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MINHA VIDA QUERIDA / Malba Tahan
MINHA VIDA QUERIDA / Malba Tahan

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MINHA VIDA QUERIDA

 

OS SEGREDOS DA ALMA FEMININA NAS LENDAS DO ORIENTE

 

RADIÁ! RADIÁ!

Um dilúvio de luz cai da montanha”. O silêncio, na claridade suave da tarde, era como uma dádiva de Allah sobre a terra. Parecia-me ouvir, ao longe, o doce som de flautas e adjuaks vibradas por artistas invisíveis.

    À porta da tenda surge, de repente, a figura altiva do quebir, chefe da caravana.

    — Vamos, beduíno! — gritou, arrebatado. — A grande caravana vai partir! Iremos para além da Pérsia; atravessaremos a índia; levaremos os nossos camelos até os confins da China e do Tibet. Terás a fortuna de conhecer as cidades e os recantos mais prodigiosos do Islã: encontrarás os mercadores mais ricos do mundo; os teus lucros serão fabulosos. Vamos! Por Allah, o Exaltado! A caravana vai partir!

    Respondi:

    — Sim, valente quebir! Sempre desejei conhecer as maravilhas desses países cheios de lendas e mistérios. Estou convencido de que essa longa e curiosa viagem seria para mim fonte de incalculáveis riquezas.

    Mas...

    Naquele momento a encantadora Radiá, com sua graça infinita de inum, colocava cocrals1 de ouro em torno de seus tornozelos morenos.

    A caravana vai partir? Vai em busca da Riqueza? Deixá-la ir, a caravana...

    — Prefiro, ó quebir! Continuar aqui, recostado nestas almofadas, vendo a querida Radiá prender colares de ouro em torno de seus tornozelos morenos...

   

    A baraca2 protegia a minha confortável tenda na orla do deserto. O narguilé3 embriagador parecia mais doce que o sorriso nos lábios da noiva apaixonada.

    Alguém chama por mim. Ouço o meu nome repetidas vezes. Reconheço a voz de um taleb4.

    — Por que me procuras, ó venerável taleb? — perguntei.

    — Vem comigo, jovem poeta! — respondeu o sábio. O rei de Cabul e o imperador da China, em viagem para Meca, pararam, esta tarde, no oásis de Bled-Djerid5. Falei em teu nome. Já leram os teus versos. Admiram-te.  Fazem questão de  conhecer-te.  Vamos até ao

   

1- Cocral — peça de ouro ou marfim em forma de pulseira larga. Inum, fada; feiticeira. Criatura dotada de encantos irresistíveis.

2- Baraca — bênção especial de um santo. A tenda, sob a proteção de uma perfeita baraca, está livre dos maus olhares e dos espíritos daninhos e perturbadores.

3- Narguilé — peça usada pelos fumantes. Há diferentes tipos de narguilés. Em geral a fumaça é aspirada por um tubo longo e passa por uma pequena camada de água.

4- Taleb — Professor.

5- Bled-Djerid — país das tâmaras.

 

oásis antes que eles partam. Por Allah! É uma oportunidade única em tua vida! Receberás as homenagens dos soberanos mais ricos e generosos! Serás o poeta mais afamado do mundo: Ficarás mais célebre do que Antar6 e mais invejado do que Moslim7.

    — Sim, judicioso taleb! Sempre ambicionei receber as homenagens daqueles que têm em mãos o ouro e o poder. O imperador da China e o rei de Cabul são os monarcas mais ricos e mais generosos, entre quantos vivem sobre a face da terra. Recebido em audiência especial, por esses soberanos, tornar-me-ei célebre. O meu nome, emoldurado pela Glória jamais sairia da memória dos homens.

    Mas...

    Naquele momento a deliciosa Radiá cantava. A sua voz era tão meiga como a lua e mais doce que as tâmaras brancas do Iêmen.

    O Rei e o Imperador esperam por mim? Encontrarei no oásis de Bled-Djerid a Glória que deslumbra e seduz os mortais?

    A Glória? Deixá-la ir, a Glória...

    — Prefiro, ó taleb!, continuar aqui, recostado indolente sobre estas almofadas, ouvindo a querida Radiá cantar, com indizível ternura os seus sonhos de amor...

   

    Pouco faltava para a hora melancólica do ezzã8. Uma poeira de luz envolvia a minha tenda onde as sombras procuravam refúgio.

    Mac Allah!9 Chamam por mim. Quem será?

    Abre-se a porta. Acha-se, diante de mim, o meu grande e dedicado amigo.

    — Venho buscar-te, meu caro — exclamou, cheio de alegria. Todos os habitantes da aldeia estão reunidos na mesquita. Mafoma, o enviado de Deus, vai falar aos fiéis, depois do ezzã. Aquele que ouvir as palavras do Profeta estará salvo e terá o seu nome incluído entre os bem-aventurados! Vem, ó irmão dos árabes, vem comigo!

    Respondi:

    — Sim, meu grande e incomparável amigo! Sempre almejei obter, pela mão do Enviado de Allah, a minha reabilitação aos olhos de Deus! Certo estou de que hoje na mesquita, entre cheiques10 e ulemás11, obteria a remissão de meus erros e a salvação de minh’alma. Ficaria, para sempre, livre do peso de meus pecados.

    Mas...

    Naquele momento a sombra do desejo aparecia, bem nítida, nos olhos negros de Radiá.

   

6- Antar — (Antara Ibn-Cheddad) poeta árabe notável, anterior ao Islamismo. Tornou-se famoso por causa do “Romance de Antara” no qual o poeta aparece como herói ao lado de Abla, a sua apaixonada, encarnando todas as virtudes que eram atribuídas aos paladinos errantes das tribos pagãs.

7- Moslim — (Moslim ben el-Valid) nasceu no ano 747 e morreu em 803. Teve, durante grande parte de sua vida, a proteção de vários generais e ministros. Foi conhecido pelo apelido de “Cari el-Asavani”, cuja tradução é: “Vitima das lindas mulheres”.

8- Ezzã — As preces obrigatórias para os árabes são em número de cinco; a primeira (mogreb) é feita ao nascer do sol; e a última (ezzã) é realizada à noite.

9- Mac Allah — Exclamação usual entre os crentes. Corresponde aproximadamente ao nosso “Deus seja louvado”.

10- Cheique — tratamento cerimonioso atribuído, em geral, aos homens respeitáveis pela idade ou pela posição social. Chefe de tribo.

11- Ulemá — doutor; homem de grande cultura.

 

    O Profeta vai falar na mesquita? Devo ouvir a sua palavra que redime e salva? A Salvação Eterna! Deixá-la ir, a Salvação Eterna...

    Prefiro, ó inesquecível amigo! continuar aqui, recostado indolente nestas almofadas, pois a sombra do desejo aparece, neste momento, bem nítida nos olhos negros e sedutores de Radiá...

   

    Minha pobre tenda está triste e vazia na orla do deserto. Radiá desapareceu de meus olhos como um asfir12 que fugisse da prisão.

    De nosso amor, que parecia eterno, restam apenas as tâmaras amargas da saudade.

    Radiá! Radiá! “Chovam lírios e rosas em teu colo! Chovam hinos de glória na tua alma!” Lembra-te, Radiá! Por ti sacrifiquei a Riqueza, a Glória, a Salvação Eterna!...

    Resta-me, ainda, a Vida!

    Sim, a Vida... Deixá-la ir, a Vida...

 

12- Asfir — pássaro verde do Sul.

 

 

MINHA VIDA QUERIDA

Na última curva da estrada Te-ha-tá parou e olhou para o céu. As montanhas sombrias, cobertas de neve, pareciam gigantes encanecidos que vigiavam silenciosos as fronteiras do Tibet. O sol, já perto do horizonte, retardava a sua marcha como se quisesse receber as últimas preces com que os lamas1 imploravam a misericórdia do Senhor da Compaixão2.

    A sombra de um vulto surgiu, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor.

    Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação3.

    O coração tem, por vezes, o dom de pressentir a desgraça. Te-ha-tá, ao avistar o Anjo da Morte, lembrou-se de sua noiva, a formosa Li-Tsen-li.

    Te-ha-tá dirigiu-se, pois, sem hesitar, ao mensageiro cruel do Destino.

    — Han-Ru, ó gênio desapiedado! — exclamou. — Que procuras aqui, quase à sombra da casa da encantadora Li-Tsen-li? Bem sei que a tua presença vale por uma sentença de morte.

    Respondeu Han-Ru, com a paciência de um enviado do Eterno:

    — A tua inquietação é legitima, meu amigo. Vim a este recanto buscar a tua noiva Li-Tsen-li. Chegou, pela determinação do Destino, o termo de sua existência neste mundo. Li-Tsen-li vai morrer!

    — Piedade, Han-Ru! Piedade! —- implorou Te-ha-tá. — Ela é tão jovem, e tão prendada! Pelo amor de Maia Devi4 deixa viver Li-Tsen-li!

    O Anjo da Morte meditou em silêncio durante alguns instantes e depois, sem erguer o rosto, disse:

    — Muito fácil será, para aquele (e é esse o teu caso!) que tem o amparo de Maia Devi, prolongar a vida de Li-Tsen-li. Sei que tens direito a uma vida longa e tranqüila; restam-te, ainda, quarenta e seis anos de vida. Poderás ceder à tua noiva a metade do tempo que te cabe, no futuro, para viver. Li-Tsen-li ficará, portanto, com direito à metade de tua vida e viverá em tua companhia, vinte e três anos. Findo esse prazo, morrerão ambos no mesmo instante! Aceitas essa proposta?

   

1- Lamas — Sacerdotes budistas entre Mongóis e Tibetanos. O chefe supremo é o grande Lama ou Dalai-Lama.

2- Deus.

3- Han-Ru — Na complicada mitologia hindu figuram nada menos de 17 deuses. Os três primeiros, Brama (o principio criador), Vishnu (o principio conservador) e Siva o principio destruidor), formam a celebre trindade hindu. Além dos 17 deuses, os hindus incluíram entre as divindades os planetas, alguns rios (o Ganges, por exemplo, é adorado sob a forma de uma deusa) e certos animais. Siva, cuja esposa é Maia Devi ou Bhavâni, tem vários auxiliares. Han-Ru é um dos gênios que se encarregam de cumprir as determinações do Deus da Destruição.

4- Maia Devi — também denominada Bhavâni. É a esposa de Siva, terceiro deus da trindade hindu. Essa deusa é, em geral, representada sob a forma de uma linda mulher, em atitude ameaçadora, montada num tigre.

      

       A sombra de um vulto surgia, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor. Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o

    As palavras de Han-Ru fizeram hesitar o jovem Te-ha-tá. Quem, decerto, não ficaria indeciso antes de sacrificar, cedendo a outrem, a metade da própria vida?

    — A tua sugestão, Han-Ru, implica uma decisão de infinita gravidade para a minha vida. Não poderei tomar uma decisão nesse sentido, sem, previamente, consultar os meus três grandes amigos. Poderás esperar que eu ouça a opinião daqueles que sempre me auxiliaram e orientaram na vida?

    — Farei como pedes, meu amigo — respondeu o Anjo da Morte. — Até o findar da noite que vai começar, aguardarei a tua palavra final. Deveras voltar, com a tua decisão, à minha presença, antes do amanhecer.

   

    Partiu Te-ha-tá em busca dos amigos, cujos sábios conselhos pretendia ouvir. Deveria ele como noivo sacrificar a metade da sua vida para salvar das garras da Morte a criatura amada?

    O primeiro amigo de Te-ha-tá era um artista tibetano de assinalados méritos. Su-Liang sabia esculpir com admirável perfeição, na pedra ou na madeira, e os seus trabalhos eram mais apreciados do que os olhos negros das Apsaras que enchem de encanto o céu de Indra1.

   

  1. Céu de Indra — Da multiplicidade de deuses que são apontados na Mitologia Hindu decorre a crença, geralmente aceita, de que existem vários céus. O céu de Indra parece ser o mais notável. Erguem-se, nessa região divina, palácios de ouro ornados de pedras preciosas, grutas, jardins prodigiosos cujas flores exalam cem mil perfumes diferentes. Um foco luminoso — mais intenso do que o sol — derrama uma claridade sobre todos os recantos do paraíso hindu. O céu de Indra é povoado por uma infinidade de ninfas encantadoras denominadas Apsaras.

     

        Eis como Su-Liang, o escultor, falou a Te-ha-tá:

        — A vida, meu amigo, só tem sentido quando a sua finalidade é traduzida por um grande e incomparável amor. E o amor que dispensa sacrifícios e renúncias não é amor; é a expressão grotesca de um capricho vulgar. Feliz aquele que pode demonstrar a grandeza de seu coração medindo-a pela extensão de um ingente sacrifício. Pela mulher amada deve o homem sacrificar, não apenas a metade de sua vida, mas a vida inteira! Que importa, Te-ha-tá, uma existência longa, torturada pela dor de uma incurável saudade? Preferível, mil vezes, que vivas a metade de tua vida à sombra feliz do amor delicioso de tua eleita. No teu caso eu não teria hesitado, um só instante, em aceitar a proposta do terrível Han-Ru.

        O segundo amigo de Te-ha-tá chamava-se Niansi. Era hábil caçador e auferia consideráveis lucros mercadejando peles.

        Ao ouvir a consulta do jovem, Niansi não se conteve:

        — É uma loucura, Te-ha-tá! Onde se viu um moço, rico e cheio de saúde, sacrificar a metade da vida por causa de uma mulher? Encontrarás, pelo mundo, milhões e milhões de mulheres lindas, muitas com as sete ou talvez, com as oito perfeições indicadas no Livro Sagrado1. Aqui mesmo (no Tibet) poderás topar, em qualquer aldeia, com centenas de meninas, algumas das quais nada ficariam a dever, julgadas pelos seus predicados de graça e beleza, à tua noiva Li-Tsen-li! Desgraçada a idéia de quereres adiar o termo da existência de uma mulher com o sacrifício de vinte e tantos anos de.tua vida! E quem poderá prever o futuro? Amanhã, essa mulher, arrebatada por uma nova paixão e deslembrada do sacrifício que por ela fizeste, abandonar-te-á e irá viver, nos braços de outro, a vida que é a tua própria vida! Que farás, então, vendo-a ceder a um odiento rival os dias roubados ao rosário de tua existência? Penso que não deverias ter hesitado ante a proposta descabida de Han-Ru, repelindo-a no mesmo instante.

       

        A divergência entre os dois amigos mais fez crescer a indecisão e a incerteza no coração de Te-ha-tá.

        — Vou ouvir — pensou o jovem — a opinião do prudente Kin-Sã. Só ele poderá indicar-me o caminho a seguir.

        Kin-Sã, citado no Tibet como um estudioso das leis e dos ritos, assim falou ao apaixonado noivo:

        — Se amas realmente Li-Tsen-li, acho que deves ceder, a essa jovem, a metade do tempo que te resta para viver. Convém, entretanto, impor uma condição. A parcela de vida, depois de cedida a Li-Tsen-li, poderá ser retomada por ti, em qualquer momento. Terás, assim, a tua tranqüilidade garantida no caso de uma infidelidade de tua futura esposa. Se ela, por qualquer  motivo, não se mostrar  digna de teu sacrifício,  perderá o direito ao resto

        

  1. Livro Sagrado — A religião dos hindus é, em parte, explicada nos Vedas, que não passam, afinal, de uma coleção de hinos, preces e conceitos morais. O Livro Sagrado a que se refere o herói do conto deve ser, naturalmente, o Código de Manu, cuja origem é anterior ao IX ante-século.

     

         Todos os conceitos e princípios religiosos no livro de Manu aparecem, aliás, citados nos Vedas.

         Há quatro Vedas, sendo cada um deles dividido em duas ou três partes. O primeiro é constituído exclusivamente por vários hinos religiosos e preces; o segundo estuda os princípios religiosos e analisa as controvérsias teológicas; o terceiro discute certos pontos obscuros de Teologia. O quarto Veda não é, em geral, aceito pelos doutores hindus.

         Os Vedas não podem ser atribuídos a um único autor; em cada um deles colaboram vários personagens de épocas diversas. Os diversos escritos foram reunidos sob a forma atual no século XVI, antes de Cristo.

    da vida que lhe cabia viver! Fora dessa condicional, qualquer outra solução para o caso não passaria de irremediável loucura!

        E concluiu o seu conselho com estas palavras:

        — Fizeste bem em hesitar. A Hesitação é irmã da Prudência. Só os loucos e temerários é que nunca hesitam.

       

        Achou Te-ha-tá bastante prudente e razoável a proposta sugerida pelo douto Kin-Sã, e levou-a sem perda de tempo, ao conhecimento de Han-Ru, o Enviado da Morte.

        Han-Ru aceitou a condição imposta pelo noivo:

        — Está bem, Te-ha-tá. Aceito a tua proposta. A bondosa Li-Tsen-li vai viver os vinte e três anos. Esta parcela de vida não foi, porém, dada, mas sim “emprestada”.

       

        Passaram-se muitos meses. Li-Tsen-li casou-se com o jovem Te-ha-tá, e os dois eram citados como os esposos mais felizes do Tibet. Li-Tsen-li, depois do casamento, passou a chamar-se Ti-long-li, vocábulo que significa “minha vida querida”.

        Um dia, afinal, Te-ha-tá foi obrigado a fazer uma longa viagem para além das fronteiras de sua terra. Deixou “Minha vida querida” e seu filhinho, que já contava algumas semanas, em companhia de seus pais.

        Quando regressou, tempos depois, teve a surpresa de encontrar os seus três amigos que o aguardavam na entrada da pequena povoação.

        — Onde está “Minha vida querida”? — perguntou, ansioso, aos amigos. — Por que não veio? Estará doente? Que aconteceu à “Minha vida querida”?

        Disse um dos amigos:

        — Enche de ânimo e de coragem o teu coração, ó Te-ha-tá! Uma grande desgraça, há três dias, caiu sobre a tua vida!

        — Desgraça? — repetiu, aflito, Te-ha-tá. — É horrível esta angústia! Vamos! Quero saber a verdade! Onde está “Minha vida querida”?

        — Morreu!

        — Morreu! — gritou Te-ha-tá, desesperado. — Não é possível! Não podia morrer! Eu sacrifiquei por ela, metade de minha vida!

        E Te-ha-tá, dominado pela dor e revoltado pelo infortúnio de haver perdido a sua esposa querida, entrou a blasfemar como um possesso, contra o Senhor da Compaixão. Erguia os braços para o céu; rolava, por vezes, sobre a terra. Insultava o nome do Criador.

        Os amigos afastaram-se, cautelosos. Era preciso deixar o infeliz Te-ha-tá dar plena expansão à indizível angústia que lhe esmagava o coração.

        Em dado momento Te-ha-tá viu surgir diante de si a figura de Han-Ru, o Anjo da Morte.

        — Han-Ru! — bradou, num tom de incontido rancor. — Faltaste com a tua palavra. Que fizeste de “Minha vida querida”?

        — Escuta, Te-ha-tá — respondeu Han-Ru. — Preciso dizer-te a verdade, para que não continues a blasfemar desse modo. A tua esposa deveria viver vinte e três anos. Um dia, porém, o seu filhinho adoeceu gravemente. O pequenino ia morrer. Que fez a tua esposa? Pediu, em preces, que a sua vida fosse dada ao filhinho enfermo para que ele pudesse viver! Salvou-se o teu filho, mas tua esposa morreu!

        E, ante a estupefação de Te-ha-tá, o Anjo da Morte concluiu:

        — E enquanto tu, como noivo, hesitaste em ceder a metade de tua vida, ela mãe extremosa, não hesitou um segundo em dar, pelo filhinho, a vida inteira!

     

     

    A MULHER E O CASTIÇAL

    A sombra fugaz de um vulto feminino esgueirou-se ao longe, no fundo da rua sombria.

        Os mais desencontrados pensamentos, nascidos da inquietação de seu coração, baralhava-se, naquele momento, no cérebro de Daniel Leib. Sentia-se envolvido numa atmosfera de tristeza, que ele não sabia explicar. Como se lhe afigurava angustiosa aquela insatisfação eterna e acabrunhante! Encontraria, afinal, em seu pai, sempre prudente e sensato, o amparo moral de que tanto precisava?

        O velho Renato Leib ergueu-se vagaroso, aproximou-se do filho e, tocando-lhe o ombro com a mão larga e trêmula, disse-lhe, bondoso:

        — Daniel, ouve cá. É preciso que confies em mim. Devo dizer-te a verdade com franqueza e lealdade que convém a um homem de bem, quando fala ao filho. As queixas e recriminações que acabaste de formular e as palavras de negra revolta que proferiste são, a meu ver, uma grande e dolorosa injustiça. Revoltas-te contra o Destino, julgas aniquilada a tua vida, e, no entanto, o Destino tem sido, para contigo, pródigo em benefícios de toda espécie. A partir da época de teu acertado casamento...

        — Acertado casamento? — repetiu Daniel, sublinhando, irônico, as palavras paternas. — Esse casamento que todos enfeitam com as lantejoulas dos elogios fáceis, não passou, afinal, de um erro deplorável de minha vida.

        O judicioso Renato esboçou um sorriso de tolerância e bondade.

        — Toquei precisamente no ponto vital, visto que dele julgas irradiarem todas as desditas e contrariedades de tua vida: o teu casamento! Não te sentes feliz com tua esposa: mais de cem vezes tenho já entrevisto em tuas palavras queixas e censuras que visam diretamente àquela que escolheste para mãe de teus filhos.

        — “Falta-me quem me compreenda” — dizes. — “Tenho junto de mim alguém de uma intolerável vulgaridade”. E, levado pela eterna insatisfação dos teus desejos, envolves a tua boa Lenida num véu de defeitos e fraquezas, tornando-a a menos desejável de todas as esposas. Como explicar essa atitude de tua parte em relação a uma mulher que já obteve em tempo não muito distante, as preferências de teu amor? Sei, ou melhor, adivinho tudo, meu caro Daniel. Insistes, naturalmente, em fazer paralelos entre Lenida e as outras mulheres, e esses paralelos em que as duas partes são vistas desigualmente, levam-te a ver sempre com olhos desfavoráveis a tua esposa. Com as fantasias de tua imaginação impetuosa, enfeitas as esposas ou amantes de teus amigos, com predicados raros e encantos admiráveis, ao passo que de tua paciente companheira só sabes realçar os defeitos, esquecido, por completo, de suas boas qualidades. Lembra-te de que não tive ingerência em teu casamento. Afligi-me, não poucas vezes, com a idéia de que poderias, arrebatado por insofrida paixão, fazer uma escolha infeliz, e trazer para o recesso do teu lar, sob o escudo de teu nome, uma criatura pouco digna de teus afetos. Um erro dessa natureza é, bem sei, fonte perene de cruciantes arrependimentos e desgostos. Com o perpassar dos anos, entretanto, procurei observar, dia a dia, a tua esposa, para ver se eram justas ou não as tuas queixas. Mais de uma vez tive ímpetos de abrir os teus olhos (como agora o estou fazendo) e revelar-te a verdade que desconheces. Se o não fiz há mais tempo, foi unicamente por acreditar que seria mais nobilitante que ao teu coração a verdade chegasse guiada pelo teu bom-senso de marido e de pai. Lenida é carinhosa e simples; esforçada e econômica; ativa e zelosa. Muito longe está, talvez, de ser brilhante como uma artista ou de possuir talento excepcional; mas é sensata e agradável no conversar, discreta nas atitudes e modesta nas maneiras. Jamais se queixa da pobreza em que vive, nem inveja os belos colares e vestidos que algumas amigas ostentam. Nada exige; nada reclama. Se alguma vez pareceu faltar-te foi porque não a procuraste como devias. Julgavas, por vezes, que ela estivesse muitas léguas longe de ti, quando, na realidade, e em pensamento, tinhas-la a teu lado. Mãe extremosa, jamais se descuidou um só momento dos filhos, para os quais tem sido de uma dedicação incomparável. Será linda? Nada quero afirmar a tal respeito, mas pelo que tenho ouvido de bocas insuspeitas, Lenida seria capaz de fazer boa presença entre as moças mais requestadas da cidade. Só tu, meu filho, és cego, inteiramente cego, para apreciar as belas qualidades que adornam tua esposa.

        — Mas, meu pai...

        — Não me interrompas, Daniel — continuou o ancião. — Falei-te com a franqueza de um amigo sincero e com a lealdade de um pai dedicadíssimo. Ser-me-ia fácil provar-te (sem lograr, talvez, convencer-te) que não és digno, talvez, da esposa que tens. Estou certo, entretanto, de que só poderás compreender perfeitamente o sentido de minhas palavras, se te dispuseres a ouvir, com paciência, uma lenda, ou melhor, uma simples história, quase infantil. É a história de um castiçal. Queres ouvi-la?

        — Conta-a, meu pai.

       

        — Era uma vez (por que não começar assim?), era uma vez, repito, um pobre jardineiro, humilde e muito pobre, que se chamava Tagil.

        Ao regressar, um dia, de uma excursão à floresta, avistou Tagil um viajante desconhecido que se achava em perigo ao ser assaltado por dois ladrões, em estrada deserta. Tagil, alma nobre e ânimo valente, sem medir as conseqüências de seu destemor, atirou-se, em socorro do viajante e conseguiu, graças a sua força e coragem, pôr em fuga os dois bandidos.

        O desconhecido (que era, aliás, um rico mercador), ao chegar à cidade, disse ao corajoso Tagil:

        — Meu amigo, não fosse o seu providencial auxílio, e eu seria, com certeza, assassinado pelos facínoras que me atacaram na estrada. Devo-lhe, pois, a vida. E, como lembrança de minha infinita gratidão, quero dar-lhe um presente.

        E o mercador entregou ao jardineiro uma pequena caixa amarela de couro lavrado.

        Tagil, nem bem chegado a casa, abriu sofregamente, cheio de curiosidade, a misteriosa caixa para conhecer as preciosidades que ela deveria conter.

        Com grande espanto encontrou, apenas, um castiçal de forma estranha e de metal escuro e pesado.

        — Ora, um castiçal! — exclamou ele, profundamente decepcionado com aquela triste descoberta. Um castiçal! Ora vejam! Arrisco a vida, luto contra salteadores de estrada e, ao cabo de tudo, ganho esta droga! Que vou fazer com isto? Em que poderá um simples castiçal melhorar ou remediar a minha vida? Seria preferível que o mercador me tivesse presenteado com um punhado de patacões de prata!

        E, certo de ter sido logrado em suas esperanças, vencido pela desilusão que lhe trouxera o desvalor do presente, Tagil atirou com o castiçal para um canto e deixou-o para ali esquecido, abandonado como coisa inútil e desprezível.

        — Ora, um castiçal!

        E Tagil quando nele punha os olhos, vinha-lhe à lembrança, com tristeza, o logro que sofrerá ao receber a caixa amarela do rico mercador.

        — Ora, um castiçal!

        O certo é que o mísero castiçal rolava, como se fora uma inutilidade, de um lado para outro em casa de Tagil. Tendo, certa vez, caído pela janela abaixo esteve muitos dias ao relento, perdido no terreiro imundo. De outra feita, serviu de calço a um móvel partido e, por último, até de martelo manejado pelas mãos fortes e calosas do seu dono.

        Um dia, afinal, Tagil, oprimido pelas dificuldades da vida, deixou a casa em que morava e foi residir numa cidade próxima, onde esperava achar trabalho. Levou consigo quase todos os objetos que possuía; deixou apenas, sobre uma mesa tosca e suja, como coisa imprestável, o pesado castiçal com que o presenteara o rico mercador a quem salvara da sanha mortífera de dois execrados de Allah!

        Ora, aconteceu que a casa deixada por Tagil foi ocupada, dias depois, por um músico de profissão.

        Leonardo (assim se chamava ele) era homem pobre e trabalhador; ao encontrar o castiçal abandonado, teve a impressão de que se tratava de uma peça curiosa e digna de atenção. Cuidando, desde logo, de livrá-lo do pó que o cobria e das manchas que o enfeavam, notou que apresentava na superfície da base certas linhas e figuras dispostas de modo muito singular.

        Deslumbrado com a inesperada descoberta, Leonardo entrou a examinar com toda a meticulosidade o desprezado utensílio e teve ensejo de verificar que se tratava de uma verdadeira maravilha. A figura da base era, sem dúvida, execução paciente de um artista genial. Via-se gravado no metal, com traços admiráveis, quase imperceptíveis, a figura de uma soberba galera que deslizava impávida num mar imenso, beijada brandamente pela escumilha das ondas irrequietas; inclinando-se um pouco o castiçal já a cena era inteiramente diversa. Distinguia-se uma bailarina com seus véus, a dançar no meio de um lindo jardim. Desviando-se o olhar um pouco mais para a direita, notava-se que a bailarina desaparecia ocupando-lhe o lugar uma imponente mesquita com suas almenaras1 apontadas para o céu; procurando-se, com cuidado, uma disposição conveniente, graças a um fluxo de

     

    1- Almenaras — torres de que são providas as mesquitas. Das almenaras ou “minaretes”, o muezin chama os fiéis à prece.

     

    um fluxo de luz, via-se, ainda, um corcel negro a galopar sobre uma montanha de nuvens.

    Tudo isso o genial gravador fizera, com o buril, na superfície polida do castiçal.

        Sem perda de tempo, Leonardo levou o maravilhoso objeto a diversas pessoas, e todas tiveram oportunidade de admirar a extraordinária perfeição do originalíssimo trabalho. E Leonardo, ao desfazer-se do precioso castiçal ganhou uma fortuna incalculável.

        Como é singular o destino das coisas!

        O que nas mãos de Tagil era uma peça inútil e desvaliosa, tornara-se uma verdadeira preciosidade aos olhos inteligentes de Leonardo. Este, mais hábil, soube, com finura, ver as maravilhas que o outro jamais conseguira vislumbrar.

        Quantos homens não há, por este mundo, a quem cercam tesouros inapreciáveis, mas cujos olhos, desorientados por sentimentos maus, não chegam, sequer, a perceber o brilho ofuscante das pedrarias que o rodeiam?

        Tens, meu filho, em tua casa, um precioso castiçal que o Destino depositou em tuas mãos. Cuida dele com carinho e cuidado. Não queiras ser o ridículo Tagil da lenda, que não soube avaliar as grandezas do tesouro que possuía.

       

        Terminada a narrativa, Daniel Leib ergueu-se, afinal.

        As últimas palavras de seu pai vibraram no ar e ecoavam-lhe impertinentes aos ouvidos.

        — Não queiras ser o ridículo Tagil da lenda...

        A tarde caía lentamente. As primeiras sombras acomodavam-se já pelos recantos que a luz ia, pouco a pouco, abandonando. Lembrou-se Daniel, daquele momento, de que sua esposa Lenida, sempre bondosa, estaria, com certeza, resignada, à sua espera.

        Estranho remorso, de que ele não podia desvencilhar-se, oprimia-lhe fortemente o coração.

        Teve ímpetos de correr a casa, abraçar a mulher, abraçá-la muito, beijá-la como já não o fazia há muito tempo.

        — Vai, meu filho, vai.

     

       

    O PASTORZINHO ADORMECIDO

    Vencido pela fadiga, o pobre pastorzinho deitou-se à sombra de uma grande árvore, à margem da estrada, e dormiu placidamente.

        Que idade poderia ter aquele pegureiro de feições tão delicadas? Quinze ou dezesseis anos, talvez... Era um adolescente.

        Passou pela grande estrada o rei com sua rutilante guarda de nobres e cavaleiros. O poderoso monarca não tinha filhos e procurava ansioso pelo mundo um herdeiro digno de sua invejável coroa. Ao avistar, pois, o jovem zagal, o Rei parou e dirigindo-se ao oficial que o acompanhava, disse-lhe.

        — Que belo menino vejo ali, a dormir, sob aquela árvore! Se a boa-sorte o colocou no meu caminho, para que contrariar o Destino? Tenho o pressentimento de que poderei realizar agora o sonho admirável de minha vida! Vou levar aquele jovem para o meu palácio e fazê-lo herdeiro do meu trono e de meus tesouros.

        E o rei desceu de sua bela carruagem e aproximou-se cuidadoso do pastorzinho adormecido.

        Mas... como é incerto e caprichoso o destino das criaturas!

        O pastorzinho dormia tão sereno, tão tranqüilo, que o poderoso monarca ficou com pena de acordá-lo.

        — Não, não o despertarei agora — exclamou afinal. — Seria uma crueldade arrancá-lo às delícias do sono. Voltarei depois.

        E, deixando o pastorzinho adormecido, seguiu a jornada, pela estrada longa, para nunca mais voltar...

       

        Momentos depois, pela estrada silenciosa, passou uma formosa princesa, com suas aias e damas de companhia. Acentuadamente romântica não hesitava em satisfazer as fantasias mais extravagantes que lhe ditava o arrebatado coração. Ao pousar os olhos no pastorzinho adormecido, encheu-se de súbita alegria e exclamou:

        — Que lindo rapaz, vejo ali, a dormir, descuidado, sob aquela árvore! Tem, precisamente, as feições admiráveis do noivo que sonhei para mim. Vou levá-lo, agora mesmo, para o palácio de meus pais e elegê-lo meu futuro esposo. Sinto-me, desde já, loucamente apaixonada por esse louro pastorzinho!

        E a sentimental princesa aproximou-se leve e delicadamente do eleito de seu coração.

        Mas... como é incerto e caprichoso o destino das criaturas!

        O jovem dormia tão plácido, tão tranqüilo, que a princesinha romântica ficou com pena de acordá-lo.

        — Não! Seria impiedade despertá-lo agora! Ê bem possível que esteja até a sonhar comigo! Voltarei depois, ao cair da tarde!

        

     

         Ao pousar os olhos no pastorzinho adormecido, encheu-se a princesa de súbita alegria e exclamou: — Que lindo rapaz vejo ali, a dormir, descuidado, sob aquela árvore!

       

       

        E a encantadora filha de reis, deixando o pastorzinho adormecido, seguiu jornada, pela longa estrada, para nunca mais voltar.

       

        Continuava, ainda, o pastor a dormir sob a árvore, quando cruzou a estrada um dos bandidos mais perigosos da região. Pesavam-lhe sobre os ombros os crimes mais cruéis e revoltantes.

        Ao deparar-se-lhe o pastorzinho adormecido, o assassino encheu-se de ódio e furor. Em seus olhos brilhava a perversidade dos loucos furiosos.

        — Olá! Que vejo! Um menino a dormir como um ébrio no caminho! Vou matá-lo, e é para já. Assim me vingo das perseguições que tenho sofrido nesta maldita terra.

        E, arrancando de um afiado punhal, o facínora aproximou-se, pé ante pé, do pobre pastorzinho.

        Mas... como é incerto e caprichoso o destino das criaturas!

        O jovem dormia tão sereno, tão tranqüilo, que o bandido hesitou em sacrificá-lo.

        — Não —- resmungou afinal. — Não o matarei agora! O sono não permitiria, por certo, que ele sentisse a morte. Voltarei mais tarde, e, então, liquidaremos as nossas contas.

        E o impiedoso assassino, deixando em paz o pastorzinho, seguiu jornada, pela longa estrada, para nunca mais voltar!

       

        Meus amigos, reparai bem.

        Quantas vezes, em meio do turbilhão de vossa existência, não ficastes, como o pastorzinho da lenda, adormecido à margem da grande estrada da Vida? E de vós também se aproximaram, em certos momentos, sem que pudésseis perceber a Fortuna, o Amor e a Morte...

     

     

    O PAI QUE CASOU CINCO FILHAS

    Na célebre e turbulenta cidade de Bagdá — a dileta dos califas — Vivia outrora um negociante que se chamava Chebac, homem dotado de bom-senso e cuja vida era equilibrada e conduzida ao ritmo suave da honestidade tranqüila.

        Esse bom mercador era viúvo e tinha cinco graciosas filhas cujos nomes (se Allah quiser!) serão indicados no decorrer desta singular narrativa.

        O extraordinário cuidado que Chebac dispensava à educação de suas filhas poderia merecer o excepcional qualificativo de al-monetib — vocábulo que os filósofos não sabem (é pena!) traduzir com verdadeira fidelidade. A sua ambição máxima, na vida, era vê-las casadas, e vivendo em perfeita harmonia com os seus esposos. Que sonho mais radiante poderia iluminar a imaginação de um pai?

        Casar bem cinco filhas! Eis o grande e terrível problema que o diligente mercador cumpria resolver, dentro de um prazo relativamente curto.

        Obter para uma filha um noivo desejável e rico já é tarefa bastante delicada e difícil. Mas casar bem cinco filhas... Só mesmo com o auxilio de Allah, o Altíssimo, o Único, o Onipotente!

        — Allahur Akbar! — exclamam os verdadeiros crentes. — Allahur Akbar quer dizer: Deus é grande! Não deve haver na vida lugar para desânimo e fraquezas! O fraco é como o camelo atacado de congestões.

        Continuemos, porém, a história.

        Quis a vontade do Onipotente que o mercador Chebac se sentisse obrigado, pelos seus deveres religiosos, a fazer uma peregrinação a Meca, a Cidade-Santa.

        Como partir para uma jornada tão longa, durante a qual a fadiga, sendo imensa, ainda é menor do que o perigo, deixando as suas queridas filhas ao desamparo num centro populoso como a tumultuosa Bagdá?

        Levá-las? Eis uma solução que qualquer pasteleiro da aldeia repeliria sem hesitar um segundo.

        O deserto, como todos sabem, é infestado por beduínos ferozes que sonham com viagens impossíveis.

        Sentindo-se embaraçado, em dúvida, sobre a melhor resolução a tomar, o mercador achou que seria de bom-aviso ouvir a opinião de seu judicioso amigo Al-Tarik, que exercera o cargo de Primeiro-Conselheiro na Corte do saudoso califa Al-Mamum. Al-Tarik era um ulemá, isto é, um cheique dotado de notável saber. (Allah, porém, é mais sábio).

        — O teu caso é muito sério, meu caro Chebac — respondeu o ulemá. — Não posso aconselhar que leve as tuas cinco filhas no meio da caravana; seria sacrificá-las no deserto, fazendo-as, talvez, cair nas mãos dos audaciosos beduínos traficantes de escravos, homens que são mais perigosos que o simum. Deixá-las, porém, sozinhas em Bagdá, não é medida que um árabe prudente e sensato possa aprovar. As seduções da cidade, e a perniciosa companhia dos maus, arrastam as jovens para o fundo dos abismos e dos erros mais degradantes.

     

         Ao chegar a casa reuniu as meninas e repetiu, com paternal carinho, para que elas

         ouvissem, a fantasiosa história das cinco pérolas, salientando o

         grave embaraço em que se achava.

       

        E, depois de meditar algum tempo, disse o sábio Al-Tarik:

        — Só vejo, no momento, uma solução, para o caso que se me afigura complicado. Quando chegares, hoje, a tua casa, dirás às tuas filhas o seguinte: — “Minhas queridas meninas! O dever sagrado de crente obriga-me a fazer uma peregrinação à Meca, a cidade de Deus, o Santuário da Fé. Tenho, entretanto, cinco pérolas que são para mim de inestimável valor. Não posso levar comigo esse tesouro, pois a jornada que vou empreender é longa e não isenta de graves riscos. Parece-me que não seria prudente deixar as preciosas pérolas e partir; durante a minha ausência, quem poderá livrá-las, como sempre tenho feito, da cobiça insaciável dos aventureiros, rapinantes e ladrões? Que devo, pois, fazer, nessa emergência, minhas filhas?” Ouvirás com a maior atenção todas as respostas das jovens. Interessa-me conhecer a opinião de cada uma delas. Só então poderei dar um conselho acertado e seguro sobre a melhor forma de resolver a dificuldade. Combinado? Uassalã!

        O negociante fez precisamente como lhe havia aconselhado o discreto ulemá.

        Ao chegar a casa reuniu as meninas e repetiu com paternal carinho, para que elas ouvissem a fantasiosa história das cinco pérolas, salientando o grave embaraço em que se achava. E interpelou-as afinal:

        — “Que devo, pois, fazer, minhas filhas?”

        A mais velha, que se chamava Quetir (Quetir dos Olhos Verdes), assim falou:

        — Acho, meu pai, que deveis vender as cinco pérolas por bom preço e comprar um terreno em boas condições. O negócio será altamente vantajoso e seguro. Durante a vossa ausência o terreno ficará valorizado e poderá ser vendido, mais tarde, com um bom lucro. O dinheiro ganho nessa transação será, para o futuro, um descanso tranqüilo para a vossa velhice, justa recompensa às vossas fadigas e trabalhos.

        Respondeu a segunda, a deliciosa e meiga Ahizil:

        — Penso, meu pai, que seria mais prudente deixar as vossas pérolas nas mãos de um homem sério, honrado, que fosse de absoluta confiança. Não possuis, meu pai, um amigo digno da vossa confiança? A boa amizade, para os ricos, serve de glória; para os pobres, de renda; para os desterrados, de pátria; para os fracos, de esforço; para os enfermos, de medicina; e até para os mortos, de vida! Confiai o vosso tesouro aos cuidados de vosso maior amigo!

        Amine, a terceira, convidada a falar, não hesitou. Em Amine, o principal traço de formosura era o sorriso de bondade e candura que bailava em seus lábios. Disse Amine:

        — Se o dever religioso vos obriga, meu pai, a uma jornada, por que vos preocupais tanto com os bens materiais que nada valem? Confiai em Deus, meu pai! Allah pode ouvir as queixas surdas de nosso coração e ler os nossos desejos na cor invisível de nossos pensamentos. Allah é poderoso, é justo, e sabe premiar, com infinita bondade, os crentes dedicados e sinceros! Esquecei as cinco pérolas que não passam de um mísero tesouro da terra, para pensar apenas nas cinco preces diárias que são os grandes tesouros do Céu. A oração, meu pai, é uma das expressões mais íntimas e delicadas da vida piedosa. Allahur Akbar! Deus é grande! Se colocardes Deus em tudo o que fizerdes encontrá-lo-eis em tudo o que vos suceder.

        A formosa Astir, que admirava os poetas e sonhava com as coisas mais românticas da vida, não soube conter os arroubos e fantasias de sua imaginação exaltada. Eis como Astir resolveria o caso:

        — Tenho uma idéia, meu pai, que parece genial. Com as cinco pérolas fareis um lindo adereço, que será, por vossas mãos, entregue ao califa, nosso amo e senhor. O monarca surpreendido exclamará: “Que belo diadema!” E perguntará a razão de ser daquele rico presente. Direis então: — “Ó rei poderoso, sombra de Allah na terra! Essas cinco pérolas colhidas nos mares da Arábia, não passam de humilde homenagem de um pobre e esforçado peregrino viúvo, pai de cinco filhas solteiras. Esquecer o desvalor deste insignificante presente é a maior caridade que podeis fazer ao ofertante!” Encantado com essa delicada resposta, tão cheia de modéstia, o califa, que é generoso e bom, dirá, com toda certeza: — “Se vais fazer uma peregrinação, ó muçulmano!, precisas, imediatamente, de um bom auxílio.” E determinará que sejam postos à vossa disposição cinco mil dinares de ouro; uma caravana; dez cameleiros e cinco guardas bem armados. E o glorioso califa (que Allah o conserve!) acrescentará afinal: — “Com os valiosos recursos que ponho agora à tua disposição, ó peregrino, poderás ir à Cidade Santa, levando, em tua companhia, as tuas cinco filhas, que devem ser lindas como a lua de Ramadã1. Essa viagem, cheia de episódios, será utilíssima para elas!” E assim, meu pai, iríamos todos conhecer o Santuário

     

    1- Ramadã — período do ano muçulmano (28 dias) durante o qual o jejum é obrigatório aos crentes do Islã. Esse jejum só deve durar entre o nascer e o por do Sol. Quando a Lua aparece no céu (lua-cheia) começam logo as festas e banquetes. A lua de Ramadã é, por esse motivo, apontada como a “lua” mais linda do céu.

    Da Fé, a milagrosa Caaba, no coração do Islã1.

     

        A mais moça de todas, a encantadora Leilá, compreendendo que chegara, enfim, a sua vez de falar, disse:

        — Essa original história, meu pai, das cinco pérolas, que acabais de nos contar, não passa, a meu ver, de um símbolo muito bem-imaginado. Às cinco pérolas que afirmais possuir, somos nós, com certeza, as vossas filhas. Aconselha a prudência que um pai não leve suas filhas moças a jornadear pelos caminhos inseguros dos desertos, infestados de chacais e aventureiros da pior espécie. Ao vosso coração, entretanto, não agrada deixar-nos sozinhos no burburinho desta Bagdá. Se o problema é assim tão grave, deveis, a meu ver, consultar os vossos amigos mais sérios e judiciosos, antes de tomardes qualquer resolução. Atentai, meu pai, nas palavras do filósofo: “A perfeição moral consiste em fazermos por inspiração do amor o que faríamos por exigência do dever”.

          

        O mercador foi ter novamente com o prudente Al-Tarik e repetiu-lhe fielmente as diversas respostas formuladas por suas filhas.

        Disse o judicioso e nobre ulemá:

        — Esse caso tornou-se interessantíssimo e merece ser analisado com a maior atenção. Logo mais, depois da última prece, devo fazer, a pedido do califa, uma conferência na mesquita. Nessa conferência, que é destinada aos nobres e cheiques, vou tomar por tema os diversos aspectos sob os quais se apresentam as respostas de tuas filhas. Quero conhecer sobre o caso, a opinião dos homens mais cultos da cidade.

        A conferência feita pelo ilustre Al-Tarik causou profunda impressão ao seu numeroso auditório. No dia seguinte, na alta sociedade de Bagdá, não se comentava outra coisa senão a situação complicada do mercador e a diversidade das originais sugestões formuladas pelas cinco jovens.

        E a palestra do sábio polemista teve, ainda, outras conseqüências mais interessantes que passaremos a relatar.

        Ao cair da tarde achava-se o bom Chebac trabalhando em sua loja, quando foi procurado por cinco rapazes, pertencentes às famílias mais ricas e prestigiosas da cidade.

        Intrigado com a inesperada visita dos nobres, o mercador perguntou-lhes o que desejavam.

        Ao ser interpelado, disse o primeiro cheique:

        — Alimentei sempre a esperança de casar com uma jovem boa, sensata, e que tivesse uma compreensão clara, perfeita e prática da vida. A vossa filha Quebir revelou, a meu ver, qualidades excepcionais. Aquela lembrança de vender as pérolas e comprar um terreno é maravilhosa! Venho, portanto, pedi-la em casamento, pois é com uma mulher ajuizada e perita em transações, que eu desejo vivamente casar.

        O segundo visitante, que era um dos rapazes mais brilhantes de Bagdá, assim falou:

        — Fui informado hoje da admirável resposta proferida pela vossa filha Ahizil no caso das Cinco Pérolas. Demonstrou ser uma jovem sensata e prudente. Sabe confiar naqueles que são dignos e repelir os perversos. Fez da verdadeira amizade o maior elogio que já ouvi. Essa jovem demonstrou possuir uma alma boa, límpida, livre do peso das desconfianças torturantes que nublam os afetos e perturbam a vida. Venho, pois, pedir em casamento a vossa filha Ahizil.

     

  1. Islã — significa “resignação”. Conjunto de países cujos povos adotaram a religião de Mafoma. Caaba é um templo, de forma cúbica, que é venerado em Meca.

     

        Aproximou-se o terceiro visitante e dirigindo-se ao mercador declarou o seguinte:

        — O meu sonho dourado, senhor Chebac, era escolher, sem possibilidade de erro, uma esposa dotada de elevados sentimentos religiosos. Sou adepto da moral religiosa; a moral sem Deus é falsa e ridícula. A esposa religiosa é, a meu ver, a esposa ideal. Virgem, esposa, mãe ou filha, a mulher religiosa é sempre um agente de Deus nas obras de Seu amor. Deus fê-la bálsamo de todas as dores, alívio de todas as tristezas, amparo de todas as desventuras, e não há uma só miséria na vida de que Deus não tenha feito da mulher o anjo libertador. A vossa filha Amine, pela resposta que proferiu, demonstrou possuir um nobre coração e ser uma crente sincera. É, pois, Amine que eu venho pedir em casamento. Queira Allah que ela possa ter por mim o mesmo e infinito amor que eu sinto, desde já, por ela.

        Antes que o bom Chebac pudesse despertar do assombro em que se achava, o quarto cheique, que era prosador e poeta, tomou da palavra e confessou sem mais preâmbulos:

        — A vossa filha Astir, ó mercador!, é um sonho de poeta que os gênios bondosos fizeram viver neste mundo. A sua imaginação prodigiosa deslumbrou-me; o seu talento incomparável arrebatou o meu coração. Os atos do coração parecem ridículos quando é o espírito que os julga. Estou loucamente apaixonado por Astir e considerar-me-ia o mais feliz dos mortais se ela se dignasse aceitar-me por esposo!

        O quinto cheique aproximou-se do velho Chebac, fez um respeitoso salã1 e declarou, com voz firme e pausada:

        — Todas as vossas filhas, ó mercador!, revelaram possuir predicados excepcionais. As respostas que elas formularam, no caso das Cinco Pérolas, dariam assunto para dez lindos poemas em prosa e verso. Leilá, a mais moça, demonstrou, porém, ser a mais inteligente de todas, pois foi a única que compreendeu o simbolismo do caso. A mulher inteligente, cordata e obediente (dizem os maiores filósofos) é a companheira ideal, é a esposa invejável. A mulher perfeita, segundo ensina o Alcorão, deve possuir três predicados, cinco virtudes e sete atributos. Os três predicados são: bondade, inteligência e beleza. Venho, pois, pedir em casamento a mão de vossa filha Leilá, a criatura mais fina e mais espirituosa do mundo! Exaltado seja Allah, que criou a Mulher, a Beleza e o Amor!

                     

        Allahur Akbar! Foi assim que Chebac, o mercador, resolveu o complicadíssimo problema das “Cinco Pérolas”.

        Casou muito bem as suas filhas e partiu tranqüilo, em meio de uma grande caravana de peregrinos, para ir beijar, como bom devoto, a pedra negra da Caaba, na Cidade Santa de Meca.

        E, dois anos depois, quando regressou a Bagdá, veio encontrar as suas filhas diletas, vivendo felizes e radiantes com seus dedicados esposos: foi recebido, também, por cinco lindos netinhos que já exclamavam em árabe (parece incrível!) estendendo, risonhos, os braços morenos:

        — Jedê! Jedê! (Vovô! Vovô!).

       

    1- Salã quer dizer paz. É a expressão de que se servem os árabes em suas saudações.

     

       

    A NOIVA DO CHEIQUE

    No dia em que meu pai deliberou casar-me com o cheique Ornar Bahil, assaltou-me um desespero sem limites. Triste destino o de tornar-me esposa do homem mais odiento da cidade!

        A velha Zenuja, vendedora de perfumes, tintas e colares, que vinha diariamente ao nosso harém1, vendo-me aflita e chorosa, perguntou-me, penalizada, qual a causa daquela angústia que pesava sobre mim.

        Ao saber da triste verdade exclamou, exaltada:

        — Não é possível, Jamile querida! Por Maomé! Não poderás te casar com esse velho Bahil, feio e perverso! Seria um crime!

        — Nada poderás fazer em meu favor, Zenuja! — respondi, desolada. — Meu pai é teimoso e, além do mais, conta desde já com o valioso dote que o cheique prometeu.

        Zenuja, depois de meditar um momento, perguntou-me muito séria:

        — Dize-me uma coisa, ó Jamile. O cheique já viu alguma vez o teu rosto mimoso?

        — Nunca, ó Zenuja! Nunca! Meu pai foi o único homem que até hoje me viu de rosto descoberto.

        A velha fitando-me severa insistiu:

        — Só teu pai, menina? Só teu pai?

        Afligindo-me o remorso e o receio de ocultar a verdade balbuciei envergonhada:

        — Meu pai e... aquele jovem mercador que viste há três dias acenar para mim à entrada do cemitério!

        — Está bem Jamile! Pelas barbas do Profeta! Se assim é poderei salvar-te do cheique. Exijo apenas uma condição: Ficarei encarregada de preparar-te para a noite de teu casamento. Tranqüiliza o teu namorado para que ele não faça alguma loucura e deixa o resto por minha conta. — E, sorrindo, cheia de orgulho, acrescentou:

        — Estou certa de que o cheique irá desfazer o compromisso de casamento!

        Confiei cegamente na velha amiga e a ela entreguei a minha sorte. Preocupava-me, entretanto, de modo impressionante, o meu próximo casamento. Que artifício iria empregar a astuciosa Zenuja para afugentar de mim o noivo detestável?

        Informei, nessa mesma tarde, o meu namorado de tudo que se passava no harém e aguardei serenamente o dia indesejável de minhas núpcias.

              

        Nesse dia a nossa casa encheu-se de parentes e convidados. Do meu quarto ouvi as risadas dos amigos de meu pai que comentavam futilidades e relembravam as pequeninas intrigas da cidade.

     

    1- Harém — Parte da habitação destinada exclusivamente às mulheres.

      

     Dezenas de amigas vieram admirar as peças mais ricas de meu enxoval, as rendas, as toalhas e os véus. As vizinhas, sempre indiscretas, bisbilhotavam tudo.

        A velha Zenuja, duas horas antes da cerimônia, apareceu no seu papel de “encarregada da noiva”. Vestiu-me uma camisa branca com pequeninas flores bordadas e uma graciosa melahfa de cor clara, que se prendia aos ombros por fitinhas cor-de-rosa. Zenuja teve, ainda, ao pentear-me, cuidados especiais, e em meus cabelos que, na véspera, tingira de castanho-escuro, colocou uma meherma de seda vermelha com barras brancas. O meu vestido azul-claro, com fios de ouro nas mangas e nas pontas da cambusa1 era, na verdade, encantador.

        A habilidosa Zenuja modificou, com uma tinta muito forte, a cor das minhas sobrancelhas; transformou os meus lábios em dois rubis únicos e tentadores; e, com um creme muito fino e perfumado, chegou a fazer-me morena como Fátima e muito mais belo do que eu era realmente.

        Ao ver-me, tão formosa, ao espelho, exclamei:

        — Pela glória do Profeta, ó Zenuja! Este alindamento que a tua arte incomparável me empresta ao rosto vai ser a causa de minha desgraça! O cheique ao ver-me assim ficará apaixonado e jamais quererá deixar-me!

        — Cala-te, menina! O teu nome é Jamile e “Jamile” significa beleza! Tens que parecer bela ao teu esposo, pois só assim poderás ficar livre dele.

        Essa velha está louca, pensei, horrorizada. Julga afugentar um noivo enchendo de encantos a noiva desejada. Pobre de mim! Para que fui eu confiar nessa criatura sem senso nem critério?

        A minha escrava predileta cantava, numa cadência triste:

       

        — Allah é grande! A menina vai casar...

        O henné2 é raro na casa da noiva...

        A mãe saudosa deixa-se estar no tamená

        E reza ao Profeta...

       

        — Pára com essa cantoria! — gritou Zenuja, irritada.

        E com a ponta escura de um pequenino bastão fez um sinal negro bem no meio de minha face direita. Era o último retoque à maquilagem.

       

        Com o rosto coberto por um espesso véu fui levada à presença do cádi3 e das testemunhas.

        Realizado o casamento e proferidas as preces do ritual, o meu noivo conduziu-me aos aposentos que já estavam reservados.

        Notei que o cheique parecia dominado por uma ansiedade infinita, incalculável. E era natural. Qual é o marido que não deseja ver o rosto encantador daquela que vai ser sua esposa?

          

    1- Melahfa, peça do vestuário feminino de uso corrente em Marrocos. É uma espécie de corpinho. Meherma, véu muito fino que as Jovens adotam para prender o cabelo. Cambusa, espécie de saiote que fica sob o vestido com a barra aparecendo.

    2- Henné — substancia empregada para pintar as pálpebras e as sobrancelhas; tamená, varanda da casa.

    3- Cádi — Juiz entre os muçulmanos. Julga, em geral, todas as causas de direito civil, criminal e religioso.

      

    Ao erguer o véu o cheique ficou trêmulo, tomado de indizível espanto. O meu semblante, que a velha Zenuja tanto aformoseara, parecia causar-lhe uma impressão terrível e dolorosa.

        — Por Allah! — vociferou cheio de incontida cólera. — Teu pai garantiu-me que não eras trigueira e que os teus cabelos eram castanhos-claros! É horrível! Vejo que és muito diferente daquela que eu imaginava!

        E, arrebatado por um rancor inexplicável, exclamou como louco:

        — Oh! Jamile! Nosso casamento é impossível! Eu te repudio três vezes!1

    — Oh! Jamile! O nosso casamento é impossível! Eu te repudio três vezes!

       

        Com essa terrível declaração o meu tresloucado marido desfazia, para sempre, o nosso casamento e tornava-me livre, não podendo mais exigir a restituição do dote que já havia pago a meu pai.

        A velha Zenuja não pôde receber de mim os agradecimentos do que se fizera merecedora, pois, apareceu morta, no dia seguinte, sob as tamareiras do oásis de Asbor.

        Três meses depois, passada a impressão causada pelo escândalo do meu divórcio, casei-me com o jovem mercador que o meu coração elegera para meu esposo.

          

    1- Segundo as instituições muçulmanas, quando um marido repudia a esposa uma ou duas vezes, pode recuperá-la, sem mais formalidades, ao fim de três meses e dez dias; quando, porém, o repúdio é feito pela terceira vez, ou mediante a fórmula: — “Eu te repudio três vezes” — o casamento está definitivamente rompido e o ex-marido não pode contrair novo casamento com a mesma mulher, senão depois de se ter ela casado com outro homem e pelo novo marido ter sido, igualmente, repudiada.

       

    Um dia meu pai perguntou-me:

        — Que idéia foi aquela, minha filha, de fazeres-te, na noite de teu casamento, parecida com Zobeida, a primeira esposa do cheique? Não sabias, então, que ele, preso por um juramento, estava impedido de casar-se com mulher que se parecesse com Zobeida?

        Essa pergunta veio esclarecer, para mim, o misterioso episódio do meu divórcio. A velha Zenuja conhecia o segredo do cheique e valeu-se disso para salvar-me.

        E ainda hoje, nas preces que faço, rogo ao Altíssimo que tenha em sua eterna paz a bondosa e fiel Zenuja, minha amiga e salvadora.

        Uassalã!

     

     

    O TEMPO PASSA

    (Lenda japonesa)

    Todos os deuses notaram, naquele dia, que Izanaghi, o Sétimo, preparava-se para partir em companhia de sua adorável esposa Izanami1. Kuni-toko-datis, o Primeiro, senhor do Céu e da Luz, indagou, apreensivo:

        — Pela suprema Vontade, ó Izanaghi!, para onde pretendes partir com a tua formosa companheira?

        Respondeu Izanaghi:

        — Quero observar como vivem, na Terra, os homens — esses seres inferiores, criados pela infinita bondade dos deuses. Minha esposa deseja auxiliar os mortais e torná-los felizes. É por isso que partimos.

        Kuni-satsu-tsu o Segundo, o eterno defensor da Justiça, observou:

        — Não vos esqueçais, ao julgar os homens, que a indulgência faz parte da Justiça.

        — Ensinai aos mortais — acrescentou Toio-Munon-Su, o Terceiro — que o desespero é o maior dos erros.

        Os outros três deuses, Wan-hri-su, Oototsi e Omotaron, nada disseram. Que poderiam eles aconselhar ao poderoso Izanaghi, o mais sábio dos deuses?

       

        Izanaghi e sua esposa Izanami desceram à Terra e foram ter à ilha de Awadsi. Essa ilha, protegida pelos famosos rochedos de Sikoff, é um dos recantos mais belos do mundo.

        Que felicidade para os homens poderia advir da presença dos deuses entre as montanhas de Awadsi?

        Izanami disse ao seu esposo:

        — Os mortais são simples e bondosos; souberam receber-nos com alegria e afeto. Acha que merecem recompensa.

        — Que desejas fazer, querida? — indagou Izanaghi — em benefício dos homens?

        A deusa respondeu:

        — Já pude observar que o grande terror de todas as criaturas é a morte. Não há um só homem que não se encha de angústia e pavor, ao ver chegar o termo de seus dias. E a morte é conseqüência fatal do tempo. Façamos, pois, para a felicidade da Terra, que o tempo não passe mais para os homens, embora continue a passar para os outros seres que povoam o Universo.

        — Está bem, querida — respondeu Izanaghi — Assim farei. Deste momento em diante, o tempo não mais passara para os homens.  Ficarão todos  exatamente como estão e

       

    1- Izanami — Todos os deuses citados nesta lenda, faziam parte da mitologia dos primitivos habitantes do Japão. Vide A. Humbert — “Le Japon”.

     

    permanecerão, assim, inalteráveis, numa existência tranqüila e feliz.

        Izanaghi e Izanami continuaram a viver sob céu de Awadsi, entre os rochedos de Sikoff.

     

    — Está bem, querida — respondeu Izanaghi — Assim farei. Deste momento em diante, o tempo não mais passara para os homens.  Ficarão todos  exatamente como estão e permanecerão, assim, inalteráveis, numa existência tranqüila e feliz.

       

        Um dia, afinal, foram os deuses despertados por estranho rumor. Grande multidão, em atitude de protesto, rodeava o palácio.

        — Que deseja essa gente? — indagou Izanaghi.

        Os jovens e adolescentes disseram:

        — Senhor! A vossa decisão sobre o tempo foi, para nós, um castigo tremendo. Se o tempo não passar, jamais chegaremos a viver. Queremos que o tempo passe, para que possamos chegar à idade de casar, constituir família — realizar, enfim, a nossa missão na vida e dela tirar a nossa parcela de felicidade! Que adianta viver sem sentir passar a vida?

        Os homens de meia-idade também falaram ao Sétimo Deus:

        — O tempo, senhor, continua impassível para nós! Como é triste e monótona a vida que não passa! Queremos ver o perpassar dos dias, pois alimentamos a ambição de apreciar os nossos filhos crescidos, trabalhando felizes ao nosso lado!

        — Também nós, senhor! — acudiram os velhos — desejamos que o tempo passe. — Torturados pelos achaques de nossa idade, que pode valer a vida para nós? A nossa felicidade é o reflexo da felicidade daqueles que amamos. Queremos que o tempo passe, pois só o passar do tempo fará a alegria de nossos filhos e de nossos netos!

        Arrebatado pelo desespero (que é o maior dos erros) Izanaghi esqueceu-se de que a indulgência faz parte da justiça. Tomado de vivo rancor contra os homens rebeldes, exclamou:

        — Insensatos! Quereis que o tempo passe para que possais viver cada momento iludidos pelas falazes esperanças do futuro! A lembrança bondosa de minha esposa foi repelida pela ingratidão que vive em vossos corações. Quereis que o tempo passe? Pois bem, o tempo passará!

        E rematou:

        — Mas o passar do tempo será sempre ao contrário de vossos desejos, ao arrepio de vossas aspirações. Será rápido e fugaz nas horas felizes e lento, muito lento, nos períodos de dor e tristeza.

        E o castigo dos deuses caiu impiedoso sobre os homens.

        O tempo passa — esse foi o desejo de todos; passa, entretanto, célebre e fugidio nas horas de alegria e felicidade; vagaroso, tardo e torturante nos minutos infindáveis de angústia e sofrimento.

     

     

    O AMOR E O VELHO BARQUEIRO

    Chegando, afinal, à margem do grande rio, o Amor avistou três barqueiros que se achavam indolentes, recostados nas pedras.

        Dirigiu-se ao primeiro: — Queres, meu bom amigo, levar-me para a outra margem do rio?

        Respondeu o interpelado, com voz triste, cheio de angústia:

        — Não posso, menino! É impossível para mim!

        O Amor recorreu, então, ao segundo barqueiro, que se divertia em atirar pedrinhas no seio tumultuoso da correnteza.

        — Não. Não posso — recusou secamente.

        O terceiro e último barqueiro que parecia o mais velho, não esperou que o Amor viesse pedir-lhe auxílio. Levantou-se, tranqüilo, e, estendendo-lhe, bondoso, a larga mão forte, disse-lhe:

        — Vem comigo, menino! Levo-te sem demora para o outro lado.

        Em meio da travessia, notando o Amor a segurança com que o velho barqueiro barquejava, perguntou-lhe:

        — Quem és tu? Quem são aqueles dois que se recusaram a atender ao meu pedido?

        — Menino — respondeu, paciente, o bom remador — o primeiro é o Sofrimento; o segundo é o Desprezo. Bem sabes que o Sofrimento e o Desprezo não fazem passar o Amor!

        — E tu, quem és, afinal?

        — Eu sou o Tempo, meu filho — atalhou o velho barqueiro. — Aprende para sempre a grande verdade. Só o Tempo é que faz passar o Amor!

        E continuou a remar, numa cadência certa, como se o movimento de seus braços possantes fosse regulado por um pêndulo invisível e eterno.

        Sofrimento, desprezo... Que importa tudo isso ao coração apaixonado? O Tempo, e só o Tempo, é que faz passar o Amor.

     

     

    HOMENS  EXTRAORDINÁRIOS

    Na gloriosa cidade de Bagdá —- a pérola do Islã — vivia a jovem Arusa, uma menina que, na opinião dos poetas de seu tempo, era mais linda e mais encantadora do que a quarta lua do mês de Ramadã.

        Raras vezes saiu Arusa do grande serralho do pai, onde vivia como prisioneira, vigiada por eunucos impiedosos, de rostos macilentos e olhos empapuçados. Graças, porém, aos bons ofícios de uma velha intrigante — que a pretexto de negociar em véus se metia em todos os haréns — a formosa menina travou relações com um jovem bagdali chamado Chafik e com ele mantinha constante e secreta correspondência.

        O pai de Arusa, na ignorância completa das inclinações amorosas da filha, resolveu dá-la em casamento a um rico cheique chamado Hamed Khamil, homem generoso e nobre, que oferecera pela mão da graciosa menina um dote de vinte camelos e dez mil dinares.

        Quando Arusa foi informada de que o pai, movido por odiosa ambição, pretendia casá-la com outro homem — separando-a para sempre do seu apaixonado Chafik — tamanho desespero a invadiu que chegou a desmaiar. Muitos dias passou fechada em seus aposentos, triste e abatida, sem subir ao terraço em que à tarde galeava as suas graças para encanto de todos os olhares. Com o indispensável auxílio da ardilosa anciã, conseguiu a jovem encontrar-se, em rápida entrevista, com o seu namorado, a quem contou a desventura que os ameaçava se, na verdade, o Gênio da Separação estendesse sobre eles a sua asa negra, partindo-lhes o laço de tão pura afeição.

        Não vale a pena descrever o eloqüente desespero do nosso herói bagdali, ao saber que pretendiam atirar a sua Arusa para os braços de um muçulmano rico, velho amigo do cádi e homem cheio de prestígio na corte do califa Harum al-Raschid.

        — Que infeliz que sou! -— deplorava o mancebo. — Como poderei arrancar-te impunemente das garras desse homem que tem o ouro e o poder nas mãos?

        — Não te preocupes com a minha sorte — disse-lhe, carinhosamente, a linda menina, procurando consolá-lo. — Nem tudo está perdido. Allah é grande! No dia do meu casamento fugirei da casa de meu marido e juntos iremos para onde ninguém nos possa encontrar.

        Diante de tal promessa, acalmou-se o arrebatado Chafik, vendo desanuviar-se o seu sonho de amor, e esperou o dia em que Arusa deveria desposar o seu invencível rival.

        Alguns meses depois, com inexcedível pompa, realizou-se o brilhante casamento da formosa Arusa com o rico Hamed Khamil. O suntuoso palácio encheu-se de convivas e tão grande foi a concorrência de amigos, parentes e admiradores que a noiva rodeada sempre pelas esposas e companheiras, não encontrou ensejo para a almejada fuga.

        Já bem adiantada ia a noite, quando o último convidado deixou o palácio dos recém-casados. Hamed Khamil tomou delicadamente a esposa pela mão e conduziu-a aos seus luxuosos aposentos; aí, pediu-lhe que erguesse o véu e o deixasse ver, pela primeira vez, o rosto em que as graças se esmeraram em profusos dons.

        Quando Arusa retirou o véu, Hamed Khamil ficou deslumbrado. Não poderia imaginar que a esposa fosse tão linda, tão sedutora. Louvado seja Allah, o Exaltado, que soube reunir tantas graças em dois fúlgidos olhos, tanta beleza e harmonia na curvatura dos lábios rubros!

        Grande, porém, foi a surpresa do rico Khamil, quando notou que Arusa parecia muito triste e dominada por infinito desgosto. E como no peito se lhe acendesse, desde logo, grande paixão pela jovem, ficou apreensivo por vê-la tão acabrunhada e perguntou-lhe:

        — Por que estás tão pesarosa? Não foi por tua vontade que casaste comigo? Vamos, conta-me, ó Flor do Islã, o motivo da mágoa que de tão quentes lágrimas enche os teus lindos olhos!

        Arusa, sem poder já reprimir os seus sentimentos, contou àquele que acabava de ser seu esposo toda a verdade, sobre o seu antigo namoro, e relatou-lhe, minuciosamente, a combinação estranha que fizera com seu apaixonado, para fugir daquela casa, no próprio dia das núpcias.

        — Desgraçadamente, porém — soluçava a jovem — não me foi possível efetuar qualquer plano de fuga e vou, por isso, deixar de cumprir a palavra que dei ao noivo de meu coração.

        — Pelo manto do Profeta! — exclamou o marido. — Não seja isto motivo para tão grande mágoa. Não quero servir de empecilho à realização de teus projetos e não posso obrigar-te a quebrar um juramento. Já que prometeste, vais cumprir fielmente a tua louca promessa!

        E o rico Khamil, com grande serenidade, tomou novamente pela mão a linda esposa, levou-a através de longos corredores até à porta que dava saída para um lanço deserto da rua e disse-lhe, delicadamente:

        — És livre, completamente livre, ó filha de meu tio.1 Podes partir. Irás para a companhia de teu namorado e com ele poderás ficar o tempo que quiseres. Se algum dia te arrependeres do passo que hoje dás, poderás voltar sem receio para a minha companhia, pois és, pela vontade de Allah, a minha esposa legítima e inspiras-me grande e puro amor!

        A jovem noiva mal podia disfarçar o espanto que a dominava. Custava-lhe acreditar na sinceridade do marido. A princípio julgou que o nobre Khamil estivesse a gracejar. Depressa, porém, se convenceu de que o rico cheique nunca falara tão sério e lhe concedia estranha e inteira liberdade, permitindo que ela fosse, naquela mesma noite, para onde muito bem lhe aprouvesse.

        Depois de agradecer a generosidade do esposo, a apaixonada Arusa partiu, apressada, pela rua escura e silenciosa, no fim da qual ficava a casa do namorado.

        Diz, porém, o velho provérbio árabe, que tem passado de geração em geração, através dos séculos: “A imprudência é irmã do arrependimento”.

        Mal a jovem se havia afastado da casa do marido, foi surpreendida por audacioso ladrão, que, oculto num vão de muro, esperava certamente pelo momento propício a algum ataque.

        — Pelas barbas de Omar! — murmurou o beduíno. — Parece-me que vejo, ali sozinha, uma mulher ricamente trajada! Se não me iludo, ela traz muitas jóias! Positivamente estou hoje muito feliz!

        E o salteador, que era um desses terríveis nômades do deserto, surgindo pela frente de Arusa, intimou-a a parar imediatamente,  e ameaçando-a  com um punhal, ia despojá-la das

     

  1. O árabe denomina a própria esposa de “filha de meu tio”.

     

    ricas jóias de noivado quando notou que a mulher que assaltava era uma encantadora menina, linda como uma das quarenta mil huris que povoam o Céu de Allah!

        — Que ventura a minha — pensou o ousado beduíno. — Encontrar uma formosa donzela coberta de preciosos adornos! Vou raptá-la e levá-la sem perda de tempo para a minha tenda no deserto.

        Veio-lhe, entretanto, o desejo de saber por que motivo se encontrava aquela deidade perdida em hora tão tardia, a caminhar sozinha pelas ruas mais perigosas da cidade.

        Interrogada pelo facínora, a jovem contou-lhe o que havia ocorrido, o seu plano de fuga, o seu desespero, repetindo-lhe finalmente as palavras de seu generoso marido.

        — Mac Allah! — exclamou o ladrão — posso garantir que o teu marido é um homem extraordinário! Não é possível admitir-se que haja no mundo outro filho de Adão capaz de proceder do mesmo modo na noite do casamento!

        Depois de pequena pausa, o beduíno ajuntou:

        — Eu, porém, quero provar, de modo expressivo, que sou um homem mais extraordinário ainda do que o teu espantoso marido. Sabes por que? Poderia, neste momento, entregue e abandonada, como estás, ao meu capricho, poderia, repito, despojar-te de tuas riquíssimas jóias e raptar-te, levando-te para a minha tenda. Tal, porém, não será a minha forma de proceder. Ao contrário. Vou conduzir-te, com toda segurança, até a casa de teu namorado. Não quero que continues sozinha o teu percurso, pois algum sacripanta ou aventureiro sem alma poderia fazer-te grande mal!

        E, isto dizendo, o ladrão acompanhou a jovem até à casa de Chafik, e só se afastou depois de a ter visto entrar na residência do namorado.

        Seria difícil, senão impossível, descrever todas as mostras de alegria, todo o arrebatamento do apaixonado Chafik ao ver chegar a sua amada, em exato cumprimento de tão bela promessa de amor.

        — Louvado seja Allah, o Clemente! — exclamou, abraçando a jovem. — Conseguiste, enfim, iludir o teu ciumento marido? Conta-me tudo o que se passou, pois estou ansioso por conhecer as peripécias de tua fuga!

        — Muito te enganas, ó Chafik — retorquiu a jovem. — Não iludi meu marido e não seria possível ludibriar um homem tão generoso e inteligente. Se aqui vim ter a esta hora, foi unicamente porque ele próprio assim o quis!

        E a encantadora Arusa relatou ao namorado tudo o que se passara, repetindo-lhe fielmente as palavras do marido, e narrando-lhe também, sem nada ocultar, a singular aventura ocorrida com o beduíno ladrão que a surpreendera sozinha em rua deserta e escura.

        — Quero crer, minha querida, que o teu marido é um homem extraordinário — confessou Chafik. — Estou certo de que não haverá no mundo de Allah outro marido que proceda como ele procedeu! É evidente, porém, que o ladrão que encontraste casualmente no caminho é ainda mais extraordinário do que o teu marido! Quero, entretanto, provar que sou um homem mil vezes mais extraordinário do que ambos!

        E, como a jovem o fitasse surpreendida, sem compreender o sentido de tais palavras, Chafik prosseguiu:

        — Bem sabes quanto te amo. Bem conheces a ansiedade com que, há mais de dois anos, eu contava os dias à espera deste dia venturoso! Bem podes avaliar o meu tormento, vendo-te casada com outro! Pois bem: apesar de tudo, vou levar-te, agora mesmo, à casa de teu marido e entregar-te àquele meu odiento rival!

        E isto dizendo, tomou-a nos braços fortes e, carregando-a como a uma criança, encaminhou-se pela rua extensa que ia ter ao palácio do rico cheique Hamed Khamil...

     

     

    A ESPOSA E A MORTE

    Na pequena aldeia Bhir, na índia, a encantadora Sanandá era citada como uma das cinco maravilhas da terra. Tinha dezoito anos, pertencia à casta dos brâmanes1 e conservava-se solteira.

        O velho Malua, seu pai, chamou-a um dia e disse-lhe:

        — Querida Sanandá! Bem sei que tens no ombro direito o sinal eterno de Siva, mas apesar disso, sinto-me preocupado com o teu futuro. Todas as tuas amigas e companheiras casaram aos oito anos e tu ainda não escolheste marido. É forçoso que te resolvas, o mais cedo possível, a tomar estado.

        Respondeu Sanandá:

        — Três são, meu pai, os que me pretendem para esposa; Sardu, o belo mercador de Calcutá; Sivala, o rico e generoso senhor de Tandjor, e o inteligente Niassin, que construiu o templo de Bajapor. Asseguro que hesito, apenas por me sentir receiosa ante as incertezas do futuro. Com qual dos três serei realmente feliz?

        — Minha filha — volveu, tranqüilo, o velho brâmane — não há motivos para dúvidas e hesitações. Conheço um sábio faquir que lê o futuro de qualquer pessoa. Tenho motivos para exigir tudo desse iogue2, pois o livrei de morrer sob as garras de um tigre. Esse bom goru3 é um santo e faz prodígios. Vou pedir-lhe que leia o teu futuro. Queres conhecer a sentença do iogue?

        — Quero ouvi-lo, meu pai!

       

        Duas semanas depois chegou a Bhir o milagroso iogue que sabia ler na areia o kismet de qualquer mortal.

        Sanandá trouxe-lhe um espelho redondo sobre cuja superfície polida o santo gora espalhou vagarosamente um punhado de areia branca e fina, que dizia ter sido colhida nas nascentes do Ganges, o rio sagrado. Sobre a leve camada de areia escreveu os nomes dos três jovens que pretendiam a mão da graciosa menina. Agitou depois o espelho, batendo nele onze vezes com as pontas dos dedos e pronunciando certas palavras mágicas.

     

    1- Brâmane — o povo hindu é dividido em castas que vivem completamente separadas; não se admite, por exemplo, o casamento entre indivíduos de castas diferentes. Este sistema de distinções sociais funda-se, em parte, na diversidade de raças e, de certo modo, na natureza das profissões. As quatro mais importantes são: os Brâmanes (sacerdotes); os Chátrias (militares); os Vaicias (negociantes) e os Sudras (operários e servos domésticos). Além dessas quatro castas há uma infinidade de subcastas. Uma das castas mais ínfimas (mas não a mais Ínfima) é a dos párias.

    2- Iogue — Indivíduo já iniciado nas grandes verdades filosóficas. Espírito adiantado.

    3- Goru — Iluminado. Indivíduo capaz de atingir a um perfeito desenvolvimento espiritual.

     

        A curiosidade de Sanandá era, nesse momento, sem limites.

        Por fim, o iogue falou:

        — Sardu, o mercador, pretende a tua mão de esposa. Se o aceitares para marido serás muito feliz durante três anos e três meses. Findo este prazo, Sardu, arrastado pelo seu espírito inquieto e volúvel, começará a ser infiel ao seu amor conjugal. E viverás, então, menina, muitos anos atormentada por um ciúme negro e torturante.

        — Não me convém essa vida! — afirmou logo Sanandá. — Quero ter a meu lado um marido para sempre dedicado e fiel.

        — Com Sivala, o rico proprietário — prosseguiu o iogue — o teu destino será completamente diverso. Viverás muito feliz durante dois anos e dois meses. Terminado esse período, o teu marido será tomado de grande paixão pela caça, e passará a viver nos juncais sombrios, preocupado com os laços e as armadilhas. Esquecido, por completo, do amor de sua esposa, o valente caçador só terá atenções para tigres e panteras...

        — Detesto os homens indiferentes ao amor — replicou Sanandá. — Sonho com um companheiro que viva só para mim, que seja escravo de meus carinhos. Não quero ser esposa de Sivala!

        — Resta-me, ainda — continuou o iogue — descrever a vida que terás como esposa de Niassin, o arquiteto. Casando com esse jovem terás sempre a teu lado um marido carinhoso, fiel e apaixonado. Durante um ano e um mês a tua existência será ditosa e invejável. Passado esse breve lapso de tempo, o teu marido será arrebatado pela Morte, e terás, ao perdê-lo, o coração despedaçado pela dor e pela saudade!

        — Quero casar com Niassin! — exclamou, arrebatada, a bela Sanandá.

        O judicioso Malua, que tudo ouvira em silêncio, não se conteve:

        — A tua decisão é quase uma loucura, minha filha! Medita um instante sobre o destino que te aguarda. Serás, certamente, mais feliz com Sardu, ou com Sivala, do que com aquele que impensadamente escolheste. Esposa de Niassin, que terás afinal? Pouco mais de dez meses de felicidade, e a seguir muitos anos esmagada por uma torturante e interminável viuvez! Procura ser sensata e razoável minha filha!

        — Não, meu pai — discordou a jovem. — Já escolhi definitivamente o caminho a seguir. Prefiro a viuvez irremediável à infidelidade ou à indiferença do homem que soube conquistar o meu coração. Sinto-me apaixonada por Niassin e quero casar com ele. Peço, apenas, segredo absoluto para o meu caso e que a sentença proferida pelo iogue não chegue, de modo algum, ao conhecimento do meu noivo.

        — Seja pois esse o teu kismet1, ó encantadora Sanandá!

       

        Dias depois realizou-se o casamento de Sanandá com Niassin. Dizem os poetas que até hoje, na índia, não houve dois esposos tão felizes e apaixonados.

        Na noite em que terminava o prazo fixado pelo iogue, a jovem Sanandá deixou-se ficar de vigília na varanda de sua casa. E eis que vê surgir, como uma sombra, a figura inconfundível de Senônia, o Anjo da Morte2.

        — Que desejas aqui, impiedoso Senônia? — perguntou Sanandá, dirigindo-se impávida ao mensageiro de Iama, o Deus dos Infernos.

     

    1- Kismet — O destino. Corresponde ao maktub dos árabes. Fatalidade.

    2- Senônia — É um dos auxiliares de lama, o décimo primeiro deus da mitologia hindu.

     

        O Anjo da Morte, erguendo o véu que lhe cobria o rosto formoso, respondeu, sereno:

         — Venho buscar o teu marido, ó bondosa e querida Sanandá! A vida de Niassin, neste mundo, deve terminar hoje! Assim quis o Destino e lama ordenou-me que executasse a sentença.

       

         A vida de Niassin, neste mundo, deve terminar hoje! Assim quis o Destino e lama ordenou-me que executasse a sentença.

       

        — Escuta, sedutor Senônia — retorquiu Sanandá. — Quando eu era pequenina, minha mãe deixou-me, certa vez, adormecida sobre um gramado, perto de nossa casa. O Touro Sagrado, ao sair do templo, na direção do pasto, passou sobre o meu corpo e pisou-me o braço. Conservo até hoje, junto ao ombro direito a marca de sua pata divina. Tenho, pois, o direito (por ter sido pisada pelo Touro Sagrado) de fazer um pedido ao enviado de Iama!

        — Tens razão. Sanandá — respondeu o Anjo da Morte. — O Touro Sagrado concedeu-te esse grande privilégio. Podes pedir o que quiseres, exceto a vida de teu marido.

        — Quero, ó poderoso Senônia! — declarou Sanandá — ter um filho aos trinta anos de idade!

        Respondeu o Anjo da Morte:

        — O teu pedido, menina, é sagrado, e serás atendida. Terás como desejas, um filho aos trinta e dois anos de idade!

        E acrescentou:

        — Vou agora buscar Niassin, o teu esposo!

        — Espera, Senônia! — interveio com energia Sanandá. — Que vais fazer? Esqueceste de que eu pertenço à casta dos brâmanes. Uma mulher de minha casta (bem o sabes!) quando perde o marido não pode casar com outro homem. Como queres que eu tenha um filho aos trinta e dois anos, se pretendes arrebatar-me Niassin e condenar-me à eterna viuvez!

        Senônia, o Anjo da Morte, mensageiro de lama, vencido pelo estratagema de Sanandá, viu-se forçado a partir, deixando em paz os dois esposos felizes.

        Na índia, os velhos brâmanes, quando, repetem a singular história de amor de Sanandá, acrescentam, com a sabedoria dos vedas:

        — A mulher apaixonada, para salvar o homem que ama é capaz de enganar a própria Morte!

     

     

    DUAS TENDAS DO DESERTO

    Perdido de meus companheiros — contava-me um árabe em Medina — caminhava um dia, sem rumo, pelo deserto, quando avistei uma grande tenda, junto da qual estava uma jovem muçulmana com o rosto velado por espesso véu.

        Mal pousara em mim seus olhos negros e vivos, exclamou:

        — A paz seja contigo, ó irmão dos árabes! Que procuras pelos caminhos de Allah?

        Contei-lhe, em poucas palavras o que me acontecera e a razão por que me encontrava a vagar desnorteado pelo deserto, concluindo a minha narrativa com os versos famosos de Kháyyám:

        — E neste infortúnio, ó formosa filha de Eva! A vagar, sem destino, tenho duas companheiras: a Fome e a Sede!

        — Se assim é — volveu, bondosa, a rapariga — serás meu hóspede nesta tenda!

        E pediu-me que descesse do cavalo e descansasse um pouco, enquanto ia preparar-me um saboroso manjar.

        Tão meiga era a voz daquela boa criatura, tão amável a sua maneira de falar, que não hesitei em aceitar o convite e apeei do cavalo junto à tenda. Momentos depois surgiu-me a jovem, trazendo, num prato finíssimo, um pão delicioso, feito de trigo e de mel.

        Graças à bondade da minha afável hospedeira, pude saciar a fome que já me atormentava, e beber, com grande satisfação, alguns goles de água pura e fresca.

        Não me esqueci de agradecer ao Altíssimo a mercê que me proporcionara, conduzindo-me os passos até àquela sombra acolhedora; e, fora da tenda junto a um velho coqueiro, sob os olhares da jovem que não me desfitava, murmurei:

        — Louvado seja Allah que fez nascer a bondade e o carinho no coração das mulheres!

        E era minha intenção descansar mais algum tempo naquele aprazível lugar quando surgiu de repente, vindo não sei de onde, um homem de má catadura, com modos abrutalhados de salteador. Era o marido dá jovem e o dono da tenda.

        Ao notar a minha presença, interpelou logo a esposa:

        — Quem é esse homem? Que faz aqui?

        — É um hóspede — replicou a rapariga.

        — Não quero saber de hóspede! — replicou, com azedume. — Enxota-o já daqui, antes que eu perca a paciência!

        Ao ouvir tal ameaça, montei a cavalo e fugi, a galope, daquele exaltado muçulmano!

        Depois de caminhar muitas horas sem parar, cheguei, finalmente, perto de outra tenda que parecia maior e mais rica do que a primeira.

        Uma mulher que se detinha junto à porta perguntou-me com visível rispidez?

        — Quem és? Que desejas?

        Contei-lhe que era um viajante transviado pelo deserto e pedi-lhe que me desse um pouco d’água, algumas tâmaras e uma côdea de pão.

        — Em minha tenda não há lugar para hóspedes — atalhou logo. — Detesto chacais que nos importunam implorando água e pão!

        

         — Uma mulher que se detinha junto à porta, perguntou-me, com visível rispidez: — Quem és? Que desejas?

       

        Surpreendido por tão grosseiras e impiedosas palavras (Allah se compadeça daquela mulher), já ia afastar-me, quando surgiu por detrás da tenda um homem, de fisionomia bondosa, ricamente trajado. Era o marido daquela má criatura e o dono da tenda.

        O cheique, aproximando-se de mim, estendeu-me amavelmente a mão:

        — Bem-vindo sejas, ó desafortunado amigo! Serás meu hóspede e aqui terás pão, água e boa sombra.

        E fêz-me apear do cavalo, convidando-me a entrar em sua tenda, e foi ele próprio quem me trouxe saborosas frutas e doces secos.

        Achei graça à maneira como essa segunda acolhida contrastava com a primeira, inclusive a alternação de sentimentos dos dois casais, e pus-me a rir gostosamente.

        — De que te ris? — perguntou ele.

        Contei-lhe, sem nada ocultar, o que me havia acontecido na primeira tenda: a mulher me recebera bem, ao passo que o marido só tivera para mim palavras maldosas, cheias de rancor. E que o contrário, exatamente, sucedia então: a mulher me recebera mal e o marido fora para mim de uma bondade cativante e sem limites!

        — Não lhe vejo motivo para admiração ou riso — respondeu-lhe o meu bom hospedeiro. — Até é bem natural que assim haja sucedido!

        E como eu o fitasse muito admirado, ele acrescentou:

        — Aquela mulher que te acolheu, na primeira tenda, é minha irmã, ao passo que o seu marido é irmão de minha mulher!

        E concluiu, em voz baixa:

        — Quantos lares há, pelo mundo, meu amigo, que são exatamente como as duas tendas que encontraste no deserto!

     

     

    UMA FÁBULA SOBRE A FÁBULA

    (Lenda Oriental)

    ALLAHUR Akbar! Allahur Akbar!1

        Quando Deus criou a mulher criou também a Fantasia. Um dia a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid.

        Envoltas as lindas formas num véu claro e transparente, foi ela bater à porta do rico palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas. Ao ver aquela formosa mulher, quase nua, o chefe dos guardas perguntou-lhe:

        — Quem és

        — Sou a Verdade! — respondeu ela, com voz firme. — Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, o Cheique do Islã!

        O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, apressou-se em levar a nova ao grão-vizir:

        — Senhor, — disse, inclinando-se humilde, — uma mulher desconhecida, quase nua, quer falar ao nosso soberano, o sultão Harun Al-Raschid, Príncipe dos Crentes.

        — Como se chama?

        — Chama-se a Verdade!

        — A Verdade — exclamou o grão-vizir, subitamente assaltado de grande espanto. — A Verdade quer penetrar neste palácio! Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que uma mulher nua, despudorada, não entra aqui!

        Voltou o chefe dos guardas com o recado do grão-vizir e disse à Verdade:

        — Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender o nosso Califa. Com esses ares impudicos não poderás ir à presença do Príncipe dos Crentes, o nosso glorioso sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, pelos caminhos de Allah!

        Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou muito triste a Verdade, e afastou-se lentamente do grande palácio do magnânimo sultão Harun Al-Raschid, cujas portas se lhe fecharam à diáfana formosura!

        Mas...

        Allahur Akbar! Allahur Akbar!

        Quando Deus criou a mulher, criou também a Obstinação. E a Verdade continuou a alimentar o propósito de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid...

        Cobriu as peregrinas formas de um couro grosseiro como os que usam os pastores e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas.

       

    1- Deus é grande! Deus é grande!

      

     Ao ver aquela formosa mulher grosseiramente vestida com peles, o chefe dos guardas perguntou-lhe:

        — Quem és?

        — Sou a Acusação! — respondeu ela, em tom severo. — Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid. Comendador dos Crentes.

        O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu a entender-se com o grão-vizir.

        — Senhor — disse, inclinando-se humilde, — uma mulher desconhecida, o corpo envolto em grosseiras peles, deseja falar ao nosso soberano, o sultão Harun Al-Raschid.

        — Como se chama?

        — A Acusação!

         Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta luz de Ramadã, o chefe dos guardas perguntou-lhe: — Quem és?

       

        — A Acusação? — repetiu o grão-vizir. aterrorizado. — A Acusação quer entrar neste palácio? Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Acusação aqui entrasse! A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que não, não pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob as vestes grosseiras de um zagal, não pode falar ao Califa, nosso amo e senhor!

        Voltou o chefe dos guardas com a proibição do grão-vizir e disse à Verdade.

        — Não podes entrar, minha filha. Com essas vestes grosseiras, próprias de um beduíno rude e pobre, não poderás falar ao nosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, em paz, pelos caminhos de Allah!

        Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou ainda mais triste a Verdade e afastou-se vagarosamente do grande palácio do poderoso Harun Al-Raschid, cuja cúpula cintilava aos últimos clarões do sol poente.

        Mas...

        Allahur Akbar! Allahur Akbar!

        Quando Deus criou a mulher, criou também o Capricho.

        E a Verdade entrou-se do vivo desejo de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid.

        Vestiu-se com riquíssimos trajos, cobriu-se com jóias e adornos, envolveu o rosto em um manto diáfano de seda e foi bater à porta do palácio em que vivia o glorioso senhor dos Árabes.

        Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua do mês de Ramadã, o chefe dos guardas perguntou-lhe:

        — Quem és?

        — Sou a Fábula — respondeu ela, em tom meigo e mavioso. — Quero falar ao vosso amo e senhor, o generoso sultão Harun Al-Raschid, Emir dos Árabes!

        O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu, radiante, a falar com o grão-vizir:

        — Senhor, — disse, inclinando-se, humilde — uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita audiência de nosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, Emir dos Crentes.

        — Como se chama?

        — Chama-se a Fábula!

        — A Fábula! — exclamou o grão-vizir, cheio de alegria. — A Fábula quer entrar neste palácio! Allah seja louvado! Que entre! Bem-vinda seja a encantadora Fábula: Cem formosas escravas irão recebê-la com flores e perfumes. Quero que a Fábula tenha, neste palácio, o acolhimento digno de uma verdadeira rainha!

        E abertas de par em par as portas do grande palácio de Bagdá, a formosa peregrina entrou.

        E foi assim, sob o aspecto de Fábula, que a Verdade conseguiu aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o sultão Harun Al-Raschid, Vigário de Allah e senhor do grande império muçulmano!

     

     

    O SINAL DE RAMANITA

    Há poucos anos, quando visitei Calcutá, tomei para guia, a fim de melhor conhecer as curiosidades religiosas da índia, um brâmane chamado Marichipa, que me fora indicado pelo gerente do Hotel Dakka.

        Uma tarde, quando percorríamos o templo de Parvati, passou junto de nós, acompanhada de diversos turistas ingleses, uma mulher loura, elegantemente trajada, e que despertava a atenção de todos pelas linhas incomparáveis de sua formosura.

        — Quem será essa encantadora estrangeira? — perguntei ao guia. — Dificilmente poderíamos encontrar, sob o céu da Ásia, criatura mais sedutora!

        — É uma das hóspedes do Grande Hotel — explicou-me Marichipa. — Disseram-me que veio da América e que pretende chegar, numa excursão de automóvel, até Alahabad. É rica, muito destemida e percorre o mundo à procura de ídolos exóticos para uma coleção.

        Ao meu espírito de muçulmano causou não pequena admiração aquela criatura maravilhosa que abandonava o conforto da civilização pata vir caçar manipansos entre os adoradores do Ganges. Parecia-me impossível que se me deparasse outra vez na vida tão original colecionadora de ídolos.

        — Por Allah! — exclamei, com entusiasmo. — Essa americana do Grande Hotel é a verdadeira perfeição.

        Marichipa sorriu, exibindo os seus dentes amarelos.

        — Verdadeira perfeição... — repetiu ele. — Só mesmo um cego ou um apaixonado deixará de notar que aquela mulher traz no rosto o sinal de Ramanita!

        Fitei o guia hindu sem disfarçar o grande interesse que as suas palavras haviam despertado em mim. Já não era a primeira vez que me acontecia ouvir referir-se alguém ao sinal de Ramanita. Declarei-lhe, pois, que não hesitaria em gastar meia libra para ouvir uma explicação minuciosa a tal respeito.

        O ouro torna eloqüente o indivíduo mais tímido e acanhado. A meia libra prometida operou o milagre. O guia contou-me, numa linguagem obscura, cheia de realismos grosseiros uma interessante lenda que poderia ser intitulada “O Sinal de Ramanita”.

        Vou tentar traduzi-la.

          

        No país de Navayanta vivia uma jovem chamada Ramanita, que possuía as sete virtudes, os quinze atributos e era, além do mais, de boa casta e de origem nobre.

        Os brâmanes disseram-lhe um dia: — Queres agradar ao incomparável Indra, deus do ar? Vem servir no templo. Poderás acompanhar pelas ruas as vacas sagradas e receber, nos dias de festas, as dádivas dos fiéis.

    A formosa Ramanita não atendeu ao convite dos sacerdotes. Para servir no templo de Indra1 seria ela obrigada a renunciar ao amor do jovem  Deybek,  príncipe  do  Adjimir. E a

     

    1- Indra — Um dos deuses da mitologia hindu. Vide nota 3 incluída no conto “Minha vida querida”.

    menina, embora venerasse Siva e temesse Indra, não se sentia com coragem para tão grande sacrifício. Na Índia é assim: a mulher apaixonada põe o seu amor acima dos próprios deuses!

         — Verdadeira perfeição!... — repetia ele. — Só mesmo um cego ou um apaixonado deixará de notar que aquela mulher no rosto o sinal de Ramanita!

       

        E os deuses hindus são poderosos; alguns há que possuem quatro e até oito braços!

        Vivem no mundo — assim afirmam os adeptos de Indra — certos seres gigantescos e perversos chamados Rakshassas. E aconteceu que o pai de Ramanita caiu gravemente enfermo, ferido pela maldade sem limites de um desses demônios1.

        Os brâmanes procuraram novamente a jovem:

        — Ó Ramanita! O teu velho pai sofre a influência dos espíritos maus! Queres salvá-lo? Já vimos um Deityas rondando tua casa com o rosto coberto com véu preto!

        — Que devo fazer? — perguntou Ramanita.

        — Bem sei que os Deityas são mensageiros da morte!

        — Vem servir em nosso templo durante um ano — aconselharam os brâmanes. — Intercederemos junto a Indra por teu pai e, é certo, ele ficará, em conseqüência de nossas preces, são e salvo. Pelas quatro faces de Brama, ó Ramanita, salva teu pai!

        As palavras dos sacerdotes calaram fundo no coração da jovem. O apelo feito — pelas faces do Grande Deus — não foi em vão e Ramanita resolveu servir ao templo durante um ano e assim o fazia somente para livrar seu pai das garras impiedosas dos Rakshassas.

        Como esquecer, porém, durante tão largo período, aquele que era o seu único amor?

        E uma noite, quando Ramanita, já presa no templo, fiel à sua palavra, lamentava o seu triste destino, viu surgir na sua frente a figura deslumbrante de Laidasa, que é uma das muitas ninfas, — denominadas apsaras — que habitam o céu de Indra.

        — Por que choras. Ramanita? — perguntou, com voz carinhosa, Laidasa. — Aqui estou, por ordem de Indra, para auxiliar-te. Dize, pois, o que desejas. Tudo farei para servir-te.

        — Tenho saudades de meu noivo — soluçou Ramanita. — E, além dessa saudade vive dentro de mim um ciúme torturante. Assalta-me o receio de que as mulheres, durante a minha ausência roubem o coração daquele que será meu esposo.

     

    1- Rakshassas — São gênios que só se preocupam com o mal que podem fazer aos mortais. São tidos, por isso, como verdadeiros demônios.

     

     — Que queres que eu faça? — perguntou a ninfa.

        — Bondosa apsara — acudiu a jovem apaixonada. — sei que és dotada, como todos os gênios que pertencem ao paraíso de Indra, de um poder extraordinário. Só poderei permanecer tranqüila neste templo se for atendida no pedido que te vou fazer. Não quero que apareça no mundo, enquanto eu estiver afastada do meu noivo, mulher alguma que seja dotada de uma beleza impecável. Deixarás, bem visível, em todas as mulheres, por mais formosas que sejam, um traço qualquer de imperfeição.

        — Assim farei, minha filha — respondeu a enviada celeste. — Conserva em paz o teu coração, pois enquanto estiveres presa ao serviço de Indra, não aparecerá no mundo mulher alguma que possa dizer como Ramanita: “A minha formosura é impecável!”

        E tendo pronunciado tais palavras, Laidasa desapareceu.

        Alguns meses depois soube Ramanita que o príncipe Deybek havia perecido, nas garras de um tigre, durante uma caçada.

        A infeliz serva do templo não resistiu a esse golpe da fatalidade.

        E quando ela morreu, o seu corpo adorável, conduzido pelos sacerdotes, foi atirado ao Ganges.

        Desaparecia com Ramanita, nas ondas do rio sagrado, a última mulher perfeita do mundo.

        E sabe por quê?

        Porque o deus Indra, fiel à sua promessa, continuou a imprimir em todas as mulheres, por mais formosas que pretendam ser, um traço qualquer de imperfeição. Uma tem os olhos excessivamente pequenos; outras apresentam as faces descoradas; uma terceira não sabe disfarçar o nariz defeituoso. Esta tem o queixo saliente; envergonha-se aquela da pele toda manchada. Queixa-se uma da boca demasiadamente grande; lamenta a outra a pequenez ridícula do colo. Se algumas são baixas demais, outras há exageradamente altas. Vesga é uma; parece-nos gagá a outra. Uma é formosa e não tem caráter: outra e linda, mas estúpida e pouco inteligente. Ali encontramos uma que é deslumbrante, mas tem o grave defeito de ser fria e inexpressiva: acolá surge-nos outra que é interessante, cheia de encantos, mas é pérfida e desonesta. Todas têm, enfim, no corpo, ou resvalando para o espírito, o infalível sinal de Ramanita.

     

        Quando o guia terminava a sua curiosa narrativa, passou novamente pelo lugar em que nos achávamos a sedutora americana do Grande Hotel — a original aventureira que caçava ídolos pela índia.

        Olhei atentamente para o rosto da linda excursionista e reparei que ela tinha, realmente, sobre a face direita, uma pequena mancha escura que descendo do nariz vinha formar uma curva sinuosa junto ao lábio.

        Era, com certeza, o sinal de Ramanita, — o sinal terrível que toma mil formas, um milhão de aspectos, mas que, felizmente para as mulheres, os homens apaixonados nunca chegarão a ver.

     

     

    A FILHA DO MUEZIM

    (Lenda árabe)

    Conta-se que o famoso califa Al-Mamum chamou um dia o seu grão-vizir, o fiel e bondoso Abdel-Terik, e lhe disse:

        — Quero casar amanhã com uma jovem muçulmana de espírito esclarecido e notável talento. Encarrego-te, meu caro vizir, de ir aos mais suntuosos palácios, como às mais humildes choupanas procurar a moça que pelos seus dotes intelectuais possa superar todas as suas companheiras!

        — Escuto-vos e obedeço-vos! — respondeu o vizir, inclinando-se respeitoso.

        E nesse dia, ao cair da tarde, quando o pacato vizir regressava, como de costume, a casa, causava-lhe sérias apreensões o delicado encargo que lhe dera o sultão.

        Como iria ele descobrir, entre tantas jovens de seu pais, a mais viva e inteligente! Como escolher, afinal, com segurança e acerto, uma esposa digna do Emir dos Crentes?

        Caminhava o velho Abdel-Terik tão preocupado e absorto em seus pensamentos, que não deu atenção a um viajante desconhecido que lhe vinha ao lado.

        Em meio do caminho avistou um homem a colher trigo no campo.

        O desconhecido, que se conservava sempre ao lado do vizir, deixando o mutismo em que até então estivera, observou, em voz alta:

        — Ai está um bom camponês a enfeixar o seu trigo! Queira Allah que ele já não tenha comido todo o trigo que está agora colhendo!

        Abdel-Terik voltou-se para o seu companheiro de jornada e fitou-o, cheio de espanto. Aquela observação inesperada e absurda era de fazer rir o árabe mais ingênuo do Islã. Como poderia um homem comer o trigo antes da colheita?

        — É um insensato — pensou o vizir desconfiado. — O melhor que faço é não lhe dar resposta nem atenção.

        Momentos depois encontraram um cortejo fúnebre que se dirigia ao cemitério muçulmano.

        A frente vários homens conduziam, em silêncio, um caixão mortuário. Três mulheres — que pareciam viúvas — choravam, cheias de desespero.

        Novamente o desconhecido observou, em voz alta, com a maior naturalidade:

        — Ali vai um enterro pelo caminho de Allah! Quem sabe se aquele morto não estará ainda vivo entre nós?

        Aquela segunda observação causou ao grão-vizir não menor surpresa. Só mesmo um louco poderia formular idéia tão absurda!

        — Não resta dúvida — refletiu o digno ministro. — Este infeliz que vem comigo é um demente, um pobre desequilibrado. Estou certo de que um homem, em seu juízo perfeito, seria incapaz de formular tão desconchavada tolice!

        Depois de caminharem ainda algum tempo juntos, chegaram os dois viajantes a uma encruzilhada.

        Voltou-se o desconhecido para o grão-vizir e disse-lhe:

        — Antes que nos separemos devo dizer-vos, meu amigo, que poderíamos ter vindo pelo mesmo caminho, gasto o mesmo tempo, andado do mesmo modo, fazendo, porém, uma viagem mais curta!

         E sem mais palavra, afastou-se lentamente, deixando o grão-vizir mergulhado em profundo pasmo.

         Dias depois, com grande pompa, realizou-se o casamento da jovem Nadima...

       

        — Infeliz! — murmurou o bom do ministro, sinceramente penalizado. — Desafortunado filho de Adão! Esta última observação veio provar, bem claramente, que és um louco! Como seria possível, vindo pelo mesmo caminho, andando do mesmo modo, gastando o mesmo tempo, fazer uma viagem mais curta? É positivamente uma parvoíce!

        Ao chegar a casa contou o grão-vizir à esposa o que lhe ocorrera em caminho, repetindo-lhe as três observações do seu original companheiro de jornada.

        Mal terminara o grão-vizir a sua narrativa, ouviu-se no aposento contíguo, alegre e viva risada feminina.

        — Quem está aí? — perguntou, intrigado, o ministro.

        — É uma pobre rapariga chamada Nadima — respondeu a esposa. — É a filha do muezim1, veio hoje, casualmente, à nossa casa oferecer-me alguns trabalhos e bordados que pretende vender.

        — Quero falar a essa jovem — replicou o grão-vizir.

        Atendendo a esse chamado, surgiu a moça com o rosto coberto por espesso véu.

        — Minha filha — disse-lhe, carinhoso, o grão-vizir — por que motivo achaste tanta graça no caso extravagante que acabei de contar?

        — Allah que vos conserve, ó vizir! — replicou a jovem com humildade e respeito. — Notei (perdoai a minha audácia!) que muito vos iludistes, julgando louco o original muçulmano que foi vosso companheiro de viagem!

        — Como assim? Não reparaste nas observações descabidas que ele fez?

        — Reparai, sim, ó cheique venerável! — continuou Nadima com calma e modéstia. — A meu ver o vosso companheiro de jornada é um homem judicioso e de grande talento!

     

    1- Muezim — Pregoeiro. O muezim chama do alto das almenaras (minaretes) os fiéis à oração. Os muezins, em geral. São cegos.

     

    As três observações feitas revelam claramente uma inteligência invejável, um raciocínio claro e um juízo equilibrado e perfeito!

        E sem dar atenção ao grande espanto que invadia completamente a fisionomia do grão-vizir, a jovem assim falou:

        — A primeira observação: “Queira Allah que ele já não tenha comido o trigo que está colhendo!”, significa que podia acontecer já ter o camponês vendido antecipadamente a colheita e gasto o dinheiro assim obtido. Teria, portanto, comido o trigo que estava colhendo. Quanto à segundo observação, explica-se ainda mais facilmente. Ao dizer ele: “Quem sabe se aquele morto não está vivo ainda entre nós?”, quis significar que muitas vezes uma pessoa, pelas obras notáveis que deixa, continua, mesmo depois de morta, na recordação e no pensamento de todos, como se na verdade estivesse entre nós!

        — E a terceira observação? — interrogou o ministro. — Não vejo como justificar tão desarrazoada idéia.

        — É muito fácil — acrescentou, com um encantador sorriso, a filha do muezim. — Que disse o desconhecido ao chegar à encruzilhada? Que a viagem poderia ser mais curta, muito embora fosse feita durante o mesmo tempo, do mesmo modo e pelo mesmo caminho! E isso teria, realmente acontecido, se tivessem tido a felicidade de encontrar um terceiro companheiro que fosse capaz, em agradável palestra, de contar histórias e lendas maravilhosas que os distraíssem durante a jornada, suavizando-a!

        Ao ouvir tão hábil e sensata explicação, exclamou o grão-vizir:

        — Allah seja louvado! Encontrei na pessoa desta jovem a esposa ideal para o grande e generoso califa Al-Mamum, nosso amo e senhor!

         Dias depois, com grande pompa, realizou-se o casamento da jovem Nadima, filha do muezim, com o poderoso Abdala III — Al-Mamum — Emir dos Crentes, califa de Bagdá e senhor do grande império muçulmano!

     

       

    O MERCADOR DE SONHOS

    Entrei. No meio da sala, mal-iluminada e forrada de tapetes amarelos, avistei um homem alto, pálido, de barbas grisalhas, que se dirigiu para mim vagarosamente. Ostentava largo turbante de seda branca, onde cintilava uma pedra que não pude classificar. No seu semblante havia cansaço e esse não sei quê de misterioso notado em todos quantos mercadejavam com a magia. Era o famoso feiticeiro hindu. Os marroquinos do bairro, com aquela precisão com que o vulgo geralmente apelida os tipos populares, haviam-no denominado “o mercador de sonhos”.

        — Que desejais, ó jovem? — perguntou, fitando em mim os seus olhos negros e perspicazes.

        — Afirmaram-me — respondi — que o senhor possui, graças a certos fluidos mágicos, o estranho poder oculto de fazer com que uma pessoa tenha o sonho que quiser. Sou curioso. Quero experimentar os encantos de sua magia, a força de seus fluidos maravilhosos. Quero sonhar.

        — É verdade, ó muçulmano! É verdade — confirmou o mago indiano. — Tenho, realmente, esse dom raro e precioso de poder proporcionar às pessoas que me procuram todas as alegrias e todos os prazeres de um sonho desejado.

        E, apontando para uma larga poltrona escura que estava a um canto, disse-me com gentileza:

        — Senta-te e dize-me: com quem desejas sonhar? Que espécie de sonho mais te agrada, ó maometano?

        Contei-lhe então o motivo único da minha visita àquele antro misterioso da magia-negra.

        — Antes de tudo — comecei — devo dizer-lhe que sou um indivíduo excessivamente romântico e idealista. Sempre senti a forte atração das fantasias. Ultimamente, durante uma festa militar em Marraqueche, conheci certa jovem cristã, filha de um francês de alta linhagem, que exerce funções diplomáticas na corte do sultão. Apaixonei-me loucamente pela rumie1, mas não sei ainda se sou correspondido. Não obstante, desejo sonhar uma vez ao menos com a minha amada, um sonho claro e perfeito! Nesse sentido já fiz o possível, mas os meus sonhos povoam-se de imagens quase sempre desconexas, em meio das quais nunca vislumbrei a dona dos meus enlevos, a inspiradora do meu grande amor!

        — E qual é o nome dessa jovem ideal? — perguntou-me o feiticeiro.

        — Susana de Plassy.

        — Curioso — observou o famoso ocultista, passando vagarosamente a mão larga pela testa bronzeada — muito curioso! Ontem, ao cair da tarde,  fui  procurado  por  uma  jovem

        

    1- Apelido que os árabes dão aos cristãos franceses.

     

    cristã que aqui apareceu acompanhada por uma escrava moura: a minha formosa visitante pediu-me que a fizesse sonhar com um dos oficiais da guarda do sultão, Omar Ben-Riduan! Indaguei do seu nome e soube que a jovem se chamava Susana de Plassy!

        Ao ouvir semelhante revelação, um frêmito me percorreu o corpo todo e levantei-me como se fosse impelido por alguma possante mola de aço.

        — Omar Ben-Riduan? Omar Ben-Riduan é o meu nome! Omar Ben-Riduan sou eu! Se ela pediu que a fizesse sonhar comigo, é certo que me ama também.

        — Felicito-o, ó jovem — replicou o indiano, batendo-me, carinhoso, no ombro. — É muito raro ver-se uma formosa cristã apaixonada por um muçulmano. Bem sabes o imenso abismo que separa os adeptos de Mafoma daqueles que professam a religião de Jesus!

         Louco de alegria, atirei um punhado de ouro ao velho feiticeiro e corri para casa. Sentia-me alucinado como se estivesse sob a ação perturbadora de forte dose de haxixe.

    — Louco de alegria, atirei um punhado de

    ouro ao velho feiticeiro e corri para casa.

       

        Reuni alguns de meus mais íntimos, contei-lhes o que havia ocorrido e pedi-lhes que me ajudassem a encontrar uma solução para o meu caso sentimental.

        El Hadj1 Ben Cherak, homem sensato e muito relacionado na alta-sociedade marroquina, disse-me, sem hesitar:

        — Conheço muito bem o pai de tua apaixonada. É um cristão mau como um emir e mais orgulhoso do que um paxá. Detesta os árabes e jamais consentirá que sua filha se case com um muçulmano! Só vejo, portanto, uma solução: terás de raptar a jovem Susana! E isso só conseguirás com a sua cumplicidade!

        Seguindo o conselho do prudente Ben-Cherak, fiz, naquela mesma tarde, os preparativos para a minha fuga com a linha rumie. Passei a fil-leile2 a conversar com os amigos sobre a minha singular aventura.

        Já tarde da noite, chegou à minha casa, de volta, o portador que eu enviara ao rico palacete do nobre francês. Fui então informado de que Susana oito dias antes havia partido para a Europa, a fim de lá se casar com um fidalgo escocês.

        Percebi, no mesmo instante, que fora vítima de vergonhosa mistificação do indiano.

     

    1- El-Hadj — titulo honroso que precede sempre o nome de todo muçulmano que já fez a peregrinação à Meca.

    2- Fil-leile — expressão intraduzível. Significa, mais ou menos, a parte da noite que se segue ao pôr-do-sol.

      

     Revoltado e furioso por causa do papel ridículo que havia feito, voltei novamente ao antro do intrujão, resolvido a tirar tremenda desforra.

        O velho hindu — depois de atender a vários clientes que o esperavam — recebeu-me calmo, cínico, o semblante plácido de quem nunca praticara ação censurável.

        Gritei-lhe, ameaçando-o com o punho fechado:

        — Miserável! Por que mentiu? Susana nunca veio aqui a este antro nojento!

        — Vamos devagar, meu jovem amigo — replicou o charlatão, imperturbável, segurando-me pela mão que o ameaçava. — Não fiz senão o que tu me pediste. Vi, casualmente, o teu nome gravado no cabo do rico punhal que trazes à cinta. Jogando facilmente com o teu nome, pude proporcionar-te o encanto de uma ilusão efêmera. Menti para que pudesses não somente sonhar com um amor impossível como também acreditar nele!

        E concluiu, sardônico, terrível:

        — Afinal, o que vieste buscar aqui? Não foi um sonho? Não foi uma ilusão? Pois bem, eis, precisamente, o que te vendi: Um sonho... uma ilusão...

     

     

    AS INCONSOLÁVEIS DE HAMADÃ

    A cidade de Niampur, na índia, — conta-nos antiga lenda — vivia outrora um santo hindu que se tornou famoso pelos profundos conhecimentos que possuía acerca das leis, costumes e crenças de todos os povos do mundo.

        Chamava-se Kavira, o Bhagavã1, esse grande e virtuoso sábio.

        Um dia Kavira (Allah o tenha em sua glória!) e seu discípulo predileto Lahima Sen, como iam de peregrinação ao templo sagrado de Kasbin, caminhavam por uma larga e serpenteante estrada nos arredores de Hamadã, quando ouviram um alarido singular, que parecia provir do fundo da floresta.

        Assustou-se o jovem discípulo com a inesperada bulha.

        — Mestre — exclamou, dirigindo-se ao santo — alguma coisa de muito grave e extraordinário se passa na floresta! Ouço um barulho espantoso, como se uma legião de gênios infernais rompesse do seio da terra e viesse apupar o sagrado silêncio que dormia, há pouco, sob estas folhagens.

        — Meu filho — respondeu o sábio — devemos procurar para os acontecimentos do mundo explicações simples e naturais. Por que atribuir a fatos mais correntes da vida origens milagrosas e fantásticas? Deus seja louvado! Tudo o que se passa na terra, repito, se prende a causas simples e naturais.

        E. como o discípulo continuasse a mostrar-se atemorizado com o ruído que ouvia, o mestre prosseguiu:

        — Esse grande ruído que perturba agora o silêncio da floresta não é causado nem por gênios malignos nem por demônios em legião. Trata-se simplesmente de um elefante domesticado que os lenhadores obrigam a arrastar um tronco cheio de ramos e folhagens, pela estrada que atravessa a floresta!

        Poucos passos depois, realmente, mestre e discípulo viram vários homens que conduziam, aos gritos, moroso e gigantesco paquiderme.

        — Eia! Upa! Upa! Kab! — e o hercúleo animal arrastava, na verdade, um grande tronco, cheio de ramagens que remexiam o cascalho do caminho, produzindo um barulho ensurdecedor.

        — É tudo assim na vida — observou o bom do Kavira. — É tudo assim na vida! Ouve-se um grande ruído, a inexperta fantasia se apresenta em dar-lhe origens demoníacas. Afinal... não passa o caso de um velho elefante a arrastar ramos secos pelo caminho!

        Tinha o famoso Bhagavão proferido estas judiciosas palavras, quando avistou, sentadas à beira da estrada, três mulheres que choravam.

        — Eis ali, ó mestre! — exclamou o jovem Lahima — três mulheres debulhadas em pranto! Alguma coisa de muito grave e extraordinário por certo lhes aconteceu.

       

    1- Bhagavã - Aquele que está salvo. Bem-aventurado.

     

      — Não julgueis assim pelas aparências, meu filho — retorquiu Kavira. — Aquelas mulheres choram, com certeza, por algum motivo muito simples e natural.

         — Eis ali, ó Mestre! — Exclamou o jovem Lahima — Três mulheres debruçadas em pranto! Alguma coisa de muito grave e extraordinário por certo lhes aconteceu.

        E tomados de viva curiosidade aproximaram-se das três mulheres.

        O sábio dirigiu-se à primeira e interrogou-a:

        — Por que choras, ó infeliz? Que infortúnio te feriu tão cruelmente para que aqui te entregues ao desafogo das lágrimas?

        — Ah! Meu senhor! — respondeu a mulher, entre soluços. — Sou uma desgraçada! Meu marido cada vez que se encontra comigo, nega-se a maltratar-me, não quer espancar-me! Insiste em dispensar-me o maior carinho e bondade!

        E de novo entregou-se a copioso e desfeito pranto.

        — É incrível! É extraordinário! — exclamou Lahima, assaltado por indizível espanto. — Esta rapariga chora por um motivo singularíssimo, nunca visto! Chora porque o marido não quer espancá-la! Como podemos explicar isto, ó mestre?

        O santo Kavira (com ele a oração e a paz!), entreabrindo um sorriso de tolerância e bondade, cifrou nele a sua resposta. Aquele fato que assumia aos olhos do discípulo a feição de um acontecimento absurdo e inconcebível, deveria ter uma explicação simples e natural.

        — Vejamos o que diz essa jovem — volveu ele, apontando para outra mulher que também se entregava ao derivativo das lágrimas.

        — Ah! Meu senhor — lamentou a interpelada entre soluços. — Allah tenha piedade de mim! Sou Iasmina, filha de Abdul Ben Hamed, a mulher mais infeliz do mundo. Amo apaixonadamente meu marido. Tenho-lhe afeição sem limites, e, no entanto, o ingrato insiste em não querer casar com outra mulher! Não quer escolher outra esposa.

        E através do véu claro que ensombrava o rosto da jovem, viam-se as lágrimas a escorrer-lhe pelas faces.

        — É espantoso! É inverossímil! — exclamou Lahima. — Esta mulher chora por uma razão que jamais a fantasia humana poderia conceber! Chora porque o marido, que ela tanto estima, sujeito ao seu afeto, não quer casar com outra mulher!

        E. voltando-se novamente para o sábio, perguntou:

        — Como explicas esta anomalia, ó tu que és sapientíssimo?

        O piedoso mestre mais uma vez esboçou um sorriso que refletia toda a sua benevolência e brandura. Aquele fato, na aparência tão estranho, deveria ter, na verdade, uma explicação bem simples e natural.

        Antes, porém, de justificar com palavras o seu elevado juízo sobre as estranhas razões de infortúnio alegadas pelas duas mulheres, aconselhou ao jovem que ouvisse também a terceira.

        E esta, que era mais formosa que a flor azul do lótus, interrogada, assim falou:

        — Sou uma infeliz, ó generoso príncipe! Sou a mulher mais desventurada do mundo! Casei unicamente por interesse, com um homem riquíssimo. Meu marido possui terras imensas, ricos palácios e numerosos escravos! Por sua morte todos os seus bens passarão para o meu poder. Há cinco ou seis dias, porém, foi meu marido assaltado por uma enfermidade gravíssima. Os médicos mais ilustres e famosos do país, chamados à consulta, declararam-no perdido, sem cura possível. Percebendo que ia ficar viúva, ajoelhei-me a seus pés e pedi-lhe que me repudiasse antes de morrer. Eu não quero ficar viúva, embora ambicione a riqueza que ele possui!

        E, entre soluços, a pobre mulher prosseguiu:

        — Meu marido, porém, penalizado com a sorte de minha família, insiste em não querer deserdar-me! Hoje ou amanhã morrerá e eu serei a sua única herdeira! Eis a minha enorme desdita, ó senhor! É por isso que eu choro!

        — É positivamente espantoso! — observou Lahima, que mal podia exprimir-se de atônito que estava. — As razões de que se serve esta mulher para lamentar-se são na verdade inconcebíveis. Não quer ser viúva de um homem rico, ao qual se uniu unicamente por interesse! É positivamente absurdo!

        Pela terceira vez o grande sábio hindu (Allah, porém, é mais sábio!), ao ouvir as exclamações do discípulo, deu mostras de branda alegria.

        E como estivesse habituado a decifrar os mais complicados problemas da vida, falou desta sorte:

        — Observei, raciocinei e posso, em conclusão, garantir com absoluta certeza, que estas três mulheres choram por motivos extremamente simples, frutos naturais da alma feminina! A primeira, pela maneira de falar e pelos grossos brincos de osso que traz, deixa perceber que é natural do Afeganistão. Ora, segundo uma antiga lei deste país, o marido que espanca a mulher é obrigado a dar-lhe, a título de indenização, jóias e vestidos novos! Ora, esta moça, como é muito vaidosa, chora porque o marido não a espancando de vez em quando não lhe dá o direito de exigir dele jóias custosas nem trajes vistosos. Chora, portanto, por um motivo simples e natural: chora por vaidade!

        — E a segunda, ó mestre! Como explicar o caso desta Iasmina, a rapariga apaixonada?

        — O caso de Iasmina, filha de Abdul Ben Hamed, ainda é mais simples de esclarecer. Trata-se, como facilmente pude observar — pelo véu, pelos trajos e pelo nome — de uma jovem árabe maometana. Como é notório, os muçulmanos podem ter até quatro esposas. Iasmina é, porém, à única. Sente-se, entretanto, cansada com os trabalhos caseiros e tem grande vontade de que seu marido tome uma segunda esposa, de modo que ela tenha mais descanso. Uma vida trabalhosa fará facilmente com que ela cedo venha a enfear e envelhecer. Quer, portanto, poupar-se, conservar--se formosa e sedutora para prender com seus encantos um marido que ela ama apaixonadamente.

        E, ante o profundo pasmo do jovem, o grande sábio concluiu:

        —- Quanto à terceira mulher — que deseja ser repudiada pelo esposo moribundo — a explicação de suas lágrimas não oferece a menor dificuldade. Trata-se de uma hindu, cujas seitas religiosas são intolerantes. Segundo as crenças de sua gente, a viúva é obrigada a atirar-se à fogueira que consome o corpo do marido. Não se sentindo com coragem para tão grande sacrifício, por um homem que ela não ama, essa mulher prefere ser repudiada a ter de acompanhar o marido ao fogo! Que lhe poderá importar a herança do marido se os bens superabundantes não lhe hão de evitar a morte?

        E Kavira, o santo hindu, concluiu, com um sorriso de bondade e candura:

        — Esta, meu filho, chora porque tem medo da morte! E haverá coisa mais natural do que o instinto de conservação?

        E. ao longe no seio da mata sombria, ouvia--se, ainda, vagamente, o ruído que o elefante dos lenhadores fazia, arrastando a pesada carga pela estrada afora...

        — É tudo assim na vida!

        Uassalã!

     

     

    MAKTUB!

    (Lenda árabe)

    Afirmam os historiadores que o túmulo de Sidi-Yakub, existente em Tlemcen, data do século XI. Não nos move o desejo de contestar a opinião dos eruditos sobre um monumento quase em ruínas, perdido ou esquecido, talvez, no deserto. A única coisa realmente interessante que se encontra nessa cuba — outrora tão venerada pelos crentes — é uma inscrição ali deixada por um escravo. Resume-se essa legenda numa palavra — Maktub — gravada sobre a pedra que cobre as cinzas de Sidi-Yakub.

        E sabeis, ó cristão! O que quer dizer Maktub? Essa palavra encerra a filosofia de um povo, o destino de uma civilização. Maktub é um vocábulo árabe que significa apenas — Estava escrito, ou melhor: Tinha que acontecer. Maktub é, assim, a expressão da Fatalidade1.

        Tal palavra, na laje tumular de Tlemcen, recorda um episódio ocorrido com dois namorados que o Destino caprichoso uniu para depois separar cruelmente.

        Conta-nos uma lenda que na cidade de Orã, ao norte da Argélia, vivia certa moça, de origem francesa, chamada Heliete. Era filha de um negociante cristão, de Marselha, que se estabelecera, levado pelas necessidades de sua profissão, sob o céu da África.

        Certa vez, durante uma feira, conheceu Heliete o jovem Iezid El-Massi, de origem nobre, descendente de uma das mais ricas famílias de Tlemcen. Viva simpatia, que deveria crescer de dia para dia, uniu desde logo, os dois namorados.

        Heliete, levada por seu temperamento excessivamente romântico, apaixonou-se pelo árabe, e este — arrebatado como os homens de sua raça — sentiu que a sua vida não mais teria sentido se lhe viesse a faltar o amor de cristã.

        A pitoresca cidade de Orã, por esse tempo sob o poder de Bey Mustaphá Ben Yussef, foi testemunha silenciosa daquele amor. As tamareiras, sob o sol causticante, abriam suas palmas e estendiam no chão, da praia até a montanha, um largo tapete de sombras, sobre o qual os dois jovens caminhavam felizes, longas horas esquecidas, em doces colóquios.

        Grande abismo de incompatibilidade separa, entretanto, uma cristã de um adepto da religião de Maomé.

        Os país de Heliete, informados das inclinações amorosas da jovem, opuseram-se tenazmente àquele casamento que se lhes afigurava desonroso. E o primeiro brigue que levantou ferro de Orã transportou para Marselha a apaixonada menina.

        O Infortúnio, na vida das criaturas, escreve, às vezes, várias páginas num período durante o qual a Felicidade mal teria tempo para esboçar a curva da letra “alef”. A infeliz Heliete, ferida tão rudemente em seu delicado coração, não soube resistir; e adoeceu gravemente, em conseqüência daquele golpe, iniciado pela separação e concluído pela desesperança.

       

    1- Maktub — Particípio do verbo “catab”, escrever.

      

     Sentindo avizinhar-se dela a sombra da morte, mandou chamar, em segredo, um imã1, que vivia no porto, entre aventureiros e embarcadiços.

        — Quero morrer — confessou ela, entre soluços, ao velho maometano — na religião de Allah, que é a crença de meu noivo. A vida nos separou: quem sabe se a morte não virá pôr termo a essa separação. E morrendo fiel à religião que os árabes professam terei o consolo supremo de encontrar no céu muçulmano aquele que tanto amei na terra!

        — Se o teu desejo é sincero, menina — respondeu o imã — não porei dúvida em servir de testemunha à tua conversão. Basta, para isso, que pronuncies três vezes a nossa profissão de fé!

        Heliete, sem hesitar, assim falou:

        — Declaro que só há um Deus, que é Allah, e que Maomé é o profeta de Allah!

        E três vezes repetiu, solene, as suas palavras que constituem o dogma fundamental da religião dos árabes.

        O imã tirou, então, as sandálias, abriu um exemplar do Alcorão, e voltando-se para Meca, a Cidade Santa, leu em voz alta o primeiro capítulo do Livro de Allah2:

        — Bismillahi ahmair rahin! Em nome de Deus, Clemente e Misericordioso! Louvado seja o Onipotente, criador de todos os mundos! A misericórdia é em Deus o atributo supremo! Nós Te adoramos, Senhor! E imploramos a Tua divina assistência! Conduze-nos pelo caminho certo! Pelo caminho daqueles que são esclarecidos e abençoados em Ti.

        E quando Azrail, o anjo da Morte, veio buscar Heliete, encontrou-a convertida à religião do Islã. E a alma da boa e desditosa menina foi levada para o seio de Allah, Clemente e Misericordioso.

       

        No mesmo dia em que Heliete expirava em Marselha, o cheique Iezid El-Hassin agonizava no fundo de sua tenda, no oásis de Euddad, perto de Tlemcen

        Junto ao leito do desventurado moço achavam-se apenas duas pessoas: um escravo, que a dedicação extrema impedira de abandonar o cheique, e um frade que ali fora ter, anuindo a um chamado. O sacerdote era um desses missionários que percorrem durante longos anos, os desertos africanos em trabalho de catequese. A declaração do jovem muçulmano deixou-o, de certo modo, surpreendido. Confessou o cheique que nutria o vivo desejo de morrer na paz da Igreja, pois só assim poderia encontrar-se entre os bem-aventurados, com sua noiva, que era cristã.

        A salvação daquela alma iluminada pela Fé no derradeiro momento, comoveu o bom sacerdote. Fora Deus, na sua infinita misericórdia, que o conduzira àquela tenda. Cumpria-lhe, pois, salvar dos tormentos do Inferno, o jovem arrependido.

        E o padre, depois de ouvir a confissão do cheique, e tendo-se certificado da sinceridade de sua resolução deu-lhe a absolvição plenária batizando-o segundo manda a Santa Igreja Católica — e fê-lo, ainda, receber na hóstia, em comunhão, o corpo divino de Jesus, Nosso Senhor!

       

    1- Imã - O Islã não admite sacerdotes. O imã desempenha apenas as funções de oficiante nas orações diárias nas mesquitas. O titulo de Imã é dado a certos doutores e aos quatro fundadores do Islamismo.

    2- Livro de Allah — Alcorão.

      

     Assim, o rico cheique Yezid El-Hassin, príncipe de Tlemcen que em vida rezara nas mesquitas e erguera preces a Allah, Onipotente, cerrou os olhos para os desenganos do mundo como um bom cristão.

        Maktub! Estava escrito! A fatalidade é cega e inexorável.

        Estava escrito que para os dois namorados de Orã nunca mais teria termo a cruel separação, e que nem mesmo com a morte veriam realizado o seu sonho de amor.

        E isso aconteceu. Ela morreu muçulmana, ele morreu cristão.

        Maktub!

     

    E o padre, depois de ouvir a confissão do cheique, e tendo-se certificado da sinceridade de sua resolução deu-lhe a absolvição plenária batizando-o segundo manda a Santa Igreja Católica

     

     

    A NOIVA DE ROMAIANA

    Na opulenta cidade de Badu, na índia, vivia, faz muitos anos, um rico brâmane, chamado Romaiana, que possuía as cinco virtudes desejáveis e era, além disso, destro e valente no manejo dos corcéis de combate.

        Três encantadoras donzelas — Nang, Laira e Lamit — requestravam o coração do garboso e gentil Romaiana. Cada uma delas parecia exceder as demais em beleza de formas, lustres de avós e graças de gestos e sorrisos.

        Não sabendo o generoso Romaiana qual das três deidades escolher para esposa, procurou um velho sacerdote, chamado Vidharba, que morava na cidade — pediu ao bom do goru lhe indicasse um meio seguro e discreto de averiguar qual das três raparigas seria a mais prendada.

        — Aconselho-te um artifício extremamente simples — acudiu o sábio brâmane ao jovem namorado. — Dá a cada uma das jovens um prato de arroz, no meio do qual terás, previamente, ocultado um brilhante, e pede-lhes que te preparem um gostoso manjar.

        Depois de aprontar cuidadosamente os três pratos, conforme determinara o sacerdote, Romaiana tomou-o sob as amplas vestes, foi à casa da formosa Nang, e disse-lhe, apresentando-lhe um deles.

        — Venho pedir-te, minha querida, que me prepares, tu mesma, com este arroz, um manjar. Virei, dentro de sete dias, saborear a iguaria que fizeres!

        Idêntico pedido fez Romaiana, logo depois, a Laira e a Lamit, deixando-lhes os dois pratos restantes.

        No dia marcado, ao cair da tarde, foi o moço brâmane, em companhia do judicioso Vidharba, à casa de Nang.

        A jovem conseguira, com o alvo cereal que lhe dera Romaiana, um manjar finíssimo e saboroso.

        — Como és habilidosa, ó bela Nang! — Exclamou ò moço, cheio de entusiasmo. — Feliz o mortal que hás de eleger para esposo!

        O velho goru disse, porém, baixinho, ao discípulo:

        — Esta jovem é, realmente, como disseste, bastante habilidosa, mas não te poderá servir para esposa. É desonesta, e egoísta, pois, tendo encontrado o brilhante no meio do arroz, guardou-o sem nada dizer-te!

        E prosseguiu:

        — A mulher desonesta e egoísta, conforme li no Hitopadexa1 — é como o tigre faminto da floresta, que tanto devora um ladrão como um santo!

        Romaiana e seu mestre despediram-se de Nang, e dirigiram-se, em seguida, à casa em que morava Laira.

        

    1- Hitopadexa — Livro composto de uma coleção de fábulas, contos morais e apólogos. O Hitopadexa é muito usado na índia para a educação dos meninos.

       

    Não menos delicioso estava o pudim que esta idealizara. Ao prová-lo, Romaiana ficou maravilhado:

        — Não há elogios dignos deste apetitoso prato! Jamais me foi dado saborear iguaria tão fina! Estou encantado.

        — Mais encantada estou eu ainda — retorquiu a jovem — pois no meio do arroz achei um valioso brilhante, com o qual mandei fazer, para mim, este lindo anel!

         — Aconselho-te um artifício extremamente simples — acudiu o sábio brâmane ao jovem namorado. — Dá a cada uma das jovens um prato de arroz, no meio do qual terás, previamente, ocultado um brilhante, e pede-lhes que te preparem um gostoso manjar.

        E estendendo a mão fina e perfeita, mostrou ao namorado a riquíssima jóia que lhe cintilava no dedo esguio e branco.

        Mas, sem que Laira o ouvisse, o sacerdote murmurou ao ouvido do jovem brâmane:

        — Esta moça é prendada, é honesta, mas tem, a meu ver, um grave defeito: é egoísta! A mulher egoísta — conforme nos ensina o Hitopadexa — é como o pássaro que devora a semente para que ninguém possa aproveitar o fruto!

        E rematou, em voz baixa:

        — Deixemos esta casa. Vejamos como vai receber-nos a formosa Lamit!

        Romaiana seguiu, no mesmo instante, para a casa de sua terceira apaixonada.

        Acolheu-o Lamit com grande satisfação, oferecendo-lhes um lauto banquete.

        — Que vejo! — exclamou Romaiana. — Pedi-te que me fizesses, apenas, um manjar com a pequena porção de arroz que te dei, e encontro iguarias tão diversas e tão finas que só mesmo na ceia de um príncipe poderiam figurar!

        — Pois tudo isso que aí está — retorquiu a jovem — preparei apenas com o arroz que me trouxeste!

        — Como foi possível tal milagre?

        — Nada mais fácil — explicou Lamit. — Ao examinar e lavar o arroz, achei um brilhante. Se esse brilhante veio com o arroz — pensei — deve contribuir para a preparação dos pratos! E. assim, resolvi empenhar o brilhante. Com o dinheiro obtido comprei vários ingredientes para as demais iguarias que aí estão. Mostrei-os às minhas vizinhas que, encantadas, me pediram lhes ensinasse a tão bem fazê-los. Aquiesci, recebendo, de cada uma, dois thalungs1 de ouro. Foi com esse dinheiro que consegui retirar o brilhante do penhor!

        E entregando a Romaiana a preciosa gema, disse:

        — Aqui está o brilhante! Guarda-o, que ele é teu!

        O sábio bramarxi2, conduzindo o rapaz para o canto da sala, segredou-lhe:

        — Casa, meu filho, une-te hoje mesmo a esta meiga e preciosa menina! Ela é, a meu ver, habilidosa, honesta, boa e econômica!

        E concluiu, com firmeza, que os anos e a experiência lhe garantiam:

        — A mulher econômica, segundo diz o Hitopadexa, é como a formiga que nunca leva fora de sua vivenda os grãos preciosos de seu celeiro.

        Romaiana seguiu, sem hesitar, o conselho do sábio Vidharba, e viveu, muitos anos felizes, sem jamais esquecer os profundos ensinamentos do Hitopadexa:

        — “Em verdade, quem não tem, procure adquirir; adquirindo, guarde sem desperdiçar; guardando, aumente convenientemente; aumentando, despenda nos lugares sagrados!”

     

    1- Thalung — Moeda antiga do Sião.

    2- Bramarxi — Brâmane dotado de grandes virtudes. Santo da casta bramânica.

     

     

    A SEITA DOS IAKINIS

    Quando o príncipe Livati de Miapola voltava de uma caçada, na grande floresta de Baladeva, viu, casualmente, junto a uma casa rústica da estrada, formosa rapariga, que trabalhava em grosseiro tear.

        Apaixonou-se o príncipe por essa jovem, e, como não pudesse refrear os impulsos de seu coração, dirigiu-se, no mesmo instante, à encantadora desconhecida e pediu-a em casamento.

        — Não posso aceitar a vossa generosa proposta, ó príncipe! Porque já sou casada!

        E contou, pesarosa, o seu triste romance:

        — Meu nome é Vitória — começou — e sou filha de um brâmane muito pobre. Quando eu tinha doze anos de idade, meu pai vendeu-me a um homem perverso chamado Jaradgava, dando-me em troca de uma dívida que fizera no jogo. Meu marido, da casta dos vaixias, tem alma de chandala1; trata-me com desprezo, e, não raras vezes, espanca-me impiedosamente!

        — Pois fujamos desse bruto! — propôs o príncipe. — Iremos para Hiamavanta e, lá bem longe, casaremos!

        — Não posso fugir — replicou a moça. — Embora não sinta a menor afeição por meu algoz, estou presa por um juramento que fui obrigada a fazer!

        — Vou oferecer ao teu marido avultada quantia — ajuntou o mancebo. — Estou certo de que a cobiça fará com que ele, repudiando-te, consinta em nosso casamento!

        — Nada conseguireis pelo dinheiro — respondeu a moça. — Jaradgava é caprichoso e ciumento. Já apunhalou, por minha causa, um rico mercador de Benares.

        E a infeliz, com voz repassada de profunda mágoa, ajuntou:

        — Só poderei ser vossa esposa se for levada ao vosso palácio e entregue aos vossos cuidados pela própria mão de meu marido! E isso é impossível! Completamente impossível!

        Quando o príncipe regressou, nesse dia, ao castelo, estava triste e abatido. Procurou um velho brâmane, chamado Iama, seu confidente e amigo, contou-lhe o que se havia passado e pediu-lhe que o auxiliasse a vencer a teimosia e o ciúme do facinoroso Jaradgava.

        — Estou certo — respondeu o brâmane — de que V. Alteza só poderá vencer esse vaicia2 perverso, se quiser entrar para a seita dos Iakinis!

        O príncipe de Baladeva nunca ouvira falar em semelhante seita: mas resolveu seguir confiante as instruções do prudente brâmane.

        No dia seguinte Livati mandou convidar o perigoso Jaradgava para exercer o cargo de mordomo do castelo oferecendo-lhe ótimo salário.  O  ciumento  vaicia  —  que  ignorava a

         

    1- Chandala, na Índia, é o indivíduo expulso da sua casa. (Nota do T.).

    2- Vaicia — Uma das quatro maiores castas em que se divide o povo hindu. Veja a nota do conto “A Esposa e a Morte”.

     

    paixão do príncipe por sua esposa — aceitou, sem hesitar, o generoso oferecimento.

        Alguns dias depois, o príncipe chamou Jaradgava e disse-lhe, em tom confidencial:

        — Naturalmente já sabes, meu amigo, que eu pertenço à grande seita dos Iakinis. Os filiados a essa doutrina secreta dedicam a todas as mulheres um amor puro e desinteressado. Quero, portanto, que tragas hoje, ao castelo, uma rapariga de casta elevada e que seja digna, pelos seus dotes naturais, de receber as homenagens que sou obrigado a prestar, segundo as formalidades prescritas pelos iakinistas.

        Não se pode calcular a surpresa com que o vaicia ouviu estas palavras. Que seita seria essa? Não estaria o rico senhor de Baladeva sofrendo das faculdades mentais?

        O príncipe, como se não percebesse o espanto que a sua inesperada revelação havia causado ao administrador, ajuntou:

        — Quando trouxeres a rapariga, deveras levá-la ao salão de honra. E apresentando-a, deveras dizer: — “Eis aqui a mulher que Vossa Alteza pediu!”

        Jaradgava retirou-se, tendo prometido que tudo faria como fora ordenado.

        Intrigava-o, porém, aquele caso.

        — Vou desvendar esse mistério! — pensou. E, no dia seguinte, procurou uma rapariga muito viva e alegre, chamada Noila, e propôs-lhe que o acompanhasse até o castelo de Maipola. Noila, que cultivava toda sorte de aventuras, aquiesceu de bom grado.

        Jaradgava levou-a à presença do príncipe.

        — Eis aqui — exclamou, solene — a mulher que Vossa Alteza pediu!

        O príncipe tomou Noila pela mão e conduziu-a, respeitosamente, ao salão de honra do castelo, cuja porta fechou.

        — Vamos ter belos idílios! — murmurou o mordomo.

         Quando Noila, momentos depois saiu da sala, perguntou-lhe Jaradgava que galanteios lhe havia dito o príncipe.

     

    Sua Alteza ajoelhou-se a meus pés e adorou-me como se eu fosse uma nova deusa!

       

        — Nada — respondeu Noila. — Sua Alteza colocou-me em um trono riquíssimo, ajoelhou-se a meus pés e adorou-me como se eu fosse uma nova deusa! Obsequiou-me, por fim, dando-me vestidos, enfeites e jóias!

        E a jovem mostrou ao mordomo do castelo os ricos anéis, os colares, as pomadas e as rutilantes peças de ouro que recebera.

        — É estranha essa religião! — murmurou Jaradgava.

        Alguns dias depois, o príncipe ordenou a Jaradgava que lhe trouxesse outra rapariga, pois já era chegada, novamente, a ocasião de prestar as homenagens devidas à deusa dos Iakinis.

        O mordomo trouxe, desta vez, uma donzela chamada Naraína. Passou-se tudo como da primeira vez. recebendo a jovem, que era da casta dos párias1, valiosa recompensa.

        — É extraordinário! — pensava Jaradgava, cada vez mais intrigado. — Parece-me que essa seita dos Iakinis não passa de uma loucura do príncipe! Não creio existirem no mundo dois homens que tenham, em relação às mulheres formosas, tão estranha maneira de proceder!

        Um dia, porém, quando o desconfiado Jaradgava voltava de casa, encontrou sob uma árvore, junto à estrada, um velho brâmane. absorto com a leitura de um grande livro.

        E Jaradgava, aproximando-se do velho, perguntou-lhe:

        — É verdade, ó brâmane! Que existe no mundo uma seita chamada Iakinis?

        O brâmane, que não era outro senão o prudente Iama, que naquele lugar fora postar-se já de propósito — respondeu:

        — É verdade, sim, meu filho! A grande seita dos Iakinis existe, há mais de dez séculos, espalhada pelo mundo. Os adeptos dessa elevada doutrina faz o juramento sagrado de respeitar a mulher e de prestar homenagens constantes ao sexo feminino, reduzindo todo esse culto a uma admiração platônica, pura e desinteressada.

        E o sábio concluiu, gravemente:

        Os iakinistas, homens extremamente puros, são incapazes de tocar em uma mulher!

        Agradeceu Jaradgava ao bom brâmane a preciosa informação e, nesse dia, quando regressou ao castelo, estava já plenamente convencido de que a seita dos Iakinis era, na índia, uma grande realidade.

        Uma semana depois, o príncipe pediu ao seu mordomo que trouxesse ao castelo, para o cerimônia iakinista, uma jovem de boa família.

        — E se eu trouxesse minha esposa? — pensou Jaradgava. — É claro que não haveria nisso mal algum! Esses bons iakinistas são inofensivos!

        E murmurou, cheio de ambição:

        — Bela idéia! Com os presentes que Vitória receber do príncipe estarei riquíssimo em pouco tempo!

        O ambicioso vaicia foi nesse mesmo dia a casa e disse à esposa:

        — Vou levar-te ao castelo do príncipe de Maipola. Deveras, ao chegar, obedecer a tudo o que o príncipe determinar!

        A jovem fitou com indizível espanto o seu terrível marido. Quem teria feito mudar de idéia àquele homem caprichoso e mau?

        Jaradgava levou a esposa ao castelo e, na presença do príncipe, exclamou, como já fizera das outras vezes:

        — Eis aqui a mulher que Vossa Alteza pediu!

       

    1- Párias — Casta antiga, perfeitamente definida, que não é a última nem das últimas. Os párias não se reputam miseráveis e abjetos nem são refugo da sociedade: entretêm o mesmo pundonor de sua casta - ou o “castismo”, como se diz na Índia — que os brâmanes e os xatrias e tratam as camadas que consideram mais baixas, como as de sapateiros e lavadeiras, com o puritanismo e desdém análogos aos das castas superiores.

      

    O príncipe tomou-a pela mão, levou-a para o grande salão do castelo e, depois de ter fechado cuidadosamente a porta, assim falou:

        — Bem vês, querida Vitória, que foi o teu próprio marido que para aqui te quis trazer! Estás desligada de teu juramento! Convencio-o de que ele deveria consentir em nosso matrimônio!

        E, ante o incalculável espanto da moça, o príncipe ajuntou:

        — Fujamos depressa! Jaradgava pode arrepender-se, de repente, do ato de generosidade que acaba de praticar.

        O príncipe abriu uma porta secreta que ficava ao fundo do salão. Foi por essa porta que os dois namorados fugiram, sem que Jaradgava pudesse perceber.

        Algumas horas depois foi o rancoroso vaicia sabedor do logro em que havia caído. Era, porém, muito tarde para qualquer vingança. O príncipe e Vitória já estavam longe!

        E ainda hoje, na índia, os velhos brâmanes contam:

        — Era uma vez uma moça chamada Vitória, que entrou por uma porta, saiu por outra e... acabou-se a história!

     

     

    UM NOIVADO EM BAGDÁ

    Quando eu tinha vinte anos de idade, fui, certa vez, a Bagdá.

        No dia seguinte ao de minha chegada — tendo a necessária licença do Valli1 — armei uma grande tenda junto à praça de Otmã e preparei-me para vender aos vaidosos “bagdalis” perfumes, tapetes e as mil quinquilharias que lhe trouxera das terras longínquas da índia e da China.

        Em dado momento aproximou-se de minha tenda uma mulher, já velha, magra e esfarrapada, o rosto descoberto, o andar curto e arrastado.

        Depois de examinar, com o olhar distraído, talvez por mera curiosidade, as bugigangas espalhadas sobre grossos tapetes hindus, disse-me:

        — Ó jovem e formoso mercador! Seja Allah o teu guia e o teu amparo! Há quarenta anos passados, um homem do teu tipo escolheu-me para esposa e tirou-me do serralho de meus pais! E a felicidade sempre me sorriu no harém2 de meu amado!

        Ao ouvir palavras tão bondosas, cuja simplicidade parecia aliar-se a uma emoção sincera, fiquei profundamente lisonjeado.

        — Agradeço-vos — respondi-lhe — a expressão amável e a forma gentil do vosso salã! Seja a paz a vossa estrada e a alegria sã e perfeita a luz dos olhos de vossos filhos!

        — Ualá! — acudiu a velha. — Vejo que és afável e eloqüente. Desejo verificar agora se a generosidade que aflora nos teus lábios provém realmente de teu coração. Escuta, mercador: sou pobre e não tenho de meu um único dinar. Queres, ainda, assim, fazer comigo uma transação?

        — Ouço a vossa proposta, senhora! — retorqui, sem hesitar. — Asseguro-vos, porém, que já está aceita.

        — Dá-me, então — atalhou a anciã — um frasco de perfume. Prometo, em troca, ensinar-te alguns versos de um antigo poeta de Mossul.

        Tomei de um dos mais belos e valiosos frascos de essência e entreguei-o à misteriosa criatura.

        E ao tempo em que ela ocultava sob as vestes rotas, a obra-prima de um perfumista de Basra, disse-lhe:

        — Aguardo ansioso o vosso pagamento, senhora!

        — Oh, jovem bem dotado! — exclamou — os versos com que pretendo retribuir a tua desmedida generosidade jamais deverão desamparar os teus pensamentos. Escuta-os:

        “Só é digno mil vezes da misericórdia infinita de Deus aquele que em si próprio encontra forças para resistir à tentação do pecado!”

       

    1- Prefeito da cidade, governador de uma província.

    2- Harém — Vocábulo derivado do árabe harã — proibido. Harém é a parte da casa de um muçulmano onde ficam suas esposas.

      

    E, sem mais palavra, afastou-se, o andar arrastado, impelindo para diante o cascalho do caminho.

        Era a hora triste do ezzã1.

        A voz cantante do muezim2 cego chamava os crentes à oração:

        — Allah é grande e Maomé é o Enviado de Deus! Vinde à prece, ó muçulmano; vinde à prece! Lembrai-vos de que, na vida, tudo é pó, exceto Allah! Lembrai-vos de que...

         Voltei-me na direção da Cidade Santa3, retirei as sandálias, estendi o meu tapete e em Allah Onipotente, criador do céu e da terra, concentrei meus pensamentos, isolando-me da vida material e vil.

         — Ualá! — acudiu a velha. — Vejo que és afável e eloqüente. Desejo verificar agora se a generosidade que aflora aos teus lábios provém realmente de teu coração.

       

        Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Allah!

        E o eco ressoando ao longe, nas montanhas de Kilv, parecia repetir:

        — Exceto Allah! Exceto Allah!

        Cinco dias volvidos achava-me descuidado junto à tenda, quando avistei um cheique que passava solene em garboso camelo que um escravo negro, seminu, conduzia vagarosamente pela rédea.

        — Cheique dos cheiques! — exclamei, dirigindo-lhe amistoso salã. — Maahaba ahlã na Sahlã na anastina! Aqui tenho à vossa disposição os únicos perfumes dignos das mulheres encantadoras do vosso harém.

        O desconhecido ergueu o rosto para mim, e num sorriso afável traduziu o agradecimento com que retribuía a saudação carinhosa que acabara de ouvir.  Parecia ainda

       

    3- Ezzã — Oração da tarde.

    4- Muezim — Pregoeiro. O muezim chama do alto dos minaretes os fiéis à oração. Os muezins, em geral, são cegos.

    5- Meca.

     

    relativamente moço. Os traços enérgicos de sua fisionomia serena faziam pensar que um escudo possante de energia devia revestir-lhe a alma. Ostentava, num requinte de bom-gosto, riquíssimo keffié1 de três pontas, todo de seda branca, com barras azuis.

        O cheique fez parar o camelo, ordenou ao escravo que o fizesse apear-se do matuflê2 e concedeu-me a honra de vir examinar de perto as ricas alcatifas que eu vendia, com paciência e probidade, sem ferir um só versículo do Alcorão!

        Quis a vontade de Allah (glorificado seja o Eterno!) que o olhar do cheique fosse incidir sobre um pequeno quadro de madeira no qual eu escrevera em belos caracteres negros os tais versos que, à guisa de pagamento, ouvira da anciã.

        Mostrou-se o cheique tomado do mais vivo espanto ao se lhe deparar a legenda poética do quadro, as mãos tremiam-lhe e uma onda de acentuada palidez invadiu-lhe as faces.

        — Mercador — interpelou-me, num tom seguro e autoritário — quem te ensinou esses versos?

        Contei-lhe — e não via razão para ocultar a verdade — a invulgar transação que, dias antes, fizera com a velha, repetindo-lhe fielmente as palavras gentis que dela ouvira naquela tarde!

        — Louvado seja Allah, o Justiceiro! — exclamou o cheique. — Acabo de descobrir, graças ao teu auxílio, ó mercador, o paradeiro de uma criatura que há três anos procuro pelas terras do Islã.

        Naquele momento a desconfiança e a dúvida invadiram-me o espírito. Teria o infeliz cheique a razão perturbada pela loucura? Ou que sentido oculto haveria em suas palavras?

        O rico muçulmano, esclarecendo o caso, contou-me o seguinte:

        — Meu nome é Abd-el-Uhad, e sou filho do poeta El-Bagavi, de Mossul. Compelido pelas necessidades da vida e forçado, muito cedo, por um destino ingrato, deixei minha família e fui tentar a vida no país de Candahar, na índia, onde graças a Allah, tive um largo período de prosperidade. Passados vinte anos, como já me satisfizessem as riquezas que então possuía e também para livrar minha filha Sálua de um rajá perverso que a queria desposar, resolvi voltar ao meu velho torrão natal. Soube, chegando a Mossul, que meu pai havia falecido alguns anos antes, mas do paradeiro de minha mãe não me souberam dar notícia alguma. E há três anos que a procuro inutilmente pelas cidades e aldeias. Já desanimado, depois de fatigantes pesquisas, deliberei, a conselho de um velho imã3 de Basra, fazer uma peregrinação a Meca. Cheguei ontem a esta cidade e daqui pretendia partir dentro era breve, com uma caravana de xiitas4 para o Santuário da Fé. Quis, porém, Allah, o Exaltado, que eu viesse agora encontrar na tua tenda — naquele quadro que ali está — alguns dos mais belos versos de meu saudoso pai. Não me foi difícil inferir — na narrativa que fizeste — que a misteriosa anciã que levou o teu perfume era precisamente aquela que foi a esposa única de meu pai. Na certeza de que ela se acha nesta cidade, espero encontrá-la sem mais canseiras nem jornadas.

        E, ao terminar, pousou no meu ombro a sua larga mão bronzeada e perguntou-me, como se tivesse tomado, no momento, uma resolução inabalável.

        — Quanto queres, mercador, pela tua tenda, com tudo o que nela se encontra?

        Meditei, em silêncio, durante  algum  tempo, e  compreendi  que  o  dadivoso  cheique

          

    1- Peça do vestuário.

    2- Espécie de palanquim que se coloca no camelo.

    3- Imã - Vide nota 1 da pág. 60.

    4- Xiitas - Seita protestante dentro do Islã.

     

    entendia ter encontrado uma forma delicada de manifestar a sua gratidão. O céu e a generosidade do árabe — ensina um provérbio — não tem limites no possível.

        — Pela minha pobre tenda — respondi, fitando-o com desembaraço — nada quero! Considerai-a, desde já, como coisa vossa! Mas pelos versos, que estão naquele quadro, quero — se for possível — a mão de Vossa filha Sálua!

        A minha audaciosa proposta causou não pequena surpresa ao rico Abd-el-Uhad.

        — Ó mercador! — exclamou. É singular! Acabas de pedir em casamento uma jovem sobre os predicados da qual não tens a menor informação1. Sálua será formosa ou terá os traços deformados pela feiúra?

        — Cheique dos cheiques — retorqui, no mesmo instante. — Tenho sobre a beleza incomparável de minha futura noiva, duas indicações preciosas, de grande valor. Primeiro: Sálua é vossa filha!

        — E qual é a outra? — indagou o cheique, lisonjeado na sua vaidade de pai.

        — Houve um rajá que a desejou para esposa. Não conheço vossa filha, é certo, mas conheço muito bem os rajás; e sei que são homens que não caminham de olhos vedados pelas estradas da vida!

        — Aceito o teu pedido — replicou, risonho o cheique. — És, ó jovem, mais inteligente do que eu pensava. Dou-te minha filha em casamento e tomo-te, de hoje em diante, sob minha proteção.

        Foi assim que fiquei noivo em Bagdá. O sol anunciava no horizonte azulado do Islã a hora da prece do crepúsculo.

        A voz clara do muezim perdia-se em ondas vagarosas pelo céu.

        E naquele momento, precisamente, em que o Destino parecia concluir a página mais feliz da minha louca existência, apontando-me o caminho da Ventura e do Amor, chegava-me aos ouvidos aquelas palavras eternas, que me arrancavam do mundo dos sonhos para a realidade triste da Vida.

        — Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Allah...

     

    1- Eram, em geral, as velhas que freqüentavam os haréns que davam aos namorados indicações sobre os predicados das jovens casamenteiras.

     

     

       O MARIDO ALUGADO

    Rachid Biram, homem generoso e rico, que negociava em jóias e sedas, procurou-me um dia, muito aflito, em minha tenda.

        A sua situação era delicada e, na verdade, apresentava não pequena dificuldade. Dentro de algumas horas, antes de surgir a lua, deveria partir com uma grande caravana de mercadores damascenos para a feira de Hil. Queria, porém, antes de iniciar essa longa jornada, casar-se outra vez com a encantadora Naziha, sua ex-esposa, que oito dias antes, num momento de exaltação, levado pelo ciúme, havia repudiado segundo a fórmula sagrada.

        — Conheço aqui em Kufa — disse-lhe, sem muito hesitar, — um certo Musa ibn-David1 que se aluga para marido. Por que não o procuras? Deves obter, agora mesmo, um “marido desligador”.

        Antes de prosseguir, devo um esclarecimento aos leitores que ainda não percorreram, ao passo lento das caravanas, os intermináveis desertos da Arábia.

        Segundo as instituições muçulmanas, quando um marido repudia a esposa uma ou duas vezes, pode recuperá-la, sem mais formalidades, ao fim de três meses e dez dias; quando, porém, o repúdio é feito pela terceira vez ou mediante a fórmula: — “Eu te repudio três vezes” — o casamento está definitivamente rompido e o ex-marido só poderá contrair novo casamento com essa mesma mulher, no caso em que ela se case com outro homem, sendo pelo novo marido igualmente repudiada!

        Tal exigência do Alcorão — que os doutores afirmam ser justificável em teoria — é na prática uma fonte fecunda de situações cômicas e extravagantes, pois, muita vez, um marido, desejoso de reatar relações com a esposa que repudiou impensadamente, prepara para ela a farsa ridícula de um casamento com um “marido alugado”. Homens há que se prestam, mediante boa remuneração, a desempenhar o papel de marido “desligador” — preenchendo as formalidades de um casamento burlesco que dura, às vezes, pouco mais de uma hora.

        Musa ibn-David era um dos tais que se “alugavam” para marido. Era provável, pois, que servisse ao rico Rachid Biram.

        “— Já o procurei — declarou Rachid. — Ofereci-lhe uma boa recompensa, mas ele não a aceitou.

        — Por Allah! — exclamei. — Não é possível! Musa sempre se prestou ao ignóbil papel de marido alugado e não será, portanto, capaz de recusar uma oferta desta ordem.

        Montei a cavalo e, acompanhado de um guia negro, dirigi-me no mesmo instante para a tenda do marido mercenário.

        Encontrei sentado à porta um velho de longas barbas brancas. Era o pai de Musa.

          

    1- Musa ibn-David. — Musa, filho de David.

       

    — Naharak, sahid, ia qhawaja!1 — saudei-o, ao chegar. — Onde está Musa, ó David?

        — Partiu há pouco para o deserto de Hajar — respondeu-me o ancião — e só voltará depois da outra lua!

        — Sabes, ó cheique! — Perguntei — por que motivo Musa não quis servir de “marido desligador” ao rico Biram?

        — Sei, sahheb2 — respondeu-me. —- Meu filho, quando ainda muito jovem, conheceu Naziha e apaixonou-se por ela. E bem sabes que um homem digno não poderia fazer, com a mulher amada, o papel de marido alugado!

        — Uallah! — exclamei. — Ridícula desculpa! Arrojada tolice! Um homem que exerce a degradante profissão de teu filho não pode ter semelhantes escrúpulos! A formosa Naziha conhece-o bem e considera-o, por certo, mais desprezível que o chacal!

        — Por Maomé! — exclamou o velho erguendo-se, colérico. — És um covarde! Procuras ofender meu filho quando sabes que já não tenho forças para repelir os teus insultos! Queira Allah que sejas castigado como mereces, pois o castigo de Deus está mais perto do pecador do que as pálpebras o estão dos olhos!

        E o eco dessa praga terrível acompanhou-me os passos pelo deserto.

       

        Nesse mesmo dia, ao cair da tarde, achava-me sentado à porta de minha tenda, meditando sobre o caso de Musa ibn-David, quando de mim se acercou uma jovem, completamente velada, que se fazia acompanhar de duas escravas.

        Saudei-as respeitosamente e perguntei-lhe o que de mim desejava.

        Respondeu-me, com voz terna e maviosa:

        — Que Allah te cubra de dons, ó jovem! Informaram-me hoje, pela manhã, que estavas de passagem por esta cidade com uma caravana de mercadores do Cairo e de Damasco, e que hoje mesmo partirás para Bagdá e daí para Basra. Quero comprar alguns vestidos, peças de adornos e jóias.

        E, enquanto falava, a jovem foi pouco a pouco erguendo o seu espesso véu, deixando descoberto o pequenino rosto, em cujas linhas o Divino Artista fizera aparecer os mil segredos da sedução. Fiquei deslumbrado! Exaltado seja Allah, o Único, que soube reunir tanta beleza no olhar e tanto encanto no sorriso de uma mulher formosa!

        Seduzido pela incomparável beleza da jovem desconhecida, prontifiquei-me a mostrar-lhe, no

        mesmo instante, todos os ricos artigos que levava: sedas, vestidos, tapetes, casemiras da índia, colares, cafetãs de veludo, telas riquíssimas do Indostão, véus bordados a ouro, sapatos da Pérsia, peles do Cáucaso e mil outras coisas igualmente preciosas e deslumbrantes.

        Duas horas ficou a jovem em minha tenda a examinar e escolher os objetos que pretendia comprar. Durante todo esse tempo, Hadija — assim se chamava a linda muçulmana — falou-me  de sua  vida  no  harém de seus pais, que eram ricos e viviam num

    grande serralho junto ao Eufrates.

        — Hadija — declarei, afinal, num ímpeto, tomando-lhe as mãos entre as minhas — devo partir amanhã para Bagdá. Confesso-te, porém, que estou loucamente apaixonado por ti! Queres casar comigo?

     

    1- Bom dia, ó chefe!

    2- Sahheb — Título honroso. Corresponde a Senhor.

       

    Com um sorriso encantador, que por timidez parecia procurar refúgio nas covinhas das faces, ela assim me respondeu:

        — Ó jovem tão bem dotado! Teu pedido traz grande alegria ao meu coração! As tuas palavras, como o vento no deserto, erguem bem alto a areia ardente dos meus desejos! Quero ser tua esposa e acompanhar-te pelo mundo na tua vida aventureira e incerta de mercador!

        E, como não houvesse tempo a perder, ficou resolvido que o casamento se faria imediatamente.

        Uma hora depois, no grande salão do palácio em que morava Hadija, realizou-se o casamento, segundo os preceitos muçulmanos, na presença do cádi e das testemunhas.

        Terminada a cerimônia, deixei rapidamente o salão e fui falar com alguns amigos e empregados que me tinham acompanhado.

        Quando voltei para junto dos convidados, aguardava-me a mais dolorosa das surpresas. Fui encontrar minha esposa, em um canto do salão reclinada sobre um rico divã que um largo reposteiro ocultava; estava abraçada a um jovem, que a beijava apaixonadamente nos olhos negros e na boca nacarina e fresca.

        — Ó falsa criatura! — bradei, tomando de grande furor. — Ainda não há uma hora que nos casamos e já tens um amante! Longe de mim, mulher indigna, filha de Cheitã1

         E, revoltado com o procedimento da desleal que eu escolhera, para esposa, gritei, cheio de cólera, a fórmula definitiva do divórcio:

       

         — Ó falsa criatura! — bradei, tomado de grande furor. — Ainda não há uma hora que nos casamos e já tens um amante!

     

    1- Cheitã - Demônio.

       

    — De ti me divorcio três vezes!

        Ao ouvir tais palavras, ergueu-se a jovem, e, com voz calma, irônica, disse-me:

        — Julgas então que eu tenho amante? És um tolo, um pateta! Olha! Olha bem! Este “jovem” que me abraçava e beijava é a minha boa escrava Zobeida, que fiz vestir com trajes masculinos! Foste completamente ludibriado e estou de ti para sempre divorciada!

        Foi com espanto que percebi o engano que cometera num momento em que o ciúme e a paixão me haviam tornado cego. A pessoa que estava com Hadija era realmente uma escrava disfarçada com os cabelos cortados e vestida à maneira dos homens.

        — Hadiji! — exclamei. — Não sei como explicar o teu estranho proceder. Se não querias ser minha esposa, por que aceitaste o meu pedido de casamento?

        — Devo-te uma explicação, ó muçulmano — tornou a jovem. — Há dois meses, mais ou menos, meu marido, Salim Hamed, num momento de exaltação, divorciou-se de mim, pronunciando três vezes a fórmula sagrada do divórcio. Ontem, porém, procurou-me e propôs a reconciliação e um novo casamento. Infelizmente, segundo as nossas leis, eu não poderia casar com ele sem ter casado antes com outro homem que me repudiasse. Na falta de um “desligador” de confiança, resolvi lançar mão de um estratagema. Casei contigo e procurei dar-te um pretexto, embora falso, para que me rejeitasses imediatamente. Agora, sim, posso casar com Salim Hamed!

        E voltando-me as costas, deixou-me estupefato diante do cádi e das testemunhas que se riam de mim.

        Eu havia feito, sem querer, o ridículo e ignóbil papel de marido desligador!

        O castigo de Deus está realmente, mais perto do pecador, do que as pálpebras o estão dos olhos!

     

         A DANÇARINA HINDU

    Ao atravessar, naquela tarde, a secular praça de El-Madhi, avistei um jovem e elegante cheique, de turbante verde, que saía do “ha-mã”1 acompanhado de dois escravos negros. Mal pousara em mim os olhos, o desconhecido veio ao meu encontro e saudou-me à maneira clássica dos árabes nobres:

        — Allah badich, ia sidi! Deus vos conduza, senhor!

        — Katter quhairag — respondi, agradecendo. — Que Allah torne felizes os dias de tua vida, ó jovem!

        E certo de que não me seria difícil, num rápido “haddis”2 descobrir a identidade daquele amável muçulmano, disse-lhe com a intenção de provocá-lo a uma ligeira palestra:

        — Já sabes, meu amigo, que amanhã, ao nascer do sol, se Allah quiser, partirei para Basra chefiando a grande caravana de mercadores?

        — Já sei, sidi — respondeu-me. — Estou bem-informado de todos os recursos de que dispõe a nossa caravana!

        E o cheique acentuou bem a expressão “nossa caravana”, fitando em mim os seus olhos vivos, com o disfarçado desejo de ler nos meus a surpresa que suas palavras deveriam causar-me.

        Ualá! Nossa caravana? Eu conhecia todos os mercadores, guias e cameleiros; não havia, entre os homens que me acompanhavam — desde o beduíno sem nome ao mais orgulhoso chamir3 um só que me fosse estranho. Como admitir que aquele desconhecido pertencesse ao número dos “meus viajantes”?

        — Sou o cheique Fauzi Jabor, auxiliar do sultão Al-Mamum! — disse-me. — Devo ir a Basra levar uma ordem secreta para o governador. O grão-vizir já não vos falou a meu respeito?

        Sim, era verdade. Recebera, dias antes, do primeiro-ministro, uma ordem para conduzir até Basra um emissário do califa. Já não era, aliás, a primeira vez que me acontecia levar nos ricos cheqdefs4 da caravana mensageiros, escribas e agentes da corte muçulmana.

        — Sinto-me feliz, ó cheique — tornei eu — por saber que vou tê-lo como companheiro de jornada. Que as grandes alegrias e os violentos simuns nos encontrem sempre juntos. A amizade desinteressada dos nobres só pode honrar aos aventureiros do deserto!

        

    1- Casa de banhos.

    2- Haddis — Conversa ligeira. Troca de palavras.

    3- Chamir — Chefe de caravana.

    4- Cheqdef — Espécie de palanquim, colocado sobre o camelo.

     

        E, enquanto conversávamos alegremente como velhos amigos, íamos caminhando, lado a lado, pelas ruas mais movimentadas. A pequena distância, os dois escravos negros, os braços cruzados sobre o peito, nos acompanhavam solenes.

        — Em que pretendeis ocupar, afinal, as vossas horas, em Bagdá, até o momento da partida? — perguntou-me o cheique.

        — Penso em despedir-me de alguns amigos.

        — Despedidas? — É tarde demais para tão ingrato passatempo! Informado pelos meus auxiliares de que seria obrigado a partir amanhã, à hora do “sefer”1 já apresentei aos bagdalis2 o meu salã3 da ausência. Vou ver agora a famosa bailarina hindu que chegou ontem de Mossul. Dizem que é linda como a gazela. Queres ir comigo, chefe?

        E vendo-me indeciso, insistiu, risonho, puxando-me pelo braço:

        — Emchi narruhh! Vamos! Emchi narruhh!

        Há duas coisas que o árabe não sabe recusar: a tâmara quando é doce, e o convite interessante quando é amável!

        — Emchi naíhbad! — respondi. — Vamos!

                     

        A escrava que nos recebeu à porta, ao ouvir o nome do cheique, deixou-nos entrar imediatamente e conduziu-nos por um longo corredor, até uma sala espaçosa, ricamente decorada, onde já se achavam três outros visitantes.

        Fauzi Jabor conhecia os presentes e a cada um deles dirigiu um afetuoso sala:

        — Masa al-qhair, cheique!

        — Kif el-solha, cheique!

        Sentei-me numa grande almofada. Uma circassiana trouxe-me belo narguilé de prata com a brasa já preparada. Sentia-se no ar um cheio embriagador de fumo e haxixe.

        Um dos visitantes, depois de trocar algumas palavras com um velho que se achava a seu lado, descruzou, lentamente, as pernas, levantou-se vagaroso como um elefante e veio acomodar-se junto de mim. Era barrigudo e disforme; usava turbante alto, malfeito, sob o qual aparecia um rosto redondo, esverdinhado, cheio de máculas escuras. Tinha os olhos vidrados, acéticos, tristonhos.

        — Uma palavra, cheique — disse-me, quase em segredo. — És o chamir da grande caravana que parte hoje4 para Basra?

        — Julgo que sim — respondi, sem procurar disfarçar a má vontade com que mal o podia tolerar.

        Insistiu, impertinente, com a voz cada vez mais elevada.

        — Dize-me, então, que ordem misteriosa é essa que o jovem Fauzi Jabor vai levar ao governador de Basra?

        — Lamento não poder informar-vos. Excelência5 — retorquiu, abespinhado. — Não sou um “djin”6, nem aprendi com os marabus da Pérsia a descobrir pela cor da lua o segredo das coisas ocultas. Posso assegurar-vos que nem mesmo o meu nobre amigo Fauzi Jabor conhece os termos da carta de que é portador. É uma ordem secretíssima do nosso amo e senhor, o glorioso califa Al-Mamum, Emir dos Crentes. Só Allah sabe a verdade!

          

    1- Sefer — Prece feita ao nascer do sol.

    2- Bagdali — Indivíduo natural de Bagdá.

    3- Sala — Saudação dentro do Islã.

    4- Para os árabes a noite precede o dia. A noite do dia 7, por exemplo, começa ao pôr-do-sol do dia 6.

    5- Excelência — Tratamento dado aos vizires do sultão. Aplicado a qualquer pessoa é ironia.

    6- Djin — Gênio dotado de grande poder.

     

        O meu inquiridor fez-se cor de cal, levantou-se visivilmente contrariado e foi retomar o lugar em que se achava, rosnando contra mim ameaças descabidas:

        — Algum dia, “chamir”, a tua discrição será causa de uma desgraça!

        E ia eu intimamente desejar que a alma daquele estúpido fosse presa de Cheitã1, o Execrável, quando Fauzi Jabor, o cheique, surgiu conduzindo, orgulhoso, pela mão, a formosa dançarina hindu.

        Ao vê-la, fiquei deslumbrado. Jamais o destino fizera com que se me deparasse na vida criatura mais sedutora. Não fosse a barreira do pecado, não teria dúvida em elegê-la, naquele mesmo instante, a sexta mulher perfeita do Islã2.

        Fauzi Jabor não fazia empenho em ocultar que estava apaixonado pela infiel. E quem seria capaz de censurá-lo? A dançarina tinha, a meu ver, as treze perfeições que Allah, o Clemente, concede às huris do Paraíso. Treze? Treze, não. Treze menos uma, com certeza!

        Com espanto dos circunstantes, a bailarina apontou para mim com seu braço nu:

        — É aquele, Fauzi, o teu amigo chefe da grande caravana?

        Levantei-me, respeitoso, e disse-lhe:

        — Lála3, não passo de um humilde beduíno do deserto. Seria, entretanto, capaz de enfrentar uma legião de panteras, se depois de tal proeza houvesse de ter por prêmio, a honra de ser incluído no número de vossos escravos!

        Nazira — assim se chamava a bailarina — sorriu, lisonjeada.

        — Mach Allah! Se me permitissem os distintos amigos aqui presentes, eu gostaria de dizer algumas palavras, em segredo, ao chamir da caravana!

        — Pois não! Pois não! — exclamaram os cheiques.

        Fauzi Jabor disse-me:

        — Acompanhai Nazira, ó beduíno feliz! Ela confidenciou-me que tem um pedido a fazer-vos!

        Atravessei a sala contando meus passos pela indizível timidez que me dominava. Ao passar junto do indiscreto barrigudo esverdinhado, o repelente cheique segurou-me pelo braço e bafejou no meu ouvido:

        — Cuidado, chamir! Essa mulher tem um mistério qualquer na vida! Cuidado!

        Levou-me a bailarina para um aposento vizinho. Uma escrava persa, com gestos lânguidos, ofereceu-me, num prato dourado, frutas, doces secos e um delicioso vinho de Chipre.

        A bailarina, cruzando as pernas, numa atitude graciosa, sentou-se a meu lado. Um perfume esquisito evolava-se de rico hattarak4; pequenina lâmpada azul, sobre um camelo de bronze, derramava pelas coisas uma aparência de mistério.

        Chegava vagamente aos meus ouvidos o som triste de um alaúde.

        — Já te disseram, chamir — começou Nazira, num tom mavioso de paciência — que eu tenho na vida um mistério? É inútil negar. Ouvi perfeitamente a insinuação daquele detestável chacal, que desde Mossul me vem perseguindo com suas toleimas. Infelizmente não é mentira. Pesa sobre a minha existência o tormento de um segredo. Já colhi a teu respeito, chamir, várias informações; estou certa de que és honrado, valente e discreto.

        — Senhora! Outra recompensa não quero senão os elogios que brotam dos vossos lábios bondosos!

     

    1- Cheitã — Demônio.

    2- Segundo as crenças muçulmanas, as mulheres perfeitas foram em número de cinco, e figuram, imortais, no Alcorão.

    3- Lála — Tratamento respeitoso; significa senhora.

    4- Vaso especial em que se queimam perfumes.

     

        Nazira prosseguiu:

        — Preciso do teu auxílio, chamir. E para que possas, com segurança, dispensar-me o teu amparo, é mister que conheças previamente o tão falado “mistério” de minha vida.

        — Aos treze anos — começou, com suave mágoa — casei-me, por imposição de meu pai, com um gramático de Medina, homem perverso, avarento e sem escrúpulos. Antes mesmo que nascesse o nosso primeiro filho, meu marido vendeu-me a um aventureiro sírio, chamado Kaslã, que exibia pelas cidades bailarinas escravas. Foi então que aprendi o triste ofício que hoje exerço. Quando nasceu o meu filho, resolvi consultar sobre o seu futuro um certo marabu de Medina, que sabia ler na areia o destino das criaturas. Disse o marabu: — “Tua beleza, mulher, será a causa da morte de teu filho!” Chorei, desesperada, ao saber que o Destino havia escrito na página de minha vida tão trágico sucesso. Dizem os cristãos que é possível, às vezes, alterar-se a marcha dos acontecimentos. Que fazer? Mutilar-me? Sim, pensei nessa solução desesperada. Com dois ou três golpes seguros de punhal eu conseguiria, como uma selvagem africana, deformar para sempre as linhas perfeitas do meu rosto. Kaslã, informado desse hediondo projeto, ameaçou-me de morte! Por Allah! O gramático avaliara a minha beleza em vinte camelos de sela! — “Se tens medo do Destino — dizia-me — separa-te de teu filho. Manda-o para outra cidade, para outro país. Longe de ti ele estará salvo da previsão do marabu; a tua beleza não lhe poderá fazer mal algum”. Segui tal conselho, que me pareceu razoável e certo. Mandei meu filho para Basra com alguns bons peregrinos que regressavam de Meca. E desde esse dia nunca mais tornei a vê-lo. Sei que vive ainda; é forte, e belo! Tem agora dezoito anos; chama-se Tasib Zalã e é muito estimado pela honrada família que o adotou.

        — E agora, chamir — concluiu Nazira, com voz trêmula — que estás de posse do grande segredo de minha vida, vou dizer-te qual o favor que espero merecer da tua boa-vontade. Quero que procures em Basra meu filho Tassib; perguntarás por ele ao muezim da mesquita de Shara-Sawa. A meu filho entregarás esta pequena caixa na qual reuni, durante dez anos, algumas economias. Com esse auxílio meu filho poderá casar-se sem recear as mil dificuldades da vida.

        E a bailarina colocou-me nas mãos uma pequena caixa repleta de moedas de ouro.

        — Lála — exclamei — o filho querido receberá o prêmio da dedicação materna! Juro por Allah, o Exaltado, que empregarei todos os esforços a fim de fazer com que esta valiosa dádiva chegue às mãos daquele a quem é destinada!

        E voltamos em silêncio para o salão. Fauzi Jabor e os outros cheiques divertiam-se com uma jovem escrava que cantava ao som de um alaúde um belo poema de Antar.

        Todos os olhares convergiram, curiosos, sobre mim.

        Assaltaram-me com desencontradas perguntas:

        — Que te disse a bailarina? Qual é o mistério de Nazira? Que desejava ela, antes de partir a caravana?

        — Não sei — respondia sempre aos importunos. — Não sei.

        E não houve quem percebesse que eu escondia, sob o meu largo “keffié” de seda, a pequenina caixa cheia de ouro.

        Nazira — a pedido dos cheiques — resolveu executar a chamada Dança do Dragão.

        Aproximei-me de Fauzi e disse-lhe:

        — Vou deixar-vos, cheique! Já vai adiantada a noite. Pouco falta para que o muezim chame os fiéis à primeira prece. Quero verificar se os camelos estão carregados, as tendas arrumadas e se os guias estão nos seus lugares.

        — Está bem — respondeu-me o cheique. — Vou ficar aqui, neste delicioso refúgio, mais algum tempo. Na hora da partida — é certo — lá estarei com meus ajudantes e servos.

        — Por Allah! Qualquer atraso será grande transtorno para a caravana!

        A formosa dançarina, com seus trajes coloridos e vistosos, executava, diante de um grande tapete, onde aparecia a figura fabulosa de um dragão, uma das danças características da Pérsia antiga.

        Tive a impressão de que o dragão fantástico rondava a bailarina, prestes a devorá-la. A fatalidade — dizia El-Hadira1 — é como o dragão da lenda; cai de repente sobre a vítima para esmagá-la com as garras do Infortúnio!

       

        A caravana estava pronta. Até os ajudantes de Fauzi Jabor, com os seus trinta e cinco camelos perfilavam-se já nos seus lugares.

        Terminada a prece, disse aos guias da frente:

        — Não é possível partir neste momento. O emissário do califa — pessoa da mais alta distinção, — ainda não chegou, mas não deve tardar. Sem ele a caravana não partirá. Esperemos.

        Fauzi Jabor, entretanto, apesar do prometido, não aparecia.

        Sentia-se que a impaciência agitava os beduínos. Um dos mercadores perguntou-me:

        — Por quem esperamos, chamir? Será possível que a caravana fique o dia inteiro parado ao sol, à espera de um príncipe folgazão que se diverte com bailarinas?

        Respondi-lhe, num tom áspero, que não admitia réplica:

        — Aqui quem manda sou eu! Se não te serve a caravana, o deserto é livre! Podes ir!

        E submissos, sem revolta, os homens por mim chefiados esperaram.

        Infelizmente, porém, só no dia seguinte, ao pôr-do-sol, foi que Fauzi Jabor deixou a casa da formosa bailarina.

        E a grande caravana, com um dia e meio de atraso, ganhou lentamente a estrada do deserto.

        Os cameleiros resmungavam, maliciosos:

        — A bailarina é bela! A caravana que espere! Os grandes albornozes brancos, soltos no ar, pareciam pássaros gigantescos que surgiam da terra.

       

        Depois de uma jornada feliz — assim quis Allah, — entramos em Basra.

        Havia, quando chegamos, na praça de Moalhim, um grande ajuntamento de populares. Informaram-me de que ali também se achava o governador Ahme-Ibn Makula, com seus auxiliares e escribas. Sem perda de tempo fui ter à presença do cádi, saudei-o respeitosamente e apresentei-lhe, em seguida, o chefe Fauzi Jabor, que se achava, então, a meu lado.

        — Allah conserve o cádi! — exclamou o jovem Fauzi, aproximando-se. — O califa Al-Manum, Emir dos Crentes, ordenou-me que fizesse chegar às vossas mãos esta mensagem. Que Allah conserve o cádi!

    O poderoso governador de Basra tomou da carta que o cheique trouxera, tirando-a com vagar do sobrescrito.

     

  1. Antigo poeta árabe.

     

        — Lamentável! — exclamou o governador, mal havia terminado a leitura do breve documento.

        — Não posso infelizmente atender ao que determina aqui o glorioso califa Al-Mamum, nosso amo e senhor! Esta ordem chegou-me tarde às mãos!

        — Como assim? — interroguei, assustado. — O atraso com que chegamos teria sido causa de alguma desgraça?

         — É verdade, chamir — concordou o cádi.

         — Lamentável! — exclamou o Governador, mal havia terminado a leitura do breve documento. Esta ordem chegou-me tarde às mãos.

        — A mensagem que o jovem Fauzi Jabor trouxe de Bagdá era da maior importância; tratava-se de uma ordem do sultão para que fosse comutada a pena de morte de um condenado. O perdão do nosso generoso califa nada mais adianta; o infeliz prisioneiro foi executado hoje, pela manhã!

        Naquele momento — sem que eu pudesse explicar o motivo —, um terrível pensamento atravessou-me o espírito. Era bem verdade que a famosa bailarina tinha sido, indiretamente, culpada da morte do condenado, pois fora ela quem, com seus encantos, prendera o cheique em Bagdá, retardando por muitas horas a partida da caravana!

        — E como se chamava — perguntei — o infeliz que foi executado por não ter chegado a tempo a ordem do califa?

        Um dos oficiais do cádi respondeu:

        — Chama-se Tassib Zalã, o poeta, e era natural de Medina!

        Ouviu-se um forte ruído metálico. Era a caixa de Nazira, que eu trazia oculta, presa sob o braço, e que por descuido meu caíra inesperadamente ao chão. As moedas de ouro espalharam-se pela areia. Fiz com que o valioso presente fosse repartido entre os pobres. Na verdade, a pessoa, a quem era destinado aquele ouro rutilante, não precisava mais das recompensas do mundo, pois já havia comparecido ao julgamento de Deus!

     

    UMA LENDA SOBRE A BELEZA

    No livro sagrado, que os sábios intitulam “O Lótus da Lei Perfeita”, encontrarás, meu amigo, depois da décima página, uma lenda esquecida pelos homens, apesar de estudada por sete profetas. Refiro-me à Lenda da Beleza que venceu o Tédio e conquistou a Vida.

        Certa vez, por um triste capricho da Fatalidade, o poder do mundo foi cair nas mãos odientas da Vulgaridade.

        — Que fez a Vulgaridade ao subir ao trono? Resolveu destruir e aniquilar a sua perigosa rival — a Beleza.

        Chamando o Tédio, seu servo predileto, disse-lhe a execrável soberana:

        — Detesto a Beleza! Quero fazê-la desaparecer da face da terra. Tens ordem para pendê-la e matá-la de qualquer modo.

        O tédio respondeu:

        — Escuto e obedeço, senhora! Mas, afinal, como é a Beleza? Como poderei encontrá-la, se não a conheço?

        — Ora, nada mais simples — tornou a Vulgaridade. — Interroga um poeta qualquer e logo saberás como é a Beleza.

        Partiu o Tédio. Encontrando um poeta interpelou-o:

        — Como é a Beleza?

        Sem hesitar, respondeu o poeta:

        — Ainda ignoras? A Beleza é loura, de olhos azuis da cor do céu; a sua pele é clara e rosada, as suas mãos...

        — Basta! Tudo o mais que disseres seria fastidioso e inútil. Já sei como é a Beleza! Vou descobri-la por mais oculta que esteja.

        E o Tédio partiu em busca da Beleza...

        Depois de muito caminhar, chegou ao país de Moab, para além do grande deserto. Um camponês repousava sob uma árvore.

        — Terás visto, por aqui — perguntou o Tédio — a Beleza que procuro?

        — Queres descobrir a Beleza! — exclamou o camponês. — Ei-la precisamente ali, ó forasteiro!

        E apontou na direção de uma jovem que se encaminhava para a ponte, levando ao ombro um pequeno cântaro.

        O Tédio procurou certificar-se. A graciosa rapariga era morena, de olhos verdes e cabelos castanhos como as filhas de Judá! Mas como diferia da que fora descrita pelo poeta! Não, não podia ser a Beleza!

        — A Beleza fugiu para a China! — informou um peregrino.

        Seguiu o Tédio para a China e indagou de um rico mandarim que soltava papagaios de seda:

        — Senhor! Teria a Beleza aparecido em vossa terra?

        — Apareceu, sim — replicou, alegre, o mandarim. — Ei-la!

        E com o seu dedo de unha longa e angulada, apontou para uma rapariga ocupada em fabricar lanternas de papel.

        O escravo da Vulgaridade preparou-se para executar a ordem que recebera. Enganara-se, porém, o informante. A jovem que o mandarim indicara era pálida, esguia, tinha os olhos amendoados, os cabelos negros e ondulados. Não; aquela não podia ser a Beleza!

        O Tédio deixou o país dos chineses e foi em busca de outros climas. Diante dele a Beleza fugia sempre, ocultando-se astuciosamente. Todo o seu esforço tornou-se inútil. Não conseguiu encontrar e destruir a Beleza!

        E o livro admirável “O Lótus da Lei Perfeita” — ensina com sua eterna e incomparável sabedoria:

        — Eis por que a Beleza floresce e domina, sob aspectos tão diversos, quando a observamos, nos inconquistáveis recantos e países do mundo. Aqui é morena e tem olhos negros, mais adiante é loura, de claros olhos de anil. Aqui é viva e alegre, para, além, surgir sentimental e terna!

        É que a Beleza, para fugir do mal do Tédio e ao perigo da Vulgaridade, varia sempre e sem cessar.

    Partiu o Tédio. Encontrando um poeta interpelou-o. — Como é a Beleza?

       

    PARÁBOLA DAS MÃES FELIZES

    (De um poema árabe do século XII)

    Jovem mãe ia, enfim, iniciar a grande jornada pela estrada incerta da vida. E perguntou, muito tímida, ao Anjo Bom do Destino:

        — É longo o caminho a percorrer, Senhor? Serei feliz com meus filhos que tanto amo e estremeço?

        Paciente e benévolo e com voz cheia de meiguice, respondeu-lhe o Anjo Bom do Destino:

        — O caminho, que se abre diante de ti, é longo muito longo, semeado de angústias, recortado de dores e tapetado de fadigas. Antes de alcançares a curva extrema, virá a impiedosa velhice ao teu encontro. Ainda assim, asseguro-te que os teus derradeiros passos serão mais cheios de alegria e ternura do que os primeiros.

         E a jovem mãe partiu. Sentia-se extremamente ditosa em companhia de seus filhinhos.

         — O caminho, que se abre diante de ti. é longo, muito longo, semeado de angústias, recortado de dores e tapetado de fadigas.

       

        A existência lhe decorria sob o véu de um delicioso encantamento. Brincava com os pequeninos; colhia para eles, unicamente para eles, as mais lindas flores que adornavam os caminhos do mundo. E o sol brilhava, inundando a terra com a bênção de suas torrentes de luz.

        E o dia se escoava tão sereno, que a jovem mãe murmurou, fitando, enternecida, o céu azul:

        — Nada haverá, Senhor, de mais belo! Jamais serei, na companhia de meus filhos, mais feliz do que o sou agora!

        A noite veio, porém, alongando sobre a terra o seu manto pesado e sombrio. Nuvens disformes amontoaram-se no firmamento; desabou o temporal. O vento norte uivava como um chacal faminto correndo tonto pelos areais sem fim. Os pequeninos, tolhidos de frio, trêmulos de medo, soluçavam. A jovem mãe destemida aconchegou-os a si, agasalhando-os sob sua túnica; e as crianças, bem abrigadas e protegidas, murmuraram docemente, docemente murmuraram:

        — Ó mãezinha querida! O medo já não se abriga em nossos corações! A teu lado, mãezinha adorada, nenhum mal nos alcançará!

        E a jovem mãe exclamou num ímpeto de alegria:

        — Isto para mim, ó Deus! É mais belo e grandioso do que a jornada pelo caminho tranqüilo, sob o esplendor do dia! Sinto-me, realmente, feliz! Mais feliz do que ontem! Contra a tormenta protegi meus filhos e lancei, para sempre, em seus corações, a semente do destemor, da confiança e da coragem!

        Passou a noite. Louvado seja Deus! A noite passou. Raiou, esplêndida e balsâmica, a alvorada. A estrada, naquele terceiro dia, se estendia, ladeirenta, pelo dorso de uma montanha alcantilada e perigosa. Era forçoso subir. Subir muito. Os pequeninos sentiam-se fatigados. A jovem mãe, quase desfalecida de sede e de cansaço. Fazendo, porém, das fibras coração, mostrava-se animosa, e, sem cessar, dizia aos filhos:

        — Vamos! Para cima! Breve chegaremos ao alto! Vamos! Subamos sempre! Subamos!

        E essas palavras multiplicavam energias que o esforço constante e excessivo queria aniquilar. E as crianças iam subindo, subindo... Chegaram, finalmente, ao cimo da montanha. A jovem mãe os enlaçou, então, em seus braços carinhosos. E eles lhe disseram:

         — Ó mãezinha querida, sem ti não teríamos conseguido vencer estas escarpas, contornar estes abismos e levar a bom-têrmo esta jornada. Sem o teu auxílio incomparável sucumbiríamos em meio da escalada. Sabemos, agora, como superar os grandes tremedais da sorte!

        E a delicada mãe, ao repousar naquele dia, semimorta, exclamou arrebatada:

        — Ó Deus, clemente e justo! O dia de hoje foi para mim melhor ainda do que o de ontem! Sinto-me mais feliz! Mais feliz do que nunca! Ensinei meus filhos a enfrentar bravamente os revezes e as tristezas da vida!

        No quarto dia, estranhas nuvens cor-de-chumbo cruzaram o céu. Um rugido surdo, que parecia partir das profundezas ignoradas da terra, enchia o ar soturnamente. De súbito, a imensa montanha tremeu; rochas descomunais desprenderam-se e rolaram com estrondo para os abismos apavorantes.

        Era o cataclismo que começava. Tão altas e densas erguiam-se as colunas de pó, que chegavam a cobrir a face do sol. E as trevas da noite desceram sobre a terra em pleno dia. A morte, com suas garras de fogo, rondava por toda a parte. Nem tenda havia nem caverna ou abrigo, onde um ser humano pudesse ter segura a curta vida. As crianças, presas de cruciante pavor, choravam. E a jovem mãe, serena e forte, lhes dizia:

        — Em Deus confiai, meus filhos! Olhai para cima! Deus não nos abandonará!

        E os pequenos confiaram em Deus. E Deus os livrou da fúria infrene. Ao findar aquele dia a mãe exclamou, em Êxtase, erguendo humilde para os céus os seus olhos cheios de gratidão:

        — Este foi o dia melhor da minha vida. Senhor! Ensinei a meus filhos a crer em Vós, a confiar em Vós, só em Vós, ó Deus misericordioso!

        Amontoaram-se os dias: sucederam-se os meses; os anos passaram. E a mãe, toda entregue à felicidade e ao bem-estar dos filhos, não sentiu o rolar intérmino do tempo. Os seus formosos cabelos fizeram-se brancos como a neve; o brilho desapareceu-lhe dos olhos; a face tracejou-se-lhe de rugas. Era, enfim, a velhice. Mas, que encanto para sua vida de mãe! Os filhos crescidos, fortes, cheios de alegria, pareciam redobrar neles a boa seiva que dela partira. Ela, a mãe feliz, curvada ao peso da vida, já mal podia caminhar. Os filhos, porém, ali estavam, a seu lado, para servi-la, honrá-la e obedecer-lhe!

        O mais velho dizia-lhe, carinhoso e com desbordante afeto:

        — Mãezinha! Quero hoje carregar-te em meus braços! Estás tão fraca e cansada!

        Protestava o mais moço com entusiasmo:

        — Que egoísmo é esse, meu caro! Hoje é meu dia. Eu, sim, é que irei carregar a mãezinha querida!

        E a mãe feliz sorria a um, abraçava a outro; beijava a ambos.

        Que bons e dedicados lhe eram os filhos. Sim, para o coração materno, fizera pausa o tempo. Eles eram ainda os seus filhinhos, os filhinhos ternos, estremecidos... E ela sentia-se tão feliz, tão feliz, que não achava palavras com que agradecer a Deus!

        Um dia, afinal, a mãe ditosa reuniu os filhos e disse-lhe, num fiozinho de voz:

        — A minha tarefa está finda, meus filhos. Vou deixar-vos. Irei para longe, para muito longe daqui ...

        O mais velho acudiu logo, carinhoso:

        — Pois iremos contigo, mãezinha! Ninguém nos poderá separar de ti!

        Ela não sustentou as lágrimas e deixando-as deslizar, insistiu com meiguice:

        — Não, queridos. Desta vez terei de ir só. Sozinha partirei.

        E eles, afeitos à obediência, mais uma vez obedeceram. E a boa velhinha partiu. Foi indo, vagarosamente, toda encurvada, trêmula...

        Diante dela, no extremo do caminho, abriram-se dois largos portões que refulgiam cheios de luz. Entrou. Uma voz, que mais parecia um cântico de glória, lhe dizia com infinita mansuetude:

        — Vinde a mim, ó mãe feliz! Vinde a mim!

        Os filhos, que a vigiavam de longe, viram-na de repente desaparecer:

        — Ela partiu para sempre! Não a veremos nunca mais! Nunca mais! — exclamaram emocionados. — Mas a santa lembrança dessa mãe querida viverá para sempre em nossos corações! Eduquemos nossos filhos como ela nos educou: na bondade, na obediência, no amor...

        E no silêncio da tarde que caía, lentamente, ouvia-se o sussurro de um chorar longínquo. Calaram-se todos.

        Que seria? Era o filho mais moço. O rosto entre as mãos, inconsolável, soluçava de joelhos, à margem da vida, com a dor da saudade a negrejar-lhe o coração:

        — Minha Mãe! Minha Mãe querida!...

     

    A LENDA SINGULAR DO VASO TORTO

    Era assim. Louvado seja Allah!

        Era assim que Amid, o velho oleiro de Samarcanda, fazia todos os dias.

        Terminada a tarefa, ao cair da tarde, examinava atentamente um por um, os vasos que o jovem Namedin, seu discípulo dileto, havia modelado. Orgulhava-se com o progresso daquele adolescente na difícil e delicada arte da cerâmica. Revelava o principiante, na execução das obras mais finas e delicadas, invulgar talento.

        Havia, entretanto, uma particularidade que fazia negrejar a dúvida no espírito do mestre. Todos os dias, entre os vasos impecáveis, esguios e bem torneados, repontava, fabricada pelas mãos ágeis do artífice, uma peça (e uma só!) lamentavelmente mal feita, torta e deformada. Como explicar a presença daquele aleijão único no meio de tantas perfeições e belezas? Decorreria a multidão de uma falha insanável ou não passaria tudo de um simples capricho do aprendiz?

        Amid, intrigado com o caso, resolveu desvendar o mistério. Como apurar a verdadeira origem daquele desacerto, daquela anomalia? Vou observar o trabalho (pensou o oleiro) a fim de precisar o momento em que Namedin claudica e erra. E assim fez. Um dia, da manhã até a quarta prece, o mestre acompanhou atento a faina do jovem. Era preciso descobrir a razão de ser do vaso torto...

        Afinal, o velho oleiro, sempre vigilante, viu satisfeita a sua curiosidade.

        

        

         Quando o vulto sedutor da namorada surgia, o aprendiz desorientava-se; suas mãos tremiam...

       

       

        Todos os dias, a uma certa hora, graciosa menina que residia para além da mesquita de Chan-Sindah, cruzava vagarosamente a rua. Namedin apaixonara-se por ela; e, por isso, ao vê-la passar sentia-se confuso, perturbado.

        Ali estava, afinal, a explicação do mistério. Quando o vulto sedutor da namorada surgia, o aprendiz desorientava-se; suas mãos tremiam e o vaso que se achava, naquele momento, na roda girante, sob os cuidados de seus dedos ágeis, sofria as conseqüências daquela desatenção.

        Como poderia o enfeitiçado oleiro, naquele instante de comoção, guiar com segurança os seus dedos, dominar os vôos de seu pensamento e aquietar os anseios de seu coração?

        Rejubilou-se o mestre de Samarcanda com a descoberta, e, a partir daquele dia, com mais carinho e interesse dedicou-se à nobre tarefa de orientar o discípulo querido. Ao amor, sim, e não à imperícia do artista deveria ele incriminar o aparecimento do vaso defeituoso. E que importava, afinal, a mutilação de uma peça no meio das outras? A mulher amada, com a sua presença perturbadora, fazia surgir uma obra defeituosa; mas com sua ausência, entretanto, inspirava dezenas de perfeições. E, ao ter notícia do caso, um poeta árabe, servo de Allah, escreveu três ou quatro poemas admiráveis que foram gravados em ouro e bronze no deslumbrante palácio de Tamerlão. O terceiro poema — lembra-me até hoje, muito bem! — começava exatamente assim:

       

        Ao ver aquele vaso torto

        Entre outros de forma esguia,

        Penso no destino, absorto:

        — A mão do oleiro tremia!...

       

        Louvado seja Allah que criou a Poesia, a Beleza e o Amor!

 

                                                                                            Malba Tahan

 

 

                      

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