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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ASSASSINATO NA CASA DO PASTOR / Agatha Christie
ASSASSINATO NA CASA DO PASTOR / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ASSASSINATO NA CASA DO PASTOR

 

                       

 

É difícil decidir por onde começar esta história, mas resolvi escolher um almoço em minha casa, numa certa quar­ta-feira. A conversa, embora na maior parte não tivesse nada a ver com o assunto em questão, abrangeu um ou dois inci­dentes sugestivos que influenciaram acontecimentos poste­riores.

Tinha acabado de trinchar uma carne cozida (extrema­mente dura, por sinal), e quando me sentei novamente co­mentei, num humor muito pouco apropriado para minhas vestimentas religiosas, que aquele que assassinasse o coronel Protheroe estaria prestando um grande serviço ao mundo inteiro.

Meu jovem sobrinho, Dennis, retrucou imediatamente:

— Vamos nos lembrar disso quando o velho for encon­trado banhado em sangue. Mary vai depor, não vai, Mary? E descrever como você o ameaçou violentamente com a faca de trinchar.

Mary, que encara o trabalho nesta residência somente como um degrau para um emprego e ordenado melhores, apenas disse em voz alta, como quem não quer saber de brincadeiras: — Verduras —, e estendeu-lhe de maneira truculenta uma travessa rachada.

Minha mulher perguntou-me com muita simpatia: — Ele estava muito irritante?

Não respondi logo porque Mary, largando a travessa de verduras na mesa, enfiou-me bem debaixo do nariz um prato de bolinhos de massa curiosamente pegajosos e pouco apetitosos. Eu disse: — Não, obrigado —, e ela bateu com o prato na mesa e saiu da sala.

— É uma pena que eu seja uma dona-de-casa tão ruim — desculpou-se minha mulher com um vestígio de remorso sincero na voz.

Estava inclinado a concordar com ela. O nome de mi­nha mulher é Griselda — um nome muito apropriado para a esposa de um pastor. Mas é só isso que é apropriado. Ela não tem a menor humildade.

Sempre fui de opinião que um pastor não devia se casar. É um mistério para mim por que insisti com Griselda para que se casasse comigo vinte e quatro horas depois de tê-la conhecido. O casamento, sempre acreditei, é uma coisa mui­to séria, que se assume só depois de deliberação e planeja­mento, e o fator mais importante a se levar em conta é que haja comunhão de gostos e inclinações.

Griselda é quase vinte anos mais moça do que eu. É bonita de uma maneira perturbadora e completamente inca­paz de levar qualquer coisa a sério. É incompetente em to­dos os sentidos e de difícil convivência. Acha que a paróquia é uma grande anedota, que existe só para sua diversão. Ten­tei mudar sua mentalidade e desisti. Estou mais do que nun­ca convencido de que o celibato é o ideal para a profissão religiosa. Fiz várias insinuações a Griselda sobre isso, mas ela riu.

— Minha querida — ponderei —, se você ao menos tomasse um pouco de cuidado...

— Às vezes eu tomo — disse Griselda. — Mas acho que em geral tudo piora quando me esforço. Evidentemente não sou, por natureza, uma dona-de-casa. Acho melhor dei­xar tudo com Mary e me conformar a não ter conforto e comer comidas horríveis.

— E seu marido, querida? — indaguei em tom de censura, e, seguindo o exemplo do Demônio, que cita as Es­crituras para seus próprios fins, acrescentei: — “Zela pelo teu lar...”

— Pense só em como você tem sorte em não ser despedaçado pelos leões — atalhou Griselda. — Ou quei­mado na fogueira. Comida ruim e um mundo de poeira e marimbondos mortos não é razão para reclamar. Conte mais do coronel Protheroe. Pelo menos os cristãos antigos tinham muita sorte em não ter administradores.

— Velho idiota e empolado — disse Dennis. — Não admira que a primeira mulher o tenha abandonado.

— Não vejo o que mais ela poderia ter feito — obser­vou minha mulher.

— Griselda! — exclamei com severidade. — Não admito que fale assim.

— Querido — volveu minha mulher carinhosamente. — Fale sobre ele. Qual foi o problema? Foi o sr. Hawes, com suas mesuras e abanando a cabeça e fazendo o sinal-da-cruz todo o tempo?

Hawes é o meu novo assistente. Está conosco só há três semanas. É anglicano conservador e ritualista e jejua nas sextas-feiras. O coronel Photheroe se opõe a qualquer forma de ritual.

— Dessa vez não. Tocou nisso de passagem. Não, o problema surgiu por causa da desgraçada nota de uma libra da sra. Price Ridley.

A sra. Price Ridley é um membro devoto de minha congregação. Quando compareceu ao serviço religioso na manhã do aniversário da morte de seu filho, colocou uma nota de uma libra na bandeja das oferendas. Mais tarde, lendo a lista das quantias arrecadadas, ficou magoada ao verificar que a quantia mais alta mencionada era uma nota de dez xelins.

Veio queixar-se comigo e argumentei, com muita ra­zão, que devia estar enganada.

— Não somos mais tão jovens — aleguei, procurando usar muito tato. — E temos de pagar o preço de nossa idade avançada.

Por estranho que pareça, minhas palavras fizeram com que ficasse mais zangada ainda: disse que achava tudo muito esquisito e estava espantada de que eu não concordasse. Retirou-se, e, presumo, foi queixar-se ao coronel Protheroe. Protheroe é o tipo de pessoa que adora fazer barulho por qualquer pretexto; fez a maior confusão. Pena que foi numa quarta-feira. Dou aula no externato da igreja às quartas de manhã, tarefa que me causa grande nervosismo e me deixa perturbado o resto do dia.

— Bem, suponho que ele tenha de se divertir de algu­ma maneira — disse minha mulher, com ar de quem está procurando ver a situação com imparcialidade. — Ninguém lhe faz muita festa ou o chama de querido, nem borda para ele uns chinelos horrorosos ou lhe dá sapatinhos de lã de presente de Natal. A mulher e a filha não o agüentam mais. Imagino que ele se sinta feliz em bancar o importante em algum lugar.

— Não é preciso ofendê-lo — retruquei um pouco esquentado. — Acho que ele não percebeu as conseqüências do que estava dizendo. Quer inspecionar toda a contabilidade da igreja, em caso de desfalques, foi essa a palavra que ele usou. Desfalques! Será que suspeita de que eu me apropriei dos fundos da igreja?

— Ninguém o consideraria suspeito de coisa alguma, querido — disse Griselda. — Você está tão obviamente aci­ma de qualquer suspeita que seria realmente uma oportuni­dade magnífica. Que bom se você se apropriasse dos fundos do spg! Detesto missionários, sempre os detestei.

Ia censurar esse sentimento, mas Mary entrou nesse momento com um pudim de arroz parcialmente cozido. Re­clamei de leve, mas Griselda afirmou que os japoneses sem­pre comem arroz mal cozido e por isso são tão inteligentes.

— Aposto — ela acrescentou — que se você comesse um pudim de arroz assim todos os dias, até domingo, ia fazer um sermão maravilhoso.

— Que Deus não permita — eu disse, com um arrepio. — Protheroe vem aqui amanhã à noite e vamos conferir os livros de contabilidade juntos. Tenho de acabar de preparar minha palestra da cems1 hoje. Fui verificar uma referência e fiquei tão absorvido na Reality, de Canon Shirley, que não trabalhei como devia. O que vai fazer hoje de tarde, Griselda?

 

1 Church of England Men's Society. (N. do E.)

 

— Cumprir meu dever — disse Griselda —, meu de­ver de esposa do pastor. Chá e escândalos às quatro e meia.

— Quem virá?

Griselda contou nos dedos com um ar de virtude es­tampado no rosto.

— A sra. Price Ridley, a srta. Wetherby, a srta. Hart­nell e a terrível Miss Marple.

— Eu gosto de Miss Marple — afirmei. — Ela tem, pelo menos, senso de humor.

— É a que mais fala mal dos outros na aldeia — disse Griselda. — E sempre sabe de tudo o que aconteceu e tira as piores conclusões.

Griselda, como disse, é muito mais jovem que eu. Na minha idade a gente sabe que o pior é geralmente verdade.

— Bem, não conte comigo para o chá, Griselda — disse Dennis.

— Bandido! — exclamou Griselda.

— Sim, mas olhe aqui, os Protheroes me convidaram para jogar tênis hoje, de verdade.

— Bandido! — Griselda tornou a exclamar.

Dennis prudentemente bateu em retirada, e Griselda e eu fomos juntos para meu escritório.

— Estou pensando sobre o que falaremos durante o chá — disse Griselda, sentando-se na cadeira da minha se­cretária. — Do dr. Stone e da srta. Cram, provavelmente, e talvez da sra. Lestrange. Por falar nisso, fui fazer uma visita a ela ontem, mas tinha saído. Sim, tenho certeza de que vamos falar sobre a sra. Lestrange durante o chá. É tão misterioso ela vir para cá e morar naquela casa, e quase nunca meter o nariz fora da porta, não acha? Parece um romance policial. Você sabe: “Quem seria a mulher misterio­sa, com o belo rosto pálido? Qual seria o seu passado? Ninguém sabia. Havia algo sinistro à sua volta”. Acho que o dr. Haydock sabe alguma coisa sobre ela.

— Você lê romances policiais demais, Griselda — observei calmamente.

— E você? — ela respondeu. — Procurei A mancha na escada por toda parte, noutro dia, quando você estava aqui escrevendo um sermão. Finalmente vim perguntar-lhe se tinha visto o livro em algum lugar, e o que você acha que encontrei?

Tive a decência de ficar vermelho.

— Peguei-o por acaso. Uma frase chamou minha aten­ção e...

— Conheço essas frases — disse Griselda; e recitou dramaticamente: — “Então aconteceu uma coisa muito curiosa: Griselda levantou-se, atravessou a sala e beijou seu idoso marido carinhosamente”. — Imitou o que diziam as palavras.

— E isso é uma coisa muito curiosa? — perguntei.

— Claro que é — disse Griselda. — Você já pensou, Len, que eu podia ter me casado com um ministro de Estado, um baronete, um administrador de empresas riquíssimo, três subalternos e um vagabundo muito atraente, e que ao invés disso escolhi você? Acaso não ficou muito espantado?

— Na ocasião até que fiquei — respondi. — E muitas vezes fico pensando por que você fez isso.

Griselda riu.

— Eu me senti tão poderosa! — ela murmurou. — Os outros me achavam simplesmente maravilhosa, e claro que seria ótimo para eles me conquistar. Mas eu sou tudo o que você menos gosta e mais desaprova, e no entanto você não resistiu a mim! Minha vaidade não agüentou. É muito melhor ser um pecado secreto e uma fonte de prazer para alguém do que ser uma conquista fácil. Não lhe dou conforto nenhum e o perturbo todo o tempo, e no entanto você me adora loucamente. Você me adora loucamente, não adora?

— Naturalmente que gosto muito de você, minha querida.

— Oh, Len, você me adora! Lembra-se daquele dia em que fiquei na cidade e mandei um telegrama que você nunca recebeu porque a irmã da agente do correio estava tendo gêmeos e esqueceu de mandar entregá-lo? Em que estado você ficou! Chegou a telefonar para a Scotland Yard e fez o maior escândalo.

Há coisas que detestamos que sejam lembradas. Tinha realmente sido muito tolo naquela ocasião. Disse:

— Se você não se incomoda, querida, tenho de traba­lhar na palestra para a cems.

Griselda deu um suspiro profundamente irritado, des­manchou meu cabelo e depois o alisou e disse:

— Você não me merece. Não merece mesmo. Vou ter um caso com o artista. Vou, de verdade. Pense no escândalo que vai ser na paróquia.

— Já temos bastantes escândalos — respondi com calma.

Griselda riu, soprou um beijo na mão e saiu pela porta de vidro.

 

Griselda é uma mulher muito irritante. Quando deixei a mesa do almoço, estava em bom estado de espírito para preparar um discurso convincente para a Church of England Men's Society. E agora estava me sentindo inquieto e per­turbado.

Mal começara a trabalhar, Lettice Protheroe entrou deslizando na sala.

Emprego o verbo deslizar conscientemente. Tenho lido romances que descrevem jovens estourando de energia, joie de vivre, a vitalidade magnífica da juventude... Pessoal­mente, todos os jovens que conheço parecem fantasmas.

Lettice estava especialmente fantasmagórica essa tarde. Ela é uma moça bonitinha, muito alta e loura, e completa­mente distraída. Deslizou pela porta envidraçada, tirou des­cuidadamente a boina amarela que estava usando e murmu­rou com uma surpresa meio distante: — Ah! É o senhor.

Há um atalho que vem de Old Hall através do bosque e dá no portão do nosso jardim; quase todos os que vêm de lá entram por esse portão e passam pela porta de vidro do escritório, em vez de dar a volta pela estrada e entrar pela porta da frente. Não me espantei de Lettice tomar esse ca­minho, mas estranhei um pouco sua atitude.

Se alguém vai à residência de um pastor, deve estar preparado para encontrar um pastor.

Entrou e afundou-se em uma das minhas poltronas gran­des. Repuxou uns fios de cabelo enquanto olhava para o teto.

— Dennis está por aí?

— Não vejo Dennis desde a hora do almoço. Pensei que ele tivesse ido jogar tênis em sua casa.

— Oh! — exclamou Lettice. — Espero que não. Não vai encontrar ninguém em casa.

— Ele disse que você o convidou.

— Acho que convidei. Mas isso foi na sexta. E hoje é terça.

— Hoje é quarta-feira — afirmei.                               

— Oh, que horror! — volveu Lettice. — Esta é a ter­ceira vez que me esqueço de ir almoçar com um pessoal.

Felizmente isso não pareceu preocupá-la muito.

— E Griselda está por aí?

— Acho que deve estar no estúdio do jardim, posando para Lawrence Redding.

— Houve um barulho danado por causa dele — disse Lettice. — Com meu pai, sabe? Meu pai é medonho.

— Por que esse barulho... por que isso? — per­guntei.

— Por causa do meu retrato, que ele está pintando. Meu pai descobriu. Por que não posso ser pintada de maiô? Se vou à praia assim, por que não posso ser pintada assim?

Lettice calou-se e depois continuou.

— É um absurdo meu pai proibir um rapaz de ir lá em casa. Claro que Lawrence e eu rimos às gargalhadas com tudo isso. Ele vai pintar meu retrato aqui, no seu estúdio.

— Não, minha filha — repliquei. — Se seu pai proí­be, não.

— Oh. Deus! — disse Lettice, suspirando. — Todo mundo é tão cacete! Estou aos pedaços. Decididamente. Se ao menos tivesse algum dinheiro, ia embora, mas sem dinhei­ro não posso. Se ao menos meu pai tivesse a decência de morrer, tudo estaria bem.

— Você não deve dizer coisas assim, Lettice.

— Ora, se ele não quer que eu deseje a sua morte, não devia ser tão sovina. Não me espanta que minha mãe o tenha deixado. Sabe, durante muitos anos pensei que ela tivesse morrido. Como era o rapaz com quem fugiu? Era simpático?

— Foi antes de seu pai vir morar aqui.

— O que será que aconteceu com ela? Provavelmente Anne vai ter um caso com alguém muito breve. Anne me detesta; ela me trata muito bem, mas me detesta. Está fi­cando velha e não se conforma. É nessa idade que elas pro­curam a liberdade, sabe?

Perguntei-me se Lettice estaria resolvida a passar a tarde inteira no meu escritório.

— O senhor não viu meus discos, viu? — ela per­guntou.

— Não.

— Que maçada!  Sei que os deixei em algum lugar. Além disso, perdi o cachorro. E o meu relógio está em algum lugar, mas nem ligo, pois está parado. Ah, meu Deus, estou com tanto sono! Não sei por quê, pois levantei às onze horas. Mas a vida é muito difícil, o senhor não acha? Ah, Deus, tenho de ir embora! Vou ver o túmulo do dr. Stone às três horas.

Olhei para o relógio e comentei que eram vinte e cinco para as quatro.

— Oh! É mesmo? Que horror! Será que estão me es­perando ou foram sem mim? É melhor eu ir e fazer alguma coisa.

Levantou-se e deslizou para fora da sala, murmurando por sobre o ombro:

— Avise ao Dennis, sim?

Concordei automaticamente e percebi tarde demais que não tinha a menor idéia do que devia dizer a Dennis. Mas refleti que provavelmente não tinha a menor importância. Fiquei pensando no dr. Stone, um arqueólogo muito conhe­cido que tinha se hospedado recentemente no Blue Boar, enquanto supervisionava a escavação de um túmulo situado na propriedade do coronel Protheroe. Já tinha havido muitas discussões entre ele e o coronel. Achei engraçado ele ter marcado hora para levar Lettice para ver as operações.

E ocorreu-me que Lettice Protheroe era um pouquinho maliciosa. Perguntei a mim mesmo como se daria com a secretária do arqueólogo, a srta. Cram. A srta. Cram é uma moça sadia, de vinte e cinco anos, um pouco barulhenta, muito corada, com muita disposição e uma boca que sempre parece ter mais dentes que o normal.

Há duas opiniões na aldeia: ou ela não presta, ou é uma moça virtuosa que pretende se tornar a sra. Stone na primeira oportunidade. De qualquer modo, o contraste é o maior possível com Lettice.

Podia imaginar que a situação em Old Hall não era das mais felizes. O coronel Protheroe casara-se de novo há uns cinco anos. A segunda sra. Protheroe era uma mulher extremamente bonita, num estilo fora do comum. Sempre achei que o relacionamento dela com a enteada não era dos melhores.

Fui interrompido novamente. Dessa vez foi meu assis­tente, Hawes. Queria saber os detalhes da minha entrevista com Protheroe. Disse a ele que o coronel tinha lamentado suas “tendências romanas”, mas que a verdadeira finalidade de sua visita tinha sido outro assunto. Ao mesmo tempo, apresentei-lhe uma queixa minha e declarei sem rodeios que ele tinha de seguir as minhas regras. Em suma, reagiu bem às minhas observações.

Senti remorsos, quando ele foi embora, por não esti­má-lo mais. Esse gostar e não gostar irracional que sentimos em relação às pessoas é, tenho certeza, muito pouco cristão.

Com um suspiro, percebi que os ponteiros do relógio na minha secretária indicavam um quarto para as cinco, o que queria dizer que eram realmente quatro e meia, e enca­minhei-me para a sala de estar.

Quatro das minhas paroquianas lá estavam reunidas, com xícaras de chá. Griselda estava sentada atrás da mesa de chá, tentando parecer à vontade nesse meio e por isso mesmo parecendo mais deslocada do que nunca.

Cumprimentei-as e sentei entre Miss Marple e a srta. Wetherby.

Miss Marple é uma senhora idosa, de cabelos brancos, muito suave e simpática; a srta. Wetherby é uma mistura de vinagre e rompantes. Das duas, Miss Marple é a mais perigosa.

— Estávamos justamente falando — disse Griselda numa voz melíflua — do dr. Stone e da srta. Cram.

Uma rima maliciosa de Dennis passou-me pela cabeça.

Tive vontade de dizê-la em voz alta, mas felizmente me contive. A srta. Wetherby comentou rispidamente: — Ne­nhuma moça direita faria isso.

— Faria o quê? — perguntei.

— Ser secretária de um homem solteiro — esclareceu a srta. Wetherby com uma voz horrorizada.

— Oh, minha querida! — disse Miss Marple. — Acho que os casados são os piores. Lembre-se da pobre Mollie Carter.

— Homens casados que vivem separados de suas espo­sas são, é claro, desacreditados — afirmou a srta. Wetherby.

— E mesmo alguns que vivem com suas esposas — murmurou Miss Marple. — Lembro...

Interrompi essas reminiscências de mau gosto.

— Mas certamente — observei —, na época de hoje, uma moça pode ter uma ocupação da mesma maneira que um homem.

— Para vir trabalhar fora da cidade? E ficar no mes­mo hotel? — retrucou a sra. Price Ridley em voz severa.

A srta. Wetherby murmurou baixinho para Miss Marple:

— E os quartos são todos no mesmo andar...

A srta. Hartnell, que é uma mulher acabada, porém alegre e muito temida pelos pobres, comentou em voz alta e vigorosa:

— O pobre coitado vai ser agarrado antes que perceba onde está. Ele é inocente como um bebê que está para nas­cer, todo mundo sabe disso.

São curiosas as expressões que usamos sem pensar. Ne­nhuma das senhoras ali presentes sonharia em se referir a um bebê até que ele estivesse instalado em seu berço, pronto para ser exibido.

— É revoltante, na minha opinião — a srta. Hartnell prosseguiu com sua habitual falta de tato. — Ele deve ser pelo menos vinte e cinco anos mais velho do que ela.

Três vozes femininas soaram ao mesmo tempo, fazendo comentários estapafúrdios sobre o passeio dos meninos do coro, o incidente lamentável na última reunião das mães e as correntezas de ar na igreja. Miss Marple sorriu para Griselda.

— Não acham — perguntou minha mulher — que talvez a srta. Cram goste apenas de ter um emprego interes­sante? E que considere o dr. Stone apenas seu patrão?

Houve um silêncio. Evidentemente nenhuma das quatro senhoras concordava. Miss Marple quebrou o silêncio baten­do de leve no braço de Griselda.

— Minha querida — disse ela. — Você é muito jo­vem. Os jovens têm uma mentalidade muito inocente.

Griselda replicou, indignada, que absolutamente não tinha uma mente inocente.

— Naturalmente — volveu Miss Marple, ignorando seu protesto — você pensa o melhor das pessoas.

— Acredita mesmo que ela quer se casar com aquele careca aborrecido?

— Dizem que ele está muito bem financeiramente — observou Miss Marple. — Tem um gênio meio violento, receio. Teve uma briga muito séria com o coronel Protheroe outro dia.

Todos se viraram para ela interessados.

— O coronel Protheroe acusou o dr. Stone de ser um ignorante.

— É bem típico do coronel Protheroe; que absurdo! — disse a sra. Price Ridley.

— Bem típico do coronel Protheroe, mas não sei se e absurdo — redargüiu Miss Marple. — Lembram-se da­quela mulher que apareceu aqui dizendo que era do Serviço de Assistência Social e, depois de angariar contribuições, desapareceu e no fim não tinha nada a ver com a assistência social? Temos sempre tendência a confiar nas pessoas e a acreditar no que dizem que são.

Eu jamais sonharia em descrever Miss Marple como crédula.

— Houve alguma confusão com aquele jovem artista, sr. Redding, não houve? — perguntou a srta. Wetherby.

Miss Marple abanou a cabeça afirmativamente.

— O coronel Protheroe colocou-o para fora de casa. Parece que estava pintando um quadro de Lettice de maiô.

— Sempre achei que havia alguma coisa entre eles — disse a sra. Price Ridley. — Aquele rapaz está sempre ron­dando por lá. É pena que a moça não tenha mãe. Uma ma­drasta nunca é a mesma coisa.

— Acho que a sra. Protheroe faz o possível — obser­vou a srta. Hartnell.

— Essas moças são umas sonsas — lastimou a sra. Price Ridley.

— Mas que romântico, não é? — disse a srta. Weth­erby, que tinha o coração mais mole. — Ele é um bonito rapaz.

— Mas sem moral — afirmou a srta. Hartnell. — Tem de ser. Um artista! Paris! Modelos! Nus!

— Pintar um quadro dela de maiô! — disse a sra. Price Ridley. — Não fica bem.

— Ele está me pintando também — disse Griselda.

— Mas não de maiô, querida — observou Miss Marple.

— Pode ser pior — Griselda retrucou solenemente.

— Menina travessa — disse a srta. Hartnell, levando na brincadeira. As outras ficaram aparentemente chocadas.

— Nossa querida Lettice contou-lhe o que houve? — Miss Marple perguntou-me.

— A mim?

— Sim. Vi quando ela passou pelo jardim, em direção à porta do escritório.

Miss Marple sempre vê tudo. A jardinagem é um bom disfarce, e o hábito de observar passarinhos com binóculos de longo alcance sempre pode ser útil.

— Sim, ela mencionou qualquer coisa — confessei.

— O sr. Hawes parecia preocupado — disse Miss Marple. — Espero que não esteja trabalhando demais.

— Ah! — exclamou a srta. Wetherby toda excitada. — Esqueci-me completamente. Sabia que tinha uma novidade para vocês. Vi o dr. Haydock saindo do cottage da sra. Lestrange.

Todo mundo se entreolhou.

— Talvez ela esteja doente — sugeriu a sra. Price Ridley.

— Se está, foi coisa muito repentina — comentou a srta. Hartnell. — Pois quando a vi passando pelo jardim às três horas, hoje de tarde, parecia estar com ótima saúde.

— Ela e o dr. Haydock devem ser conhecidos antigos — disse a sra. Price Ridley.— Ele não mencionou nada.

— É estranho — observou a srta. Wetherby — que ele nunca tenha mencionado nada.

— A propósito — disse Griselda numa voz baixa e misteriosa, e calou-se. Todas se inclinaram para ela na maior expectativa. — Soube por acaso — disse Griselda, causando grande impressão — que o marido dela era um missionário. É uma história horrível. Ele foi comido, sabem? Comido mesmo. E ela foi forçada a ser a mulher número 1 do cacique. O dr. Haydock era membro de uma expedição, e foi ele quem a salvou.

A agitação foi enorme por um instante, até que Miss Marple disse em tom de censura, mas sorrindo: — Menina travessa!

Bateu de leve no braço de Griselda.

— Isso não é muito sensato, minha querida. Se você inventa essas histórias, as pessoas bem podem acreditar. E isso pode levar a muitas complicações.

Aquilo foi uma ducha na reunião. Duas senhoras se levantaram para se despedir.

— Será que há mesmo alguma coisa entre Lawrence Redding e Lettice Protheroe? — indagou a srta. Wetherby. — Certamente parece que há. O que a senhora acha, Miss Marple?

Miss Marple ficou pensativa.

— Eu não diria isso. Lettice, não. Imaginaria uma pessoa bem diferente.

— Mas o coronel Protheroe deve ter pensado...

— Sempre o julguei muito burro — volveu Miss Mar­ple. — Esse tipo de homem que, quando põe uma idéia na cabeça, ninguém consegue convencer de outra coisa. Estão lembradas do Joe Bucknell, que tomava conta do Blue Boar? E que barulho ele fez por causa do namoro de sua filha com o jovem Bailey! No final das contas, era a sirigaita da mu­lher dele.

Disse isso olhando bem para Griselda, e de repente senti-me invadido por uma onda de raiva.

— A senhora não acha, Miss Marple — observei —, que todos nós temos tendência a dar com a língua nos den­tes? A caridade não vê o mal, a senhora sabe. Grandes danos podem ser causados por línguas tolas e soltas que tagarelam demais.

— Meu caro pastor — disse Miss Marple —, o senhor é tão espiritual! Receio muito que, após observar a natureza humana durante tanto tempo, como eu, a gente não espere muito dela. Concordo em que o mexerico é errado e até cruel, mas quase sempre é verdadeiro, não é?

Esse último tiro acertou em cheio.

 

— Gata velha suja! — exclamou Griselda assim que a porta se fechou.

Fez uma careta na direção das visitas que iam embora e depois olhou para mim e riu.

— Len, você realmente desconfia que estou tendo um caso com Lawrence Redding?

— Mas claro que não, minha querida.

— Mas você achou que Miss Marple estava insinuando algo assim. E correu em minha defesa lindamente. Como um... como um tigre furioso.

Senti-me mal por um momento. Um sacerdote da Igreja Anglicana não deve jamais tornar possível que o chamem de tigre furioso.

— Achei que a ocasião não podia passar sem um pro­testo — afirmei. — Mas, Griselda, gostaria que tomasse mais cuidado com o que diz.

— Você está falando da história do canibal? — ela perguntou. — Ou da insinuação de que Lawrence esteja me pintando nua? Se elas soubessem que ele está me pintando com um casacão de gola de pele alta, o tipo de roupa que se poderia usar com a maior pureza para ir ver o papa, nem um pouquinho de pele pecadora aparecendo em lugar ne­nhum! De fato, é maravilhosamente puro. Lawrence nem tenta cortejar-me, não sei por quê.

— Certamente porque sabe que você é uma mulher casada...

— Não finja que saiu da arca de Noé, Len. Você sabe muito bem que uma mulher jovem e atraente, com um ma­rido idoso, é um presente do céu para um rapaz. Deve haver outra razão; não que eu não seja atraente, porque sou.

— Mas é claro que você não quer que ele a corteje, não é?

— N... n... não — respondeu Griselda, com uma hesitação que não achei apropriada.

— Se ele gosta de Lettice Protheroe...

— Miss Marple acha que ele não gosta.

— Miss Marple pode estar errada.

— Ela nunca erra. Esse tipo de velhota está sempre certa. — Parou um minuto e depois disse, dirigindo-me uma rápida olhadela. — Você acredita em mim, não acredita? Isto é, que não há nada entre mim e Lawrence.

— Minha querida Griselda — retruquei espantado. — Claro que acredito.

Minha mulher veio para meu lado e me beijou.

— Gostaria que você não fosse enganado tão facil­mente, Len. Você acredita em tudo o que eu digo.

— Ainda bem. Mas, minha querida, peço-lhe encareci­damente que segure sua língua e tome cuidado com o que diz. Essas mulheres são extremamente desprovidas de hu­mor, lembre-se disso, e levam tudo a sério.

— O que elas precisam — volveu Griselda — é de um pouco de imoralidade em suas vidas. Assim não ficariam tão ocupadas procurando isso na vida dos outros.

E com isso saiu da sala; olhando meu relógio, saí de­pressa também para fazer umas visitas que deveria ter feito mais cedo.

O serviço religioso da noite de quarta-feira teve pouca gente, como de costume; mas quando atravessei a igreja para sair, depois de tirar as vestimentas na Sacristia, o templo estava vazio, só havia uma mulher olhando para uma de nossas janelas. Temos uns belos vitrais antigos e, aliás, a própria igreja merece ser vista. Virou-se quando ouviu meus passos, e vi que era a sra. Lestrange.

Hesitamos ambos e acabei dizendo:

— Espero que goste de nossa igrejinha.

— Estava admirando o biombo — ela esclareceu.

Sua voz era agradável, baixa, mas muito clara, com uma dicção precisa. Acrescentou:

— Lamento muito que sua esposa não tenha me en­contrado ontem.

Falamos alguns minutos mais sobre a igreja. Era evi­dentemente uma pessoa culta, que sabia alguma coisa sobre história e arquitetura religiosa. Saímos da igreja juntos e caminhamos pela estrada, já que um dos caminhos da resi­dência do pastor passava pela casa dela. Quando chegamos ao portão, ela disse amavelmente:

— Entre, por favor. E me diga o que acha do que eu fiz com a casa.

Aceitei o convite. Little Gates tinha pertencido ante­riormente a um coronel anglo-indiano, e me senti aliviado com o desaparecimento das mesas de latão e dos ídolos birmaneses. Estava agora mobiliada com muita simplicidade, mas com um bom gosto extraordinário. O ambiente transmi­tia paz e harmonia.

Apesar disso, estava preocupado com o que teria trazi­do uma mulher como a sra. Lestrange a St. Mary Mead. Tratava-se, evidentemente, de uma mulher da sociedade, e era estranho que se enterrasse numa cidade do interior.

À luz clara de sua sala de estar, tive a oportunidade de observá-la de perto pela primeira vez.

Era uma mulher muito alta. Seu cabelo era louro-dourado, com um toque de vermelho. As sobrancelhas e pestanas eram escuras, mas não pude perceber se eram tingidas ou não. Se estava, como pensei, maquilada, fizera-o com muita arte. Havia algo de esfinge em seu rosto, quando em repou­so, e tinha os olhos mais estranhos que eu jamais vira: eram quase dourados.

Suas roupas eram perfeitas, e tinha a fluência verbal e os movimentos de uma mulher bem-nascida; no entanto, havia qualquer coisa nela que destoava e desafiava uma descrição. Sentia-se que ela era um mistério. A palavra que Griselda tinha usado me ocorreu: sinistra. Absurdo, natu­ralmente, mas... seria tão absurdo? Uma frase surgiu de súbito em minha mente: nada deteria essa mulher.

Nossa conversa foi a mais amena: quadros, livros, ve­lhas igrejas. No entanto, tive a forte impressão de que havia mais uma coisa, uma coisa inteiramente diferente, que a sra. Lestrange queria me dizer.

Peguei-a olhando para mim uma ou duas vezes, com uma hesitação curiosa, como se não conseguisse se decidir. Ela limitou a conversa, notei, a assuntos estritamente im­pessoais. Não mencionou um marido, nem amigos ou pa­rentes.

Mas todo o tempo seus olhos refletiam aquele estranho apelo urgente. Pareciam dizer: Devo contar-lhe? Eu quero. Não pode me ajudar?

No final, porém, apagaram-se; ou talvez tudo não pas­sasse de impressão minha. Senti que minha presença era dispensada. Levantei e me despedi. Quando saía da sala, voltei-me e vi que me olhava com uma expressão confusa e duvidosa. Indaguei impulsivamente:

— Há alguma coisa que eu possa fazer... ?

Ela respondeu em dúvida: — É muita bondade sua...

Ficamos ambos calados. Depois ela disse:

— Quem me dera saber. É muito difícil. Não; acho que ninguém pode me ajudar. Mas muito obrigada por ter se oferecido.

Parecia terminante, e então retirei-me. Mas fui muito pensativo. Não estamos acostumados a mistérios em St. Mary Mead.

E tanto isso é verdade que, ao atravessar o portão, fui agarrado. A srta. Hartnell é perita em agarrar as pessoas, de uma maneira brusca e incômoda.

— Eu vi o senhor! — exclamou com humor pesado. — E fiquei tão excitada! Agora pode nos contar tudo.

— Tudo o quê?

— A dama misteriosa! É viúva ou tem um marido por aí?

— Realmente não sei. Ela não disse nada.

— Que estranho! Era de se esperar, com toda a cer­teza, que ela dissesse qualquer coisa casualmente. Até pa­rece que ela tem alguma razão para não falar, não é mesmo?

— Não vejo nada disso.

— Ah! Como Miss Marple diz, o senhor é muito espi­ritual, pastor. Diga-me uma coisa: ela conhece o dr. Haydock há muito tempo?

— Não falou nele, portanto não sei.

— É mesmo? Mas então falaram de quê?

— Quadros, música, livros — respondi, falando a ver­dade.

Os únicos assuntos que interessam à srta. Hartnell são puramente pessoais, e por isso ela me olhou com suspeita e descrença. Aproveitando uma hesitação momentânea de sua parte, enquanto estudava o próximo passo, dei-lhe boa-noite e afastei-me depressa.

Visitei uma casa mais longe, na aldeia, e voltei à resi­dência pelo portão do jardim, passando, então, pelo ponto perigoso do jardim de Miss Marple. Não podia imaginar, con­tudo, como seria humanamente possível que a notícia da minha visita à sra. Lestrange tivesse chegado aos seus ouvi­dos; por isso, senti-me razoavelmente seguro.

Ao trancar o portão ocorreu-me a idéia de ir até o gal­pão no jardim, que o jovem Lawrence Redding estava usan­do como estúdio, e ver por mim mesmo como ia o retrato de Griselda.

Anexo aqui uma pequena planta do local, que, embora tosca, será útil, considerando os acontecimentos posteriores, e que contém apenas os detalhes necessários.

Não fazia a menor idéia se havia alguém no estúdio. Não tinha ouvido vozes que me alertassem, e suponho que meus passos não tenham feito barulho na grama.

Abri a porta e estaquei desajeitado. Pois havia duas pessoas no estúdio, e os braços do homem enlaçavam a mu­lher que ele beijava apaixonadamente.

As duas pessoas eram o artista, Lawrence Redding, e a sra. Protheroe.

Recuei precipitadamente e bati em retirada para meu escritório. Lá, sentei numa cadeira, tirei meu cachimbo e refleti. A descoberta tinha sido um grande choque para mim. Especialmente depois de minha conversa com Lettice, na­quela tarde, tinha quase certeza de que havia alguma espécie de entendimento entre ela e o rapaz. De resto, tinha certeza de que ela mesma acreditava nisso. Não tinha dúvidas de que ela não fazia nenhuma idéia dos sentimentos do artista em relação à sua madrasta.

 

Uma confusão desagradável. Cumprimentei mentalmen­te Miss Marple, embora com relutância. Ela não se equivo­cara: evidentemente suspeitara da verdade com grande pre­cisão. Enganara-me completamente quanto à significação do olhar que Miss Marple lançara a Griselda.

Jamais ocorreu-me considerar a sra. Protheroe. Havia nela um quê de esposa de César; uma mulher calma, reser­vada, que ninguém suspeitaria que possuísse sentimentos muito profundos.

Estava a essa altura de minhas reflexões, quando fui interrompido por uma pancada na porta de vidro do escri­tório. Levantei-me e fui até lá. A sra. Protheroe estava do lado de fora. Abri a porta e ela entrou, sem esperar ser convidada. Atravessou a sala arrebatadamente e caiu sentada no sofá.

Tive a impressão de que nunca a tinha visto antes. A mulher calma e reservada que eu conhecia havia desapare­cido. Em seu lugar estava uma criatura sem fôlego, deses­perada. Pela primeira vez, percebi o quanto Anne Protheroe era linda.

Era uma mulher de cabelos castanhos, com um rosto pálido e profundos olhos cinzentos. Estava corada e ofegan­te. Era como se uma estátua tivesse de repente se animado. Pestanejei ante aquela transformação.

— Julguei melhor vir até aqui — ela disse. — O senhor... o senhor viu? — Abaixei a cabeça.

Acrescentou muito calma: — Nós nos amamos...

E, mesmo em sua angústia e agitação, não pôde evitar que um leve sorriso surgisse em seus lábios. O sorriso de uma mulher que vê alguma coisa muito bela e maravilhosa.

Continuei sem dizer nada e ela indagou:

— Suponho que para o senhor isso esteja muito errado.

— A senhora por acaso espera que eu diga que não, sra. Protheroe?

— Não... não, provavelmente não pode.

Continuei, procurando fazer minha voz o mais suave possível:

— A senhora é uma mulher casada...

Interrompeu.

— Ah! Sei... eu sei. Não vê que já pisei e repisei isso milhões de vezes? Não sou uma mulher má, realmente não sou. E não é como... não é como... como o senhor talvez pense que seja.

Eu disse com gravidade: — Fico contente com isso.

Ela perguntou meio receosa:

— Vai contar ao meu marido?

Respondi secamente:

— Parece que todo mundo pensa que um pastor é incapaz de se comportar como um cavalheiro. Não é verdade.

Olhou para mim com gratidão.

— Estou bastante infeliz. Oh! Estou profundamente infeliz. Não posso continuar assim. Não posso continuar mais assim. E não sei o que fazer. — Sua voz ficou mais alta e um pouco histérica. — O senhor não sabe o que é a minha vida. Sofri com Lucius desde o princípio. Não há mu­lher que possa ser feliz com ele. Gostaria que ele morresse... É horrível, mas é verdade... estou desesperada. É o que lhe digo, estou desesperada. — Estremeceu e olhou para a porta.

— Que foi isso? Parece que era alguém. Talvez seja Lawrence.

Fui até a porta, que deixara aberta sem saber. Saí e dei uma vista de olhos no jardim, mas não vi ninguém. No entanto estava certo de ter também escutado alguém. Ou talvez a certeza dela tivesse me convencido.

Quando voltei ao escritório, ela estava inclinada para a frente, com a cabeça abaixada. Era a imagem do desespero. Disse novamente:

— Não sei o que fazer. Não sei o que fazer.

Sentei-me junto dela. Disse-lhe aquilo que achei que era meu dever dizer e procurei fazê-lo com a convicção ne­cessária, consciente, para meu desconforto, de que justa­mente naquela manhã tinha expressado a minha opinião de que sem o coronel Protheroe o mundo seria muito melhor.

Acima de tudo, implorei-lhe que não fizesse nada precipitadamente. Abandonar o lar e o marido era um passo muito grave.

Não creio que a tenha convencido. Tenho vivido o bas­tante para saber que discutir com qualquer pessoa que está amando é totalmente inútil, mas acho que minhas palavras lhe deram algum conforto.

Quando se levantou para ir embora, agradeceu-me e prometeu que ia pensar sobre o que eu tinha dito.

Apesar disso, depois que ela saiu, senti-me muito in­quieto. Percebi que até então estivera enganado quanto ao caráter de Anne Protheroe. Dava-me agora a impressão de ser uma mulher desesperada, o tipo de mulher que não hesitaria em fazer qualquer coisa, uma vez que suas emoções fossem despertadas. E estava desesperada, selvagem e louca­mente apaixonada por Lawrence Redding, um homem vários anos mais moço que ela. Não gostei.

 

Tinha esquecido completamente que tínhamos convi­dado Lawrence Redding para jantar naquela noite. Quando Griselda entrou bruscamente e brigou comigo, reclamando que faltavam dois minutos para a hora do jantar, fiquei surpreso.

— Espero que tudo saia bem — disse Griselda en­quanto eu subia as escadas. — Pensei no que você falou na hora do almoço e inventei umas coisas realmente boas para comer.

Devo dizer, de passagem, que a refeição dessa noite confirmou amplamente a observação de Griselda de que tudo corria pior quando se esforçava. O menu era ambicioso em sua concepção, e Mary parece que teve o prazer perverso de procurar a melhor maneira de alternar coisas cruas com coisas cozidas em excesso. Umas ostras que Griselda tinha encomendado e que deviam estar fora do alcance de ma­nuseio incompetente não foram, infelizmente, sequer pro­vadas, pois não tínhamos nada em casa para abri-las, uma falha que só foi descoberta quando chegou a hora de comê-las.

Não acreditava que Lawrence Redding fosse aparecer. Podia muito bem ter mandado uma desculpa.

No entanto, chegou pontualmente e fomos jantar os quatro.

Lawrence Redding possui, sem dúvida, uma persona­lidade cativante. Tem, suponho, uns trinta anos de idade. Seu cabelo é escuro, mas os olhos são de um azul vivo, impressionante. É o tipo de rapaz que faz tudo bem. É ótimo em esportes, atira maravilhosamente bem, é bom ator amador e excelente para contar histórias. É capaz de animar qualquer festa. Tem, acho, sangue irlandês nas veias. Não corresponde, absolutamente, à imagem típica do artista. To­davia, dizem que é muito bom pintor no estilo moderno. Sei muito pouco sobre pintura.

Era muito natural que essa noite, em particular, esti­vesse um pouco distrait. No geral, comportou-se muito bem. Acho que Griselda e Dennis não perceberam nada de erra­do. Provavelmente eu mesmo não teria notado nada, caso não soubesse de tudo.

Griselda e Dennis estavam excepcionalmente alegres, cheios de anedotas sobre o dr. Stone e a srta. Cram, o escân­dalo local. De repente me ocorreu, com alguma mágoa, que Dennis era quase da mesma idade de Griselda. Ele me chama de tio Len, mas, a ela, só de Griselda. Tive uma sensação de solidão.

Acho que a sra. Protheroe tinha me perturbado. Não sou geralmente dado a essas reflexões inúteis.

Griselda e Dennis foram um pouco longe demais, algu­mas vezes, mas não tive coragem de censurá-los. Sempre la­mentei que a mera presença de um sacerdote fosse uma inibição.

Lawrence participou alegremente da conversa. Apesar disso, senti seus olhos pousados em mim freqüentemente e não fiquei espantado quando, após o jantar, ele manobrou para me levar ao escritório.

Assim que ficamos a sós, ele mudou.

— O senhor descobriu nosso segredo — declarou. — O que pretende fazer?

Podia falar muito mais claramente com Redding do que com a sra. Protheroe, e foi o que fiz. Ele pareceu levar em consideração o que eu lhe dizia.

— Naturalmente — disse ele quando acabei — o se­nhor tem de dizer isso tudo. O senhor é um pastor. Não quero dizer isso ofensivamente. Acho até que o senhor pro­vavelmente tem razão. Mas não é isso o que há entre Anne e mim; é diferente.

Disse-lhe que todo mundo vem afirmando isso desde tempos imemoriais, e ele deu um sorriso.

— Quer dizer que todo mundo pensa que o seu caso é único? Talvez. Mas tem que acreditar em uma coisa.

Garantiu que, até aquela hora... não tinha acontecido nada de errado. Anne, protestou, era uma das mulheres mais honestas e mais leais que jamais existiram. O que ia acon­tecer, não sabia.

— Se fosse num romance — declarou sombrio —, o velho morreria; todos ficariam livres dele.

Censurei-o.

— Ah! Não estou dizendo que vou meter-lhe uma faca nas costas, embora ficasse eternamente grato a quem fizesse isso. Não há ninguém no mundo que tenha uma palavra boa a dizer sobre ele. Até me pergunto por que a primeira sra. Protheroe não acabou com ele. Eu a conheci anos atrás, e ela bem que parecia capaz disso. Era dessas mulheres calmas e perigosas. Ele anda por aí, criando confusões por toda parte, ruim como o diabo e com um gênio horroroso. O senhor não sabe o que Anne tem agüentado. Se eu tivesse dinheiro, levava-a embora daqui sem pensar em mais nada.

Então falei com ele muito a sério. Implorei que saísse de St. Mary Mead. Continuando ali, só poderia fazer Anne Protheroe mais infeliz do que já estava. Haveria falatórios, o assunto chegaria até os ouvidos do coronel Protheroe e tudo ia ficar infinitamente pior para ela.

Lawrence protestou.

— Ninguém sabe de nada, só o senhor, pastor.

— Meu caro rapaz, você subestima o instinto policial do pessoal de uma aldeia. Em St. Mary Mead, todo mundo conhece os assuntos mais íntimos. Não há detetive em toda a Inglaterra que se compare a uma solteirona de idade indeterminada com muito tempo disponível.

Ele disse casualmente que isso não fazia mal. Todo mundo pensava que era Lettice.

— E já lhe ocorreu — perguntei — que possivelmente a própria Lettice pensa isso?

Pareceu muito espantado com a idéia. Lettice, afirmou, não ligava a mínima para ele. Tinha certeza disso.

— É uma moça muito esquisita — ele disse. — Está sempre nas nuvens, mas acho que no fundo é uma pessoa muito prática. Creio que aquele ar distante não passa de uma pose. Lettice sabe muito bem o que está fazendo. E costuma ter uns rasgos de vingança. O mais esquisito é que ela de­testa Anne; simplesmente a odeia. No entanto, Anne tem sido sempre um anjo para ela.

Não acreditei, é claro, nesse final. Para um rapaz apai­xonado, o objeto de sua paixão é sempre um anjo. Mas apesar disso, pelo que tinha observado, Anne sempre se portava com bondade e justiça com sua enteada. Eu mesmo, naquela tarde, tinha ficado espantado com a amargura na voz de Lettice.

Fomos obrigados a parar a conversa nesse ponto, pois Griselda e Dennis entraram de repente, dizendo que eu não podia deixar Lawrence se portar como um velhote.

— Oh, Deus! — exclamou Griselda, atirando-se numa poltrona. — Como eu gostaria de alguma coisa sensacional! Um assassinato, ou mesmo um assalto.

— Não deve haver muita gente que valha a pena rou­bar — disse Lawrence, procurando acompanhá-la. — A não ser que roubemos a dentadura da srta. Hartnell.

— Dá uns estalos horrorosos — observou Griselda. — Mas você está enganado em dizer que não tem ninguém que valha a pena. Existem pratas antigas maravilhosas em Old Hall: saleiros, uma taça de Carlos II, e uma porção de coisas assim. Valem milhares de libras, disseram-me.

— O velho provavelmente atiraria em você com um revólver do exército — comentou Dennis. — É exatamente o tipo de coisa que ele gostaria de fazer.

— Ah! Mas primeiro nós entrávamos e os assaltávamos — disse Griselda. — Quem tem um revólver?

— Eu tenho uma pistola Mauser — afirmou Lawrence.

— Tem? Que emocionante. Por quê?

— Lembrança da guerra — replicou Lawrence seca­mente.

— O velho Protheroe estava hoje mostrando as pratas ao Stone — lembrou Dennis. — O velho Stone estava fin­gindo estar muito interessado.

— Pensei que tinham brigado por causa do túmulo — disse Griselda.

— Ah! Fizeram as pazes — volveu Dennis. — Não sei por que esse pessoal quer remexer em túmulos.

— O Stone me deixa intrigado — disse Lawrence. — Acho que deve ser muito distraído. Às vezes sou capaz de jurar que ele não sabe nada da sua especialidade.

— É o amor — esclareceu Dennis. — Doce Gladys Cram, fina como arame. Teus dentes são tão brancos e o teu sorriso tão franco! Vem voar comigo e casarei contigo. No quarto do hotel, então, te jogarei no chão...

— Basta, Dennis — ordenei.

— Bem — disse Lawrence Redding. — Está na hora de ir andando. Muito obrigado, sra. Clement, por uma noite muito agradável.

Griselda e Dennis foram levá-lo até a porta. Dennis voltou para o escritório sozinho. Alguma coisa tinha acon­tecido que o irritara. Passeou pela sala ao acaso, de testa franzida e dando pontapés na mobília.

Nossa mobília já está tão estragada que não faz muita diferença, mas achei que devia protestar.

— Desculpe — disse Dennis.

Calou-se durante algum tempo, e depois subitamente exclamou:

— Que coisa nojenta são esses mexericos!

Fiquei um pouco surpreso. — Que aconteceu? — per­guntei.

— Não sei se devo contar-lhe.

Fiquei mais surpreso ainda.

— É uma coisa muito nojenta — Dennis repetiu. — Andam por aí dizendo coisas. Nem mesmo dizendo. Insi­nuando.  Não, desculpe, não vou dizer nada. É nojento demais.

Olhei-o com curiosidade, mas não insisti. Aquilo intri­gou-me, pois Dennis não era de levar as coisas tão a sério.

Griselda entrou naquele momento.

— A srta. Wetherby telefonou — disse ela. — A sra. Lestrange saiu às oito e quinze e não voltou até agora. Nin­guém sabe aonde ela foi.

— E por que tinham de saber?

— Também não foi ao dr. Haydock. A srta. Wetherby sabe disso porque telefonou para a srta. Hartnell, que mora ao lado dele e teria dito algo, caso a sra. Lestrange houvesse aparecido por lá.

— É um mistério para mim — eu disse — como se consegue ingerir algum alimento neste lugar. Devem fazer suas refeições em pé, junto à janela, para ter certeza de que não estão perdendo nada.

— E não é só isso — disse Griselda, borbulhante de prazer. — Descobriram o que há no Blue Boar. O dr. Stone e a srta. Cram têm quartos vizinhos, mas — apontou dra­maticamente com o dedo — não têm porta de comunicação.

— E isso — comentei — deve ter deixado todo mundo muito desapontado.

Griselda deu uma risada.

A quinta-feira começou mal. Duas senhoras da minha paróquia resolveram brigar por causa da decoração da igreja. Fui chamado para servir de mediador entre duas senhoras de meia-idade, ambas tremendo de raiva. Se a situação não fosse tão desagradável, teria sido um fenômeno físico muito interessante a observar.

Depois tive de ralhar com dois meninos do coro, que ficavam chupando balas durante o serviço religioso, e veio-me a sensação desagradável de que não estava desempenhan­do minhas tarefas com o devido entusiasmo.

Então nossa organista, que é muito sensível, sentiu-se ofendida e teve de ser acalmada.

E quatro dos meus paroquianos mais pobres declara­ram revolta aberta contra a srta. Hartnell, que veio se quei­xar a mim, furiosa.

Estava justamente indo para casa quando encontrei o coronel Protheroe. Achava-se de ótimo humor, pois tinha condenado três ladrões de caça, em sua condição de ma­gistrado.

— Firmeza! — gritou com sua voz retumbante. É li­geiramente surdo e por isso fala muito alto, como em geral o fazem as pessoas surdas. — É o que é preciso hoje em dia, firmeza!  Devemos dar o exemplo. Aquele vagabundo do Acher saiu da prisão ontem e já está jurando vingança con­tra mim, segundo me disseram. Patife descarado! Os amea­çados vivem muito, como diz o ditado. Eu lhe mostro o que vale a sua vingança na próxima vez que o pegar roubando meus faisões. Relaxados! Estamos muito relaxados hoje em dia. Creio que devemos desmascarar esses indivíduos. Estão sempre pedindo para que se leve em consideração a mulher e os filhos dessa gente. Que diabo de tolice! Bobagem! Então um homem deve escapar das conseqüências de seus atos só porque choraminga sobre a mulher e os filhos? Para mim é tudo igual; seja médico, advogado, sacerdote, ladrão de caça ou bêbado, se for pego fazendo alguma coisa fora da lei, a lei deve puni-lo. Concorda comigo, estou certo?

— O senhor esquece — ponderei — que minha pro­fissão me obriga a respeitar uma qualidade acima de qual­quer outra: a misericórdia.

— Bem, sou um homem justo. Ninguém pode negar isso.

Não disse nada e ele indagou bruscamente:

— Por que não responde? Um pêni pelos seus pensa­mentos, homem.

Hesitei, mas depois resolvi falar.

— Estava pensando que, quando chegasse a minha hora, ficaria muito triste se a única desculpa que pudesse apresentar fosse a de ter sido justo. Pois poderia ser que somente justiça fosse aplicada a mim...

— Ora! O que é preciso é um pouco de cristandade militante. Espero que sempre tenha cumprido com o meu dever. Bem, chega disso. Vou passar lá hoje à noite, como disse. Vamos marcar seis e um quarto em vez de seis, se não se incomodar. Tenho de ver um homem na aldeia.

— Por mim está muito bem.

Acenou com a bengala e afastou-se. Virando, esbarrei com Hawes.

Tinha um aspecto doentio naquela manhã. Era minha intenção censurá-lo porque vários assuntos que estavam a seu cargo tinham sido mal resolvidos ou arquivados, mas, vendo seu rosto pálido e tenso, concluí que estava doente.

Disse-lhe isto e ele negou, mas não com muita veemên­cia. Finalmente confessou que não estava se sentindo muito bem e pareceu pronto a aceitar meu conselho de ir para casa deitar-se.

Almocei rapidamente e fui fazer umas visitas. Griselda tinha ido a Londres de trem, na viagem econômica das quintas-feiras.

Voltei mais ou menos às quinze para as quatro, com a intenção de fazer o rascunho do meu sermão de domingo, mas Mary me disse que o sr. Redding estava à minha espera no escritório.

Encontrei Lawrence andando para lá e para cá com um ar preocupado. Estava muito pálido e abatido.

Virou-se abruptamente quando entrei.

— Olhe aqui, senhor. Estive pensando no que disse ontem. Não dormi a noite toda e creio que tem razão. Tenho de ir embora.

— Meu caro rapaz...

— O senhor estava certo no que disse de Anne. Só vou criar problemas para ela se ficar aqui. Ela... ela é boa demais para uma coisa assim. Vejo que tenho de ir. Já criei dificuldades demais para ela. Deus que me ajude.

— Acho que tomou a única decisão sensata — afirmei. — Sei que foi difícil, mas acredite em mim, no fim será melhor para todos.

Vi pela sua expressão que ele achava que aquilo era o tipo de coisa dita facilmente por alguém que não sabia do que estava falando.

— O senhor toma conta de Anne? Ela precisa de um amigo.

— Pode ter certeza de que farei tudo o que estiver ao meu alcance.

— Obrigado, senhor. — Apertou minha mão. — O senhor é um bom homem, pastor. Vou vê-la hoje à noite para me despedir; acho que vou fazer as malas para partir ama­nhã. Não adianta prolongar a agonia. Obrigado por ter emprestado o galpão para eu fazer minhas pinturas. Sinto muito não ter terminado o retrato da sra. Clement.

— Não se preocupe com isso, meu amigo. Adeus e que Deus o abençoe.

Depois que saiu, procurei concentrar-me no meu ser­mão, mas com muito pouco sucesso. Continuava a pensar em Lawrence e Anne Protheroe.

Tomei uma xícara de chá, que mal se podia beber — frio e forte demais —, e às cinco e meia o telefone tocou. Fui informado de que o sr. Abbott, de Lower Farm, estava morrendo, e pediram-me que fosse imediatamente.

Telefonei logo para Old Hall, pois Lower Farm ficava a quase três quilômetros de distância e eu não poderia estar de volta às seis e quinze, de modo algum. Jamais consegui aprender a andar de bicicleta.

Disseram, porém, que o coronel Protheroe acabara de sair de carro; então fui embora, deixando um recado com Mary dizendo que tinha recebido um chamado mas tentaria estar de volta às seis e meia ou logo depois.

 

Foi antes por volta das sete do que das seis e meia que cheguei ao portão de minha residência; antes de alcançá-lo, este foi aberto por Lawrence Redding, que estava de saída. Parou de súbito ao me ver, e fiquei imediatamente impressionado com sua aparência. Parecia que estava a ponto de enlouquecer. Seus olhos estavam fixos de uma maneira esquisita, estava branco como um morto e tremia dos pés à cabeça.

Pensei por um momento que talvez estivesse bêbado, mas repudiei a idéia imediatamente.

— Olá — eu disse —, veio me procurar de novo? Lamento não ter me encontrado, Volte depois, Tenho de ver Protheroe sobre umas contas, mas não devemos demorar.

— Protheroe — ele repetiu, começando a rir. — Pro­theroe? Vai ver Protheroe?  Ah!  Claro que vai ver Pro­theroe. Ah, meu Deus! Sim.

Meus olhos estavam fixos nele. Instintivamente esten­di-lhe a mão. Ele se desviou rapidamente.

— Não! — quase gritou. — Tenho de ir embora, para pensar. Tenho de pensar. Preciso pensar.

Saiu correndo e desapareceu rapidamente na estrada, em direção à aldeia, e me deixou parado, seguindo-o com os olhos, pensando novamente que deveria estar bêbado.

Finalmente sacudi a cabeça e entrei em casa. A porta da frente fica sempre aberta, mas apesar disso toquei a campainha. Mary veio atender, enxugando as mãos no avental.

— Então voltou, afinal — observou.

— O coronel Protheroe está aí? — perguntei.

— No escritório. Está aqui desde as seis e quinze.

— E o sr. Redding esteve aqui?

— Veio há poucos minutos. Perguntou pelo senhor. Disse-lhe que o senhor voltaria a qualquer minuto e que o coronel Protheroe estava esperando no escritório; então ele disse que ia esperar também e entrou. Ainda está lá.

— Não, não está — eu disse. — Acabei de encontrá-lo; já está na estrada.

— Bem, não o ouvi sair. Não pode ter demorado mais que dois minutos. A senhora ainda não voltou da cidade.

Abanei a cabeça, sem prestar atenção. Mary bateu em retirada para o lado da cozinha; segui pelo corredor e abri a porta do escritório.

Depois da escuridão do corredor, o sol da tarde que invadia a sala fez-me piscar os olhos. Dei um ou dois passos e parei de repente.

Por um instante mal compreendi o que significava a cena diante dos meus olhos.

O coronel Protheroe estava esparramado sobre a minha secretária, numa posição horrivelmente forçada. Havia uma poça de líquido escuro na superfície da mesa, perto de sua cabeça, que escorria lentamente para o chão, aos pingos.

Controlei-me e fui até ele. Sua pele estava fria. A mão que levantei caiu de novo sem vida. O homem estava morto, tinha levado um tiro na cabeça.

Fui até a porta e chamei Mary. Quando ela veio, man­dei que fosse correndo buscar o dr. Haydock, que mora bem na esquina da estrada. Disse-lhe que tinha havido um acidente.

Voltei então e fechei a porta para esperar o médico.

Felizmente Mary o encontrou em casa. Haydock é um bom homem, um sujeito grande, forte, com uma cara hones­ta, rugosa.

Levantou as sobrancelhas quando apontei em silêncio para o outro lado da sala. Mas, como bom médico, não demonstrou nenhuma emoção. Inclinou-se sobre o morto, fazendo um exame rápido. Endireitou o corpo e olhou para mim.

— Então? — perguntei.

— Está morto mesmo; morreu há uma meia hora, eu diria.

— Suicídio?

— Fora de questão, homem. Olhe a posição da ferida. Além disso, se ele atirou em si mesmo, onde está a arma?

Isso era verdade; não havia sinal de arma.

— É melhor não mexermos em nada — disse Haydock. — É melhor eu chamar a polícia.

Pegou o telefone e falou. Apresentou os fatos o mais resumidamente possível, desligou o telefone e veio até onde eu estava sentado.

— Que coisa lamentável!  Como foi que encontrou o corpo?

Expliquei. — É... é assassinato? — perguntei em voz fraca.

— Parece que sim. Quero dizer, que mais pode ser? É extraordinário. Quem poderia estar atrás do pobre velho? Bem sei que ele não era popular, mas não se mata uma pessoa por isso.

— Tem uma coisa curiosa — eu disse. — Telefona­ram de tarde pedindo que eu fosse ver um paroquiano que estava morrendo. Quando cheguei lá, todos ficaram muito espantados de me ver. O doente estava muito melhor que nos últimos dias, e sua mulher negou firmemente que tivesse me telefonado.

Haydock franziu a testa.

— Isso é sugestivo, muito sugestivo. Estavam tirando você do caminho. Onde está sua mulher?

— Foi passar o dia em Londres.

— E a empregada?

— Na cozinha, do lado oposto da casa.

— Onde provavelmente não ouviria nada que aconte­cesse aqui dentro. É um negócio muito desagradável. Quem sabia que Protheroe vinha aqui esta noite?

— Ele falou isso hoje de manhã, na rua da aldeia, gritando como sempre.

— Quer dizer que toda a aldeia sabia? Mas sempre sabem de tudo, de qualquer maneira. Sabe de alguém que tivesse alguma coisa contra ele?

A imagem de Lawrence Redding, com seu rosto branco e os olhos fixos, cruzou meu pensamento. Fui dispensado de responder pelo barulho de pés se arrastando no corredor.

— A polícia — disse meu amigo, levantando-se.

Nossa força policial era representada pelo guarda Hurst, com um ar muito importante, mas um pouco preocupado.

— Boa noite, cavalheiros — cumprimentou-nos. — O inspetor chegará dentro de minutos. Por enquanto vou se­guir suas instruções. Entendo que o coronel Protheroe foi morto a tiros, na residência do pastor.

Fez uma pausa e me olhou com fria suspeita; procurei suportar seu olhar com uma atitude apropriada de inocência consciente.

Foi até a secretária e anunciou:

— Não se toca em nada até o inspetor chegar.

Para a conveniência dos leitores, anexo uma planta do escritório.

Tirou o caderno de notas, molhou o lápis na língua e olhou ansioso para nós.

Repeti meu relato de como encontrara o corpo. Quando tinha anotado tudo, o que levou bastante tempo, virou-se para o médico.

— Em sua opinião, dr. Haydock, qual foi a causa da morte?

— Um tiro à queima-roupa que atravessou a cabeça.

— E a arma?

— Não posso dizer com certeza até tirarmos a bala. Mas posso adiantar que provavelmente a bala foi disparada de uma pistola de pequeno calibre, digamos, uma Mauser 25.

Estremeci, lembrando nossa conversa da noite anterior e o que Lawrence Redding dissera. O guarda virou seus olhos frios para mim.

— O senhor disse alguma coisa?

Sacudi a cabeça. Quaisquer suspeitas que eu tivesse, não eram mais que suspeitas, e portanto deveriam ficar comigo mesmo.

— Em sua opinião, quando ocorreu a tragédia?

O médico hesitou um minuto antes de responder. Então disse:

— O homem está morto há pouco mais de meia hora, eu diria. Não mais que isso, certamente.

 

Hurst virou-se para mim. — A empregada ouviu algu­ma coisa?

— Pelo que sei, não ouviu nada — respondi. — Po­rém, é melhor perguntar a ela.

Mas nesse momento chegou o inspetor Slack, que veio de carro de Much Benham, a três quilômetros de distância.

Tudo o que posso dizer do inspetor Slack é que nunca um homem trabalhou com mais afinco para contradizer seu nome1. Era um homem moreno, irrequieto e cheio de ener­gia, com olhos pretos fuzilantes. Tinha modos extremamente grosseiros e autoritários.

 

1 “Slack” significa: “frouxo”, “negligente”, “lerdo”, “relaxado”. (N. do T).

 

Recebeu nossos cumprimentos com um aceno leve de cabeça, pegou o caderno de notas de seu subordinado, examinou-o, trocou umas palavras com ele em voz baixa e se dirigiu para o corpo.

— Tudo foi remexido e tirado do lugar, com certeza.

— Não toquei em nada — disse Haydock.

— Nem eu — declarei.

O inspetor levou algum tempo olhando cuidadosamente as coisas em cima da mesa e examinando a poça de sangue.

— Ah! — disse triunfante. — É isso o que queríamos. O relógio caiu quando o coronel Protheroe tombou sobre a mesa. Isso nos dá a hora do crime. Seis horas e vinte e dois minutos. Quando é que o senhor disse que ele morreu, doutor?

— Há aproximadamente meia hora, mas...

O inspetor consultou seu relógio.

— Sete e cinco. Fui chamado há uns dez minutos, isto é, às cinco para as sete. A descoberta do corpo aconteceu por volta de um quarto para as sete. Consta que o senhor foi chamado imediatamente. Vamos dizer que examinou o corpo às dez para... Ora, dá exatamente certo, quase em segundos!

— Não garanto a hora exatamente — disse Haydock. — É uma estimativa aproximada.

— Muito boa, doutor, muito boa.

Eu estava tentando dizer alguma coisa.

— Esse relógio...

— Se me permite, senhor, eu farei as perguntas que quiser. Não há tempo a perder. O que quero é silêncio absoluto.

— Sim, mas queria dizer-lhe...

— Silêncio absoluto — disse o inspetor, olhando fu­rioso para mim. Resolvi atendê-lo.

Ele continuava examinando a secretária.

— Por que ele se sentou aqui?  — resmungou. — Será que ia escrever um bilhete... o que é isto?

Mostrou vitorioso um pedaço de papel de carta. Estava tão encantado com seu achado que deixou que nos aproxi­mássemos para examinar o papel juntamente com ele.

Era uma folha de papel de carta da residência, e em cima estava escrito “6:20”.

“Caro Clement”, começava. “Sinto não poder esperar mais, pois preciso...” Aí terminava num rabisco.

— Claro como água — disse o inspetor Slack triun­fantemente. — Senta-se aqui para escrever isso, um inimigo entra de mansinho pela porta de vidro e atira nele enquanto escreve. Que mais querem?

— Eu gostaria de dizer... — comecei.

— Afaste-se, por favor, senhor. Quero ver se há pe­gadas.

Ficou de quatro e foi rastejando em direção à porta aberta.

— Acho que devia saber... — persisti obstinada­mente.

O inspetor se levantou. Falou calmo, mas com firmeza:

— Investigaremos tudo mais tarde. Ficaria muito gra­to se os senhores se retirassem. Agora mesmo, por favor.

Deixamos que nos enxotasse de lá como crianças.

Parecia que tinham decorrido várias horas, mas era só um quarto para as oito.

— Bem — disse Haydock. — É isso. Quando esse idiota convencido quiser falar comigo pode mandá-lo ao meu consultório. Até logo.

— A senhora voltou — anunciou Mary, surgindo de repente da cozinha. Seus olhos estavam arregalados de exci­tação. — Chegou há uns cinco minutos.

Encontrei Griselda na sala de estar. Parecia assustada e também excitada.

Contei-lhe tudo, e ela me ouviu com atenção.

— A carta diz seis e vinte — concluí. — E o relógio caiu e parou às seis e vinte e dois.

— Sim — disse Griselda. — Mas você não disse a ele que o relógio está sempre quinze minutos adiantado?

— Não — respondi. — Não disse. Ele não me deixou. Fiz o possível. — Griselda franziu a testa com um ar confuso.

— Mas, Len — volveu ela —, isso torna tudo muito esquisito. Pois quando o relógio indicava seis e vinte eram na verdade seis e cinco, e às seis e cinco o coronel Protheroe ainda não devia ter chegado aqui.

 

Quebramos a cabeça pensando na questão do relógio por muito tempo, mas não chegamos a nenhuma conclusão. Griselda disse que eu devia fazer outra tentativa de falar sobre o relógio ao inspetor Slack, mas nisso fui teimoso como uma mula.

O inspetor Slack tinha sido abominável e desnecessaria­mente grosseiro. Estava antecipando com prazer o momento em que eu poderia apresentar minha valiosa contribuição e causar desconforto a ele. Então diria em tom de leve censura:

— Se tivesse me ouvido antes, inspetor Slack...

Esperava que pelo menos falasse comigo antes de sair, mas para meu espanto soubemos por Mary que já tinha ido, depois de trancar a porta do escritório e dar ordens para ninguém tentar entrar lá.

Griselda sugeriu ir até Old Hall.

— Vai ser horrível para Anne Protheroe, com a polí­cia e tudo o mais — alegou. — Talvez eu possa ajudar em alguma coisa.

Aprovei o plano com entusiasmo, e Griselda pôs-se a caminho com instruções para me telefonar, se achasse que eu podia ser de alguma utilidade para as senhoras.

Fui então telefonar para os professores da escola do­minical, que deveriam vir às sete e quarenta e cinco para sua aula semanal de preparação. Achei que nessas circunstân­cias era melhor desmarcar a aula.

Dennis foi a próxima pessoa a entrar em cena, acaban­do de chegar de um jogo de tênis. O fato de ter havido um assassinato na residência do pastor causou-lhe imensa sa­tisfação.

— Imagine só estar bem no local de um assassinato! — exclamou. — Sempre quis estar bem no meio de um. Por que a polícia trancou o escritório?  Será que a chave de uma das outras portas serve para abri-lo?

Neguei minha permissão para tentar qualquer coisa nesse sentido. Dennis aceitou de má vontade. Depois de extrair de mim todos os detalhes, foi até o jardim para procurar pegadas, comentando alegremente que era muita sorte ter sido o velho Protheroe, de quem ninguém gostava.

Essa alegre indiferença me incomodou, mas refleti que talvez estivesse sendo muito duro com o rapaz. Na idade de Dennis, um romance policial é uma das melhores coisas da vida, e encontrar um romance policial real, com cadáver e tudo, à nossa espera na porta de entrada, por assim dizer, é claro que leva um rapaz de mente sadia ao sétimo céu. A morte representa muito pouco para um jovem de dezesseis anos.

Griselda voltou dentro de uma hora, aproximadamente. Tinha estado com Anne Protheroe e chegara à sua casa logo depois que o inspetor tinha dado a notícia à pobre mulher.

Ao saber que a sra. Protheroe tinha visto o marido pela última vez na aldeia, por volta de um quarto para as seis, e que não sabia nada que pudesse trazer alguma luz ao assunto, o inspetor fora embora, dizendo que voltaria no dia seguinte para uma entrevista mais prolongada.

— Ele foi muito decente, à moda dele — Griselda disse a contragosto.

— Como a sra. Protheroe recebeu a notícia? — per­guntei.

— Bem, ficou muito quieta, mas isso ela sempre é.

— Sim — aquiesci. — Não posso imaginar Anne Pro­theroe tendo um acesso histérico.

— Naturalmente foi um grande choque. Deu para per­ceber. Agradeceu-me por ter ido e disse que estava muito grata, mas não havia nada que eu pudesse fazer.

— E Lettice?

— Estava jogando tênis em algum lugar. Ainda não tinha chegado a casa. — Houve uma pausa e depois Griselda disse:

— Sabe, Len, ela estava muito esquisita, muito esqui­sita mesmo.

— O choque — sugeri.

— Sim... talvez. No entanto... — Griselda franziu a testa, intrigada. — Não é bem isso. Ela não parecia muito abalada, mas...  antes apavorada.

— Apavorada?

— Sim; sem demonstrar, sabe? Pelo menos, procuran­do não demonstrar. Mas tinha um olhar esquisito, cauteloso. Será que ela tem uma idéia de quem é o assassino? Pergun­tou várias vezes se eu suspeitava de alguém.

— Perguntou? — repeti pensativo.

— Sim. É claro que Anne tem um autocontrole for­midável, mas estava visivelmente perturbada. Mais do que eu esperava, porque afinal de contas não era tão dedicada ao marido. Diria até que não gostava dele, se não for coisa pior.

— A morte às vezes altera nossos sentimentos — pon­derei.

— Sim, talvez.

Dennis entrou, todo animado com uma pegada que havia descoberto num dos canteiros de flores. Estava con­vencido de que a polícia não a tinha visto e que encontrara a chave da solução do mistério.

Passei uma noite inquieta. Dennis acordou cedo e co­meçou a se movimentar, saindo de casa muito antes do café para “estudar os últimos acontecimentos”, conforme disse.

No entanto, foi Mary e não ele quem nos trouxe a notícia sensacional daquela manhã.

Tínhamos acabado de nos sentar para tomar café quan­do ela irrompeu pela sala adentro, as bochechas vermelhas e os olhos brilhando, e dirigiu-se a nós com sua habitual falta de cerimônia.

— Acreditam nisso? O padeiro acaba de me contar. Prenderam o sr. Redding.

— Prenderam Lawrence — disse Griselda, incrédula. — Impossível! Deve ser um erro estúpido.

— Não é erro não, senhora — volveu Mary com exul­tação malévola. — Ele mesmo se entregou, o sr. Redding. Ontem à noite, no fim da noite. Foi entrando, jogou a pis­tola em cima da mesa e disse: “Fui eu”. Assim mesmo.

Olhou para nós dois, sacudiu a cabeça com vigor e saiu, satisfeita com o efeito que tinha causado. Griselda e eu fica­mos olhando um para o outro.

— Oh! Não é verdade — disse Griselda. — Não pode ser verdade.

Notou meu silêncio e indagou: — Len, você não acre­dita, não é?

Achei difícil responder. Senti, em silêncio, os pensa­mentos se atropelando em minha mente.

— Deve estar louco — tornou Griselda. — Absoluta­mente louco. Ou você acha que estavam examinando a pistola juntos e de repente ela disparou sozinha?

— Isso não acontece assim tão facilmente.

— Mas deve ter sido um acidente qualquer. Pois é absolutamente inexplicável. Que razão poderia ter Lawrence para matar o coronel Protheroe?

Eu podia responder a essa pergunta, mas queria poupar Anne Protheroe o máximo possível. Ainda havia uma chance de não deixar seu nome aparecer.

— Lembre-se de que eles tiveram uma briga — eu disse.

— Por causa de Lettice e o maiô. Sim, mas isso é absurdo; e mesmo que ele e Lettice estivessem noivos em segredo... bem, não é razão para matar o pai dela.

— Não sabemos quais são os fatos verdadeiros nesse caso, Griselda.

— Você acredita, Len! Oh! Como pode acreditar? Garanto, tenho certeza absoluta de que Lawrence jamais tocou num fio de cabelo dele.

— Lembre-se de que o encontrei no portão. Parecia um louco.

— Sim, mas... oh! É impossível.

— E há o relógio, também — acrescentei. — Isso explica o relógio. Lawrence deve ter atrasado os ponteiros para as seis e vinte, pensando em criar um álibi para si próprio. Veja como o inspetor Slack caiu na armadilha.

— Você está errado, Len. Lawrence sabia que aquele relógio vivia adiantado. “Para que o pastor esteja sempre na hora”, costumava dizer. Lawrence nunca teria cometido o erro de colocar o ponteiro em seis e vinte e dois. Colocaria numa hora possível, como um quarto para as sete.

— Talvez não soubesse a que horas Protheroe chegou aqui. Ou talvez tenha simplesmente esquecido o adianta­mento do relógio.

Griselda discordou.

— Não; se você fosse cometer um assassinato, teria muito cuidado com coisas assim.

— Você não sabe, querida — repliquei calmamente. — Você nunca cometeu um.

Antes que Griselda pudesse responder, uma sombra projetou-se sobre a mesa do café e uma voz suave disse:

— Espero não ser importuna. Queiram me per­doar. Mas nessas tristes circunstâncias... tão tristes cir­cunstâncias...

Era nossa vizinha, Miss Marple. Aceitou nossos pro­testos ditados pela cortesia e entrou pela porta de vidro; puxei uma cadeira para ela. Estava um pouco corada e muito excitada.

— É horrível, não é? Pobre coronel Protheroe. Não era um homem agradável, talvez, nem muito popular, mas não deixa de ser triste. E foi morto no escritório da resi­dência, não?

Respondi que fora realmente assim.

— Mas nosso caro pastor não estava aqui nessa hora? — Miss Marple perguntou a Griselda. Expliquei onde tinha estado.

— O sr. Dennis não está aqui esta manhã? — indagou Miss Marple olhando em volta.

— Dennis — disse Griselda — imagina que é um detetive amador. Está muito excitado com uma pegada que encontrou num canteiro de flores e imagino que foi contar à polícia.

— Deus meu! — exclamou Miss Marple. — Que con­fusão, não é? E o sr. Dennis acha que sabe quem cometeu o crime. Bem, suponho que todos nós achamos que sabemos.

— Quer dizer que é óbvio? — perguntou Griselda.

— Não, querida, não quis dizer isso de maneira alguma. Diria que cada um pensa que se trata de uma pessoa dife­rente. Por isso é que é tão importante ter provas. Eu, por exemplo, tenho certeza que sei quem foi.  Mas tenho de admitir que não possuo quaisquer provas. É preciso, bem sei, ter muito cuidado com o que se diz numa hora dessas; injúria grave, não é assim que se chama? Tinha resolvido tomar o máximo cuidado com o inspetor Slack. Ele mandou avisar que viria me ver hoje de manhã, mas acabou de tele­fonar dizendo que não era mais necessário.

— Acho que depois da prisão que efetuaram não é mais necessário — eu disse.

— Prisão? — Miss Marple inclinou-se para a frente, o rosto corado de excitação. — Não sabia que tinham pren­dido alguém...

Era tão raro Miss Marple estar menos informada do que nós, que não me ocorreu que não estivesse a par dos últimos acontecimentos.

— Parece que não nos explicamos bem — eu disse. — Sim, alguém foi preso: Lawrence Redding.

— Lawrence Redding? — Miss Marple parecia muito espantada. — Não me ocorreria...

Griselda interrompeu com veemência.

— Ainda não posso acreditar. Não, mesmo que ele tenha confessado.

— Confessado? — volveu Miss Marple. — Está di­zendo que ele confessou? Oh, Deus, estou vendo que fiquei confusa... sim, muito confusa.

— Continuo achando que deve ter havido um acidente qualquer — disse Griselda. — Você não acha, Len? O fato de ele ter se entregado parece comprovar isso.

Miss Marple inclinou-se curiosa.

— Ele se entregou, você disse?

— Sim.

— Oh! — exclamou Miss Marple, com um suspiro profundo. — Estou tão contente, muito contente mesmo.

Olhei-a com algum espanto.

— Suponho que seja sinal de remorso verdadeiro — afirmei.

— Remorso? — Miss Marple pareceu muito surpresa. — Oh! Mas certamente, caro pastor, o senhor não acha que ele é culpado, não é mesmo?

Foi a minha vez de encará-la.

— Mas se ele confessou...

— Sim, mas essa é justamente a prova, não é? Quero dizer, de que ele não tem nada a ver com isso.

— Não — repliquei. — Pode ser que eu seja obtuso, mas não vejo como pode ser. Se não cometeu um crime, não vejo razão para dizer que cometeu.

— Oh! É claro que há uma razão — disse Miss Marple. — Naturalmente. Há sempre uma razão, não há? Os jovens são muito esquentados e geralmente acreditam no pior.

Virou-se para Griselda.

— Não concorda comigo, minha querida?

— Eu... eu não sei — disse Griselda. — É difícil saber o que pensar. Não vejo razão para Lawrence se portar como um perfeito idiota.

— Se você tivesse visto o rosto dele ontem à noite... — comecei.

— Conte para mim — disse Miss Marple.

Descrevi a minha volta para casa, e ela ouviu-me com atenção.

Quando terminei, ela disse:

— Sei que algumas vezes sou um pouco tola e não compreendo as coisas como devia, mas realmente não consi­go entender o que o senhor quer dizer. A mim me parece que, se um rapaz tivesse resolvido cometer a maldade de roubar a vida de outro ser humano, não ficaria tão agitado depois. Seria um ato premeditado, praticado a sangue-frio, e o assassino poderia ficar um pouco afobado e talvez come­ter algum pequeno erro, mas não acho provável que ficasse num tal estado de agitação como o senhor descreveu. É muito difícil a gente se colocar nessa situação, mas não consigo imaginar a mim mesma num estado desses.

— Não sabemos as circunstâncias — ponderei. — Se houve uma briga, é possível que o tiro tenha sido disparado num assomo de raiva, e Lawrence poderia ter ficado horrori­zado com as conseqüências de seu gesto. Na verdade, prefiro pensar que foi isso o que realmente aconteceu.

— Bem sei, caro sr. Clement, que podemos ver as coisas da maneira que preferirmos. Mas é preciso encarar os fatos como eles são, não é? E não me parece que os fatos possam ser interpretados como o senhor os vê. Sua empregada declarou que o sr. Redding só ficou dentro da casa uns dois minutos, o que certamente não é tempo bas­tante para uma briga como a que o senhor sugeriu. E além disso o coronel, pelo que me consta, recebeu um tiro na parte de trás da cabeça quando estava escrevendo uma carta; ao menos foi isso o que a minha empregada me contou.

— É verdade — disse Griselda. — Parece que estava escrevendo um bilhete para dizer que não podia esperar mais. No bilhete estava escrito seis e vinte, e o relógio de cima da mesa tinha caído e parado às seis e vinte e dois; e é isso justamente o que está nos intrigando tanto.

Griselda explicou-lhe o nosso hábito de manter o reló­gio adiantado um quarto de hora.

— Muito curioso — disse Miss Marple. — Muito curioso mesmo. Mas o bilhete me parece ainda mais curio­so... Isto é...

De súbito calou-se. Lettice Protheroe estava em pé junto à porta. Entrou, acenou para nós com a cabeça e mur­murou: — Bom dia.

Caiu numa cadeira e disse, com mais animação que de costume:

— Ouvi dizer que prenderam Lawrence.

— Sim — confirmou Griselda.  — Foi um grande choque para nós.

— Nunca pensei realmente que alguém pudesse matar meu pai — disse Lettice. Estava evidentemente se contro­lando para não demonstrar nenhum vestígio de dor ou de emoção, e isso meramente por orgulho. — Muita gente bem que gostaria de fazê-lo, tenho certeza. Houve ocasiões em que eu mesma gostaria.

— Você não quer tomar ou comer alguma coisa, Lettice? — Griselda perguntou.

— Não, obrigada. Só passei para ver se minha boina amarela está por aqui; uma boininha amarela, meio engra­çada. Acho que a deixei no escritório no outro dia.

— Se deixou, ainda está lá — afirmou Griselda. — Mary nunca arruma nada.

— Vou lá ver — disse Lettice, levantando-se. — Des­culpem a amolação, mas parece que perdi todos os meus chapéus.

— Lamento muito, mas não pode ir lá agora — eu disse. — O inspetor Slack trancou a porta.

— Oh! Que maçada. Não posso entrar pela porta de vidro?

— Não, lamento muito. Está fechada por dentro. Mas certamente, Lettice, uma boina amarela não lhe será muito útil agora, você não acha?

— Por causa do luto e de tudo o mais? Não vou co­locar luto. Acho uma coisa muito arcaica. É uma caceteação esse negócio de Lawrence... sim, uma caceteação.

Levantou-se e franziu a testa, distraída.

— Suponho que tenha sido tudo por minha causa e do meu maiô. Que tolice tudo isto...

Griselda abriu a boca para dizer alguma coisa, mas por qualquer razão inexplicável fechou-a novamente.

Um sorriso curioso surgiu nos lábios de Lettice.

— Acho — disse suavemente — que vou para casa, contar a Anne que Lawrence foi preso.

Saiu pela porta de vidro. Griselda virou-se para Miss Marple. — Por que a senhora pisou no meu pé?

A velhinha estava sorrindo.

— Pensei que você ia dizer alguma coisa, querida. E é muito melhor, na maioria das vezes, deixar que as coisas aconteçam por si sós. Creio que aquela criança não é tão indiferente quanto finge que é. Ela está com alguma idéia firme na cabeça, e está agindo de acordo com ela.

Mary bateu com força na porta da sala de jantar e entrou logo em seguida.

— O que é? — perguntou Griselda. — Mary, você tem de se lembrar de não bater nas portas. Já lhe disse isso antes.

— Pensei que estavam ocupados — disse Mary. — O coronel Melchett está aqui. Quer ver o patrão.

O coronel Melchett é o delegado do condado. De pron­to levantei-me.

— Achei que o senhor não ia querer que eu o deixasse na entrada, por isso levei-o para a sala de estar — Mary continuou. — Posso tirar a mesa?

— Ainda não — disse Griselda. — Toco a campainha.

Virou-se para Miss Marple, e eu saí da sala.

 

O coronel Melchett é um homenzinho elegante que tem o hábito de bufar súbita e inesperadamente. Tem cabelos vermelhos e olhos penetrantes de um azul vivo.

— Bom dia, pastor — disse ele. — Que coisa mais desagradável, não? Coitado do velho Protheroe. Não que eu gostasse dele. Não gostava. Que eu saiba, ninguém gostava dele. Muito desagradável para o senhor. Espero que não tenha incomodado sua senhora.

Respondi que Griselda estava reagindo muito bem.

— Felizmente. É péssimo acontecer uma coisa dessas na casa de alguém. Estranhei muito o jovem Redding ter feito o que fez. Que falta de consideração pelos sentimentos dos outros!

Senti um desejo louco de rir, mas o coronel Melchett evidentemente não via nada de errado na idéia de um assassi­no ter consideração pelos outros; sendo assim, controlei-me.

— Fiquei muito espantado quando me disseram que ele tinha ido se entregar — continuou o coronel Melchett, acomodando-se numa cadeira.

— Como foi exatamente? — perguntei.

— Ontem à noite. Por volta das dez horas. O rapaz entrou, jogou uma pistola na mesa e disse: “Aqui estou. Fui eu”. Assim mesmo.

— Ele explicou o ocorrido?

— Muito pouco. Foi avisado, naturalmente, quanto a prestar depoimento. Mas até riu. Disse que veio aqui ver o senhor e encontrou Protheroe. Tiveram uma discussão, e ele tirou a pistola e atirou. Não quer dizer sobre o que foi a briga. Olhe aqui, Clement, cá entre nós, você sabe alguma coisa? Ouvi uns boatos de que ele tinha sido proibido de freqüentar a casa e tudo o mais. O que foi, ele tentou seduzir a filha, ou o quê? Não queremos envolver a moça nisso, se pudermos evitá-lo, para o bem de todos. Era esse o problema?

— Não — respondi. — Pode acreditar em mim; era coisa bem diferente, mas não posso dizer mais no momento.

Acenou com a cabeça e levantou-se.

— Fico contente em saber. Há muito mexerico. Há mulheres demais por aqui. Bem, já vou indo. Tenho de falar com Haydock. Recebeu um chamado qualquer, mas já deve ter voltado.  Devo dizer-lhe que lamento muito ter sido Redding. Sempre o achei um rapaz muito decente. Talvez consigam arranjar uma defesa qualquer para ele. Efeitos da guerra, trauma de explosões de granadas, qualquer coisa assim. Especialmente se não aparecer um motivo mais ade­quado. Tenho de ir agora. Quer vir comigo?

Disse que gostaria muito, e saímos juntos.

A casa de Haydock fica ao lado da minha. A empregada disse que ele tinha acabado de chegar e nos levou à sala de jantar, onde Haydock estava sentado à frente de um prato fumegante de ovos com bacon. Recebeu-nos com um gesto amigável de cabeça.

— Sinto muito, tive de sair. Um parto. Não dormi quase a noite toda, às voltas com o seu caso. Tenho a bala para lhe dar.

Empurrou uma caixinha sobre a mesa. Melchett pegou-a e examinou.

— Calibre 25?

Haydock concordou com a cabeça.

— Reservo os detalhes técnicos para o inquérito — disse. — Só o que lhe interessa saber é que a morte foi quase instantânea. Que jovem tolo, por que foi fazer isso? É de espantar, por falar nisso, que ninguém tenha ouvido o tiro.

— Sim — concordou Melchett. — Isso me espantou.

— A janela da cozinha dá para o outro lado da casa — eu disse. — Com a porta do escritório, a porta da copa e a porta da cozinha fechadas, duvido muito que se pudesse ouvir qualquer coisa; ademais, só a empregada estava em casa.

— Hum — fez Melchett. — Não deixa de ser estra­nho. Será que aquela velhota, como é o nome dela... Mar­ple, não ouviu? A janela do escritório estava aberta.

— Talvez tenha ouvido — sugeriu Haydock.

— Acho que não — eu disse. — Esteve lá na resi­dência agora mesmo e não mencionou nada sobre isso; tenho certeza de que diria alguma coisa se houvesse escutado algo.

— Pode ter ouvido e não prestado atenção, pensando que fosse um estouro de cano de descarga de algum carro.

Observei que Haydock estava muito mais jovial e bem-humorado essa manhã. Parecia um homem que estava pro­curando conter uma animação fora do comum.

— Ou que tal um silenciador? — acrescentou. — Isso é bem provável. Então ninguém teria ouvido nada.

Melchett abanou a cabeça negativamente.

— Slack não encontrou nada, e perguntou a Redding; este a princípio não entendeu do que se tratava e depois negou positivamente ter usado qualquer coisa parecida. Su­ponho que se possa acreditar nele.

— Sim, claro, pobre-diabo.

— Tolo dos diabos — disse o coronel Melchett. — Desculpe, Clement. Mas é! Custo a acreditar que seja um assassino.

— Algum motivo? — perguntou Haydock, tomando o último gole de café e empurrando a cadeira para trás.

— Disse que brigaram, e ele perdeu a calma e atirou.

— Querendo alegar homicídio involuntário, hein? — O médico sacudiu a cabeça. — Nessa não dá para acreditar. Aproximou-se dele por trás, enquanto ele estava escrevendo, e deu-lhe um tiro na cabeça. Não tem briga nenhuma nisso.

— De qualquer jeito, não houve tempo para brigas — falei, lembrando o que Miss Marple tinha dito. — Chegar na ponta dos pés, atirar, mudar os ponteiros do reló­gio para seis e vinte e sair de novo, isso tomaria todo o seu tempo. Jamais me esquecerei da expressão de seu rosto quando nos encontramos no portão, ou da maneira como disse: “Quer ver Protheroe... Oh! Claro que vai ver Pro­theroe!” Só isso já era o bastante para eu imaginar o que tinha acabado de acontecer minutos antes.

Haydock me encarou fixamente.

— O que quer dizer com isso, o que tinha acabado de acontecer? Quando acha que Redding o matou?

— Alguns minutos antes de eu chegar a casa.

O médico abanou a cabeça negativamente.

— Impossível. Completamente impossível. Estava mor­to há muito mais tempo.

— Mas, meu caro! — exclamou o coronel Melchett. — Você mesmo disse que meia hora era somente uma esti­mativa aproximada.

— Meia hora, trinta e cinco minutos, vinte e cinco minutos, vinte minutos... é possível, mas menos que isso, não. Ora, sendo assim, o corpo ainda estaria quente quando eu chegasse.

Olhamos fixamente um para o outro. O rosto de Hay­dock estava alterado. De súbito tornara-se cinzento e enve­lhecido. Fiquei impressionado com aquela alteração.

— Mas olhe aqui, Haydock — o coronel conseguiu dizer. — Se Redding admite que o matou às quinze para as sete...

Haydock levantou-se bruscamente.

— Estou lhe dizendo que é impossível — berrou. — Se Redding está dizendo que matou Protheroe às quinze para as sete, então Redding está mentindo. Que diabo, sou mé­dico e sei o que estou dizendo. O sangue já tinha começado a coagular.

— Se Redding está mentindo... — começou Mel­chett. Calou-se e sacudiu a cabeça. — É melhor irmos até a delegacia e falar com ele — sugeriu.

 

Ficamos todos calados a caminho da delegacia. Haydock ficou um pouco para trás e murmurou em meu ouvido:

— Sabe, não estou gostando disso. Não estou gostando. Tem alguma coisa aqui que não estamos entendendo.

Parecia muito preocupado e perturbado.

O inspetor Slack encontrava-se na delegacia, e em breve estávamos cara a cara com Lawrence Redding.

Estava pálido e tenso, mas muito controlado; maravi­lhosamente bem-controlado, pensei, considerando as cir­cunstâncias. Melchett bufou e hesitou, evidentemente ner­voso.

— Olhe aqui, Redding — disse ele. — Consta que você fez um depoimento aqui ao inspetor Slack. Você declara que foi à residência do pastor aproximadamente às quinze para as sete, encontrou Protheroe lá, brigou com ele, atirou nele e saiu. Não estou lendo isso para você, mas esse é o resumo.

— Sim.

— Vou lhe fazer umas perguntas. Já lhe avisaram que não é obrigado a responder se não quiser. Seu advogado...

Lawrence interrompeu.

— Não tenho nada a esconder. Matei Protheroe.

— Ah! Bem... — Melchett bufou. — Por que levou uma pistola?

Lawrence hesitou.

— Estava no meu bolso.

— Levou a pistola para a residência do pastor?

— Sim.

— Por quê?

— Ando sempre com ela.

Hesitara novamente antes de responder, e tive certeza absoluta de que não estava falando a verdade.

— Por que atrasou o relógio?

— O relógio? — Não entendeu.

— Sim, os ponteiros marcavam seis e vinte e dois.

Sua expressão foi de puro medo.

— Ah! Sim. Eu... eu mexi nos ponteiros.

Haydock indagou subitamente:

— Onde você atirou no coronel Protheroe?

— No escritório da residência do pastor.

— Estou perguntando em que parte do corpo.

— Oh!... eu... na cabeça, eu acho. Sim, na cabeça.

— Não tem certeza?

— Já que sabe, não sei por que precisa me perguntar. Foi uma demonstração muito fraca de valentia. Houve uma agitação qualquer fora da sala. Um guarda sem capacete entrou com um bilhete.

— Para o pastor. Diz que é urgente.

Rasguei o envelope e li:

“Por favor, por favor, venha me ver. Não sei o que fazer. É tudo tão horrível! Quero contar para alguém. Por favor, venha imediatamente e traga quem quiser. Anne Pro­theroe”.

Lancei um olhar significativo para Melchett. Ele enten­deu. Saímos todos juntos. Olhando por sobre o ombro, vi de relance o rosto de Lawrence Redding. Seus olhos esta­vam grudados no papel em minha mão, e raras vezes eu tinha visto uma expressão de tanta angústia e desespero no rosto de um ser humano.

Lembrei-me de Anne Protheroe sentada no meu sofá dizendo: “Sou uma mulher desesperada”, e meu coração ficou pesado. Compreendi então a possível razão da heróica auto-acusação de Lawrence Redding. Melchett falava com Slack.

— Sabe alguma coisa dos movimentos de Redding du­rante o dia? Há motivos para pensar que matou Protheroe mais cedo do que disse. Veja se consegue alguma coisa, está bem?

Virou-se para mim, e entreguei-lhe a carta de Anne Protheroe sem dizer uma palavra. Leu-a e franziu os lábios com espanto.

— Era isso o que você estava insinuando hoje de manhã?

— Sim. Não tinha certeza se era meu dever lhe contar. Agora tenho. — E contei o que tinha visto naquela noite, no estúdio.

O coronel trocou umas palavras com o inspetor e então fomos para Old Hall; o dr. Haydock foi conosco.

Um mordomo muito correto abriu a porta, com um ar melancólico apropriado.

— Bom dia — disse Melchett. — Peça à criada de quarto da sra. Protheroe para lhe avisar que estamos aqui e depois volte para responder a umas perguntas.

O mordomo obedeceu rápido e voltou daí a pouco para dizer que tinha dado o recado.

— Agora diga-nos alguma coisa sobre ontem — disse o coronel Melchett. — Seu patrão veio almoçar?

— Sim, senhor.

— Estava em seu estado normal?

— Pelo que pude ver, sim, senhor.

— Que aconteceu depois disso?

— Depois do almoço a sra. Protheroe foi se deitar e o coronel foi para o escritório. A srta. Lettice foi jogar tênis e saiu no carro de dois lugares. O coronel e a sra. Protheroe tomaram chá às quatro e meia, na sala de estar. O carro deveria levar os dois à aldeia às cinco e meia. Assim que saíram, o sr. Clement telefonou — inclinou-se para mim —, e eu disse que tinham saído.

— Hum — disse o coronel Melchett. — Qual foi a última vez que o sr. Redding esteve aqui?

— Terça-feira de tarde, senhor.

— Ouvi dizer que houve um desentendimento entre eles.

— Creio que sim, senhor. O coronel me deu ordens para não deixar o sr. Redding entrar mais aqui.

— Você ouviu essa briga? — o coronel Melchett per­guntou bruscamente.

— O coronel Protheroe, senhor, tinha uma voz muito alta, especialmente quando estava zangado. Não pude deixar de ouvir algumas palavras de vez em quando.

— O bastante para compreender a causa da discussão?

— Entendi, senhor, que era a respeito de um retrato que o sr. Redding estava pintando, um retrato da srta. Lettice.

Melchett deu um grunhido.

— Você viu o sr. Redding quando ele saiu?

— Sim, senhor; abri a porta para ele.

— Estava zangado?

— Não, senhor; se me permite, diria que ele tinha achado graça.

— Ah! Não veio aqui ontem?

— Não, senhor.

— Alguém mais veio?

— Ontem, não, senhor.

— Bem, e anteontem?

— O sr. Dennis Clement veio à tarde. E o dr. Stone esteve aqui algum tempo. E veio uma senhora à noite.

— Uma senhora?  — Melchett ficou espantado. — Quem era?

O mordomo não se lembrava do nome. Era uma se­nhora que nunca tinha visto antes. Sim, tinha dado seu nome e, quando ele lhe disse que a família estava jantando, ela respondeu que ia esperar. Então ele levou a senhora para a salinha de almoço.

Ela tinha perguntado pelo coronel Protheroe, não pela sra. Protheroe. Falou com o coronel e este foi direto para a salinha, assim que terminou o jantar.

Quanto tempo ela ficou? Achava que uma meia hora. O coronel mesmo levou-a até a porta. Ah, sim, agora se lembrava do nome. Era a sra. Lestrange.

Foi uma surpresa.

— Curioso — disse Melchett. — Realmente muito curioso.

Mas não insistimos no assunto, porque então chegou um recado avisando-nos de que a sra. Protheroe estava pron­ta para nos receber.

Anne estava de cama. Seu rosto estava pálido e seus olhos muito brilhantes. Sua expressão me deixou confuso; tinha um ar de decisão inflexível. Dirigiu-se a mim.

— Obrigada por ter vindo tão depressa — disse ela. — Vejo que entendeu o que quis dizer quando falei em trazer quem quisesse. — Fez uma pausa. — É melhor falar tudo logo, não é? — ela continuou. Deu um pequeno sorriso estranho, meio patético. — É com o senhor que eu devo falar, não é, coronel Melchett? Sabe, fui eu que matei meu marido.

— Minha cara sra. Protheroe...

— Oh! É verdade. Talvez tenha falado muito friamen­te, mas não sou o tipo que fica histérica. Eu o odiava há muito tempo e ontem o matei.

Reclinou-se nos travesseiros e fechou os olhos.

— É só isso. Suponho que irá me prender e me levar. Vou me levantar e me vestir assim que puder. Agora estou me sentindo mal.

— A senhora está ciente, sra. Protheroe, de que o sr. Lawrence Redding já confessou o crime?

Anne abriu os olhos e abanou a cabeça com vivacidade.

— Sei. Que rapaz tolo! Está apaixonado por mim, sabe? Foi muito nobre de sua parte, mas é uma tolice.

— Ele sabia que tinha sido a senhora que cometeu o crime?

— Sim.

— Como é que ele soube?

Ela hesitou.

— A senhora contou para ele?

Ela continuou a hesitar. Finalmente pareceu decidir-se.

— Sim, contei...

Mexeu os ombros com um movimento irritado.

— Não pode ir embora agora? Já lhe contei tudo. Não quero mais falar nisso.

— Onde conseguiu a pistola, sra. Protheroe?

— A pistola! Oh! Era de meu marido. Tirei-a da ga­veta de sua cômoda.

— Entendo. E levou a pistola consigo para a residência do pastor?

— Sim. Sabia que ele ia lá...

— A que horas foi isso?

— Deve ter sido depois das seis... um quarto... vinte minutos depois das seis... uma coisa assim.

— Levou a pistola com a intenção de matar seu marido?

— Não... eu... era para mim.

— Entendo. Mas foi à residência do pastor?

— Sim. Fui até a janela. Não ouvi vozes. Olhei pela janela. Vi meu marido. Alguma coisa aconteceu comigo... e atirei.

— E então?

— Então? Oh! Então fui embora.

— E contou ao sr. Redding o que tinha feito?

Notei novamente a hesitação em sua voz antes de dizer: — Sim.

— Alguém viu a senhora entrando ou saindo da resi­dência do pastor?

— Não... pelo menos... sim. A velha Miss Marple. Falei com ela uns minutos. Ela estava no jardim de sua casa.

Mexeu-se inquieta nos travesseiros.

— Não chega? Já contei tudo. Por que continua me importunando?

O dr. Haydock foi para perto dela e tomou-lhe o pulso.

Fez sinal para Melchett.

— Vou ficar com ela — disse num murmúrio —, en­quanto você toma as providências necessárias. Não deve ficar sozinha. Pode tentar alguma coisa contra si própria.

Melchett concordou com a cabeça.

Saímos do quarto e descemos as escadas. Vi um homem magro, com cara de cadáver, sair do quarto ao lado, e num impulso subi de novo as escadas.

— Você é o criado de quarto do coronel Protheroe?

O homem ficou espantado. — Sim, senhor.

— Sabe se seu finado patrão tinha uma pistola em algum lugar?

— Não que eu saiba, senhor.

— Em uma das gavetas de sua cômoda? Pense, homem!

O criado abanou a cabeça decididamente.

— Tenho certeza de que não, senhor. Senão eu teria visto.

Desci depressa as escadas e fui atrás dos outros.

A sra. Protheroe tinha mentido sobre a pistola.

Por quê?

 

Após deixar um recado na delegacia, o delegado anun­ciou sua intenção de fazer uma visita a Miss Marple.

— É melhor vir comigo, pastor — ele disse. — Não quero que um membro do seu rebanho fique histérico. Ajude com sua presença tranqüilizadora.

Sorri. Apesar de sua aparência frágil, Miss Marple é perfeitamente capaz de enfrentar qualquer policial ou dele­gado do mundo.

— Como é ela? — perguntou o coronel quando tocá­vamos a campainha. — Devemos acreditar no que ela diz ou não?

Pensei antes de responder.

— Acho que podemos acreditar — disse cautelosa­mente. — Isto é, desde que esteja falando do que realmen­te viu. Fora isso, naturalmente, quando se trata do que ela pensa... bem, isso é diferente. Tem uma imaginação muito fértil e sistematicamente pensa o pior de todo mundo.

— Típica solteirona idosa, na verdade — observou Melchett com uma risada. — Bem, já conheço a raça. Ah, os chás nessa paróquia!

Fomos recebidos por uma minúscula empregada, que nos levou a uma pequena sala de estar.

— Um pouco atravancada — disse o coronel Melchett olhando em redor. — Mas muita coisa boa. A sala de uma senhora, hein, Clement?

Concordei, e nesse momento a porta se abriu e Miss Marple apareceu.

— Lamento muito incomodar a senhora, Miss Marple disse o coronel, depois de ser apresentado por mim, da maneira militar, rude e franca que julgava atraente para as senhoras idosas. — Tenho de cumprir meu dever, sabe?

— Naturalmente, naturalmente — disse Miss Marple.      Compreendo. Não quer se sentar? E posso lhe oferecer um cálice de licor de cereja? Feito por mim. Uma receita da minha avó.

— Muito obrigado, Miss Marple. É muita bondade sua. Mas acho que não. Nada antes do almoço, é meu lema. Agora, quero falar com a senhora sobre esse triste aconteci­mento, muito triste mesmo. Abalou a todos nós, certamente. Bem, é possível que, pela posição de sua casa e seu jardim, possa nos dizer alguma coisa sobre ontem à tardinha.

— De fato, eu estava ontem no meu jardim, das cinco em diante, e, naturalmente, de lá... bem, é impossível dei­xar de ver qualquer coisa que aconteça na casa ao lado.

— É verdade, Miss Marple, que a sra. Protheroe pas­sou por aqui ontem à tardinha?

— Sim, passou. Falei com ela e admirou minhas rosas.

— Pode nos dizer mais ou menos a que horas foi isso?

— Um ou dois minutos depois das seis e quinze. Sim, é isso mesmo. O relógio da igreja tinha acabado de dar o quarto de hora.

— Muito bem. O que aconteceu depois?

— Bem, a sra. Protheroe disse que ia buscar o marido na residência do pastor para irem juntos para casa. Ela veio pelo atalho e entrou na residência pelo portão dos fundos, atravessando o jardim.

— Ela veio pelo atalho?

— Sim, vou lhe mostrar.

Muito animada, Miss Marple nos levou para o jardim e mostrou o atalho que passava ao lado dele.

— O atalho em frente vai até Old Hall — explicou. — Era por esse caminho que iam voltar para casa. A sra. Protheroe tinha vindo da aldeia.

— Perfeitamente, perfeitamente — disse o coronel Melchett. — E ela foi então para a residência, a senhora disse?

— Sim. Vi quando virou na esquina da casa. O coronel não devia ter chegado ainda, pois ela voltou quase na mes­ma hora e atravessou o gramado em direção ao estúdio, aquele prédio ali; o que o pastor deixou o sr. Redding usar como estúdio.

— Entendo. E...  não ouviu um tiro, Miss Marple?

— Não ouvi um tiro nessa hora — respondeu Miss Marple.

— Mas ouviu um tiro depois?

— Sim, acho que ouvi um tiro vindo do bosque. Mas foi cinco ou dez minutos depois, e, como disse, vindo do bosque. Pelo menos é o que eu acho. Não pode ter sido... certamente não pode ter sido...

Calou-se, pálida de susto.

 

— Sim, sim, chegaremos lá daqui a pouco — disse o coronel Melchett. — Por favor, continue o seu relato. A sra. Protheroe foi até o estúdio?

— Sim, ela entrou e esperou. Daí a pouco o sr. Red­ding veio pelo caminho da aldeia. Chegou até o portão da residência, olhou em volta...

— E viu a senhora, Miss Marple.

— Acontece que não me viu — disse Miss Marple, ficando um pouco vermelha. — Porque exatamente nesse minuto eu estava abaixada, tentando arrancar um dente-de-leão, sabe? É tão difícil! Então ele entrou pelo portão e foi para o estúdio.

— Não chegou perto da casa?

— Oh! Não! Foi direto ao estúdio. A sra. Protheroe veio encontrá-lo na porta e então os dois entraram.

Então Miss Marple contribuiu com uma pausa extre­mamente eloqüente.

— Talvez ela estivesse posando para ele — sugeri.

— Talvez — disse Miss Marple.

— E saíram... quando?

— Mais ou menos dez minutos depois.

— Isso é aproximadamente?

— O relógio da igreja tinha dado a meia hora. Saíram pelo portão do jardim e foram andando pelo caminho; nesse exato momento, o dr. Stone vinha pelo atalho de Old Hall, subiu e desceu os degraus do muro e foi se encontrar com eles. Foram juntos em direção à aldeia. No fim do caminho, acho, mas não tenho certeza, a srta. Cram se juntou a eles. Acho que era a srta. Cram porque o vestido era muito curto.

— A senhora deve ter olhos muito bons, Miss Marple, se pode ver tão longe assim.

— Estava observando um passarinho — alegou Miss Marple. — Acho que era uma garriça de crista dourada. Uma gracinha de pássaro. Estava usando meus binóculos, e foi por isso que vi a srta. Cram... se é que se tratava da srta. Cram, mas acho que sim... encontrar-se com eles.

— Ah! Bem, pode ser que sim — disse o coronel Mel­chett. — Agora, como a senhora é tão boa observadora, por acaso notou, Miss Marple, qual era a expressão da sra. Protheroe e do sr. Redding quando passaram pelo caminho?

— Estavam sorrindo e conversando — respondeu Miss Marple. — Pareciam muito contentes de estar juntos, se é que o senhor me entende.

— Não pareciam abalados ou perturbados de maneira nenhuma?

— Oh, não! Pelo contrário.

— É muito estranho — disse o coronel. — Há alguma coisa muito estranha em tudo isso.

Miss Marple nos deixou de súbito pasmados, dizendo em sua voz plácida:

— E agora a sra. Protheroe declarou que foi ela que cometeu o crime?

— Macacos me mordam — disse o coronel —, como adivinhou isso, Miss Marple?

— Bem, pensei que talvez acontecesse — volveu Miss Marple. — Acho que a cara Lettice pensou isso também. Na verdade, ela é bem esperta. Receio que nem sempre seja escrupulosa. Então Anne Protheroe diz que matou o marido? Ora, ora. Acho que não é verdade. Sim, tenho quase certe­za absoluta de que não é verdade. Não uma mulher como Anne Protheroe. Embora nunca se possa ter certeza quanto a ninguém, não é? Pelo menos foi isso o que aprendi. Quando ela disse que o matou?

— Às seis e vinte. Logo depois de falar com a senhora.

Miss Marple abanou a cabeça vagarosamente, com ar de compaixão. À compaixão era devida, acho, ao fato de dois homens crescidos serem tão tolos a ponto de acreditar nessa história. Pelo menos, foi assim que nos sentimos.

— Atirou nele com o quê?

— Com uma pistola.

— Onde encontrou essa pistola?

— Trouxe com ela.

— Bem, isso ela não fez — disse Miss Marple, ines­peradamente decidida. — Posso jurar. Não tinha nenhuma arma com ela.

— Talvez a senhora não a tenha visto.

— Naturalmente que eu a teria visto.

— Se estivesse escondida na bolsa...

— Ela não estava com bolsa.

— Bem, podia estar escondida... hum... em sua pessoa.

Miss Marple olhou para ele com tristeza e desprezo.

— Meu caro coronel Melchett, sabe como são as moças hoje em dia. Não têm vergonha de se mostrar exatamente como o Criador as fez. Não trazia senão um lenço na barra da meia.

Melchett insistiu.

— Deve concordar que tudo combina — ele disse. — A hora, o relógio caído marcando seis e vinte e dois...

Miss Marple virou-se para mim.

— Quer dizer que ainda não contou ao coronel sobre o relógio?

— Que há com o relógio, Clement?

Contei o que era. Ficou bastante irritado.

— Por que não disse isso ao Slack ontem à noite?

— Porque ele não me deixou.

— Bobagem, você devia ter insistido.

— Provavelmente — eu disse — o inspetor Slack se comporta de uma maneira com o senhor e, comigo, de outra. Não tive a mínima chance de insistir.

— É um negócio absolutamente extraordinário — dis­se Melchett. — Se aparecer uma terceira pessoa confessan­do que cometeu esse assassinato, vou ser internado no hospício.

— Se me permitem uma sugestão... — murmurou Miss Marple.

— Sim?

— Se o senhor explicasse ao sr. Redding o que a sra. Protheroe fez e dissesse a ele que não acredita que tenha sido ela realmente; e então fosse à sra. Protheroe e infor­masse a ela que o sr. Redding não tem culpa nenhuma... bem, talvez assim os dois lhe contem a verdade. E a verdade é útil, embora eu seja de opinião que eles não sabem grande coisa, pobrezinhos.

— Está tudo muito bem, mas eles dois são os únicos que têm um motivo para liquidar Protheroe.

— Oh, eu não diria isso, coronel Melchett — observou Miss Marple.

— Ora, pode se lembrar de alguém mais?

— Oh! Certamente que sim. Vejamos — contou nos dedos. — Um, dois, três, quatro, cinco, seis... sim, possi­velmente sete. Posso contar no mínimo sete pessoas que ficariam muito contentes em liquidar o coronel Protheroe.

O coronel olhou-a, perplexo.

— Sete pessoas? Em St. Mary Mead?

Miss Marple acenou vigorosamente com a cabeça.

— Atenção, não quero mencionar nomes — disse ela. — Isso não seria correto. Mas receio que haja muita mal­dade no mundo. Um soldado direito e honrado como o senhor não sabe dessas coisas, coronel Melchett.

Pensei que o delegado ia ter um ataque de apoplexia.

 

Seus comentários sobre Miss Marple, quando saímos de lá, foram muito pouco elogiosos.

— Aquela solteirona encarquilhada pensa que sabe de tudo. E quase não saiu desta aldeia a vida inteira. Absurdo. Como pode conhecer a vida?

Eu disse calmamente que embora Miss Marple não conhecesse muito a vida com V maiúsculo, certamente sabia de quase tudo o que acontecia em St. Mary Mead.

Melchett concordou de má vontade. Era uma testemu­nha muito importante, especialmente do ponto de vista da sra. Protheroe.

— Suponho que não haja dúvidas quanto ao que ela diz, hein?

— Se Miss Marple diz que a sra. Protheroe não tinha nenhuma pistola escondida, pode ter certeza de que é isso mesmo — afirmei. — Se houvesse a menor possibilidade disso, Miss Marple logo teria percebido.

— Isso é verdade. É melhor darmos uma olhada no estúdio.

O assim chamado estúdio era apenas um galpão com uma clarabóia. Não tinha janelas, e a porta era o único meio de se entrar ou sair dele. Satisfeito quanto a esse ponto, Melchett declarou sua intenção de visitar a residência com o inspetor.

— Vou à delegacia agora.

Quando entrei pela porta da frente, ouvi um murmúrio de vozes; então, abri a porta da sala de estar.

No sofá, ao lado de Griselda, conversando toda ani­mada, estava a srta. Gladys Cram. As pernas, cobertas com meias cor-de-rosa muito brilhantes, estavam cruzadas, e tive oportunidade de observar que usava calcinhas listradas, de seda cor-de-rosa.

— Olá, Len — disse Griselda.

— Bom dia, sr. Clement — disse a srta. Cram. — Não é horrível essa notícia do coronel? Pobre coitado.

— A srta. Cram — esclareceu minha mulher — veio muito amavelmente se oferecer para nos ajudar com as escoteiras. Pedimos auxílio no domingo passado, lembra-se?

Eu me lembrava e tinha certeza — e, pelo tom de voz, Griselda também tinha — de que a idéia de oferecer auxílio jamais teria ocorrido à srta. Cram, não fosse o incidente sensacional que havia acontecido na residência.

— Acabava de dizer à sra. Clement — continuou a srta. Cram — que fiquei estupefata quando soube da notí­cia. Um assassinato?, eu disse. Nessa aldeia parada, e é parada mesmo, tem de concordar, pois não tem ao menos um cinema! Então, quando soube que era o coronel Protheroe, aí é que não pude acreditar. Ele não parecia ser do tipo que morre assassinado.

— E então — disse Griselda — a srta. Cram veio aqui para colher mais notícias.

Fiquei com medo de que essa franqueza ofendesse a moça, mas ela apenas jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada, mostrando todos os dentes.

— É uma pena. A senhora é muito esperta, não, sra. Clement? Mas é muito natural querer ouvir os detalhes de um caso desses, não é mesmo? E garanto que terei a maior boa vontade para ajudar com as escoteiras. É excitante, isso sim. Minha vida estava se estagnando, sem que nada acontecesse. Estava mesmo. Meu emprego é muito bom, paga bem, e o dr. Stone é um cavalheiro em tudo. Mas uma moça precisa se divertir fora das horas de trabalho e, além da sra. Clement, não tenho ninguém com quem conversar a não ser uma porção de velhotas mexeriqueiras.

— Tem Lettice Protheroe — eu disse.

Gladys Cram sacudiu a cabeça.

— Ela é muito importante e convencida para gente como eu; julga-se uma grã-fina e não se rebaixaria dando atenção a uma moça que tem de trabalhar para viver. É verdade que a ouvia dizer que pretende trabalhar para se sustentar. Mas gostaria de saber quem iria oferecer-lhe em­prego. Ora, seria despedida em menos de uma semana. A não ser que fosse trabalhar como manequim, toda empetecada e andando deslizando. Podia fazer isso, acho eu.

— Ela seria uma ótima modelo — disse Griselda. — Tem um corpo espetacular. — Griselda não tem maldade nenhuma. — Quando foi que ela disse que pretendia traba­lhar para se sustentar?

A srta. Cram pareceu momentaneamente embaraçada, mas se refez com a malícia habitual.

— Isso seria contar um segredo, não é? — retrucou. — Mas ela disse isso. Acho que as coisas não vão muito bem em sua casa. Ninguém me pegaria vivendo com uma madrasta. Não agüentaria isso um minuto.

— Ah! Mas a senhora tem um espírito forte e é muito independente — observou Griselda com toda a seriedade; olhei para ela desconfiado.

Isso agradou à srta. Cram.

— Tem razão. Sou assim mesmo. Não posso ser em­purrada nem puxada. Uma pessoa que lê mãos me disse isso não faz muito tempo. Não sou do tipo que se deixa maltratar. E já fui bem clara com o dr. Stone desde o prin­cípio: preciso ter minhas horas de folga regularmente. Esses cientistas pensam que uma moça é uma espécie de máquina, e durante a maior parte do tempo nem sabem que ela existe ou não se lembram de que está presente.

— E é agradável trabalhar com o dr. Stone? Deve ser um trabalho interessante, se é que gosta de arqueologia.

— Acho que desenterrar pessoas que estão mortas há centenas de anos não é... bem, é ser um pouco abelhudo, não é? E o dr. Stone fica tão absorvido nisso tudo que se não fosse por mim até esquecia de comer.

— Ele está no túmulo agora? — perguntou Griselda.

A srta. Cram abanou a cabeça negativamente.

— Não estava se sentindo muito bem hoje de manhã — explicou. — Pelo menos para trabalhar. Isso quer dizer um dia de folga para dona Gladys.

— Sinto muito — eu disse.

— Oh! Não é nada de mais. Não vai haver uma se­gunda morte. Mas diga-me, sr. Clement, ouvi dizer que o senhor passou a manhã toda com a polícia. O que acham eles?

— Bem — eu disse devagar —, ainda estão um pou­co... incertos.

— Ah! — exclamou a srta. Cram. — Então não acham que foi o sr. Lawrence Redding, afinal de contas. Ele é tão bonito, não? Igualzinho a um artista de cinema. E que sorri­so lindo quando dá bom-dia para a gente. Não pude acreditar quando ouvi dizer que a polícia o havia prendido. Mas sempre ouvi dizer que são muito estúpidos, os policiais do condado.

— Não pode culpá-los neste caso — declarei. — O sr. Redding foi lá e entregou-se.

— Quê!  — a moça ficou estupefata. — Ora, que coisa! Se eu matasse alguém, não iria direto me entregar. Pensei que Lawrence Redding fosse mais sensato. Entregar-se assim! Por que motivo matou Protheroe? Ele disse? Foi só uma briga?

— Não é certo que ele tenha realmente matado o co­ronel — respondi.

— Mas certamente, se ele diz que matou, sr. Clement, ele deve saber.

— Deve, é claro — concordei. — Mas a polícia não está satisfeita com a história que ele contou.

— Mas por que iria dizer que matou se não matou?

Esse era um ponto que eu não tinha a menor intenção de esclarecer para a srta. Cram. Disse vagamente:

— Creio que em todos os assassinatos importantes a polícia recebe inúmeras cartas de pessoas confessando o crime.

— Devem ser uns idiotas! — exclamou a srta. Cram, num tom de espanto e desprezo. — Bem — disse com um suspiro —, acho que devo ir embora. — Levantou-se. — Vai ser uma novidade para o dr. Stone o fato de o sr. Redding ter confessado o crime.

— Ele está interessado? — perguntou Griselda.

A srta. Cram franziu a testa, pensativa.

— Ele é muito esquisito. Nunca se sabe. Vive comple­tamente mergulhado no passado; prefere mil vezes olhar uma velha faca nojenta de bronze tirada de um desses mon­tes de terra do que a faca que Crippen usou para matar a mulher, caso tivesse oportunidade para tanto.

— Bem, confesso que concordo com ele — afirmei.

O olhar da srta. Cram revelou incompreensão e um ligeiro descaso. Então, repetindo suas despedidas, saiu.

— Não é de todo má — disse Griselda, quando a porta se fechou atrás dela. — Não é muito fina, naturalmente, mas é dessas moças alegres e bem-humoradas de quem não se pode deixar de gostar. O que será que realmente a trouxe aqui?

— Curiosidade.

— Sim, deve ser isso. Agora, Len, conte-me tudo. Es­tou morrendo de curiosidade.

Sentei-me e recitei fielmente todos os acontecimentos da manhã, Griselda interrompendo a narração com excla­mações de surpresa e interesse.

— Então era em Anne que Lawrence estava interessa­do o tempo todo! Não era em Lettice. Como fomos cegos! Era isso o que Miss Marple devia estar insinuando ontem. Você não acha?

— Sim — respondi, desviando os olhos.

Mary entrou.

— Há dois homens aqui, de um jornal, é o que dizem. Quer falar com eles?

— Não — respondi —, certamente que não. Diga-lhes que procurem o inspetor Slack, na delegacia.

Mary acenou com a cabeça e virou-se para sair.

— E quando se livrar deles — acrescentei — volte aqui. Quero lhe perguntar uma coisa.

Mary assentiu com a cabeça novamente.

Voltou depois de alguns minutos.

— Deu trabalho me livrar deles — disse. — Teimosos. Nunca vi coisa assim. Não se conformavam com um não.

— Suponho que ainda vão nos incomodar bastante — observei. — Agora, Mary, o que quero lhe perguntar é o seguinte: tem certeza absoluta de que não ouviu o tiro ontem à noite?

— O tiro que matou o coronel? Não, claro que não ouvi. Se tivesse ouvido, iria até lá ver o que estava acon­tecendo.

— Sim, mas... — Lembrei-me de que Miss Marple dissera ter ouvido um tiro no bosque. Mudei a forma da minha pergunta. — Ouviu algum tiro, vindo do bosque, por exemplo?

— Ah, isso! — Fez uma pausa. — Sim, pensando bem, acho que ouvi. Não uma porção de tiros, só um. Fez um barulho esquisito.

— Exatamente — eu disse. — E a que horas foi isso?

— Horas?

— Sim, horas.

— Ah, não sei dizer. Bem depois da hora do chá, estou certa.

— Não pode ser um pouco mais exata?

— Não, não posso. Tenho que fazer meu trabalho, não tenho? Não posso ficar olhando para o relógio todo o tempo; além disso, de nada adiantaria, pois o despertador atrasa três quartos de hora por dia e, com esse negócio de ligar e desligar todo o tempo, nunca sei que horas são.

Isso talvez venha explicar por que nossas refeições nunca saem na hora. Às vezes saem atrasadas e outras sur­preendentemente cedo.

— Foi muito antes de o sr. Redding chegar?

— Não, muito não. Dez minutos, um quarto de hora, não mais que isso.

Abanei a cabeça, satisfeito.

— É só isso? — disse Mary. — Porque eu queria dizer que estou com a carne no forno e o pudim deve estar fervendo e derramando.

— Está bem. Pode ir.

Saiu da sala e virei-me para Griselda.

— Não há um jeito de convencer Mary a dizer “se­nhor” ou “senhora”?

— Já falei com ela; sempre se esquece. É muito crua, lembra-se?

— Sei muito bem — eu disse. — Mas as coisas cruas não ficam necessariamente cruas a vida toda. Acho que é possível ensinar Mary a cozinhar um bocadinho.

— Bem, não concordo com você — retrucou Griselda. — Sabe que só podemos pagar muito pouco a uma empre­gada. Se nós a treinássemos bem, ela iria embora, natural­mente, para ganhar mais dinheiro. Mas enquanto Mary não souber cozinhar e tiver esses modos horríveis... ora, esta­mos salvos; ninguém vai querê-la.

Percebi que o método de minha mulher para tomar conta da casa não era tão desorganizado quanto eu pensava; havia nele algo de razoável. Se valia a pena ter uma empre­gada que não sabia cozinhar e tinha o hábito de pratica­mente jogar os pratos em cima da gente e fazer comentários com uma brusquidão desconcertante, esse era um assunto a ser debatido.

— E, de qualquer forma — continuou Griselda —, você tem de dar um desconto pelo fato de seus modos esta­rem piores agora. Você não pode esperar que ela fique sen­tida com a morte do coronel Protheroe, quando foi ele que prendeu o namorado dela.

— Ele prendeu o namorado dela?

— Sim, por roubar caça. Você sabe, aquele homem, o Archer. Mary está namorando com ele há dois anos.

— Não sabia disso.

— Len, querido, você nunca sabe de nada.

— É engraçado — comentei —, todos dizem que o tiro veio do bosque.

— Não acho nada engraçado — disse Griselda. — A gente sempre ouve tiros no bosque. Então, naturalmente, quando ouvimos um tiro, presumimos que veio do bosque. Provavelmente só parece um pouco mais alto que de costu­me. É claro que, se você estivesse no quarto ao lado, saberia que tinha sido na casa; mas na cozinha, com a janela voltada para o outro lado da casa, não creio que pensasse assim.

A porta se abriu de novo.

— O coronel Melchett voltou — disse Mary. — Aque­le inspetor de polícia está com ele; mandaram dizer que gostariam que o senhor fosse falar com eles. Estão no es­critório.

 

Vi num relance que o coronel Melchett e o inspetor Slack não tinham chegado a um acordo sobre o caso. Mel­chett estava irritado e com o rosto vermelho, e o inspetor, emburrado.

— Lamento dizê-lo — declarou Melchett —, mas o inspetor Slack não concorda comigo em que Redding seja inocente.

— Se não foi ele, então por que confessou? — per­guntou Slack com ceticismo.

— A sra. Protheroe agiu exatamente da mesma manei­ra, lembre-se disso, Slack.

— Isso é diferente. É uma mulher, e as mulheres fa­zem muitas tolices. Não estou dizendo que foi ela, nem por um momento. Ela ouviu dizer que ele tinha sido acusado e inventou uma história. Estou acostumado com esse tipo de coisa. Vocês não acreditariam nas tolices que tenho visto as mulheres fazerem. Mas Redding é diferente. Tem a cabeça no lugar. E se confessa que foi ele, bem, eu digo que foi. A pistola é dele, disso não há dúvida. E graças a essa história da sra. Protheroe, sabemos qual o motivo. Esse era o elo que faltava, mas agora nós o conhecemos; ora, tudo está muito claro.

— Acha que ele pode ter matado o coronel mais cedo? Digamos, às seis e meia?

— Isso ele não poderia ter feito.

— Verificou seus movimentos?

O inspetor moveu a cabeça afirmativamente.

— Estava na aldeia, perto do Blue Boar, às seis e dez. De lá veio pelo caminho dos fundos, onde disse que a ve­lhota ao lado o viu; ela não perde nada, eu que o diga; e foi ao encontro marcado com a sra. Protheroe, no estúdio do jardim. Saíram de lá juntos pouco depois das seis e trinta e, seguindo o caminho para a aldeia, encontraram o dr. Sto­ne. Ele confirma isso. Ficaram todos conversando perto do correio durante alguns minutos, e então a sra. Protheroe foi até a casa da srta. Hartnell para pegar uma revista de jardinagem. Isso também foi confirmado. Falei com a srta. Hartnell. A sra. Protheroe ficou lá conversando com ela até quase as sete horas, quando reparou como era tarde e disse que tinha de ir para casa.

— Como ela estava?

— Muito à vontade e amável, a srta. Hartnell disse. Parecia bem alegre, e a srta. Hartnell tem certeza de que ela não estava preocupada com coisa nenhuma.

— Bem, continue.

— Redding foi com o dr. Stone até o Blue Boar e to­maram um drinque juntos. Saiu de lá às vinte para as sete, atravessou rapidamente a rua da aldeia e tomou o caminho da residência do pastor. Foi visto por muitas pessoas.

— Dessa vez não foi pelo caminho dos fundos? — indagou o coronel.

— Não, veio pela frente, perguntou pelo pastor, soube que o coronel estava lá, entrou... e atirou nele... exata­mente como disse! Essa é a verdade, e não é preciso procurar outra explicação.

Melchett sacudiu a cabeça.

— Há o depoimento do médico. Não pode fugir disso. Protheroe foi morto antes das seis e meia.

— Ah! Médicos! — o inspetor Slack disse com des­prezo. — Se vai acreditar nos médicos... Arrancam todos os seus dentes, é isso o que fazem hoje em dia, e depois dizem que sentem muito, mas no fim era apendicite. Mé­dicos!

— Não se trata de um diagnóstico. O dr. Haydock tem certeza absoluta quanto a esse ponto. Você não pode ir contra as provas médicas, Slack.

— Tenho uma prova, valha o que valer — afirmei, lembrando, de repente, um detalhe que tinha esquecido. — Toquei no corpo e estava frio. Isso eu juro.

— Está vendo, Slack? — disse Melchett.

— Bem, está certo, se é assim mesmo. Mas tínhamos uma causa linda. E o sr. Redding tão ansioso para ser enfor­cado, por assim dizer...

— Isso, por si só, já me parece um pouco anormal — observou o coronel Melchett.

— Bem, gosto não se discute — retorquiu o inspetor.

— Muita gente ficou um pouquinho tocada depois da guer­ra. E agora, estou vendo, temos de começar novamente do princípio. — Virou-se para mim. — Por que motivo o senhor saiu do seu caminho para me confundir com a história do relógio, senhor, não consigo compreender. Obstruindo o ca­minho da justiça, isso sim.

— Tentei dizer-lhe em três ocasiões diferentes — ale­guei. — E por três vezes o senhor calou minha boca e re­cusou-se a me ouvir.

— É apenas uma maneira de falar. O senhor poderia muito bem ter me dito, se realmente quisesse. O relógio e o bilhete combinam perfeitamente, Mas agora, de acordo com o senhor, o relógio estava errado. Nunca tive um caso assim. Que idéia é essa de ter um relógio adiantado um quarto de hora?

— Supõe-se que inspire pontualidade.

— Acho que não é necessário se aprofundar nisso ago­ra, inspetor — disse com tato o coronel Melchett. — O que queremos agora é a história verdadeira da sra. Protheroe e de Redding. Telefonei a Haydock e pedi-lhe que trouxesse a sra. Protheroe com ele. Devem chegar dentro de um quarto de hora. Acho que seria melhor trazer Redding aqui primeiro.

— Vou falar com a delegacia — disse o inspetor Slack, pegando o telefone.

— E agora — acrescentou, colocando o fone no lugar —, vamos trabalhar nesta sala. — Olhou para mim signi­ficativamente.

— Talvez queira que eu saia — sugeri.

O inspetor imediatamente abriu a porta para mim. Mel­chett falou:

— Volte quando Redding chegar, está bem, pastor? E seu amigo, e talvez tenha influência bastante para conven­cê-lo a falar a verdade.

Encontrei minha mulher e Miss Marple em conferência.

— Estávamos falando das várias possibilidades — dis­se Griselda. — Queria que a senhora resolvesse este caso, Miss Marple, como resolveu o do desaparecimento do pote de conserva de camarão da srta. Wetherby. E tudo porque o pote fez a senhora lembrar-se de uma coisa completamente diferente: um saco de carvão.

— Você está rindo, minha filha — observou Miss Marple —, mas no final das contas é uma maneira muito lógica de chegar à verdade. É o que todo mundo chama de intuição, fazendo tanto espalhafato. Uma criança não pode fazer isso porque tem muito pouca experiência. Mas um adulto conhece a palavra porque já a ouviu tantas vezes antes. Compreende o que quero dizer, pastor?

— Sim — respondi devagar. — Acho que sim. Quer dizer que, se uma coisa faz a senhora lembrar-se de outra... bem, é porque provavelmente é o mesmo tipo de coisa.

— Exatamente.

— E o assassinato do coronel Protheroe faz a senhora lembrar-se exatamente do quê?

Miss Marple suspirou.

— Aí é que está o problema. Ocorrem-me vários casos paralelos. Por exemplo, o major Hargreaves, administrador de uma igreja e homem digno de respeito em todos os senti­dos. E por muito tempo manteve um segundo lar, com uma antiga empregada, imagine só! E cinco crianças, cinco mes­mo... foi um choque tremendo para sua mulher e sua filha.

Fiz força para imaginar o coronel Protheroe no papel de pecador secreto, mas não consegui.

— Há também aquela história da lavanderia — con­tinuou Miss Marple. — O broche de opala da srta. Hartnell que ficou na blusa por descuido e foi parar na lavanderia. E a mulher que ficou com o broche não o queria de maneira alguma e nem sequer era uma ladra. Apenas o escondeu na casa de outra mulher e disse à polícia que tinha visto essa mulher roubar o broche. Vingança, pura vingança. É um motivo alarmante a vingança. Havia um homem em tudo isso, é claro. Sempre há.

Dessa vez não percebi o paralelo, por mais remoto que fosse.

— Depois tem a filha do coitado do Elwell, uma me­nina tão bonita, tão etérea... e que tentou sufocar o irmão­zinho. E o caso do dinheiro para o passeio dos meninos do coro, antes do seu tempo, pastor, roubado pelo próprio organista. A mulher dele estava cheia de dívidas. Sim, esse caso me faz pensar em muitas coisas, coisas demais. É muito difícil chegar à verdade.

— Gostaria que me dissesse uma coisa: quais são os sete suspeitos?

— Os sete suspeitos?

— A senhora disse que podia pensar em sete pessoas que ficariam... contentes com a morte do coronel Pro­theroe.

— Disse? Ah, sim, agora me lembro.

— Era verdade?

— Oh! Certamente que é verdade. Mas não devo men­cionar nomes. O senhor mesmo pode descobrir quem são, com facilidade. Tenho certeza.

— Não posso, não. Lettice Protheroe, talvez, porque provavelmente vai herdar algum dinheiro com a morte do pai. Mas é absurdo pensar numa coisa dessas e, fora ela, não me ocorre mais ninguém.

— E a você, querida? — perguntou Miss Marple, vi­rando-se para Griselda.

Para minha surpresa, Griselda ficou vermelha. Seus olhos pareceram encher-se de lágrimas; fechou com força as duas mãos.

— Oh!  — exclamou indignada. — As pessoas são abomináveis... abomináveis. As coisas que dizem! As coi­sas medonhas que dizem...

Olhei-a com curiosidade. Griselda não é mulher de ficar tão agitada. Reparou no meu olhar e tentou sorrir.

— Não olhe para mim como se eu fosse um espécime interessante que você não entende, Len. Não vamos perder a calma e nos desviar do assunto. Não acredito que tenha sido Lawrence ou Anne, e Lettice está fora de questão. Deve haver alguma pista que nos ajude.

— Há o bilhete, é claro — disse Miss Marple. — Você deve lembrar-se de que eu disse hoje de manhã que achei o bilhete muito esquisito.

— Parece fixar a hora de sua morte com muita pre­cisão — observei. — E, no entanto, será que é possível? A sra. Protheroe teria acabado de sair do escritório. Não teria tido tempo de chegar ao estúdio. A única explicação para isso é que ele tenha consultado seu próprio relógio, e ele estivesse atrasado. Parece-me uma solução admissível.

— Tenho outra idéia — disse Griselda. — Suponha, Len, que o relógio já tivesse sido atrasado... não, isso dá no mesmo, que estupidez!

— Não tinha sido alterado quando saí — afirmei. — Lembro-me de que o comparei com o meu relógio. De qual­quer maneira, como você disse, não tem nada a ver com o caso.

— O que a senhora acha, Miss Marple? — Griselda perguntou.

— Minha filha, confesso que não estava vendo as coisas desse ponto de vista. O que me parece curioso, e pareceu desde o princípio, é o assunto daquela carta.

— Não compreendo — eu disse. — O coronel Prothe­roe só escreveu que não podia esperar mais...

— Às seis e vinte? — indagou Miss Marple. — Sua empregada, Mary, já lhe havia dito que o senhor não volta­ria antes das seis e meia, no mínimo, e ele se mostrou dis­posto a esperar. E, no entanto, às seis e vinte ele se senta e diz que “não pode esperar mais”.

Olhei Miss Marple fixamente, com um sentimento cada vez maior de respeito pelos seus poderes mentais. Sua mente aguçada tinha visto o que nós não havíamos sequer percebi­do. Era estranho, muito estranho.

— Se ao menos a carta não tivesse sido datada... — ponderei.

Miss Marple assentiu com a cabeça enfaticamente.

— Exatamente: se não tivesse sido datada!

Procurei visualizar aquela folha de papel, a escrita ra­biscada e, no alto, muito nítida, a hora: “6:20”. Certamente aqueles números tinham algo de diferente em relação ao resto da carta. Suspirei.

— Suponhamos — disse eu — que não tivesse a hora. Suponhamos que por volta das seis e trinta o coronel Pro­theroe tivesse ficado impaciente e houvesse se sentado para escrever que não podia esperar mais. E que, quando estava sentado, alguém houvesse entrado pela porta de vidro...

— Ou pela outra porta — sugeriu Griselda.

— Ele ouviria a porta se abrir e veria quem era.

— O coronel Protheroe era meio surdo, lembra-se? — observou Miss Marple.

—- Sim, é verdade. Não ouviria. Seja como for, o assassino entrou de mansinho, aproximou-se do coronel e deu-lhe o tiro pelas costas. Então viu o bilhete e o relógio e teve uma idéia. Escreveu seis e vinte na carta e alterou o relógio para seis e vinte e dois. Foi uma idéia engenhosa. Forneceu-lhe, ou pelo menos assim imaginou, um álibi per­feito.

— E o que precisamos encontrar — disse Griselda — é alguém que tenha um álibi perfeito para as seis e vinte, e nenhum álibi para... bem, isso não é muito fácil. Não é possível precisar a hora.

— E possível, dentro de limites bem estreitos — propus. — Haydock dá seis e meia como sendo o limite máximo. Podemos ir até seis e trinta e cinco, pelo raciocínio que acabamos de seguir; parece evidente que Protheroe não teria ficado impaciente antes das seis e meia. Acho que pode­mos dizer que sabemos os limites.

— Então o tiro que ouvi... sim, acho que é possível. E achei que não era nada, nada mesmo. Muito irritante. Mas agora que estou fazendo força para me lembrar, parece que foi diferente do tiro comum que geralmente se ouve. Sim, foi diferente.

—. Mais alto? — sugeri.

Não, Miss Marple não achava que tinha sido mais alto. De fato, era difícil dizer qual era a diferença, mas insistiu em que era diferente.

Pensei que provavelmente estava se convencendo a si mesma em vez de realmente se recordar do fato, mas tinha acabado de fazer uma contribuição importante de um ponto de vista novo, e senti por ela o mais profundo respeito.

Levantou-se, murmurando que tinha mesmo de voltar para casa; fora uma tentação vir discutir o caso com a querida Griselda. Levei-a até o muro divisório e o portão dos fundos e voltei para encontrar Griselda imersa em seus pensamentos.

— Quebrando a cabeça com aquele bilhete? — per­guntei.

— Não.

Estremeceu de repente e sacudiu os ombros, impaciente.

— Len, estive pensando. Alguém deve odiar muito Anne Protheroe!

— Odiar?

— Sim. Não entende? Não há provas concretas contra Lawrence; todas as provas contra ele são o que se pode chamar circunstanciais. Ele só teve essa idéia de vir aqui; se não tivesse vindo, ninguém iria relacionar a sua presença com o crime. Mas Anne é diferente. Suponha que alguém soubesse que ela estava aqui exatamente às seis e vinte... o relógio e a hora na carta... tudo apontando para ela. Não creio que tenha sido por causa de um álibi que os ponteiros foram mudados para essa hora exata. Acho que é mais que isso; é uma tentativa direta de pôr a culpa sobre ela. Se Miss Marple não tivesse reparado que ela não tinha pistola nenhuma e que só levou um minuto para ir para o estúdio... sim, se não fosse isso... — Estremeceu de novo. — Len, acho que alguém odeia Anne Protheroe, e muito. Estou preocupada.

 

Recebi um chamado para ir ao escritório quando La­wrence Redding chegou. Estava muito abatido e aparente­mente desconfiado. O coronel Melchett o recebeu quase com cordialidade.

— Queremos lhe fazer umas perguntas, aqui, no local — ele disse.

Lawrence franziu os lábios.

— Não é uma idéia francesa? Reconstituição do crime?

— Meu caro rapaz — advertiu o coronel Melchett —, não use esse tom de voz conosco. Sabe por acaso que outra pessoa confessou também o crime que você diz ter co­metido?

O efeito dessas palavras em Lawrence foi doloroso e imediato.

— Ou-ou-tra pessoa? — gaguejou. — Que-quem?

— A sra. Protheroe — disse o coronel Melchett, obser­vando o efeito de suas palavras.

— Absurdo. Ela não fez isso. Não podia. É impossível.

Melchett interrompeu-o.

—Pode parecer estranho, mas não acreditamos nela. Tampouco, devo dizer, acreditamos em você. O dr. Haydock afirma positivamente que o crime não pode ter sido come­tido na hora que você mencionou.

— O dr. Haydock disse isso?

— Sim, portanto, como vê, está inocente, queira ou não queira. E agora queremos que nos ajude, que nos diga exatamente o que aconteceu.

Lawrence ainda hesitou.

— Não está me enganando sobre... sobre a sra. Pro­theroe? Não suspeitam dela mesmo?

— Dou-lhe a minha palavra de honra — disse o coro­nel Melchett.

Lawrence respirou fundo.

— Fui um idiota — disse. — Um completo idiota. Como pude pensar por um instante que tinha sido ela...

— Que tal nos contar tudo? — sugeriu o delegado.

— Não tenho muito a dizer. Encontrei...  encontrei a sra. Protheroe naquela tarde... — Calou-se.

— Estamos a par disso — afirmou Melchett. — Talvez você pense que seus sentimentos pela sra. Protheroe e os dela por você eram um grande segredo, mas na verdade eram sabidos e comentados. De qualquer maneira, tudo virá à baila agora.

— Pois muito bem. Talvez tenha razão. Prometi ao pastor — olhou para mim — deixar este lugar. Encontrei a sra. Protheroe naquela tarde, no estúdio, às seis e quinze. Contei a ela o que havia decidido. Ela também concordou que era a única coisa a fazer. Nós... nós nos despedimos. Saímos do estúdio e logo depois o dr. Stone nos encontrou. Anne conseguiu manter toda a naturalidade. Eu não consegui. Fui com Stone ao Blue Boar tomar um drinque. Depois resolvi ir para casa, mas quando cheguei na curva do caminho mudei de idéia e resolvi voltar para ver o pastor. Tive vontade de conversar com alguém sobre esse assunto. Na porta de entrada, a empregada me disse que o pastor tinha saído mas voltaria logo, e que o coronel Protheroe estava no escritório esperando por ele. Bem, não quis ir embora de novo, podia parecer que estava evitando encon­trar-me com ele. Então disse que ia esperar também, e entrei no escritório.

Calou-se.

— E depois? — indagou o coronel Melchett.

— Protheroe estava sentado diante da secretária, exa­tamente como foi encontrado. Aproximei-me e coloquei a mão nele. Estava morto. Então olhei para baixo e vi a pistola no chão, ao seu lado. Abaixei-me para apanhá-la e vi que era a minha pistola. Isso me deu um susto. Minha pistola! Ime­diatamente cheguei a uma conclusão: Anne devia ter apa­nhado minha pistola numa hora qualquer, para usar contra si mesma, caso não agüentasse mais. Talvez estivesse então com a arma. Depois que nos separamos, na aldeia, ela devia ter voltado até aqui e...  e...  Oh! Acho que devia estar louco para pensar assim. Mas foi o que pensei. Meti a pistola no bolso e fui embora. Quando cheguei ao portão, encon­trei o pastor. Ele disse qualquer coisa comum e normal sobre ver Protheroe, e de repente tive uma vontade louca de rir. Ele estava tão natural, na sua maneira de sempre, e eu, descontrolado. Lembro-me de que gritei qualquer coisa absurda e vi sua expressão mudar. Eu estava quase doido. Fui an­dando... andando... e finalmente não agüentei mais. Se Anne tinha cometido esse ato horroroso, eu era, pelo menos, moralmente responsável. Fui e me entreguei.

Houve um silêncio quando terminou. Depois, o coronel disse numa voz comum:

— Quero fazer só uma ou duas perguntas. Tocou no corpo ou mexeu nele de alguma maneira?

— Não, não toquei nele. Podia-se ver que estava morto sem precisar tocá-lo.

— Viu um bilhete no mata-borrão, meio escondido pelo corpo?

— Não.

— Mexeu nos ponteiros do relógio?

— Não toquei no relógio. Acho que vi um relógio caído em cima da mesa, mas não toquei nele.

— E essa sua pistola, qual foi a última vez que você a viu?

Lawrence Redding pensou um pouco.

— É difícil dizer.

— Onde costuma guardá-la?

— Oh! Junto com uma porção de coisas na sala do meu cottage. Em uma das prateleiras da estante de livros.

— Você a deixava solta?

— Sim. Nem pensava nela. Ficava por lá.

— Então qualquer pessoa que fosse ao seu cottage podia ver a pistola?

— Sim.

— E não se lembra de quando a viu pela última vez?

Lawrence franziu a testa e fez um esforço para se lembrar.

— Tenho quase certeza de que estava lá anteontem. Lembro-me de tê-la afastado para um lado para pegar um cachimbo velho. Acho que foi anteontem, mas pode ter sido um dia antes.

— Quem tem ido a seu cottage ultimamente?

— Oh! Muita gente. Há sempre alguém entrando ou saindo de lá. Dei uma espécie de chá anteontem. Lettice Protheroe, Dennis e toda a turma deles. E uma velhota ou outra aparece lá de vez em quando.

— Você tranca o cottage quando sai?

— Não; por que faria isso? Não tenho nada para ser roubado. E ninguém tranca a casa por aqui.

— Quem toma conta da casa?

— A velha sra. Archer vem todas as manhãs para fazer uma limpeza.

— Acha que ela se lembraria da última vez que viu a pistola por lá?

— Não sei. Talvez. Mas acho que tirar pó não é a especialidade dela.

— A verdade é essa: praticamente qualquer pessoa poderia ter tirado a pistola de lá?

— Parece que sim... Sim.

A porta se abriu, e o dr. Haydock entrou com Anne Protheroe.

Ela se assustou quando viu Lawrence. Ele, por sua vez, deu um passo em direção a ela.

— Perdoe-me, Anne — ele disse. — Foi abominável de minha parte ter pensado o que pensei.

— Eu...  — ela hesitou e olhou suplicante para o coronel Melchett. — É verdade o que o dr. Haydock me disse?

— Que o sr. Redding está livre de suspeitas? Sim. E agora, que tal contar-nos a sua história, sra. Protheroe? Hein, que tal?

Ela sorriu, meio envergonhada.

— Imagino que achou medonho eu fazer isso...

— Bem, digamos que foi uma grande bobagem. Mas já passou. O que quero agora, sra. Protheroe, é a verdade, a absoluta verdade.

Ela concordou gravemente com a cabeça.

— Vou lhe contar. Suponho que saiba de... de tudo.

— Sim.

— Devia encontrar-me com Lawrence... com o sr. Redding...   naquela noite, no estúdio, às seis e quinze. Meu marido e eu fomos de carro até a aldeia. Eu tinha de fazer umas compras. Quando nos separamos, ele mencio­nou casualmente que ia ver o pastor. Não pude mandar um recado para Lawrence e fiquei preocupada. Eu... bem, ficava esquisito encontrar Lawrence no jardim, com meu marido ali na residência.

Ficou vermelha ao dizer isso. Não era muito agradável para ela.

— Pensei que talvez meu marido não ficasse lá por muito tempo. Para poder descobrir isso, vim pelo caminho dos fundos para entrar no jardim. Esperava que ninguém me visse, mas naturalmente a velha Miss Marple estava lá no seu jardim! Ela me fez parar, trocamos algumas palavras e expliquei que ia buscar meu marido. Senti que tinha de dar alguma explicação. Ela estava com uma cara meio... engraçada. Quando a deixei, fui direto à residência e dei a volta no canto da casa para ir à janela do escritório. Fui bem de mansinho, esperando ouvir vozes. Mas para meu espanto, não ouvi nada. Olhei pela janela, vi que a sala es­tava vazia e atravessei depressa o gramado em direção ao estúdio, aonde Lawrence chegou logo depois.

— A senhora viu o escritório vazio, sra. Protheroe?

— Sim, meu marido não estava lá.

— Extraordinário!

— Quer dizer, madame, que não viu seu marido? — indagou o inspetor.

— Não, não vi.

O inspetor Slack murmurou qualquer coisa para o de­legado, que acenou afirmativamente com a cabeça.

— Importa-se, sra. Protheroe, de nos mostrar exata­mente o que fez?

— Claro que não — disse, levantando-se.

O inspetor Slack abriu a porta de vidro, ela saiu para o terraço e tomou a esquerda. Em seguida, fez um sinal imperioso para que eu fosse me sentar à secretária.

Isso não me agradou muito. Tive uma sensação desa­gradável. Mas, é claro, obedeci.

Daí a pouco ouvi passos lá fora, que cessaram um mi­nuto e depois voltaram. O inspetor Slack fez um sinal, indi­cando que eu podia voltar para o outro lado da sala. A sra. Protheroe entrou pela porta de vidro.

— Foi assim, exatamente?  — perguntou o coronel Melchett.

— Acho que sim.

— Pode então nos dizer, sra. Protheroe, onde exata­mente estava o pastor quando a senhora olhou para a sala?

— O pastor? Eu... acho que não. Não vi o pastor.

O inspetor Slack concordou com a cabeça.

— Foi por isso que a senhora não viu o seu marido. Ele estava ali na secretária.

— Oh! — Ela fez uma pausa. De repente arregalou os olhos, horrorizada.

— Foi ali que... que...

— Sim, sra. Protheroe. Foi quando ele estava senta­do ali.

— Oh! — Ela estremeceu.

O inspetor continuou com as perguntas.

— Sabia, sra. Protheroe, que o sr. Redding tinha uma pistola?

— Sim. Ele me disse uma vez.

— Alguma vez teve essa pistola em seu poder?

Sacudiu a cabeça negativamente. — Não.

— Sabia onde ele a guardava?

— Não tenho certeza. Acho... sim, acho que vi a pistola numa prateleira, no cottage. Não era lá que você guardava a pistola, Lawrence?

— Quando foi a última vez que a senhora foi ao cot­tage, sra. Protheroe?

— Oh! Há umas três semanas. Meu marido e eu toma­mos chá com ele.

— E não foi lá depois disso?

— Não. Nunca ia lá. Sabe, daria muito o que falar na aldeia.

— Sem dúvida — disse o coronel Melchett secamente. — Onde é que a senhora costumava se encontrar com o sr. Redding, se me permite perguntar?

— Ele costumava ir a Old Hall. Estava fazendo um quadro de Lettice. Costumávamos nos encontrar depois, no bosque.

O coronel Melchett inclinou a cabeça.

— Ainda não chega? — A voz dela falhou. — É horrível ter de lhe dizer essas coisas. E... e não havia nada de errado. Não havia, não havia mesmo. Éramos só amigos. Não... não tínhamos culpa de gostar um do outro.

Olhou implorando para o dr. Haydock, e aquele bon­doso homem acudiu em sua ajuda.

— Realmente acho, Melchett — ele disse —, que a sra. Protheroe já agüentou bastante. Ela teve um grande choque, de muitas maneiras.

O delegado concordou com a cabeça.

— Não tenho nada mais a perguntar-lhe, sra. Prothe­roe — declarou. — Muito grato por ter respondido a minhas perguntas com tanta franqueza.

— Então... então posso ir?

— Sua mulher está em casa? — perguntou-me Hay­dock. — Acho que a sra. Protheroe gostaria de falar com ela.

— Sim — respondi. — Griselda está em casa. Pode encontrá-la na sala de estar.

Ela e Haydock saíram juntos, e Lawrence Redding foi com eles.

O coronel Melchett franziu os lábios e ficou brincando com uma espátula. Slack estava olhando o bilhete. Foi então que mencionei a teoria de Miss Marple. Slack examinou-a com cuidado.

— Por Deus! — exclamou. — Acho que a velhota tem razão. Veja bem, senhor, olhe aqui. Esses números foram escritos com tinta diferente. A data foi escrita com uma caneta-tinteiro, aposto o que quiser.

Ficamos todos bastante excitados.

— Examinou o bilhete procurando impressões digi­tais, é claro — disse o delegado.

— O que acha, coronel? Nenhuma impressão no bi­lhete. As impressões na pistola são do sr. Lawrence Redding. Pode ser que tivesse outras antes; mas ele pegou a arma, carregou-a no bolso, e agora nada está claro o bastante, além das impressões dele.

— De início as coisas estavam muito pretas para a sra. Protheroe — disse o coronel, pensativo. — Muito mais pretas do que para Redding. Há o depoimento da velhota Marple, segundo o qual ela não estava com a pistola, mas essas velhotas se enganam muitas vezes.

Fiquei calado, mas não concordei com ele. Estava certo de que Anne Protheroe não tinha nenhuma pistola com ela, porque Miss Marple dissera que não. Miss Marple não é o tipo de velhota que se engana; tem uma capacidade fora do comum de estar sempre certa.

— O que me perturba é ninguém ter ouvido o tiro. Se foi naquela hora, então alguém deve ter ouvido, não importa de onde pensam que tenha vindo. Slack, é melhor você falar com a empregada.

— O inspetor Slack encaminhou-se rapidamente para a porta.

— Não lhe pergunte se ouviu um tiro em casa — eu disse. — Porque, se perguntar, ela vai dizer que não. Diga um tiro no bosque. É o único tiro que ela vai admitir que ouviu.

— Sei lidar com essa gente — retrucou o inspetor Slack, retirando-se em seguida.

— Miss Marple diz que ouviu um tiro mais tarde — comentou o coronel Melchett, pensativo. — Temos de ver se pode fixar a hora com mais precisão. Obviamente pode ter sido um tiro à toa, que não tem nada a ver com o caso.

— Pode ser, é claro — concordei.

O coronel deu uma ou duas voltas pela sala.

— Sabe, Clement? — disse de repente. — Estou com o pressentimento de que este caso vai ser muito mais com­plicado e difícil do que imaginamos. Há alguma coisa por trás disso tudo. — Bufou. — Alguma coisa que nós não sabemos. Estamos apenas começando, Clement. Guarde o que estou dizendo, estamos apenas começando. Isso tudo, o relógio, o bilhete, a pistola...  não tem sentido por en­quanto.

Sacudi a cabeça. Certamente não tinha.

— Mas eu vou desvendar o mistério. Não vou chamar a Scotland Yard. Slack é esperto. É um homem muito es­perto. É como um furacão. Ele vai fuçar até encontrar a verdade. Já fez umas coisas muito boas, e este caso vai ser seu chef-d'ceuvre. Há pessoas que chamariam a Scotland Yard. Eu não. Vamos resolver isso aqui mesmo em Devonshire.

— Espero que sim, naturalmente — ajuntei.

Procurei emprestar um pouco de entusiasmo à minha voz, mas já tinha tomado tal antipatia pelo inspetor Slack que a possibilidade de seu sucesso não me interessava. Um Slack vitorioso seria, pensei, ainda mais odioso que um Slack perplexo.

— Quem mora ao lado? — o coronel perguntou de repente.

— No fim da estrada? A sra. Price Ridley.

— Vamos falar com ela quando Slack terminar com a empregada. É possível que ela tenha ouvido alguma coisa. Não é surda também, é?

— Diria que tem um ouvido muito apurado. Estou me baseando na quantidade de mexericos lançados por ela só por ter escutado casualmente alguém dizer alguma coisa.

— Estamos precisando de uma mulher assim. Oh! Aí vem Slack.

O inspetor tinha cara de quem havia saído de uma ba­talha.

— Puxa! — exclamou. — Que fera o senhor tem aí!

— Mary é basicamente uma moça de personalidade forte — respondi.

— Não gosta da polícia — disse ele. — Eu a amea­cei, fiz tudo para infundir-lhe o medo da lei, mas não adiantou nada. Enfrentou-me do mesmo jeito.

— Corajosa — comentei, sentindo mais simpatia por Mary.

— Mas encostei-a na parede, finalmente. Ouviu um tiro, e só um. E foi um bocado de tempo após a chegada do coronel Protheroe. Não consegui que ela precisasse a hora, mas no fim chegamos a uma conclusão por causa do peixe. O peixe chegou atrasado e ela passou um sermão no garoto quando ele chegou e disse que eram só seis e meia; foi logo depois disso que ela ouviu o tiro. É claro que isso não é muito exato, mas dá uma idéia.

— Hum — fez Melchett.

— Acho que a sra. Protheroe não está metida nisso, afinal de contas — disse Slack em tom de lástima. — Pri­meiro porque não ia dar tempo e, depois, as mulheres não gostam de mexer com armas de fogo. Preferem arsênico. Não, não acho que ela esteja nisso. É uma pena! — suspirou.

Melchett explicou que ia ver a sra. Ridley, e Slack aprovou.

— Posso ir com o senhor? — perguntei. — Estou ficando interessado.

Concedeu sua permissão e nos pusemos a caminho. Ouvimos um grito de “Olá”, quando atravessamos o portão, e meu sobrinho Dennis veio correndo pelo caminho da al­deia ao nosso encontro.

— Diga-me — dirigiu-se ao inspetor —, o que aconte­ceu com a pegada que eu encontrei?

— Era do jardineiro — respondeu o inspetor Slack laconicamente.

— Não podia ter sido alguém usando as botas do jardineiro?

— Não, não podia! — disse o inspetor Slack termi­nantemente.

Era preciso mais que isso para desencorajar Dennis.

Estendeu a mão e mostrou uns fósforos queimados.

— Encontrei-os perto do portão da residência.

— Obrigado — disse Slack, colocando os fósforos no bolso.

O assunto parecia encerrado.

— Não estão prendendo o tio Len, estão? — per­guntou Dennis em tom de brincadeira.

— Por que razão? — perguntou Slack.

— Há muitas provas contra ele — declarou Dennis. Pergunte a Mary. Na véspera do assassinato estava desejando que o coronel Protheroe morresse. Não estava, tio Len?

— Ora... — comecei.

O inspetor lançou-me um olhar lento e desconfiado, e senti-me invadido por uma onda de calor. Dennis é extre­mamente irritante. Devia compreender que um policial rara­mente tem senso de humor.

— Não seja ridículo, Dennis — eu disse, irritado.

O garoto inocente arregalou os olhos com ar de sur­presa.

— Mas é só uma brincadeira! — alegou. — O tio Len só disse que aquele que matasse o coronel Protheroe estaria prestando um grande serviço à humanidade.

— Ah! — exclamou o inspetor Slack. — Isso explica uma coisa que a empregada disse.

Os empregados também raramente têm senso de humor. Passei uma descompostura mental em Dennis por mencio­nar o assunto. Isso e o relógio juntos vão fazer com que o inspetor suspeite de mim pelo resto da vida.

— Vamos, Clement — disse o coronel Melchett.

— Aonde é que vão? Posso ir também? — Dennis perguntou.

— Não, não pode não — retruquei bruscamente.

Ficou nos olhando com uma expressão de mágoa. Che­gamos até a elegante porta da casa da sra. Price Ridley, e o inspetor tocou a campainha de um modo que só posso cha­mar de oficial. Uma empregada bonitinha veio atender.

— A sra. Price Ridley está? — perguntou Melchett.

— Não, senhor. — A empregada fez uma pausa e de­pois acrescentou: — Ela acabou de sair; foi à delegacia.

Isso era totalmente inesperado. Quando voltávamos, Melchett segurou meu braço e murmurou:

— Se ela também foi confessar o crime, vou mesmo ficar louco.

 

Julguei pouco provável que a sra. Price Ridley tivesse uma coisa tão dramática em vista, mas perguntei-me por que teria ido à delegacia. Possuía realmente provas importantes, ou que julgava importantes, a oferecer? De qualquer manei­ra, saberíamos logo.

Encontramos a sra. Price Ridley falando atabalhoada­mente com um guarda de cara espantada. Vi que estava profundamente indignada, pelo modo como tremia o laço de seu chapéu. A sra. Price Ridley usa aquilo que chamam de “chapéus de matronas”; é uma especialidade da cidade vizinha, Much Benham. Ficam empoleirados na superestru­tura de cabelo e são pesadamente decorados com grandes laços de fita. Griselda está sempre ameaçando comprar um chapéu de matrona.

A sra. Price Ridley suspendeu a torrente de palavras quando entramos.

— Sra. Price Ridley? — perguntou o coronel Melchett, tirando o chapéu.

— Quero apresentar-lhe o coronel Melchett, sra. Price Ridley — eu disse. — O coronel Melchett é nosso delegado.

A sra. Price Ridley olhou-me friamente, mas produziu uma imitação de um sorriso gracioso para o coronel.

— Acabamos de vir de sua casa, sra. Price Ridley — explicou o coronel —, e soubemos que a senhora tinha vindo para cá.

A sra. Price Ridley rendeu-se completamente.

— Ah! — exclamou. — Ainda bem que estão tomando alguma providência. É uma vergonha, isso sim. Simplesmen­te uma vergonha.

Não há dúvida de que um assassinato é uma vergonha, mas não creio que fosse a palavra mais apropriada. Surpreen­deu Melchett também, era fácil de ver.

— Pode nos dizer alguma coisa sobre o caso?  — perguntou.

— Isso é com o senhor. Isso é com a polícia. Para que pagamos impostos e taxas, senão para isso?

É de espantar o número de vezes que essa pergunta é feita em um ano.

— Estamos fazendo o possível, sra. Price Ridley — afirmou o delegado.

— Mas este homem aqui não sabia de nada antes de eu contar! — protestou a senhora.

Olhamos todos para o guarda.

— Esta senhora recebeu um telefonema — ele disse.

— Importuno. É uma questão de linguagem obscena, ao que parece.

— Ah! Compreendo. — O coronel desfranziu a testa. — Houve um mal-entendido. A senhora veio aqui fazer uma queixa, não foi?

Melchett é muito sábio. Sabe que quando se trata de uma senhora de meia-idade, furiosa, só há uma coisa a fazer: ouvir o que tem a dizer. Quando ela acabar de dizer tudo o que deseja, então há uma chance de parar para escutar.

As palavras brotaram da boca da sra. Price Ridley.

— Esses acontecimentos vergonhosos deveriam ser evi­tados. Não deviam acontecer. Receber um telefonema desses na casa da gente e ser insultada, isso mesmo, insultada! Não estou habituada a coisas assim. Desde a guerra que tem havido um relaxamento da moral. Ninguém se incomoda com o que diz; e quanto às roupas que usam...

— Certo — o coronel Melchett apressou-se em con­cordar. — O que aconteceu, exatamente?

A sra. Price Ridley tomou fôlego e começou de novo.

— O telefone tocou...

— Quando?

— Ontem à tardinha... de noite, para ser exata. Perto das seis e meia. Atendi, sem desconfiar de nada. Fui brutal­mente agredida, ameaçada...

— O que disseram, precisamente?

A sra. Price Ridley ficou ligeiramente vermelha.

— Isso me recuso a dizer.

— Linguagem obscena — murmurou o guarda num tom baixo e ponderado.

— Usaram linguagem feia? — perguntou o coronel Melchett.

— Depende do que o senhor chama de linguagem feia.

— A senhora entendeu? — perguntei.

— Claro que entendi.

— Então não podia ser linguagem feia — concluí.

A sra. Price Ridley olhou-me desconfiada.

— Uma senhora fina — expliquei — naturalmente não conhece linguagem feia.

— Não era bem isso — disse a sra. Price Ridley. — No princípio, tenho de confessar, fui completamente enga­nada. Pensei que era um recado de verdade. Então a... a pessoa tornou-se ofensiva.

— Ofensiva?

— Muito ofensiva. Fiquei muito assustada.

— Usou palavras ameaçadoras, hein?

— Sim. Não estou acostumada a receber ameaças.

— E quais foram as ameaças? De coisas físicas?

— Não foi bem isso.

— Receio, sra. Price Ridley, que a senhora tenha de ser mais explícita. De que maneira foi ameaçada?

A sra. Price Ridley se mostrou extremamente relutante em responder.

— Não me lembro exatamente. Foi tudo muito cho­cante. Mas bem no fim, quando eu estava muito transtorna­da, esse... esse monstro riu.

— Era voz de homem ou de mulher?

— Era uma voz degenerada — disse a sra. Price Ridley com dignidade. — Só posso descrever como sendo uma voz pervertida. Ora rouca, ora esganiçada. Realmente uma voz muito esquisita.

— Deve ter sido uma brincadeira — sugeriu o coronel, querendo acalmá-la.

— De muito mau gosto, se foi mesmo brincadeira. Eu podia ter tido um ataque de coração.

— Vamos investigar — disse o coronel —, não é, inspetor? Saber de onde veio o telefonema. Não pode dizer com mais clareza o que foi dito, sra. Price Ridley?

Uma luta se travou naquele amplo peito coberto de preto. O desejo de ser reticente batalhou com o desejo de vingança. A vingança venceu.

— Isso, é claro, não irá adiantar — começou.

— Claro que não.

— Essa criatura começou dizendo... não tenho cora­gem de repetir...

— Sim, sim — disse Melchett, procurando lhe dar coragem.

“Você é uma velha caluniadora e malvada!” Eu, coronel Melchett, uma velha caluniadora. Mas desta vez foi longe demais.  “A Scotland Yard está atrás de você por calúnia.”

— Naturalmente, ficou assustada — comentou Mel­chett, mordendo o bigode para esconder um sorriso.

— “Se não calar a boca daqui por diante, vai pagar caro, de muitas maneiras.” Não posso descrever como isso foi ameaçador. Murmurei: “Quem é?”, baixinho, assim, e a voz respondeu: “O Vingador”. Dei um grito. Era tão horrí­vel, e então... a pessoa riu. Riu! Ouvi claramente. E foi só isso. Ouvi desligarem do outro lado. Claro que perguntei à estação que número tinha me chamado, mas disseram que não sabiam. Sabe como são as telefonistas. Muito grosseiras e antipáticas.

— Certo — eu disse.

— Quase desmaiei — continuou a sra. Price Ridley. — Fiquei tão nervosa que quando ouvi um tiro no bosque quase subi pelas paredes. Por aí vê como eu fiquei.

— Um tiro no bosque? — repetiu o inspetor Slack imediatamente alerta.

— No meu estado, parecia um tiro de canhão. “Oh!”, eu disse, e caí no sofá, completamente prostrada. Clara teve de me dar um pouco de licor de ameixas.

— Chocante — disse Melchett. — Chocante. Muito difícil para a senhora. E o tiro foi muito alto, a senhora disse? Como se fosse bem perto?

— Isso foi devido ao meu estado de nervos.

— Claro. Claro. E quando foi tudo isso? Para nos ajudar a investigar o telefonema, compreende?

— Por volta de seis e meia.

— Não pode ser mais precisa?

— Bem, o reloginho em cima da lareira tinha acabado de dar a meia hora e eu disse: “Esse relógio deve estar adian­tado”. Ele costuma adiantar, sabe? Comparei com meu reló­gio de pulso e ele marcava seis e dez, mas quando o coloquei no ouvido, vi que tinha parado. Então pensei: “Bem, se aquele relógio está adiantado, daqui a pouco ouvirei a torre da igreja”. Então o telefone tocou e esqueci tudo. — Parou para tomar fôlego.

— Bem, já dá para fazer uma idéia — disse o coronel Melchett. — Vamos investigar o caso, sra. Price Ridley.

— Considere isso uma brincadeira tola e não se preo­cupe, sra. Price Ridley — declarei.

Olhou-me friamente. Decerto não se esquecera do in­cidente da nota de uma libra.

— Vêm acontecendo coisas muito estranhas nesta aldeia ultimamente — afirmou, dirigindo-se ao coronel Melchett. — Coisas muito estranhas, realmente. O coronel Protheroe ia investigar e veja o que aconteceu com ele, pobre homem. Talvez seja eu a próxima...

E com isso saiu, abanando a cabeça melancolicamente. Melchett murmurou baixinho: — Seria muita sorte. — De­pois ficou sério e olhou para o inspetor Slack como quem faz uma pergunta.

O digno homem concordou vagarosamente com a cabeça.

— É uma confirmação, senhor. Agora são três pessoas que ouviram o tiro. Temos que descobrir agora quem deu o tiro. Essa história do sr. Redding nos atrasou. Mas temos vários pontos de partida. Pensando que o sr. Redding era culpado, não me dei ao trabalho de investigar. Mas agora mudou tudo. E uma das primeiras coisas a fazer é investigar aquele telefonema.

— O da sra. Price Ridley?

O inspetor sorriu.

— Não, embora seja bom tomar nota disso, senão va­mos ter a velhota nos amolando aqui de novo. Refiro-me àquela chamada falsa que tirou o pastor da cena.

— Sim — disse Melchett —, isso é importante.

— E a próxima coisa é descobrir o que todo mundo estava fazendo naquela noite entre as seis e sete horas. Todo mundo em Old Hall, quero dizer, e quase todo mundo na aldeia também.

Suspirei.

— Que energia o senhor tem, inspetor Slack.

— Acredito no trabalho. Vamos começar pelos seus próprios movimentos, sr. Clement.

— Pois não. Recebi um telefonema mais ou menos às cinco e meia.

— Voz de homem ou de mulher?

— De mulher. Pelo menos parecia de mulher. Mas naturalmente eu estava certo de que era a sra. Abbott.

— Não reconheceu a voz da sra. Abbott?

— Não, não posso dizer que tenha reconhecido. Não reparei muito na voz, nem pensei nisso.

— E saiu logo em seguida? Foi a pé? Não tem bicicleta?

— Não.

— Entendo. Então levou... quanto tempo?

— São quase três quilômetros, de qualquer maneira.

— O caminho mais curto atravessa o bosque de Old Hall, não é?

— De fato. Mas não é um caminho muito fácil. Fui e voltei pela trilha que atravessa os campos.

— A que vai dar em frente ao portão da residência?

— Sim.

— E a sra. Clement?

— Minha mulher estava em Londres. Voltou no trem das seis e cinqüenta.

— Certo. A empregada eu já vi. Isso liquida a residên­cia do pastor. Agora vou para Old Hall. E depois quero uma entrevista com a sra. Lestrange. É esquisito ela ter ido ver Protheroe na véspera de seu assassinato. Há muitas coisas esquisitas nesse caso.

Concordei.

Olhando o relógio, vi que estava quase na hora do almoço. Convidei Melchett para almoçar conosco, mas ele desculpou-se dizendo que tinha de ir ao Blue Boar. O Blue Boar serve uma refeição de primeira, com pernil e dois tipos de legumes. Achei sua escolha muito sensata. Depois da entrevista com a polícia, provavelmente Mary estaria mais temperamental que de costume.

 

A caminho de casa, encontrei a srta. Hartnell, que me prendeu pelo menos por dez minutos, reclamando com sua voz grave contra a improvidência e ingratidão das classes baixas. Parecia que o xis da questão era que os pobres não queriam a srta. Hartnell em sua casa. Meus sentimentos estavam todos com eles. Todavia, estou impossibilitado, pela minha posição social, de expressar livremente os meus pre­conceitos.

Acalmei-a o melhor que pude e escapuli.

Haydock me alcançou em seu carro, na esquina do caminho da residência.

— Acabei de levar a sra. Protheroe para casa — ele disse.

Esperou por mim no portão de sua casa.

— Entre um minuto — pediu.

Aquiesci.

— É um caso extraordinário — declarou, jogando o chapéu numa cadeira e abrindo a porta do consultório.

Atirou-se numa poltrona de couro gasta e fixou os olhos no outro lado da sala. Parecia aborrecido e confuso.

Contei-lhe que tínhamos conseguido precisar a hora do tiro. Ouviu com um ar distante.

— Isso elimina Anne Protheroe — observou. — Bem, estou contente de que não seja nenhum dos dois. Gosto deles.

Acreditei nele, mas fiquei pensando por que razão, se, como disse, gostava de ambos, o fato de estarem isentos de culpa tinha tido o efeito de afundá-lo em melancolia. Naque­la manhã parecia que lhe haviam tirado um peso das costas, e agora estava totalmente abalado e perturbado.

Apesar disso estava convencido de que dissera a ver­dade. Gostava de Anne Protheroe e de Lawrence Redding. Então por que essa prostração melancólica? Fez um esforço para se animar.

— Queria lhe falar sobre Hawes. Com esse negócio todo, havia me esquecido disso.

— Ele está realmente doente?

— Na verdade, nada tem de errado. Naturalmente sabe que ele teve encefalite letárgica, a doença do sono, como é chamada comumente?

— Não — respondi muito espantado. — Não sabia nada disso. Ele nunca me disse nada. Quando teve essa doença?

— Há mais ou menos um ano. Ficou bom, isto é, na medida do possível. É uma doença estranha, tem um efeito moral esquisito. Pode acarretar uma mudança total da per­sonalidade.

Ficou calado um minuto ou dois e depois disse:

— Ficamos horrorizados hoje em dia quando nos lem­bramos de como costumávamos queimar as bruxas. Acredito que virá o dia em que haveremos de tremer só de pensar que costumávamos enforcar criminosos.

— Não acredita na pena capital?

— Não é bem isso. — Fez uma pausa. — Prefiro meu trabalho ao seu.

— Por quê?

— Porque seu trabalho é diretamente ligado ao que chamamos de certo e errado, e não estou absolutamente con­vencido de que isso exista. Suponho que seja tudo uma questão de secreção glandular. Uma secreção a mais, uma secreção a menos, e temos o assassino, o ladrão, o crimi­noso habitual. Clement, acredito que vai chegar o dia em que ficaremos horrorizados ao pensar nos muitos séculos em que praticamos o que podemos chamar de condenação moral, e em como castigamos as pessoas por serem doentes, embo­ra não tenham culpa disso, pobres-diabos. Não se enforca um homem porque é tuberculoso.

— Um tuberculoso não é uma ameaça para a comu­nidade.

— Não deixa de ser. É contagioso. E que tal um ho­mem que imagina que é o imperador da China? Você não diz: que maldade! Concordo com você sobre a comunidade: é preciso protegê-la. Encarcere essas pessoas onde não pos­sam causar nenhum dano; podem até mesmo ser eliminadas pacificamente... sim, iria até aí. Mas não chame isso de castigo. Não as envergonhe nem às suas famílias inocentes.

Olhei-o com curiosidade.

— Nunca ouvi você falar assim.

— Não costumo ventilar minhas teorias. Hoje estou aferrado à minha mania. Você é um homem inteligente, Clement, o que não acontece com a maioria dos pastores. Garanto que não vai admitir que não existe o que é tecnica­mente chamado de “pecado”, mas você tem idéias largas o bastante para considerar essa possibilidade. Atinge as raízes de todas as idéias que aceitamos. Sim, somos fanáticos, ignorantes, cheios de virtude, prontos a julgar assuntos de que não entendemos nada. Acredito sinceramente que o cri­me é um caso para os médicos, não para policiais e pastores. No futuro, talvez, isso não exista mais.

— Vai curá-lo?

— Vamos curá-lo. É uma idéia maravilhosa. Já estudou as estatísticas relativas a crimes? Não, quase ninguém estu­da isso. Ficaria espantado com o número de crimes pratica­dos por adolescentes; as glândulas novamente, está vendo? Aquele rapaz, Neil, de Oxfordshire, matou cinco meninas antes que suspeitassem dele. Um rapaz muito simpático, nunca havia criado qualquer problema; Lily Rose, a garota celta, matou o tio porque ele a proibiu de chupar balas. Bateu nele com um martelo quando estava dormindo. Foi para casa e quinze dias depois matou a irmã mais velha, que a tinha aborrecido por causa de alguma coisa sem importân­cia. Nenhum dos dois foi enforcado, naturalmente. Foram mandados para um hospício. Talvez fiquem bons algum dia, talvez não. Duvido que a menina fique boa. A única coisa de que ela gosta é de ver matarem porcos. Sabe quando o suicídio é mais comum? Dos quinze aos dezesseis anos. Do suicídio ao assassinato é só um passo. Mas não é uma falha moral, é uma falha física.

— O que está dizendo é horrível!

— Não, apenas é novidade para você. É preciso encarar as verdades que surgem. Ajustar nossas idéias. Mas, às ve­zes... isso torna a vida difícil.

Ficou ali sentado, a testa franzida, com um estranho ar de cansaço.

— Haydock — eu disse —, se você suspeitasse, se sou­besse que uma certa pessoa é um assassino, entregaria essa pessoa à polícia ou ficaria tentado a escondê-la?

Não estava preparado para o efeito da minha pergunta. Virou-se para mim, furioso e desconfiado.

— Por que diz isso, Clement? Em que está pensando? Fale, homem.

— Ora, nada de especial — repliquei, meio espantado. — Só que... bem, estamos com a cabeça cheia de assassina­tos. Se por acaso você descobrisse a verdade... só estava pensando em como ia se sentir, foi só isso.

Sua fúria desapareceu. Ficou outra vez olhando fixa­mente para a frente, como quem está procurando a solução de um quebra-cabeça que o perturba, mas que existe somen­te em sua imaginação.

— Se eu suspeitasse... se eu soubesse... cumpriria meu dever, Clement. Pelo menos, espero que sim.

— O problema é: qual seria o seu dever?

Lançou-me um olhar enigmático.

— Todos os homens enfrentam esse problema algum dia em sua vida, Clement. E cada um tem de se decidir à sua maneira.

— Você não sabe?

— Não, não sei...

Senti que a melhor coisa era mudar de assunto.

— Aquele meu sobrinho está se divertindo muito com tudo isso — eu disse. — Passa todo o tempo procurando pegadas e cinzas de cigarro.

Haydock sorriu. — Que idade ele tem?

— Fez dezesseis anos. Nessa idade não se leva tragédias a sério. É tudo como se se tratasse de Sherlock Holmes e Arsène Lupin.

Haydock disse pensativo:

— É um belo rapaz. O que vai fazer com ele?

— Não posso lhe pagar um curso na universidade, lamentavelmente. Ele quer entrar na marinha mercante. Não conseguiu entrar para a marinha.

— Bem, é uma vida dura, mas poderia ser pior. Sim, poderia ser pior.

— Tenho de ir! — exclamei, vendo as horas de re­pente. — Estou atrasado meia hora para o almoço.

Minha família estava se sentando à mesa quando entrei. Exigiram que eu contasse tudo o que tinha acontecido de manhã, o que fiz, sentindo, porém, que o meu relato era uma espécie de anticlímax.

Contudo, Dennis se divertiu muito com o telefonema da sra. Price Ridley e riu às gargalhadas quando entrei em detalhes sobre o choque que havia sido para o seu sistema nervoso e como fora reanimada com licor de ameixas.

— Aquela gata velha bem que merece isso! — excla­mou. — É a pior língua deste lugar. Quem me dera que eu tivesse tido a idéia de telefonar para ela e pregar-lhe um susto. Tio Len, que tal repetir a dose?

Implorei a Dennis imediatamente que não fizesse isso. Não há nada mais perigoso que os esforços bem-intenciona­dos da nova geração para ajudar os mais velhos e mostrar sua solidariedade.

Dennis mudou de repente. Franziu a testa e fez uma cara de homem muito vivido.

— Passei a maior parte da manhã com Lettice — afir­mou. — Você sabe, Griselda, ela está muito preocupada. Não quer demonstrar, mas está. Muito preocupada mesmo.

— Espero que esteja — disse Griselda, sacudindo a cabeça.

Griselda não gosta muito de Lettice Protheroe.

— Acho que você não é muito justa com Lettice.

— Acha? — perguntou Griselda.

— Muitas pessoas não usam luto.

Griselda ficou calada e eu também. Dennis continuou:

— Ela não fala muito com ninguém, mas fala comigo. Está muito preocupada com essa história toda e acha que alguém devia fazer alguma coisa.

— Ela saberá — afirmei — que o inspetor Slack é da mesma opinião. Ele vai a Old Hall hoje de tarde e prova­velmente tornará a vida deles insuportável com suas tenta­tivas de chegar à verdade.

— Qual você acha que é a verdade, Len? — pergun­tou minha mulher de repente.

— É difícil dizer, minha querida. Neste momento, não tenho a menor idéia.

— Você disse que o inspetor Slack ia procurar saber de onde veio a chamada telefônica, aquela que levou você à casa dos Abbotts?

— Sim.

— Mas ele pode fazer isso? Não será muito difícil?

— Acho que não. A central tem um registro de todas as chamadas.

— Oh! — Minha mulher ficou pensativa.

— Tio Len — perguntou meu sobrinho —, por que ficou tão zangado comigo hoje de manhã, quando eu disse brincando que você queria que o coronel Protheroe fosse assassinado?

— Porque há uma hora apropriada para tudo. O ins­petor Slack não tem nenhum senso de humor. Levou o que você disse muito a sério; provavelmente vai interrogar Mary e expedirá um mandado de prisão contra mim.

— Ele não compreende quando alguém está brincando?

— Não, não compreende. Chegou aonde está por força de muito trabalho árduo e do cumprimento cuidadoso de seu dever. Isso não lhe deu nenhum tempo para as coisas mais divertidas da vida.

— O senhor gosta dele, tio Len?

— Não, não gosto dele. Desde que o vi, antipatizei com ele profundamente. Mas não tenho dúvidas de que é alta­mente eficiente na sua profissão.

— Acha que ele vai descobrir quem matou o velho Protheroe?

— Se não descobrir, não será porque não se esforçou.

Mary apareceu e disse:

— O sr. Hawes quer falar com o senhor. Levei-o para a sala de estar; e aqui está um bilhete. Está esperando uma resposta. Não precisa ser por escrito.

Abri o envelope e li:

“Caro sr. Clement: Ficaria muito grata se viesse me ver hoje à tarde, o mais cedo possível. Estou com um grande problema e gostaria que me aconselhasse.

Atenciosamente,

Estelle Lestrange”.

— Diga que irei dentro de meia hora — falei para Mary. Dirigi-me então à sala de estar para falar com Hawes.

O aspecto de Hawes me deixou muito abalado. Suas mãos tremiam e percebi contrações nervosas no seu rosto. Na minha opinião devia estar na cama, e disse-lhe isso. In­sistiu que estava perfeitamente bem.

— Eu lhe garanto, senhor, nunca me senti melhor. Nunca na minha vida.

Estava tão longe da verdade que eu não soube o que responder. Tenho uma certa admiração por um homem que não se entrega à doença, mas Hawes estava levando isso muito longe.

— Vim aqui para dizer como lastimo o que aconteceu na residência.

— Sim, não foi muito agradável.

— Foi horrível, horrível mesmo. Afinal de contas, não prenderam o sr. Redding?

— Não. Foi um engano. Ele fez uma confissão... um pouco tola.

— E a polícia agora está convencida de que é inocente ?

— Completamente.

— E por quê, posso saber? Será porque... quero dizer, eles suspeitam de outra pessoa?

Nunca imaginei que Hawes ficasse tão interessado nos detalhes de um homicídio. Talvez fosse porque tinha acon­tecido na residência do pastor. Estava tão ansioso quanto um repórter.

— O inspetor Slack não confia tudo a mim. Pelo que sei, não suspeita de nenhuma pessoa em particular. No mo­mento está ocupado com investigações.

— Sim, sim... claro. Mas quem poderia ter cometido um ato tão terrível?

Sacudi a cabeça.

— O coronel Protheroe não era popular, sei disso — acrescentou. — Mas ser assassinado! Para matar alguém... é preciso um motivo muito forte.

— É o que acho — concordei.

— Quem poderia ter um motivo assim? A polícia tem algumaidéia?

— Não sei dizer.

— Ele podia ter inimigos, sabe? Quanto mais penso nisso, mais fico convencido de que ele era o tipo de homem que tem inimigos. Consideravam-no muito severo no tri­bunal.

— Suponho que sim.

— Ora, o senhor não se lembra? Ele estava lhe con­tando, ontem de manhã, que fora ameaçado por aquele Archer.

— Você lembrou bem, foi mesmo — eu disse. — Claro que me lembro. Você estava perto de nós, nessa hora.

— Sim, e ouvi o que ele estava dizendo. Seria impossí­vel não ouvir, em se tratando do coronel Protheroe. Falava em voz muito alta, não era? Lembro-me de que ficou im­pressionado com o que o senhor disse. Que quando chegasse a hora dele, talvez recebesse só justiça, e não misericórdia.

— Eu disse isso? — perguntei, franzindo a testa. A lembrança que tinha das minhas palavras era ligeiramente diferente.

— Falou de uma maneira muito impressionante, se­nhor. Suas palavras me afetaram muito. A justiça é uma coisa terrível. E pensar que o pobre homem foi atingido pouco depois. É quase como se o senhor tivesse um pres­sentimento.

— Não tive nada disso — retruquei. Não gostava da tendência de Hawes para o misticismo. Ele tinha um pouco de visionário.

— O senhor contou à polícia sobre esse homem, Archer?

— Não sei nada sobre ele.

— Quero dizer, o senhor repetiu para eles o que o coronel Protheroe disse, que Archer o tinha ameaçado?

— Não, não falei nada.

— Mas o senhor vai falar?

Fiquei calado. Não gosto de perseguir um homem que já tem contra si as forças da lei e da ordem. Não iria defen­der Archer. Era um ladrão de caça inveterado, um desses vagabundos alegres que existem em todas as paróquias. Seja o que for que ele tenha dito no auge da fúria, quando foi condenado, não havia nenhuma garantia de que ainda pen­sasse do mesmo modo quando saiu da cadeia,

— Você ouviu a conversa — eu disse finalmente. — Se acha que é sua obrigação ir à polícia e contar, deve ir.

— Seria melhor se partisse do senhor.

— Talvez... mas para dizer a verdade... bem, não tenho vontade de fazer isso. Podia ajudar a colocar a corda no pescoço de um homem inocente.

— Mas se ele matou o coronel Protheroe...

— Ah! Se! Não há nenhuma prova disso.

— As ameaças.

— A bem dizer, as ameaças não foram dele, foram do coronel Protheroe. O coronel Protheroe estava ameaçando mostrar a Archer o valor da vingança da próxima vez que o pegasse.

— Não compreendo sua atitude, senhor.

— Não? — eu disse, sentindo um grande cansaço. — Você é jovem. Zela pela causa do bem. Quando tiver a minha idade, verá que é preferível dar às pessoas o benefício da dúvida.

— Não é... quero dizer...

Calou-se e olhei para ele, surpreso.

— O senhor não tem... nenhuma idéia... de quem é o assassino, por acaso?

— Céus, não!

Hawes insistiu.

— Ou sobre o... o motivo?

— Não. E você?

— Eu? Não, claro que não. Só estava pensando. Se o coronel Protheroe tivesse... confiado no senhor... dito alguma coisa...

— Suas confidências, se é que se pode dizer assim, foram ouvidas pela aldeia inteira ontem de manhã — re­torqui secamente.

— Sim. Sim, naturalmente. E o senhor não acha... que Archer...?

— A polícia logo saberá tudo sobre Archer — eu disse. — Se eu tivesse ouvido pessoalmente Archer ameaçar o coronel Protheroe, seria diferente. Mas pode ter certeza de que se ele realmente o ameaçou, metade do pessoal da aldeia soube disso, e a notícia chegará à polícia sem falta. Você, é claro, deve fazer o que quiser.

Mas Hawes, por estranho que pareça, não estava dis­posto a tomar a iniciativa.

Sua atitude era nervosa e esquisita. Lembrei-me do que Haydock dissera sobre a sua doença. Pensei que essa fosse, talvez, a explicação.

Despediu-se como quem não quer ir, como se tivesse mais coisas a dizer e não soubesse como.

Antes de sair, combinei com ele que se encarregasse do serviço religioso para a União das Mães, que precederia a reunião dos Visitantes do Distrito. Eu tinha vários planos pessoais para essa tarde.

Banindo Hawes e seus problemas da cabeça, preparei-me para ir ver a sra. Lestrange.

O Guardian e o Church Times estavam na mesa do hall, ainda fechados.

A caminho, lembrei-me de que a sra. Lestrange tivera um encontro com o coronel Protheroe na véspera de sua morte. Era possível que tivesse acontecido alguma coisa na­quele encontro que trouxesse alguma luz ao caso.

Fui levado diretamente à pequena sala de estar, e a sra. Lestrange se levantou para me receber. Fiquei novamente impressionado com a atmosfera que essa mulher sabia criar. Usava um vestido preto, que acentuava a alvura de sua pele. Apenas os olhos brilhavam intensamente, mas esta­vam um pouco cautelosos. Fora isso, não dava outros sinais de animação.

— Muito obrigada por ter vindo, sr. Clement — ela disse, apertando a minha mão. — Queria falar com o senhor no outro dia. Depois decidi que não. Estava errada.

— Como disse naquele dia, estou pronto a fazer qual­quer coisa para ajudá-la.

— Sim, foi o que o senhor disse. E disse como se fosse verdade. Muito poucas pessoas neste mundo, sr. Cle­ment, quiseram me ajudar sinceramente.

— Custo a acreditar nisso, sra. Lestrange.

— É verdade. A maioria das pessoas... isto é, a maio­ria dos homens, só quer tirar vantagem. — Sua voz estava amarga.

Não respondi, e ela continuou:

— Sente-se, por favor.

Obedeci, e ela sentou-se numa cadeira em frente a mim. Hesitou por um momento e depois começou a falar muito devagar e refletindo, como se estivesse pesando cada palavra antes de pronunciá-la.

— Estou numa posição muito difícil, sr. Clement, e quero pedir-lhe um conselho. Isto é, quero que me aconselhe sobre o que devo fazer agora. O que passou, passou e não se pode mudar. Compreende?

Antes que pudesse responder, a empregada que tinha aberto a porta para mim apareceu e disse com ar assustado:

— Oh! Desculpe, senhora, está aí um inspetor da polí­cia dizendo que quer falar com a senhora.

Houve uma pausa. A sra. Lestrange não mudou de ex­pressão. Apenas seus olhos é que se fecharam muito devagar e se abriram novamente. Pareceu engolir em seco uma ou duas vezes e depois disse, exatamente na mesma voz clara e calma: — Traga-o aqui, Hilda.

Ia me levantar, mas ela fez sinal com a mão, imperio­samente.

— Se não se importa... ficaria muito grata se o senhor ficasse.

Permaneci na minha cadeira.

— Certamente, se a senhora assim deseja — murmu­rei, enquanto Slack entrava num passo de marcha alerta.

— Boa tarde, senhora — começou.

— Boa tarde, inspetor.

Nesse momento ele me viu e franziu a cara. Não havia dúvida nenhuma, Slack não gostava de mim.

— Espero que não faça nenhuma objeção à presença do pastor.

Seria difícil dizer que fazia.

— N... não — disse de má vontade. — Embora talvez fosse melhor...

A sra. Lestrange não prestou atenção à indireta.

— O que posso fazer pelo senhor, inspetor? — per­guntou.

— É o seguinte, senhora: o homicídio do coronel Pro­theroe. Fui encarregado do caso e estou fazendo investi­gações.

A sra. Lestrange assentiu com a cabeça.

— Como mera formalidade, estou perguntando a to­dos onde estavam ontem à noite, entre as seis e sete horas. Mera formalidade, entende?

— O senhor quer saber onde eu estava ontem à noite entre as seis e sete horas?

— Por favor, senhora.

— Deixe-me ver. — Refletiu um momento. — Aqui. Nesta casa.

— Ah! — Vi os olhos do inspetor brilharem. — E sua empregada, a senhora tem apenas uma empregada, não é? Ela pode confirmar isso?

— Não, ontem à tarde era folga de Hilda.

— Entendo.

— Portanto, infelizmente, o senhor tem de acreditar na minha palavra — disse a sra. Lestrange amavelmente.

— A senhora declara, com toda a seriedade, que ficou em casa a tarde toda?

— O senhor perguntou entre as seis e sete horas, ins­petor. Fui dar um passeio no princípio da tarde. Voltei um pouco antes das cinco horas.

— Então se alguém, a srta. Hartnell, por exemplo, de­clarasse que veio aqui por volta das seis horas, tocou a cam­painha, mas, como ninguém atendesse, viu-se forçada a ir embora, a senhora diria que estava enganada, hein?

— Ah, não! — A sra. Lestrange abanou a cabeça.

— Mas...

— Se a empregada está, ela pode dizer que não tem ninguém em casa. Mas quando a gente está sozinha em casa e não quer receber visitas... bem, a única maneira é deixar a campainha tocar.

O inspetor Slack ficou em dúvida.

— Senhoras de idade são muitos cacetes — afirmou a sra. Lestrange. — Especialmente a srta. Hartnell. Deve ter tocado a campainha pelo menos meia dúzia de vezes antes de desistir.

Sorriu docemente para o inspetor Slack.

O inspetor mudou de tática.

— Então, se alguém dissesse que tinha visto a senhora por aí...

— Ah! Mas ninguém disse, não é? — Foi muito rápi­da em perceber o ponto fraco dele. — Ninguém me viu por­que não saí, compreende?

— Certo, senhora.

O inspetor puxou a cadeira mais para perto.

— Consta, sra. Lestrange, que a senhora fez uma visita ao coronel Protheroe, em Old Hall, na véspera de sua morte.

A sra. Lestrange respondeu calmamente: — É verdade.

— Pode me dizer a razão dessa visita?

— Era um assunto pessoal, inspetor.

— Receio ter de pedir-lhe que me diga qual era esse assunto particular.

— Não vou lhe dizer absolutamente coisa alguma. Só posso garantir que nada foi dito nesse encontro que pudesse ter qualquer relação com o crime.

— Acho que não cabe à senhora decidir isso.

— De qualquer maneira, terá de se conformar com a minha palavra, inspetor.

— Na verdade, terei de aceitar sua palavra em tudo.

— Parece que sim — ela concordou, sempre calma e sorridente.

O inspetor Slack enrubesceu.

— Este é um assunto sério, sra. Lestrange. Quero a verdade... — bateu com o punho numa mesa. — E vou consegui-la.

A sra. Lestrange não disse nada.

— A senhora não está vendo que está se colocando numa posição muito delicada?

A sra. Lestrange continuou calada.

— A senhora vai ter de prestar declarações no inqué­rito.

— Sim.

Apenas esse monossílabo. Sem ênfase, desinteressado. O inspetor modificou o ataque.

— Conhecia o coronel Protheroe?

— Sim, conhecia.

— Conhecia bem?

Houve uma pausa antes que respondesse:

— Há vários anos que não o via.

— Conhecia a sra. Protheroe?

— Não.

— Vai me desculpar, mas não era hora muito comum de se fazer visitas.

— Não na minha opinião.

— O que quer dizer com isso?

— Queria ver o coronel sozinho. Não queria ver a sra. Protheroe nem a srta. Protheroe. Achei que esse era o me­lhor meio de conseguir o que queria.

— Por que não queria ver a sra. Protheroe ou a srta. Protheroe?

— Isso, inspetor, é da minha conta.

— Então se recusa a falar mais.

— Sim, senhor.

O inspetor Slack levantou-se.

— A senhora vai se colocar em posição desagradável se não tiver cuidado. O que diz soa mal, muito mal.

Ela riu. Eu podia ter dito ao inspetor Slack que essa não era uma mulher que se amedrontasse com facilidade.

— Bem — disse ele, procurando sair-se com dignidade —, não diga que não a avisei. Boa tarde, senhora, e lem­bre-se de que vamos conseguir descobrir a verdade.

Saiu. A sra. Lestrange levantou-se e estendeu-me a mão.

— Peço-lhe que vá embora... é melhor assim. Como vê, é tarde demais para seus conselhos. Já escolhi meu papel.

Repetiu numa voz desolada:

— Já escolhi meu papel.

 

Quando saí, topei com Haydock à porta. Lançou um olhar agudo para Slack, que acabava de atravessar o portão, e perguntou-me: — Estava fazendo perguntas a ela?

— Sim.

— Foi delicado, espero.

A delicadeza, na minha opinião, é uma arte que o inspetor Slack nunca aprendeu, mas acho que, a seu ver, tinha sido muito delicado e, de qualquer maneira, não queria inco­modar Haydock. Já estava bastante aborrecido e preocupa­do. Portanto, respondi que ele tinha sido bastante delicado.

Haydock concordou com a cabeça e entrou na casa, e eu segui a rua da aldeia, onde logo alcancei o inspetor. Des­confiei que estivesse andando devagar de propósito. Mesmo não gostando de mim, não é homem de perder a oportuni­dade de conseguir alguma informação útil.

— Sabe alguma coisa sobre essa senhora? — pergun­tou à queima-roupa.

Disse que não sabia absolutamente nada.

— Nunca disse por que tinha vindo morar aqui?

— Não.

— Mas o senhor costuma visitá-la?

— É uma das minhas obrigações, visitar os membros da minha paróquia — respondi, omitindo o fato de que ela mandara me chamar.

— Hum, deve ser. — Permaneceu calado algum tem­po e depois, sem poder resistir à menção de seu recente fracasso, continuou: — Parece-me uma história muito duvi­dosa.

— O senhor acha?

— Na minha opinião, trata-se de chantagem. Parece engraçado, considerando o que o coronel Protheroe repre­sentava. Mas nunca se sabe. Não seria o primeiro adminis­trador de igreja a levar uma vida dupla.

Vagas recordações dos comentários de Miss Marple sobre esse mesmo assunto me passaram pela cabeça.

— Acha mesmo isso possível?

— Bem, combina com os fatos, senhor. Por que é que uma senhora elegante e bem-vestida veio para este buraco pacato? Por que foi visitá-lo numa hora tão estranha? Por que evitou ver a sra. e a srta. Protheroe? Sim, tudo se en­caixa. É muito incômodo para ela admitir isso, pois a chan­tagem é passível de punição. Mas vamos conseguir que diga a verdade. Pode ser que seja da maior importância para o caso. Se o coronel Protheroe tinha algum segredo vergonho­so em sua vida... bem, o senhor mesmo pode ver que isso abre um largo campo.

Bem podia imaginar.

— Estou tentando fazer com que o mordomo fale. Pode ser que ele tenha ouvido parte da conversa entre o coronel Protheroe e a sra. Lestrange. Os mordomos ouvem muita coisa. Mas ele jura que não tem a menor idéia do as­sunto da conversa. A propósito, foi despedido por causa disso. O coronel foi atrás dele, furioso porque ele a deixou entrar. O mordomo reagiu, pedindo demissão. Disse que não gostava mesmo do lugar e que estava pensando em ir embora já há algum tempo.

— É mesmo?

— E isso nos dá mais uma pessoa que tinha queixa do coronel.

— O senhor não suspeita realmente desse homem... como é seu nome?

— O nome dele é Reeves, e não disse que suspeitasse dele. O que disse é que nunca se sabe. Não gosto daquele seu jeito escorregadio.

Perguntei a mim mesmo o que Reeves teria a dizer sobre o inspetor Slack.

— Vou interrogar o chofer agora.

— Talvez possa, então — eu disse —, dar-me uma carona em seu carro. Preciso fazer uma visita à sra. Pro­theroe.

— Para quê?

— Combinar o enterro.

— Oh! — O inspetor Slack ficou meio desconcertado. — O inquérito é amanhã, sábado.

— Exatamente. O enterro deve ser na terça-feira.

O inspetor Slack parecia estar um pouco envergonhado de ter sido brusco. Estendeu o ramo de oliveira na forma de um convite para presenciar a entrevista com o chofer, Manning.

Manning era um bom rapaz, de vinte e cinco ou vinte e seis anos de idade. Estava um pouco intimidado pelo inspetor.

— Então, rapaz — disse Slack —, quero que me dê umas informações.

— Sim, senhor — gaguejou o chofer. — Certamente, senhor.

Não poderia estar mais alarmado se tivesse cometido o crime.

— Levou seu patrão à aldeia ontem?

— Sim, senhor. — A que horas?

— Às cinco e meia.

— A sra. Protheroe foi também?

— Sim, senhor.

— Foram direto à aldeia?

— Sim, senhor.

— Não pararam em lugar nenhum no caminho?

— Não, senhor.

— O que fizeram quando chegaram à aldeia?

— O coronel saltou e me disse que não precisava mais do carro. Iria a pé para casa. A sra. Protheroe tinha que fazer umas compras. Puseram os embrulhos no carro. Então ela disse que era só isso e voltei para casa.

— Deixando a senhora na aldeia?

— Sim, senhor.

— A que horas foi isso?

— Às seis e quinze, senhor. Seis e um quarto exata­mente.

— Onde a deixou?

— Perto da igreja, senhor.

— O coronel disse alguma coisa a respeito de onde ia?

— Disse que tinha de ver o veterinário... alguma coisa de errado com um dos cavalos.

— Está bem. E você veio com o carro direto para casa?

— Sim, senhor.

— Há duas entradas em Old Hall: a porteira sul e a porteira norte. Presumo que, indo para a aldeia, você use a porteira sul.

— Sim, senhor, sempre.

— E volta, da mesma maneira?

— Sim, senhor.

— Hum. Acho que é só. Ah! Aí vem a srta. Protheroe.

Lettice deslizou em nossa direção.

— Quero o Fiat, Manning. Ligue o motor para mim, está bem?

— Muito bem, senhorita.

Foi até um carro de dois lugares e levantou o capô.

— Espere um minuto, srta. Protheroe — disse Slack. — Preciso fazer um relatório dos movimentos de todos ontem à tarde. Sem ofensa nenhuma.

Lettice encarou o inspetor.

— Nunca sei que horas são — ela disse.

— Consta que saiu logo depois do almoço.

Concordou com a cabeça.

— Aonde foi, por favor?

— Jogar tênis.

— Com quem?

— Os Hartley Napiers.

— Em Much Benham?

— Sim.

— E voltou quando?

— Não sei. Já disse que nunca sei dessas coisas.

— Você voltou por volta das sete e meia — disse eu.

— É isso mesmo — confirmou Lettice. — No meio da confusão. Anne tendo ataques e Griselda amparando-a.

— Obrigado, senhorita — disse o inspetor. — É só o que queria saber.

— Muito estranho — comentou Lettice. — Parece tão insignificante.

Caminhou em direção ao Fiat.

O inspetor bateu com um dedo na testa, disfarçada­mente.

— Alguma coisa de errado aqui? — sugeriu.

— Absolutamente não — respondi. — Mas gosta que pensem assim.

— Bem, agora vou interrogar as empregadas.

Não é possível gostar de Slack, mas é possível admirar sua energia. Separamo-nos, e fui perguntar a Reeves se podia falar com a sra. Protheroe. — Ela está deitada no momento, senhor.

— Então é melhor não incomodá-la.

— Se quiser esperar um pouco, sei que a sra. Prothe­roe está ansiosa para falar com o senhor. Disse isso na hora do almoço.

Foi comigo até a sala de estar e acendeu as luzes, pois as cortinas estavam fechadas.

— Um acontecimento lastimável — eu disse.

— Sim, senhor — concordou, em voz fria e respeitosa.

Olhei para ele. Que sentimentos haveria sob aquela aparência impassível? Saberia alguma coisa que pudesse nos dizer? Não há coisa tão desumana quanto a máscara do criado perfeito.

— Quer mais alguma coisa, senhor?

Havia um vestígio de ansiedade atrás daquela expres­são correta.

— Mais nada — eu disse.

Esperei muito pouco até Anne Protheroe aparecer. Dis­cutimos e combinamos alguns detalhes, e então ela excla­mou:

— Que homem bom é o dr. Haydock!

— Haydock é o melhor homem que conheço.

— Tem sido extremamente bom para mim. Mas está muito triste, não está?

Nunca teria me ocorrido pensar em Haydock triste. Contemplei mentalmente a idéia.

— Acho que nunca reparei — respondi finalmente.

— Eu nunca tinha reparado, antes de hoje.

— Nossos problemas às vezes abrem nossos olhos — eu disse.

— Isso é verdade. — Fez uma pausa e depois acres­centou: — Sr. Clement, há uma coisa que não consigo en­tender. Se meu marido foi morto imediatamente depois que o deixei, como é que não ouvi o tiro?

— Há razões para acreditar que o tiro talvez tenha sido dado mais tarde.

— Mas e a hora, seis e vinte, no bilhete?

— Foi provavelmente escrita por mão diferente: a do assassino.

Empalideceu.

— Não reparou que a hora não estava escrita na cali­grafia dele?

— Que coisa horrível! Mas nada parecia ter sido escri­to por ele.

Havia muita verdade nessa observação. Era um rabisco quase ilegível, nada parecido com a habitual caligrafia pre­cisa de Protheroe.

— Tem certeza de que não suspeitam mais de Law­rence?

— Acho que essa possibilidade foi eliminada definiti­vamente.

— Mas, sr. Clement, quem pode ter sido? Lucius não era popular, bem sei, mas acho que não tinha inimigos de verdade. Não... não essa espécie de inimigo.

Sacudi a cabeça. — É um mistério.

Pensei de repente nos sete suspeitos de Miss Marple. Quem seriam?

Depois de me despedir de Anne, pus em ação um certo plano meu.

Voltei de Old Hall pelo atalho. Quando cheguei ao lugar onde os degraus subiam a cerca e desciam do outro lado, voltei atrás e, escolhendo um lugar onde parecia que a vegetação tinha sido remexida, saí do atalho e forcei a passagem pelos arbustos. O bosque era muito cerrado, com muita vegetação rasteira emaranhada. Não podia andar mui­to depressa e, de repente, percebi que alguém também se mexia entre os arbustos, não muito longe de mim. Parei, indeciso, e Lawrence Redding apareceu. Carregava uma pe­dra bem grande.

Acho que demonstrei minha surpresa, pois ele deu uma risada.

— Não — disse —, não é um indício, mas uma oferta de paz.

— Oferta de paz?

— Bem, uma base para negociações, digamos. Preciso de uma desculpa para fazer uma visita à sua vizinha, Miss Marple, e me disseram que não há nada que ela aprecie tanto quanto um pedaço de rocha ou uma pedra para os jardins japoneses que constrói.

— É verdade — confirmei. — Mas o que é que você quer com a velhota?

— Apenas isso: se aconteceu alguma coisa ontem à noite, Miss Marple viu. Não quero dizer alguma coisa neces­sariamente ligada ao crime, ou que ela considerasse ligada ao crime. Quero dizer qualquer coisa fora do comum, bi­zarra, talvez um pequeno incidente muito simples, que possa nos dar uma pista para chegar à verdade. Uma coisa que ela não achasse importante o bastante para contar à polícia.

— Isso é possível.

— Vale a pena tentar, de qualquer maneira. Vou escla­recer isso tudo. Nem que seja só para o bem de Anne. E não tenho muita confiança em Slack, ele é muito esforçado, mas esforço não substitui inteligência.

— Estou vendo — observei — que você é aquela personagem comum em ficção, o detetive amador. Não sei se eles se comparam com os profissionais na vida real.

Olhou-me astuciosamente e riu de repente.

— O que o senhor está fazendo no bosque, pastor?

Enrubesci. Ele continuou.

— A mesma coisa que eu, garanto. Tivemos a mesma idéia, não foi? Como é que o assassino foi para o escritório? Primeiro, pelo caminho e atravessando o portão; segundo, pela porta da frente; e terceiro... existe uma terceira hipó­tese? Minha idéia foi ver se havia sinais de que a vegetação tinha sido remexida ou pisada perto do muro do jardim da residência.

Sacudi a cabeça negativamente.

— Ela estava segura de não ter visto ninguém.

— Sim, ninguém que ela considerasse alguém... pa­rece loucura, mas entende o que quero dizer? Podia ter sido alguém como um carteiro, leiteiro ou entregador do açou­gue, alguém cuja presença fosse tão natural que ela nem se lembrasse de mencionar.

— Você andou lendo G. K. Chesterton — eu disse, e Lawrence não negou.

— Mas o senhor não acha que essa idéia tem algum mérito?

— Bem, suponho que seja possível — concordei.

Sem mais, fomos até a casa de Miss Marple. Ela estava trabalhando no jardim, e nos cumprimentou quando atra­vessávamos a cerca.

— Está vendo? — murmurou Lawrence. — Ela vê tudo.

Recebeu-nos muito amavelmente e ficou muito contente com a enorme pedra que Lawrence lhe ofereceu solene­mente.

— Muito gentil de sua parte, sr. Redding. Muito gentil.

Encorajado com isso, Lawrence começou suas pergun­tas. Miss Marple ouviu com atenção.

— Sim, compreendo o que quer dizer e concordo ple­namente; é o tipo de coisa a que ninguém se refere ou presta atenção. Mas posso lhe garantir que não houve nada disso. Nada, nada.

— Tem certeza, Miss Marple?

— Plena certeza.

— A senhora viu alguém ir para o bosque pelo atalho, naquela tarde? — perguntei. — Ou sair do bosque?

— Ah! Sim, várias pessoas. O dr. Stone e a srta. Cram foram por esse caminho; é o mais curto para chegar ao túmulo. Isso foi pouco depois das duas horas. E o dr. Stone voltou pelo atalho, como o senhor sabe, sr. Redding, porque ele lhe fez companhia e à sra. Protheroe.

— A propósito — observei. — Aquele tiro, o que a senhora ouviu, Miss Marple. O sr. Redding e a sra. Prothe­roe devem ter ouvido também.

Olhei para Lawrence.

— Sim — ele disse, franzindo a testa. — Acho que ouvi uns tiros. Foi um ou foram dois?

— Só ouvi um — disse Miss Marple.

— Só tenho uma impressão muito vaga — declarou Lawrence. — Que diabo, não consigo me lembrar. Se eu tivesse sabido... Estava tão ocupado com... com...

Calou-se, encabulado.

Tossi diplomaticamente. Miss Marple, um pouco pudi­ca, mudou de assunto.

— O inspetor Slack está insistindo em que eu diga se ouvi o tiro depois de o sr. Redding e a sra. Protheroe terem saído do estúdio ou antes. Tive de confessar que real­mente não sei dizer, mas tenho a impressão, que está se tornando cada vez mais forte, de que foi depois.

— Então isso elimina o célebre dr. Stone — disse Lawrence, com um suspiro. — Não que houvesse a menor razão para suspeitar dele.

— Ah! — exclamou Miss Marple. — Mas acho sem­pre prudente suspeitar um pouco de todo mundo. O que sempre digo é: nunca se sabe, não?

Isso era típico de Miss Marple. Perguntei a Lawrence se concordava com ela sobre o tiro.

— Não posso dizer com certeza. Foi um barulho tão comum! Estou inclinado a achar que foi quando estávamos no estúdio. O som seria mais abafado e... e teríamos pres­tado menos atenção lá dentro.

Não porque o som fosse abafado, mas por outras ra­zões, pensei comigo mesmo.

— Preciso perguntar a Anne — disse Lawrence. — Talvez ela se lembre. Por falar nisso, parece-me que há um fato curioso que precisa ser explicado. A sra. Lestrange, a Dama Misteriosa de St. Mary Mead, fez uma visita ao velho Protheroe depois do jantar, na quarta-feira à noite. E nin­guém tem idéia do motivo. O velho Protheroe não disse nada à sua mulher nem a Lettice.

— Talvez o pastor saiba — sugeriu Miss Marple.

Ora, como ela podia saber que eu tinha ido ver a sra. Lestrange naquela tarde? É fantástico como ela sempre sabe de tudo.

Sacudi a cabeça negativamente e disse que não podia esclarecer nada.

— O que pensa o inspetor Slack? — perguntou Miss Marple.

— Fez o possível para intimidar o mordomo, mas este aparentemente não teve a curiosidade de ficar escutando às portas. Então é isso, ninguém sabe.

— Acho que alguém deve ter ouvido alguma coisa — disse Miss Marple.— Sempre há alguém que ouve. Acho que é aí que o sr. Redding pode descobrir alguma coisa.

— Mas a sra. Protheroe não sabe nada.

— Não estava me referindo a Anne Protheroe — es­clareceu Miss Marple. — Estou falando das empregadas. Elas detestam contar qualquer coisa à polícia. Mas um rapaz jovem e bonito, desculpe, sr. Redding, e que foi considerado suspeito injustamente... oh! Tenho certeza de que para ele contariam tudo imediatamente.

— Vou experimentar hoje à noite — disse Lawrence com entusiasmo. — Obrigado pela sugestão, Miss Marple. Irei logo depois de... bem, de um trabalhinho que o pastor e eu vamos fazer.

Achei bom prosseguirmos logo. Disse adeus a Miss Marple e entramos novamente no bosque.

Primeiro subimos o atalho até um ponto onde parecia que alguém tinha saído dele, pelo lado direito. Lawrence explicou que já tinha seguido essa trilha, descobrindo que não ia dar em parte alguma, mas acrescentou que podíamos muito bem experimentar de novo. Talvez estivesse errado.

Mas era como ele tinha dito. Depois de dez ou doze metros, não havia mais sinais de vegetação pisada ou remexida. Fora dali que Lawrence retomara o atalho para me encontrar no princípio da tarde.

Saímos no atalho outra vez e andamos um pouquinho mais. Chegamos novamente a um lugar onde parecia que os arbustos tinham sido remexidos. Havia poucos sinais, mas achei que eram inconfundíveis. Dessa vez a trilha era mais promissora. Seguindo um curso irregular, aproximava-se cada vez mais da residência. Acabamos chegando a um ponto onde os arbustos se aglomeravam junto ao muro. Este é alto, provido de cacos de vidro em cima. Se alguém tivesse colocado uma escada no muro, deveríamos encontrar algum indício.

Fomos andando devagar, ao longo do muro, e de repen­te ouvimos o ruído de um galho partido. Avancei, forçando a passagem por um emaranhado de arbustos, e dei de cara com o inspetor Slack.

— Então é o senhor — disse ele. — E o sr. Redding. O que os senhores pensam que estão fazendo?

Explicamos, ligeiramente sem jeito.

— Certo — volveu o inspetor. — Visto que não somos tolos, como geralmente pensam, tive a mesma idéia. Estou aqui há mais de uma hora. Querem saber de uma coisa?

— Sim — respondi com humildade.

— Quem quer que seja que matou o coronel Prothe­roe, não veio por aqui. Não há nenhum sinal, nem deste lado do muro, nem do outro. Quem quer que seja que matou o coronel Protheroe, entrou pela porta da frente. Não pode ter sido de outro jeito.

— Impossível! — exclamei.

— Impossível por quê? Sua porta fica sempre aberta. Quem quiser é só entrar. Da cozinha não se pode ver nada. Sabiam que o senhor havia sido tirado do caminho, sabiam que a sra. Clement estava em Londres, sabiam que o sr. Dennis tinha ido jogar tênis. Tão simples como o á-bê-cê. E não precisavam ir ou vir pela aldeia. Bem em frente ao portão da residência há um caminho público, e aquele que o seguir pode penetrar no bosque e sair onde quiser; estaria a salvo, a não ser que a sra. Price Ridley saísse pelo portão da frente na hora exata. Muito mais prático que escalar muros. As janelas laterais do segundo andar da casa da sra. Price Ridley dão para este muro. Podem estar certos: foi assim que ele veio.

Parecia mesmo que ele tinha razão.

 

O inspetor Slack veio me ver na manhã seguinte. Acho que está me aceitando melhor. Com o tempo, talvez esqueça o incidente do relógio.

— Bem, senhor — foram suas primeiras palavras. — Descobri de onde veio aquela chamada telefônica que o se­nhor recebeu.

— É mesmo? — perguntei, interessado.

— É muito estranho. Foi feita da cabana do guarda da porteira norte de Old Hall. A cabana está vazia, pois os guardas antigos foram aposentados e os novos ainda não chegaram. O lugar está vazio e é muito acessível: uma janela de trás estava aberta. Nenhuma impressão digital no apare­lho: alguém o limpou muito bem. Isso é sugestivo.

— O que quer dizer?

— Quero dizer que aquela chamada foi feita de propó­sito para tirar o senhor do caminho. Portanto, o homicídio foi muito bem planejado. Se tivesse sido apenas uma brincadeira de mau gosto, não teriam apagado as impressões tão cuidadosamente.

— Compreendo.

— Mostra também que o assassino conhece Old Hall e seus arredores muito bem. Não foi a sra. Protheroe que fez aquela chamada. Verifiquei tudo o que fez naquela tarde, em todos os minutos. Há meia dúzia de empregados que estão prontos a jurar que ela não saiu de casa até as cinco e meia. Depois veio o carro e levou o coronel Protheroe e sua mulher até a aldeia. O coronel foi consultar Quinton, o veterinário, a respeito de um dos cavalos. A sra. Protheroe fez encomendas no armazém e na peixaria e de lá veio até aqui diretamente pelo caminho dos fundos, onde foi vista por Miss Marple. Todas as lojas concordam em que não trazia consigo nenhuma bolsa. A velhota tinha razão.

— Geralmente ela tem — observei brandamente.

— E a srta. Protheroe estava em Much Benham às cinco e meia.

— Certo — eu disse. — Meu sobrinho estava lá tam­bém.

— Isso elimina a srta. Protheroe. Com a empregada parece que não há nada, está um pouco histérica e muito abalada, mas era de se esperar. Claro que estou de olho no mordomo; aquela história de se demitir e tudo o mais. Mas acho que ele não sabe de nada.

— Parece que suas investigações tiveram um resultado bem negativo, inspetor.

— Tiveram e não tiveram, senhor. Há uma coisa muito estranha que surgiu, bem inesperadamente, devo dizer.

— Sim?

— Lembra-se da cena que a sra. Price Ridley, sua vizi­nha do lado, fez ontem de manhã? Sobre aquele telefonema?

— Sim?

— Bem, investigamos a chamada só para acalmá-la, e de onde é que o senhor pensa que essa chamada foi feita?

— De uma central telefônica? — aventurei.

— Não, sr. Clement. A chamada foi feita do cottage do sr. Lawrence Redding.

— O quê? — exclamei surpreso.

— Sim. Um pouco esquisito, não? Não tem nada a ver com o sr. Redding. A essa hora ele estava a caminho do Blue Boar com o dr. Stone, e ambos foram vistos pela aldeia intei­ra. Mas é isso. Sugestivo, hein? Alguém entrou no cottage vazio e usou o telefone: quem terá sido? São dois telefone­mas estranhos em um dia. Macacos me mordam se não foram ambos dados pela mesma pessoa.

— Mas com que finalidade?

— Bem, isso é o que temos de descobrir. Não parece haver nenhum objetivo na segunda chamada, mas deve ha­ver. E compreende o que significa? A casa do sr. Redding usada para dar um telefonema. A pistola do sr. Redding. Tudo para jogar as suspeitas em cima do sr. Redding.

— Teria sido mais apropriado que a primeira chamada tivesse sido feita da casa dele — comentei.

— Ah!  Tenho pensado nisso. O que o sr. Redding fazia a maior parte das tardes? Ia para Old Hall pintar a srta. Lettice. E saía de seu cottage de motocicleta, entrando pela porteira norte. Compreende agora por que a chamada foi feita de lá? O assassino é alguém que ignorava a briga, bem como o jato de que o sr. Redding não estava mais freqüentando Old Hall.

Refleti um momento para deixar as palavras do inspetor penetrarem minha consciência. Pareciam lógicas e inevitáveis.

— Havia alguma impressão digital no fone do cottage do sr. Redding? — perguntei.

— Não havia nada — respondeu o inspetor amarga­mente. — Aquela infernal velha que faz a limpeza esteve lá e limpou tudo ontem de manhã. — Refletiu com raiva por alguns minutos. — É uma velha idiota. Não consegue se lembrar de quando viu a pistola pela última vez. Pode ser que estivesse lá na manhã do dia do crime, pode ser que não. Tem certeza de que não tem certeza. São todas iguais!

— Como mera formalidade, fui falar com o dr. Stone — ele continuou. — E ele foi muito amável. Ele e a srta. Cram foram àquele morro, ou túmulo, ou seja lá o que for, ontem, por volta das duas e meia, e ficaram lá a tarde toda. O dr. Stone voltou sozinho, e ela veio depois. Diz que não ouviu tiro nenhum, mas confessa que é muito distraído. Porém, tudo bate com o que pensamos.

— Só que o senhor ainda não pegou o criminoso — observei.

— Hum — fez o inspetor. — Foi uma voz de mulher que falou com o senhor ao telefone. Foi provavelmente uma voz de mulher que a sra. Price Ridley ouviu. Se ao menos o tiro não tivesse sido dado logo depois do telefonema... bem, eu saberia aonde ir.

— Aonde?

— Ah! Isso é melhor eu não dizer, senhor.

Sem o menor acanhamento, sugeri um copo de vinho do Porto. Tenho um vinho do Porto antigo, de excelente safra. Onze horas da manhã não é a hora apropriada para se beber um vinho do Porto, mas achei que o inspetor Slack não se importaria. Era, é claro, uma crueldade para com um vinho do Porto de tão boa safra, mas é preciso não ser muito escrupuloso nessas coisas.

Quando o inspetor Slack enxugou o segundo copo, co­meçou a relaxar e a ficar mais amigável. É esse o efeito do meu vinho.

— Acho que não faz mal contar ao senhor — disse ele. — Não dirá a ninguém? Não vai espalhar pela paróquia?

Garanti que não.

— Considerando que tudo aconteceu em sua casa, é como se o senhor tivesse o direito de saber.

— É exatamente o que penso — afirmei.

— Bem, então que tal a senhora que visitou o coronel Protheroe na véspera do assassinato?

— A sra. Lestrange! — exclamei, um pouco alto de tanto espanto.

O inspetor lançou-me um olhar repreensivo.

— Fale baixo, senhor. A sra. Lestrange. Estou de olho nela. Lembra-se do que falei... chantagem.

— Não é motivo para homicídio. Não seria como matar a galinha dos ovos de ouro?  Isto é, se sua hipótese for verdadeira, o que não admito.

O inspetor piscou um olho para mim de uma maneira vulgar.

— Ah! Ela é o tipo que os cavalheiros sempre vão defender. Agora olhe aqui, senhor. Vamos supor que ela tenha feito chantagem com o velho no passado. Depois de alguns anos, ela o localiza, vem para cá e tenta novamente. Mas, nesse intervalo, as coisas mudaram. A lei se modificou muito. Hoje em dia damos todo o apoio a quem move uma ação contra chantagem; não permitimos que os nomes apa­reçam na imprensa. Vamos supor que o coronel Protheroe tenha se virado e dito que ia processá-la. Ela estaria numa posição difícil. A sentença é muito severa em casos de chan­tagem. O feitiço virou contra o feiticeiro. A única coisa que poderia fazer para se salvar seria acabar com ele rapida­mente.

Fiquei calado. Tinha que admitir que sua versão do caso era razoável. Só uma coisa, na minha opinião, a tornava inadmissível; a personalidade da sra. Lestrange.

— Não concordo com o senhor, inspetor — declarei. — A sra. Lestrange não me parece ser uma chantagista em potencial. Ela é... bem, é uma palavra antiquada, mas ela é uma... dama.

Olhou para mim penalizado.

— Ah! Mas o senhor é um religioso — disse com tolerância. — Não conhece a metade das coisas que aconte­cem por aí. Uma dama!  Ficaria espantado se soubesse o que eu sei.

— Não estou me referindo à posição social somente. De qualquer maneira, imagino que a sra. Lestrange tenha vindo de uma classe mais alta. O que quero dizer é que é uma questão de... refinamento.

— O senhor não olha para ela com os mesmos olhos que eu, senhor. Posso ser homem, mas sou um policial também. Não podem me enganar com o refinamento pessoal. Ora, aquela mulher é dessas que enfiam uma faca em alguém sem um arrepio.

Estranhamente, achei mais fácil acreditar na sra. Les­trange como assassina do que como chantagista.

— Mas, naturalmente, ela não podia telefonar para a senhora ao lado e matar o coronel Protheroe ao mesmo tem­po — continuou o inspetor.

Mal tinha acabado de falar, bateu ferozmente na perna.

— Já sei! — exclamou. — Essa foi a finalidade do telefonema. Uma espécie de álibi. Sabia que iríamos fazer a conexão com o primeiro telefonema. Vou investigar isso. Pode ter pago algum garoto da aldeia para telefonar por ela, e ele jamais pensaria em ligar isso ao crime.

O inspetor saiu às pressas.

— Miss Marple quer falar com você — disse Griselda, metendo a cabeça na abertura da porta. — Mandou um bilhete incompreensível, todo em garranchos e sublinhado. Não consegui ler a maior parte dele. Aparentemente não pode sair de casa. Vá lá depressa e fale com ela e veja o que é. As minhas velhotas vão chegar dentro de dois minutos, senão eu mesma iria. Detesto velhas; queixam-se dos proble­mas com as pernas e às vezes insistem em mostrá-las. Que sorte que o inquérito é hoje de tarde! Você não terá que assistir à competição de críquete do Boys Club.

Fui às pressas, bastante preocupado com a razão desse chamado.

Encontrei Miss Marple muito agitada. Estava muito co­rada e um pouco incoerente.

— É o meu sobrinho — ela explicou. — Meu sobri­nho, Raymond West, o escritor. Vai chegar hoje. Que con­fusão! Tenho de fiscalizar tudo pessoalmente. Não se pode confiar numa empregada para arrumar uma cama, e é preciso, naturalmente, ter uma refeição com carne hoje à noite. Os homens precisam de muita carne, não é? E bebidas. É preciso ter alguma coisa para beber em casa. E um sifão.

— Se eu puder fazer alguma coisa... — comecei.

— Oh! É muita bondade sua. Mas não é isso. Há bas­tante tempo. Ainda bem que ele traz cachimbo e fumo. Assim não tenho que quebrar a cabeça com marcas de cigar­ros. Mas é uma pena, porque o cheiro de fumo leva tanto tempo para sair das cortinas... Claro que abro as janelas e Sacudo as cortinas muito bem de manhã cedo. Raymond se levanta muito tarde, acho que os escritores são assim, Ele escreve livros ótimos, todos dizem, mas as pessoas não são realmente tão desagradáveis quanto ele diz. Esses rapazes inteligentes conhecem a vida muito pouco, o senhor não acha?

— A senhora quer levá-lo para jantar lá na residência? — perguntei, sem conseguir compreender por que razão tinha me chamado.

— Oh! Não, obrigada — disse Miss Marple. — É mui­ta bondade sua — acrescentou.

— Acho que a senhora queria...  hum... me dizer alguma coisa — sugeri em última instância.

— Oh! Claro! Com toda essa confusão escapou-me completamente. — Interrompeu-se e chamou a empregada. — Emily... Emily. Esses lençóis, não! Aqueles enfeitados com monograma, e não os coloque muito perto do fogo.

Fechou a porta e voltou para junto de mim, na ponta dos pés.

— É que aconteceu uma coisa estranha ontem à noite — explicou. — Achei que o senhor gostaria de saber, embo­ra por enquanto não pareça ter muito sentido. Estava sem sono ontem à noite, pensando na tragédia. Levantei-me e olhei pela janela. E o que acha que vi?

Olhei para ela, aguardando a resposta.

— Gladys Cram — disse Miss Marple, enfaticamente. — Pela minha alma, entrando no bosque com uma maleta.

— Uma maleta?

— Não é extraordinário? O que estaria fazendo com uma maleta no bosque à meia-noite?

— O senhor compreende — continuou. — Não deve ter nada a ver com o assassinato. Mas é uma coisa estranha. E no momento achamos que devemos prestar atenção a coisas estranhas.

— Realmente espantoso — eu disse. — Será que ela ia... dormir no túmulo, por acaso?

— Não — respondeu Miss Marple. — Porque logo depois voltou, e não estava mais carregando a maleta.

 

O inquérito aconteceu naquela tarde (sábado), às duas horas, no Blue Boar. A excitação local foi, é desnecessário dizer, tremenda. Não tinha havido nenhum assassinato em St. Mary Mead nos últimos quinze anos, pelo menos. E por ser alguém como o coronel Protheroe, assassinado no próprio escritório da residência do pastor, era um verdadeiro ban­quete de sensações, que raramente era oferecido à população de uma aldeia.

Vários comentários chegaram aos meus ouvidos, prova­velmente ditos de propósito.

“Lá está o pastor. Está muito pálido, não acha? Será que está metido nisso? Afinal de contas, foi lá na residên­cia.” “Como pode dizer isso, Mary Adams? Ele estava visi­tando Henry Abbott nessa hora.” “Ah! Mas dizem que ele e o coronel brigaram. Lá está Mary Hill. Bancando a impor­tante, só porque trabalha lá. Silêncio, aí vem o coroner 1.”

 

1 “Coroner”: magistrado encarregado de investigar casos de morte suspeita. (N. do T.)

 

O coroner era o dr. Roberts, da cidade vizinha, Much Benham. Pigarreou, ajustou os óculos e assumiu um ar im­portante.

Seria muito cansativo recapitular todos os depoimentos. Lawrence Redding depôs dizendo ter encontrado o corpo e identificou a pistola como sendo sua. Pelo que sabia, a última vez que a tinha visto fora na terça-feira, dois dias antes. Estava guardada numa prateleira em seu cottage, cuja porta nunca era trancada.

A sra. Protheroe testemunhou que tinha visto seu ma­rido pela última vez às quinze para as seis, quando se separaram na rua da aldeia. Concordou em ir encontrá-lo mais tarde, na residência do pastor. Foi à residência por volta de seis e um quarto, pelo caminho dos fundos, entran­do pelo portão do jardim. Não ouviu vozes no escritório e pensou que estivesse vazio, mas seu marido poderia estar sentado em frente da secretária e, nesse caso, não o teria visto. Ao que sabia, ele estava em seu estado normal de saúde e de espírito. Não tinha conhecimento de nenhum inimigo que quisesse vingar-se dele.

Fui o próximo a depor; mencionei o meu encontro marcado com Protheroe e a chamada para ir à casa dos Abbotts. Descrevi como encontrei o corpo e como tinha chamado o dr. Haydock.

— Quantas pessoas, sr. Clement, sabiam que o coronel Protheroe iria vê-lo naquela noite?

— Muitas, imagino. Minha esposa sabia e meu sobri­nho também. O próprio coronel Protheroe se referiu a isso naquela manhã, quando o encontrei na aldeia. Imagino que várias pessoas ouviram, pois, sendo meio surdo, ele falava sempre em voz muito alta.

— Era, então, de conhecimento geral? Qualquer pes­soa podia saber?

Concordei.

Haydock veio em seguida. Era uma testemunha impor­tante. Descreveu cuidadosa e tecnicamente o aspecto do corpo e dos danos causados. Segundo sua opinião, o defunto tinha sido morto aproximadamente entre seis e vinte e seis e meia, mas nunca depois das seis e trinta e cinco. Esse era o limite máximo. Foi claro e enfático quanto a esse ponto. Não havia possibilidade de suicídio: o ferimento não poderia ter sido causado pelo próprio coronel.

O depoimento do inspetor Slack foi discreto e resumi­do. Descreveu como foi chamado e as circunstâncias em que encontrou o corpo. A carta foi apresentada, e a hora nela marcada, seis e vinte, anotada. O relógio também. Ficou tacitamente admitido que a hora da morte era seis e vinte e dois. A polícia não estava revelando nada. Anne Protheroe me disse depois que tinham lhe sugerido que mencionasse sua visita como tendo sido antes das seis e vinte.

Nossa empregada, Mary, foi a testemunha seguinte, e comportou-se de maneira truculenta. Não tinha ouvido nada e não queria ouvir nada. Os cavalheiros que iam visitar o pastor não eram geralmente assassinados. Tinha seu trabalho com que se ocupar. O coronel Protheroe chegara exatamente às seis e quinze. Não tinha olhado o relógio. Ouvira o sino da igreja logo depois de levá-lo ao escritório. Não escutara tiro nenhum. Se tivesse havido um tiro, ela teria ouvido. Sim, sabia que devia ter havido um tiro, pois o cavalheiro fora encontrado morto, mas era isso mesmo. Não tinha ouvido nada.

O coroner não insistiu. Compreendi que ele e o coronel Melchett deviam ter entrado em acordo.

A sra. Lestrange tinha sido intimada a testemunhar, mas um atestado médico, assinado pelo dr. Haydock, foi apresentado, dizendo que estava doente.

Só houve mais uma testemunha, uma velhota meio trôpega que, como Slack dizia, fazia a limpeza para Lawrence Redding.

A sra. Archer examinou a pistola e a reconheceu como sendo a mesma que tinha visto na sala do sr. Redding, “na prateleira da estante, largada de qualquer jeito”. A última vez que a tinha visto fora no dia do assassinato. Em resposta a mais uma pergunta, disse que tinha certeza de que estava lá na hora do almoço, na quinta-feira, às quinze para a uma, quando saiu.

Lembrei-me do que o inspetor me dissera e fiquei um pouco espantado. Ela tinha sido muito vaga quando ele a interrogara, mas agora estava positivamente certa.

O coroner fez o resumo de maneira negativa, mas com muita firmeza. O veredicto foi dado quase imediatamente:

Homicídio cometido por pessoa ou pessoas desconhe­cidas.

Ao sair da sala, encontrei um pequeno exército de rapa­zes de aparência inteligente e alerta, e com uma semelhança superficial. Alguns já conhecia de vista, pois tinham asse­diado a residência nos últimos dias. Busquei refúgio no Blue Boar, procurando escapar deles, e tive a sorte de esbarrar com o arqueólogo, o dr. Stone. Agarrei-o sem a menor ceri­mônia.

— Jornalistas — declarei, significativamente. — Pode me livrar deles?

— Ora, certamente, sr. Clement. Venha aqui em cima comigo.

Tomou a frente numa escada estreita e me levou a sua sala, onde a srta. Cram estava sentada, batendo à máquina com grande eficiência. Quando me viu, deu um largo sorriso de boas-vindas e aproveitou a oportunidade para parar de trabalhar.

— Horrível, não é? — comentou. — Quero dizer, não sabermos quem foi. Estou desapontada com o inquérito. Muito sem graça, eu achei. Nada sensacional do princípio ao fim.

— A senhora foi lá, então, srta. Cram?

— Claro que fui. Não sei como não me viu. Estou um pouco sentida com isso. Estou, sim. Um cavalheiro, mesmo sendo um pastor, não deve ser cego.

— O senhor estava lá também? — perguntei ao dr. Stone, procurando acabar com a brincadeira. Não me sinto bem com moças como a srta. Cram.

— Não, receio que tenha muito pouco interesse nessas coisas. Vivo completamente absorto no meu hobby.

— Deve ser um hobby muito interessante — observei.

— Conhece um pouco o assunto, talvez?

Fui obrigado a confessar que não sabia quase nada.

O dr. Stone não era homem de se intimidar com uma confissão de ignorância. Foi como se eu tivesse dito que a escavação de túmulos era a coisa que mais me interessava. Lançou-se em ondas de redemoinhos de palavras. Túmulos compridos, túmulos redondos, Idade da Pedra, Idade do Bronze, Paleolítico, dólmens neolíticos, tudo saiu de jorro. Não foi preciso que eu fizesse nada, só concordar com a cabeça e assumir um ar inteligente — e talvez nisso esteja sendo otimista demais. O dr. Stone continuou, retumbante. Era um homem pequeno. Sua cabeça era redonda e careca, o rosto redondo e rosado, e me olhava cordialmente através de lentes fortes. Nunca vi um homem ficar tão entusiasmado com tão pouco estímulo. Entrou em detalhes dos argumentos favoráveis e contrários a sua teoria pessoal, que, por falar nisso, nunca soube qual era.

Detalhou minuciosamente sua divergência de opinião com o coronel Protheroe.

— Grosseiro e obstinado — afirmou exaltado. — Sim, sim, sei que está morto e que não se deve falar mal dos mortos. Mas a morte não altera os fatos. Grosseiro e obsti­nado é exatamente o que ele era. Leu uns livros e se consi­derava a maior autoridade, mesmo diante de um homem que dedicou sua vida inteira ao estudo desse assunto. Minha vida inteira, sr. Clement, foi dedicada a esse trabalho. Minha vida inteira...

Balbuciava de tanta agitação. Gladys Cram o trouxe de volta à terra com uma frase brusca.

— Vai perder seu trem se não se apressar — observou.

— Ah! — O homenzinho parou no meio da frase e puxou um relógio do bolso. — Minha nossa! Um quarto para as...? Impossível.

— Quando o senhor começa a falar esquece a hora. O que faria sem mim para tomar conta do senhor é o que não sei.

— Tem razão, minha cara, tem razão. — Deu-lhe umas pancadinhas amistosas no ombro. — É uma moça mara­vilhosa, sr. Clement. Nunca se esquece de nada. Tive muita sorte em tê-la encontrado.

— Ah! Que é isso, dr. Stone! — volveu a moça. — O senhor me estraga com esses elogios.

Não pude deixar de sentir que deveria estar em posição privilegiada para concordar com o grupo que vê o futuro do dr. Stone e da srta. Cram como sendo o casamento. Creio que, a seu modo, a srta. Cram era muito esperta.

— É melhor ir agora — disse a srta. Cram.

— Sim, sim, tenho de ir.

Desapareceu no quarto ao lado e voltou trazendo uma maleta.

— O senhor vai embora? — perguntei um pouco es­pantado.

— Vou só à cidade por uns dias — explicou. — Vou ver minha velha mãe amanhã e resolver uns assuntos com meu advogado na segunda-feira. Volto na terça. Por falar nisso, espero que a morte do coronel Protheroe não faça nenhuma diferença quanto ao nosso acordo. Quero dizer, com relação ao túmulo. A sra. Protheroe não fará nenhuma objeção a que eu continue com meu trabalho?

— Creio que não.

Enquanto ele falava, fiquei pensando em quem ficaria em posição de autoridade em Old Hall. Era possível que Protheroe tivesse legado a propriedade a Lettice. Achei que seria interessante conhecer o conteúdo do testamento de Protheroe.

— Causa muitos problemas para uma família, uma morte — comentou a srta. Cram, com prazer mórbido. — O senhor não acreditaria como às vezes as pessoas ficam miseráveis.

— Bem, está na hora de ir. — O dr. Stone estava todo atrapalhado com a maleta, um grande cobertor e um guarda-chuva recalcitrante. Fui ajudá-lo. Protestou.

— Não se incomode, não se incomode. Eu mesmo re­solvo. Deve haver alguém lá embaixo.

Mas lá embaixo não havia nenhum empregado nem ninguém. Desconfiei de que estavam todos bebendo às custas da imprensa. Estava ficando tarde e fomos os dois para a estação, o dr. Stone carregando a maleta e eu, o cobertor e o guarda-chuva.

Andamos depressa e o dr. Stone fez comentários entre um fôlego e outro.

— Muita bondade sua... não queria... incomo­dá-lo... Espero que eu... não perca... o trem... Gladys é muito boa... realmente uma moça...   maravilhosa... ótimo gênio... muito infeliz em casa... absolutamente... o coração de uma criança... coração de uma criança. Garan­to ao senhor, apesar da... diferença de idades... temos muito em comum...

Vimos o cottage de Lawrence Redding quando viramos para entrar na estação. Fica em posição isolada, sem nenhu­ma casa perto. Vi dois rapazes elegantes na porta de entrada e mais outros dois olhando pelas janelas. Era um dia traba­lhoso para a imprensa.

— Um rapaz simpático, o Redding — comentei, para ver o que meu companheiro iria dizer.

Estava tão sem fôlego, a essa altura, que encontrou dificuldades em falar, mas murmurou uma palavra que a princípio não compreendi.

— Perigoso — conseguiu dizer, quando pedi que re­petisse.

— Perigoso?

— Muito perigoso. Jovens inocentes... não sabem nada...  enganadas por um sujeito desses... sempre ron­dando as mulheres... Não presta.

Deduzi disso que o único rapaz na aldeia não tinha passado despercebido à bela Gladys.

— Céus! — exclamou o dr. Stone. — O trem!

Já estávamos quase na estação e apressamos o passo. Havia um trem parado, e o trem de Londres estava che­gando.

Na porta da bilheteria esbarramos num rapaz extre­mamente elegante, que reconheci ser o sobrinho de Miss Marple, acabando de chegar. Acho que é um rapaz que não gosta que esbarrem nele. O tipo que se orgulha de sua pose e de sua aparência de superioridade, e não há dúvida de que um simples esbarrão é prejudicial a qualquer espécie de pose. Perdeu o equilíbrio e deu um passo atrás. Pedi desculpas apressadamente e entramos. O dr. Stone subiu no vagão e passei-lhe a bagagem no momento exato em que o trem deu um arranco e começou a andar.

Acenei para ele e virei-me. Raymond West já tinha ido embora, mas o nosso farmacêutico, abençoado pelo nome de Querubim, estava saindo em direção à aldeia. Fui junto com ele.

— Foi por um triz — comentou. — Bem, como foi o inquérito, sr. Clement?

Contei qual tinha sido o veredicto.

— Ah! Então foi isso o que aconteceu. Bem que pensei que ia ser assim. Aonde é que o dr. Stone foi?

Repeti o que ele tinha me dito.

— Teve sorte de não perder o trem. Embora nunca se saiba, nessa linha. Vou-lhe dizer, sr. Clement, é uma vergo­nha. Um absurdo, é o que lhe digo. O trem que tomei estava atrasado dez minutos. E isso num sábado, sem trânsito ne­nhum. E na quarta-feira... não, na quinta... foi... foi na quinta-feira... lembro-me de que foi no dia do assassinato porque eu ia escrever uma carta de reclamação à companhia, em termos bem fortes... e o assassinato me fez esquecer... sim, quinta-feira passada. Fui a uma reunião da Sociedade Farmacêutica. Sabe quanto tempo o trem das seis e cinqüen­ta se atrasou? Meia hora. Exatamente meia hora! Que acha disso? Dez minutos não tem importância. Mas se o trem chega às sete e vinte, ora, não se pode chegar a casa antes de sete e meia. Então o que eu digo é: por que dizer que o trem é das seis e cinqüenta?

— Certo — concordei, e, para fugir àquele monólogo, dei a desculpa de que tinha de falar com Lawrence Redding, que vinha em nossa direção do outro lado da rua.

 

— Foi muito bom encontrá-lo — disse Lawrence. — Venha até minha casa comigo.

Passamos pelo pequeno portão rústico, subimos o cami­nho e ele tirou uma chave do bolso e enfiou-a na fechadura.

— Passou a trancar a porta agora — observei.

— Sim. — Riu amargamente. — Trancar a porta da cocheira depois de o cavalo fugir, hein? É mais ou menos isso. Sabe, pastor — abriu a porta e entrei —, há alguma coisa nessa história toda de que não estou gostando. É mui­to... como posso dizer... um trabalho de gente de dentro. Alguém sabia da minha pistola. Isso quer dizer que o assas­sino, seja quem for, esteve nesta casa, talvez tenha mesmo tomado um drinque comigo.

— Não necessariamente — argumentei. — A aldeia de St. Mary Mead inteira deve saber exatamente onde você guarda sua escova de dentes e que marca de pasta usa.

— Mas por que isso iria interessá-los?

— Não sei — eu disse —, mas interessa. Se você mu­dar de creme de barbear, isso será motivo de comentários.

— Devem ter muita falta de assunto.

— Sim. Não acontece nada sensacional por aqui.

— Bem, aconteceu agora, com juros.

Concordei.

— Mas quem é que conta essas coisas para eles? Creme de barbear e outras coisas assim?

— Provavelmente a velha sra. Archer.

— Aquela velhota? É praticamente uma idiota, pelo que vi.

— É só uma camuflagem dos pobres — expliquei. — Escondem-se atrás de uma máscara de estupidez. Você provavelmente ia descobrir que a velhota é bem esperta. Por falar nisso, parece que agora ela tem certeza de que a pistola estava em seu devido lugar, na quinta-feira, ao meio-dia. Por que ficou tão certa de repente?

— Não tenho a menor idéia.

— Acha que ela está certa?

— Também não tenho a menor idéia. Não verifico minhas coisas todos os dias.

Olhei em volta da pequena sala. Todas as prateleiras e mesas estavam cheias de uma miscelânea de coisas. Lawrence vivia numa desarrumação artística total, que me deixaria completamente louco.

— Às vezes é um pouco difícil encontrar as coisas — ele disse, observando meu olhar. — Por outro lado, está tudo à mão, nada está guardado.

— Nada está guardado, é certo — concordei. — Tal­vez tivesse sido melhor se a pistola estivesse guardada.

— Sabe, esperava que o coroner fosse me dizer alguma coisa sobre isso. Os coroners são uns bobos. Esperava que me censurasse ou coisa parecida.

— Estava carregada? — perguntei.

Lawrence negou com a cabeça.

— Não sou tão descuidado assim. Estava descarregada, mas tinha um pente de balas perto dela.

— Aparentemente foi carregada com seis balas, e só urna foi disparada.

Lawrence concordou com a cabeça.

— E que mão a disparou? Está tudo muito bem, mas se não descobrirem o verdadeiro assassino, ficarei como sus­peito do crime até o fim da minha vida.

— Não diga isso, meu rapaz.

— Digo, sim.

Ficou calado, franzindo o rosto. Finalmente animou-se e disse:

— Mas deixe que lhe conte como me saí ontem à noite. A velha Miss Marple sabe algumas coisas.

— Justamente por isso acredito que seja pouco po­pular.

Lawrence fez seu relato.

Seguindo o conselho de Miss Marple, tinha ido a Old Hall. Lá, com o auxílio de Anne, entrevistara a copeira. Anne tinha dito simplesmente:

— O sr. Redding quer lhe fazer umas perguntas, Rose.

E depois saiu da sala.

Lawrence sentira-se um pouco nervoso. Rose, uma moça bonitinha de uns vinte e cinco anos, ficou olhando para ele com um olhar límpido que o deixou meio embaraçado.

— É... é sobre a morte do coronel Protheroe.

— Sim, senhor.

— Estou ansioso para descobrir a verdade.

— Sim, senhor.

— Acho que deve haver... que alguém talvez... que pode ter havido alguma coisa...

A essa altura, Lawrence sentiu que não estava se co­brindo de glória e xingou Miss Marple e suas sugestões.

— Será que pode me ajudar?

— Como, senhor?

A atitude de Rose era ainda a da empregada perfeita, polida, ansiosa para ajudar e completamente desinteressada.

— Que diabo — disse Lawrence —, não comentaram essa história na sala dos empregados?

Esse método de ataque atingiu Rose um pouco. Sua pose perfeita ficou abalada.

— Na sala dos empregados, senhor?

— Ou no quarto da governanta, ou do jardineiro, ou seja lá onde vocês conversam. Tem de haver um lugar.

Rose mostrou sinais de querer rir e Lawrence se sentiu encorajado.

— Olhe aqui, Rose, você é muito simpática. Deve compreender como estou me sentindo. Não quero ser enfor­cado. Não matei seu patrão, mas muita gente pensa que matei. Será que você não pode me ajudar?

Posso imaginar como Lawrence estava atraente nesse momento. A bonita cabeça jogada para trás, os olhos azuis, irlandeses, Suplicantes. Rose ficou comovida e se rendeu.

— Ah, senhor, tenho certeza... se nós pudéssemos ajudar de alguma maneira... Nenhum de nós acha que foi o senhor. Claro que não foi.

— Está bem, minha filha, mas isso não vai me ajudar nada com a polícia.

— A polícia! — Rose sacudiu a cabeça violentamente. — O senhor sabe, nós não temos nenhuma confiança naque­le inspetor. Slack, ele se chama. A polícia!

— De qualquer jeito, a polícia é muito poderosa. Va­mos, Rose, você disse que faria o possível para me ajudar. Sinto que há muita coisa que não sabemos ainda. Aquela senhora, por exemplo, que veio ver o coronel Protheroe na véspera de ele morrer.

— A sra. Lestrange?

— Sim, a sra. Lestrange. Tenho a impressão de que há alguma coisa muito estranha nessa visita.

— Sim, senhor. Foi o que nós todos dissemos.

— Foi?

— Vindo do jeito que veio. E perguntando pelo coro­nel. E naturalmente tem havido muito falatório, ninguém por aqui sabe nada sobre ela. E a sra. Simmons, a governan­ta, senhor, acha que ela não presta. Mas depois que ouvi o que Gladdie disse, bem, fiquei sem saber o que pensar.

— Que foi que Gladdie disse?

— Oh! Nada, senhor. Foi só... estávamos conversan­do, sabe?

Lawrence olhou para ela. Sentiu que estava escondendo alguma coisa.

— Gostaria muito de saber qual foi o assunto da con­versa dela com o coronel Protheroe.

— Sim, senhor.

— Será que você sabe, Rose?

— Eu? Oh! Não, senhor. Claro que não. Como é que iria saber?

— Olhe aqui, Rose. Você disse que ia me ajudar. Se ouviu alguma coisa, seja o que for... pode não parecer im­portante, mas qualquer coisa... Ficaria profundamente grato a você. Afinal de contas, qualquer pessoa pode... por acaso... só por acaso, ouvir alguma coisa.

— Mas eu não ouvi, senhor, não ouvi mesmo.

— Então outra pessoa ouviu — disse Lawrence, com astúcia.

— Bem, senhor...

— Diga, Rose.

— Não sei o que Gladdie vai achar.

— Ela ia gostar que você me contasse. Quem é Gladdie, por falar nisso?

— É a ajudante da cozinha, senhor. Sabe, ela tinha dado uma saída para falar com um amigo e passou pela janela... a janela do escritório... e o patrão estava lá com a senhora. E naturalmente ele falava muito alto, o patrão, sempre. E claro que ela ficou curiosa... isto é...

— Muito natural — disse Lawrence —, qualquer pes­soa faria isso.

— Mas ela não contou para ninguém, só para mim. E nós duas achamos muito estranho. Mas Gladdie não podia dizer nada, porque se soubessem que tinha saído para encontrar um... um amigo... bem, ia ser ruim para ela com a sra. Pratt, a cozinheira, senhor. Mas tenho certeza de que ela contará tudo para o senhor, de boa vontade.

— Bem, posso ir à cozinha falar com ela?

Rose ficou horrorizada com essa sugestão.

— Oh! Não, senhor, isso não pode ser. E Gladdie é uma moça muito nervosa.

Finalmente, depois de muito discutir os pontos mais difíceis, combinaram um encontro clandestino no jardim.

E lá Lawrence defrontou-se com a nervosa Gladdie, que mais parecia um coelhinho trêmulo. Gastou dez minutos pro­curando colocá-la à vontade, a trêmula Gladys explicando que não podia, que não devia, que nunca pensou que Rose ia traí-la, que não tinha feito por mal, certamente que não, e que se a sra. Pratt soubesse disso ia ser muito ruim para ela.

Lawrence a tranqüilizou, implorou, convenceu; final­mente Gladys concordou em falar... Se o senhor garantir que isso não vai adiante, senhor.

— Claro que não vai.

— E não vão me acusar disso no tribunal?

— Nunca.

— E o senhor não vai contar à patroa?

— De jeito nenhum.

— Se chegar aos ouvidos da sra. Pratt...

— Não vai chegar. Agora me conte. Gladys.

— Tem certeza de que não vai acontecer nada?

— Claro que não vai. Algum dia você vai ficar con­tente por ter me livrado da forca.

Gladys deu um gritinho.

— Oh! Claro que eu não quero isso, senhor. Bem, foi muito pouco o que eu ouvi, inteiramente por acaso, o senhor sabe. . .

— Compreendo.

— Mas o patrão, ele estava muito zangado. “Depois de todos esses anos”, foi isso o que ele disse, “você tem a ousadia de vir aqui”... “É uma afronta”... Não consegui ouvir o que a senhora disse, mas pouco depois ele falou: “Recuso absolutamente... absolutamente”. Não me lembro de tudo, mas estavam discutindo violentamente; ela queria que ele fizesse alguma coisa e ele recusava. “É uma vergo­nha você ter vindo para cá”, foi uma das coisas que ele disse. E também: “Você não vai vê-la, eu a proíbo”. Isso me chamou a atenção. Parecia que ela queria dizer umas boas à sra. Protheroe e ele estava com medo disso. Pensei comigo mesma: ora, ora, vejam só o patrão. Ele que é tão exigente! E no fim das contas, não é nenhum santo. Imagine só! “Os homens são todos iguais”, eu disse para o meu amigo mais tarde. Mas ele não concordou. Discutiu comigo. Mas também ficou espantado com o coronel Protheroe, administrador da igreja, fazendo a coleta e lendo os sermões no domingo e tudo. “Mas é assim”, eu disse, “e às vezes são piores.” Era o que minha mãe dizia muitas vezes.

Gladys parou para tomar fôlego e Lawrence procurou, com muita diplomacia, trazê-la de volta ao ponto de partida.

— Ouviu mais alguma coisa?

— Bem, é difícil lembrar exatamente, senhor. Foi tudo mais ou menos a mesma coisa. Ele disse, uma ou duas vezes, “Não acredito”. Assim mesmo. “Seja o que for que Haydock tenha dito, não acredito.”

— Ele disse isso? “Seja o que for que Haydock tenha dito”?

— Sim. E disse que era tudo uma conspiração.

— Você não ouviu a senhora dizer nada?

— Só no fim. Ela deve ter se levantado para ir embora e chegou mais perto da janela. E ouvi o que ela disse. Fez meu sangue gelar nas veias, nunca vou esquecer. “A essa hora, amanhã à noite, talvez você esteja morto”, foi o que ela disse. E com maldade. Assim que ouvi a notícia, comen­tei com Rose: “Viu só?”

Lawrence ficou em dúvida. Principalmente no que dizia respeito à história de Gladys. Devia ser verdadeira, na maior parte, mas desconfiou de que tivesse sido retocada depois do assassinato.

Agradeceu a Gladys, deu-lhe uma recompensa adequa­da, tranqüilizou-a quanto à sra. Pratt vir a saber de sua conduta irregular e saiu de Old Hall com muito em que pensar.

Uma coisa era bem clara: o encontro da sra. Lestrange com o coronel Protheroe, certamente, não tinha sido pacífi­co, e o velho estava ansioso para que sua mulher não soubes­se de nada.

Lembrei-me do administrador de Miss Marple com seu segundo lar. Será que esse caso era parecido?

Fiquei mais curioso ainda quanto ao papel de Haydock em tudo isso. Tinha evitado que a sra. Lestrange desse seu depoimento no inquérito. Fizera o possível para protegê-la da polícia.

Até que ponto levaria essa proteção?

Vamos supor que a considerasse suspeita; iria prote­gê-la mesmo assim?

Era uma mulher fora do comum, de um encanto magnético. Eu mesmo detestava a idéia de ligá-la ao crime de qualquer maneira.

Alguma coisa dentro de mim dizia: “Não pode ser ela!” Por quê?

Uma vozinha em minha cabeça respondeu: “Porque é uma mulher muito linda e muito atraente. É por isso”.

Há, como diria Miss Marple, muito da natureza huma­na em todos nós.

 

Quando voltei a casa, descobri que estávamos em plena crise doméstica.

Griselda me encontrou no hall e, com lágrimas nos olhos, me arrastou até a sala de estar. — Ela vai embora.

— Quem vai embora?

— Mary. Pediu as contas.

Não podia, realmente, considerar essa notícia uma tra­gédia.

— Bem — eu disse —, vamos ter de arranjar outra empregada.

Achei que isso era uma coisa muito sensata. Quando uma empregada sai, arranja-se outra. Não compreendi o olhar que Griselda me lançou, cheio de censura.

— Len, você não tem coração. Você não se incomoda.

Não me incomodava. Na verdade, estava me sentindo quase alegre com a possibilidade de não ver mais pudins queimados e verduras malcozidas.

— Tenho que encontrar alguém e ensinar-lhe o serviço — continuou Griselda, morrendo de pena de si mesma.

— E Mary sabe o serviço? — perguntei.

— Claro que sabe.

— Vai ver — eu disse — que alguém a ouviu dizer “senhor” ou “senhora” e imediatamente a arrebatou daqui como um modelo de virtudes. Vão ficar muito desaponta­dos, é só o que tenho a dizer.

— Não é nada disso — observou Griselda. — Nin­guém a quer. Não sei quem iria querê-la. São seus sentimen­tos. Ficou magoada porque Lettice Protheroe disse que ela não tira o pó direito.

Griselda freqüentemente diz coisas espantosas, mas isso era tão espantoso que duvidei de que fosse verdade. Parecia a mim a coisa menos provável do mundo que Lettice Protheroe saísse do seu caminho para interferir nos nossos negócios domésticos e repreender nossa empregada por tra­balhar mal. Era uma coisa completamente estranha a Lettice, e eu lhe disse isso.

— Não sei o que a nossa poeira tem a ver com Lettice Protheroe.

— Nada — retrucou minha mulher. — E é por isso que não é nada razoável. Queria que você fosse falar com Mary. Ela está na cozinha.

Não tinha a menor vontade de falar sobre esse assunto com Mary, mas Griselda, que é muito enérgica e rápida, quase me empurrou pela porta da cozinha antes que eu pudesse protestar.

Mary estava descascando batatas na pia.

— Hum... boa tarde — eu disse, nervoso.

Mary olhou para mim e deu um grunhido, mas não disse mais nada.

— A sra. Clement disse que você quer nos deixar — iniciei.

Mary dignou-se a responder:

— Há coisas que nenhuma moça deve suportar.

— Quer me dizer exatamente o que a aborreceu?

— Em duas palavras. — Aí, devo dizer, ela se subes­timou tremendamente. — Essa gente que vem aqui espionar por trás das minhas costas. Mexendo em tudo. E é lá da conta dela, quantas vezes eu tiro o pó do escritório ou arru­mo as coisas? Se o senhor e a patroa não reclamam, não é da conta de ninguém. Se os patrões estão satisfeitos, é só o que importa.

Nunca me senti satisfeito com Mary. Confesso que sonho com uma sala bem limpa e arrumada todos os dias. Mary costumava tirar só os depósitos mais óbvios de poeira das mesas mais baixas, e considero isso completamente ina­dequado. Mas compreendi que essa não era a hora de tocar nesse assunto.

— Tive que ir ao inquérito, não tive? Ficar lá em pé em frente de doze homens, uma moça decente como eu! E sabe-se lá que perguntas eles iam fazer. Vou dizer uma coisa. Nunca trabalhei num lugar onde tivesse havido um assassi­nato, e nunca mais quero trabalhar.

— Espero que não seja preciso — disse. — Pela lei de probabilidades, diria que não é muito provável.

— Não quero saber da lei. Ele era magistrado. Quan­tos pobres coitados ele mandou para a cadeia só porque pegaram um coelho, e ele com todos aqueles faisões e tudo o mais. E aí, antes de ser decentemente enterrado, a filha dele vem aqui e diz que não faço meu trabalho direito.

— Está dizendo que a srta. Protheroe esteve aqui?

— Encontrei-a aqui quando voltei do Blue Boar. Ela estava no escritório. E ela disse: “Estou procurando minha boina... meu chapeuzinho amarelo. Deixei-o aqui no outro dia”. “Bem”, eu disse, “não vi chapéu nenhum. Não estava aqui quando arrumei a sala na quinta de manhã.” E ela disse: “Mas garanto que você não ia ver nada. Você não leva muito tempo para arrumar uma sala, leva?” E com isso passou o dedo na prateleira e olhou para ele. Como se eu tivesse tempo numa manhã dessas para tirar todos aqueles enfeites e colocá-los de novo, se a polícia só abriu a porta na véspera, de noite. “Se o pastor e sua senhora estão satisfeitos é só o que importa, eu acho, senhorita”, eu disse. E ela riu e saiu pela porta dizendo: “Ah! Mas tem certeza de que estão?”

— Entendo.

— E é isso. Fiquei muito sentida! Eu faço tudo pelo senhor e pela senhora. Quando ela quer experimentar um desses pratos novos, complicados, estou sempre disposta.

— Estou certo disso — afirmei, procurando acalmá-la.

— Mas ela deve ter ouvido alguma coisa, pois do con­trário não teria dito o que disse. E se não estão satisfeitos, prefiro ir embora. Não é que eu dê atenção ao que a srta. Protheroe diz. Não gostam dela lá em Old Hall. Nunca diz “por favor” ou “obrigada” e deixa tudo espalhado por todos os lados. Não ligo para a srta. Lettice Protheroe, apesar de o sr. Dennis gostar tanto dela. Mas ela é do tipo que consegue enrolar os rapazes.

Todo esse tempo, Mary ia tirando os grelos das batatas com tanta energia que eles voavam pela cozinha como uma chuva de pedras. Nesse momento, um me atingiu no olho, provocando uma pausa na conversa.

— Você não acha — perguntei, limpando o olho com o lenço — que ficou ofendida sem motivo? Você sabe, Mary, sua patroa vai ficar muito triste por perder você.

— Não tenho nada contra ela, nem contra o senhor, também.

— Bem, então não acha que está fazendo uma tolice?

Mary fungou.

— Eu estava um pouco nervosa com o inquérito e isso tudo. E sou muito sensível. Mas não quero causar nenhum incômodo à patroa.

— Então está tudo bem — afirmei.

Saí da cozinha e encontrei Griselda e Dennis esperando por mimno hall.

— Então? — perguntou Griselda.

— Ela vai ficar — respondi, suspirando.

— Len — disse minha mulher —, você foi muito ha­bilidoso.

Tive vontade de discutir com ela. Não estava satisfeito com minha habilidade. Estou convicto de que não pode haver empregada pior que Mary. Qualquer mudança teria que ser para melhor.

Mas gosto de agradar Griselda. Forneci os detalhes das queixas de Mary.

— É bem coisa da Lettice — disse Dennis. — Não pode ter deixado aquela boina amarela aqui na quarta-feira. Estava com ela quando foi jogar tênis, na quinta.

— Isso me parece muito provável — concordei.

— Ela nunca sabe onde deixa as coisas — acrescentou Dennis com um orgulho carinhoso e uma admiração que achei fora de propósito. — Perde uma dúzia de coisas todos os dias.

— Uma qualidade extremamente atraente — observei.

Dennis não percebeu meu sarcasmo.

— Sim, é muito atraente — disse, com um suspiro profundo. — Estão sempre lhe fazendo propostas de casa­mento. Ela me contou.

— Devem ser propostas ilegais, se feitas por gente daqui — comentei. — Não temos nenhum homem solteiro por aqui.

— Há o dr. Stone — disse Griselda com os olhos brilhando.

— Ele a convidou para ir ver o túmulo outro dia — confessei.

— Claro — disse Griselda. — Ela é atraente, Len. Até os arqueólogos carecas sabem disso.

— Muito sex-appeal — disse Dennis com sabedoria.

Entretanto, Lawrence Redding nem reparara nos en­cantos de Lettice. Griselda explicou, como quem sabe que está certa:

— Lawrence também tem muito sex-appeal. Esse tipo de homem sempre escolhe... como direi?... o tipo quacre. Muito reservado, muito modesto. O tipo de mulher que todo mundo diz que é fria. Acho que Anne é a única mulher que pode segurar Lawrence. Acho que nunca vão se cansar um do outro. Mas acho que ele foi muito estúpido numa coisa. Ele se utilizou de Lettice, sabe? Acho que nunca so­nhou que ela podia gostar dele. Lawrence é muito modesto em certas coisas. Mas acho que ela gosta dele.

— Ela não o suporta — disse Dennis positivamente. — Ela mesma me confessou isso.

Nunca vi coisa igual ao silêncio penalizado com que Griselda recebeu essa frase.

Fui para o escritório. A atmosfera me parecia ainda muito estranha. Sabia que tinha de vencer essa sensação. Se continuasse me sentindo assim, provavelmente nunca mais usaria o escritório. Caminhei pensativo até a secretária. Ali tinha se sentado Protheroe, de rosto vermelho, vigoroso, enfatuado de suas próprias virtudes, e ali, num instante, tinha sido abatido. Ali onde eu estava agora, um inimigo tinha estado...

E então... o fim de Protheroe...

Ali estava a caneta que seus dedos haviam segurado.

No chão, uma mancha escura e apagada. O tapete tinha ido para a tinturaria, mas o sangue tinha penetrado até o chão.

Estremeci.

— Não posso usar esta sala — disse em voz alta. — Não posso.

Então meu olhar foi atraído por qualquer coisa, um pontinho azul e brilhante. Abaixei-me. Debaixo da secretá­ria, vi um pequeno objeto. Apanhei-o.

Estava em pé, examinando o objeto na palma da minha mão, quando Griselda entrou.

— Esqueci-me de lhe dizer, Len. Miss Marple quer que vamos lá hoje à noite, depois do jantar. Para divertir o sobrinho. Ela está com medo de que ele fique aborrecido. Eu disse que nós iríamos.

— Muito bem, querida.

— O que você está olhando?

— Nada.

Fechei a mão e, olhando para minha mulher, comentei:

— Se você não distrair Raymond West, minha querida, ele deve ser muito difícil de agradar.

Minha mulher replicou: — Não seja bobo, Len —, e corou.

Saiu e abri a mão.

Na palma da minha mão havia um brinco com uma lazurita azul rodeada de pequenas pérolas.

Era uma jóia fora do comum, e eu sabia muito bem onde a tinha visto pela última vez.

 

Não posso dizer que tenha grande admiração pelo sr. Raymond West. Bem sei que é considerado um escritor brilhante, tendo ficado famoso como poeta. Seus poemas não têm letras maiúsculas, o que é, parece, a essência do moder­nismo. Seus romances são sobre pessoas desagradáveis viven­do vidas de incrível monotonia.

Demonstra uma afeição tolerante pela “tia Jane”, e em sua presença refere-se a ela como uma “sobrevivente”.

Ela o escuta com uma atenção lisonjeira e, se às vezes há um brilho divertido em seu olhar, tenho certeza de que ele não percebe.

Agarrou-se imediatamente a Griselda, com brusquidão lisonjeira. Discutiram peças modernas e daí foram para pro­jetos modernos de decoração. Griselda finge que ri de Ray­mond West, mas é, acho, suscetível à sua conversa.

Durante minha (cacete) conversa com Miss Marple, ouvi várias vezes a expressão “enterrada aqui neste lugar como você está”.

Finalmente começou a me irritar. E disse de repente:

— Vejo que o senhor acha que vivemos alheios a tudo aqui.

Raymond West gesticulou com o cigarro.

— Considero St. Mary Mead — disse como grande autoridade — um lago estagnado.

Olhou para nós, preparado para que contrariássemos sua declaração, mas para seu desgosto, creio, ninguém se mostrou aborrecido.

— Não é uma comparação muito boa, caro Raymond — disse Miss Marple com vivacidade. — Não há nada que tenha mais vida, creio, que uma gota d'água de um lago estagnado debaixo do microscópio.

— Vida... de um certo tipo — admitiu o romancista.

— É tudo mais ou menos a mesma coisa, não é? — volveu Miss Marple.

— A senhora se compara a um habitante de um lago estagnado, tia Jane?

— Meu caro, você disse uma coisa parecida no seu último livro, se não me engano.

Nenhum rapaz brilhante gosta que usem suas próprias palavras contra si. Raymond West não era exceção à regra.

— Isso foi outra coisa — disse bruscamente.

— A vida é, afinal de contas, mais ou menos a mesma coisa em qualquer lugar — observou Miss Marple em sua voz plácida. — Nascer, crescer e entrar em contato com outras pessoas... ser sacudido um pouco... e depois o casamento e mais bebês...

— E finalmente a morte — atalhou Raymond West. — E nem sempre a morte com uma certidão de óbito. Morte em vida.

— Falando em morte — disse Griselda. — Sabe que tivemos um assassinato aqui?

Raymond West mandou embora o assassinato com um gesto do cigarro.

— Assassinatos são por demais rudes — afirmou. — Não acho a menor graça neles.

Essas palavras não me enganaram nem por um momen­to. Dizem que todo mundo gosta de amar; transponham isso para assassinatos e terão uma verdade mais infalível ainda. Ninguém pode deixar de ficar interessado em um assassina­to. Pessoas simples como Griselda e eu admitem o fato, mas uma pessoa como Raymond West tem de fingir que não está interessada, pelo menos nos primeiros cinco minutos.

Miss Marple, entretanto, traiu o sobrinho, dizendo:

— Raymond e eu não falamos em outra coisa o jantar inteiro.

— Tenho um grande interesse por todas as notícias locais — disse Raymond depressa. Sorriu para Miss Marple com benevolência e tolerância.

— O senhor tem alguma teoria, sr. West? — pergun­tou Griselda.

— Logicamente — respondeu Raymond West, acenan­do novamente com o cigarro —, só uma pessoa podia ter matado Protheroe.

— Sim? — indagou Griselda.

Ficamos aguardando suas palavras com uma expectativa lisonjeira.

— O pastor — disse Raymond, apontando acusadora­mente para mim.

Engasguei.

— Naturalmente — tranqüilizou-me —, sei que não foi o senhor. A vida nunca é como devia ser. Mas imagine só o drama... como combina bem... o administrador da igreja assassinado no escritório do pastor pelo próprio pas­tor. Delicioso!

— E o motivo? — perguntei.

— Ah! Isso é interessante. — Endireitou-se na cadeira, deixando que o cigarro se apagasse. — Complexo de infe­rioridade, acho. Possivelmente inibições demais. Gostaria de escrever a história desse caso. É espantosamente complexo. Semana após semana, ano após ano... em reuniões na igre­ja... passeios dos meninos do coro... fazendo a coleta... levando-a para o altar... sempre via o homem. E sempre sentiu antipatia por ele... e sempre escondeu seus senti­mentos. São tão anticristãos que não pode encorajá-los. E assim fica remoendo, escondido, e um belo dia...

Fez um gesto expressivo.

Griselda virou-se para mim.

— Você já sentiu isso, Len?

— Nunca — disse com sinceridade.

— No entanto ouvi dizer que o senhor desejou que ele morresse não faz muito tempo — comentou Miss Marple.

(O miserável do Dennis! Mas tinha sido minha culpa, claro, por ter feito aquele comentário.)

— Receio que sim — admiti. — Foi um comentário muito tolo, mas eu tinha tido muitos problemas com ele naquela manhã.

— É uma pena — disse Raymond West. — Porque, é claro, se seu subconsciente estivesse realmente planejando matá-lo, nunca teria deixado escapar esse comentário.

Suspirou.

— Caiu por terra a minha teoria. É provavelmente um assassinato muito comum, a vingança de algum ladrão de caça ou coisa parecida.

— A srta. Cram veio me ver esta tarde — disse Miss Marple. — Encontrei-me com ela na aldeia e perguntei se gostaria de ver meu jardim.

— Ela gosta de jardins? — perguntou Griselda.

— Acho que não — respondeu Miss Marple, com os olhos brilhando. — Mas é uma boa desculpa para uma con­versa, não acha?

— O que achou dela? — quis saber Griselda. — Não a acho tão ruim assim.

— Falou muita coisa espontaneamente, muita coisa mesmo — disse Miss Marple. — Sobre si mesma e sua famí­lia. Parece que estão todos mortos ou na Índia. Muito triste. A propósito, ela foi passar o fim de semana em Old Hall.

— O quê!

— Sim, parece que a sra. Protheroe a convidou, ou foi ela quem sugeriu isso à sra. Protheroe, não sei bem como foi. Para trabalhar como secretária dela, pois há muitas cartas a responder. Deu muito certo. O dr. Stone está fora e ela não tem o que fazer. Esse túmulo tem causado muita agitação.

— Stone? — perguntou Raymond. — O arqueólogo?

— Sim, está escavando um túmulo. Na propriedade de Protheroe.

— É muito competente — disse Raymond. — Muito dedicado à profissão. Eu o conheci num jantar há pouco tem­po e tivemos uma conversa muito interessante. Vou pro­curá-lo um dia desses.

— Infelizmente — observei —, ele foi passar o fim de semana em Londres. Ora, o senhor esbarrou nele na estação, hoje de tarde.

— Esbarrei no senhor. Tinha um homenzinho gor­ducho com o senhor, um de óculos.

— Sim, o dr. Stone.

— Mas, meu caro pastor, aquele homem não é o dr. Stone.

— Não é?

— Não é o arqueólogo. Conheço-o muito bem. Aquele homem não é o dr. Stone, nem se parece nada com ele.

Todos se entreolharam. Eu, especialmente, olhei fixo para Miss Marple.

— Extraordinário! — exclamei.

— A maleta — disse Miss Marple.

— Mas por quê? — indagou Griselda.

— Faz-me lembrar aquele homem que andou por aí dizendo que era inspetor do gás — murmurou Miss Marple. — Arrecadou um bocado de coisas.

— Um impostor — disse Raymond West. — Ora vejam, isso é realmente interessante.

— O problema é se tem alguma coisa a ver com o assassinato — comentou Griselda.

— Não necessariamente — observei. — Mas... — Olhei para Miss Marple.

— Sim — ela disse —, é uma coisa estranha. Outra coisa estranha.

— Sim — eu disse, levantando-me. — Acho que o inspetor deve saber disso imediatamente.

 

As ordens do inspetor Slack, quando falei com ele por telefone, foram breves e enfáticas. Ninguém devia saber de nada. A srta. Cram, em especial, não devia ser prevenida. Nesse ínterim, iria efetuar uma busca da maleta, na vizi­nhança do túmulo.

Griselda e eu voltamos para casa muito excitados com esse novo acontecimento. Não podíamos falar muito por causa de Dennis, pois tínhamos prometido ao inspetor Slack não dizer uma palavra a ninguém.

De qualquer jeito, Dennis estava imerso em seus pró­prios problemas. Entrou no escritório e começou a mexer nas coisas e a arrastar os pés, com um ar muito sem graça.

— O que há, Dennis? — perguntei finalmente.

— Tio Len, não quero ir para a marinha.

Fiquei espantado. Até então ele tinha se mostrado deci­dido em sua escolha de carreira.

— Mas você estava tão entusiasmado!

— Sim, mas mudei de idéia.

— O que você quer fazer?

— Quero trabalhar em finanças.

Fiquei ainda mais espantado.

— O que quer dizer com isso: finanças?

— Só isso. Quero trabalhar na cidade.

— Mas, meu filho, tenho certeza de que você não ia gostar dessa vida. Mesmo que eu conseguisse um emprego para você em um banco...

Dennis disse que não era isso o que ele queria. Não queria trabalhar num banco. Perguntei exatamente o que queria, e naturalmente, como eu esperava, ele não sabia.

Por “trabalhar em finanças” ele simplesmente queria dizer que pretendia ficar rico depressa e, com o otimismo da juventude, imaginava que isso aconteceria com toda a certeza se fosse trabalhar “na cidade”. Procurei tirar essa idéia de sua cabeça com muito carinho.

— O que fez você mudar de idéia? — perguntei. — Você estava tão contente com a idéia de ir para a marinha!

— Sei disso, tio Len, mas estive pensando. Vou querer me casar algum dia... e, quero dizer, a gente tem que ser rico para se casar.

— Os fatos não comprovam essa teoria — eu disse.

— Eu sei, mas uma moça de verdade... isto é, uma moça que está habituada com muito...

Ele estava sendo muito vago, mas eu sabia o que ele queria dizer.

— Você sabe — repliquei brandamente —, nem todas as moças são como Lettice Protheroe.

Ficou logo zangado:

— Você é muito injusto com ela; não gosta dela. Gri­selda também. Diz que ela é cansativa.

Do ponto de vista feminino, Griselda tem toda a razão. Lettice é cansativa. Mas podia muito bem compreender que o rapaz se melindrasse com essa expressão.

— Se ao menos as pessoas fizessem algumas conces­sões. Até mesmo os Hartley Napiers andam por aí falando mal dela numa hora dessas! Só porque ela largou o jogo de tênis um pouco mais cedo. E por que haveria de ficar, se estava chateada? Já foi muito decente de sua parte ter ido lá, eu acho.

— Foi um favor — eu disse, mas Dennis não percebeu a ironia. Estava concentrado em sua defesa de Lettice.

— Na verdade, ela é muito generosa. Só para lhe mos­trar, ela me fez ficar. Naturalmente, eu queria acompanhá-la. Mas ela não deixou. Disse que era demais para os Napiers. Então, só para agradá-la, fiquei mais um quarto de hora.

A juventude tem uma definição muito curiosa de gene­rosidade.

— E agora ouvi dizer que Susan Hartley Napier anda dizendo a todo mundo que Lettice não tem modos.

— Se eu fosse você — disse —, não me preocuparia com isso.

— Está tudo bem, mas... — interrompeu-se. — Eu... eu faria tudo por Lettice.

— Poucos de nós podemos fazer alguma coisa por outra pessoa — afirmei. — Por mais que a gente queira, não pode.

— Queria estar morto — disse Dennis.

Pobre coitado. O primeiro amor é uma doença viru­lenta. Evitei dizer essas coisas óbvias e provavelmente irritantes que vêm com tanta facilidade à mente. Em vez disso, dei-lhe boa-noite e fui para a cama.

Estava encarregado do serviço religioso das oito horas da manhã seguinte e, quando voltei, encontrei Griselda sen­tada à mesa do café com uma carta aberta. Era de Anne Protheroe.

“Querida Griselda: Se você e o pastor puderem vir almoçar aqui comigo hoje ficarei muito grata. Aconteceu uma coisa muito estranha, e gostaria que o sr. Clement me aconselhasse.

Por favor, não mencionem isso quando vierem, pois não disse nada a ninguém.

Com muita amizade,

Sinceramente sua,

Anne Protheroe.”

— Vamos, naturalmente — disse Griselda.

Concordei.

— O que será que aconteceu?

Perguntei-me a mesma coisa.

Griselda acrescentou: — Sinto que ainda não chegamos ao fim desse caso.

— Você diz isso porque ninguém foi realmente preso?

— Não — respondeu. — Não foi isso o que quis dizer. É que há ramificações, correntes subterrâneas, que desco­nhecemos totalmente. Há muitas coisas a esclarecer antes de chegarmos à verdade.

— Está querendo dizer, coisas que não importam real­mente, mas que ficam atrapalhando?

— Sim, acho que isso exprime muito bem o que quis dizer.

— Acho que estamos todos exagerando — disse Dennis, servindo-se de geléia. — É uma bênção que o velho Protheroe tenha morrido. Ninguém gostava dele. Oh!  Sei que a polícia tem de se preocupar, é sua função. Mas, por mim, espero que não descubram nunca quem foi. Detestaria ver o Slack andando por aí promovido, inchado de impor­tância e convencido de sua inteligência.

Sou humano o bastante para confessar que concordei quanto à promoção de Slack. Um homem que sistematica­mente irrita as pessoas como ele não pode esperar ser po­pular.

— O dr. Haydock pensa como eu — continuou Dennis. — Nunca entregaria o assassino à justiça. Foi o que ele disse.

Acho que esse é o perigo das idéias de Haydock. Podem ser muito sólidas, não me cabe julgar, mas produzem uma impressão em mentes jovens e descuidadas que, tenho cer­teza, não era sua intenção causar.

Griselda olhou pela janela e comentou que havia repórteres no jardim.

— Devem estar tirando fotografias da janela do escri­tório novamente — disse com um suspiro.

Vínhamos sofrendo muito com isso. Primeiro, a curiosi­dade da aldeia: todo mundo tinha vindo, para ficar olhando, boquiaberto. Depois os repórteres, armados com máquinas fotográficas, e a aldeia de novo, para olhar os repórteres. No fim tivemos que arranjar um guarda de Much Benham para ficar de plantão junto à janela.

— Bem — eu disse —, o enterro é amanhã de manhã. Depois disso, certamente, vão se acalmar.

Alguns repórteres estavam em volta de Old Hall quan­do chegamos lá. Cercaram-nos com várias perguntas, às quais invariavelmente respondi (descobrimos que era a melhor resposta) que “não tínhamos nada a dizer”.

O mordomo nos levou à sala de estar, onde encontra­mos a srta. Cram sozinha, aparentemente muito contente.

— É uma surpresa, não é? — disse, apertando nossas mãos. — Nunca pensaria nisso, mas a sra. Protheroe é muito boa, não é? E, naturalmente, não é bom para uma moça decente ficar sozinha num lugar como o Blue Boar, com os repórteres por lá e tudo o mais. E, naturalmente, estou sendo muito útil; é bom ter uma secretária numa hora dessas, já que a srta. Protheroe não faz nada para ajudar, não é?

Achei graça ao notar que a velha animosidade contra Lettice perdurava, mas que a moça aparentemente tinha se tornado defensora ardente de Anne. Ao mesmo tempo me perguntei se a história de como tinha ido parar ali era exatamente verdadeira. Pelo que disse, a iniciativa tinha partido de Anne, mas duvidei que tivesse sido assim. A primeira referência a não gostar de ficar no Blue Boar sozi­nha devia ter sido feita pela própria moça. Não queria prejulgar, mas não acreditava que a srta. Cram dissesse a verdade exata.

Nesse momento Anne Protheroe entrou,

Estava vestida sobriamente de preto. Na mão tinha um jornal de domingo, que me estendeu com um olhar queixoso.

— Nunca tive nenhuma experiência com esse tipo de coisa. É horroroso, não é? Falei com um repórter no inqué­rito. Só disse que estava muito perturbada e não tinha nada a dizer, e então ele perguntou se eu não estava muito ansiosa para encontrar o assassino do meu marido, e eu disse “Sim”. Depois perguntou se eu suspeitava de alguém e eu disse “Não”. E se eu não achava que o crime demonstrava conhe­cimento do local e eu respondi que certamente parecia que sim. Foi só isso. E agora veja isso!

No centro da página havia uma fotografia, evidente­mente tirada pelo menos há uns dez anos, Deus sabe onde a tinham encontrado. E em letras garrafais:

Viúva declara que não descansará enquanto não encontrar o assassino do marido.

“A sra. Protheroe, viúva da vítima, tem certeza de que o assassino deve ser procurado no local. Tem suspeitas, mas nenhuma certeza. Declarou-se prostrada de dor, mas repetiu que está decidida a encontrar o assassino.”

— Não parece que sou eu, parece? — perguntou Anne.

— Acho que poderia ter sido pior — eu disse, devol­vendo o jornal.

— Atrevidos, não? — observou a srta. Cram.  — Gostaria de ver um desses sujeitos tentar arrancar alguma coisa de mim.

Pelo brilho nos olhos de Griselda, vi que tinha levado essa declaração ao pé da letra.

O almoço foi anunciado e entramos. Lettice só apare­ceu quando já estávamos na metade da refeição, deslizando para um lugar vazio com um sorriso para Griselda e um aceno de cabeça para mim. Olhei-a com atenção, por minhas próprias razões, mas parecia a mesma criatura vaga e aérea de sempre. Muito bonita, tinha que admitir, para fazer justiça. Não estava de luto, mas usava um vestido verde-claro que realçava a delicadeza de sua tez.

Depois do café, Anne disse baixo:

— Quero ter uma conversa com o pastor. Vou levá-lo para a minha saleta.

Ia, finalmente, saber a razão de nosso chamado. Levan­tei-me e segui-a na escada. Parou à porta do quarto. Eu ia dizer alguma coisa, mas ela fez sinal para que me calasse. Ficou escutando, olhando pelo corredor acima.

— Bom. Foram para o jardim. Não, não entre aí. Po­demos ir direto lá para cima.

Para minha surpresa, segui pelo corredor até o fim da ala. Lá havia uma escada estreita para o andar de cima, e ela a subiu, comigo atrás. Chegamos a um corredor estreito, empoeirado. Anne abriu uma porta e me levou a um sótão grande e escuro, que era evidentemente usado como depósi­to. Tinha malas, mobília velha quebrada, uns quadros em­pilhados e toda essa miscelânea que se acumula num depósito.

Minha surpresa foi tão evidente que ela sorriu.

— Primeiro, deixe-me explicar. Estou com o sono muito leve estes dias. Na noite passada, ou melhor, esta manhã, por volta das três horas, tive certeza de que ouvi alguém andando pela casa. Fiquei escutando algum tempo e finalmente levantei-me e saí para ver. No patamar da escada percebi que o barulho vinha de cima e não de baixo. Vim até o pé dessa escada. Ouvi um barulho novamente. Pergun­tei: “Há alguém aí?”, mas ninguém respondeu e não ouvi mais nada. Pensei que talvez tivesse me enganado e voltei para a cama. Mas hoje de manhã vim aqui, simplesmente por curiosidade. E encontrei isto!

Abaixou-se e virou um quadro que estava encostado à parede.

Prendi a respiração, espantado. O quadro era evidente­mente um retrato a óleo, mas o rosto tinha sido cortado e retalhado de maneira selvagem, tornando-se completamente irreconhecível. E, ainda mais, os cortes eram obviamente recentes.

— Que coisa extraordinária! — exclamei.

— Não é? Diga-me, pastor, o senhor tem alguma ex­plicação para isso?

Sacudi a cabeça negativamente.

— Um ato muito selvagem — disse —, que não me agrada. Parece que foi um acesso de raiva.

— Sim, foi o que pensei.

— De quem é o retrato?

— Não tenho a menor idéia. Nunca o vi antes. Essas coisas todas já estavam aqui no sótão quando me casei com Lucius e vim morar aqui. Nunca as examinei ou me preo­cupei com elas.

— Extraordinário — comentei.                   

Abaixei-me e examinei os outros quadros. Eram o que se podia esperar: paisagens muito medíocres, oleografias e reproduções em molduras baratas.

Nada mais que pudesse nos ajudar. Um malão grande, antiquado, do tipo que costumávamos chamar de arca, tinha as iniciais E. P. Levantei a tampa. Estava vazia. Nada mais no sótão era sugestivo.

— Realmente é um acontecimento surpreendente — disse. — É tão... sem sentido!

— Sim — disse Anne. — E isso me mete medo.

Não havia mais nada a ver. Acompanhei-a até sua saleta particular e ela fechou a porta.

— Acha que devo fazer alguma coisa? Notificar a po­lícia?

Hesitei.

— É difícil dizer de pronto se...

— Tem alguma coisa a ver com o assassinato ou não — Anne terminou minha frase. — Eu sei. Por isso é que é tão difícil. Aparentemente, não há nenhuma conexão.

— Não — disse —, mas é mais uma coisa estranha.

Ficamos sentados, calados, de testa franzida.

— Quais são os seus planos, posso saber?  — per­guntei.

Levantou a cabeça.

— Vou ficar aqui pelo menos mais uns seis meses — ela disse, desafiante. — Não por meu gosto. Detesto a idéia de morar aqui. Mas acho que é a única coisa a fazer. Senão vão dizer que fugi, que tinha culpa na consciência.

— Certamente não.

— Oh! Sim, dirão. Especialmente quando... — Parou depois acrescentou: — Quando tiverem se passado os seis meses, vou me casar com Lawrence. — Seus olhos encontra­ram os meus. — Não estamos dispostos a esperar mais.

— Imaginei que isso ia acontecer.

Ficou acabrunhada de repente, inclinou-se e colocou a cabeça entre as mãos.

— O senhor não sabe como lhe agradeço... Tínha­mos nos despedido, ele ia embora. Sinto... sinto-me tão mal com a morte de Lucius. Se tivéssemos planejado ir em­bora juntos e então ele tivesse morrido... seria terrível. Mas o senhor nos fez ver como estávamos errados. Por isso estou profundamente grata.

— Eu também estou muito grato — respondi com gravidade.

— De qualquer maneira — ela se endireitou na cadei­ra —, se não acharem o verdadeiro culpado, vão sempre pensar que foi Lawrence... oh! vão sim. E especialmente quando nos casarmos.

— Minha cara, o depoimento do dr. Haydock mostrou claramente...

— Quem liga a depoimentos? Nem tomaram conheci­mento. E provas médicas não significam nada para os leigos. É mais uma razão para eu ficar aqui. Sr. Clement, vou des­cobrir a verdade.

Seus olhos brilhavam ao dizer isso. Continuou.

— Foi por isso que convidei aquela moça para vir aqui.

— A srta. Cram?

— Sim.

— Foi a senhora que a convidou, então. Quer dizer, a idéia foi sua?

— Inteiramente. Oh! É verdade, ela reclamou um pouco. Foi no inquérito; estava lá quando cheguei. Não, eu a convidei de propósito.

— Mas certamente — exclamei — não acha que aque­la moça tola tenha alguma coisa a ver com o crime...

— É muito fácil parecer tola, sr. Clement. É uma das coisas mais fáceis do mundo.

— Então a senhora acha... ?

— Não, não acho. Honestamente, não. O que penso é que aquela moça deve saber alguma coisa. Queria estu­dá-la de perto.

— E na primeira noite que ela passa aqui o quadro é rasgado — observei pensativo.

— Acha que foi ela? Mas por quê? Parece tão absur­do e impossível.

— A mim me parece completamente impossível e ab­surdo que seu marido fosse assassinado no meu escritório — disse amargamente. — Mas ele foi.

— Eu sei. — Tocou em meu braço. — É horrível para o senhor. Compreendo muito bem, embora não tenha dito nada.

Tirei o brinco de lazurita do bolso e estendi-o para ela.

— Isso é seu, não é?

— Oh! Sim. — Estendeu a mão para pegá-lo, com um sorriso de prazer. — Onde o encontrou?

Mas não coloquei a jóia na sua mão estendida.

— A senhora se importa — disse — se ficar com ele um pouquinho mais?

— Ora, claro que não. — Parecia confusa e um pouco curiosa. Não satisfiz sua curiosidade.

Em vez disso, perguntei como estava situada, financei­ramente.

— É uma pergunta impertinente — esclareci —, mas não é minha intenção ofendê-la.

— Não acho impertinente. O senhor e Griselda são meus melhores amigos. Gosto também daquela velhinha en­graçada, Miss Marple. Lucius estava muito bem de vida, sabe? Deixou tudo dividido mais ou menos igualmente en­tre mim e Lettice. Old Hall fica para mim, mas Lettice teve permissão de escolher o que quisesse para mobiliar uma pequena casa, e receberá uma quantia em separado para comprar essa casa, a fim de igualar as coisas.

— Sabe quais são os planos dela?

Anne fez uma careta cômica.

— A mim ela não conta nada. Imagino que irá embora o mais cedo possível. Ela não gosta de mim, jamais gostou. Deve ser culpa minha, apesar de eu sempre ter procurado ser boa para ela. Mas imagino que uma moça sempre se res­sinta de uma madrasta jovem.

— A senhora gosta dela? — perguntei sem rodeios.

Não respondeu imediatamente, o que me convenceu de que Anne Protheroe era uma mulher muito honesta.

— Gostava de início — disse. — Era uma criança tão linda! Agora acho que não. Não sei por quê. Talvez seja porque ela não gosta de mim. Gosto que gostem de mim.

— Todos nós gostamos — respondi, e Anne Protheroe sorriu.

Tinha mais um dever a cumprir. Era conseguir falar com Lettice Protheroe a sós. Consegui-o com bastante faci­lidade, pois vi que estava sozinha na sala de estar. Griselda e Gladys Cram estavam no jardim.

Entrei e fechei a porta.

— Lettice — disse —, quero falar com você.

Levantou os olhos e me olhou com indiferença.

— Sim?

Tinha ensaiado o que ia dizer. Estendi o brinco de lazurita para ela e perguntei calmamente:

— Por que deixou isso em meu escritório?

Vi que ficou rígida por um momento, quase um segun­do apenas. Controlou-se tão rápido que eu mesmo não poderia jurar que tivesse visto alguma coisa. Disse então, des­cuidadamente:

— Não deixei nada em seu escritório. Não é meu. É de Anne.

— Eu sei — disse.

— Ora, então por que me pergunta? Anne deve ter deixado isso lá.

— A sra. Protheroe só esteve em meu escritório uma vez depois do assassinato, e nessa ocasião trajava roupa preta, e portanto não é provável que usasse um brinco azul.

— Nesse caso — disse Lettice — deve ter sido antes disso. — Acrescentou: — É muito lógico.

— É muito lógico — repeti. — Será que você se lem­bra de quando foi a última vez que sua madrasta usou esses brincos?

— Oh! — Olhou para mim com olhos inocentes, cheios de confiança. — Isso tem importância?

— Talvez tenha — retorqui.

— Vou ver se me lembro. — Ficou sentada ali, de testa franzida. Nunca vi Lettice Protheroe tão encantadora quanto naquele momento. — Ah! Sim — disse de repente. — Ela usou os brincos na... na quinta-feira. Agora me lembro.

— Quinta-feira — eu disse deliberadamente — foi o dia do assassinato. A sra. Protheroe foi até o escritório pelo jardim naquele dia, mas, se você está lembrada, pelo seu testemunho, só foi até a janela, não entrou na sala.

— Onde o senhor encontrou isso?

— Tinha rolado para baixo da secretária.

— Então parece — disse Lettice friamente — que ela não disse a verdade, não é?

— Você quer dizer que ela entrou e ficou em pé perto da secretária?

— Bem, parece que sim, não é?

Seus olhos encontraram os meus serenamente.

— Se o senhor quer saber de uma coisa — disse calmamente —, nunca pensei que ela estivesse dizendo a verdade.

— E eu sei que você não está, Lettice.

— O que o senhor quer dizer?

Ela estava assustada.

— Quero dizer que a última vez que eu vi este brinco foi na sexta-feira de manhã, quando vim aqui com o coronel Melchett. Estava, com seu par, na penteadeira de sua ma­drasta. Cheguei a pegar os dois.

— Oh! — Hesitou, depois se atirou de repente sobre o braço da cadeira e começou a chorar. Seu cabelo louro quase tocava o chão. Era uma atitude estranha, bela e irrefreada.

Deixei que soluçasse alguns minutos em silêncio e depois perguntei com meiguice:

— Lettice, por que fez isso?

— O quê?

Sentou-se, jogando o cabelo para trás num gesto abrup­to. Estava descontrolada, quase apavorada.

— O que quer dizer?

— O que fez você fazer isso? Foi inveja? Raiva de Anne?

— Oh!... Oh! Sim. — Empurrou o cabelo para trás com as mãos e de repente ficou completamente controlada. — Sim, pode dizer que foi inveja. Não gosto de Anne, jamais gostei, desde que entrou aqui bancando a rainha.  Pus o diabo do brinco embaixo da secretária. Queria criar proble­mas para ela. E teria criado, se o senhor não fosse tão bisbilhoteiro, pegando coisas numa penteadeira. Seja como for, não compete a um pastor ficar ajudando a polícia.

Foi uma reação infantil, vingativa. Não prestei atenção. Na verdade, naquele instante ela parecia uma criança muito patética.

Não me pareceu que deveria levar a sério sua tentativa infantil de se vingar de Anne; disse isso a ela e acrescentei que ia devolver o brinco, sem dizer nada sobre as circuns­tâncias em que o tinha encontrado. Pareceu comovida com isso.

— Muito simpático de sua parte — agradeceu.

Parou um minuto e depois disse, com o rosto virado para o lado e evidentemente escolhendo as palavras com cuidado:

— Sabe, sr. Clement, mandaria...  mandaria Dennis para longe daqui breve, se fosse o senhor. Acho que seria melhor.

— Dennis? — Levantei as sobrancelhas com surpresa, mas achando graça também.

— Acho que seria melhor. — Continuou, ainda meio desajeitada: — Sinto muito pelo Dennis. Não pensei que ele... de qualquer maneira, sinto muito.

Não dissemos mais nada.

 

A caminho de casa, propus a Griselda darmos uma volta e passarmos pelo túmulo. Estava ansioso para ver se a polícia estava trabalhando e, caso estivesse, o que tinham descoberto. Mas Griselda tinha coisas a fazer em casa, e fui sozinho.

Encontrei o guarda Hurst, encarregado das operações.

— Nada por enquanto, senhor — declarou. — No en­tanto, este é o único lugar apropriado para um esconderijo. O que quero dizer, senhor, é: para onde mais poderia estar indo a moça tomando o caminho do bosque? È o caminho de Old Hall e é o caminho que dá aqui, e nada mais.

— Suponho — observei — que o inspetor Slack não aceitaria uma solução tão simples como a de perguntar dire­tamente à moça.

— Está procurando não pôr a moça de sobreaviso — disse Hurst. — Qualquer coisa que ela escreva para Stone ou ele para ela pode nos dar algum indício; se ela souber que estamos atrás dela, vai fechar o bico, assim.

Não explicou como era o assim, mas pessoalmente du­vido muito que a srta. Gladys Cram venha a calar a boca algum dia. Só posso imaginá-la com palavras jorrando da boca.

— Quando um homem é um impostor, temos que des­cobrir por que ele é um impostor — sentenciou o guarda Hurst.

— Naturalmente — eu disse.

— E a resposta está aqui neste túmulo; de outro mo­do, por que é que ele estaria sempre remexendo aqui?

— Uma raison d'être para ficar pelos arredores — sugeri, mas esse pouquinho de francês era demais para o guarda. Vingou-se por não ter compreendido, dizendo fria­mente:

— Esse é o ponto de vista do amador.

— De qualquer maneira, não encontrou a maleta — comentei.

— Vamos encontrar, senhor. Não há dúvida.

— Não estou certo disso. Estive pensando. Miss Mar­ple disse que a moça voltou de mãos vazias em muito pouco tempo. Nesse caso, não teria tido tempo de vir até aqui e voltar.

— Não se pode prestar atenção ao que as senhoras de idade dizem. Quando elas vêem qualquer coisa de estranho e estão esperando, ansiosas, então o tempo voa para elas. E de qualquer jeito, mulher nenhuma tem noção de tempo.

Muitas vezes me pergunto por que todo mundo é tão propenso a generalizações. As generalizações são raramente ou nunca verdadeiras e, em geral, completamente erradas. Eu mesmo não tenho muita noção de tempo (daí meu relógio estar sempre adiantado) e Miss Marple, garanto, tem uma noção excelente. Seus relógios estão sempre certíssimos, e ela é estritamente pontual em todas as ocasiões.

Não ia, entretanto, discutir esse ponto com o guarda Hurst. Desejei-lhe uma boa tarde e boa sorte, e continuei meu caminho.

Já estava quase em casa quando me veio uma idéia. Não foi uma seqüência de raciocínio, mas uma intuição re­pentina que me forneceu uma possível solução.

Devem estar lembrados de que na minha primeira busca no caminho, no dia seguinte ao do assassinato, encontrei os arbustos remexidos em um certo lugar. Naquela ocasião, pensei que tivesse sido Lawrence, que estava fazendo a mesma coisa que eu.

Mas me lembrei de que juntos achamos uma outra trilha, levemente indicada, feita pelo inspetor. Refletindo no assunto, lembrei-me claramente de que a primeira trilha, a de Lawrence, era muito mais evidente que a segunda, como se mais de uma pessoa tivesse passado por ali. E pen­sei também que talvez fosse por isso que havia chamado a atenção de Lawrence. E se tivesse sido feita originariamente pelo dr. Stone ou pela srta. Cram?

Lembrei-me, ou imaginei que me lembrava, de várias folhas secas, penduradas em galhos quebrados. Se era assim, a trilha não podia ter sido feita na tarde em que demos a busca.

Estava chegando ao local em questão. Reconheci o pon­to com facilidade e mais uma vez forcei a passagem pelos arbustos. Desta vez notei que havia galhos quebrados recentemente. Alguém tinha passado por ali depois de mim e de Lawrence.

Cheguei logo ao lugar onde encontrara Lawrence. A trilha, entretanto, seguia em frente, e continuei a segui-la. De repente desembocou numa clareira pequena, que mostra­va vestígios de presença humana recente. Disse uma clareira porque a vegetação rasteira era ali menos densa, mas os galhos das árvores se entrelaçavam acima, e a área não tinha mais que um metro e pouco de diâmetro.

Do outro lado a vegetação era novamente muito densa, e era evidente que ninguém tinha forçado a passagem por lá recentemente. Entretanto, parecia remexida em um lugar.

Fui até lá e ajoelhei-me, abrindo os arbustos com as mãos. Fui recompensado pelo brilho de uma superfície mar­rom e lustrosa. Com grande excitação, meti o braço no mato e com bastante dificuldade extraí uma pequena maleta marrom.

Soltei uma exclamação de triunfo. Tinha sido bem su­cedido. Apesar do desprezo do guarda Hurst, estava certo no meu raciocínio. Ali estava, sem dúvida, a maleta carre­gada pela srta. Cram. Experimentei a fechadura, mas estava trancada.

Pus-me de pé e, olhando o chão, vi um pequeno vidro meio marrom. Peguei-o, quase que automaticamente, e en­fiei-o no bolso.

E, pegando firme na alça da minha descoberta, voltei para o caminho.

Ao subir os degraus que transpunham a cerca do ca­minho, uma voz agitada disse bem perto:

— Ah! sr. Clement! O senhor achou! Foi muito inte­ligente!

Registrando mentalmente o fato de que, na arte de ver sem ser vista, Miss Marple não tinha rival, equilibrei meu achado sobre a cerca que havia entre nós.

— É essa mesmo — disse Miss Marple. — Eu a reco­nheceria em qualquer lugar.

Isso, pensei, era um pouco de exagero. Há milhares de maletas lustrosas, baratas, exatamente iguais. Ninguém po­deria reconhecer uma delas de tão longe, à luz do luar, mas compreendi que esse negócio todo da maleta era um triunfo particular de Miss Marple e, como tal, lhe dava o direito de exagerar um pouco.

— Suponho que esteja trancada, não, sr. Clement?

— Sim. Vou levá-la para a delegacia.

— Não acha melhor telefonar?

Claro que era melhor telefonar. Sair andando pela al­deia com a maleta na mão seria provavelmente uma maneira de atrair publicidade altamente indesejável.

Portanto, abri o portão do jardim de Miss Marple, entrei pela porta de vidro e, no santuário da sala de estar, com a porta fechada, telefonei para dar a notícia.

O resultado foi que o inspetor Slack anunciou que viria em pessoa dentro de dois minutos.

Quando chegou, estava extremamente rabugento.

— Então encontramos a maleta, não é? — disse. — Sabe, senhor, não deve esconder as coisas de nós. Se tem algum motivo para pensar que sabe onde o artigo em ques­tão está escondido, o senhor deve se comunicar com as auto­ridades devidas.

— Foi um acidente — eu disse. — A idéia me surgiu de repente.

— Difícil de acreditar. Quase um quilômetro de bos­que e o senhor vai direto ao lugar certo e encontra a maleta.

Teria contado ao inspetor Slack todos os lances do meu raciocínio que me levaram a esse lugar específico, mas ele tinha conseguido, como de costume, me irritar. Calei a boca.

— Bem — disse o inspetor Slack, olhando a maleta com antipatia e fingida indiferença —, vamos ver o que tem aí dentro..

Tinha trazido uma coleção de chaves e um arame. A fechadura era muito ordinária. Em dois segundos a maleta estava aberta.

Não sei o que esperávamos encontrar... alguma coisa muito sensacional, imagino. Mas a primeira coisa que vimos foi uma echarpe quadriculada, sebenta. O inspetor suspen­deu-a no ar. Depois veio um sobretudo azul-escuro desbo­tado, muito surrado. Em seguida, um boné quadriculado.

— Um montão de trapos — disse o inspetor.

Um par de botas com os saltos muito gastos e muito usadas veio a seguir. No fundo da maleta havia um pacote enrolado em jornal.

— Deve ser uma camisa elegante — o inspetor disse amargamente, abrindo o embrulho.

Um segundo depois, prendeu a respiração, espantado.

Dentro do embrulho havia uns pequenos objetos de prata, delicados, e uma peça redonda do mesmo metal.

Miss Marple soltou uma exclamação aguda.

— Os saleiros — disse —, os saleiros do coronel Protheroe, e a taça de Carlos II. Quem iria imaginar isso!

O inspetor ficou muito vermelho.

— Então era esse o jogo — resmungou. — Roubo. Mas não compreendo. Ninguém mencionou que essas coisas houvessem sumido.

— Talvez não tenham dado pela falta delas — sugeri. — Presumo que esses objetos valiosos não estivessem em uso. O coronel Protheroe provavelmente os guardava num cofre.

— Tenho que investigar isso — disse o inspetor. — Vou a Old Hall agora mesmo. Então é por isso que o dr. Stone anda sumido. Com o homicídio e uma coisa e outra, ficou com medo de que descobríssemos suas atividades. Era possível que se desse uma busca em suas coisas. Fez a moça esconder tudo no bosque, com uma muda de roupa apro­priada. Tencionava voltar por um caminho discreto e fugir com tudo numa noite dessas, enquanto ela ficava aqui para desviar as suspeitas. Bem, há uma coisa de bom. Isso o elimina quanto ao assassinato. Não teve nada a ver com aquilo. Um jogo bem diferente.

Tornou a colocar tudo na maleta e saiu, recusando o oferecimento de Miss Marple para tomar um cálice de xerez.

— Bem, um mistério a menos — eu disse com um suspiro. — O que Slack diz é bem verdade; não há motivos para suspeitar dele como assassino. Tudo está explicado sa­tisfatoriamente.

— Realmente parece que sim — concordou Miss Mar­ple. — Embora nunca se possa ter certeza absoluta, não é mesmo?

— Há falta completa de motivo — apontei. — Conse­guiu o que queria e ia embora.

— S...  sim.

Era evidente que não estava satisfeita, e olhei-a com alguma curiosidade. Apressou-se em responder ao meu olhar, procurando justificar-se com entusiasmo.

— Não há dúvida de que estou errada. Sou tão estú­pida para essas coisas! Mas estava pensando... esses obje­tos de prata são muito valiosos, não são?

— Creio que uma taça dessas foi vendida há alguns dias por mais de mil libras.

— Quer dizer, não é o valor do metal.

— Não, é o que se pode chamar de valor atribuído pelos conhecedores.

— Era isso o que eu queria dizer. Levaria algum tem­po para acertar a venda dessas coisas e, mesmo que estivesse tudo combinado, ela só poderia ser feita em segredo. Quer dizer, se o roubo fosse descoberto e fizessem um grande alarde, bem, as coisas não seriam vendidas.

— Não estou compreendendo bem — eu disse.

— Sei que não estou explicando direito. — Ficou mais afobada, tentando se fazer entender. — Acho que esses ob­jetos não podiam desaparecer, por assim dizer. A única coisa que poderia dar certo seria substituir os objetos verdadeiros por cópias. Aí talvez o roubo não fosse descoberto por algum tempo.

— É uma idéia muito engenhosa — eu disse.

— Seria a única maneira de tudo dar certo, não é? E se foi assim, naturalmente, como o senhor disse, uma vez tendo sido feita a substituição, não haveria nenhuma razão para matar o coronel Protheroe, pelo contrário.

— Exatamente. Foi o que eu disse.

— Sim, mas estava pensando... não sei; é claro... e o coronel Protheroe sempre falava muito em fazer as coisas antes de realmente fazê-las e, naturalmente, algumas vezes não as fazia nunca; mas ele disse...

— Sim?

— Que ia mandar avaliar tudo o que tinha, por um homem de Londres. Para homologar... não, isso é o testa­mento, quando a gente morre. Para efeitos de seguro. Al­guém disse a ele que era o que devia fazer. Falou muito nisso e na importância de tomar essas providências. Natu­ralmente, não sei se chegou a tomá-las, mas, se as tomou. . .

— Entendo — disse devagar.

— É claro que o perito iria saber assim que visse a prataria, e então o coronel Protheroe se lembraria de que tinha mostrado as pratas ao dr. Stone... será que foi nessa hora... prestidigitação, como chamam? Muita esperteza... e então... acabou-se o que era doce, para usar uma expres­são antiga.

— Compreendo — disse. — E acho que devemos nos certificar.

Fui mais uma vez para o telefone. Em poucos minutos consegui ligação para Old Hall e estava falando com Anne Protheroe.

— Não, não é nada muito importante. O inspetor já chegou aí? Oh! Bem, está a caminho. Sra. Protheroe, pode me dizer se tudo o que há em Old Hall já foi avaliado alguma vez? O que foi que disse?

Sua resposta foi clara e imediata. Agradeci, desliguei o telefone e virei-me para Miss Marple.

— Muito esclarecedor. O coronel Protheroe tinha com­binado com um homem para que viesse de Londres na segunda-feira, amanhã, para fazer uma avaliação geral. De­vido à morte do coronel, isso foi adiado.

— Então havia um motivo — disse Miss Marple man­samente.

— Um motivo, sim. Mas é só. A senhora se esqueceu? Na hora do tiro, o dr. Stone tinha se juntado aos outros, ou estava subindo os degraus da cerca para ir ao seu en­contro.

— Sim — aquiesceu Miss Marple, pensativa. — Isso o elimina.

 

Voltei para casa e encontrei Hawes esperando por mim no escritório. Andava de um lado para outro, muito ner­voso, e quando entrei deu um salto como se tivesse recebido um tiro.

— O senhor tem que me desculpar — disse, enxugando a testa. — Meus nervos estão em pedaços ultimamente.

— Meu caro — afirmei —, você precisa viajar e des­cansar. Se continuar assim, vai adoecer de verdade, e isso não pode ser.

— Não posso desertar do meu posto. Não, nunca farei isso.

— Não é caso de deserção. Você está doente. Tenho certeza de que Haydock concordaria comigo.

— Haydock...   Haydock. Que espécie de médico é ele? Um médico ignorante do interior.

— Acho que está sendo injusto com ele. É considerado muito competente dentro da profissão.

— Ah! Talvez. Sim, talvez seja. Mas não gosto dele. Não vim aqui para falar nisso. Vim lhe pedir para ter a bon­dade de fazer o sermão hoje à noite, em meu lugar. Eu.. . eu realmente não me sinto capaz.

— Ora, claro que sim. Faço o serviço religioso também.

— Não, não. Eu me encarrego do serviço. Posso fazê-lo perfeitamente. É só a idéia de subir ao púlpito, com aque­les olhos todos fixos em mim...

Fechou os olhos e engoliu em seco.

“É evidente que há alguma coisa muito errada com Hawes”, pensei. Foi como se lesse meus pensamentos, por­que abriu os olhos e disse depressa:

— Não há nada realmente errado comigo. São essas dores de cabeça, essas tremendas dores de cabeça. Será que pode me arranjar um copo de água?

— Claro — eu disse.

Fui buscá-lo eu mesmo na cozinha. Tocar campainhas nesta casa é um esforço que não dá o menor resultado.

Trouxe a água para ele, e agradeceu-me. Tirou do bolso uma caixinha de papelão, abriu-a e extraiu uma cápsula, que engoliu com a água.

— Remédio para dor de cabeça — explicou.

Pensei de repente que Hawes por acaso poderia ter se tornado viciado em drogas. Isso explicaria muitas das suas peculiaridades.

— Espero que não tome muitas dessas — observei.

— Não... oh, não. O dr. Haydock me avisou. Mas são realmente excelentes. Dão um alívio imediato.

Realmente, já parecia mais calmo e mais controlado.

Levantou-se.

— Então o senhor faz o sermão hoje à noite? É muita bondade sua, senhor.

— Não há de quê. E insisto em fazer o serviço religio­so também. Vá para casa descansar. Não, não quero dis­cussões. Não diga mais nada.

Agradeceu de novo. Depois perguntou, desviando os olhos de mim para a janela:

— Foi... foi a Old Hall hoje, não foi, senhor?

— Sim.

— Desculpe-me... mas foi chamado?

Olhei-o com surpresa, e ele ficou vermelho.

— Sinto muito, senhor. É... é que pensei que talvez tivesse acontecido alguma coisa, e que por isso a sra. Prothe­roe o houvesse chamado.

Não tinha a menor intenção de satisfazer a curiosidade de Hawes.

— Queria conversar comigo sobre as providências para o enterro e mais uma ou duas coisas — disse.

— Oh! Foi só isso. Entendo.

Fiquei calado. Mudou de um pé para o outro e final­mente declarou:

— O sr. Redding veio me ver ontem à noite. Não... não sei por que razão.

— Ele não disse?

— Ele... ele só disse que se lembrou de me fazer uma visita. Disse que ficava um pouco só à noite. Nunca fez isso antes.

— Bem, dizem que é uma companhia agradável — comentei, sorrindo.

— E para que foi me procurar? Não gosto disso. — Sua voz tornou-se alta e aguda. — Disse que ia me visitar de novo. O que quer dizer isso? Que idéia o senhor acha que está passando pela cabeça dele?

— Por que você acha que ele tem algum motivo espe­cial? — perguntei.

— Não estou gostando — repetiu Hawes obstinada­mente. — Nunca fui contra ele de modo nenhum. Nunca sugeri que ele fosse culpado, nem quando se acusou; cheguei mesmo a dizer que achava totalmente incompreensível. Se suspeitei de alguém, foi de Archer, nunca dele. Archer é completamente diferente, um bandido sem Deus e sem reli­gião. Um patife bêbado.

— Não acha que está sendo um pouco severo demais? — perguntei. — Afinal de contas, não sabemos quase nada sobre o homem.

— Um ladrão de caça, preso várias vezes, capaz de tudo.

— Acha realmente que ele matou o coronel Protheroe? — indaguei com curiosidade.

Hawes tem uma aversão inveterada a responder sim ou não. Eu notara isso várias vezes nos últimos tempos.

— O senhor não acha que é a única solução possível?

— Pelo que sabemos — retruquei —, não há nenhuma prova contra ele.

— As ameaças — disse Hawes, impaciente. — O se­nhor esqueceu as ameaças dele.

— Estou cansado de ouvir falar nas ameaças de Archer. Pelo que pude saber, não há provas definitivas de que tenha feito qualquer ameaça.

— Estava resolvido a se vingar do coronel Protheroe. Encheu-se de bebida e depois o matou.

— Isso é pura suposição.

— Mas concorda que é perfeitamente provável?

— Não, não concordo.

— Possível, então?

— Possível, sim.

Hawes me olhou de lado.

— Por que não acha que é provável?

— Porque — respondi — um homem como Archer nunca pensaria em matar alguém com uma pistola. É a arma errada.

Hawes pareceu surpreso com meu argumento. Evidente­mente não era a objeção que ele esperava.

— Acha realmente que essa objeção é admissível? — perguntou com ar de dúvida.

— A meu ver, é algo que torna impossível Archer ter cometido o crime — eu disse.

Face à minha afirmação enfática, Hawes não disse mais nada. Agradeceu de novo e saiu.

Fui até a porta da frente com ele e vi quatro envelopes na mesa do hall. Tinham certas características em comum; a caligrafia era, sem dúvida, feminina, e todos estavam sobrescritos: “Em mãos. Urgente”. A única diferença que pude notar é que um estava bem mais sujo que os outros.

Sua semelhança me causou a sensação estranha de estar vendo, não em duplicata, mas em quadruplicata.

Mary saiu da cozinha e me encontrou olhando as cartas.

— Vieram por portador depois do almoço — infor­mou. — Todas menos uma. Essa estava na caixa do correio.

Acenei com a cabeça, peguei as cartas e levei-as para o escritório.

A primeira dizia:

“Caro sr. Clement: Tomei conhecimento de algo que acho que devo lhe contar. Diz respeito à morte do pobre coronel Protheroe. Apreciaria muito que me aconselhasse sobre isso, se devo ou não ir à polícia. Desde a morte do meu caro esposo, tenho horror a qualquer espécie de publi­cidade. Talvez o senhor possa passar aqui e falar comigo por uns minutos, hoje à tarde.

Atenciosamente,

Martha Price Ridley”.

Abri a segunda:

“Caro sr. Clement: Estou muito preocupada, bastante excitada mentalmente, sem saber o que devo fazer. Soube de uma coisa que acho que pode ser importante. Tenho ver­dadeiro horror a me envolver com a polícia, de qualquer maneira. Estou tão perturbada e aflita! Seria pedir demais, caro pastor, que viesse aqui uns minutinhos para resolver minhas dúvidas e indecisões com aquele seu jeito maravi­lhoso de sempre?

Desculpe incomodá-lo.

Sinceramente,

Caroline Wetherby”,

Senti que a terceira eu podia quase dizer de cor.

“Caro sr. Clement: Fiquei sabendo de uma coisa da máxima importância. Acho que o senhor deve ser o pri­meiro a saber. Pode vir me ver a qualquer hora, hoje à tar­de? Estou esperando-o.”

Esta epístola militante estava assinada: “Amanda Hart­nell”.

Abri a quarta carta. Tenho tido a sorte de receber mui­to poucas cartas anônimas. Considero uma carta anônima a arma mais vil e cruel que existe. Aquela não era uma exce­ção. Parecia ter sido escrita por uma pessoa quase analfabeta, mas várias coisas me fizeram acreditar que não era esse o caso.

“Caro pastor: Acho que o senhor deve ficar sabendo o que está acontecendo. Sua esposa foi vista saindo do cottage do sr. Redding às escondidas. Sabe o que quer dizer. Os dois estão tendo um caso. Achei que devia saber.

Um amigo.”

Soltei uma exclamação de nojo, amassei o papel e jo­guei-o na lareira no momento exato em que Griselda entrou na sala.

— O que é isso que você está jogando fora com tanto desprezo? — perguntou.

— Lixo — eu disse.

Tirei um fósforo do bolso, risquei e me abaixei. Mas Griselda foi rápida demais para mim. Abaixou-se e pegou a bola de papel amassado e alisou-a antes que eu pudesse im­pedi-la.

Leu e soltou uma exclamação de nojo e atirou-a de volta para mim, virando as costas. Queimei-a e fiquei olhan­do-a virar cinzas.

Griselda tinha se afastado. Estava em pé, junto da ja­nela, olhando o jardim.

— Len — disse, sem virar-se.

— Sim, querida.

— Gostaria de lhe contar uma coisa. Sim, deixe eu falar. Eu quero, por favor. Quando... quando Lawrence Redding veio para cá, deixei você pensar que só o tinha conhecido ligeiramente antes. Isso não é verdade. Eu... o conheci muito bem. Na verdade, antes de conhecer você, estive bem apaixonada por ele. Acho que a maioria das pes­soas se apaixonam por Lawrence. Eu fiquei... bem, louquinha por ele durante uns tempos. Não vou dizer que es­crevi cartas comprometedoras para ele, nem fiz nenhuma dessas idiotices que aparecem nos romances. Mas gostei mui­to dele.

— Por que não me contou? — perguntei.

— Oh! Por quê! Não sei por quê, a não ser que... bem, você é muito tolo às vezes. Só porque é muito mais velho que eu, você pensa que... bem, que eu talvez vá gostar de outra pessoa. Pensei que você talvez ficasse abor­recido de Lawrence e eu termos sido amigos.

— Você é muito hábil em esconder as coisas — obser­vei, lembrando o que tinha me dito naquela mesma sala, menos de uma semana atrás, e a maneira natural e ingênua com que tinha falado.

— Sim, sempre soube esconder as coisas. De certo modo, gosto de fazer isso.

Falou com um prazer infantil.

— Mas o que falei é verdade. Não sabia sobre Anne e não compreendi por que Lawrence estava tão diferente, nem... bem, nem prestava atenção a mim. Não estou acos­tumada com isso.

Houve uma pausa.

— Você compreende, não é, Len? — Griselda per­guntou ansiosa.

— Sim — respondi —, compreendo.

Mas será que compreendia?

 

Achei difícil livrar-me da impressão deixada pela carta anônima. O piche suja.

Seja como for, peguei as outras três cartas, olhei o re­lógio e me preparei para sair.

Estava curioso para saber o que havia chegado aos ou­vidos das três senhoras ao mesmo tempo. Pensei tratar-se da mesma notícia. Nisso, verifiquei depois, minha psicologia tinha falhado.

Não vou fingir que minhas visitas me obrigaram a passar pela delegacia. Meus pés se dirigiram para lá por sua própria vontade. Estava ansioso por saber se o inspetor Slack tinha voltado de Old Hall.

Descobri que tinha, e mais ainda, que a srta. Cram voltara com ele. A bela Gladys estava sentada na delegacia com completo controle da situação. Negou absolutamente que tivesse levado a maleta para o bosque.

— Só porque uma velha mexeriqueira, que não tem mais nada a fazer, fica olhando pela janela a noite inteira, vocês vão e implicam comigo. Ela já se enganou uma vez, quando disse que me viu no fim do caminho, na tarde do assassinato, e, se estava enganada daquela vez, em pleno dia, como pôde me reconhecer à luz da lua? É uma maldade o que essas velhotas fazem por aí. Dizem qualquer coisa, sem mais nem menos. E eu dormindo na minha casa, inocente como um bebê. Vocês deviam ter vergonha, todos vocês.

— E se a senhoria do Blue Boar identificar a maleta como sua, srta. Cram?

— Se ela disser isso, estará enganada. Quase todo mun­do tem uma maleta igual a essa. E pobre do dr. Stone, acusado de ser um ladrão comum! E com aqueles títulos to­dos depois do nome!

— A senhora se recusa a nos dar uma explicação, en­tão, srta. Cram?

— Não estou recusando coisa nenhuma. Vocês se enganaram, isso sim. O senhor e a intrometida Miss Marple. Não vou dizer nenhuma palavra mais sem que meu advogado esteja presente. Vou-me embora agora mesmo, a não ser que queiram me prender.

Como resposta, o inspetor levantou-se e abriu a porta para ela; jogando a cabeça para trás, a srta. Cram saiu.

— É essa a linha que decidiu adotar — disse Slack, voltando ao seu lugar. — Nega tudo absolutamente. E, na­turalmente, aquela senhora pode ter se enganado. Nenhum júri acreditaria que é possível reconhecer alguém àquela dis­tância, numa noite de luar. E, naturalmente, como disse, a velhota pode ter se enganado.

— Pode — respondi —, mas duvido muito. Miss Marple geralmente tem razão. E é isso o que a faz muito pouco popular.

O inspetor sorriu.

— É o que Hurst diz. Deus, essas aldeias!

— E o que houve com a prata, inspetor?

— Parece que está tudo em ordem. Claro que isso quer dizer que um dos serviços é uma imitação. Tem um homem excelente em Much Benham, uma autoridade em pratas an­tigas. Telefonei para ele e mandei um carro buscá-lo. Breve saberemos qual é o verdadeiro e qual o falso. Ou o roubo é um fato consumado, ou estava só planejado. Não faz muita diferença, seja como for, isto é, no que nos diz respeito. Roubo é coisa miúda, comparado com homicídio. Aqueles dois não estão envolvidos no assassinato. Talvez a gente consiga alguma coisa dele através da moça; por isso é que deixei que ela fosse embora sem mais discussão.

— Eu estranhei — disse.

— Lastimo pelo sr. Redding. Não é comum encontrar um homem que sai do seu caminho para tornar as coisas fáceis para nós.

— Não deve ser — observei sorrindo de leve.

— As mulheres causam muitos problemas — morali­zou o inspetor.

Suspirou e depois disse, para minha surpresa: — É verdade que temos Archer.

— Oh! — exclamei. — Pensou nele?

— Ora, naturalmente, logo de início. Não era preciso nenhuma carta anônima para me colocar na sua pista.

— Cartas anônimas — disse rápido. — Recebeu al­guma?

— Isso não é novidade, senhor. Recebemos uma dúzia por dia, pelo menos. Ah! Sim, fomos avisados sobre Archer. Como se a polícia não pudesse tomar conta disso! Archer foi suspeito desde o início. O problema é que ele tem um álibi. Não que seja muito importante, mas é incômodo.

— O que quer dizer com “não que seja importante”?

— Bem, parece que passou toda a tarde com dois amigos. Não, como disse, que isso seja muito importante. Gente como Archer e seus amigos juram qualquer coisa. Não se pode acreditar em uma palavra do que dizem. Sabe­mos disso. Mas o público não sabe, e o júri é tirado do povo, o que é uma pena. Não sabem nada e acreditam em tudo o que é dito pelas testemunhas, sejam elas quem forem. E naturalmente o próprio Archer vai jurar até ficar roxo que não fez nada.

— Não é tão prestativo quanto o sr. Redding — eu disse, sorrindo.

— Ele não — volveu o inspetor, fazendo esse comen­tário como uma declaração de fato.

— É natural, suponho, se agarrar à vida — comentei pensativo.

— O senhor ficaria espantado se soubesse quantos assassinos escaparam por causa da bondade do júri — disse o inspetor, sombrio.

— Mas o senhor acha realmente que foi Archer? — perguntei.

Achei curioso desde o princípio o inspetor Slack não ter uma opinião pessoal sobre o assassinato. O único ponto que parecia interessá-lo era a facilidade ou dificuldade de obter uma sentença condenatória.

— Gostaria de ter mais certeza — confessou. — Uma impressão digital, ou uma pegada, ou que ele tivesse sido visto nos arredores, perto da hora do crime. Não posso me arriscar a prendê-lo sem alguma coisa assim. Foi visto perto da casa do sr. Redding uma ou duas vezes, mas diria que tinha ido falar com a mãe. Ela é uma mulher decente. Não; decididamente, continuo pensando naquela outra senhora. Se ao menos eu pudesse encontrar uma prova definitiva de chantagem... mas não consigo arranjar prova definitiva de coisa alguma nesse crime! Apenas teorias, teorias, teorias. É uma lástima que não haja nem uma solteirona na sua estrada, sr. Clement. Aposto que, se houvesse uma, ela teria visto alguma coisa.

Isso me lembrou as minhas visitas, e despedi-me. Foi a única vez que o vi de bom humor.

Minha primeira visita foi à srta. Hartnell. Devia estar espreitando pela janela, pois, antes que tivesse tempo de tocar a campainha, abriu a porta da frente e, apertando mi­nha mão com firmeza, fez-me entrar.

— Foi muita bondade sua ter vindo. Venha aqui. É mais privativo.

Entramos numa sala microscópica mais ou menos do tamanho de um galinheiro. A srta. Hartnell fechou a porta e, com ar de grande segredo, apontou para uma cadeira (só havia três). Percebi que estava se divertindo.

— Não sou de ficar cheia de rodeios — disse com sua voz forte, ligeiramente mais baixa que o normal naquela situação. — Sabe como as coisas se espalham numa aldeia como esta.

— Infelizmente — disse —, eu sei.

— Concordo com o senhor. Ninguém detesta mexericos mais do que eu. Mas acontece. Pensei que era meu dever contar ao inspetor de polícia que fui visitar a srta. Lestrange na tarde do assassinato e que ela não estava em casa. Não espero que me agradeçam por cumprir o meu dever: eu vou e cumpro. Ingratidão a gente encontra do princípio ao fim da vida. Ora, ainda ontem aquela sra. Baker...

— Sim, sim — disse, procurando evitar o discurso habitual. — É uma pena, é uma pena. Mas a senhora estava dizendo...

— As classes baixas não reconhecem seus melhores amigos — declarou a srta. Hartnell. — Sempre digo alguma coisa apropriada quando faço visitas. Ninguém jamais me agradece.

— A senhora estava contando ao inspetor a sua visita à sra. Lestrange — lembrei.

— Exatamente. E, por falar nisso, ele não me agrade­ceu. Disse que quando quisesse informações, ele mesmo as pediria. Não foram essas palavras exatamente, mas a idéia foi essa. Há um tipo muito diferente de homens na força policial hoje em dia.

— É muito provável — eu disse. — Mas a senhora ia dizer alguma coisa?

— Resolvi que desta vez não ia nem chegar perto de nenhum inspetor miserável. Afinal de contas, um pastor é um cavalheiro, ou pelo menos alguns o são — ela acres­centou.

Entendi que estava incluído nesse último grupo.

— Se posso lhe ser útil de alguma maneira. ..   — comecei.

— É uma questão de dever — disse a srta. Hartnell, fechando a boca ruidosamente. — Não quero dizer essas coisas. Ninguém menos do que eu. Mas dever é dever.

Esperei.

— Chegou ao meu conhecimento — continuou a srta. Hartnell, enrubescendo — que a sra. Lestrange anda dizen­do que estava em casa todo o tempo, que não atendeu à porta porque... bem, porque não quis. Tanta arrogância! Só fui lá porque era meu dever, e agora me trata assim!

— Ela esteve doente — aleguei brandamente.

— Doente?  Tolice. O senhor é muito ingênuo, sr. Clement. Não há nada de errado com aquela mulher. Doente demais para comparecer ao inquérito, hein? Atestado médi­co do dr. Haydock! Ela faz com ele o que quer, todo mundo sabe disso. Bem, onde estava?

Não sabia ao certo. É muito difícil, com a srta. Hartnell, saber onde acaba a narrativa e começam as acusações.

— Oh! A visita que fiz aquela tarde. Bem, é tolice dizer que estava em casa. Não estava. Eu sei.

— Como pode saber isso?

A srta. Hartnell ficou ainda mais vermelha. Se não fosse uma pessoa tão agressiva, diria que estava encabulada.

— Bati na porta e toquei a campainha — explicou. — Duas vezes. Talvez mais. E me ocorreu de repente que tal­vez a campainha não estivesse funcionando.

Não conseguiu, tive a satisfação de notar, olhar para mim quando disse isso. O mesmo empreiteiro construiu to­das as casas das redondezas, e as campainhas que ele insta­lou são ouvidas claramente por qualquer pessoa que esteja fora, na porta de entrada. Tanto a srta. Hartnell quanto eu sabíamos disso muito bem, mas é claro que tinha que dis­farçar para manter aparências.

— Sim? — murmurei.

— Não queria enfiar meu cartão pela abertura das car­tas. Não seria delicado, e eu posso ser muita coisa, mas nunca fui grosseira.

Fez essa espantosa declaração sem pestanejar.

— Então resolvi dar a volta à casa e.. . e bater numa janela — continuou sem corar. — Fiz a volta inteira e olhei em todas as janelas, mas não havia ninguém em casa.

Compreendi perfeitamente. Tirando partido do fato de que a casa estava vazia, a srta. Hartnell dera rédeas à sua curiosidade e rodeara a casa, examinando o jardim e olhando por todas as janelas para ver o máximo possível do interior. Decidiu contar sua história a mim porque achou que eu seria um ouvinte mais simpático à sua causa e mais leniente que o inspetor. Um pastor não julga seus paroquianos.

Não fiz nenhum comentário; apenas uma pergunta:

— A que horas foi isso, srta. Hartnell?

— Pelo que me lembro — disse a srta. Hartnell —, deve ter sido por volta das seis horas. Depois vim direto para casa, e cheguei aqui mais ou menos às seis e dez, e a sra. Protheroe chegou por volta de seis e meia, deixando o dr. Stone e o sr. Redding lá fora, e falamos sobre bulbos. E enquanto isso, o pobre coronel estava lá morto. Este mundo é muito triste.

— Às vezes é muito desagradável — disse.

Levantei-me.

— E é só isso o que tem a me dizer?

— Pensei que podia ser importante.

— Pode ser que seja — concordei.

E, recusando-me a dizer mais, para grande desaponta­mento da srta. Hartnell, despedi-me.

A srta. Wetherby, que visitei em seguida, me recebeu toda agitada.

— Caro pastor, quanta bondade a sua. Já tomou chá? Não quer mesmo? Uma almofada para suas costas? É tanta bondade sua, vir tão depressa! Sempre disposto a se sacrifi­car pelos outros.

E continuou nesse tom até chegarmos ao assunto, e, mesmo assim, com uma porção de rodeios.

— É preciso que o senhor compreenda que ouvi isso de fonte segura.

Em St. Mary Mead a fonte segura é sempre a empre­gada de alguém.

— Não pode me dizer quem foi?

— Prometi, caro sr. Clement. E sempre pensei que uma promessa é coisa sagrada.

Estava muito solene.

— Vamos dizer que foi um passarinho que me contou. Isso é seguro, não é?

Tive vontade de dizer: “É muita tolice”. Lamento não tê-lo feito. Gostaria de observar o efeito que isso causaria na srta. Wetherby.

— Bem, esse passarinho me contou que viu uma certa senhora, cujo nome não posso dizer.

— Outro tipo de passarinho? — perguntei.

Para minha surpresa, a srta. Wetherby deu gargalhadas e bateu de leve no meu braço, com ar de brincadeira, di­zendo:

— Oh, pastor! Não seja maroto.

Quando parou de rir, continuou:

— Uma certa senhora... e onde acha que essa certa senhora estava indo? Tomou o caminho da sua residência, mas, antes disso, olhou para a esquerda e para a direita de uma maneira muito esquisita, para ver se via alguém que ela conhecia, imagino.

— E o passarinho... — perguntei.

— Estava fazendo uma visita à peixaria, à sala em cima da loja.

Agora sei aonde as empregadas vão em seus dias de folga. Sei que há um lugar aonde nunca vão, se puderem evitar, isto é, ao ar livre.

— E isso foi — continuou a srta. Wetherby, incli­nando-se para a frente, misteriosamente — quase às seis horas.

— De que dia?

A srta. Wetherby deu um gritinho.

— O dia do assassinato, naturalmente, não falei?

— Deduzi isso — respondi. — E o nome da senhora?

— Começa com L — disse a srta. Wetherby, abanando a cabeça enfaticamente várias vezes.

Sentindo que era a conclusão das informações que ti­nha a fornecer, levantei-me.

— O senhor não vai deixar que a polícia me interro­gue, vai? — indagou a srta. Wetherby pateticamente, segu­rando minha mão. — Fujo da publicidade. E comparecer a tribunal, ficar lá de pé!

— Em casos especiais — disse —, deixam as testemu­nhas sentarem.

E escapei.

Ainda faltava ver a sra. Price Ridley. Essa senhora me instalou no meu lugar imediatamente.

— Não vou me envolver com tribunal e polícia — disse sombria, apertando minha mão com frieza. — Entenda isso. Mas, por outro lado, tomei conhecimento de uma situa­ção que precisa ser explicada, e acho que as autoridades de­vem ser notificadas.

— Diz respeito à sra. Lestrange? — perguntei.

— Por que diria? — respondeu a sra. Price Ridley friamente.

Fiquei em situação desvantajosa.

— É uma coisa muito simples — continuou. — Minha empregada, Clara, estava no portão da frente, aonde fora um minuto ou dois, diz ela que para tomar ar. Muito pouco provável, na minha opinião; o mais provável é que estivesse esperando o rapaz da peixaria, se é que se pode chamar aquilo de rapaz, um garoto atrevido, pensa que porque tem dezessete anos pode mexer com todas as moças. De qualquer maneira, como estava dizendo, ela estava no portão e ouviu um espirro.

— Sim — disse, esperando o resto.

— É só isso. Estou lhe dizendo que ouviu um espirro. E não me venha dizer que não sou mais tão jovem e posso ter me enganado, pois foi Clara que ouviu, e ela só tem dezenove anos.

— Mas — perguntei —, por que não poderia ter ou­vido um espirro?

A sra. Price Ridley me olhou com pena evidente pela minha falta de inteligência.

— Ouviu um espirro no dia do assassinato, numa hora em que não havia ninguém em sua casa. Não há dúvida de que o assassino estava escondido nos arbustos, aguardando sua oportunidade. É preciso procurar um homem que esteja resfriado.

— Ou que sofra de alergia — sugeri. — Mas, sra. Price Ridley, acho que esse mistério tem uma solução muito simples. Nossa empregada, Mary, está com um resfriado muito forte. Funga de tal maneira que irrita a todos nós. Deve ter sido um espirro dela o que sua empregada ouviu.

— Foi um espirro de homem — volveu a sra. Price Ridley com firmeza. — E do nosso portão não se pode ouvir sua empregada espirrar na sua cozinha.

— Do seu portão não é possível ouvir alguém espirran­do em meu escritório — repliquei. — Pelo menos, duvido muito.

— Eu disse que o homem devia estar escondido nos arbustos — tornou a sra. Price Ridley. — Sem dúvida, quan­do Clara entrou, ele se utilizou da sua porta da frente.

— Bem, claro que é possível — concordei.

Procurei não fazer minha voz parecer conciliatória, mas devo ter fracassado, porque a sra. Price Ridley me lançou um olhar ofendido.                                                

— Estou acostumada a que não me dêem atenção, mas devo dizer também que uma raquete de tênis, largada na grama, sem uma capa, estraga-se completamente. E raque­tes de tênis estão muito caras hoje em dia,

Não vi razão para esse ataque lateral, Fiquei comple­tamente confuso.

— Talvez o senhor não concorde com isso — disse a sra. Price Ridley.

— Oh! Concordo, certamente.

— Ainda bem. Era só o que tinha a dizer. Lavo as mãos de tudo isso.

Recostou-se na cadeira e fechou os olhos como se esti­vesse cansada deste mundo. Agradeci sua ajuda e disse adeus.

Na saída, aventurei-me a interrogar Clara a respeito do que sua patroa tinha falado.

— É verdade, senhor, ouvi um espirro. E não era um espirro comum, de maneira nenhuma.

Nada relacionado com um crime é comum. O tiro não podia ter sido um tiro comum. O espirro não tinha sido um espirro comum. Deveria ser um espirro especial de assas­sinos. Perguntei à moça a que horas tinha sido isso, mas ela foi muito vaga, pensava que talvez tivesse sido entre as seis e quinze e as seis e meia. De qualquer maneira, foi antes de a patroa receber o telefonema e sentir-se mal.

Perguntei se tinha ouvido algum tiro. Respondeu-me que os tiros tinham sido um horror. Depois disso, não acre­ditei muito nela.

Estava entrando no meu portão quando decidi fazer uma visita a um amigo.

Olhando o relógio, vi que tinha tempo suficiente antes do serviço religioso. Desci o caminho da casa de Haydock, e este veio ao meu encontro na porta.

Notei novamente como estava preocupado e abatido. Aquela história parecia tê-lo envelhecido barbaramente.

— Que prazer em vê-lo! — disse ele. — Quais são as novidades?

Contei-lhe os últimos acontecimentos, relativos a Stone.

— Um ladrão de alta classe — comentou. — Bem, isso explica muita coisa. Ele estudou o assunto, mas de vez em quando cometia erros. Protheroe deve ter descoberto. Lem­bra-se da briga que tiveram?  O que acha da moça?  Está metida nisso também?

— As opiniões sobre isso variam — declarei. — Por mim, acho que é inocente. É uma idiota de primeira — acrescentei.

— Oh! Não diria isso. Ela é bem esperta, a srta. Gladys Cram. Um espécime extraordinariamente sadio. Não é pro­vável que incomode os membros da minha profissão.

Disse-lhe que estava preocupado com Hawes e ansioso por que viajasse para fora, para um bom descanso e uma mudança.

Ficou meio evasivo quando lhe disse isso. Sua resposta não me pareceu sincera.

— Sim — disse devagar. — Talvez fosse a melhor coisa. Pobre coitado. Pobre coitado.

— Pensei que não gostasse dele.

— Não gosto, pelo menos, não muito. Mas tenho pena de muitas pessoas sem gostar delas. — Acrescentou depois de um ou dois minutos: — Tenho pena até de Protheroe. Pobre-diabo, ninguém gostava muito dele. Enfatuado demais de suas próprias virtudes e muito arrogante. É uma mistura da qual não se pode gostar. Ele foi sempre assim, desde rapaz.

— Não sabia que você o tinha conhecido antes.

— Ah, sim! Quando eu morava em Westmoreland, tinha consultório não muito longe. Foi há muito tempo. Quase vinte anos atrás.

Suspirei. Há vinte anos, Griselda tinha cinco anos. O tempo é uma coisa estranha...

— É só isso o que veio me dizer, Clement?

Levantei os olhos assustado. Haydock estava me fitando com um olhar perspicaz.

— Tem mais alguma coisa, não tem?

Confirmei com a cabeça.

Estava indeciso, ao entrar, quanto a se devia falar ou não, mas agora decidira que sim. Gosto de Haydock mais que de todos os homens que conheço. É uma excelente pes­soa, em todos os sentidos. Achei que o que tinha a dizer talvez lhe fosse útil.

Narrei meus encontros com a srta. Hartnell e a srta. Wetherby.

Permaneceu calado durante muito tempo quando ter­minei.

— De fato, Clement — disse finalmente —, tenho procurado proteger a sra. Lestrange de todos os incômodos possíveis. O fato é que ela é uma velha amiga. Mas essa não é a única razão. Aquele atestado médico que eu dei não é invenção, como vocês todos pensam.

Calou-se e depois acrescentou com gravidade:

— Isso fica entre nós dois, Clement. A sra. Lestrange está condenada.

— O que disse?

— Ela está morrendo. Dou-lhe um mês no máximo. Acha estranho que eu queira evitar que seja importunada e interrogada? — Continuou: — Quando ela tomou esse caminho, naquela noite, era aqui que vinha, a esta casa.

— Você não disse isso antes.

— Não queria que houvesse falatório. Das seis às sete não é meu horário de ver doentes, e todo mundo sabe disso. Mas pode acreditar na minha palavra: ela estava aqui.

— Não estava aqui quando vim buscar você. Quero dizer, quando descobrimos o corpo.

— Não — pareceu perturbado. — Tinha saído, para ir a um encontro.

— Onde era esse encontro? Em casa dela?

— Não sei, Clement. Palavra de honra, não sei.

Acreditava nele, mas...

— E se um homem inocente for enforcado? — per­guntei.

— Não — respondi. — Ninguém será enforcado pelo assassinato do coronel Protheroe. Pode ter certeza disso.

Mas isso era justamente o que eu não podia fazer. No entanto, a voz dele era muito segura.

— Ninguém será enforcado — repetiu,

— Esse Archer...

Fez um gesto impaciente.

— Não é inteligente o bastante para apagar suas im­pressões da pistola.

Então me lembrei de uma coisa: tirei do bolso o vidri­nho marrom que tinha encontrado no bosque e mostrei-o a ele, perguntando o que era.

— Hum — hesitou. — Parece ácido pícrico. Onde en­controu isso?

— Isso — respondi — é um segredo de Sherlock Holmes.

Sorriu.

— O que é ácido pícrico?

— Bem, é um explosivo.

— Sim, eu sei, mas tem outros usos, não tem?

Concordou com a cabeça.

— É usado como medicamento, em solução, para quei­maduras. É excelente.

Estendi a mão e, com relutância, ele me devolveu o vidro.

— Provavelmente não tem importância — declarei. — Mas encontrei isso num lugar meio estranho.

— Não quer me dizer onde?

Fui muito infantil, mas recusei.

Ele tinha seus segredos. Bem, eu queria ter os meus.

Fiquei um pouco magoado por não ter confiado mais em mim.

 

Meu estado de espírito era estranho quando subi ao púlpito naquela noite.

A igreja estava excepcionalmente cheia. Não posso acre­ditar que a possibilidade de Hawes fazer o sermão tivesse atraído tanta gente. Os sermões de Hawes são paulificantes e dogmáticos. E caso tivessem espalhado a notícia de que eu ia fazer o sermão em vez dele, isso também não teria atraído ninguém. Porque meus sermões são paulificantes e escolásticos. Tampouco poderia atribuir essa freqüência à devoção.

Todos tinham vindo, cheguei à conclusão, para ver quem estava lá e possivelmente efetuar uma troca de mexericos na entrada da igreja, depois do serviço religioso.

Haydock estava lá, o que é raro, e também Lawrence Redding. E, para minha surpresa, ao lado de Lawrence, vi o rosto pálido e tenso de Hawes. Anne Protheroe também estava lá; ela geralmente comparece ao serviço religioso do­mingo à noite, mas eu não contava com ela dessa vez. Fiquei mais surpreso ainda ao ver Lettice. Ela sempre ia à igreja domingo de manhã, já que o coronel Protheroe era irredu­tível nesse ponto, mas nunca tinha visto Lettice antes no serviço da noite.

Gladys Cram estava lá, acintosamente jovem e sadia no meio das solteironas enrugadas; e imaginei que uma figu­ra indistinta, no fundo da igreja, que chegava atrasada, era a sra. Lestrange.

Acho desnecessário dizer que a sra. Price Ridley, a srta. Hartnell, a srta. Wetherby e Miss Marple lá estavam em plena força. A aldeia toda estava lá, com raras exceções. Não me lembro de qualquer outra ocasião em que tenhamos tido tamanha congregação.

A multidão é uma coisa estranha. Havia um magnetis­mo na atmosfera, naquela noite, e a primeira pessoa a sentir essa influência fui eu mesmo.

Em geral, preparo meus sermões com antecedência. Sou cuidadoso e consciencioso, mas ninguém sabe melhor que eu como são deficientes.

Nessa noite eu estava, necessariamente, pregando ex-tempore e, quando olhei o mar de rostos erguidos para mim, uma loucura repentina se apoderou de minha mente. Deixei de ser, em todos os sentidos, um ministro de Deus. Tornei-me um ator. Tinha uma platéia à minha frente e queria emocioná-la; e, o que é mais, senti que não me faltavam poderes para tanto.

Não me orgulho do que fiz naquela noite. Não acredito nem um pouco na eficácia do estado emocional dos evange­listas fervorosos. No entanto, naquela noite fiz o papel de um evangelista em delírio, esbravejando e vociferando.

Apresentei o tema lentamente.

— “Vim conclamar não os justos, mas os pecadores, a se arrepender.”

Repeti-o duas vezes e ouvi minha própria voz, ressonante, vibrante, totalmente diferente da voz costumeira de Leonard Clement.

Vi Griselda, no seu banco da primeira fila, olhar-me com surpresa, e Dennis seguir seu exemplo.

Prendi a respiração por um momento ou dois e arran­quei impetuosamente.

A congregação daquela igreja estava em estado de emo­ção contida, pronta a ser liberada. Joguei com essas emoções. Exortei os pecadores ao arrependimento. Incitei-me a uma espécie de fúria emocional. Várias vezes estendi a mão acusadora e repeti a frase:

— Estou falando com você...

E a cada vez, de partes diferentes da igreja, uma espécie de suspiro subiu ao ar.

Emoção em massa é uma coisa estranha e terrível.

Terminei com estas belas e comoventes palavras, tal­vez as mais comoventes de toda a Bíblia:

— “Esta noite tua alma será exigida de ti...”

Foi um curto e estranho delírio. Quando voltei a casa, tinha voltado ao meu normal, desbotado e indefinido. Achei Griselda muito pálida. Enfiou o braço no meu.

— Len — disse —, você foi terrível hoje à noite. Eu... eu não gostei. Nunca ouvi você pregar assim.

— E imagino que nunca mais ouvirá — declarei, cain­do sentado no sofá. Estava cansado.

— Por que fez isso?

— Uma loucura súbita se apossou de mim.

— Oh! não... não foi uma coisa especial?

— Que quer dizer com uma coisa especial?

— Estava só perguntando. Você é muito imprevisível, Len. Acho que realmente não o conheço.

Sentamos para uma ceia fria, já que Mary tinha saído.

— Tem um bilhete para você no hall — disse Griselda. — Vá pegá-lo, sim, Dennis?

Dennis, que estava muito calado, obedeceu.

Peguei o envelope e soltei um gemido. No canto supe­rior esquerdo estava escrito: “Em mãos. Urgente”.

— Este — disse — deve ser de Miss Marple. Não sobrou mais ninguém.

Estava completamente certo na minha conclusão.

“Caro sr. Clement: Gostaria de ter uma pequena con­versa com o senhor sobre uma ou duas coisas que me ocor­reram. Sinto que todos nós devemos ajudar a esclarecer esse triste mistério. Irei até aí por volta das nove e meia, se me permite, e baterei na janela do escritório. Talvez minha querida Griselda tivesse a bondade de vir até aqui alegrar meu sobrinho. E o sr. Dennis também, naturalmente, se qui­ser vir. Se não receber resposta, estaremos esperando por eles e irei à hora mencionada.

Atenciosamente,

Jane Marple.”

Passei o bilhete a Griselda.

— Ah! Iremos — disse alegremente. — Uns copos de licor feito em casa é exatamente o que eu preciso numa noite de domingo. Acho que é o manjar branco de Mary que é tão deprimente! Parece que saiu de uma casa funerária.

Dennis não pareceu muito encantado com a idéia.

— Para você está muito bom — resmungou. — Pode ter essas conversas intelectuais sobre arte e livros. Eu fico feito um idiota, sentado e ouvindo vocês falarem.

— É muito bom para você — disse Griselda calma­mente. — Põe você no seu lugar. Seja como for, não acho que o sr. Raymond West seja tão tremendamente inteligente quanto gostaria de ser.

— Muito poucas pessoas o são — afirmei.

Fiquei muito intrigado com o que exatamente Miss Marple queria conversar comigo. De todas as senhoras da minha congregação, eu a considerava decididamente a mais perspicaz. Não só vê e ouve tudo o que acontece, mas tira as conclusões mais claras e apropriadas dos fatos que chegam até ela.

Se algum dia eu resolvesse iniciar uma atividade frau­dulenta, seria de Miss Marple que teria medo.

O que Griselda chamou de “Grupo para Divertir So­brinhos” se pôs em campo pouco depois das nove horas e, enquanto esperava Miss Marple, passei o tempo fazendo uma espécie de esquema cronológico dos fatos ligados ao crime. Não sou muito pontual, mas sou muito organizado e gosto das coisas anotadas metodicamente.

Às nove e meia em ponto ouvi uma pancadinha na porta de vidro e levantei-me para fazer Miss Marple entrar.

Um xale de lã fina cobria-lhe a cabeça e os ombros, dando-lhe uma aparência idosa e frágil. Entrou proferindo uma série de comentários alvoroçados.

— Foi muita bondade sua ter deixado que eu viesse... e muita bondade da minha querida Griselda...  Raymond tem muita admiração por ela... sempre diz que é um per­feito quadro de Greuze... Posso sentar-me aqui? Não estou tomando sua cadeira? Oh! Obrigada...  Não, não preciso de banqueta para os pés.

Coloquei o xale de lã numa cadeira e voltei para me sentar em frente à minha convidada. Olhamos um para o outro, e um pequeno sorriso de súplica surgiu em seus lábios.

— Sinto que o senhor deve estar se perguntando por que... por que estou tão interessada em tudo isso. Talvez ache que é muito pouco feminino. Não... por favor... gostaria de explicar, se me permite.

Calou-se por um momento e seu rosto ficou corado.

— O senhor sabe — começou finalmente —, vivendo só, como eu vivo, num canto remoto do mundo, é preciso ter um hobby. Há, é claro, os trabalhos com lã, as escoteiras, o serviço social e a pintura, mas meu hobby é, e sempre foi, a natureza humana. Tão variada e tão fascinante! E, natural­mente, numa aldeia sem distração nenhuma, a gente tem ampla oportunidade de se tornar o que posso chamar de eficiente nesse estudo. Começamos a classificar as pessoas como se fossem pássaros ou flores, tal grupo, esse ou aquele gênero, tal ou qual espécie. Às vezes, é claro, a gente erra, mas cada vez menos, à medida que o tempo passa. E tam­bém nos submetemos a testes. Ocupamo-nos com um pe­queno problema, por exemplo, o vidro de camarões em con­serva que Griselda achou tão divertido, um mistério sem importância, mas absolutamente incompreensível se não fosse solucionado corretamente. Depois houve aquele caso da troca das pastilhas de tosse, e o guarda-chuva da mulher do açou­gueiro... este último absolutamente sem sentido, a não ser com a premissa de que o quitandeiro não estava se portando bem com a mulher do farmacêutico... e isso, naturalmente, era o que estava acontecendo. É muito fascinante usar nosso raciocínio e descobrir que estamos certos.

— Creio que a senhora geralmente está — comentei sorrindo.

— E receio que isso tenha me tornado um pouquinho convencida — confessou Miss Marple. — Mas sempre me perguntei se, se algum dia aparecesse um mistério realmente muito grande, eu poderia fazer o mesmo. Quero dizer, achar a solução certa. Logicamente, deveria ser exatamente a mes­ma coisa. Afinal de contas, uma miniatura de um torpedo é a mesma coisa que um torpedo de verdade.

— A senhora quer dizer que é tudo uma questão de relatividade — disse devagar. — Deveria ser, logicamente, admito. Mas não sei se realmente é.

— Certamente deve ser a mesma coisa — volveu Miss Marple. — O que costumávamos chamar de fatores na esco­la, são os mesmos. Há o dinheiro, a atração mútua entre pessoas de... hum... sexos opostos...   e desequilíbrios mentais, naturalmente... Tantas pessoas são um pouco de­sequilibradas, não é mesmo? Na verdade, a maioria das pes­soas o é, quando a gente as conhece bem. E as pessoas normais fazem coisas surpreendentes às vezes, enquanto as pessoas anormais são às vezes bem equilibradas e naturais... Na verdade, o único método consiste em comparar as pes­soas com outras que o senhor conheceu ou encontrou na vida. O senhor ficaria espantado se soubesse como há poucos tipos distintos ao todo.

— A senhora me assusta — disse. — Sinto como se estivesse debaixo do microscópio.

— Naturalmente não sonharia dizer nada disso ao co­ronel Melchett, um homem tão autocrático, não é? E o po­bre inspetor Slack: ele é exatamente como a moça da sapa­taria que insiste em lhe vender sapatos de verniz porque os tem em seu tamanho e não dá a menor atenção ao fato de que o senhor quer pelica marrom.

Aquela era, realmente, uma ótima descrição de Slack.

— Mas o senhor, sr. Clement, tenho certeza de que sabe tanto sobre o crime quanto o inspetor Slack. Pensei que, se pudéssemos trabalhar juntos...

— Curioso — disse. — Acho que todos nós, no íntimo de nossa alma, nos imaginamos um Sherlock Holmes.

Então lhe contei sobre os três chamados que tinha recebido naquela tarde. Contei sobre a descoberta de Anne, do quadro com o rosto rasgado. Narrei também a atitude da srta. Cram na delegacia e descrevi a identificação que Haydock dera do vidro que eu tinha encontrado.

— Como fui eu que o encontrei — concluí —, gostaria que fosse importante. Mas provavelmente não tem nada a ver com o caso.

— Ultimamente tenho lido muitos romances policiais norte-americanos da biblioteca — disse Miss Marple —, na esperança de que me ajudassem.

— Algum deles falava em ácido pícrico?

— Infelizmente não. Mas eu me lembro de ter lido uma história em que um homem foi envenenado com ácido pícrico e lanolina usados como pomada para esfregar no corpo.

— Mas como ninguém foi envenenado aqui, isso está fora de cogitação — observei.

Então peguei meu esquema e mostrei-o a ela.

— Procurei recapitular os fatos do caso o mais clara­mente possível.

MEU ESQUEMA

Quinta-feira, 21 do corrente

12:30 — O coronel Protheroe transfere a hora marcada de seis para as seis e quinze. Foi ouvido por metade da aldeia, provavelmente.

12:45 — Pistola vista pela última vez no lugar usual. (Mas isso é duvidoso, pois a sra. Archer disse anterior­mente que não se lembrava.)

17:30 (aprox.) — O coronel e a sra. Protheroe saem de Old Hall, de carro, para ir à aldeia.

17:30 — Chamada falsa da porteira norte de Old Hall para mim.

18:15 (ou um ou dois minutos antes) — O coronel Pro­theroe chega à residência. Mary o leva ao escri­tório.

18:20 — A sra. Protheroe vem pelo caminho dos fundos e atravessa o jardim até a janela do escritório.

O coronel Protheroe não é visto.

18:29 — Chamada feita do cottage de Lawrence Redding para a sra. Price Ridley (de acordo com a es­tação).

18:30-18:35 — Ouviu-se um tiro (se aceitarmos a hora do telefonema como certa). Os testemunhos de Law­rence Redding, Anne Protheroe e dr. Stone pare­cem indicar que foi mais cedo, mas a sra. P. R. provavelmente está certa.

18:45 — Lawrence Redding chega à residência e encontra o corpo.

18:48 — Encontro com Lawrence Redding.

18:49 — Corpo descoberto por mim.

18:55 — Haydock examina o corpo.

Nota: As duas únicas pessoas que não têm nenhum álibi para o período de 18:30 a 18:35 são a srta. Cram e a sra. Lestrange. A srta. Cram diz que estava no túmulo, mas não há confirmação. Parece razoável, entretanto, eliminá-la do caso, pois não parece haver nenhuma ligação. A sra. Lestran­ge saiu da casa do dr. Haydock pouco depois das seis para ir a um encontro. Onde foi esse encontro e com quem? Não podia ser com o coronel Protheroe, visto que ele ia estar ocupado comigo. É verdade que a sra. Lestrange estava perto do local quando o crime foi cometido, mas é duvidoso que pudesse ter um motivo para assassinar o coronel. Nada lu­crou com sua morte, e não posso aceitar a teoria do inspetor de que houvesse chantagem. A sra. Lestrange não é esse tipo de pessoa. Também é pouco provável que tivesse se apodera­do da pistola de Lawrence Redding.

— Muito claro — disse Miss Marple, abanando a cabeça em aprovação. — Muito claro mesmo. Os homens fazem esquemas tão bem!

— Concorda com o que escrevi? — perguntei.

— Oh, sim, o senhor disse tudo muito bem.

Fiz, então, a pergunta que queria fazer há muito tempo.

— Miss Marple, de quem a senhora suspeita? A se­nhora disse uma vez que havia sete pessoas.

— Mais ou menos isso, imagino — disse Miss Marple, com o pensamento longe. — Cada um de nós provavelmente tem uma suspeita diferente. De fato pode-se ver que tem.

Não me perguntou de quem eu suspeitava.

— A questão é — continuou — que precisamos encon­trar uma explicação para tudo. Cada detalhe tem de ser explicado satisfatoriamente. Se há uma teoria que combina com todos os fatos... bem, então deve ser a teoria certa. Mas isso é extremamente difícil. Se não fosse aquele bilhete...

— O bilhete? — perguntei surpreso.

— Sim, o senhor se lembra, eu lhe disse. Esse bilhete tem me preocupado desde o princípio. Está errado, de algu­ma maneira.

— Certamente — afirmei — que isso já foi explicado. Foi escrito às seis e trinta e cinco, e outra pessoa, o assassino, colocou seis e vinte em cima para despistar. Creio que isso ficou claramente estabelecido.

— Mas mesmo assim — volveu Miss Marple —, está todo errado.

— Mas por quê?

— Ouça. — Miss Marple se inclinou para a frente, animada. — A sra. Protheroe passou por meu jardim, como lhe disse, foi até a janela do escritório, olhou para dentro e não viu o coronel Protheroe.

— Porque ele estava escrevendo na secretária — eu disse.

— Isso é que está errado. Isso foi às seis e vinte. Con­cordamos em que ele não iria sentar-se e dizer que não podia esperar mais antes das seis e meia... então, por que estava sentado à escrivaninha naquela hora?

— Não tinha pensado nisso — repliquei devagar.

— Vamos, caro sr. Clement, repassar tudo de novo. A sra. Protheroe vai à janela e pensa que a sala está vazia; deve ter pensado isso, pois do contrário não teria ido se encontrar com o sr. Redding no estúdio. Não seria seguro. Se pensou que estava vazia, é porque não havia barulho nenhum. E isso nos deixa três alternativas, não é?

— Quer dizer...

— Bem, a primeira alternativa seria que o coronel Protheroe já estava morto, mas não acho que seja a mais provável. Para começar, ele só estava lá há uns cinco mi­nutos, mais ou menos, e ela ou eu teríamos ouvido o tiro; e, em segundo lugar, persiste o problema de ele estar à escriva­ninha. A segunda alternativa, naturalmente, é que estava sen­tado à escrivaninha escrevendo um bilhete, mas nesse caso teria de ser um bilhete totalmente diferente. Não poderia ter sido para dizer que não podia esperar. E a terceira...

— Sim? — perguntei.

— Bem, a terceira é, naturalmente, que a sra. Pro­theroe estava certa e que a sala estava totalmente vazia.

— A senhora quer dizer que, depois de ter entrado, saiu novamente e voltou mais tarde?

— Sim.

— Mas por que faria isso?

Miss Marple estendeu as mãos abertas em gesto de dúvida.

— Isso significa que teríamos de olhar o caso de um ângulo inteiramente diferente — comentei.

— Muitas vezes precisamos fazer isso... Não acha?

Não respondi. Estava refletindo cuidadosamente sobre as três alternativas que Miss Marple tinha sugerido.

Com um ligeiro suspiro, ela ficou de pé.

— Está na hora de voltar. Estou muito contente de ter tido essa conversa, embora não tenhamos ido muito longe, não?

— Para dizer a verdade — retruquei, enquanto ia bus­car o xale —, isso tudo me parece um labirinto sem saída.

— Oh! Não diria isso. Acho que, em geral, uma teoria explica quase tudo. Isto é, se admitirmos uma coincidência; e acho que uma coincidência é admissível. Mais de uma, na­turalmente, não é provável.

— Acha isso realmente? Sobre a teoria, quero dizer? — perguntei, olhando para ela.

— Admito que há uma falha na minha teoria, um fato que não se encaixa. Oh! Se ao menos aquele bilhete tivesse sido totalmente diferente...

Suspirou e sacudiu a cabeça. Foi até a janela e, distrai­damente, estendeu a mão, tocando na planta mirrada que se achava em cima da mesinha alta.

— Sabe, sr. Clement, esta planta tem de ser molhada com mais freqüência. Pobre coitada, está precisando muito de água. Sua empregada devia molhá-la todos os dias. É ela quem toma conta disso?

— Como toma conta de tudo.

— Um pouco crua, por enquanto — sugeriu Miss Marple.

— Sim — concordei. — E Griselda recusa terminante­mente mandá-la embora. Acha que apenas uma empregada totalmente indesejável ficaria conosco. Mas a própria Mary se despediu há alguns dias.

— De fato? Sempre pensei que ela gostasse muito dos dois.

— Nunca notei isso — repliquei. — Mas, na verdade, ela ficou aborrecida com Lettice Protheroe. Mary voltou do inquérito num estado meio temperamental e encontrou Letti­ce aqui e... bem, tiveram uma discussão.

— Oh! — exclamou Miss Marple. Ia sair pela porta de vidro quando parou de repente e várias expressões se estamparam em seu rosto.

— Oh! — murmurou para si mesma. — Como fui estúpida!  Então foi isso!  Perfeitamente possível o tempo todo.

— Como?

Sua expressão era muito preocupada.

— Nada. Acaba de me ocorrer uma idéia. Tenho de ir para casa e pensar muito nisso. Acho que fui extremamen­te estúpida, incrivelmente estúpida.

— Acho isso difícil de acreditar — disse eu, lisonjeiro.

Saí com ela pela porta de vidro e atravessamos o gra­mado.

— Pode me dizer o que lhe ocorreu tão de repente? — perguntei.

— Prefiro não dizer, por enquanto. Ainda há uma possibilidade de que eu esteja errada. Mas acho que não. Aqui estamos no meu portão. Muito obrigada. Não é preciso me acompanhar mais.

— O bilhete ainda é um obstáculo? — perguntei en­quanto entrava e fechava o portão.

Olhou para mim com um olhar distante.

— O bilhete? Oh! Claro que aquele não era o bilhete verdadeiro. Nunca pensei que fosse. Boa noite, sr. Clement.

Afastou-se rapidamente em direção à casa, deixando-me boquiaberto.

Não sabia mais o que pensar.

 

Griselda e Dennis ainda não tinham voltado. Percebi que o mais natural teria sido que eu fosse com Miss Marple até lá dentro e trouxesse os dois para casa comigo. Mas tanto ela quanto eu estávamos tão completamente imersos em nossas preocupações com o mistério, que tínhamos esquecido que havia outras pessoas no mundo além de nós.

Estava em pé no hall, perguntando-me se deveria ou não ir até lá encontrá-los, quando a campainha tocou.

Fui até a porta. Vi que havia uma carta na caixa, e, pensando que esse fosse o motivo de a campainha ter tocado, apanhei-a.

Mas então a campainha tocou novamente e, metendo a carta apressadamente no bolso, abri a porta.

Era o coronel Melchett.

— Olá, Clement. Vim da cidade de carro e estou a caminho de casa. Resolvi parar aqui para ver se você me oferece um drinque.

— Com muito prazer — disse eu —, venha aqui para o escritório.

Tirou o casaco de couro que usava e seguiu-me até o escritório. Fui buscar uísque e soda e dois copos. Melchett estava de pé, em frente da lareira, as pernas abertas, acari­ciando o bigode curto.

— Tenho uma notícia para você, Clement. A coisa mais espantosa que você já ouviu. Mas vamos deixar isso de lado por enquanto. Como vão as coisas por aqui? Mais algu­ma velhota com uma pista quente?

— As velhotas não vão nada mal — respondi. — Uma delas, pelo menos, acha que encontrou a solução.

— Nossa amiga, Miss Marple, hum?

— Nossa amiga, Miss Marple.

— As mulheres desse tipo acham que sabem de tudo — disse o coronel Melchett.

Tomou um gole de uísque com evidente prazer.

— Provavelmente estou interferindo desnecessariamen­te — observei —, mas será que alguém interrogou o rapaz da peixaria? Isto é, se o assassino saiu pela porta da frente, há uma possibilidade de que o rapaz o tenha visto.

— Slack o interrogou — disse Melchett. — Mas o rapaz diz que não encontrou ninguém. Muito pouco provável que encontrasse. O assassino não iria querer despertar a atenção. Havia muito lugar para se esconder no seu portão da frente. Ele teria olhado primeiro para ver se o caminho estava livre. O rapaz tinha que vir aqui, ir à casa do Haydock e à casa da sra. Price Ridley. Muito fácil se esquivar dele.

— Sim — concordei —, é possível que fosse.

— Por outro lado — Melchett continuou —, se por acaso isso foi obra daquele bandido do Archer, e Fred Jack­son o viu por aqui, duvido muito que dissesse alguma coisa; Archer é primo dele.

— Você realmente suspeita de Archer?

— Bem, você sabe que o velho Protheroe estava com a faca no peito de Archer. Havia muita animosidade entre os dois. A clemência não era o ponto forte de Protheroe.

— Não — disse eu. — Era um homem muito cruel.

— Meu lema é: viva sua vida e deixe os outros vive­rem a deles — afirmou Melchett. — Claro que a lei é a lei, mas nunca faz mal duvidar da culpa de alguém. E Protheroe nunca fez isso.

— Ele se orgulhava disso — observei.

Houve uma pausa e depois perguntei:

— Qual é essa notícia espantosa que você tem para mim?

— Bem, é espantosa. Lembra-se daquela carta inaca­bada que Protheroe estava escrevendo quando foi morto?

— Sim.

— Chamamos um perito para dizer se a hora, seis e vinte, tinha sido acrescentada por outra pessoa. Naturalmen­te mandamos amostras da caligrafia de Protheroe. E sabe qual foi o veredicto? Aquela carta não foi escrita por Pro­theroe.

— Está querendo dizer que é uma falsificação?

— Foi falsificada. O perito acha que a hora foi escrita por outra pessoa, mas não tem muita certeza. A tinta é diferente, mas a carta em si foi falsificada. Não foi Pro­theroe quem a escreveu.

— Tem certeza?                                         

— Bem, como todo perito. Sabe como são os peritos! Ah! Mas tem certeza.

— Surpreendente — eu disse. E me lembrei de uma coisa. — Ora, lembro que na ocasião a sra. Protheroe disse que não parecia a letra do seu marido, e não prestei a menor atenção.

— É mesmo?

— Pensei que fosse um desses comentários tolos que as mulheres fazem às vezes. Tinha certeza absoluta de que Protheroe tinha escrito aquele bilhete.

Olhamos um para o outro.

— É curioso — eu disse devagar. — Miss Marple estava dizendo esta noite que aquele bilhete estava todo errado.

— Que diabo de mulher, sabe tanto sobre isso como se tivesse sido ela que cometeu o crime.

Nesse momento o telefone tocou. Há um estranho fenô­meno psicológico relacionado com a campainha de um tele­fone. Ela tocou persistentemente e com um significado sinistro.

Levantei-me e peguei o fone.

— É da casa do pastor — disse. — Quem está fa­lando?

Uma voz desconhecida, aguda e histérica, soou nos meus ouvidos:

— Quero confessar — declarou. — Meu Deus, quero confessar!

— Alô — eu disse —, alô. Telefonista, você cortou a ligação. Que número era?

Uma voz lânguida disse que não sabia. Acrescentou que sentia muito que eu tivesse sido incomodado.

Desliguei o telefone e virei-me para Melchett.

— Você disse uma vez — comentei — que ficaria louco se mais alguém se acusasse do crime.

— E daí?

— Essa chamada era de alguém que queria confessar... e a central cortou a ligação.

Melchett deu um salto e pegou o telefone.

— Deixe-me falar com eles.

— Fale — eu disse. — Talvez consiga alguma coisa. Vou deixá-lo à vontade. Acho que reconheci a voz.

 

Segui apressado pela rua da aldeia. Eram onze horas, e, a essa hora, numa noite de domingo, a aldeia de St. Mary Mead inteira parecia estar morta. Vi, no entanto, uma luz em uma janela do primeiro andar e, deduzindo que Hawes ainda estava de pé, parei e toquei a campainha.

Depois do que me pareceu um longo intervalo, a se­nhoria de Hawes, a sra. Sadler, correu laboriosamente dois ferrolhos, soltou uma corrente, virou a chave e arriscou um olho cheio de suspeita.

— Ah! É o pastor! — exclamou.

— Boa noite — disse. — Quero ver o sr. Hawes. Há luz na janela, portanto ele ainda está de pé.

— Pode ser. Não o vi mais desde que levei seu jantar. Passou a noite quieto. Não veio ninguém visitá-lo e ele tam­bém não saiu.

Acenei com a cabeça e, passando por ela, subi as escadas rapidamente. Hawes tem um quarto e uma sala no primeiro andar.

Entrei nesta última. Hawes estava recostado numa es­preguiçadeira, dormindo. Minha entrada não o acordou. Uma caixa de remédios vazia e um copo de água pela metade estavam ao seu lado.

No chão, perto de seu pé esquerdo, havia uma folha de papel amassado com alguma coisa escrita. Apanhei-a e alisei o papel.

Começava: “Meu caro Clement...”

Li até o fim, soltei uma exclamação e meti o papel no meu bolso. Então me debrucei sobre Hawes e estudei-o cuidadosamente.

Em seguida, estendi a mão para o telefone, que estava à sua cabeceira, e dei o número da minha casa. Melchett devia estar ainda tentando localizar a chamada, porque me disseram que a linha estava ocupada. Pedi que me chamas­sem e coloquei o fone no lugar. Pus a mão no bolso para olhar mais uma vez o papel que tinha apanhado. Junto com ele, saiu o bilhete que eu tinha encontrado na caixa de correio, e que estava ainda fechado.

Sua aparência era horrivelmente familiar. A letra era a mesma da carta anônima que tinha recebido aquela tarde.

Abri.

Li uma vez, duas, sem conseguir compreender o que dizia.

Estava começando a ler pela terceira vez quando o telefone tocou. Como num sonho, peguei o fone e falei.

— Alô?

— Alô.

— É você, Melchett?

— Sim, onde está você? Localizei a chamada. O núme­ro é...

— Sei o número.

— Oh! Está bem. É de lá que você está falando?

— Sim.

— E a confissão?

— Já estou com a confissão.

— Você quer dizer que pegou o assassino?

Experimentei então a maior tentação de toda a minha vida. Olhei para Hawes. Olhei para a carta amassada. Olhei para os rabiscos anônimos. Olhei para a caixa de remédios vazia com o nome de Querubim. Lembrei-me de uma certa conversa casual.

Fiz um esforço imenso.

— Eu... não sei — disse. — É melhor vir aqui.

E dei-lhe o endereço.

Sentei-me, então, na cadeira em frente a Hawes e pus-me a pensar.

Tinha dois minutos livres.

Dentro de dois minutos Melchett chegaria.

Peguei a carta anônima e li novamente pela terceira vez.

Depois fechei os olhos e pensei...

 

Não sei quanto tempo fiquei sentado ali; somente uns minutos, na realidade, imagino. Mas parecia que tinha se passado uma eternidade quando ouvi a porta se abrir e, vi­rando a cabeça, levantei os olhos para ver Melchett entrando na sala.

Olhou fixo para Hawes dormindo em sua espreguiça­deira, depois virou-se para mim.

— O que é isso, Clement? O que quer dizer tudo isso?

Escolhi uma das duas cartas em minha mão e passei-a para ele. Leu em voz baixa.

— “Meu caro Clement: O que tenho a dizer é extre­mamente desagradável. Tanto assim que prefiro escrever. Podemos conversar sobre isso mais tarde. Diz respeito aos recentes desvios de dinheiro. Sinto dizer que verifiquei, fora de qualquer dúvida, a identidade do culpado. Por mais do­loroso que seja para mim ter de acusar um sacerdote orde­nado, meu dever é muito claro. É preciso que sirva de exemplo e...”

Olhou para mim interrogativamente. Nesse ponto a le­tra se transformava em um rabisco ilegível, quando então a morte susteve a mão do autor.

Melchett respirou e olhou para Hawes.

— Então essa é a solução! O único homem em quem nós nem pensamos. E o remorso o levou a confessar!

— Tem andado muito esquisito ultimamente — afirmei.

De repente Melchett se aproximou do homem adorme­cido com uma exclamação aguda. Agarrou-o pelo ombro e sacudiu-o, primeiro devagar, depois com violência cada vez maior.

— Não está dormindo! Está dopado! O que quer di­zer isso?

Seu olhar caiu na caixa de remédios vazia. Segurou-a.

— Será que...

— Acho que sim — eu disse. — Ele me mostrou essa caixa há alguns dias. Disse que tinha sido avisado do perigo do abuso. Foi sua saída, pobre-diabo. Talvez seja melhor. Não nos cabe julgá-lo.

Mas Melchett era acima de tudo o delegado do condado. Os argumentos que para mim eram convincentes não tinham valor nenhum para ele. Tinha apanhado um assassino e que­ria que ele fosse enforcado.

Num segundo estava ao telefone, batendo no gancho impacientemente até conseguir uma resposta. Pediu o núme­ro de Haydock. Houve outra pausa, durante a qual ficou em pé com o ouvido colado ao fone e os olhos grudados na figura deitada na espreguiçadeira.

— Alô... alô... alô... é da casa do dr. Haydock? Diga ao doutor que venha imediatamente à High Street. À casa do sr. Hawes. É urgente...  que foi?... Ora, que número é, então?... Oh! desculpe.

Desligou, furioso.

— Número errado... número errado, sempre números errados! E a vida de um homem depende disso. Alô, tele­fonista, você me deu o número errado...  Sim, não perca tempo... quero três... nove, é nove, não cinco.

Mais uma pausa impaciente, dessa vez mais curta.

— Alô... é você, Haydock? Aqui é Melchett. Venha à High Street, 19, imediatamente. Hawes tomou uma dose excessiva de alguma coisa. Imediatamente, homem, é caso de vida ou morte!

Desligou e pôs-se a andar impacientemente de um lado para outro.

— Não posso imaginar por que você não chamou o médico imediatamente, Clement. Deve ter perdido a cabeça.

Felizmente nunca ocorre a Melchett que alguém possa ter idéias sobre condutas diferentes das suas. Não disse nada e ele continuou:

— Onde foi que encontrou esta carta?

— Amassada no chão; deve ter caído da mão dele.

— É extraordinário... a velhota tinha razão: aquele bilhete que encontramos era o bilhete errado. Como será que ela adivinhou? Mas que idiota ele foi em não tê-lo destruído. Imagine só guardá-lo, a prova mais comprome­tedora possível!

— A natureza humana é cheia de incoerências.

— Se não fosse, duvido que pudéssemos pegar um assassino!  Mais cedo ou mais tarde, sempre fazem uma bobagem. Você não está com boa aparência, Clement. Isso deve ter sido um grande choque para você.

— Foi. Como disse, Hawes tem andado muito esqui­sito já há algum tempo, mas nunca imaginei...

— Quem imaginaria? Ouça, parece um carro. — Foi até a janela, empurrou-a para cima e se debruçou no para­peito. — Sim, é Haydock.

Um minuto depois o doutor entrou na sala.

Melchett explicou a situação em breves palavras.

Haydock não é homem de demonstrar o que sente. Apenas levantou as sobrancelhas, acenou com a cabeça e se encaminhou para o paciente. Tomou-lhe o pulso, levantou uma de suas pálpebras e olhou demoradamente dentro do olho.

Virou-se então para Melchett.

— Quer salvá-lo para a forca? — perguntou. — Está quase morto, sabe? Vai ser muito difícil. Não sei se vou conseguir trazê-lo de volta.

— Faça o que for possível.

— Certo.

Ocupou-se com a maleta que tinha trazido consigo e preparou uma injeção, que aplicou no braço de Hawes. Quando acabou, endireitou o corpo.

— O melhor é levá-lo para Much Benham, para o hospital. Ajude-me a levá-lo para o carro.

Nós dois o ajudamos. Quando Haydock sentou-se à direção, lançou sobre o ombro, como despedida:

— Não vai poder enforcá-lo, sabe, Melchett?

— Por quê, ele vai morrer?

— Talvez sim, talvez não. Não é isso o que eu queria dizer. É que mesmo que ele viva... bem, o pobre-diabo não é responsável pelos seus atos. Vou depor nesse sentido.

— O que é que ele queria dizer? — perguntou Melchett, quando subimos novamente.

Expliquei que Hawes tinha sido vítima de encefalite letárgica.

— A doença do sono, hum? Eles têm sempre uma boa desculpa hoje em dia para tudo de sujo que fazem. Não concorda?

— A ciência nos tem ensinado muito.

— A ciência que se dane. Desculpe, Clement, mas essa moleza toda me irrita. Sou um homem simples. Bem, acho que é melhor darmos uma vista de olhos por aqui.

Mas nesse momento houve uma interrupção, a mais inesperada possível. A porta se abriu e Miss Marple entrou.

Estava corada e um pouco afobada, e pareceu com­preender nosso espanto.

— Desculpe, desculpe de verdade... por estar inter­rompendo... boa noite, coronel Melchett. Como disse, per­doe-me, mas como soube que o sr. Hawes estava doente, achei que devia vir até aqui para ver se podia ajudar em alguma coisa.

Calou-se. O coronel Melchett estava olhando para ela com um ar desgostoso.

— Muita bondade sua, Miss Marple — disse secamen­te —, mas não havia necessidade de se incomodar. Como soube, por falar nisso?

Era a pergunta que eu estava louco para fazer!

— O telefone — explicou Miss Marple. — Fazem tanta confusão com números errados, não é? O senhor falou comigo primeiro, pensando que eu fosse o dr. Haydock. Meu número é três... cinco.

— Então foi isso! — exclamei.

Há sempre uma explicação perfeitamente razoável para a onisciência de Miss Marple.

— E então — ela continuou —, vim até aqui ver se podia ser útil.

— Muita bondade sua — repetiu Melchett, ainda mais secamente. — Mas não há nada a fazer. Haydock levou-o para o hospital.

— Para o hospital mesmo?  Oh, isso é um grande alívio!  Fico contente em sabê-lo. Estará bem seguro lá. Quando o senhor diz que não há nada a fazer, não quer dizer que não há nada a fazer por ele, não é? Não quer dizer que ele não vai viver?

— É muito duvidoso — esclareci.

Os olhos de Miss Marple se dirigiram para a caixa de remédios.

— Imagino que tomou uma dose excessiva, não? — perguntou.

Acho que Melchett preferia ser reticente. Talvez eu mesmo agisse assim em outras circunstâncias. Mas minha conversa com Miss Marple sobre o caso estava muito viva em minha memória para que eu pudesse pensar da mesma maneira, embora deva admitir que o fato de ter aparecido tão rapidamente na cena e mostrado uma curiosidade tão ávida tivesse me repugnado um pouco.

— É bom que a senhora leia isto — disse eu, entre­gando-lhe a carta inacabada de Protheroe.

Ela a pegou e leu, sem mostrar nenhum sinal de sur­presa.

— A senhora já tinha deduzido isso, não é? — per­guntei .

— Sim... certamente que sim. Posso lhe perguntar, sr. Clement, por que o senhor veio aqui? Isso eu não entendi. O senhor e o coronel Melchett... não é absolutamente o que eu esperava.

Falei-lhe do telefonema e do fato de ter julgado reco­nhecer a voz de Hawes. Miss Marple concordou com a cabeça, pensativa.

— Muito interessante; e providencial, se posso usar esse termo. Sim, trouxe o senhor aqui no momento exato.

— No momento exato de quê?  — perguntei com amargura.

Miss Marple ficou espantada.

— De salvar a vida do sr. Hawes, é claro.

— A senhora não acha — sugeri — que talvez fosse melhor que Hawes não se salvasse? Seria melhor para ele, melhor para todos. Sabemos da verdade agora e...

Calei-me, pois Miss Marple estava abanando a cabeça para baixo e para cima com tanta veemência que perdi o fio do que estava dizendo.

— É claro! — ela disse. — É claro! É isso o que ele quer que o senhor pense! Que o senhor sabe a verdade, e que esta é a melhor solução para todo mundo. Ah, sim, tudo se encaixa!... a carta, a dose excessiva, o estado de espírito do pobre sr. Hawes e sua confissão. Tudo se encaixa... mas está tudo errado!

Olhamos para ela estupefatos.

— É por isso que fico contente em saber que o sr. Hawes está seguro no hospital, onde ninguém pode chegar junto dele. Se ele viver, vai lhe contar a verdade.

— A verdade?

— Sim... que ele nunca tocou num fio de cabelo do coronel Protheroe.

— Mas o telefonema — aleguei. — A carta... a dose excessiva... Está tudo tão claro!

— É o que ele quer que o senhor pense. Oh, é muito esperto! Guardar a carta e usá-la dessa maneira, isso foi muita esperteza mesmo.

— A quem está se referindo quando diz “ele”?

— Ao assassino — disse Miss Marple. E acrescentou em voz baixa: — O sr. Lawrence Redding...

 

Olhamos fixo para ela. Tenho certeza de que, por um momento, ambos acreditamos que tinha ficado louca. A acusação era totalmente absurda.

O coronel Melchett foi o primeiro a falar. Disse com gentileza e uma espécie de piedade condescendente:

— Isso é um absurdo, Miss Marple. O jovem Redding foi completamente inocentado.

— Naturalmente — afirmou Miss Marple. — Ele tra­balhou para isso.

— Pelo contrário — volveu o coronel Melchett seca­mente. — Ele fez o possível para ser acusado do crime.

— Sim — disse Miss Marple. — Enganou-nos a todos por isso, e a mim também. O senhor se lembra, sr. Clement, de que fiquei muito espantada quando soube que o sr. Redding havia confessado ter cometido o crime? Isso con­trariou todas as minhas suposições e me fez pensar que ele era inocente, quando até então estava convencida de que era culpado.

— Então era de Lawrence Redding que a senhora suspeitava?

— Sei que nos livros o culpado é sempre a pessoa menos provável. Mas acho que essa regra nunca funciona na vida real, onde geralmente o óbvio é que é verdade. Por mais que goste da sra. Protheroe, não pude evitar chegar à conclusão de que está completamente dominada pelo sr. Redding, e faria qualquer coisa que ele mandasse e, natural­mente, ele não é o tipo de rapaz que seria capaz de fugir com uma mulher que não tivesse um tostão. Do ponto de vista dele, era preciso que o coronel Protheroe desapareces­se de cena, e então ele o eliminou. Um desses rapazes encantadores que não têm um vestígio de moral.

O coronel Melchett já vinha bufando há algum tempo. Teve então um rompante.

— Tolice, absurdo, um disparate! Cada minuto de Redding foi justificado até seis e vinte e cinco, e Haydock diz categoricamente que Protheroe não podia ter sido morto an­tes disso. A senhora não vai me dizer que sabe mais do que o médico. Ou vai me dizer que Haydock está mentindo deli­beradamente, sabe Deus por quê?

— Creio que o depoimento do dr. Haydock é de total confiança. É um homem muito honesto. E, naturalmente, foi a sra. Protheroe que de fato matou o coronel Protheroe, e não o sr. Redding.

Novamente olhamos fixo para ela. Miss Marple arru­mou a gola de renda, jogou para trás o xale fofo que lhe cobria os ombros e iniciou tranqüilamente uma narrativa à moda das solteironas, fazendo as mais espantosas declarações da maneira mais natural do mundo.

— Achei que não devia falar, até agora. Não basta acreditar em algo, mesmo quando se tem absoluta certeza; é preciso possuir provas. E, a não ser que se tenha uma explicação que englobe todos os fatos (como estava dizendo ao sr. Clement nesta noite), não é possível defendê-la com convicção. A minha explicação pessoal não estava inteira­mente completa, faltava uma coisa, mas, de repente, quando estava saindo do escritório do sr. Clement, notei que a planta no pote perto da janela... bem, ali estava tudo. Claro como água!

— Louca, totalmente louca — murmurou Melchett para mim.

Mas Miss Marple sorriu serenamente para nós e con­tinuou, com sua voz suave e delicada:

— Fiquei muito triste por acreditar no que acreditei, muito triste mesmo. Porque eu gostava dos dois. Mas sabem o que é a natureza humana. E de início, quando primeiro ele e depois ela confessaram daquela maneira tão tola... bem, fiquei muito aliviada. Eu tinha errado. E comecei a pensar em outras pessoas que tinham um possível motivo para querer eliminar o coronel Protheroe.

— Os sete suspeitos! — murmurei.

Sorriu para mim.

— É certo. Havia aquele homem, Archer; não muito provável, mas, bêbado, nunca se sabe. E, naturalmente, havia a sua Mary. Estava namorando Archer há muito tem­po, e tem um gênio muito esquisito. Motivo e oportunida­de... ora, estava sozinha em casa! A velha sra. Archer podia muito bem ter tirado a pistola da casa do sr. Redding para qualquer um dos dois. E depois, é claro, há também Lettice, querendo a sua liberdade e dinheiro para fazer o que bem entende. Conheço muitos casos em que as moças mais lindas e etéreas demonstraram uma falta quase total de escrúpulos, embora os homens nunca acreditem que isso seja possível.

Encolhi-me.

— E há também a raquete de tênis — continuou Miss Marple.

— A raquete de tênis?

— Sim, a que Clara, da sra. Price Ridley, viu atirada na grama perto do portão da casa do pastor. Era como se o sr. Dennis tivesse voltado mais cedo do jogo de tênis do que havia dito. Rapazes de dezesseis anos são muito suscetíveis e bastante desequilibrados. Seja qual for o motivo, por causa de Lettice ou por sua causa, era uma possibilidade. E havia também, é claro, o pobre sr. Hawes e o senhor, não ambos, evidentemente, mas um ou outro, alternativamente, como dizem os advogados.

— Eu? — exclamei, muito espantado.

— Bem, sim. Peço que me desculpe. Na verdade nunca pensei isso realmente, mas havia o problema daquelas quan­tias de dinheiro que desapareceram. O senhor ou o sr. Hawes tinham de ser culpados, e a sra. Price Ridley andava dizendo por aí que era sua culpa, principalmente porque o senhor fez objeções vigorosas a qualquer tipo de inquérito. Natu­ralmente, eu estava convencida de que era o sr. Hawes; ele me lembrava muito aquela infeliz organista de quem lhe falei, mas, de qualquer maneira, não se podia ter certeza absoluta...

— A natureza humana sendo como é — concluí para ela sombriamente.

— Exatamente. E havia também a querida Griselda...

— Mas a sra. Clement foi completamente inocentada — atalhou Melchett. — Ela voltou no trem das seis e cin­qüenta.

— Isso foi o que ela disse — respondeu Miss Marple. — Nunca se deve acreditar no que as pessoas dizem. O trem das seis e cinqüenta atrasou meia hora naquela noite. Mas às sete e um quarto eu a vi com meus próprios olhos indo para Old Hall. Portanto, deve ter vindo em outro trem, mais cedo. É certo que foi vista, mas talvez o senhor já saiba disso.

Olhou para mim interrogativamente.

Qualquer coisa de magnético em seu olhar me obrigou a estender-lhe a última carta anônima, a que tinha aberto há tão pouco tempo. Descrevia em detalhes que Griselda tinha sido vista saindo do cottage de Lawrence Redding, pela porta dos fundos, às seis e vinte do dia fatal.

Não disse nada nesse momento, nem depois, sobre a horrível suspeita que por um instante se apossou de mim. Tinha visto tudo em termos de pesadelo: o caso antigo entre Lawrence e Griselda, isso chegando aos ouvidos de Pro­theroe, e a decisão deste de levar os fatos ao meu conheci­mento; e Griselda, desesperada, roubando a pistola e silen­ciando Protheroe. Como disse, somente um pesadelo, mas investido, por alguns longos minutos, com a aparência terrí­vel da realidade.

Não sei se Miss Marple percebeu alguma coisa. Pro­vavelmente sim. Poucas coisas ficam escondidas dela.

Devolveu-me o bilhete com um pequeno movimento de cabeça.

— A aldeia inteira sabe disso — declarou. — E foi bastante suspeito, não foi? Especialmente considerando que a sra. Archer jurou no inquérito que a pistola ainda estava no cottage quando ela saiu ao meio-dia.

Calou-se por um minuto e depois continuou.

— Mas estou me desviando muito do assunto. O que quero fazer, e acho que é o meu dever, é oferecer a minha explicação do mistério aos senhores. Se não acreditarem... bem, terei feito o possível. Como estão as coisas agora, meu desejo de não falar enquanto não tivesse certeza pode ter custado a vida do pobre sr. Hawes.

Calou-se novamente e, quando recomeçou, sua voz es­tava diferente. Estava menos tímida, mais decidida.

— Esta é a minha explicação dos fatos. Na quinta-feira à tarde o crime já tinha sido completamente planejado, até o mínimo detalhe. Lawrence Redding foi visitar o pastor, sabendo que ele não estava. Levava consigo a pistola, que escondeu naquele vaso perto da janela. Quando o pastor chegou, Lawrence explicou sua visita dizendo que tinha resolvido ir embora. Às cinco e meia, Lawrence Redding telefonou da porteira norte para o pastor, imitando uma voz de mulher (lembrem-se de que era ótimo ator amador).

Continuou.

— A sra. Protheroe e o marido tinham acabado de sair para ir à aldeia. E, o que é curioso (embora ninguém tivesse notado), a sra. Protheroe não levou uma bolsa. É realmente uma coisa muito rara uma mulher sair sem bolsa. Um pouquinho antes das seis e vinte, passa pelo meu jardim, pára e fala comigo, para me dar plena oportunidade de notar que não traz nenhuma arma consigo e também que está em seu estado normal. Eles compreendem, sabe, que sou o tipo de pessoa que nota tudo. Ela desaparece no canto da casa, indo para a janela do escritório. O pobre coronel está sentado à secretária, escrevendo uma carta para o se­nhor. É surdo, como todos sabem. Ela tira a pistola do vaso, que estava lá à sua espera, chega por trás do marido e dá-lhe um tiro na cabeça, joga a pistola no chão e sai de novo como um relâmpago, atravessando o jardim em direção ao estúdio. Quase todo mundo juraria que não teria tido tempo!

— Mas o tiro — observou o coronel. — A senhora não ouviu o tiro?

— Existe, creio, uma invenção chamada silenciador Maxim. Isto deduzi de romances policiais. Não será possível que o espirro que a empregada, Clara, ouviu fosse realmente o tiro? Mas não importa. A sra. Protheroe se encontra no estúdio com o sr. Redding. Estando lá dentro juntos e a natureza humana sendo como é, creio que deduziram que eu não sairia do jardim enquanto não deixassem o estúdio!

Nunca tinha gostado tanto de Miss Marple quanto nes­se momento, com sua percepção humorística de suas próprias fraquezas.

— Quando finalmente saem, seu comportamento é ale­gre e natural. E aí, realmente, cometem um erro. Porque se realmente tivessem se despedido um do outro, como queriam que acreditássemos, teriam um aspecto muito dife­rente. Mas, compreendem, esse foi o seu ponto fraco. Não ousavam parecer perturbados de maneira alguma. Nos dez minutos seguintes, tiveram o cuidado de se munir do que se chama um álibi, creio. Finalmente, o sr. Redding vai para a casa do pastor e fica lá o máximo possível. Provavelmen­te viu o senhor de longe, no caminho, e pôde calcular tudo muito bem. Pega a pistola e o silenciador, deixa a carta forjada com a hora escrita em tinta diferente e, aparente­mente, em letra diferente. Quando descobrissem a falsifica­ção, pareceria uma tentativa inábil de incriminar Anne Protheroe.

— Mas quando ele deixa a carta, encontra a que foi realmente escrita pelo coronel Protheroe, o que era inespe­rado. E como é um rapaz muito inteligente, vendo que essa carta pode ser-lhe útil, leva-a consigo. Muda os ponteiros do relógio para a mesma hora da carta, sabendo que o relógio está sempre adiantado um quarto de hora. A mesma idéia: uma tentativa de fazer recaírem as suspeitas sobre a sra. Protheroe. Então sai, encontrando-se com o senhor no lado de fora do portão e representando o papel de alguém que está fora de si. Como disse, é realmente muito inteligente. O que faria um assassino que tivesse acabado de cometer um crime? Agiria com toda a naturalidade. Portanto, é exa­tamente isso o que o sr. Redding não faz. Ele se livra do silenciador, mas entra na delegacia com a pistola e faz uma auto-acusação perfeitamente ridícula que engana todo mundo.

Havia algo de fascinante no resumo do caso feito por Miss Marple, Falava com tanta segurança, que ambos senti­mos que o crime só poderia ter sido cometido dessa maneira, e de nenhuma outra.

— E o tiro que foi ouvido no bosque? — perguntei. — Foi essa a coincidência a que a senhora se referiu hoje?

— Oh, Deus, não! — Miss Marple sacudiu a cabeça vigorosamente. — Isso não foi coincidência, longe disso. Era absolutamente necessário que ouvissem um tiro, senão con­tinuariam a suspeitar da sra. Protheroe. Não sei bem como o sr. Redding arranjou isso. Mas sei que o ácido pícrico explode se se deixar cair um peso sobre ele, e o senhor deve se lembrar, caro pastor, que encontrou o sr. Redding carre­gando uma pedra grande exatamente no local do bosque onde encontrou aquele vidro mais tarde. Os homens são bastante hábeis em arranjar essas coisas... a pedra suspensa acima dos cristais e um fuso de tempo, ou um fósforo retar­dado? Alguma coisa que levasse uns vinte minutos para queimar, para que a explosão se desse por volta das seis e trinta, quando ele e a sra. Protheroe teriam já saído do estúdio e estariam à vista de todos. Uma coisa muito enge­nhosa, pois o que é que se encontraria depois? Só uma gran­de pedra! E mesmo isso ele tentou remover, quando o senhor o encontrou.

— Acho que está certa! — exclamei, lembrando-me do estremecimento de surpresa de Lawrence quando me viu naquele dia. Pareceu natural naquele momento, mas agora...

Miss Marple pareceu ler meus pensamentos, pois ba­lançou a cabeça afirmativamente.

— Sim — disse ela —, deve ter sido uma surpresa muito desagradável para ele encontrar o senhor àquela hora. Mas se saiu muito bem, fingindo que era para mim, para meu jardim. Só que — Miss Marple foi subitamente muito enfática — era um tipo de pedra que absolutamente não serve para jardins! E isso me pôs na pista certa!

Todo esse tempo o coronel Melchett ficara sentado como um homem em transe. Então mostrou sinais de reviver. Bufou uma vez ou duas, assoou o nariz e disse, meio confuso:

— Macacos me mordam! Ora essa, macacos me mordam!

Fora isso, nada mais disse. Acho que ele, assim como eu, estava impressionado com a lógica das conclusões de Miss Marple. Mas, por enquanto, não estava pronto a admiti-lo.

Em vez disso, estendeu a mão, pegou a carta amassada e grunhiu:

— Tudo muito bem. Mas como explica esse camarada Hawes? Ora, ele chegou a telefonar e confessar.

— Sim, e isso foi muito providencial. Sem dúvida, por causa do sermão do pastor. Sabe, sr. Clement, o senhor real­mente fez um sermão extraordinário. Deve ter afetado o sr. Hawes profundamente. Não pôde agüentar mais, sentiu que tinha de confessar... que se apropriara dos fundos da igreja.

— Quê!

— Sim, e isso, pela providência divina, foi o que lhe salvou a vida. (Espero e confio em que esteja salvo. O dr. Haydock é ótimo.) Como vejo as coisas, o sr. Redding guar­dou esta carta (muito arriscado, mas imagino que a escondeu em lugar seguro) e esperou até ter certeza da pessoa a quem ela se referia. Logo certificou-se de que era o sr. Hawes. Soube que veio aqui ontem à noite com o sr. Hawes e ficou algum tempo. Desconfio que foi então que substituiu uma cápsula do sr. Hawes por uma sua e enfiou essa carta no bolso do roupão dele. O pobre rapaz tomaria a cáp­sula fatal com toda a inocência. Depois de sua morte, suas coisas seriam revistadas e a carta, encontrada, e todo mundo ia tirar a conclusão de que ele havia assassinado o coronel Protheroe e se suicidado por remorso. Imagino que o sr. Hawes encontrou a carta hoje à noite, logo após tomar a cápsula fatal. Em seu estado desordenado, deve ter parecido alguma coisa sobrenatural e, abalado com o sermão do pas­tor, ele decidiu confessar tudo.

— Macacos me mordam — disse o coronel Melchett. — Macacos me mordam! Fantástico! Não... não acredito numa só palavra.

Jamais fizera uma declaração que soasse menos convin­cente. Deve ter escutado com seus próprios ouvidos, pois continuou:

— Pode explicar o outro telefonema, do cottage do sr. Redding para a sra. Price Ridley?

— Ah! — volveu Miss Marple. — Isso é o que eu chamo de coincidência. A querida Griselda fez aquela cha­mada, ela e o sr. Dennis juntos, imagino. Tinham ouvido os boatos que a sra. Price Ridley estava fazendo circular sobre o pastor e pensaram nesse meio (talvez um pouco infantil) de fazê-la calar a boca. A coincidência foi que o telefonema foi dado na hora exata do tiro falso no bosque, levando-nos a acreditar que deveria haver uma ligação entre os dois.

Lembrei-me de repente de que todo mundo que se refe­rira àquele tiro tinha dito que era diferente de um tiro comum. Tinham razão. Mas era difícil explicar qual a dife­rença, exatamente.

O coronel Melchett pigarreou.

— Sua solução é bem plausível, Miss Marple — disse ele. — Mas vai me permitir observar que não há sombra de provas.

— Sei disso — tornou Miss Marple. — Mas o senhor acredita que é verdade, não é?

Houve uma pausa e depois o coronel disse, quase com relutância:

— Sim, acredito. Que diabo, é a única maneira possí­vel de ter acontecido. Mas não há provas, nem um átomo.

Miss Marple tossiu.

— É por isso que pensei que talvez, nessas circunstâncias...

— Sim?

— Seria conveniente preparar uma armadilha.

 

O coronel Melchett e eu olhamos fixo para ela.

— Uma armadilha? Que espécie de armadilha?

Miss Marple parecia um pouco tímida, mas era eviden­te que tinha um plano já traçado.

— Vamos supor que alguém telefonasse para o sr. Redding e lhe desse um aviso.

O coronel Melchett sorriu.

— Sabemos de tudo! Fuja! Isso é muito velho, Miss Marple. Não que não dê certo, às vezes. Mas acho que nesse caso o jovem Redding é esperto demais para cair nessa.

— Teria de ser alguma coisa específica. Compreendo isso — disse Miss Marple. — Sugiro, é uma mera sugestão, que o aviso parta de alguém que é conhecido como tendo um ponto de vista fora do comum nesses assuntos. Pelo que o dr. Haydock diz, qualquer um acreditaria que ele encara uma coisa como um assassinato de uma maneira diferente. Se ele insinuasse que alguém, a sra. Sadler ou uma de suas crian­ças, por acaso teria visto a substituição das cápsulas... bem naturalmente, se o sr. Redding for inocente, isso não lhe dirá nada, mas se não for...

— Bem, talvez ele faça alguma tolice.

— E se entregue em nossas mãos. É possível. Muito engenhoso, Miss Marple. Mas será que Haydock vai con­cordar? Como disse, seu ponto de vista...

Miss Marple o interrompeu com animação.

— Oh! Mas isso é teoria! Tão diferente da prática, não é? De qualquer maneira, aí está o doutor, vamos per­guntar-lhe.

Haydock ficou, acho, muito espantado ao encontrar Miss Marple conosco. Parecia cansado e estava muito abatido.

— Foi por um fio — disse. — Por um fio. Mas vai se salvar. É a obrigação de um médico salvar seu paciente, e eu o salvei, mas ficaria mais contente se não tivesse conseguido.

— Talvez pense diferente — disse Melchett — quan­do ouvir o que temos para lhe contar.

E rápida e sucintamente expôs ao médico a teoria de Miss Marple, terminando com sua sugestão final.

Tivemos, então, o privilégio de ver exatamente o que Miss Marple quisera dizer a respeito da diferença entre a teoria e a prática.

As idéias de Haydock tinham sofrido uma transforma­ção completa. Teria gostado, acho, de ver a cabeça de Law­rence Redding numa bandeja. Não foi, imagino, o assassi­nato do coronel Protheroe que tanto despertou seu ódio. Foi o assalto ao infeliz Hawes.

— Canalha miserável — disse Haydock. — Canalha miserável! Um pobre-diabo como o Hawes. E ele tem mãe e uma irmã também. O estigma de ser mãe e irmã de um assassino ficaria com elas para sempre, e pensem só em sua angústia! Que golpe covarde e traiçoeiro!

Se quiserem ver pura raiva primitiva, observem um humanitário convicto quando perde a calma.

— Se isso é verdade — disse —, contem comigo. Esse homem não merece viver. Um camarada indefeso como Hawes!

Qualquer cão aleijado pode sempre contar com a sim­patia de Haydock.

Estava combinando os detalhes com Melchett com gran­de entusiasmo quando Miss Marple se levantou e insisti em levá-la para casa.

— É muita bondade sua, sr. Clement — disse Miss Marple, enquanto andávamos pela rua deserta. — Meu Deus, já passa da meia-noite! Espero que Raymond tenha ido para a cama sem esperar por mim.

— Devia ter acompanhado a senhora — observei.

— Não disse a ele que ia sair — esclareceu Miss Marple.

Sorri de repente ao lembrar a análise psicológica sutil que Raymond West fizera do crime.

— Se sua teoria estiver certa, o que não duvido nem por um minuto — disse eu —, a senhora obterá uma vitória sobre seu sobrinho.

Miss Marple sorriu também, um sorriso indulgente.

— Lembro-me de uma coisa que minha tia-avó Fanny costumava dizer. Eu tinha dezesseis anos nessa época e acha­va uma grande tolice.

— Sim? — perguntei.

— Costumava dizer: “Os jovens pensam que os velhos são tolos; mas os velhos sabem que os jovens são tolos!”

 

Há muito pouco mais a dizer. O plano de Miss Marple foi bem sucedido. Lawrence Redding não era inocente, e a insinuação de que havia uma testemunha da troca das cáp­sulas fez realmente com que cometesse uma tolice. Este é o poder de uma consciência culpada.

Estava, naturalmente, numa posição difícil. Seu primei­ro impulso, imagino, deve ter sido fugir. Mas tinha que considerar sua cúmplice. Não podia ir embora sem se comu­nicar com ela, e não ousava esperar até a manhã seguinte. Então foi a Old Hall, naquela mesma noite, e dois subalter­nos do coronel Melchett, extremamente eficientes, o segui­ram. Atirou umas pedrinhas na janela de Anne Protheroe, acordou-a, e um murmúrio urgente a levou até embaixo para falar com ele. Sem dúvida se sentiram mais seguros fora do que dentro de casa, com a possibilidade de acordar Lettice. Mas o que aconteceu é que os dois oficiais da polícia pude­ram ouvir a conversa toda. Não deixou nenhuma dúvida. Miss Marple estava certa em todos os pontos.

O julgamento de Lawrence Redding e Anne Protheroe é do conhecimento público. Não vou entrar nisso. Vou só mencionar que muito crédito foi dado ao inspetor Slack, cujo zelo e inteligência tinham trazido os criminosos à jus­tiça. Naturalmente, nada foi dito da participação de Miss Marple. Ela mesma teria ficado horrorizada com essa idéia.

Lettice veio me ver pouco antes do julgamento. Desli­zou pela porta de vidro do escritório, fantasmagórica como sempre. Contou-me então que estava convencida da cumpli­cidade de sua madrasta desde o princípio. A perda da boina amarela tinha sido uma desculpa para revistar o escritório. Tinha esperanças de encontrar alguma coisa que houvesse passado despercebida à polícia.

— Bem — disse com sua voz sonhadora —, eles não a odiavam como eu. E o ódio torna as coisas muito mais fáceis.

Desapontada com o resultado da sua busca, deixara propositadamente cair o brinco de Anne perto da secretária.

— Já que eu sabia que era ela, que diferença fazia? Qualquer coisa servia. Ela tinha assassinado meu pai.

Suspirei. Há certas coisas que Lettice nunca vai com­preender. Em certos aspectos ela é moralmente daltônica.

— O que vai fazer, Lettice? — perguntei.

— Quando... quando estiver tudo terminado, vou via­jar. — Hesitou, depois continuou: — Vou viajar com minha mãe.

Levantei os olhos para ela, assustado.

Acenou com a cabeça afirmativamente.

— O senhor não adivinhou? A sra. Lestrange é minha mãe. Ela está... está morrendo, sabe?  Queria me ver e por isso veio para cá com um nome falso. O dr. Haydock a ajudou. É um velho amigo e gostou dela tempos atrás, isso se vê. De certa maneira, ainda gosta. Os homens sempre ficaram loucos por mamãe. Ela é muito atraente, mesmo agora. Seja como for, o dr. Haydock fez tudo para ajudá-la. Não usou seu nome verdadeiro por causa desse pessoal no­jento com seus falatórios e mexericos. Foi ver meu pai aquela noite e disse que estava morrendo e tinha uma von­tade imensa de me ver. Meu pai foi uma peste. Disse que ela tinha abdicado de todos os direitos e que eu pensava que ela estava morta, como se eu tivesse jamais engolido aquela história! Os homens como meu pai nunca vêem um palmo adiante do nariz!

“Mas mamãe não é do tipo que desiste. Achou que o certo era ir primeiro a meu pai, mas, quando ele recusou com tanta brutalidade, ela me mandou um bilhete e larguei o jogo de tênis mais cedo para encontrar-me com ela no fim do caminho, às seis e quinze. Foi uma conversa rápida, apenas para combinar um novo encontro. Separamo-nos antes de seis e meia. Depois fiquei com medo de que suspeitas­sem que ela tinha assassinado meu pai. Afinal de contas, ela tinha queixas dele. Foi por isso que peguei aquele antigo quadro dela no sótão e o cortei em pedaços. Fiquei com medo de que a polícia fosse meter o nariz por lá e, encon­trando o retrato, reconhecesse quem era. O dr. Haydock estava com medo também. Às vezes até acho que ele pensa­va que tinha sido ela! Mamãe é uma pessoa... meio deses­perada. Não mede as conseqüências.

Fez uma pausa.

— É estranho. Nós nos pertencemos uma à outra. Meu pai e eu, não. Mas mamãe... bem, de qualquer maneira, vou para o estrangeiro com ela. Ficarei com ela até... até o fim...

Levantou-se e tomei-lhe a mão.

— Deus abençoe vocês duas — disse eu. — Algum dia, espero, você vai ser muito feliz, Lettice.

— Espero que sim — volveu ela, tentando rir. — Não tenho sido muito feliz até agora, não é? Ora, não tem importância. Adeus, sr. Clement. O senhor foi sempre muito bom comigo; o senhor e Griselda.

Griselda!

Tive de confessar a minha mulher como a carta anôni­ma me deixara profundamente perturbado, e primeiro ela riu; depois, solenemente, me passou um sermão.

— Entretanto — acrescentou —, vou ficar muito séria e temente a Deus no futuro, igualzinha aos puritanos.

Não consegui ver Griselda no papel de uma puritana.

Ela continuou:

— Sabe, Len, existe uma força que vai entrar na mi­nha vida que vai me dar muito equilíbrio. Vai entrar na sua vida também, mas no seu caso vai ser uma força... rejuvenescedora, pelo menos assim espero!  Você não poderá me chamar de querida criança quando nós tivermos uma criança de verdade. E resolvi que agora vou ser uma ver­dadeira esposa e mãe, como dizem nos livros, e uma dona-de-casa também. Comprei dois livros sobre administração do lar e um sobre amor materno e, se isso não me tornar um modelo, não sei mais o que fazer! São engraçadíssimos, sabe? Especialmente o livro sobre como educar as crianças.

— Você não comprou um livro sobre como tratar um marido, comprou? — perguntei, subitamente apreensivo, tomando-a nos braços.

— Não é preciso — disse Griselda. — Sou uma ótima esposa. Amo-o muito. Que mais você quer?

— Nada — respondi.

— Você podia dizer, só uma vez, que me ama louca­mente?

— Griselda, eu te adoro! Eu te venero! Estou louca­mente, perdidamente e muito irreligiosamente apaixonado por você!

Minha mulher deu um suspiro profundo e satisfeito.

Então afastou-se de mim de repente.

— Que amolação! Aí vem Miss Marple. Não deixe que ela desconfie, está bem? Não quero que todo mundo fique me oferecendo almofadas e insistindo para eu colocar os pés para cima. Diga-lhe que fui até o campo de golfe. Isso vai despistá-la, e é verdade, porque deixei lá o meu suéter vermelho e preciso dele.

Miss Marple veio até a porta, parou e perguntou por Griselda.

— Griselda — respondi — foi ao campo de golfe.

Uma expressão preocupada surgiu nos olhos de Miss Marple.

— Oh, mas, certamente — disse ela —, isso não é sensato, agora.

E então, à maneira antiquada de uma grande dama e donzela inocente, ficou toda vermelha.

E, para encobrir sua confusão momentânea, falamos às pressas sobre o caso Protheroe, e sobre o dr. Stone, que na verdade era um ladrão conhecido, com vários pseudônimos. A srta. Cram, por falar nisso, tinha sido inocentada de qual­quer cumplicidade. Finalmente confessou que levara a maleta para o bosque, mas tinha sido de boa fé, pois o dr. Stone lhe dissera que temia a rivalidade de outros arqueólogos que não hesitariam em roubar com o objetivo de desacreditar suas teorias. A moça aparentemente engoliu essa história não muito plausível. Está agora, de acordo com a aldeia, pro­curando um produto mais genuíno na linha de solteirões idosos que precisam de uma secretária.

Enquanto falávamos, eu me perguntava como Miss Marple havia descoberto o nosso novo segredo. Todavia, de forma discreta, a própria Miss Marple acabou me fornecendo a chave do mistério.

— Espero que a querida Griselda não esteja se exce­dendo — murmurou e, após uma pausa discreta: — Eu estava na livraria de Much Benham ontem...

Pobre Griselda! Aquele livro sobre amor materno a traiu!

— Será, Miss Marple — indaguei de repente —, que se a senhora cometesse um assassinato seria descoberta?

— Que idéia terrível! — exclamou Miss Marple, cho­cada. — Espero que eu jamais seja capaz de uma maldade dessas.

— Mas a natureza humana sendo o que é...  — murmurei.

Miss Marple admitiu o tiro certeiro com uma risadinha delicada.

— O senhor está muito maroto, sr. Clement. — Le­vantou-se. — Mas naturalmente está muito alegre.

Estacou junto à porta.

— Recomendações à minha querida Griselda; e diga-lhe que...   qualquer segredo estará muito bem guardado comigo.

Na verdade, Miss Marple é mesmo um encanto. . .

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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