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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ETERNIDADE NOS PERTENCE / Corin Tellado
A ETERNIDADE NOS PERTENCE / Corin Tellado

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ETERNIDADE NOS PERTENCE

 

Nos grandes magazines, e no fim da tarde, havia um movimento intenso.

Faye Crown, na seção de perfumaria para cavalheiros, se multiplicava. Era uma jovem alta e esbelta, de uns dezenove anos, de cabelos castanhos e olhos verdes. O ca¬belo era cortado, curtindo, o que lhe da¬va um encanto exótico. De avental azul-celeste, ia de um lado para o outro, dili¬gente, atendendo os fregueses.

Era sábado e, embora só fechasse às oito, era a sua vez de ficar de plantão. Estava cansada e já dissera a Thomas, seu noivo: que não fosse apanhá-la, pois iria diretamente para a casa de sua irmã Maura com a qual morava.

Enquanto atendia uma senhora, cochi¬chou para sua amiga:

— Não, amanhã sairei tarde. Tenho um bocado de roupa para lavar. Não gosto que Maura se ocupe com minhas coisas, já basta que joga a roupa graúda na máqui¬na.

— Eu vou fazer uma excursão — dizia Liz. — Estive apavorada toda a semana, temendo ter que trabalhar.

— Semana que vem, é a minha vez de trabalhar no domingo — disse Faye em tom cansado.

Terminou de atender a senhora, e ia se dirigir a outro freguês, quando ouviu uma voz familiar:

— Por favor, um creme de barbear.

Levantou vivamente os olhos.

Haviam se passado quatro anos, des¬de a última vez que ouviu aquela voz gra¬ve, profunda.

Ali estava aquele rosto moreno, cabe¬los negros e fartos, os olhos muito es¬curos... Sem dúvida, mudara, mas era ele.

David, distraído, tornou a pedir-lhe:

— Por favor, creme de barbear.

— Sim..., sim.

E, um pouco sem graça, pôs-se a servi-lo. Mas, de repente, ele também a fitou. Súbito, exclamou:

— Faye Crown? — e sem esperar res¬posta: — Sim, é Faye. Ou não...?

— Sim, sou, e você... David Meril, não?

— Puxa — riu ele abertamente — há quanto tempo. Mais de três anos, verdade?

— Quatro — disse ela.

— O tempo passa voando — murmu¬rou David sem deixar de rir simpaticamente.

Enquanto isso, Faye o servia. Fazia o embrulho e lhe dizia o preço. David apa¬nhou o creme de barbear de suas mãos.

— Escute, já tem o que fazer, quando sair? A que horas sai? Alguém a espera? Casou-se?

Com tantas perguntas, Faye só respon¬deu uma:

— Saio às oito.

— Posso esperá-la? Gostaria de conver¬sar com você.

— Está bem, David.

Faye acompanhou-o com o olhar, sus¬pirando imperceptivelmente.

Liz se aproximou, e sussurrou:

— Quem era o bonitão a quem chamou de David?

— Um conhecido.

E continuou trabalhando, mas em sua cabeça bailavam recordações de tempos passados.

 

Fazia tempo que a oficina de automó¬veis estava fechada. David olhou para o posto de gasolina anexo, bastante movi¬mentado. Também o bar, situado do ou¬tro lado do posto, funcionava naquele ins¬tante.

David se aproximou do que parecia ser o encarregado do negocio e lhe disse:

— Já vou indo, Max. Antes, porém, passarei pelo bar para falar com Jim.

— Está bem. Divirta-se, David.

— Obrigado.

David se dirigiu ao bar. Havia fregue¬ses apoiados no balcão, pessoas que se di¬rigiam a Dallas ou Waco ou alguma ci¬dade vizinha a Houston, onde estava si¬tuado o posto.

— Pensei que já tinha ido, David — exclamou Jim, ao vê-lo. — Céus, que calor.

— Não sei a que horas virei. Tenho um encontro, Jim.

— Ah, é? Ela é bonita?

— É uma velha amiga que tornei a en¬contrar após muito tempo.

— Quer que eu fique aqui até termi¬nar o movimento? Quando tiver de ir em¬bora, deixo Gaby em meu lugar.

— Espere o máximo que puder. Tal¬vez eu nem me demore muito.

Agitou a mão e se foi, encontrando-se com Max na metade do caminho.

— Vinha lhe dizer — murmurou Max, um homem maduro, com ar bonachão — que pode ir-se tranqüilo. Ficarei até as dez, e deixarei o pessoal sob as ordens de Gaby. Sabe que ele prefere o turno da noi¬te — vendo a dúvida em David, acrescen¬tou: — Não se preocupe, meu caro. Nem no tempo de seu pai isto era tão rendo¬so. Você tem jeito para o negócio.

David não queria falar no assunto, pois lembrava-lhe o tempo que estivera fora. Fora muito orgulhoso, e teimoso, pois seu pai cansara de chamá-lo de volta.

— Bem — tornou Max — divirta-se, David.

David foi para o estacionamento, e en¬trou em seu carro, o mesmo de quatro anos antes, quando contava vinte de idade, e se foi de casa.

Dirigiu-se ao centro da cidade.

Estava contente de ter reencontrado Faye. Foi sua primeira namorada, a pri¬meira garota que ele beijou. Naquela épo¬ca, eram como crianças. Faye tinha quin¬ze anos...

Foi um amor bonito. Depois, tudo es¬friou bruscamente, com a distância. Foi quando faleceu a mãe de Faye, a quem ele não conhecera. Faye passou a morar com sua irmã Maura, que ele tampouco conhe¬cia.

Haviam-se visto durante um ano, sain¬do juntos. Até que houve a briga com seu pai e ele se foi e não regressou até que lhe disseram que seu pai estava à morte. Muitas vezes, após estar longe, pensara em Faye e as recordações eram sempre muito carinhosas. Por isso se alegrava tanto de havê-la encontrado.

 

Faye deixou a loja e olhou para um lado e para o outro da rua.

Usava uma calça branca justa, um blusão solto, com um cinto preto de lastex por cima, dando-lhe um ar moderno e ju¬venil.

— Olá, Faye.

— David... — a jovem voltou.

— Pensou que eu não viria?

Ela corou um pouco.

— Não, não. Por que não viria, se com¬binou vir?

— É verdade — segurou-a pelo braço.

— Aonde podemos ir? Há gente demais na rua. Ninguém tem pressa de levantar ama¬nhã, que é domingo — e sem transição:

— Não se casou, verdade?

— Não.

— Nem eu... Ainda mora com sua ir¬mã?

— Ela se casou, e ainda moro com ela, sim. Pensei em morar sozinha — sorriu de leve — mas os tempos estão difíceis. De qualquer jeito, John, o marido de Maura é muito bom e nos damos bem. É uma óti¬ma pessoa.

Levando-a pelo braço, David conduziu-a por entre a multidão de transeuntes.

— Meu carro está no estacionamento subterrâneo — disse. — Mas, como temos muito o que conversar, podemos entrar numa cafeteria. Sabe, nesses quatro anos, estive ausente da cidade.

— Eu não sabia.

— Pois é. Tive uma discussão boba com meu pai e, como sou teimoso, fui em¬bora. Estive em Dallas, Waco e depois Wichita, onde trabalhei em coisas diferentes. Num posto, depois num bar, e também numa discoteca. Fiz de tudo — chegavam à cafeteria e David a conduziu a uma me¬sa. — Aqui está bom — puxou a cadeira para ela sentar e depois se sentou. — Foi ótimo tê-la encontrado, Faye. Estou em Houston há mais de três meses. Papai fa¬leceu e eu fiquei em seu lugar à frente dos negócios. No tempo do nosso namoro, quase não falávamos de assuntos de fa¬mília — riu, suave. — Éramos muito crianças e só pensávamos em nós mesmos.

— Realmente, pouco sei da sua vida.

— Lembro-me que, naquela época sua mãe faleceu e você ficava só com sua ir¬mã Maura. Quanto a mim, falava pouco, pois andava chateado com a situação de papai e uma mulher que o rondava. Ago-ra vejo que eu era um egoísta, não que¬rendo que papai casasse de novo, e sei que ele me amava muito.

— E seu pai se casou? — perguntou Faye.

— Que nada! Afinal, era a dona que andava atrás dele. No fundo, papai nun¬ca esqueceu mamãe. Bem, agora tudo pas¬sou e aqui estamos nós de novo. Faye — cruzou os braços sobre a mesa e olhou-a calidamente. — Estou contente em revê-¬la. Nunca a esqueci. O primeiro amor nun¬ca se esquece. Agora vivo muito só. Tenho um apartamento ótimo em cima mesmo do meu escritório, e de vez em quando uma senhora vai lá para limpá-lo. E agora, chega de falar de mim. Você ainda não me contou nada de sua vida.

— Pouco tenho a contar. Comecei a trabalhar assim que terminei os estudos e aí estou...

Ele a fitou com olhos entrecerrados.

— Está muito bonita, Faye. Mais do que antes. Tem um certo ar de maturida¬de que lhe vai bem — olhou para si mes¬mo com despreocupação. — Quatro anos não passam em vão, sinto que amadureci bastante — subitamente acrescentou: — Vamos jantar juntos esta noite, Faye?

— Aqui?

— Não. Podemos apanhar meu carro e sair por aí. Faz tempo que não saio de noite.

— Está bem, David. Estou muito feliz de estar aqui com você.

— Mas não me recordou como eu a vo¬cê, verdade? Fui seu primeiro namorado, mas fomos deixando as coisas esfriarem...

— Isto é verdade. Mas lembrei-me mui¬tas vezes de você.

E estava dizendo a verdade.

— Não teve outros namorados? — per¬guntou David, interessado.

— Sim — ela foi franca. — Tenho um, atualmente.

— Ah... Tem namorado.

— Sim. É estudante. Namoramos há dois anos.

— Oh... — e depois sorriu aturdido. — Pretende casar-se com ele?

— Bem..., sim.

O garçom chegou perguntando o que tomavam.

— O que deseja, Faye?

— Um café, apenas.

— Então, dois cafés. Obrigado.

E de novo voltou-se para ela, pensativo.

— Eu que pensei em pedi-la em casa¬mento — disse espontâneo.

— Que idéia a sua, David.

— Pois è a verdade. Quando a vi, pensei: "David, aí está a sua futura esposa". Sei que é tolice, mas foi o que disse a num mesmo. Fuma?

Oferecia-lhe o maço de cigarros.

— Não, obrigada.

— Já naquela época não fumava... Continua a mesma, porém mais bonita, mais mulher.

Estavam tomando o café, quando David disse:

— Faye, eu não sou dos que ocultam o que sentem. Ainda gosto de você. Deve es¬tar me achando cretino.

— Isso não, David.

— Mas você não me corresponde.

— Bem... prefiro que sejamos amigos.

— Só isso?

— Só... Como já lhe disse...

— Sim, sim. Está namorando firme. Quando pensa se casar?

— Oh, isso vai demorar. Thomas tem vinte e dois anos, ainda tem que estudar muito.

— Você está com dezenove, não?

— Completarei daqui a dois meses.

— Puxa, Faye, que pena eu tê-la en¬contrado só agora. Na verdade, foi minha única namorada, até hoje. Escute, vai se encontrar hoje com seu namorado, não?

— Não. Só amanhã à tarde.

— Então podemos nos ver de novo de manhã.

— Não posso, David. É quando tenho um tempinho para cuidar de minhas coi¬sas.

— Você o ama, Faye?

Em vez de responder, a jovem disse:

— Se vai me levar em casa, vamos in¬do, mas se tiver o que fazer...

— Não, não. Depois de quatro anos sem vê-la, quero aproveitar o máximo a sua presença.

— Se não fosse o encontro casual, não estaríamos aqui conversando.

— Realmente, nem sabia onde você morava. Lembra-se, nos encontrávamos nas pracinhas e conversávamos sentados no banco. Foi assim por um ano. Atual¬mente, o relacionamento sentimental é muito diferente.

— Pode ser.

— Também, na época éramos muito jo¬vens.

David pagava a conta, enquanto se le¬vantavam.

— Escute — estavam já na rua e Da¬vid a levava pelo braço. — Vamos nos ver na segunda-feira?

— Segunda eu saio às nove.

— Podemos jantar juntos, não?

— É possível. Olhe, se quiser eu lhe dou o meu telefone e você me liga na se¬gunda, às oito da manhã.

David a fitou assombrado.

— Tão cedo?

— Entro às dez no magazine, e me le¬vanto às sete. Gosto de me arrumar deva¬gar, e ter tempo para fazer alguma com¬pra.

— Quer que telefone no domingo à noite?

— É que não sei a horas que estarei de volta.

— Não me disse ainda se está apaixo¬nada.

— Está com o mesmo carro de antes — disse ela, detendo-se ante o carro ama¬relo.

David riu, esquecendo a pergunta que fizera, e era o que Faye desejava.

— Meu pai o conservou e eu, quando voltei, fiz-lhe algumas modificações, é an¬tigo, mas um ótimo carro, e há quem quei¬ra comprá-lo. Mas, entre.

Faye se sentou, e ele, dando a volta, sentou-se ao volante. Fez uma manobra e o carro saiu do estacionamento, depois que David pagou-o.

Começava a anoitecer. David esperou que o sinal ficasse verde e depois se per¬deu rua abaixo.

— Moro mesmo no centro — disse ela. — Vá por essa rua, que lhe direi aonde vi¬rar.

— Por que vamos tão cedo? Podíamos dar uma volta.

— Não, David, obrigada. Fica para ou¬tro dia.

Dali a vinte minutos, despediam-se ante a casa de Faye.

— Vivo no décimo-quinto andar, Da¬vid. Dali, a cidade parece ser uma minia¬tura...

David apertou com suas mãos a da jo¬vem. Apertou-a muito.

— Telefonarei, Faye... Não me esque¬cerei.

 

— Parece que lhe devem e não lhe pa¬gam, Faye.

— Que quer, Thomas? Estou cansada.

— Mas não diga que a culpa é minha.

— E se disser que é?

Iam rua abaixo.

Ele vestia calça de brim, blusa de pa¬no e uma jaqueta também de brim, for¬mando um conjunto moderno e gracioso, que ia bem com seu tipo esguio.

Thomas era um rapaz forte, de ombros largos. Não muito mais alto do que ela, cabelos louros e olhos azuis. Parecia mais velho do que era, por causa de suas entradas pronunciadas.

— Podemos tomar um ônibus e ir para o campo, Faye — sugeriu ele. — A ci¬dade, com este calor, é insuportável, e ir¬mos a um cinema é bastante enjoado.

— Não podemos ir ao campo, porque devo voltar cedo para casa. Maura e John querem sair esta noite, e preciso ficar com o pequeno Tony.

— É sempre assim, quase não podemos sair juntos. Sua irmã bem que podia con¬tratar uma babá.

— Compreenda, Thomas — disse ela, amolada — moro com eles, e me tratam com muita consideração.

— Mas tem que trabalhar.

Faye fez um gesto de cansaço.

— Seria o cúmulo se ainda tivessem que pagar minhas despesas pessoais. Já basta que me mantêm...

— O fato é que pouco nos vemos, vo¬cê está sempre ocupada, e eu adoro sair para o campo... Há mais de seis meses que se nega a me acompanhar.

Faye não respondeu.

Andava olhando para a frente.

— Podemos ir a um cinema — disse para que ele se calasse. — Pelo menos, tem ar condicionado em todos.

— Que programa horroroso, entrar num cinema a esta hora.

— Se não quiser, não vamos.

— Mas se não vamos a um cinema, e nem vamos ao campo, o que faremos?

— Por esta alameda não faz tanto ca¬lor. Que tal sentarmos naquele banco?

Thomas a segurou pelo braço e mur¬murou:

— Escute, querida, por que não o cam¬po?

— Novamente!

— Puxa, eu daria tudo para ir.

Claro que não iria para o campo com ele.

Discutiram a tarde toda, e à noite, ao se despedirem, Thomas estava furioso.

— Passamos toda a tarde andando e discutindo. Isso não me agrada, Faye. Se você se divertiu, eu não.

— Lamento muito.

— Fala com essa tranqüilidade.

— E o que posso dizer, se a tudo você se zanga e fica exasperado?

— Tínhamos que ter ido ao campo.

— Gosto do campo tanto ou mais do que você, mas sempre que vamos, volto chateada. Portanto, prefiro evitá-lo, en¬tende?

— Não entendo nada — e sem transi¬ção, acrescentou: — A que horas nos ve¬mos amanhã?

— E se deixássemos de nos ver por um tempo, Thomas? — perguntou ela de sú¬bito, recostando-se contra o portal. — Sem¬pre brigamos, andamos de mau humor. Por que não pormos uma trégua?

— Faye... está falando sério?

— Claro.

— Você sabe...

— Sei, e daí? Que tem isso que ver?

Thomas ficou nervoso.

— Bem, se não lhe importa...

— Importa-me, mas não vamos pas¬sar os dias discutindo. Assim, o melhor é passarmos um tempo separados, e depois veremos se nos entendemos melhor.

— Escute, Faye, vamos ser claros. Nós nos entendemos perfeitamente. Ao menos eu, mas o que acontece é que você não quer se entender.

— Nesse sentido que você diz... não!

— Puxa, agora vem com essa... O que há, Faye? A princípio, bem que nos gostá¬vamos. Eu não deixei de amá-la, mas cada vez que insinuo o campo, você se crispa toda.

— Não quero voltar àquilo, Thomas. Está claro? Creio que me entende perfei¬tamente.

Claro que a entendia, mas nem estava de acordo, nem lhe agradava a situação.

Estavam lado a lado, com expressões cansadas.

— Ouça, Faye — insistiu Thomas, — nós nos amávamos, não passávamos um sem o outro. Agora, tudo mudou e a culpa é sua.

Faye conteve um suspiro cansado.

— Talvez nos tenhamos cansado — murmurou.

Thomas se irritou.

— Você se cansou.

— O que vem a dar no mesmo. Temos que tentar entender a questão. Você mes¬mo disse há pouco que somos jovens e parecemos velhos. Não sei se me põe a culpa.

— Claro que ponho — resmungou Tho¬mas. — Eu não me cansei de você.

E se aproximou amoroso. Faye se esquivou.

— O que eu acho — disse — é que de¬vemos ter uma trégua. Um mês, dois, seis...

— Você está louca, Faye.

— Talvez, mas é melhor que se corte agora, do que aconteça mais tarde um di¬vórcio.

Thomas se impacientou.

— E quem fala em divórcio, se nosso casamento está tão distante? Você sabe que o curso de Engenharia é longo, e não posso fazer milagres. Mas, falando nessa trégua que você deseja, já pensou que pos¬so me apaixonar por outra, estando sepa¬rado de você?

Faye olhou ao longe. As pessoas atra¬vessavam a rua, passavam de um lado pa¬ra o outro. A noite era quente mas gos¬tosa.

— Se isso ocorrer, é porque seu amor não era sólido — respondeu a jovem, por fim. — E o pior, Thomas, é que não sei se isso me deixaria triste ou não. Desculpe, mas houve coisas entre nós que não posso esquecer facilmente. Mas, nem por isso vou estragar minha vida, prendendo-me a um homem a quem não sei se amarei pa¬ra sempre. Entenda, Thomas. Esse tédio, essa apatia em relação a você me descon¬certam.

— O que quer dizer que, pouco a pou¬co está deixando de me amar.

Faye olhou para o alto. Franziu o cenho.

— Ouça, Thomas, se isso ocorrer, pre¬fere que eu o engane?

— Não, é claro.

— Pois então, aceite essa trégua.

— Outro, Faye?

A jovem se agitou. Não era por David, estava certa. Antes de David aparecer, já existiam aquelas dúvidas.

— Claro que não — disse com firmeza.

— E de quanto seria a trégua, Faye? — perguntou Thomas, desalentado.

— Não sei. Digamos, um mês. Você es¬tá em época de prova, aproveitaria para estudar melhor e assim, terminaria mais rápido o curso, não ficando em dependên¬cia de nenhuma matéria.

— Não creio que possa me concentrar nos estudos, sabendo que posso perdê-la.

— Tem que fazê-lo — disse ela com fir¬meza: — Pelo nosso bem e do seu estudo também. E afinal, nosso namoro tem sido longo demais, e ainda falta muito para nos casarmos, verdade?

— Olhe, Faye — Thomas estava ansio¬so, — eu prometo não insistir em ir para o campo, nem nada que a aborreça, mas não faça isso comigo...

Faye o olhou com certa ternura.

— Eu sei que não tornaria a ocorrer, Thomas. E não porque o tenha decidido. Faz tempo que eu decidi. Mas, isso não tem nada a ver com o que estou dizendo. Preciso de um mês para refletir.

— Quer dizer que o que começou a dizer por brincadeira, foi bem meditado.

Não foi, não. Mas, à medida que con¬versavam, ela se decidia a cumprir o que estava dizendo. Tinha que saber se aquela decisão fora influenciada pela volta de David.

Era um despertar ao passado. Um vol¬tar a reviver os movimentos felizes, sossegados, um amor que ela sentiu aos quinze anos, o primeiro.

— É melhor deixar assim — disse. — Boa noite. 

— Assim, como? — perguntou, indo atrás dela.

— Não nos vermos em um mês.

— Nem posso falar-lhe por telefone?

— Isso sim... Poder, pode e também lhe prometo que, se antes de um mês sin¬to sua falta, chamo-o e lhe digo.

Thomas se animou.

— Me dá a sua palavra?

— Claro que a dou.

Depois, acenou com a mão e entrou no prédio, deixando Thomas algo pensativo e apagado.

 

— Escute — disse Maura alguns dias depois. — Tem recebido telefonemas de dois rapazes, de Thomas e de outro, não? Noto as vozes diferentes.

Fay arrumava suas coisas no quarto. Tinha a tarde livre. Às sextas-feiras, não ia ao trabalho, era a sua folga. Pensava que Maura saíra, porquê, momentos antes, lhe gritara da porta para dar uma olhadinha em Tony, que chorava.

— Ué, você não saiu?

— Não. Por quê?

— Pediu-me para ir ver Tony — e rin¬do ao ver o traje caseiro da irmã. — Até deixei a porta do quarto aberta, para poder ouvir Tony, caso ele chorasse de novo.

— Está dormindo — disse Maura, sen¬tando-se na beira da cama. — Aquela hora, estava acabando de sair do banho, e não podia ir atendê-lo.

— Ah

Era uma jovem alta e delgada, cabelo louro, olhos claros. Tinha uns vinte e cinco anos, e era bonita.

Faye deixou o que estava fazendo e foi sentar-se no chão. Vestia uma calça preta, com uma blusa para dentro, bege. Estava descalça.

— O que está havendo, Faye? Brigou com Thomas?

— Não é bem isso, acontece que es¬tou cansada dele e temo não amá-lo o bastante.

— E o outro é o causador, não?

— Não. O outro, você conheceu de me ouvir falar, quando eu tinha quinze anos

Maura ficou admirada.

— O quê?

— Lembra-se daquele namorado que tive aos quinze anos? Pois é, ele apareceu no outro dia, casualmente, e desde então, temos saído uma vez ou outra.

— Faye, isto não é direito. Está namo¬rando o Thomas há dois anos, não pode se encontrar com outro.

No fundo, Faye pensava igual.

— E depois, ele telefona mais do que o próprio Thomas. Não é um papel bonito, o que você está fazendo.

— Não estou traindo ninguém, Maura. A verdade é que ando confusa. E não é por causa da aparição de David. Já estava, muito antes de encontrá-lo. E eu acho que, se uma moça da minha idade se can¬sa do namorado, é porque não o ama.

Maura olhou fixamente para sua ir¬mã.

— Olhe, vou lhe dar um conselho: nem que seja por um namoro de dois anos, ou até mais, se deve hipotecar uma vida só por consideração. Ou se ama um homem ou não, e eu não creio que você ande com Thomas com vistas e um futuro matrimô¬nio, se a idéia desse matrimônio não a satisfaz.

— Não é isso, acontece que não posso associar minha vida a Thomas como ma¬rido. Entende? Isso é desconcertante. Terrível.

— Terrível? Por quê? Explique.

Não era fácil.

— Não estou querendo brincar com o sentimento de ninguém — afirmou Faye. — Tenho direito de me encontrar a mim mesma e descobrir assim o que desejo e necessito.

— Escute, Faye, lembre-se de quando você namorou esse David. Achava-a muito criança para namorar, por isso eu era contra. Mas, reconheço que deve ser um bom rapaz, já que você falava dele com tanta admiração e carinho.

Faye desenhou com o dedo algumas linhas no tapete do quarto.

— Os dois são ótimos rapazes. Isso é que é terrível. Thomas está apaixonado por mim. E David também me ama e quer que me case com ele.

Maura franziu o cenho.

— Será que a sua meta é o matrimô¬nio, acima de sentimentos e desejos?

— Maura, como pode dizer isso? Nem parece que me conhece.

— Pois então, não entendo.

— Estou desconcertada, e creio que amo David de verdade.

Maura se levantou. Olhou para Faye e disse:

— Pois diga a Thomas.

Isso era fácil de dizer, mas terrível de se fazer. Mesmo porquê, precisava meditá-lo bem.

— Tenho direito a estar segura do que quero e desejo, não, Maura?

— Claro. Mas sempre com a verdade a sua frente. De modo que não engane Thomas nem David.

— David sabe que tenho namorado.

— Se sabe, por que insiste com você?

— Porque não é tolo e sabe que ainda sinto por ele um forte sentimento. Mais bonito do que no passado.

O bebê começou a chorar e Maura foi vê-lo.

No caminho, atendeu o telefone, que tocava.

— Sou David — disse uma voz grave. — Gostaria de falar com Faye...

— Um momento — e tapando o bocal: — Faye, aqui tem um de seus namora¬dos.

Faye pensou que Maura levava o as¬sunto na galhofa, mas não se incomodou.

Era tudo mais grave do que Maura supu¬nha.

— Aló, David.

— Não vai sair? — perguntou ele calidamente. — Estive esperando por você, mas não a vi sair da loja.

— Hoje é a minha folga semanal.

— Que bom. Posso ir apanhá-la?

— Não — cortou-lhe o entusiasmo. — Tenho muitas coisas que fazer.

— É por causa de seu namorado, Faye?

— Por causa de tudo.

— Mas... Ouça, Faye, isto é muito sério para mim. Desde que a vi comecei a pensar demais. E cheguei à conclusão que você também me ama, que não esqueceu o passado.

Nem o passado, nem mil coisas do presente.

— Faye — suplicou ele — saia um pou¬co.

A tentação era grande.

Passara a semana toda pensando no mesmo, tentando tirá-lo do pensamento, e quanto mais o fazia, mais se certificava do que estava ocorrendo com ela.

— Ouça — insistiu David observando sua hesitação, — não hesite mais. Vamos dar um passeio de carro.

— É como... se estivesse enganando Thomas — disse Faye, desalentada — e não quero isso.

— Você conta amanhã para ele.

— Não gosto de fazer jogo duplo, Da¬vid. Está me entendendo?

— Claro. Conhecendo-a, como não en¬tendê-la?

Não, não a entendia.

As coisas desde que ele se foi até aque¬le instante haviam mudado muito em sua vida.

Decidiu-o em um segundo:

— Não saio, David. Assim.

— Nem mesmo por meia hora, Faye?

— Não. Tenho que falar com Thomas, ele ligará daqui a pouco.

— Posso chamá-la dentro de uma ho¬ra?

— Não, não. Para quê?

— Porque você precisa que a chame. Por isso.

Era o pior.

Que ele, após tanto tempo, a conhe¬cesse tanto.

— Está bem — decidiu — ligue da¬qui a pouco.

Desligou e voltou para seu quarto. Mau¬ra ali estava, provavelmente para conti¬nuar a conversa, mas o telefone tornou a tocar.

— Deixe, Maura. Eu atendo. É Thomas.

— Você vai arranjar confusão com es¬ses dois rapazes, Faye. Pense bem no que vai fazer. Acima de tudo, meça seus sen¬timentos e não se equivoque, pois esses equívocos se pagam caros.

E como Faye a fitasse em silêncio, Mau¬ra acrescentou suavemente:

— Os primeiros amores não se esque¬cem com facilidade. Parecem mortos, e de repente, renascem mais fortes ainda. De qualquer jeito, Thomas é quase seu noivo, você tem que ser clara com ele.

— Claro que sim.

Saiu silenciosamente e foi para a saleta.

Suspirou, ao se aproximar do telefone. Parecia-lhe que estava, mais do que en¬ganando a eles, enganando a si mesma.

Precisava muito conversar com Maura sobre seu dilema. Maura era uma mulher muito humana, muito honesta e a compre¬enderia e lhe daria o conselho acertado.

Ela não ignorava o caminho que devia seguir, mas... era difícil levá-lo na prá¬tica assim, sem refleti-lo, sendo acima de tudo sincera. Dizendo a pura verdade dos fatos, e estes não a favoreciam em nada.

— Alô, Thomas — disse, afastando seus pensamentos.

— Liguei várias vezes, mas o telefone estava ocupado.

— Estava falando com um amigo...

 

— Que tipo de amigo, Faye?

— Um que não via há muito tempo, e encontrei outro dia.

— E o qual — disse Thomas, magoado — está nos separando.

— Nada disso, Thomas. Escute, temos que conversar muito, mas é melhor que você termine suas provas. Faltam só quin¬ze dias.

— Hoje é sua tarde livre. Passo aí e conversamos. Se pensa que posso estu¬dar com essa incerteza, está muito enga¬nada.

Faye olhou para fora. O dia estava bonito.

As janelas estavam abertas e o sol entrava por elas banhando todo o salão.

— Thomas — disse reagindo — pre¬firo que seja dentro de quinze dias. Não estou preparada ainda para discernir, mas de qualquer modo, quero que saiba que vou sair esta tarde com um amigo. Esse amigo, de que lhe falei.

— Faye!

— Gosto muito dele — disse a jovem — e não o via há quatro anos.

Houve um silêncio. Depois...

— Lembranças que despertam, Faye? Você já me falou de um namorado que teve, aos quinze anos.

— É ele mesmo, sim.

— Céus, Faye... pensou bem?

— Não, Thomas. Estou pensando.

— Fala sério? Está pensando mesmo? É possível que o prefira? Lembre-se, Faye, atreve-se a dizê-lo?

Faye cerrou os olhos com força.

Aquele era o "quê" da questão. Tam¬pouco por "isso" pensava casar-se com Thomas se não estivesse certa de amá-lo.

— Esqueçamos isso.

— Tão fácil é para você?

— Não — disse com súbita irritação — mas não gosto que fique me lembran¬do a cada instante.

— Desculpe.

Era o que tinha Thomas também. No¬bre, generoso. Podia fazê-la recordar, mas estava certa de que se ela terminasse para sempre, Thomas jamais o mencionaria com alguém.

Por isso era mais difícil. Achava-se an¬te dois homens bons. Mas o dilema es¬tava em qual dos dois preferiria.

— Telefone-me amanhã, se quiser, mas decidi que não nos veríamos até dentro de quinze dias — disse o mais suave que pôde.

— Se quiser, largo os estudos e me caso com você o quanto antes.

— Thomas, não é isso. Não estou com pressa de casar-me. Só me casarei quan¬do estiver absolutamente segura de meus sentimentos.

— Faye, a verdade é que só em pensar em perdê-la, fico angustiado. Você me compreende, não?

— Sim, Thomas. Por isso é melhor continuar nessa trégua, e deixe-me sair com esse antigo amigo meu.

— Oh, meu Deus, ter que suportá-lo é terrível.

— Pois tenho que ser honrada comigo mesma, porque se não o sou comigo, não serei com você, nem com ele, e desejo sê-lo com todos. Mas ligue-me quando qui¬ser, Thomas, só não me proíba de sair.

— É que me considero seu noivo, Faye.

— E você o é, mas tenho o direito de saber o que quero e como quero.

— Ou seja, nada liga você a mim.

Voltavam ao ponto de partida.

— Thomas, eu disse...

Ele atalhou-a rapidamente:

— Está bem, está bem. Vejo que nada nos liga. Mas eu a amo e é difícil renun¬ciar a você. Enfim, deixemos as coisas as¬sim e você pode sair com seu amigo; de¬pois me avise quando puder discernir toda essa confusão.

— Está bem, Thomas.

— Amanhã eu ligo.

— De acordo. Até amanhã.

Desligou.

Depois foi para seu quarto, esperando achar Maura, mas sua irmã não estava em parte alguma, saiu e foi para o quarto de Tony.

Ali estava Maura, trocando a fralda do filho.

— Era Thomas, verdade?

— Sim.

— Pobre rapaz. Vai sair?

— Vou. David vai me telefonar e sai¬remos.

E voltou para seu quarto.

Maura só apareceu para dizer-lhe que David estava ao telefone.

— Queria tanto falar com você mas ti¬ve que dar a mamadeira a Tony, e pelo que vejo, você já vai sair.

— É possível.

Falou pouco.

Maura ouviu-a dizer: "Sim", "está bem", e desligar. Ao virar-se, deu de cara com o olhar da irmã.

— Parece que seu caminho já está tra¬çado. Estou certa, Faye?

— Não tenho tanta certeza.

— Não vejo por quê. Se o ama, não pode amar Thomas ao mesmo tempo, não acha?

— Enfim, essa não é a questão. Volta¬rei cedo, Maura — acrescentou indo para seu quarto — se você e John querem sair, avise que eu volto o mais rápido possível.

— Não vamos sair, já que John vem sempre muito cansado, durante a semana, mas diga-me, Faye, o que conversou com Thomas?

— Ele não quis entender. Mas disse-lhe que ia sair com um amigo, que eu não via há quatro anos.

— E Thomas detestou.

— Maura, tenho que pensar em mim também; se tivesse acontecendo isso com Thomas, ele não teria tantas considera¬ções. Certo que tenho pena dele mas também tenho de mim mesma, e não me casarei se não tiver convicção de que amo o homem escolhido.

— Nisso, estou com você. Os sentimen¬tos são o que importam. Com mais ou menos dinheiro você se arranja, de algu¬ma forma. Mas o amor é imprescindível entre duas pessoas que se querem casar.

Esteve a ponto de contar a sua irmã tudo, naquele exato momento. Mas não era nada fácil, e depois, era preciso tem¬po, para um longo papo. Não era coisa de se dizer em duas palavras, correndo.

— Obrigada por suas palavras, Maura.

— Antes de chegar a uma decisão de¬finitiva, medite bem, Faye. E seja sincera, com seu amigo David e com seu noivo. Não tente enganá-los, pois enganaria a si mesma.

— Eu sei.

— Há algo mais que ignoro, Faye?

Muito mais!

E isso era o pior.

A inexperiência, o amor súbito, a pai¬xão...

Mas Maura era casada e cheia de com¬preensão. Talvez compreendesse. Ainda que se chateasse bastante.

— Sempre há coisas — disse evasiva. E se trancou em seu quarto.

Trocou de roupa em alguns minutos. Pôs um vestido estampado, decotado e sem mangas. Sandálias alta, preta e uma car¬teira na mão, também preta de verniz.

O cabelo, apenas escovado, brilhante e macio, a pele limpa e lisa, quase sem pintura.

Quando saiu, Maura estava no corre¬dor.

— Mas... o que faz aqui, Maura? — perguntou.

A irmã pestanejou.

— Nada. Estava pensando... Como é David, Faye?

— Se quiser, trago-o aqui. Afinal, de momento é um grande amigo — sorriu sarcástica. — Sabe, se eu fosse interesseira, a escolha seria fácil. David tem uma posi¬ção invejável. Não tem família, e é dono de um negócio rendoso — sacudiu a ca¬beça. — Mas isso não importa. Apenas que, se me decidisse por ele... não teria que esperar para me casar.

— Mas não é isso que lhe interessa.

— Não — disse firmemente. — Não se trata de posição, e sim de sentimentos... despertados assim, quase sem querer. É como se eu tivesse quinze anos, ainda. Tu¬do muito complexo, Maura. Não quero magoar Thomas. É uma pessoa excepcional, mas como homem... não me atrai mais.

— O que ainda não disse tão claram¬ente a ele.

Faye caminhava para a porta. David já devia estar a sua espera, pon¬tual como era.

— Não é que não tenha dito. É Tho¬mas que não quer entender.

— Disse-lhe que ia sair com esse ami¬go?

— Claro. Não suporto sair às escon¬didas.

Maura acompanhou-a até a porta.

— De qualquer jeito — disse ainda — não está satisfeita consigo mesma.

— Não de todo, por causa do sofrimen¬to que vou causar em Thomas e por ou¬tras coisas.

— Outras?

— Outro dia a gente fala melhor nisso.

Subitamente, Maura se aproximou dela e deu-lhe um beijo em cada face.

— Obrigada por sua compreensão, Maura.

— Lamento o que lhe ocorre, Faye. Sempre foi muito clara e precisa, e pres¬sinto que agora está se debatendo num drama íntimo.

— Tem razão, a situação é dolorosa.

Entrou no elevador.

Maura fechou a porta e foi ver Tony, que estava chorando.

Sentia o que se passava com Faye. Gos¬tava de Faye como se fosse sua filha. Sem¬pre foram muito unidas, e depois da morte de sua mãe, ela tomou conta da irmã.

Enquanto atendia o filho, pensava na irmã. Não lhe estranhava que Faye se sentisse assustada com aquele assunto, pois afinal, namorava Thomas há dois anos, e Thomas era um ótimo rapaz.

O casamento entre ambos estava dis¬tante, sem dúvida, mas isso não inquieta¬va demais a Faye se amasse Thomas o bastante. É que havia deixado de amá-lo, ou por causa da presença de David ou porque já o amasse menos, quando esse apareceu.

De qualquer jeito, pressentia que Faye tinha muito mais coisas que dizer-lhe, e as diria...

 

David veio ao seu encontro, ao avis¬tá-la.

Vestia-se, como sempre, à vontade. De calça de brim, camisa de manga curta e botas.

Alto e magro, tinha que se inclinar para falar com ela.

— Obrigado, Faye — disse em voz baixa.

Ela sorriu e ambos entraram no carro.

— Disse a ele, verdade?

Não precisava perguntar a quem tinha dito.

— Sim — respondeu Faye com suavi¬dade. — Claro que lhe disse. Não gostou nada, mas eu não posso enganar a mim mesma, nem a ele, nem a você.

— Está num dilema.

Não sabia David quão profundo era. Ela mesma não sabia como sair dele.

Possivelmente Thomas se agarrava naque¬la esperança, mas uma coisa era "aquilo" e outra casar-se com ele por "aquilo".

Isso, não. Não atar-se a outro era ou¬tra coisa, mas desatar o meio atado era muito diferente.

— Vou mostrar-lhe onde vivo. Num segundo chegamos — dizia David, diri¬gindo. — Tenho vivido muito só, embora antigamente tivesse tantos amigos. Papai era o melhor de todos. Agora, ando rodeado de empregados. Quer tomar algo? Assim, conhece meus empregados, que me viram nascer e crescer, e que ficaram co¬migo, após a morte de meu pai — fitou-a, ao acrescentar quase bruscamente: — Faye... gostaria muito de me casar com você.

E acrescentou logo:

— Sei que estou sendo apressado, mas... O que espera? Se é por seu namo¬rado... não o ama, Faye. Quando existem dúvidas, é que os sentimentos estão mor¬tos.

Antes que ele respondesse, chegaram ao posto-oficina-bar de David.

— Está vendo aquelas janelas com cor¬tinas brancas? É ali que eu moro.

O carro cruzara o posto e estacionara frente ao bar, moderno e movimentado.

— Isto tudo é meu — disse ele, rindo. — Não é muito, mas agradeço a meu pai por tê-lo feito, conservado e aumentado. Pobre papai. Não fui um bom filho. Rou¬bei-lhe quatro anos de minha vida por uma bobagem. Pensei que ele não me ama¬va, e quando acaba, papai viveu só para mim. Essas coisas ocorrem — disse descen¬do do carro e abrindo a porta para a jo¬vem descer — e quando se quer fazer algo, já é tarde demais, porque a pessoa que se sacrificou pela gente, se foi.

Entraram os dois na cafeteria. Havia pouca gente naquele momento, de modo que David chamou Jim:

— Olhe — disse para o encarregado do bar. — Esta é Faye.

— Sua namorada de quatro anos atrás — riu Jim enternecido. — Bonita garota, David. Estão de namoro?

— Não — riu David, fitando Faye, que estava silenciosa. — Mas não é por mim, Jim. Ela é que está ainda em dúvida.

Espontaneamente, ele se inclinou e bei¬jou-a na cabeça.

Faye olhou-o. E David, rindo nervoso, disse:

— Não pude evitá-lo.

Jim ria ante eles, feliz de ver seu jo¬vem, patrão contente.

— O que tomam? — perguntou. — Uma cerveja gelada? Com o calor que faz, vai bem.

— Quer, Faye?

— Está bem.

Tomaram a cerveja de pé. David dizia olhando para Faye:

— Não me respondeu ainda.

— Sobre o quê?

— Nada, nada. Deixe. É sobre nosso possível casamento.

Faye bebeu em silêncio e ficou algo absorta, até que David lhe tirou o copo vazio da mão e o deixou sobre o balcão.

— Vamos dar uma volta, Jim. Não vi Max por aí, quando o vir diga-lhe que virei à noite. Já deixei tudo organizado.

— Bem, não deixem de me convidar para a casório, que pelo visto, está perto — gritou Jim, alegremente.

David olhou para Faye e atraiu-a para si

— Seria ótimo, não é, Faye?

Seria.

Estava sentindo que sim, que o seria. Mas difícil de chegar a tal solução dado como andavam as coisas.

Por isso, não respondeu e apenas sor¬riu.

David a empurrou suavemente para o carro e depois de fechar a porta, postou-se ante o volante.

— Para a cidade de novo, Faye?

— Sim.

— Não quer ir dançar? Podíamos ir até Waco.

— Não, não quero dançar.

— O que teme?

Tudo.

Ele, seu desejo renascido. O passado que voltava. A paixão que começava a acender-se, diferente...

— Não gosto de dançar.

— Eu gosto. Escute — disse, súbito — não vai me apresentar a sua irmã e seu cunhado?

— David... não é assim.

— Assim, como?

Não respondia. Olhava ao longe. A rua terminava e o carro virou à esquerda.

 

Já era noite. Entre silêncios, meias fra¬ses e frases completas, que por parte dela nada diziam, havia passado o tempo.

Não, não tinham ido dançar. Num café haviam ficado toda a tarde e a noite caía e estavam ali

— Em que está pensando, Faye?

Mil coisas diferentes.

— Refletiu sobre seus sentimentos? Sei que tem namorado, mas se o amasse não estaria comigo. É ou não é?

— Suponho que sim.

— Há quanto tempo se namoram?

— Dois anos.

— E o que está havendo?

— Não sei. Só sei que cansei de Thomas, mas reconheço que é um homem for¬midável. Não tenho o direito de deixar de amá-lo.

— Mas há coisas que não devam ocor¬rer, e ocorrem. Quase todas, por sorte ou por azar.

E com um dedo, levantou o queixo de Faye.

— Fui o primeiro que a beijou, Faye. Lembra-se?

Demais.

Mal ele apareceu em sua vida, deixou de pensar em tudo o mais. Não foi fogo de palha. Era coisa que deixara raízes. Raízes que, sem ela o perceber, foram cres¬cendo.

— Faye... você está muito pensativa.

— Tenho que voltar para casa.

— Está estranha.

Sentiu uma espécie de angústia, uma vontade de chorar, até.

— Não posso ferir uma pessoa que sem¬pre foi boa para comigo — disse.

— Mas tampouco pode ferir-se.

— Tampouco.

Levantava-se.

— Amanhã irei apanhá-la na loja, Faye.

— É aumentar essa angústia, sem ne¬cessidade.

— Você me conhece, sabe que não sou de me apaixonar a toda hora. Sou um ho¬mem que sabe o que quer e não costumo me enganar. Sei que a amo. Disso, não tenho dúvida.

— Deixemos isso por enquanto, David.

— Até quando? Não podemos escapar de uma coisa que está dentro de nós mes¬mos. Não tente se enganar, Faye. Nos ama¬mos e nos necessitamos.

Bem o sabia.

O assunto de Thomas ficava longe, mas restava algo muito relacionado com ele e com ela mesma, e isso tinha que dizê-lo.

Andou depressa como se tivesse medo de si mesma. David, a seu lado a retinha com uma mão pousada no ombro femi¬nino.

Ao chegar à rua, sentiram o ar quen¬te em pleno rosto.

David se inclinou e assim como estavam os dois no umbral da cafeteria, David se inclinou para ela e a beijou na gar¬ganta.

— David...

— Perdão.

Mas seus lábios abertos, ávidos, hábeis a beijaram na face.

Faye estremeceu dos pés à cabeça e se afastou.

Mas quando se deu conta David estava de novo rente a ela, dizendo-lhe à meia voz:

— Vou levá-la em casa.

— E se eu fosse sozinha?

— Por quê? Está com medo? São coisas que passam. Que têm que passar.

Ela se livrou sem brusquidão, mas se livrou.

— Vamos — disse. — É tarde.

— Alguém controla sua hora?

— Não — respondeu — mas vivo com minha irmã e seu marido...

— Sua irmã. Ainda me lembro quando saía com você e me falava dela.

— Sei.

— Faye... — dirigia o carro na rua tenuamente iluminada. — Não quer que eu recorde aqueles tempos.

— Que já passaram.

Disse-o com certa brusquidão David soltou uma mão do volante e segurou seus dedos.

— Certo, mas a vida, o destino, o que seja, queiramos ou não os traz ao pre¬sente. E estão aqui, Faye. Aqui mesmo para bem ou para mal de ambos. Eu a amo. É bobagem enganar-se. Quero-a para esposa. E sinto que você me corresponde da mesma forma. O que a prende a seu namorado? Dois anos, mas eu saio ga¬nhando, porque me atam quatro.

— Que não foram vividos.

— Foram sentidos. Estão em nós, no presente desse passado.

O carro parava diante do prédio de Faye.

Ela fez menção de saltar, mas David, subitamente imperioso, segurou-a pelo ombro.

Seus dedos pareciam queimar através do vestido fino.

— David...

— Deixe.

David se aproximava dela, fitando-a in¬tensamente.

— Faye... se dá conta, verdade?

Claro.

Do que sentia. Do que desejava.

Mas, não respondeu-lhe. Ele se agitou a seu lado e de repente a beijou em plena boca.

Como antes. Mas melhor.

Era um homem. Aquele rapaz, embora apenas com mais quatro anos, era um ho¬mem feito e como homem a fazia estreme¬cer.

Faye se debateu, no princípio. Depois relaxou. O que ocorria com ele? Que sen¬sação de ansiedade, de ardor e agitava?

— Faye — dizia ele sobre sua boca — não está abrindo a boca.

— Deixe-me.

— Não é o que deseja.

— Já disse que... Nada.

Ao falar, ele a pegara de lábios aber¬tos e aquele beijo foi mais sensual, mais fogoso.

Interminável.

Faye não soube quando se afastou dele.

David a fitou longamente.

— É bonito o amor entre nós, Faye...

— Cale-se. Por favor, não diga, nada.

— E que adianta calar o que sinto? O que existe, a atração que nos aproxi¬ma.

Tentou descer. Mas ele a segurou de novo pelo ombro e sua mão deslizou até sua cintura, fazendo com que ela tivesse a sensação de ser possuída.

Por isso, libertou-se e saltou fora.

— Faye...

— Vá embora. Não saio mais com você.

— E de que serve não sair se estará em casa pensando em mim, e eu em você? Quer que eu fale com seu namorado?

Sentiu um arrepio. Sua voz soou até rouca.

— Tão covarde me julga? — quase gritou.

David se ia com ela portal abaixo.

— É porque você me ama, me neces¬sita como mulher. Só se eu fosse cego, para não ver.

Nem ela o era.

No fundo do portal ficou parada, ofegante.

David estava diante dela, firme, com aquela serenidade que surgia depois de um impulso apaixonado.

— Não se ofenda, Faye — disse, dono de si. — Não o disse porque a julgo co¬varde, apenas porque queria evitar-lhe uma situação desagradável.

— Cale-se, vá.

— E de que vale calar-se se a reali¬dade está aí, aqui.

— Não vá amanhã à loja.

— Quer colocar uma barreira entre seus desejos, os meus e a pura e santa realidade?

— Pura? Santa?

— Bem — resmungou ele. — Não sou nenhum santo. Já vivi muitas experiências, mas a seu lado me sinto quase puro.

— Boa noite, David.

— Assim?

— Como assim?

Ele ria segurando-lhe o rosto entre as mãos.

— É mais forte que nós, não entende? Eu estou sozinho. Você ainda tem sua ir¬mã, seu cunhado. Um lar acolhedor, aonde vive uma família. Mas eu... Eu preciso casar.

— E porque precisa, tenho que atirar tudo pela janela?

— Tudo o quê? — parecia imperioso.

— Deixemos tudo assim.

— Seu namoro com um homem que não ama? Porque a conheço bem e sei que, se o amasse, não sairia comigo, e me man¬daria passear.

Buscava-lhe de novo a boca. Aperta¬va-a contra si. Faye tentou fugir, mas não conseguiu.

Uma força íntima a impedia de fugir daqueles lábios.

Quanto tempo havia que ela não se beijava assim com Thomas?

Meses. Quase um ano.

— David, por favor...

Não sairia mais com David. Era peri¬goso. Perigoso como o próprio fogo. Fugiu dele. Encostou-se à parede.

— Faye...

— Eu lhe peço...

— O quê? Que me domine? Mas você, pode se dominar? É tudo real... vivo, palpitante.

— Pelo amor de Deus, David...

E o afastava de seu lado. Mas David a imprensava contra a parede.

Sentia todos os músculos de David. Era como um pecado. Ela o sabia. Sabia, sim.

— David...

— Sim, Faye...

Dizia-o com a boca sobre seus lábios, mas tanto beijava como falava.

Faye tornou a esquivar-se. Bem que queria colar-se a ele, mas apesar de to¬dos os seus pecados, era honesta demais para estar vivendo aquele prazer e saber-se ainda ligada a outro homem.

David estava excitado, quando ela se afastou.

— Faye — dizia — perdoe-me. Sou... sou assim.

A jovem apertou o botão do elevador.

— Não quis ser grosseiro, Faye. Juro... É que...

— Eu sei.

— Sabe?

Sim. Sabia mais do que ele podia ima¬ginar. Fitou-o.

— Boa noite, David,

— Está zangada comigo.

Estava consigo mesma. Por suportar tudo aquilo, vivê-lo, saboreá-lo, gozá-lo e, no entanto, era a noiva de um homem honesto.

— Porque, pensasse o que pensasse, Thomas era um homem honesto.

Tudo o que ocorrera se devia à inex¬periência, de ambos, sendo humanos e vul¬neráveis aos pecados e aos desejos.

— Amanhã irei apanhá-la na loja.

— Não.

— Faye, não adianta fugir. É mais forte do que nós, que nossas vontades... Am¬bos sabemos o que queremos e o que necessitamos... Você não ama seu noivo, portanto, diga-lhe francamente.

Não o escutava.

Antes que David pudesse evitar, ela já estava subindo no elevador.

David girou sobre si e se meteu no car¬ro, arrancando a toda, velocidade.

Mas quase em seguida se deteve.

Estacionou o carro ante uma cabine te¬lefônica e entrou nela.

Discou um número.

As têmporas lhe palpitavam, os dedos lhe queimavam.

 

Encontrou Maura no corredor.

— Está muito pálida, Faye. Aconteceu algo?

Mil coisas.

Mas em voz alta disse:

— Nada.

— Escute, estou fazendo a comida, se Tony chorar dê-lhe a chupeta.

— John não chegou?

— Sim — disse Maura com ternura — mas está na sala lendo o jornal. Está mor¬to de cansaço, coitado.

— Não se preocupe com Tony, e quan¬do eu me trocar, venho ajudá-la.

— Então, ponha a mesa.

Ia para seu quarto, quando o telefone tocou. John o atendeu, e logo Faye o ou¬via gritar:

— Maura, Faye já chegou? É para ela.

Faye sabia de quem se tratava. Che¬gou perto do umbral e disse a John:

— Passe-o a meu quarto, John.

— Ah, está aí, Faye. Está bem, pas¬sarei.

A jovem se encaminhou para seu quar¬to, fechando-se lá, Depois, foi até à mesinha de cabeceira.

— Alô.

— Sou eu, Faye.

— Sei.

— Não quero que me julgue um apro¬veitador. E saiba que a amo.

— Sim.

— Se sabe, e me corresponde, o que nos separa?

No momento, sua honestidade que, em¬bora parecesse não existir, estava ali den¬tro dela. Na sua consideração por Thomas, nos dois anos que não foram vãos...

— Faye — impacientava-se David do outro lado. — Está me ouvindo, ou não?

— Estou ouvindo perfeitamente.

— Então, responda. Duvidar do que ambos sentimos, seria impróprio de nossa maturidade. Também não se trata de uma paixão passageira. Há raízes. A pro¬va é que nunca a esqueci e você, se me es¬queceu, ao me rever foi como se o tempo voltasse atrás e fôssemos aqueles jovens passeando pelas ruas de Houston.

— Por favor, David...

— Não posso me calar. Como eu disse, não se trata de algo passageiro. Sei que a amo e quero me casar o quanto antes com você. Claro que, se soubesse que não era correspondido, dominaria meus sentimen¬tos e me afastaria. Mas sei que você me ama, como sei também que podemos ser felizes juntos, formando um verdadeiro lar. Não se atreve a dizer a seu namorado? Terá que fazê-lo, a menos que eu o faça. Se eu estivesse no lugar dele, já teria percebido a sua falta de interesse, de amor e sumiria da sua vida. Não se pode prender nin¬guém assim. Os sentimentos são livres. Gostaria que compreendesse. Faye.

Compreendia, sim. Não era nenhuma tola, mas David se equivocava quanto aos sentimentos que não se fechavam ante deveres e compromissos.

Ela estava aprisionada por eles e era inútil escapar porque no fundo não devia ser tão valente como ela mesma se jul¬gava.

— Bem, David, amanhã ou outro dia falaremos nisso. Agora, minha irmã me espera.

— Amanhã irei apanhá-la no traba¬lho.

— E se exporá a me ver com meu na¬morado.

— Isso seria de sua parte uma absurda insensatez. Não sou covarde, Faye. E sa¬bendo o que sinto por você, e você por mim, direi abertamente a seu namorado a verdade, inclusive diante de você. Se for um homem sensato, lhe deixará o cami¬nho livre.

— Por favor...

— Vejo que não quer entender, por isso a deixo. Mas antes, quero dizer-lhe algo que talvez ignore. Você estremeceu em meus braços, seus lábios se agitaram sob os meus. Você me necessita tanto quanto eu a você. Temos só uma vida, Faye, e não podemos desperdiçá-la.

— Boa noite, David.

— Vejo-a amanhã.

Desligou.

Faye começou a andar pelo quarto, procurando roupa para trocar-se. Fazia tudo automaticamente.

 Colocou uma calça velha e uma blusa solta, folgada. Ia sair do quarto, quando o telefone tornou a tocar.

Trêmula, sentou-se na beira da cama.

—Alô...

Um silêncio do outro lado.

Depois, a voz de Thomas... Abafada, confusa.

Agitou-se, tensa, quase assustada. Teria dado algo para voltar á começar daquele momento. Ou dos quinze anos, quando não sabia de nada, exceto uns beijos inocentes na praça com o namoradinho.

— Faye — dizia Thomas com voz al¬terada — Faye, não suportava mais este silêncio ignorando o que era feito de você — e depois de uma pausa que ela não interrompeu, a pergunta importante: — Saiu... com seu antigo namorado?

Faye tentou ser generosa.

— Sim, estive com ele — disse como que sofrida. — Estive, Thomas.

— Então, é ele a causa de seu esfria¬mento.

— Não o creio, mas ele veio preencher um vazio. Algo que faltava em mim. To¬das as lembranças despertaram, de repen¬te. Foi como se estivesse nadando num la¬go durante horas sem encontrar a mar¬gem e me sentisse exausta, e de súbito... achasse essa margem e respirasse fundo, sentindo-me salva. Quisera ser menos du¬ra, Thomas, mas não posso. Tenho que ser sincera com você.

Um silêncio. Depois, a voz de Thomas, trêmula:

— Quer dizer, está tudo acabado.

— Sim. Lamento, Thomas. Acredite, jamais estive num dilema semelhante. Já sei o que está pensando.

— E então, Faye?

— Não lhe disse — sussurrou Faye, contendo-se: — Vai ser mais duro dizer-lhe, do que o foi dizer a você que estava tudo acabado. Sei que não vai me perse¬guir. Que está sofrendo, mas se domina. Eu também sofro, Thomas, mas não posso evitar e quando as coisas se apresentam assim, é como quando um ser querido falece, e você faz tudo para conter o pran¬to, mas seus olhos ardem, cada vez que lembra o ser amado e morto — fez uma pausa, que Thomas não interrompeu, para prosseguir: — Sei que me deixa livre e que não tentará se interpor. Conheço-o bem, e sei também que me estima demais para querer impedir minha felicidade.

A voz de Thomas saiu com dificuldade, e isso era fácil de se notar.

— De qualquer jeito, terá que abordar com ele o problema, não pode ser desones¬ta com um homem que acredita em você.

— Eu sei, eu sei.

— Está bem, Faye. Dizer-lhe o quanto lamento, seria estúpido. Você sabe que a amo muito e por amá-la, deixo-a, livre. Tal¬vez, disso tudo resulte uma carreira inter¬rompida, pois era você quem me dava alento para estudar engenharia. Sem um objetivo, não terei forças para continuar.

— Não quero que deixe seus estudos — quase gritou Faye.

— Bem, isso é uma outra questão. Creio que está tudo claro. Espero que não esteja equivocada, ao fazer a sua escolha. De qualquer jeito, creio que tive a maior culpa de que seu amor por mim se aca¬basse... Não sabe quanto daria para vol¬tar a começar de outra maneira.

— Obrigada por tudo, Thomas. Tam¬bém eu queria continuar amando-o. No entanto, aconteceu de outra maneira. Obrigada, por sua compreensão, Thomas.

Ele desligou sem responder, e Faye es¬condeu o rosto nas mãos, ficando imóvel sobre a cama.

Neste instante ouviu o choro de Tony e, esquecendo seu problema, correu ao seu quarto.

John também tivera a mesma atitude.

— Deixe, John — disse Faye indo até o berço. — Eu cuido dele. Foi só a chupeta que caiu. Vá terminar de ler o seu jornal.

— Obrigado, Faye. Estou mesmo can¬sado. É preciso dar duro, para se sobre¬viver... — fitou-a com curiosidade: — Sente-se mal, Faye? Está tão pálida.

— Não, não. Obrigada, John.

Os dois se afastaram. John voltou ao salão e ela, como se os pés lhe pesassem, foi para a cozinha ajudar Maura.

— Faye — exclamou sua irmã — o que tem você?

Estava arrasada. Sua vontade era tran¬car-se no quarto, sem comer, sem falar com ninguém.

Mas, continuou ajudando Maura a pôr a mesa.

— O que houve com David, Faye? — perguntava Maura sem deixar de se movimentar.

— É por isso que está tão estranha?

Um dia ou outro teria que falar com Maura, pedir-lhe conselho. Mas aquele não era o momento.

— Estive com ele — declarou — e também falei com Thomas.

Maura, prestou atenção nela.

— Sim?

— Não há mais dúvida entre Thomas e eu. Terminamos tudo.

— E por que o diz com tanta dor? Sen¬te o rompimento com ele? Se não o ama, Faye, foi melhor assim.

— Devia ter feito isso antes.

— Sim, mas se não sabia, se foi pre¬ciso aparecer David em sua vida, para que descobrisse...

— Não foi por isso, creia. Antes de David aparecer, eu já andava chateada de Thomas. Creio que quando uma mulher ama, nunca se aborrece na companhia do homem amado. Não é assim, Maura?

— Claro.

— Pois eu não era feliz. A princípio, não via os defeitos de Thomas, e de repen¬te, pouco a pouco, não sei nem como, co¬mecei a enxergá-los. A seu lado, comecei a me entediar demais — passou os dedos pelo cabelo. — Não me atraía, Maura — a voz de Faye era baixa e amarga. — Sabe que há mais de seis meses que nem nos beijávamos mais?

— Incrível.

— Exatamente. E não é que Thomas não o desejasse, eu é que não tinha von¬tade — sacudiu a cabeça, acrescentan¬do: — É tudo muito estranho... Nem eu mesma o entendo.

A precisão de John dobrando o jornal emudeceu ambas.

— Falta muito, Maura? Estou caindo de sono, e não vejo a hora de comer algo e poder me deitar — e recostando-se no umbral, comentou: — Quando não se tem muita sorte, tem-se que dar muito duro na vida, para não se morrer de fome.

— Tem razão, querido — disse Maura, com ternura. — Pode ir para a sala, já vou servi-lo. Arrumou a mesa, Faye?

— Oh, esqueci os talheres — e saiu correndo.

Vendo-a afastar-se, John comen¬tou:

— Aconteceu-lhe algo, Maura?

— Sempre acontecem coisas, com todo mundo. Você mesmo, falava há pouco do muito trabalho que tem, e do pouco que ganha com isso.

John riu, tranqüilo. Era um tipo alto e magro, de olhar bondoso e honesto.

— Dizem que nós, humanos, sempre temos algo de que nos queixar, tenhamos ou não razão para isso.

Faye apareceu de novo.

— Está tudo pronto. Deixe que eu levo a bandeja, Maura.

Depois, foram todos para a mesa. John comeu com apetite, Maura também. Quan¬to a Faye, quase não tocou na comida.

Todo o que ocorria com ela, parecia muito simples, à primeira vista. Por exem¬plo, a compreensão de Thomas. O amor de David, que era sadio e concreto.

Bastava mover um dedo, pensava Faye, e tudo ficava em seu lugar. Mas, não era bem assim.

— Não comeu nada, Faye — comentou John, que parecia não reparar muito, mas observava tudo. — Se provar a comi¬da, vai gostar.

— Sei que está gostosa — disse automaticamente.

Após o jantar, John foi dormir e as duas irmãs passaram à cozinha.

— Eu lavo e você guarda a louça — dizia Maura. — Como tenho que dar a última mamadeira a Tony e ainda falta muito, vou aproveitar e passar umas roupinhas dele.

— Enquanto você lava, vou passando o ferro em algumas peças.

— Não, vá secando e guardando, enquanto me conta suas mágoas. Sei que está sofrendo muito. E não entendo. Afi¬nal, parece que tudo está se encaixando co¬mo queria.

De costas, com um avental na cintura e luvas de borracha nas mãos, Maura la¬vava a louça e os talheres, enquanto Faye ia arrumando cada coisa em seu lugar.

Enquanto o fazia, Faye ia pensando se aquele seria o momento certo para falar a verdade. Se não pudesse fazê-lo, tinha que aproveitar o dia seguinte, quando voltasse do trabalho.

Alheia aos pensamentos de Faye, Maura comentou:

— Por outro lado, você tem David, que a ama e quer se casar o quanto antes...

— Não se trata disso.

— De que se trata, então?

— Falaremos disso outro dia, certo?

— Olhe, Faye — voltou-se para a irmã — há dias que a vejo inquieta, desde que começou a receber telefonemas de dois ho¬mens. E sempre me diz que depois conver¬saremos. O que tem a me dizer? Ao que me consta, é tudo bem simples. Você na¬morou um rapaz por dois anos, e parecia amá-lo. De repente, surgiu um antigo na¬morado e...

— Não, não, Maura. Foi antes.

— Antes, o quê?

— Que eu deixei de me interessar por Thomas, embora deva admitir que, ao re¬ver David, tudo ficou claro.

— Você não deixou de amar Thomas por causa da lembrança do primeiro amor, é isso?

— Exato. Eu apenas recordava David uma vez ou outra, apenas como se recor¬da algo agradável, bonito. David não in¬fluiu em minha decisão. Apenas, quando o vi, foi como se tivesse andado cega, e de repente, enxergasse tudo muito bem. Mas, o fato é que meu amor por Thomas havia se acabado há muito tempo. Não suportava mais que me beijasse.

Ouviu-se o choro de Tony.

Faye correu para atendê-lo. Ao voltar para a cozinha, Maura estava resmungan¬do.

— Foi a chupeta que caiu, não? Olhe, se casar e tiver filhos, não lhes dê chupeta. Se eu tiver mais filhos, não vou acostu¬má-los a ela. É um péssimo hábito.

— Acho que ele está é com fome, pois não ficou muito satisfeito só com a chu¬peta.

— Vou preparar seu mingau agora mesmo.

Ambas emudeceram, enquanto conti¬nuaram o trabalho. Finalmente, estava tudo em ordem.

— Que tal sentarmos um pouco? — su¬geriu Maura. E, sentando-se, comentou: — Estou preocupada com John. Queria tanto ajudá-lo de alguma forma... Assim que Tony estiver maiorzinho, coloco-o nu-ma creche, ou maternal, e vou trabalhar, nem que seja meio-expediente.

— O que não evitará que John se ma¬te trabalhando, e com a desvantagem da criança ficar longe de você.

— Esse trabalho de John, como agen¬te de seguros, é horrível. Tem que andar o dia todo, atrás de clientes novos.

Depois, se levantou e foi apanhar umas peças lavadas.

— Deixe isso comigo, Maura. Quase não fiz nada em todo o dia. Moro com vo¬cês, não ajudo em nada, meu dinheiro é todo para comprar roupas e bobagens.

— Está numa idade em que se adora roupas — retrucou a irmã com suavida¬de. — Não diga bobagens, pois onde co¬mem dois, comem três. Vá descansar, que eu faço isto.

Faye, automaticamente, obedeceu.

— Até amanhã, Maura. —- Descanse bem, querida. Inclinou-se para beijar a irmã, como sempre fazia ao deitar-se, e súbito, abraçou-se a ela.

— Faye, está chorando... O que foi? — e aturdida: — O que aconteceu, Faye? Por que está assim? Afinal, Thomas aceitou a situação, não irá persegui-la. Mes¬mo porquê, é um rapaz bem formado, de¬cente e digno. Mesmo sofrendo, não a pro¬curará mais. Se está preocupada com o que lhe fez, é tolice. Todos temos direito a defender nossos sentimentos, e o que não podia era casar-se sem amar real¬mente. Por favor, querida, não fique as¬sim. Não há motivo, acredite.

Faye não dizia nada. Enxugara as lágrimas e se separara da irmã, e encolhida sobre si mesma, cami¬nhou em direção a seu quarto.

Maura, um pouco nervosa, tratou de passar a roupa do bebê, arrumando-a em seguida no armário.

Depois, franziu o cenho. Pensava. Alguma coisa de grave ocor¬ria com sua irmã, isso era óbvio.

Deu uma última olhada no filho, que dormia placidamente. Em seguida, foi pa¬ra o quarto de Faye.

Encontrou-a já vestida para dormir, com os olhos úmidos.

— Maura — exclamou ao vê-la — pen¬sei que estava ainda passando roupa.

— Já terminei. Vim para ouvi-la, sei que tem algo a me contar há dias. Estou preocupada. Se você chora tanto, é por¬que talvez ainda ame Thomas. Querida, te¬mos que falar sobre isso, não pode é fa¬zer nada sem pensar bem.

Faye foi para a cama, deitou-se e ficou de olhos abertos, olhando para o teto.

— Não vai me dizer nada, Faye? — murmurou Maura. — Estou aqui só para ouvi-la.

— Vou fumar um pouco, sinto que es¬tou precisando — disse Faye, de súbito.

— Você nunca fumou, não vai come¬çar agora, só porque tem um problema. Vamos, desabafe comigo, que é melhor. Vai se sentir aliviada, verá.

— Estou inquieta, sim. Não sabe quan¬to.

Sua voz era abafada.

Profunda e grave.

Maura sentou-se na borda da cama.

— Por Thomas, por David...

— Por David.

— Ah.

— Thomas compreendeu. Sofreu, mas aceitou. Mil coisas nos separam, e mil coi¬sas nos aproximam.

— Como assim?

— Nos separa a falta de amor. Esse tédio que sinto ao lado de Thomas, embo¬ra reconheça que ele é o mesmo de sem¬pre. Não posso me imaginar sendo sua es¬posa. Ao passo que, só em pensar que pos¬so me casar com David, fico emocionada, vibro por antecipação.

— Bem, e o que impede que vocês se casem?

— Thomas.

— Não compreendo. Você mesma me disse que Thomas aceitara a situação.

Faye a fitou longamente.

— Há algo que você não sabe, por isso não compreende. Meu relacionamento com Thomas... foi íntimo.

Pronto. Estava dito.

Maura foi se levantando lentamente, como se estivesse hipnotizada. Pálida, co¬mo se sofresse um golpe.

— Faye... Oh, Faye!

— Sim — disse Faye sem chorar, mas com amargura — por ser humanos, so¬mos débeis, não? É uma etapa de minha vida que quisera esquecer, mas não me é possível. Tenho que aceitá-la assim, acompanhando-me em cada momento da vida... Sei que estará me condenando, tanto quanto eu mesma me condeno — suspi¬rou. — Nos amávamos e nos faltava ex¬periência para conter-nos. Isso foi tudo.

Calou-se.

Maura estava tão chocada, que não sa¬bia o que dizer. Censurar Faye, o que ela mesma se censurava, parecia-lhe uma incongruência, aceitar os fatos como bons, uma insensatez, parecia-lhe.

Faye continuou, num sopro de voz:

— O que aconteceu, não tem remédio. Também não vou passar a vida me lamen¬tando, como não vou pôr a culpa em Thomas. Aconteceu. Passávamos tardes intei¬ras no campo... Enfim, não há explica¬ção, nem adianta estar falando. Quando penso nisso, tento me consolar dizendo-me que não tivemos culpa e se houve alguma culpa, foi de nossa juventude e inexpe¬riência. Bem, não adianta querer arranjar desculpas, aconteceu e é preciso se enca¬rar os fatos.

— Faye — sussurrou Maura, mais do¬na de si — não sei o que dizer-lhe. Tam¬pouco acho que deva se casar com Thomas só pelo que houve.

— Isso, não farei — disse Faye com firmeza. — Prefiro ficar solteira toda a vida, a me casar com um homem que não amo. Como e quando deixei de amá-lo? Não sei. Acho que foi pouco a pouco. Gra¬dualmente, fui perdendo o interesse por Thomas. Se a culpa foi dessa intimidade com ele, que não me fez feliz? Sei lá! Brin¬camos com fogo e nos queimamos. Eu por deixar de amá-lo e Thomas porque ainda me ama. É tudo muito complexo, Maura. E muito doloroso, e não por Thomas, que poderá esquecer o amor que tem por mim, e sim por mim...

— Falou a David sobre isso?

Fitou-a espantada.

— O problema é esse. Não lhe disse na¬da... E não sei como dizê-lo, e sem dizê-lo, não me caso com ele. Entende? Ou lhe digo tudo, ou termino tudo com ele.

— Bem, uma coisa é fora de dúvida: tem que contar tudo a ele, e talvez o per¬ca. Nem todos os homens têm o mesmo conceito de certas coisas. Tanto ele pode ser compreensivo e tolerante, como pode ser um homem antiquado, intolerante, que jamais a perdoará.

— Nosso namoro, quando éramos ado¬lescentes, não podia ser mais puro, mais inocente... David é um homem respeita¬dor. Impetuoso, sim, mas respeitador.

— Quer dizer com isso que Thomas não o foi?

— Não, não, Maura. Thomas e eu está¬vamos apaixonados, e a forma de nos co¬municarmos foi essa. Errada, eu sei, mas quando me dei conta, já era tarde. Enfim, não vou deixar que isso condicione minha vida futura. Não me casarei com Thomas, só porque um dia lhe pertenci. Não sei se estou certa ou errada, mas essa experiên¬cia me deu chance de saber que ele não é o homem da minha vida. Portanto, o pro¬blema não é esse. A questão é David e minha firmeza e honestidade para dizer-lhe o que ocorreu.

— Pois terá que fazê-lo, o mais fran¬camente possível. Arrisca-se muito, mas terá que se arriscar. Não sei como David reagirá...

Súbito, Faye a fitou diretamente, e fez uma pergunta também direta:

— Se você fosse David, o que diria? Aceitaria os fatos? Me desprezaria?

— Sou mulher e tenho um conceito essencial de certas coisas, Faye — aturdiu-se Maura. — Eu amava John, e por causa de nossa situação econômica, não podíamos nos casar em menos de três anos... Mesmo assim, não tivemos expe¬riência pré-marital. No entanto, somos muito felizes em todos os sentidos. Não, posso responder-lhe. Talvez eu seja anti¬quada... Mas, sou sua irmã e tento por todos os meios desculpá-la, o que me faz ser mais generosa do que o devido.

Faye se levantou da cama, deu algu¬ma voltas pelo aposento, com os pés no chão.

— Falarei com David na primeira ocasião. Talvez amanhã mesmo. Não posso é continuar esse relacionamento sem a ver¬dade pela frente. Não quero que David se apaixone mais ainda por mim e eu dele, e me dê a tentação de casar-me sem con¬tar-lhe.

— Isso nunca, Faye!

— Certo. Isso nunca, é o que penso, mas... eu amo David e renunciar a ele seria terrível.

— Mais terrível seria que David a dei¬xasse na noite de núpcias. Acontecem coi¬sas assim. É melhor ser sincera, embora se sofra, que ser mentirosa e gozar de be¬nefícios de outros. É mais provável que, calando-se, David a censure o resto da vi¬da por seu silêncio, do que se falar agora com ele... Se a quiser, é porque a ama de fato e não se preocupa com coisas pas¬sadas, nem isso pode abalar sua confian¬ça em você. Mas, não pode é enganá-lo. É o que eu acho.

— Eu também. Se não fosse isso, se eu quisesse enganá-lo, talvez não estivesse tão inquieta.

— Mas, se caísse na besteira de não contar, arriscaria a própria felicidade de qualquer jeito, pois David não é um ho¬mem inexperiente, saberia do que ocor¬rera.

— Nunca pensei em enganá-lo. Mas não posso evitar que o tema me assuste, porque posso perder David.

— No entanto, vai lhe contar a verda¬de.

— Obrigada por sua compreensão, Mau¬ra — disse Faye com tristeza. — Sei que, no fundo, você me censura e não lhe tiro a razão.

Maura se levantou. Foi até ela e a bei¬jou no rosto.

— Não a censuro, Faye, e não o faço porque sei que você mesma já se censu¬rou bastante. E depois, você sempre foi muito correta, não teria caído em tenta¬ção à toa — afastava-se. Já na porta, acrescentou: — Não sofra mais. E se quer um conselho, não espere nem mais um dia para contar a David. O pior é ficar cala¬do, angustiando-se, sem saber a reação de¬le. Quando lhe disser, se sentirá aliviada.

— E talvez o perca.

— Também pode ser. Mas, é algo que pode ocorrer de qualquer jeito, e o melhor é que você lhe mostre que é honesta e fran¬ca. Se o perder, ainda poderá um dia re¬cuperar-se, refazer sua vida. Pior é casar-se e perdê-lo logo na primeira noite, e o que é mais grave, sentindo todo o seu des¬prezo.

— Falarei com ele, na primeira ocasião.

— E que não seja por telefone, pois não lhe veria o rosto. Tem que ser frente a frente, mesmo que isso lhe custe.

 

Viu-o logo que saiu da loja.

Todo o dia ali dentro era pior que uma lenta agonia, pois embora o ambiente fos¬se refrigerado, nem por isso era menos sufocante. À hora do almoço, iam por tur¬nos aos refeitórios, e a maioria das vezes, comiam mesmo de pé. Aquele dia fora can¬sativo e Faye, com um dia estafante e mais o que levava dentro de si, saiu da loja com o semblante pálido e algo encolhida.

David foi-lhe ao encontro e agarrou-a pelo braço, apertando-a instintivamente contra si.

— Aconteceu algo, Faye? — e sem es¬perar resposta: — Não pude deixar de vir apanhá-la — olhou em torno. — Seu na¬morado não veio, verdade?

— Rompemos para sempre. Isso... se acabou.

David apertou-a mais contra si e lhe disse:

— Obrigado, Faye.

— Não agradeça — disse Faye. — Não o fiz por você. Teria feito, de qualquer mo¬do. Foi uma coisa que se tornou imperiosa, eu mesma nem sei porquê.

— Bem, foi melhor. Não me agrada ser responsável pela desgraça alheia. E supo¬nho que esse homem estará sofrendo, porque não concebo que alguém a conheça e não a ame profundamente.

Levava-a para a cafeteria em frente.

— Não — disse ela, detendo-se. — Pre¬firo dar um passeio, e se veio de carro, tan¬to melhor.

— Está no estacionamento subterrâ¬neo. Vamos os dois, se quiser, ou fique me esperando aqui, enquanto vou buscá-lo.

— Vou com você — disse ela. Estava bonita, como sempre. Vestia um modelo de tarde, de malha cor de canela, pespontado de branco, bem esportivo. Cal¬çava sapatos marrons e levava bolsa combinando. Assim, com aquele cabelo curto aquele olhar melancólico, mais parecia uma menina.

David a envolveu pelos ombros e a con¬duziu até o estacionamento.

— Está na primeira plataforma — di¬zia David rindo. — Tive sorte desta vez, arranjando essa vaga — inclinou-se para vê-la melhor. — Faye, está triste?

— Digamos que não estou contente.

— Não? Por quê? Eu a amo muito Faye, e você a mim, que coisa pode nos preocupar ou nos por tristes?

— Sempre há coisas, não?

David se deteve ali e apertados contra a parede algo úmida, beijou-a na boca.

— Pare, David.

— Bobinha. Quando se ama, é preciso demonstrá-lo, não?

— Por favor...

E o empurrava.

Mas David era impetuoso e a encerrou pela cintura, de modo que quase a imobi¬lizou.

Tornou a tomar sua boca e Faye não foi capaz de conter-se e se apertou contra ele e, instintivamente abriu os lábios.

— Faye...

— Si... sigamos.

— Espere. Nada me agrada mais do que beijá-la. Espere...

Alcançou-a de novo, enlaçando-a pelo busto.

— David, pelo amor de Deus...

— Pelo nosso amor, Faye, deixe que...

E outra vez a beijava apaixonadamente.

Tanto que Faye se sentiu agitada.

Por um segundo passou por sua men¬te calar-se.

Perder David era sacrifício demais e não acreditava que, uma vez perdido, pu¬desse refazer sua vida. David era seu ho¬mem, estava certa disso. Era impetuoso, ardente, fogoso e apaixonado, e com uma virilidade impressionante.

— Vamos — sussurrou-lhe. — Solte-me.

— Mas você gosta, Faye.

— Podem nos ver, e não quero. Por fa¬vor...

David cedeu de má vontade. Mas sem soltar a mão da jovem, levou a para onde estava seu carro.

Silenciosamente, entraram um de cada lado e David disse, de repente, ao por o carro em marcha:

— Por que não me leva para conhecer sua irmã?

Faye agitou a cabeça.

— Como?

— Simpatizo com Maura, pelo muito que ela gosta de você, o que já notei há muito tempo. Quero conhecê-la e não pen¬se que vou ficar de namorico o tempo to¬do. Quero me casar o quanto antes — fi¬tou-a rindo. — Ou a torno minha aman¬te, ou minha mulher, e como quero as duas coisas...

— Saiamos da cidade — disse Faye, sufocada. — Aqui faz muito calor.

— Como queira — disse David de bom humor.

De qualquer modo, lá se foram para um recanto mais distante da cidade.

Não concordou em levá-lo até sua casa.

Não lhe disse nada, também.

Faltou-lhe coragem para ambas as coi¬sas.

E assim esteve mais de uma semana. Ele a esperava todos os dias e iam passear de carro, ou dançar. A situação para Faye se tornava insustentável porque David queria casar-se o quanto antes. Dizia sem¬pre:

— Mas, o que ocorre? Não nos conhe¬cemos o outro dia. Isto já é antigo, não? Não é como dois que se conhecem e têm que saber se se entendem ou não. Já nos conhecemos há anos. Conheço suas debilidades e você as minhas. Conhece meus de¬feitos, e julgo conhecer os seus.

Não todos.

Era o que a continha.

David ao beijá-la ou ao tocá-la, excita¬va-se demais e dizia, entre dentes, que se não casasse o quanto antes, faria uma lou¬cura.

Aquela dia, discutiam sobre se ele ia ou não conhecer Maura, a John.

— Como sabe, a família é pequena. Maura e seu marido, John, um homem trabalhador, que dá um duro danado, coi¬tado, para viverem um pouco melhor. E o filho.

— Sabe, estou mesmo precisando de um administrador geral. Tenho um, mas me parece que está agindo com deslealdade. O encarregado está muito velho, já traba¬lha ali desde a época de papai. Preciso de um homem de toda confiança, ao qual pa¬garia muito bem e o poria como sócio in¬teressado no negócio. Portanto, quero conhecer seu cunhado agora mesmo e fazer a oferta para ele. Não creio ser preciso di¬zer — acrescentou — que o negócio é lim¬po e de bons lucros. Meu pai o conduzia meio à antiga, e em vez de renovar-se, pre¬feria levar o dinheiro ao Banco, com o quê, ao falecer, me deixou uma conta corren¬te imensa, ações em todas as empresas e uma oficina antiquada. O que pensa que fiz? Renovei tudo, gastei alguns milhões do que meu pai guardou e montei uma ofici¬na ultra moderna, e que agora está pro¬duzindo a olhos vistos. Comprei os terre¬nos ao lado. Tenho ainda o posto e o bar-restaurante. Por que não vamos até lá e você vê por si mesma, Faye? Tenho tam¬bém um salão para exposição de automó¬veis, que é uma coisa. Preciso, portanto, de um homem que fique no escritório, di¬rigindo essa empresa, enquanto vou aos Bancos, saio por aí. Sei que você não liga para isso, mas quero que saiba que não vai se casar com um pobretão. Não ando chique, não freqüento clubes elegantes? Porque prefiro uma vida simples, junto com minha família... minha futura fa-mília.

— Fico contente por você, David — disse Faye, tentando desprender-se de seus braços — mas a sua situação econômica não me preocupa. De qualquer modo, o mesmo não posso dizer sobre meu cunha¬do e, fique certo que falarei com ele so¬bre sua oferta, e é provável que vá pro¬curá-lo.

— E por que não quer que vamos ago¬ra os dois? Não me venha com desculpas. Faye, você é muito antiquada — de repen¬te a fitou espantado. — Ou não me ama o bastante para casar-se comigo?

Era o momento.

Mas Faye não quis aproveitá-lo. Cada dia que passava, lhe dava mais medo de abordar o tema.

Assustada, quase, conseguiu escapar dos braços de David e, sem que ele pudes¬se esperar, saiu correndo e entrou no seu prédio.

David não a seguiu. Sabia que não a alcançaria. Portanto, deu-lhe tempo para chegar em casa e foi até o telefone públi¬co.

Atendeu-o uma voz cálida e suave:

— Sou David — disse. — Aposto como é Maura.

— Sim, sou...

— Maura, como vai? Queria conhecê-los, mas a boba de sua irmã não deixa. Não sei porquê. Arranja mil pretextos pa¬ra não me levar aí, Você sabe o que se passa, Maura? Ou foram vocês que proibi¬ram que eu fosse?

— Claro que não. Venha sim, quando quiser. Agora, se quer falar cem Faye, está entrando em casa.

— Quero sair. Mas, escute, sei que seu marido, não está contente com seu emprego, e tenho uma oferta a fazer-lhe. Faye lhe falará sobre isto, porque já estivemos conversando sobre o assunto. Depois, se John concordar, diga-lhe que passe ama¬nhã em meus escritórios e me procure. Es¬tou apertado com o administrador que te-nho e quero substituí-lo. Se John aceitar o emprego, é dele.

— Obrigada, David — Maura se emo¬cionou. — Falarei com John sobre isto. Muito obrigada mesmo. Bem, passarei o fone para Faye — e em voz alta, alterada, gritou: — Faye, é seu noivo.

David ouviu passos e em seguida a voz de Faye:

— Mas, o que está fazendo, David?

— Você saiu tão às carreiras — res¬mungou — acha que pode fazer isso com seu futuro marido?

— Mas David — sufocou-se — estive¬mos juntos toda a tarde. Você é muito im¬petuoso, e eu fico quase encolhida a seu lado. E diz que saí às carrerias? O que queria ainda, David? Não entendo.

— Bem, o negócio é este, quero me ca¬sar depressa, portanto, vá pensando numa data bem próxima. Caso contrário, um dia desses a levo para um hotel, pois preciso demais de você. Está claro, Faye?

— Bem, vou pensar. Agora, desligue. Tenho que arrumar a mesa.

— Está me despedindo.

— Não seja criança, David Já falamos muito.

— Faye — a voz de David era suplicante — por favor... deixe-me falar um pouco mais. A verdade é que já não me agüento. Sou assim, o que posso fazer? Estou apaixonado, desejo-a como um bárbaro e, ou nos casamos em seguida, ou me mato, ou a rapto, ou faço qualquer lou¬cura.

— Amanhã falaremos.

— Amanhã marcaremos a data. Está bem?

— Está.

— O que é? Fala de má vontade.

— David, David, amanhã falaremos. Dou-lhe a minha palavra.

— De acordo, então. Amanhã. Durma bem, amor.

— Tchau, querido.

 

Desligou o telefone e se virou devagar, pois havia visto a sombra de Maura na parede.

— Não lhe disse ainda — disse Maura contrariada.

Faye se agitou e moveu a cabeça, ne¬gando.

— O que espera? Esse rapaz está louco por você e você por ele. O que espera? Que ele adivinhe? Esteve falando de um em¬prego para John. Quando este souber, vai ficar muito contente.

Faye se deixou cair numa cadeira, com as mãos sobe o queixo.

— Não lhe diga nada ainda, Maura. Deixe que eu fale primeiro. John não tem necessidade de saber certas coisas. E se lhe disser, se eu falo com David e este aca¬ba o noivado, pode ser que lamente perder o emprego, entende?

Maura a fitava com ansiedade.

— É imperdoável que você tenha tão pouca coragem, Faye. David a ama com loucura e pode ser que, sendo um homem moderno, aceite o que aconteceu...

— Engraçado como são as coisas — comentou Faye com amargura — eu e Da¬vid nos amamos mais do que nos amáva¬mos eu e Thomas, e no entanto, sei que essa coisa não aconteceria conosco. Verdade que David parece um louco, quando me beija, fica numa excitação incrível, mas jamais me pediu nada que eu não pudes¬se dar-lhe honestamente.

— Era o que acontecia comigo e John.

— No entanto, sem sentir esse amor profundo, sem conhecer essa paixão avas¬saladora, entreguei-me a um homem amando-o menos. Não entendo isso.

— A inexperiência leva a pessoa por caminhos tortuosos, sem saber que ao fim existe um abismo. Quando se tem expe¬riência, se prevê o abismo e se vai por ou¬tro caminho. Esta é a diferença — e, ra-pidamente — Voltou a ver Thomas?

— Não. Telefonou-me outro dia e lhe disse a, verdade. Que estou comprometida.

— Perguntou-lhe algo concreto do pas¬sado relacionando-o com David?

— Nada. Já disse que Thomas á um homem bom, um homem nobre. Está ar¬rasado, mas sabe que as coisas não têm remédio. E sabe, também, que David não teve culpa de nada.

A campainha da porta soou e as duas ficaram como que espantadas, pois John nunca a tocava.

— Eu abro — disse Maura. — Você, vá se trocar.

Mas não lhe deu tempo.

Maura abriu e apareceu David sorri¬dente, alto e descontraído como sempre. Calça de lã bege, camisa marrom e as in¬defectíveis botas texanas.

— David — exclamou Faye sem mover-se.

David ria, com aquela sua simpatia, que deixava seu rosto com uma expressão quase infantil.

— Você é Maura — disse ele rindo. — Acertei?

E, espontaneamente, beijou-a na face.

— David — gritava Faye, nervosa — eu disse...

— Falei com sua irmã por telefone, e me disse que podia vir quando quisesse. Não foi isso, Maura?

A esposa de John ria, nervosa mas fe¬liz de conhecer aquele rapaz agradável, e que pelo visto amava Faye o bastante para desculpá-la.

Disso, não havia dúvida.

Bastava ver David para se notar que era um homem esclarecido, humano, e tão apaixonado, que derrubaria qualquer obs¬táculo ao seu amor.

— Faz bem — disse Maura, dando-lhe passagem.

Faye ainda gritou:

— Mas isto é um abuso.

David, com, seu jeito de criança gran¬de, aproximou-se de Faye e a beijou no rosto.

— Desculpe, Faye. Não podia mais. Por que diabo, se vamos nos casar, não posso conhecer logo sua família? — olhou em torno, sem soltar a noiva. — E John? Posso falar com ele?

— Passe para a saleta — convidou Maura. — John não tarda em chegar. Quer jantar conosco, David? Não ligue para a zanga de Faye.

Naquele momento, o bebê chorou e Maura foi atendê-lo.

Quando ficaram sós, David pareceu meio coibido.

— Não sou um intrometido. Faye. Não me julgue mal. Mas é que não podia mais. Por que não queria me trazer aqui? E de¬pois, preciso mesmo falar com John. Quem melhor do que o concunhado, para ser meu homem de confiança?

— Ainda não nos casamos.

— Pois é — David e alterou, — essa é a questão. Vamos casar ou não? Eu não agüento mais essa situação, e já lhe dis¬se.

Maura regressou para o seu lado.

— Se quiserem dar uma volta até que se apronte a comida, — disse, e olhou sig¬nificativamente para Faye, como dizendo-lhe: "Conte-lhe agora". — Contanto que não se demorem demais.

David adorou a idéia.

Mas Faye não pareceu concordar.

— Prefiro ficar.

Maura a olhou quase severa.

— Pois faz mal — disse secamente. — ...o melhor momento.

Faye estremeceu. David dizia:

— Vamos, Faye. Assim, quando John chegar, Maura vai logo lhe contando so¬bre a minha proposta — olhou para Mau¬ra com simpatia. — Sabe que eu quero me casar ainda nesta semana, e sua irmã tei-mosa não aceita?

Maura disse, cortante:

— Pois é hora que se decida, sim ou não, meias palavras nunca deram bons re¬sultados.

David não a entendia, mas Faye sim, é claro.

Era duro para ela abordar o tema aque¬la noite.

E se David, ao sabê-lo, virasse as cos¬tas para ela e nunca mais a quisesse?

Seria terrível se ocorresse, e se dava conta naquele instante, do medo que ti¬nha de contar-lhe a verdade.

— Vamos, Faye — dizia David, ansio¬so — podemos ficar naquela pracinha aqui perto mesmo. Só para darmos uma voltinha.

— Assim que John chegar, falarei com ele. Vai ficar contente — afirmou Maura. — Já anda cansado do trabalho que tem, sempre nas ruas, de um canto para o ou¬tro na cidade.

— Tenho certeza de que ela vai gostar do emprego — disse David. — Como sei que também gostarei de tê-lo comigo.

Faye ainda relutou para sair, pois sa¬bia que teria que falar.

Finalmente, David e ela saíram.

— Faye, acho que você não gosta de mim.

— Eu o amo, David.

— Mas não parece. Chega quase a me evitar. E eu louco para beijá-la. Penso que isso é uma prova do que sinto por você. Mas não sou correspondido.

No elevador, David abraçou-a com for¬ça e procurou beijá-la.

— David...

— O que há? — angustiou-se ele, — Será que não posso mais beijar minha noi¬va?

Faye se afastou, dirigindo-se à porta de entrada do prédio.

— Espere, Faye.

Alcançou-a já do lado de fora, e jun¬tos atravessaram a rua e foram se sentar no banco da praça, sob uma árvore fron¬dosa, onde ficavam quase ocultos das ou¬tras pessoas que passavam.

 

David era muito ardente, e era natu¬ral que, ao se sentarem, tentasse logo bei¬já-la.

Mas Faye estava decidida a contar-lhe tudo e para isso, era preciso muita sere¬nidade.

Assim, pôs uma mão entre ambos.

— O que foi agora, Faye? Não me diga que censura nossas demonstrações de ca¬rinho, de paixão. É uma coisa natural, entre pessoas que se amam.

— Eu sei, David, mas preciso falar com você.

— Sobre o quê?

— Sobre coisas.

— E precisa ficar tão séria...

— Porque a coisa é séria — disse Faye com a voz rouca. — Muito séria e grave, David.

Ele não entendia nem queria, passou um braço em volta dos ombros de Faye, atraindo-a para si. E ia tomar a beijá-la, mas Faye o impediu.

— Bem — resmungou ele — vejo que está do contra. Pois, se vai dizer que quer adiar o casamento, não aceito. Vamos ca¬sar o quanto antes. Assim que arranjar os papéis, e os meus estão em dia, os seus também devem estar, acredito.

— Não se trata disso.

— Não?

— Pois, não.

David, de repente, ficou sério.

— Aconteceu algo Grave, Faye?

— Sim.

— E o que pode ser, para ficar tão grave?

— O que tenho a lhe dizer é muito grave e não sei como vai aceitá-lo.

David franziu o cenho.

— Pelo visto, é sério mesmo...

— Sim.

— E tenho que sabê-lo?

— Tem.

— Escute — levantou seu queixo com o dedo — ficou triste de repente. Muito triste... Faye, o que foi?

— É sobre mim.

David pestanejou.

— Sobre você?

— Sim.

— Pois, não entendo. Se não for mais explícita...

— Que idéia tem de certas relações íntimas prematuras, David?

Ele não entendeu. Começou a rir, e disse:

— Não me venha com essa, Faye. Nun¬ca lhe pedi nada de anormal.

Não entendia, e ela não sabia como di¬zer-lhe.

— Sabe Deus como me agüento — di¬zia David convencido de que o assunto era por sua causa e sua paixão ardente. — Mas nunca a chamei para ir a minha ca¬sa, ou a um motel. Amo-a demais, desejo-a feito um louco, mas acima de tudo, a respeito.

Pior ainda.

Sendo ele assim, poderia perdoar-lhe uma fraqueza cometida no passado.

— Não me refiro a você, David.

— Pois então, não entendo. Você está a ponto de chorar.

Esforçava-se para não fazê-lo.

— David...

E se calou de novo.

David procurou seus olhos.

— Querida, o que há? Tenho eu a cul¬pa do que a atormenta? Descobriu que não me ama o bastante? Se for isso, pre¬firo que me minta. Mais feliz serei, se me mentir, do que se for sincera e acabar com meus sonhos.

Sabia que David a amava muito, mas nunca imaginou que fosse tanto. Que aconteceria quando ela lhe confessasse... o inconfessável?

Isso era o pior.

— Por favor — disse David roucamente — se é para me dizer que não me ama... por favor, não diga! Não acabe com a mi¬nha vida.

Armou-se de coragem. Teria que dizê-lo ou sair correndo, fugir e não falar mais, mas tampouco casar-se com ele.

— Faye, começo a perceber que o que tem a me dizer a tem atormentado há mui¬to tempo. Eu a conheci quando tinha quinze anos. Era uma garota alegre e des¬contraída, e quando a beijava se emocio¬nava, embora me fugisse. Agora, desde que ficamos noivos, parece que ao mesmo tem¬po que deseja meus beijos, foge deles. Não é a mesma de antes, e isso é estranho, porque quanto mais se amadurece, mais espontâneo se fica.

— Concordo com você, David.

— Então... ?

— Você sabe que tive um namorado.

David franziu o cenho.

— Mas o deixou. Não me diga que des¬cobriu agora que era a ele que amava e ama.

— Não, não é isso. Tenho certeza que é a você que eu amo. Deixei de amar Thomas há muito tempo, mesmo antes de vo¬cê reaparecer na minha vida.

— E daí, Faye?

— David — Faye apertava uma mão contra a outra — é muito difícil o que tenho a dizer-lhe. Será que tenho de ser mais explícita? Não entende mesmo, sem que eu precise passar por uma vergonha?

David começou a entender.

Ficou rígido.

Era um homem moderno, civilizado. Sentiu que odiava o que ela tinha a dizer-lhe, mas...

Era preciso sabê-lo de sua boca.

— Prossiga, Faye, não se detenha.

Faye se levantou e olhou ao longe. Es¬tava de costas para ele, mas David a fez sentar-se de novo.

— Não adianta querer escapar, Faye. Um dia ou outro, temos que enfrentar a realidade, mesmo que nos machuque a am¬bos.

Faye se sentou, mas tinha o olhar fi¬xo a sua frente. David segurou-lhe o quei¬xo e olhou-a nos olhos.

— Está chorando, Faye.

Ela tentou se levantar de novo, mas David a reteve ali.

— Quantas vezes tentou me dizer, Faye? — Ele sentiu que algo lhe apertava a garganta.

— Mil vezes — disse, e sua voz era como um gemido.

Depois, ocultou o rosto entre as mãos.

Caiu um silêncio terrível entre ambos.

David havia se levantado. Olhava ao longe, sem ver nada.

O silêncio parecia interminável.

De repente, David encontrou a voz pa¬ra dizer:

— Não estou com raiva, Faye — a voz dele era diferente, estava alterada demais, apesar da aparente calma. — Tenho mui¬ta pena. Gostaria que me deixasse refletir nisso. Preciso de tempo para assimilar o que aconteceu. Mas, compreendo sua posi¬ção. Compreendo-a perfeitamente.

— Foi...

— Não — cortou David baixo, mas com energia — não quero saber como foi. Imagino-o... E compreendo você e seu namorado, as situações e os momentos crí¬ticos de um par de pouca idade. Tudo eu entendo. Mas não me peça para ficar in¬diferente, ou muito menos alegre.

— Não lhe peço, David.

— Tire as mãos do rosto, Faye. Aceite as situações, por mais difíceis que sejam. Eu até a desculpo, sabe? Afinal, todos so¬mos humanos, e sujeitos a falhas, a fra¬quezas. Ninguém pode julgar ninguém, nem deixar de ter compreensão. Espero poder esquecer, e você também deve fazê-lo. O que importa é o nosso amor. Agora, não se fala, mais nisso. Vamos voltar para sua casa, pois sua irmã está nos esperando para jantar. Ela o sabe, verdade?

Assentiu. Não podia falar, por isso só moveu a cabeça.

— Então vamos, Faye. Não falemos mais nisso. É penoso para você e para mim.

Puxava-a do banco. Faye parecia um objeto.

— Vamos... Devia ter me contado an¬tes, Faye. Eu estaria menos preparado, mais frio, menos envolvido nesse amor que me transtorna. Mas não chore, Faye. São coisas que passam. O jeito é saber superá-las. Veremos se ambos o sabemos.

— Não precisa me acompanhar, David. Eu o desculparei com minha irmã. Direi que você volta outro dia... Não se case comigo. Eu não podia casar-me, sem dizer-lhe...

Como resposta, ele atraiu-a para si e a conduziu rua abaixo, sem largá-la.

— Era muito jovem e ingênua. E ele também, com certeza. Bem..., esqueçamos isso. Mas, dê-me tempo. Será pouco, acre¬dite. É preciso ser humano e o que não se pode é ir contra seus sentimentos, e os meus são profundos. Não se dissipam as¬sim, à toa. Crescem e se multiplicam.

— Não vá lá em casa hoje, David... Por favor. E não apareça na loja...

— Bem, hoje não irei a sua casa. Es¬tamos os dois alterados e precisamos de calma, de reflexão. Mas, desde já fique sa¬bendo que não vou viver sem você, porque a amo demais. Vamos fazer de conta que você tem quinze anos, e eu vinte. Somos dois jovens que se amam e que são puros — mordeu os lábios. Chegavam ante a ca¬sa de Faye. David a beijou na face. — Quando eu voltar... não me faça mais recordar o passado...

— Se não se sentir com forças, não volte, David.

— Certo. Mas se voltar, voltarei acei¬tando todas as conseqüências e não para acusá-la no futuro — passou-lhe o dedo pelas feições. — Não chore mais e acal¬me-se. Já resolveremos isso... Até ama¬nhã, Faye...

Faye entrou em sua casa e caminhou corredor abaixo. Maura veio ao seu en¬contro dizendo:

— Contou-lhe.

Assentiu com a cabeça.

— Muito bem, Faye — sussurrou Mau¬ra. — Mais vale perdê-lo hoje, que ainda estão em tempo, a perdê-lo dentro de uma semana.

— Pediu que o desculpasse...

— Sim, sim, claro. Como ele recebeu, Faye?

— Mal e bem — chorava de novo. — Como eu esperava que recebesse... Não ficou revoltado. Foi bom para comigo. Maura — sufocava-se, — deixe-me sozinha. Não quero jantar, vou para meu quarto.

Maura a beijou no cabelo.

— Sim, Faye, compreendo. Também não disse a John a proposta de David. Se tudo der certo, mais tarde lhe diremos.

— Obrigada. Maura.

 

Durante três dias, ela teve forças para ir ao trabalho. David não deu sinal de vi¬da. No quarto dia, ao chegar em casa, en¬controu Maura radiante.

— O que houve, Maura?

— David ligou para John, falou-lhe do emprego e John já foi vê-lo no escritório. Ainda não voltou.

— Oh.

— Você não o tem visto, verdade?

— Não...

— Voltará, Faye, verá como ele volta. É um homem bom e nobre, e acima de tu¬do, honesto e humano. Há coisas que, as¬sim de momento, não assimilamos porque não estamos preparados, mas depois se me¬dita... E os sentimentos contam.

Também os dela contavam e de pouco serviam.

Trancou-se no quarto, até que ouviu a voz de John, que acabava de chegar em casa. Parecia eufórico.

Foi vê-lo e a primeira pessoa que viu foi David. Com o seu jeito descontraído de sempre.

Viu John se dirigindo à cozinha, cha¬mando a mulher aos gritos. E Maura tam¬bém apareceu, e os dois se dirigiram à saleta. Faye não ouvia nada, pois tinha os olhos e a atenção fixos na figura de Da¬vid.

Ele deu alguns passos, detendo-se an¬te ela.

Depois, subitamente, e até um tanto brutalmente, apertou-a de encontro ao pei¬to.

Assim estavam, em silêncio, imóveis e abraçados, quando entraram Maura e John.

— Obrigada, David — dizia Maura, dando-lhe um beijo no rosto. — E agora, vão dar uma volta. Depois falaremos so¬bre o novo emprego de John. Sabe, Faye? Amanhã John começa a, trabalhar com Da¬vid. Já foi até se despedir de seu antigo em¬prego. Está tão contente.

John sorria e olhava para o casal um tanto perplexo.

— Agora, vão — disse Maura, emocio¬nada com tantas coisas boas. — Mas vol¬tem dentro de uma hora para comer.

Automaticamente, os dois giraram e se foram.

— Aonde quer ir, Faye? — perguntou ele, baixo.

A jovem ergueu o rosto.

Tinha lágrimas nos olhos.

Ele as secou quando entraram no ele¬vador e lhe passou a mão pelo cabelo. De¬pois, cuidadoso, quase reverente, beijou-a nos lábios.

— David...

— Casaremos depois de amanhã... Combinado? — segurava-lhe o rosto entre as mãos. — Depois de amanhã.

— Está bem.

O elevador se detinha e ambos saíram dele.

— Faye, você concorda em se casar logo?

Um movimento afirmativo de cabeça.

Depois, ela mesma se aconchegou mais a ele, e caminharam abraçados. Ele dizia, baixinho:

— John está contente e eu esperançoso. Garanto que vamos nos dar bem.

— Você é... muito bom.

Ele riu. Um riso franco, cálido.

 

Ali ficavam Maura e John, os dois com Tony, e Max rindo e Jim e todos os empre¬gados.

David dirigia na auto-estrada. Faye, ao seu lado, estava tão emocionada, que qua¬se não falava.

— Passaremos nossa lua-de-mel em mi¬nha casa. Mais tarde, então, viajaremos. Quer?

Ela ria, recostando a cabeça em seu ombro.

— Para mim, basta estar ao seu lado.

Estavam agora no bonito apartamento, recém-restaurado.

— É lindo, David.

Mas David não a ouvia.

Tomara-a nos braços. Caía com ela no sofá ao fundo do salão. A luz tênue, era acolhedora.

Faye julgava sonhar. Um sonho mara¬vilhoso.

David era seu homem e ela, sentindo-o, era a mulher de David...

— Querida... — dizia David alterado, excitado, fogoso como ela já sabia que ele era — querida... Minha vida.

A noite era longe. Inefável. O passado ficava para trás. Nada se recordava ali, exceto eles mesmos. Eles, sozinhos...

 

                                                                                            Corin Tellado

 

 

                      

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