias chegava à conclusão de que era uma sorte simplesmente estar ali, embora partilhasse um apartamento minúsculo e sem elevador com outra exilada que parecia ter muito pouco sentido de responsabilidade. Sylvia quase nem se lembrava que tinha de pagar metade da renda, nunca em toda a sua vida varrera um chão e considerava qualquer móvel ou superfície lisa um lugar ideal para deixar o seu vasto vestuário. Por outro lado, vestia o mesmo tamanho que Chloe, um trinta e oito, e não se importava de partilhar a sua roupa. Também estava empenhada em casar-se com um francês rico e, ao perseguir essa meta, passava quase todas as noites fora do apartamento, de maneira que Chloe tinha mais espaço para respirar.

Na verdade, fora Sylvia que encontrara o emprego como tradutora de livros infantis. Sylvia estava há dois anos a trabalhar na Frères Laurent e fora para a cama com todos os frères, três cavalheiros de meia-idade, o que lhe assegurara o lugar e um salário decente como tradutora de romances de espionagem e thrillers para a pequena editora. Os livros infantis eram menos lucrativos e Chloe recebia em conformidade com isso, porém, pelo menos, não tinha de pedir dinheiro à sua família nem tocar no fundo fiduciário que os seus avós lhe tinham deixado. De qualquer modo, os seus pais não a encorajavam a fazê-lo. Esse dinheiro estava destinado à sua educação e um emprego de pouca importância em Paris dificilmente podia considerar-se uma educação fantástica.

Se não estivesse maniatada pelas exigências do emprego, talvez tivesse podido encontrar algo um pouco mais estimulante. O seu francês era excelente, mas também falava italiano, espanhol e alemão com fluidez, um pouco de sueco e de russo e alguns retalhos de árabe e de japonês. Era apaixonada pelas palavras, quase tanto como amava cozinhar, mas parecia ter mais talento fora da cozinha. Pelo menos, fora o que lhe tinham dito quando a mandaram embora do famoso Cordon Bleu a meio do curso. Demasiada imaginação para uma principiante, tinham dito. E pouco respeito pela tradição.

Chloe nunca sentira muito respeito pelas tradições, incluindo a medicina, que na sua família era uma tradição. Deixara os cinco membros da família Underwood nas montanhas da Carolina do Norte. Os seus pais eram médicos generalistas, os seus dois irmãos mais velhos eram cirurgiões e a sua irmã era mais velha anestesista. E ainda não conseguiam acreditar que Chloe não tivera vontade de entrar na Faculdade de Medicina, ignorando o fato de não haver ninguém que ficasse mais incomodada com a visão do sangue do que a mais nova dos Underwood.

Não, só tocaria naquele dinheiro lindo quando desse o seu braço a torcer e se inscrevesse na Faculdade de Medicina. E, antes de isso acontecer, o inferno podia gelar.

Enquanto isso, Chloe conseguia fazer milagres com um pouco de massa e legumes frescos e as caminhadas que dava impediam que os hidratos de carbono a afetassem, ainda que parecessem ter começado a assentar no seu rabo. Com vinte e três anos não podia continuar a ter a compleição de uma adolescente e nunca teria o aspecto de uma francesa. Faltava-lhe o estilo que até Sylvia, a sua companheira de apartamento, que era inglesa, tinha em abundância. Podia vestir a roupa dela, mas nunca dominaria aquele porte ligeiramente arrogante e um pouco irônico que tanto desejava. Além disso, tinha o rabo a ficar gordo.

A Frères Laurent ficava no terceiro andar de um velho edifício perto de Montmartre. Chloe foi a primeira a chegar, como de costume. Fez uma cafeteira de café muito forte, como ela gostava. Com uma chávena entre as mãos geladas, ficou a olhar para a rua ocupada. Os irmãos desligavam o aquecimento de noite e, como era nova na empresa, não podia tocar no aquecedor, de modo que se habituara a guardar uma camisola no cubículo minúsculo que lhe calhara. Não lhe apetecia trabalhar: estava um dia lindo, com o céu de um azul luminoso sobre os edifícios velhos que a rodeavam e, não sabia por que, mas as aventuras de Flora não puxavam muito por ela. Não havia sexo e violência suficientes, pensou melancolicamente. Só lições morais em forma de sermões confusos pronunciados por um roedor mirrado vestido com um tutu cor-de-rosa. Também falava de presunção e dos valores próprios de um republicano americano. Desejava que, só por uma vez, Flora tirasse o tutu e se precipitasse sobre a doninha desavergonhada que gostava dela. Mas Flora nunca cairia tão baixo.

Chloe bebeu um gole de café. Forte como a fé, doce como o amor, preto como o pecado. Não seria uma parisiense verdadeira até começar a fumar, mas conseguia chegar tão longe, nem mesmo para aborrecer os seus pais. Além disso, quanto mais longe estivessem os seus pais, menos incomodativos eram.

Faltava uma hora para chegar alguém ao escritório e disse para si que ninguém descobriria, nem se importaria, se ela perdesse alguns minutos antes de voltar para a tediosa Flora. Não era de estranhar que se irritasse tanto com aquela personagem. O que precisava era de um pouco mais de sexo e violência na sua própria vida.

"Tem cuidado com o que desejas", murmurou uma voz na sua cabeça, mas Chloe sacudiu-a enquanto acabava de beber o café. O sexo brilhava pela sua ausência há dez meses e a sua última aventura fora tão medíocre que a deixara sem vontade de procurar outra. Não era que Claude fosse mal amante. Gabava-se das suas habilidades e esperava que aquela americana tão desajeitada se mostrasse convenientemente deslumbrada. E não fora assim.

Provavelmente, conseguia passar sem violência, que normalmente vinha acompanhada de sangue, coisa que costumava fazê-la vomitar. De qualquer forma, não vira muita violência ao longo da sua vida. A sua família mantivera-a a salva e ela tinha um respeito saudável pela sua integridade física. Não entrava de noite em bairros perigosos da cidade, fechava portas e janelas e olhava para um lado e para outro, rezando uma oração com diligência antes de se atrever a atravessar por entre o trânsito parisiense.

Não, podia esperar por outro Inverno aprazível no apartamento frio, a comer massa, a traduzir o Flora a Furona Corajosa e Bruce a Tangerina, embora continuasse sem perceber como é que uma tangerina podia ter vida própria. Talvez por saber que os cítricos eram tão aborrecidos como Flora.

Encontraria outro amante, mais cedo ou mais tarde. Talvez Sylvia encontrasse finalmente o que procurava e se mudasse. Talvez ela encontrasse um francês amável, simpático e fracote, com óculos de aros metálicos e apreciador da cozinha experimental.

Enquanto isso, a furona valorosa esperava por ela, tal como a tarefa terrível de encontrar o equivalente francês de "valorosa".

Ouviu Sylvia antes de ela entrar. O barulho dos seus sapatos luxuosos nos dois lances de escada e o fato de vir a praguejar com a sua boca perfeitamente pintada era inconfundível. A única pergunta era o que é que Sylvia fazia no escritório três horas antes da hora em que habitualmente costumava arrastar-se até lá?

A porta abriu-se com estrondo e Sylvia apareceu ofegante, sem um cabelo fora do seu lugar nem nenhuma gota de maquilagem borrada.

- Estás aqui! - gritou.

- Sim - confirmou Chloe. - Queres um café?

- Não temos tempo para café, bolas! Chloe, querida, tens de me ajudar. É uma questão de vida ou morte.

Chloe pestanejou. Por sorte, estava habituada aos exageros de Sylvia.

- O que se passa agora? Sylvia parou ofendida.

- Falo a sério, Chloe. Se não me ajudares a sair desta... não sei o que vou fazer.

Arrastara uma mala enorme com ela.

- Onde queres ir e o que queres que faça? - perguntou Chloe, resignada.

A mala enorme que serviria para uma viagem de duas semanas para a maioria das pessoas manteria Sylvia decentemente vestida durante três ou quatro dias. Três ou quatro dias com o apartamento só para ela e sem ninguém a desarrumar as coisas. Podia abrir as janelas e deixar que o ar corresse sem que ninguém se queixasse do frio. Estava disposta a ajudar.

- Não vou a lado nenhum. Tu é que vais. Chloe pestanejou novamente.

- E a mala?

- É para ti. A tua roupa é horrível e tu sabes. Pus tudo o que penso que te fica bem. Exceto o meu casaco de pele, mas não esperarás que fique sem ele... acrescentou, adotando momentaneamente uma atitude prática.

- Não espero que fiques sem nada. E não posso ir a lado nenhum. O que diriam os Laurent?

- Deixa isso comigo. Arranjarei uma desculpa - declarou Sylvia, enquanto olhava para ela de cima a baixo.

- Pelo menos, deves ir decentemente vestida, ainda que eu usasse o cachecol. Encaixará bastante bem.

Um pressentimento intenso apoderou-se de Chloe.

- Encaixar onde? Respira fundo e diz-me o que queres. Depois, verei se posso ajudar-te.

- Tens de fazê-lo - insistiu Sylvia, sinceramente. Já te disse que é...

- Uma questão de vida ou morte - acrescentou Chloe. - O que queres que faça?

A ansiedade de Sylvia dissipou-se em parte.

- Nada do outro mundo. Passar alguns dias numa propriedade linda no campo, a traduzir para um grupo de importadores, a ganhar imenso dinheiro e a deixar que um batalhão de criados te sirva. Comida maravilhosa e um ambiente fabuloso. O único problema é que terás de enfrentar empresários aborrecidos. Terás de te vestir para jantar, ganharás toneladas de dinheiro e poderás seduzir quem quiseres. Devias agradecer-me por te oferecer uma oportunidade de ouro.

Era típico de Sylvia dar a volta ao assunto para sua conveniência.

- E pode saber-se porque é que vais oferecer-me essa oportunidade de ouro?

- Porque prometi a Henry que passaria o fim-de-semana com ele no Raphael.

- Henry?

- Henry Blythe Merriman, um dos herdeiros da Merriman Extract. É rico, é bonito, é encantador, é bom na cama e adora-me.

- Quantos anos têm?

- Sessenta e sete respondeu Sylvia, com total descaramento.

- E é casado?

- Claro que não! Eu tenho os meus princípios.

- Desde que sejam ricos, solteiros e respirem - gozou Chloe. - E quando tenho de ir?

- Um carro vem cá buscar-te. A verdade é que acham que vêem buscar-me, mas telefonei-lhes, expliquei-lhes a situação e disse-lhes que ias ocupar o meu lugar. Só precisam de uma tradutora de francês para inglês e vice-versa. Para ti, é canja!

- Mas Sylvia...

- Por favor, Chloe! Suplico-te! Se não arranjar solução, não voltarão a dar-me trabalho e ainda não posso contar com Henry. Preciso destes trabalhos de fim-de-semana para aumentar os meus ganhos. Sabes que os frères me pagam mal.

- Pagam-te o dobro do que me pagam a mim.

- Então, precisas mais do dinheiro do que eu - afirmou Sylvia, sem se alterar. - Vá lá. Chloe, decide. Sê louca e selvagem para variar. Tu precisas passar alguns dias no campo.

- Louca e selvagem com um grupo de empresários? Não sei por que, mas não acho possível.

- Pensa na comida.

- Ordinária! - exclamou Chloe, alegremente.

- Certamente também haverá ginásio. Transformaram muitas casas antigas em centros de congressos. Não tens de te preocupar com o teu rabo.

- Duas vezes ordinária - acusou Chloe e arrependeu-se de se ter queixado das suas curvas à frente dela.

- Vá lá, Chloe - insistiu Sylvia, num tom persuasivo. Queres ir e sabes disso. Vais divertir-te muito. Não será tão aborrecido como tu pensas e talvez possamos celebrar o meu noivado quando voltares.

Chloe duvidava.

- Quando tenho de ir?

Sylvia deixou escapar um pequeno gemido de júbilo. E não porque pensasse seriamente que não ia levar a sua avante.

- Isso é o melhor. A limusine já deve estar lá em baixo. Tens de falar com o senhor Hakim. Ele dir-te-á o que fazer.

- Hakim? O árabe não é a minha melhor língua.

- Já te disse que só tens de falar inglês e francês. Nesses grupos de importadores há pessoas de nacionalidades diferentes, mas todos falam inglês ou francês. É canja, Chloe. Em mais de um sentido.

- Três vezes ordinária - acusou Chloe. - Tenho tempo para...?

- Não. São oito e trinta e três e a limusine chegava às oito e meia. Essas pessoas costumam ser muito pontuais. Põe um pouco de maquiagem e desceremos.

- Já estou maquiada.

Sylvia deixou escapar um suspiro exasperado.

- Não é suficiente. Vem comigo. Vou arranjar-te agarrou na mão dela e começou a puxá-la para a casa de banho.

- Não preciso de me arranjar! - protestou Chloe, afastando-se de um puxão.

- Pagam setecentos euros por dia e a única coisa que tens de fazer é falar.

Chloe voltou a dar-lhe a mão.

- Maquila-me - pediu, resignada, e seguiu-a para a casa de banho ao fundo do corredor.

Bastien Toussaint, também conhecido como Sebastian Toussaint, Jean-Marc Marceau, Jeffrey Pillbeam, Carlos Santería, Vladimir, o Carniceiro, Wilhem, o Menor, e meia dúzia longa de outros nomes e identidades, acendeu um cigarro e inalou o fumo com prazer. Nos seus três últimos trabalhos não fumava e adaptara-se com a sua moderação habitual. Não costumava permitir que as suas fraquezas lhe causassem problemas: era relativamente impermeável aos vícios, à dor, à tortura e à ternura. Podia, de vez em quando, mostrar-se compassivo se a situação o requeresse. Se não, administrava justiça sem pestanejar. Fazia o que tinha de fazer.

Mas, quer precisasse do cigarro ou não, desfrutava-o, do mesmo modo que desfrutaria do bom vinho ao jantar e dos uísques de malte que, supostamente, deviam fazê-lo baixar a guarda e soltar-lhe a língua. E assim seria: verteria informação suficiente para satisfazer os outros e adiantar os seus planos. Podia fazer o mesmo com a vodka, mas preferia o uísque escocês. Saboreá-lo-ia, tal como o tabaco, mas passaria sem ele quando tivesse concluído o seu trabalho.

Aquela missão já durava mais do que a maioria.

Passara mais de dois anos a preparar aquela identidade e, quando há onze meses entrara finalmente no papel, estava mais do que disposto. Era um homem paciente e que era difícil preparar tudo. Mas a recompensa estava perto, quase ao alcance da mão, e essa certeza produzia-lhe uma satisfação fria, apesar de saber que sentiria saudades de Bastien Toussaint. Habituara-se a ele: ao seu encanto leve, à sua crueldade engenhosa e ao seu gosto pelas mulheres. Há algum tempo que não tinha tantas experiências sexuais como ao encarnar o papel de Bastien. O sexo, outro luxo de que podia prescindir, outro prazer que podia saborear se cruzasse no seu caminho. Supostamente, tinha uma esposa em Marselha, mas isso pouco importava. A maioria dos homens que ia conhecer tinha esposa e filhos, famílias agradáveis no seu país de origem. Filhos e esposas que viviam felizmente com os lucros das suas ocupações.

Importação de frutas do Médio Oriente, de cerveja australiana de armas a quem pagasse melhor.

Pelo menos, daquela vez não eram drogas. Nunca se sentia bem com o tráfico de heroína. Uma demonstração estúpida de sentimentalismo pela sua parte: as pessoas decidiam consumir drogas, mas não decidiam que lhes dessem um tiro com as armas que ele traficava. Devia ser uma regressão à sua vida antiga, tão longínqua que já mal a recordava.

Era um dia do Inverno áspero e frio. Havia no ar um cheiro distante a maçãs e ouvia-se o som aprazível do ancinho com que o jardineiro apanhava as folhas à frente da casa extensa. A maioria dos empregados tinha armas sob a roupa folgada. Semiautomáticas. Uzis talvez. Possivelmente, fora ele que as proporcionara.

Seria irônico se o matassem com uma delas.

Atirou o cigarro para o chão e pisou-o. Alguém apanharia a beata, com a mesma calma com que o matariam se recebessem a ordem. E o mais estranho de tudo era que não se importava.

A porta abriu-se atrás dele e Gilles Hakim saiu.

- Bastien, vamos beber um café na biblioteca. Porque não te juntas a nós? Só estamos à espera que chegue a intérprete.

Bastien virou as costas ao belo dia de Dezembro e seguiu Hakim para o interior da casa.

 

Chloe teve tempo de sobra para pensar em como fora imprudente. O motorista uniformizado mantinha o vidro que os separava fechado, era demasiado cedo para acalmar os nervos com uma bebida e Sylvia fizera-a entrar com tantas pressas que se esquecera de trazer um livro. A única coisa que tinha era os seus pensamentos para lhe fazerem companhia naquele trajeto aparentemente interminável.

Levantara a mão num gesto automático para prender uma madeixa do cabelo longo e castanho atrás da orelha quando recordou que, em apenas três minutos, Sylvia obrara um verdadeiro milagre, usando um pouco de maquiagem e uma escova. Talvez não dispusesse de um livro, mas tinha a maquiagem de Sylvia na mala Hermes e queria dar mais uma olhadela para ver a desconhecida que olhava para ela através dos mesmos olhos castanhos e serenos que sempre tivera, ainda que estivessem delineados e pintados e parecessem lindos na sua cara pálida. O cabelo comprido e liso já não pendia ao redor da sua cara. Sylvia desembaraçara-o e penteara-o de modo a que, em menos de um minuto, deixasse de ser um véu murcho para se transformar num cabelo alvoroçado. A sua boca descolorida era agora carnuda, vermelha e brilhante e o cachecol emprestado que enfeitava os seus ombros estava atado com todo o cuidado.

A pergunta era: durante quanto tempo seria capaz de manter aquela farsa? Sylvia conseguia arranjar-se assim em três minutos. Demorara menos de cinco a transformar Chloe num pavão. Chloe tentara numerosas vezes obter esse mesmo resultado e fracassara sempre.

- Menos é mais - dissera Sylvia, num tom instrutivo, mas mais nunca era suficiente.

De qualquer forma, estava perturbada sem razão. Queriam uma intérprete, não uma modelo de passarela e se havia algo que Chloe sabia fazer bem, era isso. Podia fazer o seu trabalho e passar o resto do tempo a fingir que estava habituada a viver num château em vez de num apartamento minúsculo que cheirava sempre a couve. E comeria tudo o que lhe apetecesse.

Passaria três ou quatro noites num château e, depois, voltaria e Sylvia dever-lhe-ia um grande favor. Talvez aquilo não fosse o sexo e a violência que ansiava, mas pelo menos seria uma mudança. E quem sabia? Talvez um daqueles empresários aborrecidos tivesse um ajudante bonito que gostasse de raparigas americanas. Tudo era possível.

No Château Mirabel havia mais medidas de segurança do que no Fort Knox, pensou quando, meia hora depois, iniciaram a sua viagem através de uma série de portões, guaritas de vigilância, guardas armados e cães com trelas. Quanto mais entravam na propriedade, mais nervosa ficava. Entrar já era difícil. Sair parecia impossível, a menos que estivessem dispostos a deixá-la sair.

E porque não haviam de estar dispostos? Estava a comportar-se como uma parva, mas quando a limusine parou finalmente à frente da escadinha larga da casa, conseguira dominar tanto a sua curiosidade como a sua imaginação e saiu da parte de trás do carro, tentando imitar a elegância lânguida de Sylvia.

O homem que a esperava era alto e velho e vestia melhor do que o francês normal, o que significava que estava extremamente bem vestido. Saltava à vista que procedia do Médio Oriente e Chloe esboçou o seu sorriso mais deslumbrante.

- Monsieur Hakim?

Ele assentiu ao mesmo tempo em que lhe apertava a mão.

- E você é a menina Underwood, a substituta da menina Whickham. Acabei de descobrir que vinha. Se soubesse antes, podia ter-lhe poupado uma viagem.

- Poupar-me uma viagem? Não precisa de mim? Duas horas ou mais de viagem de regresso à cidade não era o que mais lhe apetecia fazer. E tinha ainda menos vontade de se despedir do dinheiro que Sylvia lhe prometera.

- Somos menos do que esperávamos e acho que conseguiríamos arranjar-nos bastante bem para nos entendermos uns aos outros sem ajuda - explicou, num tom de voz suave e bem modulada. Estavam a falar em inglês e Chloe apressou-se a mudar para o francês.

- Se o desejar, monsieur... embora tenha a certeza de que poderia ser útil. Não tenho nada previsto para os próximos dias e adoraria ficar.

- Se não tem nada previsto, poderá regressar a Paris e desfrutar de umas férias agradáveis - sugeriu ele, na mesma língua.

- Receio que o meu apartamento não seja o melhor lugar para passar umas férias, monsieur Hakim - não sabia por que tentava persuadi-lo a deixá-la ficar. Ao princípio, não quisera ir, só fora convencida pelas súplicas de Sylvia e pela perspectiva de ganhar setecentos euros por dia. Mas, agora que estava lá, não queria ir-se embora. Mesmo que fosse o mais prudente.

O senhor Hakim hesitou. Era evidente que não estava habituado a lidar com mulheres respondonas. Depois, assentiu.

- Suponho que poderá ser de utilidade - concordou.

- Seria uma pena que tivesse feito uma viagem tão longa para nada.

- Foi uma viagem muito longa, sim - confirmou Chloe. - Acho que o condutor se perdeu. Passamos várias vezes pelo mesmo sítio. Da próxima vez devia levar um mapa.

O sorriso de Hakim era leve.

- Ocupar-me-ei disso, mademoiselle Underwood. Enquanto isso, faremos com que os empregados se encarreguem da sua mala enquanto vem conhecer os convidados com quem vai trabalhar. Não acho que seja uma tarefa muito penosa e quando não tivermos reuniões disporá de um lindo quarto. A presença de uma jovem tão bonita só pode fazer com que o nosso trabalho seja mais fácil, claro está.

Por alguma razão, a habitual cortesia francesa não encaixava com Hakim e, de repente, Chloe teve vontade de lavar as mãos. Esboçou o sorriso maternal que reservava para os irmãos Laurent mais luxuriosos e murmurou:

- É muito amável - enquanto o seguia pela escadinha de mármore.

Muitos dos velhos châteaus tinham sido transformados em hotéis de luxo e em centros de congressos. Os mais velhos, pelo contrário, tinham sido transformados em hospedarias. Aquele era mais elegante do que qualquer outro que Chloe tivesse visto e, quando Hakim a fez entrar numa sala extensa, estava cada vez mais inquieta.

Pelo menos, não era a única mulher. Havia oito pessoas reunidas na sala, a beber café. Percorreu-as com os olhos rapidamente. As duas mulheres não tinham nada em comum, exceto a sua boa presença: madame Lambert era alta, de certa idade, vestida com um fato que, graças a Sylvia, Chloe reconheceu como sendo de Lagerfeld. A outra era um pouco mais jovem, de pouco mais de trinta anos, demasiado bela e demasiado vivaz. As apresentações foram às mil maravilhas: estava o senhor Otomi, um japonês idoso e de aspecto digno que, por sorte, falava um inglês excelente e o seu ajudante, Tanaka-san, um tipo com olhos de aço; o signore Ricetti, um homem vaidoso de meia-idade cujo ajudante atraente era sem dúvida também o seu amante; e o barão von Rutter. Nenhum, tal como era de esperar, de particular interesse, exceto...

Exceto ele. Chloe apressou-se a baixar o olhar, assustada com a sua reação inesperada. Não gostava dos homens com fato, nem que o fato fosse Armani. Não gostava de empresários. A maioria deles carecia por completo de sentido de humor e só pensava em conseguir dinheiro. Havia muitas coisas em França que Chloe adorava, mas a obsessão pelas finanças não era uma delas. Era uma pena que aquele tipo fosse um deles, pensou rapidamente. Era injusto que se sentisse imediatamente atraída por um homem impossível.

A madame Lambert, o signore Ricetti, o barão e a baronesa von Rutter, Otomi e Toussaint

Bastien Toussaint. Pelo menos, pareceu mostrar um total desinteresse por ela quando os apresentaram e, depois de inclinar a cabeça, tirou-a claramente dos seus pensamentos. Não havia nenhum motivo em particular para ela reagir assim: Toussaint não era o homem mais bonito que alguma vez vira. Era um pouco mais alto do que a maioria, magro e musculado, tinha a cara estreita e dura e o nariz forte. Os seus olhos eram escuros, quase opacos, e Chloe duvidava de que tivesse reparado nela. Tinha o cabelo comprido, preto e espesso, uma anomalia, talvez até um indício inesperado de vaidade. Não gostava de homens vaidosos, pois não?

Sim, gostava, se o homem em concreto fosse Bastien Toussaint. Desviou o olhar enquanto os seus ouvidos sintonizavam uma cadeia de italiano procedente do signore Ricetti.

- O que é que ela faz aqui? - perguntava furioso. Supostamente, ia ser aquela inglesa imbecil. Como sabemos que podemos confiar nesta? Talvez não seja tão discreta como a outra. Livre-se dela, Hakim.

- Signore Ricetti, é pouco amável falar em italiano à frente de uma pessoa que não entende o idioma - declarou Hakim em inglês, num tom de recriminação. Olhou para Chloe. - Porque não fala italiano, pois não, mademoiselle Underwood? - Chloe não soube porque mentiu. Hakim estava a deixá-la nervosa e a hostilidade evidente de Ricetti não melhorava as coisas.

- Só francês e inglês - respondeu, alegremente. Ricetti não se acalmou.

- Continuo a pensar que é demasiado perigoso e tenho a certeza de que os outros me darão a razão. Madame Lambert, monsieur Toussaint, não acham que deveríamos despedir esta jovem? - continuava a falar em italiano e Chloe mantinha um semblante inexpressivo.

- Não seja idiota, Ricetti! - coisa estranha, madame Lambert falava italiano com um sotaque britânico. Tal como Sylvia, conseguira assimilar a elegância indescritível das mulheres francesas, algo que Chloe não conseguira fazer.

- Eu acho que devia ficar - replicou Bastien Toussaint, num tom de voz indolente. - É demasiado bonita para ser despedida. Que mal pode fazer? Certamente, não tem cérebro. É incapaz de ler nas entrelinhas - o seu italiano era perfeito, só levemente tingido pelo sotaque francês e por algo que Chloe não conseguia definir. O seu tom de voz era profundo, lento e sensual. Aquilo ia de mal a pior.

- Continuo a dizer que é um aborrecimento - insistiu Ricetti, pousando a sua chávena de café. Chloe viu que lhe tremiam um pouco as mãos. Demasiado café, talvez? Ou haveria algo mais?

- Bom, não é preciso dizê-lo outra vez - reagiu o barão. Era gordo, de cabelo branco, com aspecto de avô e os pressentimentos estranhos de Chloe diminuíram. - Bem-vinda ao Château Mirabel, mademoiselle Underwood - disse em francês. - Alegra-nos muito que tenha podido vir à última da hora.

Chloe demorou uma milésima de segundo a recordar que devia entender a última coisa que o barão dissera.

Merci, monsieur respondeu, enquanto tentava concentrar toda a sua atenção no cavalheiro amável e tentava ignorar o homem que permanecia de pé mais à frente do seu ombro direito. - Farei tudo o que estivera ao meu alcance.

- Fá-lo-á muito bem - declarou Hakim. Ricetti corou e ficou em silêncio. - Por esta tarde acabamos e suponho que quererá instalar-se. O cocktail é servido às sete, o jantar é às nove. Espero que se junte a nós. Tentamos não falar de negócios depois das horas de trabalho, mas todos temos descuidos às vezes e será de grande ajuda se estiver disponível.

- Disponível? - perguntou Bastien, daquela vez em alemão. - Talvez eu precise de alguma distração.

- Tira o cérebro das calças, Bastien! - repreendeu-o a madame Lambert. - Não queremos que os teus devaneios compliquem as coisas. Os homens têm o costume desafortunado de confessar todo o tipo de coisas quando estão entre as pernas de uma mulher.

Chloe pestanejou, tentando não mostrar reação alguma quando Bastien se pôs na sua linha de visão. O seu sorriso era lento, secreto e estranhamente sexy.

- A minha mulher diz que faço amor em perfeito silêncio - afirmou.

- Será melhor não o verificarmos - declarou Hakim. - Assim que acabarmos aqui, oderás continuá-la para Paris e fazer amor com ela. Enquanto isso, temos coisas para fazer - voltou para o inglês. - Lamento toda esta conversa, mademoiselle. Como terá adivinhado, só metade de nós entende o mesmo idioma e, às vezes, é muito confuso. De agora em diante só falaremos em inglês e francês. Entendido?

Bastien olhava para ela com os olhos semicerrados.

- Claro como a água - respondeu, em inglês. Sempre posso esperar.

- Esperar, monsieurl - perguntou ela, com ar inocente.

Um erro. Bastien fixou nela toda a força do seu olhar e o efeito foi surpreendente. Os seus olhos eram muito pretos e Chloe perguntou-se se alguma vez se refletia algo na sua superfície opaca. Esperava não estar em situação para descobri-lo. Esperava que não lhe faltasse de todo o bom-senso. Aquele homem era, sem dúvida, muito bonito. E também estava, sem dúvida, fora do seu alcance.

- Esperar por um jantar tardio, mademoiselle - respondeu ele, com suavidade. Antes de ela perceber o que pretendia, puxou a mão dela e levou-a aos lábios. Não era a primeira vez que beijavam a mão de Chloe, coisa que não era inaudita na Europa moderna. Mas tinham sido sempre homens mais velhos e corteses e não houvera intenção alguma de sedução. A boca que Bastien Toussaint pousou sobre a sua mão não era nem cortês nem insignificante, mas deixou cair a sua mão antes de Chloe poder afastá-la.

- Tenho a certeza de que tem fome, mademoiselle replicou Hakim. - Marie acompanhá-la-á ao seu quarto e encarregar-se-á de que lhe levem uma bandeja. Se quiser percorrer a propriedade, só tem de pedi-lo e um dos jardineiros levá-la-á a dar uma volta. Agora está um pouco de frio para nadar, ainda que a piscina esteja climatizada e os americanos sejam uma raça muito dura.

- Acho que não trouxe fato-de-banho - replicou ela e perguntou-se o que raios é que Sylvia teria posto na mala.

- Sempre pode tomar banho sem ele, mademoiselle Chloe - sugeriu Bastien, num tom sedoso.

Aquele devia ser o seu primeiro indício de que Toussaint estava interessado nela, embora não conseguisse compreender por que, visto que mal se alterara quando os tinham apresentado. Talvez tivesse decidido que, entre as mulheres presentes, era a melhor opção.

Mas Chloe não ia permitir que a perturbasse.

- Está demasiado frio para isso - respondeu, com desenvoltura. - Acho que, se quiser fazer um pouco de exercício, irei dar um passeio.

- Deve ter cuidado, mademoiselle Chloe - indicou Ricetti, num francês com um sotaque estrangeiro forte.

- Estamos em temporada de caça e nunca se sabe onde vai aparecer uma bala perdida. Já para não falar dos cães de guarda que rondam soltos por aí à noite e que não têm piedade. Se quiser sair para dar um passeio, certifique-se de que vai acompanhada. Não quererá tropeçar acidentalmente em algum... perigo.

Seria um aviso, uma ameaça ou um pouco de ambas as coisas? E o que raios estava a acontecer ali? Em que é que Sylvia se metera?

Sexo e violência, recordou-se. O simples fato de olhar para Bastien enchia a sua cota de sexo e a violência não era assim tão importante. Mesmo assim, o fim-de-semana seria pelo menos entretido e seria uma estupidez pensar que corria perigo. Afinal de contas, estava na França moderna, rodeada por empresários formais e comuns. Lera demasiados romances daqueles que Sylvia traduzia.

- Terei muito cuidado para não me meter onde não sou chamada - respondeu.

Claro que sim replicou Hakim, num tom de voz distante.

Tinha um ar peculiar, levemente sinistro, embora talvez fosse culpa da sua imaginação fastidiosa, que às vezes exagerava. Era ao mesmo tempo autoritário e um pouco servil e Chloe não conseguia entender qual era a sua posição entre aqueles sócios de negócios. Não era de estranhar que tivesse a sensação de que se passava algo estranho, com aquela gente que resmungava comentários crípticos em idiomas que ela não devia entender, mas era apenas um grupo de pessoas fechadas no campo sem nenhum tipo de entretenimento.

- Vê-la-emos às sete.

De repente, apareceu uma mulher de semblante sério, vestida com um uniforme preto e engomado. Parecia-se mais com a senhora Danvers, a governanta de Rebeca, do que com Mary Poppins.

- Se fizer o favor de me acompanhar, mademoiselle

- disse num francês que era claramente uma língua estrangeira para ela, embora Chloe não conseguisse adivinhar qual era o seu idioma materno.

Sabia que Bastien estava a observá-la e teve de reunir toda a sua força de vontade para não olhar para ele. Supostamente, ignorava que monsieur Toussaint era um mulherengo disposto a ir para a cama com a primeira recém-chegada que entrasse na casa. Além disso, era casado e aquele era um critério que partilhava com a sua companheira de apartamento desavergonhada. Talvez, na sua busca de um marido rico, Sylvia só fosse para a cama com solteiros, mas Chloe procurava outra coisa. Ainda que não soubesse o quê. Só sabia que Bastien Toussaint não podia proporcionar-lho.

- As sete - replicou e perguntou-se em que estado estariam se passassem duas horas a beber antes do jantar Mas isso não era problema dela. Nada do que acontecesse ali era problema dela, nem sequer as insinuações desinteressadas de Bastien. Toussaint não a desejava realmente. Ela não era o seu tipo. Ele gostava das modelos desengonçadas e de pernas compridas, as mulheres que não se interessavam por nada. Chloe passara anos a polir a sua atitude desinteressada, mas distava muito de ser um produto acabado.

Ia perder-se num labirinto de quartos, pensou enquanto atravessava o hall atrás da figura rígida de Marie. O seu quarto ficava ao fundo de um corredor muito comprido e, assim que entrou nele, os seus receios volatilizaram-se. Era um quarto digno de um museu: uma cama bonita com cortinado de seda verde, chão de mármore, um sofá opulento e a maior casa de banho que vira desde que deixara os Estados Unidos. Não via nenhuma televisão, o que não devia surpreendê-la, mas, sem dúvida, encontraria algo para ler num lugar como aquele. Havia vários jornais muito conhecidos na mesa do hall e sempre podia surripiar um e fazer as palavras cruzadas. As palavras cruzadas eram problemas lingüísticos que ela adorava e poderia entreter-se com eles durante alguns dias. Só tinha de se lembrar de não escolher os jornais italianos nem alemães.

Naquele momento, só queria vestir algo confortável e desfrutar de uma longa sesta.

- Onde está a minha mala? - perguntou.

- Já desfizeram a sua mala e enviaram-na para o armazém - declarou Marie. - Suponho que monsieur Hakim lhe disse, mas recordo-lhe que se arranjam para o jantar. Acho que o vestido prateado de renda seria o apropriado.

Se Sylvia se afastara do seu vestido prateado de renda, aquele trabalho tinha de ser muito importante. Ela nunca perdia aquele vestido de vista, a não ser em caso de emergência.

Chloe achava que ficava demasiado justo no rabo e nos seios, mas não ia provocar o destino ao tentar descobrir que outra coisa seria adequada para semelhante ocasião. Marie saberia e se tivera a amabilidade de lho dizer, Chloe aproveitaria a informação.

- Obrigada, Marie.

Por um momento, sentiu uma pontada de pânico ao perguntar-se se devia dar-lhe uma gorjeta. Antes de poder hesitar, Marie dirigiu-se para a porta. Saltava à vista que não esperava nada daquela americana trôpega. No último instante, virou-se.

- A que horas quer que a acorde? Às cinco? Às cinco e meia? Quererá ter tempo para se arranjar.

Devia pensar que aquela era uma tarefa muito árdua.

- Às seis e meia é suficiente - respondeu Chloe, alegremente.

Marie olhou para ela com a mistura perfeita de desdém e de preocupação.

- Se precisar de ajuda, só tem de pedir - declarou, pouco depois. - Tenho alguma experiência com cabelos como o seu - fazia com que parecesse que era palha incrustada.

- Muito obrigada, Marie. Tenho a certeza de que não terei nenhum problema.

Marie limitou-se a arquear as sobrancelhas e os receios de Chloe voltaram a aparecer.

 

Alguém cometera um erro muito grave ao mandar aquela rapariga para a boca do lobo, pensou Bastien. Distava muito de ser a agente experiente que uma situação tão difícil requeria. Ele perceber em questão de segundos de que entendia todos os idiomas que se falaram na sala e talvez até mais. Ela não fingira muito bem. Se ele só precisara de alguns instantes, não devia ter sido o único a perceber.

A pergunta era: quem a enviara e por quê? A possibilidade mais perigosa era que tivesse aparecido com o propósito de descobrir a sua identidade. Que ele soubesse, ninguém suspeitava dele, mas nunca devia assumir nada. O papel que estava a representar era o de um mulherengo empedernido. Enviar uma rapariga quase núbil era o isco perfeito, como deixar um veado no meio da selva para atrair uma pantera faminta. Se fosse atrás dela, reafirmaria o seu papel.

Mas era perigosamente inepta. A sua patina de sofisticação era muito fina. Bastara uma olhadela para os seus olhos castanhos e conseguira ler tudo. Nervosismo, timidez e um brilho de atração sexual não desejada. Metera-se numa boa confusão.

Claro que talvez fosse muito melhor do que aparentava.

Aquela atitude indecisa e um pouco tímida podia fazer parte da farsa, para que ele não suspeitasse.

Estaria ali por ele ou por outra pessoa? Será que Comitê estava a fiscalizar a sua atuação? Havia sempre essa possibilidade. Não se incomodara em esconder o fato de estar farto e de não se importar com nada. A vida e a morte pareciam distinções insignificantes para ele, mas quando se começava a trabalhar para o Comitê, não havia forma de fugir. Acabaria morto e, provavelmente, mais cedo do que tarde. A mademoiselle Underwood, com os seus olhos tímidos e a sua boca suave, podia muito bem ser a sua assassina.

E só restava uma pergunta. Será que ele o permitiria?

Certamente, não. Estava farto, queimado, vazio por dentro, mas não tencionava fazer um escândalo. Ainda não;

À primeira vista, a sua missão era simples. Auguste Remarque morrera num carro bomba no mês anterior por obra da organização antiterrorista conhecida por alguns como "o Comitê". Mas, na verdade, o Comitê não tivera nada a ver. Auguste Remarque era um homem de negócios cuja única motivação era o lucro e os poderes factuais do Comitê podiam compreendê-lo e adaptar-se a isso. A única coisa que tinham de fazer era vigiar Remarque e os traficantes de armas, manter-se ao corrente de quem mandava o quê e para onde e tomar uma série de decisões pragmáticas a respeito do momento ideal para intervir. Um carregamento de metralhadoras potentes destinado a certos países subdesenvolvidos de África podia significar a morte de civis, mas era preciso pensar no bem maior e esses países pobres tinham escasso interesse para as superpotências. Ou pelo menos fora o que o seu chefe, o venerável Harry Thomason, lhe dissera.

Bastien sabia por que, naturalmente. Aqueles países não tinham petróleo e eram de escassa relevância para o Comitê e para os seus poderosos patrocinadores privados.

O trabalho de Bastien consistia em vigiar os traficantes de armas, fazendo-se passar por um deles. Mas o assassinato de Remarque mudara as coisas. Hakim, o braço direito de Remarque, convocara aquela reunião para redistribuir os territórios e escolher um novo chefe. Aquela gente não tinha jeito para o trabalho de equipa, mas o líder do cartel de armas ocupava-se também dos pormenores tediosos do negócio e deixava que os outros se concentrassem na aquisição e no transporte das armas de fogo mais perigosas.

Hakim ocupara-se dos pormenores, mas tornara-se demasiado ambicioso. Queria ocupar o lugar de Remarque e cuidar dos seus territórios lucrativos. E o problema era esse. Ao longo de décadas de dedicação ao contrabando, ao assassinato e à extorsão, o falecido Auguste Remarque chegara a controlar a maior parte dos carregamentos de armas destinados ao mercado inesgotável do Médio Oriente.

Em sectores como o Chile, Kosovo, Irlanda do Norte e as seitas do Japão, o desejo de armas de fogo podia ser muito ou pouco, mas no Médio Oriente Meio nunca havia armas suficientes. E desde que os Estados Unidos se tinham metido na briga, tentando várias vezes impor o seu domínio à força, as coisas só tinham piorado.

Os membros do cartel de armas queriam um bom pedaço daqueles lucros tão lucrativos. E Hakim era dispensável.

Bastien não tinha pressa por ver como as coisas saíam: podia passar um dia ou dois a observar, à espera. Os membros do cartel tinham sabido, um por um, que Hakim estava por trás do assassinato de Remarque e não tinham gostado nada. Alguém acabaria com ele nos próximos dias e, se falhassem, teria de ser ele a intervir.

Fora fácil espalhar sutilmente a notícia da traição de Hakim. As diversas reações dos principais jogadores eram extremamente interessantes porque, na verdade, Hakim não estava por trás da morte de Remarque, ainda que estivesse plenamente disposto a tirar partido dela.

Algum outro membro do cartel clandestino estava por trás do golpe. Alguém que estava ali ou que ainda não chegara. Essa pessoa devia estar contente porque suspeitaram de outro, mas por enquanto o Comitê não conseguira discernir quem era o responsável. A sabedoria convencional apontava para o barão von Rutter. Sob a sua aparência jovial havia um homem brusco e impaciente que abrira o seu caminho mais à base de táctica de valentão do que recorrendo a subtilezas. Isso já para não falar da sua sócia, a sua jovem esposa, Monique.

Um dos colegas de Bastien apostara no senhor Otomi, o idoso e reservado chefe yakuza. Ricetti, que tinha contactos com a máfia, também era um bom candidato. E a madame Lambert nunca podia ser descartada por completo.

Todos eles eram capazes e estavam dispostos a fazer algo do gênero e se algum ordenara o golpe, o Comitê não devia alarmar-se.

Mas Bastien apostava no membro do grupo que ainda não chegara. Christos Christopoulos era, aparentemente, um jogador pouco importante. A ligação grega sempre tivera um perfil baixo, mas Bastien era pago para desconfiar. E nos onze meses que vivia como Bastien Toussaint, chegara à conclusão de que Quistos era o mais perigoso de todos. Provavelmente, fora ele que decidira que Remarque devia morrer num carro armadilhado, juntamente com a sua mulher, a sua filha e três netos pequenos.

Thomason aceitara a sua palavra e organizara a missão. Hakim tinha de morrer: fosse quem fosse o responsável, o assassinato de Remarque não teria sido possível sem a sua colaboração.

E se Christos decidisse cuidar do cartel, ele também devia morrer. Os outros eram manipuláveis. O grego, não.

Talvez Christos não fosse escolhido e Bastien pudesse desvanecer-se novamente na escuridão de outro nome, outra nacionalidade e outra missão em algum outro continente. E não porque tivesse importância: todos pareciam ser o mesmo, os bons e os maus.

Uma coisa era certa: não poderia mexer um dedo se aquela recém-chegada inocente lhe enfiasse uma faca nas costelas.

Sabia que não estava sozinho ali. O jovem amante de signore Ricetti era Jensen, um agente britânico que dizia à sua mulher que viajava muito porque era representante de uma empresa farmacêutica.

Bastien aprendera a não confiar em ninguém, nem sequer nos seus colegas de trabalho. Havia sempre a possibilidade de Thomason ter decidido que era dispensável. Jensen podia acabar com ele se recebesse as ordens e teria maiores possibilidades de sucesso do que a rapariga. Qualquer um teria. Se quisessem mesmo livrar-se dele, precisavam de alguém um pouco mais entendido na matéria.

Alguém um pouco mais experiente do que a doce mademoiselle Underwood.

Ou estava ali por ele ou por algum dos outros. Talvez só para reunir informação, talvez para se livrar de um jogador inoportuno. Bastien só tinha de dizer algo a Hakim e livrar-se-iam dela. Apesar de ter sido o próprio Hakim a contratá-la, seria eliminada limpa e eficazmente.

Mas Bastien não estava disposto a tal coisa, mesmo que fosse o modo mais seguro de proceder. Não fora a segurança que o conduzira àquele ofício. E talvez a mademoiselle Underwood fosse mais valiosa viva do que morta. Descobriria quem a enviara e porquê. E quanto mais depressa, melhor. Era importante planear tudo cuidadosamente, mas a indecisão podia ser desastrosa. Descobriria o que precisava saber e, depois, faria com que Hakim soubesse. Seria uma pena liquidar uma vida tão jovem e prometedora, mas a rapariga devia conhecer os perigos que enfrentava ao aceitar aquele trabalho. E há muito tempo que Bastien perdera qualquer rasto de sentimentalismo.

Só desejava de boa-fé saber o que ela estava a fazer ali.

Chloe sentia-se ligeiramente atordoada. Dormiu durante algumas horas, aninhada sob a fina colcha de seda, tomou banho numa banheira funda com água quente perfumada com Chanel e usou a roupa e a maquiagem de Sylvia. Faltavam alguns minutos para as sete e tinha de calçar uns sapatos extremamente altos e descer as escadas como a mulher deliciosa que fingia ser.

A sobrecarga sensorial começara com a roupa interior. Chloe costumava usar roupa interior branca de algodão, muito simples. Ela gostava de roupa interior de renda, de cores escuras e atrevidas, mas não tinha dinheiro para isso.

Então, porque tinha os nervos em franja?

Certamente, era apenas devido ao monsieur Toussaint, com os seus olhos insinuantes e o seu tom de voz baixo e sexy. Ou talvez fossem as suspeitas dos convidados. Deviam ter algo muito importante entre mãos se estavam tão paranóicos. Embora, segundo ela sabia, a maioria das pessoas pensasse que as suas preocupações tinham proporções capazes de alterar o curso da vida. Talvez tivessem a fórmula de um novo tipo de tecido. Os desenhos de sapatos para a nova temporada. A receita da manteiga sem gordura.

Mas aquilo carecia de importância. Ela ficaria num canto onde não estorvasse e interpretaria quando lhe pedissem com a esperança de que ninguém voltasse a dizer algo embaraçoso num idioma que supostamente não entendia. Embora fosse de grande ajuda ter a sua própria roupa, pois a de Sylvia não era feita para a discrição.

Talvez pudesse alegar uma enxaqueca, meter-se na cama e enfrentar tudo aquilo no dia seguinte. Que ela soubesse, não estava de serviço vinte e quatro horas por dia e sete dias por semana. E a reunião daquela noite parecia ser uma reunião social. Não precisariam dela e não lhe apetecia ver-se rodeada de pessoas que talvez bebessem o suficiente para ficarem ainda mais grosseiras do que naquela tarde.

Claro que não fora má idéia descobrir porque estavam tão paranóicos. Se não gostasse da resposta, podia simplesmente anunciar que ia para casa. Monsieur Hakim insistira que não precisavam dela e ela supunha que poderiam arranjar-se, mesmo que não tivessem um idioma comum. Afinal de contas, a sua paz de espírito era mais importante do que o generoso salário diário.

Mas setecentos euros podiam aliviar um certo mal-estar moral e ela raramente era covarde. Desceria, sorriria com encanto, beberia um pouco de vinho, não o suficiente para se mostrar indiscreta, e manter-se-ia afastada de Bastien Toussaint. Aquele homem perturbava-a, tanto pelos seus olhos escuros e ilegíveis como pelo seu suposto interesse nela. Por alguma razão, não acreditava. Ela não carecia de atributos, mas também não pertencia à mesma divisão que aquele tipo: Toussaint era daqueles que saíam com modelos e filhas de multimilionários.

O fato de, ao abrir a porta, o encontrar à espera dela não melhorou as coisas.

Ele olhou para o seu relógio.

- Uma mulher linda que é pontual - replicou, em francês. - Que maravilha!

Chloe hesitou, sem saber o que dizer. Por outro lado, havia um fato leve, mas inconfundível de ironia no tom de voz de Toussaint e Chloe compreendeu que, ainda que fosse bastante atraente, era um exagero chamá-la linda, mesmo com a roupa de Sylvia. Contudo, se o contrariasse, pareceria que estava a seduzi-lo e, além disso, não queria passar mais tempo do que o necessário no corredor cavernoso e em sombras, com ele.

Bastien estava recostado contra a parede que havia em frente da porta dela. Mais à frente, estavam os jardins cuidados, surpreendentemente bem iluminados para ser tão tarde. Estivera a fumar um cigarro enquanto esperava por ela, mas afastou-se da janela e aproximou-se dela.

Chloe pensava ter-se habituado à elegância dos franceses. Por um instante, distraiu-se a admirar o seu corpo e, depois, repreendeu-se.

- Estava à minha espera? - perguntou, com despreocupação e fechou a porta atrás dela, apesar de desejar voltar a meter-se no quarto e fechar-se à chave.

- É claro! O meu quarto fica do outro lado do corredor, à esquerda. Somos os únicos nesta ala da casa e sei como é fácil perder-se aqui. Queria certificar-me de que não entrava em nenhum lugar onde não devia estar.

Novamente a leve insinuação de algo suspeito. Talvez ela é que estivesse paranóica e não os convidados de Hakim.

- Tenho muito bom sentido de orientação - uma mentira descarada. Ela perder-se-ia, mesmo com um mapa detalhado, mas ele não sabia disso.

- Viveu em França o tempo suficiente para saber que os franceses gostam de ser galantes e encantadores. Está nos meus genes. Encontrar-me-á ao seu lado quando menos esperar, a oferecer-me para lhe trazer um café ou um cigarro.

- Não fumo - a conversa estava a pô-la cada vez mais nervosa. E, para cúmulo, o fato de olhar para os seus olhos escuros e opacos e para o seu corpo elegante e musculado distava muito de deixá-la imperturbada. Porque tinha de se sentir atraída por alguém tão... inadequado? - E como sabe há quanto tempo vivo em França?

- Pelo seu sotaque. Ninguém fala tão bem se não tiver vivido aqui pelo menos durante um ano.

- Dois, para dizer a verdade. Foi o mais leve dos sorrisos.

- Vê? Tenho instinto para essas coisas.

- Não preciso que seja galante e encantador - declarou ela, ainda inquieta. Não só era bonito, como também cheirava bem. Era um cheiro subtil, delicioso e escondido por trás do cheiro persistente do tabaco. Vim para trabalhar.

- Certamente - murmurou ele. - Mas isso não significa que não possa divertir-se ao mesmo tempo.

Estava a deixá-la muito nervosa. Tinham começado a andar pelo corredor, saindo e entrando das sombras. Chloe estava habituada à arte continental da sedução, que normalmente era apenas uma exibição extravagante. E sabia que aquele homem era um Don Juan. Ele próprio o dissera num idioma que ela supostamente não entendia. Era de esperar que se comportasse como tal.

Infelizmente, Chloe não queria entrar no jogo, sobretudo, com ele. Bastien Toussaint não era uma daquelas pessoas com quem se seduz e, depois, se descarta sem mais nem menos. Apesar do seu encanto estudado, Chloe não conseguia esquecer a impressão de que era outra coisa bem diferente.

- Monsieur Toussaint...

- Bastien - corrigiu ele. - E eu chamar-te-ei Chloe. Nunca antes tinha conhecido uma mulher que se chamasse Chloe. Acho-o encantador - a sua voz deslizava sobre ela como uma carícia sedosa.

- Bastien - capitulou ela, - não acho que isto seja boa idéia.

- Já está comprometida? Isso não tem a menor importância. O que acontecer aqui, fica aqui e não há razão para não podermos divertir-nos - declarou, com suavidade.

Chloe não sabia como teria reagido se ele fosse outra pessoa. Sabia como sair de situações comprometedoras, embora não enfrentasse tantas como teria esperado. A questão era que se sentia ao mesmo tempo atraída e atemorizada por Bastien Toussaint. Aquele homem estava a mentir-lhe e ela não sabia por quê.

Parou. Tinham conseguido chegar à parte mais povoada do château reformado e ouvia vozes, uma amálgama de francês e de inglês, para além das portas. Abrira a boca sem saber muito bem o que ia dizer que tipo de argumento podia inventar, quando ele voltou a tomar a palavra.

- Sinto-me muito atraído por ti, sabes? - perguntou.

- Não recordo quando foi a última vez que me senti tão atraído por uma mulher e, antes de ela perceber o que ele queria, pôs as mãos sobre ela, empurrou-a contra a parede e começou a beijá-la.

Era muito bom, pensou Chloe, atordoada, tentando reagir. As suas mãos tocavam nela e a sua boca parecia um suspiro leve sobre os seus lábios. Sem pensar, ela fechou os olhos e sentiu que a sua boca lhe tocava nas pálpebras, nas pestanas e descia novamente para os seus lábios, permanecia ali durante um instante e, depois, continuava a mexer-se para o seu pescoço.

Ela não sabia o que fazer com as mãos. Devia levantar os braços e afastá-lo, mas não queria fazê-lo. Os seus beijos suaves como penas excitavam o seu desejo e como aquela ia ser a única vez que o deixaria beijá-la, podia desfrutar plenamente da experiência.

Portanto, quando ele afastou as mãos da sua cintura e segurou na sua cara e quando apertou a boca contra a dela, com mais ímpeto daquela vez, Chloe deixou-se levar e disse para si que não lhe faria nenhum mal provar um pouco da fruta proibida. Afinal de contas, estava em França. Vive l'amour.

Mas exatamente quando estava prestes a perder-se naquele prazer, umas campainhas insidiosas de alarme detiveram-na. Bastien era demasiado experiente. Sabia como beijar, como usar os lábios, a língua, as mãos, e, se continuasse a comportar-se como uma adolescente, acabaria invadida pelo desejo.

Mas algo não estava bem. Aquilo era uma atuação evidente. Bastien fazia os movimentos precisos, dizia as coisas adequadas, mas uma parte dele mantinha-se à distância, observando friamente a sua reação.

As mãos de Chloe, que tinham estado prestes a agarrar-se aos seus ombros, empurraram-no. Usou mais força do que a necessária. Bastien não tentou forçá-la, simplesmente se afastou com uma leve expressão de regozijo na cara.

- Não? - perguntou. - Talvez tenha interpretado mal a situação. Sinto-me muito atraído por ti e achava que o sentimento era mútuo.

- Monsieur Toussaint, é um homem muito atraente. Mas está a jogar algum tipo de jogo comigo e eu não gosto.

- Um jogo?

- Não sei o que está a acontecer, mas não penso que lhe tenha inspirado, de repente, uma paixão incontrolável - Sylvia repreendia-a sempre por ser tão franca, mas não se importava. Faria tudo para revelar as mentiras do homem que ainda estava demasiado perto dela.

- Então, terei que me esforçar mais para convencê-la - declarou e estendeu novamente os braços.

E ela teria deixado se a porta da sala não se tivesse aberto e monsieur Hakim não tivesse aparecido com cara de poucos amigos.

Bastien recuou sem muita pressa e o semblante de Hakim entristeceu-se ainda mais.

- Perguntávamo-nos onde estava, mademoiselle Underwood. Já são as sete e meia.

- Tive problemas para encontrar o caminho. Monsieur Toussaint teve a amabilidade de me guiar até aqui.

- Não tenho nenhuma dúvida - resmungou Hakim.

- O barão está à espera, Bastien. E comporte-se... temos trabalho para fazer,

- Bien súr - respondeu ele. Ao mesmo tempo em que passava junto de Hakim e esboçava um sorriso irônico para Chloe.

Chloe fez menção de o seguir, mas Hakim parou-a, agarrando-a pelo braço.

- É preciso avisá-la sobre Bastien.

- Não é necessário. Conheço muito bem esse tipo de homens - não era verdade, pensou. Bastien tentava convencê-la de que era um certo tipo de homem: sofisticado, encantador, coquete e totalmente imoral. E era, Chloe não tinha nenhuma dúvida a respeito disso. Mas havia algo mais, algo escuro no seu foro interior e ela não conseguia imaginar o que era.

Hakim assentiu, embora não parecesse convencido.

- É muito jovem, mademoiselle Underwood. Sinto-me numa posição paterna e não gostaria que lhe acontecesse algo desafortunado.

Era o seu inglês, extraordinariamente formal, que fazia com que aquilo parecesse um aviso. Não havia nenhum perigo real. Mas aquele leve calafrio de desassossego voltou a percorrer as costas de Chloe e perguntou-se se não teria cometido um erro grave ao ocupar o lugar de Sylvia. A aventura, o luxo e o dinheiro eram coisas muito agradáveis, mas a que preço? E ao recordar a impressão da boca experiente de Bastien Toussaint sobre os seus lábios, teve medo de já estar em sarilhos.

Porque desejava verificar o que se sentia quando aquele homem beijava a sério. Não quando agia com o propósito de enrolá-la, mas quando a desejasse tanto como ela a ele.

Estava louca, pensou enquanto passava junto de Hakim e entrava na biblioteca, a tempo de ver Bastien a conversar com uma das mulheres que conhecera naquela tarde. A esposa do barão, que parecia demasiado cordial com a sua mão deliciosa apoiada sobre a manga do fato Armani de Toussaint e a cara perfeitamente maquiada levantada para ele. Chloe pegou num copo de xerez que o empregado lhe oferecia e aproximou-se de uma cadeira junto das portas abertas para observar os jardins iluminados, longe de Bastien e da sua acompanhante. A confusão de línguas pareceu-lhe indecifrável ao princípio e de qualquer modo não queria ouvir. Era como espiar conversas alheias e já se sentia bastante incomodada com o pouco que ouvira naquela tarde.

Mas então se apercebeu de que só estavam a falar em francês e inglês e de que o que diziam distava muito de ser um segredo. Depois, recostou-se na poltrona, mais relaxada. O que é que um grupo de lojistas de classe alta podia ter de perigoso?

Levantou o olhar, viu que Bastien e a mulher saíam e se perdiam entre as sombras e as suas tentativas de manter uma atitude racional desvaneceram-se. Teria sido bastante difícil ver que se ia embora, mas ele parou no último momento e olhou para ela diretamente nos olhos, ao mesmo tempo em que encolhia um pouco os ombros com desinteresse.

- Menina Underwood - o barão deixou-se cair ao seu lado, suspirando levemente. - Parece que nos abandonaram. Bom, diga-me, o que faz uma jovem tão bonita como a menina encerrada durante dias com um grupo de velhos capitalistas como nós? Certamente, terá coisas melhores para fazer em Paris. Tem algum jovem à sua espera?

Ela sorriu, ansiosa por se esquecer do casal que acabara de desaparecer.

- Não há nenhum jovem, monsieur. Tenho uma vida muito tranqüila.

- Não acredito! - exclamou ele. - Uma rapariga tão bonita como a menina? O que se passa com os homens de hoje em dia, se alguém como a menina está sem compromisso? Se tivesse quarenta anos a menos, não deixaria passar a oportunidade.

Ela decidiu deixar-se levar.

- Quarenta não, certamente - reagiu, com ligeireza.

- Sou trinta anos mais velho do que a minha mulher. Por isso dou-lhe liberdade para que se entretenha.

Chloe pestanejou.

- Isso é muito generoso da sua parte.

- Além disso, o que pode estar a fazer com Bastien no terraço quando há tanta gente a rondar por aqui? Uma carícia indiscreta, um beijo ou dois? No final, só aguça o apetite.

- Como?

- Vi-a a olhar para eles. Bastien é bom para alguém como a minha mulher, que conhece as regras do jogo e não espera mais nada senão uma gratificação imediata. Mas aquele homem não é para uma jovem inocente como a menina.

O barão von Rutter era a segunda pessoa que a avisava sobre Bastien em menos de dez minutos. Pouco suspeitavam eles que não precisava dos seus avisos: as suas próprias barreiras defensivas tinham-se levantado a tempo.

- Vim aqui para trabalhar, monsieur - indicou, com despreocupação. - Não para me distrair com seduções perigosas.

- Confio que não me veja como uma dessas seduções perigosas - declarou ele. - Ou talvez sim. Já ninguém me considera perigoso - parecia triste.

- Tenho a certeza de que é um homem realmente perigoso - afirmou ela, num tom de voz corajoso.

O sorriso do barão foi quase divino.

- Sabe, pequena? Talvez tenha razão.

 

Não havia dúvida, pensou Bastien enquanto deslizava metodicamente os dedos sobre os seios firmes de Monique. Aquela mulher não estava ali por ele. Se fosse assim, a mademoiselle Chloe não se teria apressado a afastá-lo. Até mesmo um agente do monte sabia que ir para a cama com o inimigo era o melhor modo de descobrir o que queria saber e a maioria dos homens era mais vulnerável na cama.

Ele não era como a maioria. Tinha água gelada nas veias e mesmo no meio de um orgasmo era um homem perigoso. Chloe não sabia. Era suficientemente inepta para demonstrar o seu conhecimento de outros idiomas poucos minutos depois de chegar. E teria mordido o anzol se ele fosse o seu objetivo.

"O que significa que veio por outra pessoa". Normalmente, aquilo não teria importado. Tinha de cumprir uma missão e a pessoa que aquela mulher estivesse a vigiar teria de se safar sozinha.

Mas estava a preparar aquela missão há muitos meses e não ia permitir que uma jogadora inesperada destruísse tanto esforço.

Deslizou as mãos para dentro do vestido de seda de Monique. Não tinha sutiã e estava excitada, como sempre. O seu marido era idoso e complacente, desde que Monique o mantivesse informado dos pormenores das suas aventuras. E Bastien imaginava que o velho até os espiara uma ou duas vezes. Aquilo não o excitava nem o incomodava. Podia agir com ou sem público e até a mulher carecia de importância, desde que fosse um meio para alcançar um fim.

Monique não lhe servia de grande coisa naquele momento. Surripiara-lhe tudo o que precisava saber na sua última reunião, mas não fazia sentido perder o interesse tão rapidamente. Dar-lhe-ia menos problemas se lhe levantasse a saia e fizesse amor com ela contra a parede fria de pedra do château, entre as sombras.

Vê-los-iam, naturalmente. As câmaras de segurança e os guardas armados que patrulhavam com uma deferência impecável. Certamente, Hakim estaria a gravar a aventura e proporcionaria uma cópia ao velho e a qualquer pessoa que pagasse o preço adequado.

Pôs as mãos entre as pernas de Monique e ela gemeu contra a sua boca. Também não tinha cuecas, em sua honra, sem dúvida. Pusera a mão no fecho das calças dele e ele sabia que esperava que estivesse excitado. Tentou-o pensando na cara que fazia quando chegava ao orgasmo e, com a outra mão, fez menção de desabotoar o botão, pronto para agradá-la. Foi então que percebeu que não era a cara de Monique que estivera a imaginar, mas a da inepta menina Chloe.

E, de repente, não gostou. Em vez de abrir o fecho, afastou a mão de Monique e fê-la chegar ao orgasmo imediatamente. Ela gritou enquanto o seu corpo ficava rígido.

Não fora boa idéia. Tapou-lhe a boca com a mão e ela mordeu-a com força. Monique gostava de jogos violentos e Bastien sabia que tentava fazê-lo sangrar.

Pôs fim àquilo e um gemido que saiu da garganta de Monique. Monique era como um gato: desumana, amoral, inexeqüível à dor comum. Uma boa companheira para ele.

Mas não se interessava por ela. Afastou-se, deixou que a saia lhe caísse ao redor das pernas perfeitas e ela recostou-se contra a parede de pedra, boquiaberta, ofegando, com os olhos frágeis devido ao prazer. Tinha sangue na boca, a ordinária. Devia ter prestado mais atenção.

- Foi... interessante - elogiou ela, num tom de voz rouco e sugestivo. - Mas só acabamos de começar.

- Acabamos - replicou ele e as suas palavras surpreenderam-na. Pensara dar-lhe algo mais. Afinal de contas, tinham passado mais de quatro meses desde a última vez que estivera com ela e um pouco de sexo recreativo teria aguçado os seus sentidos.

Mas não a desejava e não havia nada a ganhar com aquilo. Havia demasiadas perguntas sem resposta sobre a jovem nervosa que chegara naquela tarde e que olhava para ele como se ele fosse creme brulée para depois ficar gelada quando ele lhe tocava.

- O que queres dizer? - perguntou Monique.

Ele inclinou-se e beijou os seus lábios carnudos e vermelhos, limpando o seu próprio sangue.

- Divertimo-nos, mas não achas que está na hora de procurares outro companheiro de jogos? O teu marido deve estar farto de ouvir falar de mim. Da próxima vez, escolhe uma mulher.

Tal como esperava, ela não se deu por ofendida. Esboçou o seu sorriso felino.

- Podíamos pedir à menina Underwood para se juntar a nós. Podia ser muito entretido.

Ele escondeu cuidadosamente a sua irritação.

- Não é o meu tipo.

- Eu também não, pelos vistos. Pelo menos, agora - encolheu os ombros. - É uma pena, mas como tu dizias, o meu marido está aborrecido. Gosta que os homens me magoem e tu não o fazias especialmente.

- Talvez para a próxima vez - declarou ele com desenvoltura, sentindo um vago desejo de lhe torcer o pescoço. Era um pescoço muito bonito, adornado de diamantes.

- Talvez não - respondeu ela e, passando ao seu lado, voltou a entrar na sala sem olhar para trás.

Bastien acendeu um cigarro, exalou o fumo para o céu, desdenhando Monique, e voltou a pensar em assuntos mais urgentes. Quem contratara Chloe Underwood e a quem é que ela estava a vigiar?

E que nome tão ridículo. Podia ter-se chamado Mary Poppins. O nome condizia com o papel que interpretava, mas podia ter pensado em algo menos jeune filie.

Podia ter sido enviada pela sua própria organização, mas duvidava. Alguém tão desajeitado como ela, teria sido eliminado há muito tempo. E atrás de quem andava? Do senhor Otomi, de Ricetti ou da madame Lambert? Ou talvez do próprio Hakim?

Uma coisa era certa: não fora enviada pelo membro mais perigoso do cartel. Christos Christopoulos só contratava os melhores e tinha as mulheres em pouca consideração em qualquer situação.

Perguntava-se onde estava a verdadeira tradutora. Certamente, em algum beco, com a garganta cortada. O fato de a menina Underwood não ser experiente na arte da dissimulação não significava que não pudesse encarregar-se do trabalho sujo. Aquelas mãos pequenas e finas podiam matar com a mesma eficácia que as de Hakim.

E porque continuava a pensar nela quando já deixara claro que não estava ali por ele? Uma só palavra ao ouvido de Hakim e desapareceria e ele poderia concentrar-se no seu trabalho.

Claro, estava cansado do trabalho. Cansado de contar tantas mentiras que já não recordava o que era verdade, de tantos nomes e disfarces que já esquecera a sua verdadeira identidade, de tantos anos que já não sabia quem eram os bons e quem eram os maus. E, o que era ainda pior, já não se importava.

Por alguma razão, Chloe Underwood despertava a sua curiosidade. Tornava as coisas um pouco mais interessantes. Seria uma pena livrar-se dela tão rapidamente. Aquela missão não era um desafio particularmente estimulante. A sua identidade fora aceite há muito tempo e Hakim não daria muitos problemas. Até Christos chegar, podia permitir-se um pouco de diversão. E, se aquela rapariga se transformasse num obstáculo, podia livrar-se dela tão facilmente como Hakim. Com mais rapidez e menos crueldade. Hakim gostava de ver os outros sofrer.

Podia esperar e observar. Tinha intuição para saber quando agir e, naquele momento, podia obter mais coisas se esperasse pelo momento oportuno. Até Chloe Underwood decidir cometer um erro.

Cometera um erro grave, pensou Chloe enquanto depositava o seu copo de vinho na mesa. Não devia ter bebido tanto com o estômago relativamente vazio, sobretudo tendo em conta que precisava de se manter alerta. Fora bastante fácil seguir o fio da conversa durante o jantar longo e parcimonioso. A conversa fora puramente de cortesia e só lhe tinham pedido para traduzir algumas palavras. O que fora uma sorte, porque voltavam a encher-lhe o copo cada vez que bebia um gole e, quando chegaram os queijos, já estava um pouco bêbada.

Mesmo assim, certamente podia ter saído graciosa se não tivesse bebido dois copos de uísque, um atrás do outro, depois de Monique von Rutter voltar a entrar na sala com o batom borrado, o cabelo despenteado e os olhos toldados.

Bastien Toussaint beijara-a no corredor, entrara na sala cheia de gente, escolhera outra mulher e levara-a para a rua para fazer amor com ela. Não havia dúvida. Uma olhadela para a cara de Monique deixava-o claro como a água.

Pelo menos, podia ter esperado até ficar um pouco mais calma, pensara Chloe com aborrecimento, ao mesmo tempo em que bebia do copo de uísque que alguém lhe servira. Bastien mostrava-se mais discreto. Claro que Monique só tivera tido de baixar a saia, enquanto ele teria tido de abotoar as calças...

Bebeu o copo de um gole e pegou noutro. Porque é que ela se importava com tudo aquilo? Estava claro que Toussaint ia atrás de qualquer mulher que lhe desse atenção. Pelo menos, ela conseguira afastá-lo rapidamente.

Recostou-se na cadeira e olhou com desagrado para o seu brie. Quando Bastien voltara a entrar, alguns minutos depois, parecia tão frio e composto como a primeira vez que o vira. Era verdadeiramente absurdo pensar nele. Não havia nada menos atraente do que um homem que escondia todas as suas emoções. Se conseguir parecer tão tranqüilo depois de estar com uma mulher no jardim, então não era para ela. Gostava de homens que não tinham medo de demonstrar os seus sentimentos.

E estava a fazer conjecturas absurdas, recordou-se. Nenhuma delas era justificada. Não importava se Bastien Toussaint era o seu tipo ou não, decididamente, não pertenciam à mesma divisão.

Ele não olhara para ela nem uma só vez durante o jantar interminável, o que deixava ainda mais claro que o seu interesse fora passageiro. Chloe permanecia sentada na sua cadeira, bastante calada. Traduzia quando lhe pediam e, quando não pediam, não dizia nada. Monique von Rutter, pelo contrário, era a alma da festa: engenhosa e encantadora e seduzia toda a gente, tanto homens como mulheres.

Chloe estava prestes a deslizar sob a mesa, derrotada, quando Hakim se levantou finalmente, pondo fim ao jantar.

- Amanhã temos muitas coisas para fazer, mesdames et messieurs. Sugiro que bebamos o café e os licores na sala oeste e que depois nos retiremos. Os que desejarem ir diretamente para a cama, podem fazê-lo, certamente - virou os seus olhos pretos para Chloe. - Não precisaremos mais de si por esta noite, mademoiselle Underwood.

Despachara-a sem rodeios e Chloe agradeceu. Se bebesse mais alguma coisa, teria acabado por baixo da mesa. Levantou-se sem cambalear, convencida de que a sua leve embriaguez passaria despercebida entre o êxodo geral.

Bastien estava a observá-la. Chloe não entendia por que e também não o surpreendera a olhar para ela, mas sabia que passara toda a noite a observá-la enquanto seduzia todas as mulheres presentes.

Talvez o entendesse de manhã, quando estivesse mais sóbria e tivesse dormido um pouco, mas naquele momento, a atenção que Toussaint fixava nela parecia inquietante e ameaçadora. E também estranhamente excitante.

Esquecera-se de como os corredores do chateou eram tortuosos. Bastien levara-a até ao andar de baixo, mas não ia pedir-lhe ajuda para voltar para o seu quarto. Teria de se arranjar com o método de tentativa e erro.

Demorou mais do que esperava. Teria pedido indicações, mas quando estava a meio da escada, já não havia ninguém à vista. Parou, tirou os sapatos de Sylvia com um suspiro e continuou a subir, mais ou menos convencida de que encontraria o seu quarto mais cedo ou mais tarde.

Não percebera que o château era tão grande. Mesmo que estivesse sóbria, ter-lhe-ia custado encontrar o seu quarto. Àquela hora, na penumbra, podia ter vagueado eternamente pelos corredores elegantes, cada um dos quais parecia familiar e, no entanto, desconhecido. Pouco depois, dobrou uma esquina e viu uma porta de aspecto conhecido. Praticamente correu para ela, certa de que conduzia ao corredor onde se encontrava o seu quarto.

Mas enganava-se. O cheiro era intenso: a podridão e a mofo, à decadência de um edifício velho. Ao espreitar para a escuridão, compreendeu que as reformas só tinham chegado até ali. Parecia que não havia eletricidade, mas o reflexo da luz através da janela poeirenta permitia vislumbrar como o château fora antes de alguém com muito dinheiro decidir salvá-lo. As paredes engessadas desmoronavam-se, o chão estava manchado e curvado e as latas de tinta ofereciam o testemunho mudo dos novos planos de renovação. Mas, por trás do cheiro a mofo e a humildade havia outro cheiro que Chloe não conseguia identificar, um cheiro velho, escuro e inexplicavelmente... maligno. Estava claro que o vinho lhe subira à cabeça. Mais um instante e começaria a imaginar que estava em perigo. Demasiado vinho, demasiada imaginação. Saiu do quarto lentamente, só para tropeçar com uma forma humana robusta.

Gritou, mas uma mão pesada sufocou o seu grito, tapando-lhe a boca e fazendo-a virar-se.

Era monsieur Hakim. O alívio de Chloe era quase evidente. Começou a balbuciar. E não porque Hakim fosse amável e acolhedor, mas porque era preferível ao perturbador Bastien Toussaint.

- Graças a Deus! - exclamou. - Dei mil voltas e receava não encontrar o meu quarto.

- Esta parte do château está vedada aos visitantes, menina Underwood. Como verá, ainda não foi reformada e seria muito perigoso perder-se nela. Se magoasse, ninguém a ouviria gritar.

Chloe sentiu-se, de repente, completamente sóbria. Engoliu em seco e olhou para o rosto bronzeado e sereno de Hakim. E, então, forçou-se a rir-se para quebrar a tensão.

- Acho que preciso de um mapa para me orientar neste lugar - declarou. - Se poder indicar-me onde fica o meu quarto, vou para lá agora. Estou muito cansada.

Não lhe largara o braço. Tinha umas mãos grossas e feias e pêlos pretos nos dedos gordos como salsichas. Não disse nada. E, por um instante, Chloe pensou que ia levá-la ao empurrão para a ala deserta do castelo, onde ninguém a ouviria gritar.

Mas depois recuperou a prudência e ele baixou o braço. Embora o seu sorriso não fosse precisamente agradável, pelo menos era um sorriso.

- Devia ter mais cuidado, menina Underwood avisou. - Outras pessoas podem ser mais perigosas do que eu.

- Perigosas? - mal conseguiu evitar que lhe tremesse a voz.

Como monsieur Toussaint, por exemplo. Pode ser encantador, mas faria bem ao manter-se afastada dele. Vi-vos no corredor e estou extremamente preocupado. Por si, menina Underwood.

Havia tão pouca luz que não conseguia ver o rubor que cobriu as faces de Chloe.

- Só estava a ensinar-me como chegar à biblioteca.

- Com a boca? Se eu fosse a si, manter-me-ia fora do seu alcance. Esse homem é notório. O seu apetite pelas mulheres é insaciável e os seus gostos são, digamos, peculiares. Sentir-me-ia em certo modo responsável se sofresse algum percalço aqui. Afinal de contas, sou o seu chefe e não gostaria que lhe acontecesse alguma coisa de mal.

- Eu também não - declarou Chloe.

- Vire à esquerda, percorra dois corredores e, depois, vire duas vezes à direita.

- Como?

- É assim que se vai para o seu quarto. A não ser que queira que a acompanhe...

Chloe conseguiu conter um arrepio de repulsão.

- Conseguirei fazê-lo - afirmou. - Se voltar a perder-me, gritarei.

- Faça-o - respondeu Hakim, num tom de voz frio que por alguma razão não conseguiu tranqüilizá-la.

Mas conseguiu chegar ao seu quarto sem mais contratempos e não havia ninguém a observá-la lá. Monsieur Toussaint, aquele cínico, devia ter encontrado companhia para passar a noite, disse para si um pouco ressentida enquanto abria a porta.

Alguém estivera lá. Não havia chave, nem modo algum de evitar que entrasse alguém e a sensação de violação era inescapável. Abanou a cabeça, tentando sacudir a paranóia que sentia. Que interesse é que alguém teria numa tradutora contratada?

A cama estava desfeita, uma das camisas de dormir de Sylvia estava estendida sobre ela e sobre a mesa-de-cabeceira havia uma bandeja com uma garrafa de vidro e um prato de bombons.

- Relaxa, idiota - disse em voz alta, para quebrar o silêncio que envolvia o quarto. - Foi só a criada.

Preparou-se a toda a pressa para se meter na cama, passando a camisa de dormir de seda e de renda pela cabeça. Se tivesse um pingo de bom-senso teria ido direto para a cama, mas o seu encontro com Hakim tirara-lhe o sono. Não lhe faria mal beber um copo de brandy.

Talvez não tivesse conseguido transformar-se em chef, mas tinha um paladar excelente e o conhaque tinha um sabor ligeiramente estranho, um leve matiz que não conseguia identificar. Quase metálico, diria, mas num sítio como o Château Mirabel não se servia conhaque de má qualidade. Devia ser imaginação dela. O conhaque produziu-lhe um calor delicioso e já sentia os olhos a fechar. Dormiria lindamente naquela noite e não sonharia com ninguém, muito menos com Bastien Toussaint.

Foi então que sentiu um leve cheiro no ar. Um perfume subtil e peculiar que lhe causou um efeito instintivo e quente. Até se lembrar de onde procedia. Das do fato sedoso Armani de Bastien. Mas por que...?

Tentou pousar o copo de brandy, mas a bandeja estava muito mais longe do que pensava, fora do seu alcance e o copo caiu ao chão com um tinido de vidros partidos. Depois ela caiu também no tapete.

Não bebera assim tanto, pensou enquanto tentava endireitar-se. E aquele golo de brandy não bastava para pô-la naquele estado.

Mas, pelos vistos, bastava e a cama estava tão alta que não conseguia deitar-se nela. O tapete Aubusson que estava por baixo dela era muito bonito e, se tivesse cuidado, podia esquivar os vidros partidos, enrolar-se e cair num sono profundo e agradável.

Bastien entrou no quarto e fechou a porta atrás dele, em silêncio. Não era preciso tomar muitas precauções: sabia onde estavam as câmaras e podia evitá-las sem se denunciar. Além disso, a sua afeição pelas mulheres era conhecida e ninguém se surpreenderia se conseguisse ir para a cama com todas as mulheres bonitas.

Embora aquela rapariga não fosse particularmente bela. De pé sobre ela, ficou a olhar para o seu corpo aninhado. Era bonita, palavra que ele não costumava usar. Tinha boa estrutura óssea, traços regulares e uma boca doce e carnuda.

Doce? Bonita? Talvez fosse melhor do que pensava. Certamente, conseguia transmitir a aparência de uma pessoa essencialmente inofensiva.

Deslizou os braços por baixo dela e estendeu-a sobre a cama. Tirara maquiagem, talvez fosse por isso que parecia tão inocente. A camisa de dormir que vestia era muito cara, com laços minúsculos na parte da frente. Ele desatou-os, um a um, até a camisa de dormir se abrir.

Também tinha um bom corpo. Com um pouco mais de rabo do que a maioria das francesas e também com um pouco mais de peito, mas basicamente jovem, forte e bem formado. Não havia indício algum do treino rigoroso a que devia ter-se submetido. A suavidade dos seus braços e da sua barriga mostrava que seria quente e acolhedora na cama.

A quem tentava enganar? Na cama, cortar-lhe-ia a maçã-de-adão, se se distraísse por um instante. E ter sexo distraía-o sempre.

Tinha marcas no corpo, sob os seios. Linhas vermelhas. Passou um dedo por elas, perguntando-se que tipo de tortura sofrera num passado longínquo.

E então sorriu. Não tão longínquo: simplesmente, vestira um sutiã demasiado apertado.

Nenhuma mulher que ele conhecesse teria vestido um sutiã que apertasse, a não ser que não tivesse outro remédio. Percorreu as suas pernas compridas com o olhar até chegar aos seus pés. Ali, as linhas eram ainda mais pronunciadas. Os sapatos que calçara ficavam apertados.

A droga que lhe pusera no conhaque era excelente: dormiria seis ou oito horas e acordaria sem ressaca, embora a merecesse depois do vinho que bebera ao jantar. O seu pequeno presente para ela.

Revistou metodicamente o quarto, de cima a baixo. A rapariga tinha mais três pares de sapatos, todos do mesmo tamanho e todos de salto de agulha. Dentro de alguns dias começaria a coxear. Se ainda continuasse lá, claro.

Não havia roupa preta para as missões. Pelo menos, no quarto, e não podia tê-la escondido no jardim sem que alguém a encontrasse. Nada de armas, nem de documentos de interesse. O seu passaporte era uma falsificação excelente: a fotografia de dentro representava uma versão mais jovem e insípida da mulher que aparecera naquele dia. Supostamente, procedia da Carolina do Norte. Tinha quase vinte e quatro anos, media um metro e setenta, pesava cinqüenta e cinco quilos e entrara na França há dois anos com um visto de estudante. Tinha licença de trabalho, o que constituía uma surpresa. Bastien nunca confiava em alguém que tivesse uma identidade demasiado nítida.

Não tinha mais documentos, nem falsos nem de outra índole. Não muito dinheiro. Nem receitas de medicamentos ou algo pessoal.

Na sua carteira havia imensas fotografias falsas, com a rapariga a posar com diversas pessoas de aspecto afável e familiar. Bastante fácil de falsificar.

Voltou a deixar a mala no seu lugar e aproximou-se de um lado da cama. O copo partira-se em pedaços grandes, o brandy adulterado manchara o tapete. Não era grande coisa. Limpara confusões piores. Daquela vez não havia sangue para livrar, nem corpo para se desfazer. Ainda.

Desfez-se do conhaque no lavatório da casa de banho e voltou a encher a garrafa com o líquido que trazia consigo. Trouxera outro copo, só pelo sim pelo não, e serviu nele um pouco de brandy antes de deixá-lo junto da cama.

Voltou a olhar para ela. Afinal de contas, era uma verdadeira profissional. Se não conseguira nada ao revistar o quarto, isso significava que aquela rapariga descobrira algo que não lhe ocorrera.

A menos, claro está, que estivesse a dizer a verdade. Talvez fosse mesmo uma jovem da Carolina do Norte que ignorava quem eram e o que faziam ali.

Mas, então, porque calçava uns sapatos e vestia um sutiã que não era dela? Porque mentira a respeito dos idiomas que falava?

Não, dadas as circunstâncias, não podia ser uma testemunha inocente. Estava ali com algum propósito perverso e ele tinha de descobrir qual era e para quem trabalhava.

Começou a abotoar novamente as fitas da camisa de dormir de seda e, depois, parou, deixando-o aberto por baixo da cintura. Ela perguntar-se-ia porquê, mas não se lembraria. Na verdade, ele podia fazer o que quisesse e ela não se lembraria de nada.

Havia certo número de coisas que teria gostado de lhe fazer, mas a maioria teria sido muito mais prazenteira se ela estivesse acordada e participasse. Talvez a rapariga não tivesse experiência suficiente para se aproveitar da oportunidade de ouro que ele lhe oferecera naquela noite, mas ele não era assim tão otimista. Chloe Underwood já se traíra demasiado. Se chegasse a tê-la nua por baixo dele, se mexesse dentro dela, chegaria a conhecê-la melhor do que se conhecia a si própria.

Mas não se estivesse em estado comatoso.

Sentou-se na cama, ao seu lado, e observou-a enquanto dormia. Tudo seria mais fácil se a matasse. Podia fazê-lo rápida e facilmente e dizer a Hakim que não confiava nela. Hakim aceitá-lo-ia.

Pôs-lhe a mão no pescoço. A sua pele era quente e suave, muito branca em contraste com a sua mão bronzeada. Conseguia sentir o batimento constante do seu coração e via o seu peito a subir e a descer. Apertou os dedos por um instante e depois os afastou.

Depois, não soube por que o fizera. Era estranho nele, mas ultimamente jogava com regras diferentes. Ou ignorava as que lhe tinham ensinado.

Deitou-se ao seu lado e apoiou a cabeça na almofada. Ela cheirava a sabão, a Chanel e a conhaque, uma combinação tentadora.

- Quem é, bebê! - sussurrou. - E o que fazes aqui?

Ela não poderia responder pelo menos durante seis horas. Bastien riu-se de si próprio e sentou-se. Havia tempo. Dado que não tinha armas, estava claro que a sua missão consistia em solicitar informação e ele podia certificar-se de que nada do que descobrisse atravessasse os muros do château.

Havia tempo.

 

Chloe não era daquelas pessoas que demoravam a acordar. Costumava ficar imediatamente alerta e levantava-se sempre de tão bom humor que dava náuseas, ao ponto de os seus pais e irmãos, ainda ensinados, a ameaçarem de morte ou de esquartejamento se não parasse de cantarolar de uma vez.

Naquela manhã não foi diferente, menos quando, ao abrir os olhos de repente, percebeu que não fazia idéia de onde estava.

Decidiu não se deixar levar pelo pânico, já que isso costumava ser uma perda de tempo. Ficou calada, sem se mexer e deixou fluir as lembranças. O château e a idéia absurda de ocupar o lugar de Sylvia. Demasiado vinho na noite anterior e a boca experiente de Bastien Toussaint.

Há meses que ninguém a beijava, portanto não era de estranhar que ainda conseguisse sentir a pressão dos seus lábios. Fora uma pena que não se tivesse atrevido a chegar até o final. O que importava que, por parte dele, fosse tudo uma farsa? Devia funcionar muito bem na cama.

Mas ela fora sempre demasiado susceptível e teimosa e, como as suas amigas costumavam dizer-lhe, demasiado americana para desfrutar realmente do sexo incidental. E mesmo que ir para a cama com alguém como Bastien tivesse sido memorável, não lhe apetecia ter só lembranças a que se agarrar.

Sentou-se devagar, levando uma mão à cabeça em previsão da enxaqueca que merecia por ter abusado com o vinho tinto na noite anterior, mas a dor não chegou. Abanou a cabeça, preparada para sentir uma pontada retardada, mas não sentiu nada.

Olhou para a mesa-de-cabeceira. Bebera um último copo de conhaque antes de adormecer. Pelo menos, pensava que se lembrava disso. Só estava um bocadinho alegre. Era estranho que não se lembrasse de mais nada. Tinha bebido um pouco de conhaque e pensava que o deixara cair e que ela própria caíra.

Mas estava deitada na cama larga e confortável. A garrafa, onde havia ainda um pouco de conhaque, continuava sobre a bandeja e ela devia ter bebido mais do que pensava.

Afastou o edredom e passou as pernas por cima do borde da cama. E, então, parou. A sua... quer dizer, a camisa de dormir de Sylvia, confeccionada em seda com uma fileira de lacinhos, tinha metade dos lacinhos desatados, por baixo da cintura. O que estivera a fazer?

Nada muito divertido, pensou depois de tomar um duche, vestir-se e arranjar-se até imitar mais ou menos a elegância de Sylvia. Olhou para os sapatos de pele castanha, com os seus saltos altos e finos e a sua ponta afiada e deixou escapar um gemido. Talvez pudesse dizer-lhes que tinha sangue japonês e que tinha de ir sem sapatos.

Não, certamente não aprovariam. Ainda que tivesse gostado de ter uma árvore genealógica mais interessante, era pura e simplesmente uma anglo-saxã branca e protestante e ninguém ia acreditar no contrário.

Conseguiu chegar ao andar de baixo sem se perder, mesmo a tempo de tomar um pequeno-almoço ligeiro à base de café e de fruta antes de começar a trabalhar. Os participantes estavam sentados a ambos os lados de uma longa mesa de reuniões, alguns deles acompanhados pelos seus assistentes. Exceto von Rutter, que estava acompanhado pela sua esposa bela e elegante, Monique.

Hakim, que ocupava a cabeceira da mesa, indicou-lhe com um gesto que se sentasse num dos lugares vazios à sua direita. Toussaint não estava na sala, pensou Chloe ao sentar-se, enquanto pousava a sua chávena de café sobre a superfície polida de madeira de nogueira. Talvez o destino se mostrasse compassivo com ela.

Devia ter imaginado que não seria assim. Toussaint apareceu um instante depois com um café e sentou-se na única cadeira que restava. Ao seu lado.

Chloe ouviu vagamente os prolegómenos da reunião. Um minuto de silêncio pelo seu falecido colega, Auguste Remarque. Ouvira aquele nome antes, mas não recordava onde. Aquilo a deixaria louca até se lembrar: talvez devesse perguntar a alguém diretamente. Ou talvez devesse fechar o bico e tentar confundir-se com o cenário.

Durante as duas horas seguintes, não houve muito para entreter a sua imaginação. A organização de importadores de produtos alimentares estava a discutir como redistribuir os seus territórios e, ainda que adorasse cordeiro, as laranjas e o frango bem cozinhado, o seu fascínio tinha um limite. As discussões que lhe pediram para traduzir eram aborrecidas até dizer chega, os números sempre lhe tinham parecido tediosos e as unidades de frangos e milho não conseguiam despertar o interesse da chef que tinha dentro de si. Os outros ocupantes da mesa pareciam achar aquela conversa imensamente fascinante e, tendo em conta as quantias de que se falavam, Chloe entendia muito bem por que. Quer fosse em euros, dólares ou libras esterlinas, estavam a falar de imenso dinheiro. Chloe ignorava que os importadores de mantimentos tinham tanta riqueza.

Como estava sentada num canto da mesa, junto da cabeceira, tinha de se virar para olhar para os participantes e o homem sentado ao seu lado estava sempre na sua linha de visão. Apesar de estar consciente da sua presença, Bastien parecia ter perdido todo o interesse nela e mal parecia aperceber-se da sua existência. Dado que falava inglês e francês, Chloe não tinha de lhe traduzir nada e podia recostar-se na cadeira e fingir que o ignorava enquanto fazia desenhos num caderno que lhe tinham posto à frente.

Durante a reunião longa e tediosa só houve um momento conflituoso. Havia uma palavra que ela não conhecia, coisa pouco surpreendente, apesar da fluidez com que falava francês.

- Que significa legolas - perguntou, - para além de ser uma personagem do Senhor dos Anéis!

Um silêncio mortal na sala. Só se ouvia o tinido de uma chávena sobre um pires. Olhavam para ela como se acabasse de lhes perguntar pela sua vida sexual ou, pior ainda, pelos seus lucros anuais. Depois, pela primeira vez naquele dia, Bastien dirigiu-se a ela.

- Legolas é uma raça de ovelha - respondeu. Uma que não lhe interessa particularmente.

Alguém na sala se riu devido ao desdém frio de Bastien ou a qualquer outra coisa.

- Não faça perguntas, menina Underwood, limite-se a traduzir! - ordenou Hakim. - Se não conseguir fazê-lo, procuraremos outra pessoa. Não queremos que a sua incompetência nos atrase.

Chloe nunca reagira bem quando a repreendiam em público e já chegara à conclusão de que Hakim era antipático. Naquele momento, não havia nada de que gostasse mais do que regressar a Paris naquela limusine luxuosa e não voltar a ver aquelas pessoas.

Ou não? Manteve o olhar afastado do homem sentado ao seu lado, embora soubesse perfeitamente que só se iria embora quando tivesse de fazê-lo.

- Peço-lhe desculpas, monsieur - desculpou-se, em francês. - Se não for necessário conhecer o significado de uma palavra, não farei perguntas, certamente. Só pensava que seria de ajuda ter uma melhor compreensão do assunto.

- Tem cuidado, Gilles - avisou Monique, com uma gargalhada gutural. - Bastien não gostaria que intimidasses a sua mascote.

Bastien levantou os olhos da mesa.

- Ciumenta, querida?

- Já chega! - gritou Hakim. - Não temos tempo para discussões de pouca importância.

Bastien virou-se para ele e, ao fazê-lo, não teve outro remédio senão olhar para Chloe. O seu sorriso era divino e levantou as mãos num gesto de rendição.

- Desculpe-me, Gilles! Já sabe que me distraio sempre quando há uma mulher bonita por perto.

- Sei que só te distrais quando queres e os outros também sabem. Há muito em jogo para perdermos tempo com estas coisas. Isto é demasiado importante.

Patos, porcos e frangos eram "demasiado importantes"? Por sorte, Chloe limitou-se a pestanejar. Era lógico que um importador pensasse que os produtos com que lidava podiam afetar o destino do mundo. As pessoas sentadas ao redor da mesa pareciam totalmente desprovidas de sentido de humor. Claro que os assuntos financeiros costumavam deixar as pessoas mortalmente sérias. Teria de controlar a sua frivolidade.

Hakim levantou-se.

- Vamos fazer uma pausa para almoçar. Neste ponto, não há nada que possamos fazer.

- Está bem - concordou Bastien. - Acordei tarde e tenho fome.

- Não vai comer, Bastien - os outros estavam a sair da sala e Chloe tentava ir com eles, mas estava presa entre os dois homens. - Preciso que me faça um favor

- pediu Hakim.

Demasiado perto.

- Desculpe - interrompeu-o Chloe, enquanto tentava passar ao seu lado.

- Faz parte do favor, menina Underwood - explicou Hakim e pôs-lhe uma mão no braço para pará-la.

Em França, os homens gostavam de tocar nas mulheres. Para dizer a verdade, os da Carolina do Norte também e os contactos cordiais era muito usuais.

Mas não gostava de sentir a mão de Hakim sobre o seu braço. Não gostava nada.

- Certamente - concordou Bastien imediatamente, enquanto olhava para a sua expressão teimosa com um regozijo evidente. - O que quer que façamos?

- Tenho um recado para a menina Underwood e agradecer-lhe-ia que a levasse de carro. Preciso de uns livros.

- Uns livros? - repetiu Chloe.

- Para os meus hóspedes. Não vão estar a trabalhar todo o dia e devem ter algo com que se entreter nos momentos livres. Tenho a certeza de que saberá o que comprar, dada a sua experiência no sector editorial. Traga alguns nos idiomas mais comuns. Francês, inglês, italiano e alemão. Algo leve e entretido... Use o seu critério.

- Mas e a limusine? gaguejou ela. - É uma pena que monsieur Toussaint tenha de perder tempo num recado assim em vez de continuar a trabalhar.

- Monsieur Toussaint adorará de ter a oportunidade de escapar por um instante, não é verdade, Bastien? Sobretudo, na companhia de uma jovem tão encantadora. E a limusine está na oficina. Não está disponível.

Por que demônios estava a mentir-lhe? Não era necessário inventar uma desculpa para se livrar dela. Podia simplesmente despedi-la e acabar com aquilo de uma vez.

- E o trabalho desta tarde? - Bastien parecia completamente despreocupado. - Não queremos perder nada.

- Não se preocupe, Bastien. Velarei pelos seus interesses, já sabe. Todos subimos e descemos juntos. E, como o senhor Christopoulos ainda está ausente, estamos muito longe de chegar a uma conclusão a respeito de quem ocupará a chefia. Esta tarde, só falaremos das posições de saída. Pode ficar livre esta tarde e divertir-se. Leve a mademoiselle Underwood a almoçar a Saint André. Não há pressa.

Chloe esforçou-se para tentar inventar uma desculpa, mesmo que fosse má, para sair do caminho, mas não lhe ocorreu nenhuma.

- Se tem a certeza, monsieur Hakim...

Gilles Hakim esboçou um sorriso benevolente. Só por culpa da sua imaginação e das sombras da sala bem iluminada é que lhe pareceu levemente sinistro.

- Tenho a certeza, mademoiselle. Amanhã de manhã haverá tempo para voltar para o trabalho. Enquanto isso, divirta-se.

- Eu tratarei disso - declarou Bastien. Puxou-a pelo braço pelo qual Hakim a agarrara e apertou-o muito suavemente, mas isso bastou para que Chloe ficasse em movimento.

O contacto da sua mão continuava a ser igualmente perturbador, pensou enquanto permitia que a conduzisse para fora da sala. O toque da sua pele era uma ameaça de outro tipo, uma ameaça perigosamente atraente.

Assim que saíram da sala, conseguiu soltar-se sem esforço.

- Se me emprestar o seu carro, tenho a certeza de que conseguirei encontrar uma livraria sozinha - declarou, com firmeza.

- Mas então não teria a oportunidade de passar tempo consigo - reagiu ele. - E só eu é que conduzo o meu carro. Sou muito susceptível. Porque não sobe para calçar uns sapatos mais confortáveis? Tenho a certeza de que terá alguns.

Chloe teria dado dez anos da sua vida para ter uns sapatos mais confortáveis, mas Sylvia não achara necessária, do mesmo modo que não tivera em conta a diferença de tamanhos. Custava-lhe muito não coxear, mas conseguiu compor o seu melhor sorriso.

- Estes são muito confortáveis declarou. - Estou preparada, se o senhor estiver. Quanto mais depressa formos, mais depressa poderemos voltar.

- Certo - murmurou ele. - Embora não ache que tenha sido muito sincera em relação aos sapatos - havia uma certa ênfase no seu tom de voz, como se achasse que não fora sincera noutras questões. Ou talvez a sua imaginação desenquadrada tivesse voltado a traí-la.

Ele conduzia um Porsche. Como podia ser de outra forma? Pensou Chloe ao sentar-se no lugar do passageiro. Esperara por ela enquanto ia buscar a sua mala e ela experimentara todos os pares de sapatos que Sylvia lhe pusera na mala, mas os outros ficavam ainda pior. No final, agarrou num casaco, saiu e daquela vez encontrou o caminho para o andar de baixo sem problemas, só para encontrar Bastien à espera dela junto do carro minúsculo.

O dia estava nublado, portanto, pelo menos, tinha a capota fechada. Apesar de não estar sol, ele tinha óculos escuros e esperava por ela calmamente recostado contra o lateral do carro, com os braços cruzados. Vestia outro fato de seda, certamente Armani, com uma camisa de seda clara e sem gravata. O cabelo preto frisava-lhe por trás do pescoço e a sua expressão era ilegível. Abriu-lhe a porta e Chloe pensou que o interior do carro era muito pequeno e acolhedor. Demasiado acolhedor.

Não lhe ocorria nenhuma desculpa para não ir com ele. Endireitou a alça da mala Hermes de Sylvia no ombro, endireitou as costas e sentou-se no carro, evitando aceitar a mão que lhe oferecia. Ouviu-o a rir-se antes de fechar a porta.

Por dentro, o Porsche era tão pequeno como ela receava. E ele parecia maior. No château parecera-lhe de estatura média e de figura elegante, nem demasiado alto, nem demasiado corpulento. No carro, a sua presença era espantosa e as suas pernas eram muito mais compridas do que Chloe pensava. Tinha o banco chegado para trás ao máximo e deu uma olhadela ao céu antes de ligar o carro.

- De certeza que não quer levar um guarda-chuva?

- perguntou. - O tempo parece instável.

Sylvia não lhe pusera um guarda-chuva na mala.

- Tenho de esperar que a chuva se contenha até voltarmos. Não acho que demoremos muito. Só tenho de escolher alguns romances para os convidados de monsieur Hakim e depois poderemos regressar.

- E o almoço? - Bastien seguiu pela avenida longa e sinuosa da entrada do château.

- Não tenho fome - mentiu. - Posso comer algo quando voltarmos, se mudar de idéias.

- Como queira, Chloe - declarou ele, o seu tom de voz era tão sedoso como o seu fato cinzento carvão, tão sedoso como a pele bronzeada dos seus pulsos estreitos. As mãos que pousava sobre o volante eram bonitas e tinha uma aliança de casado. Naturalmente, aquelas mãos pareciam também muito fortes. - Será melhor pôr o cinto de segurança. Conduzo depressa.

Ela abriu a boca para protestar e seguidamente voltou a fechá-la. Já devia ter-se habituado à velocidade louca com que as pessoas conduziam na Europa e, por outro lado, quanto mais depressa conduzisse, mais depressa acabaria tudo aquilo. Passou o cinto pelo peito, pô-lo e recostou-se no banco de couro.

- Suponho que não lhe apetecerá falar comigo? Perguntou ele. Chloe percebeu que estavam a falar em inglês há alguns minutos. Nem sequer reparara.

Certamente, não estava de humor para começar a conversar, nem em inglês nem em francês, dado que a conversa incluiria seduções e a sua aliança de casamento via-se ao longe.

- Estou muito cansada - respondeu, ao mesmo tempo em que fechava os olhos.

- Então, porei música - a voz de Charles Aznavour encheu o carro e Chloe conteve um leve gemido. Aznavour fora sempre uma das suas grandes fraquezas e quando ouvia Com é Triste Venetia, sentia-se derreter.

Sempre podia perder-se no som da sua voz e esquecer-se de com quem ia. Mas Bastien não era fácil de ignorar. Sem necessidade de falar, continuava a saturar os seus sentidos: o cheiro subtil do seu perfume caro provocava-a, o leve som da sua respiração parecia cantar-lhe uma serenata.

O perfume era insidiosamente atraente. Devia perguntar-lhe como se chamava, para comprá-lo para os seus irmãos. Ainda que, pensando bem, talvez não fosse boa idéia. Não voltaria a cheirar aquele perfume sem pensar em Bastien Toussaint e quanto mais depressa se esquecesse daquele homem casado, mulherengo e inegavelmente sedutor, melhor.

Era culpa dela, pensou enquanto a voz do Aznavour a envolvia como um manto de seda. Desejara aventuras, um pouco de sexo e de violência e não estava preparada para aquilo. E só tinham dado um beijo! Queria acreditar que o destino não lhe reservara também um pouco de violência.

"Era só uma brincadeira, meu Deus". Projetou os seus pensamentos para o céu enquanto continuava a tentar ignorá-lo. A única aventura que quero é uma vida confortável, agradável e aborrecida em Paris".

Tem cuidado com o que desejas. Abriu os olhos e olhou de soslaio para Bastien. Tinha o olhar fixo na estrada estreita que se prolongava à frente deles, com as mãos apoiadas com leveza sobre o pequeno volante enquanto atravessavam velozmente o campo. Por alguma razão estúpida, pensava que, se o espiasse sem ele perceber, talvez conseguisse descobrir algo sobre ele. Mas parecia igual: o nariz alto e forte, a boca belamente desenhada, a atitude serena e ligeiramente irônica. Como se o mundo lhe parecesse apenas uma brincadeira de um fumo muito preto.

- Mudou de idéias a respeito ao almoço? - perguntou, sem se virar. Já não podia continuar a espiar. Ele percebera que ela estava a observá-lo e, como sempre, não mostrara nada.

Ela voltou a fechar os olhos para não o ver.

- Não - respondeu. É sob a música de Charles Aznavour, o seu estômago queixou-se.

Bastien apercebeu-se do momento exato em que ela adormeceu. As suas mãos, apoiadas sobre o colo, agarravam com força na alça de pele da mala. E, de repente, relaxaram. A sua respiração aquietou-se e a sua bonita boca deixou de ser uma linha fina e nervosa. Devia ter-lhe dito para tirar os sapatos, pelo menos até chegarem ao seu destino. Claro que ela voltaria a negar que a magoavam.

Que outras mentiras teria contado? Seria interessante descobri-lo e, se corresse tudo bem, teria tempo de sobra para fazê-lo. Primeiro, tinha de chegar a uma cabina telefônica e telefonar a Harry Thomason, para ver se o Comitê sabia quem era Chloe e para saber o que iam fazer a respeito do carregamento de ovelhas le golas para a Turquia. Porque não eram ovelhas, eram armas de potência extraordinária, com sensores de infravermelhos e balas inteligentes capazes de fazer muito mal, mesmo nas mãos do atirador mais inepto. Quase não tinha dúvidas do que o Comitê quereria que fizesse, deixá-los-ia entregar as armas e permitiria que gente inocente morresse enquanto andavam à procura de um peixe mais graúdo para pescar. Os danos colaterais eram o seu mantra e ele já não se importava com isso.

Olhou para a sua acompanhante adormecida. Não ia durar muito, sendo tão inepta. Mas no seu caso não se trataria de um dano colateral, mas de perdas da guerra.

Bastien só esperava, por alguma estranha razão, que não tivesse de ser ele a matá-la.

 

Assustada, Chloe acordou no preciso instante em que o carro parava em frente de um pequeno café. Ignorava quanto tempo dormira e ainda não podia acreditar que tivesse adormecido dentro de um espaço tão reduzido na companhia de Bastien Toussaint. Talvez tivesse sido um mecanismo de sobrevivência.

- Já estamos aqui - informou ele, sem desligar o motor. - Isto é Saint André, uma vila singularmente aborrecida. Há uma pequena livraria do outro lado da esquina e se mudar de idéia pode almoçar neste café. Voltarei dentro de algumas horas.

- Voltará? Para onde vai?

- Tenho de me ocupar de alguns assuntos. Se contava com a minha companhia, lamento desiludi-la, mas há certas coisas que requerem a minha atenção.

- Não estou desiludida replicou ela, apesar de se sentir estranhamente mal-humorada. Olhou através do pára-brisas. O céu estava escuro, coberto e a vila parecia pequena e deprimida. - De certeza que terão o que preciso na livraria? Esta vila é muito pequena.

- Não importa. Hakim não se interessa pelos livros. Só queria livrar-se de si durante algumas horas. E de mim também. Duvido que se incomode em olhar para o que lhe levar.

Ela ficou a olhar para ele.

- Não entendo.

- O que é preciso entender? Assim mata dois coelhos de uma cajadada - tinha as mãos sobre o volante. Umas mãos lindas. Mesmo com a simples aliança de ouro.

Chloe abriu a porta e saiu do carro. A temperatura baixara e levantara-se um vento que arrastava folhas mortas pela estrada estreita.

- Duas horas? - perguntou, dando uma olhadela ao seu relógio.

- Provavelmente - afastou-se assim que ela fechou a porta do carro e desapareceu pela estrada a toda a velocidade.

Era pouco mais da uma hora. Dada a velocidade a que Bastien conduzia, podiam estar a meio caminho de Marselha. Devia ter trazido um guarda-chuva. O céu tornava-se mais ameaçador a cada momento que passava.

Era uma sorte que ele se tivesse ido embora. Deixava-a muito nervosa e não estava habituada a isso. Os homens eram, basicamente, criaturas previsíveis. O que havia era o que se via à vista desarmada. Mas Bastien era muito diferente. Não havia nada nele que fosse óbvio: nem a sua nacionalidade, nem a sua profissão, nem o seu interesse intermitente por ela. A única coisa que sabia era que conduzia a toda a velocidade e que cheirava muito bem.

Dirigiu-se primeiro à livraria. Entre outras coisas, não podia pensar que o recado de Hakim era só uma artimanha e era uma empregada conscienciosa em qualquer circunstância. Custou-lhe encontrar a loja. Teve de pedir indicações a uma mulher idosa de aspecto azedo que provavelmente não lhe teria respondido em inglês mesmo que entendesse o idioma. Por sorte, Chloe sabia que o seu sotaque era muito bom, pois começara a estudar francês na creche da escola privada para onde os seus pais a mandaram. Parecia mais belga do que francesa, mas isso era preferível a parecer uma americana.

A livraria era tão desastrosa como esperava. Estava cheia do que pareciam ser os livros restantes da biblioteca de algum velho professor e alguns dos títulos eram tão esotéricos que nem sequer ela conseguia traduzi-los. Todos em francês, é claro. Certamente, todos aqueles livros tinham sido publicados antes da guerra.

Encontrou alguns romances e comprou-os de qualquer modo. Se não servissem para os hóspedes de Hakim que falavam francês, lê-los-ia ela. Depois, encaminhou-se para o café. Talvez houvesse por ali um quiosque. Algumas revistas de cores brilhantes serviriam para entreter um grupo de lojistas aborrecidos nos seus momentos livres.

Mas não havia quiosque, nem sequer um jornal para ler na tasca lúgubre. Contudo, pelo menos, havia comida e Chloe estava faminta.

Pediu uma baguette com brie para almoçar e café forte em vez de vinho. Não queria voltar a aproximar-se de álcool enquanto durasse aquele trabalhinho peculiar que Sylvia lhe encontrara. E quanto mais depressa acabasse e regressasse ao seu apartamento minúsculo com um punhado de euros, mais se alegraria.

Prolongou o almoço o máximo possível, olhando para o relógio de vez em quando. Tinham passado quase duas horas e Bastien devia estar a chegar. Com sorte, apareceria antes de começar a chover.

Pagou a conta, saiu do café e olhou para a rua no caso de ver algum sinal do Porsche. As ruas estavam desertas e o vento agitava-lhe a saia, colando-a as pernas. Quando se virou novamente para o café a porta estava firmemente fechada e um cartaz de Fermé pendia da vidraça.

Naquele momento, caiu a primeira gota, à qual se seguiu outra imediatamente. Pensou em regressar ao café e bater à porta, mas de certeza que não lhe ligariam nenhuma. Não parecia que tivessem gosto do fato de ela entrar e, provavelmente, já estariam demasiado longe para ouvi-la. Ou então fingiriam.

Encaminhou-se novamente para a livraria o mais depressa que pôde, mas também estava fechada. Meteu-se debaixo de um pórtico, tiritando ligeiramente e aconchegou o casaco enquanto as gotas de chuva começavam a transformar-se num leve chuvisco. A vila era tão pequena que não se via nenhum outro edifício público. Os correios fechavam também ao meio-dia e, se houvesse outras lojas, não estavam à vista.

O que estava à vista era a velha igreja. Chloe conteve uma pontada de culpa: livrar-se da chuva e do frio era razão de pouco peso para pisar finalmente numa igreja, mas não havia outro remédio. A igreja ficava num canto da praça principal. Dali, poderia vigiar a chegada de Bastien mais facilmente e estaria mais quente do que à intempérie.

Estava a meio caminho da igreja quando a chuva começou a cair em toda a sua fúria, encharcando-a até aos ossos. Os sapatos de salto alto apertavam e avançava devagar. Parou o tempo suficiente para tirá-los antes de começar a correr para as portas de madeira trabalhada do velho edifício.

Também estavam fechadas. Que tipo de vila era aquela, onde trancavam a igreja? E se fosse uma pecadora pobre que precisava de absolvição ou de um momento de reflexão?

Bom, para dizer a verdade era uma pobre pecadora segundo os critérios eclesiásticos, embora já não tivesse ocasião de pecar a alguns meses. Mas estava claro que naquela vila não havia necessidade de santificação diurna. Colou-se contra a porta, tentando proteger o mais possível o corpo da chuva e viu como a água caía sobre a rua e corria em redemoinhos pela pavimentação que, apesar de ser encantadora, estivera prestes a custar-lhe um tornozelo partido. A temperatura ia descendo e abraçou o corpo, tremendo. E, então, percebeu que, em algum ponto do caminho, perdera os livros que acabara de comprar.

- Bolas! - resmungou e parou ao recordar onde estava. Só lhe faltava aquilo para completar o dia. Bastien fora-se embora há horas e, com a sorte que tinha, não voltaria. Ficaria presa naquela vila antipática sem nome, morreria de pneumonia e Sylvia teria de encontrar outra colega de apartamento.

Uns faróis atravessaram a chuva, iluminando-a enquanto permanecia aninhada no portal. O Porsche parou à frente dela e ele abriu a janela, mas Chloe não se mexeu.

- Lamento chegar tarde - desculpou-se ele, embora não parecesse lamentar nada. - Disse-te que devias ter trazido um guarda-chuva.

- Vai para o diabo - resmungou Chloe, que finalmente ultrapassara o seu limite. Pegou nos sapatos e saiu novamente para a calçada encharcada. Sentou-se no lugar do passageiro e procedeu a sacudir o cabelo como se fosse um cão molhado.

Bastien não se queixou, o que teria sido divertido. Lamento - repetiu. - Onde estão os livros?

- Perdi-os.

- É um desastre - acusou, olhando para ela com um ar crítico. - Tem o fato arruinado.

A fina camisa de seda colara-se ao seu peito e ao sutiã que ficava um pouco pequeno e ela puxou o tecido para afastá-lo da pele. Sylvia adorava aquela camisa. Era bem feita por metê-la naquela confusão.

- Tens frio - indicou ele.

Chloe pensou em várias respostas, a maioria delas do tipo de "Não me digas", mas resistiu à tentação.

- Sim, tenho frio! - exclamou e tremeu ao levar a mão ao cinto de segurança. Tremiam-lhe tanto as mãos que não conseguiu pô-lo e, no final, desistiu, recostou-se no banco e quis acreditar que arruinaria também os estofos.

Bastien não pusera o carro a funcionar. Estava a olhar para ela fixamente. Ou, pelo menos, era o que ela pensava. Com a chuvada, o interior do carro estava às escuras e ele não acendera a luz.

- Queres ir a um hotel para tirares essa roupa molhada? - o seu tom de voz foi tão despreocupado que podia ter estado a perguntar-lhe se lhe apetecia um gelado.

- Acho que não - respondeu ela, num tom cáustico.

- Liga o aquecimento e ficarei melhor.

Ele ligou o carro e seguiu pela estrada à mesma velocidade suicida com que conduzira antes, mas daquela vez no meio da escuridão e da chuva e ela nem sequer pusera o cinto. O Porsche podia ser um carro magnífico, mas o seu sistema de aquecimento deixava muito a desejar e, meia hora depois, continuava a ter frio e ainda lutava para pôr o cinto porque, se Bastien se empenhasse em conduzir como se estivessem no Maris e capotassem, queria ter uma oportunidade de sobreviver.

O dia ficara escuro, não só pela chuva, mas também pela hora e Chloe estava aninhada no banco, esperando que ele se tivesse esquecido da sua presença, quando de repente, travou e os pneus chiaram sobre o pavimento até pararem junto de uma fileira de cogumelos.

A estrada era demasiado estreita para parar, mas não tinham ultrapassado nenhum carro em todo o trajeto. O que, pensando bem, só conseguiu aumentar o seu desassossego. Estava sozinha numa estrada escura com um homem que não conhecia e em quem não confiava.

Daquela vez, Bastien acendeu a luz do tablier, que encheu o interior do carro de sombras ásperas e inclementes. Bastien já não parecia tão encantador, nem tão suave. Parecia perigoso.

- O que raios estás a fazer? - perguntou, furioso.

- Tento pôr o cinto de segurança - infelizmente, o frio fez com que lhe tremesse um pouco a voz. - Conduzes demasiado depressa.

- Idiota - resmungou num tom de voz baixo e procurou algo às apalpadelas atrás do banco. Ao fazê-lo, tocou-lhe no corpo e Chloe susteve a respiração até ele voltar a endireitar-se. Tinha na mão uma camisa branca e antes que ela pudesse adivinhar o que ele queria, agarrou-a pelo queixo com uma mão e começou a secar-lhe a cara com o tecido suave. - Parece um guaxinim - indicou, num tom de voz desapaixonado. - A maquiagem está toda borrada.

- Incrível! - resmungou ela e segurou na camisa. Consigo fazê-lo sozinha.

Ele pôs a camisa fora do seu alcance.

- Está quieta! - exclamou, enquanto a limpava ao redor dos olhos com uma delicadeza surpreendente. A camisa cheirava como ele. Como o perfume esquivo que usava, como os cigarros que não devia fumar, como o cheiro indefinível da sua pele. E como é que ela sabia a que é que a pele dele cheirava na verdade?

Bastien deixou a camisa sobre o seu colo, mas não lhe largou a cara.

- Já está - disse. - Muito melhor. Agora só pareces misteriosa e sufocada. Pensarão que passamos a tarde na cama. Que é provavelmente o que devíamos ter feito, se não fosses tão americana.

Ela tentou afastar a cara, mas Bastien segurava-a com mais força do que pensava.

- Não o fizemos.

- Que pena! Estás desiludida? Podíamos fazer um pequeno desvio no caminho de regresso. Hakim não nos esperará, basta que nos veja chegar.

- Não, obrigada - respondeu, educadamente.

Ele não se mexeu. Não lhe soltou o queixo e os seus olhos escuros, quase pretos, estudavam os dela com uma expressão quase especulativa. Chloe não via nada nos seus olhos e, no entanto, susteve a respiração de repente e compreendeu o que ia acontecer.

- Isto é um erro replicou ele, suavemente.

E antes que ela pudesse perguntar a que se referia, beijou-a, segurando-lhe na cara com os dedos longos enquanto se apoderava da sua boca.

Não lhe chamavam "beijo francês" por nada, pensou Chloe num último momento de lucidez. Bastien era um mestre consumado. Começava com um toque semelhante ao de uma pena e depois continuava com a língua, que acariciava suavemente os seus lábios. Ela sabia que devia afastá-lo, mas abriu a boca de qualquer modo, apesar de saber que estava a comportar-se como uma néscia.

Mas que mal podia fazer um beijo? Sobretudo, de alguém tão dotado como Bastien. Não podiam fazer muito mais na cabina minúscula do Porsche e, assim que voltassem para o chateou, conseguiria manter-se afastada dele se esforçasse. De maneira que não havia razão para que não se encostasse contra o banco de couro e deixar que a beijasse devagar e lhe mordiscasse o lábio inferior com um puxão leve e erótico dos dentes, o que, por algum motivo, a fez emitir um gemido suave.

Ele levantou a cabeça. Os seus olhos brilhavam na escuridão.

- Gostaste, Chloe? Podias retribuir o beijo.

- Eu... acha... achava que estávamos concordávamos que, na... não era bo... boa idéia - gaguejou ela. Decidiu deitar a culpa ao frio, embora na verdade começasse a arder por dentro.

- Não, não é - concordou ele, apertando os lábios contra a curva do seu queixo. - Mas as boas idéias são tão aborrecidas...

Beijou-a com mais ímpeto daquela vez. Já não tentava seduzi-la com delicadeza. Fazia-lhe exigências, exigências que ela ansiava cumprir.

Estava a tocar-lhe na coxa. Deslizava a mão sob a saia de seda estragada e o seu contacto era como uma chama. Chloe baixou as mãos para parar, mas não conseguiu fazer com que se mexesse. A única coisa que conseguiu foi fazer com que se apertasse contra as suas coxas, o que dificilmente podia considerar uma melhoria.

Bastien afastou-se novamente e respirou fundo, tal como ela. Chloe tentou tomar as rédeas da sua prudência, que lhe fugiam rapidamente.

Porque fazes isto? - perguntou, num sussurro.

- Uma pergunta estúpida. Porque quero. Porque te desejo. A única coisa que tens de fazer é dizer "não". Mas não vais fazê-lo. Porque o desejas tanto como eu, mesmo que tentes convencer-te do contrário. Queres saborear a minha boca. Queres que te toque. Ou não?

Ela queria contradizê-lo, garantir que se enganava, que era um presunçoso, um néscio, um arrogante...

- Beija-me, Chloe sussurrou. E ela beijou-o. Gostava de beijar. Adorava, de fato. Contudo, com Bastien, o beijo excitava-a imenso e não teve de deslizar as mãos por baixo da saia dela para deixá-la quase prestes a rebentar. A única coisa que precisou foi da sua boca, que se mexia, acariciava e saboreava a dela com cada vez mais ansiedade, para que ela sentisse um arrepio que a percorreu desde a garganta até à barriga. Estendeu as mãos para tocar nele.

O carro pareceu sair do nada, a luz dos seus faróis atravessou o pára-brisa, tocou a buzina e as rodas escorregaram sobre a estrada estreita. Esquivou por pouco o Porsche parado e, depois, afastou-se. Mas Chloe afastou-se de um salto, dele, da tentação, afastando-se o máximo possível.

Desejou que a luz não estivesse acesa, que não tivesse de ver Bastien. Claro que se estivessem às escuras talvez não tivessem parado. Ele olhava para ela com uma expressão serena e reflexiva, como se o que se passara nos minutos anteriores não o tivesse afetado.

- Se te chegares um pouco mais para trás, sairás pela janela - indicou.

- Talvez fosse boa idéia. O seu sorriso era leve.

- Não com esta chuva. Senta-te direita e relaxa. Disse-te que não te tocaria se não quisesses. A única coisa que tens de fazer é dizer "não".

- Não quero que me toques - era uma mentira. Ou, pelo menos, era uma mentira da carne. O seu corpo desejava-o. Ansiava o seu contacto. O seu cérebro ainda percebia que era um erro, mas estava a travar uma batalha dura contra o seu corpo cheio de desejo.

- Se tu o dizes, petite - replicou ele, com despreocupação. - Põe o cinto.

Chloe estivera a tiritar de frio, mas isso não era nada comparado com os tremores que se apoderaram dela naquele momento. Ele observou-a a lutar com o cinto, mas não fez esforço algum para ajudá-la, como se quisesse descobrir até que ponto conseguia perturbá-la. Finalmente, estendeu o braço e pôs-lhe o cinto, mas ao fazê-lo os seus dedos longos tocaram na barriga dela e Chloe deu um salto.

- Não, a menos que me peças, Chloe - declarou ele, num tom de voz tranqüilizador e, depois de apagar a luz do teto, pôs o carro novamente a funcionar. Finalmente, começava a estar calor, num momento em que Chloe se sentia a arder apesar de ter a roupa molhada. No entanto, não se queixou.

Pelo menos, não tinham ido mais longe, embora só Deus soubesse o que mais o teria deixado fazer se tivesse tido ocasião. Ainda conseguia sentir o rasto da sua mão na coxa, os dedos longos sobre a sua pele e tão insuportavelmente perto do centro do seu ser. Tinha de tirar aquilo da cabeça, apagar o sabor da sua boca, levantar um muro de gelo entre os dois, um muro que não pudesse derreter com o calor do seu corpo.

- Tem muito jeito para isto, monsieur Toussaint replicou, num tom de voz admiravelmente fria, depois de alguns minutos de caminho. - Não sei por que se incomoda. Suponho que é simplesmente uma questão de orgulho viril ou de demasiada testosterona, talvez. Deve ser impensável que uma mulher não o deseje.

Via o seu perfil graças às luzes do tablier, mas ele não mostrava nada.

- Tenta convencer-me de que não te sentes atraída por mim? Conheço as mulheres, chérie, e sei quando estão interessadas e quando não estão. Não entendo as tuas dúvidas, mas sei aceitar uma negativa com elegância.

Há outras mulheres. Há sempre outras mulheres.

Aquilo não estava a correr como ela planeara. Claro que com aquele homem estranho nada corria como ela queria.

- E tenho a certeza de que são muito mais fáceis de seduzir o seu tom de voz era cáustico.

- Oh, acho que podia seduzir-te com bastante facilidade se me empenhasse.

Por alguma razão, Chloe achou aquilo insultante. Será que não queria incomodar-se em fazer o esforço? Por quê? Seria assim tão pouco atraente?

Não mostrou a sua reação.

- Podes pensar o que quiseres - declarou. - Mas da próxima vez que quiseres seduzir alguém, deves escolher um lugar melhor do que o banco da frente de um Porsche. Não é precisamente o melhor lugar para ter sexo.

Sorriu.

- Deixa-me garantir-te, Chloe, que podia ter tido sexo contigo no banco da frente deste carro. Fi-lo outras vezes.

Como era possível que uma afirmação insultante fosse tão erótica? Devia sofrer hipotermia.

- Leva-me para o château - pediu num tom de voz baixo, dando-se por vencida. Bastien tinha mais jeito para aquilo do que ela e a verdade era que certamente o desejava tanto como ele pensava. Provavelmente, até mais do que ele a desejava a ela. Nem sequer sabia se acreditava nele a esse respeito. Era um homem que procurava borboletas exóticas como Monique von Rutter ou madame Lambert, aquela inglesa elegante e desumana. Uma americana desajeitada dificilmente podia ser o seu tipo.

Mas, quer a desejasse ou se tratasse simplesmente de uma resposta automática, correria tudo bem enquanto se mantivesse afastada dele. Vira o que se passara na noite anterior: Bastien demorara menos de cinco minutos a desaparecer com Monique von Rutter. Encontraria outra com quem se distrair assim que chegassem lá.

Conduziu a toda a velocidade e em completo silêncio durante o resto do caminho. Deu a volta ao edifício extenso até à parte de trás e Chloe olhou para o seu relógio caro, esperando que tivesse deixado de funcionar.

Eram só seis e meia e tinham uma longa noite pela frente. E a única coisa que ela queria era tomar um bom banho quente e meter-se na cama.

Tinha, no entanto, a impressão de que não ia ser possível. Ele parou o carro, inclinou-se e tirou o cinto.

Pensei que preferirias entrar por outra porta. Esta é a mais próxima do teu quarto. Podes tomar um duche e mudar de roupa antes de os outros te verem e começarem a fazer perguntas.

- E se as fizerem? Não estive em nenhum lugar onde não devesse estar, nem fiz nada proibido assim que aquelas palavras saíram da sua boca arrependeu-se de as ter dito. Beijar Bastien fora uma insensatez e as coisas podiam ter sido muito piores se não os tivessem interrompido.

- A sério? - murmurou ele. - Nesse caso, posso subir contigo e acabar o que começamos.

Chloe esteve prestes a aceitar. Mas, por sorte, ainda restava um pingo de prudência.

- Não, obrigada. Acho que já acabamos.

- Não me digas? - ao ver o seu sorriso lento e irritante, Chloe sentiu vontade de esbofeteá-lo. Inclinou-se para ela. E, de repente, receou que fosse beijá-la outra vez. Mas limitou-se a abrir-lhe a porta do carro. - Vemo-nos no jantar.

Ela agarrou nos seus sapatos estragados, na mala de pele encharcada e na sua dignidade e saiu para o pátio. O aguaceiro transformara-se num chuvisco, mas o ar era cada vez mais frio, e sentia a roupa pegajosa e gelada. Olhou para o Porsche, mas não distinguiu Bastien no interior às escuras. Melhor.

- Obrigada pelo passeio - agradeceu e fechou a porta com demasiada força.

Antes de se afastar, pareceu-lhe que o ouvia rir-se.

 

Bastien não gostava de se enganar. Passara mais tempo do que conseguia recordar a observar a natureza humana e indagar sobre as pessoas e a sua intuição normalmente era infalível. E agora começava a ter sérias dúvidas a respeito de Chloe Underwood.

A lógica dizia-lhe que era uma agente perigosa. Seria absurdo pensar que havia outra possibilidade. E ou era muito, muito boa, ou muito, muito má. Bastien não sabia o que pensar.

Chloe desceu tarde para jantar, coisa nada estranha e ele procurou não se cruzar no seu caminho. Ela estava a prestar-lhe atenção, qualquer pessoa inteligente teria percebido isso, e naquela sala não havia ninguém que fosse deficiente mental. Permaneceu em silêncio, comeu pouco e olhava para todas as partes, menos para ele. Noutras circunstâncias, Bastien teria achado graça. Mas naquele momento não achava nada engraçado.

Ela não parecia tão atraente como na tarde em que chegara. O seu cabelo moreno estava encaracolado devido à chuva, tinha uma maquiagem muito discreta e tinha a boca vermelha e ligeiramente retorcida. Ele não a beijara com tanta força, pois não? Talvez sim, mas ela retribuíra o beijo com um entusiasmo idêntico, até os malditos faróis os terem interrompido.

Podia ter descoberto muitas coisas quando estivesse dentro dela e ainda podia.

Monique von Rutter observava Chloe com o instinto de um grande tubarão branco à procura de um membro para arrancar. Bastien observava em silêncio enquanto a baronesa conversava com Chloe num tom de voz tão lisonjeador que não teria enganado ninguém, para além de um ingênuo perfeito. Chloe olhava para ela com receio, respondia às suas perguntas provocadoras com monossílabos e não tocava no vinho. Era uma pena. Bastien esperava que o álcool lhe facilitasse a tarefa.

Claro que não era dos que preferem o caminho mais fácil.

- Os homens franceses parecem-me absolutamente tediosos. Não pensa o mesmo, menina Underwood? Estava a dizer Monique. - Interessam-se mais pela sua própria atuação do que pelo prazer de uma mulher. E são tão vaidosos! Repare em Bastien, por exemplo. Só uma pessoa superficial se vestiria tão bem.

Os olhos de Chloe voaram para ele e, depois, voltaram a fixar-se no seu prato, quase intacto. Não respondeu. Não estava a dar muita conversa a Monique, pensou Bastien vagamente, enquanto fazia girar o seu copo de vinho. Talvez devesse dar-lhe uma ajuda.

- Mas engana-se, baronesa - replicou, arrastando as palavras. - Um homem obcecado pela sua atuação sexual dedica-se com devoção a dar prazer à sua amante. Seria outra coisa se interessasse mais pela sua própria satisfação, mas se o seu orgulho insiste em que seja um grande amante, isso só pode servir em benefício da mulher, não é assim?

Havia um leve rubor nas faces de Chloe enquanto olhava fixamente para o seu prato, um rubor em que todos repararam.

Mas Monique estava furiosa.

- A menos, naturalmente, que a mulher em questão se aperceba de que não é mais do que um acessório para a vaidade do seu amante. Que o seu prazer é simplesmente um reflexo das façanhas do homem e que não há desejo verdadeiro pela sua parte.

Bastien encolheu os ombros.

- Que importância tem isso? Desde que ela goste...

- E é um perito em fazer as mulheres desfrutar acusou Monique. Depois, acrescentou com excessiva celeridade: - Ou, pelo menos, foi o que me disseram.

Bastien já não achava graça. Todos na mesa sabiam que ele tivera um caso com ela, incluído o seu marido voyeur. E até a inocente menina Chloe. Estava previsto que todos se fossem embora em menos de quarenta e oito horas e, pelo menos que ele soubesse, mal tinham avançado. Não estavam mais perto de escolher o seu novo chefe e Christos ainda não aparecera. Claro que certamente mandara Chloe à frente para fazer o trabalho preliminar. Os outros eram parvos por não perceberem como a situação era delicada. E como a tradutora substituta era estranha.

O cartel, cujo sucesso dependia do mais estrito segredo, contava com a presença perigosa de uma desconhecida no seu seio e os ardis invejosos de Monique não melhoravam a situação. A baronesa precisava de outra pessoa em quem fixar a sua atenção, mas não havia mais ninguém à mão. Hakim preferia os jovens, a madame Lambert era uma pedante, Ricetti era homossexual e Otomi era um devoto pai de família. O que só deixava o seu marido e Monique cansara-se dele há muito tempo.

- Devíamos trabalhar esta noite - interveio Hakim e ficou claro que ele também estava farto da atitude de Monique. - Vamos atrasar-nos e não podemos dar-nos ao luxo de continuar à espera do senhor Christopoulos. Temos muitas coisas para decidir e muito pouco tempo: a revisão de territórios, a nova chefia e o tipo de resposta que vamos dar ao assassinato de Remarque, são coisas de tremenda importância e não podemos perder mais tempo.

Ah, Chloe, pensou Bastien. Ela virara-se e olhava para Hakim com surpresa e ele percebia claramente em que estava a pensar. Como era possível que a importação de mantimentos e de gado fosse de tremenda importância? Porque é que tinham assassinado o seu chefe? Ou era incrivelmente trôpega ou incrivelmente inteligente.

- Então, trabalharemos - concordou o barão.

- Os que sejamos necessários. Menina Underwood, fica dispensada esta noite. Podemos fazê-lo sozinhos.

Chloe aceitou aquilo como uma despedida.

- Lamento ter-me esquecido dos livros - desculpou-se.

- Que livros?

- Os que me mandou comprar.

Hakim abanou uma mão num um ar de desdém.

- Não tem importância. Vamos trabalhar na sala de reuniões. Tenho a certeza de que estará mais confortável no seu quarto.

Era uma ordem o mais clara possível, um aviso, mas Chloe continuava a representar a sua atuação desajeitada.

- Perguntava-me se há algum computador que possa usar. Queria ver o meu e-mail.

Silêncio mortal. Bastien recostou-se na cadeira e perguntou-se como Hakim responderia. Para sua surpresa, o outro assentiu.

- Na biblioteca, junto das escadas, no andar de baixo. Pode ficar o tempo que quiser.

- Só vou ver o meu e-mail - afirmou ela e levantou-se da mesa. Os outros ficaram quietos, nada de cortesias para a empregada, pensou Bastien refreando o seu impulso de ficar de pé. E se só queria ver o seu e-mail, ele era uma bailarina do Ballet Russo. Mas seria suficientemente inteligente para apagar os seus rastos?

A porta fechou-se atrás dela e a conversa começou imediatamente.

- Não acho que seja boa idéia tê-la aqui - declarou von Rutter, em alemão. - Podíamos tê-lo feito bastante bem sem tradutor. Porque havíamos de trazer uma estranha?

- A mulher que contratei originalmente era uma loira sem cérebro com a capacidade necessária para facilitar as coisas e a estupidez necessária para não reparar em nada estranho - respondeu Hakim, no mesmo idioma. - Desta não tenho a certeza.

- Não tem a certeza? - perguntou Monique, com aspereza. - Não achava que fosse do tipo de pessoa que deixa as coisas à sorte, Gilles. Devia livrar-se dela imediatamente.

- Se for preciso - replicou Hakim. Não gostava que lhe dissessem o que tinha de fazer. Achava que chegara a sua hora e que estava prestes a ocupar a chefia da mesa. - Sabem que faço o que terá de ser feito sem nenhum escrúpulo. Mas nunca ajo precipitadamente. Se uma americana desaparecer sem deixar rasto, haverá demasiadas perguntas. Tenho de estar convencido de que ninguém sentirá a falta dela ou de que a sua presença aqui é demasiado perigosa. Não tenho a certeza de nenhuma das duas coisas. Assim que tiver a certeza, a menina Underwood deixará de ser um problema.

- Inglês ou francês, por favor, se não souberem italiano - resmungou Ricetti. - De que estamos a falar?

Monique virou-se e sorriu com doçura.

- Estamos a debater se a menina Underwood representa um perigo e, se for assim, como podemos livrar-nos dela - explicou, no seu italiano impecável.

- Matem-na e finjam um acidente de automóvel respondeu Ricetti.

- Talvez - respondeu Hakim. - Mas viaja com o meu motorista e não sei se quero prescindir do meu Daimler só para encobrir uma execução. Além disso, custar-me-ia encontrar um substituto para o meu motorista.

- Matem-na e deixem de conversas - afirmou o senhor Otomi. - Se sentem demasiados escrúpulos, podem pedir ao meu ajudante para se encarregar dela. Estamos a perder tempo a discutir quando temos coisas mais importantes para fazer. Quero saber como vamos introduzir as quatro dúzias de legolas na Turquia sem que se descubra.

- Isso é problema dele, Otomi-san - indicou Bastien, suavemente. - Eu quero saber de onde vem o dinheiro antes de pôr as minhas mercadorias sobre a mesa. E, confie em mim, são impressionantes. As melhores mercadorias criadas pela tecnologia americana.

- Ninguém confia em si, Bastien - acusou a madame Lambert. - Nenhum de nós confia-nos outros. Por isso trabalhamos tão bem juntos. Entre nós, controlamos a compra e venda ilegal de armas em grande parte do mundo. A confiança seria apenas um obstáculo.

- Em grande parte do mundo - repetiu Bastien, mas não em todo. Onde demônios se meteu Christos? Eu não gosto deste atraso. Põe-me nervoso. Não devíamos preocupar-nos com ele em vez de nos preocuparmos com uma jovem desgraçada com a astúcia de um coelho?

Monique desatou a rir-se.

- Sim, é um coelhinho, não é? Com aqueles olhos tão grandes e aquela forma de franzir o nariz. O que não sabemos é se trata ou não de uma farsa. E eu, pelo menos, não queria pôr os nossos negócios em perigo à espera de o descobrir. Se Christos estivesse aqui, diria o mesmo.

- Christos não está aqui e estamos a perder demasiado tempo com a rapariga - replicou Hakim, com desagrado. - Bastien, vá atrás dela, vê o que consegues descobrir. Não quero atrair a atenção das autoridades, mas também não quero perder tempo a discutir sobre ela. Começaremos com a proposta de Ricetti de redistribuir os clientes do Médio Oriente... assim terá tempo de chegar a alguma conclusão. Se for um perigo, mate-a. Se não, volte para a mesa e continuaremos com os nossos assuntos.

Bastien arqueou uma sobrancelha.

- E por que tenho de ser eu a fazer o trabalhinho? Perguntou, com uma certa aspereza. - Já passei todo o santo dia com ela e não descobri nada.

- Não se esforçou o suficiente. O senhor é que passou mais tempo com ela. É quem está em melhor situação para descobrir o que está a acontecer.

- Além disso - indicou Monique, - está louca por si. Até o mais parvo consegue vê-lo.

Ele não se incomodou em negá-lo. Qualquer parvo veria que Chloe Underwood era quase hipersensível à sua presença. Bebeu o seu copo de vinho e afastou-se da mesa.

- Será um prazer - declarou, com indolência.

E saiu calmamente da sala, com as mãos nos bolsos, impassível face à tarefa que o aguardava.

Não havia nem rasto dela na biblioteca do andar de cima, mas o computador estava ainda aceso, o que demonstrava que estivera lá. Tentara encobrir a sua pesquisa na Internet, mas Bastien não demorou muito a descobrir o seu rasto. Estivera a indagar sobre as legolas e encontrara uma página na qual se explicava como aquelas armas eram perigosas e ilegais. Também indagara sobre metade das pessoas da sala, incluindo ele.

Bastien não se incomodou em rever a sua pesquisa. Sabia exatamente o que teria descoberto nas suas averiguações toscas através da Internet, a respeito dos outros e de si próprio. Bastien Toussaint tinha trinta e quatro anos, era casado, não tinha filhos, rumorejava-se que estava vinculado com diversas organizações terroristas, coisa que nunca se confirmara, e suspeitava-se que se dedicava ao tráfico internacional de drogas e de armas. Estava relacionado com o assassinato de três agentes da Interpol, dizia-se que era um homem extremamente perigoso.

Ela teria lido tudo aquilo, mas nada disso a teria surpreendido se estivesse convenientemente informada. Se tudo aquilo era novo para ela, ia custar-lhe aproximar-se mais dela e descobrir quem e o que era.

E tencionava descobrir se era difícil chegar a ela. E se era boa na sua própria atuação, como Monique lhe chamava. Ia acabar com os rodeios. Chegara a hora de descobrir o que estava a fazer ali.

E de fazer algo a respeito disso.

Chloe estava cheia de medo. Sentada no meio do seu quarto elegante, chorava. A maquiagem, recém-aplicada, estaria borrada por toda a cara, pensou. E devia parecer-se novamente com um bicho. Mas daquela vez Bastien não estaria lá para resolver a ofensa com uma das suas camisas suaves e limpas. Não ia voltar a aproximar-se dela.

Tinha de sair dali. Como, em nome do Céu, é que se metera naquele ninho de víboras? Devia ter percebido que estava a acontecer algo estranho, mas os seus pais sempre lhe disseram que tinha demasiada imaginação e ela chegara à conclusão de que estavam certos. O seu vício de ler romances policiais e fantásticos provavelmente também não ajudara.

Mas aquele não era um perigo imaginário. Aquelas pessoas não eram comerciantes de mantimentos e por que demônios é que pensara que, com efeito, eram comerciantes, parecia um verdadeiro mistério. Será que Bastien Toussaint tinha ar de importador de frangos? Será que a baronesa Monique von Rutter comprava os seus fatos de marca e os seus diamantes magníficos com os lucros das sementes?

- Idiota! - exclamou, num tom de voz alto. Tinha de sair dali depressa, antes de decidirem que era um estorvo. Fora-se embora da sala de jantar imediatamente, nem sequer parara ao ouvir o seu nome no meio de uma frase em alemão. Era importante que se ligasse à Internet antes de irem atrás dela. O barão von Rutter era um bom homem, não permitiria que a magoassem. A menos, que ele também ignorasse o que estava a acontecer ali.

A sua mala estava no fundo do armário. Tirou-a e começou a guardar a roupa de Sylvia, incluindo a blusa de seda estragada e as meias destruídas. Era bastante simples: diria a monsieur Hakim que recebera um e-mail da sua companheira de apartamento informando-a de que a sua avó estava muito doente e de que devia regressar a casa imediatamente. Até lhes diria que já reservara um bilhete na Air France e que devia apanhar o avião em menos de doze horas. O tempo exato para regressar a Paris, pôr algumas coisas numa mala de viagem e voar a casa. Pela primeira vez na sua vida adulta estava realmente assustada.

Não ia bem equipada para viajar. Escolhera o vestido mais insípido que Sylvia lhe mandara, um vestido preto e que mostrava demasiado peito, embora tivesse conseguido fechar um pouco o decote com um alfinete-de-ama. Por baixo, vestira a roupa interior de renda preta própria da amante de um homem rico e se tivesse de voltar a calçar outro par de saltos demasiado pequenos, iria começar a chorar.

Mas não havia outro remédio se quisesse sair dali viva. Não conseguia esconder o seu pânico. Nunca tivera jeito para mentir, mas também nunca arriscara tanto. "Pensa nisto como se fosse uma atuação", disse para si. Como Blanche Dubois em Um Elétrico Chamado Desejo... Não, alguém mais auto-suficiente. Na sua situação, não ia encontrar nenhum estranho em cuja bondade pudesse confiar.

A mala era uma desordem, mas não se importava. Entrou na pequena casa de banho, pôs as coisas de higiene pessoal no saquinho bordado que Sylvia usava e voltou para o quarto para guardá-lo na mala antes de fechá-la.

- Vais a algum lado? - perguntou Bastien Toussaint da porta aberta, com calma.

 

Chloe Underwood olhava para ele como se fosse um assassino provido de um machado, pensou Bastien com indolência. Estava aterrorizada. Era um pânico choroso e irracional que parecia uma mais prova de que era uma perfeita inocente que se vira acidentalmente presa naquele buraco. Só que Bastien não acreditava nos acidentes.

Era como espreitar num corredor cheio de espelhos, pensou. Não se sabia qual era o objeto real e qual era um simples reflexo. Será que Chloe era inocente? Seria uma agente inexperiente? Ou uma agente muito boa que fingia ser inocente? Ou que fingia ser inepta?

Estava a ficar sem tempo, só havia um modo de chegar ao fundo da questão. Magoá-la não o levaria a lado nenhum. Tê-la-iam treinado para suportar a dor e não diria nada que não quisesse dizer.

Mas havia outros modos mais agradáveis de descobrir o que queria. Fechou a porta de um pontapé atrás de si e viu que o medo crescia nos seus olhos.

Sabia onde estavam às câmaras de segurança, procurara-as na noite anterior, ao revistar o seu quarto. Cobriam quase toda a divisão, incluindo a cama e a casa de banho e Bastien não duvidava de que, se não tivesse um público ávido, pelo menos estavam a gravar tudo para a posteridade. Ia ter de fazer um bom papel. Hakim e companhia não eram enganados facilmente.

Isso não significava que tivesse de ter público.

Havia um canto do quarto que ficava na sua maior parte fora do enquadramento das câmaras, um pequeno nicho na parede com uma cômoda Luís XV. Possivelmente era uma cômoda verdadeira de Luís XV. Isso serviria.

Ela estava parada a meio do quarto. Não se mexia, mas quando Bastien se aproximou dela, recuou com nervosismo. Pensava saber quem ele era e do que era capaz. Mas não sabia nem metade.

Bastien abriu o armário, deixando a televisão a descoberto, e ligou-a. Aumentou o volume e, depois, foi mudando de canal até encontrar o que queria. Hakim passava pornografia vinte e quatro horas por dia e os gemidos do prazer simulado encheram o quarto.

- O que estás a fazer? - perguntou Chloe, atônita, afastando o olhar do ecrã baixo e largo da televisão. Dois homens estavam a ter sexo com uma mulher, não era a fantasia favorita de Bastien, mas o som serviria para sufocar a maior parte da sua conversa.

Ficou ali parado e não disse nada enquanto tirava o casaco e o atirava para uma cadeira. Estava fora do alcance da câmara e o som que emanava da televisão abafaria tudo o que dissesse.

- Anda cá! - ordenou.

Podia ter-lhe sugerido para saltar de um edifício... Ela abanou a cabeça teimosamente.

- Não sei o que fazes aqui, mas quero que te vás embora.

-Anda cá!

Ela não teria começado a mexer-se se não quisesse.

Ele assentara bem as bases: estava cativada por ele e ele sabia. Era uma sorte que não tivesse acabado o que começara no carro. Ainda continuava a jogar com vantagem. Ela tinha medo e, no entanto, o seu corpo continuava a sentir o poder da sua excitação. Aquilo era quase mais forte do que o seu receio.

Parou perto dele, ainda ao alcance da câmara.

- Eu não gosto de ver filmes desses - indicou. Estava claro que pensava que falava com naturalidade, mas de qualquer forma a frase parecia forçada.

Bem me parecia. Afinal de contas, os americanos costumam ser bastante escrupulosos no referente ao sexo.

- Eu sou perfeitamente normal no referente ao sexo replicou ela, esquecendo momentaneamente o seu medo, tal como ele pretendia. - Não sou uma americana virgem e reprimida, independentemente do que penses.

- Então, anda cá!

Ela não percebeu que Bastien começara a recuar para tirá-la do enquadramento da câmara. Claro que talvez nem sequer soubesse onde estavam situadas as câmaras do quarto e em todos os quartos do château reformado.

Foi direta para ele com os ombros erguidos como se fizesse menção de entrar numa batalha.

- Não tenho medo - declarou.

- Claro que tens, cachorrinha - indicou ele. - Nisso consiste metade da diversão - deslizou as mãos por trás do seu pescoço, sob o cabelo denso, e puxou a sua cara para ele. Ela olhava para ele com os olhos muito abertos e cheios de angústia e ele quase sentiu... algo. Piedade? Escrúpulos? Compaixão? Não havia capacidade para essas coisas nas suas emoções.

Beijou-a. Recordava o sabor da sua boca, o som suave e sibilante que fazia, o modo como os seus lábios se mexiam. Recordava tudo aquilo e desejava-o. De repente, alegrava-se por ter decidido seguir aquele curso de ação e por se ter visto forçado a isso. De outro modo, teria tido de procurar alguma outra desculpa.

Aprofundou o beijo ao mesmo tempo em que lhe rodeava a cintura com os braços e a levantava. Chloe agarrou-se a ele. Bastien levou-a para o pequeno recesso do quarto e apertou-a contra a parede de espelho enquanto começava a acariciar-lhe os seios.

Ela fechara o vestido com um alfinete. Bastien afastou-se por um instante. Respirava com dificuldade.

- O que raios fizeste com o vestido? Ela não tentou fugir.

- Era demasiado solto. Segurei-o com um alfinete.

- Supostamente, deve ser solto. Tira isso!

Ela pestanejou, o seu único sinal de hesitação. Depois, levantou as mãos e desabotoou o pequeno alfinete-de-ama.

-Agora, abre-o! - ordenou ele.

Pareceu-lhe que ela ia negar-se. Mas não o fez. Abriu o vestido de seda preto e Bastien reconheceu a roupa interior de renda e seda pretas que tinha por baixo. Procedia da loja de lingerie mais cara de Paris e era daquelas coisas que uma simples tradutora não podia dar-se ao luxo de ter. O tipo de coisas que as mulheres compravam para entreter um amante rico. Outra mentira.

Ainda que, para dizer a verdade, será que ele não percebera que não usava o tamanho adequado de sutiã? A sua pele sedosa parecia apertar-se contra a renda preta. Desejou tirar-lhe o sutiã. Mas estava a ficar sem tempo.

Portanto, limitou-se a beijá-la novamente, apertando-a contra si, o seu corpo quase nu e quente contra a camisa aberta dele. Ela retribuiu o beijo com o entusiasmo suficiente para ele pensar que não mentira ao dizer-lhe que não era uma virgem tremula. Apesar de tremer nos seus braços.

Os gemidos, altos e sinceros, procediam da televisão, salpicados por gritinhos. Não importava que tipo de sons emitissem: ninguém notaria a diferença entre o filme e a realidade.

A pele de Chloe era quente ao toque e suave como a seda contra as suas mãos. Ela rodeara-lhe o pescoço com os braços e agarrava-se a ele como se uma rajada de brisa pudesse levar-lho. Ele gostava daquilo.

- Tira a roupa interior! - ordenou.

Os seus olhos, que o prazer deixara semicerrados e sonolentos, abriram-se de repente.

- O quê?

- O que achas que estamos a fazer, Chloe? Tira as cuecas. Podes deixar o sutiã se quiseres.

Ela ficara paralisada e a cor abandonara a sua cara.

- Afasta-te de mim! - gritou, dando-lhe um empurrão.

Mas era demasiado tarde. Já fora demasiado tarde desde que ele pisara no quarto. Talvez fosse demasiado tarde desde que a vira pela primeira vez.

A luxuosa roupa interior estava desenhada de modo a ser fácil prescindir dela. Bastien introduziu a mão entre os dois, agarrou nas cuecas, puxou com força e os laços rasgaram-se.

- Não! - gritou. Sem piedade, recordou-se enquanto a apertava contra o seu corpo. Aquilo era um trabalho, algo que devia fazer. Beijou-a novamente e, enquanto as mãos dela tentavam afastá-lo, a sua boca respondia.

E depois foi demasiado tarde. Bastien levantou-a, aproximou-a da cômoda antiga, depositou-a sobre ela e pôs-se entre as suas pernas. Ignorava se ela tinha consciência do que ia acontecer ou se era capaz de pensar racionalmente. Mas não importava.

Estava excitada, como ele pensava. Só demorou um instante a desabotoar as calças e, depois, penetrou-a profundamente e sentiu que a inconfundível onda de um orgasmo subtil a percorria por inteiro sem que conseguisse evitá-lo.

Ia chorar, ia empurrá-lo para que se afastasse e ele não estava disposto a permiti-lo. Apoderou-se da sua boca antes de ela poder protestar, fez com que lhe rodeasse as ancas com as pernas e começou a mexer-se, sem a soltar até compreender que estava do seu lado, que tentava aproximar-se mais dele, que queria responder às suas investidas, mas não podia porque estava sentada sobre a cômoda. Sentia como se arrepiava, sabia que, fosse o que fosse o que a sua consciência lhe ditava, o seu corpo mandava e a única coisa que desejava era alcançar o orgasmo. Satisfazer-se. E a ele.

Ele afastou-se quase por completo e bebeu do seu grito angustiado como o mel que era.

- Quem és? - sussurrou-lhe ao ouvido. - O que fazes aqui?

Ela cravou-lhe as unhas, tentando desesperadamente puxá-lo para si, mas Bastien era muito mais forte do que ela e imobilizava-a, apertando as suas ancas contra a cômoda.

- Quem és? - perguntou outra vez, o seu tom de voz era tão frio como o seu corpo era quente.

Os seus olhos estavam toldados e a sua boca era uma ferida suave.

- Chloe... - respondeu, num tom de voz estrangulado. Bastien penetrou-a com força e, depois, retirou-se antes de ela conseguir impedi-lo. Ela voltou a gemer, mas ele não tinha remorsos.

- Essa roupa não é tua - sussurrou e o barulho da televisão aumentou em intensidade, tal como a sua excitação desumana. - Falas idiomas que finges não falar. Estás aqui por alguma razão e não tem nada a ver com a tradução. Vieste para matar alguém?

- Por favor! - soluçou ela.

Penetrou-a novamente e sentiu-a suspensa à beira do abismo, pronta para rebentar e indefesa, tal como esperava.

- O que queres, Chloe? - murmurou, sabendo que ia finalmente extrair-lhe a verdade.

Os seus olhos estavam cheios de lágrimas e tremia.

- A ti - respondeu. E ele acreditou.

Então, parou de pensar. Afastou-a da cômoda, envolvendo as ancas com as pernas dela, penetrou-a até ao fundo e o clímax atingiu-a com tanta força que gritou mais alto do que as vozes da televisão. Um grito abafado de prazer indefeso.

Ele não estava preparado. Estava farto de brincar. Penetrou-a lenta e deliberadamente, apoiando-se no espelho da parede e segurando-lhe nas ancas, tendo sexo com ela lenta e docemente até que o prazer se apoderou também dele e chegou ao orgasmo. Perdeu-se na sua carne terna e quente e na sua boca doce e suave.

Esperou até a sua respiração se acalmar, até os tremores remeterem e, depois, retirou-se e apoiou o corpo cansado de Chloe contra a parede até as suas pernas conseguirem segurá-la. Manteve-a assim por um instante. Via a sua própria cara refletida no espelho da parede, escura e desumana. Parecia o monstro que era e não havia nada que pudesse fazer a respeito disso. Aceitara-o há muito tempo.

Afastou-se dela e vestiu a roupa. Ela olhava para ele como se fosse um fantasma e Bastien desejou apertá-la entre os seus braços e reconfortá-la. Parecia tão necessitada... Apesar de tentar fingir que era sofisticada, saltava à vista que não estava habituada a coisas como o que acabara de acontecer e parecia perdida e desorientada.

Mas ele não podia reconfortá-la. Fechou os olhos e, apoiando a testa contra a dela, baixou-lhe o vestido e atou-o pela cintura. Não podia mantê-la por mais tempo fora do alcance das câmaras, mas também não tinha de tornar as coisas fáceis para os outros.

Quando as respostas lógicas ficavam descartadas, não havia outro remédio senão acreditar no impossível. Chloe Underwood era exatamente o que dizia ser. Uma mulher inocente presa num redemoinho tão poderoso que nem sequer conseguia compreendê-lo. E, coisa rara, fora o bom da fita, para chamá-lo de algum modo, que lhe fizera mal. Até àquele momento.

Ia comer o pão que o diabo amassou para tentar dissipar as suspeitas de Hakim. Tinha de voltar para o computador, apagar os rastos virtuais da menina Intrometida e convencer os outros de que não tinham nada a recear dela.

Mas primeiro tinha de acabar com ela. Beijou-a na boca com ligeireza, cuidadosamente.

- Eh bien, querida - murmurou. - Foi muito agradável. É uma pena que não tenhamos tempo para mais.

Ela ficou a olhar para ele por um instante e, depois, deu-lhe uma bofetada com todas as suas forças.

Não fazia sentido lamentar-se, os remorsos eram uma sensação alheia a ele e o seu corpo continuava a cantarolar, satisfeito. Esboçou um sorriso retorcido, pegou no seu casaco e saiu do quarto, fechando silenciosamente a porta atrás dele.

Chloe recostou-se contra a parede. Sentia as pernas fracas e quase não conseguiam segurá-la. Ela deslizou até ao chão lentamente. Começou a tremer. Começou devagar, como uma leve vibração que foi crescendo até começar a tremer incontrolavelmente. Abraçou-se, mas não conseguiu aquecer. Fechou os olhos, mas a televisão continuava ligada, os gemidos eram um staccato que acompanhava a sua confusão e voltou a abrir os olhos. As cuecas de renda jaziam, rotas, no chão do pequeno recesso do quarto, à frente da cômoda antiga que provavelmente nunca conhecera tal uso na sua existência longa e elegante. Claro que aquilo era a França.

Tinha vontade de vomitar. Não havia dúvida: o que se passara horrorizava-a e fazia-a sentir-se doente. Ainda não conseguia entender por que.

Não dissera que não. Não havia forma de evitar aquela simples verdade: não lhe dissera que não. Não valia a pena pensar se ele teria aceitado um "não" como resposta. Ela permitira-o.

E o mais espantoso de tudo fora o fato de ter gostado.

Não, aquela não era a palavra adequada. Não gostara que a manipulassem, que a intimidassem, que a atormentassem e a usassem.

Mas Bastien Toussaint conseguira fazer com que alcançasse o clímax de qualquer modo. Ou precisamente por causa disso, o que era ainda mais terrível.

Não. Ela não sentia a necessidade secreta de ser castigada, humilhada, usada e abandonada. Não havia sombras escondidas no seu passado, nenhuma repulsão retorcida por si própria que suplicasse crueldade.

Assim, porque o deixara fazê-lo? Porque é que a sua mente não gritava enquanto respondia aos seus beijos? Porque é que se agarrara a ele sabendo quem e o que era na verdade? Porque chegara ao clímax?

Podia dizer-se que era uma simples questão biológica.

A sua família teria dito que era uma reação psicológica normal. Não havia nada para se envergonhar, nada que pudesse causar-lhe horror e fazê-la adoecer.

O problema era que, no fundo, sabia o que lhe produzia vergonha, espanto e mal-estar físico e não era o foto de ter tido o orgasmo mais poderoso da sua vida em circunstâncias tão pouco propícias para o amor.

Mas o fato de desejar que aquilo se repetisse.

 

Novamente em frente ao computador, Bastien revia o histórico com golpes rápidos no teclado. Sempre tivera a capacidade notável de compartimentar os seus pensamentos, a sua vida e as suas emoções. Datava de quando, sendo criança, seguia a sua mãe, apesar de ser muito difícil seguir o seu ritmo.

Se mandasse a sua mente para um lugar isolado, não sentia dor. Não sentia a raiva, nem os gritos dos moribundos, nem o cheiro do sangue, nem era necessário contar os mortos. Concentrava a mente numa só direção e tudo o resto ficava guardado no seu espaço próprio e nítido, incapaz de fazer dano.

Tinha jeito para os computadores, era rápido e expedito e sabia que não dispunha de muito tempo. A grande pergunta era se, para além das câmaras de segurança, havia algum dispositivo de vigilância eletrônica em tempo real. Podia haver alguém numa das divisões ocultas a observar tudo o que fazia no computador depois de ter tomado nota das pesquisas incompetentes de Chloe.

Ou talvez se limitassem a rever o histórico do computador regularmente, em cujo caso podia apagar os rastos de Chloe sem receio algum.

Em qualquer caso, faria isso. Se Hakim e os outros encontrassem o rasto de algum arquivo, não saberiam quem o apagara. Podia fazer pelo menos isso por ela. Não muito mais, sem pôr a sua identidade em perigo. Além disso, em toda guerra havia baixas civis. Aquela rapariga estava simplesmente no lugar errado no momento errado.

Ia carregar no botão para apagar tudo quando ouviu um barulho atrás dele. Não teve de se virar. Intuiu quem se aproximava de maneira quase sobrenatural e voltou a adotar a sua fachada fria e desapaixonada. Era Hakim e a sua chegada não podia ser acidental.

Bastien deixou que a sua mão descansasse sobre o rato. Um clique e apagar-se-ia tudo. Um clique e Chloe Underwood teria uma possibilidade de sobreviver.

- E então? O que descobriste sobre a menina Underwood, Bastien? - inquiriu Hakim, ao mesmo tempo em que acendia um dos seus grossos charutos cubanos.

Os seus dedos hesitaram.

- Não sabe nada - respondeu. - Ninguém a mandou e não tem nenhum propósito oculto. É quem diz ser.

- Que azar! Para ela, quero dizer. Importar-se-ia de me dizer o que é que suspeita?

Bastien ficou a olhar para a sua mão. Afastou-a do rato e virou o monitor ligeiramente para que Hakim pudesse vê-lo.

- Tudo - indicou, com muita calma.

Hakim inclinou-se e olhou para o ecrã. Assentiu.

- Pena - disse. - Para ela, claro está. Mas suponho que era de esperar. Tratarei dela. Tenho jeito para isso. Tenho de lhe dizer que o barão não gostou que a rapariga e o senhor ficassem fora do enquadramento das câmaras. Conheço-o o suficiente para saber que não foi um acidente. Foi muito injusto da sua parte, Toussaint.

O barão desfruta dos seus pequenos prazeres e não fazem mal a ninguém.

- Não me apetecia atuar para o velho.

- Já o fez outras vezes, com a mulher dele. Não tente negá-lo, nem diga que não sabia que havia câmaras. Sabe sempre onde estão as câmaras. De modo que porque é que esta noite foi diferente?

Fez a pergunta despreocupadamente, quase com indolência, mas Bastien não se deixou enganar.

- Ir para a cama com a mulher dele era uma coisa... se quiser ver e ela quiser ser observada, quem sou eu para me meter nisso?

- E porque não quer que o veja com a menina Chloe? Será que estava a protegê-la? Não terá derretido esse cubo de gelo que tem por coração? - acusou Hakim. Bastien virou-se para olhar para ele, frio e imperturbável, e Hakim encolheu os ombros. - Uma pergunta estúpida, Toussaint. Desculpe-me. Eu melhor que ninguém devia saber que não vem equipado com nenhum tipo de sentimentalismo. Quer ver como a mato?

Bastien carregou no botão e todo rasto da pesquisa de Chloe desvaneceu-se.

- Não especialmente. Tem a certeza de que é o melhor modo de proceder? Quando um cidadão americano desaparece sem deixar rasto, fazem-se muitas perguntas embaraçosas.

- Não há modo de evitá-lo. É uma pena pela menina Underwood, mas não devia ter sido tão intrometida. A curiosidade matou o gato, como dizem no seu país. E não desaparecerá sem deixar rasto. Farei com que preparem algo. Um acidente de carro ou algum outro tipo de acidente trágico.

- Não lhe cortará as asas? Sei da sua afeição pelo fogo e pelo metal e essas coisas deixam marcas. Não é o que costuma aparecer num simples acidente de viação.

- É muito amável por se preocupar comigo, monsieur, mas tenho tudo sob controlo. Se a marcasse acidentalmente, sempre podíamos deitar fogo ao carro, queimar o corpo ao ponto de ficar irreconhecível.

- Muito prático - concordou Bastien.

- De certeza que não quer juntar-se a mim? Será um prazer deixá-lo participar.

- Já desfrutei do que me interessava da menina Underwood - replicou sem emoção. - O resto é consigo.

Reuniu-se com os outros para beber café e licores na sala e esteve a seduzir Monique. O barão olhou para ele com aborrecimento uma ou duas vezes, mas de resto ninguém parecia ter reparado sequer na sua ausência. Ninguém parecia reparar que Hakim se fora embora, pensou Bastien enquanto acendia um cigarro a Monique. Claro que, como o próprio Hakim dissera, a curiosidade matou o gato. E os membros da sua seleta organização comercial eram peritos na sua própria preservação e só sabiam o que deviam saber. Sabiam que podiam contar com Hakim para que tudo fosse feito de maneira discreta, como sempre. Isso era a única coisa que importava.

Olhou para o seu relógio. Deixara Hakim há uma hora. Será que Chloe já estava morta? Pensava que devia acreditar que era assim. Hakim era um sádico com muita criatividade e podia fazer com que aquilo durasse horas, até mesmo dias, se quisesse. Não dispunha de tanto tempo, mas Bastien suspeitava que a piedade e a brevidade eram coisas desconhecidas para ele.

Monique iria ao quarto dele naquela noite. Deixara-o mais claro do que a água, apesar de ele a ter rejeitado no dia anterior. O barão, que fora privado do seu prazer, insistiria. E Bastien mostrar-se-ia complacente e deixaria que a técnica interviesse onde o desejo falhasse. Se fosse Hakim, a idéia de Chloe sofrer excitá-lo-ia. Mas não era Hakim e só podia esperar que morresse rapidamente.

Ficou na sala todo o tempo que pôde. Não queria voltar para cima. Só queria que tudo acabasse. Não podia ter feito nada para protegê-la sem comprometer a sua posição. E, resumindo, o que era uma vida inocente comparada com os milhares, com as centenas de milhares que talvez se salvassem se desmantelasse a organização? No caso de isso chegar a acontecer, claro. Thomason e os da sua estirpe pareciam mais interessados em mantê-la vigiada. Mas a vida estava repleta de equações odiosas. Bastien já o assumira há muito tempo e não ia perder tempo a lamentar-se.

O fato de o seu quarto ser junto do de Chloe não melhorava as coisas. Eram os dois únicos hóspedes daquela ala. As criadas estavam a limpar quando voltou para o seu quarto e ele aproximou-se calmamente da porta aberta com o ar de indiferença adequado que se esperava dele. Não havia sinais de violência. Devia tê-la matado noutro sítio.

As criadas estavam a tirar os lençóis da cama.

- Onde está a menina Underwood? - perguntou intrigado por saber que tipo de desculpa é que Hakim teria inventado.

- Teve de se ir embora, monsieur Toussaint - respondeu uma criada. - Uma morte na sua família, foi o que disse o monsieur Hakim. Foi-se embora tão depressa que nem levou a sua mala. Teremos de lha mandar depois.

Uma morte na família, claro. A sua própria. A mala ainda estava junto da porta. Pensou em avisar a criada de que não devia reparar em pormenores como aquele, se quisesse conservar a vida.

Mas não estava naquele negócio para salvar vidas inocentes, portanto não disse nada, limitou-se a assentir com a cabeça e voltou para o seu quarto.

Estava na ducha quando pensou ouvi-la gritar. Fechou imediatamente a torneira, mas não ouviu nada. Nem barulhos, nem gritos. Se por algum cruel giro do destino ainda estivesse viva, provavelmente não estaria suficientemente perto para que a ouvisse gritar. Hakim tê-la-ia levado para algum canto abandonado do edifício, para ala que parecia ainda por remodelar e que, no entanto, estava insonorizada e repleta de aparelhos eletrônicos de última geração. Além disso, conhecendo Hakim, já há muito tempo que ela não seria capaz de emitir algum som, nem sequer um gemido. Simplesmente, tinha de esquecê-la. Não estava na sua natureza ter remorsos, nem dúvidas, nem sequer compaixão.

Vestiu-se rapidamente, de preto. Umas calças confortáveis e uma camisa que passou pela cabeça. Prendeu o cabelo comprido na nuca, calçou uns sapatos e aproximou-se da porta.

Passavam alguns minutos da meia-noite. Monique não demoraria muito a ir procurá-lo. Pensou em desligar as câmaras de vigilância do quarto, só para aborrecer o barão e, depois, pensou melhor. Só conseguiria piorar as coisas e o homem que fingia ser, o homem em que se transformara, agradeceria o fato de ter público.

Abriu a porta que dava para o corredor deserto. Os empregados tinham saído do quarto do lado e a porta estava aberta. Todo o rasto de Chloe Underwood desaparecera do Château Mirabel, como se nunca tivesse passado por ali. Também desaparecera da sua memória, outra vítima fácil de esquecer. E, pela primeira vez desde há alguns anos, tomou uma decisão irracional.

Diria mesmo emocional, se não fosse porque não tinha emoção alguma.

Ia procurar Chloe.

Fechou a porta atrás dele e pôs-se a andar para a ala fechada do edifício. Se ela ainda não tivesse morrido, pelo menos podia pedir a Hakim para acabar de uma vez. Fosse ou não um sentimental, não queria que sofresse. Salvá-la estava descartado, mas podia poupar-lhe sofrimentos. Talvez restasse um pouco de humanidade, afinal de contas.

Encontrou-a aninhada num canto da sala que Hakim preferia para os interrogatórios. Estava a chorar. Ainda viva, embora não estivesse viva por muito tempo, pensou Bastien desapaixonadamente ao fechar a porta atrás de si. Hakim virou-se para olhar para ele, surpreendido.

- O que faz aqui, Toussaint? Disse-me que não queria brincar com a menina Underwood. Não sei se gosto do fato de mudar de opinião.

Tirara o casaco e a gravata e tinha a camisa arregaçada e desabotoada. O seu peito, gordo e peludo, estava cheio de suor e saltava à vista que estava num estado de excitação sexual enquanto segurava a folha fina da lâmina sobre o maçarico.

Bastien sentiu o cheiro a carne queimada, Olhou para Chloe. Já não vestia as cuecas de renda. De algum modo, conseguira trocar de roupa antes de Hakim ir procurá-la. Vestia umas calças pretas e uma camisa. Ou tinha sido isso. As pernas das calças estavam rasgadas e deixavam as suas pernas compridas a descoberto e a camisa, aberta, deixava ver o simples sutiã branco que usava.

Bastien viu as marcas. Hakim usara a faca para cortar e queimar. Entretivera-se a fazer-lhe uma filigrana nos braços. Ela ainda não entrara em estado de choque, mas não demoraria muito. Sabia que ele estava ali, mas não olhava para ele, continuava aninhada no canto, com os olhos fechados e com a cabeça contra a parede, chorando em silêncio.

- Não vou interromper a sua diversão, Gilles - declarou Bastien. - Só pensei em vir admirar o mestre na sua oficina.

Ela abriu os olhos e olhou para ele fixamente através do quarto em sombras. Bastien fixou o olhar nos seus olhos castanhos. E, pela primeira vez, viu-se claramente. Quem era e no que se transformara.

- Como prazer - replicou Hakim. - Ao contrário de si, eu gosto sempre de ter público. É realmente bonita, não é? - aproximou-se dela e levantou uma madeixa do seu cabelo com a faca quente. O cabelo chamejou sobre a lâmina e um pedaço caiu ao chão.

- Muito bonita - concordou Bastien, sem parar de olhar para ela. Hakim não lhe tocara na cara, isso viria depois. Nunca tivera de observar a obra de Hakim, mas ouvira histórias suficientes para saber como procedia.

Não podia fazer nada para detê-lo. Não devia ter entrado ali, tê-la visto, mas sempre fizera o que tinha de fazer.

- O barão perguntou por si - comentou, de repente.

- Há um problema com os iranianos.

- Há sempre problemas com os iranianos - resmungou Hakim. - É grave?

- Bastante. Não sei se pode esperar até amanhã.

- Tudo pode esperar até amanhã - afirmou Hakim e aproximou a faca do braço de Chloe, queimando-lhe a pele. Ela não gritou. - Vê como é obediente? É muito fácil treiná-la. Disse-lhe que, se fizesse muito barulho, usaria a faca entre as suas pernas. Mas já o teve a si esta noite e acho que é suficiente.

Bastien não disse nada. Ela voltara a fechar os olhos e ele viu como a sua cara estava pálida sob a corrente silenciosa de lágrimas.

- Acha que devia fazer com que parasse de chorar?

- murmurou Hakim, com um ar sonhador. - Podia tirar-lhe os olhos.

Chloe deu um salto e, depois, ficou quieta.

- Talvez devesse ir ver o barão - sugeriu Bastien. Afinal de contas, viemos para trabalhar, não para nos divertir.

Hakim virou-se e fez uma careta.

- Suponho que tem razão - concordou. - Haverá outras. Há sempre raparigas bonitas que metem o nariz onde não são chamadas. Acabarei com ela agora.

Chloe não conseguiria ter-se mexido, mesmo que achasse que lhe serviria de algo. Tentara fugir antes, mas Hakim magoara-a tanto que desmaiara, só para acordar naquele chiqueiro horrível, sentindo na pele a lâmina quente.

Perdera a capacidade de pensar, de raciocinar. Ia morrer às mãos de um monstro. Um sádico sensível aos matizes da dor. Assumira que estava sentenciada, que não havia nada que pudesse fazer, quando Bastien entrou na sala.

Não pensara nem por um instante que ele fosse salvá-la. Não tinha tais ilusões: ele era ao seu modo tão violento e diabólico como Hakim. Em certo modo era pior, porque a sua perversão estava profundamente escondida sob a sua aparência elegante.

Viu a madeixa de cabelo cair ao chão. Era uma sorte que fossem destruir o seu corpo, pensou como se estivesse muito longe. Seria difícil ver-se num ataúde aberto com o cabelo mal cortado.

Devia estar a entrar em estado de choque, se lhe ocorriam coisas tão frívolas. Os seus pais ficariam tristes. Eles nunca tinham querido que fosse para Paris. Queriam que ficasse em casa e fosse médica, como todos os outros membros da família e ela não fizera caso. Era tão afetada que não suportava a visão e o cheiro do sangue. Pelo menos, os seus pais teriam a satisfação duvidosa de constatar que tinham razão.

No final, Sylvia seria quem mais sofreria. Teria perdido a sua roupa, teria de pagar a renda astronômica do apartamento minúsculo e a polícia francesa far-lhe-ia todo o tipo de perguntas acerca da sua companheira de apartamento desaparecida. O seu estilo de vida não suportava um escrutínio muito minucioso e Chloe só podia pensar que ela merecia. Alguns problemas não seriam mau pagamento por ter enviado a sua amiga para a morte.

Naturalmente, Sylvia não tinha querido magoá-la. "A dor é tão forte que vou desmaiar, mas não posso, porque então para me matar". Não tinha querido pô-la em perigo. Mas, se tivesse sido ela a ir, nada teria acontecido. Sylvia não se interessava por nada para além das suas coisas. Ela não teria acabado presa ali, com um monstro a torturá-la com uma faca quente enquanto outro ainda pior olhava para eles.

Não ia gritar. Mordeu o lábio inferior com tanta força que sentiu o sabor do sangue, mas não ia gritar quando ele passasse a ponta da lâmina sobre a sua pele. Depois, viu como se formavam as gotas de sangue e começava a correr pela sua pele.

- Acabarei com ela agora - afirmou Hakim e, agarrando-a pelo cabelo com uma mão, aproximou a faca da garganta dela. - Pode esperar por mim na biblioteca. Estarei consigo dentro de um minuto.

Chloe fechou os olhos e preparou-se. Pelo menos, aquilo acabaria de uma vez e a escuridão seria uma libertação aprazível. Deitou a cabeça para trás para lhe dar mais espaço, ansiosa por acabar de uma vez e Hakim desatou a rir-se.

- Vê como sou bom, Bastien? Faço com que o desejem - e afundou a faca para baixo.

O barulho foi estranho, uma espécie de estalo e, depois, Chloe sentiu-se sufocada, esmagada por um peso, coberta de sangue e de escuridão e envolvida por um cheiro a suor. Não esperava que a morte fosse assim, mas pelo menos não doía. Manteve-se quieta, deixando que a noite se apoderasse dela.

Depois, repentinamente, aquele peso levantou-se e ela conseguiu respirar novamente. Abriu os olhos e viu o corpo de Hakim estendido no chão, numa poça de sangue que não era dela.

Bastien Toussaint estava de pé sobre ela, com a cara fria e inexpressiva. Estendeu-lhe uma mão. Na outra, tinha uma pistola.

- A vida ou a morte, Chloe. Tu decides.

Ela deu-lhe a mão e deixou que a ajudasse a levantar-se.

Conseguiu levantar-se por pura força de vontade. Onde Hakim a marcara, a dor atravessava-lhe os braços e as pernas. Mas Hakim estava morto, ela estava viva, e se tivesse de recorrer à pessoa que mais odiava no mundo, fá-lo-ia. Não queria morrer.

- Há uma escada na parte de trás que nos levará para a garagem. Teremos de passar junto de alguns guardas com cães e terás de estar calada e fazer tudo o que te disser. Se não, dar-te-ei um tiro e deixar-te-ei aqui.

Ela assentiu. Não confiava na sua voz. Ele parecia frio, impassível, como se não tivesse acabado de matar um homem, como se não previsse que teria de matar outros. Em algum lugar, talvez ela encontrasse a mesma frieza.

Bastien agarrava-a pelo braço, cravava-lhe os dedos com força enquanto a puxava. Chloe mal conseguia seguir-lhe o passo. Estava trêmula, fraca e atordoada, mas não podia pedir-lhe para ir mais devagar. Certamente, pôr-lhe-ia à pistola na cabeça ali mesmo se ela o atrasasse.

Avançou aos tropeções atrás dele, desceu a escada estreita e pouco iluminada e saiu para a noite gélida de Dezembro. O ar áspero e frio era tão poderoso que quase se engasgou ao tentar inalar uma baforada profunda para tirar o sabor do sangue e do fogo. Queria mais, mas Bastien empurrou-a contra a parede e cobriu o seu corpo com o dele até desaparecerem os dois entre as sombras.

O seu corpo apertava-se contra o dela, esmagava-a, reparou Chloe distraidamente. Era muito forte... isso já sabia, não já? Talvez o odiasse com uma ferocidade espantosa, porém, se tinha de ser salva, concordava que o resgatador devia ser forte.

Chloe ouviu o gemido sufocado de um cão de guarda, seguido por alguém a praguejar. Os guardas estavam a fazer a sua ronda, mas ainda não tinham percebido que algo estava mal.

- Talvez tenha de lhes dar um tiro. Não me obrigues a dar-te também um - ele sussurrou aquelas palavras ao seu ouvido, apenas um sussurro, mas ela assentiu.

Os guardas tinham passado ao lado deles, mas certamente voltariam.

- Promete-me só uma coisa - murmurou ela, num tom de voz um pouco mais alto.

Bastien tapou-lhe a boca com a mão e ela lutou para não gritar de dor.

- Cala-te! - exclamou ele.

Ela assentiu novamente e ele afastou a mão. Os guardas estavam no meio da esplanada ampla do jardim e, embora as balas pudessem alcançá-los, os homens não.

Bastien afastou-se dela.

- Prometer o quê? - perguntou, finalmente.

- Não mates os cães.

Ele ficou a olhar para ela por um instante sem expressão alguma. Depois, um brilho estranho apareceu nos seus olhos, algo que, sendo ele outro homem e noutras circunstâncias, Chloe teria considerado uma expressão de regozijo. Mas não havia capacidade para o regozijo numa situação de vida ou morte.

- Farei o que puder - prometeu. - Vamos - e, agarrando-a pela mão, começou a correr.

 

A noite deixara de ser real. Hakim certificara-se de que toda a propriedade estava bem iluminada e tiveram de atravessar a relva em ziguezague, avançando de sombra em sombra. Bastien parecia saber graças a um instinto sobrenatural para onde deviam mexer-se e ela seguia-o por pura força de vontade, recusando-se a pensar nas coisas que vira, nas coisas que se fizeram por ela. A realidade desvanecera-se há muito tempo e se aquilo era um filme de Hollywood, acordaria na cama, suada e angustiada por aquele pesadelo tão incrivelmente real.

Por enquanto sobrevivera, mas aquilo não era um sonho, era uma realidade em toda a sua fealdade e o seu terror. Saíra de casa, abandonara a tradição familiar porque não conseguia suportar a morte, a dor e a visão de sangue. E agora estava coberta pelo sangue de um morto.

Bastien deixou-a sozinha duas vezes e ela ficou entre as sombras, obediente, à espera até ele regressar para levá-la novamente de rastos. O seu Porsche estava estacionado junto da praceta e Chloe investiu a pouca energia que restava na sua última corrida. Bastien teve de pô-la à força no banco do passageiro, como se estivesse morta, e ela deixou-se cair no banco de couro e fechou os olhos. Sentia que a escuridão começava a cobri-la como um pano de fundo que caía sobre o palco.

Ele estava ao seu lado, no banco do condutor, e ela ouviu o estalo do cinto de segurança e teve vontade de se rir. Que homem tão cuidadoso, mata em silêncio e põe sempre o cinto de segurança. Ele inclinou-se e pôs-lhe o dela. O toque das suas mãos fê-la dar um salto, mas ficou quieta e manteve os olhos fechados, perseguindo o esquecimento de que precisava desesperadamente.

Bastien conduzia a toda a velocidade pelas estradas às escuras e sem lua, fugiam para salvar as suas vidas e, no entanto, estendeu a mão e ligou o rádio. Ouviu-se uma canção de sucesso de há alguns anos: ela tem olhos de revólver, mata com o olhar, dispara. Disparos, mortes, pistolas.

O esquecimento afastou-se. Ela virou-se para olhar para ele.

- Esta noite mataste um homem - afirmou. Ele nem sequer olhou para ela.

- Esta noite matei dois homens. Não me viste a cortar o pescoço de um dos guardas. Mas prometi não magoar os cães.

Ela olhou para ele com horror.

- Como podes brincar com isso?

- Estavas a brincar quando me disseste que não querias que matasse os cães? Tudo teria sido mais fácil se o tivesse feito, mas preferi respeitar a tua sensibilidade terna - fez uma curva com a velocidade e a destreza de um corredor de automobilismo, prestando-lhe só um quarto da sua atenção.

Chloe não sabia o que era pior: um homem como Hakim, que matava por prazer, ou um homem como Bastien, que não sentia absolutamente nada.

Dorme, ma petite - disse ele. - Temos um longo caminho pela frente e já tiveste uma noite muito ocupada. Acordar-te-ei quando parar para comermos.

- Não quero voltar a comer - declarou ela, num tom de voz fraco e a tremer. Conseguia cheirar o sangue e algo elementar e nauseabundo.

- Como queiras. De qualquer forma, as americanas são demasiado gordas.

Ela nem sequer conseguiu reunir um pingo de indignação. Se não soubesse que era impossível, teria pensado que o dizia com o simples propósito de tirá-la daquele pesadelo, mas parecia improvável que se importasse o suficiente. Devia perguntar-lhe para onde a levava, mas também não conseguiu juntar a energia, nem a curiosidade. Bastien levá-la-ia para onde quisesse, faria o que desejasse. Ela só podia acreditar que, se decidisse voltar a pôr-lhe a mão em cima, fosse para matá-la. Preferia morrer a voltar a ter o sexo com aquele monstro de sangue-frio.

- Dorme - repetiu ele num tom de voz mais terno, apesar de a mesma idéia de ternura ser inconcebível nele. Mas a canção do rádio, que falava de amor e de morte, era suave e tranquilizadora. C'est foutou. Tudo se destruíra, cantava ele, e ela só podia estar de acordo. Fechou os olhos e deixou que a escuridão caísse.

Bastien olhou para ela assim que esteve certo de que adormecera. Parecia um desastre: os braços sulcados por cortes pouco profundos e queimaduras, a cara pálida e suja pelas lágrimas e a maquiagem borrada. Parecia muito frágil, mas ele sabia que era mais dura do que parecia. Continuava viva, o que era um milagre. De algum modo fora capaz de sobreviver a Hakim.

Hakim fazia tudo com um ritmo determinado: era um homem metódico. Dizia-lhes que não gritassem e, depois, torturava-os até o fazerem, como um amante que tentasse levar uma mulher renitente ao orgasmo. Quando começavam a gritar, fazia tudo mais depressa, mas Chloe conseguira manter-se em silêncio. Tinha sangue na boca e os lábios inchados por mordê-los para conter os gritos. Ou talvez tivesse sido ele a deixar-lhe assim a boca. Certamente, não se mostrara terno com ela.

Descobrira o que precisava saber e isso era o importante. Depois, deitara tudo a perder ao pôr o nariz onde não era chamado, interrompendo a diversão de Hakim em vez de aceitar que toda guerra tem as suas perdas.

Talvez estivesse cansado de danos colaterais. Talvez quisesse salvar uma vida em vez de tirá-la. Talvez estivesse tão arruinado que seduzia a morte e destruía missões importantes por um simples capricho.

Mas Chloe estava demasiado maltratada para ser um simples capricho. Tinham de chegar a alguma parte onde pudesse limpar-lhe as feridas da pele suave e pálida, onde pudesse pensar o que raios ia fazer agora, com ela e consigo.

Era bastante fácil saber o que fazer com ela. Tratá-la-ia, tranqüilizá-la e pô-la-ia no próximo avião que voasse para os Estados Unidos. Devia pesar cerca de cinqüenta e cinco quilos e seria fácil dar-lhe calmantes suficientes para que se tranqüilizasse e se mostrasse dócil, mas continuasse a ser capaz de entrar num avião.

Não podia ser naquela noite. Primeiro tinha de chegar a uma das suas casas seguras, lavá-la e avaliar a situação. Talvez o Comitê decidisse liquidá-lo depois de semelhante erro. Deixara de ser útil e começava a agir por impulsos, o que o transformava num estorvo. Os seus chefes não eram dos que davam uma segunda oportunidade.

Hakim era dispensável, mas morrera prematuramente. E ali estava ele, em fuga, depois de abandonar a sua missão antes de o objetivo principal aparecer. Thomason ficaria branco. Não importava. Estava pronto para que aquilo acabasse. Já não se importava com nada nem ninguém, nem sequer com a sua própria pele. Assim que se certificasse de que Chloe estava a salvo, podiam ir atrás dele.

Ela era mais forte, mais resistente do que esperava. Quando o sol nasceu sobre o campo francês, tinha melhor cor e dormia mais aprazivelmente. Ele dirigira-se para norte, para a Normandia, e depois dera a volta para Paris do noroeste e não do sul. Não era grande coisa para despistar os seus perseguidores, mas pensara que demorariam algumas horas a encontrar o corpo de Hakim e descobrir que desaparecera.

Considerou a possibilidade de abandonar o carro e roubar outro para cobrir o seu rasto, mas por alguma razão não queria acordar Chloe. Havia muitos lugares onde podia esconder o carro na cidade: só tinha de esperar que a sua sorte durasse mais algumas horas. O suficiente para pô-la a salvo num avião.

Parou na vila dos subúrbios da cidade e deixou o carro em funcionamento enquanto entrava numa loja para comprar algumas coisas. Teve sorte: tinham sapatos que, supôs, eram do tamanho dela, Coca-Cola light e sandes que deviam saber a cartão, mas àquelas alturas não podia ser exigente. Nenhum dos dois podia dar-se ao luxo de não comer, embora imaginasse que teria de obrigar Chloe a ingerir algum alimento. E embora essa visão fosse, ao que negá-lo, erótica de um modo excêntrico e agradável, não tinha tempo para essas coisas.

O café era como ele gostava, forte e doce. Conduziu com uma mão pelas ruas de Paris, avançando por entre o trânsito suicida com a destreza de um especialista, esquivando de caimões e táxis como se conduzisse uma mota e até invadindo a calçada. Conduzindo tão depressa, ninguém veria nada, exceto um borrão. Os típicos engarrafamentos de Paris eram pouca coisa para ele e, quando conseguiu entrar a salvo na garagem subterrânea do hotel, estava razoavelmente certo de que ninguém os seguira. Estariam a salvo durante algumas horas.

Era um hotel americano, confortável, caro e sem nada de particular. Bastien tinha uma das suas melhores suítes reservada, que usava como cobertura ou nos seus ocasionais períodos de inatividade. Que ele soubesse, ninguém conhecia a sua existência, embora soubesse que não seria assim por muito tempo. Assim que começassem a procurá-lo, encontrariam o rasto do aluguer do quarto. E a sorte acabaria.

Mas isso podia levar-lhes horas e estava disposto a correr o risco. Tinha de lavar e ligar Chloe, dar-lhe algo de comer e lavar-lhe o cérebro quanto pudesse, tendo em conta que não dispunha das drogas adequadas. Ignorava o que ia dizer-lhe. Com aquelas marcas nos braços e o cabelo cortado ao redor da cara, não ia conseguir convencê-la de que fora tudo um sonho. Tinha a cara muito pálida e um hematoma perto do olho, o qual precisava de gelo.

Estacionou no seu lugar de estacionamento e desligou o motor. Aquele nível da garagem estava deserto àquela hora: era demasiado cedo para os ricos ociosos começarem a mexer-se e demasiado tarde para os trabalhadores. Podia levá-la para seu quarto sem muitas testemunhas.

Ela abrira os olhos e olhava para ele, atordoada.

Apertara a camisa sem a abotoar. Talvez lhe doessem tanto os braços que não conseguisse mexê-los. Bastien inclinou-se para lhe abotoar os botões, mas ela afastou-se de um salto, como se fosse bater-lhe.

- Ia abotoar-te a camisa - informou. - Não pode atravessar o hotel com esse ar se queremos passar despercebidos.

- Onde estamos?

- No hotel MacLean. Tenho um quarto reservado para casos como este.

- Casos como este? Passaste por isso antes?

- Sim - não era completamente mentira. Metera-se em confusões que tinham comprometido a sua identidade e algumas pessoas inocentes tinham-se visto apanhadas no meio. No passado, fugira para salvar a sua pele, deixando as vítimas onde ficassem. Mas não deixara aquela vítima para trás.

Ela tinha a camisa feita em farrapos. Hakim devia tê-la cortado com a faca. Procurou atrás do banco às apalpadelas e agarrou numa camisa. Chloe afastou-se novamente e ele observou-a com exasperação. Já devia ter-se apercebido que ele era a menor das suas preocupações.

- Veste isto - ordenou, - e abotoa os punhos! Será mais difícil de limpar, mas não queremos que todos vejam as marcas de Hakim.

Ao ouvir aquele nome, Chloe tremeu.

- Posso vesti-la por cima. Além disso, é mais provável que as pessoas reparem que vou descalça.

- Parei para comprar uns sapatos. Não podes fugir para salvar a vida descalça ou com os sapatos de outra pessoa. Estão num saco, lá atrás - tirou a chave da ignição, pôs a mão sob o banco da frente para tirar a sua pistola, dois dos seus passaportes e um maço de notas bem escondido. Chloe não se mexeu.

Ele saiu do carro.

- Quanto mais tempo estivermos aqui, mais perigo corremos - avisou. - Muda de camisa ou fá-lo-ei eu.

Devia ter-se virado enquanto ela tirava a camisa destruída, mas tais delicadezas já não existiam. O seu sutiã branco não era nem de longe tão erótico como o que usara há algumas horas e ela mexia-se devagar, penosamente. Vestiu a camisa e, depois, calçou os sapatos com o desagrado de alguém que se vestia com farrapos. Bastien olhava para ela, recusando-se a reagir.

Chloe seguiu-o até ao elevador, mexia-se lentamente e Bastien deixou que levasse o seu tempo, que mantivesse a distância enquanto ninguém conseguisse vê-los. O elevador era pequeno e cheirava a alho e a tubo de escape. Ao fechar as portas, enquanto o elevador subia, Chloe olhou fixamente para os pés.

Ele também olhou para eles. Os mocassins pretos, muito simples, pareciam ficar bem e o tecido rasgado das suas calças dançava ao redor da barriga das pernas. O seu cabelo cheirava a lã queimada e o sangue filtrava-se através de uma das mangas compridas da camisa branca.

- Merda! - o elevador parou quando faltava pouco para chegarem ao seu andar e as portas abriram-se para que alguém entrasse. Bastien apressou-se a empurrá-la para um canto e, tapando-a com o seu corpo, apertou-lhe a cara contra o seu ombro. Ela tentou afastar-se, mas Bastien agarrou-a com força pelo pulso, magoando-a o suficiente para que se comportasse sem começar a chorar. - Finge que somos amantes - sussurrou-lhe ele ao ouvido, em alemão.

Tal como esperava, entendeu perfeitamente, coisa que ainda requeria uma explicação, mas aquele não era o momento. O homem de negócios de meia-idade que entrara no elevador desviou o olhar com uma discrição educada e Bastien colou-se ainda mais a Chloe, apertando as ancas contra as dela como um amante apaixonado e insatisfeito.

Ela levantou os olhos e olhou para ele. Devia ter sentido a sua ereção e compreendido que era um homem doente. Aquela idéia era um pouco divertida.

Teve vontade de beijá-la, só por ver o seu desagrado, mas teve a sensatez de não tentar a sua sorte com testemunhas por perto.

O homem saiu e antes de as portas se fecharem novamente deu-lhe um empurrão e tremeu visivelmente.

- Não voltes a tocar-me - declarou, num tom de voz baixo.

- Não seja criança - replicou ele. - Tento salvar-te a vida, embora não saiba por quê. Portanto cala a boca e faz o que te disser. Se tiver de ter sexo contigo de pé no meio de Notre Dame com metade de Paris a ver, obedecerás sem pigarrear, entendido?

- Por cima do meu cadáver!

- Exatamente - tinham chegado ao último andar e o corredor estava vazio. Bastien considerara a possibilidade de cortar o pescoço ao tipo que os vira, mas com um pouco de sorte ter-se-ia ido do hotel muito antes de os seus inimigos aparecerem. E livrar-se do cadáver ter-lhe-ia causado mais inconvenientes do que deixá-lo ir-se embora. Além disso, Chloe teria começado a gritar. Muito pouco práticos, aqueles americanos.

- É ao fundo do corredor - indicou, enquanto esperava que ela saísse do elevador à frente dele. Não era uma questão de cortesia: se ele saísse primeiro, talvez ela se recusasse a segui-lo e não queria discutir com ela. Chloe levantou a cabeça e olhou para ele e, à plena luz do dia, ele conseguiu vê-la claramente. Viu dor e medo nos seus belos olhos castanhos. Viu ódio dirigido a ele.

Está bem. Aquilo ajudaria a mantê-la viva. Bastien descobrira que o ódio era um sentimento muito útil e encorajar o de Chloe não lhe faria mal. Não tinha nada a recear dela: não podia surpreendê-lo, feri-lo ou fugir dele. Mas a raiva mantê-la-ia alerta quando o corpo e o coração quisessem desistir.

Seguiu-a pelo corredor, um corredor anônimo que podia ter pertencido a mil hotéis diferentes de todo o mundo. Ela hesitou quando abriu a porta e teve de lhe dar um empurrãozinho para que atravessasse a soleira. O olhar que lhe lançou teria paralisado um homem menos forte.

- Entra na casa de banho e tira a roupa! - ordenou.

- Vai para o inferno! Ele desatou a rir-se.

- Tens cortes e queimaduras pelos braços e pelas pernas, Chloe. Tens de te tratar e precisas de descansar. Confia em mim, não tenho interesse em tocar em ti, para além de te arranjar um pouco para que possas ir esta noite.

Ela não parecia acreditar. -Ir?

- Pôr-te-ei num avião que saia de Paris, de regresso aos Estados Unidos. De onde és?

- Da Carolina do Norte.

- Isso fica perto de Nova Iorque? -Não.

- Então, terás de resolver as coisas sozinha para chegares a casa. Quando saíres de França estarás mais ou menos a salvo, mas agora devem haver algumas pessoas com muito talento à tua procura para te matar.

- Eu diria que querem matar-te a ti, não a mim.

- Oh, também querem matar-me, claro está. Quase todos que me conhecem acabam por querer matar-me

- declarou ele.

- Entendo por que - replicou ela, num tom de voz fraco.

Bastien não se incomodou em discutir.

- Vais tirar essa roupa rasgada ou queres que te ajude?

- Posso fazê-lo - afirmou, enrijecida. - Onde é o quarto?

Ele apontou com o dedo para as portas que havia atrás de si.

- Ali dentro. Eu entrarei dentro de um minuto.

- Não vou dormir contigo outra vez - declarou ela. Bastien reparou que a sua fraqueza ia minguando à medida que a sua raiva crescia. Isso também a ajudaria a sobreviver.

- Outra vez? Não sabia que o que fizemos ontem tinha alguma coisa a ver com dormir.

Chloe podia corar. Bastien observou-a, cativado, enquanto o rubor tingia a sua cara: pensava que já teria esquecido aquela demonstração de inocência. Compadeceu-se dela.

- Não importa, Chloe - replicou, com suavidade. Não vou fazer-te nada, para além de tratar dos teus ferimentos. O resto pode ficar inviolado.

Reparava que a sua franqueza só piorava as coisas, mas naquele momento, ele era o menor dos seus problemas. Terei de tratar de Chloe, dar-lhe de comer, vesti-la e mandá-la para casa e não tinha tempo a perder. Teria uma sorte louca se não o tivessem encontrado ao cair a noite. Tinha de continuar a mexer-se. Assim que estivesse certo de que a sua companheira inesperada era capaz de seguir em frente.

Chloe estava sentada na cama, embrulhada no lençol como se estivesse no consultório de um ginecologista. Ainda tinha a roupa interior vestida. Bastien sentou-se ao seu lado e ela tentou afastar-se.

- Não sejas criança, Chloe! - exclamou ele.

Ela olhava para o frasco castanho que ele segurava numa mão e para os pedaços de algodão que tencionava usar.

- O que é isso? - perguntou. - Não o compraste em nenhuma farmácia.

- É muito bom. Muito caro, tecnologicamente muito avançado, vale mais do que o seu peso em ouro. Acelera o processo de regeneração. Dentro de alguns dias terão desaparecido quase todas as feridas. Até duvido de que fiquem cicatrizes.

- De onde vem?

- Segredo profissional - respondeu ele e pôs um bocado generoso de creme denso, verde e translúcido num pedaço de algodão. - Só há um problema - agarrou no seu braço esquerdo, que Hakim maltratara mais.

- Qual?

- Dói imenso - e aplicou o creme no primeiro corte.

Ela deu um salto e Bastien esperou que gritasse. Escolhera aquele hotel por um sem-número de razões, uma delas fora o seu isolamento delicioso, de modo que ninguém a ouviria gritar, mas Chloe não disse nada, para além de um gemido estrangulado, embora ficasse rígida para combater a dor.

Bastien sabia por experiência que possivelmente aquilo ia doer-lhe mais do que os "cuidados" de Hakim. Com Hakim, o choque e o medo tinham-na intumescido em parte e só sentiria as conseqüências da sua obra muito depois. Se chegasse a viver tanto tempo.

Ela mordia os lábios para não emitir nenhum som e a sua boca voltou a sangrar. Bastien continuou, tentando ignorar o seu tremor.

- Há melhores modos de enfrentar a dor – indicou com calma, enquanto continuava a aplicar o creme nas marcas do seu braço. Quanto mais resistes a ele, mais contra-ataca. Se te deixares ir, se relaxares, descobrirás que tudo acontece quase num estado alterado, como se fosse outro a sofrer. É muito melhor assim.

Tens assim tanta experiência com a dor? - mal conseguiu dizer as palavras.

- Bastante - respondeu ele. - Respira. Já sabes, como quando estás a ter um bebê. Respira fundo, pausadamente e tenta relaxar.

- Não consigo - replicou, num tom de voz de dor. Bastien sentia o batimento acelerado do seu coração.

- Sempre podia distrair-te. Aquilo captou a sua atenção. -Não...

- Não posso tocar em ti, já sei - deixou o braço e levantou o outro. - Então, fala comigo. Conta-me o que estavas a fazer em casa de Hakim.

- Já te disse! Ia substituir a minha companheira de apartamento, que tinha ido sair com o seu namorado novo. Não sabia que tipo de lugar era, nem para que tipo de monstros doentes ia trabalhar.

- Agora já sabes. Por isso és um estorvo. Como é que entendes tantos idiomas? A maioria das raparigas americanas fala francês com muita dificuldade.

Ela lançou-lhe um olhar furioso. Era tão previsível, tão fácil de manipular. A única coisa que tinha de fazer era um comentário desdenhoso sobre as mulheres americanas para que se esquecesse dos seus sofrimentos. Ele costumava gostar das mulheres sofisticadas e imprevisíveis. Mas por alguma razão, gostava de Chloe.

Por um instante, pensou que não ia responder-lhe.

- Tenho um talento natural para os idiomas - respondeu num tom de voz irritado, enquanto tentava conter a dor. - Os meus pais levaram-me para escolas privadas, muito caras e comecei a aprender francês na creche.

- Isso explica porque é que o teu sotaque é tão bom. Onde aprendeste os outros?

- Na universidade. Licenciei-me em Línguas e Literaturas Modernas em Mount Holyoke e os meus pais viajavam muito. Até consigo conversar em latim.

- Isso não é uma língua moderna. Deita-te para tratar das tuas pernas.

Estava a investir demasiada energia para resistir à dor, não restava nenhuma para lhe resistir. Deitou-se, tapando-se com o lençol. As pernas estavam melhores que os braços. Hakim estivera a preparar-se devagar para alcançar o clímax e ele não lhe dera tempo de chegar às pernas.

Bastien estivera entre as suas coxas há pouco tempo. Chloe tinha umas pernas longas e belamente formadas. No seu quarto do château, estivera demasiado ocupado para reparar nelas.

- Já te disse que tenho jeito para os idiomas. Eu gosto de todos.

- Então, porque tens um trabalho horrível numa editora? Um talento como o teu seria muito útil para certas organizações.

- Eu gosto da minha vida. Prefiro traduzir livros infantis do que encobrir o tráfico de armas.

Ele acabara de aplicar o creme. Pousou o frasco e o algodão no chão e, deitando-se na cama, inclinou-se sobre ela.

- Isso é exatamente o que não deves dizer, meu anjo. Deves esquecer tudo o que viste durante estes dois dias. Estamos a lidar com indivíduos perigosos e podias identificar a maioria deles. És uma rapariga inteligente, apesar do teu comportamento estúpido. Se quiseres, de certeza que conseguirás decifrar as nossas conversas nas reuniões, agora que sabes que não falávamos de frangos nem de grão.

Chloe não gostava que estivesse tão perto, inclinado sobre ela. Não gostava de levantar o olhar para ele, apesar de não estar a tocar nela. Bastien notava-o claramente. Mas não lhe importava.

- Esquece tudo, Chloe! - exclamou, com suavidade. - Ou talvez vivas para lamentá-lo.

 

Chloe olhava para ele fixamente. Estava deitada de costas na cama, coberta só com a roupa interior e o lençol e tivera sexo com ele há menos de vinte e quatro horas. Que raios, talvez tivesse sido há menos tempo, não sabia que horas eram.

Também não conseguia mexer-se, levantar os braços e afastá-lo de um empurrão. Bastien permanecia inclinado sobre ela com os olhos semicerrados e, por um instante, Chloe pensou que ia beijá-la outra vez.

Mas não o fez. Endireitou-se e afastou-se dela.

- Vou tomar uma ducha, depois verei se te consigo arranjar um passaporte.

- Não preciso de um passaporte novo. Ele abanou a cabeça.

- Se viajares com o teu nome real, não chegarás a casa. Sei o que faço, Chloe. Faz o que te digo e talvez saias desta confusão com vida.

Ela ficou a olhar para ele.

- Quem diabos és? - perguntou. - O que raios és? O seu sorriso leve não revelou nada.

- Não acho que precisa saber. Tenta dormir. Vais precisar de forças para te recuperares.

Fazer o que lhe dizia não a atraía, mas estava demasiado cansada para contrariá-lo. A dor remetera até se transformar num formigueiro que abrangia todo o seu corpo e, naquele momento, dormir parecia mais importante do que descobrir a verdade.

- Está bem - concordou, contrariada.

- O quê? Estás de acordo comigo em algo? Não posso acreditar.

- Vai para o inferno - murmurou ela, num tom de voz quase inaudível.

- Assim está melhor - murmurou Bastien. - Tenta dormir. Podes insultar-me outra vez quando acordares.

Chloe pensava que o sono se apoderaria dela imediatamente, mas não chegava. Lá fora estava nublado: se tentasse reconstruir as últimas horas, talvez conseguisse adivinhar que horas eram, mas recuar no tempo era a última coisa que queria. Não desejava pensar no que se passara na véspera, desde que entrara no carro com ele. Não queria recordar aqueles momentos violentos e confusos no seu quarto, não queria reviver a dor e o medo e, sobretudo, não queria lembrar-se de Gilles Hakim em cima dela, o seu corpo um peso morto. Literalmente.

Aquele sujeito torturara-a, tencionara matá-la e ela desejara a sua morte. Pensava que era uma pacifista, preferia morrer antes de magoar os outros, mas os seus bons sentimentos tinham desaparecido quando vira a sua vida em perigo. Se tivesse uma pistola, teria gostado de matar Hakim com as suas próprias mãos e teria desfrutado.

Talvez. Naquele momento, não sabia o que era verdade ou não. Conseguia ouvir o barulho da água correndo, cheirava o sabão, a espuma de barbear e ao perfume leve que Bastien usava. Não fora capaz de identificar os seus componentes: eram muito subtis, insidiosos, quase... eróticos. Não gostava dos homens que se perfumavam.

A ducha parou e, um momento depois, a porta abriu-se. Chloe levantou o olhar e viu que Bastien entrava no quarto sem roupa, nem sequer uma toalha atada à cintura. Virou a cabeça para um lado, fechou os olhos e ouviu-o rir-se.

- Os corpos dos homens incomodam-te, Chloe? Perguntou. Ela ignorou-o e manteve os olhos fechados com força enquanto o ouvia a vestir a roupa, um barulho de gavetas e de portas ao abrir-se. Estava quase a dormir quando sentiu que a cama se afundava ao seu lado e abriu os olhos de repente.

Bastien não vestira grande coisa, mas pelo menos estava decente. Vestira umas calças e tinha a camisa aberta. Que estranho! Já fora para a cama com ele e nem sequer sabia se tinha pêlos no peito.

Não tinha: a sua pele era suave e dourada. Chloe fechou os olhos outra vez e procurou esquecer-se dele.

Bastien tapou-a bem com o lençol.

- Dorme Chloe. Deves deixar que essa coisa aja outras quatro horas. Depois, poderás lavar-te, mas enquanto isso tens de ficar aqui deitada e deixar que o remédio faça o seu trabalho.

Ela pensou em ignorá-lo, mas não conseguiu resistir a responder-lhe.

- Não há remédio no mundo que consiga curar-me tão depressa do que Hakim me fez.

- Talvez não. Mas a dor física desaparecerá. Depende de ti se as feridas emocionais também cicatrizam.

- De mim? - tentou endireitar-se, mas ele deitou-a sobre a cama com uma certa brusquidão.

- Sim, de ti - repetiu, com firmeza. - És jovem, forte e inteligente, apesar da confusão em que te meteste.

- Se é tão inteligente como penso, deixarás isto para trás.

- Que sensível... - gozou ela.

- Não, só prático corrigiu ele. - Hakim cortou-te e queimou-te, mas não te violou.

- Não, isso fizeste tu.

Ele começou a praguejar, usando palavras que ela não devia conhecer e, no entanto, conhecia.

- Diz o que quiseres - replicou ele, pouco depois. Devo ter sofrido um ataque momentâneo de surdez. Não me lembro de teres dito "não" alguma vez.

Não dissera que não e ambos sabiam. Não disse nada e, um instante depois, sentiu-o a afastar-se da cama. Não percebera que estivera a suster a respiração, à espera que ele lhe tocasse novamente e respirou fundo enquanto Bastien se afastava dela.

- Voltarei dentro de algumas horas. Não abras a porta, não atendas o telefone e não te aproximes das janelas. Não acho que alguém conheça este lugar, mas nada é seguro e dentro de pouco tempo haverá muita gente à tua procura.

Ela virou a cabeça e ignorou-o. Só queria que se fosse embora, que saísse dali. Se lhe dissesse mais uma só coisa, começaria a gritar.

Ouviu o barulho da porta ao fechar-se, o estalo da fechadura automática e, ao abrir os olhos, deu por si sozinha no apartamento em penumbra. Finalmente. Na cama de Bastien.

Sentou-se muito devagar, mas não sentiu dor. Aquela mistura esverdeada, fosse o que fosse, conseguira fazer com que não sentisse dor, pelo menos por enquanto. Tocou no braço com cuidado. A pomada formara uma camada parecida com a cera sobre cada corte, selando-o, mas mexia com ela e, quando afastou o lençol e levantou-se, não sentiu nenhum puxão, nenhuma dor.

Provavelmente, fora um veneno radioativo de algum tipo. Doera-lhe bastante quando ele lhe pusera e não confiava em Bastien nem por um segundo. Mas sentia-se mais forte, de modo que talvez pudesse absolvê-lo daquela acusação. Sentia-se suficientemente forte para sair dali o mais depressa possível, antes de ele voltar.

A sua roupa parecia farrapos, não podia sair à rua assim. Teria preferido sair nua do que vestir a roupa de Bastien, mas pelo menos ainda restava um pingo de instinto de sobrevivência. Se vestir a roupa de Bastien Toussaint significasse que não teria de voltar a vê-lo, que assim fosse.

Toda a sua roupa era preta. Naturalmente: era tão teatral como monstruoso. O fato de o único par de calças que pudesse vestir ser as de um pijama de seda preta não melhorou as coisas. Tal como a maioria dos homens, e em especial os franceses, Bastien não tinha ancas e ela tinha, no mínimo, uma boa ração.

Ainda que Bastien não fosse francês. Não tinha a certeza de como sabia. O seu sotaque era perfeito, as suas maneiras, tudo o que o rodeava proclamava que era exatamente o que ela descobrira na Internet: o filho de um fabricante de armas de Marselha. Tinha razão para se ter metido no tráfico de armas. Devia ser um caminho muito curto entre o fabrico ilegal de armas e a sua venda ilegal.

O filho casado de um fabricante de armas, recordou-se enquanto vestia uma camisa de seda, fazendo uma careta de dor por antecipação. O tecido, fino como um sussurro, mal tocou na sua pele e houve novamente aquela ausência inexplicável de dor. Aproximou-se da janela e olhou lá para fora. Estava frio e a chover. Quase parecia que não demoraria muito a começar a nevar. Era um pouco cedo para nevar, mas o mundo parecia ter saído do seu eixo. Já não podia contar com a normalidade.

Não havia dinheiro. Revistou minuciosamente o lugar e encontrou um pequeno contrabando do que presumivelmente seria cocaína ou heroína, não se importava com o que fosse, mas não viu dinheiro em lado nenhum. Nem um cêntimo para chegar ao outro lado de Paris. Era bastante fácil orientar-se, com a torre Eiffel à sua esquerda e o Sena a ziguezaguear por entre a cidade em sombras. Havia uma boa caminhada por ruas laterais e becos até ao seu apartamento em Marais, mas tudo era preferível a ficar ali. Agarrou no casaco de Bastien: um casaco comprido de caxemira preta que lhe pareceu suave como a manteiga. O leve rasto do seu cheiro pareceu incitá-la e esteve prestes a deitar fora o casaco em vez de se envolver no perfume de Bastien.

Mas não era o momento para gestos teatrais. Passou uma mão pelo cabelo e sentiu as madeixas desiguais e as pontas queimadas. Não podia fazer nada a respeito disso, mas quando chegasse ao seu apartamento diria a Sylvia para o arranjar.

Bastien dissera-lhe que era muito perigoso voltar para sua casa, mas lhe dissera muitas mentiras e ele era o único perigo reconhecível que havia na sua vida por enquanto. Além disso, ninguém sabia onde vivia. Sylvia subalugara o apartamento minúsculo a um do seus antigos amantes e nenhuma das duas figurava em nenhum registro como titular. Ela recebia o correio na Frères Laurent, o seu tele móvel era faturado nos Estados Unidos e não havia modo algum de a encontrarem sem grandes esforços. E não achava que a considerassem digna de tanto trabalho.

Isso não significava que não fosse para casa. Não confiava em Bastien nem por um instante, mas vira coisas suficientes para saber que se misturara inadvertidamente com pessoas muito perigosas e se ele era dos bons, não queria enfrentar os maus. O lugar mais seguro para ela era as montanhas da Carolina do Norte, onde estaria rodeada por uma família que a protegia em excesso. Por alguma razão, Paris e o campo que rodeava a cidade tinham perdido a sua beleza.

Caminhar pelas ruas molhadas e frias, com a cabeça baixa e embrulhada no casaco de Bastien, não contribuiu para melhorar o seu estado de espírito. Tinha os pés intumescidos devido ao frio, mas pelo menos os sapatos eram do seu tamanho. Era curioso que Bastien tivesse parado para lhe comprar uns sapatos de volta a Paris. Nem sequer entendia o que se passava pela cabeça dele e também não queria tentar. A única coisa que queria era afastar-se dele e dos outros o suficiente para que ninguém se lembrasse dela.

Tinha fome. Uma fome de lobo, na verdade, e nem sequer a lembrança de Hakim era capaz de distraí-la. Não se lembrava de há quanto tempo não comia e não podia continuar a avançar por pura energia nervosa. No seu apartamento haveria comida e uma cama quente. No dia seguinte, voltaria para casa no primeiro avião que pudesse apanhar. E talvez da próxima vez fizesse caso à sua família quando lhe dissessem para ficar onde estava.

Tinha razão. A chuva começava a transformar-se em neve. Parou por um instante, apoiando-se contra um edifício para respirar fundo. Os transeuntes não lhe prestavam atenção, avançavam rapidamente pelas ruas com as cabeças baixas, absortos nos seus assuntos. Ao cabo de um instante, afastou-se da parede e começou a andar outra vez. Estava a escurecer e apesar de as ruas estarem bem iluminadas não queria andar sozinha por elas. Fechou bem o casaco e continuou a caminhar enquanto tentava ignorar o cheiro leve do perfume dela.

Demorou mais do que esperava. Franc mostrara-se de acordo, sobretudo quando lhe demonstrara como estava disposto a ser generoso e prometeu ter os papéis prontos às seis da tarde. Podiam parar a caminho do aeroporto. Só demoraria um instante a acrescentar a fotografia adequada. Ia mandá-la num vôo da Air France mesmo antes da meia-noite e, depois, poderia respirar fundo e concentrar-se nos seus assuntos. Hakim morrera um pouco antes do previsto, mas isso não constituía um desastre de grandes proporções e Christos nem sequer aparecera. Havia a possibilidade de salvar a missão depois de Chloe desaparecer da circulação. Não sabia por que não podia esperar até então. Quase nunca se deixava distrair pelo sentimentalismo. Mais um sinal de arbitrariedade que lhe custaria explicar ao Comitê. Claro que não tinha intenção de lhes dizer a verdade.

Parou num café e pediu um uísque com cola. A chuva caía sem pausa e começava a transformar-se em neve. Sentou-se junto da janela e ficou a olhar para as ruas sem graça, à espera.

O homem que se sentou em frente dele parecia um funcionário britânico: carente de imaginação, de classe média e de meia-idade. Chamava-se Harry Thomason e era, de fato, um autômato cruel e desalmado que dirigia o Comitê como uma máquina bem oleada. Tirou a gabardina molhada, pousou o seu jornal sobre a mesa e pediu uma chávena de café antes de olhar finalmente para Bastien.

O que fizeste, Jean-Marc? Perguntou, com uma certa aspereza.

Bastien acendeu um cigarro, o primeiro que fumava há dois dias, extraindo todo o dramatismo do gesto. Harry provavelmente tinha tão pouca idéia do seu verdadeiro nome como qualquer outro, mas chamava-lhe Jean-Marc sem saber que aquela identidade procedia de um porco que a sua tia Cecile tivera como animal de estimação.

O tal Jean-Marc fora um animal de estimação muito elegante, certamente. Uma família da sua ascendência não admitiria menos e Cecile gostava de passear com o seu porco vietnamita pelos melhores hotéis da Europa e da Ásia. Jean-Marc, um porco elegante e mal-humorado, desaparecera finalmente enquanto Cecile e a sua mãe percorriam a Birmânia. Ele sempre se perguntara se teria acabado em alguma cozinha, numa retribuição cósmica pela ocasião em que lhe dera uma dentada no rabo. Fora culpa dele. Naquele tempo, tinha doze anos, era um rapaz aborrecido e desafiante, farto de ser arrastado de um extremo para o outro do globo como um apêndice de Cecile e Mareie. Farto de o porco receber mais atenção e afeto do que ele, decidiu aborrecê-lo um pouco enquanto dormia na sua cama forrada de pele.

Jean-Marc opusera-se com firmeza e dera-lhe uma dentada no rabo, ganhando desse modo o seu respeito. Pelo menos, o porco não o ignorava.

Cecile perdera interesse no porco na época em que desaparecera, do mesmo modo que a sua mãe perdera interesse no seu único filho há anos, possivelmente dias depois do seu nascimento. Deixara-lhe bem claro que não estava no mundo por escolha dela. O seu amante, um tipo ciumento, recusara-se a deixar que abortasse até descobrir que não era o pai e, quando ele se fora embora, já era demasiado tarde. Mareie estava no consultório de um curandeiro a suplicar que lhe fizessem um aborto de última hora quando ficou em trabalho de parto e ele nasceu três horas depois.

Sempre se perguntara por que não o estrangulara e o atirara para um contentor ou um balde de lixo. Nem sequer precisara de manchar as mãos a fazer tal coisa. Podia tê-lo deixado morrer de fome e de frio naquela noite de Novembro, há trinta e dois anos. Talvez tivesse sofrido um acesso momentâneo de sentimentalismo. Talvez fosse o fato de ter estado muito doente, tão doente que estivera prestes a morrer, tão doente que tiveram de operá-la para lhe tirar o útero e os ovários, certificando-se desse modo de que nunca voltaria a passar pela indignidade de outra gravidez. Em certa época, Bastien pensara que talvez, deitada naquela cama de hospital, receando morrer, tivesse feito um pacto com o Deus em que dizia achar. Se lhe salvasse a vida, criaria o menino e seria uma boa mãe.

Não cumprira com o seu acordo. Fora uma mãe horrível. Ele fora criado por uma série de criadas e empregos de hotel, até que finalmente, com quinze anos, fugira com uma velha amiga da sua mãe, uma mulher que tinha o dobro da sua idade, com o corpo de uma adolescente e o coração de...

Bom, tinha coração e amara-o. Talvez tivesse sido a primeira pessoa que o amara. Deixara-a em Marrocos quando tinha dezessete anos. Simplesmente, fora-se embora um dia em que ela fora comprar-lhe um presente. Quando não estavam na cama, gostava de o vestir com roupas elegantes e ele aprendera muito depressa a apreciar os fatos de seda. Ela morrera alguns anos depois, ouvira dizer, mas nessa altura já se despojara de qualquer remorso.

Fora recrutado com cerca de vinte anos por um homem muito parecido com Harry Thomason. Um homem de sangue-frio e sem coração que sabia exatamente do que alguém como Bastien era capaz se recebesse o treino adequado. E eles encarregaram-se de lho proporcionar.

A política e a moral não significavam nada para ele. Trabalhava para os bons, mas que ele soubesse não havia grande diferença entre uns e outros. O monte de cadáveres de um lado e do outro elevava-se e ninguém reparava nas vidas inocentes que se viam presas no fogo cruzado. Nem sequer ele. O que se passara com Chloe Underwood fora uma aberração, um erro que pensava desculpar antes de Harry descobrir.

Bom, o que se passou em casa de Hakim?

Essa era uma das coisas que Bastien odiava em Harry: aquele tipo nunca teria dito uma asneira.

- As coisas não correram bem. O que posso dizer? Apagou o cigarro. Perdera o gosto pelo tabaco, outro inconveniente.

- Podes contar-me o que aconteceu à rapariga. Quem era?

- Que rapariga?

- Não tentes brincar comigo, Jean-Marc. Não eras o único agente que havia no Château Mirabel este fim-de-semana. Aquela secretária americana... para quem trabalhava? O que se passou?

Bastien encolheu os ombros.

- Sei o mesmo que tu. Acho que era empregada do barão, mesmo que fosse só por motivos recreativos. Sabes que o barão gosta de ver e sempre gostou de ver Monique com outra mulher.

Harry franziu o nariz com o desagrado nascido do celibato.

- E não te incomodaste em descobri-lo?

- Fiz o que pude, chefe - respondeu, arrastando as palavras, consciente de que Harry odiava que o chamassem "chefe". Não consegui fazer com que admitisse nada.

Harry ficou a olhar para ele por um momento.

Se não conseguiste tirar-lhe algo duvido de que houvesse algo para descobrir. Se posso dizer alguma coisa sobre ti é que és um dos melhores interrogadores que temos. Melhor do que qualquer dos do outro lado, incluído o falecido Gilles Hakim. Ele desfrutava em excesso do seu trabalho. Portanto, diz-me, o que aconteceu com o nosso velho amigo Gilles e o que se passou com a rapariga?

- Estão mortos - acendeu outro cigarro. Não gostava. Até Gitanes lhe pareciam insípidos, mas pelo menos davam-lhe algo para fazer.

- Mataste-os?

- Só Hakim. Ele já tinha acabado com a rapariga.

- E o cadáver?

Bastien olhou para ele por entre o fumo.

- Não restava muito dela quando Hakim acabou.

- Entendo - Harry bebeu um gole de café. Aquele tipo não fumava, não bebia, nem tinha sexo, que Bastien soubesse. Era uma máquina, mais nada. Ele fora treinado para isso. - Um pouco prematuro - respondeu, - mas a missão pode salvar-se desde que não fique nada por resolver. Hakim era dispensável, mas Bastien Toussaint não. Os outros virão para Paris para acabar as negociações e Christos reunir-se-á com eles. Estarás à espera deles.

- Não achas que suspeitarão? Que se perguntarão porque matei Hakim?

- Conhecem-te e conheciam Hakim. Porque haviam de suspeitar? A única coisa que importa é fazer um acordo, dividir os territórios e escolher um novo chefe. Podiam ter escolhido Hakim porque era um filho de mãe muito trabalhador, mas com ele fora de combate imagino que Christos tem muitas possibilidades. E tu vais impedi-lo.

- Talvez estejam dispostos a ignorar a morte de Hakim, mas Christos tem muita mais gente na sua organização. Haverá repercussões.

- E por isso tu morrerás - declarou Thomason. Bastien nem sequer pestanejou.

- Ah, sim?

- É muito simples, já fizeste estas coisas antes e, mesmo que não fosse assim, serias capaz de levá-lo a cabo. Depois de escolherem Christos, armarás uma cena, porás uma bala na cabeça dele e alguém que já teríamos posto lá disparará. Levarás uma bolsinha de sangue na barriga. Quando ouvires o disparo, cairás como uma pedra. O que significa que só dispões de uma oportunidade para matar Cristos. Terás de acertar.

- Nunca tive problemas para acertar.

- Não, é verdade. Portanto, Bastien Toussaint morrerá e, se me sentir particularmente generoso, talvez deixe que tires umas pequenas férias no sul de França até à tua missão seguinte. Há sempre uma primeira vez para tudo.

Bastien acendeu outro cigarro que não queria.

- E o cartel?

- A próxima opção mais óbvia é o barão e será bastante fácil de controlar. Não nos interessa tirá-los do negócio. Alguém tem de dar armas aos terroristas internacionais e se vigiarmos o cartel podemos seguir o rasto de diversos grupos dissidentes e aceder aos seus planos.

- Em Abril passado enviei detonadores para a Síria. Setenta e três pessoas foram mortas, incluindo dezessete crianças - o seu tom de voz era neutro, mas Thomason não se deixou enganar.

- Não me digas que ainda andas a pensar nisso.

Perdas da guerra, filho. Vítimas da guerra contra o terror. Antes não era tão sentimental, Jean-Marc. Conheces isto tão bem como eu. Setenta e três mortos e milhares de vidas potencialmente salvas. Não podemos salvar toda a gente.

- Sim concordou Bastien, observando-o através das bolas que traçava com o fumo do seu cigarro.

- Confio em ti, Jean-Marc! Sei que não cometerias o erro de me mentir. Disseste que a rapariga está morta, não tenho dúvidas de que está. Além disso, porque havias de me mentir? Já te conheço há anos e nunca te vi demonstrar nenhuma emoção humana, nenhuma fraqueza. É uma máquina. Uma máquina finamente acabada, perfeita, indispensável.

- Até uma máquina precisa de descansar - declarou. - Manda outra pessoa para se encarregar do trabalho e eu desaparecerei. Jensen tem uma cobertura sólida. Pode ocupar-se de Christos.

- Por quê?

- Porque estou cansado.

- No nosso ofício, as pessoas não podem cansar-se. Quase nunca têm tempo livre, não podem descansar. Só há um modo de te retirares, Jean-Marc. Como Hakim se retirou.

- Isso é uma ameaça? - perguntou Bastien com indolência, enquanto apagava o cigarro.

- Não, só um fato. O cartel reunir-se-á no hotel Denis amanhã. Christos chegará no dia seguinte. Deixo-o nas tuas mãos. Acredito que farás o que terás de fazer.

-A sério?

- Não me faças zangar, Jean-Marc. Sabes o que arriscamos - levantou-se e dobrou cuidadosamente o jornal.

- O destino do mundo livre? Não é sempre isso? - não se incomodou em levantar-se. - Acho que já ouvi tudo isso antes. As necessidades da maioria pesam mais do que as necessidades de uns poucos e tudo isso. Viste demasiado Star Trek.

- Achava que era Star Wars - indicou Harry.

- Sei o que há em jogo - declarou Bastien.

- Então, não o esqueças. Nunca.

Bastien levantou o olhar para ele. Estava a acabar o tempo e, simplesmente, não se importava. A sorte durara mais do que esperava e não ia durar muito mais. Estaria morto quando caísse a primeira nevada. Embora, para dizer a verdade, já estivesse a nevar.

 

Mas, antes de irem atrás dele, talvez pudesse cortar o pescoço de Harry Thomason. Pelos velhos tempos.

 

Fora-se embora, é claro. Bastien soube enquanto subia no pequeno elevador, mas entrou de qualquer modo, só para se certificar. A suíte estava às escuras e Chloe deixara uma janela aberta. Entrava um ar gelado que arrastava flocos de neve. Bastien fechou a janela e correu as cortinas antes de acender a luz. Não sabia se estavam a vigiá-la, mas não estava de humor para se arriscar.

Não havia sinais de terem forçado a entrada, nem rasto algum de sangue. A roupa de Chloe estava lá, mas faltava o casaco dele. E alguém revistara o armário. Se tivessem ido atrás dela, não se teriam incomodado em vesti-la. Nem sequer se teriam incomodado em levá-la. Estaria morta na cama.

O que significava que se fora embora pelo seu próprio pé e já não era responsabilidade dele. Ele avisara-a. Movido por algum impulso irracional e quixotesco, tentara salvar-lhe a vida. Até comprometera a sua identidade por ela, quer gostasse de admiti-lo, quer não.

E ela ignorara as suas ordens e desaparecera. Um fardo a menos.

Chloe revistara a suíte minuciosamente, o que o surpreendeu. O que esperava encontrar ali? Talvez tivesse conseguido enganá-lo, afinal de contas, talvez não fosse uma jovem inocente. Então, recordou o seu olhar quando a fizera chegar ao orgasmo e compreendeu que não lhe escondera nada. Harry Thomason tinha razão nisso. Ninguém podia esconder-lhe a verdade se estivesse decidido a descobri-la.

Ela encontrara as drogas, embora não lhes tivesse tocado. Bastien tinha as drogas como salvaguarda: bens para trocar com alguns informadores que não precisavam de dinheiro. Guardou-as no bolso, só pelo sim pelo não, e revistou o quarto com todo o cuidado, limpando cada superfície. Aquilo não deteria um perito em ADN, mas não havia razão para se dar a tanto trabalho. Não havia cadáveres, nem sinal algum de um crime. Só um inquilino misterioso que desaparecia, deixando as suas roupas e coisas de higiene pessoal. Não havia um único rasto.

Se tivesse necessitado de limpar tudo, teria podido queimar o quarto. A sua suíte ficava no último andar e a maioria das pessoas fugiria ilesa. Mas um fogo chamava demasiado a atenção. Era melhor fugir sem mais nem menos do apartamento anônimo, da lembrança incômoda de Chloe Underwood e do seu destino bem merecido.

Saiu para a noite úmida e fria e fechou o casaco, amaldiçoando a sua convidada, que não só lhe desobedecera, como também levara o seu casaco. Começou a andar com a cabeça baixa, deixando o seu carro para trás. Fora visto por demasiadas pessoas e não havia registros que conduzissem à sua vida real, nem ao Comitê.

Era quase meia-noite quando entrou num bar cheio de fumo junto da Rue de Rosiers. Era o terceiro em que parava: jantara perto da Ópera, jogara um pouco num dos pequenos clubes que o seu alter-ego do momento freqüentava e, naquele momento, encontrava-se naquele antro imundo de Marais, um reduto a salvo da burguesia que se apoderara do bairro nas décadas anteriores.

- Étienne! - cumprimentou-o o barman, enquanto abria caminho pelo local abarrotado. - O que te traz por aqui? Não te víamos há... há quanto tempo? Dois anos? Achava que estavas morto.

- Sou difícil de matar - respondeu, adotando automaticamente o sotaque gutural de Marselha de Étienne.

- Como está, Fernand?

Fernand encolheu os ombros.

- Vou andando. O que queres? Ainda gostas de vodka russa?

Na verdade, Bastien nunca gostara muito de vodka, mas assentiu cordialmente, sentou-se no balcão e tirou os seus Gitanes.

- Vejo que mudaste de marca - Fernand apontou para os cigarros. - Pensava que só fumavas cigarros americanos.

Aquele era o tipo de deslize que fazia com que matassem um homem, pensou Bastien com um leve arrepio de algo que quase teria chamado deleite. Estava a tornar-se descuidado.

- Mudei de idéias - declarou. - Não sou um homem de lealdades fortes.

- Lembro-me disso - Fernand serviu-lhe um gole de vodka e Bastien bebeu-o rapidamente e, depois, deu-lhe o copo para que voltasse a encher-lho. - Estás igual. Como é que a vida te tratou?

- Mal, como sempre - respondeu, com despreocupação. Na verdade, tinha um aspecto muito diferente do que Étienne tivera antigamente. Étienne pertencia à classe trabalhadora, vestia-se de couro e com calças de ganga, tinha o cabelo pintado, usava-o muito mais curto e tinha sempre uma barba de vários dias. Bastien descobrira que era tudo uma questão de atitude. Podia transformar-se em Étienne, em Jean-Marc, em Frankie ou em Sven ou em qualquer outra pessoa simplesmente mudando o seu modo de falar e de mexer-se e quase ninguém reparava.

- Ainda não me disseste o que fazes aqui - insistiu Fernand. - O que posso fazer por ti?

No passado, Fernand fora um dos seus fornecedores de drogas, informação e dinheiro branqueado, mas naquele momento não tinha nada de que Bastien precisasse.

- Será que um tipo não pode vir beber um copo com um velho amigo? - respondeu, com desenvoltura.

- Um tipo como tu, não.

Bastien olhou para a rua. A neve continuava a cair em flocos lânguidos e as ruas estavam quase desertas. Numa noite tão fria, os que ainda estavam acordados estavam em algum lugar quente. De repente, perguntou-se, divertido, o que estava a fazer na parte mais sórdida de Marais à meia-noite, quando tinha coisas melhores para fazer.

- Uma mulher, Fernand - respondeu, com um sorriso irônico. - Vim aqui para ver uma mulher e ocorreu-me aquecer-me um pouco antes de enfrentar a sua raiva.

- Ah... - Fernand assentiu, dando-se imediatamente por satisfeito. - Vive por aqui, então? Talvez a conheça.

- Talvez. É italiana - replicou, improvisando. - É baixa, gordinha e tem muito caráter, a minha Marcella. Talvez possas dizer-me se a viste por aqui. Quero saber se anda por aí. Ela diz que não, mas quem confia nas mulheres?

- Sim, quem? Não é familiar. Onde vive?

Chloe partilhava um pequeno apartamento com uma inglesa duas ruas mais à frente. Bastien descobrira-o poucas horas depois da sua chegada ao château. Os outros também saberiam, mas até ela teria cérebro suficiente para se manter afastada do primeiro lugar onde iriam procurá-la. Ou não?

Além disso, Chloe já não era problema dele. Mas ele acabara num bar a duas ruas da sua casa, sem saber por quê. E, já que estava lá, podia parar de resistir e ir ver se estava em casa.

Se não estivesse, poderia esquecer-se dela. Já devia tê-lo feito, mas aquelas coisas eram mais fáceis na teoria do que na prática. Gostava de respostas e o desaparecimento de Chloe deixava muitas coisas por resolver.

Fernand olhava para ele com demasiada curiosidade. Claro que a informação era uma das suas mercadorias mais valiosas e quereria surripiar-lhe tudo o que pudesse, no caso de poder usá-lo no futuro.

Bastien nomeou uma rua na direção contrária.

- E será melhor ir para lá antes de ela decidir vir procurar-me.

- Então, vemo-nos por aí? Com a tua namorada do bairro? - insistiu Fernand.

- Este será o meu lar fora do lar - respondeu com um ar grandiloquente, imitando o estilo ligeiramente ébrio daquele fanfarrão chamado Étienne. - Soir

Estava bem escondido entre as sombras quando Fernand saiu do bar atrás dele. O homenzinho procurou-o, olhando para a neve que continuava a cair, sem perceber que ele estava a alguns passos de distância, escondido. Praguejou e, depois, aproximou-se de um canto do edifício, longe da luz, e tirou um tele móvel.

Bastien estava demasiado longe para ouvir mais do que algumas palavras, mas ouviu o suficiente para compreender que a morte que tanto desejava estava a aproximar-se. Mas um erro como aquele e seria o fim. Era uma pena que não se importasse. Não queria saber para quem Fernand trabalhava. Podia ter ligações com meia dúzia de pessoas que queriam vê-lo morto.

Fernand desligou o telefone, deu uma olhadela em redor e cuspiu antes de voltar para o bar. Bastien perguntou-se quanto tempo é que os reforços demorariam a chegar.

Mas não tinha importância. Estaria longe dali quando os compatriotas misteriosos de Fernand aparecessem. Não demoraria mais do que um instante a revistar o apartamento. E depois, a menos que lhe apetecesse suicidar-se, iria para a sua casa em St-Germain-des-Prés e voltaria a transformar-se em Bastien Toussaint. E a pequena Chloe teria de se arranjar sozinha.

Sylvia e Chloe partilhavam um apartamento típico de aluguer no último andar de uma propriedade velha da parte mais degradada de Marais. O andar de baixo era ocupado por uma tabacaria. O primeiro andar era de um casal de idosos que passava a maior parte do ano a viajar e o último continha uma série de quartos traseiros e pequeno apartamento. Todo o edifício estava às escuras quando Chloe dobrou finalmente a esquina. Tinha o cabelo encharcado devido à neve e as pontas queimadas tinham um cheiro horrível. A primeira coisa que ia fazer seria tomar um banho e lavar todo o corpo, até as feridas cobertas de cera. Já tinham passado muito mais de quatro horas desde que Bastien lhe aplicara o ungüento, muito mais de quatro horas desde que conseguira sair do hotel sem que ninguém reparasse nela. Ia tão escondida no casaco preto que talvez tivessem pensado que era Bastien, embora imitar a sua forma de andar fosse quase impossível, para ela e para qualquer outro.

Talvez, passados vinte anos, se lembrasse dele e se perguntasse que tipo de arrebatamento de loucura se apoderara dela. Teria gostado de pensar que a drogara, qualquer coisa que lhe tirasse a responsabilidade dos ombros, mas não podia. Estivera num estado de consciência alterada, sim, mas isso não tinha nada a ver com droga, mas com... Meu Deus, nem sequer conseguia entender o que a impulsionara a agir daquela maneira. Estivera aborrecida, desejara sexo e violência e fora exatamente o que recebera. Cuidado com o que desejas, não era o que os chineses diziam? Ou era "Cuida dos tempos interessantes"? Tanto fazia. Naquele momento, só queria um bom banho e uma cama quente e amanhã voaria para casa, de volta para os braços amorosos e protetores da sua família e para todo o aborrecimento que pudesse pedir.

Foi naquele momento que percebeu que não tinha chave. Nem do edifício, nem do apartamento. Esteve prestes a soluçar de desespero. Doíam-lhe os pés, o cabelo cheirava a cão molhado, tinha dores musculares em todo o corpo e, apesar de ter o estômago vazio, sentia vontade de vomitar. E tinha frio, apesar do abraço suave da caxemira.

Podia ir à polícia, mas far-lhe-iam perguntas que não queria responder. Podia ir à embaixada, mas provavelmente estava a dois quilômetros em sentido contrário e pensava que não conseguiria dar mais nenhum passo e muito menos voltar para trás pelas ruas cheias de neve.

Mas a sorte estava finalmente do seu lado. A porta que dava para os andares de cima estava aberta, como acontecia com freqüência. Sylvia não costumava incomodar-se em fechá-la e mais ninguém fora ali nos últimos dois dias. Fechou a porta atrás de si, fechando-se no portal escuro e frio e procurou o interruptor da luz às apalpadelas.

Depois arrependeu-se. Estava muito escuro, mas conhecia o caminho de cor e não havia necessidade de denunciar a sua presença. Era muito improvável que alguém soubesse que vivia ali, mas Bastien deixara-a nervosa. Se andasse pelo edifício às escuras, como um espectro silencioso, podia estar razoavelmente certa de que ninguém iria indagar.

A porta do apartamento estava fechada, mas Sylvia deixava sempre uma chave no parapeito da janela do corredor, no caso de perder a dela, o que acontecia com regularidade. Abriu a porta de um empurrão e o ar frio envolveu-a. Sylvia devia estar fora, a divertir-se nos braços do seu amante idoso.

Fechou a porta, recostou-se contra ela e exalou lentamente. Na verdade, não passara muito tempo fora. Duas noites, com aquela faziam três, e Sylvia fora passar um longo fim-de-semana fora. Era lógico que ainda não tivesse regressado e possivelmente era melhor.

A lua brilhava sobre as janelas, iluminando suficientemente as divisões lotadas de coisas para que abrisse caminho entre elas. Acendeu o aquecedor, tiritando apesar do casaco de Bastien e, depois, preparou o banho.

O apartamento consistia num quarto, o de Sylvia, uma cozinha minúscula, uma casa de banho ainda mais minúscula e uma sala de estar muito desorganizada. Chloe dormia num colchão, no chão, e resistia tenazmente a considerar a possibilidade de que no velho edifício houvesse insetos ou roedores.

Abriu a porta do quarto de Sylvia e espreitou. Inclusive à luz da lua que se filtrava pelas janelas viu que parecia ter rebentado uma bomba no seu interior. Sylvia devia ter desarrumado tudo ao fazer a mala para o fim-de-semana mágico de Chloe no campo. Não ia gostar nada do desaparecimento de algumas das suas melhores roupas.

Mas isso não era nada comparado com o estado anímico de Chloe. Conhecendo Sylvia, talvez demorasse uma semana ou mais a voltar e, nessa altura, ela já se teria ido embora. Quando estivesse nos Estados Unidos, enviar-lhe-ia algum dinheiro para cobrir a sua parte do aluguer até encontrar alguém que a substituísse e um pouco mais para a ajudar a substituir a sua roupa de marca. Ainda que ela tivesse muito pouco dinheiro, o resto da sua família tinha tanto que não sabia o que fazer com ele e ficariam tão contentes por ela ter voltado para casa que provavelmente enviariam dinheiro suficiente a Sylvia para subsistir durante meses.

Não se olhou ao espelho enquanto tirava a roupa de Bastien e a afastava ao pontapé. Meteu-se na velha banheira, preparando-se para suportar a dor, mas a água quente envolveu-a como um abraço terno. Afundou-se nela com um gemido de puro prazer e fechou os olhos, sentindo-se em paz pela primeira vez desde que aquele pesadelo aparentemente interminável começara.

Contudo, pouco depois, a água começou a arrefecer e teve de enfrentar a vida. Ao sair da banheira viu um pouco do seu corpo no espelho. Ficou paralisada, olhando estupefata para o seu reflexo.

Aquela pomada verde, abrasadora e fétida cumprira a sua missão. As marcas continuavam lá, tiras de dor causadas pela lâmina quente, mas pareciam ter meses e ser uma lembrança longínqua. Tinha marcas escuras nas ancas e, ao olhar para elas mais de perto, distinguiu as marcas de umas mãos. Bastien. Era adequado que aquelas marcas perdurassem quando o resto tivesse curado.

Embrulhou-se numa toalha. O seu cabelo úmido era um desastre, não esperaria que Sylvia regressasse. Não tinha outro remédio senão tentar arranjá-lo sozinha. Procurou uma tesoura e começou a cortá-lo deixando cair as madeixas no lavatório.

Esperava uma daquelas transformações de filme: a secretária anódina pega numa tesoura e transforma-se numa mulher linda com a cara de Audrey Hepburn. Mas não. Pousou a tesoura antes de abusar. Talvez tivesse melhor aspecto quando secasse. A cabeleireira da sua mãe ficaria horrorizada e, depois, poria mãos à obra. Dentro de alguns dias estaria elegante e adorável. Mas naquele momento sentia-se como um gato molhado.

O aquecimento conseguira aquecer o quarto principal, mas o ar continuava rarefeito, de modo que abriu uma das janelas e procurou a sua camisa de dormir mais abrigada entre a sua roupa, uma de flanela grossa que fazia com que Sylvia se risse à gargalhada. Naquela noite não havia ninguém para se rir dela e precisava do calor e do conforto do tecido suave e envolvente.

Não havia nada para comer, para além de cereais e queijo. Comeu duas colheres de Weetabix às escuras, fê-los descer com um copo de vinho e deitou-se no seu colchão fino por baixo do edredom nórdico. Naquela noite, podiam correr-lhe ratos por cima, que não se aperceberia. A única coisa que queria era dormir.

Dormiu, mas teve uns sonhos horríveis. Os pesadelos deviam ter sido o pior: a cara de Hakim a abater-se sobre ela, o seu tom de voz suave e insinuante enquanto aproximava amorosamente a faca da pele dela e a desafiava a não gritar.

Nos seus sonhos, Hakim não parava. Nos seus sonhos, ela sangrava até morrer e Hakim sorria com um deleite terno, enquanto Bastien permanecia sentado numa cadeira semelhante a um trono, rodeado de mulheres, bebendo um copo de uísque e observando.

E, apesar de tudo, aquilo era suportável. Sabia que estava a sonhar e, por muito real que parecesse, uma parte do seu cérebro conservava a consciência suficiente para convencê-la de que era irreal.

Mas os sonhos não se rendiam facilmente. Já não tinha dores, nem sangrava. Estava deitada numa cama branca, coberta de renda e Bastien encontrava-se sobre ela, dentro dela, fazendo amor com ela com uma intensidade lenta e perversa. O prazer era tão delicioso que sentiu o seu corpo adormecido a contrair-se em espasmos.

Tinha frio, tinha calor, o edredom era demasiado leve, depois era demasiado pesado e sentia Bastien em seu redor, como um abraço. O seu cheiro incitava-a enquanto lutava e perdia ainda mais no sonho. Não queria sonhar, não queria recordar, a única coisa que queria era calor e escuridão.

Em algum lugar, ao longe, o sino de uma igreja indicou as quatro horas. Devia levantar-se fechar a janela, mas estava finalmente com calor e, sem dúvida, não conseguiria voltar a dormir. De manhã, à luz do dia, poderia enfrentar as coisas outra vez. Na escuridão, a única coisa que podia fazer era esconder-se.

Algo não estava bem. Não era de estranhar: havia muito poucas coisas na sua vida que corriam bem e não ajudava pensar nelas. Só o tempo e a luz do dia melhorariam as coisas.

Remexeu-se sobre o colchão fino, puxou o edredom até ao queixo e procurou o casaco de Bastien às apalpadelas para o pôr por cima, mais uma camada contra o frio.

Mas o casaco não estava ali: deixara-o sobre uma cadeira. Abriu os olhos na escuridão, só para ver o próprio Bastien sentado no chão, junto dela, apoiado contra a parede, observando-a em completo silêncio.

 

Por um instante, pensou que continuava a dormir, que o seu pesadelo ganhara vida e disse para si que era só um sonho. Quando ele falou, o seu tom de voz era baixo e tranqüilo na escuridão.

- Tens sorte por ainda estares viva - declarou, suavemente.

Ela não ia contrariá-lo nisso, mesmo que tivesse vontade. Ficou muito quieta, sem se mexer, esperando que se desvanecesse, mas parecia demasiado sólido e real e estava demasiado perto dela.

- Como me encontraste? - perguntou, finalmente. E como entraste?

Ele não se afastou da parede. Tinha as pernas esticadas para a frente, cruzadas, e as mãos pousadas sobre o colo.

- Já te disse, não demorariam a encontrar-te. Eu fui mais rápido, mas não demorarão a dar conosco.

- Conosco?

Ele inclinou a cabeça e olhou para ela.

- Tenho tendência a acabar o que começo. Perdeste um avião, mas vou pôr-te no próximo, mesmo que tenha de te deixar inconsciente, atar-te e levar-te num porta-bagagem.

Chloe estendeu o braço para acender a luz que havia junto da sua cama, mas ele parou-a, agarrando-a pelo pulso. Ela afastou a mão bruscamente e, ao fazê-lo, derrubou o candeeiro.

- Não precisamos de luz - declarou Bastien. - Essa foi a única coisa sensata que fizeste, deixar as luzes apagadas quando voltaste. Quando vierem atrás de ti, não se assustarão com um pouco de escuridão, mas fizeste bem ao não chamar a atenção sobre ti.

- Talvez tivesse apagado a luz quando fui para a cama.

- Estava aqui antes de chegares com o teu ar de pobrezinha. Decidi que não te fariam mal algumas horas de sono. Mas roubaste-me o casaco. Estava gelado.

- Que pena! - gozou ela. Não lhe perguntou onde estivera e o que vira. Naquele momento, não podia fazer nada, mas não a faria feliz descobrir que estivera a observá-la enquanto tomava banho, cortava o cabelo ou examinava as marcas do seu corpo. Era melhor não saber.

Bastien servira-se de um pouco de vinho. A garrafa estava no chão, ao seu lado, junto de um copo. Chloe não sabia há quanto tempo estava lá, nem quanto tempo dormira.

- Porque mudaste de idéias? - perguntou, bruscamente. Tapou o peito com o edredom e sentou-se no canto, afastando-se dele. E depois percebeu que os seus dedos agarravam no casaco dele e soltou-o.

- Mudar de idéias? - repetiu ele.

- Sobre mim. Passei muito tempo com o monsieur Hakim. Gostava de falar enquanto torturava as pessoas. Se não fosse por ti, não teria sabido que tinha estado a bisbilhotar na Internet. Não teria pensado que era o que não sou.

- O que não és? E o que é isso? - não esperou pela sua resposta. - Depois de Hakim chegar à conclusão de que não confiava em ti, eu não podia fazer nada para detê-lo. O fato de lhe mostrar o rasto tosco que tinhas deixado no computador só acelerou as coisas.

- Então, o que te fez mudar de idéias e ir salvar-me?

- Não mudei de idéias.

Chloe tinha muito frio, mas não levou a mão ao casaco.

- Então, o que fazes aqui? Só vieste para observar. Ele encolheu os ombros.

- Surpreendeu-me que ainda continuasses viva. Hakim deve ter-se divertido mais do que o normal se mal te tinha tocado.

- Mal me tinha tocado? - levantou o tom de voz e Bastien mexeu-se tão depressa que só lhe pareceu um borrão na escuridão. Tapou-lhe a boca e segurou-a contra a parede. Há pouco tempo segurara-a contra outra parede e Chloe perguntou-se o que ia fazer.

- Não levantes o tom de voz! - ordenou, olhando para ela fixamente na escuridão. Muito perto. - Tenta não ser tão estúpida como o teu comportamento sugere.

Afastou a mão. Chloe ficou em silêncio e levantou o olhar para ele. Estava à espera que lhe tocasse. Ia beijá-la e ela não sabia o que ia fazer a respeito disso.

Mas Bastien não a beijou. Retirou-se e voltou a sentar-se no chão, a alguns passos de distância.

- Fui procurar Hakim por outro assunto, vi que continuavas viva e matei-o movido por um capricho.

- Por um capricho?

Encolheu os ombros de maneira muito francesa e, no entanto, Chloe não pensava que fosse francês.

- Faz parte do meu desejo de morrer, suponho. Estou a viver em tempo emprestado e tirar-te daquele sítio só acelerou um pouco as coisas. Deus sabe que hoje, quando te foste embora, devia ter-te deixado ir, mas zangaste-me. Já que me tinha dado ao trabalho, podias pelo menos ter-me obedecido.

- Nunca fui muito obediente. Não estaria aqui, em Paris, se não estivesse habituada a fazer o que quero.

- Não me importo nada com o que queres. Vais voltar para os Estados Unidos e vais ficar lá. Entendido?

Naquele momento, não havia nada que Chloe desejasse mais, mas um diabo interno impulsionou-a a responder:

- E se me negar?

- Então, cortar-te-ei o pescoço e deixar-te-ei aqui. Seria uma pena, depois de ter tido tanto trabalho. Essa coisa que te pus nas feridas é muito valiosa e não a teria desperdiçado em ti se soubesse que ia ter de te matar algumas horas depois. Mas isso não me deterá. És um estorvo e um perigo e talvez não devesse ter dito Hakim, mas dado que o fiz, queria levar isto até ao final. Tu decides. Queres morrer agora e acabar de uma vez por todas? Ou preferes voltar para a tua família e ter uma vida normal?

Falava da morte e do assassinato com uma naturalidade pasmosa e Chloe não tinha nenhuma dúvida de que faria o que dizia. A única coisa que tinha de fazer era olhar para os seus olhos escuros e vazios.

- Como sei que consegues manter-me a salvo?

- Não sabes. Nesta vida não há garantias. Mas tens mais possibilidades comigo do que sozinha. E, se fracassar, prometo-te que serei eu a matar-te antes de caíres nas mãos de alguém pior do que Hakim. Fá-lo-ei depressa e sem te causar dor.

Chloe engoliu em seco.

- Há homens piores do que Hakim?

- Para dizer a verdade, as melhores torturadoras costumam ser mulheres. O que não é surpreendente.

Ela ficou a olhar para ele na escuridão.

- Quem diabos és tu?

O seu sorriso frio distava muito de ser reconfortante. Já não achas que sou um traficante de armas de Marselha? Demoraste bastante.

- Então, quem é? Bastien Toussaint é o teu nome verdadeiro?

- Pareço-te um santo, Chloe? Não precisas de saber quem sou. Basta dizer que faço parte de uma organização internacional cuja existência é conhecida por muito poucas pessoas e é melhor que seja assim. Cala-te e faz o que te digo.

Ela continuou a olhar para ele com uma sensação gélida e desagradável no estômago.

- Podes dizer-me uma coisa? És dos bons ou dos maus?

- Acredita em mim - replicou, cansado, - a diferença não é muita. Temos de sair daqui antes de amanhecer. Tira essa camisa de dormir tão sexy e veste alguma coisa. Só uma americana é que pensaria em dormir com essa coisa.

Ela olhou para a camisa de dormir de flanela.

- Devo usar lingerie de renda quando estou gelada e receio pela minha vida? Viste demasiados filmes.

- Eu nunca vou ao cinema.

Chloe deslocou-se sobre o colchão, procurando manter-se afastada dele. Embora, de qualquer modo, não importasse. Bastien não parecia interessado em tocar nela. Guardava a sua roupa numa pequena cômoda junto da janela. Levantou-se, tirou roupa interior limpa, umas calças de ganga e uma camisa grossa. Começara a dirigir-se para a casa de banho quando a voz dele a deteve.

- Onde vais?

- Vou à casa de banho, fazer as minhas necessidades e mudar de roupa, a não ser que tenhas alguma objeção.

- Não é preciso que sejas tão pudica, Chloe. Não me interesso pelo teu corpo nu.

Já deixara aquilo claro, mas por alguma razão a sua afirmação tranqüilizadora foi a gota de água. Atirou a roupa para uma cadeira próxima e tirou a camisa de dormir pela cabeça tão bruscamente que a ouviu rasgar-se. Atirou-a a Bastien, pegou na sua roupa e entrou na casa de banho, com o seu corpo nu iluminado pela luz da lua.

No último instante, recordou que não devia ter fechado a porta com força, por muita vontade que tivesse. Não era razão suficiente para morrer e, decididamente, não queria arriscar-se a fazer com que Bastien se levantasse e voltasse a pôr-lhe as mãos em cima. Ele não podia ter sido mais claro. Usara o sexo só com um propósito: para obter informação. Agora que sabia tudo o que precisava saber, deixara de lhe interessar.

Apetecia-lhe tomar um duche, mas teria sido forçar as coisas. Usou a sanita e, depois, vestiu-se rapidamente. O cabelo secara, formando um matagal, mas tinha melhor aspecto do que esperava, embora continuasse a estar muito longe de uma daquelas mudanças de imagem próprias de Hollywood. Claro que Bastien não ia ao cinema. E o que ele pensasse importava pouco, visto que não estava interessado. Ainda bem.

Está bem, faria o que lhe dizia. Fecharia a boca e seria obediente. Faria tudo para poder sair de França o mais depressa possível. Só estaria a salvo quando saísse do país e, apesar das horas horríveis que passara com Gilles Hakim, não conseguia acreditar que corria assim tanto perigo. Não, o mais importante era afastar-se daquele homem misterioso e não ter de se preocupar com o fato de voltar a aparecer quando pensasse que estava finalmente a salvo.

Bastien agarrou na camisa de dormir com uma mão enquanto a observava a sair do quarto. O seu corpo era pálido à luz da lua e viu que o ungüento cumprira a sua função.

Quase podia ter começado a rir-se. Estava tão ofendida, tinha tão pouca idéia de como era desejável... Não desejara outra coisa senão tirar-lhe a roupa e meter-se sob o edredom com ela, perder-se no seu corpo, na escuridão. Estava tão cansado...

Mas mantivera a distância, apesar de ler claramente nos seus olhos que podia torná-la dele. Encostou a cara na flanela suave e inalou o perfume do seu corpo, do seu sabonete e da sua pele. Chloe ignorava como a justaposição da flanela suave sobre um corpo leve e sensual poderosamente podia ser erótica. E ele não tencionava dizer-lhe.

Se restasse um traço de sentimentalismo, teria levado a camisa de dormir como lembrança. Chloe não se parecia com ninguém com quem tivesse lidado: era vulnerável, colérica e surpreendentemente valorosa. Claro que também não precisava de uma camisa de dormir para se lembrar dela para o resto da sua vida. Não ia durar muito.

Ela amachucara a camisa de dormir ao tirá-la.

Bastien estava tão abstraído a admirar o seu corpo às escondidas que não reparara. O tecido estava gasto, fora lavada muitas vezes e era muito suave: devia ter aquela camisa de dormir há muitos anos. Obviamente, dormia com ela desde que era pouco mais do que uma menina. Não era muito velha.

Não soube por que o fez. Mas fê-lo. Agarrou no tecido e puxou-o para cortar um pedaço. Chloe não perceberia. Não ia dar-lhe a oportunidade de fazer a mala. Tinha o pedaço de tecido metido no bolso, convenientemente esquecido, quando ela saiu da casa de banho. Parecia tão furiosa como quando entrara, ainda que estivesse mais vestida, infelizmente.

Para irritar uma mulher, não havia nada como dizer-lhe que não a desejava, pensou. Não podia permitir que começasse a ter dúvidas. O sexo que tinham partilhado fora só isso: sexo passageiro e poderoso. O lugar de Chloe era num campo de margaridas ou nos braços de um amante terno. Não devia estar a fugir com um assassino para salvar a vida.

Bastien começara a pensar de si próprio como isso, como um assassino, mas aquele rótulo encaixava tão bem como qualquer outro. Matara em própria defesa, matara a sangue frio, assassinara e matara em combate convencional. Matara homens e mulheres e esperava com toda a sua alma não ter de matar Chloe. Mas fá-lo-ia se fosse necessário.

Talvez lho dissesse antes de matá-la, se chegasse a isso. Podia fazê-lo muito depressa, de modo que ela mal percebesse o que se passava, mas antes de afundar a faca na sua garganta dir-lhe-ia a verdade. Pelo menos, podia morrer orgulhosa.

Estava a adiantar-se aos acontecimentos. Se visse obrigado a matá-la, teria fracassado e não era o tipo de homem que contava o fracasso entre as suas opções. Enquanto continuassem a mexer-se, não lhes aconteceria nada. E, enquanto conseguisse manter as mãos afastadas dela, continuariam a mexer-se.

- Tens casaco próprio ou tenho de te emprestar o meu?

- O meu está no chateou, mas posso levar um de Sylvia. Já perdi parte da sua melhor roupa - sentou-se numa cadeira e começou a calçar as meias. Bastien não precisou de lhe dizer para calçar uns sapatos confortáveis: as suas botas eram planas, estavam muito gastas e pareciam confortáveis. Podia correr com elas se fosse necessário.

Nunca a vira com calças de ganga e uma camisola. Parecia mais americana e mais desejável. Levantou-se e abriu a porta do quarto e Bastien reconheceu o cheiro antes dela.

Tentou chegar a tempo, mas demorou um segundo a levantar-se e ela já entrara. O quarto estava mais escuro do que o resto da casa, mesmo com a luz que precedia à alvorada e Chloe não conseguiria ver nada. Mas pareceu perceber, porque acendeu a luz.

A mão de Bastien já estava sobre a dela. Apagou a luz, mas não suficientemente depressa para que ela não visse o cadáver da mulher estendido no chão. Estava morta à menos de algumas horas, possivelmente desde pouco antes de Chloe chegar. O cheiro teria sido mais intenso se estivesse morta há mais tempo.

Bastien rodeou Chloe com um braço, pôs a mão sobre a boca dela para silenciar o seu grito e puxou-a de rastos para fora do quarto, fechando a porta atrás dele com um pontapé. Mas o cheiro encheu o apartamento e tinham de sair dali o mais depressa possível.

Ela tinha vômitos e Bastien não o reprovava, mas não podia ser cortês a respeito disso. Entrara por trás, pelos telhados, através da janela das traseiras e voltaria a sair por esse caminho com Chloe, mesmo que tivesse de levá-la às costas.

Ela parou de tentar gritar e Bastien afastou-lhe a mão da boca o tempo suficiente para agarrar no seu casaco antes de afastá-la de um empurrão e de fechar a porta atrás de si.

Saíram para o amanhecer gélido das ruas de Paris com o fedor da morte ainda colado aos seus corpos.

 

Chloe estava em estado de choque, o primeiro golpe de sorte que Bastien tivera há muito tempo. Passara o ponto em que conseguia falar, protestar ou fazer alguma coisa, para além de se mexer com ele em cega obediência. Bastien parou o suficiente para a embrulhar no seu casaco e, depois, seguiu em frente, agarrando-a pela mão. Se a largasse, possivelmente ficaria parada a meio da rua até a encontrarem.

Avançava depressa, entrando e saindo de becos e voltando para trás. Por que diabos tinham matado a rapariga se não tinham ido atrás deles? Talvez fosse um simples erro: se tinham mandado um estranho, talvez tivesse confundido a rapariga com Chloe. Ou talvez a tivessem matado por precaução e, depois, tivessem continuado à procura deles. Talvez se tivessem cruzado com algum sem se verem no meio da noite.

Isso era o menos provável: ele não acreditava nos golpes de sorte. O seu sexto sentido dizia-lhe que não havia ninguém a vigiá-los enquanto puxava Chloe pelas ruas iluminadas ao amanhecer. Talvez pensassem que ele próprio ia entregá-la.

Pobre americana idiota, presa num jogo que a superava. Ambos os lados a queriam e ele conhecia a sua organização suficientemente para saber que a queriam morta. Era um estorvo: vira demasiado e, quanto mais depressa desaparecesse, melhor.

O trânsito começava a aumentar, o sol estava a nascer por cima dos telhados quando, de repente, Chloe ficou paralisada. Bastien sabia o que ia acontecer e segurou-a enquanto vomitava na rua. O corpo da sua companheira de apartamento não era o primeiro cadáver que via: estava presente quando ele matara Hakim.

Mas o tempo que passara com Hakim habituara-a momentaneamente a essas realidades. Tivera tempo suficiente para recuperar o equilíbrio, para começar a pensar por si própria e a visão do cadáver da sua amiga, brutalmente assassinada, golpeara-a com toda a sua força.

Parou e, enquanto mandava parar um táxi, Bastien deu-lhe um lenço para que limpasse a cara. Um táxi parou quase imediatamente. Apesar da hora, a vizinhança e o evidente mal-estar de Chloe, os taxistas de Paris estavam bem ensinados. Eram capazes de julgar o custo da roupa de um cliente a um quarteirão de distância e era desse modo que sabiam se valia a pena parar ou não.

Bastien introduziu-a no carro e entrou atrás dela sem parar de abraçá-la, com a sua cara apoiada sobre o ombro. Quanto menos pessoas a vissem, melhor.

- Para onde vamos, monsieur?

Deu-lhe uma morada do décimo quinto afrondissemente, depois, recostou-se no banco. O taxista pôs o carro a trabalhar e começou a ziguezaguear com destreza por entre o trânsito cada vez mais intenso, mas Bastien reparou que os observava pelo espelho retrovisor.

-A sua namorada bebeu demasiado? - perguntou. Não quero que vomite nos estofos.

Uma preocupação legítima, pensou Bastien.

- Não vai vomitar mais, por enquanto. Não é a minha namorada, é a minha mulher. Está grávida de três meses e está a sofrer.

Sentiu-a dar um salto entre os seus braços, mas pôs-lhe a mão na nuca e manteve-a com a cabeça baixa. O condutor assentiu sagazmente.

- Ah, essa é a pior parte. Não se preocupe, senhora, não dura para sempre. A minha mulher não agüentava nada no estômago durante os três primeiros meses e, depois, não conseguiu parar de comer. Tivemos quatro filhos e é sempre o mesmo. Este é o primeiro?

Tantas perguntas, pensou Bastien.

- Sim - respondeu. - Algum conselho?

Aquilo soltou-lhe a língua e, durante os dez minutos seguintes, Bastien recebeu um sermão a respeito de todo o tipo de coisas relacionadas com a gravidez, desde os desejos de uma grávida até às melhores posições para ter sexo quando a esposa ficava do tamanho de um búfalo. Bastien só ouvia algumas coisas e respondia quando devia. Enquanto isso, sentiu que Chloe ficava novamente imóvel entre os seus braços.

A morada que dera ao taxista era a de um arranha-céus moderno com estacionamento no porão. Passara algumas semanas lá há alguns anos com uma bela modelo etíope. Fora a última vez, de que ele se lembrava, que se libertara do trabalho durante uma temporada. A rapariga era carinhosa, simpática e criativa em matéria sexual e começara a gostar muito dela. Nem sequer se lembrava do seu nome.

- Importar-se-ia de nos levar ao estacionamento? Perguntou. - O elevador é ali mesmo e assim poderei levar a minha esposa para a cama muito mais depressa.

- Claro, monsieur - o pobre homem não sabia o que o esperava. Conduziu para a garagem do edifício, para o interior do estacionamento lúgubre e parou junto do elevador. Até saiu do táxi para ajudar Bastien a tirar Chloe. Nem sequer percebeu de onde vinha o golpe.

Teria sido lógico matá-lo. Degolá-lo e deixá-lo no beco sem saída que havia atrás do elevador, onde demorariam dias a encontrá-lo. Então, Chloe já se teria ido embora há muito tempo e ele teria deixado de se importar.

Mas no último momento lembrou-se dos quatro filhos e da mulher do tamanho de um búfalo e, por alguma razão, ficou sentimental. Certamente, tratava-se de simples rebeldia: tinham-no transformado num homem capaz de matar sem remorsos e queria fazer o contrário daquilo que lhe tinham ensinado.

O taxista tinha um rolo de fita-cola no porta-bagagem. Isso salvou-lhe a vida. Bastien atou-o eficazmente, pôs-lhe o seu próprio lenço na boca e tapou-o com a fita-cola. Encontrá-lo-iam mais cedo ou mais tarde. Imaginava que tinha no máximo seis horas, talvez menos. Chloe continuava no banco de trás do táxi e ele deixou-a lá, fechou a porta e entrou no banco do condutor. Acendeu o sinal de Pás de Service e saiu do estacionamento para o sol da manhã, um taxista a caminho de casa depois de uma longa noite de trabalho.

Era uma pena não ter matado o taxista. Isso ter-lhes-ia dado doze horas antes de a esposa notificar o seu desaparecimento. Talvez mais. E o desaparecimento de um taxista não seria tratado com grande deferência por parte da polícia de Paris. Naturalmente, pensariam que fugira com alguma rapariga e acabaria por regressar para a sua esposa iracunda.

Outro sinal de que já não era útil, pensou Bastien. A piedade era uma fraqueza que um agente secreto não podia ter. Olhou para trás. Chloe estava aninhada no banco, com o casaco bem apertado em redor do corpo, os olhos abertos e o olhar fixo. Mais cedo ou mais tarde o choque remeteria e começaria a gritar. Tinha de levá-la para algum lugar seguro antes de isso acontecer.

Só podia pô-la num avião naquela noite.

Por um instante, considerou a possibilidade de levá-la para um aeroporto menor, como o de Tours, mas descartou-a. Estariam a vigiar todos os aeroportos. Corriam menos perigo no Charles de Gaulle, onde tinha alguns contactos que nem sequer Thomason e os outros conheciam.

Encontrou a casa com bastante facilidade, embora passasse uns bons vinte minutos a dar voltas em redor no caso de estarem a viajar a propriedade. Tinham deixado de usar aquele lugar há dois anos, quando ficara irremediavelmente comprometido e, ainda que o Comitê acabasse por se lembrar de inspecioná-lo, o mais provável era revistarem primeiro os apartamentos seguros em uso. Novamente, mais algumas horas para acrescentar a lista que ia amontoando.

Pareceu-lhe que não havia ninguém a vigiar. Era uma casa enorme nos subúrbios de Paris, abandonada desde 1950. Levantava-se sobre um terreno de imenso valor imobiliário e era um milagre que ninguém tivesse feito indagações acerca da sua titularidade. No papel, pertencia à família de uma senhora idosa cujo testamento era tão arrevesado que nunca se resolveria. Na verdade, fora noutro tempo a casa de um colaborador, cujos sótãos estavam repletos de tesouros. Aqueles tesouros faziam parte do espólio de guerra do Comitê: quem quer que tivesse possuído aquelas obras de arte fabulosas, aquelas jóias de valor incalculável, já não estava vivo para desfrutar delas.

A casa estava equipada com um quarto secreto onde o proprietário anterior se escondera durante três semanas quando os aliados libertaram Paris. O próprio Bastien passara lá vários dias e era um lugar tão recôndito como pudesse imaginar. Durante os últimos dias, mal dormira e precisava de uma ou duas horas de descanso para que o seu cérebro voltasse a funcionar adequadamente. Para tomar as decisões acertadas e não as que surgiam de um sentimentalismo néscio.

Conduziu pelo beco estreito que levava à parte traseira da casa, fechou o portão de madeira atrás deles e estacionou o táxi junto de uns matagais com a esperança de evitar a vigilância aérea. Só precisava de algumas horas.

Tirou Chloe do banco de trás e ela mexeu-se como um autômato. Teria sido agradável que permanecesse assim durante mais algumas horas, mas já se esgotara a sua ração de sorte. Conduziu-a através do edifício vazio, pelas escadas cobertas de lixo, passando junto de janelas partidas e móveis abandonados, até ao terceiro andar, onde estavam os sótãos vazios. O olhar perdido de Chloe durou até ele carregar no botão escondido ao lado da velha lareira e a porta se abrir com um deslizamento, deixando o pequeno quarto a descoberto.

A sua reação apanhou Bastien desprevenido. De uma obediência inerme passou a um pânico que se apoderou por inteiro do seu corpo e começou a bater-lhe e a gritar, tentando fugir.

Havia certo número de maneiras de sossegar uma pessoa e deixá-la inconsciente. Se tivesse percebido que estava prestes a perder o juízo, talvez tivesse podido fazê-lo mais suavemente, mas não teve outro remédio senão bater-lhe, de qualquer forma, e o medo abandonou o seu corpo.

Bastien pegou nela ao colo enquanto caía, arrastou-a até ao quarto e fechou a porta. Estavam na escuridão, mas conhecia muito bem aquele espaço. O resto da casa não tinha eletricidade, mas aquele quarto dispunha de uma instalação admirável. De qualquer modo, não ia verificar. Não ia fazer nada que pudesse denunciar a sua presença. Arrastou Chloe até à cama que tinha apoiada contra a parede e deixou-a lá, levantando-lhe as pernas e tapando-a com o seu casaco. Só havia uma janela no teto, coberta com uma cortina opaca que não deixava passar a luz.

Chloe estaria inconsciente pelo menos durante uma hora, talvez mais. Bastien olhou para o seu relógio. O dígito reluzia na escuridão, a única luz no meio do negrume. Era pouco mais das oito da manhã e não dormia há quarenta e oito horas. Só fazia sentido encaminhar-se para o aeroporto daí a outras doze horas e, enquanto isso, até uma hora de sono faria a diferença.

A cama era estreita e não tinha intenção de fazer nada que perturbasse Chloe. Dormira em sítios piores e era um homem disciplinado. Tapou Chloe com uma das mantas de lã finas da cama, pegou noutra e estendeu-a sobre o chão de soalho. Doía-lhe o corpo: sentia-se velho com trinta e dois anos. Trabalhar para o Comitê era tarefa para homens mais jovens. Aquela porcaria envelhecia-o à velocidade a que os cães envelheciam.

Fechou os olhos e procurou adormecer imediatamente. Mas, do mesmo modo que o seu espírito se rebelava contra o Comitê, o seu corpo rebelava-se contra o seu treino. Esteve ali deitado durante cinco minutos, com o olhar fixo na escuridão, ouvindo o som compassado da respiração de Chloe enquanto se perguntava o que raios estava a fazer.

E, depois, adormeceu.

Estava presa. Estava perdida numa escuridão profunda cujo peso a sufocava, roubava-lhe a visão e despojava-a da respiração. A escuridão e o cheiro do sangue rodeavam-na por completo. Via Sylvia deitada ali, numa poça de sangue, a garganta cortada, os olhos fixos, o seu vestido preferido arruinado pelo sangue que o ensopava. Ficaria furiosa com isso. Gostava tanto daquele vestido que teria querido que a enterrassem com ele. Ele degolara-a, o mesmo homem que dizia que a mataria. E ela deixara que a levasse cegamente para aquele negrume em que não via nada, em que não conseguia pensar, nem respirar, nem sequer abrir a boca para gritar...

Bastien agarrou-a assim que se levantou da cama, os seus braços eram como grilhões de ferro em redor do seu corpo. Chloe lutava como uma louca, sozinha na escuridão, sufocada pela morte e pelo sangue, mas ele era muito mais forte. Tapou-lhe a boca com a mão para a sossegar e ela mordeu-o com todas as suas forças, cravou-lhe os dentes até sentir o sabor do sangue e ele nem sequer se alterou.

- Se não te acalmares, terei de te partir o pescoço sussurrou-lhe ao ouvido, enquanto a segurava com força. - Começo a estar farto de ti.

Ela continuou a lutar, embora com menos ímpeto, e Bastien afastou-lhe a mão da boca o suficiente para que pudesse falar. Chloe mal conseguiu articular palavra.

- Não consigo... respirar - sussurrou. - Está muito escuro. Não consigo... suportá-lo. Por favor... - não sabia o que estava a suplicar e não pensava que pudesse servir-lhe de nada, mas, de repente, ele pegou nela ao colo de modo a ficarem os dois de pé sobre a cama estreita. Com um braço, empurrou-a para cima. A escuridão cedeu quando abriu a janela do telhado baixo e a levantou para ela.

O ar era frio, limpo e áspero e Chloe inalou em baforadas profundas, como se bebesse água no deserto. O seu coração aterrorizado foi-se acalmando a pouco e pouco, a sua respiração voltou para a normalidade e, ao observar os telhados de Paris naquela manhã fria de Inverno, um leve indício de serenidade tocou no seu coração.

Encostou-se contra Bastien e deixou que o medo e a tensão abandonassem o seu corpo.

- Se estás farto de mim, porque não me deixas ir? Ele não respondeu. Limitou-se a mudar de posição, de modo a que a sua cara ficasse muito perto da dela enquanto espreitavam pela janela.

- Desde quando tens claustrofobia? - perguntou. Sempre? Não pareces uma daquelas pessoas cheias de complexos.

- Desde que tinha oito anos. Temos muitas terras na Carolina do Norte, incluindo uma mina abandonada onde os meus irmãos mais velhos costumam brincar. Não perceberam que os tinha seguido e perdi-me na mina. Só me encontraram na manhã seguinte. Depois disso, não consigo estar em lugares fechados e às escuras - estava a falar demasiado, mas não conseguia evitá-lo.

Bastien não disse nada. O ar era gélido. Via a respiração de Chloe à frente dela, via também o bafo da sua própria boca e como as suas respirações se misturavam ao sol antes de se dissiparem. Ela continuava embrulhada no seu casaco, mas apesar das camadas de roupa, conseguia sentir a força e a energia do corpo robusto e elegante dele.

E então as forças abandonaram-na e ela cambaleou. Bastien deitou-a na cama e levou a mão ao trinco da janela.

- Não a feches, por favor - pediu Chloe. - Não acho que conseguisse suportar a escuridão outra vez.

- Está frio - avisou ele.

- Sobreviverei.

Ele deixou uma fresta aberta, o suficiente para entrar um raio de sol no quarto, assim como alguns flocos de neve e, depois, ajoelhou-se na cama, ao seu lado.

O caso é - murmurou, - que tens o meu casaco. Este quarto já estava frio, mas com a janela aberta vai ser um frigorífico.

Ela tentou sentar-se e tirar o casaco, mas Bastien empurrou-a sobre a cama com uma delicadeza alarmante. E depois deitou-se junto dela na cama estreita. Cobriu-os com uma manta fina de lã, virou-se de lado e apertou as costas de Chloe contra o seu peito. Emitia calor, até mesmo através do casaco.

- Vou dar-te o casaco - ofereceu-lhe ela, num sussurro. Não gostava de tê-lo tão perto.

- Quero lá saber do casaco. Cala-te e deixa-me dormir algumas horas. Podemos discutir sobre isso quando acordar.

- E se não estiver aqui quando acordares?

- Estarás aqui. Se tentares fugir, dar-te-ei um tiro. Tenho o sono muito leve e não estou de bom humor. Sugiro que tu também tentes dormir.

Ela esfregou a cara contra o colchão desgastado. Doía-lhe a maçã do rosto, mas Hakim não lhe tocara na cara. Então, lembrou-se.

-Bateste-me!

- E voltarei a fazê-lo se não parares de tagarelar ameaçou, num tom de voz sonolento. - Fi-lo para te salvar a vida. Estavas a fazer tanto barulho que qualquer pessoa podia ter-te ouvido.

- Então, porque voltarias a fazê-lo?

- Para impedir que te matem - respondeu, naquele tom fleumático que a tirava do sério. - Agora cala-te e deixa-me dormir.

Estava claro que não ia conseguir livrar-se dele e qualquer outra tentativa acabaria provavelmente com outro sonho forçoso ou talvez com algo pior. Chloe fechou a boca e manteve os olhos fixos no raio de sol que, de alguma forma, lhe permitia respirar. Enquanto conseguisse respirar, sobreviveria. As coisas que vira e ouvira eram tão horrendas que fugiam à sua compreensão. Se o tempo parasse o suficiente para sentir algo mais para além daquele atordoamento estranho e aterrorizado, começaria a gritar e nada poderia pará-la, a não ser que Bastien lhe partisse o pescoço, como ameaçara fazer. Tinha frio por dentro e por fora e a única coisa que podia fazer era tentar sobreviver. Inalou novamente e sem prévio aviso a imagem do corpo de Sylvia cintilou na sua memória. O atordoamento começou a desaparecer.

Só a vira por um segundo, mas aquele segundo ficara gravado para sempre no seu cérebro. Alguém a degolara, tão profundamente que se via o osso. A poça de sangue era densa e viscosa e os seus olhos estavam abertos e imóveis. Por alguma razão, isso era o pior. Sylvia a olhar com olhos cegos para o mundo que deixara para trás e tudo por culpa dela. Ela é que devia morrer e não Sylvia. Sylvia, cujo único pecado era amar demasiado a vida e preferir divertir-se a passar um fim-de-semana a trabalhar no campo.

Sylvia não teria metido o nariz onde não a chamavam. Teria ido alegremente para a cama com Bastien, teria traduzido e regressado a casa sem fazer perguntas inquietantes. Sempre tivera a capacidade de evitar as incoerências incomodas, mas morrera de qualquer modo porque a sua amiga não conseguia deixar as coisas em paz.

- Pára de pensar nisso o tom de voz de Bastien era um sussurro sonolento no seu ouvido, apenas uma exalação. - Não podes fazer nada e, se te obcecares, só piorarás as coisas.

- A culpa foi minha.

- Tolices! - a palavra pareceu estranha num tom de voz tão aprazível. - Tu não a mataste. Nem sequer os conduziste ao apartamento. Estava morta antes de chegares. Se te servir de algo, morreu rapidamente.

- Se eu não tivesse aceitado o trabalho...

- Pensar no que teria acontecido é uma perda de tempo. Deixa-a ir. Poderás honrá-la quando estiveres a salvo em casa.

- Mas...

Pôs-lhe a mão sobre a boca, silenciando um último protesto.

- Dorme, Chloe. O melhor que podes fazer por essa rapariga é sobreviver. Impedi-los de te destruírem também. E, para isso, precisas de dormir. Eu preciso de dormir. Muito.

Abraçava-a contra o seu corpo e Chloe não podia virar-se para lhe ver a cara. Ficou a olhar para cima, através da fresta de luz, para o céu frio e cinzento de Paris. Alguns flocos de neve desorientados entraram no quarto e foram pousar sobre o casaco de casimira preta que quase se transformara na sua segunda pele. Caíram, fundiram-se e desapareceram. E Chloe adormeceu.

 

Chloe não sabia o que a acordara. Estava sozinha na cama e tinha frio, mas a escuridão densa e sufocante desaparecera. Sobre o colchão, ao seu lado, havia uma pequena lanterna, a sua luz um ponto minúsculo na escuridão.

Sentou-se devagar. Sentia um formigueiro por todo o corpo, tinha um nó no estômago e doía-lhe a cabeça. A sua melhor amiga fora assassinada por causa dela e ela estava a fugir para salvar a vida e só tinha um assassino enigmático a quem recorrer.

Mas estava viva. Dolorosa, inegavelmente viva, apesar da culpa e do medo que a rasgavam por dentro. A única pergunta era: o que faria agora? E onde estava Bastien?

Havia sempre a possibilidade de tê-la abandonado finalmente. De tê-la levado para aquela casa deserta, de tê-la arrastado até àquele chiqueiro e de a ter fechado ali para que morresse lentamente de fome.

Mas havia uma janela no telhado e podia sair por lá. Além disso, se Bastien a quisesse morta, não teria tido de arrastá-la até ali.

Se só se tratava de esconder o seu corpo, não teria a abandonado para que morresse de fome, gritasse ou caísse para a calçada e se matasse a tentar fugir. Teria sido ele a matá-la, rapidamente, sem dor. Ele prometera-lhe e Chloe achava a idéia reconfortante. Era uma reação perversa e retorcida, mas deixara para trás os raciocínios e as emoções convencionais. Ficara tudo reduzido ao mínimo, à sobrevivência. Depois de ver o cadáver da pobre Sylvia já não podia negá-lo. Bastien era o seu único meio de sobrevivência e não ia continuar a opor-se a ele. Na verdade, alegrar-se-ia quando voltasse a aparecer no quarto minúsculo e fechado. Ficaria louca de alegria, mesmo que não tivesse intenção de lho dizer.

Aninhou-se num canto da cama, fechou bem o casaco e tapou-se com a manta puída. Tinha fome e era uma idéia que a horrorizava. Quando o seu sobrinho morrera num acidente de viação, não conseguira comer durante dias. A mera visão da comida dava-lhe vontade de vomitar. Mas agora, apesar de ter visto o corpo manchado de Sylvia, estava faminta. Isso fazia parte do instinto de sobrevivência, pensou. Não fazia com que se sentisse menos insensível, mas ali estava. Queria sobreviver e precisava de forças para isso. E para estar forte tinha de comer. Era simples.

Onde demônios estava Bastien? Pelo menos, deixara-lhe a lanterna. Se tivesse acordado sozinha numa escuridão total, teria começado a gritar e a subir pelas paredes.

Ele tinha razão, não era uma daquelas pessoas que ficava paralisada com os complexos. Para dizer a verdade, pensava ter superado a claustrofobia há anos. Os lugares conhecidos, os elevadores e os sótãos às escuras não lhe causavam nenhum problema.

A culpa fora dela desde o começo. Tinha oito anos e andava a perseguir os seus irmãos mais velhos, sempre a tentar fazer o que os meninos mais velhos faziam e recusando-se a admitir as suas limitações. As minas estavam vedadas, até mesmo às crianças mais velhas, mas nenhum adolescente que se respeitasse fazia caso dos avisos de perigo. Recusavam-se, no entanto, a levar a sua irmã mais nova numa aventura tão arriscada, de modo que não tivera outro remédio senão segui-los às escondidas. Um desvio errados e perdera-se naquele labirinto de corredores subterrâneos.

Os seus irmãos não sabiam que ela os seguira e, durante horas, ninguém percebeu que ela desaparecera. A sua lanterna apagou-se e viu-se presa na escuridão, no meio do monte Millar, enquanto o tempo perdia o seu significado e os monstros se arrastavam para ela de todos os cantos. Quando acabaram por encontrá-la, estava às escuras há dezenove horas. Depois daquele calvário, esteve duas semanas sem falar.

O seu pai costumava dizer a brincar que depois nunca parara de falar. Procedia de uma família prudente que a enviou para os melhores terapeutas e, com doze anos, já não tinha de dormir com a luz acesa. Com quinze anos, conseguiu voltar a descer para o porão sozinha e, quando foi para a universidade, pensava tê-lo superado por completo. Até àquela noite.

Fora possivelmente a acumulação de horrores que, de repente, a tornara fraca e vulnerável outra vez. Isso era algo que aceitava, contrariada, do mesmo modo que aceitava que precisava da ajuda de Bastien. E talvez até lho dissesse, se voltasse a ver o seu corpo magnífico.

Dera uma boa olhadela ao seu corpo no dia anterior, no seu apartamento. Ele era alto e de músculos suaves.

Ela não ia começar a pensar nisso, mesmo que lhe fizesse bem distrair-se um pouco. No final, sentia-se melhor a pensar que estava presa num quarto cheio de monstros que tentavam matá-la do que a pensar no corpo nu de Bastien Toussaint, ou como quer que se chamasse.

Nem sequer o ouviu aproximar-se. Não sabia se o quarto estava insonorizado ou se ele era simplesmente muito silencioso, mas estava sentada sobre a cama com as pernas cruzadas, olhando fixamente para o feixe de luz da lanterna e tentando não pensar nele quando a porta se abriu e Bastien apareceu.

- Estás bem? - perguntou, quando a porta voltou a fechar-se, deslizando, atrás dele.

Chloe respirou fundo e tentou parecer despreocupada.

- Sim, estou bem. Não sei que horas são, mas não devíamos ir ao aeroporto?

Ele não disse nada enquanto entrava no quarto. Chloe viu uma faísca e, pouco depois, Bastien acendera umas velas.

- Não vais apanhar o avião esta noite.

O nó do seu estômago apertou-se ainda mais.

- Por quê?

- O aeroporto está fechado. A verdade é que está quase tudo fechado em Paris. A neve parou tudo. Por isso podemos acender as velas. A neve... - fez uma pausa.

- Não faz mal. Cobriu a janela do telhado, não foi? Já estou mais calma. Sobretudo, tendo um pouco de luz.

Ele assentiu. Arranjara um casaco em algum lado e Chloe suspeitava que trocara de roupa, embora a que vestia continuasse a ser preta. O que lhe recordava...

- Suponho que não haverá casa de banho neste lugar - replicou. - Se não, vou ter de experimentar a neve.

- Há uma. É rudimentar, mas funciona.

Ela levantara-se tropegamente da cama antes de ele acabar a frase.

- Onde? - agora que sabia que o alívio estava por perto, a sua necessidade tornou-se muito mais peremptória.

- No andar de baixo, mesmo por baixo deste. Terás de ir sem luz. Não podemos arriscar-nos a verem a luz.

Ela engoliu em seco. Já estava melhor, recordou-se. Mais calma.

- Está bem.

Bastien apagou as velas e, no meio da escuridão súbita, Chloe ouviu como se abria a porta. Engoliu em seco e deu um salto quando sentiu que a puxava pela mão.

Tentou afastar-se instintivamente, mas Bastien segurou-a com força.

- Não vais encontrá-la se não te agarrares a mim declarou, calmamente.

Chloe respirou fundo.

- Claro - concordou.

Facilitava as coisas se agarrasse a ele, mesmo que não tencionasse dizer-lhe. Atravessaram a escuridão cavernosa e desceram por um lance de escadas estreito até chegarem a uma parede junto de uma velha lareira. A porta abriu-se e Bastien pôs-lhe a pequena lanterna na mão antes de lhe dar um empurrãozinho.

- Só podes acendê-la depois de a porta estar fechada. Espero por ti aqui.

A casa de banho era, com efeito, muito rudimentar, mas a sanita funcionava, a água saía fria do lavatório e até havia um espelho quadrado. Podia ter passado sem o espelho... mas a curiosidade venceu e, depois de lavar a boca e fazer o possível para se lavar um pouco, deu uma olhadela.

Esperava encontrar os olhos com olheiras, a pele muito pálida ou algum vestígio do horror dos últimos dias. Mas parecia Chloe: prática, não de todo desagradável à vista, as mesmas sardas vulgares dispersas no nariz e nas maçãs do rosto. O seu cabelo era ridículo, levantava-se ao redor da cara como um halo escuro. Mas ela também não era uma santa.

Respirou fundo, apagou a lanterna e, então, percebeu que não sabia como abrir a porta. Deu umas pancadinhas e a porta abriu-se. Não conseguia ver Bastien, mas não se assustou quando a puxou pela mão. Sentiu-se quase feliz por regressar ao refúgio do quarto das águas-furtadas.

Voltou a subir para a cama. O quarto era tão pequeno que, se se levantasse, tropeçaria em Bastien. Ele reacendeu as velas, pôs a mão atrás do casaco e tirou uma pistola que pousou sobre a mesa. Chloe ficou a olhar para ela como se fosse uma cobra venenosa, mas estava ali para a ajudar, não para a matar. Pelo menos, era o que esperava.

- Bom e agora? - perguntou.

- Agora vamos comer - respondeu ele e quase teve vontade de o beijar. - Não havia muitas lojas abertas, mas consegui comprar algo. E não me digas que não te apetece comer. Tens de te alimentar. Ainda não saíste desta e tens de recuperar as forças.

- Não vou dizer-te tal coisa. Estou faminta. O que trouxeste?

Não reparara no saco de papel que Bastien trouxera com ele. Comprara algumas baguettes, um pouco de brie, duas pêras e duas laranjas. E uma garrafa de vinho, claro. Chloe teve vontade de se rir, mas isso teria sido tão absurdo como começar a gritar. Não teria conseguido parar. "Respira", disse para si.

Ele sentou-se do outro lado da cama, com o seu festim estendido entre os dois. O único utensílio que tinham era a navalha de bolso de Bastien, mas conseguiu abrir o vinho com ela e também a usaram para cortar pedaços de pão e de queijo.

A pêra estava deliciosa e madura. Chloe limpou o suco da boca com o guardanapo de papel que Bastien trouxera. Então, percebeu que ele estava a olhar para ela fixamente com uma expressão estranha na cara.

Bastien passou-lhe a garrafa de vinho. Não havia copos, de modo que não teve outro remédio senão pôr a boca onde antes estivera a dele. Bebeu um longo gole e deixou que o vinho começasse a aquecê-la por dentro. Quando passou a garrafa a Bastien, os seus dedos tocaram-se. Ela afastou a mão rapidamente e ele voltou a sorrir.

Quando se fartaram, Bastien limpou a cama e pôs o resto da comida na mesa-de-cabeceira que havia junto da vela. Nenhum dos dois tocara nas laranjas, pensou Chloe.

- E agora? - perguntou, recostando-se na parede.

- Agora, vamos dormir - Bastien estava a estender a manta fina no chão. Havia o espaço suficiente no quarto para que se deitasse junto da cama.

- Passei horas a dormir - queixou-se ela. - E parecem dias. Não sei se conseguirei dormir mais.

Ele olhou para ela através das luzes das velas.

- Então, o que sugeres que façamos?

Chloe não tinha resposta para aquilo, é claro.

Durante os dois anos que vivera em Paris, aprendera a encolher os ombros com bastante credibilidade e foi o que fez. Depois, deitou-se na cama estreita e ficou a olhar fixamente para a luz de uma vela enquanto Bastien olhava para ela.

Chloe não fazia a mínima idéia do que ele estava a pensar. Certamente, pensava que ela era um aborrecimento. Que deveria ter deixado que Hakim a liquidasse ou talvez que devesse ter sido ele a matá-la quando começou a dar problemas. Mas não o fizera, ficara com ela.

Bastien apagou todas as velas menos uma e estendeu-se no chão. O chão duro e frio: Chloe tinha tocado no chão com os pés descalços.

- Não tens de dormir aí - declarou, de repente, antes de poder arrepender-se do seu impulso. - Aqui há espaço para os dois.

- Dorme, Chloe.

- Olha, sei perfeitamente que não te interesso sexualmente, felizmente. O que se passou ontem foi um erro...

- Foi há dois dias - indicou ele, com naturalidade. E isso foi parte do meu trabalho.

Aquela resposta fechou-lhe a boca pelo menos por um instante, apesar de já saber. Respirou fundo.

- Então, está claro que não faz mal partilharmos a cama. Não vais tocar-me. O quarto está gelado e estaremos ambos muito melhor se dormires aqui.

Não conseguia ver-lhe a cara com clareza na penumbra. Devia estar exasperado.

- Por amor de Deus murmurou, - importavas-te de parar de tagarelar? Talvez tu tenhas dormido muito, mas eu só dormi uma hora nos últimos três dias. E sou humano.

- Duvido - resmungou ela. - Como queiras - virou-se, fingindo-se ofendida e ficou a olhar para a parede gretada e suja.

- Merda exclamou Bastien. Levantou-se, apagou a vela e deitou-se na cama. A cama é demasiado pequena para não te tocar resmungou.

Infelizmente, era verdade. Chloe sentiu o seu corpo contra as costas, curvado em seu redor. Se alguém entrasse, seria ele a apanhar o tiro. Essa era a única razão pela qual queria que se deitasse na cama, disse para si. A única razão pela qual, de repente, se sentia agasalhada, segura e capaz de se acalmar. Era uma simples questão de sobrevivência.

- Eu consigo agüentá-lo - respondeu, - mas se achas que... - Bastien tapou-lhe a boca com a mão, parando-a a meio da frase. Ela quase conseguiu sentir o sabor do suco da pêra dos seus dedos e era uma impressão excitante. Ainda devia ter fome, pensou. Mas nada ia fazer com que comesse uma laranja.

- Cala a boca - declarou ele docemente, ao ouvido dela, - ou atar-te-ei, amordaçar-te-ei e pôr-te-ei no chão. Entendido?

E fá-lo-ia. Chloe assentiu o melhor que conseguiu com a boca tapada e ele afastou a mão devagar. Queria dizer-lhe que, afinal de contas, não queria partilhar a cama com ele, mas se dissesse mais uma palavra, atirá-la-ia para o chão de um empurrão.

O seu corpo, apertado contra o dela, era deliciosamente quente. Apesar de estar zangada, sentiu que uma frouxidão quente se espalhava pelo seu corpo. Talvez conseguisse dormir um pouco mais, afinal de contas, pensou, com o calor e a sensação de segurança que o corpo de Bastien lhe dava. Não queria dormir: queria manter-se acordada só para aborrecê-lo.

Como ia tirá-la de Paris? Quanto mais tempo ficasse, mais perigo corria e mais provável seria que alguém a encontrasse. Não seria melhor passar para outro país e partir de Frankfurt ou Zurique?

E como demônios ia fazê-lo se o seu passaporte estava no châteaul E àquela altura alguém já teria encontrado Sylvia. Teria avisado a polícia, teriam revistado o apartamento e encontrado os seus pertences, o que significava que possivelmente a polícia também estava à procura dela.

Isso era bom. Mesmo que pensassem que matara Sylvia, preferia tentar a sua sorte numa prisão francesa do que fugir para salvar a vida e ter de depender de um homem misterioso.

Acontecera tudo num redemoinho irreal e confuso. Vira Bastien matar um homem e, no entanto, mal se lembrava. Estava a sentir uma dor horrível e, depois, a dor desaparecera e Hakim estava deitado no chão.

Tivera o sexo com Bastien. Teria gostado de negá-lo, de chamá-lo de outro modo, mas para dizer a verdade era sexo e Bastien tivera um orgasmo. E, para sua eterna vergonha, ela também tivera um orgasmo e fora perfeito.

Mas isso também não lhe parecia real. Até o espanto de ter visto o cadáver de Sylvia começava a dissipar-se. Talvez acontecesse o mesmo com tudo, pensou enquanto relaxava a pouco e pouco. Talvez tudo o que acontecera durante os últimos dias da sua estadia em França acabasse por se transformar numa bolha em que não voltaria a tocar. Não teria de se lembrar, nem de enfrentar nada. Simplesmente, teria desaparecido.

Não sabia se era assim que as pessoas costumavam superar os períodos traumáticos da sua vida. Tudo aquilo fazia com que aquelas dezenove horas num buraco escuro parecessem um jogo de crianças. Ninguém morrera, ninguém fora ferido, ninguém desenvolvera uma espécie de fascínio doentio por...

Não gostava do rumo que os seus pensamentos estavam a seguir. Tentou afastar-se um pouco de Bastien, mas ele tinha-a bem agarrada pela cintura e puxou-a para si.

Está quieta - resmungou, sonolento, ao seu ouvido.

Chloe sentia o seu corpo ao longo das costas: uma sensação de calor e de força, de osso e de músculos e o contacto inconfundível do seu membro contra o rabo dela. Parecia que tinha uma ereção, o que não podia ser verdade, sem dúvida, visto que não se interessava por ela.

Síndroma de Estocolmo, não era assim que lhe chamavam? Quando o refém desenvolvia uma obsessão pelo seu captor. Era uma reação normal. Estavam numa situação limite e, por enquanto, Bastien conseguira mantê-la com vida. Para cúmulo, tinham tido um encontro sexual antes de ela perceber como ele era perigoso. E porque não conseguia parar de pensar no sexo?

Porque estava deitada no refúgio do seu corpo, sentia o seu membro no rabo e estava assustada. A única coisa que se interpunha entre ela e uma morte dolorosa e horrível era o corpo de Bastien e ela desejava-o.

Mas ele não a desejava, estava simplesmente a fazer o seu trabalho e, tal como lhe dissera, tinha muito jeito para isso. Resumindo, a sua falta de interesse era muito conveniente. Pelo menos, queria conservá-la com vida e a salvo e devolvê-la a casa, o que era ainda melhor.

Era de esperar que desenvolvesse um fascínio doentio por ele e, assim que estivesse a salvo em casa, poderia ver tudo aquilo de outra perspectiva.

Bastien tinha razão, a cama era muito pequena. Não havia forma de se afastar dele. Podia virar a cabeça para lhe ver a cara. Ele adormecera, o que a surpreendeu. Nem sequer os seus movimentos o tinham acordado. Mal conseguia distingui-lo na escuridão e parou de tentar. Apoiou a cabeça sobre o colchão puído e começou a ouvir o batimento do coração de Bastien.

Pelo menos, tinha coração, coisa que ela começara a duvidar. Era humano, era quente e forte e estava disposto a matar para lhe salvar a vida. O que mais podia pedir de um homem?

 

Era uma mulher insuportável, pensou Bastien quando Chloe ficou finalmente quieta, a sua pulsação apaziguou-se e adormeceu, contrariada. Discutia por tudo e por nada e, depois, olhava para ele com aqueles olhos castanhos enormes e, pela primeira vez desde há alguns anos, ele sentia-se culpado.

Não devia ter dado o seu braço a torcer e ter-se deitado na cama, com ela. Estava mais quente assim. Sim, o colchão fino da cama era melhor que a manta, ainda mais fina, sobre o chão duro. Sim, tinham conseguido acoplar os seus corpos demasiado bem para a sua paz de espírito. E sim, desejava deitá-la de costas, arrancar-lhe as calças e acabar o que só começara há alguns dias.

Perguntava-se se ela sentira a sua ereção antes de adormecer. Não devia tê-lo feito. Parecia totalmente alheia ao efeito que surtia sobre ele, o que era uma sorte. Não queria complicar mais toda aquela trapalhada e fazer amor com Chloe complicaria definitivamente as coisas.

Já tivera sexo com ela e era uma questão inteiramente diferente. Isso devia bastar. Era uma reação bastante normal e conhecia-se o suficiente para tentar tirar-lhe importância. As situações limite faziam aparecer todo o tipo de apetites primitivos. Feio, mas verdadeiro. O perigo excitava-o.

E achar-se em presença da morte, quer fosse ele a matar ou não, fazia-o desejar experimentar a vida no seu nível mais básico. Tinha vontade de ter sexo e, quer fosse um instinto primitivo de perpetuar a espécie ou um fascínio retorcido pelo sexo e pela morte, o fato era que existia. Ou fazia algo a respeito ou não, dependendo das circunstâncias. Com freqüência, havia com ele outras agentes que partilhavam a mesma reação e o sexo rápido e frenético costumava aguçar as suas defesas em momentos de perigo.

Mas Chloe não era uma agente, era dez anos mais nova do que ele e era, quanto a experiência vital, muito mais jovem e uma situação limite teria apagado todo o desejo sexual da sua cabeça. Passaria algum tempo antes de superar a visão da sua amiga massacrada, antes de deixar para trás as horas que passara com Hakim. Mas fá-lo-ia. Talvez fosse pouco mais do que uma menina, mas era forte e resistente. Estava com ele num buraco escuro e adormecera. Era capaz de esquecer a sua claustrofobia.

Sentia o seu próprio cheiro nela, obviamente por ter usado o casaco que agora os cobria. Por alguma razão, aquilo parecia-lhe erótico. Claro que tudo nela começava a parecer-lhe erótico.

A maldita neve não podia ter chegado em pior momento. Se não fosse por isso, Chloe já estaria a sobrevoar o Atlântico, teria abandonado a sua vida para sempre e ele poderia concentrar-se na sua missão. A sua última missão.

Tinha de acabar o que começara no château. Descobrir como iam redistribuir os territórios e quem ia ocupar o lugar de Remarque. Hakim nunca tivera muito poder. Na verdade, era apenas um assistente administrativo que fazia as coisas funcionar como a seda enquanto os seus chefes falavam de transações econômicas. De repolhos e vitela fresca. De mísseis de longo alcance e a balas idealizadoras. De laranjas a explosivos C4 e sangue por todos os lados.

Christos era o grande ponto de interrogação. Porque não se incomodara em aparecer e o que teria planeado quando finalmente fizesse aparecesse? Porque o Christos que ele conhecia nunca entrava em cena sem um plano pormenorizado. Tinha de haver pelo menos uma pessoa no chateou que conhecesse os seus planos, pois era assim que Christos trabalhava. Talvez fosse o barão, que era quase tão inofensivo como parecia ou talvez Monique. Era muito difícil calar Monique. Gostava da dor, tal como de sexo e ele ainda não descobrira nada que a fizesse vulnerável. Podia ser Ricetti ou Otomi, a madame Lambert ou até mesmo o assistente de Ricetti. Carecia de importância que o jovem elegante que prestava os seus serviços ao traficante siciliano fosse também um agente do Comitê. Ele não era o único lá e qualquer um podia mudar de lado por um bom preço.

Uma coisa era certa: não podiam permitir que Christos ganhasse com o controlo do cartel e era ele que tinha de impedi-lo. Thomason não fora muito claro a respeito do que se passaria com o resto dos traficantes. Quando eliminassem o chefe, será que o deixariam reformar-se? O Comitê costumava preferir o mal conhecido ao bom por conhecer, mas isso não lhe dizia respeito. Só tinha de matar mais uma pessoa. E, então, teria acabado.

Mexeu um pouco a cabeça de modo a que a sua cara tocasse no ridículo matagal do cabelo de Chloe. Parecia um cordeiro tosquiado. Mais jovem e mais vulnerável. E também mais desejável.

Mas o seu aspecto ajudava-o a recordar que estava fora do seu alcance. Não tinha o direito nem motivo algum para voltar a tocar nela e isso só complicaria as coisas.

Tinha de parar de pensar nela e dormir o máximo que pudesse. Não importava que o seu cheiro e a sensação do seu corpo o envolvessem. Era suficientemente frio para evitar detrações tão corriqueiras. Fechou os olhos, inalou o seu cheiro e deixou-se dormir.

Era meio-dia. Chloe não tinha a certeza de porque sabia. O quarto estava às escuras, pela janela do teto não entrava nem um raio de luz. O seu corpo tinha um relógio natural. Acordava todas as manhãs às oito e meia, quer quisesse, quer não, e se algo a acordava em plena noite sabia sempre que horas eram, mesmo que não tivesse relógio.

Mas nos últimos dias tudo mudara. Estava dormindo mais do que em toda a sua vida, naturalmente, como resposta aos horrores que vira. Que soubesse, podia ter dormido quinze minutos ou três dias.

Bastien continuava ao seu lado. Ela virara-se em sonhos e jazia entre os seus braços, encostada sobre ele, com a cabeça sobre o seu ombro, a mão sobre o seu peito e o braço de Bastien a rodeá-la. Devia ter-se afastado, mas não o fez. Não mexeu nem um músculo, só as pestanas enquanto tentava decifrar algo, o que quer que fosse, através da escuridão.

Bastien dormia profundamente, em silêncio. Obviamente, isso fazia parte da sua autodisciplina. Não se permitiria ressonar como a maioria dos homens. Dormia tão profundamente que era provável que nem sequer percebesse se ela se afastasse do seu abraço e se virasse. Era demasiado arriscado dormir assim. Era demasiado... perturbador.

Síndrome de Estocolmo, disse para si, com amargura. Não tinha nada a ver com a realidade. Ela nem sequer gostava de Bastien. Por enquanto, tinha de ficar com ele, mas assim que estivesse em casa, vê-lo-ia numa perspectiva diferente e a sua atração momentânea por ele dissipar-se-ia, transformando-se numa onda de repulsão por si própria.

Bom, talvez não de repulsão. Não fazia sentido negar que o homem que dizia chamar-se Bastien Toussaint era fisicamente muito belo. E também não podia negar que lhe salvara a vida, talvez mais de uma vez, o que tinha de despertar o seu agradecimento.

Não queria pensar nisso. Não queria pensar em nada, nem no homem deitado ao seu lado, nem em Sylvia, nem nas pessoas que se sentavam em redor daquela mesa enorme e fingiam falar de hortaliças. Pensaria na neve. Densa e branca, cobrindo a cidade com um manto de silêncio, caindo suavemente em flocos grossos e tapando as estradas, fechando os aeroportos, prendendo-a nos braços de um assassino...

- Pára de pensar nisso.

Ele não se mexeu, a sua respiração compassada não mudara, mas o seu tom de voz suave quebrou o silêncio como um fragmento de vidro.

Chloe afastou-se dele e colou-se à parede. Mas mesmo assim não havia forma de se afastar completamente do seu corpo longo e musculado.

- Pensava que estavas a dormir.

- Estava. Até me acordares.

- Não sejas ridículo. Não me mexi. Só abri os olhos, mais nada. Não me digas que as minhas pestanas te acordaram - o seu tom de voz, baixo e cáustico, afastava-o, ao contrário do seu corpo.

- Não - respondeu num tom de voz suave e sonolento, mas Chloe não se deixou enganar. - Assim que começaste a pensar, o teu sangue começou a mexer-se. Reparei que os batimentos do teu coração aceleravam, que a tua pulsação se tornava mais rápida. Mesmo que não tenhas mexido um músculo.

Chloe surpreendeu-se com o fato de, apesar de estar de costas, continuar a ser tão consciente da sua presença. Ainda sentia um desejo completamente irracional. Um desejo que não podia levá-la a lado nenhum e só podia envergonhá-la e enchê-la de frustração.

- Que horas são?

- É de manhã - respondeu ele. Então, afastou-se dela, levantou-se da cama e Chloe deixou escapar um suspiro de alívio ou foi o que disse a si própria.

- Bom, o que fazemos agora? Sair e fazer bonecos de neve? Acho que não estou vestida para isso - sim, parecia muito despreocupada. Bastien não perceberia que as suas emoções eram uma confusão.

Ele acendeu as velas. Começava a aparecer a barba, o que foi estranhamente chocante para Chloe. Ao longo do seu longo calvário, sempre o vira perfeitamente arranjado, quer acabasse de matar alguém ou tivesse passado horas sentado no chão, a beber vinho.

Tinha o cabelo solto e despenteado ao redor da cara e parecia cansado e surpreendentemente humano. Algo que Chloe achava ainda mais perturbador.

- Devo estar a interferir na tua vida privada - declarou e desejou ter mordido a língua.

Ele estivera a rebuscar no saco de comida e tirara o resto da baguette e as laranjas. Virou-se para olhar para ele, com uma expressão estranha nos olhos pretos e ilegíveis.

- O que queres dizer?

- Bom, desapareceste comigo. Não tens um colega ou alguém que possa perguntar-se onde estás? - não estava a melhorar as coisas, mas não conseguia refrear-se.

Falar demasiado sempre fora o seu maior defeito, pensou.

- Um colega?

- Não é preciso repetires tudo o que te digo - ripostou ela, irritada e envergonhada. - Refiro-me a um parceiro. Alguém que viva com...

 - Referes-te a um homem? Ele foi direto ao assunto e parecia tão divertido que Chloe começou a inquietar-se.

- Chegaste à conclusão de que sou homossexual?

Tentava dizê-lo com delicadeza - declarou, deixando que se notasse a sua irritação. - Parecia-me provável.

- E por quê?

Ia pedir-lhe a navalha para cortar a língua, pensou ela com amargura. Como demônios deixara a conversa chegar àquele ponto? Porque não calara a boca?

- Não faz mal, Chloe - reagiu ele, ao ver que não lhe ocorria nenhuma resposta. - Achas que sou homossexual porque não quero ir para a cama contigo, não é isso?

Aquilo ia de mal a pior e a sua crueldade deliberada fez com que ficasse corada.

- Não sou assim tão presunçosa.

- Ah, não? Não achas que a única razão pela qual um homem não tenta seduzir-te é porque não gosta de mulheres? E porque te interessa tanto? Não achava que as minhas preferências sexuais tivessem importância, de um modo ou de outro.

- Não têm.

- Então, porque perguntaste?

Chloe encontrou a sua voz em algum lado.

- Não me faças isto - pediu. - Já basta estar presa neste buraco contigo, não me ponhas contra a parede verbalmente. Só tinha curiosidade.

- Já estiveste contra a parede fisicamente. Em mais de um sentido - respondeu ele e Chloe recordou aqueles momentos no chateou com uma clareza excessiva, enquanto Bastien a penetrava e um prazer escuro e convulso se apoderava dela.

- Já chega! - exclamou, num tom de voz estrangulado.

Para seu espanto, ele deixou-o passar, voltou a sentar-se na cama longe dela e deu-lhe a baguette dura.

- Acabamos o queijo, mas ainda temos as laranjas. Depois, comerás como Deus manda.

- Onde? No aeroporto? Parou de nevar? - pegou no pedaço de pão rançoso que lhe oferecia e começou a mastigá-lo.

- Estive aqui contigo todo o tempo, Chloe. Sabes o mesmo que eu. Mas teremos de sair daqui em breve. O truque para nos escondermos é continuarmos a andar. Não demorarão muito a encontrar-nos aqui e quero ir-me embora antes de isso acontecer. Por sorte, a neve terá coberto o táxi, portanto não é provável que o vejam, mesmo que usem um helicóptero. Mas quanto mais depressa sairmos daqui, melhor.

O pão sabia a pó, mas Chloe continuou a mastigar.

- Para onde vamos?

Ele começou a cortar uma laranja. Era vermelha como o sangue e, apesar de o seu cheiro doce encher o quarto, Chloe tremeu.

- Ainda não tenho a certeza. Abre a boca - ofereceu-lhe um gomo, mas ela abanou a cabeça.

Ele mexeu-se, um daqueles movimentos rápidos como uma centelha que sempre a surpreendiam, e agarrou-a pelo queixo com uma mão.

- Abre a boca e come a laranja, Chloe!

Ela não tinha escolha: os dedos longos de Bastien agarravam-lhe no queixo e os seus olhos escuros e o seu rosto impassível não a deixavam mexer-se.

- Abre a boca - repetiu ele, com mais suavidade, quase sedutoramente, e ela obedeceu e deixou que lhe pusesse o gomo na língua. O seu sabor era ácido e doce.

Por um instante, Chloe pensou que a boca de Bastien e a sua língua seguiriam a laranja. Mas ele afastou-se e ela comeu lentamente o gomo. Por sorte, Bastien não a desejava. Podia mantê-la a salvo e estava a salvo dele. Tinha de estar agradecida por isso.

- Lamento - as suas palavras surpreenderam-na, mas mais ainda o surpreenderam a ele. Virou-se e olhou para ela no quarto iluminado pela luz das velas,

- O que disseste? Chloe pigarreou. Sentia o sabor da laranja na boca.

Sentia o sabor dos seus dedos nos lábios.

- Disse que lamento. Por te fazer perguntas grosseiras, por te contrariar, por tentar fugir e por não te fazer caso. Tiveste muito trabalho para me proteger e a única coisa que faço é queixar-me e choramingar. Lamento muito. E estou muito agradecida.

Bastien levantou-se da cama e afastou-se dela o máximo possível no quarto minúsculo. Os seus olhos, velados e ilegíveis, observavam-na com atenção.

- Agradecida? Pensava que me consideravas um demônio saído do inferno.

- E és - respondeu, irritada novamente. - Mas salvaste-me a vida pelo menos duas vezes e não te tinha agradecido.

- Não digas isso agora. Quando estiveres a salvo nos Estados Unidos poderás dedicar-me um pensamento amável.

- Porque te preocupas tanto? Não entendo porque tens tanto trabalho comigo. Sei que disseste que me salvaste de Hakim por um simples capricho, mas não acredito. Acho que não tens tanto sangue-frio como pensas e que não podias permitir que Hakim matasse uma mulher. No fundo, sei que és uma pessoa decente, mesmo que não saiba quem ou o que és. Nem sequer sei o teu verdadeiro nome.

- Não é preciso saberes o meu nome. Além disso, estás enganada - afirmou, num tom de voz irritado. Sou um monstro com o sangue muito frio. Não tenho por costume salvar mulheres que se metem onde não são chamadas. No teu caso, é mais fácil devolver-te aos Estados Unidos do que livrar-me de ti.

- Tu não me matarias. Sei que mataste Hakim, mas não acho que sejas capaz de matar uma mulher.

- Ah, não?

O tom leve e brincalhão da sua voz era muito inquietante. O seu pai tinha razão: nunca conseguia calar-se quando era preciso. Mas tinha de se desculpar, devia agradecer-lhe. Ele salvara-a e continuava a protegê-la, presumivelmente, por uma honestidade elementar que parecia empenhado em rejeitar. Não podia ser nada pessoal.

Bastien aproximou-se um pouco dela. O seu corpo bloqueou a luz. Agarrou-a pelo queixo com uma mão e levantou-lhe a cara para ele.

- Olha para mim, Chloe - pediu, num tom de voz baixo. - Olha para os meus olhos e diz-me que vês a alma de um homem decente. Um homem que não mataria a menos que se visse forçado a isso.

Ela não queria olhar. Os seus olhos eram escuros, opacos, vazios e, por um instante, quase lhe pareceu ver a escuridão que havia lá dentro. Tentou afastar a cabeça, mas ele agarrava-a com força e tinha a cara muito perto. A sua boca estava quase colada à dela e Chloe sentia o cheiro da laranja na sua respiração.

- Diz-me que sou um bom homem, Chloe - acrescentou, num tom de voz mais baixo. - Demonstra-me que és néscia.

As suas palavras eram cruéis e ásperas e não havia luz nem calor no seu semblante. Só dor, tão profundamente escondida que ninguém conseguia vê-la. Uma dor horrível que o rasgava por dentro. Chloe conseguia vê-lo, sentia-o como uma entidade tangível naquele quarto. Pôs as mãos sobre os pulsos de Bastien, não para lhe afastar as mãos, mas simplesmente para tocar nele.

- Não sou uma néscia - contradisse. De repente, sentia-se muito serena e segura de si própria. Bastien não ia afastar-se e ela ia beijá-lo. Ia pôr a sua boca sobre a dele porque desejava fazê-lo. E ele ia retribuir o beijo, porque sob a escuridão havia um desejo tão intenso como o dela.

Um instante depois, a situação fugiu das suas mãos. Bastien baixou a cabeça, tocou com a boca na dela e ela levantou o corpo para ir ao encontro dos seus lábios.

Mas foi apenas um peso leve como uma pena.

- Sou a encarnação do diabo, Chloe - murmurou. E tu és idiota se não perceberes.

- Então, sou idiota - afirmou ela, esperando que a beijasse outra vez.

Mas ele não a beijou. Ficaram durante um instante que pareceu interminável e, depois, ele disse:

- Entra, Maureen.

A porta escondida abriu-se e o quarto encheu-se de luz.

A porta voltou a fechar-se, mas Chloe já se retirara para um canto da cama e tentava fazer com que os seus olhos se habituassem à recém-chegada.

- Interrompo algo, Jean-Marc? - o tom de voz da mulher parecia carregado de ironia. - Posso voltar mais tarde.

- Só interrompeste uma pequena lição de sobrevivência.

Maureen, esta é a tua pupila, a nossa pequena americana perdida - voltou a pousar os seus olhos opacos e escuros em Chloe. - Esta, ma chère, é Maureen. A minha esposa ocasional. É uma agente excelente. Só confiaria na melhor. A partir de agora ficas nas suas mãos. Levar-te-á para o aeroporto para que chegues a casa sã e salva. Nunca fracassou numa missão.

- Oh, fracassei numa ou duas - corrigiu Maureen, num tom de voz quente e sonoro. - Mas no final sempre consegui resolver tudo. Ficaremos bem, Chloe e eu. Era uma mulher de cerca de trinta e cinco anos, atraente, elegante e bem vestida. Sylvia teria morrido pelo fato que vestia.

A mente de Chloe parou ao pensá-lo. Conseguiu compor um sorriso rígido antes de fixar a sua atenção em Bastien. Ou em Jean-Marc, como ela lhe chamara. Ou no homem sem nome.

- Vais deixar-me?

Ele tentou disfarçar o seu regozijo.

- Vou abandonar-te, querida, deixo-te nas mãos ternas de Maureen. Descuidei o meu trabalho durante demasiado tempo e receio que não possa esperar mais. Faz uma boa viagem de regresso a casa e tem uma boa vida.

E, depois, foi-se embora.

 

- Outra conquista de Jean-Marc - replicou Maureen, entrando no quarto. - Pobrezinha! São todas iguais, com o vosso olhar patético e as vossas lindas caras. Jean-Marc nunca conseguiu resistir a uma cara bonita - parecia bastante afável. Pousou a mala que trazia sobre a cama, inclinou a cabeça e observou Chloe. - Ainda que tu não sejas o seu tipo, pensando bem. Nunca foi muito apreciador de raparigas em apuros. Surpreende-me que não se livrasse de ti.

Aquelas palavras impulsionaram Chloe a falar. -Ele não...

- Oh, garanto-te que sim! E fê-lo. Mas por alguma razão quer manter-te a salvo, portanto pediu-me ajuda. Como é que lhe tens chamado? - abriu a mala e começou a tirar roupa limpa.

- Como?

- Bom, tenho a certeza de que não disse que se chamava Jean-Marc. Duvido de que esse seja o seu verdadeiro nome. Certamente, já esqueceu qual é. Da última vez, que eu saiba, respondia pelo nome de Étienne.

- Isso importa?

- Não respondeu Maureen. - Quererás vestir roupa limpa antes de irmos. E pode saber-se o que se passou com o teu cabelo? Parece que foste atacada pelo Eduardo Mãos de Tesoura.

- Cortei-o - havia umas calças pretas, uma camisa preta e até um sutiã e umas cuecas pretas. Devia ser o uniforme de todos os... espiões. Ou agentes. Ou o que quer que fossem.

- Vejo que sim - replicou Maureen. - Tanto faz. De certeza que alguém poderá arranjar-to quando voltares para casa. Anda, muda de roupa - apoiou-se contra a parede, cruzou os braços e ficou à espera.

Chloe não tencionava despir-se à frente dela.

- Podia ter um pouco de intimidade?

- Vocês americanas são todas ridiculamente pacatas, não são? Pensava que, depois de passares alguns dias com Jean-Marc, terias superado as tuas susceptibilidades.

Chloe não disse nada. Estava claro que Maureen não ia mexer-se e não tinha outro remédio senão tirar a camisola.

Estava frio no quarto. Olhou para os braços, mas as marcas já quase tinham desaparecido. Há dois dias fora torturada. Agora só parecia um pouco cansada e assustada.

Pegou na camisa nova, mas Maureen parou-a.

- Tira tudo! - ordenou. - Surpreender-te-ia saber a quantidade de coisas que podem descobrir-se a partir da roupa. Não queremos deixar rastos.

- Não faço idéia do que estás a falar.

- Claro que não. Tira o sutiã. Onde demônios compraste isso? Em Paris, não. É o que uma freira vestiria. Será que não tens sentido de estilo?

- Não muito. E quem diz que esta roupa vai servir-me?

- Jean-Marc disse-me que tamanho devia trazer. Confia em mim, servirá. Bom, diz-me, como foi?

Contrariada, Chloe estava a trocar de sutiã à frente de Maureen, que olhava para ela com curiosidade. Tirou o dela, que era de algodão branco, e vestiu o de renda preta que, com efeito, ficava perfeito.

- Como foi? - repetiu.

- Na cama, menina - respondeu, impaciente. - Tivemos uma aventura há alguns anos e ainda tenho uma lembrança muito agradável da sua... criatividade. Não pareces muito resistente para agüentar o ritmo dele.

Chloe acabou de mudar de roupa rapidamente para não dar mais tempo a Maureen para catalogar as suas imperfeições físicas.

- Isso não te diz respeito.

Claro que diz. Tenho de saber até onde consegue ir. Está há vários meses a agir de maneira estranha e apaixonar-se por uma menina como tu é uma das coisas mais estranhas que fez.

- Não se apaixonou por mim. Só se sentiu responsável depois de... não conseguiu continuar. Ignorava o que sabia Maureen na verdade.

- Depois de matar Hakim - concluiu Maureen. Bom, pelo menos, cumpriu essa parte da missão - resmungou. - Embora não entenda porque não esperou que ele te matasse. Nem porque não te liquidou quando percebeu que continuavas viva - abanou a sua cabeça bem penteada.

- Não tinha planeado matar o monsieur Hakim...

- Claro que tinha. Estava lá para isso, entre outras coisas. Tu puseste-te no meio, mais nada. Não me digas que conseguiu convencer-te de que se encarregou de Hakim por ti?

- Não - respondeu Chloe, amargamente. Levantou-se e, para seu horror, Maureen começou a examinar a manta e, depois, desfez a cama.

- Parece que aqui não fizeram nada, mas nunca se sabe. Tratando-se de testes de ADN, mais vale prevenir do que remediar.

- Estás muito enganada. Bast... Jean-Marc não se interessa por mim. Sou um estorvo que passou para ti.

- Parece que sim. Mas é de estranhar que não tenha provado a mercadoria. Tem muito apetite e suponho que, à tua maneira muito saudável e americana, te achasse atraente.

Chloe não disse nada. Apesar de entrar luz pela porta aberta, o quarto parecia-lhe mais pequeno do que nunca, certamente devido ao humor venenoso de Maureen.

- Podíamos ir? Eu gostaria de ir diretamente para o aeroporto, se for possível.

Maureen fechou, de repente, a mala, onde guardara a manta e a roupa suja.

- Sim - concordou, alegremente. - É hora de ir. Mas receio que não vás para o aeroporto.

Estava mais frio a cada instante. A casa estava gelada e apesar de a neve refletir a luz do sol, parecia estar cada vez mais fria.

- Para onde vamos, então? - perguntou.

- Eu vou ter com o meu supervisor para lhe dizer que completei a minha missão. E tu, querida, não vais a lado nenhum. Vais morrer.

Bastien sempre tivera uma intuição infalível. Sabia quando uma missão estava destruída, quando aparecia um espião, quando dar o golpe e quando abortá-lo. Sabia em quem podia confiar e a que ponto e sabia quem acabaria por o trair.

Durante o último ano, perdera essa habilidade. Ou a perdera ou deixara de lhe importar. O seu encargo era bastante simples: livrar-se de Hakim, manter-se informado sobre a nova divisão territorial e certificar-se de que Christos não se tornava o chefe do cartel.

Mas deixara de ouvir as vozes que o avisavam do perigo. Não se tinham ido embora: continuavam a sussurrar-lhe ao ouvido insidiosamente, avisando-o. Mas a avisá-lo do quê?

Conduziu através das ruas nevadas de Paris a uma velocidade suicida. Havia menos trânsito do que de costume, mas os que tinham saído tinham menos espaço para se mexer e a neve não melhorava as suas aptidões. O carro que Maureen trouxera era um BMW último modelo, demasiado potente para as ruas nevadas, mas abriu caminho até ao hotel com destreza, tocando apenas num táxi de passagem.

Um táxi. Tinham encontrado o homem que atara e amordaçara no estacionamento subterrâneo. Tinham-no encontrado morto, com a garganta cortada, como a amiga de Chloe. Devia ter imaginado. Apesar de todas as suas precauções, tinham conseguido segui-lo. Comprara o jornal ao ir procurar Maureen e pensara na mulher do taxista, o búfalo, e nos seus quatro filhos. Se conseguisse sobreviver nos dias seguintes, talvez conseguisse enviar-lhes algum dinheiro. Isso não lhes devolveria o seu marido e pai, mas aliviaria parte das penalidades causadas pelo Comitê.

Teria sido Thomason quem ordenara o golpe, Thomason quem fazia com que o seguissem e eliminassem todas as testemunhas e qualquer sobrevivente. Devia ter descoberto as suas mentiras. Era um procedimento padrão: uma organização como a dele não aguentava muito tempo se deixasse as pessoas vivas para que falassem e fizessem perguntas. O segredo era o princípio essencial, ainda mais importante do que qualquer missão que lhes tivessem atribuído. Eram sempre a mesma: salvar o mundo. E, no entanto, por muita gente que tivesse matado, o mundo nunca parecia a salvo.

Estava a aproximar-se do hotel. Tinha uma pequena suíte reservada e o cartel estava já reunido na sua maior parte, à espera da chegada de Christos. Estava vestido e pronto para retomar a sua vida, sabendo que Chloe Underwood estava aos cuidados da melhor agente que conhecia. Maureen e ele tinham trabalhado juntos em algumas missões, incluindo a última em que ela fizera o papel da sua esposa. Ela levaria Chloe a salvo para o avião e, a partir desse momento, Chloe deixaria de ser problema dele. Problema dele. Na verdade, ao deixá-la nas mãos de Maureen, já cumprira com a sua parte. Estava pronto para virar a página, para se concentrar no que importava e para se esquecer de uma distração momentânea.

Mas algo não estava bem. Era algo que o inquietava, que o fazia sentir formigueiros nas suas terminações nervosas e não conseguia descobrir o que era. Teria confiado a sua vida a Maureen. A sua aventura amadurecera até se transformar numa amizade profunda que ficava fora do alcance do todo-poderoso Comitê e sabia que podia contar com ela.

Assim, porque sentia o impulso de voltar para se certificar?

Talvez fosse simplesmente o fato de ser difícil afastar-se de Chloe. Há muito tempo que não se dava ao luxo de se preocupar com outro ser humano. Não sabia se realmente gostava de Chloe, mas decidira protegê-la e isso tinha estabelecido entre eles uma espécie de vínculo que o sexo não conseguira estabelecer.

Se era simples, se não queria deixá-la, então podia fazer ouvidos moucos àquela vozinha insidiosa com toda a tranqüilidade. O sentimentalismo não tinha lugar na sua existência. Perdera todo o rasto dele há muito tempo, se é que alguma vez o tivera. Quando descobrira que a sua mãe e a sua tia Cecile tinham morrido no incêndio de um hotel em Atenas, limitara-se a encolher os ombros. Aquela parte da sua vida acabara há muito tempo e já a esquecera.

Do mesmo modo que tinha de se esquecer de Chloe e concentrar-se em levar a sua última missão a termo. Ela já não era um problema dele nem a sua responsabilidade. Na verdade, nunca fora. Só decidira transformá-la nisso. E agora podia esquecer-se dela.

Seguiu o desvio tão depressa que o carro derrapou sobre a calçada coberta pela neve e esteve prestes a chocar contra outro táxi. Estava a comportar-se como um idiota e aceitava-o, mas ia voltar para a casa dos subúrbios de Paris. Talvez só tivesse de se despedir. Talvez simplesmente precisasse de se certificar de que Chloe estava bem. Talvez quisesse beijá-la uma última vez e fazer amor com ela como merecia.

Mas isso não ia acontecer. Se restasse um pouco de bom-senso, ignoraria aquele pressentimento estranho, esquecer-se-ia daquele assunto e acabaria o seu trabalho. Liquidar Christos e ver se Thomason ia ordenar também o seu assassinato.

Mas naquele momento não parecia ter muito bom-senso. E só conseguiria seguir em frente quando se certificasse de que Chloe estava a salvo.

Chloe não se incomodou em dizer alguma estupidez como "o que queres dizer?". Sabia perfeitamente a que Maureen se referia. Soubera desde que entrara no seu refúgio minúsculo e Bastien a abandonara, apesar de terem estado a falar de cortes de cabelo e de roupa interior. Aquela mulher não tinha intenção de deixar que entrasse num avião. Fora para isso que trouxera a roupa nova: para que não pudessem seguir a sua pista pelos indícios da sua própria roupa. Para que não pudessem encontrar o seu cadáver. Passara o ponto do pânico.

- Foi para isso que Bastien te trouxe? Porque não podia fazê-lo sozinho?

- Ah, Bastien. Essa identidade em particular não foi muito sortuda. Se fosse o de sempre, nunca terias saído do château. Tal como estão as coisas, vim para limpar a confusão que fez. A atenção aos pormenores é o único caminho para o sucesso.

Estava entre Chloe e a porta aberta. Era mais alta do que Chloe e, apesar da sua vestimenta elegante, parecia bastante mais forte. E Chloe não estava precisamente no seu melhor momento.

Sentou-se à beira da cama, com a sua roupa nova, que ficava na perfeição e olhou para os olhos da sua assassina. Sentia-se cansada e, embora se desprezasse por isso, era incapaz de se mexer. Ia ficar ali sentada, como um cordeiro à espera da morte, sem apresentar resistência...

Nem pensar. Sentou-se mais direita, mas Maureen já se adiantara.

- Não vais ser boa? - perguntou, com um sorriso leve. - Muito bem. Devo-te uma boa ração de dor. Já me prejudicaste e eu não gosto que me façam parecer estúpida à frente dos meus superiores.

- De que estás a falar?

- De Jean-Marc ou Bastien ou seja lá como lhe chamas. É outro exemplo da sua ambivalência. Distraíste-o, apesar de antes nunca se ter distraído. Matar-te será o meu presente para ele.

Trouxe-te ele aqui para me matares?

- Já me perguntaste isso, chérie. E talvez tenhas reparado que não te respondi. Terás de lhe perguntar isso com o teu último fôlego. Agora, começa a mexer-te.

- Para onde?

- Este quarto tem reforços de aço e estamos em cima da casa de banho. É provável que sobrevivam melhor a um incêndio do que o resto deste velho monte de madeira seca e não quero correr riscos. Basta fazer asneira uma vez.

- Vais queimar a casa? Então, porque te incomodaste em fazer com que mudasse de roupa?

- Deus está nos pormenores. Embora, naturalmente, eu não acredite em Deus. Mas nunca assumo nada. Talvez encontrem parte do teu corpo e não quero que te identifiquem. Se fosses alemã ou inglesa, não teria de ser tão cuidadosa, mas os americanos costumam armar muito escândalo quando um compatriota é assassinado no estrangeiro. Sai, chérie. Já perdemos tempo suficiente.

- E se me recusar a mexer-me? E se te obrigar a matares-me aqui?

- Não vais fazer tal coisa. Adiarás a tua morte o máximo possível. É próprio da natureza humana. Farás o que te disser na esperança de encontrar um ponto fraco, uma oportunidade de fugir. Não fugirás, mas isso é inconcebível. Portanto, vais fazer exatamente o que te digo, sair por aquela porta e descer as escadas até ao canto mais afastado do primeiro andar, onde te degolarei e, depois, pegarei fogo à casa. Já pus os aceleradores.

Mas Chloe não se interessava pelos aceleradores.

- Vais degolar-me?

- Funciona bastante bem. É silencioso, nada de disparos e enquanto viveres não poderás emitir sons altos. O problema para ti é que não morrerás logo, mas para mim é uma vantagem. Nesse caso, trata-se de uma rixa pessoal. Não só por Jean-Marc. Não costumo cometer erros, mas por tua culpa cometi um grave. E tenciono resolvê-lo.

- De que estás a falar?

- És assim tão parva? A tua amiga. Tinha o número do apartamento e uma descrição geral e ela estava lá. Como ia eu saber que tinhas uma companheira de apartamento? Foi muito embaraçoso quando me disseram que tinha matado a rapariga errada.

- Embaraçoso? - repetiu Chloe. A garrafa de vinho vazia continuava sobre a mesa. Não serviria de grande coisa contra uma faca ou uma pistola, mas era alguma coisa. Se tivesse coragem para se precipitar sobre ela.

- Embora, no final, não tenha acontecido nada de grave. Teria tido de a matar de qualquer modo... embora noutra ordem. E desta vez completarei a minha missão sem mais erros.

- Tu mataste Sylvia?

Maureen suspirou de exasperação.

- Será que não estás a ouvir-me? Claro que a matei. E resistiu muito mais do que espero que tu resistas. O apartamento estava às escuras e deve ter pensado que era um ladrão, porque resistiu como o próprio diabo. Ainda tenho nódoas negras. Mas sei que tu não vais dar-me tantos problemas...

Chloe bateu-lhe na cara com a garrafa vazia. O vidro grosso partiu-se, mas Chloe já começara a correr quando Maureen começou a gritar, raivosa.

Não se lembrava da disposição da casa, mas apesar do pânico, conseguiu encontrar as escadas. Ouvia Maureen atrás dela, mas tinha uma certa vantagem e desceu as escadas o mais depressa possível.

No último lance, escorregou e perdeu alguns instantes. Quando conseguiu levantar-se, Maureen estava no patamar de cima.

Chegou ao fundo das escadas e continuou a correr às cegas enquanto ouvia a respiração trabalhosa de Maureen cada vez mais perto.

No último instante, a sorte sorriu-lhe. Atravessou uma porta que dava para o jardim, sujo e iluminado pela neve. Estava no topo de uma escada exterior que descia para o pátio. Até conseguia ver o táxi que os levara até lá coberto pela nevada, mas a neve, que destruíra os seus rastos, formava montes de pelo menos meio metro de espessura sobre cada degrau.

Começou a descer as escadas abrindo dificilmente caminho por entre a neve, úmida e compacta, mas era demasiado tarde. Estava a meio da escada quando Maureen a alcançou, a agarrou pelo cabelo e a puxou para trás.

- Ordinária! - gritou. Tinha a cara coberta de sangue. Já não parecia elegante e bonita, mas furiosa e letal. Empurrou-a com força contra os degraus cobertos de neve e segurou-a. A navalha que trazia na mão era pequena, mas afiada e Chloe sentiu um instante de desespero lúgubre e surrealista. Porque é que tinha de ser sempre com uma faca? Porque não tentavam dar-lhe um tiro, limpa e rapidamente, em vez de cortarem a sua carne como cirurgiões com anfetaminas?

Fechou os olhos. Já não se sentia valente, disposta a enfrentar a morte e ouviu a gargalhada gutural de Maureen.

- Linda menina! - exclamou. - Chega de discussões.

-Maureen! Pára!

Não podia ser o tom de voz rouco de Bastien. Ele preparara aquilo. Mudara de opinião? Voltara? Decidira salvá-la no último instante, como no château?

- Vai-te embora, Jean-Marc! - exclamou Maureen, num tom de voz estranhamente sereno, sem se incomodar em desviar o olhar de Chloe. - Sabes que é o melhor. Não temos escolha.

- Deixa-a em paz! - a voz estava mais perto, mais calma, mas Maureen não estava a ouvir.

- Tu decides, Jean-Marc - declarou. - Ou ela ou... parou de falar no instante em que se ouviu o barulho abafado da pistola e baixou o olhar, surpreendida. Bolas! - resmungou e caiu para trás, escorregando pelas escadas nevadas até ficar estendida no chão, aos pés de Bastien.

Havia um carreiro largo de sangue carmesim sobre a neve onde o seu corpo deslizou. Chloe tentou mexer-se, mas Bastien parou-a.

- Fica onde estás! - ordenou e o seu tom de voz era estranhamente oco. Baixou-se e pegou, sem esforço, no corpo sem vida de Maureen. Pareceu esquecer-se de Chloe enquanto levava Maureen para o táxi abandonado, afastando a neve aos pontapés, e abria a porta.

Chloe levantou-se apesar de não sentir força nas pernas e desceu as escadas, seguindo o rasto de sangue. A camada densa de neve entorpecia os seus movimentos. Devia começar a correr, sair para a rua e talvez ele desistisse de procurá-la.

Mas não ia a lado nenhum.

Bastien pusera Maureen no banco de trás. Ela tinha os olhos abertos. Ele estendeu a mão e fechou-os suavemente.

- Lamento muito, querida - murmurou, antes de recuar e fechar a porta.

Pareceu surpreendido ao vê-la ali de pé, tão perto. Estava bem, pensou Chloe, atordoada. Não tinha capacidade para reagir, a única coisa que podia fazer era ficar ali parada, no meio do silêncio do dia invernal, olhando para Bastien enquanto a neve começava a cair em seu redor.

 

Estavam a apenas alguns passos de distância, uma curta extensão de sangue e de neve. Chloe nem sequer pensou, aproximou-se dele e atirou-se para os seus braços. Apertando a cara contra o seu ombro, agarrou-se a ele. Tremia tanto que pensava que partiria os ossos.

Ele rodeou-a com os seus braços fortes e firmes e apertou-a com força. Era poderoso e quente e o leve tremor do seu corpo tinha de ser fruto da imaginação de Chloe.

Pôs-lhe uma mão na cabeça e acariciou-lhe suavemente o cabelo.

- Respira - sussurrou-lhe ao ouvido, como um amante. - Respira devagar. Respira fundo, lentamente.

Ela não percebera que estava a suster a respiração. Ele agarrava-a pelo queixo e acariciava-lhe a garganta com o polegar, as suas carícias quase conseguiram fazer com que voltasse a respirar. Chloe exalou um suspiro profundo e tremulo e depois outro.

- Temos de sair daqui - murmurou Bastien e ela teve vontade de se rir, quase histérica. Não havia ninguém ali para ouvi-la. Maureen estava morta, o mundo era uma massa, um redemoinho de neve e de sangue e, se gritasse, ninguém a ouviria... Mas não gritaria. Podia absorver o calor de Bastien, a sua força e a sua respiração. Ficou assim, abraçada a ele e Bastien não fez esforço algum para obrigá-la a mexer-se. Concedeu-lhe o tempo de que precisava.

Chloe levantou finalmente a cabeça. Ele parecia o mesmo, mas era sempre assim. Vira-o matar duas vezes e não mostrara reação alguma. Era um monstro, não um ser humano.

Mas era o seu monstro, que a mantinha a salvo e já não se importava.

- Estou pronta! - exclamou.

Bastien assentiu e soltou-a, mas depois agarrou-a pela mão. Chloe estava gelada e molhada pela neve. Agarrou-se à sua mão com tanta força que lhe doíam os dedos, mas não se soltou. Bastien afastou-a da casa, parando um instante para deitar um pouco de neve sobre o rasto de sangue que descia desde os últimos degraus das escadas. O céu começava a escurecer, embora Chloe não soubesse se tratava de uma tempestade ou da hora. Ou talvez o seu próprio empenho de enclausurar uma vida que começava a tornar-se insuportável. Talvez estivesse a convocar a escuridão em seu redor, para que acabasse por se fechar sobre ela como um manto negro, deixando tudo de fora, a luz, o horror, a dor...

Bastien tratava-a com muita delicadeza, pensou vagamente enquanto ele abria a porta de um carro que não reconheceu. Ele acomodou-a no banco da frente e pôs-lhe o cinto. Esquecera-se do casaco e, de repente, parecia-lhe tremendamente importante, como se tivesse deixado a sua única salvaguarda na casa.

- O teu casaco... - começou, deixando escapar um gemido tremulo.

- Quero lá saber do casaco. Não preciso dele.

- Eu sim.

Bastien não se mexeu, ficou ali parado, com a porta aberta, olhando para ela. Perguntando-se se tinha perdido o juízo, pensou Chloe. A resposta era sim. Pouco depois, assentiu.

- Não te mexas! - ordenou e fechou a porta do pequeno carro.

Teve vontade de se rir. Não conseguia mexer-se. Bastien pusera o cinto de segurança e os seus dedos não funcionavam, não conseguiriam tirá-lo. As suas pernas também não a seguravam. Custava-lhe imenso continuar a respirar como lhe pedira para fazer, a baforadas lentas e profundas.

Pareceu que Bastien só desaparecera durante um instante. Abriu a porta e pôs-lhe o casaco sobre os ombros. Depois olhou para a sua cara.

- Estás bem?

- Claro - replicou.

Resposta errada, supôs, porque ele franziu o sobrolho por um momento. Mas limitou-se a assentir com a cabeça.

-Agüenta!

Que outra coisa pensava que podia fazer? Pensou Chloe, deixando cair a cabeça contra o banco ao mesmo tempo em que se tapava com o casaco. Fugir? A sua fuga chegara ao seu fim.

Fechou os olhos enquanto ele conduzia velozmente para o coração de Paris e ouvia o seu tom de voz sereno só com uma mínima parte do seu cérebro. O resto do seu ser flutuava com a neve, escondido no casaco.

- O aeroporto está aberto, mas vais ter de esperar. Tenho de chegar ao hotel. Deixei as coisas penduradas durante demasiado tempo e o único modo de te manter a salvo é conservar-te ao meu lado.

Isso bastou para fazê-la abrir os olhos.

- Porque voltaste? Não reconheceu o seu próprio - tom de voz: era fraco e irritado. O que raios se passava? Sentia-se presa no gelo.

Ele nem sequer olhou para ela. Estava concentrado na condução. Isso fora a única coisa que Chloe não fizera: conduzir pelas ruas de Paris. Era capaz de enfrentar quase tudo, mas conduzir por Paris era superior às suas forças. Sylvia ria-se sempre e chamava-lhe medricas. Sylvia...

- Respira! - ordenou Bastien, asperamente e ela obedeceu.

Ele conduziu até à fachada do hotel Denis, um dos melhores de Paris, pequeno, exclusivo e elegante. Parou à frente da discreta entrada principal, saiu de um salto e aproximou-se da porta quando o porteiro se dirigia para lá. Disse alguma coisa ao homem, mas ela não estava a ouvir. Tirou-lhe o cinto de segurança e ajudou-a a sair sem lhe tirar o casaco dos ombros, rodeando-lhe a cintura com o braço, com a cabeça inclinada para ela como um amante atencioso.

- Finge que tens sono - sussurrou-lhe ao ouvido. Em alemão, pensou ela com surpresa. Disse-lhes que acabaste de chegar da Austrália e tens jet-lag. Não esperarão nada de ti - deu-lhe um beijo suave na têmpora, parte da sua atuação. E se pudesse, ela ter-se-ia virado e tê-lo-ia beijado na boca.

Atravessaram o hall pequeno e elegante do velho hotel. Parecia que mil olhos a observavam e espiavam o seu avanço enquanto Bastien a conduzia para o elevador, com o braço em redor dos seus ombros, segurando-lhe o casaco. Voltava a ter frio, sentia o peito úmido pela neve. E nem sequer o casaco lhe dava calor.

Bastien conseguiu de algum modo levá-la para o seu quarto. Ela já não percebia nada. Ele fechou a porta, acendeu a luz e Chloe mal reparou no que a rodeava.

- Tenho frio! - exclamou, num tom de voz estranhamente alto. Tirou o casaco dos ombros e deixou-o cair no chão. - Tenho frio e estou molhada tocou na camisa, afastando o tecido úmido do corpo. Não entendia como molhara o peito.

Precisas de descansar. Farei com que te tragam roupa. Não esperava trazer-te aqui. O quarto é ali atrás. Porque não te metes na cama e tentas aquecer?

Ela puxou da camisa de seda e, depois, olhou para as mãos, horrorizada. Estavam sujas de vermelho.

Levantou o olhar para ele, para o seu rosto impassível. Bastien limpara as mãos, mas Chloe viu restos de sangue seco. E a sua camisa estava molhada: via o seu brilho úmido à luz da tarde.

- Estás ferido? - perguntou. - A tua camisa... - sem pensar, pôs-lhe uma mão sobre o peito. Sobre o coração, que continuava acelerado.

Ele abanou a cabeça.

- É sangue de Maureen - respondeu. - Ambos estamos sujos.

Era a gota de água.

- Tira-me isto! - gritou Chloe, puxando a camisa. Por favor! Não posso...! - o tecido suave só esticava sob as suas mãos aterrorizadas. Perdeu a pouca calma que restava. Estava ali, no presente, coberta com o sangue de uma mulher morta, tal como ele, e se não se livrasse dela, rebentaria.

- Acalma-te - disse ele e, agarrando na bainha da camisa, tirou-lha pela cabeça. O seu corpo, o seu sutiã preto de renda, as manchas de sangue sobre a sua pele branca, ficaram a descoberto.

Bastien praguejou. Ela não conseguia falar, puxava a roupa enquanto abria a boca, tentando respirar, e ele pegou nela ao colo, levou-a através do quarto em penumbra e entrou na casa de banho. A luz invadiu imediatamente o espaço, iluminando a sua pele. Bastien deixou-a na ducha, meio vestida, e abriu a torneira no máximo, pondo-se com ela sob o jorro de água quente.

Tirou-lhe o resto da roupa rapidamente, com eficácia, pegou no sabonete e lavou-a enquanto ela permanecia paralisada, tremendo sob o jorro fumegante. As suas mãos, rápidas e ásperas, cobriram o corpo dela, fazendo-a reagir. Chloe começou a puxar-lhe da roupa suja de sangue enquanto soluçava.

Bastien tirou a camisa pela cabeça. O seu peito estava manchado de sangue. Depois, tirou o resto da roupa sem deixar de enlaçar Chloe com um braço.

Ela tirou-lhe o sabonete e esfregou-lhe o peito, cobrindo-o de espuma, ansiosa por apagar todo o rasto de sangue, ansiosa por fazer com que a água levasse tudo...

- Já chega! - exclamou ele e, segurando na mão dela, fê-la atirar o sabão para o chão de ladrilhos da ducha e puxou-a para si sob o jorro de água, apertando-a contra o seu corpo molhado e nu.

Chloe precisava de se livrar de tudo aquilo. Não bastava a água e o sabonete também não podia apagá-lo. Precisava de mais e a ereção que sentia contra a sua barriga demonstrava que ele também. Em circunstâncias normais, talvez Bastien não a desejasse, mas naquele momento precisava tanto dela como ela dele. Precisava de esquecimento.

Chloe baixou a mão e tocou-lhe. O seu membro, grande e pesado, vibrou ligeiramente, congestionado pelo mesmo desejo que a embargava.

Levantou o olhar para ele por entre a água da ducha.

- Por favor - sussurrou, deixando que os seus dedos escorregassem sobre a proeminência sólida do seu membro. -Preciso...

- Eu sei - disse ele.

Não fechou as torneiras. Limitou-se a pegar nela ao colo e a levá-la para o quarto em sombras. Deitou-a sobre a cama e, depois, seguiu-a, cobrindo-a e penetrando-a antes que ela pudesse sequer respirar fundo.

Claro que não queria respirar. Só queria aquilo, forte, rápido, profundo e chegou ao orgasmo quase imediatamente, apertando-se mais contra ele, enquanto o seu corpo ficava banhado pelo calor, pela luz e por uma espécie de escuridão enfeitada de estrelas que se prolongava interminavelmente ao mesmo tempo em que Bastien se mexia dentro dela, procurando o seu clímax com uma concentração cega.

Ele também não demorou muito. Chloe ainda estava a tremer em seu redor quando sentiu que ele chegava ao topo do prazer e um novo orgasmo apoderou-se dela. As suas pernas ficaram tensas ao redor das ancas de Bastien enquanto ele atingia o orgasmo. Uma vida quente e úmida preencheu-a, afugentando a escuridão e a morte.

Devia ter feito algum ruído, porque ele lhe tapou a boca com a mão para a sossegar. Chloe agradeceu-lhe e, usando as suas últimas forças, soluçou contra os dedos dele até não restar mais nada dela, absolutamente nada.

Bastien afastou-se e Chloe deixou cair os braços. Já estava inconsciente. Teria gostado de pensar que desmaiara de prazer, mas sabia que não era assim. Chloe ansiava a descarga física, o esquecimento e ele dera-lha, e a ele próprio também, e Chloe perdeu-se num sono reparador antes de ele se afastar dela.

O seu corpo ainda não seguira a sua mente. Ainda estava agitado com os últimos restos do orgasmo. Ela desejara-o com frenesim e ainda não podia acreditar que o desejo de Chloe fora igualmente intenso.

Não a beijara. Mas aquilo não tinha nada a ver com os beijos. Tratava-se da vida, de reclamar o ser. Tratava-se de sexo e de renascimento, de dor e de necessidade e Bastien começava a excitar-se outra vez só de olhar para ela.

Perguntava-se se alguma vez se trataria só deles. De desejar Chloe e de ela o desejar a ele ou se era só uma arma, uma droga e uma ferramenta. Não ia descobri-lo. Ia concluir o seu trabalho, naquela noite e pôr Chloe num avião. Ia sobreviver porque tinha de fazê-lo, porque tinha de se certificar de que ela saía a salvo de lá. E depois esperaria para ver o que se passava, se iam atrás dele ou se o deixavam ir-se embora.

A água da ducha continuava a correr. Ficou a olhar para ela e invejou o seu sono e a sua inconsciência. Tinha muitas coisas para fazer: mantê-la a salvo e acabar com aquele assunto. Não podia meter-se sob os lençóis com ela, envolver o seu corpo e perder-se no seu prazer doce e quente. Só podia afastar os lençóis e tapá-la. Só podia inclinar-se sobre ela e beijá-la nos lábios.

Só podia deixá-la.

Chloe abriu os olhos. Não queria fazê-lo. Por um instante, não recordou onde estava. Os sonhos tinham-na conduzido novamente para o seu quarto do apartamento, mas a luz que entrava pela porta aberta não era a adequada e ao princípio, não reconheceu a voz amortecida procedente da outra divisão. Sentia o corpo estranho, lânguido e ao mesmo tempo tenso.

Então, tudo regressou, cada pormenor em cores vívidas, e levou uma mão à boca para ensurdecer um gemido. O que raios fizera?

Fora para a cama com Bastien. Outra vez. Mas aquilo era o que menos devia preocupá-la. Não era nada comparado com aquela litania de morte, perigo e sangue.

Só conseguia ouvir o tom longínquo da sua voz e nenhum outro. Estava a falar ao telefone num tom de voz suave e sereno e talvez ela devesse aproximar-se da porta e ouvir, mas não ia fazê-lo. Ia lavar-se, apagar os rastos de Bastien do seu corpo e, depois, procuraria um pouco de roupa e sairia dali a toda a pressa.

Não havia nem rasto da sua roupa preta no chão da casa de banho espaçosa. Bastien devia tê-la levado, ainda bem. Lavou-se rapidamente e, depois, embrulhou-se numa toalha grande e entrou no quarto.

Não era suficiente. Tirou o lençol da cama e enrolou-a em redor do corpo como uma toga antes de se aproximar da porta.

Não conseguiu resistir à tentação. Parou e ouviu o seu tom de voz tranqüilo e desapaixonado.

- Resolvi os últimos pormenores. Limite-se a cumprir a sua parte do acordo. Se acontecer alguma coisa, o que quer que seja, acabou-se, entendido? - era uma ameaça pronunciada num tom de voz suave e sereno que fez com que Chloe se arrepiasse. Houve uma pausa e ela susteve a respiração e aguçou o ouvido. Desde que entenda - replicou ele. - Eu não estou a brincar e ela é a garantia.

A conversa acabou e Chloe contou até cem em italiano antes de abrir a porta. Bastien estava sentado numa poltrona opulenta, com as pernas esticadas para a frente, sem se mexer. A sala estava em penumbra, coisa que ela agradeceu. Não se via capaz de suportar a luz elétrica.

Ele nem sequer pareceu aperceber-se da sua presença, mas um instante depois disse:

- Ouviste algo interessante?

Chloe devia ter percebido que ele sabia que ela estava a ouvir. Bastien parecia ter uma percepção quase sobrenatural no que se referia a ela. Claro que essa percepção provavelmente abrangia qualquer um que estivesse em seu redor. Era assim que sobrevivia.

 

- Só que eu sou a garantia - entrou no quarto, embrulhada no lençol. - Vais trocar-me por algo?

Bastien virou a cabeça para olhar para ela e observou o seu traje com uma expressão maliciosa.

- Vou trocar-te por dois bois e um monte de frangos.

- Esqueces-te de que estive nessas reuniões. Isso provavelmente significa dois mísseis e um monte de Uzis.

O sorriso de Bastien tornou-se um pouco mais amplo.

- O que sabes de mísseis e de Uzis?

- Não muito - reconheceu enquanto entrava na sala.

- Valem mais do que a vida de uma mulher, garanto-te.

Ela fez uma careta.

- A vida parece ter muito pouco valor no teu mundo

- assim que aquelas palavras saíram da sua boca, lamentou tê-la pronunciado, mas ele nem sequer pestanejou.

- Tens razão. O que torna ainda mais difícil manter-te com vida.

- Não entendo porque o fazes. Devo ser um inconveniente enorme.

- Isso não descreve o que és. Eu também não sei replicou, num tom de voz frio e desdenhoso. - Há roupa no hall. Terás de te vestir para esta noite.

- Por quê? Vamos sair?

- Vais ter ocasião de voltar a ver os teus velhos amigos. O barão e a sua mulher, o senhor Otomi e os outros. Receio que a minha partida inesperada e a morte desgraçada de Hakim tenham interrompido a nossa reunião antes de uma personagem essencial aparecer. Chega esta noite e, então, concluiremos os nossos assuntos.

- E queres que vá contigo? - perguntou incrédula.

- Não vais afastar-te do meu lado. Farás o que te disser e quando te fizer um sinal teremos uma briga. Tu irás para a casa de banho e eu irei procurar-te cerca de dez minutos depois. Ficarás lá, independentemente do que ouvires, entendido?

- E se não fores ter comigo?

- Irei. Aconteça o que acontecer.

- Irei ter contigo à luz da lua, mesmo que o inferno se interponha no caminho - murmurou ela.

- O quê?

- É só um velho poema. Sobre um salteador. Suponho que tu és uma espécie de equivalente moderno reagiu, com desenvoltura.

Eu não sou um ladrão. E, não sei por que, mas não te imagino a levar um tiro para me avisares.

Devia ter imaginado que conhecia o poema. Surpreendia-a sempre.

- Bom e como vou vestir-me? De preto elementar? Finalmente, compreendi porque te vestes sempre de preto.

- Porque tenho bom gosto? - sugeriu ele, com ligeireza. - Ou porque sou malvado?

- Nenhuma das duas - respondeu. - Para não se notar o sangue.

Fez-se um silêncio na sala, tão denso que Chloe quase ouvia a neve cair atrás das janelas.

- Veste-te! - ordenou ele, finalmente.

A roupa estava no pequeno hall da suíte. O nome do estilista aparecia no saco e nas caixas. Se Sylvia tivesse visto aquilo, teria pensado que estava morta e fora para o céu... Bastien chegou tão depressa que Chloe mal teve tempo de engolir o nó repentino que sentia na garganta.

- O que se passa?

Ela virou-se para olhar para ele e conseguiu serenar-se.

- Se te empenhasses, de certeza que conseguirias adivinhá-lo. A tua ex-namorada matou Sylvia, sabes? Pensou que era eu.

- Eu sei.

- Então, porque me perguntas o que se passa?

- Porque agora não há tempo para isso. Quando estiveres com a tua família poderás desistir. Agora deves ter nervos de aço.

- E se não tiver? Suponho que me matarás, não é? Ele não tentou tocar-lhe.

- Não - respondeu. - Morrerás, mas não serei eu a matar-te. E eu também morrerei. Imagino que isso é mais um incentivo do que um aviso, mas sem mim não consegues sobreviver. E sabes disso.

- Sim - concordou ela, - eu sei.

- Tens de ser forte. Nada de lágrimas, nem de pânico. Até agora conseguiste dominar-te e dentro de algumas horas estarás a salvo. Consegues agüentar até então. Sei que consegues.

- Como sabes? - perguntou num tom de voz emocionado. Sou um desastre.

- És espantosa! - exclamou, com suavidade. - Conseguiste sobreviver todo este tempo. Não vou permitir que te aconteça nada.

- Espantosa? - repetiu ela, comovida.

- Vou vestir-me - respondeu. E afastou-se dela, repudiando-a novamente.

 

Ele pensara em tudo. Ao princípio, Chloe pensou que se esquecera de comprar um sutiã e, depois, percebeu que não podia usá-lo por baixo do vestido preto e justo. As cuecas pretas de renda eram pouco mais do que uma tanga e o cinto de ligas e as meias a condizer deviam tê-la repugnado. Mas vestiu-as e pensou nas mãos de Bastien sobre as suas pernas.

Ele pedira os tons de maquiagem adequados. Aquele homem tinha um dom. Com o cabelo, não podia fazer nada. Teria de fazê-lo passar pela última moda de despenteado. Ficou a olhar para os sapatos com receio. Os saltos eram mais altos dos que costumava levar, mas ficavam perfeitamente. Bastien parecia conhecer melhor o seu corpo do que ela própria, o que a inquietava. Ele conhecia e compreendia o seu corpo e, no entanto, continuava a ser um enigma para ela. Um enigma que desejava, mesmo que fosse uma loucura. Ele dissera que era espantosa. Por alguma razão, Chloe agradecia o elogio. Espantosamente valente, espantosamente estúpida, espantosamente curiosa, espantosamente sortuda. Espantosa.

Síndrome de Estocolmo, recordou-se numa ladainha absurda para afastar os seus desvarios. Quando estivesse em casa recordaria tudo aquilo. Se não decidisse esquecê-lo por completo, claro.

As luzes de Paris brilhavam para além das grandes janelas da sala de estar. Bastien estava no meio, a mexer em algo que tinha sob a camisa aberta. Uma camisa branca: talvez não esperasse sangue.

- Preciso da tua ajuda - pediu, sem se virar para olhar para ela.

- Não pareces dos que pedem ajuda.

- Há sempre uma primeira vez para tudo... - não conseguiu continuar ao vê-la. Chloe estava assustada e sentia-se demasiado atraente com o vestido preto. Mas aquela sensação desvaneceu-se quando viu o seu olhar, um olhar que ele se apressou a esconder. Talvez ele também padecesse da síndrome de Estocolmo.

Se fosse assim, conseguia ignorá-lo muito melhor que ela. Um instante depois, aquela expressão surpreendente dos seus olhos escuros podia ter sido fruto da imaginação de Chloe.

- Não consigo pôr isto - replicou ele.

A camisa branca, aberta, deixava a descoberto a sua pele suave e bronzeada. Estava a tentar pôr algo nas costas, uma espécie de curativo acolchoado que parecia uma ligadura, apesar de Chloe saber que não tinha nenhuma ferida lá.

Aproximou-se dele, porque não tinha razão para não o fazer e porque queria.

- O que queres que faça?

- Preciso de colar isto à pele, mesmo por baixo da quarta costela. E não chego.

- O que é?

Ele hesitou por um instante.

- É para fingir que levei um tiro. Tem lá dentro um pequeno explosivo e uma ampola de sangue falsa. Parecerá que me deram um tiro e tem que estar bem posto para parecer um tiro mortal.

- Está bem - pôs as mãos sobre o curativo, muito perto dele e inalou o cheiro do seu perfume. Tocou na sua pele com as mãos, era suave e quente e os seus dedos tremeram. - Assim está bem?

- Sentes as minhas costelas? Devia estar mesmo por baixo da mais baixa.

Ela tentava respirar com normalidade. Apalpar os ossos dele era inquestionavelmente erótico, quer ela quisesse, quer não.

- Claro que sinto as tuas costelas - indicou, num tom de voz irritado. - És um francês frágil. Embora na verdade não pense que sejas francês.

- Ah, não? - o seu tom de voz era muito suave. Estavam tão perto que apenas tinha de sussurrar e o seu tom de voz suave perturbava Chloe. - O que achas que sou, então?

- Um aborrecimento - custava-lhe um pouco respirar com ele tão perto. Pôs a mão sob a camisa, pelas suas costas e apertou o curativo. Assim? Perguntou.

- Sim, assim bastará. A pólvora far-me-á um buraco na roupa e há sangue falso suficiente para encobrir qualquer erro de cálculo - olhou para ela. A boca de Chloe estava mesmo por baixo da dele. Ela fechou os olhos e apoiou a cabeça contra o seu ombro, perdendo-se no seu calor e na sua força.

Recuou, cheia de nervosismo, apesar de tentar disfarçá-lo. Ele abotoou a camisa e, depois, vestiu o casaco. Um fato preto, a condizer com o seu vestido. Prendera o cabelo comprido por trás e tinha um aspecto elegante e despreocupado. Ela seguiu as suas mãos com o olhar enquanto ele punha a gravata preta de seda. Depois, deu por si a olhar para a boca dele.

- Temos de falar - declarou, de repente.

- Sobre o quê? Bolas!

- Sobre o que se passou há um instante, no quarto explicou ela, no caso de continuar a fingir que não sabia.

- Por quê? Não há nada para dizer. -Mas...

- Foi uma reação humana normal. A sobrevivência das espécies, ma belle. Quando enfrentamos a morte violenta, reagimos afirmando a vida. Não é nada pessoal.

Fora uma idiota por abrir a boca. Se tivesse fechado o bico naquele fim-de-semana, não teria disparado nenhum alarme e todos teriam continuado com a sua vida normal.

- Tens razão - murmurou, sem se importar com o fato de parecer zangada. - É a síndrome de Estocolmo.

- O quê?

Dissera-o em voz alta. Era demasiado tarde para se desdizer, portanto decidiu agir como se nada tivesse acontecido.

- Síndrome de Estocolmo - repetiu, num tom de voz mais alto. - É um estado psíquico documentado em que um refém...

- Sei o que é - parecia ao mesmo tempo alarmado e divertido. Interrompera-a antes de ela dizer algo verdadeiramente comprometedor e Chloe sentia-se levemente agradecida. Conseguira não ficar em ridículo. E tu padeces desse mal em particular?

- Não tem nada de estranho - cada vez custava menos manter um tom de voz leve e despreocupado. Salvaste-me a vida várias vezes, estamos presos numa situação limite e antes de as coisas ficarem feias havia uma clara atração física entre nós - recordou o distanciamento subseqüente de Bastien e sentiu que corava.

- Pelo menos, conseguiste convencer-me de que era mútua quando te interessaste - particularizou. - Portanto, é lógico que me sinta um pouco... dependente neste momento. Mas passará assim que sair daqui a salvo.

- Dependente?

Não havia maneira de sair graciosa daquele apuro, portanto parou de tagarelar. Bastien tentava assustá-la, mas ela podia fazer o mesmo. Olhou para ele nos olhos com ferocidade e tentou fazer com que o rubor desaparecesse da sua cara. Infelizmente, só conseguiu fazer com que se deslocasse para baixo.

- És o meu cavaleiro de armadura brilhante declarou, com ligeireza. - O meu herói, o meu salvador, pelo menos por enquanto. Mas passará.

O regozijo desaparecera da sua cara.

- Não, não sou. Não sou um herói, nem um salvador, nem um cavaleiro. Sou um assassino que só se interessa pelos seus próprios planos. É melhor que te lembres disso. Não és nada para mim, exceto um estorvo.

- Então, porque estás aqui?

- Porque não consigo livrar-me de ti.

Estava a acontecer alguma coisa, algo que ela não entendia, mas que fazia com que se sentisse mais ousada, menos vulnerável às suas palavras frias e vazias.

- Claro que consegues - reagiu, com ar pragmático. - Podes partir-me o pescoço, degolar-me, dar-me um tiro... Não parece que tenhas muitos escrúpulos em relação à vida e à morte. Se só quisesses livrar-te de mim, porque me salvaste?

- Porque estou loucamente apaixonado por ti e não consigo remediá-lo. Sou prisioneiro do teu encanto e da tua beleza, não suporto afastar-me de...

- Cala-te - interrompeu ela. - Não estou a dizer que gostas de mim. Sei perfeitamente que qualquer... sentimento que haja entre nós só procede de mim e é resultado da histeria produzida pelo trauma e mais nada. Só estou a dizer que não és o monstro que pensas ser.

- Não? - Chloe estava demasiado perto dele. Bastien estendeu os braços e rodeou o seu pescoço nu com os dedos longos e elegantes. Puxou-a para si, exercendo uma pressão suave. Tinha os dedos mesmo por baixo do seu queixo e, com o polegar, acariciava a pele suave da sua garganta. - Talvez me alimente da dor e do susto. Talvez te tenha trazido até aqui para te matar quando começares a confiar em mim.

Ela engoliu em seco. O toque das suas mãos era perturbador e teve de usar toda a sua energia para não cambalear para ele.

- E talvez sejas mentiroso - acusou. - Talvez não me desejes, mas também não queres matar-me.

O seu sorriso era irônico.

- É aí que te enganas - aumentou um instante a pressão dos dedos e ela sentiu-se enjoada e desorientada, até perceber que a empurrara contra a parede estofada de damasco da sala de estar e que se apertava contra ela e lhe segurava a cara com os dedos enquanto olhava para ela nos olhos na penumbra crescente da sala. "Engano-me no quê?", pensou vagamente. "Quando digo que não me matarás ou que não me desejas?".

- Se as circunstâncias fossem outras, levar-te-ia para a cama e faria amor contigo durante dias - declarou ele, num tom de voz lento, profundo e intenso. Percorrer-te-ia com a boca até não restar uma só parte da tua pele imaculada e far-te-ia chegar ao orgasmo várias vezes até não conseguires segurar-te de pé e, depois, deixar-te-ia dormir nos meus braços até estares descansada. Depois, voltaria a começar. Beijaria as tuas feridas, beberia as tuas lágrimas, faria amor contigo de maneiras que ainda não se inventaram. Faria amor contigo em campos de flores e por baixo de céus estrelados, onde não há morte, nem dor, nem tristeza. Ensinar-te-ia coisas com que nunca sonhaste e não haveria ninguém no mundo exceto eu, entre as tuas pernas, na tua boca, por todos os lados - Chloe olhava para ele com os olhos esbugalhados. - Respira - replicou ele, com suavidade e com um sorriso brincalhão e ela percebeu que estava a suster a respiração.

- Fá-lo-ias? - perguntou, num tom de voz fraco.

- Sim, mas não vou fazê-lo. Não é boa idéia.

- Por quê?

- Não condiz contigo.

- Porque não deixas que seja eu a julgar o que é bom para mim?

Bastien desatou a rir-se e ela percebeu que nunca antes o ouvira rir-se. Por um instante, pareceu-lhe muito belo, banhado pela luz da lua, um homem perfeito num lugar perfeito.

E depois as sombras fecharam-se sobre eles mais uma vez.

Tens a síndrome de Estocolmo, lembras-te? - gozou ele, com um leve laivo brincalhão. - Não durará muito mais. À meia-noite estarás a salvo, longe daqui e na semana que vem tudo isto te parecerá um pesadelo distante. Dentro de um ano terás esquecido que me conheceste.

Não acho.

Mas a questão estava resolvida. Bastien afastou as mãos da sua garganta e ela percebeu que ele estiver a acariciá-la.

- Farás o que te digo, não é? Quando te fizer o sinal, começarás a discutir comigo, depois sairás da sala com muito maus modos e irás esconder-te na casa de banho. Eu irei buscar-te assim que puder.

- E se não fores?

- Mesmo que o inferno se interponha no caminho declarou ele, com ligeireza. - Vais ver os teus velhos amigos do château, onde passaste tão bons momentos.

- Sim - replicou ela. - Prometo manter a boca fechada.

- Não é preciso. Acabará tudo esta noite. Na verdade, não importa o que digas, desde que não lhes contes sobre o dispositivo que tenho por baixo da roupa. Mas mantém-te afastada de Christos.

- Quem é Christos?

- Ainda não o conheces. Chega esta noite e, ao seu lado, Hakim parecia a Madre Teresa. Procura não te aproximar dele, se puderes. Talvez a tua conversa insossa o tire do sério e tenta fazer com que não se zangue.

- Conversa insossa?

Ele ignorou o seu protesto indignado.

- Se te mantiveres alerta e fizeres o que te digo, acabarás a noite viva.

- Tal como tu? - era uma pergunta, não uma afirmação.

Não gostou da leve ironia do seu sorriso.

- Tal como eu - confirmou. - Mais uma coisa. Não acabaste de te vestir.

- Não havia sutiã - indicou ela, com nervosismo.

- Eu sei. Por isso escolhi este vestido - podia ter estado a falar do preço das laranjas. Pôs a mão no bolso do seu smoking e tirou um colar de diamantes. Precisas do enfeite adequado. Vira-te.

Segurava num colar pesado e de aspecto antigo que tinha de ser feito de diamantes. Chloe não conseguia mexer-se, portanto ele limitou-se a rodear-lhe o pescoço com os braços para lhe pôr o colar. A luz dançava sobre as pedras lindas e o ouro branco tinha um calor estranho. Bastien baixou o olhar para ela e inclinou a cabeça para avaliar o efeito.

- Fica bem.

- De quem é? Roubaste-o? Ou é a melhor falsificação que podes comprar?

- Importa?

- Na verdade, não - ele abrira a porta e Chloe compreendeu que não ia voltar para aquele lugar. Nunca voltaria a passar um momento a sós com ele e quando Bastien a agarrou pelo braço, chegou-se um pouco para trás. - Far-me-ias um favor?

- Qual?

- Podias pelo menos dizer-me o teu nome? Ele abanou a cabeça.

- Já te disse que não precisa sabê-lo. Quanto menos saiba, mais certa estará.

Ela não esperava menos.

- Então, podias pelo menos beijar-me? Só uma vez, como se realmente o desejasses se não a beijasse, talvez não suportasse as horas seguintes. Se não a beijasse, talvez não quisesse suportá-las.

Mas ele abanou a cabeça.

- Não - respondeu. - Quando estiveres em casa, haverá imensos jovens bonitos desejosos de te beijarem. Espera até então.

- Não acho - pôs os braços ao pescoço dele, puxou a sua cabeça para ela e beijou-o com ímpeto. Esperava que ele resistisse, que a afastasse, mas limitou-se a deixar que o beijasse, sem reagir, sem participar. Chloe podia ter estado a beijar o seu próprio reflexo num espelho.

Teve vontade de chorar, mas as lágrimas podiam esperar tanto como os jovens bonitos. Chegou-se para trás com um sorriso alegre na cara.

- Para dar sorte - declarou, com desenvoltura. E, sem outra palavra, saiu para o corredor e deixou que a seguisse, fechando a porta atrás deles. Depois, deu-lhe o braço mais uma vez e conduziu-a devagar para o seu destino ou para a sua perdição. Chloe descobriria em breve qual das duas coisas a aguardava.

Estavam todos lá. Até Otomi e o seu assistente, cujas tatuagens apareciam sob os punhos elegantes do seu casaco. Bastien perguntou-se vagamente se Otomi estaria coberto pelas tatuagens tradicionais de cores que a maioria dos yakuzas usavam ou se sempre se comportara como um executivo. Ainda conservava todos os dedos, portanto talvez nunca tivesse estado na luta. O seu assistente impassível e silencioso só tinha menos uma falange de um dedo. Estava claro que não fazia asneira com freqüência.

O barão olhou para ele com cara de poucos amigos do outro lado da mesa e Monique ficou gelada quando os viu aparecer. Chloe agarrava-se ao braço de Bastien com nervosismo e ele deu-lhe umas palmadinhas na mão para tranqüilizá-la. Durante uma hora, mais ou menos, uma hora muito perigosa, poderia tocar nela quanto quisesse. Fazia parte do espetáculo, não significava nada, podia fazê-lo e ela nunca saberia como era difícil para ele.

Imaginava que tinha cinqüenta por cento de probabilidades de acabar a noite com vida, mas ia tirar Chloe dali, mesmo que tivesse de se encarregar de toda a gente. Algumas das pessoas que ocupavam a sala estavam do seu lado, no caso de ele ter algum lado. Mas isso não importava. Estava disposto a sacrificar qualquer um para manter Chloe com vida. Até os seus pais.

Eles já deviam ter chegado a Paris. A sua chamada apanhara-os no aeroporto. Já iam a caminho de França para procurarem a sua filha desaparecida. Tinham descoberto o corpo de Sylvia, assim como o passaporte de Chloe e os guardas tinham localizado os pais dela. Com sorte, iriam a caminho do hotel e chegariam a tempo de impedir que Chloe se visse presa no massacre que haveria ali, tinha a certeza disso.

Ela não sabia que, quando a mandasse sair da sala, estaria a mandá-la para ao pé dos seus pais. E eles certificar-se-iam de que não voltasse a entrar, por mais barulhos que ouvissem. Esperava que se fossem embora antes de começar o tiroteio.

- Oh, que surpresa! - exclamou Monique, sem os perder de vista. - Perguntávamo-nos onde se tinham metido. Supúnhamos que tivesses matado Hakim, mas não sabíamos se a rapariga se tinha ido embora contigo ou sozinha. Fico contente por ver que a seguiste.

- Eu sigo a pista a tudo, Monique - respondeu ele, enquanto acariciava a mão fria e pálida de Chloe.

- E então? Diz-me, porque mataste Hakim? Estamos todos muito interessados. Foi inesperado, no mínimo.

- Alguém se importa na verdade? Monique sorriu.

- Não. Era dispensável. É simples curiosidade - estendeu a mão fina e cheia de jóias e tocou na pele exposta de Chloe. - Vejo indícios da sua obra - as feridas que Hakim lhe infligira tinham ficado reduzidas a umas marcas muito tênues e Bastien reparou que Chloe se arrepiava ao sentir o contacto de Monique.

Agarrou-a pelo pulso e afastou-lhe a mão.

- Não lhe toques, Monique! - exclamou. - É minha.

- É sempre agradável partilhar - respondeu Monique, com uma careta exagerada. - É muito bonita quando está bem vestida. E de onde tirou aqueles diamantes tão espetaculares? Há muito tempo que não via uma coisa assim. De onde os tiraste, petite? - fixou a sua atenção em Chloe, que deu um salto.

- Bastien ofereceu-me - respondeu, pouco depois. Monique franziu o sobrolho.

- Ignorava que pudesses ser tão generoso. Se tivesse sabido que tinhas algo tão bonito em teu poder, não teria posto fim à nossa relação.

O seu olhar desafiava Bastien a contradizê-la, mas ele já estava enfastiado. Monique gostava de brincar ao gato e ao rato, mas naquela noite não era o seu objetivo. Comparada com o homem que ia enfrentar, Monique era um jogo de crianças.

- Onde está Christos? - perguntou. - Não voltou a aparecer? - seria em parte uma sorte que o grego não se incomodasse em aparecer pela segunda vez. Assim que aparecesse, todos fixariam a sua atenção nele. Se não aparecesse, Chloe podia continuar a ser um objetivo tanto do cartel como do Comitê. E embora a presença dos seus pais pudesse parar o cartel, o Comitê mal hesitaria.

Não, seria muito melhor se Christos aparecesse e se corresse tudo segundo o previsto. Havia sempre a possibilidade de só receber o tiro nas costas, mas não contava com isso. Desde que Chloe estivesse a salvo, o resto não importava.

Sabes o mesmo que eu - replicou Monique. Se não aparecer, encontraremos outro modo de ocupar o tempo, não tenho dúvidas - estendeu o braço para tocar novamente em Chloe, mas daquela vez ela afastou-se de um salto.

- As mãos quietas, ordinária! - exclamou, no seu tom de voz mais doce. Em alemão, a língua materna de Monique.

Monique pestanejou e o seu sorriso tornou-se ainda mais amplo.

- Ah, é um pequeno tesouro, Bastien. Vou divertir-me muito com ela. Sim, já sei. Por cima do teu cadáver - e atirou-lhe um beijo antes de regressar para junto do seu marido carrancudo.

- Talvez não tenha sido boa idéia, Chloe - murmurou Bastien. - Mas não o reprovo - ela olhou para ele e à luz intensa da sala ele conseguiu vê-la com mais clareza do que queria. Os seus olhos castanhos e angustiados, que se encheriam de lágrimas quando soubesse que ele morrera. A sua boca suave e carnuda, que outro beijaria e ela retribuiria os seus beijos.

- Isso era o pior? - perguntou ela.

Ouviu-se uma agitação na porta e Bastien afastou o olhar dela e olhou para o grupo de homens que acabara de entrar.

- Receio que não - reagiu, num tom de voz baixo. Christos chegou.

 

Christos não parecia o monstro que Bastien pintara, pensou Chloe. Comparado com Gilles Hakim, parecia só um empresário bem vestido, embora estivesse rodeado por um pequeno exército de guarda-costas. Ficou à porta, ladeado pelos seus homens, e deixou que os seus olhos escrutinassem a sala, catalogando os presentes. Tinha uns olhos poderosos: claros, quase incolores e, quando pousaram nela, sentiu um calafrio.

- Fico contente por ver que ainda estão aqui - replicou. O seu inglês era perfeito, embora tivesse um forte sotaque estrangeiro. - Lamento não ter podido reunir-me convosco antes, tinha assuntos pendentes. Mas isso não significa que não chore a perda do nosso querido amigo Auguste Remarque. Sei que também perdemos Hakim. É uma pena - cravou os olhos em Bastien, que olhava para ele com total impassibilidade. - Mas o fato de ver os velhos amigos compensa as perdas.

- Que trouxe consigo, Cristos? - perguntou o senhor Otomi com uma certa aspereza, cuja irritação saltava à vista. Os seis homens que rodeavam a figura pequena e elegante de Christos deixavam o assistente e guarda-costas do japonês em ridículo.

- Toda a precaução é pouca. Com todas estas mortes repentinas, pensei que era melhor garantir a minha integridade física. Não façam essa cara de preocupação, meus queridos amigos e colegas. Os meus homens estão muito bem treinados. Não farão nada que eu não queira.

Os outros não pareceram tranquilizar-se com a sua explicação, pensou Chloe, aproximando-se infinitesimalmente de Bastien. Ele tinha razão. As reuniões anteriores foram simples comparadas com aquela atmosfera sobrecarregada de tensão.

- Devemos discutir a disposição... - começou a dizer o signore Ricetti num tom de voz estridente, mas Christos interrompeu-o com um gesto. As suas mãos eram pequenas e pálidas, reparou Chloe.

- Haverá tempo de sobra para os negócios - declarou. - Enquanto isso, eu gostaria de beber alguma coisa. Um bom vinho francês, para variar. Estou farto de retsina.

- Claro - a madame Lambert, que parecia ter assumido o papel de anfitriã, fez um gesto ao empregado. E para os seus homens?

- Não bebem quando estão de serviço - respondeu Christos. Chloe sentiu que a tensão aumentava na sala.

Bastien enlaçou-lhe a cintura com o braço e dirigiu-a para a parte menos congestionada da sala. Precisou de um grande esforço de contenção para não dar um salto ao sentir o seu contacto e, depois, um esforço ainda maior para não se encostar contra ele. O contacto de Bastien era uma ilusão. Não oferecia maior segurança do que uma cobra. Mas fazia-a sentir-se melhor.

Ele acomodou-a no sofá suave de couro claro e, depois, sentou-se ao seu lado, perto, mas sem tocar nela. Tinha uma pistola? Chloe não se lembrava. Fixara-se muito mais na sua pele e no seu corpo do que nas armas que trazia. Era bem feito que morresse, pensou com aborrecimento. Estava apaixonada como uma idiota.

Alguém lhe dera um copo de champanhe. Nem sequer sabia como chegara à sua mão, mas bebeu um gole por fazer alguma coisa e ficou em silêncio enquanto via como os outros membros do cartel circulavam pela sala com as suas maneiras impecáveis.

Monique estava a seduzir Christos, mas pouco depois, virou-se e olhou para ela fixamente nos olhos. E, depois, dirigiu-se para eles com um sorriso malévolo nos lábios vermelhos.

Chloe sentia a tensão que Bastien emanava.

- Hora de discutir - murmurou ele.

Devia ter sido bastante fácil. Bastien era irresistível e exasperante em partes iguais e ela podia ter-se concentrado na sua faceta exasperante, mas sentia a tensão que reinava na sala, via o batalhão de guarda-costas de Christos e não tencionava ir a lado nenhum.

- Estou bem - declarou, num tom lisonjeador. Ele virou-se e olhou para ela fixamente.

- É hora de ires - insistiu, num tom de voz baixo. As coisas estão a ficar perigosas por aqui.

Esboçou um sorriso radiante e limpo.

- Não vou a lado nenhum sem ti - sussurrou.

Os olhos escuros de Bastien podiam deixá-la paralisada, mas não se deixou acovardar.

- Não brinques com isto, Chloe - replicou ele, num tom de voz ameaçador.

- Não é nenhum jogo. Não tenciono sair desta sala sem ti. Se sair, morrerás, e não quero que isso aconteça.

- Se ficares, morrerás também.

- Provavelmente, o que significa que, se continuares decidido a salvar-me, não tens escolha. Tens de vir comigo - não teve tempo de se congratular pelo seu plano. A expressão de Bastien era serena e ligeiramente aborrecida, mas os seus olhos tinham um olhar furioso.

Ele estava a beber um copo de uísque com gelo. Procedeu a verter-lho no colo e levantou-se de um salto, fingindo-se consternado.

- Desculpa-me, querida - desculpou-se, num tom de voz alto. Não sei como pude ser tão trôpego.

O líquido frio atravessou o vestido e molhou as suas coxas e Chloe teve de se esforçar para lhe sorrir, mas não se mexeu. O preto podia esconder outras coisas, para além de sangue.

- Foi só uma gota, meu amor - murmurou e estendeu a mão para agarrá-lo pelo braço. - Não te preocupes.

- Acho que devias ir limpar-te - indicou.

- Não é preciso.

- Tenta livrar-se de ti, pequena - Monique, infelizmente, juntou-se a eles. - Vai-te embora e deixa-nos alguns minutos a sós. Temos de falar.

- Não me parece - declarou Chloe, num tom de voz firme e agradável.

- Fica, então - Monique deixou-se cair no sofá de couro e puxou Bastien para que se sentasse entre elas.

- Não me importo de ter público - e, agarrando em Bastien pela nuca, beijou-o.

Ele retribuiu o beijo. Rodeou a sua cintura fina com um braço, puxou-a para si e deu-lhe um longo beijo. O beijo que se recusara a dar a Chloe há um instante.

A tensão pareceu subir alguns graus na sala e não era imaginação de Chloe. O marido de Monique observava-os com um fascínio ávido e sem o mínimo indício de desconforto e os outros observavam aquilo com diversos graus de interesse, exceto os guarda-costas de Christos, que estavam agora ao redor da sala em vez de rodearem o seu chefe. Mas porque é que Bastien não prestava atenção àquela situação alarmante, pensou Chloe, em vez de pôr a língua na garganta daquela mulher?

Se pensava que ia ficar ali, a olhar para eles como uma parva, Bastien errara o cálculo. Certamente, esperava que saísse da sala a chorar, porém, embora tivesse vontade, os homens de Christos ocupavam todas as saídas. Quer ele gostasse, quer não, estava presa na sala com ele.

Pôs-lhe a mão sobre o ombro e afastou-o de Monique com um empurrão. Ele olhou para ela com uma expressão glacial.

- Vai-te embora! - exclamou num tom de voz alto e claro para que todos o ouvissem. - Estou farto de ti e seguidamente virou-se para Monique.

Estava claro que a ordinária estava a divertir-se imenso, pensou Chloe, respirando fundo para se acalmar. Os homens inexpressivos que rodeavam a sala não faziam caso do que se passava no sofá. Tinham os olhos cravados no homem que os controlava. Christos observava a cena com algo parecido com o regozijo, mas não ia deixar-se distrair por muito tempo e, assim que desse o sinal, estariam todos mortos. Chloe estava tão certa disso como do seu próprio nome.

Pelo menos, sabia que a síndrome de Estocolmo podia ser uma doença mortal. Virou-se. Monique tinha uma mão sobre o cabelo longo e sedoso de Bastien e outra sobre a sua braguilha

Aquilo era o cúmulo. Se fosse morrer, pelo menos morreria a lutar. Levantou-se, agarrou no braço esquelético de Monique e afastou-a de Bastien antes de eles perceberem o que fazia.

- Tira as mãos de cima do meu namorado!

Era a coisa mais ridícula que podia ter dito. A sala ficou em silêncio e Monique sorriu.

- Os trios não me incomodam, chérie. És tão ciumenta. Talvez não sejas suficiente para ele, mas imagino que eu conseguirei preencher os buracos.

Chloe precipitou-se para ela e Bastien agarrou-a no ar e apertou-a contra si. E ela ficou deitada no chão, com Bastien em cima, cobrindo o seu corpo, ao mesmo tempo em que o inferno ganhava vida em seu redor.

Estava esmagada por baixo dele, não via nada, mas o barulho era assustador. Os disparos, alguns deles silenciados, outros ensurdecedores, os gritos, as maldições e o estrondo de uma correria.

E, depois, o cheiro: o cheiro ácido e denso do sangue. Bastien mantinha-a colada ao chão, mas estava vivo, Chloe sabia isso, pelo menos. Respirava trabalhosamente e ela sentia o batimento do seu coração nas costas. Não se mexeu, não queria mexer-se. Talvez ficassem ali deitados para sempre e ninguém reparasse que não estavam mortos.

Depois, ele afastou-se, ficou de lado e arrastou-a com ele. A sala estava envolta em escuridão. A única iluminação provinha dos disparos. De qualquer modo, Chloe não queria ver o matagal de corpos, os que se retorciam, os imóveis, o sangue por todos os lados.

Bastien levou-a para trás do sofá, arrastando-a e segurando-a e empurrou-a para uma das janelas cobertas com cortinas. Pô-la atrás da cortina e apertou-a contra a parede, tapou-lhe a boca com a mão para que não pudesse falar, nem gritar, nem respirar. Na outra mão tinha uma pistola. Chloe sentia-a contra a pele.

- Estás ferida? - sussurrou ele.

Ela conseguiu dizer que não com a cabeça. As janelas davam para uma pequena varanda coberta de neve. Chloe não via se estavam muito a cima, nem se importava. Estavam presos naquele pequeno espaço e só havia duas saídas. Ou através dos disparos. Ou pela janela.

- Fica aqui! - ordenou ele e, afastando-se dela, virou-se para a cortina que os rodeava.

- Não! - gritou Chloe, agarrando-se a ele, mas Bastien afastou-a de um empurrão e ela caiu contra a parede. Ele abriu a cortina e Chloe fechou os olhos com todas as suas forças e levou as mãos aos ouvidos para abafar o ruído.

E depois ele voltou.

- Vamos sair daqui - replicou, num tom de voz irritado. - Vá lá - abriu a janela e entrou uma rajada de ar frio que fez as cortinas agitarem-se. Ele praguejou e guardou a pistola no cinto. Chloe viu então a mancha de sangue da sua camisa. - Vamos.

Ela não teve tempo de lhe perguntar onde. Bastien pegou nela ao colo, atirou-a pelo corrimão lateral da varanda e atirou-se para o vazio atrás dela.

Estavam num primeiro andar e Chloe aterrou com violência, mas a grossa camada de neve impediu que se magoasse. Ele pareceu magoar-se mais, pois cambaleou ao levantar-se e, agarrando-a pela mão, conduziu-a para as sombras. Sobre eles, começou a aparecer gente na varanda: uma gritaria de idiomas que ela não queria compreender.

- O meu carro está ali - indicou Bastien, quase sem fôlego enquanto a empurrava à frente dele. - Estou sempre preparado para qualquer contingência. Sabes conduzir, não sabes?

- Eu não conduzo em Paris! - exclamou ela.

- Agora sim - abriu, de repente, a porta do condutor, agarrou-a pelo braço e meteu-a lá dentro de um empurrão. Chloe não teve escolha. Pelo menos, àquela hora, haveria pouco trânsito.

Bastien deixou-se cair no banco do passageiro, ao seu lado.

- Conduz! - exclamou. - Dirige-te para norte.

Ela lançou-lhe um olhar inquisitivo e, depois, decidiu não começar a discutir. O BMW arrancou como a seda, apesar de ela esperar que explodisse. Fez marcha atrás, fazendo chiar as rodas, derrapou ao dirigir-se para a frente e o carro parou.

Bastien estava recostado no banco, com os olhos fechados.

- Se não começares a despachar-te, vamos morrer avisou, com muita calma.

- Faço o que posso - arrancou novamente o carro, pôs a primeira e saiu para a rua, esquivando por pouco três carros e uma mota. - Bolas! - resmungou. - Bolas!

- O que se passa? - perguntou ele, cansado. - Porque não conduzes em Paris?

Porque conduzem como loucos. Tenho medo. Ele ficou calado tanto tempo que ela pensou que tinha adormecido.

- Chloe - começou, com infinita paciência, - acabaste de enfrentar algumas das pessoas mais perigosas do mundo. Sobreviveste a um banho de sangue, viste as pessoas a morrerem. Um ou dois condutores impetuosos não têm a menor importância.

Ela dobrou uma esquina a demasiada velocidade e subiu para o passeio. Se tivesse sido de dia, estariam mortos, no meio de uma pilha de vinte carros. Àquela hora, talvez tivessem alguma oportunidade de chegar ao seu destino. Fosse qual fosse.

Ela não tencionava perguntar-lhe.

- Um banho de sangue? - perguntou, pouco depois.

- O que achas que era aquilo? Um jogo de sala? Não vi muito antes de nos irmos embora, mas o barão tinha caído e o senhor Otomi e Monique também.

- Monique?

- Deram-lhe um tiro na cara. Isso faz-te feliz? - parecia muito cansado.

- Claro que não. E Christos e os seus homens?

- Christos está morto. Pelo menos, fizemos isso bem.

- Como podes ter a certeza? Estava muito escuro...

- Porque fui eu que o matei. E, no caso de não teres percebido, nunca falho - fechou os olhos novamente. Continua a conduzir. Preciso de pensar no que faremos agora.

- Era isso que tinhas de fazer? Matar Christos?

- Se chegasse a isso.

- Então, agora estou a salvo, não é? Cumpriste a tua missão.

- Não gostam de testemunhas, Chloe. Só estarás a salvo quando chegares a casa.

Ela não ia contrariá-lo. Tinha de se concentrar no trânsito. A neve derretera-se e, depois, transformara-se em gelo e o BMW tinha demasiada potência. Tinha a certeza de que tinha sobrevivido a um tiroteio só para morrer ignominiosamente num acidente de carro, mas por enquanto não se importava. Estava com ele. E sabia que não seria por muito tempo.

Bastien pôs a mão no porta-luvas, tirou um tele móvel e marcou um número. A conversa foi tensa e direta e, quando desligou, ele disse:

- Segue o desvio seguinte à esquerda.

Chloe não disse nada. Estava pálido, cansado e, pela primeira vez, parecia quase humano e vulnerável, uma idéia que a aterrorizava. Não por ela, mas por ele.

- Estás bem? - perguntou. - Não te acertaram, pois não?

O seu sorriso frio não lhe serviu de consolo.

- Lembras-te daquele dispositivo que me colaste ao corpo? Queimou-me. Acho que sobreviverei.

Mas se...

- Cala-te disse, com suavidade. - Só alguns minutos, cala-te.

Ela obedeceu, um sacrifício maior do que ele pensava. Ligou o rádio só para encontrar um boletim de notícias a respeito do massacre mafioso que tivera lugar no hotel Denis. Pelo menos onze mortos, cinco feridos, e algumas pessoas que eram procuradas. Sintonizou uma estação de rap francês e desligou o rádio. Não estava de humor para violências falsas, depois de ter vivido a violência real.

- Vira à esquerda aqui - indicou Bastien, de repente. Chloe não sabia onde estavam. Estava escuro e dirigiam-se para os subúrbios da cidade por um bairro que não conhecia. Sobre eles ouvia-se um som ensurdecedor e, de repente, compreendeu que deviam estar perto do aeroporto.

Mas Bastien não estava a guiá-la para as zonas públicas, para os estacionamentos ou para as portas de embarque. Continuaram a avançar, passaram os terminais principais e chegaram à fileira de hotéis do aeroporto.

- Vai para a parte de trás - indicou ele, quando chegaram ao Milton e ela obedeceu docilmente. Pelo menos ia levá-la para um hotel antes de mandá-la para casa. Se só ia dispor de mais uma noite com ele, aceitá-la-ia, agradecida.

Para ali indicou ele, apontando para a entrada de mercadorias.

Não há lugar para estacionar.

- Faz o que te digo.

Ela não tinha nem forças nem vontade para começar a discutir. Parou junto da calçada e pôs o carro em ponto morto, puxando o travão de mão.

- E agora?

- Já podes sair - declarou e, estendendo a mão, parou o carro. Tinha também sangue na mão. Chloe esperava que fosse o mesmo sangue falso que sujava a sua camisa e não o de outra pessoa.

Abriu a porta e saiu. A calçada fora limpa de neve, mas sentiu uma camada fina de geada sob as sandálias de noite e sentiu-se gelada. O vestido estava rasgado, estava encharcado de uísque e molhado de neve e o vento soprava em seu redor, agitando flocos soltos de neve.

Viu duas figuras a sair da escuridão e, por um instante, perguntou-se se Bastien a trouxera para ali só para ser morta por outros. Depois, percebeu que as pessoas eram familiares. Eram os seus pais.

Deixou escapar um grito, atravessou a calçada gelada a correr e atirou-se para os seus braços. Durante um instante, só conseguiu abraçar-se a eles, tentando respirar calmamente e habituar-se à idéia de que eram reais e de que estavam a salvo num mundo enlouquecido de sangue e pistolas.

- O que fazem aqui? - balbuciou, quando recuperou a fala. - Como sabiam onde me encontrar?

- O teu amigo localizou-nos - explicou o seu pai. Descobrimos o que aconteceu com Sylvia e Já vínhamos a caminho de França quando telefonou, íamos encontrar-nos contigo num hotel, mas o nosso avião atrasou-se.

Ela virou-se para olhar para trás. Bastien aproximara-se deles e observava-os inexpressivamente, um pouco afastado.

- Disseste-lhes para irem para o hotel apesar de saberes o que ia acontecer? Podiam ter morrido!

Ele encolheu os ombros com uma certa rigidez.

- A questão era manter-te viva. Não me preocupava particularmente com os custos.

- Seu filho de...

- Cala-te, Chloe! - exclamou a sua mãe. - Salvou-te a vida.

James Underwood soltou Chloe e estendeu a mão a Bastien.

- Só queria agradecer-lhe por cuidar da nossa filha. Às vezes, é uma mal-educada.

- Ela era a menor das minhas preocupações - declarou Bastien, num tom de voz sereno e firme.

- Quer que dê uma olhadela à ferida? Não sei se Chloe lhe terá dito, mas somos médicos...

- Estou bem - respondeu. - Mas deviam ir-se embora. Tirem-na de França e não a deixem voltar pelo menos durante dez anos. Não é má idéia que não a percam de vista durante pelo menos cinco.

- Isso é fácil de dizer - resmungou o seu pai.

Chloe viu o sorriso leve de Bastien à luz dos candeeiros. Ele deu meia volta sem dizer uma palavra e regressou ao carro e ela ficou ali parada, paralisada por algo mais do que o frio, certa de que ele se iria embora sem uma palavra.

Bastien abriu a porta do carro e, depois, hesitou. Tirou algo da parte de trás e aproximou-se dela.

Chloe estava a tremer, mas por alguma razão os seus pais tinham recuado, afastando-se dela.

- Porque coxeias? - perguntou, tentando fazer com que o seu tom de voz parecesse despreocupado enquanto ele se aproximava.

- Torci o tornozelo ao cair - trazia o seu casaco preto de casimira e pô-lo sobre os ombros dela, envolvendo-a no seu calor e no seu cheiro. - Faz o que os teus pais te disserem - replicou. - Deixa que cuidem de ti.

- Nunca fui muito obediente.

- Eu sei. Fá-lo por mim.

Estava demasiado cansada para lutar. Limitou-se a assentir com a cabeça e esperou que ele soltasse o casaco.

- Vou beijar-te, Chloe - avisou, num tom de voz baixo. - Só um beijo de despedida. E depois poderás esquecer-te de mim. A síndrome de Estocolmo é apenas um mito. Vai para casa e encontra alguém que te ame.

Ela não se incomodou em tentar explicar-se. Ficou ali parada enquanto ele segurava na sua cara com as mãos fortes e quentes que a tinham protegido e tinham matado por ela. Os seus lábios eram suaves como um sussurro, tal como uma carícia. Beijou-lhe as pálpebras, o nariz, a testa, as faces sujas de lágrimas e, depois, beijou-lhe novamente a boca devagar, suave e profundamente com um beijo que continha todas as promessas do que nunca teriam. Era o beijo de um homem apaixonado e, por um momento, ela flutuou, perdida na beleza perfeita das suas bocas unidas.

Ele largou-a.

- Respira, Chloe - sussurrou, pela última vez. Depois, foi-se embora e o BMW desapareceu na noite de Paris antes de ela poder fazer outra coisa senão agarrar no casaco para que não lhe escorregasse dos ombros.

- Pode saber-se onde conheceste um homem tão interessante? - a sua mãe aproximou-se dela e rodeou-a com um braço. - Sempre foste tão tradicional no que se refere aos teus namorados...

Namorado, pensou Chloe, atordoada. A última palavra que dissera em voz alta antes de rebentar o caos.

- Ele é que me encontrou - declarou, o seu tom de voz era estranho e tenso.

- Ainda bem - disse o seu pai. - Parece que conseguiu tirar-te de uma situação muito perigosa. Oxalá me tivesse deixado dar uma olhadela àquela ferida de bala.

- Não era um tiro a sério - explicou Chloe. - Era só uma farsa que preparámos... que preparou esta tarde. Sangue falso e um pequeno mecanismo explosivo para fingir que levara um disparo.

- Chloe, minha filha, odeio ter de te contrariar, mas passei mais de dez anos no serviço de emergências de Baltimore e reconheço uma ferida de bala quando a vejo.

- Não era... - e, então, percebeu, com um estranho arrebatamento que a fez sentir-se doente. A ferida estava na parte esquerda das costas. E o curativo estava na direita. - Meu Deus - soluçou, tentando soltar-se dos seus pais. - Tens razão. Temos de o encontrar...

- Não servirá de nada, querida. Foi-se embora. Tenho a certeza de que irá direto para um hospital...

- Não. Morrerá. Quer morrer - assim que pronunciou aquelas palavras, compreendeu que eram verdadeiras. Bastien queria morrer, estivera a seduzir a morte até ela se atravessar no seu caminho. E agora que se livrara dela, não havia nada que o impedisse. Temos de o encontrar, pai!

Temos de apanhar um avião, Chloe. Prometemos.

Não podia fazer nada. Bastien fora-se embora a toda a velocidade pelas estradas geladas e não havia forma de segui-lo e de o encontrar. Procuraria ajuda ou talvez não, mas em qualquer caso já não lhe dizia respeito. Bastien Toussaint desaparecera da sua vida para sempre.

"Respira", dissera-lhe sempre. Chloe inalou uma baforada profunda e tremula de ar e fechou o casaco. Não disse nada enquanto os seus pais a conduziam com uma calma surpreendente para a entrada traseira do hotel, para o terminal internacional e, por último, para o avião.

Foram em primeira classe, mas Chloe não reparava naqueles luxos. Recostou-se no banco e fechou os olhos, recusando-se a entregar o casaco à solícita assistente de bordo. Já não tinha vontade de chorar, não sentia absolutamente nada. Tinha sangue na mão: sangue de Bastien, não era sangue falso. E não tinha intenção de lavá-lo. Era a única coisa que restava dele.

Síndrome de Estocolmo, recordou-se. Uma aberração, uma lenda ou talvez só um momento de completa loucura pela sua parte. Não importava, acabara. Com um beijo perfeito.

Bastien não devia ter feito aquilo. Teria sido menos difícil para ela se ele se tivesse ido embora sem mais nem menos. Desse modo, não teria sabido como podia ser doce e que havia algo mais, para além de um desejo sexual que acelerava o sangue.

Estavam no meio do Atlântico quando abriu os olhos e viu que os seus pais estavam a observá-la com uma expressão ansiosa.

- Estou bem - afirmou com calma, apesar de ser mentira. Mas os seus pais assentiram com a cabeça. Só uma coisa.

- Sim, querida? - perguntou a sua mãe e a nota de ansiedade da sua voz demonstrava que não se deixava enganar.

- Não quero ir a Estocolmo. Nunca - fechou os olhos novamente, esquecendo o mundo à sua volta.

 

Era Abril. Um Abril quente, úmido, cheio de novas promessas primaveris. Paris estaria cheio de turistas. Juntamente com Agosto, Abril era o mês de maior afluência. Mas Bastien estava muito longe de Paris e tencionava continuar assim por muito tempo.

Sabia como perder-se melhor que a maioria. Tinha o melhor treino do mundo. E depois de arrancar a via intravenosa do braço e fugir do quarto da clínica privada onde o tinham internado, conseguira desaparecer, apesar de se sentir muito fraco. Conseguira chegar a um lugar onde ninguém, nem sequer o Comitê, o encontraria.

Era o Comitê que mais lhe convinha evitar. Todos os outros quereriam simplesmente liquidá-lo e isso ainda estava disposto a enfrentar com equanimidade. O Comitê não queria deixá-lo ir-se embora e não aceitava um "não" como resposta. Se não regressasse, Thomason voltaria a ordenar a sua morte e, quando olhava para atrás, não estava disposto a morrer às mãos dos seus. Tinha demasiado orgulho para aceitar um destino tão ignominioso.

Passara uma temporada numa vila dos Alpes italianos, esperando que a ferida sarasse. A bala tinha passado ao lado do fígado e, durante um tempo, debatera-se entre a vida e a morte, sobretudo porque tinham demorado algum tempo a descobri-lo, desmaiado no BMW, na parte de trás da casa abandonada. Tinham-no encontrado e a Maureen também, mas era demasiado tarde para fazer alguma coisa por ela.

O Comitê, no entanto, não estava disposto a permitir que um dos seus maiores investimentos desaparecesse e Bastien fora salvo das garras da morte duas vezes. Não iam deixá-lo desaparecer e ele deixara de resistir e permitira que os médicos obrassem a sua magia até estar suficientemente consciente para controlar a dor sem necessidade de medicamentos. Os fármacos atalhavam a dor, mantinham-no dócil, convenciam-no a fazer o que eles queriam. Mas ele não precisava das suas drogas.

Havia sempre um guarda na porta do seu quarto. De vez em quando, se estivesse consciente, via-os, embora ignorasse se estavam ali para protegê-lo ou para impedir que fugisse. Ninguém do Comitê aparecera e não ia esperar que Harry Thomason aparecesse para lhe fazer um ultimato. Esperou até ser capaz de caminhar alguns passos, praticando quando as enfermeiras não estavam por lá. Depois, deixou o guarda inconsciente, despiu-o e desapareceu na noite.

Os Alpes italianos primeiro e depois Veneza, uma cidade que conhecia tão intimamente como a maioria das pessoas conheciam a sua casa. Ninguém conseguiria encontrá-lo nas curvas de Veneza. Se quisesse, podia permanecer perdido ali para sempre.

Mas não o fez. Estava inquieto, recuperava-se mais devagar do que de costume e tinha os nervos à flor da pele. Deixara outra fatia da sua vida para trás, como tantas vezes antes. Os anos errantes com a sua mãe e a tia Celeste e os anos de egoísmo nos quais passava de uma mulher para a seguinte, usando-as para depois desaparecer. E os anos mortíferos, inacabáveis, eternos, trabalhando a salário e sob o controlo do Comitê, que achava que o fim justificava os meios, por muito monstruosos que fossem.

E agora voltava a errar pelo mundo, sozinho. Mexendo-se de um lado para o outro, sem parar o tempo suficiente para deixar pistas. Abandonou Veneza depois da loucura do Carnaval e dirigiu-se para o oeste. Os Açores eram quentes e aprazíveis e só pensou em Chloe uma vez, quando, ao ouvir o som líquido do português, se perguntou se ela teria conseguido dominar também aquela língua.

Estava viva, estava bem, estava fechada nas montanhas da Carolina do Norte e isso era tudo o que ele precisava saber. Ela já não tinha de contar com ele para nada. Nem para comida nem para calor, nem para sexo ou para a própria vida. Aquela altura, a mera lembrança fá-la-ia tremer de medo. Se é que pensava nele alguma vez.

Só podia esperar que não o fizesse. Estava mal equipada para os dias escassos que tinham passado juntos. A morte e a violência não eram o normal para uma rapariga jovem, sobretudo uma jovem americana. Se não tivesse conseguido deixar tudo aquilo para trás, Bastien tinha a certeza de que os seus pais a levariam de rastos para um terapeuta para que a tratasse até estar curada. Curada da lembrança. Curada dele.

Jazia ao sol, deixando que a sua mente esvaziasse e que o seu corpo sarasse. Ignorava o que faria depois. A Grécia estava descartada e o Extremo Oriente não era boa escolha. A máfia japonesa dos yakuza não aceitara bem a morte de Otomi e a sua rede de espionagem rivalizava com a do Comitê. Assim que pusesse um pé no Japão ou em algum sítio próximo, seria detectado e eliminado, mesmo que houvesse milhões de pessoas em seu redor. E descobrira que já não gostava de seduzir a morte, embora não entendesse muito bem por que.

Não ia para os Estados Unidos, tinha a certeza disso. Os Estados Unidos era um país enorme, mas se pusesse um pé nas fronteiras imensas, só pensaria numa única coisa. Numa mulher. Não faria nada a respeito disso, mas não seria capaz de se concentrar em nada enquanto lá estivesse. Até mesmo o Canadá era demasiado perto.

A Suíça podia ser uma boa escolha, com a sua neutralidade rígida. Ou a Escandinávia e talvez a Suécia.

Meu Deus, não! Nunca mais conseguiria pensar em Estocolmo sem... Enfim, nem sequer sabia o que estava a pensar. O seu mundo estava cheio dela, poluído por ela. Não havia lugar para onde pudesse fugir que não o fizesse pensar nela. Talvez quisesse morrer, afinal de contas.

Ou talvez aquilo fizesse parte da sua penitência.

Estava a beber demasiado, mas que outra coisa podia fazer enquanto jazia deitado ao sol, tentando não pensar? Beber, fumar e ir para a cama com as empregadas lindas quando estava suficientemente bêbado para esquecer. Era uma boa vida, disse para si enquanto punha os óculos de sol sobre o nariz e fechava os olhos ao radiante sol português. Talvez pudesse ficar assim para sempre.

O sol escondeu-se e ele esperou pacientemente que reaparecesse. E, depois, abriu os olhos e viu Jensen de pé junto da sua espreguiçadeira.

Estava muito mudado desde a última vez que o vira do outro lado da sala do hotel Denis, onde estava a acompanhar Ricetti. O seu cabelo castanho era mais comprido e muito preto, estava vestido com roupa de ganga de desenho e, embora tivesse os olhos cobertos por óculos de sol, Bastien tinha a certeza de que já não eram azuis.

- Vieste para me matar? - perguntou com indolência, sem se mexer da espreguiçadeira. - Estamos num lugar bastante freqüentado e odiaria que te apanhassem. Sempre nos demos bem. Porque não esperas até eu estar no meu quarto ou só numa rua deserta?

- Estás a ser melodramático - respondeu Jensen, ao mesmo tempo em que se sentava na espreguiçadeira do lado. Não parecia ter uma pistola, mas Bastien não ia deixar-se enganar. Nenhum agente ia desarmado. Havia demasiados inimigos desconhecidos. - Se quisesse matar-te, tê-lo-ia feito em Paris quando Thomason me ordenou, em vez de te deixar fugir.

Bastien sorriu levemente.

- Pensava que serias tu. O que te fez mudar de idéias?

- Thomason é um cretino. Não é eterno e tu és demasiado valioso para te desperdiçar.

Bastien esboçou outro sorriso. Lamento muito, Jensen. Os meus serviços já não estão disponíveis. Vá lá, despacha-te! Jensen abanou a cabeça.

- Só mato quando me pagam para isso declarou. Não queres saber por que estou aqui?

- Se não é para me matar, então suponho que é para me convencer a voltar para o Comitê. E perdes o teu tempo. Diz a Thomason para ir para o inferno.

- Thomason não sabe que estou aqui e, se soubesse, não acharia graça nenhuma.

Bastien levantou os óculos de sol para olhar para o seu colega.

- Então, quem te manda?

- Nós não somos os únicos membros do Comitê que assistiam às reuniões.

- Diz-me algo que eu não saiba. Como quem mais estava na lista de pagamentos.

Jensen abanou a cabeça.

- Isso é informação privilegiada e, enquanto estiveres fora da organização, é demasiado perigosa para ser difundida por aí.

- Está bem - replicou Bastien, voltando a pôr os óculos. - Não vou voltar, podes dizer-lhe, podes matar-me ou podes ir-te embora.

- Não vim para te fazer voltar, mas para te avisar.

- Não preciso de avisos, Jensen. Estou a conseguir manter-me vivo até agora, posso continuar assim enquanto estiver de humor.

- Não se trata de ti, Bastien. Ambos sabemos que estás sempre em perigo. É a tua pequena americana. Acham que a encontraram.

A Primavera chegava cedo às montanhas da Carolina do Norte, mas Chloe não estava de humor para notar. Os seus pais mimavam-na, os seus irmãos e irmãs andavam sempre em seu redor e os seus sobrinhos e sobrinhas divertiam-na, mas dentro dela havia um rasgo que continuava a sangrar. Cada vez que pensava que cicatrizara, algo voltava a recordar-lhe e começava novamente a tremer.

Maureen ao cair na neve, a faca a voar da sua mão, o sangue que ensopava o chão. Sylvia, com os olhos totalmente abertos, olhando fixamente para a morte que a levara. O matagal de corpos, os gritos, o cheiro do sangue no hotel Denis. Lembrava-se e começava a tremer e não havia ninguém ali que lhe recordasse que devia respirar.

Estavam todos mortos. Assegurara-se disso. A polícia irrompera na cena do massacre momentos depois de Bastien e ela saltarem pela varanda e os que sobreviveram ao banho de sangue morreram no hospital pouco depois. Era muito conveniente que não tivesse ficado ninguém vivo para contar a verdade. Monique morrera no hotel com um tiro na cara, dissera-lhe Bastien. O barão sucumbira um dia ou dois depois e os outros já tinham desaparecido.

Bastien era o único de quem não sabia nada. Que ela soubesse, podia estar morto. Passara demasiado tempo a seduzir a morte e levara um tiro. Claro que não era fácil de matar. Talvez estivesse a trabalhar numa nova missão ou talvez...

De qualquer modo, não ia pensar nele. Bastien pertencia a um passado escuro e confuso, um passado a que ela não conseguia dar sentido por mais que se esforçasse. Portanto, deixava-o passar, mexia-se de dia para dia num estado de espírito sereno e até firme, enquanto os seus pais a observavam com preocupação.

Em meados de Abril, tinham começado a relaxar. Matriculou-se em alguns cursos na universidade. O chinês era um desafio suficiente para manter a sua mente totalmente ocupada e começaria a trabalhar como voluntária no hospital dentro de uma semana ou assim. Quando chegasse o Outono estaria preparada para procurar um emprego e até para ir viver sozinha, apesar dos protestos dos seus pais. Estava a recuperar e recusava-se a pensar no mal que tentava curar. Só sabia que requeria tempo.

Por enquanto estava a salvo. Os Underwood possuíam mais de oitenta hectares de terreno na ladeira de um pequeno monte e a sua casa espaçosa era confortável, informal e estava convenientemente isolada. A velha quinta fora reformada, ampliada, derrubada e construída novamente ao longo de um século ou mais. No seu estado atual, era uma casa labiríntica, desorganizada e nada acolhedora. A sua mãe não fingia ser uma pessoa pulcra e, embora uma mulher fosse limpar a casa uma vez por semana, a ordem era uma causa perdida. Todos os Underwood tinham demasiados interesses. Livros e projetos, canas de pesca e máquinas de costurar, microscópios e telescópios e sete computadores ocupavam quase todo o espaço disponível.

Nem sequer a casa de convidados se safava, sobretudo porque Chloe estava a fazer o possível para manter a mente ocupada. Lia constantemente: a televisão era demasiado efêmera para distraí-la. Fazia crochê e jogava Tetris com ousadia no seu Game Boy cada vez que tinha de passar algum tempo num lugar público. Até levava a máquina para a casa de banho. Os pequenos blocos que caíam no seu lugar proporcionavam-lhe uma sensação de segurança e jogava até não conseguir mais.

Mostrava-se alegre, serena e agradável e os seus pais quase se deixavam enganar, pensando que estava a melhorar. Chloe sabia que ia demorar muito tempo, mas não havia pressa. Enquanto tivesse a casa dos seus pais para se esconder, disporia de todo o tempo de que precisava.

- Acho que devias vir conosco - disse o seu pai, enquanto afastava um monte de papéis para um lado da mesa do pequeno-almoço para pôr um copo alto de sumo de laranja. - Estás há muito tempo aqui isolada.

- Não estou isolada - respondeu com calma e aceitou o sumo de laranja que não queria, consciente de que seria inútil discutir. - Só estou... de férias. Se estou a estorvar, sempre posso...

- Não digas tolices! - era difícil zangar a sua mãe, mas Chloe era a mais apta para o conseguir. - Aqui haverá sempre lugar para ti, tal como para os outros. Porque achas que construímos a casa de convidados? Na verdade, já sabes que preferiria que ficasses na casa principal. Estaria mais tranqüila sabendo que estás sob o nosso teto.

Chloe bebeu o sumo de laranja e não disse nada. Sabia que o seu mutismo estranho era uma das coisas que mais inquietava a sua família, mas não podia fazer nada a respeito disso. As conversas sem importância tinham deixado de lhe interessar, embora conseguissem tranqüilizar a sua mãe.

- Sei que a conferência será um aborrecimento para qualquer um que não seja médico, mas os teus irmãos vão com as suas famílias. Será num hotel lindo na costa e sei que te divertirias muito...

- Ainda não - replicou ela, num tom de voz tão baixo que a sua mãe teve de se inclinar para ouvi-la. Vão e divirtam-se. Eu estou bem aqui. Não foram a lado nenhum desde que voltei e sei como gostam de viajar. Acredita em mim, estou perfeitamente a salvo. Ninguém vai incomodar-me e será bom estar alguns dias sozinha.

- Estás sozinha há demasiado tempo - virou-se para o seu marido, que acabara de entrar na cozinha. James convencê-la a vir conosco.

James abanou a cabeça.

- Deixa a menina em paz, Claire. Não lhe acontecerá nada. Só está cansada de nós. Alguns dias de tranqüilidade é o que lhe convém. Não é, Chloe?

Chloe conseguiu levantar o tom de voz.

- Claro que sim. Não têm de se preocupar.

Claire Underwood olhou para pai e filha com uma exasperação idêntica.

- Não posso opor-me aos dois - queixou-se. - Certifica-te de que ligas o alarme, entendido?

- Nunca usamos o alarme! - protestou Chloe.

- Pagamos imenso dinheiro por ele, portanto mais vale usá-lo - declarou o seu pai, o traidor. - Promete-me que deixarás o alarme ligado e eu certificar-me de que a tua mãe vem comigo.

Chloe não pensara que talvez a sua mãe acabasse por se recusar a ir. A simples idéia de passar um fim-de-semana a sós com ela dava-lhe calafrios. E não porque não a amasse, mas porque os seus esforços para apertar os seus laços eram de uma inépcia notória.

- Ligarei o alarme - prometeu. - Até irei comprar uma pistola e alguns cães de guarda se pensarem que é necessário.

- Não sejas ridícula, Chloe! - a sua mãe deu-se por vencida. - Além disso, acho que o teu pai tem uma velha pistola no sótão.

- Ótimo! Irei ver onde estão as armas antes de ser atacada por hordas mongóis.

- Muito engraçada! resmungou a sua mãe. - Sei que ambos pensam que me preocupo demasiado...

- E amamos-te por isso - interrompeu James. Mas, enquanto isso, temos de nos ir embora. Tu tens de dar uma conferência e eu tenho de ver os meus netos - olhou para Chloe, que estava sentada num banco com o sumo de laranja entre as mãos. - Na verdade, não me importaria de ter mais netos dentro de algum tempo. Não há pressa, claro, mas podias tê-lo em conta. Sei que Kevin Mclnerny voltou de Nova Iorque e abriu um escritório de advogados em Black Mountain. Antes saías com ele, não era? Um jovem muito simpático.

- Sim, era simpático - concordou Chloe. Nem sequer se lembrava dele.

- Talvez o convide para jantar quando voltarmos sugeriu a sua mãe. - Não te importas, pois não, Chloe?

Teria preferido que um lagarto lhe comesse os dedos dos pés.

Não, claro que não.

A sua mãe engoliu sem pigarrear e o seu pai voltou a aparecer com as malas.

- Divirtam-se! - exclamou ela, alegremente. - Eu ficarei lindamente.

A sua mãe deu-lhe um abraço rápido e afastou-se para estudar a sua cara uma última vez. Não gostava do que via, pensou Chloe, mas não podia fazer nada a respeito disso.

- Tem cuidado - replicou a sua mãe.

Dez minutos depois, foram-se embora e um silêncio delicioso enchia a casa enorme. Chloe ligou obedientemente o sistema de alarme assim que se certificou de que tinham saído da propriedade e, depois, esqueceu-se dele. Havia um frio estranho no ar. O cheiro doce e maduro da Primavera cessara de repente. Devia ter dado atenção ao canal do tempo, mas quando via tempestades de neve em climas mais setentrionais começava a tremer, portanto normalmente evitava vê-lo. O céu estava nublado e ameaçava chuva. O vento levantou-se e arrastava gelo. Devia estar a chegar uma frente fria, pensou enquanto tentava conter um nervosismo instintivo. A tempestade não afetaria a sua família e também não a afetaria a ela: não tinha intenção de ir a lado nenhum. Pensava viver à grande enquanto os seus pais estivessem fora: tomar longos banhos no jacuzzi e ver velhos musicais na televisão. Antes gostava dos filmes de artes marciais, mas desde que regressara de Paris tinha pouca tolerância para a violência artificial. Mas Judy Garland e Gene Kelly acalmavam-na e faziam-na acreditar num lugar feliz onde as pessoas acordavam a cantar e a dançar. Durante os dias seguintes, ia viver naquele lugar, fosse qual fosse o tempo que estivesse lá fora.

Estava a escurecer quando saiu da banheira e entrou na cozinha embrulhada num robe grosso. O painel de segurança estava a piscar, as luzes verdes diziam que estava a salvo. E, pela primeira vez desde há meses, percebeu que tinha fome. Certamente, porque a sua mãe não estava ali, a obrigá-la a comer. Abriu o frigorífico que estava sempre cheio e encontrou o que restava de um bolo de maçã. Tirou-o e fechou a porta só para se encontrar de frente com os olhos escuros e desumanos de Bastien Toussaint.

 

Caiu-lhe o bolo. O prato partiu-se em pedacinhos aos seus pés, mas ela não se mexeu. Olhava para Bastien em estado de choque.

- Parece que viste um fantasma, Chloe - gozou, naquele tom de voz familiar e hipnótico. - Não acharias que tinha morrido?

Ela demorou um instante a recuperar a fala.

- Tinha as minhas dúvidas - replicou. Ele parecia mudado.

Estava mais magro, a sua cara parecia ter enfraquecido por causa da dor ou de outra coisa e tinha o cabelo mais comprido e claro em algumas partes devido ao sol, condizendo com a sua pele bronzeada. Coisa estranha, porque Chloe nunca o teria imaginado à luz do sol, só na escuridão e nas sombras.

- É muito difícil matar-me - afirmou.

Estava muito perto e Chloe começou a recuar, mas ele agarrou-a pelo braço com força. Ela lutou de maneira instintiva, mas Bastien levantou-a no ar e, depois, voltou para depositá-la no chão, longe dos vidros partidos. Chloe esquecera-se de que estava descalça.

- Talvez queiras vestir-te - sugeriu ele. - Eu arrumarei isto enquanto espero.

- Não preciso de me vestir - declarou ela. - Não vou a lado nenhum. Tu é que te vais embora. Podes sair agora mesmo. Não sei por que apareces, de repente, mas não te quero aqui. Vai-te embora!

- O colar.

- O quê?

- Vim buscar o colar de diamantes - esclareceu, com calma. - Saíste de Paris com ele, lembras-te? Tem certo valor e vim recuperá-lo.

Ela olhava para ele, atônita.

- Porque não vieste antes? -Estava... incapacitado.

- Porque não me telefonaste para me pedir para to enviar?

- Não é algo que eu confiasse ao serviço de correios, nem sequer a um serviço privado. Lamento que a minha presença te incomode, mas não tive outro remédio senão vir em pessoa.

Não sentia nada, disse Chloe para si. Era como beliscar uma ferida, só para descobrir que estava curada. Olhou para os seus olhos escuros e ilegíveis e convenceu-se de que não sentia absolutamente nada.

- Está bem - concordou. - Vou procurar o colar. Depois, poderás ir-te embora. Não tenho nada para te dizer.

- Não esperava outra coisa - respondeu ele, recostando-se contra a bancada. - Traz-me o colar e seguirei o meu caminho.

Ela ficou a olhar para ele por um momento. A cozinha da sua mãe não era lugar para ele. Não podia estar ali, a alguns poucos passos dela, enquanto só vestia um robe. Não sentia nada por ele, nem ódio nem paixão: estava totalmente atordoada, com aquele bendito intumescimento que a protegera durante aqueles dias em Paris. E tinha de o tirar dali depressa, antes de aquele atordoamento se desvanecer.

- Fica aqui! - ordenou e, passando ao seu lado rapidamente, com cuidado para se manter fora do seu alcance, dirigiu-se para as escadas da cozinha. Ele não tentou tocar nela e Chloe sentiu-se estúpida, mas não conseguiu remediá-lo. Quanto mais perto estava, mais tremula se sentia.

A maior parte da sua roupa estava na casa de convidados, mas havia roupa limpa lá em cima, na máquina de secar roupa. Encontrou umas calças velhas e cinzentas de fato de treino, uma camisola folgada da mesma cor e umas meias de lã grossas. O seu cabelo começara a crescer outra vez e ela prendeu-o numa trança, mas resistiu a olhar-se ao espelho. Sabia que aspecto tinha e não se importava.

Na verdade, esquecera-se do colar. Tirara-o enquanto sobrevoava o Atlântico e quando tinham chegado na casa o seu pai guardara-o no cofre. Se tivesse lembrado dele, talvez tivesse podido encontrar um modo de lho devolver.

Ou talvez não? Não sabia o seu nome, para quem trabalhava, onde vivia. Não sabia nada sobre ele. Só sabia que era capaz de matar.

A luz do anoitecer era de um azul acinzentado e olhou pela janela perguntando-se onde estaria o seu carro. Como conseguiria passar pelo sistema de alarme? Era uma pergunta estúpida, de certeza que conseguia atravessar paredes de pedra, se quisesse. Um sistema de alarme convencional seria um jogo de crianças para ele.

Chloe olhou com incredulidade para os escassos flocos de neve que começavam a cair. Não devia nevar em Abril, estando os narcisos e o resto da bela paisagem prestes a florescer. Bastien devia ter trazido a tempestade consigo, como o manto de gelo negro que rodeava o seu coração.

Já apanhara os restos do prato quando ela regressou à cozinha e também fizera café. Aquilo incomodou-a, mas não o suficiente para recusar a chávena que ele lhe ofereceu, com creme e sem açúcar, como ela gostava. Perguntava-se como sabia, não se lembrava de ter tido tempo para beber calmamente uma chávena de café nos dias que passaram juntos.

- Toma - ofereceu, pondo-lhe os diamantes na mão estendida, com cuidado para não tocar nele.

Bastien guardou o colar no bolso. Preto, ia sempre vestido de preto e naquele dia também. De quem seria o sangue que tentava esconder?

Estava a comportar-se como uma néscia. Bebeu um gole de café e não conseguiu conter um suspiro suave. Não bebera um café tão bom desde que saíra de Paris.

Sentado à mesa do pequeno-almoço, Bastien parecia sentir-se estranhamente bem entre aquela desordem. Aquele não era lugar para ele, recordou-se Chloe, e bebeu outro gole de café.

- Como passaste pelo sistema de alarme? - perguntou.

- Tens mesmo de perguntar? Ela abanou a cabeça.

- Suponho que isso significa que não servirá de nada se alguém vier atrás de mim.

- E porque haviam de querer vir atrás de ti?

- Não sei. Claro que nunca entendia porque queriam matar-me.

- Estão todos mortos, Chloe. Já ninguém quer fazer-te mal. E o sistema de alarme é muito bom. Mas não o suficiente - percorreu o seu corpo com os olhos e na comissura dos seus lábios apareceu um indício de um sorriso. - Tens bom aspecto.

- Temos de passar por isto? Já tens o que querias. Porque não entras num avião e voltas para França? Podemos esquecer que nos conhecemos.

- Eu gostaria - replicou, com a sua franqueza habitual, - mas parece haver um pequeno inconveniente.

- Qual? - perguntou. Devia sentar-se. As horas na banheira de água quente e, depois, o frio primaveril que entrava por uma janela aberta e o choque de ver Bastien tinham-na deixado desorientada. Se pestanejasse, talvez ele desaparecesse.

- Não quero pestanejar - declarou em voz alta e o seu tom pareceu-lhe peculiar. Bastien também tinha um aspecto estranho. Estava mais bonito do que recordava, o que era injusto. Ter-lho-ia dito, mas parecia ter ficado sem fala.

- Não pestanejes, chérie - murmurou. - Fecha os olhos - e as sombras fecharam-se ao redor de Chloe.

Ele apanhou-a enquanto caía. Mentira-lhe, não tinha bom aspecto. Perdera peso e tinha olheiras, como se não dormisse bem. Aquilo também não devia ter sido uma surpresa, mas tinha esperanças de... de encontrar uma jovem americana, saudável e otimista, disposta a entregar a sua cabeça numa bandeja. Tivera tempo para recuperar, para virar a página.

Mas não o fizera.

Pegou nela ao colo e levou-a para a sala de estar. O sofá, grande e velho, estava coberto de livros e de jornais. Atirou tudo ao chão antes de deitá-la. Devia ter-lhe dado demasiado. Calculara a dose de sedativo que pusera no café baseando-se no que pesava quando estava em Paris e ela emagrecera pelo menos cinco quilos.

Mesmo assim, o sedativo só a manteria entorpecida mais tempo. Talvez o suficiente para enfrentar o problema e depois ir-se embora sem que ela soubesse como estivera perto de morrer. Não precisava saber que havia um sobrevivente inesperado da matança do hotel Denis. E esse sobrevivente em particular era capaz de correr qualquer risco para chegar até ela.

A expressão de espanto e horror da sua cara ao vê-lo não admitia erro e ele não podia reprová-la. Devia estar convencida de que se livrara dele para sempre e o fato de ele aparecer, de repente, era sem dúvida um pesadelo tornado realidade. Felizmente, tinha a desculpa do velho colar e ela acreditara. Só esperava que a sorte durasse, como em tantas outras vezes.

Tivera a intenção de deixá-la ficar com o colar. Tinha-o há muitos anos, fora o primeiro passo na sua corrida voluntária para o inferno. Tinha doze anos, era suficientemente crescido e alto para ser um problema para a sua mãe e para a tia Cecile, que gostavam de se considerar uma década mais jovens. Estavam em Monte Carlo, tinham estado a jogar sem parar e a sua mãe vira-se obrigada a vender o seu colar de diamantes. Ficara furiosa e o jovem Bastien, que nunca a vira tão zangada, decidira resolver o assunto. Não podia devolver-lhe o seu colar, mas podia substituí-lo por outro.

Foi bastante fácil. As pessoas não suspeitavam de uma criança, mesmo que fosse alto e desajeitado. E ele era tão ágil como bonito e carecia por completo de medo. A proprietária do colar era tão velha e gorda que as rugas do seu pescoço tapavam os diamantes. A sua bela mãe merecia-o mais.

Ela estava deitada na cama do hotel quando regressou. Ele esperou até o seu acompanhante dessa noite se ir embora. Ele era um importador de vinhos de meia-idade que Bastien esperava que não se transformasse no seu próximo marido. Depois, entrou em bicos de pés.

As cortinas estavam corridas para impedir que entrasse a luz cruel do sol e o quarto cheirava a tabaco, perfume e uísque. E a sexo. Ela adormecera e o seu cabelo loiro, tingido com grande esmero, caía-lhe sobre as costas estreitas.

- Maman - sussurrou ele.

Ela não se mexeu. Ele tentou outra vez, mas ela limitou-se a suspirar. Bastien estendeu o braço e tocou-lhe no ombro. Ela virou-se e olhou para ele, pestanejando antes de os seus olhos focarem.

- O que raios fazes aqui, ranhoso? Disse-te para não me incomodares quando trago amigos para casa.

- Trouxe-te uma coisa - a sua mãe perdera a capacidade de assustá-lo quando ele tinha cerca de nove anos, mas a fúria da sua voz áspera quase o fez virar-se e fugir.

- O quê? - sentou-se sem se incomodar em tapar-se com o lençol. Ele estava habituado ao seu corpo. O seu pai não tinha pudor e ele observava-a desapaixonadamente. Estava a ficar velha. - Porque me acordaste?

Ele estendeu a sua mão e o colar de diamantes brilhou na penumbra.

- É um presente. Trouxe-o para ti.

Ela sentou-se um pouco mais direita, pegou num dos cigarros e acendeu-o.

Dá-me isso!

Pôs-lhe o colar na mão e ela examinou-o por um instante e, depois, riu-se.

- De onde tiraste isto?

- Encontrei-o...

- De onde o tiraste? Ele engoliu em seco.

- Roubei-o.

Não sabia o que esperava. Raivas. Lágrimas. Mas não gargalhadas.

- Já embarcaste numa vida dedicada ao crime, Bastien? Talvez afinal de contas o teu pai fosse aquele carteirista e não o empresário americano - voltou a pôr-lhe o colar na mão, apagou o cigarro e voltou a deitar-se.

- Não o queres? Ficaste muito triste quando perdeste o teu - esse foi talvez o último indício de fraqueza que mostrou à frente dela.

A sua mãe virou-se e olhou para ele com os olhos semicerrados, ao redor dos quais tinha a maquiagem borrada.

- Esse colar pertence à Gertruda Schondheim e essa senhora tem amigos muito maus. Nunca me atreveria a usá-lo. É demasiado fácil de reconhecer. Além disso, Georges já me devolveu o meu colar e espero que tenha a amabilidade de me oferecer mais alguma bagatela. Agora vaite embora e deixa-me dormir.

A sua mão fechou-se sobre o colar de diamantes. Virou-se e dirigia-se para a porta quando a voz da sua mãe o deteve.

- Já que o roubaste, deixa-o aqui - reagiu. - Não sei se encontrarei alguém para avaliá-lo por aqui, mas mais cedo ou mais tarde encontrarei alguém que o corte e poderei vendê-lo pedra a pedra.

Ele olhou para o colar. Era muito bonito, muito antigo, muito elegante e escolhera-o de propósito para o belo pescoço da sua mãe.

Virou-se, disposto a desabafar a sua raiva, o seu amor e a sua tristeza, mas ela caíra novamente num torpor induzido pelas drogas, alheia ao seu filho.

Portanto, guardou o colar no bolso e saiu do quarto. Ela nunca voltou a mencioná-lo.

Ele nunca soube com certeza se lembrava sequer daquele presente inútil. Mas não importava. Não tinha intenção de lho dar, nem a ela nem à sua tia Cecile, que era um pouco mais carinhosa com ele.

Mas também não ia devolvê-lo. Transformou-se num símbolo, num ícone de poder e de independência. Enquanto tivesse o colar, teria coragem e já não dependeria dos caprichos da sua mãe.

Curiosamente, conservara-o durante todos aqueles anos. Houvera ocasiões em que podia e devia tê-lo vendido, mas ficara com ele.

Podia ter sido presa fácil para um ladrão, como fora em primeiro lugar. Mas o mundo sombrio dos delinqüentes estava perto do mundo do Comitê e ninguém se teria atrevido a fazer algo tão perigoso, por muito elevado que fosse o prêmio. Nos vinte anos decorridos desde que roubara o maldito colar, nunca o vira no pescoço de ninguém, até o dar a Chloe.

Percorreu a casa rápida e metodicamente, verificando portas e janelas. O sistema de alarme era de última geração, o que significava que reteria um agente decidido a entrar durante cerca de cinco minutos. Tivera tempo suficiente para melhorar as medidas de segurança exteriores e, no interior da casa, fez o que pôde rapidamente. Até ficarem fechados ali dentro.

Olhou para o seu relógio. Não havia garantia alguma de que a informação que Jensen lhe dera fosse precisa, embora a sua intuição infalível lhe dissesse que podia confiar nele. Mas os planos podiam mudar e os meios de transporte podiam sofrer atrasos, como ele sabia muito bem devido à derrota do hotel Denis. Se os Underwood tivessem chegado a tempo, Chloe teria ficado a salvo muito antes de começar o tiroteio.

Talvez ele estivesse morto, mas esse era um preço pequeno a pagar. A vida e a morte tinham deixado de incomodá-lo há muito tempo.

Voltou para a sala de estar desorganizada, onde Chloe jazia a dormir profundamente no sofá. Sobre uma poltrona havia uma manta de cores vivas. Apanhou-a e tapou-a com ela. Chloe tinha o cabelo mais comprido, mas nenhum profissional o arranjara. O seu olho treinado sabia que continuava a usar o mesmo corte que fizera em Paris, enquanto ele a observava de longe. E ele, infelizmente, continuava a gostar dela.

Claro, que já aceitara o fato de gostar de Chloe em excesso. Por isso aparecer novamente na sua vida era a última coisa que desejava fazer. Mas não tivera escolha.

Aproximou-se da janela e ficou a olhar para a tarde sombria. Na sua inspeção preliminar, tinha descoberto que Chloe se alojava na casa de convidados que havia lá fora, a um lado da casa principal. Acendera as luzes e a televisão, fechara as persianas e preparara uma pequena surpresa para eles. Não os deteria durante muito tempo, mas cada minuto extra podia marcar a diferença entre a vida e a morte.

Tinham aterrado no Canadá: cinco, incluindo quem dava as ordens. Jensen conseguira dar-lhe aquela informação antes de entrar, mas agora estava oficialmente incomunicável. A partir daquele momento, teria de se cuidar sozinho.

Havia imensos computadores por toda a casa, mas teve a sensatez de não tocar neles. Sem as devidas precauções, qualquer um podia localizá-lo. O seu tele móvel era mais seguro, embora não de todo, mas ao cabo de um momento pareceu-lhe que ainda demorariam no mínimo oito horas a chegar. O tipo de pessoas que enfrentava não se deixaria parar muito tempo pelas inesperadas forças da natureza.

Tempo suficiente para tirá-la dali? Aquela era sempre a pergunta. Possivelmente, estavam mais seguros naquela pequena fortaleza, sobretudo tendo em conta as modificações que introduzira no sistema de segurança. Na estrada era diferente e não podiam fugir eternamente. Os pais de Chloe voltariam mais cedo ou mais tarde e, mesmo que ele não se importasse nada com isso, Chloe importava-se. Assim, por ela, tinha de mantê-los com vida e isso significava enfrentar o problema ali mesmo.

A sala de estar era demasiado vulnerável e Chloe ia passar algumas horas a dormir. Talvez, com muita sorte, permanecesse inconsciente até tudo acabar e não descobrisse nada. Quando acordasse, ele já se teria ido embora e o perigo teria passado.

O único problema era que teria de levar o colar e por alguma razão, era importante para ele que ficasse com ela. Mas, se o deixasse, Chloe estaria sempre a perguntar-se quando apareceria novamente. Demasiado risco por um gesto sentimental.

O melhor lugar era um quarto do primeiro andar, na parte de trás da casa. As janelas do teto estavam bastante perto do chão, no caso de terem de saltar e, ao mesmo tempo, proporcionavam-lhe uma posição estratégica sobre o jardim frondoso que rodeava a casa, Era uma vantagem mínima, mas a única de que dispunham. Levantou Chloe do sofá, maravilhando-se com o seu peso escasso, e levou-a para o andar de cima. A luz do corredor iluminava-lhe o caminho. Depositou Chloe sobre a cama espaçosa e, depois, abriu um pouco a janela. Ela estava pálida e fria, apesar da roupa avultada que vestia e que nenhuma francesa usaria. Ele afastou o edredom e aconchegou-a.

Ficou ali parado, olhando para ela por um instante. E, depois, movido por um impulso, afastou-lhe o cabelo embaraçado da testa. Parecia à mesma: teimosa e bonita, quando não havia lugar na sua vida para nada bonito. Inclinou-se, de repente, e beijou-a suavemente enquanto ela dormia.

Depois não havia mais nada que pudesse fazer, exceto vigiar e esperar.

Até Monique ir matá-la.

 

Quando abriu os olhos estava desorientada e confusa. O quarto estava às escuras, só a luz brilhante da lua entrava pelas janelas sem cortinas e, por um instante, não soube onde estava. A pouco e pouco, foi recordando. Estava no quarto de hóspedes da parte de trás, no quarto que o seu irmão mais velho e a sua cunhada costumavam usar. Estava na cama, tapada, às escuras e sonhara que via Bastien mais uma vez.

Havia alguém sentado numa poltrona, junto da janela. Só conseguia ver a sua silhueta, mas depois compreendeu que não fora um sonho.

Não se sentou, não se mexeu. O seu tom de voz era muito suave quando falou.

- Porque vieste realmente? Não foi pelo colar, pois não?

Ele devia saber que estava acordada. Parecia sempre ter uma percepção instintiva em tudo o que se relacionava com ela. Bom, Chloe esperava que não fosse em tudo. Esperava que não percebesse o redemoinho de emoções contraditórias que provocava nela. Ele demorou um instante a responder e esse instante bastou para que fantasiasse com todo o tipo de coisas: que não conseguia viver sem ela, que tinha de vê-la uma última vez, que a amava...

Alguém quer matar-te - o seu tom de voz era sereno e desapaixonado.

Não era nem mais nem menos do que o que ela esperava e aquele instante louco de esperança não durara o suficiente para magoá-la. Não muito, pelo menos.

- Claro - replicou. Porque é que as coisas haviam de mudar? E vieste para me salvar? Pensava que já tinhas cumprido com o teu dever. Tiraste-me de França a salvo. O resto era comigo e, presumivelmente, com a polícia, a CIA ou o que quer que fosse - ele não disse nada, portanto Chloe sentou-se, exasperada. - E pode saber-se porque querem matar-me agora? Tu és um alvo muito mais provável. Eu não fiz nada a ninguém. Só estava no lugar errado no momento errado. Não sou nenhuma ameaça para os seus planos absurdos de dominar o mundo.

- Vês demasiada televisão - gozou ele. Tinha menos sotaque agora, para além de um aspecto diferente. Chloe perguntou-se se também teria outro nome.

- Quem quer matar-me e por quê? E porque te importas com isso?

"Por favor", pensou, "diz algo, algo que possa guardar. Algo que me faça saber que sou algo mais do que um estorvo".

Mas sabia o que ia dizer. Dissera-o demasiadas vezes. Que não se importava, que só se sentia responsável e ela não queria ouvi-lo.

Bastien levantou-se, com a sua silhueta recortada contra a janela iluminada pela lua e, por um momento, Chloe temeu que alguém lhe desse um tiro. Mas havia muito pouca luz: devia ter nevado enquanto estava inconsciente e, embora ela conseguisse ver a rua, enquanto as luzes estivessem apagadas ninguém veria o que se passava dentro da casa. Bastien aproximou-se dela, fora do alcance das janelas e, para seu espanto, sentou-se no chão, junto da cama.

- Monique sobreviveu - esclareceu, suavemente.

- Disseste-me que estava morta e que lhe tinham dado um tiro na cara.

- Isso foi o que vi. Mas aquilo era um caos. Talvez me tivesse enganado. A única coisa que sei é que sobreviveu e vem atrás de ti.

- Bom, consegues proteger-me de uma só mulher, não consegues? Já o fizeste antes - a lembrança do corpo de Maureen de barriga para baixo na neve, jorrando sangue, estava ainda gravada no seu cérebro e tremeu.

- Não vem sozinha.

Estava apoiado contra a mesa-de-cabeceira, com as mãos sobre os joelhos, aparentemente tranqüilo.

- Mas por quê? - perguntou Chloe. - Se queria matar alguém, porque não vai atrás de ti? Eu só era uma espectadora inocente.

- Continuas a ser. E quer matar-me assim que me encontrar. Mas eu sou um pouco mais difícil de encontrar. Portanto, por enquanto tem de se conformar contigo.

- Que sorte a minha - resmungou. - Sou sempre o segundo prato.

- Lamento muito, preferirias ter metade da Europa atrás de ti? Isso é fácil de arranjar.

- E como o farias?

- Simplesmente, ficando contigo.

Chloe virou-se para olhar para ele. Dissera aquelas palavras com indiferença e ela sabia que não tinha interesse nem intenção de ficar com ela mais tempo do que o necessário. Se fosse por ele, não teria voltado a vê-la. Será que não lhe dissera antes?

- Então, porque quer matar-me, para além do fato de lhe ter chamado ordinária? Porque se incomoda? Ela não se importa comigo.

- Não - disse, - não se importa.

- Então, porque o faz?

- Porque eu me preocupo contigo.

O seu rosto permanecia escondido à luz da lua, o seu tom de voz carecia de inflexão e Chloe quase pensou que ouvira mal.

- Não entendo.

- O que tens de entender? Monique conhece-me o suficiente para saber que o melhor modo de me magoar é chegando a ti. É uma lógica muito simples. Estará aqui dentro de algumas horas.

- Algumas horas? Então, porque não nos vamos embora?

- Porque está a nevar e as auto-estradas estão fechadas. Isso não parará Monique, mas talvez a atrase um pouco. De qualquer modo, aqui é onde estamos mais seguros, por enquanto. Melhorei o sistema de segurança e temos vantagem. Vão entrar em território desconhecido, enquanto eu tive tempo para inspecionar tudo detalhadamente. Até consegui preparar-lhes algumas surpresas de boas-vindas. Estava a pensar em fazer-te sair daqui, mas estás mais segura comigo.

- Já me disseste isso.

- Sim? - perguntou ele, cansado. - Assim que Monique desaparecer, não terás de voltar a ver-me. Considera-o uma recompensa por seguires as minhas ordens.

- Vais matá-la? Se tiveres de fazê-lo?

- Vou matá-la, quer tenha de fazê-lo, quer não - respondeu. - E depois ir-me-ei embora.

- Para onde?

Ele encolheu os ombros.

- Para o lugar onde pertenço, suponho. De volta ao Comitê. Não sei fazer outra coisa e estou treinado para isso. Seria uma pena perder uma educação e um talento semelhantes - o seu tom de voz era despreocupado.

- Seria uma pena perder-te - declarou ela. - Não achas que és algo mais, para além de umas habilidades altamente especializadas?

Ele virou-se para olhar para ela e a luz caiu sobre a sua cara, revelando o seu leve sorriso irônico.

- Não - replicou. - Volta a dormir. Pensava que te tinha dado o suficiente para te deixar inconsciente durante doze horas, pelo menos, mas sempre foste muito teimosa.

- Drogaste-me?

- Não foi a primeira vez. E posso fazer coisas muito piores se me aborreceres. Cala-te e deixa-me pensar. Vigiarei tudo e tu estarás a salvo. Acredita em mim, não virão sem avisar.

- Quando chegarão?

- Se não fosse pela tempestade, teriam chegado à meia-noite. Tal como estão as coisas, espero que cheguem entre as quatro e às cinco da manhã. Ainda estará suficientemente escuro para esconder os seus movimentos. Certamente, planearam um assalto simples: entrar rapidamente, cumprir a sua missão e fugir em menos de vinte minutos. Monique só contrataria os melhores.

- E consegues detê-los sozinho?

- Sim. Agora, volta a dormir.

- Que horas são?

- Já passa das onze da noite.

- E ainda demorarão cinco horas a chegar?

- Seis, se tivermos sorte, quatro se não tivermos.

- Então, porque não te deitas e tentas descansar um pouco? A cama é muito grande. Não te preocupes, nem sequer me tocarás por acidente esperava uma resposta cortante, mas Bastien levantou-se sem dizer uma palavra, deu a volta à cama e deitou-se, tirando os sapatos. Não se meteu sob o edredom, mas estava ali, ao alcance da sua mão.

Custa-te dormir desde que voltaste? - o seu tom de voz era só um sussurro no vento noturno, mais perto do que ela imaginava.

- Sim, e a ti?

A mim nunca me custa dormir. Agora dormirei exatamente uma hora e acordarei a sentir-me descansado e alerta. O que se passou em Paris não era novo para mim, não te esqueças.

Ela não era nada de novo para ele, pensou Chloe e era uma idiota por pensar nessas coisas quando podia estar morta numa questão de horas, mas a possibilidade iminente de morrer só fazia com que a vida lhe parecesse mais importante. Com que o amor lhe parecesse mais importante. E, na hora da verdade, a conversa dos psicólogos e as racionalizações não importavam nada.

- Não era a síndrome de Estocolmo - declarou, num tom de voz fraco, virando-lhe as costas na vasta extensão da cama. Era como se entre eles estivesse um oceano.

- Eu sei - concordou Bastien e o seu tom de voz pareceu-lhe estranhamente terno. - Já te disse, a síndrome de Estocolmo é um mito.

Ela virou-se para olhar para ele e ele estava muito mais perto do que pensava, tão perto que podia estender a mão e tocar nele.

- Então, porque continuo a sentir-me assim? - murmurou.

Ele não disse nada, mas pela primeira vez a sua cara pareceu refletir uma emoção à luz da lua.

- Vamos morrer dentro de algumas horas? - perguntou ela.

- É possível - respondeu. - Mas agora não - e, estendendo a mão, tocou-lhe na mão suavemente. Ela ficou a olhar para ele, paralisada enquanto se inclinava sobre ela e a beijava com ternura.

- O que é isto? - perguntou, tentando parecer cínica e fracassando. - A minha recompensa?

- Não - replicou ele. - É a minha - segurou na cara dela e olhou para ela. O silêncio era completo, mágico e Chloe sentiu que tudo se desvanecia, o sangue, a dor e o perigo. Por um instante, estiveram unicamente os dois, sozinhos na noite e não havia barreiras, nem defesas frias nos seus olhos escuros. Podia ver mais além da sua superfície serena e desapaixonada e sentir dentro dele algo profundo, duro e temível. Algo que sentia por ela.

Fechou os olhos e esticou os braços para lhe enlaçar o pescoço. Bastien deitou-se sobre ela, um peso quente que afastava os monstros e começou a beijá-la, seduzindo-a lentamente com a boca, os lábios, os dentes e a língua. Nunca a tinham beijado assim, com uma ousadia tão delicada, como se beijá-la fosse a única coisa que importava no mundo, um fim em si próprio e entregou-se àquele prazer abrindo a boca para ele, beijando-o com uma concentração que a pouco e pouco se transformava numa espécie de fogo triste. Depois, agarrou na sua camisa e tentou desabotoar-lhe os botões.

Ele agarrou-a pelas mãos e a parou.

- Chiu, Chloe. Desta vez não há pressa. Não há medo nem dor. Tens todo o tempo do mundo para desfrutar. O prazer, isso é a única coisa em que tens de pensar. Fecha os olhos e deixa-me dar-te isto.

O seu tom de voz, parcimonioso e hipnótico, acalmou o seu repentino arrebatamento de tensão e recostou-se novamente sobre as almofadas, olhando para ele fixamente.

Ele continuou a agarrar-lhe nas mãos, mais para tranqüilizá-la do que para segurá-la, enquanto lhe beijava o pescoço, deslizava a mão livre sob a camisola larga e tocava na sua pele, com os seus dedos frios sobre a pele quente de Chloe. Ela estava tão perdida nos seus beijos, no sabor da sua boca, que mal percebeu quando lhe tirou a camisola e a atirou ao chão e quando depois lhe tirou as calças. Deixou-lhe a roupa interior: o sutiã francês e as cuecas de renda que os seus pais lhe tinham dado no Natal com a sua melhor intenção. Nem sequer lhes dera atenção ao vestir aquelas roupas, mas quando a mão de Bastien deslizou pelo seu corpo até cobrir o seu peito, compreendeu que o fizera de propósito. Ele beijou o seu peito através da renda e ela tremeu ao mesmo tempo em que o desejo florescia através do seu corpo numa onda de ardor. Bastien soltara-lhe as mãos, que jaziam inertes ao seu lado sobre a cama larga, onde ele as deixara. Sentia-se estranha, cheia por uma lassidão sonolenta, capaz só de ficar ali deitada e deixar que a acariciasse e que a beijasse. Devia ser a ressaca da droga, pensou, atordoada, enquanto Bastien lhe beijava as ancas mesmo por cima da bainha de renda das cuecas. Ou isso ou ele conseguira hipnotizá-la com a sua boca, com os seus olhos e com o seu próprio desejo.

Sentia-se como se estivessem dentro de uma bola de cristal, sacudida com força, mas de repente, estava tudo quieto e silencioso, enquanto os flocos de neve do interior do seu reduto de vidro caíam em seu redor. Podia tentar lutar contra aquela rendição estranha, mas não queria. Bastien tinha razão. Em questão de horas podiam estar mortos. Podia conseguir o que queria, o que precisava, naquele momento, e não haveria conseqüências para enfrentar mais adiante. Nenhuma vida para viver. E se ia morrer, queria passar as últimas horas da sua vida na cama com um homem cujo nome nem sequer conhecia.

Desabotoou-lhe o sutiã, o mesmo que ela lutara para vestir há apenas uma hora, tirou-lho e atirou-o para o chão. Mexeu-se lentamente, acariciou o seu mamilo com a língua e ela sentiu que se excitava imediatamente. Nunca pensara que os seus seios fossem particularmente sensíveis, mas Bastien parecia conhecer a maneira exata de tocar neles, de beijá-los e de deslizar a língua sobre eles até a fazer tremer. Exatamente quando Chloe pensava que ia alcançar o orgasmo simplesmente pelo modo como lhe beijava os seios, a língua de Bastien deslizou ao redor da ponta de um mamilo e depois desceu pela sua barriga plana e as suas mãos introduziram-se sob as tiras de renda das cuecas e puxaram-nas para baixo. A sua boca seguiu-as. Deslizou sobre as suas ancas, sobre as suas pernas, pela parte interior dos seus joelhos e voltou a subir e, quando pousou entre as suas pernas, ela tremeu e, estendendo-lhe os braços, pôs as mãos entre o seu cabelo longo e denso, que caía sobre as suas ancas.

Bastien agarrou-a pelas ancas, abriu-lhe as coxas e a sua boca não se parecia com nada que ela tivesse sentido: uma invasão, um ferro de marcar, uma vindicação tão total e absoluta que não conseguiu fazer nada, exceto deixar que a acariciasse, que a beijasse, que a mordesse e que usasse a sua boca em formas que ela nunca imaginara até deslizar os dedos dentro dela. Chloe arqueou-se na cama, presa de um orgasmo repentino e tenso, diferente do que experimentara antes.

Foi rápido e breve e Chloe deixou-se cair novamente sobre a cama, ofegante, só para que Bastien começasse novamente, provocando nela um prazer que crescia em intensidade a pouco e pouco, suavemente, de modo que, quando deslizou outra vez os dedos no seu interior, ela gritou, e o orgasmo prolongou-se muito mais tempo. Tanto como ele quis que se prolongasse.

Chloe derrubou-se novamente na cama, tremula e com falta de ar e esticou os braços para tocar na sua cara.

- Mais não - murmurou. - Não consigo...

- Claro que consegues - sussurrou ele, entre as suas coxas. Daquela vez, a simples passagem da sua língua fê-la chegar ao orgasmo e o toque surpreendente dos seus dedos fê-la sentir ainda mais prazer. Achou gritar, apesar de estar habituada a fazer amor num silêncio discreto, mas não importou porque Bastien lhe tapou a boca com a mão, de modo que os seus gritos caíram na sua pele.

Aquela libertação final foi completa. Chloe não queria reservar nada, podia gritar, podia chorar e podia simplesmente deixar-se levar e permitir que acontecesse, que ele fizesse o que quisesse. Entregou-se de bom grado, pronta para se dissolver numa maré densa de potencial inimaginável.

Quando caiu sobre a cama transformada num boneco de pano sem razão nem ossos, Bastien afastou a mão da sua boca e deitou-se de costas junto dela. Respirava trabalhosamente enquanto Chloe ia emergindo devagar da onda inefável de energia do seu clímax. Jazia de costas, com os olhos fechados, ouvindo Bastien, sentindo-o deitado ao seu lado, exatamente onde devia estar, ao mesmo tempo em que o seu coração acelerado se apaziguava infinitesimalmente.

- Agora dorme, Chloe - sussurrou ele, num tom de voz suave e tranqüilizador.

O cansaço dissipou-se. Ela abriu os olhos e virou a cabeça para olhar para ele. Estava deitado de costas, aparentemente em calma, ainda vestido e a luz turva deslizava sobre o seu rosto.

Chloe passou um instante a ponderar as suas dúvidas.

Que ele não a desejava, que não tinha necessidade dela nem do seu corpo, que só lhe dera o que lhe prometera sem entregar nada de si próprio. E depois decidiu ignorar tudo aquilo. Se fossem morrer, não tencionava perder nem um instante em arrebatamentos absurdos de inseguranças.

Endireitou-se sobre o cotovelo e olhou para ele. Tremiam-lhe ligeiramente os músculos, mas preferiu ignorar a sua fraqueza inesperada.

- O que estás a fazer? Ele não abriu os olhos.

- Dormir - respondeu.

- Não - contradisse ela. - Não é verdade - e, estendendo o braço, começou a desabotoar a fileira de botões de madrepérola pretos da camisa.

Bastien agarrou-a pela mão e parou-a novamente, mas ela não estava disposta a deixar-se distrair.

- Me solta a mão! - exclamou. - Ainda não acabamos.

- Eu sim.

Ela soltou-se e deslizou a mão pela sua barriga para tocar no seu membro, rígido e duro, através das calças pretas.

- Não, nada disso - declarou, enquanto começava a desabotoar-lhe o cinto. - E eu também não acabei.

-Chloe...

- Cala-te! - ordenou, com aspereza e, segurando no seu membro, inclinou-se e começou a beijá-lo.

Era fresco, suave e duro como o gelo na sua boca e Chloe não fazia idéia de onde procedia o prazer que a embargava enquanto deixava que a sua boca explorasse o sexo dele. Só sabia que a sua força a fazia tremer.

Ele parou de discutir. Chloe levantou uma mão para puxar a camisa às cegas, mas ele começara a ajudá-la, desabotoara a camisa e atirara-a para um lado. Depois pousou as mãos sobre a cabeça dela e começou a falar,! a sussurrar palavras em francês enquanto ela acariciava lentamente o seu sexo e suava, arrepiada pela energia da resposta que extraía dele. De repente, ele afastou-a, recuou para a cabeceira grande e antiga e tirou o resto da roupa aos pontapés de modo a ficar tão nu como ela, tão disposto como ela.

- Se realmente me desejas, Chloe, tens de tomar a iniciativa - declarou.

Ela sentou-se para olhar para ele. E depois pôs as mãos sobre os seus ombros, sobre a sua pele forte e suave e sentou-se em cima dele, enquanto ele permanecia imóvel sobre a cama.

De repente, sentiu-se assustada.

- Nunca fiz isto... - confessou.

- Está bem - Bastien fê-la pôr-se sobre ele, mexendo-se de maneira a que pudesse sentir o toque do seu membro. - Agora, depende de ti.

Ela mexeu-se o suficiente para deixar que a penetrasse e uma expressão de prazer delicioso atravessou o rosto de Bastien. A rápida baforada de ar que inalou era tão erótica que Chloe desceu para que a preenchesse, tão profundamente, com tanta força que esteve prestes a alcançar o orgasmo outra vez.

Ele fechara os olhos, mas com os dedos longos agarrava-lhe as ancas e a mais leve pressão fazia-a mexer-se, levantar-se e descer depois, muito devagar. Os seus gemidos guturais pareciam vibrar dentro do corpo de Chloe. Ela apoiou a testa sobre o seu ombro enquanto se mexiam juntos num movimento de ascensão e de queda, profundo e forte, e ele falava, contava-lhe mentiras em que ela queria acreditar, sempre em francês, palavras de louvor, de amor e de sexo, de uma paixão escura e delirante. Depois, Bastien chegava ao orgasmo dentro dela e, sem esperar, ela perdeu seu último traço de autocontrole e seguiu-o. Começou a soluçar suavemente sobre a sua pele, tremendo devido à força da sua união, até se derrubar sobre ele, tentando respirar.

Não sabia o que esperava. Mas não esperava que ele se virasse, com ela ainda nos seus braços, estendida sob o seu corpo robusto. Então, compreendeu que, embora tivesse alcançado o orgasmo dentro dela, continuava excitado, estava cada vez mais excitado e pensou que não conseguiria suportá-lo enquanto lhe rodeava com as pernas e o fazia penetrá-la mais, já sem palavras.

Não precisava falar, ele estava a beijá-la novamente, a fazer amor com ela novamente e, simplesmente, deixou-se levar, com uma maré de redenção e de pecado. Depois, a escuridão fechou-se em torno dela e o tempo perdeu o seu significado.

E entre eles não ficou nada, exceto o amor. Nem puro, nem simples, mas amor ao fim e ao cabo.

 

Chloe jazia languidamente sobre o seu corpo, cansada, perdida num sono mais profundo, mais rendido do que o induzido pelo cocktail de drogas que Bastien lhe dera. Sentia-se praticamente sem ossos, tão relaxada que ele duvidava de que um tiroteio conseguisse acordá-la.

Mas não podia dar-se ao luxo de pôr essa teoria à prova. Chegara aos trinta e quatro anos graças, a saber, que existia sempre a possibilidade do fracasso e por se manter sempre vigilante. Se uma bala perdida conseguisse alcançá-lo, Chloe estaria sentenciada e não estava disposto a permitir que isso acontecesse. Chloe estava sexualmente apaixonada por ele. Ele aceitava-o com uma mistura estranha de fatalismo e gratidão e entregara-se a ela com absoluta dedicação e uma total falta de contenção. O resultado era que ela estava meio morta de prazer e ele ainda tremia de vez em quando.

Chloe seguiria em frente. Era uma jovem prática, uma sobrevivente nata e, quando ele desaparecesse, quer fosse para o submundo do Comitê, ou para a mais possibilidade tangível de uma sepultura, teria de virar a página.

Mas nunca mais, em toda a sua vida, lhe dariam tanto prazer na cama.

Aquela era a única demonstração de egoísmo feroz que guardara para si próprio. Esperava e rezava tê-la deixado incapacitada para qualquer outro homem. Podia ir para a cama com outros, casar-se-ia e teria filhos e orgasmos com outros. Mas ninguém voltaria a fazer com que o seu corpo ecoasse como fizera ele e, por muito cruel que fosse, aquilo enchia-o de satisfação.

Deixou que a sua mão deslizasse pelo braço de Chloe. A sua pele era suave, impecável e a brutalidade de Gilles Hakim ficara reduzida a um pesadelo longínquo. Se alguma vez voltasse para o Comitê, Thomason ficaria furioso por ele ter esbanjado aquela platina líquida numa civil. Que fosse para o inferno. Teria dado a Chloe tudo o que tivesse conseguido.

Incluindo a segurança e a liberdade que só a sua completa ausência podia proporcionar-lhe.

Monique era o último perigo. Ainda não sabia como conseguira sobreviver, mas era a pessoa mais instável com quem estivera enquanto trabalhava para o Comitê. Quer dizer, a mais instável dos que ainda estavam vivos. As pessoas como ela não duravam muito naquele negócio: as pessoas não podia dar-se ao luxo de deixar que os sentimentos interferissem numa missão, só matavam por trabalho, não odiavam, nem amavam ninguém.

Mas Monique estava tão consumida pelo ódio que conseguira sobreviver quando todos outros tinham morrido. E em vez de reconstruir as suas bases de poder, lançava-se à caça de Chloe Underwood simplesmente porque sabia que desse modo o magoaria. Que o obrigaria a sair do seu esconderijo e desse modo também poderia matá-lo.

Quando detivesse Monique, não haveria mais problemas, pelo menos para Chloe. Mesmo que tivesse de ir cortar o pescoço a Thomason para se certificar disso. Sentiu que o batimento do coração de Chloe mudava, sentiu o leve arrepio que percorreu a sua pele e percebeu que estava a pestanejar, embora ela tivesse a cara virada para o outro lado. Sentia-se estranhamente em sintonia com ela: só tinham ido para a cama juntos algumas vezes e, apesar de tudo, conhecia tão bem o seu corpo, as suas pulsações, o ritmo dos batimentos do seu coração e da sua respiração que os seus se compassavam com os dela. Chloe queria mais. E, que o Céu o ajudasse, ele também.

- Virão em breve informou, com suavidade. - Temos de nos vestir.

Ela virou a cabeça para olhar para ele e Bastien viu o rasto seco das lágrimas sobre a sua cara, o cabelo despenteado e a ausência total de maquiagem. Parecia mais jovem do que nunca, inocente num sentido que nada tinha a ver com o frenesim que acabavam de partilhar. Inocente de coração, no lugar onde ele não tinha nada, exceto uma casca vazia.

- É necessário? - o seu tom de voz era baixo, rouco e sexy. Bastien não podia acreditar que a desejasse outra vez, tão cedo. Era uma sorte que fosse morrer ou desaparecer ao cabo de algumas horas. Agora que baixara a guarda, cada vez lhe era mais difícil voltar a levantar as suas defesas. E as suas vidas dependiam do seu talento, que nada tinha a ver com a vulnerabilidade.

- É necessário - respondeu, afastando-lhe o cabelo da cara. Ela agarrou-o pela mão e levou-a à boca, aos lábios. Tinha marcas de dentadas no pulso, onde ela o mordera para sufocar os seus gritos e havia sangue. Aquilo produzia-lhe uma satisfação profunda e estranha. - Se queremos ter alguma possibilidade de sobreviver, temos de nos preparar.

- Alguma possibilidade? Que probabilidades há? Ele encolheu os ombros.

- Já aconteceram coisas mais estranhas.

- Podias mentir-me.

- Por quê?

Ela afastou-se dele e sentou-se na cama. Estava muito bonita à luz da lua, já não estava assustada. Bastien também a marcara: dentadas de amor ao lado do peito, os arranhões da sua barba nas coxas. Tudo sararia. Ambos sarariam.

- Se vamos morrer, podes dizer-me mentiras piedosas - explicou. - No final, não importará, e morrerei feliz.

- Não tenho intenção de permitir que nos matem. E, então, onde é que as mentiras nos conduziriam?

- Se conseguires fazer com que sobrevivamos, prometo-te esquecê-la. Diz-me apenas que gostas de mim. Se vamos morrer, o que importa?

- Precisamente porque podemos morrer é que é importante a verdade - respondeu, sem fazer menção de tocar nela. - E dizer-te que gosto de ti é uma perda de tempo. Não teria atravessado o oceano, saído do meu esconderijo e seguido o teu rasto se não gostasse de ti.

O sorriso de Chloe era indeciso, tão doce que, se Bastien tivesse tido coração, o teria partido.

- Então, inventa uma mentira melhor. Diz-me que me amas.

- Não preciso mentir Chloe - declarou ele. Amo-te.

Ela demorou um instante a assimilar as suas palavras. E, depois, naturalmente, não acreditou. Bastien viu-o na expressão hesitante dos seus belos olhos castanhos.

- Não devia ter perguntado - replicou com tristeza e começou a afastar-se. - Esquece-o... Bastien puxou-a para si, desequilibrando-a, e Chloe caiu contra ele. Ele segurou na sua cara e deixou-a muito quieta, enquanto cravava os olhos nela. Uns olhos sombrios, francos, dolorosamente honestos.

- Amo-te, Chloe - confessou. - E isso é o mais perigoso que posso fazer.

- Eu não quero matar-te - murmurou ela.

- Talvez hoje não - respondeu, com um sorriso tênue. - Pelo menos, é uma mudança na nossa relação habitual - deu-lhe um beijo ligeiro e depois afastou-a.

Não lhe deu ocasião de dizer mais nada, de fazer mais perguntas. Não lamentava ter confessado. Se morresse, lamentaria não lhe ter dito. Chloe não acreditava. Ele não sabia se sentia aliviado ou incomodado. Ela provavelmente pensava que lhe mentia por pena, que por isso dizia que a amava. Apesar dos dias que tinham passado juntos, das coisas que o vira fazer, continuava a pensar que era capaz de contar mentiras piedosas, quando a piedade não fazia parte do seu ser e só mentia para conseguir o que queria.

Vestiram-se rapidamente, às escuras. Bastien não sabia se o céu começava a clarear. Amanhecia pouco depois das seis e, depois, o sol espalhava-se rapidamente sobre as colinas. Perguntava-se se teria parado de nevar. Monique quereria entrar e sair antes de amanhecer completamente e Bastien sentia que estavam perto. Não tinha nenhum indício, mas intuía-o.

Deixara a luz do hall acesa. A luz que alguém costumava deixar acesa quando se ausentava de casa para afugentar os ladrões. A luz apagou-se e, um instante depois, ouviu uma explosão surda com uma espécie de complacência fria.

- Estão aqui - informou. - E devia haver menos um.

- O que queres dizer? - Bastien não conseguia vê-la na penumbra, mas reconheceu a fibra tênue do medo no seu tom de voz, um medo que ela tentava esconder.

- Sabotei o sistema de alarme. Sabia que tentariam cortar a corrente, mas quem a cortou não voltará a fazer mais nada. De modo que restam Monique e outros quatro, no máximo.

Chloe não lhe perguntou como sabia. Simplesmente, aceitou-o. Se continuasse a mostrar-se assim tão dócil, talvez tivessem alguma possibilidade de sobreviver.

Vestira outra vez aquela roupa larga e, apesar de tudo, Bastien conseguia ver as linhas nítidas e firmes do seu corpo sob o tecido suave, como se conseguisse ver através do tecido. Nenhuma mulher devia estar tão sexy em fato de treino. Nenhuma mulher devia estar tão sexy quando alguém tentava intrepidamente matá-la.

Ouviu-se outra explosão abafada, cujo brilho projetou uma sombra rosada sobre o quarto. Bastien conseguiu ver-lhe a cara outra vez, as dúvidas e a angústia que quisera apagar a força de beijos.

- O que era?

- A casa de convidados. Estão bem informados. Sabiam que devias estar lá, por isso foram lá primeiro. Espero que agora tenha perdido mais um, mas não posso contar com isso.

- A casa de convidados está a arder? - perguntou, dirigindo-se para a janela. - Tudo o que tenho está lá...

Bastien agarrou-a pela cintura e levou-a para as sombras. Monique e os seus sequazes estariam ao redor da casa, tentando encontrar algum indício de vida nas janelas. Não demorariam muito a localizá-los.

- As coisas podem substituir-se - declarou. - Tenho de ir.

Ela olhou para ele, atônita.

- Tens de ir? Vais deixar-me sozinha?

- Só conseguirias atrasar-me. Terás de te esconder enquanto eu vou à caça. Trabalho melhor se não tiver de me preocupar contigo ao mesmo tempo. Se conseguir, voltarei para vir buscar-te.

- E se não?

- Então, meu amor, au revoir. Irei direto para o inferno e não espero ver-te lá - replicou, num tom de voz despreocupado.

- Então, não vais deixar-me aqui.

Bastien devia ter adivinhado que quereria acompanhá-lo. Estava completamente vestida, embora não estivesse calçada, e tinha uma expressão teimosa na cara. Bastien sabia que tinha uma oportunidade e só uma de lhe salvar a vida.

Na penumbra do quarto foi fácil apanhar as coisas que guardara lá antes. Conhecia melhor Chloe que ela a si própria, sabia que se oporia e ele era suficientemente desumano para fazer o que fosse necessário. Aproximou-se dela na escuridão e, pela primeira vez, ela não deu um salto, não recuou. Beijá-lo-ia se ele lhe pedisse, voltaria a tirar a roupa e a estender-se na cama mais uma vez e Bastien só desejava que a vida fosse assim tão simples. Mas nunca era.

- Lamento muito, querida - desculpou-se, agarrando-lhe na cara com uma mão. Tapou-lhe a boca com fita-cola antes de ela perceber o que ele queria, agarrou as suas mãos quando as levantou para apresentar batalha e atou-as com a corda. Ela lutava, mas Bastien era muito mais alto e mais forte. Não precisava de lhe ver os olhos para saber que estava furiosa. Talvez isso a ajudasse a esquecer-se dele. Sobretudo, quando enfrentasse a pior parte de tudo aquilo.

Endireitou-a e ela tentou bater-lhe com as mãos atadas, mas perdeu o equilíbrio e Bastien agarrou-a antes de ela cair. Devia tê-la deixado inconsciente de um golpe, mas não tinha coragem. Embora, de fato, tivesse sido um sinal de bondade.

- Não resistas, Chloe - sussurrou-lhe ao ouvido. Não tenho escolha. Quando acabar com eles, soltar-te-ei. Ou isso ou alguém te encontrará dentro de pouco tempo. Desde que não seja Monique...

Ela não estava de humor para ouvi-lo e Bastien não esperava outra coisa. Pegou nela ao colo, pô-la sobre o ombro como um saco de batatas e saiu do quarto, tal como uma sombra ao amanhecer.

Ela parou de lutar até perceber para onde a levava. Desceram dois lances de escadas e entraram nos limites do porão. Bastien sentiu que começava a arrepiar-se quando a claustrofobia voltou a apoderar-se dela, mas não fez caso. Havia sempre um preço a pagar e, quando abriu o pequeno armário que forçara naquela tarde, Chloe começou a debater-se com tanto ímpeto que não conseguiu continuar a segurá-la e ela caiu sobre o chão de cimento com um grito amortecido.

Bastien não podia perder tempo em cortesias. Empurrou-a para o pequeno armário. Não havia espaço para ele, só para ela, mas conseguiu tocar-lhe na cara, pôr-lhe a mão sobre a testa fria e úmida, passar o polegar pela sua têmpora numa tentativa de tranqüilizá-la.

- Foi o melhor que consegui encontrar, Chloe sussurrou. - Fecha os olhos e não penses na escuridão. Pensa no pontapé que vais dar no meu rabo quando saíres daqui.

Ela estava a tremer e Bastien duvidava de que tivesse ouvido as suas palavras. Via-a o suficiente para saber que tinha os olhos dilatados pelo pânico e não havia nada que pudesse fazer.

Inclinou-se e pôs os lábios sobre a fita-cola que lhe tapava a boca, um beijo estranho e surdo a que não conseguiu resistir. E, por um instante, os seus tremores cessaram e ela inclinou-se para ele para beijá-lo.

- Lamento - desculpou-se Bastien e, recuando, fechou a porta maciça, fechando-a ali dentro, naquele espaço semelhante a um ataúde, sem luz, em companhia dos seus medos.

Esperava ouvi-la chutar a porta. Mas o silêncio era profundo e frio como a morte. Beijou a madeira, numa despedida muda, e saiu para o ar da alvorada, pronto para matar mais uma vez.

Chloe não conseguia respirar, não conseguia pensar. Não se atrevia a mexer-se, tinha pânico de fazer algo que pusesse Bastien em perigo. Permanecia aninhada, atada e amordaçada na escuridão e tentava não gritar. Sabia que os seus gritos não se ouviriam.

Mexeu-se e, através do seu pânico, ouviu algo bater no chão, algo metálico que chocava contra o cimento frio. Se tivesse as mãos atadas atrás das costas não teria conseguido encontrá-lo, mas estavam atadas à frente, conseguia apalpar em seu redor, concentrar-se naquilo e esquecer-se da escuridão. O barulho parecera-lhe metálico, como uma bala, mas sabia que isso era absurdo. Tinha de ser outra coisa.

As suas mãos atadas fecharam-se sobre o fino cilindro metálico e, por um instante, não entendeu o que era. Sentiu histeria. Será que Bastien era suficientemente francês e estava suficientemente louco para lhe ter deixado um batom? E, então, entendeu.

Uma luz brilhante, procedente de uma lanterna minúscula, invadiu o espaço reduzido do armário. Sentiu que o pânico começava a remeter a pouco e pouco e recostou-se contra a parede dura, tentando controlar a sua respiração. Demorou um momento a perceber que conseguia tirar também a fita-cola da boca e assim o fez, sem dar sequer um salto de dor ao puxá-la. Bastien tinha de saber que mais cedo ou mais tarde ela perceberia. Mas então já estaria suficientemente calma para aceitar que qualquer som que fizesse podia pô-los em perigo.

Puxou os pulsos, mas ali acabavam as concessões de Bastien. A corda resistiu firmemente e também não conseguiu fazer nada com os tornozelos. Estava presa ali, mas não na escuridão. Conseguiria suportar tudo se tivesse um raio de luz. E, se passasse tempo suficiente e ele não voltasse, se os seus pais voltassem, poderia gritar e alguém iria salvá-la.

A mera idéia parecia extravagante, mas Bastien preparara-se para todas as contingências. Agora, a única coisa que ela tinha de fazer era conservar a calma e esperar. Esperar que fosse procurá-la.

Porque o faria. Mesmo que o inferno se interpusesse no caminho, não fora o que tinham prometido? Tinha de se convencer disso ou nem sequer a luz da lanterna minúscula poderia impedir que começasse a chorar.

Devia passar das quatro da manhã. Ignorava quanto tempo tinham passado na cama, perdera a noção do tempo. Bastien dissera-lhe que beijaria cada parte do seu corpo. E cumprira a sua promessa. Fizera amor com ela com uma ternura deliciosa, com uma ansiedade feroz, com uma intensidade comovedora que até naquele momento a fazia tremer de espanto. E de desejo.

A luz era forte e brilhante, mas a pilha não duraria eternamente. Ignorava se se filtrava alguma luz pelas frestas da porta, mas não queria arriscar-se. Porque, se a encontrassem, teriam uma arma para usar contra Bastien e ela não podia permiti-lo.

Deslizou o pequeno cilindro pela sua mão e carregou o botão da ponta. A escuridão, densa e cansativa, voltou a fechar-se sobre ela como um manto asfixiante. Respirou fundo. Fechou os olhos e resistiu à escuridão. Ficou ali aninhada, em silêncio, sozinha, e esperou.

Quase pensou que conseguiria dormir, mesmo que lhe parecesse impossível. De repente, assustou-se ao ouvir passos na velha escada e sentiu um arrebatamento de esperança louca.

Ia dizer o seu nome e, depois, mordeu os lábios sem emitir mais do que um suspiro suave. Não era Bastien. Quem quer que estivesse a mexer-se pelo porão fazia-o em silêncio, pois ela mal ouvia o barulho leve dos seus passos.

Mas, se fosse Bastien, não teria ouvido nada.

Ou os seus olhos se tinham habituado a ela ou a escuridão se aliviara um pouco. Conseguia ver as suas mãos à frente dela, atadas com corda e fita-cola isolante, mas não via a lanterna. Mexeu-se com muito cuidado para não fazer nenhum barulho e, então, sentiu que algo rebolava sobre a sua barriga e, um momento depois, a lanterna bateu no cimento com estrondo.

Susteve a respiração e rezou, aterrorizada. Por favor, meu Deus, que não tivessem ouvido. Que fosse Bastien, que fosse qualquer um menos aquela louca que queria matá-la por razões tão escuras que ela mal teria acreditado se o cheiro a sangue do hotel Denis não a tivesse acompanhado durante todos esses meses.

Não recebeu aviso algum. A porta do armário abriu-se, de repente, e alguém apareceu ali. Via a silhueta à luz tênue que entrava pela porta do porão. Não era ninguém que ela conhecesse: era uma pessoa alta, extremamente magra e careca. Chloe não se mexeu. Talvez Bastien tivesse conseguido reforços.

- Portanto estás aqui, chérie - a voz de Monique saiu daquela figura cadavérica. Parecia espantosamente alegre. - Sabia que te encontraria mais cedo ou mais tarde. Anda, vamos brincar - agarrou-a pelos pulsos com força e puxou-a de rastos, deixando-a cair aos seus pés.

Ajoelhou-se ao seu lado e Chloe conseguiu vê-la mais claramente. Não estava careca. Tinha a cabeça rapada. E Bastien tinha razão, tinham-lhe dado um tiro na cara. A parte esquerda do seu queixo desaparecera e, depois de quatro meses, o processo de cicatrização só acabara de começar. Mas nem quatro anos bastariam.

- Bonito, eh? - gozou.

- Eu não fiz isso - defendeu-se Chloe, num tom de voz tremulo.

- Claro que não. Não sei quem foi, se o grego, ou a gente de Bastien, ou talvez a minha. Mas não importa. Só estou a resolver alguns assuntos pendentes. E tu és o último. Não há mais ninguém.

Uma onda de angústia, fria e repugnante, invadiu a garganta de Chloe.

- O que queres dizer?

- O que achas? Bastien está morto.

Vinte e cinco

- Não! - gritou Chloe e repugnou-a ouvir o medo no seu próprio tom de voz.

- Sim. Será que pensavas que era uma espécie de super herói? O seu sangue é vermelho, como o de todos os outros. Reconheço que é mais difícil matá-lo do que à maioria dos homens, mas afinal de contas é mortal. Ou era.

- Não acredito.

- Claro que acreditas. Noto-o no teu tom de voz. Acho que sabias desde o começo que era um caso perdido. Mas não esperavas encontrá-lo aqui. Porque não tentou fugir contigo? Não teria chegado muito longe, mas pelo menos teria sido melhor do que esperar aqui, como um veado esquecido. Claro que talvez tenha pensado que preferia morrer do que carregar contigo durante o resto dos seus dias.

Chloe conseguiu reunir as suas últimas forças.

- Não teria vindo para me salvar se não me amasse. Monique encolheu os ombros. A luz do sol era cada vez mais forte, devia ser pouco mais das seis da manhã. Dormia tão erraticamente que se familiarizara com o aspecto que o céu apresentava ao longo das noites intermináveis.

- O nosso amigo mútuo queria morrer, eu sei há muito tempo. Eu só fui o instrumento da sua libertação.

Não disse que já o libertara. Sem dúvida, teria mudado de tempo verbal se Bastien estivesse, com efeito, morto.

Claro que o inglês não era a sua língua materna e Chloe não podia basear as suas esperanças nos matizes gramaticais de uma psicopata.

- Então, se já conseguiste o que querias, o que fazes aqui? Bastien está morto... o que mais queres?

- Chérie - gozou Monique, com ar brincalhão, será que não estás a ouvir-me? Não vim para matar Bastien, embora tenha gostado de fazê-lo. Além disso, os meus homens encontraram-no primeiro enquanto tentava fugir. Ter-te-ia abandonado aos meus cuidados ternos, mas Dmitri foi mais rápido do que ele. Se não o tivéssemos matado aqui, tê-lo-ia encontrado na Europa mais cedo ou mais tarde. Não, vim por ti.

- Por quê?

Monique encolheu os ombros.

- Porque me incomodas. Porque Bastien parecia disposto a arriscar tudo, incluindo eu, por uma idéia de honra ridícula.

- Honra? Achas que foi por isso que me salvou?

- Claro. Porque havia de ser?

- Porque me ama.

Monique bateu-lhe com tanta força que caiu para trás sobre o chão áspero do porão. Empunhava uma arma e batera-lhe com ela na boca. Sentiu o sabor do seu próprio sangue, mas já não se importava. Se Bastien morrera, já nada importava, mas pelo menos queria que os seus últimos minutos fossem dolorosos para Monique. Estava disposta a pagar o preço.

- Ciumenta? - perguntou, com doçura. – Lamento que me preferisse, mas acho que estava farto de mulheres mais velhas.

Monique deu-lhe um pontapé nas costelas, tão forte que a fez sentir falta de ar. A dor era terrível e Chloe pensou que lhe partira as costelas. Mas, ao cabo de um instante, já não importaria.

- Ou talvez só estivesse cansado de ti - conseguiu dizer.

Monique baixou-se ao seu lado, agarrou-a pela camisola e endireitou-a de um puxão. Doía-lhe muito as costas, mas conseguiu manter o olhar furioso de Monique com olhos pétreos, indiferentes, até quando sentiu a pistola na testa.

- Queres ver o que se sente quando parte da tua cara desaparece, pequena? Sei exactamente o que fazer, onde acertar para não morreres logo. Ficarás aqui, a retorcer-te de dor, a rezar para que tudo acabe...

- Tanto me faz - declarou Chloe e desejou conseguir fingir um bocejo convincente. - Se já mataste Bastien, o que importa o resto?

- Meu Deus, estás apaixonada por ele! - exclamou Monique, enojada. - É claro que sim. Que patético! Admito que seja muito bom na cama, um dos melhores que conheci, mesmo que tivesse uma certa aversão a alguns jogos de que eu gosto. Mas não é precisamente um herói romântico. Morreu a suplicar pela sua vida. Tal como tu morrerás.

- Não contes com isso - não viu o segundo golpe chegar. Um brilho de dor que a cegou, de um branco puro e perguntou-se se Monique lhe dera um tiro. E, então, seguiu-se a escuridão e não restou nada.

A tempestade primaveril cessara por fim, deixando a paisagem coberta por um manto branco. Bastien tinha esperança de que a explosão da casa de convidados tivesse acabado com mais de um, mas na neve derretida só havia um corpo carbonizado. Talvez houvesse outro lá dentro, mas não podia contar com isso. Já dera uma volta para verificar o sistema de alarme e o segundo homem estava lá, eletrocutado.

Partiu o pescoço ao terceiro atrás da garagem, mas não antes de ele o apunhalar. A faca não acertara por muito pouco em algum órgão vital. Afastou-se rapidamente antes de o seu agressor conseguir virar-se e levantá-lo, rasgando desse modo os órgãos vitais. Reconheceu o seu estilo mesmo antes de lhe dar a volta ao corpo. Parecia que Fernand se cansara de gerir aquele pequeno bar de Marais e decidira fazer alguns trabalhinhos por fora. Era bom, mas não tanto como ele.

Mesmo assim, conseguira feri-lo. Estava, além disso, bem informado. A faca entrara muito perto da recente ferida de bala. Estava claro que esperava que o seu objetivo fosse mais vulnerável, mas a malha da cicatriz crescera o suficiente para amortecer o golpe.

Bastien recuou. Continuava a sangrar abundantemente e o sangue ensopava-lhe as calças, mas guardou a faca de Fernand no cinto. Ia bem armado, mas naquele momento ainda não sabia o que enfrentava. Jensen dissera-lhe que Monique entrara no país com cinco homens. Teria recrutado mais alguém pelo caminho ou só restavam dois vivos?

Era melhor assumir que haveria mais.

Deu a volta à garagem enquanto o céu ia aclarando e retalhos de um cor-de-laranja iridescente se espalhavam por ele. Depois, parou por um instante. A neve começara a derreter-se quando a temperatura começara a subir. No meio da morte e do perigo, era tudo muito bonito e ouviu um pássaro cantar. Que tipo de pássaros matutinos havia na América do Norte? Era uma idéia infeliz e descartou-a rapidamente. Nunca saberia. Mas aquilo proporcionava-lhe uma certa paz, saber que Chloe acordaria entre aquelas cores radiantes, ouvindo o canto de pássaros desconhecidos.

Dirigiu-se para a casa. Monique teria posto os seus homens em redor do jardim, mas ela teria entrado na casa. Sempre tivera um instinto forte. Bastien só podia esperar que não a levasse diretamente a Chloe. Seria difícil encontrar o armário às escuras e se ficasse lá, calada e sem se mexer, talvez tivesse uma oportunidade.

Deixar-lhe a lanterna fora uma estupidez, mas não conseguia suportar a idéia de a fechar na escuridão. Só esperava que aquele pequeno gesto não a matasse.

Ouviu-as então, ao longe. Não faziam esforço algum para não fazer barulho e era difícil deslocar-se pela neve. Esperavam, presumivelmente, fazê-lo sair. Desvaneceu-se nas sombras e esperou. Monique saiu do porão acompanhada por alguns homens. Um deles tinha ao ombro o corpo inerte de Chloe.

Estava inconsciente, mas não morta. Se tivesse morrido, tê-la-iam deixado lá. Bastien viu o sangue na sua cara pálida e no seu cabelo e teve de fazer um esforço terrível para não se mexer, para não fazer nenhum barulho. Não podia arriscar-se a disparar. Se falhasse, Chloe morreria. Tinha de esperar.

Monique abriu a porta e Bastien conseguiu vê-la pela primeira vez com clareza. À luz do amanhecer não distinguiu grande coisa, mas o suficiente para saber que aquela figura esquelética era a sua antiga amante. A bala destruíra-lhe a cara, não era de estranhar que tivesse vontade de matar alguém. A sua lógica ao escolher Chloe era retorcida, mas certeira. Se Chloe não tivesse estado lá, tudo se teria resolvido no château, não aquela noite sangrenta em Paris. Monique deixara-se levar pela sua raiva por Chloe, baixara as defesas e quase morrera por isso.

Morreria por isso assim que estivesse suficientemente perto. Enquanto isso, não podia fazer nada, exceto segui-las e observá-las até chegar o momento oportuno. Pusera Chloe em perigo demasiadas vezes. Aquela seria a última.

A manhã primaveril era limpa e aprazível, a neve derretia-se sob os seus pés e as folhas novas das árvores sussurravam agitadas por uma leve brisa. Só demorou um instante a compreender para onde a levavam: devia ter imaginado que o serviço de informação de Monique era infalível.

A velha mina fechada.

As possibilidades eram muito simples. Ou estava morta e na sua inspeção preliminar tinham encontrado o lugar perfeito para se livrarem do corpo ou conheciam os seus medos e levavam-na para lá para torturá-la.

Conhecendo Monique, aquilo era o mais provável. Não se importava com quem encontrasse o corpo de Chloe, pois nessa altura ela já se teria ido embora. E também não estava disposta a deixar Chloe numa mina abandonada depois de simplesmente lhe dar um tiro. Bastien duvidava de que estivesse disposta a deixá-la inteira. A sua raiva enlouquecida exigia um castigo maior, quer fosse antes ou depois da morte.

A pistola era suave e fria e as suas mãos estavam geladas, como se o sangue lhe tivesse gelado nas veias. O sol caía sobre a neve, mas o frio do seu coração permanecia intacto. "Não penses nela", disse para si. "Concentra-te no objetivo e não deixes que os sentimentos interfiram". O único modo de salvar Chloe era não se angustiar. Tinha de cobrir o seu coração de gelo, de modo a ser apenas uma máquina.

Mas Chloe derretera todo o gelo. A sua armadura desvanecera-se e, pela primeira vez na sua vida, tinha medo de perder.

Mexia-se entre as árvores em silêncio. Até as folhas caídas emudeciam sob os seus pés. Assim que soube para onde se dirigiam, foi fácil dar a volta e encontrar uma boa posição antes de chegarem. A entrada da velha mina ficava depois da primeira colina, coberta de lixo, fechada com tábuas, correntes e cadeados.

Mas já não estava. Ao fazer a sua primeira inspeção do lugar, enquanto os pais de Chloe estavam ainda lá, a mina parecera-lhe impenetrável. Agora era um buraco aberto e escuro. Monique fizera averiguações: sabia que aquilo era o que mais podia aterrorizar Chloe.

Não se esforçaram para abafar o barulho enquanto se aproximavam. Os dois homens falavam em alguma língua européia, possivelmente sérvio. Bastien só entendia algumas palavras soltas e desejou com toda a sua alma que Chloe estivesse ali, com ele, acordada e alerta para poder traduzir o que diziam. Ela parecia entender todas as línguas existentes.

À luz do dia, continuava a ser difícil reconhecer Monique. Rapara a cabeça, embora Bastien não soubesse se fora por escolha ou porque passara pela sala de cirurgia. Tinha um lado da cara destruído: tinham tido de lhe extrair a maçã do rosto ao tirar-lhe a bala e não houvera tempo para começar a reconstrução. Parecia um fantasma horrível: perigosamente magra e enlouquecida.

Um dos sérvios atirou Chloe para o chão e Bastien pensou que o seu gemido abafado parecia uma música celestial. Estava viva, começava a voltar a si e a única coisa que ele tinha de fazer era interpor-se entre Monique e ela. Os sérvios não eram inconvenientes. Podia liquidá-los em questão de segundos. Tinha muito boa pontaria e nenhum dos dois tinha tirado as armas. O segundo estaria morto antes de o primeiro cair ao chão.

Chloe ficou deitada de costas, gemendo, e lutou para se endireitar. Bastien não fez nenhum barulho quando Monique se aproximou e deu um pontapé a Chloe com a sua bota de couro pesada. Bastou o grito de Chloe.

- Tu decides, petite declarou Monique. - Posso dar-te um tiro agora e tirar-te a tampa dos miolos. Isso seria o mais amável e suponho que saberás que nunca sou amável. Vlad e Dmitri merecem alguma recompensa por terem vindo até aqui e ambos expressaram um certo interesse em... experimentar os teus encantos antes de morreres. Vocês as americanas são tão sensíveis à violação... Talvez isso seja o mais divertido. Eu podia ver e não saberias quando é que eu dispararia. Os rapazes também não e isso seria mais excitante.

- Ordinária doente - resmungou Chloe. Tinha a boca ensangüentada. Alguém, provavelmente Monique, rasgara-lhe o lábio de um golpe.

- Ou podes reunir-te com o teu herói. Talvez ainda não esteja morto. Tens uma oportunidade, uma oportunidade muito pequena, de sobreviver, se estiver disposta a arriscar-te.

- Achas que vou confiar em ti? - daquela vez, quando tentou sentar-se, Monique não a impediu, limitou-se a esboçar a paródia horrenda de um sorriso.

- Claro que não. Trata-se simplesmente de um jogo. Tens três opções. A primeira opção é uma morte rápida e compassiva. A segunda é a violação e uma morte lenta. E a terceira é a possibilidade de te reunires com Bastien na sua sepultura aquática.

A sua sepultura aquática? A que tipo de jogo mental é que Monique estava a jogar? Algo não estava bem ali. Porque é que Monique se concentrava nela quando Bastien era o seu principal objetivo? Porque lhe dissera que já o matara?

- Dmitri teve a bondade de se ocupar do nosso amigo mútuo, não é verdade, Dmitri? Acho que devia ser o primeiro a estar contigo. Afinal de contas, ele merece.

Interessante, pensou Bastien. Dmitri mentira a Monique, que pensava que ele estava morto. Ele conhecia-a suficientemente bem para saber que não estava a inventar. Assim, será que Dmitri lhe mentira para ajudá-lo ou para salvar a sua pele?

Aquele tipo não lhe era familiar e ele conhecia quase todos os agentes. A questão era se podia confiar na sua ajuda ou se devia simplesmente dar cabo dele e do seu companheiro na esperança de chegar a Monique antes de ela fazer mais alguma coisa a Chloe?

- Acho que prefiro a sepultura aquática - declarou Chloe, num tom de voz rouco. - Assim não te darei a satisfação de me matares com as tuas próprias mãos.

- Continuo a considerá-lo satisfatório. Bastien está no fundo do poço da mina. Lá em baixo há água, portanto talvez te afogues antes de morreres de fome. Ou talvez batas com a cabeça ao cair. Isso, com sorte. Sei que não gostas de espaços escuros e fechados, não é verdade? Parece-me que preferirias morrer a céu aberto, deitada de costas.

Meu Deus, Bastien sabia o que Chloe ia fazer. Ia mergulhar no poço da mina, faria tudo para fugir de Monique. Pensava que ele estava lá em baixo e ia segui-lo, mesmo que morresse a fazê-lo.

Não tinha escolha, pensou Chloe. Bastien estava morto no fundo de um velho poço, como um monte de lixo. Mal sabia onde aquela entrada levava, só sabia que era muito alta e perigosa. Mas isso carecia de importância. Só acreditaria que Bastien morrera quando o visse com os seus próprios olhos e, se ia morrer, queria que fosse com ele. Era estúpido, romântico e ridículo. Ele rir-se-ia dela se ainda estivesse vivo. "Virei buscar-te à meia-noite, mesmo que o inferno se interponha no caminho". Mas estava a amanhecer, o dia era cada vez mais radiante, a neve começava a derreter-se em seu redor e o poço da mina era um túnel sufocante e mortal.

Mexeu-se tão depressa que Monique mal teve tempo de tirar a pistola. Atravessou a clareira aos tropeções, pronta para se atirar de cabeça. Faria tudo para se afastar daquela ordinária demente e dos seus sequazes. Então, o barulho de um tiro destruiu o silêncio e ela ouviu um grito que não era dela.

Não se importou. Chegara à barricada destruída do poço quando uma mão pesada a agarrou pelo ombro e a fez virar-se. Encontrou-se cara a cara com um dos valentões. Dmitri, que matara Bastien.

Algo dentro dela explodiu. Precipitou-se sobre ele, esperneando, arranhando-o e mordendo-o enquanto batia com os punhos no seu corpo enorme e musculado. Ele afastou-lhe as mãos como quem afastava uma mosca, rodeou-a com os braços e imobilizou-a contra o seu corpo suado.

E, então, Chloe percebeu que reinava o caos na clareira. Ouvia-se um barulho ensurdecedor, o estrondo familiar dos tiros. O outro homem jazia no chão com um orifício de bala na testa, olhando para o céu luminoso. E de algum lugar que não via, chegava o barulho de uma discussão.

Virou-se e conseguiu ver Bastien deitado no chão, a sangrar, e Monique sentada sobre ele. A sua cabeça cortada mexia-se para trás enquanto se ria às gargalhadas.

- Fico contente por não estares morto, chérie - afirmou. Tinha tanta vontade de fazer as honras... - a pistola que tinha na mão era enorme e Chloe gritou sem conseguir evitá-lo.

Monique virou-se ao ouvir o seu grito, um erro minúsculo, mas suficiente. Uma rajada de balas atravessou-a. O seu corpo sacudiu-se espasmodicamente, mas conseguiu apertar o gatilho.

A pistola rebentou na neve e Monique caiu, tremendo ligeiramente. Depois, ficou imóvel, estendida sobre o corpo paralisado de Bastien.

Depois, para horror de Chloe, começou a mexer-se, a endireitar-se e Chloe desejou gritar até perceber que era Bastien que estava a afastar o seu cadáver encharcado de sangue.

Dmitri largou-a e ela, aterrorizada, agarrou-o pelo braço, pensando que ia dar um tiro a Bastien. Mas ele limitou-se a afastá-la.

- Acabamos aqui, madame? - perguntou, levantando o tom de voz.

A mulher que saiu calmamente de entre as árvores estava tão elegante como sempre, com o cabelo loiro prateado belamente penteado e a maquiagem perfeita. Vestia um fato preto de marca e os homens armados que a acompanhavam também se vestiam de preto. Uma cor perfeita para esconder o sangue.

Chloe tentou mexer-se, chegar junto de Bastien, mas madame Lambert adiantou-se e estendeu a sua mão elegante para Bastien. Ele levantou-se, fazendo uma leve careta sem olhar sequer para Chloe.

- Suponho que Dmitri é dos seus - indicou, num tom de voz sereno.

- Dos nossos - corrigiu ela. - Devia ter ido ter conosco.

O Comitê podia protegê-lo. Não era preciso fugir com tanta pressa. Será que não trabalhamos sempre bem juntos? Mesmo quando não tinha a certeza de que estivéssemos do seu lado. Assim que Jensen me contou, reuni uma equipa para continuar. Quase chegamos demasiado tarde - explicou, com severidade. Bastien esboçou um sorriso fantasmagórico.

- O Comitê nunca chega tarde, madame Lambert e se Harry Thomason soubesse, mataria Chloe. Sempre quis livrar-se dela - dizia o seu nome, mas não olhava para ela. E não havia nada que Chloe pudesse fazer, exceto ficar ali, ao sol da manhã, rodeada pelo cheiro do sangue que envenenava a linda clareira.

- Harry Thomason aceitou a reforma antecipada. Ultimamente, tomava decisões um pouco precipitadas e decidiu-se que só devia trabalhar em qualidade de conselheiro.

- Posso perguntar-lhe quem o substituiu? - poderia ter estado a falar do preço das laranjas. Mas as laranjas eram maduras, não eram? Chloe sentia vontade de se rir, mas receava parecer histérica e não queria chamar a atenção. Sobretudo, tendo em conta que Bastien se esforçava para ignorá-la.

O sorriso da madame Lambert era frio e elegante.

- Quem pensa que foi? Precisamos de si, Bastien. O mundo precisa de si. Não serve para outra coisa e é excepcional nisto. Não tenho nenhuma dúvida de que se teria livrado de Monique, mesmo sem a nossa ajuda.

- A sério? - o seu tom de voz era inexpressivo e Chloe ia desmaiar. Não queria fazê-lo, mas a dor das costas era tão forte que não sabia quanto tempo conseguiria manter-se em pé. Mas, se caísse, Bastien teria de olhar para ela e ela não conseguiria suportá-lo. Tinha de deixá-lo ir, visto que isso era o que ele desejava e, se para isso tivesse de se manter perfeitamente quieta para que ele pudesse ignorá-la, seria capaz de agüentar assim doze horas seguidas.

- Posso prometer-lhe uma autonomia total, Jean-Marc. Preciso da sua ajuda neste caso. Tem alguma razão para ficar?

Ele continuou sem olhar. Estava a sangrar, mas não muito. Certamente, ela estava em pior estado e continuava de pé, embora talvez fosse porque Dmitri a segurava.

- Nenhuma razão - replicou. Ela assentiu.

- Então, sugiro que saiamos daqui. Dmitri pode limpar esta confusão e reunir-se conosco depois. Terá de tratar dessa ferida.

- Vão matá-la? - só parecia levemente interessado.

- Claro que não. Já lhe disse, a época de Thomason acabou. Não acho que fale disto com ninguém. Poria a sua vida em perigo e sei como é com as mulheres. A única coisa que tem de fazer é sorrir para que o defendam até à morte.

- Monique era um exemplo perfeito disso - murmurou ele.

- Se a menina Underwood causar problemas, ocupar-nos-emos disso. A menos que prefira tratar disso agora mesmo. Decida.

Ele virou-se e olhou para ela por fim. Chloe ficou perfeitamente quieta. Estava decidida a não trair a sua fraqueza. Olhou para ele na cara, nos olhos e não viu nada. Só o vazio que pensava que desaparecera.

Bastien encolheu os ombros.

- Não acho que cause nenhum problema - replicou, finalmente. - Como a madame disse, sempre podemos ocupar-nos desse assunto mais adiante, se chegar a isso. Não devemos subestimar o meu efeito poderoso sobre as mulheres.

A madame Lambert assentiu e ignorou o seu sarcasmo.

- Esse é o Jean-Marc que conheço. Tinha medo de tê-lo perdido para sempre, já superou a sua crise de maturidade?

- Completamente. Sei quem sou e onde é o meu lugar.

O sorriso satisfeito da madame Lambert deixava adivinhar como fora bela noutro tempo. Nem sequer ela era imune ao efeito que Bastien tinha sobre as mulheres.

- Ainda bem - reagiu, pondo uma mão sobre o seu braço enquanto começava a afastar-se. - Juntos podemos transformar o Comitê no que sempre devia ter sido. Não sabe como me faz feliz. Fará a diferença na nossa guerra contra o terrorismo e a opressão.

Ele parou à beira da clareira e afastou-se dela.

- Receio que não - declarou, com frieza. - Jensen pode ocupar o meu lugar. Perdi o instinto assassino.

- Não, segundo observei - indicou a madame Lambert, arqueando as sobrancelhas. - O mundo precisa de si, Jean-Marc,

- Quero que o mundo vá para o inferno! - exclamou ele. O silêncio na pequena clareira encharcada de sangue era sufocante. Chloe não se atrevia a mexer-se, nem sequer se atrevia a respirar.

- Pode soltá-la, Dmitri - afirmou Bastien, ao mesmo tempo em que se aproximava dela à luz radiante do sol. A neve quase desaparecera e amanhecia um dia novo e luminoso.

Dmitri soltou-a e ela sentiu que perdia a força nos joelhos. Deixou escapar um gemido sufocado quando Bastien a agarrou. Ele abraçou-a suavemente e levantou-lhe a cara magoada para ele. A luz voltara para os seus olhos e sorriu. Foi um sorriso doce e lento que Chloe só vira uma vez antes.

- Não faças esse ar assustado, Chloe - brincou, tocando com o dedo na sua boca ferida e beijando-a depois. - Disse-te que não te mentia.

- Suponho que não considerarás a possibilidade de tirar umas férias, pois não, Jean-Marc? - perguntou a madame, num tom de voz resignado.

- Estou retirado - respondeu ele, enquanto olhava para Chloe nos olhos e tudo o resto se desvanecia. - E o meu nome é Sebastian.

 

                                                                                            Anne Stuart

 

 

                      

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