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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NOSSO HOMEM EM HAVANA / Graham Greene
NOSSO HOMEM EM HAVANA / Graham Greene

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NOSSO HOMEM EM HAVANA

 

Num conto de fadas como este, colocado numa data futura indeterminada, parece-me desnecessário dizer que não há relação alguma entre as minhas personagens e criaturas vivas. Contudo, gostaria de declarar que nenhuma das personagens teve como modelo qualquer pessoa real, que não existe, em Cuba, hoje em dia, policial algum como o Capitão Segura e que, certamente, não há embaixador inglês algum do tipo por mim descrito. Tampouco imaginaria que o chefe do Serviço Secreto se parecesse, de algum modo, à minha personagem mítica.

 

 

— Aquele negro que está descendo a rua — disse o Dr. Hasselbacher, de pé no Wonder Bar — me lembra a sua pes­soa, Sr. Wormold.

Era típico do Dr. Hasselbacher ainda usar, depois de quin­ze anos de amizade, o tratamento de "senhor". A amizade prosseguia com a lentidão e a segurança de um diagnóstico cuidadoso. Junto de seu leito de morte, quando o Dr. Hassel­bacher sentisse que o seu pulso falhava, talvez ele se tornasse Jim.

O negro era cego de um olho e tinha uma perna mais curta do que a outra. Usava um velho chapéu de feltro e suas coste­las apareciam, sob a camisa rasgada, como um navio que esti­vesse sendo demolido. Caminhava à beira da calçada, além dos pilares amarelos e cor-de-rosa de uma colunata, sob o sol quente de janeiro, contando cada um de seus passos. Ao pas­sar pelo Wonder Bar, rumo das Virtudes, já havia chegado a mil trezentos e sessenta e nove. Tinha de andar devagar para poder contar um número assim tão longo. "Mil trezentos e setenta". Era uma figura familiar junto à Praça Nacional, onde às vezes se deixava ficar, interrompendo a sua conta a fim de vender a um turista um maço de fotografias pornográ­ficas. Depois, recomeçava-a, partindo do ponto em que a havia interrompido. No fim do dia, como um enérgico passa­geiro de transatlântico, devia saber, metro a metro, o que havia caminhado.

— Joe? — perguntou Wormold. — Não vejo semelhança alguma. Salvo o coxear, claro.

Mas, instintivamente, lançou um rápido olhar à sua pessoa no espelho em que se lia "Cerveja Tropical", como se ele real­mente pudesse ter ficado tão estropiado e escuro durante a caminhada que empreendera desde a loja, na cidade velha. Mas o rosto que o espelho refletia estava apenas um pouco descorado devido ao pó das obras do porto. Era ainda o mesmo rosto, ansioso, quarentão, riscado de rugas — muito mais moço que o do Dr. Hasselbacher. Não obstante, um estranho poderia ter a impressão de que se extinguiria primei­ro, pois que as sombras lá estavam — as sombras de angús­tias que estão além do alcance de um tranqüilizador. O negro, manquitolando, desapareceu da vista de ambos, atrás da esquina do Paseo. O dia estava cheio de engraxates.

— Não me refiro ao coxear. Então não consegue ver nenhuma semelhança?

— Não.

— Ele tem duas idéias na cabeça — explicou o Dr. Hasselbacher. — Realizar o seu trabalho e contar os passos. E, além disso, é britânico.

— Ainda assim, não vejo... — respondeu Wormold, refrescando a boca com o seu daiquiri matinal.

Sete minutos para chegar ao Wonder Bar; sete minutos para voltar à loja; seis minutos de companhia. Consultou seu relógio. Lembrou-se de o mesmo estar um minuto atrasado.

— É digno de confiança, pode-se contar com ele, eis tudo — disse o Dr. Hasselbacher com impaciência. — Como está Milly?

— Maravilhosamente — respondeu Wormold.

Era sua resposta invariável, mas dizia-a com convicção.

— Dezessete anos no dia dezessete, hem?

— É verdade.

Olhou rapidamente por cima de seu próprio ombro, como se alguém o estivesse perseguindo, e, depois, tornou a olhar o relógio.

— Irá participar de uma garrafa conosco?

— Até agora, ainda não falhei. Quem mais estará lá?

— Bem, pensei que apenas nós três. Como sabe, Cooper voltou para casa, o pobre Marlowe se encontra ainda no hos­pital e Milly parece não se interessar por nenhuma dessa gente do Consulado. De modo que pensei em fazer a coisa tranqüilamente, em família.

— Sinto-me honrado de ser considerado como um dos membros da família, Sr. Wormold.

— Talvez uma mesa no Nacional. . . ou o senhor diria que isso não é bem. . . apropriado?

— Isto aqui não é a Inglaterra nem a Alemanha, Sr. Wor­mold. As moças crescem depressa nos trópicos.

Uma veneziana, do outro lado, soprada pela ligeira brisa do mar, abriu-se, com um rangido, e tornou a bater, com regularidade, como um velho relógio. Wormold disse:

— Preciso ir embora.

— Os aparelhos de limpeza poderão passar sem o senhor, Sr. Wormold. — Aquele era um dia de verdades incômodas. — Como os meus pacientes — acrescentou, amável, o Dr. Hasselbacher.

— As pessoas têm de ficar doentes, mas não precisam comprar aspiradores elétricos.

— Mas o senhor lhes cobra mais.

— E fico apenas com vinte por cento para mim. Não se pode economizar muito com vinte por cento.

— Não estamos numa época para se economizar, Sr. Wormold.

— Mas eu preciso. . . para Milly. Se algo me aconteces­se. ..

— Nenhum de nós espera muito da vida hoje em dia. Assim sendo, por que preocupar-nos?

— Todas essas agitações são muito más para o comércio. De que vale um aspirador elétrico, se a eletricidade for cortada?

— Eu poderia conseguir um pequeno empréstimo, Sr. Wormold.

— Não, não. Não é assim. A preocupação não é quanto a este ano, ou o ano que vem: é uma preocupação a longo prazo.

— Então não vale a pena que a chamemos de preocupa­ção. Vivemos numa época atômica, Sr. Wormold. Aperta-se um botão. .. e pronto!.. . bum!.. . onde é que iremos parar? Outro uísque, por favor.

— Há ainda uma outra coisa. Sabe o que a firma fez, agora? Enviou-me um Aspirador de Pilha Atômica.

— Deveras? Não sabia que a ciência havia chegado até esse ponto.

— Oh, claro que não há nada de atômico nisso. .. Trata-se apenas de um nome. No ano passado, havia o Turbo Jato; este ano, o Aspirador Atômico. Funciona ligado a uma toma­da de eletricidade, como o outro.

— Nesse caso, por que preocupar-se? — repetiu, como um refrão, o Dr. Hasselbacher, debruçando-se sobre o seu uísque.

— Eles não percebem que um tal nome pode ser muito bom nos Estados Unidos, mas não aqui, onde o clero prega durante todo o tempo contra o mau uso que se faz da ciência. Milly e eu fomos à catedral no domingo passado. . . pois o senhor bem sabe o que ela pensa acerca da missa. Acha que poderá converter-me — e eu não me surpreenderia nada se isso acontecesse. Bem, o Padre Méndez gastou meia hora a descrever os efeitos da bomba de hidrogênio. "Os que acredi­tam no céu aqui na terra", disse ele, "estão criando um infer­no..." Fez com que a coisa soasse assim, de maneira muito clara. E como é que o senhor pensa que me senti segunda-feira pela manhã, quando tive de exibir, numa vitrina, o novo Aspirador de Pilha Atômica? Não me surpreenderia nada, se um desses meninos malcriados que andam por aí houvesse quebrado a vitrina. Ação Católica, Cristo Rei, toda essa bugi­ganga. Não sei o que fazer, Hasselbacher.

— Venda um aspirador ao Padre Méndez, para ser usado no palácio do bispo.

— Mas ele está satisfeito com o Turbo. Era um bom apa­relho. Claro que este também é. Sucção aperfeiçoada, para estantes de livros. Bem sabe que eu não venderia um aparelho que não fosse bom.

— Sei, Sr. Wormold. Não poderia simplesmente mudar o nome?

— Eles não o permitirão. Sentem orgulho dele. Pensam que é a melhor frase que alguém já imaginou desde "Ele bate, aspira e limpa." Como sabe, o Turbo Jato tinha uma espécie de filtro para purificar o ar, como eles diziam. Ninguém se importava, embora fosse uma boa invenção, mas, ontem, uma senhora entrou na loja, pôs-se a observar a Pilha Atômica e perguntou se um filtro daquele tamanho poderia deveras absorver toda a radiatividade. "E quanto ao estrôncio 90?" indagou ela.

— Podia dar-lhe um certificado médico — disse o Dr. Hasselbacher.

— O senhor jamais se preocupa com coisa alguma?

— Tenho uma defesa secreta, Sr. Wormold. Interesso-me pela vida.

— Eu também, mas. . .

— O senhor se interessa por uma pessoa, não pela vida, e as pessoas morrem ou nos abandonam. .. Desculpe-me. Não me referia à sua esposa. Mas, se estivermos interessados pela vida, ela jamais nos decepcionará. Eu me interesso pelo tom azulado do queijo. O senhor não se dedica a palavras cruza­das, pois não, Sr. Wormold? Eu me dedico, e elas são como as pessoas: a gente chega a um fim. Posso terminar qualquer palavra cruzada no espaço de uma hora, mas tenho uma descoberta, quanto ao tom azulado do queijo, que jamais che­gará a uma conclusão. . . embora, claro, a gente sonhe que, talvez, possa chegar um momento em que. . . Qualquer dia lhe mostrarei o meu laboratório.

— Preciso ir embora, Hasselbacher.

— Devia sonhar mais, Sr. Wormold. A realidade, em nosso século, é algo que não se deve enfrentar.

 

 

Quando Wormold chegou à sua loja na Rua Lamparilla, Milly não havia ainda regressado da escola no Convento Americano, e, apesar das figuras que ele podia ver através da porta, a loja parecia-lhe vazia. E que vazio! E assim ficaria até que Milly voltasse. Sempre que entrava na loja, sentia um vácuo que nada tinha a ver com os seus aspiradores. Freguês algum poderia preenchê-lo, particularmente aquele que ali se encontrava no momento, de aspecto demasiado elegante para Havana, a ler um folheto em inglês sobre o Aspirador de Pilha Atômica e a não tomar, intencionalmente, conheci­mento da presença do assistente de Wormold. López era um homem impaciente, que não gostava de desperdiçar o seu tempo longe da edição em espanhol do Confidential. Estava olhando fixamente o estranho, sem fazer qualquer tentativa no sentido de persuadi-lo a comprar algo.

— Buenos dias — disse Wormold, que encarava com habitual desconfiança todos os estranhos que via na loja. Dez anos atrás, um homem entrara na loja, com ar de freguês, e ele, sem qualquer astúcia, vendera-lhe um pano de lã para dar brilho à pintura de seu automóvel. Fora um impostor plausí­vel, mas,ninguém poderia parecer-se menos com um compra­dor de aspirador elétrico do que o homem que ali estava. Alto, elegante, em seu costume tropical cor de pedra, com uma gravata finíssima, tinha o ar e o cheiro persistente de um bom clube; esperava-se que, a qualquer momento, dissesse: "O embaixador o receberá dentro de um minuto". Sua limpe­za estaria sempre assegurada — por um oceano ou por um valet-de-chambre*.

*Criado de quarto. (N. do E.)

 

— Lamento, mas não falo essa geringonça — respondeu o estranho.

A palavra de gíria maculava a sua roupa, como uma man­cha de ovo depois do desjejum.

— Os senhores são britânicos, pois não? — perguntou em seguida.

— Perfeitamente.

— Quero dizer. . . britânicos de verdade. Com passaporte e tudo o mais.

— Sim. Por quê?

— A gente gosta de fazer negócio com uma firma britâ­nica. Sabe-se onde se está, se é que entende o que quero dizer.

— De que modo posso ser-lhe útil?

-— Bem, primeiro quero ver o que há. — Falava como se estivesse numa livraria. — Não me foi possível fazer com que o seu rapaz compreendesse isso.

— O senhor está procurando um aspirador elétrico?

— Bem, não estou exatamente procurando.

— Quero dizer, está pensando em comprá-lo?

— Exatamente, meu velho: acertou no alvo.

Wormold tinha a impressão de que o homem escolhera aquele tom porque achava que combinava com a loja: um tom um tanto protetor que ia bem com a Rua Lamparilla, pois aquela vivacidade, positivamente, não se harmonizava com suas roupas. Não se pode seguir com êxito a técnica de São Paulo, de ser todas as coisas para todos os homens sem mudar de roupa.

— O senhor não poderia comprar nada melhor do que o Aspirador de Pilha Atômica — respondeu, rápido, Wormold.

— Vejo que há um aqui chamado Turbo.

— Esse também é um aspirador muito bom. O senhor pos­sui um apartamento grande?

— Bem, não é precisamente grande.

— Pois aqui tem o senhor dois jogos de escovas... este para encerar e este para polir. . . oh, não, creio que é o contrário. O Turbo é movido a ar.

— Que é que isso significa?

— Bem, claro, é. . . bem, é o que diz, movido a ar.

— E esta pecinha engraçada aqui. . . para que serve?

— É um bocal aberto dos dois lados, para tapetes.

— Não diga! Muito interessante! Por que aberto dos dois lados?

— Para se empurrar e puxar.

— As coisas que eles inventam! — comentou o estranho. — Penso que o senhor deve vender muitos destes aparelhos, pois não?

— Sou o único agente aqui.

— Todas as pessoas importantes devem ter, creio eu, um Aspirador de Pilha Atômica, não é verdade?

— Ou um Turbo Jato.

— Os departamentos do governo também?

— Certamente. Por quê?

— Porque o que é bom para um departamento governa­mental deve ser, também, bastante bom para mim.

— Talvez o senhor preferisse o nosso Aspirador Prático Anão.

— Por que "prático"?

— O nome todo é Aspirador Prático Anão, Movido a Ar, para Casas Pequenas.

— Aí está de novo o "movido a ar".

— Não sou responsável por isso.

— Não se irrite, meu velho.

— Pessoalmente, odeio as palavras Pilha Atômica — disse Wormold, tomado de súbita ira.

Estava profundamente perturbado. Ocorreu-lhe que aquele estranho talvez pudesse ser um inspetor enviado pela matriz de Londres ou Nova York. Se assim fosse, não ouviria senão a verdade.

— Compreendo o que quer dizer. Não é uma escolha feliz. Diga-me uma coisa: o senhor presta assistência a estas coisas?

— Trimestralmente. Livre de qualquer taxa durante o período de garantia.

— O que quero dizer é se presta tal assistência pessoal­mente.

— Mando López.

— O rapaz taciturno?

— Não sou grande coisa como mecânico. Tão logo toco numa destas coisas, parece que ela, de certo modo, deixa de funcionar. .

— O senhor não guia automóvel?

— Guio, mas quando alguma coisa não funciona bem, minha filha se encarrega de mandar consertar.

— Oh, sim, sua filha. Onde está ela?

— Na escola. Mas permita-me que lhe mostre, agora, este sistema de ligação rápida.. .

Mas, claro, ao procurar fazer a demonstração, a peça não ligava. Tentou, em vão, empurrá-la e parafusá-la.

— Peça defeituosa — comentou, desesperado.

— Deixe-me tentar — disse o desconhecido, e a peça encaixou na tomada da maneira mais suave que se pudesse desejar. — Que idade tem sua filha?

— Dezesseis anos — disse, irritado consigo mesmo por haver respondido.

— Bem, preciso ir andando — anunciou o desconhecido. — Apreciei nossa conversa.

— Não gostaria de ver um aspirador em funcionamento? O López aqui lhe fará uma demonstração.

— No momento, não. Eu o verei novamente. . . aqui ou alhures — respondeu o homem com uma vaga e insolente confiança, e saiu pela porta antes que Wormold pensasse em dar-lhe um cartão da firma. Na praça, no topo da Rua Lamparilla, perdeu-se em meio dos alcoviteiros e vendedores de bilhetes de loteria que pululam, em Havana, ao meio-dia.

— Ele jamais pensou em comprar coisa alguma — disse López.

— Que é que ele queria, então?

— Quem sabe? Ficou a olhar-me, durante longo tempo, através da vitrina. Acho que, se o senhor não houvesse entra­do, ele me pediria para que lhe arranjasse uma rapariga.

— Uma rapariga?

Pensou no que lhe ocorrera dez anos antes e, depois, inquieto, pensou em Milly, e lamentou haver respondido a tantas perguntas. Desejou, também, que aquela peça de liga­ção rápida houvesse funcionado instantaneamente.

 

Podia distinguir a aproximação de Milly de longe, como a de um carro da polícia. Ao invés de sirenes, assobios o adver­tiam de sua chegada. Ela estava acostumada a vir a pé desde o ponto de ônibus, na Avenida da Bélgica, mas, aquele dia, os lobos pareciam estar agindo dos lados de Compostela. Ele tinha de admitir, com relutância, que não eram conquista­dores perigosos. As homenagens que lhe eram tributadas desde os treze anos eram, na verdade, de respeito, pois que, mesmo para os elevados padrões de Havana, Milly era linda. Tinha cabelos cor de mel pálido, sobrancelhas negras, e seu penteado era modelado pelo melhor cabeleireiro da cidade. Não dava atenção aos assobios, que a faziam apenas andar com mais aprumo: vendo-a caminhar, a gente quase acredi­tava em levitação. Agora, o silêncio ter-lhe-ia parecido um insulto.

Ao contrário de Wormold, que não acreditava em nada, Milly era católica: ele tivera de prometer à sua mãe, antes do casamento, que assim seria. Agora a mãe, pensava ele, não tinha fé alguma, mas deixara-lhe uma católica nas mãos. Isso fez com que Milly se aproximasse mais de Cuba do que ele ja­mais pudera fazer. Wormold acreditava que, nas famílias ricas, ainda persistia o costume de manter-se uma aia e, às vezes, parecia-lhe que também Milly tinha uma aia junto de si, invisível a todos os olhos, menos aos dela. Na igreja, onde parecia mais encantadora do que em qualquer outro lugar, em sua mantilha leve como uma pena, bordada com folhas transparentes como o inverno, a aia estava sempre sentada a seu lado, para observar se suas costas se mantinham eretas, se co­bria o rosto no momento adequado e se fazia corretamente o sinal-da-cruz. Os meninos de pouca idade podiam, impune­mente, chupar balas em torno dela ou abafar risinhos atrás dos pilares, mas ela se portava com a rigidez de uma freira, seguindo a missa em seu pequeno missal de corte dourado, encadernado em marroquim da cor de seus cabelos. (Ela pró­pria o escolhera.) A mesma aia invisível se encarregava de ver se comia peixe às sextas-feiras, jejuava na semana de Têmpo­ras e ia à missa não apenas aos domingos e nos dias de festivi­dades especiais da Igreja, mas, também, no dia de seu santo onomástico. Milly era como a chamavam em casa, mas o nome que lhe deram era Serafina — em Cuba, "un doble de segunda clase", frase misteriosa que lembrava a Wormold uma pista de corridas.

Havia já muito tempo, Wormold percebera que a aia nem sempre estava a seu lado. Milly era meticulosa em sua manei­ra de portar-se durante as refeições e jamais negligenciava as sua orações noturnas, como ele bem podia saber, pois desde a infância ela o fazia esperar, diante da porta de seu quarto, como não-católico que era, até que terminasse suas preces.

Uma luz ardia sem cessar diante da imagem de Nossa Senhora de Guadalupe. Ele se lembrava de tê-la ouvido dizer, quando contava quatro anos de idade, em suas orações: "Ave Maria, muito birrenta".

Um dia, porém, quando Milly tinha treze anos, foi convi­dado a comparecer à escola do Convento das Irmãs America­nas de Santa Clara, situada no rico subúrbio de Vedado. Lá, ficou sabendo, pela primeira vez, de que maneira a aia aban­donara Milly junto à placa da instituição religiosa, que se via ao lado do portão gradeado da escola. A queixa era muito séria: havia ateado fogo a um menino chamado Thomas Earl Parkman Júnior. Era verdade, admitiu a reverenda madre, que Earl, como ele era conhecido na escola, puxara primeiro o cabelo de Milly, mas isso, na sua opinião, não justificava em nada a violência da ação, a qual poderia ter tido graves conseqüências, se uma outra menina não houvesse empurrado Earl para uma fonte. A única defesa de Milly, quanto à sua conduta, fora a de que Earl era protestante e que, se houvesse uma perseguição, os católicos sempre poderiam agredir à vontade os protestantes.

— Mas como foi que ela ateou fogo a Earl?

— Pôs gasolina na fralda de sua camisa.

— Gasolina?

— Fluido de isqueiro; depois, riscou um fósforo. Pensa­mos que deve ter estado fumando em segredo.

— Mas é uma história extraordinária!

— Creio, então, que o senhor não conhece Milly. Devo dizer-lhe, Sr. Wormold, que nossa paciência está, verdadeira­mente, esgotando-se.

Ao que parecia, seis meses antes de atear fogo a Earl, Milly fizera circular pela classe, durante uma aula de arte, uma coleção de cartões postais das maiores pinturas do mundo.

— Não vejo o que há de errado nisso.

— Uma criança de doze anos, Sr. Wormold, não deveria limitar sua apreciação ao nu, por mais clássicos que fossem os quadros.

— Eram todos nus?

— Todos, exceto La Maja Vestida. Mas também a tinha na versão em que aparece nua.

Wormold viu-se obrigado a apelar para a compaixão da madre superiora: era um pobre descrente com uma filha cató­lica, o Convento Americano era a única escola não-espanhola existente em Havana, e ele não estava em condições de con­tratar uma preceptora para a filha. Acaso queriam que a man­dasse para a Hiram C. Truman School? Isso seria quebrar a promessa que fizera à esposa. Pensava, em seu íntimo, se não seria seu dever arranjar uma nova esposa, mas as freiras tal­vez não concordassem com isso, e, de qualquer modo, ele ainda amava a mãe de Milly.

Ele, claro, falou com a menina, e a explicação que ela lhe deu tinha a virtude da simplicidade.

— Por que foi que você ateou fogo a Earl?

— Fui tentada pelo Diabo.

— Milly, por favor, seja sensata.

— Os santos também foram tentados pelo Diabo.

— Mas você não é santa.

— Exatamente. Por isso é que eu caí.

O assunto foi encerrado; de qualquer modo, seria encer­rado aquela tarde, entre quatro e seis horas, no confessio­nário. A aia estaria de volta a seu lado e se encarregaria disso. Se ele, ao menos, pudesse saber com certeza quais os dias em que a aia estava de folga!

Havia também a questão de ela haver fumado em segredo.

— Você está fumando cigarros? — perguntou-lhe ele.

— Não.

Algo em sua maneira fez com que repetisse a pergunta de outro modo:

— Você nunca fumou, Milly?

— Somente cheroots*.

* Tipo de charuto feito na Índia ou nas Filipinas, com as duas pontas abertas. (N. do T.)

 

Agora, ao ouvir os assobios que o advertiam de sua aproxi­mação, ficou a pensar por que Milly subia a Rua Lamparilla vindo dos lados do porto, ao invés de fazê-lo pela Avenida da Bélgica. Mas, ao vê-la, compreendeu logo qual a razão. Acompanhava-a um jovem empregado de loja, carregando um embrulho tão grande que lhe cobria o rosto. Wormold percebeu, com tristeza, que estivera de novo fazendo com­pras. Subiu ao seu apartamento, em cima da loja, e, pouco depois, pôde ouvi-la dando instruções ao rapaz, em outro aposento, quanto à disposição dos embrulhos. Ouviu um baque, batidas e um retinir de metal.

— Ponha-o aqui — ordenou ela e, logo depois: — Não, lá.

Abriram-se e fecharam-se gavetas. Ela começou a enterrar um prego na parede. Um pedaço de reboco, do lado de Wor­mold, caiu sobre a salada, no lugar em que a empregada dia­rista servira um almoço frio.

Milly chegava exatamente na hora. Era sempre difícil para Wormold disfarçar a impressão que sua beleza lhe causava, mas a aia invisível o fitava friamente, como se ele fosse um pretendente indesejável. Fazia agora muito tempo desde que a aia entrara em ferias pela última vez — e ele quase lamentava a sua assiduidade, e, às vezes, teria gostado de ver Earl arder novamente. Milly rendeu a sua ação de graças e persignou-se, e ele permaneceu respeitosamente de cabeça baixa até que terminasse. Era uma de suas longas ações de graças, o que significava, provavelmente, que não tinha fome ou estava ganhando tempo.

— Teve um dia agradável, papai? — perguntou, delicada­mente.

Era a espécie de pergunta que uma esposa poderia fazer de­pois de muitos anos.

— Não muito mau. . . e você?

Acovardava-se quando a fitava: odiava contrariá-la quanto ao que quer que fosse, e procurou evitar o máximo possível abordar o assunto de suas compras: sabia que a sua mesada mensal se esgotara, havia duas semanas, com a aquisição de uns brincos que a haviam fascinado e com uma imagem de Santa Serafina.

— Tive as melhores notas, hoje, em dogma e moral.

— Ótimo, ótimo. Quais foram as perguntas?

— Saí-me melhor quanto ao pecado venial.

— Vi o Dr. Hasselbacher esta manhã — disse ele, de maneira aparentemente sem propósito.

— Espero que esteja bem — respondeu Milly, cortês.

A aia, pensou ele, estava exagerando: as pessoas elogiavam as escolas católicas por ensinar o bom comportamento, mas o objetivo do bom comportamento se destinava, sem dúvida, a impressionar os estranhos. Pensou, com tristeza: "Mas eu sou um estranho". Não lhe era possível acompanhá-la em seu estranho mundo de velas, rendas, água benta e genuflexões. Sentia-se, às vezes, como se não tivesse uma filha.

— Ele vem tomar um drinque aqui em seu aniversário.

Pensei que talvez pudéssemos ir, depois, a um night club*.

* Clube noturno. (N. do E.)

 

— Um night club? — a aia deve ter olhado, por um momento, para o outro lado, enquanto Milly exclamava: — Ó Gloria Patri**!

** Glória ao Pai! (N. do E.)

 

— Você sempre costumava dizer "Aleluia".

— Isso era na quarta série ginasial. Que night club?

— Pensei que talvez o Nacional.

— E não o Teatro Shanghai?

— O Teatro Shanghai não, claro. Não posso acreditar que você já haja ouvido falar em tal lugar.

— Numa escola, as coisas passam de boca em boca.

— Não falamos em seu presente. Um aniversário, quando se faz dezessete anos, não é uma coisa trivial. Estive pensando. . .

— Juro que não há nada no mundo que eu deseje — disse Milly.

Wormold lembrou-se, com apreensão, dos enormes paco­tes. Se ela houvesse, realmente, conseguido tudo o que deseja­va... Insistiu:

— Mas claro que deve haver algo que você ainda deseje!

— Não desejo nada. Realmente nada.

— Um outro maio de banho — sugeriu ele, desesperado.

— Bem, há uma coisa. . . Mas pensei que poderíamos considerá-la como presente de Natal... do Natal do ano que vem e do outro. . .

— Deus do céu! De que se trata?

— Você não teria de preocupar-se mais com presentes durante muito tempo.

— Não me diga que deseja um Jaguar!

— Oh, não. É um presente bastante pequeno. Nada de automóvel. Um presente que duraria muitos anos. É uma idéia maravilhosamente econômica. Poderia mesmo, de certo modo, poupar gasolina.

— Poupar gasolina?

— E, hoje, comprei todos os etcéteras. . . com o meu pró­prio dinheiro.

— Você não tinha dinheiro algum. . . Tive de emprestar-lhe três pesos para comprar a Santa Serafina.

— Mas tenho crédito!

— Milly, já me cansei de dizer que não deve comprar nada a crédito! De qualquer modo, o crédito é meu, e não sei... e o meu crédito é cada vez menor.

— Pobre papai! Estamos à beira da ruína?

— Oh, espero que as coisas tornem a melhorar, quando cessarem essas perturbações.

— Julguei que sempre tivesse havido perturbações em Cuba. Se as coisas ficassem muito ruins, eu poderia trabalhar, não é?

— Em quê?

— Como Jane Eyre, poderia ser uma preceptora.

— Quem é que a aceitaria?

— O Sr. Pérez.

— Milly, que é, com os diabos, que está dizendo? Ele vive com a quarta esposa, e você é católica. ..

— Talvez eu tenha uma vocação especial para lidar com pecadores.

— Milly, que tolices são essas? De qualquer modo, não estou arruinado. Por enquanto, ainda não estou, tanto quanto sei. Milly, que é que você esteve comprando?

— Venha ver.

Acompanhou-a ao seu quarto de dormir: sobre a cama, havia uma sela; na parede, um freio e um bocado se achavam dependurados do prego que ela havia fixado (servindo-se, como martelo, do salto de um de seus melhores sapatos de soirée*); as rédeas pendiam de pequenos suportes presos à parede; sobre o toucador, via-se um chicote.

* Em francês no texto: de noite, de gala. (N. do E.)

 

— Onde está o cavalo? — perguntou ele, em seu desespero, quase esperando vê-lo surgir do banheiro.

— Está no estábulo perto do Country Club. Adivinhe como é que ela se chama.

— Como é que posso...

— Serafina. Não é como se houvesse nisso a mão de Deus?

— Mas, Milly, não me é possível, de modo algum...

— Você não precisa pagar imediatamente. É castanha.

— Que diferença faz a cor?

— Está registrada no stud book*. É filha de Santa Teresa, e Fernando de Castela. Teria custado o dobro, mas acontece que se feriu no boleto, ao saltar um obstáculo. Nada de grave: apenas uma espécie de caroço, de modo que não podem fazê-la competir.

* Registro genealógico de cavalos. (N. do E.)

 

— Pouco me importa que custe um quarto do preço. Os negócios estão maus, Milly.

— Mas já disse que você não precisa pagar imediata­mente. Pode ir pagando durante anos.

— E ainda estarei pagando pela égua (it), quando já esti­ver morto.

— Ela não é it; ela é ela**, e Serafina durará muito mais do que um automóvel.

**Em inglês, os animais são do gênero neutro — it. (N. do E.)

 

— Mas, Milly, suas viagens até o estábulo e os gastos de estrebaria.. .

— Já falei a respeito de tudo isso com o Capitão Segura. Ele me fez um preço baixíssimo. Queria oferecer-me de graça a estrebaria, mas eu sabia que você não gostaria de que eu aceitasse favores.

— Quem é o Capitão Segura, Milly?

— O chefe de polícia de Vedado.

— Mas onde, com os diabos, você o conheceu?

— Oh, ele às vezes me traz de automóvel até Lamparilla.

— A madre superiora tem conhecimento disso?

— A gente precisa ter uma vida privada — respondeu, com firmeza, Milly.

— Ouça, Milly: não posso fazer face a tais despesas; você não pode dar-se ao luxo de possuir todas essas coisas. Terá de devolver a égua. — E acrescentou, furioso: — E não permiti­rei que o Capitão Segura a traga para casa em seu automóvel!

— Não se preocupe. Jamais toca em mim. Canta apenas canções mexicanas, enquanto dirige. Canções sobre flores e morte. E uma acerca de um touro.

— Não o permitirei, Milly. Falarei com a madre superio­ra. Terá de me prometer. . .

Podia ver como, por debaixo das sobrancelhas negras, os olhos verdes e cor de âmbar continham lágrimas prestes a brotar. Wormold sentiu a aproximação do pânico; justamente assim a esposa o olhara quando, certa tarde enfarruscada de outubro, seis anos antes, sua vida subitamente terminara.

— Você não está apaixonada por esse Capitão Segura, pois não?

Duas lágrimas deslizaram, uma após outra, com uma espé­cie de elegância, em torno da maçã do rosto de Milly, brilhan­tes como o arreio preso à parede: faziam parte, também, do seu equipamento.

— Pouco me importa o Capitão Segura! — exclamou Milly. — O que me interessa é apenas Serafina. Tem cinco palmos e uma boca macia como veludo, como toda a gente diz.

— Milly, querida, você sabe que, se eu pudesse. . .

— Oh, eu sabia que você agiria dessa maneira. Sabia-o do fundo do coração. Fiz duas novenas para que tudo saísse bem, mas não deram resultado. Fi-las com todo o carinho. Sentia-me, ao rezar, num estado de graça. Jamais tornarei a acreditar em novenas! Jamais! Jamais!

Sua voz tinha o timbre profundo de Ò Corvo, de Poe. Ele não tinha fé, mas nunca desejara, com qualquer uma de suas ações, debilitar a dela. Sentia, agora, terrível responsabi­lidade: a qualquer momento, ela estaria negando a existência de Deus. Antigas promessas que fizera surgiam do passado, enfraquecendo-o.

— Milly, desculpe-me.. .

— Assisti, também, a duas missas extras.

Valendo-se da antiga mágica familiar, ela lançava-lhe sobre os ombros todas as suas decepções. Estava muito bem dizer-se que as crianças choram facilmente, mas, quando se é pai, não se pode assumir certos riscos, como um professor ou uma preceptora. Quem sabe se não pode haver um momento, na infância, em que o mundo muda para sempre. . . como quando se faz uma careta ao ouvir o relógio bater?

— Milly, prometo-lhe que, se for possível, no ano que vem. . . Ouça, Milly, você pode ficar, até então, com a sela e com todas essas coisas.

— De que serve uma sela sem um cavalo? E eu disse ao Capitão Segura. . .

— Que vá para o diabo o Capitão Segura! Mas que foi que você lhe disse?

— Disse-lhe que bastava que eu falasse com você acerca de Serafina para que ma desse. Disse que você era maravi­lhoso. Mas nada disse acerca das novenas.

— Quanto custa a égua?

— Trezentos pesos.

— Oh, Milly, Milly!

Nada havia que ele pudesse fazer, senão render-se.

— Você terá de pagar com a sua mesada os gastos de estrebaria — acrescentou.

— Claro que pagarei! — exclamou ela, beijando-lhe as orelhas. — Começarei no mês que vem. — Ambos sabiam muito bem que jamais o faria. — Como vê, elas, afinal de contas, deram resultado... as novenas, quero dizer. Come­çarei uma outra amanhã, para que seus negócios sejam bons. Estou pensando qual será o santo melhor para isso.

— Ouvi dizer que São Judas é o santo das causas perdidas — respondeu Wormold.

 

Um dos devaneios de Wormold era o de que ele, um dia, ao acordar, verificaria que tinha guardado uma porção de ações e de títulos ao portador, e que estava recebendo um fluxo incessante de dividendos, como os habitantes de Vedado — e que, então, retirar-se-ia com Milly para a Inglaterra, onde não existiriam Capitães Seguras, nem assobios de conquistadores baratos à passagem da filha. Mas esse sonho se dissipava sempre que entrava no grande banco americano, em Obispo. Ao atravessar os grandes portais de pedra, decorados com trevos de quatro folhas, transformava-se de novo no pequeno negociante que realmente era, cuja renda jamais seria sufi­ciente para levar Milly à região da segurança.

Receber um cheque num banco americano não é operação tão simples como num banco inglês. Os banqueiros america­nos acreditam no toque pessoal; os caixas dão a impressão de que se encontram ali, por assim dizer, acidentalmente, e que se sentem satisfeitíssimos com o feliz acaso do encontro com a gente. "Bem", parece dizer o caixa, na expressão cordial e ensolarada de seu sorriso, "quem diria que o encontraria aqui, justamente o senhor e exatamente neste banco!" Depois da troca de notícias de nossa saúde e da saúde dele, e depois de se descobrir um interesse comum pela excelência do tempo durante aquele inverno, a gente, timidamente, com ar quase de desculpa, faz o cheque escorregar para ele (oh, como são cansativos os negócios casuais!), mas, mal tem tempo de lançar-lhe um olhar, o telefone toca a seu lado.

— Oh, Henry! — exclama ele, surpreso, ao telefone, como se Henry fosse a última pessoa com quem esperasse falar aquele dia. — Que notícias me dá a seu respeito?

As notícias demoram muito tempo para ser dadas; o caixa sorri comicamente para a gente: negócio é negócio.

— Permita-me dizer-lhe que Edith estava com excelente aspecto ontem à noite — diz o caixa.

Wormold mudou de posição, impaciente.

— Foi uma bela noite, sem dúvida! Eu? Oh, estou ótimo. Bem, em que é que posso servi-lo, hoje?

— Oh, nada há a agradecer, Henry, você sabe disso. Cento e cinqüenta mil dólares por espaço de três anos. . . Não, claro, não haverá dificuldade alguma, tratando-se de uma firma como a sua. Temos de obter o "O. K." de Nova York, mas isso é apenas uma formalidade. Apareça aqui a qualquer momento e converse com o gerente. Pagamentos mensais? Isso não é necessário, tratando-se de uma firma americana. Eu diria que conseguiríamos cinco por cento. Duzentos mil dólares por espaço de quatro anos? Claro, Henry.

O cheque de Wormold encolheu em seus dedos, tornando-se insignificante. "Trezentos e cinqüenta dólares..." As palavras escritas pareceram-lhe quase tão magras quanto os seus recursos.

— Verei você amanhã em casa da Sra. Slater? Espero que haja um joguinho. Não leve nenhum ás escondido na manga, Henry. Quanto demora o "O. K."? Oh, uns dois dias, se telegrafarmos. Onze, amanhã? Quando você quiser, Henry. Basta que você apareça aqui. Falarei com o gerente; terá imenso prazer em vê-lo.

Desligou e voltou-se para Wormold:

— Desculpe-me por fazê-lo esperar, Sr. Wormold.

De novo o sobrenome. "Talvez", pensou Wormold, "não valha a pena cultivar a minha amizade, ou talvez sejam as nossas nacionalidades que nos mantêm separados."

— Trezentos e cinqüenta dólares?

O caixa lançou um olhar discreto a um arquivo antes de contar as notas. Mal havia começado, quando o telefone tor­nou a tocar.

— Oh, Sra. Ashworth, onde é que andou se escondendo? Em Miami? Deveras?

Passaram-se vários minutos antes que terminasse a con­versa com a Sra. Ashworth. Ao passar as notas a Wormold, entregou-lhe, também, um pedaço de papel.

— O senhor não se importa, não é verdade, Sr. Wormold? O senhor pediu-me para que eu o mantivesse informado.

O papel mostrava uma retirada de cinqüenta dólares a mais.

— De modo algum. O senhor é muito amável. Mas não há motivo para que se preocupem.

— Oh, o banco não está preocupado, Sr. Wormold; foi apenas porque o senhor pediu.

"Se eu houvesse retirado cinqüenta mil dólares a mais, ele me teria chamado de Jim", pensou Wormold.

 

Por alguma razão, não tinha, aquela manhã, vontade de encontrar o Dr. Hasselbacher, para tomar o seu daiquiri*: havia ocasiões em que o Dr. Hasselbacher se mostrava um tanto despreocupado demais, de modo que se dirigiu para o Sloppy Joe, ao invés de ir ao Wonder Bar. Nenhum residente de Havana ia jamais ao Sloppy Joe, porque era lugar de encontro de todos os turistas — mas os turistas, agora, esta­vam tristemente reduzidos em número, pois o regime do presi­dente estava perigosamente desmoronando-se e aproximan­do-se do fim. Aconteciam sempre, ocultamente, coisas desagradáveis, nas dependências da Jefatura**, coisas que não perturbavam os turistas no Nacional e no Seville-Biltmore, mas um turista havia sido morto, recentemente, por uma bala extraviada, quando, debaixo de um balcão próximo ao palácio, tirava uma fotografia de um mendigo pitoresco, e sua morte soara como um dobre a finados, afetando todas as atividades turísticas, "inclusive os passeios à praia de Varadero e a vida noturna de Havana". A Leica da vítima fora também destruída — e isso impressionara mais do que tudo os seus companheiros, que teciam comentários quanto ao poder destrutivo de uma bala. Wormold ouvira-os conver­sando, depois, no bar do Nacional:

* Espécie de coquetel à base de rum. (N. do E.)

**Polícia Central. (N. do E.)

— Atravessou a câmara bem no meio. Quinhentos dólares perdidos num abrir e fechar de olhos.

— Ele morreu instantaneamente?

— Claro. E as lentes... podiam encontrar-se pedaços delas espalhados a uma distância de cinqüenta jardas em torno. Veja... estou levando este pedaço para casa, a fim de mostrar ao Sr. Humpelnicker.

O bar, longo, estava vazio aquela manhã, exceto quanto a um desconhecido elegante, que se achava sentado de um lado, e um membro corpulento da Polícia de Turismo, que estava do outro, fumando um charuto. O inglês achava-se absorto na contemplação de tantas garrafas, e só depois de alguns momentos é que notou a presença de Wormold.

— Bem, jamais supus... — disse ele. — Sr. Wormold, pois não?

Wormold pensou como é que ele sabia o seu nome, pois esquecera de dar-lhe um cartão comercial.

— Dezoito marcas diferentes de uísque — comentou o desconhecido —, incluindo Black Label. E não contei os Bourbon. É uma vista maravilhosa. Maravilhosa — repetiu, baixando, respeitosamente, a voz. — Já viu, alguma vez, tan­tos uísques?

— Na verdade, já. Coleciono miniaturas e tenho em casa noventa e nove delas.

— Interessante. E o que é que vai escolher hoje? Um Dimpled Haig?

— Obrigado. Acabo de pedir um daiquiri.

— Não posso tomar essas coisas. Deixam-me mole.

__ Já se decidiu a respeito de um aspirador elétrico? — perguntou Wormold, apenas para animar a conversa.

— Aspirador?

__ Aspirador a vácuo. As coisas que vendo.

— Oh, aspirador! Ah, ah! Vamos deixar isso de lado e tomar um uísque.

— Nunca tomo uísque antes de chegar a noite.

— Ah, os sulistas!

— Não vejo qual a relação.

— Torna o sangue fino. O sol, é o que quero dizer. O se­nhor nasceu em Nice, não é certo?

— Como o senhor o sabe?

— Oh, bem, a gente apanha as coisas no ar. Aqui e acolá. Conversando com este e aquele camarada. Na verdade, que­ria trocar uma palavra com o senhor.

— Bem, aqui estou.

— Preferiria fazê-lo num lugar tranqüilo. Aqui entra e sai gente sem cessar.

Não poderia haver descrição menos exata. Ninguém jamais passava pela porta à hora em que o sol, fora, descia a pino. O oficial da Polícia de Turismo, contente, adormecera, após colocar o seu charuto no cinzeiro: àquela hora, não havia turistas para proteger ou fiscalizar.

— Se se tratar de um aspirador, apareça na loja — disse Wormold.

— Preferiria não o fazer. Não quero ser visto andando por lá. E um bar, afinal de contas, não é um mau lugar. A gente encontra um compatriota, conversa um pouco. . . que pode haver de mais natural?

— Não compreendo.

— Bem, o senhor sabe como é.

— Não sei.

— Então não acha que isso pareceria bastante natural? Wormold desistiu. Pôs oitenta cêntimos sobre o balcão e disse:

— Preciso voltar para a loja.

— Porquê?

— Não gosto de deixar López muito tempo sozinho.

— Ah, López. Quero falar-lhe a respeito de López.

A explicação que, de novo, parecia mais provável a Wormold, era a de que o desconhecido devia ser um inspetor excêntrico da matriz, mas não havia dúvida de que estava atingindo o limite da excentricidade ao acrescentar em voz baixa:

— Dirija-se ao reservado e eu o seguirei.

— Ao reservado? Mas por quê?

— Porque não sei o caminho.

Num mundo maluco, sempre parece mais fácil obedecer. Wormold conduziu o desconhecido através de um pequeno corredor, e indicou o reservado para homens.

— É ali.

— Passe primeiro, meu velho.

— Mas não tenho necessidade disso.

— Não torne as coisas difíceis — disse o estranho.

Pôs a mão no ombro de Wormold e empurrou-o através da porta. Dentro, havia duas pias, uma cadeira com o espaldar quebrado e as cabines habituais.

— Entre numa dessas cabines — recomendou o desconhe­cido — enquanto abro uma das torneiras.

Mas, quando a água correu, não procurou lavar as mãos.

— Parecerá mais natural — explicou (a palavra "natural" parecia ser uma de suas expressões favoritas) — se acontecer de alguém entrar. Além disso, o ruído atrapalharia, se hou­vesse algum microfone.

— Microfone?

— Tem toda a razão em duvidar que haja algum por aqui. Toda razão. Provavelmente não haveria um microfone num lugar como este, mas, como o senhor sabe, o que vale é a experiência. É uma sorte poder-se desperdiçar água em Hava­na; deixemos a torneira aberta.

— Poderia, por favor, explicar. . . ?

— Nunca é demais a gente ser cuidadoso, mesmo quando se está num reservado. Um dos nossos camaradas, na Dinamarca, em 1940, viu de sua janela a esquadra alemã descendo o Kattegat.

— "Gut"o quê?

— Kattegat. Claro que ele sabia, então, que o balão tinha subido. Começou a queimar os seus papéis. Jogou as cinzas na privada e puxou a descarga. A complicação foi... o congelamento que se verificou depois. Encanamentos conge­lados. As cinzas subiram de novo para a bacia. O aparta­mento pertencia a uma velha senhora... Baronin não sei de quê. Ela ia justamente tomar banho. Situação sumamente embaraçadora para o nosso camarada.

— Isso soa como Serviço Secreto.

— É o Serviço Secreto, meu velho, ou como assim o chamam os novelistas. Eis por que desejo falar-lhe a respeito do seu empregado López. É digno de confiança ou seria me­lhor despedi-lo?

— O senhor pertence ao Serviço Secreto?

— Se prefere chamá-lo assim.

— Por que razão deveria eu despedir López? Trabalha co­migo há dez anos.

— Poderíamos arranjar-lhe um empregado que soubesse tudo a respeito de aspiradores. Mas, claro. . . naturalmen­te... deixaremos tal decisão a seu critério.

— Mas eu não pertenço ao seu Serviço Secreto.

— Chegaremos a isso dentro de um momento, meu velho. De qualquer modo, investigamos o que se refere a López. . . e parece que é inocente. Mas, quanto ao que concerne ao seu amigo Hasselbacher, eu teria um pouco de cuidado.

— Como é que sabe acerca de Hasselbacher?

— Tenho andado por aqui um ou dois dias, colhendo informações. É coisa que a gente precisa fazer, nestas ocasiões.

— Que ocasiões?

— Onde nasceu Hasselbacher?

— Em Berlim, creio eu.

— Tem simpatias pelo Oriente ou pelo Ocidente?

— Nunca falamos de política.

— Não que isso tenha importância: quer se trate do Orien­te ou do Ocidente, eles fazem o jogo da Alemanha. Lembre-se do Pacto Ribbentrop. Não seremos apanhados de novo nessa armadilha.

— Hasselbacher não é político. É um velho médico e vive aqui há trinta anos.

— Seja como for, o senhor se surpreenderia... Mas con­cordo: daria na vista, se o pusesse de lado. Trate-o, apenas, com cuidado. Talvez até possa ser útil, se o senhor o manejar direito.

— Não tenho intenção alguma de manejá-lo.

— Verá que isso é necessário para o trabalho.

— Não quero trabalho algum. Por que o senhor me escolheu?

— Inglês patriota. Reside aqui há anos. Membro respei­tado da Associação de Negociantes Europeus. Precisamos ter um homem nosso em Havana, como o senhor bem compreende. Os submarinos precisam de combustível. Os ditadores agem juntos. Os grandes aliciam os pequenos.

— Os submarinos atômicos não precisam de combustível.

— Tem toda razão, meu velho, tem toda razão. Mas as guerras começam sempre um pouco antes. A gente tem de estar preparado também quanto ao que se refere a armas convencionais. Há o serviço secreto econômico: açúcar, café e fumo.

— Pode-se encontrar tudo isso nos anuários governamen­tais.

— Não confiamos neles, meu velho. Daí o serviço secreto político. Com os seus aspiradores, o senhor tem entrada livre em toda parte.

— Espera, então, que eu analise as tolices que os outros dizem?

— Isso pode parecer-lhe um gracejo, meu velho, mas a fonte principal do Serviço Secreto Francês, no tempo de Dreyfus, era uma mulher que recolhia as coisas lançadas às cestas de papéis, na Embaixada alemã.

— Nem sequer sei o seu nome.

— Hawthorne.

— Mas quem é o senhor?

— Bem, poderia talvez dizer que estou armando a rede nas Caraíbas. Um momento. Está entrando alguém. Vou lavar as mãos. Quanto ao senhor, entre numa cabine. Não devemos ser vistos juntos.

— Mas fomos vistos juntos.

— Encontro casual. Compatriotas.

Enfiou Wormold na cabine da privada, enquanto se lança­va à pia.

— É a experiência, meu velho — comentou.

Depois, fez-se silêncio, salvo quanto à água que corria. Wormold sentou-se. Nada mais havia a fazer. Sentado, suas pernas apareciam por baixo da meia porta. Uma maçaneta girou. Pés atravessaram o piso ladrilhado, na direção do mictório. A água continuava a correr. Wormold sentia-se enormemente estupefato. Pensou por que é que não havia, logo no começo, acabado com aquela tolice. Não era de estranhar que Mary o houvesse abandonado. Lembrou-se de uma das brigas que haviam tido. "Por que é que você não faz alguma coisa, não age de alguma maneira. . . de qualquer maneira? Não faz outra coisa senão ficar aí de pé, parado..." "Pelo menos", pensou, "esta vez não estou de pé: estou sentado". Mas, fosse como fosse, que é que poderia ter dito? Não lhe deram tempo de dizer uma palavra. Passaram-se minutos. Que bexigas enormes tinham os cubanos. . . e como já de­viam estar limpas, àquela altura, as mãos de Hawthorne. A água deixou de correr. Talvez estivesse enxugando as mãos, mas Wormold lembrou-se de que não havia toalhas. Aquilo era um outro problema para Hawthorne, mas ele saberia resolvê-lo. Tudo fazia parte da experiência. Por fim, os pés passaram em direção da porta. A porta fechou-se.

— Posso sair? — indagou Wormold.

Era como uma rendição. Estava agora sob ordens. Ouviu Hawthorne aproximar-se na ponta dos pés.

— Dê-me alguns minutos para sair, meu velho. Sabe quem era? O policial. Um tanto suspeito, hem?

— Pode ser que ele haja reconhecido minhas pernas debai­xo da porta. Acha que devíamos mudar de calças?

— Não pareceria natural — respondeu Hawthorne —, mas o senhor está tendo idéia da coisa. Vou deixar na pia a chave de meu quarto. Quinto andar, Seville-Biltmore. Suba diretamente. Esta noite, às dez. Temos coisas para discutir. Dinheiro, etc. Coisas sórdidas. Não pergunte por mim no balcão.

— Não precisará da chave?

— Tenho uma falsa. Até logo.

Wormold levantou-se a tempo de ver a porta fechar-se atrás do elegante cavalheiro e de seu espantoso linguajar. A chave lá estava sobre a pia: quarto 510.

 

Às nove e meia, Wormold dirigiu-se ao quarto de Milly, para dizer-lhe boa noite. Lá, a aia se achava a postos, tudo es­tava em ordem: a vela fora acesa diante da imagem de Santa Serafina, o missal cor de mel encontrava-se ao lado da cama, as roupas haviam sido eliminadas como se jamais houvessem existido e uma ligeira fragrância de água-de-colônia pairava no ar como incenso.

— Você tem alguma coisa no espírito — disse Milly. — Não está ainda preocupado a respeito do Capitão Segura, está?

— Você nunca me engana, não é verdade, Milly?

— Não. Por quê?

— Porque todos parecem fazê-lo.

— E mamãe o fazia?

— Creio que sim. Nos primeiros tempos.

— E o Dr. Hasselbacher?

— Isso é um sinal de afeto, não é? Lembrou-se do negro que passara manquitolando.

— Talvez. Às vezes.

— Nem sempre. Lembro-me de que, na escola. . . Interrompeu-se.

— Lembra-se do quê, papai?

— Oh, de uma porção de coisas.

A infância era o germe de toda a desconfiança. A gente era alvo de brincadeiras cruéis e também as infligia aos outros. Mas, de certo modo, ele, não por virtude própria, jamais fize­ra isso. Falta de personalidade, talvez. Dizia-se que as escolas modelavam o caráter, aparando as arestas. Suas arestas foram aparadas, mas o resultado não fora, pensava ele, perso­nalidade, mas, apenas, ausência de formas, como uma exposi­ção no Museu de Arte Moderna.

— Você é feliz, Milly?

— Oh! sou.

— Na escola também?

— Sim. Por quê?

— Ninguém puxa, agora, os seus cabelos?

— Claro que não.

— E você não ateia fogo a ninguém?

— Isso era quando eu tinha treze anos — respondeu, desdenhosa. — Que é que o preocupa, papai?

Ela sentou-se na cama, num robe-de-chambre* de náilon branco. Amava-a quando a aia estava presente e amava-a ainda mais quando se achava ausente: não podia dar-se ao luxo de ter tempo de não a amar. Era como se a houvesse acompanhado um pequeno trecho numa viagem que ela ter­minaria sozinha. Os anos de separação os aproximavam, como uma estação terminal — ela tendo tudo a ganhar, e, ele, tudo a perder. Aquela hora noturna era real — mas não o eram Hawthorne, misterioso e absurdo, nem as crueldades das delegacias de polícia e dos governos, nem os cientistas que experimentavam a nova bomba H em Christmas Island, nem Bulganin a redigir notas: essas coisas lhe pareciam menos reais do que as torturas inúteis de um dormitório de colégio. O menino com a toalha molhada, de quem agora se lembrava — onde estaria? O surgir e o desaparecer cruel, como de cidades, tronos e poderios, deixando suas ruínas atrás de si, não tinham permanência. Mas o palhaço que ele, em companhia de Milly, vira, no circo, no ano anterior... aquele palhaço era permanente, pois seu número jamais mudava. Assim é que se devia viver: o palhaço não era afeta­do pelos caprichos dos homens públicos e pelas enormes descobertas dos grandes.

* Roupão. (N. do E.)

 

Wormold começou a fazer caretas diante do espelho.

— Que é que você está fazendo, papai?

— Queria ver se conseguia rir. Milly lançou um risinho:

— Pensei que você estivesse triste e sério.

— Por isso é que queria rir. Você se lembra do palhaço, no ano passado, Milly?

— Ultrapassava o fim de uma escada e caía numa caçam­ba de alvaiade.

— Ele continua a cair todas as noites, às dez horas. Todos nós deveríamos ser palhaços, Milly. Jamais aprenda nada por experiência.

— A madre superiora diz que. . .

— Não lhe dê atenção. Deus não aprende por experiência, não é verdade? Do contrário, como é que poderia esperar al­guma coisa dos homens? São os cientistas, que lidam com os números dígitos e realizam a mesma soma, os que causam toda a complicação. Newton, ao descobrir a gravidade, aprendeu por experiência, e, depois disso. . .

— Julguei que tinha sido com uma maçã.

— É a mesma coisa. Foi somente uma questão de tempo para que Lorde Rutherford, depois disso, dividisse o átomo. Ele também aprendeu pela experiência, como aconteceu com os homens de Hiroxima. Se ao menos tivéssemos nascido palhaços, nada de mal poderia acontecer-nos, salvo algumas contusões e manchas de alvaiade. Não aprenda pela experiên­cia, Milly. Isso arruina a nossa paz e as nossas vidas.

— Que é que está fazendo agora?

— Estou procurando mexer as orelhas. Eu conseguia fazê-lo, antigamente. Mas o truque, agora, já não dá resultado.

— Você ainda é infeliz por causa de mamãe?

— Às vezes.

— Você ainda a ama?

— Talvez. De vez em quando.

— Creio que deve ter sido muito bonita, quando jovem.

— Ela não pode ser velha ainda. Tem trinta e seis anos.

— Isso já é bastante idade.

— Você não se lembra nada dela?

— Não me lembro muito bem. Estava sempre ausente, não estava?

— Bastante.

— Claro que rezo por ela.

— Reza para quê? Para que volte?

— Oh, não, isso não. Podemos passar sem ela. Rezo para que seja de novo uma boa católica.

— Eu não sou um bom católico.

— Oh, isso é diferente. Você é invencivelmente ignorante.

— Sim, espero que seja.

— Eu não o estou insultando, papai. Trata-se apenas de teologia. Você será salvo, como os bons pagãos. Como Sócra­tes. E Cetewayo.

— Quem era Cetewayo?

— Era rei dos zulus.

— Bem. Ultimamente, é claro, venho-me concentrando na égua.

Beijou-a, ao despedir-se.

— Aonde é que você vai? — perguntou ela.

— Preciso tratar de umas coisas com respeito à égua.

— Eu lhe dou muito trabalho — comentou, displicente. Depois suspirou, contente, puxando a coberta até o pescoço.

— É maravilhoso — não é? — como a gente sempre obtém aquilo por que reza!

 

Em todas as esquinas havia homens que gritavam "táxi" à sua passagem e, enquanto descia por todo o Paseo, os alcoviteiros, a intervalos de poucos metros, o abordavam automati­camente, sem qualquer esperança real. "Posso ser-lhe útil, senhor?" "Conheço todas as moças bonitas." "Deseja uma linda mulher?" "Cartões postais?" "Quer ver um filme imo­ral?" Eram simples crianças quando chegou a Havana, ti­nham tomado conta de seu carro em troca de um níquel e, em­bora houvessem envelhecido juntamente com ele, jamais se acostumaram com a sua pessoa. A seus olhos, nunca se torna­ra um residente: continuara a ser um turista permanente e, assim, atiravam-se a ele durante todo o caminho. Tinham a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, como todos os outros, ele desejaria ver o Super-Homem que se exibia no bor­del San Francisco. Pelo menos, como o palhaço, tinham o consolo de não aprender por experiência própria.

Na esquina de Virtudes, o Dr. Hasselbacher o saudou da porta do Wonder Bar.

— Sr. Wormold, aonde vai com tanta pressa?

— Tenho um encontro.

— Há sempre tempo para um uísque.

Era óbvio, pela maneira com que pronunciou a palavra "uísque", que o Dr. Hasselbacher já tivera tempo de tomar muitos deles.

— Na verdade estou atrasado.

— Não existe, aqui, a palavra "atrasado", Sr. Wormold. E tenho um presente para o senhor.

Wormold voltou-se do Paseo para o bar. Sorriu, infeliz, ante os seus próprios pensamentos.

— O senhor tem simpatia pelo Oriente ou pelo Ocidente, Dr. Hasselbacher?

— Oriente ou Ocidente do quê? Oh, o senhor se refere a isso! Que caia uma praga sobre ambos.

— Que presente tem para mim?

— Pedi a um de meus pacientes que as trouxesse de Miami — respondeu Hasselbacher, tirando do bolso duas miniaturas de garrafa de uísque, uma de Lord Calvert e a outra de Old Taylor. — Já as tem? — acrescentou, ansioso.

— Tenho a Calvert, mas não a Taylor. Foi amável de sua parte lembrar-se de mim, Hasselbacher.

Sempre parecera estranho a Wormold que ele continuasse a existir para os outros quando não se achava presente.

— Quantas miniaturas tem agora?

— Noventa e nove, com o Bourbon e o Irish. Setenta e seis uísques.

— Quando é que vai bebê-los?

— Talvez quando chegarem a cem.

— Sabe o que faria com elas se estivesse em seu lugar? — perguntou Hasselbacher. — Jogaria xadrez. Quando tirasse uma peça, bebia-a.

— É uma boa idéia.

— Um obstáculo natural. Aí é que está a beleza disso. O que joga melhor tem de beber mais. Pense na finura disso tudo. Tome outro uísque.

— Talvez tome.

— Preciso de sua ajuda esta noite. Fui picado por uma vespa esta manhã.

— O médico é o senhor, não eu.

— Não é essa a questão. Uma hora depois, ao atender a um chamado além do aeroporto, atropelei uma galinha.

— Ainda não compreendo.

— Sr. Wormold, Sr. Wormold, seus pensamentos estão muito longe! Volte para a terra. Temos de encontrar um bilhete de loteria antes da extração. Vinte e sete é vespa. Trin­ta e sete, galinha.

— Mas tenho um encontro.

— Os encontros podem esperar. Tome esse uísque. Temos de procurar esse bilhete no mercado.

Wormold acompanhou-o até o seu automóvel. Como Milly, o Dr. Hasselbacher tinha fé. Era controlado por núme­ros, do mesmo modo que ela o era pelos santos.

Por todo o mercado, achavam-se dependurados os números importantes, impressos em azul e vermelho: os que eram cha­mados números feios encontravam-se debaixo do balcão. Eram deixados para a arraia-miúda e para que os vendedores de rua dispusessem deles. Não tinham importância, pois não continham nenhum número significativo — nenhum número que representasse uma freira, um gato, uma vespa ou uma galinha.

— Veja. Há aqui o 27383 — mostrou Wormold.

— Uma vespa de nada vale sem uma galinha — replicou o Dr. Hasselbacher.

Pararam o automóvel e puseram-se a andar a pé. Não havia alcovitices em torno desse mercado: a loteria era um negócio sério, não corrompido por turistas. Uma vez por semana, os números eram distribuídos por um departamento do governo; os políticos recebiam bilhetes correspondentes ao valor de seu apoio. Pagavam ao departamento dezoito dólares por bilhete e revendiam-no aos grandes negociantes por vinte e um. Mesmo que sua parte fosse constituída por uns míseros vinte bilhetes, podiam contar com um lucro de sessenta dóla­res semanais. Um belo número, contendo bons agouros de caráter popular, podia ser vendido pelos cambistas por quan­tias que chegavam até trinta dólares. Tais lucros, natural­mente, não estavam ao alcance de um modesto vendedor de rua. Somente com números "feios", pelos quais pagava até vinte e três dólares, tinha, na verdade, de trabalhar para viver. Podia dividir um número em cem frações, vendendo a vinte e cinco cents cada uma delas. Tinha de procurar automóveis nos pontos de estacionamento, até que encontrasse um com o mesmo número do seu bilhete (proprietário algum poderia resistir a uma coincidência como essa); procurava os seus nú­meros até na lista telefônica, arriscando mesmo cinco cents numa chamada.

— Minha senhora, tenho para vender um bilhete de loteria com o mesmo número de seu telefone.

Wormold chamou-lhe a atenção:

— Veja. Há aqui um 37 juntamente com um 72.

— Não basta — respondeu, incisivo, o Dr. Hasselbacher.

O Dr. Hasselbacher percorreu com o dedo as listas de nú­meros que não eram considerados bastante atraentes para ser exibidos. A gente nunca podia saber: a beleza não era beleza para todos os homens. Poderia haver os que achassem que uma vespa era coisa insignificante. Uma sirene de polícia soou pelos três lados do mercado, e um carro passou por eles. Um homem achava-se sentado na guia da calçada, exibindo, preso à camisa, como um convicto, um único número.

— O Abutre Vermelho — disse ele.

— Quem é o Abutre Vermelho?

— O Capitão Segura, claro — respondeu o Dr. Hasselba­cher. — Que vida reclusa você vem levando!

— Por que é que o chamam assim?

— É especialista em tortura e em mutilar os outros.

— Tortura?

— Nada há aqui — disse o Dr. Hasselbacher. — É me­lhor ver se conseguimos encontrar em Obispo.

— Por que não espera até amanhã cedo?

— É o último dia, antes da extração. Além disso, que espécie de sangue aguado corre em suas veias, Sr. Wormold? Quando o destino nos dá uma indicação como esta — uma vespa e uma galinha —, a gente deve segui-la sem delongas. Deve-se merecer a própria sorte.

Tornaram a entrar no carro e rumaram para Obispo.

— Esse Capitão Segura.. . — começou Wormold.

— Como?

— Nada.

Já eram onze horas quando conseguiram encontrar um bilhete que satisfizesse às exigências do Dr. Hasselbacher, mas, como a loja que o exibia deveria permanecer fechada até a manhã seguinte, nada havia a fazer senão tomar outro drinque.

— Onde é o seu encontro?

— No Seville-Biltmore.

— Tanto faz um lugar como outro — respondeu o Dr. Hasselbacher.

— Não acha que o Wonder Bar... ?

— Não, não. Uma mudança nos fará bem. Quando nos sentimos incapazes de mudar de bar, é porque ficamos velhos.

Abriram caminho, com dificuldade, em meio da escuridão do bar do Seville-Biltmore. Percebiam apenas vagamente os outros fregueses, encolhidos no silêncio e na obscuridade, como pára-quedistas que aguardassem sombriamente o sinal para saltar. Só o entusiasmo do Dr. Hasselbacher não se extinguia.

— Mas o senhor ainda não ganhou — sussurrou-lhe Wor­mold, procurando contê-lo, mas mesmo o sussurro fez com que uma cabeça se voltasse para eles no escuro, numa atitude de censura.

— Esta noite ganhei — disse o Dr. Hasselbacher, em voz alta e firme. — É possível que amanhã eu haja perdido, mas nada poderá roubar-me a vitória, esta noite. Cento e quarenta mil dólares, Sr. Wormold. É uma pena que eu já esteja velho demais para me envolver com mulheres. . . Poderia tornar muito feliz uma bela mulher, dando-lhe um colar de rubis. Agora, não sei o que fazer. Como gastarei o meu dinheiro, Sr. Wormold? Devo doá-lo a um hospital?

— Perdão — murmurou uma voz vinda da sombra —, esse camarada ganhou, realmente, cento e quarenta mil dólares?

— Sim, meu senhor, ganhei — disse com firmeza o Dr. Hasselbacher, antes que Wormold pudesse responder. — Ganhei-os quase tão certamente como é certo que o senhor existe, meu amigo quase invisível. O senhor não existiria, se eu não acreditasse na sua existência. . . como tampouco exis­tiriam esses dólares. Creio, logo, o senhor existe.

— Que é que o senhor quer dizer. . . "eu não existiria"?

— O senhor só existe em meus pensamentos, meu amigo. Se eu saísse daqui. ..

— O senhor é maluco.

— Prove, então, que o senhor existe.

— Que é que quer dizer. . . "prove"? Claro que existo. Tenho um escritório imobiliário de primeira classe, uma espo­sa e dois filhos em Miami. Voei para cá esta manhã pela Delta; estou tomando este uísque, não estou?

A voz continha algo que sugeria lágrimas.

— Meu pobre amigo — respondeu o Dr. Hasselbacher. — O senhor merece um criador mais imaginativo do que eu. Por que é que não lhe arranjei algo melhor do que Miami e um escritório imobiliário? Algo de imaginação. Um nome de que a gente se lembrasse.

— O que é que há de errado com o meu nome?

Os pára-quedistas, de ambos os lados do bar, estavam ten­sos, com ar de reprovação: não se devia revelar coragem antes do salto.

— Nada que eu não possa remediar refletindo um momento.

— Pergunte a qualquer pessoa, em Miami, quem é Harry Morgan... — Eu, na verdade, devia ter-me saído melhor do que me saí — disse o Dr. Hasselbacher. — Mas vou contar-lhe o que farei: saio do bar durante um minuto e elimino-o. Depois, volto com uma versão melhorada.

— Que é que o senhor quer dizer com "versão melhora­da"?

— Se este meu amigo, Sr. Wormold, o houvesse inventa­do, o senhor seria um homem mais feliz. Teria feito com que o senhor estudasse em Oxford, ter-lhe-ia dado um nome como Pennyfeather. . .

— Que é que o senhor quer dizer. . . "Pennyfeather"? O senhor esteve bebendo.

— Claro que estive bebendo. A bebida embota a imaginação. Por isso é que o imaginei de modo tão banal: Miami e escritório imobiliário, voando pela Delta. Pennyfeather teria vindo da Europa pela K. L. M. e estaria bebendo a sua bebida nacional: pink gin.

— Estou bebendo uísque e gosto disso.

— O senhor pensa que está tomando uísque. Ou melhor, para sermos exatos, eu o imaginei tomando uísque. Mas o se­nhor vai mudar tudo isso — disse, alegremente, o Dr. Hassel­bacher. — Vou sair um minuto até o vestíbulo e pensar em algumas melhorias reais.

— O senhor não pode estar a brincar assim comigo — disse o homem, angustiado.

O Dr. Hasselbacher esvaziou o copo, pôs um dólar sobre o balcão e levantou-se com vacilante dignidade.

— O senhor me agradecerá por isto. . . — disse ele. — Que é que irá ser? Confie em mim e aqui em meu amigo, Sr. Wormold. Um pintor, um poeta... ou talvez preferisse uma vida de aventuras. .. contrabandista de munições, agente secreto?

Fez, da porta, uma curvatura na direção da sombra agitada.

— Peço desculpas ao escritório imobiliário.

— Ele está bêbedo ou é maluco — disse, nervosamente, a voz, procurando o apoio dos demais.

Mas os pára-quedistas nada responderam.

— Bem — disse Wormold. — Vou-me despedindo, Hasselbacher. Estou atrasado.

— O mínimo que posso fazer, Sr. Wormold, é acompa­nhá-lo e explicar porque foi que eu o fiz chegar atrasado. Estou certo de que o seu amigo compreenderá, quando eu lhe falar de minha boa fortuna.

— Não é necessário — respondeu Wormold. — Realmen­te, não é necessário.

Hawthorne, ele o sabia, tiraria suas conclusões: um Hawthorne razoável, se é que isso existia, já era bastante mau, mas um Hawthorne desconfiado. . . Sentiu-se assustado ante tal idéia.

Dirigiu-se ao elevador, com o Dr. Hasselbacher a segui-lo.

Ignorando um sinal vermelho e a advertência "Cuidado com o degrau", o Dr. Hasselbacher tropeçou.

— Oh, com a breca! O meu tornozelo!

— Vá para casa, Hasselbacher — disse, desesperado, Wormold.

E entrou no elevador. Mas o Dr. Hasselbacher, num movi­mento rápido, também entrou.

— Não há dor alguma que o dinheiro não cure — comen­tou. — Há muito tempo não passo uma noite tão agradável!

— Sexto andar — disse Wormold. — Quero estar só, Hasselbacher.

— Por quê? Desculpe-me. Estou com soluço.

— Trata-se de um encontro privado.

— Alguma mulher encantadora, Sr. Wormold? Dar-lhe-ei algum dinheiro, da quantia que vou ganhar, para que possa atender às suas loucuras.

— Claro que não se trata de uma mulher. Trata-se de negócio, eis tudo.

— Negócio privado?

— Já lhe disse que sim.

— Que é que pode haver de tão privado acerca de um aspirador, Sr. Wormold?

— Uma nova operação comercial — respondeu Wor­mold, enquanto o ascensorista anunciava:

— Sexto andar!

Wormold estava um pouco à frente e tinha a cabeça mais clara que a de Hasselbacher. Os quartos eram construídos como celas de prisão em torno de um balcão retangular; no andar térreo duas cabeças calvas brilhavam como globos de rua. Saltou para o canto do balcão onde se achava a escada, seguido pelo Dr. Hasselbacher, mas Wormold tinha prática em saltar.

— Sr. Wormold! — gritou o Dr. Hasselbacher. — Sr. Wormold, eu teria prazer em aplicar uns cem mil dos meus dólares.. .

Wormold chegou ao fim da escada enquanto o Dr. Hassel­bacher ainda se achava no primeiro degrau. O quarto 510 estava perto, fechado. Abriu a porta. Uma pequena lâmpada de mesa mostrou-lhe uma sala de estar vazia. Fechou a porta, sem fazer ruído. O Dr. Hasselbacher não havia ainda chegado embaixo, Ficou à escuta e ouviu o pulo, o andar saltitante e o soluço do Dr. Hasselbacher, quando este passou pela porta e tomou a voltar. Wormold pensou: "Sinto-me como espião, ajo como espião: isto é absurdo! Que é que direi a Hasselba­cher amanhã cedo?"

A porta do quarto estava fechada e ele caminhou em sua direção. Mas, de repente, parou: melhor não despertar os cães. Se Hawthorne queria vê-lo, que o procurasse; mas sua curiosidade a respeito de Hawthorne o levou a examinar deti­damente o aposento.

Sobre a escrivaninha, havia dois livros — exemplares idên­ticos dos Contos de Shakespeare, de Lamb. Num bloco de memorando — no qual, talvez, Hawthorne houvesse feito anotações relativas à sua entrevista — lia-se: "1. Salário. 2. Despesas. 3. Transmissão. 4. Charles Lamb. 5. Tinta". Ia abrir o volume de Lamb, quando uma voz exclamou:

— Mãos ao alto! Arriba los manos!

— Las manos — corrigiu Wormold, sentindo-se aliviado ao ver que era Hawthorne.

— Oh, é o senhor! — exclamou Hawthorne.

— Estou um pouco atrasado. Desculpe-me. Saí em com­panhia de Hasselbacher.

Hawthorne vestia um pijama cor de malva, com o mono-grama H. R. H. bordado sobre o bolso. Isso lhe dava um ar de realeza.

— Adormeci e, de repente, ouvi-o andando pela sala.

Era como se houvesse sido apanhado sem o seu linguajar de gíria: não tivera tempo de vesti-lo com suas roupas.

— O senhor mexeu no volume de Lamb — disse em tom de acusação, como se estivesse encarregado de zelar pela ca­pela do Exército da Salvação.

— Desculpe. Estava apenas olhando o aposento.

— Não tem importância. Isso revela que o senhor possui o instinto exato.

— Parece-me que o senhor gosta particularmente desse livro.

— Um exemplar é para o senhor.

— Mas já o li há muitos anos — respondeu Wormold. — E não gosto de Lamb.

— Não é para que o leia. Nunca ouviu falar num livro de código?

— Para ser franco, não.

— Mostrar-lhe-ei, num minuto, como é que a coisa funcio­na. Eu fico com um exemplar. Tudo o que o senhor tem a fazer, quando se comunicar comigo, é indicar a página e a linha em que o seu código começa. Claro que não é tão segu­ro como uma máquina de código, mas é bastante seguro para os simples Hasselbachers.

— Gostaria que o senhor afastasse de seu espírito o Dr. Hasselbacher.

— Quando o nosso escritório estiver devidamente organi­zado, apresentando suficiente segurança.. . com um cofre forte, radiotelegrafia, pessoal adestrado e tudo o mais, então poderemos naturalmente abandonar um código primitivo como este, mas, salvo em se tratando de um hábil criptologista, é dificílimo desvendar tal código sem que se saiba o nome e a edição do livro.

— Por que foi que escolheu Lamb?

— Foi o único livro que consegui encontrar em duplicata, exceto A Cabana do Pai Tomás. Eu estava com pressa e tinha de encontrar algo na Livraria C. T. S., em Kingston, antes de minha partida. Oh, havia também algo intitulado A Lâmpada Acesa: um Manual de Devoção Vespertina, mas achei que, de certo modo, um tal livro despertaria atenção, na estante de um homem que não fosse religioso.

— Não sou religioso.

— Trouxe-lhe também tinta. O senhor tem uma chaleira elétrica?

— Tenho. Por quê?

— Para abrir cartas. Gostamos que nossos homens este­jam equipados para qualquer emergência.

— Para que a tinta? Tenho bastante tinta em casa.

— Tinta secreta, naturalmente. Para o caso de precisar en­viar qualquer mensagem por correio comum. Creio que sua filha tem uma agulha de tricô, pois não?

— Ela não faz tricô.

— Então, terá de comprar uma. De matéria plástica é melhor. O aço às vezes deixa marcas.

— Deixa marcas em quê?

— Nos envelopes que a gente abre.

— Por que desejaria eu, com os diabos, abrir envelopes?

— Poderia ser que tivesse necessidade de examinar a correspondência do Dr. Hasselbacher. O senhor terá de encontrar, claro, um subagente no Departamento dos Cor­reios.

— Recuso-me absolutamente a...

— Não torne as coisas difíceis. Pedi a Londres que me enviasse informações a respeito dele. Resolveremos acerca de sua correspondência depois de ler o relatório. Uma boa suges­tão: se lhe faltar tinta, use excremento de ave. Estou indo muito depressa?

— Eu ainda não disse se queria. ..

— Londres concorda em pagar-lhe cento e cinqüenta dóla­res mensais, mais cento e cinqüenta para as despesas... Só que, naturalmente, o senhor terá de justificar estas últimas. Pagamentos de subagentes, etc. Tudo o que for além disso terá de ter autorização especial.

— O senhor está indo muito depressa.

— Livre de impostos, por certo — acrescentou Hawthorne, piscando astutamente o olho. A piscada, de certo modo, não combinava com o seu monograma real.

— O senhor tem de dar-me tempo...

— Seu número, em código, é 59200 traço 5. — E acres­centou, com orgulho: — Claro, eu sou 59200. O senhor numerará os seus subagentes 59200 traço 5 traço 1 e assim por diante. Percebeu a coisa?

— Não vejo de que maneira posso ser-lhe útil.

— O senhor é inglês, pois não?

— Claro que sou inglês.

— E recusa-se a servir o seu país?

— Eu não disse isso. Mas os aspiradores tomam uma grande parte do meu tempo.

— São um excelente disfarce — comentou Hawthorne. — Muito bem pensado. Sua profissão tem um ar inteiramente natural.

— Mas ela é natural!

— Agora, se o senhor não se importar — disse Haw­thorne com firmeza —, precisamos entregar-nos ao nosso Lamb.

 

— Milly — disse Wormold —, você não comeu nenhum cereal.

— Desisti dos cereais.

— Pôs apenas um torrão de açúcar em seu café. Não está fazendo dieta, está?

— Não.

— Você talvez fique com fome até a hora do almoço.

— Já pensei nisso. Vou comer uma quantidade enorme de batatas.

— Milly, que é que está acontecendo?

— Vou fazer economia. Subitamente, durante a noite, compreendi o fardo que tenho sido para você. Era como se uma voz me falasse. Quase perguntei: "Quem és?", mas fiquei com medo de que a voz respondesse: "Sou o teu Senhor e o teu Deus". Como você sabe, já estou na idade.

— Na idade de quê?

— De ouvir vozes. Sou mais velha do que Santa Teresa quando entrou para o convento.

— Não me diga agora, Milly, que está pensando em...

— Não, não estou. Acho que o Capitão Segura tem razão. Ele me disse que eu não era material para um convento.

— Milly, você sabe como é que chamam o seu Capitão Segura?

— Sei. O Abutre Vermelho; tortura prisioneiros.

— Ele admite isso?

— Oh, claro que, comigo, age da melhor maneira, mas tem uma cigarreira feita de pele humana. Ele diz que é couro de bezerro. . . como se eu não conhecesse de longe couro de bezerro.

— Você tem de pô-lo de lado, Milly.

— Eu o farei... aos poucos. Mas preciso, primeiro, resol­ver a questão do estábulo. E isso me lembra da voz.

— Que foi que a voz disse?

— Disse... só que soava de modo mais apocalíptico no meio da noite: "Você mordeu mais do que pode mastigar, minha menina." Que me diz do Country Club?"

— E o que há com o Country Club?

— É o único lugar em que posso cavalgar de verdade, e nós não somos sócios. De que serve um cavalo num estábulo? O Capitão Segura, claro, é sócio, mas eu sabia que você não gostaria de que eu dependesse dele. De modo que pensei que talvez pudesse ajudá-lo a reduzir à metade, por meio de jejuns, as despesas da casa. . .

— Mas de que serviria. . . ?

— Bem. Você talvez pudesse, então, entrar como sócio, pagando a anuidade-família. Deveria fazer o meu registro como Serafina. É, de certo modo, mais apropriado do que Milly.

Pareceu a Wormold que tudo o que ela disse tinha um certo bom senso: era Hawthorne quem pertencia ao mundo cruel e inexplicável da infância.

 

Interlúdio em Londres

No subsolo do grande edifício de concreto e aço, situado nas imediações de Maida Vale, uma luz existente sobre uma porta mudou de verde para vermelho, e Hawthorne entrou. ' Deixara a sua elegância para trás, nas Caraíbas, e usava um terno de flanela cinzento que conhecera melhores dias. Na Inglaterra, não se importava de manter as aparências: fazia parte do janeiro cinzento de Londres. .

O chefe estava sentado atrás de uma mesa, onde se via um enorme pesa-papéis de mármore colocado sobre uma única folha de papel. Meio copo de leite, um vidro de pílulas cor de cinza e uma caixa de kleenex* achavam-se ao lado do telefone negro. (O vermelho era para disputas violentas.) Seu fraque negro, a gravata negra e o monóculo negro, ocultando o olho esquerdo, davam-lhe o ar de um agente funerário, assim como aquela sala, no subsolo, tinha o aspecto de uma catacumba, um mausoléu, um túmulo.

* Espécie de lenço de papel. (N. do E.)

 

— O senhor queria ver-me?

— Apenas uma palavra, Hawthorne. Apenas uma pala­vra.

Era como se um mudo voltasse sombriamente a falar, ter­minados os serviços de sepultamento.

— Quando voltou, Hawthorne?

— Há uma semana, senhor. . . Tornarei à Jamaica na sexta-feira.

— Tudo correndo bem?

— Penso que agora já estamos com tudo organizado nas Caraíbas, senhor — respondeu Hawthorne.

— E a Martinica?

— Não há dificuldades lá, senhor. O senhor se lembra de que, em Fort de France, estamos trabalhando juntamente com o Deuxième Bureau.

— Somente até um certo ponto?

— Oh, sim, naturalmente: somente até um certo ponto. O Haiti constituía, de alguma maneira, um problema, mas o 59200/2 está-se mostrando bastante ativo. Tive certas dúvi­das, a princípio, quanto ao que dizia respeito ao 59200/5.

— Traço 5?

— O nosso homem em Havana, senhor. Não me foi possí­vel escolher muito lá, e, a princípio, ele não parecia muito entusiasmado. Um pouco cabeçudo.

— Esses tipos, às vezes, convertem-se nos melhores agentes.

— É verdade, senhor. Fiquei um pouco preocupado com as pessoas com quem ele mantém relações. (Há um alemão chamado Hasselbacher, mas, até agora, nada encontramos que o incrimine.) Contudo, parece que está indo bem. Recebe­mos um pedido para despesas extras, justamente no momento em que eu estava de partida para Kingston.

— Isso é sempre um bom sinal.

— Exatamente, senhor.. .

— Revela que a imaginação está funcionando.

— É verdade. Ele desejava tornar-se sócio do Country Club. Refúgio de milionários, como o senhor sabe. A melhor fonte para informações políticas e econômicas. A jóia é muito alta, cerca de dez vezes mais do que a de White, mas eu a concedi.

— Fez bem. E que tal os seus relatórios?

— Bem, na verdade ainda não recebemos nenhum, já que ele necessitará de tempo para organizar os seus contatos. Tal­vez eu haja ressaltado demais a necessidade de se agir com segurança.

— Nunca é demais ressaltar tal fato. De nada vale um fio perfeito se o mesmo se funde.

— Na verdade, ele se acha colocado em situação bastante vantajosa. Excelentes contatos comerciais. .. grande parte deles com altos funcionários do governo e principais ministros.

— Ah! — fez o chefe, tirando o monóculo e pondo-se a poli-lo com um pedaço de kleenex.

O olho que exibiu era de vidro; de um azul pálido e nada convincente, bem podia ter vindo de uma boneca que dissesse "mama".

— Qual é o negócio dele?

— Oh, é importador. Maquinaria. . . coisas. . . dessa espécie. É sempre importante, para a própria carreira da gente, empregar agentes que sejam homens de boa posição social. Os pormenores insignificantes do arquivo secreto, quanto ao que se refere à loja da Rua Lamparilla, jamais te­riam chegado, em circunstâncias ordinárias, a esta sala subterrânea.

— Por que ele não era sócio do Country Club?

— Bem, acho que tem levado, nos últimos anos, uma vida bastante reclusa. Algumas complicações domésticas.

— Espero que não ande atrás de mulheres, pois não?

— Oh, nada disso, senhor. A esposa o abandonou. Fugiu com um americano.

— Espero que não seja antiamericano. Havana não é lugar para se alimentar nenhum preconceito dessa espécie. Temos de trabalhar com eles. . . até certo ponto, natural­mente.

— Oh, ele não é assim, absolutamente, senhor. É um homem criterioso, muito equilibrado. Aceitou bem o seu divórcio e mantém a filha numa escola católica, de acordo com o desejo da esposa. Soube que, no Natal, envia a ela tele­gramas de boas festas. Penso que consideraremos os seus relatórios, quando chegarem por aqui, cem por cento dignos de confiança.

— É um tanto tocante o que me diz a respeito da filha, Hawthorne. Bem, procure estimulá-lo, para que possamos ter uma idéia de sua utilidade. Se ele é tudo isso que me diz, tal­vez pudéssemos pensar em aumentar os seus auxiliares. Havana poderia ser um ponto-chave. Os comunistas sempre estão onde há complicações. De que maneira ele se comuni­cará conosco?

— Ficou combinado que enviará relatórios, em duplicata, pela mala semanal destinada a Kingston. Conservarei uma comigo e enviarei a outra aqui para Londres. Fará a remessa através do Consulado.

— Eles não gostarão disso.

— Disse-lhes que era uma solução apenas em caráter temporário.

— Eu preferiria a instalação de um aparelhamento de rádio, se demonstrar que é um bom homem. Ele poderia aumentar o seu pessoal, pois não?

— Oh, certamente! Pelo menos... o senhor compreende, não é um escritório muito grande. O senhor sabe como é que esses negociantes rotineiros agem.

— Conheço o tipo, Hawthorne. Uma escrivaninha velha. Meia dúzia de homens numa sala contígua com espaço ape­nas para dois. Máquinas de somar anacrônicas. Uma secre­tária prestes a completar quarenta anos de trabalho para a firma.

Hawthorne sentiu que, agora, podia tranqüilizar-se: o chefe assumira o comando. Mesmo que um dia lesse o arquivo secreto, as palavras não lhe significariam nada. A pequena loja de aspiradores elétricos afundara sem remissão na maré da imaginação literária do chefe. O agente 59200/5 estava estabelecido.

— Tudo faz parte do caráter do homem — explicou o chefe a Hawthorne, como se houvesse sido ele e não Haw­thorne quem tivesse aberto a porta na Rua Laparilla. — Um homem que sempre aprendeu a contar os trocados e a aplicar as libras; eis por que não é sócio do Country Club. . . Isso nada tem a ver com o seu fracasso matrimonial. Você é um romântico, Hawthorne. As mulheres passaram e sumiram da vida dele; desconfio mesmo que jamais significaram tanto para ele como o seu trabalho. O segredo de se aproveitar com êxito um agente consiste em compreendê-lo. O nosso homem em Havana pertence. . . poder-se-ia dizer. .. à época de Kipling. Caminhar com os reis — como é mesmo isso? — e manter a própria virtude e o senso comum, em meio da multi­dão. Espero que em algum lugar, na sua escrivaninha man­chada de tinta, haja um velho caderno de capa preta de camurça, onde conserve as suas primeiras anotações de recei­tas e despesas: um quarto de grosa de borrachas, seis caixas de penas de aço. . .

— Não creio que chegue ao ponto de interessar-se por penas de escrever, senhor.

O chefe suspirou e tornou a colocar a lente escura. O olho artificial voltou a ocultar-se diante daquele vago sinal de oposição.

— Pormenores não interessam, Hawthorne — exclamou irritado. — Mas, para que possa manejá-lo com êxito, é preci­so que encontre esse velho livro de escrituração. Falo metaforicamente.

— Perfeitamente, senhor.

— Esse negócio de haver vivido como um recluso por ter perdido a esposa é uma apreciação errônea, Hawthorne. Um homem como esse reage de maneira inteiramente diferente. Não revela a ninguém a sua perda: não vive com o coração na mão. Se sua apreciação fosse certa, por que é que ele, então, não era sócio do Club enquanto a mulher vivia?

— Ela o abandonou.

— Abandonou-o? Tem certeza disso?

— Plena certeza, senhor.

— Ah, ela nunca encontrou aquele livrinho de capa preta! Encontre-o, Hawthorne, e ele estará em suas mãos por toda a vida. Mas sobre o que estávamos falando?

— Sobre o tamanho de seu escritório, senhor. Não será fácil, para ele, encontrar acomodações para os seus novos auxiliares.

— Vamos, aos poucos, pondo os velhos para fora. Apo­sente aquela sua velha secretária...

— Na verdade. ..

Claro que tudo isso tem apenas caráter especulativo, Hawthorne. Afinal de contas, pode ser que ele não seja o homem adequado. São prata de lei esses velhos reis mercado­res, mas, às vezes, não conseguem ver além de seu escritório comercial, para que possam ser úteis a pessoas como nós. Jul­garemos pelos seus primeiros relatórios, mas é sempre bom planejar os passos que serão dados a seguir. Converse com a Srta. Jenkinson e veja se ela tem em sua lista alguém que fale espanhol.

Hawthorne subiu de elevador, do subsolo, andar por andar, tendo uma visão do mundo como se estivesse num foguete: a Europa Ocidental ficou para baixo; depois, o Oriente Próxi­mo; em seguida, a América Latina. Os arquivos erguiam-se em torno da Srta. Jenkinson como pilares de um templo ao redor de um oráculo que estivesse envelhecendo. Apenas ela era conhecida pelo sobrenome. Por alguma razão de segu­rança inescrutável todos os outros ocupantes do edifício eram conhecidos pelo seu primeiro nome. Estava ditando à secre­tária quando Hawthorne entrou. "Memorando para A. O. Angélica foi transferida para a C.5 com um aumento de salá­rio de oito libras semanais. Rogo fazer com que esse aumento seja aprovado imediatamente. Antecipando-me às suas objeções, eu assinalaria que Angélica está agora aproximando-se do nível financeiro de uma condutora de ônibus."

— Que deseja? — perguntou a Srta. Jenkinson, incisiva.

— O chefe disse-me que viesse vê-la.

— Não tenho ninguém de quem possa dispor.

— Não queremos ninguém, no momento. Estamos apenas discutindo possibilidades.

— Ethel, telefone para D.2 e diga que não quero que as minhas secretárias fiquem trabalhando depois das sete horas da noite, salvo em caso de emergência nacional. Se irromper uma guerra, ou se houver probabilidade de que irrompa, diga que os grupos de secretárias devem ser informados.

— Talvez precisemos, nas Caraíbas, de um secretário que fale espanhol.

— Não há nenhum de que eu possa dispor — disse, automaticamente, a Srta. Jenkinson.

— Havana. . . Uma pequena estação. Clima agradável.

— De quantas pessoas se compõe o pessoal?

— No momento, uma.

— Não sou agência de casamentos — comentou a Srta. Jenkinson.

— Trata-se de um homem de meia-idade com uma filha de dezesseis anos.

— Casado?

— Poder-se-ia chamá-lo assim — respondeu, vagamente, Hawthorne.

— Ele é estável?

— Estável?

— Digno de confiança, idôneo, emocionalmente seguro?

— Oh, sim, sim, pode estar certa disso. É um desses tipos de comerciante antiquado — afirmou Hawthorne, apanhando o fio da meada onde o chefe o havia deixado. — Construiu o seu negócio partindo do nada. Não se interessa por mulheres. Poder-se-ia dizer que já ultrapassou essa questão de sexo.

— Ninguém ultrapassa o sexo — disse a Srta. Jenkinson. — Sou responsável pelas moças que envio para o estrangeiro.

— Pensei que a senhora não tivesse ninguém disponível.

— Bem — respondeu a Srta. Jenkinson —, eu talvez pudesse, em certas circunstâncias, ceder-lhe Beatrice.

— Beatrice, Srta. Jenkinson! — exclamou uma voz por trás dos fichários.

— Eu disse Beatrice, Ethel, e refiro-me a Beatrice.

— Mas, Srta. Jenkinson. . .

— Beatrice necessita de experiência prática... Na verda­de, é só o que lhe falta. O lugar conviria a ela. Não é muito jovem. Gosta de crianças.

— O que precisamos, em Havana, é de alguém que fale espanhol — disse Hawthorne. — O amor pelas crianças não é essencial.

— Beatrice é meio francesa. Na realidade, fala francês me­lhor do que inglês.

— Eu disse espanhol.

— É quase a mesma coisa. Ambas são línguas latinas.

— Será que eu poderia vê-la, trocar umas palavras com ela? É plenamente adestrada?

— Trabalha muito bem em código e terminou um curso de microfotografia em Ashley Park. É fraca em taquigrafia, mas excelente datilografa. Tem bom conhecimento de eletrodinâmica.

— Que é isso?

— Não sei bem, mas um fusível de eletricidade não lhe causa terror algum.

— Será que saberá, então, lidar com aspiradores elétricos?

— Ela é uma secretária e não uma empregada doméstica. A gaveta de um dos fichários fechou-se com força.

— Aceite-a ou deixe-a onde está, como quiser — disse a Srta. Jenkinson.

Hawthorne teve a impressão de que ela de bom grado se teria referido a Beatrice como a uma coisa ou um animal e não como a uma pessoa.

— Ela é a única pessoa que a senhora pode sugerir?

— A única.

Novamente uma gaveta do fichário tornou a fechar-se com estrondo.

— Ethel! — exclamou a Srta. Jenkinson. — A não ser que você possa aliviar seus sentimentos de modo mais silen­cioso, eu a devolverei à D.3.

Hawthorne retirou-se pensativo: tinha a impressão de que a Srta. Jenkinson, com bastante agilidade, lhe havia vendido algo em que ela própria não acreditava — uma barra de ouro ou, antes, um cachorrinho... ou melhor, uma cadelinha.

 

 

Wormold saiu do Consulado carregando um telegrama no bolso do colete. Havia-lhe sido entregue com rudeza e, quan­do procurara falar, fora peremptòriamente interrompido:

— Nada queremos saber a respeito. Trata-se apenas de um arranjo temporário. Quanto mais cedo terminar, tanto mais satisfeitos ficaremos.

— O Sr. Hawthorne disse.. .

— Não conhecemos nenhum Sr. Hawthorne. Faça o favor de ter isso em mente. Ninguém com esse nome trabalha aqui. Bom dia.

Seguiu a pé para casa. A extensa cidade espraiava-se ao longo do amplo Atlântico: quebravam-se ondas sobre a Ave­nida de Maceo, embaçando os pára-brisas dos automóveis. Os pilares cor-de-rosa, cinzentos, amarelos, daquilo que fora antes o bairro aristocrático, achavam-se carcomidos pela ero­são, como rochas; um velho escudo de armas sujo e descarac­terizado erguia-se sobre a porta de um hotel miserável, e as persianas de um night club eram pintadas de cores vivas e brilhantes, como medida de proteção contra a umidade e o sal do mar. Do lado do ocidente, os arranha-céus da cidade nova elevavam-se, no límpido céu de fevereiro, mais alto do que faróis. Era uma cidade para se visitar, não para viver nela, mas era a cidade onde Wormold primeiro se apaixonara, e ele agarrava-se a ela como se fosse o local de um desastre. O tempo dava poesia a um campo de batalha, e talvez Milly se assemelhasse a uma pequena flor nascida numa trincheira onde um ataque houvesse sido repelido, havia muitos anos, com pesadas perdas. Mulheres passavam por ele, na rua, com cinza na testa, como se tivessem subido ao sol vindas de um subterrâneo. Lembrou-se de que era Quarta-Feira de Cinzas.

Apesar do feriado escolar, Milly não estava em casa quan­do ele chegou. Talvez estivesse ainda na missa, ou, possivel­mente, andando a cavalo no Country Club. López estava demonstrando o Aspirador Turbo-Jato para a governante de um sacerdote que recusava o Aspirador de Pilha Atômica. Os piores receios de Wormold, quanto ao novo modelo, tinham-se justificado, pois não conseguira vender um único aparelho. Subiu ao andar superior e abriu o telegrama. Fora dirigido a um departamento do Consulado Inglês e os algarismos que se seguiam tinham um aspecto feio, como os bilhetes de loteria que não eram vendidos nem no dia da extração. Lá estava o número 2674, seguido de uma fileira de números de cinco algarismos: 42811, 78145, 72312, 59200, 80947, 62533, 10605 e assim por diante. Era o seu primeiro telegrama, e notou que lhe fora enviado de Londres. Não estava nem se­quer certo (tão distante lhe parecia a lição que recebera!) de que pudesse decifrar aquele código, mas reconheceu um grupo de algarismos, 59200, que tinha para ele um aspecto abruptamente admonitório, como se Hawthorne houvesse sur­gido naquele momento, com ar acusador, junto da escada. Soturnamente, mergulhou nos Contos de Shakespeare, de Lamb. (Oh, como ele sempre detestara Elias e o ensaio sobre o Porco Assado!) O primeiro grupo de algarismos, lembra­va-se, indicava a página, a linha e a palavra com que o código começava. "Dionísia, a perversa esposa de Cleon", leu, "teve um fim que correspondia aos seus méritos." Começou a deci­frar partindo da palavra "méritos". Viu, com surpresa, que surgia realmente algo. Era como se algum estranho papagaio que houvesse herdado tivesse começado, subitamente, a falar. "N.° 1 de 24 de janeiro. A partir de 59200 começa parágrafo A."

Depois de trabalhar durante um quarto de hora, acrescen­tando e subtraindo, decifrou toda a mensagem, exceto o pará­grafo final, onde algo estava errado, talvez devido a ele, ao 59200 ou a Charles Lamb. "A partir de 59200 começa o parágrafo A. Quase um mês já desde que sua proposta para sócio do Country Club foi aprovada, e nenhuma, repito, nenhuma informação acerca de subagentes foi até agora rece­bida. Ponto. Esperamos, repito, esperamos que o senhor não recrute nenhum subagente sem primeiro investigar devida­mente seu passado. Ponto. Começa parágrafo B, sobre relató­rio econômico e político, de acordo com o questionário deixa­do em seu poder, o qual deve ser despachado incontinenti para 59200. Ponto. Começa parágrafo C maldito galão deve ser enviado a Kingston tuberculoso primário termina mensa­gem."

O último parágrafo tinha um ar de raivosa incoerência, o que preocupava Wormold. Pela primeira vez, ocorreu-lhe que aos olhos deles — fossem eles lá quem fossem — ele havia recebido dinheiro sem que houvesse dado nada em troca. Isso o perturbou. Parecera-lhe, até então, que havia sido recebedor de uma dádiva excêntrica, a qual permitia a Milly cavalgar no Country Club e, a ele, encomendar na Inglaterra alguns livros que havia muito cobiçava. O resto do dinheiro ele o deposi­tara no banco: quase acreditava que, algum dia, talvez esti­vesse em situação de devolvê-lo a Hawthorne.

Pensou: "Devo fazer algo. Dar-lhes alguns nomes para que sejam investigados. Recrutar um agente. Fazê-los felizes". Lembrou-se de como Milly costumava brincar de fazer com­pras, dando-lhe o seu dinheiro em troca de coisas imaginárias. Ele tinha de participar daquele jogo infantil, mas, mais cedo ou mais tarde, Milly sempre pedia o dinheiro de volta.

Pensou como é que se devia recrutar um agente. Era-lhe difícil lembrar-se exatamente da maneira pela qual ele fora recrutado por Hawthorne, exceto que tudo se havia passado num reservado. .. Mas aquilo, seguramente, não constituía um ponto essencial. Resolveu começar com um caso razoa­velmente fácil.

— Chamou-me, Senor Vormell?

Por alguma razão, a palavra Wormold estava por completo além do poder de pronunciação de López, mas, como lhe parecia impossível decidir-se por um vocábulo satisfatório, acontecia que raramente Wormold era chamado pelo mesmo nome duas vezes consecutivas.

— Quero falar-lhe, López.

— Si, Senor Vormell.

— Já faz muitos anos que você trabalha comigo. Podemos confiar um no outro.

López manifestou a plenitude de sua confiança levando a mão ao coração.

— Que tal lhe parece ganhar um pouco mais de dinheiro todos os meses?

— Oh, ótimo, naturalmente. . . Eu mesmo ia falar-lhe a esse respeito, Senor Ommel. Tenho um filho prestes a nascer. Uns vinte pesos, talvez?

— Isto nada tem que ver com a firma. Os negócios andam maus, López. Será um trabalho confidencial, feito para mim pessoalmente...

— Ah, si, senor. Serviços pessoais, compreendo. Pode confiar em mim. Sou discreto. Claro que nada direi à senorita.

— Penso que talvez não compreenda.

— Quando um homem chega a uma certa idade — disse López — já não deseja, ele próprio, procurar uma mulher. .. Quer ficar a salvo de complicações. Deseja ordenar: "Esta noite, sim; amanhã à noite, não". Dar suas instruções a alguém em quem confie...

— Não me refiro a nada disso. O que estou procurando dizer... bem, nada tem de parecido.

— O senhor não precisa sentir-se embaraçado ao falar comigo, Senor Vormole. Trabalho para o senhor há muitos anos...

— Você está cometendo um erro... Eu não tinha intenção. . .

— Compreendo que para um inglês de sua posição não servem lugares como o San Francisco. Nem mesmo o Mamba Clube...

Wormold sabia que nada do que pudesse dizer conteria a eloqüência de seu assistente, agora que ele se lançara sobre o grande assunto de Havana: as relações sexuais não consti­tuíam apenas o principal comércio da cidade, mas a própria razão de ser da vida humana. Vendia-se e comprava-se sexo. Era uma coisa imaterial, mas à qual não se renunciava nunca.

— Um jovem precisa de variedade, mas o mesmo acontece com um homem de certa idade — comentou López. — Para a juventude, é, a curiosidade da ignorância; para o velho é o apetite que precisa ser reanimado. Ninguém poderá servi-lo melhor do que eu, pois eu o estudei, Senor Venell. O senhor não é cubano: para o senhor, o formato da parte posterior de uma jovem é menos importante do que certa delicadeza de conduta. . .

— Você me compreendeu de maneira inteiramente errada — disse Wormold.

— Esta noite, a senhorita vai a um concerto...

— Como é que você sabe?

López não tomou conhecimento da pergunta.

— Enquanto ela estiver fora, eu trarei uma jovem senhora para o senhor ver. Se não gostar, trarei outra.

— Você não fará nada disso. Não é essa a espécie de ser­viço que desejo, López. Eu quero. . . bem, quero que você mantenha os olhos e os ouvidos bem abertos e me conte depois. . .

— A respeito da senhorita?

— Deus do céu, não!

— Conte-lhe o que, então, Senor Vommold?

— Bem, coisas como. . .

Mas não tinha a menor idéia quanto às coisas que López pudesse relatar-lhe. Lembrava-se apenas de alguns pontos do relatório, e nenhum deles lhe parecia apropriado: possível infiltração comunista nas forças armadas. . . dados reais sobre a produção de café e fumo no ano anterior.

Havia, por certo, o conteúdo das cestas de papel, nos escritórios em que López consertava os aspiradores, mas, sem dú­vida, até mesmo o próprio Hawthorne estava gracejando, ao referir-se ao caso Dreyfus... se é que tais homens gracejavam.

— Coisas como o quê, senor?

— Dir-lhe-ei mais tarde — respondeu Wormold. — Agora, volte para a loja.

 

 

Estava na hora do daiquiri e, no Wonder Bar, o Dr. Hassel­bacher sentia-se contente com o seu segundo uísque.

— Continua preocupado, Sr. Wormold? — indagou.

— Sim, continuo.

— Trata-se ainda do aspirador... do aspirador atômico?

— Não, não se trata do aspirador — respondeu ele esva­ziando o seu aperitivo e pedindo outro.

— Está bebendo, hoje, muito depressa.

— Hasselbacher, você jamais sentiu necessidade de dinheiro, pois não? Mas isso é porque não tem filhos.

— Dentro de pouco tempo, tampouco o senhor terá filhos.

— Creio que tem razão.

O consolo era tão frio como o daiquiri.

— Quando chegar esse tempo, Hasselbacher, espero que ambos estejamos longe daqui. Não quero que Milly seja despertada... por nenhum Capitão Segura.

— Isso é coisa que posso bem compreender.

— Outro dia, ofereceram-me dinheiro.

— Sim?

— Para obter certas informações.

— Que espécie de informações?

— Informações secretas.

O Dr. Hasselbacher suspirou.

— O senhor é um homem feliz, Sr. Wormold. É sempre fácil dar-se tais informações.

— Fácil?

— Se forem suficientemente secretas, só o senhor as ficará sabendo. É necessário apenas um pouco de imaginação, Sr. Wormold.

— Fala como se tivesse experiência.

— A medicina é o que constitui a minha experiência. Acaso já leu os anúncios referentes a remédios secretos? Um tônico de cabelo cuja fórmula foi revelada pelo chefe agoni­zante de uma tribo de peles-vermelhas. Tratando-se de um remédio secreto, não há necessidade de que se imprima a fór­mula. E sempre há algo num segredo que faz com que as pes­soas acreditem.. . Talvez uns vestígios de mágica. Já leu Sir James Fraser?

— Já ouviu falar em livros de código?

— De qualquer modo, não fale comigo demais. O sigilo não faz parte de meu negócio. . . E não tenho filhos. Faça o favor de não inventar que sou seu agente.

— Não, não posso fazer isso. Essa gente não aprecia a nossa amizade, Hasselbacher. Querem que me afaste de você. Estão investigando a sua pessoa. Como é que você imagina que eles investiguem a vida de alguém?

— Não sei. Tenha cuidado, Sr. Wormold. Receba o dinheiro deles, mas não lhes dê nada em troca. O senhor é vulnerável diante dos Seguras. Minta apenas, e conserve sua liberdade. Eles não merecem a verdade.

— Que é que você quer dizer com esse "eles"?

— Reinos, repúblicas, potências — respondeu Hasselba­cher, esvaziando o copo. — Preciso voltar para a minha cul­tura, Sr. Wormold.

— Já está acontecendo alguma coisa?

— Infelizmente, não. Enquanto nada acontece, tudo é pos­sível, não lhe parece? É uma pena que as loterias sejam extraídas. Perco cento e quarenta mil dólares por semana e sou um homem pobre.

— Você não vai esquecer o aniversário de Milly?

— Talvez a investigação revele coisas más, e você não queira que eu vá. Mas lembre-se de que, enquanto mentir, não poderá fazer mal a ninguém.

— Tomo o dinheiro deles.

— Eles não têm dinheiro, salvo o que tiram de homens como o senhor e eu.

Empurrou a porta e desapareceu. O Dr. Hasselbacher jamais falava em termos de moralidade. A moralidade era uma coisa que estava fora da competência de um médico.

Wormold encontrou uma lista de sócios do Country Club no quarto de Milly. Sabia onde procurá-la: entre o último vo­lume do Horsewoman 's Year Book e uma novela intitulada A Égua Branca, de autoria de Miss "Pony" Tragger. Ele entrara para o Country Club a fim de encontrar agentes apropriados, e ali estavam todos eles em coluna dupla, em mais de vinte páginas. Seus olhos foram atraídos por um nome anglo-sa­xão: Vincent C. Parkman. Talvez se tratasse do pai de Earl. Pareceu mais do que natural, a Wormold, conservar os Parkmans na família.

Ao sentar-se à mesa, a fim de redigir, em código, o seu rela­tório, já havia escolhido dois outros nomes: um Engenheiro Cifuentes e um Professor Luís Sánchez. O professor, fosse lá quem fosse, parecia um candidato razoável para os informes de caráter econômico, o engenheiro poderia fornecer informa­ções técnicas, e o Sr. Parkman as de índole política. Com os Contos de Shakespeare abertos à sua frente (escolhera para o trecho-chave a frase "Oxalá o que se segue seja feliz"), pôs em código o relatório: "N.° 1 de 25 de janeiro. Começa parágrafo A. Recrutei meu assistente, dando-lhe o número 59200/5/1. Pagamento proposto cinqüenta pesos mensais. Parágrafo B: favor começar investigar as seguintes..."

Toda essa divisão em parágrafos parecia a Wormold extra­vagante quanto ao que se referia a tempo e dinheiro, mas Hawthorne dissera-lhe que fazia parte do procedimento habi­tual, exatamente como Milly insistia, quando pequena, em que todas as compras feitas em sua loja fossem embrulhadas em papel, mesmo uma simples conta de vidro. "Começa pará­grafo C. Relatório econômico seguirá logo pelo correio, tal como foi solicitado."

Nada mais havia a fazer senão aguardar as respostas e pre­parar o relatório econômico. Isso o perturbava. Mandara López comprar todas as publicações do governo relativas às  indústrias do açúcar e do fumo. Era essa a primeira missão de López. Quanto a ele, Wormold, passava horas inteiras lendo os jornais locais, assinalando quaisquer trechos que pudessem ser adequadamente aproveitados pelo professor ou pelo enge­nheiro, pois era pouco provável que alguém em Kingston ou em Londres examinasse os jornais diários de Havana. Até mesmo ele deparara com um novo mundo naquelas páginas mal impressas: parecia-lhe que, no passado, dependera dema­siado do The New York Times ou do Herald Tribune para a idéia que formava do mundo. Atrás da esquina do Wonder Bar, uma jovem morrera apunhalada — "uma vítima do amor". Havana estava cheia de mártires desta ou daquela espécie: um homem, uma noite, perdeu uma fortuna no Tropicana, subiu ao palco, abraçou uma cantora negra e, depois, subiu em seu automóvel e, em disparada, lançou-se com ele ao mar, morrendo afogado. Um outro indivíduo suicidou-se, de maneira complicada, enforcando-se com os próprios suspensórios. Havia também milagres: uma virgem chorava lágrimas de sal e uma vela, acesa diante de Nossa Senhora de Guadalupe, ardeu, inexplicavelmente, durante uma semana, de uma sexta-feira a outra. Das fotografias de violências, amor e paixão, só eram excluídas as vítimas do Capitão Segu­ra: estas sofriam e morriam sem os benefícios da imprensa.

O relatório econômico provou ser tarefa tediosa, pois Wor­mold jamais aprendera a escrever a máquina com mais de dois dedos ou a usar o tabulador da mesma. Foi-lhe neces­sário modificar as estatísticas oficiais, para o caso de alguém, no escritório central, pensar em comparar os dois relatórios, e, às vezes, Wormold esquecia que havia alterado um algaris­mo. Somar e subtrair não haviam sido jamais os seus pontos fortes. Uma fração decimal mudou de lugar e teve de ser encontrada, de alto a baixo, numa dezena de colunas. Aquilo era mais ou menos como dirigir um carro em miniatura num caça-níqueis.

Decorrida uma semana, começou a preocupar-se com a ausência de respostas. Será que Hawthorne havia pressentido algo? Mas sentiu-se temporariamente animado por um convite para que comparecesse ao Consulado, onde um funcionário mal-humorado lhe entregou um envelope selado, dirigido, por uma razão que não conseguiu compreender, ao "Sr. Luke Penny". Dentro, havia um outro envelope, em que se lia: "Henry Leadbetter. Serviços de Pesquisas Civis"; num ter­ceiro envelope, estava escrito o número 59200/5, e continha três meses de salários e despesas em notas cubanas. Levou o dinheiro para o banco, em Obispo.

— Conta comercial, Sr. Wormold?

— Não. Pessoal.

Mas experimentou um sentimento de culpa enquanto o caixa contava as notas: sentia-se como se houvesse desviado dinheiro da companhia.

Passaram-se dez dias sem que recebesse qualquer notícia. Não podia sequer enviar o seu relatório econômico, enquanto o agente que o fornecia não fosse devidamente investigado. Chegou a época de sua visita anual aos revendedores de fora de Havana, estabelecidos em Matanzas, Cienfuegos, Santa Clara e Trinidad. Costumava visitar essas cidades por estrada de rodagem, em seu velho Hillman. Antes de partir, enviou um telegrama a Hawthorne. "Sob pretexto visitar revende­dores aspiradores, proponho investigar possibilidades de recrutamento porto Matanzas, centro industrial Santa Clara, praia turistas Trinidad e quartel-general naval Cienfuegos. Calculo gastos viagem cinqüenta dólares diários." Beijou Milly, fê-la prometer que, na sua ausência, não aceitaria con­dução no automóvel do Capitão Segura e partiu para um drinque de despedida no Wonder Bar, em companhia do Dr. Hasselbacher.

 

Uma vez por ano, e sempre durante sua viagem, Wormold escrevia à sua irmã mais moça, que residia em Northampton. (Escrever a Mary talvez remediasse, momentaneamente, a solidão que sentia longe de Milly.) Incluía também na carta, invariavelmente, os últimos selos postais cubanos, destinados ao sobrinho. O pequeno começara a colecionar selos aos seis anos de idade, e, de certo modo, escapava à memória de Wor­mold que, com o rápido passar do tempo, seu sobrinho já ultrapassara havia muito os dezessete anos e que já não se dedicasse, havia muitos anos, à filatelia. De qualquer modo, já tinha idade demais para a espécie de bilhete que Wormold dobrou em torno dos selos; era um bilhete demasiado juvenil mesmo para Milly, e o rapaz era vários anos mais velho do que ela.

"Caro Peter", escreveu Wormold. "Vão aqui alguns selos para a sua coleção. A esta altura, já deve ser uma coleção e tanto! Receio que estes não sejam muito interessantes. Oxalá tivéssemos, em Cuba, pássaros, feras e borboletas, como os belos selos da Guatemala que você me mostrou. Afetuosa­mente, seu tio. P. S. Estou sentado olhando o mar e faz muito calor."

A irmã, escreveu de modo mais explícito: "Estou sentado junto à baía, em Cienfuegos, e a temperatura é de mais de noventa graus Fahrenheit, embora o sol já se haja posto há uma hora. No cinema, estão passando um filme de Marilyn Monroe, e há no porto um barco chamado, de maneira bastante singular, 'Juan Belmonte'. (Você se lembra daquele inverno, em Madri, em que fomos a uma tourada?) O capitão — penso que é o capitão — está sentado aqui a uma mesa contígua, tomando conhaque espanhol. Nada há que ele possa fazer senão ir ao cinema. Este deve ser um dos portos mais tranqüilos do mundo. Apenas a rua cor-de-rosa e amarela, algumas cantinas, a grande chaminé da refinaria de açúcar e, ao fim de um caminho coberto de ervas daninhas, o 'Juan Bel­monte'. Gostaria, de certo modo, de estar viajando nele em companhia de Milly, mas não tenho certeza disso. A venda de aspiradores não anda muito bem, pois a corrente elétrica não é muito certa, nestes dias agitados. A noite passada, em Matanzas, as luzes apagaram-se três vezes — a primeira vez quando me encontrava no banho. Tudo isso são coisas tolas para que a gente as escreva e envie até Northampton.

"Não pense que sou infeliz. Há muito o que dizer a favor deste lugar. Às vezes, receio voltar para os Boots, Woolworths e 'cafeterias', pois agora eu seria um estranho mesmo no White Horse. O capitão tem uma jovem em sua compa­nhia — espero que também tenha outra em Matanzas. Está metendo-lhe conhaque pela garganta abaixo, como se dá remédio a um gato. A claridade, aqui, pouco antes do pôr do sol, é maravilhosa: o horizonte é um longo fio de ouro e as aves são manchas escuras sobre as vagas cor de chumbo. A grande e alva estátua do Paseo, que, durante o dia, se asseme­lha à Rainha Vitória, é uma massa de ectoplasma. Os engra­xates colocaram todos as suas caixas debaixo das cadeiras de braço, junto da colunata cor-de-rosa; a gente senta-se muito acima da calçada, como se estivesse na escadaria de uma biblioteca pública, e descansa os pés no dorso de dois leões de bronze que bem poderiam ter sido trazidos para cá por um fenício. Por que estou tão nostálgico? Creio que é porque tenho um pouco de dinheiro guardado e devo decidir, logo, se vou embora para sempre. Fico pensando se Milly será capaz de fixar-se num curso de secretariado, num colégio situado numa rua cinzenta, na zona norte de Londres.

"Como vai tia Alice, com a famosa cera nos ouvidos? E tio Edward? Ou será que já morreu? Cheguei a uma época da vida em que os parentes morrem sem que a gente o saiba."

Pagou a conta e perguntou o nome do capitão, pois ocor­reu-lhe que, ao voltar para casa, deveria ter alguns nomes anotados, a fim de justificar suas despesas.

 

Em Santa Clara, o seu velho Hillman arriou debaixo dele como uma mula cansada. Algo estava seriamente desarranjado nas entranhas do automóvel — e somente Milly teria sa­bido de que se tratava. O homem da garagem disse que o con­serto demoraria vários dias e Wormold resolveu seguir para Santiago de ônibus. De qualquer modo, talvez isso fosse mais seguro, pois, na província de Oriente, onde os rebeldes habi­tuais ocupavam as montanhas, e as tropas do governo as estradas e cidades, era freqüente o bloqueio dos caminhos e os ônibus estavam menos sujeitos a demoras do que os carros particulares.

Chegou a Santiago ao anoitecer, à hora vazia e perigosa do toque de recolher. Todas as casas comerciais situadas na praça construída diante da catedral estavam fechadas. Um único casal atravessou apressadamente a rua, defronte do hotel; a noite era quente e úmida e a folhagem das árvores pairava, escura e pesada, sob a luz das lâmpadas, que ardiam com a metade de sua força. Na portaria, receberam-no com desconfiança, como se supusessem que fosse uma espécie de espião. Ele sentia-se como um impostor — pois, de fato, tra­tava-se de um hotel freqüentado por espiões, delatores e agen­tes rebeldes de verdade. Um homem, embriagado, falava incessantemente no bar triste, como se estivesse dizendo, no estilo de Gertrude Stein: "Cuba é Cuba é Cuba".

Wormold comeu, ao jantar, uma omelete seca e chata, queimada e dobrada como um velho manuscrito, e bebeu um vinho azedo. Enquanto comia, escreveu, num cartão postal, algumas linhas dirigidas ao Dr. Hasselbacher. Sempre que deixava Havana, distribuía a Milly, ao Dr. Hasselbacher e até mesmo a López más fotografias de maus hotéis, com uma cruz a assinalar uma janela, como o sinal que, nas histórias de detetives, indica o lugar onde o crime foi cometido. "O automóvel encrencou. Tudo muito quieto. Espero estar de volta na quinta-feira." Um cartão postal é um sintoma de solidão.

Às nove horas, Wormold saiu à procura de seu revendedor. Tinha-se esquecido de quão abandonadas são as ruas de San­tiago depois do anoitecer. As persianas das casas achavam-se fechadas atrás das janelas gradeadas e, como numa cidade ocupada, as casas voltavam as costas para o que passava. Um cinema lançava sobre a rua a sua luz débil, mas ninguém entrava: por lei, tinha de permanecer aberto, embora fosse pouco provável que alguém o visitasse, salvo algum soldado ou policial. Numa das ruas laterais, Wormold viu passar uma patrulha militar.

Sentou-se com o revendedor num aposento pequeno e quen­te; a porta, aberta, dava para o pátio, onde havia uma pal­meira e uma fonte de ferro batido, mas o ar, fora, era tão quente como dentro. Achavam-se sentados em cadeiras de balanço, um diante do outro, e, ao balançar-se, suas cabeças ora se aproximavam, ora se afastavam, fazendo pequenas cor­rentes de ar.

Os negócios iam mal — balouço, balouço —, ninguém es­tava comprando aparelhos elétricos em Santiago — balouço, balouço. — E que adiantava comprar? — balouço, balouço. Como que a ilustrar o assunto, a lâmpada elétrica apagou-se e eles continuaram a balouçar-se no escuro. Perdendo ritmo, suas cabeças chocaram-se ligeiramente.

— Desculpe-me.

— Foi minha a culpa. Balouço, balouço, balouço.

Alguém tropeçou numa cadeira, no pátio.

— Sua esposa? — indagou Wormold.

— Não. Não é ninguém. Estamos inteiramente a sós. Wormold balouçou-se para diante, balouçou-se para trás, balouçou-se de novo para diante, atento aos movimentos fur­tivos do pátio.

— Certamente.

Aquilo era Santiago. Qualquer casa podia conter um fugiti­vo. Era melhor não ouvir coisa alguma, e não ouvir coisa al­guma não era problema, mesmo quando a luz voltou, relutan­te, com uma tênue incandescência amarela no filamento.

De volta ao hotel, foi abordado por dois policiais. Queriam saber o que ele estava fazendo na rua tão tarde.

— São apenas dez horas — respondeu ele.

— Que está fazendo nesta rua às dez horas?

— Não há nenhuma ordem de recolher, pois não? Subitamente, sem qualquer advertência, um dos policiais lhe esbofeteou o rosto. Sentiu-se mais chocado do que furioso: pertencia à classe que respeita a lei. Os policiais eram os seus protetores naturais. Levou a mão ao rosto e disse:

— Valha-me Deus! Afinal de contas, pode-se saber o que... ?

O outro policial, com um soco nas costas, fê-lo tropeçar na calçada. Seu chapéu caiu na sujeira da sarjeta.

— Dêem-me o chapéu! — gritou, sentindo que novamente o empurravam.

Começou a dizer algo acerca do cônsul inglês e eles o fize­ram, aos trancos, atravessar a rua. Essa vez, foi parar diante de uma escrivaninha, onde um homem dormia com a cabeça pousada sobre os braços. O homem acordou e pôs-se a berrar com Wormold, sendo que a sua expressão menos forte era "porco".

— Sou súdito inglês, chamo-me Wormold e moro em Havana, na Rua Lamparilla, 37 — disse Wormold. — Tenho quarenta e cinco anos, sou divorciado e quero telefonar ao cônsul.

O homem que o chamara de "porco" e que tinha no braço as divisas de sargento lhe pediu mostrasse o seu passaporte.

— Não posso fazê-lo. Está em minha pasta, no hotel.

— Foi encontrado na rua sem documentos — disse,com satisfação, um de seus captores.

— Esvaziem-lhe os bolsos — ordenou o sargento. Tiraram-lhe a carteira, o cartão postal dirigido ao Dr. Hasselbacher, que esquecera de depositar no correio, e uma garrafa de uísque em miniatura, Old Grandad, que comprara no bar do hotel. O sargento examinou a garrafa e o cartão postal.

— Por que carrega esta garrafa? Que contém ela?

— Que é que o senhor supõe?

— Os rebeldes fazem granadas com garrafas.

— Mas não usam, certamente, garrafas pequenas assim.

O sargento tirou a rolha, cheirou e despejou um pouco do conteúdo na palma da mão.

— Parece ser uísque — comentou, voltando-se para o car­tão postal. — Por que fez uma cruz neste cartão?

— É a janela de meu quarto.

— Por que razão indicar a janela de seu quarto?

— E por que não deveria fazê-lo? É apenas... bem, é uma dessas coisas que a gente faz quando viaja.

— Estava, acaso, esperando um visitante junto da janela?

— Claro que não!

— Quem é o Dr. Hasselbacher?

— Um velho amigo.

— Ele virá a Santiago?

— Não.

— Então por que quer mostrar-lhe onde é o seu quarto? Começou a compreender uma coisa que os criminosos sabem muito bem: a impossibilidade de explicar-se o que quer que seja a um homem investido de autoridade.

— O Dr. Hasselbacher é uma mulher — declarou, petulante.

— Uma mulher médica! — exclamou o sargento, em tom de censura.

— É doutora em filosofia. Uma mulher muito bela — acrescentou, fazendo duas curvas no ar.

— E ela vem encontrá-lo em Santiago?

— Não, não. Mas o senhor sabe como são as mulheres, sargento! Gostam de saber onde o seu homem dorme.

— O senhor é amante dela?

O ambiente havia mudado para melhor.

— Mas isso ainda não explica o fato de o senhor andar, à noite, perambulando pela rua.

— Não existe lei alguma.. .

— Não há lei contra isso, mas as pessoas prudentes ficam em casa. Somente os que gostam de barulho é que saem.

— Eu não conseguia dormir, pensando em Emma.

— Quem é Emma?

— A Dra. Hasselbacher.

— Há alguma coisa errada aqui — disse, lentamente, o sargento. — Posso perceber pelo cheiro. O senhor não está dizendo-me a verdade. Se está apaixonado por Emma, por que razão se encontra em Santiago?

— O marido dela suspeita.

— Ela tem marido? Isso não é muito bonito. O senhor é católico?

— Não.

O sargento apanhou o cartão postal e tornou a examiná-lo.

— A cruz na janela de um quarto... Isso tampouco é muito bonito. Como é que ela explicará isso ao marido?

Wormold pensou rapidamente:

— O marido é cego.

— Isso também não é bonito. Não é nada bonito.

— Devo dar-lhe de novo uma lição? — indagou um dos policiais.

— Não há pressa. Devo primeiro interrogá-lo. Há quanto tempo conhece essa mulher. . . Emma Hasselbacher?

— Há uma semana.

— Uma semana? Nada do que o senhor diz é bonito. O se­nhor é protestante e adúltero. Quando foi que conheceu essa mulher?

— Fui-lhe apresentado pelo Capitão Segura.

O sargento ficou com o cartão postal suspenso no ar. Wor­mold ouviu um dos policiais, às suas costas, engolir em seco. Ninguém disse nada durante longo tempo.

— O Capitão Segura?

— Sim.

— O senhor conhece o Capitão Segura?

— Ele é amigo de minha filha.

— Com que, então, tem uma filha? É um homem casado — tornou a repetir. — Isso não é nada.. .

Nessa altura, um dos policiais o interrompeu:

— Ele conhece o Capitão Segura.

— Como é que posso saber que está dizendo a verdade?

— Pode telefonar-lhe e perguntar.

— Demoraria várias horas uma ligação telefônica com

Havana.

— Não posso partir de Santiago à noite. Esperarei pelo se­nhor no hotel.

— Ou numa cela, aqui na delegacia.

— Não creio que o Capitão Segura gostasse disso.

O sargento considerou o assunto durante longo tempo, examinando, enquanto isso, o conteúdo da carteira de Wormold. Depois, subitamente, capitulou. Ordenou a um dos ho­mens que o acompanhasse ao hotel e examinasse o seu passa­porte. (Agindo desse modo, o sargento, evidentemente, pensou que estava salvando as aparências.) Os dois seguiram para o hotel em meio de um silêncio embaraçoso e foi só quando já se achava deitado que Wormold se lembrou de que o cartão postal endereçado ao Dr. Hasselbacher se achava ainda na mesa do sargento. Pareceu-lhe que isso não tinha importân­cia, pois sempre poderia enviar-lhe um outro na manhã seguinte. Quanto tempo não é necessário, na vida da gente, para se compreender a intrincada configuração de que tudo — mesmo um cartão postal — integra um todo, e a temeri­dade de se desdenhar o que quer que seja como sendo coisa sem importância! Três dias depois, Wormold tomou o ônibus de volta a Santa Clara: seu Hillman já estava pronto e a estra­da para Havana não lhe apresentou problemas.

 

Muitos telegramas o aguardavam, quando chegou, ao entardecer, em Havana. Havia também um bilhete de Milly: "Você sabe quem (mas ele não sabia) o esteve procurando com muita insistência.. . mas não em qualquer mau sentido. O Dr. Hasselbacher deseja falar com você urgentemente. Com meu amor. P. S. Fui andar a cavalo no Country Club. Um fotógrafo da imprensa tirou uma fotografia de Serafina. Acaso isso é a fama? Vamos, dê o tiro de misericórdia".

O Dr. Hasselbacher podia esperar. Dois dos telegramas estavam marcados "urgente".

"N.° 2 de 5 de março começa parágrafo A investigação Hasselbacher ambígua ponto máxima cautela em qualquer contato e limite ao mínimo mensagem fim."

Vincent C. Parkman foi sumariamente rejeitado. "Não deve manter, repito, contato com ele ponto probabilidade já pertença ao serviço americano."

O telegrama seguinte — N.° 1 de 4 de março — dizia, fria­mente: "Favor no futuro, segundo instruções, limitar cada telegrama a um único assunto".

O N.° 1 de 5 de março era mais animador: "Nada contra Professor Sánchez e Engenheiro Cifuentes ponto pode recru­tá-los ponto provavelmente homens de sua posição não exi­jam mais do que gastos imediatos".

O último telegrama contrastava um tanto com os anterio­res: "Segundo informação A.O. recrutamento 59200 traço cinco traço um (lembrou-se de que isso se referia a López) anotado mas rogo notar pagamento proposto inferior reconhecido padrão europeu e deve ser modificado para 25 repito 25 pesos mensais termina mensagem". López gritava para cima da escada:

— É o Dr. Hasselbacher.

— Diga-lhe que estou ocupado. Telefonarei mais tarde.

— Diz que precisa falar-lhe com urgência. A voz dele parece... estranha.

Wormold dirigiu-se ao telefone. Antes de que pudesse falar, ouviu uma voz agitada, de velho. . . e jamais lhe ocorrera antes que o Dr. Hasselbacher fosse velho.

— Por favor, Sr. Wormold. . .

— Sim. O que se passa?

— Faça o favor de vir aqui. Aconteceu algo.

— Onde é que você está?

— Em meu apartamento.

— Mas o que houve, Hasselbacher?

— Não posso dizer pelo telefone.

— Está doente... ferido?

— Oh, se fosse apenas isso! — exclamou Hasselbacher. — Por favor, venha.

Durante todos aqueles anos em que se conheciam, Wor­mold jamais visitara o Dr. Hasselbacher. Tinham-se encon­trado no Wonder Bar e, nos aniversários de Milly, reuniam-se num restaurante. Afora isso, apenas uma vez o Dr. Hasselba­cher estivera na Rua Lamparilla, numa ocasião em que ele ti­vera febre alta. Houve também uma ocasião em que chorara diante de Hasselbacher, sentados no Paseo, ao contar-lhe que a mãe de Milly fugira, no avião da manhã, para Miami, mas a amizade entre ambos se baseava sòlidamente na distân­cia... Eram as amizades mais íntimas as que estavam mais sujeitas a romper-se. Agora, precisava até pedir o endereço de Hasselbacher.

— Mas então não o sabe? — indagou o Dr. Hasselbacher, surpreso.

— Não.

— Por favor, venha depressa — pediu Hasselbacher. — Não quero estar só.

Mas era impossível, àquela hora da noite, seguir com rapi­dez. Obispo constituía um sólido bloco de tráfego, e só depois de meia hora Wormold chegou ao quarteirão vulgar em que Hasselbacher morava: doze andares de cimento lívido. Vinte anos antes, o lugar tinha sido moderno, mas a nova arquite­tura de aço, mais para oeste, sobrepujara-o quanto à altura e o aspecto dos edifícios. Aquela zona pertencia a uma época de cadeiras cilíndricas, e foi uma cadeira cilíndrica o que Wormold primeiro viu, quando o Dr. Hasselbacher o fez entrar. Isso e uma reprodução de um castelo à margem do Reno.

O Dr. Hasselbacher, como sua voz, havia-se tornado subi­tamente velho. Não era mais uma questão de cor: aquela pele enrugada e sangüínea não podia mudar mais do que a casaca de uma tartaruga, nem nada poderia tornar os seus cabelos mais brancos do que já eram. Era a sua expressão que se modificara — todo um sistema de vida que sofrerá violência: o Dr. Hasselbacher já não era mais otimista. Disse, humildemente:

— Foi bondade sua ter vindo, Sr. Wormold.

Wormold lembrou-se do dia em que o velho o afastara do Paseo e o enchera de bebida no Wonder Bar, falando durante todo o tempo, cauterizando-lhe o sofrimento com álcool, riso e irresistível esperança.

— Que aconteceu, Hasselbacher? — perguntou.

— Vamos lá para dentro — respondeu Hasselbacher.

A sala de estar achava-se completamente em desordem: dir-se-ia que uma criança maldosa estivera a agir entre as cadeiras cilíndricas, abrindo isto, revolvendo aquilo, des­truindo e arrasando tudo à voz de algum impulso irracional. Uma fotografia de um grupo de jovens a empunhar canecas de cerveja fora arrancada da moldura e rasgada em dois peda­ços; uma reprodução colorida de O Cavaleiro a Rir ainda pendia da parede sobre o sofá, onde uma almofada, das três que lá se achavam, havia sido retalhada. O conteúdo de um armário — velhas cartas e recibos — achava-se espalhado pelo chão, e uma mecha de cabelos muito loiros, ligados por uma fita preta, jazia entre os destroços como um peixe recém-fisgado.

— Por que isso? — perguntou Wormold.

— Isto não tem muita importância — respondeu Hasselbacher. — Mas venha ver uma coisa.

Um pequeno quarto, convertido em laboratório, era um verdadeiro caos. Um bico de gás ardia ainda entre as ruínas. O Dr. Hasselbacher apagou-o. Ergueu um tubo de ensaio: o conteúdo fora despejado na pia.

— O senhor não compreende. Eu estava tentando fazer uma cultura de. .. não importa. Sabia que nada resultaria disso. Era apenas um sonho.

Sentou-se pesadamente sobre uma alta cadeira cilíndrica, ajustável, a qual, de repente, diminuiu sob o seu peso e lan­çou-o ao chão. Alguém sempre deixa uma casca de banana no local de uma tragédia. Hasselbacher levantou-se e limpou as calças.

— Quando foi que isso aconteceu?

— Alguém me telefonou.. . um chamado para atender a um doente. Senti que algo não estava certo; mas tinha de ir. Não podia correr o risco de não ir. Ao voltar, havia isto.

— Quem fez isso?

— Não sei. Há uma semana, alguém me telefonou. Um desconhecido. Queria que eu o ajudasse. Não se tratava de serviço médico. Disse-lhe que não. Perguntou-me, então, se eu tinha simpatia pelo Oriente ou pelo Ocidente. Procurei grace­jar com ele. Disse-lhe que minha simpatia se achava entre ambos. — E acrescentou, em tom de acusação: — Há algu­mas semanas, o senhor me fez a mesma pergunta.

— Estava apenas brincando, Hasselbacher.

— Eu sei. Desculpe-me. A pior coisa que fazem é alimen­tar toda esta suspeita. — Fitou a pia: — Um sonho infantil. Claro que sei muito bem. Fleming descobriu a penicilina devi­do a um acidente feliz. Mas um acidente tem de ser inspirado. Um velho médico de segunda classe jamais teria um acidente assim, mas não era da conta deles — era? — se eu queria sonhar.

— Não compreendo. Que é que há atrás disso? Algo polí­tico? De que nacionalidade era o tal homem?

— Falava inglês como eu... com sotaque. Hoje em dia, no mundo inteiro, as pessoas falam com sotaque.

— Telefonou à polícia?

— A julgar por tudo o que sei — respondeu o Dr. Hassel­bacher —, ele era a polícia.

— Levaram alguma coisa daqui?

— Sim. Alguns papéis.

— Importantes?

— Eu não devia jamais tê-los conservado. Tinham mais de trinta anos. Quando se é jovem, a gente se envolve em certas coisas. A vida de ninguém é inteiramente limpa, Sr. Wormold. Mas eu achava que o passado era o passado. Era por demais otimista. O senhor e eu não somos como esta gente daqui: não temos confessionário algum onde possamos enterrar um passado mau.

— Mas você deve ter alguma idéia... Que é que farão a seguir?

— Colocar-lhe-ão, talvez, numa lista negra — respondeu o Dr. Hasselbacher. — Precisam sentir-se importantes. Tal­vez eu seja, nessa lista, promovido a cientista atômico.

— Pode recomeçar de novo seus experimentos?

— Oh, sim! Suponho que sim. Mas, como vê, jamais acre­ditei neles, e, agora, foram pelo encanamento abaixo. — Abriu a torneira para limpar a pia. — Eu me lembraria ape­nas de toda esta. . . imundície. Aquilo era um sonho; isto é realidade. — Algo que se assemelhava a um fragmento de cogumelo ficou retido na saída do cano da pia. — Obrigado por ter vindo, Sr. Wormold. O senhor é um amigo verdadeiro.

— É tão pouco o que posso fazer!

— O senhor deixou-me falar. Já me sinto melhor. Receio apenas o que aconteceu com os papéis. Talvez o seu desapare­cimento tenha sido um acidente. Talvez não os tenha encon­trado em meio de toda esta desordem.

— Permita-me que eu o ajude a procurá-los.

— Não, Sr. Wormold. Não queria que visse algo de que me envergonho.

Tomaram dois drinques juntos, em meio às ruínas da sala de estar, e, depois, Wormold retirou-se. O Dr. Hasselbacher estava de joelhos embaixo de O Cavaleiro a Rir, a passar uma vassoura sob o sofá. Fechado em seu automóvel, Wormold sentiu um sentimento de culpa a mordiscá-lo por todos os lados, como um camundongo numa cela de prisão. Talvez ambos se acostumassem logo um com o outro e a culpa viesse comer em sua mão. Pessoas semelhantes a ele haviam feito isso — homens que se deixavam recrutar enquanto se acha­vam sentados em privadas, que abriam portas de hotéis com chaves pertencentes a outrem, que recebiam instruções redigi­das com tinta secreta e através dos Contos de Shakespeare, de Lamb. Havia sempre o outro lado de uma piada: o lado da vítima.

Os sinos estavam tocando em Santo Cristo; as pombas ergueram-se do telhado, na noite dourada, e puseram-se a voar em círculos sobre as casas de loterias da Rua O'Reilley e dos bancos de Obispo; meninos e meninas, quase indistinguíveis como pássaros, em seus uniformes brancos e pretos, saíam da Escola dos Santos Inocentes, carregando as pastas pretas. Sua idade os separava do mundo em que vivia o 59200, e sua credulidade era de outra espécie. Pensou, com ternura, que Milly logo estaria em casa. Alegrava-o o fato de que ela ainda pudesse aceitar histórias de fadas.. . uma vir­gem que deu à luz uma criança, figuras que choravam ou pro­feriam, no escuro, palavras de amor. Hawthorne e a gente de sua espécie eram igualmente crédulos, mas o que engoliam não passava de pesadelos — histórias grotescas nascidas da "ficção científica".

De que lhe valia estar a participar de um jogo com indife­rença? Devia dar-lhes, ao menos, em troco de seu dinheiro, algo que os alegrasse de verdade, algo que pusessem em seus arquivos com mais satisfação do que um relatório econômico. Fez, rápido, um rascunho: N.° 1 de 8 de fevereiro começa parágrafo A em minha recente viagem a Santiago ouvi notí­cias de várias fontes acerca grandes instalações militares em construção montanhas província Oriente ponto essas construções demasiado extensas para que tenham em vista bando de rebeldes que lá resistem ponto rumores de amplas derrubadas de floresta sob proteção de fogueiras ponto camponeses de várias aldeias obrigados transportar cargas de pedra Começa parágrafo B bar do hotel em Santiago encontrei piloto espa­nhol linha aérea cubana em avançado estado embriaguez ponto disse haver observado em Vôo Havana—Santiago pla­taforma de concreto demasiado extensa para qualquer edifício Parágrafo C 59200/5/3 que me acompanhou Santiago empreendeu perigosa missão próximo Q.G. militar em Bayamo e fez desenhos estranha maquinaria em transporte para floresta ponto'esses desenhos seguirão mala postal Parágrafo D desejo permissão pagar-lhe bônus em vista sérios riscos de sua missão e interromper algum tempo relatório econômico diante natureza vital e inquietante dos relatórios procedentes província Oriente ponto desejo informações acerca piloto cu­bano Raul Domínguez quem desejo recrutar como 59200/5/4".

Alegremente, pôs a mensagem em código. Pensou: "Jamais acreditei que tivesse bossa para a coisa". Refletiu, com orgu­lho: "59200/5 conhece o seu trabalho". Chegou mesmo a incluir Charles Lamb em seu bom humor. Escolheu, para a sua mensagem, a página 217, linha 12: "Mas descerrarei a cortina e mostrarei o quadro. Acaso não faço bem?"

Da loja, Wormold chamou López e entregou-lhe vinte e cinco pesos.

— Este é o salário do seu primeiro mês, adiantado. Conhecia López muito bem para esperar qualquer gratidão

pelos cinco pesos extra, mas de qualquer maneira ficou um tanto surpreso quando López lhe disse:

— Trinta pesos seria um salário adequado.

— Salário adequado? Que é que você quer dizer com isso? A agência já lhe paga muito bem.

— Isto significará muito trabalho — respondeu López.

— Significará, hem? Que negócio de trabalho?

— Serviços pessoais.

— Que espécie de serviços pessoais?

— Terá, evidentemente, de representar muito trabalho, pois, do contrário, o senhor não me pagaria vinte e cinco pesos.

Jamais conseguira levar a melhor junto a López, quanto ao que dizia respeito a questões de dinheiro.

— Quero que me traga da loja o Aspirador de Pilha Atô­mica — ordenou Wormold.

— Temos apenas um na loja.

— Quero-o aqui em cima. López suspirou:

— Acaso isso é um serviço pessoal?

— É.

Quando se viu a sós, Wormold desparafusou várias partes do aspirador. Depois, sentou-se à sua mesa e começou a fazer, com todo o cuidado, uma série de desenhos. Ao con­templar o esboço que fizera do pulverizador, destacado da mangueira do aspirador — o bocal perfurado, o vaporizador e o tubo telescópico —, pensou: "Será que não estou indo longe demais?" Percebeu que esquecera de indicar a escala. Traçou uma linha com uma régua e numerou-a: cada pole­gada representava três pés. Para dar melhor idéia das medi­das, desenhou um homenzinho de duas polegadas de alto a baixo do bocal. Vestiu-o elegantemente num terno preto e deu-lhe um chapéu-coco e um guarda-chuva.

Quando Milly chegou em casa aquela noite, ele estava ainda ocupado, a escrever o seu primeiro relatório, tendo estendido sobre a mesa um grande mapa de Cuba.

— Que é que está fazendo, papai?

— Estou dando o primeiro passo numa nova carreira. Ela olhou por cima dos ombros do pai:

— Vai ser escritor?

— Sim... um escritor imaginativo.

— Isso fará com que ganhe muito dinheiro?

— Apenas uma renda moderada, Milly, se me entregar a isso e escrever com regularidade. Pretendo escrever um ensaio como este todos os sábados à noite.

— E ficará famoso?

— Duvido. Ao contrário da maioria dos escritores, atri­buirei todos os méritos aos meus fantasmas.

— Fantasmas?

— É assim que eles chamam os que realizam o trabalho real, enquanto o autor recebe o pagamento. Em meu caso, farei o trabalho real, e todo o mérito será atribuído aos fantasmas.

— Mas você receberá o pagamento?

— Sem dúvida!

— Posso, então, comprar um par de esporas?

— Claro.

— Está-se sentindo bem, papai?

— Jamais me senti melhor. Que grande sensação de alívio você não deve ter experimentado ao atear fogo a Thomas Earl Parkman Jr.!

— Por que é que você não cessa de trazer esse caso à baila, papai? Isso já faz muitos anos.

— Porque eu a admiro pelo que fez. Será que você não pode tornar a fazê-lo?

— Claro que não! Já tenho idade demais para fazer tal coisa. Ademais, não há meninos no curso colegial. Papai, uma outra coisa: será que eu poderia comprar um cantil de caça?

— Pode comprar o que quiser. Oh, um momento! Que é que você vai colocar nele?

— Limonada.

— Seja uma boa menina e vá buscar uma outra folha de papel. O Engenheiro Cifuentes é um homem prolixo.

 

Interlúdio em Londres

— Que tal foi o vôo?

— Um tanto sacolejante sobre os Açores — respondeu Hawthorne.

Ainda não tivera tempo, até aquele momento, de trocar o seu terno de tropical cinza-claro: recebera o chamado urgente quando se encontrava em Kingston e um automóvel fora esperá-lo no aeroporto de Londres. Estava sentado o mais perto possível do radiador de aquecimento a vapor, mas, de vez em quando, não podia evitar um arrepio.

— Que flor esquisita é essa que está usando? Hawthorne a havia esquecido completamente. Levou a mão à lapela.

— Parece que era antes uma orquídea — comentou o chefe, em tom de censura.

— A Pan American, ontem à noite, ofereceu orquídeas aos passageiros, juntamente com o jantar — explicou Haw­thorne, tirando a flor cor de malva, já murcha, e colocando-a no cinzeiro.

— Juntamente com o jantar? Coisa esquisita, essa — comentou o chefe. — Dificilmente poderia ter melhorado o cardápio. Pessoalmente, detesto orquídeas. Coisa decadente. Havia alguém que usava orquídeas verdes, não havia?

— Coloquei-a na lapela apenas para que não ocupasse es­paço na bandeja do jantar. Quase não havia lugar, com o bolo, o champanha, a salada doce, a sopa de tomate, o frango à Maryland e o sorvete. . .

— Que mistura horrível. Devia ter viajado pela B. O. A. C.

— O senhor não me deu tempo suficiente para reservar passagem.

— Bem, o assunto é bastante urgente. Como sabe, o nosso homem em Havana nos tem enviado notícias bastante inquietantes.

— É um homem capaz — disse Hawthorne.

— Não o nego. Oxalá tivéssemos mais agentes como ele. O que não posso compreender é que os americanos ainda não hajam tomado nenhuma providência.

— O senhor já lhes perguntou?

— Claro que não. Não confio na discrição deles.

— Talvez eles não acreditem na nossa.

— Esses desenhos... já os examinou?

— Não entendo muito disso, senhor. Mandei-os direta­mente para cá.

— Bem, examine-os agora com atenção.

O chefe estendeu os desenhos sobre a mesa. Hawthorne afastou-se, com relutância, do radiador e, imediatamente, um arrepio percorreu-lhe o corpo.

— Está sentindo alguma coisa?

— Ontem, em Kingston, a temperatura era de noventa e dois graus.

— Seu sangue está ficando fino. Um pouco de frio lhe fará bem. Que é que acha deles?

Hawthorne fitou os desenhos. Lembravam-lhe... algo. Sentiu-se tomado — não sabia por que — de estranha inquietude.

— Você se lembra, naturalmente, dos informes que vieram com eles — disse o chefe. — A fonte foi traço três. Quem é ele?

— Penso que deve ser o Engenheiro Cifuentes, senhor.

— Bem, até mesmo ele ficou perplexo. Com o seu conheci­mento técnico. Estas máquinas estavam sendo transportadas por caminhão desde o quartel-general em Bayamo até junto da floresta. Depois, as mulas se encarregavam do trabalho.

Não foi explicada qual a direção geral dessas plataformas de concreto.

— Que é que diz o Ministério do Ar, senhor?

— Estão preocupados, muito preocupados. E também interessados, naturalmente.

— E o pessoal encarregado das pesquisas atômicas?

— Ainda não lhes mostramos os desenhos. Você sabe como são esses sujeitos. Criticam certos pormenores, dizem que nada disso é digno de crédito, que o tubo é despropor­cional ou que aponta na direção errada. Não se pode esperar que um agente, trabalhando de memória, possa obter todos os pormenores com exatidão. Quero fotografias, Hawthorne.

— Isso é exigir muito, senhor.

— Precisamos obtê-las. A qualquer custo. Sabe o que Savage me disse? Disse-me que um dos desenhos lhe lembrava um aspirador elétrico gigantesco.

— Um aspirador! — exclamou Hawthorne, debruçando-se sobre a mesa e tornando a examinar os desenhos, enquanto novo arrepio lhe percorria o corpo.

— Isso lhe causa arrepios, pois não?

— Mas é impossível, senhor! — disse, sentindo-se como se estivesse defendendo a sua própria carreira. — Não pode­ria ser um aspirador, senhor. Um aspirador, não.

— Diabólico, não é verdade? A habilidade, a simplici­dade, a imaginação demoníaca que isso revela!

Tirou o monóculo negro e o seu olho azul de criança, rece­bendo a luz que sobre ele incidia, fê-la dançar sobre a parede, acima do radiador.

— Veja isto aqui. . . três vezes a altura de um homem. Como um vaporizador gigantesco. E isto... o que é que isto lhe sugere?

— Um bocal com abertura de ambos os lados — respon­deu, infeliz, Hawthorne.

— O que é um bocal com abertura de ambos os lados?

— A gente às vezes os encontra em aspiradores elétricos.

— De novo os aspiradores elétricos! Hawthorne, penso que talvez estejamos diante de algo tão grande que, em comparação, a bomba de hidrogênio se converterá numa arma convencional.

— E isso é desejável, senhor?

— Claro que é desejável. Ninguém se preocupa com armas convencionais.

— Que é que o senhor tem em mente?

— Não sou cientista — respondeu o chefe. — Mas olhe este grande tanque. Deve ser tão alto quanto as árvores da flo­resta. Uma imensa boca escancarada no topo... e veja este encanamento... apenas indicado pelo nosso homem. Talvez se estenda por várias milhas... desde as montanhas até o mar, possivelmente. Como sabe, dizem que os russos estão trabalhando numa grande idéia... algo que tem relação com a energia solar, a evaporação do mar... Não sei do que se trata, mas sei que isto aqui é Grande. Diga ao nosso homem que precisamos obter fotografias.

— Não vejo de que maneira poderá ele aproximar-se o suficiente para. . .

— Diga-lhe que alugue um aeroplano e se meta lá por essa região. Não ele pessoalmente, claro, mas o traço três ou o traço dois. Quem é o traço dois?

— O Professor Sánchez, senhor. Mas ele seria abatido a tiros. Eles têm aeroplanos da força aérea patrulhando toda aquela zona.

— Têm aeroplanos, hem?

— Para localizar os rebeldes.

— Isso é o que eles dizem. Sabe de uma coisa? Tenho um palpite, Hawthorne.

— Qual, senhor?

— De que os rebeldes não existem. São simplesmente um pretexto. Um pretexto que dá ao governo todas as escusas de que necessita para interditar a referida zona.

— Espero que o senhor esteja certo.

— Seria melhor para todos nós — comentou o chefe, exultante — se eu estivesse equivocado. Receio essas coisas... receio-as, Hawthorne. — Tornou a colocar o monóculo e o reflexo desapareceu da parede. — Hawthorne, quando você esteve aqui, a última vez, falou com a Srta. Jenkinson acerca de uma secretária para o 59200/5?

— Falei, senhor. Ela não tinha nenhuma candidata em vista, mas achava que uma moça chamada Beatrice serviria.

— Beatrice? Como odeio todos esses nomes! Perfeita­mente adestrada?

— Sim, senhor.

— Chegou o momento de prestar alguma ajuda ao nosso homem em Havana. Esta tarefa é demasiado grande para um homem sem prática e sem ninguém que o auxilie. É melhor enviar com ela um operador de rádio.

— Não seria bom se eu fosse primeiro para lá e falasse com ele? Poderia ver como estão as coisas e conversar sobre isso.

— Não é seguro, Hawthorne. E não podemos, agora, cor­rer o risco de perdê-lo. Por meio do rádio, ele poderá comuni­car-se diretamente com Londres. Não gosto dessa ligação com o Consulado e eles tampouco a apreciam.

— E a respeito dos relatórios, senhor?

— Ele terá de organizar um serviço postal para Kingston. Um de seus caixeiros-viajantes poderá encarregar-se disso. Enviarei instruções por intermédio da secretária. Você já a viu?

— Não, senhor.

— Veja-a imediatamente. Verifique se é do tipo que con­vém. Capaz de encarregar-se do lado técnico. Você terá de pô-la a par do funcionamento da firma. A antiga secretária terá de ser afastada. Converse com o A.C. acerca de uma pen­são razoável até que ela atinja a época natural de aposentadoria.

— Perfeitamente, senhor — respondeu Hawthorne. — Posso olhar mais uma vez esses desenhos?

— Este aqui parece interessá-lo. Que é que pensa dele?

— Assemelha-se a um acoplamento de ação rápida — res­pondeu, sentindo-se infeliz, Hawthorne.

Ao sair, quando já se encontrava à porta, o chefe tornou a falar:

— Como sabe, Hawthorne, devemos a você grande parte disto tudo. Disseram-me, certa vez, que você não sabia julgar bem os homens, mas eu me ative à minha opinião pessoal. Belo serviço, Hawthorne.

— Obrigado, senhor.

Já tinha a mão sobre a maçaneta da porta.

— Hawthorne.

— Pronto, senhor.

— Encontrou aquele livrinho de anotações?

— Não, senhor.

— Talvez Beatrice o encontre.

 

 

Aquela foi uma noite que Wormold talvez jamais esque­cesse. Escolhera a data em que Milly completava dezessete anos para levá-la ao Tropicana. Era um estabelecimento mais inocente do que o Nacional, apesar das salas de roleta pelas quais os freqüentadores tinham de passar antes de chegar ao cabaré. Coristas exibiam-se num palco situado a vinte pés de altura, entre as grandes palmeiras, enquanto projetores de luzes róseas e cor de malva varriam o palco. Um homem, que trajava um smoking azul-claro, cantou, num inglês anglo-americano, uma canção sobre Paris, que ele pronunciava "Paree". O piano foi empurrado para baixo dos arbustos e os bailarinos surgiram, como pássaros desajeitados, dentre os ramos.

— É como a Floresta de Arden! — exclamou, extasiada, Milly.

A aia não estava presente: fora embora depois da primeira taça de champanha.

— Não creio que houvesse palmeiras na Floresta de Arden. Nem moças a dançar.

— Você é tão literal, papai!

— Então gosta de Shakespeare? — indagou o Dr. Hasselbacher.

— Oh, Shakespeare, não... Há nele demasiada poesia. O senhor sabe como é... Entra um emissário e diz: "Meu senhor, o duque avança pela direita". "Caminhemos, pois, de coração alegre, para a luta."

— Isso é Shakespeare?

— É como Shakespeare.

— Que tolice está você dizendo, Milly!

— Seja como for, a Floresta de Arden também é Shakes­peare, penso eu — comentou o Dr. Hasselbacher.

— Sim, mas eu só o li nos Contos de Shakespeare, de Lamb. Ele elimina todos os emissários, subduques e tudo o que constitui poesia.

— Ensinam-lhe isso na escola?

— Oh, não! Encontrei um exemplar no quarto de papai.

— Então lê Shakespeare dessa forma, Sr. Wormold? — perguntou, um tanto surpreso, o Dr. Hasselbacher.

— Oh, não, não. Claro que não. Comprei-o, na verdade, para Milly.

— Por que razão, então, ficou tão zangado quando o tomei emprestado?

— Eu não estava zangado. Apenas não me agrada que você mexa nas coisas... em coisas que não lhe dizem respeito.

— Você fala como se eu fosse uma espiã.

— Minha querida Milly, não brigue em seu aniversário. Você está sendo desatenciosa para com o Dr. Hasselbacher.

— Por que está tão quieto, Dr. Hasselbacher? — indagou Milly, enchendo a sua segunda taça de champanha.

— Qualquer dia você deve emprestar-me os Contos, de Lamb, Milly. Eu também acho Shakespeare difícil.

Um homenzinho muito pequeno, metido num uniforme muito justo, fez um aceno com a mão na direção da mesa em que se encontravam.

— O senhor não está preocupado, pois não, Dr. Hasselba­cher?

— Com que deveria estar preocupado, minha cara Milly, no dia de seu aniversário? A não ser que fosse com os anos, claro.

— Dezessete anos é muita idade?

— Para mim, passaram depressa demais.

O homem de uniforme apertado aproximou-se da mesa e fez uma reverência. Tinha o rosto marcado e erosado como os pilares da praia. Carregava uma cadeira quase tão grande como ele próprio.

— Este é o Capitão Segura, papai.

— Posso sentar-me? — perguntou, metendo-se entre Milly e o Dr. Hasselbacher, sem esperar a resposta de Wor­mold. — Tenho muito prazer em conhecer o pai de Milly — acrescentou.

Era tão rápida a sua insolência que não se tinha tempo de ficar ressentido, antes que desse motivo a novos aborreci­mentos.

— Apresente-me ao seu amigo, Milly.

— Este é o Dr. Hasselbacher.

O Capitão Segura não tomou conhecimento do Dr. Hassel­bacher e encheu a taça de Milly. Chamou um garçom:

— Traga-me outra garrafa.

— Estamos de saída, Capitão Segura — disse Wormold.

— Tolice! Os senhores são meus convidados. É apenas pouco mais de meia-noite.

Wormold bateu com o cotovelo numa taça, que caiu e se espatifou como aquela festa de aniversário.

— Garçom, outra taça — ordenou Segura, e, de costas para o Dr. Hasselbacher, debruçado sobre Milly, pôs-se a cantar, baixinho: — "A rosa que colhi no jardim..."

— Você está procedendo muito mal — disse Milly.

— Mal? Com relação a quem?

— A todos nós. Faço hoje dezessete anos e esta festa é de meu pai... e não sua.

— Dezessete anos! Mais um motivo para que sejam meus convidados. Chamarei algumas das bailarinas para que ve­nham à nossa mesa.

— Não queremos nenhuma bailarina — respondeu Milly.

— Então caí em desgraça?

— Caiu.

— Ah! — exclamou ele, com satisfação. — Foi porque si à saída da escola. Mas, Milly, às vezes tenho de I tiro do meu trabalho na polícia. Garçom, diga ao maestro tocar Happy Birthday to You.

— Não faça isso — disse Milly. — Como é que você pode ser tão... tão vulgar?

— Eu? Vulgar? — riu-se, feliz, o Capitão Segura. — Ela gosta de gracejar — comentou, dirigindo-se a Wormold. — Eu também gosto. É por isso que nos damos tão bem.

— Milly me disse que o senhor tem uma cigarreira feita de pele humana.

— Oh! como me arrelia referindo-se a isso! Eu digo-lhe que a pele dela daria uma encantadora...

O Dr. Hasselbacher levantou-se abruptamente:

— Vou apreciar a roleta.

— Ele não gosta de mim? — perguntou o Capitão Segura. — talvez seja um velho admirador de Milly, pois não? Um admirador muito velho, hem?

— É um velho amigo — respondeu Wormold.

— Mas tanto o senhor como eu, Sr. Wormold, sabemos que não existe isso que se chama de amizade entre homem e mulher.

— Milly não é ainda mulher.

— O senhor fala como pai, Sr. Wormold. Pai algum conhece a própria filha.

Wormold olhou a garrafa de champanha e a cabeça do Capitão Segura. Sentia-se vivamente tentado a fazer com que houvesse uma colisão entre ambas. Numa mesa logo atrás do capitão uma moça que ele jamais vira antes fez um aceno de cabeça a Wormold, como que a encorajá-lo; ele tocou na garrafa de champanha e ela tornou a fazer um sinal de cabeça. Para que lesse assim os seus pensamentos de maneira tão exata, devia ser tão inteligente quanto bonita. Sentiu inveja de seus companheiros — dois pilotos da K. L. M. e uma aeromoça.

— Vamos dançar, Milly — convidou o Capitão Segura —, e mostre que você me perdoou.

— Não quero dançar.

— Juro que amanhã estarei à sua espera junto ao portão do convento.

Wormold fez um gesto, como que a dizer: "Não tenho coragem. Ajude-me".

A desconhecida observou-o com ar sério; Wormold teve a impressão de que ela estava refletindo sobre a situação, compreendendo que qualquer decisão a que ele chegasse seria decisiva e exigiria ação imediata. Entrementes, ela pôs, com o sifão, um pouco de soda em seu uísque.

— Vamos, Milly. Você não deve estragar a minha festa.

— A festa não é sua. É de papai.

— Você fica muito tempo zangada! Deve compreender que, às vezes, tenho o meu trabalho até mesmo antes da minha querida Milly.

A moça que se achava sentada atrás do Capitão Segura modificou o ângulo do sifão.

— Não! — exclamou, instintivamente, Wormold. — Não!

O bico do sifão apontava para o pescoço do capitão. O dedo da jovem estava pronto para entrar em ação. Magoava-o o fato de que uma mulher tão bonita o olhasse com tal desdém.

— Sim, por favor, sim — disse ele e, imediatamente, ela disparou o sifão.

O jato de soda, sibilante, esguichou sobre o pescoço do Capitão Segura e escorreu-lhe colarinho adentro. A voz do Dr. Hasselbacher, vinda por entre as mesas, fez-se ouvir num "Bravo!", enquanto o Capitão Segura exclamava: "Corto!"

— Desculpe-me — disse a jovem senhora. — Pretendia lançar a soda em meu uísque.

— Seu uísque!

— No meu Dimpled Haig — explicou a moça. Milly conteve o riso.

O Capitão Segura, empertigado, fez uma reverência. Pelo seu tamanho, não se podia calcular a sua periculosidade, como acontece com as bebidas fortes.

— Seu sifão acabou, minha senhora. Permita-me que lhe arranje outro — disse o Dr. Hasselbacher.

Os holandeses, na mesa contígua, sussurraram entre si, pouco à vontade.

— Não creio me devam confiar outro — respondeu ela.

O Capitão Segura espremeu um sorriso. Um sorriso que parecia sair de um lugar errado, como pasta de dentes quando o tubo arrebenta.

— Pela primeira vez fui atingido pelas costas — declarou. — Estou contente de que isso tenha sido feito por uma mulher.

Recompôs-se admiràvelmente, o colarinho ainda ensopado e a água a escorrer-lhe pelos cabelos.

— Em outra ocasião, eu também participaria do jogo; mas acontece que me esperam no quartel e já estou atrasado. Espero poder vê-la novamente.

— Vou ficar aqui.

— Em férias?

— Não. Trabalho.

— Se tiver alguma dificuldade com o seu visto — disse, ambiguamente — deve procurar-me. Boa noite, Milly. Boa noite, Sr. Wormold. Direi ao garçom que são meus convida­dos. Ordenem o que quiserem.

— Ele teve uma saída honrosa.

— Foi uma bela pontaria.

— Tê-lo atingido com uma garrafa de champanha seria um tanto exagerado. Quem é ele?

— Uma porção de gente o chama de o Abutre Vermelho.

— Tortura prisioneiros — comentou Milly.

— Parece que arranjei um bom amigo.

— Eu não estaria tão certo disso — disse o Dr. Hasselbacher.

Uniram as mesas. Os dois pilotos fizeram uma reverência e proferiram nomes impronunciáveis. O Dr. Hasselbacher exclamou, horrorizado, dirigindo-se ao holandês:

— O senhor está tomando Coca-Cola!

— É o regulamento. Partimos às três e meia para Montreal.

— Se o Capitão Segura vai pagar, tomemos mais champa­nha — disse Wormold. — E Coca-Cola.

— Não creio que possa tomar mais Coca-Cola. E você, Hans?

— Eu tomaria um Bois. — respondeu o piloto mais jovem.

— Você não pode tomar Bois algum antes de chegarmos a Amsterdã — disse, com firmeza, a aeromoça.

O piloto mais jovem sussurrou a Wormold:

— Quero casar-me com ela.

— Com quem?

— Miss Pfunk...

Foi assim, pelo menos, que o nome soou aos ouvidos de Wormold.

— E ela não quer?

— Não.

O holandês mais velho informou:

— Tenho esposa e três filhos. — Desabotoou o bolso da túnica: — Aqui estão as suas fotografias.

Passou a Wormold um cartão postal colorido, onde se via uma jovem de suéter amarelo muito justo e calções de banhis­ta, ajustando os seus patins. No suéter estava escrito "Mamba Club" e, embaixo da fotografia, Wormold leu: "Garantimos-lhe que se divertirá muito. Cinqüenta lindas garotas. O senhor não estará só".

— Não me parece que seja a fotografia certa — comentou Wormold.

A jovem senhora, que tinha cabelos castanhos e, tanto quanto lhe permitiam ver as luzes enganadoras do Tropicana, olhos cor de avelã, disse:

— Vamos dançar.

— Não sei dançar muito bem.

— Isso não importa, pois não? Ele a arrastou pelo salão.

— Compreendo o que me disse quanto ao dançar. Isto é uma rumba. Aquela é sua filha?

— É.

— É muito bonita.

— Acaba de chegar a Havana?

— Sim. A tripulação resolveu divertir-se um pouco e eu me juntei a eles. Não conheço ninguém aqui.

A cabeça da jovem chegava-lhe ao queixo; podia cheirar-lhe os cabelos, os quais lhe tocavam a boca quando eles se moviam. Wormold ficou um tanto desapontado, ao notar que ela usava aliança.

— Chamo-me Severn — disse ela. — Beatrice Severn.

— Eu me chamo Wormold.

— Então sou sua secretária.

— Como assim? Não tenho secretária.

— Oh, claro que tem! Eles não lhe disseram que eu ia chegar?

Não precisava perguntar de que "eles" se tratava.

— Mas eu própria enviei o telegrama.

— Recebi um a semana passada.. . mas não consegui decifrá-lo.

— Qual é a sua edição dos Contos, de Lamb?

— Edição Everyman.

— Com os diabos! Deram-me uma edição errada. Imagi­no como o telegrama deve ter-lhe parecido confuso! De qual­quer modo, estou contente de tê-lo encontrado.

— Eu também estou. Um tanto surpreso, naturalmente. Onde é que está hospedada?

— Esta noite, no Hotel Inglaterra. Mas estou pensando em mudar-me.

— Para onde?

— Para o seu escritório, claro. Não me importa o lugar em que durma. Eu me ajeitarei numa das salas do seu pessoal.

— Não há pessoal algum. É um escritório muito pequeno.

— Bem. De qualquer maneira, deve ter uma sala para uma secretária.

— Jamais tive secretária, Sra. Severn.

— Chame-me Beatrice. Creio que é bom, por razões de segurança.

— Segurança?

— É um problema, se não existe sequer uma sala para uma secretária. Vamos sentar.

Um homem, trajando um dinner jacket preto, cantava entre as árvores da floresta, como um funcionário distrital inglês:

 

Homens sensatos, velhos

Amigos da família, nos cercam.

Dizem que a Terra é redonda. . .

Minha loucura ofendem.

As laranjas têm sementes, dizem,

E as maçãs, cascas.

Digo que a noite é dia

E que não tenho machado para afiar.

Por favor, não acreditem. . .

 

Sentaram-se a uma mesa vazia, ao fundo do salão da role­ta. Podiam ouvir o ruído das bolinhas. Ela estava de novo séria, um tanto contrafeita, como uma moça que veste o seu primeiro vestido de soirée.*

* Em francês no texto: de gala. (TV. do E.)

 

— Se eu soubesse que era sua secretária, não teria esgui­chado o sifão naquele policial... a menos que o senhor ordenasse.

— Não deve preocupar-se com isso.

— Na verdade, enviaram-me para cá a fim de facilitar-lhe as coisas, e não torná-las mais difíceis.

— O Capitão Segura não importa.

— Meu adestramento é bastante completo. Fui aprovada em código e em microfotografia... Posso estabelecer conta­to com os seus agentes.

— Oh!

— O senhor saiu-se tão bem que eles estão ansiosos para que não corra o risco de esfalfar-se. Quanto a mim não importa que tal aconteça.

— Não me agradaria vê-la fanar-se. Um pouco de esforço será o bastante.

— Não compreendo.

— Eu estava pensando em rosas.

— Como o telegrama foi mutilado, o senhor, natural­mente, ignora a vinda do radioperador.

— Não sei.

— Também está hospedado no Hotel Inglaterra; ficou doente, pois enjoou durante o vôo. Precisamos alojá-lo.

— Se está enjoado, talvez. . .

— Poderá fazer dele um ajudante de contador; foi trei­nado para isso.

— Mas não preciso de ajudante de contador algum. Não tenho sequer um chefe de contabilidade.

— Não se preocupe. Resolverei tudo amanhã cedo. É para isso que estou aqui.

— Há em sua pessoa algo que lembra a minha filha — disse Wormold. — A senhorita faz novenas?

— O que é isso?

— Não sabe? Graças a Deus que assim seja. Ao longe, alguém estava ainda cantando:

 

Digo que maio é inverno

E não tenho machado para afiar.

 

As luzes mudaram de azul para cor-de-rosa e as bailarinas foram empoleirar-se entre as palmeiras. Os dados choca­lhavam nas mesas de jogo; Milly e o Dr. Hasselbacher encaminharam-se, felizes, para a pista de dança. Era como se, graças a uma mulher, o seu aniversário, despedaçado, fosse de novo reconstruído.

 

Na manhã seguinte Wormold levantou-se cedo. Sentia uma ligeira ressaca de champanha e a irrealidade da noite passada no Tropicana estendia-se ao ambiente do escritório. Beatrice dissera-lhe que estava saindo-se bem — e ela era o porta-voz "daquela gente": pertencia à mesma espécie de organização que arruinara o apartamento do Dr. Hasselbacher. Experi­mentou uma sensação de desapontamento, ao pensar que, afi­nal de contas, a moça não era inteiramente real — não era, pelo menos, tão real quanto Milly ou o Dr. Hasselbacher. Ela e Hawthorne pertenciam ao mundo imaginário de seus agen­tes. Seus agentes...

Sentou-se diante de seu fichário. Tinha de fazer com que as fichas parecessem o mais plausíveis possível antes que ela chegasse. Alguns dos agentes ali registrados pareciam, agora, bastante improváveis. O Professor Sánchez e o Engenheiro Cifuentes já se achavam profundamente comprometidos, e não podia desfazer-se deles: já haviam retirado quase duzen­tos pesos, destinados a despesas. López também já era perma­nente. O piloto bêbedo da linha aérea cubana também já havia recebido uma bela gratificação de quinhentos pesos pela história da construção nas montanhas, mas talvez pudes­se ser posto de lado como perigoso. Havia o capitão do "Juan Belmonte", que ele encontrara bebendo em Cienfuegos; pare­cia personagem bastante provável, e estava retirando apenas setenta e cinco pesos mensais. Mas havia outras personagens que, receava, não suportariam um exame atento daqueles olhos cor de avelã: Rodríguez, por exemplo, descrito, em sua ficha, como um rei de night club, e Teresa, bailarina do Tea­tro Shanghai, que ele registrara como sendo, simultanea­mente, amante do ministro da Defesa e do diretor dos Cor­reios e Telégrafos. (Não era de surpreender que Londres não houvesse encontrado vestígio algum de Rodríguez ou de Tere­sa.) Estava já decidido a excluir Rodríguez, pois qualquer pessoa que viesse a conhecer bem Havana poria certamente em dúvida, mais cedo ou mais tarde, a sua existência. Mas não lhe era possível abrir mão de Teresa — a sua Mata Hari. Era pouco provável que a nova secretária visitasse o Teatro Shanghai, onde, todas as noites, entre números de nu artístico, eram exibidos três filmes pornográficos. Milly sentou-se ao seu lado:

— Que fichas são essas?

— Fregueses.

— Quem era aquela moça de ontem à noite?

— Vai ser minha secretária.

— Você está ficando importante.

— Achou-a agradável?

— Não sei. Você não me deu oportunidade de conversar com ela. Estava muito ocupado em dançar e fazer-lhe a corte.

— Eu não a estava cortejando.

— Ela quer casar com você?

— Deus do céu, não!

— E você quer casar com ela?

— Milly, seja sensata. Vi-a, pela primeira vez, ontem à noite.

— Marie, uma menina francesa lá do convento, diz que todo amor é um coup defoudre*.

* Fm francês no texto: explosão. (N. do E.) 124

 

— É sobre isso que vocês conversam no convento?

— Naturalmente. Isso é o futuro, não é? Não temos ainda um passado sobre que conversar, embora a Irmã Agnes haja tido.

— Quem é a Irmã Agnes?

— Já lhe falei a respeito dela. É uma freira triste e encantadora. Marie me disse que, quando jovem, ela teve um coup de foudre infeliz.

— Ela disse isso a Marie?

— Não, claro que não. Mas Marie sabe. Ela própria teve dois coups de foudres infelizes. Aconteceram subitamente. .. como se caíssem do céu.

— Tenho idade suficiente para estar a salvo disso.

— Oh, não. Havia um velho, de mais de quarenta anos, que teve um coup de foudre pela mãe de Marie. Ele era casa­do... como você.

— Bem, minha secretária também é casada, de modo que tudo deve estar em ordem.

— É realmente casada ou apenas uma viúva encantadora?

— Não sei. Não lhe perguntei. Você a acha encantadora?

— Bastante. De certo modo. López subiu a escada.

— Está aí uma senhora. Diz que o senhor a espera.

— Diga-lhe que suba.

— Vou ficar aqui — avisou Milly.

— Beatrice, esta é Milly.

Notou que tanto os olhos como os cabelos de Beatrice eram da mesma cor que na noite anterior: afinal de contas, não havia sido apenas efeito do champanha e das palmeiras. Pensou: "Ela parece real".

— Bom dia — disse Milly, na voz da aia. — Espero que tenha passado bem a noite.

— Tive sonhos horríveis — respondeu Beatrice, olhando Wormold, o fichário e Milly. — Diverti-me, ontem à noite.

— Esteve maravilhosa com aquele sifão — disse Milly, generosamente —, senhorita...

— Sra. Severn. Mas peço que me chame de Beatrice.

— Oh, é casada? — perguntou Milly, com falsa curiosi­dade.

— Fui casada.

— Ele morreu?

— Que eu saiba, não. Sumiu, de certo modo.

— Oh!

— Isso acontece com gente de seu tipo.

— Qual era o seu tipo?

— Milly, já era tempo de você ir embora. Não é de sua conta perguntar à Sra. Severn. . . Beatrice. . .

— Na minha idade — respondeu Milly —, a gente tem de aprender com a experiência dos outros.

— Tem toda a razão. Suponhamos chamássemos o seu tipo de intelectual e sensível. Eu o achava muito belo: parecia um filhote de passarinho a olhar para fora do ninho, com as penas arrepiadas em torno do pomo-de-adão... um pomo-de-adão bastante grande. A coisa foi que, ao chegar aos qua­renta anos, ele ainda parecia um rapazinho inexperiente. As moças adoravam-no. Costumava ir, em Veneza e em Viena, às conferências da UNESCO e a lugares semelhantes. O se­nhor tem um cofre forte, Sr. Wormold?

— Não.

— E o que aconteceu? — indagou Milly.

— Oh, comecei a ver através dele. Digo-o num sentido literal, e não de maneira maldosa. Era muito magro, côncavo, e ficou como que transparente. Quando o olhava, podia ver, por entre as suas costelas, todos os delegados sentados, e o presidente da mesa levantando-se e dizendo: "A liberdade é importante para os escritores de espírito criador". Isso era uma coisa fantástica, à hora do desjejum.

— E não sabe se ainda está vivo?

— Estava vivo o ano passado, pois li, nos jornais, que fez uma conferência, em Taormina, intitulada: "O Intelectual e a Bomba de Hidrogênio". O senhor devia ter um cofre forte, Sr. Wormold.

— Porquê?

— Não pode deixar as coisas abandonadas por aí. Ade­mais, a gente espera que um rei dos mercadores à moda anti­ga possua um cofre forte.

— Quem foi que me chamou de rei dos mercadores à moda antiga?

— É a impressão que eles têm em Londres. Vou sair já, para ver se descubro um cofre forte.

— Eu também vou sair — disse Milly. — Tenha juízo, papai. Você sabe a que me refiro.

 

Foi um dia exaustivo, aquele. Primeiro Beatrice saiu e com­prou um cofre forte, cujo transporte exigiu um caminhão e seis homens. Ao subir as escadas, quebraram os balaústres e um quadro. Reuniu-se, fora, uma multidão, incluindo vários alunos da escola situada ao lado, os quais haviam cabulado as aulas, bem como duas negras bonitas e um policial. Quan­do Wormold se queixou de que aquilo o estava pondo muito em evidência, Beatrice retorquiu que a maneira de a gente se tornar realmente alvo da atenção alheia era procurar passar despercebido.

— Aquele sifão, por exemplo — disse ela. — Todos se lembrarão de mim como sendo a mulher que esguichou soda no policial. Ninguém mais fará perguntas sobre quem sou eu. Eles já têm a resposta.

Enquanto os homens estavam lutando com o cofre forte, um táxi parou à porta e dele desceu um jovem, descarregando a maior mala de mão que Wormold já havia visto até então.

— Este é Rudy — disse Beatrice.

— Quem é Rudy?

— O seu assistente de contabilidade. Falei-lhe dele ontem à noite.

— Graças a Deus — comentou Wormold —, parece haver algo, a respeito de ontem à noite, que eu havia esquecido.

— Entre, Rudy, e fique à vontade.

— De nada adianta dizer-lhe que entre. Entrar onde? Não há quarto para ele.

— Pode dormir no escritório — respondeu Beatrice.

— Não há espaço para uma cama, o cofre forte e a minha mesa.

— Arranjarei uma mesa menor. Como vai o enjôo, Rudy? Apresento-lhe o Sr. Wormold, nosso chefe.

Rudy era muito jovem e muito pálido, e tinha os dedos manchados de nicotina ou de ácido.

— Vomitei duas vezes durante a noite, Beatrice. Quebra­ram uma válvula Roentgen.

— Isso não importa, agora. Vamos resolver primeiro as coisas preliminares. Vá comprar uma cama-de-vento.

— Imediatamente — respondeu Rudy, desaparecendo. Uma das negras aproximou-se de Beatrice:

— Sou britânica.

— Eu também. Prazer em conhecê-la.

— A senhora é a moça que atirou água no Capitão Segura?

— Bem, mais ou menos. Na verdade, dei-lhe uma esguichada.

A negra voltou-se e, em espanhol, explicou à multidão o que houve. Várias pessoas bateram palmas. O policial afas­tou-se, um tanto encabulado.

— A senhora é muito bonita, miss.

— Você também é bastante bonita — respondeu Beatrice. — Ajude-me a carregar esta mala.

Lutaram com a mala de Rudy, puxando-a e empurrando-a.

— Com licença — disse um homem, abrindo caminho por entre a multidão. — Com licença, por favor.

— Que é que deseja? — perguntou-lhe Beatrice. — Não vê que estamos ocupados? Marque uma entrevista.

— Desejo apenas comprar um aspirador elétrico.

— Oh, um aspirador! Creio que é melhor entrar. Pode passar por cima da mala?

Wormold chamou López:

— Encarregue-se dele. Pelo amor de Deus, procure vender-lhe um Aspirador de Pilha Atômica. Não vendemos nenhum, até agora.

— A senhora vai morar aqui? — indagou a negra.

— Vou trabalhar aqui. Obrigada pela sua ajuda.

— Nós, britânicos, temos de ser unidos — respondeu a negra.

Os homens que haviam instalado o cofre desceram a escada cuspindo nas mãos e esfregando-as nas calças, para mos­trar quão difícil havia sido a coisa. Wormold deu-lhes uma propina. Depois, subiu e olhou com tristeza o seu escritório. O pior é que havia justamente lugar para uma cama-de-vento, o que o privava de qualquer desculpa.

— Não há lugar para Rudy colocar as roupas. De qual­quer modo, há a escrivaninha. O senhor pode esvaziar as gavetas e colocar tudo no cofre, deixando-as livres para que Rudy guarde as coisas dele.

— Nunca usei um cofre de segredo.

— É muito simples. A gente escolhe três grupos de núme­ros que se possam guardar na cabeça. Qual é o número aqui de sua casa?

— Não sei.

— Bem, o número de seu telefone. . . Não, isso não é seguro. É uma dessas coisas que um ladrão poderá tentar. Qual a data de seu nascimento?

— É 1911.

— E de seu aniversário?

— Seis de dezembro.

— Bem, então faça a combinação 19-6-11.

— Não me lembrarei dela.

— Oh, claro que se lembrará: não pode esquecer o seu próprio aniversário. Agora, observe-me. Vira-se o botão para trás quatro vezes; depois para a frente, até dezenove; três vezes para a frente, até seis; duas vezes para trás; de novo para diante até onze e gira-se todo o botão, até completar uma volta inteira — e ele está fechado. Abre-se da mesma maneira: 19-6-11,e pronto!

Dentro do cofre, havia um camundongo morto.

— Loja suja! — comentou Beatrice. — Eu deveria ter conseguido um abatimento.

Começou a abrir a mala de Rudy, tirando pedaços e peças de rádio, baterias, equipamentos fotográficos, válvulas miste­riosas enroladas nas meias sujas do rapaz.

— Como foi que conseguiram, com os diabos, passar tudo isso pelos fiscais alfandegários?

— Não passamos. O 59200/5/5 trouxe tudo de Kingston.

— Quem é ele?

— Um contrabandista crioulo. Faz contrabando de cocaí­na, ópio e maconha. Claro que conta com a conivência do pessoal da alfândega. Pensaram, esta vez, que se tratava da sua carga habitual.

— Seria necessário muita droga para encher essa mala.

— Sim. Tivemos de pagar bastante, por causa disso. Arrume u tudo, rápida e cuidadosamente, nas gavetas, de­pois de colocar as coisas de Wormold no cofre.

— As camisas de Rudy vão ficar um pouco amassadas, mas não importa — comentou ela.

— Não tem importância — disse Wormold.

— O que é isto? — perguntou, apanhando as fichas que Wormold estivera examinando.

— Meus agentes.

— Pretende deixá-las aí, espalhadas sobre a mesa?

— Oh, eu as guardo, à noite.

— O senhor não tem muita idéia de segurança, pois não? — disse, examinando um cartão. — Quem é Teresa?

— Ela dança nua.

— Inteiramente nua?

— Sim.

— Interessante para o senhor. Londres deseja que eu entre em contato com os seus agentes. Terá de apresentar-me a Te­resa numa ocasião em que esteja vestida.

— Não creio que ela trabalhe para uma mulher. Sabe como são essas moças. . .

— Eu não sei. Mas o senhor o sabe. Ah, e o Engenheiro Cifuentes! Não poderá dizer que se importe de trabalhar para uma mulher.

— Ele não fala inglês.

— Talvez eu pudesse aprender espanhol. Seria um bom disfarce, tomar lições de espanhol. É tão atraente quanto Teresa?

— Tem uma esposa muito ciumenta.

— Oh, acho que posso lidar com ela.

— Isso é absurdo, claro, devido à sua idade.

— Que idade tem ele?

— Sessenta e cinco anos. Ademais, nenhuma outra mulher poderia interessar-se por ele, devido à sua pança. Falarei com ele a respeito das lições de espanhol, se quiser.

— Não há pressa. Vamos deixá-lo de lado, por ora. Eu poderia começar com este outro. O Professor Sánchez. Acos­tumei-me a lidar com intelectuais, quando vivia com meu marido.

— Também não fala inglês.

— Espero que fale francês. Minha mãe era francesa. Sou bilíngüe.

— Não sei se fala ou não. Ficará a seu cargo descobrir.

— Não devia deixar todos esses nomes escritos assim, en clair*, nesses cartões. Suponhamos que o Capitão Segura investigasse suas atividades. Não me agradaria nada pensar que arrancariam a pele da barriga do Engenheiro Cifuentes para fazer uma cigarreira. Coloque apenas, sob os números dessas pessoas, alguns pormenores que as identifiquem: 59200/5/3 — esposa ciumenta e pança. Escreverei isso para o senhor e queimarei as fichas antigas. Com os diabos! Onde estão essas folhas de celulóide?

* Em francês no texto: expostos. (N, do E.)

 

— Folhas de celulóide?

— Para ajudar a queimar os papéis, quando se tem pressa. Oh, espero que Rudy as haja colocado entre as suas camisas.

— Quantas bugigangas vocês carregam!

— Temos, agora, de arranjar a câmara escura.

— Não tenho câmara escura alguma.

— Ninguém tem, hoje em dia. Vim preparada. Cortinas escuras e um globo vermelho. E um microscópio, natural­mente.

— Para que queremos um microscópio?

— Microfotografia. Se houver algo realmente urgente, que não se possa pôr num telegrama, Londres deseja que façamos uma comunicação direta, para se poupar todo o tempo que ela exigiria se fosse feita através de Kingston. A gente a cola depois de um ponto final e eles mergulham a carta em água, até que o ponto se despregue. Suponho que, às vezes, o senhor escreva cartas para a Inglaterra. Cartas comerciais, por exemplo?

— Essas eu as envio para Nova York.

— E as cartas para amigos e parentes?

— Perdi o contato com eles nos últimos dez anos. Exceto com a minha irmã. Envio-lhe, claro, cartões de boas-festas, no Natal.

— Talvez não pudéssemos esperar até o Natal.

— Às vezes, envio selos para um garoto, meu sobrinho.

— ótimo! Podíamos colar uma microfotografia no verso de um dos selos.

Rudy subiu pesadamente a escada, carregando a cama-de-vento, e a moldura do quadro acabou de quebrar-se por com­pleto. Beatrice e Wormold retiraram-se para o quarto contí­guo, a fim de que ele dispusesse de espaço, e sentaram-se na cama. Chegavam até eles batidas, baques e ruído de algo que se partia.

— Rudy não é muito jeitoso quando usa as mãos — comentou Beatrice, enquanto circunvagava o olhar pelo quar­to. — Nem uma única fotografia. O senhor não tem vida privada?

— Não creio que tenha muita. Exceto quanto ao que se re­fere a Milly. E ao Dr. Hasselbacher.

— Londres não gosta do Dr. Hasselbacher.

— Londres pode ir para o inferno! — exclamou Wor­mold.

Teve vontade, de repente, de descrever as ruínas do aparta­mento do Dr. Hasselbacher e a destruição de seus inocentes experimentos.

— É gente como vocês, lá de Londres. . . Desculpe-me. Mas a senhora é uma delas.

— O senhor também é.

— Sim, naturalmente. Eu também sou. Rudy gritou do outro quarto:

— Já armei a cama.

— Gostaria que a senhora não fosse uma delas — disse Wormold.

— É uma maneira de viver — respondeu ela.

— Não é uma maneira de viver real. Toda esta espiona­gem ! E espionando o quê? Agentes secretos a descobrir o que toda a gente já sabe...

— Ou apenas a inventar histórias.

Ele interrompeu-se subitamente e ela prosseguiu, sem nenhuma alteração de voz:

— Há uma porção de outros trabalhos que também não são reais. Desenhar uma nova saboneteira de matéria plásti­ca, fazer, por brincadeira, trabalhos de pirogravura para lojas, escrever slogans de propaganda, ser membro do Parla­mento, fazer discursos em conferências da UNESCO. Mas o dinheiro é real. O que acontece depois do trabalho é real. O que quero dizer é que sua filha é real e que o dia em que ela completa dezessete anos também é real.

— Que é que faz depois do trabalho?

— Não faço muita coisa, agora, mas quando estava apai­xonada. . . íamos ao cinema, tomávamos café em bares expressos e nos sentávamos, nas noites de verão, no Hyde Park.

— E que acontecia?

— É preciso que haja duas pessoas para que algo perma­neça real. Ele vivia o tempo todo a representar. Julgava-se o grande amante. Às vezes, eu quase desejava que ele ficasse impotente por algum tempo, apenas para que perdesse a con­fiança que tinha em si próprio. Não se pode amar e ser tão confiante como ele era. Quando a gente ama, tem medo de perder o seu amor, não tem? Oh, com os diabos! Por que é que estou dizendo tudo isto a você? Vamos fazer microfotografias e escrever telegramas em código. — Olhou através da porta: — Rudy está deitado na cama. Creio que tornou a ficar com enjôo devido ao vôo. Será que a gente pode ficar enjoado durante tanto tempo assim? As camas sempre fazem a gente falar. — Abriu uma outra porta: — Mesa posta para o almoço. Frios e salada. Dois lugares. Quem arranja tudo isso? Uma pequena fada?

— Uma mulher vem cá pela manhã, durante duas horas.

— E aquele outro quarto?

— É o quarto de Milly. Tem também uma cama.

 

A situação, qualquer que fosse o aspecto pelo qual a enca­rasse, não era nada cômoda. Wormold adquirira o hábito de efetuar, de vez em quando, retiradas de dinheiro destinadas a despesas do Engenheiro Cifuentes e do professor, bem como salários mensais para si próprio, para o capitão do "Juan Bel­monte" e para Teresa, a bailarina nua. O piloto aéreo bêbedo era, em geral, pago em uísque. O dinheiro acumulado por Wormold, ele o depositava em sua conta particular: algum dia, poderia formar um dote para Milly. Naturalmente, para justificar tais pagamentos, era obrigado a redigir um supri­mento regular de relatórios. Com a ajuda de um grande mapa, do número semanal do Time, que dedicava, em sua seção "Hemisfério Ocidental", generoso espaço a notícias referentes a Cuba, de várias publicações sobre economia editadas pelo governo e, acima de tudo, com a ajuda de sua própria imagi­nação, fora-lhe possível elaborar pelo menos um relatório por semana e, até a chegada de Beatrice, reservava as suas noites de sábado para redigir tais informes. O professor era a autori­dade nos assuntos econômicos; o Engenheiro Cifuentes trata­va das misteriosas construções na província de Oriente, e seus relatórios eram, às vezes, confirmados, e, outras vezes, contestados pelo piloto da companhia de aviação cubana. . . contradição que dava aos seus relatórios um sabor de autenti­cidade. O capitão do "Juan Belmonte" fornecia descrições das condições de trabalho em Santiago, Matanzas e Cienfuegos, bem como sobre o desassossego reinante na Marinha. Quanto à bailarina nua, fornecia pormenores picantes relativos à vida particular e às excentricidades sexuais do ministro da Defesa e do diretor dos Correios e Telégrafos. Seus infor­mes assemelhavam-se muito a artigos sobre as estrelas de ci­nema estampados na revista Confidential, pois que a imagina­ção de Wormold, nesse terreno, não era muito forte.

Agora que Beatrice lá estava, Wormold tinha muito mais com que se preocupar do que com os seus exercícios de sába­do à noite. Além do adestramento básico que Beatrice insistia em dar-lhe em microfotografia, havia também os telegramas em que ele tinha de pensar, a fim de que Rudy se sentisse feliz, e quanto mais telegramas Wormold enviava, tanto mais res­postas recebia. Agora, Londres, todas as semanas, o apoquentava com pedidos de fotografias das instalações em Oriente e, cada semana que passava, Beatrice se tornava mais impa­ciente por entrar em contato com os agentes. Era contra todas as normas, explicava ela, que o chefe de uma estação manti­vesse contatos pessoais com as suas fontes de informação. Certa noite, ele a levou para jantar no Sporting Club e, por azar, o Engenheiro Cifuentes, que lá se encontrava, foi cha­mado ao telefone.

— É esse o Engenheiro Cifuentes? — indagou, vivamente, Beatrice.

-É.

— Mas não me disse que ele tinha sessenta e cinco anos?

— É que ele parece mais moço.

— E não me disse que ele tinha pança?

— Pança, não: ponch. No dialeto local, isso quer dizer estrabismo.

Foi uma saída muito difícil.

Depois disso, ela começou a interessar-se por uma figura mais romântica da imaginação de Wormold: o piloto da com­panhia de aviação cubana. Trabalhava com entusiasmo para que a ficha referente a ele fosse o mais completa possível, que­rendo saber, sobre a sua pessoa, os pormenores mais íntimos. Raul Domínguez era, sem dúvida, uma personagem patética. Perdera a mulher durante um massacre, na Guerra Civil espa­nhola, e desiludira-se de ambos os lados, principalmente quanto ao que se referia a seus amigos comunistas. Quanto mais Beatrice lhe perguntava a respeito, tanto mais a persona­gem se desenvolvia, e tanto mais Beatrice se tornava ansiosa por conhecê-lo. Às vezes, Wormold sentia uma ponta de ciú­mes de Raul, e procurava escurecer o quadro que ele próprio pintara:

— Ele bebe uma garrafa de uísque por dia.

— É para fugir à solidão e às recordações! — respondeu Beatrice. — O senhor não procura nunca um motivo de fuga?

— Creio que todos nós procuramos, às vezes.

— Eu sei o que é a solidão — disse, com simpatia, Beatri­ce. — Ele bebe o dia todo?

— Não. A sua pior hora é às duas da madrugada. Quando desperta, as recordações não o deixam dormir. . . e, então, bebe.

Era surpreendente a rapidez com que podia responder a quaisquer perguntas acerca das personagens que criara. Estas pareciam viver em alguma parte, na obscuridade de seu subconsciente: bastava que acendesse uma luz e lá estavam elas, congeladas em alguma ação característica. Logo depois da chegada de Beatrice, Raul fez anos, e ela sugeriu que de­viam enviar-lhe uma caixa de champanha.

— Nem provará — disse Wormold, sem saber por quê. — Sofre de acidez. Quando toma champanha, fica doente. O professor, no entanto, não bebe outra coisa.

— É um gosto dispendioso.

— Gosto depravado — comentou Wormold, sem refletir. — Prefere champanha espanhol.

Às vezes, ficava assustado diante da maneira pela qual aquela gente tomava forma no escuro sem o seu conheci­mento. Que estaria Teresa fazendo lá embaixo, longe de suas vistas? Não queria pensar nisso. A despudorada descrição que ela fizera de sua vida, com os seus dois amantes, às vezes o chocava. Mas o problema imediato era Raul. Havia momentos em que ele pensava que talvez lhe tivesse sido mais fácil se houvesse recrutado agentes reais.

Wormold sempre conseguia raciocinar melhor durante o banho. Percebera, certa manhã em que estava mergulhado em profunda concentração, que haviam batido várias vezes, com força, na porta do banheiro; ouvira, também, ruído de passos na escada, mas achava-se num de seus momentos de criação e não dera atenção ao mundo que ficava além do fluxo de seus pensamentos. Raul fora despedido, por embriaguez, da companhia de aviação cubana. Achava-se desesperado, sem trabalho. .. Tinha havido uma entrevista desagradável entre ele e o Capitão Segura, que o ameaçara de...

— Está-se sentindo bem? — gritou, de fora, Beatrice. — Está morrendo? Devo arrombar a porta? Onde é que guarda o machado?

Enrolou uma toalha em torno da cintura e saiu para o seu quarto, que era agora também escritório.

— Milly saiu furiosa — disse Beatrice. — Não pôde tomar banho.

— Eis um dos momentos — respondeu Wormold — que bem poderiam mudar o curso da história. Onde está Rudy?

— Bem sabe que lhe deu permissão para passar fora o fim de semana.

— Não importa. Teremos de mandar o telegrama através do Consulado. Apanhe o livro de código.

— Está no cofre. Qual é a combinação? Seu aniversá­rio... não era? Seis de dezembro?

— Eu mudei.

— O seu aniversário?

— Não, não. O segredo do cofre. — E acrescentou, sentenciosamente: — Quanto menos gente conhecer o segre­do, tanto melhor para todos nós. É a experiência, minha cara, a experiência.

Entrou no quarto de Rudy e começou a girar o botão do cofre: quatro vezes para a esquerda. . . três vezes — pensativamente — para a direita. A toalha continuava a escorregar-lhe da cintura.

— Além disso — ajuntou —, qualquer pessoa pode encontrar a data de meu nascimento em minha carteira de identidade. Sumamente inseguro. Tipo do número que tenta­riam imediatamente.

— Continue — disse Beatrice. — Mais uma volta.

— Este é um número que ninguém poderia descobrir. Absolutamente seguro.

— Que é que está esperando?

— Devo ter cometido algum engano. Terei de começar de novo.

— Não há dúvida de que o segredo parece seguro.

— Por favor, não olhe. Está deixando-me nervoso. Beatrice afastou-se e ficou com o rosto voltado para a parede.

— Diga-me quando devo voltar-me.

— É esquisito! Esta maldita coisa deve ter-se quebrado. Telefone para Rudy.

— Não posso. Não sei onde ele está hospedado; foi à praia de Varadero.

— Diabo!

— Talvez se me dissesse como é que se lembrava desse nú­mero, se é que se pode chamar a isso lembrar-se. ..

— Era o número do telefone da minha tia-avó.

— Onde é que ela mora?

— 95 Woodstock Road, Oxford.

— Por que sua tia-avó?

— Talvez se consultássemos a companhia telefônica, em Oxford.. .

— Duvido que nos pudessem ajudar. Qual é o nome dela?

— Também me esqueci disso.

— O segredo do cofre é realmente seguro, pois não?

— Nós a conhecemos sempre como sendo a tia-avó Kate. De qualquer modo, ela já morreu há quinze anos e talvez o número do telefone tenha sido mudado.

— Não compreendo por que foi que escolheu tal número.

— Não há, acaso, certos números que ficam na cabeça da gente, sem que se saiba por que, durante toda a vida?

— Parece que esse não ficou guardado muito bem.

— Já me lembrarei dele. É algo assim como 7,7,5,3,9.

— Oh, meu Deus! E eles, que têm cinco números em Oxford!

— Poderíamos tentar todas as combinações de 77539.

— E sabe quantas delas existem? Mais ou menos umas seiscentas, creio eu. Espero que o seu telegrama não seja urgente.

— Tenho certeza de que todos os números estão certos, salvo o 7.

— Ótimo! Qual dos 7? Penso que, agora, teríamos de ten­tar umas seis mil combinações. Sou matemática.

— Rudy deve ter anotado o número em algum lugar.

— Talvez o haja feito num papel que precisa ser mergu­lhado em água. Somos, na verdade, um escritório muito eficiente.

— Talvez fosse melhor usar o velho código.

— Não é muito seguro. Contudo...

Encontraram, afinal, Charles Lamb junto à cama de Milly: uma folha dobrada indicava que ela estava na metade de Os Dois Cavaleiros de Verona.

— Redija este telegrama — disse Wormold. — Tanto de março de tanto.

— Não sabe sequer qual o dia do mês?

— "Referência 59200/3 ponto Começa parágrafo A 59200/3/5 despedido por embriaguez quando em serviço ponto Receia deportação para a Espanha onde a esposa está em perigo ponto."

— Pobre Raul.

— "Começa parágrafo B ponto 59200/3/5..."

— Eu não poderia dizer apenas "ele"?

— Está bem. Ele. "Talvez ele pudesse estar preparado em tais circunstâncias e mediante gratificação razoável com refú­gio assegurado em Jamaica a fim de pilotar avião particular sobre construções secretas objetivo obter fotografias ponto Começa parágrafo C Ele teria de voar de Santiago e aterrar em Kingston se 59200 puder fazer arranjos recepção ponto."

— Afinal, estávamos fazendo alguma coisa, pois não? — comentou Beatrice.

— "Começa parágrafo D ponto Solicito autorização qui­nhentos dólares para aluguel de avião destinado 59200/3/5 ponto Mais duzentos dólares talvez sejam necessários subor­nar pessoal aeroporto Havana ponto Começa parágrafo E Gratificação para 59200/3/5 poderia ser perigoso devido considerável risco intercepção por aviões de patrulhamento sobre montanhas Oriente ponto Sugiro mil dólares ponto."

— Que encantadora porção de dinheiro! — disse Bea­trice.

— "Termina mensagem." Vamos! Mãos à obra. Que é que está esperando?

— Estou apenas procurando encontrar uma frase apro­priada. Não me agradam muito os Contos, de Lamb. Que é que acha?

— Mil e setecentos dólares — disse Wormold, pensativo.

— Deveria pedir dois mil. O A.O. gosta de números redondos.

— Não quero parecer extravagante.

Mil e setecentos dólares dariam, sem dúvida, para cobrir as despesas de um ano de colégio na Suíça.

— Parece satisfeito consigo mesmo — disse Beatrice. — Não lhe ocorre que talvez possa estar condenando um homem à morte?

"É exatamente o que pretendo fazer", pensou ele.

— Diga ao pessoal do Consulado que o telegrama precisa ter alta prioridade.

— É um telegrama longo. Acha que esta frase está bem? "Apresentou Polidoro e Cadwal ao rei, dizendo-lhe que eram os seus dois filhos perdidos, Guidério e Arvirago." Há oca­siões em que Shakespeare é um tanto monótono, não lhe parece?

 

Três dias depois, levou Beatrice para jantar num restau­rante junto ao porto, onde serviam peixes e mariscos. A auto­rização viera, embora reduzida de duzentos dólares; e A.O., afinal de contas, arredondara a quantia. Wormold pensava em Raul, dirigindo-se ao aeroporto a fim de empreender a sua perigosa viagem. A história ainda não estava completa. Como na vida real, poderiam ocorrer acidentes: uma das personagens poderia assumir o controle. Talvez Raul fosse detido antes de embarcar; talvez fosse interceptado, a cami­nho, por um carro da polícia. Poderia bem desaparecer nas câmaras de tortura do Capitão Segura. Referência alguma apareceria na imprensa. Wormold advertiria Londres de que ele partiria por via aérea, caso Raul fosse forçado a falar. A instalação de rádio seria desmontada e escondida depois de enviada a última mensagem, as folhas de celulóide estariam prontas para ser queimadas. . . Ou talvez Raul partisse em segurança e eles jamais soubessem com certeza o que lhe acontecera sobre as montanhas de Oriente. Só uma coisa, na história, era certa: ele jamais chegaria à Jamaica e não have­ria fotografia alguma.

— Em que está pensando? — indagou Beatrice, vendo que ele não tocara em sua lagosta recheada.

— Estava pensando em Raul.

O vento soprava do Atlântico. O Castillo dei Moro, do outro lado do porto, assemelhava-se a um transatlântico acos­sado por um temporal.

— Preocupado?

— Claro que estou preocupado.

Se Raul houvesse partido à meia-noite, iria reabastecer-se, pouco antes do amanhecer, em Santiago, onde o pessoal de terra era cordial, pois todos, na província de Oriente, eram, no fundo de seu coração, rebeldes. Havendo, então, luz sufi­ciente para tirar fotografias e sendo ainda um pouco cedo (assim o esperava Raul) para que os aviões de patrulhamento se fizessem ao ar, começaria o seu vôo de reconhecimento sobre as montanhas e as florestas.

— Ele não esteve bebendo?

— Prometeu-me que não o faria. Nunca se pode dizer com certeza.

— Pobre Raul.

— Ele nunca se divertiu muito, não é verdade? Devia tê-lo apresentado a Teresa.

Olhou-a vivamente, mas ela parecia profundamente entre­gue à sua lagosta.

— Isso não seria muito seguro, não acha?

— Oh, que vá para o inferno a segurança! — exclamou ela.

Depois do jantar, caminharam de volta pela Avenida de Maceo, do lado dos edifícios. Na noite ventosa, havia pouco trânsito e pouca gente. As vagas vinham do Atlântico e reben­tavam de encontro à muralha. A água borrifava atrás da ave­nida sobre as pistas, e batia como chuva de encontro aos pila­res corroídos sob os quais caminhavam. As nuvens vinham rápidas de leste, e ele sentiu que fazia parte da lenta erosão de Havana. Quinze anos era muito tempo.

— Uma daquelas luzes, lá em cima, pode ser ele. Como deve sentir-se solitário!

— Fala como se fosse um novelista.

Ele deteve-se debaixo de um pilar e olhou-a com ansiedade e desconfiança.

— Que quer dizer com isso?

— Oh, nada em particular. O senhor trata os seus agentes como se fossem bonecos, personagens de um livro. Há um homem de carne e osso lá em cima, não há?

— Não é muito amável de sua parte dizer isso a meu respeito.

— Oh, esqueça-se disso. Fale-me de alguma pessoa por quem realmente se interesse. De sua esposa. Fale-me dela.

— Era bonita.

— Sente falta dela?

— Naturalmente. Quando penso nela.

— Eu não sinto falta de Peter.

— Peter?

— Meu marido. O homem da UNESCO.

— Então você é feliz. Está livre. — Consultou o relógio e olhou o céu: — A esta hora, ele deveria estar voando sobre Matanzas. A menos que se tenha atrasado.

— Mandou que seguisse esse rumo?

— Oh, claro que é ele quem escolhe a sua própria rota.

— E o seu próprio fim?

Algo na voz de Beatrice — uma espécie de inimizade — de novo o sobressaltou. Seria possível que já começasse a suspeitar? Apressou o passo. Passaram pelo C armem Bar e pelo Cha Cha Club — anúncios brilhantes pintados nas velhas persianas da fachada século XVIII. Rostos encantadores olhavam dos interiores escuros, olhos castanhos, cabelos pre­tos, espanhóis, e outros muito loiros; belas nádegas apoia­vam-se de encontro aos balcões dos bares, à espera de que qualquer sinal de vida viesse da avenida molhada pelo mar. Viver em Havana era viver numa fábrica onde as correias transportadoras lançavam em série a beleza humana. Ele parou debaixo de uma luz e fitou de frente os olhos cor de avelã. Queria honestidade.

— Aonde vamos?

— Então não sabe? Não está tudo planejado, como o vôo de Raul?

— Estava apenas andando a esmo.

— Não quer sentar-se perto do rádio? Rudy está trabalhando.

— Não teremos notícia alguma antes das primeiras horas da manhã.

— Então não planejou uma mensagem tardia... o desas­tre em Santiago?

Os lábios dele estavam secos de sal e de apreensão. Pare­cia-lhe que a moça devia ter suspeitado de alguma coisa. Que faria ela a seguir? Enviaria a Hawthorne um comunicado sobre a sua pessoa? Que é que "eles" fariam, então? Não dis­punham de nenhuma medida legal, mas julgava que poderiam impedi-lo de jamais voltar à Inglaterra. Pensou: "Ela regres­sará pelo primeiro avião. . . a vida continuará a mesma de antes". De qualquer modo, era melhor que assim fosse; sua vida pertencia a Milly.

— Não entendo o que você quer dizer — disse ele.

Uma grande vaga quebrou-se de encontro à muralha da avenida, erguendo-se no ar como uma árvore de Natal cober­ta de geada de matéria plástica. Depois, desapareceu de seus olhos, e uma outra árvore se ergueu além, na direção do Nacional.

— Você se mostrou estranha durante toda a noite.

De nada adiantava retardar as coisas; se o jogo estava che­gando ao fim, o melhor era terminar de uma vez.

— Que é que está insinuando? — prosseguiu.

— Quer dizer que não deverá haver um desastre no aero­porto ... ou no caminho? — indagou ela.

— Como é que espera que eu o saiba?

— Você procedeu durante toda a noite como se o soubes­se. Não se referiu a ele uma única vez como se se estivesse referindo a uma criatura viva. Esteve redigindo o seu necro­lógio como um mau novelista preparando uma cena de efeito.

O vento fez com que se chocassem.

— Nunca se cansa de ver os outros correndo perigo? — perguntou ela. — E para quê? Apenas por uma espécie de brincadeira infantil?

— Você está na brincadeira.

— Mas não acredito nela como Hawthorne. Ou como Peter acredita na UNESCO. Preferiria ser uma vigarista — acrescentou, furiosa — a agir como uma simplória ou uma adolescente. Você não ganha o suficiente com os seus aspira­dores para que possa abandonar tudo isto?

— Não. Tenho de cuidar de Milly.

— Suponhamos que Hawthorne não o houvesse procura­do?

— Talvez tivesse casado de novo por dinheiro — grace­jou, sentindo-se infeliz.

— Tornaria, algum dia, a casar? Parecia resolvida a falar a sério.

— Bem — respondeu ele —, não sei. Milly não o conside­raria um casamento, e a gente não pode escandalizar a pró­pria filha. Vamos para casa ouvir o rádio?

— Mas você não espera uma mensagem, pois não? Você próprio o disse.

— Antes de umas três horas, não. Mas espero que ele envie uma mensagem antes de aterrar.

O esquisito era que ele próprio começava a sentir-se tenso, como se Raul realmente existisse e estivesse em perigo. Será que um novelista sente essa espécie de crença quanto às suas próprias personagens? Quase esperava que alguma mensagem chegasse até ele, vinda do céu ventoso.

— Você me garante que não preparou.. . nada?

Evitou responder, voltando-se para o palácio presidencial, com suas janelas escuras, onde o presidente jamais tornou a dormir desde o último atentado contra a sua vida, e, vindo pela calçada com a cabeça baixa, para evitar os salpicos de água do mar, deparou com o Dr. Hasselbacher.

— Dr. Hasselbacher! — chamou-o.

O velho ergueu a cabeça. Por um momento, Wormold jul­gou que ele iria girar nos calcanhares sem proferir palavra.

— O que é que há, Dr. Hasselbacher?

— Oh, é o Sr. Wormold? Estava justamente pensando no senhor. Algo que o Diabo me sussurrava — acrescentou, gracejando.

Mas Wormold teria podido jurar que o Diabo o havia assustado.

— Lembra-se da Sra. Severn, minha secretária?

— Lembro-me, a festa de aniversário. . . e o sifão. Que está fazendo assim tão tarde, Sr. Wormold?

— Saímos para jantar. .. demos um passeio... E o senhor?

— O mesmo.

Do vasto céu agitado vinha, espasmòdicamente, o som de um motor — um som que aumentou, diminuiu e extinguiu-se no ruído do vento e do mar.

— O avião procedente de Santiago — comentou o Dr. Hasselbacher. — Mas está muito atrasado. O tempo deve estar mau em Oriente.

— Está esperando alguém? — indagou Wormold.

— Não, não. Não espero ninguém. O senhor e a Sra. Sev­ern aceitariam um drinque em meu apartamento?

A violência viera e se fora. Os quadros estavam de novo em seus lugares, as cadeiras cilíndricas achavam-se em torno da sala, como hóspedes que se sentissem pouco à vontade. O apartamento recomposto era como um cadáver preparado para o sepultamento. O Dr. Hasselbacher serviu uísque.

— É bom para o Sr. Wormold ter uma secretária — disse ele. — Ainda há pouco tempo, andava preocupado, lembro-me bem. Os negócios não estavam bons. O novo aspira­dor. ..

— As coisas mudam sem que se saiba a razão.

Notou, pela primeira vez, a fotografia de um Dr. Hasselba­cher jovem, em uniforme de oficial da Primeira Guerra Mun­dial; talvez tivesse sido uma das fotografias que os invasores haviam arrancado da parede.

— Nunca soube que houvesse estado no exército, Hassel­bacher.

— Não havia ainda terminado o meu curso médico, Sr. Wormold, quando irrompeu a guerra. Ocorreu-me, então, que era uma coisa muito tola curar homens para que pudessem ser logo mortos. A gente queria curar as pessoas para que elas pudessem viver mais.

— Quando deixou a Alemanha, Dr. Hasselbacher? — perguntou Beatrice.

— Em 1934. De modo que não posso considerar-me cul­pado, minha jovem, daquilo que está pensando.

— Não era isso que eu queria dizer.

— Deve perdoar-me, então. Pergunte ao Sr. Wormold; houve um tempo em que eu não era tão suspeito. Vamos ouvir um pouco de música?

Colocou na vitrola um disco de Tristão. Wormold pensou na esposa: ela era ainda menos real do que Raul. Nada tinha a ver com o amor e a morte: interessava-se apenas pelo Woman's Home Journal, por um anel de noivado de brilhan­tes, e gostava de dormir um pouco à hora do crepúsculo. Olhou Beatrice, sentada do outro lado da sala, e pareceu-lhe que ela pertencia ao mesmo mundo da bebida fatal, da deses­perançada viagem desde a Irlanda, da rendição na floresta. Subitamente, o Dr. Hasselbacher se levantou e puxou da pare­de a tomada da corrente elétrica.

— Perdoem-me. Estou esperando um chamado. A música é muito alta.

— Um chamado médico?

— Não é bem isso. Serviu mais uísque.

— Já reiniciou seus experimentos, Hasselbacher?

— Não — respondeu, olhando, aflito, em torno. — Sinto muito, mas não há mais soda.

— Gosto de uísque puro — disse Beatrice, aproximando-se da estante. — Não lê outra coisa senão livros de medicina, Dr. Hasselbacher?

— Muito pouco. Heine, Goethe. Tudo em alemão. Lê em alemão, Sra. Severn?

— Não. Mas o senhor tem alguns livros em inglês.

— Foram-me dados por um paciente, em lugar de meus honorários. Lamento dizer que não os li. Eis o seu uísque, Sra. Severn.

Ela aproximou-se da estante e apanhou o uísque.

— É a sua casa, Dr. Hasselbacher? — indagou, olhando uma litografia colorida vitoriana, pendurada ao lado do retra­to do jovem Capitão Hasselbacher.

— Sim, é a casa em que nasci. Uma cidadezinha muito pequena, algumas velhas muralhas, um castelo em ruínas. . .

— Estive lá, antes da guerra — disse Beatrice. — Meu pai nos levou. Fica perto de Leipzig, pois não?

— Sim, Sra. Severn — respondeu o Dr. Hasselbacher, olhando-a com ar desolado. — Fica perto de Leipzig.

— Espero que os russos tenham-na deixado intacta.

O telefone começou a tocar, no hall. Hesitou um momento.

— Com licença, Sra. Severn.

Dirigiu-se ao hall e fechou a porta atrás de si.

— East or West — disse Beatrice —, home's best*.

* Entre o Leste e o Oeste, meu lar é o melhor. (N. do E.)

 

— Creio que você não deseja enviar um relatório a Lon­dres, pois não? Conheço-o há quinze anos; ele vive aqui há mais de vinte. É um bom velho, o melhor amigo...

A porta abriu-se e o Dr. Hasselbacher voltou.

— Desculpem-me. Mas não me sinto muito bem. Talvez possam vir ouvir música uma outra noite.

Sentou-se pesadamente, apanhou o uísque, mas colocou-o de novo sobre a mesa. Tinha a testa salpicada de suor, mas, afinal de contas, a noite estava úmida.

— Más notícias?

— Sim.

— Posso ajudá-lo em algo?

— O senhor? — exclamou o Dr. Hasselbacher. — Não. Não pode ajudar-me. Nem, tampouco, a Sra. Severn.

— Algum paciente?

O Dr. Hasselbacher abanou, negativamente, a cabeça. Depois, tirou do bolso o lenço e enxugou a testa.

— Quem não é um paciente?

— É melhor irmos embora.

— Sim, vão. É como eu disse: devia-se poder curar as pes­soas para que elas pudessem viver mais.

— Não compreendo.

— Será que jamais existiu uma coisa chamada paz? — perguntou o Dr. Hasselbacher. — Desculpem-me. Espera-se sempre que um médico se habitue à morte. Mas não sou um bom médico.

— Quem morreu?

— Houve um acidente — respondeu o Dr. Hasselbacher. — Apenas um acidente. Claro que um acidente. Um automó­vel espatifou-se a caminho do aeroporto. Um jovem... — Fez uma pausa e acrescentou, furioso: — Em toda parte há sempre acidentes, não há? E esse deve ter sido, certamente, um acidente. Ele gostava de beber.

— Seu nome não era, por acaso, Raul? — indagou Beatrice.

— Sim — respondeu o Dr. Hasselbacher. — Era esse o seu nome.

 

 

Wormold abriu a porta. A lâmpada da rua, junto da entra­da, alumiou vagamente os" aspiradores que se erguiam em torno como túmulos. Ele dirigiu-se à escada.

— Pare, pare! — sussurrou-lhe Beatrice. — Creio que ouvi algo. . .

— O que que há?

Eram as primeiras palavras que proferiam desde que ha­viam fechado a porta do apartamento do Dr. Hasselbacher.

Ela estendeu a mão e agarrou uma peça metálica que se achava sobre o balcão. Segurando-a como se fosse um cacete, disse:

— Estou com medo.

"Seu medo não chega nem à metade do meu", pensou ele. Será que, escrevendo, a gente podia dar vida a criaturas humanas? Que espécie de existência? Será que Shakespeare soube da morte de Duncan quando se achava numa taverna, ou ouviu batidas na porta do seu próprio quarto, depois de haver acabado de escrever Macbeth? Deteve-se no meio da loja e cantarolou uma canção, para não perder a coragem.

 

Dizem que a Terra é redonda,

E minha loucura ofendem.

 

— Silêncio — disse Beatrice. — Há alguém andando lá em cima.

Ele, pensou, estava com medo apenas de suas personagens imaginárias e não de uma criatura viva que pudesse fazer ran­ger uma tábua de assoalho.

Subiu a escada correndo e deteve-se, súbito, diante de uma sombra. Teve vontade de desafiar todas as suas personagens e acabar de uma vez com todas elas: Teresa, o professor, o capitão de navio, o engenheiro.

— Que horas de chegar, papai! — disse a voz de Milly.

Era apenas Milly que estava de pé no corredor, entre o banheiro e o seu quarto.

— Saímos para dar uma volta.

— Você a trouxe de volta? — indagou Milly. — Por quê? Beatrice subiu cautelosamente a escada, segurando o seu cacete improvisado.

— Rudy está acordado?

— Acho que não.

— Se tivesse havido alguma mensagem, ele estaria à sua espera — disse Beatrice.

Se uma de suas personagens estava bastante viva para que pudesse morrer, não havia dúvida de que estavam bastante vivas para transmitir mensagens. Abriu a porta do escritório. Rudy mexeu-se.

— Alguma mensagem, Rudy?

— Não.

— Vocês perderam a balbúrdia — disse Milly.

— Que balbúrdia?

— A polícia esteve correndo por toda parte. Você deve ter ouvido as sirenas. Julguei que fosse uma revolução, de modo que telefonei ao Capitão Segura.

— Sim?

— Alguém tentou assassinar um homem que saía do Ministério do Interior. Devia ter pensado que era o ministro — mas não era. Atirou da janela de um automóvel e fugiu.

— Quem era ele?

— Ainda não o apanharam.

— Refiro-me ao... ao que foi assassinado.

— Não era ninguém importante. Mas era parecido com o ministro. Onde foi que cearam?

— No Vitória.

— Comeram lagosta recheada?

— Comemos.

— Alegra-me que você não se pareça com o presidente. O Capitão Segura disse-me que o Dr. Cifuentes estava tão apa­vorado que molhou as calças e foi, depois, embriagar-se no Country Club.

— Dr. Cifuentes?

— Você o conhece... o engenheiro.

— Atiraram nele?

— Já disse que o fizeram por engano.

— Sentemo-nos — disse Beatrice, falando por ambos.

— A sala de jantar. . .

— Não quero uma cadeira dura. Quero algo macio. Pode ser que resolva chorar.

— Bem. Se não se importar, há o meu quarto — disse ele, indeciso, olhando para Milly.

— Conhece o Dr. Cifuentes? — perguntou Milly, com simpatia, a Beatrice.

— Não. Sei apenas que ele tem um ponch.

— O que é ponch?

— Segundo seu pai o diz, é uma palavra que, em dialeto, significa estrabismo.

— Ele disse-lhe isso? Pobre papai! Vocês estão em apuros.

— Milly, quer fazer o favor de ir para a cama? Beatrice e eu temos um trabalho a fazer.

— Trabalho?

— Sim, trabalho.

— Isto não é hora de se trabalhar.

— Ele está pagando extraordinário — disse Beatrice.

— A senhora está aprendendo tudo o que diz respeito a aspiradores? — indagou Milly. — Isso que tem na mão é um vaporizador.

— É? Apanhei-o para o caso de precisar agredir alguém.

— Não é muito apropriado para isso. Tem um tubo telescópico.

— E que tem isso?

— O tubo poderia virar no momento errado.

— Milly, por favor. . . — disse Wormold. — São quase duas horas.

— Não se preocupe. Já me retiro. E rezarei pelo Dr. Cifuentes. Não é brincadeira a gente ser alvejado. A bala atravessou uma parede de tijolos. Penso no que poderia ter feito, se atingisse o Dr. Cifuentes.

— Reze, também, por alguém chamado Raul — disse Beatrice. — Eles o atingiram.

Wormold estirou-se na cama e fechou os olhos.

— Não compreendo coisa alguma — disse ele. — Coisa alguma. É uma coincidência. Deve ser.

— Eles estão ficando violentos... quem quer que possam ser.

— Mas por quê?

— A espionagem é uma profissão perigosa.

— Mas Cifuentes não tinha realmente. . . quero dizer, não é uma figura importante.

— Mas as construções em Oriente são importantes. Seus agentes parecem ter o hábito de ir pelos ares. Não sei de que maneira. Acho que você terá de avisar o Prof. Sánchez e a moça.

— A moça?

— A bailarina nua.

— Mas como?

Não podia explicar-lhe que não tinha agente algum, que ja­mais falara com Cifuentes ou com o Prof. Sánchez, e que nem Teresa nem Raul jamais haviam existido: Raul vivera apenas para ser morto.

— Como foi que Milly chamou a isto?

— Vaporizador.

— Já vi algo parecido em algum lugar.

— Espero que haja visto. A maioria dos aspiradores o possuem.

Tirou-lhe o vaporizador da mão. Não conseguia lembrar-se se o havia ou não incluído nos desenhos que enviara a Hawthorne.

— Que é que faço agora, Beatrice? 156

— Acho que a sua gente deveria ocultar-se durante algum tempo. Não aqui, naturalmente. Além de não ser seguro, fica­ria por demais apertado. E aquele seu capitão? Não poderia escondê-los a bordo?

— Está em viagem, a caminho de Cienfuegos.

— De qualquer modo, é bem provável que também reben­te — comentou ela pensativa. — Estou pensando por que é que eles permitiram que você e eu chegássemos até aqui.

— Que é que você quer dizer?

— Poderiam facilmente ter atirado em nós na avenida à beira-mar. Mas talvez nos estejam usando como isca. Claro que a gente joga fora a isca, se ela não prestar.

— Que mulher macabra você é!

— Oh! não! Voltamos apenas ao mundo infantil, ao mundo Boy 's Own Paper. Você deve considerar-se feliz.

— Porquê?

— Porque poderia ter sido o Sunday Mirror. O mundo é modelado, hoje em dia, segundo as revistas populares. Meu marido saiu das páginas de Encounter. A questão que temos de considerar é saber a que publicação eles pertencem.

— Eles?

— Digamos que também pertençam ao Boy 's Own Paper. São agentes russos, agentes alemães, americanos. . . ou o quê? É bem provável que sejam cubanos. Aquelas plata­formas de concreto devem ser obras oficiais, não acha? Pobre Raul! Espero que haja morrido rapidamente.

Sentiu-se tentado a dizer-lhe tudo, mas o que era "tudo"? Ele já não o sabia. Raul fora morto. O próprio Hasselbacher o dissera.

— Primeiro o Teatro Shanghai — disse ela. — Estará aberto?

— A segunda parte do programa não deve ter ainda terminado.

— Se é que a polícia já não chegou lá antes de nós. Claro que não usaram a polícia contra Cifuentes. Ele talvez fosse muito importante. Ao assassinar-se alguém ê preciso que se evite escândalo.

— Nunca pensei no assunto sob esse aspecto.

Beatrice apagou a luz do criado-mudo e aproximou-se da janela:

— A casa tem porta de fundos?

— Não.

— Teremos de modificar tudo isso — disse ela, desemba­raçadamente, como se também fosse um arquiteto. — Conhe­ce um negro que anda manquitolando?

— Deve ser Joe.

— Está passando devagar pela rua.

— Vende cartões postais pornográficos. Está voltando para casa, naturalmente.

— Claro que ele não poderia esperar segui-lo, coxo como é. Talvez seja apenas um informante: Seja como for, teremos de correr o risco. Evidentemente, esta noite eles estão dando uma batida em regra em toda parte. Mulheres e crianças pri­meiro. O professor pode esperar.

— Mas jamais me avistei com Teresa no teatro. É prová­vel que tenha, lá, um nome diferente.

— Você não pode reconhecê-la, mesmo sem roupa? Em­bora eu pense que, nuas, nós nos parecemos bastante, como os japoneses.

— Acho que não devíamos sair.

— Eu devo. Se um for detido, o outro toca para a frente.

— O que quero dizer é que não devíamos ir ao Teatro Shanghai. Não é exatamente a coisa que se assemelhe a Boy 's Own Paper.

— O casamento tampouco se assemelha — respondeu ela. — Nem mesmo na UNESCO.

O Shanghai ficava numa rua estreita, perto de Zanja, e era cercado de inúmeros bares. Uma tabuleta anunciava Posicio­nes e os ingressos, por alguma razão, eram vendidos fora, na calçada. Talvez porque não houvesse lugar, na entrada, para uma bilheteria, já que o foyer* era ocupado por uma banca onde se vendiam publicações pornográficas aos que desejavam distrair-se durante o intervalo. Na rua, os negros alcoviteiros os olharam com curiosidade. Não estavam acostu­mados a encontrar ali mulheres européias.

* Em francês no texto: sala de espera. (N. do E.) 158

 

— Sinto-me muito longe da Inglaterra — disse Beatrice. As cadeiras custavam um peso e vinte e cinco e, no grande salão, pouquíssimas estavam desocupadas. O homem que os conduziu aos seus lugares ofereceu a Wormold, por um peso, um maço de cartões postais pornográficos. Quando Wormold os recusou, tirou do bolso um segundo maço.

— Compre-os, se quiser — disse Beatrice. — Se isso o constrange, ficarei com os olhos voltados para o espetáculo.

— Não há muita diferença entre o espetáculo e os cartões postais — respondeu ele.

O homem que indicava os lugares perguntou se a senhora gostaria de um cigarro de maconha.

— Nein, danke* — respondeu Beatrice, confundindo os seus idiomas.

*Em alemão no texto: "Não, obrigada ". (N. do E.)

 

De ambos os lados do palco, cartazes anunciavam clubes situados nas vizinhanças, onde havia, segundo diziam, mulhe­res bonitas. Um anúncio em espanhol e em mau inglês proibia os espectadores de molestar as bailarinas.

— Qual delas é Teresa? — indagou Beatrice.

— Creio que deve ser a gorda que está com a máscara — respondeu, ao acaso, Wormold.

Deixava ela, naquele instante, o palco, a bambolear as grandes nádegas nuas, e a assistência aplaudia e assobiava. Depois as luzes se apagaram e desceu uma tela de cinema. Começou um filme bastante discreto a princípio. Mostrava uma ciclista, alguns cenários de bosques, um pneumático furado, um encontro casual, um cavalheiro erguendo um cha­péu de palha, luzes bruxuleantes e densa cerração.

Beatrice permanecia silenciosa. Havia uma estranha intimi­dade entre ambos — uma intimidade que ele jamais sentira antes — enquanto observavam juntos, na tela, aquele simula­cro de amor. Movimentos corporais semelhantes haviam significado mais, para eles, em outros tempos, do que qual­quer outra coisa que o mundo tivesse para oferecer-lhes. O ato de luxúria e o ato de amor são sempre os mesmos, e não podem ser falsificados como um sentimento.

As luzes acenderam-se. Continuaram sentados, em silên­cio.

— Meus lábios estão secos — disse, afinal, Wormold.

— Não tenho um pingo de saliva na boca. Não podemos ir agora aos bastidores, ver Teresa?

— Há um outro filme depois deste e, em seguida, as baila­rinas se exibem novamente.

— Não sou suficientemente forte para agüentar um outro filme — disse Beatrice.

— Só nos deixarão entrar quando o espetáculo terminar.

— Podemos esperar na rua, não podemos? Pelo menos ficaremos sabendo se alguém nos seguiu.

Saíram logo que começou o segundo filme. Foram os úni­cos a levantar-se, de modo que, se alguém os houvesse segui­do, deveria estar fora à sua espera. Mas, evidentemente, não havia ninguém que o pudesse haver feito, entre os choferes de táxi e os alcoviteiros. Um homem dormia encostado a um poste de iluminação, com um bilhete de loteria preso, torto, ao pescoço. Wormold lembrou-se da noite em que saíra com o Dr. Hasselbacher. Foi quando aprendera o novo uso dos Contos de Shakespeare, de Lamb. O pobre Hasselbacher esta­va muito bêbedo. Lembrava-se de como o encontrara sentado no hall do hotel, derreado, ao descer do quarto de Hawthorne.

— É fácil a alguém decifrar um livro de código, se tiver o livro certo? — perguntou a Beatrice.

— Não é difícil para um especialista. Apenas uma questão de paciência.

Dirigiu-se ao vendedor de bilhetes e endireitou o número que estava de cabeça para baixo. O homem não despertou.

— Com o bilhete virado, era difícil de ler-se — comentou. Deveria ele carregar o Lamb debaixo do braço, no bolso ou na pasta? Pusera, acaso, o livro em algum lugar, ao ajudar o Dr. Hasselbacher a levantar-se? Não se lembrava de nada, mas tais desconfianças eram pouco generosas.

— Pensei numa coincidência engraçada — disse Beatrice. — O Dr. Hasselbacher lê os contos de Lamb na edição certa.

Dir-se-ia que a telepatia fizera parte de seu adestramento básico.

— Você viu o livro lá no apartamento?

— Vi.

— Mas ele o teria ocultado, se significasse algo — protes­tou Wormold.

— Oh, ele queria apenas advertir você. Lembre-se de que nos convidou para irmos ao seu apartamento. E falou-nos sobre Raul.

— Hasselbacher não sabia que iria encontrar-nos.

— Como é que sabe?

Teve vontade de protestar — de dizer que nada daquilo tinha sentido: que Raul não existia, que Teresa não existia. Mas pensou que, se o fizesse, ela arrumaria suas malas e iria embora, e tudo seria como uma história sem objetivo.

— O pessoal está saindo — disse Beatrice. Encontraram uma porta lateral que conduzia a um grande vestiário. O corredor era iluminado por uma lâmpada que devia estar acesa havia muitos dias e muitas noites. A passa­gem estava quase toda bloqueada por latas de lixo e um negro varria pedaços de algodão manchados de pó-de-arroz, batom, e coisas ambíguas. Havia no ar um cheiro de cascas de pêra. Afinal de contas, talvez não houvesse ali ninguém que se cha­masse Teresa, mas arrependeu-se de haver escolhido o nome de uma santa tão popular. Empurrou uma porta e depararam com algo que se assemelhava a um inferno medieval, cheio de fumo e de mulheres nuas.

— Não seria melhor se fossemos embora? — perguntou a Beatrice.

— Aqui, é você quem precisa de proteção — respondeu ela.

Ninguém notou sequer a presença de ambos. A máscara da mulher gorda achava-se dependurada de uma de suas orelhas, e ela bebia um copo de vinho com uma perna apoiada sobre uma cadeira. Uma jovem muito magra, cujas costelas pare­ciam teclas de piano, estava calçando as meias. Seios baloucavam, nádegas curvavam-se, tocos de cigarros fumegavam em pires; o ar estava denso de fumaça de papel queimado. Um homem, trepado numa escada, parafusava algo na parede.

— Onde está ela? — indagou Beatrice.

— Não me parece que esteja aqui. Talvez esteja doen­te... ou em companhia do amante.

O ar deslocou-se cálido, quando alguém pôs um vestido. As partículas de pó-de-arroz assentavam como cinza.

— Experimente chamá-la pelo nome.

— Teresa! — gritou ele, a contragosto.

Ninguém prestou atenção. Tentou novamente, e o homem da chave de parafuso olhou-o, do alto da escada.

— Pasa algo*? — perguntou.

* Em espanhol no texto: "O que é que há? "(N. do E.)

 

Wormold disse-lhe, em espanhol, que estava à procura de uma moça chamada Teresa. O homem insinuou que Maria seria a mesma coisa. Indicou, com a chave de parafuso, a mu­lher gorda.

— Que é que ele está dizendo?

— Parece que ele não conhece Teresa.

O homem da chave de parafuso sentou-se no topo da esca­da e começou a fazer um discurso. Disse que Maria era a me­lhor mulher que se podia encontrar em Havana. Pesava, sem roupa, cem quilos.

— Evidentemente, Teresa não está aqui — explicou, ali­viado, Wormold.

— Pergunte-lhe onde podemos encontrá-la. Pobre moça! Pense no que aconteceu com Cifuentes.

Já que Beatrice não sabia espanhol, Wormold pôde fazer a pergunta de maneira diferente, indagando do homem se havia, entre as mulheres que ali estavam, alguma que se chamasse Teresa.

— Teresa. Teresa. Que é que o senhor quer com Teresa?

— Aqui estou. Que é que deseja de mim? — indagou a moça magra, aproximando-se com uma das meias na mão.

Seus seios eram do tamanho de peras.

— Quem é você?

— Soy* Teresa.

*Em espanhol no texto: "Sou ". (N. do E.)

 

— Essa é que é Teresa? — perguntou Beatrice. — Você me disse que ela era gorda. . . como aquela da máscara.

— Não, não — respondeu Wormold. — Esta não é Tere­sa. . . É a irmã de Teresa. Soy significa irmã. — Era o mesmo erro que cometera com relação a Cifuentes. — Man­darei, por intermédio da irmã, um recado a Teresa.

Tomou a jovem pelo braço e conduziu-a um pouco para longe. Procurou explicar-lhe, em espanhol, que ela precisava ter cuidado.

— Quem é o senhor? Não compreendo.

— Houve um engano. É uma história demasiado longa. Há pessoas que poderão procurar fazer-lhe mal. Não venha ao teatro.

— Preciso vir. Encontro os meus clientes aqui. Wormold tirou do bolso um monte de dinheiro.

— Você tem parentes? — perguntou ele.

— Tenho minha mãe.

— Vá para a casa dela.

— Mas ela está em Cienfuegos.

— Há aqui dinheiro mais do que suficiente para levá-la a Cienfuegos.

Agora, todos estavam atentos à conversa. Fecharam o cír­culo em torno deles. O homem da chave de parafuso havia descido da escada. Wormold viu que Beatrice, que se achava fora do círculo, estava procurando aproximar-se cada vez mais, a fim de tentar compreender o que ele estava dizendo.

O homem da chave de parafuso comentou:

— Essa moça pertence a Pedro. Não irá levá-la assim, sem mais nem menos. Deve primeiro falar com Pedro.

— Não quero ir para Cienfuegos — disse a moça.

— Você estará em segurança lá. A jovem apelou para o homem:

— Ele me assusta. Não consigo compreender o que deseja. — Exibiu os pesos: — Isto é muito dinheiro. Eu sou uma boa moça.

— Muito trigo não faz um ano mau — comentou, solene, a mulher gorda.

— Onde está o seu Pedro? — perguntou o homem.

— Está doente. Por que é que este homem me dá todo este dinheiro? Sou uma boa moça. Vocês sabem que o meu preço é quinze pesos. Não sou punguista.

— Um cão magro está sempre cheio de pulgas — disse a gorda, que parecia ter um provérbio para cada ocasião.

— Que é que está acontecendo? — indagou Beatrice. Uma voz disse:

— Psiu! Silêncio!

Era o negro que estava varrendo o corredor.

— Polícia! — acrescentou.

— Com os diabos! — exclamou Wormold. — Isso estra­ga tudo. Preciso arranjar um jeito de tirá-la daqui.

Ninguém parecia por demais perturbado. A mulher gorda acabou de beber o seu vinho e vestiu um calção; a jovem que se chamava Teresa calçou o outro pé de meia.

— Não tem importância, quanto a mim. Ela é que você precisa tirar daqui.

— Que é que o policial deseja? — perguntou Wormold ao homem da escada.

— Uma garota — respondeu ele, cínico.

— Quero tirar daqui esta moça — disse Wormold. — Não há alguma saída por trás?

— Quando se trata da polícia, há sempre uma saída por trás.

— Onde?

— O senhor pode dispor de cinqüenta pesos?

— Posso.

— Dê o dinheiro a ele. Miguel! — chamou, dirigindo-se ao negro. — Diga-lhes para que fiquem dormindo durante três minutos. Como é que querem ser postos a salvo?

— Eu prefiro a delegacia de polícia — disse a mulher gorda. — Mas a gente precisa estar vestida com decência — acrescentou, ajustando o soutien.

— Venha comigo — disse Wormold a Teresa.

— Por que haveria eu de ir?

— Então não compreende? Eles querem você.

— Duvido — disse o homem da chave de parafuso. — Ela é muito magra. É melhor que se apressem. Cinqüenta pesos não duram para sempre.

— Tome o meu casaco — disse Beatrice, colocando-o sobre os ombros da moça, que já estava com as meias calça­das, mas que não tinha mais nada sobre o corpo.

— Mas eu quero ficar — disse a jovem.

O homem deu-lhe um tapa nas nádegas e empurrou-a:

— Ele já lhe deu o dinheiro. Vá com ele. Conduziu-os a um pequeno reservado malcheiroso e fê-los sair por uma janela. Viram-se na rua. Um policial que estava de guarda, à porta do teatro, olhou ostensivamente para o outro lado. Um alcoviteiro assobiou e apontou o automóvel de Wormold.

— Eu quero ficar — tornou a dizer a jovem, mas Beatrice empurrou-a para o banco de trás e entrou também no carro.

— Vou gritar — disse a jovem, debruçando-se na janela.

— Não seja tola! — exclamou Beatrice, puxando-a para dentro.

Wormold partiu com o automóvel.

A jovem gritou, mas o fez de maneira pouco convincente. O policial olhou para o lado oposto. Os cinqüenta pesos pare­ciam estar ainda agindo. Dobraram à direita e seguiram em direção da praia. Nenhum carro os seguiu. Afinal de contas, fora tudo fácil. A moça, agora que não tinha outra alterna­tiva, ajustou, por modéstia, o casaco e recostou-se confortavelmente.

— Hay mucha comente* — comentou.

* Em espanhol no texto: "Há muito vento ". (N. do E.)

 

— Que é que ela está dizendo?

— Está-se queixando da corrente de ar.

— Não parece ser uma moça muito grata.

— Que é que vamos fazer com ela agora? Claro que eu podia levá-la a Cienfuegos. . . Estaríamos lá à hora do desjejum. Mas é que existe Milly.

— Há mais do que Milly. Você se esqueceu do Prof. Sánchez.

— O Prof. Sánchez pode esperar.

— Sejam eles lá quem sejam, parece que não estão per­dendo tempo.

— Não sei onde é que ele mora.

— Eu sei. Examinei a lista do Country Club, antes de vir­mos para cá.

— Leve a moça para casa e espere-me lá. Chegaram à praia.

— Vire à esquerda, aqui — disse Beatrice.

— Estou levando você para casa.

— É melhor que fiquemos juntos.

— Milly...

— Não deseja comprometê-la, deseja? A menos que você lá esteja para resolver a situação.

Relutantemente, Wormold dobrou à esquerda.

— Para onde?

— Vedado — respondeu Beatrice.

 

Os arranha-céus da cidade nova erguiam-se à frente deles como pingentes de gelo ao luar. Dois grandes H H estavam estampados no céu, como o monograma do bolso de Hawthorne, mas também nada tinham de realeza: anunciavam apenas um dos hotéis de Mr. Hilton. O vento fazia o carro oscilar e os salpicos de água do mar atravessavam a avenida e umedeciam os vidros que ficavam do lado da praia. A noite, quente, tinha gosto de sal. Wormold dobrou à esquerda e afastou o carro do mar.

— Hace demasiado calor* — comentou a jovem.

* Em espanhol no texto: "Faz muito calor ". (TV. do E.)

 

— Que é que ela está dizendo agora?

— Diz que faz muito calor.

— Ela é uma moça difícil — disse Beatrice. — Será que precisamos dar conta disto ao diretor dos Correios e Telégrafos?

— Temos de prestar contas a alguém. Melhor descer o vidro novamente.

— Suponhamos que ela grite?

— Dê-lhe um tabefe.

Estavam, agora, na parte nova de Vedado: casas brancas e cor de creme pertencentes a homens ricos. Podia-se dizer quão rico era um homem pelo espaço ocupado pela sua casa. Só um milionário poderia dar-se ao luxo de ter um bangalô num terreno que daria para a construção de um arranha-céu. Quando Beatrice desceu o vidro, puderam sentir o cheiro das flores. Ela pediu-lhe que parasse num portão, junto a um alto muro pintado de branco.

— Vejo que há luzes no pátio — disse ela. — Parece que tudo está correndo bem. Enquanto você entra, ficarei guar­dando o seu precioso bocado de carne.

— Para um professor, ele parece ser muito rico.

— Não é tão rico a ponto de deixar de cobrar as despesas que faz, segundo as contas que você próprio anota.

— Dê-me alguns minutos — disse Wormold. — Não vá embora.

— Julga que eu faça isso? É melhor apressar-se. Até agora eles apanharam um dentre três. . . e perderam os outros por pouco, claro.

Procurou abrir o portão gradeado. Não estava fechado. Era absurda a situação em que se encontrava. Como é que iria explicar a sua presença? "O senhor, embora não o saiba, é meu agente. Está em perigo. Deve esconder-se." Não sabia sequer qual a matéria que o Prof. Sánchez ensinava.

Uma curta passagem, entre duas palmeiras, conduzia a um segundo portão gradeado, além do qual havia um pequeno pátio, onde se viam luzes acesas. Uma vitrola tocava baixinho e duas figuras altas moviam-se em silêncio, as faces coladas.

Quando Wormold avançava, vacilante, pelo jardim, uma campainha de alarma, oculta, soou. O par deteve-se imediata­mente e um vulto veio ao seu encontro.

— Quem está aí?

— Prof. Sánchez?

— Sim.

Ambos convergiram para a área iluminada. O Prof. Sán­chez trajava dinner jacket, tinha cabelos brancos, fios brancos na barba, já por fazer, que lhe assomava do queixo, e trazia na mão um revólver, voltado para Wormold. Este viu que a mulher, atrás dele, era muito jovem e muito bonita. A moça inclinou-se e desligou a vitrola.

— Perdoe-me por procurá-lo a esta hora — disse Wormold.

Não tinha a menor idéia de como deveria começar, e a arma inquietava-o. Professores não deviam usar revólveres.

— Lamento muito, mas não me lembro de sua fisionomia — respondeu, urbanamente, o professor, o revólver ainda apontado na direção do estômago de Wormold.

— Não há razão para que se lembrasse. A menos que o se­nhor possua um aspirador elétrico.

— Aspirador? Creio que tenho. Por quê? Minha esposa saberia dizer.

A jovem mulher atravessou o pátio e aproximou-se deles. Estava descalça. Seus sapatos, abandonados, achavam-se ao lado da vitrola, como ratoeiras.

— Que é que ele deseja? — indagou, em tom desagra­dável.

— Desculpe-me incomodá-la, Sra. Sánchez.

— Diga-lhe que não sou a Sra. Sánchez.

— Diz ele que sua visita se relaciona com aspiradores elé­tricos. Você acha que Maria, antes de sua partida... ?

— Por que é que vem aqui à uma hora da madrugada?

— Peço-lhe que me desculpe — disse o professor, com ar de constrangimento —, mas é uma hora bastante imprópria. Uma hora em que, em geral, a gente não espera visitas. . .

E, ao dizer isso, permitiu que o revólver se desviasse um tanto do alvo.

— Mas parece-me que o senhor as esperava — disse Wormold.

— Oh, isto. . . A gente tem de tomar precauções. Tenho alguns excelentes Renoirs.

— Ele não veio por causa dos quadros. Foi Maria quem o mandou. O senhor é um espião, não é verdade? — perguntou, ferozmente, a jovem mulher.

— Bem... de certo modo.

A jovem mulher começou a lastimar-se, batendo com as mãos nos flancos esguios. Seus braceletes retiniam e brilhavam.

— Não faça isso, meu bem. Estou certo de que há uma explicação.

— Ela inveja a nossa felicidade. Primeiro, mandou o car­deal, não mandou?.., e, agora, este homem. O senhor é sacerdote? — perguntou.

— Claro que não é sacerdote, querida. Olhe as suas roupas.

— Você pode ser um professor de educação comparada — disse a jovem senhora —, mas qualquer pessoa consegue enganá-lo. O senhor é sacerdote? — tornou a perguntar, diri­gindo-se a Wormold.

— Não.

— O que é que o senhor é?

— Na verdade, vendo aspiradores elétricos.

— O senhor disse que era espião.

— Bem, sim. Suponho que, em certo sentido...

— Que é que veio fazer aqui?

— Vim adverti-lo de que corre perigo.

A jovem senhora lançou um estranho uivo de cadela.

— Está vendo? — disse, dirigindo-se ao professor. — Ela, agora, está-nos ameaçando. Primeiro o cardeal e, agora...

— O cardeal estava apenas cumprindo o seu dever. Afinal de contas, é primo de Maria.

— Você tem medo dele. Você quer deixar-me.

— Minha querida, você sabe que isso não é verdade. E, voltando-se para Wormold:

— Onde está Maria?

— Não sei.

— Quando foi que a viu pela última vez?

— Eu jamais a vi.

— O senhor não está sendo um tanto contraditório?

— É um cão mentiroso! — exclamou a mulher.

— Talvez não o seja, querida. É provável que trabalhe para alguma agência. Seria melhor que nos sentássemos tranqüilamente e ouvíssemos o que tem a dizer. A ira é sem­pre um erro. Ele está cumprindo o seu dever... o que é mais do que se pode dizer quanto ao que se refere a nós.

O professor abriu caminho em direção ao pátio, depois de guardar o revólver no bolso. A jovem senhora esperou até que Wormold o seguisse — e só então se pôs a andar atrás dele, como um cão de guarda. Wormold quase esperava que ela lhe mordesse o tornozelo. Pensou: "A não ser que fale logo, ja­mais o farei".

— Sente-se — disse-lhe o professor. Que seria educação comparada?

— Posso oferecer-lhe um drinque? — acrescentou o professor.

— Por favor, não se incomode.

— O senhor não bebe nas horas de trabalho?

— Trabalho! — exclamou a jovem senhora. — Você o trata como se ele fosse uma criatura humana. Que noção de dever terá ele, exceto servir aos seus desprezíveis patrões?

— Vim aqui preveni-lo de que a polícia.. .

— Vamos, vamos! — disse o professor. — Adultério não é crime. Penso que raramente foi encarado como tal, exceto nas colônias americanas, durante o século dezessete... e na Lei Mosaica, naturalmente.

— O adultério nada tem a ver com isto — replicou a jovem senhora. — Ela não se importa que durmamos juntos; só não quer que estejamos juntos.

— Dificilmente pode haver uma coisa sem a outra. . . a não ser que tenha em mente o Novo Testamento — disse o professor. — Adultério no coração.

— Você não tem coração, a não ser que mande este homem embora. Ficamos aqui sentados como se estivéssemos casados há anos. Se apenas deseja ficar a noite toda sentado a conversar, por que não fica com Maria?

— Minha querida, foi sua a idéia de dançar, antes de irmos para a cama.

— Você chama dançar ao que estava fazendo?

— Eu lhe disse que teria de tomar umas lições.

— Já sei! Para que pudesse estar com as moças na escola de dança!

Wormold teve a impressão de que estava perdendo o rumo da conversa. Disse desesperado:

— Alvejaram o Engenheiro Cifuentes! O senhor corre o mesmo risco.

— Se eu quisesse moças, minha cara, há uma porção delas na universidade. Vão às minhas conferências, como decerto não ignora, movidas pelo mesmo motivo que a levou a freqüentá-las.

— Acaso está zombando de mim?

— Estamo-nos afastando do assunto, querida. O assunto consiste em saber o que fará Maria a seguir.

— O que ela devia ter feito era abandonar, há dois anos, as comidas que fazem engordar — disse a jovem senhora, de maneira um tanto vulgar. — Você só se interessa pelo corpo. Devia ter vergonha disso, na sua idade.

— Se você não deseja que eu a ame. . .

— Ame! Ame! — repetiu ela, pondo-se a andar de um lado para o outro pelo pátio.

Fazia com as mãos gestos no ar, como se estivesse desmembrando o amor.

— Não é Maria que deve preocupá-lo — disse Wormold.

— Seu cão mentiroso! — gritou-lhe ela. — Disse que ja­mais a havia visto!

— Jamais a vi.

— Então por que a chama de Maria? — exclamou, pon­do-se, triunfante, a dar um passo de dança com um parceiro imaginário.

— Disse alguma coisa a respeito de Cifuentes, meu jovem?

— Atiraram contra ele esta tarde.

— Quem atirou?

— Não sei exatamente, mas tudo faz parte do mesmo plano. É um pouco difícil de explicar, mas parece que o se­nhor corre, realmente, grande perigo, Prof. Sánchez. Tudo não passa de um equívoco, claro. A polícia também esteve no Teatro Shanghai.

— Que é que tenho que ver com o Teatro Shanghai?

— O quê, com efeito? — exclamou, melodramática, a jovem senhora. — Ah, os homens! Pobre Maria! Tem de haver-se com mais de uma mulher. Terá de planejar um massacre.

— Jamais tive o que quer que fosse com alguém perten­cente ao Teatro Shanghai.

— Maria está mais bem informada. Espero que você cos­tume falar dormindo.

— Você ouviu o que ele disse: tudo não passa de um equí­voco. Afinal de contas, atiraram contra Cifuentes. Você não pode culpá-la por isso.

— Cifuentes? Ele disse Cifuentes? Oh, seu espanhol paspalhão! Só porque ele falou comigo um dia lá no clube, enquanto você tomava banho, contratou capangas para matá-lo!

— Por favor, querida, seja sensata. Só soube disso há pouco, quando este senhor. . .

— Ele não é nenhum senhor! É um cão mentiroso. Haviam voltado de novo ao círculo vicioso.

— Se é mentiroso, não precisamos dar atenção ao que diz. Provavelmente talvez esteja também difamando Maria.

— Ah, você se põe do lado dela! Desesperado, Wormold disse, numa última tentativa:

— Isto nada tem a ver com Maria. . . digo, com a Sra. Sánchez.

— Pode-se saber, com os diabos, o que a Sra. Sánchez tem a ver com isto? — perguntou o professor.

— Eu julgava que você pensava que Maria. . .

— Meu jovem, o senhor não está, por certo, tentando dizer-me, seriamente, que Maria planeja fazer algo não só contra minha esposa, como,também, contra... esta minha amiga aqui. É por demais absurdo!

Até então, parecera a Wormold relativamente simples des­fazer aquele equívoco. Agora, porém, era como se ele hou­vesse puxado um pedaço de linha e todo um tecido começasse a se desfiar. Seria aquilo educação comparada?

— Julguei que lhe estivesse fazendo um favor, ao vir aqui avisá-lo, mas agora me parece que a sua morte talvez fosse a melhor solução.

— O senhor é um jovem que me deixa desorientado.

— Jovem, não. A julgar pelo que ocorre, quem parece jovem é o senhor, professor. — E, em sua angústia, falou em voz alta: — Se ao menos Beatrice estivesse aqui!

O professor disse, rápido:

— Asseguro-lhe, querida, que não conheço, absoluta­mente, ninguém que se chame Beatrice. Ninguém.

A jovem senhora lançou um riso feroz.

— Parece que o senhor só veio aqui com o propósito de criar dificuldades — disse o professor.

Era a sua primeira queixa e, dadas as circunstâncias, pare­cia bastante suave.

— Não sei o que é que tem a ganhar com isso — acres­centou, entrando na casa e fechando a porta.

— Ele é um monstro — disse a moça. — Um monstro. Um monstro sexual. Um sátiro.

— A senhora não compreende.

— Conheço essa chapa: tudo saber é tudo perdoar. Mas não neste caso. — Parecia ter perdido toda a hostilidade para com Wormold. — Maria, Teresa, eu, Beatrice... sem contar sua esposa, pobre mulher! Nada tenho contra sua esposa. O senhor tem um revólver?

— Claro que não. Vim aqui apenas para salvá-lo — res­pondeu Wormold.

— Deixe que sejam baleados — disse a jovem senhora. — Na barriga. .. bem embaixo.

E ela também entrou na casa, com ar de quem tinha algo a fazer.

Nada mais restava a Wormold senão ir embora. O alarma invisível tornou a soar, quando se dirigiu para o portão, mas ninguém se mexeu na casinha branca. "Fiz o melhor que pude", pensou Wormold. O professor parecia bem preparado para enfrentar qualquer perigo e talvez a chegada da polícia pudesse ser-lhe um alívio. Seria mais fácil lidar com a polícia do que com aquela jovem dama.

 

Ao afastar-se, por entre a fragrância das plantas que desabrochavam à noite, ele tinha apenas um desejo: contar tudo a Beatrice. "Não sou agente secreto. Sou uma fraude; nenhuma dessas pessoas é meu agente, e não sei o que está aconte­cendo. Sinto-me perdido. Estou apavorado." Ela, certamente, encontraria alguma maneira de controlar a situação: afinal de contas, era uma profissional. Mas sabia que não faria apelo algum a Beatrice. Isso significaria renunciar à idéia de proporcionar a Milly uma situação segura. Preferia antes ser eliminado, como Raul. Será que eles, num serviço como o seu, dariam pensão aos filhos? Mas quem era Raul?

Antes que houvesse alcançado o segundo portão, Beatrice gritou-lhe:

— Jim! Cuidado! Afaste-se daqui!

Mesmo naquele momento premente, ocorreu-lhe que o seu nome era Wormold, Sr. Wormold, Senor Vomel, e que nin­guém o chamava de Jim. Correu, então, claudicante, em dire­ção à voz, e viu-se na rua, diante de uma radiopatrulha, três policiais e um revólver, apontado para o seu estômago. Bea­trice estava de pé na calçada e a moça, ao seu lado, procurava manter fechado um casaco que não fora feito para isso.

— Que é que há?

— Não consigo entender uma palavra do que eles dizem. Um dos policiais disse-lhe que entrasse no carro da polícia.

— E que tal se fossemos no meu?

— Seu carro será levado para a delegacia.

Antes que ele obedecesse, revistaram-no, para ver se estava armado. Disse, dirigindo-se a Beatrice:

— Não sei de que se trata, mas isto parece o fim de uma brilhante carreira.

O policial disse qualquer coisa e Wormold acrescentou:

— Ele quer que você também entre no carro.

— Diga-lhe — respondeu Beatrice — que vou ficar com a irmã de Teresa. Não confio neles.

Os dois automóveis afastaram-se silenciosamente por entre as pequenas casas dos milionários a fim de não perturbar nin­guém, como se passassem por uma rua de hospital: os ricos precisavam dormir. Não tiveram de ir muito longe: chegaram a um pátio, um portão fechou-se atrás deles e sentiram depois o cheiro ds delegacia de polícia, semelhante ao cheiro de amoníaco que se sente nos zoológicos de todo o mundo. Ao longo do corredor caiado achavam-se os retratos dos homens procurados pela polícia, com o ar espúrio de velhos mestres barbudos. Na sala que havia ao fundo, o Capitão Segura jogava damas.

— Uf! — exclamou, tirando duas peças. Depois, levantou a cabeça e exclamou surpreso: — Sr. Wormold!

Ao ver Beatrice, ergueu-se da cadeira como uma pequena cobra verde. Olhou Teresa, cujo casaco tornara a abrir-se, tal­vez sem intenção.

— Pode-se saber, em nome de Deus, quem. . . ?

Mas, sem terminar a frase, voltou-se para o policial com quem estivera jogando e ordenou, em castelhano:

— Anda!

— Que é que significa tudo isto, Capitão Segura?

— E é a mim que o senhor o pergunta, Sr. Wormold?

— Perfeitamente.

— Gostaria de que o senhor me dissesse o que isto signifi­ca. Não tinha a menor idéia de que iria vê-lo... ao senhor, pai de Milly. Sr. Wormold, recebemos um chamado telefônico de um tal Prof. Sánchez, acerca de um homem que irrompera pela sua casa adentro fazendo vagas ameaças. Ele pensou que tal visita tinha algo que ver com as suas telas. . . quadros de grande valor. Enviei para lá imediatamente um carro da radiopatrulha e é o senhor quem eles apanham... com esta senhorita aqui (já nos vimos antes) e com esta pinóia nua. — E, como o policial de Santiago, acrescentou: — Isso não é muito bonito, Sr. Wormold.

— Estivemos no Teatro Shanghai.

— Isso também não é muito bonito.

— Estou farto de ouvir a polícia dizer que não é bonito o que faço.

— Por que razão procurou o Prof. Sánchez?

— Tudo não passou de um equívoco.

— Por que razão carrega em seu carro essa rapariga nua?

— Estávamos dando-lhe uma carona.

— Ela não tem o direito de andar nua pelas ruas.

O policial inclinou-se sobre a mesa e sussurrou algo.

— Ah! — fez o Capitão Segura. — Estou começando a compreender. Esta noite, houve uma inspeção policial no Shanghai. Creio que a moça esqueceu os seus documentos e quis evitar de passar uma noite no xadrez. Ela recorreu ao senhor...

— Não foi nada assim.

— Seria melhor que fosse assim, Sr. Wormold. — E diri­giu-se, em espanhol, à moça: — Seus documentos. Você não tem documentos.

— Si, tengo!* — exclamou ela, indignada, enquanto se inclinava e tirava da parte superior da meia alguns papéis amarfanhados.

* Em espanhol no texto: "Sim, tenho ! "(N. do E.)

 

O Capitão Segura apanhou-os e examinou-os. Depois, lan­çou profundo suspiro:

— Sr. Wormold, Sr. Wormold, os documentos dela estão em ordem. Por que é que o senhor anda de automóvel pelas ruas em companhia de uma moça nua? Por que é que entra na casa do Prof. Sánchez, fala com ele a respeito da esposa e o ameaça? Que é que a esposa dele representa para o senhor?

Antes que Wormold respondesse, voltou-se para a jovem e ordenou, áspero:

— Vá embora!

A moça hesitou e fez menção de tirar o casaco.

— É melhor deixar que o leve — disse Beatrice.

O Capitão Segura sentou, com ar de cansaço, diante do tabuleiro de damas.

— Sr. Wormold, recomendo-lhe, para o seu próprio bem, que não se meta com a esposa do Prof. Sánchez. Ela não é mulher que se possa tratar levianamente.

— Não estou metido com. . .

— Joga damas, Sr. Wormold?

— Jogo. Não muito bem, receio.

— Deve jogar melhor do que estes porcos aqui da delega­cia, espero. Precisamos jogar algumas vezes, o senhor e eu. Mas, nas damas do jogo, deve agir com mais cuidado, como no caso da esposa do Prof. Sánchez.

Moveu uma pedra ao acaso no tabuleiro e acrescentou:

— Esta noite, o senhor esteve com o Dr. Hasselbacher.

— Estive.

— Acaso foi isso sensato, Sr. Wormold? — perguntou, sem erguer os olhos, movendo as pedras aqui e acolá, num jogo contra si mesmo.

— Sensato?

— O Dr. Hasselbacher meteu-se em estranhas compa­nhias.

— Nada sei a esse respeito;

— Por que foi que lhe enviou um cartão postal de Santia­go, assinalando a posição de seu quarto?

— Quanta coisa sem importância o senhor sabe, Capitão Segura!

— Tenho minhas razões para me interessar pelo senhor. Não quero que se comprometa. Que é que o Dr. Hasselbacher queria dizer-lhe esta noite? O telefone dele está censurado.

— Queria que ouvíssemos um disco de Tristão.

— E talvez falar sobre isto, pois não? — perguntou o Capitão Segura, virando uma fotografia sobre a sua mesa: um instantâneo com o clarão característico de rostos lívidos, de rostos reunidos em torno de um monte de metais retorcidos do que havia sido antes um automóvel. — E sobre isto? — tornou a indagar, mostrando o rosto de um jovem a enfrentar, resolutamente, o clarão da câmara fotográfica, tendo consigo um pacote de cigarros, amarfanhado como a sua própria vida, enquanto um pé de homem lhe tocava o ombro.

— O senhor o conhece?

— Não.

O Capitão Segura apertou um botão e uma voz falou em inglês, saindo de uma caixa que se achava sobre a mesa:

"— Alô, alô! Fala Hasselbacher.”

"— Há alguém em sua companhia, H-Hasselbacher?”

"— Sim. Amigos.”

"— Que amigos?”

"— Já que quer saber, Wormold está aqui.”

"— Diga-lhe que Raul foi morto.”

"— Morto? Mas você prometeu...”

"— Nem sempre se pode evitar um acidente, H-Hasselbacher".

A voz tinha uma ligeira hesitação antes do H aspirado.

"— Você me deu sua palavra...”

"— O carro capotou muitas vezes.”

"— Você me disse que seria apenas uma advertência.”

"— Continua a ser ainda uma advertência. Vá dizer que Raul morreu."

Ouviu ainda, durante um momento, o ruído da fita de gra­vação: uma porta fechou-se.

— Diz ainda que nada sabe acerca de Raul? — perguntou Segura.

Wormold fitou Beatrice. Ela fez um ligeiro sinal negativo com a cabeça.

— Dou-lhe minha palavra de honra, Segura, de que nem sequer sabia de sua existência, até esta noite.

Segura moveu uma pedra do jogo de damas:

— Sua palavra de honra?

— Minha palavra de honra.

— O senhor é o pai de Milly. Tenho de aceitá-la. Mas afaste-se de mulheres nuas e da esposa do professor. Boa noite, Sr. Wormold.

— Boa noite.

Já haviam chegado à porta, quando Segura tornou a falar:

— E o nosso jogo de damas, Sr. Wormold. Não esqueça­mos disso.

O velho Hillman estava esperando na rua.

— Vou deixá-la em companhia de Milly — disse Wormold.

— Não vai para casa?

— É muito tarde para dormir, agora.

— Onde é que vai? Não posso ir com você?

— Gostaria de que ficasse com Milly, caso haja algum acidente. Viu aquela fotografia?

— Não.

Não tornaram a falar, até chegar a Lamparilla. Então, Bea­trice disse:

— Gostaria de que não houvesse dado sua palavra de honra. Não precisava ter chegado até esse ponto.

— Não.

— Oh, você agiu de maneira profissional, posso bem entender. Desculpe-me. Foi estupidez de minha parte. Mas você age de maneira mais profissional do que eu jamais o supus.

Abriu-lhe a porta da frente e ficou a observá-la, enquanto ela caminhava por entre os aspiradores como uma pessoa enlutada num cemitério.

 

Ao chegar à porta da casa de apartamentos em que morava o Dr. Hasselbacher, tocou a campainha de um desconhecido, no segundo andar, onde, conforme podia ver, a luz estava acesa. Ouviu-se um zumbido e a porta abriu-se. O elevador parou e ele o tomou, subindo para o apartamento do Dr. Hasselbacher. Ao que parecia, este também não pudera dor­mir. Uma luz brilhava sob a fenda da porta. Estaria sozinho ou em conferência com a voz que fora gravada?

Estava começando a aprender os truques e as cautelas de sua profissão irreal. Havia, no patamar, uma alta janela, que dava para um balcão inútil, demasiado estreito para que pudesse ser usado (o edifício fora construído antes da época em que a arquitetura se havia tornado inteiramente funcio­nal). Desse balcão, podia ver luz no apartamento do Dr. Hasselbacher, e bastava um longo passo para que passasse de um balcão a outro. Deu o passo sem olhar para baixo. As cor­tinas não estavam inteiramente fechadas. Espiou por entre elas.

O Dr. Hasselbacher estava sentado de frente para ele, usan­do antigo capacete Pickelhauber, peitoral, botas, luvas bran­cas — coisas que só poderiam pertencer ao velho uniforme de um Uhlan. Tinha os olhos fechados e parecia adormecido. Usava também uma espada, o que lhe dava um aspecto de extra de estúdio cinematográfico. Wormold bateu no vidro. O Dr. Hasselbacher abriu os olhos e fitou-o.

— Hasselbacher.

O médico fez um leve movimento, que poderia ter sido de pânico. Procurou tirar o capacete, mas o barbicacho o impediu.

— Sou eu, Wormold.

O médico aproximou-se, relutante, da janela. Seu culote era demasiado apertado. Fora feito para um homem mais jovem.

— Que está fazendo aí, Sr. Wormold?

— E você, que faz aí, Hasselbacher?

O médico abriu a janela e Wormold entrou. Viu que se achava no quarto do médico. Um grande guarda-roupa estava aberto e dois ternos brancos lá se encontravam dependurados, como os últimos dentes de uma velha boca. Hasselbacher pôs-se a tirar as luvas.

— Esteve em algum baile a fantasia, Hasselbacher?

O Dr. Hasselbacher respondeu, com voz envergonhada:

— O senhor não compreenderia.

Começou, peça por peça, a desfazer-se de seus atavios: pri­meiro, as luvas; depois, a couraça, na qual, segundo o notou Wormold, os móveis do quarto se refletiam, deformados, como figuras humanas num salão de espelhos.

— Por que voltou aqui? Por que não tocou a campainha?

— Quero saber quem é Raul.

— O senhor já o sabe.

— Não tenho a menor idéia.

O Dr. Hasselbacher sentou-se e puxou as botas.

— Acaso admira Charles Lamb, Dr. Hasselbacher?

— Milly mo emprestou. Não se lembra de que Milly se referiu. . .

Seu aspecto era lamentável, ali sentado, com o apertado culote. Wormold percebeu que a costura lateral fora desfeita, para que nele coubesse o Hasselbacher atual. Sim, lembrava-se daquela noite no Tropicana.

— Creio que este uniforme exige que eu lhe dê uma expli­cação — disse Hasselbacher.

— Outras coisas exigem também uma explicação.

— Eu era oficial Uhlan... oh, há quarenta e cinco anos atrás.

— Lembro-me de que vi, na outra sala, uma fotografia sua. Mas não estava vestido assim. Pareceu-me mais. . . prático.

— Isso foi depois que começou a guerra. Veja ali junto à minha mesa. . . 1913, as manobras de junho... o Kaiser nos estava inspecionando.

A velha fotografia amarelada, com o sinete do fotografo gravado a um canto, mostrava longas fileiras de cavalarianos, com as espadas desembainhadas, e uma pequena figura impe­rial, com um braço mirrado, passando-as em revista, num ca­valo branco.

— Era tudo tão tranqüilo, naquela época — comentou o Dr. Hasselbacher.

— Tranqüilo?

— Até que veio a guerra.

— Mas julguei que você fosse médico.

— Enganei-o a esse respeito. Tornei-me médico mais tarde. Quando terminou a guerra. Depois de haver morto um homem. Mata-se um homem. . . coisa tão fácil. Não é preciso habilidade alguma. Pode-se ter certeza do que se fez, julgar a morte, mas salvar um homem. . . é preciso, para isso, mais de seis anos de estudo e, no fim, não se tem certeza se foi a gente mesmo que o salvou. Os bacilos são mortos por outros baci­los. As pessoas apenas sobrevivem. Não há um único paciente que se saiba, com segurança, que foi salvo por mim, mas o homem que eu matei. . . eu o sei. Era russo e estava muito magro. Raspei-lhe os ossos, ao enfiar-lhe a baioneta. Trinquei os dentes, arrepiado. Não havia senão pântanos em torno... e chamavam a esse lugar Tannenberg. Odeio a guerra, Sr. Wormold.

— Então por que se veste como soldado?

— Eu não estava vestido assim, quando matei um homem. Isto era uma coisa pacífica. Amo isto — acrescentou, tocan­do a couraça que se achava ao lado, sobre a cama. — Mas, lá, tínhamos sobre nós a lama dos pântanos. Nunca teve dese­jo, Sr. Wormold, de voltar para a paz? Oh, não. . . esqueci que o senhor é moço. . . que jamais experimentou tal desejo. Foi o último período de paz para qualquer um de nós. O culote já está por demais apertado.

— O que foi que o levou, esta noite, a vestir-se assim, Hasselbacher?

— A morte de um homem.

— Raul?

— Sim.

— Conhecia-o?

— Sim.

— Fale-me a respeito dele.

— Não quero falar.

— Seria melhor que falasse.

— Somos, ambos, responsáveis pela sua morte, o senhor e eu — respondeu Hasselbacher. — Não sei quem o apanhou nessa armadilha, nem como isso foi feito, mas, se me recu­sasse a ajudá-los, teria sido deportado. Que poderia eu fazer, agora, fora de Cuba? Já lhe disse que perdi meus documentos.

— Que documentos?

— Isso não importa. Acaso todos nós não temos, no pas­sado, algo que nos preocupa? Sei, agora, porque foi que arre­bentaram o meu apartamento. Porque eu era seu amigo. Por favor, vá embora, Sr. Wormold. Quem sabe o que esperariam que eu fizesse, se soubessem que o senhor esteve aqui?

— Quem são eles?

— O senhor sabe melhor do que eu, Sr. Wormold. Eles não se apresentam pessoalmente.

Algo se mexeu no aposento contíguo.

— É apenas um camundongo, Sr. Wormold. Guardo um pouco de queijo para ele, à noite.

— Então foi assim que encontrou os Contos, de Lamb.

— Alegra-me que haja modificado o seu código — disse o Dr. Hasselbacher. — Talvez agora eles me deixem em paz. Já não posso mais ajudá-los. A gente começa com acrósticos, palavras cruzadas, enigmas matemáticos e, de repente, quan­do menos se espera. . . Hoje em dia, é preciso que tenhamos cuidado até mesmo com os nossos passatempos.

— Mas Raul... ele jamais existiu. O senhor me aconse­lhou a mentir... e eu o fiz. Eles não passavam de invenções, Hasselbacher.

— E Cifuentes? Vai dizer-me que também não existia?

— Com ele era diferente. Mas inventei Raul.

— Inventou-o, então, demasiado bem, Sr. Wormold. Agora existe um fichário inteiro a respeito dele.

— Ele não era mais real do que uma personagem de novela.

— E as novelas serão sempre inventadas? Não sei como é que um novelista trabalha, Sr. Wormold. Jamais conheci algum, antes de conhecê-lo.

— Não havia piloto algum bêbedo na companhia de avia­ção cubana.

— Oh, concordo, o senhor deve ter inventado esse pormenor. . . não sei por quê.

— Se tem decifrado meus telegramas, deve ter percebido que não há verdade alguma no que escrevo. Você conhece a cidade. . . um piloto despedido por embriaguez, um amigo que tem um avião, todas essas invenções.

— Não sei qual o seu motivo para agir dessa maneira, Sr. Wormold. Talvez o senhor quisesse disfarçar a identidade do piloto, caso alguém descobrisse o seu código. É possível que, se os seus amigos houvessem sabido que ele dispunha de meios próprios, bem como de um aeroplano particular, não tivessem querido pagar-lhe tanto. Quanto desse dinheiro foi parar no bolso dele — e quanto foi parar no seu?

— Não entendo uma palavra do que me está dizendo.

— O senhor lê os jornais, Sr. Wormold. Sabe que a licença dele para voar foi cassada há um mês, quando desceu, embriagado, num playground infantil.

— Não leio os jornais locais.

— Nunca? Claro que ele negou que trabalhava para o senhor. Ofereceram-lhe uma porção de dinheiro para que trabalhasse para eles, ao invés de o fazer para o senhor. Eles também querem fotografias daquelas plataformas que o se­nhor descobriu nas montanhas de Oriente.

— Não existe plataforma alguma.

— Não espere que eu acredite muito no que me diz, Sr. Wormold. O senhor se referiu, num telegrama, aos planos que enviou para Londres. Também eles precisavam de fotografias.

— Você deve saber quem são eles.

— Cui bono?

— E que é que eles planejam quanto a mim?

— A princípio, garantiram-me que nada estavam plane­jando. O senhor foi-lhes útil. Sabiam a seu respeito desde o princípio, Sr. Wormold, mas não o levaram muito a sério. Pensaram até que o senhor bem poderia estar inventando os relatórios que expedia. Mas, de repente, o senhor mudou o có­digo e o seu pessoal aumentou. O serviço secreto inglês não se deixaria enganar tão facilmente assim, não é verdade?

Uma espécie de lealdade para com Hawthorne fez com que Wormold permanecesse em silêncio.

— Sr. Wormold, Sr. Wormold, por que foi que começou a fazer isso?

— Você sabe o motivo: precisava de dinheiro. Surpreendeu-se a dizer a verdade, como se estivesse sob o

efeito de uma droga.

— Eu lhe teria emprestado dinheiro. Ofereci-me para fazê-lo.

— Eu precisava de mais do que você podia emprestar-me.

— Para Milly?

— Sim.

— Tome muito cuidado com ela, Sr. Wormold. O senhor está numa profissão onde não é seguro amar-se alguém ou al­guma coisa. Eles se lançam contra isso. Lembra-se da cultura que eu estava fazendo?

— Lembro-me.

— Talvez, se não houvessem destruído a minha vontade de viver, não tivessem conseguido persuadir-me com tanta facilidade.

— Então pensa realmente. . . ?

— Peço-lhe apenas que tenha cuidado.

— Posso usar seu telefone?

— Pode.

Wormold telefonou para casa. Será que sequer imaginava que aquele ligeiro estalido significava que o telefone estava sob censura? Beatrice atendeu.

— Está tudo tranqüilo? — perguntou ele.

— Está.

— Espere até que eu chegue. O Dr. Hasselbacher comentou:

— Não devia ter revelado amor em sua voz. Sabe-se lá quem estaria escutando — acrescentou, caminhando com dificuldade até a porta, devido à estreiteza do culote. Boa noite, Sr. Wormold. Eis aqui o volume de Lamb.

— Não precisarei mais dele.

— Talvez Milly o queira. Será que poderia fazer-me o favor de não dizer nada a ninguém a respeito deste. . . desta fantasia? Sei que sou absurdo, mas amei aquela época. O Kaiser falou comigo, certa vez.

— Que foi que ele disse?

— Disse: "Lembro-me do senhor. O senhor é o Capitão Müller".

 

Interlúdio em Londres

Quando o chefe tinha convidados, jantava em casa, prepa­rando ele próprio a refeição, pois nenhum restaurante satisfa­zia o seu meticuloso e romântico padrão. Contava-se que, certa vez em que se achava doente, recusou-se a cancelar um convite que fizera a um velho amigo, orientando da própria cama, pelo telefone, o preparo do jantar. Com um relógio colocado ao seu lado, sobre o criado-mudo, interrompia a conversa no momento exato, a fim de dar instruções ao seu criado: "Alô, alô, Brewer, alô! você deve tirar agora o frango e tornar a untá-lo com manteiga".

Dizia-se, também, que, numa outra ocasião, tendo ficado até tarde no escritório, tentara fazer o jantar de lá, mas arrui­nara-o, pois, por força do hábito, usara o seu telefone verme­lho — o qual, por razões de segurança, modificava os sons, fazendo com que apenas ruídos estranhos, semelhantes ao de um japonês falado depressa, chegassem ao ouvido do seu criado.

O jantar que servira ao subsecretário permanente foi sim­ples e excelente: um assado com uma pitada de alho. Ao lado, no aparador, havia um queijo Wensleydale, e o silêncio de Albany os envolvia profundamente, como neve. Depois de seus esforços na cozinha, o próprio chefe cheirava ligeiramente o molho de carne.

— Está realmente excelente. Excelente.

— É uma velha receita de Norfolk. Assado Ipswich da Vovó Brown.

— E esta carne. . . derrete na boca. . .

— Ensinei Brewer a fazer as compras, mas ele jamais será um cozinheiro. Preciso estar sempre a fiscalizá-lo.

Comeram durante algum tempo, reverentemente silencio­sos: o ruído feito pelos saltos de sapatos de mulher, a seguir por Rope Walk, era a única distração.

— Um bom vinho — disse, afinal, o subsecretário permanente.

— O 53 está saindo muito bom. Não o acha um tanto novo?

— Um quase nada.

Ao ser servido o queijo, o chefe tornou a falar:

— A nota russa. . . que é que o F.O. pensa a respeito?

— Estamos um tanto perplexos com a referência às bases nas Caraíbas.

Ouviu-se um ruído de mastigação de bolachas Romary.

— Não creio que se refiram às Bahamas — prosseguiu o subsecretário permanente. — Elas valem o que os ianques nos pagaram. . . alguns velhos contratorpedeiros. Contudo, sempre imaginamos que essas construções em Cuba tivessem origem comunista. Não acha que, afinal de contas, bem po­diam ter origem americana?

— Mas não teríamos sido informados?

— Não necessariamente, receio. Desde o caso Fuchs. Eles dizem que também nós ocultamos muita coisa. Que é que o seu homem em Havana diz a respeito?

— Pedirei que nos envie amplos informes. Que tal o Wensleydale?

— ótimo.

— Sirva-se de vinho do Porto.

— Coborn '47, pois não?

— '48.

— Acha que eles pretendem, eventualmente, que haja guerra? — perguntou o chefe.

— Sei tanto quanto o senhor.

— Eles estão, agora, muito ativos em Cuba... ao que pa­rece com a ajuda da polícia. Nosso homem em Havana pas­sou por momentos difíceis. Seu melhor agente, como sabe, foi morto. . . acidentalmente, por certo. . . quando ia tirar fotografias aéreas das construções. . . Uma grande perda para nós. Mas eu daria por aquelas fotografias muito mais do que a vida de um homem. Tal como aconteceu, despendemos mil e quinhentos dólares. Atiraram, na rua, contra um outro agen­te nosso, e ele ficou amedrontado. Um terceiro teve de ocul­tar-se. Há também uma mulher. . . que eles interrogaram, apesar de ser amante do diretor dos Correios e Telégrafos. Até agora, só deixaram em paz o nosso homem. . . talvez para que possam vigiá-lo. Ele, porém, é um tipo astuto.

— Não acha que deve ter sido um pouco descuidado, para perder todos esses agentes?

— No começo, temos de esperar tais acidentes. Decifra­ram seu livro de código. Jamais me agradaram muito esses li­vros de código. Há lá um alemão que parece ser um dos seus mais hábeis operadores, especialista em criptografia. Hawthorne avisou o nosso homem, mas o senhor sabe como são esses velhos negociantes. . . obstinados em sua lealdade. Tal­vez haja valido a pena ter havido alguns acidentes, para que abra os olhos. Charuto?

— Obrigado. Estaremos em condições de recomeçar, se derem cabo dele?

— Ele tem um truque magnífico. Desfere seus golpes bem no campo inimigo. Recrutou um duplo agente na própria sede da polícia.

— Esses agentes "duplos" não são um tanto. . . ardilo­sos? Nunca se sabe de que lado pendem.

— Confio em que nosso homem possa "soprá-lo" em todas as ocasiões -— respondeu o chefe. — Digo "soprar" porque são ambos grandes jogadores de damas. Checkers, como chamam lá a esse jogo. Na verdade, esse é o pretexto que encontram para estar em contato um com o outro.

— Não pode fazer idéia de como estamos preocupados com essas construções, chefe. Se ao menos o senhor houvesse obtido as fotografias, antes que matassem o seu homem!. . . O P. M. está insistindo conosco para que informemos os ame­ricanos e pecamos o seu auxílio.

— Não deve permitir que o faça. Não podemos confiar nos americanos.

 

 

— Sopro — disse o Capitão Segura.

Tinham-se encontrado no Havana Club. No Havana Club, que não era clube coisa alguma e que pertencia ao rival de Baccardi, todo o rum era servido gratuitamente, o que permi­tia a Wormold aumentar suas economias, já que, natural­mente, continuou a anotar as bebidas em sua lista de despe­sas. O fato de as bebidas serem grátis seria uma coisa tediosa, senão impossível de explicar ao pessoal de Londres. O bar achava-se situado no primeiro andar de uma casa do século XVII e as janelas davam para a catedral em que já estivera sepultado o corpo de Cristóvão Colombo. Uma estátua de pedra cinzenta, de Colombo, erguida fora da catedral, devido à ação dos insetos, parecia como se houvesse sido formada, através dos séculos, debaixo da água, como um recife de coral.

— Sabe que houve um tempo — disse o Capitão Segu­ra — em que julguei que não gostasse de mim?

— Há outros motivos para se jogar damas, além de se gos­tar de alguém.

— Sim, para mim também — respondeu o Capitão Segu­ra. — Veja! Faço dama.

— E eu sopro três vezes.

— O senhor pensa que não percebi isso, mas verá que o lance foi a meu favor. Veja: ganho sua única dama. Por que razão foi a Santiago, Santa Clara e Cienfuegos duas semanas atrás?

— Sempre viajo nesta época do ano. .. para ver meus revendedores.

— Parecia, realmente, ser essa a razão. O senhor hospe­dou-se, em Cienfuegos, no novo hotel. Jantou sozinho, num restaurante à beira-mar. Foi a um cinema e voltou para casa. Na manhã seguinte. ..

— Acredita realmente que eu seja um agente secreto?

— Estou começando a duvidar. Acho que nossos amigos cometeram um engano.

— Quem são os nossos amigos?

— Oh, digamos, os amigos do Dr. Hasselbacher.

— E quem são eles?

— Meu trabalho consiste em saber o que se passa em Ha­vana — respondeu o Capitão Segura — e não em tomar este ou aquele partido... ou dar informações.

Movia livremente sua dama no tabuleiro.

— Há, acaso, em Havana, algo realmente importante, que possa interessar a um serviço secreto?

— Somos, claro, um país pequeno, mas estamos muito perto da costa americana. Achamo-nos voltados, também, para a própria base inglesa da Jamaica. Quando um país se acha cercado, como acontece com a Rússia, procura abrir uma brecha, partindo de dentro.

— Para que serviria eu. . . ou o Dr. Hasselbacher. . . numa estratégia global? Um homem que vende aspiradores. Um médico aposentado.

— Em todo jogo há peças que não são importantes — res­pondeu o Capitão Segura. — Como esta aqui. Eu a tomo e o senhor não se importa de perdê-la. O Dr. Hasselbacher é, sem dúvida, muito bom em palavras cruzadas.

— Que é que as palavras cruzadas têm a ver com isso?

— Um homem como esse dá sempre um bom criptógrafo. Alguém, certa vez, mostrou-me um telegrama do senhor devi­damente decifrado... ou melhor, deixaram que eu o desco­brisse. Talvez pensassem que eu o expulsaria de Cuba — acrescentou, rindo. — O pai de Milly! Mal sabiam eles.

— De que se tratava?

— O senhor dizia que havia recrutado o Engenheiro Cimentes. Claro que isso era absurdo. Eu conheço bem 198

Cifuentes. Talvez hajam atirado contra ele para fazer com que o telegrama parecesse mais convincente. Talvez o hajam escrito porque desejassem descartar-se do senhor. Ou talvez eles sejam mais crédulos do que eu.

— Que história extraordinária! — comentou Wormold, movendo uma peça. — Como é que está tão certo de que Cifuentes não é meu agente?

— Pela sua maneira de jogar damas, Sr. Wormold, e por­que interroguei Cifuentes.

— E torturou-o?

O Capitão Segura riu:

— Não. Ele não pertence à classe torturável.

— Eu não sabia que havia distinções de classe, quanto à tortura.

— Meu caro Sr. Wormold, o senhor por certo compreende que há pessoas que esperam ser torturadas e pessoas a quem tal idéia enche de indignação. A gente jamais tortura alguém salvo por uma espécie de acordo mútuo.

— Há torturas e torturas. Quando destruíram o labora­tório do Dr. Hasselbacher, acaso estavam torturando. . . ?

— Nunca se pode saber o que os amadores são capazes de fazer. A polícia nada teve a ver com aquilo. O Dr. Hasselba­cher não pertence à classe torturável.

— E quais são os que pertencem?

— Os pobres de meu próprio país... e de qualquer país latino-americano. Os pobres da Europa Central e do Oriente. Claro que, nos países dos senhores, onde reina o bem-estar, os senhores não têm pobres... de modo que são intorturáveis. Em Cuba, a polícia pode lidar tão asperamente quanto lhe aprouver com os emigres* da América Latina e dos Estados Bálticos, mas não com os visitantes de seu país ou da Escan­dinávia. É, de ambas as partes, uma questão instintiva. Os católicos são mais torturáveis do que os protestantes, apenas porque são mais criminosos. Como vê, eu estava certo, ao ga­nhar sua dama; agora, vou "soprá-lo" pela última vez.

* Em francês no texto: emigrados. (N. doE.)

 

— O senhor sempre ganha, pois não? É interessante essa sua teoria.

— Uma das razões pelas quais o Ocidente odeia os gran­des Estados comunistas é que estes não reconhecem distin­ções de classe. Às vezes, torturam pessoas que não deviam. O mesmo, claro, fez Hitler e escandalizou o mundo. Ninguém se incomoda com o que ocorre nas prisões de Lisboa ou de Caracas, mas Hitler era demasiado promíscuo. Era como se, em seu país, um chofer dormisse com uma dama da nobreza.

— Há muito já não nos escandalizamos mais com isso.

— Constitui um grande perigo para todos, quando o que era chocante deixa de escandalizar.

Tomaram, cada qual, um outro aperitivo grátis, tão gelado que tinha de ser bebido em pequenos goles, para evitar dor nas narinas.

— Como está Milly? — perguntou o Capitão Segura.

— Bem.

— Gosto muito da menina; foi muito bem educada.

— Alegra-me que pense assim.

— Essa é outra razão pela qual não me agradaria vê-lo meter-se em complicações, Sr. Wormold, o que talvez o levas­se a perder a sua permissão para viver aqui. Havana ficaria mais pobre, sem a presença de sua filha.

— Não creio que o senhor realmente acredite em mim, capitão, mas Cifuentes nunca foi meu agente.

— Acredito. Acho que, talvez, alguém tenha desejado usá-lo como bode expiatório, ou como um desses patos pinta­dos que atraem os patos verdadeiros e fazem com que eles pousem no terreno. — Acabou o seu daiquiri e acrescentou: — Isso, claro, convém ao meu trabalho. Gosto de apreciar a chegada dos patos selvagens, vindos da Rússia, dos Estados Unidos, da Inglaterra e, mesmo, de vez em quando, da Ale­manha. Desprezam os atiradores nativos, mas, um dia, quan­do estiverem todos pousados, que tiro eu não darei!

— É um mundo complicado, esse. Acho mais fácil vender aspiradores.

— Espero que o seu negócio esteja prosperando, pois não?

— Oh, sim, sim.

— Interessou-me ver que o senhor aumentou o seu pes­soal. Aquela encantadora secretária do sifão e aquele casaco que não queria fechar. E o jovem.

— Eu precisava de alguém para cuidar de minha escritu­ração. López não merece confiança.

— Ah, López! Outro de seus agentes — disse o Capitão Segura, rindo. — Pelo menos, foi o que me informaram.

— Sim. Fornece-me informações secretas a respeito do Departamento de Polícia.

— Tenha cuidado, Sr. Wormold. Ele é um dos torturáveis. Ambos riram, tomando os seus daiquiris. É fácil rir-se da

idéia de tortura, num dia ensolarado.

— Bem, preciso ir embora, Sr. Wormold.

— Suponho que suas celas estejam cheias de meus espiões.

— Podemos sempre arranjar lugar para outro, mediante algumas execuções.

— Algum dia, capitão, vou vencê-lo no jogo de damas.

— Duvido, Sr. Wormold.

Da janela, observou o Capitão Segura, vendo-o passar diante da figura cinzenta, semelhante a pedra-pomes, de Colombo, a caminho de seu gabinete. O Havana Club e o Capitão Segura pareciam haver tomado o lugar do Wonder Bar e do Dr. Hasselbacher: aquilo era como uma mudança de vida, e ele tinha de adaptar-se da melhor maneira às circuns­tâncias. O Dr. Hasselbacher fora humilhado diante dele, e a amizade não pode sofrer humilhação. Não tornara a vê-lo; provavelmente também estaria evitando o Wonder Bar. De qualquer modo, sentia-se, no clube, como acontecia no Won­der Bar, um cidadão de Havana: o jovem elegante que lhe ser­viu a bebida não fez nenhuma tentativa no sentido de vender-lhe alguma das garrafas de rum, de marcas diversas, expostas sobre a mesa. Um homem de barba grisalha lia os jornais da manhã, como sempre fizera àquela hora; como sempre, um carteiro interrompeu o seu giro diário para tomar o seu drin­que gratuito. Todos eles eram, também, cidadãos. Quatro turistas deixaram o bar carregando cestas que continham rum; estavam afogueados, alegres, alimentando a ilusão de que as bebidas nada lhes haviam custado. Pensou: eles são os estrangeiros e, naturalmente, os intorturáveis.

Wormold bebeu muito depressa o seu daiquiri e saiu do Havana Club com os olhos doendo. Os turistas debruçavam-se sobre o poço do século XVII, no qual haviam lançado moedas suficientes para pagar o dobro do que haviam bebido. Estavam garantindo um regresso feliz. Uma voz de mulher o chamou e ele viu Beatrice de pé entre os pilares da colunata, em meio das cabaças, chocalhos e bonecas negras da loja de curiosidades.

— Que é que está fazendo aqui?

— Sinto-me sempre infeliz quando você encontra Segura — explicou. — Esta vez, quis certificar-me pessoalmente...

— Certificar-se de quê?

Será que ela já havia começado a desconfiar de que ele não tinha agente algum? Talvez houvesse recebido instruções para vigiá-lo — instruções vindas de Londres ou do 59200, em Kingston. Puseram-se a andar, rumo a casa.

— Certificar-me de que não era uma armadilha... de que a polícia não estava à sua espera. É difícil lidar-se com um "duplo" agente.

— Você se preocupa demais.

— E você tem tão pouca experiência! Veja o que aconte­ceu a Raul e a Cifuentes.

— Cifuentes foi interrogado pela polícia — acrescentou ele, com alívio. — Já está visado pela polícia e já de nada nos serve, agora.

— E você, também não está visado?

— Ele nada revelou. Foi o Capitão Segura quem escolheu as perguntas e, como você sabe, é um dos nossos. Acho que talvez já seja tempo de lhe darmos uma gratificação. Ele está procurando compilar uma lista completa dos que são, aqui, agentes estrangeiros. . . tanto americanos como russos. Patos selvagens, como ele os chama.

— Seria um grande golpe. E as construções?

— Temos de deixá-las de lado, por enquanto. Não posso fazer com que ele aja contra o seu próprio país.

Ao passar pela catedral, deu a sua moeda habitual ao men­digo cego que se achava sentado nos degraus de fora.

— Quase vale a pena ser cego num sol deste — comentou Beatrice.

O instinto criador agitou-se em Wormold:

— Como sabe, ele não é realmente cego. Vê tudo o que se passa.

— Deve ser um bom ator. Estive todo o tempo a observá-lo, enquanto você estava em companhia do Capitão Segura.

— E ele esteve a observar você. Na verdade, é um dos meus melhores informantes. Faço sempre com que fique aí estacionado, quando me encontro com Segura. Uma precau­ção elementar, apenas. Não sou tão descuidado quanto julga.

— Você jamais informou isso a Londres.

— Não há motivo para tal. Eles dificilmente poderiam investigar a vida de um mendigo cego e eu não o uso para obter informações. De qualquer modo, se eu houvesse sido detido, você o saberia dentro de dez minutos. Que é que teria feito?

— Queimaria todos os documentos e levaria Milly para a Embaixada.

— E quanto a Rudy?

— Dir-lhe-ia que enviasse uma mensagem para Londres, informando que havíamos sido descobertos e que iríamos agir subterraneamente.

— Como é que se age subterraneamente? — perguntou, sem esperar que ela respondesse. Depois, acrescentou, falan­do lentamente, à medida que a história se ia formando em seu espírito: — O mendigo chama-se Miguel. Na verdade, faz tudo isso por amor. Salvei-lhe, certa vez, a vida.

— Como?

— Oh, coisa sem importância. Um acidente com um ferry-boat. Aconteceu, apenas, que eu sabia nadar e ele não.

— Deram-lhe uma medalha por isso?

Ele a olhou rapidamente, mas pôde ver apenas, no rosto dela, um interesse inocente.

— Não. Não houve glória alguma. Na verdade, acabaram por multar-me por eu o haver arrastado para um lugar proibido.

— Que história romântica! E, agora, ele, certamente, seria capaz de dar a vida por você.

— Oh, eu não iria tão longe assim.

— Diga-me uma coisa: você tem em algum lugar um livrinho de escrituração de um pêni, de capa encerada?

— Não creio. Por quê?

— Um caderninho com as suas primeiras compras de penas de aço e borrachas?

— Por que penas de aço?

— Estava apenas imaginando. Nada mais.

— Não se podem comprar livros de escrituração por um pêni. Quanto a penas de aço, ninguém mais as usa, hoje em dia.

— Esqueça-se disso. Foi somente algo que Henry me disse. Um engano natural.

— Quem é Henry? — perguntou ele.

— É o 59200.

Sentiu estranho ciúme, pois, apesar de todas as regras de segurança, só uma vez ela o chamara de Jim.

A casa estava vazia como sempre, quando entraram; ele percebeu que já não mais sentia falta de Milly, e sentiu o triste alívio de alguém que compreende que havia um amor, pelo menos, que já não o feria.

— Rudy saiu — disse Beatrice. — Está comprando bom-bons, suponho. Come-os demais. Ele deve consumir uma grande quantidade de energia, pois não fica mais gordo, em­bora eu não entenda por quê.

— Seria melhor que nos puséssemos a trabalhar. Há um telegrama para enviar. Segura forneceu-me informações importantes acerca da infiltração comunista na polícia. A gente dificilmente acreditaria. . .

— Posso acreditar em quase tudo. Veja isto. Acabo de 204

descobrir algo fascinante no livro de código. Sabia que havia um grupo de palavras para significar "eunuco"? Acha que isso é usado com freqüência em telegramas?

— Espero que precisem disso no escritório de Istambul.

— Gostaria de que pudessem usá-las. Será que usam?

— Você tornará a casar-se algum dia?

— Suas associações de idéias são, às vezes, um tanto ób­vias — respondeu Beatrice. — Acha que Rudy tem uma vida secreta? Não é possível que ele consuma toda essa energia no escritório.

— Qual a instrução, quanto a uma vida secreta? Tem-se de pedir permissão a Londres, antes de iniciá-la?

— Bem, naturalmente, a gente teria de deixar vestígios, antes de ir muito longe. Londres prefere manter os casos sexuais dentro do departamento.

 

— Devo estar ficando importante — disse Wormold. — Fui convidado para fazer um discurso.

— Onde? — indagou Milly, erguendo delicadamente os olhos do Horsewoman 's Year Book.

Era à hora em que o trabalho do escritório já estava termi­nado, e em que a derradeira claridade do sol caía horizontal­mente através dos telhados, tocando-lhe o cabelo cor de mel e o uísque que havia em seu copo.

— No almoço anual da Associação Comercial Européia. O Dr. Braun, o presidente, pediu-me que falasse, como mem­bro mais velho. O convidado de honra é o cônsul geral ameri­cano — acrescentou com orgulho.

Tinha a impressão de que fazia pouco tempo, desde que chegara a Havana e encontrara a família da mãe de Milly no Bar Floridita; agora era o negociante mais antigo da cidade. Muitos haviam-se aposentado; alguns haviam voltado para a Inglaterra, a fim de lutar na última guerra — ingleses, ale­mães, franceses —, mas ele fora rejeitado devido ao defeito na perna, e nenhum dos outros havia regressado a Cuba.

— Sobre que você vai falar?

— Não irei — respondeu, com tristeza. — Não saberia o que dizer.

— Aposto que você falaria melhor do que muitos deles.

— Oh, não. Pode ser que eu seja o sócio mais antigo, Milly, mas sou também o menor deles. Os exportadores de rum e os fabricantes de charutos. . . eles é que são as pessoas realmente importantes.

207

— Você é você.

— Gostaria de que você houvesse escolhido um pai mais inteligente.

— O Capitão Segura diz que você é muito bom no jogo de damas.

— Mas não tão bom quanto ele.

— Por favor, aceite, papai — disse ela. — Eu ficaria muito orgulhosa.

— Faria papel de tolo.

— Garanto que não! Faça-o por mim.

— Por você eu faria tudo. Muito bem. Aceito.

Rudy bateu na porta. Aquela era a hora em que ficava à es­cuta junto do aparelho de recepção. Seria meia-noite em Londres.

— Há uma mensagem urgente, procedente de Kingston — disse ele. — Devo procurar Beatrice?

— Não. Eu próprio me arranjarei. Ela vai ao cinema.

— Os negócios andam ativos — comentou Milly.

— É verdade.

— Mas não parece que você esteja vendendo mais aspiradores.

— É um movimento para vendas futuras — respondeu Wormold.

Foi para o quarto e decifrou a mensagem. Era de Haw-thorne. Wormold devia apresentar-se imediatamente em Kingston, seguindo pelo primeiro avião. "Até que enfim", pensou, "eles sabem."

 

O lugar do encontro era o Mytle Bank Hotel. Fazia muitos anos que Wormold não ia à Jamaica, e ficou horrorizado com a sujeira e o calor. Por que seriam tão miseráveis as posses­sões britânicas? Os espanhóis, os franceses e os portugueses construíam cidades em que se estabeleciam, mas os ingleses apenas deixavam que as cidades crescessem. A rua mais pobre de Havana tinha certa dignidade, comparada à vida miserável de Kingston: barracões construídos com latas velhas de gasolina, cobertos com restos de metal recolhidos em algum cemitério de automóveis.

Hawthorne estava sentado, numa cadeira de armar, no ter­raço do Mytle Bank, tomando, através de um canudo de palha, uma bebida muito apreciada pelos fazendeiros locais. Sua roupa era tão imaculada como quando Wormold o encontrara pela primeira vez: o único sinal do grande calor era um pouco de pó debaixo de sua orelha esquerda.

— Arranje um "banco" para sentar-se. Até sua gíria era má.

— Obrigado.

— Fez boa viagem?

— Fiz, obrigado.

— Espero que esteja contente por achar-se de novo na pátria.

— Pátria?

— Quero dizer, aqui... passando uns dias longe dos estrangeiros. De volta a território britânico.

Wormold pensou nos barracos que vira ao longo do cais, num velho miserável que encontrara dormindo à sombra e numa criança esfarrapada que agarrava com amor um pedaço de madeira trazido pela maré.

— Tome uma destas bebidas de fazendeiro.

— Obrigado.

— Pedi-lhe que viesse porque há um ponto complicado.

— Sim?

Imaginou que a verdade estava surgindo à tona. Poderia ser detido, agora que se encontrava em território britânico? Qual seria a acusação? Talvez a de haver obtido dinheiro sob falso pretexto, ou, provavelmente, uma acusação ainda mais obscura, proferida a portas fechadas, segundo a lei do Serviço Secreto.

— Acerca daquelas construções.

Pensou em explicar que Beatrice nada tinha a ver com aquilo; que não tinha cúmplices, salvo a credulidade de ou­tros homens.

— Que é que há a respeito delas? — perguntou.

— Gostaria de que pudesse obter fotografias.

— Tentei obtê-las. O senhor sabe o que aconteceu.

— Sim. Os desenhos são um tanto. . . confusos.

— Não foram feitos por um desenhista hábil.

— Não me interprete mal, meu velho. O senhor fez mara­vilhas, mas houve um momento em que. . . quase fiquei desconfiado.

— De quê?

— Bem, algumas das peças lembravam, para ser franco, partes de um aspirador elétrico.

— É verdade. Isso também me chamou a atenção.

— E lembrei-me, então, dos objetos existentes em sua loja.

— Julgou-me capaz de pregar uma peça ao Serviço Secreto?

— Claro que isso, agora, parece absurdo, reconheço. De qualquer modo, senti-me aliviado quando vi que os outros ha­viam resolvido assassiná-lo.

— Assassinar-me?

— Isso prova, realmente, que os desenhos são verdadeiros.

— Que outros?

— O pessoal do outro lado. Mas, felizmente, não revelei a ninguém as minhas absurdas suspeitas.

— Como é que vão assassinar-me?

— Oh, já chegaremos a isso. . . uma questão de envene­namento. O que quero dizer é que, sem fotografias, não pode­mos ter uma melhor confirmação de seus informes. Nós os estudamos bastante detidamente, mas, agora, estamos fazen­do com que circulem por todos os departamentos governa­mentais. Enviamos os desenhos ao Departamento de Pesquisa Atômica, mas eles não nos ajudaram. Disseram que aquilo não tinha relação com a desintegração nuclear. O que há é que ficamos estupidificados com a declaração dos rapazes das pesquisas atômicas e esquecemos inteiramente que bem pode haver outras formas de guerra científica igualmente perigosas...

— De que modo irão envenenar-me?

— Primeiro as coisas mais importantes, meu velho. Como vê, não podemos esquecer o lado econômico da guerra. Cuba não pode dar-se ao luxo de começar a fabricar bombas de hidrogênio, mas será que não descobriram algo igualmente eficiente a curta distância... algo barato? Eis aí uma pala­vra importante: barato.

— Será que poderia fazer o favor de dizer-me de que modo vão eles assassinar-me? Isso me interessa particularmente.

— Claro que vou dizer-lhe. Queria apenas, primeiro, dar-lhe uma idéia geral da situação, dizendo-lhe quão satisfeitos nos sentimos. .. ante a confirmação de seus relatórios, quero dizer. Pretendem envenená-lo durante uma espécie de almoço de comerciantes.

— O almoço da Associação dos Comerciantes Europeus?

— Penso que é esse o nome.

— Como é que sabe?

— Penetramos na organização deles aqui. Causar-lhe-ia surpresa, se soubesse o quanto conhecemos daquilo que se passa em seu território. Posso dizer-lhe, por exemplo, que a morte do traço quatro foi um acidente... Eles queriam ape­nas assustá-lo, do mesmo modo que assustaram o traço três, atirando contra ele. O senhor é o primeiro que pretendem realmente assassinar.

— Isso é confortador!

— De certo modo é, de fato, um cumprimento. Agora o senhor é perigoso.

Hawthorne produziu com a boca um longo ruído, ao chu­par o líquido que estava no fundo do copo, entre as camadas de gelo, laranja, abacaxi e uma cereja no topo.

— Creio que é melhor eu não ir ao almoço — disse, sentindo-se, para a sua própria surpresa, desapontado. — Será o primeiro almoço a que falto nestes últimos dez anos. Eles me pediram, mesmo, que falasse. A firma sempre espera que eu compareça. É como se a gente hasteasse uma bandeira.

— Mas claro que tem de ir.

— E ser envenenado?

— O senhor não precisa comer nada, precisa?

— Já tentou alguma vez participar de um almoço público e deixar de comer? Há também a questão da bebida.

— Eles não podem envenenar uma garrafa de vinho. O senhor poderia dar a impressão de ser um alcoólatra... alguém que não come, mas apenas bebe.

— Obrigado. Isso seria bom, sem dúvida, para os meus negócios.

— As pessoas sempre têm um lugarzinho em seus cora­ções para os alcoólatras — disse Hawthorne. — Acresce que, se não comparecer, eles desconfiarão. Isso porá em perigo a minha fonte de informações. Temos de proteger as nossas fon­tes de informação.

— Isso faz parte da disciplina, creio eu.

— Exatamente, meu caro. Outro ponto... sabemos da conspiração, mas não conhecemos os conspiradores... exce­to os seus símbolos. Se descobrirmos quem são, poderemos insistir para que sejam encarcerados. Desfaremos a organiza­ção.

— Sim... não são assassinos perfeitos, pois não? Supo­nho que haveria, post-mortem, um indício que lhe permitiria fazer com que Segura agisse.

— O senhor não está com medo, está? É um trabalho peri­goso. Não o devia ter aceito, se não estivesse preparado...

— O senhor é como uma mãe espartana, Sr. Hawthorne. Volte vitorioso e meta-se debaixo da mesa.

— Eis aí uma boa idéia! O senhor poderia escorregar para baixo da mesa no momento exato. Os assassinos pensariam que o senhor estava morto, e os outros, que se achava apenas bêbedo.

— Não se trata de uma reunião dos Quatro Grandes em Moscou. Os comerciantes europeus não caem debaixo da mesa.

— Nunca?

— Nunca. Acha que estou excessivamente preocupado, não é verdade?

— Penso que não há motivo para que se preocupe, por enquanto. Não são eles que servem a comida. Quem se serve é o próprio convidado.

— Claro que não são eles que servem. Só que há sempre no Nacional, para começar, um caranguejo Morro, preparado antes.

— O senhor não deve comê-lo. Muita gente não come caranguejo. Quando servirem os outros pratos, não retire nunca a parte que estiver perto do senhor. É como um escamoteador que quer forçar-nos uma carta. Basta que a gente a recuse.

— Mas o escamoteador acaba sempre por dar-nos a carta que deseja.

— Já sei o que deve fazer... Não me disse que o almoço será no Nacional?

— Disse.

— Então por que não pode usar o traço sete?

— Quem é o traço sete?

— Não se lembra de seus próprios agentes? Claro que é o maítre-d’hótel* do Nacional. Ele poderá ver se o seu prato não está envenenado. Já é tempo de que faça algo em troca do dinheiro que recebeu. Não me lembro de o senhor ter enviado uma única informação proveniente dele.

* Em francês no texto: chefe dos garçons. (N. do E.)

 

— Não pode dar-me uma idéia sobre quem será o homem do almoço? Quero dizer, o homem que planeja... — vacilou ante a palavra "matar" — fazer a coisa.

— Não há pista alguma, meu velho. Tenha cuidado com todos. Tome um outro drinque.

 

O avião que o conduziu de volta a Cuba tinha poucos passageiros: uma espanhola carregada de filhos, alguns dos quais berravam, enquanto outros enjoaram logo que o avião levantou vôo; uma negra com um galo vivo envolto num xale; um cubano exportador de charutos, que Wormold conhecia apenas de vista, e de cumprimentos de cabeça; e um inglês que trajava uma jaqueta de tweed e que fumou cachimbo até que a aeromoça pediu que o apagasse. Então, chupou-o osten­sivamente durante o resto da viagem, suando abundantemente em sua roupa de lã axadrezada. Tinha o rosto mal-humorado de um homem que estava sempre com a razão.

— Não posso suportar aqueles fedelhos a berrar — disse ele. — Dá-me licença?

Lançou um olhar aos papéis que estavam sobre o joelho de Wormold.

— O senhor trabalha com Phastkleaners?

— Trabalho.

— E eu com Nucleaners. Chamo-me Carter.

— Oh.

— Esta é apenas a minha segunda viagem a Cuba. Lugar alegre, segundo me dizem — acrescentou, soprando o seu cachimbo e pondo-o de lado, para almoçar.

— Pode ser — respondeu Wormold —, quando se gosta da roleta ou de bordéis.

Carter deu umas palmadinhas na bolsa de tabaco, como se fosse a cabeça de um cão e como se dissesse: "Meu cão fiel me fará companhia".

— Não foi isso exatamente o que quis dizer.. . embora não possua espírito puritano. Creio que seria interessante. Aja como os romanos. — Mudou de assunto: — Vende muitos de seus aparelhos?

— O comércio não está muito mau.

— Temos um novo modelo que irá revolucionar o mercado.

Apanhou um grande pedaço de torta cor de malva e cortou um pedaço de frango.

— Realmente?

— Funciona com um motor semelhante ao de um apara-dor de grama. A dona de casa não precisa fazer esforço algum. Nada de tubos a arrastar-se por toda parte.

— É barulhento?

— Possui um abafador de ruídos especial. Menos baru­lhento que o seu modelo. Nós o chamamos de Sussurro de Esposa.

Depois de sorver uma colherada de sopa de tartaruga, pôs-se a comer sua salada de frutas, esmagando as uvas entre os dentes.

— Vamos abrir logo uma agência em Cuba. Conhece o Dr. Braun?

— Já o encontrei. Na Associação dos Comerciantes Euro­peus; é o nosso presidente. Importa de Genebra instrumentos de precisão.

— Esse é o homem. Ele nos deu um conselho muito útil. Na verdade, vou participar, como convidado dele, do almoço dos senhores. Almoça-se bem, lá?

— O senhor sabe como são os almoços de hotel.

— Melhores do que este, de qualquer modo — respondeu, cuspindo uma casca de uva.

Como não percebera a maionese de aspargos, lançou-se então a ela. Depois, remexeu o bolso:

— Eis aqui o meu cartão.

O cartão dizia: "William Carter B. Tech. (Nottwich)", e, num canto, "Nucleaners Ltd.".

— Vou ficar uma semana hospedado no Seville-Biltmore — acrescentou.

— Lamento não ter um cartão aqui comigo. Meu nome é Wormold.

— Conhece um sujeito chamado Davis?

— Creio que não.

— Foi meu companheiro de quarto no colégio. Entrou para a firma Gripfix e veio para esta parte do mundo. É engraçado... a gente encontra gente de Nottwich em toda parte. O senhor não esteve lá, pois não?

— Não.

— Fez letras clássicas?

— Não estive em nenhuma universidade.

— Nunca pensei — disse Carter, amável. — Eu teria ido para Oxford, mas, lá, são muito retrógrados em tecnologia. Bom para mestre-escolas, penso eu.

Começou de novo a sugar o cachimbo vazio, como uma criança a chupar uma chupeta, até que o mesmo lhe assobiou entre os dentes. De repente, tornou a falar, como se algum resto de tanino lhe houvesse tocado asperamente a língua:

— Fora de moda. Relíquias do passado. Eu as aboliria.

— Aboliria o quê?

— Oxford e Cambridge.

Apanhou o único alimento que ainda havia na bandeja, um pãozinho em forma de rolo, e partiu-o, como o tempo e a hera partem uma pedra.

Na alfândega, Wormold perdeu-o de vista. O outro estava tendo dificuldades com a sua mostra de Nucleaners, e Wor­mold não via razão alguma pela qual devesse ajudar um concorrente da Phastkleaners. Beatrice lá estava à sua espera com o Hillman: fazia muitos anos desde que uma mulher fora recebê-lo.

— Tudo bem? — indagou ela.

— Sim, sem dúvida! Parece que ficaram satisfeitos comigo.

Ele fitou-lhe as mãos, pousadas no volante; na tarde quen­te, ela não usava luvas. Eram belas e hábeis.

— Você não está usando a sua aliança — comentou ele.

— Julguei que ninguém o notaria. Milly também notou. Vocês são uma família observadora.

— Espero que não a tenha perdido,

— Tirei-a ontem, para lavar as mãos, e esqueci de pô-la de novo no dedo. Mas não faz sentido — faz? — a gente estar a usar uma aliança que pode ser esquecida.

Foi então que ele lhe falou a respeito do almoço.

— Você não irá — disse ela.

— Hawthorne espera que eu o faça. A fim de proteger a sua fonte de informações.

— Que vá para o diabo a sua fonte de informações.

— Mas há ainda uma outra razão importante. Algo que o Dr. Hasselbacher me disse. Eles gostam de investir contra aquilo que a gente ama. Se eu não for, pensarão em alguma outra coisa. Em algo pior. E não saberemos de que se trata. Na próxima vez, poderá ser que não seja eu... e não creio que o meu amor por mim seja suficiente para que eles se sin­tam satisfeitos... Poderiam voltar-se contra Milly. Ou con­tra você.

Não percebeu o que havia de implícito nessas suas palavras senão depois que ela o deixou na porta de sua casa e seguiu com o automóvel.

 

— Você tomou apenas uma xícara de café e nada mais. Não provou sequer um pedaço de torrada — disse Milly.

— Não sinto vontade de comer.

— Você vai hoje ao almoço da Associação dos Comer­ciantes e sabe muito bem que caranguejo Morro não combina nada com o seu estômago.

— Prometo-lhe que terei muito, muito cuidado.

— Seria melhor que comesse, agora, algo mais apro­priado. Alguns flocos de cereal que enxugassem toda a bebida que esteve tomando.

Era um dos dias em que a aia de Milly estava em ação.

— Lamento, Milly, mas não posso. Tenho muita coisa em que pensar. Faça o favor de não me importunar. Pelo menos hoje.

— Já preparou o seu discurso?

— Fiz o que pude, mas não sou nenhum orador, Milly. Não sei por que razão me convidaram.

Mas estava inquietamente consciente de que talvez o sou­besse. Alguém devia ter exercido influência sobre o Dr. Braun — alguém que ele precisava identificar a qualquer custo. Pen­sou: "Eu sou o custo'".

— Aposto que você fará sensação.

— Estou fazendo força para não ser uma sensação duran­te esse almoço.

Milly foi para a escola e ele sentou-se à sua mesa. A com­panhia produtora dos flocos de cereais que Milly comprava imprimira no pacote de Weatbrix a mais recente aventura do Anãozinho Dudu. O Anãozinho Dudu, numa historieta muito breve, deparou com um rato do tamanho de um cão São Ber­nardo e, fingindo-se de gato e dizendo "miau", fez que o mesmo fugisse espavorido. Era uma história muito simples. Dificilmente se poderia dizer que fosse edificante. A compa­nhia também oferecia aos consumidores uma espingarda de ar comprimido, em troca de doze tampas de seus produtos. Como o pacote estivesse quase vazio, Wormold pôs-se a cor­tar a tampa, enfiando o canivete, cuidadosamente, na linha picotada. Estava a cortar o último canto quando Beatrice entrou.

— Que é que está fazendo? — perguntou ela.

— Uma espingarda de ar comprimido talvez seja útil aqui no escritório. Precisamos apenas de mais onze tampinhas.

— Não pude dormir durante a noite.

— Excesso de café?

— Não. Algo que você me contou acerca do que o Dr. Hasselbacher lhe disse. A respeito de Milly. Por favor, não vá ao almoço.

— Isso é o que menos posso fazer.

— Você já faz bastante. Eles estão satisfeitos com você, em Londres. Henry pode dizer o que quiser, mas Londres não desejaria que você corresse um risco tolo e inútil.

— É inteiramente certo o que ele disse: que se eu não for eles procurarão atingir alguma outra pessoa.

— Não se preocupe quanto a Milly. Eu vigiarei com olhos de lince.

— E quem é que irá vigiar você?

— Eu estou neste negócio. . . por minha própria vontade. Não precisa sentir-se responsável por mim.

— Você já esteve antes num lugar como este?

— Não se preocupe quanto a Milly. Eu a vigiarei com você. Parece que você faz que eles se mexam. Como sabe, este trabalho é, habitualmente, um trabalho de escritório, fichários, mensagens monótonas.. . Não se sai à procura de que alguém nos mate. Não quero que seja assassinado. Você é uma criatura real, de carne e osso. Não pertence ao Boy's Own Paper. Por amor de Deus, deixe de lado esse estúpido pacote e ouça o que digo!

— Estava relendo a história do Anãozinho Dudu.

— Então fique em casa com ele esta manhã. Irei comprar todas as historietas atrasadas, para que possa seguir o enredo.

— Tudo o que Hawthorne disse faz sentido. Só tenho de ter cuidado com o que comer. É importante descobrir quem são eles. Terei feito então algo em troca de meu dinheiro.

— Você já tem feito muito. Não há razão para que vá a esse maldito almoço.

— Sim, há uma razão. Orgulho.

— E a quem você está querendo mostrar-se?

— A você.

 

Atravessou o hall do Hotel Nacional, por entre as vitrinas cheias de sapatos italianos, cinzeiros holandeses, cristais sue­cos e lãs inglesas cor de malva; o salão privado onde se reu­niam os sócios da Associação dos Comerciantes Europeus fi­cava bem atrás da cadeira em que o Dr. Hasselbacher se encontrava, naquele momento, sentado, a esperar alguém de maneira bastante evidente. Wormold diminuiu os passos e aproximou-se: era a primeira vez em que via o Dr. Hasselba­cher desde a noite em que o encontrara sentado na cama em seu uniforme de Uhlan, a falar do passado. Os membros da Associação, ao passar para o salão reservado, detinham-se e dirigiam a palavra ao Dr. Hasselbacher, que não lhes dava atenção.

— Não entre aí, Sr. Wormold — disse-lhe o Dr. Hasselbacher.

Falou sem baixar a voz, e suas palavras, vibrando entre os mostruários, chamaram a atenção dos presentes.

— Quem é você, Hasselbacher?

— Eu disse: não entre aí.

— Ouvi quando falou pela primeira vez.

— Eles vão matá-lo, Sr. Wormold.

— Como é que você o sabe, Hasselbacher?

— Estão planejando envenená-lo lá dentro.

Vários dos convidados se detiveram, olharam o velho e sor­riram. Um deles, americano, perguntou:

— A comida é tão ruim assim? Todos riram.

— Não fique aqui, Hasselbacher — recomendou Wormold. — Está dando muito na vista.

— Vai entrar?

— Claro. Sou um dos que vão falar.

— Pense em Milly. Não se esqueça dela.

— Não se preocupe com Milly. Vou sair daí com os meus próprios pés. Por favor, vá para casa.

— Está bem. Mas eu tinha de avisar — respondeu o Dr. Hasselbacher. — Ficarei esperando junto ao telefone.

— Telefonarei ao sair.

— Adeus, Jim.

— Adeus, doutor.

O uso do seu primeiro nome apanhou Wormold desprevenido. Lembrou-se de que sempre pensara, com espírito brinca­lhão, que o Dr. Hasselbacher só o chamaria pelo seu primeiro nome quando se encontrasse, desenganado, em seu leito de morte. Sentiu-se, subitamente, amedrontado, sozinho, muito longe de casa.

— Wormold — disse uma voz, e ele, voltando-se, deparou com Carter, da Nucleaners.

Mas, naquele momento, Carter era, para Wormold, as Midlands inglesas, o esnobismo inglês, a vulgaridade inglesa, bem como toda aquela sensação de afinidade e de segurança que a Inglaterra lhe despertava.

Wormold acercou-se da cadeira do outro.

— Carter! — exclamou, como se Carter fosse o único homem em Havana que ele desejava ardentemente encontrar, e que naquele instante verdadeiramente o era.

— Satisfeitíssimo de vê-lo — disse Carter. — Não conhe­ço vivalma neste almoço. Nem mesmo o meu... nem mesmo o Dr. Braun.

Estava volumoso o bolso em que guardava o cachimbo e a bolsa de fumo — e ele lhes deu umas palmadinhas, como se procurasse algo que lhe desse segurança, pois que também se sentia muito longe de casa.

— Carter, este é o Dr. Hasselbacher, um velho amigo meu.

— Bom dia, doutor — saudou Carter e, voltando-se para Wormold: — Procurei-o por toda a parte ontem à noite. Pa­rece que não sou capaz, jamais, de descobrir os lugares certos.

Entraram, juntos, no salão reservado em que se realizava o almoço. Era inteiramente irracional a confiança que lhe des­pertava um compatriota, mas a verdade era que, junto de Car­ter, sentia-se protegido.

 

A sala de jantar estava decorada com duas grandes bandei­ras dos Estados Unidos, em homenagem ao cônsul geral, e pequenas bandeiras de papel indicavam, como nos aeropor­tos, onde os convidados de cada nacionalidade deviam sentar. Havia uma bandeira suíça à cabeceira da mesa para o Dr. Braun, o presidente; havia até mesmo uma bandeira de Môna­co em homenagem ao cônsul monegasco, que era um dos maiores exportadores de charutos em Havana. Devia sentar-se à direita do cônsul geral, em sinal de reconhecimento pela aliança real. Estavam sendo servidos coquetéis quando Wor­mold e Carter entraram, e um garçom se aproximou deles imediatamente. Seria apenas imaginação de Wormold ou era mesmo verdade que o garçom virou a bandeja, a fim de que o último aperitivo que restava ficasse ao alcance da mão de Wormold?

— Não. Não, obrigado.

Carter estendeu a mão, mas o garçom já havia caminhado em direção à porta de serviço.

— Talvez o senhor preferisse um Martini seco — disse uma voz.

Wormold voltou-se e deparou com o maítre-d’hótel.

— Não, não. Não gosto de Martini.

— Um uísque, senhor? Um xerez? Um old-fashioned? Al­guma outra coisa que deseje, senhor?

— Não estou bebendo — respondeu Wormold.

O maítre afastou-se e foi servir outro convidado. Talvez fosse o traço sete: estranho se, por irônica coincidência, fosse também o possível assassino. Wormold olhou em torno à pro­cura de Carter, mas este se havia afastado, em busca do Dr. Braun.

— Seria melhor que bebesse o que pudesse — disse uma voz com sotaque escocês. — Chamo-me MacDougall. Parece que estamos sentados juntos.

— Não me lembro de tê-lo visto antes.

— Fiquei no lugar de McIntyre. O senhor certamente conheceu McIntyre, pois não?

— Oh, sim, conheci.

O Dr. Braun, que, com uma palmada nas costas, encami­nhou Carter, figura sem importância, para junto de um suíço que negociava com relógios, estava agora conduzindo o côn­sul geral americano em torno da sala, a fim de apresentá-lo aos membros mais importantes. Os alemães formavam um grupo à parte, colocando-se, de maneira bastante adequada, junto da parede que dava para o ocidente, tendo todos no rosto, como cicatrizes de duelos, o ar de superioridade do marco alemão: a honra nacional, que sobrevivera a Belsen, dependia agora de uma cotação de câmbio. Wormold pensou se não teria sido um deles quem traíra o segredo do almoço, revelando-o ao Dr. Hasselbacher. Traíra? Não necessaria­mente. Talvez o médico tivesse sido obrigado, por meio de chantagem, a fornecer o veneno. De qualquer modo, o Dr. Hasselbacher teria preferido, em nome da velha amizade, algo que não causasse dor. . . se é que havia algum veneno indolor.

— Eu lhe estava dizendo — prosseguiu o Sr. MacDougall energicamente, como uma dança escocesa — que seria me­lhor que bebesse agora. Não terá outra coisa para tomar.

— Mas haverá vinho, pois não?

— Olhe para a mesa.

Garrafinhas de leite, individuais, achavam-se colocadas junto de cada prato.

— Não leu o seu convite? — indagou o Sr. MacDougall. — Um "prato azul" americano em honra dos nossos grandes aliados ianques.

— Prato azul?

— O senhor sabe, certamente, o que é um prato azul. . . Metem toda a comida, já servida no prato, debaixo do nariz da gente: peru assado, molho de arando, salsichas, cenouras e batatas fritas. Não suporto batatas fritas, mas não há escolha, quando se trata do blue plate.

— Não há escolha?

— A gente come o que eles servem. Isso é democracia, meu caro.

O Dr. Braun convidou-os para a mesa. Wormold alimen­tava a esperança de que os compatriotas se sentassem juntos e de que Carter ficasse a seu lado, mas foi um escandinavo quem se instalou à sua esquerda, olhando carrancudo a sua garrafa de leite. "Alguém arranjou isto bem", pensou Wor­mold. "Nada é seguro. Nem mesmo o leite." Já os garçons se agitavam em torno da mesa, com os caranguejos Morro. Notou, então, com alívio, que Carter estava sentado à sua frente, do outro lado da mesa. Havia, em sua vulgaridade, algo que inspirava confiança. Podia recorrer-se a ele como se podia apelar para um policial inglês, pois a gente sabia o que pensavam.

— Não — disse Wormold ao garçom. — Não quero caranguejo.

— Faz bem em não comer essas coisas — comentou o Sr. MacDougall. — Eu também não quero. Não combinam com uísque. Mas, se tomar um pouco de sua água gelada e segurar o copo debaixo da mesa, tenho aqui um frasco de bolso com uísque suficiente para nós dois.

Sem refletir, Wormold levou a mão ao copo, mas uma dú­vida o assaltou. Quem era o Sr. MacDougall? Jamais o vira; e só poucos minutos antes foi que soubera que McIntyre havia partido. Seria possível que a água estivesse envenenada, ou mesmo o uísque do frasco?

— Por que razão McIntyre partiu?

— Oh, foi apenas uma dessas coisas — respondeu o Sr. MacDougall. — O senhor sabe como é isso. Tome sua água. Não deseja, por certo, afogar o uísque. Este é o melhor malte das Highlands.

— Ainda é muito cedo para que eu comece a beber. De qualquer modo, obrigado.

— Se não confia na água, faz bem em não beber — disse, ambiguamente, o Sr. MacDougall. — Eu mesmo vou tomar o meu puro. Se não se importa de compartilhar comigo da tampa do frasco. ..

— Obrigado, não. Não bebo a esta hora.

— Foram os ingleses que marcaram horas para se beber, não os escoceses. Logo eles estarão marcando horas para se morrer.

Do outro lado da mesa, Carter disse:

— Quanto a mim, não me importo. Chamo-me Carter.

E Wormold viu, com alívio, que MacDougall estava ser­vindo o uísque: um suspeito a menos, pois, certamente, nin­guém desejaria envenenar Carter. "Seja como for", pensou ele, "há algo errado na Scottishness do Sr. MacDougall. Chei­rava a fraude, como Ossian.

— Svenson — disse, abruptamente, o sombrio escandi­navo, sentado atrás de sua bandeirinha sueca. Pelo menos, Wormold pensou que era sueca: jamais conseguira distinguir com segurança as bandeiras dos países escandinavos.

— Wormold — respondeu ele.

— Que tolice é esta de leite?

— Penso que o Dr. Braun está seguindo a coisa dema­siado à risca — comentou Wormold.

— Ou de maneira demasiado cômica — disse Carter.

— Não creio que o Dr. Braun tenha muito senso de humor.

— E o que é que o senhor faz, Sr. Wormold? — indagou o sueco. — Não creio que já tenhamos conversado antes, em­bora eu já o conheça de vista.

— Aspiradores. E o senhor?

— Cristais. Como sabe, o cristal sueco é o melhor do mundo. Este pão é muito bom. Não come pão?

Sua conversa bem poderia ter sido preparada, de antemão, com o auxílio de um manual de conversação.

— Deixei de comer. Estava engordando.

— Eu diria que o senhor podia ficar contente de engordar — comentou o Sr. Svenson, com um riso lúgubre como a ale­gria duma longa noite nórdica. — Perdoe-me. Falo como se o senhor fosse um ganso.

No fim da mesa, onde se achava o cônsul geral, estavam começando a servir os "pratos azuis". O Sr. MacDougall enganara-se a respeito do peru: o acepipe principal era um frango à moda de Maryland; mas estava certo quanto às cenouras, batatas fritas e salsichas. O Dr. Braun estava ainda entregue ao seu caranguejo Morro. O cônsul geral, com a sua conversa e a fixidez de suas lentes convexas, fizera, provavel­mente, com que ele se atrasasse. Dois garçons passaram ao redor da mesa, um retirando os restos de caranguejo e o outro servindo os pratos azuis. Só o cônsul geral pensou em abrir o seu leite. A palavra "Dulles" chegou, monótona, até o lugar em que Wormold se encontrava. O garçom aproximou-se, tra­zendo dois pratos: colocou um deles diante do escandinavo, enquanto o outro se destinava a Wormold. Ocorreu a Wor­mold que toda aquela história de ameaça à sua vida talvez não passasse de tolo gracejo. Talvez Hawthorne fosse um humorista, e, quanto ao Dr. Hasselbacher, lembrou-se de que Milly lhe perguntara se ele não havia tentado pregar-lhe uma de suas peças. Às vezes, parece mais fácil à gente correr risco de morte do que enfrentar o ridículo. Desejava confiar em Carter e ouvir sua resposta cheia de bom senso; mas olhou para o seu prato e notou algo estranho. Em seu prato, não havia cenouras.

— O senhor o prefere com cenouras — disse rapidamente e passou o prato para o Sr. MacDougall.

— Não gosto é de batatas fritas — respondeu o Sr. MacDougall, e passou o prato para o cônsul monegasco. Este, que estava mergulhado em profunda conversa com um alemão, sentado do outro lado da mesa, passou o prato, com delicada distração, ao seu vizinho. A polidez atingia a todos os que ainda não haviam sido servidos, e o prato foi desli­zando na direção do Dr. Braun, que acabara de comer o seu caranguejo. O maître-d´hôtel notou o que estava ocorrendo e pôs-se a perseguir o prato sobre a mesa, mas este se movia sempre um passo à sua frente. O garçom, ao voltar com mais pratos, foi interceptado por Wormold, que apanhou um deles. O garçom mostrou-se confuso. Wormold começou a comer com apetite.

— As cenouras estão excelentes — comentou. O maître-d´hôtel inclinou-se junto ao Dr. Braun:

— Desculpe-me, Dr. Braun, mas não lhe serviram cenouras.

— Não gosto de cenoura — replicou o Dr. Braun, cor­tando um pedaço de frango.

— Lamento muito — disse o maître, apanhando o prato do Dr. Braun. — Houve um engano na cozinha.

De prato na mão, como um bedel a carregar um livro, atra­vessou toda a sala na direção da porta de serviço. O Sr. Mac­Dougall estava tomando um trago do seu próprio uísque.

— Sabe de uma coisa? — disse Wormold. — Acho que agora eu me arriscaria. Como uma comemoração.

— Rapaz sensato. Com água ou puro?

— Posso usar sua água? Há uma mosca na minha.

— Certamente.

Wormold bebeu dois terços da água e estendeu o copo para o uísque do frasco do Sr. MacDougall. Este serviu-lhe gene­rosa dose dupla.

— Estenda de novo o seu copo, pois está atrás de nós dois — disse MacDougall, e Wormold sentiu-se novamente de volta ao terreno da confiança. Experimentou uma espécie de ternura pelo vizinho do qual desconfiara.

— Precisamos tornar a ver-nos — disse.

— Uma ocasião como esta seria inútil, se não aproxi­masse as pessoas.

— Sem ela, não teria conhecido nem o senhor, nem Carter.

Tomaram, os três, outra dose de uísque.

— Precisam conhecer minha filha — disse Wormold, sen­tindo a bebida aquecer-lhe as entranhas.

— Como vão os seus negócios?

— Não vão muito mal. Estamos aumentando o escritório. O Dr. Braun tamborilou com os dedos na mesa, pedindo silêncio.

— Eles, certamente, terão de servir bebidas à hora dos brindes — comentou Carter em voz alta, em irrepreensível inglês de Nottwich, tão animador quanto o uísque.

— Meu rapaz, haverá discursos, mas não brindes — repli­cou o Sr. MacDougall. — Teremos de ouvir esses patifes sem nenhum auxílio alcoólico.

— Eu sou um dos patifes — informou Wormold.

— Vai falar?

— Como o sócio mais antigo.

— Alegra-me que haja durado o bastante para isso — disse o Sr. MacDougall.

O cônsul geral americano, convidado pelo Dr. Braun, começou o seu discurso. Falou dos laços espirituais existentes entre as democracias e parecia estar incluindo Cuba no núme­ro dos países democráticos. O comércio era importante, pois, sem comércio, não haveria laços espirituais... ou talvez fosse o contrário. Referiu-se à ajuda americana aos países que se achavam em situação difícil, a qual lhes permitiria com­prar mais mercadorias, contribuindo, assim, para o fortaleci­mento dos laços espirituais...

Um cachorro pôs-se a uivar em alguma parte do hotel, e o maître fez um sinal para que fechassem a porta. Fora um grande prazer para o cônsul americano o ser convidado para aquele almoço, onde pudera encontrar os principais represen­tantes do comércio europeu, fortalecendo ainda mais, desse modo, os laços espirituais. . .

Wormold tomou mais dois uísques.

— E agora — anunciou o Dr. Braun — vou dar a palavra ao sócio mais antigo de nossa associação.. . Não me refiro, certamente, à sua idade, mas ao longo período de tempo durante o qual serviu à causa do comércio europeu nesta bela cidade, onde, senhor ministro — e fez uma curvatura para o seu outro vizinho, um homem moreno e estrábico —, temos o privilégio e a felicidade de ser vossos hóspedes. Estou falan­do, como vós todos sabeis, do Sr. Wormold. — Lançou rápi­do olhar às suas notas e acrescentou: — do Sr. James Wor­mold, representante, em Havana, da Phastkleaners.

— Acabamos o uísque — disse o Sr. MacDougall. — Imagine isso agora! Justamente quando mais precisa de toda a sua coragem.

— Eu também vim prevenido — ajuntou Carter. — Mas devo ter bebido tudo no avião. Resta apenas uma única dose no frasco.

— Não há dúvida de que quem deve tomá-la é aqui o nosso amigo — disse MacDougall. — Ele precisa mais do que nós.

— Podemos considerar o Sr. Wormold como sendo um símbolo de tudo o que o trabalho significa — disse o Dr. Braun. — Modéstia, tranqüilidade, perseverança e eficiência. Nossos inimigos pintam o negociante como sendo, não raro, um fanfarrão ruidoso, que pretende apenas vender algum pro­duto inútil, desnecessário e até mesmo nocivo. Esse não é um quadro verdadeiro. . .

— É bondade sua, Carter. . . Não há dúvida de que um drinque me iria bem.

— Não está habituado a falar?

— Não se trata apenas de falar — respondeu ele, debruçando-se sobre a mesa na direção daquele tipo de cara de Nottwich, na qual sentia que podia confiar, despertando nela incredulidade, ar de confiança, humor fácil baseado na expe­riência: estava a salvo em companhia de Carter. — Sei que não irá acreditar numa única palavra do que vou contar-lhe...

Mas não queria que Carter acreditasse. Queria aprender dele a maneira de não acreditar. Nesse momento, algo lhe roçou a perna e, baixando os olhos, viu a cara negra de um cão basset*, entre duas orelhas peludas e caídas, a implorar um bocado de alimento. O cão devia ter-se metido, sem que os garçons o notassem, pela porta de serviço, e agia agora, como numa caçada, de maneira sorrateira, meio oculto pela toalha da mesa.

* Raça de cães de pernas muito curtas, corpo alongado e orelhas penden­tes. (N. do E.)

 

Carter empurrou por sobre a mesa um pequeno frasco na direção de Wormold:

— Não dá para dois. Tome-o o senhor.

— É muita amabilidade sua, Carter. Desarrolhou a tampa e despejou tudo em seu copo.

— É apenas Johnnie Walker. Nada de especial. O Dr. Braun prosseguia:

— Se há alguém aqui que possa falar, em nome de todos nós, acerca dos longos anos de serviço paciente que o nego­ciante presta ao público, estou certo de que esse alguém é o Sr. Wormold, a quem peço, agora. . .

Carter deu uma piscada e levantou um copo imaginário:

— Depressa (h-hurry). Tem de tomar depressa (h-hurry). Wormold baixou o uísque.

— Que foi que disse, Carter?

— Disse que bebesse depressa.

— Oh, não, não disse, Carter!

Como foi que não notara antes aquele "h" aspirado e gaguejante? Será que Carter, ciente daquilo, evitara o "h" ini­cial, só o empregando ao ser assaltado pelo medo ou pela esperança (h-hope)?

— Que é que se passa, Wormold?

Wormold baixou a mão para acariciar a cabeça do cachorro e, fingindo um acidente, derrubou o copo da mesa.

— O senhor fingiu que não conhecia o médico.

— Que médico?

— O senhor o chamaria de H-Hasselbacher.

— Sr. Wormold — chamou, da cabeceira da mesa, o Dr. Braun.

Levantou-se, hesitante. O cão, à falta de coisa melhor, lam­bia o uísque no chão.

— Agradeço o ter me convidado para falar, quaisquer que possam ter sido os motivos que o levaram a isso — disse Wormold, surpreendendo-se ao ouvir risos corteses, ele, que não pretendia dizer nada engraçado. — Esta é a primeira vez que falo em público e, a certa altura, pareceu-me que seria a última.

Viu que Carter tinha os olhos fixos nele, o sobrolho carre­gado. Sentiu-se como que culpado de um solecismo por haver sobrevivido àquela trama, como se estivesse bêbedo em públi­co... Mas talvez estivesse mesmo bêbedo. Prosseguiu:

— Não sei se tenho amigos aqui; estou certo, porém, de que tenho alguns inimigos.

Alguém disse "Que vergonha!", enquanto várias pessoas riam. Se aquilo continuasse assim, adquiriria, por certo, repu­tação de orador espirituoso.

— Ouvimos falar muito, hoje em dia, de guerra fria — continuou —, mas qualquer negociante poderá dizer-lhes que a guerra entre dois fabricantes dos mesmos produtos poderá ser uma guerra inteiramente quente. Tomemos, por exemplo, a Phastkleaners e a Nucleaners. .. Não há mais diferença, entre as suas duas máquinas, do que a que existe entre duas criaturas humanas... um russo, ou alemão, e um inglês. Não haveria concorrência nem luta entre elas, não fora pela ambi­ção de alguns homens em ambas as firmas.. . Apenas alguns homens ditam a concorrência, inventam necessidades e nos lançam, ao Sr. Carter e a mim, um à garganta do outro.

Ninguém ria, agora. O Dr. Braun sussurrou algo ao ouvido do cônsul geral. Wormold ergueu o frasco de uísque de Carter e prosseguiu:

— Não creio que o Sr. Carter saiba sequer o nome do homem que, para o bem de sua firma, mandou que ele me envenenasse.

O riso irrompeu de novo, com uma nota de alívio. O Sr. MacDougall comentou:

— Bem que poderíamos usar mais veneno, aqui.

Nesse momento, o cão começou a choramingar. Saiu do esconderijo e encaminhou-se para a porta de serviço.

— Max! — chamou o maître-d´hôtel. — Max!

Fez-se silêncio, seguido de alguns risos abafados. O cão movia-se vacilante. Uivou e procurou morder o próprio peito. O maítre alcançou-o junto à porta e ergueu-o, mas o animal gritou, como se sentisse dor, e livrou-se de seus braços.

— Havia um- cúmplice — disse MacDougall, inquieto.

— Queira desculpar-me, Dr. Braun, mas terminou o espe­táculo — disse Wormold, seguindo o maítre pela porta de ser­viço. — Pare!

— Que é que deseja?

— Quero descobrir o que aconteceu com o meu prato.

— Que é que quer dizer com isso, meu senhor? Seu prato?

— O senhor estava ansioso procurando evitar que o meu prato fosse dado a alguma outra pessoa.

— Não compreendo.

— Sabia que estava envenenado?

— O senhor quer dizer que a comida estava ruim?

— Quero dizer que estava envenenada, e que o senhor es­tava preocupado em salvar a vida do Dr. Braun. . . e não a minha.

— Lamento, meu senhor, mas não compreendo o que diz. Queira desculpar-me.

Da cozinha, veio um uivo de cão, através do longo corre­dor — um uivo lúgubre e profundo, interrompido por um acesso de dor mais intenso.

— Max! — tornou a chamar o maítre, correndo pelo cor­redor como se fosse salvar uma criatura humana e escanca­rando a porta da cozinha. — Max!

O basset ergueu, com ar melancólico, a cabeça, do lugar em que se achava enrodilhado debaixo da mesa, e pôs-se a arrastar penosamente o corpo na direção do maître.

— Ele não comeu nada aqui — disse o cozinheiro-chefe. — O prato foi jogado fora.

O cão caiu, inanimado, aos pés do maítre, e lá ficou como um monte de borra. O maítre ajoelhou-se ao lado do cão:

— Max, mein Kind. Mein Kind*.

* Em alemão no texto: "Max, meu menino. Meu menino ". (N. do E.)

 

O corpo negro era como um prolongamento de sua própria roupa preta: eles não eram uma só carne, mas poderiam ser bem uma peça da mesma sarja. O pessoal da cozinha reuniu-se em torno.

O tubo negro fez um ligeiro movimento e uma língua cor-de-rosa apareceu como pasta de dentes, caindo sobre o chão da cozinha. O maítre pousou a mão sobre o animal e, depois, ergueu os olhos para Wormold. Os olhos rasos de lágrimas acusavam-no tanto de estar ali vivo, enquanto o cão jazia morto, que Wormold quase encontrou em seu coração desejo de desculpar — mas, ao invés disso, retirou-se. Ao chegar ao fim do corredor, olhou para trás: o vulto negro achava-se ajoelhado ao lado do cão preto, e o cozinheiro-chefe, pálido, estava de pé, enquanto os ajudantes de cozinha permaneciam parados em torno, como acompanhantes de enterro, a carre­gar seus vasilhames, panos de enxugar e pratos, como se fos­sem coroas. "Minha morte", pensou Wormold, ''teria sido mais discreta do que isso."

— Voltei — disse ele a Beatrice. — Não estou embaixo da mesa. Voltei vitorioso. Quem morreu foi o cão.

 

— Alegra-me encontrá-lo sozinho — disse o Capitão Segura. — Está mesmo só?

— Inteiramente só.

— Tenho certeza de que o senhor não se importa. Colo­quei dois homens na porta da rua, para que ninguém nos perturbe.

— Estou preso?

— Claro que não.

— Milly e Beatrice foram ao cinema. Ficarão surpresas, se não puderem entrar.

— Não tomarei muito de seu tempo. Vim vê-lo para tratar de duas coisas. Uma é importante; a outra, apenas uma ques­tão de rotina. Posso começar com o que é importante?

— Faça o favor.

— Desejo, Sr. Wormold, pedir a mão de sua filha em casamento.

— E isso exige a presença de dois policiais à porta?

— É conveniente que não sejamos perturbados.

— Já falou com Milly?

— Não sonharia em fazê-lo antes de falar com o senhor.

— Suponho que, mesmo aqui, haveria necessidade de meu consentimento legal.

— Não se trata de uma questão de lei, mas de cortesia recíproca. Posso fumar?

— Por que não? Essa cigarreira é realmente feita de pele humana?

O Capitão Segura riu-se:

— Ah, Milly, Milly! Como gosta de arreliar-me! — e ajuntou, um tanto ambiguamente: — Acredita deveras nessa história, Sr. Wormold?

Talvez o Capitão Segura fizesse objeção a uma mentira direta. . . Talvez fosse um bom católico.

— Ela é muito jovem para casar, Capitão Segura.

— Neste país não e.

— Tenho certeza de que ela ainda não quer casar.

— Mas o senhor poderia influenciá-la, Sr. Wormold.

— Chamam-no de Abutre Vermelho, pois não?

— Isso, em Cuba, é uma espécie de cumprimento.

— Sua vida, acaso, não é um tanto incerta? Parece que o senhor tem uma porção de inimigos.

— Economizei o bastante para que a minha viúva esteja garantida. Nesse sentido, Sr. Wormold, constituo um apoio mais seguro do que o senhor. Esta firma. .. não pode dar-lhe muito dinheiro; além disso, está sujeita a cerrar suas portas a qualquer momento.

— Cerrar suas portas?

— Estou certo de que o senhor não pretende criar dificul­dades, mas muita complicação tem acontecido em torno de sua pessoa. Se fosse obrigado a deixar este país, não se senti­ria mais feliz se sua filha estivesse bem instalada aqui?

— Que espécie de complicação, Capitão Segura?

— Houve um automóvel que se espatifou... não importa por que razão. Houve um ataque contra o pobre Eng. Cifuentes... amigo do ministro do Interior. O Prof. Sánchez quei­xou-se de que o senhor lhe invadiu a casa e o ameaçou. Há até mesmo uma história segundo a qual o senhor envenenou um cachorro.

— Que envenenei um cachorro?

— Parece absurdo, claro. Mas o maítre do Hotel Nacional disse que o senhor deu uísque envenenado ao seu cão. Por que motivo daria o senhor uísque a um cão? Não compreendo. Nem ele, tampouco. Ele acha que o senhor o fez, talvez, por se tratar de um cão de raça alemã. O senhor não diz nada, Sr. Wormold?

— Não encontro palavras para expressar-me.

— Ele estava num estado lamentável, o pobre homem. Do contrário, teria feito que o expulsassem da delegacia, por estar dizendo bobagens. Disse que o senhor foi à cozinha a fim de apreciar com volúpia o que havia feito. Aquilo não parecia coisa que o senhor pudesse ter feito, Sr. Wormold. Considerei-o sempre como sendo homem dotado de senti­mentos humanos. Diga-me, apenas, que não é verdade essa história. . .

— O cachorro foi envenenado. O uísque saiu de meu copo. Mas era destinado a mim, e não ao cão.

— Por que deveria alguém tentar envenená-lo?

— Não sei.

— Duas histórias estranhas.. . que se anulam mutua­mente. É provável que não houvesse veneno... e que o cão haja morrido naturalmente. Suponho que se tratava de um cão velho. Mas tem de admitir, Sr. Wormold, que muitas complicações parecem estar ocorrendo em torno de sua pes­soa. Talvez o senhor seja como essas crianças inocentes de seu país, a respeito das quais li, que fazem com que os fantas­mas se ponham a agir.

— Talvez seja. O senhor sabe os nomes dos fantasmas?

— De quase todos eles. Acho que chegou o momento de exorcizá-los. Estou redigindo um relatório para o presidente.

— Eu estou nele?

— Não precisaria estar. É meu dever dizer-lhe, Sr. Wor­mold, que economizei dinheiro... dinheiro suficiente para que Milly vivesse em situação confortável, caso algum dia me acontecesse algo. E suficiente, claro, para que nos instalás­semos em Miami, caso houvesse uma revolução.

— Não há necessidade de que me diga tudo isso. Não estou pondo em dúvida a sua capacidade financeira.

— É costume, Sr. Wormold. Agora, quanto à minha saú­de... é boa. Posso mostrar-lhe os certificados. Também não haverá qualquer dificuldade quanto a filhos. . . pois que isso foi amplamente provado.

— Compreendo.

— Não há nisso nada que deva preocupar sua filha. As crianças estão amparadas. Quanto ao meu estorvo atual, não é importante. Sei que os protestantes são um tanto severos quanto a estas coisas.

— Não sou bem protestante.

— E, felizmente, sua filha é católica. Seria, certamente, um casamento bastante adequado, Sr. Wormold.

— Milly tem apenas dezessete anos.

— É a melhor idade para uma mulher ter filhos, Sr. Wor­mold. Tenho sua permissão para falar com ela?

— Necessita dela?

— É mais correto.

— E se eu disser que não.. . ?

— Eu procuraria, claro, persuadi-lo.

— O senhor disse, certa vez, que eu não pertencia à classe torturável.

O Capitão Segura pousou a mão, num gesto afetuoso, no ombro de Wormold.

— O senhor tem o mesmo senso de humor que Milly. Mas, falando seriamente, há sempre a considerar o seu "visto" de residência no país.

— O senhor parece bastante decidido. Está bem. Pode, se quiser, falar com ela. Não lhe faltará oportunidade, à saída da escola. Mas Milly é uma moça de bom senso. Não creio que o senhor tenha muita chance.

— Nesse caso, permita que lhe peça para valer-se de sua autoridade paterna.

— Como o senhor é vitoriano, Capitão Segura! Hoje em dia, os pais não têm influência. O senhor disse que havia algo importante...

— Este era o assunto importante — disse, em tom de cen­sura, o Capitão Segura. — O outro não passa de uma questão de rotina. Poderia acompanhar-me ao Wonder Bar?

— Para quê?

— Assunto policial. Nada que deva preocupá-lo. Estou-lhe pedindo apenas um favor, Sr. Wormold.

Seguiram no carro esporte do Capitão Segura, com um motociclista à frente e outro atrás. Todos os engraxates do Paseo pareciam estar reunidos nas Virtudes. Havia policiais de ambos os lados da porta giratória do Wonder Bar e o sol, a pino, era denso.

Os policiais saltaram das motocicletas e puseram-se a dis­persar os engraxates. Outros policiais saíram apressados do bar e formaram uma escolta para o Capitão Segura. Wor­mold seguiu-o. Como sempre, àquela hora, as rótulas das janelas, sobre a colunata, rangiam à brisa que vinha do mar. O barman estava fora do balcão, do lado dos fregueses. Pare­cia nauseado e medroso. Atrás dele, pingavam, de várias gar­rafas quebradas, gotas de bebidas, porém seus conteúdos já se haviam derramado havia algum tempo. Alguém jazia esten­dido no chão, oculto pelos policiais que se aglomeravam em redor, mas seus sapatos, grossos, cujas solas pareciam ter sido trocadas algumas vezes, revelavam que se tratava de um velho que não era rico.

— A identificação é apenas uma formalidade — disse o Capitão Segura.

Wormold mal tinha necessidade de ver o rosto da vítima, mas os policiais abriram caminho à sua frente, para que ele pudesse ver o corpo do Dr. Hasselbacher.

— É o Dr. Hasselbacher — disse. — O senhor o conhece tão bem quanto eu.

— Há uma formalidade a ser observada nestes assuntos — afirmou Segura. — Uma identificação independente.

— Quem fez isso?

— Sei lá! É melhor que o senhor tome um copo de uísque. Garçom!

— Não. Dê-me um aperitivo. Era sempre um daiquiri que eu costumava tomar com ele.

— Alguém entrou aqui com uma pistola automática Sten. Dois tiros não acertaram o alvo. Diremos, claro, que foram os rebeldes de Oriente. Isso será útil no sentido de influir sobre a opinião pública. Talvez tenham sido, mesmo, os rebeldes.

Do chão, o rosto olhava para o alto, sem expressão. Não se podia descrever aquela impassibilidade em termos de paz ou de angústia. Era como se nada, absolutamente, houvesse ja­mais acontecido àquele rosto: um rosto que não havia nascido.

— Quando o sepultarem, ponham o capacete dele no caixão.

— Capacete?

— Os senhores encontrarão em seu apartamento um velho uniforme. Ele era um sentimental.

Era estranho que o Dr. Hasselbacher houvesse sobrevivido a duas guerras mundiais e acabasse morrendo, afinal, numa época chamada de paz, de modo bastante semelhante à morte que poderia ter tido no Somme.

— O senhor sabe muito bem que isso nada teve a ver com os rebeldes — disse Wormold.

— Mas convém dizer isso.

— Novamente os fantasmas.

— O senhor se culpa demasiado.

— Ele me advertiu que não fosse ao almoço; Carter o ouviu, todos o ouviram. .. e mataram-no.

— Quem são "eles"?

— O senhor tem a lista.

— O nome Carter não constava dela.

— Pergunte, então, ao garçom dono do cão. Ele é uma criatura que os senhores podem torturar, sem dúvida. Eu não me queixarei.

— Ele é alemão e possui amigos políticos importantes. Por que razão desejaria envenená-lo?

— Porque pensam que sou perigoso. Eu! Mal sabem eles! Dê-me outro aperitivo. Eu sempre tomava dois antes de voltar para a loja. Vai mostrar-me a sua lista, Segura?

— Poderia fazê-lo em se tratando de um sogro, pois mere­ceria minha confiança.

Podem publicar estatísticas e contar as populações às cen­tenas de milhares, mas, para cada homem, uma cidade con­siste em apenas algumas ruas, algumas casas, algumas pes­soas. Removidas essas poucas coisas, uma cidade já não existe, exceto como uma saudade dolorosa, como a dor de uma perna amputada que já se foi. Era tempo, pensou Wor­mold, de fazer as malas e partir, deixando para trás as ruínas de Havana.

— O senhor bem percebe — comentou o Capitão Segura — que isto apenas dá mais ênfase ao que eu queria dizer. Poderia ter sido o senhor. Milly estaria a salvo de acidentes como este.

— Sim — respondeu Wormold. — Tenho de tratar disso.

 

Os policiais já haviam ido embora quando ele voltou à loja. López estava fora — e não tinha a mínima idéia do lugar em que ele se encontrava. Podia ouvir Rudy lidando com as suas válvulas e, de vez em quando, o ruído da estática a ecoar pelo apartamento. Sentou-se na cama. Três mortes: um homem desconhecido chamado Raul, um basset preto chamado Max e um velho médico chamado Dr. Hasselbacher. Ele fora a causa — e Carter também. Carter não planejara a morte nem de Raul, nem do cão; mas, quanto ao Dr. Hasselbacher, não lhe fora dada nenhuma oportunidade. . . Tinha sido uma represália: uma morte em troco de uma vida — uma inversão da Lei Mosaica. Podia ouvir Milly e Beatrice a conversar no quarto contíguo. Embora a porta estivesse escancarada, con­seguia compreender apenas a metade do que estavam dizen­do. Ele encontrava-se na fronteira da violência, terra estranha que jamais visitara antes. Tinha nas mãos o seu passaporte. "Profissão: espião"; "Propósito da visita: assassínio." Não se exigia "visto" algum. Seus documentos estavam em ordem.

E do lado da fronteira em que se encontrava ouviu as vozes conversando numa linguagem que ele conhecia.

— Não. Eu não aconselharia a cor vermelha — disse Bea­trice. — Não fica bem, na sua idade.

— Deviam dar-nos lições de maquilagem, no último semestre. Posso mesmo imaginar a Irmã Agnes dizendo: "Uma gota de Nuit d'Amour* atrás da orelha".

* Em francês no texto: Noite de Amor. (N. do E.)

 

— Experimente este batom menos vivo. Não, não lambuze o canto da boca. Deixe-me mostrar-lhe como se faz.

Wormold pensou: "Não tenho arsênico nem cianureto. Além disso, não terei oportunidade de beber na companhia dele. Devia tê-lo forçado a tomar aquele uísque. . . meter-lhe a bebida pela garganta abaixo... Isso é mais fácil de dizer que de fazer, fora do teatro elizabetano, e mesmo lá haveria necessidade de uma espada envenenada".

— Aí está. Veja o que quero dizer.

— E quanto ao rouge?

— Você não precisa de rouge.

— Que perfume você usa, Beatrice?

— Sousle Vent*.

* Em francês no texto: Sob o Vento. (N. do E.)

 

"Eles atiraram contra Hasselbacher, mas eu não tenho revólver", pensou Wormold. Não há dúvida de que uma arma devia fazer parte do equipamento do escritório, como o cofre, as folhas de celulóide, o microscópio e a chaleira elétrica. Ele, porém, durante toda a vida, jamais usara revólver. . . Mas isso não constituía uma objeção insuperável. Bastaria apenas que estivesse tão perto de Carter quanto da porta através da qual vinham as vozes.

— Vamos juntas fazer compras. Acho que você gostaria de Indiscreet**. É um perfume de Lanvin.

** Indiscreto. (N. do E.)

 

— Isso não soa de maneira muito apaixonada — disse Milly.

— Você é jovem. Você não precisa colocar paixão atrás da orelha.

— A gente precisa encorajar os homens — comentou Milly.

— Olhe só para ele!

— Como este?

Wormold ouviu Beatrice rir. Olhou a porta com espanto. Avançara tanto através da fronteira que esquecera que já es­tava do outro lado, em companhia delas.

— Não é necessário que a gente os encoraje tanto assim — disse Beatrice.

— Acaso fiquei lânguida?

— Eu chamaria a isso "derreter-se".

— Sente falta do casamento? — indagou Milly.

— Se você pergunta se sinto falta de Mark, a resposta é: não.

— Se ele morresse, você tornaria a casar?

— Acho que seria melhor que eu não esperasse por isso. Ele tem apenas quarenta anos.

— Oh, compreendo. Suponho que você poderia tornar a casar... se é que chama a isso casamento.

— Chamo.

— Mas isso é horrível, não acha? Quando eu casar, será para sempre.

— Pensamos, quase todas, que vamos fazer isso, quando casamos.

— Eu me sentiria melhor como amante.

— Não creio que seu pai gostasse muito disso.

— Não vejo por que não. Se ele voltasse a casar, não seria diferente. Ela, na verdade, seria sua amante, não seria? Ele gostaria de estar sempre em companhia de mamãe. Eu sei. Ele me disse. Era um casamento de verdade. Nem mesmo um bom pagão poderá contornar tal situação.

— Eu pensava o mesmo a respeito de Mark. Milly, Milly, não deixe que elas a tornem insensível.

— Elas?

— As freiras.

— Oh! Elas não falam assim comigo. De modo algum! Sempre haveria, certamente, a possibilidade de usar um punhal. Mas, para usar um punhal, teria de aproximar-se de Carter mais do que poderia jamais esperar.

— Você ama meu pai? — perguntou Milly.

Wormold pensou: "Um dia poderei voltar e resolver essas questões. Mas agora há problemas mais importantes: preciso descobrir como se pode matar um homem". Deviam existir, naturalmente, manuais sobre o assunto; tratados sobre combates sem armas. Olhou as próprias mãos — mas não con­fiava nelas.

— Por que me faz tal pergunta? — indagou Beatrice.

— Pela maneira como você o olhou.

— Quando?

— Quando ele voltou daquele almoço. Será que estava apenas satisfeita por ele ter feito um discurso?

— Exatamente.

— Isso não pega! — exclamou Milly. — Refiro-me ao seu amor por ele.

Wormold disse, de si para consigo: "Se, pelo menos, pudes­se matá-lo, fá-lo-ia por um motivo limpo. Mataria para mos­trar que não se pode matar sem que também a gente seja, por sua vez, morto. Não mataria pelo meu país. Não mataria pelo capitalismo, pelo comunismo, pela democracia social ou pelo bem-estar do Estado. .. Bem-estar de quem? Mataria Carter porque ele matou Hasselbacher. Uma rixa tradicional entre famílias constituiria melhor razão para assassínio do que o patriotismo ou uma preferência por este ou aquele sistema econômico. Se amo ou odeio, deixem que eu ame ou odeie como indivíduo. Não serei 59200/5 na guerra total de ninguém".

— Se eu o amasse. . . por que não deveria fazê-lo?

— Ele é casado.

— Milly, querida Milly. Cuidado com as fórmulas! Se é que existe um Deus, não será um Deus de fórmulas.

— Você não o ama?

— Nunca disse isso.

"A única maneira é um revólver: onde poderei arranjar um revólver?"

Alguém passou pela porta; Wormold nem sequer levantou a cabeça. No aposento contíguo, as válvulas de Rudy lança­ram guinchos estridentes.

— Não vimos você entrar — disse Milly.

— Queria que você me fizesse um favor, Milly — pediu ele. — Vocês estavam ouvindo rádio?

Ouviu Beatrice perguntar:

— Que é que há? Que aconteceu?

— Houve um acidente. . . uma espécie de acidente.

— Com quem?

— Com o Dr. Hasselbacher.

— Grave?

— Sim.

— E você nos está dando a notícia, pois não?

— Sim.

— Pobre Dr. Hasselbacher!

— É verdade.

— Vou procurar o capelão e dizer-lhe que reze uma missa correspondente a cada um dos anos que o conhecemos.

Não havia, ele o compreendeu, necessidade alguma de se dar a Milly com cuidado a notícia de uma morte. Para ela, todas as mortes eram mortes felizes. A vingança era coisa desnecessária, quando se acreditava na existência de um céu. Mas ele não tinha tal crença. Num cristão, a clemência e o perdão quase não eram virtudes. . . pois nasciam demasiado facilmente.

— O Capitão Segura esteve aqui — informou ele. — Quer que você case com ele.

— Aquele velho? Jamais tornarei a andar em seu automóvel!

— Gostaria de que você o visse ainda uma vez. . . ama­nhã. Diga-lhe que desejo falar-lhe.

— Por quê?

— Uma partida de damas. Às dez horas. Você e Beatrice não deverão estar aqui.

— Será que ele irá importunar-me?

— Não. Diga-lhe que venha falar comigo. E que traga a lista. Ele compreenderá.

— E depois?

— Vamos voltar para casa. Para a Inglaterra. Ao ficar a sós com Beatrice, disse-lhe:

— É o fim. Acabou-se o escritório.

— Que é que quer dizer com isso?

— Talvez eu afunde gloriosamente, com um bom relató­rio : a lista dos agentes secretos que operam aqui.

— Inclusive nós?

— Oh, não. Nós jamais operamos.

— Não entendo.

— Eu nunca tive agentes, Beatrice. Agente algum; Hasselbacher foi morto sem nenhum motivo. Não existem constru­ções de espécie alguma nas montanhas de Oriente.

Era típico dela não revelar qualquer incredulidade. Aquela era uma informação como qualquer outra, que devia ser arquivada para referência. Qualquer pronunciamento quanto ao seu valor seria feito, pensou ele, pelo escritório central.

— Claro que é seu dever comunicar isso imediatamente a Londres, mas eu lhe ficaria grato se esperasse até depois de amanhã. Talvez possamos, até então, acrescentar algo verdadeiro.

— Se você estiver vivo, é o que quer dizer.

— Claro que estarei vivo.

— Você está arquitetando alguma coisa.

— Segura tem em seu poder a lista de agentes.

— Não é isso que está planejando. Mas, se você estiver morto — acrescentou, num tom que parecia irado —, será de mortuis, creio eu.

— Se me ocorresse algo, não me agradaria que você sou­besse, através desses fichados fictícios, que grande fraude fui eu.

— Mas Raul. . . deve ter havido um Raul.

— Pobre homem! Devíamos ter imaginado o que lhe aconteceu. Estava dando um passeio alegre, como fazia habitualmente. Talvez estivesse bêbedo, como também acon­tecia com freqüência. Espero que sim.

— Mas ele existia.

— A gente tem de arranjar um nome em algum lugar. Escolhi o dele sem sequer lembrar-me.

— E aqueles gráficos?

— Desenhei-os tomando como modelo o Aspirador Doméstico Turbo Jato. Mas essa piada terminou. Gostaria de redigir uma confissão, para que eu assinasse? Alegra-me que eles não tenham feito nada de grave contra Teresa.

Ela pôs-se a rir. Afundou o rosto nas mãos e riu-se à vontade. 244

— Oh, como eu o amo!

— Isso tudo deve parecer-lhe muito tolo.

— Londres parece-me bastante tola. E Henry Hawthorne. Acha, então, que eu teria abandonado Mark se ele alguma vez — uma única vez — houvesse feito a UNESCO de boba? Mas a UNESCO era sagrada. As conferências culturais eram sagradas... Ele jamais ria... Empreste-me o seu lenço.

— Você está chorando.

— Estou rindo. Então aqueles gráficos. ..

— Um deles era um bocal de vaporizador, e o outro um acoplamento de ação dupla. Nunca pensei que passassem pelo exame dos técnicos.

— Não foram vistos por técnicos. Você se esquece de que este é um serviço secreto. .. Temos de proteger nossas fontes de informações. Não podemos permitir que documentos como esses cheguem às mãos dos que realmente conhecem o assun­to. Querido. . .

— Você disse querido.

— É uma maneira de falar. Você se lembra do Tropicana e daquele homem que estava cantando. .. ? Ainda não sabia que você era meu chefe e eu sua secretária: você era apenas um homem simpático, em companhia de uma filha encanta­dora, e percebi sua intenção de fazer uma loucura com uma garrafa de champanha. . . e como me sentia mortalmente entediada...

— Mas não sou do tipo maluco.

 

Dizem que a Terra é redonda;

 Minha loucura ofendem.

 

— Se eu fosse do tipo maluco — prosseguiu ele —, não seria vendedor de aspiradores.

 

Digo que a noite é dia

E não tenho machado para afiar.

 

— Então você não possui mais lealdade do que eu? — indagou ele.

— Você é leal.

— Para com quem?

— Para com Milly. Pouco me interessam os homens que são leais para com as pessoas que lhes pagam, para com organizações. . . Não creio que nem mesmo o meu país signi­fique tanto assim. Há muitos países em nosso sangue — não é verdade? —, mas somos, cada um de nós, apenas uma pes­soa. Acaso estaria o mundo na confusão em que se encontra, se fossemos leais para com o amor e não para com países?

— Acho que eles poderiam tirar-me o passaporte — disse Wormold.

— Eles que o tentem.

— Seja como for, isto significa, para nós, o fim de uma tarefa.

 

— Entre, Capitão Segura.

O capitão estava radiante. Suas perneiras brilhavam, seus botões brilhavam, e havia brilhantina fresca em seus cabelos.

— Fiquei muito contente quando Milly me deu o seu recado.

— Temos muito sobre que conversar. Vamos jogar antes? Esta noite eu vou vencê-lo.

— Duvido, Sr. Wormold. Ainda não preciso demonstrar-lhe respeito filial.

Wormold desdobrou o tabuleiro de damas. Depois, colo­cou sobre ele vinte e quatro garrafinhas de uísque em miniatu­ra: doze Bourbon diante de doze Scotch.

— Que é isso, Sr. Wormold?

— Uma idéia do Dr. Hasselbacher. Achei que podíamos jogar uma partida em sua memória. Quando a gente ganha uma pedra, bebe-a.

— Uma idéia astuta, Sr. Wormold. Como sou o que joga melhor, beberei mais.

— Depois eu o alcançaria... também nos drinques.

— Acho que preferiria jogar com as pedras habituais.

— Está com medo de perder, Segura? Talvez sua cabeça não seja forte.

— Tenho cabeça tão forte como a de qualquer outro homem, mas, às vezes, perco a calma, quando bebo. E não quero ser grosseiro com o meu futuro sogro.

— Milly não vai casar com o senhor, Capitão Segura.

— Isso é o que teremos de discutir.

— O senhor joga com o Bourbon; é mais forte que uísque. Levarei desvantagem.

— Não é necessário que assim seja. Jogarei com o Bourbon.

Segura virou o tabuleiro e sentou-se.

— Por que não tira o seu cinto, Segura? Ficará mais à vontade.

O capitão colocou o cinto e o coldre no chão, a seu lado.

— Lutarei contra o senhor, desarmado — disse com jovialidade.

— Conserva sempre a sua arma carregada?

— Claro. A espécie de inimigos que possuo não me daria tempo de carregá-la.

— Encontrou o assassino do Dr. Hasselbacher?

— Não; não pertence à classe dos criminosos.

— Carter?

— Depois do que o senhor disse, eu, naturalmente, procu­rei investigar. Ele se encontrava, na ocasião, em companhia do Dr. Braun. E não podemos duvidar da palavra do Presi­dente da Associação dos Comerciantes Europeus, não acha?

— Então o Dr. Braun está em sua lista?

— Naturalmente. Mas vamos, agora, ao jogo.

No jogo de damas, como todo jogador o sabe, há uma linha imaginária que atravessa o tabuleiro diagonalmente, de canto a canto. É a linha de defesa. Quem quer que controle essa linha, toma a iniciativa: quando se atravessa a linha, começa o ataque. Com insolente displicência, Segura começou, num gesto de desafio, movendo uma garrafa pelo centro. Não hesi­tou entre dois lances e mal olhou o tabuleiro. Foi Wormold quem fez uma pausa, estudando o jogo.

— Onde está Milly? — perguntou Segura.

— Saiu.

— E sua encantadora secretária?

— Está com Milly.

— O senhor já está em dificuldades — disse o Capitão Segura. Lançou-se contra a base de defesa de Wormold e con­quistou uma garrafa de Old Taylor.

— O primeiro drinque — comentou, enquanto a esvazia­va.

Wormold, imprudentemente, iniciou, em resposta, um movimento de pinça, perdendo, quase no mesmo instante, outra garrafa — esta vez uma Old Forester. Algumas gotas de suor assomaram à testa de Segura, que, após tomar a bebi­da, pigarreou.

— O senhor joga descuidadamente, Sr. Wormold — comentou, indicando o tabuleiro: — Poderia ter ganho aquela pedra.

— Pode "soprar-me", se quiser — respondeu Wormold. Pela primeira vez, Segura hesitou:

— Não. Prefiro que o senhor tome a minha.

Era um uísque pouco familiar, chamado Cairngorm, e Wormold sentiu que o mesmo lhe ardeu na língua.

Jogaram, durante algum tempo, com exagerado cuidado, sem que nenhum dos dois tomasse qualquer pedra.

— Carter ainda está no Seville-Biltmore? — indagou Wormold.

— Está.

— O senhor o mantém sob observação?

— Não. De que serviria?

Wormold mantinha-se agarrado à borda do tabuleiro com o que restava do seu movimento envolvente, mas perdera o ponto de apoio. Fez um lance falso, o qual permitiu a Segura avançar até o quadrado 22, sem que houvesse maneira de sal­var a sua pedra no quadrado 25, nem de evitar que Segura alcançasse a fileira de trás e fizesse dama.

— Descuidado — comentou Segura.

— Posso fazer uma troca.

— Mas eu fiz dama.

Segura bebeu um Four Roses e Wormold, na outra extre­midade do tabuleiro, tomou um Dimpled Haig.

— A noite está quente — disse Segura, enquanto comple­tava sua dama com um pedaço de papel.

— Se eu ganhar, terei de beber duas garrafas. .. Tenho outras de reserva no armário.

— O senhor pensou em tudo... — comentou Segura. — Fê-lo com más intenções?

Jogava, agora, com grande cautela. Tornava-se difícil ten­tá-lo, fazendo que capturasse qualquer pedra, e Wormold começou a compreender a falha fundamental de seu plano: a de que é possível, a um bom jogador, derrotar o adversário sem ganhar as suas pedras. Ganhou uma pedra de Segura e viu-se numa armadilha. Ficou sem poder fazer qualquer lance.

Segura enxugou o suor da testa:

— Como vê, o senhor não pode ganhar.

— Deve dar-me uma oportunidade de desforra.

— Este Bourbon é forte. Oitenta e cinco graus.

— Trocaremos os tipos.

Esta vez, Wormold ficou com o "preto", correspondente aos uísques. Substituíra os três uísques, bem como os três Bourbons. Começou o primeiro lance com uma garrafinha de Old Fourteenth, numa partida que seria provavelmente demo­rada, pois sabia, agora, que a sua única esperança seria fazer com que Segura deixasse de lado a prudência e se lançasse ao ataque. Procurou de novo ser "soprado", mas ele não aceitou o lance. Era como se o capitão houvesse reconhecido que seu verdadeiro adversário não era Wormold, mas sua própria capacidade de resistência. Moveu até uma pedra sem nenhu­ma vantagem tática e obrigou Wormold a apanhá-la — um Hiram Walker. Wormold percebeu que sua própria cabeça corria perigo: a mistura de uísque e Bourbon era fatal.

— Dê-me um cigarro — pediu.

Segura inclinou-se para a frente a fim de acendê-lo, e Wor­mold notou o esforço que ele teve de fazer para manter firme o isqueiro. Este não acendia, e Segura lançou uma imprecação com desnecessária violência. "Mais dois drinques e tenho-o em minhas mãos", pensou Wormold.

Mas era tão difícil perder uma pedra, para um adversário que não a desejava, como ganhar uma. Contra sua própria vontade, a batalha pendia para o seu lado. Bebeu um Harpers e féz uma dama.

— O jogo é meu, Segura! — exclamou, com falsa jovialidade. — Quer desistir?

Seu adversário lançou um olhar ameaçador ao tabuleiro. Era evidente que se debatia entre o desejo de ganhar e o de não perder o controle; mas sua cabeça estava anuviada não só pela raiva como pelo uísque.

— Esta é uma maneira porca de se jogar damas! — exclamou.

Agora que Wormold tinha uma dama, já não podia jogar tendo em vista uma vitória incruenta, pois a dama tinha liber­dade de movimentos. A entrega de um Kentucky Tavern constituiu um sacrifício verdadeiro, e arrancou-lhe uma imprecação contra as pedras:

— Estas malditas coisas são todas diferentes! Garrafinhas de vidro! Quem já ouviu falar em pedras de vidro como estas, num jogo de damas?

Wormold sentia a cabeça toldada pelo Bourbon, mas o momento da vitória — e da derrota — havia chegado.

— O senhor moveu a minha pedra — disse Segura.

— Não, não movi. Isto é um Red Label. Meu.

— De que modo, com os diabos, poderei saber a diferença entre um uísque e um Bourbon? São todos garrafas, não são?

— O senhor está zangado porque está perdendo.

— Eu nunca perco!

Wormold, então, fez um lance cuidadoso e expôs sua dama. Durante um momento, julgou que Segura não o havia notado; depois, pensou que, para não ser obrigado a beber, Segura havia deixado escapar, deliberadamente, a oportuni­dade. Mas a tentação de ganhar a dama era grande, e o que havia além era uma vitória esmagadora: podia, com a sua peça, ganhar a dama e, depois, fazer um massacre. O calor do uísque e da noite abafada derretia-lhe o rosto como se ele fosse uma figura de cera. Tinha dificuldade em enxergar com nitidez o tabuleiro.

— Por que féz isso? — perguntou.

— O quê?

— O senhor perde a dama e o jogo.

— Com os diabos! Não percebi. Devo estar bêbedo.

— O senhor, bêbedo?

— Um pouco.

— Também estou bêbedo. O senhor sabe que estou bêbe­do. Está tentando embriagar-me. Por quê?

— Não seja tolo, Segura. Por que razão desejaria eu embriagá-lo? Vamos parar o jogo. Considerá-lo como empatado.

— Empatado uma ova! Sei por que deseja embriagar-me. Deseja mostrar-me aquela lista. . . isto é, quer que eu lha mostre.

— Que lista?

— Tenho-os a todos numa armadilha. Onde está Milly?

— Já lhe disse: saiu.

— Vou procurar, esta noite, o chefe de polícia. Ninguém escapará.

— Carter faz parte dela?

— Quem é Carter? — perguntou, agitando o indicador diante de Wormold. — Todos estão nela. . . mas sei que o se­nhor não é nenhum agente. O senhor é uma fraude.

— Por que não dorme um pouco, Segura? Jogo empatado.

— Nada de jogo empatado. Veja. Tomo sua dama. — Abriu a garrafinha de Red Label e bebeu-a.

— Para uma dama, são duas garrafas — disse Wormold, entregando-lhe um Dunosdale Cream.

Segura estava sentado pesadamente na cadeira, o queixo a oscilar.

— Admita que foi derrotado; não jogo para ganhar pedras.

— Não admito coisa alguma. Tenho melhor cabeça e veja como eu o "sopro". Poderia ter ganho esta peça.

Um uísque de centeio canadense — um Lord Calvert — havia-se misturado aos Bourbons — e Wormold bebeu-o.

"Deve ser o último", pensou. "Se ele não arriar agora, fico liquidado. Não estarei suficientemente sóbrio para puxar um gatilho. Ele disse que estava carregado?"

— Isso não importa — disse, num sussurro, Segura. — De qualquer modo, está liquidado — acrescentou, movendo lentamente a mão sobre o tabuleiro, como se estivesse carre­gando um ovo numa colher. — Está vendo? Apanhou uma peça, duas peças, três...

— Beba isto, Segura.

Um George IV, um Queen Anne... o jogo terminava num lance real: um Highland Queen.

— Pode prosseguir, Segura. Do contrário, eu o "soprarei" de novo. Beba. — Vat 69. — Eis aqui outro. Beba-o, Segura. — Granfs Standfast. Old Argyll. — Beba-os, Segura. Dou-me, agora, por vencido.

Mas o capitão é que fora vencido. Wormold desabotoou-lhe o colarinho para que respirasse melhor, e recostou-lhe a cabeça no espaldar da cadeira — mas suas próprias pernas estavam bambas, ao dirigir-se para a porta. Tinha, no bolso, o revólver de Segura.

 

Ao chegar ao Seville-Biltmore, dirigiu-se ao telefone e ligou para Carter. Tinha de admitir que os nervos de Carter eram firmes — muito mais firmes do que os seus. A missão de Car­ter em Havana não fora perfeitamente cumprida e, não obs­tante, ainda lá permanecia. . . como um atirador ou como um pato de pau, que servisse de chamariz?

— Boa noite, Carter.

— Oh... boa noite, Wormold.

A voz tinha exatamente o timbre exato de alguém que se sentisse ferido em seu amor-próprio.

— Desejo pedir-lhe desculpas, Carter. Aquele negócio estúpido do uísque. Creio que eu estava um tanto "alto". Agora mesmo estou um pouco tocado. Não estou habituado a pedir desculpas.

— Está bem, Wormold. Vá dormir.

— Zombei da sua gagueira. Isso é coisa que não se faz. Viu-se, de repente, a falar como Hawthorne. A falsidade era uma doença ocupacional.

— Não entendi o que você me disse lá no almoço.

— Descobri... logo depois... o que houve. Nada que tenha qualquer relação com você. Aquele maldito maítre-d’hotel envenenou o seu próprio cão. Era um animal muito velho, claro... mas dar-lhe veneno. . . isso é coisa que não se faz.

— Foi, então, isso que aconteceu? Obrigado por me infor­mar, mas já é tarde. Já vou para a cama, Wormold.

— O melhor amigo do homem.

— Que foi que disse? Não consigo ouvi-lo.

— César, o amigo do rei. . . e havia também aquele de pêlo duro que tombou na Jutlândia. Foi visto pela última vez na ponte, ao lado do seu dono.

— Você está embriagado, Wormold.

Wormold descobriu que, afinal de contas, era muito mais fácil fingir-se de bêbedo, depois de.. . quantos uísques e Bourbons? A gente pode confiar num bêbedo: in vino veritas*; pode-se também, mais facilmente, dispor de um bêbedo. Carter seria um tolo, se não aproveitasse a oportunidade.

* Em latim no texto: "no vinho está a verdade". (N. do E.)

 

— Sinto-me com vontade de dar uma volta por aí.

— Por aí onde?

— Pelos lugares que você queria conhecer em Havana.

— Está ficando tarde.

— É a melhor hora.

A hesitação de Carter chegou-lhe através do fio.

— Traga uma arma — acrescentou.

Sentiu estranha relutância em matar um assassino desar­mado ... se é que Carter alguma vez andava desarmado.

— Uma arma? Para quê?

— Em alguns desses lugares tentam, às vezes, amedrontar a gente.

— E você, não pode trazer um revólver?

— Acontece que não tenho revólver.

— Nem eu.

Julgou ouvir, através do fone, o ruído metálico de um tam­bor de revólver, ao ser examinado. "Diamante corta diamante", pensou. E sorriu. Mas um sorriso é perigoso durante um ato de ódio, tanto quanto durante um ato de amor. Teve de lembrar-se do aspecto de Hasselbacher, fitando o teto, esten­dido sobre o chão do bar. Não tinham dado uma única opor­tunidade ao velho, e ele estava dando muitas a Carter. Come­çou a lamentar os drinques que havia tomado.

— Encontro-o no bar — disse Carter.

— Não demore.

— Tenho de vestir-me.

Wormold sentia-se alegre, agora, com a escuridão do bar. Carter devia estar, naquele instante, telefonando aos amigos. Talvez marcando um encontro com eles. Mas, de qualquer modo, ali no bar, não poderiam localizá-lo antes que ele os visse. Havia uma entrada pela rua e outra pelo hotel e, ao fundo, uma espécie de balcão, de que poderia valer-se caso precisasse usar a arma. Todos os que entravam sentiam-se, durante um instante, cegos pela escuridão — como aconte­cera com ele próprio. Ao entrar, não pudera distinguir se havia no bar um ou dois fregueses, pois o casal que lá se encontrava estava muito agarrado, sentado num sofá junto à porta da rua.

Pediu um uísque, mas deixou-o intacto sobre o balcão, a observar ambas as entradas. Pouco depois, um homem entrou. Não podia ver-lhe o rosto, mas a mão, a apalpar no bolso o cachimbo, o identificou como sendo Carter.

— Carter.

Carter aproximou-se.

— Vamos sair — disse Wormold.

— Tome primeiro sua bebida. Eu também beberei para fazer-lhe companhia.

— Já bebi muito, Carter. Preciso de ar. Beberemos em al­guma casa.

Carter sentou-se.

— Diga-me onde pretende levar-me.

— Qualquer um de uma dúzia de prostíbulos. São todos iguais, Carter. Cerca de uma dúzia de jovens para a gente escolher. Todas fazem uma exibição para a gente. Vamos, vamos embora. Ficam muito cheios depois da meia-noite.

— Gostaria, antes, de tomar um drinque — disse Carter, ansioso. — Não posso ir a um espetáculo assim, sóbrio como uma pedra.

— Você não está esperando ninguém, pois não, Carter?

— Não. Por quê?

— Pensei.. . pela maneira de você observar a porta.

— Não conheço ninguém nesta cidade. Já lhe disse.

— Exceto o Dr. Braun.

— Oh, sim, claro, o Dr. Braun. Mas ele não é a espécie de companheiro que se possa levar a uma casa dessas, não acha?

— Vamos embora, Carter.

Com relutância, Carter pôs-se a andar. Era evidente que es­tava procurando uma desculpa para ficar.

— Quero apenas deixar um recado com o porteiro. Estou esperando um telefonema.

— Do Dr. Braun?

— Sim — respondeu, após breve hesitação. — Parece-me grosseiro sair assim, antes que ele telefone. Pode esperar cinco minutos, Wormold?

— Diga que voltará dentro de um minuto... a menos que deseje passar a noite aqui.

— Seria melhor esperar.

— Então vou embora sem você. Vá para o diabo, Carter! Julguei que você queria conhecer a cidade.

Afastou-se rapidamente. Seu automóvel estava parado do outro lado da rua. Não olhou uma única vez para trás, mas ouviu passos atrás de si.

— Que temperamento tem você, Wormold!

— Desculpe-me. Mas fico assim quando bebo.

— Espero que esteja em condições de dirigir o automóvel.

— Seria melhor, Carter, que você guiasse. "Isso fará com que tire a mão do bolso", pensou.

— Primeira à direita. Depois, primeira à esquerda, Carter. Saíram na avenida à beira-mar. Um navio branco e fino estava deixando o porto — algum navio de turistas que rumava para Kingston ou Port au Prince. Podiam ver os casais recostados sobre a amurada, românticos à luz do luar. Uma banda tocava uma estiolada música de sucesso: I could have danced ali night.

— Isso me dá saudades de casa — disse Carter.

— De Nottwich?

— Sim.

— Não existe mar em Nottwich.

— Os botes de recreação, no rio, pareciam grandes assim, quando eu era jovem.

"Um assassino não devia ter o direito de sentir saudade. Um assassino devia ser uma máquina... E eu me tornei uma máquina", pensou Wormold, enquanto a sua mão apalpava, no bolso, o lenço que teria de usar para não deixar impressões digitais, quando chegasse o momento. Mas como escolher o momento exato? Em que travessa... ou em que porta? E se o outro atirasse primeiro. . . ?

— São russos os seus amigos, Carter? Alemães? America­nos?

— Que amigos? — perguntou Carter, simplesmente. — Não tenho amigos.

— Não tem amigos?

— Não.

— Para a esquerda de novo, Carter, depois, para a direita. Seguiam, quase a passo, por uma rua estreita, ladeada de

clubes: orquestras falavam de subterrâneos, como o fantasma do pai de Hamlet, ou como aquela música que vinha de sob as pedras de Alexandria, quando o Deus Hércules abandonou Antônio. Dois homens, em uniformes de night clubs cubanos, apregoaram competitivamente, dirigindo-se a eles, os nomes de seus estabelecimentos.

— Vamos parar — disse Wormold. — Preciso muito de um drinque, antes de prosseguirmos.

— Essas casas são bordéis?

— Não. Iremos a um bordel mais tarde.

Pensou: se ao menos Carter, ao deixar o volante, houvesse agarrado o revólver, ter-lhe-ia sido muito mais fácil disparar.

— Conhece este lugar? — perguntou Carter.

— Não. Mas conheço a música.

Era estranho que estivessem tocando aquilo. . . "Minha loucura ofendem". . .

Havia, fora, fotografias coloridas de jovens nuas e, no night club Esperanto, um letreiro de gás néon anunciava: "Striptease". Degraus pintados com listras, como pijamas baratos, conduziram os dois a um porão nublado pela fumaça dos havanas. Pareceu-lhes um lugar tão adequado como qual­quer outro para uma execução. Mas ele queria antes uma bebida.

— Você segue à frente, Carter.

Carter abriu a boca e lutou com um "h" aspirado. Wormold jamais o vira antes lutar durante tanto tempo.

— Espero. .. (I h-h-h-hope. . .)

— Que é que espera?

— Nada.

Sentaram-se e ficaram a olhar a jovem que se despia em pú­blico — e ambos tomaram conhaque com soda. A jovem ia de mesa a mesa, desfazendo-se das roupas. Começou com as luvas. Um espectador tirou-as com resignação, como o con­teúdo de uma bandeja nos restaurantes em que o próprio fre­guês se serve. Depois, apresentou as costas a Carter e pediu-lhe para abrir os colchetes de seu espartilho rendado. Carter mexeu em vão, desajeitadamente, nos colchetes, enrubescendo durante todo o tempo, enquanto a jovem ria e se contorcia ao contato de seus dedos.

— Desculpe-me, mas não consigo encontrar. . . — disse ele.

Em torno da sala, os homens, soturnos, olhavam Carter de suas mesas. Nenhum deles sorria.

— Você não teve muita prática disso em Nottwich, Car­ter. Permita-me que o faça.

Desprendeu, por fim, o espartilho, e a jovem desgrenhou-lhe os cabelos finos e lisos e seguiu adiante. Ele os alisou de novo com um pente de bolso.

— Não gosto deste lugar — comentou.

— Você é tímido com mulheres, Carter.

Mas como atirar contra um homem de quem se podia tão facilmente rir?

— Não gosto de brincadeiras grosseiras.

Subiram a escada. O bolso de Carter estava pesado sobre os quadris. Claro que aquilo bem podia ser devido ao cachimbo que carregava. Sentou-se de novo ao volante e resmungou:

— A gente pode ver em toda parte essa espécie de espetá­culos. Apenas meretrizes baratas que se despem.

— Você não a ajudou muito.

— Estava procurando um zíper.

— Eu precisava terrivelmente de um drinque.

— O conhaque também estava medonho. Não me espan­taria nada, se contivesse algum narcótico.

— Seu uísque continha mais do que narcótico, Carter. Estava procurando excitar o próprio ódio e não pensar em

sua ineficiente vítima a lutar com o espartilho e a enrubescer diante do fracasso.

— Que foi que você disse?

— Pare aqui.

— Por quê?

— Você queria que eu o levasse a uma casa de mulheres. Aqui há uma.

— Mas não vejo ninguém.

— Todas elas são fechadas e têm as persianas cerradas, como esta. Desça e toque a campainha.

— Que é que você quis dizer a respeito do uísque?

— Isso não importa, agora. Desça e toque a campainha. Era um lugar tão apropriado quanto uma adega (paredes

nuas eram também usadas, com freqüência, para tal propósi­to): uma fachada cinzenta e uma rua que ninguém procurava, salvo para fins pouco atraentes. Carter tirou lentamente as pernas de sob o volante e Wormold observou com atenção as próprias mãos — as suas ineficientes mãos. "É um duelo leal", disse de si para consigo. "Ele está mais habituado a matar do que eu; as oportunidades são bastante idênticas.

Não sei sequer se minha arma está carregada. Ele tem mais chance do que Hasselbacher jamais teve."

A mão pousada na porta, Carter deteve-se novamente:

— Talvez fosse mais sensato se voltássemos... qualquer outra noite. Na verdade, eu... eu...

— Você está com medo, Carter.

— Nunca estive antes numa casa de mulheres. Para dizer-lhe a verdade, Wormold, não. . . não preciso muito de mulheres.

— Isso soa como se a sua vida fosse um tanto solitária.

— Posso passar sem elas — disse, em tom de desafio. — Há coisas mais importantes para um homem do que correr atrás...

— Então por que foi que quis vir a um bordel? Novamente surpreendeu a Wormold com a verdade nua e crua:

— Procuro desejá-las, mas, quando chega no ponto... — Pairou um tanto à beira da confissão e, depois, decidiu-se: — Não dá certo, Wormold. Não posso fazer o que elas desejam.

"Tenho de fazê-lo", pensou Wormold, "antes que me con­fesse mais alguma coisa." De segundo a segundo, o homem estava-se tornando mais humano — transformando-se numa criatura como ele próprio, de quem se podia sentir dó ou que se podia consolar, mas não matar. Quem sabia quais as escu­sas encerradas no fundo de todo ato de violência? Puxou o revólver de Segura.

— Que é isso?

— Desça.

Carter encostou-se à porta do bordel com um ar mais de sombria queixa do que de medo. Seu medo era de mulheres, não de violência.

— Você está cometendo um erro — disse ele. — Foi Braun quem me deu o uísque. Eu não sou importante.

— Pouco me importa o uísque. Mas você matou Hassel­bacher, não matou?

Tornou a surpreender Wormold, ao confessar a verdade. Havia, no homem, uma espécie de honestidade.

— Estava cumprindo ordens, Wormold. Eu... eu...

Conseguira colocar-se de tal modo junto à porta, que seu cotovelo alcançou a campainha: inclinou-se para trás e, no fundo da casa, a campainha tocou com insistência, em seu convite ao trabalho.

— Não há inimizade alguma, Wormold — continuou ele. — Você se tornou demasiado perigoso, eis tudo. Somos ape­nas soldados rasos, você e eu.

— Eu,perigoso? Que gente tola deve ser a sua! Eu não tenho agentes, Carter.

— Oh, claro que tem! Aquelas construções nas monta­nhas ... Temos cópias dos desenhos.

— São desenhos de peças de um aspirador elétrico. Quem as teria dado? López? O próprio emissário de Hawthorne ou alguém do consulado?

Carter meteu a mão no bolso e Wormold disparou. Carter lançou um grito agudo:

— Você quase me atingiu.

Tirou a mão do bolso, segurando um cachimbo destroçado.

— O meu Dunhill! — exclamou. — Você espatifou o meu Dunhill.

— Sorte de principiante — respondeu Wormold.

Tinha-se preparado para matar, mas, agora, era-lhe impos­sível tornar a atirar. A porta, atrás de Carter, começou a abrir-se. Wormold teve a impressão de que chegava até eles uma música plástica.

— Elas cuidarão de você aí. Talvez agora precise de uma mulher, Carter.

— Seu. . . seu palhaço!

Como Carter tinha razão! Pôs o revólver a seu lado e escorregou para o assento do automóvel. Subitamente, sen­tiu-se feliz. Poderia ter morto um homem. Provara a si pró­prio, concludentemente, que não era um dos juizes: não tinha vocação para a violência. Foi então que Carter atirou.

 

— Estava inclinado para a frente, ligando a chave do carro — disse ele a Beatrice. — Isso, julgo eu, salvou-me. Claro que ele tinha o direito de responder ao fogo. Foi um verdadeiro duelo, mas o terceiro tiro coube a mim.

— E que aconteceu depois?

— Tive tempo de afastar-me, antes que me sentisse nauseado.

— Nauseado?

— Creio que, se tivesse estado na guerra, pareceria uma coisa muito menos séria matar um homem. Pobre Carter!

— Por que é que deveria sentir pena dele?

— Porque era um homem. Fiquei sabendo uma porção de coisas a respeito dele; tinha medo de mulheres. Gostava de seu cachimbo e, quando rapaz, os botes de recreação, no rio de sua cidade, pareciam-lhe transatlânticos. Talvez fosse um romântico. Um romântico tem quase sempre medo — não tem? — de que a realidade não corresponda às suas expecta­tivas. Sempre espera demais.

— E então?

— Apaguei as marcas digitais do revólver e trouxe-o de volta. Segura, certamente, perceberá que foram disparados dois tiros. Mas não creio que queira reclamar as balas. Ser-lhe-ia um pouco difícil explicar. Estava ainda dormindo, quando voltei. Não quero nem sequer pensar na ressaca que deve estar sentindo a esta altura. Minha própria cabeça não está nada bem. Mas procurei seguir as instruções que você me deu, quanto às fotografias.

— Que fotografias?

— Ele tinha, em seu poder, uma lista de agentes estrangei­ros, que ia entregar ao chefe de polícia. Fotografei-a e pula de volta em seu bolso. Alegra-me haver enviado uma informa­ção verdadeira, antes da minha renúncia.

— Você devia ter esperado por mim.

— Como é que poderia fazê-lo? Ele ia despertar a qual­quer momento. Mas esse negócio de microfotografia é uma idéia hábil.

— Por que razão, com os diabos, tirou você uma microfotografia?

— Porque não posso confiar em nenhum emissário para Kingston. O pessoal de Carter — quem quer que possa ser a sua gente — tem cópias dos desenhos de Oriente. Isso signi­fica que há um contra-agente em algum lugar. Talvez seja aquele seu conhecido que faz contrabando de drogas. De modo que fiz uma fotografia, como você me ensinou, e pre­guei-a nas costas de um lote de quinhentos selos coloniais britânicos... da maneira que combinamos em caso de emergência.

— Temos de telegrafar dizendo em que selo você a pregou.

— Em que selo?

— Você, certamente, não espera que eles examinem qui­nhentos selos, à procura de um pontinho negro, não é verdade?

— Não pensei nisso. Que desastrado!

— Você deve saber em que selo. . .

— Não pensei em olhar a face do selo. Creio que foi um George V, vermelho... ou verde.

— Isso ajuda muito! Lembra-se de alguns dos nomes da lista?

— Não. Não houve tempo de ler com atenção. Bem sei que, neste jogo, sou um idiota.

— Não. Eles é que são os idiotas.

— Estou a imaginar quem nos procurará em seguida. O Dr. Braun... Segura. . .

Mas não foi nenhum deles.

O funcionário desdenhoso do Consulado apareceu na loja às cinco horas da tarde, no dia seguinte. Permaneceu emperti­gado em meio aos aspiradores, como um turista que olhasse com ar de desaprovação um museu de objetos fálicos. Disse a Wormold que o embaixador desejava vê-lo.

— Amanhã cedo está bem? — indagou Wormold, que es­tava redigindo o seu último relatório. . . acerca da morte de Carter e da sua renúncia.

— Não, não está. Ele telefonou de casa. Deseja vê-lo imediatamente.

— Não sou empregado do Consulado — respondeu Wormold.

— Não é?

Wormold voltou de novo a Vedado, para as casinhas bran­cas e as buganvílias dos ricos. Parecia haver transcorrido muito tempo, desde a sua visita ao Prof. Sánchez. Passou pela casa em que estivera. Que discussões não se desenrolariam ainda atrás daqueles muros de casa de boneca?

Teve a impressão de que todos, na casa do embaixador, estavam à sua espera, e que o vestíbulo e as escadas haviam sido cuidadosamente desimpedidos de espectadores. No andar térreo uma mulher voltou-lhe as costas e fechou-se num quarto. Julgou que fosse a embaixatriz. Do andar superior, duas crianças espiaram-no rapidamente através do corrimão da escada e afastaram-se correndo, batendo os pequenos sal­tos no piso ladrilhado. O mordomo fê-lo entrar na sala de visitas — que estava vazia — e fechou furtivamente a porta atrás de si. Através das altas janelas, podia ver um longo gra­mado verde e esguias árvores subtropicais. Mesmo lá, alguém se afastava rapidamente.

A sala era como muitas outras salas de embaixadas — uma mistura de peças grandes herdadas e de pequenos objetos pessoais adquiridos em países anteriores. Wormold pensou que podia notar um passado em Teerã (um cachimbo de for­mato estranho, um azulejo), Atenas (um dos dois ícones), mas sentiu-se momentaneamente intrigado por uma máscara afri­cana ... De Monróvia, talvez?

O embaixador entrou, com uma gravata M.C.C. e tendo em sua pessoa algo que Hawthorne certamente gostaria de possuir.

— Sente-se, Wormold — disse ele. — Aceita um cigarro?

— Não, obrigado, senhor.

— Aquela cadeira é mais confortável. Agora, não adianta andarmos com rodeios. O senhor está em maus lençóis.

— Estou.

— Claro que não sei de nada. . . de nada absolutamen­te... do que o senhor vem fazendo aqui.

— Vendo aspiradores, senhor.

O embaixador olhou-o com indisfarçável desagrado.

— Aspiradores? Não me referia a isso.

Desviou o olhar e fitou o cachimbo persa, o ícone grego, a máscara da Libéria. Eram como uma autobiografia escrita por um homem, nos melhores dias de sua vida, apenas para que se sentisse seguro.

— Ontem pela manhã o Capitão Segura veio ver-me — acrescentou. — Note que não sei de que maneira a polícia ob­teve essa informação. . . Não é de minha conta, mas ele me disse que o senhor tem enviado para a Inglaterra uma porção de informes de caráter enganador. Não sei para quem o se­nhor os enviou. . . pois isso também não é da minha conta. Disse-me, com efeito, que o senhor tem recebido dinheiro, fin­gindo dispor de fontes de informações que simplesmente não existem. Julguei de meu dever informar incontinenti o Foreign Office. Soube que o senhor receberá ordens para voltar à Inglaterra e apresentar-se. . . não sei a quem. . . nada tenho a ver com isso.

Wormold viu duas cabecinhas a espiá-lo por trás de uma das altas árvores. Olhou-as e elas o olharam — com simpatia, pareceu-lhe.

— Perfeitamente, senhor.

— Tenho a impressão de que o Capitão Segura acha que o senhor está causando muitas complicações aqui. Penso que, se o senhor se recusar a voltar para a Inglaterra, ver-se-á em sérias dificuldades com as autoridades, e, em tais circunstân­cias, eu, claro, nada poderia fazer em seu favor. Nada absolu­tamente. O Capitão Segura desconfia, mesmo, de que o se­nhor forjou certo documento que diz ter encontrado em poder dele. Tudo isso me é sumamente desagradável, Wormold. Não imagina quanto. As fontes corretas de informação, no estrangeiro, são as Embaixadas. Temos, para isso, o nosso attaché*. Essas chamadas informações secretas são uma fonte de complicações para todo embaixador.

* Em francês no texto: adido. (N. do E.)

 

— Perfeitamente, senhor.

— Não sei se o senhor tem notícias disso. . . pois os jor­nais não publicaram... mas, anteontem, à noite, um inglês foi baleado. O Capitão Segura insinuou que o senhor não é estranho a tal ocorrência.

— Encontrei-o uma única vez, durante um almoço, senhor.

— É melhor que volte para a Inglaterra, Wormold, no pri­meiro avião que puder. . . Quanto antes, melhor para mim. . . e que discuta o caso com a sua gente. . . seja ela lá quem for.

— Perfeitamente, senhor.

O avião da K. L. M. devia partir, às três e trinta da madru­gada, com destino a Amsterdã, via Montreal. Wormold não tinha desejo algum de viajar via Kingston, onde talvez Haw­thorne estivesse à sua espera com novas instruções. O escri­tório fora fechado, após uma última mensagem, e Rudy e a sua. mala achavam-se prestes a seguir para a Jamaica. Os li­vros de código haviam sido queimados com a ajuda das fo­lhas de celulóide. Beatrice devia partir em companhia de Rudy. López foi encarregado de cuidar dos aspiradores. Todos os objetos pessoais que Wormold mais prezava foram colocados num caixote que ele conseguiu enviar por mar. A égua foi vendida. . . ao Capitão Segura.

Beatrice ajudou-o a empacotar suas coisas. O último objeto a ser depositado no caixote foi uma imagem de Santa Serafina.

— Milly sente-se muito infeliz — disse Beatrice.

— Ela está maravilhosamente resignada. Diz, como Sir Henry Hudson, que Deus está perto dela tanto na Inglaterra como em Cuba.

— Não foi bem isso que Hudson disse.

Havia um monte de lixo, que não era secreto, para ser queimado.

— Quantas fotografias dela você guardou!. . . — comen­tou Beatrice.

— Eu costumava achar que rasgar uma fotografia era o mesmo que matar uma pessoa. Claro que sei, agora, que é coisa inteiramente diferente.

— Que caixa vermelha é esta?

— Ela me deu, certa vez, com umas abotoaduras. As abotoaduras foram roubadas, mas guardei a caixa. Não sei por que razão. De certo modo estou contente, agora, de me desfazer de tudo isto.

— O fim de uma vida.

— De duas vidas.

— O que é isto?

— Um velho programa.

— Não é tão velho assim. O Tropicana. Posso guardá-lo?

— Você é muito jovem para guardar coisas. Elas se acu­mulam demais. A gente descobre, logo, que não resta lugar para se viver, no meio das caixas de quinquilharias.

— Correrei esse risco. Foi uma noite maravilhosa, aquela.

Milly e Wormold levaram-na ao aeroporto. Rudy desapa­receu discretamente, seguindo o homem que carregava a sua enorme mala. Fora uma tarde quente e as pessoas se reuniam em grupos, tomando aperitivos. Desde a proposta de casa­mento do Capitão Segura, a aia de Milly desaparecera, mas, depois de seu desaparecimento, a criança que ateara fogo aos cabelos de Thomas Earl Parkman Júnior não voltara. Dir-se-ia que Milly, ao tornar-se adulta, deixara para trás, simulta­neamente, essas duas personagens. Disse, com um tato de pes­soa adulta:

— Quero ver se encontro revistas para Beatrice. 268

E deixou-se ficar, junto a uma banca de revistas, com as costas voltadas para ele.

— Perdoe-me — disse Wormold. — Direi a eles, ao vol­tar, que você ignorava tudo. Gostaria de saber para onde a mandarão, depois disto. Para o golfo Pérsico?

— É a idéia que eles têm do purgatório. Regeneração mediante suor e lágrimas. A Phastkleaners tem alguma agên­cia em Basra?

— Receio que a Phastkleaners nada mais queira comigo.

— E que fará você?

— Tenho o suficiente, graças ao pobre Raul, para que Milly passe um ano na Suíça. Depois disso, não sei.

— Você poderia abrir uma loja dessas bugigangas práti­cas . .. esses objetos para não se cortar os dedos, não se sujar a mão de tinta e para evitar-se que as moscas pousem nos tor­rões de açúcar. Como são horríveis as despedidas! Por favor, não espere mais.

— Tornarei a vê-la?

— Procurarei não ir para Basra. Procurarei ficar com o grupo de datilógrafas, em companhia de Angélica, Ethel e Srta. Jenkinson. Se tiver sorte, sairei do serviço às seis, pode­remos encontrar-nos, para uma refeição barata, em Corner House, e ir depois ao cinema. Será uma dessas vidas horrí­veis, como a UNESCO e uma reunião de poetas modernos, não é verdade? Foi divertida a vida aqui, em sua companhia.

— De fato.

— Agora, vá-se embora.

Dirigiu-se à banca de revistas, ao encontro de Milly.

— Vamos embora — disse ele.

— Mas Beatrice. . . não apanhou ainda as revistas.

— Ela não quer revistas.

— Mas não me despedi dela.

— Agora já é tarde; já passou pela emigração. Você a verá em Londres. Talvez.

 

Era como se estivessem passando em aeroportos todo o tempo que lhes restava. Agora era aquele vôo da K.L.M., às três horas da madrugada, e o céu estava róseo devido ao refle­xo das luzes de gás néon e aos sinais luminosos da pista de pouso — e era o Capitão Segura que estava ali para despe­dir-se deles. Procurou fazer que aquela ocasião oficial pare­cesse o mais pessoal possível, mas, ainda assim, aquilo era como uma deportação.

— O senhor obrigou-me a isto — disse Segura, em tom de censura.

— Seus métodos são mais delicados que os de Carter. . . ou que os do Dr. Braun. Que é que vai fazer com o Dr. Braun?

— Ele achará necessário voltar para a Suíça, a fim de tra­tar de assuntos relacionados com os seus instrumentos de precisão.

— Com uma passagem reservada para Moscou?

— Não necessariamente. Talvez Bonn. Ou Washington. Ou, mesmo, Bucareste. Não sei. Quem quer que eles possam ser, devem estar satisfeitos, creio eu, com os seus desenhos.

— Desenhos?

— Das construções de Oriente. Ele também colherá os louros por ter-se livrado de um agente perigoso.

— De mim?

— Sim. Cuba será um pouco mais tranqüila sem os senho­res, mas sentirei falta da Srta. Milly.

— Milly jamais casaria com o senhor, Capitão Segura. Na verdade, ela não gosta de cigarreiras feitas de pele humana.

— Alguma vez já ouviu falar de quem é a pele?

— Não.

— De um policial que torturou meu pai até matá-lo. O se­nhor compreende, ele era um homem pobre. Pertencia à classe torturável.

Milly aproximou-se deles carregando as revistas Time, Life, Paris-Match e Quick. Eram três e quinze da madrugada e havia no céu uma faixa cinzenta, sobre a pista de pouso, com suas luzes de sinalização, onde começara a falsa alvora­da. Os pilotos dirigiram-se para o avião, seguidos da aeromoça. Ele conhecia os três de vista: tinham-se sentado em com­panhia de Beatrice no Tropicana, uma semana antes. O alto-falante anunciou, em inglês e castelhano, o vôo trezentos e noventa e seis, para Montreal e Amsterdã.

— Tenho um presente para cada um — disse Segura, dan­do-lhes dois pequenos pacotes.

Abriram-nos quando o avião voava ainda sobre Havana: a cadeia de luzes, ao longo da praia, desapareceu subitamente e o mar desceu como uma cortina sobre todo o passado. No bolso de Wormold havia uma garrafa em miniatura de Grant's Standfast e uma bala disparada de uma arma perten­cente à polícia. No de Milly uma pequena ferradura de prata com suas iniciais.

— Por que essa bala? — perguntou Milly.

— Oh, uma brincadeira. .. de gosto bastante duvidoso. De qualquer modo, ele não era um mau sujeito.

— Mas não servia para marido — replicou a adulta Milly.

 

Em Londres

Olharam-no com curiosidade, quando ele deu o nome; depois, puseram-no num elevador e o levaram — o que lhe causou certa surpresa — para baixo, e não para cima. Estava sentado, agora, num longo corredor subterrâneo, observando uma luz vermelha acesa sobre uma porta. Haviam-lhe dito que, quando se acendesse uma luz verde, poderia entrar, mas não antes. Pessoas que não prestavam atenção à luz entravam e saíam: algumas carregavam papéis, outras, pastas, e uma delas estava de uniforme — um coronel. Ninguém o olhava; sentiu que ele lhes causava certo embaraço. Ignoravam-no como a gente ignora a presença de um homem aleijado. Tal­vez não fosse devido ao fato de ele claudicar.

Hawthorne aproximou-se pelo corredor, tendo saído do ele­vador. Parecia todo amarfanhado, como se houvesse dormido vestido: talvez tivesse passado a noite toda num avião proce­dente da Jamaica. Também ele o teria ignorado, se Wormold não lhe dirigisse a palavra:

— Alô, Hawthorne.

— Oh, é você, Wormold?

— Beatrice chegou bem?

— Chegou. Naturalmente.

— Onde está ela, Hawthorne?

— Não tenho a menor idéia.

— Que é que está acontecendo aqui? Parece uma corte marcial.

— É uma corte marcial — disse, gèlidamente, Hawthorne, entrando na sala da luz vermelha.

O relógio marcava onze horas e vinte e cinco minutos. Ele fora convidado para estar lá às onze horas.

Pensou se haveria alguma coisa que pudessem fazer-lhe além de despedi-lo, o que, era de se presumir, já haviam feito. Era isso, provavelmente, o que estavam procurando decidir lá dentro. Dificilmente poderiam acusá-lo segundo a lei do Ser­viço Secreto. Ele inventara segredos, mas não os revelara a ninguém. Talvez pudessem tornar-lhe difícil a consecução de um emprego no estrangeiro e, na Inglaterra, não era fácil, na sua idade, encontrar trabalho. Mas não era sua intenção devolver o dinheiro que lhe haviam dado, pois destinava-o a Milly. Sentia, agora, como se o houvesse ganho, em sua quali­dade de alvo para o veneno de Carter, para a bala de Carter.

Às onze e trinta e cinco o coronel saiu; parecia afogueado e furioso, ao caminhar para o elevador. "Ali vai um juiz de enforcamentos", pensou Wormold. A seguir, saiu um homem de jaqueta xadrez. Tinha olhos azuis, muito encovados, e não precisava de uniforme para identificá-lo como da Marinha. Olhou acidentalmente para Wormold e voltou os olhos depressa, para o outro lado, como um homem íntegro.

— Espere por mim, coronel — gritou, seguindo pelo cor­redor com um ligeiro gingar de corpo, como se estivesse, em mar revolto, de volta à ponte de comando. Logo depois, saiu Hawthorne, conversando com um rapaz muito jovem, e, súbi­to, Wormold sentiu-se sem fôlego, pois acendera-se a luz verde e Beatrice estava a seu lado.

— Você deve entrar — disse-lhe ela.

— Qual é o veredicto?

— Não posso falar com você agora. Onde é que está hospedado?

Ele disse-lhe.

— Irei vê-lo às seis horas. Se puder.

— Serei fuzilado ao amanhecer?

— Não se preocupe com isso. Entre, agora; ele não gosta de que o façam esperar.

— Que é que está acontecendo com você?

— Jacarta — respondeu ela.

— Que é isso?

— O fim do mundo. Mais longe do que Basra. Por favor, entre.

Um homem de monóculo negro achava-se sentado, sozi­nho, atrás de uma mesa.

— Sente-se, Wormold.

— Prefiro ficar de pé.

— Oh, isso é uma citação, não é?

— Citação?

— Lembro-me de ter ouvido isso... em alguma peça tea­tral ... em teatro de amadores. Há muitos anos atrás, claro.

Wormold sentou-se.

— O senhor não tem o direito de mandá-la para Jacarta.

— Mandar quem para Jacarta?

— Beatrice.

— Quem é ela? Oh, aquela sua secretária. .. Como odeio isso de se chamar as pessoas pelo seu primeiro nome! Precisa ver a Sita. Jenkinson, quanto a isso. É ela a encarregada do pessoal, e não eu, graças a Deus.

— Ela nada tem a ver com coisa alguma.

— Como coisa alguma? Ouça, Wormold. Resolvemos fe­char o seu posto e surge a questão: que é que vamos fazer com o senhor?

Estava chegando a coisa. A julgar pela cara do coronel que fora um de seus juizes, não seria nada agradável o que viria. O chefe tirou o seu monóculo negro e Wormold ficou surpre­so, diante do olho azul e infantil.

— Achamos que a melhor coisa para o senhor, dadas as circunstâncias, seria ficar na Inglaterra. .. com o nosso pes­soal encarregado do adestramento. Conferências. Como diri­gir um posto no estrangeiro. Eis aí a coisa.

Pareceu engolir algo muito desagradável. E acrescentou:

— Claro que, como sempre acontece quando alguém se afasta de um posto no exterior, indicaremos o seu nome, para que lhe seja concedida uma condecoração. Creio que, no seu caso — pois que o senhor não ficou lá muito tempo —, difi­cilmente poderíamos sugerir algo mais alto do que oficial da Ordem do Império Britânico.

 

Encontraram-se de maneira um tanto cerimoniosa, em meio de uma profusão de cadeiras pintadas de verde-claro, num hotel modesto chamado Pendennis, perto de Gower Street.

— Não creio que possa oferecer-lhe um drinque — disse ele. — Estamos numa época de temperança.

— Por que veio aqui então?

— Costumava vir aqui com os meus pais, quando menino. Eu nada sabia acerca de temperança. Era coisa que não me preocupava. Beatrice, que foi que aconteceu? Acaso eles estão malucos?

— Estão bastante zangados conosco. Acharam que eu devia ter percebido o que estava ocorrendo. O chefe convocou uma reunião bastante importante. Seus elementos de ligação estavam todos lá, juntamente com o pessoal do Ministério da Guerra, do Almirantado e do Ministério da Aeronáutica. Ti­nham todos os seus relatórios diante dos olhos e examina­ram-nos um por um: infiltração comunista no Governo... Ninguém se importou em enviar um memorando ao Foreign Office, cancelando-o. Havia os informes de caráter econô­mico: concordaram que deviam ser também deixados de lado. Somente a Câmara de Comércio se interessaria por eles. Nin­guém ficou realmente impressionado, enquanto não surgiram os relatórios do Serviço Secreto. Havia um sobre descontenta­mento na Marinha e outro sobre bases de reabastecimento de submarinos. O comandante comentou: "Deve haver aí algu­ma verdade". Respondi: "Veja a fonte, senhor. Ela não exis­te". O comandante prosseguiu: "Tomaremos conta desses idiotas. Irão ficar tão satisfeitos quanto Punch no Serviço Secreto Naval". Mas isso não foi nada, comparado ao que sentiram diante dos informes relativos às construções.

— Então eles engoliram, realmente, aqueles desenhos?

— Foi então que se voltaram contra Henry.

— Gostaria de que você não o chamasse de Henry.

— Disseram, antes de mais nada, que ele jamais havia informado que você vendia aspiradores elétricos, mas, sim, que era uma espécie de rei dos comerciantes. O chefe não par­ticipou dessa investida: parecia, por algum motivo, embara­çado, mas, de qualquer modo, Henry. . . quero dizer, Hawthorne... apresentou a pasta de papéis, com todos os pormenores referentes ao caso. Aquilo jamais havia saído, claro, da seção da Srta. Jenkinson. Disseram que ele deveria ter reconhecido, ao vê-los, que se tratava de peças de um aspi­rador. Ele respondeu que de fato o notara, mas que não havia razão pela qual o princípio de um aspirador doméstico não pudesse ser aplicado a uma arma. Depois disso, todos uivaram exigindo o seu sangue... todos, menos o chefe. Houve momentos em que me pareceu que ele percebia o lado cômico da história. Disse, então, aos presentes: "O que temos a fazer é bastante simples. Temos de informar ao Almirantado, ao Ministério da Guerra e ao Ministério da Aeronáutica que todos os relatórios provenientes de Havana, nos últimos seis meses, são inteiramente destituídos de fundamento".

— Mas, Beatrice, eles me ofereceram um emprego. . .

— Isso pode ser facilmente explicado. O comandante foi quem primeiro arriou a mochila. Talvez a gente aprenda, no mar, a encarar as coisas com vagar. Disse que aquilo arruina­ria o Serviço Secreto, quanto ao que dizia respeito ao Almi­rantado. No futuro, confiariam apenas no Serviço Secreto Naval. Então, o coronel disse: "Se eu contar ao Departa­mento da Guerra o que houve, é bem possível que nós tam­bém abalemos". Estavam diante de um verdadeiro impasse, até que o chefe sugeriu que talvez o plano mais simples fosse o de fazer circular mais um relatório do 59200/5 — que as construções haviam redundado em fracasso, tendo sido, por conseguinte, desmanteladas. Restava ainda, claro, o que se referia a você. O chefe achava que você havia adquirido valio­sa experiência, a qual devia ser aproveitada antes para uso do departamento do que da imprensa popular. Demasiada gente já havia escrito, recentemente, reminiscências acerca do Ser­viço Secreto. Alguém se referiu à lei do Serviço Secreto, mas o chefe era de opinião que o seu caso não se enquadrava na mesma. Queria que você os visse, ao perceberem que a vítima lhes escapava! Aí, então, voltaram-se, claro, contra mim, mas eu não iria permitir que aquela súcia me interrogasse. De modo que tomei a palavra.

— Que foi, com a breca, que você disse?

— Disse-lhes que, mesmo que eu soubesse o que se passa­va, não teria impedido que você agisse. Disse-lhes que você estava trabalhando por algo importante, por algo que você amava. . . e não pela idéia que alguém pudesse ter de uma guerra total que talvez jamais viesse a ser deflagrada. Aquele idiota vestido de coronel disse algo a respeito de "seu país". Perguntei-lhe: "Que é que o senhor entende por 'seu país'? Uma bandeira que alguém inventou há duzentos anos? O Tri­bunal dos Bispos a discutir acerca do divórcio ou os membros da Câmara dos Comuns a gritar 'Sim' uns para os outros através do plenário? Ou o senhor se refere ao Congresso das Trade-Union, às ferrovias britânicas ou às cooperativas? Pode ser que pense que é o seu regimento, se é que pensa nele, mas nós não temos regimento algum.. . ele e eu". Procura­ram interromper-me, mas prossegui: "Oh, havia esquecido: há algo maior do que o próprio país a que se pertence, não há? É o que nos ensinaram com a sua Liga das Nações e com o seu Pacto do Atlântico, com a NATO, a ONU e a SEATO. Mas, para a maioria dentre nós, isso não significa mais do que as outras letras, USA e URSS. E já não acreditamos mais nos senhores, quando dizem que desejam paz, justiça e liber­dade. Que espécie de liberdade? O que os senhores querem é garantir as suas carreiras". Disse, ainda, que simpatizava com os oficiais franceses que, em 1940, procuraram cuidar de suas famílias; de qualquer modo, não haviam colocado as suas carreiras em primeiro lugar. Um país é mais uma família do que um sistema parlamentar.

— Santo Deus! Você lhes disse tudo isso?

— Disse. Fiz um verdadeiro discurso.

— E acreditou no que disse?

— Em tudo, não. Mas eles não nos deixaram muita coisa em que acreditar, deixaram? Nem mesmo na descrença. Não posso acreditar que haja algo mais importante que um lar, nem mais vago do que uma criatura humana.

— Qualquer criatura humana?

Ela afastou-se rapidamente, sem responder, por entre as cadeiras pintadas de verde, e ele viu que suas próprias pala­vras a haviam levado quase até as lágrimas. Dez anos antes, teria corrido ao seu encalço, mas a meia-idade é o período da triste cautela. Viu-a atravessar a melancólica sala e pensou: "Querida, é uma maneira de falar.. . catorze anos de dife­rença entre nós. . . Milly..." Não se deveria fazer nada que escandalizasse um filho ou que ofendesse uma crença de que não se compartilha. Ela já havia chegado à porta quando ele a alcançou.

— Estive procurando Jacarta em todos os livros de con­sulta — disse ele. — Você não pode ir para lá. É um lugar horrível.

— Não me resta outra escolha. Procurei ficar na seção da Srta. Jenkinson.

— E você quer ficar lá?

— Poderíamos encontrar-nos, de vez em quando, em Corner House e ir ao cinema.

— Uma vida medonha. . . como você mesma disse.

— Você faria parte dela.

— Beatrice, sou catorze anos mais velho do que você.

— E que é que isso tem a ver, com os diabos, com o assun­to? Sei o que realmente o preocupa. Não é a idade; é Milly.

— Ela tem de aprender que o seu pai também é uma cria­tura humana.

— Ela me disse, certa vez, que não daria certo o meu amor por você.

— Tem de dar. Não posso amá-la como um tráfego numa só direção.

— Não será fácil explicar isso a ela.

— Talvez não seja muito fácil a você ficar em minha com­panhia, decorridos alguns anos.

— Querido, não se preocupe mais com isso — respondeu ela. — Você não será abandonado duas vezes.

Estavam-se beijando, quando Milly se aproximou, carre­gando uma grande cesta de costura, pertencente a uma senho­ra idosa. Seu aspecto era particularmente virtuoso. Tinha, provavelmente, iniciado um período de boas ações. A senhora idosa viu-os primeiro e agarrou o braço de Milly.

— Que coisa! Fazer isso onde todos podem vê-los!

— Não tem importância — respondeu Milly. — Trata-se apenas de meu pai.

O som das vozes fez com que se separassem.

— Essa é sua mãe? — indagou a velha.

— Não. É a secretária dele.

— Dê-me a cesta — disse a velha, indignada.

— Bem, aí está! — exclamou Beatrice.

— Perdoe-me, Milly — disse Wormold.

— Oh, já era tempo de que ela aprendesse alguma coisa acerca da vida.

— Eu não estava pensando nela. Sei que, para você, isto não parecerá um casamento verdadeiro.. .

— Alegra-me saber que vão casar. Em Havana, pensei que estavam tendo apenas um caso amoroso. No fim dá tudo no mesmo — não é verdade? —, pois vocês já são casados... mas, de certo modo, será mais correto. Papai, você sabe onde fica Tittersall?

— Em Knightsbridge, creio eu, mas já estará fechada.

— Quero apenas conhecer o caminho.

— E você não se importa, Milly?

— Oh, os pagãos podem fazer quase tudo, e vocês são pagãos. Pagãos bons. Sorte de vocês. Estarei de volta para o jantar.

— Está vendo? — disse Beatrice. — Saiu tudo bem, afinal de contas.

— Sim. Eu a eduquei bastante bem, não acha? Posso fazer certas coisas de maneira adequada. O relatório acerca dos agentes nossos inimigos deve ter-lhes dado prazer, pois não?

— Não muito. O laboratório, querido, gastava uma hora e meia a mergulhar cada selo em água, à procura do seu ponti­nho. Creio que o encontraram no centésimo quadragésimo oi­tavo selo. . . Depois, tentaram ampliá-lo... mas não havia nada lá. Ou você expôs demasiado o filme ou usou o lado er­rado do microscópio.

— E mesmo assim vão conceder-me a Ordem do Império Britânico?

— Vão.

— E um emprego?

— Duvido que você o conserve por muito tempo.

— Não pretendo fazê-lo. Beatrice, quando foi que você começou... a imaginar que poderia, de algum modo. . .

Ela pôs-lhe a mão no ombro e conduziu-o, para a frente, para trás e para o lado, por entre as melancólicas cadeiras.

— Posso bem entender o que você quer dizer, quando afir­ma que não sabe dançar — disse ela.

E pôs-se a cantar, um pouco fora de tom, como se, para alcançá-lo, houvesse corrido um bom pedaço:

 

Homens sensatos, velhos

Amigos da família, nos cercam.

Dizem que a Terra é redonda.

Minha loucura ofendem.

As laranjas têm sementes, dizem,

E as maçãs, cascas.

Digo que a noite é dia

E que não tenho machado para afiar.

 

— De que é que você irá viver? — perguntou Wormold.

— Você e eu havemos de encontrar um meio.

— Somos três — ajuntou Wormold.

E ela compreendeu qual seria o principal problema, no fu­turo que os aguardava: ele jamais seria suficientemente maluco.

 

                                                                                            Graham Greene  

 

                      

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