Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AGENTE SECRETO / Graham Greene
O AGENTE SECRETO / Graham Greene

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O AGENTE SECRETO

 

As gaivotas pairavam no céu de Dover. Destacavam-se como flocos desprendidos da neblina e voltavam à cidade escondida, ao mesmo tempo que, ao longe, se ouvia o murmúrio de uma sirene, utros navios corresponderam e logo um coro de lamentações se levantou - pela morte de quem? O navio avançava a meia velocidade, no amargor da tarde de outono. Lembrava a D. uma carreta funerária rodando lenta e discretamente para o “jardim da paz”, uma carreta que o condutor guia cuidadosamente para não sacudir o caixão, como se os solavancos do caminho pudessem incomodar o corpo. Por entre as plumas da chaminé soavam gritos histéricos de mulher.

O bar da terceira classe estava completamente cheio: um grupo de jogadores de rugbi regressava a Inglaterra e os rapazes, com as suas gravatas listradas, acotovelavam-se ruidosamente para alcançar os copos. D. nem sempre entendia as palavras que eles gritavam: era calão? Era um dialeto? Precisaria ainda de algum tempo para se lembrar completamente da língua inglesa. Outrora, a havia falado perfeitamente, mas agora os seus conhecimentos tinham-se tornado muito literários. Tentou isolar-se - ele, homem de meia-idade, com o seu bigode farto, uma cicatriz no queixo e, na testa, uma ruga de preocupações, permanente como um hábito - mas não era naquele bar que poderia pôr-se à parte. Sentiu um cotovelo golpeando-lhe as costas e uma boca que exalava um hálito de cerveja engarrafada. Aquela gente assombrava-o, ninguém diria, ao vê-los tão contentes por entre a fumaça dos cigarros, que havia naquele momento uma guerra - e não só no país de onde ele vinha, mas também ali, a meia milha de Dover! D. transportava a guerra com ele. Nunca pudera compreender como as pessoas não o sentiam.

- Deixem passar, deixem passar!... - gritou um dos jogadores dirigindo-se ao homem do bar.

Alguém lhe apanhou o copo, berrando:

- Fora de jogo!

- Mêée! - responderam todos em coro.

- Com sua licença, com sua licença - ia dizendo D.

E esgueirou-se para fora. Levantou a gola do impermeável e subiu ao convés do navio repassado de frígido nevoeiro, no céu as gaivotas de Dover vibravam os seus grasnos lúgubres. Começou a andar de um lado para o outro, para se aquecer, junto da amurada, a cabeça baixa, os olhos fixos nas tábuas do pavimento, em que via, em uma quase alucinação, um mapa sulcado de trincheiras, de posições insustentáveis, de salientes, de mortos; de um ponto entre os seus olhos descolavam bombardeiros e no seu cérebro estremeciam montanhas sob a explosão de granadas.

Deste perambular no convés do navio inglês, que deslizando imperceptivelmente entrava no porto de Dover, não lhe vinha a menor impressão de segurança. O perigo fazia parte dele próprio. E não como um sobretudo que pode se deixar em casa, mas como se fosse a própria pele. Morre-se com esta pele que só a podridão da morte nos despe. Só podemos confiar em nós. No cadáver de um amigo, debaixo da sua camisa, encontrou uma medalha benzida, um outro amigo pertenceu a uma organização cujas iniciais eram falsas. E, assim, calcorreava de ponta a ponta este convés da terceira classe, de trás para diante e de diante para trás, até ao limite em que os seus passos eram interrompidos por um letreiro: “Reservado aos passageiros de primeira classe”. Houvera um tempo em que a distinção de classes o teria magoado como um insulto, agora as classes sociais estavam muito subdivididas para que a coisa tivesse ainda qualquer significado. Olhou para o convés da primeira classe. Só havia ali, no frio, um homem, também de gola levantada, que, encostado à amurada, olhava para Dover.

D. voltou para trás, os aviões recomeçaram a voar ao ritmo regular dos seus passos. Ninguém pode estar seguro senão de si próprio e, mesmo assim, há momentos em que nos perguntamos se não será ilusório esse sentimento escasso de segurança. Eles já não têm confiança em você, sobretudo porque acreditaram no amigo que usava uma medalha de santidade, pelo que lhes dizia respeito, eles tiveram razão - e quem pode dizer se não terão também razão quanto a você? Você... você é um monte de preconceitos, a ideologia é uma coisa complexa em que as heresias se infiltram... D. não tinha certeza que, mesmo naquele instante, não estava sendo vigiado. Durante alguns minutos sentiu-se oprimido por uma sensação de desconfiança universal. Em um dos bolsos interiores, muito próximos ao peito, levava aquilo a que se costuma chamar “cartas credenciais” - mas crédito já não era sinônimo de confiança.

Voltou lentamente para trás - como se levasse até onde possível a corrente da sua prisão. Uma voz fresca de mulher gritou no nevoeiro: “Quero, mais um! Quero beber mais um!” Em algum lugar, sabia-se lá onde, soou um ruído de vidros se quebrando. Alguém chorava atrás de uma das lanchas salva-vidas, para onde quer que fosse, tudo lhe parecia estranho. Seguiu cuidadosamente a curva do turco em frente e descobriu uma criança encolhida a um canto. De pé, diante do pequeno, D. mirou-o demoradamente. Esta criança não tinha para ele nenhuma realidade - era semelhante àquelas escritas tão ilegíveis que nem sequer tentamos ler. Perguntou-se se na verdade nunca mais seria capaz de partilhar da comoção de alguém. E perguntou ao pequeno com indiferente doçura:

- Que você tem?

- Dei uma cabeçada.

- Está sozinho?

- Foi meu pai que me pôs aqui.

- Por ter dado uma cabeçada?

A criança parou de chorar. Começou a tossir por causa do nevoeiro que lhe arranhava a garganta. Na defensiva, D. sentiu um olhar negro que o fitava do fundo da cavidade aberta entre a lancha e a amurada. Deu meia-volta e recomeçou a andar; pensou que não devia ter falado com a criança que, provavelmente, estava aos cuidado de um pai ou de uma mãe. Avançou até à barreira “Reservado aos passageiros de primeira classe” e olhou para o espaço proibido. O outro homem, por entre o nevoeiro, arrastava até ao fim a corrente da sua prisão. D. viu-lhe primeiro o vinco elegante das calças, depois a gola de pele do sobretudo e, finalmente, a cara. Ambos se miraram através da barreira frágil. Apanhados de surpresa, nada encontraram para dizer. Além disso, nunca tinham se falado: estavam separados por iniciais diferentes, um certo número de mortos. Tinham-se entrevisto em um corredor muitos anos atrás, depois outra vez em uma estação de trem e, por fim, em um aeroporto. D. nem sequer se lembrava do nome dele.

O outro foi o primeiro a recomeçar o passeio, era grande, fino como um prego, abafado em um sobretudo espesso, com um ar ágil e nervoso. Caminhava depressa, com as pernas rígidas mas que, visivelmente, também eram elásticas. Tinha o aspecto de quem sabe o que vai fazer. D. pensou: “talvez vá tentar me roubar, talvez até me matar”. Tinha certamente muito mais apoios, amigos e dinheiro do que ele. Levava cartas de recomendação para lordes e ministros - ele próprio usara, outrora, antes da República, um título... conde ou marquês... D. já não se lembrava precisamente do que era. Era lamentável esta viagem de ambos no mesmo paquete e o seu encontro, assim, na barreira que separava as duas classes, dois agentes secretos à procura da mesma coisa.

A sirene soltou um novo grito de angústia e, de repente, emergindo do nevoeiro como caras a mostrando-se nas janelas, surgiram navios, luzes, um trecho do molhe. Destacavam-se de um conjunto compacto. A máquina foi esmorecendo e depois parou. D. ouviu o flip-flap da água contra o costado do navio e teve a impressão de que vogavam de lado. Alguém, invisível, gritou - um grito que parecia saído do próprio mar. Deslizando lateralmente, o navio foi-se aproximando do cais. Era a chegada, afinal muito simples. Uma multidão de pessoas com bagagens foi repelida pelos marinheiros que pareciam querer demolir o navio.

Começaram então a escoar-se os passageiros com as suas malas repletas de etiquetas de hotéis suíços e de pensões de Biarritz. D. deixou a multidão sair. Toda a sua bagagem consistia em uma maleta de couro com uma escova de cabelo e um pente, uma escova de dentes e alguns objetos. Perdera o hábito do pijama já que este era inútil quando se está sujeito a ter de saltar da cama, devido às bombas, duas vezes por noite.

Para a fiscalização dos passaportes a fila dos passageiros dívidiu-se em duas alas: estrangeiros e súditos britânicos. Os estrangeiros não eram muito numerosos; a alguns passos de D. O homem alto da primeira classe tiritava um pouco sob o sobretudo forrado de pele, pálido e delicado, não era homem para este hangar devassado por todos os ventos do enorme cais. Mas passou rapidamente: tinha bastado uma simples olhadela para os seus papéis. Estava munido de um atestado de autenticidade como as obras de arte antiga - pensou D., sem azedume, era um objeto de museu. Todas as pessoas deste lado do canal lhe pareciam peças de museu - as suas vidas armazenadas em grandes casas frias como as galerias de arte abertas ao público, em que pendem das paredes enjoativos quadros antigos e dormem nos corredores velhas cômodas de embutidos.

D. sentiu-se bruscamente imobilizado. Um homem muito amável, de farto bigode louro, perguntava-lhe:

- O senhor diz que esta fotografia é sua?

- Decerto - respondeu ele.

E olhou para baixo. Nunca lhe tinha passado pela cabeça olhar para o passaporte. Não o via - sabe-se lá! - há muitos anos. Viu o rosto de um desconhecido de um homem mais novo e, evidentemente, muito mais feliz do que ele - um homem que tinha sorrido para a máquina fotográfica.

- É uma fotografia antiga - explicou ele.

Tirara-a antes de ter sido preso, antes da execução da sua mulher, antes do raid aéreo de 23 de Dezembro em que estivera enterrado em uma cave durante cinquenta e seis horas. Como explicar todas estas coisas ao funcionário da alfândega?

- Há quanto tempo foi tirada?

- Talvez dois anos.

- Mas agora o senhor tem o cabelo grisalho.

- É mesmo?!

- Tenha a bondade de se afastar um pouco - pediu o detetive - e deixar passar os outros passageiros.

Falava delicadamente e sem pressa. É porque este país é uma ilha. Na terra de D. já teriam chamado soldados, pensado imediatamente que ele era um espião e conduzido em voz alta um interrogatório febril e interminável. O detetive aproximou-se dele a ponto de lhe tocar.

- Sinto atrasá-lo - disse. - Queira por favor entrar para aqui por um momento.

Abriu uma porta. D. entrou. Viu uma mesa, duas cadeiras e uma fotografia de Eduardo VII a inaugurar a carreira de um trem expresso que tinha o nome de Alexandra; caras da época, no alto de grandes colarinhos brancos de goma, arvoravam sorrisos estereotipados, o maquinista da locomotiva ia de chapéu de coco.

- Estou desolado com este incidente - disse o detetive. - O seu passaporte parece-me perfeitamente correto, mas esta fotografia... Basta-lhe olhar para o espelho para ver a diferença!

Olhou para o único espelho que ali havia - a chaminé da locomotiva e a barba de Eduardo VII não lhe permitiam ver-se muito bem - e teve de confessar que o detetive tinha razão. Tinha realmente um ar muito diferente.

- Na verdade, não pensava que tivesse mudado tanto.

O detetive observava-o atentamente. Sim, lá estava o D. de outros tempos, lembrava-se agora, fora precisamente há três anos. Tinha então quarenta e dois anos e não parecia. A mulher acompanhara-o ao fotógrafo e ele tencionava pedir seis meses de licença na Universidade para viajar - com ela, claro. A guerra civil eclodira três dias depois. Estivera seis meses em uma prisão militar, a mulher fora fuzilada: um erro, não uma atrocidade - e depois... todos sabem até que ponto a guerra transforma um homem... e isto foi antes da guerra. Rira por causa de uma história engraçada uma história em que se falava de abacaxis, eram as primeiras férias, depois de muitos anos, que iam passar juntos. Estavam casados há quinze anos. Lembrava-se agora perfeitamente da máquina fotográfica antiquada, do desaparecimento do fotógrafo por baixo de um pano negro... Da mulher apenas conservava uma imagem vaga. Sentira uma grande paixão por ela e era-lhe penoso recordá-la.

- Tem outros papéis? - perguntou o detetive. - Há alguém em Londres que o conheça? O seu embaixador?

- Oh, não. Sou apenas uma pessoa sem importância.

- Viagem de lazer?

- Não. Tenho algumas cartas comerciais de apresentação. - Sorriu ao detetive, mas as cartas podiam muito bem ser falsas. Não sentia cólera. O bigode grisalho, as rugas profundas aos cantos da boca - tudo isso era novo, como a cicatriz do queixo. Palpou-a.

- Como sabe, estamos em guerra.

Perguntava-se o que fazia o outro naquele momento. Não tinha perdido tempo. Talvez até tivesse um carro à espera. Chegaria a Londres muito antes dele, o que provocaria aborrecimentos do diabo. Sem dúvida recebera instruções para impedir que qualquer agente do outro partido interviesse nas compras de carvão. Antes da descoberta da eletricidade chamava-se correntemente ao carvão “o diamante negro”. De fato, no seu país o carvão era tão precioso como o diamante e não tardaria a ser tão raro como este.

- Note - disse o detetive - que o seu passaporte está perfeitamente em ordem. Talvez possa me dizer onde vai instalar-se em Londres, o endereço?

- Não faço a menor idéia.

O detetive píscou-lhe o olho - tão rapidamente que D. mal acreditou no que viu.

- Dê-me uma direção qualquer - disse ele.

- Ah, bem... Existe um hotel, não é verdade, que se chama Ritz?

- Existe, mas no seu lugar escolheria um mais barato.

- Bristol. Há um Bristol em toda a parte.

- Na Inglaterra não.

- Então onde lhe parece que um homem como eu se hospedaria?

- Strand Palace.

- Muito bem.

Com um sorriso, o detetive devolveu-lhe o passaporte.

- Desculpe-me, mas temos de ser desconfiados. Tem de andar depressa se não quer perder o trem.

 “Desconfiar! - pensou D. - Era então aquilo que nesta ilha chamavam, desconfiar? Como lhes invejava este sentimento de segurança!”

Por causa do atraso, D. voltou para o fim da fila. Os rapazes do rugbi já deviam estar na plataforma de onde o trem ia partir; quanto ao seu compatriota, estava convencido de que não tivera de esperar. Uma voz de mulher dizia:

- Oh, tenho uma porção de coisas a declarar.

Era uma voz dura, já a ouvira no bar a reclamar “mais um”. Olhou para ela sem grande interesse; tinha chegado a uma altura da vida em que, pelo que respeita às mulheres, ou somos desequilibrados ou indiferentes, aquela podia ser sua filha.

- Tenho uma garrafa de brandy, mas já está aberta - dizia a garota.

Enquanto esperava a sua vez, D. pensou vagamente que ela não devia beber tanto. A voz não a favorecia na mentira: não era do tipo de mulher que bebe muito. Perguntava-se se ela teria estado a beber na terceira classe, estava bem vestida, como um manequim de alta costura.

Entretanto, ela continuava:

- Tenho também uma garrafa de calvados igualmente aberta.

D. sentiu-se fatigado. Quando acabariam com aquilo e o deixariam passar? Ela era muito nova, loira e inutilmente arrogante. Tinha o ar das crianças a quem falta tudo o que desejam verdadeiramente e estão resolvidas a alcançar seja o que for, quer o desejem ou não.

- Ah, sim - disse ela, - isso também é brandy. Já o teria declarado se tivesse me dado tempo. Como vê, também está aberta.

- Tenha paciência - disse o homem da alfândega - mas tem de pagar direitos sobre uma parte destas bebidas.

- Não há direito!

- Se quiser, mostre-lhe as pautas.

A discussão eternizava-se. Veio outro que, depois de examinar o saco de D., o deixou passar.

- O trem para Londres? - perguntou.

- Já partiu. Terá de esperar pelo das sete e dez.

A garota gritava, encolerizada:

- O meu pai é do Conselho de Administração da Companhia!

- Isso nada tem a ver com a alfândega.

- É Lord Benditch.

- Se quer levar estas garrafas terá de pagar vinte e sete xelins e seis pence.

Era então a filha de Lord Benditch! Esperou-a à saída para vê-la melhor. Viria ele a ter com Lord Benditch tantas dificuldades como o funcionário da alfândega tivera com a sua filha? Eram tantas as coisas que dependiam de Benditch: se o magnata se decidisse a vender aos outros o carvão a preços aceitáveis, eles poderiam resistir durante anos, se não, a guerra acabaria talvez antes da Primavera.

Parecia que ela obtivera o que queria - um presságio? - quando se dirigiu para a porta que dava para o cais coberto de nevoeiro. Tinha o ar de dominar todo o mundo. A noite havia chegado antes de tempo, uma lâmpada mortiça pendia perto de um quiosque de livros e uma zona de bagagens estava encostada a uma placa que indicava Horlicks. Era impossível ver a plataforma imediata e, assim, este entroncamento do grande porto de mar - era como D. O considerava - poderia não ser senão uma daquelas estações rurais, implantada entre os campos, que os trens rápidos atravessam sem parar.

- Bolas! - exclamou a garoto. - Já partiu.

D. informou-a:

- Há outro daqui a hora e meia.

Sentia, à medida que ia falando, que o seu inglês lhe acudia, como se nele se infiltrasse o idioma do país, de mistura com o nevoeiro e o odor da fumarada. Não compreenderia que ali se falasse outra língua.

- É o que eles querem - replicou a garota. - Com este nevoeiro vamos chegar atrasadíssimos.

- Tenho de chegar esta noite a Londres.

- Eu também.

- Talvez o nevoeiro vá passando à medida que nos afastarmos do mar.

Mas ela afastou-se e pôs-se a passear nervosamente na plataforma gelada. Desapareceu atrás do quiosque de livros para voltar pouco depois mordiscando um bolo. Ofereceu-lhe outro, como se ele estivesse enjaulado:

- Quer um?

- Muito obrigado.

Ele aceitou com ar solene e começou a comer: era a hospitalidade inglesa.

- Vou ver se encontro um carro - disse ela. - Não estou para esperar uma hora neste buraco imundo. Talvez haja menos nevoeiro depois de nos afastarmos do mar (ela tinha ouvido, portanto, o que ele dissera). - Atirou o resto do bolo na direção da linha, em uma atitude de ilusionista: um bolo... desapareceu o bolo! Perguntou: - Quer uma carona?

E como o visse hesitar:

- Estou sóbria como um juiz.

- Muito obrigado, não era nisso que eu estava pensando. Perguntava-me apenas se será mais rápido.

- Claro que é mais rápido que o trem daqui a hora e meia.

- Nesse caso, aceito.

Bruscamente - tinham ambos avançado até à borda da plataforma - surgiu, de modo estranho, aos pés dela um homem com o rosto enfarruscada que disse:

- O minha senhora, eu não estou no Jardim Zoológico.

Ela baixou os olhos sem surpresa:

- E quem disse que estava?

- Atirarando bolos dessa maneira...

Ela irritou-se:

- Não diga asneiras.

- Agressão - rosnou o homem. - Podia queixar-me, minha senhora, era um projétil.

- Qual projétil, era um bolo!

Ergueu-se apoiado em uma das mãos e em um pé. O seu rosto aproximou-se.

- Eu lhe direi o que é - ameaçou a voz.

D. interveio:

- Não foi a senhora que atirou o bolo. Fui eu. Pode queixar-se de mim se quiser. Chamo-me D., Strand Hotel, Londres... - Pegou... como se chamaria ela?... pegou-lhe no braço e conduziu-a para a saída.

- Sabe - disse a garota -, não valia realmente a pena ter se incomodado.

- Ficou sabendo o meu nome.

- Ah, o meu, se também quer saber, é Cullen, Rose Cullen. Um nome hediondo, mas que quer? O meu pai tem a mania das rosas. Foi ele quem inventou, não sei se é assim que se diz, a “Marquesa de Pompadour”. Como também gosta de prostitutas, das prostitutas reais, temos uma casa que se chama Gwyn Cottage.

Tiveram sorte com o carro. Próximo da estação havia uma garagem tão bem iluminada que, mesmo com nevoeiro, se vislumbrava a cinquenta metros. Encontraram aí um carro de aluguel: um velho Packard.

D. disse:

- É uma coincidência curiosa! Tenho um negócio a tratar com Lord Benditch.

- Não me admira. Não encontro ninguém que não tenha negócios a tratar com ele.

Ela conduzia lentamente, em uma direção que supunha ser a de Londres, com solavancos nas passagens de nível.

- Não corremos o risco de nos perder se seguirmos a linha do trem.

- Viaja sempre em terceira classe? - perguntou ele.

- Gosto de escolher os companheiros de viagem. Na terceira classe não me arrisco a encontrar as pessoas que têm negócios com o meu pai.

- Eu estava lá.

Ela exclamou:

- Valha-me Deus! O porto.

Engatou uma marcha ré audaciosa e voltou em sentido contrário, no meio do nevoeiro ouviam-se ruídos metálicos de freios e o vociferar dos homens. Refizeram, às apalpadelas, o caminho já percorrido e atacaram uma subida.

- Está claro - disse ela -, se tivéssemos sido escoteiros não nos teríamos enganado, os escoteiros sabem que se desce sempre da terra para o lado do mar.

No alto da colina o nevoeiro tornou-se menos denso, viam-se farrapos do céu cinzento e frio da tarde, sebes semelhantes a cristas de aço e, por toda parte, reinava o silêncio. Um cordeiro corria e saltava na erva que orlava a estrada. De repente, a duzentos metros, apareceu uma luz. Estava ali a paz.

- Como devem ser felizes neste país!

- Felizes? Porquê?

- Esta segurança...

Lembrou-se do detetive que lhe tinha piscado amigavelmente o olho e lhe dissera “temos de ser desconfiados”.

- Nem tanto como pensa - disse ela com a sua voz fresca e desenvolta de criança mal-educada...

- Oh, não, não!... - explicava-se laboriosamente. - Passei dois anos na guerra. Habituei-me a seguir em uma estrada como esta muito, muito lentamente, sempre pronto a parar para me deitar em qualquer parte, na primeira valeta, quando se ouvia um avião.

- Bem, suponho que estava lutando por qualquer coisa. Não é assim?

- Não me lembro. Um dos efeitos do medo, ao fim de certo tempo, é o de destruir em nós toda a capacidade emotiva. Creio que nunca mais serei capaz de sentir alguma coisa senão o medo. Nenhum de nós pode amar ou odiar seja o que for. É um fato estatístico: nascem agora muito poucas crianças no nosso país.

- E, no entanto, a sua guerra continua. Deve existir uma razão. É preciso ser capaz de sentir para se conseguir acabar com uma guerra. Às vezes penso que não nos livramos dela porque ainda temos medo. Se deixarmos de senti-lo, teremos perdido toda a sensibilidade. Nenhum de nós está em condições de gozar uma paz.

Como uma ilha, surgiu repentinamente diante deles uma pequena aldeia - uma velha igreja, algumas sepulturas e uma hospedaria.

- Se eu fosse a senhora, a senhora que possui isto, não a invejaria. Queria falar destas coisas banais e tranquilas... da estranha irrealidade de uma estrada que se pode seguir até além de todos os horizontes.- Não é preciso uma guerra para nos tirar o gosto de tudo. O dinheiro, os pais e outras coisas, podem conduzir-nos ao mesmo resultado.

Ele disse tristemente:

- Afinal, a senhora é nova... e muito bonita.

- Oh! Raios! - exclamou ela. - Vai começar a fazer-me a corte?

- Não, claro que não! Como disse, sou incapaz de sentir. E, além disso, sou velho.

Soou bruscamente uma detonação. O carro ziguezagueou e D. levantou os braços, para proteger o rosto. Depois o carro parou.

- Furou um pneu - disse ela.

Ele baixou os braços.

- Desculpe. São coisas que ainda me assustam. - As suas mãos tremiam. - o medo!

- Não há nada neste país que possa causar-lhe medo.

- Não tenho certeza.

Levava a guerra no coração. “Se  me dessem tempo... pensava ele infectaria tudo, até isto. Devia andar com uma campainha como os leprosos de antigamente.”

- Não seja melodramático - disse ela -, os melodramas horrorizam-me.

Pôs o carro em movimento e seguiram aos solavancos.

- Havemos de encontrar uma hospedaria, uma garagem ou qualquer outra coisa. Está muito frio para mudarmos aqui este maldito pneu. - Pouco depois, acrescentou: - O nevoeiro está mais denso.

- Parece-lhe que podemos continuar assim, com um pneu em baixo?

- Não tenha medo.

A desculpar-se, ele explicou:

- É que, veja, tenho um assunto importante para tratar em Londres.

Ela voltou o rosto para ele - uma cara franzina, atormentada, absurdamente jovem. Lembrou-lhe uma menina aborrecida em uma reunião de crianças. Não devia ter mais de vinte anos, poderia ser sua filha.

- Você parece um poço de mistérios - disse ela. - Se a sua intenção é pôr-me de boca aberta, espantada...

- Não.

- É um truque que já passou de moda.

- Já o experimentaram muitas vezes com você?

- Não as contei - replicou ela.

Parecia-lhe infinitamente triste que uma garota tão nova exibisse tanta impostura. Talvez por já estar mais velho achava que a mocidade deve ser uma estação de... Meu Deus! Digamos de esperança. Assegurou-lhe com doçura:

- Não, não tenho nada de misterioso. Sou apenas um homem de negócios.

- Não me diga que também você tem dinheiro em barda?

- Ah, não! Sou o representante de uma firma bastante pequena.

Bruscamente ela sorriu e, sem comoção, ele pensou: “Poderia dizer-se que é linda.”

- Casado? - perguntou ela.

- Sim e não.

- Separados, então?

- Sim. Ela morreu.

Diante deles o nevoeiro tornou-se alvacento. Abrandaram e entraram, sempre aos solavancos, em uma zona povoada de vozes humanas e luzes mortiças.

Uma voz aguda gritava:

- Eu bem tinha dito à Sally que havíamos de chegar aqui.

Deram depois com uma grande janela envidraçada. Ouvia-se uma música suave e uma voz cava e baixa que cantava: eu sei que só és minha quando só e abandonada.

- Regressamos à civilização - disse a garota sombriamente.

- Poderemos mudar o pneu aqui?

- Espero que sim.

Abriu a porta, saiu e foi imediatamente engolida pelo nevoeiro, a luz e a multidão. Ele ficou só no carro. Agora, com o motor parado, o frio era glacial. Tentou pensar no que ia fazer. Primeiro, havia recebido instruções para se hospedar em uma certa casa da Rua de Bloomsbury - casa com um número, que provavelmente havia sido escolhida para que os seus amigos pudessem vigiá-lo melhor. A seguir, depois de amanhã, devia encontrar-se com Lord Benditch. Não eram mendigos, podiam pagar bem o carvão que precisavam e até dar um suplemento quando a guerra acabasse. Entre as minas de Benditch havia muitas encerradas: a oportunidade era excelente para ambos. Fora prevenido de que não seria prudente pedir a intervenção da embaixada. Não podiam fiar-se no embaixador nem no adido comercial, mas supunha-se que o secretário era leal. A situação era, porém, desesperadamente confusa - e, na verdade, era muito possível que o próprio secretário trabalhasse para os rebeldes. Fosse como fosse, o negócio devia ser discretamente conduzido. Ninguém tinha previsto a complicação que o esperava a bordo, na travessia da Mancha. Isso podia ser o prelúdio, sabe-se lá de quê - desde a oferta de preços mais elevados, até ao roubo e, possívelmente, ao assassínio. Enfim, havia que contar com aquele desconhecido pela frente, no nevoeiro.

De repente, D. pensou em apagar as luzes do carro. Sentado no escuro, retirou do bolso interior do colete as credenciais. Hesitou um momento e meteu-as por dentro da luva. Subitamente, a porta do carro abriu-se e a garota perguntou:

- Porque diabo apagou você as luzes do carro? Fiquei doida para encontrá-lo. - Reacendeu as luzes e acrescentou: - O mecânico não estava mas foram procurar um...

- Então, temos que esperar?

- Tenho fome.

Ele saiu cautelosamente do carro, perguntando-se se devia convidar a garota para jantar. Queria evitar todas as despesas supérfluas.

- Podemos ir jantar?

- Decerto. Tem dinheiro? Dei tudo quanto tinha pelo carro.

- Tenho dinheiro. Quer jantar comigo?

- Já tinha pensado nesse convite.

Seguiu-a até uma casa... um hotel... não sabia ao certo. Este gênero de estabelecimentos do tempo em que ele vinha a Inglaterra, ao Museu Britânico, como estudante. Uma casa velha de estilo Tudor - via-se perfeitamente que era Tudor autêntico - cheia de cadeirões e sofás, com um bar no lugar onde seria de esperar ver uma estante com livros. Um homem de monóculo apoderou-se de uma das mãos da garota, a esquerda, e apertou-a:

- Rose! Pois é a Rose! - E logo a seguir: - Desculpe-me, creio que é o Mority Crooldiam que ali está.

Afastou-se rapidamente.

- Você o conhece-o? - perguntou D.

- É o gerente. Não sabia que ele estava por aqui. Teve, em tempos, uma baiúca na Avenida Western. - E acrescentou desprezivelmente: - Que mundo, bem! Porque não volta para a sua guerra?

Mas não era preciso. Na verdade, tinha trazido a guerra consigo: a infeção começava a atuar. Depois do vestíbulo e sala, na casa de jantar, sentado à primeira mesa, lobrigou o outro agente. Sentiu a mão tremer, como acontecia sempre antes de um bombardeio aéreo; ninguém pode viver durante seis meses em uma prisão, sempre à espera do momento em que vai ser fuzilado, sem sair de lá completamente dominado pelo medo. Perguntou:

- Não poderíamos ir jantar em outro lugar? Há gente demais aqui!

Aquele medo era evidentemente absurdo mas, ao ver à mesa as costas estreitas e curvadas do homem, sentia-se tão exposto como no fosso de uma fortaleza entre um muro branco e o pelotão de execução.

- Não há outro. Porque não gosta deste restaurante? - Olhando desconfiadamente para ele: - E porque acha que há muita gente? Não me diga que vai recomeçar...

- Não, não... é que me parecia...

- Vou lavar as mãos, volto já.

- Está bem.

- Não demoro nada.

Logo que ela saiu, D. procurou com o olhar o banheiro dos homens. Precisava de água fria e de um momento para meditar. Estava mais nervoso do que no navio - enervara-se por uma coisa sem importância: o estouro de um pneu. Atravessou a sala para falar com o gerente de monóculo. A casa, apesar do nevoeiro, ou graças a ele, fazia bom negócio. De Londres e de Dover, chegavam constantemente carros guinchando como loucos. Encontrou gerente conversando com uma senhora de cabelos brancos.

- Exatamente desta altura... - dizia ele. - Tenho aqui a fotografia dele, se quiser vê-la... Pensei imediatamente no seu marido...

Procurava outras caras, ao mesmo tempo que falava; as suas palavras ficavam imponderáveis; a sua cara magra e morena, de traços rígidos, como convém à máscara de um militar com anos de serviço nas forças armadas, tinha a expressão de um animal à venda na vitrina de um estabelecimento.

- Perdão... - disse D.

- Naturalmente não tenho o menor empenho em  vendê-lo... - Virou-se e compôs um sorriso radiante. - - Creio que já nos vimos, mas não sei onde?

Tinha na mão a fotografia de um fox de pêlo-de-arame.

- Linhas excelentes. Robusto. Dentes... - ia dizendo à senhora.

- Queria perguntar-lhe...

- Desculpe, meu caro. Parece-me que está ali o Tony. - E escapou-se.

A senhora, com voz cortante, explicou:

- Não perca tempo fazendo-lhe perguntas. Se quer ir ao banheiro, é no térreo.

Os lavabos não eram certamente do tempo dos Tudores - todos de esmalte e mármores negros. Tirou o casaco e pendurou-o em um cabide; estava só. Encheu o lavatório com água fria. Era do que os seus nervos precisavam: a água fria, na nuca, teve o efeito de um choque elétrico. Estava de tal modo tenso que se voltou bruscamente quando um homem entrou, como se fosse alguém que conhecia. Era apenas o motorista de um dos carros. Tornou a meter a cabeça na água gelada. Procurou depois, às apalpadelas, uma toalha com que limpou os olhos. Agora estava mais calmo. A sua mão já não tremia quando se voltou para dizer:

- Porque você estava mexendo no meu casaco?

- Eu? Que idéia é essa? - perguntou o motorista. - Estava pendurando a minha samarra. Está à procura de confusão?

- Parece-me - replicou D. - que era você quem procurava qualquer coisa no meu casaco.

- Chame a polícia se quiser.

- Para quê, se não há testemunhas?

- Chame a polícia ou peça desculpas. - o motorista era um gorila, com mais de um metro e oitenta. Avançou com ar ameaçador. - - A minha vontade era partir-lhe a cara. O estupor de um estrangeiro que anda aqui comendo nosso pão e que acha...

D. replicou gentilmente:

- É possível que me tenha enganado.

Estava muito intrigado. Aquele homem, afinal, podia ser apenas um simples ladrão... nada de grave, portanto...

- É possível que tenha se enganado! É possível que eu lhe parta a cara. Se é assim que se pede desculpa na sua terra...

D. deteve-o no mesmo tom:

- Pedirei todas as desculpas nos termos que exigir. - A guerra também faz perder o sentimento da humilhação.

- Não tem coragem para lutar? - fanfarronou o motorista.

- Lutar para quê? Você é o mais forte e o mais novo...

- Podia bem com uma dúzia de pulhas como você.

- Acredito.

- Estará por acaso gozando comigo?

Tinha um olho estrábico que dava a impressão de olhar para um público, ao mesmo tempo que falava com o adversário. “Quem sabe”, - pensava D. - “se ele não teria um público.”

- Se lhe dei essa impressão, renovo as minhas desculpas.

- Sou homem para obrigá-lo a me lamber as botas.

- Não duvido.

Estaria o homem um pouco embriagado? Teria sido mandado por alguém para provocá-lo? D. permanecia encostado ao lavatório e sentia-se tomado por uma pequena náusea de apreensão. Detestava a violência física: matar um homem a tiros, ou ser morto, eram acto mecânicos que se opunham à vontade de viver ou ao receio de sofrer. Mas os murros eram outra coisa; os murros são humilhantes. Quando se é esmurrado, fica-se em posição aviltante em relação ao que bate. Detestava esta espécie de violência como detestava certas promiscuidades. Era mais forte do que ele: tinha medo.

- Continua a gozar comigo?

- Não pense nisso, não tive essa intenção. - O pedantismo da sua pronúncia pareceu enfurecer o outro.

- Fale inglês que se entenda, ou leva já um murro!

- Sou estrangeiro.

- Nem saberá o que é quando eu o tiver esmurrado bem.

O homem aproximou-se mais: tinha os punhos cerrados, pendentes ao longo do corpo, prontos a entrar em ação, como duas massas de carne seca. Tinha, ao mesmo tempo, o ar de quem se esforçava por perder a cabeça.

- Então? - rosnou. - Mexa-se, mostre os punhos. Não será tão covarde que fique quieto.

- E porque não? - replicou D. - Não quero lutar. Deixe-me passar. Tenho lá em cima uma senhora à minha espera.

- Ela pode ficar com os restos depois de eu ajustar contas consigo. Vou ensinar-lhe o que acontece a quem chama de ladrão às pessoas honradas.

O motorista devia ser canhoto, era o punho esquerdo que levantava.

D. espalmou-se contra o lavatório. Ia acontecer o pior. Por momentos, sentiu-se regressar ao pátio da prisão, quando o guarda se aproximava brandindo a matraca. Se tivesse um revólver, atiraria. Estava disposto a cometer todos os crimes para evitar aquele contato físico. Fechou os olhos e apoiou a cabeça para trás, de encontro ao espelho. Estava sem defesa, não sabia servir-se dos punhos. Ouviu então a voz do gerente:

- Então, meu caro, o que é isso?

D. endireitou-se. O motorista tinha recuado em uma atitude exagerada de correção. Com os olhos fixos nele, D. replicou calmamente:

- É uma coisa que me dá às vezes... como se diz em inglês? Vertigens!

- Miss Cullen pediu-me para vir à sua procura. Quer que veja se há lá em cima algum médico?

- Não vale a pena, isto não é nada.

À saída do banheiro D. perguntou ao gerente:

- Conhece este motorista?

- Nunca o vi. Não podemos ter uma ficha de cada cliente. Porquê?

- Tenho a impressão de que tentou meter as mãos no bolso do meu casaco.

O olhar do outro gelou por trás do monóculo.

- Absolutamente improvável, meu caro. Não quero que me tome por pedante, mas a verdade é que a nossa clientela é selecionada. Deve ter se enganado. Miss Cullen decerto confirmará o que lhe digo. - E acrescentou, com simulada indiferença: - Conhece Míss Cullen há muito tempo?

- Não. Em Dover ela foi bastante amável e ofereceu-me carona.

- Ah, compreendo. - E, no alto da escada, safou-se mais uma vez: - Miss Cullen espera-o na sala de jantar.

Entrou. Alguém com uma camisola de lã de gola alta, tocava piano, e uma mulher de voz grave cantava melancolicamente. Passou ao lado do outro, que continuava sentado à sua mesa.

- Que lhe aconteceu? - perguntou a garota. - Achei que tinha me abandonado. O que tem? Parece que viu um fantasma!

Do lugar em que ficou, D. não podia ver... Lembrava-se agora do nome dele. Explicou suavemente:

- Fui atacado... quer dizer, estive para ser atacado. Lá em baixo, nos lavabos...

- Porque me conta essas histórias? Quer se passar por um cara misterioso? Gosto mais da Branca de Neve.

- Tem razão - disse ele -, mas que quer! Tinha de arranjar uma desculpa.

- Além disso, não creio que você acredite nessas coisas que diz. Não creio que um bombardeio o deixe assim tão fora de si.

- Decerto que não. Resumamos a coisa: sou apenas um cara que não é bom para amigo, e mais nada.

- Se ao menos deixasse de ser melodramático. Já lhe disse que detesto os melodramas.

- Às vezes as coisas acontecem assim mesmo. Quer ver? Há um homem sentado na primeira mesa, em frente a você, na entrada. Não olhe já. Quer apostar comigo que neste momento ele está olhando para nós?

- Está mesmo. E isso que tem?

- Observa-me.

- A explicação pode ser outra. Talvez seja para mim que ele olha.

- Porquê?

- São coisas que acontecem.

- Ah, sim, sim - disse ele precipitadamente... - Naturalmente, compreendo muito bem...

Recuou um pouco e observou-a melhor: a boca melancólica, a pele transparente. Sentiu de repente uma antipatia absurda por Lord Benditch. Se fosse ele o pai desta pequena não a deixaria andar assim aos tombos. A mulher de voz grave cantava uma canção estúpida de amor desgraçado.

 

Era uma maneira de falar que eu desconhecia.

Era sonhar acordada, mas o meu coração ardia.

Eu acreditava quando dizia que me amava,

que me dava seu coração, mas só mo emprestava.

 

Os clientes pousavam os copos e escutavam como se aquilo fosse a verdadeira poesia. Até a garota deixou de comer durante um momento. Este enternecimento sobre o próprio eu irritou D. era um vício a que ninguém do seu país, de um ou outro lado da trincheira, podia entregar-se.

 

Não digo que você minta, é esse o amor de agora.

E eu não quero morrer como as amantes de outrora.

 

D. pensou que tudo aquilo talvez representasse o espírito do século, qualquer que fosse o sentido destas palavras: quase preferia a cela da prisão, a lei da evasão, a casa bombardeada, o inimigo batendo à porta. Olhava sombriamente para a garota. Há alguns anos atrás teria tentado escrever-lhe um poema, alguma coisa melhor do que.

 

Sonhava acordada, começo a compreender.

Tratava-se apenas de uma nova maneira de falar que tive de aprender.

 

A garota comentou:

- É estúpido e vulgar, mas tem um certo encanto.

Um criado aproximou-se da mesa.

- O senhor que está ao lado da porta de entrada mandou entregar-lhe este papel.

- Para um homem que desembarcou esta tarde... - estranhou ela.

D. leu. O bilhete era curto e conciso, embora não especificasse a mercadoria em causa.

- Suponho - disse ele - que você não acreditaria se lhe dissesse que acabam de me oferecer duas mil libras.

- Por que havia de me dizer?

- Tem razão.

Chamou o criado e perguntou-lhe:

- Pode me dizer se esse senhor que mandou o bilhete tem um motorista, um homem muito alto com um olho torto?

- Vou saber.

- Não há dúvida que você representa muito bem o papel de homem misterioso.

Teve subitamente a impressão de que ela tinha tornado a beber demais.

- Se não for com cuidado, nunca mais chegaremos a Londres.

O criado regressou e disse:

- É esse mesmo o motorista daquele senhor.

- Viu se ele era canhoto?

- Oh! - disse ela. - Acabe com isso, basta!

- Não tenho a menor intenção de impressioná-la - replicou ele brandamente. - É uma coisa que nada tem com você. Os acontecimentos precipitam-se... eu preciso saber. - Deu uma gorjeta ao criado. - Devolva este bilhete àquele senhor.

- Não tem resposta?

- Não.

- Podia ser delicado - disse ela - e escrever: “obrigado pela oferta”.

- Não quero que conheça a minha letra. Podia imitá-la.

- Desisto - disse ela. - É você quem ganha a partida.

- Não beba mais...

A voz da cantora calara-se como uma emissão radiofônica. O último som fora um gemido com uma cauda de vibrações. Alguns pares começaram a dançar.

 

- Ainda temos de andar muitos quilômetros.

- Porque temos de nos apressar? Se for preciso, podemos passar aqui a noite.

- Sim, você pode. Mas eu, seja como for, tenho de chegar a Londres.

- Porquê?

- Os meus patrões não compreenderiam o meu atraso.

Estava certo de que eles deviam ter programado os seus movimentos, o encontro com L. e a oferta de dinheiro. Nenhum dos serviços que prestara os convenceria de que não podia ser comprado como qualquer outro quando chegassem ao seu preço. Além disso, reconhecia melancolicamente, eles próprios têm as suas tarifas: outros tinham se vendido e revendido muitas vezes aos seus chefes.

O gerente assestava o monóculo na direção de Rose Cullen para convidá-la para dançar. D., preocupado, pensava: “Isto vai durar toda a noite, não conseguirei arrancá-la daqui.” Os pares dançantes volteavam lentamente, ao compasso da mesma melodia triste. O gerente enlaçava solidamente a garota, a mão direita espalmada nas suas costas; enfiara a outra no bolso com uma desenvoltura que a D. pareceu insolente e falava com ar grave olhando de quando em quando na direção de D. Quando passaram perto de si, ouviu duas palavras: “Ter cuidado.” A garota parecia escutar atentamente, mas os pés mal lhe obedeciam: devia estar ainda mais embriagada do que ele supunha.

Perguntou-se se teriam mudado o pneu. Se o carro estivesse pronto, talvez depois daquela dança conseguisse persuadi-la... Levantou-se e saiu da sala de jantar. L. tinha no prato um escalope de vitela; cortava a carne em pedaços muito pequenos - devia ser homem de digestão difícil. D. sentiu-se menos nervoso: parecia que o fato de ter recusado aquele dinheiro o colocara em uma posição mais forte do que a do adversário. Quanto ao motorista, era provável que não viesse provocá-lo outra vez.

O nevoeiro dissipara-se um pouco. Distinguiu na esplanada meia dúzia de carros: um Daimer, um Mercedes, dois Morris, o velho Packard e um Cadillac pequeno e escarlate. O pneu tinha sido trocado.

Pensou: “Se pudéssemos partir imediatamente enquanto o outro janta...“ Bruscamente ouviu uma voz que não podia ser senão a de L., que lhe dizia no seu idioma:

- Perdão, precisava dizer-lhe duas palavras...

Ao vê-lo assim, de pé entre os carros, D. invejou-o um pouco. O ar dele! Era o produto de uma seleção de quinhentos anos de apuramento, uma seleção que o conduzira ao meio próprio que lhe convinha e lhe tinha dado aquela segurança, embora obsidiado pelos vícios ancestrais e pelos gostos do passado.

- Porque não? - replicou D. - Porque não havemos de discutir um pouco?

Ao mesmo tempo reconhecia o encanto do homem, daqueles que em uma recepção são distinguidos com uma conversa a sós pelo convidado de honra.

- Não posso deixar de pensar - disse L. - que você não compreende a situação.

Sorriu, como a desaprovar esta declaração que, ao cabo de dois anos de guerra, podia parecer impertinente.

- Quero dizer... que você é realmente um dos nossos.

- Não senti isso enquanto estive preso.

À sua maneira, o homem era honesto: transmitia uma sensação de verdade.

- Avalio bem o que terá sofrido - disse ele. - Vi algumas das nossas prisões. Mas, sabe? As coisas têm melhorado. O pior momento é sempre o do princípio de uma guerra. Além disso, nada adianta falarmos de atrocidades. Você também conhece as prisões dos seus. Há culpas de um lado e do outro. E continuará a haver, suponho, até que um alcance a vitória.

- Esse argumento já é velho. A menos que nos rendamos, só estaremos prolongando a guerra. Essa é que é a verdade. E este argumento não significa muito para um homem que acabou de perder a mulher.

- Foi um acidente horrível. Como sabe... não sei se lhe disseram... mandamos fuzilar o comandante. O que eu lhe queria fazer compreender... - Tinha um nariz alongado, como os que se vêem nas galerias de pintura, nos velhos quadros envernizados. Delgado e elegante como era, podia trazer à cinta uma espada tão flexível como ele. - é isto. Se vocês vencerem, que mundo será esse para homens como o meu amigo? Nunca terão confiança em você, você é um burguês. Estou convencido de que até neste momento eles desconfiam. Por outro lado, você também não tem confiança neles. Acredita por acaso que encontrará entre essa gente, a gente que destruiu o Museu Nacional e os quadros de Z., um só homem que se interesse pelos seus trabalhos?

E acrescentou com uma voz doce, como se falasse em uma academia oficial.

- Refiro-me ao manuscrito de Berna.

- Não é por mim que me bato - protestou D.

Ocorreu-lhe que, se não tivesse havido guerra, ele e este homem podiam ser amigos. A aristocracia deixa nascer de tempos em tempos um indivíduo sensível e atormentado que se interessa pela cultura e pelas belas-artes - um mecenas.

- Quem diria! - disse ele. - Você é um idealista, muito mais do que eu. As minhas razões são naturalmente suspeitas. Confiscaram-me os bens... - E com um sorriso vagamente doloroso que sugeria que não duvidava de que seria compreendido pelo seu interlocutor: - E creio que queimaram a minha coleção de quadros e os meus manuscritos. Não tinha nada, aliás, que pudesse interessá-lo, mas havia entre os manuscritos um dos primeiros da Cidade de Deus de Santo Agostinho...

D. tinha a sensação de ser tentado por um demônio dotado de gosto e personalidade admiráveis. Não soube que responder. O outro continuou:

- Não me queixo. As guerras destroem horrível e inexoravelmente muito mais do que amamos... as minhas coleções, a sua mulher...

Por mais extraordinário que fosse, L. não sentiu o despropósito. Esperava, ao contrário, o assentimento de D. - aquele nariz alongado, aquela boca muito sensível, aquele corpo extenso e delicado de diletante... Não fazia a menor idéia do que representa o amor de um ser humano. A sua casa - que eles tinham queimado - devia parecer um museu, com móveis antigos e uma galeria com uma vedação de cordões protegendo os quadros nos dias em que o público os visitava. Era provável que soubesse apreciar o manuscrito de Berna, mas ignorava completamente que esse manuscrito nada significa comparado à mulher amada. A sua conversa de falaciosa simpatia foi ter a este beco:

- Ambos sofremos muito.

Como admitir que, mesmo por um momento, ele tivesse podido passar por um amigo! Valia realmente a pena destruir uma civilização se, destruindo-a, se obstasse a que o governo viesse a cair nas mãos de... supunha que se chamassem civilizados. Que espécie de mundo seria esse? Um mundo repleto de objetos arrumados, conservados, etiquetados: “É proibido tocar nos objetos expostos.” Nada de fé religiosa, apenas uma lenga-lenga de cânticos gregorianos e de cerimônias pitorescas. Imagens miraculosas que sangram ou que meneiam a cabeça em certos aniversários e que se guardariam cautelosamente como curiosidades: as superstições são interessantes. Haveria excelentes bibliotecas, mas não haveria livros novos. D. preferia a desconfiança, a barbárie, as traições... até o caos. A sua “época” é que era, afinal, a Idade das Trevas. Interrompeu-o:

- Não vale a pena continuar esta conversa. Não temos nada de comum, nem um manuscrito.

Talvez fosse isso o que ele tinha, a muito custo, salvo da morte e da guerra; os requintes e a cultura são coisas perigosas, capazes de destroçar o coração humano.

- Gostava que me ouvisse - disse L.

- Estaríamos perdendo tempo.

O outro sorriu:

- Não imagina como fiquei contente por saber que, pelo menos você, concluiu o seu trabalho sobre o manuscrito de Berna antes desta... desta... lamentável guerra.

- É coisa que a mim não parece assim tão importante.

- Ah! - exclamou L. - Mas isso é uma traição.

Tornou a sorrir, agora pensativamente. No caso dele não fora a guerra que o insensibilizara; de sensibilidade ele nunca tivera senão uma leve camada de verniz reservada a fins culturais. O seu lugar era entre as coisas mortas.

E acrescentou em tom mais ligeiro:

- Entrego-o ao seu destino. Não me quererá mal por isso, não é verdade?

- Isso, o quê?

- Isso que vai acontecer agora.

E afastou-se, grande, frágil, cortês, como um professor de arte que, depois de ver os quadros de um pintor, chegasse à conclusão de que este não tinha grande talento: um pouco triste, de uma tristeza que ocultava a irritabilidade.

D. esperou um momento e entrou depois no vestíbulo. Através das portas envidraçadas da sala de jantar tornou a ver os ombros estreitos de L. que se curvava sobre os restos do escalope de vitela.

A garota não estava à mesa, tinha-se juntado a outro grupo. Quase encostado ao seu ouvido reluzia um monóculo: o gerente fazia-lhe confidências. D. ouvia as suas risadas e a mesma voz dura que já tinha notado no bar da terceira classe do navio: “Quero mais um. Vou beber mais um!” Tinha certamente. Mas fora tão amável com ele que não ousava dizer nada: dera-lhe um bolo na plataforma gelada da estação, oferecera-lhe um lugar no carro, depois abandonava-o no meio do caminho. Assumiu a atitude absurda dos da sua classe: capaz de dar uma libra a um mendigo e de esquecer todas as misérias que não se metessem pelos olhos adentro. Na verdade, ela pertencia à mesma raça de L. E, ao pensar nisto, lembrou-se de repente dos seus camaradas que naquele momento estariam em uma fila à espera de um pão, ou gelados em quartos sem aquecimento.

Não podia ser verdade que a guerra só deixasse o medo como única emoção. Ele ainda sentia em certo grau, a cólera e o desapontamento. Virou-se bruscamente, regressou à esplanada e abriu a porta do carro. O guarda do parque de estacionamento aproximou-se e perguntou:

- A senhora?...

- Miss Cullen passará aqui a noite - respondeu ele. - Diga-lhe que deixo o carro amanhã na casa de Lord Benditch.

E arrancou. Dirigia prudentemente, sem excessos de velocidade. Não era hora para ser detido pela polícia por falta de carta de motorista. Uma placa assinalava: “Londres, 45 milhas”. Com um pouco de sorte chegaria antes da meia-noite. Começava a perguntar-se qual seria a missão de L. O bilhete que recebera dele nada lhe tinha revelado, dizia apenas: “Está disposto a receber duas mil libras?” Por outro lado, vira o motorista vasculhando os seus bolsos. Se eram as cartas credenciais que ele procurava era porque sabiam o que vinha fazer na Inglaterra - sem esses papéis não teria a menor aceitação junto dos vendedores de carvão ingleses. Mas, no seu país, apenas cinco pessoas estavam cientes do assunto, e todas, sem exceção, faziam parte do governo. Sim, tornava-se evidente que o povo estava sendo vendido pelos chefes. D. perguntava-se se seria o velho ministro liberal, aquele que tinha protestado contra as execuções. Ou seria o jovem e ambicioso ministro do Interior que julgava ter mais chances de êxito com a ditadura. Afinal, podia ser qualquer um; era impossível confiar em quem quer que fosse. Havia em todo o mundo pessoas como ele, que não aceitavam a idéia de se deixar corromper, simplesmente porque isso lhes tornaria a vida impossível. E não tanto por uma questão de moralidade mas mais por uma questão de consciência.

Outro poste indicador assinalou 40 milhas.

Mas L. estaria ali unicamente para impedir a compra, ou teria também o outro partido uma necessidade imperiosa de carvão? Eram eles que ocupavam as regiões mineiras das montanhas; havia então alguma verdade nos boatos que corriam acerca dos mineiros se recusarem a descer às minas. Notou atrás dele faróis que se aproximavam... estendeu a mão para fora e fez sinal ao carro para ultrapassá-lo. Este pôs-se ao seu lado; era um Daimler. Reconheceu o motorista: era o mesmo que tinha tentado roubá-lo.

D. carregou no acelerador. O outro carro não cedeu e avançaram ambos, lado a lado, a toda a velocidade, através do nevoeiro. Porquê? Quereriam matá-lo? Na Inglaterra era coisa que parecia pouco provável, mas há dois anos que estava habituado a ver realizados os improváveis. É impossível estar enterrado durante cinquenta e seis horas no porão de uma casa bombardeada e sair de lá, quando se sai, convencido de que a violência não existe.

A corrida não durou mais de dois minutos. O indicador do seu velocímetro foi às sessenta milhas; forçou o motor a subir até às sessenta e duas, sessenta e três; durante algum tempo alcançou mesmo as sessenta e cinco, mas o velho Packard não podia rivalizar com o Daimler. O outro carro hesitou e, durante uma fração de segundo, deixou-se ultrapassar. Porém, não tardou a reagir, lançando-se a oitenta à hora. Passou, perdeu-se no nevoeiro e, de repente, atravessou-se na estrada para bloquear o Packard. D. freou bruscamente. O improvável parecia prestes a realizar-se... iam matá-lo. Refletiu pausadamente, sentado no seu lugar, à espera, tentando avaliar as consequências... a publicidade do caso seria uma catástrofe para o outro partido; a sua morte podia ser muito mais preciosa do que tinha sido a sua vida. Há tempos publicara uma versão de um poema da Idade Média, mas o que ia acontecer agora era muito mais importante.

Ouviu uma voz:

- Pegamos o miserável!

Para sua grande surpresa, não foram nem L. nem o motorista que lhe apareceram à porta do carro - era o gerente. E, contudo, via perfeitamente a sua silhueta magra, encarniçada, agitando-se por entre o nevoeiro. Por acaso o gerente seria um deles? A situação era absurda. Perguntou:

- Que quer?

- Que quero? Esse carro é de Miss Cullen.

Não. Afinal, estavam na Inglaterra - não haveria violência, não estava em perigo. Uma explicação desagradável e mais nada. Que vantagem poderia L. tirar deste incidente? Levá-lo a uma delegacia de polícia? Certamente que ela não apresentaria queixa. Na pior das hipóteses, tudo se reduziria a umas horas de atraso.

- Deixei um recado para Miss Cullen - disse ele. - Preveni-a de que lhe deixaria o carro na casa do seu pai.

- Malandro! - exclamou o gerente. - Pensa que pode safar-se assim com as malas de uma senhora... uma senhora como Miss Cullen! E as jóias!

- Não pensei nas malas.

- Mas aposto que pensou nas jóias. Vamos, saia daí.

Não havia nada a fazer. Saiu. Em algum lugar, atrás deles, dois ou três carros buzinavam furiosamente. O gerente exclamou:

- Trate de desimpedir a estrada, meu velho. Eu tomo conta do malandro.

Agarrou D. pelos colarinhos.

- É inútil - disse ele. - Estou pronto a dar todas as explicações a Miss Cullen ou à polícia.

Os outros carros passaram. A alguns metros surgiu o motorista. De pé, junto do Daimler, L. falava com alguém que estava dentro do carro.

- Está convencido que é muito esperto, hem? - disse o gerente. - Míss Cullen é uma garota extraordinária, incapaz de apresentar queixa. - O seu monóculo tremia furiosamente. De repente, aproximou o rosto até quase tocar na de D. e acrescentou: - Não julgue que vai abusar da bondade dela.

Um dos seus olhos, de um azul estranho e mortiço, que parecia de peixe, não deixava transparecer qualquer comoção.

- Estou com pressa - replicou D. - Trate de me levar junto de Miss Cullen ou à polícia.

- Estes estrangeiros - disse o gerente - que vêm ao nosso país... iludir a confiança das nossas garotas... O que você precisa é de uma boa lição.

- Aquele seu amigo que está ali também é um estrangeiro.

- Mas é um homem decente.

- Não compreendo o que pretende fazer.

- Se eu fizesse o que quero, levava-o à polícia, mas a Rose... Miss Cullen, não quer apresentar queixa...

Percebia-se no seu hálito que tinha bebido muito whisky.

- Vai ser melhor tratado do que merecia... um castigo de homem para homem.

- Quer dizer... que vão me bater? São três contra um!

- Não, vamos dar-lhe oportunidade para se defenderes, e será só um. Vai ser este homem que você chamou de ladrão... você que não passa de um reles gatuno... vai ser ele quem te partirá a cara.

D., horrorizado, replicou:

- Se é um duelo que querem, podemos bater-nos à pistola, ele e eu.

- Neste país não se pratica esse gênero de assassínio.

- E encarregam alguém de bater por vocês!

- Já viu perfeitamente que eu tenho um braço aleijado.

Tirou a mão do bolso e agitou-a no ar; enluvada de dedos rígidos, parecia a mão de uma boneca.

- Recuso-me a lutar - exclamou D.

- Isso é com você.

O motorista avançou de esguelha. Tinha tirado o boné e despido a samarra. Não se dera ao trabalho de tirar o casaco - um casaco azul, amarrotado, vulgar.

- Ele tem menos vinte anos do que eu - disse D.

- Não estamos em um clube desportivo - replicou o gerente. - É um ajuste de contas. Vamos, tire o casaco...

O motorista, de punhos cerrados, esperava. D. despiu lentamente o sobretudo, dominado pelo horror dos contatos físicos via o guarda da prisão brandindo a matraca, pressentia a provação aviltante. Subitamente, teve a sensação de que chegava outro carro. Correu para o meio da estrada e pôs-se a acenar com os braços.

- Pelo amor de Deus... estes homens... - gritou.

Era um Morris Minor. Ao volante, um homem enfezado, tímido e uma mulher grande, de cinzento, ao seu lado. Ela olhava, descontente, para o grupo estranho que obstruía a estrada.

- Que há?... Que aconteceu? - perguntou o homem.

- Bêbado.. - disse a mulher.

O gerente avançou para eles; voltara a colocar o monóculo no olho de peixe morto.

- Não é nada, meu velho. Eu sou o capitão Currie. Conhecem?... O do Hotel Tudor. Foi este homem que roubou um carro.

- Querem que vamos chamar a polícia? - perguntou a mulher.

- Não. A dona do carro, uma garota extraordinária como há poucas, nega-se a apresentar queixa. Estávamos só dando uma lição neste malandro.

- Então não precisam de mim para nada - disse o homem. - Prefiro não me meter nessas coisas...

- Um estrangeiro - acrescentou o gerente. - Lábia não lhe falta...

- Olha, um estrangeiro - disse a mulher franzindo os lábios. - Vamos embora, querido, vamos embora.

E o carro desapareceu no nevoeiro.

- E agora - disse o gerente -, quer ou não defender-se? Não é necessário ter medo. Somos homens leais.

O motorista propôs:

- É melhor sairmos da estrada. Aqui estão constantemente passando carros.

- Não saio daqui - respondeu D.

- Muito bem.

O motorista tocou-lhe na cara, de leve. Automaticamente, as mãos de D. ergueram-se em um gesto de defesa. Então o motorista socou-o na boca, com o olho vesgo olhando para o outro lado; esta particularidade dava-lhe um ar de desinteresse horrível, como se ele, para derrotá-lo, não precisasse senão de metade da sua vontade. Continuou a socar sem técnica, ao acaso, menos empenhado em uma vitória rápida do que em machucar e fazer correr sangue. A D. as mãos não lhe serviam de nada: não tentava sequer retribuir os socos, o espírito sempre torturado pelo horror e pelo aviltamento da luta física; ignorava os gestos de defesa. Entretanto, o motorista martelava-o. Desesperado, pensava: “Não terão remédio senão acabar com isto, não lhes convém matarem-me.” Um soco mais lançou-o por terra. O gerente gritou-lhe:

- Levante-ze, estupor! Não faça fita.

Quando se ergueu, D. teve a impressão de ver o seu saco nas mãos de L. “Graças a Deus”, pensou “escondi os papéis a tempo. Não hão-de bater-me tanto que me façam perder as luvas.” o motorista esperou que ele se levantasse e depois, sob uma saraivada de murros, levou-o até à beira da estrada. Recuou um passo e esperou, escarnecendo-o. D. tinha a vista toldada, a boca escorrendo sangue e o coração aos pulos. Pensava com uma espécie de satisfação: “Brutos, imbecis, vão acabar por me matar.” Era uma solução que valia a pena. juntando as últimas forças, reagiu e esmurrou às cegas o ventre do motorista. Ouviu a voz do gerente exclamar: “Oh, o malandro! Um golpe baixo! Acabe com ele.” Um soco que lhe pareceu um coice atirou-o por terra outra vez. Teve a sensação estranha de ouvir uma voz contar: “sete, oito, nove ... “.

Um deles tinha-lhe desabotoado o casaco. Por momentos sentiu-se outra vez em casa, enterrado no porão, sob os escombros, com um gato morto ao lado. Depois voltou lentamente a uma noção menos irreal das coisas e sentiu uns dedos na camisa à procura de qualquer coisa. Viu o vulto do motorista, muito encorpado, muito perto dele, e teve um sentimento de triunfo. Na verdade, era ele o vencedor da batalha. Ergueu os olhos para o motorista com um sorriso trocista.

- Como ele está? - perguntou o gerente.

- Perfeitamente, senhor - respondeu o motorista.

- Esperemos que isto lhe sirva de lição.

D. levantou-se com dificuldade: viu, surpreso, que o gerente estava embaraçado pouco à vontade - como um professor que, depois de ter castigado um aluno, reconhece que a situação se tornou menos clara. Voltou as costas a D., dizendo:

- Vamos embora. Eu levo o carro de Míss Cullen.

- Pode dar-me uma carona?

- Uma carona?! Vá para o diabo. Nunca!... Sirva-se das pernas.

- Diga então ao seu amigo para me dar o sobretudo.

- Vá buscá-lo se quiser.

D. seguiu a beira da estrada até ao lugar em que se encontrava o sobretudo. Não se lembrava de tê-lo deixado ali, tão perto do carro de L., junto do qual estava também o seu saco de viagem. Baixou-se e, quando penosamente se erguia outra vez, avistou a garota que, pelo visto, estivera sentada no banco de trás do Daimler de L. Mais uma vez sentiu uma desconfiança que parecia abarcar toda a humanidade - também ela seria uma agente? Mas era naturalmente absurdo: ela ainda estava embriagada, não tinha percebido, o que se tinha passado, mais do que aquele ridículo capitão Currie. O fecho do seu saco de viagem estava aberto; costumava emperrar sempre que se abria e quem quer que tivesse mexido nele não tivera tempo de fechá-lo. Ergueu o saco até à altura da janela do carro e disse:

- Como vê, são pessoas minuciosas. Mas não encontraram o que procuravam.

Ela olhava para ele, através do vidro, com um ar de repugnância e ele notou, então, que ainda sangrava bastante.

- Não incomode Miss Cullen - disse o gerente.

D. explicava brandamente:

- São apenas alguns dentes quebrados. Um homem da minha idade está na idade de perder os dentes. É possível que nos tornemos a ver em Gwyn Cottage.

Ela tinha um ar irremediavelmente alienado e olhava-o sem compreender. D. levou a mão ao chapéu, mas não tinha chapéu: devia tê-lo deixado cair na estrada em qualquer parte. Então disse:

- Apresento-lhe agora as minhas desculpas. Tenho de fazer uma grande caminhada. Mas garanto-lhe, muito seriamente, que deve desconfiar desta gente.

E pôs-se a andar na direção de Londres. Ainda ouviu atrás de si, no escuro, a voz indignada do capitão Currie que gritava qualquer coisa em que distinguiu a palavra “diabólico”. Continuou a caminhar com a impressão de que o dia tinha sido longo mas, no conjunto, satisfatório.

Nada fora inesperado: era a atmosfera em que tinha vivido durante dois anos; se encontrasse em uma ilha deserta, teria esperado que, de uma ou outra maneira, a sua presença infectasse de violência a própria solidão. Não se escapava de uma guerra mudando de país. Apenas se muda de meios técnicos: os punhos em lugar das bombas, o espião ratoneiro em vez de tiros de artilharia. Só no sono escapava à violência; os seus sonhos reconstituíam quase invariavelmente imagens pacíficas do passado. Compensação? O cumprimento de um voto? A sua própria psicologia já não o interessava. Sonhava com salas de conferências, com a mulher, por vezes com comidas e bebidas, frequentemente com flores.

Para evitar os carros, seguiu pela beira da estrada. Um lençol branco de silêncio cobria o mundo; por vezes passava à beira de uma casa rústica e negra, cercada de galinheiros. Perguntou-se que iria L. fazer agora; não lhe restava muito tempo e hoje nada conseguiria, exceto que já sabia naturalmente que ele ia encontrar com Benditch. Tinha cometido a imprudência de falar disso à garota - mas como imaginar que eles viriam a encontrar-se? As preocupações práticas absorveram-no, afastando a fadiga e as dores. As horas passavam rapidamente; avançava como um autómato. Só depois de ter refletido durante muito tempo começou a pensar nos pés que lhe doíam e na possibilidade de fazer o resto do percurso de carro. Pouco depois, ouviu atrás de si o roncar de um caminhão vencendo lentamente a subida. E, quando se pôs no meio da estrada fazendo-lhe sinais, este homem de meia-idade, esfarrapado e dolorido, aparentava uma estranha boa disposição.

 

Os primeiros carros elétricos da manhã davam a volta diante dos banheiros públicos de Theobald’s Road para tomarem a direção de Kingsway. Os caminhões destinados a Convent Garden chegavam dos arredores de Leste. em uma grande praça de árvores sem folhas em Bloomsbury, um gato voltava para casa depois de ter explorado qualquer telhado vizinho. A cidade pareceu a D. extraordinariamente desprotegida e curiosamente intacta: não havia filas nem havia sinal de guerra... senão ele. Transportava consigo a doença ao longo das lojas ainda fechadas: uma tabacaria e uma livraria onde se expunham livros em saldo. Lembrava-se do número da porta que procurava, mas levou a mão ao bolso para verificar: tinha-lhe desaparecido a carteira. Eles afinal haviam levado alguma coisa, praticamente nada: o seu endereço, que para eles não tinha interesse, um recorte de um jornal francês com uma receita para cozinhar couves e uma citação que havia encontrado em algum lugar em versos de um poeta inglês de origem italiana, exprimindo o que ele próprio sentia quando pensava na mulher:

 

... The beat

Following ber daily of thy heart andfeet, How passionately and irretrievably

In whatfondflight, how many ways and days..

 

Havia também uma carta que tinha recebido de uma revista literária francesa acerca da Canção de Rolando e a propósito de um artigo seu já antigo. Perguntou-se o que poderiam fazer da citação L. ou o motorista. Talvez vissem nela uma mensagem cifrada, a credulidade e a desconfiança inerentes à espécie humana não têm limites.

Enfim, lembrava-se do número: 35. Ficou um pouco surpreso quando viu que era um hotel, um hotel ruim. Em qualquer cidade da Europa, o fato da porta principal estar aberta dava a entender que se tratava de um hotel mau frequentado. Olhou os arredores... era um bairro do qual se lembrava muito vagamente. Aquelas ruas conservavam ainda o halo de uma ligação sentimental que datava da época em que ele frequentava o Museu Britânico - uma época feita de erudição, de paz e de conversas galantes. Uma das extremidades da rua desembocava em uma grande praça cujas árvores estavam enegrecidas pela geada; viam-se as cúpulas extravagantes de um hotel popular, um reclamo de uma sauna. Entrou e bateu à porta envidraçada do interior. Soavam seis horas em um relógio qualquer.

Apareceu uma cara pálida e angulosa que o examinava.

- Não há aqui um quarto reservado para mim, em nome de D.?

- Oh - respondeu a pequena, uma criança de cerca de catorze anos. - Estávamos à sua espera ontem à noite.

Entretanto dava um nó nas fitas do avental; o seu olhar ainda era ensonado. D. imaginava a crueza do despertador que lhe havia agredido os tímpanos.

- Dê-me a chave - disse ele com gentileza. - Eu subirei sozinho. - E como ela olhasse consternadamente para o seu rosto. - Tive um desastre... um acidente de automóvel.

- É o número vinte e sete, no último andar. Vou acompanhá-lo.

- Não se incomode.

- Oh, não me incomoda! O que me cansam são as entradas e saídas. Entram e saem umas três vezes por noite.

Tinha a inocência de uma vida passada, desde que nascera, em contato com o pecado.

A escada só tinha passadeira até o segundo andar. Entreabriu-se uma porta e um indiano, com um roupão muito berrante, ficou observando-o com um olhar pesado e nostálgico. A pequena seguia vagarosamente à frente de D. Uma das suas meias tinha um buraco no calcanhar e o pé escapava do sapato deformado. Mais velha pareceria um farrapo, naquela idade era triste e mais nada.

D. perguntou:

- Não deixaram um recado para mim?

- Veio um homem ontem à noite que deixou um bilhete. Está em cima do lavatório do seu quarto.

O quarto era pequeno: uma cama de ferro, uma mesa coberta com uma toalha de franjas, uma poltrona de verga, uma colcha de algodão, de ramagens, asseada, esfiampada, da espessura de uma teia de aranha.

- Quer água quente? - perguntou a pequena com o seu ar triste.

- Não se incomode.

- Que quer para o café da manhã? Os hóspedes costumam pedir ovos ou arenque defumado.

- Esta manhã não quero nada. Só preciso dormir um pouco.

- Quer que o acorde?

- Não, não, teria de subir muitos degraus. Estou habituado a acordar quando quero. Não se incomode comigo.

- É tão bom trabalhar para um senhor bem-educado! - Disse ela contente. - Aqui o que aparece é gente para pernoitar, entende o que eu quero dizer... ou então indianos.

Olhava para ele com adoração servil - uma adoração acabada de nascer; estava na idade em que se pode ser conquistado para sempre com uma simples palavra.

- Não tem malas?

- Não.

- Foi uma sorte que o tivessem recomendado. O patrão nunca aluga quartos a hóspedes sem bagagens... a não ser que venham acompanhados, e só por uma noite ou umas horas.

Haviam dois envelopess encostados ao copo dos dentes, na prateleira do lavatório. O primeiro que abriu continha uma folha timbrada: “Centro da Língua Entrenaciono” e estas palavras datilografadas: O nosso preço por cada série de trinta lições de Entrenaciono é de seis guinéus. Pode receber uma lição amanhã às 18 horas e 45 minutos. Esperamos que esta experiência o anime a fazer um curso completo. Se a hora marcada não lhe convier, rogamos a bondade de telefonar para marcarmos outra conforme desejar. A outra carta era da secretária de Lord Benditch e confirmava o seu encontro com ele.

- Tenho de sair cedo - disse ele. - Vou apenas passar pelo sono.

- Quer uma escalfeta?

- Não, não; está tudo muito bem assim.

- Tem ali um aquecedor a gás que funciona com moedas. Sabe como trabalha?

Como Londres tinha mudado pouco! Lembrava-se do tique-taque do contador, da sua avidez por moedas e do seu mostrador incompreensível. E lembrou-se também de uma longa noite que tinham passado juntos, em que ambos se desfizeram de todas as moedas que levavam e, não tendo mais para fazer o aquecedor funcionar, o frio tornou-se tão cortante que ele saiu e só voltou de manhã. Percebeu então que o esperavam, nas ruas que ia cruzar, dois anos de recordações dolorosas prestes a abaterem-se sobre si. Respondeu apressadamente.

- Sim, sim, sei como funciona, obrigado.

A pequena absorvia apaixonadamente os agradecimentos: era um verdadeiro senhor. A maneira como fechou silenciosamente a porta parecia mostrar que, para ela, apesar de tudo, bastava uma andorinha para fazer a Primavera.

Sem perder tempo em lavar as manchas de sangue que tinha na cara, D. descalçou os sapatos e estendeu-se na cama. Como a um servidor fiel, ordenou ao subconsciente que o acordasse às oito e quinze e, quase instantaneamente, adormeceu. Sonhou com um velho de boas maneiras que caminhava ao seu lado ao longo de uma ribeira; pedia-lhe uma opinião sobre a Canção de Rolando e discutia, por vezes, respeitosamente. Do outro lado da ribeira havia um aglomerado de edifícios, frios e belos como certas imagens que tinha visto do Rockfeller Plaza de Nova Yorque. Ao mesmo tempo ouvia tocar uma orquestra. Quando acordou eram precisamente oito e quinze.

Levantou-se, lavou o sangue em volta da boca; os dentes que lhe tinham quebrado eram os molares, melhor, pensava ele, com sinistra satisfação, porque a vida parecia decidida a torná-lo cada vez menos parecido com a fotografia do passaporte. Afinal, não tinha tantos golpes e equimoses como julgava. Desceu. No vestíbulo sentia-se um odor a peixe que vinha da casa de jantar. Esbarrou com a pequena criada que passava com dois ovos quentes em um prato.

- Oh, perdão! - disse ela.

- Como se chama?

- Else.

- Ouça, Else. Fechei a porta do meu quarto à chave. Peço-lhe para fazer o possível para ninguém entrar quando eu sair.

- Oh, ninguém se atreveria!

Tocou-lhe levemente no braço:

- Alguém pode tentar. Deixo-lhe a chave, Else. Tenho confiança em você.

- Pode ficar descansado. - Não deixarei ninguém... - jurou-o a si própria em voz baixa. Os ovos dançavam no prato. O Centro da Entrenaciono ficava no terceiro andar de um edifício do lado sul de Oxford Street, por cima de um estabelecimento de bugigangas, de uma companhia de seguros e dos escritórios de uma revista chamada A Saúde Mental. Subiu em um velho elevador. Não sabia bem o que iria encontrar lá em cima. Empurrou uma porta em que leu: “Informações”. Entrou em um grande compartimento varrido por correntes de ar, com várias poltronas, dois ficheiros e uma espécie de balcão atrás do qual uma mulher de meia-idade, sentada, tricotava.

- Chamo-me D. e venho por causa de uma lição.

- Muito prazer - respondeu ela com um sorriso radioso. Tinha cabelos hirsutos e uma cara macilenta de idealista; vestia uma camisola de lã, azul com pintas vermelhas. Apertou um botão de campainha, acrescentando: - Espero que dentro em breve seja um dos nossos bons amigos.

“Que país!”, pensava ele com uma admiração que a reserva e a ironia temperavam.

Ela informou:

- O Dr. Bellows gosta de trocar algumas impressões com os novos clientes.

Perguntou-se se seria com o Dr. Bellows que teria de se entender.

- Tenha a bondade de entrar por aqui.

E abriu uma porta pequena que havia atrás do balcão.

Não, ele não podia crer que se tratasse do Dr. Bellows. O Dr. Bellows encontrava-se de pé no minúsculo compartimento interior, todo de pele e nogueira, que cheirava a tinta seca, e estendeu-lhe as duas mãos. Tinha os cabelos brancos e lisos e o seu olhar refletia uma esperança tímida. Disse qualquer coisa que soou como: “Me troy joyass. “ Os seus gestos e a sua voz eram mais grandiloquentes do que a sua cara, que parecia habituada a contrair-se perante palavras de mau acolhimento.

- As primeiras palavras da língua entrenaciono devem ser sempre palavras de boas-vindas.

- É muito amável - replicou D.

O Dr. Bellows fechou a porta.

- Tomei as devidas providências para que a primeira lição que, espero, será seguida de muitas outras, lhe seja dada por um dos seus compatriotas. Sempre que é possível, é esse o nosso sistema. Desperta a simpatia e prepara gradualmente a encomenda seguinte. Como terá ocasião de verificar, o senhor K. é um professor muito hábil.

- Tenho certeza.

- Primeiro, porém, gosto de expor aos nossos alunos um pouco do nosso ideal. - Não tinha largado a mão de D. e conduzia-o suavemente para uma poltrona de, pele. - Espero - prosseguiu ele - que cada um dos nossos clientes tenha sido trazido aqui pelo amor.

- O amor?

- O amor de toda a humanidade. O desejo de poder... trocar idéias... com todos os homens. Todo aquele ódio, as guerras cujos comunicados nós lemos nos jornais, resultam de nos compreendermos mal. Se todos falássemos a mesma língua...

De repente suspirou miseravelmente, um suspiro que não era de gozo.

- ... O meu sonho de toda a vida tem sido servir.

O imprudente, o desgraçado, tinha tentado viver o seu sonho e sabia que era um vencido - aquelas poltronas de pele, aquela sala de espera varrida por correntes de ar, a mulher da camisola que tricotava. Tinha sonhado a paz universal e ocupava dois andares no lado sul de Oxford Street. Havia nele qualquer coisa de santo, dos santos que nunca alcançam êxitos materiais.

- É uma nobre tarefa - disse D.

- Queria que todos que aqui vêm percebessem que não se trata unicamente de relações comerciais... Queria que todos se sentissem companheiros e colaboradores da minha obra.

- Naturalmente.

- Sei que ainda não fizemos grande coisa mas, em todo o caso, já fizemos muito mais do que imagina. Temos tido espanhóis, alemães, um siamês, um seu compatriota e também ingleses. É claro que são os ingleses quem mais nos ajuda. Infelizmente não posso dizer o mesmo da França...

- É uma questão de tempo - disse D. que sentia pena por aquele velho.

- Há trinta anos que me consagro a esta missão. Naturalmente a guerra prejudicou-nos muito... - Depois, empertigando-se, acrescentou com energia: - - Mas este mês a resposta aos nossos apelos foi admirável. já demos cinco lições. A sua é a sexta. Enfim, não quero demorá-lo mais tempo, o senhor K. espera-o.

Na sala de espera um relógio bateu as nove horas. O Dr. Bellows, com um sorriso tímido, estendeu-lhe a mão:

- La hora sonas, quer dizer... está na hora.

Reteve ainda na sua a mão de D., como se tivesse sentido nele mais simpatia do que em outros.

- É sempre um grande prazer receber um homem inteligente... é possível fazer tanto bem! - E acrescentou: - Espero que conversemos mais vezes.

- Certamente.

À porta, o Dr. Bellows demorou-o ainda um pouco.

- Esqueci-me de preveni-lo. Nós adotamos o método direto. O senhor compromete-se pela sua honra a não falar senão entrenaciono.

Voltou ao seu gabinete e fechou a porta. A mulher da camisola disse a D.:

- Que homem, o Dr. Bellows, não é verdade?

- Tem grandes esperanças.

- E com razão... não lhe parece? - Saiu de trás do balcão e conduziu D. ao elevador. - As aulas são no quarto andar. O senhor K. está à sua espera.

Enquanto subia, e por entre o ranger dos cabos, tentava imaginar como seria o tal senhor K. Não devia sentir-se aqui muito à vontade se pertencia ao mundo assolado que D. acabava de deixar.

Mas não, bem pelo contrário, sentia-se muito à vontade nesta casa senão neste idealismo, um pouco sórdido e sujo de tinta; era como qualquer outro professor de línguas, mal pago, de uma escola comercial. Usava óculos de aros metálicos e economizava nas lâminas da barba. Abriu a porta do elevador:

- Bona matina.

D. retorquiu bona matina e o sr. K. conduziu-o, por um corredor cujas paredes estavam revestidas por painéis de madeira escurecida; tinham dividido em quatro um grande compartimento das mesmas dimensões da sala de espera do andar inferior. D. não pôde deixar de perguntar-se se não perderia o seu tempo - talvez alguém tivesse se enganado. Mas, nesse caso, como teriam eles descoberto o seu nome e endereço? A menos que L. tivesse maquinado tudo isto para faze-lo sair e revistar-lhe o quarto. Mas era impossível. L. não podia saber a sua direção antes de lhe apanhar a carteira.

O senhor K. mandou-o entrar para um compartimento minúsculo aquecido por um radiador. Janelas duplas abafavam as correntes de ar e os ruídos de Oxford Street. Na parede estava pendurado um quadro a óleo simples, ingênuo, que representava uma família sentada à mesa em frente de uma casa que parecia um chalé suíço: o pai tinha uma espingarda e uma das senhoras uma sombrinha; e havia montanhas, uma floresta, uma cascata; na mesa, a comida era abundante: maçãs, uma couve crua, um frango, peras, laranjas, batatas, e um naco de carne. Um garoto brincava com um arco e outro, em um berço, chupava o biberão. Na outra parede havia um relógio de pêndulo. O sr. K. bateu com um dedo na mesa e disse: “Tablo.” Sentou-se enfaticamente em uma das cadeiras e disse: “Essebgo. “ D. imitou-o. O senhor K. continuou: “El tímo” e apontou para o relógio. “Neuvo”. Tirou uma porção de caixas do bolso: “Attentio.”

- Sinto muito - interrompeu D. - mas parece-me que há um equívoco...

O senhor K. colocou as caixas umas por cima das outras e começou a contar “ Una, da, trea, kwara, vif.. “ e acrescentou em surdina:

- O regulamento obriga-nos a só falar entrenaciono. Se for apanhado, terei de pagar um xelim de multa. Peço-lhe que fale em voz baixa quando não falar entrenaciono.

- Alguém me marcou uma lição...

- É verdade. Recebi instruções. Que son la? - acrescentou em voz alta apontando para as caixas e respondendo à pergunta que fizera - La son castes.

Tornou a baixar a voz e perguntou:

- Que fez ontem à noite?

- Desculpe, mas preciso saber com quem falo.

O sr. K. tirou do bolso um cartão que pôs diante de D.

- O navio em que veio só chegou com duas horas de atraso e, contudo, o senhor ainda não estava em Londres ontem à noite.

- É verdade. Primeiro, perdi o trem por causa de uma demora na vistoria dos passaportes. Apareceu uma senhora que me ofereceu carona, mas tivemos um furo e ficámos presos... perto de um hotel à beira da estrada. L. estava lá.

- Ele falou-lhe?

- Mandou-me um bilhete em que me oferecia duas mil libras.

Os olhos do homem ganharam um estranho brilho: cobiça ou desejo.

- Que fez?

- Nada, naturalmente.

O sr. K. tirou os óculos de aros metálicos e limpou as lentes.

- A senhora conhecia o L.?

- Não é provável.

- Que mais aconteceu?

Bruscamente, apontou para o quadro e disse:

- La es un famil. Un famil gentil bono...

A porta abriu-se e apareceu o Dr. Bellows.

- Excelente, excelente - disse ele com um sorriso amável. E fechou a porta.

- Continue - disse o sr. K.

- Como ela se embriagou e não quis continuar, meti-me no carro dela e vim. O gerente do hotel, um tal capitão Currie, perseguiu-me no carro de L. Fui agredido pelo motorista... Esqueci de lhe dizer que este já tinha tentado me roubar no lavabo. Revistaram-me mas não encontraram nada, naturalmente. Tive de vir a pé... andei durante muito tempo até encontrar um caminhão que me trouxe.

- Será o capitão Currie...

- Oh, não! Creio que é apenas um imbecil.

- É uma história extraordinária.

D. permitiu-se sorrir.

- Naquele momento pareceu-me muito natural. Se não acredita, olhe para a minha cara. Ontem tinha-a em muito melhor estado.

- Ofereceu-lhe assim todo esse dinheiro... - replicou o outro. - E não lhe disse o que pedia em troca?

- Não.

Ocorreu-lhe subitamente que este homem não sabia o que ele tinha vindo fazer em Londres. Não o surpreenderia que os seus compatriotas, depois de o terem enviado em missão secreta, tivessem encarregado de vigiá-lo outros em que não depositavam confiança suficiente para lhes revelar o objetivo da sua missão. É fantástico o grau que a desconfiança atinge na guerra civil. Cria complicações inconcebíveis e, por isso, não era de estranhar que ela se tornasse mais opressiva do que a confiança. Só os homens fortes sabem suportar a desconfiança: os fracos põem-se ao nível das personagens que têm de representar. D. tinha a impressão de que o sr. K. era um homem fraco.

- Quanto lhe pagam aqui? - perguntou.

- Dois xelins por hora.

- Não é grande coisa.

- Felizmente não vivo só disto - replicou.

No entanto, avaliando pela roupa, pelos seus olhos esquivos e fatigados, não era provável que tivesse outras fontes mais substanciais de receita. Olhando para os dedos, cujas unhas estavam roídas até ao sabugo, o sr. K. disse:

- Espero que tenha tudo arranjado.

Não lhe pareceu bem uma das unhas e pôs-se a roê-la para a deixar igual às outras.

- Sim, tudo.

- Estão na cidade todas as pessoas com quem tem de se encontrar?

- Todas.

Era naturalmente uma tentativa de tirar nabos da púcara, os seus esforços, porém, eram de uma pobreza patética. Talvez tivessem razão em não confiar muito no senhor K. enquanto não lhe pagassem melhor.

- Terei de dar uma informação - disse ele. - Direi que o senhor chegou finalmente e que o seu atraso parece explicável...

A D. parecia humilhante sentir os seus movimentos controlados por um homem do calibre do senhor K.

- Quando espera ter tudo tratado?

- Dentro de alguns dias.

- Disseram-me que deve sair de Londres na segunda-feira, o mais tardar.

- É isso.

- Se alguém o atrasar, previna-me. Senão, é preciso que siga no trem das onze e trinta, no máximo.

- Eu já sabia.

- Bem - disse o sr. K. enfadado - como não pode sair daqui antes das dez horas, continuaremos a lição.

De pé, junto do quadro suspenso na parede, era uma silhueta mesquinha e subalimentada. Porque o teriam escolhido? Ocultaria ele, sob aquele disfarce, uma paixão viva pelo partido?

- Un famil tray gentil bono - papagueou ele. E, apontando para o naco de carne - Vici el carnor.

 

O tempo passou lentamente. Houve um momento em que D. julgou ouvir no corredor os passos, abafados por solas de borracha, do Dr. Bellows. Nem mesmo naquele centro de internacionalismo havia confiança.

Voltou à sala de espera, marcou nova entrevista, para segunda-feira, e pagou o preço de uma série de lições. A senhora de idade disse-lhe:

- Receio que lhe tenha parecido um pouco difícil.

- Olhe, Acho que fiz alguns progressos.

- Ainda bem, ainda bem! Sabe que o doutor Bellows dá uns serões aos alunos mais adiantados? Muito interessantes. Aos sábados, às oito horas da noite. Terá então oportunidade de encontrar pessoas de todos os países, espanhóis, alemães, siameses, com quem poderá trocar idéias. Esses serões são gratuitos; só tem de pagar o café e os bolos.

- Estou certo que os bolos são excelentes - disse D. curvando-se amavelmente.

Desceu outra vez a Oxford Street. Não tinha pressa. Não tinha nada para fazer até à hora da visita a Lord Benditch. Ia andando e saboreando a sensação de irrealidade que lhe davam as montras dos estabelecimentos repletas de mercadorias, a ausência de prédios em ruínas, as mulheres que entravam no Buzzard para tomar café. Isto assemelhava-se a um dos seus sonhos de paz. Parou diante de uma livraria e olhou com uma certa inveja... gente que tinha tempo para ler as mais recentes novidades. O título de um dos livros era: Uma Lady na Corte do Rei Eduardo; na capa, a fotografia de uma mulher forte vestida de seda branca e enfeitada de plumas de avestruz. Parecia incrível. Havia outro - Dias de Safari - com um homem de capacete colonial, de pé, ao lado do cadáver de uma leoa. “Que país!” pensou ele outra vez enternecidamente. Continuou. Surpreendia-se ao ver como todos andavam bem vestidos. Luzia um sol pálido de Inverno; os ônibus vermelhos formavam uma fila imóvel ao longo de Oxford Street: o trânsito estava parado, havia um engarrafamento. “Que alvo” pensou ele, “que alvo para aviões inimigos!” Era quase sempre àquela hora que eles chegavam. Mas o céu estava limpo ou quase, apenas se via um pequeno avião que, através das suas manobras acrobáticas, ia deixando uma mensagem publicitária em nuvens de fumaça: “Aqueçam-se com Ovo. “ Chegou a Bloorrisbury - e pensava então que tinha passado uma manhã de paz; parecia que a doença havia encontrado, nesta cidade trabalhadora, o remédio que lhe correspondia. A grande praça, com as árvores despidas de folhas, estava vazia; apenas se viam dois indianos revendo apontamentos de curso, por baixo do reclamo das saunas. Entrou no hotel.

Encontrou no vestíbulo uma mulher que, supôs, seria a governanta - uma mulher encorpada, morena, com uma mancha à volta da boca. Ela olhou-o com uma frieza de comerciante e gritou com voz áspera:

- Else, Else! Onde você se meteu?

D. tentou acalmá-la:

- Não se incomode. Eu a encontrarei na escada.

- A chave devia estar aqui. No chaveiro.

- Não faz mal.

Else estava varrendo o corredor diante da porta do seu quarto.

- Ninguém entrou - disse ela.

- Obrigado, Else. Você é uma boa guarda.

Porém, logo que entrou, viu que ela não dissera a verdade. Para se poder certificar, tinha colocado o saco de viagem em um certo ângulo. Alguém o tinha deslocado. Talvez a própria Else ao fazer a limpeza. Abriu o saco. Não continha papéis importantes, mas alguém mexera ali. Chamou baixinho: “Else.” Vendo-a entrar, pequenina e esquelética, com uma expressão de fiel dedicação que ela usava tão desastradamente como o avental, perguntou se existiria no mundo alguém que não fosse possível corromper. Até ele próprio poderia talvez ser comprado... com quê?

- Alguém entrou aqui - disse ele.

- Ninguém senão eu e...

- E quem?

- A senhora governanta. Não sabia que o senhor queria falar dela.

D. sentiu um grande alívio ao descobrir que, apesar de tudo, em qualquer parte ainda se podiam encontrar pessoas honestas.

- Naturalmente - disse ele - você não podia impedi-la de entrar, não é verdade?

- Fiz o que pude. Ela achou que eu estava impedindo-a de ver que se o quarto estava mal arrumado. Ainda lhe disse que o senhor tinha recomendado que ninguém... mas ela obrigou-me a dar-lhe a chave. Tornei a repetir que o senhor tinha dito para não deixar entrar ninguém. Arrancou-me a chave das mãos. Eu não queria que ela entrasse, mas depois pensei que isso não ia ter importância. Nunca imaginei que o senhor fosse reparar. - E acrescentou: - Peço perdão. Vejo agora que não devia tê-la deixado entrar.

Percebeu que a pequena tinha chorado.

- Ela se zangou com você? - perguntou ele com muita doçura.

- Me despediu. - Mas acrescentou imediatamente: - Isso é o de menos. Aqui é a escravatura... Se não fossem uns ganchinhos que se arranjam... mas há maneiras de ganhar muito mais. Não quero ser criada toda a minha vida.

Ele pensava: “Afinal não me curei da infecção. Bastou entrar aqui para estragar a vida de alguém.”

- Eu vou falar com a governanta - disse ele.

- Oh, eu não quero ficar depois do que aconteceu. - E a verdade veio como um crime que se confessa: - Ela me bateu!

- Que vais fazer?

Horrorizava-o aquele misto de inocência e de experiência.

- Há uma garota que costumava vir aqui e que agora tem uma casa só dela. Sempre me disse que quando eu quisesse a procurasse. Vou ser criada dela. Naturalmente nada mais terei que fazer com os homens senão abrir-lhes a porta.

Ele exclamou:

- Não! Não!

Era como se tivesse apreendido com um simples olhar toda a culpabilidade que ignoramos em cada um de nós. De fato, ninguém sabe o quanto traiu a inocência. Sentia-se responsável.

- Espere que eu fale à governanta.

A sua resposta foi um amargo protesto.

- Aquilo não será muito diferente do que eu faço aqui, sabe!... - Depois explicou: - No entanto, na casa dela não serei bem uma criada. Irei todas as tardes com a Clara ao cinema. Ela diz que precisa de uma companhia. Tem um pékinois e mais nada. Para ela, os homens não contam.

- Espere um pouco. Tenho certeza que, de uma maneira ou de outra, poderei ajudá-la.

Mas, na verdade, não sabia como, a menos que, talvez a filha de Benditch... Mas era tão pouco provável, depois do episódio do automóvel...

- Oh, eu só saio daqui a oito dias... - Ainda era tão nova e, pelo menos teoricamente, já sabia tanto acerca dos vícios. - Clara me disse que tem o telefone escondido debaixo de uma boneca e que dá à criada todos os chocolates que lhe oferecem.

- A Clara pode esperar - replicou ele.

Parecia tentar fazer um retrato mais completo daquela garotinha: não havia dúvida de que tinha um bom coração, mas a filha de Benditch também tinha. Dera-lhe um bolo na plataforma da estação. Naquele momento o gesto parecera-lhe de leviana generosidade e um pouco teatral.

Lá fora, ouviu-se a voz da governanta.

- Que está fazendo aí, Else?

- Fui eu que a chamei - explicou D. - Queria saber quem entrou no meu quarto.

Ainda não tivera tempo de digerir as informações que a pequena tinha dado. Seria a governanta uma ou outra das suas, digamos, colegas, empenhada em verificar se ele se mantinha precisamente no estreito caminho das virtudes, ou teria sido subordinada por L.? Mas, nesse caso, os seus correligionários não o teriam enviado para aquele hotel. O seu quarto tinha sido reservado e tudo fora antecipadamente preparado de maneira a não perderem o contato com ele. Mas tudo isto, naturalmente, podia ter sido manobrado por aquele, quem quer que fosse, que havia informado L. Era um círculo infernal.

- Ninguém - disse a governanta - entrou aqui, senão eu e Else.

- Eu tinha recomendado a Else que não deixasse entrar ninguém.

- Era a mim que o devia ter dito.

Tinha uma cara quadrada, forte, devastada pela doença. - - Além disso - acrescentou ela -, só entra nos quartos quem tem algum trabalho para fazer.

- Parece que alguém se interessou pelos meus papéis. Mexeu nos papéis, Else?

- Claro que não.

Ela voltou-se para ele, com ar de desafio, com a sua grande cara quadrada: um velho baluarte ainda capaz de resistir.

- Como vê, enganou-se redondamente... se acredita no que diz a criada.

- Acredito no que ela diz.

- Então, está tudo dito.

Ela não replicou: para quê? Ela pertencia ao seu partido ou ao de L. Pouco importava qual, visto que nada havia encontrado que a interessasse e ele não podia mudar de hotel: tinha recebido instruções.

- Agora parece-me que já posso dizer-lhe o que tinha para lhe dizer: Há uma senhora ao telefone perguntando pelo senhor. No vestíbulo.

- Uma senhora? - perguntou ele, espantado.

- Foi o que eu disse.

- Não disse o nome?

- Não!

D. notou que Else olhava para ele ansiosamente, Por Deus, nada de mais complicações, sobretudo nada de paixões infantis. Quando saiu, tocou-lhe no braço e disse-lhe:

- Tenha confiança em mim.

Catorze anos é uma idade horrivelmente prematura para se saber tanto acerca de se viver à mercê de todos. Se era isso a civilização - as ruas apinhadas de gente apressada e de riquezas, as mulheres acotovelando-se no Buzzard para tomarem café, a Lady da corte do Rei Eduardo e a criança que naufraga e se afoga... preferia a barbárie, as ruas bombardeadas, as filas nas padarias: ao menos, na sua terra, o pior que uma criança tinha a recear era a morte. Que diabo! Era por crianças como ela que ele combatia, para impedir o seu país de voltar a uma civilização daquelas.

Pegou o auscultador do telefone:

- Quem fala?

- Rose Cullen - respondeu uma voz impaciente.

“Que quer isto dizer?” pensou ele. “Irão eles, como nos livros de histórias, lançar-me uma mulher à perna?”

- Ah! - disse ele. - Chegou bem a sua casa, a Gwyn Cottage? Só uma pessoa podia ter-lhe dado a direção: L.

- É claro que cheguei bem, naturalmente. Ouça...

- Fiquei desolado por ter de deixá-la com gente daquela espécie.

- Não banque o idiota. Você é um ladrão?

- Comecei a roubar automóveis antes de  você nascer.

- Mas é verdade que vai encontrar-se com o meu pai?

- Foi ele que lhe disse?

Ouviu-se ao longo da linha uma exclamação irritada.

- Pensa que eu e o meu pai nos falamos? Estava escrito na sua agenda. Você a deixou cair.

- Com o endereço deste hotel?

- Claro!

- Gostaria muito de recuperar essa agenda. Está cheia de recordações sentimentais... acerca de outros roubos meus.

- Oh, meu Deus! - disse a voz. - Se ao menos você quisesse...

D. examinava sombriamente o pequeno vestíbulo do hotel: uma aspidistra em cima de uma armação de madeira, um invólucro de granada servindo de bengaleiro. Pensou: “Podíamos montar uma indústria com todas as granadas que recebemos. Aqui está um presente de gosto: um bengaleiro-lembrança dos países devastados.”

- Adormeceu ao telefone? - perguntou a voz.

- Não. Esperava apenas que me dissesse o que quer... É que... é um pouco embaraçoso. O nosso último encontro foi... tão estranho...

- Quero falar com você.

- Então?

Ele bem desejaria saber se ela pertencia ou não ao partido de L.

- Não posso dizer-lhe nada pelo telefone. Quer jantar comigo esta noite?

- Bem, eu não tenho... não tenho um terno apresentável.

Curioso! A voz da garota parecia espantosamente repassada de angústia. Se realmente ela trabalhava para L. deviam começar a sentir-se enervados. Não lhes restava muito tempo: o seu encontro com Benditch estava marcado para o dia seguinte.

- Iremos onde você quiser.

Não lhe parecia haver qualquer perigo em encontrar-se com ela, desde que não levasse consigo as cartas credenciais, nem sequer as luvas. Por outro lado, era muito possível que tornassem a revistar-lhe o quarto: era um problema. Perguntou:

- Onde podemos nos encontrar?

- Diante da estação de Russel Square - respondeu ela apressadamente -, às sete horas.

Parecia não haver perigo. Perguntou:

- Conhece alguém que precise de uma criada? Você ou o seu pai, por exemplo?

- Enlouqueceu?

- Não faz mal. Falamos disso esta noite. Até logo.

Subiu as escadas vagarosamente; não ia correr qualquer risco. A primeira coisa a fazer seria esconder as cartas. Só tinha de esperar vinte e quatro horas para tornar a ser um homem livre - livre para voltar ao seu país bombardeado, onde se morria de fome. Não, eles não lhe lançariam uma mulher às pernas. Isso era uma coisa que só acontecia nos melodramas. Nos melodramas, os agentes secretos nunca estão cansados, nem sequer continuam a amar mulheres que já morreram. No entanto quem sabe se L. não seria um leitor de melodramas? Ele, afinal, representava a aristocracia: os marqueses, os generais, os bispos, que vivem em um mundo curioso, convencional, muitos deles entre o tilintar das medalhas que oferecem uns aos outros - como os peixes de um aquário que tudo vêem perpetuamente através de um vidro, mas que, por via de necessidades fisiológicas, têm de se manter em um elemento peculiar. Talvez fossem buscar idéias em outro mundo - um mundo de especialistas e de operários - e também aos melodramas. É um erro subestimar a ignorância das classes dominantes. Maria Antonieta, referindo-se aos pobres, aconselhara que lhes dessem brioches..

A governanta já tinha ido embora. Talvez tivesse uma extensão que lhe permitia ouvir todas as conversas. A pequena continuava a limpar o corredor com furioso zelo. D. parou um momento olhando para ela. Às vezes, era preciso correr riscos.

- Quer vir um instante ao meu quarto? - perguntou. Quando entraram, fechou a porta à chave. - Tenho de falar em segredo, para a governanta não ouvir. - Sentiu-se, uma vez mais, desconcertado com aquele ar de dedicação total. Que diabo tinha ele feito para a merecer, ele, um estrangeiro envelhecido, com o rosto escalavrada?... Apenas lhe dirigira algumas palavras bondosas. Será que essas palavras, tão raras no meio em que a pequena vivia, fizeram nascer... isto? -- Queria que me fizesse um favor - disse ele.

- Tudo o que quiser - respondeu ela prontamente.

D. pensou: “É a mesma dedicação que sente pela Clara. Que vida, quando uma criança só dispõe de um estrangeiro e de uma prostituta para canalizar o seu amor!”

- Ninguém deve saber - continuou ele. - Tenho aqui uns papéis que querem roubar. Quero que os guarde até amanhã.

- O senhor é espião?

- Não, não.

- E que fosse! Para mim era a mesma coisa. - Ele sentou-se na cama e descalçou os sapatos. Ela seguia, fascinada, todos os seus movimentos. - Aquela senhora que falou ao telefone...

- É preciso que ela não saiba. É um segredo só nosso: seu e meu. - o rosto da pequena resplandeceu: parecia que lhe tinham oferecido uma jóia. Desistiu prontamente da idéia de dar-lhe dinheiro. Mais tarde talvez quando fosse embora - daria qualquer coisa que ela venderia se quisesse. Agora não. Seria uma retribuição humilhante e brutal. - Onde vai escondê-los - perguntou.

- No mesmo lugar que o senhor.

- E ninguém os verá?

- Juro que não.

- Então esconda-os agora, depressa.

Virou-se de costas e olhou pela janela. A tabuleta do hotel, de grandes letras douradas, pendia por baixo. A janela ficava a uns quinze metros do passeio; na rua passava lentamente um carro com carvão.

- Agora - disse ele - vou ver se durmo um pouco. Há muito tempo que não dormia bem!

- O senhor não quer almoçar? O almoço hoje não é ruim e eu, posso arranjar as coisas para o senhor ser melhor servido.’É só esperar que ela volte as costas.

- Ainda não estou habituado - replicou ele - às suas refeições fartas. No país de onde venho perdemos o hábito de comer.

- Mas tem de comer. É preciso.

- Nós descobrimos um meio barato de nos alimentar. Em vez de comer... olhamos para as páginas das revistas que trazem imagens de comida.

- Não diga isso. Não acredito. Tem de comer. Se é por causa do dinheiro...

- Não - disse ele -, não é por causa do dinheiro. Prometo que comerei bem esta noite, mas agora o que mais preciso é dormir.

- Ninguém o incomodará. Ninguém!

D. ouviu-a depois andar no corredor como uma sentinela. Flap, flap, flap, certamente fingia que varria.

Estendeu-se outra vez na cama, vestido. Não era preciso ordenar ao subconsciente que o acordasse. Nunca dormia mais de seis horas de um sono só. Era o maior intervalo que tinha conhecido entre dois bombardeios. Desta vez, porém, não conseguiu pregar o olho. Nunca tinha se despojado dos papéis. Tinham atravessado a Europa com ele: no expresso para Paris, na travessia do canal, na estrada de Dover; até enquanto lhe bateram os teve consigo enfiados nas meias. Eram a sua salvaguarda. Sem eles sentia-se mal. Constituíam a sua razão de ser; agora era um zé-ninguém... nada senão um estrangeiro indesejável estendido na cama de um hotel reles. E se a criada fosse se gabar da confiança que merecera? Fiava-se nela mais do que em qualquer outra pessoa, mas ela era simplória: se mudasse de meias e se esquecesse dos papéis, se os perdesse?... Pensou que L. nunca faria uma coisa semelhante. Em resumo: o futuro do que restava ao seu país estava depositado nas meias de uma criada mal paga. Aqueles papéis valiam pelo menos duas mil libras, e já tivera provas disso. Pagariam até muito mais se lhes desse confiança. Assim sentia-se privado de todas as forças, como Sansão, de cabelos cortados. Esteve prestes a levantar-se e a chamar a pequena. Mas, se fizesse isso, onde guardaria os papéis? Naquele pequeno quarto não havia um único canto em que pudesse ocultá-los. Acabou por reconhecer que o futuro dos pobres estava dependente de uma pobre garota.

As horas passaram devagar. Persuadiu-se que eram de repouso. Passados uns momentos o corredor ficou em silêncio. Ela não tinha podido prolongar o quarto de sentinela. “Se ao menos tivesse uma pistola” pensava ele “não se sentiria tão impotente.” Mas não pudera trazer uma, seria muito perigoso nas alfândegas. Talvez aqui houvesse maneira de arranjar uma pistola, clandestinamente, mas não sabia como. Notou que estava amedrontado. Restava-lhe tão pouco tempo. Não tardaria a ser atacado. Tinham começado a soco; provavelmente a tentativa seguinte seria implacável. Sentiu-se desamparado, só e aterrorizado por estar correndo perigo sozinho. Por norma, tinha uma cidade inteira a fazer-lhe companhia. Lembrou-se outra vez da prisão: o guarda que atravessava o pátio e se aproximava dele. Nesses momentos estava só. Antigamente os combates eram mais simples: Rolando, tinha os seus companheiros, Olivier e Turpin, em Roncevaux. Toda a cavalaria da Europa voava em seu socorro. Os homens estavam unidos por uma fé comum. Contra os Mouros, até um herético teria combatido pela cristandade; poderiam divergir acerca da Trindade, mas quanto ao resto eram firmes como rochas. Agora havia tantas variedades de materialismo económico, tantas iniciais!... Através do ar frio ouviram-se algumas vozes vindas da rua: um ferro-velho e um homem que se oferecia para consertar cadeiras. Ele, que tinha dito que a guerra matava as emoções, via agora que isso era falso. Estas vozes torturavam-no. Enterrou a cabeça na almofada. Evocavam intensamente os anos que tinham precedido o seu casamento. Ambos as tinham ouvido. Sentia-se como um jovem que, tendo depositado toda a confiança, percebe depois que o traíram, escarneceram, enganaram. Ou que ele próprio estragara uma vida inteira de existência em comum por um minuto de luxúria. Viver era perjurar. Quantas vezes haviam declarado que, se um morresse, o outro morreria na semana seguinte? Mas ele não tinha morrido: sobrevivera à prisão, à casa demolida. A bomba que arrasou quatro andares e matou um gato deixara-o vivo, L. pensaria realmente que podia servir-se de uma mulher para o atrair a uma armadilha? Era isso, a recuperação da sensibilidade, do desespero, o que Londres, a calma cidade estrangeira, lhe reservava?

Veio o crepúsculo: as luzes jorravam como uma geada branda. Estendido de costas, com os olhos abertos, pensava: “Oh! Estar em casa”! Levantou-se e fez a barba. Eram horas de partir. Abotoou o sobretudo até ao pescoço e mergulhou na noite gelada. Da Citys soprava um frio vento de leste que fazia pensar em extensos corredores, em portas envidraçadas, em uma rotina sem alegria. – É um vento que suga toda a coragem do homem. Subiu Guilford Street’ Tinha cessado o movimento da saída dos escritórios e ainda não começara o de entrada para os teatros.

Ao voltar a esquina de uma rua transversal, ouviu atrás de si uma voz débil, cultivada e insinuante:

- O senhor desculpe... queira desculpar.

Era um homem vestido de uma maneira esquisita - chapéu Mole amassado, um sobretudo negro muito comprido de que havia sido descosturada a gola de pele - que o cumprimentava com excessiva gentileza. Tinha o queixo semeado de pêlos curtos, brancos, os olhos papudos injetados de sangue e estendia uma mão magra e envelhecida como se a desse a beijar. Desculpava-se com o que lhe restava de um sotaque universitário ou teatral.

- Tive a impressão de que Vossa Excelência não se importaria por eu o interromper. É que, na verdade, encontro-me em dificuldades...

- Em dificuldades?

- Alguns xelins apenas...

Era uma coisa a que D. não estava habituado. No seu país os mendigos eram mais espectaculares: exibiam as suas dificiências físicas à porta das igrejas.

O homem tinha um ar de angústia mal dissimulada.

- Não teria me dirigido a V. Ex.a, meu caro senhor, se não pressentisse que... que o senhor é... enfim, um dos meus semelhantes.

Ou havia realmente uma espécie de pedantismo na sua mendicidade, ou aquilo era uma fórmula de abordagem que já lhe tinha dado resultado...

- É claro que se isso, de qualquer maneira, o incomoda, não falaremos mais no caso.

D. meteu a mão no bolso.

- Aqui não... peço-lhe. Se não se importar vamos ali àquele beco. Confesso que me envergonha pedir dinheiro emprestado a uma pessoa completamente desconhecida. - E arrastou-o, como se deslizasse, para a viela solitária. - Não sei se imagina a minha situação.

- Aqui tem meia coroa - disse D.

- Muito obrigado, meu caro senhor - e apoderou-se rapidamente da moeda. - Talvez um dia me seja possível pagar-lhe.

E afastou-se a passos largos, fatigados; saiu do beco e desapareceu. D. seguiu-o. De repente ouviu atrás dele uns ruídos e um pedaço de tijolo desprendeu-se inesperadamente da parede, acertando-lhe em cheio na cara. A memória avísou-o e desatou a correr. Na rua, as janelas estavam iluminadas e havia à esquina um policial, estava salvo. Sabia que alguém acabava de disparar contra ele uma arma munida com um silenciador. Que ignorância! É impossível fazer boa pontaria com um silenciador.

O mendigo deve tê-lo esperado à porta do hotel e serviu de isca para atrai-lo ao beco, se o tivessem atingido, ali estava um carro pronto a recolher o cadáver. Talvez tivessem apenas a intenção de feri-lo. Mas como tinham eles sabido a que horas sairia do

hotel? Apressou o passo e subiu Bernard Street dominado pela raiva. A garota, como seria de esperar, não estaria no lugar combinado.

Mas estava.

- Não esperava encontrá-la aqui - disse ele. - Os seus amigos acabam de tentar matar-me.

- Ouça - replicou ela. - Há coisas em que eu não quero nem posso acreditar. Vim aqui para me desculpar. Não creio que você tivesse tentado roubar-me o carro, mas eu estava embriagada e furiosa... não me passava pela cabeça que eles iriam agredi-lo daquela maneira. Foi aquele imbecil do Currie. Mas se você recomeçar com os seus melodramas... É uma nova maneira de cativar? Se pretende enternecer corações românticos, comigo não funciona.

- O L. sabia que íamos nos encontrar aqui as sete e meia?

Ela respondeu, vagamente embaraçada.

- O L. não, mas Currie sabia.

Esta confissão surpreendeu-o: afinal, talvez ela fosse inocente.

- Como sabe, ele tinha a sua agenda. Disse-me que era melhor guardá-la para o caso de você voltar a tentar qualquer coisa comigo. Telefonei a ele hoje. Ele estava em Londres. Disse-lhe que não acreditava que você tivesse intenção de roubar o carro e que ia me encontrar com você. Queria devolver-lhe a agenda.

- E ele deu-a?

- Aqui está.

- E disse-lhe onde e a que horas?

- É possível. Falamos muito, discutimos... Mas não vá dizer agora que foi o Currie quem disparou contra você. Recuso-me a acreditar em uma coisa dessas.

- Oh, não! Eu também não acredito, mas acho que ele encontrou L. e lhe disse.

- Sim... ele ia almoçar com o L.

Depois, furiosa, exclamou:

- Mas isso é inacreditável! Como podia disparar contra você em plena rua, em Londres? E a polícia? E o ruído? E os transeuntes? Além disso, porque você está aqui e não foi a uma esquadra de polícia?

- Faça uma pergunta de cada vez - disse ele calmamente. - O incidente aconteceu em um beco e o tiro foi disparado por uma arma com silenciador. Quanto à esquadra.. tinha de me encontrar com você.

- Não acredito. Não quero acreditar. Não vê que a vida seria completamente diferente se fosse possível acontecerem coisas dessas? Teríamos de começar tudo de novo.

- A mim não parece estranho. No meu país estamos constantemente ouvindo tiros. Seria uma coisa a que até aqui se habituaria. A vida contínua sem grandes alterações.

Pegou-lhe na mão como a uma criança e desceu com ela Bernard Street e depois Greenville Street.

- Não corre perigo algum - disse ele. - Quem disparou já foi embora há muito tempo.

Chegaram ao beco. À entrada ele apanhou do chão um pedaço de tijolo.

- Veja - disse ele -, um pedaço do tijolo onde a bala bateu.

- Prove-o! Prove-o! - disse ela furiosa.

- Não me parece que seja possível.

Pôs-se a raspar na parede com a unha. A bala podia ter-se cravado ali.

- Eles estão completamente desesperados: primeiro foi aquela cena nos lavabos, ontem... depois a cena que viu. Hoje alguém revistou o meu quarto... talvez um dos meus. Mas esta coisa, já excedeu os limites. Só lhes resta liquidarem-me. Ora, eu sou difícil de matar.

- Oh, meu Deus! - exclamou ela bruscamente. - É verdade!  - D. voltou-se. Tinha uma bala na mão. O projétil tinha ricocheteado na parede. - É verdade! - repetiu ela. - Temos de fazer alguma coisa! A polícia...

- Não vi quem foi. Não há provas.

- Você me disse ontem à noite que eles tinham oferecido dinheiro.

- É verdade.

- Porque não aceitou? - perguntou ela rudemente. - A não ser que deseje que o matem.

Subitamente, teve a impressão de que ela ia ter um ataque de nervos. Deu-lhe o braço e arrastou-a para um pub.

- Dois brandies duplos – pediu. E pôs-se a falar alegremente, muito depressa: - Queria que me fizesse um favor. No hotel em que eu estou há uma criada, uma garotinha... a pequena prestou-me um serviço pelo qual foi despedida. É uma boa mocinha, um pouco exaltada. Deus sabe o que pode lhe acontecer agora. Não seria possível arranjar-lhe um emprego? Você deve ter muitos amigos ricos.

- Oh, deixe-se de quixotismos! Quero que me preste outros esclarecimentos.

- Não posso dizer-lhe muito mais. Creio que eles não querem que eu me encontre com o seu pai.

- Será você - disse ela com uma espécie de desprezo colérico - um desses caras  que chamam de patriotas?

- Não, creio que não. São os outros que falam constantemente de uma coisa a que chamam o nosso país.

- Então porque não aceitou o dinheiro?

- Cada um de nós tem de escolher uma linha de conduta e, conformar-se com ela. De outra maneira nada há que tenha a menor importância. Só nos restaria como solução abrir a torneira do gás. Eu escolhi o partido de certas pessoas que há séculos, estão reduzidas à fatia mais fina.

- Mas o seu povo está sendo constantemente traído.

- Que importa? Poder-se dizer que a única atividade que nos resta é a de sermos fiéis à nossa atividade, sem considerar a moral. A minha gente, comete as mesmas atrocidades que os outros. Oponho, que se acreditasse em Deus tudo seria mais simples.

- Está convencido de que os seus chefes são melhores que os do L.

Ela bebeu o brandy e pôs-se a bater nervosamente no balcão com a bala metálica.

- Não, certamente que não. Mas continuo a preferir a gente que eles dirigem... mesmo que a dirijam mal.

- Os pobres... tenham ou não razão - escarneceu ela. - E a seguir o meu país, tenha ou não tenha razão, não é pior, não é? Escolhe-se um dos lados de uma vez para sempre... naturalmente será talvez o pior que não terá razão, mas isso é coisa que só a História poderá dizer.

Tirou-lhe a bala da mão.

- Vou comer alguma coisa - disse ele. - Desde ontem à noite que não como nada. - Foi buscar um prato com sanduíches e levou-o para uma mesa. - Vamos, coma também alguma coisa. Sempre que a encontro põe-se a beber com o estômago vazio. Não é bom para os nervos.

- Não tenho fome.

- Eu tenho.

Deu uma grande dentada na sanduíche de presunto.

- Conte-me o que fazia antes de isto começar...

- Ministrava cursos sobre o francês da Idade Média. Não era uma ocupação divertida... - Sorriu: - Mas tinha a sua importância. Já ouviu falar da Canção de Rolando?

            - Já.

            - Fui eu quem descobriu o manuscrito de Berna.

            - Aí está uma coisa que para mim não tem sentido. Sou uma ignorante chapada.

            - O melhor manuscrito era o que os seus compatriotas tinham em Oxford, mas este, além de estar muito corrigido, tem lacunas. Havia também o manuscrito de Veneza, que preenche algumas lacunas, nem todas... é muito inferior. Fui eu quem encontrou o manuscrito de Berna - concluiu ele desvanecidamente.

- Sério? - perguntou ela com ar sombrio e os olhos pregados no projétil que ele tinha na mão. Levantou depois os olhos para a cicatriz do queixo, para a boca ferida.

Ele prosseguiu:

- Lembra-se da história: da guarda avançada do exército dos Pirinétis, e de como Olivier, quando viu chegarem os Sarracenos, pediu a Rolando para tocar a trombeta e chamar Carlos Magno?

Ela perguntou, com o ar de quem estava pensando na cicatriz:

- Como?

- Rolando recusou-se a tocar a trombeta. Jurou que não haveria inimigo capaz de forçá-lo a pedir socorro. Nobre e corajoso imbecil! Na guerra escolhem-se sempre os heróis que não são precisos. Olivier é que devia ser o herói desta canção, em vez de ficar em segundo lugar, ao lado do sanguinário bispo Turpin.

- Como morreu a sua mulher? - perguntou ela.

Mas ele estava resolvido a não permitir que a guerra envenenasse aquela conversa, e continuou naturalmente:

- E é só quando todos os seus guerreiros estão mortos ou moribundos e que ele próprio está acabando, que declara que vai tocar a trombeta. O sangue jorra da boca de Rolando, tem os ossos das têmporas fraturados. Mas Olivier não deixa de o invectivar com desprezo. Se tivesse tocado a trombeta logo de início, teria salvo todas aquelas vidas. Mas não: só tinha pensado na sua glória e recusara-se a pedir socorro. E é agora, porque está vencido e moribundo, que toca a trombeta e enlameia de vergonha a sua raça e o seu nomel Que morra pois tranquilamente e se contente com o desastre devido ao seu heroísmo. Eu não lhe dizia que o verdadeiro herói fora Olivier?

- Como é que disse?

Era evidente que ela não o ouvia. Viu que estava quase chorando e com vergonha. Talvez sentisse pena dela própria e isso era uma qualidade à qual, mesmo nos adolescentes, não dava qualquer importância.

- É nisto que reside a importância do manuscrito de Berna: restitui o mérito a Olivier. Faz da história uma tragédia e não simplesmente um poema épico. Porque, na versão de Oxford, Olivier reconcilia-se com Rolando a quem mata por acidente, cego pelo sangue das suas feridas. Como vê, a história foi contada conforme as necessidades em causa... ao passo que na versão de Berna ele abate conscientemente o amigo pelo que fez aos seus homens; pelo desperdício de todas aquelas vidas. E morre detestando o homem de quem é amigo... O grande, o fanfarrão heróico e demente que desprezava mais a sua glória do que a vitória da sua fé. Está vendo o escândalo que esta versão causou... nos castelos, nas comezainas, entre os cães, os canjirões de vinho e os instrumentos de música; os malabaristas tiveram de amaneirar o conto ao gosto dos nobres da Idade Média, que, em miniatura, podiam ser também Rolandos. Bastava-lhes um braço potente e muito orgulhoso - eram incapazes de compreender Olivier.

- Eu sou por Olivier - disse ela sem hesitar.

E como ele, surpreso, olhasse para ela, acrescentou:

- O meu pai, tal como um desses barões, seria por Rolando.

- Tinha acabado de publicar o manuscrito quando a guerra começou.

- E que vai fazer quando a guerra acabar?

Era uma coisa em que ele nunca tinha pensado.

- Espero não lhe ver o fim.

- Como Olivier. Você, se pudesse, a teria evitado, mas já que ela rebentou...

- Não, não. Nem eu sou o Olivier nem os pobres diabos do meu país são Rolandos... O próprio L. não é o Ganelon.

- Quem era Ganelon?

- O traidor.

- Tem certeza que L?... Pareceu-me muito simpático.

- Sabem mostrar-se simpáticos. É uma arte que praticam há séculos. - Acabou de beber o brandy. - Enfim, aqui estou. Porque é que estamos falando de coisas sem importância? Você me pediu para vir e eu vim.

- Só quero ajudá-lo. Mais nada.

- Porquê?

- Ontem à noite, depois que eles lhe baterem, me senti agoniada. Currie, naturalmente, achou que eram efeitos do álcool. Mas não; era a sua cara. Oh! - exclamou ela - quero que você saiba precisamente o porquê! Nunca tinha visto uma cara que me parecesse razoavelmente - como direi? - honesta. Honesta em tudo, é o que eu quero dizer. Os amigos do meu pai... são honestos... enfim, em matéria de alimentação e de amor, digamos... têm mulheres satisfeitas, bem tratadas e prestigiadas... Mas quando se trata de carvão ou de operários, inútil lhes falar em melodramas ou sentimentos. Mostre-lhes um livro de cheques, um contrato...

Ao fundo, no bar, alguns homens jogavam setas e acertavam no alvo com inacreditável precisão.

- Não venho pedir-lhe esmola - disse D.

- Essa coisa tem realmente uma grande importância para você?

- As guerras, hoje, já não são o que eram no tempo do Rolando. Por vezes o carvão é mais necessário que os carros blindados. Temos mais carros do que precisamos. É verdade que não valem grande coisa...

- Mas Ganelon ainda pode estragar tudo?

- Não lhe será fácil.

- Creio que estarão todos lá quando você for encontrar meu pai. Os ladrões têm o seu código de honra. Goistein e o velho Lord Fetting. Brisgtock... e o Forber. É conveniente que você saiba com quem tem de se haver.

- Tome cuidado - disse-lhe ele. - Seja como for, é o seu meio.

- Não tenho meio. Além disso, o meu avô era operário.

- Tem pouca sorte. Está em uma espécie de terra de ninguém, a mesma em que eu me encontro. Temos de escolher entre os dois partidos e ambos desconfiam de nós, naturalmente.

- Em relação ao carvão, pode confiar em Forbes. Quanto ao mais, não. Até no nome é desonesto. É judeu e chamava-se Furstein. Também não é sério no amor. Quer casar comigo e tem uma amante a quem pôs casa em Shepherd’s Market. Foi um dos amigos dele que me disse - riu de vontade. - São frescos, os nossos amigos.

D. sentiu-se escandalizado pela segunda vez nesse dia. Lembrou-se da garota do hotel. Era uma época em que se sabia demais antes da maioridade. No seu país as crianças conheciam a morte antes de saberem andar e habituavam-se muito cedo ao desejo, mas este conhecimento selvagem, que vem lentamente, que é o resultado de uma experiência gradual... Nas vidas felizes a decepção final sobre a natureza humana coincide com a morte. Atualmente as pessoas têm de viver a vida inteira com esta decepção.

- Não me diga que vai casar com ele... - disse D., ansiosamente.

- Quem sabe? É melhor que muitos outros.

- Talvez essa história da amante não seja verdadeira.

- É. Contratei um detetive para investigar.

D. desistiu. Isto não era a paz. Ao desembarcar na Inglaterra, tinha sentido uma certa inveja... aquele ar desprendido... a própria confiança na verificação dos passaportes. Mas em toda a parte havia qualquer coisa que se escondia. Tinha imaginado que a desconfiança, que era a própria atmosfera da sua vida, viera da guerra civil, mas começava a acreditar que ela existia em toda a parte, que fazia parte da vida humana. As pessoas só se uniam pelos seus vícios. Havia códigos de honra entre os que praticavam o roubo e o adultério. Deixara-se outrora absorver muito pelo seu amor, pelo manuscrito de Berna, pelas aulas semanais de línguas românicas, para perceber destas coisas. Era como se o mundo inteiro jazesse em desesperado abandono. Talvez restassem ainda para ampará-lo uma dúzia de homens justos... uma pena! Seria melhor aniquilar-se completamente e recomeçar com os répteis.

- Vamos - disse ela.

- Onde?

- A qualquer parte. Temos de fazer alguma coisa, ainda é cedo. Vamos ao cinema?

Permaneceram cerca de três horas sentados em uma espécie de palácio: estátuas com asas de ouro, tapetes espessos, um desfile ininterrupto de bebidas servidas por garotas vestidas com roupas provocantes. A última vez que viera a Londres estas salas eram menos luxuosas. O filme, uma comédia musical plena de sofrimentos e estranhos sacrifícios: um produtor morrendo de fome e uma garota, de um louro platinado, que tinha triunfado. O seu nome luzia em grandes letras publicitárias em pleno Picadilly, mas ela renunciava ao papel e voltava à Broadway para salvar o produtor. Secretamente, financiara uma nova produção cujo êxito era garantido pelo seu nome. Era uma revista escrita correndo e a distribuição contava com uma plêiade de atores de talento que morriam de fome. Todos ganhavam rios de dinheiro. parecia que se perdera há séculos certo código de fé e de moralidade e que o mundo estava reconstruindo-o, servindo-se de aspirações subconscientes e dos elementos pouco seguros da memória humana...

Sentiu a mão de Rose pousada no seu joelho: ela dissera que não era romântica, este gesto não era pois, supôs ele, senão uma maneira automática de reagir aos assentos confortáveis, às luzes veladas e às canções alegres. Era uma reação conhecida em todos os meios sociais, como a fome. Mas ele mantinha-se insensível. Pousou a mão na da garota com um sentimento de piedade - ela merecia mais do que um judeu chamado Furtstein, que tinha por conta uma mulher em Shepherd’s Market. Não era romântica, mas ele sentia, sob a sua, a mão dela, fria e condescendente.

- Creio que fomos seguidos - disse ele docemente.

- Que importa? Se o mundo é assim, terei de me acomodar a ele. Será que vão voltar a disparar ou lançar uma bomba? Não gosto nada do barulho de explosões. Previna-me a tempo, se puder.

- Não. É apenas um homem que dá lições de entrenaciono. Tenho certeza que vi à entrada os seus óculos de aros de metal. - A heroína platinada voltou a chorar. Para pessoas que tinham alcançado o êxito à custa do público, pareciam todos obtusos e lúgubres. Pensou: “Se vivêssemos em um mundo em que tivéssemos certeza tudo acabar bem, levaríamos assim tanto tempo para percebê-lo? Talvez fosse isso que os santos procuravam com o segredo da sua incompreensível felicidade: conheciam desde o princípio o fim da história e não podiam levar a sério a atrocidade dos sofrimentos.”

- Já estou farta do filme. Vamos embora. Meia hora antes do fim já se sabe como a história acaba.

Chegaram à porta sem dificuldade. D. reparou que ainda não tinha largado a mão de Rose.

- Às vezes, desejava saber qual vai ser o fim da minha história. - Sentia-se muito cansado: dois dias muito compridos e uma surra tinham-no enfraquecido.

- Vou dizer-lhe como acaba - replicou ela. - Você vai continuar a lutar por gente que não merece o seu sacrifício, Um dia será morto, mas não vai culpar Rolando, pelo menos intencionalmente. O manuscrito de Berna está errado nesse ponto. - Apanharam um táxi. Rose disse ao motorista: - Hotel Carlton, Guilford Street.

D. olhava pelo vidro de trás: não havia a menor sombra do senhor K. Teria sido pura coincidência? Talvez, de vez em quando, o próprio senhor K. precisava se descontrair e, para isso, ia ver um filme cheio de lágrimas de glicerina.

Falando, disse, mais com ele próprio do que com ela:

- Não me convenço de que eles abandonem a luta assim sem mais nem menos. Afinal, amanhã será a derrota... O carvão é tão eficaz como uma esquadrilha completa de bombardeiros moderníssimos. - Seguiram lentamente por Guilford Street. - Se ao menos tivesse uma pistola...

- Espero que eles nunca mais se atrevam - disse ela.

Passou-lhe a mão por debaixo do braço, como se desejasse permanecer com ele no táxi, assim, na segurança do anonimato. Ele se lembrou que por momentos pensara que ela era um dos agentes do L. e teve remorsos.

- Minha querida - disse ele -, é precisamente como um problema de matemática: isso poderia causar dificuldades diplomáticas. Em todo o caso, serão menos graves para eles do que as que terão se nós obtivermos o carvão. É uma questão de soma: de ver quem consegue um número maior.

- Tem medo?

- Tenho!

- Porque não se hospeda em outro lugar? Volte comigo. Dou-lhe uma cama.

- Não posso. Deixei aqui uma coisa.

O táxi parou. Ele desceu. Ela seguiu-o e ficaram ambos no passeio, lado a lado.

- Posso entrar com você? - perguntou ela. - No caso de...

- Não! É melhor você ir embora.

Continuava a agarrar-lhe a mão. Era um pretexto para se demorar e verificar que a rua estava deserta. Perguntou-se se a governanta seria amiga ou não do sr. K.

- Antes de deixá-la queria pedir-lhe mais uma vez se podia arranjar um emprego para a criadita daqui... É uma excelente garota, digna de toda a confiança.

- Nem que a visse a morrer levantaria um dedo para lhe ajudar - replicou Rose com voz dura.

Era a mesma voz que ele tinha ouvido, havia séculos, no bar daquele paquete: “Quero mais um! Hei-de beber mais um.” A voz desagradável da criança que se aborrece em um espetáculo infantil. Ele largou-lhe a mão rapidamente.

- Vá, vá com o seu donquixotismo idiota. Deixe-se matar, morra. Você não pertence a isso aqui.

- Não me compreende. Esta menina é muito nova para ser minha...

- Sua filha? Eu também - riu. - É sempre assim que essas coisas começam. Sei muito bem. Já lhe disse que não sou romântica. É o que se chama o complexo de Electra. Detestamos o nosso pai por milhares de razões e depois nos apaixonamos por um homem da mesma idade. É grotesco! Ninguém poderá dizer que há nisso o menor sopro de poesia. Continuamos a telefonar, a nos encontrar...

D. olhava para ela, pouco à vontade, consciente da terrível incapacidade de sentir alguma coisa mais do que o medo e um pouco de piedade... Os poetas do século XVII  diziam que se pode dar o coração para sempre. Os psicólogos modernos dizem que isso não é verdade, mas podemos ter tanta pena e sentir tal desespero que nos retraímos perante a possibilidade de voltar a sentir isso. Impotente, perdido, permanecia diante da porta daquele hotel sórdido que alugava quartos à hora.

- Se ao menos esta guerra acabasse! - disse ele.

- Foi você mesmo que disse que para você não acabaria mais. - Ela estava adorável. Ele nunca tinha visto, na sua juventude, alguém tão encantadora - nem sequer a mulher que, aliás, era uma mulher como tantas outras. Mas esse fato teve qualquer importância. No entanto, devia ser possível, com o auxílio da beleza, sentir, pelo menos, o desejo. Tentou a experiência: abraçou-a... um beijo...

- Posso subir com você?

- Aqui não.

Deixou-a. Não sentia nada.

- Quando ontem à noite o vi aproximar-se do carro, trêmulo, delicado, senti que acontecia qualquer coisa comigo. Sofri quando lhe bateram, Acho que estava embriagada, mas esta manhã quando acordei a sensação ainda durava. Sabe que é a primeira vez que estou apaixonada?

Usava um perfume caro; ele tentou sentir alguma coisa mais do que piedade. Afinal, isso não devia ser difícil para um antigo professor de línguas românicas, que já não era novo.

- Minha querida... - disse.

- É um tipo de amor que não dura muito, não é verdade? Além disso, não tem chance de durar muito. Você vai ser morto, tão certo como dois e dois serem quatro.

D. beijou-a sem convicção.

- Minha querida, vamos nos encontrar amanhã... toda esta história já estará acabada. E nos encontraremos para festejar...

Sabia que não estaria representando satisfatoriamente o seu papel. No entanto, o momento não era para franquezas. Ela era nova demais para saber suportar a franqueza.

- Suponho que até o Rolando amava uma mulher...

Mas ele lembrou-se que ela tinha morrido repentinamente quando recebera a notícia - chamava-se Alda. A vida não continua nas lendas quando morre o ente amado, como havia morrido o ente que ele tinha amado. Além disso, era coisa antecipadamente entendida: o malabarista não consagrava a Alda senão umas linhas convencionais.

- Boa-noite - disse ele.

- Boa-noite.

Ela deu meia-volta e subiu a rua, em direção às grandes árvores. D. pensou que afinal L. poderia ter escolhido um agente pior. Começava a sentir que tinha capacidades para amar e que isso era uma espécie de traição... mas para quê? No dia seguinte tudo estaria resolvido e teria de regressar ao seu país. Perguntou-se se, no final, ela não iria casar com Furtstein.

Empurrou a porta envidraçada: estava entreaberta... em um movimento automático levou a mão ao bolso. Para quê, se não tinha pistola? As luzes estavam apagadas, mas havia alguém no vestíbulo. Ouviu o ruído de uma respiração perto da planta, da aspidistra. A sua silhueta recortada na porta era um alvo excelente, com a luz da rua por trás. Que disparassem! Tirou do bolso, em que procurara a pistola, a cigarreira. Tentou evitar o tremor dos dedos, mas tinha medo de sofrer. Meteu um cigarro na boca e procurou fósforos. Avançou um pouco e riscou bruscamente o fósforo. E das trevas surgiu, como um balão, uma cara branca, infantil.

- É você, Else? Você me assustou. Que está fazendo aqui?

- Estava à sua espera - segredou ela.

O fósforo se apagou.

- Porquê?

- Achei que o senhor ia entrar com ela. O meu trabalho é indicar os quartos aos clientes.

- Não digas besteiras.

- O senhor a beijou.

- Não foi um grande beijo.

- Não é disso que se trata. Está certo. Estava pensando no que ela disse.

Ele pensou se não teria sido tolice ter-lhe confiado os papéis. E  se ela, por ciúme, os tivesse destruído?

- Que disse ela? - perguntou ele.

- Ela disse que vão matá-lo, tão certo como dois e dois serem quatro.

Ele riu, desanuviado.

- Então? Meu país está em guerra, sabe. Mata-se gente. Mas ela não sabe nada.

- E aqui? Eles também o perseguem aqui... foi o que ela disse.

- Não poderão fazer grande coisa.

- Eu calculava que ia acontecer qualquer coisa terrível. Eles estão agora falando lá em cima.

- Quem? - perguntou ele, nervoso.

- A governanta... com um homem.

- Que tipo de homem?

- Um homem pequeno, de cabelo grisalho com óculos de aros de metal.

Devia ter saído escondido do cinema, antes deles.

- Fizeram-me perguntas.

- Que perguntas?

- Se o senhor tinha me dito alguma coisa. Se tinha visto alguma coisa... papéis. É claro que não disse nada. Não falaria por nada deste mundo.

Ele sentiu-se comovido de compaixão por esta dedicação. Que mundo, em que se perdem tais qualidades!

Ela acrescentou, apaixonadamente:

- Não me importa que me matem.

- Não há perigo.

A voz da menina fremia junto da aspidistra.

- Ela é capaz de tudo. Às vezes, quando a contrariam, parece uma doida. Não tenho medo. Aconteça o que acontecer, estarei com você. O senhor é um senhor como deve ser. - Era uma razão despropositada. Ela continuou, agora tristemente: - Farei tudo o que for preciso... como aquela senhora.

- Você tem feito muito mais.

- Ela vai com o senhor... quando se for embora?

- Não, não.

- Então leve-me.

- Minha filha, você não sabe que tipo de vida levamos na minha terra.

Ela suspirou:

- O senhor não sabe que vida eu levo aqui.

- Onde estão agora a governanta e o tal homem?

- No primeiro andar... a porta em frente. São seus inimigos mortais?

Deus sabe de que folhetim tinha ela escolhido o seu vocabulário!

- Não. Creio até que são meus amigos. Não sei nada. É melhor que eu vá ver antes que eles saibam que eu entrei.

- Oh, eles já sabem. Ela ouve tudo. Ouve na cozinha o que se diz no telhado. Disse-me para não lhe dizer nada.

Sacudiu-o uma dúvida: estaria esta criança em perigo? Não lhe parecia. Que podiam eles fazer-lhe? Subiu prudentemente a escada às escuras. Um degrau rangeu. O lance da escada fazia uma curva e encontrou-se de repente no patamar. Em cima, uma lâmpada elétrica com um quebra-luz cor-de-rosa iluminava duas pessoas que o esperavam impacientemente.

- Bona matína - disse ele delicadamente. - Você se esqueceu de me ensinar como se diz boa-noite.

- Entre e feche a porta - disse a governanta.

Ele obedeceu; não podia fazer outra coisa. Acudiu-lhe de repente a idéia de que até agora nunca lhe tinham deixado a iniciativa. Tinha sido sempre um peão deslocado pelos outros em um tabuleiro.

- De onde vem? - perguntou a governanta.

Tinha uma figura brutal. Devia ter nascido homem, com aquele horrível maxilar quadrado, o seu ar equívoco, as suas borbulhas.

- O senhor K. que lhe responda... ele sabe.

- Que fazia você com aquela garota?

- Passava agradavelmente o meu tempo livre.

D. olhava curiosamente para o antro. Era realmente um antro. Com uma mesa quadrada e nua, uns cadeirões de pele, sem uma flor, sem adornos, este compartimento nada tinha de feminino, absolutamente nada. Parecia um quarto escolhido e mobilado para os fins a que se destinava, e nada mais. Havia uma sapateira aberta em que se via uma série de sapatos grosseiros, de saltos baixos.

- Ela conhece L.

- Eu também.

Os próprios quadros pendurados na parede eram, de certa maneira, masculinos: fotografias de mulheres com meias de seda e língerie. Fez-lhe lembrar o quarto de um solteirão inibido. Era vagamente obscuro como o desejo secreto, tímido, de intimidades inacessíveis. Subitamente o senhor K. pôs-se a falar. Parecia, neste quarto másculo, o elemento feminino, quase histérico.

- Depois de você ter saído... do cinema - disse ele - houve alguém que lhe telefonou... para lhe fazer uma oferta.

- Para quê? Eles deviam saber que eu saí.

- Propunham-se a aceitar as suas condições para que não houvesse reunião amanhã.

- Não tenho condições.

- Foi a mim que eles deixaram o recado - rosnou a governanta.

- Quer dizer que eles sabiam antecipadamente que todos estavam ao corrente? Você e o K...

K. esfregou as mãos ossudas uma na outra.

- Queríamos ter certeza - disse ele - de que você ainda tem os papéis.

- Estão com medo que eu os tenha vendido enquanto vinha do cinema?

- Temos de ser prudentes - disse ele, com o mesmo ar com que se punha à escuta dos passos do Dr. Bellows. Mesmo aqui ele sofria aterradamente a obsessão do xelim de multa.

- Receberam instruções?

- As nossas instruções são muito vagas! Deixam muitas coisas ao nosso critério. Talvez pudesse mostrar-nos os papéis...

A mulher não falava. Dava algumas largas ao sexo fraco.

- Não!

D. olhou para um e para o outro. Pareceu-lhe que, finalmente, ia passar a ter a iniciativa. Que pena não se sentir com mais forças para assumir o controle da situação, mas estava exausto. A Inglaterra estava cheia de lembranças perturbantes que o levaram a tomar consciência que este trabalho não era para ele. Naquele momento devia estar no museu lendo manuscritos em línguas românicas.

- Acredito que todos obedecemos aos mesmos chefes - replicou ele - mas não tenho motivos para ter confiança em vocês. - O homenzinho estava sentado em uma atitude de condenado, com os olhos postos nas unhas roídas; a mulher estava em frente dele, com aquela cara quadrada e dominadora... mas que só dominava um hotel de má frequência. D. tinha visto fuzilar muitos traidores, de um e de outro partido; sabia que não era possível distingui-los pelos modos ou pelas caras: o tipo Ganelon não existe.

- Estão com pressa de receber a sua parte no bolo? - perguntou ele. - Desiludam-se: não haverá partilha nem bolo.

Agora, era a vez de eles lançarem a corda e a mulher disse bruscamente:

- Talvez seja melhor ler esta carta.

D. leu atentamente. Não havia dúvidas quanto à sua autenticidade. Conhecia perfeitamente a assinatura e o papel do ministro. Aquilo era, aparentemente, o fim da sua missão. A mulher tinha poderes suficientes para ficar com os papéis que ele trouxera. Com que fim? A carta não dizia.

- Como vê - disse ela - é em você que eles não têm confiança.

- Porque não me mostrou isto logo que cheguei?

- As instruções que tinha eram para proceder como entendesse. Queria saber se podia ou não confiar em você.

A situação era surpreendente. Tinham-lhe confiado certos papéis até Londres; o sr. K. tinha ordem de vigiar os seus movimentos até à sua chegada ao hotel, mas não lhe tinham confiado o segredo da sua missão; esta mulher parecia ter recebido um encargo que abrangia, ao mesmo tempo, o segredo e os papéis... mas só em ultimo extremo, se a conduta de D. se lhe tornasse suspeita.

- É claro que sabe o que são esses papéis? - disse ele bruscamente.

- É evidente - replicou ela com ar obstinado.

No entanto, ele estava convencido de que ela nada sabia: lia-se-lhe na cara. Ah, quando sairia daquele jogo complicado de meia-confidência e meia-intrujice? E se o ministro tivesse se enganado... se lhe desse os papéis e ela, como o outro, fosse vendê-los ao L. Com ele próprio sabia que podia contar, mas com mais ninguém. No ar pairava um perfume barato, horrível. Era, evidentemente, o único traço feminino daquele quarto, e era desconcertante como o perfume de um homem.

- Como vê - disse ela -, pode voltar para o seu país. Já não tem nada que fazer aqui.

Era tudo muito fácil e muito suspeito. O ministro não tinha confiança nele, nem neles, nem em ninguém. Não se fiavam uns nos outros. Cada um sabia em quem podia ou não confiar. O sr. K. sabia o que o sr. K. tencionava fazer dos papéis. A governanta  sabia as suas próprias intenções. Ninguém podia responder senão por si próprio.

- Não recebi nenhuma ordem diretamente. Não entregarei os papéis.

A voz do sr. K. tornou-se estridente:

- Se você fizer alguma coisa sem nós sabermos...

Mau grado seu, os olhos medrosos do professor de entrenaciono mal pago denunciaram sentimentos secretos de cobiça e lucro... O que poderia se esperar com um salário daqueles? Que traições engendra a fadiga e a fome, nestes pequenos grupos gerados pelo..., idealismo de alguns?

- Você - disse a governanta -, é um sentimental. Um burguês. Um professor. Provavelmente romântico. Se nos enganar vai ver o que lhe acontece... não sou para brincadeiras.

D. não conseguia olhá-la de frente: tinha a impressão de que, estava olhando para um poço. As suas borbulhas eram como o sinal de um ato vergonhoso do qual nunca conseguiria se recompor. Lembrou-se da frase de Else: “Parece uma doida!”

- Quer dizer: se a engano a você, ou se engano os meus amigos, do meu país? - perguntou ele.

Não entendera bem o que ela pretendera dizer. Ele estava isolado e cansado, entre inimigos poderosos. Quanto mais nos afastamos da verdadeira batalha mais sós nos sentimos. Invejava aqueles que se encontravam na linha de fogo. De repente, sentiu-se transportado em algum lugar: um badalar de sinetas, um rangido de rodas pela rua fora. Carros de bombeiros? Ambulâncias? Tinha cessado o bombardeio, desentulhavam-se os cadáveres; havia homens com picaretas que removiam os pedregulhos cautelosamente, para acertar por inadvertência o corpo de algum ferido; por vezes, um golpe imprudente poderia causar sofrimentos horríveis. O mundo cobria-se de brumas e ele sentiu-se perdido na nuvem de poeira que fica em suspensão nas ruas, às vezes durante horas. Estava nauseado e abalado, lembrava-se do cadáver daquele gato que quase lhe tocava o rosto... Deixou-se ficar ali com o pêlo do animal quase sufocando-o.

Parecia-lhe que todo o compartimento estava balançando. A cabeça da governanta dava-lhe a impressão de uma grande bolha inchando. Ouviu-a dizer: “Depressa, feche a porta à chave” e esforçou-se por recuperar os sentidos. Que iriam eles fazer-lhe? Amigos? Inimigos?... Estava de joelhos. As coisas decorriam ao retardador. O sr. K. dirigia-se para a porta com uma lentidão terrível. A saia preta da governanta, roçava-lhe a boca empoeirada tal como a pele do gato, quase o sufocava. Tinha vontade de gritar, mas o peso da dignidade humana imobilizava-lhe a língua, como uma mordaça. Não se grita... nem mesmo quando a matraca bate. Ouviu-a perguntar, debruçada sobre ele:

- Onde estão os papéis.

O seu hálito fedia à nicotina e ao perfume barato que usava: meio mulher, meio homem.

Como se se desculpasse:

- Ontem me bateram, hoje dispararam contra mim...

Um dedo indicador rápido e implacável ameaçou-o: sentiu-se apanhado em um pesadelo.

- Onde estão os papéis?

O dedo oscilava diante do seu olho direito. Ouvia o senhor K. nervosamente, às voltas com a porta:

- A fechadura não funciona.

D. sentia-se horrorizado como se aquele dedo e o rosto da mulher estivessem infectados.

- Rode a chave ao contrário.

D. tentou levantar-se, mas um golpe de polegar lançou-o outra vez para trás. Uma pisadela esmagava-lhe a mão com firmeza. O sr. K. rosnava qualquer coisa. Ouviu-se uma voz assustada mas voluntariosa:

- Foi a senhora que tocou?

- Não. Que idéia é essa?... Não fui eu que toquei.

D. levantou-se cautelosamente.

- Fui eu que toquei, Else. Me senti mal. Não é nada grave. Pareceu-me ouvir uma ambulância. Há tempos fiquei soterrado em uma casa bombardeada. Se me ajudar conseguirei ir para o quarto.

Tornou a ver claramente o quarto: a sapateira, as hermafroditas com meias de seda, os cadeirões.

- Esta noite vou fechar a porta do meu quarto à chave - disse ele. - Creio que tenho crises de sonambulismo.

Subiram vagarosamente até o último andar.

- Você chegou mesmo a tempo, Else. Creio que faria qualquer coisa estúpida. Parece que será melhor sairmos daqui o mais depressa possível.

- Eu também?

Imprudentemente, ele prometeu; como se em um mundo de violência pudesse prometer-se alguma coisa além do momento que passa.

- Sim, você também.

 

A pele do gato e a saia empoeirada não o deixaram durante toda a noite. A paz habitual dos seus sonhos fora irremediavelmente destruída: nem flores, nem rios, nem velhos simpáticos discutindo temas intelectuais. Depois daquele bombardeio, o mais terrível de todos, ficara sempre receando a asfixia. Ficava tranquilo ao saber que os seus adversários fuzilavam os prisioneiros, que não os enforcavam. Uma corda ao pescoço tornaria real o pesadelo. O dia nasceu sem sol: lá fora, um nevoeiro amarelo e cerrado impedia que se visse além de vinte metros. Else entrou com uma bandeja enquanto ele se barbeava: um ovo quente, peixe defumado, um bule de chá.

- Não Precisava se incomodar. Eu ia descer.

- Foi uma boa desculpa para lhe devolver os papéis. Começou a descalçar um sapato, depois a meia.

- Ah, se eles entrassem agora de repente que haviam de pensar?

Sentou-se na cama e tirou os papéis.

- O que é isto? Pareceu-me ouvir um ruído - disse ele apurando subitamente o ouvido.

Percebeu que estava com receio de recuperar os papéis: a responsabilidade é uma espécie de mau agouro que é preferível passar aos outros. Else ergueu a cabeça para escutar, sem se levantar da cama em que estava sentada. Ouviram-se os degraus rangendo quando alguém desceu as escadas.

- Deve ser o senhor Muckerji, um senhor indiano. Não se parece nada com o indiano do segundo andar. O senhor Muckerji é muito respeitador.

D. recebeu os papéis... enfim, não faltava muito tempo para se ver livre deles. Else tornou a calçar a meia.

- O defeito dele - continuou ela - o único, é a sua curiosidade. Faz cada pergunta!

- Que tipo de perguntas?

- De todos os tipos. Se eu acredito nos horóscopos. Se acredito no que dizem os jornais. O que penso do senhor Eden. Depois escreve as respostas. Não sei para quê!

- Esquisito.

- Parece-lhe que posso ter problemas por causa disso? Eu digo-lhe o que me vem à cabeça, do senhor Eden, de tudo. Por brincadeira, e mais nada. Mas às vezes fico assustada por ele escrever e guardar as respostas que eu dou. Outras vezes o encontro olhando muito para mim e a observar-me como se eu fosse um bicho... Em todo o caso, sempre com respeito.

D. não insistiu: não queria saber do sr. Muckerji. Instalou-se para tomar o café da manhã. Mas a menina não saía: parecia que tinha um reservatório de conversa que guardava para ele... ou para o sr. Muckerji.

- Ontem à noite, quando disse que me levaria consigo, estava falando sério?

- Claro - respondeu ele. - Vou arranjar uma maneira.

- Não quero ser um fardo - vinha-lhe à boca o vocabulário dos seus folhetins. - Se não quiser, há sempre a Clara.

- Espero encontrar para você alguém melhor do que a Clara. Pedirei à Rose. Ela ontem estava um pouco histérica.

- Não posso ir com você para o seu país?

- Não a deixariam passar.

- Já li casos em que as garotas se vestem de...

- Isso só existe nos livros.

- Agora tenho medo de ficar aqui... com ela.

- Não ficará - prometeu ele.

Lá embaixo soaram campainhadas furibundas.

- Oh! Este por alguma coisa se chama Row - disse a pequena.

- Quem é?

- É o indiano do segundo. - Encaminhou-se, aborrecida, para a porta. Daí perguntou: - É uma promessa? Já não passarei aqui esta noite?

- Prometido.

- Jura?

D. jurou.

- Ontem à noite - disse ela ainda - nem pude dormir. Pensava que ela iria fazer alguma coisa terrível. Se lhe visse o rosto quando entrei. “Foi a senhora que tocou?” perguntei eu. “Não,  que idéia foi essa? Não fui eu que toquei”, respondeu ela. Se os seus olhos fossem pistolas... Assustei-me tanto que até fechei a porta à chave quando o deixei. Que queria ela fazer-lhe?

- Não sei precisamente. Na verdade não poderia fazer grande coisa. Ela e o diabo fazem mais barulho do que mal. Nada poderá fazer-nos se não tivermos medo.

- De qualquer maneira, o que lhe digo é que bem gostaria de estar muito longe daqui. - E sorriu-lhe alegremente do limiar da porta. Parecia uma garotinha no dia do seu aniversário. - Acabou-se o senhor Row, acabaram-se os clientes, acabou-se o senhor Muckerji... e ela... nunca mais. Nunca tive um dia melhor na minha vida.

Parecia despedir-se complicadamente de toda uma maneira de viver.

D. permaneceu no quarto, fechado à chave, até à hora de sair para casa de Lord Benditch. Desta vez não queria correr o menor risco. Meteu os papéis no bolso do casaco e abotoou o sobretudo até o pescoço. Estava certo de que um ladrão não conseguiria roubá-lo; quanto à violência, não podia deixar de pensar nela, todos já deviam saber que era ele quem tinha os papéis e só lhe restava confiar na segurança de Londres. A casa de Lord Benditch afigura-se-lhe como uma casa onde uma criança poderia brincar às escondidas em um jardim desconhecido e labiríntico. De qualquer maneira, dentro de quarenta minutos - pensava ele ouvindo soar a uma e quinze - tudo estará decidido. Eles iriam certamente tentar aproveitar o nevoeiro.

Projetou o seu itinerário: Bernard Street até à estação de Russell Square - decerto não pensariam em atacá-lo no metropolitano depois de Hide Park Corner até Chatham Terrace - cerca de dez minutos a pé pelo nevoeiro. Podia, é claro, tomar um táxi e fazer todo o trajeto de carro, mas isso seria horrivelmente lento, engarrafamentos de trânsito, ruídos e nevoeiro proporcionariam ocasiões excelentes para uma tentativa desesperada dos seus inimigos. Além disso, eles eram bastante hábeis para lhe fornecerem o táxi. Se tivesse que tomar um táxi para Hide Park Corner, iria procurá-lo em uma estação.

Desceu as escadas com o coração aos pulos. Repetia, em vão, que nada podia acontecer-lhe em Londres, em pleno dia: estava seguro. No entanto, sentiu-se mais contente quando viu o indiano do segundo andar espiando-o pela porta entreaberta: vestia ainda o seu roupão de cores berrantes. Foi para D. a sensação de que um amigo o seguia de perto, que tinha uma testemunha, não importava quem. Desejaria deixar por toda a parte onde passasse um rastro visível que assinalasse a sua passagem.

Alcançou a passadeira; desceu sem fazer ruído. Não queria que a governanta desse pela sua partida, mas não conseguiu escapar: ela estava no seu quarto másculo, sentada à mesa, a porta aberta, com o mesmo vestido negro e empoeirado que havia obcecado os seus pesadelos da noite anterior. Parou à porta e disse-lhe:

- Vou sair.

- Creio que terá as suas razões para não obedecer às instruções - disse ela.

- Estarei de volta dentro de algumas horas. Não ficarei aqui esta noite.

Ela olhou-o com uma absoluta indiferença que o surpreendeu. parecia que sabia melhor do que ele próprio o que ia fazer; como se tudo estivesse há muito tempo previsto no cérebro daquela mulher.

- Acha que lhe pagaram o quarto.

- Sim.

- Há uma despesa que certamente não foi prevista: uma semana de caução pela criada. Eu mesmo a pagarei.

- Não compreendo.

- Ela sai também. A senhora aterrorizou esta criança. Não sei bem porquê.

A mulher perdeu o ar indiferente e interessou-se vivamente sem ira - como se o que ele havia dito lhe tivesse sugerido uma idéia pela qual lhe ficava grata.

- Quer dizer que a leva consigo?

D. sentiu-se subitamente pouco à vontade: não devia ter dito nada! Como se alguém o tivesse prevenido: “tenha cuyidado”! Voltou-se. Evidentemente não havia ninguém. Nos fundos da casa fechou-se uma porta: parecia uma advertência. Disse impulsivamente:

- Tome cuidado, não assuste mais essa criança.

Custava-lhe sair dali. Os papéis estavam bem seguros no bolso, mas tinha a impressão de que deixava nesta casa alguma coisa que reclamava a sua proteção. Era absurdo. Que perigo podia haver? Olhou hostilmente para o rosto quadrada, manchada de impingens.

- Não demorarei muito. Quando voltarvou perguntar-lhe se a senhora...

Tinha notado na véspera que ela tinha enormes polegares. Serenamente sentada, agora não os mostrava; tinha as manápulas fechadas - dizem que é um tique dos nevróticos - e não usava anéis. A mulher replicou com voz firme e sonora:

- Continuo a não compreender.

Ao mesmo tempo, engelhou o rosto e baixou uma pálpebra em uma piscadela de olho obscena, inexplicavelmente divertida. Ele teve a impressão de que ela estava senhora da situação, absolutamente nada inquieta. D. voltou-lhe as costas. O seu coração continuava a bater descompassadamente contra as costelas, como se tentasse transmitir-lhe uma advertência em um código que ele não compreendia. Pensou: “É um dos defeitos dos intelectuais, falarem sempre demais.” Podia ter-lhe dito aquilo tudo quando regressasse. E se não voltasse? Enfim, a menina não era uma escrava, não podiam torturá-la. Londres dispunha da melhor polícia do mundo.

Quando chegou ao vestíbulo foi detido por uma voz quase humilde:

- Poderia me fazer um grande favor?

Era um indiano de grandes olhos escuros, impenetráveis, ar servil. Vestia um fato azul coçado e calçava uns sapatos alaranjados: devia ser o senhor Muckerji.

- Gostaria que me respondesse uma pergunta, uma só!... Como faz economias?

Seria doido? D. respondeu:

- Não faço economias.

O sr. Muckerji tinha uma face doce e flácida que formava pregas em volta da boca. Acrescentou com uma espécie de angústia:

- Nunca? Há pessoas que colecionam moedas de cobre ou outras que não estão em circulação. Há as caixas de previdência, caixas econômicas.

- Nunca faço economias.

- Muito obrigado - replicou o senhor Muckerji. - Era o que queria saber.

E pôs-se a escrever em um livreco de notas. Por trás dele apareceu Else que vinha assistir à partida de D. Uma vez mais, a simples presença de Muckerji comunicou-lhe uma espécie de alegria. A pequena não ficaria só com a governanta. Sorriu e acenou-lhe um adeus por cima dos costados abaulados do sr. Muckerji. Ela correspondeu com um sorriso pálido. O sr. Muckerji ergueu os olhos e disse com acalorado entusiasmo:

- Espero tornar a encontrá-lo e ter o prazer de renovar uma conversa tão interessante.

Esboçou um gesto - a mão estendida, que retirou muito depressa, como se receasse não ser correspondido - e ficou-se com um sorriso meloso e humilde, enquanto D. transpunha a porta da rua e se embrenhava no nevoeiro.

Nunca se sabe por quanto tempo as pessoas se separam. Sem isso, os sorrisos, as palavras banais, assumiriam uma importância muito maior.

O nevoeiro envolvia-o. Caminhava rapidamente, de ouvidos alertas. Passou por ele uma garota com uma pasta debaixo do braço. Ziguezagueando, um carteiro saiu do passeio e perdeu-se nas trevas. D. sentiu-se como um aviador que vai atravessar o Atlântico, mas que sobrevoa ainda a agitação humana do litoral antes de se lançar... O trajeto não duraria mais de meia hora. Tudo estaria resolvido dentro de pouco tempo. Nem sequer lhe vinha à idéia que poderia não se entender com Benditch, estavam dispostos a aceitar qualquer preço por este carvão. O nevoeiro envolvia tudo. Tentava ouvir ruídos de passos: só ouvia os dos próprios pés. Este silêncio não era tranquilizador. Esbarrava com pessoas, mas só as via quando elas rompiam o nevoeiro à sua frente. Se o seguissem, não poderia perceber. Mas, ao mesmo tempo, como podiam eles segui-lo nesta cidade enevoada? No entanto, fosse como fosse, em qualquer parte, eles tinham de tentar alguma coisa.

Um táxi diminuiu e parou junto do passeio.

- Táxi? - perguntou o motorista.

D. esqueceu-se da decisão de não tomar um táxi senão na estação e respondeu:

- Gwyn Cottage, Chaffiam Terrace.

Entrou no carro. Este deslizou até ao âmago da bruma impenetrável, engatou marcha ré e deu meia volta. Assaltado por uma inquietação repentina, D. pensou: “Não é por este caminho. Fui idiota!” E gritou:

- Pare aí, pare!

Mas o táxi continuou. D. não podia ver onde se encontravam: apenas distinguia as costas possantes do motorista e o nevoeiro que os envolvia.

Bateu no vidro:

- Quero descer.

O táxi parou.

Colocou um xelim na mão do motorista e desceu. Ouviu uma voz espantada:

- Que foi que lhe deu?

O homenzito era certamente um simples e honrado motorista. Sentia os nervos horrivelmente agitados. Esbarrou com um policial:

-  A estação de Russell Square?

- Está na direção errada. Volte para trás, primeira rua à esquerda, seguindo o gradeamento.

Depois de um trajeto que lhe pareceu enorme, chegou à estação do metropolitano. Esperou pelo elevador e, de repente, notou que esta coisa - descer ao subsolo profundo - exigia dele mais coragem do que pensara. Nunca mais tinha descido abaixo do chão desde que sentira uma casa a ruir sobre ele. Depois disso, era de cima dos telhados que assistia aos bombardeios aéreos. Preferia a morte fulminante à asfixia lenta, ao lado de um gato morto. Até se fecharem as portas do elevador, teve de lutar furiosamente contra os nervos para resistir à vontade de fugir. Sentou-se no único lugar vago e viu as paredes vacilarem em volta dele. Levou as mãos à cabeça, apertou-as e esforçou-se por não sentir a descida. Por fim, o elevador parou. Tinha chegado à galeria subterrânea. Ouviu uma voz dizer:.

- Quer que o ajude? Conway, dê a mão a este senhor. - Sentiu que uma mão pequena, horrivelmente viscosa, o ajudava a levantar-se. Uma mulher com uma estola de peles em volta do pescoço, dizia-lhe:

- Houve uma época em que Conway também se sentia assim, mal, quando se metia no elevador. Não se lembra, Coco?

Um garoto de cerca de sete anos, com uma cara muito pálida, estendeu-lhe a mão.

- Estou bem. Já passou, obrigado... - disse ainda angustiado pela brancura do corredor subterrâneo, pela secura do ar condicionado e pelo rumor longínquo de um trem.

- Vai para oeste? - perguntou a mulher. – Nós o deixaremos na sua estação. É estrangeiro, não é?

- Sou, sim...

- Oh, eu não tenho nada contra os estrangeiros.

D. deixou-se conduzir ao longo de um corredor. O vestuário da criança era detestável: uns calções de veludo, uma camisola amarelo-limão e um boné de colegial de riscas castanhas e malvacentas.

- Estou preocupada com Conway - disse a mulher. - O médico diz que é da idade, mas o pai tinha uma úlcera no duodeno.

A evasão era impossível: ambos o ajudaram a entrar para no trem.

- A única coisa que ele tem agora de anormal é o nariz sempre entupido. Fecha a boca, Conway. Este senhor não quer ver as suas amígdalas.

Não havia muita gente no vagão. Não tinha sido seguido até à estação. Que iria acontecer em Hide Park Corner? Mas não estaria exagerando as perspectivas de perigo? Que diabo, estava na Inglaterra. Mas, ao mesmo tempo, lembrava-se da estrada de Dever, do motorista que avançara para ele com ar agressivo, da bala de pistola no beco.

- O mais aborrecido é que ele nem quer ver legumes. Não gosta e não quer.

Teve repentinamente uma idéia. Perguntou à mulher:

- Vai para o extremo oeste?

- High Street, Kensington. Temos de ir ao Barkers. Este garoto estraga as roupas tão depressa!

- Se me dá licença, levo-os de táxi de Hide Park Corner até lá...

- Oh, não se incomode. O metro vai mais depressa.

O trem parou na estação de Picadilly e tornou a partir. D. crispou-se todo quando, com grande rumor de metais, se lançaram outra vez no túnel. Fazia o mesmo ruído de uma bomba caindo a curta distância - um ruído acompanhado de um sopro de morte e pelo eco de dor.

- achei que talvez o seu filho... Conway...

- É um nome esquisito, não é? Mas que quer? Ele nasceu pouco tempo depois de eu ter visto Conway Tearle em um filme. O meu marido gostava do nome... mais do que eu. E ele tinha dito: se for rapaz vai chamar-se Conway. Como o pequeno nasceu logo nessa noite... parecia que foi um presságio...

- É que ele talvez gostasse de andar de táxi.

- Ele! Isso sim! Enjoa nos táxis. E é esquisito, nos ônibus e no metro não. Nos elevadores é que às vezes...

A situação era desesperadora. Mas que podia acontecer-lhe? Eles tinham lançado o seu último dardo. Não pode ir-se além da tentativa de homicídio. A não ser, evidentemente, que a tentativa tenha êxito. Não via L. metendo-se em uma aventura deste tipo, mas o via desaparecendo com maravilhosa desenvoltura se tivessem de chegar a qualquer desenlace arriscado...

- Aqui está - disse ela. - É aqui que tem de descer. Tive muito prazer... Conway, despeça-te deste senhor.

Apertou de leve a pequena mão e reencontrou-se à luz amarelada daquela manhã.

Ecoavam aclamações no ar: a multidão soltava gritos de alegria. parecia o rumor festivo de uma grande vitória. As calçadas de Knightsbridge estavam repletas de gente. A crista das grades do Hide Park apareceu acima do nevoeiro baixo, em outra direção, um carro largado, puxado a quatro cavalos imponentes, dominava o branco sujo das nuvens. Em toda a volta do hospital de Sr. George os ônibus parados desvaneciam-se gradualmente no nevoeiro. Soavam por toda a parte apitos estridentes: uma cadeira de rodas, manobrada pelo próprio ocupante, apareceu, enfileirada na onda da multidão. em um letreiro lia-se: “Vítima de gases em 1917. Um pulmão desfeito.” o ar amarelo envolvia-o. A multidão gritava alegremente.

Da massa de carros parados destacou-se um Daimler. As mulheres puseram-se a chilrear vários homens tiraram os chapéus. D. estava intrigado: já tinha visto cortejos religiosos, mas aqui ninguém tinha o ar de ir ajoelhar-se. O carro passou lentamente diante dele: duas mocinhas de luvas e com vestidos de bom corte olhavam através dos vidros do automóvel com uma indiferença de personagens de gesso. Uma mulher gritou: “Que lindas! Vão fazer compras.” Era um espetáculo extraordinário: a passagem de um totem em um Daimler. Uma voz que D. conhecia disse-lhe secamente:

- Tire o chapéu, senhor!. - Era Currie.

Durante segundos D. pensou: “Seguiu-me.” Mas afastou essa idéia perante o embaraço muito sincero de Currie ao reconhecê-lo. Gaguejou, meneou-se, ajeitou o monóculo.

- Desculpe-me...

Era como se tivesse encontrado inesperadamente uma mulher com quem tivesse tido relações. É difícil não cumprimentar e procura-se passar sem lhe falar.

- Quer ter a bondade de me indicar o caminho mais curto para Chatham Terrace?

Currie corou.

- Vai a casa de Lord Benditch?

- Vou.

Os ônibus começaram a andar e a multidão havia-se dispersado.

- Ouça - disse Currie. - Creio que no outro dia me portei como um idiota. Apresento-lhe as minhas desculpas.

- Não falemos mais nisso.

- Tinha-o tomado por um cavalheiro de indústria. Completamente idiota! Mas reconheci o meu erro... Miss Cullen é uma garota extraordinária.

- É verdade.

- Acontecem-nos coisas! Um dia comprei um galeão espanhol que devia ser reposto a flutuar. Um dos navios da Invencível Armada. Paguei cem libras adiantadas. O galeão, naturalmente, era coisa que não existia.

- Sério?

- Ouça, desejo provar-lhe que não lhe quero mal. Vou acompanhá-lo até Chatham Terrace. Fico contente por ajusdar um estrangeiro. Estou certo de que no seu país você faria a mesma coisa por mim, embora seja pouco provável que eu vá até lá.

- É muito amável da sua parte.

E D. disse isto sinceramente. Sentia-se aliviado. Era o fim da batalha. Se era com o nevoeiro que eles tinham contado para fazerem uma última e desesperada tentativa, a sorte não os tinha ajudado. Levou a mão ao peito, onde tateou o volume reconfortante das cartas credenciais.

- Naturalmente - continuava o capitão Currie que não acabava as explicações - uma experiência como aquela ensina-nos a prudência.

- Uma experiência?

- A do galeão espanhol. O homem tinha um ar tão sério, até me deixou cinquenta libras em depósito contra o cheque que eu lhe passei. Eu não queria, mas ele insistiu...

- Não perdeu então senão cinquenta libras.

- As notas eram falsas. Creio que ele julgou que eu era um romântico. Seja como for, a aventura me ensinou... e me deu uma idéia.

Era um prazer caminhar ao longo de Knightsbridge ao lado de um tagarela.

- Nunca ouviu falar no Galeão Espanhol?

- Não, não ouvi!

- Foi o primeiro cabaré de estrada que montei. Perto de Maidenhead. Tive de vendê-lo ao fim de algum tempo. Sabe... O Oeste tem perdido um pouco da sua categoria. Antes Kent ou mesmo Essex. No lado Oeste a clientela é plebéia...

A violência parecia mais do que nunca despropositada neste país de distinções complicadas e de estranhos tabus. A violência era, simples demais. Representava uma falta de gosto. Deixaram a avenida principal e voltaram à esquerda. Do nevoeiro emergiram ameias fantásticas e torres vermelhas.

- Foi ao teatro? - perguntou o capitão Currie.

- Não. Tive muito que fazer...

- Não trabalhe demais.

- Tive algumas lições de entrenaciono...

- Meu Deus! Para que serve isso?

- É uma língua internacional.

- Pensando bem, a maior parte das pessoas fala um pouco de inglês... Com mil diabos! - acrescentou repentinamente. - Sabe por quem passamos agora?

- Não vi ninguém.

- O motorista... como se chama ele? Aquele com quem você teve... a zaragata.

- Não o vi.

- Estava à porta de uma casa. Também vi o carro. Que lhe parece se voltássemos atrás para lhe falar?

Pousou a mão sã no braço de D.

- Temos tempo. Chatham Terrace é ali.

- Não, não tenho tempo.

Teve medo. Seria uma cilada? A mão puxava-o, suavemente mas com impiedosa insistência...

- Tenho hora marcada com Lord Benditch.

- Não perderemos mais de um minuto. Afinal aquilo foi um combate leal sem truques. Podem dar um aperto de mão e dizer umas palavras de reconciliação... É das regras. Além disso, no fundo, fui eu que me enganei.

Falava em um tom frívolo, ao ouvido de D. ao mesmo tempo que ia puxando pela manga do sobretudo. Cheirava vagamente a whisky.

- Mais tarde - disse D. -, depois de ter falado com Lord Benditch.

- Ficaria desolado de pensar que guarda rancor. A culpa foi minha.

- Não - disse D.

- A que horas tem de estar lá?

- Ao meio-dia.

- Ainda tem cinco minutos. Um aperto de mão...

- Não.

Desembaraçou-se da mão firme e insistente com um sacão enérgico. Alguém atrás dele assobiava. Voltou-se, de punhos fechados, acossado, desesperado. Era apenas um carteiro.

- Pode dizer-me onde fica Gwyn Cottage? - perguntou.

- Por aqui. Só uns passos mais adiante - respondeu o carteiro. Ainda olhou para o rosto pasmada e um pouco espantada do capitão Currie. Afinal, tinha se enganado: o capitão Currie era só um idiota e não tivera outra idéia senão arranjar as coisas. Quando a pesada porta de estilo eduardino se abriu para lhe dar entrada em um espantoso hall, pareceu-lhe que chegara finalmente o fim de um alerta ansioso. Viu uma superfície imensa de falsos lambris, as paredes revestidas de reproduções de quadros célebres

- Nell Gwyn ocupava o lugar de honra no alto da escadaria, entre muitos querubins que haviam sido elevados às culminâncias do pariato. Quanto sangue azul, ou azulado, oriundo daquela mercadora de laranjas, depois amante de Carlos II, depois atriz no mesmo teatro em que vendera fruta, depois mãe de dois filhos do monarca!... Reconheceu a Pompadour e Madame de Maintenon e, também, com as suas meias de seda e luvas pretas, outra amante real - a Gaby Deslys. Que estranho gosto!

- Senhor, o seu sobretudo.

Deixou o criado despir-lhe o sobretudo. Havia no mobiliário uma mistura arrepiante de chinesices, de Luís XVI e Stuart. D. estava fascinado. Que estranho paraíso de segurança para um agente secreto!

- Creio que cheguei um pouco cedo - disse ele.

- Lord Benditch deu ordem para fazê-lo entrar logo que chegasse.

Mais espantosa do que todas, era a idéia de que Rose tinha crescido - sabe-se lá como - neste cenário, nesta sensualidade quase paroquiana. Seria este o sonho realizado de um homem cujo pai havia sido um operário ambicioso? O dinheiro significa mulheres. Até o criado era exagerado: um corpo enorme, mal constituído, empenado, com qualquer coisa que o mantinha em equilíbrio estranho, como a Torre de Pisa. D. sentira sempre uma certa repugnância pelos criados masculinos: excessivamente bem instalados, excessivamente conservadores, excessivamente parasitas perfeitos. Este, porém, só lhe dava vontade de rir. Era uma caricatura.

Lembrou-se da casa de um empresário de atores em que tinha jantado e onde fora servido por criados de libré... o homem abriu uma grande porta.

- O senhor D.

Encontrou-se em uma sala enorme. As paredes pareciam forradas de retratos - impossível que fossem todos retratos de família. Uma série de poltronas em volta de uma grande lareira, cadeiras imponentes de costas altas. Era difícil perceber se estavam ocupadas. D. avançou calmamente. Pensou que aquela cena teria impressionado muito mais qualquer outro. Destinava-se a fazer sentir mais amargamente uma manga rasgada, uma vida sórdida e sem segurança; mas D. não tinha o mínimo respeito pelos snobs. Era indiferente a deselegância. Avançou serenamente, pisando sem embaraço o soalho encerado. Sentia-se muito feliz por se encontrar ali, e não pensava em mais nada.

Alguém se levantou da poltrona central - um homem alto, com a cabeça redonda como uma bola e uma grande cabeleira grisalha, um queixo que fazia lembrar uma estátua equestre.

- É o senhor D? - perguntou.

- Lord Benditch?

Fez um gesto na direção das três outras poltronas:

- O senhor Forbes, Lord Fetting, o senhor Brigstock. O senhor Goldstein não pôde vir.

- Suponho que já conheçam o objetivo da minha visita? - perguntou D.

- Recebemos, há quinze dias, uma carta que nos prevenia... Apontou para a mesa de marchetaria: tinha a mania de se servir da mão como de um ponteiro.

- Perdoe-me se vamos diretamente ao assunto, mas sou um homem muito ocupado.

- É o que desejo também.

Levantou-se outro homem de outra poltrona: era pequeno, escuro, de cara angulosa, de modos vivos, obstinados. Com ares importantes, ia dispondo as cadeiras junto da mesa.

- Senhor Forbes - disse ele -, senhor Forbes.

Apareceu o sr. Forbes: muito bem vestido, representava com rigor a personagem do homem que acaba de regressar do campo; apenas a forma do crânio revelava nele o Furtstein original.

- Já vou, Brigstock - respondeu ele com um ar levemente escarninho.

- Lord Fetting.

- Deixemos Lord Fetting dormir - disse o sr. Forbes -, a não ser que ele ressone.

Alinharam-se do mesmo lado da mesa, com Lord Benditch no meio. Aquilo parecia a prova final de um exame. O sr. Brigstock era o examinador das perguntas.

- Quer ter a bondade de sentar-se? - disse Lord Benditch em voz decidida.

- Com muito prazer, se houvesse uma cadeira deste lado da fronteira.

Forbes soltou uma risadinha. Benditch disse com voz cortante:

- Brigstock!

Brigstock deu a volta à mesa e pegou uma cadeira. D. sentou-se. Tudo tinha um ar rebarbativamente irreal. Mas acreditava que tivesse, enfim, chegado ao grande momento, naquela casa falsa, entre antepassados falsos e amantes defuntas. Não distinguia sequer Lord Fetting. Não era o tipo de lugar que se imagina para decidir uma guerra.

- Os senhores já sabem - disse ele - de que quantidade de carvão precisamos daqui até Abril?

- Perfeitamente.

- Podem fornecê-lo?

- Uma vez que nos entendamos sobre as condições.

- É uma questão de preço?

- Naturalmente. E de confiança.

- Pagaremos pelas tarifas mais altas, com um bônus de vinte e cinco por cento, uma vez concluída a entrega.

- Em ouro? - perguntou Brigstock.

- Uma parte em ouro.

- Os senhores não esperam com certeza - disse ainda Brigstock - que vamos aceitar notas que podem estar completamente desvalorizadas na Primavera, nem mercadorias que possívelmente não poderão fazer sair do seu país.

Lord Benditch recostou-se, deixando que Brigstock comandasse as negociações. Era a especialidade dele. Forbes desenhava figuras arianas no papel que tinha à sua frente: mulheres de grandes olhos redondos, em roupas de banho.

- Se nos for fornecido esse carvão, não haverá desvalorizações. Temos mantido o valor da nossa moeda durante dois anos de guerra. Esse carvão talvez signifique a derrota completa dos rebeldes.

- Não é isso que nos dizem as nossas informações.

- Não creio que os senhores tenham informações precisas. - Ouviu-se subitamente alguém que ressonava em uma das poltronas.

- É de ouro que precisamos absolutamente - replicou Brigstock. - Quer que acorde Lord Fetting?

- Deixe-o dormir - aconselhou Forbes.

- Dividamos o bolo ao meio - propôs D. - Estamos dispostos a pagar em ouro o preço corrente, se os senhores aceitarem o bônus em notas... ou em mercadorias.

- Então, deveria ser de trinta e cinco por cento.

- É muito.

- Os riscos que corremos são muito grandes, muito grandes... - Por trás dele pendia um grande quadro de... seria de Etty? Nudez, flores e uma paisagem bucólica.

- Quando começam as entregas?

- Temos algum carvão armazenado... podemos começar no próximo mês, mas, para as quantidades que o senhor deseja, teremos que reabrir algumas minas. É coisa que leva tempo... e dinheiro. O material de extração precisará ser renovado. Os trabalhadores não serão de primeira categoria. Estragam-se mais facilmente do que o material.

- Os senhores estão nos encostando à parede. Sabem que não podemos passar sem esse carvão.

- Somos homens de negócios, não somos políticos nem cavaleiros das cruzadas - disse Brigstock.

Ouviu-se então a voz de Lord Fetting:

- Onde estão os meus sapatos? Os meus sapatos?

O sr. Forbes continuava a sorrir, desenhando grandes pestanas nos olhos redondos das suas bonecas. Pensaria ele na garota de Shepherd’s Market? Aparentava forte sensualidade: o desejo sexual sofisticado.

Pesado e desdenhoso, Lord Benditch interveio:

- O que Brigstock quer dizer é que podemos receber uma proposta mais interessante do outro lado.

- Não há dúvida. Mas não será mau pensar no futuro. Se eles ganharem, deixarão de ser seus clientes. Têm outros aliados...

- Um futuro tão longínquo!... O que nos interessa é o lucro imediato.

- Compreendem certamente que o ouro deles vale menos do que o nosso papel. A verdade é que o roubaram. Nós poderíamos intentar uma ação... e o nosso próprio governo... Enfim, fornecer carvão a rebeldes poderia ser considerado um ato ilegal.

- Se viermos a concluir algum acordo - disse Brigstock secamente -, será na base de trinta por cento em notas aos preços correntes do último dia da expedição. As comissões devem ser pagas pelos senhores. Não poderíamos ir mais longe em matéria de concessões.

- Comissões?... Não compreendo bem.

- Refiro-me naturalmente à sua comissão na venda. Que a paguem os seus patrões.

- Nunca tive a intenção de pedir-lhes comissões. É costume? Ignorava-o. Mas, seja ou não seja, eu não pensaria em aceitá-las.

- O senhor é um agente um pouco extraordinário – disse Lord Benditch, com um olhar vesgo, como se ele tivesse dito uma heresia, como se o apanhasse em sórdidas maquinações. - Antes de assentarmos nos detalhes do contrato, quer ter a bondade de mostrar-me as suas cartas de apresentação?

D. levou a mão ao bolso do casaco. Haviam desaparecido. Era incrível! Aterrado, pôs-se a rebuscar precipitadamente em todas as bolsos. Nada.

Levantou a cabeça e viu os olhos dos três homens pregados nele: o sr. Forbes suspendera os desenhos e olhava-o interessadamente.

- É extraordinário! - balbuciou D. - Tinha esses papéis no bolso do casaco...

- Talvez tivessem ficado no seu sobretudo - disse Forbes simpaticamente.

- Brigstock - ordenou Lord Benditch -, toque a campainha.

O criado entrou.

- Vá buscar o sobretudo deste senhor.

Apenas uma formalidade. D. sabia perfeitamente que não estavam no sobretudo. Mas como teriam desaparecido os papéis? Currie?... Não, era impossível. Ninguém se tinha aproximado dos papéis... a não ser... O criado voltou com o sobretudo no braço. D. olhou para ele como se quisesse ler qualquer indicação naqueles olhos impassíveis, de lealdade mercenária... Mas não, eram olhos que nada diziam, nem quando recebia uma gorjeta, nem quando metia a unha.

- Então? - perguntou Brigstock secamente.

De repente, levantou-se um velho ao lado do fogão.

- Quando chega esse homem, Benditch? Estou farto de esperá-lo! - disse ele.

- Está aqui.

- Porque não me disseram?

- Você estava dormindo!

- Besteira!...

D. continuava a rebuscar as bolsos, uma por uma. Nada. Apenas movimentos e gestos teatrais, com que pretendia convencê-los de que realmente trouxera com ele as credenciais. Mas ele próprio reconhecia que representava mal a comédia, que não dava a impressão de que esperava reencontrar os papéis.

- Eu estava mesmo dormindo, Brigstock?

- Estava, Lord Fetting.

- E então? Foi um sono que me renovou. Espero que ainda não tenham decidido nada.

- Não, nada, Lord Fetting.

Brigstock tinha o ar sereno e satisfeito, ar que parecia dizer “bem, me parecia...“

- Quer convencer-nos de que se apresentou aqui sem os seus papéis? É muito estranho.

- Eu os tinha comigo. Alguém os roubou.

- Roubados! Quando?

- Decerto, enquanto me dirigia para esta sala.

- Nesse caso - disse Brigstock - o negócio está acabado.

- Acabado? - perguntou secamente Lord Fetting. - Não assinarei nada do que os senhores decidiram.

- Nada decidimos.

- Perfeito. É uma coisa que tem de ser muito bem pensada.

- Eu sei - disse D. - que só lhes posso dar a minha palavra. Mas para quê? Que posso esperar?

Brigstock curvou-se sobre a mesa e disse venenosamente:

- Sempre havia a comissãozinha!

- Então Brigstock!... - disse Forbes. - Ele recusou a comissão, você sabe.

- Quando viu que não podia contar com ela.

- Não temos mais que discutir, Brigstock - interveio Lord Benditch. - Ou este senhor é sincero ou não é. Se o é e pode demonstrá-lo apresentando as suas credenciais, por mim estou absolutamente disposto a negociar com ele.

- Também eu - disse Forbes.

- Mas como homem de negócios, o senhor compreende que não podemos assinar um contrato com um agente que não se identifica como acreditado.

- E compreende também - acrescentou Brigstock - que neste país há leis que punem todos aqueles que sob falsos pretextos tentam extorquir...

- Esperemos até amanhã - cortou Lord Fetting. - A noite é boa conselheira.

“Que fazer?” pensava D. “que fazer?” Estava sentado na cadeira, vencido. Tinha-se desembaraçado de todas as armadilhas exceto da última. Não era reconfortante. Nada mais lhe restava do que a longa peregrinação do regresso, o navio da travessia da Mancha, o trem de Paris. No seu país, naturalmente, ninguém acreditaria na sua história. Seria estranho o fato de ter escapado, sem esforço, às balas inimigas, para ir tombar contra o muro de um cemitério varado pelas balas dos seus amigos. Os condenados pela sua gente eram executados nos cemitérios para pouparem o trabalho de transportar os cadáveres.

- Bem - disse Lord Benditch -, creio que está tudo dito. Se encontrar as cartas que perdeu no seu hotel, queira telefonar imediatamente. Temos outro cliente... uma transação que não pode adiar-se indefinidamente. Não tem ninguém em Londres que possa responder pelo senhor?

- Ninguém.

- Então - disse Brigstock - não vale a pena perdermos mais tempo.

- Sem dúvida - replicou D. - É absolutamente inútil que lhes diga que nada disto me surpreende muito. Há três dias que cheguei: o meu quarto foi violado e revistado, agrediram-me - apontou o rosto - as consequências ainda são visíveis; dispararam sobre mim...

De repente, ao olhar para o rosto deles, lembrou-se do aviso de Rose: nada de melodramas. Benditch, Fetting e Brigstock, não demonstraram qualquer interesse. Era como se D. lhes tivesse contado uma anedota picante que não viesse a propósito.

- Não duvido - disse Lord Benditch - que o senhor perdeu os seus papéis...

- E nós perdemos o nosso tempo - acrescentou Brigstock.

- Mas isto é absurdo - disse Lord Fetting - E a polícia?

D. levantou-se:

- Uma coisa ainda, Lord Benditch. A sua filha sabe que dispararam sobre mim. Viu o lugar... até encontrou a bala.

Lord Fetting pôs-se a rir:

- Oh, aquela garota, aquela garota! Que gaiata!

Brigstock, inquieto, olhou de esguelha para Lord Benditch. parecia que queria explicar qualquer coisa e que não ousava.

- O que a minha filha pode dizer não tem, nesta casa, valor testemunhal - replicou Lord Benditch.

Franziu as sobrancelhas e baixou os olhos.

- Então nada mais tenho a fazer senão despedir-me. De qualquer maneira, não dou a minha missão por terminada. Aconselho-os a não procederem levianamente.

- Nunca procedemos levianamente - respondeu Lord Fetting.

D. atravessou a grande sala. Era o princípio de uma retirada que ninguém sabia que fim teria antes de alcançar o muro do cemitério. No hall, L. aguardava. Sentiu uma pequenina satisfação por ver que o faziam esperar como a uma visita sem importância. Ele ali estava, de pé, um ar de indiferença muito forçado, observando a Neli Gwyn e os seus querubins. Não voltou a cabeça: parecia que era um antigo protetor, obrigado por circunstâncias cruéis a fazer de conta que não o via para não lhe falar. Aproximou-se mais da tela para examinar de muito perto as costas do Duque de Saint-Albans.

- Seja prudente - disse-lhe D. - Sei perfeitamente que tem uma legião de agentes ao seu serviço, mas está metido em um jogo em que se pode jogar para os dois lados.

L. desviou tristemente os olhos do querubim para encarar aquele homem destituído de senso social.

- Suponho - disse ele -, que você vai regressar no primeiro paquete. No entanto, no seu caso não iria além da França.

- Está enganado, fico na Inglaterra.

- O que pode fazer aqui de útil?

D. não respondeu. Não tinha a menor idéia a esse respeito. No entanto, o seu silêncio pareceu desconcertar L., que lhe disse muito gravemente:

- Aconselho-o...

Havia, portanto, um ponto de vista de onde D. podia ainda parecer perigoso. Era o mais simples? Respondeu:

- Você fez algumas tolices. Bater-me... Miss Culien nunca o deixará dizer que eu roubei o carro. Depois o tiro... não fui eu que encontrei a bala, foi Miss Cullen. Vou intentar uma ação...

Soou uma campainha. O criado reapareceu depressa demais, silenciosamente demais.

- Lord Benditch vai receber agora Vossa Excelência.

L. não prestou a menor atenção ao que ele tinha dito - o que também era significativo.

- Se ao menos - disse ele - você estivesse disposto a dar a sua palavra... nada se passaria de desagradável.

- Dou-lhe a minha palavra que nos dias mais próximos o meu paradeiro será em Londres.

Começava a recuperar a confiança. A derrota não era definitiva: qualquer coisa inquietava L. Pressentia que ele estava pronto a desculpar-se; sabia uma coisa que L. ignorava. Nessa altura soou uma campainha; o criado abriu a porta da rua e Rose entrou, como uma estranha na própria casa.

- Eu queria apanhar...

Mas viu L.

- Que encontro! - exclamou ela.

- Estava tentando convencê-lo - disse D. - que não roubei o seu carro.

- Claro que não.

L. fez uma vênia e, depois:

- Não posso deixar Lord Benditch à espera.

O criado abriu a porta e L. entrou na grande sala.

- Ainda se lembra - disse ela - do que prometeu acerca de celebrarmos?

A sua audácia era fingida. Não é muito fácil reencontrar um homem a quem se fez uma declaração de amor. Estava à espera que ela dissesse que tinha bebido muito ou que apresentasse outra desculpa, mas, honestamente, perguntou:

- Não se esqueceu da nossa conversa de ontem à noite?

- Lembro-me de tudo o que você se lembra. Mas não haverá comemorações. Roubaram as minhas cartas de apresentação.

- Não voltaram a bater-lhe? - perguntou ela muito vivamente.

- Oh, não, desta vez foi tudo sem dor. O homem que abre a porta é novo aqui?

- Não sei.

- Não sabe?

- Você acha que eu vivo neste antro? - Mas mudou logo de assunto: - - Que lhes disse?

- A verdade.

- O melodrama completo?

- Sim.

- Eu o tinha prevenido. Como é que o Furt recebeu a coisa?

- Furt?

- Forbes. Chamo-lhe sempre Furt.

- Não sei. Era sempre Brigstock quem falava. À sua maneira, Furt é sério.

As rugas da sua boca eram duras, como se ela refletisse sobre essa “maneira” de ser sério. D. tornou a sentir uma imensa piedade por ela - ela, ali, sem lar em casa do pai, cercada de polícias privados, de desconfiança. Era tão nova que seria, quando ele casara, um simples bebé. Como pode mudar-se tanto em tão pouco tempo!

- Na sua embaixada não há alguém que se responsabilize por você?

- Creio que não. Não temos confiança neles... salvo, talvez, no adido.

- Vale a pena tentar. Vou falar ao Furt. Não é um idiota. - Tocou e disse ao criado: - Preciso falar com o senhor Forbes.

- Desculpe, minha senhora, mas está em conferência.

- Não quero saber. Diga-lhe que preciso falar-lhe, e que é urgente.

- Lord Benditch deu ordem...

- Não sabe quem eu sou? Não tenho o menor interesse em conhecer a sua cara, mas não será mau para você que aprenda a conhecer a minha. Sou a filha de Lord Benditch.

- Desculpe, minha senhora. Não sabia.

- Vá e faça o que lhe digo. - Depois acrescentou: - É novo na casa.

Quando a porta se abriu ouviram a voz de Lord Fetting:

- Nada de pressa. A noite...

- Se ele roubou os papéis... - disse ela.

- Tenho certeza.

- Vou fazer com que ele morra de fome! - disse ela furiosa. - Não arranjará emprego em toda a Inglaterra.

Apareceu o sr. Forbes.

- Furt - exclamou ela -, Preciso que faça alguma coisa por mim.

- Tudo o que quiser.

Parecia, com as suas calças de golfe, um potentado oriental pronto a prometer tesouros fabulosos.

- Aqueles cretinos não acreditam nele.

Forbes olhava humildemente para ela, nenhum detetive diria que não era um homem desesperadamente apaixonado.

- Desculpe-me - disse ele a D. - mas a sua história é de fato inverossímil.

- Eu encontrei a bala da pistola!

Separado dos outros, de pé, parecia mais velho e mais judeu.

- Eu disse que a história é inverossímil, não digo que seja falsa. - Muito atrás dele, no passado, estavam o deserto, o mar salgado das águas mortas, as montanhas desoladas, os atos de violência na estrada de Jericó. Ele assentava em uma base de crenças.

- Que fazem eles lá dentro? - perguntou Rose.

- Pouca coisa. O velho Fetting e Brigstock são travões maravilhosos. Não ache - disse ele a D. - que o senhor é o único de quem Brigstock desconfia.

- Se nós pudermos provar-lhes que não mentimos...

- Nós?

- Sim, nós.

- Se me fornecer essa prova estou ao seu dispor para assinar um contrato sobre a quantidade que isoladamente poderei entregar-lhe. Não será tudo o que precisa, mas outros se seguirão.

E olhava para ambos com uma espécie de angústia, como se receasse qualquer coisa. Era, evidentemente, um homem que vivia no receio permanente das parangonas da imprensa: “Anuncia-se o casamento de ... “, ou das coscuvilhices: “Então já sabe? A filha de Lord Benditch ... “.

- Quer vir imediatamente à embaixada conosco? - perguntou ela.

- Achei que o senhor dizia...

- A idéia não é minha - explicou D. - Acho que isso de nada servirá. Entre nós, ninguém tem confiança no embaixador... enfim, não se sabe.

Não falaram no carro que avançava lentamente através do nevoeiro. Forbes apenas disse:

- A idéia de reabrir as minas me agrada. Os mineiros têm atualmente uma vida de cão.

- E isso o aflige, Furt?

Ele franziu-se em um sorriso crispado, doloroso:

- Não gosto que me detestem.

Depois, os seus olhos negros fixaram-se na claridade amarela com um pouco daquela paciência de Jacob que serviu durante sete anos. “Enfim”, pensou D., “é possível que o próprio Jacob tivesse alimentado na sua tenda alguma consolação. Como querer-lhe mal?” Quase invejava Forbes: é qualquer coisa estar apaixonado por uma mulher viva, mesmo que esse amor não nos traga senão o medo, o ciúme e a dor. Havia uma certa nobreza nesta comoção.

À porta da embaixada, D. disse-lhe:

- Pergunte pelo adido... é a única possibilidade.

Conduziram-nos para uma sala de espera cujas paredes estavam cheias de fotografias de antes da guerra.

- Aqui está o lugar onde nasci...

Era a fotografia de uma aldeia minúscula perdida entre montanhas.

- Agora está em território inimigo.

D. passeava lentamente à volta da sala deixando Forbes a sós com Rose.

Eram maus cartazes, exageradamente pitorescos, carregados de efeitos de nuvens compactas e de pesadas flores. Lá estava também a universidade onde ele dava regularmente os seus cursos... vazia, conventual, irreal. Abriu-se a porta e surgiu um homem que parecia um cangalheiro, de casaco preto e colarinho branco.

- Senhor Forbes?

- Proceda como se eu não estivesse aqui - disse D. a Forbes. - Pergunte-lhe o que quiser.

Havia estantes nas quais os livros, nas suas encadernações uniformes, tinham um ar de inutilidade; o dramaturgo nacional, o poeta nacional... Voltou as costas aos outros e pôs-se a ver a biblioteca.

- Venho em nome de Lord Benditch e, pessoalmente, pedir umas informações que nos interessam - disse Forbes.

- Teremos o maior prazer.

- Estamos em negociações com um senhor que diz ser um agente do seu governo. Trata-se de uma compra de carvão.

O funcionário respondeu secamente:

- Que eu saiba, não recebemos quaisquer instruções... Vou perguntar ao embaixador, mas...

A sua voz ganhava segurança à medida que falava.

- É possível que o senhor não esteja informado - disse Forbes. - Talvez um agente secreto.

- É pouco provável.

- O senhor é o adido? - perguntou Rose com voz cortante.

- Não, minha senhora. Sinto muito, mas o adido está de licença. Eu sou o primeiro-secretário.

- Quando volta ele?

- Não voltará mais.

Era pois, provavelmente, o fim de tudo.

- Este senhor afirma - avançou o sr. Forbes - que lhe roubaram as cartas de apresentação.

- Meu Deus... infelizmente... não sabemos nada... mas parece-me, como lhe disse, muito pouco provável.

- Mas este senhor - disse Rose - não é um desconhecido. Um professor... está ligado a uma universidade.

- Nesse caso será fácil informá-los.

“Que excelente soldado ela dava”, pensou ele com admiração. Encontrava sempre o argumento preciso.

- É uma autoridade em línguas românicas. Foi ele quem publicou o manuscrito de Berna da Canção de Rolando. Chama-se D.

Um silêncio. Depois o funcionário disse:

- Lamento muito, minha senhora, mas esse nome é absolutamente desconhecido.

- Isso nada prova senão que o senhor não se interessa pelas línguas românicas.

- Evidentemente - replicou ele com um sorriso pretensioso. - Mas se Vossa Excelência quiser ter a bondade de esperar uns minutos eu vou procurar o nome em uma enciclopédia.

D. afastou-se das estantes.

- Receio que apenas estejamos perdendo tempo - disse ele.

- Oh! - replicou Forbes - o meu tempo não é coisa que tenha assim tanto valor.

Não tirava os olhos da garota: o seu olhar seguia todos os movimentos dela com uma sensualidade triste e fatigada. Rose estava agora de pé em frente da estante e olhava para as obras do poeta nacional e do dramaturgo nacional. Escolheu um livro de uma prateleira debaixo e pôs-se a folheá-lo. A porta voltou a abrir-se. Era o secretário.

- Esse nome não existe, senhor Forbes. Receio muito que Vossa Excelência tenha sido induzido em erro.

Rose voltou-se para ele, furiosa:

- O senhor mente, está mentindo, não é assim?

- Porque haveria de mentir... Miss .. Miss .. ?

- Cullen.

- Minha querida Míss Cullen, a guerra civil dá cabo das pessoas que parecem honestas...

Ela tinha aberto o livro:

- Não sei ler o que aqui está, mas veja... Não estou enganada no nome, certamente... Também vejo aqui a palavra Berna...

- É muito estranho. Me dá licença que veja? Talvez, como Vossa Excelência não conhece a língua...

- Como eu a conheço - interveio D. - posso ler-lhe a passagem. Refere-se aqui a data da minha nomeação como professor da Universidade de Zed. Faz-se alusão ao meu livro sobre o manuscrito de Berna. Está aqui tudo o que o senhor desconhece.

- E o senhor é esse homem?

- O próprio.

- Permite que veja o livro?

D. passou-lhe o livro. “Santo Deus!” pensava ele, “ela. ganhou a partida!” Forbes contemplava-a extasiado.

- Ah, estou desolado - disse o secretário. - Foi a maneira como Miss Cullen pronunciou o nome que me equivocou. Certamente, conhecemos D. muito bem. É um dos nossos eruditos mais notáveis...

E deixou as últimas palavras em suspenso. parecia uma confissão completa de derrota. Mas enquanto falavaera para a garota e não para o homem interessado que ele olhava. Procurava uma saída, devia haver uma saída qualquer.

- Como vê! - disse Rose.

- Mas - continuou o outro, pela saída que havia encontrado D. já morreu. Foi fuzilado na prisão pelos rebeldes.

- É mentira! Está aqui o meu passaporte.

Felizmente não tinha metido o passaporte no mesmo bolso em que estavam os outros papéis. O secretário examinou o passaporte.

- Que vai dizer agora? Que o passaporte é falso?

- Oh, não - replicou o secretário. - o passaporte é autêntico. Simplesmente não é o seu. Basta olhar para a fotografia.

E estendeu-lhe o papel. D. lembrou-se da cara sorridente daquele desconhecido que vira em Dover na fiscalização dos passaportes. Naturalmente ninguém acreditaria que era a sua cara... Disse já sem esperança:

- A guerra, a prisão, transformam um homem.

- Reconhece-se, evidentemente - disse o senhor Forbes com simpatia - uma certa semelhança.

- Decerto - retorquiu o secretário - ele não iria escolher...

- É o rosto dele! - gritou a garota irada. - Sei que é o rosto dele. Basta olhar.

Mas D. sentia que no fundo desta cólera pairava uma dúvida e que a cólera só a procurava convencer-se.

- Como é que ele apanhou este passaporte é que eu não sei disse o secretário...

E voltando-se para D.:

- Mas não perde por esperar. Terá o castigo que merece. - Dirigiu-se depois cordialmente a Rose: - - Estou desolado, Miss Cullen, mas D. era na verdade um dos nossos sábios mais ilustres.

O homem era espantosamente convincente. D. tinha a impressão de estar ouvindo o seu elogio póstumo. Sentiu um prazer estranho: era agradável, apesar de tudo.

- Será melhor deixar à polícia o cuidado de deslindar o assunto. Por mim desisto.

- Queira desculpar-me, mas eu vou telefonar imediatamente para a Scotland Yard.

O secretário sentou-se a uma mesa e agarrou no auscultador do telefone.

- Para um homem que está morto, parece-me que estou acumulando acusações.

- Scotland Yard? - perguntou o secretário. E deu o nome da embaixada.

- Primeiro - continuou D. -, por ter roubado um carro...

- O passaporte foi visado em Dover há dois dias. Sim, o nome esse.

- Depois, foi o senhor Brigstock que me acusou de tentar extorquir dinheiro... não sei para quê.

- Sim, estou vendo - continuava do outro lado o secretário. - Tudo parece concordar. Decerto, ficará guardado à vista.

- E agora sou acusado de me servir de um passaporte falso. Para um professor da universidade não se pode dizer que não seja um libelo pesado.

- Não brinque - disse a garota. - É uma loucura, Você é D. Sei que você é D.... Se você não é um homem honesto, então é o mundo todo que está podre...

O secretário disse:

- A polícia estava à procura deste indivíduo. Não tente escapar. Tenho uma pistola no bolso. Vão certamente fazer-lhe algumas perguntas.

- Algumas perguntas! - replicou D. - Um interrogatório completo! Roubo, tentativa de burla, passaporte falso...

- E ainda a morte de uma garota - disse o secretário.

 

O pesadelo recomeçava. D. era o homem infectado a quem a violência acompanha para toda a parte. Como um portador do vírus do tifo até era o responsável pela morte de desconhecidos. Sentou-se em uma cadeira e perguntou:

- Que garota?

- Já vai saber - respondeu o secretário.

- Parece-me - disse o sr. Forbes - que será melhor irmos embora.

Tinha um ar confuso e não compreendia nada do que estava acontecendo.

- É conveniente que fiquem. A polícia vai querer saber exatamente todos os passos que ele deu...

- Eu fico - declarou Rose. - É inverosímil, é pura loucura. Pode contar o que fez esta manhã?

- Posso. Tenho testemunhas de todos os minutos que vivi hoje. - Sentiu-se um pouco aliviado. Os seus inimigos, que não podiam dar-se ao luxo de fazerem muitas tolices, estavam cometendo mais um erro. No entanto, devia ser verdade o que ele dizia; alguém tinha morrido. Sentia mais piedade do que horror: habituamo-nos depressa à morte das pessoas que não conhecemos.

Rose disse ao sr. Forbes:

- Furt, você decerto não acredita em uma palavra de tudo isto.

Mais uma vez, D. pressentiu que pairava na exclamação da garota uma certa dúvida.

- Não sei - respondeu Forbes. - É muito estranho.

Mas ela voltava ao assalto, sempre com o argumento oportuno:

- Se fosse um impostor, porque se dariam ao trabalho de atirar sobre ele?

- Resta saber se ele contou a verdade!

O secretário, sentado junto da porta, fingia que não estava ouvindo.

- Mas fui eu própria que encontrei a bala.

- Suponho que não será difícil pôr uma onde se quer que alguém a encontre.

- Recuso-me a acreditar.

D. notou que ela já não dizia “não acredito”. Rose voltou-se para ele.

- O que eles poderão inventar agora?

- É melhor ir embora, Rose.

- Para onde?

- Para casa.

Ela desatou a rir nervosamente. Não falaram mais, esperavam. O sr. Forbes pôs-se a ver os quadros como se fossem coisas de grande importância. Subitamente soou a campainha da porta da rua e D. estremeceu.

- Fiquem onde estão. A polícia virá aqui.

Entraram dois homens: parecia um lojista com o seu caixeiro. O que parecia mais velho perguntou:

- Senhor D?

- Sou eu.

- Quer vir ao comissariado para responder a algumas perguntas?

- Darei aqui todas as informações - respondeu D.

- Como quiser.

Esperou pacientemente a saída dos outros.

- Não vejo nenhum inconveniente em que estes senhores e esta senhora assistam ao meu interrogatório. Se seu fim é conhecerem o emprego do meu tempo, eles até podem ser úteis.

- Como poderia ele ter cometido qualquer delito? - acudiu Rose. - Ele pode provar tudo o que fez durante o dia.

O detetive, embaraçado, declarou:

- É um caso sério, senhor. Seria melhor para todos se o senhor quisesse ir ao comissariado - declarou.

- Prenda-me, então.

- Aqui não posso prendê-lo. Além disso, ainda não chegámos a esse extremo.

- Então não percamos tempo. Pergunte o que quiser.

- Acho - disse o outro - que o senhor tem relações com uma certa Míss Crole.

- Nunca ouvi falar dela.

- Decerto a conhece. O senhor hospedou-se no hotel em que ela trabalhava.

- Não é da pequena Else que está falando?

Levantou-se e avançou para o polícia, de mãos estendidas, como se suplicasse:

- Fizeram-lhe alguma coisa... diga-me, por quem é...

- Não sei a quem quer se referir quando pergunta se lhe fizeram alguma coisa, mas a garota está morta...

- Oh, meu Deus - exclamou D. -  A culpa foi minha!

O policial prosseguiu com a calma de um médico a falar ao seu doente:

- Devo preveni-lo de que tudo o que diz... É um assassínio.

- Tecnicamente falando.

- Que quer dizer por tecnicamente falando?

Não nos ocupemos disso por hora. O que de momento nos interessa é o seguinte: parece que a menina se atirou da janela do último andar do edifício.

D. lembrou-se da altura da janela à rua... Entretanto Rose dizia:

- Que tem ele com isso? Desde o meio-dia que estava na casa do meu pai.

D. lembrava-se de como havia recebido a notícia da morte da sua mulher e achava que nunca mais poderia sofrer com uma notícia desta natureza. Um homem a quem o fogo queimou um dia gravemente não teme mais o calor. Mas esta morte doía-lhe como se fosse a morte de uma filha única. Que medo devia ela ter sentido enquanto caía! Porquê? Porquê? Porquê?

- O senhor tinha relações íntimas com essa menina?

- Evidentemente que não. Era uma criança!

Todos olhavam atentamente para ele: pareceu que a boca do oficial da polícia se enteiriçava sob o seu bigode respeitável de lojista.

- A senhora devia sair - disse ele a Rose. - São histórias que não convêm aos ouvidos das senhoras.

- O senhor está redondamente enganado - replicou ela. - Sei que está completamente enganado.

O senhor Forbes tomou-lhe o braço e levou-a para outra sala. O detetive disse ao secretário:

- Se o senhor quiser ficar... É possível que este homem queira ser protegido pela sua embaixada.

- É evidente que não estou na minha embaixada - disse D. - Não importa. Continue.

- Um indivíduo indiano, um tal Muckerji, vive no hotel. Foi ouvido e declarou ter visto esta manhã a menina despindo-se no seu quarto.

- É absurdo. Como podia ele ter visto?

- Ele não fez segredo do caso. Diz que espreitou pelo buraco da fechadura. Alega que faz estudos... não sei com que fim. Declarou que viu a pequena sentada na sua cama descalçando as meias.

- Agora entendo. É verdade que ela descalçou as meias, sentada na minha cama.

- E continua a negar que tivesse tido relações íntimas com ela?

-  Naturalmente.

- Então que fazia ela?

- Na noite do dia anterior eu tinha lhe dado para guardar alguns papéis importantes para mim. Ela os escondeu no pé, dentro da meia. Bem vê, eu tinha fortes razões para suspeitar que o meu quarto seria devassado... ou que eu próprio seria vítima de qualquer atentado.

- Que tipo de papéis?

- Papéis do meu governo que me acreditavam como agente ao seu serviço e me autorizavam a tratar de certos negócios.

- Mas este senhor nega que o senhor seja D. Levanta a hipótese de que o senhor viaja com o passaporte de um morto.

- Eu sei - replicou D. - Ele tem as suas razões.

Sentia-se cada vez mais apertado: como preso em uma armadilha implacável.

- Posso ver esses papéis? - pediu o policial.

- Foram roubados.

- Onde?

- Na casa de Lord Benditch.

A história era naturalmente incrível. Acrescentou com uma espécie de divertimento sinistro provocado por esta louca aventura:

- O criado de Lord Benditch os roubou.

Um silêncio. Ninguém se mexia. O detetive nem sequer tomava notas. O seu companheiro, de lábios cerrados, vagueava o olhar pela sala, como desinteressado já das histórias que contam os criminosos.

- Então - disse o detetive -, voltando àquela garota... - Fez uma pausa, como se quisesse dar tempo a D. de rever a sua versão, e continuou: - Pode nos dar algum esclarecimento acerca desse... suicídio?

- Não foi um suicídio.

- A garota era infeliz?

- Hoje não.

- Ameaçou abandoná-la?

- Já lhe disse que não era seu amante. Eu não perverto menores.

- Não lhe teria, por acaso, sugerido a idéia de um, dois suicídios?

Surgia, enfim, a grande frase: um pacto suicida! Aí estava o que o detetive queria dizer com “tecnicamente falando”. Imaginavam, então, que ele teria arrastado a menina a esse paroxismo e que, a seguir, havia saído tranquilamente: a mais abjecta forma de covardia! Como teriam eles chegado a uma pista tão monstruosa?

- Não - respondeu enfastiado.

O detetive continuou:

- Porque foi hospedar-se naquele hotel?

- O quarto tinha sido reservado antes da minha chegada.

- Conhecia então a menina?

- Não, não. Há cerca de dezoito anos que não vinha a Inglaterra.

- Escolheu um hotel estranho.

- Aqueles para quem trabalho é que o escolheram.

- No entanto, em Dover, na repartição dos passaportes, o senhor deu como endereço o Strand Palace.

Sentia vontade de desistir. Não havia nada do que fizera desde que desembarcara que não parecesse mais um nó a apertá-lo. Respondeu obstinadamente:

- Achei que se tratasse de uma simples formalidade.

- Como?

- O funcionário piscou-me o olho.

O detetive suspirou e esteve prestes a fechar o seu caderno de notas.

- Não pode então dar nenhum esclarecimento sobre este... suicídio?

- Ela foi assassinada, pela governanta e por um homem chamado K.

- Por que motivo?

- Ainda não sei bem.

- Então acho que ficará surpreso se eu lhe disser que ela deixou uma declaração.

- Não creio.

- As coisas seriam muito mais simples para nós, e para si, se o senhor se resolvesse a prestar declarações sinceras.

E acrescentou displicentemente:

- Essas promessas de suicídio mútuo não são casos para forca. Antes o fossem.

- Posso ver a tal declaração da menina?

- Posso ler-lhe algumas passagens... se isso o levar a decidir-se. - Empertigou-se na cadeira. Pigarreou como se se preparasse para ler um poema ou um ensaio.

D. continuava sentado, de braços pendentes, os olhos fixos na cara do secretário: a traição obscurecia todo o mundo. Pensou: “É o fim. Não se pode matar assim uma criança.” Lembrou-se do que seria a sua queda até ao passeio gelado. Quanto tempo duram dois segundos quando se cai assim sem esperança? Sacudiu-o uma raiva morna. Estava farto de ser manobrado como um fantoche, era mais do que tempo de agir. Se queriam a violência, pois bem, teriam a violência. Pouco à-vontade sob o seu olhar, o secretário meteu a mão no bolso em que tinha a pistola: tinha-a trazido certamente depois de ter falado com o embaixador.

O detetive lia: “Não posso suportar mais esta vida. Ele me disse que esta noite partiríamos ambos para sempre.”

O policial explicou:

- Ela tinha um diário, e muito bem escrito...

Era falso: o estilo era horrível, decalcado das revistas e folhetins que ela lia. No entanto D. recordava nele o som da sua voz, as palavras que fremiam nos seus lábios. Prestou a si próprio um juramento secreto - alguém tinha de morrer. Era o mesmo juramento que fizera quando lhe haviam fuzilado a mulher - e que ele não tinha cumprido.

“Esta noite” - continuava o detetive - “achei que ele amava outra, mas ele assegurou-me que não. Não me parece que ele seja daqueles homens que saltitam de flor em flor. Escrevi a Clara para lhe contar o nosso projeto. Acho que ela vai ter pena”.

O detetive disse comovidamente:

- Onde terá ela aprendido a escrever tão bem? É lindo como um romance.

- Clara - disse D. - é uma prostituta. Deve ser fácil encontrá-la. É possível que a carta que a pequena lhe escreveu explique tudo.

- O que está aqui escrito parece-me suficientemente claro.

- O nosso projeto - avançou D. com morna tristeza - consistia simplesmente em eu fazê-la sair hoje daquele hotel.

- Rapto de uma menor - disse o polícia.

- Não sou um bruto! Tinha pedido a Míss Cullen para lhe arranjar um emprego.

- Seria inexato dizer que o senhor a persuadiu a fugir, prometendo-lhe um emprego?

- Absolutamente falso.

- É, contudo, o que o senhor declarou. E essa mulher? Essa Clara? Como aparece ela?

- Tinha proposto a essa criança tomá-la como criada. Não me pareceu... conveniente.

O detetive pôs-se a escrever: “ela tinha recebido de uma mulher uma proposta de emprego que não me pareceu conveniente e eu persuadi-a a partir comigo ... “.

- Vejo - disse D. - que o senhor não escreve tão bem como ela...

- O assunto não é para brincadeira.

A ira crescia nele como um cancêr, lentamente. Começou a lembrar-se de frases: “a maior parte dos clientes come peixe defumado”, dos meneios da sua cabecita, do medo que ela tinha de ficar só, da terrível imaturidade da sua apaixonada dedicação.

- Não estou brincando. Repito-lhe que não se trata de um suicídio. Acuso a governanta e o senhor K. de homicídio premeditado. Devem tê-la empurrado...

- É a nós que compete acusar. A governanta foi interrogada, naturalmente. Estava muito agitada. Reconheceu que havia se zangado com a menina, que era uma porca. Quanto ao senhor K., nem sequer ouvi falar dele. Nenhum dos clientes do hotel tem esse nome.

- Previno-o de uma coisa - disse D. -, se os senhores não agirem, agirei eu.

- Basta! - exclamou o detetive. - Não lhe restará muito tempo para agir neste país. É hora de irmos embora.

- O senhor não tem provas suficientes para me prender.

- A este respeito é verdade, ainda não tenho. Mas este senhor acaba de dizer que você entrou na Inglaterra com um passaporte falso.

- Muito bem - respondeu D. lentamente -, estou pronto a segui-lo.

- Temos um automóvel à porta.

D. levantou-se:

- Irei algemado?

O detetive abrandou um pouco:

- Creio que não será preciso.

- Precisa de mim? - perguntou o secretário.

- Receio que tenha de apresentar-se no comissariado. Como bem compreende, não temos nenhuma autoridade nesta casa. Estamos no seu país. Espero que o senhor, se algum incidente vier a levantar-se nos meios políticos, declare que viemos a seu pedido. Suponho que surgirão outras acusações.

Depois, voltando-se para o companheiro:

- Peters, vá ver se o carro está à porta. Não estou para esperar no nevoeiro.

Parecia que era inexoravelmente o fim: não só o fim de Else, mas também de D. e, no seu país, o de milhares de vidas, pois estavam perdidas todas as esperanças de obter o carvão. A morte da criada não era senão a primeira - e talvez a mais horrível porque ela a tinha sofrido sozinha; os outros morreriam acompanhados em abrigos subterrâneos. O furor minava-o lentamente... tinha sido empurrado daqui, dali... Viu Peters sair da sala.

- Ali está a aldeia em que eu nasci - disse ele ao detetive esta aldeia perdida na serrania.

O detetive voltou-se para olhar.

- É muito pitoresco - disse ele.

D. socou o secretário, precisamente no pomo-de-adão, no lugar exato em que terminava o alto colarinho branco. O homem tombou com um grito de dor, procurando sacar a pistola. O gesto ajudou D., que se apoderou da arma antes que o detetive tivesse tempo para fazer qualquer movimento.

Exclamou:

- Não pensem que eu não disparo!

- Então! - disse o detetive, levantando a mão friamente como se estivesse regulando o trânsito. - Não faça asneiras. O que temos contra você não lhe custará mais de três meses.

- Encoste-se à parede - ordenou D. ao secretário. - Desde que desembarquei ando acossado por traidores. É a minha vez de ser o caçador.

- Largue essa pistola - insistiu o detetive, sempre suave e serenamente. - o senhor está excitado. Examinaremos imparcialmente toda esta história na delegacia.

D. Pôs-se a recuar na direção da porta.

- Peters! - chamou o detetive em tom breve de comando. D. tinha a mão sobre o puxador da porta: quis fazê-lo girar mas encontrou resistência. Alguém tentava entrar. Desviou-se um pouco, visando o detetive com a pistola. A porta, ao abrir-se, ocultou-o da vista de quem entrava.

- O que está acontecendo, sargento? - perguntou Peters.

- Atenção!

Mas Peters já tinha entrado. D. voltou a pistola para ele:

- Ali, encostado à parede, como os outros! - ordenou. O sargento ainda insistiu:

- O senhor está fazendo uma asneira. Mesmo que consiga sair daqui, será apanhado dentro de poucas horas. Largue essa arma e não se falará mais no caso.

- Preciso desta pistola - disse D.

A porta estava aberta. Recuou lentamente, passou por ela e a bateu. Como não pôde fechá-la à chave, gritou:

- Disparo contra o primeiro que abrir a porta! - Encontrou-se no hall, no meio de grandes retratos antigos e consoles de mármore. Ouviu a voz de Rose dizendo:

- Que você está fazendo?

Voltou-se bruscamente, de pistola em punho. Forbes estava ao lado dela.

- Não tenho tempo para lhe explicar. Aquela garota foi assassinada. Alguém vai pagar!

- Não seja tolo - disse Forbes. - Largue essa pistola. Estamos em Londres.

- O meu verdadeiro nome é D.

Sentia que devia a Rose esta resoluta segurança. Certamente não tornaria a vê-la. Não queria deixar-lhe a impressão de que todos que ela conhecia tinham duas caras. E acrescentou: - Deve haver qualquer maneira de comprová-lo.

Ela olhava esgazeadamente para ele. Possívelmente não o tinha ouvido.

- Ofereci, em tempos, um exemplar do meu livro ao Museu Britânico, com uma dedicatória aos empregados da sala de leitura pública, como prova de reconhecimento.

O puxador da porta rodou.

- Quietos ou disparo! - gritou brutalmente.

Um homem vestido de preto com uma pasta de couro descia descontraidamente a grande escadaria de mármore. De repente, exclamou:

- Oh, meu Deus!...

E parou aterrado. Tinha-se juntado no hall uma pequena multidão e esperava-se qualquer coisa. D. hesitou: julgava que Rose ia dizer uma das suas: “Felicidades!” ou “Seja prudente!” mas ela permanecia muda, com os olhos fixos na pistola. Foi Forbes quem falou. Parecia perplexo:

- Sabe que tem à sua espera, diante da porta, um carro da polícia?

Na escada, o homem da pasta repetiu:

- Oh, meu Deus!

Soou uma campainhada.

- Não se esqueça - disse Forbes - que eles têm um telefone lá dentro.

Tinha-se esquecido disso. Recuou apressadamente e, tendo alcançado a porta envidraçada do vestíbulo, meteu a pistola no bolso e saiu rapidamente. Lá estava, junto ao passeio, o automóvel da polícia. Se Forbes chamasse os outros, D. não teria mais de dez passos de avanço. Andava tão depressa quanto ousava. O motorista olhou estranhamente para ele. D. tinha-se esquecido do chapéu. No nevoeiro, o horizonte não se via a mais de quinze metros: não se atrevia a correr.

Talvez Forbes não tivesse chamado. Olhou para trás. O automóvel desvanecia-se: via-se a luz vermelha de trás e mais nada. Pôs-se então a correr na ponta dos pés. Atrás dele explodiu um rumor de vozes humanas, entre o ruído de um automóvel que arrancava. Perseguiam-no. Correu... mas não havia saída. Não tinha reparado que a embaixada dava para uma praça quadrada, fechada, que tinha apenas uma rua de entrada. Tinha tomado o caminho oposto e agora precisava vencer três lados do quadrado. Não tinha tempo. Ouviu o motor do carro gemer. Não perdiam tempo engatando marcha ré; contornavam simplesmente a praça.

Seria mais uma vez o fim? Quase de cabeça perdida, pôs-se a correr ao longo das grades, fugindo agora na direção do automóvel. De repente, sentiu que a grade cedia à sua mão: havia um espaço vazio, o topo de uma escada que vinha do subsolo. Desceu os degraus correndo, agachou-se contra a parede e ouviu o carro passar acima da sua cabeça. De momento, o nevoeiro o tinha salvo: durante todo este tempo eles não sabiam se ele corria alguns metros adiante do automóvel. Ignoravam que ele voltara para trás.

Porém, eles não deixavam nada ao acaso. Ouviu um apito, depois um rumor de passos que davam lentamente a volta à praça. Os agentes até revistavam as portas de entrada das casas. Um devia ir em um sentido e o outro em sentido contrário. Decerto tinham mandado vir agentes enquanto colocavam o carro de guarda à rua de saída da praça. Teriam perdido o receio da sua pistola ou teriam armas no automóvel? Não sabia como é que as coisas aconteciam na Inglaterra. Eles aproximavam-se.

Nenhuma luz nas janelas. Os agentes não pensariam decerto em ir procurá-lo em um porão habitado. Olhou para o interior do compartimento e não viu grande coisa: apenas o canto de um móvel que parecia um sofá. Era provavelmente o porão de uma residência. Na porta estava pregado um papel: “Não é preciso leite até segunda-feira”. Arrancou-o. Ao lado da campainha uma pequena chapa de cobre: Glover. Empurrou a porta: impossível; trancada, fechada com duas voltas na chave. O ruído de passos aproximava-se muito lentamente. As buscas eram minuciosas. Uma única chance: há pessoas negligentes. Tirou o canivete do bolsoe enfiou a lâmina por baixo do fecho da janela. Fez pressão e o fecho cedeu. Esgueirou-se pela abertura e, sem ruído, caiu no sofá. Sentia-se desfalecido, sem fôlego, mas não se atrevia a descansar. Fechou a janela e acendeu um candeeiro.

O ar era pesado, carregado de cheiro de pot-pourri que provinha de um vaso decorado que estava na chaminé. Havia um sofá-cama coberto com uma colcha bordada à mão e com duas almofadas azul e laranja; um fogão a gás. Observou tudo de uma olhadela, das aguarelas de amador penduradas na parede ao aparelho de rádio junto do toucador. Tudo denotava uma mulher madura, solteirona, interessada por poucas coisas. Ouviu o ruído de passos que desciam: era indispensável que a casa não parecesse desocupada. Ligou o aparelho de rádio. Uma voz espevitada de mulher dizia: “Mas que fará a dona da casa se a mesa não chegar para quatro pessoas? Pedir emprestada outra à vizinha, assim de repente, é muitas vezes difícil ... “ Abriu uma porta ao acaso e deu com o banheiro. “Porque não pôr, lado a lado, duas mesas da mesma altura? A junção não será visível debaixo da toalha. Porém, onde encontrar a toalha?”. Alguém que não podia ser senão um policial tocou a campainha da porta. “Até isso não será preciso pedir emprestado se ... “.

Era a raiva que comandava os movimentos de D. Mais uma vez sentia-se jogado, empurrado, manobrado, de um lado para o outro, por eles. Era indispensável que chegasse a sua vez. Abriu uma gaveta e encontrou o que procurava - uma daquelas minúsculas máquinas de barbear que as mulheres usam para depilar os sovacos, sabão para a barba e uma toalha. Pôs a toalha no pescoço e cobriu o bigode e a cicatriz com espuma de barbear. Outra campainhada à porta, ao mesmo tempo que no aparelho de rádio outra voz anunciava: “Acabaram de ouvir Lady Mersham na segunda palestra da série ”Conselhos a uma dona de casa“.

Dirígiu-se lentamente para a porta e abriu. Era um policial que trazia na mão um papel amassado:

- Como encontrei este papel que diz que não quer leite até segunda-feira, achei que não havia ninguém em casa e se tivessem esquecido de apagar a luz.

Olhava para D. de muito perto. Este respondeu procurando pronunciar as palavras como se estivesse fazendo um exame de inglês:

- Foi a semana passada.

- Não viu por aqui um estrangeiro?

- Não.

- Bom-dia - disse o homem, afastando-se relutantemente. Bruscamente voltou atrás e disse:

- Que diabo de máquina de barbear que o senhor tem!

D. notou então que tinha na mão uma máquina para mulheres.

- Ah - disse ele -, é da minha irmã. Perdi a minha. Porquê?

- Por nada, desculpe. Temos de reparar em tudo...

- Desculpe-me também, mas estou com pressa.

- Muito bom-dia.

D. viu o homem desaparecer no nevoeiro. Fechou a porta e voltou à banheiro. Tinha conseguido fugir da armadilha. Escanhoou o rosto e raspou o bigode. Que diferença, uma diferença enorme! Era como se ganhasse dez anos de vida. Havia agora uma vitalidade nova na raiva que lhe corria nas veias. Tinham agora que se entender com ele. Havia resistido à vigilância, às pancadas, ao atentado - era a sua vez. Que suportassem tudo como ele tinha suportado. Pensou na governanta, no sr. K., na pequena assassinada. De volta ao compartimento feminino onde o ar viciado cheirava a rosas mortas, jurou que agora seria ele o caçador, o homem que espera e espreita a caça, o atirador dos becos.

 

O CAÇADOR

A voz cava do locutor anunciou: “Aqui BBC. Antes de ligarmos para o Regional do Norte, de onde vamos transmitir o recital de órgão do Super-Palace, Newcastle, queiram escutar um aviso da Scotland Yard: a polícia procura um estrangeiro que se apresenta com o nome de D., preso esta manhã a pedido da embaixada de X., e que se pôs em fuga depois de ter atacado o secretário da embaixada. Idade cerca de quarenta e cinco anos, altura um metro e setenta e cinco, cabelos pretos um pouco grisalhos, bigode farto, uma cicatriz no lado direito do queixo. Supõe-se que ande armado.”

- Engraçado - disse a criada que o servia -, o senhor também tem uma cicatriz. Tenha cuidado, não vá ter problemas por causa disso.

- Não - disse D. - Não. Tenho de tomar muito cuidado, não é verdade?

- É que às vezes acontecem coisas! - disse a criada. - Horrível, não é? Quer ver? Ia pela rua fora, sem pensar em nada, quando vi um ajuntamento. Era alguém que tinha se suicidado. Disseram-me que havia se jogado da janela abaixo. É claro, parei para olhar, mas como não consegui ver nada, dei uma saltada ao hotel para perguntar à Else o que tinha acontecido. Quando me disseram que fora a própria Else que tinha se atirado da janela, não sei como não desmaiei.

- Dava-se muito com ela?

- Oh, era a sua melhor amiga!

- É claro que ficou muito impressionada?

- Ainda custo em acreditar.

- Realmente, há coisas que mal se podem imaginar, uma garota daquela idade. Não acredita que possa ter sido...  um acidente?

- Oh, impossível! Se quer que lhe diga o que penso... Sei mais do que muita gente julga... Ia jurar que foi um desgosto de amor.

- Sério?!

- Tenho certeza. Era um homem casado que morava em Highbury.

- E contou isso à polícia?

- Ainda não fui chamada.

- Foi ela quem lhe contou?

- Ah, não! Ela era muito sonsa. Mas são coisas que a gente ouve contar.

Ele olhou para ela horrorizado: era aquilo a amizade! Enquanto ela ia inventando as suas coscuvilhices, D. fixava os seus olhitos castanhos impiedosos. O homem de Highbury era pura criação da sua mente sórdida. Seria esta garota quem emprestava a Else os romances onde ela ia buscar o seu vocabulário?

- Parece-me que o problema estava nas crianças - acrescentou ela.

Havia na sua voz aquela espécie de prazer pela invenção. Else estava morta e bem morta: qualquer um podia reconstruí-la como bem entendesse.

- Else estava louca por ele... enfeitiçada.

D. pôs o dinheiro ao lado do prato.

- Bem... - disse ele. - Tenho de ir... gostei muito de ouvir... a sua aventura.

Saiu para o ar gelado da noite: só o acaso o fizera entrar naquele restaurante, perto do hotel. Estava decidido. A história fervilhava agora em todos os jornais. De um cartaz saltaram-lhe aos olhos as palavras: O Bandido da Embaixada.” Tinha a sua descrição; acusação: ter entrado na Inglaterra com um passaporte falso. Um dos jornais tinha até desencantado o fato de ele se ter hospedado em um hotel onde nessa manhã se havia suicidado uma criada. Condimentava a notícia a alusão a um mistério e a fatos novos que se esperavam... Pois bem! Teriam os tais fatos novos.

Desceu ousadamente a rua na direção do hotel. O nevoeiro estava praticamente dissipado. Teve a impressão de que se levantara um pano que bruscamente o revelava às vistas de um público. Pensando que eles poderiam ter colocado um agente diante do hotel, continuou ao longo das grades com muita prudência, com um jornal tapando-lhe a cara, como um transeunte embrenhado na leitura... Ninguém à vista. A porta, como de costume, estava aberta. Entrou rapidamente, fechando a porta interior envidraçada. As chaves pendiam do chaveiro. Tirou a dele. Uma voz - a da governanta - gritou do primeiro andar:

- É o senhor Muckerji?

- Sim - respondeu D.

Esperava que o senhor Muckerji não usaria outra palavra especial para dar sinal da sua presença. Dois sins de dois estrangeiros têm entoações muito semelhantes. Ela pareceu satisfeita, pois não ouviu mais nada.

Toda a casa estava em silêncio, como se a morte tivesse passado por ali. Nem ruídos de louça na casa de jantar, nem da própria cozinha. Subiu as escadas sem fazer barulho. A porta do quarto da governanta estava entreaberta; ultrapassou-a e encontrou-se no lance de escadas que não tinha passadeira. De que janela teria ela caído? Meteu a chave na fechadura e abriu cuidadosamente. Em algum lugar , invisível, alguém tossia. Entrou e deixou a porta entreaberta: queria ouvir. Mais tarde ou mais cedo ouviria o sr. K. Tinha-o escolhido porque ele era o alvo mais fácil: cederia mais depressa que a governanta, quando ameaçado.

O quarto estava às escuras: tinham corrido as cortinas para o velório. Às apalpadelas, encontrou a cama e teve um arrepio quando percebeu que a tinham deitado ali enquanto não a enterravam. Seria porque não podiam fazer mais nada até à conclusão do inquérito? Era provavelmente o único quarto vago. O da pequena já devia estar ocupado: a vida não pára. Ela ali estava, rígida, limpa, irreal; compara-se a morte ao sono: a morte só se parece com ela própria. Veio-lhe à memória a lembrança de um passarinho que um dia tinha encontrado morto no fundo da gaiola, de costas, as patas tão rígidas como palitos: nada poderia parecer mais morto. Tinha visto mortos nas ruas depois dos bombardeios, mas esses haviam caído em posições estranhas, encarquilhadas como embriões esmagados nos úteros. Aqui era diferente: a postura era excepcional, reservada para uma ocasião única. Na doença ou no sono, ninguém se estende assim.

Há pessoas que rezam. É uma atitude passiva. D. ardia no desejo de exprimir-se em ação. Estirado sobre a cama, o corpo parecia ter aniquilado o seu pavor do sofrimento. Poderia agora enfrentar o motorista em qualquer estrada deserta. O medo parecia-lhe uma coisa insólita. Não tornou a falar àquela coisa que nunca mais poderia ouvi-lo... que já não era ela. Ouviu passos, depois vozes, na escada. Esgueirou-se para trás do reposteiro da janela e sentou-se no parapeito para não lhe verem os pés. O quarto iluminou-se. A governanta disse:

- Ia jurar que tinha fechado esta porta à chave. Aí está.

- Como ela está bonita! - disse uma voz de mulher ávida de emoções.

- Falava muito de você, Clara - replicou dramaticamente a governanta.

- Pobre querida... não me admiro... Que poderia tê-la levado a... Que lhe parece?

- Nunca se sabe o que se passa no coração das pessoas.

D. distinguia agora por uma fenda do reposteiro a mulher que não conhecia. Era uma garota bonita, simpática e vulgar, um pouco enlambuzada e de lágrimas fáceis.

- Foi aqui? - perguntou ela muito impressionada.

- Sim. Daquela janela.

Aquela janela! Mas porque é que ela não oferecera resistência? Porque não havia sinais que a polícia pudesse ver?

- Aquela janela?

- Exatamente.

Sentiu que elas se deslocavam no quarto: iriam chegar à janela e descobri-lo?

Os passos pareciam aproximar-se dele, até que Clara disse:

- Se ela tivesse ido para minha casa nada disto teria acontecido.

- Ela dava-se bem aqui - replicou a governanta - antes de esse homem ter chegado.

- Ah, esse bem pode dizer que não tem a consciência tranquila. Em todo o caso, quando me escreveu, ela dizia que ia partir com ele. Nunca me passou pela cabeça que fosse dessa maneira.

Portanto, pensou D., nem mesmo essa carta serviria para nada. A pobre pequena tinha sido até ao último momento tão vaga como a fraseologia dos seus romances de cordel.

- Se não se importa - disse a governanta -, vou chamar o senhor Muckerji. Disse-me que queria vê-la uma última vez.

- É muito natural - concordou Clara.

D. ouviu a governanta sair. Pela fenda da cortina entrevia Clara embonecando o rosto - batôn, pó-de-arroz, rimel - e uns passos de homem que subiam. Clara tinha deixado ficar as lágrimas, dava tom.

A governanta entrou. Vinha só. Eram dela os passos de homem.

- É esquisito - disse ela. - Não está no quarto.

- É porque ainda não entrou.

- Mas eu o ouvi entrar. Ouvi-o no hall tirando a chave do chaveiro. Chamei-o e ele respondeu.

- Talvez esteja... quem sabe... no banheiro.

- Também não. Abri a porta e não havia ninguém ali. - Não estava tranquila: -  Não compreendo. Entrou alguém.

- Quando acontecem coisas destas até se pensa em fantasmas.

- Vou lá acima por um momento, para ver se o trabalho vai andando. Temos de preparar o quarto para a criada nova.

- Ouvi dizer que ela não era muito asseada, coitadinha. Naturalmente não me conviria como criada. O asseio é muito importante quando se recebem senhores importantes como eu recebo. - Depois, em uma reviravolta brusca: - - Ah, tenho de ir embora. Estou à espera de um senhor que vai às oito horas em ponto. Não gosta que o façam esperar.

D. viu-a desaparecer e ouviu a governanta:

- Desculpe-me por não acompanhá-la até lá abaixo...

Disposto a tudo, levou a mão à coronha da pistola e esperou. A luz se apagou, a porta fechou-se. Ouviu a chave girar na fechadura: a governanta devia ter a chave-mestra. Deu-lhe um avanço e saiu de trás do reposteiro: não olhou para o corpo. Em que podia interessá-lo agora um corpo sem espírito nem voz? Quando se crê em Deus pode-se, nesses momentos, acreditar que um ente escapou de uma grande miséria e vai a caminho de uma vida futura magnífica. É possível então abandonar a Deus o cuidado de castigar... até porque não há necessidade de castigo visto que o ato do assassino contribuiu para uma libertação... Mas D. não era um desses crentes. Se as pessoas não fossem tratadas conforme os seus méritos ou deméritos, o mundo, para ele, seria um caos: estava encurralado pelo desespero. Abriu a porta.

Ouviu a governanta falar no andar acima. Fechou a porta silenciosamente, sem a fechar à chave. Queria surpreendê-los com o inexplicável. Ouviu subitamente a voz de K.:

- É porque se esqueceu com certeza, que outra coisa podia ser?

-  Nunca me esqueço de nada - replicou a governanta. - Além disso, quem foi que me respondeu?

- Naturalmente voltou a sair.

- Não é costume dele entrar e sair.

À medida que subia lentamente a escada, D. notava um cheiro forte de tintas. Lobrigou depois o interior do compartimento: a luz estava acesa, mas ele pôde ocultar-se nas sombras da escada. De pé, junto da janela, de pincel na mão, o sr. K. Agora compreendia tudo. Fora da janela do próprio quarto que ela tinha caído: haviam ficado marcas que agora já estavam apagadas. Sob o pretexto de se arranjar o quarto para a nova criada, tudo fora lavado e pintado - apagados os sinais do crime. Mas o sr. K. era um pintor desastrado (tinham tido receio de confiar o trabalho a um profissional) e viam-se nódoas de tinta no seu casaco e até nos próprios óculos de aros de metal.

- Nesse caso quem poderia ser? - perguntou ele.

- Pensei em D.

- Não se atreveria - a sua voz áspera exigia que o tranquilizassem. - Não se atreveria.

- Ninguém sabe a que um homem pode atrever-se quando já não tem nada a perder.

- Mas ele não sabe. Não me diga que acredita que ele possa estar aqui, agora? Que lhe parece?... com ela... - A sua voz tremia ligeiramente. - Que teria que fazer aqui?

- Espiar-nos, talvez...

Foi um prazer para D. ver como os olhos dele se crispavam. Àquele bastaria uma simples ameaça para o afundar.

- Meu Deus! - disse K. bruscamente. - A notícia da rádio dizia que ele está armado.

- Fale mais baixo. Quem sabe se ele não está nos ouvindo. Não sabemos onde está ele. Tenho certeza que tinha trancado a porta.

A réplica de K. foi gritada:

- Você pode saber se ele tem a chave!

- Chiu!

Ela também não estava sossegada. A sua cara parecia mais assustada do que nunca.

- Quando penso que ele podia estar naquele quarto, comigo e com a Clara!...

D. começou a descer as escadas silenciosamente. Ouviu ainda a voz de K. gritar aflitivamente:

- Não me deixe aqui sozinho!

A resposta da governanta foi desdenhosa:

- Temos de nos certificar. Vou ver se a chave do quarto dele está no chaveiro. Se não estiver, telefonarei à polícia - disse ela resolutamente.

D. apressou-se, correndo o risco de fazer ranger um degrau ou de encontrar o indiano do segundo andar... Talvez este tivesse ido embora: há pessoas que não querem ficar nas casas onde alguém se suicidou. Tudo estava em silêncio. Pôs a chave no chaveiro - não valia a pena deixar a polícia colaborar nesta vingança e escondeu-se por trás da porta da sala de jantar. Ouviu a governanta entrar cautelosamente no vestíbulo, bufando, e depois gritar para cima: “A chave está aqui.” Depois, foi o sr. K. que desceu, de balde de tinta na mão, muito depressa. Ela descansou-o.

- Fui eu que me enganei, com certeza. Experimente o fecho da porta quando for para cima.

- Não estou gostando nada disto.

- Não seja idiota, homem! Fechei a porta com duas voltas de chave ainda há cinco minutos!

Ele correu, ofegante, e voltou:

- A porta não está fechada à chave!

D. viu o rosto da governanta no espelho que havia por cima da aspidistra e viu nela mais do que apreensão: Um cálculo, uma reserva. Pensou que ela não chamaria a polícia enquanto a tinta não secasse e não desaparecesse o cheiro que pairava por toda a casa: quanto menos tivesse que explicar, melhor. Angustiado, o sr. K., ao lado dela, dizia-lhe:

- Você pensou que tinha fechado a porta à chave. Ele não se atreveria...

- E a voz que me respondeu?

- Era, con certeza, do senhor Muckerji.

- Ainda estamos a tempo de lhe perguntar. Está chegando a propósito...

Tinha-se aberto a porta da rua. D. viu no espelho os olhos da mulher, preocupados, calculistas...

- Hoje vem muito tarde, senhor Muckerji - disse ela. - Iria jurar que tinha ouvido a sua voz há cerca de dez minutos.

- Não era eu, minha senhora. Tenho estado muito ocupado com os nossos vizinhos.

- Oh, meu Deus!... - exclamou o sr. K. - Então era...

- Ocupado com quê, senhor Muckerji?

- Com... peço-lhe que não se ofenda. Na sua língua se diz “o espetáculo continua”... não é verdade?... Quando esta pobre criança se suicidou, eu vi no caso... uma circunstância... de grande valor antropológico. Nós, os observadores das massas, temos de estar sempre na linha da frente.

“Que significará isto?” perguntava-se D. que não compreendia absolutamente nada.

- Tratei de colher informações. Todas as razões que ela teria para morrer... um homem casado em Highbury, um rapaz em Lambeth... talvez tudo falso, mas indicativo da maneira como funcionam os seus espíritos. Nós sabemos, é claro, que o senhor estrangeiro...

- Ouça - disse K. à governanta -, não quero ficar aqui mais tempo. Chame a polícia.

Desagradado, o sr. Muckerji, continuava:

- Também encontrei manifestações de delírio. Entre elas uma que deve interessá-la, senhora Mendrill. Uma mulher disse que tinha visto a criança cair... e não era verdade.

- Ah, sim?

- Não era verdade porque me indicou outra janela e não a verdadeira. Tudo o mais era exato... coisas que ela tinha lido nos jornais e sobre as quais tecia fantasias. Por exemplo: que a senhora também estava nessa janela, que tentou segurá-la... etc., etc. Mas enganou-se na janela que indicava. É um caso muito interessante, para mim.

- E que faz o senhor de todas essas notas?

- Passo-as para fichas que envio a compiladores.

- E eles as publicam?

- Não. Classificam-nas para documentação. Talvez um dia, em um grosso volume, sem que o meu nome figure... enfim - acrescentou o sr. Muckerji desconsoladamente -, trabalhamos para a ciência.

- É preciso chamar a polícia - insistiu o sr. K.

- Não seja idiota! - replicou a governanta asperamente. E explicou ao outro: - Está nervoso. Vê o homem por toda a parte... aquele homem que levou a pequena a... em toda a parte.

- É muito interessante - exclamou automaticamente o senhor Muckerji. Fungou e acrescentou: - Ah, o senhor pinta. Isso também é muito interessante. Pinta por distração, para apagar marcas, por superstição?...

- “Marcas”? - replicou o sr. K enervado.

- Queria dizer nódoas, manchas... enfim, essas coisas que não ficam bem em um hotel elegante. Ou será por superstição? Por ter morrido alguém? Sabe que há na África Ocidental tribos que fazem isso? Chegam a destruir a cubata, o vestuário, tudo o que pertenceu ao morto. Gostaria de saber se o seu desejo de repintar o hotel corresponde a alguma destas necessidades.

- Vou embora - exclamou K. - Não consigo aguentar mais tudo isto. Se precisar de alguma coisa...

D. notou subitamente que a governanta também o via no espelho. Os seus olhares haviam-se cruzado. Ela replicou gravemente:

- Eu me arranjarei com o senhor Muckerji. Aconselho-o a ser prudente. - E voltando-se para o indiano: - Deseja ver a falecida, senhor Muckerji?

- Sim, se não a incomodar. Trouxe umas flores... também é uma superstição, mas muito prática, por causa do cheiro...

- De um modo geral, não gosto de flores nos quartos, mas em um caso como este é coisa que, na verdade, não tem importância. D. olhou atentamente e ela devolveu-lhe o olhar. “Há pessoas” pensava ele – “que disparam assim sobre os adversários: nos circos, servindo-se de um espelho”.

- Vou embora, Maria - disse o sr. K. como se esperasse dela mais alguma coisa do que aquela advertência e a sua fria indiferença. parecia que, pelo espelho, ela animava D. a fazer o que pudesse de pior. Era inegavelmente forte: seria a última a cair. Maciça, o tom escuro, o ar resoluto, entregava-lhe, por assim dizer, uma vítima...

- Um momento - disse o sr. Muckerji. - Creio que deixei os meus óculos na sala de jantar, depois do almoço.

D. sacou a pistola do bolso e esperou.

- Não, não, senhor Muckerji - opôs a mulher. - Devem estar no seu quarto. Tiramos tudo de cima das mesas depois do almoço.

E levou-o para as escadas, agarrando o indiano com uma mão. Ele levava umas flores tristes embrulhadas em papel de jornal. É extraordinário até que ponto o mundo pode mudar a seguir um ato violento. Eles haviam achado que poderiam, com toda segurança, desembaraçar-se dele definitivamente - e agora era ele quem estava em segurança... porque, no momento, sem nenhuma obrigação, não pensava senão na vingança. Era a eles que agradava agora a presença do sr. Muckerji, como a ele a mesma presença havia agradado de manhã.

A porta da rua se fechou. D. seguiu o sr. K., que caminhava rapidamente, com um chapéu de chuva no braço, sem se preocupar em olhar para trás. Desceram ligeiramente na direção de Gray’s Inn Road. D., vinte passos atrás, não fazia a menor diligência para disfarçar a sua perseguição: parecia realmente pouco provável que sr. K. tencionasse chamar um policial. Brusca e desesperadamente, sr. K., acossado, parou no passeio, junto de uma parada de ônibus; devia ter ouvido os passos que o seguiam. Voltou-se e viu D. que se aproximava. Trazia um cigarro na boca.

- Desculpe - disse ele -, podia me dar fogo?

- Claro que sim.

D. acendeu um fósforo e estendeu-o de maneira a iluminar-lhe os olhos míopes esgazeados. Sentiu-se observado mas sem ser reconhecido. É espantosa a diferença que faz uma cara com o bigode rapado.

- Estou vendo - disse K. - que traz um jornal da tarde no bolso. Permite-me que veja...

Era o tipo de homem que pede emprestado tudo o que pode: poupara um fósforo e ia poupar um jornal.

- Fique com ele - disse D.

Só tinham se encontrado duas vezes, mas qualquer coisa na sua voz o inquietou. Levantou bruscamente a cabeça e depois mergulhou o olhar no jornal. Não tinha certeza. Chegou um ônibus.

- Muito obrigado - disse K. subindo.

D. seguiu-o até ao segundo andar. Foram andando, um atrás do outro, sacudidos pelos solavancos. O sr. K. instalou-se em um lugar da frente e D. precisamente atrás dele. Com um movimento rápido, o sr. K. levantou os olhos e viu no vidro o reflexo da cara de D. Ficou parado, sem ler, meditando, debruçado sobre ele próprio; tinha o sobretudo coçado como a pele de um gato doente.

O ônibus voltou em Holburn; o trânsito seguia em direção a Empire; de ambos os lados da rua viam-se grandes montras cheias de peças de mobiliário de escritório; uma leiteria e armazéns de móveis. O ônibus ia para a zona Oeste. D. olhou para o rosto de K. refletida no vidro. Onde moraria ele? Teria a coragem de ir para casa? Atravessaram Saint-Gilles’s Circus e foram para Oxford Street. O sr. K., de olhos baixos, admirava com uma espécie de nostalgia o policial de trânsito e os judeus à porta do Astória. Tirou os óculos para limpar as lentes: queria ver claramente. Tinha o jornal aberto sobre os joelhos, com a notícia do Bandido da Embaixada à vista. Pôs-se a ler os sinais do bandido... como se pudesse confiar mais no que dizia o jornal do que na sua memória. Mais uma vez, em um movimento de serpente, lançou sobre D. um olhar rápido. Os seus olhos fixaram-se na cicatriz. Irreprimivelmente exclamou: “Oh!”.

- Disse alguma coisa? - perguntou D. inclinando-se para frente.

- Eu? Oh, não...

O sr. K. pôs-se a tossir; tinha a garganta seca. Levantou-se, vacilando a cada solavanco do ônibus.

- Desce aqui?

- Eu?... Sim, sim.

- Eu também - disse D. - o senhor parece que não se sente bem. Quer que o ajude?

- Não, não... sinto-me muito bem.

Dirigiu-se para a escada com D. no encalço.

Encontraram-se no passeio, um ao lado do outro, à espera que as luzes do semáforo mudassem de cor.

- As coisas têm melhorado, não é verdade? - perguntou D. agitado por uma alegria temerária e maliciosa.

- Que quer dizer? - perguntou K.

- Referia-me ao tempo. Havia tanto nevoeiro esta manhã. - O sinal verde acendeu-se e atravessaram lado a lado Bond Street. D. via o sr. K. olhar furtivamente para os vidros das montras dos armazéns tentando surpreender a imagem do seu companheiro. Mas enxergava mal: tinha a vista gasta pela miséria, pelos excessos de leitura. Não ousava perguntar diretamente. Preferia alimentar a impressão de que D. não era D. enquanto não se declarasse.

O sr. K. entrou por um portão, atravessou um corredor sombrio e correu quase até um lampião elétrico que iluminava a extremidade. O corredor pareceu familiar a D., que estava muito absorvido para prestar atenção à casa em que tinham entrado. Seguiu os passos do sr. K. Descia um velho elevador lamuriento. Bruscamente, o sr. K., com uma voz aguda que decerto queria que fosse ouvida nos andares de cima, gritou:

- Porque me segue senhor?

- Não lhe parece - perguntou D. calmamente - que devia falar entrenaciono com os seus alunos?

E pousou amigavelmente a mão no braço do sr. K.

- Nunca achei que um simples bigode me transformasse tanto.

O sr. K. abriu a porta do elevador.

- Mas não quero ter relações de espécie alguma consigo. disse ele.

- Mas não pertencemos nós ao mesmo partido?

- O senhor foi destituído das suas funções.

D. empurrou-o suavemente para trás e fechou a porta do elevador.

- Tinha me esquecido - disse ele. - Hoje não é um dos dias de serão?

- O senhor devia estar a caminho do seu país.

- Não me permitiram. Você sabe perfeitamente.

Apertou o botão de segurança e o elevador parou entre dois andares.

- Para que fez isso? - perguntou o sr. K.

E encostou-se à parede do elevador com os olhos piscando desesperadamente por trás dos óculos de aros metálicos. Em cima, alguém tocava piano, bastante mal aliás.

- Já leu os romances políciais de Goldthorb? - perguntou D.

- Deixe-me sair daqui - balbuciou K.

- Geralmente, os professores lêem romances políciais.

- Vou gritar... vou gritar...

- Seria de mau gosto, no meio de uma festa. A propósito, você ainda tem manchas de tinta no casaco. Não é prudente da sua parte.

- Que quer de mim?

- Que feliz acaso esse de o senhor Muckerji ter descoberto a mulher que viu acontecer aquela coisa... na outra janela.

- Eu não estava lá... não sei nada.

- Mas isso é muito interessante.

- Deixe-me sair.

- Voltemos aos romances políciais de Goldthorb. Um homem mata outro em um elevador. Faz descer o elevador e, diante de testemunhas, descobre o cadáver. Naturalmente a sorte o ajudou. Para nos tornarmos assassinos, é preciso ter sorte.

- O senhor não se atreveria...

- Estou contando a história de Goldthorb, nada mais. É um nome absurdo... que não existe.

- É que ele escrevia em entrenaciono!

- A polícia procura-o. O melhor que tem a fazer é desaparecer... e depressa.

- Não têm a minha fotografia nem os meus sinais exatos. - E acrescentou com uma voz muito doce: - Se houvesse ao menos uma maneira de lançá-lo deste elevador para fora, até lá embaixo. Para me vingar, está entendendo? Corresponde exatamente ao crime...

De repente, o elevador pôs-se outra vez em movimento. O sr. K. exclamou triunfalmente:

- Veja! O melhor que tem a fazer é fugir o mais depressa possível.

O elevador, rangendo e tremendo, ultrapassou lentamente o segundo andar... os escritórios da Saúde Moral.

- Se estivesse no seu lugar, calava-me - disse D. - Leu a história da pistola?...

- Não é de mim que tem de ter medo - disse o sr. K. - Não lhe quero fazer mal nenhum. Mas Miss Carpenter ou o doutor Bellows...

Não teve tempo de acabar. O elevador parou e o Dr. Bellows saiu da grande sala de espera, para vir recebê-los. Uma mulher de idade, vestida de seda castanha, entrou no elevador, acenou com a mão carregada de jóias falsas e, de voz esganiçada, disse:

- No ugat.

- Bona nuche, bona nuche - disse o dr. Bellows, cumprimentando os dois homens.

O sr. K. olhou para ele enfurecidamente e esperou. D. tinha a mão no bolso... mas o Dr. Bellows não pareceu perceber qualquer coisa anormal. Apertou calorosamente a mão de ambos.

- A um novo aluno - disse ele -, tenho o direito de dizer algumas palavras em inglês...

E acrescentou, um pouco desorientado:

- Porque o senhor é um novo aluno, não é verdade? Parece que já o conheço...

- Procure o meu bigode, naturalmente - disse D.

- É isso. Agora compreendo.

- Pensei que a uma nova língua ficava bem uma cara nova. Leu, por acaso, os jornais desta tarde?

- Não - respondeu o Dr. Bellows -, e peço-lhe encarecidamente que nada me conte. Nunca leio a imprensa diária. Acho que em um bom semanário se encontram os fatos já desembaraçados de falsos ruídos. Tenho, assim, todas as notícias importantes e muito menos misérias.

- É uma idéia admirável.

- Recomenda-lhe. Miss Carpenter, a minha secretária, já a conhece, é muito mais feliz desde que a adotou.

- É uma concepção que contribui para a felicidade de todos - disse D. que só então notou que o sr. K. tinha fugido.

- Tenho de falar com Miss Carpenter.

- Vai encontrá-la na sala servindo nossos convidados. Durante estes serões os regulamentos são um pouco menos rigorosos. Desejamos que todos falem o máximo possível em entrenaciono, mas o mais importante é que nos reunamos.

Conduziu D. à sala de espera. Havia em cima do balcão um samovar e pequenos pratos com bolos. Miss Carpenter cumprimentou-o com um aceno de mão. Sempre a mesma camisola azul de pintas.

- Bona nuche, bona nuche! - Voltaram-se para ele uma dúzia de caras: Parecia uma dessas páginas das enciclopédias infantis em que se mostram todas as raças do mundo. Um grande número de orientais usava óculos. O sr. K. tinha na mão um bolo que não comia.

- Quero apresentá-lo ao nosso siamês - disse-lhe o Dr. Bellows.

Levou amavelmente D. até à parede do fundo da sala.

- Hi es senhor D.... O doutor Li.

Através das lentes espessas dos seus óculos, o Dr. Li lançou-lhe um olhar impenetrável:

- Bona nuche.

- Bona nuche. - respondeu D.

As frases trocavam-se espasmodicamente de uma poltrona para outra, acendiam-se aqui e ali pequenos focos de conversação que morreriam por falta de combustível. Miss Carpenter servia o café e o sr. K. olhava fixamente para o bolo. O Dr. Bellows, extravagante como o amor, passeava de um lado para o outro os seus cabelos brancos, muito lisos, e a sua cara nobre e inconsistente.

- Que idealista! - exclamou D.

- Qua?

- Desculpe-me - disse D. - Sou um aluno novo. Ainda não falo entrenaciono.

- Qua? - repetiu severamente o Dr. Li.

Olhava para D., estudava-o através das lentes grossas, como através de vigias, e parecia considerá-lo mal-educado. O sr. K., sempre com o bolo na mão, esgueirou-se furtivamente, passo a passo, para a porta.

- Parla entrenaciono - reclamou o Dr. Li imperiosamente.

- Parla anglis.

- No - disse o Dr. Li, enérgico e feroz. - No parla.

- Peço-lhe mil perdões - replicou D. - Un momento.

Atravessou rapidamente a sala e agarrou no braço do sr. K.

- Não devemos sair tão cedo. Seria suspeito.

- Deixe-me sair - suplicou o sr. K. - Não sei absolutamente nada. Sinto-me doente.

O Dr. Bellows reapareceu:

- Que lhe pareceu o doutor Li? É um homem muito influente... Professor da Universidade de Chualankarana. Vaticino um grande futuro para o Sião.

- É um pouco difícil conversar com ele. Não diz uma palavra de inglês.

Continuava com a mão filada no braço de K.

- Oh - replicou o Dr. Bellows -, fala-o perfeitamente. Mas o seu sentimento, aliás perfeitamente legítimo, é que o entrenaciono se aprende para nos servirmos dele. Como muitos orientais, ele é um pouco intransigente.

Voltaram-se para o Dr. Li, que estava de pé, no centro de uma ilha de silêncio, os olhos semicerrados. O Dr. Bellows dirigiu-se a ele e pôs-se a falar com ele animadamente em entrenaciono. Fez-se silêncio na sala inteira: era um privilégio ouvir falar a língua ao seu criador. Falar esta língua dava a impressão de deslizar rapidamente através dos casos como um patinador.

- Já não consigo aturá-lo! - exclamou o sr. K. - Que espera arrancar de mim?

- Um pouco de justiça - replicou docemente D.

Não sentia a menor piedade: estranho meio aquele em que se encontravam, com café feito em uma mesa e bolos caseiros, mulheres nada femininas, com vestidos de noite fora de moda e raras vezes usados, e orientais manhosos, negociantes, ocultos por trás dos seus óculos. Um meio que subtraía ainda mais o sr. K. à categoria dos seres humanos que conheciam o sofrimento e mereciam simpatia.

O doutor Bellows voltou.

- O doutor Li - disse ele - pediu-me para lhe dizer que terá muito prazer em voltar a encontrar-se consigo quando o senhor souber um pouco mais de entrenaciono.

D. esboçou um sorriso pálido. Que força de caráter! Nunca tinha encontrado uma fé assim... não, não, nem mesmo percorrendo Israel de ponta a ponta.

- Eu e o senhor K. - disse – sentimos muito, mas teremos que sair dentro de momentos.

- Já? Gostaria muito de apresentá-lo a uma senhora romena... ah, precisamente aquela que está agora falando com o doutor Li. - E sorriu-lhe de longe como se ambos formassem um parzinho cujo tímido idílio ele protegia.

- É este o meu objetivo: comunhão em vez de lutas e mal-entendidos.

“É pouco provável”, pensou D. “um conflito muito grave entre a Romênia e o Sião.” Entretanto o Dr. Bellows afastava-se para estabelecer mais laços entre países, enquanto Miss Carpenter, de pé, por trás da máquina de café, distribuía o seu eterno sorriso.

- É hora de irmos - segredou D.

- Não saio. Vou acompanhar Miss Carpenter a casa.

- Posso esperar.

Foi à janela e olhou para baixo. Os ônibus, como gigantescos besouros, seguiam lentamente ao longo de Oxford Street. Como uma barra orlando o topo do edifício fronteiro, um luminoso ia dando lentamente, letra por letra, as notícias do dia: “duas bolas a uma”. Ao longe, no passeio, um pelotão de polícias marchava em fila indiana na direção de Malrborough Street. E a seguir? As notícias iam-se apagando e reaparecendo gradualmente: “Espera-se uma nova ofensiva... cinco mil refugiados... quatro bombardeios aéreos”. Era como se uma série de sinais lhe chegasse diretamente do seu país. Que faz aí? Porque perde tanto tempo? Quando volta? Sentia saudades da poeira que fica depois das explosões e do rumor dos aviões no céu. Por alguma coisa se tem de amar a pátria - quanto mais não seja pelas dores que sente e pelos ataques brutais que sofre. Perguntou-se: “L. teria conseguido alguma coisa de Benditch?” Era um mercado que se fechara para D. Nenhuma carta credencial podia servir agora, neste país de respeitabilidade, enquanto fosse um homem perseguido, acusado de homicídio. Pensou na menina, gritando na janela, arranhando com as unhas a tinta do parapeito, cortando o nevoeiro e esmagando-se na calçada: era como milhares de outras. parecia que por este ato de morte, como que naturalizada, ela havia se tornado sua compatriota. A morte era o domínio de D. Sentia-se mais capaz de amar os mortos e moribundos do que os vivos. O Dr. Bellows, Miss Carpenter... a segurança burguesa de que gozavam, despojava-os de toda a realidade. Tinham de morrer para que D. começasse a levá-los a sério. Afastou-se da janela e perguntou a Miss Carpenter:

- Posso usar o telefone?

- Claro. No gabinete do doutor Bellows.

- O senhor K. me disse que ia acompanhá-la a casa.

- Oh, não se incomode, senhor K., Morden fica muito longe.

- É um prazer - tartamudeou o sr. K.

Ainda tinha o bolo na mão, como uma chapa de identidade; este bolo permitiria reconhecer o seu corpo.

D. abriu a porta do gabinete, mas estacou com ar de quem se desculpa. Tinham-se isolado ali um homem já de idade, de crânio teutônico rapado, e uma garota angulosa. Estavam sentados na mesa do Dr. Bellows. No ar pairava um cheiro vago de cebolas que um deles devia ter comido.

- Desculpem-me. Vinha telefonar.

A garota desatou a rir alarvemente.

- De nada, de nada - disse o alemão. - Vamos, Winifred.

Do limiar da porta, fez um cumprimento rígido:

- Korda... korda.

- Kórda?

- Entrenaciono. Coração.

- Ah, sim, sim...

O alemão explicou francamente:

- Tenho um grande fraco pelas garotas inglesas.

- Ah, sim?!

O alemão apertava a mão ossuda de Winifred; a garota tinha os dentes tortos e um cabelo cor de rato; carregava com ela toda a atmosfera de ardósia, de giz, de garotos que pedem licença para ir lá fora, de passeios dominicais com cães.

- São tão inocentes! - acrescentou o alemão. Curvou-se em uma reverência e fechou a porta.

D. fez uma chamada para casa de Lord Benditch.

- Queria falar com Miss Cullen.

- Míss Cullen não vive aqui.

Teve sorte: era uma mulher, não era o criado... que poderia lembrar-se da sua voz.

- Não encontro o seu nome na lista telefônica. Pode dar-me o número do telefone dela?

- Não sei se poderei...

- Sou um velho amigo. Só vou estar na Inglaterra dois ou três dias.

- Bem...

- Ela terá pena...

- Bem...

- Foi ela que insistiu para que eu falasse...

- Mayfair 3-0-1.

Marcou o número e esperou. Tinha certeza que Míss Carpenter não largaria o sr. K., sabia que as convenções podem, às vezes, mais do que o medo, sobretudo quando o medo é ainda um pouco vago e difícil de fixar sobre uma realidade. É preciso aprender a ter medo.

- Míss Cullen está?

- Não sei. Não desligue...

Mesmo que não conseguisse chegar ao fim, devia haver uma maneira de prender L., se ao menos conseguisse provar que a morte da pequena fora um... homicídio.

Bruscamente soou a voz de Rose:

- Quem fala?

- O nome é Glover - respondeu ele.

- Não conheço ninguém com esse nome. Que quer?

- Moro - disse ele - em Chester Garden 3, muito perto da embaixada.

Silêncio do outro lado do fio.

- Se você acredita nessa história... - prosseguiu ele - nessa promessa do suicídio mútuo... pode avisar a polícia ainda esta noite. Da mesma maneira, se não acredita que o meu verdadeiro nome é D.

Ela não respondeu: teria desligado?

- Tenho a prova - disse ele - de que a menina foi assassinada. Foi um plano bem montado, não foi?

Ela replicou bruscamente, furiosa:

- É só isso que lhe interessa?

- Estou resolvido a matar quem a matou... Ainda não tenho bem certeza quem foi. Preciso do verdadeiro culpado. Não quero arriscar-me a matar duas pessoas.

- Você está doido. Porque não sai de Inglaterra? Porque não volta para o seu país?

- No meu país, muito provavelmente, serei fuzilado. Não que o caso seja muito importante. Seja como for, não queria que L.

- Chegou atrasado. Já assinaram o contrato.

- Era o que eu receava. Conhece os termos do contrato? Não vejo como é que eles vão conseguir fazer sair o carvão dos portos ingleses. Há um tratado de neutralidade.

- Perguntarei a Furt.

- Ele também assinou?

- Também.

Alguém tinha se sentado ao piano e cantava. Devia ser uma canção em entrenaciono: a palavra Korda era repetida muitas vezes.

Ela procurou desculpar o judeu:

- Não podia fazer outra coisa já que todos os outros assinaram... os acionistas.

- Claro.

Sentiu uma pontinha de ciúme pelo cuidado que ela tivera em defender Furt. Era como a circulação restabelecendo-se dolorosamente em uma mão dormente. Não a amava, era incapaz de amar um ser vivo; mas, mesmo assim, o ciúme estava lá.

- Onde é que você está? - perguntou ela.

- Em uma reunião mundana. Pelo menos é assim que a consideram. É a escola de entrenaciono.

- Mas você é completamente doido! - exclamou ela, desesperada. - Não sabe que há um mandado de captura contra você? Resistência à autoridade, passaporte falso... sei lá que mais.

- Aqui, não corro perigo. Estamos comendo bolinhos caseiros.

- Para quê tanta loucura? Já tem idade para ter juízo!

- Quer ter a bondade de perguntar ao Forbes?

- É impossível que esteja falando sério!... Diga-me, quando disse há pouco que ia matar...

- Falava muito sério.

A voz dela soou ardente e colérica: teve a impressão de que ela estava diante dele acusando-o.

- Então, amava mesmo essa menina?

- Não - replicou ele. - Gostava tanto dela como de qualquer das outras vítimas. No meu país houve quatro bombardeios. Devem ter morrido cerca de cinquenta... mortas como ela o foi... É preciso que alguém pague...

Compreendeu, entretanto, quanto isto era absurdo. Ele era o agente secreto de um país, encarregado de comprar um carvão de que podia depender a sorte da nação; ela era uma garota, filha de um aristocrata inglês que podia fornecer-lhe o carvão, e noiva, ou coisa parecida, de um tal Forbes que, além de dispor também de várias minas, mantinha uma amante cara em Shepherd’s Market (coisa que não vinha ao caso). Fora assassinada uma criança, pela governanta ou pelo sr. K., presumidos agentes dos rebeldes, embora filiados no partido de D. Era esta a situação estratégica, política e criminal. O que não impedia que estivessem ambos tagarelando ao telefone, como seres humanos ciumentos um do outro, como se estivessem apaixonados, como se tivessem à sua disposição um mundo de paz e muito tempo à sua frente!

- Não acredito - replicou ela. - Você a amava, com certeza.

- Já lhe disse, ou acho que disse, que ela não tinha mais de  catorze anos!

- Você está na idade em que se gosta delas muito novinhas!

- Já disse que não.

- Seja como for, não é aqui que poderá fazer essas besteiras... refiro-me a matar. Compreende? Acabaria na forca. Os irlandeses são os únicos que se arriscam e são sempre enforcados.

- Bem... - disse ele vagamente.

- Meu Deus! - exclamou ela de lá. - Deixei a porta aberta enquanto estivemos conversando.

Um silêncio, depois ela continuou:

- Talvez o tenha traído. Eles devem ter compreendido depois de terem lido os jornais. A Scotland Yard deve estar à escuta. Saia daí quanto antes.

- Realmente é hora de mudar de lugar. Bona nuche.

- Que é isso?

- Entrenaciono.

E desligou. Abriu a porta que dava para a sala de espera. Muitos convidados já tinham ido embora, os pratos dos bolos estavam vazios e o café esfriava no samovar. sr. K., encostado ao balcão, estava muito interessado na conversa de Miss Carpenter. D. dirigiu-se a eles e o sr. K. afligiu-se...

D. pensou que aquele não pertencia decididamente ao tipo de homens que se matam premeditadamente. Mas era um traidor e alguém tinha de morrer. Não seria uma peça de vulto, mas era ele o que lhe daria menos trabalho e serviria de exemplo a outros traidores.

- Peço que me desculpe - disse ele a Miss Carpenter, - mas tenho de privá-la do seu companheiro.

Ao mesmo tempo calçava um par de luvas, que cuidadosamente não tiraria tão cedo.

- Não quero sair - replicou o sr. K., enquanto Miss Carpenter apreciava enlevadamente esta resistência.

- É claro que, se não fosse um assunto tão importante, não a privaria...

- Não compreendo o que possa ser assim tão importante que... - replicou Miss Carpenter muito espevitada.

D. deu largas à imaginação. Não receava ninguém. Era a sua vez de meter medo aos outros... e sentia subir nele, como um riso irreprimível, uma alegria desbocada.

- Passei hoje pela minha embaixada e discutimos a possibilidade de fundar um centro de entrenaciono no meu país.

- Como é! - exclamou o Dr. Bellows, surgindo diante deles com uma mulher morena e caduca, vestida de cretone cor-de-rosa e os olhos bondosos ardentes de excitação. - Mas como? Em plena guerra?

- De que serviria nos batermos por um conceito de civilização se, ao mesmo tempo, não mantivéssemos a vida na retaguarda? Esta facilidade em expressar-se de uma forma tão extravagante

inspirava-lhe um certo horror, uma certa pena pelas esperanças ingênuas que tinha ateado naquele sórdido escritório. Os olhos generosos do velho estavam inundados de lágrimas.

- É então possível que de toda esta angústia nasça um movimento de boa vontade! - exclamou o Dr. Bellows.

- Desculpe-nos, mas eu e o meu compatriota temos alguma pressa de sair.

Era uma história inverossímil, mas nenhuma história parece verossímil a quem tem esperança, Todas as pessoas reunidas naquele compartimento, alta torre de marfim que dominava Oxford Street, viviam em uma atmosfera de irrealidade e na esperança de milagres.

- Quem havia de me dizer esta manhã - dizia o Dr. Bellows -...tantos anos! Esta é a fresca aurora da minha vida... como disse uma das nossas poetisas.

Apertou a mão de D. Todos olhavam para eles; Miss Carpenter enxugava uma lágrima no canto do olho.

- Deus os abençoe - disse o Dr. Bellows.

- Não quero sair, não quero sair - repetia o sr. K.

Mas ninguém prestava atenção. Viu-se empurrado, arrastado para o ascensor pela senhora de cor-de-rosa, entre exclamações. Aterrado, esqueceu-se completamente do inglês e pediu a todos que o ouvissem, que lhe valessem, em uma língua que só D. poderia compreender. Ficou com um ar doente, quebrado. Procurou ainda dizer qualquer coisa em entrenaciono: “Mi korda, mi korda ... “ e tinha os lábios quase brancos; mas ninguém falava entrenaciono. Encontravam-se juntos no ascensor que descia. O rosto do Dr. Bellows foi desaparecendo, depois os botões do seu colete, por fim as suas botas - o Dr. Bellows usava botas.

- Você não poderá fazer-lhe nada - balbuciava o sr. K - nada!

- Nada tem a temer se não colaborou na morte da menina - respondeu D. - Mantenha-se junto a mim. E não se esqueça de que eu tenho uma pistola.

Seguiram por Oxford. Street, lado a lado. De repente, o sr. K. deu um salto para o lado. Um transeunte intercalou-se entre ele e D., e as pessoas que olhavam para as vitrines os separaram. Entretanto, o sr. K. ziguezagueava rapidamente pela calçada. Era um homenzinho ágil, mas míope: dava encontrões em todos e não pedia desculpas a ninguém.

D. deixou-o safar-se. Era inútil persegui-lo através da multidão. Chamou um táxi e disse ao motorista:

- Vá andando tão devagar quanto puder. Vai aí adiante um amigo meu completamente bêbado. Perdi-o de vista, tenho de encontrá-lo antes que faça alguma asneira.

E foi seguindo os movimentos de K. que se esgotava na fuga: tanto melhor.

O sr. K. tão depressa saltava da direita para a esquerda como recuava. Os transeuntes voltavam-se para olhar para ele. uma mulher vociferou: “É uma vergonha” e um homem diagnosticou:

 “Que piela!”. Tinha os óculos de aros metálicos quase na ponta do nariz, e, de tempos em tempos, olhava para trás. O seu chapéu de chuva metia-se entre as pernas dos transeuntes, uma criança desatou a berrar ao ver os seus olhos vermelhos e alucinados. Na verdade, fazia sensação. À esquina de South Auciley Street esbarrou com um policial, que lhe disse bondosamente:

- Então, tenha juízo. Vá para casa sem fazer asneiras.

O sr. K. fitou-o mas, na verdade, não conseguia vê-lo.

- Vamos, vá para casa e deite-se!

- Não!... - exclamou o sr. K. - Não!

- Meta a cabeça debaixo da torneira da água fria e vá para a cama.

- Não.

O sr. K. baixou bruscamente a cabeça e bateu direto na barriga do policial - sem o menor resultado: uma mão possante e benévola desviou a trajetória.

O policial ainda lhe disse pacientemente:

- Então! Quer que o leve ao posto?

Juntou-se gente. Um homem de chapéu preto disse em voz alta e cavernosa:

- O homem não fez mal nenhum.

- Apenas lhe disse... - começou o policial.

- Bem ouvi o que você lhe disse - replicou vivamente o desconhecido. - Por que motivo?

- Embriaguez na via pública.

O sr. K. escutava-os com uma expressão insensata de esperança, esquecendo-se de manter o ar de bêbado.

- Cantigas! - teimou o desconhecido. - o homem não fez nada. Se ele me quiser como testemunha...

O policiaç, indignado, barafustou:

- Vamos acabar com isto. Só aconselhei este homem a ir para casa deitar-se.

- Insinuou que ele estava bêbado.

- Está bêbado.

- Prove.

- Que tem você com isso?

- Parece-me que vivemos em um país livre.

O agente disse então em voz queixosa:

- Gostaria que me dissessem o que fiz eu!

O homem do chapéu preto entregou um cartão de visita ao senhor K.

- Se quiser queixar-se deste agente por difamação, estou ao seu dispor para testemunhar.

O sr. K. ficou com o cartão na mão e com o ar de quem não está entendendo. Bruscamente o policial levantou os braços e gritou à multidão:

- Acabou-se. Circulem!

- Está enganado. São todos testemunhas.

- Você acaba por me fazer perder a paciência - disse o policial, cuja voz já tremia. - Fique avisado...

- Avisado de quê?

- Você está intrometendo-se no serviço de um agente que cumpre o seu dever.

- O seu dever! - escarneceu o outro.

- Mas é verdade que eu estou bêbado - exclamou de repente o sr. K. - É verdade que estou fazendo escândalo na via pública.

Os espectadores desataram a rir. O agente virou-se para o senhor K.

- Lá vem este outra vez.

O policial ficou com uma expressão de enjôo.

- Ouça, porque não toma um táxi que o leve sossegadamente para casa?

- Tem razão. É o que vou fazer - concordou o sr. K.

- Táxi.

O táxi parou ao lado do sr. K. que deitou a mão ao fecho.

- Entre.

- E agora nós, meu caro senhor - disse o agente ao desconhecido.

- Chamo-me Hogpit.

- Acabaram-se as insolências!

O sr. K. tinha recuado até o passeio:

- Não quero este táxi... não quero este táxi...

- Mas Hogpit é o meu nome verdadeiro.

Mais gargalhadas da assistência. O agente viu de repente outra vez o sr. K. diante dele:

- Oh, não! Você outra vez?

- Há um homem dentro do táxi...

D. saiu do carro.

- Não se preocupe, senhor guarda. É um dos meus amigos e está completamente bêbado.

Agarrou o sr. K. por um braço e levou-o energicamente para o táxi.

- Vai me matar - gritou o sr. K. tentando atirar-se ao chão.

- Dê-me uma ajuda, senhor guarda. Eu tratarei de fazer com que ele não arme mais escândalo.

- Com certeza. Farei tudo para me ver livre dele. - Curvou-se, levantou o sr. K. como se fosse uma criança e colocou-o dentro do carro. O sr. K. gemeu:

- Ele me seguiu...

O homem que se chamava Hogpit tornou a intervir:

- Que direito tem você de fazer isso? - disse ao policial. - Não ouviu o que o homem disse? Quem lhe diz que não é verdade?

O agente fechou a porta do carro com força:

- O meu dedo mindinho. E agora é a sua vez começar a andar. - concluiu o policial.

O táxi arrancou e a multidão afastou-se e dispersou gesticulando.

- Só conseguiu tornar-se ridículo e mais nada. - disse D.

- Vou quebrar os vidros e gritar.

D., em voz baixa, como se lhe confiasse um segredo, disse-lhe:

- Se não tem juizo, me obrigará a usar a pistola...

- Não é capaz... seria logo apanhado.

- É um argumento que serve para romances. Hoje em dia não vale um chavo. Estamos em guerra. É mais que provável que nós nos conservemos ainda durante muito tempo sem, como você diz, sermos apanhados.

- Que você vai fazer?

- Levá-lo a minha casa, para conversarmos.

- Onde é a sua casa?

Mas D. nada mais tinha que responder. O táxi atravessou lentamente o parque. Os oradores, em cima de caixas de sabão, com as golas dos sobretudos levantadas, discursavam ao vento gelado junto de Marble Arch. Ao longo de toda a rua, nos carros, os clientes esperavam as garotas fáceis e, na sombra, as prostitutas calcorreavam desesperadamente; os chantagistas profissionais espiavam pelos tufos de verdura, onde, no silêncio e na insatisfação, se cumpriam gestos noturnos. Tecnicamente, a paz reinava nesta cidade. em um cartaz publicitário lia-se: “Revelação Sensacional na Tragédia de Bloomsbury ... “.

 

O sr. K. tinha perdido toda a combatividade. Saiu do táxi sem proferir uma palavra e desceu as escadas até o porão. Na saleta, D. acendeu a luz e ligou o aquecimento a gás. Debruçado sobre o radiador, com um fósforo na mão, perguntou-se se iria de fato cometer um assassinato. Fosse quem fosse a tal Glover, não tinha sorte - a casa de uma pessoa tem uma espécie de inocência. Quando, em uma explosão, rui a fachada de uma casa e deixa ver a cama de ferro, as cadeiras, os maus quadros ou o penico, temos a impressão de uma violação: entrar clandestinamente em uma casa desconhecida é uma profanação, Mas que fazer? Temos de empregar os métodos do inimigo, Lançam-se as mesmas bombas e bombardeiam-se as mesmas existências. Voltou-se para K. com súbito furor:

- A culpa do que lhe acontece é sua.

 

O sr. K. recuou até o sofá e sentou-se. Acima da sua cabeça havia uma prateleira com encadernações de marroquim macio os poucos livros da biblioteca insignificante de uma mulher devota.

- Juro que não estava lá - disse o sr. K.

- Não negará, contudo, que você e ela tentaram roubar os papéis?

- Você estava destituído das suas funções.

- Já tinham dito.

Aproximou-se do sr. K. Chegara o momento do murro na cara, do furor armazenado: dois dias antes eles tinham lhe ensinado como se bate. No entanto, não podia bater. Bater-lhe com a mão era estabelecer entre ambos uma relação... repugnante.

- A única probabilidade que tem de sair daqui vivo está na sua franqueza. Eles compraram a ambos, não é verdade?

Os óculos do sr. K. caíram no sofá. Pôs-se à procura deles por baixo da cobertura bordada.

- Como nós podíamos saber se eles não o tinham comprado?

- Era evidentemente impossível saberem - concordou D.

- Se confiassem em você, não nos teriam empregado.

D. escutava-o com a mão na coronha da pistola. Quando se é ao mesmo tempo juiz e jurado - advogado ainda por cima tem de dar-se ao réu todas as possibilidades: é preciso ser justo mesmo que todos vejam as coisas de outro modo.

- Continue.

O sr. K. ganhou coragem. Levantou a cabeça em um esforço para fixar os olhos raiados de sangue; franziu os músculos da boca como para sorrir.

- A sua maneira de proceder era tão estranha! Como podíamos saber se eles, uma vez que se chegasse ao preço, não conseguiriam suborná-lo?

- É verdade.

- Cada um tem de defender-se. Se você tivesse se vendido, nós não ganharíamos nada.

Era um horrível resumo da depravação humana: o sr. K. era mais suportável quando tinha medo e se encolhia. A coragem voltava-lhe agora.

- A situação era então desesperada. Seria idiota nos deixarmos levar.

- Desesperada?

-  Bastava ter lido os jornais da tarde. Estamos batidos. Que diabo! Você não ignora quantos ministros voltaram para casa! Decerto não o fizeram de graça.

- Quanto lhe deram?

O sr. K. encontrou finalmente os óculos. O terror tinha-o abandonado quase completamente. Assumia agora o ar de um velho macacão manhoso.

- Sempre pensei que havíamos de chegar a isto mais cedo ou mais tarde.

- Aconselho-o a me dizer tudo.

- Se espera ganhar uma parte tire daí o sentido. Nem mesmo se eu consentisse.

- Você não fez a asneira de se vender a crédito?

- Eles não teriam se arriscado a oferecer dinheiro a um homem como eu.

D. não compreendia. Incrédulo, perguntou:

- Quer me convencer que não recebeu nada em troca?

- O que eu recebi foi um papel assinado por L.

- Nunca supus que você fosse um imbecil tão completo. Se não exigisse mais do que promessas nós teríamos oferecido a mesma coisa ou mais.

- Não se trata de uma promessa. É uma nomeação. Assinada pelo reitor. Como sabe, L. é agora reitor. No seu tempo ainda não era.

Realmente ele estava agora completamente à vontade.

- Reitor de quê?

- Da universidade, naturalmente. Fui nomeado professor da Faculdade. Posso regressar ao nosso país.

D. desatou a rir. Não podia deixar de rir, mas este riso ocultava a sua repugnância. Eis o que seria a civilização do futuro, a erudição do futuro.

- É consolador - disse ele - pensar que, se o matar, mato o professor K.

Teve a visão odiosa de um mundo inteiro de poetas, de músicos, de sábios, de artistas, de óculos de aros metálicos, com os olhos raiados de sangue e velhos miolos de traidores - sobreviventes de um antigo mundo esgotado, que ensinariam aos novos as virtudes da traição e do servilismo. Sacou a pistola do secretário.

- Quem nomearão eles para substituí-lo?

Sabia perfeitamente que disporiam de centenas de candidatos para escolher.

- Não brinque assim com a pistola. É perigoso.

- Se estivesse agora no nosso país, você seria julgado em um tribunal militar e condenado à morte. Porque há de escapar aqui?

- É uma graça um pouco forte - replicou o sr. K. esboçando um sorriso.

D. tirou o carregador da pistola: continha duas balas. O sr. K. afligiu-se:

- Você disse que eu nada teria que recear se não tivesse morto a garota...

- E então?

D. tornou a meter o carregador na pistola.

- Não a matei. Telefonei à Maria e mais nada...

- Maria? Ah, sim, a governanta do hotel. Continue.

- L. que me disse para telefonar. Falou da embaixada e disse-me: “Só tem de dizer-lhe... faça o que puder”.

- E você não sabia o que isso significava?

- Precisamente, não. Como podia saber? Tudo o que sabia é que ela tinha um plano para... expulsarem-no do país. A intenção não era fazer passar o caso como assassinato. Foi quando a polícia leu o diário que a garota tinha... tudo se harmonizava. Era das próprias palavras dela que se concluía que você ia levá-la.

- Você sabe muitas coisas.

- Foi a Maria que me contou depois. A história veio-lhe à cabeça como uma revelação. Ela queria disfarçar a coisa em roubo. Mas a garota foi insolente e, então, Maria perdeu a cabeça. Não sei se sabe o carácter que ela tem. Fica incontrolável...

Tornou a fazer um esforço desajeitado para sorrir:

- É apenas uma garota entre milhares. Todos os dias morrem muitas mais no nosso país. É a guerra.

Viu na cara de D. qualquer coisa que o fez acrescentar imediatamente:

- Foi o argumento de Maria.

- Que você respondeu?

- Oh, eu não concordava.

- Não concordava antes ou depois da morte?

- Sim... não, não... queria dizer... depois. Quando ela me contou.

- A sua história não tem pé nem cabeça. Você soube desde o princípio o que ia acontecer.

- Juro que não assisti.

- Ah, nisso acredito. Não tem coragem para tanto. Deixou a ela a tarefa da execução.

- É a ela que tem de pedir contas.

- Tenho um preconceito - disse D. - que me impede de matar mulheres. Mas garanto-lhe que ela vai amargar quando encontrarem o seu cadáver... vai perder o sono, assustar-se com todos os ruídos... Além disso, só tenho duas balas e não sei como arranjar mais.

- Estamos na Inglaterra! - balbuciou o outro como se precisasse convencer-se disso.

Levantou-se de repente e fez cair um livro da prateleira. O livro ficou aberto em cima do sofá... Era uma antologia de poesias religiosas com a palavra de Deus em maiúsculas. Não havia dúvida de que estavam na Inglaterra - a  Inglaterra, era o sofá, as flores artificiais, a carta de Speed encaixilhada e as almofadas: a estranha atmosfera influenciava D., convidando-o a renunciar ao seu projeto.

- Levante-se! - ordenou ele, iradamente, a K.

- Deixe-me ir embora - suplicou o outro.

- Muitos anos de vida acadêmica podem fazer de um homem um bom juiz, mas não engendram um bom carrasco.

- E L., por que não? - implorou o sr. K.

- L. não é dos nossos. Em todo o caso, vou tratar dele um dia destes.

A distinção era real. Não se pode sentir o mesmo ódio por uma peça de museu.

Suplicante, o sr. K. estendeu para D. as mãos sujas de tinta.

- Se você soubesse, não me condenaria. A vida que eu tenho levado! Há quem escreva livros sobre a escravatura. - Pôs-se a chorar: - Você sente piedade por ela, mas é por mim... por mim... - Faltaram-lhe as palavras.

- Vá recuando, recuando até sair por essa porta.

O banheiro não era visível do exterior. Tinha um postigo de ventilação, mas não havia janela. O horror iminente fazia tremer a mão que segurava a pistola. Eles haviam feito dele o que tinham querido, sem que ele pudesse defender-se. Era a sua vez. Mas eis que lhe voltava o medo, o medo do sofrimento dos outros, das suas vidas, dos seus dramas pessoais. Sentia-se condenado à comiseração, como um escritor.

- Vamos, rápido - exclamou.

O sr. K. ia recuando e tremendo. D. procurava rematar a coisa com um gracejo cruel: “Não posso oferecer-lhe o muro de um cemitério... “, mas não lhe saiu. Só conseguimos gozar com a nossa própria morte. A dos outros é muito importante.

- Ela não tinha vivido como eu cinquenta anos desta existência. Viverei ainda uns seis meses, não mais, sem a menor esperança... - D. fazia o possível para não ouvir. De qualquer maneira, não compreendia. Ia seguindo o sr. K.. de pistola na mão, com repugnância.

- Se realmente não lhe restassem mais do que seis meses de vida, tentaria você acabá-los com um pouco de bem-estar? - Os óculos cairam e se partiram no chão. Disse ainda em um soluço:

- Foi um sonho de toda a minha vida... a Universidade... - Tinha alcançado o banheiro e olhava com os seus olhos cegos para o lugar onde achava que D. estaria. Recuou ainda até o lavatório: - Fui o médico que me disse que dentro de seis meses... - E continuou com uma espécie de gemido canino: - morrer debaixo da canga... como aquele imbecil de Oxford Street... bona matina... bona matina... O frio... O radiador que não aquece...

Delirava, dizia palavras sem nexo, como se achasse que não corria perigo enquanto falasse. E todas as palavras que saíam daquele crânio atormentado e cheio de amargura, não evocavam senão a imagem do pequeno compartimento, do radiador gelado, do quadro pendurado na parede: Une famil gentil bono. Ia dizendo:

- O velho que nos espia com as suas solas de borracha... a dor que me dá... tem de pedir-se desculpa em entrenaciono... as multas... não tenho cigarros durante a semana.

Cada uma das suas palavras tornava-o mais vivo que qualquer condenado à morte. Um condenado à morte já está morto antes do juiz ter pronunciado a sentença.

- Cale-se! - gritou D.

A cabeça do sr. K. torceu-se como a de uma tartaruga. Olhava, sem ver, na direção errada.

- Quem pode censurar-me?... Seis meses no meu país... professor...

D. fechou os olhos e puxou o gatilho. A detonação e o recuo da pistola surpreenderam-no. Ouviu um ruído de vidros estilhaçados e, logo a seguir, o toque de uma campainha.

Abriu os olhos: errara o alvo. Por cima do lavatório, a cinquenta centímetros da cabeça do sr. K., o espelho estava quebrado. O homem olhava espavorido e perplexo. Alguém batia à porta. Uma bala perdida.

- Não se mexa - ordenou D. - Não faça barulho. Olhe que não volto a errar.

E fechou a porta. Na saleta ficou à escuta do toc, toc, toc, na porta da escada. Se fosse a polícia, que faria da última bala? Fez-se silêncio. O livro tinha ficado aberto sobre o sofá:

 

Deus é a luz do Sol

Onde vagueiam mariposas Deus é a luz do lar

Que te espera em casa

 

O poema absurdo imprimia-se no seu cérebro como em uma folha de cera. Nem acreditava em Deus, nem tinha casa: era como o sortilégio de uma tribo selvagem que encanta até o espectador mais civilizado. Toc, toc, toc, depois outra campainhada. Seria alguma amiga da inquilina ou a própria inquilina? Não, se fosse a inquilina usaria a chave. Devia ser a polícia.

Atravessou a saleta lentamente, de pistola na mão. Esqueceu-se da arma como  tinha se esquecido da máquina de barbear. Abriu a porta com o sentimento de que estava perdido,

Era Rose.

- Já não me lembrava de que tinha lhe dado meu endereço - disse ele vagarosamente.

E olhava para trás dela como se também esperasse ver aparecer Forbes.

- Vim para lhe contar o que me disse Furt.

- Ah, sim, sim...

- Diga-me se não fez nenhuma besteira...

- Não.

- Para que é essa pistola?

- Pensei que poderia ser a polícia.

Entraram na saleta e fecharam a porta da rua. Tinha os olhos pregados na banheiro. Nada a fazer; sabia que não conseguiria voltar a disparar. Era sem dúvida um bom juiz, mas não conseguiria ser um carrasco razoável. A guerra desumaniza, mas não até esse ponto; em lugar do cadáver do albatroz, trazia ao pescoço as conferências sobre línguas românicas, a Canção de Rolando, o manuscrito de Berna.

- Como você está mudado. Rejuvenesceu!

- O bigode...

- É isso mesmo! Fica muito melhor assim.

- Que disse Furt? - perguntou ele com impaciência.

- Assinaram.

- Mas é contra as suas leis.

- Não assinaram o contrato diretamente com L. Há sempre maneira de iludir a lei. O carvão, teoricamente, vai para a Holanda.

D. teve a sensação do fracasso total: nem sequer era capaz de executar um traidor.

- É indispensável que você parta antes que a polícia o encontre.

D. sentou-se no sofá com a pistola no colo.

- Forbes também assinou? - perguntou ele.

- Não se pode quere-lo mal por isso. - Reacendeu-se a pontinha de ciúme. - Foi contra vontade que ele assinou - acrescentou ela.

- Porquê?

- Sabe... é honesto à sua maneira. É uma pessoa em quem podemos fiar-nos de tempos a tempos.

- Só me resta tentar uma saída - disse ele com ar sonhador.

- Que quer dizer?

Ela olhava assustada para a pistola.

- Oh - disse ele. - Não era nisso que eu estava pensando. Pensava nos mineiros, nos sindicatos. Se eles souberem do verdadeiro destino do carvão, talvez possam...

- Quê?

- Fazer qualquer coisa.

- Que poderiam fazer? Você ignora como são as coisas aqui. Você ainda não viu uma aldeia de mineiros quando todas as minas estão fechadas. Você viveu em uma revolução... conheceu muitos gritos, aclamações, bandeiras desfraldadas. Ora eu visitei, com o meu pai, uma dessas aldeias. Era uma viagem oficial em que ele acompanhava um membro da família real. Essas aldeias são ocas, vazias de vida.

- E isso a comove?

- Certamente. Não era o meu avô?...

- Conhece alguém entre os mineiros?

- A minha velha ama vive lá. Casou com um mineiro. O meu pai dá-lhe uma pensão. É menos miserável que muitos outros.

- Para começar, qualquer um serviria.

- Você continua a não compreender. Não pode sequer fazer-lhes discursos. Seria imediatamente preso. Sabe que o procuram.

- Ainda não quero abandonar o jogo.

- Escute: podemos arranjar as coisas para fazê-lo sair clandestinamente da Inglaterra. O dinheiro faz milagres. De um pequeno porto: Swansea...

Ele olhou atentamente para ela:

- É isso que deseja?

- Entendo onde quer chegar. Eu amo um homem vivo. Não posso amar um morto ou preso. Se você morresse deixaria de amá-lo ao fim de um mês. Não sou da sua espécie... Não sei permanecer fiel às pessoas que deixo de ver... como você. - Dê-me essa coisa - disse ela. - Não consigo suportar...

Sem dizer uma palavra, ele passou-lhe a pistola. Era o seu primeiro gesto de confiança.

- Meu Deus! - exclamou ela. - Já tinha sentido este cheiro. Você usou esta arma... matou...

- Não. Tentei e não consegui. Suponho que sou um covarde e mais nada. Só quebrei um espelho. Dá azar, não é?

- Foi quando eu toquei à campainha?

- Sim.

- Eu ouvi qualquer coisa, mas julguei que fosse um carro na rua.

- Felizmente, é uma espécie de ruído que aqui ninguém conhece.

- E onde está ele?

- Aqui.

Ela abriu bruscamente a porta. O sr. K. devia ter estado a espiar pelo buraco da fechadura, Pois caiu de joelhos no chão, com o rosto para frente.

- Permita-me que lhe apresente o professor K. - disse D. sombriamente.

O sr. K. deu uma volta e, por fim, ficou imóvel no chão, com as pernas encolhidas sob o queixo.

- Desmaiou - disse D.

A garota debruçou-se sobre o sr. K. com ar de repugnância.

-  Tem certeza que não o acertou?

- Ah, sim, certeza absoluta.

- É que ele está morto. Não é preciso ser médico para perceber.

 

Colocaram cuidadosamente o sr. K. no sofá, com o livro de poemas ao lado do ouvido. “Deus é a luz do lar que te espera em casa.” Tinha um ar singularmente insignificante, com a marca vermelha deixada pelos óculos na cana do nariz.

- O médico tinha lhe dado seis meses de vida - disse D. - E ele receava morrer de repente ensinando entrenaciono. Pagavam-lhe dois xelíns por hora.

- Que vamos fazer?

- Foi um acidente.

- Morreu porque você disparou contra ele... vão considerar isto um homicídio.

- Tecnicamente trata-se de um homicídio?

- Exatamente.

- Será a segunda vez. Preferia, para mudar um pouco de disco, que me acusassem finalmente de um homicídio sério, voluntário e premeditado.

- Que mania essa de gracejar, sempre que é você o ameaçado.

- Você acha?

Mais uma vez qualquer coisa a havia encolerizado. Quando se zangava, Rose era como as crianças que se insurgem contra a autoridade da razão. D. sentia então uma imensa ternura, pensando que ela podia ser sua filha. Rose não esperava dele um amor apaixonado.

- Não fique assim, como se nada lhe tivesse acontecido disse ela. - Que vamos fazer dele... disto?

- Já pensei. A mulher que vive nesta casa deixou um papel dizendo que não queria leite até segunda-feira. Isso quer dizer que não voltará, pelo menos, antes de amanhã à noite. Assim, disponho de vinte e quatro horas. Se apanhar agora um trem poderei estar amanhã nas minas, não é?

- Para o apanharem na estação? Andam à sua procura. Além disso - acrescentou ela, furiosa -, vai perder tempo e mais nada. já disse que os mineiros perderam toda a fibra; não contam. Vivi com eles, entendeu? Conheço-os perfeitamente.

- Vale a pena tentar.

- Saber que você morreu é indiferente, mas não posso suportar a idéia de que vai morrer.

Agia e falava sem reservas, sem o menor constrangimento. Ele reviu-a caminhando ao longo da plataforma da estação de Dover e dando-lhe um bolo. Era impossível não amá-la... de certa maneira. Tinham, afinal, qualquer coisa em comum. Ambos tinham andado um pouco ao deus-dará, e ambos se revoltavam contra a sua passividade passada, com uma violência que na verdade não lhes pertencia.

- É inútil - disse ela - pretender que, por mim, como se diz nos romances... conheço tudo isso.

- Por você faria muitas coisas.

- Não faça fita, pelo menos. Continue a ser honesto. É por isso que o amo. Por isso, as minhas nevroses, o complexo de Édipo, etc...

- Não estou fazendo fita.

Abraçou-a. E desta vez, não como da primeira, friamente. Sentia tudo nesse abraço, menos desejo. Era insensível ao desejo. parecia que o amor na sua gente fizera dele um eunuco. Todo o amante é, à sua maneira, um filósofo: a natureza não se descuidou. Um amante tem de acreditar no mundo, no valor de um nascimento. O maltusianismo nada altera. Desejar continua a ser um ato de fé - e ele havia perdido a fé.

A cólera de Rose desaparecera. Perguntou-lhe tristemente:

- Que aconteceu à sua mulher?

- Eles a fuzilaram por engano.

- Como?

- Prenderam-na por engano, como refém. Fizeram isso a centenas de outras. Aos olhos dos guardas, suponho eu, todos se confundiam.

D. perguntava-se se à sensibilidade das pessoas comuns não pareceria estranho aquele beijo trocado na presença de um morto e aquela conversa sobre uma mulher morta. Em todo o caso, não fora ainda o beijo completo. Um beijo nos revela demais... é mais difícil de falsificar do que a voz.

- Parece-me tão estranho - disse ela - que se ame uma pessoa morta!

- Acontece a todo mundo, ou quase. A sua mãe...

- Oh, não a amava. Sou uma bastarda, legitimada pelo casamento, é claro. Parece um argumento sem importância, não é verdade? Mas a verdade é que não se quer aos pais que não nos desejaram... pelo menos naquele momento.

Era impossível distinguir onde estava a piedade, onde estava o desejo, sem passar pela experiência. Tornaram a abraçar-se. Por cima do ombro esquerdo de Rose, D. via os olhos abertos do morto; largou-a.

- É inútil. Não posso servir-lhe para nada. Deixei de ser um homem. Talvez um dia, quando toda esta carnificina tiver acabado.

- Meu amor - disse ela -, estou disposta a esperar... desde que não você morra.

Dadas as circunstâncias, era opor uma reserva enorme.

- Tem de sair daqui imediatamente, Rose. Faça os possível para que ninguém a veja quando saír. Não tome um táxi senão quando estiver muito longe desta casa.

- Que vai fazer?

- Qual é a estação?

- Há um trem que parte de Euston por volta da meia-noite - respondeu ela - e que só Deus sabe a que horas da manhã chega no domingo... Tem de mudar... Mas, para quê?... Vão reconhece-lo no caminho...

- Estou muito diferente desde que raspei o bigode.

- E a cicatriz? É ela que eles procuram... Espere um instante. Vou sair, vou ter juízo, farei tudo o que disser e o deixarei seguir... seja lá para onde for. Os disparates não vão dar a parte nenhuma. Mas espere um momento.

Foi ao banheiro. Esmagou com os pés os óculos do sr. K. e voltou quase imediatamente.

- Felizmente a dona da casa é uma pessoa previdente. Trazia na mão um pedaço de algodão e um rolo de adesivo.

- Fique quieto. Ninguém verá a sua cicatriz. - Pôs-lhe o algodão na face e fixou o penso com adesivo.  - - Não está mal. Parece que tem um furúnculo.

- Mas o penso assim não cobre a cicatriz.

- Aí é que está o truque. Ninguém pensará que procura esconde-la.

Tomou-lhe a cabeça entre as mãos e acrescentou:

- Não acha que eu daria um bom agente secreto?

- Vale muito mais do que isso. Ninguém confia em um agente secreto.

D. sentiu-se subitamente tomado de uma imensa gratidão: de que houvesse neste mundo em guerra, tortuoso e mal definido, alguém em que ele pudesse confiar como em si próprio. Era como se tivesse encontrado um companheiro na solidão horrível de um deserto.

- Minha querida - disse ele comovidamente -, o amor que me resta nada vale para ninguém... mas o que resta, tal como é, pertence a você inteiramente.

E no entanto, enquanto lhe falava, ela sentia ainda a crispação obstinada de uma dor que o unia a um túmulo.

Ela respondeu com aquela voz doce com que se dizem as palavras de amor:

- Existe alguma chance, escassa, de escapar. O seu inglês é bom, mas terrivelmente literário. Por vezes tem um sotaque estranho, mas são sobretudo os livros que tem lido que te traem. Faça o possível por esquecer que foi professor de línguas românicas...

A campainha da porta retiniu. Ficaram ambos passados, no meio do pequeno compartimento feminino: parecia uma lenda da morte interrompendo o amor. A campainha tornou a tocar.

- Não haverá um lugar em que você possa se esconder? - segredou ele.

Não havia naturalmente. D. disse-lhe apressadamente:

- Se for a polícia, peço que me acuse imediatamente. Não quero vê-la metida nestas coisas.

- Para quê?

- Vá abrir a porta.

Agarrou o sr. K. pelos ombros e voltou-o contra a parede. Como o rosto dele ficava na sombra, não era fácil ver que tinha os olhos abertos: parecia que dormia. D. ouviu abrir a porta e uma voz que dizia:

- Oh, desculpe-me. Sou Fortescue.

Timidamente, o tal sr. Fortescue entrou como se se insinuasse. Era um rapaz com o ar de velho, os cabelos penteados para trás. Rose tentava barrar-lhe a passagem.

- E então? - perguntou ela.

- Fortescue - insistiu ele com débil bom-humor.

- Que diabo é Fortescue?

Ele olhava para ambos os lados com os olhos piscos. Não trazia chapéu nem sobretudo.

- Bem sabe que moro aqui em cima. A Emily... quer dizer, Miss Glover, não está?

- Está fora até segunda-feira - respondeu D.

- Eu sabia que ela tinha ido para fora, mas como vi luz... Meu Deus! Mas que é aquilo?

Rose acudiu prontamente:

- Aquilo, como você amavelmente lhe chama, é o Jack, Jack Owtram.

- Está doente?

- De doença passageira. Bebemos um pouco a mais...

- É extraordinário! - replicou Fortescue. - A Emily... quer dizer, Miss Glover...

- Pode dizer Emily. Estamos entre amigos.

- A Emily é tão pacata!

- Emprestou-nos a casa.

- Ah, sim, sim, compreendo.

- Quer tomar alguma coisa?

D. pensou que ela estava indo longe demais. Uma casa como aquela não podia fornecer-lhe tudo. É verdade que tinham naufragado, mas não em uma daquelas ilhas desertas para estudantes em que Crusoe encontra tudo o que precisa no momento oportuno.

- Não, muito obrigado - respondeu Fortescue. - Nunca bebo.

- Faz mal. Não se pode viver sem beber.

- Ah, sim, água bebo, naturalmente.

- Tem certeza?

- Absoluta.

Lançou outro olhar inquieto sobre o corpo estendido no sofá; depois a D. que se mantinha de pé, ao lado, como uma sentinela.

- Feriu-se? - perguntou.

- Sim.

O silêncio era uma espécie de presença; parecia a coisa que mais lugar ocupava, como o convidado de honra que deixa todos os outros saírem antes dele.

- Bem - disse Fortescue - tenho de ir embora.

- Já? - perguntou Rose.

- Não quero interromper a sua festa.

Procurava com os olhos os copos e as garrafas. Havia evidentemente nesta saleta coisas que ele não podia compreender. Porém, a realidade dramática escapava às suas suspeitas: o seu universo ignorava o horror.

- Emily não tinha me dito nada...

- Encontra-se muitas vezes com ela?

Ele corou.

- Somos bons amigos. Pertencemos ambos ao Grupo.

- Ao Grupo?

- Sim, ao Grupo de Oxford.

- Ah, estou vendo - disse Rose. - Reuniões amigáveis, hotel Crowborough...

E lançou-se em uma série de alusões misteriosas, incompreensíveis para D., que pensava se ela não estaria dizendo besteiras. Fortescue iluminou-se de alegria. A sua cara de velho adolescente parecia um daqueles panos brancos sobre os quais apenas se podem projetar filmes selecionados e severamente censurados para toda a família.

- Assistiu? - perguntou ele.

- Oh, não. Não é o meu gênero.

O outro continuou a avançar, aproximou-se do sofá. Tinha um andar fluido: era preciso ter muita atenção à orientação da conversa, sob pena de vê-lo esbarrondar-se e espalhar-se um pouco por toda a parte.

- Devia experimentar - disse ele. - Temos toda a espécie de gente: homens de negócios, rapazes dos grupos esportivos universitários, por vezes o subsecretário das colônias. E, naturalmente, Frankie nunca falta.

Estava já muito próximo do sofá e continuava a explicar entusiasticamente:

- É em nome da religião que nos reunimos, mas há vantagens práticas. Cultivamos as atitudes que permitem singrar na vida. Não imagina o êxito que temos tido na Noruega.

- Extraordinário - exclamou Rose, ao mesmo tempo que procurava desviá-lo em outro sentido.

Os olhos dele, quase esbugalhados, fixaram-se sobre a cabeça do sr. K.

- Além disso, se há qualquer coisa que nos inquieta... percebe o que eu quero dizer?... Não há nada como expô-la em comum... em uma reunião. Os nossos camaradas são sempre tão compreensivos!

Curvou-se ligeiramente para a frente:

- Parece bastante doente, realmente. Tem certeza que... - “Que país!” pensou D. “A guerra civil não engendra coisas tão fantásticas como a paz. Em tempo de guerra a vida simplifica-se: não se agitam questões sobre as relações sexuais, as línguas internacionais o futuro: as grandes preocupações são a próxima refeição e um abrigo à prova de bombas.” - Não acham que lhe faria bem... se... enfim... se ele vomitasse?

- Oh, não - acudiu Rose. - É melhor deixá-lo ficar como está, muito sossegado.

- Note - disse ele humildemente - que eu pouco percebo destas indisposições. Naturalmente ele aguenta pouco. O melhor seria não beber. É sempre mau para a saúde. Além disso, já não é novo. Desculpe-me dizer isto, se é dos um dos seus amigos íntimos.

- Não faça cerimônias - disse Rose.

D. gostaria de saber quando iria embora aquele homem. Era preciso ter um coração em brasa para resistir à frieza glacial de Rose.

- Suponho que imaginam que eu sou um homem cheio de preconceitos. É que o Grupo nos ensina a ser ascetas... razoavelmente é claro. Não querem subir e vir a minha casa, no andar de cima? Tenho água no fogo para fazer chá. Tinha descido para convidar Emily...

E de repente exclamou:

- Mas ele tem os olhos abertos, meu Deus! - “É o fim!” pensou D.

- E porque não teria os olhos abertos se não está dormindo? - Viu-se quase subir no fundo dos olhos do visitante uma suspeita atroz que se desvaneceu por falta de base sólida. No seu universo fictício de doçura não havia lugar para um homicídio. Ambos esperaram as palavras que ele ia dizer e não sabiam o que fariam depois. Ele só balbuciou:

- É desagradável pensar que ele ouviu tudo o que eu disse dele...

Irritada e dura, Rose exclamou:

- A sua chaleira já deve estar fervendo.

Ele olhou para um e outro... Havia ali qualquer coisa de suspeito.

- Tem razão, já deve estar fervendo. Não esperava demorar tanto.

Continuava olhando alternadamente para eles, como a pedir-lhes que o sossegassem. Nessa noite teria pesadelos.

- Tenho de me retirar. Boa noite.

Viram-no subir as escadas e desaparecer na escuridão tranquilizadora.

 

A ÚLTIMA BALA

A noite ainda cobria os campos mansos dos Midland. A insignificante estação de trens estava iluminada como o objeto central da vitrina de um estabelecimento mergulhado em escuridão. Ardiam candeeiros de petróleo junto da sala de espera comum, um passadiço de ferro fazia ligação a outra luz fumarenta e o vento gelado chicoteava a plataforma com a fumaça da locomotiva. Era domingo, de madrugada.

O trem não tardou a desaparecer como em um túnel invisível e D. ficou só, com um velho carregador que vinha do lugar onde havia parado o vagão das bagagens. Em algum lugar, um galo cantou, uma luz suspensa entre o céu e a terra mudou de vermelha para verde.

- É aqui que para o trem para Benditch? - perguntou D.

- Aqui mesmo.

- Demorará muito?

- Uma hora, se não houver atraso.

D. teve um arrepio e esfregou as mãos para aquecer.

- Tanto tempo!

- Que melhor queria? É domingo!

- Não há trem rápido?

- Havia quando a mina estava funcionando. Agora ninguém vai a Benditch.

- Não há por aqui um restaurante?

- Um restaurante! Para que diabo é preciso um restaurante em Willing?

- E um lugar para me sentar?

- Se quiser, vou abrir-lhe a sala de espera. Assim o senhor se aguente lá dentro. Com o frio que está mais vale andar do que ficar sentado.

- Não tem aquecedor?

- Talvez ainda não tenha se apagado.

Sacou uma enorme chave do bolso e abriu uma porta castanha.

- Muito bem - disse ele -, não está tão mal como eu pensava. - E acendeu a luz. Havia em todas as paredes as velhas e usadas fotografias dos hotéis e das termas: bancos pregados à parede em volta da sala, duas ou três cadeiras incômodas e uma enorme mesa. Pairava no ar uma tepidez vaga, uma lembrança do fogo. O carregador lançou sobre as brasas moribundas uns restos de pó de carvão que estavam em um balde. - Assim talvez se aguente - disse ele.

- E a mesa? - perguntou D. - Para que serve a mesa?

O carregador olhou meio desconfiado:

- Para que há-de servir? Para as pessoas se sentarem diante dela.

- Como, se os bancos estão pregados?

- Isso é verdade. E tem graça: há vinte anos que aqui estou e ainda não tinha dado por isso. O senhor é estrangeiro, não?

- Sou.

- São espertos os estrangeiros. - Olhava vagamente para a mesa: - A maior parte dos passageiros senta-se em cima dela. - Ouviu-se lá fora um silvo estridente, um rugido, rodas martelando as linhas, depois outro silvo, por fim outra vez o silêncio. - Este é o das quatro e quarenta e cinco.

- Expresso?

- Não, rápido, de mercadorias.

- Para as minas?

- Não! Munições para Woolhampton.

D. cruzou os braços para se aquecer e deu uma volta à sala. Da lareira subia uma coluna de fumaça. Uma das fotografias era de uma esplanada: um senhor de chapéu coco e casaco Norfolk, encostado à balaustrada, falava com uma senhora vestida de musselina branca; uma perspectiva de sombrinhas. D. sentiu-se penetrado por uma estranha felicidade, como se tivesse sido extraído do tempo ou já pertencesse à história como o senhor de chapéu cinzento: desvanecidas as lutas e violências, de uma ou outra maneira resolvidas as guerras, além de todas as dores. Um grande edifício gótico, com um letreiro anunciando Midland Hotel, emergia violentamente por trás de algumas linhas de carros elétricos de que se destacavam a estátua de um homem com casacão, de bronze, e as sentinas públicas.

- Ah! - disse o carregador, remexendo com um atiçador a poeira de carvão - isso para onde o senhor está olhando é Woolhampton. Eu estava lá em 1902.

- Tem o aspecto de uma cidade de muito movimento.

- E é. E esse hotel é o melhor de todos os de Midland. Tivemos lá um jantar em 1902. Balões vermelhos... cantou uma senhora... E tem banhos turcos.

- Deve ter saudades.

- Sim e não. Em toda a parte há bom e mau, é o que eu penso. É certo que no Natal sinto falta das festas de Woolhampton, mas, por outro lado, os ares aqui são mais sadios. Não devemos abusar dos prazeres - concluiu ele, atiçando o fogo.

- Em outros tempos, esta estação deve ter sido muito importante.

- Ah, sim, quando as minas funcionavam. Vi Lord Benditch aqui nesta sala. E a sua ilustre filha, Miss Rose Cullen.

D. prestava atenção avidamente, como um adolescente apaixonado.

- Viu Miss Cullen? - perguntou ele.

No deserto dos rails silvou uma máquina; outra lhe respondeu, como os cães que nos arrabaldes de uma cidade se chamam e se respondem!

- Se a vi! A áltima vez foi aqui, uma semana antes da sua apresentação na Corte, ao rei e à rainha.

Entristeceu-o pensar nessa agitada vida social que fervilhava em volta de Rose e de que ele de maneira nenhuma participava. Sentia-se como um divorciado cuja filha está entregue à guarda de terceiros... de terceiros mais ricos e mais bem colocados do que ele. Notou que desejaria fazer valer os seus direitos sobre ela. Lembrou-se das palavras que ela lhe tinha dito na estação de Euston:

- Temos pouca sorte. Não acreditamos em Deus. É inútil orar. Se fôssemos crentes, eu rezaria as minhas orações, queimaria círios... e muitas outras coisas!

No táxi, como ele lhe pedisse para lhe restituir a pistola, ela a tinha devolvido, dizendo: “Pelo amor de Deus tenha cuidado. Você é capaz de fazer tantas tolices! Lembre-se do manuscrito de Berna. Você não é Rolando. Não passe debaixo de escadas, não entorne saleiros.”

- A mãe dela - continuou o carregador - nasceu para estes lados. Contam-se histórias...

Estar aqui, isolado por algum tempo do mundo monstruoso! D. via distintamente, na segurança e solidão desta fria sala de espera, até que ponto o mundo era monstruoso. E todavia, há gente que fala de uma autoridade suprema. Que louca miscelânea: a apresentação à rainha, a sua mulher fuzilada no pátio de uma prisão, as fotografias do Tatler, bombas caindo - tudo embrulhado pelas suas relações com Rose, junto do cadáver do sr. K. e conversando com Fortescue! A futura cúmplice de um homicida tinha sido a convidada de um garden-party real! Parecia que ele tinha o poder químico de conciliar os inconciliáveis. E, afinal, para não sair do seu próprio caso, havia uma enorme distância entre os seus cursos de línguas românicas e o tiro disparado às cegas contra o sr. K., no banheiro de uma mulher desconhecida. Como seria possível a alguém organizar antecipadamente a sua vida ou considerar o futuro com mais alguma coisa do que apreensão?

Porém, ele tinha de enfrentar o futuro. Deteve-se diante de uma cena de praia, barracas de banho, castelos de areia, toda a sórdida monotonia de uma estância balneária reproduzida com espantoso realismo. Isto dava-lhe uma sensação de velhos jornais arrastados pelo vento e de cascas de bananas. As companhias das estradas de ferro tinham demonstrado o seu bom-senso quando haviam substituído a fotografia pela arte. Entretanto pensava: “Naturalmente, se me prenderem, tudo se simplificará, não haverá mais futuro.” o problema seria se, escapando por acaso, voltasse ao seu país. Ela tinha-lhe dito: “Não pense, daqui por diante, que escapa de mim”, o carregador reatou a conversa:

- Quando era pequenina, era ela que distribuía os prêmios aos chefes de estação que tinham jardins mais bonitos. Foi antes da mãe ter morrido. Lord Benditch protegia sempre os candidatos que tinham rosas.

Como podia ela partir com ele e partilhar a vida que ele tinha? A vida de um suspeito em um país em guerra. Além disso, que tinha ele para lhe dar? O melhor do seu ser estava sepultado em um túmulo.

Saiu. Depois da pequena plataforma era ainda noite escura, mas pressentia-se que, em algum lugar , o dia estava nascendo. parecia que fora dado um sinal, que uma sineta soara. D. pôs-se a andar de um lado para o outro: nenhuma solução; era o cheque-mate. Parou diante de um distribuidor automático: escolha sem surpresas entre passas de uva, chocolates, fósforos e pastilha elástica. Meteu uma moeda na fenda das passas de uva, mas a máquina não funcionou. O carregador surgiu bruscamente por trás dele, com ar acusador:

- Meteu alguma moeda falsa?

- Não, mas isso não tem importância.

- Há gente capaz de tudo. Alguns conseguem tirar dois chocolates com a mesma moeda.

Sacudiu a maquina.

- Vou buscar a chave - disse ele.

- Não faz mal, não tem importância.

- São coisas que não deviam acontecer.

E o carregador afastou-se resmungando.

Luzia uma lâmpada em cada extremo do cais. D. percorreu a plataforma de ponta a ponta. A aurora rompia com uma lentidão que parecia prudente e premeditada. Era como um rito: as luzes que iam se apagando, os galos que cantavam, depois um céu que ia se prateando. O ramal de desvio emergiu lentamente das trevas, com uma fila de vagões assinalados “Carvoeiras Benditch”; de uma silhueta obscura surgiu uma quinta, depois campos horríveis enegrecidos pelo Inverno.

O carregador voltou e abriu o distribuidor automático.

- Ah. - disse ele - é a umidade. Por aqui não gostam muito de passas. A engrenagem está enferrujada.

Tirou uma caixa cinzenta de cartão:

- Aqui estão as suas passas.

Deixaram-lhe nos dedos uma sensação viscosa e pegajosa.

- Dizia você que os ares daqui eram sadios!

- Todos tem ouvido falar na “Salubridade dos Midland”.

- Mas a umidade...

- É porque a estação fica em uma cova.

De fato, a noite desprendia-se, em farrapos de vapor, de um extenso flanco de colina. Por trás da casa e dos campos elevou-se uma claridade, que passou sobre a estação e as linhas de manobra e se estendeu até o alto das colinas. Surgiram pequenas casas de tijolo; os troncos nus das árvores lembravam a D. um campo de batalha. Na crista do monte apareceu uma armação metálica estranha.

- Que é aquilo? - perguntou D.

- Oh, aquilo já não é nada. Uma mania que eles tiveram...

- Bastante feia.

- Acha feia? Realmente... A gente habitua-se a tudo. Creio que lhe sentiria a falta se desaparecesse.

- Parece uma daquelas armações que há por cima dos poços de petróleo.

- Parece, e é. Uns caras a quem se meteu na cabeça que iam encontrar petróleo. A gente da terra podia dizer-lhes o que havia e não havia... mas, como vinham de Londres, achavam que sabiam tudo!

- Não havia petróleo?

- Um bochecho... Ah! Já não tem que esperar muito tempo. Lá vem o Jarvis na estrada.

A estrada distinguia-se agora até às casas. O horizonte coloria-se debilmente e todo o mundo, salvo o céu, tomava o tom escuro dos vegetais queimados pela geada.

- Quem é Jarvis?

- Vai a Benditch todos os domingos.

- Trabalha na mina?

- Não, não. Já não tem idade para isso. Diz que gosta de mudar de ares. Há quem diga que vai ver a sua velhota, mas ele diz que não é casado.

Jarvis calcorreava o atalho que levava à estação. Era um velho, vestido de veludo canelado, de grandes sobrancelhas, olhos negros esquivos e o queixo forrado de pêlos brancos.

- George, como vai?

- Vamos indo.

- Vai ver a tua velha?

Jarvis atirou-lhe um olhar de esguelha e desconfiado.

- Este senhor vai a Benditch. É estrangeiro.

- Ah!

D. sentia-se como um portador de febre tifóide passeando entre gente sã e incontaminável: seres que ele não podia contagiar. Aqueles dois homens estavam imunes contra a violência e o horror que ele trazia consigo. Sentiu-se tomado de uma grande inanição, como se junto dos campos queimados pela geada, na paz daquela estação deserta de entroncamento, tivesse encontrado o lugar em que podia sentar-se, repousar e deixar passar o tempo. Ao lado dele, zumbia a voz do carregador... “o estupor desta geada deu-me cabo de tudo o que semeei ... “. De quando em quando, com os olhos sempre pregados na linha, Jarvis respondia: “Ah... !”. Pouco depois, na barraca do agulheiro, soou duas vezes uma campainha; discretamente, a escuridão desaparecera. Um sinal... em algum lugar . Jarvis exclamou:

- Ah!

- Lá vem o trem - disse o carregador. No extremo de uma linha avançava uma bolazinha de vapor em forma de rosa, que logo se transformou em uma locomotiva e, depois, em uma enfiada de vagões chocalhantes.

- É longe daqui a Benditch? - perguntou D.

- Oh, umas quinze milhas, não é George?

- Catorze da igreja ao Leão Vermelho.

- A distância é o menos - acrescentou o carregador -, o pior são as paradas.

Uma série de janelas cobertas de geada decompôs, como cristais, os primeiros raios pálidos daquela manhã. Algumas caras de barbas por fazer espreitavam o nascer do dia. D. subiu atrás de Jarvis para um compartimento vazio e viu afastarem-se, como se fossem a paz, o carregador, a sala de espera, o horrível passadiço de ferro e o agulheiro. Em volta do trem elevavam-se pequenas colinas geladas; uma mata desplumada, poças de água com coberturas de gelo... Não era magnífico, nem sequer bonito, mas tinha o encanto da solidão e do silêncio. Jarvis olhava para tudo sem dizer palavra.

- Conhece bem Lord Benditch? - perguntou D.

- Ali!

- Talvez conheça a Senhora Bentrett.

- A mulher de George Bermett ou a de Arthur?

- A que foi ama de Miss Cullen, a filha de Lord Benditch.

- Ah!

- Conhece-a?

- Ali!

- Onde mora?

Jarvis olhou desconfiadamente para ele.

- Que quer com ela?

- Trago um recado para ela.

- Duas portas adiante do Leão Vermelho.

As matas e a erva escassa desapareciam à medida que as estações iam passando. As colinas tornaram-se pedregosas; por trás do apeadeiro via-se uma linha única ligada à via principal, onde jazia, tombada sobre plantas espinhosas, uma vagoneta. Depois foram as próprias colinas que desapareceram, dando lugar a uma extensa planície onde, aqui e além, se erguiam montes de escórias desordenados, e tão altos como as colinas perdidas de vista. Nas suas vertentes crescia uma erva rasa e doentia. De vez em quando, curtas linhas de caminho de trem, que não iam a parte nenhuma, começavam e acabavam sem se saber como nem para quê. Nos sopés destas colinas artificiais erguiam-se casas de mineiros, em alinhamentos de pedra cinzenta semelhantes a cicatrizes. O trem não voltou a parar e lançou-se em grande barulheira de ferragens na planície disforme, ultrapassando antigos apeadeiros improvisados a que tinham dado nomes como Castle Crag e Mourit Zion. Era uma enorme lixeira de plataformas de elevadores enferrujados, de chaminés negras, de sucatas, de onde emergiam capelas não anglicanas com telhados de ardósia, roupa estendida e garotos tirando água de chafarizes. A densidade das habitações aumentou, as casas já se tocavam, empena com empena, e formavam ruas estreitas.

- Estamos em Benditch? - perguntou D.

- Não. Aqui é Paradise.

Passaram ruidosamente por outro entroncamento.

- É agora Benditch?

- Não. Aqui é Cowcumberill.

- Como consegue distinguí-las?

- Ah!

Jarvis olhava para fora aborrecidamente. Teria ele a tal velha amiga ou vinha apenas para mudar de ares? Por fim, contra vontade, como se quisesse mal a alguém, acrescentou:

- Qualquer pessoa percebe que Cowcumberill não é Benditch. - E depois: - - Aqui é que é Bendítch.

D. olhou. Estava habituado a ruínas, mas notou então que fazê-las com bombardeamentos era uma perda de tempo. Pode reduzir-se o mundo a ruínas mais facilmente deixando as coisas correrem por si.

Benditch tinha a honra de ser uma estação - não era um apeadeiro. Tinha até uma sala de espera reservada aos passageiros das primeiras classes, cujas vidraças estavam quebradas. D. esperou que Jarvis descesse, mas o outro esperou ainda durante mais tempo com o ar de quem receia ser espiado. Dava a impressão de ter uma tendência natural e inocente para o mistério: desconfiava como um animal desconfia dos passos e vozes desconhecidas que se aproximam do covil.

Quando D. saiu da estação teve a impressão de se encontrar no seu último campo de batalha. Duas ruas em T, uma que desembocava na lixeira de sucata e outra abafada sobre a colina negra. As casas eram todas iguais umas às outras. A sua uniformidade só era quebrada pela tabuleta de uma hospedaria, a fachada de um templo e uma pequena loja pobremente fornecida. Reinava em toda a parte um ar friorento de candura como se a vila tivesse sido construída por crianças com tijolos. Para burgo de trabalhadores, as ruas encontravam-se curiosamente desertas. Mas como não havia trabalho onde tivessem de comparecer, ficavam na cama, que era mais quente. D. passou diante de outras casas cinzentas, de janelas fechadas. avistou, de passagem, um pátio horrivelmente sórdido no qual a porta das sentinas estava aberta de par em par. parecia um povoado em guerra sem a atmosfera de rebelião que a guerra estabelece.

O Leão Vermelho fora outrora um hotel. Era lá, sem dúvida, que Lord Benditch se hospedava. Tinha uma esplanada na entrada, uma garagem e um emblema amarelo com letras azuis do Automóvel Clube. No ar flutuava um odor de gás e latrinas. Sem grande interesse, as pessoas olhavam, através das vidraças das janelas, aquele estrangeiro. Fazia muito frio para lhe darem bom-dia. A casa da sra Bermett era da mesma pedra cinzenta que todas as outras, mas as cortinas das suas janelas pareciam mais asseadas. Quase se tinha uma impressão de riqueza, olhando, através das janelas, a sala de visitas onde ninguém entrava. D. bateu a aldraba: era uma aldraba de cobre polido representando o escudo de armas dos Benditch, com um animalejo de pena que tinha uma folha no bico. No meio desta vida simples, aquilo parecia tão extraordinariamente complicado como uma equação algébrica: era a imagem de um conjunto de valores abstratos, deslocados entre as casas de pedra desta rua.

A porta foi aberta por uma mulher idosa, de avental. Tinha o rosto seca, enrugada e tão branca como um velho osso descarnado.

- É a senhora Bermett? - perguntou D.

- Sim.

Bloqueava a porta e defendia a entrada com um pé no limiar.

- Trago-lhe uma carta de Miss Cullen.

Ela olhou para ele com ar incrédulo, cheio de reservas:

- Conhece Míss Cullen?

- Pode ver o que ela escreveu.

Em todo o caso, ela só o deixou entrar depois de ter lido a carta, muito lentamente, sem óculos, com o papel muito próximo dos olhos pálidos e obstinados.

 

- Ela diz que o senhor é seu amigo muito querido. Faça o favor de entrar. Diz também que quer que eu o ajude... mas não me diz como.

- Desculpe-me por ter vindo tão cedo.

- No domingo não há outro trem. Não podia ter vindo a pé, está claro. George Jarvis também veio no mesmo trem?

- Também.

- Ah!

A sala de visitas estava atulhada de porcelanas e de fotografias emolduradas. Uma mesa redonda de acaju, um sofá forrado de veludo, cadeiras de costas redondas e assentos estofados, jornais estendidos no chão para proteger os tapetes - parecia o cenário montado para uma peça que nunca fora representada e que jamais seria.

Com um gesto na direção de uma fotografia com moldura de prata, a  senhora   Bermett disse severamente:

- Acho que a reconhece!

Uma pequenina rechonchuda segurava uma boneca sem qualquer entusiasmo.

- Desculpe-me... eu... - disse ele.

- Ali - exclamou a senhora Bermett em um tom de voz antipático ela decerto não lhe mostrou tudo. - Vê essa pregadeira de alfinetes?

- Sim.

- Foi feita com o tecido do vestido que ela levou à apresentação... quando foi visitar Suas Majestades. Veja a data.

Lá estava a data bordada na seda branca. Era o ano que ele tinha passado na prisão, à espera da execução. Fora também um ano importante na vida de Rose.

- Aqui a tem agora com este vestido. O senhor deve conhecer a fotografia.

Muito bombástica, absurdamente nova, mas fácil de reconhecer, era Rose que olhava para ele do fundo da moldura de veludo. A sua figura parecia encher totalmente o pequeno compartimento.

- Não - disse ele -, também não conhecia.

Ela lançou-lhe um olhar fulgurante de satisfação:

- Afinal os velhos amigos são ainda os melhores.

- E a senhora é, sem dúvida, para ela, uma velha amiga.

- A mais velha - disse ela em tom cortante. - Conheci-a com oito dias de idade. O próprio Lord Benditch só a viu com um mês.

- Ela falou-me da senhora com muita ternura - disse D., mentindo.

- Não admira - replicou meneando a cabeça ossuda e muito branca. - Fiz por ela tudo quanto podia fazer depois da morte da mãe.

É sempre estranho ouvir contar a terceiros a biografia de uma pessoa querida. Tem-se a impressão de descobrir, em um móvel muito conhecido, um cantinho secreto cheio de documentos reveladores.

- Era uma menina com muito juízo? - perguntou ele divertido.

- Tinha muita vida.

Na sua agitação, ela voltava-se para todos os lados, afagava a pregadeira de alfinetes, deslocava as fotografias; esta um pouco mais à direita, aquela um pouco mais à esquerda.

- Ninguém espera que as pessoas se lembrem - disse ela. - Note que não tenho razões de queixa de Lord Benditch, que foi generoso. Fez o seu dever. Não sei o que seria de nós, agora que as minas estão fechadas.

- Rose me disse que lhe escrevia regularmente. Portanto, lembra-se da senhora.

- Pelo Natal, é verdade. Não conta grandes coisas... mas, enfim, com aquela vida de Londres, as recepções... não terá muito tempo. Em todo o caso, podia ter-me contado o que lhe disse Sua Majestade... mas...

- Talvez não lhe dissesse nada.

- Oh, disse com certeza... Ela estava um encanto...

- Sim, adorável.

- O que desejo - disse ela olhando para as porcelanas - é que ela saiba escolher os amigos.

- Não me parece que seja fácil enganá-la - disse ele, pensando em Forbes, nos detetives que ela lhe pusera em cima e em toda a sinistra atmosfera de suspeitas que Rose respirava.

- O senhor não a conhece como eu. Lembro-me de um dia em que ela chorou todas as lágrimas que tinha no corpo. Tinha então quatro anos e o Peter Triffen... um malvado, hipócrita, assustou-a com um rato de corda.

E ainda corou com um ardor guerreiro reencontrado em lembranças do passado.

- Seria capaz de jurar que esse garoto não enveredou por bom caminho.

Era curioso pensar que, de certa maneira, fora aquela mulher que tinha feito Rose. A sua influência havia sido pelo menos tão grande como a da mãe que morrera; quem sabe se na velha cara ossuda passavam por vezes expressões que ele já vira na cara de Rose? A velha disse bruscamente:

- O senhor é estrangeiro, não é?

- Sou

- Ah!

- Miss Cullen disse-lhe na carta que eu vim aqui por causa de negócios.

- Mas não diz que negócios.

- Ela achou que a senhora podia me dar algumas informações sobre Benditch.

- Quais?

- Queria saber quem é o delegado sindical da região.

- É com ele que quer encontrar-se?

- Precisamente.

- Então não posso ajudá-lo. Não nos damos com essa espécie de gente. E espero que não vá dizer que Miss Cullen tem qualquer coisa em comum com indivíduos dessa laia. Socialistas!

- No entanto... a mãe dela...

- Sabemos perfeitamente o que era a mãe dela - disse a Senhora Bermett secamente - Mas a mãe morreu e o que morreu está enterrado.

- Não pode, então, me ajudar.

- Diga antes que não quero.

- Nem mesmo dizer-me como se chama?

- Isso qualquer um lhe diz. É Bates.

Passou um automóvel diante da janela e ouvíram-se guinchar os freios.

- Quem será que vai para o Leão Vermelho?

- Onde mora ele?

- Ao fundo de Pit-Street. Um dia - variou ela, com o rosto encostada à vidraça da janela para tentar ver o automóvel -, veio uma pessoa da família real. Um senhor novo, muito amável, muito delicado! Entrou nesta casa e tomou uma xícara de chá. Pôde ver que havia mulheres de mineiros que sabiam ter a sua casa asseada. Queria ir também a casa da senhora Terry mas disseram-lhe que estava doente. Quando ela soube ficou furiosa! Já tinha feito uma limpeza especial para o caso de... Hoje tem tudo empenhado. A casa dela está suja como um verme...

- Tenho de ir embora.

- Diga da minha parte a Miss Cullen que não deve conhecer gente como Bates.

Falava no tom amargo da autoridade decadente... O tom de alguém que, em tempos, se habituara a dar ordens: “Vá mudar de meias!” “Não coma mais bombons!” “Tome este xarope!” E que sente que os tempos mudaram.

Descarregavam-se bagagens diante do Leão Vermelho e a rua tinha se animado. Formavam-se pequenos ajuntamentos de pessoas, prontas a baterem em retirada; olhavam para o automóvel. D. ouviu uma criança perguntar: “É um Lord?”. E perguntava-se se Benditch não teria começado a agir. Que rapidez! o contrato fora assinado na véspera. Subitamente correu o boato: ninguém poderia dizer de onde tinha partido. Alguém gritara: “As minas vão reabrir!” Os pequenos grupos juntaram-se formando uma pequena multidão. Os homens contemplavam o automóvel como se, na sua superfície luzidia de carro de luxo, pudessem colher notícias mais precisas. A aclamação tímida de uma mulher morreu na  irresolução geral.

- Quem é? - perguntou D. a um homem.

- O agente de Lord Benditch.

- Pode indicar-me onde fica Pit-Street?

- Volte à esquerda no fim da rua.

Agora, ao longo de todo o percurso, saía gente das suas casas: D. avançava contra a enchente de gente.

Uma mulher gritou para uma janela de um primeiro andar:

- Neli! o agente está no Leão Vermelho.

D. lembrou-se de um dia em que na capital esfomeada correra o boato de que iam chegar mantimentos. Tinha então visto a multidão descer até o cais, exatamente como aqui. Mas não eram víveres; eram tanques. E todos tinham visto descarregar os tanques com irada indiferença. E, no entanto, precisavam então de muitos tanques. Perguntou a um homem:

- Onde mora Bates?

- Número dezessete, se estiver lá.

Era logo depois do templo dos batistas, um símbolo religioso de pedra cinzenta, com telhado de ardósia. Na beira da estrada, em uma tabuleta, estas palavras enigmáticas: “A vida só é invisível aos olhos fatigados.”

Bateu repetidas vezes à porta do número 17. Ninguém lhe respondeu. A vaga de gente passava sem cessar... os velhos impermeáveis que não protegem do frio, a camisa lavada tantas vezes cuja flanela coçada já não aquece. Era a gente pela qual D. se batia e, contudo, ele tinha nesse momento o sentimento terrível de que eles eram seus inimigos. Bateu, bateu, bateu, sem alcançar resposta.

Experimentou então bater à porta do 19 que se abriu imediatamente, mais depressa do que esperava. Apanhado de surpresa, levantou os olhos e viu Else.

- Que quer? - perguntou ela, no limiar, como um fantasma, desgrenhada, mal alimentada, muito novinha. D. sentiu-se como assombrado. Teve  de olhar atentamente para notar as diferenças: a cicatriz de um gânglio extraído no pescoço, um dente a menos. Não era Else, evidentemente, mas era uma garota oriunda do mesmo meio de injustiça e subalimentação.

- Procuro o senhor Bates.

- A porta ao lado.

- Ninguém responde...

- Deve ter ido ao Leão Vermelho.

- Estão todos muito agitados.

- Dizem que as minas vão reabrir.

- Não vai ver?

- Alguém tem de ficar em casa para acender o fogo.

Com os olhos pregados nele, ela observava-o com certa curiosidade.

- O senhor é que é o estrangeiro que veio no trem com o George Jarvis?

- Sou.

- Ele diz que você não veio por bem.

D. lembrou-se, com passageiro remorso, que também nada levara de bem à sósia da pequena. Porque carregar este fardo de violência até esta região? Seria preferível talvez bater-se na sua terra a arrastar outros.... Aí estava uma heresia! Afinal o seu partido tinha razão em desconfiar dele.

A menina acrescentou amavelmente:

- Não se importe, porque ninguém acredita no que diz o George. Porque quer falar com Bates?

Porque não dizer? o que lhe convinha era que todos soubessem: este país era uma democracia. Se tinha de começar, porque não havia de ser aqui?

- Queria dizer-lhe que este carvão vai para os rebeldes do meu país.

- Oh! - disse ela indiferentemente. - o senhor trabalha pelos seus. Compreendo.

É isso.

- Que tem o Bates que ver com isso?

- Quero que os operários se recusem a descer às minas.

Ela olhou para ele espantada.

- Recusarmos, nós?!

- Sim!

- Não está bom! Que nos importa saber para onde vai o carvão?

D. voltou-se: não havia esperança. Agora estava convencido: era a verdade na boca das crianças. Ela ainda lhe gritou:

- Não está bom, é o que eu lhe digo! Não queremos saber...

Tornou a subir a rua, decidido a tentar: prosseguiria até que o prendessem, que o enforcassem, que o fuzilassem, que lhe tapassem a boca, de qualquer maneira que o dispensasse do lealismo e lhe trouxesse um pouco de repouso.

A multidão cantava diante da porta do Leão Vermelho: os acontecimentos, parecia, precipitavam-se. Tinham dado certamente notícias definitivas. Soavam duas velhas canções. Lembrava-se de as ter ouvido, anos antes, quando trabalhava em Londres. Os pobres são extraordinariamente fiéis às velhas canções. Pack up Your Troubles e Now Thank WeAll Our God. D. notou que muitos deles passavam papéis de mão em mão... jornais de domingo. Parecia haver pilhas deles no assento de trás do automóvel. Tocou no braço de um homem a quem perguntou:

- Onde está Bates?

- Lá em cima, com o agente.

Abriu caminho entre a multidão. Alguém lhe meteu um jornal na mão. Leu umas parangonas: “Venda de carvão para exportação. Reabertura das Minas.” Era um jornal de domingo, sério, sem grande imaginação, fiel à tradição. D. entrou correndo no vestíbulo do hotel. Sentia agora uma necessidade urgente de ação... antes que a esperança deles se tornasse poderosa demais. O hotel estava vazio. Subiu as escadas: ninguém. Na rua levantaram-se clamores da multidão: alguma coisa acontecia. Abriu bruscamente uma porta na qual tinha lido “Salão” e deu com a sua imagem refletida em um espelho; a barba por fazer, um floco de algodão hidrófilo saindo de um penso adesivo. Em uma grande porta-janela falava um homem; dois outros estavam sentados à mesa, de costas voltadas para ele.

 

- Todos os motoristas, condutores de elevadores e mecânicos devem comparecer amanhã cedo. Mas não tenham receio: em menos de uma semana haverá emprego para todos sem exceção. É o fim da crise para os trabalhadores. Perguntem ao senhor Bates, que está aqui. Não será para vocês a semana de quatro dias: será o ano de trezentos e sessenta e cinco dias.

Ritmicamente, no enquadramento da janela, erguia-se e baixava-se sobre as pontas dos pés. Era um homenzinho moreno, de ar espertalhão. D. atravessou o salão e, quando se aproximou das costas do orador, perguntou-lhe:

- Perdão. Me permite que diga umas palavras?

- Agora não, agora não - disse o homem sem se voltar. E continuou a falar. - Voltem agora para suas casas e tenham confiança. Haverá trabalho para todos antes do Natal. Em compensação, esperamos...

D. dirigiu-se aos outros dois homens, que estavam de costas.

- Algum dos senhores é o senhor Bates?

Ambos se voltaram. Um deles era L.

- ... que todos correspondam com o melhor do seu esforço e certos de que serão ajudados pelas Minas Benditch.

- Bates sou eu - replicou o outro.

D. notou que L. não o tinha reconhecido completamente. Tinha o ar de quem procura lembrar-se.

- Bem, Uma vez que ouviram o que disse o agente, é tempo de ouvirem também o que eu tenho a dizer.

O rosto de L. iluminou-se. Um sorriso leve de reconhecimento, uma pálpebra que piscou...

O orador retirou-se da janela e perguntou:

- Que está acontecendo?

- Estão lhes dizendo que este carvão vai para a Holanda... mas isso é absolutamente falso.

O seu olhar estava pregado em Bates, homem novo, de cabeleira melodramática e boca frágil.

- Que tenho com isso?

- Suponho que esta gente confia em você. Diga-lhes que se recusem a descer às minas.

- Então, então... - interrompeu o agente de Benditch.

- Os seus sindicatos declararam que nunca trabalhariam para eles - argumentou D.

- Este carvão segue para a Holanda - disse Bates.

- É mentira. Vim a Inglaterra para comprar carvão para o meu governo. Este homem que vêem aqui fez com que roubassem as minhas cartas de apresentação.

- Isso é o que você pensa - disse o agente com ar de convencido, soerguendo-se nas pontas dos pés. - Este senhor é amigo de Lord Benditch.

Bates, que parecia pouco à vontade, agitou-se passivamente:

- Que eu posso fazer? É um caso de Governo.

- É verdade que eu conheço este homem - disse L. sem se alterar. - É um fanático procurado pela polícia.

- Chamem o cabo da polícia - pediu o agente.

- Tenho uma pistola no bolso - disse D. sem tirar os olhos de Bates. - Sei que isto representa um ano de trabalho para seus trabalhadores, mas será a morte para muitos no meu país. Poderia até dizer que é também a morte para vocês, se soubessem tudo o que acontece.

A cólera de Bates explodiu bruscamente:

- Por que diabo eu acreditaria nessa histôria? O carvão vai para a Holanda. - Falava com um sotaque indefinido, adquirido na escola noturna. - Nunca ouvi uma história assim.

D., contudo, sentia que ele acreditava um pouco. A sua boca frágil explorava a grande cabeleira como um disfarce para evocar a idéia de uma violência, de um radicalismo que não lhe adequava.

- Se não quer falar, eu falarei - replicou D.

O agente precipitou-se para a janela.

- Sente-se - ordenou D. - Pode chamar a polícia quando eu tiver acabado. Nada farei para escapar. Podem perguntar a esse homem que aí está quantas acusações pesam sobre mim... são tantas que já esqueci algumas: falsificação de passaporte, roubo de automóvel, porte de arma... e uma que vou juntar às outras: incitação à violência.

Aproximou-se da janela e gritou:

- Camaradas!

Na cauda da multidão conseguiu ver o velho Jarvis que olhava para ele com ar cético. Havia umas cento e cinquenta pessoas na rua: muitas tinham abalado a espalhar a notícia.

- Tenho de lhes falar...

- Para quê? - urrou uma voz.

- Vocês não sabem qual é o destino deste carvão?

A expressão dos ouvintes era de triunfo e hilariedade, Outra voz berrou:

- Vai para o Pólo Norte.

Começaram a se dispersar; D. fora outrora um conferencista notável, mas nunca fora um orador público. Não sabia como atrair e prender aquela gente.

- Com mil diabos! - exclamou ele - Têm de me ouvir!

E pegando um cinzeiro que estava em cima da mesa atirou-o violentamente contra o vidro da janela.

- Que é isso? - bradou Bates - O prejuízo é do hotel...

O ruído dos vidros estilhaçados atraiu a atenção da multidão.

- Não querem com certeza que o carvão extraído com seu trabalho se destine a matar crianças.

- Cale a boca! - gritou o outro.

Mas ele continuou:

- Eu sei que importância o trabalho tem para vocês. Mas para nós é uma questão de vida ou de morte.

Num olhar de esguelha, viu no espelho o rosto de L., satisfeito, indiferente, esperando pacientemente que ele acabasse. Tinha a vitória nas mãos.

D. continuou:

- Sabem porque eles precisam do seu carvão? Porque os nossos mineiros se recusam a trabalhar para eles. Eles os fuzilam-nos, mas se negam a trabalhar.

Entre a multidão conseguiu ver o rosto do velho George Jarvis. Um pouco desviado dos outros, o ar carrancudo e fechado, descrente de tudo. Alguém gritou:

- Joe Bates que fale!

E o grito teve eco em várias bocas:

- Joe Bates!... Joe!...

- É a sua vez - disse D. a Bates, voltando-se para trás.

- Vai pagar pela brincadeira.

- Vamos, fale! - insistiu D.

Bates, sem entusiasmo, aproximou-se da janela. Tinha aprendido com os velhos agitadores a lançar para trás a trunfa de cabelos indisciplinados, a única marca revolucionária na sua fisionomia.

- Camaradas! - disse ele. - A acusação que acabam de ouvir é muito grave.

Seria possível que, apesar de tudo, ele se decidisse a agir? Uma voz de mulher gritou:

- A caridade começa em casa...

- Acho que o melhor que temos a fazer - prosseguiu ele - será pedir ao agente de Lord Benditch que nos garanta que o carvão segue na verdade para a Holanda, e só para a Holanda.

- Para que serve essa confirmação? - perguntou D.

Mas o outro não o ouviu:

- Se ele nos disser que sim, podemos ir trabalhar com a consciência tranquila.

O agente precipitou-se:

- O senhor Bates tem razão. E eu afirmo categoricamente, em nome de Lord Benditch...

As suas palavras foram coroadas de aplausos. D. encontrou-se  só diante de L. enquanto as aclamações borbulhavam.

- Como vê, devia ter aceitado a minha oferta - disse L. - A sua situação é agora muito delicada. Encontraram o cadáver do senhor K

- O senhor K.?

- está nos jornais desta manhã. Uma mulher, de nome Glover, encontrou-o na casa dela ontem à noite. Declarou à polícia que recebera uma advertência psíquica.

O agente, entretanto, dizia:

- Quanto a este homem, a polícia o procura por fàlsificação e roubo...

L. continuava:

- Apareceu um indivíduo chamado Fortescue que declara ter visto na casa de Miss Glover um homem com uma garota. O homem tinha um curativo no rosto, mas a polícia está convencida de que era um truque para ocultar uma cicatriz.

Bates exclamou:

- Eh! Deixem passar a polícia.

- Não acha que é tempo de colocar-se a andar? - perguntou L.

- Ainda me resta uma bala na pistola.

- A quem a destina? A mim ou a você?

- O!  disse D. - Se ao menos eu soubesse até onde você pode ir!

Queria que alguma coisa o obrigasse a disparar, ter certeza que L. tinha dado ordem para matarem a criança; desprezá-lo, odiá-lo e disparar. Mas L. e a criança não pertenciam ao mesmo mundo... era incrível que ele tivesse dado tal ordem... Tem de haver alguma coisa de comum com as pessoas que se matam, quando a morte não ocorre impessoalmente em um desastre de avião ou com um tiro de canhão de longo alcance.

- Suba! - gritava da janela o agente de Lord Benditch a alguém que estava embaixo.

Como todos os do seu meio, acreditava piamente que um simples cabo de polícia pode dominar um homem armado.

L. replicou:

- A mim tanto faz... volta tudo ao mesmo...

Era supérfluo dizer o quê, dizer onde... jazia atrás da sua voz calma, inacessível ao medo, todo um mundo de existências... longos corredores e jardins bem tratados, edifícios de luxo, uma galeria de quadros, velhos criados pasmados de admiração pelos seus patrões... D. hesitava, com a pistola apontada dentro do bolso.

- Sei em que está pensando - disse L. -, mas essa mulher era louca, totalmente.

- Obrigado - replicou D. - Nesse caso...

Sentiu-se bruscamente aliviado, como se a loucura trouxesse a este mundo uma espécie de normalidade. Encontrava nela até o apaziguamento da sua própria responsabilidade. Dirigiu-se para a porta.

O agente de Lord Benditch afastou-se da janela e ordenou:

- Prendam-no!

- Deixem-no sair - disse L. - A polícia...

D. desceu as escadas correndo: um cabo de polícia, já não muito novo, entrava no vestíbulo. Olhou, inquieto, para D. e perguntou:

- O senhor viu?...

- Está lá em cima.

D. seguiu para um pátio nos fundos da casa. Em cima o agente de Lord Benditch gritava com voz esganiçada:

- É ele, cabo, é ele!

D. pôs-se a correr: tinha uns metros de vantagem, o pátio parecia vazio. Ouviu atrás dele um ruído de objetos quebrados e um grito: o cabo de polícia tropeçara. Uma voz disse-lhe:

- Por aqui, camarada.

E, sem refletir, encontrou-se nos banheiros, ao ar livre. As coisas precipitavam-se. Alguém ordenou:

- Ajudem-no!

E sentiu que o levantavam para ajudá-lo a saltar o muro. Caiu pesadamente, de joelhos, em cima de um caixote do lixo. Outra voz segredava-lhe:

- Não se mexa.

Estavam em um jardim minúsculo - uns metros quadrados de erva rala, um caminho de escória de carvão, a concha de um coco com filamentos pendentes, ligada a um pedaço de tijolo, que servia de comedor para os pássaros.

- Que vocês fazem aqui? - perguntou D. - Para quê?

D. queria explicar-lhes que estavam na propriedade da senhora Bermett, que a ajuda deles, assim, não serviria para nada, que ela certamente mandaria chamar a polícia... mas todos tinham desaparecido. Ficou sozinho outra vez, como um objeto lançado por cima do muro e esquecido. Ouviu gritos e mais gritos na rua. Esgotado, tinha permanecido de joelhos, como um monumento no jardim. Sentia-se furioso e agoniado. Voltava a ser a bola com que os outros jogavam - outra vez acossado. Para que servia isto? Era o fim. A cela de uma prisão atraía-o como lugar de repouso. Tinha, na verdade, lutado demais. Pôs a cabeça entre os joelhos para acalmar a sensação de vertigem. Lembrou-se de que não tinha comido mais nada depois do bolo do serão de entrenaciono.

Ouviu uma voz que lhe murmurava docemente:

- Levante-se!

- Quem são vocês?

Eles observavam-no alegremente; o mais velho não teria mais de vinte anos. As suas caras eram lânguidas, inacabadas, anárquicas.

- Não interessa quem somos - disse o mais velho. - Vamos à arrecadação.

D. obedeceu como um sonâmbulo. Na barraca, pequena e obscura, apenas havia lugar para eles. Sentaram-se os quatro no coque, no pó do carvão, nos cavacos de lenha. Entravam uns feixes de luz pelas fendas das tábuas.

- Que quer dizer isto? A senhora Bermett...

- A velha não vem buscar carvão no domingo.

- E Bermett?

- Está cozinhando.

- Talvez alguém tenha me visto.

- Não, estivemos à espreita.

- Vão revistar todas as casas.

- Não podem sem mandato de busca ou captura. O magistrado está em Woolhampton.

D. fatigado, renunciou:

- Parece então que terei de lhes agradecer.

- Guarde os agradecimentos - disse o mais velho. - É verdade que tem uma pistola?

- Tenho.

- O Grupo precisa dessa pistola.

- Sério? E quem é o Grupo? São vocês?

- Nós somos a Comissão Executiva.

Acocorados em volta dele, fitavam-no avidamente. D. perguntou evasivamente:

- Que é feito do cabo da polícia?

- O grupo tratou dele.

O mais novo dos rapazes coçou intencionalmente o tornozelo. Vocês não perdem tempo,

- É uma questão de organização - replicou o mais velho... - Além disso, tínhamos umas contas a ajustar.

- Joey, este que aqui está, passou-as boas... Foi antes de estarmos organizados.

O mais velho voltou agora à carga:

- Do que precisamos agora é da sua pistola. O senhor não precisa dela. O Grupo o protege.

- Ah, protege-me!

- Temos tudo organizado. Fique aqui e à noite, quando ouvir soar as sete horas, suba Pit-Street. É a hora em que todos estão tomando chá. E os que não estiverem estão na igreja. Há uma ruela que dá a volta à igreja. Espere ali o ônibus. Crickey estará à espreita.

- Quem é o Crickey?

- É um que pertence ao Grupo. Ele é o revisor dos bilhetes. Está encarregado de fazê-lo chegar a Woolhampton sem problemas.

- Não há dúvida de que têm tudo organizado. Mas para que querem a pistola?

O mais velho aproximou-se dele. Tinha a pele enrugada e pálida, os olhos sem expressão, como os dos cavalos das minas, Não se enxergaria neles o menor entusiasmo, nenhuma chama: a sua anarquia consistia simplesmente na resistência a certas violências.

- Nós ouvimos o que o senhor disse - explicou ele. - o senhor não quer que abram esta mina. Seremos nós quem vamos pô-los no seu lugar. Podemos fazê-lo.

- Os seus pais não trabalham lá?

- Isso não interessa.

- Mas como ... ?

- Sabemos onde eles guardam os explosivos. A única coisa que temos a fazer é arrombar a porta do armazém e explodir as cargas de dinamite. A mina ficará parada durante muitos meses.

O hálito do rapaz era horrível. D. sentia-se agoniado.

- Haverá alguém trabalhando na mina?

- Não, ninguém. Está tudo vazio.

Evidentemente, o seu dever era tentar esta possibilidade. Mas hesitava ainda.

- Para que precisam da pistola?

- Para estourar a fechadura.

- Sabem usá-la?

- Naturalmente.

- Só tem uma bala.

Estavam todos encostados uns aos outros na barraca. O hálito fétido que bolsavam. soprava o rosto de D. Tinha a sensação de estar entre animais das trevas, de sentidos adaptados às trevas, ao contrário dele que só na luz via alguma coisa.

- Porque querem fazer isso?

Replicou-lhe uma voz indiferente de adolescente:

- Gostamos...

- E se houiver alguém na mina

- Oh, tomamos todas as precauções. Não queremos ser enforcados.

Mas não os enforcariam e era o que tornava a coisa mais grave... eram irresponsáveis, menores. Em todo o caso, pensou ele, o seu dever era tentar... mesmo que se produzisse um acidente. Não se pode pôr a vida de estrangeiros na balança quando se trata dos nossos compatriotas. Com a eclosão da guerra fora abolido o código moral absoluto: há o direito de fazer o mal se daí resultar bem.

Tirou a pistola do bolso. O garoto mais velho agarrou-a imediatamente.

- Enterrem depois a pistola... por causa das impressões digitais.

- Fique tranquilo. Tenha confiança em nós. O Grupo nunca trai.

- Que estará a polícia fazendo agora?

- Só há dois agentes. O que tem motocicleta foi a Woolhampton buscar o mandato de captura. Eles acham que o senhor está na casa de Charlie Stowe e ele não os deixará entrar: também tem umas contas a ajustar com eles.

- Vocês não têm muito tempo para estourar a fechadura, lançar a dinamite e fugirem.

- Esperaremos pela noite. Não se esqueça: sete horas, a igreja, Crirckey estará à espreita.

Só depois de eles saírem se lembrou de que podia ter pedido alguma coisa de comer.

Foi com fome que sentiu as horas passarem muito lentamente. Entreabriu a porta da barraca, mas não viu mais do que um arbusto, alguns metros de ruela pavimentada de escória e o pedaço de coco no extremo de uma guita suja. Tentou, mentalmente, fazer planos. Mas para quê, quando a vida nos dispara como a um projétil! Mesmo que chegasse a Woolhampton, valeria a pena ir até à estação, que certamente estaria vigiada? Lembrou-se do curativo, agora inútil, e arrancou-o. Fora azar que aquela mulher tivesse encontrado tão cedo o corpo do sr. K. A pouca sorte, afinal, tinha-o perseguido desde o desembarque... Reviu uma vez mais Rose, ao longo da plataforma da estação de Dover, comendo um bolo. Teriam as coisas corrido de maneira diferente se ele não tivesse aceitado o lugar no carro dela? Não teria sido agredido, não teria se atrasado... O sr. K. talvez não suspeitasse de suborno e não tivesse se vendido... a governanta do hotel... mas essa, como dissera L., era louca. Que teria ele querido dizer? Fossem quais fossem, todas as pistas que D. seguia pareciam começar em Rose, na plataforma da estação e terminar em Else, estendida, morta no terceiro andar.

Um passarinho - D. não sabia os nomes dos Pássaros ingleses viera pousar no coco, Pensou: “Se chegasse até Woolhampton e conseguisse alcançar Londres, para onde iria? As coisas haviam se complicado ainda mais. Se o procurassem também pela morte do sr. K., a caçada seria muito mais séria do que antes. Não queria que Rose se envolvesse neste caso mais do que já estava. Como tudo se simplificaria se lhe aparecesse de repente um policial. O passarinho fugiu precipitadamente. Ouviu na ruela os passos de alguém que caminhava nas pontas dos pés. Esperou pacientemente que viessem prendê-lo.

Era apenas um gato - um gato preto que, de pé, na claridade brilhante daquele dia de Inverno, olhava para D., por assim dizer, de igual para igual. Depois afastou-se e desapareceu, deixando um vago cheiro de peixe. D. pensou bruscamente: O coco.

Quando escurecesse poderia ir apanhar o coco. Mas as horas passavam com desesperante lentidão. Em certa altura chegou-lhe ao nariz um odor da cozinha; depois, ouviu um chorrilho de injúrias despejadas sobre alguém da janela do primeiro andar... frases: Vergonha... desonra... bêbado indecente ... “. Devia ser a senhora Bermett, em uma tentativa desesperada de levantar o marido da cama. D. julgou ouvir: “ ... Lord Benditch ... “; depois fechou-se ruidosamente a janela. O resto iria passar-se no segredo terrível da intimidade conjugal. Entretanto chegava o crepúsculo.

O que o perturbava agora mais do que tudo era o destino da sua pistola. Impossível confiar naqueles garotos. A história dos explosivos era, sem dúvida, falsa do princípio ao fim; os rapazes apenas queriam a pistola para se divertirem com ela. No entanto, a qualquer momento qualquer coisa podia acontecer. Talvez eles disparassem apenas porque tinham o diabo no corpo, se bem que lhe fosse difícil acreditar na fogosidade infantil daquelas caras de garotos, cujo nascimento ninguém tinha desejado. Soou uma detonação que o sobressaltou. Provavelmente o automóvel do agente. Por fim caiu a noite. Para sair, D. esperou até deixar de ver o coco. Notou que lhe crescia água na boca só de lembrar-se daqueles magros restos de uma refeição de passarinho. O piso rangeu sob os seus passos e, na casa, levantou-se a cortina da janela. A senhora Bermett lançou um olhar fulgurante na sua direção. Ele via-a distintamente... vestida para sair, com o nariz achatado de encontro à vidraça da cozinha. D. imobilizou-se e esperou. Parecia-lhe impossível que ela o não tivesse visto. Mas o jardim estava muito escuro e ela deixou cair a cortina. D. esperou ainda um momento... depois continuou a andar em direção ao coco.

O regalo não foi grande: era duro e difícil de engolir. Como não tinha faca, teve de servir-se das unhas para arrancar a polpa branca e dura. Mas não há espera que não tenha um fim. Tinha entretanto passado tudo em revista: Rose, o futuro, o passado, os rapazes da pistola, até não ficar uma só coisa em que pudesse pensar.

Tentou recordar-se do poema que tinha copiado na agenda roubada pelo motorista de L. Renunciou. Na época em que os copiara, esses versos tinham tido uma grande importância para ele. Pensou na mulher: o fato de sentir fraquejar o laço que o unia ao túmulo dela era prova da falta de nobreza da vida. Os amantes deviam morrer ao mesmo tempo, juntamente, não cada um para seu lado.

Soaram sete horas em um relógio qualquer.

 

Meteu o que restava do coco no bolso e afastou-se cautelosamente. Notou bruscamente que os rapazes não tinham lhe indicado a maneira de sair do jardim. A juventude é assim: concebe um enorme plano de organização e esquece um detalhe prático importante. Fora uma loucura ter-lhes confiado a pistola. Pensou que eles também deviam ter saltado o muro pelo mesmo caminho que o haviam trazido. Simplesmente D. já não era um rapaz: era um homem envelhecido, fraco, que não comia há muito tempo. Levantou os braços, As suas mãos alcançavam o alto do muro mas faltavam-lhe as forças para se elevar. Tentou repetidas vezes, cada vez mais debilmente. Uma voz moça que vinha das latrinas segredou-lhe:

- É você, camarada?

Afinal, não haviam esquecido este detalhe.

- Sim - respondeu ele, abafando a voz,

- Há aí um tijolo deslocado.

Tateou no muro e encontrou o buraco que fazia uma espécie de degrau.

- Está bem.

- Suba depressa.

Caiu pesadamente no lugar onde iniciara a sua evasão. Um rapaz sujo observava-o severamente.

- Sou eu que estou de vigia,

- E os outros?

O rapaz voltou a cabeça na direção de um monte de escórias que formava um fundo negro, pesado como uma nuvem de temporal, sobre a povoação.

- Devem estar na mina.

D. sentiu crescer a sua apreensão. Aquilo fazia lembrar os cinco minutos que medeiam entre o sinal de alarme e as primeiras bombas: tinha o sentimento de que acabava de desencadear-se, como uma faísca sobre o monte, uma anarquia impiedosa.

- Vá encontrar Crickey - ordenou-lhe com voz áspera a pequena e suja personagem.

Obedeceu: que mais podia fazer? A longa rua de pedra cinzenta era mal iluminada e o Grupo parecia realmente ter escolhido a melhor hora: não se via ninguém. Se não fossem as luzes que brilhavam nas janelas do templo, bem podia dizer que atravessava uma povoação abandonada, uma relíquia da idade do carvão para mostrar aos turistas. Sentia-se cansado e doente. A sua apreensão aumentava a cada passo que dava. A idéia de um estampido súbito, que não tardaria a quebrar aquela enorme calma, amedrontava-o. A noroeste, um luar vermelho iluminava o céu, por cima de Woolhampton, como se a cidade estivesse queimando.

Uma viela estreita separava a capela da sua mais próxima... conferindo-lhe um ar falso de dignidade, de independência, no meio da povoação amontoada. Foi aí que D. esperou por Crickey e pelo ônibus de Woolhampton. O único policial que restava no povoado estaria naturalmente vigiando a casa de Charlie Stowe, até vir o mandato de busca. No interior da capela vozes femininas sem timbre cantavam: “Glória ao Todo Poderoso que está nos Céus ... “

Começou a cair uma chuva fina que o vento trazia de além das colinas de escórias. Vinha impregnada de poeira de carvão e batia-lhe na cara como tinta. Uma voz de homem, rude, terna, imperativa, disse, muito distintamente, quase ao ouvido de D.: “Oremos”, e a oração improvisada começou a correr magnificamente: “Fonte de Bondade e de Verdade ... “. O frio e a umidade infiltravam-se e fixavam-se-lhe no peito como uma compressa gelada.

O ruído de um carro? Sim. E avançou cautelosamente até à entrada do seu buraco na esperança de encontrar Crickey.

Mas voltou rapidamente para a sombra: não era o ônibus... era uma motocicleta guiada por um policial. Devia regressar de Woolhampton com o mandato de busca: não tardaria, portanto, que descobrissem que ele não estava na casa de Stowe. Quanto tempo levaria ainda o ônibus para chegar? Certamente iriam revistar esse ônibus... a menos que o Grupo também tivesse previsto isso e preparado qualquer coisa. Encostou-se à parede da capela para oferecer assim um mínimo de superfície à chuva penetrante. As orações continuavam. Imaginou o interior do templo iluminado, vasto e nu, com os lambris de madeira, uma mesa a servir de altar, o radiador quente, todas as mulheres com os vestidos domingueiros... A senhora Bermett... “Suplicamos pelo Mundo devastado e torturado... Piedade para as vítimas da guerra, para os sem lar, para os deserdados ... “. D. esboçou um sorriso sarcástico pensando: mal sabem que pedem por mim. Que pensariam se lhes dissessem? Os fiéis entoaram um hino: as palavras saíam, obscuras e sem ordem, da sua prisão de pedra e de carne: “Com o amor de Jesus o meu coração não receia a inconstância ... “.

Foi projetado para o outro lado da rua e sentiu uma pancada violenta na cabeça. Ao mesmo tempo voavam em volta dele estilhaços de vidro como quando explode uma granada. Teve a impressão de que ia ruir uma parede sobre ele e pôs-se a gritar... Tinha a consciência de uma comoção violenta, sem contudo ter ouvido o ruído: fora violento demais para que ele o ouvisse. Só no momento em que cessou começou a dar por ele, mas já se ouviam latidos de cães, gritos de pessoas e o leve sopro da poeira que se escapava do tijolo quebrado. D. pôs as mãos na cara para defender os olhos e tornou a gritar. Corriam vultos na rua; em algum lugar , como por provocação, um harmônio pôs-se a tocar. Não ouviu... tinha voltado ao porão de uma casa demolida com um gato morto junto da cara. Uma voz exclamou:

- É ele!

Desenterravam-no, mas não podia mexer-se sem encontrar a lâmina de uma pá ou o bico de uma picareta: suava de medo e gritava por socorro na sua língua. Viu-se na estrada de Dover, apalpado pelas mãos brutais de um motorista. Berrou furiosamente:

- Não me toquem.

-   Ele está armado?

- Não.

- Que tem ele no bolso da direita?

- Oh, isto é até engraçado... um pedaço de coco!

- Ferido?

- Parece que não - disse a voz. - Acho que está com medo.

- Será melhor algemá-lo.

D. reviu a longa, interminável estrada que ia desde o gato morto até Benditch, pela estrada de Dover. Sentiu que lhe prendiam as mãos e lhe libertavam os olhos. A mesma parede por cima dele e a chuva continuava a cair implacavelmente. Debruçados sobre ele dois policiais, na rua uma pequena multidão lúgubre que o olhava avidamente. Ouviu uma voz que dizia: “A prédica continua na passagem da Escritura que diz ... “.

- Não se incomodem - disse D. - Eu vou.

Levantou-se a muito custo. Machucara as costas na queda.

- Preciso me sentar, se não lhes faz diferença - acrescentou.

- Não lhe vai faltar tempo para ficar sentado.

Um deles pegou-lhe no braço e levou-o pela rua escura e sórdida. Perto encontrou um ônibus com a indicação: Woolhampton. No estribo, um rapaz de sacola a tiracolo olhava para ele inexpressivamente.

- De que sou acusado? - perguntou D.

- Fique tranquilo que poderá escolher - disse o agente.

- Creio - replicou D. - que tenho o direito...

E olhou para as algemas.

- Proferiu palavras susceptíveis de alterarem a ordem pública... penetrou clandestinamente em um recinto fechado com a intenção de cometer um ato criminoso. Para começar parece que basta.

D. desatou a rir. A hilariedade foi mais forte do que ele.

- Essas duas são novas. Vou juntá-las à coleção.

No posto deram-lhe uma xícara de chocolate e pão com manteiga; depois fecharam-no em uma cela. Há muito tempo que não gozava de tanta paz! Percebeu que telefonavam para Woolhampton a seu respeito, mas só conseguiu ouvir algumas palavras desarticuladas. Pouco depois o agente mais novo trouxe-lhe uma caneca de sopa.

- Você é um preso famoso - disse-lhe ele.

- Ah, é mesmo?

- De Londres reclamam-no a toda a pressa. Querem interrogá-lo - acrescentou respeitosamente.

- A troco de que?

- Não sei, mas já deve saber pelos jornais. Tem de ir no trem da meia-noite. Eu o levarei...

- Pode dizer-me se na explosão alguém ficou ferido?

- Foram uns garotos que fizeram ir pelos ares o armazém de explosivos da mina. Por milagre ninguém ficou ferido. Apenas o velho George Jarvis. Ninguém entende o que estaria ele fazendo naquele lugar. Queixa-se de uma comoção, mas seria preciso pelo menos um terremoto para comover o velho Jarvis.

- Não houve, então, muitos estragos?

- Nenhum, além do próprio armazém e de alguns vidros quebrados.

- Estou vendo...

Até a última bala tinha falhado.

 

O juiz de Instrução tinha poucos cabelos brancos, rugas profundas em volta da boca e usava óculos, a sua expressão era de amarga benevolência. Batia incessantemente com a caneta na folha de mata-borrão. parecia que as intermináveis divagações das testemunhas da polícia lhe arrasavam os nervos: “Fomos então a ... “, “Tendo tomado conhecimento de que ... “.

- Suponho que o que quer dizer - interrompeu o magistrado irritado - é que...

Haviam autorizado D. a sentar-se no banco dos detidos. Do lugar em que se encontrava apenas podia ver alguns advogados da Coroa, os policiais, o escrivão sentado em uma mesa, abaixo da mesa do juiz de Instrução - todos desconhecidos. Tinha, porém, visto desfilar uma série de caras conhecidas enquanto estivera à porta do tribunal à espera de que o chamassem: o sr. Muckerji, o velho Dr. Bellows, até Miss Carpenter. A todos tinha sorrido penosamente antes de ir ocupar o seu lugar no banco dos acusados e de lhes voltar as costas. Como eles deviam estar intrigados... exceto, é claro, o sr. Muckerji que devia ter a esse respeito alguma teoria engatilhada. D. sentia-se terrivelmente cansado.

Aquelas trinta horas haviam sido duras. Primeiro a viagem até Londres, na companhia de um polícia que não o deixara dormir durante toda a noite, falando-lhe de uma luta de boxe a que iria, ou não, assistir no Albert Hall. Depois o interrogatório na Scotland Yard. Ao princípio tinha se divertido; tudo aquilo contrastava com a maneira como os interrogatórios - a cacete - eram feitos no seu país! No compartimento, três homens que, ou estavam sentados, ou passeavam molemente de um lado para o outro, meticulosamente louros. Por vezes um deles ia buscar para D. chá e biscoitos - um chá de má qualidade e biscoitos muito doces. Também lhe ofereceram cigarros, amabilidade que D. retribuiu. Não gostaram muito do seu tabaco negro e forte, mas D. notou, intimamente divertido, que eles tomavam nota da marca inscrita no pacote pois, mais tarde, poderia ser útil.

Tentaram, evidentemente, atribuir-lhe a morte do sr. K., D. pensou o que seria feito das outras acusações, o passaporte falso, o presumido suicídio de Else, para não falar na explosão de Benditch. Perguntaram-lhe:

- O que fez da pistola?

Foi a alusão mais direta à cena da embaixada.

- Joguei-a no Tâmisa - respondeu, em tom de gozo. Insistiram gravemente no caso. D. estava vendo-os usando escafandros, dragas...

- Oh - disse D. - de uma das suas pontes. Não conheço os nomes.

Tinham descoberto todos os detalhes da sua visita ao serão de entrenaciono, onde fora com o sr. K. Uma testemunha declarara que o sr. K. fizera uma cena na rua, porque o seguiam. Essa testemunha chamava-se Hogpit.

- Não era eu quem o seguia - declarou D. - Deixei-o à porta do escritório de entrenaciono.

- Há uma testemunha chamada Fortescue que o viu com uma mulher...

- Não conheço ninguém com esse nome.

O interrogatório tinha durado duas horas. Houvera uma chamada telefônica. Um detetive, de auscultador na mão, voltara-se para D., para lhe dizer:

- Todas as suas declarações são voluntárias. Tem o direito de se recusar a responder a todas as perguntas sem a presença do advogado.

-   Não quero advogado - replicou D.

- Não quer advogado - disse o detetive ao telefone, e desligou.

- Quem era? - perguntou D.

- Não sei.

Serviu a D. a quarta xícara de café, perguntando:

- Duas colheres de açúcar?

- Sem açúcar.

- Perdão.

Algumas horas depois tivera as confrontações para a sua identificação. Era um pouco humilhante para um antigo professor de línguas românicas ver as caras que eles tinham escolhido. Eis - pareciam eles querer dizer - como você se parece. D. contemplou com melancolia toda uma série de malandrins de Soho, mal barbeados, a maior parte com ar de bandidos ou de criados de café reles. Teve, no entanto, a satisfação de ver que a polícia só tinha sido muito honesta.

Fortescue surgiu bruscamente por uma porta que dava para o pátio. Trazia o guarda-chuva em uma das mãos e o chapéu na outra. Olhou para a fila miserável com ar de um rapaz tímido; hesitou diante de um vagabundo, colocado à direita de D., um indivíduo com o ar de quem parecia capaz de matar alguém por um maço de cigarros.

- Parece-me... - disse Fortescue - ... não talvez...

Voltou os olhos pálidos e aflitos para o detetive e acrescentou:

- Desculpe, mas... eu sou míope... e aqui é tudo tão diferente...

- Diferente?

- Diferente... quero dizer... diferente da casa de Emily... perdão, de Miss Glover.

- Ninguém lhe pede para identificar os móveis.

- Não. Mas o homem que eu vi tinha um curativo... e nenhum destes...

- E não pode imaginar o que seria esse homem sem o penso?

- Oh, sim...

Olhou para o rosto de D.

- Este tem uma cicatriz... É possível...

Mas não forçaram a afirmação. Era um argumento que não contava. Tinham levado Fortescue e trazido um homem com um grande chapéu preto que D. se lembrava de ter visto em um lugar qualquer.

- Reconhece - perguntou o detetive - o homem que o senhor declara ter visto no táxi?

- Se seu agente tivesse cumprido a sua obrigação em lugar de teimar que ele estava bêbado...

- Não há dúvida, enganou-se.

- E foi por causa desse engano que eu fui levado aos tribunais por impedimento da circulação.

- Em todo o caso, meu caro senhor, apresentamos-lhe desculpas. Bem, acabou. Mande vir esses homens.

- Ali, estes? Vieram voluntariamente? - perguntou ele muito seco.

- Naturalmente. Pagamos para virem... exceto o preso, é claro.

- E qual é o preso?

- Mas é o senhor que tem de designá-lo.

- Ali, sim, sim... - disse o homem do chapéu preto, que se pôs a observar rapidamente a fila.

Parou diante do homem que já tinha chamado a atenção de Fortescue e disse com voz firme:

- Aqui está o homem.

- O senhor tem certeza?

- Toda a certeza!...

- Muito obrigado.

Depois disto não trouxeram mais ninguém. Talvez pensassem que, sendo ele acusado de tantos delitos, não lhes faltaria tempo para lhe atribuírem o mais grave. D. sentia-se totalmente apático. Tinha fracassado. Limitava-se a negar tudo. Eles que provassem... se pudessem. Por fim levaram-no para a cela onde dormiu um sono agitado. Com algumas diferenças, os velhos sonhos voltaram. Passeando à beira de um rio, discutia com uma garota... ela afirmava que o manuscrito de Berna era muito posterior ao de Bodleian. Sentiam-se ambos extraordinariamente felizes no seu passeio ao longo do rio. Ele dizia “Rose ... “. Pairava no ar um perfume de Primavera: muito longe, na outra margem do rio, erguiam-se arranha-céus semelhantes a túmulos. Um polícia sacudiu-o pelos ombros.

- Chegou um advogado que quer lhe falar.

D. não tinha a menor vontade de se encontrar com o advogado. Seria muito cansativo.

- Creio que o senhor ainda não compreendeu - disse-lhe ele. - Não tenho dinheiro. Quer dizer: para ser absolutamente verdadeiro, tenho duas libras e o meu bilhete de volta.

O advogado era novo, vivo, ágil e descontraído.

- Não se preocupe com isso. Alguém tratou desse detalhe, Confiamos a sua causa a Sir Terence Hiliman. Pensamos que era necessário mostrar claramente que o senhor ainda tem amigos, que é uma pessoa importante...

- Se considera que duas libras...

- Não falemos de dinheiro por hora - disse o advogado. - Asseguro-lhe que já fomos pagos.

- No entanto, preciso saber, antes de consentir...

- O senhor Forbes encarregou-se de tudo.

- O senhor Forbes?!

- E agora - continuou o advogado -, entremos em detalhes. É evidente que eles acumularam um grande número de acusações. Em todo caso já anulamos uma: a polícia admite que seu passaporte está perfeitamente em ordem. Foi uma sorte termos encontrado o exemplar do livro oferecido ao Museu.

Com interesse renovado D. pensou: “Bravo, Rose! É alguém com quem se pode contar e que sabe servir-se das melhores armas nos momentos mais oportunos.”

- E a morte dessa garota? - perguntou ele.

- Oh, a esse respeito nunca dispuseram de provas. Além disso, a mulher confessou. Uma doida, evidentemente. Tinha crises nervosas. Um indiano que está hospedado no hotel andou pela vizinhança fazendo perguntas... Não, não... será de ataques piores do que esse que teremos de nos defender.

- Quando aconteceu tudo isso?

- No sábado à noite. Já saiu na última edição dos jornais de domingo.

D. lembrou-se do cartaz publicitário que tinha visto durante a travessia do parque - falava de revelações, da tragdia de Bloomsbury - e veio-lhe à memória toda a frase absurda. Se ao menos tivesse comprado um jornal, teria podido deixar o sr. K. em paz e talvez tivesse evitado muitos problemas. Olho por olho... Não se exige absolutamente os dois olhos.

- Naturalmente - disse o advogado -, as nossas melhores esperanças assentam, de certa maneira, na multiplicidade das acusações.

- O homicídio não tem prioridade?

- Duvido que atualmente possam inculpá-lo por homicídio. - Tudo isto parecia a D. complicado e sem interesse. Eles tinham-no preso e não deixariam sem dúvida de procurar e juntar provas. Esperava que Rose não seria de maneira nenhuma metida no caso: era ótimo que ela não tivesse ido vê-lo. Pensou se seria prudente mandar dizer alguma coisa pelo advogado. Pensou que ela teria bastante bom-senso para não se aproximar do Palácio da Justiça. Lembrou-se do que ela tão nitidamente lhe havia declarado: “Não posso amá-lo se estiver morto” e não gostou de sentir que a sua situação dependia sobretudo do fato de ela não cometer qualquer imprudência.

Rose também não assistiu ao julgamento de instrução. D. tinha certeza: ele a reconheceria na multidão com um simples olhar. Se ela tivesse assistido talvez ele  tivesse se interessado um pouco pelos debates. Pretende-se sempre mostrar vivacidade ou bravura quando se está apaixonado... (estaria apaixonado?).

De quando em quando, um homem de certa idade, com um nariz de papagaio, levantava-se para submeter um dos polícias a contra-interrogatórios. Depois o caso foi bruscamente adiado por oito dias. O seu advogado não tivera tempo de indicar testemunhas... havia no processo pontos que permaneciam obscuros. D. não entendia o adiamento. Ainda não fora acusado de homicídio e quanto menos tempo deixassem à polícia para se ocupar do seu caso, melhor. Era o que lhe parecia. A acusação declarou que não via inconvenientes. Era um homenzinho medíocre com cabeça de pássaro. Sorriu sardonicamente do colega aristocrata e conceituado que assim lhe permitia ganhar um ponto; consíderava-o estúpido.

Sir Terence tornou a levantar-se para pedir que o seu cliente fosse posto em liberdade provisória sob fiança. O tribunal envolveu-se em uma discussão que pareceu a D. absolutamente idiota. Acima de tudo, quem iria pagar a fiança de um estrangeiro tão reles e indesejável?

- Protesto energicamente, Excelência, contra a atitude da polícia. Alude a uma acusação mais grave... Pois que a formule para sabermos com o que teremos de nos haver. No momento, a acusação não juntou senão uma longa lista de crimes menores: porte de arma proibida... resistência à autoridade por motivo de uma prisão despropositada... prisão por uma culpa que a polícia ainda não se deu ao trabalho de examinar seriamente...

- Incitação à violência - disse o homenzinho com cabeça de pássaro.

- Política! - exclamou Sir Terence. Engrossou a voz e acrescentou: - Senhor Presidente, parece-me que se está verificando no seio da polícia uma tendência a que Vossa Excelência certamente se oporá. Prende-se um homem por um delito banal qualquer para dar tempo à busca de provas de outro crime...

Continuaram assim a discutir. De repente, o Juiz de Instrução, espicaçando com o canivete a folha de mata-borrão, interveio:

- Não posso deixar de pensar, senhor Fermick, que há alguma coisa de verdade no que diz Sir Terence. De fato, não vejo nas acusações atuais nada que me impeça de conceder a liberdade provisória. Não lhe basta que a fiança seja fixada em uma importância elevada? Além disso, a polícia não tem em seu poder o passaporte do réu?

E a discussão tornou a acender-se.

Como tudo isto parecia pueril. Tinha apenas duas libras no bolso... precisamente, nem sequer no bolso, pois as tinham apreendido no momento da sua captura. Por fim o juiz concluiu:

- Concedo o adiamento da causa por uma semana e a liberdade provisória mediante o depósito de duas fianças de mil libras cada uma.

D. riu com prazer... Duas mil libras!... Um policial tocou-lhe no braço:

- Venha comigo.

Encontrou-se no corredor que servia a sala das sessões, com o advogado muito sorridente:

- Sir Terence fez-lhe uma pequena surpresa, hein?

- Não consegui compreender a razão de toda esta agitação - replicou D. - Por um lado, não tenho um tostão, por outro, sinto-me perfeitamente à vontade na cela da prisão.

- Foi tudo arranjado.

- Mas por quem?

- Pelo senhor Forbes. Está lá fora à sua espera.

- Quer dizer então que estou livre?

- Como o ar. Por uma semana. A menos que, entretanto, eles descubram provas que lhes permitam prendê-lo outra vez.

- Continuo a não entender porque se dão a todo este trabalho.

- Ah - disse o advogado -, o senhor tem no senhor Forbes um grande amigo.

Desceu os degraus do Palácio. Lá estava o sr. Forbes, nervosamente agitado, ao lado de um Packard, com calças de golfe muito vistosas. Olharam embaraçadamente um para o outro, esquecendo-se de se cumprimentar.

- Tanto quanto compreendo - disse D. - Devo agradecer-lhe pela assistência de Sir Terence e também pela fiança. Na verdade... era inútil.

- Não falemos mais nisso - replicou Forbes.

E olhou longa, dolorosamente, para ele como se tentasse ler na sua cara a explicação de alguma coisa.

- Queira sentar-se ao meu lado. Não trouxe o motorista.

- Tenho de encontrar um buraco onde possa dormir, mas também tenho de pedir à polícia que restitua o meu dinheiro.

- Não se preocupe com isso por hora. - Entraram no carro e o senhor Forbes arrancou. - Peço-lhe que veja aí o nível da gasolina.

- O tanque está cheio.

- Perfeito.

- Onde vamos?

- Se me dá licença, passaremos por Shepherd Market... são só uns minutos.

Avançaram em silêncio ao longo de Strand, voltaram em Traflgar Square, entraram em Picadifly... Chegaram à pequena praça, no meio do mercado, e o sr. Forbes buzinou duas vezes ao mesmo tempo que olhava para uma janela que ficava por cima de uma peixaria.

- Demoro apenas um minuto - disse ele, desculpando-se. Uma mulher veio à janela, com uma cara miúda, bonita e roliça, e vestida com um roupão malvacento. Um aceno de mão. Com um sorriso constrangido, o sr. Forbes disse: - Perdoe-me.

E desapareceu por uma porta ao lado do comerciante de peixe. Na valeta passou um grande gato que encontrou uma cabeça de peixe; sapateou-a uma ou duas vezes e afastou-se.

O sr. Forbes regressou. Olhou prudentemente de esguelha para D. e disse:

- Não é má garota.

- Ah!

- Creio que é verdadeiramente fiel.

- É natural.

O senhor Forbes tossiu para aclarar a voz: iam agora em Knightsbridge.

- O senhor é estrangeiro... Talvez não lhe pareça extraordinário que eu continue a ver Sally... embora... esteja apaixonado por Rose.

- Nada tenho com isso.

- Um homem tem de viver. E até esta semana eu não tinha a menor esperança...

- Ah!

D. pensou ao mesmo tempo: aqui estou eu falando como o velho Jarvis.

- Ao mesmo tempo é útil - disse o sr. Forbes.

- Não duvido.

- Quer dizer... hoje, por exemplo, ela está disposta a jurar, se for preciso, que passei todo o dia com ela.

- Não vejo porque ser tão preciso.

Atravessaram Hammersmith sem falar. Foi só quando chegaram a Western Avenue que o sr. Forbes disse:

- Creio que o senhor deve estar bastante intrigado.

- Um pouco.

- Pois bem, aqui tem o que há - explicou o sr. Forbes. - Entende certamente que tem de sair quanto antes da Inglaterra, antes que a polícia lance mão de elementos suplementares que o impliquem em um caso mais sério. Bastaria a história da pistola...

- Não creio que a encontrem.

- Nunca se sabe. Tecnicamente, eles consideram ter havido homicídio, quer tenha atingido ou não o sr. K. Não creio que o enforcassem por isso, mas de uns quinze anos ninguém o livraria.

- Não duvido. Mas a fiança...

- Sou eu o responsável pela fiança. O senhor tem de partir esta noite. Não irá muito bem instalado. Trata-se de um cargueiro, em serviço irregular, que parte esta noite para o seu país com mantimentos. Não lhe garanto que não seja bombardeado na chegada, mas isso é com o senhor.

A sua voz quebrou de maneira estranha. D. lançou um olhar rápido sobre a fronte abaulada de judeu e os seus olhos negros, acima de uma gravata de cores gritantes: o homem chorava. Ao volante do seu carro, um judeu envelhecido chorava em plena Western Avenue!

- Está tudo arranjado - disse ele. - Será introduzido clandestinamente a bordo, ao largo, depois da vistoria da alfândega.

- É muito generoso da sua parte...

- Não é pelo senhor que faço - respondeu ele. - Rose me pediu para fazer tudo o que pudesse. - Era então de amor que ele chorava. O carro virou para o sul. O senhor Forbes acrescentou em tom breve, como se respondesse a uma acusação: - Pus, naturalmente, as minhas condições.

- Ah, sim?

- Pedi-lhe para não vê-lo. E a proibi de ir ao tribunal.

- E ela consentiu em casar consigo... apesar da existência de Salliy?

- Sim. Como sabe que ela sabia?

- Ela me disse.

D. pensou intimamente: “tudo corre bem. Eu não estou em estado nem situação de ser um amante; e ela descobrirá um dia que Furt... é bom para ela. Antigamente ninguém fazia casamentos de amor; havia só pactos de casamento, Isto é um pacto. Não há de que me julgar desgraçado. Devo sentir-me feliz... feliz por poder voltar novamente para um túmulo sem ter sido infiel.”

- Vou deixá-lo - acrescentou o sr. Forbes - em um hotel perto de Southcrawl. Irão buscá-lo em uma lancha a motor. Ninguém se surpreenderá, é muito frequentado mesmo nesta época do ano. - Acrescentou uma frase inesperada: - Clima tão agradável como em Torquay.

Ficaram depois sombrios e silenciosos. O carro seguia para sudoeste com o futuro marido e o apaixonado... (se, de fato, ele estava apaixonado).

Ia a tarde já muito adiantada e eles por alturas das dunas de Dorset, quando o sr. Forbes tornou a falar:

- Sabe que, apesar de tudo, a sua missão teve certo êxito... Acha que não terá... complicações no seu país... quando chegar?

- Estou à espera disso.

- O que não sabe é que aquela explosão de Benditch pulverizou o contrato de L. Ora, se à explosão juntarmos a morte do K....

- Não compreendo.

- O senhor não conseguiu o carvão, mas L. também não. Nós nos reunimos esta manhã e resolvemos rescindir o contrato. O risco era muito grande.

- O risco?

- O risco do governo se opor à extração depois da reabertura das minas, o senhor não podia ter arranjado melhor publicidade para todo este negócio, nem que tivesse comprado a primeira página do Dady Mail. Já saiu um artigo de fundo que fala de gangsters políticos e da guerra civil transportada para o território inglês. Tivemos de escolher entre perseguir o jornal por difamação ou rescindir o contrato e proclamar que tínhamos assinado de boa fé julgando que o carvão se destinava realmente à Holanda. Resolvemos rescindir.

Era evidente uma meia vitória: D. teve o pensamento macabro de que a sua morte fora adiada... que o abandonariam às bombas em vez de lhe resolverem expeditivamente todos os seus problemas junto ao muro de um cemitério.

No alto da colina avistaram o mar, D. não o tornara a ver depois daquela noite de nevoeiro em Dover, onde as gaivotas se faziam ouvir. À direita, ao longe, principiava um conjunto de vivendas, acendiam-se as luzes e, para o largo, avançava uma esplanada como uma centopéia iluminada.

- Ali está Southcrawl - disse o sr. Forbes.

Na superfície cinzenta da Mancha, que se desvanecia, não se viam quaisquer luzes de embarcações.

- É tarde - disse o sr. Forbes com certo nervosismo.

- Para onde vou?

- Vê aquele hotel, embaixo à esquerda, a cerca de duas milhas de Southcrawl?

Desceram lentamente a colina. À medida que se aproximavam, o hotel parecia mais uma aldeia... ou um aeródromo: círculos e círculos de pavilhões de aço cromado cercavam uma central iluminada... campos, depois outros pavilhões.

- Chama-se Lido - disse o sr. Forbes. Olhou de esguelha, sabiamente: - Na verdade, sou dono deste estabelecimento. Asseguramos na nossa propaganda que é um cruzeiro sem sair da terra firme. Jogos organizados por um secretário, concertos, ginásio. E tem muitas vantagens: não se enjoa e é barato.

Forbes estava verdadeiramente entusiasmado:

- Sally está interessadíssima. Acredita muito na cultura física.

- Dirige pessoalmente o estabelecimento?

- Bem desejaria poder fazê-lo mais diretamente. Faz bem ter um brinquedo. Mandei vir agora um homem que está estudando o negócio. Tem uma grande experiência deste gênero de estabelecimentos. Se a minha idéia lhe interessar, instalo-o com todas as responsabilidades, mil e quinhentas libras por ano, todas as despesas pagas. Queremos clientes que venham durante todo o ano. Vai ver, agora que começa a época do Natal.

Um pouco mais longe, o sr. Forbes parou o carro.

- O seu quarto está reservado para a noite - disse ele. - Não será o senhor o primeiro hóspede que desaparece durante a noite sem pagar a conta. Naturalmente nos queixaremos à polícia, mas suponho que mais uma acusação insignificante como esta não deve incomodá-lo. O seu quarto é o 105-C.

- Parece o número de um presidiário.

- Irão buscá-lo ao seu quarto. Peça a chave no escritório.

- Sei que é desnecessário agradecer-lhe - disse D. - mas, em todo o caso... - De pé, junto do carro, procurava em vão a frase conveniente: - Mande lembranças minhas à Rose... E dê-lhe os meus parabéns!... Diga-lhe que são sinceras e que a felicito...

Estacou subitamente: surpreendera na cara de Forbes uma expressão que era quase de ódio. Deve ser na verdade humilhante ser aceito em tais condições...

- Ela não poderia ter encontrado melhor amigo - concluiu D. O sr. Forbes inclinou-se para a frente, pisou violentamente o acelerador e arrancou. D. ainda viu os seus olhos raiados de sangue: não era ódio, era desgosto.

Seguiu pela estrada em direção a duas colunas iluminadas com néon que marcavam a entrada do Lido,

O chefe da recepção ocupava um compartimento à entrada dos jardins.

- Perfeitamente - disse ele - o quarto do senhor foi reservado ontem pelo telefone...

E deitando um olhar sobre os registros:

- Senhor Davis... exatamente... A sua bagagem está à porta?

- Creio que ainda não chegou - disse D. - Vim a pé de Southcrawl.

- Quer que telefone para a estação?

- Não vale a pena. Esperemos uma hora ou duas. Creio que não será obrigatório vestir-me para o jantar?

- Não! Não, senhor Davis. Inteira liberdade. Quer que envie ao quarto o secretário dos esportes para conversar um pouco?

- Não, durante estas primeiras vinte e quatro horas só quero respirar um pouco de ar puro.

Vagueou durante muito tempo em volta dos círculos cromados. Cada quarto dispunha de um terraço para banhos de sol. Homens de calções, com os joelhos azulados de frio, corriam e riam ao crepúsculo. Uma garota de pijama gritava a um homem calvo: “Spot, já chamaram para o basquetebol?” o quarto 105-C parecia um camarote de navio. Tinha-se até a impressão de um vago odor de óleo e que se ouvia o barulho das máquinas. Como em um camarote de navio, fazia muito calor no quarto. D. abriu a vigia. Quase ao mesmo tempo surgiu a cabeça de um rapaz:

- Cucu!

- O que há? - perguntou D. enfastiado. - Sentou-se na cama. Não era provável que fosse o sinal que ele esperava. - Chamou-me?

- Oh, perdão! julguei que era o quarto do Chubby.

Deitado de costas na cama, D. pensou no sr. Forbes deslocando-se agora pela mesma estrada a caminho de Londres. Iria primeiro ver Rose ou Sally? Soou um relógio em algum lugar. Aqui terminava finalmente a sua viagem; quanto mais depressa estivesse de volta, melhor. Poderia então começar a esquecer a absurda imagem cômica que havia se fixado no seu espírito: a de uma garota atirando um bolo, através do nevoeiro, para a linha. Adormeceu e acordou. Tinha passado meia hora. Quanto tempo ainda? Foi à janela e olhou para fora. Nada, nada senão a noite e o ruído das ondas no seu movimento de vaivém... O interminável queixume de um elemento vencido. Nem uma luz no mar que anunciasse um navio aproximando-se da terra.

Abriu a porta: não havia corredores. Todos os compartimentos abriam diretamente, por assim dizer, para o convés exposto a todos os ventos. O luar refletia-se em um céu marmóreo, levantava-se uma brisa e o mar parecia muito próximo. Que sensação estranha, esta de não ser perseguido! Pela primeira vez, depois de ter desembarcado, ninguém o procurava. Gozava a existência calma, legal, de um homem que se encontra em liberdade provisória,

Saiu, a passo rápido, ao longo dos camarotes iluminados e sobreaquecidos. Havia aparelhos de rádio por toda a parte, que traziam música de Estugarda, de Luxemburgo, de Hilversum. Varsóvia sofria de parasitas e a BBC transmitia uma palestra sobre problemas da Indochina. Junto da torre do relógio, grandes degraus forrados de borracha conduziam às imensas portas envidraçadas de uma sala de convívio. Entrou. em uma mesa central havia à venda uma pilha de jornais e, ao lado, uma pequena bandeja para o comprador deixar o dinheiro. Tinham confiança na clientela. D. lembrou-se que não tinha um vintém no bolso: o sr. Forbes não lhe tinha dado tempo para reclamar o seu dinheiro na polícia. Seria embaraçoso se o navio demorasse... Olhou para os jornais da noite e pensou: “Com tantos crimes que levo às costas bem posso cometer um pequeno roubo.” Ninguém estava olhando para ele. Tirou um jornal.

Uma voz que ele conhecia muito bem dizia:

- É um espectáculo de uma beleza formidável.

“Meu Deus!” pensou D. “é absurdo ter percorrido toda esta estrada para, no final, encontrar o capitão Currie.” Lembrou-se então de que Forbes lhe havia falado de um homem experiente... O momento não era para amabilidades. Abriu o jornal de par em par e escondeu-se por trás dele. Uma voz servil disse-lhe ao ouvido:

- Perdão, senhor: parece que se esqueceu de pagar o jornal.

- Tem razão, mas não tenho troco.

- Posso arranjar-lhe troco.

D. estava de costas voltadas para gente que bebia, mas teve a sensação de que todo o grupo deixara de rir e escutava. Levou a mão ao bolso dizendo:

- Creio que deixei o dinheiro no outro terno. Pagarei depois.

- O número do seu quarto?

- 105-C.

Ouviu outra vez a voz do capitão Currie:

- Homessa!

Impossível tentar evitar o encontro. Afinal, estava em liberdade provisória: Currie nada podia contra ele. Voltou-se e sentiu a sua dignidade um pouco abalada ao ver os calções do capitão Currie. O homem adotara os costumes da casa.

- Não esperava encontrá-lo aqui - disse D.

- Nisso eu acredito - replicou o capitão Currie.

- Creio que tornaremos a nos ver à hora do jantar. Até logo.

E dirigiu-se para a porta com o jornal na mão.

- Mais devagar - gritou o capitão Currie. - Fique onde está.

- Não compreendo.

- Eh rapazes, este é que é o cara de que lhes falei!

Dois velhotes, redondos como luas-cheias, um pouco aquecidos pelo whisky, olharam-no:

- Não!

- Sim.

- Ainda por cima bifou um jornal - disse um deles.

- É capaz de tudo - declarou o capitão Currie.

- Faça o favor de sair do meu caminho - pediu D. - Quero ir para o meu quarto.

- Disso não duvido.

Um dos seus companheiros advertiu-o timidamente:

- Tome cuidado, talvez esteja armado.

- Não compreendo, meus senhores - disse D. - o que pretendem fazer? Não sou um culpado que quer fugir da justiça... não é assim que se diz? Estou em liberdade sob fiança e nenhuma lei me impede de passar o meu tempo como muito bem entender.

- Fala como um advogado experiente - disse um dos homens.

- Aconselho-o a ficar muito tranquilo - replicou o capitão Currie. - Descobrimos-lhe o jogo. Pensou que podia sair do país à surdina... mas não é assim tão facilmente que se enrola a Scotland Yard. É a melhor polícia do Mundo.

- Não compreendo.

- Não vai me dizer que ignora que foi passado um mandato de captura contra o senhor. Leia as notícias da última hora. Procuram-no por homicídio.

D. olhou para o jornal. Era verdade. Sir Terence não conseguira iludir a polícia durante muito tempo: a sua detenção devia ter sido decidida momentos depois de ele ter saído do tribunal. Estavam à sua procura. E o capitão Currie, que o havia encontrado, vigiava-o triunfalmente, com firmeza e uma ponta de respeito. Um homicídio é muito mais grave que o simples roubo de um automóvel.

- Somos três contra um. Trate de ficar quieto - disse o capitão Currie. - Não ganha nada fazendo escândalo.

 

- Importa-se de me dar um cigarro? - pediu D.

- Com certeza - satisfez o capitão Currie. - Pode guardar o maço. - E ordenou ao criado: - Telefone para a esquadra de polícia de Southcrawl e diga que o apanhámos.

- Bom - disse um dos companheiros - parece que também podemos nos sentar.

De pé, entre D. e a porta, tinham um ar bastante embaraçado. Estavam certamente pensando se não deviam amarrá-lo e amordaçá-lo, mas, ao mesmo, tempo pensavam que dariam muito na vista: o lugar era realmente muito frequentado. Sentiram-se aliviados quando D. se sentou, juntaram as cadeiras em volta dele. Um deles disse:

- Que acha, Currie?... Podíamos oferecer-lhe um copo, não tem mal nenhum. Quem sabe se não será o último!

- Que quer tomar? - perguntou Currie.

- Um whisky com água.

Quando o criado voltou, Currie disse-lhe:

- Um whisky. Telefonou?

- Sim senhor. Disseram que o tivessem guardado à vista e que daqui a cinco minutos estariam aqui.

- Não somos idiotas. Talvez pensassem que íamos deixá-lo fugir!

- Eu achava - disse D. - que na Inglaterra se consideram inocentes todas as pessoas cuja culpabilidade não está provada.

- E é verdade. Mas também é verdade que a polícia nunca prende um homem sem ter sérias razões para isso.

- Estou vendo como é verdade.

- Não tenha dúvidas - disse o capitão Currie, colocando a soda no seu whisky. - É um erro em que vocês, os estrangeiros, caem frequentemente. No seu país matam-se uns aos outros e ninguém lhes pede explicações. Não ache que podem fazer a mesma coisa na Inglaterra, com a mesma impunidade.

- Lembra-se de Blue? - perguntou um dos homens a Currie.

- Tony Blue?

- Esse mesmo. Esteve na Romênia e diz que viu um cara, na rua, disparando contra um policial. Foi ele mesmo que contou.

- Não se pode acreditar no que ele diz.

- Vêem algum inconveniente - perguntou D. - em que eu vá ao meu quarto buscar as minhas coisas? Um de vocês pode me acompanhar...

Pensara que, uma vez no quarto, lhe seria talvez possível... quando viesse o homem de Forbes... Naquela sala nunca o encontraria.

- É melhor esperar a polícia - disse o amigo de Blue. - Nada de corrermos riscos.

-  Poderia nos atacar e fugir.

- Para onde? Não estamos em uma ilha?

-  Prefiro fazer tudo pelo seguro - disse Currie.

D. pensou se aqueles que deviam ir buscá-lo não teriam já ido ao seu quarto. Teriam encontrado o quarto 105-C vazio.

- Façam-me um favor! - pediu Currie aos outros. - Vão um momento até à porta. Tenho uma coisa a dizer em particular a este senhor.

- Fique à vontade, meu velho.

Currie debruçou-se sobre o braço da sua poltrona e disse em voz baixa:

- Ouça, você é um gentleman não é verdade?

- Não tenho certeza... a palavra é inglesa.

- Quero dizer: você não vai declarar mais do que o preciso. Não conviria que uma garota extraordinária, uma autêntica senhora, se visse envolvida em uma história deste tipo.

- Não estou entendendo muito bem o que quer dizer.

- Que diabo! Essa história da mulher que estava com você na casa da tal Glover quando esse Forester...

- No jornal chamam-lhe Fortescue.

- Isso, é isso mesmo.

- Oh, creio... ignoro naturalmente tudo o que aconteceu... mas creio que essa mulher deve ser uma prostituta.

- Era isso mesmo que eu esperava ouvir-lhe dizer! É um homem decente.

Chamou os outros.

- Acabamos, rapazes. Que acham de outra rodada de whisky?

O amigo de Blue proclamou:

- Agora é a minha vez.

D. tinha os olhos pregados nas grandes portas envidraçadas. como os projetores estavam funcionando, nada era visível além de uns metros de relva em torno da casa. O hotel ali estava, para que o mundo pudesse ver, mas o mundo permanecia invisível para o hotel. Em algum lugar, nessa zona de trevas, estaria o cargueiro que se dirigia ao seu país. Quase lamentava ter dado a pistola ao grupo de rapazes de Benditch. E, no entanto, de certa maneira, eles tinham conseguido fazer alguma coisa.

Entraram algumas garotas alegres e com elas um pouco de ar frio na sala sobreaquecida. Faziam muito barulho, estavam exageradamente pintadas e via-se que tentavam, em vão, imitar uma classe social mais privilegiada do que a delas.

Pouco depois abriram a porta dois homens de impermeável que olharam em volta da sala de convívio.

- Procuramos um homem que se chama...

- Finalmente! - exclamou o capitão Currie - é a polícia!

- Quem é?

- É este o homem que procuram.

- Chama-se D.?

- Sim - respondeu D., levantando-se.

- Temos contra o senhor um mandato de captura por...

- É desnecessário dizer. Sei do que se trata.

As garotas, que se tinham calado, estavam de boca aberta.

- Por aqui - disse um dos polícias. - Temos um carro na estrada.

- Algemas?

- Creio que não é preciso - respondeu o homem com um sorriso. - Vamos, rápido!

Um deles pegou-lhe no braço sem brutalidade. Pareciam três amigos saindo depois de terem bebido uns copos. D. pensava: “A lei inglesa é aplicada com tato notável, todas as pessoas deste país, toda sem exceção, tem horror a escândalos.”

Desapareceram na escuridão da noite. Em proveito do extravagante brinquedo do sr. Forbes, os projetores submergiam as estrelas. Ao largo, muito longe, cintilava uma luz. Talvez o navio em que ele devia ter embarcado... para poupar à Inglaterra o contágio da sua doença e para poupar aos seus amigos todo o embaraço de confissões perigosas e de reticências inoportunas. Perguntou-se que iria pensar o sr. Forbes ao ler nos jornais da manhã a notícia da sua prisão.

- Vamos! - disse o policial - Não podemos ficar aqui a noite toda.

Encaminharam-no para lá da área iluminada a néon. Com um gesto, sem pararem, saudaram o empregado da recepção. Afinal o delito de saída sem pagar a conta não se juntaria aos outros crimes. O carro esperava na estrada, as luzes discretamente apagadas. “Teria sido desagradável para a reputação do hotel” pensou D. “um carro da polícia muito em evidência à porta do estabelecimento. Neste país os contribuintes são sempre protegidos.” Havia um terceiro homem sentado ao volante. Logo que eles apareceram pôs o motor a trabalhar e acendeu os faróis. D. sentou-se no banco traseiro, entre os dois outros policiais. Deram a volta e dirigiram-se para Southcrawl.

Um dos homens limpou o suor:

- Santo Deus!

O carro lançou-se a toda a velocidade por uma estrada transversal que se afastava de Southcrawl.

- Quando eles disseram à porta que o senhor estava guardado à vista, achei que ia desmaiar.

- O senhor não é da polícia?

O fato não lhe causou a menor satisfação. Tudo ia recomeçar.

- É claro que não somos da polícia. Nem imagina o susto que nos pregou. Estava vendo que o senhor ia exigir que lhe mostrássemos o mandato de captura. Não desconfiou de nada?

- É que a polícia está a caminho.

- Prego a fundo, Joe!

Aos solavancos desceram um caminho que os aproximava do mar. O marulhar das ondas ouvia-se cada vez mais nitidamente.

- É bom marinheiro? - perguntou um dos homens.

- Creio que sim.

- Tem de ser. Está uma noite dos diabos... e na baía será ainda pior, - o carro parou. Os faróis iluminavam escassos metros de um atalho. Tinham chegado à beira de uma pequena escarpa.

- Venha - disse o homem -, temos de ser rápidos. Não levarão muito tempo para descobrir por onde viemos.

- E eles não podem parar o navio?

- Oh, vão nos enviar um ou dois radiogramas. Nós responderemos pela mesma via que não o vimos. Não acha que eles vão fazer sair a esquadra por sua causa? Não é tão importante assim.

Guiando-o, fizeram-no descer uns degraus talhados na própria escarpa. Embaixo, em uma pequena enseada, balançava uma lancha a motor.

- E o carro? - perguntou D.

- Não se preocupe com o carro!

- Será uma pista... para eles.

- Duvido. Vão descobrir a garagem onde o calhambeque foi comprado esta manhã, por vinte libras. Fica para algum colecionador. Não volto a guiar uma máquina destas. Nem por todo o ouro do mundo.

Mas, evidentemente, tinha sido dispendida nesta aventura uma parte do ouro do mundo... pelo sr. Forbes. Ao largarem, encontraram imediatamente o furor do mar. Fustigava-os em cheio, deliberadamente, como um inimigo. Não parecia uma força impessoal, era um louco furioso, brandindo o seu machado e disparando golpes para todos os lados. Não havia tempo nem como olharem para trás. Só uma vez, no momento em que se encontrava na crista de uma onda, é que D. viu, em um relâmpago, o hotel inundado de luz, que ao longe se dissipava à medida que a Lua ia subindo ao céu.

Levaram quase uma hora para alcançar o navio, um cargueiro negro e sujo de cerca de três mil toneladas, que hasteava a bandeira holandesa. D. foi içado como um fardo. Um oficial, vestido com uma velha camisola e de calças sujas, disse-lhe:

- Deite-se lá embaixo uma hora ou duas. Será melhor.

O camarote era minúsculo e contíguo à casa das máquinas. Alguém tivera a idéia previdente de lhe deixar calças e um impermeável; D. estava molhado até os ossos. A vigia estava tapada com barras e uma barata corria na chapa de aço que bordejava a cama. “Enfim”, pensou D. “estou quase em casa. Eis-me em segurança... se é possível pensar em segurança.” Escapara de um perigo e dirigia-se para outro.

Sentou-se à beira da cama: tinha vertigens. “Estou velho demais para este tipo de vida”, pensou ele. Sentiu alguma pena pelo sr. K. que, em vão, sonhara com uma existência pacífica, em uma universidade, longe e atrás das linhas de fogo... Enfim! ao menos não tinha morrido em uma cela da escola de entrenaciono, em frente de um oriental qualquer, feroz, do tipo do Dr. Li. E depois Else... também o terror acabara para ela, estava finalmente ao abrigo de todas as coisas horríveis que o futuro lhe reservava. É invejável a sorte dos mortos. São os vivos que sofrem de solidão e desconfiança. Levantou-se; precisava tomar ar.

No convés os borrifos de água trazidos pelo vento fustigavam-lhe a cara. Debruçou-se na amurada e viu as grandes cristas espumosas subirem até às luzes das vigias e descerem depois formando enormes abismos. A curta distância do navio uma luz acendia-se e apagava-se... Land’s End? Não. Não podiam estar tão longe de Londres, do sr. Forbes guiando seu carro na escuridão, e Rose à espera dele - ou Sally...

- Deve ser Plimude - disse uma voz que ele conhecia muito bem.

D. não se virou. Não sabia que dizer. Sentiu que o coração lhe saltava do peito... tinha medo...

- O senhor Forbes... - disse ele.

- Oh! Furt - respondeu ela - Furt não me quer.

D. lembrou-se então das lágrimas dele na Western Avenue, do seu olhar de ódio no alto da colina, antes de Southcrawl.

- É muito sentimental - disse ela. - Ia apenas cometer uma boa ação. Pobre Furt!

Com esta simples frase ela afastava-o do pensamento, a sua imagem e, à velocidade de dez nós, sumia-se na escuridão, no ar salgado.

-  Mas eu sou um velho - disse D.

- Que importa - respondeu ela -, e que importa a você? Oh, eu sei que você é fiel... mas, como disse, eu não poderia amar um homem morto.

Ele lançou-lhe um rápido olhar. A água do mar havia-lhe empastado os cabelos. Nunca tinha visto nela aquela cara sem mocidade... nem beleza. Era como se ela lhe quisesse afirmar que nenhum elemento romanesco interviria nunca nas suas aventuras.

- Quando morrer, ela poderá voltar a ficar com você. Nunca o disputarei nessa altura... e todos nós morreremos daqui a muito, muito tempo...

Todas as luzes deapareceram por trás deles e, à frente, só havia o mar.

- É capaz que você morra dentro de pouco tempo... não precisa estar sempre me dizendo isso... Mas, agora...

 

                                                                                            Graham Greene  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades